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quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Encontro no Oeste

Encontro no Oeste

Zane Grey

Uma boa leitura envolvendo romance e muita ação em ambiente do
velho oeste Norte Americano.


Wyoming Mad (1), sem pontuação alguma. Foi por esse nome que
Andrew Bonning conheceu pela primeira vez Martha Ann Dixon,
que se dirigia para o Wyoming, pedindo boleias. Ele

desaprovava o expediente da rapariga, contudo, iria
encontrá-la, outra vez, no fim do caminho, onde o esperavam
também vários acontecimentos.


*(1) As iniciais de Martha Ann Dixon compõem a palavra
inglesa MAD que significa "louco" ou, neste caso, "louca",
forma do feminino singular. N. da T.

I


Ao encontrar-se na ampla estrada de Nebraska, Martha Anne
Dixon compreendeu que a sua inata propensão para fugir da casa
esttava, enfim, materializada. Beliscou-se, e sentiu asas. Não
havia dúvida. Estava no trilho do seu sonho da muitos meses, a
caminho do legendário e fabuloso Oeste de que tanto ouvira
falar.
Cedera pela primeira vez àquele seu estranho impulso da
vagabundear, aos cinco anos, quando se evadiu de casa da tia,
nas margens do lago Michighan, e, a encontraram, perdida, nos
bosques, nua, e sem vergonha, como qualquer selvagenzinha. A
segunda digressão, uma fuga da escola dera-se um pouco mais
tarde; e a esta, outras se seguiram, de que já não se
recordava.
Mas, agora, com vinte anos quase feitos, tudo seria
diferente. A aventura que ia cometer derivava de um plano
longamente meditado. Para realizar o sonho que estabelecera,
um sonho de caminhos cheios de encanto: colinas verdejantes,
banhadas de luz, horizontes indefinidos, plenos de tentação,
extensões purpúreas, gritantes de sortilégios; E, por fim, a
tão ambicionada meta: o oeste longínquo, mas, feiticeiro e
compensador.
O ruído de úm "Ford", quebrando a velocidade, obrigou Martha
Ann a sair da estrada.
- Olá, miúdo! Vai uma boleia? - exclamou uma voz


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alegre. E um moço sardento, de cabelo ruivo, deteve o
automóvel cujos pneus sa rasparam no macadame, oprimidos pelos
travões.
- Não, obrigado - respondeu. -- Prefiro ir a pé.
- Caramba! É uma rapariga! Desculpe lá - disse ele, com um
riso trocista. - Ora, venha daí! Não será todos os dias que
uma dama tem ensejo de passear comigo.
- Deixo essa maravilhosa oportunidade a quem a aprecie mais
do que eu.
- Está bem, pronto! Pensei que estivesse cansada. Que anda
você a fazer?
- Viajo de boleia.
- Ia jurar que esta manhã não tem tido sorte.
- Vou andando até me cansar.
- Para onde vai?
- Wyoming! - exclamou Martha Ann, com entusiasmo. Era a
primeira vez que proferia aquela palavra mágica.
- Safa!. Eu seja cão! - praguejou o ruivo. Depois fitando,
incrédulo, a rapariga, pôs, outra vez a carripana a andar e,
em breve, se sumiu entre uma nuvem de pó que a travagem
levantara.
Martha Ann riu-se consigo mesma. Com que então tinha
finalmente a coragem de dizer em voz alta o seu obj ectivo,
Wyoming! Que bem que lhe soava aos ouvidos! Que promessas
implícitas se continham naquela palavra! Que importava que o
seu destino fosse uma cidadezinha no Wyoming e que ela levasse
apenas cinquenta dólares no bolso, que teriam de durar, sabia
lá, para quanto tempo?
Continuou a caminhar com afã. A Primavera espalhava no ar
deliciosas fragrâncias. Os campos pareciam cobertos de oiro e
as árvores e as sebes vestiam-se de um verde fresco; as rãs
pinchavam nos charcos; e à beira da estrada, os melros e as
calhandras cantavam alegremente;


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a brisa meiga trazia um odor a folhas queimadas. Lá ao longe,
onde a fita branca da estrada se esbatia no horizonte,
qualquer coisa a chamava imperiosamente.
Parecia-lhe um milagre estar ali! Voltou a recordar os
acontecimentos que a tinham precipitado naquela estrada
imensa, que havia de conduzi-la a Wyoming.
Os recursos da família haviam-lhe permitido frequentar, com
êxito, todo o liceu, o que deixara a mãe satisfeita. Ela,
porém, queria prosseguir os estudos, ao passo que a senhora
Dixon avaliava as vantagens que lhe ofereceria um bom
casamento. Argumentava que, aos dezoito anos, Martha se pusera
uma rapariga atraente e que facilmente conseguiria um bom
partido. Porém Martha Ann lá tinha as suas ideias, que não se
harmonizavam de modo algum com os desejos da mãe. Queria ir
uns tempos para a Universidade e depois empregar-se, e acima
de tudo conhecer alguma coisa do mundo.
O mundo, para ela, significava o Oeste. Uma dupla razão
explicava a ideia obsidiante da rapariga. Quando criança,
Martha ouvira falar muito do único irmão da avó, que fugira de
casa para demandar o Oeste em busca de fortuna e isso fez que
ela se tornasse leitora apaixonada de romances cuja acção
decorria em deslumbrantes paragens.
Durante trinta anos ninguém tivera notícias do tio Nick
Blig. Mas, quando Martha cumpriu os dezassete, a avó recebeu
uma carta do irmão desaparecido, explicando que, como nunca
conseguira fazer fortuna, também nunca se dera ao trabalho de
lhes escrever. Só a idade e a falta de saúde, aliadas à
compreensão de falso orgulho, que motivara o seu silêncio,
fizeram, por fim, que escrevesse a pedir notícias da família.
A carta do parente, durante muito tempo remetido a um


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mutismo profundo, provinda de Randall, Wyoming, radicou no
espírito de Martha Ann um projecto silente e audacioso. Iria
para o Oeste à procura do tio Nick. Desta sorte, decidira-se a
corporizar o que até ali não passara de vago propósito.
Porém, o anseio de frequentar a Universidade e juntar, ao
mesmmo tempo, o dinheiro suficiente para a viagem, tirou a
Martha Ann longas horas de sono e trouxe-a absorta muitos dias
a fio. Por fim, conseguiu resolver o problema. Obteve um lugar
de ajudante num consultório dentário, onde trabalhava depois
das aulas, aos sábados, aos domingos de manhã e durante as
férias.
Mas a saúde mental e física da jovem não podia deixar de
ressentir-se naquele intenso esforço, prolongado por mais de
ano e meio. Nada, porém, parecia atemorizá-la. À medida que o
tempo decorria, o seu propósito secreto dir-se-ia acordar-lhe
novas forças e fasciná-la cada vez mais e mais. o tio fazia a
súa ânsia de felicidade. E caso estranho, Quanto mais ela se
atarefava no cumprimento das suas multiplices ocupações, mais
lhe choviam os convites de rapazes para os passeios e
divertimentos. Ela permanecia, contudo, indiferente a tais
solicitações.
Martha Ann havia reFlectido muito na atitude a tomar em
relação ao sexo forte. Talvez, como diziam a mãe e algumas
amigas, ela não fosse uma rapariga normal. Mas o certo é que
não admitia de bom grado aquela observação e, sempre que a
escutava, sentia uma espécie de impaciência lindante com o
desespero. Não obstante gostava de conviver com os colegas;
acostumara-se até a admirar os jovens que alcançavam uma boa
posição na vida. Por vezes, encontrava prazer no seu convívio
e conseguia à custa de esforço, arrancar da alma uma certa
vibração romântica. Mas, com grande pesar seu, quase todas
essas amizades condúziam sistematicamente a resultados menos
agradáveis - ou era um pedido de casamento, ou uma situação
embaraçosa que muito a desgostava. Por que razão não haviam
eles de ser simplesmente seus bons amigos? Quanto àqueles,
felizmente bem poucos, que intentavam tomar demasiadas
liberdades, Martha votava-lhes o maior desprezo.
Chegou uma altura a que a tensão nervosa causada pelos
estudos e pelo trabalho extra-escolar, pelas importunidades
dos admiradores e pelas repetidas observações da mãe,
modificaram Martha Ann, mesmo aos seus próprios olhos.
Desejaria afastar-se daquela cidade suja, barulhenta, atuLhada
de gente. Sentia-se atraída para outros horizontes cuja
amplitude a libertasse dos horrores do seu inferno. Nos sonhos
que lhe enchiam a mente febril, entrevia, agora mais do que
nunca, a paisagem maravilhosa dos campos juncados de flores e
povoados de aves canoras.
De um sentimento de opressão e de cansaço, mergulhara
gradualmente num estado de verdadeira melancolia. O peso
tremendo que carregava sobre os ombros débeis tornava-se
insustentável; a sua constituição física não igualava o seu
espírito. Além disso, a mãe, apreensiva com o seu futuro,
insistia com ela para que desposasse o jovem Bob irth, o qual
"podia ser um bom partido", pois deixaria de ter de se
preocupar por causa das propinas ou de um vestido novo. Mas as
preocupações de Martha haviam-se tornado parte integrante da
sua atribulada existência - preocupações com os resultados
escolares, com o modo de fazer render os seus poucos ganhos
com as censuras em casa, com os constantes convites dos jovens
galantes. Os concertos, os bailes, o cinema, tudo se tornara
monótono, e sem interesse para ela. Desejava ardentemente que
acontecesse qualquer coisa - qualquer coisa imprevista e
emocionante.
Por fim, a tensão tornou-se excessiva.


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Embora as suas aulas na Faculdade ainda não houvessem
terminado, viu que, com a Primavera, chegara o momento asado
de partir. Ao recordar o dia em que tomara aquela decisão,
Martha Ann experimentou um sobressalto.
Não se arrependia de ter lúdibriado o pai, que nunca
parecera importar-se com a sorte da filha e, pelo menos
exteriormente, mostrava pouco interesse pelas tentativas, que
ela fazia para encontrar a felicidade. Mas enganar a mãe! Isso
custava-Lhe. Encarando sùbitamente a loucúra que es tava a
ponto de empreender, sentia profundos remorsos. Nunca tinha,
em toda a sua vida, mentido deliberadamente à mãe. Julgava,
porém, que a ideia de um fim tão grandioso legitimava todos os
meios. Mas úma voz persistente e acusadora percutia-lhe a
consciência. Mentir à mãe, que sempre fora tão boa, tão
dedicada, tão compreensiva! Aquilo fazia-a sofrer
horrivelmente. Mas lançara já a sua canoa na corrente da
grande aventura. Agora, não podia recuar.
E, no entanto, fora fácil levar a cabo o seu propósito! Uma
noite, anunciou com toda a calma, que uma sua amiga da
Universidade a convidara para úm passeio a Omaha e que ela
gostaria de aproveitar. O pai e o irmão mur muraram as frases
da prase. A mãe, comtudo, perguntara ansiosamente qúanto tempo
isso demoraria. Martha não podia senão dar uma resposta
imprecisa.
- Tens a certeza de que vais a Omaha, minha filha? -
inquiriu a senhora Dixon.
- Oh, Mãe!. Pois claro que tenho - respondera
apressadamente. Pelo menos, não era em rigor uma mentira!
- Receava que andasses a magicar na tua velha mania de ir
para o Oeste - concluiu a senhora Dixon. Mas Martha também se
sentia aborrecida mesmo com a mãe. Porque não havia ela de
compreender como seria maravilhoso ir ver o Oeste? Se a
senhora Dixon alguma vez sentira qualquer desejo de aventura,
trazia-o recalcado há muito tempo.
Todos os momentos livres que conseguira arranjar, Martha
passava-os em casa, arranjando as suas coisas. Que havia de
levar e de deixar? Não queria lembrar-se de que tinha de
carregar com tudo aquilo. Quanto menos levasse, mais leve
seria a bagagem. Acabou por se decidir pela mochila do irmão!
Ficou agradàvelmente surpreendida ao ver que tinha bastante
arrúmação. Porém, continuava a perguntar a si própria como
iria governar-se com uma coisa tão pequena para as súas
necessidades.
À medida que o dia da partida se ia aproximando, a sua
expectativa misturava-se com outras emoções. Que imprevistos
não lhe poderiam surgir no caminho! Levantava a cabeça e
sorria com mais frequência para se tranquilizar. Mas a sombra
do medo permanecia oculta na sua consciência. Uma ocasião,
enqúanto ajoelhada no meio do quarto, tentava encontrar um
lugar na bagagem para um livro de valor, surprendeu-se a
murmurar em voz alta: "Oh, Senhor, eu desejo tanto ir! Tenho
de ir. Por favor, faz que nada aconteça!". E logo, no momento
seguinte, a sua natureza buliçosa tinha-se reafirmado e ela
exclamara com simplicidade: "Não me ouves meu deus?".
Por fim, a mochila esttava cheia. Já não tinha capacidade
para mais nada. Além de alguns objectos de tamanho
infinitesimal, levava um par de pijamas, duas escovas de
dentes, sabonete, toalha e esponja, pente e escova de cabelo,
dois pares de meias de lã, três pares de peúgas de algodão, um
equipamento de emergência, incluindo adesivo, mercúrio-cromo,
ligaduras, algodão, uma garrafa de desinfectante, algumas
agulhas enfiadas, uma tesoura minúscula, uma caneta de tinta
permanente, papel de carta e sobrescritos estampilhados,


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três blusas lavadas. Tinha pensado bastanta sobre a
necessidade de ter de mudar de roupa e guardou também o
vestido plissado azul marinho. Por fim, conseguiu arranjar
espaço para os sapatos de verniz e dois pares de meias de
seda. Levaria o blusão de couro, as botas e uns calções da
montar de belbutina, núma caixa, prontos a enfiar antes de
segguir pela estrada. Depois chegara finalmente o dia da
partida, as lágrimas, a despedida inconsequente, a corrida
precipitada ao encontro da amiga imaginária, a estação, o
comboio. Mal con seguira subir para a plataforma do "Pullman".
Tinha os olhos tão embaciados que mal podia distinguir os
degraus. Parecia que uma voz lhe segredava, recriminatória.
"Fugindo!. Abandonando a sua mãe, o irmão, o Bob - todos -
para sempre!". Era aquele "para sempre" que aterrorizava
Martha Ann.
E agora, depois duma noite passada no comboio, Martha Ann
caminhava pela estrada e saía da Omaha, em direcção à cidade
mais próxima. Ainda se sentia estranha e pouco à vontade com
os seus calções de belbutina e com as botas de cano alto que
enfiara no vestiário da estação. Enquanto ia avançando pelo
caminho, o seu espírito paresia ocupado e ausemte. Como era
bom viver e semtir-se em liberdade numa manhã como aquela.
Tinha a agradável sensaçãodeter renascido para a vida. Não
seria maravilhoso continuar a caminhar assim para sempre? Não
havia pressas. Até a sua meta, o Wyoming não lhe parecia já
tão distante e inatingível. Durante algum tempo, Martha Anne
continuou a andar, a passos largos e ritmados, os pés
ligeiros, o coração alegre e o pensamento em repouso. Parou no
primeiro posto de gasolina que via no caminho, onde foi alvo
de olhares divertidos e onde lhe deram uns mapas. Passaram por
ela vários carros e como um deles parecesse a ponto de parar,
ela acenou que continuasse. Queria prolongar o encantamento
destas suas primeiras horas de liberdade.
O sol era um disco ascendente. A manhã principiava a
aquecer. A certa altura, a estrada começava a subir para a
montanha, o que a fez alterar o andamento. Perto do cimo, um
"ford" resfolegante, surgiu atrás dela, e parou. Um rapaz de
cabelo arruivado deitou a cabeça de fora.
- Eh, andorinha, para que lado é o voo? - pergumtou com uma
inflexão bondosa.
Martha Ann ensaiara durante muito tempo as respostas que
havia de dar. Seria conveniente indicar sempre a cidade mais
próxima, como sendo o seu destino, subterfúgio que lhe
permitiria livrar-se de qualquer indesejável, que Lhe
oferecesse uma boleia. Assim, deu o nome da primeira aldeia
que vira no mapa.
- Salte para dentro. Vou para um sítio que fica a meia milha
daí.
Martha deixou escorregar a mochila, cujo peso só apreciou
bem depois de a ter tirado, e subiu para o carro.
- Tem lá família? - perguntou o condutor, enquanto punha o
"Ford" em movimento.
- Tenho - respondeu Martha cautelosamemte.
- Donde é?
- Ghicaga.
Ele emitiu um silvo, admirado.
- Tem vindo sempre a pé?
- Não. Vim de comboio até Omaha.
Ele olhou para o saco.
- Bonita mochila! Esse fundo de cabedal conserva a bagagem
seca.
- Foi o coronel Brinkerhoff que a ofereceu ao meu irmão.

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- Ah! Sei - disse ele, e lançou-lhe uma olhadela
perscrutadora. Depois deu atenção à astrada à sua frente.
O automóvel deslizava emtre campos de cultura e de
pastagens. Ladeadas de estacarias de árvores, erguiam-se casas
que desapareciam entre a verdura.
De Súbito, ele perguntou:
- A sua família sabe que anda por aqui tão sòzinha?
- Não - respondeu Martha Ann, colhida de surpresa.
-! a, porque é que não sabe?
- Porquê?... bem... porque... eu creio que, se Lhes tivesse
dito, não estaria aqui - replicou, hesitante. Aborrecia-a que
lhe fizessem tais perguntas, mas a insistência dele tinha-a
embaraçado inexplicavelmente.
- Alguém saBe que tem vindo por boleias?
- Sim, sabe o meu advogado. Eu fi-lo prometer que guardaria
segredo, Ele concordou, com a condição de eu me manter em
comtacto com ele. Ameaçou mandar a Polícia à minha procura se
não o fizesse.
- Não é má ideia. Que idade tem?
- Dezanove.
- Hun! Nãome parece que tenha mais de quinze.
Martha Ann lançou-lhe um olhar furioso.
- Oiça cá, pequena - disse, sem fazer caso do seu ar
desdenhoso. - Você não sabe mentir. Há raparigas assim. Afinal
para onde é que vai realmente?
- Vou para Randall, no Wyoming, mas não percebo o que é que
o senhor tem com isso - retorquiu Martha.
- Santo Deus!. Ora, diga-me cá, você tem alguma ideia da
distância a que isso fica?. E para ir de boleia?
- Sei, sim, mais ou menos.
- E sábe que terá de atravessar a Cordilheira Negra?
- não, não sabia. é assim tão terrível como o nome?


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- Nunca conseguirá sair de lá com vida. Alguns turistas
passam por lá de automóvel. Mas... Aquilo é um esconderijo de
fugitivos e criminosos. Não quero desanimá-la, mas olhe que
não se safa!
- Deus meu!. Hum! O senhor quer é assustar-me.
- De maneira nenhuma! Olhe: eu pertenço ao arsenal e conheço
o coronel Brinkerhoff, a quem pertence essa mochila. Vou
levá-la para o arsenal, e entretanto, telegrafo ao coronel a
perguntar se consente nessa viagem suicida em que você se
meteu.
Martha Ann sentou-se, aturdida, Que havia de fazer, se
aquele rapaz tão seguro de si mesmo pusesse em prática o que
dissera? Que diria a mãe? E, çobretudo que faria! Martha
calculava a desgraça que seria ser reverter a casa, depois de
un começo tão auspicioso. Não podia deixar que acomtecesse uma
coisa tão horrorosa.
- Agora, não servia de nada telegrafar ao coronel Brinkerhof
- alegou, recuperando a presença de espírito.
- Porque não?
- Porque ele não está em Chicago.
- Então onde está ele?
- Anda à pesca, no nonte do Canadá.
- Como é que sabe?
- Porque ele foi para lá com um amigo do meu tio.
Via-se que o rapaz dos cabelos arruivados hesitava entre
insistir ou não no plano que adoptara.
- Aposto que não traz dinheiro consigo?.
- Claro que trago.
- O suficiente para voltar para Chicago? - perguntou. pouco
convencido.
- Sim; mais que o suficiente.
- Quem diabo lhe meteu essa ideia na cabeça?


17


foi como se agitassem diante dela a flecha de combate. Já
sei que sou louca. Mas é para ver o Oeste.
- então, nunca viagei em toda a minha vida. Nunca vi
lugares, a não ser Chicago e o lago Michigan. Esta é a mminha
única oportunidade. Não posso deixar de ir...
- disse, nunca vi o meu tio. Escrevi-lhe... Ele... ele está
à minha espera.
A última afirmação estava longe de ser verdadeira, mas
Martha Ann estava desesperada.
- O seu tio, hem? Isso já é diferente. Mas mesmo assim, o
meu dever para com o Brinkerhoff é detê-la, enquanto não falar
com alguém da sua família.
- Deter-me! Como? - explodiu Martha. Se conseguisse
livrar-se daquele indivíduo do arsenal, não tornava a aceitar
outra boleia.
- Bem, não pode saltar do carro, a quarenta e cinco à hora -
replicou friamente. - Vamos direitos ao arsenal e fica lá, até
que o capitão Stevens seja informado.
- Agarram-me à força? - gaguejou Martha. Compreendia que ele
tinha razão e isso fazia que se sentisse culpada.
Que havia de fazer? Tinha de lançar mão da astúcia feminina,
recurso que normalmente desprezava, Assim, fingiu esforços
desesperados para sair do carro.
- Agarro-a e é já - disse, juntando a acção à palavra.
- Se for preciso, até a agarro só com um braço.
Martha Ann recorreu às lágrimas, que estavam tão à
superfície que mal precisou de dissimular.
- Olhe, menina, eu desisto. Não suporto gritarias - disse
ele, irritado: - Deixo-a ir, se me prometer ter muito cuidado,
Não se meta em automóveis onde haja mais de um e tenha sempre
o cuidado de não pedir e aceitar logo que escureça.
Martha apressou-se a prometer o que ele pedia.
- E veja bem o aspecto dos motoristas antes de se decidir.
Pode dar um passo em falso, de consequências desastrosas.
- Sim, senhor - respondeu Martha, gravemente.
- Tenho uma irmã pequena e teria uma síncope, se desse com
ela a viajar sòzinha de boleia. Mas ela também tem ideias
esquisitas. As raparigas de hoje são incompreensíveis... Bem,
eu aqui mudo de direcção. E aí tem a aldeia.
Martha saiu e agradeceu-lhe.
- Importava-se de me mandar um postal... se chegar à
Cordilheira Negra? Vou ficar um tanto preocupado. Chamo-me
Arthur Anderson e vivo aqui.
- Eu chamo-me Martha Ann Dixon. Depois mando-lhe um postal.
Muito obrigada... e adeus!
Ela começou a descer a estrada e, ao fim de algum tempo,
voltou-se para olhar para trás. O carro ainda lá estava na
curva. E o homem acenava com o boné. Martha prosseguiu,
consideràvelmente mais calma e reflectida.
Parou na aldeia, num quiosque de cachorros quentes, para
descansar e almoçar. Dali, um lavrador e dois rapazitos
deram-lhe uma boleia que a levou a outro cruzamento, a trinta
e cinco milhas de distância, onde ela decidiu terminar a etapa
daquele dia. E, tendo-lhe sido indicada uma pousada para
turistas, encontrou confortáveis instalações para passar a
noite.
Despertou às cinco e meia, com o chilrear e esvoaçar das
aves na vinha, em frente da sua janela. Levantou-se fresca e
restaurada. Mais um dia - o segundo! Que lhe traria o novo
dia? Que belo era o róseo nascer do sol sobre as ondulantes
colinas de Nebraska! Ao café, disseram-lhe que, se não se
importasse de andar de camião, poderia ir com o estalajadeiro
até à cidade próxima.


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- Explêndido! Vai ser divertido - exclamou.
Mas a boleia era afinal muito curta e, portanto, nem por
isso foi muito divertido. A meio de uma encosta íngreme, o
motor empanou. O condutor desceu e pôs-se a tentar consertar o
obstinado mecanismo. Martha saiu e começou a andar.
O camião já não a alcançou. Depois de terem passado vários
automóveis, aceitou uma boleia de uma jovial família de cinco
pessoas, que alegremente se afastaram para Lhe dar lugar.
Martha simpatizou tanto com o chefe da família e a sua esposa,
como com os garotos de olhos claros. Era meio-dia quando
chegaram à aldeia para onde se dirigiam.
Martha almoçou e seguiu caminho mais uma vez.
Lembrou-se de que viajava agora através das planícies do
Nebraska e que as cidades iriam rareando. As herdadas pareciam
alongar-se, mas havia menos casas: Passaram por ela alguns
carros. Já tinha reparado que a sua pequena figura, solitária
e insólita, não passava despercebida no meio da estrada. O sol
aquecia. Descansou, desejando que aparecesse alguma boleia
aceitável. Depois retomou a caminhada. Andou durante duas
horas, sem que surgisse um único automóvel na sua direcção.
Passou então uma série deles, tão a seguir uns aos outros, que
Martha não conseguiu ver bem os seus ocupantes. Reconhecia
agora que, cansada e impaciente como ia ficando à medida que a
tarde avançava, mais se semtia tentada a esquecer os bons
conselhos que recebera e a aceitar qualquer boleia que lhe
oferecessem. Perguntava a si própria, se estaria a ser
insensata e irresponsável. Seria aquele invulgar
empreendimento de uma rapariga de dezanove anos, que mais
parecia ter quinze, prova de um carácter instável? Ela
defendia-se vigorosamente, mas, de qualquer modo, a disposição
optimista da manhã tinha-se dasvanecido.


20


Uma extensa colina convidava ao repouso. Quando recomeçou a
andar e passou a encosta, o sol descia no poente, vermelho e
glorioso. As planícies ondulantes começavam a desaparecer na
penumbra purpúrea do horizonte. Neste cenário, ainda dominado
pelas habitações do homem, Martha imaginou ver uma semelhança
das vastidões do Oeste. E este pensamento emocionou-a de tal
maneira, que esqueceu os pés ardentes e fatigados e os membros
doridos, e encontrou novas energias para caminhar.
Em baixo, divisava-se uma região mais solitária, dividida
pela estrada, que seguia até à cidade próxima, agora visível,
à luz doirada do entardecer, algumas milhas adiante.
Martha pensou que ainda podia percorrer aquela distância,
antes que escurecesse completamente. A descida da encosta era
fácil, e o ar estava mais fresco. No sopé, a estrada fazia uma
curva. Sob um denso maciço de árvores, que sombreavam o
caminho, brilhava um regato, atravessado por uma ponte. Perto
desta viu uma fogueira e dois homens de aspecto rude, sentados
junto dela. Seriam vagabundos?
Compreendeu que teria de passar por eles. Sustendo a
respiração, apressou o passo. A noite descia sobre o bosque.
Talvez pudesse passar sem ser notada. O coração saltou-lhe
violentamente no peito, ao ouvir um dos homens exclamar:
- Bill, detém esse rapaz e vê o que é que ele traz no saco.
Martha, que estivera a observar os dois homens sentados
junto do fogo, sobressaltou-se por ver surgir à sua frente um
vulto escuro que parecia ter saído da terra. Pertencia a um
terceiro indivíduo, até ali invisível no escuro da ponte.
- Olha lá, filhinho, que é que tu trazes aí? - perguntou,
com um bom humor bastante rude.


21


subitamente enfraquecida pelo terror fez uma tentativa para
se livrar do homem. Ele puxou-a com um puxão tão violento, que
ela teria caído, se não fosse agarrada. O pequeno embrulho que
trazia, caiu-lhe da mão.
- Oh!. Largue-me! - gritou, aterrorizada.
O homem empurrou-a para o lado onde o sol desaparecia e
observou-a de perto. Martha distinguiu um rosto duro e
grosseiro onde faiscavam dois olhos ferozes, acerados como
punhais. Tentou libertar-se das tenazes de ferro que lhe
magoavam o pulso.
- Eia, rapazes! Não é um garato. É uma garota - gritou o
homem para os companheiros.
- Ah! Ah! Bem, Bill, já sabemos qual é o teu fraco.
Atira-nos mas é a bagagem. - veio a resposta.
- Anda cá, pequena.

Martha debatia-se com adébil força que lhe restava.
Apoderara-se dela uma espécie de paralisia, uma estranha
lassidão da vontade e do corpo. Como um relâmpago, o perigo
saltara da escuridão e o raciocínio, a coragem e a energia
abandonaram-na, substituídas por uma fraqueza doentia.
- Eh, Bill, vem aí um carro! - exclamou apressadamente um
dos homens.
Martha Ann ouviu o trepidar dum motor. A presença do carro
animou-a e ela conseguiu soltar-se, gritando ao mesmo tempo
por socorro.
- Largue o rapaz - ordenou uma voz do carro. Depois o
ocupante saiu do carro, dominando-os com a sua figura alta e
de ombros largos. - Que é que vocês querem?
- Nada. Estávamos só a brincar com o garoto - respondeu o
homem, de mau modo, afastando-se.
- Oh! Não senhor! - balbuciou Martha Ann. - Queria
roubar-me. e sei lá que mais. quando viu que eu era uma
rapariga!
-Rapariga! - o recém-vindo, moveu-se rapidamente, como uma
sombra. Martha ouviu, subitamente um baque. O vagabundo
pareceu subir, como impelido por uma catapulta, para se
estatelar na margem do regato, com um terrível impacto.
- Desapareçam, seus patifes, ou vou aí e faço-os em bocados
- gritou o salvador de Martha. Depois voltou-se para ela.
- É verdade que é uma rapariga?
- Sim, senhor. E às vezes desejaria... não o ser - respondeu
Martha, apanhando o embrulho.
- Mora aqui, por estes sítios, claro?
- Não. A minha casa é... muito longe.
- Como é que veio parar a esta estrada tão solitária? -
interrogou ele.
- Viajo de boleia para o Oeste.
- De boleia? - exclamou.
- É uma... uma espécie de desporto. Às vezes apanho boleias,
quando é possível, e vou caminhando nos intervalos.
- Desporto! Admiro a sua calma! - riu-se ele. A voz era
agradável e tinha uma entonação que dizia a Martha que ele era
completamente diferente dos outros que encontrara nesta
conjuntura. Ergueu o olhar: havia ainda luz suficiente para
ela poder distinguir as feições de um homem de vinte e poucos
anos, cujos olhos a fitavam atentamente. Pareciam ter um ar
trocista. Martha viu que mais uma vez suspeitavam dela e quase
sentiu desvanecer-se o suave sentimento de gratidão e alívio
que a invadira.
- Muito agradecida por me ter salvo de... nem sei bem o quê
- murmurou, envergonhada. O esforço da luta com o vagabundo


22 23


e a defesa que aquele homem tinha aceitado dela, tinham tido
úm efeito estranho sobre Martha Ann Dixon.
- As raparigas de hoje pagam caro a excitação que quErem
tirar de tudo - respondeu ele, enigmàticamente cansado. -
entre que eu levo-a a Norfolk.


II


Só passado algum tempo se desvaneceram os efeitos do pânico
que Martha Ann sentira. Tudo fora tão inesperado. Nunca antes
compreendera o que era realmente o medo. A desengonçada
carripana arrastava-se vagarosamente. Recostou-se no assento,
cansada e sem forças, mal podendo suster no colo a mochila.
Mas depressa recuperou o seu espírito alegre. Bem cons
ciente da presença do condutor ao seu lado, compreendeu que se
devia ir preparando para um novo interrogatório. O silêncio
dele condenava-a. Martha começou a achá-lo insúportável.
- Não vive... nestas imediações? - principiou, hesitante.
- Porque Pensa isso?
Martha Ann, analisando as suas sensações, difìcilmente
poderia dizer-lhe que ele não cheirava a cavalos, postas de
gasolina ou unto de arreios.
- Donde é? - emendou.
A sua hesitação em responder à pergunta, deu-lhe a impressão
de que ele achara a interrogação demasiado indiscreta.
- Sou um campónio do Missouri - respondeu ele, por fim, com
um riso onde havia amargura.
- sim! - exclamou ela, aborrecida. - E suponho que o seu
nome é Zé Pacóvio, não?


24 25


- Andrew Bonning se não se importa - retorquiu ele como se a
informação tivesse sido arrancada à força.
Apesar dos seus esforços, Martha Ann não conseguiu encetar a
conversação e acabou por ficar silenciosa. Contudo continuou a
observá-lo, de soslaio. Ele envergava um fato de trabalho
pouco usado. Distinguiu vagamente um perfil correcto. O cabelo
era escuro e ondulado. Martha Ann teve de admitir, com
relutância, que o seu estranho salvador, que obviamente não
gostara muito dela, era um homem, e perfeito, embora a
semi-obscuridade não lhe permitisse vê-lo bem.
- Para onde vai?
- Wyoming.
- Hum!. Bem, ali está a cidade que se segue - disse ele. -
Vê as luzes?
- Oh! deve ser uma cidade bastante grande - observou a
raPariga.
- Aqui encontrará mais acontecimentos excitantes.
- Acontecimentos excitantes? - repetiu, sem compreender.
- Só excitantes. Não é isso que procura? Não é nisso que
pensam hoje em dia, quase todas as raparigas?
Martha Ann não deu resposta, pois a pergunta dele, feita num
tom amargo, fizera-a mergulhar em introspecção. De repente,
sentiu-se envergonhada e, como Parecia ser só con cigo
própria, resolveu Prontamente descarregar o seu aborrecimento
naquele perturbante jovem. No fim de contas, que Lhe
interessava o que ele pensava dela? Mas aquela reflexão não a
satisfazia. A excitação da chegada a uma cidade nova e maior
impediu, porém, Martha de lhe responder à letra. A rua
Principal era larga e bem iluminada. Registava certa animação
e junto dos passeios viam-se, estacionados muitos automóveis.
Martha escolheu um hotel de aparência modesta e pediu ao raPaz
que a deixasse à porta.


26


Achou significante o facto de ele descer primeiro para a
ajudar, e de lhe pegar na nochila. Movia-se com uma elegância
despreocupada, que a sua observação perspicaz difìcilmente
relacionava com o trajo de trabalho.
- Muito obrigada, senhor Bonning, por, por tudo - murmurou
Martha.
- Sempre ao seu dispor. Desejo-Lhe melhor sorte nas próximas
boleias. Esqueceu-se de me dizer o seu nome.
- Não me esquecì. Ia...
Ao levantar a mochila, ele reparou mas letras que Martha Ann
escrevera a tinta indelével num lado do saco. Ela não se tinha
Preocupado com a pontuação.
- Mad! - exclamou ele. Depois, subitamente; sorriu para ela,
de um modo que fez que se sentisse uma rapariguinha
caprichosa. Agora, à luz eléctrica, podia vê-lo distintamente
e, de certo modo, aquele rosto claro e simpático, de olhos
tristes e penetrantes, parecia, incomPreensìvelmente, ser a
sua perdição. - Wyoming Mad? Fica-lhe melhor que qualquer nome
verdadeiro. E como é uma pequena inesquecível, lembrar-me-ei
de você por esse nome. Espero que não tornemos a
encontrar-nos. Adeus.
Entrou Para o carro e partiu, deixando Martha Parada no
passeio, de saco na mão, a olhar fixamente a rua movimentada.
Pequena inesquecível? Não certamente Porque a achasse bonita,
graciosa ou agradável - mas porque era louca! Insultada e
entristecida, Martha Ann entrou no hotel.
marcou um quarto e começou a desembrulhar a bagagem.
Doía-Lhe o braço esquerdo e descobriu uma nódoa negra, onde o
vagabundo Lhe tinha agarrado o Pulso. Eram as únicas Provas
tangíveis da sua aventura com os patifes. Que sucederia se
Andrew Bonning não tivesse chegado naquele preciso momento?
Estremeceu. Podiam tê-la assassinado e lançado na sombria
corrente. Que desgosto para a mãe! Por instantes Martha
sentiu-se prostrada e a alma encheu-se


27


de gratidão pelo homem que a salvara. Que força - que soco
terrível aplicara por sua causa. Mas, logo em seguida,
recordando antipatia velada, o seu modo desdenhoso ao designar
os termos "Wyoming Mad", Martha esqueceu os seus sentimentos.
Não voltariam a encontrar-se e essa ideia dava-Lhe um certo
contentamento.


Na manhã seguinte, muito cedo, Martha Ann pôs-se de novo a
caminho. Os acontecimentos do dia anterior iam-se diluindo na
sua memória, à medida que avançava. A estrada amarelada
empolgava-a, sempre nova, numa contínua pro messa de
aventuras. Como podia sentir medo, à clara luz do dia, entre
os camPos verdes, onde chilreavam pássaros? Caminhava com
passos ansiosos e os olhos alegres, fitos na promissora
distância.
Em todo esse dia, não faltaram os carros. Ela podia
permitir-se o luxo de escolher e conseguir boleias de cem
milhas e mais, até meio da tarde. Comparava a passagem de um
carro Para outro, à leitura de um livro imenso, que dedicava
apenas um curto espaço a cada pessoa. Todos os percursos de
automóvél, fossem curtos ou longos, pareciam-lhe fascinantes;
mas, assim mesmo, podEria andar a Pé. Para o fim da tarde, os
automóveis escassearam. Foi caminhando até que ouviu,
satisfeita, o ruído de outro motor.
Era um "Cadillac". O ocupante, um jovem, olhou para trás.
Continuou a caminhar e viu o automóvel reduzir a velocidade e
deter-se. Quando chegou junto dele, o motorista debruçou-se e
disse:

- Olá, minha béla, deseja viajar na minha fiel montada?
- É segura? - interrogou.
- Se é segura! Assustais-me, senhora. Eu sou o "sir" deste
carro.
- sim.
- Galahad em pessoa. Um dos meus apelidos é Santo. As mães
confiam as crianças de colo à minha guarda. As senhoras de
idade telefonam-me com dias de antecedência só para que eu as
vá levar à aldeia.
- Creio que já li qualquer coisa a seu respeito -
interrompeu Martha Ann. - Você é tão bondoso que nem parece
real. Prefiro ir a pé.
- Oh! Tenho de percorrer este caminho todo até Sidonia.
Peço-Lhe que não faça caso das minhas brincadeiras. Sou muito
boa pessoa, apesar do meu aspecto atrevido.
- Está bem - riu-se Martha. - Vou para perto e correrei o
risco.
- Entre. Chamo-me George Proctor.
- E eu Martha Ann Dixon.
E lá seguiram, à luz quente do sol, dois jovens, reunidos
por acaso, e a fluente descrição de George das tradições de
Nebraska, encontrou em Martha uma ouvinte interessada. Depois,
George disse que era angariador de seguros e começou a citar
numerosas estatísticas para informação e Proveito de Martha.
- Sabe de alguma Pessoa que andasse a viajar de boleia e
fosse assassinada? - pergumtou.
- Não se esqueça que você é a pioneira desse sistema. Podia
ser precisamente a primeira a ser assassinada.
- Se soubesse que me ia dizer coisas tão desagradáveis, não
teria aceitado a boleia.
- Mudemos de assunto, Bela. Quero que a viagem decorra
feliz.
- Bem, a Propósito de acasos, se está cansado de conduzir,
deixe-me experimentar, a mim.
- Guia? Esplêndido! Estou mesmo fartinho de ir ao volante.
Não tenho feito outra coisa.
Deste modo, Martha trocou o seu lugar pelo do motorista e
passou a conduzir o carro, com grande satísfação do jovem
Proctor.


28 29


Martha Ann não levou muito temPo a concluir que as suas
intenções èram absolutamente respeitáveis e que podia ir com
ele até Sidonia, visto ficar-lhe em caminho. Às seis horas
divisaram os subúrbios da cidade.
- O meu tio dirige o hotel de cá - disse George. - Eu
apresento-lho. E, seria demasiado atrevimento da minha parte
pedir-lhe que jante connosco?
- ó, não. Mas eu tenho só um vestido. que certamente está
todo amarrotado.
- Ora! Ninguém muda de fato para jantar, em Sidónia.
Por acaso, Martha não pensou em abandonar o volante e, ao
dirigir-se para um otel modesto, ficou atónita ao reconhecer
num transeunte Andrew Bonning. Cedendo a um rápido impulso
esteve a ponto de lhe acenar alegremente, quando a expressão
dos seus olhos escuros da rapaz, lhe fez subir o sangue às
faces. Ele fez-lhe uma inclinação de cabeça, em sinal de
reconhecimento, delicadeza a que Martha não correspondeu e que
ao jovem Proctor Passou despercebida. Pegou-lhe na bagagem e
ajudou-a a sair, falando sempre alegremente. Qualquer pessoa
teria notado o seu entusiasmo, que à primeira vista, parecia
lisonjear Martha Ann. Esta tinha a certeza de que Bonning
tinha visto Proctor acompanhá-la ao hotèl e pedia confusamente
que o tio e proprietário se encontrasse lá. Mas este tinha
saído.
George arranjou-lhe um quarto, levou-lhe a bagagem para cima
e disse-Lhe da Porta:
- Enfeite-se, Bela, e procure sugestionar meu tio, durante a
refeição.
O moço era cortês e bem intencionado. Mas qualquer coisa
lançara uma sombra no espírito da rapariga. Fechou a porta e
começou a atirar com tudo, despejando o seu vago sentimento de
incerteza sobre um inocente transeunte.
- Andrew Bonning! - monologou, irada. - Não queria tornar a
encontrar-me?. Não aprova a minha maneira de ser?. Que pensará
ele que eu sou?...
Porém, a ira e o orgulho não suavizaram, de modo nenhum, a
dorzinha causada por aquele segundo encontro fortuito. Martha
Anntomou um banho, passou a ferro o seu único vestido e,
olhando para os olhos cor de âmbar e para os dourados cabelos
reflectidos no espelho, teve a certeza de que não devia
envergonhar-se do seu aspecto. Vê-la-ia Bonning? Estaria ele
hospedado naquele hotel? Excitada, curiosa consigo própria
desceu as escadas. George foi ao seu encontro e apresentou-lhe
um velhote simPático, cujos faiscantes olhos azuis a
examinaram atentamente. Ela teve logo a sensação de que George
Lhe tinha falado das boleias.
- Bem, menina Martha, o George disse-me que ficaria cá esta
noite.
- Fico, sim.
- Por hoje responsabilizamo-nos por si, mas olhe que se
persiste nessa empresa, arrisca-se a que os índios, a
escalpelizem quando chegar à Cordilheira Negra.
- Deus me valha! outra vez essa horrorosa Cordilheira Negra.
- Bem, pode ser que não haja novidade. Mas não devia lá
passar. Vão andando Para a sala de jantar, que eu vou já
convosco.
O destino apostava-se contra Martha Ann. Ao entrar na sala,
com George que respeitosamente lhe tomava o braço, quem havia
ela de ver? Bonning sentado a uma das mesas. Quando passaram,
levou os olhos ao tecto e Martha ficou tão convencida, como se
ouvisse da boca dele próprio, de que pensava que ela estava a
namoriscar o moço de Nebraska e a divertir-se em cheio. Sentiu
ganas de o esbofetear e jurou a si mesma que havia de
vingar-se.
- Olá, Zé Pacóvio - pronunciou, arrastando muito os pés ao
passar por ele.


30 31


- Espero que tenha tido novidade, Wyoming Mad. - exclamou
ele levantando-se para a cumprimentar com uma inclinação de
cabeça.
- Você falou àquele rapaz e ele chamouLhe "Wyoming",
conhecia-o ou quê?
- Conheci-o em Norfolk. Simples camaradagem.
- Ah, sim. Safa, quase que me fez perder o aPrumo.
Aconselho-a a provar o nosso frango corado.
Martha Ann estava sentada de frente para Bonning. Não podia
deixar de ver o olhar dele. De súbito, sentiu o sangue
ferver-lhe nas veias. Ou se enganava muito ou lia desilusão e
desprezo nos olhos escuros dele, que exerciam nela o mesmo
inexplicável efeito que tinham tido da primeira vez. Martha
deixou ostensivamente de lhe prestar atenção e começou a
contemplar o jovem Proctor com todos os artifícios femininos
de que dispunha. Com efeito, namoriscou com os olhos, lábios,
sorrisos e palavras, até que Bonning abandonou, de repente, a
mesa e saiu da sala. A entrada do tio de George veio ajudá-la
naquela embaraçosa situação.
Apesar de tudo, apreciou o jantar e, quando o velho começou
a contar histórias do temPo que passara na fronteira, Martha
esqueceu-se completamente de Bonning.
Porém ao voltar ao quarto, enquanto tornava a guardar o
bonito vestido, lembrou-se dele, e deu consigo a pensar
naquela tarde em que a força dum homem se interpusera entre
ela e um destino terrível. Calculava que tornaria a
encontrá-lo no dia seguinte ou em qualquer ponto do caminho
para ocidente e essa ideia era-Lhe, ao mesmo tempo, doce e
amarga. Quando adormeceu, quase esquecera já a antipatia que
ele lhe evidenciava, na esperança de o tornar a ver em
estrada.
Na manhã seguinte às seis horas, despediu-se dos Proctor e
partiu de novo. Apesar do coração lhe bater mais depressa
quando ouvia um carro a aproximar-se, não queria voltar-se
para ìdentificar o ocupante, mas, à medida que, carro após
carro, a alcançava, ultrapassando-a em seguida, ela confessou
a si própria que desejava que Andrew Bonning fosse ao volante
de um deles e lhe desse outra boleia. Acaso teria ele a
coragem de passar por ela e não parar?
Toda a frescura e fragrância das pastagens, as pregas
verdejantes das colinas solitárias, a atracção do caminho e o
sol radioso pareciam ter perdido algo do seu encanto para a
fugitiva. Martha Ann, admirada, perguntava a si mesma por que
razão naquela manhã tão bonita não sentia o mesmo prazer que
nos outros dias. Continuou a andar firmemente até às nove
horas. O sol ia subindo no horizonte, a estrada estreitava-se
e as herdades iam rareando.
Ouviu o som das rodas de uma carroça e do bater de
ferraduras por detrás dela. Ao senti-la aproximar-se, oLhou
para trás e viu uma carroça velha, com um homem empoleirado
num assento alto e cinco rapazinhos debruçados na borda.
- Olá, menina, quer uma boleia? - chamou o condutor, fazendo
parar o veículo junto dela.
- Com certeza - respondeu Martha, satisfeita.
- Trepe cá para cima. Rapazes, arranjem aí lugar para esta
menina. Pra onde vai?
- Wyoming.
- Não faz tensão de palmilhar todo o caminho, pois não?


32 33


- De maneira nenhuma, pelo menos enquanto tiver
a sorte de encontrar pessoas tão amáveis como o senhor.
- Bem, isto não é nenhum "espada", mas com boa
vontade... Sirva-se de maçãs e instale-se bem ,para estas
três milhas.
Aquela parte da sua viagem, mastigando maçãs vermelhas e
sumarentas e mantendo conversa com os ladinos camponezitos,
foi a mais agradável experiência que tivera até ali. Mas
terminou demasiado depressa. Estava mais uma vez condenada a
deslocar-se pelos próprios meios.
Na hora que se seguiu só passou por ela um automóvel.
Estava cheio e não se deteve. O sol incidia agora com
intensidade tropical e a roupa estava encharcada da
transpiração. Havia horas que não divisava uma habitação. A
preocupação depressa se juntou à fadiga e ela a perguntar-se a
que distância ficaria a cidade mais próxima. Campos e só
campos! Pareciam não ter fim: mas algum tempo depois os campos
deram lugar a terras rochosas onde só cresciam ervas altas.
As quatro horas foram encontrar Martha Ann calcorreando
ainda pelos caminhos fora. Tinha um nó na garganta e a
paisagem aparecia-lhe muitas vezes enevoada através das
lágrimas, que lhe enchiam os olhos cansados. Repetia
constantemente a si mesma, para se iludir, que não lhe custava
muito percorrer aquele caminho, que parecia interminável.
Antes de se lançar naquela aventura, ela sabia que teria de
andar milhas e milhas. Era a incerteza de encontrar um abrigo
e a aproximação da noite que a enchiam de inquietação. Mais
de uma vez esteve a ponto de cair, por ter tropeçado na
estrada deformada pelas chuvas. O coração e os pés pesavam-lhe
como chumbo. De súbito chegou-lhe ao ouvido o ronronar dum
motor. Estacou e pôs-se à escuta.
Estava a ouvir o mesmo som - o ruído penoso dum carro a
atravEssar a estrada irregular. Depressa o avistou. Deveria
fazer-lhe sinal? Havia de passar a noite na estrada? E os
lobos, e as cobras - talvez até mais salteadores! Acenou
frenèticamente; o carro parou e Martha, correndo
apressadamente ao encontro dele, perguntou:
- Podia-me levar até à cidade próxima, por favor?
Os ocupantes, um homem: e uma mulher, eram pessoas de cor.
Martha engoliu a sua surpresa. Eles estavam visìvelmente tão
surpreendidos como ela. Martha estudou o casal com olhos
penetrantes, mas o aspecto deles era honrado e amável.
- Menina, se não se importa de viajar na nossa companhia,
nós temos muito prazer - respondeu a mulher, num tom suave.
- Muito obrigada. Tenho muito prazer em ir convosco - disse
Martha, enquanto subia. - Não sabia que a cidade ficava tão
longe.
- Nós também nos perdemos. Nunca vi na minha vida tanta
terra abandonada.
- Também eu não - concordou Martha.
Enquanto o homem guiava, a simpática esposa ia falando.
Vinham de St. Louis e dirigiam-se para o Oeste em busca duma
casa e de trabalho. Ao pôr do sol, estavam ainda na estrada,
mas às sete horas haviam atingido as proximidades duma cidade.
Na praça principal, Martha saiu e agradeceu-lhes, despedindo-
se e desejando-lhes boa viagem. Entrou num pequeno
restaurante, para uma ceia frugal e indicaram-lhe o único
hotel existente no Vale. Meteu-se logo na cama. Já era hábito
estar estafada, mas naquela noite sentia-se, pela primeira
vez, só e cheia de saudades da família. A mãe e a casa não lhe
saíam do pensamento. Ainda não lhes tinha mandado um
telegrama, ou uma carta; achava que não devia retardar mais as
notícias.


34 35


De manhã, estava tão acabrunhada e tão fatigada, que Lhe
custou a levaNtar-se. Que lhe traria o novo dia? Ao acordar
assaLtava-a sempre a dúvida. Mas naquele momento nem o senso
de humor, nem o apelo da aventura, vinham em socorro do seu
espírito abatido. Pela primeira vez, experimentava o peso da
consciência culpada de um fugitivo.
A primeira coisa que fez, portanto, antes de descer, foi
começar uma carta para a mãe. Descobriu que uma coisa era
decidir escrever, e outra, muito diferente, saber o que dizer.
Finalmente achou que o melhor seria persistir na mentira, com
que encetara a viagem. As lágrimas a mancharem-lhe o papel
onde escreveu que, quando chegaram ela e Alice NIcGinnis, a
Omaha, o tio da amiga convidou-as para um passeio à
Cordilheira Negra. Claro que ela e Alice estavam danadinhas
por aceitar. "A mãezinha sabe quanto eu desejei sempre ver o
Oeste, por isso não fique aborrecida e perdoe-me a
desobediência".
Foi um alívio deitar a carta no correio, mas isso não fez
calar a sua consciência acusadora. Como poderia ela alguma vez
reparar aquela falsidade para com a família esPecialmente para
com a mãe? A primeira mentira inocente tinha-a emvolvido numa
situação que exigiria cada vez mais e mais falsidade. Em que
iria acabar tudo aquilo?
Ainda não estava na estrada há dez minutos, quando passou um
carro de turismo, com a matrícula de Illinois levando à frente
dois homens de meia idade. Abrandaram, sorriram como que a
convidá-la, depois disseram-lhe adeus com a mão e seguiram.
Pouco tempo depois, um camião subiu a encosta que ficava para
trás de Martha e parou no cimo da colina.
- Aiü... ho! - gritou uma voz troVejante.


36


Um rapazinho que se sentava ao lado do motorista estendeu o
braço e com as mãozitas fez um gesto como se pretendesse
ajudar a parar o carro.
- Olá, viajante, quer uma boleia comigo e com o meu sócio? -
chamou-a a mesma voz profunda.
Martha contemplou um par curioso - o homem de blusa azul,
entreaberta, deixando ver um pescoço bronzeado, de rosto
avermelliado e franco e com o braço esquerdo cortado à altura
do cotovelo, e o garoto, com um minúsculo fato-macaco, fazendo
lembrar um gnomozinho irrequieto.
- Gostaria muito, se não desse maçada - replicou Martha.
- Há muito espaço - trovejou ele, em resposta.
Ela saltou para o lugar ao lado do rapazito. Ele sorriu -lhe
e ela retribuiu-lha o sorriso. Depois seguiram durante algum
tempo em silêncio. Martha pensou na quantidade de perguntas
que queria fazer.
Após alguns momentos, o condutor começou a falar. Era de
Detroit e perdera o braço na guerra. Ao voltar de França, os
médicos tinham-lhe dito que estava doente dos pulmões e não
viveria, a menos que fosse para o Oeste. Viera para Nebraska e
em oito meses estava curado. Dedicara-se mais tarde à
agricultura e fora bem sucedido. Grande parte da sua sorte
era, dizia ele, devida à esposa maravilhosa que encontrara no
Oeste.
- Também tenho um rapaz mais velhinho - concluiu com
desculpável orgulho - mas não podia passar, era aqui sem este
meu sócio. Ele é a minha mão esquerda.
A esta saída, pai e filho riram alegremente. Martha
encontrava, pela primeira vez, um veterano que voltara da
guerra mutilado e que se reencontrara a si próprio.


37


Oeste hospitaleiro. Acrescentou à sua lista para gostar do
Oeste.
Seguiram, conversando animadamente até que eles a deixaram
numa estrada que sa bifurcava para o sul. Martha acenou um
adeus ao corajoso soldado e ao adorável garotinho.
"Bem - monologou - Isto resume-se a andar a pé e de carro, e
a encontrar muitas pessoas simpáticas. e algumas que o não
são".
Pensou em Andrew Bonning. Ele parecia ir-se sumindo no
passado, cuja realidade ela reconhecia com uma certa angústia.
Como poderia alguma vez esquecer a sua corajosa intervenção a
favor dela? Mas ele tinha-a tomado por uma leviana. "Ora, que
me importa a mim, que não o torne a ver" - suspirou.


O terreno era agora mais acidentado. Espraiava-se em séries
de cumes desolados onde cada vez mais escasseavam os sinais da
civilização. As árvores eram altas e abundantes. O ar mais
cortante e revigorador. Martha sentia-se capaz de caminhar
indefinidamente. Verificou que o entorpecimento que a invadira
diminuía gradualmente com o exercício. Esperava atingir uma
cidade pelo fim da tarde. Se, ao menos, aquelas cidades não
ficassem tão distantes umas das outras, já ela não teria de
recear tanto não arranjar boleias. Enquanto ia avançando, com
o espírito a saltitar dum pensamento para outro, da sua casa
para o imaginado rancho do tio, surgiu por trás dela um "Ford
coupé", que parou a alguns passos dela, com um arranhar de
travões.
- Como vai isso, boneca? - interrogou-a um rapaz, sentado ao
volante. Vinha sozinho e tinha um rosto descarado e queimado
do sol.
- Assim, assim - respondeu Martha Ann, laconicamente. Ele
conservava o carro apar dela, conforme ia andando.
- Boa caminhada daqui a Barton - disse significativamente,
parando o "Ford".
Nenhuma outra observação produziria tanta impressão na
viajante. Encontrara pouco alimento no caminho e desejava
tanto avançar; parou. Ele sorriu, como se estivesse já
habituado a ser indulgente com as raparigas teimosas, que, no
fim, acabavam por ser obrigadas a ceder. Quando Lhe abriu a
porta, a velha confiança em si própria reafir mou-se, e entrou
para o carro. Resolvera fazê-lo, a despeito duma vincada e
instintiva antipatia por aquele indivíduo demasiado confiante
na sua pessoa. Talvez que a sua antipatia derivasse
principalmente da maneira de ele a tratar por "boneca". Pôs o
carro em andamento com uma das mãos e com a outra passou-Lhe a
cigarreira.
- Fuma?
- Não, obrigado.
- Não fuma mesmo, ou está a armar?
Os olhos dele eram muito juntos e emitiam estranhos clarões,
ao percorrer a delgada figura da rapariga.
- Não gosto. Até onde vai?
- Mais algumas milhas para diante. Tenho de ir ver um
rendeiro. Para onde vai você, boneca?
- Wyoming - respondeu, lacónica, aborrecida com o epítoto
que ele tão livremente usava. Começou a recear ter cometido um
erro ao aceitar a boleia.
- eh! É muito longe para uma senhora ir sozinha. Não está
com pressa, pois não, boneca?
- Isso é que estou. Com muitíssima pressa - declarou Martha
Ann secamente. Não poderia dizer se a resposta penetrara no
espírito dele. Pelo menos, parecia não ter dado por ela.


38 39


- Quer vir a uma reunião de índios? Uma reunião e baile em
Lagrange, esta noite. Porque não vem comigo? Vai-se divertir à
grande.
- Tenho pessoas de família que me esperam esta noite em
Barton.
- Vá impingir essa a outro - respondeu, rindo. - Você é uma
dessas que andam por aí a apanhar boleias.
São boas camaradas, que eu sei.
- Pois eu não sou.
- Vá lá, boneca, seja boazinha. Você pode telefonar de
Lagrange, Diga-lhes que chega tarde. Vai ver que se divertirá
comigo.
- Lamento, mas nem Pensar nisso é bom -, repetiu Martha.
Sentia os olhos dele sobre si, enquanto via o conta
-quilómetros subir cada vez mais.
- Que tem, boneca? Medo de andar um bocadinho mais depressa?
- Não tenho medo - afirmou desdenhosamente. - Estava só a
pensar se você iria apagar algum fogo.
Ele riu-se. e apoiou a mão sardenta no joelho de Martha.
- Se calhar está com medo de mim, boneca.
- Hnm! Nem por isso - resPondeu. Depois, num gesto decidido
e deliberado, afastou-lhe, com firmeza, a mão.
- Você sabe, boneca, eu faria muitas coisas por si, - disse
ele persuasivamente.
- É possível. Mas não é preciso. Se parar aqui, eu desço e
vou a pé.
- Não seja assim. Você mal chegou! Sou assim tão mau?
- Deixe-se disso - exclamou Martha Ann, enervada - não sou o
que pensa.
- Você está mas é a armar!
- Pare o carro e deixe-me sair!
- Mas, garota, estamos quase a chegar.
Por essa altura, o Ford corria à desfilada pela estrada
à média de uma miLha Por minuto. Martha estava aterrorizada
com a velocidade do carro, se não com o estúpido que o
conduzia. Morrer num desastre - que pobre e trágico fim para o
seu sonho! Porque havia ela de se ter tentado com aquela louca
evasão? Gritou-lhe que a deixasse sair.
Ele tirou o pé do acelerador e virou rapidamente para a
direito descEndo por um atalho relevado, rodeado de árvores,
que ruçaram no veículo.
O desvio do carro tinha feito Martha perder o equilíbrio,
lançando-a contra o condutor. Este tirou uma das mãos do
volante e agarrou-a pela cintura. Depois reduziu a marcha do
carro, para não sair do atalho e meter pelos arbustos. Tentou
puxar a si a rapariga.
- Como se atreve! Largue-me, seu grosseirão! - gritou Martha
Ann, repelindo-o com quanta força tinha.
- É Muito tarde, boneca. - O automóvel agora mal se movia. -
Vá lá, seja boazinha. De que tem medo?
- De nada e muito menos de si! - arquejou Martha,
debatendo-se. - Solte-me, deixe-me sair do carro. ou mando-o
Prender.
- Oiça cá, belezinha, onde é que pensa que está? Não há
polícias por aqui.
- Mas tenho eu família por aqui que o há-de fazer pagar caro
o atrevimento. Largue-me.
Ele soltou uma risadinha, trocista:
- Olhe, menina, você está tão longe de quem quer que seja,
que essa sua história da família nem sequer tem graça. Ninguém
a ouvirá se gritar.


40 41


Mas eu tenho bom coração. Deixe-se lá de fitas; eu não sou tão
mauzinho como isso.
- Temos gostos muito diferentes. E dá-se precisamente o caso
de eu não gostar do seu tipo.
- Isso é que é mau! Mas eu tratarei de a fazer mudar de
opinião. Até gosto de mulheres rebeldes.
Dizendo isto, largou o volante e puxou para si Martha, que
quase conseguira já soltar-se. Por um momento ficou fascinada
pela visão dos seus dentes pequenos e separados, todos
manchados de tabaco. Pela primeira vez na sua vida, tomava
contacto com uma força bruta, primitiva e audaciosa. Viu os
grossos lábios dele apróximarem-ce. Todas as outras feições
desapareciam diante da súa fealdade animal.
Uma raiva intensa e dominadora a invadiu. Que criatura tão
admieràvelmemte reles: Sabia que não valia a pena gritar. Era
melhor poupar o fôlego. A sua sorte depemdia apenas dos
próprios recursos e energia. o carro foi de encontro a um
tronco caído e resvalou pela berma da estrada. Receou por um
momento que se voltasse. Ele tinha feito o possível Por se
afastar cada vez mais da estrada principal.
Ele cingiwa mais e ela deu-lhe um pontapé com toda a força;
uma das grossas botas forradas atingiu-o na canela.
Ele soltou Um grito de dor, mas continuou a apertá-la cada
vez mais, enquanto tentava de novo guiar com a outra mão.
Queria distanciar-se da estrada, seguindo aquele caminho
solitário.
O pontapé selvagem que aplicara ao comdutor do Ford deu a
Martha a consciência da sua única possibilidade de se
libertar. Sabia que a sua maior resistência estava nas pernas
e, assim, tornou a golpeálo com ambos os pés. Conseguiu, por
fim, soltar-se, e emtão, encolhendo-se, vibroulhe com as duas:
botas, um forte golpe na boca do estômago. Com um grito
roufenho, ele largou o volante. Rapidamente, Martha
debruçou-se, fechou a ignição e atirou para longe a chave, que
se sumiu entre as ervas.
- Maldito demónio! - gritou ele, com o rosto contorcido de
dor e de raiva.
Martha sentiu então um furor sem limites. Se algum medo
sentira, desaparecera já de todo. Com as costas apoiadas no
canto do "coupé" e os pés levantados, continuou a espamcá-lo
por todo o corpo, selvaticamente, com pontapés fortes e
rápidos das pesadas botas. Por duas vezes ele agarrou-lhe os
pés, mas não conseguiw segurá-los por muito tempo. Martha
verificou, exultante, que ele não era suficientemente forte
para a dominar. Ela poderia sempre levar a melhor; deu-lhe um
rijo pontapé no estômago com a bota esquerda e, a direita, um
golpe ainda mais rijo no nariz. O sangue espirrou, salpicando
o interior do carro, o que só aumentou a determinação dela de
o massacrar ou até de o matar.
- Pare com isso, sua gata do diabo - barafustou ele.
Martha Ann deixou cair os pés com ruído e endireitou-se para
apanhar o saco. Depois, abrindo a porta, saltou do carro. Ele
lá ficou agarrado ao nariz, com o sangue a escorrer-lhe por
entre os dedos, manchando-lhe os punhos da camisa.
- Da próxima vez que se meter com alguém - arquejou ela -
escolha uma rapariga da sua laia e do seu tamanho, seu
estúpido.
Ofegante, desceu o atalho, de volta à estrada, excitada mas
triunfante. Esta calmaria durou mais alguns momentos; de
repente, deu-se a reacção e ela começou a tremer violentamente
e a soluçar. Não podia mais. Encontrando uma regueira,
sentou-se, cambaleante, e tentou mergulhar o lenço na água,
para refrescar o rosto e as mãos. Perto ouviu-se o ruído dum
carro; o som não vinha, contudo, do atalho.


42 43


Reconheceu no carro que se aproximava o "Buick" matrícula
de Illinois que passara antes por ela, com dois homens de
rostos prazenteiros. Estes dirigiram-se para a regueira e,
vendo-a, pararam.
- Olá, cá estamos outra vez! - exclamou um.
- Que lhe aconteceu, minha filha? - interrogou o outro,
saindo rapidamente do carro.
O som duma voz amável naquela triste solidão acabou de
desorientar Martha. Os soluços aumentaram; estava incapaz de
responder às perguntas que lhe faziam. Os homens foram buscar
um cantil e ofereceram-lhe água. Por fim, conseguiu acalmar-se
o suficiente para falar correntememte:
- Aceitei uma boleia... dum homem... num Ford. ele guiou a
mais de cem à hora. Mudou de direcção. aquele atalho ali, e
attacou-me. Oh, ele foi horroroso!. Mas eu livrei-me dele.
deixei-o lá.
- Grande patife! - murmurou um dos homens, - Biston, tome
comta dela, enquanto eu Procuro esse cavalheiro.
Afastou-se por algum tempo, enquanto o outro tentava acalmar
Martha e lhe assegurava que ele e o seu companheiro, o senhor
Madison, teriam muito gosto em que ela fosse com eles Para a
próxima cidade.
Martha estava já no carro, no lugar de trás, e mais ou menos
refeita, quando o senhor Madison voltou.
- Bem, menina. - começou em tom alegre.
- Dixon - completou Martha.
- Encontrei o seu assaltante e pelo aspecto dele, inclino-me
a acreditar que a pergunta que eu e Biston fazíamos a nós
mesmos, sobre se seria caPaz de tomar conta de si própria,
está amplamente respondida. Mas, por precaução, dei-lhe mais
um correctivozinho.


44

III


Quando James, o criado, o fez interromper a leitura
despreocupada do "New York Times" de domingo, para o informar
de que o pai desejava vê-lo na biblioteca, Andrew Bonning
calculou que teria acontecido qualquer coisa.
- Bem, quanto mais depressa melhor - murmurou Andrew,
sentindo avizinhar-se o fim há muito iminente, da situação,
sem dúvida provocada pela última escapada do irmão, Raymond.
Como esperava, já lá encontrou Raymond, com a elegante
fleuma que a sua atraente pessoa sempre irradiava; tinha a
loura cabeça ligeiramente inclinada, enquanto observava
atentamente o papel que tinha na mão. O senhor Bonning estava
sentado à secretária, olhando com um ar de fria determinação.
- Esse é o último, Raymond - dizia. - Agora, ficas entregue
aos teus próprios recursos.
- Fixe - respondeu este, levantando os olhos do cheque. - E
muito obrigado, claro... É mais do que esperava. Então,
ponho-me a andar, não é?
- Eu e a vossa irmã vamos viver para um apartamento onde não
haverá lugar para vocês, rapazes.
- Bom dia, Andy - disse Raymond. - Vamos fazer uma
viagenzinha. Passem bem. - Retirou-se, fazendo esvoaçar o
cheque na mão branca.


45


- Bem, pai, acho que não é preciso perguntar lhe porque me
chamou - disse Andrew, com uma leve risada.
- Sentas-te? - perguntou o pai, cortêsmente.
- Não, obrigado. E torne o assunto breve e o menos
desagradável possível, se faz favor.
- Nem poderia ser de outro modo - replicou o pai -, Com
certeza já sabes o prejuízo que tive em consequência da última
crise em Wall Street. Esperava refazer-me. Mas... bem, não
vale a pena falar de pormenores. Aqui tens um cheque para ti.
Andrew aceitou-o, sem olhar para a quantia que mencionava.
- Lamento muito, pai - disse, hesitante. -, Na sua idade. é
duro. Sem nós, rapazes, lhe podermos ajudar nada. e com a
Glória...
- A tua irmã tem o seu rendimento - interrompeu o senhor
Bonning. - Felizmente não dissipou o dinheiro que a tua mãe
lhe deixou; e há-de casar bem. Eu posso manter-me sem luxos.
Mas tu e o Raymond agora terão de governar-se sozinhos.
- Já o esperava, pai - respondeu Andrew pensativamente.
Ainda era amigo do pai, facto que subitamente parecia apagar
todos os mal-entendidos e todo o afastamento dos últimos anos.
- Andrew, não me dei ao trabalho de aborrecer o Raymond com
as minhas opiniões, mas se me permites, gostaria de expressar
o meu desapontamento a teu respeito.
- Tenho tido a impressão, pai, de que já mais de uma vez, o
expressou -, retorquiu Andrew, com tristeza. - Mas se isso o
alivia, diga lá.
- Deixaste a faculdade a meio do segundo ano...
- E porque não? Não aprendia nadinha - disse Andrew
impaciente.


