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sábado, 13 de agosto de 2011

Operação Cavalo de Tróia V.

OPERAÇÃO CAVALO DE TRÓIA V.

OS OUTROS MUNDOS
J. J. BENITEZ

Depois de um silêncio de seis anos justificado no prefácio -, J.J. Benitez retoma a saga dos Cavalos. Jasão, preso num subterrâneo, sem a vara de Moisés, estava
enterrado vivo.
Teria encontrado seu fim? Durante seis anos o leitor ficou imaginando o que lhe aconteceria. Não só escapa, mas segue com sua missão, na Palestina do ano 30, nas
pegadas de Jesus de Nazaré.
Operação Cavalo de Tróia 5 é um relato vibrante, cheio de surpresas e emoções não recomendado aos cardíacos, no dizer do autor-, onde nos é aberta a porta do mundo
silenciado pelos evangelistas. Por exemplo, quem poderia ter imaginado que Pôncio Pilatos era, na verdade, um louco? Como nos anteriores, este livro ficará na memória
de todos, baseado que está em meticulosas pesquisas de várias fontes.
Como J.J. Mesmo nos diz, os Cavalos constituem uma obra mágica, e documentos estão sempre lhe chegando às mãos. E, quando chegar ao final, um conselho: não se assuste
nem se zangue, porque J.J. Benitez é assim mesmo...
SEIS ANOS DE SILÊNCIO

Nunca, nos meus trinta e dois livros anteriores, eu havia experimentado tanto medo. Mas por quê? Não sei muito bem.
Minto. Tenho uma intuição. É o terror de abrir uma porta que fechei em 18 de setembro de 1989. Naquela data - às 21 h00 - eu dava por concluída a Operação Cavalo
de Tróia 4. E hoje, às 11h00 de quarta-feira 10 de novembro de 1995, essa porta foi aberta de novo. E o medo, como já disse, me deixa acovardado.
Um medo justificado, suponho. Medo porque, nestes longos seis anos, os olhos interiores se me abriram providencial e definitivamente. Medo porque, por fim, captei
a magnífica e esperançosa mensagem do Protagonista desta obra.
Medo, em suma, de não poder transmitir a genial verdade de Jesus de Nazaré: existe um Deus-Pai que ama, dirige e sustém. Medo de enfrentar uma história que é muito
mais do que uma história.
O resultado é reconfortante. Agora, querido Pai, querido Ab-bã, compreendo e o compreendo. O presente relato não podia ser iniciado enquanto este servidor o
instrumento não tivesse feito sua a essência que perfuma e define a chamada vida pública do Mestre: Que se faça a vontade do Pai. Uma idéia a grande idéia
que moveu sua existência terrena.
E esse Deus-Pai, em outra demonstração de paciência e sabedoria, permitiu-me amadurecer e refletir sobre isso, nada menos do que durante seis anos. Seis anos de
silêncio, de dúvidas, de sofrimento, uma série de experiências e de uma íntima e indefinível alegria ao verificar, mais de uma vez, que de fato todos estamos sentados
nos joelhos de um Pai que sabe...., antes que consigamos abrir os lábios.
Devo confessá-lo. Cada vez que me lancei à obra, lutando por abrir a porta
do novo Cavalo de Tróia, uma força enérgica e sutil me desviava. Lembro-me de
meia dúzia de tentativas inúteis. E só quando me senti solidamente preparado
na forja da vontade do Pai, só então se me abriu a possibilidade desta nova e
fascinante aventura. Ainda assim, desconfiado, creio (com razão), o Pai Azul
decidiu submeter-me a uma derradeira prova. E em 1994 este aturdido
mensageiro desnudava-se em público lançando um de seus livros mais queridos:
Mágica Fé.
Uma espécie de ensaio geral da obra que agora começo. Estou convencido: a
série dos Cavalos de Tróia revive graças a essa mágica fé.
Eis aqui a única explicação para tão longo silêncio. Era necessário que, antes
de revelar tudo quanto me foi dado, eu estivesse preparado e em sintonia. E
ainda assim que o Pai me desculpe sinto medo.
J. J. Benitez

