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sábado, 6 de agosto de 2011

Regresso ao Futuro - Filme bem conhecido

REGRESSO AO FUTURO
George Gipe
CAPÍTULO I

Aqui na sala de estar de uma pacífica casa de subúrbios
uma família típica está calmamente instalada. O pai lê o jornal
da tarde, sem se aperceber de que uma calamidade está prestes
a ocorrer. A mãe limpa a louça do jantar, indiferente ao facto de
dentro de segundos o seu mundo ir ser reduzido a um remoinho
de lascas e restos atonizados. Os filhos estão nos quartos, a fazer
os trabalhos de casa, ignorando que só lhes resta uns momentos
de vida, que nunca mais voltarão a ter de se preocupar com os
trabalhos de casa. A mais poderosa força alguma vez criada pelo
homem está a pontos de ser desencadeada sobre eles, que nada
deste mundo podem fazer para a contrariar...

Cinco... quatro... três... dois... um...
Um segundo mais tarde houve um relâmpago branco e a
família sem nome foi envolvida por um impulso energético que
despedaçou as suas pequenas estruturas, deformando-as estranhamente
antes de separar corpos de cabeças, braços de dorsos,
pernas de abdómens. A casa de aspecto sólido limitou-se a
desmoronar-se em estreitas tiras de matéria e incendiou-se
instantaneamente numa contorcida avalanche de chamas. Um
efeito de poço de ar arrastou então os bocados de corpos e os
destroços de mobiliário e estuque para uma horrível massa
rodopiante, sugada pela atmosfera torturada. Seguiu-se um
longo momento de silêncio, com o ruído da explosão a desvanecer-se
num eco suave, que ecoava o fim da vida no planeta.
A turma não estava impressionada com o violento espectáculo
e suas consequências. Pelo menos não havia sinais visíveis de
surpresa, horror ou mesmo envolvimento profundo.
Contudo, o locutor - provavelmente ele próprio há muito
no descanso eterno - continuava a sua narração do filme sobre
energia atómica, de cerca de 1955:
Acabam de ver como esta poderosa força pode destruir
completamente uma sociedade que não esteja preparada para o
seu uso. Por este motivo, há quem proteste contra toda e qualquer
utilização de energia atómica. Mas agora é demasiado tarde
para recuarmos. As potencialidades desta força para o bem
ultrapassam as suas potencialidades para o mal. É uma fonte
vital de energia, que talvez venha a substituir a que tem a sua
origem no carvão ou mesmo a energia eléctrica convencional...
À maior parte da turma a conferência ilustrada entrava por
um ouvido e saía por outro. Era tarde, demasiado tarde para se
estar muito atento, e já todos tinham visto o filme. Algumas
pensavam noutras coisas; uns poucos faziam desenhos nas
capas dos livros, na semi-obscuridade.
Um aluno, o mais ousado e empreendedor da turma, ouvia
música rock em estereofonia. Tinha os olhos quase fechados e os
seus membros lutavam por permanecerem quietos, em vez de
seguirem o compasso, mas ele aceitava de bom grado essa
limitação enquanto os seus lábios formavam silenciosamente a
letra da canção:

Tenho de ter o teu amor...

Os cientistas prevêem que até ao ano 2000 pelo menos metade
das casas particulares da América estarão dependentes da
energia atómica...

Tenho de te abraçar... Preciso de te ter nos meus braços...

Haverá automóveis atómicos com motores do tamanho de
bolotas. Navios com dínamos nucleares poderão navegar sem
reabastecimento por períodos indefinidos, talvez de um ano.
Finalmente, a ideia de que gigantescos foguetões movidos por
combustível atómico irão à Lua e até mais longe será uma
realidade, saindo da ficção cientifica.

Dá-me outra oportunidade... Por favor, levanta-te para
dançar.
É a nossa oportunidade. A sorte de toda uma vida...
Dá-me outra oportunidade...
Não deixemos de a aproveitar...
Dancemos ainda uma vez...

O filme acabou com música, a que se seguiram ruídos
provenientes do projector, e depois fez-se ouvir uma única voz
suave de barítono:
- Dancemos ainda uma vez...
Vinte cabeças rodaram na direcção do cantor. Infelizmente,
uma delas era a do Dr. Arky, professor de Estudos Sociais.
O sentido da direcção disse-lhe imediatamente que o cantor era
Marty MacFly, mas a sua intensa miopia obnubilou alguns
pormenores: Em primeiro lugar, não viu Marty retirar habilmente
os auscultadores dos ouvidos e colocá-los no livro oco, que
também continha um minúsculo mas potente leitor de cassetes
Walkman. Nem o Dr. Arky viu o sorriso de inteligência que
Marty trocou com Jennifer Parker, a atraente jovem de 17 anos
sentada ao seu lado.
- Que foi isso, MacFly? - desafiou-o o Dr. Arky.
- Nada, sô tôr. Só estava a dizer que espero que todos
possamos dançar ainda uma vez.
- De facto.
Durante um longo momento o Dr. Arky observou o jovem,
procurando-lhe nas feições sinais de arrogância ou rebelião que
pudesse converter em causa de castigo. Cantar na aula era
tecnicamente suficiente, mas até o Dr. Arky sentia que um único
verso era desculpável. Se tivesse sido só isso. Fixou o jovem
MacFly com o seu olhar mais intimidante, esperando amedrontá-lo
ao ponto de confessar ou se comportar com mais arrogância
digna de castigo. Em vez disso, o belo rosto enquadrado por
cabelo castanho de comprimento médio limitou-se a devolver-lhe
o olhar, o que o enfureceu. Depois de um momento de
indecisão, o Dr. Arky evitou o confronto tão graciosamente
quanto lhe foi possível:
- Ora, como todos viram no filme - entoou -, as atitudes
quanto à energia nuclear eram bastante diferentes naquele
tempo... Também...
Foi interrompido pelos complicados ruídos que sempre precedia
um aviso feito pelo antiquado sistema de comunicação interna
da escola:
- Marty MacFly, é favor comparecer na secretaria - resmungou
a voz da secretária, ligeiramente acima do limiar da
inteligibilidade. - Tem uma chamada telefónica de emergência.
Marty MacFly.
- Deve ser o meu agente - murmurou Marty para
Jennifer e outros que pudessem ouvi-lo.
Teve a sensatez de permanecer no seu lugar até um relutante
movimento de mão do Dr. Arky o libertar. Então, agarrando
nos livros, apressou-se a sair da sala.
No quase deserto corredor entre as aulas, a sua disposição
vacilou entre a alegria de se libertar mais cedo da prelecção de
Arky subsequente ao filme e a preocupação de que houvesse
efectivamente uma "emergência". Que poderia ser? Um acidente
ou morte na família? Tinha 17 anos, e a sua vida até então havia
sido serena; não tinha pois qualquer premonição de desastre.
Além disso, por ser uma pessoa bem disposta e optimista, não
tinha tendência para ver a vida pelo lado escuro. Então, ao
aproximar-se da secretaria, o seu espírito agarrou-se à pior
calamidade possível que aquele dia em particular podia ter para
lhe oferecer: o cancelamento da audição do seu conjunto!

- Não - disse em voz alta. - Que não seja isso!
De súbito deu por ter apressado o passo, por ir quase a
correr.
O conjunto era tudo. Pelo menos de momento era a sua
possibilidade de ser alguém diferente de todas as outras pessoas.
Era a sua oportunidade de se evidenciar, impressionar,
conquistar amigos e influenciar pessoas. Sabia ter talento, sabia
existir a probabilidade de se tornar uma estrela do rock. Porém
havia algo mais profundo do que isso, um sentimento de liberdade
quando se confundia com o grupo. Nas ocasiões em que
estavam efectivamente a sair-se bem, sentia a excitação de fazer
algo de novo, de desafiar a sorte e de certo modo conseguir não
só não ser chamuscado mas sim glorificado. Era uma experiência
incorporal, arrastando consigo a sensação de ausência de
peso, a impressão de que não existia qualquer outro mundo para
além da espera alcançada pela sua música.
A Jennifer era bestial, claro. Ele estava verdadeiramente
conquistado por ela, sentia mesmo que a "amava" no sentido
mais adulto. Ela era linda, de presença divertida, e gostava da
música dele. Todavia, de certa maneira, ela não era tão importante
para Marty como a sua experiência musical. Talvez com o
tempo ela se tornasse muito mais valiosa para ele, mas de
momento Jennifer era deste mundo e a sua música do outro.
A secretaria da escola estava calma, povoada apenas pelo
pessoal do costume, com as suas caras de fuínhas, e por um aluno
sentado encolhido a um canto da sala de espera. No entanto, as
secretárias continuaram os seus trabalhos muito lenta e deliberadamente
durante mais de um minuto antes de uma delas
levantar os olhos o suficiente para Marty lhe atrair a atenção:
- Telefonema de emergência para mim - disse ele.
A cinquentona gorda, cujo nome Marty nunca chegara a
saber, indicou-lhe com um gesto que entrasse na zona da
secretaria e utilizasse o telefone que se encontrava sobre a sua
secretária. Depois, com delicadeza estudada, afastou-se para
uma secretária distante, a fim de que ele pudesse falar e ouvir
com maior intimidade.
Nada de semelhante fez Gerald Strickland, o encarregado
da disciplina na escola, que levava o seu trabalho tão a sério
como qualquer director de serviços prisionais. Cinco minutos
antes tinha sido ele próprio a atender o chamado telefonema de
emergência. Falso, pensara na altura. A voz do homem do
outro lado da linha soara ofegante e num tom de urgência mas
havia algo que lhe pareceu decididamente fingido. Strickland
considerava-se um estudioso da natureza humana, um mestre a
detectar qualquer manobra enganadora. Apesar de ter mais de
sessenta anos e se aproximar do fim da sua carreira de educador
apreciava o combate mental diário com os jovens egoístas para
quem ele não era mais do que um desagradável obstáculo à sua
afirmação. Strickland sabia que se riam dele nas suas costas,
que troçavam por usar lacinho todos os dias e que o consideravam
um tirano. Mas, por Deus, não se riam quando ele os olhava.
Dos lábios não lhes provinha saídas de esperteza quando os
interrogava. Sabiam que ele tinha o poder de lhes tornar as vidas
temporariamente infelizes e respeitavam-no por isso.
Agora, coordenando os seus movimentos com Marty MacFly,
que via no outro lado da sala através da sua porta entreaberta
Strickland pegou no auscultador do seu telefone ao mesmo
tempo que o jovem.
- Está? - ouviu Marty perguntar com um pouco de
nervosismo.
- Marty, sou eu - disse a outra voz.
- Doc!
Strickland sentiu um momentâneo ataque de dúvida. Doc?
Era possível tratar-se realmente de um médico prestes a informar
MacFly de alguma emergência verdadeira? Se assim fosse,
não só se veria privado da oportunidade de defrontar e punir o
jovem; seria um terrível revés na confiança que tinha na sua
própria habilidade para combater a fraude. O impulso de ansiedade
passou tão depressa como surgiu, porém, sendo o descanso
provocado pela descontracção no tom de MacFly. Quantos adolescentes
chamam "Doc" a verdadeiros médicos adultos? Não, era
familiaridade a mais. Doc, quem quer que fosse, era um amigo
pessoal. Strickland, o cão de caça da moralidade, estava afinal
na pista certa.
- Disse-lhe que nunca telefonasse para aqui - continuava
Marty. - Estou na escola.
- Eu sei - respondeu o homem chamado Doc. - Tinha
de entrar em contacto contigo.
- Porquê? Que há de tão importante?
- Verás. Ouve: podes encontrar-te comigo na Quinta de
Peabody por volta da uma e um quarto?
- Quinta de Peabody? Onde fica isso?
- Desculpa - corrigiu Doc. - Refiro-me à Alameda
Twin Pines. Continuo a pensar nela como Quinta do Peabody,
mas isso deve ter sido antes de tu nasceres.
Marty levantou os olhos para o grande relógio da parede:
- Mas já passa da uma e um quarto - redarguiu.
- Refiro-me à uma e um quarto da manhã.
- Da madrugada de amanhã? Daqui a umas dez horas?
- Sim.
Gerald Strickland sorriu. Fosse qual fosse a "emergência",
era obviamente algo que podia ter esperado até o jovem ter saído
da aula, da escola, e ter chegado a casa. Afinal ele sempre
detectara o fingimento, e sentiu uma onda de orgulho por
continuar a ter capacidade para ultrapassar em esperteza aqueles
que eram quase cinquenta anos mais novos.
- Deixe-me arrumar as ideias - dizia Marty para o
telefone. - Quer que eu vá ter consigo à Alameda Twin Pines
à uma e um quarto da madrugada de amanhã?
- Isso. Fiz uma descoberta sensacional e preciso da tua
ajuda.
- Não me pode dizer o que é? - indagou Marty.
Gerald Strickland deu por si a acenar em resposta. "Sim",
pensou, "explique mais". O que quer que fosse parecia verdadeiramente
sombrio e até talvez ilegal. A maior parte dos estudantes
prima pela preguiça, não sendo provável que acorde tão cedo.
Em que poderiam aqueles estar empenhados? Lambeu os lábios,
fascinado pelas possibilidades daquele telefonema. Compensava-o
da vacuidade anterior do dia.
Mas o chamado Doc era evidentemente um tipo esperto.
Recusando-se a prestar mais informações, quer a MacFly
quer a Strickland, limitou-se a dizer:
- Olha, dou-te todos os pormenores na altura própria.
- Está bem - retorquiu Marty.
- Ah, Marty- continuou Doc -, boa sorte para o toque
da tarde.
- Como é que soube? - inquiriu Marty.
Mas só se ouviu um estalido e silêncio do outro lado do fio.
"Toque", repetiu Strickland interiormente. Já ouvira a palavra,
claro. Referia-se habitualmente a música, mas já a ouvira
usada menos especificamente. Talvez Marty MacFly estivesse
envolvido em algo suficientemente escuro para ser mencionado
por enigmas. Mas não interessava. O toque, inocente ou culpado,
não contaria com a presença de MacFly naquela tarde.
Com isto Gerald Strickland, pousou o auscultador e dirigiu-se
para a saída do seu gabinete. Chegou junto de Marty precisamente
quando este ia a empurrar o guarda-vento que separava
a secretaria da sala de espera:
- Só um momento - disse Strickland.
Marty parou e olhou-o com uma expressão vazia.
- Já acabou o seu telefonema de emergência? - interrogou
Strickland, com um ligeiro sorriso nas comissuras dos
lábios finos.
- Sim senhor.
- E a sua família está toda boa?
Marty confirmou com um aceno de cabeça.
- Então posso saber qual era a emergência?
- É demasiado complicado para explicar - começou
Marty, tentando reunir confiança.
- Tenho tempo - retrucou Strickland concisamente.
Marty engoliu em seco e atirou-se de cabeça:
- Tenho uma tia em Wisconsin - disse. - E um tio.
Estão ambos incapacitados. Tiveram um desastre de automóvel
há uns dez anos. Bem, amanhã ela vai para o hospital para ser
outra vez operada e pediram-me...
- Tretas - interrompeu Strickland.
- Como?
- Disse: tretas. Você não tem nenhuma tia nem nenhum
tio incapacitados em Wisconsin. Aquela chamada era particular
MacFly. Você sabe que os alunos só podem usar o telefone da
escola em casos de urgência.
- Bem, era uma emergência- Marty contraiu-se -, de
certa maneira.
- Não me parece, MacFly.
- Bem, talvez não fosse para mim, mas era uma emergência
para a pessoa que me telefonou.
- É tudo o mesmo. Para si vai ser ficar retido na sala de
estudo.
- Mas porquê?- desafiou Marty. - Que posso eu fazer
quando alguém diz que é uma emergência e não é? Talvez
devesse mandar essas pessoas para a sala de estudo. Em todo o
caso, como é que sabe que não era uma emergência?
- Porque estava na extensão do meu gabinete e ouvi toda
a conversa.
Marty sentiu as orelhas começarem a aquecer:
- Mas isso é um mecanismo de escuta telefónica- disse
irado. - É contra a lei.
- Para sua informação, MacFly- replicou Strickland -,
não é nenhum mecanismo de escuta telefónica. É bisbilhotice.
Mas não tem importância. Você está na escola e aqui a lei sou eu.
Quem ligou para si sem ser de emergência prestou-lhe um mau
serviço. Quando sair da sala de estudo, pode dizer ao Doc que ele
não é seu amigo.
Marty olhava-o fixamente. Inspirado pelo confronto, Strickland
teve um súbito relâmpago de intuição:
- Não era o Doc Brown, não? - perguntou.
O silêncio de MacFly disse-lhe que tinha identificado com
êxito o autor da chamada-Doc Brown, o excêntrico da vila, um
homem que na opinião de Strickland simplesmente não prestava,
uma criança que nunca crescera.
- Deixe-me dar-lhe de graça um conselho valioso - continuou:
- Esse Doc Brown só lhe pode causar problemas.
É um verdadeiro caso de loucura. Até talvez seja perigoso.
- Para si pode ser- respondeu Marty lealmente. -Eu
não vejo as coisas assim.
- Então você não é só idiota, MacFly. Tem um grave
problema de atitudes. É um mandrião. Tem capacidade mas não
é aplicado. - Percebendo que não tinha ainda atingido verdadeiramente
o jovem, Strickland recorreu então ao golpe decisivo:
-De facto-ruquejou -, sob muitos aspectos lembra-me
o seu pai. Ele também era um mandrião.
Marty ficou lívido, pois Strickland atingira a única corda
sensível que ele não podia proteger. Não gostava mesmo de ser
comparado ao pai, especialmente quando a pessoa que o fazia os
juntava na mesma categoria. Se Strickland tivesse a sua idade
Marty teria redarguido furiosamente. Isso, claro, era impossível
dadas as circunstâncias, pelo que ele se limitou a olhar para
outro lado:
- Queira desculpar - disse. - Estou atrasado para a
aula.
Esboçou um passo para a porta, mas a mão de Strickland
estendeu-se rapidamente:
- Não lhe dei autorização para se retirar, MacFly - atirou-lhe
violentamente, agarrando-o pelo cotovelo.
O movimento repentino fez com que Marty perdesse o
domínio dos livros, dois dos quais começaram a escorregar-lhe
pela perna. Erguendo o joelho, só conseguiu soltar os outros.
Uma fracção de segundo mais tarde, tudo caiu no chão, incluindo
o livro oco que continha o seu equipamento estereofónico Walkman.
Como não podia deixar de ser, a unidade ilícita rolou atormentadoramente
pelo lajedo encerado, em movimento lento, até
parar no canto mais afastado da sala de espera.
Strickland contemplava-a de olhos semicerrados. Era demasiado
tarde quando Marty começou a reunir os livros, colocando
rapidamente o seu corpo entre Strickland e o aparelho
Walkman
- Você conhece os regulamentos - o homem sorria:não
são permitidos rádios na escola. Isso corresponde a detenção
durante uma semana.
Marty engoliu em seco. Ia começar a protestar, mas depois
aceitou o inevitável:
- Sim, senhor - murmurou.
- A partir de hoje - prosseguiu Strickland.
- Hoje? - arfou Marty. - Mas eu não posso! Eu e o
meu conjunto temos uma audição para o baile da A C M, Dr.
Strickland. Tenho de lá estar às quatro horas.
Era o mesmo que tentar implorar a um tubarão que procurasse
alimento noutro lado. Através de olhos ramelosos pontuados
de uma alegria maligna, Strickland fixava com firmeza a
sua vítima. Depois, com um breve aceno de mão, começou a
afastar-se:
- Com que então uma audição?- Disse. -Pois, MacFly,
parece que acabou de a desperdiçar.
O relógio marcava 3:42.
Marty estava a começar a pensar se de algum modo ofendera
uma divindade local que governasse os destinos dos alunos da
escola secundária de Hill Valley. Tudo se ajustava demasiado
para ser impessoal: a bisbilhotice calculada do Dr. Strickland, a
pouca sorte de deixar cair o equipamento estereofónico Walkman,
e agora aquilo. Depois de reflectir maduramente, decidira
evitar a detenção, argumentando no dia seguinte que.percebera
mal quando devia começar o castigo de uma semana. Isso,
porém, fora antes de espreitar para a sala de aula e ver que
professor estava encarregado da sessão de detenção.
Não era outro senão o próprio Dr. Strickland.
- Com mil diabos! - sibilou Marty.
Não havia hipótese de o convencer da existência de um malentendido.
Nem sequer teve tempo de debater os prós e os
contras de simplesmente se baldar e arrostar com as consequências.
Mal tinha avistado Strickland quando os penetrantes olhos
deste o detectaram como radar inimigo:
- Entre, MacFly - ordenou Strickland.
De cabeça baixa, Marty penetrou na sala. Era uma sala de
aula típica da escola, que fora construída ao terminar a Grande
Depressão: Quadros verdes tinham substituído os velhos de
ardósia e as paredes, carteiras e tecto haviam sido pintados de
novo. Um novo sistema de chuveiro contra incêndios fora também
acrescentado, mas o lugar continuava a ter uma desolação
que Marty achava quase insuportavelmente deprimente. As
expressões nas caras dos outros dez alunos que sofriam o mesmo
castigo indicavam que também eles consideravam aquele lugar
com igual tristeza. Todos fitavam de mau-humor o tampo da
secretária em frente. Uma das vítimas, um garoto de 'rosto
afilado chamado Weeze, tinha uma prancha de patinagem enfiada
debaixo dos livros, quase como se esperasse que o Dr.
Strickland lha confiscasse ou destruísse.
Esse medo, se de facto o sentia, não deixava de ser justificado.
Ao fundo da sala, Strickland estava de pé, com dez aparelhos
Walkman cuidadosamente alinhados sobre a secretária, junto
de si. Os que já tinham passado por aquilo sabiam o que ia
acontecer a seguir, facto que tornava a experiência muito mais
fácil.
- Agora... - Strickland sorria com sadismo - vamos
ver como lidamos com quem viola o nosso regulamento "contra
Walkman".
Suavemente, quase com reverência, ergueu um dos aparelhos
e colocou-o nas mandíbulas de um torno para trabalhar a
madeira montado no canto da secretária. Começou então a

apertá-las até o aparelho se partir ao meio, com o som aproximado
de ossos a quebrarem-se. Quando bocados de plástico e
pedaços inutilizados caíram para o chão, um aluno contraiu-se
como se o sofrimento estivesse a ser infligido ao seu próprio
corpo. Strickland, bem consciente de qual o aparelho que pertencia
a cada aluno, sorriu maldosamente para o jovem horrorizado:
- Pronto, Stevenson - disse. - Pode cá vir buscar o
seu aparelho estereofónico.
Stevenson ergueu-se e foi ajoelhar-se para apanhar os restos
escavados do seu aparelho.
Com alegre intencionalidade, Strickland continuou a orgia
de esmagamento. O aparelho de Marty era o quarto na bicha
para a execução, mas ele estava mais preocupado com o tempo
a passar do que com o destino do seu Walkman. Ainda conseguiria
chegar a tempo para a audição se Strickland os libertasse cedo.
"Que probabilidades!"", pensou. Então, depois de um momento
de profundo desespero, forçou a sua mente a reflectir.
Tinha de haver uma saída, com um plano de esperteza suficiente
para criar o pânico ou uma verdadeira emergência. Percorreu a
sala com os olhos. Só o sistema anti-fogo oferecia
possibilidades,
mas ele não conseguia formular um plano eficaz de ataque.
- Este é o seu, não, MacFly? - Strickland interrompeu os
pensamentos de Marty. - O número três?
- Quatro - afirmou Marty sem alterar a voz. Estava
decidido a não deixar que o malandro visse quanto ele detestava
perder o seu Walkman.
Com um vivo sorriso, Strickland despachou o aparelho
seguinte e depois estendeu a mão para o de Marty com algo como
uma renovada paixão. Os torniquetes comprimiram-se, provocando
um som baixo e arrastado, quase como se o aparelho
estivesse a gritar de dor. Então, com um estalido particularmente
ruidoso, os restos em lascas do Walkman saltaram do
torno em todas as direcções. Um pânico momentâneo perpassou
as feições de Strickland quando fragmentos de plástico voaram
em frente dos seus olhos e junto da sua cabeça.
- É todo seu, MacFly-disse, tendo recuperado imediatamente
a compostura.
Marty levantou-se para ir buscar os bocados partidos do seu
aparelho. Ao fazê-lo, a sombra de um sorriso brincava-lhe nos
lábios, pois concebera um plano ousado, que valia a pena pelo
menos tentar. Passou os cacos de plástico todos para uma das
mãos e fez um pequeno desvio no caminho de regresso ao seu
lugar. Passando pelo projector de diapositivos Carousel, colocado
sobre uma mesa lateral, deteve-se o tempo suficiente para
estender a outra mão e desviar sub-repticiamente a lente para
o seu bolso. Compenetrado na execução do Walkman seguinte,
Strickland não reparou no rápido movimento de Marty.
De regresso ao lugar, este meteu a mão na carteira de lápis

do seu caderno e tirou de lá um elástico e uma carteira de
fósforos. Depois levou a mão à algibeira, desembrulhou uma
pastilha elástica e começou a mascá-la. Não o fazia, contudo,
como alguém que procura daí extrair prazer; pelo contrário,
parecia uma tarefa a ser realizada o mais depressa possível.
Passado um minuto, tirou a pastilha da boca, abriu a
carteira de fósforos, dobrou-a ao contrário e espalhou a pastilha
pegajosa do lado de dentro, constituindo uma fina camada. A
seguir "armou" o elástico em volta dela como uma fisga e ficou à
espera. Sempre tinha sido bom atirador com elástico, lançando
objectos, mas nunca dependera tanto da pontaria como para o
arremesso que agora planeara. Por cima dele, talvez a três
metros e meio de altura, ficava o detector de fumo ligado ao
sistema de extintores. Era pequeno, alvo pouco convidativo, mas
Marty sabia que tinha de tentar. Se conseguisse, a primeira fase
do seu plano bipartido ficaria realizada. Se falhasse... bem, pelo
menos teria tentado. Se Strickland o visse, podia provavelmente
esperar ficar em detenção até muito depois das férias da Páscoa.
"Pró diabo a indecisão", pensou. "Tenho de arriscar."
Esperou pacientemente até Strickland prender o décimo e
último Walkman. No preciso momento em que este se estilhaçou
Marty fez pontaria para a válvula, puxou o elástico para trás
tanto quanto possível e largou-o.
Como um foguete, a carteira de fósforos correu para o tecto
e ficou lá pendurada, com a pastilha à estabelecer uma ténue
ligação.
Milagre, pensou Marty.
A segunda fase era muito menos espectacular mas não
deixava de conter grandes potencialidades de detecção. Retirando
do bolso a lente do projector Carousel. Marty ajustou-a de
modo a que os brilhantes raios oblíquos do Sol da tarde a
atingissem e fossem refractados para a carteira de fósforos
colada ao tecto. Deitando uma olhadela para cima ao mesmo
tempo que fingia estudar pelo livro que tinha em cima da mesa,
ficou surpreendido com a forma como o plano estava a correr bem
até aí. Um raiozinho branco estava focado na carteira de fósforos.
Se ao menos o Sol se apressasse e fizesse o que devia!
O relógio marcava agora 3:52. Chegaria atrasado à audição
mas só uns minutos. Tinha a mão a começar a ficar cansada, a
segurar a lente sempre na mesma posição, mas não se atrevia a
descansar nem um segundo. Estaria a ver um fiozinho de fumo?
Entortou os olhos e decidiu que era imaginação sua.
Depois viu algo que não era absolutamente nada imaginário:
o Dr. Strickland levantou-se, atravessou a sala até ao outro lado
e começou a baixar os estores.

- Não! - Marty quase gritou.
Virou a cabeça completamente para trás, verificando que
três últimas filas da sala tinham ficado na semi-obscuridade em
resultado da acção de Strickland. Enquanto observava isso, as
três filas seguintes ficaram envoltas na mesma nuvem de
escuridão.
Mas agora havia mesmo um fiozinho de fumo a evolar-se da
carteira de fósforos.
- Vamos, vamos - sussurrava Marty. - Arde, meu
parasita, arde.
Alguns dos rapazes das proximidades já tinham descoberto
o que se estava a passar. Contemplavam num misto de temor e
divertimento o fumo a tornar-se cada vez mais intenso, com um
semicírculo vermelho a consumir a borda da carteira, em direcção
à dupla fila de fósforos.
Como um estalido, Strickland libertou o penúltimo conjunto
de estores.
- Puf!
Ao mesmo tempo que o último raio de Sol brilhante desaparecia
da aula, uma mini-explosão de chamas da carteira de
fósforos desencadeava uma reacção em cadeia. O fumo que
rodeava o detector colocado no tecto fez ligar imediatamente os
alarmes e o sistema de extinção. O pânico, ou algo muito
semelhante, seguiu-se.
- Fogo! - berrou alguém.
- Vamos cavar daqui!
- Quietos!, esperem! - A voz do Dr. Strickland tentava
sobrepor-se ao barulho. - Temos de sair em boa ordem!
Correu para a parte da frente da aula tão depressa quanto '
lhe foi possível, de braços erguidos acima da cabeça. Mas ombros
mais fortes e rápidos, e corpos mais musculosos passaram por
ele, atirando-o a rodopiar de lado de encontro à parede.
- Esperem! - voltou a gritar, exactamente quando a
válvula do extintor entrava em acção mesmo por cima da sua
cabeça, borrifando-o de água fria. Nenhuma outra das suas
palavras foi audível.
Marty, mais preparado para a confusão do que qualquer
outra pessoa, já ia nessa altura a meio do corredor. Assim que o
alarme tocara e a água começara a cair, pusera-se em pé de um
salto e apoderara-se da prancha de patinagem que pertencia a
Weeze.
- Empresta-ma - gritara por cima do ombro para o
surpreendido colega. - Devolvo-ta amanhã.
Menos de um minuto depois, patinava pelos degraus da
frente da escola e deslizava num- arco muito aberto até aos
limites do vasto passeio que circundava a Praça Principal.
Deitando nervosamente um olhar para a direita, passou pelo
painel com relógio e termómetro do Hill Valley Bank no preciso
momento em que mudava de 3:57 para 3:58. Um homem que
efectuava uma transacção no Versateller saltou para evitar a
figura que se aproximava e nesse processo tropeçou e caiu de
costas. Então foi a vez de Marty se assustar, com um carro a
aproximar-se tão rapidamente que ele teve de fazer uma pirueta
de bailarina para manter o equilíbrio. Ainda seguiu descontrolado
por meio quarteirão, de braços a oscilar e corpo a inclinar-se
em ângulos de 45o, até conseguir lentamente endireitar-se.
Mesmo em frente, o edifício da A C M era o seu farol. Depois
de se ter inclinado para a frente para adquirir ainda mais
velocidade, Marty rodopiou ao chegar junto dos degraus, agarrou
na prancha e correu para dentro.
O seu grupo, conhecido por Cabeças de Alfinete, já estava a
postos. Nas proximidades, Jennifer também esperava, olhando
nervosamente para o relógio. Quando o viu correr para o palco,
ela soltou um ruidoso suspiro de alívio, e Marty piscou-lhe o olho.
Um homem gordo, que também olhava significativamente
para o relógio, fitou Marty com atenção:
- Estão prontos? - indagou friamente.
Marty respondeu com um aceno de cabeça. A viola, o amplificador
e o microfone já lá estavam instalados para ele. Sentando-se
a toda a pressa, Marty respirou fundo e fez a afinação no
mínimo de tempo possível. Depois, agarrando o microfone, olhou
para a comissão encarregada de organizar o baile e falou num
tom de voz confiante:
- Pronto - disse. - Somos os Cabeças de Alfinete e
vamos tocar rock'n'roll!
O grupo iniciou um número fogoso, com os dedos de Marty a
dançarem nas cordas e cavilhas, construindo um complicado
tema. Seguiram-se teclado, viola-baixo e percussão, a embelezarem-lhe
as figuras temáticas, a marcarem mais intensamente o
ritmo, preparando a transição para as primeiras variações de
Marty.
- Está bem - fez-se ouvir uma voz metálica. - Já
chega. Obrigado.
Marty mal podia acreditar nos seus ouvidos. De facto,
continuou a tocar, mesmo com o som dos restantes Cabeças de
Alfinete a desvanecer-se num silêncio confuso.
- Obrigado- repetiu o homem gordo. -Podemos ouvir
o grupo seguinte, por favor?
Marty desceu do palco, interdito. Passara por uma tarde
infernal para aquilo?
- Que aconteceu? - perguntou à Jennifer.

- Não sei- tartamudeou ela. - Vocês tocaram bestialmente
bem. Talvez eles queiram outro género. O de Lawrence
Welk, por exemplo.
Dez minutos depois, enquanto se dirigiam para casa, ele
continuava em estado de choque. Jennifer pousou-lhe a mão no
braço:
- Marty - disse em tom reconfortante. - Uma rejeição
não é o fim do mundo. A tua música é boa e há-de ter êxito
um dia.
- Não sei - murmurou ele. - Talvez não seja a minha
vocação.
- Claro que é - insistiu ela. - Tu és mesmo bom e os
outros tipos também. A gravação que fizeste é formidável.
Entregou-lhe a cassete que ele lhe tinha emprestado uns
dias antes:
- Promete-me que a envias à editora de discos antes de
te decidires a desistir.
- E se eles não gostarem? - suspirou Marty. - E se
disserem: "Desaparece daqui, garoto, não tens futuro?" Por que
hei-de passar por toda essa ansiedade?
Jennifer não respondeu.
- Bolas - acabou Marty por dizer. - Estou a começar
a falar como o meu velho.
Jennifer fitou-o interrogativamente.
- Ele é um bocado derrotista - explicou Marty. - Não
se atira para a frente. As pessoas fazem dele o que querem.
- Bem, dizem que todas as nossas ansiedades afectivas
provêm directamente dos nossos pais - afirmou ela, sorrindo.
As palavras que lhe saíam da boca pareciam-lhe um pouco
estranhas, até a ela. Onde teria ido buscar a frase? A aula de
Sociologia? À revista People? Não tinha a certeza, mas soava-lhe
com plausibilidade.
- Nesse caso podes dar-me já um beijo de despedida resmungou
Marty.
- Prefiro dar-te um beijo sem ser de despedida - contra
pôs ela esticando-se para lhe tocar na face.
Caminharam de mãos dadas durante algum tempo.
- O teu pai é mesmo um caso perdido? - acabou Jennifer
por perguntar.
Marty encolheu os ombros:
- Acho que lá muito no fundo as intenções dele são boas
- disse. -Mas não consegue desenvolver uma personalidade.
Tinha chegado à Praça Principal, e a presença do grande
salão da Toyota com as suas montras recuadas e zona de
exposição imaculada, fez com que Jennifer pensasse em coisas
mais agradáveis.
-- Bem, pelo menos empresta-te o carro amanhã à noite sorriu.
-Já é um grande passo na direcção do desenvolvimento
da personalidade.
Marty concordou com um aceno de cabeça.
Pararam junto do vidro e olharam para dentro, para os
vendedores a andarem à volta de potenciais clientes como leões
que se preparassem para atacar animais mais pequenos.
- Por que razão não haverá mulheres a vender carros em
segunda mão?- perguntou Marty. - Nunca vi uma mulher a
vender carros, e tu?
Jennifer abanou a cabeça:
- Talvez as mulheres não consigam mentir tão bem como
os homens - aventou.
Marty riu e desviou o olhar para uma carrinha de tracção às
quatro rodas exposta em lugar de evidência:
- Olha-me para aquele todo o terreno - chamou ele a
atenção. - Não era bestial levarmo-lo para o lago amanhã à
noite? Podíamos pôr os sacos-camas atrás... adormecer a olhar
para as estrelas.
- Hum - correspondeu Jennifer.
- Um dia, Jennifer, um dia - concluiu Marty.
Contemplar o suave perfil dela e os seus dentes brancos e
certinhos começava a fazê-lo sentir-se melhor. Talvez até a
música não fosse tudo na vida.
- E a tua mãe? - indagou Jennifer quando se afastaram
da montra e continuaram a andar. - Ela sabe que tu e eu...
- Estás a brincar? Ela pensa que vou fazer campismo com
os rapazes.
- A verdade desagradar-lhe-ia?
- Ah, sim - redarguiu Marty. - Se descobrisse que eu
ia acampar contigo, tinha um ataque.
- Sou assim tão mal vista?
- Não é por seres tu. É uma questão moral. Pregava-me
o sermão do costume acerca de nunca se ter portado assim
quando andava no liceu. Devia ser uma boa mosquinha morta,
aposto.
- A maior parte das pessoas devia ser assim nessa
altura, não? Quer dizer, isso foi lá para os anos cinquenta, antes
da pílula, do rock'n'roll e de muitas outras coisas mesmo boas.
Marty acenou afirmativamente:
- Sim, não devia ter sido fácil crescer naqueles tempos
primitivos.
Estavam em frente do antigo Palácio da Justiça da Praça
Principal, que já vira melhores dias. Os anos 50, precisamente,
tinham sido os de apogeu daquela parte da vila. Então as pessoas
reuniam-se na Praça Principal para conviverem, para negociarem,
ou simplesmente para passarem o tempo, durante o dia ou
à noite. Então havia ali uma estação de serviço Texaco, uma loja
de batidos, uma florista, o cinema Essex, uma loja de discos, o
escritório de um agente imobiliário, um pronto-a-vestir feminino,
xox representante da Studebaker, uma filial da agência de
viagens Ask Mr. Foster, papelaria, centro de acessórios Western
Auto e muitas outras pequenas lojas. Agora quase todas tinham
desaparecido, vítimas do progresso e da falta de estacionamento
adequado. Muitas das fachadas de edifícios estavam entaipadas,
cobertas de cartazes meio arrancados. Num conjunto
para propaganda eleitoral lia-se: REELEGEI O PRESIDENTE :
CÂMARA "GOLDIE" WILSON. HONESTIDADE, DECÊNCIA, INTEGRIDADE.
A fotografia por baixo da inspiradora legenda mostrava
o rosto de um negro de cerca de cinquenta anos, com um dente
canino em ouro.
- Era aqui que a minha mãe costumava parar - informou
Marty. - Antigamente havia aqui uma loja de batidos
- Suponho que não se pudesse arranjar sarilhos lá
gracejou Jennifer. - Enfim, ela talvez só esteja a tentar
manter-te respeitável.
- Não está a ter muito êxito, pois não? - Marty soltou
uma gargalhada, passando o braço pelas costas dela.
- Formidável...
- Maravilhoso...
Estavam encostados um ao outro, prestes a beijarem-se..
- Salvem a torre do relógio! - ordenou de súbito uma voz
irritante, fazendo com que eles se afastassem de um salto.
Simultaneamente, uma caixa de peditório foi colocada entre
os dois adolescentes. Soava a oco, como se não tivesse dentro
mais de duas ou três moedas solitárias.
- Salvem a torre do relógio! - repetiu a voz.
Jennifer e Marty viraram-se para olhar a pessoa que os
havia interrompido. Era uma mulher de meia-idade, com tipo de
beata e cabelo prematuramente azulado. O lábio superior,
-observou Marty com ligeira repulsa, estava coberto pelos pêlos
quase suficientes para proporcionarem a um ambicioso jovem
um bigode decente. Debaixo do braço tinha dúzias de folhetos
impressos.
Por favor colaborem para salvarmos a torre do relógio - pediu
a senhora, voltando a agitar a lata.
- Minha senhora, não vê que estou ocupado? - perguntou
Marty. Normalmente, seria simpático para quem o interrompesse,
mas os acontecimentos do dia tinham-lhe posto os
nervos em franja.
No entanto, a mulher não se deixou desencorajar pela falta
de interesse demonstrada por ele. Metendo-se entre os dois
jovens, dirigiu-se-lhes rodando a cabeça para um lado e para
outro:
- O Presidente da Câmara, Wilson patrocina uma iniciativa
no sentido de salvar ou reparar aquele relógio - entoou,
apontando para o relógio parado que se situava no alto da torre
do velho palácio de justiça. - Nós na Sociedade de Defesa do
património de Hill Valley pensamos que deve ser preservado
exactamente como está, como parte da nossa história e herança.
Há trinta anos, um raio atingiu a torre do relógio e ele nunca
mais funcionou. Nós na Sociedade pensamos que é um marco de
importância científica, atestando a força do Todo-Poderoso.
Marty respirou fundo, preparando-se para lhe interromper
o arrazoado, mas aparentemente era tudo. Já tinham ouvido o
discurso completo.
- Está bem, minha senhora - concordou Marty, satisfeito
por não terem de ouvir mais nada. -Aqui está tudo o que
tenho de momento. Vinte e cinco cêntimos. Pode ser?
- Ficamos encantados com qualquer quantia - sorriu a
senhora, revelando uma dentadura cheia de manchas. Uma
boa causa pode prosperar moeda a moeda por dispor de apoio
popular. Uma causa má, mesmo que disponha de fundos aos
milhões, provenientes de fontes duvidosas, não deixa de estar
votada ao fracasso.
Marty acenou com a cabeça e começou a afastar-se com a
Jennifer.
- Não se esqueça de levar um folheto - aconselhou a
senhora. - Conta a história completa da torre do relógio.
Marty recebeu o folheto da mão dela.
- E aqui está uma coisa para a sua amiguinha - continuou
ela, estendendo-lhe mais um folheto.
Então Marty quase estourou. Durante um longo momento,
considerou a hipótese de não só pegar no folheto oferecido como
em tantos quantos conseguisse transportar, dizendo à mulher
que os ia distribuir na escola. Depois procuraria o caixote de lixo
mais próximo para lá os deitar. No último instante, felizmente,
teve consciência de que a senhora, apesar de irritar, tinha de
facto boas intenções.
- Obrigado - acabou Marty por dizer, pegando no folheto
e entregando-o a Jennifer.
Com um breve sorriso, agarrou no braço da namorada e
conduziu-a para longe da senhora da campanha o mais depressa
que lhe foi possível sem começar a correr. Pouco depois, tinham
virado a esquina em segurança.
- Então... em que estávamos? - perguntou ele.
Jennifer chegou-se a ele, olhou para os dois lados e depois
ergueu o rosto:
- Mesmo aqui... - murmurou.
Aproximaram-se ainda mais. Marty sentia o cheiro da pele
dela, e a sua respiração no queixo. Lentamente, pousou-lhe a
mão no pescoço, mesmo abaixo da orelha, e inclinou-se para a
beijar...
Uma buzina de automóvel destruiu a magia do momento.
Jennifer afastou o olhar do dele e Marty viu-lhe aborrecimento
nos olhos.
- É o meu pai - informou ela.
- Como é que ele te encontrou aqui? - inquiriu Marty.
- Pura sorte.
- O tipo de sorte que eu tenho tido durante todo o dia.
- Nada dura eternamente, nem mesmo a má sorte.
A buzina voltou a tocar.
- Telefono-te logo à noite - prometeu Marty.
- Vou estar em casa da minha avó - disse ela.
Qual é o número?
243-8480.
Marty repetiu o número, trocando dois algarismos.
- Devias ter guardado um daqueles folhetos - comentou
Jennifer. Então, ao olhar para a sua própria mão, viu que ainda
agarrava um dos papéis de propaganda. Acenando ao pai para
que esperasse, tirou uma caneta, escreveu qualquer coisa na
parte de trás da folha e entregou-a ao Marty. Depois saltou para
dentro do carro e partiu. Marty acenou-lhe e ficou a contemplá-la
até o automóvel sair do seu campo de visão.
Só nessa altura olhou para o papel. Nele estava escrito o
número de telefone e uma simples frase: "Amo-te."
Marty sorriu.
Dobrando o papel, meteu-o na algibeira e patinou pela rua
fora em direcção a casa.

@CAPÍTULO II

- Se não morrer primeiro de ataque cardíaco ou congestão
- resmungou o Dr. Emmett Brown em voz alta.
Estava perto de ver o seu sonho tornar-se realidade. Não
havia dúvidas quanto a isso. Um a um, os obstáculos científicos
e físicos tinham sido eliminados. Iria ser aquele o "grande dia"?
- Não contes com isso - replicou ele a si próprio. Não
servia de nada entusiasmar-se demasiado, raciocinou.
Com sessenta e cinco anos, era um dos inventores com mais
talento e menos conhecidos do país. De facto, ninguém à excepção
de Marty MacFly conhecia sequer as suas realizações, mas
isso não tinha importância. Em breve tudo mudaria. Toda uma
vida de luta, a ser ridicularizado, tornar-se-ia subitamente
dourada.
Olhou em redor da sua oficina, que não era mais do que uma
garagem cheia de detritos e equipamento acumulados ao longo
de um período de quarenta anos. No número desses acessórios
estavam incluídos um motor a jacto, montes de painéis de
circuitos, componentes de automóveis que chegavam para construir
pelo menos dois carros, um rádio de ondas curtas, uma
máquina de discos Seeburg, uma mesa de trabalho com equipamento
de soldagem, os restos de um autómato, um frigorífico a
funcionar, e dúzias de relógios. Os relógios eram as peças de
colecção preferidas de Doc Brown. Tinha de tudo, desde relógios
de cuco a modelos digitais - e todos estavam perfeitamente
sincronizados.
A presença de tantos indicadores de tempo não era acidental.
O tempo era o mais recente, e talvez último, interesse
dominante de Doc Brown. Durante os anos 50, tentara descobrir
os segredos da mente humana por meio de uma variedade de
instrumentos de leitura da mente. Nenhum resultara. Meia
década antes dominara-o a teoria de que todos os mamíferos
falavam uma linguagem comum. Alguns outros planos incluíam
a noção de que se podia extrair ouro sobreaquecendo a superfície
da terra, a de que a idade de cada pessoa estava pré-determinada
e podia ser revelada pelo estudo das unhas, e publicara
mesmo um artigo em que afirmava poder ser previsto o sexo dos
bebés antes da concepção. O facto de nenhum trabalho de Doc
Brown levar a qualquer resultado deveria ter sido factor de
desencorajamento, mas não fora. Durante os anos 50, 60, 70 e já
pelos 80, continuara as suas experiências, ganhando o desprezo
permanente como cientista louco de Hill Valley.
Agora, a 25 de Outubro de 1985, estava pronto para a
realização. Elaborara todos os elementos da sua teoria de viagem
no tempo até ela estar perfeita. Antes do fim do século,
cientistas e historiadores usariam o seu invento para explorarem
o futuro e o passado, e através dessa exploração contribuiriam
para melhorar o presente. O seu ponto de vista quanto ao
tempo como dimensão resumia-se na explicação simples que um
dia deu ao director do jornal de Hill Valley:
- Penso no tempo como esférico e interminável - dissera.
- Como a casca de uma laranja. Uma alteração de textura
em qualquer ponto será ressentida em toda a casca. O futuro
afecta o passado e o presente, tal como o passado e o presente
afectam o futuro.
- Mas o passado passou e não volta - retorquira o
director. - Como pode ser afectado?
- É exactamente essa a questão- retrucara Doc Brown.O
passado não desapareceu. Continua lá. E, se conseguirmos
encontrar o modo de o penetrar, ficaremos em condições de
alterar as coisas que virão a acontecer no futuro.
O director não ficou convencido mas não deixou de publicar
a entrevista. Os habitantes de Hill Valley ou não ligaram ao
artigo ou se queixaram de que tinha sido desperdiçado espaço
valioso a imprimir os dislates de um louco.
Em tempos, uma tal publicidade desfavorável ferira-o, mas
agora tudo isso ficara para trás.
- Se tudo correr bem... - murmurava enquanto começava
a preparar-se para o trabalho da noite.
A frase ficou por terminar. Assobiando baixinho, vestiu
lentamente um fato branco protector de radiações, passou o
capuz pela cabeça para experimentar a sensação e depois retirou-o,
achatando-o contra as costas. Ao olhar para a sua imagem
num espelho, pôs ainda mais em desordem o cabelo branco
rebelde, talvez contribuindo perversamente para aumentar a
sua própria reputação de completo excêntrico. Encaminhou-se
então para a parte da frente da garagem, abriu as portas de trás
da enorme caravana em cujo lado estava escrito: EMPREENDIMENTOS
DR. E. BROWN - SERVIÇOS CIENTÍFICOS PERMANENTES
e espreitou para dentro.
Ainda lá estava, claro. Mesmo à luz difusa da garagem, o
elegante DeLorean em aço inoxidável com as suas asas de
gaivota brilhou para ele como um gigantesco ornamento de
árvore de Natal. Como era apropriado, pensou, que um veículo
que transportaria a humanidade até ao passado e ao futuro fosse
uma máquina tão extraordinariamente bela. Não havia qualquer
dúvida no seu espírito ao fechar as portas:
- Vai funcionar - disse em voz baixa. - E eu vou ser
famoso. Só faltava a última verificação de pequenos pormenores
em contagem decrescente. Brown encarregar-se-ia disso durante
as poucas horas que faltavam para Marty chegar à Alameda
Twin Pines e depois, juntos, dariam um passo tão significativo
para a humanidade como a descida na Lua em 1969.

Começava a escurecer quando Marty virou a última esquina
em frente da sua casa, mas antes disso já sabia que algo estava
a correr mal. Luzes intermitentes não costumam ser portadoras
de boas-novas a não ser no Natal, e essa festa estava a dois
meses
de distância. Por entre as árvores que o impediam de ver a casa
apercebia-se de que essas luzes eram amarelas. Portanto não
era a polícia, pensava-se. Se fosse as luzes seriam azuis e
encarnadas. O amarelo era a cor habitual dos reboques.
Tinha toda a razão. Deslizando para o pátio, distinguiu o
camião de reboque em posição de gigantesco louva-a-Deus junto
do caminho de acesso à casa dos MacFly. Em seu poder encontrava-se
o Plymouth Reliant de 1979, aparentando verdadeira
impotência com um conjunto de rodas acima do chão. Ao aproximar-se,
Marty viu que a parte da frente estava completamente
esmagada, como se alguém o tivesse conduzido de encontro a um
muro de tijolo. Próximo encontravam-se o pai de Marty e Biff
Tannen, a observarem em silêncio enquanto o condutor do
reboque libertava o veículo danificado.
George MacFly tinha quarenta e sete anos, mas parecia
muito mais velho a Marty. Homem sem inspiração, geralmente
temeroso de tomar a mínima medida com alguma ousadia, não
tendo sequer mudado o corte de cabelo em mais de trinta anos,
vestia um fato igualmente incaracterístico, comprado quatro
anos antes no Sears. O homem ao seu lado apresentava o mais
vivo contraste tanto em vestimenta como em comportamento. Só
um ano mais velho do que George MacFly, Biff Tannen apresentava
descontraidamente um estômago protuberante por cima
das calças, atitude que fazia com que o seu vistoso fato de
quadrados, anéis extravagantes e correntes de ouro parecessem
ainda mais bizarros. Enquanto George MacFly era reticente, Biff
era barulhento e obnóxio, o tipo de pessoa que fala em voz alta
no cinema ou grita epítetos para os jogadores durante acontecimentos
desportivos. Era, em resumo, um malcriadão que intimidava,
e ninguém se deixava intimidar mais facilmente que o seu
amigo e associado George.
Agora, enquanto Marty se aproximava a patinar, ouvia o
conhecido tom de desagrado na voz de Biff ao dirigir-se ao seu
pai:
- Não posso acreditar que tenhas feito isto, MacFly disparatava
Biff. -Não posso crer que me tenhas emprestado
o carro sem me dizeres que tinha um defeito. Eu podia ter
morrido.
"Diz-lhe que teria sido bom", pensou Marty, "diz-lhe que
estaríamos todos melhor se Biff Tannen fosse levado de pés para
a frente".
Claro que George MacFly não podia fazer frente ao assalto de
Biff. Pelo contrário, respondeu em voz fraca:
- Biff, eu não tinha dado por nenhum defeito antes.
- O quê? Estás cego, MacFly? Está lá! De que outro modo
podes explicar isto?
"Diz-lhe que o condutor não presta", pensou Marty. Se ao
menos o pai lhe fizesse frente uma vez na vida!
George MacFly olhou para o chão e não deu réplica directa à
pergunta irracional:
- Posso partir do princípio de que o teu seguro pagará
isto? - indagou. Parecia mais que estava a suplicar.
- O meu seguro? - retrucou Biff agastadamente. - É
o teu carro com o teu defeito. É o teu seguro que deve pagar. Eu
quero saber quem é que me vai pagar isto a mim.
Indicava o fato manchado
- Entornei a cerveja toda em cima dele quando aquele
carro me bateu - continuou Biff. - Quem é que vai pagar a
conta da lavandaria? Responde-me a isto, MacFly.
Marty não pôde aguentar nem mais um minuto:
- Talvez o juiz, ao saber que ia beber e a conduzir, pague
- intrometendo-se.
Os olhos de Biff semicerraram-se:
- Diz ao teu filho que não se meta nisto, MacFly ordenou.

George não deu tal ordem, mas foi o mesmo que se o tivesse
feito. Tirando a carteira, extraiu uma nota de vinte dólares e
entregou-a a Biff:
- Isto chega? - Inquiriu timidamente.

Biff arrancou a nota dos dedos de George e deitou um rápido
olhar de triunfo a Marty:
- É um princípio - afirmou.
- Provavelmente dá para comprar dois desses fatos ripostou
Marty.
Biff corou:
- Cala-te - disse.
Depois voltando-se para o seu alvo principal, perguntou ao
pai de Marty:
Onde estão os teus relatórios?
George MacFly empalideceu ainda mais do que era habitual
à sua compleição escamosa e esbranquiçada:
- Bem, ainda não os acabei - desculpou-se. - Achei,
que, como só são para entregar na segunda-feira...
Biff avançou e tocou com o punho na cabeça de George, como
se estivesse a bater a uma porta:
- Está? - interrogou. - Está alguém aí em casa? Pensa,
MacFly, pensa! Tenho de ter tempo para os mandar passar à
máquina. Se entregar os meus relatórios com a tua letra, sou
despedido.
Marty estava furioso com o pai, "Diz-lhe que faça ele próprio
os relatórios", pensou.
Uma vez mais, o pai recuou:
- Está bem - concordou. - Acabo-os esta noite e levo-tos
amanhã logo de manhã, se achares bem.
- Mas não vás cedo de mais - resmungou Biff. -Durmo
até tarde ao sábado.
Marty afastou-se. Pensava que ia mesmo vomitar. Não só
por o tratamento dado por Biff ao seu pai ser sub-humano, mas
também porque acabara de se dar conta de que, com o carro
destruído, ficava sem efeito o encontro com a Jennifer. Fora o
pior de todos os dias possíveis.
Biff Tannen ainda não acabara, porém. Ao virar-se para se
ir embora, olhou para baixo:
- Ah, olha, MacFly - disse descontraidamente. - Tens
um atacador desatado.
- Hum? - Correspondeu George, caindo na esparrela
por olhar para baixo para os pés.
Ao fazê-lo, a mão de Biff voou para cima, atingindo George
no queixo. Uma gargalhada irritante, fendeu o ar, pois Biff
Tannen pusera em prática a sua ideia de uma partida bestial:
- Não te deixes enganar com tanta facilidade, MacFly!Oh,
pá, em trinta anos ainda não aprendeste nada.
George, confessando-se culpado da acusação pelo silêncio, só
conseguiu esboçar um sorriso de circunstância.
Não ligando ao facto de Marty não ter nenhuma consideração
por ele, Biff apontou para o seu novo e reluzente Cadillac,
estacionado perto, e piscou um olho:
- Olha, garoto - disse, como se não tivessem trocado
palavras ásperas. - Que dizes da minha nova pintura?
Marty encolheu os ombros.
Pouco depois, Biff e o seu recém-pintado carro desciam a
rua, George MacFly começou a andar em direcção à casa. Marty
saltou-lhe à frente.
Erguendo as mãos, George afastou-se:
- Já sei o que vais dizer, filho, e tens razão - murmurou.
- Tens toda a razão. Mas acontece que ele é o meu
supervisor, e parece-me que não sou lá muito bom para confrontos.