46


- Não eras capaz de fazer nada de jeito nem sequer no
futebol, para o que tinhas todas as condições, excepto miolos
- respondeu o pai, com desprezo. - Alto, bem constituído bom
corredor - podias ter feito nome!
- Sim, sim! Podia, parece-lhe a si - retorquiu Andrew,
exaltado. - Não fiz parte da equipa da Universidade durante
dois anos e não os ajudei tanta vez a ganhar? Os treinadores
eram todos por mim, mas o capitão Higgins e os dirigentes
desportivos só favoreciam os seus preferidos. Perdi o
entusiasmo e acabei por me desinteressar.
- Pois foi. Mas se tivesses levado aquilo até ao fim!
- O pai fica admirado, se eu disser que considerava a
faculdade um lugar onde havia o futebol, carros de corrida e
dinheiro de mais, em vez dum lugar onde se estudava?
- Não, não fico, és um ás a arranjar desculpas. O que é
facto é que não conseguiste tirar proveito, nem físico, nem
cultural, da universidade. E, ultimamente, falhaste também nos
negócios.
- Essa última parte, admito, pai - respondeu Andrew, com
desgosto. - Falhei em todas as tarefas que me arranjou; mas
dou-lhe a minha palavra que fiz o possível. Não é que eu seja
um idiota, mas não dou nada para números. Não suporto estar
sentado a uma secretária; sinto-me sufocado. E, para ser
sincero, pai... detesto os modernos métodos comerciais.
- Ora, até que enfim que és sincero - declarou o senhor
Bonning. - Poderias ter evitado bastantes aborrecimentos a
ambos.
Devagar, Andrew rasgou o cheque em dois bocados. que pôs
diante do pai.
- Quê, não queres o cheque?
- Escusa de se preocupar mais comigo, pai.


47


- Porquê?
- - Porque o pai precisa mais dele que eu, E faz-me sentir
envergonhado de mim próprio. Mas, apesar de tudo, não me sinto
absolutamente culpado dos meus inêxitos.
O mundo está fora dos eixos ou então sou eu que não me dou
bem nele. Ainda não encontrei nada que quisesse e pudesse
fazer. Adeus, pai.
Andrew saiu da biblioteca, com Passos decididos e cabeça
erguida como quando do chamamento do senhor Bonning.
No patamar de cima encontrou Glória, a irmã, apoiada ao
corrimão. Trazia um vestido azul.
- Andy!
- Bom dia, Glória! Para que é esse ar tão trágico?
Sempre tiveste jeito para dramatizar, mas então agora metias
a tue num chinelo. Olha, uma boa ideia! Porque não te dedicas
ao cinema? Seria melhor do que...
- Eu ouvi - segredou ela, e fazendo-o entrar Para o seu
quarto, fechou a porta. Depois perguntou gravemente:
- O pai recusou-te abrigo a partir de hoje?
- É mais ou menos isso, irmãzinha, embora, segundo
depreendi, esta casa esteja perdida para todos nós.
- Andy, eu não tenho a menor pena - disie ela
fervorosamente. - O Ray é um inútil e a ti a mudança far-te-á
um homem.
- Muito obrigado; dás-me esperanças. RealmEnte, Glória, tu
tens sido a única pessoa que confia em mim. Não o esquecerei.
Até mesmo a Constance sempre me considerou um falhado.
- Isso é verdade, e mandar-te-á passear quando souber disto
- declarou Glória, significativamente. - Andy, irrita-me ver
como ela te sabe levar.
- Não temos nenhum compromisso sério, maninha. E, para ser
sincero" creio que me importo tanto com ela como ela comigo.
Simplesmente já andávamos juntos ainda antes de eu entrar para
a faculdade.
- Que pensas fazer, Andy? - inquiriu ela, estudando-o com os
olhos escuros.
- Ir para qualquer lado! - exclamou, como se um súbito
pensamento se tivesse apoderado dele.
- Para onde?
- Não sei. Para longe... onde haja espaço, muito espaço... e
nada de negócios.
- Para o Oeste? - sugeriu.
- E porque não Para o estrangeiro?
- Andy, devias ter aceitado o cheque do pai.
- Deus me livre!
- Empresto-te cinco mil...
- Não emprestas nada! muito obrigado, velhota, ainda tenho
uns doze mil dólares do que a mãe me deixou. Chega e sobra.

- O Oeste -- murmurou a irmã, imediatamente -, Já estive em
YeIlowtone, Andy. Oh! o Wyoming é maravilhoso! Vai para lá.
Andy, sabes que às vezes tenho boas inspirações.
- Está dito. Vou para o Wyoming - respondeu Andrew, aliviado
por lhe facilitarem a escolha.
- Hás-de triunfar lá - confirmou ela. - De qualquer modo,
Andy, isto aqui não dava nada. Nova Iorque para ti já perdeu
todo o interesse. a excitação...
- Excitação! Detesto essa palavra - declarou, irritado -
Parece que esse agora é o único objectivo de toda a gente.
- E é. para todos nós - replicou sombriamente. - Acho que
não podemos fugir ao presente. Já experimentei todas as
novidades à superfície da terra; excepto o Oeste,


48 49


e esse experimentá-lo-ia, se o achasse interessante.
Andrew mordeu o lábio para evitar uma resposta desagradável.
Apesar dos seus defeitos Glória era boa rapariga e fora leal
para o irmão, que pregava muito a lealdade.
- Algum dia tens de assentar, querida - disse, com ar
despreocupado. - Casar com o ElleYon, ou mesmo com o
Blackstone, Pelo dinheiro que Possuem, talvez não fosse muito
emocionante, mas seria seguro.
- Andy, és antiquado. E aí é que está o teu erro. As
raparigas do século vinte não se casam para se arrumar, para
ter alguém que tome conta delas! Que anedota! Alguém se rala
com a sua segurança?
- Bem. acho que tu lá sabes o que queres - acrescentou
Andrew, com uma risada. - Deixa-me ir arranjar as minhas
coisas, antes que mude de ideias.
- Vai, vai. Se desta vez soçobras, nunca mais te levantas.
Mas não te vás embora, sem te despedires de mim.
Andrew subiu para o seu quarto, obcecado pela resolução que
tão impulsivamente tomara, consciente de sensações que desde
garoto não experimentava. Tinha vinte e quatro anos e o
pensamento que tão instantemente o assaltava naquele momento
era: por que razão nunca lhe ocorrera antes aquela ideia?
Atirou-se para cima da cama, para enfremtar a certeza de que a
sua vida ia mudar de rumo. Chegara a um ponto de completa
indiferença por uma existência fútil, em que imaginava nada
lhe poder acontecer que valesse a pena. Mas comPreendia agora
que era assim porque ele nada fizera para que acontecesse
álguma coisa, Até seis meses antes resignara-se com a sua
incapacidade, não passava dum inadaptado. Depois veio o
descontntamento e a irritação que o levaram àquela verdadeira
infelicidade. Umas simples palavras da irmã, raPariga
complicada, mas sensata, tinham mudado tudo num abrir e fechar
de olhos - tinham-no feito abandonar o seu torpor.
Encontrava-se diante dum futuro, que lhe oferecia uma
oportunidade, para reconstruir a sua vida.
A cidade grande e moderna era boa, sem dúvida, para aqueles
jovens que acompanhavam o andar dos tempos.
Andrew não tinha a loucura da velocidáde, da bebida, do
prazer e do dinheiro, mas faltava-lhe qualquer coisa. Ele não
quisera dar àquela vida o que ela pedia em troca do êxito.
"Mas eu posso cultivar trigo" - respondia ele às suas
próprias acusações - "ou ser mecânico de automóveis, ou
guarda-florestal. qualquer coisa, caramba!"
Qual seria o primeiro passo a dar? Um definido e
irrevogável! Primeiro que tudo telefonaria a Constance. Certo
da reacção dela e desejoso de acabar com aquilo, riscou o seu
número. E, enquanto esperava, imaginou a sua loura cabeça
sobre o travesseiro branco.
- Está? - respondeu imediatamente a voz sonolenta, agradável
e bem disposta que conhecia tão bem.
- Bom dia, Connie. Daqui é Andy - informou.
- Ah, és tu? Que ideia é essa de me telefonar a estas horas?
- amuou-se a rapariga.
- Notícias, Connia. O pai está arruinado. Eu fico entregue
aos meus próprios recursos.
- Andy! Não sejas tão dramático! Estás a brincar comigo, ou
quê?
Ele assegurou-lhe solenemente que era verdade e que, de
certo modo até se sentia contente.
- Sabes, Connie, eu nesta cidade fui uma nulidade.


50 51


Seguiu-se um silêncio tão prolongado que Andrew teve de se
conter para não o quebrar.
- Olha, Andy, que aborrecimento! Tenho muita pena - disse
ela, por fim, e a resposta deu-lhe o alívio que procurava.
- Já sei que tens pena, Connie. Mas não vais ficar com o
coração despedaçado, não?
- Com o coração despedaçado? Andy, tem juízo!
- Tenho sim. O que eu quero dizer é se... se consideravas a
nossa... a nossa amizade... Olha, Connie, se queres
continuar...
- Meu velho Andy! Que criança me saíste - veio a resposta,
acompanhada do riso suave de Constance. - Olha, Andy, eu nunca
casaria contigo e julgava que já o soubesses. Éramos apenas
bons camaradas.
- Tenho uma ideia de me teres dito isso. AnTas desejava...
aclarar a situação.
- És demasiado bom, sinples e leal para esta terra de
doidos, Andy. Que tencionas fazer?
- Ir para o Oeste.
- Para que sítio?
- Para o selvagem Wyoming, terra da lã.
- Wyoming? Deus... te valha, não encontraste nada mais
longe?
- Quero fugir às multidões. Estou farto de privar com gente
louca, Connie.
- Tu também és um bocadinho louco, Andy. Foi isso que eu
sempre apreciei em ti.
- Quero árvores enormes e espaços sem fim!
- Estás encantado da verdade! Pelo menos vai ser excitante,
Invej o-te.
- Deixa-te disso!. Bem, Connie, adeus...
- Adeus, Andy, e felicidades!
Devagar, Andrew pousou o auscultador, consciente do seu
imenso alívio e, ao mesmo tempo, duma vaga tristeza. Recordou
os muitos momentos felizes que ele, Connie e Glória haviam
passado juntos. Agora voltava as costas àqueles tenpos sem
responsabilidades, mas não levava nenhum sentinento de perda
irreparável.
Permaneceu um momento junto da janela, com um ar pensativo.
A rua estava deserta, com o sossego próprio do domingo. Para
lá da casa da esquina distinguiu o Parque CEntral, com as
faias, bordos e carvalhos, que começavam a ostentar o seu
verde fresco; voltara a Primavera. E, de súbito, a ideia de
que, em breve, se encontraria longe dali, num lugar onde podia
respirar, onde podia contemplar o céu e sentir o vento no
rosto, sentir o calor do sol e o perfúme da terra, apoderou-se
dele, como uma necessidade imperativa. Aquela rápida sensação
fez que, quase pela primeira vez, visse que era aquilo que lhe
convinha.
Faltava-lhe só fazer as malas. o que era difícil e um pouco
triste, porque tinha de escollier poucas coisas, entre as
muitas que tinha. Arranjou duas malas de mão grandes e uma
mala da viagem; guardou apenas as suas coisas favoritas.
Admirado viu que, quando acabou de escolher e de arrumar tudo,
declinava o dia. Vestiu um fato leve de viagem e, chamando um
táxi, deixou a casa sem voltar a ver o pai ou Glória; teria
gostado de se despedir da irmã mas ela saira.
Andrew dirigiu-se ao Hotel Manhattan, pediu um quarto,
jantou e depois dirigiu-se à Estação Central onde marcou úm
lugar no vagão cama do comboio que saía na manhã de segunda-
feira. Feito isto, desceu a Rua 42 em direcção à zona dos
teatros, consciente dum excitamemto ao mesmo tempo profundo e
suave.


52 53


Escolheu um filme como canção de despedida da sua vida em
Nova Iorque.
Era um filme de aventuras, cheio de cor e movimemto, de
enredo melodramático. o herói exibia demasiado o perfil e a
heroína fazia arfar o peito com demasiada aplicação. Andrew
não conseguiu juntar nenhum fio do enredo.
Contudo permanecia ali sentado no escuro, deliciando-se com
os vastos territórios, os picos de cumes brancos, as correias
dos cavalos, com os vaqueiros e com os índios famélicos.
Aquele género de películas proporcionara-lhe sempre grande
prazer. Por sinal a acção desenrolava-se perto de Wyoming.
Andrew ficou para a segunda sessão e abandonou o cinema tão
bem disposto como um garoto que tivesse lido histórias sobre
Dick Deadwood e Jone Calamidade. Aqueles filmes destinavam-se
a pessoas como ele. Tinha de suportar os maus actores e de
tolerar as actrizes bonitas, cheias de juventude e feitiço,
mas a sua inegável fascinação era a qualidade dos cenários, o
papel dos cavalos e a violência do homem, deleneada num
ambiente pitoresco e selvagem.
Na manhã seguinte, Andrew Bonning converteu os seus títulos
em dinheiro, nove décimos em notas de grande valor, que
colocou num saquinho de couro destinado a ser guardado debaixo
da camisa. Aquele dinheiro tinha de fazer uma longa viagem. O
seu bilhete era de segunda classe para Omaha, no Nebraska. Ele
que antes nunca se preocupara com o valor dum dólar,
esforçar-se-ia, agora, por fazer render o mais Possível o seu
pecúlio.


- Olhe cá; trinta e cinco dólares por esse Ford
antidiluviano é uma autêntica roubalheira - declarou Bonning
sacudindo a carripana chocalhante.
A cena passava-se num lugar afastado do centro comercial de
Omaha. Andrew sentia que, com o trajo que comprara, encarnara
uma nova personagem. Certamente devia ter qualquer poder
transformador, pois não lembrava de alguma vez ter discutido o
preço das coisas que adquiria.
- É o mais barato que encontra, patrão - replicou o
vendedor. - Afinal que é que procura?
- Quero um carro antigo com que ninguém ande; bom para
ferro-velho.
- com os diabos! - exclamou o homem, com um trejeito. -
Parece-me que assim não fazemos negócio, todos os meus carros
andam que é uma beleza.
- Vamos lá a ouvir o barulho desse Ford.
O entusiástico vendedor saltou para o carro com vivacidade,
ligou o motor e tentou pô-lo a trabalhar, mas em vão.
Examinou, mexeu e sacudiu e Pensou, sem resultado. Corado,
olhou para Andrew com um ar um tanto encavacado.
- Você sabotou-me o carro, ou quê?
- Não podia; você não me deixou por um momento. Não consegue
pô-lo em andamento?
- Parece que não. Está frio, creio eu. Mas vou fazê-lo andar
num instante.
Decorreram alguns minutos e o vendedor perdera muito da sua
confiança. Andrew viu que a desolação do homem era o momento
psicológico.
- Se lhe juntar essa cobertura velha, compro-lhe esse monte
de sucata.
- Por quanto? - perguntou resignadamente.
- Quinze dólares.
- Leve lá - resmungou o outro, com um gesto de desalento. -
Mas você é mais ladrão que o Jesse James.
Andrew achou-se possuidor dum automóvel.


54 55


Calmamente, pôs-se a tentar descobrir a avaria. Tinha geito
para mexer em motores. Em menos de dez minutos descobriu que
um dos tubos do carburador estava entupido.
- Oh, já vi o que tinha o carro - exclamou para o ex-dono.
- Sim? Que era?
- O ingrediente locomotor não coincidia com o periélio -
respondeu Andrew, brincalhão.
- Hum, está bem, você está-se a divertir à minha custa -
tornou o outro. - Aposto que você não é pessoa que use sempre
esse fato de trabalho.
- Não. E você devia estar em Wall Street. Adeus.
No caminho para a pousada, onde deixara as malas, Andrew
parou para adquirir provisões. Em breve deixava Omaha. depois
de fazer uma última paragem num posto situado nos limites da
cidade, onde obteve gasolina, óleo e mapas das estradas.
Depois, enquanto seguia em direcção ao norte, compreendeu, por
fim, que ia encetar vida nova.
Algo semelhante a uma cortina cinzenta caíra no seu
consciente, ocultando os seus fracassos. Agora, deslizava por
uma estrada ampla: para uma região desconhecida, só e
absolutamente livre. Os campos, as vacas que pastavam, as
macieiras em flor, os bandos de melros, as longas filas de.
andorinhas pousadas nos fios telefónicos eram realidades, com
as quais pela primeira vez entrava em contacto. Diante dos
seus olhos passavam lagos, onde chapinhavam patos, regatos
sinuosos, ladeados de salgueiros, alamedas de carvalhos e de
ulmeiros; assim como outras árvores que lhe eram menos
familiares. Tudo isso trazia-lhe à memória longínquas visitas
à Nova Inglaterra e recordações vagas de um período ainda mais
remoto.
A disposição de Andrew era de calmo júbilo; mas, assim como
não tentava devorar as distâncias, assim também não procurava
penetrar demasiado naquela sua invulgar disposição. Sentia,
contudo, ao imaginar as montanhas do Oeste, quase se operava
nele úma transformação, feliz: arrancara os seus interesses da
Leste e tinha agora de os transplantar para algures no Oeste.
Mas, por enquanto, o período como sa faria essa transladação
não o preocupava grandemente.
Cerca do meio dia, atravessou uma aldeia que exibia vistosos
indicativos de postos de gasolina, tanto à entrada, como à
saída. Regozijou-se com o facto de que, mais tarde ou mais
cedo, se veria livre do cheiro da gasolina. Continuou a
conduzir a cerca de vinte e cinco milhas à hora, a passo de
lesma que lhe valeu uma série de apitos de outros veículos,
impacientes, para lhe passarem à frente. Um grande e veloz
carro de turismo buzimou insistentemente e, ao ultrapassá-la,
o condutor, corado e em mangas de camisa, gritou qualquer
coisa a respeito de uma "cafeteira".
- Ande lá, cavalheiro - disse Andrew, alto. - Você
representa tudo aquilo a que eu virei as costas. - Velocidade,
luxo, agitação, ociosidade e tensão arterial elevada -
futilidades.
As horas passavam com demasiada rapidez para ele, e o pôr do
sol apanhou-o no cimo duma colina, onde parou para admirar a
paisagem. Em seguida, continuou por um caminho que serpenteava
pela colina abaixo, e, no fundo, meteu por uma curva, junto à
margem dum regato, onde a sombra das árvores fazia acentuar o
crepúsculo.
Dali avistou úma fogueira cuja claridade lhe revelou duas
formas escuras, que se moviam em redor dela; como os faróis
não funcionavam, deslizou avante Pela estrada, até que um
grito, vindo dos lados do acamPamento, Lhe chegou aos ouvidos:


56 57


emvolvidos em luta violenta, destacavam-se no espaço os vultos
dum homem e dum rapaz.
AMdrew travou o carro. Ali se lhe deparou a sua primeira
aventura.
- Largue o rapaz - gritou Andrew, saltando do carro; e,
avançando para os dois, perguntou o que era aquilo.
O homem recuou, respondendo que era só a brincar.
- Oh, não, senhor - exclamou o garoto, num tom que
sobressaltou Andrew. - Ele queria roubar-me. e sei lá que
mais, quando viu que eu era uma rapariga!
A exclamação de surpresa soltada por Andrew foi seguida de
um movimento rápido e num soco, cuja farça não mediu. Com um
soco, o homem voou por cima do declive junto à margem, indo
desaparecer do outro lado.
Andrew gritou aos cúmplices que se fossem embora dali.
- É verdade que é uma rapariga? - inquiriu, virando-sa para
a figurinha, de pé, no meio da estrada. Olhando o rosto branco
e oval e os grandes olhos escuros que o fitavam, achou a
Pergunta desnecessária.
A rapariga disse que sim e que às vezes desejaria não o ser.
Andrew fez-lhe algumas perguntas que vinham a propósito, e
soube que ela não vivia naqueles arredores - e que viajava
pedindo boleias. Ao vê-la ali, diante de si, a olhá-la, Andrew
Bonning sentia-se dividido entre um sentimento de admiração e
solicitude para com a bonita rapariga, colhida numa situação
perigosa, e outro de súbita amargura, ao pemsar nos artifícios
das mulheres modernas, e com o facto de que até numa linda
estrada do Nebraska era possível encontrar uma rapariga, das
que só procuram avemturas excitantes. A segunda impressão
sobrelevou a primeira. Oferecera uma boleia à rapariga, e
ajudando-a a subir para o seu lugar e seguiu caminho.
Sem parecer dar por ela, via-a indistintamente na penumbra
do anoitecer, e não lhe era fácìl reprimir a curiosidade. As
mãos dela eram macias e delicadas e agarravam nervosamente o
embrulho que tinha no colo. Sentia que ela queria dizer-Lhe,
alguma coisa. o que fez finalmente, arriscando a observação de
que ele evidentemente não vivia naquela região. Na curta troca
de Palavras que se seguiu, e que ele não encorajou, por lhe
parecer interessar-se por uma rapariga que andava de boleias,
foi levado a revelar o nome; mas ela não lhe disse o seu,
omissão que registou como desfavorável para ela. Por fim,
chegaram a Norfolk; ela chamou-Lhe a atenção para o facto e
reparou no entusiasmo que a jovem mostrava pelas luzes
brilhantes da cidade.
- Aqui encontrará mais acontecimentos excitantes - observou,
abrandando a marcha Para travar.
- Acontecimentos excitantes? - repetiu, erguendo para ele os
olhos estranhos e luminosos, de expressão interrogativa.
Andrew seria capaz de jurar, não só que não havia nela maldade
alguma, mas também que contemplara a rapariga mais bonita que
jamais encontrara em toda a sua vida.
- Sim, excitantes - confirmou, aborrecido consigo mesmo.
Depois riu-se. - Não é isso que procura? Não Acha que é nisso
que pensam quase todas as raparigas dos nossos dias?
Ela não deu resposta e pareceu ficar ofendida com a
acusação.
- Podia deixar-me aqui, por favor? - pediu. Estava À porta
dum hotel de aparência modesta. Pararam" e ele desceu para a
ajudar. Depois ela disse, hesitante:
- Muito obrigada, senhor Bonning, por... por tudo.
Ele respondeu que estava sempre ao seu dispor e que lhe
desejava mais sorte nas próximas boleias.


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- Esquèceu-se de me dizer o seu nome - acrescentou.
- Não me esqueci. Ia...
Sem dúvida a interrupção fora devida a ter visto que Andrew
fitava admirado as letras MAD escritas no saco, que tirava do
carro.
- Mad - leu ele. - Wyoming Mad? - e soltou uma gargalhada.
- Fica-lhe melhor que qualquer outro nome.
E como é uma pequena inesquecível, lembrar-me-ei de si por
esse nome. Espero que não tornemos a encontrar-nos. Adeus.
Ela lá ficou à beira do passeio, com o saco na mão, o rosto
suave, erguido, embaraçada e tímida, dando-se lentamente conta
da sua rudeza. Andrew lançou-se para dentro do carro e partiu,
consciente de múltiplos sentimentos contraditórios. Parou na
esquina para meter gasolina.
Depois continuou até a um hotel mais abaixo, onde se
instalou para passsar a noite.
Jantou melhor do que pensava; mas dedicou pouca atenção aos
seus planos de viagem. Estava num curioso estado de espírito.
Depois da jantar, por dúas vezes se encaminhou para o hotel
onde deixara a rapariga e quase cedeu à tentação de entrar e
perguntar por ela. Depois dirigiu-se a um cinema e permaneceu
algum tempo à porta, alimentando a doida esperança de que ela
aparecesse por ali; entrou, mas depressa tornou a sair. Em
seguida passeou dum lado para o outro no pequeno parque da
cidade, decidindo-se, por fim, a regressar ao seu quarto no
hotel.
- Bem; a minha primeira aventura é um quebra-cabeças -
monologou, enquanto se despia. Tinha de reconhecer que fora
emocionante salvar a jovem viajante dos grandes olhos. Ficara
impressionado ao encontrar uma rapariga só, que mal teria os
seus dezasseis anos, numa estrada pouco frequentada. e
manifestamente no que ele considerava uma loucura. Fora
dominado pOr um persistente azedume que favorecia o pensamento
de que ela não podia ser senão uma rapariga transviada e
inclinada à aventura, Fora ese pensamento a causa. do
repentino abatimento. Queria esquecê-la? Ora bolas! -
concluiu, apagando a luz. o mundo estava cheio de mulheres
atraentes, sedutoras e irresistíveis - que havia um homem de
fazer? Wyoming Mad? - Nunca me aconteceu uma coisa assim. E se
encontrar a rapariga outra vez? Era engraçado. Ah! Ah!. não é
muito provável. Aquilo não é rapariga que preste! - Admirou-se
de repetir, dentro de si úma voz que o censurava asperamente.
por ser desconfiado e endurecido de todo, incapaz de
reconhecer a inocência, quando esta vinha ao seu encontro.
- Meu Deus! - murmurou, petrificado - Que diriam a isto a
Connie e... a Glória? Que eu sou tão maluco, tão... Wyoming
Mad, como ela - Mas a sua hilaridade era pouco convincente.
naquela vòzinha interior parecia existir o gérmen da revolta.
Ao amanhecer, Andrew estava ao volante do Ford e partia a uma
velocidade que denunciava o seu desejo de deixar bem para.
trás qualquer coisa que o atormentava. Porém, tudo o que o seu
desmantelado carro podia dar eram umas vinte e cinco ou trinta
milhas à hora, e dePressa outros carros começaram a
ultrapassá-lo. Por nada desta vida era capaz de resistir a
lançar um olhar aos seus ocupantes, mas isso poucas vezes Lhe
era Possível, a menos que encarasse deliberadamente com ele.
Durante todo o dia, procurava uma graciosa figurinha ca
caminhava, entre uma e outra boleia, por aquelas estradas. Os
olhos dela perseguiam-no, não pelo seu tamanho,


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pelo seu brilho estranho, ou pela cor - porque nem mesmo sabia
de que cor eram - mas pela sua exprsão. Tê-la-ia julgado mal
ao considerá-la uma aventureira, apenas porque a encontrara
numa estrada frequentada por vagabundos? Devia admitir que
fora injusto. Havia em Andrew Bonning um inextinguível
espírito de cavaleiro andante, que muitas vezes fora alvo da
troça da seus jocosos amigos.


Nesse dia, Andrew não fez nenhuma paragem, a não ser num
posto de gasolina situado numa encruzilliada; jantou num
lugarejo à beira do caminho e Passou a noite no carro algumas
milhas mais adiante. Durante o dia seguinte teve de se ocupar
de avarias no motor, que Lhe deu trabalho suficiente para
comPensar bem o descanso de que vinha gozando e o obrigou
também a parar em Sidonia para uma ligeira reparação.
Estava parado diante do único hotel existente, a observar o
movimento e fazendo horas para o jantar, quando um automóvel
se aproximou vagarosamente do passeio. Ao volante, ia a
rapariga que tanta meditação provocara nele. O seu companheiro
parecia ser um moço dali, para quem esta era uma auspiciosa
oportunidade. Ao mesmo tempo que Andrew reconhecia a raPariga
das boleias, esta olhou também e viu-o; um clarão fugaz e um
sorriso apenas esboçado extinguiu-se num rubor carmesim.
Entrou no hotel, de certo modo satisfeito por ver que ao
menos tinha a decência de corar. "Apanhada em flagrante!" -
pensou com desprezo. Encontrara aquele labrego na estrada e
chegava agora dum passeio, curto ou lomgo, provavelmente
longo, em que guiara, sem dúvida para lhe permitir fazer livre
uso dos braços. Aquilo desgostava-o um pouco, purque a sua
vida de cavaleiro andante quase ganhiara a batalha a favor
dela.


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Gostaria que ela aparecesse na sala de jantar, antes de ele
se ir embora, pois desejava tornar a vê-la uma vez mais.
Já perdera, contudo, a esperança e quase terminara a
refeição, quando ela chegou, acompanhada do jovem, todo
cerimonioso e òbviamente envaidecido. Andrew,
consideravelmente surpreendido com o aspecto dela, não fazia
senão olhar. Trocara o trajo masculino por um bonito vestido
azul, vincadamente feminino. Tinha umas pernas bem feitas e
pés pequenos, calçados com sapatos de verniz. A graciosa
cabeça bem erguida, estava descoberta, e o cabelo, loiro e
ondulado, emitia revérberos. observou tudo isto num relance,
antes de os olhos dela o encomtrarem; a face dum tom opalino,
apenas levemente queimado do sol, tomou um pouco de colorido e
de calor. Ao passar, falou-lhe - descaradamente - achou ele.
- Olá, Zé Pacóvio! Espero que tenha tido notícias do
Missouri.
- Boa noite, Wyoming Mad - respondeu, pondo-se de pé e
inclinando-se.
O companheiro conduziu-a a uma mesa próxima e Andrew viu que
ele fazia qualquer pergunta sobre aquela troca de
cumprimentos. Ela deu-lhe ùma explicação em tom despreocupado,
com um movimento depreciativo da mão, que pareceu
satisfazê-lo.
"Sabe do seu ofício - murmurou Andrew de si para si, e,
respirando fundo, como se se submetesse a uma dura prova,
olhou-a deliberadamente, verificando que ela o fitava. Por um
momento, os olhos de ambos encontraram-se, e ocorreu a Andrew
o pensamento estranho de que, sa aqueles olhos maravilhosos
tivessem a menor ternura, o menor indício dúma concessão, ele
não poderia responder por ele; porém, tudo o que descobria
neles, era orgulho e desdém, e isso mesmo só de relance,
enquanto ela desviava o rosto.


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Era esta a sua oportunidade e ele aproveitou-a o melhor
possível. Engraçada? Bonita? Esses termos não Lhe faziam
justiça; Ela era adorável. Ocupada em observá-la, Andrew não
se deu logo conta dum facto desanimador: ela namoriscava
afrontosamente, o rapaz que a acompanhava. Nem sequer se
dignou conceder a Andrew outro olliar. Tornou a ter dela uma
visão deformada, embora a sua conduta fosse apenas a de uma
rapariguinha alegre, desfrutando um jantar agradável com um
novo conhecimento. Andrew sabia-o. mas o seu espírito cheio de
preconceitos não queria admiti-lo. Imaginou-os no frondoso ar
que, não, dirigindo-se, através dum caminho banhado em luar,
-para um lugar solitário; sacudiu a cabeça, furioso e, de
repente, odiou a rapariga.
Levantou-se abruptamente, sem tocar na sobremesa, e saiu.
Foi buscar o carro e depois de ter guiado durante metade da
noite, parou para ver a lua descer no horizonte.


IV


Uma semana mais tarde, Andrew Bomning acampava perto duma
pequena cidade do Wyoming chamada Rocha Quebrada, no velho
caminho do Oregon que vinha seguindo desde Torrington, na
direcção de Nebraska. Muitos lugares, ao longo do antigo e
famoso caminho dos caçadores de peles e exploradores, dos
índios e pioneiros, o atraíram, quase o convencendo a deter-se
por algum tempo. Mas, por muito agradável que lhe fosse a
ondulante Pradaria, Andrew continuava em fremte, em resposta a
um chamamento que não podia definir. Nas manhãs claras
distinguia no azul os picos brancos das montanhas, que o
fascinavam. O rio Platte viu três dos seus acampamentos antes
que ele o abandonasse, em Alcova. Transpôs a Cordilheira das
Cascavéis e, quando se dirigia para Rocha Quebrada, viu, num
pôr do sol dourado, as Montanhas de Granito à sua direita, e,
à esquerda, as montanhas Verdes; para ocidente, mais ou menos
a umas cem milhas, erguia-se o Continental Divide, o grande
muro das Montanhas Rochosas.
Andrew deixou o carro numa mata pouco distante da estrada,
decidido a caminhar meia milha até Rocha Quebrada, para fazer
exercício. Certo de que não seria facilmente visto por quem
passasse por ali, seguiu até à cidade onde fez algumas compras
urgentes. Já se acostumara, por esta altura, às aldeias do
Wyoming ao longo do caminho.


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Casper fora uma povoação de tamanho razoável, mas as outras
cidades desde o centro a oeste do Wyoming pouco interesse
tinham para o viajante; algumas pareciam não ser mais que
velhas cidades fronteiriças, de ruas largas e cercas de
madeira, modernizadas principalmente pelos postos
abastecedores de gasolina. Verificou que Rocha Quebrada não
havia progredido tanto como as demais, pois, os seus olhos
descobriam mais vaqueiros que motoristas de camiões ou
mecânicos. Escutava aqui e ali pedaços de conversação entre
eles, satisfazendo pela centésima vez o seu ávido interesse
pelas coisas do Oeste. Decidido a obter informações acerca
daqueles arredores na manhã seguinte, regressou ao carro.
Por esta altura, era já noite. Ainda brilhava uma luz
maravilhosa no poente, donde soprava uma brisa fresca e
revigorante, que trazia um travo suave ao ar da montanha.
Aspirou-o profundamente, deliciando-se com a solidão que
existia em redor. ultimamente, os seus acampamentos tinham
sido visitados pelos lobos da pradaria com crescente
satisfação sua; não se cansava de lhes escutar os uivos
arrastados como lamentos e chegava a atirar-lhes comida:
Acabara de juntar um monte de madeira seca e bocados de
erva, quando um ruído de ferragens lhe excitou a atenção;
alguém passava na estrada. Era um cavaleiro, que estacou na
sua frente, acendeu um cigarro e avançou um pouco mais, para
logo voltar ao ponto de partida; era evidente que esperava
alguém; como não pensava revelar o seu esconderijo, Andrew
quedou-se a observar.
O cavaleiro parecia impaciente e o jovem ouvia o tilintar
das esporas; fumou meio cigarro e logo acendeu outro. O cavalo
não deixava de se agitar e a noite estava tão calma,


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o ar tão límpido, que a voz baixa do homem chegou aos ouvidos
atentos de Andrew.
- Eh, cavalo maldito, não podes estar quieto? - resmungava
ele. Depois de fumar mais um cigarro, pareceu sobressaltar-se,
depois inclinou-se e olhou para a estrada, na direcção da
cidade. Andrew ouviu passos rápidos que se aproximavam.
- És tu, McCall? - inquiriu o calção, num tom agudo que
soou longe.
- Sim; sou eu - veio a resposta.
- Sai da estrada por aqui - dirigiu o outro, encaminhando o
cavalo para o matagal que ocultava o carro de Andrew. Os dois
homens encontraram-se a meio caminho e continuaram até um
grande rochedo, que mal distava trinta pés do sítio onde
Andrew se emcontrava, agachado atrás duma moita de ervas, aí
se detiveram os dois e o que ia a pé içou-se para cima do
rochedo.
-Tex, procurei-te no rancho - disse.
- Por acaso, estive hoje na cidade e deram-me o recado.
- Bem, se não aparecesses esta noite, teria ido ter contigo
- respondeu o outro, em tom breve. - Mac, quero dinheiro.
- Isto é tudo o que tenho - tornou o outro, apressadamente e
estendeu a mão para o cavaleiro -, Tens de esperar que eu
mande mais algun gado.
- Hum; sempre à espera - resmungou o mais novo. - Não
consigo ver nada. Quanto tens aí?
- Uns duzentos.
- Beizi, fiquemo-nos nisso, mas só por uns dias. Não devo
demorar-me muito por estes sítios. Tenho de me pôr a mexer,
Mac, e são os negócios com o teu gado que me obrigam a isso,
mais que qualquer outra coisa.


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- Oh; Texas, isso não é assim. Já eras conhecido muito antes
de teres apanhado um cavalo para mim.
- Lá isso era; mas por namorar e disparar uns tiros e não
por marcar vitelos com a tua marca - atirou o vaqueiro, numa
voz tão fria e estranha que provocou calafrios em Andrew.
- Seja lá como quiseres; mas não discuto contigo. Mas ouvi o
xerife Slade dizer que suspEitava de ti, e isso à frente de
meia dúzia de criadores de gado e entre eles o Jeff Little,
para quem trabalhaste, ima vez.
- Ah, e que dise o Jeff?
- Zangou-se com o Slade e disse-lhe que tu és impetuoso, mas
honesto como os que o são. Perguntou-lhe se não via que eras
da velha raça do Texas.
- Diabos levem esse xerife duma figa - praguejou o vaqueiro.
- Também não está livre de Lhe acontecer alguma. Está-me cá a
parecer que ainda não passo sem eu Lhe pregar algum tiro, uma
destas noites.
- Tu ainda acabas por matar alguém, Tex - declarou McCall,
preocupado.
- Não me admirava nada. Trata tu mas é de pagar bem,
que é para não ser a ti... Quando é que me dás o resto da
massa?
- Assim que puder. Tex, tenho outro negócio em vista.
- Desembucha lá.
- Um velhote chamado Nick Bligh trouxe agora há pouco tempo
umas cem vacas e uma quantidade de vitelos, alguns de um ano.
Vem de Randall, ali para os lados de Nionana. Só tem um homem
de meia idade para o ajudar a tratar do gado; não tarda nada
que andem por aí à solta uns duzentos vitelos sem marca.
- Hum! Como é isso arranjado de esse Nick Bligh não ter
cavaleiros nenhuns?
- Se ele é do Oeste, a razão só pode ser uma: não ter
dinheiro!
- Bem, isso não é razão para um vaqueiro que se preze deixar
de trabalhar para ele, eu próprio já o tenho feito. Tudo
depende do rancheiro.
- Tex, isso dá-me uma ideia. Supõe que vais trabalhar para
esse Bligh...
- Hum, hum, Mac. Não me importo de marcar um bezerro
-tresmalhado e legítimo. Mesmo quando um rancheiro sabe que os
vitelos não são dele, marca-os na mesma. Todos fazem isso,
para começar. Mas o que propões seria um roubo.
- Está bem, que diabo! Se estás disposto a dar tanta
importância ao assunto!
- Eu entro no contrato. se o caso se resume a pôr a tua
marca em vitelos desgarrados...
- sabes, Tex, isso não dá grande lucro a menhum de nós -
continuou o outro persuasivamente. - ao passo que duzentos
vitelos dariam no próximo ano quarenta a cinquenta dólares por
cabeça.
- Mac, isso soa muito aos... roubos de gado dos velhos
tempos - alegou o vaqueiro.
- Pois olha; é bom que saibas que há muitas ranchos por esse
Wyoming fora.
- Pois é. Mas o que são meia dúzia de cabeças para um.
criador de gado que tenha dez mil? Mac, a seguranÇa está nos
pequenos números. Queres contratar-me para a forca, e diabos
me levem se caio nessa.
O silêncio seguiu-se às decisivas palavras do cavaleiro,
Andrew mal respirava devido à intensidade do seu interesse e
ao perigo de ser descoberto. vaqueiro riscou um fósfEro para
acender o cigarro e Andrew distinguiu um rosto jovem e
atrevido, singular, bonito e quase tão encarniçado como o seu
cabelo flamejante.


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- Tex, eu não confio muito no Smoky beed - replicou por fim
McCall.
- Bem, esSe Smoky está à altúra; se quiseres que ele rapine
todos os vitelos desse pobre diabo, ele faz-te iso. Smoky
disse-ma que se tinha dado mal com os do rancho e que ia
trabalhar para a Três Bandeiras. Não me parece que fique por
muito mais tempo que eu.
- Faze a ofensa a Smoky, por minha conta?
- Bem; dou-Lhe qualquer recado que queiras. Mas fica
sabendo, McCall, que eu nada tenho que ver com o trabalho do
Smoky.
- Está bem, Tex. Não te amofines!
- Essa história do Bligh não é grande coisa. Desde já te
aviso, Mac; olha que se te metes nisso, podes ficar mal. Eu
conheço-te de gingeira; se isso der mau resultado, deitas as
culpas para uns vaqueiros já marcados.
-Tex, eu não ia denunciar ninguém.
- Oh, ias lá agora! - retorquiu o vaqueira. - Para Ivar a
Pele, fazias iso e muito mais. Mas no que me diz respeito a
miirn, sei governar-me sòzinho; estava era a pensar no Snioky.
- O mais seguro - continuava MCall, como se não ouvisse Tex
- é desviar a vaca e o bezerro para umas árvores ou
rochedos, matar a va e depos marcar o hezcrra e trazê-lo. Qs
lohos e o5 hútios depresa dariam cabo da carcassa. E não há
próhahilidades do Bligh dar por falta das vacas ants de o
trahalho estar terminado.
-Sim, é hastante seguro, mas não me cheira, McCall -
replicou o vaqúeira aborrecido.
- Isco agora não vem ao caso. Pões o Smoky a por do assunto?
- Panho, sim. E faço a minha parte. Mas antes que te meas
nisso, Mac, oue o que eu te digo. Nunca ouvi falar dese Nick;
o mais provàvel é que sejs um ctiador de gado Pobre, vindo
para a Oeste, à procura dunua sátúação. Mas supõe que, quaudo
tiveeses o trabalho a meio, que aparecia urn sócio com
bastante dinheira para comPrar mais mercadoria e çontratar
alguns vaquriros a valer. Supôe que ele aparecia?
- Ora Tex, mzlagres desses não aconteccm nestes tempos.
- Não acontecem, o diabo! Tudo póde acontecer, honem.
Ondetens tu o juizo? Eu quero lá saber disso, a não ser pela
velhote. Mas só te estau s avinar.
- Parereme que estás a perder a genica; Tex, ou a tornar-te
demasiado cautelosa.
- Claro, se é isso que pensas de mim. Onde está esse tipo, o
Bligh?
- Aí para baixo, no rio água Doce - apressou-se McCall a
responder. - Comprou ou alugou o rancho de Bosrman, na margem
esquerda do rio, a meio caminho entre as colinas do AntíloPe e
as Montanhas Verdes. Belíssimas terras, quando a erva é boa.
- Conheço esse rancho - replicou Texas. - Cobiceio mais de
uma vez, mas faltava-me o dinheiro Para tirar proveito
daquilo.
- Isso não nos interessa. Mete isto na cabeça para servir de
informação a ti e ao Smoky: há três ranchos naquelas terras ao
sul do rio Água Doce - o Barra Cruzada, que pertence aos
irmãos Cheney, o Triângulo X, dirigido por Hale Smith e o da
Associação de Gado do Wyoming, o W. C. - todos eles se
estendem pelas primeiras elevações das Montanhas Verdes, e
quem andar por ali, tem de levar os olhos bem abertos,
Entendido?


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- Entendido. O Slade pertence a essa Associação da Gado do
Wyoming - retorquiu Texas pensativamente.
- Mais ou menos. Está mais que visto que ele se governa com
vários trabalhinhos. - McCall deixou-sA escorregar da rocha. -
Parece-me que por esta noite é tudo.
- Bem, vai-me levar um bocado de tempo, DIc - observou
vagarosamente o vaqueiro. - Não te esqueças do que te disse.
Até à vista. Acenando com a mão, conduziu o cavalo para a
estrada e sumiu-se na escuridão. McCall viu-o desaparecer e
ficou a escutar o ruído cada vez mais fraco dos cascos.
- Este texano ainda me estraga o servicinho, se não Lhe
trato da saúde - murmurou; e, fazendo estalar os dedos,
encaminhou-se para a cidade.
Depois de ele ter partido também, Andrew ergueu-se para
estender as pernas entorpecidas. Tinha o rosto suado e o
coração batia-Lhe com força. Tinha de rir da maneira como lha
era, pela primeira vez, apresentado um drama do Oeste, e de
modo nenhum fictício.
- Então, Andy, que tal? - perguntou a si próprio. - Não há
dúvida que gostei daquele vaqueiro ruivo; suposto que é dos
bons... AqueLe McCall é que é o tal gènerozinho que se
encontra em toda a parte, parece-me a mim. E o Bligh é a
vítima. Qual será o meu papel?
Andrew quase se esquecera de que tinha frio e fome
depois de reflectir, decidiu acender uma fogueira, pensando
que, se o vaqueiro ou McCall por acaso voltassem; o que era
muito pouco provável, poderia afastar qualquer suspeita,
afirmando ter chegado naquele momento. Estar entregue aos seus
próprios recursos tinha-se tornado para Andrew un motivo de.
crescente satisfação, mas até ali não sa mostrara exactamente
um brilhante cozinheiro;

72


deixou queimar tanto o presunto como as batatas e entornar por
fora o café; mas, apesar de tudo, comeu com prazer o que
cozinhara.
Resolveu não dormir no carro, por aquela noite. Trouxera
dois cobertores e com eles arranjou uma cama junto do fogo;
depois juntou toda a lenha que pôde encontrar nas vizinhanças
e, descalçando os sapatos, preparou-se para dormir um bom
sono.
Dormiu a sono solto até meio da noite; acordando regelado,
levantou-se para reanimar o fogo. A despeito do desconforto, o
viajante chegou à conclusão de que, a vida ao ar livre tinha
as suas vantagens; já fizera campismo, mas só duma maneira
luxuosa. Sentado à beira do fogo, a aquecer as mãos e os pés,
sentia que fazia já parte daquela terra de salva purpúrea.
O céu, de um azul escuro e profundo, estava salpicado de
estrelas. Acima da vegetação erguiam-se, audaciosos e
aguçados, os negros rochedos; só se ouvia o léve restolhar das
folhas, impelidas pela brisa nocturna. Passou o resto da noite
a acordar e a adormecer, até que o negrume deu lugar a um tom
mais claro, e ele adormeceu a sono solto durante duas horas.


Entrou na cidade com o nascer do sol. Enquanto tomava o
pequeno almoço num estabelecimento frequentado por homens de
botas cheias de pó, reabastecia o carro na estação de serviço,
adquiria uma boa reserva de alimentos na mercearia e comprava
um explêndido trajo de vaqueiro, em segunda mão, numa loja de
mercadorias; Andrew foi fazendo, em tom. alegre e
despreocupado, as perguntas dum novato recém-chegado. Foi
assim reunindo umas boas informações de carácter geral. Estava
a ponto de abandonar a cidade quando se lembrou que não tinha
perguntado o caminho para O rio Água Doce e para o rancho da
Nick Bligh.


73


Deitou a cabeça fora do carro para interpelar um homem que
passava naquele momento. Era um homem dos seus sessenta anos,
grisalho e estragado pelas intempéries.
As botas e o trajo revelavam considerável contacto com o
solo.
- Desculpe - disse Andrew. - Podia indicar-me o caminho para
o rio Água Doce?
- Bom dia - resPondeu o interpelado, estacando.
- Fica aí a umas trinta milhas em frente.
- Muito obrigado. E como poderei encontrar o rancho de Nick
Bligh?
Sentiu fixarem-se nele uns Penetrantes olhos azuis.
- Conhece Nick?
- Infelizmente não, mas gostaria de o conhecer - resPondeu
Andrew, com convicção.
- Vende ferragens, seguros de vida, fios de electricidade ou
whisky? - inquiriu secamente o velho.
- Não; tento apenas vender-me a mim.
- Emprego, heim?
- Sim, procuro emprego.
- Quem lhe disse para ir ter com o Nick Bligh?
- Ouvi por acaso dizer que ele tinha chegado há pouco tempo
a esta região com gado e sem vaqueiros; pensei que talvez
quisesse um.
- Bem, meu rapaz; eu cei que ele precisa de vaqueiros.
Mas nesta altura está com falta de dinheiro. Deseja ganhar
bem, não?
- Posso trabalhar só emn troca de alojamento - declarou
Andrew cuidadosamente.
- Donde vem?
- Do lado oriental.


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- Já calculava. Mas o Oriente inclui qualquer região desde o
Missouri ao Atlântico.
- Está bem; fiquemos em que é o Missouri; não estou
interessado em que todos saibam que sou dos peraltas da
cidade.
- Creio que o Nick terá prazer em conhecê-lo. atravesse o
rio; siga pela estrada à esquerda, até ao rancho dele. Não há
que enganar, Porque é o único. Se não estiver em casa, espere
por ele.
- Muito agradecido. Farei o que me diz - afirmou Andrew,
satisfeito.
O homem voltou-se para continuar a andar, quase chocando com
um homem alto, que trazia um grande chapéu de abas largas.
- Bom dia, Slade - saudou brevemente e seguiu.
- Olá, Nick - pronunciou o outro. Depois aproximou-se de
Andrew e deitou-lhe um olhar investigador dos olhos amarelados
e penetrantes. Andrew viu de relance o rebrilhar do escudo
prateado, meio oculto pelo colete do homem. Este não trazia
casaca; o rosto era descorado e usava um grande bigode de
guias pendentes. O coração de Andrew bateu mais depressa,
quando compreendeu que tinha diante de si o xerife Slade.
- É estranho a estes sítios? - interpelou.
- Parece que sim - confirmou Andrew amavelmente.
- Vendedor?
- Não. Apenas um vagabundo com o seu calhambeque à procura
de emprego.
- Era disso que estava a falar com o Nick Bligh?
- com quem?
- Bem, o homem com quem falava agora mesmo - retorquiu o
xerife.


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- Ah, esse! Ele é que é o Nick Bligh?
- Não sabia?
- O senhor compreende, eu cheguei cá precisamente esta tarde
e apenas fazia umas perguntas a esse senhor sobre o trabalho
nos ranchos.
- Já vi que vem carregado com a tralha toda de vaqueiro.
Sempre queria saber que traz aí escondido debaixo disso. Saia
cá para fora.
- Com que então, xerife? - observou Andrew, con tom
despreocupado, deslizando para fora do carro. - Muito prazer
em conhecê-lo.
Enquanto Slade passava uma revista minuciosa ao carro,
foi-se formando à volta um pequeno ajuntamento. Andrew fingiu-
se ressentido.
- Vem uma pessoa de fora, desempregada, e fica detida sem
ter feito nada de mal - queixou-se ele, com ar ofendido, para
os presentes.
Slade continuou a revista em silêncio. Por fim, fechou a
porta do carro e disse:
- "Quem sabe", não se pode adivinhar quem traz bebidas
alcoólicas e quem não traz.
- Lá por isso, não nos zangamos - replicou Andrew,
alegremente. - Compreendo as vossas precauções. Até o senhor
mesmo, xerife Slade, podia ser um contrabandista. - E Andrew
lançou ao xerife um olhar frio, mitigado por um sorriso.
- Não se faça engraçado, rapaz - grunhiu Slade, aborrecido
com o riso dos que assistiam à cena. - Vá à sua vida e
ponha-se a mexer.
Andrew tornou para o carro.
- A maior parte das cidades do Oeste acolhem bem os)
viajantes e possíveis futuros colonos. Não percebo o que se
passa com esta terra.
- Bem, nós cá no Wyoming somos muito exigemtes na escolha
das nossas marcas - disse o xerife, acentúando as palavras.
- Sim, mas já não são tão exigentes em saber de quem são os
vitelos em que se põem. - ripostou Andrew, pondo o carro em
andamento. - "Ora bolas!" - exclamou. - "Assim não me governo;
tenho de me habituar a calar a boca e a não perder a calma!
Mas, se não me apetece mesmo dar um soco naquele hipócrita de
olhos de gato!..."
Uma vez fora da cidade, abrandou a velocidade. Todo o
caminho através do Wyoming, viera acariciando os olhos com
as paisagens cada vez mais deslumbrantes, mas não se fartava
era das vastas extensões ilimitadas de terras de pastagem.
Ali, porém, estava rodeado de montanhas, pouco elevadas a
norte, com uma mais alta e agreste a uma distância de algumas
milhas para o sul.
De momento, Pôs de parte alguns pormenores da sua recente
aventura, contentando-se em retomálos quando chegassse ao
rancho junto do Água Doce. Porque não teria Nick Bligh
revelado a sua identidade? - pensava.
Após duas horas dum percurso um tanto acidentado, atingiu o
limite da Cordilheira de Granito. Dali as planícies ondulantes
que se estendiam a norte pareciam intermináveis e via uma
linha serpenteante de árvores, que marcavam, provavelmente o
curso do rio. Andava gado a pastar, que, no conjunto, era em
número considerável, enbora não parecesse, por estar muito
espalhado pela pradaria. Uma vez, distinguiu um cavaleiro
solitário no cimo duma elevação e aquela visão provocou-lhe
uma emoção inexplicável.
Verificara já que eram casas aquelas manchas negras no
verde, tão escuras e tão distanciadas. Pelos seus cálculos,


76 77


havia uma distância de doze ou mais milhas, entre os ranchos
mais próximos, e, gradualmente, esta distância ia aumentando,
à medida que o número de ranchos dimi nuia, até que chegou uma
altura em que não se encontrava uma única habitação.
Foi-se aproximando do rio, numa descida longa e gradual, e
atingiu o grande momento da sua jornada daquele dia, quando
chegou a ponto em que a estrada principal atravessava uma
ponte e uma amostra de estrada fazia um desvio para o sul.
O rio Água Doce era uma delícia para os olhos, assim como
devia ser uma dádiva para a planície imensa que percorria,
afastava-se coleando entre as margens cobertas de vegetação,
ora acumulando-se em longas extensões de águas profundas, para
logo se espalhar por vários braços, em volta de ilhas orladas
de salgueiros. Da margem fronteira, observavam-no os lobos, os
coelhos abundavam e os patos hravos abandonavam
precipitadamente os bancos de areia para voar rio acima, numa
fuga rápida.
Para o sul, a visão de Andrew era obstruída pelas colinas da
base das Montanhas Verdes, que invadiam o rio, sob a forma de
elevações submersas.
Depois de contemplar longo tempo aquela vista so berba, o
viajante meteu pelo desvio, com a sensação de que deixava para
trás, talvez para sempre, o mundo que Lhe era habitual. A
estrada seguia ao longo do rio e era de tal natureza, que ele
tinha de prestar uma atenção constante à condução, em vez de
ceder ao desejo da desfrutar o panorama. Ao fim de algum
tempo, chegou ao ponto em que as colinas mergulhavam na
corrente e, seguindo ao longo delas, ultrapassou-as. Aqui, aos
seus olhos delicados deparavam-se dois lugares de grande
beleza paisagística: O primeiro, uma mata de álamos,


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onde começava a despontar um verde claro, e o outro um
outeirinho alto e isolado, do qual se devia, certamente,
distinguir grande parte da região. Andrew não se preocupou em
escolher; teria ocasião de apreciar os dois. Uma árvore
gigantesca, da largos ramos espalhados, convidava ao repouso.
Pela mata fora, os relvados alternavam com terraços arenosos
até atingir um espaço coberto de altas ervas e boninas
amarelas e o muro de salgueiros.
- Fantástico! - exclamou Andrew, suspirando profundamente.
Não sabia bem o que queria dizer com aquele "fantástico", mas
era exactamente o que sentia. Tirou para fora as caixas da
comida e escoLheu Para o almoço biscoitos, sardinhas e uma
lata de pêssegos. Aquilo corria magnìficamente. Trazia um
cantil cheio de água fresca, mas preferiu descer até o rio.
Dando com um carreiro, seguiu-o, abandonando os álamos,
através de girassóis, que lhe davam pelo peito, e de
salgueiros, até onde o rio sussurrava ao passar sobre um banco
de cascalho. Andrew enfiou pela água, levantando-a no côncavo
das mãos unidas - era fria e doce; pensou donde viria e tentou
imaginar a sua nascente rochosa.
Voltou pelo mesmo caminho, pisando folhas e algumas boninas
amarelas; depois tornou a meter as caixas no carro e dirigiu-
se para o outeiro.
Como já Lhe sucedera antes foi enganado pela distância e
pela altura, o outeiro na realidade era mais afastado da
estrada e consideràvelmente mais alto do que ele julgara.
Conforme ia subindo, a necessidade de escolher o caminho mais
fácil fora-o encaminhando para a encosta virada ao norte, de
modo que, ao atingir o cume do outeiro, encarou a pradaria
numa atitude de expectativa interessada, mas nada preparado
para o que se lhe deparou.
- Meu Deus! - murmurou, sustendo a respiração,


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maravilhado perante o colorido vivo e a grandeza infinita da
paisagem.
O vasto panorama que se desenrolava diante de si, com o rio
rebrilhando entre as margens verdes, desviando-se para a
direita, e, à esquerda, as encostas rugosas da montanha,
formava a entrada do que parecia ser um abismo de cor
avermelhada; ao longe, erguia-se uma barreira de base azulada
e cumes brancos.
- Oh, Wyoming, tem pena de mim! - exclamou Andrew. - Que me
dás tu?. . És real, ou sou eu que estou a sonhar?
Ficou parado, olhando até à saciedade. Era a primeira vez
que encontrava uma vista verdadeiramente ilimitada:
As planícies e colinas e vales, os terrenos montanhosos
avultando à distância tinham-se tornado, durante os últimos
dias de viagem, cenários cada vez mais frequentes e
impressionantes. Mas a paisagem que se desdobrava ali diante
dele era muito superior a tudo o que até então contenplara.
- Não, não é uma miragem. Isto é real... é, de todos os
lugares do mundo, exactamente aquele que eu Procurava! -
exclamou.
Seguiu para oeste o leito negro e verde do rio, e as águas
brilhantes ao norte duma cadeia de outeiros disPostos
simetricamente, indicados no seu mapa por Colinas do Antílope.
Dez ou mais milhas adiante avistou o rancho, que devia ser o
de Nick Bligh; aliás não se via nenhum outro ao sul do Água
Doce. A sua situação pareceu satisfazer plenamemte o viajante.
O rio continuava sempre, cada vez mais escuro, tornando-se
apenas um fiozinho, para se desvanecer no meio duma penumbra
azulada, donde se erguiam as montanhas Ruchosas, primeiro
obscuras e semelhantes a momtões de nuvens baixas, e depois .


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azuis claras, subindo sempre mais alto, majestosamente, a
romper o céu com os seus picos brancos de neve. Era o
Continental Divide, a espinha dorsal do Oeste, o fim das
Grandes Planícies, a muralha de ferro, espantosamente assente
na terra, ao passo que levanta para os céus os seus cumes
dentados.
As Colinas do Antílope bloqueavam, para o sul, o centro da
passagem. Brilhavam, à claridade do sol, em tons brancos,
cinzentos e róseos. Umas eram coroadas duma orla negra; outras
descobriam, entre as cúpulas, profundas fendas negras; outras
ainda, surgiam rochosas e irregulares, tendo na base um
cinturão de árvores.
Mas era a pradaria, desenrolando-se como um leque, para o
sul, que prendia o olhar de Andrew; sentia-se insig nificante.
Como tinha estado encerrado toda a sua vida! A cidade de Nova
Iorque mal seria visível no centro daquela imemsidão purpúrea.
Pobres daqueles milhões de homens, de escravos, esforçando-se
e labutando sufocados - se ao menos pudessem estar ali! Andrew
sentia uma singular elevação de ânimo. O seu instinto não
falhara e, embora a sua origem e significado permanecessem
ainda imprescrutáveis, compreendia que, ao segui-lo,
encontrara um legado desconhecido.
Tão absorvido estava Andrew, que esquecera os binóculos que
trouxera consigo; lembrando-se deles, focou aquele misterioso
golfo cor de púrpura.
O que fora até ali linhas ondulantes e pontos indistintos,
sombras obscuras e extensões negras, veladas em graduações
várias pelo tom avermelhado da distância, transformava-se em
intermináveis cordilheiras, como escolhos num mar tranquilo.
Vastas áreas de terreno plano, nu e desolado, e vales largos e
viçosos, cobertos aqui e ali de pontinhos minúsculos de
ranchos, separados uns dos outros por léguas.


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Desceu o outeirinho a passos gigantescos. Nunca, que se
lembrasse, Ouvira cantar o coração como naquele momento. Toda
a sua vida abençoaria O que quer que fora que provocara o
acidente da sua chegada ali. Os seus inêxitos apareciam-Lhe
agora como passos sucessivos para uma vida nova. Pressentia
que todo o trabalho que empreendesse naquelas pradarias Lhe
daria prazer e que não poderia ser mal sucedido. Estava
profundamente reconhecido à sua inaptidão para trabalhar num
escritório, vender obrigações ou brincar aos negócios; para
com a crítica, a incompreensão, as derrotas amargas e a
falência do pai que o tinham feito ir para o Wyoming. Andrew
encaminhou-se para O rancho de Bligh, cuja beleza panorâmica
se casava com o pitoresco da cabana de paredes brancas e
telhado enlameado e especialmente com uma construção grande,
na margem do rio, um casinhoto abandonado, de janelas
amarelas e entreabertas, traves de um cinzento desbotado e com
uma chaminé amarela, a cáir aos bocados. Não teve tempo para
mais do que Esse primeiro relancear de olhos, porque, detrás
da cabana mais próxima, surgiu subitamente o velhote, com quem
tinha falado na cidade.
- O senhor chegou antes de mim, senhor Bligh - disse Andrew,
sorridente.
- Sim, vi o seu carro quando passei pelos álamos. Como é que
sabe quem eu sou? - Os seus olhos azuis tinham um brilho
bondoso. Andrew leu neles O amor ao semelhante. E contudo o
rosto magro e bronzeado, enrugado como pergaminho seco,
denunciava-Lhe uma vida de luta e de privações.
- Ouvi esse xerife Slade chamá-lo pelo seu nome. Sabe lá!
Deteve-me e revistou-me o carro, à procura de contrabando,


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aquele idiota de olhos de gato! Não simpatizo muito com ele,
senhor Bligh.
- E encontrou alguma coisa? - inquiriu o rancheiro.
Andrew viu nos olhos penetrantes dele, mais do que fazia
supor a pergunta, formulada num tom natural.
- Não encontrou nada. Irritou-me aquilo de remexer nas
minhas coisas. E tive um deslize, que receio tenha sido
bastante insensato. Ao menos fez rir o povo.
- Ah, sim? Que é que você lhe disse?
- Disse-Lhe que, tanto quanto eu sabia, até ele podia ser
contrabandista.
- Você disse isso ao Slade? Devia ter tento na língua,
rapaz. Mas desmonte e entre.
- Bem, isso é novo para mim - declarou Andrew - "Desmonte e
entre!" Uma saudação cá à moda da pradaria, não?
- Sim. Os motores nunca tomarão o lugar dos cavalos, na
pradaria.
- Muito obrigado, senhor Bligh. Mas antes de eu sair - ou
desmontar - dê-me, por favor, uma esperança de poder arranjar
emprego consigo. Trepei a uma colina, ali atrás, para deitar
uma olhadela à região; estou encantado com isto. Tenho de
arranjar um emprego aqui, dê lá por onde der. Posso fazer
qualquer trabalho. E, bem, senhor Bligh, eu sou o homem que o
senhor precisa.
- Gosto do seu entusiasmo. Como se chama?
- Andrew Bonning.
- De onde é?
- Já lho disse - do lado oriental. Qualquer dia hei-de-lhe
contar maisalguma coisa a meu respeito. O que lhe posso dizer
por agora, é que vim direito aqui. - E Andrew enfrentou o
escrutíneo sagaz daqueles olhos azuis, normalmente suaves, com
um olhar franco, de frente.


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-Nós, criadores de gado, contratamos muitas vezes homens sem
nome, lar, nem passado, Bonning. O que interessa aqui é o que
se vale, o que se é capaz de fazer.
- Bem, nesse caso, tudo o que uma pessoa pode fazer é pedir
uma oportunidade de se pôr à prova.
- É mais ou menos isso.
- Dá-me uma oportunidade, senhor Bligh?
- Creio que sim, com algumas condições.
- Quais são elas?
- Ofereceu-se para trabalhar em troca do seu sustento, não
foi?
- Sim senhor, gostaria. Está a ver, até comprei um trajo de
vaqueiro em segunda mão.
- Um rancheiro não podia deixar de reparar nesses preparos
todos, meu rapaz. A minha condição é esta:
que você trabalhe pela comida, até que eu possa pagar-lhe um
verdadeiro salário. se continuarmos juntos.
- De acordo- Serve-me e sou-lhe muito agradecido.
Farei o melhor que possa para o satisfazer. e tenho a
certeza de que lhe posso ser útil.
- Sabe andar a cavalo?
- Sei.
- Atirar o laço?
- Não.
- Manejar um revólver?
- Não, mas atiro bem à espingarda.
- Cozinhar?
- Não. Pensava que sabia, mas, depois de comer os cozinhados
durante duas semanas, mudei de opinião.
- Tem jeito para contas?
- Nem por sombras! Sou incapaz de somar uma coluna de
algarismos e achar menos de dez resultados diferentes.
- E eu também. Mas não vamos ter de fazer muitas contas.


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Bonning, eu gosto do seu aspecto e do seu modo de falar. Mais
uma pergunta e é negócio fechado.
- Está bem; venha ela.
- Você tem genica?
- Genica! - repetiu Andrew.
- Coragem, como vocês dizem lá no Leste. Roubaram-me a maior
parte do gado, no Norte. Eu tinha um rancho no rio Belle
Fourche, perto de Aladdin. Resolvi levantar ferro e
experimentar outra região. Esta agrada-me, mas soube hoje que
por aqui tambem há ladrões como em qualquer outra parte do
Wyoming.
- Quem é que lhe disse, senhor Bligh?
- Um criador de gado chamado McCall. Um tipo agradável. Saiu
do seu caminho para travar conhecimento comigo. E eu
verifiquei a informação; ainda se riram de mim, pelo trabalho
que tive. Um velho rancheiro disse-me - "roubos? Claro que
sim, com os diabos; há o suficiente para dar saída ao negócio
de gados. Quando os roubos acabarem no Wyoming, é o fim do
criador de gado!".
- Bem, isso é caso para se pensar.
- Não tem de que se preocupar com isso. Mas ao dizer-lhe
isto, estou-lhe a pôr as coisas como são. Se é medroso ou
demasiado brando de coração, não serve. Tenho só um homem no
rancho, que encontrei por acaso no Belle Fourche. É do
Arizona, tem muita experiência desta vida. É aleijado - é por
isso que tem dificuldade em empregar-se - mas é um homem. Por
acaso, é casado com uma mulherzita simpática, sem dúvida uma
boa dona de casa. Nunca tinha tido antes dela uma mulher no
rancho. E ia morrendo com essa história de comer os meus
biscoitos bolorentos. Bem, chama-se Jim Fenner, e se você for
bom ajudante para ele, creio que o meu gado vai aumentàr.
- Eu não passo de um novato - replicou Andrew,
desencorajado, a despeito de todo o seu ardor. Bligh tinha a
boca cerrada, num jeito duro.


85


- Não preciso que mo diga; de certo modo, isso é uma
vantagem. O que interessa é que você esteja disposto a
aprender o jogo duro da pradaria, a lutar pelos meus
interesses e a ser-me leal. Pode ser que seja a sua fortuna.
Estou a pôr-lhe isto energicamente, porque quero que você se
sinta enérgico.
- E sinto-me, senhor Bligh - replicou Andrew alegremente,
apertando a mão que se lhe estendia. - Vejo que é um trabalho
duro e que exige esforço. e nada de paródias. É uma
oportunidade que poderá fazer de mim um homem. Farei tudo o
que puder!