O DIÁRIO (QUINTA PARTE)
Enterrados!
Davi, o velho criado, sentiu a inutilidade dos seus gritos e
lamentos. Ismael, o saduceu, implacável, havia executado parte
do seu diabólico plano.
- Enterrados vivos! - gemeu o meu acompanhante deixando-se
cair nos degraus que conduziam à gruta.
E eu, pobre explorador desajeitado, com as palmas das mãos
fundidas na áspera pedra que acabara de ser removida pelo
sacerdote, fiquei inerme. Pela primeira vez naquela intensa
odisséia nas terras da Palestina um terror desconhecido me
paralisou. Que foi que me dominou? Nem mesmo agora ao pôr
em ordem as minhas memórias, consigo explicar. Talvez me
tivesse deixado contagiar pelo pavor do criado, mais consciente
do que eu da gravidade da situação. Talvez e principalmente
o dramático fato de me achar desarmado e sem a minha
preciosa vara de Moisés, cujos dispositivos de defesa
seguramente nos teriam livrado dos angustiosos instantes que
viveríamos a seguir.
Quanto tempo transcorreu? Impossível calcular. De quando em
quando eu recuperava a lucidez mas por instantes fugazes;
tentava despertar e não conseguia. Por fim desapareceu de vez.
Hoje creio que sei o que ocorreu. E estremeço. Havíamos sido
treinados para quase tudo, menos para uma crise de ansiedade
aguda. E era disso que se tratava.
Aquela súbita e demolidora emoção aquele pânico anulou
em mim todo o resto de pensamento racional. E a Operação
Santo Deus! - me pareceu condenada irremediavelmente ao
fracasso.
Petrificado diante da rocha, alheio ao convulsivo pranto de
Davi, em um dos escassos lampejos de raciocínio percebi,
desolado, que a força muscular não respondia. E me vi
dominado por uma debilidade motora generalizada. A vertigem
não se fez esperar. Tentei agarrar-me à pedra. As mãos
tremeram, incapazes de obedecer. E um suor denso e

generalizado precedeu a inevitável taquicardia. Pensei que
morria. Uma pungente dor precordial foi o último aviso.
E no meio dessa negrura os pulmões falharam e o organismo
entrou em um perigoso processo de alcalose respiratória
secundária.
Não recordo muita coisa mais. Devo ter caído de costas sobre
o rugoso pavimento calcário. Foi tudo que me ficou na
lembrança.
- Senhor!... Oh, Deus!...
Mais do que ver, intuí a encurvada figura do ancião ajoelhado
junto a mim. Sustentava minha cabeça entre as mãos
sussurrando e implorando.
- Davi! - consegui pronunciar com dificuldade. E um leve
intumescimento ao redor da boca e nos dedos das mãos e dos
pés me devolveu à realidade, lembrando-me da síndrome da
hiperventilação e a perda de consciência.
- Senhor! - respondeu o criado com um fio de voz -. Graças a
Deus! Ignoro quanto tempo permaneci inconsciente. Mas, como
já disse, o traumatismo, felizmente sem maiores conseqüências,
veio livrar-me daquele perigoso ataque de pânico. E foi por
causa deste aviso na Nazaré subterrânea que, na previsão de
situações similares, meu irmão e eu havíamos adotado novas e
extraordinárias medidas de segurança. Uma delas, batizada
pelos homens do general Curtiss como tatuagem, mostrou-se
tão útil quanto espetacular. Mas continuemos pela ordem.
Cuidei de recompor-me e reunir as confusas e dizimadas
idéias. A alcalose, todavia, continuava atuando. Consciente da
urgente necessidade de equilibrar a pressão do dióxido de
carbono, reduzindo o p-H sangüíneo, procurei um remédio de
urgência.
- Maldita escuridão!
Às tontas tomei uma das extremidades do lençol que me
cobria e improvisei uma espécie de reduzida bolsa. Aproximei- a
do rosto e pratiquei várias e intensas inspirações e expirações.
O COZ fez o resto.