- Confrontos?! - replicou Marty. - Nem pratica a
legítima defesa.
George não respondeu.
- Papá, olha para o carro - insistiu Marty. - Vê o que
ele fez ao carro. Quase o destruiu. E depois inventou aquela
história do defeito. Culpou-te dos estragos e tu não disseste
nada!
- Bem, não se pode discutir com uma pessoa assim - desculpou-se
George sem convicção.
- Olha para o carro- continuava Marty. -Está numa
lástima. Eu estava a contar com ele para amanhã à noite. Fazes
ideia de como era importante para mim, papá? Fazes alguma
ideia?
Não sabendo que Marty planeava levar Jennifer no veículo,
era impossível que George MacFly compreendesse o que o passeio
efectivamente significava para ele:
- Lamento, filho - sussurrou. - Só posso dizer que
lamento muito.
Para Marty isso não bastava, e os enfurecedores acontecimentos
do dia não o deixavam desistir:
- Papá, alguma vez te ocorreu dizeres "não" às pessoas
quando elas começam a insistir contigo? Custa assim tanto?
- Filho, sei que tens dificuldades em compreender - disse
George com uma calma enfurecedora -, mas o facto é
que não sou um lutador.
- Tenta ao menos uma vez, papá - desafiou Marty.Só
uma vez, diz "não". N-Ã-O. "Não." Não vai custar tanto como
pensas.
George encolheu os ombros.
"Desisto", pensou Marty, "nem sequer consigo fazer com que
diga "não" à ideia de dizer "não"".
George MacFly voltou-se, achando mais fácil olhar para a
frente danificada do seu carro do que para os olhos acusadores
e desapontados de Marty. Invejava outros homens, do tipo
másculo, que ensinavam os filhos a lutar, os encorajavam a
serem combativos, a defenderem os seus direitos. Esses homens
incitavam invariavelmente a sua descendência masculina a
participar em desportos organizados, vangloriando-se quando
os filhos ganhavam um grande jogo, tratando os rapazes com
arrogância quando eles eram responsáveis pela última jogada.
Pelo seu lado, George MacFly ficou secretamente agradado quando
os filhos, Marty e Dave declinaram participar em desportos.
Pelo menos não teria esse problema emocional.
Durante os seus frequentes acessos de silenciosa introspecção,
George MacFly conseguia dissecar o seu próprio psíquico,
pois de facto preocupava-se com a falta de genica de que sofria.

Pensava que tudo tinha a sua origem numa ocasião no ciclo
preparatório em que fora abordado pelo terror da aula. Este
acabava de socar o seu amigo Billy Stockhausen e durante uma
fracção de segundo George ficou tão irritado que viu literalmente
o vermelho de que toda a gente fala e escreve. Aproximou-se do
fanfarrão de punho cerrado...
E não conseguiu desferir o golpe. O tiranete limitou-se a
sorrir com ares superiores e a afastar-se. Desde esse momento,
trinta e cinco anos antes, George interrogava-se sobre o que
poderia ter acontecido se tivesse completado o seu gesto. A
fantasia mais feliz era a de que um único soco teria feito
esquecer
o terror. Mas mesmo que este tivesse ripostado, ensinando-lhe
que um combate é dar e receber, isso não teria sido melhor do que
o limbo de cobardia, a atitude de nunca se arriscar em que
George se encurralara a si próprio durante todos aqueles anos?
Suspirou. Para quê dar-se ao trabalho de reviver aquele
momento?... Para quê dar-se ao trabalho de tentar explicar a
Marty ou a quem quer que fosse a razão de ser tão derrotista? Ele
próprio mal podia aceitar a racionalização mais favorável.
Agora, como para sublinhar o desafio de Marty um momento
antes, uma voz chamou-o da janela da casa ao lado. Era a do seu
vizinho Howard, um tipo de quarenta anos, estômago proeminente
e de costume desagradável, que, como Biff Tannen, só
falava com o George quando precisava de alguma coisa ou queria
humilhar outra pessoa.
De momento tinha menos desprezo na voz, sem dúvida por
pretender a ajuda de George:
- Ouça, MacFly! - chamava. - A minha filha anda a
vender bolinhos das Escuteiras. Disse-lhe que contasse com
uma caixa para si.
- Uma caixa? - retorquiu George. - Quantos tem
uma caixa?
- Que diferença faz?- atirou Howard em tom de beligerância.

- Doze. Vinte e quatro. Trinta e seis. É por uma boa
causa, não é? Ou quer que eu diga à garota que você é um unhas
de fome?
- É que... - começou George, para logo encolher os
ombros desanimadamente. - Deixe lá. Está bem. Diga-lhe que
conte com uma caixa para mim, sejam quantos forem.
Marty abanou a cabeça e foi para dentro.
A irmã, o irmão e a mãe já estavam sentados à mesa de
jantar; nenhum deles levantou os olhos quando Marty entrou e
se deixou cair para cima da sua cadeira. Por uma vez, agradou-lhe
que estivessem tão embrenhados nas suas próprias vidas
que não se lembrassem de lhe perguntar como correra a audição
musical. Não lhe apetecia explicar por que tinha perdido, nem
ver as suas expressões de fingida compunção.
- Outra vez empadão de carne - limitou-se a dizer
inexpressivamente.
A crítica não o impediu de dar ao dente. O irmão Dave, de
vinte e dois anos, estava sentado em frente, com um uniforme de
Burger King. Mantinha um dos olhos fixo no relógio e o outro na
comida, que consumia em grandes pedaços, engolindo ruidosamente,
como um animal meio esfomeado. À esquerda de Marty
sentava-se Linda, de dezanove anos, engraçada no seu aspecto
franzino, em parte realçado por usar sempre demasiada sombra
nos olhos. Marty tentou lembrar-se de quando a vira pela última
vez sem as pálpebras pintadas de púrpura ou verde, mas acabou
por desistir. À direita de Marty ficava a querida mãezinha, que '
fora em tempos muito atraente e brilhante. Agora, com quarenta '
e sete anos, tinha excesso de peso, bebia mais do que seria bom
para a sua saúde e tinha mais comida no prato do que qualquer
outro membro da família. A refeição, além do inevitável empadão
de carne, incluía macarrão Kraft e queijo, salada de vegetais
Birds Eye e puré de batata instantâneo French.
O pai, o último a sentar-se, ligou a televisão para reposição
de um velho episódio da série Honeymooners e pôs à sua frente
papéis em vez de comida, Marty notou com irritação que ele já
estava a começar a fazer o "trabalho de casa" que Biff Tannen tão
indelicadamente lhe marcara.
Durante alguns minutos, Marty e Dave divertiram-se a si
próprios e um ao outro recitando as frases do episódio antes dos
próprios actores na televisão, número que acabou por chatear a
mãe:
- Pronto - disse. - Já sabemos que viram isto dezenas
de vezes. Mas o pai quer a televisão ligada para esse canal,
está bem? Portanto deixem-no divertir-se em paz.
Marty e Dave encolheram os ombros.
O silêncio reinou por um minuto até que a mãe olhou para
Marty, sorriu e disse:
- Então, Marty, que tal correu a audição?
Marty expirou pesadamente:
- Perdemos - limitou-se dizer.
Todos tentaram pensar em qualquer coisa para dizer, ou
pelo menos todos fingiram pensar.
- É provável que já estivesse tudo combinado - acabou
Dave por dizer, e, surpreendentemente, essa afirmação superficial
consolou Marty. Isso de facto era o que ele próprio pensava
desde que se realizara o concurso simulado.
- Pode ser - concordou, encolhendo os ombros.
- Provavelmente já sabiam à partida quem ia ganhar - acenou-lhe
Dave. - O resto era só para vista.
- Paciência-comentou Linda baixinho, sem levantar os
olhos da sobremesa, que era pudim de chocolate Jell-O Instante
com cobertura de preparação instantânea e sem marca definida.
- É pena - suspirou a mãe. - Acho que o teu grupo é
muito bom. Nem vejo como é que outro conjunto podia ser
melhor.
O pai levantou a cabeça do trabalho de casa:
- Acredita no que te digo, filho - atreveu-se a intervir
-, é melhor não teres a ralação de te ocupares desse baile da
A C M.
- Que ralação? - perguntou Marty friamente.
- Bem, terias de te preocupar em levar para lá o equipamento
todo...
- Já fizemos isso montes de vezes - interrompeu Marty.
- Não é nenhum problema.
- Teriam de fazer planos alternativos para o caso de
alguém adoecer - continuou o pai.
- Nunca ninguém adoeceu.
- Mais uma razão para alguém adoecer agora - insistiu
ele. - Depois teriam de se assegurar de que recebiam o dinheiro,
distribuí-lo equitativamente por todos, pagar a quotização
para o sindicato dos músicos. .
- Bolas - resmungou Marty -, não há dúvida de que
arranjas sempre boas razões para não se fazer nada.
Isso não desencorajou minimamente o pai:
- E se fossem tão bons que outras pessoas os quisessem
contratar? - prosseguiu. - Então teriam de se preocupar em
escalonar os horários em relação à escola.
- Tens razão, papá. Talvez seja melhor eu baixar já à
cama. Quanto mais tempo estiver vivo, mais problemas vou ter.
- Acredita em mim, filho, passas melhor sem todas essas
dores de cabeça - concluiu o pai.
- Ele tem razão, Marty - acrescentou Dave sardonicamente,
assumindo a atitude do pai. - Se há uma coisa de que
não precisamos é de dores de cabeça.
Marty deixou finalmente de discutir, embora a desistência
o fizesse sentir um pouco como o pai.
Lorraine MacFly voltou a sua atenção para Linda, que estava
a acabar o pudim:
- Não precisavas de comer isso, sabes muito bem - disse.
- Temos bolo.
Linda ergueu as sobrancelhas:
- Que bolo? - indagou.
Lorraine apontou para o bolo de três andares colocado sobre
o balcão da cozinha. No cimo estava escrito: BEM-VINDO TIO
JOEY. Sobre as letras via-se um passarinho preto a voar para
fora de uma janela gradeada. Não era propriamente subtil, mas
a situação do Tio Joey não constituía segredo.
- Parece que vamos ter de comer este bolo sozinhos outra
vez - sorriu Lorraine amargamente. -Não deram liberdade
condicional ao Tio Joey.
- Talvez devêssemos tentar meter uma lima em qualquer
coisa - sugeriu Dave.
- É uma vergonha - continuou Lorraine. - Já lhe
tinham praticamente garantido que sairia desta vez. Depois
houve todo aquele reboliço na direcção prisional. Acho que isto o
feriu mais do que tudo. Todos têm interesses a defender.
- Talvez seja melhor assim - comentou Marty. - Se
saísse, teria de tomar uma série de decisões. Teria de arranjar
emprego e preencher declarações para as Finanças...
- É verdade - corroborou Dave. - Teria de se preocupar
em andar de um lado para o outro, em ter dinheiro trocado
para telefonemas... Provavelmente é melhor ter de ficar no
xadrez.
Lorraine franziu o sobrolho e olhou com irritação para
ambos. George MacFly não levantou a cabeça do trabalho de casa.
- Gostaria que fossem mais respeitosos
- afirmou Lorraine. - É meu irmão, como muito bem sabem.
- Bem, acho que é tremendamente embaraçoso ter um tio
na prisão - murmurou Linda.
- Todos cometemos erros na vida, meus filhos - disse
Lorraine filosoficamente.
- Sim, mas o Tio Joey cometeu-os uns a seguir aos outros
- comentou Dave com um sorriso. - E estando em liberdade
condicional. Isso não é só um erro, é pura estupidez.
Lorraine não respondeu. Em vez disso, serviu-se outra vez
de puré.
Voltando a olhar para o relógio, Dave limpou a boca e
empurrou a cadeira para trás:
- Com mil diabos! - exclamou. - Vou chegar outra vez
atrasado.
- Por favor tem tento na língua - avisou-o a mãe.
- Está bem, que raio! - replicou Dave, pondo-se de pé,
começando a dirigir-se para a porta da frente. Pouco depois,
ouviram o carro a ser posto em funcionamento e a afastar-se
ruidosamente. Marty desejou possuir o seu próprio carro, mesmo
que fosse um monte de latas como o do Dave. Pelo menos
seria independente, se alguma coisa corresse mal, só ele seria o
responsável.
- A propósito - disse Lorraine -, aquela garota, Jennifer,
telefonou... quer que ligues para ela.
Marty fez um aceno de cabeça.
- Acho que o apelido é Parker.
- Eu sei, mamã.
- Mas podia ser outra Jennifer, não podia?
- Sim, mas de momento não conheço nenhuma outra
Jennifer.
- Desculpa - pediu a mãe, reunindo os restos de puré
com uma côdea de pão. - De qualquer forma, não creio que
goste dela. Uma rapariga que telefona para um rapaz anda à
procura de sarilhos.
Marty e Linda trocaram um olhar significativo. A mãe teria
perdido o juízo?
- Oh, mãe - sussurrou Linda -, não há mal nenhum
em telefonar para um rapaz.
- Bem, eu acho que é terrível - insistiu Lorraine.Raparigas
atrás de rapazes - quem é que já ouviu falar numa
coisa dessas? Eu nunca andei atrás de nenhum rapaz quando
tinha a vossa idade. Nunca telefonei a nenhum rapaz, nem me
fiz convidada para encontros ou me sentei dentro de um carro
estacionado na companhia de um rapaz...
Que infância tão aborrecida, pensou Marty.
- Porque quando nos portamos assim, os rapazes não nos
respeitam, Linda. Pensam que somos fáceis.
Linda rolou os olhos. Já ouvira aquilo centenas de vezes,
embora provavelmente até lhe parecesse pelo menos um milhão.
- Então como é que havemos de nos encontrar? - inquiriu.

- Acontece simplesmente - Lorraine sorriu. - Como
eu encontrei o papá.
- Mas isto foi tão estúpido! - gemeu Linda. - O avô
atropelou-o.
Tinha de ser assim.
Talvez devesses frequentar os bancos dos hospitais - sugeriu
Marty.
- Isso não iria servir de nada- assegurou Lorraine, não
percebendo o sarcasmo. - Verás, hás-de conhecer o Sr. Maravilhoso
de um modo que não podes ser tu a provocar. E também
não poderás evitar. É inevitável, tal como o Sol deve nascer
amanhã de manhã.
Nem toda aquela metafísica impressionou a Linda:
- Continuo a não perceber o que o papá estava a fazer no
meio da rua - comentou.
O pai, indiferente a toda a conversa, não levantou os olhos do
trabalho, pelo que a mãe ergueu a voz para lhe captar a atenção:
- Que era, George? - interrogou. - Que estavas lá a
fazer? - A observar os pássaros?
George sacudiu a cabeça como uma pessoa a sair de coma:
- Han?- resmungou em voz pastosa. -Disseste alguma
coisa, Lorraine?
- Deixa lá.
- Se calhar estava só a pedir boleia desajeitadamente - aventou
Marty. De facto nem estava interessado em saber como
os pais se tinham conhecido.
Todavia, Lorraine estava interessada em contar a história:
- Fosse como fosse - continuou. - O avô atropelou-o e
levou-o para casa. Ele estava completamente inconsciente...
- Como agora - interrompeu Marty.
Lorraine atirou-lhe um olhar de censura:
- Parecia tão indefeso... como um cachorrinho perdido. E
o seu coração como que me impeliu para ele.
- Pois, mamã- gracejou Linda. -Já nos contaste um
milhão de vezes: Foi "Florence Nightingale parte em socorro".

Lorraine recostou-se na cadeira, de olhos sonhadores devido
aos pensamentos e imagens nostálgicos:
- No fim-de-semana imediatamente a seguir - prosseguiu
-, saímos pela primeira vez juntos. Fomos à Escola de
Dança "Encanto Submarino".
- Submarino?- Voltou Marty a interromper. -Queres
dizer que as pessoas iam todas mascaradas de amêijoas ou
ostras?
A mãe ignorou-o:
- Nunca o esquecerei - disse. - Foi na noite daquela
terrível trovoada. Lembras-te, George?
- De quê, querida? - tartamudeou George MacFly.
- Da noite da nossa primeira saída.
- Hum. Estava a chover.
- Nunca houve trovoada pior, nem antes nem depois - exagerou
Lorraine. - As pessoas ainda falam dela. Enfim, o
vosso pai beijou-me pela primeira vez na pista de dança... e foi
nessa altura que eu percebi que ia passar o resto da minha vida
com ele.
- Deve ter sido mesmo uma valente trovoada - ironizou
Marty.
- Não acredito que o papá arranjasse coragem suficiente
para te beijar em público - comentou Linda.
Lorraine corou:
- Bem - disse modestamente -, talvez eu o tenha
encorajado um pouco...
- Aposto que quase tiveste de te atirar a ele - sugeriu
Marty.
Dizendo isto, acabou de comer, recusou uma fatia do bolo de
não-regresso do prisioneiro, limpou a boca e pôs-se em pé.
Lorraine mal deu por isso, tão embrenhada estava nos seus
pensamentos:
- Pensando bem - recordou -, foi isso: quase tive de...
Não desejando entrar na moderna "conversa obscena", como
lhe chamava, deixou que o resto da frase lhe morresse na
garganta. Era um fim apropriado, em qualquer caso. Marty ia a
meio caminho de sair da cozinha, Linda olhava pela janela para
algo que se passava na casa ao lado e George continuava
embrenhado nos seus papéis. Lorraine encolheu os ombros e
estendeu a mão para a faca mais próxima. Se mais ninguém
queria comer o bolo do Tio Joey, ia ela prová-lo.
Com um sorriso expectante, talhou uma cunha de dez centímetros,
passou-a para o seu pires de café e começou a atacá-la.
Tal como a cobertura cremosa se lhe derreteu na boca, assim se
evaporava quaisquer ideias de que os últimos trinta anos não
tivessem sido senão gloriosos.

@CAPÍTULO III

Doc Brown conduziu a venerável caravana para o parque de
estacionamento da Alameda Twin Pines pouco depois da meia-noite.
Estavam lá mais carros do que ele contara, pelo que se
dirigiu para o extremo limite da área asfaltada e ficou à espera.
"Deve ser um filme muito comprido" disse de si para si.
Einstein o seu enorme cão, que viera enroscado no lugar de
passageiro, deu um salto assim que a caravana se deteve e
encostou à janela o nariz molhado.
- Não, Einstein - murmurou Doc Brown. - Ainda
não. Temos de esperar alguns minutos, portanto podes encostar-te
outra vez.
Einstein bocejou, enrolou a língua de novo para dentro da
boca e tentou coçar-se por baixo da coleira que usava. O relógio
digital que funcionava a pilhas e estava agarrado à coleira
oscilou à luz da Lua, mudou de 00:07 para 00:08 e ficou quieto ao
mesmo tempo que o cão, quer por ter satisfeito a sua comichão
quer por ter desistido de tentar coçar onde não conseguia chegar.
Poucos minutos depois, dúzias de pessoas saíram ao mesmo
tempo do interior do centro comercial e dirigiram-se para os seus
automóveis. Uma série de motores a começarem a funcionar, de
luzes a acenderem-se e de pneus a deslizarem deu vida durante
alguns minutos ao vasto terreno sem árvores. Depois tudo recaiu
em silêncio. O ligeiro odor de gases de escape ficou no ar pesado,
enquanto as luzinhas desapareciam na escuridão da madrugada.
xxx
De novo uma solidão relativa, Brown sentiu-se melhor. As
pessoas provocavam nele uma vaga sensação de insegurança.
Imaginava sonhadoramente a reacção pública à experiência
que ia realizar quando de súbito se apercebeu de que esquecera
um dos mais importantes utensílios a usar.
- Bolas - resmungou.
Felizmente estava em 1985 e não nos velhos tempos, em que
teria sido obrigado a procurar uma cabina telefónica algures na
alameda. Levando a mão ao porta-luvas, tirou o telefone e
começou a ligar.

Marty não estava a dormir, em parte porque tinha a intenção
de ir ter com Doc Brown e em parte porque o seu espírito
estava repleto de pensamentos negros e inquietantes. No que se
referia à Jennifer, claro que o mal já tinha sido feito. Esquecera-se
de lhe telefonar. Olhando para o relógio, decidiu que era
tarde para lhe dar uma apitadela, especialmente porque não
sabia se ainda estaria em casa da avó ou se já fora para a sua. Era
possível que se tratasse de uma racionalização devida ao facto de
ele ser demasiado preguiçoso. Em qualquer caso, deixou cair o
pulso sobre o peito e voltou a fechar os olhos.
À luz do único candeeiro, era possível ver que o ocupante do
quarto se interessava intensamente por música rock, carros e
reprodução sonora. A cobrir as paredes havia cartazes de estrelas
do rock e de carros novos, particularmente Toyotas de tracção
às quatro rodas. Um gravador, um sintetizador portátil para uso
caseiro e um monte considerável de folhas de música estavam
arrumados a um canto, enquanto uma viola-baixo e um amplificador
se aninhavam noutro.
Embora estivesse cansado de toda a correria em que andara,
Marty não conseguia dormir. Continuou a pensar no comportamento
tramado da comissão sectorial e começou a interrogar-se
sobre se alguma vez chegaria a algum lado no mundo das
gravações. Vinte minutos depois, levantou-se e foi até à secretária junto
da cama. Pegou no impresso da R & G RECORDS, já
preenchido, para submeter gravações à apreciação da firma
releu-o e meteu-o no sobrescrito, juntamente com a cassete dE
demonstração.
"Vale a pena tentar", pensou. "É só enviá-la."
Então outro dos seus lados sombrios hesitou. Enviá-la para
quê? Para receber outra rejeição? Gastar dinheiro em selos só
para poder viver umas semanas de esperança antes de o balão
rebentar outra vez?
Encolhendo os ombros, deitou a cassete e o impresso para o
cesto dos papéis e voltou a deixar-se cair na cama. O seu espírito,
ocupado em pensamentos deprimentes, acabou por o libertar
para um sono profundo, que terminou pouco depois da meia-noite.

Trrim. Trrim-trrim.
Marty sacudiu a cabeça e estendeu a mão para o telefone
sem fios ao lado da cama:
- Está?
- Não estavas a dormir, não? - perguntou Doc Brown do
outro lado.
- Hum, não. Claro que não.
- Tens voz de quem acaba de acordar.
- Estava a pensar - disse Marty: Que se passa
Ainda é cedo para eu sair de casa.
- Pois, pois - retorquiu Brown. - Só estava com uma
ideia. Esqueci-me do gravador video. Podes passar lá por casa
quando vieres para aqui e trazê-lo?
- Não custa nada, Doc. A chave ainda está no mesmo
sítio?
- Está. Debaixo do vaso com a planta.
- Não é um sítio muito bom - observou Marty. - Seria
o primeiro onde um ladrão procuraria.
- Ainda não fui roubado. De qualquer modo, a casa tem
um ar tão desarrumado. Nunca ninguém suspeitaria de que lá
está o valor de um bilião de dólares em investigação.
- Está bem, Doc. Vemo-nos daqui a meia hora ou coisa
parecida.
- Certo.
Marty desligou, voltou a calçar os sapatos, e agarrou no
casaco, na prancha de patinagem e no seu novo Walkman, que
levava consigo para onde quer que fosse. Depois voltou junto da
cama e meteu umas almofadas debaixo dos cobertores, para
parecer que um corpo estava deitado, a dormir profundamente.
Ao mesmo tempo que fazia aquilo, interrogava-se sobre a razão
de estar a ter aquele trabalho. Afinal não estava em nenhuma
prisão. Não havia guardas a fazerem ronda de hora a hora para
contarem as cabeças. Mas de certa forma pareceu-lhe ser o que
devia fazer indo sair de casa pela calada da noite.
Assobiando baixinho, fechou a porta atrás de si sem fazer
barulho e desceu as escadas em bicos de pés.
Depois de sair pela porta da frente, Marty andou meio
quarteirão até pousar a prancha de patinagem no chão e a usar.
Já tinha aprendido por experiência própria, e muito sofrera com
isso, que as pranchas fazem muito barulho no silêncio da noite.
Dessa vez, cerca de dois anos antes, saíra furtivamente de casa
para ir ter com os rapazes quando a mãe ouvira o som e o
perseguira no carro.
Isso não se repetiu agora. Em segurança por já não poder ser
ouvido, rolou vertiginosamente pelas ruas escondidas e dobrou
esquinas até chegar à garagem delapidada que constituía a casa
de Doc Brown.
A chave estava no lugar. Marty agarrou-a, abriu a porta e
acendeu a luz do tecto.
Ia a meio caminho da mesa de trabalho onde Doc guardava
o equipamento de vídeo quando uma súbita cacofonia o fez saltar
independentemente da sua vontade. Perfeitamente certos, todos
os relógios que davam horas as anunciaram em uníssono: com
repiques musicais, sons de cuco, bips dos digitais. Durante dez
segundos Marty ficou imóvel, a ouvir até o último mensageiro
das horas se calar. Um sorriso inundou-lhe o rosto, pois nunca se
cansava de ouvir aquela estranha sinfonia com arranjos e
orquestrações do mais fanático guardador do tempo do mundo,
Doc Brown.
- Deve ser uma hora - disse Marty baixinho. E de facto
era.
Aproximando-se rapidamente da mesa de trabalho, localizou
o gravador de vídeo, colocou-o na respectiva maleta, e
patinou para fora da garagem de Doc Brown. Dez minutos mais
tarde, aproximava-se dos dois pinheiros seguidos que marcavam
a entrada da alameda. Ao virar a esquina, localizou a conhecida
caravana e dirigiu-se para ela. A atmosfera, iluminada por
lâmpadas a vapor de sódio envoltas numa ligeira neblina, tinha
o aspecto fantasmagórico apropriado para uma grande experiência
científica.
- Doc - chamou Marty ao aproximar-se do camião.
Não houve resposta. Einstein, o cão de Doc, espreitou para
ele pela janela do lado do passageiro, com os grandes olhos
negros amigáveis mas não informativos.
- Olá, Einstein - cumprimentou Marty, apesar de
tudo. - Onde está o Doc? Onde está o Doc, pá?
Uns segundos depois, ouviu um motor começar a trabalhar
e passar rapidamente a marcha atrás. Parecia vir de dentro da
caravana mas não soava como o motor do camião. Provinha
demasiado de trás, por um lado, com o ruído a emanar não de
debaixo da capota mas de algures a meio do veículo.
Marty começou a andar para a parte de trás da caravana.
No preciso momento em que chegava junto do pára-choques
traseiro, ouviu um intenso ruído metálico, um batuque, e viu as
portas de trás abrirem-se espectacularmente. A prancha de
descida baixou para a sua posição e um gigantesco objecto
brilhante desceu para o parque de estacionamento. Era o DeLorean
de aço inoxidável, modificado com rolos de arame e alguns
acessórios de mau aspecto no motor traseiro.
Marty ficou surpreendido a olhar para ele.
O DeLorean aproximou-se suavemente dele e parou. A porta
do condutor, em forma de asa de gaivota subiu para revelar a
cara sorridente de Doc Brown.
Contudo, Marty mal reparou no amigo. Continuava de olhos
fixos no DeLorean, que era diferente de tudo o que alguma vez
vira antes. A parte da frente do veículo modernístico era um
suave plano inclinado desde o pára-brisas ao pára-choques belo
mas nada de impressionante. Do compartimento do condutor
para trás, no entanto, o automóvel tinha sido modificado de
tal modo que mais parecia algo só visível numa central nuclear.
Em vez do banco e da porta de levantar, atrás, estava um enorme
reactor nuclear, com dois proeminentes escapes, cada um com
oito aberturas. Rodeando o escape e o reactor encontrava-se
arame de quinze centímetros que desaparecia por baixo do pára
-choques traseiro só para emergir depois e se enrolar em torno
da capota. Uma projecção circular de aproximadamente quarenta
e cinco centímetros de diâmetro, que Marty soube mais
tarde ser o radar, estava sobre o compartimento do passageiro.
Diversos cabos pesados percorriam todo o comprimento do
carro, desde o motor até às rodas da frente, contribuindo para o
seu aspecto de arcano.
Doc Brown permitiu que o seu protegido fitasse o estranho
veículo durante um minuto, antes de falar:
- Boa noite, Marty- disse com sorridente formalismo.Bem-vindo
à minha última experiência. Esta é a maior... aquela
em que tenho trabalhado e esperado durante toda a minha vida.
Marty estava menos interessado na experiência do que no
DeLorean. Andando em círculo à sua volta, captou todas as
linhas e costuras escondidas:
- É um DeLorean - afirmou. - Mas que lhe fez?
- Só umas modificações - sorriu Doc Brown.
Ao falar, saiu do veículo, revelando-se em todo o seu esplendor
de ficção científica. Pensava que devia assemelhar-se a
Michael Rennie ao chegar pela primeira vez à Terra No Dia
em que a Terra Parou.
- Para que é o fato Devo? - perguntou Marty.
"Que falta de respeito", pensou Doc Brown. Tivera tanto
trabalho a preparar vestuário apropriado para a ocasião, e este
jovem chamava-lhe fato Devo.
- Tem paciência, Marty - respondeu. - Terás respostas
a todas as tuas perguntas na altura devida. Agora, se
começares a gravar, vamos prosseguir.
Marty tirou a câmara de vídeo da maleta, colocou-a no tripé
e assestou-a para Doc Brown. Ergueu o braço, e depois baixou-o
ao mesmo tempo que carregava no interruptor de ligação.
Muito formalmente, como o narrador de um documentário,
Brown começou a falar:
- Boa noite- pronunciou. -Sou o Dr. Emmett Brown.
Estou aqui no parque de estacionamento da Alameda Twin
Pines. Estamos na madrugada de sábado, 26 de Outubro de
1985. É 1:19 e esta vai ser a experiência temporal número um.
Baixando o olhar para Einstein, que saltara da caravana e se
arrastava nervosamente em redor da parte inferior do DeLorean.
Doc acrescentou:
- Vamos, Einstein. Entra, pá.
Obedientemente, o cão saltou para dentro do automóvel e
sentou-se magestosamente a meio do lugar do condutor. Doc
Brown estendeu a mão e prendeu-o com a trela. Depois, virando-se
para Marty, a máquina de filmar e o público invisível,
continuou a narrativa:
- Queiram ter a bondade de verificar que o relógio de
Einstein está perfeitamente sincronizado com o meu próprio.
Ao dizer isto, colocou o seu relógio digital junto do que se
encontrava na coleira de Einstein. Marty, fazendo funcionar a
teleobjectiva, deu um grande plano dos dois marcadores horários.
De facto, estavam perfeitamente sincronizados.
- Agora - disse Doc Brown -, se conseguirmos mostrar
de novo o carro na sua totalidade, verificar-se-á que o cão
sozinho no interior do veículo e que o seu relógio marca a mesma
hora que o que se encontra no meu pulso. Esta primeira parte da
nossa experiência envolverá apenas o elemento canino. Não se
prevê qualquer risco mas na antiga tradição da maior parte das
suas mais significativas experiências científicas, permitimos
que sejam animais os primeiros.
Fazendo uma festa na cabeça do cão, dirigiu-se-lhe:
- Boa sorte, Einie - depois estendeu a mão e pôs o motor
em funcionamento. O DeLorean voltou ruidosamente à vida.
Brown acendeu os faróis e baixou a porta em asa de gaivota. Só
a parte mais alta da cabeça de Einstein era visível acima do
nível
da janela.
Recuando alguns passos, Doc Brown continuou a sua narrativa
científica:
- Vou agora controlar o veículo à distância por meio deste
aparelho.
Acenou com ele para a câmara, enquanto Marty lhe seguia
os movimentos. O aparelho de controlo à distância era semelhante
aos usados para conduzir por sinais de rádio os automóveis
de brinquedo. Tinha botões denominados "Acelerador" e
"Travão", assim como um manípulo e um velocímetro digital com
a indicação "Milhas Por Hora". De aspecto simples, era porém
bastante sofisticado. Marty não teve dúvidas de que Doc Brown
poderia manobrar o DeLorean com o aparelho, mas de momento
não fazia a mínima ideia de qual seria o resultado ou produto
final. Em vez de tentar decifrar o enigma, decidiu limitar-se a
gozar o espectáculo como operador de câmara e membro do
público.
Brown ligou o botão da energia e, usando o do acelerador e
o manípulo, enviou o DeLorean ruidosamente até ao outro
extremo do parque de estacionamento. Aí fê-lo parar instantaneamente,
manobrando-o de modo a ficar de frente para eles.
Vendo erguer-se um rasto de fumo quando ele se virou, Marty
desejou que nenhum polícia estivesse casualmente por perto.
Seria muito embaraçoso para todos se ele fosse obrigado a
prender um cão por condução perigosa.
Durante trinta segundos, o carro ficou imóvel, descansando
suavemente. A Marty pareceu assemelhar-se a um gato gigantesco,
preparando-se para saltar sobre uma incauta vítima.
- Estamos agora em condições de continuar
- afirmou Doc Brown. - Se os meus cálculos estiverem correctos - quando
o carro chegar às oitenta e oito milhas por hora, verão um
espectáculo de arromba.
Subitamente consciente de que a gravação continuava, Doc
estremeceu por ter usado uma linguagem tão coloquial. Acrescentou
rapidamente e com mais convencionalismo:
- Quando for atingida uma velocidade de oitenta e oito
milhas por hora, estranhas coisas devem começar a acontecer
nesta fase da experiência temporal número um.
Sempre poderia, raciocinou, fazer mais tarde a montagem
com a versão mais aceitável.
Respirando fundo, premiu o botão do acelerador. O parque
de estacionamento da Alameda Twin Pines fora seleccionado por
ele devido ao seu extremo comprimento - quase um terço de
milha - mas, quando o veloz DeLorean de novo começou a
avançar ruidosamente em direcção à extremidade da pista
negra, ele próprio começou a interrogar-se sobre se seria suficiente.
Partindo como um carro de corrida, com mudanças automáticas,
a velocidade registada do DeLorean girou rapidamente
para além dos 30, depois 40. Ao chegar aos 60, ele parecia andar
a uma velocidade perigosamente excessiva. Marty seguia-o pelo
visor, quase deixando uma ou duas vezes que o veículo saísse do
enquadramento quando um súbito aumento de velocidade o
fazia andar mais rapidamente.
- Sessenta - anunciou Doc Brown. - Sessenta e cinco...
setenta... setenta e cinco...
Marty perguntou a si próprio como se sentiria Einstein, lá
sentado no seu lugar de prisioneiro, a observar os indicadores e
luzes dos instrumentos a brilharem contra o céu negro.
- Oitenta.
Fazendo com que o veículo descrevesse um enorme arco, Doc
Brown manobrou-o de modo a que se aproximasse deles com
toda a sua potência. Com quase todo o comprimento do parque
à sua frente na corrida em sentido contrário, ele não sentia agora
qualquer preocupação em carregar no acelerador. O indicador do
velocímetro saltou para 85, 86, 87, e finalmente, 88, onde ficou
durante um longo segundo, com a agulha a acariciar o número
mágico como para dar ênfase à sua importância.
Doc Brown aguardou. Devia acontecer agora, pensou, deveria
estar a acontecer naquele preciso seg...
O pensamento não foi completado, antes engolfado por uma
experiência de estarrecer.
No meio da sua corrida precipitada pelo centro do parque de
estacionamento, o DeLorean foi subitamente engolido por uma
luminosidade branca tão intensa que quase cegava. Durante
uma fracção de segundo, a silhueta do carro, rodeado por uma
coroa de luz, parecia um eclipse do Sol. Depois uma onda de
choque e uma explosão de som atingiram Marty e Doc Brown no
preciso momento em que o automóvel desaparecia numa enorme
trilha de fogo. As brasas, a princípio grandes, foram diminuindo
gradualmente de tamanho até só restar uma fenda cor-de-rosa
na atmosfera. Então um breve som metálico, parecendo de lata,
ecoou pelo parque. A sombra de algo em movimento, algo muito
pequeno, tornou-se visível. Com os dedos a tremer, Marty
procurou obter um grande plano do objecto.
Era a chapa de matrícula do DeLorean, uma chapa de luxo
em que estava escrito: FORA DO TEMPO.
- Que te disse eu? - gritou Doc Brown, com entusiasmo
na voz.
- Oitenta e oito milhas à hora! Tal como eu tinha calculado.
- Olhou para o relógio. -A deslocação temporal ocorreu
exactamente à 1:20 e zero segundos da madrugada.
Marty abanou a cabeça com descrença:
- Deus Todo-Poderoso! - exclamou. - O senhor
desintegrou Einstein.
- Não - respondeu calmamente Doc Brown.
- Mas a chapa de matrícula é tudo o que resta do carro,
do cão, de tudo.
- Acalma-te, Marty. Eu não desintegrei nada. A estrutura
molecular de Einstein como do automóvel está completamente
intacta.
- Então onde diabo estão eles? - indagou Marty.
Doc Brown fitou-o com uma serenidade enlouquecedora:
- Não é onde - disse. - É quando.
- Não percebo.
- A pergunta adequada - emendou Doc Brown - não
é onde é que eles estão, mas sim quando estão eles. Sabes?
Einstein acaba de se tornar o primeiro viajante do tempo no
mundo. Enviei-o para o futuro-um minuto de futuro, para ser
exacto. E exactamente à 1:21 e zero segundos da madrugada,
apanhá-lo-emos... e à máquina do tempo.
Marty continuava sem perceber.
- Estás a gravar isto? - perguntou Doc Brown.Porque,
se estiveres, talvez seja melhor apontar a máquina para
mim ou para onde estava o carro, em vez de para o chão à tua
frente.
Marty sacudiu a cabeça, verificando que tinha deixado que
a câmara de vídeo se inclinasse para baixo durante o intervalo de
ansiedade e excitação. Endireitou-se, enquadrando Doc Brown.
- Não há problema - disse este, sorrindo indulgentemente.
- Ainda temos uns segundos.
- Uns segundos até acontecer o quê?
- Verás.
- Está a tentar dizer-me que construiu uma máquina do
tempo com aquele DeLorean? - inquiriu Marty.
Doc Brown sorriu modestamente:
- Como eu vejo a questão - respondeu -, se se vai
construir uma máquina do tempo, por que não fazê-lo com estilo
e imaginação? Além disso, há um aspecto prático: a construção
em aço inoxidável do DeLorean faz com que o fluxo se disperse...
Parou quando o seu relógio digital começou a emitir bips.
- Dez segundos - informou ele. - Mantém a fita a
rolar, Marty.
- Nunca parou.
- Cinco segundos. Prepara-te para uma repentina deslocação
de ar.
Marty agarrou a câmara com mais força, focando-a para o
ponto onde o DeLorean desaparecera.
- Quatro... três... dois:.. um... - Doc Brown fez a contagem
decrescente numa voz repleta de expectativa.
Exactamente no momento marcado, um súbito golpe de
vento atingiu-os, seguido imediatamente por um ensurdecedor
ruído sónico, que fez com que os cabelos se lhes eriçassem. Mal
o choque tinha sido registado, logo o DeLorean reapareceu no
mesmo lugar onde fora visto pela última vez. Mas não estava
parado. Movia-se tão depressa como antes.
- Oitenta e oito milhas à hora! -gritou Doc Brown acima
da trovejante onda de ar.
Baixando os olhos para o aparelho de controlo remoto,
carregou no botão de travagem, fazendo com que o carro se
imobilizasse chiando, com fumo a sair da carroçaria.
Doc Brown dirigiu-se imediatamente para o veículo. Marty
prendeu a câmara em posição e seguiu-o. Chegou ao DeLorean
uns segundos depois de Brown, que abrandara para se aproximar
com cautela. Indicando que Marty devia esperar até ele o ter
examinado, tocou ruidosamente no puxador da porta. Para
surpresa de Marty e sua própria, retirou a mão com um grito de
dor.
- Está quente? - perguntou Marty.
- Não. Está frio. Bestialmente frio - disse Brown, agitando
os dedos para trás e para a frente.
Esperou uns segundos até poder levantar a porta do lado do
condutor. Einstein espreitou-os do seu lugar, a agitar a cauda
contra as costas do assento. Marty sentiu alívio ao verificar que
nenhum dano aparente lhe havia sido causado. Doc também
ficou satisfeito por a sua mascote estar em boas condições,
embora tivesse uma atitude mais clínica. Em vez de acariciar o
cão, virou a coleira a fim de poder ver o relógio digital
inserido
nesta.
Ele marcava 1:20:10. Doc Brown olhou-o e sorriu. O seu
próprio relógio marcava 1:21:10.
- Há um minuto preciso de diferença - afirmou triunfantemente.
- E o relógio de Einstein continua a trabalhar.
Não parou.
- Ele está bem? - quis saber Marty.
- Parece-me óptimo.
Brown desafivelou a trela. Einstein saltou para fora do
carro, brincalhão e feliz. Doc Brown tirou da algibeira um osso
de borracha e deu-lho como recompensa:
- Um preço muito pequeno para pagar por uma investigação
de valor incalculável - comentou.
- Tem a certeza de que ele está bem?
- Tenho - retorquiu Brown. - E ignora completamente
que alguma coisa tenha acontecido. Pela parte que lhe
toca, a viagem foi instantânea. É por isso que o relógio dele
está
atrasado um minuto em relação ao meu. Passou por cima" desse
minuto para chegar instantaneamente a este minuto no tempo ..
Vendo que Marty franzia o sobrolho, Doc Brown indicou-lhe
que se aproximasse do Delorean:
- Vem cá, deixa-me mostrar-te como funciona - ofereceu-se,
enfiando a própria cabeça na cabina do automóvel.
Marty aproximou-se de lado e olhou para dentro, para o
conjunto de mostradores e aparelhos ainda a acender e a apagar.
Como uma criança a mostrar orgulhosamente um brinquedo
novo, Doc Brown começou a ligar interruptores e a falar ao
mesmo tempo:
- Primeiro ligam-se os circuitos de tempo - disse. Uma
colorida bateria de indicadores luminosos acendeu-se quando
ele carregou num botão.
- Este indicador diz para onde vamos, este onde estamos,
e este onde estávamos - continuou.
Marty olhou atentamente para os indicadores. Estavam
marcados como TEMPO DE DESTINO, TEMPO PRESENTE E
MOMENTO DA PARTIDA.
Sem esperar por eventuais perguntas de Marty, Brown
continuou a um ritmo rápido:
- Marca-se o tempo de destino neste teclado - informou.
-Queres ver a assinatura da Declaração de Independência?

Marty olhava perplexo, com a mente num turbilhão. Ele
estaria a brincar? Aquela máquina, por mais sofisticada que
fosse, conseguiria realizar tais milagres?
De novo sem esperar por resposta, Doc Brown marcou uma
data no teclado do tempo de destino: 4-7-1776:
- Depois só precisamos de nos dirigir a Filadélfia. Ou
-talvez gostasses de testemunhar o nascimento de Cristo.
Dito isto, mudou o mostrador para 25-12-0.
- Claro - acrescentou didacticamente - que há alguma
discussão quanto a essa data. Alguns estudiosos afirmam
que Cristo nasceu no ano 4 a. C. e que alguém se enganou no ano
durante a Idade Média. Mas supondo que 25-12-0 esteja correcto,
só teríamos de encontrar o caminho para Belém.
- Nada complicado - comentou Marty.
Já perfeitamente embrenhado na descrição dos mecanismos
do seu sistema, Doc Brown mudou o TEMPO DE DESTINO para
5-11-1955: .
- Ora aqui está outra data marcante na história da
ciência e do progresso - prosseguiu: - 5 de Novembro de
1955. Creio que era sábado. Sim, pensando bem, tenho a certeza
de que era. O tempo estava um bocado cinzento.
- Que aconteceu nessa data? - indagou Marty. Era
mais de uma década antes de ele ter nascido, pelo que só podia
especular. - Foi a vacina Salk ou alguma coisa assim?inquiriu,
recordando-se das aulas de Ciências de que a cura da
poliomielite datava aproximadamente dessa época.
- Não - continuou Doc Brown. - É uma data marcante
na ciência e de que ninguém sabe nada - por enquanto.
Ninguém a não ser eu, claro. Sabes? Foi nesse dia que inventei
as viagens no tempo...
- Então hoje o que é? - interrompeu Marty.
- Hoje é a prática, a execução - afirmou Brown sorridente.
- 5 de Novembro de 1955 foi o dia da concepção, o
momento em que tudo se juntou numa teoria que eu soube poder
funcionar. - Encostou-se à brilhante estrutura do DeLorean,
com os olhos húmidos de feliz nostalgia. - Lembro-me perfeitamente
- disse. - Estava de pé sobre a borda da sanita a
pendurar um relógio. A porcelana estava molhada. Escorreguei
e bati com a cabeça no lavatório, à minha esquerda. E, quando
recuperei os sentidos, tive uma revelação - uma visão absolutamente
perfeita -uma imagem na minha cabeça de tudo o que
precisava de fazer e de como o podia fazer.
Fez um gesto para abarcar o automóvel:
- Acredites ou não, vi isto - continuou. - O meu
sonho, ou alucinação ou o que quer que fosse continha uma
imagem disto.
- Extraordinário - comentou Marty, de olhos abertos
num espanto sincero. Conhecia a sensação. Uma vez acordara a
meio da noite com a letra e a melodia de uma canção literalmente
a tocar dentro da sua cabeça. Só precisou de arranjar papel e
fazer o ditado. Isso não era nada em comparação com um avanço
científico como a invenção das viagens no tempo, mas o impacte
emocional devia ser semelhante.
Inclinando-se dentro do DeLorean. Doc Brown apontou para
uma determinada unidade central:
- Grava uma imagem disto - pediu.
Marty assestou a câmara para o objecto de aspecto estranho.
Movendo a cabeça para o seu lado, de modo a poder aparecer na
imagem e ao mesmo tempo descrever o funcionamento, Doc'
Brown continuou em tom profissional:
- Isto é o que torna possível viajar no tempo - o capacitador
de fluxo.
- Capacitador de fluxo, hum? - repetiu Marty. - É o
nome verdadeiro ou foi inventado por si?
- É o nome lógico aplicado por mim quando decidi descrever
a sua função em uma ou duas palavras. Qualquer cientista
brilhante teria chegado aproximadamente ao mesmo nome se
tivesse tido a oportunidade.
Marty riu interiormente da falta de humildade do homem.
Todavia, isso não fez com que deixasse de gostar dele. De facto
até achou que era algo de encantadoramente refrescante.
- Gastei quase trinta anos e toda a minha fortuna de
família a tornar realidade a visão daquele dia em que caí da
sanita... Meu Deus, foi assim tanto tempo? Trabalho nisto
exactamente...
Meteu a mão no bolso interior do casaco e retirou uma
pequena máquina de calcular. Premiu rapidamente alguns
botões e disse logo:
- Trabalho nisto há vinte e nove anos, onze meses e 355
dias. Excluindo férias, claro, e algumas semanas afastado
devido a doenças sem importância. Pensem só! Quase trinta
anos. É espantoso. Não há dúvida de que as coisas mudaram
durante este tempo. Tudo isto era terreno de cultivo aqui, até
onde a vista podia abarcar...
Desviou a vista para o horizonte, agora dominado pelos
enormes armazéns do centro comercial e com os candeeiros a
vapor de sódio alinhados na periferia da visão como ornamentos
de mau gosto:
- Mal posso crer que se foram - murmurou.
- O quê?

1 A conta está errada. Deveria ser: vinte e nove anos, onze meses
e vinte e um dias; ou vinte e nove anos e trezentos e cinquenta e
cinco dias. (N. do T.)

- A quinta... os anos...
Pareceu subitamente muito triste.
Marty tentou afastá-lo desse estado de espírito. Dando uma
palmada no lado do DeLorean, disse:
- Isto é de luxo, Doc. Impressionante.
O cumprimento provocou uma alteração na atitude de Doc
Brown. Os seus olhos voltaram ao presente, desanuviando-se e
: tornando-se instantaneamente mais brilhantes e vivos:
- Sim, tenho orgulho nele - e sorriu.
- Anda com gasolina normal, sem chumbo?-perguntou
Marty.
Doc abanou a cabeça e o seu sorriso alargou-se:
- Infelizmente não - redarguiu. - A princípio tentei.
Esse era um sonho que não podia tornar-se realidade: ter este
aparelho a andar económica e simplesmente. Talvez no futuro,
mas de momento exige algo com um pouco mais de potência.
- Refere-se à energia atómica? - conjecturou Marty.
Confirmando com um aceno de cabeça, Doc Brown indicou
um contentor que tinha pintados sinais de radiactividade a
púrpura.
- Plutónio? Quer dizer que este menino é nuclear?
- Basicamente eléctrico - respondeu Doc Brown.Mas
preciso de uma reacção nuclear para gerar os 1,21gigawatts
de electricidade de que necessito. O capacitador de fluxo armazena-a
e depois descarrega-a de uma só vez, como um gigantesco
relâmpago. É mesmo muito eficiente.
- Espere lá, Doc - interveio Marty. - O plutónio é
ilegal. Desviou-o?
- Claro. De que outro modo pode um cidadão comum
chegar ao plutónio?
- Roubou-o mesmo?
- É uma forma de dizer. Ou seja, outra pessoa roubou-o
para mim. Não, não é bem assim. Uma pessoa que já o tinha
roubado deu-mo.
- Deu-lho? - desabafou Marty. - Quer dizer que alguém
lho ofereceu sem mais nem quê?
- O que és tu? Um agente federal? - Doc Brown sorria.
- Olha, eu não quero que saibas demasiado. Podia ser mau
para ti. Tudo o que posso dizer é que alguém tinha este plutónio
e mo deu para outro projecto. Considerei esse projecto não só
menos importante do que o meu mas até perigoso para o futuro
da sociedade. Portanto matei dois coelhos de uma cajadada só,
transferindo o plutónio desse projecto mau para o meu, progressivo
e bom.
- Não anda a baralhar o nosso programa espacial, pois
não?
- Nada que se pareça - retrucou Doc com falso ar de
santidade. - Considero a conquista do espaço um programa
benéfico. Talvez programa não seja a melhor palavra, mas
asseguro-te que sou inteiramente a favor. Agora, por favor, não
insistas mais. É para teu próprio bem que não deves conhecer
mais pormenores.
- Está bem - suspirou Marty.
- Agora, antes de prosseguirmos, temos de te proteger
- afirmou Doc.
Avançou a passos largos até à caravana e tirou de lá um fato
protector de radiações em amarelo:
- Veste isto - disse.
Marty fixou a câmara de video e meteu-se no fato. A noite
arrefecera e soube-lhe bem uma camada extra de roupa. Com o
capucho posto, sentiu-se totalmente divorciado do resto do
mundo, como um mergulhador de profundidade no fundo do
oceano.
Trabalhando lentamente, Doc Brown tirou um cilindro de
dez centímetros da caravana, manejando-o com grande delicadeza.
Marty percebeu que dentro da cápsula tinha de estar uma
barra de plutónio, rodeada de água, a nova fonte de energia para
o veículo do tempo. Depois de aproximar o DeLorean alguns
centímetros do camião, para que o plutónio não tivesse de ser
transportado mais longe do que o estritamente necessário,
Marty voltou à câmara de video e repô-la em funcionamento
quando Doc Brown estava a atingir a parte de trás do carro e a
colocar o cilindro de plutónio no respectivo depósito. Selou
então
este e atirou para trás o capuz do seu fato protector de
radiações:
- Já estamos em segurança - informou sorrindo. Tudo
está coberto de chumbo.
Marty tirou o seu próprio capuz e ficou à espera das instruções
seguintes de Doc Brown.
- Assegura-te de que apanhas a minha partida - continuou
este a sorrir. - Seria uma pena que gravássemos tudo
menos isso.
- Para onde se dirige?
- Para o futuro.
- A que distância?
- Bolas - resmungou Brown, fazendo estalar os dedos.
- Quase me esquecia da bagagem.
Dirigiu-se rapidamente de novo à caravana, pegou numa
mala de viagem e voltou para o Delorean:
- Quem sabe se no futuro haverá roupa interior em
algodão? - comentou. - Sou alérgico a todas as fibras sintéticas.
Seria bastante desagradável encontrar-me no futuro com
uma terrível erupção de pele.
- Tem a certeza de que é seguro? - indagou Marty.
- A minha máquina trabalha - retrucou Doc Brown. Acabaste
de ver isso, não?
- Quero dizer, tem a certeza de que o futuro é seguro?
Imagine que vai direitinho à bomba! Ou a uma sociedade de
autómatos que o faça prisioneiro. Pelo menos sabe que o passado
é seguro. Ninguém lá tem melhor equipamento do que o senhor.
Mas o futuro...
Doc Brown sorriu, comovido pela preocupação do jovem com
a sua segurança:
- O que dizes faz sentido - admitiu. - Pensei bem no
assunto quando estava a considerar onde devia ir primeiro. Mas
sempre sonhei muito mais em ver o futuro do que em refundir o
passado. Gostaria de ver para onde a humanidade se dirige, se
para cima se para baixo. E além disso - acrescentou com uma
risadinha matreira -, se avançar um quarto de século, posso
saber quem ganha os próximos vinte e cinco Campeonatos e
Super Taças. Não será uma boa informação para ter quando for
velho?
Marty concordou de cabeça:
- Bem, procure-me quando lá chegar e eu informo-o dos
pormenores do que tenha estado a acontecer - disse.
- Procuro mesmo.
Aclarando a voz, Doc voltou a assumir uma atitude mais
séria ao dirigir-se à câmara:
- Eu, Dr. Emmett Brown - começou -, estou prestes
a embarcar numa viagem histórica...
Einstein começou a ladrar furiosamente.
Brown deteve-se a meio da frase. Que seria? - Um guarda
da segurança do centro comercial, um gato, ou algo pior?
Ouviu o barulho do motor antes de ver os faróis. Então uma
súbita viragem do veículo fez com que estes os iluminassem
directamente, duas luzes a subirem e descerem à medida que o
carro saltava na zona de desaceleração que conduzia ao centro
comercial, a quase meia milha de distância. Podiam ser adolescentes
numa surtida, mas algo no completo desespero e finalidade
do veículo disse a Doc Brown que o pior tinha acontecido.
Marty deixou de gravar com a câmara e ficou a olhar para ele
através do visor. A cara do homem estava cor de cinza, a boca
entreaberta, e respirava arfando. De facto exibia todos os sintomas
de choque, à excepção da tendência para desmaiar, e essa
podia estar iminente. Prendendo a câmara, Marty deu a volta,
preparado para ajudar Doc Brown conforme pudesse.
- Que é? - sussurrou.
Doc pareceu não o ouvir. Os seus olhos penetrantes continuavam
a seguir o avanço do veículo, que se movia naquela
direcção aproximada. Uma ligeira curva para um dos lados
revelou pouco depois que não se tratava de um automóvel vulgar
nem sequer de um carro da polícia. Só não constituía um
paralelepípedo por ter uma capota de motor mais inclinada, mas
era uma carrinha de aspecto aterrador, escura, com janelas que
pareciam ter sido enegrecidas por pintura ou pela instalação de
cortinas.
- Tens razão, Einie... - disse finalmente Doc Brown
afagando a cabeça do seu cão. - São eles.
- Quem? - Inquiriu Marty.
Doc Brown pareceu não o ter ouvido.
- Encontraram-me- murmurou. -Não sei como, mas
encontraram-me.