86

V

Martha Ann depressa correspondeu ao interesse alegre e
amigável dos dois viajantes que a tinham encontrado na
estrada, logo em seguida ao desagradável episódio com o rufião
do Ford. Iam em excursão piscatória ao Nebraska do norte.
Não tornaram a aludir ao aborrecido incidente, e o seu senso
de humor e a maneira espirituosa com que relatavam as suas
aventuras, em breve restituiram a Martha Ann a tranquilidade
perdida.
Viajaram a uma velocidade regular durante o resto do dia,
parando apenas para uma ligeira refeição, e às oito e meia
chegaram à pequena cidade de Colfax. Os dois homens passavam a
noite na estrada, e, por isso deixaram Martha na estalagem,
prometendo ir buscá-la de manhã.
Mal o dia nascera, tornaram a partir os três. Em Renton,
onde chegaram a horas de almoçar, os homens tiveram de tomar
uma outra estrada, na direcção do norte. Lamentavam que Martha
não pudesse continuar com eles. Esta despediu-se deles, com
pena, prometendo escrever-lhes um postal, quando chegasse a
salvo ao seu destino.
Martha Ann enfrentou, de novo, a estrada, sozinha e a pé,
sentindo-se um tanto abandonada. Tornavam a invadir-lhe o
espírito as velhas preocupações. Mas quando viu surgir acima
do horizonte grandes cumes escuros,


87


aparentemente não muito distantes, começou a recuperar o seu
velho espírito aventureiro. Esta era a Cordilheira Negra, que
simultâneamente a emocionava e amedrontava; não fora ela
avisada de que nunca conseguiria atravessar com vida aquelas
solitárias colinas?
Um Packard com um homem e uma mulher pararam ao seu lado e a
última perguntou-lhe se queria uma boleia. Martha sorriu em
agradecimento e entrou, sentando-se no banco de trás. O casal
apresentou-se como sendo o senhor e a senhora Corbert, de
Chicago; em resposta, Martha deu-lhes o seu nome,
esquecendo-se de acrescentar a morada.
- Aposto que vai a caminho de Hollywood - gracejou o senhor
Corbert.
Quando ela Lhes disse que o seu destino era Wyoming e não
Hollywood, o homem observou:
- Se eu julgasse que a menina era úma dessas pequenas com a
mania do cinema, entregava-a às autoridades para que a
mandassem para casa.
Martha compreendia que era aquilo mesmo que podia facilmente
acontecer pois não poderia provar que tinha mais de dezoito
anos. Com um ar sério, explicou que ia visitar um tio, que
vivia em Wyoming, e que era por gosto e para poupar dinheiro
que ia a pé.
- Está bem, eu confio na sua palavra, menina - respondeu o
senhor Corbert. - Eu tenho um negócio de vimes, mas fico
contente de saber que não é mais uma das raparigas, com
aspirações a estrela.
Chegaram à cidade próxima a tempo de jantar cedo e depois
Martha acompanhou-os a um cinema, que apresentava Tom Mix e o
seu cavalo, Tony, num fime do Oeste. Era uma história
romântica que entristeceu um pouco a rapariga. Era
completamente impossível que lhe acontecesse a ela qualquer
coisa semelhante ao que sucedia no fime! Até ali, o único
romance naquela tão longa viagem fora a intervenção de Andrew
Bonning, salvando-a das garras de um vagabundo. A recordação
daquele momento ainda lhe aquecia o coração; mas a maneira
rude como ele a relegara para uma classe de raparigas que
detestava, tirava ao episódio a única. possibilidade de
romance. Onde estaria ele agora? Talvez já tivesse passado por
ela na estrada, sem querer lhe oferecer uma boleia, tal era o
seu desinteresse.
Como os Corbert ficavam naquela cidade para uma reparação
demorada do automóvel, Martha partiu na manhã seguinte a pé.
O ar estava frio, de um frio cortante que a jovem viajante
atribuiu à altitude. Até ao meio-dia aceitou três bo leias,
qtze a levaram às colinas arborizadas. Passando pelo bonito
hotel das Nascentes, Martha Ann sentiu o desejo de poder
passar ali alguns dias. Os turistas que, nas varandas,
passeavam ociosamente, pareciam tão despreocupados e felizes.
Perguntou a si própria, se algum deles teria de trabalhar para
viver, levaria com alguma coisa desta vida.
Dirigiu-se para uma pousada à beira do caminho, onde
almoçou, retomando logo a branca fita de estrada, através da
negra floresta de abetos. A fragância daquelas árvores
Livravam-Lhe a respiração e entonteciam-na de contentamento. A
não ser por um ou outro automóvel, a estrada estav a deserta.
Nada de caminhantes, nem de campistas! De súbito, Martha ouviu
uma restolhada nos arbustos e viu um veado sair para uma
clareira e estacar com as longas orelhas erectas, observando-a
cautelosamente. Que selvagem, e que bela parecia esta criatura
das florestas, a única que vira em toda a sua vida. Desejaria
abandonar a estrada e subir a encosta inclinada, onde se
erguiam, Muito direitos, os altos e escuros abetos, com as
suas pontas em forma de lança.


89


Sentou-se numa rocha a observar uma truta, que se movia num
lago de águas límpidas. Através da folhagem, rompiam dourados
raios de sol, e a brisa suspirava ao passar pelas árvores
sobre a sua cabeça. Enquanto ela permanecia ali sentada,
naquele silêncio suave, o ruído de um motor veio interromper a
sua meditação; ouviu-o quase com desgosto. E, erguendo-se para
retomar a caminhada, fez o propósito de encontrar algum dia,
lá longe no interior do yoming, uma solidão perfeita, onde nem
motores nem pessoas interrompessem os seus pensamentos.
Um enorme automóvel de turismo parou junto dela. Ouviu um
cão ladrar furiosamente e umas vozes infantis gritarem:
- Venha connosco. O paizinho diz que venha connosco.
Martha voltou-se, dando com uma família acolhedora, o pai e
a mãe no banco da frente e um rapaz, uma rapariga e um cão no
da retaguarda.
Eram tão amáveis e mostravam tanto interesse em que se lhes
juntasse, que Martha não pôde recusar. Porém, quando se sentou
entre as crianças, estas tornaram-se subitamente tímidas.
- Que tal acha a cordilheira Negra? - inquiriu, da frente, a
sorridente senhora.
- Adoro-a! - exclamou Martha. - E tive tanto medo. As
pessoas que encontrei, estrada fora, prediziam-me as coisas
mais horríveis.
- É tolice. Ninguém lhe fará mal. Nós vimos aqui muitas
vezes. Diga-nos cá: donde vem e para onde vai? Chegámos à
pousada, precisamente quando você ia a partir. Uma rapariga
que viaja de boleia! Estamos mortos de curiosidade.
- Chamo-me Martha Ann Dixon. Vivo em Chicago, e vou para o
Wyoming, em visita a um tio meu.
- Para que parte do Wyoming?
- Para Randall.
- Não conheço. Deve ser longe. Tem vindo assim todo o
caminho, desde Chicago?
- Não. Apanhei o comboio até Omaha.
- Ah, sim. E porque não veio todo o caminho de boleia?
- Bem, acho que não tinha prazer em encontrar pessoas
conhecidas.
- Sua má! - interrompeu a senhora. - Anda a estudar?
- Ando sim, na universidade.
- Gostava de saber o que diriam os seus professores se
vissem a sua aluna predilecta a vaguear pela Cordilheira Negra
- disse o homem, sorrindo para a esposa, como se ambos
conhecessem perfeitamente a faculdade e os seus professores.
O carro continuava a subir e o ar tornava-se cada vez mais
rarefeito e mais frio. Martha sentia-se ligeiramente tonta e,
quando avistou manchas de verde ao longo da estrada, deu
consigo apoiando as crianças, que queriam sair do carro.
Subiram ainda mais alto, até que podiam abranger com o olhar
as encostas verdes e o mosaico variegado das terras
cultivadas, lá muito em baixo. O condutor parou o automóvel ao
lado de um monte de neve, anunciando que o radiador estava
quente e que tinham de parar para que esfriasse.
Martha ficou encantada com o monte de neve, branco e lindo,
a um lado da estrada, com flores silvestres e plantas verdes
crescendo do outro lado, até a um muro de abetos. Do lugar
onde se sentava, os olhos fugiam-lhe para a terra cinzenta e
verde, lá ao fundo.

90 91


- Não me admiro que gostem de cá vir - suspirou Martha.
Algum tempo depois, a família teve de deixar a estrada para
se dirigir a um acampamento onde as crianças deviam passar
parte do Verão. Disseram a Martha que continuasse até à
pousada, onde a aconselhavam a apanhar um autocarro para Rapid
City.
Ela subiu aquela milha tão curta até à pousada, que esperava
encontrar no cimo da montanha, mas que ficava, afinal, junto
da margem dum riozito encantador, por baixo de uma alta torre
de rocha cinzenta, coberta aqui e ali por farrapos de neve.
Depois de uma breve paragem à entrada da pousada, o autocarro
estava pronto a partir. Quando chegaram à cidade, a noite
caíra e Martha sentiu-se satisfeita por encontrar um hotel
confortável, onde ceou, metendo-se logo na cama.
Antes de partir, na manhã seguinte, foi aos escritórios da
Câmara de Comércio e perguntou colectivamente aos seus três
ocupantes:
- Qual é o caminho melhor e mais curto para chegar a Belle
Fourche?
- Daqui direito a Deadwood e de lá a Spearfish - respondeu
um dos empregados, abrindo um mapa sobre o balcão.
- De onde vem?
Muitas perguntas se seguiram, às quais Martha respondeu de
boamente e com franqueza. Quando souberam que se dirigia para
Wyoming, fizeram-se várias sugestões úteis.
- Deixe-me arranjar-lhe a mochila, menina; ser-lhe-á mais
fácil carregála. Tenho muita experiência de mochilas e a sua
está mal posta.
- Ficar-lhe-ei eternamente reconhecida - respondeu Martha
tirando a mochila.


92


Ele entrou para um compartimento ao lado e voltou com
correias, fivelas e ferramenta. Depois começou a modificar as
correias da mochila e a pôr mais algumas. Os outros dois
homens iam fazendo sugestões e todos em
conjunto arranjaram-na a seu gosto, experimentando-a em
seguida na visitante.
- Vou ficar afogada; as correias estão muito altas -
protestou Martha.
- Não; é impressão sua. Não a sente agora mais leve.
- Parece que sim.
- Vai tentar chegar esta noite a Deadwood?
- Ah, pode ter a certeza que vou.
- Talvez a possa ajudar. Conheço um senhor, de toda a
confiança, que vai hoje de automóvel para Deadwood.
Quer que Lhe telefone?
Martha assentiu, agradecida, e a boleia foiLhe garantida
pelo telefone. Sentou-se à espera. pensando como havia
realmente tantas pessoas simpáticas e amáveis. Pouco depois
entraram dois homens e Martha reconheceu-os por os ter visto
já, na pousada, no dia anterior. Cumprimentaram-na, com o modo
afável que já se habituara a considerar típico do Oeste.
Depois de ter sido apresentada, um deles disse:
- Bem, menina, vamos.
Levando a bagagem de Martha, instalaram-na sozinha no banco
de trás, e partiram.
- Gostaria de lhe fazer duas perguntas, menina - disse o que
ia ao lado do motorista.
- Duas? É fácil. Geralmente tenho de responder a umas cem.
Tenho uma boa quantidade de respostas prontas.
- Os seus pais deram-lhe licença para fazer esta viagem
sozinha?
- Na verdade, não - confessou Martha.
- Traz alguma pistola consigo?
- Oh, não! Não é preciso - respondeu esta.
- Oú qualquer espécie de arma?
- Creio que não trago nada a que se possa chamar uma arma, a
não ser a minha tesourinha de costura.
O que interrogava Martha bateu nas costas do companheiro.
- Está a ouvir Jim Dawson?


93


- Estou, estou. Não há dúvida que somos um belo par de
valentes.
E começaram ambos a rir à gargalhada. Por fim, o que falara
primeiro voltou-se outra vez para Martha.
- Você talvez não ache graça, menina; mas nós achamos muita.
Vamos dar um pequeno giro pela montanha; comprámos duas
espingardas, um revólver, uma machada, uma navalha e dois
facões de meter medo. E cada um de nós pesa à roda de noventa
quilos. E vamos dar com uma rapariguinha, bonita como uma
estrela de cinema, sozinha por esses caminhos, tendo como
única arma de defesa uma tesoura de costura!
- Bem, esqueci-me de mencionar as minhas botas cardadas -
disse Martha.
Aquelas gargalhadas em comum tornaram-nos bons amigos e a
boleia pareceu a Martha uma das melhores de toda a viagem. Em
Deadwood insistiram em levá-la a jantar com eles e em mostrar
às pessoas do hotel que ela tinha amigos e, além disso, na
manhã seguinte, mandaram-lhe dizer ao quarto que lhe tinham
arranjado uma boleia com um sim pático casal de velhotes, que
se dirigiam para Wyoming. A agradável notícia fez que Martha
se apressasse a aprontar-se. Quanto mais avançava para oeste,
mais começava a temer as caminhadas solitárias.


94


No corredor acercou-se dela um casal idoso, pessoas simples
que logo lhe inspiraram confiança. O homem tinha o aspecto de
um negociante da província aposentado, e a esposa parecia ter
uma alma maternal. Martha achou que ela tinha um rosto triste
e suave. Explicaram-lhe que lhes tinham dito que se
apresentassem a ela e lhe oferecessem uma boleia até Randall.
- É muito amável da vossa parte - respondeu Martha,
comovida. - Sou uma rapariga com sorte.
Nem uma palavra sobre boleias, pais ou fugas! Tomaram juntos
o pequeno almoço e, enquanto o senhor Jones foi à garagem
buscar o carro, Martha ajudou a senhora a preparar uma
merenda.
Em breve partiam, na manhã clara e revigorante, com as ;
escuras colinas do Wyoming a avultar no horizonte. Aquela
boleia quase fez que Martha Ann deixasse de pensar em viajar a
pé de uma vez para sempre. O automóvel era confortável, o
senhor conduzia devagar e a esposa parecia achar-se no dever
de distrair a sua hóspede. Nessa noite, quando pararam num
parque para automóveis, a senhora Jones mal perdeu Martha de
vista por um momento. Chegou mesmo a ir ao quarto de Martha e
a aconchegar-lhe a roupa da cama, o que simultâneamente
embaraçou e comoveu profundamente a jovem viajante.
- Devem ter também uma filha, certamente - sugeriu Martha
timidamente.
- Deus nunca nos quis abençoar com um filho, minha querida.
Antes de deixarem a pousada na manhã seguinte, Martha
encontrou os seus amigos conversando com um ar grave. A sua
chegada fê-los calar tão abruptamente, que deduziu ser ela o
objecto da conversa.


95


E ao meiodia, tendo almoçado na estrada e enquanto Martha
desentorpecia as pernas, andando de um lado para o outro,
marido e mulher retomaram o diálogo. Teve a certeza disso
quando nessa noite em Aladdin, ond pararam, Martha ouviu o
senhor Jones concordar com qualquer coisa que lhe fora
manifestamente sugerida muito a sério pela esposa. - Mas não
lhe fazemos perguntas senão amanhã - ouviu-o avisar. Tudo isto
excitou grandemente a curiosidade de Martha Ann; pensou se não
seria preferível levantar-se cedo e partir para Randall, sem
se despedir deles. Não podia compreender o que a impelia a
proceder assim, mas recusava-se a considerar o gesto uma
ingratidão. Ao pequeno almoço, na manhã seguinte, depois do
senhor Jones ter saído para cuidar do automóvel, Martha
compreendeu que chegara o momento.


- Minha filha, preciso de falar consigo - disse a senhora
Jones, pousando delicadamente a mão na de Martha. - Escute-me,
por favor, e não fique ofendida. Eu sou uma velha sem filhos,
mas tenho conhecido centenas de raparigas. Fui professora e
trabalhei na nossa igreja. Nem eu nem o John acreditámos na
história que os seus dois últimos companheiros de viagem nos
contaram. Eu sei que esta sua viagem é mais do que uma
brincadeira. A menina fugiu de casa, porque houve qualquer
mal-entendido que a separou da sua família. Você é uma
rapariguinha azougada e impetuosa, mas tenho a certeza que é
ajuizada. E é muito atraente; qualquer pessoa que a encontre
há-de simpatizar sempre consigo. Mas precisamente essa
simpatia e independência de espírito só aumentam o perigo
desta sua atrevida aventura. Ora, o John concordou que eu lhe
perguntasse se quer vir connosco. Vamos fazer uma visita a uns
parentes nossos, que vivem num rancho e depois seguiremos para
oeste, Parando onde nos apetecer, no caminho para a
Califórnia.


96


Venha connosco Martha. E se alguma vez for capaz de gostar
tanto de nós, como nós gostamos de você, e a sua família
concordar, adoptá-la-emos.
Perante esta proposta, a reacção surpreendente de Martha foi
começar subitamente a chorar.
- Oh, sou mesmo uma criança! - soluçou, tentando dominar-se.
- Aborrece-me tanto que me tomem por uma boa rapariga, quando
eu sou tão má. Eu menti à mãe! E ela é a melhor mãe do mundo.
Nunca me perdoará. Mas como lhes hei-de eu agradecer à senhora
e ao senhor Jones a vossa bondade para comigo? A senhora foi
muito amável, senhora Jones. Eu também gostaria de ser sua
filha e tenho a certeza que gostaria muito de si. Mas tenho de
continuar com esta louca aventura.
e só Deus sabe o que será de mim.


Martha chegara, enfim a Randall! Na excitação de atingir o
seu destino, esqueceu tudo o resto e até de agradecer ao
lavrador que a transportou na última etapa.
Eram cerca de onze horas da manhã. Tendo tomado muito cedo o
café, Martha sentiu vontade de almoçar; depois de comer,
pôs-se à cata de informações. A primeira pessoa que interrogou
não conhecia Nick Bligh. Martha reflectiu que um empregado de
alguma garagem ou um lojista é que lhe saberiam certamente dar
notícias do tio.
Um rapaz da estação de serviço disse-lhe que perguntasse no
armazém de Toller, com quem faziam negócio todos os rancheiros
da região, milhas em redor. Momentos depois, Martha Ann
entrava no armazém e perguntava pelo senhor Toller.
Indicaram-lhe um homenzinho magro e grisalho, no fundo da
loja.


97


- Sr. Toller, conhece Nicholas Bligh? - perguntou.
- Ora, se conheço, menina! - respondeu o negociante, olhando
de alto a baixo a rapariga, com um interesse amigável.
- Eu sou sobrinha dele, Martha Ann Dixon, de Chicago, e vim
visitá-lo. Gostaria que me indicasse onde fica o rancho dele.
- Ora, ora, mas que pena! - exclamou o senhor Toller. - Ia
jurar que o Nick não sabia que você vinha.
- Não; eu... eu queria fazer-lhe a surpresa - balbuciou
Martha Ann, sentindo o coração pesar-lhe como chumbo.
- Bem, menina Dixon, o seu tio deixou o rancho em Belle
Fourche já há alguns meses, logo a seguir ao degelo.
Levou o gado para sudoeste, para outras terras. - Foi-se
embora!
- E por que é que abandonou ele o rancho? - perguntou Martha
Ann, quase a chorar.
- Ora, teve azar com várias coisas. Nick não conseguia
manter os vaqueiros e o gado perdia-se, desaparecia nas areias
movediças e era roubado; até que ele se aborreceu - e levantou
ferro. E foi o melhor que fez.
- Para onde foi? - interrogou Martha Ann.
- Lá para baixo, para o Água Doce, as melhores terras do
Wyoming - respomdeu o senhor Toller. - Deixou a direcção,
Rocha Quebrada é onde fica a estação dos correios...
- A que distância?
- Coisa aí de umas trezentas milhas, creio eu, menina.
- Tão longe! - Martha quase chorava. Tinha levado dias para
viajar trezentas milhas naquela região, pois tinha de fazer
parte do caminho a pé. Era de fazer perder a coragem! Martha
tinha andado ultimamente com tanta sorte, que se achava
desprevenida para um golpe daqueles.
- Pois é, bastante longe. Mas agora dois bocados, como daqui
a Beulah, o caminho é todo por estradas nacionais. Pode
fazer-se num dia - se quiser alugar um carro.
- Tenho vindo a pé e de boleias. quando podia...
- Não pode continuar a pé, menina, não é seguro. Teria de
passar a noite toda na estrada.
- Mas não tenho outro remédio. Não tenho dinheiro para
alugar um carro - balbuciou Martha, com lágrimas de
desapontamento a tremerem-lhe nos olhos.
- Então terá de pedir uma boleia, menina Dixon. Talvez eu...
- Muito obrigada - murmurou Martha e, receosa de começar a
chorar diante do senhor Toller e dos empregados deixou
precipitadamente o armazém. Que havia ela de fazer? Claro que
a única solução era continuar como viera até ali, mas a
distância era tão grande e o seu desânimo tão intenso que, de
momento, estava incapaz de enfrentar o problema. Cega pelas
lágrimas, dirigiu-se lentamente para um banco junto a um posto
de gasolina e sentou-se, cheia de tristeza. Estava a ponto de
se decidir a voltar ao armazém de Toller, quando um rapaz veio
a correr ao seu encontro.
- Menina Dixon, o senhor Toller mandou-me cá - explicou. -
Arranja-lhe uma boleia, mesmo até Rocha Quebrada. Tem muita
sorte, menina. Despache-se e dê-me a mochila que eu levo-a.
Martha, murmurando incoerentemente, fez escorregar as
correias da mochila, e caminhou atrás do rapaz. Este
conduziu-a ao armazém de Toller, em frente do qual estava
parado um grande automóvel, cheio de pó e de lama. Era um
carro potente e o motor trabalhava suavemente.
- É esta a sobrinha do Bligh? - inquiriu um indivíduo
bronzeado, sentado ao volante, ao senhor Toller, que estava
junto dele.


98 99


- Éh, Menina Dixon, arranjámos-Lhe uma boleia. Apresento-lhe
o senhor Lee Todd. Ele deixá-la-á em Rocha Qebrada esta noite,
pelas dez ou onze horas.
- Oh, senhor Toller... senhor Todd... - Mas Martha não foi
capaz de dizer mais nada e a sua hesitação foi tomada pelos
dois homens como uma manifestação de agradecimento sem
palavras.
- Prazer em conhecêla, menina. Eu conheço o Nick Bligh. É do
melhor que há. Importa-se de viajar depressa?
Martha abanou a cabeça.
- Tenho de estar em Lander de manhã. Tenho muito gosto em a
levar. se tem coragem...
- Isso é o que eu tenho mais - respondeu Martha.
- Entre aqui para o meu lado. Ponha o saco aí atrás. Adeus,
Sal, até para a semana.
O carro rugiu e largou, abafando o adeus do senhor Toller.
Martha acenou com a mão para ele e para o simpático jovem.
Depois, as lojas e a estação de serviço passaram como
relâmpagos pela frente de Martha Ann e ela compreendeu que
aquela ia ser uma viagem de automóvel como ainda não fizera
outra.
- Não fale enquanto eu conduzo - pediu o senhor Todd,
gritando para se fazer ouvir através do ruído do motor.
Marta afundou-se no assento e cerrou oS olhos. Não lhe
importava a velocidade; quanto mais depressa, melhor! Fora
estupidamente infantil em ceder ao desânimo e à saudade. O que
interessava é que tudo acabasse bem. Algo mais do que sorte
velara por ela; as orações a que recorrera sempre, por muito
cansada ou desanimada que estivesse, tinham sido atendidas.
Recostou a cabeça para trás e descansou por algum tempo.


100


Por fim, quando aquela lassidão lhe passou, abriu os olhos e
contemplou a paisagem que deslizava pela sua frente. A estrada
cinzenta cortava a planície através de milhas e milhas, mas a
distância viam-se colinas e, para além delas, cordilheiras
baixas e escuras de montanhas.
Havia poucos campos verdes e os aglomerados de árvores e de
casas pareciam ser ainda mais escassos que em Nebraska. Antes
que desse por isso, tinham ultrapassado Beulah e
encontravam-se na estrada de Custer Battlefield. Passaram
Sundance, Carlisle e Moorcroft, em tão rápida sucessão, que, a
Martha, pareceu que as cidades ficavam muito perto umas das
outras. Em Moorcroft, o condutor atravessou o rio Belle
Fourche e deixou a estrada principal, em direcção a Newcastle.
Guiava demasiado depressa, para que fosse possível a Martha
apreciar a região ou as cidades com satisfação. Em Newcastle,
o senhor Todd parou num posto de gasolina.
- Gasolina, óleo e água - ordenou, saindo do carro.
- Paramos aqui uns minutos, menina Dixon. Saia e estenda as
pernas. Eu vou buscar umas sanduíches e empadas.
Martha Ann aproveitou a paragem para fazer um pouco de
exercício. Queria fazer perguntas e caminhar um bocado, mas
como não podia fazer as duas coisas, optou pela última. Daí a
pouco, o senhor Todd regressou, trazendo dois sacos de papel
que colocou no banco da frente. Martha apressou-se a regressar
ao carro.
- Que tal vai isso? - interrogou, com um sorriso.
- Esplêndido. O senhor é a pessoa mais desembaraçada que me
tem dado boleia em toda a viagem.
- Agradecido. Aqui tem comida e leite. Lusk é a nossa
próxima paragem; cerca de setenta milhas, que podemos fazer
numa hora, mais ou menos. Em Lusk apanharemos a estrada de
Yellonstone e então é que vai ser andar.


101


- Parece-me que não temos andado nada mal - riu-se ela. -
Nem consigo ver a paisagem.
- Bem, também não perde grande coisa, porque isto é muito
estenso, mas desolado. Ao longo do Água Doce tor na-se muito
bonito.
- Que quer almoçar? - inquiriu Martha, espreitando para
dentro dos sacos.
- Já comi um bocadinho e bebi um bocadão... Prefiro fumar,
se não a incomoda.
- De maneira nenhuma; não incomoda nada!
- Bem, eu tive a impressão de que você não devia fumar -
respondeu ele, oferecendo-lhe a cigarreira.
- E não fumo.
- Belo. Ainda há algumas raparigas à moda antiga. Diga adeus
a Newcastle.
Foi uma novidade para Martha almoçar, enquanto voava por ali
fora a cem à hora. Não percebia nada de carros de corrida nem
de automobilismo, mas tinha confiança naquele homem bronzeado
do Oeste; e também simpatizara com o senhor Toller. O tio Nick
estava no Oeste havia mais de trinta anos e certamente se
tornara um genuíno habitante do Oeste.
Enquanto assim meditava, Martha ia comendo o seu almoço.
Atravessaram Clifton, suficientemente devagar para ela
distinguir a estação dos correios. Depois de Clifton, vieram
Mule Creeck, Hatcreek, e por fim, Lusk.
Dali para diante, as cidades que apareciam no caminho
tornaram-se mais numerosas, com um aspecto de maior abastança.
Em uglas transpuseram o rio Platte do Norte, um dos mais
famosos do Oeste, segundo Todd. Martha via-o de relance, uma
ou outra vez, enquanto corriam para Oeste e deliciava-se com
as vastas extensões de areia, o gado que pastava por ali e as
terras verdejantes, cobertas de salgueiros e álamos.


102


A região entrevista para lá do rio, fazia Martha vibrar de
entusiasmo. Parecia prometer-lhe para o futuro coisas
misteriosas e maravilhosas. Talvez as novas terras do tio
ficassem naquela direcção.
Ao escurecer entraram em Casper, que a rapariga verificou
com surpresa ser uma povoação bastante grande. Havia uma rua
larga e bem iluminada, cheia de automóveis com os passeios
aninhados de transeuntes. Ficou no carro a comer o que sobrara
do almoço, enquanto o senhor Todd tratava dos seus assuntos.
Foi bem recompensada; um rapaz magro, de chapéu de abas
largas, trazendo estampada no rosto moreno e glabro a malícia,
aproximou-se do carro, dirigindo-se a ela:
- Olá, garota, que tal uma passeata esta noite? - inquiriu
com um sorriso.
- Seria estupendo - respondeu Martha, pondo-se à altura do
momento. Seria preciso muito mais para a aborrecer naquele dia
maravilhoso.
- Aquele homem de ombros largos que vinha ao volante é o seu
papá?
- É sim, e nunca se sente tão feliz como quando dá uma
tareia nalgum vaqueiro.
- Tem todo o aspecto disso. - acrescentou o moço, com ar
embaraçado. - Então nada feito, amorzinho. A não ser que você
lhe possa escapar. Que diz?
- Não pode ser, Lancelote. Eu bem o tenho tentado.
- Lancelote? Quem é esse tipo? - perguntou o vaqueiro,
desconfiado.
- Lancelote era um tipo muito importante da Idade Média. Um
apaixonado maravilhoso, segundo a história.
- Você não está a rir-se à minha custa?
Martha riu alegremente.
- Ponha-se a andar, vaqueiro; vem aí o papá.


103


O senhor Todd chegava mesmo a tempo de presenciar a partida
um tanto precipitada do vaqueiro.
- Que estava aí a fazer esse rapazola?
- Suponho que queria levar-me a passear. Chamou-me
amorzinho. Parece-me que os nossos rapazes do Leste não levam
a palma aos vossos do Oeste, quando se trata de trabalhar
depressa. Eu disse a esse rapaz que o senhor era meu pai e que
a sua especialidade era espancar vaqueiros. Deu esplêndido
resultado.
O rancheiro achou graça ao dito de Martha.
- Não me importava de ser seu pai. Bem, eles agora vão
fartar-se de comer poeira.
- Que estrada tomamos para sair de Casper?
- O velho caminho de Oregon, uma das primeiras e das maiores
estradas que deram acesso ao Oeste. É pena ser já noite.
- Quando chegamos a Rocha Quebrada? - perguntou,
interessada, Martha.
- Bem, se não houver novidade, calculo aí pelas dez horas.
Partiram, deixando para trás as luzes vermelhas e brancas, e
mergulhando na escuridão do campo. O ar da noite era fresco e
o casaco de Martha apenas proporcionava uma fraca protecção,
pelo menos no ombro que estava exposto ao vento. O carro
zumbia como uma vespa gigante.
A fugitiva deixou-se escorregar um pouco no assento e
adormeceu. Acordou sobressaltada, de um sonho em que se
debatia entre vagabundos; o senhor Todd sacudia-lhe o braço.
- Você estava a dormir como uma pedra - disse ele.
- Fiz uma boa soneca, sem dúvida. Chegámos a tempo.
é esta a sua cidade e a pensão fica aqui.


104

A dona é muito agradável, a comida é boa e as camas limpas. O
automóvel veio realmente mudar muito o Oeste.
Levou-lhe os sacos para dentro, marcou-Lhe o quarto e disse
à proprietária quem ela era, recomendando-lhe que tratasse bem
de Martha.
- Dê recomendações minhas ao seu tio, menina. E agora adeus
e boa sorte.
- Senhor Todd, foi a boleia mais rápida e mais agradável que
tive! Nunca lhe agradecerei o bastante. Adeus.


105

VI


Martha Ann foi despertada na manhã seguinte por uma voz de
barítono, que cantava "La Paloma". Era evidente que o cantor
se encontrava em baixo no pátio atrás da pensão. O sol já ia
alto no céu. Surpreendida por ter dormido até tão tarde,
saltou da cama rapidamente. O ar estava frio.
- Não há dúvida que não sabes cantar, Smoky - pronunciou uma
voz arrastada e acusadora, enriquecida por um acento do Sul. -
Tens tanto jeito para cantar, como tens para fazer namoro.
- Hum; creio que só tenho jeito para laçar cavalos e bois -
respondeu outra voz, de timbre completamente diferente.
- Sim, não fazes má figura ao pé dos vaqueiros de outros
sítios.
- Está bem, Texas Jack. Ganhaste... Eu tenho...
- Eh, vocês, seus "hombres" magriços, com cara de esfomeados
- interrompeu uma aguda voz feminina. - Venham lá!
Passos rápidos, acompanhados de um tilintar, atestaram
a importância daquela chamada para o pequeno almoÇo. E, Por um
momento Martha ficou intrigada, sem saber como
classificar aquele tilintar metálico e musical.
-Esporas, é claro! - logo exclamou. - Vaqueiros, Pois então;
isto é o Wyoming! - E soltou um gritinho, ao mergulhar as mãos
na bacia de água gelada do Wyoming.


107


Martha verificou em si uma disposição para retardar a
descida; era a primeira vez que se lembrava de hesitar em ir
tomar o pequeno almoço. Apesar da alegria e do interesse e da
curiosidade que sentia, não lhe apetecia nada encon trar-se
com aqueles vaqueiros, especialmente com o da voz arrastada,
que se considerava, evidentemente, um Lotário. Por fim,
contudo, estava pronta, sem mais nenhum pretexto para se
demorar. Pegando no embrulho, desceu as escadas. Não estava
ninguém na sala em frente, que parecia ser o escritório.
Martha deixou a bagagem em cima de uma cadeira e dirigiu-se
através do vestíbulo para a sala de jantar, cuja situação não
era difícil de descobrir. Ao entrar, quase tropeçou no pé de
uma pessoa em que não reparara.
- Veja lá onde é que põe os pés, menina - queixou-se uma voz
roufenha. - Tenho um calo.
- O senhor tem mais do que isso, tem dois pés enormes -
retorquiu Martha olhando das grandes botas empoeiradas para o
rosto magro e afilado de um vaqueiro louro. Ele franziu a
cara, num espanto repentino.
- És muito desajeitado, Smoky - pronunciou uma voz que
Martha reconheceu. - Deixa passar a senhora.
Apareceu um braço comprido, que arrastou o espantado Smoky
da entrada; Marta viu então o outro vaqueiro; e se não estacou
petrificada pelo aspecto dele, não era que ele não fosse o
mais estranho e imponente ser humano que já vira.
- Bom dia, menina Dixon - disse a senhora Glemm, a
proprietária, indo em socorro de Martha e conduzindo-a para
uma mesinha junto à janela. - Espero que tenha dormido bem.
- Dormi como uma pedra. Nem creio que tivesse acordado, se
não fossem umas cantorias horrorosas no jardim.


108


A sala era pequena e a voz jovem e sonora de Mardut ouvia-se
bem. Do vestíbulo veio um som de botas pisando o chão, seguido
de gargalhadas.
- Apresento-lhe a minha filha Nellie - continuou a
senhora Glemm, quando entrou na sala uma rapariga jeitosa, de
rosto agradável. - Minha filha, a menina Dixon que vem ao
Oeste visitar um tio. Agora a Nellie vai-lhe arranjar um bom
pequeno almoço, menina, e eu estou à sua disposição.
- Pode arranjar alguém que me leve a casa do meu
tio, Nicholas Bligh? - interrogou Martha ansiosamente.
- Posso sim, com certeza. Arranja-se já um carro.
Martha saboreou o pequeno almoço à moda do Oeste e a
conversa com a rapariga que tinha uns bonitos olhos castanhos
e faces rosadas. Fez algumas perguntas despreocupadas acerca
do tempo, da cidade, do negócio de gado, dos cinemas, sobre
que espécie de vida social tinham Rocha Quebrada, recebendo
respostas completas e pormenorizadas. Não havia dúvidas de que
Rocha Quebrada era um lugar progressivo.
Depois de ter comido e pago a conta, informaram-na de que o
carro estava à sua espera. A senhora Glemm levou-Lhe a mochila
para um destroçado Ford, cujo condutor, um rapazito simpático,
desceu para a ajudar.
- Descobriste onde fica o rancho do senhor Bligh, Sim?
- Não, minha senhora. Ele é novo por aqui, mas o Sam Johnson
sabe com certeza.
- Não te esqueças de mandar o Sam meter gasolina. Adeus,
menina. Espero que fique por cá muito tempo e que goste da
visita. Mas com esses seus olhos, não volta para o Leste.
O rapaz meteu por uma rua larga, onde os anúncios vermelhos
e as fachadas ostentosas brilhavam pela ausência.


109


Por toda a parte se viam cavalos, veículos, automóveis,
poeira e homens. Martha viu que Rocha Quebrada era uma terra
pequena mas movimentada. Fizeram uma paragem em frente de uma
estação de serviço.
- Sam, meta gasolina e diga-me onde posso encontrar
Nicholas Bligh. - disse o jovem motorista.
- Eu não sei, Sim, mas posso dizer-te quem é que sabe. Vai
ter com o Jed Price, que ele diz-te.
Mal o rapaz se fora embora, saiu do pequeno compartimento de
janelas envidraçadas um homem novo, alto e flexível; no mesmo
instante em que o fitou, Martha reconheceu-o e compreendeu que
ele estivera à espera para lhe sair ao caminho. Olhando-o uma
segunda vez, enquanto se aproximava despreocupadamente do
carro, viu-o com mais minúcia; os pés dele estavam metidos em
botas de cano alto, decorado, um pouco gastas pelo uso, e as
esporas arranhavam o pavimento; trazia calças de cotim,
igualmente velhas e manchadas e acima das ancas delgadas tinha
um cinto, que rebrilhava com cartuchos de metal, pendia-lhe, à
vontade, do pescoço um lenço amarelo. Tinha um rosto
avermelhado, liso como o de um bebé, olhos de um azul intenso
e vivo, o cabelo ruivo como fogo, todo eriçado fazendo lembrar
uma crina. Levava na mão um enorme chapéu de abas largas, de
cor acastanhada.
- Bom dia, menina Dixon - pronunciou com um sorriso que não
poderia deixar de agradar a qualquer rapariga e muito menos a
uma apaixonada do Oeste, como Martha.
- Bom dia - respondeu um pouco friamente. Embora tivesse
vontade disso, não era boa tática emcorajar aquele vaqueiro.
- Espero que aquele desajeitado não a tenha magoado, quando
tropeçou consigo na pensão.
- Não. Creio que fui eu é que tropecei.
Ele inclinou-se para a janela do lado do motorista, passou
os dedos fortes e morenos pela orla do chapéu. Os seus olhos
penetrantes examinavam Martha dos pés à cabeça; mas a ela não
lhe desagradou o olhar, embora deitasse um pouco o audacioso.
- Viajante de boleia, creio, e sozinha. Eu aprecio uma
rapariga destemida.
- E que há em Wyoming que se possa temer?
- Muitas coisas, menina. Há por aqui uns vaqueiros bastante
atrevidos.
- Sério? Eu só vi ainda... dois, que eu saiba.
Ele nem pestanejou.
- Você precisa sem dúvida de companhia, onde quer que vá.
- Este rapaz não é de confiança?
- Ah, o Sim é uma óptima pessoa; mas é um garoto e você
precisa de um homem.
- Ah, sim? Receio ter de me arriscar, não posso desbaratar
dinheiro.
- Mas eu não ia aceitar dinheiro a uma senhora.
- É muito amável, mas eu creio que dispenso a companhia. Que
é que pode haver aí que temer?
- Bem, além de vaqueiros brutos, há índios, ladrões de
cavalos, contrabandistas de bebidas alcoólicas, há os que
roubam os contrabandistas, um diabo de um xerife que, tem a
mania que é conquistador. isto para citar algumas das razões
por que não devia ir sozinha.
- Que lista formidável! E como posso eu saber, senhor Texas,
que não está incluído em nenhuma dessas categorias?
- Por favor, acha que tenho aspecto disso? - protestou ele.
- Não. Você parece absolutamente inócuo. para não dizer
inofensivo.


110 111


- Inó... quê? - inquiriu com o seu sorriso fascinante. - E
como sabe que me chamo Texas Haynes?
- Não sabia; apenas ouvi o primeiro nome. Você, claro, leu o
meu no registo da pensão?
- Li sim, menina Martha. Espero que não fique ofendida.
Compreende que só uma vez na vida aparece aqui na cidade uma
rapariga como a menina...
- Isso é um cumprimento? - perguntou Martha.
- Bem, se o quer completo, nunca uma rapariga tão jeitosa...
- Chega, muito obrigada. Então, sempre é um cunprimento.
Ele olhou-a friamente.
- Você não está a compreender-me. Aposto que, durante a sua
longa viagem, houve quem a assustasse, a importunasse e a
insultasse. Houve ou não?
- Infelizmente é verdade.
- Mas não foi nenhum texano. Menina Martha, ainda está para
nascer o vaqueiro do Texas, que seja capaz de insultar uma
rapariga - disse com um orgulho expressivo, quase
arrebatadamente.
- Fico muito satisfeita por saber isso. E os vaqueiros do
Wyoming, não são assim tão... cavalheirescos?
- Deixo isso para você descobrir; e descobrirá depressa, se
não me deixar acompanhá-la.
- Arrisco-me.
- Para onde vai?
- Não sei bem. O meu tio vive no Água Doce. O motorista foi
ver onde é.
- Menina Dixon, se não acha que é ser demasiado indiscreto,
qual é o nome do seu tio? - inquiriu Haynes. Os seus olhos
azuis e faiscantes pareceram sombrear-se com a rápida mudança
de pensamento.


112


- Nicholas Bligh.
- Bligh! - repetiu o vaqueiro; afastando-se do carro para
lhe fazer uma mesura galante. - Já ouvi falar de Nick Bligh,
um criador de gado novo Por estes sítios. Lamento não poder
dizer-lhe que já trabalhei para ele. Bom dia, menina Dixon.
Pôs o chapéu e atravessou a rua, figura imponente e
graciosa, com excepção das pernas ligeiramente arqueadas. Não
olhou para trás. Martha Ann, observando, ponderou sobre a
ténue e rePentina mudança de maneiras e de expressão, ao ouvir
o nome do tio.
O rapaz encarregado de a conduzir, voltou correndo e saltou
para o carro.
- Descobri, menina. É fácil ! E não é muito longe. Deve
levar-nos aí umas três horas. Viramos na ponte do Água Doce; é
o único rancho que há ali e não nos Podemos enganar.
- óptimas notícias. É seguro?
- Seguro? Refere-se a este Ford?
- Não; ao caminho. Aquele vaqueiro ruivo assustou-me.
- Tex Haynes? O patife! que é que ele lhe disse?
Martha repetiu a lista de calamidades que Haynes lhe
anunciara.
- Aposto que ele queria era guiá-lo.
- Não era bem isso; queria acompanhar-nos.
- Ah, esse homem há-de ir ter com o seu tio, para ver se ele
Lhe dá trabalho. Se não se importa, eu aconselho-a a dizer ao
seu tio que não empregue o Tex.
- Muito obrigada. E porquê?
- O Tex tem má fama; já estrepou dois vaqueiros e esteve
preso por desordens. Mas ainda não é isso; é que dizem-se umas
coisas dele, não sei bem o quê, mas não são nada boas. É muito
bom cavaleiro e ganha todos os "rodeos" em Cheyenne; a gente
tem mesmo de gostar dele.


113


Martha receou que tudo o que o motorista conseguira fazer
fora aumentar o seu interesse por Texas Haynes. O seu espírito
rebelde inclinava-se sempre para o que estava por baixo. Além
disso, ele não a desprezava por pedir boleias.
- Quem é o Smoky? - perguntou a rapariga, enquanto sa
dirigiam Para fora da cidade.
- O Smoky Reed? É uma boa peça, esse vaqueiro. Anda a fazer-
se com a Nall Glenne, mas ela está doida pelo Tex. Ouvi dizer
que perdeu o emprego. E o Tex há muito tempo que não trabalha,
mas porque não quer; qualquer criador de gado gostaria de o
apanhar.
- Conte-me coisas da região. Vocês chamam-lhe pradaria; eu
só consigo ver colinas.
- Por enquanto não se vê nada, menina; mas espere até
chegarmos ao Água Doce.
- Estou à espera. Ainda não me disse o seu nome.
- Sim Glemm; Sim é um diminutivo de Simpson. Sou sobrinho da
senhora Glemm.
Martha Ann deu largas ao seu espírito investigador e, como
não havia nada na paisagem que valesse a Pena ver, fez
perguntas após perguntas ao tagarela do condutor. Durante as
duas horas que viajaram até avistar o rio, Martha adquiriu
vasta provisão de conhecimentos acerca do Wyoming, da sua
história, habitantes e boatos correntes, algums um pouco
maliciosos. Sim tinha o tipo de espírito narrativo, que sempre
tenta aumentar a verdade, conseguindo-o, em geral.
Mas, quando voltaram uma curva que os fez abandonar o abrigo
duma cordilheira aborrecida que, como um muro, Lhes ocultava a
visão para o sul e para o ocidente, Martha Ann inclinou-se
para a frente, com os olhos bem abertos.


114


- Aí tem o rio - apontou o rapaz. - Brilho de prata, não
brilha? há muito peixe por aqui. Olhe para aqueles
salgueiros; o que está a ver não é o céu, menina, aquilo é a
pradaria do Wyoming. Vê aquelas coisas encarnadas e cor-de-
rosa, que se erguem lá adiante? Aquilo é uma fila de pequenas
montanhas, chamadas as Colinas do Antílope. O rancho do seu
tio fica mesmo por baixo delas. E certamente ainda não reparou
naqueles dentes brancos de serra, além, para cima, menina.
Aquilo são as Montanhas Rochosas, com os cimos cobertos de
neve. Ora, agora, que ma diz do Wyoming?
- Maravilhoso! - exclamou Martha.
Descendo em direcção ao rio e à ponte, Martha em breve
perdeu de vista o vasto panorama que a fizera julgar estar a
olhar através de óculos de vidros coloridos que aumentavam e
realçavam tudo o que via. Ao atravessar o Água Doce teve,
Porém, uma visão sem limites da paisagem, durante léguas e
léguas. Não havia nada, senão campos intermináveis da
tonalidades várias, cordilheiras ondulantes, vales escuros,
prolongando-se até ao horizonte. Pressentia que, para
compreender e apreciar aquela região extraordinária, devia
começar por partes separadas, escolher primeiro as que lhe
ficavam perto e, estudando-as, alcançar um dia mais tarde uma
ideia, ainda que imperfeita, da vasta imensidão que se
estendia para além.
Em primeiro lugar vinha o rio; era realmente uma fita
brilhante e, nalguns sítios, várias fitas, correndo entre
ilhas de areia e algodoeiros verdes. Ocorreu-lhe, contudo, que
a água era pouca para um leito tão grande e tão largo, de
margem a margem. Nas enchentes o rio devia ser verdadeiramente
impressionante. As margens e bancos verdejantes, e as
faiscantes águas brancas e ambarinas faziam um contraste vivo
com as terras sombrias dapradaria. Martha Ann deu-lhe


115


no espaço solitário o seu lugar próprio na paisagem, como -
sendo a vida e vitalidade daquela pradaria magnífica.
- Mas não vejo um único ser vivente? - exclamou.
- Olhe, menina novata, devia ter trazido um binóculo -
respondeu o rapaz. - Vê além aqueles pontinhos?
- Sim, parece-me que sim.
- Gado - disse em tom decisivo.
O gado era o alvo e finalidade daquela vasta região.
Sim virou à esquerda, mesmo antes de chegarem à ponte, e
Martha em breve perdeu de vista o campo aberto.
O caminho cheio de corcovas obrigava-os a ir devagar ao
longo da margem ladeada de álamos e salgueiros.
- Vê aquela grande árvore, ali? - inquiriu o guia, apontando
um álamo de copa redonda e longos ramos -, O meu pai ajudou a
enforcar ladrões de gado naquela árvore.
- Que horror! Como é que eles roubam o gado? Fazem barulho
para o assustar?
Sim desatou a rir.
- Sou uma autêntica novata, não sou? Mas como hei-de
aprender, se não me disserem?
- Você vai ser melhor que um circo para os vaqueiros; mas
pode ter a certeza que há-de ter tudo o que quiser deles,
assim que chegar.
- Bem, as notícias não são más. E como?
- Porque você é tão bonita que nenhum deles, nem mesmo o Tex
Haynes se atreverá a aborrecê-la ou a pregar-lhe uma partida.
- Não vejo como é que a minha... como é que isso me vai
Proteger.
- Ora; vá esperando.
A etapa final do caminho para o rancho de Bligh, decorreu de
modo diferente, numa estrada melhor. As terras para a esquerda
começavam a subir gradualmente, elevando-se para as belas
colinas de cor esbatida. E, subitamente, Martha teve a
consciência de estar a olhar mais de perto o panorama
grandioso que tanto a extasiava mais de vinte milhas atrás.
Ali estava ele, mais nítido, mais próximo, enchendo-Lhe os
olhos e tirando-lhe a respiração. Mas a aproximação do rancho,
prendeu-lhe o olliar; viu uma construção comprida e baixa, sem
vestígios de verde à roda; e mais afastados alguns telheiros,
cedros e sebes, tudo tristemente precisado de reparação.
Depois, conforme o carro ia avançando, avistou uma cabana de
madeira acinzentada, pitoresca no seu isolamento e na sua
aparência arruinada, situada na margem do rio, virada a Oeste.
A crescente excitação de Martha abandonou-a e sentiu um
súbito aperto na garganta. Engoliu em seco, achando o ambiente
opressivo. Se fora louca em suspirar pelo Wyoming, com todos
os sacrifícios que a viagem lhe custara, compreendia agora
quanto fora verdadeiro o seu instinto. A solidão da paisagem
comovia-a, o seu aspecto selvático acordava nela algo de
profundo e de instintivo, a beleza enchia-lhe a alma de
melancolia.
Mas não devia ceder à emoção, agora que estava ali e
apresentar-se ao tio Nick como uma rapariguita piegas e
sentimental. O motorista continuava a tagarelar, mas Martha
não lhe podia dar atenção. Viu um potro esticar uma cabecita
curiosa por cima duma sebe, e dois cachorrinhos atarefados,
mal se aguentando nas pernas e depois um canzarrão de Pêlo
amarelo e olhar feroz. Deu-se subitamente conta que o carro
parara.
- Eh, há alguém em casa? - gritou o rapaz, com uma voz
possante de pessoa nova.
- Não grite, que eu vou lá dentro.
- Nem pense nisso; pelo menos com aquele cão amarelo a
ver-nos.


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O peito de Martha arfou numa expectativa rejubilante, quando
um homenzinho magro e acinzentado, digno habi tante daquele
lugar, surgiu de trás duma esquina da casa. Quando ele deu um
pontapé amigável ao cão amarelo, viu que tinha as pernas
arqueadas; mas todos os homens do Oeste tinham as pernas mais
ou menos arqueadas. Rapidamente, abriu a porta do carro e
correu Para o homem.
- Tio Nick... eu sou... a sua sobrinha e vim... - exclamou
e, faltando-lhe a voz, lançou-lhe os braços à volta dopescoço
e beijou-o na face.
- Com a breca! - pronunciou com bom modo, soltando-se
suavemente. - Lamento muito, pequena, mas acon tece que não
sou o seu tio Nick.
- Oh, desculpe. Deve pensar que sou maluca. Mas eu nunca o
vi - exclamou, juntando a atrapalhação à sua agitação.
- Eh, Nick, vem cá depressa! - gritou o homenzinho.
A porta abriu-se, descobrindo um homem alto, de cabelo
grisalho e rosto estragado, de pé junto à entrada. No momento
em que os seus olhos azuis avistaram a rapariga, exclamou:
- Martha Dixon!
- Sim - gritou Martha correndo para ele. - Martha Ann. a sua
sobrinha.
A rápida mudança de espanto Para um contentamento iniludível
e o forte abraço, não só tiraram as forças à rapariga, mas
também o receio que a dominava e consumia. O tio Nick era
parecido com a avó e tinha uns bondosos olhos azuis, que se
iam enchendo de lágrimas.
- A minha sobrinha? Que Deus te abençoe, minha filha. Quem é
que vem contigo? Como vieste? Que...
- Vim sozinha. Fiz grande parte do caminho a pé. Pedi
boleias... para poupar dinheiro. E aqui me tem... para
ficar...
- Martha, tu fugiste de casa?
- O tio também fugiu, tio Nick. Eu... eu queria ajudá-lo.
Ele apertou-a mais nos braços e encostou a sua face
enrugada à déla.
- Nunca esperei tornar a ver alguém da minha família - disse
ele com voz trémula. - E muito menos que a filha de Martha
Dixon fugisse de casa, por minha causa.
- Não foi, tio... só Por sua causa. Eu desejava tanto ver o
Oeste.
- Com certeza que sim; nunca oúvi falar duma coisa destas. A
viajar sozinha e a pedir boleias! Que dizes a isto, Jim?
- Bem, Nick, devo estar maluco - riu-se o homenzinho.
- Entra, Martha. Vais-nos contar tudo - disse o tio -, Jím,
traz a bagagem dela.
- Oh, não me posso esquecer de pagar ao Sim - gritou Martha,
voltando a correr para o carro.
- o que lhe digo, menina. Não há-de tardar muito que tenha
todas as viagens que desejar, de graça - disse Sim, metendo o
dinheiro no bolso.
O tio de Martha levou-a para dentro de casa, pedindo
desculpa da sua modesta residência, que não esperara viesse a
ser honrada pela presença de tão bela visitante.
O que se lhe deparou, afastava-se muito da ideia que fizera
do interior daquela casa rude. Viu uma sala bastante espaçosa,
formada por Paredes mal estucadas, cobertas de peles e de
emfeites índios, com espingardas suspensas nos chifres duma
cabeça de veado pendurada por sobre a la reira, um soalho de
madeira, apenas caberto com úm par de 2apetes índios. A
mobília era uma mesa e um candeeiro,


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uma cadeira de baloiço, velha, e um divã. Havia só uma janela,
suficientemente grande para deixar entrar a luz.
- Entre, senhora Fenner. Venha ver quem cá está - chamou
Bligh através duma porta aberta.
- Tenho estado a observar - respondeu uma voz feminina, e
uma mulher baixinha entrou, saltitando como um pássaro. Tinha
uns olhos escuros, que brilhavam num rosto pequeno e
agradável, apesar dos estragos causados por uma vida dura e
solitária.
- Senhora Fenner, esta é a minha sobrinha, Martha Ann Dixon
- disse orgulhosamente. - Martha, apresento-te a mulher do
Jim.
Ainda não tinham acabado os cumprimentos e já Martha sentia
uma viva simpatia por aquela mulher do Oeste. Nessa altura
entrava Jim, com os sacos de Martha.
- Instala-te, Martha -, estás em tua casa - convidou Bligh,
chegando para o pé dela a cadeira de baloiço. - Senhora
Fenner, creio que este terá de ser o quarto de Martha.
- Oh, eu não ia ficar com a sua sala de estar - protestou a
rapariga.
- Tens de ficar com ele, porque é o único que temos. E tem
de ser arranjado; de que é que vamos precisar, senhora Fenner?
- Dum lavatório, dum esPelho, duma secretária, dalguns
cabides para pendurar roupa, mais uns tapetes e cortinados
para a janela - respondeu a senhora Fenner, em tom decidido.
- Parece-me que temos tudo, excepto a secretária;
compramo-la na cidade. Vamos já buscar as coisas. Martha,
conta-nos como conseguiste cá chegar, sozinha e nesses
preparos.
Então, Martha, inspirada e entusiasmada pelos seus ouvintes,
de olhar feliz e interessado, relatou a parte mais agradável
da sua exPeriência.
- E não aconteceu mais nada? - interrogou o tio.
- Pouco mais; fui assaltada por uns vagabundos e uns
rapazotes começaram a fazer-se atrevidos. Fora isso a viagem
decorreu calma.
- Nick, foram aqueles olhos - disse Jim Femner solenemente.
- Não. o bom Deus! - acrescentou a senhora Fenner.
- Bem, ela cá está e eu diria que ainda acontecem milagres.
Andem, vamos juntar o que houver aí, Para a instalar
confortavelmente.
Saíram todos, numa grande excitação, obviamente espantados
com a sua chegada inesperada, mas indubitavelmente felizes. E
era isso que fazia cantar o coração de Martha. Começou a
desfazer a bagagem, o que levou muito temPo, devido às
frequentes interrupções. Por fim, entre os quatro, tinham
conseguido mobilar a sala muito satisfatoriamente.
- Hum, está óptimo - declarou Bligh, olhando o resultado do
seu labor. - Amanhã mandarei o Jim ou o Andrew à cidade buscar
alguma coisa mais que nos ocorra. Senhora Fenner, arranja-nos
aLmoço? Estás com fome, pequena?
- Se estou! - exclamou Martha.
- Bem. Gosto de te ver - respondeu o tio, pegando-lhe na
mão. - Pareces-te tanto com a tua mãe, que, à primeira vista
julguei que era ela. Minha filha, não sei que te hei-de dizer.
- Nãome ralhe, tio - Pediu ela. - Eu não podia deixar de
vir.
- Fugiste?
- Fugi. Menti à mãe. É terrível e agora ainda parece pior...


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- Escreveste-lhe?
- Uma vez. Disse-lhe que estava com uma amiga, cujo tio nos
ia levar à Cordilheira Negra.
- Temos de dizer à tua mãe.
- Pois é, mas... mas não há pressa. Que lhe hei-de eu dizer,
meu Deus?
- Martha, é uma visita que me vens fazer?
- Por muito tempo... talvez Para semPre - respondeu Martha
Ann, desviando o olhar.
- Que é que te aborreceu, minha pequena?
- Oh! Tudo...
- Algum desgosto de amor? - perguntou, com um sorriso grave.
- Não. Estou farta dos rapazes e dos homens, que nunca me
deixam em paz. E comecei a odiar a cidade - o baruLho, a pira,
aagitação e a falta de dinheiro. Trabalhava ao mesmo tempo que
frequentava a faculdade, que era eu que pagava. Amealhei coisa
para vir para o Oeste. Tio, só quando cheguei à Cordilheira
Negra é que compreendi o que queria e precisava realmente. Era
mudança, liberdade, solidão; viver pelos meus próprios meios.
- Que idade tens tu, Martha?
- Dezanove anos, desde Fevereiro passado.
- Pareces mais nova. Agora, minha filha, tinha curiosidade
de saber como é que uma rapariguinha universitária quer ajudar
um pobre criador de gado?
- Espere até conhecer esta universitária moderna, tio Nick!
Posso ajudá-lo de mil maneiras. Ora diga-me cá, tio, qual é a
sua situação?
- Bem, tenho melhorado bastante de saúde por aqui, é uma
região alta. Quanto a bens materiais, pequena, tenho muito
poucos. Vim para cá com as últimas mil cabeças de gado que
consegui salvar em Belle Fourche. Devo dizer que antes de
deixar aquilo, me escrevia com um rancheiro que vive junto do
Água Doce; ele convenceu-me a fazer um contrato, com que Jim
Fenner não concorda nada.
- Que espécie de contrato? - inquiriu Martha Ann.
- Eu entrava com o gado e ele juntava-o ao dele, para me
poupar a despesa das instalações.
- E os lucros?
- Seriam divididos em partes iguais. Mas quando eu vim para
aqui, ele fez trapalhice, Eu esperava partes iguais do gado
todo, mas ele diz que só me cabe uma percentagem... do meu
gado, que ele criaria e venderia.
- Que quantidade de gado tem esse homem?
- Bastante menos que eu.
- Acho que ele fez um bom negócio.
- Também eu acho. Mas o que é verdade é que ele agora se
recusa a rever o contrato. Diz que tem o meu acordo por
escrito e que se não aceito, vai para o tribunal.
- Como se chama ele?
- McCall. E o que é mais, agora afirma que também tem
direito a esta quinta. Esteve cá um homem chamado Bozeman, mas
nunca se preocupou em legalizar os seus direitos. Abandonou a
quinta e passou-a a outros, que por sua vez também não a
registaram.
- Tem feito mais alguns gastos com ela?
- Só em melhoramentos.
- Quanto?
- Não sei, mas não muito, por enquanto.
- Então se tiver de sair, não perde muito, pois não?
- Não; mas tenho um fraco pelo lugar. A água é mineral, boa
para mim. Gostaria de cá ficar.
- Então vai ver que consegue - declarou Martha Ann.
O tio Nick esfregou as mãos.


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- Lá de tempos a tempos, tenho un palpite. tive um agora
mesmo.
- Que é, tio? - perguntou Martha, sorrindo.
- Tu vieste dar-me sorte...
- Pois claro; porque é que pensa que eu vim este caminho
todo até cá?
- Creio que foi o Senhor que te enviou. Pensando bem,
Martha, creio que Ele tem estado a recordar os meus anos de
labuta e de dificuldades na pradaria e que me mandou auxílio.
Este homem, o Jim Fenner, é do Arizona. Pôs-se ao meu lado,
não à espera de lucros, mas porque tanto ele como a mulher
simpatizaram comigo. Têm passado muitas dificuldades, desde
que o Jim se aleijou. Não pode arranjar trabalho regularmente
como vaqueiro. Depois, apareceu-me um homem muito habilidoso,
que trabalha só pela cama e mesa. Agora vens tu com as tuas
ideias modernas de universitária sobre a criação de gado!
- Tio, apetece-me dar gritos; vou a correr lá para fora!
E correu mesmo; correu tão depressa que mal via para onde se
encaminhava. À toa, dobrou a esquina do celeiro, indo chocar
com um homem, tão violentamente, que ficou sentada no chão; o
chapéu caiu para o lado e o cabelo espalhou-se-lhe pelo rosto,
como uma cascata. Enquanto apoiava ambas as mãos no solo, a
fim de se levantar, ouviu a pessoa com quem chocara, soltar
uma estranha exclamação.
- Você ocupa o espaço todo ou quê? - inquiriu Martha, em tom
de gracejo.
Afastando o cabelo dos olhos, viu um rapaz alto, largo de
ombros, envergando umas calças de cotim azul. Aquela cara não
lhe era estranha. Viu um tom avermelhado colorir-Lhe as faces
morenas. Os olhos cinzentos pareciam atravessá-la.
- Você! - exclamou ele.
- Quem havia de ser?
- Wyoming Mad! - E levantou as mãos ao céu.
Martha Ann reconheceu-o. Estava um pouco mudado, mais magro,
queimado do sol, mas era aquele mesmo herói, o único que o
fora realmente, na sua viagem, o salvador que tão rudemente
mostrara a sua desaprovação e a quem nunca conseguira esquecer
- Andrew Bonning.
- Você - exclamou num fio de voz, desejando sumir-se pelo
chão abaixo, para ocultar a surpresa.
- Olá, sua caçadora de emoções-. Quem havia de ser?
- Você aqui. no Wyoming. no rancho do tio Nick?
- Evidentemente que sim; não me está a ver?
- Você é o novo empregado. o homem habilidoso. que trabalha
só por cama e mesa?
- O próprio, Wyoming Mad - replicou Bonning, com uma vénia.
Martha Ann pôs-se de pé em frente dele.
- Então está despedido! - gritou.


124 125

VII


Andrew Bonning encostou-se à cancela do curral, vítima de
emoções mistas de surpresa, aborrecimento, e uma admiração
relutante. Assim, aquela rapariguinha independente que durante
as últimas semanas não lhe saíra da cabeça, aparecia de novo,
se possível em condições ainda mais estranhas e complicadas.
Já devia ter calculado que ela era capaz de se surdir por ali
mais dia menos dia.
- Ah! Sim? Com que então, estou despedido? - inquiriu
vagarosamente.
- Não tenha dúvidas, - atirou-lhe ela.
- E quem é que me despede?
- Eu.
Andrew observou a rapariga. Era evidente que estava
furiosa e também surpreendida; tinha o rosto pálido e os
olhos fuzilavam-no. Os oLhos dela eram os mais estranhos e
mais belos que já encontrara numa mulher e, embora se
lembrasse deles, o vê-los agora, à luz clara do sol, anulava a
sua impressão anterior; dardejavam na sua direcção raios duma
luminosidade ambarina. Os lábios eram vermelhos, naquele
momento cerrados, num ar da determinação.
- Quem é você? - perguntou Andrew.
- Sou Martha Ann Dixon. O senhor Bligh é meu tio E vim para
o Oeste para o ajudar a dirigir o rancho.


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A expressão grave de Andrew foi interrompida por uma
gargalhada.
- Menina Martha Ann Dixon - disse. - Isso explica o Modo...
Bem, parece que o nosso destino é estarmos sempre a
reencontrar-nos. Desculpe, você vem dirigir o rancho de Bligh,
ou pôr na rua os empregados que não se renderem aos seus
encantos, num abrir e fechar de olhos?
- Senhor Bonning, o que sei é que não o quero cá no rancho.
- Ah! Sim... Bem, se fosse só por mim, não ficaria; mas
acontece que o senhor Bligh precisa que eu o ajude.
- Não mais do que de qualquer outro empregado, tenho a
certeza.
- Sem dúvida que sim. mais do que qualquer empregado que
você possa arranjar.
- É evidente que tem muito má opinião de si próprio.
- Mesmo que a tivesse, nunca conseguiria ser tão má, como a
que você tem a meu respeito. Posso perguntar-Lhe por que razão
a minha presença no rancho lhe é tão antipática?
- Se soubesse portar-se na linha, nem perguntava.
- Eu seria incapaz de deixar de me portar na linha, menina
Dixom - retorquiu friamente. - E se não está só a armar, com o
seu orgulhozinho e a sua dignidade ofendida, talvez me
explique por que razão diz que não sei portar-me na linha.
- Não sabe. porque me... me ofendeu.
- Não fiz nada que se pareça com isso - declarou Andrew,
calmamente.
- Fez sim! Eu estava-lhe muito grata por me ter salvo
daqueles vagabundos; mas você estragou tudo, tomando-me por
uma vulgar... por uma coisa que eu não sou.
- Menina Dixon, essa sua louca proeza de ir sozinha


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pelas estradas fora, à pesca de excitações, em riscos de ser
apanhada por um qualquer, tornava-a...
- Eu não andava à pesca de excitações - interrompeu ela,
quase banhada em lágrimas. - Nem me deixava apanhar por
ninguém.
- Agora é você que não está a portar-se na linha - tornou
ele, em tom de sarcasmo, A sua irritação lutava com uma emoção
mais profunda.
- Sei portar-me na linha, sei, mas não me interessa prová-lo
a si - retorquiu, com as faces muito vermelhas. Nem me
interessa a sua opinião para nada. Já me importei, mas agora
não. Tanto sei se você é um intrujão, como um ladrão de gado.
- Podia ser, mas não sou. Não Lhe interessa a si, nem a
ninguém daqui, quem eu sou ou deixo de ser. Sou uma pessoa
honesta e resolvi oferecer os meus serviços de graça ao seu
tio, porque eu precisava de uma casa e ele precisava dum
empregado honesto. E é tudo. E você está aborrecida comigo,
porque eu vi logo quem você era.
- Você não viu nada...
- Wy oming Mad, talvez me entenda melhor se eu lhe disser
que não é tão convincente como julga.
Ela empalideceu tanto, que até os lábios perderam a sua cor
vermelha.
- Andrew Bonning, eu pareci-Lhe uma rapariga estouvada e
leviana; foi isso que pensou, não foi?
- Que havia eu de pensar? - retorquiu ele.
- Chamou-me "uma pequena inesquecível", não foi?
- E temo que o seja realmente.
- E porque acha que o sou?
- Porque é bastante bonita e decididamente original -
respondeu ele, com um modo que quase tirava ao que dizia todo
o aspecto de madrigal.


129


- Mas navego com cores falsas?
- Sim; não serão muito verdadeiras. Lembram-me o tipo do
camaleão, menina Dixon; muda de cor... ou de planos, conforme
o indivíduo que pretende impressionar.
- Pensa que estive a namoriscar com aquele rapaz que me
levou a jantar?
- Eu vi-a. E pareceu-me daquelas que andam... depressa.
especialmente com campónios como aquele.
- Pensa... que sou, até talvez, pior? - balbuciou numa
vòzinha sufocada.
- Envergonho-me de confessar que sim. Dei largas à
imaginação. e imagino-a com ele no parque, ou no automóvel.
- Você é como todos esses homens horrorosos - gritou ela,
numa fúria renovada. - Têm uma maneira de ver muito especial,
quando se trata de julgar as mulheres. Que espécie de irmã ou
de amigas teria você?. . Não haverá um único homem capaz de
compreender a ânsia de liberdade duma rapariga, o seu desejo
de correr avemturas. de se encontrar a si própria... de estar
só? Ah, que mundo desgraçado! E pensava eu que me veria livre
de tudo isso. aqui bem longe, no Wyoming!
- Também eu, menina Dixon - disse ele, sentindo acordar em
si uma amargura, que sobrepujou a surpresa.
- Olhe, vá para o diabo! - concluiu ela, com decisão,
virando-lhe as costas.
- Muito agradecido; depois de me despedir, ainda me manda
para o diabo. Não há dúvida de que tem um génio encantador -
respondeu, seguindo-a à volta do celeiro. - Aí vem o seu tio;
vou-Lhe contar.
Era evidente que a menina Dixon queria evitar aquele
encontro.
- Olá, estão aqui? - chamou Bligh - interpondo-lhe o
caminho.