@CAPÍTULO IV

Pouco depois das três da tarde do dia 26 de Outubro de 1985
o homem moreno que era conhecido apenas por Sam recebeu
mensagem em código do seu superior hierárquico. Enquanto
lia, a sua ira aumentava, até os mal-humorados olhos escuro
lhe brilharem vingativamente.
- Fomos logrados - limitou-se a dizer aos quatro homens
e uma jovem que estavam sentados no sujo quarto de motel
à espera de instruções.
Enquanto falava, puxou violentamente para trás o fecho da
sua metralhadora A K 47, pousou a arma em cima da mesa ao seu
lado e começou a procurar qualquer coisa numa pasta.
- Estamos sempre a ser logrados- afirmou a jovem.Não
somos suficientemente implacáveis. Se o mundo soubesse
que matamos quem se nos opõe em vez de negociar e tergiversar,
seríamos imparáveis. Pelo contrário, somos considerados palhaços
com armas.
3Sam já ouvira aquilo antes. A sua própria carreira como
terrorista internacional datava de havia quase trinta anos
sempre houvera um membro da organização que só queria
mortes. Por vezes era o membro mais jovem, ansioso por mostrar
aos outros como era duro; agora tratava-se de Uranda, ex-manequim
de vinte e cinco anos, vinda de Damasco, que se divertia a
enfiar balas nos corpos dos outros.
- Não te preocupes - rosnou Sam. - Desta vez não
vamos tergiversar. Só haverá um morto, mas estará bem morto,
quando o despacharmos.
Tirou umas folhas da pasta. Tratava-se de um processo com
a fotografia a cores de Doc Brown, dez páginas dactilografadas
a um espaço com um resumo das suas antigas actividades e
hábitos, e um mapa da casa e da área em que trabalhava. Sam
recebera o processo uma semana antes, quando parecera que
talvez não fosse de confiar tanto em Brown quanto a organização
desejara. A confirmação da duplicidade de Doc Brown chegara
nessa manhã, seguida da decisão de o eliminar.
Sam pôs a fotografia colorida em cima da mesinha e indicou
que os outros a deviam estudar.
- Que fez ele? - perguntou Uranda. - Não que isso
tenha importância. Tem ar de judeu.
- Contratámo-lo para fazer uma bomba nuclear.
Os olhos da jovem brilharam de excitação.
- Roubámos plutónio e demo-lho. Ele atrasou-se o mais
possível e só nos deu a arma quando o ameaçámos.
- Então? - Interveio outro membro do grupo.
- A bomba não era mais do que uma caixa com peças
gastas - informou Sam.
Uranda fez rolar os olhos para trás, mas, no momento
seguinte, um ar de feliz antecipação apoderou-se-lhe das feições.
- Matá-lo-emos esta noite - continuou Sam. - O quartel-general
decidiu que não valia a pena levá-lo para interrogatório.
Vocês dois sigam-no o resto do dia. É provável que apareça na
garagem que usa como gabinete ou na Alameda Twm Pines.
Ultimamente tem lá passado muito tempo, e costuma ser pela
noite dentro.
- Anda armado?
- No máximo de pistola. Um velho revólver de calibre 45.
Talvez nem funcione.
Agora Marty contemplava a carrinha negra a dirigir-se
rapidamente para eles. O seu terror era completo, embora não
fizesse ideia de quem ou o que ia naquela direcção. Em momento
tão inoportuno, algo de terrivelmente perverso manifestou-se
nele - estava determinado a saber, se se tratava da morte a
aproximar-se, quem vinha por trás dela:
- Quem vem naquele carro? - Gritou.
Doc Brown não tinha tempo para uma explicação complicada.
A mão de Marty agarrou-lhe a manga com tanta força que ele
teve de rodar como um pião para se libertar. Ao fazê-lo, berrou
por cima do ombro:
- Os líbios que eu defraudei!
Marty não percebeu, mas sabia que até então tinha ouvido
falar em poucos líbios que não estivessem envolvidos em negócios
escuros e perigosos. O efeito foi o de alguém a gritar "Fogo!" num
teatro apinhado. Marty acreditou e reconheceu sem mais investigações
que o caso estava feio. Atirando o corpo para um lado,
procurou com a vista o objecto sólido mais próximo que pudesse
proporcionar-lhe protecção. As únicas duas hipóteses eram
a caravana e o DeLorean.
Doc Brown já se dirigia para aquela.
- Corre para salvares a vida, Marty! - gritou-lhe.Eu
atraio o fogo deles.
Simultaneamente, atirou-se para dentro do camião, aparecendo
um momento depois com um revólver. Por essa altura,
a porta lateral de carrinha negra abrira-se deslizando e um tipo
moreno, parecido com Yasser Arafat, inclinou-se para fora.'
Levantou uma metralhadora A K 47 e abriu fogo.
Marty nunca tinha sido alvejado antes, embora uma vez
tivesse sido apupado durante um jogo de baseball. O efeito era
vagamente semelhante. Parecia-lhe mover-se em câmara lenta,
como uma figura indefesa numa câmara de eco em que reverberasse
um som agudo. O horizonte com os seus objectos familiares
- estacas, candeeiros, armazéns -parecia terem desaparecido,
deixando-o encurralado num globo de fluido negro. Dois
únicos sons - metralha e a sua respiração - competiam;
ambos enorme e metalicamente aumentados pelo pânico.
Viu Doc Brown apontar o revólver para a carrinha e puxar
o gatilho. Não emergiu qualquer som ou relâmpago de fogo,
todavia enquanto as balas chapinhavam a toda a volta de Doc,
aos seus pés e no lado da caravana. Por fim, deixando cair o
revólver, Doc começou a correr para a segurança do centro
comercial, bem a quatrocentos e cinquenta metros de distância.
A carrinha guinchou até se deter, recuou e começou a
perseguir Brown. Doc não teria avançado mais do que uns
escassos quarenta e cinco metros na direcção do edifício mais
próximo, quando a carrinha negra partiu atrás de si.
- Não! - exclamou Marty. - Doc! Espere!
Mesmo ao gritar as palavras, Marty sabia que o seu conselho
não era grande coisa. Estes líbios desesperados iriam alguma
vez demonstrar piedade se Doc Brown se rendesse de repente e
mendigasse a própria vida? Era improvável na melhor das
hipóteses, mas algo em Marty o obrigou a esperar o impossível
Durante um longo momento, permaneceu parado, dardejando
os olhos para um lado e para outro, na procura desesperado
de algo que pudesse ajudar o seu amigo. Depois, enquanto ainda
procurava, uma nova barragem de metralha e um grito disseram-lhe
que não valia a pena. Virou-se a tempo de ver Doc Brown
levar espasmodicamente a mão ao peito, inclinar-se num ângulo
muito agudo e cair para a frente, batendo com a cara no chão.
- Filhos da mãe! - Marty ouviu-se berrar. A voz quase
parecia vir de trás, passando por ele como um vento frio,
ecoando no enorme parque vazio.
A carrinha negra fez uma inversão de marcha, passando a
avançar na direcção de Marty. Doc estava imóvel, com o tornozelo
esquerdo dobrado num estranho ângulo. Não havia dúvidas
no espírito de Marty de que estava morto.
Ele próprio também seria morto se não fizesse qualquer
coisa. Por um momento pensou em dirigir-se para a caravana.
Era grande, lenta e difícil de manobrar, mas pelo menos sabia
conduzi-la. A sua mente, a funcionar agora rapidamente, rejeitou
esse recurso como suicida. Nunca chegaria ao fundo da
alameda naquele camião desconjuntado. Era melhor morrer, se
tal fosse o seu destino, num ímpeto de glória, ou pelo menos num
veículo imóvel mas que tinha muita classe.
Arrebatando a câmara de video - para o caso de precisar
de provas referentes à morte de Doc -, Marty atirou-a para o
DeLorean, depois saltou para dentro e baixou a porta em forma
de asa de gaivota. Olhou em volta, perplexo. Estava rodeado de
luzes a acender e a apagar, mas não via em parte nenhuma um
mecanismo para pôr o automóvel em funcionamento. Entretanto,
enquanto hesitava, a carrinha preta aproximava-se ruidosamente,
passando-lhe à direita a uma distância que não excedia
os três metros. Enquadrado pela porta estava o líbio moreno,
com a metralhadora. Marty pensou ter visto a sombra de um
sorriso quando ele lhe fez pontaria com a arma e puxou o gatilho.
Não se ouviu qualquer som. Marty, curvado em posição
fetal, pestanejou e olhou para fora da janela. A carrinha já estava
a seis metros de distância e a abrandar, com o líbio a praguejar
e a bater com o punho na metralhadora, que obviamente não
disparara. Uma grande algaraviada de fúria, sem dúvida constituída
por pragas líbias, invadiu a noite.
- Parte! - berrou Marty.
Olhou para o conjunto de interruptores e mostradores da
consola com incompreensão aterrorizada. Qual seria o segredo?
Um botão? Algo do género de um código digital? Os seus olhos
voavam de um lado para o outro, a tentar localizar a solução do
mistério.
Quando finalmente resolveu o problema, era tão simples
que ele quase soltou uma gargalhada. Ali na coluna do volante,
precisamente como em qualquer vulgar carro não sofisticado,
estava o interruptor da ignição e uma chave.
- Diabos me levem! - resmungou Marty.
Ao falar e estender a mão para a chave, ouviu o guincho de
pneus que lhe indicou ir a carrinha negra de novo em direcção a
ele. Pondo o DeLorean em funcionamento, Marty carregou na
embraiagem e no acelerador. A resposta do veículo foi ainda
superior ao que ele esperava. Pareceu saltar para a frente como
se tivesse recebido um pontapé na parte de trás. Por um
momento, viu a carrinha líbia como uma massa negra no canto,
esquerdo da sua visão, mas logo ela recuou tão rapidamente que
ele ficou a pensar se essa presença não teria sido uma miragem
provocada pelo seu próprio temor.
De facto, se o condutor líbio não tivesse virado ao contrário
ao fazer a inversão de marcha, Marty teria sido alvo fácil do
artilheiro. Mas, em vez de voltar à direita, o motorista inclinara-se
para a esquerda, fazendo com que quase chegassem a par do
DeLorean com a porta aberta do lado oposto ao de Marty.
Quando o erro foi rectificado, o DeLorean já ia a grande velocidade,
afastando-se rapidamente do seu perseguidor.
Marty deitou uma olhadela pelo espelho retrovisor no preciso
momento em que o artilheiro fazia pontaria. Desviando-se
violentamente, Marty viu as balas abrirem buracos no asfalto
atrás, à sua esquerda, mas não teve tempo para se congratular.
À sua frente acabava o parque do centro, e ele aproximava-se a
setenta e cinco milhas à hora. Os faróis iluminaram a guarda
metálica, avisando-o de que em menos de dois ou três segundos
a saltaria, mergulhando na ribanceira. Atrás, os faróis saltitantes
da carrinha negra copiavam-lhe todos os movimentos.
Marty agarrou o volante com mais força, fingiu ir virar à
esquerda e, invertendo repentinamente a direcção, fez com que
o carro rodopiasse para a direita. Os pneus guincharam, atiraram
cascalho para as guardas e o pára-brisas, mas não derraparam,
completando a volta e permitindo que Marty se afastasse
ruidosamente da carrinha a patinar. Ao fazê-lo, voltou a carregar
no acelerador, vendo o velocímetro passar de 50 para 75 num
movimento rápido, quase um espasmo. Mas o condutor líbio
também não era nenhum trouxa. Apesar de ter menos potência
e capacidade de manobra, conseguiu virar rapidamente e acelerar
ao ponto de ficar uns meros dezoito metros atrás do
aerodinâmico DeLorean.
- Está bem - murmurou Marty. -Daqui para a frente
vai ser só velocidade.
Baixou o olhar para o velocímetro quando o DeLorean
passava, atroando os ares, pelo corpo imóvel de Doc Brown.
Marcava 80. Ao passar pela caravana, já ia em 85 e os líbios não
davam sinais de desistirem.
- Pronto, filhos da mãe - assobiou Marty. - Vamos
ver se chegam aos noventa!
Atrás, o fogo da metralhadora crepitava, e algumas balas
aterraram à frente dele, fazendo com que a estrada faiscasse e
bocados de asfalto embatessem na capota. Distraído, Marty
olhou para a direita demasiado tarde. Durante uma fracção de
segundo, teve a possibilidade de virar à direita, passar os
portões de entrada e talvez bater a carrinha em velocidade na
estrada. Essa fracção de segundo passara. Em frente ficava a
extremidade oposta do parque de estacionamento, outra guarda
metálica e, verificava ele agora, menos área onde dar a volta.
Deveria arriscar agora? Isso daria aos líbios um melhor
ângulo para o atingirem, mas também lhe permitiria tentar a
corrida para a entrada.
Enquanto considerava o seu dilema, Marty olhou para o
velocímetro.
Marcava: 88.
Por trás da sua cabeça, manómetros e indicadores começaram
a iluminar-se, linhas de dígitos formaram-se e desapareceram
sobre o tablier e soou algo como uma sirene. Que fizera ele?
Rebentara algum fusível? Levara o motor a ultrapassar os seus
limites? Tocara em alguma coisa em que não devia mexer?
Percorreu rapidamente com os olhos o tablier, à procura da
chave do mistério. Ao fazê-lo, teve súbita consciência de um
objecto enorme que se erguia à sua frente, um objecto que não
estivera na sua linha de visão um momento antes. Levantando
a cabeça, não viu a guarda metálica nem os candeeiros em arco
do centro comercial Twin Pines - mas sim a cara de um
espantalho!
- Que raio...
Tão abruptamente como aparecera, o espantalho desapareceu,
com a sua cabeça mal feita esmagada contra o pára-brisas
-e a desfazer-se num jacto de palha. Então surgiu outro objecto um
grande edifício quadrangular. Simultaneamente, o carro
começou a andar aos altos e baixos, como se tivesse passado
abruptamente de uma estrada lisa para outra de paralelepípedos
ou para um terreno arado.
Quase atirado para o lugar do passageiro, batendo uma vez
com a cabeça no tejadilho, Marty pouco mais podia fazer do que
agarrar-se ao volante com quanta força tinha. Entretanto, o
edifício à frente fez desaparecer completamente o céu mais claro
que ficava por trás, até não serem visíveis senão variantes de
negro e cinzento. Tendo um instante para manobrar, Marty
dirigiu o DeLorean para o quadrado mais claro que ficava em
frente, preparando-se para o embate que não se deu. Em vez
disso, como se estivesse a cair por um poço, a negrura envolveu-o
por todos os lados. Carregando nos travões, Marty sentiu o carro
desacelerar até ir bater em qualquer coisa, fazendo com que ele
voasse contra o tablier. Ao mesmo tempo algo aterrou no tejadilho
com um estrondo enorme.
O ar rodeava o DeLorean imóvel estava cheio de flutuante pó
amarelo. Marty pestanejou, tentando orientar-se num ambiente
novo, que parecia tê-lo arrebatado pelo ar do parque de estacionamento
do centro comercial. Gradualmente, os objectos começaram
a tomar forma -pranchas verticais, fardos de palha, um
ancinho. Tudo aparecia alternadamente iluminado e às escuras,
o que intrigou Marty até ele perceber que as luzes de aviso do
DeLorean tinham sido arrancadas. Ao longe, ouviu um cão a
ladrar.
- Que diabo- pronunciou Marty lentamente. -Estou
num celeiro. Como terei vindo cá parar?

O serão não fora agradável para Otis Peabody. Com quarenta
e cinco anos, costumava chegar a casa depois de um dia de
trabalho na quinta extremamente cansado e nada disposto a
ouvir críticas e pedidos da mulher e dos filhos. O que mais
desejava era sentar-se a descansar depois de uma boa refeição,
ler o jornal da manhã e deixar-se dormir.
A primeira má notícia que recebera ao entrar fora que a
bateria do carro estava gasta.
- Podemos mandá-la recarregar - dissera sucintamente,
dirigindo-se para a mesa de jantar.
Elsie, sua mulher havia dezassete anos, abanou a cabeça:
- Mart Peterson diz que já não dá- replicou. -Santo
Deus, está lá desde que comprámos o carro há seis anos,
portanto já é altura de se esgotar.
- Quanto custa uma nova? - perguntou Peabody.
- Bem, as dele são caras - disse Elsie -, mas há em
saldo no Sears. Uma bateria de quatro anos custa $14.95.
- Ridículo - resmungou Peabody. - É demais. Pergunto
a mim próprio quanto custarão as que não estiverem em:
saldo.
- Então? - inquiriu Elsie. - Deixas o dinheiro amanhã
para eu a poder ir comprar?
Peabody concordou com um aceno de cabeça, suspirou e
preparou-se para se sentar.
Martha, a filha de catorze anos, e Sherman, de onze, escolheram
aquele momento para acrescentarem os seus pedidos do dia.
De facto, havia quase um mês que andavam a maçar o pai para
que comprasse um aparelho de televisão. Toda a gente do
condado tinha um excepto eles, ao que parecia.
- Pode comprar uma televisão? - Martha sorria.Por
favor, paizinho. De qualquer forma vamos ao Sears por
causa da bateria.
- Não - respondeu Peabody sem rodeios.
Os garotos estavam preparados para uma reacção negativa.
Em vez de desistirem, embrenharam-se numa litania de programas
maravilhosos que poderiam ver -Ed Sullivan, The Mickey
Mouse Clube, Colgate Variety Hour, The Cisco Kid, Ozzie and
Harriet, uma lista interminável.
- Só tretas - afirmou o pai.
- Não é justo - choramingou Martha. - Alguns dos
nossos professores mandam ver televisão como trabalho para
casa.
Peabody encarou-a com cepticismo.
- É verdade. Peggy Ann McVey limitou-se a tirar notas
das notícias acerca do ataque de coração do presidente Eisenhower

entregou-as como uma redacção completa. Teve um A.
- Podes usar os jornais. É a mesma coisa - redarguiu
Peabody.
- Não é - insistiu Martha. - Os professores podem
descobrir quando copiamos do jornal mas não da TV. De qualquer
modo, quando o professor sugere que vejamos Edward R.
Murrow, com é que o vamos fazer?
- Compramos televisão quando tivermos dinheiro para
isso e não antes.
- Quero ver os jogos de futebol - acrescentou Sherman,
amuado.
Peabody começou a encher o prato, decidindo ignorar os
filhos até eles deixarem de o aborrecer. A refeição foi em grande
parte silenciosa e sombria, e no fim todos foram para diferentes
zonas da casa até irem para a cama.
Algumas horas mais tarde, o objecto atingiu o celeiro.
Sherman, enroscado na cama a ler o último número da
revista aos quadradinhos Contos do Espaço, foi o primeiro a ver
o veículo a mover-se rapidamente. Percebeu logo péla configuração
e pelas luzes brilhantes que não se tratava de uma máquina
vulgar da Terra. Era verdade que ele acabara precisamente de
ler uma história intitulada "Mortos-Vivos no Espaço, Vindos de
Plutão", que tratava de extraterrestres com fatos protectores de
radiação que escravizavam mulheres e viajavam num carro
modernista, com portas em forma de asa de gaivota. Isso pode
tê-lo tornado mais susceptível do que de costume, mas Sherman
estava sempre virado para os extraterrestres. O espaço era o seu
passatempo e agora esse passatempo parecia ir tornar-se realidade.
Arrebatando o livro de quadradinhos, desceu as escadas a
correr.
A mãe, o pai e a irmã já estavam à porta das traseiras, a
olharem para os lados do celeiro. A luz ténue permitia-lhes ver
onde o tecto caíra, mas isso não era o mais assustador. O
DeLorean em aço inoxidável estava mesmo de frente virada para
eles, com os faróis a brilharem através da poeira e dos fragmentos
esvoaçantes de palha. Com as rodas enterradas nos destroços
e as luzes de aviso amarelas a acender e a apagar, parecia
mesmo um dos discos voadores de que tanto ouviam falar havia
quase dez anos.
- Que é aquilo? - perguntava a Sr.ª Peabody.
- Parece um avião... sem asas - comentou Peabody cautelosamente.

- Avião? - sussurrou Sherman. - É um disco voador,
paizinho. Vindo do espaço!
Os quatro Peabody olhavam uns para os outros, aterrados.
Embora fosse ilógico, encaminharam-se lentamente na direcção
do objecto. Na mão do paizinho Peabody estava um taco de
baseball que retirara do armário da cave poucos momentos
depois de o veículo se introduzir no celeiro. Com ele à frente, o
resto da família atravessou o relvado e o caminho escalavrado
até ao celeiro. Uma visão de mais perto não proporcionou
quaisquer novos indícios quanto à identidade do visitante.
Por fim Sherman falou:
- Nos filmes e nas histórias de quadradinhos - afirmou
-, a gente da Terra tenta sempre agir pacificamente para
com os extraterrestres. Mas não costuma resultar.
- Calado - ordenou Peabody.
Tinha os olhos fixos na porta em forma de asa de gaivota, que
se entreabrira e estava a começar a mover-se para cima. A
família observava expectante, nada à vontade, com expressões
de um misto de curiosidade e medo.
- Vem uma coisa a sair - murmurou Martha.
- Não entres em pânico - avisou Sherman, reparando
que os pés dela estavam numa pequena dança. -Movimentos
bruscos podem provocar reacções deles.
Dentro do encurralado DeLorean, Marty não sabia que
estava a ser observado. Tinha os seus próprios problemas, o
principal dos quais era a total desorientação quanto ao local
onde se encontrava. Perdera a consciência durante a perseguição?
Se assim era, como conseguira passar do parque de estacionamento
do centro comercial para um celeiro que não podia
evidentemente ficar nas proximidades de Hill Valley? Se não
desmaiara, que sucedera à guarda metálica? Onde estavam os
líbios? Estaria alguma arma apontada para ele naquele momento,
prestes a despachá-lo?
Sacudiu a cabeça. Apesar dos riscos, parecia-lhe melhor sair
para ver onde diabo se encontrava.
Procurando o puxador, acabou por descobrir como se abria a
estranha porta e empurrou-a para sair. Uma chuvinha de pó
caiu-lhe nos ombros e capacete do fato protector de radiaçõEs
quando o seu tronco começou a sair do carro.
É um extraterrestre - sussurrou Sherman Peabody.
De facto, a figura a emergir parecia ser isso mesmo.
paizinho Peabody ficou de olhos fixos, hipnotizado, sempre com
o taco de baseball nas mãos. Usar uma arma tão fraca contra um
extraterrestre estava fora de questão. Tanto a lógica como a
moralidade ditavam isso, mas a sua motivação primária era o
medo. O cérebro do paizinho Peabody transformara-se em geleia
e ele só conseguia pensar em autopreservação.
- Corram, filhos! - berrou. - Corram para salvarem
as vidas!
Passou então a demonstrar-lhes exactamente o que queria
dizer, correndo desalmadamente para a segurança da casa.
Lembrara-se da espingarda que mantinha escondida debaixo da
cama para o caso de descobrir um assaltante a meio da noite.
Esta emergência podia considerar-se suficientemente ameaçadora
da vida para que ela fosse usada.
Sherman, ao ver o pai desaparecer dentro de casa, compreendeu
que, como temporário chefe masculino no local, lhe
competia arranjar uma forma de impedir a catástrofe. Tendo
lido muito sobre o comportamento dos humanos quando confrontados
com criaturas do espaço, não estava convencido de ser
capaz de tratar com o extraterrestre nem pela força nem pela
delicadeza. Nas histórias aos quadradinhos e nos filmes, nenhum
desses dois métodos parecia compensar muito. Recordou
muito intensamente a cena da Guerra dos Mundos em que o
clérigo caminhava delicadamente para o veículo espacial marciano,
só para ser aniquilado em recompensa.
Contudo, uma rápida avaliação da situação recomendou
vivamente uma aproximação pacífica, de preferência a beligerante.
Ela não tinha qualquer arma com que ameaçar ou atacar
o extraterrestre; era provável que o medo fosse evidente nos seus
olhos, se não mesmo em todo o rosto. Assim, parecia preferível
entregar-se à mercê da criatura.
Estendeu a mão cautelosamente:
- Paz - murmurou.
O extraterrestre estava agora quase todo fora do veículo
espacial. Era um bípede, com braços e linhas gerais do corpo
semelhantes à configuração humana. Sherman desejou saber
que aparência tinha por baixo do capacete e se poderia pronunciar
sons que tivessem alguma inteligibilidade.
- Ei - disse o estranho num inglês perfeito -, viva.
Onde estou eu?
Avançou alguns passos na direcção deles. Sherman, Martha
e a mãe recuaram devagar à sua frente.
- Desculpem - pediu a criatura. - Quem são vocês?
Onde estou eu? Isto é Hill Valley?
Os passos do paizinho Peabody soaram nos degraus do
alpendre. Continuava vestido com a roupa interior de flanela
vermelha e corria para eles com a espingarda erguida quase à
altura do ombro.
Sherman, olhando a criatura de perto, tomou instantaneamente
uma decisão baseada na análise do comportamento de
extraterrestres em livros de quadradinhos e filmes:
- Mate-o, paizinho! - berrou. - Já mudou para uma
forma humana! Mate-o!
Apesar de nervoso e trémulo, o paizinho levou a arma ao
ombro e fez pontaria.
Marty, com a visão bloqueada pelo limitado campo de visão
do capuz, encaminhava-se para as três pessoas mesmo à sua
frente, sem dar pelo paizinho Peabody. Enquanto avançava,
levantou a mão para tirar o capuz.
- Cuidado, paizinho! - gritou Sherman. - Ele vai buscar
qualquer coisa!
- Fica com isto, mutante filho da mãe! - berrou o
paizinho, apertando o gatilho da sua espingarda.
Uma chuva de chumbinhos assobiou ao ouvido de Marty,
enterrando-se na parede do celeiro, por trás dele.
Sem se deixar abater, mas continuando muito nervoso, o
paizinho disparou segundo tiro. Este levantou pó em frente da
criatura, falhando redondamente, mas fez com que ela se voltasse e corresse de regresso ao celeiro.
Confortado pelo facto de o estranho sentir medo, o paizinho
abriu a espingarda e começou a recarregá-la. Avançando cautelosamente
olhou para dentro do celeiro.
- Cuidado, paizinho - avisou Sherman. - Não te
aproximes de mais para ele não se apoderar do teu cérebro.
- De que raio estás tu a falar, rapaz?
Sherman ainda tinha na mão o livro de quadradinhos,
aberto na história acerca dos mortos-vivos no espaço, provenientes
de Plutão:
- Está tudo aqui, paizinho - disse. - Leia.
- Quem é que tem tempo para ler agora? - perguntou o
pai, não sem uma certa lógica. ,
Entretanto Marty voltara a correr para o DeLorean e enroscara-se
lá dentro:

- Diabo de agricultor maluco! - Arquejou, procurando a
ignição. O motor entrou em funcionamento e ele fez recuar o
carro, não se preocupando em verificar se estava alguém atrás.
A palha voou por todo o lado, mas ele conseguiu ver o suficiente
para dar a volta e sair a direito pela porta do celeiro. Ao
fazê-lo,
as quatro pessoas fugiram à sua frente como pinos de bowling.
Ia demasiado depressa, no entanto, e não foi capaz de manobrar
de maneira a evitar embater na protecção de madeira pintada de
branco que rodeava dois pinheiros recém-plantados. O DeLorean
arrancou um dos pinheiros antes de Marty o guiar para a
estrada de acesso, em terra batida.
- Filho da mãe do espaço! - vociferou o paizinho Peabody
no seu rasto. - Mataste um dos meus pinheiros.
Levando a toda a pressa a espingarda ao ombro, disparou os
dois cartuchos contra o veículo que fugia. Os tiros dispersaram-se,
atingindo a caixa do correio dos Peabody e estilhaçando-a.
- Ufa! - respirou Marty, olhando para trás para as
figurinhas, uma das quais ainda agitava furiosamente o punho.
Sobrevivera mas continuava sem fazer ideia de onde se
encontrava. Pelo menos as pessoas falavam inglês... mas havia
qualquer coisa nas suas roupas que parecia diferente. Revivendo
mentalmente a cena, Marty concentrou-se no vestuário. Os
vestidos das senhoras pareciam fora de moda. Talvez fossem
muito antigos e passassem de umas para as outras. Depois havia
os penteados. Também havia neles algo que parecia diferente,
mas Marty não era capaz de dizer exactamente o quê. Vira
aquela gente antes - ou pessoas exactamente do mesmo tipo.
Pareciam ter saído de um velho filme a preto e branco.
- Provavelmente é da minha imaginação - ponderou,
apercebendo-se de que estava cheio de medo e desorientado. A
escaramuça com os líbios tinha-o perturbado mais do que gostaria
de admitir.
Seguido pela estrada de terra, fez um esforço consciente no
sentido de recuperar a compostura:
- Pronto, Marty, tem mão em ti - disse em voz alta.Tem
de haver uma explicação para isto. É provável que seja tudo
um sonho, um sonho muito intenso. Tudo se vai resolver...
Ao virar uma esquina os faróis embateram num objecto que
lhe fez descair o queixo.
- Diabos me levem! - murmurou.
Fez com que o DeLorean se detivesse instantaneamente,
quase se despistando, e recuou até os faróis voltarem a incidir
sobre a casa. Pestanejando, ficou a olhar para ela, a tentar
descobrir um aspecto que fosse diferente, um pequeno pormenor
que lhe restituísse a sanidade mental.
Mas a casa era a mesma. Era a sua casa... a casa na altura
ocupada pela família MacFly. Ficava em plena desolação e parecia
mais nova do que Marty alguma vez a vira, mas era indubitavelmente
a mesma estrutura.
As peças do puzzle constituíram lentamente uma imagem
coerente. Em frente da casa estava um letreiro que dizia: CASA
MODELO... flâmulas oscilavam debilmente à suave brisa da
noite... e ao lado do edifício encontrava-se um grande painel com
uma interpretação artística de um lar idílico, aninhado entre
magníficos carvalhos, com uma típica família americana constituída
por quatro membros, de pé ao lado de um Cadillac... Um
Cadillac brilhante, muito antigo... Por baixo da pintura, em
enormes letras maiúsculas, estava a promessa de um sonho
realizado: VIVA NA CASA DE AMANHÃ... HOJE! PROPRIEDADES
LIÃO. ACABAMENTO PREVISTO PARA ESTE INVERNO.
- É a minha casa, só que novinha em folha - sussurrou
Marty.
Sentado no meio da escuridão campestre, baixou lentamente
os olhos para o tablier do DeLorean.
O TEMPO DE DESTINO marcava 5-11-1955.
O TEMPO PRESENTE marcava 5-11-1955.
- Mil novecentos e cinquenta e cinco! - exclamou.
Não posso crer!
Mas as provas estavam a toda a sua volta, além de estarem
no tablier. O bairro devia ter sido assim quando estava em
construção. As características do terreno eram as mesmas e ao
fundo havia diversos objectos familiares. Inexplicavelmente,
entrara num mundo que só ouviria falar dele treze anos depois.
- Que viagem... - murmurou.
O seu olhar recaiu sobre as indicações marcadas no tablier.
Uma em particular chamou-lhe a atenção. Ficava localizada
mesmo por baixo da Câmara de Plutónio e era uma luz intermitente
que estava sempre a mostrar a palavra VAZIA.
Metendo as mudanças e avançando, Marty percebeu que
isso não queria dizer que lhe fosse impossível andar. Significava
apenas...
- Santo Deus! - disse. - Quer dizer mesmo? Que
não vou poder regressar?
Não tendo outro sítio para onde ir, entrou de marcha atrás
no caminho de acesso à casa e ficou sentado, a pensar, durante
bastante tempo. Distraidamente, por hábito, ligou a telefonia.
Embora fosse quase manhã, ainda havia algumas estações no ar,
mas estavam todas a tocar música absolutamente terrível. Uma
apresentava alguém chamado Eddie Fisher a cantar as canções
de Jerome Kern, outra tocava números pela orquestra de Mitch
Miller e um cantor delicodoce chamado Guy Mitchell, e os
locutores falavam todos com vozes que pareciam cansadas.
- Era assim tudo? - Marty fez uma careta enquanto
rodava o botão.
Parou num noticiário:
- O Presidente Eisenhower previu que em 1955 se daria
um aumento na construção de habitações - entoava o homem.
- Eisenhower? - repetiu Marty. - Sim, claro. Estudámo-lo
em História. Um tipo bastante simpático, que não fez
grande coisa a não ser dar a Nixon a sua oportunidade.
As notícias continuaram, e muitas delas pareciam mesmo
notícias de 1985:
- Enviados dos Quatro Grandes desistiram das conversações
sobre o desarmamento - dizia o locutor. - Os russos
rejeitaram um plano dos Estados Unidos que teria banido as
armas nucleares... Na Primeira Conferência sobre Smog, realizada
em Los Angeles, funcionários governamentais afirmaram
que o smog pode manter a indústria afastada das cidades
afectadas por esta forma de poluição do ar... Entretanto, observadores
censitários predisseram que Los Angeles será dentro de
poucos anos a segunda maior área metropolitana dos Estados
Unidos, ultrapassando Chicago... No perturbado Próximo Oriente,
os Estados Unidos apresentaram novas regras ao Egipto e a
Israel...
Na continuação do noticiário houve muitas coisas que lhe
soaram estranhamente e outras ligeiramente familiares:
- No futebol universitário, o médio John Brodie, de
Stanford, continuou a imperar... (O mesmo senhor de meia idade
que de vez em quando aparece a animar as transmissões de
futebol?) O avançado ás da U. C. L. A., Jim Decker... (Jim Quê?)
sensacional médio Jim Swink, do Texas Christian... (Swink?
estará a gozar?)
Marty aumentou o volume do rádio e recostou-se no interior
de luxo do DeLorean. Até estava a gostar daquela viagem pelo
seu próprio e pessoal túnel do tempo. Agora o locutor estava a ler
algumas notícias referentes a bisbilhotices do mundo do espectáculo:

- A actriz Joan Crawford e o seu novo marido, o executivo
Absténio Alfred Steele, celebraram os seus primeiros seis meses
de casamento... Correm rumores de que Jack Webb e a esposa
actriz Dorothy Towne estão a ter problemas conjugais... Voltamos
depois de uma palavrinha da Ford do Noroeste...
Um locutor diferente lançou-se num anúncio que Marty
achou não só irresistível mas também humorístico:
- Pode comprar uma camioneta Ford, nova, por apenas
$1454 - dizia. - É verdade: $1454 por uma Ford de 1956. É
porque produzimos em quantidade...
Reconhecendo a silhueta de um carro da polícia, Marty
apagou rapidamente as luzes e desligou a telefonia. Claro que
não lhe interessava nada ser apanhado pela polícia. Mesmo
esquecendo o facto de que acabara de chegar de um período de
tempo diferente, teria enormes dificuldades em explicar o DeLot'ean,
além de não ter os respectivos e necessários documentos de
registo nem uma carta de condução válida em 1955. Pensou no
que diriam os polícias se ele lhes mostrasse a sua carta de 1985!
- Passar despercebido - murmurou. - É o melhor a
fazer por enquanto.
Escorregando no assento, ficou a ver o carro-patrulha passar
lentamente. Depois saiu, caminhou até à porta da garagem
e tentou abri-la. Estava fechada à chave.
- Bolas - resmungou.
Num impulso, levou a mão à algibeira das calças e tirou o
porta-chaves. Trinta anos era muito tempo para uma fechadura
permanecer operacional, mas valia a pena tentar...
Assobiou baixinho quando a chave deslizou suavemente na
fechadura e rodou.
- Ainda bem - comentou. - Já estava a pensar que
este era um dia não.
Depois de abrir a porta da garagem, entrou no DeLorean e
fê-lo recuar para o primitivo chão de cimento. Pouco depois, com
as suas roupas normais de andar na rua, saiu de casa e dirigiu-se
para Hill Valley.
Algures na vila a seus pés ficava a chave para voltar de novo

a 1985. Onde quer que estivesse, ele tinha de a encontrar.

@CAPÍTULO V

Embora a maior parte das ruas em torno da sua casa em
1955 ainda estivesse por construir, foi comparativamente fácil
para Marty encontrar o caminho para Hill Valley. Ele tinha um
bom sentido de direcção, e havia marcos geodésicos suficientes
para que ele se orientasse nas matas e terrenos que mais tarde
se tornaram ruas e bairros residenciais. Manter os olhos fixos no
palácio da justiça simplificou a questão, claro, e, à medida que
se
aproximava do centro da vila, as ruas e edifícios eram menos
diferentes.
Pelo menos era o que parecia à distância. De perto, Marty
apercebeu-se de que praticamente todos os edifícios tinham
sofrido uma mudança de identidade de 1955 para 1985. No geral
a região parecia mais limpa, mais vibrante, animada de actividade
e excitação. As pessoas que andavam de um lado para o
outro pareciam conhecer-se e ser mais simpáticas umas para as
outras. Porém, sendo isso verdade, também tinha reflexos em
relação a um estranho como Marty. Por diversas vezes este
reparou que as pessoas o observavam, ficavam de olhos fitos nas
suas roupas de modo suspeito. Quase os ouvia perguntarem-se:
Quem é aquele jovem? Por que razão usa sapatos verdes? Será
algum exibicionista pseudosofisticado de Nova Iorque?
A atitude incomodou Marty mas por pouco tempo. Ao aproximar-se
da Praça Principal deu consigo embrenhado a observar,
ao vivo e a cores, a História genuína. Ainda mais fascinante era
o facto de ninguém poder fosse de que maneira fosse partilhar a
sua sensação de surpresa. Para eles tudo era rotineiro, talvez
aborrecido. Aquele desfile de pessoas e estilos era algo que viam
todos os dias e a que não prestavam atenção. Para Marty era um
museu cem por cento correcto e palpitante de vida.
O primeiro objecto a captar-lhe o olhar foi a grande placa à
esquina da praça, entre as ruas 2ª e Principal. BENVINDO A
HILL VALLEY, dizia, UM SÍTIO AGRADÁVEL PARA VIVER, POR
FAVOR GUIE COM CUIDADO. Símbolos dos Jaycees, Optimists e
Future Farmers of America decoravam a placa como medalhas
no peito de um velho soldado.
Virando à direita na Rua Principal, Marty passou pelo Café
Lou, a "loja de batidos" que associava aos anos de crescimento da
mãe e do pai. Pintada de enjoativo verde-claro, a loja estava
quase vazia, provavelmente por ser ainda manhã muito cedo.
Marty era porém capaz de imaginar a casa cheia de jovens, a
pedirem coca-cola e cerveja, gelados e hamburgers, tal como a
mãe descrevéra a cena. Agora a loja estava só ocupada por um
empregado ao balcão e um ou dois clientes a beber café.
Afastando-se da loja de batidos, Marty continuou a andar,
passando por Roy's Records, outro ponto de encontro dos adolescentes
de Hill Valley. À frente estava uma dupla placa de
anúncios a publicitar: ACABAM DE CHEGAR: THE BALLAD OF
DAVY CROCKETT, 16 TONS, MUITOS MAIS... Na outra, cartazes
coloridos mostravam quatro cançonetistas que se intitulavam
The Chordettes; outros promoviam "Patti Page na Terra da Alta
Fidelidade", "Eydie em Dixie Land" e "Canções Inesquecíveis
por Nat "King" Cole". Parecia não haver o mínimo indício de que
o rock'n'roll existisse ou estivesse a caminho.
A seguir a Roy's ficava uma estação de serviço Texaco com
um grande letreiro impresso à mão a proclamar: GUERRA DOS
PREÇOS 191/2 O GALÃO. Rindo sozinho, Marty aproximou-se das
duas bombas: Uma verde e prateada, continha gasolina super
"Sky Chief" por 21,9 cêntimos; a bomba vermelha oferecia a
gasolina normal por apenas 19,9 cêntimos o galão. Uma máquina
de cigarros encostada à parte da frente do edifício anunciava
cigarros por "20 c o maço de qualquer marca", enquanto uma
máquina de bebidas oferecia Pepsi Cola a dez cêntimos.
Continuando até ao fim do quarteirão, Marty deu consigo em
frente do Teatro Essex, um cinema que ele nunca vira mas sentia
conhecer intimamente: Segundo a mãe e o pai - especialmente
quando umas bebidas lhes soltavam as línguas -, o Essex era
o local de namoro da terra nas noites de sábado durante os
primeiros anos e meados da década de 50. Aí, no balcão ou nos
cantos das últimas filas, tinham florescido muitas relações cordiais
e maravilhosas. Ocasionalmente, as pessoas até lá iam ver
um filme, embora velhotes como a mamã e o papá nunca se
lembrassem de que passava na tela. Agora anunciava em grandes
letras vermelhas: CATLE QUEEN OF MONTANA, protagonizado
por Barbara Stanwyck e Ronald Reagan. Por baixo da varanda
flutuava uma bandeira a dizer AR CONDICIONADO.
Olhando por cima do relvado da praça, Marty notou que o
relógio que encimava o edifício creme do palácio da justiça estava
mesmo a funcionar. Quando é que fora atingido por um raio e
ficara imobilizado para sempre? Tentou recordar-se do que a
senhora com os panfletos dissera durante a tarde desse mesmo
dia...
Durante a tarde desse mesmo dia? Melhor, trinta anos no
futuro, pensou Marty. De qualquer forma, lembrava-se de que o
relógio parara num dia qualquer de 1955.
- Mais ou menos por esta altura - reflectiu. - Talvez
eu tenha chegado aqui mesmo a tempo.
Sorriu. Os grandes acontecimentos históricos de outras
terras eram batalhas ou catástrofes naturais memoráveis; Hill
Valley só podia reivindicar fama por algo tão pouco excitante
como a paragem de um relógio. Bem, pelo menos poderia contar
aos netos, desde que estes o não interrogassem com demasiado
afinco quanto a estar ali na memorável ocasião, treze anos antes
de nascer.
Atravessando pelos limites da praça, virou à direita na Rua
2ª, que era a confluência das estradas Oeste 395 e Leste 295. A
seguir ao Bank of America - uma das poucas firmas que ainda
funcionavam em 1985 e que já lá se encontrava - ficava a
agência de viagens Ask Mr. Foster. Anunciava "fabulosas férias
de dez dias em Cuba". Uma vez mais Marty saltou umas
risadinhas. Estava a gostar bastante de partilhar os pequenos
segredos da história do que estava para vir.
Adjacente à agência de viagens ficava o escritório do mediador
imobiliário J. D. Armstrong, em cuja montra figurava um
anúncio colorido de Propriedades Lião com a sua passada e
actual casa. Um preço total de $17 500 correspondia à casa de
três quartos, com garagem para dois carros e completada por
uma "cozinha totalmente eléctrica". Outro anúncio oferecia
abrigos nucleares por preços igualmente razoáveis.
Ele continuou, passando pela Joalharia Zale, pela Papelaria
Hill Valley, por um barbeiro que anunciava cortes de cabelo por
setenta e cinco cêntimos, pelo Motel Pássaro Azul, com quartos
a cinco dólares ("e mais", claro), por uma loja Western Auto que
vendia quase tudo desde espingardas de pressão de ar Daisy ao
"rádio mais pequeno do mundo", que media cerca de trinta
centímetros de comprimento. A seguir à Ruth's Frock Shop e aos
seus vestidos de Paris por $40 ficava o espaço do futuro representante
da Toyota, agora conhecido como Statler Motors Studebaker.

Aquela era a mais estranha curiosidade histórica de Hill
Valley, pelo menos na opinião de Marty. Gostava de carros,
novos e velhos, e o Studebaker tinha um lugar especial no seu
coração porque, tal como o Edsel, prosperara e se extinguira
durante a sua vida.
Viu a exposição durante uns momentos e depois estudou os
carros usados do parque adjacente.
- Estes valeriam muito em 1985 - murmurou -, mesmo
o monte de latas de direita.
Os quatro carros usados que estavam expostos iam de $950
a uma pechincha-base de $395. Todos tinham um ar lavado e
uma breve frase laudatória escrita a branco no pára-brisas:
"Afinado, Limpo", "Baixa Quilometragem", "A não perder por
$450" e "Anda Bem" para o monte de latas. Marty sentiu desejo
de os experimentar, mas sabia que nenhum vendedor o permitiria
a um adolescente, especialmente naquela época.
Continuando para além do salão Studebaker, parou em
frente do Teatro da Vila, um exemplar maravilhosamente típico
de art deco dos anos 30. Uma torre pintada de castanho básico
sobrepujava a varanda verde e a entrada, em tijolo vermelho
onde se alinhavam fotogramas da atracção a ser exibida: The
Atonic Kid, com Mickey Rooney e Robert Strauss.
Marty não sabia de que tratava o filme, mas achou que podia
aplicar aquele título a si próprio. Usando uma pequena quantidade
de plutónio, conseguira viajar para trás no tempo, algo
que ninguém mais tinha feito. Isso agradou-lhe, mas ao mesmo
tempo outro pensamento lhe ocorreu:
- E a seguir? - inquiriu em voz alta. - Por quanto
tempo vai isto continuar? Como é que regresso?
Pela primeira vez, pensou na hipótese de o processo de
viagem no tempo não ser reversível. As circunstâncias nas quais
a transformação se dera, por exemplo, mal podiam ser classificadas
de científicas, com o cientista morto e o viajante no espaço
literalmente perseguido até à experiência. Agora parecia que o
plutónio só dava para a viagem num sentido. Talvez tenha de ser
assim, reflectiu Marty sombriamente.
Quem o poderia ajudar? Quem poderia responder às suas
perguntas? Decerto que ninguém em 1955, uma era em que as
pessoas ainda só andavam às voltas com a ideia das viagens
espaciais. A menos que...

- Claro! - exclamou Marty, fazendo estalar os dedos.Doc
Brown tem de estar algures por aqui.
Caminhou vigorosamente de regresso à loja de batidos, que
tinha a certeza ter uma cabina telefónica. Sendo sábado, a casa
estava praticamente deserta. Um garoto com ar palerma estava
sentado ao balcão a comer Rice Krispies e a ler um livro aos
quadradinhos. Não levantou os olhos quando Marty entrou. Por
trás do balcão havia letreiros que diziam: "Hamburger - 25
cêntimos", "Fiambre de Queijo - 30 cêntimos", "Batido de
Chocolate - 15 cêntimos". Os preços fascinaram Marty tão
completamente que ele deve ter ficado a olhar para eles durante
tanto tempo que o empregado de balcão se convenceu de que ele
era indesejável.
- Seja o que for que você venda, garoto, não queremos disse
este abruptamente.
- Não vendo nada - retorquiu Marty. - Só quero usar
o telefone.
Esboçou um aceno de cabeça e dirigiu-se para a cabina ao
fundo da loja. Agarrando a lista, passou as páginas até chegar ao
nome familiar: "Brown, Emmett L." Imediatamente a seguir
vinha a palavra "Cientista", depois a direcção e o número de
telefone.
Marty sorriu e tirou uma moeda do bolso.
O telefone tocou repetidamente. Sem resposta.
- Bolas - resmungou Marty, desligando. - Que dia
mais aziago.
Arrancou a página da lista e voltou para o balcão.
- Pode dizer-me onde fica o número 1640 de Riverside
Drive? - Indagou, quando o empregado do balcão acabou por
olhar para o seu lado.
- Vai encomendar alguma coisa, garoto?
Marty encolheu os ombros. Porque não, pensou, se lhe
proporcionasse alguma informação.
- Hum, claro - disse. - Dê-me um comprimido.
O empregado de balcão suspirou ruidosamente e olhou para
ele de lado:
- Depois.
- O quê?
- Não lhe posso dar um comprimido se não encomendar
nada - rosnou o empregado.
Marty não percebeu mas decidiu alinhar no jogo:
- Então deixe-me tomar uma Pepsi Livre.
- Garoto - disse o empregado, não fazendo qualquer
esforço por esconder a sua crescente irritação -, se quer Pepsi
tem de a pagar.
"Que atrasado estou", pensou Marty, percebendo que tinha
estado a tentar comprar produtos que ainda não tinham sido
inventados.
O empregado continuava a fitá-lo sob espessas sobrancelhas.

- Hum, bem, dê-me uma bebida qualquer que não tenha
açúcar.
O empregado abanou a cabeça, afastou-se e voltou um
momento depois com um copo de água e uma chávena de café
puro. Marty não gostava de café puro.
- Tem Sweet'n'Low? - Inquiriu, para logo acrescentar
rapidamente: - Ou alguma coisa parecida?
- Diga-me o que é Sweet'n'Low - pediu o empregado,
esforçando-se por falar em tom paciente.
- É um substituto artificial do açúcar, sem calorias - informou
Marty.
- Não temos nada disso.
A Idade Média, pensou Marty.
- Talvez seja melhor pagar já isto - disse o empregado,
olhando com desconfiança para Marty.
- Está bem.
Levou a mão à algibeira e só encontrou duas moedas de cinco
cêntimos e uma de dez. Com certeza não chegava. A nota mais
pequena que tinha na carteira era de vinte dólares. Tirou-a e
entregou-a ao homem.
- Vinte? - exclamou este horrorizado. - Que pensa
que isto é? Um banco? Não posso trocar uma nota de vinte para
receber cinco cêntimos de um café, garoto.
- Ah, são só cinco cêntimos!? - Marty sorriu, aliviado.
- Desculpe. Pensava que era muito mais.
Quanto?
- Bem, pelo menos cinquenta cêntimos.
- Graças a Deus as coisas ainda não chegaram a tanto - redarguiu
o empregado, recebendo os cinco cêntimos. Depois os
seus olhos contraíram-se. - Diga-me uma coisa, afinal que faz
um garoto da sua idade com uma nota de vinte dólares?
Só havia duas possibilidades, e, como uma delas envolvia
actividades ilegais, Marty decidiu confessar-se culpado da segunda:
- Sou um menino rico e mimado - afirmou. - Acabo
mesmo agora de chegar cá.
O empregado deu-se por satisfeito:
- Diga ao seu velho que seria muito melhor se você
arranjasse um emprego e aprendesse o valor do dinheiro em vez
de ser ele a dar-lhe tudo - disse escarnecedoramente.
- Obrigado. Eu digo-lhe.
O empregado afastou-se.
Marty pegou na chávena de café, bebeu um gole, fez uma
careta e pousou-a.
- Ei, MacFly! - Chamou subitamente uma voz.
Marty quase fez cair a chávena. Rodopiando no banco, olhou
na direcção da voz.
Quatro rapazes de uns dezassete anos dirigiam-se da entrada
da loja para o palerma a alguns bancos de distância. A cara
do chefe parecia vagamente conhecida. Os olhinhos brilhantes,
os lábios contraídos numa expressão de desprezo e o maxilar
carnudo constituíam indícios arreliadores por Marty não conseguir
solucionar o enigma. Os outros três causavam-lhe problEmas
por serem tipos incaracterísticos do período. Um mascava
um pau de fósforo e era evidente pensar que isso o fazia parecer
calmo, duro ou ambas as coisas; o segundo tinha o cabelo cortado
tão curto que pouco faltava para ficar careca; o terceiro espreitava
o mundo através de óculos de três dimensões com lentes
encarnadas e verdes.
- Responde quando falo contigo, MacFly - disse o chefe.
O superior tom de voz forneceu a Marty a última peça do
enigma. Claro! O punk era simplesmente a versão jovem do
maior de todos os punks, Biff Tannen. E o palerma...
Marty observou-o atentamente. Não havia dúvida de que o
palerma era George MacFly, o seu pai. Tinha nos olhos o mesmo
terror à aproximação de Biff Tannen, os mesmos maneirismos
nervosos e expressão corporal que diziam desejar ele estar em
qualquer outro lugar que não junto do seu atormentador. Infelizmente,
também lá estava a mesma cobardia que o mantinha
preso ao lugar como um escravo indefeso.
- Olá, Biff, que tal vai isso? - perguntou o jovem George
MacFly, tentando parecer descontraído mas não o conseguindo
muito bem. A sua voz tinha um tom claramente subserviente.
- Que queres dizer com isso? - retrucou Biff enquanto
os seus acólitos gargalhavam. - O que é isso?
- A... é só uma expressão - gaguejou George. - Eu...
só queria ter a certeza de que tudo te estava a correr bem.
- Tudo? - repetiu Biff. - Estás interessado em tudo o
que me diz respeito? Isso é muito. Quer dizer, estás interessado
no que tomei ao pequeno-almoço, se depois arrotei ou não...
Os seus companheiros riram ruidosamente, enquanto George
fez um sorriso forçado e depois se remeteu ao silêncio.
Sempre o mesmo banana, pensou Marty, olhando para o seu
futuro pai.
- Já acabaste o meu trabalho de casa, MacFly?- interrogou
Biff. - Hein, piolho irlandês?
Os olhos de George evitaram os da sua nemésis:
- Bem, não - murmurou muito baixo. - Achei que,
como só é para entregar na segunda-feira...
Biff estendeu o punho fechado e bateu três vezes na cabeça
de George:
- Está? - disse em voz alta. - Está alguém em casa?
Uma vez mais os seus amigos riram automaticamente,
imitando na perfeição o cão de Pavlov.
- Pensa, MacFly - continuava Biff Tannen. - Pensa!
Tenho de ter tempo de o copiar, não? Já viste o que acontecia se
eu entregasse o meu trabalho de casa escrito por ti? Era expulso
da escola.
- Sim - George sorria. - Acho que não pensei nisso.
Desculpa.
Marty suspirou e abanou a cabeça. Era quase demasiado
penoso assistir àquele começo de um teste de tortura de trinta
anos em que o pai? - continuava a reprovar.
- Para onde estás a olhar, intrometido.
Marty percebeu de repente que as palavras lhe eram dirigidas,
e não ao pai. Mas em vez de afastar o olhar do lamentável
espectáculo que se desenrolava à sua frente, continuou a dirigir
uma expressão de desagrado tanto a Tannen como a George
MacFly. Para satisfação sua, Biff olhou para outro lado.
- Então o seu trabalho de casa, MacFly? - perguntou,
continuando a sessão arreliadora.
George encolheu os ombros, num gesto que era em parte de
resignação e em parte de obediência:
- Hum, está bem, Biff - disse. - Faço-o esta noite e
levo-te amanhã logo de manhãzinha.
Biff acenou friamente com a cabeça:

- Mas não demasiado cedo - exigiu. - Durmo até
tarde ao Domingo. Se me acordasses, teria de te dar um bocadinho
cabo das feições.
Os seus camaradas voltaram a cacarejar, fazendo afluir às
faces de Biff um sorriso deliciado. George estava sentado muito
encolhido no banco, com todos os nervos do corpo a indicarem que
não queria mais do que ver Biff Tannen pelas costas por aquele
dia.
A sua alegria com a partida de Biff ia contudo ser ligeiramente
atrasada. Voltando-se como para sair, ele rodopiou subitamente,
baixou os olhos para os pés de George e disse:
- Ah, olha, MacFly tens um atacador desatado.
- Ah?
Quando George baixou os olhos, Biff levantou o punho e
atingiu-o na ponta do queixo. Foi um golpe mais embaraçoso do
que doloroso.
- Voltaste a cair, não foi, MacFly? - gargalhou Biff.Pá,
se alguém te quiser tramar, não tem dificuldade nenhuma.
- Se calhar não - concordou George num murmúrio.
- Vamos, amigos, toca a andar - anunciou Biff, saindo
da loja à frente dos outros.
George e Marty ficaram a vê-los partir.
- Não posso acreditar - disse Marty finalmente. - É
um jovem George MacFly...
O seu futuro pai fitou-o intrigado:
- Claro que sou jovem - afirmou. - Conheço-o de
algum lado? A sua cara não me diz nada.
- Não - respondeu Marty. - Mas eu conheço-o.
- Não da escola.
Marty abanou a cabeça.
- Então não pode conhecer-me - concluiu George.
- Conheço, sim... O seu aniversário é a 18 de Agosto e o
nome da sua mãe é Sylvia, certo?
George abanou a cabeça, não porque a informação estivesse
errada mas por ter ficado surpreendido. O tipo teria tido acesso
aos arquivos da escola ou bisbilhotado a sua carteira? Seria um
jovem polícia ou quê?
- Então? - continuou Marty. - Não está certo? Não é
também verdade que o seu pai se alistou para a primeira guerra
mundial com dezasseis anos, foi mandado para França antes da
descoberta e reenviado para cá sem disparar um tiro?
George quase se engasgou com a sua Pepsi. Qualquer pessoa
podia ter recolhido as outras informações consultando um questionário,
mas a história do seu pai era material interno da
família. Como a descobrira aquele jovem?
- Umm... umm - replicou George. - Isso é tudo verdade.
Como é que descobriu e quem é você?
Depois de se ter divertido a surpreender e confundir o jovem
George MacFly, Marty apercebeu-se subitamente de que não
tinha qualquer resposta plausível para aquela pergunta. Não
lhe podia contar a verdade, claro. Isso não só era plausível como
poderia desencadear uma nova barragem de interrogações.
Em resposta, sorriu e tentou parecer enigmático.
- Digamos que sou o seu anjo da guarda- aventou.No
entanto, todas aquelas coisas acerca da sua família não são
de facto importantes. O que é importante é que não devia deixar
o verme do Biff Tannen fazer de si o que quer.
- Isso é um facto, homem.
A réplica à acusação de Marty, tão rápida e directa, não
proveio de George MacFly, mas sim de Goldie Wilson, um rapazinho
negro que estava a varrer a alguns metros de distância.
George e Marty viraram-se para o fitarem. Detendo-se no seu
trabalho, Goldie devolveu-lhe os olhares com o seu próprio,
intenso, quase hipnotizador.
- Sim, porque deixa que aquele rapaz faça de si o que
quer? - indagou.
George pestanejou, surpreendido pelo negro geralmente
silencioso.
- Não foi a primeira vez que o vi tratá-lo assim - continuou
Goldie. - Limpo muita porcaria por aqui, mas nada me
enjoa tanto como vê-lo quase cuspir-lhe. Por que não lhe faz
frente?
- Bem, umm, ele é maior do que eu - gaguejou George,
numa voz gemebunda e em tom infeliz.
- Toda a gente é maior quando se está de joelhos - retrucou
Goldie. - Ouça, para vencer neste mundo tem de ter
respeito por si próprio. Se deixar as pessoas espezinhá-lo agora,
espezinhá-lo-ão o resto da sua vida. Quer ser um capacho, ter a
gente a calcá-lo até morrer?
George abanou a cabeça. Não era um gesto cheio de decisão.
- Ele tem razão - interveio Marty. - E tem muito
mais razão para se enroscar à espera da morte.
- É um facto! - Concordou Goldie também com um
aceno de cabeça. -Olhem para mim. A maior parte das pessoas
pensa que eu não sou nada, mas eu sei que sou alguma coisa.
Acham que vou passar a minha vida atrás de uma vassoura
nesta espelunca?
O empregado de balcão, atraído pelas vozes, gravitava até
junto deles. Agora fixava Goldie com um lábio contraído:
- Tem tento, Goldie - disse significativamente.
Este não se acobardou:
- Não senhor! - continuou, dirigindo-se a George.Não
vou acabar aqui. Vou tornar-me alguém! Vou frequentar a
escola nocturna. Todas as noites da semana. Hei-de ser alguém!
- Goldie! - interrompeu Marty, acendendo-se-lhe de
súbito uma luz no cérebro. - Será Goldie Wilson, por acaso?
Ele confirmou de cabeça:
- Eu mesmo- afirmou. - E pode fixar o nome, porque,
como lhe disse, um dia vai significar qualquer coisa.
O empregado de balcão soltou uma risadinha.
- Ele tem razão - garantiu Marty. - De facto, um dia
há-de ser presidente da Câmara de Hill Valley.
Goldie olhou atentamente para Marty, franzindo o sobrolho,
à procura do indício de sarcasmo que normalmente acompanharia
uma observação daquelas, feita por um branco. Porém, não
parecia haver qualquer insídia. Aquele tipo, ou era sincero ou o
melhor actor do mundo. Em todo o caso, Goldie tomou a decisão
de não se deixar desanimar pelo comentário, antes o aceitando
como um desafio.
- Presidente da Câmara? - inquiriu. - É boa ideia.
Podia mostrar às pessoas como dirigir esta vila. Não seria um
político barato, sempre a aproveitar-se. Serei honesto e eficiente.
- Depois, olhando para Marty, disse: -Tem uma bola
de cristal ou quê? Como é que sabe que vou ser presidente da
Câmara?
- Sei, é tudo.
- Quando é que vai acontecer?
Marty suspirou. Metera-se outra vez em boa com o seu
conhecimento do futuro.
- Quer mesmo saber? - ripostou.
- Claro, homem. Diga-me. Porque não havia de desejar
saber quando vai ser?
- Porque falta mais que muito. Pode não querer esperar
tanto.
- Não, não faz mal. Por uma coisa dessas vale a pena
esperar. Além disso, fico a saber que nada me vai acontecer e
então, não é?
Marty concordou com um aceno de cabeça:
- Vai ser eleito para o fim dos 70 - disse.
- Os meus setenta ou os anos 70 do século? - Goldie
sorria.
- Os anos 70 do século.
- Ena, não é esperar muito. A minha mãe trabalhou
quarenta anos e não obteve nada com isso. Por isso acho que
posso trabalhar mais vinte ou vinte e cinco para ganhar uma
coisa dessas...
Enquanto Goldie falava, o nervosismo de George MacFly
tornou-se quase insuportável. Não era devido à situação nem a
nada que Goldie dissesse. Era antes provocado por aquele jovem
que professava tudo saber. Quase parecia do outro mundo, tão
seguro de si, calmo, diferente de todos os adolescentes que
George conhecia. E vestia-se de modo estranho, usava o cabelo
com um corte esquisito, George não era uma pessoa religiosa,
mas era supersticioso. O oculto, o desconhecido, incomodavam-no
mais do que as promessas e restrições concretas da religião
formalizada. E se aquele homem pudesse ver o futuro? Outros
poderiam considerar isso uma bênção, um meio de enriquecerem
e de evitarem as contingências da vida. Assim não acontecia com
George MacFly. Não queria saber o que estava para vir, nem para
ele nem para qualquer pessoa. Era melhor permanecer na
ignorância do que ser forçado a pensar em alguma tragédia ou
luta inevitável. Se aquele jovem, fosse como fosse, sabia tudo
acerca do passado e do futuro, então George queria afastar-se
dele o mais depressa possível.
Tendo chegado a essa decisão, aproveitou a conversa entre
Goldie e Marty para se encaminhar de lado para a porta. Uns
segundos mais tarde, dobrava a esquina e apressava-se em
direcção à sua bicicleta.
Entretanto, o empregado da balcão, que ouvia o discurso de
Goldie com frustração crescente, conseguiu por fim interrompê-lo:

- Presidente da Câmara - exclamou. - Ora! Um presidente
da Câmara de cor nesta vila. Sempre estou para ver!
- Pois hás-de ver -retorquiu Goldie. - Como este tipo
aqui diz, um dia hei-de ser presidente da Câmara.

- Este tipo aqui não me impressiona nada- redarguiu
o empregado. - E quanto a ti, continua a varrer.
Goldie fez deslizar as mãos na vassoura mas não começou
imediatamente a trabalhar:
- Presidente da Câmara Goldie Wilson - pronunciou
baixinho. - Gosto do som.
Marty sorriu, bastante satisfeito consigo próprio por "inspirar"
Goldie Wilson, ou pelo menos por lhe dar esperança. No
momento seguinte o sorriso desapareceu, ao aperceber-se de que
George MacFly já não estava na loja.
- Ei... - chamou, vendo as costas de George quando ele
começava a afastar-se de bicicleta.
Correu para fora da loja, com os braços a acenar:
- George! - continuou a gritar atrás da figura que se
afastava. - Ei, George! Quero falar consigo!
Distraído, fora do alcance da voz ou não desejando prolongar
a conversa, George MacFly continuou a avançar sem ao menos
deitar uma olhadela por cima do ombro. Marty começou a correr
atrás dele, mas depois lembrou-se repentinamente de que o pai
tinha crescido na Rua dos Sicómoros, perto da 2ª. Tinha lá
passado uma vez de carro com a família e mostrara-lhes a casa.
Tendo a certeza de a poder localizar agora, Marty abrandou para
um simples passo rápido.
Não tinha a certeza de onde queria que a sua relação com o
jovem George MacFly fosse exactamente. O homem, apesar das
suas falhas, ia sobreviver os trinta anos seguintes. Isso já era
alguma coisa. Contudo, Marty sentia-se compelido a ter pelo
menos uma conversa de coração nas mãos com ele. Talvez,
mesmo que não conseguisse mais nada, pudesse dizer alguma
coisa que libertasse George MacFly da tirania de Biff Tannen
durante as próximas três décadas.
- Não seria uma prenda magnífica? - disse Marty em
voz alta enquanto caminhava. Recordando tudo, ficou algo surpreendido
por ter sentimentos tão delicados para com o seu
futuro pai. Seria porque agora havia entre eles uma certa
camaradagem? Nunca antes pensara no pai como um jovem. No
entanto, ali estava ele, com a mesma idade de Marty. Seria
divertido, claro, ver a reacção do pai quando lhe dissesse quem
era, mas isso era impossível. Também era provável que levasse
George à loucura, por isso Marty dispensou a ideia.
O seu sentido de orientação levou-o à Rua dos Sicómoros,
que estava decorada com sólidas residências construídas durante
os anos 20 e 30. Por todo o lado as vedações eram de
madeira pintada de branco, enquadrando os relvados bem tratados
e separando-os meticulosamente dos caminhos que conduziam
às portas. Era um bairro muito mais agradável do que
Marty o recordava, pois no princípio dos anos 70 tornara-se
miserável.
A bicicleta de George estava encostada a uma árvore que se
projectava para a Rua dos Sicómoros, mas o próprio George não
era visível em lado nenhum. Marty ficou um momento parado, a
debater se devia entrar ou não na casa. Com toda a probabilidade,
a avó estaria lá, sem dúvida parecendo mais nova do que
ele, alguma vez vira. Marty não tinha a certeza de querer
enfrentar isso. A avozinha estivera muito chegada a ele, e sentia
que essa intimidade o trairia. De certo modo, apesar de Marty
ainda não ter nascido, sentia que ela se aperceberia de quem ele
era e ficaria terrivelmente assustada.
O seu debate interior durou apenas um minuto. Olhando
para cima através dos ramos da árvore, Marty avistou George.
Ele estava a quase seis metros de altura, precariamente empoleirado
numa espessa ramada que pairava sobre a rua.
- Não posso crer - suspirou Marty. - É a coisa mais
corajosa que alguma vez o vi fazer.
Não tardou a descobrir a razão de George se arriscar tanto.
Nas suas mãos estava um par de binóculos que o jovem assestara
para uma janela do primeiro andar da casa do outro lado da rua.
O perfil da cabeça e ombros de uma mulher podia ser visto do
nível da rua. Do ponto de observação seis metros acima, Marty
imaginava o que seria visível.
- Diabos me levem - murmurou. - O papá é um espreita.

Duas coisas aconteceram então, em rápida sucessão. George,
tentando conseguir um ponto de observação cada vez melhor,
perdeu subitamente o equilíbrio. Escorregou de lado pelo ramo
espesso, procurou desesperadamente agarrar-se-lhe, não o conseguiu
e acabou por mergulhar em direcção à rua. Ao cair, o seu
corpo bateu em diversos ramos mais pequenos, que serviram
para diminuir o ritmo de descida e talvez lhe poupassem alguns
ossos partidos. Aterrando sobre o lado e recebendo um pequeno
embate na cabeça, ficou caído, sem se mexer e atordoado, no
meio da estrada.
Nesse preciso momento, um carro fez velozmente a curva e
seguiu a direito até ao corpo do jovem.
Marty não teve tempo de soltar um grito de aviso. Instintivamente,
atirou-se na direcção de George, dando-lhe um impulso
na diagonal que o libertou do carro. O próprio Marty não teve
a mesma sorte. Carregando no travão, o condutor fez guinar o
automóvel para evitar os dois jovens, mas só conseguiu não bater
em George. Houve um estrondo quando o guarda-lamas atingiu
o ombro e a cabeça de Marty.
- Garotos de uma figa! - berrou o condutor, não irritado
mas sim horrorizado. - Não pude fazer nada!
Quase chorava ao inclinar-se para o jovem que salvara a
vida do outro:
- Por favor, meu Deus - rezava. - Que ele esteja bem.
Não me posso dar ao luxo de ser processado.

@CAPÍTULO VI

A primeira coisa que Marty viu depois do cintilante pára-choques
foi um suave padrão branco, arrendado, ligeiramente
desfocado, a pender de um tampo da mesa. Pestanejou e olhou
em volta, para o quarto que nunca vira antes. Muito longe, uma
parede estava decorada com fotografias desconhecidas e galhardetes;
à direita ficava uma janela, por onde um candeeiro de rua
derramava uma luz intensa e difícil de suportar. Voltou a fechar
os olhos.
Tinha a cabeça fria e sentia a pressão de algo sobre ela.
- Acho que vai ficar bom - ouviu uma voz feminina a
dizer. Esse som era-lhe familiar.
- Mamã? És tu? - sussurrou Marty.
Mãos delicadas comprimiram-lhe o objecto frio contra a
testa e tocaram-lhe nas faces.
- Chiu. Tudo vai correr bem.
Era a mãe. Marty abriu os olhos a despeito da dor, mas só
conseguiu vislumbrar uma silhueta. A voz era no entanto inconfundível.
-. Meu Deus, que pesadelo terrível - disse. - Sonhei
que andei para trás no tempo...
- No tempo de quê? - perguntou a voz.
Era mesmo a mãe. Interpretando sempre tudo à letra, o que
era tão confortador. Marty começou a sentar-se, mas recostou-se
de novo, quando experimentou uma ligeira sensação de estonteamento.

- Cuidado, agora - disse a mãe. - Estiveste a dormir
quase nove horas. É melhor não saltares de repente para fora da
cama. É melhor ir aos poucos. '
- Foi terrível - continuou Marty. - Era um sítio terrível
para se viver. A música era horrorosa - nem tinham Huey
Lewis. O nosso bairro ainda nem tinha sido construído, à
excepção da nossa casa. Tudo tinha um aspecto tão esquisito e as
pessoas agiam de um modo estranho.

- Estou a ver... Sonhaste que andaste para trás para
outro tempo.
- Pois.
- Quanto tempo para trás?
- Trinta anos.
- Até ao tempo de despreocupação? Deve ter sido interessante.
Mas não há motivo para te afligires. Estás são e salvo, de
regresso ao tempo a que pertences, o bom e velho 1955.
- Mil novecentos e cinquenta e cinco!?
Esquecendo o desconforto, ele sentou-se e acendeu a luz da
mesinha de cabeceira:
- Oh, meu Deus! - exclamou.
A jovem era a mesma que George MacFly tinha estado a
espiar. Mas isso era apenas uma parte...
- O que é? - indagou ela, preocupada.
- És a minha... a minha m... - começou Marty.
A sua cabeça recaiu na almofada.
- Chamo-me Lorraine- disse a jovem -, Lorraine B...
- Baines - continuou Marty.
Ela sorriu:
- Como é que sabes?
Ele encolheu os ombros:
- Ando por aí - disse cripticamente.
Lorraine levantou a compressa fria:
- Vou buscar mais gelo - disse.
Quando ela se levantou para sair, Marty soltou um involuntário
suspiro de surpresa, fazendo com que ela olhasse para
trás à cautela:
- Estás bem?

- Estou.
- Para que foi esse som?
- Foi por seres tão magra - respondeu Marty.
- Obrigada, deve ser para agradecer - comentou ela.Sempre
fui para o magro. - Deu uma palmadínha no estômago
a direito. - Não achas que eu seja demasiado magra, não?
- Não. Estás óptima - afirmou Marty sinceramente.
- Obrigada, Calvin. - Ela sorria.
- Calvin?
- Sim. Não é esse o teu nome?
- Não.
Ela franziu o sobrolho:
- Curioso. Estava convencida de que era. O teu nome não
é mesmo Calvin Klein?
- Não. É Marty.
- Então porque é que a tua roupa...
Ela corou e olhou para o outro lado.
Marty deu subitamente conta de que as suas calças estavam
dobradas sobre a cadeira que se encontrava no canto oposto.
Levantou a mão entre os lençóis, percebeu que só tinha a roupa
interior vestida.
- Tirámos-te as calças e a camisa quando te metemos na
cama - informou Lorraine, um tudo nada embaraçada.Nunca
tinha visto roupa interior púrpura com um nome masculino
escrito.
- Ah - interveio Marty -, esse não é o meu nome.
Calvin Klein é o fabricante da roupa.
- E o teu nome é Marty? - Inquiriu ela.
- É.
- Bem,-muito prazer em te conhecer, Marty - disse ela,
sentando-se ao seu lado na cama. A atitude parecia agora
diferente, muito menos maternal, mais sedutora. '
- E qual é o apelido? - Ela sorria.
O nome "MacFly" formou-se nos lábios de Marty, mas ele
conseguiu evitar dizê-lo. Teria dificuldade em o explicar, pois era
bastante invulgar. Em vez de tentar resolver o problema, Marty
estremeceu como se tivesse sido atingido por uma súbita dor.
- Ah, pobre rapazinho - murmurou Lorraine. Estendeu
a mão para o afagar, mas ele afastou-se. .
- Estás bem?
- Sim -respondeu ele, expirando lentamente, como se a
dor estivesse a passar.
- Posso ficar aqui sentada?
Marty engoliu em seco:
- Ah, claro - retorquiu. Mas, mesmo ao dizer isto,
afastou-se involuntariamente dela tanto quanto podia sem cair
da cama. Mantinha o cobertor bem preso em torno da cintura e
os seus olhos estavam apreensivos: Lorraine continuava de
olhos fixos nele, fascinada, aparentemente sem notar o seu
nervosismo.
- Tens aí um bom lenho - acabou ela por dizer, estendendo
a mão para lhe tocar na testa. Com um sorriso fraco, ele
submeteu-se, até ela começar a percorrer-lhe o cabelo com os
dedos. Nessa altura Marty deu consigo a afastar-se cada vez
mais até...
Pumba. De súbito, estava no chão, quase nu, pois só tinha a
roupa interior. Estendeu a mão para o cobertor. Lorraine soltava
risadinhas pérfidas.
- Lorraine! Estás aí em cima?
A voz foi acompanhada pelo som de passos pesados nas
escadas que davam quase até à porta do quarto.
- Sim, mãe - respondeu Lorraine.
Tirando as calças de Marty das costas da cadeira, atirou-lhas.
Caído de costas, ele tentou enfiá-las enquanto os passos
se aproximavam.
- Como está o doente? perguntou Stella Baines ao
entrar no quarto. Depois, olhando em redor, acrescentou:Onde
está o doente?
Marty olhou por cima da beira da cama, Stella Baines, de
quarenta anos, sua futura avó, devolveu-lhe o olhar. Estava
grávida e parecia muitíssimo jovem. Se as recordações de Marty
estavam correctas, ela esperava o seu último filho, o que nascera
depois do tio Joey, o presidiário. Os seus olhos simpáticos eram
os mesmos de quando envelhecera, de um azul muito claro e
bastante tristes.
- Marty, esta é a minha mãe - apresentou Lorraine,
atirando-lhe a camisa.
Ele vestiu-a na posição de sentado:
- Muito prazer - e sorriu.
- Apetece-lhe comer alguma coisa?
Marty disse que sim com a cabeça.
- Então venha para baixo.
Marty encontrou os sapatos, calçou-os e saiu do quarto atrás
dela. Enquanto seguiam pelo corredor, Stella Baines fitou-o com
um meio sorriso:
- Então diga-me uma coisa, Marty, há quanto tempo está
com o circo?
Marty só pôde ficar a olhar. Lorraine emitiu um som que era
meio suspiro, meio sopro de ira:
- Mãe - exclamou -, como pudeste?
- O circo? - murmurou Marty. - Eu não estou com o
circo. Que quer dizer?
- As suas roupas parecem tão invulgares
- observou Stella. - Pensámos que talvez tivesse algum espectáculo subsidiário.

Marty sorriu e encolheu os ombros. Os sapatos verdes e a
camisa com U. S. Patent Office impresso pareceriam provavelmente
invulgares às pessoas em 1955. Em vez de explicar que
aquelas roupas-eram peças normais de vestuário nos anos 80,
disse:
- Acho que gosto de roupas estranhas, minha senhora.
Peço desculpa.
- Não tem nada que pedir desculpa. Só estávamos com
um pouco de curiosidade, é tudo.
Entraram na sala, onde quatro crianças e Sam Baines, o
futuro avô de Marty, estavam a descansar. Sam, um homem
áspero, de quarenta e cinco anos, encontrava-se junto do aparelho
de televisão a preto e branco, a ajustar a antena interior.
Não
olhou para o lado deles enquanto a imagem não ficou nítida.
- Sam, aqui está o jovem que atropelaste - disse Stella
com ar factual. - Graças a Deus está bem.
- Que estava a fazer no meio da rua, um garoto da sua
idade? - interrogou Sam friamente.
- Ele caíra... - começou Marty. Depois decidiu não
contar que o pai caíra de uma árvore. Isso podia levar a revelações
embaraçosas ou, no mínimo dos mínimos, a suspeitas.Ele
caíra... na estrada - continuou. - Havia aquele outro
garoto. Corri para o afastar. O senhor não o viu?
- O paizinho nunca vê nada quando vai a guiar - interveio
Lorraine.
- Que estás para aí a dizer? - atirou-lhe o pai. - Sou
um condutor bestial. Mas não há nada que um bom condutor
possa fazer quando lhe aparecem garotos a saltar à frente.
- Especialmente quando se faz a curva em duas rodas - acrescentou
Lorraine.
- A propósito - interrompeu Marty -, que aconteceu
ao outro rapaz?
- Levantou-se e foi-se embora - informou Sam.
- Suponho que não quisesse ver-se envolvido - murmurou
Marty, pensando quanto isso era típico de George MacFly.
- Seja como for - afirmou Sam, voltando-se outra vez
para a antena -, os peões não têm o direito de andar a
disparatar no meio da rua. Qualquer juiz lho dirá.
- Oh, não lhe ligue - disse Stella. - Ele está num dos
seus dias de má disposição. - Começou a conduzir Marty para
a casa de jantar, chamando Sam por cima do ombro: - Deixa-te
de remexer nisso. São horas de jantar.
Sam, ignorando-a estudadamente, continuou a ajustar a
antena até a imagem ficar completamente distorcida.
A casa de jantar já estava meia cheia de gente. Sentados à
mesa, prontos a atirarem-se à comida encontravam-se: Milton,
de doze anos, que usava um gorro de pele de raccon, à Davy
Crockett; Sally, de seis anos; e Toby, de quatro. No parque, no
chão, estava Joey, de onze meses.
Stella fez as apresentações. Marty ficou absolutamente
fascinado, a ver a sua tia e os seus tios com aspectos tão
diferentes. Joey, prestes a dar os primeiros passos numa longa
vida de infortúnio, matraqueava as barras do seu parque e
salivava a rodos. Marty olhou para ele e abanou a cabeça: "Com
que então és o meu tio Joey", pensou: "habitua-te a essas barras,
garoto".
- Ele parece gostar de estar ali - comentou para Stella.
- Como que é o seu ambiente natural.
- Oh, sim - replicou ela, sem se aperceber de que Marty
estava a ser ligeiramente sarcástico. - O pequeno Joey adorava
estar no seu parque. Até chora quando o tiramos. Por isso
deixamo-lo lá ficar a maior parte do tempo. Parece fazê-lo feliz
e sem dúvida o acalma.
"Já está adaptado à instituição", pensou Marty, rindo interiormente.

- Espero que gostes de empadão de carne, Marty - disse

Stella.
"Há coisas que nunca mudam", pensou Marty.
- Gosto sim - disse em voz alta.
- Senta-te aqui, Marty-convidou Lorraine, afastando a
cadeira ao seu lado.
- Obrigado.
Marty sentou-se, verificando que o prato à sua frente já
estava cheio de empadão de carne, puré de batata, vegetais
diversos e macarrão com queijo. De facto, o jantar era réplica
exacta do que ele comera na noite anterior, em 1985.
Toda a gente se atirou à comida, excepto Lorraine, que
brincava com a saia. Marty perguntou a si próprio quando teria
ela comutado de provadora esquisita para máquina de comer.
Enquanto a família comia, Stella gritava instruções e críticas
a todos excepto Marty:
- Milton, não comas tão depressa! Lorraine, não estás a
comer que chegue. Serve-te de puré de batata... Sally, não
segures assim no garfo. Pareces saída da escumalha... Não
empurres as coisas de cima da mesa, Toby... Meu Deus... Sam,
vais deixar de remexer nesse aparelho de televisão? Vem para
aqui comer...
O marido não tinha, porém, qualquer intenção de deixar de
ver televisão durante o jantar. Afastando-se do aparelho da sala,
não tardou a reaparecer com outro, inteiramente novo, sobre
uma mesinha de rodas em contraplacado.
- Vejam isto - anunciou orgulhosamente. - Eu próprio
fiz o carrinho de rodas para o podermos trazer para a casa de
jantar e ver Jackie Gleason enquanto comemos.
- Ena pá! - exclamou Milton.
A Sr.a Baines suspirou exausta. Praticamente a única ocasião
em que concentrava as atenções era durante a hora do
jantar. Agora Sam arranjara maneira de lhe tirar isso, Mas ela
tinha esperteza suficiente para saber que não podia lutar contra
aquilo.
Sam remexeu na antena do novo aparelho, acabando por
conseguir captar uma imagem bastante turva de um anúncio de
cigarros.
Márty ficou a ver, fascinado, um cirurgião a sair de uma sala
de operações, a acender um cigarro e a começar a falar para o
público:
- Depois de enfrentar a tensão de três operações aos
pulmões em sequência, gosto de descansar acendendo um Sir
Walter Randolph. Sei que o seu perfeito sabor a tabaco me
acalmará os nervos e melhorará a circulação...
- Incrível! - Disse Marty, quase sem dar por isso. Nunca
vira um anúncio de cigarros na televisão nem compreendia bem
aquele descaramento.
Sam Baines pensou que o jovem estava a comentar o seu
excelente trabalho de afinação. Reluzia quando disse:
- É isso. Vejam esta imagem... É clara como a água. Tens
razão, rapaz, é mesmo incrível.
- Eu referia-me ao anúncio de cigarros - esclareceu
Marty.
- Que tem ele.de tão incrível? - interrogou Lorraine.
- A forma como o médico faz o anúncio. Fumar cigarros
provoca o cancro do pulmão. Como é que ele pode fazer operações
aos pulmões e depois puxar uma fumaça de um cigarro? É uma
loucura!
- Bem - resmungou Sam. - Ainda não provaram nada.
Não vejo porque é que um médico não há-de poder anunciar
cigarros se quiser.
- Porque é imoral.
- Não seja parvo.
O tom satisfeito consigo próprio de Sam irritou Marty:
- Bem - informou -, um dia vai ser proibido. Aí tem a
parvoíce.
O resto da família, à excepção dos demasiados novos para
compreenderem, fitou Marty com incredulidade. Afirmar que
um dia a televisão americana não teria anúncios de cigarros era
o mesmo que dizer que um dia o Natal seria privado de Pai Natal.
Só Lorraine o olhava como se a sua afirmação pudesse ter algum
mérito:
- Bem - interveio cautelosamente -, talvez não venha
a acontecer, mas acho que era boa ideia. Demasiados jovens
vêem estes anúncios na TV e pensam que fumar é bom.
Sam não podia mesmo pôr isso em causa, pelo que decidiu
mudar o rumo à conversa:
- Quem há-de querer ir ao cinema, se se pode ver isto em
casa - e de graça? - recitou. ,.
- Tens televisão? - indagou Lorraine, olhando carinhosamente
para Marty.
- Sim - redarguiu ele. - Tenho duas.
- Upa! Deves ser rico! - Entusiasmou-se Milton.
- E a cores - acrescentou Marty, antes de se aperceber
de que não era o mais próprio para dizer a uma família em 1955.
Os olhos de Milton esbugalharam-se.
- Tretas - escarneceu Sam Baines.
Stella sorriu com condescendência:
- Ele está a brincar contigo, Milton - disse. - Ninguém
tem dois aparelhos de televisão... a cores, ainda.
Olhou para Marty, à espera de confirmação:
- Pois, claro - acenou ele. - Só estava a gozar, Miltie.
O intervalo dos anúncios tinha acabado e começou The
Honeymooners. Marty reconheceu imediatamente o segmento
como pertencendo ao clássico episódio "Homem do Espaço".
Quase sem dar por isso, começou a dizer as falas do programa
uma fracção de segundo antes dos próprios actores. Toda a gente
à mesa o encarava com graus diversos de espanto. Lorraine ria
de cada vez que ele o fazia: o pai troçava.
- Como é que sabes as falas? - Inquiriu Milton.
- Porque já vi este - retorquiu ele.
- O que é que queres dizer com essa de já o teres visto?continuou
Milton a perguntar. - É estreia.
- Vi-o numa reposição.
- O que é uma reposição?
- A seu tempo saberás.
- Está bem, esperto - insistiu Milton. - Diz-me o que
acontece a seguir.
- Não custa nada - concordou Marty. - Este até é
bom. Ralph mascara-se de "homem do espaço".
- Calados! - ordenou Sam. - Quero ver isto!
A família ficou em silêncio talvez durante um minuto. Então
Stella fitou Marty atentamente:
- Sabes, há em ti algo que me parece familiar?!disse.
- Conheço a tua mãe?
Marty não pôde deixar de sorrir:
- Sim, acho que deve conhecer - respondeu, deitando à
Lorraine um olhar de lado e sorrindo ligeiramente.
- Gostava de lhe telefonar - afirmou Stella. - Sabes,
para lhe dizer que estás bem.
- Bem, isso não pode - saiu-se Marty abruptamente.
- Por que não?
- Hum... Ela ainda não está em casa. Não está ninguém
em casa.
- Ela trabalha?
- Não propriamente - defendeu-se Marty. - Hum, os
meus pais estão os dois fora.
- Não percebo...
- Não tem importância, Sr.a Baines - assegurou-lhe
Marty. -A minha mãe está habituada a que eu fique fora até
tarde. Nem dá pela minha falta.
- Tens a certeza.
- Tenho sim minha senhora. Eu podia estar fora os
próximos treze anos e ela nem dava por isso.
A observação entusiasmou obviamente Milton, pois ele riu
tanto que até deixou cair alguma comida da boca.
- Não está ninguém a ver o espectáculo? - resmungou
Sam irritado. Seguiu-se outro minuto de silêncio. Depois, ao
começar uma nova série de anúncios, Marty lembrou-se de que
queria procurar Doc Brown:
- Hum, alguém me pode dizer onde fica Riverside Drive?
- perguntou.
Riverside? - replicou Sam. - Claro. Fica no lado Leste da
vila, um quarteirão depois de Maple.
- Um quarteirão depois de Maple? - Repeliu Marty,
intrigado. Mas aí é JFK Drive...
- J. F. quê?
- John F. Kennedy Drive.
- Quem diabo é John F. Kennedy? - Interrogou Sam.
- Hum, deixe lá.
- Vá sempre para Leste até chegar a Maple - informou
Sam. - O quarteirão logo a seguir é Riverside.
- Obrigado.
- Mãe - disse Lorraine -, com os pais do Marty fora,
não acha que ele devia cá passar a noite? Não gostaria que lhe
acontecesse alguma coisa, com aquele lenho na cabeça. Ele pode
desmaiar ou assim...
Dirigiu a Marty um sorriso ligeiramente namoradeiro, que
ele devolveu sem entusiasmo.
- Marty, a Lorraine é capaz de ter razão. Talvez seja
melhor passares cá a noite. Afinal, o papá atropelou-te. Isso quer
dizer que ficaste sob a nossa responsabilidade...
- Não legalmente - interveio Sam acaloradamente.
- Talvez não, mas moralmente ficou - retrucou Stella.
Olhou para Marty, como que à espera de resposta.
- Não sei... - procurou ele ganhar tempo.
- Podes dormir no meu quarto - sugeriu Lorraine.

- A Lorry ficou pelo beicinho- acusou Milton chocarreiro.
- A Lorry ficou pelo beicinho...
Lorraine endireitou-se na cadeira e deitou um olhar glacial
ao irmãozinho:
- Só estou a tentar ser hospitaleira - afirmou.
Ninguém acreditou realmente, e Marty menos que todos.
Olhou para o relógio e afastou o prato:
- Hum... se me desculparem, tenho mesmo de ir - disse.
- Mas há bolo... - protestou Stella.
- Pode crer que lamento - continuou Marty. - Tenho
um encontro marcado com aquele homem...
Pôs-se em pé e acenou para Sam e para as crianças, que
continuavam todas a comer:
- Obrigado por tudo. Ver-nos-emos todos mais tarde.
No momento seguinte, tinha desaparecido.
Lorraine suspirou:
- Que teremos nós dito para o fazer agir assim?! - disse.
- É um jovem muito estranho- murmurou Stella. -A
maior parte do tempo é bastante simpático, mas há alturas em
que parece vaguear para outro mundo.
- É idiota- corrigiu Sam Baines. -É da educação. Os
pais provavelmente também são idiotas, e talvez até os avós.
Não me surpreenderia nada que a família fosse toda tarada.
Olhou sombriamente para Lorraine. - Se alguma vez tiveres
um filho que se comporte assim, deixo de te considerar minha
filha. E isto aplica-se a todos vocês.
Tendo restaurado a sua suserania na casa encheu o garfo de
puré de batata instantâneo e voltou a atenção para Jackie
Gleason.

@CAPÍTULO VII

Doc Brown ajustou o aparelho sobre a cabeça, baralhou as
cartas e voltou a tirar uma. Colocando-a de face virada para a
mesa, accionou a série de mostradores que activavam a maquineta
que tinha sobre a cabeça. Um ruído crepitante encheu a sala
e uma rápida visão de um valete de espadas passou pelos olhos
de Brown:
- Excelente! - Entusiasmou-se ele.
Voltou a carta. Era um três de ouros.
- Bolas - resmungou.
Tentou outra vez, e novamente falhou a identificação correcta
da carta.
Deixando a sua última invenção sobre a cabeça, levantou-se
e começou a andar de um lado para o outro. Em que se enganara?
O erro estava na máquina ou nele próprio? Um ligeiro acesso de
dor na cabeça recordou-lhe que o problema podia estar na sua
própria mente. Nessa manhã, ao pendurar um relógio na casa de
banho, caíra de cima da sanita e sofrera uma violenta pancada
no crânio. Sendo o cérebro uma complicada massa de impulsos
e energia eléctrica, era de facto possível que o embate tivesse
provocado um curto-circuito com potência suficiente para lhe
invalidar os testes. Mas o dia não fora completamente perdido.
A queda fizera com que algo se gerasse no seu espírito, impulsionando-o
a escrever durante horas. Quando acabara e relera as
notas, teve a certeza de que marcara pontos importantes no
reino das viagens no tempo. A excitação com esse novo projecto
também podia ter interferido com as suas experiências de
extensão da mente.
Enquanto andava de um lado para o outro, viu de relance a
sua imagem no espelho. Foi obrigado a sorrir. Que atroz ficava
com aquele conglomerado de tubos de vácuo, reóstatos,
manómetros, fios e antenas na cabeça. Era, sentiu-se inclinado
a admitir, a perfeita imagem estereotipada do cientista louco.
Mas não importava. Se o aparelho se revelasse prático na área
da leitura da mente, o seu aspecto não seria importante.
Estava a debater consigo próprio se devia continuar a
trabalhar naquele dia ou desistir, quando Copérnico começou a
ladrar. O cão, terceiro de uma linha de animais de estimação
com nomes de cientistas famosos, correu da cozinha para a sala,
chegando lá ao mesmo tempo que soou a pancada na porta.
Sem tirar o aparelho da cabeça - dava tanto trabalho
montá-lo! - Doc Brown foi abrir. Era um jovem de uns dezassete
anos. A sua aparência quase fez com que Brown começasse
a bater palmas de puro deleite, pois ele tinha vestida uma
camisa ilustrada com uma ampliação de um formulário do
departamento de patentes. É fácil de compreender que isso
tenha apelado ao coração de um inventor frustrado, negligenciado
e muito difamado.
Em tão feliz estado de espírito, Doc Brown decidiu continuar
a sua experiência. Ligou o interruptor, esperou que o aparelho
aquecesse, apontou um dedo ao jovem e disse:
- Não diga uma palavra.
o jovem obedeceu, fechando a boca antes de conseguir emitir
as primeiras palavras.
- Vou dizer-lhe como se chama - informou Doc Brown.Pense
no seu nome.
Marty assim fez. Estava satisfeito por verificar que Doc
Brown parecia o mesmo tipo, de aspecto muito mais jovem, claro,
mas com os mesmos maneirismos e expressões. Era agradável
voltar a vê-lo, mesmo tendo estado separados só um dia.
- Peter Danforth - disse Doc Brown.
- Não.
- Evan Wentworth... Junior!
- Não, senhor. Lamento.
- Melvin Petrucci.
Marty abanou a cabeça:
- Mas o meu primeiro nome começa de facto com um M acrescentou
encorajadoramente.
- Não chega - murmurou Doc Brown. - Talvez não
funcione muito bem com nomes próprios. Accionando outro
interruptor do seu "Analisador de ondas cerebrais", fechou os
olhos e cogitou uma vez mais.
- Vejamos - disse finalmente. - Veio de muito
longe...
- Sim!
- ... porque... quer que eu me torne assinante de Saturday
Evening Post.
- Não...
- Colliers...
- Não. É que...
- Não diga! - Atirou a cabeça para trás e pensou mais
um instante. - Nogado de amendoim! - Quase gritou. - É
isso! Anda a vender nogado de amendoim para os Escuteiros!
Que disparate o meu não ter dito isso logo!
- Não.
Doc Brown ficou abatido. Marty desejou ter podido dar-lhe
melhores notícias, mas sentiu que não teria sido nada benéfico
para o seu amigo.
- Veio cá por precisar de ir à casa de banho?-perguntou
Brown, consideravelmente subjugado.
- Não, Doc Brown - respondeu Marty. - Mas estou
aqui por uma razão que é muito importante para nós.
- Que vem vender? - indagou Doc. - É assim que
começam todas as campanhas de vendas.
- Não venho vender nada. Ouça: venho do futuro. Cheguei
numa máquina do tempo inventada por si... e agora preciso
que me ajude a regressar.
- Regressar a onde?
- A mil novecentos e oitenta e cinco.
- Incrível! - suspirou Doc Brown. - Meu Deus, sabe o
que isso significa?
Fez uma pausa de efeito e depois começou a tirar da cabeça
a complicada maquineta.
- Que significa?
- Significa que esta porcaria não funciona! - berrou ele,
atirando a máquina para o chão. Esta partiu-se em pedaços,
voando vidro e plástico por todos os lados. - Seis meses de
trabalho para nada! Em que me terei enganado?
- Por favor, Doc - insistiu Marty. - Esqueça a máquina
de ler o pensamento. Nunca há-de conseguir fazer com que
funcione.
- Quem disse?
- Digo eu. Ouça: O seu grande invento será a máquina de
viajar no tempo. Em vez de se dispersar por essas outras
questões, devia estudar o funcionamento da máquina do tempo...
Porque eu preciso da sua ajuda. Deixou-me aqui preso em
1955.
Doc Brown franziu o sobrolho e esfregou uma ligadura que
tinha na cabeça:
- De que está para aí a falar? Máquina do tempo?inquiriu.
- Não inventei nenhuma máquina do tempo.
- Não, mas vai inventar- informou Marty. -E eu vou
ser o primeiro a usá-la, se exceptuarmos o seu cão Einstein.
- O meu cão chama-se Copérnico.
Marty acenou com a cabeça:
- Faz sentido. Dá aos seus animais de estimação nomes
de grandes cientistas. Então não é lógico que algum cão futuro
seja Einstein?
- Faz sentido - admitiu Brown. - Mas como é que eu
posso ter a certeza de que você vem do futuro? Há por aí muitos
tipos que me acham um excêntrico e um chato. - Talvez o
tenham mandado cá para pregar alguma partida de mau gosto.
- Não sou partida nenhuma - retrucou Marty. - E
posso provar-lho.
Levou a mão ao bolso e tirou a carteira:
- Veja - disse. - Aqui está a minha carta de condução.
Verifique as datas.
Entregou a carta a Doc Brown.
- Vê o prazo de validade? - continuou Marty. - Expira
em mil novecentos e oitenta e sete. Vê a minha data de
nascimento? Mil novecentos e sessenta e oito.
- Quer dizer que você ainda nem nasceu? - interrogou
Doc Brown. Virou e revirou a carta. -Parece mesmo autêntica,
não há dúvida - murmurou.
- É autêntica.
Procurando mais no fundo da carteira, Marty retirou um
cartão de biblioteca a expirar em 1986, uma nota nova e uma
fotografia de família. Um a um, submeteu-os ao exame de Doc
Brown:
- Olhe para esta nota de vinte dólares - pediu.Série
de 1981... E aqui está uma fotografia minha, com a minha
irmã e o meu irmão...
- E depois?
- Depois olhe para a camisola da rapariga. Não diz
"Classe de 84"?
Doc Brown concordou, para logo encolher os ombros:
- Montagem fotográfica bastante medíocre - afirmou.Parece
que cortaram a cabeça ao seu irmão.
Estando a ficar cada vez mais irritado, Marty enfiou a
fotografia outra vez na carteira sem se dar ao trabalho de olhar
para ela. Se Doc Brown não acreditava na sua história, quem iria
acreditar? Era simultaneamente irónico e aborrecido que o
responsável pelo dilema em que ele se encontrava não acreditasse
no seu próprio êxito.
- Por favor, Doc - disse Marty apaixonadamente.Tem
de acreditar em mim! Estou a dizer a verdade.
Doc fitou-o de olhos semicerrados:
- Está bem, rapaz futuro - sorriu. - Deixe-me fazer-lhe
um testezinho: Quem é que vai ganhar o campeonato do
Mundo em 1956?
Infelizmente, Marty não tinha conhecimentos enciclopédicos
de acontecimentos desportivos, embora se interessasse tanto
por eles como a maior parte dos jovens da sua idade:
- Não sei - confessou. - Isso foi há quase trinta anos.
- Não, é daqui a um ano - disse imediatamente Doc
Brown, antes de se aperceber de que encaravam a data de
perspectivas diferentes. - Está bem - continuou. - Eu sou
do Brooklyn. Quantas taças e campeonatos ganham eles durante
os anos de 60 e 70?
- Acho que não ganham nada - replicou Marty.Brooklyn
nem sequer está na primeira divisão.
Doc Brown riu trocista:
- Não ganham nada? - Comentou, abanando a cabeça.
- Nem estão na primeira divisão? Não acredito.
- É verdade.
- Que disparate! Então quem é que ganha as taças?
- Os Miracle Mets ganharam um excitante campeonato
em 1969 - informou Marty. - Mas eu sou do Sam Diego
Padre. E também gosto dos Chargers.
- Mets? - repetiu Doc. - Quem são os Miracle Mets?
E o Sam Diego? Está a gozar comigo?
- Não. As equipas mudam muito.
- Sim, mas não tanto - resmungou Doc. - Não reconheci
nenhuma das equipas que você mencionou. Quais são as
grandes equipas de futebol?
- Os L. A. Raiders... Miami Dolphins... Dallas Cowboys...
Sam Francisco 49ers.
- Até que enfim - exclamou Doc Brown -, uma equipa
que eu reconheço! Incrível. E esta: Quem vai ser o presidente dos
Estados Unidos em 1985?
- Ronald Reagan.
- Ronald Reagan, o actor? - perguntou Doc Brown,
abanando a cabeça.
Marty confirmou com um aceno algo pesaroso. Desejava que
Doc Brown lhe tivesse feito qualquer outra pergunta.
- Ora, esse é o maior disparate que alguma vez ouvi - murmurou
Doc. - Com certeza podia ter inventado uma
resposta melhor do que essa.
Pegando no seu Analisador de Ondas Cerebrais, Brown
começou a dirigir-se para a garagem. A brincadeira acabara,
pelo que lhe dizia respeito. Não fazia ideia do que fora conseguido,
mas, se alguém se rira à sua custa, parabéns. Marty
seguiu-o.
- Por favor, deixe-me em paz - pediu Doc Brown por
cima do ombro, ao mesmo tempo que saía da sala.
Marty, a pensar furiosamente no que poderia dizer para
convencer o homem, lembrou-se de repente de que dia era:
Sábado, 5 de Novembro de 1955. Não fora nesse dia que Doc
escorregara de cima da sanita e...?
- Claro- exclamou Marty. -Até tem uma equimose a
prová-lo.
Correndo atrás de Doc Brown, começou a falar num ritmo de
cantilena apressada:
- Doutor Brown, ouça! - dizia. - Essa equimose na
sua cabeça... sei como ficou com ela! Estava a pendurar um
relógio e caiu de cima da sanita e bateu com a cabeça no
lavatório...
Doc Brown rodopiou para o encarar:
- Que tem andado a fazer? A espiar-me? - Quis saber.
- Nem na casa de banho posso estar à vontade? Agora de
cada vez que me sentar tenho de me preocupar que esteja algum
idiota a olhar para mim por meio de binóculos?
- Não - assegurou-lhe Marty. - Eu não o espiei. Em
1985 o senhor falou-me acerca desta manhã. Disse que, depois
da queda, teve uma espécie de visão do capacitador de fluxo, que
é o coração da máquina do tempo.
Doc Brown franziu-se. Aquilo era verdadeiramente intrigante.
Como é que aquele jovem podia saber o que se passava na
sua mente sem ele lho ter dito? Enquanto ele estava a tentar
descobrir isso, Marty estendeu as palmas das mãos e expressou
a mesma interrogação:
- Doc, como é que eu podia saber isso se não viesse do
futuro?
- Podia ser um leitor de pensamentos.
- Sim, mas não sou. Sou apenas um tipo vulgar a quem
o senhor fez confidências.
- Onde é que está agora essa máquina do tempo?indagou
Doc Brown. Estava a começar a ficar intrigado.
- Tenho-a escondida- redarguiu Marty. -Encafuei-a
numa garagem. Dá tanto nas vistas que eu não podia andar com
ela pelas ruas sem atrair as atenções. Até talvez fosse preso.
Doc Brown fitou longamente o jovem. Queria acreditar nele
mas faltava qualquer coisa. Aquilo era demasiado fantástico. O
garoto só podia ser um bom actor que de alguma maneira
descobrira o seu acidente. Fosse qual fosse o motivo que o levara
a montar a história, isso não era importante. Ele tinha mais que
fazer:
- Boa noite, "Rapaz Futuro" - disse, fechando a porta de
serviço da garagem.
Marty ficou em silêncio durante quase um minuto. Por mais
que tentasse, não conseguia pensar em mais ninguém que o
pudesse ajudar, além de Doc Brown. Isso só queria dizer uma
coisa: se Brown exigia mais provas para ficar convencido, então
essas provas teriam de ser apresentadas.
- Mas provavelmente para a próxima ele não me deixa
entrar, se souber que sou eu - suspirou.
Baixou os olhos, e verificou que o mesmo vaso com uma
planta, muito mais pequena, estava à porta da garagem de Doc.
- Será possível...? - Sorriu.
Inclinando-se, levantou o vaso e encontrou a chave. Meteu-a
na algibeira e afastou-se.
O seu plano consistia em esperar até ser escuro, quando o
DeLorean daria menos nas vistas. A própria máquina com
certeza impressionaria Doc Brown, e continha diversos artigos
de 1985 que serviriam de provas. Caminhando lentamente,
Marty voltou à Praça Principal, comprou um hamburger e uma
Pepsi, e ficou a ver os ponteiros do relógio da torre do palácio
de
justiça avançarem pausadamente para as quatro horas. Por fim,
cansado de ver as pessoas, decidiu ir ao cinema.
Encaminhou-se para o Essex, mas deu só alguns passos,
depois do que virou à esquerda e se dirigiu para o Municipal. Os
filmes do Oeste nunca tinham sido os seus preferidos e Ronald
Reagan também estava longe de ser o seu actor preferido. Pelo
menos The Atomic Kid era um filme que ele nunca vira na
televisão.
Pagou alegremente os cinquenta cêntimos do bilhete, comprou
um Almond Joy por dez e entrou. O filme era bastante fraco
e Marty deu mesmo por si a desejar anúncios de televisão como
meio de aliviar o tédio. Noventa minutos depois, tendo aturado
a história de um prospector que fica imune às radiações atómicas
e persegue espiões comunistas, saiu, notando com satisfação que
estava consideravelmente mais escuro.
Ao chegar a casa, já estava mesmo escuro. Marty abriu a
garagem, entrou no DeLorean, baixou o assento para uma
posição reclinada e fechou os olhos. Decidira esperar pelo menos
até à meia-noite, para que houvesse poucas pessoas nas ruas a
verem o seu carro do outro mundo.
Acabou por cair num sono entrecortado, com uma sucessão
de sonhos a recordarem-lhe que se encontrava numa situação
séria... Viu-se perseguido por jogadores profissionais ansiosos
por lhe extraírem do cérebro conhecimentos sobre o futuro que
pudessem transformar em dinheiro... A polícia e funcionários
públicos, entretanto, queriam silenciá-lo para evitarem o pânico...
Lorraine queria o seu corpo... Não tinha hipóteses de
regressar a 1985, a Jennifer, aos seus amigos... Acordando em
sobressalto, olhou para o relógio digital no tablier do DeLorean.
Já passava da meia-noite.
Pondo o carro em funcionamento, rolou suavemente para
fora da garagem e voltou a casa de Doc Brown, em Riverside
Drive. Fiel à sua imagem, Hill Valley subira cedo os passeios e
eram poucos os carros que andavam na estrada.
Ao chegar à garagem de Doc, Marty abriu a porta com a
chave de que se apropriara e levou o DeLorean para dentro. Doc
Brown dormia, ressonando ruidosamente, encostado à sua mesa
de trabalho. Sob a sua figura reclinada estavam planos do
Analisador de Ondas Cerebrais e um bloco de notas com memorandos
garatujados.
Marty tocou suavemente no ombro de Doc:
- Doc... acorde - sussurrou.
Os olhos de Brown abriram-se a palpitar:
- Ah?-resmungou em voz pesada e com expressão vaga.
- Sou eu - disse Marty.
Um acesso de ira foi visível nos olhos de Doc Brown:
- Que diabo está a fazer aqui? - exigiu saber. - Como
raio entrou?
- Com a sua chave...
- Tem muito descaramento...
- Enquanto falava, Doc Brown deixou cair o olhar sobre o
DeLorean e as palavras morreram-lhe na garganta:
- Santo Deus - murmurou.
- É a sua máquina de tempo, Doc - apresentou Marty,
sorrindo. - Trouxe-a para cá.
Doc Brown começou a dirigir-se para ela, de olhos esbugalhados
de perplexidade e boca aberta. Marty pensou que ele
estava prestes a começar a babar-se.
- Agora já acredita em mim?
Doc Brown não respondeu. Muito deliberadamente, deu
uma volta completa à máquina. Depois retirou da algibeira uma
folha de papel dobrada e entregou-a a Marty:
- Depois de cair da sanita - disse -, desenhei isto.
Lembra-lhe alguma coisa?
Marty desdobrou a folha e imediatamente reconheceu um
esboço tosco mas correcto do capacitador do fluxo:
- Pode apostar - retorquiu.
Abriu a porta do carro e tirou o objecto verdadeiro. Ao vê-lo,
os olhos de Doc Brown iluminaram-se. Aos pulinhos sem sair do
mesmo sítio, começou a gritar, emitindo palavras entre sons
inarticulados de alegria:
- Ah! Funciona... funciona? - arquejou. - Acabei por
inventar uma coisa que funciona!
De súbito estendeu as mãos para abraçar Marty e deu-lhe
um beijo na face.
- Isto é formidável! - Transpirava. - Isto é maravilhoso!
Nem posso acreditar!
Mas era evidente que acreditava, pois o que fez a seguir foi
assumir uma atitude muito formal, como se se dirigisse a um
auditório de pessoas muito cultas:
- Minhas senhoras e meus senhores - pronunciou em
voz profunda e sonora -, e membros da comissão Nobel... É
uma grande honra para mim aceitar o Prémio Nobel do ano de
mil novecentos...
Fez uma pausa e voltou-se para Marty:
- Em que ano recebo o Prémio Nobel? - inquiriu.
Então, antes de Marty poder falar, acenou com as mãos e
continuou:
- Não... espere, não diga. Não quero saber. Deixe que seja
uma surpresa maravilhosa. Ninguém deve saber demasiado
acerca do seu próprio destino.
Parecia prestes a dirigir-se novamente ao seu auditório
imaginário quando uma expressão de repentina compreensão
lhe invadiu as feições:
- Espere aí! - exclamou. - É só um minuto! Já estou
a começar a recordar-me. Você mencionou qualquer coisa como
ter sido a minha primeira cobaia, à excepção de um cão.
- É verdade.
- E também disse que eu o deixei aqui pendurado em
1955...
Marty confirmou com a cabeça.
- Porque faria eu uma coisa dessas? - Interrogou Doc
Brown altivamente. - Sou um cientista responsável. Sempre
que realizo uma experiência, faço-o com absoluta segurança.
Nunca enviaria um garoto para trás no tempo, deixando-o lá.
- Não fez de propósito - explicou Marty. - Foi um
acidente. Outras pessoas intervieram. De facto, a barra ficou
muito pesada...
- Barra pesada? - disse Doc. - Que tem o peso a ver
com esta questão?
- Desculpe. É uma maneira de dizer. O que aconteceu foi
depois da primeira... '
- Espere, não diga - interrompeu Brown. - Saber de
mais acerca do futuro... de facto, até a sua simples presença
aqui... pode ser muito perigosa. Poderíamos acidentalmente
alterar o curso da História...
- Não creio - contrariou Marty. - Eu sou uma pessoa
vulgar...
- Não está a entender. Uma molécula, um átomo fora do
lugar pode destruir todo o tecido do contínuo espaço-tempo...
Portanto, temos de ter muito cuidado e não fazer nada de
significativo.
Marty encolheu os ombros.
- Mostre-me como essa coisa funciona - pediu Doc
Brown. - Temos de o mandar de regresso - de regresso ao
futuro.
- Por mim está bem - retorquiu Marty. -Mas não sou
especialista O senhor é que me deu umas instruções de minutos
em 1985, e foi tudo.
- Porquê tão pouco? - interrogou Doc Brown. - Se ia
ser meu auxiliar, por que não lhe expliquei tudo completa e
integralmente? É irresponsável mandar um rapaz trinta anos
para o passado com instruções inadequadas.
Marty sorriu. Parecia que ele estava a criticar outra pessoa,
quando na realidade estava a comentar as actividades do seu
futuro eu.
- Não, Doc - explicou Marty. -Não foi questão de ser
irresponsável. Sabe, fomos atac...
Deteve-se. Deveria contar a Doc Brown como ele fora morto?
Não lhe parecia muito apropriado e de certo que não era
simpático.
- Tem razão, meu rapaz - acenou Brown. - Não entremos
em pormenores. Já sei demasiado...
- O quê, Doc? - perguntou Marty. - Não lhe disse
nada realmente, importante.
- Ah, não? - Ripostou ele. - Primeiro à uma questão
de eu inventar uma máquina de tempo. É uma grande notícia,
não só para mim como para toda a comunidade científica. Depois
há os Miracle Mets em 1969. E Ronald Reagan como Presidente.
Estava a brincar quanto a isso, não estava?
- Estava - mentiu Marty.
- Ah, bem.