130


- Já travaram conhecimento?. Martha, este é o Andrew.
- Já nos encontrámos antes, tio, infelizmente - interpôs a
rapariga, em tom gelado.
- Hein... O quê?... Então?
- Encontrámo-nos aí em qualquer lado do Nebraska, senhor
Bligh - apressou-se Andrew a explicar. - Prestei-lhe qualquer
insignificante serviço, mas ofendi-a em não aprovar que uma
menina andasse sozinha pela estrada... à cata de homens que
Lhe dessem boleia. Lamento muito. Mas aquilo que é uma proeza
muito estouvada, essa, mesmo para estes tempos de agora. Eu
não tinha nada que a censurar; e disso, peço desculpa. Mas o
mal está feito. e de qualquer maneira, ela não me quer cá no
rancho.
- Eu despedi-o, tio - exclamou Martha. - Espero que concorde
comigo.
- Despediste-o!. Então, mas que é isso, minha pequena? Claro
que eu não ia ficar com um homem que... mas sê razoável.
Concordo com o Andrew que a tua viagem foi uma coisa pouco
sensata. O Senhor deve ter velado por ti, Martha. E quanto ao
Andrew se ir embora. Não gostaria nada que ele fosse, Eu não
me ajeito a lidar com os vaqueiros, Martha; eles bebem e
acabam por deixar o rancho, ao passo que o Andrew é uma pessoa
com quem se pode contar. Ele é diferente, pequena, e há-de se
dar bem com isto; o Jim Fenner aprecia-o muito. Não haverá
maneira de resolver a vossa zanga?
- Não, tio. Mas se o senhor Bonning lhe é assim tão
precioso, eu retiro a minha oposição - respondeu a rapariga,
afastando-se com a cabeça orgulhosamente erguida.
- Bem, Andrew, este é um dia de surpresas - disse o
rancheiro. - É engraçado que se tenham encontrado os dois


131


na estrada e depois outra vez aqui. A rapariguinha parece ser
bastante fogosa.
Qual de vocês teve a culpa disto? De todas as proezas
disparatadas que podia conceber, esta...
-Eu - respondeu Andrew enfaticamente. - Isto duma rapariga
espantosamente bonita caminhar sozinha através do Oeste era a
mais audaciosa e mais discutível. Mostrei-lhe asperamente a
minha desaprovação pela proeza dela; não tinha nada com isso.
Ela parecia ser esperta, inteligente e educada e Bligh
garantia que era de boa família. Mais uma razão para
suspeitar...
- Creio que foi um bocado severo com a pequena. Ela é apenas
uma rapariguinha cheia de vida, como a mãe e a avó foram
também. ßua família é antiga, aquela dos Campbells. Pobres
agora, e talvez seja essa uma das razões que levou Martha a
fugir. Eu também fugi já lá vão trinta anos", E você?
- Bem, eu de alguma coisa fugi, isso não há dúvida.
Provavelmente do meu feitio mórbido.
- Tudo há-de acabar em bem, mas levará o seu tempo. Os
Campbells não perdoam com facilidade. Teve piada essa de ela o
despedir. Bem, mas retirou a oposição e espero que isso arrume
a questão.
Andrew tinha as suas dúvidas a esse respeito. Enquanto se
dirigia para as suas instalações, sentia esfriar aquela
irritação pouco razoável, que dava lugar a um pesado muito
próximo do descontentamento consigo próprio. Respondera às
perguntas da rapariga, que eram bem justificadas; de um modo
frio e que a calocava mal. Qualquer moça com um pouco de amor
próprio se teria ressentido e defendido; ela fizera mais do
que isso. Depois recordando o tom vibrante em que ela
protestara, sentiu-se profundamente envergonhado, e, de
repente, horrorizou-se com o pensamento de que era possível
que se tivesse enganado completamente a seu respeito. Como se
referira injuriosamente aos homens em geral! Aquilo fazia-a
sentir-se muito pouco à vontade. Ela tinha toda a razão; mas
que se podia esperar dos homens? Parecia lhe que ela quase os
convidava a aproximarem-se. De todas as escapadas de que tinha
conhecimento de todas as proezas disparatadas que podia
conceber, esta duma rapariga espantosamente bonita caminhar
sòzinha através do Oeste era a mais audaciosa e mais
discutível.
Ela parecia ser esperta, inteligente e educada e Bligh
garantia que era de boa família. Mais uma razão para suspeitar
dela! Aquela agitação e falta de ponderação próprias do século
vinte, aquela audácia tão típica da época, aquela necessidade
de emoções, que não podia ser satisfeita em casa, aquele
desejo de vaguear do passado, combinado com a moderna obsessão
de encontrar e cativar desconhecidos, tudo isso devia estar no
fundo da fuga de Martha Ann Dixon e era pena, o velho, o Dligh
nunca seria capaz de ler naquela rapariguinha desenvolta.
- Mas a mim não me engana ela. nem por sombras! Mas sabe do
seu ofício; mete a minha irmã e a Connie a um canto. Ao menos
essas faziam o jogo às abertas.
E, com este ultimato à consciência, que começava a querer
enveredar pelo bom caminho, Andrew entrou na velha cabana, que
escolhera para residência. Aquela cabana antiga e abandonada
estava a tornar-se cada vez mais importante para ele. As
iniciais gravadas nos troncos e as marcas desenhadas a carvão
no fogão de pedra, as traves onde se acumulavam anos e anos do
pó da pradaria, os ratos e os esquilos confinantes, que, a
princípio, tinham encarado a sua presença como a de uma
intrusão, os chifres embranquecidos, por cima do rebordo da
chaminé, a velha cama de ramos a um canto, as manchas negras
de fumo na chaminé, as fendas do telhado, ainda porcolmatar -
vastas coisas e tudo na espaçosa sála reconstituía para ele a
atmosfera dos passados dias da fronteira.
Nas horas vagas, Andrew ocupava-se em tornar a cabana mais
habitável. Antes que viesse a neve, tê-la-ia acolhedora, seca
e confortável. Por enquanto não havia senão cobertores e a
sela.


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Imaginava-se durante o Inverno
nas noites escuras em que o vento bramia, sentado junto do
fogo, a olhar as brasas ardentes e a sonhar na sua solidão.
Neste tempo festivo, o seu lugar predilecto era lá fora, na
entrada voltada ao rio e à imensidão púrpura e ouro que se
estendia até às Montanhas Rochosas.
Esta entrada falava tão eloquentemente como a grande sala,
dos acontecimentos ali passados. Não havia dúvida que estava a
precisar dumas boas reparações. Andrew decidiu, contudo, que
os buracos de bala nas traves e na parede, feitos durante uma
guerra entre bandidos e vaqueiros, em tempos idos, não seriam
removidos por quaisquer reparações. O declive do terreno na
direcção do rio obrigava a entrada a ficar mais alta que o
solo e os degraus largos que a ligavam a este, tinham
apodrecido tanto, a ponto de oferecerem agora pouca segurança.
Andrew deixou-se cair numa das velhas e toscas cadeiras e
atirou o chapéu para o lado; a testa e o cabelo estavam
húmidos de suor. Mas, por muito quente que estivesse o sol, à
sombra havia sempre fresco. O gado de Bligh pastava ao longo
do rio; em breve se emtranharia pelas colinas e começaria
então para Andrew a verdadeira cavalgada. Havia cavalos lá
adiante na encosta coberta de forragem. Num repente,
ocorreu-lhe que surgira uma quebra naquele novo e agradável
modo de vida; e não era preciso pensar muito para a encontrar.
Aquela rapariga de olhos de âmbar! Julgava tê-la posto de
parte, com os pensamentos perturbadores que despertara, com
uma desdenhosa decisão. E, afinal, ali estava ela novamente!
- Era Uma rapariguinha tão gentil, tão bonita! - reflectiu,
desgostoso. - Vai fascinar a pradaria toda.
Diabos me levem, gosto dela! E pode ser que ela não tenha a
culpa disso! Olhos e lábios! Nunca esquecerei aqueles olhos.


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Se ela fosse uma rapariga como deve ser, eu... eu...
apaixonava-me por ela, sem remédio.
Andrew admitia essa assustadora possibilidade. Verificava
também que se encontrava num estado de espírito anormal e duma
sensibilidade estranha. Acabava de cortar com os antigos
laços, viajando duma distância longínqua, em que cada légua
parecia ter aliviado a sua dor e o seu azedume e esta grande
pradaria aberta tinha-lhe permitido dar largas à alma; mas
agora, esta nova personalidade parecia estar em conflito com a
antiga.
Enquanto Andrew estava nessas confissões introspectivas, Jim
Fenner entrou coxeando na cabana.
- Onde está, Andrew!
- Venha aqui fora, Jim.
- O Bligh quer que se tragam umas mercadorias da cidade.
Importa-se de me levar lá? Não me fio nesse camião; pregou-me
a partida, da última vez.
- Se há alguém que dê conta dele, sou eu, Jim.
- Bem, gostava de o ver pegar-se aos cavalos com essa
coragem, mas não temos um único cavalo capaz.
- Qual é o preço dum bom cavalo, Jim?
- Uns cinquenta. E isso faz-me lembrar uma coisa; é que ouvi
esse ciclonezinho, que nos entrou pelas portas dentro,
perguntar por cavalos. Não temos um único que seja seguro para
ela, Andrew, e o Bligh não pode comprar um.
- Ele está bastante mal de dinheiro, não está, Jim? -
inquiriu Andrew, com ar pensativo.
- Está mais que mal; mas estou contente com a vinda desta
sobrinha. Ela há-de nos dar novos alentos, Andrew.
- Alento? Se fosse só isso!
- Olhe, eu estava no celeiro, quando você e a Martha tiveram
aquela turra - confidenciou o homem do Arizona.
- Sim? Então ouviu ela despedir-me, não?


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- Bem, creio que sim, e mandá-lo para o diabo.
Andrew, nós simpatizámos logo de princípio um com o outro e
havemos de nos dar sempre bem; talvez, Por isso, eu não
devesse ser demasiado curioso, mas vou arriscar.
Não houve nada entre você e Martha, antes de chegarem ao
Oeste?
- Não... Nunca a tinha visto antes daquela noite na estrada.
Fui dar com ela nas mãos dum vagabundo, a quem dei uma sova.
Encontrámo-nos uma outra vez, depois disso.
- E que aconteceu então?
- Nada. Trocámos poucas palavras, até este último encontro;
mas agora foi um fartão, essa lhe garanto eu.
- Calculo que você tinha uma opinião a modos que pouco
agradável a respeito dela, e que isso a arreliou.
- É verdade.
- Desagradável até que ponto, Bonning?
Andrew abanou a cabeça, como se sentisse relutância em
interrogar-se a si próprio.
- Receio que bastante desagradável, Jim.
- Bem, você sabe o que é esta gente nova do Leste. E
parece-me que a destes tempos é umpouco estouvada. Não há
dúvida que foi uma fraca lembrança a daquela garota, de fugir
de casa e vir Para aqui sozinha.
Andrew assentiu tristemente.
- Mas ela é honesta, Andrew.
- Honesta? - repetiu Andrew rapidamente.
- Quero eu dizer, como deve ser. Por muito estouvada que
tenha sido, ela é uma rapariguinha decente. Sabe "señor"?
A curta afirmação de Fenner aborreceu Amdrew, Pela
insinuação à sua falta de cavalheirismo.
- Jim, tenho a certeza que não Pensei...
- Ainda bem que não - interromPeu Jim, abertamente. - Tenho
a certeza disto, porque a minha mulher,


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a Sue nunca se engana com a pinta duma rapariga, e ela
afeiçoou-se logo a esta pobre garotinha fugida. E eu também. E
o Bligh, ela há-de fazer dele outro homem. Digo-lhe isto,
Andrew, porque quero que você esteja do lado de cá da sebe.
- Obrigado, Jim. E oiça cá, seu veterano, tenho uma coisa
para lhe contar, que me tem estado a pesar no esPírito.
- Ora vamos a isso - respondeu Jim, encostando-se a um
poste, para fitar Andrew com os seus olhos penetrantes.
- Escute. Na noite em que cheguei à cidade, acampei do lado
de fora, na mata - começou rapidamente Andrew. - Fui a pé até
à cidade para comprar comida. Já estava escuro quando voltei
ao meu acampamento. Da estrada, não se via o carro. Quando eu
ia para acender uma fogueira, apareceu um cavaleiro e depois
um homem a pé, que vinha da cidade. Encontraram-se. saíram da
estrada. dirigiram-se para o sítio onde eu estava agachado.
Resumindo, o cavaLeiro era um vaqueiro chamado Texas qualquer
coisa. O outro era um criador de gado e devia dinheiro ao
vaqueiro, por marcar vitelos com a marca dele; o nome desse
homem era McCall. Ele disse ao Texas da recente chegada do
Bligh à pradaria, que o Bligh tinha trazido tanto gado, e que
ele queria que o Texas começasse o que eu compreendi ser um
roubo por grosso. O Texas recusou; concordava em marcar
vitelos como dantes e também em levar uma mensagem de McCall a
um outro vaqueiro, chamado Smoky Reed, que devia arrumar o
Bligh. Ouvi distintamente toda a conversa. Quando o Texas se
afastou a cavalo, o MeCal teve um aParte, que me deu a
entender que ele receava o vaqueiro.
- Não me diga que... - reflectiu Jim pensativamente.
- Esqueci-me de incluir umas observações interessantes


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sobre o xerife Slade. Ele deve receber dinheiro dos
contrabandistas de bebidas alcoólicas e o Texas está a Par
disso.
No outro dia, quando eu vinha para aqui, esse xerife
passou-me busca ao carro. Juntou-se uma boa quantidade de
gente, e eu disse na cara do Slade que, ao que eu sabia, até
ele mesmo podia ser um contrabandista.
- Você háde dar alguma coisa, Andy - retorquiu Jim
secamente. E Andrew compreendeu que Lhe tinha sido feito um
cumprimento maior do que ele Podia calcular. - Bem
está-me a apetecer um cigarrito. Oiça lá, Porque é que não
disse nada ao Bligh desse contrato?
- Fiz tenções, mas pensei que ele já tinha um fardo bem
pesado e não quis aumentá-lo.
- Fez bem. Não dava resultado, falar nisso agora ao patrão.
Nós é que temos da nos encarregar desse assunto.
- Sabe que eu estava com a mania que gostaria de tratar
disso sozinho. É estúPido, claro, mas a verdade é que se me
meteu isso na cabeça.
- Bem, por agora podemos tratar disso juntos. E depois,
vamos a ver.
- Que é que sugere, Jim?
- Vamos aPanhar esses vaqueiros com a boca na botija.
- E depois?
- Acho que uma boa tareia para lhes tirar do corpo a mania
de roubar, não seria má ideia. Claro que nos velhos tempos,
era costume pendurar esses ladrões... Mas agora, o mais que
lhes pode acontecer é ir para a cadeia, e não por muito temPo.
- Hum! Esse vaqueiro do Texas não ia só com uma tareia,
havia de se defender a tiro, Jim. Parece-me que vai ser um
caso sério.
- Bem, se isso mete tiro, é que épior.
- Eu arranjo-me bem com uma carabina.
- Isso é bom, desde que não esteja muito perto deles.
- Terá de me ensinar, Jim. Porque é que diz que depois se
verá como é que se há-de tratar do assunto mais tarde?
- Bem, Andy, se o Bligh Perder muito gado, ou o McCall o
deitar abaixo, e acho que qualquer das duas coisas pode
acontecer, vai levar muito tempo para nos endireitarmos outra
vez. Eu detestaria falhar aqui na Pradaria e por isso havia de
comvencer o Bligh a seguir para a frente. Ele já não é muito
novo e uma desilusão dessas havia de lhe custar.
- Mas como havemos de evitar a ruína, Jim?
- Não podemos; é esse o mal do negócio de gado. Às vezes, a
boa Pastagem e a boa água não são melhores que uma seca.
Porque hão-de ser roubados todos os vitelos; não é fácil
descobrir o rasto de vitelos roubados. É impossível, a não ser
que se apanhe o ladrão com o ferro de marcar.
- Acredita que se possa desenvolver aqui um negócio de gado
lucrativo?
- Lucrativo? Co'os diabos, peLo menos vinte Por cento dava.
- Como conseguiria desenvolver este ramcho, para tirar uma
percentagem tão grande de lucro?
- Bem, meu rapaz, era preciso ter umas coroas... O gado
agora está muito por baixo e pode-se comprá-lo barato. Se o
Bligh pudesse renovar o gado, digamos com uma manada mista de
duzentas cabeças, e arranjar uns vaqueiros do Arizona para
trabalhar aqui na pradaria, ora, duplicaria o seu dinheiro,
logo que os Preços subissem.
- Então a questão é essa? O Bligh está sem meios para
comprar gado. E não Podia pedir emprestado?


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- Os Bancos não emprestam dinheiro, senão com grandes
garantias.
- E porquê contratar vaqueiros do Arizona?
- Bem, eles de facto não são meliores que os de Wyoming, mas
haviam de se sentir espicaçados, haviam de ser piores que uma
matilha de cães de caça. Um dos meus velhos truques era lançar
o pessoal dum rancho contra o dum rancho rival. Fui capataz
nalguns grandes ranchos. Uma vez dei uma ensinadela aos do
Hash Knife. Ainda tenho comigo algum chumbo deles.
- que tal eram eles?
- Os menores cavaleiros, atiradores, e, às vezes, os maiores
ladrões do Arizona.
- Um dia destes há-de me contar isso tudo. Bem, Jim, então é
a falta de capital que está a prejudicar o Patrão. e que nos
impede ter um emprego de categoria?
- Ó sim, Andy, mas que se há-de fazer? Estamos todos
arruinados, e o melhor que podemos esPerar é arranjar o
suficiente para vivermos nós e o Bligh. Andy, se quisermos
salário não teríamos emprego nenhum.
- Jim! Também está a trabalhar só em troca do sustento, como
eu?
- Claro que sim e chega-me bem. Digo-lhe, meu rapaz, que
pela minha parte não me importo nada, mas tenho pena de não
poder dar à Sue aquelas coisas bonitas, de que todas as
mulheres gostam.
- Espere aí um bocadinho, Jim - disse Andrew, levado por um
impulso. Correu para dentro e voltou com a carteira. - Tenho
algum dinheiro e vou-lhe emprestar alguma coisa.
- Não senhor!
- Vou sim. Esta messada toda faz-me aflição. Aí tem.
duzentos dólares - Acabava por dar cabo dele na cidade.


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- E ainda fico com algum, Jim. Quero comprar madeira; umas
ferramentas e mais umas coisas para arranjar aqui a minha
casa.
Jim Fenner pegou nas notas, enquanto fitava Andrew, com um
clarão no oLhar.
- Você não sabe quem eu sou, meu rapaz.
- Mas de qualquer maneira, vou jogar em si.
Jim dobrou as notas e meteu-as com cuidado num bolso
interior do colete.
- Bem, em toda a minha vida encontrei duas espécies de
homens. Uma das espécies faz que a gente continui sempre a
lutar e a ter esperança. Vamos jantar; ouvi tocar a sineta.
- Eu espero e janto depois na cidade - respondeu. Andrew,
precipitadamente. - Quando é que está pronto?
- Num minuto. Veja se pode pôr esse camião a andar.
- Está bem.
Meia hora mais tarde, Andrew conduziu o camião para junto da
casa e tocou a busina. Jim e a mulher saíram com ar radiante,
seguidos de Bligh e da sobrinha. Bastou a Andrew tornar a
vê-la, para compreender Por que razão recusara jantar, quando
estava cheio de fome. Martha tinha trocado a blusa cinzenta
por uma camisa branca e fizera qualquer coisa ao cabelo, que
estava fofo e brilhava como ouro.
- Tudo a postos - cantarolou Andrew. - Senhora Fenner, não
seria melhor vir com o Jim? Não me responsabilizo por ele.
- Mas responsabilizo-me eu - declarou Jim, entrando para o
camião.
Andrew obedeceu então a um impulso repentino:
- Menina Dixon, há lugar para si; não quer vir? Vai ver que
acha a minha maneira de conduzir emocionante.


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- Faria tudo neste mundo por uma coisa emocionante, senhor
Bonning, como sabe. excepto ir consigo - replicou friamente.
- Bem, Sue, é melhor esperares por nós - disse Jim.
- Há anos que não faço isso, mas esta noite vou esperar -
retorquiu a esposa, com um ar alegre e misterioso.
- Que quer que lhe traga, senhor Bligh? - inquiriu Andrew em
tom despreocuPado.
- O Jim tem a lista.
- Não se atreva a esquecer-se da minha - observou Martha,
irritante. - Vá a um armazém e pergunte o preço das coisas que
eu quero; está tudo bem exPlicado. Se o preço for mais do que
quinze dólares risque os artigos marcados. É capaz de se
lembrar de todas estas instruções?
- Andrew, você ouviu-as e pode refrescar-me a memória.
- Se nos esquecermos ou Perdermos a lista, compramos
caramelos, pastilhas elásticas, rebuçados, umas revistas de
cinema e uma grafonola com uma dúzia de discos de jazz -
gracejou Andrew.
Martha Dixon não tomou parte na gargalhada geral, mas fitou
Andrew com um olhar incompreensível. Tanto podia gostar muito
dele, como odiá-lo, a julgar Pelo olhar que lhe lançou.
- O senhor Bonning vai ficar surpreendido quando vir que eu
também sei fazer as minhas roupas - disse a rapariga.


Andrew teve uma tarde atarefada e absorvente na cidade. Com
as compras de Jim e com a natureza volumosa das suas, tinham
uma boa carga quando voltaram. Partindo depois da ceia,
levaram algumas horas na viagem de regresso, mas Jim tornou-a
mais curta, retomando os seus ensinamentos ao novato. Andrew
ouviu com atenção tudo o que ele Lhe disse. Se ainda existiam
alguns assuntos sobre a pradaria, a que Jim não se tivesse
referido, Andrew não podia imaginar quais fossem.
- Estou muito satisfeito com os dois cavalos que comprou -
dizia Jim em dado momento. - Esse baio tem boas qualidades e o
malhado é fresco. Parece-me que Lhe vai dar que fazer no
rancho. Na Pradaria, os cavalos são muito importantes. E
quando estiver a cavalo, vá praticando com o laço; não vai
mal, mas pratique. Lace tudo. E disPare contra todos os
coelhos e lobos que encontrar. Aprenda a ver os rastos no
chão. Observando as pegadas do seu cavalo e dos outros do
rancho, recentes ou antigas, Poderá reconhecer oútras na
Pradaria. Por exemPlo: você vê o rasto que vai deixando e
observa-o bem. Depois outro mais antigo; vê o que aconteceu a
esse: um pouco de poeira por cima, ou água, ou talvez um outro
rasto em cima dele. Você sabe exactamente quando é que eles
foram feitos e se os fixar na memória, em breve será um bom
descobridor de pistas. Não deixe escapar nada, Andrew. use os
seus olhos. Você tem uns binóculos; faça uso deles semPre que
tiver dúvidas ou estiver muito longe de qualquer coisa. Quando
Estiver àprocura de cavaleiros desconhecidos, mantenha-se
escondido. Nos arbustos ou árvores, atrás das elevações ou à
beira dos desfiladeiros. Se cavalgar em esPaços abertos,
faça-o audaciosamente, como se não visse coisa nenhuma. Quando
o gado começar a ir para as colinas - o que não há-de tardar
muito - pode sair a cavalo ao amanhecer, procurar um
esconderijo e pôr-se à espreita. Eu estarei consigo parte do
tempo, e digo-Lhe como há-de olhar e o que vê, mas há-de estar
muito tempo sozinho. E isso háde acontecer quando você estiver
só. Esses dois ladrões do McCall hão-de ser finórios e de
ficar escondidos. Mas muitas vezes hão-de levar uma vaca, com
a cria, do terreno aberto para um sitio escuso.


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Espere até ouvir um tiro e veja se vê fumo.
E quando der com um deles, salte-Lhe em cima com a carabina
e mande-o pôr as mãos no ar e virar-se de costas Para si.
DePois desarme-o e traga-o ao patrão.


Andrew levantou-se com a aurora. Quantos anos desperdiçara,
a dormir, as horas magníficas que iam desde o romper do dia
até ao nascer do sol! A neblina suave pairando sobre o rio, o
restolhar dos patos, a escuridão da Pradaria, cedendo lugar a
uma claridade mágica; os espectros das montanhas que se iam
tornando mais nítidos - estas novas facetas da manhã
absorviam-no. Depois houve uma mudança do cinzento para o
rosa, e, enfim, a glória do astro-rei.
Descarregou o camião e levou as suas compras para dentro da
velha cabana. Descobriu em si uma certa amizade pelas
ferramentas, assim como alguma falta de jeito para as manejar,
a não ser quando se tratava de consertos em automóveis.
Nas manhãs e noites que se seguiram, trabalhou na agradável
tarefa de tornar a sua nova morada seca e aquecida e menos
desolada ao olhar. Mas não comprou quaisquer objectos de luxo;
o objectivo de Andrew parecia ser uma simplicidade austera e
Primitiva.
Como comia na cozinha com Jim e estava ausente de casa,
excepto à hora das refeições, raramente via Martha Anm Dixon,
a qual parecia, todavia, omnipresente. Era ela que enchia a
vida do tio e do casal do Arizona, fazendo-os despertar para a
alegria. Andrew observava-a de longe e, às vezes, com grande
confusão sua, era apanhado em flagrante. Contudo, perguntava a
si próPrio como seria possível que ela o apanhasse, se não
estivesse igualmente a reparar nele. Era obrigado a escutar a
conversa de Jim sobre o interesse dela por cavalos, pelo
rancho, por tudo e por todos, com excepção de Andrew Bonning.
Ao domingo, havia mais visitas para Bligh do que nunca até
ali, desde que este chegara ao Água Doce. Algumas eram de
vaqueiros, todos janotas nos seus fatos domingueiros, com as
botas tão lustrosas como os cabelos. Andrew olhava-os com uma
vaga inquietação.
Um dia, tarde já avançada, quando regressava da pradaria,
viu, ao passar por um vale, largo mas Pouco profundo, um
cavalo selado, mas sem cavaleiro, subindo a galope a encosta
fronteira, em direcção ao rancho. A distância era demasiado
grande para lhe ser possível reconhecer o cavalo, que
desapareceu antes que tivesse oportunidade de usar os
binóculos.
Andrew desceu rapidamente e não se tinha adiantado muito ao
longo da margem, quando viu na areia um objecto brilhante.
Incitando o cavalo, avançou para o leito seco do rio, a fim de
verificar os seus receios, Foi encontrar Martha Dixon sentada
na areia, com o rosto pálido e contraído de dor, e com as mãos
trémulas tentando desatar uma das botas. Andrew saltou da
montada e correu para o lado dela.
- Menina Dixon, deu uma queda? - perguntou ansiosamente.
- Dei - respondeu ela, sem levantar os olhos.
- Vi o seu cavalo a galopar na direcção da casa. Foi ele que
a cuspiu da sela?
- Esse carga de ossos tropeçou na areia.
- Espero que não se tenha magoado muito - continuou Andrew
solicitamente. - Tem sangue na face.
- É rouge. Detesto fazer-lhe este pedido, senhor Bonning.
mas faça-me o favor vá à casa e mande o Jim ou o meu tio.


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- Que tolice. Ia levar esse temPo todo, enquanto você está
aí a sofrer? Deixe cá ver. Parece-me que tem um tornozelo
torcido. - Andrew ajoelhou e pôs suavemente as mãos na bota
que ela tinha meio desatada.
- Obrigada. não se incomode - disse ela, fugindo com o pé. -
Eu posso tirá-la. Vá buscar ajuda.
- Mas eu posso ajudá-la, menina Dixon - disse ele, fitando o
rosto franzido, iluminado por uns olhos escurecidos pela dor.
- Não quero que me ajude.
- Mas é apenas uma questão de vulgar cortesia.
- Preferia ficar aqui e morrer, a deixar que você me
ajudasse - disse ela, voltando o rosto. Ele não pôde deixar de
notar, antes que ela o fizesse, que os lábios lhe tremiam.
- Já vi que sim. Mas apesar disso não vou Permitir que se
sacrifique. Tire as mãos. - Soltando-as, desatou o resto da
bota, mas, a despeito do cuidado com que a descalçou,
magoou-a.
- Ai! Seu... bruto... O tipo varonil, forte e dominador, não
é?
- O seu tornozelo está inchado. Aconselho-a a não tentar
andar sobre ele.
- O senhor parece estar bem informado sobre a forma dos
tornozelos de cada um, senhor Bonning.
- Pratiquei atletismo na faculdade - respondeu ele
secamente.
Esforçando-se por se pôr de pé, ela tentou dar um passo com
o membro magoado, mas cambaleou e, com um gemido, caiu no solo
arenoso.
- Menina teimosa; eu bem a avisei - exclamou, com pena dela,
mas ainda mais irritado.
- Vá buscar... alguém - pediu ela em voz débil.
- Não vou fazer nada disso. Vou mas é levá-la para casa.


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- Você não faz isso.
- Pois então veja! - E, dizendo isto, puxou o cavalo para
junto duma pequena elevação do terreno, donde podia facilmente
subir para a sela. Depois voltou para junto da rapariga.
- Não se atreva a tocar-me - irrompeu ela.
- Devia achar isto tudo muito emocionante, Martha Dixon -
respondeu com um riso turvo.
- Você é mesmo bruto, não é?
Apesar de ela se debater, levantou-a do chão; ela começou a
espernear, mas, subitamente, imobilizou-se, com um grito.
- É bem feito. Esteja quieta! - E abanou-a levemente. - Quem
nos visse, havia de julgar que era eu que queria tomá-la nos
meus braços. Pois bem, sossegue o seu espiritozinho idiota: eu
não quero.
- Não, porque imagina que eu gostaria que o fizesse. e que
fui eu que planeei tudo isto - retorquiu ela.
- Nunca dou largas à imaginação - respondeu friamente, e,
aproximando-se do cavalo, acalmou-o com algumas palavras,
ditas em tom severo, e montou. - Esqueci-me da sua bota; posso
vir buscá-la mais tarde. Pronto. Está bem instalada?
- Nunca me senti tão mal. nos braços dum homem - respondeu,
evitando o olhar dele.
- Escusa de me recordar que isso para si é uma coisa
trivial.
Segurava-a diante de si, com o braço esquerdo à volta dela,
a cabeça encostada ao seu ombro. Tinha o braço direito por
baixo dos joelhos dela, esforçando-se por segurar também as
rédeas com a mão direita. Contemplou o rosto pálido encostado
ao seu braço, consciente do seu encanto perigoso. Ela estava a
olhá-lo com uma expressão que nenhum homem seria capaz de
interpretar. Mas era uma expressão que


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o fazia tremer. Os olhos dela eram do mais puro âmbar, grandes
e luminosos, cor de amor-perfeito acastanhado ou de topázio.
Mas, mais do que a sua beleza, era a sua expressão que prendia
Andrew. Em tempos passados, verificara ser susceptível aos
encantos femininos. Reconhecia agora os mesmos sintomas, em
proporções aumentadas, e resolveu que não iria permitir que
lhe tornasse a suceder a mesma coisa.
- Eu. odeio-o - arquejou ela.
- Isso é bem evidente - respondeu, inclinando a cabeça. - E
intriga-me. Parece que já é azar meu, andar sempre a salvá-la,
sem receber agradecimentos pelos meus esforços. Se procedesse
na forma do costume, estaria a aproveitar o momento. para sua
peculiar satisfação.
- Você é simplesmente horroroso.
- Porquê? Por Lhe dizer a verdade? Martha Dixon
não há dúvida que é a criatura mais bonita que já viu a luz do
sol. E faz-me raiva que uma pessoa tão encantadora, tão
fresca, jovem e inteligente, que tanta alegria dá a pessoas
como o seu tio, ao Jim e a Sue, seja tão falsa para eles. e
para toda a gente.
- Eu não sou... falsa - gritou.
- É sim, se não for uma levianazinha desavergonhada. Não a
vi eu descer a rua ao volante do carro daquele rapaz? Não a vi
eu ao jantar, toda embonecada, a namoriscar descaradamente com
ele?
- Pois viu. Mas eu fiz isso, porque era o que você esperava
de mim. Se tivesse metade da esperteza que pensa ter... teria
sabido a razão porque o fiz. Você tinha-me magoado e eu estava
irritada. Procedi de acordo com a opi nião que tinha de mim. e
fui suficientemente estúpida para querer fazer-lhe ciúmes.
- O que aí vai! Você vira a casaca, conforme a ocasião.
Martha, não tem diplomacia nenhuma. Fia-se muito na sua beleza


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e tem razão para ísso. Mas a mim não me leva, com essas
palavrinhas doces.
- Não o quero para nada - exclamou ela, esforçando-se por se
pôr direita.
- Queria dizer não me engana, querida - tornou ele,
trocista.
- Menina Dixon, para si, se não se importa.
- E o que era para o rapaz do hotel?
- Um amorzinho, naturalmente, se é que tem alguma coisa com
isso.
- Pfff!. Você é tão boa como a Connie. ou ainda pior, porque
essa não passava duma interesseira. Você fugiu de casa, duma
mãe carinhosa. Quer ir para qualquer lado onde ninguém a
conheça, nem se preocupe com o que faz. E apanha um simplório
daqueles. guia o carro dele para que possa abraçá-la melhor.
emboneca-se para ele, que não passa dum estranho. janta com
ele... sai com ele. deixa que ele a beije... deixa que...
- Chega - ordenou ela, furiosa. - Não admito que ninguém me
fale desse modo! Quem quer que fosse essa sua Connie, estou
convencida de que não Lhe deu mais do que você merecia.
- Acertou em cheio - volveu ele. - Lamento ter falado assim.
Não tenho o direito de lhe perguntar, mas. saiu com ele
naquela noite?
- Não!
- Deixou que ele a beijasse?
- Não!
- Martha, você está a mentir - disse suavemente - E só para
lho provar, aposto que até eu posso beijá-la, sem novidade.
Levado por um impulso irreflectido, inclinou o rosto para o
dela. Não pensara realmente em levar a cabo a ameaça; mas, sob
o encantamento daquelas pupilas dilatadas e daqueles lábios


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rubros e suaves, tão próximos dos seus, foi-lhe impossível
dominar-se. Pousou os lábios nos dela, nun beijo que começou
num desafio a ela e no desprezo por si próprio, mas que se
prolongou em êxtase. Bruscamente, endireitou-se, atónito pela
sua acção, envergonhado de ter revelado os seus verdadeiros
sentimentos, quando só desejava mostrar desprezo.
- Hei-de... matá-lo! - murmurou ela, asperamente.
- "O Inferno não tem fúria" Martha, era o que a esperava.
Mas não leve a mal. Bem, cá estamos à vista da casa; o seu tio
já nos vê. E lá está o seu cavalo amarrado à sebe.
- Jim! Sue! Venham cá depressa - gritou Bligh, quando Andrew
se deteve. -i Meu Deus, rapaz, não me diga que ela está muito
magoada!
- Deu uma queda e torceu o tornozelo. Mas há-de ir ao baile
para a semana que vem. Aí a tem. Agora, com cui dado. Ela é um
fardozinho pesadote.
Enquanto a depositava naqueles braços ansiosos, Andrew olhou
uma última vez para o seu rosto branco e tenso e para os
grandes olhos, escurecidos pela emoção ao desviarem-se dos
seus. Durante todo o caminho para o vale, onde foi buscar a
bota dela, foi atormentado por eles.


150

VIII


Os treinos de futebol na faculdade tinham sido suaves,
comparados aos esforços violentos que o trabalho do rancho
exigia de Andrew.
Tinha de cavar buracos para os postes, construir cercas,
reparar celeiros e currais, conduzir a água das colinas e
inumeráveis tarefas ocasionais, além do trabalho na cabana.
Passava horas a cavalo e fazia uma ou outra viagem à cidade no
camião ou no carro. A sua lida começava ao amanhecer e
terminava muito depois de ter escurecido.
Durante as últimas semanas tivera as mãos cheias de bolhas,
o rosto queimado do sol e os músculos doridos. O seu peso era
de cento e setenta libras, consideravelmente menos do que lhe
tinham permitido os seus treinos de futebol. trabalho duro e
contínuo com as mãos era algo de inteiramente novo para
Andrew. Ao princípio, não se poderia negar um puro mal-estar
físico, depois uma dor real e uma fadiga que o fazia cair na
cama, pesado como um cepo. A despeito daquele esforço, a que
não estava habi tuado, ele permanecia alegre e, segundo todas
as aparências, indiferente às dificuldades.
Mas o que mais o pôs à prova, foi o cavalgar na pra daria,
todo o dia e sempre sob um sol escaldante, enfrentando o pó, o
granizo uu a chuva. Com a chegada do tempo mais quente dos
meados de Verão, Andrew tinha de perseguir o gado


150 151


pelas colinas; às vezes, Jim ia com ele e passavam a noite ao
relento, entre os cedros ou sob as estrelas. E a primeira
semana de tortura na sela, fez perder a Andrew Bonning toda a
moleza e indolência e grande parte do seu Espírito mórbido.
Acolhera a prova de bom grado e nem por un momento recuara.
Pressentira, logo de início, uma influência fortemente salutar
naquele contacto com os elementos. naquele impulso do espírito
e de corpo, disposto a persistir, sem pensar muito, convencido
de que algum dia a prova estaria terminada.
Com o tempo, Andrew tornou-se rijo, forte e paciente. Chegou
o dia em que teve a consciência de que alcançara
imperceptìvelmente a alegria na acção e no trabalho. A
felicidade continuava arredada dele; frequentemente
pairava-lhe sobre o espírito, como um manto, uma estranha
melancolia, e, por vezes, o seu antigo eu, amargo e
sarcástico, ressurgia, embora cada vez mais raramente. Martha
Dixon ainda conseguia despertar aquelas tendências quase
esquecidas, dos modos mais desconcertantes e humilhantes.
Quando estava na pradaria, onde não podia vê-la andar dum lado
para o outro, a plantar flores, a dar de comer aos animais que
adoptara como seus favoritos; a passear a cavalo, a fazer
todas as coisas possiveis e imagináveis, parando,
inclusivamente, como uma estátua, a observar o pôr do sol -
então ele parecia libertar-se do seu antigo espírito sombrio.
Não havia, além disso, lugar para este, ao ar livre. Lá
estavam os elementos a combater, o instante hereditário da
acção sem introspecção. Martha Dixon era tanto do Oeste como
ele próprio, e duvidava da sua completa assimilação. No
entanto, ela parecia a rapariga mais alegre e feliz que jamais
vira. Aos domingos, os vaqueiros fluiam ali, cada vez em maior
número. Andrew era forçado a admitir que ela dera conta da
situação de modo muito diferente do que ele previra.

152


Ele sabia que fora o Oeste que o chamara; contudo, ainda não
se apercebera ddessa realidade. Era tão boa que não lhe
parecia verdadeira. Esperava encontrar trabalho. Vaguear de
lugar para lugar, até que se instalasse, mas adaptara-se de
tal maneira, amar o ar livre, a solidão e, em especial, a
batalha travada pelo homem para arrancar um lar e o sustento à
natureza selvagem - isto fora para ele uma revelação. E por
isto se deixaria absorver completamente.
Esta pradaria tinha outrora sido pasto de milhões de
búfalos. Não podia ser cultivada, senão ao longo das correntes
de água e á volta das nascentes. Podia fornecer ali mento para
gado e cavalos, os quais, ele calculava, dariam sempre lucro
ao homem. Nunca haveria mudanças radicais naquelas extensões
planas, naquelas cordilheiras ondulantes, nas colinas negras e
cinzentas, no imenso vale arroxeado, coberto de salvas e erva,
na barreira de cumes brancos das montanhas. Que inexplicável
conforto lhe advinha de tal certeza.
- Andy, para onde foste ontem? - inquiriu Fenner uma manhã.
- Para o sul. Ao longo das colinas até Stome Tank.
- Não admira que... não me tenha encontrado consigo. Viu,
com certeza algum do nosso gado?
- Sim, bastante. Marquei três vitelos. As vacas estão a
tornar-se bravas. Vi muito gado do Triângulo X e do Barra
Cruzada.
- Topou alguns cavaleiros?
- Não, nem encontrei rastos deles.
- Bem, eu tive mais sorte, ou menos, conforme virmos as
coisas. Cavalguei para oeste, em direcção ao rio que corre por
alí abaixo, cerca de dez milhas, e depois para o extremo
ocidental das Colinas do Antílope.


153


Tinha já andado perto de trinta milhas e encontrei bem umas
duas mil cabeças de gado. Localizei três vacas mortas,
observando os bútios. Dão-nos boas indicações, Andy, mas é
preciso ter bons olhos.
- Vacas mortas? - repetiu Andrew. - Mortas de quê?
- Chumbo, meu rapaz, por que esperava que fosse Extraí uma
das balas; quarenta e cinco, creio eu. Dei-a ao patrão. Ele
foi aos arames. Tem andado irritado com o McCall, sempre atrás
dele.
- Já começou, então, Jim?
- Começou? Já começou mas foi há semanas, vaqueiro. Aposto
que já perdemos uns cem vitelos. E isso quer dizer que
perdemos outras tantas vacas.
- Duzentas cabeças! - exclamou Andrew impressionado com. o
cálculo.
- Bem, a região é muito extensa. O gado anda todo espalhado
por aí, como o dos outros ranchos. Não podíamos trazê-lo
debaixo de olho, nem com uma dúzia de cavaleiros. Descobri o
sítio onde algum finório enterrou as cinzas da fogueira que
fez para marcar os vitelos. Segui-lhe a pista durante meia
milha, mas depois perdi-a. Desconfio que ele amarrou os
vitelos entre os arbustos e os levou quando escureceu.
- Para onde os teria levado?
- Não faço ideia. Talvez para lá do rio ou para algum
desfiladeiro onde estejam vacas com a mesma marca ou
possivelmente para algum sítio afastado da pradaria. Não
podemos fazer nada, a não ser que a gente o apanhe em
flagrante. E se há mais do que um a trabalhar...
- Dê-me a posição deles, Jim, qualquer indicação, que me
possa orientar - disse Andrew, impaciente.
- Bom, vá direito ao lado ocidental das Colinas do
Antílope, aí por esses vales acima. Tenho a impressão de que
havemos de descobrir alguma coisa ali para o sul. Mas ainda é
um bocado longe; terá de passar a noite toda fora.
- Com prazer! Quer vir?
- Hoje não posso; talvez vá ter consigo amanhã. Ande com os
olhos bem abertos, Bonning. Tem de ver primeiro esses homens e
apanhá-los. Senão... bem, podia não voltar mais... A Primavera
passada, houve dois vaqueiros que foram mortos a tiro e um
deles nnnca mais apareceu. Quem ficou com as culpas foram os
bandidos, mas eu duvido muito.
- Você parece-me esperto. Eu não o devia deixar ir sozinho,
mas o patrão precisa cá de mim.
- Não ça preocupe, Jim, eu serei cuidadoso - respondeu
Andrew, e, ao voltar-se para a cozinha, viu Martha Dixon
parada à porta. Qualquer coisa nos olhos dela lhe disse que
ela escutara as palavras de Jim, o que agradou a Andrew. Os
seus olhos maravilhosos tinham muitas vezes troçado dele, mas
ficou-lhe a certeza de que agora lia neles uma certa apreensão
- Bom dia. A senhora Sue está? Não deixava de me fazer geito
qualquer coisa que comer - disse Andrew, com ar desembaraçado,
aproximando-se da rapariga.
- Está a fazer limpezas.
Andrew reparoú então que Martha tinha as mangas arregaçadas
e as mãos cheias de farinha. Trazia um avental colorido, que
não encobria totalmente a sua bonita figura.
Um bronzeado doirado substituía agora o queimado do rosto e
o cabelo louro formava ondas rebeldes. Não podia olhar a sua
boca bem desenhada, sem se lembrar do beijo que roubara, e que
o deixara envergonhado e confuso.
- Que está a fazer? - perguntou.
- A amassar farinha.


154 155


- Farinha do diabo? - disse, sorrindo.
- Não é capaz de estar ao pé de mim, sem vir logo com as
suas observações desagradáveis?
- Você compreende-me mal, Martha Dixon, como de costume.
Claro que fiquei surpreendido de a ver com as mãos sujas da
farinha, mas não quis ser desagradável. Pelo contrário, até
estava a tentar fazer espírito. Veio-me à cabeça que você há-
de dar uma deliciosa mulherzinha para algum vaqueiro.
talvez...
- É verdade! - retorquiu em ar de troça. Mas o rubor
coloriu-lhe as faces e o pescoço.
- Seria tão amável que me arranjasse umas sanduiches? -
perguntou ele.
- Certamente -- respondeu, entrando na cozinha.
Andrew entrou também e sentou-se. Martha não lhe prestava
atenção, e ele observava-a em silêncio, certo duma única coisa
que, decìdidamente, era sedutor olhar para ela. Ele mesmo
promet a si próprio não mais lhe dizer coisas desagradáveis.
Daí a pouco, ela voltou-se e. entregou-lhe um embrulho
pequeno, embrulhado em papel.
- Obrigado - disse, levantando-se e fazendo menção da sair.
Mas não saiu. - Como está o seu tornozelo?
- Muito bem.
- Suficientemente bem para dançar... no "rodeo"?
- Ah!... sím. - Parecia desinteressada e a ausência. da sua
vivacidade e agitação habituais, impressionou profundamente
Andrew. E, contudo, admitia a sua falta de coerência. Era
certamente ridículo que discordasse dela, duvidasse dela e a
insultasse e no fim ficasse admirado por ela não proceder,
como se a sua companhia lhe fosse aprazível.
- Se eu for, dança comigo? - perguntou, calmo e
despreocupado na aparência, mas cheio de receio e incertezas.


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- Você dança? - inquiriu ela mostrando-se muito
surpreendida.
- Claro que danço.
- Julguei que achasse imoral dançar.
- Toma-me por algum moralista bota-de-elástico, ou quê?
- Tomo-o por um puritano da época vitoriana.
- Bem, sempre é melhor do que ser um dos inúteis de agora.
Ainda não disse se dançava comigo?
- Não.
- Está bem. foi só por perguntar - respondeu
desajeitadamente; e saiu. O seu pedido cordial e espontâneo
fora rejeitado, o que o magoava. Contudo, por qualquer razão
oculta, que ele não podia compreender, sentia-se satisfeito
por ter dado aquele passo.
Quando saiu do curral com o cavalo, alguns momentos mais
tarde, olhou para a casa e teve a impressão de que a vira
espreitar por detrás da cortina da janela. Era um procedimento
curioso nela, que o desprezava tão cordialmente; ficou a
cogitar naquilo. Talvez ela sentisse apenas curiosidade pela
viagem - da qual ele podia não regressar! Aquilo fê-lo gritar
para Jim, que viera para fora com Bligh.
- Eh; Jim, devo estar de volta amanhã à noite. a não ser que
aconteça alguma coisa inesperada.
Naquele momemto, teve o impulso gaiato de ficar mais uma
noite fora, só para assustar Martha Dixon. Duvidava, todavia,
que ela chegasse mesmo a notar a sua ausência. Montou a cavalo
e dirigiu-se para oeste.
Tomou o caminho do rio, que serpenteava por entre os álamos.
Aprendera, havia muito a conhecer o seu cavalo e cada vez
gostava mais dele. Era um baio com malhas e listas brancas e
AndrEw mudara-lhe o nome vaqueiro de "Slats" para Zebra.


157


Cedo descobrira que Zebra era rápido, incansável e vivo, sendo
dócil para aqueles que o tratavam bem.
Conforme avançava, os seus pensamentos sobre a rapariga e a
atracção estranha que sentia por ela, dava gradualmente lugar
a coisas mais tangíveis, - o seu cavalo, o rio, a fragrância
da selva, a subida para as Colinas do Antílope e a procura
vigilante de vultos em movimento. Coelhos, lobos da pradaria e
veados atravessavam o seu campo visual. A fascinação
absorvente duma expedição a cavalo como aquela e a sua intensa
vontade de praticar o que aprendera do vaqueiro do Arizona,
faziam que, para Andrew, as horas parecessem voar. Em primeiro
lugar vinha-Lhe a sensaçãoie grandeza de liberdade, depois a
força tremenda da pradaria, como um sortilégio. Esse cavalo,
esta pradaria selvagem eram o seu ofício; e sempre, até ali,
ele havia falhado. Agora, estava no seu elemento, e tinha de
vencer.
Pelo meio da tarde Andrew atingira as colinas do extremo
ocidental da pradaria. Em baixo, pelo meio destas, largas e
separadas entre rochedos e cedros, corriam vales quase tão
Profundos como desfiladeiros. Estavam secos como pó e quentes.
a despeito da brisa da montanha. Bem para diante nestes vales,
a água formava charcos nos leitos rochosos das correntes. Os
trilhos das reses cruzavam os trilhos de veados, que
ziguezagueavam por entre os arbustos, encostas acima. Nas
passagens e clareiras, a erva, embranquecida pela acção do
sol, dava pelos joelhos, enquanto a sombra das árvores se
conservava ainda verde. O ar era fragante, uma mistura de
salva seca, cedros secos e terra quente.
Andrew penetrava numaclareira coberta de ervas, onde um
fiozinho de água deslizava por uma ravina pouco profunda,


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formando pequenos charcos aqui e ali. Tirou a sela ao cavalo e
amarrou-lhe as patas. Pendurou o cantil e o embrulho da comìda
num ramo e, carabina em punho, meteu-se a caminho.
Ocorreu-Lhe que estava a adoptar umas precauções quase
ridículas. Mas como fora essa a ordem que dera a si próprio,
seguiu-a, espreitando, escutando, cheirando e palpando -
fazendo uso de todas as faculdades das quais aprendera a
servir-se. Sempre que chegava a uma mancha de areia ou terra
nua ou a um caminho poeirento, procurava encontrar pegadas. E
os rastos antigos, que aprendera a conhecer à primeira vista,
não o interessavam. O mesmo não sucedia, porém, com os sinais
frescos e em breve ouviu restolhar nos arbustos, berros de
vitelos e mugidos de vacas. Como a tarde estava calma,
sentava-se de vez Em quando à escuta, com a carabina na mão.
Os vários rastos de cavalos que encontrou eram antigos e
pertenciam a animais desferrados.
De tempos a tempos, erguia-se para avançar um pouco mais
pelo vale, que se tornava mais selvagem e agreste, conforme
ele ia progredindo. Surpreendia-o verificar como era bravo o
gado. Se chegava junto dum grupo de animais, cautelosos como
veados, estes, mal o viam, fugiam a galope, pisando os
arbustos. E logo Lhe ocorreu que se havia ladrões de gado
naquele desfiladeiro, seriam decerto avisados pelo ruído e
fugiriam. Talvez fosse melhor esconder-se à entrada dum
daqueles vales e esperar.
Zebra pastava sossegadamente, mas ou o ouviu ou o reconheceu
pelo cheiro, pois alçou a cabeça elegante para olhar. Andrew
acercou-se dele, com a noção clara do que podia um cavalo
representar para um homem, em campo aberto. Precisava de ter
também um cão. O crepúsculo infiltrava-se na clareira e o ar
estava a arrefecer.


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A abundância de lenha garantia-lhe porém, que podia passar a
noite confortavelmente. Cortou primeiro alguns ramos de cedro
para fazer um leito; depois juntou um montão de troncos secos
e acemdeu uma fogueira. Por esta altura tinha escurecido
completamente. Com a carabina na mão, sentado em cima das
mantas de selim, abriu o embrulho que Martha Dixon lhe tinha
preparado; ficou mais que surpreendido ao descobrir o seu
conteúdo generoso. Onde tivera ele os olhos, enquanto a
rapariga lhe embrulhou a comida? Onde? Abanou a cabeça em ar
de dúvida: "Ando a patinar em gelo muito fino. O carácter duma
mullier nada tem que ver com o que prende um homem" -
murmurou.
Era evidente que Martha o tomara por um turista. Tinha
pedido sanduiches e ela incluíra também bolo, torta, queijo e,
finalmente, num ennbrulhinho minúsculo, que quase lha ia
escapando, úm quadrado de açúcar. Açúcar! Só faltava ter
mandado doce de maçã ou caviar!
Esta descoberta não impediu Andrew de saborear a ceia.
Quando terminou a refeição, levantou a sela para lhe servir de
recosto e instalou-se confortavelmente junto da fogueira.
Ali sentado, a ver arder as brasas, contemplando as últimas
chamas rubras, custava-Lhe a compreender que, apenas há alguns
meses, tudo isto teria sido impossível. A noite estava escura,
o céu toldava, o silêncio opressivo. Passados momentos, o
uivar selvagem dum lobo acentuou a solidão do ermo. Esta cena
do cavaleiro solitário com o seu cavalo, num acampamento nas
colinas, verificara-se ali muitíssimas vezes, anos e anos a
fio. O índio, o padre, o batedor dos bosques, o caçador, o
explorador, o caçador de oiro, o fronteiro, o soldado, o
pioneiro, o criador de gado, o vaqueiro, o ladrão de gado, o
fora-da-lei - todos estes, sós ou acompanhados de gente da sua
espécie, Çe haviam sentado ali no ermo, junto duma fogueira.


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Aquela região de solìdão assinalara uma época da história do
Oeste.
Sentado a olhar as brasas, sabia que não fora feito para a
multidão, para o trabalho de escritório, para negociar. A paz
pairava, por ali, perto dele.
Estendeu-se para dormir çobre uma das mantas, cobrin do-se
com a outra, os pés virados para a fogueira reabastecida de
lenha, com a sela por almofada. Estendeu-se, julgando
permanecer acordado durante horas, mas as pálpebras
tornaram-se-lhe pesadas, o corpo imobilizou-se e os
pensamentos desvaneceram-se. Quando despertou, gelado até à
medula, a fogueira tinha-se aPagado; tornou a acendê-la,
aqueceu as mãos, os pés e as costas e voltou a adormecer. A
madrugada cinzenta e fria foi encontrá-lo em movimento.
Puxando o cavalo pela arreata, desceu para a encosta
descoberta e caminhou ao longo da orla de cedros na base das
colinas, passando por vales, onde pastava gado.
Não podia assistir ao nascer du sol, porque se encomtrava do
lado ocidental das colinas, mas o clarão glorioso e colorido
estendia-se agora pela vasta pradaria, em direcção às
montanhas. Um sortilégio esta pradaria! Era desse modo que o
espectáculo impressionava Andrew. Continuar na pradaria,
lutando e vivendo dela - uma empresa digna dum homem!
Chegando a outro desfiladeiro de encostas escarpadas,
penetrou nele o suficente para esconder o cavalo numa mata, e
continuou a pé. Passou horas no alto da margem, observando a
encosta cinzenta que ia dar ao rio. Depois desceu para
explorar o desfiladeiro. O espectáculo de vacas a mugir, com
os úberes cheios de leite, a gotejar, e nem um só vitelo,
encheu-o de fúria. Manifestamente, ali estava o trabalho de
Smoky Reed ou dalgum dos seus cúmplices. Encontrou os restos
duma fogueira, usada para preparar brasas para os ferros de


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marcar o gado, e palpou as cinzas, que estavam, porém, já
frias. Entre aquele lugar e a cabeça do vale encontrou mais
três vestígios idênticos. Atendendo ao pequeno território que
ele próprio podia abranger, calculou que a pessoa que marcava
os vitelos realizara bom trabalho. Mas o que fizera aos
vitelos era um mistério. Na Primavera e no Outono, os
rancheiros costumavam reunir todo o gado, que trazia a sua
marca. Aquele jogo intrigou Andrew e pô-lo de sobreaviso. Via
poucas reses de Bligh e não encontrava uma única vaca morta,
nem rastos de cavalos.
O dia passou rapidamente. A noite apanhou-o antes que
chegasse ao sítio onde deixara o cavalo. Acampou e comeu o que
restara das sanduiches, deixando uma para o dia seguinte. Que
pensariam Bligh e Jim Fenner da sua ausência? Haviám de ficar
preocupados. Que pensaria Martha Dixon? Andrew arrependeu-se
do seu impulso, pelo menos tanto quanto fora influenciado por
ela. Naquela noite teve menos frio.
Ao romper do dia transpôs a entrada do maior vale que
encontrara até ali. O gado salpicava a paisagem.
Andrew concluiu que devia vigiar aquela entrada durante as
primeiras horas da manhã. Regressando para junto duns cedros
que ficavam meia milha para trás, deixou Zebra abrigado num
sítio frondoso e bem disfarçado. Depois, pegou no binóculo e
na carabina e partiu a pé.
Quando alcançou novamente o vale, as encostas, a pradaria e
as montanhas tinham perdido o seu manto cinzento, para tomar a
cór do sol nascente. Para esconderijo, escolheu uma saliência
rochosa na encosta mais próxima do cavalo e, tomando posição
ali, percorreu com o binóculo as dez milhas da encosta coberta
de salva, entre as colinas e o rio.


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A meio caminho do declive, divisou duas figúras em
movimento.
- Cavaleiro! - murmurou excitado.
A olho nu, mal podia distingui-los, mas, com o auxílio do
binóculo, via-os aproximar num trote rápido. Era de calcular
que havia de encontrar vaqueiros a qualquer hora e em qualquer
ponto da pradaria. A maior parte deles podia estar a trabalhar
sossegadamente, o que significava que todos estavam inocentes,
até que se provasse a sua culpa. Todos os dias se marcavam
vitelos e não podia partir do princípio que todos os vitelos
pertencessem a Bligh. Nem a décima parte deles. Os ladrões ao
serviço de mcCall, contudo, concentravam-se no gado de Bligh
simplesmente por que oferecia pouco risco para eles. Tinha de
apanhar um deles a marcar um vitelo, cuja mãe trouxesse a
marca N. B. Era uma tarefa delicada e ele revolvia no espírito
todos os conselhos de Jim.
Entretanto os cavaleiros prosseguiam, direitos à larga
entrada do desfiladeiro. Como ambos montavam cavalos que se
confundiam muito com as salvas, não podia ter a certeza de ser
capaz de os reconhecer.
Observando-os através do binóculo, viu que estavam à beira
das matas espalhadas por ali e inspeccionavam cuidadosamente a
pradaria entre as colinas e o rio, e na direcção do norte. Um
deles tirou o chapéu, revelando uma cabeça brilhante, de
cabelos flamejantes e rosto avermelhado, que só podia
pertemcer a Texas, o vaqueiro. O outro cavaleiro trazia um
chapéu preto que, lhe escondia o rosto. Tudo o que havia nele
de pouco vulgar era uma camisa às riscas cinzentas e pretas,
distintamente visível através do binóculo.
Depois de breve discussão, separaram-se, tomando o
-cavaleiro da camisa às riscas o caminho pelo lado esquerdo do
vale, e seguindo Texas para a direita.


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Foi este o último a desaparecer. Andrew ouvia o estalar de
ramos secos e o tinir do metal na pedra. Em seguida tudo
silenciou.
- "Bem, cá estão eles" - disse Andrew com os seus botões
sentindo o pulso a acelerar. - "Era capaz de apostar que o da
camisa às riscas é o Smoky Reed. Não é provável que o Texas se
associasse a outro vaqueiro. São os dois da mesma laia. Então
e agora?" Respondeu á sua própria pergunta, agindo
imediatamente. Subiu para um plano mais alto, omde não corria
o risco de ser visto. Pôs o binóculo ao ombro e continuou a
mover-se, de olhos e ouvidos alerta. Em breve atingiu o lugar,
por onde o cavaleiro que lhe estava mais próximo penetrava no
desfiladeiro. Depressa encontrou o rasto recente de ferradura
e seguiu-o, consciente duma emoção, como nunca sentira outra
na vida. Estava na pista dum vaqueiro desonesto, a quem ele
fazia intenções de marcar como um fora-da-lei na pradaria.
Seguiu os rastos durante meia hora, alltura em que compreendeu
que se movia com demasiada lentidão. Tornando-se mais
audacioso" apressou o passo. Não passara muito tempo quando
ouviu um quebrar de arbustos e o bramido duma vaca Sem que,
contudo, pudesse localizar qualquer dos sons. Havia gado no
vale, mas eram, na maior parte, machos e bezerros dum ano.
Andrew agachou-se atrás duns arbustos, enquanto eles desciam
em tropel. Depois continuou. Quebrara-se o silêncio do vale, o
que o encheu de coragem. Apesar de tudo, só avançava oculto
pela vegetação. Esta precaução necessária tornava-se mais
difícil de manter, conforme se ia adiantando, os espaços
abertos aumentavam e os cedros e as matas cada vez ofereciam
menos protecção. Do caminho à sua frente, não longe dali,
vinha-lhe o ruído da água a bater nas pedras.


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Subitamente, soou úma detonação, como o estalar dum chicote,
Andrew surpreendeu-se e um suor frio perlou-lhe a face. Depois
compreendeu que já devia eesperar aquilo; o método do Reed
consistia em levar a mãe do vitelo para uma mata ou
esconderijo rochosos, matála e marcar então o vitelo.
Andrew avançou o mais silenciosamente que podia, verificando
em breve que as rijas botas de vaqueiro eram pobres
auxiliares, numa incursão daquela natureza. Daí a pouco do
lado de lá duma clareira coberta de erva e por detrás duns
cedros, elevava-se uma ténue coluna de fumo azulada. Andrew
sabia que tinha de se apressar, se queria apanhar o ladrão em
flagrante, mas duvidava que fosse prudente atravessar a
clareira. Assim deu a volta, mas perdeu de vista o fumo,
pôs-se á escuta. Lá ao longe, do lado de lá do desfiladeiro,
via poeira levantada e ouvia umas pancadas fracas, Texas devia
andar muito atarefado por aqueles sítios. Deste lado havia
agora um silêncio relativo. O movimento do gado espantado não
significava muito para Andrew naquele momento, mas às narinas
chegava-lhe um odor pungente a pêlos queimados.
Chegou a um grupo de cedros e castanheiros anões. De
repente, contra o fundo luminoso, divisou quaLquer coisa que
se movia e atravessava um pequeno espaço entre a folhagem. Um
bocado de tecido às riscas cinzentas e pretas! Os nervos
puseram-se-Lhe tensos. Sentia que o tinham ouvido, mas
ignorava se já fora visto. Assaltouo o impulso de disparar,
difícil de conter no calor do momento.
No instante seguinte, os ramos secos de cedro, rentes à sua
cabeça, explodiram, espalhando fragmentos que quase o
atingiram no rosto. Respirou fundo e mergulhou mesmo quando
compreendeu que tinha sido alvejado e que a bala não o
atingira por um triz. Furioso, apontou a sua


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WiNchester e disparou para o meio dos cedros, onde vira o
objecto cinzento e preto. O projéctil atravessou os ramos e
ricocheteou nas rochas. O barulho de ferraduras e o movimento
dum cavalo, ou preso ou agarrado por mão segura,
forneceram-lhe um novo alvo. Enviou outra bala através da mata
e, tão depressa quanto lhe foi possível, disparou mais três
vezes. Depois esperou com a arma levantada.
Ruídos e estalidos, ao que parecia simultâneamente próximos
e distantes, passos furtivos e um barulho de cascos,
confundiram-no, aumentando o seu furor. A decisão de se
acercar do homem que tentara matá-lo obrigou-o a um movimento
precipitado, sair de detrás da árvore que o ocultava.
Sentiu como que o raspar dum chicote por cima da têmpora,
depois uma dor cortante, seguida dum golpe que o atordoou,
fazendo-o embater contra a árvore. Caiu de joelhos.
Compreendendo que fora atingido, sentindo correr -lhe pelo
rosto o sangue quente, sabia mesmo assim que estava
consciente, que tinha a força de vontade e a energia
suficientes para matar o seu assaltante; esperou que este
aparecesse, mas o muro da mata verde acinzentada não se abriu
para dar passagem a um homem. Em vez disso, um ruído de botas
pisando o solo, um tinir de esporas roçando nos estribos de
ferro e o barulho de ferraduras, denunciaram que o vaqueiro
que perseguia se afastava dali.
- "Julga que. estou arrumado" - resmungou Andrew,
deixando-se cair. - "E talvez esteja. Olha para o que aqui vai
de sangue!"
Tirou o chapéu e verificou que a bala tinha atravessado a
fita. Precisou de coragem para passar o dedo pela ferida.
Por momentos, pensou que tudo estava terminado. Encontrou
então um sulco pouco fundo acima da orelha.
- "Mesmo a rasar, mas ainda mexo" - murmurou em tom sombrio.
- "Smoky Reed, se algum dia te ponho as mãos em cima. adeus?"
Dobrou o lenço e ligou o ferimento com firmeza. Depois ouviu
outro cavalo passar rapidamente para a direita; devia ser
Texas a pôr-se ao fresco. Escutando até os sons cessarem,
levantou-se para limpar as mãos cheias de sangue à folhagem do
cedro. Depois atravessou a mata, até à clareira, donde o
ladrão o alvejara. Uma pequena fogueira de paus secos de cedro
estava ainda a arder; um ferro ainda fumegante, um cheiro a
pêlos queimados, jazia no solo, mas o vitelo tinha
desaparecido. Continuando a procurar para além da clareira, na
mata, foi recompensado com o achado duma vaca morta, trazendo
no flanco a marca N. B.
- "Bem, posso provar que mataram a vaca do Bligh, marcaram o
vitelo e dispararam contra mim. mas mais nada. Tenho de
procurar o Smoky e ver se posso fazer que ele próprio se
denuncie."
Voltou atrás para ir buscar o ferro e, depois de o esfriar
num charco, apressou-se a descer o desfiladeiro. Em vão
procurou, com os binóculos, divisar cavaleiros. Depois
regressou ao lugar onde amarrara Zebra, montou e dirigiu-se
para o rancho. Aquele atordoamento doentio abandonara-o e, à
excePção dum latejar doloroso e monótono, não parecia ter
sofrido muito com a sua recente experiência. Enquanto avançava
lentamente, a determinação de descobrir o seu pretenso
assassino rivalizava, no seu espírito com as especulações
fantasiosas sobre o modo como seria recebido no rancho. Era
obrigado a rir da sua própria infantilidade; que se lembrasse,
era a primeira vez que sentia o desejo de dramatizar uma
situação. Mas não se esquecia do que Prometera a Bligh e
sorria, antecipando os gracejos do velho Jim acerca da sua


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primeira experiência e mal podia esperar que Martha Dixon o
visse aparecer todo coberto de sangue.
Um caminho íngreme, descendo a colina e um cavalo desejoso
de chegar, favoreciam bem o regresso rápido ao rancho. Mas a
distância era grande, o sol estava quente e Andrew não
resistiu tão bem como esperava a tudo isso. Era evidente que a
hemorragia o debilitara. Quando, após três horas a cavalo,
atingiu o rancho, sentiu que já não era sem tempo. Não parou
no celeiro porque sabia que ia cair e queria estar perto da
casa, donde seria visto.
Mas Jim estava à entrada e, com um grito que fez acorrer a
mulher, Bligh e Martha, saiu a correr.
- Em que estado você está - disse calmamente, dirigindo-se a
passos largos, para junto do cavalo de Andrew.
- Andrew! Que lhe aconteceu? - exclamou Bligh, consternado.
- Alguém que me deu um tiro à queima roupa - respondeu
AndreW, tentando parecer despreocupado; mas as palavras eram
fracas. Toda a sensibilidade parecia estar a abandoná-lo. Ao
cambalear na sela, a sua visão, cada vez menos nítida,
registou os grandes olhos de Martha, fixos neLe com uma
expressão de alarme e, ao tombar, ouviu-a gritar, como que a
distância:
- Oh. Que horror!
Andrew perdeu o equilíbrio, mas não completamente a
consciência. Sentiu vagamente que o levantavam e o esten diam
na relva fresca. Alguém lhe segurava na cabeça, enquanto lhe
chapinhavam o rosto com água fria. Começou então a distinguir
o que diziam, mas não abriu os olhos.
- É só uma arranhadela - dizia Jim, com evidente satisfação.
- Lavem-na bem e liguem-no. Deve ter deitado bastante sangue,
e com a caminhada...
- Deixem-me ir à cidade chamar um médico - pediu Martha. Era
ela quem lhe estava a segurar na cabeça.
- Bem, isso é uma despesa e uma complicação escusada -
respondeu Jim. - Isto não é nada. Amanhã já anda por aí, como
de costume.
- Eu ponho-lhe a ligadura, Sue - exclamou Martha. - Isso de
primeiros socorros é cá comigo.
Andrew permaneceu imóvel até o ferimento estar ligado - úma
operação simultâneamente dolorosa e agradável e depois abriu
os olhos e sentou-se. Martha e Sue estavam ajoelhadas a seu
lado, enquanto os homens, de pé, observavam a cena. Jim
examinava a carabina.
- Muito obrigado a todos - disse Andrew. - Creio que me fui
abaixo, mas já estou... Olhe, você tem sangue nas mãos!
Martha olhou para elas.
- É verdade que tenho - disse simplesmente, levantando-se,
com o rosto voltado para o lado, para ir à cozinha.
- Disparou esta carabina, Andy - disse Jim.
- Disparei três ou quatro vezes - respondeu Andrew, pondo-se
de pé.
- Contra quê? - imquiriu o outro.
- Contra o tipo que me alvejou.
- Depois de ele o ter atingido?
- Não. Ele falhou o primeiro tiro; eu vi-o mexer. Estava
escondido atrás dos ramos - respondeu Andrew e, em breves
palavras, relatou a sua aventura, guardando para si as suas
suspeitas e deduções.
- Bem, isso abre as hostilidades - disse Jim secamente,
enquanto os olhos se tornavam mais pequenos.
- Andrew, você foi pouco cuidadoso - interpôs Bligh.
- Receio que sim, patrão. Demasiado impaciente. Acredite que
aprendi uma boa lição.