Uma hora mais tarde, depois de estudar como funcionava a
máquina do tempo DeLorean, Doc Brown tirou a mala que
continha os seus artigos de 1985 e começou a examiná-los um a
um.
- O que é isto? - perguntou.
- Um secador de cabelo - esclareceu Marty.
- Um secador de cabelo? Não há toalhas no futuro?Atirou-o
outra vez para dentro da mala. - Não me diga que
vou mesmo usar aquilo - resmungou.
Examinou parte da roupa:
- E essa indumentária - comentou - é toda de algodão.
Estava convencido que em 1985 todos teríamos fatos de
papel para usar e deitar fora. Aí não há grande avanço...
Apareceu um exemplar da Playboy. Brown folheou-a, quase
a deixando cair quando a página central se abriu em toda a sua
glória:
- Ena! - sorriu. - De repente o futuro ficou com muito
melhor aspecto. - Virou a fotografia ao contrário e depois de
lado. - Isto é um bocado maluco - riu. - Aqui estou eu, a
comer com os olhos uma mulher que ainda não nasceu.
- Sim - comentou Marty. - Se quiser fundir a cuca,
deite uma olhadela a isto.
Nos últimos minutos ocupara-se a preparar a câmara de
vídeo para passar a gravação que fizera no parque de estacionamento
da Alameda Twin Pines. Agora estava pronto:
- Prepare-se para um choque, Doc - disse ao carregar no
botão ON.
No visor surgiu um granulado logo seguido pela imagem e
Doc Brown em 1985, com o seu preâmbulo ao que intitulou
experiência temporal número um.
- Quem é aquele tipo? - Começou, para logo arfar.Mas
sou eu! Vejam só! Que velho! Mas não estou mal de todo para
a idade! Graças a Deus ainda tenho cabelo - há calvície na
minha família, sabe? Até no ramo feminino. Mas que diacho de
roupa é que tenho vestida?
- Um fato protector de radiações.
- Claro, por causa de toda a precipitação das guerras
atómicas.
- Não, Doc. Houve diversos momentos...
- Deixe lá. Não diga nada. Desculpe ter-me excedido.
Para evitar saber coisas acerca do futuro, não devo fazer afirmações
provocatórias como aquela. Mas isto é verdadeiramente
espantoso - é um estúdio e portátil de televisão. Nunca imaginei
que...
- Veja isto - pediu Marty. - Vem aí a parte mais
importante.
Doc Brown de 1955 ficou pregado ao chão enquanto Doc
Brown de 1985 explicava como a máquina do tempo estava
dependente da energia do plutónio. Marty MacFly de 1985,
exactamente igual ao Marty de 1955, ouvia os comentários de
Brown e depois falava na gravação:
- Plutónio? - dizia. - Quer dizer que este menino é
nuclear?
- Eléctrico., basicamente - replicava Brown. - Mas
precisa de uma reacção nuclear para gerar os 1,21 gigawatts de
electricidade de que necessito. O capacitador de fluxo armazena-a,
e depois descarrega-a toda de uma vez, como um gigantesco
relâmpago. É mesmo muito eficiente:
- Que disse o velhote agora mesmo? - inquiriu o jovem
Doc Brown. - Deixe-me ver outra vez.
Marty rebobinou a fita e repetiu o segmento em questão:
- .1,21 gigawatts de electricidade de que necessito. O
capacitador de fluxo...
- Diabos me levem! - exclamou Doc Brown, sobrepondo-se
à sua própria voz. - Ele disse 1,21 gigawatts? Por Jeová
- 1,21 gigawatts!
Dito isto, voltou-se e correu para fora da garagem.
Marty desligou o aparelho e foi atrás dele:
- Doc! - gritou. - Ei, Doc! O que é?
Quando chegou junto dele, já Doc estava numa grande sala
da casa, que usava para pintar. As paredes estavam decoradas
com retratos de inventores e cientistas famosos, como Albert
Einstein, Benjamim Franklim, Isaac Newton e Thomas Edison.
A peça central da sala quase vazia era um grande cavalete de
pintar, em que repousava uma grande tela. Doc Brown estava
agora junto do cavalete, de feições muito agitadas, a atacar a tela
com um pincel de tinta, descrevendo grandes arcos com os
braços, como um moinho avariado. De cada vez que o pincel
atingia a tela; aparecia uma grande tira vermelha.
- Um-vírgula-dois-um gigawatts - murmurava repetidamente,
enquanto continuava a sua dança nervosa.
Marty ficou parado a observar, certo de que o seu amigo
enlouquecera por completo. Ocorreu-lhe um pensamento aterrador:
e se ver-se nas gravações tivesse sido suficiente para que o
Doc Brown de 1955 perdesse o juízo? Se o choque tivesse sido
demasiado, isso não significaria que ele próprio perdia todas as
hipóteses de futuro? Um Doc Brown de 1955 louco não poderia
inventar a máquina de tempo trinta anos mais tarde. Isso
deixaria Marty MacFly encalhado em 1955 ou quereria simplesmente
dizer que o Marty de 1985 nunca chegaria a conhecer Doc
Brown?
Abanou a cabeça. O facto é que não compreendia muito bem
o que era ou onde estava. Era o verdadeiro Marty MacFly que
estava ali de pé naquele ponto de tempo? Ou tratar-se-ia apenas
de um rebento, por assim dizer, saído do seu eu posterior? Se
alguma coisa lhe acontecesse agora, voltaria a nascer em 1968?
Seria até possível que houvesse dois Marty MacFly, separados
por trinta anos de idade, que se encontrassem no futuro?
Doc Brown parara de pintar por um momento e estava agora
de olhos erguidos para o retrato de Thomas Edison:
- Tom! - gritou. - Como é que vou gerar tanta energia?
Não é possível, pois não?
Abruptamente, mergulhou o pincel na paleta e fez nova
investida contra a pintura.
Marty aproximou-se dele:
- Doc, o que é que está a correr mal? - perguntou.Que
está a fazer?
- Estou a pintar! Pinto sempre que não consigo perceber
um problema.
Marty decidiu fazer o jogo dele:
- Bem, use verde - sugeriu delicadamente. - O verde
é a sua cor.
- É? Como sabe?
- Sei. Confie em mim.
Brown olhou para ele um momento, depois esfregou uma
massa verde na paleta e transferiu diversas pinceladas largas
para a tela.
Ficou quase imediatamente calmo.
- Pois, é mesmo... sim, tem razão - respirou. - É
muito melhor.
Marty correspondeu com um aceno de cabeça:
- Eu sabia que sim - asseverou.
Esperou uns momentos antes de voltar a abordar o problema.
A ideia de provocar outro acesso a Doc Brown não lhe
agradava, mas Marty estava agora desesperado por informações:

- Ser-me-á possível voltar a 1985? - Exigiu saber.
Doc Brown pousou o pincel e suspirou:
- Marty - disse -, lamento que isto tivesse que acontecer.
Mas 1,21 gigawatts é demasiada energia. Não consigo
obtê-la. Temo que fique aqui encurralado.

@CAPÍTULO VIII

Marty procurou uma cadeira. A afirmação de Doc Brown fez
com que todo o seu corpo se sentisse tão fraco que ele pensou
mesmo haver a possibilidade de desmaiar.
- Não... - murmurou.
- Gostaria de ajudar mas não sei como - disse Doc.Está
fora do alcance das minhas capacidades.
- Plutónio, Doc - contrapôs Marty. - Só precisamos
de plutónio, não é?
Doc Brown soltou uma gargalhada:
- Arquimedes disse que podia mover a Terra se lhe
desses um ponto de apoio - respondeu. - Foi uma afirmação
bastante segura. A nossa está mais ou menos nas mesmas
condições. Sim, podemos levá-lo de regresso se tivermos plutónio.
Se. Não é apenas um grande Se. É um se monumental.
Porquê?
- Porquê? Porque não sabe como as coisas estão difíceis
em 1955, meu rapaz. Com certeza em 1985 se pode comprar
plutónio em qualquer loja de esquina. Mas agora é difícil de
conseguir. De facto, é praticamente impossível.
- E que tal por canais ilegais? - sugeriu Marty. -Não
há mercado negro para produtos desses?
- Que eu saiba, não.
- Raios... Raios...
Doc Brown sorriu e pôs a mão no ombro de Marty:
- Não é o fim do mundo - disse.
- É o fim do mundo que eu conheço.
- Sim, mas veja o lado bom. Este tempo não é mau para
se viver. Podia ter ficado preso na Idade Média, o que o obrigaria
a passar metade do tempo a esquivar-se dos bárbaros. Ou podia
ter aparecido durante a Peste Negra. Ou mesmo tão recentemente
como nos primeiros anos do século XIX, quando não havia
anestésicos, nem televisão nem cinema. Quero dizer, de facto
estamos bastante avançados. Temos filmes a três dimensões,
música de alta fidelidade, Frank Sinatra, café instantâneo...
Sim, bem, em 1985 temos MTV, discos compactos...
- Espere - interrompeu Doc Brown -, nem sequer sei
de que está a falar.... Buger King e planeamento familiar - continuou
Marty. -Não percebe, Doc? Eu tenho uma vida em 1985. Gosto
dela e quero voltar para ela.
- Mas este tempo é muito mais seguro. Aqui, sabe que
haverá 1985. Em 1985, sabem que haverá um 2015? Pense nisso.
Marty abanou a cabeça.
- Tenho de correr esse risco - afirmou. - Os meus
amigos, a minha música, a minha namorada estão à minha
espera. Olhe, aqui está ela...
Tirou a carteira e mostrou a Doc Brown a fotografia tipo
passe da Jennifer.
- Sim, não é nada má - concordou ele.
- Não é má? É bestial! E está louca por mim!
- Bem, e aqui não consegue arranjar uma rapariga
simpática?
- Quer dizer, uma que trauteie Pat Boone? - retrucou
Marty trocista. -Não, obrigado. Nenhuma delas chegará alguma
vez aos calcanhares da Jennifer. Vê isto? Vê o que ela
escreveu aqui? É poesia!
Tirou um bocado de papel em que Jennifer escrevera: "Amo-te.

"
Doc Brown olhou-o com simpatia, mas o seu encolher de
ombros de impotência era mais significativo.
- Tenho muita pena... - disse.
- Por favor, Doc - implorou Marty. - Tem de me
ajudar a regressar ao futuro. É a minha única esperança! Sei que
me pode descobrir alguma coisa.
- Como sabe isso?
- Porque nunca me desiludiu no passado.
- Quer dizer no futuro.
- Sim - concordou Marty. - Sempre me disse que, se
nos concentrarmos, podemos conseguir qualquer coisa, resolver
qualquer problema.
- Eu disse isso? Que egoísta! Mas devo dizer que é um
bom conselho.
- Doc, sei que pode descalçar esta bota. Talvez agora
acredite mais em si do que o senhor mesmo.
- Marty, estou muito sensibilizado por ter tanta confiança
em mim - Doc Brown sorria. - Estou mesmo. Significa
muito para mim. Mas vai ser preciso mais do que confiança para
gerar 1,21 gigawatts de energia. Faz ideia de quanto isso é?
Tanta energia só pode ser produzida por um relâmpago. E nem
sequer pode ser um da terceira divisão. Teria de ser daqueles que
até fazem estremecer as paredes, tão grande que fizesse parar
um relógio.
Marty deu um estalo com os dedos.
- Ah! - exclamou Doc Brown. - Teve uma ideia, mas
esqueceu-se de dizer "Eureka!"
- Talvez não seja uma ideia do tipo "Eureka" - retorquiu
Marty. - Só me ocorreu que, se pudéssemos usar a
energia de um raio...
- Pensamento razoável - interrompeu Brown - e muito
prático se não fosse um pequeno pormenor: Nunca se sabe onde
ou quando vai surgir um raio. Claro que temos um indício
quando há trovoada, mas mesmo nessa altura não podemos ter
a certeza de que um raio caia suficientemente perto para ser
usado como fonte de energia.
Marty esperou pacientemente que ele acabasse, depois
sorriu:
- Só que eu sei onde e quando vai cair um raio.
- Sabe?
- Sei, sim senhor.
Virou a folha de papel em que Jennifer escrevera a sua
mensagem. Era o desdobrável que lhes fora dado pela senhora
da campanha de preservação da torre do relógio em 1985. Ao
cimo da folha estava uma réplica do título de jornal de 1955: em
que se lia: TORRE DO RELÓGIO ATINGIDA POR RAIO, RELÓGIO
PARADO ÀS 10:04.
Por baixo estava a data: Domingo, 13 de Novembro de 1955.
Agora era a vez de Doc Brown fazer estalar os dedos.
- Eureka? - perguntou Marty.
- Eureka, sim - respondeu Doc Brown, acenando diversas
vezes. - Tem razão! É isso! É essa a resposta! Dado que o
jornal saiu no Domingo, isso quer dizer que a torre do relógio
será atingida no próximo sábado à noite. Se conseguissemos de
algum modo captar esse raio... conduzi-lo até ao capacitador de
fluxo... talvez resultasse...
Marty sorriu abertamente. Agora estavam no bom caminho!
Pelo menos parecia haver esperança. Tudo o que ele queria era
tentar regressar. Se falhasse, seria uma desgraça. Mas continuar
ali, absolutamente sem esperança... não era alternativa
que ele gostasse de considerar.
Doc Brown ergueu o olhar para o retrato de Benjamim
Franklin:
- Que pensas disto, Ben? Captar um raio? Se tu o fizeste,
porque não o hei-de fazer eu? É brilhante.
Voltou-se para fitar outra vez Marty:
- Tinha razão, Marty - disse. - Eu também tinha
razão! Podemos conseguir qualquer coisa se nos concentrarmos.
E vamos conseguir. No próximo sábado à noite, vamos enviá-lo
de regresso ao futuro - com um bang! Isto exige um brinde.
Encaminhou-se a passos rápidos para o refrigerador de água
e serviu um copo para cada um deles. Depois, erguendo dramaticamente
o seu, exclamou:
- À minha! À sua! A Ben Franklin! E à sua encantadora
namorada por escrever este bilhete.
- Bebo a tudo isso - concordou Marty.
Beberam em silêncio.
- Sim, a Jennifer é mesmo formidável - Marty sorria.
-Estou ansioso por a rever e lhe contar isto. Mas não creio
que uma semana em 1955 me faça mal. De facto, até pode ser
divertido verificar algumas coisas. Sabe, aperceber-me da cor
local, acotovelar os nativos, essa espécie de coisas.
Para surpresa de Marty, Doc Brown franziu o sobrolho e
começou a abanar a cabeça:
- Lamento - afirmou -, mas isso está completamente
fora de causa.
- Porquê?
- Devido à natureza delicada da sua presença aqui.
Aparentemente você ainda não aceitou o facto de ser uma
ameaça potencial para esta vila, para as vidas das outras
pessoas, para toda a nossa sociedade. Não, receio que tenha de
ficar retido aqui em casa. Não pode ver nem falar com ninguém.
Tudo o que fizer ou disser pode ter sérias repercussões em
acontecimentos futuros. Compreende?
- Sim, claro - redarguiu Marty. - Na realidade, não
aceitava muito bem a ideia de Doc Brown de ser uma "ameaça"
para a sociedade. Principalmente agora que sabia o que podia
acontecer se começasse a falar muito acerca do futuro. Por outro
lado, se tivesse cuidado com o que dissesse e se limitasse a
observar, que mal poderia fazer? Era com certeza melhor do que
passar uma semana confinado à casa e à garagem de Doc Brown.
- Marty, com quem mais entrou em contacto hoje?indagou
Doc Brown. - Além de mim, claro.
- Bem, fui ao cinema. Acha que o facto de o Municipal ter
recebido hoje mais cinquenta cêntimos irá alterar o curso da
História?
- Não arme em esperto- recrutou Doc Brown. -É um
elemento minúsculo, mas até ele pode ser significativo. Imaginemos
que um dia o concessionário do teatro está a ver a folha de
balanço e a pensar vender. Talvez esses cinquenta cêntimos
transformem a receita, que de $999,75 passe a $1000,25. Ou
seja, ela passa de três algarismos para quatro. Pode ser a
diferença psicológica entre manter o teatro e vender. Assim,
influenciado pelos cinquenta cêntimos a mais, ele mantém-no.
Não muito tempo depois, quando o teatro estaria fechado se ele
o tivesse vendido, há fogo e ficam lá pessoas presas dentro. Um
deles é um jovem que estaria destinado a tornar-se Presidente
dos Estados Unidos - só que então morre.
- E eu é que sou o culpado - murmurou Marty.Matei-o
com os meus cinquenta cêntimos.
- Não directamente, mas já viu onde bate o ponto. A
História é muito frágil. Um tipo olha para um lado ou tosse e
acontece uma coisa. Olha para outro lado ou não tosse e acontece
uma coisa diferente. É assustador. Não viu o filme Do Céu Caiu
uma Estrela? É um compêndio de como as nossas pequenas vidas
influenciam as de todas as outras pessoas.
- Sim - concordou Marty. - Já estou a perceber.
- Então, com quem mais entrou em contacto?
- Com montes de gente. Com os meus avós, com a minha
mãe e o meu pai. Com Biff Tannen...
Doc Brown retraiu-se:
- Procurou os seus pais? - disse. - Como pôde fazer
uma coisa dessas? É totalmente irresponsável.
- Não os procurei - contrapôs Marty. - Dei de caras
com eles.
- Conte-me o que aconteceu.
Marty relatou os acontecimentos do dia. Considerava-os
muito brandos até ver quão profundamente afectavam Doc
Brown.
- Diz que salvou o seu pai de ser atingido pelo carro - meditou
Doc.
- Sim, mas não lhe salvei a vida. Se o carro lhe tivesse
batido, ele teria sobrevivido.
- Como sabe?
- Porque é a anedota familiar de como o papá e a mamã
se conheceram quando o avô conduziu o carro contra ele.
- Santo Deus! Você impediu que os seus pais se encontrassem
pela primeira vez?
- Sim, mas hão-de voltar a encontrar-se. Frequentam a
mesma escola, sabe...
- Não, não, não! - exclamou Doc Brown. - Fez uma
coisa terrível no que se refere à sua vida futura. Deixe-me ver
outra vez essa fotografia da sua família.
Marty retirou o instantâneo da carteira e entregou-o a
Brown. A expressão deste tornou-se grave:
- É o que eu pensava - afirmou.
- Qual é o problema? - inquiriu Marty.
- Aconteceu. Isto prova a minha teoria. Olhe para o seu
irmão - que me diz da cabeça dele?
Devolveu a fotografia a Marty. Era a mesma de que se
lembrava - só que Dave não tinha cabeça. Olhando atentamente
para a fotografia, viu que a cabeça do irmão tinha sido
apagada ou arrancada. Por trás do sítio onde devia estar a
cabeça dele continuava o canteiro de rosas que o seu corpo
bloqueava. Era como se Dave não tivesse cabeça quando o
instantâneo fora tirado!

- Santo Deus! - murmurou Marty. - A cabeça dele
desapareceu... Como se tivesse sido apagada...
- Apagada da existência - acrescentou Doc Brown significativamente.

- Não compreendo isto - disse Marty. - Ou talvez
compreenda mas não queira compreender.
Brown levantou um dedo:
- Chiu...
- disse. - Estou a desenvolver uma teoria. Depois
de pensar um momento, fez estalar os dedos: - Meu
rapaz, temos de lhe arranjar roupas - afirmou. - Fique aqui,
que eu vou comprá-las. Diga-me quais são os seus números.
Uma hora mais tarde, ele voltava do armazém Sears, Roebuck
local com um saco de compras em que se encontrava um
equipamento completo. Enquanto tirava as etiquetas e começava
a mudar de roupa, Marty discutiu o assunto com Doc Brown:
- Conte-me a sua teoria - pediu. - Tem a certeza de
que faz sentido?
- As minhas teorias fazem sempre sentido - replicou
Brown. - É uma simples extrapolação genético-matemática.
- Não percebo.
- Em termos mais simples então: Era o seu pai que devia
ser atropelado, não o Marty. Assim, você interferiu no primeiro
encontro dos seus pais. Se eles não se encontrarem nas mesmas
circunstâncias, podem não se apaixonar. Mas isso são águas
passadas. Temos de arranjar maneira de eles se encontrarem
porque, se não se encontrarem e se apaixonarem, não casam. Se
não casarem, não têm filhos. É por isso que o seu irmão está a
desaparecer da fotografia - é o primeiro, pois é o mais velho.
Seguir-se-á a sua irmã e, a menos que consiga reparar os danos,
você será o último a desvanecer-se.
- Então que posso eu fazer?
- Voltar para a escola.
- Porquê?
- Porque é um garoto. Os garotos andam na escola. Os
seus pais são garotos. Andam na escola. Você interferiu na
relação dos seus pais. Portanto tem que ir para a escola reparar
os prejuízos que causou.
- Não posso limitar-me a andar por lá antes e depois das
aulas? Quer dizer, a escola era aborrecida em 1985. Quando
penso em como deve ser chata em 1955, fico louco.
Doc Brown abanou a cabeça:
- Agora não se pode dar ao luxo de perder tempo. Temos
menos de uma semana para trabalhar, certo?
Marty concordou com um aceno de cabeça.
- Portanto tem de aproveitar todos os minutos disponíveis
para tentar juntá-los. Senão, você próprio não existirá no futuro.
É tão simples como isso.
Recuou uns passos para contemplar o novo vestuário de
Marty:
- Não está mal - comentou. Metendo a mão no saco,
tirou a última compra: um frasco de tónico capilar Vaseline.
Assim que ele desatarrachou a tampa, Marty comprimiu os
lábios.
- Veja lá, Doc - murmurou. - Admito que estes fios
são bastante frescos. Mas não vai pôr essa porcaria gordurosa
no meu cabelo.
- Por que não? Muitos dos garotos usam isto.
- Tem um aspecto horroroso. E quem sabe de que é feito?
Quero dizer, pode provocar-me cancro.
- Precisa disto para o seu disfarce - afirmou Brown.
Dito o que, começou a aplicar o produto com um pente ao cabelo
de Marty. - Não se preocupe - disse. - Isto está na moda,
tanto para crianças como para adultos.
- Sim? Então porque é que não usa? - desafiou Marty.
- Também é muito inflamável - ripostou Doc.
- Bestial.
Doc Brown parou de pentear o cabelo de Marty, mas parecia
não ter acabado completamente. Olhou de lado para o efeito, sem
ter a certeza de ser o melhor.
- Permita-me - pediu Marty, pegando no pente.
Aproximando-se do espelho, começou a pentear o cabelo dos
lados para trás e forçou um caracol errante a cair-lhe para a
testa:
- Já que vou passar por isso - explicou -, ao menos
hei-de parecer-me com o Elvis.
- Elvis? O que é isso? - Perguntou Doc Brown.
- Há-de descobrir.

Tendo sido construído durante os últimos anos da Grande
Depressão, Hill Valley High não era novo em 1955. Os seus
piores dias - a era da escrita nas paredes com jactos de tinta
dos últimos anos da década de 60 e da de 70 - ainda estava
para vir, porém, e Marty achou o liceu limpo e brilhante quando
lá foi conduzido por Doc Brown na segunda-feira de manhã.
Vestindo a sua nova roupa e com o cabelo empastado para trás,
pouco se parecia com o jovem de 1985 que Stella Baines pensara
trabalhar no circo.
- Ena, limparam isto bem - comentou Marty, assobiando
baixinho. - Está como novo.
Talvez a sua geração não tenha cuidado convenientemente
dele - observou Doc Brown azedamente.
Marty encolheu os ombros, recordando as vezes que escrevera
nas paredes e nas carteiras.
- Agora lembre-se - disse Brown, enquanto se encaminhava
para a entrada principal -, segundo a minha teoria,
só tem de os apresentar um ao outro e a natureza seguirá o seu
curso... espero.
- Não creio que isso vá ser suficiente agora - contrapôs
Marty. - O pai da Lorraine a atropelá-lo proporcionou-lhes
uma relação especial. Ela teve pena dele, levou-o para casa.
- Talvez tenha razão. É capaz de ser melhor você insistir,
fazer com que ela pense que o acha um tipo bestial.
- Isso pode não ser muito fácil - suspirou Marty.Ele
é o verdadeiro protótipo do palerma.
- Não o faça por ele. Faça-o por si próprio.
- Sim...
Entraram na escola, que era tão familiar e todavia tão
diferente aos olhos de Marty. Os corredores e as salas de aula
pareciam basicamente os mesmos, mas a atmosfera era totalmente
diferente - parecia saída de um filme antigo, só que era
a cores. Enquanto caminhavam, Lorraine passou a correr para
uma sala. Marty ia começar a segui-la, mas Doc Brown agarrou-lhe
o braço:
- É a sua mãe? - indagou.
- É.
- É melhor não ir para a mesma aula - sugeriu Doc
Brown. -O Professor não vai saber quem diabo é você. A minha
primeira ideia de o fazer voltar mesmo à escola não é prática,
creio. É melhor andarmos só por aí a ver o que conseguimos levar
a cabo.
- Claro. Vamos ver se encontramos o papá., Depois,
quando acabar esse tempo, podemos organizar o encontro entre
eles.
- Boa ideia.
Passaram os vinte minutos seguintes a percorrer os corredores,
espreitando sistematicamente para dentro das salas de aula
a fim de localizarem George MacFly. Por fim foi visto na última
fila de uma sala pouco afastada da de Lorraine.
- Temos de esperar uns dez minutos - disse Marty,
olhando para o relógio do corredor.
- Dez minutos atrasado - resmungou Brown, comparando-o
com o seu relógio de bolso. - Pensar-se-ia que um
estabelecimento de ensino teria pelo menos horas certas.
Voltaram calmamente até à turma da Lorraine e espreitaram
uma vez mais para dentro. Ela estava sentada na segunda
fila, a escrever. Estavam todos obviamente a fazer um ponto.
- Agora estou a ver a semelhança - afirmou Doc
Brown. - Ela tem os seus olhos... - Depois, com uma risadinha,
acrescentou: - E olhos para outro ponto também.
- Meu Deus! Sussurrou Marty. - Ela está a copiar.
Era de facto o que parecia. Com a mão em posição de escrita
e a cabeça inclinada para baixo, Lorraine olhava directamente
para o ponto do jovem ao seu lado.
- Não posso crer que a mamã fizesse uma coisa dessas - murmurou
Marty.
- Porque não? - contrariou Doc Brown. - Ela é uma
pessoa vulgar, não é?
- Não por aquilo que ela diz. Sempre nos contou como era
bem comportada na escola, cheia de moralidade e simpatia-e
praticamente todos os outros também.
- Ela tem uma memória selectiva como todos nós
- afirmou Doc filosoficamente. - Mas não deixo de compreender
os teus sentimentos. Dá um certo choque vermos os nossos
pais pelo seu lado desonesto ou de algum modo negativo.
- Talvez seja melhor eu ir buscar o meu pai - sugeriu
Marty.
Chegaram de novo junto da aula de George MacFly precisamente
quando a campainha tocava. Quando o pai se levantou,
Marty ficou duplamente impressionado com as suas características
apalermadas.. Tinha a fralda da camisa de fora, o
cabelo mal penteado e os papéis quase a cair da pasta.
- É o velhote, hem? - comentou Doc Brown com notável
falta de entusiasmo.
- É.

Repararam que diversos rapazes seguiam atrás de George
MacFly, mal suprimindo risadinhas, enquanto este se dirigia da
sala para o corredor. Quando ele se aproximava, outro rapaz
chegou junto de George e aplicou-lhe muito deliberadamente um
pontapé no traseiro.
George virou-se e encarou o tipo com os olhos baixos. tinha
um letreiro que dizia DÊEM-ME UM PONTAPÉ preso à parte de
trás do colarinho. Estava, claro, perfeitamente consciente disso.
- Talvez sejas adoptado - ouviu Doc Brown dizer baixinho.

Isso é que era bom, pensou Marty.
George MacFly estava prestes a ser pontapeado por outro
aluno quando uma figura conhecida surgiu subitamente em
cena, arrancando-lhe o letreiro da camisa e mostrando-lho.
- Santo Deus! - arquejou Marty. - É o Dr. Strickland.
Era verdade. O anjo vingador de Hill Valley High, sempre de
lacinho, estava ali sob a forma de Gerald Strickland. Parecia
mais novo e em melhores condições físicas, mas era basicamente
o mesmo. A sua presença fez com que os outros alunos se
dispersassem imediatamente.
- MacFly! Faz-te homem! - gritava Strickland.
George fixava-o como um prisioneiro prestes a ser sentenciado.

- És um desleixado! - acusava Strickland. - Estas
coisas acontecem porque tu não prestas atenção. Deves ter a
cabeça em Marte ou qualquer coisa. Queres ser desleixado o
resto da vida?
George abanou a cabeça de modo nada convincente.
- Então acorda e junta-te à raça humana - continuou
Strickland. - É tudo.
Metendo o letreiro nas mãos de George, seguiu na
direcção do seu gabinete.
- Tens a certeza de que a tua mãe se apaixonou por
aquele tipo? - perguntou Doc Brown.
- Tenho.
- Parece um casamento talhado no céu.
- A minha mãe sempre disse que tinha de ser - suspirou
Marty. - Espero bem que ela tenha razão...
- Olha, aí vem ela - informou Brown. - É melhor
preparares-te para fazeres as apresentações.
Marty concordou de cabeça, respirou fundo e começou a
dirigir-se para George.
- George! - chamou. - Ei, camarada! Como estás?
George acenou sem convicção:
- Bem...
- Era mesmo a ti que eu queria ver - continuou Marty.
Depois, ao notar a expressão quase vazia de George, disse:Lembras-te
de mim, não lembras? No sábado, quando caíste da
árvore... provavelmente salvei-te a vida.
- Ah, sim - sussurrou George.
- Os binóculos não se partiram, não? - indagou Marty,
incapaz de se conter.
O pai corou:
- Não - respondeu.
- Ainda bem! Ouve, quero apresentar-te uma pessoa.
Vem cá...
Agarrando-lhe no braço, Marty levou George pelo corredor
na direcção de Lorraine. Quando o pai a avistou, empalideceu e
os seus olhos encheram-se de pânico. Marty viu que o corpo se lhe
retesava e por um instante pensou que o pobre George ia tentar
fugir a correr. Depois descontraiu-se ligeiramente quando o
encontro se tornou inevitável.
- Desculpa, Lorraine - começou Marty.
Os olhos dela encontraram os seus. Por uma fracção de
segundo, ficaram confusos, mas logo que ela abstraiu das mudanças
na roupa e no estilo de penteado de Marty, a sua
expressão animou-se consideravelmente:
- Calvin! - quase gritou. - Quer dizer, Marty!
Tão deliciada estava por o ver que deixou cair os livros.
- Oh, deixe-me apanhá-los - ofereceu-se Marty.
Sentiu a mão de alguém no seu cotovelo. Era Doc Brown:
- Deixa que seja ele a fazê-lo, não sejas parvo! -murmurou.

Mas Marty já estava inclinado e George continuava no
mesmo sítio, de boca aberta e a parecer querer estar em qualquer
outro lugar menos naquele.
Pegando nos livros, Marty entregou-os a Lorraine, cujos
olhos brilhavam de gratidão e encanto:
Ah, obrigada - pronunciou com emoção.
Marty sorriu, aclarou a garganta e depois estendeu a mão
para a patética figura de George MacFly:
- Lorraine - disse -, quero apresentar-te uma pessoa.
O meu amigo George MacFly. George, esta é a Lorraine.
- Olá, tenho mesmo muito prazer em te conhecer
- conseguiu George articular.
Os olhos de Lorraine moveram-se na sua direcção e logo
voltaram a Marty, quase nem demonstrando ter-se apercebido
da presença do seu futuro marido.
- Faz-lhe propaganda - sussurrou Doc Brown.
- Como? - inquiriu Marty a meia voz.
- Não sei. Inventa.
Já que uma apresentação significativa era o objectivo da sua
visita, Marty saiu-se com:
- Aqui o George é um tipo bestial - gaguejou. - Mesmo
formidável... É inteligente... e um bom atleta...
- Não... - interveio George.
- E também tem um grande sentido de humor.
- Não... - repetiu George.
Marty até podia estar a falar com a Lorraine em sanscrito ou
na língua dos índios Choctaw. Os olhos dela nunca se desviaram
dos seus durante todo o elogio:
- Marty- acabou por dizer, com sinceridade a emanar-lhe
da voz -, fiquei tão preocupada por tu teres saído assim de
repente no outro dia, com aquela ferida na cabeça. Já está
melhor? Parecia tão inflamada...
Estendeu a mão para lhe tocar na testa.
- Sim, está óptima - garantiu Marty com um aceno de
cabeça.
- Podia ser útil qualquer coisa para reduzir o inchaço
- sugeriu Lorraine. - Tenho a certeza de que há lá qualquer
coisa em casa, no armário dos remédios.
- Hum... Sou partidário da deixar as coisas melhorarem
por si - redarguiu Marty. - Assim, o nosso corpo desenvolve
alguns tipos de imunidade...
- És tão inteligente - sorriu ela.
- Sim, mas aqui o George...
A campainha tocou.
continuou Marty.
- Não vale a pena - ouviu Doc Brown murmurar.
Marty olhou em redor. George MacFly não era visível em
parte alguma.
- Onde está ele? - perguntou Marty a Doc.
- Foi por ali.
- Porque não o deteve?
- Que querias que eu fizesse, que agarrasse o tipo? De
qualquer forma, ele fè-lo um bocado à socapa... Como que se foi
afastando com uns passinhos para o lado e depois desatou a
correr.
- Raios - resmungou Marty.
Lorraine continuava a sorrir para ele, obviamente contentíssima
por o contemplar durante a breve interrupção.
A campainha voltou a tocar, arrancando-a ao seu transe
romântico:
- Estou atrasada - disse. - Vemo-nos depois.
- Sim... - concordou Marty.
Quando ela se virou, a amiga, que estivera pacientemente à
espera de lado, reuniu-se-lhe.
- Não é de sonho? - salmodiou Lorraine. - Vou contar-te
um segredo: Hei-de casar com ele.

@CAPÍTULO IX

Enquanto observavam as duas jovens a afastarem-se, Marty
e Doc emitiram suspiros perfeitamente síncronos.
- Ela nem olhou para ele - afirmou Marty.
- Tens razão.
- Por outro lado - continuou Marty -, por que havia
de olhar? Ele é um palerma.
- Percebo perfeitamente o que significa, mas essa é uma
palavra de 1985?
- É.
- Interessante, e provavelmente tens razão. Isto é muito
mais grave do que eu pensava. Segundo as aparências, a tua mãe
está amorosamente interessada em ti e não no teu pai.
- Está a tentar dizer-me que a mamã está a arder por
mim? - interrogou Marty
- Correndo o risco de parecer ordinário, devo dizer que
sim. Se o permitíssemos, podia desenvolver-se uma situação do
tipo da de Édipo...
- Édipo?
- Sim. Uma atracção muito indesejável entre mãe e filho.
Claro que estas são provavelmente as condições mais bizarras
sob que ocorreu alguma vez. Mesmo assim, as implicações
psicológicas...
- Credo, Doc, isso é muito pesado... - comentou Marty.
- Lá vem outra vez essa palavra- retrucou Doc Brown,
abanando a cabeça: - pesado. Por que é que as coisas são tão
"pesadas" no futuro? Há algum problema com a força de gravidade
do mundo?
- Ah? - fez Marty.
Doc sorriu. Por vezes gostava de confundir o seu jovem
amigo. Mas em vez de explicar a observação ou tentar aumentar
a confusão de Marty, saltou para outro aspecto do dilema
Lorraine-George:
- Nova teoria - continuou: - A única hipótese de
aqueles dois acasalarem com êxito só se pode verificar se ficarem
os dois sozinhos. Portanto tens de arranjar maneira de o teu pai
e a tua mãe entrarem em interacção em algum encontro social,
numa espécie de ritual pré-nupcial mutuamente aceitável e
estimulante.
- Refere-se a uma saída juntos?
- Excelente, meu rapaz. Acho que acertaste em cheio.
- Mas que espécie de saída?-perguntou Marty. -Não
conheço os hábitos dos jovens dos anos 50.
- Os jovens são sempre os mesmos, não? Só o ambiente
muda.
Marty encolheu os ombros:
- Ela costumava falar de os jovens do seu tempo irem ao
Cinema Essex e arrulharem no balcão. Que lhe parece?
- Parece plausível, mas talvez isso seja demasiado. Acho
que talvez fosse melhor começarmos por algo um tudo nada
menos erótico.
- Concordo, mas porquê?
- Bem, eles são teus pais. Deves conhecê-los. Que interesses
têm em comum? Que gostam de fazer juntos?
- Só os dois?
- Sim.
- Nada.
- Humm.
Os corredores da escola estavam agora quase desertos,
tendo a grande maioria dos alunos ido para as salas em que
tinham as aulas seguintes. Doc Brown deteve-se perante um
grande painel de avisos, esperando encontrar alguma coisa que
lhe estimulasse a imaginação:
- Ah! - Acabou por exclamar.
- Que é? - indagou Marty.
- Parece que há em breve um ritual cerimonial rítmico.
Faz com que seja ele a acompanhá-la.
- Um ritual cerimonial...
- Baile, para ti. -Doc Brown sorriu, apontando para um
cartaz pintado à mão em que se lia: ENCANTAMENTO SOB O
MAR... NESTE SÁBADO À NOITE... ENTRADA $1.
Marty riu e bateu palmas:
- É isso! - gritou. - Devem ir a esse baile - "Encantamento
Sob o Mar". É lá que se beijam pela primeira vez.
Perfeito.
- Então, pronto. Faz com que aconteça.
Marty franziu o sobrolho:
- Aí é que está o problema - murmurou. - Como é que
vou conseguir que aquele ioiô arranje coragem suficiente para a
convidar?
- E como é que vamos conseguir que ela ultrapasse o
entusiasmo que sente por ti de modo a aceitar? - acrescentou
Doc Brown seriamente.
- Acho que é esse o trabalho que nos está destinado.
Ainda estavam a considerar o problema cerca de uma hora
mais tarde, quando George MacFly entrou no bar, arranjou mesa
a um canto e começou a almoçar. Durante uns minutos limitou-se
a ler; depois tirou um bloco e lápis e começou a escrever ao
mesmo tempo que acabava de comer a sua sanduíche.
Marty e Doc Brown aproximaram-se como por casualidade.
Ele mal deu por puxarem cadeiras e se sentarem à mesma mesa.
- Olá, George - cumprimentou Marty passado um
bocadinho. - Que estás a escrever?
- Histórias.
- De algum género especial?
- Sim.
- Que género?
- Ficção científica.
- Isso é interessante. Não sabia que fazias essas coisas.
De que trata? De gente a visitar planetas estranhos e longínquos?
- Não. De facto, é sobre visitantes de outros planetas que
vêm à Terra.
- Nunca tinha sabido que te dedicavas a algo de criativo.
- Que queres dizer com essa de nunca teres sabido?interrogou
George, demonstrando, o que sucedia raramente,
uma emoção que não era nem resignação nem desespero. - Só
me conheces há dias.
- É verdade. Estou sempre a esquecer-me. Entretanto, e
se me deixasses ler uma dessas histórias?
- Ah, não-respondeu George, abanando decididamente
a cabeça.
- Ena, dissestes não - sorriu Marty.
George olhou para ele sem perceber. Doc Brown também o
fitou com expressão idêntica.
- É a primeira vez que ouço George MacFly dizer não
- esclareceu Marty. - Suponho que seja uma graça que só eu
entendo. Esqueçam.
George parecia estar a preparar-se para desaparecer.
- Espera um segundo - pediu Marty delicadamente.Só
estou interessado em ti, é tudo. Não é frequente conhecer um
escritor tão novo. Pensava que gostasses que alguém lê-se as
tuas histórias.
- Oh, não - murmurou George. - Quero dizer, e se
não gostassem? Se me dissessem que elas não prestavam, que eu
não prestava?
Marty teve a sensação de já ter ouvido aquelas palavras
antes - ele próprio a queixar-se a Jennifer depois de ter sido
recusado pela comissão do baile da A C M.
- Deve ser-te muito difícil compreender, não? - perguntou
George, tendo obviamente reparado no ligeiro sorriso no
rosto de Marty.
- Não, George- retorquiu ele com sinceridade. -Não
é nada difícil.
Foi um momento cheio de significado. Algo na vulnerabilidade
e desejo de criar do pai tocou Marty; pela primeira vez
havia muito, deu consigo não só a gostar do homem, mas também
a compreender algumas das suas ansiedades. Passou de súbito
a querer a ajudar George MacFly não apenas em benefício
próprio, mas sim também no de George.
- Ouve, George - disse. - Lembras-te da moça a quem
te apresentei...
- Lorraine.
- Sim. Ela gosta mesmo de ti.
George abanou a cabeça.
- É verdade - insistiu Marty. Doc Brown acrescentou
também o seu aceno de confirmação.
- Não acredito. Ela nem olhou para mim. Senti-me invisível.

Enquanto falavam sobre ela, Lorraine e algumas amigas
entraram no bar, não reparando em nenhum dos dois jovens.
George foi o primeiro a vê-la. Depois de uma breve expressão
de adulação, o rosto transformou-se-lhe numa máscara de terror.
Tapou a parte inferior da cara com o bloco em que escrevia,
como se quisesse esconder-se.
- Estou a dizer-te que ela gosta de ti - continuava
Marty. - Então por que havia eu de dizer uma coisa dessas se
não fosse verdade?
- Para me embaraçares - replicou George imediatamente.
- Como Biff quando me prega partidas ou aqueles tipos
que me põem letreiros nas costas a pedir pontapés.
- Bem, eu sou diferente - garantiu Marty. - Fui eu
que te salvei a vida, lembras-te? Biff ou esses outros tipos
teriam
porventura corrido para a frente do carro por tua causa?
George abanou a cabeça, parcialmente convencido de que
Marty falava verdade. Contudo, anos a ser usado como o bombo
da festa haviam-lhe ensinado a ser super-cauteloso. Aquele
Marty parecia bastante sincero, mas era decididamente um tipo
estranho. Parecia saber muito mais do que a maioria dos garotos
da sua idade... Também parecia ter surgido do nada, vestindo
roupas estranhas (como um visitante sinistro vindo do espaço
que tivesse confundido épocas, pensou George). E por que andava
com o homem que algumas pessoas escarneciam como o
"idiota da terra"? Não, pensou cautelosamente, não seria boa
ideia confiar por completo naquele novo amigo.
- Agradeço-te teres-me salvo a vida - acabou por dizer.
- Mas isso não significa que tenhas razão acerca da
Lorraine. Tu próprio viste como ela olhou sem dar por mim.
- Sim - concordou Marty com um aceno de cabeça.
Afinal não valia a pena tentar negar o que era evidente. - Mas
ela é tímida...
- Exagera para não dar nas vistas - acrescentou Doc
Brown.
- É muito tímida- continuou Marty. - Por isso pediu-me
que viesse cá dizer-te que nada lhe agradaria mais do que ir
contigo ao Baile do Encantamento Sob o Mar.

- A sério? - indagou George.
- Palavra. Tudo o que tens a fazer é ir lá convidá-la.
- Agora? Aqui mesmo no bar?
- Não deixes para amanhã o que podes fazer hoje.
Mas ela está com amigas. Há muita gente à volta! E se
ela desatar a rir à gargalhada? Ou disser que não? Detestaria ser
rejeitado em frente de todas...
Deixou a frase em suspenso, nervosíssimo.
- George, estou a dizer-te, se não convidares a Lorraine
para o baile vais lamentá-lo o resto da vida... e eu também.
- Tu porquê? - inquiriu George.
- Humm... digamos que tenho um interesse profundo em
que tu e a Lorraine se dêem bem.
- Queres dizer, uma espécie de aposta?
- Digamos que sim, mas muito mais importante.
- Não sei - tentou George fazer tempo. - Tenho a
impressão que ela preferiria ir com qualquer outra pessoa.
- Alguém em particular?
George acenou que sim.
Quem?
- Biff - redarguiu ele infelicíssimo
Marty empalideceu. A afirmação de George seria produto da
sua paranóia sobredesenvolvida ou um facto? A simples ideia de
a mãe sair com a canalha de primeira apanha como Biff Tannen
dava-lhe pés de galinha. Nunca a considerara o cúmulo da
inteligência, mas achava que ela tinha um certo bom senso e
gosto. Mesmo dando o desconto da ignorância juvenil, Marty não
podia mesmo imaginar a Lorraine, em qualquer idade, a ser
atraída por um monstro tão insensível como Biff
- Não creio - disse simplesmente.
- Ele está neste momento ao pé dela-ripostou George.
Marty olhou para a mesa de Lorraine. Por trás dela, com as
mãos nos seus ombros, estava Biff. A mãe não parecia satisfeita,
no entanto. Virando-se de lado para o evitar, libertou-se dos
dedos dele. Sorrindo descaradamente, Biff repô-los no mesmo
lugar.
- Ele está lá, mas não creio que isso seja do agrado dela
- comentou Marty.
Pondo-se de pé, atravessou o bar até ficar próximo da mesa
de Lorraine.
- Pára de mexer, Biff? - Ouviu Lorraine dizer. - Deixa-me
em paz. - E uma vez mais se libertou dos dedos dele.
Falava num tom agreste mas baixo, como se tentasse não
atrair as atenções das pessoas que se encontrassem perto. Biff
não fazia qualquer esforço por que a cena passasse despercebida.
Colocando de novo as mãos sobre os ombros dela, falou numa voz
embaraçadoramente alta:
- Vamos lá, Lorraine - dizia. - Tu queres, sabes que
queres, e sabes que queres seja eu a dar-te.
Sempre o mesmo velho suíno subtil, pensou Marty.
- Cala essa boca imunda - retrucou Lorraine. - Não
sou dessas raparigas.
- Talvez sejas e ainda não o saibas - comentou Biff
maliciosamente.
- Tira as garras de cima de mim!
- Confessa lá, adoras estas garras.
Marty avançou alguns passos até ficar mesmo ao lado de
Biff, suficientemente perto para descobrir que a brilhantina dele
era de marca diferente da sua... suficientemente perto para lhe
ver as manchas da pele e para lhe dar um aviso num murmúrio
firme mas inteligível:
- Ela disse-lhe que tirasse as mãos de cima dela.
Biff voltou-se, com o maxilar pendente e os olhos cheios de
ira:
- Que tens tu com isso, intrometido? - disse.
- Não te interessa. Limita-te a desandar.
- Dizes tu e que exército?

- Só eu.
- Sabes, tens andado a pedir... - começou Biff, contraindo
o corpo como para atacar a meio da frase, porém, deteve-se;
os seus olhos evitaram os de Marty, olhando antes por cima do
seu ombro. De facto, focavam a figura dominadora de Gerald
Strickland, que entrara no bar e, cheirando-lhe a complicações,
se encaminhava inexoravelmente naquela direcção. A expressão
de Biff abrandou de hostilidade para terror abjecto.
- Como és novo cá, parvalhão - resmungou -, hoje
dou-te folga. Portanto faz como as árvores e põe-te lá fora.
Marty não vendo o Dr. Strickland a aproximar-se, limitou-se
a ficar de olhos fixos em Biff. Lorraine, igualmente
ignorante
da entrada do déspota em cena, fitava o seu herói com um olhar
amoroso.
Biff virou-se e foi-se embora.
- Oh, Marty! - exclamou Lorraine. - Que maravilha!
Obrigada
Marty encolheu os ombros.
- Como disse que se chamava?
A voz estrídula e familiar era a do Dr. Strickland, que se
encontrava agora ao lado de Marty. Este tossiu e encarou os.
olhos que se assemelhavam a um par de aberturas de trincheira:
- Marty - respondeu.
- Último nome?
- Hum... Brown.
- Bem, aqui vai um conselho amigável para si, Sr. HumBrown:
Não se desleixe na minha escola.
- Desleixe, senhor Doutor? - murmurou Marty em tom
interrogativo.
- Em vernáculo significa: não faça ondas - informou
Strickland. - Compreendido?
- Sim, sôtor. E obrigado, sô doutor.
Strickland voltou-se e começou a afastar-se no seu passo
cadenciado precisamente quando a campainha tocou. Lorraine
pôs-se em pé de um salto, pegou nos livros e correu para Marty:
- Mais uma vez obrigada, Marty - sorriu. - Talvez
nos vejamos mais tarde?
Parecia mais um pedido do que uma sugestão. Marty concordou
com um aceno de cabeça e fingiu estar atrasado para a aula.
Voltando para junto de Doc Brown, verificou que uma vez
mais George MacFly batera a asa.
- Disse que tinha uma aula - explicou Doc Brown.Mas
parecia estar a preparar-se para uma boa sessão de lágrimas,
se queres saber a minha opinião.
- Isto está a ficar ridículo - murmurou Marty.
- A vida é assim, meu rapaz. Se se tenta ser herói ou
impressionar alguém tudo corre mal. Mas, quando não se está a
tentar, pode-se cair na sanita e descobrir ouro.
- Pois.
- E então agora?
xxx
- Acho que só tenho de continuar atrás do George. Ele é
a chave. Enquanto não conseguirmos que ele a convide nada
acontecerá.
- Talvez pudéssemos fazer com que a tua mãe o convidasse
a ele - sugeriu Doc Brown.
- Não. Isso não resulta.
- Como é que sabes?
- Porque as raparigas em 1955 nunca convidavam os
rapazes. Pelo menos isso é o que mamã diz. Nunca lhes telefonavam,
nem os convidavam para sair, nem faziam fosse o que fosse
de divertido por ser iniciativa do rapaz.
- Humm.
- Vou agarrá-lo outra vez depois das aulas - afirmou
Marty. - É a única coisa que podemos fazer.
Doc Brown concordou com um aceno de cabeça:
- Sabes, talvez fosse melhor tentares sozinho - sugeriu.
- Pode ser que ele se sinta constrangido rodeado por nós
dois, principalmente tendo em conta que eu sou um velho de
trinta e cinco anos.
- Talvez tenha razão. - Marty encolheu os ombros.
- Vou voltar para casa e estudar as gravações que fizeste
- disse Doc. - Pode ser que me digam alguma coisa que eu
precise saber acerca do funcionamento da máquina do tempo. Se
te vou ribombar de regresso a 1985 no sábado à noite, tenho de
saber tudo o que for possível acerca do barco e de como ele é
dirigido.
Acenou com a mão e começou a dirigir-se para a porta a
passos ligeiros. Marty sabia que Doc estava feliz, na expectativa
de ir remexer na máquina que ele próprio inventaria no futuro.
A tarde passou devagar. Marty vagueou pelos corredores,
fez algumas leituras na biblioteca e passou o último tempo à
procura de George MacFly nas salas da aula. Quando finalmente
o localizou, encostou-se à parede até o pai sair.
No momento em que os seus olhos voltaram a estabelecer
contacto, George ficou com o ar de querer fugir. "Quem é esta
pessoa", pensou, "e porque foi posta na terra só para me chatear?
"
Virando-se para o outro lado, tentou chegar à porta caminhando
a passos rápidos e fingindo não ter visto Marty. Mas o
seu anjo da guarda cedo o apanhou:
- Viva - cumprimentou Marty. - Lamento que aquilo
lá no bar tivesse dado o que deu.
- Eu também lamento - respondeu George. - Aquele
Biff Tannen é mesmo um idiota. Detestei vê-lo agarrar-se
daquela maneira à Lorraine. Se ao menos eu tivesse tido...
Fez uma pausa, suspirou.

As palavras que podiam acabar a frase afluíram ao espírito
de Marty: Ânimo? Coragem? Vigor? Fosse qual fosse, o significado
era aproximadamente o mesmo. George MacFly não tinha simplesmente
estômago para conflitos, mentais ou físicos. Ele
queria um casulo suave e quentinho para se manter lá dentro e
passar o resto da vida, de preferência a dormir. Embora ele lhe
desagradasse muito por tomar essa atitude, Marty estava agora
completamente devotado a ajudar George a libertar-se dos seus
terrores e ansiedades. Enquanto não reunisse coragem para
convidar Lorraine para sair, estava condenado a uma vida de
desprezo por si próprio e de infelicidade. E, se os dois não se
aproximassem; Marty não tinha futuro de todo.
Enquanto caminhavam, Marty tentou descobrir uma abordagem
nova e excitante. Nada surgiu. A melhor que teve foi a de
sugerir ser ele a convidar a Lorraine para George, à Cyrano, mas
sabia que isso não iria resultar. Até George MacFly tinha o seu
orgulho.
- Hoje o dia vai ser todo difícil para mim - acabou
George por dizer.
- Como assim?
- Bem, primeiro acobardei-me com a Lorraine...
- Eu não diria que te acobardaste - contemporizou
Marty. - Foi mais uma questão de...
- Não, acobardei-me - replicou George, com laivos de
verdadeira irritação na voz. -Eu queria mesmo correr junto da
Lorraine e convidá-la para sair. E depois, quando o Biff tinha as
mãos em cima dela, queria ir lá e dar-lhe um murro nos queixos.
Mas acobardei-me em ambos os casos. Não fui capaz de me
mexer.
Marty não respondeu. De facto, não conseguiu pensar em
algo de reconfortante que pudesse dizer.
- E agora tenho de falar ao meu pai acerca da faculdade
- continuou George.
- Que tem isso de tão horrível?
- Ele vai dizer que não vale a pena. Sabes, vai apresentar-me
todas as razões segundo as quais não devo ir. E vou
acreditar nele e acabo por não ir mesmo.
- Isso soa-me a profecia de realização automática
- observou Marty.
- O quê?
- Devias defender aquilo em que acreditas. Que curso
queres tirar numa faculdade?
Os olhos de George brilharam enquanto ele falava:
- Gostava de estudar literatura ou jornalismo. Escrever
aquelas histórias é praticamente o que mais me diverte. Se
pudesse aprender a ganhar a vida fazendo algo parecido...
- Então diz isso ao teu pai.
- Oh, não. Ele troçava de mim se eu mencionasse as
histórias. A ideia da faculdade já é suficientemente terrível.
- Bem, de qualquer modo - insistiu Marty -, tens de
lutar. Fazendo-lhe frente.
- Sim - concordou George. - É importante para o
meu futuro, portanto vou fazê-lo.
Não tardaram a chegar a casa, que tinha uma placa pendurada
no alpendre. Nela lia-se: OS MCFLY. Um bocado piroso em
1985 mas provavelmente chique em 1955, pensou Marty.
Arthur MacFly estava fora, a limpar o carro. Acenou com o
trapo quando os rapazes se aproximaram.
- Vai já falar com ele - incitou Marty.
- Sobre quê?
- Sobre a faculdade.
- A seu tempo. Primeiro tenho de te apresentar.
- Não - disse Marty, parando à beira do passeio.Não
avanço enquanto não falares com ele acerca da faculdade.
- Está bem - concordou George, embora hesitante.
Aproximou-se do pai e olhou para trás, por cima do ombro,
para Marty. Para que ele se sentisse mais seguro, este deambulou
até à entrada da casa, de modo a ficar fora do ângulo de visão
de George. Na realidade ficava porém mais perto da esquina da
casa e podia ouvir a conversa com toda a clareza.
- Quem é o teu amigo? - perguntou Arthur MacFly.
- Um colega novo na escola - redarguiu George.Ouça,
paizinho, tenho uma decisão importante a tomar e, bem,
preciso mesmo de conselho.
"Um começo de Médio menos", pensou Marty, embora a
parte referente a precisar de conselho fosse provavelmente boa
sob o ponto de vista psicológico".
- Ora, filho, estou aqui um bocado ocupado - afirmou o
pai de George. - Isso não pode esperar uns dias?
- De facto não - retorquiu George. - Preenchi um
pedido de inscrição na faculdade e a data limite para o enviar é
à meia-noite de hoje. Não sou capaz de decidir se devo enviá-lo.
"Mal", pensou Marty, "isso dá um ar muito displicente".
- Bem, se queres um conselho - disse o pai de George -,
eu diria que não. A faculdade é difícil. E há muita competição,
para se entrar. Terias de competir com os garotos mais espertos
do Estado. Por que havias de querer passar por uma tal complicação?
- Bem, podia conseguir entrar-retrucou George. O tom
da sua voz, contudo, não exalava confiança.
- Filho és muito picuínhas - continuou Arthur MacFly.E
a maior parte das vezes as pessoas assim não chegam a parte
nenhuma. As tuas probabilidades de entrar para a faculdade são
muito diminutas.
- Porquê? - indagou George
"Que contendor miserável és", bufava Marty. "Diz-lhe que
consegues."
- Porquê, filho? Porque nunca fizeste nada de semelhante.
Não és mais do que mediano. Agora se enviares esse
pedido de inscrição e ficares excitadíssimo com o assunto, que
irá
acontecer quando te recusarem? Eu digo-te o que é: vais andar
desanimado pela casa, a sentires-te rejeitado, e talvez as tuas
notas na escola sofram isso. Se queres saber o que penso, sugiro
que continues a tua vida e esqueças tudo isso.
Em vez de ripostar, George esperou longo tempo e depois
acenou afirmativamente:
- Sim, paizinho, isso faz sentido - ouviu-o Marty dizer
- Obrigado era demasiado para Marty. Ele suspirou e pôs
a cabeça entre as mãos.
Entretanto, Arthur MacFly deu os toques finais nas ambições
de George com um raciocínio a favor do fracasso disfarçado de
filosofia caseira:
- Quando chegares à minha idade, filho- comentou -,
compreenderás que há coisas que não têm de ser.
- Sim, acho que tem razão - murmurou George.
Marty começou a afastar-se.
- Que te parece o carro, filho? - Ainda ouviu Arthur
MacFly inquirir. - Não está nada mal, pois não?
- Está mesmo bem, paizinho...
Simultaneamente, um trovão quebrou a calma da tarde e a
chuva começou a cair. Marty passou a andar num trote rápido:
- Óptimo - disse, já a correr. -Espero que a chuva lhe
estrague o trabalho de pulimento.
Ao chegar ao laboratório na garagem de Doc Brown já estava
ensopado mas, no fundo, continuava a fumegar à ideia da
fraqueza de George. Doc estava a passar a gravação vídeo da
Alameda Twin Pines e a trabalhar em modificações do DeLorean
quando ele entrou.
- Que tal correu? - interrogou sem levantar os olhos do
trabalho.
- Pessimamente - suspirou Marty. - É o mesmo de
quando o conheci. Um banana. Resolve fazer uma coisa e depois
convencem-no a não fazer. Mas ao menos estou a começar a
descobrir porquê.
- Porque é que o garoto não tem auto confiança?
- Sim. Não admira que não convide a minha mãe para
-sair, nem qualquer outra rapariga, para o caso tanto faz. Ele só
ouve o meu avô dizer-lhe que vai falhar. Nunca ninguém lhe diz
que pode ter êxito em alguma coisa...
- É uma história velha - filosofou Doc Brown.
- Ora - prosseguiu Marty -, tendo tido esse tipo de
apoio do avô, não admira que o papá me desse conselhos tão
beras.
Doc Brown levantou pela primeira vez os olhos:
- Nos meus muitos anos de experiência - observou -,
cheguei à conclusão que nunca devo aceitar os conselhos de
ninguém-principalmente se o alguém for mais velho do que eu.
- Ena, Doc, isso é um bom conselho - gritou Marty.
- Obrigado. Agora aceita o meu conselho e não o acates riu
ele.
- Nem o seu, heim?
- De facto, posso ser a excepção no teu caso. No futuro ou
no passado -, se alguma vez precisares de alguma coisa, se
precisares de falar com alguém, estarei sempre ao teu dispor.
- Sim, Doc. Isso é bestial.
As palavras mal, tinham acabado de sair quando uma súbita
expressão de pânico percorreu o rosto de Marty. Com um olhar
de relance para o monitor de TV, apercebera-se de que o clímax
dramático do episódio de Twin Pines estava prestes a desenrolar-se.
A carrinha negra já se encontrava na imagem.
- São eles - dizia Doc Brown na gravação.
- Quem? - Gritava a voz de Marty, fora da imagem.
- Descobriram-me - continuava Doc Brown. - Não
sei como, mas descobriram-me.
A gravação terminou abruptamente. Marty, recordando o
que acontecera depois daquilo naquela noite escura de 1985,
sentiu o seu corpo estremecer de dor.
Olhou para o Doc Brown de 1955, que enfiara outra vez a
cabeça no DeLorean:
- Doc - disse, hesitante -, há uma coisa que não lhe
contei do que se passa... na noite em que fizemos a gravação...
Doc Brown ergueu a vista:
- Aparelho fascinante essa câmara - comentou descontraidamente.
- nem posso crer que seja feita no Japão.
- Doc - continuou Marty. - Há uma coisa que não lhe
contei do que se passa... na noite em que fizemos a gravação...
Não sabia porquê, mas sentia que devia avisar o amigo
acerca dos terroristas. Talvez fosse devido à forma violenta como
morrera; ninguém devia ser obrigado a partir daquela maneira,
se fosse possível impedi-lo.
Mas Doc Brown já tinha a mão levantada:
- Por favor Marty - pediu -, não me digas nada. Não
quero correr mais riscos de alterar o contínuo espaço-tempo.
Ninguém deve saber demasiado acerca do seu próprio destino.
Se eu souber demasiado acerca do futuro, posso pôr em perigo a
minha própria existência, tal como tu puseste a tua.
- Sim - concordou Marty. - Talvez tenha razão.
Havia efectivamente muita lógica no que o homem dizia.
Deste modo, se Marty nada dissesse, Doc Brown tinha ao menos
trinta anos para viver. Sabendo isso, no entanto, podia ficar tão
descuidado que se pusesse em perigo e até talvez morresse mais
cedo. Portanto, a regra de Doc de não perturbar o contínuo
espaço-tempo parecia fazer muito sentido. Meditando nisso e na
sua própria situação, Marty tirou a carteira e voltou a olhar
para
a fotografia de família:
- Santo Deus - sussurrou.
A imagem do seu irmão Dave tinha desaparecido quase
completamente. Só os pés eram visíveis na fotografia.
Doc Brown observava-o:
- Mau, não? - perguntou.
Marty confirmou com um aceno de cabeça.
- Essa é uma forma de a natureza dizer: mexe-te
- afirmou Doc. - Suponho que ver o teu irmão desvanecer-se
assim seja bastante aterrador.
- A quem o diz - Marty fez uma careta. - Sinto-me
num episódio de No Limiar da Realidade.
- No limiar da realidade? - repetiu Brown. - Fraseologia
interessante. É de facto uma descrição perfeita de onde
- estamos... numa zona de limiar, nem aqui nem ali... uma terra
de ninguém, entre a luz e as sombras, entre as coisas e as
ideias...
- Sim, percebo- comentou Marty. -Há uma barreira
à frente... Se se ultrapassa...
- Se regressares, talvez possas fazer um filme sobre isto
- Doc Brown sorria.
- Boa ideia. Mas que quer dizer com o se?
- Muita coisa pode acontecer. Posso dar cabo da máquina
do tempo e o raio não a fazer funcionar. Tu podes não conseguir
juntar os teus pais antes do fim da semana. Por essa altura,
talvez a tua cabeça falte no retrato de família...
- Oh, meu Deus... - gemeu Marty.
Sentou-se pesadamente no velho sofá escalavrado que Doc
mantinha na garagem. Estava agora meio coberto de revistas
velhas, de correio e de circulares. No cimo da pilha encontrava-se
um jornal datado de 7 de Novembro de 1955. Um artigo na
última página saltou aos olhos de Marty. Dizia: AGRICULTOR
LOCAL AFIRMA QUE "MORTO-VIVO" DO ESPAÇO LHE DESTRUIU
O CELEIRO, e por baixo, em caracteres mais pequenos: "Otis
Peabody Em Observação no Manicómio do Condado."
- Eureka!- Gritou Marty de repente, fazendo estalar os
dedos.
A cabeça de Doc Brown surgiu de dentro do DeLorean:
- Descobriste alguma coisa?
- O senhor o disse! Já sei como hei-de conseguir que o
meu velho convide a mamã para aquele baile.
- Como?
- Vou fazer com que se borre de medo.

@CAPÍTULO X

George MacFly foi para a cama cedo, cedendo a uma disposição
geral de tendência depressiva provocada pelos acontecimentos
na escola e pela falta de entusiasmo do pai por uma carreira
universitária. Embora a expressão "pensamento positivo" não
fosse popular como tal em 1955, ele lera livros que promoviam
uma variante da mesma filosofia. Um ano antes pusera as suas
esperanças num livro muito vendido antes da guerra, Como
Fazer Amigos e Influenciar Pessoas, decorara passagens completas
dele e tentara criar uma nova vida baseado nessa atitude
optimista. A primeira vez que encontrara Biff Tannen destruíra-lhe
todos os esforços. Segundo Dale Carnegie, o autor do livro,
uma pessoa não pode permanecer-nos hostil se lhe demonstrar-mos
que estamos sinceramente interessados nela. Biff Tannen
não só permanecera hostil como esfregara uma sanduíche de
herói na cara de George depois de este ter passado quase um
quarto de hora a experimentar nele a sua nova filosofia.
As raparigas demonstraram não serem mais maleáveis. Ao
abordá-las com uma nova atitude positiva, George MacFly fez
com que o encarassem não só como um réptil, mas também como
um réptil destituído de sinceridade. Até os pais evitavam George
durante o tempo em que este ficou sob o poder do Sr. Carnegie,
não confiando instintivamente na sua disposição estranhamente
extrovertida.
E assim George se retraíra de novo sobre si próprio:
- Para o diabo com isto - dissera. - Que quem gostar
de mim goste por aquilo que eu sou. - Soou-lhe bem dizer aquilo,
só que não podia ter qualquer certeza sobre quem gostava dele.
Retirando-se para o seu quarto às nove horas, escrevera
mais algumas páginas da sua história sobre a invasão da Terra,
andara às voltas com o trabalho de casa durante cerca de uma
hora e depois apagara a luz. Não adormecera facilmente, mas à
uma hora já passara a um estado de semiconsciência que o
conduzira, meia hora mais tarde, a um sono profundo.
Não viu a forma avantajada aproximar-se da sua cama, nem
sentiu os auscultadores de peso-pluma serem colocados nas suas
orelhas por mãos enluvadas. Essas mesmas mãos inseriram
uma gravação em cassete no respectivo leitor Walkman, cassete
que estava rotulada como VAN HALEN. O mostrador do Walkman
foi colocado em "10" e premido o botão para tocar.
George passou de um sono pacífico para um estado de
agitação com grande aumento de pulsações em menos de um
segundo. Que som era aquele? Era o pior ruído que alguma vez
ouvira-seres humanos a serem torturados, talvez,juntamente
com ruídos de fundo provenientes do inferno. No entanto possuía
uma palpitação aterradora que o elevava do reino do barulho
para o de criação semi-inteligente. Mas era a criação de gente
louca, a algaraviada sincronizada de idiotas aos gritos, como
lemmings, com toda a força dos seus pulmões. Que se estava a
passar? Teria morrido e aproximar-se-ia agora das portas do
Inferno?
Então, de súbito, o som desapareceu.
- Silêncio, terráqueo! - entoou uma voz.
George, que estava suficientemente aterrorizado para ser
incapaz de emitir qualquer som, só pôde fitar a criatura aos pés
da sua cama. Era amarela, sem feições, possuindo apenas uma
boca quadrangular através da qual lhe falava uma fantasmagórica
voz filtrada.
Não teve quaisquer dúvidas de que se tratava de uma
criatura de outro planeta:
- Quem... - conseguiu George guinchar.
- O meu nome é Darth Vader - entoou o ser. -Sou um
extraterrestre do planeta Vulcano.
George abanou a cabeça:
- Devo... estar... a sonhar... - gaguejou.
- Isto não é sonho! - ripostou o estranho. - Está a ter
um encontro imediato do terceiro grau. Deu um passo além dos
limites exteriores do limiar da realidade.
- Não...
- Silêncio! Tenho instruções para si.
- Eu... não quero... instruções... - gemeu George.Mamã...
papá...
A criatura levou a mão ao cinto e retirou algo que parecia
extremamente letal. Era uma única peça de material duro e
brilhante, com um buraco redondo de cerca de cinco centímetros
de diâmetro na ponta. A uma distância de um metro e oitenta,
George ouvia perfeitamente o seu zumbido baixo e sentia o calor
que lhe irradiava da extremidade.
- Não fale nem saia da cama - ordenou o extraterrestre.
- O meu raio de calor vaporizá-lo-á se não me obedecer!
George ergueu as mãos acima da cabeça:
- Está bem - ganiu. - Rendo-me.
Um estranho som de bips proveio do intruso. Baixando o raio
de calor, a criatura levantou o braço direito para ouvir os sons.
- O que é. - começou George.
- Silêncio! Estou a receber uma transmissão da Nave
Espacial Galáctica!

Depois de emitir mais alguns bips, o objecto no braço do
extraterrestre remeteu-se ao silêncio.
- Você, George MacFly, criou uma fissura no contínuo
espaço-tempo... - afirmou a criatura.
- Lamento- sussurrou George. -Repararei qualquer
prejuízo que tenha causado...
- Eu disse: silêncio! O Supremo Klingon ordena-lhe por
esta via que leve a personalidade feminina da Terra chamada
"Baines, Lorraine" ao...
- Refere-se a Lorraine Baines?
- Claro, terráqueo! É-lhe por esta via dada ordem de
levar a personalidade feminina Baines ao local conhecido como
Liceu de Hill Valley exactamente quatro ciclos da Terra a partir
de agora...
- Ciclos da Terra?
- Dias, estúpido!
- Isso é sábado. A escola fecha ao sábado!
- Há lá um acontecimento no próximo Sábado!
- Ah, quer dizer, o baile?
- Exactamente!
- É-me ordenado que leve Lorraine ao baile?
- Afirmativo!
- Ela sabe disto?
- Não. Não é necessário.
- Mas não sei se conseguirei...
A criatura fez um movimento com as mãos, e a avalanche de
som recomeçou nos ouvidos de George. Ele gritou:
- Pare! Por favor pare com isso!
O ruído parou.
- Não deve protestar contra as nossas decisões pois, se o
fizer, será obrigado a estar sempre a ouvir o som paralisador do
cérebro - ameaçou o estranho. - Derreter-lhe-á o cérebro.
- Não - gemeu George. - Peço desculpa. Só não sei
como abordar a Lorraine.
- Na altura devida saberá. Dar-lhe-emos a autoconfiança
necessária.
- Sim?
- Sim.
- Quer dizer que serei capaz de fazer magia? - indagou
George, animando-se.
- Não. O nosso poder estará atrás de si, para o guiar. É
tudo, mas fará diferença.
- Obrigado. Tenho a certeza de que consigo, com a vossa
ajuda.
- Muito bem, terráqueo - disse a criatura. - Agora
vai fechar os olhos e dormir. Quando acordar, não contará a
ninguém esta visita.
- Está bem - murmurou George.
Fechou os olhos e recostou-se na almofada. A criatura
aproximou-se dele e estendeu algo para lhe colocar debaixo do
nariz. Em menos de um minuto, o jovem George MacFly ressonava
como um camionista. Retirando-lhe suavemente da cabeça os
auscultadores peso-pluma, a figura estranha dirigiu-se depois
para a janela, deteve-se para olhar longamente a forma adormecida,
e logo desapareceu na noite.

Doc Brown, à espera no seu Packard descapotável perto da
casa dos MacFly, abriu a porta quando Marty se aproximou e
ajudou-o a entrar no carro. O capuz do fato protector de radiações
estava para baixo e Marty sorria.
- Calculo que tenha corrido bem - comentou Brown,
pondo o carro em funcionamento e afastando-se.
- Sim. Foi bestial. Engoliu tudo como uma tonelada de
tijolos.
- Fazes umas belas misturas de metáforas, meu amigo.
O clorofórmio resultou?
- Optimamente. Apagou-se como uma lâmpada.
- Bom. Já o tenho há tempo. Não sei se o clorofórmio fica
mais fraco ou mais forte estando muito tempo guardado.
- Bem, cumpriu a sua missão - Marty sorria. - Esperemos
que se lembre de tudo quando acordar.
- É o nosso único perigo - concordou Doc Brown com
um aceno de cabeça. - Por vezes coisas que são vívidas e
assustadoras de noite perdem a sua força quando o Sol nasce.
Receio que o teu futuro pai seja o candidato perfeito para dar
esse salto mental.
- Santo Deus! - exclamou Marty. - Quer dizer que
depois de todo aquele trabalho ele ainda pode acobardar-se?
- Mesmo com auxílio sobrenatural ou extraterrestre,
algumas pessoas estragam tudo. Os meus conhecimentos de
psicologia humana dizem-me que com George MacFly vai ser
sempre pegar e largar.
Marty suspirou.
Quase doze horas depois, continuava a suspirar - e alternadamente
a praguejar contra George. Marty chegara à escola bem
acordado e cedo, apesar de ter perdido sono na noite anterior,
mas George MacFly não era visível em parte alguma. Infelizmente
Marty não tinha nenhum exemplar do seu horário, pelo
que foi obrigado a perder muito tempo à procura em salas de aula
antes de descobrir que George não aparecera de todo. Por essa
altura já era meio-dia e Marty ficou esperançado em que ele
apareceria para as aulas da tarde. Parte dele - a mais ardente
- raciocinava que George passara a manhã a planear a
estratégia do seu encontro com Lorraine; outra parte dele sabia
que George pura e simplesmente se acobardara. Acabou por ter
a surpresa de descobrir que ambas as partes dele se tinham
enganado.
A escola acabara e Marty vagueava pela praça principal
quando de repente deu por que George corria na sua direcção.
Ele parecia mais envergonhado do que o habitual e tinha os olhos
espantados e um pouco vidrados.
- George! - gritou Marty. - Estás bem?
George parou e respondeu com um aceno de cabeça.
- Não foste à escola. Onde é que passaste o dia?
- Acordei agora mesmo. Dormi que me fartei.
O maxilar de Marty descaiu. O clorofórmio fora assim tão
poderoso? Se sim, teria havido a possibilidade de ele matar
George? A ideia fez com que um arrepio de terror lhe percorresse
o sistema.
- A que horas foste para a cama ontem à noite?interrogou,
forçando a voz a soar calma.
- Aí pelas dez ou onze horas - disse George. -Não sei
o que aconteceu. Os meus pais dormiram até um pouco tarde, por
isso, quando se levantaram, presumiram que eu já tinha saído.
Tive uns sonhos estranhos. Talvez fosse essa a causa.
- Que espécie de sonhos?
- Não interessa. Só coisas de fantasia.
Claro que não era aceitável que o George tratasse displicentemente
de "coisas de fantasia" a cuidadosa representação que
ele executara. "O franganito já começa a convencer-se a pôr-se ao
fresco", pensou Marty, mas, ao mesmo tempo que começava a
desesperar, um novo plano de acção aflorou-lhe ao espírito.
- A propósito - começou -, por acaso viste o disco
voador ontem à noite?
- O quê? - gritou George, de olhos muito abertos.
- Foi cerca da uma hora - continuou Marty. - Depois
de toda a gente estar na cama. Suponho que fosse por isso que
não houve muitas conversas sobre o assunto na escola. Embora
uma dúzia de rapazes o tivesse visto - Todos concordaram em que
foi no teu bairro -
- Sério?
Marty confirmou de cabéça:
- Não aconteceu nada de especial. O disco só pairou no ar
por cima de uma casa durante uns dez minutos e depois partiu
como uma bala. Suponho que talvez um homem do espaço tivesse
de ir à casa de banho.
- Que diabo... - sussurrou George.
- Foi pena não estares acordado - comentou Marty. Podias
ter arranjado material formidável para essas histórias
de ficção científica que escreves.
George concordou com um aceno de cabeça. Uma cintilação
de energia pareceu brilhar-lhe nos olhos:
- Ouve, tens de me ajudar - disse repentinamente.Quero
convidar a Lorraine para sair, mas não sei como o fazer.
- Está bem - concordou Marty acenando igualmente.Ela
está ali na loja de batidos.
Quando se viraram e dirigiram para o local de encontro dos
adolescentes, dois garotos em carrinhos de rolamentos - feitos
com rolamentos pregados em tábuas - passaram ruidosamente
por eles. Marty sorriu dos rudes protótipos das mais
elegantes e rápidas pranchas de patinagem que surgiriam mais
tarde.
- Lá está ela... - disse uns momentos depois.
Lorraine, com as amigas Betty e Babs, estava sentada num
compartimento a beber um batido a pequenos goles e a conversar.

Bem perto do momento da verdade, George sentiu a sua
resolução começar a desvanecer-se. Onde estava a ajuda que o
estranho lhe prometera? Pensara que fosse muito mais fácil do
que estava a ser. De facto, tinha a língua tão presa e estava tão
nervoso como antes de a aparição da noite anterior lhe ter
asseverado que tudo correria bem. Seria possível que a gente do
espaço fosse ainda mais sofisticadamente aldrabona do que os
seus companheiros terráqueos? Se não, onde estava a frase
mágica ou o impulso energético que o faria ultrapassar esta
prova?
Marty pressentiu a indecisão de George:

- É simples- disse. -Basta ires lá dentro convidá-la.
Garanto-te que ela não te vai atirar nada acima. A pior coisa que
pode acontecer é ela dizer que não.
- Não. O pior que pode acontecer é ela engasgar-se ou dar
uma gargalhada quando eu a convidar.
- Isso não vai acontecer. Acredita em mim.
- Talvez fosse melhor eu esperar até ela ficar sozinha.
Sabes como são as raparigas quando estão juntas.
- George - pronunciou Marty suavemente. - Faltam
poucos dias para o baile. Amanhã de manhã já Lorraine terá
provavelmente sido arrebatada. Esta pode ser a tua última
oportunidade.
A ameaça surtiu efeito. George engoliu em seco, acenou
lentamente e deu alguns passos para a entrada da loja:
- Que lhe devo dizer ? - perguntou.
- Diz o que te parecer natural, o que te vier à ideia.
George respirou fundo e fechou os olhos:
- Não me vem nada à ideia - garantiu.
- Jesus Cristo, é um milagre que eu tenha sequer nascido
- resmungou Marty azedamente.
- Hum?
- Nada.
- Se tivesses uma coisa inteligente para dizer, ajudava
muito.
- Está bem - redarguiu Marty. - Diz-lhe só que o
destino te trouxe junto dela e que a consideras a rapariga mais
bonita de quantas já viste. As raparigas gostam de ouvir isso.Que
diabo estás a fazer? A escrever o que eu digo?
George tirara um lápis e um bloco da algibeira e estava a
escrever meticulosamente as palavras de Marty:
- Sim - confirmou com um aceno -, estou a tomar
nota. Quero dizer, é boa matéria.
- Bem, não recites isso como um discurso, por amor de
Deus - avisou Marty. -- Pelo menos decora-o.
George acenou com vivacidade, percorreu as palavras com a
vista, movendo ligeiramente os lábios:
- Pronto - acabou de dizer.
- Óptimo. Descontrai-te. Limita-te a ir convidá-la. Fica o
assunto arrumado num minuto. A menos que ela te convide a
passar a noite lá em casa.
George corou:
- Disso não há hipótese - e sorriu.
No momento seguinte, estava dentro da loja. Deu quase uma
dúzia de passos na direcção certa da Lorraine, depois inflectiu
repentinamente para o balcão. O empregado apareceu, à espera
que ele encomendasse:
- Um batido de leite - disse George - com chocolate.
Desejou que levasse muito tempo, mas o batido chegou com
uma rapidez que o desapontou. Bebeu uma golada para se
fortificar e então atirou-se literalmente para o compartimento
onde estavam sentadas as três raparigas:
- Ah, Lorraine - começou numa voz rápida e estridente.
- A minha densidade trouxe-me junto de ti.

Lorraine levantou os olhos e ouviu as palavras, quase antes
de receber quem as pronunciara. Reconheceu o jovem que lhe
tinha sido apresentado na véspera por Marty. Parecia aproximadamente
o mesmo, só que agora usava um bigode castanho de
chocolate. Evitou, como pôde, soltar uma risada.
- Desculpe? - conseguiu dizer com dignidade feminina.
- Oh! - murmurou George. - O que quero dizer ser...
- Ser?
- É...
Com o espírito vazio, George levou a mão ao bolso para tirar
o bloco de notas.
Lorraine preencheu o intervalo da conversa:
- Não o vi já em qualquer lado? - inquiriu.
George fez um sorriso largo. Até então, ela não se engasgara
nem rira à gargalhada e ele estava optimista. Se ao menos se
lembrasse daquelas palavras!
- Sim - retorquiu. - Sou o George. George MacFly. Sou
a tua densidade, quero dizer, o teu destino.
Agora Lorraine soltou mesmo uma risada. Babs e Betty
juntaram-se-lhe. Mas para George o som não foi tão desmoralizador
como pensara que seria. Teve mesmo o estranho pensamento
de que talvez elas achassem que a sua parvoíce fazia parte
de um esquema normal, efectivamente inventado para as divertir.
O riso delas era afinal relativamente descomprometido. Os
que estavam sentados nos compartimentos adjacentes talvez
pensassem que ele dissera alguma coisa verdadeiramente divertida
às raparigas, e o admirassem por isso. Pela primeira vez
desde que acordara com suores frios uma hora antes, George
acreditou mesmo que tinha a ajuda prometida pela criatura que
lhe aparecera na noite anterior, quer fosse em sonho quer em
carne extraterrestre. Apoderou-se dele um impulso de confiança.
Diz, incitava o seu espírito. Diz-lhe que queres levá-la ao
baile e tudo acaba num segundo.
- Lorraine - começou, surgindo a palavra com uma
força de entoação que surpreendeu o próprio George. - Quero...

- MacFly, pensava já te ter dito que não voltasses aqui! berrou
uma voz conhecida, interrompendo o discurso de George
tão eficazmente como alguém a gritar: "Fogo."
Biff Tannen e os seus acólitos estavam à porta, de mãos nas
ancas, deitando a George olhares trocistas. Lenta, deliberadamente,
como pistoleiros a apoderarem-se de uma pequena terra
do Oeste, avançaram para dentro do estabelecimento em direcção
a George MacFly.
Marty vira-os chegar precisamente na pior altura possível
- quando George parecia mesmo prestes a fazer o convite a
Lorraine.
- Raios! - resmungara.
Fez então a única coisa possível - entrou atrás deles para
poder ajudar, se necessário.
George, com a expressão resoluta e feliz a desvanecer-se na
habitual máscara de infelicidade, fitava de queixo descaído o Biff
a aproximar-se.
- Bem, apareceres aqui depois de ter dito que ficasses lá
fora vai custar-te, MacFly - afirmava Biff na sua voz áspera,
não fazendo qualquer esforço para a manter baixa. - Que
dinheiro tens contigo?
Era brutalidade flagrante e extorsão evidente, mas ninguém
na loja de batidos fez um movimento para ir em auxilio de
George. Depois de um longo momento, este levou a mão ao bolso
e tirou a carteira.
De mão carnuda, Biff deu alguns passos na direcção de
George, com uma expressão de ambição e malícia no rosto.
Então, subitamente, esse rosto deixou de ser visível e ficou
encostado ao chão de mosaico.
Marty retirou o pé, felicitando-se intimamente pelo passo
mais bem medido que alguma vez executara.
Biff olhou do chão para cima:
- Tu aí! - vociferou, pondo-se rapidamente de pé, ao
mesmo tempo que um risinho de troça circulava pela loja.
- Pronto, chico esperto - cuspiu, dando um passo na
direcção de Marty. - É a hora da verdade.
Marty colocou o corpo em posição, preparando-se para
entrar em acção. Arrastando-se na sua direcção, Biff atirou-lhe
uma direita que ele conseguiu evitar facilmente, ripostando com
uma pesada esquerda ao estômago de Biff e uma direita à sua
fonte. Tropeçando como um bêbedo, Biff caiu para trás, para
cima de uma mesa.
Vendo que o seu chefe estava em apuros, Match, 3-D e
Skinhead começaram a avançar para Marty.
"Oh-oh", pensou este, "estas perspectivas só podiam ser
boas para o Super-Homem". A meio de um passo para acabar
com Biff, Marty rodou repentinamente nos calcanhares e saiu
pela porta da frente. Os lacaios de Biff puseram este em pé e
depois correram atrás dele.
- É o Calvin Klein! - gritou Lorraine às suas amigas.
- Quero dizer, Marty! Oh, meu Deus, é de sonho!

George MacFly ficou de lado, preso ao chão de medo e espanto,
enquanto decorria a cena. Felizmente, ninguém estava a olhar
para ele, ou quem o fizesse teria visto os seus olhos humedecerem
como se estivessem prestes a rebentar em lágrimas.
"Que diabo", pensou, "correu outra vez tudo mal. Mesmo
com ajuda do espaço. Sou um inútil."
Marty saiu disparado da loja de batidos, hesitou um momento
à esquina das ruas 2ª e Principal, para logo virar à esquerda
e começar a correr tão depressa quanto as pernas lho permitiram.
Biff e os seus três lugares-tenentes seguiam-no. Biff era
lento mas dois dos outros eram mais rápidos do que Marty e
reduziam velozmente a distância entre perseguido e perseguidores.

"Raios partam estes sapatos novos", pensou Marty, retraindo-se
quase a cada passo, com os contrafortes a magoarem-lhe os
calcanhares. Rodopiando para a direita, voltou para trás para a
praça principal. A manobra fê-lo ganhar um ou dois passos, mas
ele sabia ser apenas uma questão de tempo até os dois rapazes
mais rápidos o apanharem. Ao passar de novo em frente da loja

de batidos viu que a maior parte da miudagem saíra para o
passeio e estava a gritar-lhe palavras de encorajamento. Ele
teria de boa vontade trocado todo esse apoio moral por um par de
amigos duros, mas nenhum parecia estar à vista.
Quase se resignara a ser apanhado quando um dos rapazinhos
dos carros de rolamentos surgiu da Hill Street num
caminho paralelo ao seu.
- Eureka! - exclamou Marty.
Agarrando no carrinho, arrebatando-o literalmente de debaiXo
do garoto, Marty deu-lhe um pontapé para fazer saltar os
ornamentos e o que ficou era uma rude versão, de fabrico caseiro,
de uma prancha de patinagem.
- Desculpa, pá! - gritou por cima do ombro ao saltar
para a prancha. - Compenso-te mais tarde.
Deu um impulso a si próprio, no preciso momento em que
mãos hostis se lhe atiravam ao pescoço e falhavam. Um segundo
depois estava livre, descendo o passeio ao dobro da velocidade
dos seus perseguidores.
- Ena! Vejam como ele anda! - Berrou o garoto cujo
carrinho fora confiscado e transformado num veículo mais leve
e veloz.
- Que é aquilo? - gritou outro garoto, vendo Marty
afastar-se a toda a velocidade.
Depois de meio quarteirão a ficarem rapidamente para trás
em relação à sua presa, os companheiros de Biff voltaram-se e
encolheram os ombros, esperando que o seu chefe lhes desse
uma nova táctica.
- Vão buscar o carro! - ordenou este.
Os quatro deram à perna até ao descapotável de Biff,
estacionado nas proximidades. Poucos segundos depois, partiram
ruidosamente no encalço de Marty, queimando borracha na
praça principal e desaparecendo numa nuvem de fumo negro.
A dois quarteirões de distância, Marty olhou para trás por
cima do ombro. O descapotável aproximava-se dele. De facto
estava mesmo prestes a atingi-lo quando ele fez subitamente
uma viragem muito apertada à sua frente e começou a dirigir-se
para o lado oposto.
- Com mil diabos! - praguejou Biff, carregando no travão
e fazendo rodopiar o carro na inversão de marcha.
- Vejam-me só aquilo! - exclamou Skinhead em altos
gritos.
Atrás deles, Marty agarrara-se à parte de trás de um carro
que ia a passar e afastava-se agora a mais de sessenta e cinco
quilómetros à hora. O condutor do carro, que não via Marty,
agachado, abanou a cabeça sem perceber o que se passava ao
passar em frente da loja de batidos da esquina Aí, pelo menos
vinte garotos estavam de pé no passeio, a aplaudir violentamente
e a aclamár a sua passagem.
- Até parece que acabei de ganhar uma corrida ou qualquer
coisa assim - murmurou o condutor.
Lorraine, que vira toda a acção excepto a que se desenrolara
ao fundo da rua, deu pulos para cima e para baixo à passagem
relâmpago de Marty, cujos patins faiscavam.
- É mesmo de sonho! - gritou para as suas duas amigas.
Dez segundos mais tarde o descapotável de Biff passou
ruidosamente. A maior parte dos garotos pateou e assobiou os
quatro vilões de lábios contraídos que olhavam em frente sem se
distraírem.
A perseguição virou à direita quando o motorista do carro
hospedeiro se dirigiu para o palácio da justiça. Biff ganhou
rapidamente terreno ao condutor desprevenido, diminuindo a
distância até o guarda-lamas do seu carro quase tocar as nádegas
de Marty. Quando o automóvel hospedeiro ia a passar o palácio
da justiça, junto do salão Statler's Studebaker, Marty soltou-se
virou-se repentinamente à direita. Biff que ia demasiado depressa
passou o cruzamento sem poder voltar. Praguejando,
carregou no travão, fez marcha atrás, e depois roncou pelo
passeio em frente do palácio da justiça em perseguição de Marty.
Peões surpreendidos e aterrorizados rodopiavam ou mergulhavam
para longe, procurando apressadamente refúgio na segurança
dos degraus de cimento ou tentando esconder-se atrás dos
canhões da Primeira Guerra Mundial. Ignorando todos os objectos
no seu caminho excepto Marty, Biff avançava ruidosamente,
levando o terror até aos olhos dos seus próprios passageiros.
Marty descobriu demasiado tarde que tinha subestimado a
determinação maníaca de Biff. Ao fundo do cruzamento, só teve
tempo para ver que Biff estava mesmo atrás dele, descrever um
rápido ângulo de 180 graus com a sua prancha e...
De súbito, perdendo o equilíbrio e estando prestes a cair,
estendeu a mão... e deu consigo agarrado à parte da frente do
carro de Biff

- Agora temos o filho da mãe na mão! - gritou este.Se
continuar agarrado, morre, e, se se soltar, morre!
Sorrindo sadicamente, empurrou Marty pela Hill Street
abaixo, passando por Gaynor's Hideaway, de onde os clientes
tinham saído, alguns ainda de copo na mão, para verem o
espectáculo. Mesmo em frente ficava o cruzamento em T com a
Rua Principal, e a montra de Hal's Bike Shop estava directamente
no caminho que se iam. Biff decidiu fazer passar Marty
através do vidro em vez de se entreter mais tempo com ele. Se
acontecesse o pior, diria simplesmente ao juiz que os travões lhe
tinham falhado.
Olhando para trás pelo pára-brisas para o malévolo Biff,
Marty não pôde deixar de engolir em seco. A velocidade era tal
que não podia virar para qualquer dos lados sem ser atingido
pelo pára-choques de Biff ao fazê-lo. Oscilando para trás e para
a frente sobre a prancha, Marty manteve-se agarrado enquanto
procurava uma saída. Habitualmente havia pelo menos um
carro da polícia nas proximidades da Praça Principal, a sorte
ditara que naquele dia os homens em uniforme brilhassem pela
ausência. Uma rápida visão da sua pedra tumular passou-lhe
pelos olhos ao mesmo tempo que Biff o arrastava inexoravelmente
para trás. Dizia: MARTIN MCFLY - NASCIDO EM 1968 FALECIDO
EM 1955.
Agora que estavam prestes a ultrapassar um grande camião
de adubos na mesma faixa de rodagem, nova diabrura foi
acrescentada. Match pegara numa garrafa de cerveja e ia atirá-la
à cabeça de Marty.
- Tenho de cavar daqui! - gritou este.
Dito isto, deu um salto, atirando a prancha para a frente
para baixo do automóvel, e aterrou na capota de Biff. Sem perder
impulso, fez ricochete nas cabeças dos quatro rapazes de bocas
abertas, passou para cima da mala do carro e saltou dele, mesmo
a tempo de apanhar a prancha, que vinha de baixo.
- Santo... - arquejou Biff.
Tão espantados ficaram os quatro perseguidores que todos
se voltaram nos assentos para verem Marty.
Uma fracção de segundo depois, sentiram um impacto e
foram atirados para a frente quando o carro embateu ruidosamente
na traseira do camião de adubos. Pairando no ar um
momento, o descapotável inclinou-se para a frente, atirando Biff
e a sua corte de cabeça para a nojenta massa castanha.
Através da praça, a partir da loja de batidos da esquina,
eram audíveis as aclamações e os aplausos. De trás também,
provindo dos mais recentemente envolvidos clientes de Gaynor's,
gritos e palmas aumentaram o furor. Como uma demonstração
do Quatro de Julho, a perseguição fizera parar por
completo toda a actividade na bela baixa de Hill Valley.
- Ele é formidável! - gritou Lorraine histericamente.Não
é mesmo a coisa mais bestial em que alguma vez puseram
a vista?
As amigas, bem impressionadas, acenaram a sua concordância.

George MacFly, que também assistia, observava os acontecimentos
com emoções complexas. Estava satisfeito por ver Biff e
os seus companheiros acabarem no monte de estrume, mas teria
dado dez anos de vida para ter sido ele próprio a imaginar o
truque
Marty, sorrindo com consciência da vitória, olhou em torno,
à procura do garoto cujo carrinho usara.
- Obrigadíssimo, pá - disse, devolvendo-lhe a prancha
com um movimento rebuscado. - Desculpa ter-to estragado.
- Estás a brincar? - riu o garoto. - Eu é que te
agradeço!
Pulou imediatamente para o seu novo veículo e começou a
experimentá-lo. Quando a multidão começou lentamente a dispersar,
tornou-se visível que o outro garoto estava a retirar o
enfeite cor de laranja do seu carrinho para ficar com uma
prancha de patinagem como a do seu amigo.

@CAPÍTULO XI

Lorraine, de olhos fixos em Marty enquanto ele descia a Rua
Principal, afastando-se do local do acidente, tomara uma decisão:

"Se ele não me pedir", pensava, "então só terei de ser eu a
fazê-lo".
Virando-se para a Babs, pediu-lhe:
- Emprestas-me o teu carro?
Babs hesitou:
- Sabes, não é meu - retroquiu ela. - É da minha
irmã.

- Bem, não tem importância. Eu tenho cuidado.
- Para que o queres?
- Prometes não dizer a ninguém?
Babs acenou que sim.
- Quero seguir o Marty para ver onde ele vive. Ele é tão
fechado acerca de si próprio.
Babs soltou uma risadinha. Aquela era uma missão que ela
entendia:
- Eu levo-te - decidiu.
- Está bem. Vamos antes que o percamos de vista.
As duas raparigas dirigiram-se para o carro de Babs quando
Lorraine se viu subitamente de novo frente a frente com George
MacFly.
- Olá - sussurrou ele.
O bigode de chocolate continuava no mesmo sítio. Olhando
para outro lado, Lorraine disse com brusquidão:
- Olá. Desculpe ter de me ir embora, mas estou mesmo
muito ocupada.
Ele acertou o passo pelo dela:
- É só um segundo - começou. - Estava a pensar se tu
gostarias de ir comigo ao baile de sábado à noite.
- O baile? Ah, sim...
- Sim, vais? - Saltou George.
- Não. O que eu queria dizer era... sim, é verdade, o baile
é neste sábado Não há dúvida de que o tempo voa, pois não?
- Pois... Então?
- Desculpa, mas tenho uma espécie de compromisso
anterior; porém ainda não descobri o que é que se passa.
- Como é que podes fazer isso? - interrogou George.
- É muito complicado. Mas se não se confirmasse isso que
pode surgir, talvez fosse contigo.
George interpretou a réplica dela como positiva, apesar da
rede de condições:
- Talvez se eu... quer dizer, nós, esperássemos um dia ou
dois...
- Oh, não - Lorraine sorriu. - Não seria justo para
contigo.
- Bem, tu és a única rapariga que eu estou interessado
em levar- afirmou, odiando-se ao mesmo tempo a si próprio por
ter o coração à boca.
- Obrigado - agradeceu Lorraine. - Talvez para a
próxima
- O próximo baile é só na Primavera.
- Bem, quando o Inverno chega, pode a Primavera tardar
muito? - Arrulhou Lorraine, que acabara de decorar o verso na
aula de Inglês.
- Sim, mas ainda nem sequer é Inverno - protestou
George debilmente.
- Muito obrigada por me teres convidado - disse Lorraine,
saltando para o carro de Babs. - Até à próxima.
- Sim...
- E limpa a boca.
Ela afastou-se, deixando-o de pé no passeio, a explorar o
lábio superior com os dedos.

As velas a representarem candeeiros constituíam o toque
mais interessante, pensou Doc Brown, recuando alguns passos
para admirar o seu trabalho.
- Muito bem - murmurou, sorrindo. - Talvez a mantenha
até ao Natal e use como jardim.
Passara a maior parte da tarde a planear e a construir a sua
própria réplica da Praça Principal de Hill Valley. Colocada sobre
uma grande peça de contraplacado, consistia primeiramente
num pedaço de madeira com um relógio atado em volta (a torre
do relógio do palácio da justiça) e um "pára-raios" (um prego)
espetado no cimo. Um arame descia do pára-raios, atravessava
a praça e passava entre dois candeeiros do outro lado da rua.
Perto dos candeeiros estava um carrinho de corda com um
araminho espetado atrás. Ligado a esse arame havia um gancho.
Ao consultar a sua folha de trabalho, que continha linhas de
estatísticas e contas, Doc Brown acenou com a cabeça. Tinha a
certeza de que resultaria.
- Óptimo - disse, à entrada de Marty. - Agora posso
explicar-te isto. Que tal te saíste com a saga em episódios de
George e Lorraine?
Marty suspirou:
- Aproximámo-nos mais. É tudo o que posso dizer. Excepto
que tive uma pequena divergência com Biff Tannen e quatro
do seu piquete. Estive a poucos centímetros de morrer esmagado.

- É tudo? - Doc sorriu. - Então qual foi o resultado
final da divergência?
- Os quatro tipos acabaram num monte de merda. Tenho
de admitir que tratei muito bem de mim e deles.
- Claro, tens ao teu dispor trinta anos de avanço tecnológico
- replicou Doc Brown.
Marty soprou.
- Só estava a brincar contigo - sorriu Doc. - Vem cá
dar uma olhadela a isto.
- Está bem. Que diabo de coisa é essa?
- É o meu próprio método diabolicamente inteligente de
te fazer regressar a 1985.
- Óptimo. Explique-mo.
Doc Brown esclareceu a nomenclatura da montagem e
depois embrenhou-se numa descrição de como devia funcionar:
- Como vês, pomos um pára-raios na torre do relógio do
palácio da justiça - disse. - Depois ligamos-lhe um cabo
eléctrico de potência industrial até ao outro lado da rua...
Entretanto, instalámos no teu carro um grande gancho ligado
directamente ao capacitador de fluxo...
Pegou no automóvel de brinquedo e deu-lhe corda.
- Tu estarás nele - disse. - Então, a um sinal, partes
pela rua abaixo em direcção ao cabo, acelerando até atingires as
oitenta e oito milhas por hora...
Soltou o carrinho de brinquedo de uma extremidade do
modelo. Ele correu em direcção ao arame estendido. Pegando
então um fio ligado a uma tomada de corrente alterna, Brown
levou-o junto do prego "pára-raios".
- Nessa altura - continuou -, dá-se a trovoada, electrificando
o cabo, mesmo a tempo de...
Ao dizer aquilo, tocou com a ponta do fio eléctrico, a descoberto,
no prego. Quando a antena do automóvel de brinquedo
embateu no cabo, voaram faíscas, o carrinho pegou fogo e caiu
disparado de cima da mesa. Atingindo as cortinas das proximidades,
rolou por elas abaixo, espalhando chamas pelo caminho.
Numa fracção de segundo, o tecido barato transformara-se
numa massa de fogo e fumo.
Doc Brown correu para a outra ponta da sala, agarrou num
extintor e dominou o incêndio em menos de um minuto.
- Bem - comentou Marty quando tudo tinha passado.
- Estou satisfeito por saber que já calculou tudo. Por que
não me pega já fogo em vez de ter todo esse trabalho?
- Isto é teórico - Doc Brown encolheu os ombros.Será
diferente com um carro que podes dominar e um capacitador
de fluxo que converte o raio em energia em vez de o libertar,
como este fez. Pelo menos é assim que espero que suceda.
- Está a instilar-me muita confiança. Doc - sorriu
Marty amargamente.
- Acredita que deve resultar.
- A palavra prática aí é "deve".
- Bem, como é que eu te posso garantir que isto resulta
mesmo? É uma experiência científica, meu rapaz-algo que está
a ser tentado pela primeira vez. Nada é cem por cento à prova.
Por exemplo, a parte mais simples deste plano: a tua condução
a oitenta milhas hora pela Praça Principal precisamente no
momento certo. Nem isso está garantido. Imagina que uma
velhota começa a atravessar arua nessa altura. Imagina que há
um carro da polícia que te obriga a parar. Imagina que aquele
automóvel tão bem montado falha durante a corrida. Imagina
que falhas com o gancho ou que o raio cai mais cedo ou mais
tarde. Imagina que os jornais se enganaram na hora. Imagina...
- Está bem, Doc - interrompeu Marty. - Já percebi.
Corremos sempre grandes riscos, de qualquer maneira.
- Não te preocupes. Eu ocupo-me do relâmpago. Tu
preocupas-te com o teu velho.
Marty suspirou. Voltou a tirar o instantâneo da família e a
olhar para ele. O irmão Dave desaparecera por completo e a
cabeça de Linda estava parcialmente obscurecida.
- Jesus - engoliu em seco. - Eu sou a seguir.
Bateram à porta. Doc Brown e Marty trocaram olhares
ansiosos.
- Biff - disse Marty. - Conseguiu sair do estrume e
seguiu-me.
Olhou em torno, à procura de um atiçador ou de qualquer
outro objecto pesado, enquanto Doc Brown corria para a janela
e espreitava para fora. Marty ouviu-o rosnar:
- É pior- disse, correndo outra vez para junto dele.Depressa,
vamos tapar a máquina do tempo.
Enquanto atiravam um pesado oleado para cima do DeLorean,
Doc continuou:
- É a tua mãe- informou. - Disseste-lhe onde moras?
- Não. Seria uma loucura ter feito isso.
- Então deve ter sido ela que te seguiu. Pá, a dama está
mesmo a arder.

O toque na porta repetiu-se.
- Deixamo-la entrar? - perguntou Marty.
- É melhor - disse Doc Brown. - Acho que ela me viu
quando olhei para fora. De qualquer forma, se ela te seguiu até
aqui, provavelmente sabe que estás cá dentro.
Marty foi à porta abriu-a para Lorraine entrar.
- Olá - sorriu ela.
- Mamã... quero dizer, Lorraine. Como é que me encontraste?

- Segui-te.
- Porquê?
- Queria saber onde vives.
- Faz sentido, certo.
Lorraine olhou à volta dele e esboçou um sorriso.
- Ah - exclamou Marty, afastando-se para um lado.Hum,
este é o meu tio Brown.
- Tio Brown? - repetiu ela.
- Emett - afirmou Doc.
- Olá.
Voltando a olhar para Marty, Lorraine respirou fundo e
lançou-se num breve discurso que tinha obviamente ensaiado:
- Marty - disse -, isto pode parecer um pouco ousado,
mas eu tinha esperança de que me levasses ao Baile de Encantamento
Sob o Mar no próximo sábado.
Marty devia estar preparado para a resposta, mas até nem
estava. Aclarando nervosamente a garganta, baixou os olhos
para o pé direito:
- Não creio que consiga - respondeu. - Sabes, toda
aquela corrida desta tarde... Acho que torci o pé...
- Vieste para casa sem problemas - interrompeu Lorraine.
- Sim, mas já tive isto antes. Sei que vou estar mesmo
mal amanhã de manhã e provavelmente ficarei na cama mais ou
menos uma semana.
- Não acredito- murmurou Lorraine. Os olhos começaram
a humedecer-se-lhe. -Acho que é só uma desculpa para te
livrares de ir comigo. '
- Não - gritou Marty. - Não é isso. É só que... bem,
sou um péssimo dançarino. Tenho dois pés esquerdos. Ou
melhor, três pés esquerdos. Fico tão atrapalhado... - Deixou a
frase em suspenso, tentando parecer inepto.
- Podemos não dançar - sugeriu Lorraine. - Se tens
vergonha de dançar, por mim não há problema, mas acho que só
estás a ser modesto. Uma pessoa que anda de patins como tu
andaste esta tarde tem de ter algo.
Era uma boa razão, mas Marty decidiu não se envolver nela.
Em vez disso, disse:
- Sabes quem quer levar-te, e eu acho que te ias dar bem
com ele? - George MacFly.
- Já sabia que ias dizer isso.
- Porque por acaso penso que é verdade. Acho que há uma
química qualquer entre vocês dois. Talvez ainda não o sintas,
mas está a chegar.
- Talvez, mas porquê? - indagou Lorraine. - Sinto
mais química contigo. De qualquer modo, o George já me convidou
e eu recusei.
- Tu o quê? - inquiriu Marty. - Não percebes a coragem
de que ele precisou para te convidar? Foi como mergulhar no
ar sem abrir o pára-quedas ou entrar no ringue com Muhammad
Ali...
- Com quem?
- Rocky Marciano - interveio Doc Brown.
- Ah bem, não posso preocupar-me com isso - disse
Lorraine. - O George não é o meu tipo. É engraçado e tudo,
mas... bem... - Aproximou-se mais de Marty, ao ponto de
a sua cabeça quase tocar no queixo dele. -Acho que um homem
deve ser forte... para poder defender-se e proteger a mulher que
amar. E tu?
- Eu o quê? - perguntou Marty nervosamente.
Sentindo que ele estava a fazer tempo, Lorraine sacudiu a
cabeça com fúria:
- Diz só sim ou não - exigiu. - E é melhor ser sim
porque, se não me levares ao baile, ninguém me leva.
Marty suspirou. Algo nos olhos dela lhe dizia que não estava
a fazer bluff. Fitou Doc Brown com tristeza.
- Parece que ela quer ir mesmo contigo, pá - disse
este. - É melhor dizeres que sim.
- Sim - concordou Marty.
- Ah, obrigada - Lorraine sorriu, esticando-se para lhe
beijar a face. Não te vais arrepender.
Depois virou-se, correu para a saída, acenou-lhe brevemente
ao chegar à porta e desapareceu.
- Linda complicação - afirmou Marty.
- De facto complica a situação- admitiu Doc Brown.Mas
ao menos, se ela for ao baile contigo, estará lá. Agora temos
de arranjar maneira de conseguir que o George vá, para poderes
descobrir o amor e o encantamento sob o mar, o que quer que isso
signifique.
- Oh, meu Deus - suspirou Marty. - Isso quer dizer
que tenho de convencer o meu pai a ir sozinho.
- Ou isso ou arranjar-lhe outra companhia.
- Doc, o senhor pode ser um génio com capacitadores de
fluxo, electricidade e contínuo espaço-tempo, mas quando diz
que tenho de arranjar outra rapariga para aquele palerma numa
data tão tardia está mesmo a pedir o impossível.