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- As coisas vão de mal a pior, Jim - declarou o rancheiro,
tristemente.
- As coisas são sempre assim.
- Que havemos de fazer?
- Deixe isso comigo e com o Andy, patrão. Aguentar o McCall é
que é preciso.
- Que há de novo, desde que eu saí de cá? - inquiriu Andrew.
- O McCall mandou dizer que quer que os homens dele conduzam
o nosso gado através do Água Doce para misturar com o dele,
como foi combinado. Não vejo outra saída senão fazer o que ele
quer. Ele tem a minha carta que vale por um contrato.
- Qual carta, qual história! Não vamos deixar o McCall levar
coisa nenhuma - resmungou Jim.
- Se ele vai para tribunal.
- Era um desastre para ele, senhor Bligh - interrompeu
rapidamente Andrew. - Tenha confiança na opinião de Jim sobre
este assunto. Há qualquer coisa de Pouco limpo nesse McCall.
- É dessa opinião, Jim?
- Com certeza. Qualquer coisa de muito pouco limpo.
- Eu também andava desconfiado...
- O patrão vai levar a Martha ao "rodeo". Há-de lá estar o
McCall e o senhor diz-lhe que o contrato já não Lhe parece bem
e que não quer continuar.
- Mas, homem, eu não posso ir para tribunal agora -
protestou Bligh.
- Não tem nada que ir ao tribunal.
- McCall diz que contratou mais homens, construiu uma cabana
em Willow Creek, e levou para lá madeira e abastecimentos. Tem
um bom argumento contra mim.
- Ora, e nós temos um contra ele, e dos bons.
- Bem, então vamos fazer-lhe uma pega de caras.
Daí a pouco chamavam Andrew para cear. Depois da sua
partida, dois dias antes, a mesa tinha sido mudada para o
alpendre atrás da casa, onde passariam todos a comer juntos.
No decorrer da ceia, Andrew teve a sensação que as suas
relações com Martha Dixon tinham, de certo modo, mudado. Ela
era sempre para ele uma presença inquietante, mas agora, que
parecia não estar já furiosa com ele, previa complicações.
Depois da ceia, Jim foi encontrá-lo à entrada da sua cabana.
- Que tem em mente, meu rapaz?
- Martha Ann Dixon - respondeu Andrew, com sinceridade.
- Bem, isso é bom e é muito bem feito. Mas refiro-me a esse
seu encontro nas colinas. Não nos contou tudo, a mim e ao
Bligh, a esse respeito.
- Achei melhor não contar tudo. Mas, vou-lhe dizer a si,
Jim.
E Andrew tornou a contar toda a aventura em pormenor,
terminando a narrativa com as suas próprias deduções.
- Bem, quem quer que fosse esse vaqueiro, não há dúvida
julgou ter dado cabo de si. E, se puder aparecer-Lhe sem ele
esperar e apanhá-lo de surpresa, ele há-de denunciar-se, se o
reconhecer.
- É o que eu acho, Jim. E eu sei que era o Smoky Reed.
- Sim, mas não tem provas, a não ser a camisa de riscas.
Mesmo assim é uma boa pista, essa e a do ferro de marcar. Que
pensa fazer, se chegar a identificá-lo?
- Hei-de incapacitar esse vaqueiro por uns bons tempos,
veterano.
- Soa bem, essa palavra, mas eu não a conheço. Andy, quem
quer que seja esse homem, ele há-de estar com o seu grupo.
Eles hão-de se fazer desagradáveis,


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hão-de o gozar até mais não e de o pôr à rasca, ali na frente
das garotas. Os vaqueiros são piores que o diabo para os
novatos. Você tem de se meter a monCar seja o que for, no
"rodeo", e isso há-de lhes dar ocasião de o humilharem ainda
mais. Mas isso vaiLhe dar ocasião também a si de se fazer
irritado.
- Nem é preciso tanto, Jim. Irritado já eu estou. com
qualquer grupo de vaqueiros que trabalhe com esse senhor
Camisa às Riscas.
- Terá de lutar com eles todos.
- Está bem.
- Andy, teve medo lá nas colinas, quando ouviu aquela bala?
- Creio bem que sim, um medo horroroso - declarou Andrew,
soltando úma risada.
- Vai ficar assim, quando enfrentar o pessoal desse rancho,
no "rodeo"? - perguntou Jim, curioso.
- Eles levam pistoLas?
- Não; são proíbidas nos "rodeos".
- Então vou ficar encantado.
- Hum, não o percebo, meu rapaz. Não é brincadeira nenhuma
aguentar-se contra um grupo de vaqueiros sem escrúpulos.
- Cá fora na pradaria, a cavalo ou sozinho nas colinas, não
valho grande coisa, Jim - retorquiu Andrew. - Mas bem firme
nas pernas, a contas com homens desarmados, ora, o caso então
muda de figura. Posso dizer que já tenho levado a melhor,
muitas vezes, e com cada matula! Ah! Ah!
- Ah, Sim? Nunca vi um vaqueiro que fosse capaz de fazer
tanta coisa ao mesmo tempo. como você. Hei-de estar lá, quando
se defrontar com essa gente. Arranjo um homem para me
substituir aqui por dois dias. Mas não diga nada ao patrão.


No dia seguinte, Andrew sentia-se já como se nada tivese, e
dez dias depois dispensava a ligadura na cabeça. Alguém que
estivesse especialmente interessado no que o jovem fazia
durante estes dias, teria descoberto algo de pouco vulgar num
rancho. Enchera de areia um pequeno saco de lona e pendurara-o
numa trave do celeiro, mais ou menos à altura da cabeça.
Depois calçara as suas luvas de montar, de pele de gamo, e
começara aos murros ao saco. Quando batia nele, este emitia um
som cavo.
- Não vai mal! - murmurava no fim do seu último treino, que
foi na manhã em que Bligh lhe pediu que levasse o carro à
cidade.
Martha foi a última a sair de casa. Andrew já há muito
observara que esse era um dos seus defeitos; nunca chegava a
temPo. Mas, quando apareceu, vinha fascinante, num gracioso
vestido azul, que ela própria fizera. Nas pernas, bem
torneadas, trazia apenas peúgas e calçava sapatos rasos.
Parecia ter posto de parte o uso do chapéu. Andrew desviou os
olhos; aquela rapariga complicava-Lhe com os nervos.
- Dá licença que eu guie? - perguntou, debruçando-se na
porta do carro, do lado de Andrew. Este poderia ter respondido
negativamente ao pedido verbal, mas ainda estava para nascer o
homem capaz de dizer que não àqueles olhos de âmbar, de
expressão suplicante.
- Bem... a... certamente - balbuciou Andrew, deslizando
apressadamente para o lado direito do banco.
Martha atirou a malinha de mão para o assento e entrou, e,
enquanto, com mãos hábeis, ia manipulando as engrenagens,
disse, num tom absolutamente natural, olhando em frente:


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- Quando ando de carro com um raPaz simpático, gosto sempre
de ir ao volante.
- Sim, já reparei - retorquiu Andrew, fitando as colinas ao
fundo da pradaria. A observação de Martha fazia lembrar a
antiga inimizade. Mas ficara-lhe no espírito a expressão dos
olhos dela, ao pedir licença para guiar. Ficou a meditar sobre
a adorável expressão daqueles olhos ambarinos. Teria sido
apenas a ânsia juvenil da velocidade? Aqueles olhos eram
sempre intrigantes. Eram olhos perigosos, porque pareciam
dizer aos tristes pobres diabos infinitamente mais do que era
evidente que ela queria expressar. O seu brilho raro, a sua
cor estranha, o seu encanto indiscritível eram simples factos
da natureza e, portanto, falsos. Vira-os fuzilantes de
desprezo, o que era algo para se recordar. Então tinham sido
verdadeiros. Mas até que ponto seriam coqueteria estudada a
sua mobilidade e encanto, por exemplo, naquela noite em que
ela namoriscara tão afrontosamente com o rapaz do hotel?
Custava-lhe a digerir a recordação daqueles momentos. Como
diria Jim: "aquilo não Lhe saía da mioleira". A própria
natureza podia, contudo, fazer que uma mulher tomasse atitudes
de namoradeira, estando absolutamente inocente e inconsciente
disso. Logo se revoltou interiormente, compreendendo que
estava a Ilaborar uma desculpa para tudo o que Martha Dixon
fizera. Não obstante, a ideia persistia e uma outra se
formava, atormentadora e impiedosa; uma tentativa para
imaginar quão gloriosos seriam aqueles olhos magníficos,
quando inspirados por um amor verdadeiro e desinteressado.
Martha conduziu durante todo o percurso para Rocha Quebrada,
sem trocar outra palavra com Andrew. Na cidade, assim que
pararam, as Glemm, as amigas reclamaram-na e levaram-na para o
"rodeo" no carro delas. Andrew sentiu-se aliviado. Se não
fosse pelo assunto sério que tinha em mente, ter-se-ia
retirado para o rancho. Bligh teve conhecimento de que McCall
partira para Casper.


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Alguns minutos depois estavam outra vez na estrada, com
Andrew ao volante.
A viagem do rancho até Rocha Quebrada fora curta, mas a
estrada para Casper parecia não ter fim, e exigia do velho
motor tudo o que ele podia dar. Chegaram ao escurecer. Andrew
não se recordava muito bem de Casper. Dava a impressão de ser
uma terra grande e a rua principal exibia um cartaz de boas
vindas aos visitantes. Foram a dois hotéis, antes que
conseguissem encontrar alojamento. A cidade estava apinhada de
turistas, vaqueiros e rancheiros. No entanto havia duas
raparigas para cada homem.
O hotel para onde Bligh conduzira Sue e Andrew, parecia ser
um estabelecimento de segunda classe, cheio de gente rumorosa.
Aquilo convinha a Andrew, como habitante do Leste, que logo se
adaptou ao ambiente. Bligh levou Sue a cear, enquanto Bonning
despia o seu trajo grosseiro. Quando desceu, a sala de entrada
e a sala de jantar estavam cheias de vaqueiros barulhentos,
que se acotovelavam uns aos outros, fumavam e cavaqueavam.
Eram todos novos, alguns tinham bebido um tanto. Apesar disso
Andrew achou-os simpáticos.
Depois da ceia, sentou-se ao lado dum rancheiro, de pequena
estatura e rosto vulgar e curtido pelas intempéries,
procurando tornar-se agradável.
- Forasteiro? - inquiriu o rancheiro, naturalmente.
- Sim, apesar de já estar há algum tempo no Oeste.
- Já vejo que é do Leste.
- Era sim. Chamo-me Bonning.
- Eu sou Jeff Little. Suponho que vem para o "rodeo", como
todos.
- Claro. Ainda não vi nenhum. Mas o que é um "rodeo",
afinal?
- Circo de vaqueiros e pouco mais. O de Casper é bom,

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embora não se compare aos de Cheyenne ou Kalispel. Mas também
há alguns profissionais aqui.
- Que são profissionais?
- Vaqueiros e raparigas que ganham a vida a trabalhar nos
"rodeos". No entanto, temos cá na terra alguns talentos. Eu
tenho dois entre o pessoal do meu rancho.
- Que interessante. Onde fica o seu rancho, senhor Little?
- Lá em baixo no rio Platte, ao sul da reserva Pathfinder.
Dirijo o "Double X".
- Como está actualmente o negócio de gado?
- A subir. Eu tenho quarenta mil cabeças e este ano não
vendo... É cá um palpite.
- Quarenta mil. Deve empregar muitos vaqueiros, não?
- Agora só tenho dois grupos, mas são bons. Não aceito maus
cavaleiros. Creio que todos os vaqueiros do médio Wyoming têm
trabalhado para mim.
- Já alguma vez trabalhou para si um vaqueiro ruivo chamado
Texas qualquer coisa?
- Claro que sim e não é fácil a gente esquecer-se dele. Moço
simpático, o melhor dos cavaleiros, uma maravilha com o laço,
mas não é pessoa em quem se possa confiar. Não sei se me faço
compreender. É da raça impetuosa do Texas. Nunca ouvi o último
nome dele. Ele anda por aí. Vi-o hoje. Danado por raparigas.
- Lá nisso, não são todos a mesma coisa? - inquiriu Andrew,
rindo. - Deixa-me cá ver; ouvi falar dum outro vaqueiro em
Rocha Quebrada: Smoky... qualquer coisa...
- Reed... Conheço-o. Trabalhou uma vez para mim. cerca de um
dia - retorquiu o criador de gado, com uma brevidade muito
significativa para Andrew.
- Obrigado. Creio que vou procurá-los por aí - disse
Bonning, erguendo-se.
- Gosta então do Wyoming?


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- Sou louco por isto.
- Tem intenções de se tornar rancheiro? - inquiriu o outro,
com um ar sagaz.
- Bem, a ideia ocorreu-me, reaimente.
- Então compre gado antes do Outono. Num ano ou dois duplica
o seu dinheiro.
Andrew encaminhou-se, pensativo, para a rua. Revolvia na
mente o facto de que ali no Oeste tudo convergia para ele, ao
passo que, no Leste, os acontecimentos passavam alheios de si.
A meter-se no negócio de gado, esta era, então, a melhor
altura. Desceu a rua, alegre e muito movimentada, subindo-a
depois pelo lado oposto. Deteve-se numa loja de esquina,
profusamente iluminada, onde serviam gelados, água de Seltzer
e outras bebidas; a concorrência era tão grande, que não
conseguiu ser atendido. Em seguida, entrou num cinema, onde só
havia lugares de Pé; tendo-se aborrecido do filme, saiu e
voltou ao hotel para se deitar.
Era suficientemente honesto para consigo mesmo, para admitir
que se sentia desapontado por não ter visto Martha Dixon.
Invadia-lhe o espírito um pesar melancólico e absurdo, embora
soubesse que, se não tivesse procedido como um saturado e
mórbido citadino, poderia estar a desfrutar uns agradáveis
momentos com a rapariga.
De manhã, envergou o fato de vaqueiro e lançou-se no que,
pressentia ele, bavia de ser um dia memorável. Passou algumas
horas a ouvir e a observar, na rua; estabelecimentos ou
hotéis. Mais de um vaqueiro brincalhão lhe buzinou os ouvidos,
não com palavras azedas ou rudes, que o ridicularizassem, mas
porque ele parecia ser incapaz de disfarçar o que tinha de
novato. Isto, porém, era mais que compensado pelas olhadelas
maliciosas e lisonjeiras que lhe lançavam várias raparigas
engraçadas. A cidade estava cheia delas. Todas as montras
exibiam cartazes anunciando o baile do "rodeo". Andrew
mantinha-se atento ao aparecimento de três pessoas:


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Martha Dixon, Texas e Smoky Reed.
Na rua, no vestíbulo do hotel, ou no balcão onde serviam os
almoços, por toda a parte onde havia vaqueiros,
deparavam-se-Lhe as graças típicas do Oeste, raramente
ofensivas. Cedo se dirigiu para o local, onde se realizava o
rodeo.
Pouco tempo depois, encontrava-se dentro da alta cerca,
livre da multidão barulhenta e dos vaqueiros escarnecedores,
com um bilhete na mão, que lhe permitia entrar em qualquer ou
em todas as competições. Os preliminares decorriam diante duma
bancada onde se sentavam numerosos espectadores e Andrew
pensou que depressa se veria despachado daquela agonia. Num
postigo que lhe indicaram, fez o pedido e logo se encontrou de
fora da barreira cir cular que limitava a arena. Então as
coisas iam bem, mas disseram-lhe que fizesse isto e aquilo, e,
antes que se desse conta disso, já estava a trepar para dentro
dum pequeno curral. Com horror verificou que o animal que lá
estava dentro não era um cavalo, mas um novilho de longos
chifres ameaçadores, duma espécie desconhecida para Andrew.
Tinha uma corda à volta do corpo, evidentemente, para o
cavaleiro se firmar.
- Vamos a isso, vaqueiro - chamou o guarda em tom breve. -
Agarre-o.
Andrew saltou para o dorso do novilho, ficando
escarranchado, agarrou a corda com as mãos, com as pernas
comprimiu o enorme corpanzil e segurou-se com todas as suas
forças. A porta deslizou e o búfalo selvagem, ou o que quer
que fosse aquele animal, berrou e precipitou-se para o
exterior.
Uma força tremenda quebrou a resistência oposta pelas pernas
de Andrew, fazendo-o levantar os pés nò ar. Mas ele não largou
a corda e tornou a cair sobre o dorso do animal,


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com um baque irritante. Lá ia outra vez ao ar, como uma pena.
Os espectadores gritavam de hilaridade e Andrew tinha a
certeza de que estavam a olhar para ele. Para cima e para
baixo, para cima e para baixo, enquanto o animal, enraivecido,
corria com mais velocidade do que qualquer dos cavalos que ele
tinha montado em toda a sua vida. Pulava como um coelho
monstruoso, à volta da cerca, para logo mudar de direcção,
recomeçando a correr, lançando Andrew ao ar, a cada salto que
dava. Por fim, a tenaz resistência de Andrew quebrou-se e ele
foi ao ar pela última vez, caindo sobre a relva. A queda
abalou-Lhe os dentes até à raiz, mas não pareceu ficar morto
ou mutilado. Com grande espanto seu, a assistência aPlaudiuo
longamente. Bonning saiu coxeando, prometemdo a si mesmo que
as suas ambições de astro do "rodeo" estavam absolutamente
terminadas. Junto do portão, encontrou Jim, que o levou para
dentro.
- Que tal? - inquiriu ele em tom melífluo.
- Não caio noutra, nem que viva cem anos! - arquejou Andrew,
apalpando-se para ver se ainda tinha algum osso inteiro.
- Partiu alguma coisa?
- Creio que não.
- Bem, não precisa de estar tão aflito. Você montou esse
novilho, como eu nunca vi montar nenhum vaqueiro. É verdade! E
o povo aplaudiu-o.
- Deixe-se de brincadeiras, Jim.
- Palavra! Foi cómico. o modo como você entrou, a fazer o
pino. Mas o que interessa não é como se monta, é como ficar na
sela. Vai ver que ganha um prémio.
- Não!
- Bem, de qualquer maneira, está lá em cima na bancada a
Martha Ann, com um rancho de raparigas. Havia de as ter ouvido
gritar.


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- Está bem, Jim. Você é muito animador - declarou Andrew,
evidentemente satisfeito. - Gostava de aPanhar outra coça do
género.
- Bem, depois vemos isso. Venha cá, Andy. Descobri uma
camisa de riscas e quem a traz é o Smoky Reed.
Ele sentiu o braço inchar, çob a mão do companheiro, que o
guiava.
- Ah, sim - disse, lançando um olhar ao perfil moreno e
impassível do outro.
- Há por aí muitos vaqueiros, à espera da sua vez - explicou
Jim. - E alguns deles estão um bocado entradotes. Não lhe vai
ser difícil arranjar sarilho com o Reed, a não ser que ele o
reconheça. Se isso acontecer, você percebe logo, e apanha-o.
Mas se ele não oconhece, tem você de o fazer ir aos arames. Aí
está ele. Esse vaqueiro alto, sardento, de cabeça de estopa,
que traz uma camisa às riscas. Ponha-se a andar aí para baixo
e para cima à frente deles, com um ar empertigado, que eu fico
aqui a ver.
Andrew viu um telheiro comprido, em frente da arena, que
ficava logo a seguir à cerca. Em pequenos grupos, na sua maior
parte, estavam homens, fumando, conversando e rindo. Havia uma
passagem bastante larga entre os bancos e a cerca.
Quando conseguiu ver melhor os quatro vaqueiros que Jim lhe
apontara, Andrew dirigiu-se para eles, enquanto apalpava as
luvas de pele de gamo, para se certificar de que não as
descalçara. Não havia entre os quatro nenhum vaqueiro ruivo. O
que lhe estava mais perto, era um homem maduro e atarracado,
com uma grande barriga, que lhe saía por cima do cinto. Os
dois a seguir eram moços magros, de feições duras e o quarto
era o vaqueiro que Jim tinha descrito. Parecia ser musculoso,
mas não demasiado Pesado; os olhos eram azuis, de expressão
audaciosa e brilhavam por baixo das sobrancelhas espessas.
Tinha um rosto pálido e sardento, um tanto corado devido à
bebida.


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Andrew sentiu um baque no coração, ao ver a camisa de riscas
cinzen tas e pretas, e teve a certeza de que a reconhecia,
mas, recordando-se das instruções de Jim, dominou-se e passou
por diante dos quatro homens, olhando-os bem de frente. Depois
deu meia volta e tornou a passar, concedendo, desta vez, a
Reed, um olhar investigador.
O vaqueiro olhou fixamente para ele, mas nem pestanejou. Se
tivesse relacionado Andrew com o homem que deliberadamente
tentara matar e que abandonara, julgando-o morto ou ferido,
não teria sido capaz de esconder qualquer leve sobressalto que
o denunciaria.
Todavia, Andrew sentia-se teimosamente seguro de que era
aquele o seu homem. Tinha a certeza absoluta da oferta de
McCall, da Promessa de Texas de se encarregar do assunto dos
roubos e do facto de que aqueles dois tinham entrado no
desfiladeiro, lá nas Colinas do Antílope.
- Eh, vaqueiro! Foi você o homem que pegou mesmo agora
aquele novilho? - chamou um dos quatro.
- Fui, se é que tem alguma coisa com isso - retorquiu
Andrew. - Quer divertir-se à minha custa, não?
- De maneira nenhuma. Andou muito bem. para um novato
"yanke".
Andrew lançou um olhar furibundo ao que falava e que era o
baixo e gordo. O remoque deste chamou para Andrew a atenção
dos outros, que, evidentemente, logo descobriram a propriedade
do epíteto usado pelo companheiro. Bonning continuou a
pavonear-se e a armar em fanfarrão diante deles. E eles
começaram a fazer observações. O novato fingia não dar por
nada, mas os seus ouvidos atentos iam registando tudo.
Entretanto, tendo quase atingido o seu objectivo começou
também a fazer uso dos olhos, com o fim de alcançar ainda
maior vantagem. Havia um espaço aberto entre as bancadas e o
telheiro onde estavam os homens. Os espectadores podiam vê-lo
perfeitamente.


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À direita havia uma barraca de bebidas, diante da qual se
Enfileirava um grande número de pessoas, enquanto outras se
debatiam para atravessar o portão. Ao alcance da voz, Jim
debruçava-se sobre a cerca, para ver os exercícios
preliminares no campo do "rodeo".
- Não há dúvida que é um "yanke" - pronunciou arrastadamente
o orador do quarteto.
- Que bonitinho! - disse outro.
- Conquistador, ia jurar. Chapéu desabado, todo chique,
botas de cano de fantasia, luvas de gamo e tudo.
- Ora o vaidoso do novato - rosnou Reed, bastante alto para
ser ouvido pelos vaqueiros dos outros grupos. Imediatamente
soaram risos. Aquilo prometia tornar-se divertido; mas só
Andrew sabia precisamente quão divertido ia ser. Talvez Jim,
agora virado de costas para a cerca, tivesse uma vaga
suspeita. Uma onda de gracejos envolveu Andrew, que não dava
mostras de os ouvir e continuava a pavonear-se dum lado para o
outro.
- Olhem para esse vaqueiro feito de encomenda!
- Hum. É mas é um turista janota.
- Onde teria ele arranjado aquele trajo?
- Eh, bonitão, não esteja a tapar a paisagem - chamou Reed,
em ar de mofa. - Parece-me que você é o novato janota que guia
o carro da rainha das boleias.
- Será que as suas observações me são dirigidas? - inquiriu
Andrew, virando-se. Não ergueu a voz, mas deu-lhe uma entoação
que pôs ponto final na conversa, fazendo convergir sobre ele
todas as atenções. Seguiu-se um momento de surpreendido
silêncio. A súbita mudança de atitude do novato fez que os
vaqueiros se interrompessem.
- Claro que são - respondeu o mais velho, alegremente. -
Estávamos só a divertir-nos um bocadinho.
- Qual divertir, nem meio divertir! Se não me insultaram a
mim, não há dúvida que insultaram uma senhora!


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- Está bem, se gosta assim!. - resPondeu o outro, obviamente
picado.
- Pois é isso mesmo que eu acho - vociferou Andrew. - Já sei
que sou um novato, vindo do Leste e novo na pradaria; não
estou habituado ao vosso senso de humor. Mas sei muito bem a
diferença que há entre uma brincadeira e um insulto. E exijo
que me peçam desculpa!
- Ah! Ah!
- Ora cale o bico, seu janota.
Andrew espetou um dedo na direcção do mais velho dos quatro.
- Um de cada vez, se faz favor - exclamou. - Vocês parecem
ser meio humanos. Respondam-me a isto: se um novato do Leste
chamasse a um rancho de vaqueiros do Oeste, como vocês lhes
chamasse uns nomes dos bons e os convidasse a engoli-los ou a
combater. que aconteceria?
- Bem, creio que esse novato havia de apanhar uma sova e de
engolir uma quantidade de pó à mistura.
- Então oiçam: vocês são uma corja de ratos asquerosos!
Quatro vaqueiros nojentos! Piores que os lobos, os chacais e
todos esses vermes da pradaria juntos. E se calhar ladrões...
- Já ouvimos demais, forasteiro - retorquiu o mais velho,
acremente, vermelho como um pimentão.
- Vocês três sabem, por acaso, com quem andam? - interrogou
Andrew, indicando com ar de desprezo o espantado Smoky Reed,
cuja compreensão lenta começava a assimilar um pensamento
inquietante.
- Andar com uma Pessoa nos "rodeos", não quer dizer que se
ande sempre com ela, forasteiro - ripostou o outro com rudeza,
enquanto o sangue lhe fugia do rosto.
- Então não passam os três duns parasitas, mas esse homem de
camisa às riscas é um cobarde.


183


Convido-os a avançarem, senhores da Pradaria, um de cada vez.
Quero ver de que massa são feitos.
- Não é preciso mais que um, seu pretensioso duma figa -
regougou o gordo, adiantando-se.
Andrew vibrou-Lhe, com a direita, um tremendo soco no
abdómen proeminente, que emitiu um som cavo. A vítima
dobrou-se sobre si mesma, com o rosto alterado, os olhos
salientes e a boca aberta, tentando debalde respirar. Caiu de
joelhos, agarrando convulsamente a barriga.
Rapidamente, Bonning deu um salto em frente e vibrou uma
esquerda fulminante como um bote de serpente na boca
escancarada de espanto do vaqueiro seguinte e uma direita no
estômago do terceiro. Ambos cairam redondamente no chão.
- Vamos lá, Smoky, sua doninha, é a sua vez - gritou Andrew,
e, deitando a mão à camisa de riscas, deu um puxão ao vaqueiro
que o fez sair do telheiro Para o espaço aberto, abaixo das
bancadas. Os gritos excitados conduziram os espectadores para
aquele lado da bancada.
- Largue-me, assassino! Espere que eu já lhe digo -
vociferou Reed, ferozmente.
Bonning atirou para o lado o chapéu e apontou para a
cicatriz avermelhada que tinha na fonte.
- Olhe para isto, Reed! Foi você que fez isto! Foi você que
disparou contra mim, detrás dos arbustos, como cobarde que é!
O vaqueiro pôs-se lívido e apanhou uma pistola que lhe
estava à mão.
- Vil ladrão de vitelos, porco! - gritou Andrew, procurando
elevar a voz até às bancadas. - Isto não é briga de tiros. -
Atirou-se no vaqueiro, entonteceu-o com esquerdas e direitas,
socou-o até o fazer cair, e, tornando a pô-lo de pé, encostouo
à cerca e assentou-lhe terríveis golpes no rosto já
ensanguentado. Se não fosse a intervenção de alguns dos
presentes, impressionados, tê-lo-ia posto completamente K. O.
- Acabou-se! - bramiu uma voz rouca, cujo possuidor agarrou
pelos ombros o furioso rapaz. Como um pião, este girou, para
bater no homem, antes mesmo que o pudesse ver distIntamente. O
surpreendido medianeiro espaLhou-se ao comprido.
- Você socou-me? - berrou ele, numa raiva estridente,
pondo-se penosamente de pé, com uma mão no nariz, que
sangrava.
- Não, mas soco-o, se me torna a pôr as mãos em cima -
arquejou Andrew.
- Você é esse vaqueiro novato do Bligh. Está preso. Ataque e
resistência à autoridade!
Andrew reconheceu, então, no homem, o xerife Slade.
- Pronto. Plenamente de acordo, desde que prenda também o
Reed.
- Quem?
- Smoky Reed, o vaqueiro que eu estava a castigar, quando
você me interrompeu.
O maltratado vaqueiro tinha manifestamente aproveitado
ocasião para desaparecer no meio da multidão. Slade, contudo,
não fez qualquer tentativa para o localizar.
- Estenda as mãos - ordenou Slade, tirando Para fora umas
algemas.
- eu vou consigo - respondeu rapidamente Andrew, enquanto a
multidão se acercava mais.
- Estenda-as, já lhe disse.
- Não!
Jim Fenner entrou em cena, defrontando o xerife com um olhar
frio e lábios cerrados.
- Deixe-sa de armar Para as bancadas, Slade - disse
peremptoriamente. - Eu responsabilizo-me pelo rapaz.
- Quem diabo é você? - perguntou Slade.


184 185


- Deixei o cartão à entrada - ajuntou Jim,
significativamente. - Se está muito interessado em vê-lo,
paramos à saída.
- Estes forasteiros estão mas é a tornar-se muito frescos.
Vamos embora.
Entre os dois, conduziram Andrew Para fora do ajuntamento.
Ao passar pela bancada, viu um friso de raParigas, debruçadas
no parapeito e, no centro, Martha Dixon, pálida como uma flor,
fitando-o com olhos alcoviteiros.

IX


Dois incidentes, os convites atrevidos dum vaqueiro, de nome
Reed, e a prisão de Andrew Bonning, estragaram o que teria
sido um dia maravilhoso para Martha Ann.
Nessa mesma manhã, a caminho do "rodeo", Martha recebera uma
carta da mãe, não só perdoando a louca escapada que ela lhe
confessara, mas também enviando um cheque para pagar a viagem
de regresso. Martha chegara a Casper com as suas novas amigas,
excitada e feliz. O atrevimento dum vaqueiro conhecido das
Glemms tinha-a perturbado, porque o homem ouvira evidentemente
falar da uma viagem de boleia e julgara que aquilo lhe
permitia tentar uma aproximação, que teve de ser recusada em
termos bem claros. Depois o feito espectacular de Andrew,
montando o novilho, ganhara, apesar de cómico, a sua
involuntária admiração. Tudo tinha sido esquecido, contudo, na
excitação do rodeo, dos cavalos magníficos e dos audaciosos
artistas equestres, até que a briga de Andrew e a sua prisão
vieram estragar o espectáculo a Martha Ann.
Casualmente, ela presenciara os dois casos. Nellie Glemm
tendo-se levantado para ir ao encontro dumas amigas que subiam
os degraus, detivera-se com elas junto do varandim a olhar.
Era evidente que alguma coisa sucedera lá em baixo. As pessoas
abandonavam os seus lugares. De momento, nada se passava na
pista. Subitamente Nellie voltara-se para chamar a irmã,


186 187


Martha e as outras duas raparigas.
- Lá está agora o Smoky Reed - disse, apontando. --Call
Brice e os Hazelett. Estão a divertir-se à custa do moço que
te levou para a cidade. Empregado do Bligh, não é?
- É, sim. É o Andrew. chama-se Andrew Bonning - respondeu
Martha Ann.
- Já o vi antes - disse uma das raparigas.
- Bonito rapaz - acrescentou Nellie.
- Ora, olhem como ele se exibe! O grupo do Brice não Lhe faz
nada.
- Meninas! Ele está só a armar. para bem deles - interrompeu
logo Martha. - O Andrew não é nada vaidoso.
- Vai ser divertido - respondeu Nellie. - Parece-me que ele
está com genica. Aquele grupinho não presta para nada.
A discussão e a briga que se seguiram, a intervenção do
xerife e a prisão de Andrew tiraram a Martha Ann todo prazer
que ainda pudesse encontrar no "rodeo".
- Parece que o seu rapazão esteve a provocar o grupo do
Smoky - declarou significativamente Nellie Glemm, depois de
voltarem à cidade e ao seu hotel.
- Ele não é meu - respondeu apressadamente Martha Ann,
sentindo o rosto em brasa.
- Não há dúvida que deixou o Smoky em mau estado. E não foi
formidável aquele soco que ele deu no estômago de Cal Brice?
- Terá de ficar preso? - inquiriu Martha nervosamente.
- Com certeza que sim, se não pagar a multa.
- O Jim Fenner foi com ele. Espero que tenham dinheiro que
chegue.
Martha Ann sentia-se em Picos. Não sabia como havia de se
livrar das vivazes raparigas, todas tão simPáticas e ansiosas
por diverti-la, sem lhes dar novas razões para a julgarem
interessada em Andrew. Mas tinha de descobrir, fosse como
fosse, se ele fora libertado. A ideia de ele passar a noite na
cadeia, era-lhe insuportável. A sova magistral que o vira
ministrar a Reed fizera que esquecesse completamente as
palavras insultuosas do último. Não podia explicar aquela
súbita admiração por Andrew, o seu prazer ruim perante o
espectáculo daquele vaqueiro vil, indefeso diante do ataque
espantosamente feroz de Andrew e, por último o seu alarme
desarrazoado pela prisão deste. Estas variadas emoções
apertaram-lhe o coração. Durante muito temPo se acusara, na
escuridão reconfortante do seu quarto, de pensar demasiado em
Andrew Bonning, confissão que prontamente rejeitava à luz do
dia.
A entrada do senhor Bligh, com Jim e Sue, libertaram Martha
Ann do tumulto dos seus pensamentos.
- Olá, sobrinha, temos andado à tua procura - disse o tio. -
Divertiste-te? Parecias bem excitada.
- Oh, tio Nick!... Sim, diverti-me... bastante - exclamou
Martha, dominando a sua excitação.
- Vocês ficam aqui, raparigas?
- Ficamos. Temos os quartos ao Pé umas das outras. Elas
vão-me levar ao baile do rodeo esta noite. Tio, já sabe do
Andrew, é claro...
- Já. Viemos agora mesmo da prisão.
- Ele... não saiu? - balbuciou Martha.
- Aquela simpatia da Slady prendeu o Andy e aplicou-Lhe uma
multa de cem dólares, pequena - declarou JIm, sem o seu
costumeiro humorismo. - O Andy disse que tinha o dinheiro mas
não podia chegar-lhe. Não sei o que é que ele queria dizer. De
modo que saí e fui à Procura do patrão.


188 189


- Imagina, Martha, que o Jim, a Sue e eu, juntos, não
conseguimos arranjar o suficiente para pór o Andrew em
liberdade - exclamou Bligh, desgostoso.
- Consigo eu - retorquiu Martha alegremente, abrindo a mala
de mão. - Chegou esta manhã da mãe. Podem levantar este
cheque?
- Podemos, mesmo aqui. Endossa tu o cheque - disse ele,
conduzindo Martha para a secretária. Jim e Sue seguiram-nos.
Martha Ann deu consigo a escrever, nuns rabiscos muito pouco
semelhantes à sua letra habitual, firme e regular.
- Que pouca vergonha! - exclamou o tio ao receber o cheque.
- Uma multa de cem dólares por... uma... simples briga.
- Bem, o Andy socou o xerife Slade - interpôs Jim. - Já se
espalhou por toda a cidade. Parece-me que os de Casper não
gostam muito do Slade.
- Não se rale, tio. Valeu bem os cem dólares. apesar de
terem mandado o dinheiro para eu ir para casa. É da maneira
que não posso ir!
- O Andy depois paga-te. Mas se nos vais deixar, espero que
não to pague tão cedo.
- eu não o vou deixar, tio - replicou Martha com calor.
- Viste a luta, pequena? - inquiriu Jim, curioso.
- Pois claro que vi. Santo Deus! Ao princípio fiquei
assustada. mas depois gostei.
- O Andy tinha qualquer coisa em mente, não tinha?
- Tinha, Jim. Deu-me a impressão de que ele provocou esses
vaqueiros de propósito. O sujeito que ele espancou daquela
maneira era um Smoky Reed, que as Glemm conhecem. Foi-me
apresentado assim que chegámos, e começou logo a fazer-se
atrevido.
Jim estudou Martha, com os seus olhos penetrantes, que
pareciam ler os pensamentos dela.


190


- Bem, então devia ser por isso que o Andrew estava tão
irritado - pronunciou.
Algo semelhante a um misto de surpresa, dor e felicidade,
invadiu Martha Ann.
- Jim. o... o Andrew sabia?
- Creio que sim, pequena.
- Ele bateu nesse estúpido... por minha causa?
- Claro. Porque havia de ser?
- Mas como descobriu ele?
- eu ouvi o Reed falar de si menos respeitosamente ao Andy.
Bligh regressava com o dinheiro, que meteu nas mãos de Jim.
- Avie-se e vá soltar o Andrew.
- Jim, não diga ao Andrew. - gritou Martha, mas este já não
a ouvia.
- Jantas connosco, pequena? - perguntou Bligh.
- Não tenho vontade - respondeu Martha, tentando parecer
natural. - E, além disso, tenho de arranjar o vestido para o
baile.
- Conta-me cá, como foi que esse Smoky Reed te insultou? -
pediu Bligh.
- Foi na pensão dos Glemm; ele vive lá. Estava lá ele e
vários outros vaqueiros. Reed tinha bebido um ou dois copos.
Seguiu-me até ao carro, não havia meio de me largar. -
"Garota" - disse ele - "você é uma pequena tão gira, que
aceita boleias, porque não sai comigo esta noite?" - eu
recusei e entrei no carro. Ele não fez caso. - "Sou o rapaz
mais meiguinho de toda a pradaria; não quer experimentar?" -
Então a Nellie Glemm interveio: - "Cale-se
Smoky, você já está mas é um bocadinho alegre. Se não tem
modos, ao menos seja decente". - Reed voltou para o passeio,
dizendo: - "Que diabo, é o que ela quer, não é?".


191


- Tinha esperanças em que essa tua proeza não se tornasse
umfalatório geral - observou Bligh, com desgosto.
- Receio que tenha feito mal, tio - respondeu Martha Ann,
com os lábios a tremer, - mas eu tinha que vir. e não havia
outro modo. Não me importo com o que pensem essas pessoas mal
intencionadas.
- Não estejas triste, minha filha. O Jim diz que com a
atitude do Andrew, a má-língua dos vaqueiros acaba, com
certeza.
Martha desculpou-se como pôde perante as raparigas e
recolheu-se no quarto. Depois de fechar a porta, para evitar
intrusões, pôs-se em frente do espelho a contemplar o seu
rosto. E, ao olhar, sentia que se libertava duma máscara
enganadora. Nessa tarde, a contundente verdade fora-Lhe
revelada por Jim Fenner. Até então, pretendera gostar de
Andrew Bonning. Agora compreendia que estava terrível e
irremediàvelmente apaixonada por ele.
- Apaixonada por ele?... Por Andrew Bonning? Por um homem
que a considerava uma namoradeira, uma mulher fácil, uma
leviana? É o cúmulo, meu Deus! - Os olhos encheram-se-lhe de
lágrimas rebeldes. Começou a andar dum lado para o outro do
pequeno quarto, batendo com o punho fechado na palma da outra
mão. Soaram pancadas na porta, que a fizeram reparar nas horas
e no lugar onde se encontrava ainda.
- Quem é?
- Sou eu - chamou alegremente Nellie Glemm. - Tem uma hora
para se vestir. Ponha-se bonita, Martha. Esta noite vai
enlouquecer Wyoming.
- Farei todo o possível - replicou Martha Ann, tentando dar
à voz um tom igualmente alegre. Rapidamente despiu-se,
lavou-se e escovou o cabelo até este formar ondas sedosas.
Depois calçou as meias e os sapatos azuis e, finalmente, o
vaporoso vestido azul.
Era uma martha Ann mais grave, que os seus olhos encontravam
no espelho. Onde se metera a sua tez dourada? O seu rosto
estava do tom do mármore. Um pouco de "rouge" e de "baton"
modificou o aspecto das faces e lábios; mas o que havia de
fazer àqueles olhos! Parecia a Martha que os antigos reflexos
maliciosos e enganadores tinham desaparecido. Orgulho nenhum
podia esconder o que ela via agora. Agora os seus olhos eram
transparentes janelas de âmbár, através das quais o amor
brilhava, desassombradamente. E, de súbito, compreendeu, como
que maravilhada, que nunca na sua vida estivera tão bonita.
Iria Andrew ao baile? Vê-la-ia e achá-la-ia bonita? E por mais
que se censurasse, era sempre a mesma coisa; o pensamento
fazia-a exultar.
Esse pensamento teria curta duração, a julgar pelas suas
recordações, se as vozes felizes no vestíbulo e as pancadas de
mãos impacientes à sua porta não lhe dessem a consoladora
certeza de que não tornaria a ficar só até terminar o baile.
Abriu a porta, sendo logo agarrada e arrastada pelas escadas
abaixo; novamente bem disposta, deu-se nela a natural reacção
à alegria, às cores garridas e ao movimento dos jovens. A sala
de entrada do hotel estava cheia de rapazes e raparigas, com
os quais as Glemms desejavam relacionar Martha. Eram.
raparigas de faces coradas e aspecto saudável e rapazes
morenos de feições vincadas, sem qualquer aspecto de
vaqueiros. Desceram com Martha dois quarteirões, rua abaixo e
subiram uma larga escadaria dum grande edifício, até ao último
andar. Aí tiveram de suportar muitas críticas, antes que
atingissem a sala de baile.
Essa era uma sala grande, sem móveis, decorada com i9` 193
bandeiras e toda a espécie de acessórios usados nos rodeos,
que Martha vira nesse dia tão fértil de acontecimentos. De
momento, o soalho rebrilliante estava vazio, excepto dos
lados, onde os jovens, em pé ou sentados, conversavam
alegremente. No extremo mais afastado da sala, havia uma larga
plataforma, onde os músicos estavam sentados a afinar os
instrumentos. Dum lado, umas entradas em arco davam para um
átrio. Num olhar rápido, Martha observou todos os pormenores
assim como o facto óbvio de que os rapazes eram em muito maior
número que as raparigas.
Uma vez lá dentro, Martha foi apresentada a muitos mais
jovens, incluindo alguns vaqueiros mas não fixou muitos nomes.
Essa gente do Oeste era democrática e, de modo nenhum, forte
em etiqueta. Tinha de admitir, também, que havia mais quem a
olhasse curiosamente num baile a rigor da universidade do que
ali. Sentira-se animada com a promessa duma noite bem passada,
até que, de súbito deu consigo a vaguear os olhos pela sala,
em busca de alguém que não estava presente.
- Aí está o Texas, Martha - segredou Nellie Glemm. -
Lembra-se daquele vaqueiro que queria guiá-la até ao rancho?
Pois, é ele. Que rapaz tão simpático! E é um perfeito
cavalheiro! É pena ser tão estouvado.
Martha ergueu os olhos, reconhecendo facilmente o vaqueiro
de cabelos ruivos.
- Como está, Nell. Tenho muito prazer em vê-las -
pronunciou.
- E você, como está? - respondeu a rapariga, em Gom
agradável, virando-se para Martha. - Dá-me licença que lhe
apresente um dos nossos vaqueiros autênticos, Texas Haynes.
Tex, apresento-lhe a menina Martha Ann Dixon.
Texas inclinou-se graciosamente e os seus olhos dum azul
faiscante contemplaram-na admirativamente.


194


- Boa noite, menina. Já nos encontrámos antes, mas sem
apresentação - cumprimentou.
- Boa noite, senhor Texas Haynes - retorquiu Martha Ann,
sorrindo. - Parece-me que tenho uma ideia de qualquer coisa a
seu respeito.
- Bem, com certeza dos meus cabelos ruivos: Que coisa,
porque não hei-de eu ter cabelos castanhos, ou doutra cor
qualquer?
- Não, não me referia ao seu cabelo.
- Já alguma vez dançou com um vaqueiro? - perguntou ele.
- Ainda não.
- Dá licença que seja eu o primeiro?
- Com certeza, se mo pede!
- Muito obrigado. Peço-lhe a primeira dança e se não a pisar
muito, talvez arranje coragem para lhe pedir outra.
- Duas danças não sei - respondeu Martha, com ar de dúvida.
- Hei-de perguntar à Nellie. O seu último nome é Haynes, não
é?
- Bem, eu não faço muito uso dele - respondeu Texas com um
sorriso. - A verdade é que eu próprio chego a esquecer-me.
- Ah! Sim.
- Não me importa que me tratem por Tex, mas gostaria que
você me chamasse Jack.
- Vocês aqui no Wyoming fazem as coisas muito depressa, não?
- Claro, e eu agora tenho de andar depressa. Vamos dançar,
antes que venham para aí os outros espantalhos.
Ele conduziua para o meio da sala e enlaçou-a um tanto
timidamente. Martha só precisou disso e de ver a sua maneira
de dançar para se convencer de que ele era um rapaz decente.


195


Segurava-a levemente e a uma certa distância e levava a
dança muito a sério, conversando muito pouco. Segundo os
padrões de Martha era muito mau dançarino. No fim deste
primeiro número reconduziu-a para junto do seu grupo. Havia
nele algo de curioso e, ao mesmo tempo, de encantador e
diferente.
- Foi a melhor dança que já tive - disse, em agradecimento,
enquanto os seus olhos azuis escuros a fitavam
admirativamente, - O Verão passado estive em Cody, onde ficam
os ranchos finos. Conheci uma rapariga do Leste que andava a
cavalo e dançava comigo, quando não arranjava mais ninguém.
Claro que tinha uma grande admiração por ela. Mas digo-lhe que
não se comparava a si; nem a dançar nem em beleza.
- É muito lisonjeador, pelo que vejo, senhor Jack - replicou
Martha, soltando uma risada.
- De modo nenhum; não sou de lisonjas. Não me compare aos
outros vaqueiros, menina Dixon - disse peremptoriamente. -
Apenas tentava exprimir a honra e o prazer que me deu,
dançando comigo.
- Muito obrigada. É um cumprimento muito simpático -
respondeu ela, reconhecendo nele um carácter extremamente
orgulhoso. - Recordar-me-á a minha primeira dança com um
vaqueiro.
- Bem, isso dá-me coragem.
- Olá, vocês dois. Que tal se vão dando? - interpôs Nellie
Glemm, fitando-os com os seus olhos francos.
- Estupendamente para mim, Nell. Estou tremendamente
inclinado a pedir...
- Outra dança? Que descaramento, Tex...
- Nellie, eu tenho muito gosto em conceder-lhe outra
se acha que não há inconveniente - interrompeu Martha,
apressadamente. Pelos rapazes que vira, Texas Jack seria um
par mais que aceitável.


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- Seu felizardo! Está bem, ora deixa-me ver... Pela minha
parte, não estou com muita sorte - respondeu Nellie,
consultando um cartão. - Pode ficar com a sexta, a seguir a
esta.
- "Gracias, señorita", hei-de dançar no seu casamento -
pronunciou, com a inclinação que tão bem lhe assentava. - Não
se esqueça, menina - disse, voltando-se para Martha. - A
próxima há-de ser melhor.
Recuou para dar passagem aos outros rapazes que desejavam
dançar com Martha. Desde aí, dançou com cinco jovens do Oeste,
todos eles mais habituados a dançar, dos quais quatro
contribuiram para aumentar o seu prazer crescente. O quinto,
porém, um rapaz alto e moreno fez-lhe recordar que nem todas
as danças podiam ser tão inocentemente agradáveis.
- Está a apertar-me muito - disse, assim que começou a
dançar com o desconhecido alto. Este riu-se e afrouxou a
pressão do braço e, enquanto davam a volta à sala, contou-lhe
que viera de Cody para ver o "rodeo".
- Não me deu a impressão de ser do Oeste - respondeu Martha
e, logo, sentindo novamente o braço dele cingi-la um pouco
mais, disse que estava cansada e queria parar.
- Não seja má, querida - protestou ele - cQue maneira é essa
de me tratar?.
Martha deixou-o à entrada do gabinete das senhoras. Recorreu
à bolsinha, para dar uns retoques na sua aparência, e só
voltou à sala quando a música cessou de tocar. O grupo de
Nellie não estava, de momento, à vista. E, antes que Martha se
afastasse muito, Texas Jack dirigiu-se-lhe.
- Ora, cá estou eu - disse ele, com um ar feliz. - Vi-a
dançar com esse último homem, e não posso dizer que tivesse
gostado.


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- Nem eu, senhor Texas. Mas livrei-me dele, assim que pude -
respondeu ela, sorrindo-lhe.
- Vi-o tentar apertá-la e você esquivar-se - disse
claramente. - Ele não é daqui, menina Martha. E só tentou
fazer-se atrevido. Tentou?
- Não tentou; foi mesmo.
- Bem, quando acabar de dançar consigo, vou procurá-lo...
- Para quê? - perguntou rapidamente Martha Ann, notando
subítamente o tom frio em que falara e a ameaça nos seus olhos
azuis.
- Na minha terra, menina Martha, não se faz uma coisa dessas
a uma rapariga.
- No Texas, claro. E porque é o Texas tão diferente dos
outros estados?
A meio do percurso, foram interrompidos por alguém.
- Desculpe-me - disse uma voz profunda e agradável, que
Martha reconheceu com um sobressalto. Ergueu os oLhos para o
rosto de Andrew Bonning. Este envergava um fato escuro, que
lhe reduzia a construção musculosa e lhe dava um ar de
distinção. Esclarecia qualquer coisa que muitas vezes
intrigara Martha. Rapidamente, ela baixou os olhos, receosa de
que pudessem revelar o seu amor por ele. - Boa noite, menina
Dixon. Não pude vir antes, mas espero que não seja demasiado
tarde para uma dança.
- Re... receio que sim - respondeu Martha, imediatamente
atrapalhada.
Bonning virou os olhos escuros para o par dela.
- Olá, Texas - disse familiarmente.
- Leva-me vantagem, forasteiro - respondeu o vaqueiro.
- É verdade, mas só nisso. Mas espero esta dança, sem eu lho
ter de explicar.
- Explicar o quê? - inquiriu Texas,


198


sem perceber.
- que me ceda...
- Mas quem é... quem é você? Como é o seu nome?
- Andrew Bonning. Trabalho para o Bligh.
- Ah. Já ouvi o seu nome em qualquer lado - tornou o
vaqueiro, cuja expressão se modificou imperceptivelmente. - É
você o sujeito que armou aquela briga lá no "rodeo?"
- Sou.
- Bem, isso não lhe dava a conhecer o meu nome; não sou das
relações do Cal Brice ou do Smoky Reed.
- Mas, mas se eu lhe recordar a noite em que se encontrou
com o McCall, aqui há umas semanas?
- McCall! - repetiu o vaqueiro, empalidecendo levemente.
- Sim, McCall. Lembra-se?
- Não digo que me lembre - tornou Texas com precaução,
apalpando o terreno. Martha Ann pressentiu nele qualquer coisa
que a fazia tremer. Do mesmo modo, Andrew parecia-lhe, caso
estranho, uma pessoa totalmente diferente, frio, de palavras
sarcásticas e olhar penetrante.
- Não me parece que você seja mentiroso, Texas.
- Quer dizer que o sou?
- Por enquanto, não. Estou apenas a fazê-lo recordar.
- O quê?
- A noite em que você foi a cavalo quase até Rocha Quebrada.
E encontrou um homem a Pé. Mccall. Isso ajuda-o a lembrar-se?
- Bem, creio que sim.
- Então vai ser camarada e ceder-me a sua dança com a menina
Dixon?
- Quanto a ser camarada; não sei. Mas faço-Lhe o jeito,
porque não quero discutir isso aqui, e continuar a embaraçar
esta senhora. Entendido?


199


- Óptimo. Pode discuti-la noutro lugar e em qualquer altura.
Texas voltou-se para Martha, o olhar sombrio e preocupado.
- Pode ter a certeza que tenho imensa pena de desistir desta
dança.
- Então, porque há-de desistir? - perguntou Martha,
recuperando a voz. - Não é porque eu o queira.
- Bem... esse seu cavaleiro do rancho N. B. fez uma
insinuação contra o meu bom nome, e não quero discutir com ele
aqui à sua frente. "Adios".
Afastou-se, de cabeça erguida. e abandonou a sala. Martha
Ann viu-o partir, como se a retirada dele lhe tivesse
estragado algo da felicidade daquela noite.
- Era a única maneira de acabar com isso, Martha.
- De acabar... com quê? - Ele parecia estar sob tensão, com
a testa franzida e os olhos fitos nela, com severidade. Foi o
que ele, obviamente, estava a pensar, que a libertou. Pouco
depois poderia recúperar o seu ar despreocupado, mas, naquele
preciso momento, era o homem que se apoderara do seu coração,
quer ela gostasse, quer não.
- Com essa história de se andar a fazer com ele...
- Sim? Importa-se de me explicar o que quer dizer com esse
"andar a fazer"?
- Seja como for; com esse vaqueiro, não consinto que
namorisque.
- Ah, não? - inquiriu ela, numa voz muito suave, sentindo o
espírito rebelar-se-lhe contra aquela afirmação de autoridade.
- Pois hei de continuar a namoriscar e a fazer-me e... e com
quem muito bem me apetecer, Andrew Bonning.
- O Smoky Reed foi o vaqueiro que disparou contra mim. E o
Texas Jack estava com ele nesse dia.


100

- Oh! - exclamou Martha, sentindo-se desfalecer. - Smoky
Reed!... Mas o Texas disse que não era amigo do... Andrew,
você não quer dizer que... não pensa que ele tomou parte no
atemtado contra a sua vida...
- Tanto, não digo. Mas ele estava com o Reed; eu vi-o.
- Um rapaz tão simpático e tão cortês?. Andrew, não posso
acreditá-lo. Não passou dum truque para o fazer abandonar a
dança.
- Por amor de Deus! eu não queria dançar consigo. Mas creio
que terei de o fazer, por causa das aparências. Esse grupo das
Glemms está a observar-nos.
- Não vale a pena incomodar-se. Que me importam as
aparências?
- Venha - disse ele, enquanto a música os envolvia
tentadoramente, fazendo-a deslizar para o meio da sala.
Sentia o corpo tão rígido, como flexível o espírito. Ele
ficaria convencido de que ela... odiava-o por pensar tal
coisa. Mas, de súbito, apercebeu-se de que ele era o mais
maravilhoso dançarino que encontrara até ali. A surpresa
sobrepojou todos os outros sentimentos e ela correspondeu
mecânicamente aos passos da dança. O empregado do tio! Com o
pensamento subitamente desviado de si própria, da sua vergonha
e humilhação, Martha Ann ainda não percorreu metade da sala,
quando adquiriu a certeza de que desvendara o seu disfarce.
Com que então, um trabalhador do Missouri! A maneira como a
cingia, simultâneamente firme e leve, o ritmo perfeito e a
complexidade dos seus passos, a graça alada com que girava em
sentido contrário, revelavam à conhecedora Martha Ann que ele
nascera para aquilo, o que explicava muitas das coisas que
pareciam incongruentes num vaqueiro de roupas grosseiras e
botas pesadas. Ele não era nem um vaqueiro, nem vira alguma
manada, não era nada daquilo Por que pretendia fazer-se
passar.


201


Nessa noite tinha a elegância e os modos dum atleta
universitário.
- Pregou-nos uma partida, hein. senhor Andrew Bonning? -
disse, incapaz de se conservar silenciosa por mais tempo.
- Sin. e estou a colher as tempestades - replicou ele,
amargamente.
- Homem de sociedade, insatisfeito e cansado da vida,
realista vagabundo, foragido da Lei. ou quê? - inquiriu
ironicamente.
- Desterrado, Martha Ann.
Ela estremeceu nos seus braços e abandonou aquela táctica.
Entregou-se ao prazer voluptuoso e, se aquele momento se
tivesse prolongado mais algum tempo, sabia que teria
desmaiado. Mas, antes que traísse os seus verdadeiros
sentimentos, a música terminou.
- Vamos respirar um pouco de ar puro - disse ele,
conduzindo-a, através dum dos arcos, para o átrio. A lua
brilhava intensamente e havia pares debruçados sobre a
balaustrada de madeira.
- Dá licença que fume? - pediu, sem lhe oferecer dos seus
cigarros, omissão em que ela reparou.
- Faça favor.
- Encontrei-os na minha reserva de roupas. relíquias do
passado.
Martha Ann tentou recuperar a sua antiga audácia de viajante
a quem nenhuma estrada, nem nenhum homem conseguia atemorizar.
O que ela queria parecer a Andrew, era o que realmente
acreditava ser, no fundo, mas o espírito, a despreocupação e a
vivacidade não vinham, como não vinha o jogo de olhares e
sorrisos, que uma vez prodigalizara ao moço provinciano, no
seu caminho para o Oeste.
- Dança muito bem. Com quem aprendeu?
- Tive milhares de professoras.
- Tenho sido enganado Por peritos, Olhos Sonhadores:


202


actrizes, herdeiras, aventureiras. Você não aprendeu a dançar
assim em clubes nocturnos.
- Nem você. no Missouri - retorquiu ela.
Ele riu-se, enquanto sacudia a cinza do cigarro. Parecia
absolutamente natural, naquela noite. Não havia nenhuma nota
forçada, triste ou pençativa, nele.
- Gostava de saber o que diria a Connie a isto.
- Quem é a Connie?
- Uma rapariga de quem eu julguei gostar. mas não gostava...
- Ela gostava de si?
- Martha Ann, ainda não Lhe agradeci, ter-me tirado da
prisão - disse ele, fingindo não ouvir a pergunta dela. - Foi
muita bondade da sua parte. Teria de passar a noite toda
naquele buraco infecto.
- Agora estamos todos sem dinheiro.
- Não; completamente, não. eu ainda tenho algum e pago-Lhe
quando chegarmos a casa.
- eu também tenho alguma coisa a agradecer-lhe - replicou
ela, em tom suave, de cabeça baixa. - Embora não possa
compreender porque o fez...
- O quê?
- A sova que deu a esse Reed, o vaqueiro.
- Já estava guardada para ele, de qualquer maneira, Martha
Ann. Mas teria sido capaz de o matar, só pelo que insinuou a
seu respeito. Foi bom que o "mano" Slade mo tirasse das mãos.
- Jim contou-lhe que o Reed me insultou esta manhã, em casa
das Glemms?
- Não, não contou.
- Engraçado... esta gente do Oeste...
- São, não são? Quando eu disse ao juiz que tinha çido
alvejado por um ladrão de gado, que não era outro senão o
vaqueiro Smoky Reed, ele quis saber se eu o tinha apanhado em
flagrante.


203


eu admiti que não. Então ele disse, que era melhor que eu
tivesse cuidado, antes de me pôr para aí a falar de roubos. de
gado. E o xerife tornou a revistar-me, a ver se encontrava
contrabando de whisky.
- Nós somos do Leste... novatos...
Ficaram silenciosos. A falsidade da situação tornava-se
incomodativa para Martha. Porque não tomava ele uma das suas
atitudes, ou procedendo de acordo com a opinião que formava
dela ou dizendo-lhe como fora idiota em julgá-la pelas
aparências? Como teria preferido uma atitude claramente
insultuosa! Mas ele era tão cavalheiresco que não
correspondera à provocação que imaginara ver nela, ou tão
estúpido que não compreendia que uma rapariga podia desafiar
certas convenções, podia ansiar pela sua própria liberdade de
correr aventuras, e, contudo, ser uma pessoa decente. Ela
virou-se de costas para a balaustrada, enquanto a música
recomeçava. Ele atirou fora o cigarro.
- É pena, não é, Martha Ann? - perguntou, fitando-a com os
seus olhos sombrios.
- Sim. Pergunto a mim própria, se será Possível que você se
refira ao mesmo que eu.
- Nem por sombras. Venha, já a monopolizei bastante.
Entraram. De todos os lados surgiam pares a rodopiar. Martha
Ann confiava em que Andrew a levaria novamente para o meio
deles, e traiu o seu desejo, com um olhar tímido para ele.
- Martha Ann, você é uma rapariga demasiado encantadora e
uma dançarina demasiado perfeita para perder o seu tempo
comigo - disse ele.
- Ora! Você nem me acha encantadora, nem coisa nenhuma,
senão... - Não pôde concluir as suas palavras arrebatadas, mas
a ira silenciosa dos seus olhos era bastante evidente.
- Não se esteja a enganar com isso. O homem é um bicho muito
estranho. Neste julgamento de Páris, entrego-lhe...
- Um limão - interrompeu ela, com úma risadinha nervosa.
Como ele se comprazia em a ferir! E como ela ambicionava que
ele a respeitasse! Eram dois completos estranhos - tão
afastados como os polos - ele, um rapaz da época victoriana,
ela, uma rapariga qualquer encontrada na estrada. - Sugiro-lhe
que não intervenha, na próxima vez que me encontrar com o Tex.
Até à vista!
Se esperava um protesto, este não chegou. Ele conduziu-a
para o pequeno grupo que a esperava, e, com üma cortesia
desprovida de afectação, que fez Martha sentir-se desajeitada
ao pé dele, agradeceu-lhe a dança e desejou-lhe boas noites. O
rosto de Nellie Glemm exprimia uma curiosidade que não
expressou. Mas era fácil de ver que tanto ela como as amigas
teriam gostado de conhecer Andrew Bonning.
O resto do baile foi um pesadelo para Martha Ann. Nem sabia
nem queria saber com quem dançava. Teria acolhido com prazer
uma dança com Texas Jack, ou mesmo com Smoky Reed, se isso
fizesse Andrew voltar. Censurava-se por ter fingido
correspomder à ideia que ele tinha dela. Agora, ali estava o
resultado: a noite tinha ficado estragada. A boca só lhe sabia
a poeira insípida e cinzas amargas.
De madrugada voltou para o hotel e meteu-se na cama, com os
pés doridos e o coração entorpecido, o cérebro preso de
desencontrados pensamentos e chorou até adormecer.

204 205

X

Tarde avançada, uma semana depois do "rodeo", Martha Ann
avistou Jim Fenner, que se dirigia para o seu lugar
preferido, debaixo de uma árvore frondosa, à beira do rio.
Aquele fora um doloroso período de incerteza para Martha,
primeiro devido ao seu próprio sentimento de frustração e
insegurança e, em segundo lugar, devido às complicações
crescentes que afligiam o tio.
Jim atravessou a entrada a coxear e, acomodando á perna
aleijada, sentou-se ao lado dela, na relva. Estivera um dia
quente de Agosto. A face dele, magra e semelhante a uma
máscara bronzeada, não revelava os seus sentimentos, mas
havia uma sombra nos olhos, de reflexos cor de avelã.
- À procura do Andy? - perguntou, olhando a encosta
avermelhada que se estendia até às colinas.
- Jim, eu sou muito sua amiga. - respondeu ela -, Mas se não
se deixa dessa história do Andy, ficamos de relações cortadas
para o resto da vida. Quantas vezes Lhe tenho dito que venho
para aqui por causa da paisagem, tão ampla e bonita, porque
posso ver o rio afastar-se, serpenteando por aí fora, e toda a
pradaria e aquelas montanhas além?


207


- Bem, claro... É uma bonita vista. Tão bonita como algumas
do Arizona. Mas nenhuma paisagem tem grande valor, se não
houver nela alguma vida...
- Vejo cavalos, gado, um cavaleiro, uma vez por outra,
coelhos, patos bravos, águias, e uma vez vi um gavião. Que
quer mais?
- Bem, tinha uma esperança de que estivesse a ver se via o
Andy -, respondeu, com simplicidade. - Você com preende,
Martha. A chegada de vocês dois, jovens, pôs-nos num alvoroço.
Não era só a criação de gado que corria mal ao Bligh; e eu e a
Sue, como nunca tivemos um miúdo, e sempre desejámos um, assim
a modos que ficámos com uma vida nova. É natural que a gente
se interesse muito por vocês dois; são ambos novos, cheios de
vida, têm sangue na guelra. Não leve a mal, minha filha. Somos
nós que vamos ficando velhos e sós.
- Perdoe-me, Jim - respondeu Martha, estendendo
impulsivamente para ele a mãozita delicada. - Eu sou uma
rancorosa. Sou amada e uma ingrata; não mereço o vosso im...
interesse e o vosso carinho. Mas não o acho velho, Jim.
- Bem, tenho mais dez anos que o Bligh, e ele vai quase nos
sessenta.
- Se não me dissesse, não acreditava - respondeu Martha Ann,
com um suspiro. - Teve más notícias, Jim?
- Receio bem que sim, pequena. Fomos à cidade, contando
arrumar aquele contrato com o McCall; mas ele não é boa
pessoa. Não nos serviu de nada apelar para a Associação dos
Criadores de Gado de Wyoming. E os Irmãos Cheney não nos
emprestam nem um chavo. Estamos muito apertados de dinheiro e
ainda agora... o gado começou a mover-se. O McCall insistiu em
mantermos o contrato original, que, sabe a gente agora, nem é
para se pensar nele. Ainda lhe comecei a dizer que os
contratos dele, no Arizona, haviam de parecer muito escuros,
mas o seu tio fez-me calar. Tanto fez, porque o McCall ficou
vermelho. Levámos a questão a um juiz. Agora é com Bligh
entrar em sociedade com o McCall ou ir para julgamento.
- Que lhe aconselha, Jim?
- Eu preferia o julgamento. Aquele sujeito, o McCall não é
um grande criador de gado; e não tem lá grandes simpatias. Até
lá talvez soubéssemos alguma coisa a respeito dele.
- Mas se não soubermos nada?
- Bem, perdemos e está o caso arrumado.
- É a ruína, para o tio?
- Sim, no que respeita à criação de gado. Duvido que ele
pudesse recomeçar, na sua idade e sem capital. No entanto,
essa é uma hoa quina e dá-nos para vver.
- Sempre é uma consolação. Esperemos que não seja tão mau
como o Jim receia.
- Que tenciona fazer, Martha?
- Eu? - inquiriu Martha, sobressaltada.
- Sim. Vai ficar com o seu tio? Eu e a Sue temos pensado
muito em si. Uma pequena bunita e elegante como você, que
podia ter tudo o que quisesse, podia à vontade casar rica, se
fosse desse género, e vir para esta pradaria deserta... Mas
parecia tão feliz - até aqui há pouco tempo - pondo as mãos em
toda a espécie de trabalho. Louca por cavalos e por ar livre.
Chegámos a pensar que era esta a vida que lhe convinha. Que é
que julga que trouxe os pioneiros cá para o Oeste? Foi isso
mesmo, Martha; essa largueza de pradaria e de Vale, de colina
e de montanha, abertos e sem peias diante dos olhos da gente.
Pois você tem essa veia de pioneiro, se a soubesse ver.
- Oh, Jim, acha realmente que sim? - murmurou a rapariga,
profundamente emocionada.
- Claro que sim. Deixe-me cá ver essas suas mãozinhas.
Martha Ann estendeu-lhe as mãos morenas e delicadas para a


208 209


inspecção, sorrindo-se com a seriedade com que ele as afagava
e as virava de palmas para cima.
- São mais bonitas para mim, do que quando eram brancas e
macias. Bem, o trabalho não faz mal a ninguém. Mas apesar
disso, pequena, não gostaria de a ver a partir lenha, a lavrar
o campo e a limpar o estábulo. O Andy também disse o mesmo,
outro dia.
- Santo Deus! Que amabilidade!. Eu também não gostaria. Mas,
sinceramente, Jim, eu gosto de cozinhar, de coser, de mugir as
vacas, apesar de detestar o trabalho de casa, quando estava na
minha.
- Bem, é melhor que vá pensando bem nisso minha pequena. É
bom que lhe diga que aqui podemos ir de mal a pior. Eu e a Sue
ficamos com o seu tio. Eu falei nisso ao Andy e ele zangou-se
comigo por pensar que ele fosse capaz de nos deixar, só porque
as coisas estão difíceis.
- Ele fez isso? Foi muito simpático - murmurou.
- O Andy não vê o lado mau da questão - continuou Jim. - Diz
que vai fazer a vida negra ao McCall e aos seus cavaleiros da
pradaria. ALguma coisa há-de acontecer. Bem, o Bonning é novo
e está cheio de esperança. e apaixonado, é claro.
- Apaixonado? Não acredito. É demasiado... demasiado... -
protestou Martha.
- Esses rapazes estão todos loucos por si.
- Nunca dei por isso, Jim. Tem a certeza que não andou a
comer dessa tal erva da loucura, do Arizona, de que me falou?
- Os cavalos e o gado é que comem dessa erva, minha filha. O
mais que eu posso fazer é fumar o meu cachimbo. Mas parece-me
bem que, se há algum homem que esteja apaixonado, é o Andrew
Bonning por si.
- Jim!
- Bem, não é preciso gritar dessa maneira. e ficar


210


encarnada. e depois branca, como está agora. Você sabe, não
sabe?
- Não - murmurou Martha, desviando o rosto.
- Não se têm apaixonado por si rapazes, e homens também,
desde que começou a usar saias compridas?
- Não.
- Esse vaqueiro, Texas Jack, que veio cá no domingo. não
está ele apaixonado por si?
- Derriços de vaqueiros - respondeu, trémula, Martha Ann,
esforçando-se por combater o sentimento que se avolumava no
seu peito.
- Ridículos, pequena. É a palavra que costuma usar; já a
ouvi muitas vezes. Ridículo! Não sei quais são as suas ideias,
rapariga. Você é uma pequena muito ousada e quase sempre a
sinceridade em pessoa. Mas neste particular não a consigo
entender. Receio que esteja...
- Jim Fenner, se se põe também ao lado dos meus pais,
parentes, uma quantidade de botas-de-elástico... e An...
Andrew Bonning. eu... eu nunca mais lhe falo - exclamou Martha
Ann, com as lágrimas a saltarem-lhe aos olhos.
- Pronto. Não se fala mais nisso - disse Fenner, para a
aplacar. - Daqui em diante, confio na sua palavra. Estou do
seu lado, Martha; e isso quer dizer que a Sue também está. Se
nós, que somos dois pobres velhotes, não podemos compreender,
ao menos podemos ajudá-la e estimá-la. Calculo que as coisas
não foram assim tão fáceis para si, lá em casa, ou nalgum
lado. Você devia ter nascido rapaz; e, em vez disso, sai-me a
rapariga mais gentil, que alguma vez nasceu para atormentar os
homens. É duro, pequena. Quando uma rapariga não pode levantar
a cabeça do chão ou sorrir, sem que algum idiota pense logo
que está a querer catrapiscá-lo. bem, não há dúvida que é
aborrecido.
- E é isso mesmo que acontece, Jim - respondeu ela,


211


em tom cansado. - Era assim onde eu vivia. E aqui pouco melhor
é.
- Martha, o Andrew também fez isso?
- Não, ele não.
- Bom, só lhe fica bem. Não posso imaginar o Andrew a
divertir-se com uma rapariga.
- Ora! Ele não seria diferente de qualquer outro. se
acreditasse que era ele o único.
- Tem a certeza, pequena?
- Bem, isso não. Mas eu conheço rapazes desse género.
Rapazes que querem uma rapariga só para eles. e ficam danados
com ela, se olha para mais alguém. Estava farta de todos eles.
- Escute, Martha. Você tem uma opinião errada acerca do
Andrew - continuou Jim, com ar sério. - Ele não é o que
aparenta. E não sei o que pretende com isso. A Sue diz que
acha sempre muita graça, quando ele lhe empurra a cadeira, ou
fica de pé quando ela entra. as mulheres reparam nessas
coisas. Mas que ele é alguém, é.
- No "rodeo", chamaram-lhe pugilista - disse Martha, com um
risinho estranho.
- Bem, não há dúvida que ele é um furacão. Ainda não me
passou a impressão daquela briga. Não, o Andrew Bonning não é
vulgar. Fosse lá o que fosse que o trouxe para aqui, não foi
nada pouco limpo. Tenho lidado toda a minha vida com pessoas
que escondem qualquer coisa e o Andrew não tem nada que o
envergonhe. Mas anda muito triste e taciturno.
- Alguma mulher - aventou Martha Ann, com uma ponta de
ciúme.