Apanhou o George no dia seguinte pouco depois da hora do
almoço.
- Olá - disse o George - e parabéns.
- Parabéns por quê?
- Por ires ao baile com a Lorraine. Confirmei com ela esta
manhã e soube que.tu eras o felizardo.
Marty expirou pesadamente:
- Deixa-me explicar-te uma coisa - pediu. - Ela só
concordou em ir comigo ao baile por saber que tu ias lá estar.
- Como pode ser isso?- indagou George. -Ela pode ir
ao baile comigo se quisesse.
- Ela é mesmo tramada - afirmou Marty. - E isso fá-la
complicar tudo. Sabes como é quando uma pessoa quer
comprar uma coisa, mas por pouco dinheiro? Então finge descobrir
uma quantidade de defeitos e até talvez diga que não a quer
- mas durante todo o tempo está mortinha por ela.
George acenou com a cabeça.
- Bem, é o que se passa com a Lorraine. Lá no fundo,
quere-te, mas não quer que tu saibas. E talvez uma parte dela
ainda não saiba. Mas acredita no que te digo: ela quer que vás ao
baile para que os dois possam estar juntos...
- Estar juntos? - sussurrou George. - Sou a favor.
Por que é que ela não me pediu? Nem disse que sim quando eu
pedi?
- Algumas mulheres só aceitam as coisas maravilhosas
quando parecem acidentais - replicou Marty sabiamente.
Está ligado ao que eu acabei de dizer. Não querem admitir que
as desejam. Foi por isso que ela me convidou. Não é a mim que ela
de facto quer. É a ti, George. Agora só temos de fazer compreender
que é a ti que ela quer.
- Bem, como é que podemos fazer isso?
- Acho que devemos começar por fazer ver que não és
cobarde.
- Mas... Eu acho que sou cobarde.
- Não, George- disse Marty. -Toda a gente tem uma
coisa que defende e pela qual luta, e eu penso que no teu caso é
a Lorraine.
- Sim... mas quando o Biff vem para mim...
- Bem, só temos de te ensinar a lidar com isso - afirmou
Marty. - Começamos esta tarde, assim que terminarem as
aulas.
George respirou fundo e concordou de cabeça. Uma réstea de
esperança pareceu surgir-lhe nos olhos.
Quatro horas depois; os dois jovens voltaram a reunir-se no
quintal de George. Marty trazia consigo um saco para socos feito
em casa e que consistia em roupas enfiadas numa mochila até
esta ficar tão sólida como uma rocha. Depois de passar alguns
minutos a tentar ensinar a George golpes em movimento e bons
socos, ofereceu-se como alvo:
- Quero que me atinjas no estômago - disse. - Aqui
mesmo. Vá.
Deixou cair as mãos ao lado do corpo.
- Mas eu não quero atingir-te no estômago - protestou
George.
- Não me vais magoar. Dá-me só um soco.
- Olha, eu não sou um lutador.
- Quantas vezes vou ter de te explicar? - interrogou
Marty. -Já sabemos que não és um lutador. Tu sabes. Eu sei...
- E o Biff sabe.
- Esquece o Biff. O importante é que a Lorraine não sabe.
É por isso que temos de fazer com que pelo menos pareças um
lutador, alguém capaz de se defender e de a proteger.
- Mas eu nunca na vida me meti numa rixa! -exclamou
George.
- Não te vais meter numa rixa, papá... - disse Marty.
- Quero dizer, George. Vais salvá-la.
- Parece tão pires...
- As raparigas gostam de pires. Agora talvez seja melhor

revermos o plano. Onde é que vais estar às 8:55?
George suspirou:
- No baile.
- E onde é que eu vou estar?
- No parque de estacionamento com ela.
- Pronto. Então, mesmo ao virar das nove horas, ela vai
ficar muito zangada comigo...
- Por quê?
- Porquê o quê?
- Por que é que ela vai ficar zangada contigo?
- Porque vou começar a abusar. E as raparigas decentes
ficam zangadas com os rapazes que tentam aproveitar-se.
- Queres dizer que vais...
Marty acenou a sua confirmação.
Uma estranha expressão de tristeza afluiu ao rosto de
George:
- E se ela deixar? - perguntou.
- Como podes dizer uma coisa dessas? - ripostou Marty.
- Ela não é só uma rapariga decente, é também a minha...
- Sim?
- É a minha amiga. Eu não lhe ia pôr as mãos.
- Tens a certeza? - indagou George com os olhos contraídos.
- Quero dizer ela é bonita. Um tipo tinha de ser de
pedra para dizer não à Lorraine.
- Não este tipo - retrucou Marty. - Agora vamos
voltar ao plano, está bem? Vai ser tudo representação, portanto
não te preocupes. Lembra-te só que às nove horas vais andar a
passear pelo parque de estacionamento e nos vês... - Engoliu
em seco e prosseguiu: - Vais ver-nos à luta dentro do carro.
Assim que isso acontecer, corres para lá, agarras o puxador,
abres a porta com violência e dizes o quê?
George entreabriu os lábios mas não lhe saíram palavras.
- Vais ter de ser mais convincente do que isso-murmurou
Marty.
- Não consigo pensar...
- Que raio, nem devias ter de pensar. Ali estás tu, frente
a frente com um tipo que tem as patas em cima da rapariga que
amas. Devia ser automático.
- Sim... Tens razão.
- Recita lá isso, George.
Movimentando com ferocidade o maxilar, exageradamente,
mais parecendo um velho rufião de vaudeville, George cuspiu as
expressões:
- Uh.... Ei, tu! Tira as mãos imundas de cima dela!Depois,
voltando a assumir o seu ar habitual, perguntou em voz
baixa: - Achas mesmo que devo praguejar?
- Sim, claro- acenou Mart - Então dás-me um soco
no estômago, eu piro-me e tu e a Lorraine vivem felizes para
sempre.
- Fazes com que pareça tão fácil - George sorriu. Quem
me dera não ter tanto medo.
- Medo de quê?
- Não sei. Talvez eu te bata com força e te faça doer. E isso
pode irritar-te tanto que percas a cabeça.
Marty riu:
- Acredita, George, podes bater-me com quanta força
quiseres que eu não respondo.
- Talvez ela pense que é tudo preparado.
- É por isso que tens de fazer com que pareça convincente.
Tens de me bater mesmo. Agora experimenta.
- Está bem.
Com Marty parado George respirou fundo e atirou-lhe um
soco ao estômago. Parecia mais que estava a enxotar uma mosca.
- Não George - corrigiu Marty. - Põe confiança por
trás desse soco. Emoção. Fúria. Vá lá. Tu és capaz.
George atirou outro soco, ligeiramente melhor do que o
anterior, mas muito pouco. Pareceu ficar satisfeito com ele,
todavia, particularmente com o sólido ruído que produziu:
- Que tal? - disse. - Nada mau, pois não?
- Bem, acho que tem de chegar - Marty encolheu os
ombros. - Sabes que mais? - pratica nisto
Pendurou a mochila no poste em T da corda de roupa, recuou e
aplicou-lhe um violento golpe de baixo para cima. A mochila
recuou
quase trinta centímetros.
- Treina-te numa coisa assim - disse.
- Está bem - concordou George com um aceno de cabeça.
Atirou um soco à mochila, e logo outro. Não eram golpes de
campeonato, mas Marty observou com satisfação que ele estava
pelo menos a começar a gostar daquilo.
- Fúria - incitou. - Fúria.
- É isso! - rosnou George - Fúria!
Irrompendo com toda a sua força, George calculou mal a
oscilação da mochila e falhou completamente. O seu punho
passou sibilando ao lado do alvo pretendido e foi embater
solidamente na árvore que ficava atrás.
- Uuuui! Com mil diabos! - berrou.
- Óptimo - afirmou Marty. - Isso é fúria verdadeira.
- Acenou com a mão à medida que se afastava. - Até logo.
George ficou a vê-lo ir-se embora, soprando devido à sua
própria inépcia. A mão direita continuava a latejar, mas a
frustração dele era mais forte do que a dor. Contraiu a mão
esquerda de modo a fechar o punho, avançou dois passos e
desferiu um poderoso soco na mochila em oscilação lenta. O
choque do sólido contacto subiu-lhe pelo braço e ele soube
instintivamente que tinha por fim feito algo bem. Não estava
preparado, contudo, para ver a mochila soltar-se da corda, voar
em direcção à janela da sua própria casa e estilhaçá-la. Apercebendo-se
das possíveis repercussões da janela partida. George
fez o que sempre fazia em situações semelhantes - fugiu.

- Previsão meteorológica para esta noite em Hill Valley
e proximidades... vento forte e frio de Sudoeste, céu geralmente
limpo e tempo seco... No aeroporto prevêem trovoada e aguaceiros,
embora já seja bastante tarde para isso... O consenso no
Serviço Meteorológico dos Estados Unidos parece ser que se
dará acentuado arrefecimento nocturno, com as temperaturas a
descerem a cerca de sete graus, mas nada pior do que isso...
Portanto, passem uma boa noite. E agora passamos a Bill Sharp,
que nos vai proporcionar cinquenta e cinco minutos de Eddie
Fisher e Patti Page...
Os sons que emanavam da telefonia instalada no Packard de
Doc Brown só eram ouvidos pelos poucos residentes de Hill
Valley que passavam pelo seu carro ao princípio da noite de
sábado. O próprio Doc Brown estava numa escada de mão, à
esquina das ruas 2ª e Principal, a ligar uma tomada móvel
colocada ao fundo de um cabo a uma extensão atada a um
candeeiro.
O Packard estava estacionado a poucos metros dos candeeiros;
atrás dele, coberto com um oleado, encontrava-se o DeLorean.

Assobiando baixinho, Doc Brown completou a ligação e
olhou para o outro lado, para o palácio da justiça. Oscilando
suavemente por acção da ligeira brisa, via-se o cabo que ele
instalara pouco antes - 150 metros de arame triplo, muito
dispendioso, que partiam do pára-raios no cimo do palácio da
justiça, até à ligação que ele acabara de fazer.
- Pronto - disse, baixando os olhos para Marty, que
esperava ao fundo da escada. - Está tudo instalado e pronto
para a partida. Mas não está com muito aspecto de se preparar
uma trovoada, e o boletim meteorológico que ouvi falava em
tempo frio e seco. Tens a certeza dessa tempestade?
Marty confirmou de cabeça:
- Doc - disse -, desde quando é que o meteorologista
prevê o tempo - para já não falar no futuro?
- Tens razão - sorriu Brown. Depois de verificar uma
vez mais os cabos para se certificar de que a ligação estava bem
feita, emitiu um ruído de satisfação e desceu a escada.
- Sabes, Marty - disse, depois de estar em baixo -,
eu... bem... vou ficar triste por te ver partir. Vieste transformar
de facto a minha vida. Deste-me algo a que me dedicar. Só saber
que vou viver até 1985... que vou ser bem sucedido nisto... que
vou ter a oportunidade de viajar no tempo... bem, vai ser difícil
para mim ter de esperar trinta anos até podermos voltar a falar
de tudo o que aconteceu nestes últimos dias. Vou mesmo ter
saudades tuas...
- Eu também vou ter saudades suas, Doc - respondeu
Marty. - Mas pode ser que não volte a ver, sabe? Se alguma
coisa correr mal com isto... - Indicou a ligação dos cabos. - ...
posso não estar em 1985, nem em qualquer outro ano, aliás.
Brown acenou pesarosamente:
- Não é tarde demais para mudares de ideias, sabes?disse.
- Por que não ficas cá? Podemos trabalhar juntos em
projectos...
- Não, obrigado, Doc - recusou Marty. - Se não arrumar
a questão com a mamã e o papá e não regressar a 1985,
ficam demasiadas vidas estragadas. Tenho de apostar em que a
sua experiência resulte. - Sorriu. - Afinal, tudo o que o
senhor fez resultou. À excepção do analisador de ondas cerebrais.

- Não me lembres isso.
Uma vez mais o espírito de Marty projectou a imagem de Doc
Brown a ser morto pelas balas dos terroristas, e uma vez mais
ele ansiou por o avisar. Poderia magoá-lo muito? Afinal, quando
os terroristas entraram em cena, já a máquina do tempo de Doc
Brown era um êxito. Assim, a História não seria afectada se ele
escapasse à sua vingança; apenas lhe seriam dados mais uns
anos de vida para gozar os frutos do seu labor, talvez para viajar
um pouco de um lado para o outro no tempo. Isso era assim tão
mau?
Concluiu que não:
- Doc - começou -, acerca do futuro e do senhor...
De novo a mão erguida:
- Não, Marty, meu rapaz. Não digas mais nada. Já
concordámos que ter conhecimento do futuro pode ser extremamente
perigoso. Mesmo que as intenções sejam boas, pode haver
um drástico tiro pela culatra. O quer que seja que me queiras
dizer, descobri-lo-ei no curso natural do tempo.
Marty viu que não valia a pena discutir com ele. No entanto,
continuava a ter o desejo de transmitir o aviso:
- Sim, Doc... Estou a ver. - Acenou. - Ouça, vou
comprar um chocolate, Quer alguma coisa?
- Não, obrigado.
Marty virou-se e entrou no café que ficava perto. Comprou
um Almond Joy ao empregado de balcão perenemente trocista,
a quem também conseguiu extorquir um papel e um sobrescrito.
Depois sentou-se num compartimento e compôs uma breve
mensagem para Doc. Dizia:

Doc Brown - A 26 de Outubro de 1985, cerca da
1:30 da madrugada, será morto a tiro por terroristas no
parque de estacionamento do centro comercial Twin
Pines. Por favor, tome todas as precauções que forem
necessárias para impedir este terrível desastre. O seu
amigo, Marty, 12 de Novembro de 1955.

Leu e releu a mensagem, dobrou o papel e meteu-o dentro do
sobrescrito, que colou. Na parte de fora escreveu: "Não Abrir Até
1 de Outubro de 1985."
Entretanto, Doc Brown estava a colocar um último cabo
entre dois candeeiros. Enquanto ele prosseguia alegremente o
seu trabalho em propriedade municipal, um polícia deslocou-se
de junto do Bank of America para o ir observar.
- Oh-oh - murmurou Marty ao sair do café. - Era só
o que nos faltava, um pé chato a meter-se.
Começou a encaminhar-se na direcção dos dois homens, mas
logo mudou de ideias. Doc Brown poderia resolver melhor o
assunto se estivesse sozinho. E Marty também teria tempo de
acabar a sua boa acção.
Dirigiu-se então ao camuflado DeLorean e pegou na gabardina
de Doc Brown, que estava em cima da capota. "Um bolso
interior será melhor", pensou, "um em que ele não meta a mão
durante um dia ou dois". Metendo o sobrescrito do lado esquerdo,
atirou outra vez a gabardina para cima do automóvel. Ao
fazê-lo, porém, outro pensamento lhe ocorreu: E se ele nunca
usasse aquela algibeira e nunca encontrasse a mensagem? Não
seria melhor pô-la no porta-luvas do Packard? Deu um passo de
regresso ao DeLorean.
- Não - disse. - Deixa-te de tentar ultrapassar o
futuro em pensamento. Se ele a encontrar, encontra-a. Se não
tiver de a encontrar, não encontra, por mais que faças.
Com esse assunto resolvido, aproximou-se dos dois homens,
para poder ao menos ouvir a conversa.
O polícia passou muito tempo só a olhar. Depois, finalmente,
falou:
- Boa noite, Dr. Brown - disse. - Que está a fazer com
esse fio?
- Ah, estou só fazer uma pequena experiência com o
tempo. Uma coisa que será muito benéfica para a terra se
resultar.
- Ah, sim?
- Sim senhor. É assim mesmo.
- E o que é que está aqui debaixo? - indagou o polícia,
apontando para o DeLorean.
Doc Brown nem vacilou, consumado artista na fuga por meio
de palavras:
- Equipamento novo e especializado para a observação
meteorológica - retorquiu.
- Parece um carro - afirmou o polícia.
- Bem, tem rodas - respondeu Doc. - Tem de ter
rodas para eu o poder mover. De qualquer forma, senhor guarda,
por que é que pergunta? Há alguma diferença em ser um
automóvel ou um laboratório portátil?
- Se for um carro, está estacionado ilegalmente - indicou
o polícia. - Há um sinal de proibição.
- Sim, senhor. Não volto a fazer isso, embora não seja
verdadeiramente um carro. Mas, se não se importa, preciso de o
deixar ali temporariamente.
Desceu da escada, tendo completado o trabalho, e sorriu
simpaticamente para o guarda.
- Tem autorização para isto? - perguntou o polícia, sem
retribuir o sorriso.
- Claro que tenho- redarguiu Doc Brown. Meteu a mão
ao bolso, tirou a carteira e pegou numa nota de cinquenta
dólares. - Uma autorização que veio directamente de Washington
- acrescentou.
- Não vai pegar fogo a nada desta vez, pois não, Dr.
Brown? - inquiriu o polícia, olhando nervosamente em volta ao
mesmo tempo que permitia que a nota deslizasse da palma de
Brown para a sua.
- Não, senhor - respondeu este - Trata-se de uma
experiência que mais parece uma brincadeira de crianças.
- Nesse caso - disse o polícia -, boa sorte.
- Obrigado, senhor guarda.
O polícia acenou com a cabeça, voltou a atravessar a rua e
continuou a experimentar as portas das lojas ao longo da Rua 2ª.
- Boa saída - comentou Marty. - Fiquei ali um minuto
a pensar que uma das suas variáveis nos ia estragar tudo.
- Eu próprio tive dúvidas - confessou Doc Brown. Olhou
para o relógio. - Ouve, pá, é melhor ires buscar a tua mãe e
pôres-te a mexer.
- Sim, acho que é o que tenho a fazer - sussurrou Marty.
- Estás um bocado pálido. Sentes-te bem?
De facto, Marty não se sentia muito bem. Havia tanta coisa
a fazer! E nada podia correr mal. Primeiro tinha de juntar a mãe
e o pai, depois fazer a sua corrida no momento preciso, atingir a
maior velocidade que alguém alguma vez conseguira na Rua
Principal e esperar que os cálculos de Doc estivessem correctos.
Pela primeira vez, sentiu que estava verdadeiramente na corda
bamba entre três mundos diferentes - 1985, 1955 e... a morte.
Se o raio não funcionasse exactamente como o plutónio, Marty
acabaria enterrado na parede das traseiras do Bank of America.
Ou talvez ele e o DeLorean fossem atirados para alguma espécie
de órbita imperfeita de tempo-espaço que os depositasse no
Kansas, no Afeganistão ou em Irkutsk. Estranhamente, contudo,
sabia que podia enfrentar esses testes. O que o preocupava
mais do que qualquer outra coisa era ter de lidar com os pais,
particularmente com a mãe.
- Que é? - interrogou Doc Brown, sentindo que ele
estava num tumulto mental.
- Não sei, Doc - respondeu ele. - Acho que é toda esta
questão com a minha mãe. Não sei se sou capaz de a levar até ao
fim.
- Por que não? Qual é o problema?
- Atirar-me a ela é que é o problema.
- Atirares-te a ela? - repetiu Brown, franzindo-se.Não
mencionaste que lhe ias bater. Pensei que era o George que
devia bater-te.
- É uma maneira de fazer com que ela, o senhor sabe...
- Sim. Tomar certas liberdades. Que há de tão terrível
nisso?
- É a minha mãe!
- Por enquanto não.
- Isso não altera absolutamente nada.
- Está bem. Já percebi. Mas, se considerares a questão de
um ponto de vista estritamente prático, estarás muito mais
perto dela do que esta noite, faças tu o que fizeres.
- Sim, mas como bebé. Não vê, Doc? Isto é o tipo de coisa
que pode tramar-se permanentemente!
- Como? - Quis saber Doc Brown. - Desculpa-me ser
tão obtuso.
- E se eu regressar ao futuro e acabar maricas? Parece
pouca coisa, mas atrair o sentimento da própria mãe pode mudar
por completo a vida de um tipo.
- Estou a ver - Doc acenou com a cabeça. - Mas há
uma diferença. Atrair um sentimento por prazer é uma coisa.
Atrair um sentimento para atingir um objectivo sério e moral é
outra. Portanto, não acho que tenhas de te preocupar com dados
psíquicos. Especialmente se puseres o sentimento na mesma
categoria que tratares-lhe de uma perna depois de um acidente...

Marty voltou a ter um pouco mais de vivacidade:
- Ou fazer respiração boca a boca - acrescentou.
- Claro - concordou Doc. - O quer que isso queira
dizer. Agora é melhor pôres-te a andar.
Marty concordou de cabeça, deu um passo e parou. Uma vez
mais, com mórbida fascinação, tirou a carteira e olhou para o
instantâneo da família.
Toda a sua irmã Linda desaparecera, à excepção dos pés.
- Doc- pronunciou Marty lentamente. -Acabo de ter
outra ideia. E se eu começar a desaparecer deste retrato antes de
termos acabado? Acha que, quando a cabeça desaparecer da
fotografia, o meu cérebro deixa de funcionar?
Doc Brown fitou Marty a direito nos olhos e respondeu sem
a mínima hesitação:
- Não faço a mais pequena ideia - disse.

@CAPÍTULO XII

O "Encantamento Sob o Mar" estava em pleno decurso. O
ginásio do Liceu de Hill Valley continuava a parecer basicamente
um ginásio, mas havia ornamentos e artefactos suficientes
para criarem uma agradável ilusão. A iluminação era azul,
com faíscas prateadas produzidas por móbiles de vidro cortados
em forma de peixes. Junto às paredes encontravam-se diversas
atracções em papier-mâché - um navio naufragado, cavernas
submarinas, uma arca de tesouro, massas de algas e um mergulhador
suspenso de um comprido cabo, que se estendia até ao
tecto. Como exemplo de humor contemporâneo, um único cacifo
escolar com a etiqueta "Davey Jones" ocupava um canto do
enorme salão.
No palco estava o conjunto, constituído por Marvin Berry e
os Starlighters. Os cinco homens eram negros e tocavam
bateria, piano, saxofone e contrabaixo, com o próprio Marvin à
viola e a cantar. Naquele momento apresentava a sua versão da
popular melodia do filme A Fonte dos Amores. Na pista de dança,
algumas centenas de jovens de ambos os sexos, elegantemente
vestidos, encostavam-se uns aos outros e moviam-se ao ritmo
entorpecido da música.
A vigiá-los, com sorrisos artificiais de divertimento, estavam
três paus-de-cabeleira nomeados pela escola: o inevitável
Gerald Strickland, de pé e tão direito que parecia ter engolido
um garfo, com os olhos a dardejarem rapidamente de um lado
para o outro; um professor gordo, de Álgebra e Geometria,
chamado Dexter Gore; e a Sr.a D. Deborah Chambers, da
biblioteca. A principal ocupação de Strickland parecia ser a
vigilância de sarilhos ou de mãos que se movessem sugestivamente;
Gore parecia principalmente interessado em devorar
víveres quando ninguém estava a olhar; Deborah Chambers
tomara para si a incumbência de fazer com que as que não
dançavam por falta de par se levantassem e circulassem:
- Andem de um lado para o outro e ao menos falem,
meninas - dizia a intervalos frequentes. - Lembrem-se de
que um corpo em movimento é mais excitante e atraente do que
um corpo meramente sentado.
Um dos equivalentes masculinos era George MacFly, claramente
pouco à vontade com colarinho apertado, fato branco e
lacinho. A maior parte do tempo, George limitava-se a ver os
outros a dançar, mas de vez em quando batia o compasso
erradamente. Tentava não pensar demasiado em Lorraine, que
estava mais bonita do que ele se lembrava de alguma vez a ter
visto. Tentava igualmente não pensar demasiado nas cenas que
deviam desenrolar-se às nove horas.
- Como diabo me vi envolvido nisto? - suspirou.Quem
me dera estar em casa
Claro que se podia ter ido embora, mas Marty já o vira e
piscara um olho de cumplicidade. Ter saído depois disso requeria
mesmo mais coragem do que ficar, por isso George deixou-se
estar. Pensou repetidas vezes: "Em breve estará passado Talvez,
resulte, ou talvez não, mas não será mais embaraçoso do que
alguns problemas que tens tido com Biff."
A selecção terminou e foi imediatamente seguida por um
número mais rápido. Na pista de dança, Marty olhou para o
relógio. Eram 8:45, tempo de pôr a bola em jogo:
- Vamos sentar-nos durante esta, está bem? - disse a
Lorraine.
Ela concordou com um aceno de cabeça, ao mesmo tempo que
um sorriso sedutor lhe iluminava as feições. Dirigiu-se para a
fila de cadeiras que rodeavam a pista, mas Marty fê-la destramente
inflectir para a porta.
- Lá fora é melhor - sugeriu.
- Concordo - disse ela.
Sair para o parque de estacionamento não era tão fácil como
parecia. O Dr. Strickland vigiava cuidadosamente quem saía da
zona de dança e o tempo que ficava fora. Parecia ter um
computador na cabeça, que lhe dizia exactamente quem faltava
e há quanto tempo estava fora. Em resultado disso, Marty e
Lorraine tiveram de se deixar ficar perto da entrada, à espera
que Strickland olhasse para outro lado para poderem sair.
Faltavam dez para as nove quando se introduziram no Packard
de Doc Brown.
- Hum, não te importas se... hum... nos sentarmos aqui
uns minutos, pois não? - perguntou Marty.
- Por que achas que me havia de importar? - Retrucou
Lorraine.
- Bem, não sei. Há raparigas que... não gostam... sabes...
- Marty, tenho quase dezoito anos - disse-lhe a mãe. Não
é como se nunca tivesse estado num parque de estacionamento.

Dito isto, chegou-se muito a ele e pôs-lhe a mão na perna.
Marty sentiu que as suas faces ficavam vermelhas e muito
quentes.
- Pareces nervoso, Marty - comentou Lorraine. - Há
algum problema?
- Hum, não...
- Costumas ser tão calmo, como quando trataste de Biff
e dos amigos. Mas já ouvi dizer que é assim com muitos homens
fortes e silenciosos. Ficam um pouco nervosos com as mulheres.
- Não. Não há problema.
- Bem, para o que der e vier- sorriu Lorraine-, por que
não tomas um pouco disto? Ajuda-te a descontrair. Abriu a mala
e tirou um frasco de meio litro de gin.
Marty respirou com dificuldades. A mãe? E nem sequer era
a sua mãe como mulher feita, mas como adolescente! Era um
pouco mais do que ele podia aceitar:
- Que estás a fazer com isso? - murmurou.
- Estou a abri-lo.
- Mas... onde é que o arranjaste?
Lorraine soltou uma risadinha:
- Ah, gamei-o do bar da velhota.
Pôs a tampa em cima do tablier, atirou a cabeça para trás e
bebeu um gole.
- Lorraine - sussurrou Marty. - É a primeira vez que
fazes isto?
- Faço o quê?-Sento-me num carro com um rapaz, bebo
gin ou sento-me num carro com um rapaz a beber?
- Bebes - esclareceu ele. - Estás a fazer isso só para...
dares nas vistas ou qualquer coisa assim?
- Não - disse ela, parecendo sentir-se insultada.Claro
que não. Faço-o porque gosto.
- Mas não devias beber-ralhou Marty, apercebendo-se
no preciso momento em que pronunciava as palavras de quanto
parecia um pai antiquado.
- Por que não?
- Bem, é que não é saudável.
- Não sejas tão rígido. Marty - riu ela. - Todas as
pessoas que são alguém fazem isso.
Marty suspirou. Olhou para o relógio, viu que era quase
altura de entrar em acção.
Lorraine passou-lhe o frasco. Ele decidiu beber uma golada
para lhe fazer a vontade.
Enquanto fazia isto, a mãe tirou um maço de cigarros e
acendeu um. Marty engasgou-se com o gin, tão chocado ficou:
- Jesus! - exclamou, numa voz que soou terrivelmente
estridente. - Também fumas?
Lorraine fitou-o, rolando os olhos o mais possível.
- Estou a falar a sério - afirmou ele. - Não devias fazê-lo.
Fumar faz mal...
- Vá lá - disse ela. - Percebo mais ou menos que não
seja muito senhoril beber, mas fumar é elegante. Não tem nada
de mal.
- Estás a brincar? Tem tudo de mal.
- O quê? - ripostou ela.
- É mau para a saúde.
- Então por que é que os médicos os anunciam na televisão?
- Porque a indústria tabaqueira é demasiado poderosa...
- Oh, tretas - replicou ela. - Toda a gente sabe que o
fumo é bom para a circulação. Também acalma os nervos e o
coração.
- Acalma o coração! Meu Deus, provoca todas as espécies
de problemas cardíacos. E o cancro do pulmão. Olha! Diz aqui
mesmo no maço...
Tirou-lhe o maço de cigarros e procurou o aviso do governo.
Não estava lá. Em vez dele, estava uma frase, obviamente
escrita pelo fabricante dos cigarros: "Esta mistura especial de
tabacos turcos e nacionais, acalma os nervos, melhora a circulação,
dá uma sensação de bem-estar."
- Santo Deus - assobiou Marty.
Devolveu o maço. Tinha sempre conseguido evitar fumar
durante toda a vida e não ia começar agora.
Lorraine encarava-o com uma expressão irritada:
- Sabes que pareces mesmo a minha mãe? - disse.É
mesmo estúpido como os pais não compreendem os filhos e
tentam dominar-lhes as vidas. Quando eu tiver filhos, vou deixá-los
fazer tudo o que quiserem. Tudo. E não vou pregar-lhes
sermões nem dizer como as coisas eram diferentes nos bons
velhos tempos em que eu era nova. Não, senhor, não vou ter essa
conversa fiada com eles.
- Gostaria muito de ter essa promessa por escrito - sorriu
Marty.
A observação passou despercebida à Lorraine.
Ficaram sentados em silêncio durante alguns momentos,
com a Lorraine a beber ocasionalmente um pouco de gin enquanto
o Marty continuava a olhar para o relógio ou para o espelho
retrovisor. Já passava da hora marcada. Onde raio estaria o
George?
- Está à procura de alguém? - inquiriu Lorraine.
- Hum... claro. Do Strickland. Só quero ter a certeza de
que ele não vem cá para fora em patrulha.
- Tem o suficiente para se preocupar lá dentro - sorriu
Lorraine. Repondo o frasco na mala, deslizou para mais perto
dele. - Então conta-me como são os teus pais. São tão rígidos
como os meus?-
Ultimamente - afirmou Marty em voz baixa - cheguei
à conclusão que não sei nada deles.
- Que pena!

George sentia-se fraco, gelado e à beira de desmaiar, como
da vez em que metera o dedo na engrenagem de um misturador
de cimento portátil que o pai alugara e quase o cortara. Quinze
minutos antes da hora marcada para sair, o seu abdómen foi
atingido por uma dor aguda, que o obrigou a correr duas vezes
para a casa de banho dos homens. Agora, que as nove se
aproximavam rapidamente, sentiu uma nova onda de espasmos,
que não abrandavam absolutamente nada e portanto não podia
ignorar. Sabia que era um caso agudo de nervos, que o seu corpo
e o seu espírito cobardes estavam a colaborar para o manter lá
dentro, longe de possíveis embaraços e falhanços. Saber isso, no
entanto, não diminuía a dor. Se fizesse alguma coisa, seria
intensificá-la. Dobrado quase ao meio, dirigiu-se aos tropeções
para a casa de banho dos homens, pela terceira vez.
Lá dentro, o folião da turma, Mark Dixon, e alguns outros
rapazes estavam a fumar às escondidas e a conversar. De
repente, a porta da casa de banho foi tão estrondosamente
aberta que pareceu estar a efectuar-se uma razia.
- Jesus! - gritou Dixon, deitando o cigarro para o urinol.
Em vez de Gerald Strickland, viram apenas um pálido
George MacFly. Este cumprimentou-os com uma careta e dirigiu-se
rapidamente para um compartimento.
O terror nos olhos de Dixon passou a aborrecimento e logo
diversão:
- Aquele filho da mãe fez-me perder a minha última
beata - disse. - Vejam só.
Apontou para o cigarro que flutuava e se desintegrava
lentamente no urinol:
- Ele vai ter de pagar por isto - continuou Dixon.Entrar
aqui como a brigada de costumes!
Com um movimento de cabeça, começou a dirigir-se lentamente
para o compartimento em que George se encontrava.

Perfeitamente consciente de que há um tempo muito breve
durante o qual uma mulher pode ser namorada com êxito, Marty
estava nervosamente sentado no Packard de Doc Brown, com a
anca de Lorraine firmemente comprimida contra a sua. Ela
estava a postos para ser beijada e depois tocada, esperava ele
que apenas o suficiente para se sentir insultada, ficar com medo,
ira e a necessitar de um novo cavaleiro que a salvasse. O dilema
de Marty era o do tempo. Se a perseguisse demasiado cedo, seria
forçado a continuar o assalto até George chegar -e talvez tudo
acabasse demasiado cedo. Se, por outro lado, continuasse ali
sentado como uma massa informe, a Lorraine podia concluir que
ou ele era atrasado ou ela não tinha sedução. Em qualquer caso,
o seu próximo movimento lógico seria abandonar o carro, voltar
ao baile e sair da vida dele, provavelmente para sempre.
"Onde diabo está aquele cagarolas do meu pai", pensou
Marty.
Lorraine reparou que ele tinha as veias do pescoço salientes
e o maxilar a tremer:
- Marty, por que está tão nervoso? - interrogou.
Ele respirou fundo:
- Bem, alguma vez estiveste numa situação - começou
- em que... bem,' saibas que tens de agir de determinada
maneira, mas quando chega a altura, não sabes se consegues ir
até ao fim?
- Referes-te a como se deve agir com alguém quando se
sai pela primeira vez junto?
- Hum... sim.
- Com muita delicadeza, doçura e isso tudo?
Marty concordou de cabeça.
- Eu não me preocupo com isso! - disse Lorraine de um
jacto.
Dito aquilo, ela atirou-lhe os braços ao pescoço, esticou-se e
beijou-o apaixonadamente.

- Vamos lá, rapazes, deixem-me sair daqui.
George empurrava a porta do compartimento com quanta
força tinha, mas ela estava demasiado pesada para se mover,
com três tipos lá encostados.
- Vais ficar aí a cozer no teu próprio molho - informou
Dixon.
- Porquê? Que fiz eu?
- Fizeste-me perder um cigarro muito valioso.
- Compro-te um maço inteiro - prometeu George.Deixa-me
sair.
- Talvez - Dixon sorriu. - Quando é que me dás o
maço?
- Amanhã.
- Não. Quero-os esta noite.
- Mas não há nenhum sítio na escola onde os possa
comprar e a maior parte das lojas estão fechadas.
- Então podes ir para o Inferno - afirmou Dixon.Ficas
aí a noite toda.
- Ouçam, é um disparate manterem-me aqui prisioneiro
- argumentou George. - Vocês têm companhia. Provavelmente
elas estão sem saber de vocês.
- É verdade - concordou Dixon. - Então dois de nós
vão continuar a manter-te prisioneiro enquanto o outro vai
buscar reforços. Vamos instalar um sistema de guarda, com
turnos de dez minutos, para nos podermos divertir no baile e ao
mesmo tempo manter-te aqui até serem horas de nos irmos
embora.
- Por que estão a fazer isto comigo?- gemeu George.Vá
lá, rapazes...
- Não - garantiu Dixon. - És um chato, MacFly, e os
chatos devem ficar onde tu estás.
Os companheiros manifestaram o seu apoio aos gritos.
George suspirou, sentou-se e olhou para o relógio. Eram nove e
dez.
Lorraine continuou o seu assalto apaixonado a Marty durante
talvez um minuto antes de se aperceber de que algo não
estava bem. Afastando-se dele, fixou-o atentamente:
- Isto não está bem - disse.
- Fazer isto? - murmurou ele.
- Não. O que está errado é que não estamos a fazer isto
bem. Não sei o que é... mas quando te beijo há qualquer coisa que
não está bem...
- Em ti ou em mim?
- Não sei bem. Falta qualquer coisa. É como se... estivesse
a beijar o meu pai.
Marty fitou-a, de olhos muito abertos.
- Suponho que isso não faça muito sentido, pois não?comentou
ela.
- Acredita no que te digo. Faz perfeitamente sentido.
Talvez o tenhas ao contrário, mas o quadro está certo.
- Que achas que é?
- Hum... não sei.
Ela deixou cair as mãos no colo:
- Raios - resmungou. - Era bom de mais para ser
verdade.
- Pois...
O som de passos alarmou ambos, cada um por uma razão
diferente. Lorraine estava com medo que algum membro do
corpo docente tivesse notado o frasco de gin e fosse dizer aos
pais;
Marty agora não sabia que fazer quando George chegasse.
Deveria agarrar-se imediatamente à Lorraine numa tentativa
desesperada de dar a George a oportunidade de a salvar? De
certo modo, não lhe parecia apropriado. Com Lorraine, a afastar-se
dele no assento, já nem sequer parecia possível. Esperando
evitar a pessoa que se aproximava, ela estava praticamente
- a sair pela porta do lado do passageiro.
Marty decidiu atirar-se-lhe. Ao fazê-lo, a porta do seu lado
foi aberta e uma mão estendeu-se para lhe agarrar o ombro.
Ele virou-se para olhar e ficou surpreendido por ouvir o seu
próprio estertor.
O rosto que o encarava não era o de George, mas sim o de Biff
Tannen. Atrás deste estavam 3-D, Skinhead e Match, com as
caras banhadas em sorriso ameaçadores.
- Causaste prejuízos de $300 ao meu carro, seu filho da
mãe - disse Biff em voz aguda. - E vou tirar-tos do corpo...
Segurem-no, amigos...
Levantando Marty em peso para fora do carro, Biff atirou-o
para Skinhead, que lhe agarrou um braço ao mesmo tempo que
3-D agarrava o outro.
- Bom trabalho, rapazes - afirmou Biff. - Skinhead
teve a impressão de que eras tu, a escapulires-te para o parque
de estacionamento. De outro modo talvez nunca te tivéssemos
apanhado sozinho.
Levou atrás o punho fechado.
- Larguem-no! - berrou Lorraine de dentro do carro,
deslizando para o lado do condutor. - Deixa-o em paz, Biff!
Estás embriagado!
Biff'fitou-a com um sorriso que se aproximava muito de um
esgar:
- Ora vejam só o que temos aqui - disse. - Talvez tire
parte deles do teu corpo.
Marty pisou com toda a forças os dedos do pé de Skinhead,
fazendo-o gritar de dor. Então, atirando-se para a frente, levou
o cotovelo para cima e para trás, atingindo em cheio o maxilar de
3-D. Os dois rapazes soltaram-no, mas por pouco tempo. Embora
lutasse com todas as suas forças, Marty não tardou a ser
dominado por eles.
Biff, entretanto, tinha saltado para dentro do Packard e
agarrado Lorraine.
- Larga-me! - gritava ela.
- Oh, não garota, vais ficar aqui mesmo comigo - riu
Biff
Marty arrastou os seus carrascos quase meio metro para a
frente, tentando chegar junto de Biff
- Tira as mãos nojentas de cima dela, bastardo!ordenou.

Biff sorriu friamente para Marty, confiante de que este não
podia causar-lhe problemas:
- Trato de ti depois de ter tratado dela - afirmou.
- Queres que comecemos? - perguntou Skinhead.
- Não, ainda não- respondeu Biff. -Essa é uma festa
que eu não quero que comece sem mim. Levem-no lá para trás.
Já lá vou ter.
Como 3-D e Skinhead só arrastassem Marty até à beira do
guarda-lamas traseiro, Biff rodou sobre si próprio e berrou-lhes:
- Isto não é para espreitas! Desapareçam da minha vista
enquanto eu... namoro esta senhora.
Enquanto levavam Marty à força para longe do carro, Biff
bateu a porta com estrondo e inclinou-se para a frente para
beijar a Lorraine. Pouco depois, tudo o que Marty conseguia ver
e ouvir através da janela de trás era a forma da mãe, a lutar,
acompanhada pelos seus gritos abafados.
Intimamente, ele amaldiçoava-se a si próprio quase tanto
como a Biff e aos amigos deste. Se não fosse por causa de Marty,
Lorraine estaria a divertir-se no baile em vez de ter de lutar
para
não ser violada.
Também tinha fúria suficiente para dirigir contra George.
se aquele tolo cobardolas não tivesse voltado atrás, ao que era
seu hábito, no último momento...
Mas o tempo das recriminações foi breve. Arrastando Marty
em peso, 3-D e Skinhead repararam num Cadillac estacionado
com a mala aberta ao lado da escola.
- Olha! - sugeriu Skinhead. - Este tipo dá-nos mais
trabalho do que vale. Vamos fechá-lo naquela mala.
- Boa Ideia! - retorquiu 3-D.
Enquanto falava, baixou-se para agarrar as pernas de Marty.
Os dois rapazes levaram quase um minuto a lutar com ele até ao
lado do carro, mas acabaram por conseguir empurrá-lo para
dentro da mala. Antes de ele poder começar a trepar para fora,
Skinhéad fechou a tampa.
O ruído e o estremeção trouxeram Bob Jordan de novo à
terra num repente. Sentado ao volante do Cadillac, o jovem
negro deleitava-se com o seu cigarro de marijuana enquanto o
resto do grupo. Como baterista do conjunto, saíra mais cedo com
o.seu equipamento, enquanto Marvin Berry tocava o seu habitual
número final, a solo à viola. A meio do cigarro ficara
sonolento e satisfeito, a tal ponto que nem ouvira os pés a
arrastarem-se e as vozes, a não ser quando se lhes juntou o
estrondo da mala a fechar-se.
Saltando de dentro do automóvel, encaminhou-se rapidamente
para os dois rapazes brancos:
- Digam-me lá uma coisa: para que é que estão a remexer
no meu carro? - indagou.
- Desaparece, fantasma - ripostou 3-D. - Isto não é
da tua conta.
- Ai isso é que é, uma vez que estão a mexer-me na mala
do carro - afirmou Jordan em voz firme e ligeiramente mais
alta. - E a quem é que estás a chamar fantasma, seu picanço?
Apesar de estar em desvantagem numérica, avançou para
3-D -e Skinhead, que deram um passo atrás. No momento
seguinte, Marvin Berry e os outros três membros do conjunto
apareceram à porta das traseiras do ginásio:
- Que se passa? - inquiriu Berry.
Skinhead e 3-D olharam temerosamente os cinco negros:
- Chamaram-me fantasma - informou Jordan. - E eu
ia perguntar-lhes se queriam mais uns buracos na cara para
poderem respirar melhor.
- Ei, eu não quero meter-me com drogados - resmungou
Skinhead.
- Drogados, hein? - disse Berry, dando um passo na
direcção deles.
Por essa altura já Skinhead e 3-D estavam a três metros de
distância e a correrem tão depressa quanto podiam.
- Deixem-me sair!
Os negros trocaram olhares. A voz abafada e os ruídos de
pancadas provinham sem qualquer espécie de dúvida do interior
da mala do Cadillac.
- Devem ter metido alguém lá dentro - conjecturou
Jordan.
- Ei, Reginald, onde é que estão as chaves? - perguntou
Marvin Berry, olhando para um dos outros.
Reginald procurou nos bolsos, franziu o sobrolho e abanou a
cabeça:
- Não consigo encontrá-las - disse.
- Estão aqui! - gritou a voz longínqua. - As chaves
estão aqui.
Marvin Berry fitou Reginald iradamente:
- Bolas, pá - exclamou. - Outra vez! É a terceira vez
que as deixas na mala!

- Então que se passa aqui?
Para George MacFly, o som metálico da voz do tirânico Gerald
Strickland foi simultaneamente benvindo e enfurecedor. Prisioneiro
na casa de banho dos homens do ginásio do Liceu de Hill
Valley havia quase vinte minutos, não desejava continuar nesse
estado; por outro lado, a acção perversa dos seus carrascos
proporcionava-lhe efectivamente uma óptima desculpa para não
levar a bom termo o plano de Marty. Ainda mais importante era
o facto de essa desculpa ser aceitável pelo próprio George.
Quando entrara na casa de banho dos homens, ainda tinha
tempo de desempenhar o seu papel; agora era pouco provável
que tivesse de o fazer.
- Nada, senhor doutor - respondeu temerosamente um
dos captores de George.
- Cheira-me a fumo de cigarro. Alguém aqui tem cigarros?

- Não... senhor doutor.
- Dou-vos a oportunidade de entregarem agora os maços.
Se vos revistar e encontrar cigarros, será muito pior para vocês.
No seu cubículo, George ouviu o som de material a ser
rasgado e atirado para o lixo.
- Assim é melhor - afirmou Strickland. - Agora
ponham-se a mexer daqui para fora.
George empurrou suavemente a porta do compartimento e
saiu. Strickland olhou-o friamente:
- Que tens estado a fazer aqui, MacFly? - indagou.
- Nada, senhor doutor.
- Tretas. Vi-te entrar para aqui há vinte minutos. Por
que ficaste cá tanto tempo?
- Nada importante, senhor doutor. Estivemos só a passar
tempo. O senhor sabe...
- Bem, deixa lá. O baile está quase a acabar. É melhor
voltares para junto da tua... deixa lá, não creio que tenhas
companhia.
Fez um gesto na direcção da porta. George aproveitou a
deixa e saiu disparado da casa de banho. Enquanto seguia pelo
corredor, do lado de fora do ginásio, viu que a pista de dança
estava quase completamente cheia e as luzes muito baixas,
indicando que o último número ia começar em breve. Embora
duvidasse que Marty ainda estivesse a maltratar Lorraine no
parque de estacionamento, George decidiu aparecer por lá e
explicar a razão do seu atraso.
Caminhando vigorosamente para o parque de estacionamento,
dirigiu-se para o lugar onde Marty deixara o Packard. A
princípio os seus olhos não detectaram qualquer sinal de luta,
mas, quando estava a suspirar de alívio, viu que se encontrava
na fila errada. Dando a volta, encaminhou-se para a zona
correcta, aproximando-se do Packard pelo lado de trás.

- Que diabo - sussurrou,
A representação continuava, como se o tempo tivesse parado
durante mais de vinte minutos, para ele poder cumprir a sua
missão.
Respirando fundo, começou a correr para o carro. Pelas
janelas via braços e até o que lhe pareceu serem pernas a
agitarem-se. Lorraine gritava, enquanto a figura masculina
comprimia o seu corpo contra o dela e a apalpava selvaticamente.

- Que raio- resmungou George. -Parece que o Marty
está a abusar.
Ao chegar junto do carro, ajeitou as calças e deu uns passos
ao estilo de John Wayne. Depois estendeu a mão para agarrar o
puxador da porta, abriu-a de repelão, tão violentamente quanto
possível, enfiou a cabeça dentro do automóvel e disse em voz alta
e potente:
- Ei, você! Tire essas malditas mãos de cima...
O rosto do atacante virou-se na sua direcção e George
reconheceu-o imediatamente.
- Acho que te enganas no carro, MacFly - afirmou Biff.
- George! Ajuda-me ! - gritou Lorraine.
Por um momento, George ficou parado, de olhos fixos,
surpreso e confuso. Um furacão de pensamentos parcialmente
formados varreu-lhe a mente. Estaria Marty por trás daquilo?
Haveria a mais ligeira possibilidade de Biff estar também no
plano? Deveria fugir? Ou já era demasiado tarde para recuar?
Fitou os olhos irados de Biff Tannen, à procura de uma explicação,
mas só neles viu hostilidade. E - sim! - também lá havia
um lampejo de medo. Ele fora apanhado numa situação potencialmente
desastrosa e que exigia acção imediata. George MacFly
tinha de ser corrido com medo e mais tarde intimidado para se
manter em silêncio. Se ele corresse a buscar auxílio...
- Limita-te a fechar a porta e a ires-te embora, MacFly
- disse Biff pausadamente.
George não se mexeu. Uma parte dele já chegara ao limiar
do pânico, mas outra não permitia simplesmente que os seus pés
se movessem. Viu num instantâneo aquela cena que se desenrolara
no ciclo preparatório, cinco anos antes, e em que não
conseguiria ir em auxílio do seu amigo Billy Stockhausen. Desde
esse momento, temera o combate físico, aprendera a prevê-lo.
Mas era impossível evitar aquela crise, a menos que se limitasse
a virar as costas e correr. Disso foi impedido pela expressão do
mais completo terror na cara da Lorraine.
- Estás surdo, MacFly? - inquiriu Biff, já sem qualquer
constrangimento na voz. - Disse-te que fechasses a porta e
cavasses! Vamos a isso!
George respirou tudo:
- Não! - ripostou. - Deixa-a em paz.
Lorraine suspirou. Finalmente alguém tinha vindo em seu
socorro. Ele não era o Marty, mas em alguns aspectos era mesmo
melhor. Os seus lábios começaram a formar a palavra "Obrigada"
ao mesmo tempo que Biff lhe tirava as mãos de cima do corpo e
começava a sair do carro:
- Está bem, MacFly - rosnou ele. - Tiveste a tua oportunidade.
Agora vou dar-te lição.
Avançou para o George, estendendo uma das suas enormes
mãos para agarrar qualquer parte do corpo do intruso. Regressou
com um grande pedaço de manga e o braço do George gemer
e de ver o medo registar-se-lhe nos olhos. Enquanto aplicava
uma pressão cada vez maior, um punho agitado moveu-se
lentamente em direcção à sua cabeça. Atingiu Biff no ombro, não
lhe provocando qualquer dano ou dor.
- Socorro! - gritava Lorraine.
George desejaria fazer o mesmo, mas conseguiu comprimir
os dentes e evitar que a palavra de cobardia fosse pronunciada.
Contorcendo o corpo para trás e para a frente, tentava em vão
libertar-se das garras de Biff. Um braço de brutamontes rodeou
o pescoço de George; o outro puxou o deste com tanta força para
cima e para trás que o próprio George tinha a certeza de que a
qualquer momento ouviria um estalo de osso.
- Pára com isso, Biff- berrou Lorraine. -Vais partir-lhe
o braço!
- É isso mesmo, garota! - atirou-lhe Biff. - É exactamente
o que pretendo.
Aplicou maior pressão. Então, muito na periferia do seu
círculo de percepção, ouviu um ruído... como de marteladas
distantes... ou seriam passos de corrida? Parcialmente distraído,
deixou abrandar um pouco a pressão que estava a
exercer.
Desesperado de dor, George reagiu ao abrandamento de
uma fracção de segundo com instinto cego. Libertando-se do
domínio de Biff, voltou-se e, com os dois olhos bem fechados,
atirou o mais violento soco de toda a sua vida.
Para sua surpresa - e de Biff -, aterrou em cheio no
maxilar do seu atacante, arrastando-lhe a cabeça inteira para
cima e para trás, como se tivesse sido subitamente atingida por
uma máquina voadora. O gemido de Biff seguiu-se de imediato
ao ruído seco de osso contra osso.
Fazendo recordar deliciosamente a mochila, Biff Tannen
caiu no asfalto como um objecto inanimado. Um árbitro poderia
ter contado pelo menos até cem antes de haver o mínimo
movimento no seu corpo.
- Oh, George! Foste maravilhoso!
Os olhos brilhantes de Lorraine mergulhavam nos do George,
projectando neles uma mensagem de adoração total. Este, por
sua vez, abanou a cabeça, olhou para o seu próprio punho e
depois para a forma amarfanhada de Biff Tannen, aos seus pés.
Nem acreditava!
O mesmo acontecia a Marty, que, seguido pelos cinco músicos
negros, acabara de chegar ao local. Mas o quadro era claro e
perfeito, com todos os pormenores nos respectivos lugares: o
vestido rasgado da Lorraine, a forma prostrada do atacante e o
rosto nervosamente sorridente do inesperado herói. Outros que
chegavam ao local abarcavam imediatamente o significado da
cena e ficavam impressionados com ela:
- Quem é aquele garoto?- interrogava uma voz masculina.
- Anda na nossa escola?
- É George MacFly- informava outro. -Está na nossa
turma há dois anos.
- Nunca tinha dado por ele...
- Vejam-me aquele tipo desmaiado, hein!? O rapazinho
deve ter cá um golpe!
- Boa saída, George!
Estendendo a mão ao pai, Marty agarrou a deste e sacudiu-a:
- Belo trabalho, papá- cumprimentou -, quero dizer,
George.
- Obrigado.
Um pensamento inquietante ocorreu à mente de Marty - o
seu trabalho não estava completo. Não lhe faltava só efectuar a
sua saída; ainda tinha de juntar a mãe e o pai, fazendo com que
se beijassem na pista de dança. Mas o último número já tinha
sido tocado e alguns pares haviam partido, embora a grande
maioria ainda andasse por ali a conversar.
- Ainda não é tarde demais - suspirou Marty. Depois,
em voz mais alta, disse: - Ei, gente! Acho que devíamos ter
mais uma dança, só para este belo par poder celebrar!
Um grito de aprovação misturou-se com o som de trovoada
distante.
Marty olhou para o céu e agarrou a Lorraine com uma das
mãos e o George com a outra:
- Vamos, malta! - incitou. - Vamos para dentro para
mais um número?
O grupo correu para o ginásio, passando pelos Starlighters.
- Ei, vocês! Chamou-os Marty. - Que tal darem-nos
mais um número?
- O baile já acabou - disse um deles.
- Deixa-te disso - resmungou outro.
Marty meteu a mão ao bolso e tirou a carteira:
- Tomem - ofereceu, tirando todo o seu dinheiro. - É
vosso só por mais uma dança. '
Os músicos olharam uns para os outros, indecisos.
- Por mim está bem - afirmou Reginald -, só que
Marvin cortou a mão a abrir a mala do carro.
- Sim - acrescentou Jordan. - Ele não pode tocar
assim. E nós não podemos tocar sem o Marvin. É ele que dá o tom
à viola. Não podemos fazer nada sem ele.
- Mas têm de tocar! - insistiu Marty. - É onde se
beijam pela primeira vez - na pista de dança! E, se não se
apaixonarem, estou tramado!
Os negros entreolharam-se:
- De que raio está este tipo a falar? - perguntou um
deles.
- Olha, pá- disse Reginald, devolvendo o dinheiro -, o
baile acabou... a menos que conheças alguém que saiba tocar
viola.
Marty sorriu:
- Claro! - afirmou. - Sei eu.
- Vá lá...
- Confiem em mim - disse Marty.
Reginald sorriu:
- Por que não? - sugeriu. - Pode valer a pena, só para
nos rirmos um bocado.
Agarrando no seu equipamento, os músicos seguiram Marty
e os amigos de regresso ao ginásio. Esse impulso criou uma onda

de interesse entre os outros alunos que em breve se tornou uma
vaga. Dentro de dois minutos, todo o ginásio estava de novo cheio
de gente.
- Que se passa aqui? - gritava Gerald Strickland repetidamente.
Agarrando braços, tentava obrigar os alunos a sair
do salão, mas os seus esforços eram ineficazes.
Entretanto, Marty instalara-se com o conjunto no canto
mais afastado, ligara o equipamento e gritava para o microfone:
- Mais uma dança - dizia. - Um número especial
para os meus pais.
Ele e os Starlighters lançaram-se em "Earth Angel" e os
estudantes constituíram-se em pares para dançarem. Lorraine
deslizou para os braços de George e encostou a face à dele.
A princípio Marty seguiu o conjunto, mas depressa tomou
confiadamente a direcção e olhou em redor. Os músicos atiravam-lhe
olhares rápidos, olhares esses que lhe diziam estarem
a admirar o trabalho dele. Via os pais a dançarem a pequena
distância, com as cabeças encostadas. Agora era apenas uma
questão de tempo... Tudo estava a correr bem.
Durante um breve solo de saxofone, pousou a viola e olhou
para o instantâneo familiar que tinha na carteira. A irmã Linda
e Dave tinham desaparecido, mas a sua própria imagem estava
intacta. Então... quando os lábios de George e Lorraine se
aproximavam, a Marty pareceu ver Linda começar a reaparecer.
- Óptimo... suspirou.
O seu momento de júbilo foi breve. A transformação positiva
mal tinha acabado de se dar quando todo o processo se inverteu.
Linda desvaneceu-se e a mão direita de Marty desapareceu da
fotografia.
- Que diabo... - começou ele.
Olhando para os pais, viu a causa da inversão. Quando o par
estava quase a beijar-se, uma mão brutal fora colocada no ombro
de George. Era Dixon, com a sua habitual expressão malévola:
- Põe-te a mexer, MacFly- ordenou. -Agora danço eu.
No palco, o solo de saxofone acabara e a orquestração
completa recomeçou. Marty juntou-se-lhe, mas a sua mão direita
recusava-se a seguir. Em vez de tocar, deslizava viscosa pelas
cordas como um objecto insensível ou completamente morto.
- Então, pá - sussurrou Bob Jordan. - Que se passa?
- Não consigo tocar - murmurou Marty. - Não sou
capaz de tocar viola!
Ergueu a mão direita culpada e arfou de horror. Estava
transparente!
Bob Jordan, perdendo ele próprio ritmo, fitou Marty, que
estava de olhos arregalados e boca aberta:
- Que espécie de droga tomará aquele gajo? - sussurrou.