212


- Alguma rapariga!... Quando chegou cá, Martha, o Andy foi
bastante severo para consigo. Eu chamei-lhe a atenção e ele
não tornou a falar no assunto. Creio que ele ainda pensa o
mesmo da sua proeza de vir para aqui sozinha e a pé. Eu não
costumava censurar o Andy e eu próprio pensava também que essa
era a proeza mais disparatada que uma rapariga podia fazer.
Mas agora vejo de modo diferente. Nós é que estávamos
enganados; essa ideia foi natural e inocente, porque era de si
que se tratava, e não de uma rapariga qualquer.
Martha Ann pousou a cabeça no ombro da Jim.
- Teria dado um estupendo papá, Jim -, suspirou.
- Ainda não é tarde!... Mas não me enerves, pequena, que eu
estou a falar muito a sério. Sinto-me como... como se fosse um
desses sujeitos muito graves que governam os destinos das
nações. Por muito que o Andy te tenha censurado - ao que
julgava que tu eras - isso não impediu que se apaixonasse por
ti. E cada vez mais, com o tempo.
- Porque pensa... que ele... que ele... ?
- Bem, a Sue é que reparou primeiro nisso. E, acredita-me,
Martha, aquela mulher nunca se engana. E depois de ela me ter
avisado, pus-me a observar o Andy e tive muitas provas disso.
- É capaz de me dar ao menos uma? - disse a rapariga,
subindo-lhe a cor às faces.
- Ora, deixa-me cá ver. É difícil escolher assim... só
uma... Lembras-te do dia em que o teu cavalo te atirou ao
chão?
- Lembro-me.
- Eu não soube, senão mais tarde, para que era aquilo tudo.
Mas, quando o Andrew voltou lá, por causa da tua bota, eu
andava por acaso por ali e vi-o desmontar e apanhar qualquer
coisa; sentou-se na areia e pôs-se a olhar para o que tinha
apanhado, com um ar mesmo terno, juro-te que foi a impressão
que me ficou. Claro que já estava bastante escuro e eu sou um
velhote sentimental. Mas ele lá estava sentado como um índio
Navajo, a olhar o pôr-do-sol. Havia qualquer coisa de patético
e de solitário naquela maneira de olhar.

212 213


Nem o quis chamar. Depois perguntei-lhe onde tinha estado e
ele disse que tinha ido procurar a bota que tinhas perdido.
Então, pequena, estás convencida?
- Nem pensar! Sempre tem uma imaginação, Jim. Conte-me
outra coisa.
- Bom, o modo como ele sovou o Smoky Reed - aventurou
Fenner.
- Não. Ele já tinha ideias de fazer isso.
- Então, o baile do "rodeo"... Não tinha olhos senão para
ti. além de não ter dançado com mais ninguém. E as raparigas
estavam todas desejosas que ele as fosse buscar; isso metia-se
pelos olhos dentro.
- Isso podia ser uma prova - respondeu ela, pensativamente
-, mas nunca me convenceria. Está a perder, Jim, a não ser que
arranje uma melhor, entre as suas cem provas. - E afastou a
cabeça do ombro dele, para o fitar demoradamente.
- Bem, não há dúvida que ele te observa a todas as horas, e
que não podias levantar a cabeça em sítio nenhum da pradaria,
sem ele dar por isso.
- Curiosidade masculina e a obsessão de ter alguma mulher
sob o seu domínio, mais nada - proclamou Martha.
- A Sue diz que é qualquer coisa que ela sente no Andy,
todas as vezes que te aproximas.
- Pois é mas não sinto eu.
-Então é porque não és de carne e osso. Martha, digo-te que
ele gosta de ti. Realmente, não é muito digno da minha parte
atraiçoá-lo desta maneira mas sou obrigado a isso, porque
podias fazer algum disparate, só por despeito. Por isso vou-te
contar uma coisa: o Andy traz com ele uma fotografiazinha tua,
redonda, numa moldura. Vi-o a olhar para qualquer coisa e
quando eu me cheguei, ele meteu-a logo outra vez no bolso.
Depois do jantar, ele foi-se lavar para o rio e eu fui-lhe
sorrateiramente à roupa e pesquei o retrato de dentro da
algibeira da camisa.


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E era um bonito retrato, não há dúvida.
- Oh! O... o... Eu perdi essa fotografia no dia em que fomos
ao "rodeo". Eu ia a guiar. Ele tinha a minha mala de mão no
colo. Caiu ou foi ele que o roubou.
- Bem, isso é uma prova ou não é?
- Jim, é realmente muito estranho... que ele o tivesse
levado e guardado e olhado para ele. só para ver qual é o
aspecto de uma má rapariga. Mesmo assim, não posso ter a
certeza.
- Queres ter a certeza? - perguntou subitamente, como se
agora a tivesse à sua mercê.
- Jim!... Eu... Sim, quero! - exclamou, parecendo a ponto de
perder a serenidade.
- Eu vi-o... beijar o retrato - exclamou Jim, triunfante.
- Isso é mentira, Jim Fenner!. Ele não fez tal. é
impossível. O Andrew não fazia tal coisa.
- Juro que o vi.
- É cruel, Jim. Tem-me atormentado durante semanas. Mas hoje
está positivamente um diabinho.
- Não estás satisfeita por eu te ter contado? - perguntou,
sustendo o riso.
- Vá-se embora!
- Claro, ponho-me já a andar - respondeu, levantando-se com
dificuldade. - Mas ainda não me disseste se pensas ficar com o
teu tio até ao fim.
- Hei-de ficar até ao fim, Jim - respondeu ela simplesmente.
- Ora, ainda bem. Calculei que havias de... ficar. Podes ir
visitar a família, qualquer dia. ou vir a tua gente
visitar-te. No fim, tudo há-de acabar bem.
- Vá-se embora! - gritou Martha Ann. - Ou eu... eu dou-lhe
um beijo!


215


- Bem, como não quera apanhar uma tareia, acho que me vou
indo.
Martha Ann encostou-se à árvore. Ficaria até ao fim!
Enchiam-lhe a alma tristeza e felicidade, ao mesmo tempo.
Por que estranhos caminhos encontrava finalmente u seu nicho
na vida. Amanhã havia de cavalgar, cavalgar, para muito longe,
pela encosta avermelhada, para algum lugar solitário, onde só
o ermo pudesse testemunhar a sua alegria.
O sol afundava-se, vermelho e ouro, por detrás das
montanhas. O rio seguia o seu curso tortuoso, ladeado de
verde, diluindo-se na neblina avermelhada da pradaria.
No mais alto dos céus, acumulavam-se, imponentes e serenas,
grandes nuvens rosa e pérola. Como um mar, as salvas
prolongavam-se até às colinas recortadas, ondulando
suavemente.
Não passava viva alma diante de Martha. Como eram solitários
os espaços imensos! Haviam sido sempre assim, ou, recordando a
geologia que aprendera, por milhões de anos, desde que as
geleiras do Norte se tinham retirado. Que havia ali de tão
repousante para a sua alma, tão semelhante a algum lugar que
conhecera, mesmo antes de ter nascido? A paz que lhe invadia o
coração tinha também alguma coisa que ver com o que Jim lhe
contara acerca do estranho procedimento de um homem para com
um retrato perdido.
Nesse momento surgiu, lá muito ao longe, um cavaleiro
solitário, mancha negra cujos movimentos se iam tornando
gradualmente mais perceptíveis. Dava vida à paisagem; tudo o
que faltava nela! Mas a Martha Ann, aquele vulto dava-lhe
infinitamente mais; de mãos fortemente compri midas contra o
peito, não se cansava de o contemplar, enquanto os olhos se
enevoavam.


216


Era pelo meio-dia do dia seguinte e, durante horas,Martha
Ann levara o cavalo alternadamente a trote e a passo pela
interminável encosta acima. Nunca se atrevera a ir tão longe,
sozinha. Mas naquele dia, sabia que precisava de solidão. Que
fácil seguir, sobre a sela, cavalgando sozinha pela pradaria,
com o vento a fustigar-Lhe o rosto, o sol quEnte e radiante, o
chamamento da solidão!
Dirigia-se para as Colinas do Antílope, que avultavam já
próximas. Esperaria, conter-se-ia. adiaria a luta entre as
duas facetas da sua personalidade, até que encontrasse um
lugar ideal, onde nenhuma outra mulher tivesse ainda esvaziado
a sua alma.
Em breve passava por entre filas de árvores. Estava seco e
agradável entre aquelas árvores espalhadas, onde florinhas
douradas se misturavam à salva e à erva cor-de-prata. Quando
olhou para trás, do cimo da longa encosta, ficou fascinada
pelo esplendor do declive, estendendo-se até ao fio distante
do rio, e pelo ponto escuro, que era o rancho.
Por fim, sentiu que não podia ir mais além. Chegara a uma
clareira, coberta de relva prateada, rodeada de árvores de
formas irregulares, solitária e isolada, escondida de todos os
olhares, excepto dos das águias, altar da sua abnegação, cheio
de paz e de tranquilidade, pois não se ergueria da sua vigília
solitária, a mesma rapariga estouvada, intolerante, orgulhosa
e egoísta.
Martha amarrou o cavalo na orla das árvores, e escolheu uma,
de copa alongada, para sob ela repousar. Cobria o solo um
espesso tapete castanho de folhas minúsculas, caídas da
árvore, uma variedade de pinheiro; agarrou uma mãocheia de
caruma e deixou-a escorrer por entre os dedos.
Sentia relutância em abandonar o prazer que lhe dava a
contemplação, o perfume e o contacto com aquele refúgio


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isolado trocando-o pelos pensamentos que precisava de pôr a
claro. Pela primeira vez, tinha a sensação de como devia ser
delicioso não pensar em nada, de fazer uso unicamente dos
sentidos! Talvez tivesse sido esse instinto hereditário que a
atraíra ao Wyoming. Como poderia compreendê-lo quem nunca
sentira aquele encantamento? Martha Ann deitou-se sobre o
leito de agulhas de pinheiro e deixou vaguear o pensamento.
- "Com que então roubou o meu retrato!... Querido! Oh, se
gostas realmente de mim...
hei-de-te fazer sofrer bem, antes de te provar que não sou
O que pensas.
e se não gostas eu hei-de ser o que pensas. Oh, não,
não!...
Morrerei, simplesmente!
Um som inesperado interrompeu o devaneio da rapariga, um som
que, a princípio, não pôde definir.
Alarmada, Martha sentou-se, a tremer. O som tornou-se mais
nítido. Cascos! O cavalo tinha fugido. Não. Os passos vinham
do lado oposto do pequeno anfiteatro. O ruído de ramos
quebrados precedeu o berro agudo de um vitelo. Por um espaço
entre as árvores passou, aos tropeções, uma vaca, seguida de
um vitelo. Depois, do meio da verdura, saltou uma coisa
amarela e parecida com uma cobra, que se enroscou à volta do
vitelo, fazendo perder o equilíbrio. Logo surgiu um cavalo,
cujo cavaleiro se dobrava para não embater na ramaria. Fez o
cavalo empinar-se e, com um salto, atirou O vitelo ao chão e
pôs-lhe os joelhos em cima. Martha Ann permanecia agachada,
enquanto o terror do desconhecido se transmutava no terror dum
acto, cuja significação calculava vagamente. Quando o
cavaleiro se ergueu lançando o chapéu para o lado e enxugando
o rosto suado, descobriu uma cabeleira dum ruivo flamejante,
mas já reconhecera a figura flexível de Texas Jack, mesmo
antes de ver O seu indiscreto cabelo.
- Berra para aí, bicho maldito. Agora já tens marca.


218


E tu põe-te a mexer - apanhou uma pedra e atirou-a à vaca. O
animal abaixou a cabeça, ameaçador, mas outra pedra, bem
dirigida, atingiu-o com um ruído ressonante. Os olhos muito
abertos de Martha Ann avistaram, no flanco da vaca, a marca N.
B. O animal, atordoado, fugiu para a orla da clareira, sempre
a berrar.
Texas partiu alguns ramos secos da árvore que Lhe ficava
mais à mão e colocou-os no solo, perto do vitelo; riscando um
fósforo, acendeu uma fogueira, que abanou com o chapéu até a
fazer crepitar. Depois tirou qualquer coisa da sela, um
utensílio curvo e delgado. Martha já vira algo semelhante, um
ferro para gravar marcas no gado. Texas meteu a ponta do ferro
na fogueira e começou novamente a abanar as chamas, que
crepitaram como que sopradas por um fole.
De súbito, curvou-se, e, com o ferro na mão, correu para o
vitelo, ajoelhou e aplicou a ponta incandescente ao flanco
vermelho do animal, que estremecia. O vitelo berrou com
vontade. Martha ouviu rechinar, viu o fumo subir no ar e
depois chegou-lhe um cheiro a pelo queimado, que a agoniava.
Mas a náusea, o terror e todos os outros sentimentos deram a
precedência a uma justa ira. Texas Jack estava a marcar um
vitelo do tio; era um ladrão de gado, a quem ela acabava de
apanhar em flagrante, no acto de cometer o crime.
Rapidamente Martha Ann ergueu-se e, afastando os ramos que a
tinham encoberto, deu um passo para a clareira.
Texas ouviu o seu passo e a sua cabeça rubra, levantou-se de
repente, como a dum veado assustado. De súbito, virou-se,
sacando, ao mesmo tempo, uma pistola; em qualquer outra
altura, Martha poderia ter recuado diante do seu rosto feroz,


219


mas naquela ficou impávida, indiferente ao seu gesto ameaçador
e à pistola apontada para si.
- Santo nome de Deus! - exclamou, surpreso e visivelmente
aliviado.
Martha Ann continuou a andar, até ter a seus pés o vitelo
amarrado. No flanco do animal tinham sido gravados dois X,
cujos traços brilhavam, em carne viva.
- A marca de McCall! - soltou, tomada de espanto, fitando o
vaqueiro. - Você gravou a marca do McCall num dos vitelos do
meu tio, Texas Jack.
- Apanhado com a mão na massa - respondeu Texas e, atirando
ao ar a pistola, agarrou-a pela coronha e tornou a colocá-la
no cinturão. Parecia calmo, lacónico e indiferente, mas a
palidez, que ainda não desaparecera e o cintilar dos olhos
azuis revelavam a Martha que ele não era absolutamente
invulnerável.
- Seu ladrão de vitelos, infame assalariado, seu vaqueiro
desprezível - explodiu irada, fulminando-o com os olhos. -
Trabalha para um patrão e rouba Para outro. Vem a casa do meu
tio e come e bebe com ele, aceitando a sua hospitalidade e a
minha estima Seu verme miserável; cobarde, mentiroso,
vigarista!. E gaba-se você de ser um texano. era incapaz de
insultar uma rapariga!. Você ainda é pior que o Smoky Reed,
porque esse, ao menos, não faz as coisas pela calada.
- Martha, que diabo, também não sou tão desprezível como
tudo isso - tentou desculpar-se, o rosto agora escarlate, o
olhar envergonhado e implorante. - Você é uma novata e não
pode compreender o Oeste. Todos os ganadeiros põem a sua marca
nos vitelos desgarrados, quando os encontram; não é bem a
mesma coisa que um roubo.
- Um vitelo desgarrado não tem mãe - ripostou Martha. - E
aí está a mãe desse vitelo, que traz a marca do N. B.
- Bem, se tem tanto empenho nisso... sou um ladrão - disse
ele e, ajoelhando ao lado do vitelo, soltou-o. Depois quando
este, pondo-se de pé, fugiu, aos berros, ele sentou-se na
erva. Sacou duma pequena bolsa de tabaco e enrolou um cigarro,
com os dedos firmes.
- Texas, estou simplesmente revoltada e muitíssimo
desiludida consigo. Ainda no domingo passado me disse que
gostava de mim.
- Disse e repito. Mas que tem isso que ver com este assunto?
Jurei que este seria o último. este contrato com o McCall, mas
eu já estava metido nele, muito antes de sonhar sequer em
conhecê-la. Ele deve-me dinheiro e até ameaça denunciar-me...
Tinha mesmo de continuar com isto.
- Mas, Texas, se é um ladrão, não pode de maneira nenhuma
fazer um namoro honesto a uma rapariga decente - declarou
Martha.
- Claro que era um namoro decente; ia pedir-lhe que casasse
comigo.
- Oh! E pensar que eu simpatizava consigo. e que podia
ter-me apaixonado por si!
- Pois não dava mostras nenhumas disso - resmungou Texas,
puxando uma fumaça. - E não me apoquente mais; não suporto que
me faça isso.
- Mas você não tem um bocadinho de vergonha? Ainda tem a
coragem de ficar para aí sentado, a arranjar desculpas para
uma patifaria destas? A arruinar deliberadamente o meu tio, um
pobre velho! Ah, que bom texano você me saiu.
- Olhe, minha ferazita, estou aqui estou a tapar-lhe essa
sua linda boquinha, se não se cala. Se eu não fosse um
cavalheiro e um texano, fazia o que faria o Smoky no meu
lugar, ou outro vaqueiro daqui da Pradaria.
- Que era?


220


- Levava-a para as colinas e prendia-a lá - respondeu, numa
explosão de ressentimento.
- Texas, não era capaz duma tal cobardia! - tornou ela,
apressadamente, menos segura do que queria aparentar.
O vaqueiro parecia estar num aperto.
- Não, não era capaz. E pode apostar a sua gentil pessoa em
como a única razão de eu não ser capaz disso, é ser um texano.
E que diabo faz aqui por estas bandas?
Suponha que em vez de mim era o Smoky, ou meia dúzia de
outros que Lhe podia nomear, sua imprudente! Não tem juízo
nenhum nessa cabecinha, ou quê? Mete-se a vir até para o Oeste
sozinha e agora vem-me sem companhia para as colinas.
- Não tenho medo.
- Já vi que não. Mas é demasiado inconsciente. demasiado
inocente e confiante. Se persiste nesse seu procedimento,
ainda passa alguma vergonha com alguém que julga que é o que
você está a pedir!
Ela fitou-o, emudecida de surpresa Pela veemência dele.
- É mesmo assim. Alguém havia de lho dizer. Porque não lho
disse já o seu amigo Bonning?
- E porque havia ele de o dizer?
- Porque não a obriga ele a ficar em casa, se gosta tanto de
si, como afirmam as raparigas?
- Não gosta nada... E não me podia obrigar a fazer coisa
nenhuma.
- É muito mau que não haja ninguém que possa. Você devia era
apaixonar-se por qualquer felizardo e acabar com esse jogo de
despedaçar o coração de cada um. Bem, agora que me apanhou em
flagrante, que pensa fazer?
- Que fará se eu disser? - perguntou gravemente.
- Bem, tentarei apanhar algum dinheiro ao McCall e
desaparecer da região, a não ser que alguém tente deter-me, o
que não seria muito saudável para ele.


221


- Se eu prometer não o trair, promete-me que não torna a
roubar?
Texas pôs-se de pé, o rosto colorido por um rubor de
vergonha, que desapareceu, deixando-o pálido; os olhos azuis
tinham uma intensidade penetrante.
- Martha, é muito difícil o que me pede, como vê - disse. -
Creio que nunca apreciei bem a espécie de rapariga que você é.
Peço-lhe que não ligue ao namoro que eu lhe fazia e que não
era tão honesto como eu garantia. Mas nunca lhe teria tocado
com um dedo. Se não me denunciar, prometo emendar-me.
- Negócio fechado, Texas. Aqui tem a minha mão - tornou
ela, estendendo-lha.
- Bem, escapei por um triz - pronunciou, com o seu antigo
sorriso, apertando-lhe a mão. - Venha, traga o seu cavalo. O
Smoky Reed está a trabalhar no outro barranco e se nos visse,
eu seria obrigado a matá-lo.
- Talvez fosse melhor vir comigo para casa, ou parte do
caminho - sugeriu ela nervosamente.
- Siga em frente, que eu vou atrás de si e não a perco de
vista.
Ofegante, Martha Ann correu a desamarrar o cavalo e, depois
de apertar a cilha, montou e começou a descer a encosta.
Por uma vez, fizera algo que valia a pena. Pelo menos uma
boa acção resultara da sua louca aventura do Wyoming. Martha
colocava a regeneração dum vaqueiro estouvado acima do
salvamento de algum gado do tio. E, de certa maneira, estava
convencida de que aquele texano independente, e audacioso
manteria a sua palavra, se não por um reconhecimento inato do
que devia ser, pelo menos por aquele curioso código de honra,
seguido pelos texanos para com as mulheres. Martha Ann
orgulhava-se de si própria. Poderia confiar em Jim Fenner, mas
não podia contar nada ao tio: Quanto a Andrew Bonning, não a
acreditaria, mesmo que Lho dissesse. O pensamento
amargurava-a. Ao mesmo tempo, sabia que era verdade. havia
apanhado Texas Jack no acto de roubar e levado a intricada e
perigosa situação a bom termo.
Olhando por cima do ombro, viu Texas meia milha atrás,
sentado de lado na sela, uma figura de cavaleiro que se
enquadrava bem no ambiente selvagem. Depois de mais algumas
milhas de caminho, chegando à estrada, aquela exuberância de
sentimentos desvaneceu-se e ela desceu das nuvens para a
terra. Surpreendia-a um pouco compreender que a revelação de
que Texas Jack era um ladrão de gado, não destruira a sua
simpatia por ele; ainda lhe parecia ser uma pessoa
verdadeiramente simpática. Não via razão para não se deter um
pouco no caminho até que Texas se pusesse a par dela. Assim,
manteve o cavalo num passo que não agradava ao animal na
viagem de regresso e ficou magoada ao verificar que Texas
abrandava igualmente o andamento, acertando pelo dela.
Mostrava que se preocupava com ela. e Martha compreendeu a sua
intenção ao ficar para trás, quando, certamente, seria muito
mais agradável para ambos, seguirem juntos pelo caminho. Texas
não queria perdê-la de vista, para a poder proteger e evitava
cavalgar ao lado dela, porque, no caso de ser revelada a sua
situação, isso poderia prejudicar no bom nome dela.
- Espantoso! Não consigo escapar a isto, nem sequer neste
ermo desabitado - exclamou Martha, com desgosto, sentindo
afluir todo o seu antigo antagonismo. Ali, como em tudo o
resto sabia que conhecia os seus próprios motivos, a sua
integridade, a verdade a respeito de si mesma e que não ligava
a mínima importância ao que pudessem pensar as outras pessoas,
bisbilhoteiras e de espíritos tacanhos.
Fez parar o cavalo e, enquanto esperava que Texas Jack


222 223


a alcançasse, olhou em direcção ao rancho. Era um lugar
solitário, cujas casas cinzentas pareciam perdidas numa
imensidão verde.
Tentou imaginá-lo coberto de neve por todos os lados, branco
e desolado. Mas o pensamento agradava-lhe mais do que a
desgostava. O Inverno podia ser uma boa altura para ler e
estudar, coser e aprender a cozinhar; e talvez para ir a casa,
pelo Natal. Dum lado e outro do rio, orlado de branco, com as
suas margens verdes, a pradaria estendia-se até onde a vista
alcançava, ondulando interminavelmente, sem uma única quebra.
Um bater de cascos veio arrancá-la aos seus pensamentos, ao
mesmo tempo que Texas parava ao seu lado.
- Então, que história é esta? - perguntou, fitando-a com um
olhar penetrante.
- Cansei-me de ir por aí sozinha - respondeu, com um
sorriso. - Vamos fazer uma corrida por aqui abaixo.
- Acho que devia seguir sozinha, Martha - disse ele.
- Não quer fazer-me companhia? - perguntou.
- Caramba! Estas raparigas têm cada uma. Bem, creio que vou
consigo até ao rio.
Martha pôs o cavalo a meio galope, mas, quando o baio de
Texas se colocou a par do dela, aquele passo não contentou nem
cavalos, nem cavaleiros e eles passaram ao galope e logo à
corrida; Martha despertou para algo que - nunca experimentara
até ali. a emoção de cavalgar a uma velocidade louca, com o
vento a fustigar-Lhe o rosto, a mancha da salva que lhes ia
ficando para trás, o prazer inexcedível do exercício violento.
A corrida foi ganha por Martha, uma vitória não menos
deliciosa pelo facto de saber que Texas a deixara ganhar, e
permaneceu a cavalo, ofegante e excitada, com a pele a arder e
o cabelo a esvoaçar.


225


- Foi maravilhoso! Nunca me tinha atrevido... a andar tão
depressa - arquejou.
- Bem, não se aguenta nada mal a cavalo - disse o vaqueiro.
- Claro que é sempre bonita, de qualquer maneira, mas não se
trata agora de belezas. Creio que tem pernas fortes, que é o
que é preciso para montar. Anda um pouco rígida na sela; deve
ter movimentos flexíveis, acomPanhando o balanço do cavalo com
o corpo. E faça força nos joelhos. Não levava muito tempo a
fazer de si uma amazona de "rodeo".
- Faça-o... por favor - pediu Martha Ann. i. De chofre,
Texas endireitou-se e a sua expressão de genuíno deleite
desvaneceu-se.
- Bem, parece-me que temos de ficar por aqui - disse. - Olhe
quem vem aí.
Martha voltou-se na sela, Perdido subitamente todo o prazer.
i A meio do barranco arenoso, viu um cavalo preto que trotava
na sua direcção; montava-o Andrew.
- Não seria má ideia que eu desaparecesse daqui! - sugeriu
Texas.
- Porquê?
- É que, se os meus olhos me não enganam, o Bonning vem mal
disposto.
- E que tem isso?
- Claro que só me preocupo por sua causa, Martha - replicou
ele, friamente. - Ainda está para nascer o homem que me há-de
meter medo.
- Então, fique. Não tenho que dar satisfaÇões ao Andrew
Bonning; ando com quem muito bem me apetece.
Andrew bloqueava a estreita passagem, de modo que eles eram
obrigados a parar os cavalos ou a virar por caminhos difíceis.
Encontravam-se no leito do regato seco, no mesmo sítio onde
Martha fora uma vez cuspida da sela.
- Olá, Andrew - cumprimentou Martha, alegremente;


226


mas o seu ar espontâneo não parecia sincero. Como estava
pálido o rosto dele! E os seus olhos fitavam-na com uma
expressão sombria e desdenhosa de vibrante convicção.
- Viva, Bonning! Belo dia para passear a cavalo - observou
Texas, em tom despreocupado enquanto enrolava calmamente o
cigarro.
Andrew nem sequer concedeu ao vaqueiro um olhar ou um
cumprimento. Fixou os olhos em Martha e esta viu, de repente,
neles um mundo de acusações e de profundo desapontamento. Era-
Lhe extremamente difícil suportar aquele olhar.
- Então, sempre fez isso - pronunciou ele fria, amargamente.
- Fiz o quê? - perguntou, sentindo o rubor queimar-lhe as
faces.
O olhar dele e a sua afirmação fizeram hastear a bandeira
vermelha da sua irritação sempre iminente. Mas havia na voz
dele qualquer entonação de desapontamento, dor ou amarga
convicção, que mais do que a sua intervenção encolerizavam a
rapariga.
- Encontrou-se com esse vaqueiro na pradaria.
- Claro que sim. Pura casualidade. Eu... Mas oiça cá,
Andrew, você não tem nada com isso. Sou maior e revacinada;
posso encontrar-me com quem quiser. Não tenho satisfações a
dar-Lhe e foi isso que disse ao Texas.
- E você que não o dissesse - respondeu, de mau humor. -
Não, realmente, não tem que me dar satisfações. Mas acontece
que sou eu a única pessoa que se atreve a opor-se à sua
vontade, Martha. Você foge dos seus pais, dos seus irmãos. se
é que os tem; e com facilidade Pode enganar esses velhotes
estremosos... que a adoram... Só fico eu... para tentar
impedir que faça mais disparates.
- Lá vem você com a velha história! Andrew Bonning, eu não
faço disparates, ouviu? - gritou, encaloradamente.


227


- Espero não ter chegado demasiado tarde - retorquiu ele,
com um ar que fez Martha estremecer interiormente.
- Talvez tenha. Mas não é da sua conta - rebentou.
- Quero eu que seja da minha conta - disse ele, com
deliberação.
- Ah, sim? Pois trate de se... lembrar para onde o mandei,
aqui há uns tempos...
- Menina! Se não tem vergonha nenhuma por si, ao menos podia
ter alguma consideração por seu tio.
- Consideração? Está farto de saber que eu sou muitíssimo
amiga dele. Que quer dizer com essa... consideração?
- Uma virtude antiquada que não se dá bem com as raparigas
modernas. Honra; uma coisa que você deve ao Bligh, que lhe deu
um lar. Ele está há pouco tempo nesta pradaria e precisa de
arranjar amizades; não será nada bom para ele que se fale da
sobrinha; que haja escândalo declarado acerca dos encontros
que ela tem nas colinas com um vaqueiro dissoluto.
- Andrew, você não sabe o que está a dizer - respondeu
Martha Ann, principiando a sentir que lhe faltava a energia.
- Não é nada para si! Bom Deus! Que menininha desprendida,
egoísta e desejosa de emoções fortes você me saiu!
- Não fiz nada... de que me envergonhe... - balbuciou
Martha Ann.
-Você será capaz de se envergonhar de alguma coisa?
- Sou sim...
- De quê? Porquê?
- De que um homem considerado decente, como você. pudesse
ver em mim uma... uma levianazita depravada.
- Não a considero depravada - interrompeu enquanto um rubor
lhe escurecia o rosto pálido e severo. - Noutra altura hei-de
-lhe dizer o que penso de si. Basta que lhe diga agora que é
uma rapariga desmiolada que não procura ajudar o tio, que bem
precisa de ajuda.


128


este senhor aqui bem o sabe!
- Ah! E você armou-se no valente paladino que me vem salvar?
- exclamou, em tom satírico.
- Ainda hoje o Jim Fenner disse que, por sua causa, ainda há
por aqui discórdias... ou até sangue derramado, se não houver
ninguém que a detenha.
- O Jim! O Jim... disse isso? - perguntou ansiosamente,
angustiada.
- Disse. E foi ele que me mandou vir procurá-la. Eu, idiota
que fui, julguei que andasse a percorrer os caminhos do
rancho.
- Talvez tenha ido muito longe, desta vez. para... para...
Não importa - exclamou Martha tragicamente. - Você não
compreenderia. Deixe-me passar. Quero ir para casa.
- Pois vá para casa. Eu arrumo o assunto aqui com o seu
amigo - tornou Andrew, mal-humorado, desmontando para tirar o
cavalo do caminho.
- O Texas vem... comigo - observou Martha, apressadamente.
Não estava a gostar nem do ar de Andrew, nem do silêncio
frio do vaqueiro e não ousava deixá-los sós.
- Bem, Bonning, um desejo duma senhora é uma ordem para mim
- pronunciou Texas.
- Mas não sai daqui - afirmou Bonning, agarrando-lhe nas
rédeas.
- Olhe que posso derrubá-lo; largue essas rédeas. Não sabe
fazer outra coisa melhor do que apanhar...
- Pare, Andrew - gritou Martha receosa, ao ver recuar o
cavalo do vaqueiro. - O Texas fica e eu também. Mas seja
razoável e despache-se com isso.

229


- Texas, salte cá para baixo e enfrente-me como um homem, se
não é demasiado cobarde - ordenou Andrew.
- Fique sabendo, seu novato, que eu não teria medo dum
milhão de homens do Leste - pronunciou Texas com um sorriso,
deslizando calmamente da seLa.
- Então escute. Essa desmiolada rapariga não é sincera...
Compreende-me? Ela não quer saber de si para nada, nem de mim,
nem de ninguém. Ela só pensa em divertir-se com tudo e com
todos. É capaz de fascinar qualquer pobre cretino, só para o
ver rastejar. E acredite-me, vaqueiro, não interessa
absolutamente nada até onde ela possa ter ido, consigo...
Compreende?
- Oiço perfeitamente, Bonning, e estou a ficar bastante
irritado - respondeu o vaqueiro.
- Ainda bem. Faço intenções de o irritar, duma forma ou
doutra. Você é considerado um atirador leal, pelo menos; é o
que dizem. Toda a gente gosta de si, principalmente as
raparigas. Eu próprio gosto de si. Você é um esplêndido
vaqueiro, limpo e simpático, Não me importava de o ter por
amigo, se isso fosse possível. Pois bem, tomando tudo isto em
consideração, acha que é digno de si. e justo para com esta
rapariga... encontrar-se com ela num ermo?
- Não, não acho, co'os diabos - declarou o texano, como que
impressionado com a eloquência de Andrew.
- Você esteve a namoriscar a Martha, no domingo passado, e
antes disso, que eu vi.
- Mas que diabo faria qualquer vaqueiro, pergunto-lhe eu,
Bonning? Ou qualquer homem?
- Lisonja duvidosa, vaqueiro, se percebe o que eu quero
dizer - retorquiu Andrew. - Vejo que tem tido um bom avanço
com a jovenzinha.
- As suas palavras são demasiado rápidas e profundas para
mim, Bonning - declarou Texas, furioso. - Vamos pôr as coisas
a limpo.
- Eu disse a Martha que você estava com o Smoky Reed. quando
ele disparou contra mim...
- Diabos o levem! A quem mais é que disse?
- Não disse a mais ninguém de si... Mas disse ao xerife
Slade e ao juiz de Casper quem é que disparou contra mim. Eles
quiseram saber se eu tinha provas e eu não tinha.
Aconselharam-me a não fazer insinuações a respeito de homens
do Oeste, a menos que pudesse prová-las. Desde aí tenho-me
arranjado sozinho.
- Ah. e que tem isso tudo a ver comigo?
- Você estava com o Reed. Eu vi-o. reconhecio através do
binóculos. Separaram-se e você foi para o lado de lá do
desfiladeiro. Julga, se calhar, que pensei que andavam aos
ninhos?
O rosto magro de Texas reflectia agora a mesma expressão
feroz que tivera ao voltar-se para Martha, com a pistola
apontada. Os olhos soltavam lampejos azuis.
- claro que não - continuou Andrew acusadoramente. - Você
estava lá precisamente pela mesma razão que o Smoky Reed.
- Não estava.
- EvIdente, Texas. Garanto-lhe que sei. Ouvi a sua
combinação com o McCall. Você recusou-se a matar vacas. como
faz o Reed. e continuou na sua de marcar os vitelos
desgarrados. E aí é que está a trafulhice, Texas, sabe-o muito
bem. Você continua com o seu método, porque, no caso de ser
detido por suspeita, pode fazer uso desse alibi dos vitelos
desgarrados.
- Bonning, pare lá com a sua conversa ou não tarda nada que
não esteja a dizer alguma coisa...


230 231


- E é que vou mesmo dizer - exclamou Andrew. - Você é um
ladrão de gado!
Texas saltou, quase embatendo contra Andrew. Martha deu um
grito.
- Você não me chama isso - vociferou o vaqueiro. - Tome
conta do seu cavalo, rapariga, e não se mexa!
- Não chamo o diabo. Claro que tenho de chamar... Um ladrão
é o que você é! Quero lá saber da sua pistola? Você não é
capaz de ma assassinar a sangue frio diante dos olhos dessa
rapariga. Mas mesmo que ela aí não estivesse, eu havia de lhe
chamar ladrão, porque é verdade. Se marcou encontro com Martha
Dixon - sabendo perfeitamente que não podia ser um namoro
honesto porque você é um ladrã, - então, você é uma desonra
para o Texas, de que parece orgulhar-se tanto; é um miserável
gatuno cujo objectivo é arruinar o velho que é o tio desta
rapariga.
- Bonning, se não fosse por ela, arrancava-lhe uma perna com
um tiro.
- Não duvido nada. Isso só prova o que você é. Pois se você
fosse um verdadeiro homem, combatia por ela, em vez de a
atraiçoar, a ela e à família, seu vaqueirito ignorante.
- Já lá chegamos. Mas você fala tanto, que não consigo dizer
palavra. Ora, agora deixe-me falar a mim, Seu novato exaltado!
Você é mais ciumento que um mexicano. Tudo porque apanhou a
Martha comigo! Como diabo pode você saber como foi? A verdade
é que não marcámos nenhum encontro. Ela apanhou-me com a boca
na botija, a marcar os dois X X num vitelo. Ela, claro,
disse-me das boas e depois fez-me jurar que não tornava a
roubar outro vitelo. E, por Deus, hei-de cumprir a minha
promessa, nem que seja a última coisa que faça. Agora
aparece-me você, como um ciclone em ponto pequeno, para
insultar uma rapariga boa, gentil e inocente como as que o
são. Demasiado inocente e divertida para tipos saturados como


132


você. Foi preciso ela vir para o Oeste para encontrar quem a
compreendesse, E, quanto a mim, é isso que é pior para si,
mais do que eu ser ladrão de gado.
- Você é um esperto, Texas, mas vem tarde - vociferou
Andrew. - Deite fora a pistola, se não é demasiado cobarde, Se
é, então terei eu de lutar consigo à sua moda. Tenho uma
pistola na sela.
- A coisa mais ajuizada que você disse - replicou o
vaqueiro. Depois desafivelou o cinturão e pendurou-o no selim.
Martha Ann saiu do transe em que se encontrava e, saltou do
cavalo, quase caindo, para se meter entre os dois adversários,
que se fitavam com rancor.
- Andrew... Texas! - gritou, implorante. - Não lutem... É
uma... uma estupidez da vossa parte; e tudo para nada. Por
favor, por minha causa... Andy.
Ele afastou-a com firmeza.
- Tire-se da minha frente, Wyoming Mad - disse, com o seu
sorriso amargo - Isso é o resultado da sua ânsia desenfreada
de emoções. Agora olhe e veja o que eu faço ao seu belo
vaqueiro.
- Oh, Texas. ceda você. Não há nada a fazer com ele.
Peço-Lhe!
- Mas então que sou eu? - gritou Texas furiosamemte. - No
meio de vocês dois, estou quase maluco. Não posso ficar
parado, à espera, que ele me bata como fez ao Smoky.
Ele, também, empurrou Martha para o lado, sem grande
delicadeza e, quando esta recuperou o equilíbrio, eles tinham
-se atirado um ao outro, como touros enfurecidos. O primeiro
embate, fê-los sair da estrada. A aflita rapariga ficou presa
ao solo. Se pudesse falar, teria gritado a Texas que
espancasse Andrew até o deixar meio morto. Mas sabia que ele
não podia fazê-lo. O que temia era a possibilidade de um
combate à pistola, quando estivesse arrumado o dos punhos.


133


Andrew castigaria terrivelmente o vaqueiro; o que anunciava
um fim desastroso para o duelo.
Texas era um caso bem mais sério que Smoky Reed. Era tão
alto como Andrew, tão álto e flexível como ele e quase tão
pesado, e o que lhe faltava em destreza, era compensado pela
ferocidade. Lembrava um furacão ruivo ba louçando, golpeando,
fintando. Davam-se golpes ilícitos e, aparentemente, Andrew
recebia tantos como os que dava. O sangue escorria pelos
rostos enfurecidos de ambos. A meio de um bote, Andrew
tropeçou na areia. Texas, com um forte impulso, atingiu-o na
cabeça com um golpe que fez Andrew cair de costas. Como um
gato, pôs-se de pé, ao mesmo tempo que Texas ia de encontro a
ele, com a intenção de lhe cair em cima. Bonning fez frente ao
ataque, derrubando Texas com um soco. Agilmente, o vaqueiro
levantou-se e lançou-se outra vez na refrega, sangrando,
resmungando e praguejando. Lutavam por toda a parte,levantando
a areia.
No fim, a batalha estava contrária a Texas, que não podia
competir com o antagonista, o qual, conforme a luta progredia,
parecia dispender mais vigor. O vaqueiro tornou a cair. Quando
se pôs de pé, mais lentamente dessa vez, cambaleando, Andrew
gritou-Lhe:
- Ponha-se de pé e lute, seu Romeu da pradaria!
- Pois, não sou... nenhum novato dançarino! - arquejou
Texas, atirando-se, de súbito, às pernas de Andrew, para o
obrigar a ir ao chão.
Rolaram um por sobre o outro, na areia. Martha viu então
qual fora o erro do vaqueiro. Andrew não fazia qualquer
tentativa para se tornar a erguer. Com um fantástico á-vontade
e rapidez, movia-se no terreno, quebrando o amplexo de Texas,
sem, no entanto, o largar, golpeando-o na cabeça e no corpo.


134


Texas evidentemente viu o erro que cometera e tentou pôr-se
em pé, mas era tarde. Não passava de um brinquedo nas mãos dum
gigante. Martha compreendeu-o quando viu Andrew agarrar o
vaqueiro, que quase conseguia levantar-se, deixando-o
semi-enterrado na areia. Mais algumas destas táticas de
futebol, mais uns golpes cavos, e Texas ficou inanimado,
enquanto Andrew se punha de pé para sacudir a roupa e enxugar
com um lenço, o rosto que sangrava.
- Vá... deite uma olhadela... ao seu amigo ladrão - chamou
Andrew, de mau modo.
Martha Ann deixou o trilho, reunindo forças conforme
avançava, até chegar junto de Texas que jazia no solo, num
estado horroroso, como nunca vira.
- Ajude-me... a sentar - pediu, fracamente.
Martha Ann auxiliou-o a sentar-se, ficando a ampará-lo.
- Uh, Texas, ele magoou-o muito - exclamou Martha,
perturbada, com o espectáculo da sua cabeça descaída. O cabelo
e o rosto de Texas pareciam uma pasta de sangue e areia.
- Parece que sim - murmurou o vaqueiro.
- Vá buscar água, Andrew - ordenou Martha.
- Diabos! Que espécie de... avalanche... passou por aqui?
- Deixe lá, Texas. Eu nunca... nunca lhe hei-de perdoar -
soluçou Martha.
Andrew trouxe um cantil e, desrolhando-o, despejou água no
lenço que entregou a Martha.
- Tex, você portou-se bem... enquanto se conservou de pé -
disse Andrew, respirando pesadamente. - Mas nunca sa devia ter
metido comigo, no chão!
Martha Ann lançou-lhe um olhar de revés, carregado de ódio.


235


- Seu estúpido! - Limpou o sangue e a areia do rosto do
vaqueiro, pondo a descoberto várias equimoses e o nariz, que
sangrava.
- Bem, estou um pouco tonto, mas ainda posso pegar numa
pistola. Vamos, Bonning. Talvez agora não seja... tão fácil
para si.
Martha caiu de joelhos ao lado dele.
- Não... não lutem com pistolas! Seria horrível. Texas! Ele
bateu-lhe, mas também não saiu muito bem. - Depois voltou-se
para agarrar os joelhos de Andrew.
- Largue, Não faça isso - exclamou Andrew asperamente.
Mas ela não o largava. Agarrou-se mais a ele. - Andrew...
Andrew... não torne as coisas piores!... Eu é que tive a
culpa. Eu... eu não devo prestar realmente para nada. Mas
odeio-o tanto. por se enganar... tanto... a meu respeito. Por
amor de Deus. ceda!
Andrew olhava-a, sem se decidir.
- Bonning - falou Texas, tocando-lhe. - Se não quer ficar
por cobarde... eu fico.
- Isso compete-me a mim. Peço desculpa. Você é um bom tipo,
Texas. Eu é que devo estar louco. Martha, levante-se - disse
Andrew, com uma certa aspereza, inclinando-se para a ajudar a
pôr-se de pé.


236

XI


Setembro chegou, com as suas manhãs geladas, os seus dias de
neblina e as suas noites frias, pintando, por sobre as terras
banhadas pela Água Doce, os cambiantes dourados e escaldantes
do Outono. Ao longo do rio, os salgueiros e os álamos
erguiam-se, num contraste colorido com a corrente sombria e
ondulante e, na purpúrea monotonia da planície, brilhavam,
como fogos, minúsculos farrapos escarlates. Bandos de patos
bravos, vindos do norte, anunciando um Inverno próximo,
desciam sobre as extensões imensas e tranquilas.
Desde o encontro de Andrew com o vaqueiro ladrão nas
colinas, Bligh tinha-se recusado a deixá-lo ir sozinho e, por
isso, Fenner acompanhava Andrew nos seus passeios de
exploração, que faziam várias vezes na semana, acampando,
algumas vezes, durante toda a noite.
O velho vaqueiro do Arizona não levou muito tempo a avaliar
a situação. Nunca se aproximavam de quaisquer vaqueiros que
não se ocupassem dos seus próprios negócios. No que se referia
às Colinas do Antílope, a Barra Cruzada
o Triângulo X e a Associação dos Criadores de Gado do Wyoming
haviam marcado uma data no princípio de Outubro para o giro
outonal de recolha da gado. Os ranchos de pessoal mais
reduzido, de que o de Bligh era o menor, tinham,
necessariamente, de esperar por este acontecimento. O gado da
X Duplo de McCall tinha errado, ou sido conduzido, num
percurso da dois dias pelo lado sul das colinas.

237


Mas Jim Fenner e Andrew lobrigavam um crescente número de
fogueiras de marcar gado, muitas das quais deviam ter sido
usadas por vaqueiros absolutamente honestos, no prosseguimento
do seu trabalho; era impossível dizer alguma coisa acerca
delas. Contudo, nalgumas ocasiões, depararam-se-lhe vaqueiros
ocupados em marcar gado que tinham também as suas razões de
queixa. Vinham perdendo vacas e vitelos, como sempre os haviam
perdido, mas não em tal quantidade que exigisse providências,
semelhantes às tomadas pelos homens de Bligh. Era esta feição
que dava ao caso um aspecto quase desesperador, por que podiam
fazer dois cavaleiros, um dos quais inválido e o outro
inexperiente, numa extensa região, onde, num mês de pesquisas,
não conseguiam encontrar metade do gado do N. B? Não obstante,
nos desfiladeiros, nas matas espessas e nos baluartes
rochosos, onde chegaram a penetrar, encontraram um número de
vacas mortas, suficiente para os indispor e enfurecer. Nestes
dias, o céu estava escurecido pelos bútios e não havia
desfiladeiro sobre o qual não pairassem as aves de rapina.
- Isto está calmo de mais para nós - disse Jim, um dia, em
que ele e Andrew cavalgavam de volta do rancho. - Eles devem
ter algum vigia munido de binóculos que nos topa muito antes
de a gente se aproximar e que os avisa para procurarem outro
lugar.
- Quanto perdemos nós já, Jim? - inquiriu Andrew, com
tristeza, empregando inconscientemente o plural que o
identificava com Bligh e com o seu velho encarregado.
- Bem, não se pode saber... Detesto pensar nisso, mas pelo
menos algumas vacas e vitelos por dia. Vacas mortas e vitelos
marcados. Talvez uma perda duns duzentos dólares por dia.
Isto, pelo baixo.
Andrew praguejou por entre dentes.


238


Entre McCall e aqueles ladrões, Bligh estaria arruinado antes
que começasse a nevar; não havia que fugir a isso. Era
ridículo apelar para a lei, quando os dois cavaleiros de Bligh
nada podiam provar, a não ser a presença de vacas mortas.
- Que vamos nós fazer? - perguntou Andrew.
- Bem, se o pior suceder, vamos para a agricultura -
respondeu Fenner, com um suspiro.
- Vai dizer ao Bligh?
- Vamos esperar mais algum tempo, Andy. Pode ser que a gente
apanhe esse Reed e, se isso se der, havemos de Lhe fazer a
vida tão negra, que ele há-de ser obrigado a desistir. E é ele
que está à cabeça desta ladroeira.
- Levamo-lo para tribunal?
- Não, co'os diabos! Isso não dava nada, só servia para
gastar mais dinheiro ao patrão. Experimentamos nesse tipo um
daqueles remédios antigos do Arizona...
- Jim, vamos acampar escondidos, durante uma semana.
Deixaremos o rancho depois de anoitecer e assim não podem
espiar-nos na subida.
- Não é má ideia. Vou pensar nisso.
Quando abandonaram o leito do rio, para passar pelos currais
e pelo celeiro, Jim, que levava a dianteira, deteve a montada.
- Olha para ali, Andy - disse ele, apontando na direcção da
cabana de Andrew, junto à margem. - Tens andado muito arredado
da Martha, ultimamente?
Andrew não precisava de olhar, mas olhou. Era num domingo à
tarde e ele sabia o que esperar. Uma das razões por que
cavalgava tanto aos domingos como à semana, era para evitar
ver Martha com os seus admiradores. Era evidente que, no
momento, ela se entretinha a jogar ao agarrar com vários
rapazes, em redor da sua cabana.


239


Em frente da casa do rancho, estavam estacionados três
carros e, aos ouvidos de Andrew, soavam gargalhadas joviais.
- Andy, macacos me mordam, se eu não fazia alguma coisa -
disse o velho, com aspereza.
- Fazia alguma coisa o quê, Jim?
- Bem, se eu fosse a ti, ou me juntava a esse grupo de gente
moça e jogava com eles, ou acabava com aquilo.
Sem dar resposta, Andrew desmontou e começou a tirar a sela
ao cavalo. Durante o dia, ao menos, tinha-se libertado do
estado de espírito criado por Martha. Agora lá voltava ele.
Caminhou lentamente para a sua cabana, indo encontrar o
espaçoso telheiro da frente ocupado por Martha e pelos seus
amigos, entre os quais estavam Nellie Glemm e o irmão, Tom,
uma rapariga chamada Bradshaw, que já conhecia, dois moços
cujos rostos lhe eram familiares e Texas Jack Haynes.
- Olá, Andrew - interpelou-o Martha, acenando. - Temos
estado a dançar e a comer no seu telheiro. Espero que não se
importe?
- Boa tarde, Martha. Boa tarde a todos. Estejam à vossa
vontade, se nãoos incomodam as minhas abluções.
- Andrew, você está a tornar-se o vaqueiro com mais tempo de
sela - disse Nelie Glemm. - Até nos domingos e feriados. Está
a perder muito, cavalheiro.
- Creio bem que sim - replicou Andrew calmamente. Estava a
cair de cansado e o rosto feiticeiro e excitado de Martha, o
brilho alegre dos seus olhos de âmbar e o sorriso que para
todos parecia ter, menos para ele, fazia acender em si um
ciúme contra o qual nada podia. Sacudiu o pó da longa e
escaldante cavalgada e foi para dentro mudar de camisa,
enquanto o grupo juvenil continuava com os jogos.
Passado um bocado, Martha chamou-o da entrada:
- Está apresentável, vaqueiro? Posso emtrar?


140


- Não seria fácil escandalizá-la, a si. Entre - respondeu.
Ela ficou de pé, emoldurada pela porta, perfeito quadro de
juventude e beleza irradiantes. Entrou, devagarinho, e, ao
fazê-lo, pareceu a Andrew que perdera alguma coisa do seu
resplendor.
- Por favor, não leve a mal eu ter-me assenhoriado da sua
cabana, Andrew - disse. - Vieram cá visitar o tio uns velhotes
simpáticos e, como nós estávamos a ser muito barulhentos,
trouxe os meus amigos para aqui.
- Porque me havia de importar, Martha? - perguntou ele.
- Julguei... como cá está o Texas - respondeu
apressadamente. - Foi a Nellie que o trouxe. Eu tenho-o visto,
naturalmente... desde que... desde que... Ele parece vir com
intuitos amigáveis, Andrew. Não quer fazer as pazes com ele?
- Porquê? Por si? - perguntou Andrew, rapidamente.
- Tenha juizo - retorquiu ela, corando. - Nem por mim, nem
por si, mas por causa dele.
- Ah, estou a compreender. Anda ocupada em regenerá-lo ?
- Andrew, você é de fazer perder a paciência a um santo -
respondeu ela, olhando-o iradamente. - Mas não se fala mais
nisso. Se quiser pode ir partir-lhe o resto das costelas.
- Credo! Deixei-o assim em tão mau estado? Se deixei
peço desculpa.
Martha saiu em direcção à casa do rancho. Andrew foi até ao
telheiro e procurou tornar-se agradável. Era um grupo de
jovens sãos e simpáticos que, apesar da um pouco intimidados
pela sua presença, à excepção de Texas, estavam visivelmente
desejosos de o conhecer melhor.


241


Quando tocou a sineta para o jantar, correram
atropeladamente para a casa, deixando-o ficar para trás com
Texas.
- Jack, espero que não tenha vindo para me fazer manter
acerca disso - observou Andrew, com um sorriso.
- Acerca de quê?
- Do duelo à pistola... que íamos tendo.
- Ah, eu pensei melhor nisso, Bonning - pronunciou Texas. -
Teria sido um completo assassínio e eu acabava por ter de
fugir, deixando a Martha com pior fama do que a que já tem.
- É muito sensato da sua parte - respondeu Andrew, com
frieza.
- Nem por isso. E não se irrite. Esta gente da pradaria não
tem nada de que falar, senão uns dos outros. E as mulheres não
compreendem a Martha. Até ouvi dizer que ela andava feita com
o Smoky Reed e que foi por isso que... você lhe pregou, aquela
sova.
- Não foi. Mas tanto faz - disse Andrew, em tom breve.
- Bem, eu cá não sei, Se esta miúda de olhos de pantera se
portasse como devia, creio que a tareia que deu no Smoky,
faria que os outros tivessem mais cuidado. Mas... a Martha faz
cada uma!
- Que é que ela fez agora? - perguntou Andrew, com um
gemido.
- Bem, é que brada aos céus. Como é que chamam a essas
fatiotas para de noite que as raparigas agora usam? Pijamas,
ou lá o que é...
- Pijamas... No Leste, as raparigas agora usam-nos também de
dia. São a última moda para a praia e para trazer por casa.
Cores claras, muito bonitos e também muito decentes, acredite,
comparados aos primeiros modelos.
- Hum, não dou nada por isso. Isto aqui é o yoming...


242


E quando a Martha, outro dia, a cavalo no malhado do Hart,
desceu a rua principal, que estava apinhada..... Com um desses
pijamas leves. ora, nem um circo fazia tanta semsação.
- Santo Deus! - suspirou Andrew.
- Ela nem sequer conhecia o Jem. Saltou para o cavalo dele,
em frente da casa dos Glemms. e foi-se embora muito
simplesmente. E por pouco não foi cuspida. Foi isso que me
irritou. Ralhei com a Martha e disse-lhe das boas. Ela jurou
que queria sair da cidade e não descer a Rua Prin cipal. Sabe
que a casa das Glemms fica na ponta da cidade... Mas aquele
maldito malhado levoua por ali abaixo.
- E como é que lhe ficava o pijama? - perguntou Andrew,
consternado.
- Bem, as Glemms deram uma festa, e a Martha passou
lá a noite. Dormiram até tarde e foi quando as raparigas se
levantaram que aconteceu aquilo. O pior de tudo, pelo menos
para Martha, foi quando o Jem Hart achou que a força dele lhe
dava o direito de tomar liberdades com a Martha.
- Tomar liberdades? Meu Deus. Que diabo fez ela?
- Infelizmente, não vi. Mas as pequenas contaram-me que ela
esbofeteou o Jem com tanta força, que ele até perdeu o chapéu.
Mais tarde chamei ao Jem todos os nomes que me vieram à cabeça
e não fiz bem, atendendo a que estávamos núma loja cheia de
gente. Que ele berrava como um danado; já tinha bebido bem.
- "O que tu queras sei eu, Tex. Queres ser só tu a fazer
festas à pequena!" - É claro que lhe ferrei logo um soco. Ele
partiu uma montra que me custou cinquenta dele. E agora o Jem
anda com o Smoky.
- Não há nada a fazer - disse Andrew, como que para consigo
próprio.


243


- Pois não. E estou convencido que não há-de haver senão
quando algum sujeito raptar essa garota, conseguir quebrá-la e
casar com ela. E mesmo assim não ia garantir...
- Uma ideia original - riu-se Andrew. - A propósito de
quebrar... A Martha insinuou que eu lhe tinha partido uma
costela, Texas... Espero que não seja verdade.
- Claro que era... Duas costelas. Fiquei de cama uma semana.
Caramba, nem sei porque é que não lhe dou um tiro, Bonning.
Essa rapariga tem-me feito mudar muito. Até tenho uma certa
simpatia por si, com os diabos.
- Essa rapariga, como você diz, Texas, pinta o diabo com
todos os homens.
- Sim, mas só porque é diabolicamente bonita. Aqueles olhos?
Meu Deus ela já alguma vez olhou para si, quando está irritada
É bom que saiba que naquela rapariga não se pode tocar nem a
uma vara de dez pés, Bonning.
- Lá disso não sei - respondeu Bonning, em tom breve. -
Contra a minha vontade, também simpatizo consigo, i Texas,
mas, por favor, não tente armar em esperto comigo.
Texas levantou os braços ao ar.
- Bem, estão a gritar por nós, para irmos para dentro -
pronunciou -. vamos comer, mesmo apaixonados.
Havia algo na afabilidad franca e aberta do vaqueiro, que
envergonhava Andrew. O seu primeiro e quase irresistível
impulso fora ir-se embora dali, desprezando o jantar, como
tantas vezes fizera, e ficar no seu telheiro, mal-humorado, ou
lá fora sob as estrelas. Mas, por aquela vez, conseguiu vencer
o seu aborrecimento e entrou para o jantar. Tendo à sua frEnte
o exemplo de Texas, esforçou-se por alcançar uma alegria e uma
espontaneidade, de que nunca se julgara capaz. A sua atitude
pouco habitual provocou em Martha um ar de admiração e depois
de grata e contente atenção. O seu evidente contentamento
incitou Andrew a prosseguir. Depois do jantar, convidou-os a
todos para a sua cabana e, como a noite estava fresca, acendeu
um lume crepitante na grande lareira, à volta da qual se
sentou o grupo, em círculo, apenas iluminado pelas brasas
vermelhas. Torraram milho, passando dos ditos alegres às
narrativas.
Talvez não contribuísse para a boa disposição de Andrew, o
facto de, quando chegou a sua vez, ver Texas muito junto a
Martha Ann, passando, na sombra, o braço à volta dela. Mas
Bonning dominava tão bem as suas emoções que aparentou nem dar
por isso.
Contou a história dum famoso desafio de futebol, em que, na
realidade, ele ficara de parte, mas que relatava agora, como
se nele tivesse participado. A amargura da recordação do seu
fracasso universitário, ligado ao pressentimento dum desengano
pior, ali, no Oeste, emprestavam à narrativa um interesse vivo
e arrebatador, que mantinha o pequeno auditório como que
fascinado. Pelo menos uma vez, teve a noção de que estava a
atrair a atenção da rapariga de olhos de âmbar, de Chicago.
- Diabo! - exclamou Texas o único a quebrar o silêncio. -
Agora é que eu percebo porque é que o Bonning parece uma
tartaruga cheia de relâmpagos.
Só Martha não tomou parte na gargalhada geral que se seguiu
à observação de Texas, enquanto os seus olhos se fitavam,
pensativos, no narrador.


Decorreu outra semana. Andrew cavalgava pela pradaria
durante quatro dias, passava um dia na cidade e o fim de
semana no rancho. Reflectindo naquela noite de domingo, após a
partida dos jovens, esta parecia-lhe a semana


245


pior desde que chegara ao Wyoming. Buscas longas e tenazes
tinham acumulado certezas sobre certezas, sem que aparecessem
as provas necessárias. Dizia-se na cidade, que era um
pretensioso do Leste, resolvido a destruir o bom nome de
certos criadores de gado do yoming. Ali na pradaria, a força
parecia constituir um direito. Bligh não podia pagar as suas
contas e Andrew via-se diante do problema de ter de tomar uma
decisão definitiva em relação aos seus planos futuros.
Naquele domingo, noite avançada, enquanto, sentado diante
das brasas quase apagadas, as via brilhar, cada vez mais
fracas, ressaltavam-lhe, daquele dia e noite cheios de
acontecimentos, que passara na cidade, e do último e
inesquecível fim-de-semana no rancho, dois factos
indiscutíveis.
Ambos tinham que ver com Martha Ann. O mundo inteiro
parecia, agora, girar em torno dela.
Compreendia, sem sombra de dúvida, que fora apanhado nas
malhas do seu encanto, para bem, ou para mal, certamente para
mal. Tinha-a observado durante horas a fio, sem que ela desse
sequer conta da sua presença. O que fizera durante a sua
estadia no Wyoming. O rosto tinha um leve brilho dourado, os
olhos uma maravilhosa radiação, as faces um tom rosado, os
lábios uma suavidade fascinante.
Mas a beleza física era apenas uma pequena parte do seu
encanto, que era intangível e impossível de definir. Recordava
o sorriso dela, a sua maneira de rir, os seus gestos atraentes
e as pequenas graças só a ela peculiares. Recordava o
interesse sincero dela pelos problemas do tio; e a sua voz, as
suas palavras, o contacto das suas mãos. Recordava a sua
afectuosidade. Não podia negar o testemunho dos seus olhos e
ouvidos. Ela gostava de toda a gente. As pessoas, desde que se
lhe não opusessem ou a criticassem, eram para ela
extraordinariamente interessantes. Martha Ann dava, sem
cessar, o seu tempo, afecto, simpatia e a si própria a quem
quer que aparecesse. Não podia desempenhar-sa de qualquer
incumbência na cidade, no correio, ou em qualquer lado, sem
logo travar conhecimento com alguém. Sentia-se atraída para
todos e para tudo o que via; tomando rapidamente o partido
daqueles de quem se dizia real, especialmente quando ausentes.
Este lado encantador de Martha Ann revelava-se a Andrew, sem
o conhecimento dela mas quando o sabia presente, parecia fazer
tudo oque estivesse ao seu alcance Para lhe mostrar o lado
contrário da sua natureza. Se possível, ainda aumentava a
coqueteria com que subjugara o moço lá no hotel de Nebraska.
No último baile da cidade, fora a mais alegre e estouvada dum
grupo de raparigas impossíveis, de que ela era a inspiradora,
aproximando-se perigosamente da falta de decoro. Ele fora
testemunha infeliz da luta alegre que travara com Texas, num
jogo de sedução e resistência, no fim do qual ele a beijara
sonoramente nas faces e no pescoço. Fugia, para que ele a
perseguisse; negava, apenas para ser mais desejada. Jogava com
aquele lado da sua natureza, que, para Andrew, só podia ter
uma interpretação.
Aquilo começava a interferir com o trabalho de Andrew, com a
sua paz de espírito, felicidade, esperança no futuro, e com as
suas horas de sono e de vigília. Isto confessava ele às brasas
quase apagadas, enquanto o vento de Outono gemia sob os
beirais da cabana. Quem quer que Martha Dixon fosse, quaisquer
que fossem os seus lados bons e maus, o que quer que fizesse,
ele estava perdido, assim como o seu futuro e o seu passado.
As suas decepções no Leste não haviam passado de pontos de
passagem, mas um fracasso, ali, seria o fim de Andrew Bonning.
E a vida, sem Martha Ann, não valia a pena ser vivida. Foi
aquela a conclusão a que chegou durante a sua vigília


246 247


solitária, naquela noite fria e ventosa de Outono.


No dia seguinte, Jim levou Andrew numa longa cavalgada à
nascente de um ribeiro, onde foram pescar trutas em charcos
profundos e escuros, sob árvores de folhagem dourada. O
velhote tinha uma paixão pela pesca, aumentada pelas poucas
oportunidades que tinha de se dedicar a ela. Encontraram
poucos sinais de gado N. B, mas passaram um dia que fez o mais
jovem esquecer os seus problemas. As correntes de água, o
silêncio das colinas desertas, a dura cavalgada, a magra
alimentação e o contacto com a natureza que acordara nele uma
resistência de que não suspeitava, tudo contribuiu para uma
paz de espírito que não sentia há vários dias.
No regresso, Jim Fenner seguiu, durante muito tempo em
silêncio, ao lado de Andrew.
- Neste momento, o que é mais importante, meu rapaz?
- inquiriu, por fim.
- Para quem?
- Bem, para o Bligh, para mim e a Sue, para si?
- Nem sei bem, Jim. O assunto do gado, creio eu, porque é do
que vivemos.
- Não, é aquela rapariga.
- Rapariga! - repetiu Andrew, surpreendido.
- Claro; a Martha. Ela tem-nos feito a cabeça em água. Não
que seja alguma coisa contra a Martha. Ela é como uma
rapariguinha ladina, que se sente importante, Creio que só
Deus Todo-Poderoso tem culpa disso. Faz-me lembrar, Andy".
Sabe aquela frase da Bíblia acerca da mulher:
"Terrível como um exército, aproximando-se com pendões!"...
Pois, é tal e qual assim. Recordo-me do que sentia quando
cortejava a Sue, há mais de quarenta anos.


248


Ela tinha só dezoito anos e um rebanho de admiradores.
voltando à Martha...
- A que quer chegar? - perguntou Andrew, de mau modo.
- Bem, quero dar-lhe um palpite.
- Muito obrigado, veterano. Mas a julgar do seu eloquente
preâmbulo, não creio que o aceite.
- Meu rapaz, aquela rapariga gosta realmente de si. -
respondeu Fenner imperturbável.
- Que rapariga?
- Martha Ann!
- Que ideia!
- Gosta, tenho a certeza.
- Está doido.
- Ela observa-o, quando você não repara, que eu vi, e a Sue
também viu. Vimo-la sair da janela com aquele ar ansioso nos
olhos...
- Pois o mal são os olhos, veterano - interpôs Andrew.
- Eles iludiam qualquer homem, quanto mais... um pateta de um
romântico como você.
- Está bem. Não estou a contar senão o que vi. Mas acredite
no que eu lhe digo: seja lá como for, ela gosta de si.
- Está louquinho de todo. Ela não me pode ver, porque eu a
percebi logo desde o princípio, porque não cedi aos seus
encantos.
- Pois foi um idiota em não ceder. Tinha uma oportunidade de
conquistar essa rapariga. E ainda tem uma se não se fizer
teimoso. Que lhe interessa a si os tipos que andam atrás dela.
ou o que ela lhes deixou fazer?
- Que me interessa? - repetiu Andrew, com ar pensativo.
- Ela mereceu que gostem dela, e precisa que gostem dela -
respondeu Jim. - Se você fosse metade do homem,


249


que eu julgava que era, pegava o touro de caras e, logo à
noite, quando voltasse ao rancho, ia direito a ela e...
dizia-Lhe o que sente


Estava escuro quando chegaram ao rancho. Andrew acendeu a
lareira, antes de se lavar para o jantar. Depois, como um
homem que mergulhasse num precipício, dirigiu-se para a casa.
Jim comia sozinho na cozinha, servido por Sue. Andrew não fez
justiça ao saboroso jantar, nem respondeu aos esforços de Jim
e de Sue para puxar conversa. Precisamente quando estava
pronto a levantar-se da mesa, ouviu-se a voz fresca e jovem de
Martha a cantar noutro compartimento, e Jim tocou-lhe na
perna. Ergueu-se, saiu e, dirigindo-se à porta de Martha,
bateu.
- o tio? - perguntou ela.
- Não.
- O Jim?
- Não.
- Ah, é o Texas - exclamou uma voz risonha e torturante.
- Andrew.
- Desculpe. Que quer você?
- A si...
- Ah, sim. Que estranho!
- Venha cá fora - ordenou Andrew!
Depois de uma pausa, a porta abriu-se, emitindo uma larga
faixa luminosa na escuridão, e mostrando Martha, vestida com
um pijama alegre e florido.
- Onde está? - chamou.
- Feche a porta.


250


Ela obedeceu, deixando a soleira da porta mergulhada na
escuridão.
- Ora, diga-me quem foi a sua escrava privativa, desta
última vez.
Com um dos seus rápidos movimentos, ele interrompeu-a.
Quando a ergueu nos braços ela gritou, protestando. Dirigiu-se
para a sua cabana, carregando-a como se fosse um bebé de colo.
- Oh! Andrew! Ponha-me no chão!
Ele olhou a cabeça desalinhada, apoiada no seu braço, os
grandes olhos que o fitavam espantados, negros à luz das
estrelas.
- Largue-me! - gritou, começando de repente a debater-se
freneticamente. Mas, quando ele aumentou a pressão
dos braços à volta dela, mal conseguindo mexer-se, cessou de
se debater e afrouxou, inerte como um saco vazio. - Andrew,
que... vai fazer? - balbuciou.
Ele não deu resposta e quando a tornou a olhar, as pálpebras
estavam descidas sobre os olhos dela. Sentia o corpo morno
estremecer-lhe nos braços. A suavidade do contacto, o seu
calor e fragrância, o seu enorme encanto impressionaram-no tão
profundamente que, ao entrar na cabana, depôs a carga sobre a
tarimba e, respirando dificultosamente deu uns passos para
trás.
Ela ali ficou enquanto ele ia à lareira espevitar as achas
já queimadas e pôr mais algumas. Ao cabo de algum tempo
recuperou a respiração. As chamas rebrilharam, iluminando a
sala. Martha sentou-se, tomada de espanto, o rosto branco e os
olhos grandes e estranhos à luz das chamas.
- Andrew!... Mas que é que Lhe deu? Que faz?
Ele avançou e olhou-a.
- Que pensa? - perguntou, inclinando-se para ela.
- Você tem um ar tão... tão terrível. Eu sei que mereço...
mas você não ia..


. 251


- Não, eu não ia. o que quer que seja que receia -
interrompeu-a. - Suponho que pensa que eu pudesse tratá-la
como merece. Bem gostaria de ser bastante bruto para a
amachucar bem, para lhe mostrar que, por fim, tinha caído nas
mãos de um homem, que não era um simpls boneco nas suas
mãos!... Mas não sou. Bu sou.
Deteve-se, incapaz de prosseguir. A visão daquele rosto
pálido e atemorizado roubou-Lhe a ira que sentia, inspirou
-lhe a ideia súbita de que talvez estivesse completamente
equivocado a respeito da rapariga. Voltou para junto do fogo,
tornando a remexer as achas, até ter recuperado o firme
propósito que o decidira a levá-la para a sua cabana.
- Martha, quer casar comigo? - perguntou.
- Casar consigo? - repetiu, incrédula, fixando-o, como se
estivesse a sonhar.
- Sim. Se a segui até aqui, com tão grande sem-cerimónia
foi... para pedir-lhe que seja minha mulher!
- Sua mulher!... - Martha parecia ter sofrido súbita
transformação. - Porque me pede que... que...
- Não me importo que faça essa pergunta. Tudo isto parece
absurdo, depois do meu anterior proceder para consigo. Mas,
escute, Martha. Acabo de descobrir-me a mim próprio! Creio que
comecei a amá-la naquela noite em que a salvei. Mas eu não o
sabia. Em si, apenas via uma linda, inesquecível e travessa
criança. E, como tinha sido profundamente ferido, pela minha
gente, pela vida e por uma mulher que julguei amar, desconfiei
do seu pedido de boleia. Já aqui, este sentimento começou a
desenvolver-se, e eu tornei-me tão ciumento que estive à beira
de cometer um crime...
E, quando você fitava, provocadora, os vaqueiros, mais
aumentava a minha fúria. A minha brusquidão e a minha
indiferença, deviam-se a que eu estava de tal modo ferido
pelos seus devaneios amorosos, que não podia ter mão em mim.


252


O ciúme é uma coisa horrível. Mas foi ele quem me indicou o
que, de facto, estava mal. Há algum tempo, querida Martha, que
sei do meu amor por si. E ele apoderou-se de tal modo de nim,
que não penso em mais nada, a não ser que a adoro, que só
agora sei que criatúra maravilhosa você é realmente, e que o
meu maior desejo é desposá-la.
- Andrew Bonning... Você ama-me, de facto, assim - murmurou
ela.
- Sim! Mas as palavras são vãs! Não casará comigo,
querida?... Deixe-me mostrar-lhe...
Ela ergueu os braços, como que para abraçá-lo. Mas, uma
súbita sombra obscureceu o brilho dos seus olhos. Andrew -
fremente de amor e felicidade - viu a supremacia da
inteligência sobre a emoção, a fria determinação de resistir.
- Pede-me que case consigo, convencido de que sou uma
aventureira, que vagabundeia pelas estradas, com o fito de
encontrar homens, apenas pelo prazer da aventura? - perguntou
ela, com os nervos tensos. A sua cólera desenvolvera-se como
tempestade de Verão.
- Não pense mais nisso, por favor! - suplicou ele apressado,
sentindo o terreno fugir-lhe debaixo dos pés. - Esqueça o que
eu pensei! Eu farei o mesmo!
- Nunca! E, se é digno, Andrew Bonning, vai dizer-me toda a
verdade! Não poderia mudar tão completa e subitamente!
- Não lhe mentiria - foi a resposta.
- Apenas sentia desprezo pela minha viagem de boleias, não é
verdade? - perguntou ela, apaixonadamente.
- Sim!
- Acreditou que eu o fizera, exclusivamente para andar à
vontade - longe dos pais e dos amigos - e poder satisfazer
qualquer instinto selvagem de liberdade ou contactar com


253


rapazes e homens, que nunca voltariam a ver-me e com os quais
podia ser vulgar, aproveitando a vida e fazendo tudo o que é
moderno e você tão estranhamente odeia ?
- Sim. Creio que sim! - replicou ele.
- E ainda pensa assim?
- Martha! Nada sucedeu que mudasse o aspecto da questão.
- Julgou-me uma embusteira e uma intrujona?
- Não foi bem assiin, Martha, juro! Apenas uma cabeça louca,
que não mede as responsabilidades. Não se conhece a si mesma,
querida! Você tem Muitas faces!
- Não mude o fio à conversa, Andrew. Eu sei u que você
pensou! Demonstrou-o claramente!. Mas eu vou obrigá-lo a
confessar. Pensou que eu não prestava, não pensou?
- Pelo contrário. Eu estava convencido de que havia muito de
bom dentro de si - afirmou ele.
- Não... Uma má rapariga?
- Má, não! Demasiado livre, sem cabeça, talvez...
- Eu sei o que pensava então, e o que pensa ainda! -
interrompeu ela, erguEndo-se, lívida.
Andrew tentou segurar-lhe as mãos, mas ela escondeu-as atrás
das costas.
- Está a tornar o caso terrivelmente difícil! - disse ele. -
Mas, já que me força, devo dizer-lhe que a achava bastante
estouvada; mas, ao mesmo tempo, desejaria que não fosse assim.
Tem de desculpar os pensamentos de um ocioso, de um falhado -
o que eu era quando nos encon trámos pela primeira vez -
recentemente desapontado e ferido pela irmã e pela noi va, que
tinha uma livre concepção da vida. Esse outro "eu" tomou-a por
uma namoradeira. Mas dentro de mim - e apesar de tudo o que eu
sabia, e tinha experimentado - havia, ainda, uma voz
persistente, embora fraca e cheia de piedade, que tentava
convencer-me de que você era a inocente e gentil rapariga que
eu amava...
- Andrew Bonning! Eu... eu não casaria consigo, nem que
fosse o único homem na Terra! - clamou ela.
- Se assim é, podia tê-lo dito mais cedo, e poupar-me a
isto!
- Você poupou-me alguma vez?. Poupou-me alguma vez ao seu
desprezo? - inquiriu ela, crescendo para ele, , pálida e
irada, e fitando-o nos olhos. - Andrew Bonning!
Eu fugi de casa para escapar a todas essas coisas de que me
acusou; Fui conduzida ao desânimo por rapazes que me
pretendiam, casando-se comigo, ou por outros processos...
E, no colégio, os homens como você, fartaram-se até ao
desespero de amor - da sua espécie de amor. Que lhes
interessavam os meus receios e as minhas necessidades?...
"Por isso, fugi! Você pensa que, se me agradasse essa
espécie de divertimentos, eu necessitaria de ir pedir boleias
a fazendeiros, mecânicos de garagens, viajantes, turistas e
não sei que mais? Não! Eu queria fugir de toda essa podridão,
e consegui! Gostava da maior parte dos homens que me davam
boleias! Gostei de si, ao princípio, até você me gelar com a
sua estúpida superioridade! Naquela noite no hotel, prestei a
minha melhor atenção a um rapaz correctíssimo, apenas para
você ver, para acentuar a sua impressão a meu respeito. Para
satisfazer a sua mórbida desconfiança das raparigas modernas!
E, aqui, tenho feito o mesmo - mais: pior ainda - pela mesma
razão. Julga que eu não tenho orgulho? Preferia morrer a
deixá-lo aperceber-se da minha vergonha, da minha humilhação!
Deixei os rapazes segurarem a minha mão e rodearem-me a
cintura - e até permiti que Texas Jack me beijasse -


254 255


suportar atè contactos repugnantes para mim, unicamente Para
alimentar as suas vis suspeitas. Ganhei alguma coisa com isso?
"Direi que sim! Você nunca teria sabido isto se não se me
declarasse esta noite. Você pede-me em casamento. Isso é o
melhor que um homem pode fazer por uma mulher.
Eu desconfio de que você tinha esperanças de redimir-me!
"Mas não tem de que redimir-me, como verificará de hoje em
diante. Agradeço-lhe, Andrew, mas devo declinar a honra!
- Martha! Está a ser demasiado severa! Como poderia Eu...
não se vá. Por favor!
- Não! - quase gritou ela, correndo pela sala.
- Deve reconsiderar. ou...
- Não! - clamou ela da porta.
- Querida! - suplicou.
- Não! - a voz soou da escuridão exterior. Ela partira.
O seu amado perfume pairava, ainda, na sala. O vento gemeu
no beiral e as folhas secas dos álamos restolharam pelo chão.
Um espectro familiar saiu da escuridão: era o triste e magro
fantasma de outro fracasso. Apenas desta vez fora a própria
vida que o abandonara.


256

XII


Com a chegada da manhã, depois de algumas horas de sono,
reafirmou-se em Andrew o novo espírito de rebelião que
despertara recentemente nele e que assentava no orgulho.
Tinha-se humilhado diante de Martha, declarando-lhe O seu amor
por ela; agora, poria para sempre de parte esse amor,
dedicando-se, de corpo e alma, a salvar os haveres de Bligh.
Para conseguir esquecer, precisava de ter uma actividade
contínua e exaustiva ao ar livre, de suportar privações e
resolver problemas, de ter algo que combater sozinho.
Levando o cavalo e magras provisões, Andrew embrenhou-se
nas colinas.
Destemido, avançou para uma manada de vacas, onde a marca N.
B. ainda não fora gravada, e fez saber o que ali o trazia.
- Você trabalha para Bligh? - inquiriu um velho vaqueiro.
- Sim!
- Não vejo nenhum ferro na sua sela.
- Não marcámos uma rês, este Verão!
- Como é isso?
- O meu companheiro é aleijado e eu novato. Há cavaleiros
que apanham o nosso gado primeiro.
- -Ah! Por isso traz armas! - retorquiu o outro, com um
brilho apreciador nos olhos,


257

e medindo Andrew dos pés à cabeça.
- Sim! E se apanhar alguém a marcar o gado de Bligh, matá-
lo-ei!
- Você é o tipo que tosou o Cal Brice no rodeo?
- Sim, sou eu!
- É verdade que você acusou Reed de ter disparado contra si
e lhe bateu por isso?
- É! Aqui está a marca. Vede! - replicou Andrew, expondo o
longo sulco vermelho.
- Passou a rasar, jovem! Que o faz suspeitar do Reed?
- Eu não suspeito; tenho a certeza!
- Bem. você lá sabe! DEsmonte e venha daí! A comida está
quase pronta.
Meia dúzia de vaqueiros sentava-se Em volta do fogo. Um
carro fechado estacionava perto. Os cavalos pastavam na erva
do planalto.
- Rapazes! Este aqui é o cavaleiro de Bligh - e não um
veterano como podem verificar - anunciou o vaqueiro. - O
Wyoming não fez muito por ele, e muitos de nós devemos
envergonhar-nos. É o tipo que se entendeu com Cal Brice!
Particularmente aborrecido com Smoky Reed por ter disparado
sobre ele, anda à procura do Smoky ou qualquer outro cavaleiro
que pretenda apropriar-se do gado de Bligh!
Eram correctos, mas não amigos. Andrew comeu com eles, e
aprendeu muita coisa neste primeiro contacto com o grupo. O
homem mais velho era, evidentemente, o patrão, e proprietário
do "Barra K".
- Obrigada! Vou dar uma volta! - explicou Andrew, assim que
terminaram a refeição.
- Temos muito prazer em que durma connosco - convidou o
vaqueiro.
- Não, obrigado! Arranjarei um monte de feno, em qualquer
parte!


258


- recusou Andrew, ao mesmo temPo que montava.
- Espero que não se zangue por eu ser curioso.
- Claro que não!
- O seu companheiro aleijado é vaqueiro?
- Sim! Um pioneiro do Arizona!
- Então em breve estará adaptado a isto. Quanto a si, o que
deve aprender é a não levar este caso do roubo de gado tão a
peito. Desde que não haja cerca, o gado faltará sempre. Todos
os ganadeiros sofrem do mesmo mal, e nem dão por isso.
- Mas, no caso de Bligh, não podemos proceder desse modo.
Ele é pobre e conta com uma pequena manada para recomeçar a
vida. E, os ladrões aproveitam-se da circunstância de ele não
poder pagar a vaqueiros suficientes para que lhe guardem as
reses.
- Isso é diferente! Diga a Bligh que se una a outros
rancheiros!
- Ele não pode, porque fez um contrato desses com McCall.
Mas, como mudou de opinião e desfez a sociedade, McCall
aborreceu-se e levou o caso para o tribunal!
- McCall? dirige o "X Duplo"! Se eu fosse a Bligh
compraria ou venderia!
- Hei-de dizer-Lhe. Até à vista!
Alguns vaqueiros acenaram com as mãos. Andrew já se afastara
alguns metros, quando um deles Lhe gritou:
- Investigue os caminhos do Sul!
Parecia um aviso razoável e amigo. Andrew cavalgou até ao
pôr do sol. Então, decidiu acampar junto de um ribeiro
rochoso. Metade da noite foi passada em claro, alimentando o
fogo quando se sentia gelar. O frio prmanente, as solitárias
colinas e as brilhantes e trémulas estrelas acalmaram-lhe o
espírito, mas não conseguiram adormecê-lo.


259


No dia seguinte, Andrew, percorreu - desde o raiar da
madrugada até ao cair da noite - os caminhos que já se lhe
haviam tornado familiares. O terceiro dia de jornada levuu-o à
encosta Sul das colinas, onde o gado era mais numeroso. Andrew
lobrigou vários distantes cavaleiros, mas nada fez para se
aproximar deles. Ao fim da tarde, sentado à beira do fogo,
uuviu ruído de cascos. Em breve surgiu um cavaleiro. Era Jim
Fenner.
- Viva, Andrew! - saudou, enquanto desmontava
laboriosamente. - Há horas que sigo o teu rasto?
- Houve algum contratempo no rancho? - perguntou Andrew,
vivamente.
- Não... ou talvez sim!... O Bligh está aborrecido. A Martha
anda na lua. E Sue continua na mesma! Topaste com alguma
coisa?
- Encontrei o grupo do "Barra K". O chefe pareceu-me pessoa
decente. - E Andrew relatou o encontro, pormenorizadamente.
- Bem. É um tipo direito. É o que eu te digo. Ninguém se
dignará ajudar-nos. Somos demasiado reles!
- Tenho verificado isso, ultimamente, Jim. Acha que isto é
um bom treino que me poderá aproveitar, se um dia comprar um
rancho?
- Não arranjarás melhor, meu rapaz! Mas, como conseguirás
tornar-te rancheiro, continuando a trabalhar para Bligh?... E
ainda vamos ficar mais pobres, em breve!
Andrew dobrou-se para a fogueira e arranjou os madeiros
incandescentes.
- Jim. Arrumei tudo com a Martha! Levei-a para a minha
barraca e propus-lhe que se casasse comigo. e levei a maior
rasteira que imaginar se pode.
- Porquê?.
- Por ter acreditado, há tempos, que ela não prestava!

260


- Tiveste o que merecias! - concluiu o homem do Arizona,
implacável.
- Parece que sim - aquiesceu Andrew. - Ela decli nou a
honra.
- Ah!. É a mesma coisa! Ela está louca por ti!
- Velho idiota! - explodiu Andrew.
- Pois claro que sou!. E sinto-me assim, esta noite.
olha, que dizes tu a uns bocados de carne seca nas brasas,
bolachas, carne e um pedaço de bolo?
- O meu espírito grita "não!..." Mas a minha carne é tão
fraca.
- Bem. É uma maneira de ser... Quando eu vi que tu não
tinhas trazido ferramenta, achei melhor seguir o teu rasto.
- Como conseguiste descobri-lo?
- Eu?... A Martha é que o descobriu. e me foi avisar...
- Sim?... E, que disse?
- Bem... Mais ou menos isto "O Andrew fugiu de casa, com as
mãos a abanar, apenas porque gosta de estar de mau humor.
Espero que morra de fome".
- Que adorável criatura! - deixou escapar Andrew com um
sorriso amargo. O seu coração ferido aquecia aquela recordação
ainda que sarcástica: ela também fora profundamente atingida -
Mas Martha embrulhou o bolo, Andy, descobri uma coisa muito
interessante acerca daquela rapariga!
- Só uma? - zombou Andrew.
- Aquilo é tudo garganta!... Bem, vamos comer. Atiça o fogo,
homem! E vai buscar água, enquanto eu desfaço o embrulho.
O crepitar do fogo, a comida quente e a companhia de Jim,
afugentaram-lhe os pensamentos melancólicos. No entanto,
Fenner não se mostrou muito falador, e, terminada


261


a refeição, estendeu a manta no solo, e enrolou-se nela, mesmo
sem descalçar as botas.
Andrew começou a caminhar de um lado para o outro. Ainda não
chegara o momento de falar a Jim no novo rancho, mas decidiu
que o faria mais tarde ou mais cedo.
Algumas nuvens cobriam as estrelas e uma rara serenidade na
brisa da noite pressagiou mudança de tempo. Os pastos
precisavam de chuva. Os vales estavam então quase ressequidos
como o pó do caminho. O gado iniciara a caminhada para o rio,
nas margens do qual poderia pastar dúrante o Inverno.
Uma finíssima poeira de chuva obrigou Andrew a regressar ao
acampamento. Levou a sela e as mantas para debaixo de um
frondoso cedro e preparou-se para passar a noite. Os coiotes
estavam anormalmente barulhentos.
Acomodou-se na manta. e aguÇou o ouvido. O vento soprava
sobre o cedro, arrastando alguns pingos de chuva que lhe
molharam a cara. O monótono e intenso zumbido dos insectos
parecia uma despedida ao Outono prestes a findar. Em breve a
neve cobriria os caminhos e o vento gemeria por entre as
ramagens.
Não conseguiu descansar durante a noite, mas, quando a
aurora rompeu, veio encontrá-lo profundamente adormecido -
contra o seu costume - e Jim teve de o chamar várias vezes. A
manhã estava fresca e nevoenta e a chuva continuava a cair,
embora com menos abundância.
- Acende o fogo, meu rapaz, enquanto eu trato dos cavalos! -
comandou Jim. - Arranjarás bastante lenha seca, se procurares
nas ramagens inferiores dos cedros, que a chuva não atingiu.
Nunca é difícil fazer uma fogueira num campo de cedros. Essa
árvore é a maior amiga dos rancheiros e vaqueiros,
principalmente nas regiões afastadas.


262


Abandonando a protecção que a árvore lhes oferecia, Andrew e
Jim enfrentaram o vento e os borrifos de chuva que lhes
fústigavam as faces. O campo mostrava-se monótono e
encanecido. O gado era pouco, fugidio e só se dei xava ver ao
longe. Quando chegaram a um vale bastante largo, os cavaleiros
separaram-se. Andrew cavalgou para Este, rumo a um dos pontos
a que o vaqueiro do "Barra K" se referira e o aconselhara a
bater. O terreno apresentava-se desconhecido e hostil. A erva
crescia aos retalhos, a água corria livre pelas ravinas e
notavam-se numerosas manadas de pequeno número de cabeças,
marcadas com diversos ferros. A marca "N. B." tornava-se
particularmente notada pela sua ausência.
Andrew atravessou grupos de cedros e carvalhos, tapetes de
relva, terrenos rochosos e avançou até o vale se transformar
num estreito desfiladeiro onde se tornava difícil continuar.
Então, voltou para trás e desviou-se para o lado oriental, o
escolhido por Jim. Um pouco mais abaixo deparou-se-lhe
considerável número de marcas de gado que passara por ali
naquele mesmo dia. As matas alternavam com os prados. Viu
alguns novilhos que fugiam e, de súbito, soou um tiro
distante, que o fez vibrar da cabeça aos pés. Lançou a montada
a galope pela planície, rompeu passagem através de um grupo de
árvores e emergiu numa pequena clareira. Núm relance divisou
cavalos sem calções, e, mais além, dois homens a pé, tão
juntos que lhe excitaram mais a curiosidade. Uma pequena
coluna da fumo, que subia verticalmente junto dos homens,
confirmou as suas suspeitas. Jim caçara, finalmente, Reed, ou
um dos seus sócios.
Os dois homens - quais estátuas - permaneciam perto do
promontório de árvores que sa salientava da rochosa vertente
Norte. Andrew não tardou em aproximar-se, e saltou do cavalo.


263


Jim apontava a pistola a um homem que conservava os braços
erguidos acima da cabeça. Perto da fogueira fumegante, jazia,
uma vitela que berrava desesperadamente. O ladrão de gado
fora, evidentemente, interrompido e apanhado na parte inicial
do seu trabalho, porque na pele vermelha do animal apenas se
divisava uma marca.
- Eram dois, Andrew! - elucidou Jim. - O outro estava a
perseguir uma vitela quando eu saí do bosque. Assim que me
viu, "cavou"! Tira a arma a este "menino".
Andrew apoderou-se duma faca cujo cabo saía do cinturão do
desconhecido.
- Corta as cordas que prendem a vitela! Temos de dominar
este homem. Amarra-lhe as mãos atrás das costas! - ordenou
Jim.
Andrew apressou-se a obedecer. E, embora o excitamento o
tornasse desajeitado, gastou poucos minutos na operação.
- Caminha à minha frente, patife! - ordenou Jim, com voz
dura. - Vou mostrar-te como os homens do Arizona tratam os
ladrões de gado.
Andrew seguiu-os - levando o cavalo pela rédea -
visivelmente agitado pela ameaça do amigo, cujos olhos
faiscavam. A boca negra da pistola colava-se às costas do
ladrão sempre que este vacilava e demorava o passo, cada vez
mais aterrorizado. Jim parou debaixo da mais alta e frondosa
árvore que se avistava.
- Bonning! Tira a corda da sela, põe o laço em volta do
pescoço deste tipo, e passa a outra ponta por cima daquele
ramo!
- Valha-me Deus! Vai enforcá-lo? - gritou Andrew, incrédulo.
- Evidentemente que sim!


264


- Mas, Jim... Não está a falar a sério. Dê uma lição a esse
pobre diabo, mas deixe-o partir.
- Hum!... Para ir direito ao nosso gado e pôr marca? Ná!...
Naquele bosque estão vacas nossas, Só vi uma, mas ouvi dois
tiros! Vou pôr cobro a roubos, de uma vez para sempre!
- Enforcá-lo!... Isso é fazer justiça por suas próprias
mãos! Seremos processados como assassinos! Mas, mesmo que tal
não sucedesse, eu não tomaria parte em tal. tal...
- Maldito novato! - gritou Fenner tão zangado, que Andrew
emudeceu. - Passa-me essa corda!
Andrew obedeceu, maquinalmente. O homem empalideceu a ponto
de parecer um cadáver. Não era novo. A cara feroz tinha um tom
azulado, por baixo da pele. Os lábios finos estavam sujos de
tabaco. O nariz era em bico, e os olhos despediam lampejos de
ódio.
Jim fê-lo voltar-se de costas, e, num abrir e fechar de
olhos executou o trabalho que destinara a Andrew. Então,
encarou o ladrão. Na mão, a ponta da corda que esticou.
- Se queres falar, fá-lo sem demora! - aconselhou Fenner em
tom ameaçador.
- Sou pobre! - retorquiu o prisioneiro, roucamente. - Também
me roubaram gado. Deixei-me levar...
- Quem está por trás de ti?
- Por trás de mim?... Ninguém! Que quer dizer?
- Pagam-te para roubares?
- Não, senhor! Não desceria a tanto! Eu fiz o meu...
- Estás a mentir, homem. Para cima!
Fenner puxou a corda e o homem soltou um grito sufocado. A
cabeça pareceu sair-Lhe do corpo, puxada pelo laço cujo nó se
lhe cravava no pescoço. Quando o homem subiu até os pés mal
sentirem o seu peso, Fenner parou, esperou uns segundos e,
subitamente largou a corda.


265


O homem inclinou-se para trás, cambaleante, com a boca
aberta e os olhos a saírem-lhe das órbitas.
- Que te parece isto? - perguntou Fenner.
- Por amor... de Deus!... - articulou o ladrão. -
Deixa-me...
- Quem te pagou para que fizesses esse trabalho?
- Ninguém! Eu...
- Bem... Talvez possa avivar-te a memória - interrompeu o
vaqueiro, que, de uma só vez, ergueu o preso mais alto que
anteriormente, de modo a os membros penderem, como sacos. Jim
manteve-o naquela posição até que a língua lhe saiu da boca,
os olhos se reviraram a ponto de só se ver a parte branca, e a
cara se lhe pôs roxa.
- Basta, Jim! - gritou Andrew, esforçando-se por tirar a
corda das mãos do companheiro. E desceu a vítima que caiu por
terra, meio sufocada. Depois libertou-o do aperto do laço. Uma
inspiração profunda e sibilante assegurou a Bonning que o
homem ainda estava em condições de respirar.
- Estragaste a festa! - Grunhiu Fenner.
- Você tem mais sede de sangue que uma sanguessuga! - gritou
por sua vez Andrew.
O ladrão sentou-se, respirando livremente, e afagou o
pescoço com as mãos. A cara retomava o tom normal.
- Chefe! - exclamou ele, com voz rouca. - Segue caminho
errado! Ninguém me paga! Roubei algumas vitelas para meu
proveito! Pode crer no que eu digo. Chamo-me Call Pickems!
- Onde vives?
- A cerca de vinte milhas a Este, no Desfiladeiro da
Primavera.
- És um forasteiro?
- Não, senhor! Vivo aqui há quatro anos! Cuidava da minha
propriedade!


266


-És casado?...
- Sim, e tenho quatro filhos! Dão-me água...
- Juras que ninguém te pagou para estes roubos?
- Estou a ser honesto!
- Quem era o cavaleiro que te acompanhava?
-Não posso dizê-lo! - replicou, rápido, Pickens.
- Por acaso, conheces um boieiro chamado Smoky Reed?
- Não me recordo desse nome.
- Está bem! Podia meter-te na prisão, por este trabalhinho.
mas, se prometeres não voltar a pôr as mãos no gado com. a
marca N. B., deixar-te-ei partir!
- Aceito quaisquer condições! - facilitou Pickens,
reconhecido.
- O meu nome é Fenner. E este é Andrew Bonning. Trabalhamos
para Nick Bligh! Viste muito gado com a marca N. B.?
- Alguns bezerros, mas poucas vacas!
- Sabes de mais tipos que se dediquem a este condenável
trabalho?
- Suspeitei de alguns vaqueiros do Rio da Prata!
- Hum... Nenhum do Água Doce?
- Não! Conheço os da Barra Cruzada; e todos os grupos do
Wyoming!
- Atira a arma deste tipo ali para a relva, Andrew!
Pickens!... Vai buscá-la e aceita um conselho de um veterano
do Oeste. Pela saúde da tua mulher e dos teus filhos, deixa
esta vida.
- Você estava, mesmo disposto a enforcá-lo? - interrogou
Andrew.
- Não! Pretendia, apenas, assustá-lo e forçá-lo a confessar
que trabalhava para McCall. Mas creio que nos enganámos na
porta!
- Palavra, que tive medo!


267


- Ora... Vi muitos ladrões no ar, Andy. Cheguei a ter pena
deste homem. É, realmente, um pobretão! Reparaste nos pés
dele?... Tinha uma bota no esquerdo, e um sapato no direito. E
ambas as solas estavam rotas.
- De facto, parecia um miserável!
- Não tarda que tu e eu pareçamos dois espantalhos, como
ele! Vamos para casa, Andy!
- Para casa. - repetiu o jovem como um eco.
- Pois claro! Não faz sentido perdermos mais tempo, à espera
de apanhar Smoky Reed com a boca na botija! E ele deve estar
prevenido. De qualquer modo, eles já apanharam o gado novo, ia
apostar.
- Quando saberemos, ao certo, o que perdemos?
- Depois de reunir-mos o gado!
- Não me agrada desistir, Jim!
- Mas, quem falou em desistir? Vamos, vamos, apenas,
continuar este jogo, com outra táctica! E havemos de vencer,
caramba!
- Está bem! Para o rancho! - gritou Andrew.
À primeira vista, parecia que esta decisão de Jim ocultava
uma rendição às forças do adversário, que eles não eram
suficientemente fortes para combater. Andrew fingiu resignar-
se, mas decidiu estudar o companheiro. Após quatro dias e
noites de viagem, com pouca comida e sem abrigo - cavalgando
sempre sob a chuva que caía impiedosa, molhando-os até aos
ossos - Andrew não podia deixar de suspirar por uma ceia
preparada por Sue, e pelo conforto da lareira da sua cabana.
Mas, o trabalho no rancho e as cavalgadas pelas planícies e
montanhas tinham sido bem recebidas por Andrew, e ele
enfrentara-as - na sua opinião - sem se sair mal de todo.
Nelas se refugiara de todos os complexos criados no Este.
Quando saiu do desfiladeiro, seguindo Jim, e empurrado


268


por um vento cortante, sentiu o coração bater! Ele tinha lugar
no Oeste Mas no momento em que avistou o rancho, todos os seus
sonhos caíram por terra - O amor que ele resolvera esquecer,
dominou-o de novo, mais impulsivo e exigente, após estes
quatro dias de ausência. Se estivesse só, Andrew teria atirado
a cabeça para trás, lançando ao vento o desprezo que sentia
por si próprio.
Se, ao simples pensamento de ver Martha, o coração parecia
saltar-lhe do peito e o sangue lhe corria nas veias com o
dobro da velocidade, devia estar louco e desesperadamente
apaixonado. Só de pensar em vê-la! Como havia ele de esquecer
- ou de dominar - tal sentimento?
Continuou a cavalgar, de cabeça baixa, insensível à chuva e
ao vento. E, à medida que se aproximava de casa, menos
duvidava da força e profundidade do seu amor por Martha Ann
Dixon. E, porque amarga ironia do Destino esta certeza chegara
tão tarde, que Martha nunca esqueceria ou perdoaria a primeira
e errada opinião que ele formara a seu respeito? Andrew estava
a pagar a sua precipitação, e continuaria a expiá-la. Mas
estava grato ao pensamento que o levara a Wyoming, apesar de
chegar à triste conclusão de que a paz de espírito, encontrada
no árduo trabalho do rancho, se desvanecia ante o desprezo da
mulher amada.
Fora dos estreitos trilhos da montanha, Andy e Jim
encontraram melhor tempo. A nuvem cinzenta que coroava a
montanha não se estendia até às margens planas do rio. O sol
surgiu, para arrancar da água e das folhas de Outono reflexos
de ouro e prata.
- Jim. Já alguma vez fez castelos no ar?... - inquiriu
Andrew, colocando a montada a par da do companheiro.
- O meu tempo de sonhar, passou há muito! Tu ainda acreditas
nisso?...
- Não, mas vou contar-lhe um sonho que tive!


269


- Vamos a isso!
- Relacionava-se com o rancho de Bligh; Sonhei que tínhamos
duas mil cabeças de gado da meLhor qualidade, cuidadosamente
seleccionado, para obtermos uma grande manada e desenvolvermos
o negócio. As nossas montadas seriam os mais puros cavalos do
Colorado, os vaqueiros - escolhidos por si, no Arizona, entre
os melhores, fiéis, sóbrios, entendedores e expeditos. Para os
trabalhos da fazenda tínhamos mãos experientes, do México.
Construiríamos novos celeiros, currais e novas pocilgas; os
pastos estavam cercados; a água era puxada por bombas para
irrigar os campos; Plantáramos tudo o que o chão aceitasse;
não precisáramos de vencer terreno, e compráramos um tractor,
um camião, um carro novo...
- Eh!, Eh!, Eh!... Quando tu sonhas, ficas com vertigens,
certamente! - exclamou Jim, aproveitando uma pausa de Andrew
para respirar.
- Galinhas, porcos e, já falei de cavalos, Uma matilha de
bons cães de caça e pastores; pistolas, espingardas, selas,
arreios, esporas... oh!... Un nunca acabar de coisas, e todas
novas! - pelo canto do olho, Andrew viu O velho vaqueiro
voltar a cabeça e fitá-lo, como duvidando do juízo do amigo.
- Ah. pois!... Mas esqueceste-te de um anel de noivado para
Martha...
Andrew saiu, mais uma vez, do país dos sonhos, para assentar
na realidade.
- Não, Jim! Eu não sonhei com isso! - retorquiu, sisudo.
- Bem. se sonhasses eu acharia normalíssimo. Andy. Não digas
que és um imbecil.
- PareÇo-o?
- Pois claro! Começaste bem, mas, depois, meteste os pés
pelas mãos!


170


Tens a cara encarnadísima! Não te devia ter deixado sozinho na
montanha aqueles dias! Sentes febre, Andrew?
- Creio que sim.
- Apanhaste muito frio! A transição brusca do seco para o
molhado, e, do molhado para seco, é perigosíssima. Sue
encarregar-se-á de te tratar!
- Não é essa espécie de febre.
- Então? - inquiriu Jim, ansioso. - Sentes a cabeça em fogo?
- Exactamente!
- E sofres?
- Terrivelmente!
- Céus! Vais ficar doente a sério! Essa dor apanha-te o
corpo todo?
- Não! Só um ponto. Mas, Jim. Aquele sonho que lhe contei,
parece-lhe impossível tornar-se realidade?...
- Para nós, sim! Mas, se tivéssemos algum dinheiro a mais
seria, até muito exequível. Bligh tem milhares de acres - bem.
tem, se McCall não lho tirar - de terreno de excelente
qualidade. Andy. Nós podíamos ter o maior, mais bonito e
produtivo rancho de todo o Wyomimg. Bolas! Afinal também já
estou a sonhar, e isso faz-nos mal... A ti e a mim!
- Tudo isso há-de tornar-se real! Eu sei que sim!
- Hem? - Jim fitou o amigo, boquiaberto.
- Tenho andado a enganá-lo, veterano! - gritou, Andy, que
não conseguiu dominar a alegria que o invadia. - Eis o que eu
sonho, desde que cheguei aqui! E, agora, chegou o momento de
torná-lo realidade!
- Andy! Tu perdeste a cabeça!
- Não, Jim! Pensei em tudo! Tenho o dinheiro suficiente para
comprar tudo o que inumerámos.


271


Depois, basta deixar correr o negócio, e... Não sei como
consegui esconder-Lhe isto, tanto tempo!...
- Tens o dinheiro. - murmurou Jim.
- Se não o tivesse, não o afirmava!
- Onde?
- No chão da minha cabana! Enterrei-o bem fundo! Não corre
perigo!
- Está limpo, Andy?
- Dou-lhe a minha palavra de honra, Jim!
- Com mil demónios!... Eu sempre olhei Para ti com bons
olhos! Não me digas que és um assaltante de bancos, ou um
político!
- Não, não digo!
- Como o obtiveste?
- Deixou-mo a minha mãe!
- E vais correr com Bligh?
- Ele e eu seremos sócios!
- E eu?
- Você dirigirá o rancho! Capataz não é o lugar que merece!
Será o superintendente!
Fenner estacou, e fitou o amigo, de frente. O sol
desaparecera, e as sombras começavam a cobrir os campos.
- Então... É isso! - deixou ele escapar, como respondendo a
um interrogar invisível.
- Isso, o quê?
- Sempre o senti...
- Jim!... Agora é você que não está bom da cabeça!
- Andy!... Houve qualquer coisa que me não deixou desanimar!
- replicou o vaqueiro, em voz baixa. - Como rancheiro, o Bligh
está destinado a um fracasso. Mas eu nunca desisti. desde que
tu e a Martha chegaram...
Talvez fosse a doçura com que ela me tratou, e a sua alegria
contagiante, que me salvou muitas vezes do desespero


272


e que me inspirou nova fé na vida, que me levaram a pressentir
em ti, qualquer coisa que não conseguia definir. -Seja o que
for, sinto-me satisfeito. - O mesmo que trouxe Martha ao
wyoming, trouxe-te a ti também! - afirmou Fenner solenemente.
- Farás do Bligh um novo homem! Sue sentir-se-á felicíssima, e
essa maravilhosa rapariga... Agora, ela quebrará O gelo que
Lhe cobre o coração e ajoelhar-se-á perante ti!
- Aí é que você se engana! - riu-se Andy. - Jim
você nada dirá ao Bligh e à Sue, enquanto não estiver tudo
preparado e tratado! Quanto à Martha, nada deve saber, até que
seja de facto impossível ocultar a "operação"!
- Oh! Ocultar tão boas notícias...
- Tem de ser! Eu quero que se faça assim! Deixe-a ficar
intrigada quando o gado começar a chegar! Encarrego-o de lhe
comprar o melhor cavalo do país! A sela e os arreios serão
condignos! Ajudar-me-á, Jim?
- Com certeza! Ao pé de ti, Andy, O génio da lâmpada de
Aladino sentir-se-ia diminuído! Podes contar comigo! Juro que
serei mudo como um penedo. Mas não me exijas que ande triste,
enquanto tratamos do assunto!
- Ande como quiser, Jim, Assim, O caso tornar-se-á mais
misterioso. Bem, chegámos ao celeiro! - avisou Andrew
desmontando, com movimentos lentos e pesados. - Estou meio
gelado. Depois de comermos, vá à minha cabana! Quero
estabelecer um plano de acção e conto com a sua ajuda!
Depois de livrarem as montadas do peso das selas, os dois
homens avançaram para a cozinha. A escuridão era total, e a
luz que atravessava os vidros das janelas parecia dar-lhes as
boas vindas. Jim entrou primeiro, logo seguido de Andrew.
- Valha-me Deus! - exclamou Sue. - De todos os enfarruscados


273


maltrapilhos que vi até hoje, vocês são os piores.
Andrew curvou-se diante do fogo, para aquecer as mãos
enregeladas. A luz, a agradável temperatura, a cafeteira
fumegante, a mesa posta para a ceia, o mobiliário familiar e
confortável, Tudo isto fazia Andrew pensar que pouco é preciso
para tornár o Homem feliz.
- O Andy teve muito trabalho, ou, melhor: passou um um mau
bocado! Onde está o patrão?
- Bligh não tem andado muito bem! - replicou Sue, que se
voltou, para chamar Martha.
Quando a jovem abriu a porta, Andrew sentiu o coração
pular-lhe no peito. Apenas cinco dias tinham passado desde que
a vira pela última vez?... Um halo celestial parecia
cercar-lhe a face delicada, e a cabeleira de ouro. Os olhos
mostravam sinais de choro, mas não era essa a causa da
transformação subtil que se operou no jovem. Caminhou para Jim
- que se sentara ao pé da lareira - e pôs-lhe a mão no ombro.
- Vivam! - saudou ela, dirigindo-se aos dois. E, após um.
rápido, mas atento, exame, acrescentou - Estiveram numa mina
de carvão? Sujos como vêm...
- Segui o rasto do Andy, dia e noite, pequena, mas ele comeu
o bolo! - grasnou Jim.
- Ah, sim?... - perguntou ela, rapidamente, pousando os
olhos nos do jovem.
- De que estão vocês a falar? - perguntou este, fingindo-se
desentendido.
- Do tio Nick! - foi a resposta.
- Está doente?
- Quase, de tanto se preocupar por causa de McCall!!
- Aconteceu alguma coisa?
- McCall vai obrigar o tio a abandonar o rancho!


274


- Bem. É uma má nova! O caso já está no tribunal?
- Ainda não, disse-me o meu tio!
Andrew encheu um balde com água da caldeira.
- Bem! Vou às lavagens! Não deixe o Jim comer tudo, hem?...
- pediu, já à porta.
Enquanto caminhava para a cabana e acendia o fogo, Andrew
pensava na atitude de Martha. Apenas se mostrara surpreendida.
O regresso do rapaz nada devia ter significado para ela.
Talvez, dias antes, ela o tivesse inscrito na lista dos
indesejáveis. No entanto, havia, ainda, qualquer coisa: o
mesmo olhar insatisfeito, que inspirara o tão grande e
profundo amor de Andy. O sonho do novo rancho havia-se
desvanecido. Tê-lo-ia Andrew acarinhado - e revelado a Fenner
- apenas por Martha Dixon?...
Andrew achou-se no escuro, vazio e ventoso vestíbulo da
noite. Sentia-se estranhamente feliz. No entanto não havia
qualquer razão que o levasse a sentir-se esperançado no que
respeitava a Martha. Não o havia ela desprezado?... Não
declarara que não se casaria com ele, mesmo que ele fosse o
único homem à face da Terra?... E não aceitara ele, Andy, a
sua decisão?... E ele não a censurara. Então, porquê essa
ansiedade de a ver, de estar no mesmo quarto que ele?...
Alegrar-se-ia por ele ter regressado são e salvo?...
Julgá-lo-ia intrépido, forte, corajoso, por se ter aventurado
sozinho a combater os ladrões de gado?... Jim não perderia
tempo com a descrição pormenorizada de tal caso. Seria ele,
alguma vez, um herói, aos olhos dela? Teria ela compreendido
que o conduzira a um ponto em que, tal como o animal ferido,
ele poderia tentar curar as suas feridas?, , E, ao menos,
teria Martha pensado nele?...
No curto percurso para a cozinha, centenas de desejos e
anseios o assaltaram. Vê-la de novo; ouvir a sua voz;


275


admirar as suas feições e adorar o seu sorriso; sentir a luz
dos seus olhos.
E prestes a entrar, hesitou, com receio de que ela lesse
nele como num livro aberto, e se risse dele, evidenciando, de
novo, o seu desdém.
Audaciosamente, entrou. Martha Ann estava só na cozinha.
- Oh!... Lamento chegar tão atrasado! Onde está o Jim?...
- Saiu para ajudar a Sue! Eu fiquei a cuidar da sua ceia.
para que não arrefecesse!
- Muito obrigado! - conseguiu Andy articular, prestes a
trair-se. Sentou-se à mesa, e não a olhou, quando ela colocou
a ceia na mesa. Martha apoiou-se ligeiramente no ombro dele, e
as mãos tocaram-se momentâneamente. Como seria fácil saltar da
mesa, e apertá-la nos braços!... E, que idiota, um homem pode
ser.
- Parece que não tem muita fome! - comentou Martha,
calmamente.
- Palavra que tenho! - replicou apressado, e sentiu vontade
de que o chão o tragasse.
- Jim contou-nos!
- O quê?
- Que apanhou um ladrão, e que, depois o deixou fugir porque
tinha mulher e filhos!
- Jim fez muito mais do que eu!
- Andy! Foi um grande erro ter saído daqui sozinho. sem
comida! - censurou ela, severamente. - O meu tio estava muito
preocupado! E ainda agora a Sue ralhou com o Jim, como se ele
fosse culpado da sua birra!
- Birra?...
- Sim, birra! Saiu de casa a correr, como ò miúdo que


276


deseja ferir-se ou morrer até, apenas para que a mãe tenha
pena dele.
- Sofri um grande... desapontamento! - justificou-se Andrew,
erguendo os olhos para ela, que se mantinha ao pé da mesa,
fitando-o com verdadeira censura.
- Supondo que sim - replicou Martha, ruborizada. - não era
razão para afligir Sue, o meu tio... e...
- Você?...
- Sim, eu, Eu... Eu creio que o odeio, Andrew. Mas isso não
impediu que me preocupasse muito. Uma vez, um rapaz tentou
suicidar-se por minha culpa!... Oh, foi horrível!...
Nos olhos de Martha surgiu um brilho malicioso.
- Porque é que ele fez isso? - inquiriu Andy, ciente de que
ela estava a improvisar.
- Porque... eu não o deixei beijar-me!
- E ele morreu?
- Não, mas eu sofri tanto como se ele não tivesse escapado!
- Pois o meu pesar está com ele!
- Não queira divertir-se à minha custa, Andy - preveniu ela,
com firmeza. - você não é uma criança! Teve várias namoradas a
sério.
- Tive só uma e era... Bem. Tinha tudo o que era moderno,
dentro dela.
- Gostava de a ter conhecido!... Mas, Andy. Lá porque eu não
o amo... e o odeio... e... e não casaria consigo. não cometa
outra imprudência como aquela!... Você não é do género de se
armar em herói, ou de dramatizar a sua pessoa", apenas para,
levar outra ao arrependimento!... Possivelmente, já esqueceu o
seu desapontamento.
- Isso é o que você pensa!
- Peço-lhe que me responda, Andrew!... Se continua


277


a agir desse modo, para morrer de fome, ou com um tiro - com a
ruína a bater-nos à porta - a vida não se tornará impossível
para os que ficarem neste rancho?...
- Creio que sim!
- Então, não corra mais esses riscos, por favor!
- Posso presumir que você deseja que eu evite esses perigos?
- inquiriu ele, irónico.
- Sim, pode! - e a cara de Martha tingiu-se de vermelho.
- Mas... não posso conceber uma rapariga com o seu modo de
pensar...
Nesse momento, Sue e Jim entraram na sala, para interromper
uma conversa que mais uma vez conduzia ao perigo.


278

XIII


Andrew Bonning deitara mão a um trabalho violento: serrar
lenha. Tinha boas tenções de recomendar o exercício a todos os
companheiros da equipa de futebol do colégio, como um teste
excelente das condições físicas de um atleta.
A enorme pilha de troncos, que Andrew "pescara" do rio pouco
trabalho lhe poupara. Seriam precisas horas de trabalho para
transformar um tronco de gigantescas proporções em lenha para
a lareira.
Numa pausa do labor, Andrew levou os toros serrados para a
sua cabana, composta de um único e vasto aposento cuja parede
de norte permitia a passagem do vento. Então, Andrew decidiu
amontoar troncos de encontro à parede, até ao tecto, com o que
obteria dois resultados: primeiro eliminaria a corrente de ar;
segundo, teria um amplo abastecimento de madeira, para o
Inverno que se aproximava. O jovem habituara-se a contemplar e
apreciar uma chama viva na lareira, e pensava, já, o que ela
representaria nas noites agrestes em que o vento uivasse,
tristemente. Precisava, também, de uma confortável cadeira, de
um candeeiro que desse bastante luz, e de alguns livros para
ler, pois não estava disposto a passar todas as horas de
descanço, a olhar o borralho.
Por vezes, Andy avistava Martha que andava de um lado para o
outro, em preparativos demasiado evidentes para o enganar,


279


e o levar a retirar-se para a cabana. Quando saiu, pouco
depois, encontrou-a a esforçar-se por mover a serra. Usava
botas altas, e uma blusa branca que com o
cabelo solto ao vento, formavam a mais perturbante miragem.
Andy observou-a, por momentos, surpreendido por verificar que
ela era suficientemente forte para deslocar a lâmina através
da madeira. A violência do esforço que ela se impusera estava
patente na obstinação com que cerrava as pequenas mãos morenas
em torno da pega da serra, e nos impulsos que imprimia à
delicada figura. À medida que o cansaço a invadia, os
movimentos da serra tornavam-se mais lentos.
- Oh! - exclamou ela, desistindo, com a respiração ofegante.
- Que sacrifício inútil, Martha! Por mais que tente, não
dará para mulher de um pistoleiro! - comentou Andrew.
- Olha quem fala!... - retorquiu Martha. - Há dois dias que
anda de volta disto, e não vejo que tenha feito muito!
- Olhe ali para dentro!
Martha obedeceu, e no regresso da cabana, não pôde deixar de
comentar:
- Bem. Parece que fez qualquer coisa. Dá a ideia que
tenciona passar aqui o Inverno!
- Toda a minha vida Martha", se tiver o valor suficiente
para o merecer!
Antes de replicar, Martha sentou-se num tronco e fitou-o
demoradamente. A sua mente magicava qualquer coisa, sem sombra
de dúvida.
- Andrew... - principiou. - Que se tem passado com o tio
Nick, o Jim e a Sue, nos últimos dias?
Apanhado de imprevisto, Andrew evitou encontrar o olhar
inquisitivo da jovem.
- Bem... Deve ser o contágio do meu espírito indomável; da
minha força de vontade; da minha confiança e da minha fé!
- Palavra?... Você é mesmo assim? - perguntou ela,
momentaneamente enleada.
- Deus permita que não mude!
- Realmente, o meu tio está muito melhor! Anda mais animado,
e a Sue e o Jim mostram-se muito satisfeitos. Não
Andy, Aqui há qualquer coisa que ainda não consegui definir!
Ouço-os murmurar e rir; a Sue está a preparar aS COisas do Jim
e, por isso, é evidente que ele vai viajar. Falei-Lhe nisso
mas ele pôs uma cara tão inocente, que não enganaria um
recém-nascido. Mas nada disse! Que têm eles, afinal?...
- Já que fala nisso devo dizer-lhe que também notei uma
tendência para a alegria! - retorquiu ambíguo Andrew,
encostando o cotovelo na serra.
- Tendência, uma figa! Agora... são felizes; e não o eram há
uma semana!... Mas, isso apenas vagamente lhe interessa. Vejo
que continua rabugento, como habitualmente.
- Eu?
- Ah, pois! De que outro modo poderia eu andar?
- Andrew! Eu perdoaria à Sue e ao Jim. mas nunca a você! -
preveniu Martha sisuda.
- Perdoar? Mas", o quê...
- Não sei! Mas, se há qualquer esperança de endireitarmos a
vida - e se você o sabe e o oculta - odiá-lo-ei ainda mais!
- Há sempre uma esperança para as pessoas boas!
- As pessoas boas não precisam de fé. As más, como eu... e
você, sim!
Andrew sacudiu a cabeça, e continuou a serrar. Martha havia
de descobrir a verdade mais tarde ou mais cedo.
O tronco separou-se em dois, e Martha levou-o para a cabana,
onde se demorou, consideravelmente. Quando regressou,
observou:
- É uma sala excelente. Se cuidasse dela, ficaria
encantadora!
- Gosto dela como está!
- Mas está muito vazia! Devia limpá-la, pintar as paredes,
pôr cortinas nas janelas e deitar fora aqueles chifres sem
graça, cobrir o chão com tapetes de lã, e arranjar alguns
móveis fortes e adequados, Oh!... Eu poderia torná-la mais
confortável, acolhedora e alegre!
- Claro que podia. para uma rapariga! Mas, infelizmente para
mim, estou só! Hei-de ser bem sucedido com os meus esquilos
domesticados!
- Devia mandar chamar a Connie! - e, como ele ignorasse o
toque, acrescentou: - Os esquilos são realmente domesticáveis?
- Sim! Vão brincar para a minha cama!
- Desculpe-me! Aposto que tem ratos e cobras, também! Os
amigos primitivos! Você é uma espécie de homem das cavernas,
não é, Andrew?
- Creio que já reagi a esse instinto, uma vez. e foi
suficiente.
- Porquê?...
Andrew não deu resposta. Aquela rapariga era um enigma. No
entanto, preferia-a assim, a hostil ou indiferente. Mas não
pensaria mal dela, por muitas novas facetas que ela revelasse.
Começava a sentir uma estranha e permanente suspeita. O actual
modo de ela olhár parecia sincero.
- Você tenciona trabalhar o resto do dia? - inquiriu ela com
aspereza.


280 281


- Claro que sim!
- Mas não lhe pagarão por isso. Pensei que: poderia
descansar um pouco!
- O trabalho é a minha salvação!
- Então, confessa ser um pecador?... Isso causa-me um
respeito fraternal por si.
- Martha! Eu não sabia que era trabalhador, até vir para o
Oeste! Veja! - pediu, orgulhoso estendendo para
ela as mãos grandes, fortes, calejadas, e queimadas pelo sol.
- Que fazia você, depois de ter deixado de estudar? -
inquiriu ela, com curiosidade.
- Tentei o trabalho de escritório!
- Ia apostar que o resultado não foi brilhante!...
- Exacto! Falhei, por completo!
- Eu trabalhei num escritório quase dois anos, ao mesmo
tempo que frequentava a Universidade - revelou ela,
naturalmente.
- A sério?... Conte lá!
- Você só se interessaria pelas aparências e pelos rapazes
que me convidavam para encontros entre as aulas. E há muitos
factos que o intrigariam...
- Não mais do que você já me intrigou!
- A conversa está a ir longe de mais! - notou ela,
erguendo-se - continue a serrar, e não fale. ou pelo menos,
não faça comentários.
Andrew aventurou-se a fixar os olhos dela.
- Para que está com preâmbulos, martha?
- Andrew!... Levar-me-á no carro, à cidade? - pediu Martha.
- Não pode ir com o Jim e a Sue?
- O meu tio vai com eles. Está portanto, a lotação esgotada.
Além disso, não gosto do modo como o Jim guia!


282 283


- Leve o meu carro! Creio que ainda resistirá a essa
viagem!
- Não me levará, mesmo que eu o peça como um favor?
- Mas... Eu tenho tanto trabalho. E não devemos deixar o
rancho só. E...
- Por favor, Andy...
- Bem. Se insiste...
- Obrigada! - gritou ela, entusiástica. - As carnshaws dão
hoje uma festa a que eu gostava de ir! São muito simpáticas.
Leva-me lá, Andrew?
Apanhado de surpresa, o jovem deixou cair a serra, e,
enquanto se baixava para a apanhar, perguntou:
- Porque me pede isso, se tem dezenas de admiradores que
lutariam pela sua companhia?...
- Eles excederam-se, Andy - retorquiu ela, desviando a
vista. - E eu também fui longe de mais, Andy. Não sei porque
não havemos de ser amigos. Amigos platónicos, se preferir.
- Não acredito na existência da amizade platónica. Além
disso, esquece-se de que me odeia!
- Eu... Eu... Não o odeio exactamente, Andrew. Claro que não
o amo, mas...
- Escute! Importa-se de acabar com essa... cega-rega?... Eu
sei que não me ama! Você já o tinha dito!... E uma vez foi
suficiente!
- Está bem, está bem! Mas, leva-me? - suplicou,
aproximando-se dele.
- Pois sim, Martha! Terei muito prazer em acompanhá-la, se,
de facto, é esse o seu desejo. Quando quer você partir?
- Imediatamente! - exclamou ela, não cabendo em si de
contente. - Andrew! Você é realmente muito simpático! Gostaria
que você... você... olhasse para mim... como uma irmã. Seria
tão... agradável ter um. irmão a quem pedir favores, sem ele
pensar em casar comigo ou desejar-me como mulher.
- Embora eu receie não ser um bom irmão, farei o possível
por me tornar agradável.
- Oh, Andy. como eu lamento não gostar de si como você
deseja. - a voz dela soou triste e sincera. E, após uma pausa:
- Eu sou assim. E a culpa é de vocês, os homens. Não se
satisfazem com uma simples amizade. Vou arranjar-me enquanto
você arruma estas coisas. Tenho um vestido novo, de um azul
lindíssimo. Comprei a tecido e fi-lo, sozinha. Quase já se me
acabou o dinheiro que você me devolveu. Mas hoje tenho de
fazer algumas compras. Podemos encontrar-nos em casa dos
Glemms, antes do jantar. Não quero comer com eles, sabe?
Prefiro que me leve ao café Mexicano, onde costumam ter uma
excelente galinha corada. Em seguida, iremos ao cinema - hoje
vai uma fita de "cow-boys" - e, no fim disto tudo, vamos à
festta. Está bem?...
- Estou à sua inteira disposição! - afirmou ele com uma
profunda vénia.
- No entanto continua a não sorrir! Não poderá divertir-se,
ao menos um bocadinho?...
- Creio que sim! Com um pouco de boa vontade...
- Andrew Bonning!... Se você me ama - como afirma - se
estiver a meu lado deve sentir-se feliz, a despeito do que eu
veja, faça, sinta ou diga - afirmou ela, com a cabeça bem
levantada.
- As minhas costas são muito duras, porque se não,
curvar-me-ia para lhe beijar os pés! Você venceu-me!... E o
que é engraçado, Martha, é que eu sinto-me feliz, a despeito
do que você veja, faça, sinta ou diga - e Martha ficou com a
certeza de que ele fora sincero.


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- Engraçado? - perguntou com um sorriso dúbio, para
subitamente se aproximar dele e lhe premir suavemente o braço.
- Pois é assim que eu gosto de si! DePressa! Vá buscar a sua
"cafeteira".
Se Martha ou Andrew esperavam qualquer coisa romântica no
percurso para a cidade, sofreram uma desilusão, pois o
rancheiro decidiu, à última hora, partir com eles, tornando,
assim, o que seria um "dueto" com todas as possibilidades, em
monótono e suporífero "terceto".
A jovem não tardou a sentir os efeitos da "oportuna"
companhia, e a expontânea tagarelice transformou-se em
pensativo mutismo.
- Deixe-me guiar, Andrew - pediu, quando apenas haviam
percorrido meia dúzia de quilómetros. Uma vez ao volante,
imprimiu ao velho carro velocidade tão elevada, que Bligh lhe
recomendou prudência e acabou por pedir-lhe que seguise mais
devagar. Quanto ao proprietário do veículo, pouco se importava
com a velocidade a que se guiam: se resvalassem e caíssem ao
rio, ou se o carro se espatifasse de encontro a uma árvore,
Andrew estaria junto da sua amada, assim, ficariam, finalmente
unidos, embora pela morte. A que estado o amor o reduzira!...
- Ficarei em casa das Glemms! - informou Martha, quando
entraram na cidade. O carro parou à porta das amigas e ela
tomou um grande embrulho - o vestuário para a festa - e
recebeu o casaco das mãos de Andrew, que a auxiliou a descer.
Então, Martha brindou-o com um aceno de cabeça - daqueles
acenos que tanto desconcertavam o rapaz.
- Virá buscar-me, por volta das cinco? - perguntou, como se
da resposta dele dependesse a sua vida.
- Está bem, a não ser que seja apanhado pelo meu amigo
Slade! - preveniu Andrew.
- Se tiver de punir outro dos meus admiradores, não se
importa de esperar por amanhã? - escarneceu ela.
- Se eu tivesse mesmo de punir alguém, esse alguém seria a
primeira pessoa de calças que visse na sua companhia!
- Andrew! Você e Martha dirigem-se um ao outro, finalmente!
- comentou Bligh, com secura.
- Sim... É encorajador. Onde quer que o "despeje", patrão?
- Bem. Quero ver o Jim, antes de procurar alguém,
especialmente McCall. Jim deixou-me de mãos atadas, com as
suas insinuações e meias-palavras.
- Também estou na mesma situação. Mas, ele já se "descoseu"
com alguma coisa?
- Não, excepto que vai ao Arizona com a esperança de
arranjar dinheiro para mim. Primeiro, não o tomei a sério;
mas, depois, percebi que ele tinha jogo escondido.
- Também ia apostar que sim! Mas, confie nele, senhor Bligh!
E, diga McCall o que disser, não se assuste. A propósito
gostaria de estar consigo, quando for encontrar-se com ele.
Os dois homens subiram a rua por um lado, desceram-na pelo
outro, e, assim sucesivamente, até emcontrarem, finalmente,
Jim Fenner nos arrabaldes da cidade - perto da cerca do
matadouro. O vaqueiro falava com um tipo do Oeste, chamado
Stanley e que Andrew conhecia de vista. Stanley era
proprietário de um bar e de uma escura casa de dormidas para
vaqueiros, mas também Possuia um armazém de forragens e um
estábulo malcheiroso.


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- Posso cá ter esses cavalos, dentro de dez dias - dizia
Stanley quando Bonning saiu do carro, atrás do patrão.
- Está a negociar cavalos, Jim - gritou Bligh, com uma
gargalhada. - Dá-me algum tempo para entrar no jogo, e...
- Bolas! - exclamou Fenner, fixando a penetrante vista para
além do patrão. - McCall! E aposto que vem com ideia de nos
reduzir a pó.
Andrew girou sobre si próprio, para ver o xerife sair de um
carro, acompanhado de um homem de cabeça quadrada e ombros
estreitos. Andrew nunca reconheceria, naquela figura bem
vestida e de aparência inofensiva o McCall de feições e modos
rudes, que espiara na memorável noite em que chegara à cidade,
se passasse por ele na rua.
- Como vai Bligh? Encaminhava-me para o seu rancho, quando
me disseram que você estava aqui! - esclareceu McCall,
friamente.
- Como vai, McCal?? - devolveu Bligh, no mesmo tom. - Por
acaso, também vim para falar consigo!
- Óptimo! Resolveremos este caso em pouco temPo. Entremos na
loja de Stanley, onde estaremos mais à vontade - convidou
McCall, com os olhos brilhantes.
- Estamos aqui muito bem! E, desta vez, não falarei de
negócios e contratos, sem testemunhas de confiança, a meu
lado. Fenner é o meu capataz, e este é Andrew Bonning.
- Como queira! - aquiesceu McCall. - Vem disposto a saldar
as contas?
- Não nas condições que você pretende!
- Pois não haverá outras!
- Nesse caso, nada feito! - replicou Bligh, com firmeza.
Nesse momento Andrew ouviu um tilintar atrás de si,


288


e, quase ao mesmo tempo, sentiu uma palmada nas costas. Texas
Jack resolvera juntar-se ao grupo. O vaqueiro estivera a
beber, mas parecia sóbrio, apesar de mal-encarado. A cara e o
cabelo estavam mais encarnados do que nunca.
- Vivam todos! Acho que devo meter a minha colherada! -
pronunciou, no tom gelado e arrastado, nele tão peculiar. A
sua inicial cordialidade desapareceu, para dar lugar à
insolência. Os olhos azuis e penetrantes cravaram-se em Slade
e McCall, com inequívoca expressão.
- Escute, vaqueiro! Se não tem cuidado com o que faz, meto-o
na gaiola! - ameaçou Slade.
- Não pode prender-me, xerife, só porque... insisto em
falar no dinheiro que McCall me deve e pretendo receber agora
mesmo!
Num ápice, Andrew compreendeu que uma importante revelação
ia mudar a situação de todos os presentes. Tex escolhera a
melhor oportunidade, para ele e para Bligh. Fenner chamou a
atenção de Andrew, com uma cotovelada. McCall cravara o olhar
carregado de ódio e desespero no interlocutor.
- Não lhe devo dinheiro algum, Tex!
- Pouco, é que você não deve! - gritou o vaqueiro,
deslocando-se ligeiramente, com calma e à vontade. Slade não o
perdia de vista. Mas o pequeno rancheiro, não se sentia
seguro, mesmo assim.
- Não dêem atenção a este homem. Está bêbado como um cacho!
Bligh! Mais uma vez insisto: está disposto a aceitar as minhas
condições?
- Não! Proceda como entender, McCall! - retorquiu Bligh,
fremente de cólera.
Então, Andrew viu chegado o momento de jogar a sua cartada,
que, por certo, constituiria uma surpresa para o pequeno
negociante.


289


- Estaria disposto a aceitar dinheiro? - inquiriu,
calmamente.
- Claro que sim! Mas, de que serve falar em dinheiro?... O
Bligh não pode com uma gata pelo rabo, e você não passa de um
novato cheio de vento!
McCall acabara de falar. o rancheiro recebeu tão violenta
bofetada que a cabeça lhe pendeu para trás, e o chapéu saltou
para longe.
- Devagar, McCall! - ameaçou Andrew. Não chame nomes nem
faça suposições, de ânimo leve! Eu sou sócio de Bligh!
O ganadeiro recuou, e uma onda de sangue tingiu-lhe a cara.
- Prenda este homem, Slade! - gritou.
- Não diga asneiras! - interrompeu Andrew, com voz
monocórdica. - Slade não me prenderia, porque, desta vez, eu
não estou disposto a isso. Ele pode ser seu lacaio, McCall,
mas não é completamente idiota.
O xerife, que fizera um gesto denunciador das suas
intenções, imobilizou-se ao ver o rápido movimento de Andrew.
Certamente calculou que, antes de alcançar a coronha da
pistola, seria abatido por um punho, cuja potência demolidora
já tivera oportunidade de comprovar.
Tex, até então calado, colocou-se em primeiro plano.
- McCall! Você consegue comover-me. Está metido num beco sem
saída!
- Cala-te, vaqueiro maldito! - gritou, furioso, o outro. -
Vieste aqui para me gozar?
- Não, e devo preveni-lo de que não sou muito paciente!
McCall fitou Texas, e, em seguida, voltou-se para Andrew.
- Bonning. Fecharei o contrato com Bligh... por um milhar de
dólares! - declarou.
- Isso é uma roubalheira!
- Quanto pagariam vocês? - quis saber o ganadeiro.
- Nem um centavo! E, mais, McCall você não voltará a gravar
a marca do "X Duplo" em uma só das nossas rêses!
Estas palavras surtiram o mesmo efeito que um pano vermelho
agitado diante de um touro. Mas Andrew estava em vantagem, da
qual pretendia tirar o melhor proveito.
- Senhor do Este O "X Duplo" é meu! E essa insinuação foi
planeada por este patifório, para encobrir as suas próprias
manigâncias!
- É um mentiroso, McCall! - acusou a voz gelada de Andrew.
Por essa ocasião já vários vaqueiros se tinham aproximado,
para ouvir a discussão, e todos eles aderiram à causa de
Bligh. Andrew atacou a fundo:
- Você sabe que mente. e eu posso prová-lo aos que nos ouvem
e talvez tenham dúvidas!
- Slade! Acabe com estes disparates! - exigiu o honrrado
rancheiro.
- Acabe você, já que o atingem a si! - retorquiu o xerife.
de mau humor.
- Não estou disPosto a ficar aqui, exposto às mentiras que
Bonning inventou e ensinou a est farrapilha de cabeça
encarnada!
McCall agitou o braço e iniciou alguns passos largos, que o
afastariam da cena.
- É melhor arrumar o caso cá fora! - aconselhou Stanley, que
não queria a mobiliária escavacada.
Ao mesmo tempo, Andrew deitou as mãos ao casaco do
ganadeiro, que deu meia volta.
- Mais devagar, McCall! Você começou o jogo e não vai
deixá-lo em meio.