Marty fechou os olhos e pôs-se em pé com dificuldade:
- Eu... não me sinto muito bem... - murmurou.
Na pista de dança, muito dos jovens estavam tão embrenhados
na magia do momento que nem repararam que o som da
banda se estava a desintegrar. George MacFly em particular
estava totalmente ignorante da música. Tendo sido posto de
lado, via Dixon rodear a cintura da Lorraine com um braço, ao
mesmo tempo que se preparava para lhe pegar na mão.
Lorraine fitava George, desamparada.
A hesitação dele foi breve. Dando um passo largo na direcção
de Dixon, disse simplesmente:
- Desculpa.
Saiu-lhe na melhor tradição de Clint Eastwood, breve,
suave, mas com um tom subjacente de ameaça factual e muito
confiante. Estendendo uma das mãos para atirar Dixon a três
metros de distância, pegou em Lorraine com a outra e abraçou-a.
Levantando-lhe o queixo, beijou-a docemente nos lábios.
Marty sentiu uma onda de renovada energia percorrer-lhe
todo o corpo. Inteiriçado como se tivesse sido atingido por um
choque eléctrico, olhou outra vez para a mão e braço direitos. Já
não estavam transparentes!
- Graças a Deus! - E sorriu.
Arrebatando a fotografia de família da algibeira, riu, fez
uma pequena pirueta no palco e voltou a agarrar na viola. Linda,
Dave e ele próprio estavam todos de novo no retrato, completamente
intactos, e a sensação que tinha na mão dizia-lhe que os
seus poderes musicais tinham sido restaurados..
- Pronto! - exclamou. - Vamos a isso!
Recuperando o ritmo, conduziu o grupo a uma conclusão
vigorosa de "Earth Angel". A multidão aplaudiu.
- És mesmo bom, pá - disse Marvin Berry. - Toca
outra.
Marty olhou para o relógio. Pela porta, do outro lado do
ginásio, viu um relâmpago:
- Não, tenho de me ir embora - respondeu.
Mas Bob Jordan agarrara-o suave nas firmemente por um
braço:
- Vá lá, vamos tocar uma de arromba - sorria.
Marty decidiu que tinha tempo:
- Bem, está bem - condescendeu. - Vocês só vão ter
de me seguir nesta... - Chegando ao microfone, disse:
Vamos tocar mais uma. De onde eu venho, chama-se a isto rock
'n'roll!
Tocou uma corda da viola, marcando o ritmo, e depois olhou
para Jordan:
- Dá-me um ritmo de blues, como este - disse, exemplificando.
Jordan, sorrindo, captou-o imediatamente e aumentou-lhe
a pulsação.
- Óptimo! - exclamou Marty. Virando-se para o contrabaixista,
cantarolou dois compassos. - Toca isto e depois vai
seguindo à medida que eu mudar - disse.
O tocador de contrabaixo acenou que tinha compreendido.
- Piano, pega na sequência do contrabaixo e toca-a três
oitavas mais acima - continuou Marty. - E saxofone improvisa
a partir da progressão dos três instrumentos de
cordas.
A princípio foi tudo esfarrapado, mas pouco depois a equipa
começou a funcionar - e a música a soar como rock "n" roll do
melhor. Na pista de dança, as cabeças viraram-se e os garotos
começaram a dançar mais depressa. Poucos minutos depois, o
pandemónio começava a espalhar-se - nunca tinham ouvido
música assim. Entusiasmando-se ele próprio, Marty arrancou o
casaco de desporto e atirou-o para a multidão. Os seus movimentos
tornaram-se cada vez mais parecidos com os de Mick Jagger...
depois Michael Jackson... até que deslizou para puro
Heavy Metal, pondo a viola junto do amplificador para gerar
duplicação de sons. Rindo e gritando palavras de encorajamento,
os membros do conjunto improvisavam freneticamente, seguindo
toda a progressão de Marty com espanto e logo destreza
profissional. Dentro das paredes do ginásio, só um rosto permanecia
frio e sem ser afectado pelo novo som - o de Gerald
Strickland.
- Quando se pensa que já não podem piorar - resmungava
de si para si -, eles dão a volta e pioram mesmo.
George, a dançar sem fôlego com a Lorraine, sentia um novo
espírito a percorrê-lo. Fizera finalmente algo bem feito e a
noite
parecia mágica! Lorraine, a música, os cumprimentos dos que o
rodeavam, tudo se integrava num padrão que dizia: Felizes para
sempre. Queria que a noite continuasse eternamente.
Isso, claro, era impossível. Demasiado depressa, Marty
embrulhou a canção num acorde final e recuou, sorrindo, para
agradecer os aplausos estrondosos.
Toda a gente começou a falar ao mesmo tempo - sobre a
música e os feitos de George Macfly. Enquanto este e Lorraine se
encaminhavam para o palco, ele sentiu dezenas de mãos estenderem-se
para lhe tocar.
- Ei, George! - dizia uma voz. - Contaram-me que
despachaste o Biff? Bom trabalho!
- George, alguma vez pensaste em te candidatar a chefe
de turma? - indagava uma rapariga atraente.
- Não há dúvida que serias útil na nossa equipa, George
- dizia outro rapaz.
Sem saber que equipa ele representava, George só pôde
defender-se com:
- Bem, tenho de pensar nisso - e sorrir.
Lorraine, revendo-se na sua notoriedade e recém-descoberto
respeito, agarrava-lhe com força o braço e sorria-lhe.
Um sorridente e transpirado Marty aproximou-se deles de
mão estendida para George apertar:
- Parabéns - cumprimentou. - E, para o caso de estares
preocupado com isso, o Biff estava mesmo a sério.
- Ainda bem - respondeu George. O único ligeiro temor
da sua paranóia - o de que Biff Tannen tivesse de algum modo
fingido ter sido posto fora de combate - fora agora sossegado e
George estava completamente feliz. - Parabéns para ti também
- disse. - És bestial.
- Obrigado.
Ficaram a sorrir e a falar de coisas sem importância até que
Lorraine acabou por pousar a mão no braço de Marty:
- Marty - disse-lhe -, espero que não te importes,
mas o George perguntou-me se podia levar-me a casa.
- Óptimo, Lorraine - Marty acenou. - De facto, é
formidável. Não há nada que me agrade mais. Sabem, sempre
tive a impressão que vocês dois ligavam bem!?
- Eu sei - disse ela. - Acho que também tenho uma
impressão dessas. Creio que o George pode mesmo fazer-me
feliz.
- Sim. Ouçam, eu vou ter de sair da terra.

- Oh, que pena! Quando? No fim do período?
- Não. Esta noite. E só queria dizer-vos que foi... educativo.

- Voltaremos a ver-nos alguma vez? - quis saber
Lorraine.
- Ah, sim, isso garanto.
George avançou para lhe apertar outra vez a mão:
- Então boa noite e adeus - despediu-se. - Obrigado
pela tua ajuda... e por todos os teus bons conselhos. Espero um
dia poder fazer o mesmo por ti.
Marty riu:
- Provavelmente dar-me-ás mais conselhos do que eu
posso seguir.
Virou-se para se ir embora, mas deteve-se:
- Hum, ouçam - disse ainda -, se vocês alguma vez
tiverem filhos, e um deles aos oito anos incendiar acidentalmente
a carpete da sala... por favor não exagerem com ele.
- A... claro -redarguiu George, pensando que era um dos
pedidos mais estranhos que alguma vez ouvira.
No momento seguinte, ele desaparecera. George e Lorraine
ficaram a olhar um para o outro, de mãos firmemente entrelaçadas.

- Marty - pronunciou baixinho. - É um nome lindo.
Quando tiver filhos, um deles há-de chamar-se Marty.
- Não estás a apressar um bocado as coisas? - Riu
George.
- Bem, talvez um pouco. Eu estava a pensar que gostaria
de ir para a universidade, no ano que vem.
- Eu também - afirmou George. - De facto, vou, independentemente
do que o meu pai diga.

@CAPÍTULO XIII

Às 9:45 Doc Brown começou a ficar apreensivo. Cinco minutos
depois, estava verdadeiramente nervoso. Às 9:55 anda vigorosamente
para trás e para a frente.
- Bolas! - resmungava. - Onde estará aquele garoto?
A sua gabardina oscilava ruidosamente ao vento, como uma
vela de barco apanhado por uma tempestade. A trovoada distante
atroava agora sombriamente o ar à sua volta, pontuada
por relâmpagos bem visíveis, que iluminavam a sua estrutura de
cabos, desde a torre ao candeeiro. A Praça Principal estava
deserta, se exceptuarmos uma pequena matilha de cães, e ele
estava pronto para a partida. Mas não havia sinais de Marty.
Doc meteu a mão à algibeira e retirou um reloginho redondo,
de cerca de 1890. Dizia: 9:56. A mesma hora estava marcada nos
relógios que usava nos dois pulsos. Não havia qualquer dúvida
no seu espírito de que só oito minutos faltavam para o aparecimento
do raio que podia enviar Marty de regresso a 1985.
- Bolas! - repetiu, desta vez em voz alta e vibrante.
Afastando-se do passeio para o meio da estrada, grunhiu ao
ver um carro que se aproximava a uma velocidade arrojada:
- Bom - acabou por rosnar, quando teve a certeza de
que o veículo era o seu Packard. - Mas para quê guiar assim,
palhaço? Para quê rebentar o carro errado?
Um momento depois, o próprio Marty, estava ao dispor para
dar a resposta. Vestido com as suas roupas de 1985, encostou o
carro de Doc ao passeio, saltou de lá, respirou fundo e sorriu um
pouco timidamente.
- Estás atrasado! - ralhou Doc Brown. - Não tens
nenhuma concepção do tempo?
- Desculpe, Doc.
- E por que é que vinhas a conduzir o meu carro como um
louco?
- Era uma experiência. Queria ver que velocidade conseguia
atingir naquele percurso. E ainda bem que a fiz. Há um alto
na estrada perto de Cherry Street que parece quase um trampolim.
Se lá embatesse a maior velocidade, podia ser projectado
para uma montra. Mas se usar o lado esquerdo da estrada tudo
correrá bem.
- Hum - retrucou Doc Brown. - Isto está tudo muito
bem, mas, e se fosses apanhado por um polícia?
- E se for apanhado por um polícia quando estiver na
máquina do tempo? - contrapôs Marty.
- Se isso acontecer, continuas, pá. Ou acabas em 1985 ou
no átrio daquele cinema.
- Sim - Marty engoliu em seco. - Estou a ver onde
quer chegar.
Resmungando de si para si, Doc Brown começou a retirar o
oleado de cima do DeLorean e a erguer o gancho de trolley a toda
a sua altura, na parte de trás.
- Depressa, depressa, depressa-murmurava. -Não
podias ter chegado mais em cima da hora.
- Ouça, desculpe- retorquiu Marty, sentindo-se agora
culpado por ter passado tanto tempo a matraquear com os
Starlighters. - Tive de ir mudar de roupa e juntar a mamã e o
papá levou mais tempo do que eu pensara.
A maior parte da irritação estava a começar a abandonar
Doc Brown agora que ele tivera a oportunidade de se lamentar
e queixar um pouco. Com um pouco mais de vivacidade, replicou:
- Bem, isso percebo, conhecendo George MacFly. Então o
plano resultou?
- Na perfeição- sorriu Marty. -Estão pelo beicinho e
vão continuar assim até à forca. E aqui está a prova de que é
verdade.
Tirando a carteira, mostrou a Doc Brown a fotografia de
família com todos os elementos recuperados.
- Óptimo - comentou Doc.
- Acho que até é possível o papá ir para a universidade
- acrescentou Marty. - Agora tem uma grande autoconfiança.
Doc Brown franziu-se ao mesmo tempo que prosseguia a sua
última verificação do DeLorean antes do voo:
- Então aí tens mais uma coisa para te preocupar entre
agora e a altura em que regressares a 1985 - afirmou.
- Que é?
- Bem, se ele for para a universidade, graças a ti, isso vai
mudar a sua vida.
- Para melhor, espero - ripostou Marty.
- Talvez, mas imagina que enquanto lá está encontra
uma colega que o atrai mais do que a tua mãe. Isso pode provocar
o teu desaparecimento instantâneo. Ou imagina que por causa
das despesas com os estudos a tua mãe e o teu pai decidem
atrasar a vinda dos filhos por uns anos. Se isso acontecer, podes
descobrir, que tens doze ou catorze anos em 1985 em vez de
dezassete. Agrada-te a ideia?
Marty abanou a cabeça descoroçoado. O que o seu amigo e
mentor dizia fazia indiscutivelmente sentido. Tudo o que ele
podia desejar era que a existência futura dos pais fosse aproximadamente
a mesma que da primeira vez:
- Bem pensado, Doc - disse. - Mas acho que já é tarde
demais para nos preocuparmos com isso. Eu estou mesmo
contente por o papá ter acabado por se revelar. Deu cabo do Biff
Tannen só com um soco... pô-lo logo a dormir... Nunca fiz ideia
de que ele fosse capaz daquilo. Que diabo, o meu velho nunca fez
frente a Biff em toda a sua vida. E pensar que eu estava presente
quando isso finalmente aconteceu.
- Óptimo- concordou Doc Brown acenando com a cabeça.
- Agora entra aí e marca o tempo de destino. Estamos com
uma pressa diabólica.
Marty saltou para o DeLorean e ficou a ver Doc premir as
teclas de modo a que tanto o ÚLTIMO TEMPO DE PARTIDA como
o TEMPO DE DESTINO ficassem marcados como 26-10-1985,1:31
da madrugada.
- Pronto- disse ele. -Se resultar, será como se nunca
tivesses partido.
- Obrigado, Doc... - começou Marty. - Gostava mesmo
de lhe agradecer...
Brown ergueu a mão:
- Não há tempo - disse. - Ouve. Pintei uma faixa
branca lá ao fundo da rua. É de lá que deves partir. Fiz uns
cálculos para que a tua corrida seja tão breve e eficiente quanto
possível. Se carregares no acelerador e partir desse ponto e não
levantares o pé, atinges as oitenta e oito milhas por hora
exactamente no momento necessário.
- Formidável.
- Ora eu calculei a distância precisa, tomando em conta
a velocidade de aceleração e a resistência do vento em termos
retroactivos a partir d o momento em que o raio cair...Entregou
a Marty ùm despertador de corda que parecia estranhamente
antiquado por comparação com as indicações digitais
e os mostradores a acender e apagar do tablier do DoLorean.Quando
o despertador tocar, carrega a fundo a partir da linha
branca. É tudo o que tens de fazer, além de guiar esta beleza até
ao ponto certo.
Marty acenou a sua compreensão.
- Bem, creio que é tudo - afirmou Doc Brown. - Boa
sorte.
Marty estendeu a mão:
- Doc, gostaria de lhe agradecer por tudo. Mesmo que
algo corra mal...
- Nem penses nisso - interrompeu Doc. - Tudo vai
correr às maravilhas. E eu é que gostaria de te agradecer por tudo.

Foi um prazer.
Os dois homens apertaram-se as mãos.
- Até de aqui uns trinta anos - disse Doc.
- Assim espero.
Uma vez mais Marty pensou no encontro de Doc Brown com
os terroristas e desejou que a carta que colocara ajudasse a
proporcionar um fim mais feliz à vida do seu amigo.
- Não te preocupes - continuou Doc Brown, interpretando
a expressão de Marty como de preocupação quanto à iminente
corrida para a frente no tempo. - Desde que atinjas o fio com
este gancho, tudo correrá bem.
- Certo - acenou Marty.
Tendo-se certificado de que tudo estava em ordem, Doc
Brown desceu do automóvel, consultando ainda pedaços de
papel e blocos, à procura de algo que pudesse ter esquecido.
Enquanto assim procedia, fez a única coisa que Marty não queria
que ele fizesse - descobriu o sobrescrito desconhecido dentro da
algibeira interior da gabardina. Retirando-o, fitou-o com curiosidade:

- O que é isto? - perguntou.
- Só um bilhete, de mim para si - gaguejou Marty.
- É sobre qualquer coisa do futuro, não é?-concluiu Doc
Brown.
- Não: É só um bilhete de agradecimento - mentiu
Marty. - É um bocado piegas.
Doc abanou a cabeça com cepticismo:
- As pessoas não escrevem bilhetes de agradecimento
para serem abertos trinta anos mais tarde - garantiu. - Eu
avisei-te quando a brincar com o futuro, garoto. As consequências
podem ser perigosas. Agora sei que isto tem a ver com o
futuro, e já te disse um milhão de vezes que não nos devemos
intrometer nele.
- Tenho de correr esse risco, Doc - ripostou Marty
firmemente. - A sua vida depende disso.
- Bem, eu não vou aceitar a responsabilidade-resmungou
Brown.
Dito isto, rasgou a carta e atirou os bocados para o cinzeiro
do seu Packard.
Marty estava furioso. Por que é que o tipo não aceitava um
aviso para seu próprio bem?
- Está bem, Doc - atirou-lhe. - Nesse caso vou ter de
lhe dizer já...
Antes de ele poder acabar, um tremendo golpe de vento
abanou o carro e quase arrastou Doc Brown para longe do sítio
em que se encontrava, junto da porta aberta. Ao mesmo tempo,
ouviu-se um ruído de algo a partir-se, seguido por uma sucessão
de sons de queda, menores.
- Santo Deus! - exclamou Doc Brown.
Marty saltou do carro e ambos correram para os candeeiros.
Uma enorme ramada de um dos carvalhos gigantescos da praça
repousava agora sobre o cabo que se estendia entre o candeeiro e
a torre do relógio, de que uma extremidade oscilava agora
livremente.
- Valha-nos Deus! - Gritava Doc Brown enquanto corriam.
- Ó pá... vê lá se descobres a ponta desse cabo. Eu atiro-te
a corda.
Dito isto, Brown agarrou num enorme rolo de corda e correu
para dentro do palácio da justiça.
Marty engoliu uma vez em seco e logo se atirou ao trabalho.
Na semiobscuridade, não era fácil localizar a ponta do cabo no
meio da confusão de ramos e folhas, mas ele saltou para o monte
de destroços e começou a procurar. Ao fazê-lo, sentia o vento a
intensificar-se ainda mais. Trovões que ribombavam demoradamente
avisavam-no de que o tempo se estava a esgotar; a
tempestade aumentava de ferocidade; só uns minutos o separavam
de 1985 e do raio que o transportaria para lá.
- Bolas! - berrou. - Onde diabo estás?
Indiferente aos ramos que lhe cortavam a pele, continuou a
vasculhar o monte. Doc Brown, entretanto, corria pelas escadas
do palácio da justiça subindo de cada vez três degraus da antiga
torre sineira. Ao chegar à sala que abria para a varanda mesmo
por baixo do relógio, viu os pombos esvoaçarem por lhes ter
invadido o santuário interior da máxima segurança. Com o
cabelo varrido pelo vento e as feições agrestes iluminadas por
relâmpagos, Doc Brown assemelhava-se verdadeiramente ao
estereotipado cientista louco em missão que abalasse o mundo.
Olhou para cima e viu que a ficha de ligação pendia do seu
cabo entre o 1 e o 2 do enorme mostrador do relógio. A outra
ponta continuava ligada ao pára-raios, lá em cima na torre.
Baixando o olhar, viu Marty, a cinco andares de distância, a
acenar com a tomada que acabara de localizar.
- Óptimo! - gritou Doc Brown.
Atirou a corda, que se desenrolou e aterrou a pequena
distância de Marty. O jovem agarrou-a, atou-lhe a ponta da
tomada e acenou logo para Doc Brown.
Este correspondeu com a cabeça e começou a içar a corda
com o cabo agarrado de regresso à torre. Enquanto continuava a
operação manual, via a boca de Marty a mexer-se e ouvia
palavras parciais.
- O quê? - gritou para baixo.
Marty pôs as mãos em concha junto à boca e berrou tão alto
quanto pôde:
- Tenho de lhe falar do futuro, Doc! Por favor, ouça!
As palavras perderam-se por entre um novo golpe de vento
que quase arrancou a corda das mãos de Doc:
- Não consigo ouvir-te! - gritou por sua vez, Doc.
- O futuro! - berrou novamente, Marty. - Na noite
em que eu viajo para trás no tempo, os terroristas aparecem e
apanham-no...
- Terror-quê?
- Terroristas! Eles...
Bong! Bong!
O relógio começou a dar as dez horas. Batendo furiosamente
com os pés no chão, Marty esperou, sabendo que não tinha
qualquer hipótese de ser ouvido.
Com os enormes sinos a tocarem tão perto. Doc Brown quase
perdeu o equilíbrio. Depressa recuperou a firmeza, porém, e
conseguiu içar o resto da corda. Agarrando a tomada, olhou para
baixo para Marty e gesticulou-lhe que se metesse no carro e
partisse.
No chão, Marty hesitou. Sabia o que Doc Brown queria dizer
e compreendia a urgência da situação. Mesmo assim, queria
tentar mais uma vez dizer ao amigo o que lhe estava reservado
se não se acautelasse. Olhou para cima. Doc Brown gesticulava
violentamente na direcção do DeLorean, e depois na do seu
relógio.
Marty suspirou, virou-se e voltou a correr para o automóvel.
- Corre, pá, corre! - gritava Doc Brown da torre do
relógio. Vendo que Marty o fazia, desatou a corda da ponta da
tomada e olhou para a ficha que oscilava junto ao mostrador do
relógio. Ficava a uma boa distância. Estendendo a mão, verificou
que tinha de subir para o parapeito para fazer a ligação.
Enquanto se erguia cautelosamente para a estreita faixa de
pedra, Doc viu o DeLorean pôr-se em movimento e começar a
descer a rua.
- Óptimo - murmurou. - Agora só tenho de me assegurar
de que ele não vai disparado pela rua abaixo para nada.
Rastejando pelo parapeito, com as mãos comprimidas contra
a parede e as unhas enterradas o mais possível, Doc tentou
pensar em tudo menos no vento e na clara possibilidade de cair.
Os relâmpagos projectavam sombras e silhuetas fantasmagóricas
na parede da torre do relógio e cada trovão fazia estremecer o
edifício.
- Estarei vivo em 1985 - disse, apercebendo-se ao mesmo
tempo de que estava desafiando a sorte. -Estarei vivo em 1985
- portanto estou em segurança agora.
As palavras saíam-lhe, mas ele sabia quão falazes eram.
Estar vivo em 1985 dependia de ele não trepar torres de relógio
em 1955.
- Bem - arquejou. - Vamos lá fazer isto.
Inclinando-se na direcção do vento, estendeu a mão para o
cabo oscilante, sentiu-o escorrer-lhe por entre os dedos, respirou
fundo e estendeu outra vez a mão.

Marty chegou à "linha de partida" que Doc Brown lhe
preparara, fez inversão de marcha e ficou sentado no DeLorean
em ponto morto, de olhos hipnoticamente fixos no despertador
ao seu lado.
- Bolas, Doc - murmurou. - Por que havia de rasgar
aquela carta? Se ao menos eu tivesse um pouco mais de tempo
para explicar...
Enquanto considerava o problema, afastou a vista do despertador
e fitou as indicações de TEMPO DE DESTINO e ÚLTIMO
TEMPO DE PARTIDA, ambas marcando 1:31 da madrugada.
- É isso - acabou por dizer. - Não tenho qualquer
hipótese de ter mais tempo deste lado, mas por que não hei-de
arranjar mais tempo do outro lado?
Dito isto, começou a carregar nos botões apropriados do
teclado do TEMPO DE DESTINO de modo a passar de 1:30 para
1:29 e mesmo mais cedo. .
- Claro - sussurrou. - Apareço em 1985 uns minutos
antes de os terroristas alvejarem Doc e aviso-o então.

Viu a indicação de TEMPO DE DESTINO passar de 1:26 para
1:24 e depois ficou parado, a pensar se sete minutos seriam
suficientes.
Imediatamente a seguir, o motor do DeLorean abanou duas
vezes e parou. Marty rodou a chave na ignição, mas o carro não
pegava.
- Vá lá, vá lá - rosnava ele. - Não me digas que vim
até aqui para ficar sem gasolina!

Doc Brown, segurando o cabo solto na mão esquerda, deu um
passo no parapeito da torre do relógio e tinha o pé suspenso para
dar outro quando ouviu o barulho. Era o estalar de pedra a
desintegrar-se rapidamente e ele ouviu-o uma fracção de segundo
antes de sentir o seu próprio corpo começar a cair. Largando
o cabo, saltou para a frente para agarrar o único objecto que
ficava entre ele próprio e o chão - o ponteiro dos minutos do
relógio da torre do palácio de justiça.
- Maldição! - berrou.
Ao mesmo tempo que falava, sentiu uma coisa bater-lhe no
pé esquerdo. Olhando para baixo, viu que o cabo continuava
pendurado no ar, com a ponta precariamente equilibrada no seu
peito do pé. Durante um longo momento, Brown limitou-se a
ficar ali pendurado, com o vento a soprar-lhe no cabelo e os
relâmpagos a iluminarem-lhe as feições aterrorizadas. Depois,
movendo cuidadosamente o pé direito para a secção intacta da
pedra, arrastou o corpo para a segurança, tentando ao mesmo
tempo manter o cabo em equilíbrio e, em última análise, ao seu
alcance. Quando o pé direito ganhou firmeza, respirou fundo,
deu um salto e, ao mesmo tempo, atirou o cabo ao ar, com um
pontapé que lhe permitisse apanhá-lo com a mão esquerda.
Pensou que a parte seguinte do seu trabalho - colocar a
ficha na tomada - seria fácil. Mas, quando tentou uni-las,
descobriu que ficavam a uns trinta centímetros de distância.
- Como diabo aconteceu isto? - gemeu.
Abanando a cabeça, espreitou para baixo, para a cena
alternadamente sombria e vistosamente iluminada. A causa do
seu dilema em breve se tornou aparente: um ramo de árvore
estava preso no cabo, eliminando a elasticidade necessária para
que as duas pontas unissem. Puxando e sacudindo a ponta do
cabo, lutou por o libertar, mas sem êxito. Desesperado, aumentou
a violência dos puxões, acabando por dar um tão tremendo ao
cabo que o libertou da árvore:
- Bom! - gritou, e logo: - Raios!
A ficha do outro lado da ligação soltara-se, deixando Brown
com uma ficha inútil nas mãos.
Se se considerar o absoluto desespero que sentia, a reacção
de Doc Brown foi comparativamente suave. Agarrando-se ao
lado da torre, limitou-se a fechar os olhos e a tentar não pensar
em nada por um momento. Mas, mesmo com os olhos fechados, via
os relâmpagos à sua volta com ferocidade crescente e sentia a
trovoada abalar o palácio da justiça. Forçando o seu espírito a
pensar, perguntou a si próprio: "Há alguma forma de conseguir
ligar tudo?"
- Sim - murmurou finalmente. - É provável que morra,
mas... que diabo!
Atando os dois cabos soltos, fez a ligação, experimentou-os
para ter a certeza de que estavam bem firmes, respirou fundo e
saltou.
Enquanto deslizava pelo cabo até ao chão, sentia as mãos a
arder, mas manteve-se bem seguro até os seus pés embaterem
no solo bem sólido. Então desatou a correr com o cabo para o
candeeiro.

- Merda!
Continuando a insistir com a ignição, Marty estremeceu ao
ouvir o despertador tocar.
- Vá lá! Vá lá! - gritava.
A ignição cuspia, tossia, até que - miraculosamente pegou.
Carregando com o pé no acelerador, Marty foi atirado para
trás no assento quando o DeLorean avançou à desfilada. Queimando
borracha, chegou às quarenta milhas por hora em meio
quarteirão e aproximava-se das sessenta e cinco quando a Praça
Principal se tornou visível. A olhar a direito em frente, Marty
avistou o fio que passava de um lado ao outro da rua e concentrou
nele a sua visão. Tão atento estava,que nem viu a figura de Doc
Brown a correr para o candeeiro, de cabo na mão. Menos de um
segundo antes da queda espectacular de um raio, Doc fez a
ligação do cabo, rodopiou sobre si próprio e caiu para trás.
Deitando uma olhadela ao velocímetro, Marty viu que o carro ia
a oitenta e oito milhas à hora.
Então houve um tremendo estrondo de relâmpago e trovão
simultâneos. A paisagem e os edifícios a toda a volta de Marty
ficaram completamente brancos, como as casas no filme sobre os
testes de bombas atómicas. "Meu Deus", pensou ele, "fui atomizado".
Um ligeiro encontrão disse-lhe que o gancho no trolley
colocado na parte de trás do DeLorean entrara em contacto com
o cabo. No tablier, os mostradores iluminaram-se quando o
capacitador de fluxo brilhou e descarregou. Seguiu-se um intenso
ruído dissonante, o DeLorean avançou como se tivesse sido
atirado para órbita e a negrura desceu.
Da sua posição prostrada junto ao candeeiro, Doc Brown viu
a máquina do tempo estabelecer contacto com o cabo electrificado.
A chuva continuava a cair, mas ele nem dava por ela. Em vez
disso, viu uma montagem de imagens rápidas - o cabo incandescente,
o raio a atingir o relógio da torre, o DeLorean
parecendo
envolto num nevoeiro amarelo -, o que o fez pôr-se em pé de
um salto e soltar um grito de guerra índio:
- Conseguimos! - exclamou. - Era impossível mas
conseguimos!
Era verdade. Como se tivesse sido engolido pela terra ou por
uma gigantesca mão vinda de cima, o DeLorean desaparecera.
Tudo o que restava era o poste do trolley, que se soltara à
passagem do automóvel por baixo do cabo. Agora oscilava debilmente,
batido pela chuva e pelo vento, unicamente recordação
das viagens do jovem Marty MacFly, que tinham abarcado sessenta
anos para trás e para a frente no tempo.
- Boa sorte - disse Doc Brown já em voz baixa. - Ver-nos-emos
em breve... espero.

@CAPÍTULO XIV

A viagem pelo túnel negro abrandou e terminou finalmente.
O carro deteve-se mas a escuridão continuou a rodear Marty,
quebrada apenas pelo brilho de mostradores e indicadores.
Baixando os olhos para eles, viu que ÚLTIMO TEMPO DE PARTIDA ERA
5-11-1955, 10:04 da noite, TEMPO PRESENTE e TEMPO DE
CHEGADA, que eram os mesmos, indicavam 26-10-1985, 1:24 da
madrugada. Sendo assim, porquê a escuridão? Marty pensou na
cena de um filme que vira sobre uma máquina de viajar no tempo
em que o veículo ficava fechado numa montanha. Poderia ter-lhe
acontecido isso a ele?
Gradualmente, à medida que os seus olhos se habituavam à
escuridão, percebeu que se encontrava dentro de um edifício.
Atrás havia um círculo de luz difusa.
- Bem - murmurou -, parece que só posso recuar.
Metendo a marcha atrás, dirigiu-se para a fonte de luz.
Quando emergiu para a noite, viu que o seu ponto de chegada
tinha sido o interior do entaipado Teatro Municipal. Tudo o resto
estava como convinha a 1985 - o salão Studebaker era agora da
Toyota, a loja de batidos desaparecera e o palácio da justiça tinha
mais trinta anos em cima.
- Tudo certo! - gritou Marty.
Baixou a mão para ligar o telefone do carro. Estava a ser
tocada música rock contemporânea.
- Tudo certo! - repetiu.
Então pensou em Doc Brown. Havia tempo de celebrar mais
tarde. Agora tinha de se concentrar em salvar o amigo da morte
violenta e sangrenta.
Meteu a mudança, sentiu o motor vacilar e parar.
- Merda! - berrou.
Desta vez não funcionava mesmo. Depois de tentar durante
um minuto, Marty não conseguiu gerar o mínimo resquício de
energia renovada. Enquanto continuava a tentar, levantou os
olhos e viu a conhecida carrinha dos terroristas descer a rua e
dobrar uma esquina.
Horrorizado, saltou de dentro do automóvel.
- Os terroristas! - exclamou.
Então desatou a correr, atravessando a Praça Municipal e
descendo toda a Rua 2ª em direcção à alameda. Ao chegar à
entrada, viu que se chamava Lone Pine Mall e estava decorada
com imagens de um único pinheiro em vez de dois. De resto, tudo
era igual. Mas o DeLorean empanado fizera-o perder um tempo
precioso; a carrinha dos terroristas já estava no parque de
estacionamento, a perseguir Doc Brown, enquanto a figura
solitária de Marty MacFly assistia aterrorizada.
Marty ficou imóvel, aterrorizado e surpreendido.
- Oh, não! - arquejou. - Chego demasiado tarde.

A cena fundiu-lhe a mente. Ali estava Doc a morrer outra vez
sob as suas vistas. Então, quando a saraivada de balas atirou
Brown para o chão, Marty viu-se a si próprio a saltar para o
DeLorean e partir à desfilada. Já tinha vivido a cena uma vez em
carne e osso, mas ficou de novo a observá-la, fascinado pela
repetição vista de um ângulo diferente.
Tal como antes, a carrinha dos terroristas deu a volta e
perseguiu o DeLorean, que executou uma excelente inversão de
marcha e correu para o lado oposto do parque de estacionamento.
Continuou a acelerar, ao mesmo tempo que era alvejado, até
ficar envolto num fulgor branco que quase cegava.
Perdendo o domínio do seu veículo, o condutor da carrinha
terrorista foi forçado a guinar para um pavilhão Fox Photo à
beira do parque de estacionamento. O veículo capotou e ficou
com um lado da porta para baixo, prendendo os terroristas no
seu interior. À distância, uma sirene de polícia apitava.
- Jesus! - sussurrou Marty.
Recordando-se de súbito de Doc Brown, virou-se e correu
para a figura estendida, que continuava de rosto encostado ao
asfalto. Havia lágrimas nos olhos de Marty quando voltou o
amigo:
- Doc... - disse baixinho. -Doc... por favor, não esteja
morto, Doc...
- Bem, está bem, já que tanto insistes - respondeu o
morto aparente, abrindo os olhos e sorrindo:
- Está vivo! - gritou Marty.
- Claro que estou vivo.
- Mas foi atingido a tiro - eu vi! - exclamou Marty.Vi-o
duas vezes!
- Em repetição instantânea, não é? - Doc voltou a sorrir.
Marty concordou de cabeça.
- A explicação é simples - afirmou Brown.
Abriu o seu fato protector de radiações e revelou um colete
à prova de balas.
- É a última moda em protecção pessoal - explicou.Garantido
para deter um balázio de espingarda gigantesca a
vinte e sete metros.
- Teve isso vestido o tempo todo? - interrompeu Marty.
- Infelizmente não - redarguiu Doc Brown. - Da primeira
vez devo ter sido apanhado de surpresa. Não, meu rapaz,
foi o teu aviso que me salvou.
Dito isto, meteu a mão no bolso e tinha a carta que Marty
escrevera em 1955. Esta amarelada e amarfanhada, com a fita
gomada que a unia envelhecida e prestes a estalar.
Marty sorriu e abanou a cabeça.
- Que hipócrita - comentou. - Depois de todos aqueles
sermões acerca de alterar o contínuo espaço-tempo...
- Sim, bem, pareceu-me, que diabo...
Nas proximidades, os polícias tinham saltado dos seus
carros e estavam ocupados a deter os terroristas.
- Vamos embora daqui - disse Doc Brown. - Isto vai
ser impossível de explicar.
- Inteiramente de acordo - aquiesceu Marty.
Juntos, correram para o centro do parque e desapareceram
nas sombras ao mesmo tempo que mais carros da polícia viravam
a esquina para a alameda.
Enquanto se afastavam na caravana, os dois homens discutiam
as suas aventuras:
- Acho que alterei um bocado as coisas - afirmou Marty
à entrada da alameda.
- Como?
- Bem, isto era a alameda Twin Pines no 1985 que eu
conheci primeiro. Mas, quando fui ao passado, derrubei acidentalmente
um dos pinheiros do lavrador. Acho que é por isso que
agora lhe chamam Lone Pine.
Doc Brown sorriu:
- Provavelmente repararás em muitas coisas assim
- comentou.- Será a tua brincadeira muito pessoal com Hill
Valley para o resto da tua vida.
- Sim...
Uns minutos depois, chegaram junto do DeLorean e Doc
entrou nele:
- Não pega, é? - disse.
Marty confirmou com um aceno de cabeça.
Doc levou a mão abaixo da ignição, accionou um interruptor
escondido e sorriu quando o motor começou ruidosamente a
trabalhar.
- Quais são os seus planos agora? - Quis saber Marty.
- Bem, primeiro vou esperar que os chuis limpem a
confusão no parque de estacionamento e depois levo a minha
caravana de lá para fora - informou ele. - Tenho mais
uns pedaços de plutónio que posso utilizar em viagens, portanto
acho que as vou fazer. Afinal, o tempo passa.
- A que distância tenciona ir?
Doc encolheu os ombros:
- Acho que a princípio vou devagar - respondeu.Talvez
vá a uns trinta anos daqui, só para molhar o pé. Depois
pode ser que vá dar uma olhadela aos séculos 22 ou 23...
- Bem, boa sorte - desejou-lhe Marty. - Se tiver a
oportunidade, procure-me em 2015. Eu terei... vejamos... quarenta
e sete anos. Ena. Que velho.
Doc Brown soprou:
- Criança, queres tu dizer. De qualquer modo, de certeza
que te vou procurar, meu rapaz. É curioso, não é? Tive de esperar
trinta anos para te apanhar. Agora és tu que vais ter de esperar
trinta anos para me apanhares. A vida não é mesmo estranha...?
Piscou um olho: Marty fechou a porta e viu-o afastar-se no
carro.

Quando acordou, estava ainda vestido e a luz do Sol da
manhã entrava-lhe pela janela do quarto que conhecia tão bem
e contudo agora lhe parecia tão estranho. Tudo lá continuava,
desde os cartazes SR5 ao equipamento auditivo. Um calendário
na parede com X nos primeiros vinte e cinco dias de Outubro de
1985 informou-o de que aquele era o dia 26.
Poderia ter sido tudo um sonho?
Saindo da cama, viu-se ao espelho, beliscando-se diversas
vezes para ter a certeza de que a carne que o fitava do outro
lado era verdadeira.
Ao lado do espelho de corpo inteiro estava um cesto de papéis
de onde sobressaía um objecto familiar: o impresso para submeter
gravações à editora de discos. Atirara-o para lá,
desesperado, na noite anterior - ou teria sido trinta anos antes?
Agora esse acto parecia-lhe tão juvenil como o George MacFly de
1955. Tirou uma fita gravada da gaveta de cima e meteu-a num
sobrescrito juntamente com o impresso.
- Por que não? - disse. - A minha música entusiasma-os
há três décadas. Ganhar está no papo.
Passado poucos minutos, depois de se lavar, desceu para o
pequeno-almoço. Linda e Dave estavam sentados à mesa da sala
de jantar. Tinham a mesma aparência facial, mas quase tudo o
que os rodeava, desde a roupa à mobília, era diferente. Dave
vestia um dispendioso fato completo e lia a revista Forbes; a
irmã
Linda estava desportiva mas elegantemente vestida e comia o
que parecia ser ovos Benedict. A casa de jantar tinha mobília
muito mais cara do que a que ele recordava e a mesa estava posta
com uma delicada toalha de linho.
À porta, parou e abanou a cabeça:
- Digam-me cá, esperamos visitas ou quê? - perguntou.
Linda e Dave fitaram-no e sorriram:
- Que eu saiba, não - respondeu Linda com um sorriso.
- Então por que é que está tudo com ar de hotel de luxo?murmurou
Marty. - Hoje não é sábado?
- É - retorquiu Dave. Marty reparou que ele estava a ler
a secção de economia do jornal da manhã.
- Não trabalhas hoje de manhã, Dave?
- Claro. Trabalho todos os sábados.
- No Burger King?
Dave riu:
- O quê? Estás com uma ressaca ou quê? - indagou.
- Não. Só não percebo o fato elegante.
Dave fixou-o, obviamente confuso:
- Estás bem, Marty? - inquiriu.
- Estou. E vocês? Estão bem.
- Claro, melhor que nunca. - Reparando no subrescrito
que Marty tinha na mão, ele estendeu a sua: - Dá cá - disse.
- Eu levo-o... e mando pôr no correio lá no escritório.
Marty largou o sobrescrito e sentou-se à mesa. Esperava-o
uma tigela de morangos frescos.
- Continuo sem perceber - resmungou. - Morangos...
ovos Benedict. Não costumávamos comer este tipo de coisas. Era
só cereais e tostas, com uma toalha de papel a servir de
guardanapo. Que está a acontecer?
A meio dos morangos, ouviu as vozes dos pais à entrada. A
conversa soava a ligeira e feliz, tendo os dois acabado de chegar
do exterior.
- Então onde é que eles estavam? - interrogou Marty.
- No mesmo sítio de sempre - replicou Dave. - A jogar
ténis no clube.
- Ténis? O papá e a mamã não jogam ténis.
- Então isso explica porque são campeões de pares há seis
anos - afirmou Linda ironicamente.
- Não posso crer.
- Onde tens estado? - Quis saber Linda.
Marty estava a considerar seriamente a hipótese de lhe
contar, quando os pais entraram na sala. A aparência deles foi
um verdadeiro choque para Marty. Ambos pareciam bronzeados
e saudáveis nos seus fatos de ténis, mas a transformação era
muito mais profunda do que isso. George MacFly irradiava
autoconfiança e satisfação, enquanto Lorraine era magra e de
aspecto dinâmico.
O queixo de Marty descaiu.
- Que se passa filho? - perguntou George MacFly.
- Mamã! Papá! - exclamou ele. - Estão com óptimo...
aspecto!
- Oh, Marty, obrigada - agradeceu Lorraine, sorrindo.
- Que quererá ele? - conjecturou Linda. - Já tem tudo.
Os pais olharam-no intrigados.
- Não quero nada - garantiu Marty. - É uma óptima
prenda só ver como estão bestiais.
- Ena - gargalhou Dave.
A mãe pôs a mão no ombro de Marty:
- Bem - disse. - Logo é a grande noite, não é?
- Marty fitou-a sem perceber.
- Não é logo à noite que tens o grande encontro com a
Jennifer Parker indagou Lorraine. - É uma rapariga encantadora.
Gosto mesmo dela.
Marty mal podia acreditar que era a sua mãe que estava a
falar, mesmo tendo em conta a transformação física. Poderia ser
a mesma pessoa que estava permanentemente a dizer mal da
Jennifer? Era evidente que não.
- Desculpa, mãezinha!? - sussurrou Marty.
- Vão para o lago logo à noite, não vão? Só vocês dois. Não
andam a planear isso há duas semanas?
-Mamã, já falámos disso ontem à noite-retrucou Marty.
- Como é que eu posso ir se o carro do papá está destruído?
- Destruído? - interveio o pai.
- Ele tem estado assim toda a manhã - explicou Dave.
- É como se tivesse ido para a cama e acordasse numa casa
diferente, com gente estranha.
Era de facto esse o caso, mas Marty não o disse. Em vez
disso, murmurou:
- Desculpem. Eu... pensei que o carro... tinha sido destruído.
Emprestaste-o ao Biff Tannen e ele foi de encontro a
outro.
O pai soltou uma risadinha:
-Bem, o carro não tem nada que eu veja. De facto o Biff está
neste momento lá fora a limpá-lo.
Marty levantou-se, foi até à janela da cozinha e olhou para
fora. Aí no caminho de acesso, encontrava-se um BMW novinho
em folha. Ao lado estava Biff Tannen, a puli-lo com diligência. A
sua expressão também parecia subtilmente alterada, destituída
da habitual arrogância e beligerância. Ao mesmo tempo que
trabalhava, assobiava uma cançoneta alegre.
- Upa - murmurou Marty: De si para si, disse: - "Que
diferença um murro nos queixos pode conseguir."
O pai abriu a janela da cozinha e chamou Biff. O seu tom de
voz era agradável mas firme:
- Biff- chamou -, não te esqueças: duas camadas desta
vez. O teu trabalho a semana passada ficou um pouco desleixado.

- Sim, senhor! - respondeu Biff num tom de voz que era
amigável e ansioso de agradável. - O patrão é o senhor
-Não sejas ditatorial, George- avisou Lorraine, sorrindo
para o marido. Apesar de estar a fazer esse aviso, era óbvio que
o adorava.
George encolheu os ombros:
- Desculpa - disse. - Não é minha intenção parecê-lo. Só
que alguns empregados tentam tomar as rédeas se não se estiver
sempre em cima deles. Sempre tive de manter o Biff na linha
desde os tempos do liceu. -Depois acrescentou com um sorriso:
- Embora se não tivesse sido Biff, a vossa mãe e eu nunca nos
teríamos conhecido.
- Sim, papá - interrompeu a Linda. - Já nos contou isso
um milhão de vezes. Bateu-lhe quando ele estava a maçar a
mamã e foi assim que vocês dois se apaixonaram.
- Foi mais do que isso - acrescentou Lorraine. - O vosso
pai veio literalmente em meu auxílio. - Suspirou. - Foi tão
romântico...
- Cidade dos Olhos em Alvo - afirmou Linda, fazendo rolar
os seus.
- Que aconteceu ao outro tipo? - perguntou Marty.
- Que outro tipo? - perguntou por sua vez o pai.
- O tipo de que me deram o nome
- Ah - murmurou Lorraine. - Nunca mais o voltámos a
ver. Desapareceu como o fumo. - Depois, fixando Marty atentamente,
prosseguiu: - Não me lembro de alguma vez te ter
falado nele.
- Bem, tens de ter falado. Senão eu não sabia, pois não?
- Não...
Biff entrou pouco depois e entregou a George um livro
encadernado-
Mr. MacFly - chamou. - Isto acaba de chegar
- Que bom - aceitou George com um aceno de cabeça.
Ergueu o livro, que se intitulava: Um Casamento Feito No
Espaço. A capa apresentava um quarto com um extraterrestre
muito reminiscente do Darth Vader de Marty a falar com um
jovem que se escondia por baixo das cobertas. O nome do autor,
em letras bem grandes, era o de George MacFly.
- Ena - exclamou Marty. - Escreveste isso, papá?
George confirmou acenando orgulhosamente com a cabeça:
- O meu primeiro romance - anunciou. - Espero bem que
se venda.
- Claro que se vai vender - garantiu Lorraine, emocionada.
- Afinal não é como se tu fosses um zé-ninguém. Tens
vendido contos desde os tempos da faculdade.
- É verdade, papá - acrescentou Dave. - És tu que estás
sempre a dizer-nos que tenhamos confiança e uma atitude
positiva. Onde está a tua agora?
- Tens razão - concordou George. - Tenho a certeza de
que este livro vai ser um êxito.
Depois virando-se para Marty, pôs-lhe a mão forte no ombro
e disse:
- E aquela tua gravação também vai ser um êxito.
- Espero que assim seja - sussurrou Marty, subitamente
devolvido às suas preocupações e aspirações de 1985.
- Marty - continuou George -, não te tenho sempre dito
que só é preciso um pouco de autoconfiança? se empenhares a
tua mente em qualquer coisa, podes realizá-la.
Biff, que ficara de pé com um sorriso diferente durante a
conversa anterior, aproveitou o silêncio para estender a mão a
Marty:
- Ah. Marty - disse. - Aqui tem as suas chaves. O carro
está limpo e pronto para logo à noite.
- As minhas chaves? - gaguejou Marty.
Biff confirmou de cabeça:
- Pu-lo na garagem - informou. - Para o caso de chover.
Voltando-se e correndo para a garagem. Marty arquejou de
espanto ao abrir a porta. Lá dentro estava uma carrinha Toyota
SR5 negra, bem aparelhada, tão brilhante e bela como quando se
encontrava no salão de exposições. Só que agora era dele!
Correu para ela, entrou e acariciou os estofos, e a alavanca das
mudanças e todos os botões e indicadores ao seu alcance.
Abrindo a porta da garagem, estava pronto para dar um giro
quando ouviu uma voz muito conhecida:
- E se me desse uma boleia, cavalheiro?
Era Jennifer, de pé, à entrada, com a mesma aparência
encantadora de sempre.
-Jen! -exclamou ele. - És sempre um prazer para a vida!
Deixa-me contemplar-te bem!
Jenifer estava um pouco interdita, perante a inesperada
manifestação emotiva. Não era como se tivessem estado separados
muito tempo, pois ainda se tinham visto ao fim do dia
anterior:
- Estás bem? - indagou. - parece que não me vês há um
ano.
- Sinto-me como se não te visse há trinta anos- sorriu ele.
-É muito tempo para a privação-sorriu ela em resposta.
Ele atraiu-a a si e estava prestes a beijá-la quando sentiu um
repentino impulso eléctrico percorrer-lhe o corpo. Jennifer deve
tê-lo sentido igualmente, pois o seu cabelo estalou e ficou
literalmente em pé durante alguns segundos.
- Santo... - começou Marty.
O estrondo da passagem da barreira do som afogou-lhe o
resto do pensamento.
A sua fonte era o DeLorean de Doc Brown, que se aproximou
com ruído da frente da casa e parou guinchando. Dentro vinha
Doc Brown, de chapéu de vaqueiro. Quando saiu do carro, foi
possível ver que vestia uma bizarra mistura de tipos de indumentária,
incluindo calças de plástico às riscas, uma capa e uma
estranha variante das túnicas romanas.
De feições agitadas, Doc foi direito ao assunto:
- Marty - disse -, tens de vir comigo... de regresso ao
futuro!
- Porquê?
- É importante.
- Mas tenho aqui a Jennifer - objectou Marty. - Ia agora
mesmo experimentar as minhas rodas novas.
- Isso pode esperar - replicou Doc. - De qualquer forma,
podes trazê-la. Isto também lhe diz respeito a ela.
Marty sentiu uma súbita onda de apreensão:
- Que quer dizer? - interrogou. - Acontece-lhe alguma
coisa? Ou aconteceu-nos a nós? Tornamo-nos uns estafermos ou
quê?
Doc Brown sorriu:
- Não, tu e Jennifer evoluem optimamente - afirmou.Mas
os vossos filhos! Marty, tem de se fazer qualquer coisa
quanto aos vossos filhos.
-Os nossos filhos?-inquiriu Jennifer, olhando alternadamente
para Marty e Doc Brown. - Que filhos? Ainda nem
sequer estamos noivos...
- Explicamos depois - disse Marty. - Queres vir connosco?

- Convosco para onde? - Quis ela saber.

- Para o futuro - respondeu Marty. - Para o ano 2015 ou
lá perto. Acho que era onde o Doc se dirigia...
- É melhor apressar-nos - interveio Doc.
Os dois homens olharam para Jennifer.
- Está bem - disse ela. - Por que não?
- Pronto. Vamos - concluiu Doc.
Levantou a porta em asa de gaivota e Marty entrou. Jennifer
sentou-se-lhe ao colo. Quando Doc Brown se sentou ao volante,
Marty estendeu a mão para lhe tocar no braço:
- É melhor recuar com isto, Doc - avisou. - Não temos
estrada suficiente para atingir as oitenta e oito.
- Para onde vamos, não se usam estradas - sorriu Brown.
Apontou para um novo botão no tablier rotulado de CENTRO
DE ENERGIA AO Domicílio DO SR. FUSÃO, carregou nele e sorriu
de satisfação quando o DeLorean rolou por uns noventa metros na
rua, saltou para o céu deixando atrás de si uma estreita tira de
fumo prateado, e logo desapareceu.

Fim do livro!

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