290 291


- Slade! Ouviu este maldito novato ameaçar-me? - gritou
McCall.
Mas o jovem não deixou o outro falar.
- Claro que estou a ameaçá-lo! Fique onde está. se não quer
comer o pó do chão! Entendido?
Slade interpôs-se, apressadamente.
- Aconselho-o a que tenha calma, McCall! Se este tipo o
socar, você julgará que levou o coice de um cavalo!
- Perdeu a coragem, hem, xerife! - insinuou McCall. - com
furioso desdém. - Derrotado por um boieiro de cabeça
encarnada... pois é ele que você receia! Pois nem ele
nem o seu sócio, me lançarão por terra!. Bonning. Tenho sido
muito bom, mas já estou farto! Ou levo já mil dólares, ou
apodero-me da propriedade do Bligh!
- Você leva mas é um murro na fachada, se não se modera!
Quem julga você que é... McCall, você não rrepresenta a Lei,
nem o estado de Wyoming! E não me assusta. Sei muito a seu
respeito!
- É o que tem dado a entender. Bem... Despeje o saco!
- Está bem - concordou, rápido, Andrew, que relanceou o
olhar pelos presentes. - Ouça isto, Stanley e ouçam, também,
vocês, amigos. McCall, Você, numa noite de Maio saiu, a pé, da
cidade. Pouco depois, encontrou-se com um cavaleiro, e, então,
para falarem à vontade, abandonaram a estrada. Mas os vossos
cálculos saíram-vos errados! Você encostara-se a uma grande
rocha, e o cavaleiro imobilizara o cavalo perto de si. Mas,
alguém o viu, e, o que é mais grave, ouviu a conversa.
- Que bela imaginação!... Que papel me destinou nessa
comédia da sua autoria? - perguntou McCall, sarcástico. Mas,
notava-se, facilmente, que estava nervoso e a cor lhe
desaparecera da cara.


292


- Alguém ouviu a conversa, sem perder uma única palavra do
que vocês pronunciaram! - continuou Andrew, imperturbável. -
E eu sou esse alguém!
Eu também Havia saído da estrada - o meu carro estava atrás
de uma moita - e preparava-me para passar ali a noite, quando
vos vi chegar. Havia qualquer coisa na vossa maneira de
proceder que me despertou a curiosidade e me levou a
aproximar-me de vocês - estava a menos de cinco passos - e a
escutar o que diziam, ficando, assim, ao corrente das vossas
intenções! Gostaria que eu repetisse essa conversa num
tribunal?...
- Enganou-se no seu homem, Bonning! - retorquiu, azedo o
ganadeiro.
- Ouvi o seu nome, McCall e vi a sua cara quando o cavaleiro
acendeu o cigarro, e reconheci-o há pouco!
- Üma conjura para salvar Bligh! - argumentou o rancheiro,
mas sem se atrever a fitar o interlocutor.
- Nada disso, e você sabe-o muito bem! Se não quiser que eu
conte tudo no tribunal, deixe Bligh em paz!
- Não estou mais interessado do que você em litígios,
Bonning! Continuo a negar que seja a mesma pessoa que você
viu, mas não quero envolver o meu nome em assuntos como esse,
e estou disposto a resolver o caso com Bligh!
- Óptimo! Encontrar-nos-emos no hotel, para escrevermos isso
num papel!
- A minha palavra é boa! - grasnou McCall. Mas era evidente
que aceitaria todas as condições, para acabar com a discussão.
Texas Jack atirou O cigarro para longe, afastou Andrew com o
cotovelo, e fitou McCall de frente.
- A sua palavra não vale um caracol, Mac! - grunhiu. - Tenho
estado aqui atrás, a ouvir. Agora, chegou a minha vez!


293


A sua questão com Bligh está arrumada, e bem arru mada. Mas,
comigo, pode apostar que tem a vida em jogo!
A voz insolente e fria do vaqueiro enfureceu o ganadeiro.
- Você é o responsável por esta maquinação! - clamou,
colérico.
- Hum, hum. Eu não sou responsável por coisa alguma feita
por alguém que não seja eu, percebeu?
- A sua intenção é fazer chantagem?
- Se me força, a minha intenção pode bem ser apon tar a mira
para o seu corpo. Resolva-se, velho patife!
- Você nunca trabalhou para mim, Texas Jack! Nada lhe devo!
Esteve a beber, e tem as ideias baralhadas!
- Mac... Você não pensou, ainda, bem com quem se meteu! Eu
já estou lúcido e posso garantir que você é um ganadeiro sem
escrúpulos que contrata vaqueiros de má raça para o ajudarem
nas suas sujas negociatas! Que vai você fazer de todas aquelas
reses do Bligh em que pusemos a marca do seu rancho?
- Já lhe disse que nada tenho que ver com as suas proezas! -
gritou estridentemente com o curto pescoço tinto de sangue. -
Se você pôs a minha marca no gado do Bligh, fê-lo por sua
própria conta e risco!
- E continua a negar ser você o homem que Bonning viu
encontrar-se comigo naquela noite?... - interrogou o vaqueiro.
- Nega que me tenha feito a proposta que Bonning surpreendeu?
Aceitei marcar os novilhos com a sua marca, e levei uma
mensagem sua para um vaqueiro que devia matar as vacas do
Bligh e apoderar-se dos novilhos! Prestámo-nos ao seu imundo
jogo, arriscámo-nos... e tudo isto, para sermos
abandonados?... É miserável!
- Está a mentir, Texas Jack! Não pode atirar as culpas das
suas patifarias para cima de mim! - rugiu McCall, cuja mão
direita desceu, significativamente, Para a cintura. - Essas
afirmações sair-Lhe-ão caras!


294


A mão do vaqueiro moveu-se com incrível velocidade e Andy
viu o cano de uma pistola encostar-se ao proeminente abdómen
de McCall.
- Não se mova! - ordenou a voz gelada de Texas Jack.
Mas, McCall moveu-se. Podia ser mera contracção nervosa, ou
uma nova tentativa para sacar a pistola. McCall estremeceu; o
braço que estava dobrado endireitou-se. Então, ouviu-se uma
detonação abafada. Rapidamente, Texas virou-se, para cobrir
Slade.
- Meu Deus!... Ele... ele furou-me... - arfou McCall com um
ricto de dor. E, quando as suas mãos desceram, Para comprimir
o abdómem, um revólver caiu no chão.
- Cavalheiros!... Peço a vossa cooperação! - anunciou Tex. -
São todos testemunhas de que ele tentou liquidar-me, primeiro!
- Sim, todos vimos, vaqueiro! - respondeu, Pelos outros, Jim
Fenner.
McCall curvou-se, com o sangue a escorrer-lhe por entre os
dedos. Stanley amparou-o.
- Ajudem-me a levá-lo para dentro! Alguém que vá chamar um
médico!
Mas Stanley teve de suportar, sozinho, o peso do ferido. Os
restantes presentes pareciam hipnotizados Pelo olhar que Texas
lançava ao xerife. Este mostrava-se como o pássaro dominado
pela víbora.
- Slade! Isto é exactamente o que lhe sucederá, se não me
deixar em paz - agora, e de futuro! - Preveniu Tex, com voz
gelada e dura. - RePresenta a Lei e eu respeitá-lo-ia, se você
não fosse tão bom como McCall! Você estava do lado dele! Smoky
é que fez bem: correu com vocês os dois! Tenho Provas do que
afirmo. Pense bem nisto, quando tratar do meu caso!


295


E Texas empurrou o xerife para o carro em que McCall
chegara.
- Desapareça daqui! - ordenou o vaqueiro.
Apesar de se encontrar em incómoda posição - meio caído para
trás - Slade apressou-se a pôr o motor em andamento.
Texas observou o carro até ele desaparecer numa curva.
Então, pediu, ao mesmo tempo que guardava a arma.
- Bligh! Apanhe essa pistola e guarde-a, como prova de que
agi em legítima defesa!
- Bravo, rapaz! Foi um trabalho Perfeito! - exclamou Andrew,
saindo da apatia que o invadira.
- Também não foi sem tempo! - comentou o outro.
Andrew e Fenner seguiram o vaqueiro até onde ele deixara o
cavalo. Texas montou e começou a enrolar um cigarro com dedos
firmes. A palidez da cara, e o azul magnífico dos olhos não
haviam mudado.
- Agora, amigos, a vossa sorte vai melhorar! - anunciou, com
simplicidade. - Não deixem de recuPerar as reses do McCall!
- Quantas são? - perguntou Jim.
- Umas cem, ou talvez mais. De qualquer modo, não há que
enganar: são as que estão deste lado do rio! - lentamente,
Texas apanhou as rédeas, e fitou Andrew, com um esboço do seu
antigo sorriso. - Despeça-se, por mim, do meu amor perdido!
E, esporeando a montada, galopou para além dos currais, a
caminho da planície imensa.
- É mesmo o velho tipo texano!... - murmurou Fenner
afastando a vista do cavaleiro que se perdia na distância.
- Bem... - disse Andrew, com um suspiro profundo. - Foi tudo
tão rápido...
Fenner e Andrew acompanharam Bligh e os restantes


296


espectadores do dramático desfecho da questão, ao armazém de
forragens, onde McCall jazia no solo. O tom branco-amarelo do
rosto, os olhos fechados e o som rouco, cada vez mais fraco,
que lhe saía da garganta, sugeriam um fim rápido e trágico.
- Está por pouco. - anunciou Stanley, erguendo-se. - Na
verdade, não é preciso um doutor!
- Que se pode fazer por esse desgraçado? - interrogou Bligh.
- Nada!
- Há alguém a quem se deva participar o caso?
- Slade era o único amigo pessoal de McCall, que eu saiba! -
respondeu Stanley. - Mas, viram como ele se apressou a
desaparecer? O caso estava feio para ele.
- Vamos à cidade, ver o que o xerife anda a fazer! - propôs
Jim.
Aprovada a ideia, regressaram ao hotel e começaram a fazer
perguntas. Ninguém ouvira falar no caso, e o mesmo sucedia com
a maioria dos habitantes da cidade. Por fim, chegaram ao
escritório do xerife.
- Então?... O McCall já se foi? - inquiriu este, mal os viu
entrar.
- A estas horas já não deve Pertencer ao número dos vivos!
Pouco faltava quando saímos do pé dele - elucidou Jim.
- Grande idiota! Bem o avisei de que não devia refilar com
aquele tipo! Teve o fim que merecia pela sua imprudência!
- Nós testemunhámos tudo, Slade, e gostaríamos de saber o
que será preciso fazermos!
- Pouca coisa, creio eu! Logo que McCall morrer, relatarei o
caso às autoridades de Casper!
- Ah... E podemos ler o relatório?...

297


Slade recostou-se na cadeira. e principiou:
- Pelo que eu subentendi, McCall e Texas tinham negócios, e
o primeiro negou-se a pagar ao segundo um dinheiro que Lhe
devia. Discutiram e McCall tentou empunhar a arma, no que foi
batido por Texas Jack. Eis o meu relatório, cavalheiros.
Pedirei que não sigam o vaqueiro, visto ele ter agido em
legítima defesa. Além disso, não vejo conveniência em
prolongar esta estúpida questão, compreendem?
- Claro. e concordamos consigo! - retorquiu, irónico,
Fenner. - Mas, subsiste um aspecto por esclarecer: Que farão
do gado que McCall, Texas e Smoky nos roubaram?
- Dentro de duas semanas, reúne-se o gado todo! Por essa
ocasião já tudo isto estará esquecido. E, como eu devo
encarregar-me dos negócios de McCall - visto ser o seu único
amigo e ter alguns interesses nas suas propriedades -
providenciarei no sentido de que vocês recebam todo o gado,
com a marca de McCall, que esteja deste lado do rio.
Sem mais palavras, os três homens abandonaram o escritório
do xerife. Uma vez na rua, estacaram e fitaram-se.
- Que pensam vocês de tudo isto? - perguntou Andrew.
- Conseguiriam deitar-me abaixo com uma pena! - confessou
Bligh.
- Claro como água! O nosso cumpridor xerife está cheio de
medo! - conclúiu Jim.
- A nossa sorte mudou, Jim! O pior já passou, senhor Bligh!
- exclamou Andrew, confiante.
- Parece que sim! Não perdemos tudo, e podemos começar de
novo. Já não necessitas de fazer essa misteriosa viagem Jim!
- Bem... Já comecei a tratar de tudo, e não estou para
desistir! - contrariou o vaqueiro, alegremente. -
Encontrar-nos-emos mais logo! Tenho de ir falar de cavalos.
- Esqueci-me do que te queria perguntar. - confessou Bligh,
pensativo. E quando o capataz desapareceu, acrescentou - Nunca
vi o Jim assim...
- Logo que eu me refizer da emoção que tudo isto me causou,
tenho a certeza de que também me sentirei utopista! -
disfarçou Andrew.
Os dois homens separaram-se e Andrew entrou num armazém.
- Quero encomendar uma sela! - elucidou o jovem. - Quero
que seja mexicana, com adornos de prata e arreios a condizer!
- Temos de mandá-la vir de El Passo! Vai custar-lhe muito
dinheiro!
- Quanto tempo levará a chegar?
- Menos de duas semanas!
- Óptimo! Deixarei depósito! Aqui estão as indicações de
morada, nome da pessoa a quem a encomenda deve ser dirigida, e
local de cobrança!
Andrew abandonou o armazém, sentindo estranha comoção, um
misto de melancolia e de júbilo, juntamente com os últimos
efeitos da excitação a que havia pouco fora submetido.
Regressava ao hotel, quando se lhe deparou Martha, que
levava os braços cheios de embrulhos, por cima dos quais o seu
rosto ruborizado, mordaz e doce, ao mesmo tempo, o fitou
sorridente.
- Viva! Gastei o meu dinheiro até ao último centavo.
Andrew!... Você está pálido!... Que sucedeu?...
- Deixe-me levar esse carrego! - pediu o rapaz, desviando o
rumo à conversa. - Para que lado vai você?


298 299


- Para casa dos Glemms!... Porque está você com esse
parecer? - insistiu ela deveras preocupada.
- Sofri úma ligeira comoção! Você também a sentirá, senão...
Segure-se bem, "Wyoming Mad"!
- O tio.? - gritou ela.
- Não! Ele está bem! Apenas... más notícias.
- Você...
- Bem. E se fosse?... Não: esperaria que você...
- Andrew!... Conte-me! - rogou ela.
- Texas Jack matou McCall com um tiro! - desfechou Andrew. -
Encontrámo-lo lá em baixo, e, enquanto discutíamos, Texas Jack
surgiu não sei de onde... Para abreviar direi que ele tomou a
defesa do nosso caso. McCall devia-lhe dinheiro, que se
recusou a pagar! A conversa começou a aquecer! Slade, o
xerife, estava presente! De súbito, eu vi chegado o momento de
meter a colherada com bom resultado - e revelei que vira
McCall naquela noite, e recusei-me, em nome do seu tio, a
pagar-lhe um centavo que fosse, para a solução do nosso
assunto. Aparentemente, ficou assustado. porque se prontificou
a retirar a queixa contra o patrão, e...
- Oh, Andrew!... Isso é maravilhoso da sua parte! -
interrompeu Martha. - Mas, os tiros... Conte-me depressa!
- Bem... Texas saltou sobre McCall, de novo! Desta vez, o
caso pôs-se feio, porque o vaqueiro perguntou ao sócio o que
haviam de fazer ao nosso gado; que tinham roubado. Então, tudo
se precipitou! McCall acusou Texas de pretender culpá-lo
dessas patifarias - mas, na verdade, dava-se o inverso! Texas
chamou-Lhe vários nomes e McCall
- o idiota - tentou empunhar a arma. Claro, que Texas foi mais
rápido...
- McCall... está...
- Sim, já deve ter morrido.


300


- Oh!, é horrível!... E Slade, prendeu o Tex?
- Não! Por momentos, cheguei a pensar que ele o faria, ou
tentaria fazer... Eu estava de tal modo imobilizado pela
surpresa que nem consegui pedir a Texas que o poupasse.
Felizmente, o vaqueiro não perdeu a calma e demonstrou a Slade
que tinha razão, e que lhe faria outro tanto, senão o deixasse
em paz. Em seguida, ordenou-lhe que regressasse à cidade, e,
uma vez obedecido, encaminhou-se para o cavalo e montou-o...
- Ele partiu? - perguntou Martha, com alegria.
- Sim, mas, primeiro, entregou-me uma mensagem...
Martha voltou-se para segurar o braço do companheiro. Estava
pálida e tinha os olhos muito abertos.
- Andy!... Você está implicado? Vai ser preso?... -
murmurou.
- Não, minha amiga! Não tire conclusões precipitadas! -
pediu ele com vivacidade. - Texas agiu em legítima deFesa!
McCall levou a mão à arma, mas Texas foi mais rápido! Nada
mais! E Slade tem motivos de sobra para não mexer muito no
caso! Quanto ao seu tio. está livre e vai recuperar o gado que
lhe roubaram! Foi um dia muito agitado e emocionante mas trará
as suas recompensas.
- Oh. Já compreendo. Espere-me, por favor! - e, aliviando-o
dos embrulhos, emtrou em casa dos Glemms.


301


Enquanto esperava, Andrew recordou as reacções da rapariga,
ante o relato dos sucessivos acontecimentos. Mas, apenas
conseguiu convencer-se de quão absurda era a sua esperança.
Claro que Martha havia de emocionar-se com a Presteza de
Texas, e de se preocupar com a sorte dele, de Bligh e de Andy
- o que não implicava que ela sentisse qualquer outro
semtimento mais profundo por um dos jovens vaqueiros. Nesse
momento, o devaneio de Andrew foi interrompido por Martha,


301


que regressava, pálida, ainda, e com os olhos brilhantes de
comoção.
- Leve-me a qualquer sítio! - pediu.
- Vamos passear?... Não!... O cinema é melhor!
- Sim!
Andrew notou que ela Lhe agarrara a manga do casaco, e
caminhava unida a ele. Pela centésima vez, a imagem da jovem
cimples e confiada surgiu ante os olhos de Andrew, que
novamente sentiu dentro de si qualquer coisa que o levava a
desejar ardentemente protegê-la.
- Diga-me, Martha: você preocupa-se muito. com a sorte de
Texas Jack?
- Que quer dizer?
- Ama-o?
- Andrew! Não seja ridículo! Apreciava Texas... mas... Quem
não gostava dele?...
- Então, porque tomou este caso tão a sério?
- Ele matou McCall, para nosso bem. - para meu bem!
- Martha? Agora é você que está a ser ridícula! Reconsidere,
por favor! Aquilo era uma questão antiga!
- Seja você razoável, também! Texas era um ladrão de gado!
Eu própria o apanhei com a boca na botija, recorda-se?
Prometi-lhe não o denunciar, se ele nunca mais voltasse àquela
vida, e confiei na sua palavra. Certo dia, contei-Lhe como
McCall se portava com o meu tio, que não podia resistir-lhe...
Andrew, que julga você que ele me respondeu?
- Não faço a mínima ideia, mas aposto que foi qualquer coisa
original! - ironizou o jovem.
Sem se desconcertar, Martha continuou:
- Tirou o cigarro da boca, sorriu, e com a voz lenta e fria
do costume, pronunciou: "preste atenção, pequena.


302

Vou ter uma questão com esse patife do McCall, e dou cabo
dele!" São estas as palavras exactas, Andrew. Nunca as
esquecerei!
- Bem. E o que disse você, Martha?
- Apesar de lisonjeada com o seu interesse pela nossa
situação, ralhei com ele, mas em vão. Finalmente, ele disse:
"Escute, querida. Não conseguirá salvar os homens do Oeste,
mas se gostasse de mim, a valer, eu deixaria este porco do
McCall, e manter-me-ia na linha! Porém, como não se dá esse
caso - com bastante pena da minha parte - vou resolver a
questão a meu modo"!
- Ah, compreendo! - clamou Andrew. - Texas podia ter tratado
McCall de outro modo! Mas, forçou a nota, aquele leal e louco
idiota! E não pensou que a sua proeza a tornaria infeliz -
Martha. e enviou-lhe uma mensagem!
- Como é?
- "Despeça-se, por mim, do meu amor perdido!"
- Então... não tenciona voltar! Isso fere-me um pouco,
Andrew. Ele amava-me, e eu cheguei a rir-me dele! - Martha
parou, no meio do passeio, para erguer os olhos, marejados de
lágrimas, que se encontraram com os de Andrew.
- Então, minha querida?... Não comece a chorar, aqui mesmo,
no meio da rua!... Seja uma boa desportista, e tente manter-se
à altura das circunstâncias. Você nunca se esforçou muito para
que os homens não gostassem de si, ora confesse lá!
- Só me esforcei por que gostasse de mim um único homem... -
replicou ela, ressentida, voltando a cara.
- Martha! Todas as mulheres são amadas, pelo menos, por um
homem, algumas mulheres são amadas por mais de um homem,


303


e, outras, amadas por muitos homens. É este o seu caso, pela
sua beleza... porque é adorável... Você olha para um pobre
sapo. e pronto! - ele está perdido. E não é isso que você
deseja!
- Ah, você mudou de opinião a meu respeito? - inquiriu
Martha. - Não sou, então, uma "pinga-amor"?
- Já lhe disse que a julguei mal, a princípio!
Dentro da sala de espectáculos e depois de terem encontrado
assentos, a mão de Martha escorregou pela manga do casaco de
Andrew, aflorou o pulso, levemente, e só parou quando se achou
presa na forte mão masculina. Andrew apertou a mão pequena,
fria e trémula, como se Martha fosse uma criança a quem
faltasse o amparo dum pai, irmão ou ente amigo. A jovem
manteve-se sem falar, durante todo o filme.
Quando atingiram a rua, de novo, esta mostrava-se colorida
pelas luzes dos anúncios luminosos.
- Andrew! Não quero ir à festa desta noite! - confessou
Martha.
- Também ouso afirmar que não nos divertiríamos muito.
- Leve-me ao tal café mexicano. Depois de cearmos,
seguiremos para casa, com a Sue e o meu tio!


304


Os dias de Outono sucediam-se, enevoados e melancólicos. O
silêncio abatera-se sobre a Terra. A Natureza parecia aguardar
qualquer coisa, tranquila; os patos selvagens demoravam-se no
rio; as folhas dos salgueiros caíam amarelas e secas,
atapetando o solo.
Chegara a estação favorita de Andrew. Várias vezes, durante
o seu labutar, ele parava, para fitar as margens douradas do
rio.


304


Os pastos corados pelo sol, e os montes longínquos:
matizados de branco. O temPo e o lugar convinham ao jovem.
Aquela solidão e quietude era o que ele procurava, havia tanto
tempo. As cavalgadas pelos campos de pasto estavam, então,
postas de parte, e o trabalho límitava-se a pequenas tarefas
no rancho ou nos seus arredores, ou na modesta habitação de
Andrew.
O jovem sentia saudades de Jim, o velho vaqueiro do Arizona.
Apesar da sua mania de querer lançar os dois jovEns nos braços
um do outro - o que, por vezes, o tornava impertinente --
deixara uma sensação de vazio, que todos sentiam e não podiam
dominar.
Alguns dias após a partida de Fenner, as velhas ideias de
tornar-se rancheiro e sócio de Bligh começaram a esfumar-se na
mente de Andrew. Afinal, o que interessava era que o rancheiro
desenvolvesse o negócio, e, principalmente, que Martha Ann se
sentisse feliz.
Aquela última ida à cidade proporcionara a ambicionada
revelação que desfizera todas as dúvidas que ainda existiam a
respeito de Martha. A verdade surge sempre - tarde ou cedo - e
Andrew reconhecia o seu erro. A jovem talvez não se
apercebesse da luta travada dentro de si, mas Andrew notara-a,
e gostaria de dá-la a conhecer à mãe da rapariga. Esta fora
envolvida numa complicada teia, pela sua decisão de fugir de
casa, e ser livre; para recuperar a alegria da alma; para
descobrir os encantos de outras terras; para conhecer outras
caras; para satisfazer o seu desejo de aventura; para ver e
encontrar, nem ela sabia o quê! E, só agora, para expiação do
seu erro, Andrew dele se apercebia!... Sem um amigo ou
protector, a valente rapariga enfrentara as estradas,
confiando no mundo, na Vída e no Futuro. Isenta do desejo de
ferir quem a ferira, mostrava-se a rapariga alegre, comedida


305


nas suas acções e palavras, amiga de se divertir, e
interessante, que ele, com os seus cepticismos e ciúmes se
recusara a compreender.
Nos primeiros dias depois da proeza de Texas Jackque salvara
o rancho de Bligh - Martha mostrara-se sombria e descontente,
como se fosse responsável pelo sangue que correra - apesar do
bem que daí adviera para Nick Bligh. Mas o tempo mitiga as
maiores dores e Martha era tão jovem que não podia permanecer
indefinidamente afectada por um acto de violência que não
praticara nem, sequer, presenciara. Pouco a pouco, recuperou o
estado de espírito habitual, alegre e confiado, que Lhe
permitia tirar da vida o maior partido possível. E alcançou a
situação ambicionada, que tantas lágrimas lhe custara.
Trabalhava, brincava, cantava, enfim: era a vida do rancho.
Montava algumas vezes, mas sem se afastar muito. Recusava-se a
ir à cidade, para não ser incomodada pelos admiradores e pelas
amigas. Porém, aos domingos, o rancho era invadido por um
grupo de jovens que ela seleccionara e a estimavam
sinceramente.
Nesses dias de Outono, Andrew verificou que o seu velho
cinismo desaparecera, pelo que deu graças a Deus. Fora o Amor
que o queimara, embora esse mesmo amor estivesse condenado a
perpétuo desassossego. Não obstante, Andrew estava grato a
Martha. No Este, a irmã e a namorada de Andrew haviam sido
como espinhos cravados na sua carne. Desejaria que elas fossem
de outra classe que não as tornasse estupidamente
independentes, pretensiosas, altivas, e com a mania de brincar
com os homens de modo a sobreporem-se a eles. Eram, afinal,
vítimas da época. Porém, Martha representava outro tipo de
mulher, aquele tipo que Andrew julgava não existir, e que, no
entanto deveria ser o mais numeroso. O jovem estava
satisfeitíssimo por ter encontrado essa nova rapariga,


306


apesar de, para mal dos seus pecados, esse encontro ter-se
dado demasiado tarde. Andrew havia amado a mãe, a irmã, e, sob
outro aspecto" a sua namorada e todas as componentes do sexo
feminino, e, agora, que perdera o ensejo de conquistar a
felicidade completa, reconhecia que existem raparigas como
Martha Ann Dixon - que podem ser livres, sem qualquer mancha,
e merecedoras de todo o apreço.


307

XIV


- Com mil milhões! - A exclamação favorita de Sue
- que semp're' indicava um motivo de justa excitação chegou
vibrante aos ouv'idos de Martha Ann.
- Que se¦ passa, Sue? - perguntou a jovem....
- Se não deixam de se dar estas coisas, acabo por dar em
doida! Vamos lá ver a causa dessa excitação... - brincou
Martha, saindo a correr da sala.
Sue havia abandonado a cozinha, deixando a porta aberta, e
Martha foi encontrá-la no terreiro a fitar, com as mãos na
cintura, um rapaz e um cavalo. O caso não era assim tão fora
do comum que provocasse tal reacção.
A atenção de Martha foi atraída pelo cavalo.
- Oh! - Foi o único som que conseguiu pronunciar. Os olhos
brilhavam-lhe de surpresa.
O cavalo tinha o pêlo sedoso e sarapintado, longas crinas e
a cauda, o corpo elegant, membros de bom corredor, e a cabeça
nobre e imponente. O cabresto parecia incomodá-lo e o rapaz
via-se obrigado a segurá-lo com mão firme, ao mesmo tempo que
lhe afagava o pescoço curvo e forte do Arizona.


309


Póneis navajos, negros como tições, mas com a crina e a cauda
brancas como a neve.
- Eh, rapaz!... Que ideia foi essa de o trazeres para aqui?
O rapaz parecia ter cerca de dezasseis anos, estava
esfarrapado e queimado pelo sol, a sua face parecia familiar.
Sorriu para Sue, mas não respondeu.
- De quem é este cavalo?... Porque o trouxeste para aqui?...
- gritou Martha Ann. - Oh, é adorável. A quem pertence este
animal. . De onde veio?...
- Do Vale do rio Selvagem!... Do Colorado! A rapaziada do
Colorado cria os melhores cavalos de todo o Oeste! - explicou
o rapaz, entusiasmado.
- Esse deve ser o mais bonito cavalo de todo o mundo!... Não
Sei... nunca sonhei que tal maravilha existisse! Estou
disposta a comprá-lo, mesmo que tenha de empenhar todas as
minhas jóias! O menino quer vendê-lo?
- Creio que Não! Já foi vendido! A rapariga que o nontava
morreu. e mais ninguém podia ver o animal, que provocava
tristes recordações.
- Mas, quem é o dono dele, agora?... Sue. Hei-de possuí-lo,
nem que, para tal, tenha de casar com o proprietário!
- Como se chama ele? - inquiriu, mais prática, Sue.
- "Buckskin"! Bem. Segundo disse o meu patrão, Stanley, ele
foi comprado para outra rapariga!
- Quem?... Para que o trouxeste?... Deve ser de uma das
meninas da cidade que o enviou aqui, para me fazer inveja!
- Chama-se Martha Ann Dixon!
- Eu?!... - exclamou Martha, que teve de sentar-se num banco
da cozinha.
- Com mil milhões!... Isto é obra de Jim Fenner!


310


Ele procedia de modo estranho, antes de partir... Rapaz! Quem
enviou o cavalo...
- O meu patrão, o senhor Stamley.
- Por ordem da quem?
- Tudo o que sei, é que Jim Fenner o escolheu de entre
milhares de cavalos e o enviou, juntamente com outros,
guardados por vaqueiros. Buck chegou ontem, e a sela esta
manhã! Por isso, o meu patrão mandou-me vir aqui! Buck não
gostou muito do passeio no velho Ford, mas portou-se
decentemente.
- Para mim? - murmurou Martha, que sentia um repicar de
sinos nos ouvidos. Se isto é uma brincadeira, rapazola, dou
cabo de ti!
- É verdade, menina; Veja, O seu nome está aqui.
O rapaz foi ao carro e regressou com um embrulho de papel
pardo que depositou aos pés da atónita rapariga.
- É, de facto o meu nome! - continuou Martha, ainda
incrédula. - Oh, meu Deus!... Dou em louca!... Eu sempre
acreditei em fadas, Sue! Núnca deixei de brincar com
bonecas!... Não cresci!... Isto é um... sonho, e eu Alice no
País das Maravilhas!
- Ora! A realidade é que Jim enviou o "mustang" e este
pacote! Fez qualquer bom negócio! Ou talvez ficasse a dever.
Tu sempre desejaste um lindo cavalo. Bem. Ajuda-me a abrir
este pacote!
Timidamente, Martha tomou as rédeas e - recordando as
indicações de Jim, avançou para o cavalo, sem mostrar receio.
O coração parecia saltar-lha do peito, quando assentou a mão
no pescoço do belo animal" que sacudia a cabeça, e a fitou de
tal modo, que os grandes olhos negros pareciam dizer: - "Quem
és tu? E que vais fazer de mim?" Ao princípio mostrou-se
receoso, e tremeu sob as mãos leves de Martha, mas, por fim
rendeu-se à sua voz doce e aos dedos acariciadores.


311


Quando, então, voltou o focinho para ela, a jovem deu largas
ao seu júbilo:
- Oh, meu querido cavalo! Oh, meu Buckskin! Adoro-te!
- Com mil milhões! - bramou Sue, pela terceira vez. -
Martha! Acorda! Isto foi um assalto, ou coisa parecida! É tudo
mexicano, e do melhor que há!...
- Oh, Senhor!... O que é "tudo?" - perguntou Martha fitando
o que parecia ser um cabedal ornamentado com mantes de peças.
reluzentes, negras e prateadas.
- Cilha dupla com "tapadores", arreios e esporas! Tudo
ornamentado com prata! Ah! E duas mantas mexicanas para a
sela!
- Simplesmente maravilhoso!... mas, Sue...
- Claro! Estou parva!... Deve ter custado uma data de
dinheiro! Tudo mexicano, e algumas coisas já foram usadas, o
que as torna mais valiosas, pois já estão adaptadas ao serviço
a que se destinam!
- Onde obteria... ele o dinheiro? - gaguejou: Martha.
- Só Deus o sabe!
Nesse momento, Andrew atravessava a estrada, e os olhos
iluminaram-se-lhe ao mesmo tempo que sorria abertamente.
- Que é isto?... Oh, mas que belo animal!... E a sela...
Martha! Você pregou-nos uma das suas antigas partidas?
- Não se meta comigo agora Andrew! - pediu Martha. - É
verdade. Você vê o que eu vejo?...
- Bem... Eu vejo um cavalo maravilhoso, e a mais rica sela
que aos meus olhos foi dado apreciar.
- Onde conseguiria Jim tudo isto?
- Vejamos!... A sela tem a marca Yaeger, El paso.
"Yaeger"?... É o mais famoso fabricante de selas de todo o
Oeste!... Martha! Alegro-me pela sua sorte! - os olhos negros
pousaram na jovem, com doçura, e a sua voz soava, vibrante de
júbilo.
Martha tentou replicar com um olhar de censura, embora
naquele momento estivesse disposta a perdoar ao seu maior
imimigo.
- Andrew!... Você emprestou o dinheiro ao Jim?
- Eu?!... Claro que não, criança!... Mas não se preocupe por
não saber onde e como Jim obteve essas maravilhas, e use-as,
se a tornam feliz!
- Mas, como posso eu ser feliz, se a nossa situação não é
das melhores?
- Martha! Essas prendas sugerem-me que melhores dias se
aproximam, e é isso que você deve pensar! Vá pôr o seu fato de
momtar enquanto eu lhe preparo o cavalo!
Martha correu para casa, com as lágrimas prestes a saltarem-
lhe...
- Ele estava tão contente! - pensava. - Nunca o vi com um ar
tão feliz! - e o sangue subiu às faces da rapariga.
Quando se apresentou no pátio, pronta para montar, Bucksk
esperava-a, selado, com uma ponta da manta mexicana a sair da
forja. Para quem entendesse de cavalos represemtava o modelo
da perfeição.
- Não fique embasbacada! O cavalo é para ser momtado! -
gritou Andrew, irónico. - Sempre quero ver se você lhe voa por
cima das orelhas. Veja! Ele está a ajoelhar!
De facto, para alegria e maravilha de Martha, o cavalo dobra
um joelho, permitindo à sua nova dona que o montasse,
facilmente.
- Um cavalo assim tão gentil, não a atirará pelos ares!


312 313


No entanto siga a passo, enquanto não se habituar a ele! -
aconçelhou Andrew.
Martha assim fez, e cavalgou para a planície. O resto foi
como um sonho maravilhoso.


Nessa noite, como de costume, Martha deslizou do seu quarto
cuidadosamente, para não ser pressentida pelo tio e por Sue. O
vento gelado que soprava do campo levou-a a embrulhar-se no
agasalho quente e pesado. Aguçando a vista, Martha atravessou
o terreno aberto até ao rio em cuja margem se deixou cair,
suavemente. As últimas folhas mortas sussurraram, batidas pelo
vento, enquanto os cães selvagens, como ela chamava aos
coiotes, lançavam os seus queixumes aos sete ventos.
Havia várias noites que a jovem fazia semelhante vigília,
mas, aquela, tinha um "saborH especial". A jovem mergulhou em.
profunda meditação, e acabou por chegar à conclusão de que Lhe
cabia dar o primeiro passo para transpor o abismo que a
separava de Andrew.
Sorrateiramente, não fazendo mais ruído que um gato,
aproximou-se da cabana do rapaz, e espreitou por um buraco que
escavara na união de dois troncos, durante uma ausência do
locatário.
Neste momento o coração de Martha batia apressado, lançando
golfadas de sangue que lhe ruborizavam a face pequena e
perfeita. A jovem aprendera a calcular em que momento "ele" se
sentava diante do fogo, mas era sempre com uma ponta de receio
que espreitava pela estreita abertura. Porém como tencionava
casar-se com Andrew, animava-se a relancear o olhar pelo
aposento.


314


Naquele momento, o jovem encontrava-se sentado no lugar
habitual em frente do fogo, com a cabeça vergada, e os olhos
cravados nas chamas. A linha de azedume havia desaparecido dos
seus lábios e a súa face mostrava uma expressão terrívelmente
triste. Martha sentiu ciúmes do fogo! Que via o homem nas
chamas crepitantes? Acaso evocaria o rosto de Connie, ou de
tantas outras raparigas que ele conhecera? Mas. Andrew não via
nem o fogo nem o passado. Martha enganava-se. Era a sua face
que surgia entre aquelas chamas.
Ela afastou-se silenciosa, e fez o mesmo caminho que ali a
levara, em sentido contrário. Uma vez no quarto, não acendeu a
luz ou o fogo. Não queria ver-se ao espelho, pois sentia a
alma a nu. Depois de rezar as suas orações, meteu-se na cama,
onde ficou de olhos abertos, a repetir e frisar o que pensara
em noites anteriores:
Andrew amava-a - e já sofrera bastante, para redimir o
conceito errado que formara. Pretendera desposá-la quando
julgava ainda mal dela - e por isso, ela odiara-o e
mostrara-lhe toda a verdade. E, nesse momento, encontrou-se a
si própria.
A vergonha e a indignação por ele provocadas haviam-se
desvanecido, enquanto ela, noite aPós noite, testemunhava o
mudo arrePendimento do pretendente. Mas ainda não estava
satisfeita. Queria provas... Provas do seu sofrimento, do seu
anseio, do seu amor!
Como eram doces aquelas vigílias nocturnas, a intimidade com
ele, nas suas horas de contracção. Estas saídas haviam-se
arreigado de tal modo no seu espírito, que, apesar de se
sentir culpada, lutou contra a consciência e o bom senso, só
para ver o vaqueiro na sua meditação, ante o fogo da lareira.
Nessa noite, Martha teve a certeza de que até então,


315


havia sido traiçoeira e vingativa, como uma gata selvagem, Mas
uma voz dizia-lhe que grande seria a recompensa. E, no
entanto, a este pEnsamento, Martha corava de vergonha. Sentia-
se tão perdida como Andrew, mas não tinha coragem de o
encarar. O seu maior desejo era ter uma prova do amor dele;
uma prova de que não renunciara à luta. Martha devia
observá-lo com toda a atenção, para ver melhor até que ponto
ele lhe queria E, quando vie chegado o termo daquela prova,
ela, então... então...
- Então!... - murmurou Martha, para a almofada. E nessa
noite, como em todas as anteriores, desde que fizera a
sensacional descoberta, teve de fazer grandes esforços para
conciliar o sono.


Na tarde do dia seguinte, regressava Martha Ann da sua
terceira visita a Buckskin, quando avistou uma nuvem de pó.
Não podia tratar-se de úma tormenta, porque não estava vento.
Então, começou a ouvir-se o longínquo tropel de centenas de
cascos no solo seco.
- Eh! Venham cá todos! Vejam o que se aproxima! - gritou
Martha, e saltou como um esquilo, para a barra superior da
cerca do curral. Daí observou, anelante, a aproximação da
grande manada. - Tio Nick! Sue! Oh, Andy!. Onde está você?...
Bligh ouviu o chamamento e correu para a entrada, onde se
imobilizou, extasiado; mas logo a seguir, correu a abrigar-se
no portal da casa. Sue saiu da cozinha, na intemção de
averiguar a causa de tal rumor, mas, assim que viu a coluna de
pó, voltou-se para Martha. e correu para Bligh, a quem indicou
a posição da sobrinha, empoleirada na vedação.


316


A primeira linha de gado já se distinguia, numa mistura de
corpos brancos e vermelhos, chifres, patas, e pó. Não se
tratava de gado tresmalhado, como Martha receara, mas sim de
uma manada. conduzida pela mão segura de vaqueiros
experimentados. A nuvem de pó em breve envolveu tudo, desde a
casa às pastagens e do curral ao pátio. Pouco depois, o espaço
entre a casa principal e a cabana de Andrew estava cheio de
gado agitado e barulhento. Martha avaliou a manada em milhares
de cabeças.
A avalanche passou, a caminho dos pastos, deixando Martha
coberta de espessa camada de pó; excitada, um pouco assustada,
e meia cega, Durante algum tempo, manteve-se semtada na barra,
sacudindo-se com um lenço. O gado afastou-se, e o vento
dispersou a poeirada.
Só então a rapariga avistou um pesado carro - como o dos
pioneiros, puxado por duas parelhas de cavalos, e ladeado por
cinco cavaleiros tão cansados e cheios de pó como as suas
montadas. O carro parou, e os recém-chegados alinharam diante
de Bligh, a quem apertaram a mão. Bligh falou con eles e
gesticulou, coisa rara nele. Sue corria de um lado para o
outro. Então, quatro dos cavaleiros, voltaram-se para Martha e
caminharam para ela.
- Que pretenderão de mim, - perguntou aos seus botões. -
Onde estará Andrew?... . Bem... Deixá-los vir!
Os vaqueiros avançavam para a jovem, como se tivessem a
certeza de que ela os achava irresistíveis. E de facto eram,
mas ela não queria dar a conhecer os seus sentimentos. Quando
se aproximaram mais, Martha verificou que eram mais velhos que
os vaqueiros que ela se acostumara a ver, e formavam um
quarteto maduro, de rija têmpera, experimentado. O que seguia
à esquerda do grupo era o homem mais alto que Martha vira até
então, e trazia um chapéu tão grande, que parecia prestes a
fazer perder o equilíbrio ao seu possuidor.


317


O homem que seguia à direita do grupo era baixo e tinha um
ar tão cómico, que Martha sorriu. As pernas eram tão
arqueadas, que ele não conseguiria apanhar um leitão num beco.
O pequeno vaqueiro descobriu-se, mostrando a cara vermelha e
redonda, marcada por vincos negros de pó, e os mais atrevidos,
joviais e travessos olhos que Martha já vira.
- Bons dias! - saudou. - É a memina Martha Ann Dixon?
- Sim, creio que... sim! - retorquiu Martha, desconfiada.
- O senhor Bligh ordenou-nos que nos viéssemos apresentar! -
continuou o vaqueiro, solenemente. - O mais alto dos "Quatro
mosqueteiros", é Tully Sloane!
O vaqueiro sem fim, descobriu a cabeça quase sem cabelos.
A cara era fina e crestada pelas intempéries. Martha gostou do
sorriso que ele lhe enviou, mas não se fiou muito nele. Os
olhos cinzentos pareceram brilhar, quando fitaram a rapariga.
- Como está, menina? Muito prazer em conhecê-la! - balbuciou
o vaqueiro, estendendo-lhe a mão enorme.
- Obrigada! Retribuo o cumprimento! - replicou Martha, que
quase gritou quando o vaqueiro lhe apertou a mão.
- Este aqui, é o terror das damas, Cash Tanner! - prosseguiu
o orador, indicando um homem simpático de, Pelo menos,
quarenta anos, de forte constituição, com um grande bigode, e
os olhos negros a brilharem sob as espessas sobrancelhas.
- Muito prazer, menina Dixon! - saudou, com voz profunda e
cavernosa. - Não dê ouvidos a Bandy. Quando me conhecer
melhor...
- Este é Sylvester Hay, tímido, um trapaceiro de Montana! -
interrompeu o mais pequeno, para, desta vez, apontar um
elegante vaqueiro - o mais jovem do grupo - loiro e de olhos
azuis que não mostrava qualquer embaraço. Pareceu, mesmo, não
dar grande importância à apresentação. Martha murmurou os
cumprimentos habituais.
- E eu sou Bandy Wheelock! - concluiu o pequeno vaqueiro,
trespassando a jovem com os olhos travessos e imprudentes.
- Bem vindos ao rancho! E agora, que devo eu fazer? -
inquiriu Martha indecisa entre os fulminar com um olhar, ou
gritar de alegria.
- Primeiro que tudo, temos de conhecer-nos melhor! -
declarou Bandy.
- O que será... encantador! - sublinhou Martha.
- Está livre, menina? - perguntou o da voz profunda.
- Creio que sim!... O que quer dizer com isso?
- Se não tem compromissos... Se assim é...
- Menina Dixon! Eu não sou de etiquetas. - interpôs-se Tully
Sloane - e vou já marcar a minha posição para o baile que vai
haver em honra da nossa chegada.
- Obrigada! Terei o convite em consideração!
- Não nos enganou! - comentou Bandy, e acrescentou, depois
de percorrer o corpo da raPariga com olhar de entendido! - É a
mais perfeita rapariga que eu vi, na minha vida!
Martha ruborizou-se. O vaqueiro era demasiado sincero.
- Posso saber quem vos enalteceu os meus méritos? - quis
saber Martha.
- Jim, pois claro!
- Jim? Qual Jim?
- Qual, senão Jim Fenner? Pôs-nos a todos em brasas, por sua
culpa.


318 319


- Jin Fenner! Conhecem-no? - gritou Martha.
- Claro que sim!
- Onde está ele?
- Veio connosco! Não o viu?
- De onde são vocês?
- Do Arizona! Todos nós, excepto Syl, trabalhámos para Jim,
quando ele era capataz do Hash Knife (1). E Depois, o grupo
desfez-se! Foi, sem dúvida um prazer, esta reunião, após
tantos anos!
- Arizona!... E esta manada?
- Devo informá-la, menina, de que este gado não veio do
Arizona. Jim arranjou-o em "Medicine Bow" e, depois,
chamou-nos à pressa. É claro que não perdemos tempo!
- À pressa?
- Claro!
- Porquê?
- Bem! Jim é um bom vaqueiro, mas não podia con duzir duas
mil e duzentas cabeças de gado sozinho.
- E vocês vieram ajudá-lo?
- A menina deve ser daquelas pessoas que não deixam escapar
coisa alguma!
Uma luz começou a brilhar no cérebro de Martha. Com a mão no
peito, como para dominar o coração que batia desordenado,
fitou os vaqueiros, que permaneciam à von tade, observando-a,
com interesse.
Das vestes de cabedal emanava penetrante cheiro a coiro, pó
e suor. Os três vaqueiros mais velhos traziam coldres com
pistolas.
- De quem é este gado? - perguntou Martha, anelante.


*(1) Hash Knife significa literalmente faca de Picar. (N. da
T).


320


- Do nosso novo patrão, claro!
- Patrão?... Jim?...
Forte brado veio da casa. Martha ergueu a cabeça e viu Jim
que lhe acenava daporta da cozinha. Qualquer coisa havia
mudado no ancião. A cara bronzeada parecia mais nova, e os
olhos emitiam lampejos de júbilo.
- Gostas dos rapazes, pequena? - perguntou.
A jovem saltou da cerca e correu para casa.
- Jim... Jim... - gritou alegremente, lançando-se ao pescoço
do capataz, que beijou. - Ainda bem que voltou. Mas, porque me
causou esta surpresa?
- Ora! Foi uma surpresa para todos nós! - replicou Jim,
emocionado. - Nunca pensei que Jim Fenner estivesse guardado
para isto...
- Eu bem dizia que esta raposa velha tinha qualquer coisa na
cabeça! - gritou Sue, que chorava torrencialmente.
Martha palpou o fato que o vaqueiro trazia vestido.
- Você é um mágico, ou um ladrão de cavalos, Jim? -
perguntou. - Esta manada é nossa?...
- Claro, pequena! - afirmou, orgulhoso.
- Como a conseguiu?
- Comprando duas mil e duzentas cabeças de gado, a pronto, e
bastante baratas!
- Onde arranjou o dinheiro?
- Deu-o Andrew Bonning! Quer tornar-se sócio do teu tio!
- Andrew?... - balbuciou Martha, estupefacta.
- Ele devia ter-te avisado, mas quis fazer uma surpresa. Mas
eu estou convencido de que ele não guardaria o segredo por
muito tempo.
- Ele... Mas... como arranjou tanto dinheiro?...
- Tinha-o!
- Durante todo este tempo? Desde que aqui chegou?


321


- É o que ele diz! Sue jura que ele é um milionário, que
pretende gozar a vida.
- Então, foi ele que me comprou Buckskin!... e a sela
mexicana... - murmurou Martha.
- Andrew obrigoume a prometer que não o delataria, mas eu
não posso mentir-te, pequena. É como dizes! Agradece-lhe!
Andrew saía despreocupado da sua habitação, com as mãos nos
bolsos, aparentemente alheio ao que se passava em volta.
Martha sabia que tinha os olhos cheios de lágrimas, mas isso
não ofuscava a magnífica visão de um Andrew Bonning, que ela
não sentia coragem para enfrentar, naquele momento.
- É melhor a pequena Martha Ann desaparecer deste quadro
maravilhoso, amigos! - gritou ela, correndo para casa sem
poder conter-se.


322

XV


"Querida mãe:


"Visto que perdoou as loucuras desta sua filha, venho
contar-lhe o que sucedeu nestes últimos e maravilhosos dias.
Quando Lhe escrevi por causa do dinheiro que me enviou,
disse-lhe que não era feliz, e não pensava em voltar a casa,
por enquanto. Espero que lhe tenha agradecido. Sabe que
comprei o mais lindo vestido e as melhores roupas interiores
que apareceram por aqui?... Primeiro, livrei o meu herói da
prisão, mas ele não tardou em saldar a dívida.
Se não está zangada comigo, e se deseja a minha companhia,
irei passar umas férias a casa. e levá-lo-ei! Vão ficar todos
loucos com o Andrew, e os meus pretendentes baterão em
retirada, assim que o virem, enquanto as minhas "amigas"
morrerão de inveja. Basta dizer que Andrew é um desportista
completo.
Sou tão feliz, que estou a chorar como uma Madalena (e a mãe
sabe que eu não sou destas coisas). O tio Nick estava quase
arruinado, por causa dos ladrões de gado, (eu apanhei um que
tentei reformar e... mas isso é outra história),


323


e, ainda por cima, um contrato que fez com um rancheiro daqui
ia-lhe levando tudo. O tio estava tão abatido como o pai,
quando lhe apresentaram as contas, sem ele ter dinheiro para
as pagar. E, de repente, sucedeu algo inesperado. Jim Fenner,
o nosso capataz - um vaqueiro do Arizona - partiu com rumo
para nós desconhecido, afirmando que ia tentar melhorar a
nossa situação (então já estava resolvida a questão com o tal
rancheiro que desistiu dos seus propósitos, graças a Andrew),
e, ao mesmo tempo, a Sue - a mulher do Jim - e o tio, mudaram
radicalmente, aparentando mais confiança, ao contrário do
Andrew que me parecia cada vez mais desesperado. Mas a culpa
era minha, e não dos problemas do rancho.
Comecei a pensar que a pequena Martha estava tão farta de
amor - por culpa dos seus admiradores - que não seria capaz de
compreender o que se passava. Comecei apensar no caso, e
verifiquei que seguia um trilho errado.
Certo dia, chegou ao rancho, um rapaz com um maravilhoso
cavalo, e a mais bonita sela mexicana com ornamentos de prata,
que pode imaginar. Dominaram-ma vários sentimentos, o último
dos quais, de medo. O velho Jim gostava tanto de mim que podia
ter cometido um disparate para tornar real o meu sonho de
sempre.
Passados mais alguns dias, chegou uma grande manada, que
quase arrasou a casa. Corri a refugiar-me no alto da cerca,
onde quase sufoquei, por causa do pó. Quando o gado acabou de
passar, vi quatro vaqueiros que vinham apresentar-se-me.


324


Eram os mais intrigantes, mais assustadores, engraçados e
encantadores seres que vira até então. Primeiro puseram-me os
nervos num feixe (toda eu tremia, cá por dentro). Mas, depois,
revelaram ser velhos amigos de Jim e que haviam sido por ele
convidados para conduzir aquela grande manada do tio Nick.
Eu estava abismada - parecia que me haviam hipnotizado. As
ideias baralhavam-se-me. Nesse momento, o Jim chamou-me.
Atirei-me da cerca, e corri para ele. Jim havia, de facto,
comprado aquele gado, e contratado os vaqueiros. O Andrew
fornecera o dinheiro - milhares de dólares - mas ordenara ao
Jim que se calasse, para o tio e eu termos uma surpresa. Quase
morremos com um ataque de coração.
Agora, querida mãe, vamos levar o caso a sério.
Encontrei Andrew pela primeira vez, em 13 de Maio, às 7
horas e 35, numa estrada sem movimento. Alguns vagabundos
haviam assaltado a sua ingénua filha, e um deles segurava-a.
Depois, foi tudo tão rápido. Surgiu um velho Ford e dele
saltou um rapaz com um grande físico e, trás! o vagabundo foi
pelos ares. Deviam ser 7 e 36 quando olhei para o meu
salvador, e me enamorei loucamente dele - sem que desse por
tal.
Ele deu-me uma boleia e começou a divagar sobre a minha
maneira de proceder, e sobre as raparìgas que querem gozar o
máximo, enquanto são novas, etc. Fiquei tão furiosa, que via
tudo vermelho. Quando ele me deixou, na cidade mais próxima
tenho a certeza de que desejava ardentemente não voltar a
pôr-me a vista em cima. Mas - Pouca sorte - morria por tornar
a encontrá-lo.


315


E encontrei-o! Estava eu na companhia de um rapaz simpa
tiquíssimo, quando se me deparou o meu salvador, que me
fulminou com o olhar, convencido de que eu me atirara ao meu
companheiro. Voltámos a encontrar-nos na sala de jantar, e não
sei o que se passou dentro de mim, e, pela primeira vez na
minha vida, prestei atenção - e correspondi - aos galanteios
de um homem, só para enfurecer ainda mais o meu salvador. Não
concebo que haja raparigas que percam tempo com namoricos,
mas, naquele momento, perdi a cabeça, para provar àquele
cabeçudo que eu era o que ele pensava. Como chorei, antes de
adormecer!...
Continuei o meu caminho. O resto da viagem foi maravilhosa,
excepto em certa ocasião, em que dei razão a Andrew e avaliei
o perigo a que me expunha aquela minha aventura. Custa-me
reconhecer o meu erro, mas quero ser sincera consigo e com
Andrew. Coragem, religião e bom senso, não bastam a uma
rapariga para vencer semelhante prova. As raparigas são
restringidas pelo sexo. Têm responsabilidades que os rapazes
não conhecem. Têm de manter-se sagradas, o que não acontece
com os rapazes.
Mas, continuando: Quando, finalmente, cheguei a Randall,
soube que o tio Nick partira para o Oeste. Ah, é verdade!
esqueci-me de dizer-lhe que Andrew me alcunhou de "Wyoming
Mad" (odiei-o, e acabei por amá-lo com toda a minha alma). A
nova quase me fez desistir. Mas, reagi, e prossegui a viagem;
tive a sorte de atingir o rancho do tio, no Água Doce, em
menos de dois dias, e sem dar um passo.


326


Agora, segure-se bem!
Esta parte ainda não conhece. Ainda não chegara ao rancho
havia uma hora, quando, ao dobrar uma esquina, esbarrei com o
Andrew Bonning. Caí-lhe mesmo nos braços. Fora contratado pelo
tio. Nada havia que fazer! A partir daquele momento,
colocámo-nos em campos opostos. Então, veio o dia em que um
cavalo me deitou ao solo omde fiquei incapaz de mover-me.
Felizmente Andrew encontrou-me. Estava muito preocupado e com
pena de mim, e insistiu em me ajudar. Apesar dos meus
protestos, levou-me nos braços, e, no percurso para casa
beijou-me. Foi então, que eu descobri que o amava loucamente,
e comecei a fazer "marcha atrás"pois não queria que ele
descobrisse o meu segredo. Os acontecimen tos seguiram-se,
sempre com grandes intercadências na minha vida. Encontrei
gente nova, bons amigos, raparigas típicas do Oeste e alguns
vaqueiros de má pinta. Todos me procuravam, especialmente os
da má marca. O Andrew estava no primeiro baile a que eu fui.
Nessa noite, verifiquei que ele não - era quem pretendia
aparentar. Depois mostrou-se como é, sem artifícios. O meu
coração voou longe e não voltou. Claro que não pode conceber a
sua filha em qualquer sítio, sem haver logo problemas (eu
tenho realmente de casar-me, porque sou uma ameaça para a
sociedade). O Andrew apanhou-me a regressar a casa, na
comPanhia do tal vaqueiro que eu tentei reformar. Então eles
agiram como dois gaLos na capoeira: lutaram por minha causa.
Texas Jack foi fortemente castigado por Andrew, a quem tive


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de pedir de joelhos que não aceitasse o duelo à pistola. De
outra vez, no "rodeo (uma festa de vaqueiros) Andrew arrasou
quatro homens, porque um deles me insultou. Até o xerife
recebeu a sua conta. Foi por isso que prenderam o Andrew, e eu
lhe emprestei o dinheiro para pagar a fiança.
Namorisquei um pouco mais, mãe. Permiti que os rapazes me
segurassem a mão e, uma vez O Texas Jack beijou-me. Tudo isto
à vista do Andrew, Para O torturar, porque sabia quanto se
preocupava comigo. Mas não perdi a cabeça, descanse.
Por fim, a minha hora soou. O Andrew chamou-me lá fora, e.
bem... Basta que saiba que ele - no tom mais doce e humilde
que se pode desejar - afirmou amar-me (apesar de não concordar
com o meu procedimento até então) e pediu-me que casasse com
ele.
Como consegui libertar-me dos seus braços, não sei! Então
fui um demónio. Fi-lo confessar que ele me julgara uma "vamp",
uma pinga-amor, uma... - tudo o que há de pior - e que ainda
mantinha a mesma opinião a meu respeito, aPesar de pretender
desposar-me, para me regenerar. Então, com toda a sinceridade,
revelei-lhe o que, de facto, eu era e sou. Pobre Andrew!...
Aquela noite foi terrível para ele. Agradeci-lhe a "honra", e
afirmei que não o aceitaria para marido, nem que fosse o único
homem sobre a Terra. Tal como uma dama da corte, abandonei a
cabana, altivamente. Mas, quando cheguei à cama, receei morrer
de desgosto.
Assim terminou o meu jogo com os rapazes, o que foi um
alívio, creia. À medida que reconhecia o seu erro, Andrew
mostrava-se mais acabrunhado, isso Era a minha vingança.


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Por estranho que pareça, sabia-me bem esta desforra, embora
o amasse com todas as forças da minha alma. Observando-o,
notava que a ferida no seu coração sangrava cada vez mais,
enquanto eu trabalhava, brincava, cantava, dizia graças - um
autêntico anjo. Deve haver um pequeno diabinho dentro de todas
as mulheres.
Então deu-se o inesperado, o que dobrou os joelhos da Martha
Ann, e tornou esta carta possível. O Andrew -enviou-me aquele
maravilhoso cavalo, com aquela magnífica sela, mas eu devia
desconhecer a verdadeira origem da oferta - segundo ordens do
próprio Andrew. Porém, o velho Jim não conseguiu guardar o
segredo.
A ideia de Andrew foi maravilhosa. Mas, o mais nobre da
parte deLe, foi salvar o tio, arriscando o seu dinheiro num
negócio, que poucas ou nenhumas garantias oferecia. O Jim e a
Sue julgam que Andy é filho de milionários, mas eu não. Tomo-o
por um rapaz de boas famílias, que veio para o Oeste pelas
mesmas razões que eu. Dissera-me que tinha algum dinheiro, mas
nunca me dissera quanto, e nunca me passou pela cabeça que
possuísse o suficiente para nos salvar.
Esta é a minha história, Martha Ann, como o tio Nick lhe
chama, mãe. A pecadora ajoelha perante Deus. Tenho ainda de me
aproximar de Andrew, confessar-lhe o meu amor, e que, menti
quando afirmei odiá-lo! Será o maior empreendimento da minha
vida, e esta carta serve-me de preparação.
Seria bem feito se ele se risse de mim, mas, só de pensar em
tal, sinto que o coração se imobiliza no meu peito. Mas ele
também se encontrou a si próprio, nesta terra maravilhosa.


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Não mudará, nem odiará! Apenas amará!...
Esta é a minha esperança, e peço a Deus que não seja vã.
Pode ficar certa, a mais querida, a melhor e mais sofredora
mãe, da completa felicidade da sua filha sem juízo, que
promete emendar-se. Escreverei de novo, logo que o meu caso
esteja resolvido. Mas, para a animar, dou-lhe a minha palavra
de que irei passar o Natal a casa e levarei o Andrew comigo.


Martha Ann


P. S. - Tenciono "apanhar" o Andrew quando ele estiver em
frente do fogo. Aproximar-me-ei, silenciosamente por trás
dele, e talvez lhe caia no colo (nessa ocasião os meus joelhos
devem estar a tremer). Mas é natural que não haja necessidade
de tanta preparação, porque, se ele continua a ser o mesmo que
se me declarou, não correrei o risco de perder a partida,
outra vez.


M. A."

A noite estava escura e fria, com as estrelas ofuscadas pela
chuva miudinha vinda do norte. Das pastagens, onde o vento
imperava, chegavam o balido do gado e os uivos dos coiotes.
Martha correu, ligeira de pés e coração. Soara a sua hora!
Fora abreviada pela revelação do procedimento de Andrew e
precipitara-a a notícia de que o jovem vaqueiro pensava partir
para a Califórnia, onde permaneceria algum tempo, para
descansar. Martha nunca permitiria esta viagem


330


se ela não partisse com Andrew. Era esta decisão que Martha
queria dar a conhecer, nessa noite.
Um facho de luz tremulante projectava-se, através da janela,
na massa sombria das árvores.
Martha sentia-se impaciente, gelada, heróica, feliz por
capitular, finalmente. Mas, quando distinguiu Andrew, graças à
pequena abertura praticada na parede da cabana, todos aqueles
sentimentos se fundiram num só - o Amor. Andrew estava
sentado, mostrando a mesma expressão terrivelmente dolorosa. O
jogo fora longe em demasia. Não houvera um meio termo. Agora,
seria demasiado tarde? Era preciso não perder um segundo que
fosse!
Trémula, Martha Ann moveu-se. O capote escorregou para o
chão e a chuva gelada molhou a face ardente.
Como uma sombra, a rapariga atravessou o alpendre e encostou
os dedos à porta, que estava ligeiramente aberta. Um misto de
ternura e terror paralisoua, no limiar do aposento. Os dedos
tremiam-lhe, quando alargou a abertura da porta. o quarto
estava mergulhado na penumbra, excepto onde as chamas da
lareira imprimiam um círculo vermelho. O fumo invadiu as
narinas de Martha, que avistou a cabeça de Andrew, emergindo
das costas da cadeira. AndreW mexeu-se no assento.
Este movimento afastou o torpor que invadia a rapariga, a
qual se sentiu contente consigo própria. Sabia que lhe faltava
a coragem, mas sabia, também, que não estava disposta a
aceitar um fracasso do coração, do alento, do intelecto e da
vista.
Quase rastejou para a cadeira, e apoiou-se nela. Deu-Lhe a
volta, e surgiu ante o rapaz. Os olhos deste, semicerrados,
mostraram um clarão de dúvida, como se tudo fosse um sonho.
Martha deslizou por sobre o braço da cadeira, para
o colo de Andrew e, passando um braço em volta do pescoço do


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rapaz, chegou-se a ele. Martha sentiu que Andrew, tímido, lhe
tocava, para, depois, a abraçar convulsivamente.
- Por Deus!... Não é um sonho! - exclamou o vaqueiro.
- Não, Andy... Não deve pensar em semelhante coisa! -
retorquiu Martha, rapidamente.
- Martha Ann!
- Sim! Espero que não estivesse a pensar na Connie.
- O quê?... Oh, não... Martha. Você veio para me agradecer!
Por favor! Não...
- Não vim por nada disso! - interrompeu a rapariga.
Andrew fazia perguntas ininterruptas, ao mesmo tempo que
procurava empurrar a jovem para o braço da cadeira. Porém,
Martha abraçava-se a ele, cada vez com mais força.
- Não seja tão curioso, forasteiro!
- Céus! Você enlouqueceu? "Wyoming Mad". Que significa esta
loucura?
- Que significa?... - repetiu a rapariga, beijando-o no
queixo. Andrew rendeu-se. A rigidez do seu corpo desapareceu e
as mãos caíram nos braços da cadeira. O peito largo e
musculoso encheu-se de ar, para soltar um profundo suspiro.
- Martha... Você não tem... coração... ou consciência?...
Afinal, você apenas...
Martha deteve a pergunta, com os lábios.
- Andy! Sempre que você se mostrar curioso, usarei este
processo. Previ todas as suas perguntas e já preparei as
respostas.
Preste atenção!
Ela sentia-se mais confiante, porque o jovem não podia
ver-Lhe a cara, encostada à sua. Ternamente, passou o outro
braço em torno do pescoço do rapaz.
- Cá vai! Não, não vim para o atormentar! Sim, lamento


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muito que não tenha podido fazer isto mais cedo! Não, eu não
lhe mentiria, mesmo que daí dependesse a minha felicidade!
Quis vingar-me?... Sim, em parte! Para minha vergonha o
confesso. Eu...
- Por amor de Deus! Tu... Você... amas-me?...
Martha riu-se da atrapalhação do rapaz.
- Calma!... Eu bem te avisei! - lembrou ela, trémula, de
emoção. A apaixonada resposta aos seus beijos, o fogo dos
olhos de Andrew haviam operado profunda mudança na rapariga.
Mas ela sentia-se feliz. - Sim. eu... amo-te!... Amo-te desde
o dia 13 de Maio, às sete horas e trinta e três minutos.
Primeiro, sem o saber; depois esperançada; mais tarde
furiosamente; em seguida, com ira; e, então, horrivelmente. E,
agora, imortalnente, de alma e coração!
- Oh, minha querida. Não és um fantasma?... A visão dourada
que me surgia em sonhos e eu tentava apanhar, em vão, e que só
fazia aumentar a minha pena...
- Outra vez! -- interrompeu ela, fechando os olhos, e
procurando os lábios dele.
- Oh... Começo a duvidar de ti. Tudo o que tu queres são
beijos.
- Não, Andy. Eu sou de carne e osso e TUA... Sim... casarei
contigo!... E serei a rapariga mais cheia de sorte, mais
feliz. Sim... Eu mereci a tua censura pela minha louca
empresa! Foi um empreendimento louco, desesperado e perigoso!
Mas eu não me arrependo dele. porque me trouxe até aos teus
braços!
- "Wyoming Mad"! Apesar de tudo, amas-me... e estás disposta
a casar comigo?... - perguntou Andrew, anelante.
- Mais uma pergunta!... Estou a ver que é melhor deixar os
meus lábios colados aos teus!
- Quando?... - Murmurou o rapaz.
- Quando, o quê?
- Quando nos casaremos?
- Andrew... Este é que é mesmo o último: Oh, eu sou uma


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mentirosa!... Como eu desejei beijar-te. ser apertada nos teus
braços... Não penses que sofreste sozinho, Andrew Bonning!
Essa tal Connie... Quando?... Quando é que nós... Oh, amanhã,
ou depois de amanhã, na próxima semana, qualquer dia que
queiras desde que seja brevemente, e tu prometas levar-me a
casa da minha mãe pelo Natal, e nunca mais pensares mal de
mim, por eu ser Wyoming Mad!


FIM

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