Minutos mais tarde, relativamente reconfortado, a voz do
criado veio recordar-me que pouco ou nada havia mudado.
- Senhor, essa víbora não perdoa; estamos condenados a
morrer...
Não respondi. Meu pensamento, estranhamente tranqüilo,
havia voado até o berço. E a imagem de Eliseu me
proporcionou uma benéfica força. Estendi os braços e procurei
Davi na escuridão. Ao topar com ele, agarrei-me à sua túnica e
gritei-lhe com uma segurança que ainda agora me admira:
- Esquece esse miserável!... É hora de agir! Não tenhas
dúvidas, amigo, vamos sair deste inferno! - Mas...
Não Lhe permiti novas lamentações e ele, dócil, certamente
animado pelo persuasivo timbre daquele estrangeiro, foi
respondendo às minhas perguntas: - Senhor, não conheço outra
saída. A gruta é utilizada como armazém. Aqui se guarda de
tudo. Provisões, ferramentas, água.
Geralmente só os serviçais é que aqui entram uma vez ou
outra.
Às vezes se passam semanas...
O quadro não era promissor. Fiz silêncio, procurando fixar uma
ordem de prioridades. E a têmpera militar rendeu os seus frutos.
Além disso, me consolei, havia a família. Tiago e sua gente
acabariam por fazer algumas diligências a respeito da minha
repentina desaparição. Tanto a Senhora como seus filhos, sem
esquecer Débora, a prostituta da pousada de Heqet, a rã,
sabiam que eu havia marcado entrevista com Ismael, o chefe do
conselho local de Nazaré. Mas, frio e realista, pus de lado essa
débil esperança e centrei-me no primeiro dos objetivos: a
minuciosa exploração da gruta. Mas para isso necessitávamos
luz, um mínimo de iluminação.
Ordenei a Davi que me ajudasse a rastrear o solo, em busca
da malograda lanterna que ele mesmo trazia ao entrar no
subterrâneo. Como eu supunha, só conseguimos encontrar dois
ou três cacos de uma cerâmica já inservível.
E, antes que eu tentasse agir, o diligente criado,

notavelmente recomposto, tomou a iniciativa, recomendando-me
que não me movesse. Então ouvi o roçar de suas sandálias
afastando-se até o fundo da sala. Mover-me? Como fazê-lo em
semelhante escuridão? E o involuntário sarcasmo serviu-me para
oxigenar o combalido ânimo.
A coisa de quatro ou cinco metros percebi um ruído. Como que
o rangido de algo enferrujado. Uma porta? Meu coração bateu
forte. Impossível, pensei logo. Alguns segundos depois, um
ruído similar e um estalido seco, como se Davi houvesse aberto
algo, me confundiram definitivamente. Curioso, fiz menção de
avançar até o ponto do qual haviam partido os misteriosos
sons. Mas, consciente de que devia dominar a curiosidade e
evitar mais complicações, aguardei ansioso, forçando em vão
enxergar algo naquelas espessas trevas.
Não posso afirmar, mas se houvesse caminhado ao encontro
do criado e descoberto o que ele tinha nas mãos talvez tivesse
posto a perder a manobra. Ou não? O certo é que pouco depois
o achado me traria uma angústia que ainda me acompanha. Se
bem que, bem pensado, quem sou eu para modificar o Destino?
L.a Fontaine, em sua obra Fábulas, descreveu perfeitamente
minha situação. Com freqüência encontramos nosso destino nas
veredas que tomamos para evitá-lo. E o breve silêncio voltou a
quebrar-se, desta vez com uma série de fortes impactos,
aparentemente contra a parede da caverna. Confuso, pareceume
identificar golpes de madeira contra o solo rochoso. Davi
aproximou-se, estendeu o braço esquerdo e, depois de tatear
meu peito e confirmar minha presença, pediu-me o lençol.
Nada perguntei; obedeci e, guiado pelos sons, tentei decifrar
o mistério.
Não foi muito o que consegui descobrir. O crepitar das
articulações do ancião indicaram que acabava de agachar-se.
Rasgou o lençol duas vezes e aí morreram as pistas. Depois,
sempre mantendo o mesmo e irritante mutismo, endireitou-se e
se afastou de novo. Ouvi que remexia nos objetos de louça
depositados na parede da minha direita. Na memória
conservava a imagem daquele primeiro nicho, tomado de um

lado e de outro de armários de diferentes alturas e
profundidades, que guardavam ânforas, vasilhas de diferentes
calibres e um sem-fim de utensílios de que, obviamente, dadas
as circunstâncias, não conseguia me recordar.
E o entrechocar do cobre e da argila cessou de repente.
- Bendito seja o Todo Poderoso!
A exclamação do velho e a sua aproximação aceleraram
minhas pulsações.
- Por Deus! - exclamei -. Que é que tencionas fazer? Sem tomar
conhecimento de mim, Davi voltou a inclinar-se, absorto,
suponho, em uma operação que de fato, como descobriria
instantes depois, requeria muita atenção e destreza. E com os
nervos a um passo do colapso o imitei colocando-me de cócoras.
Percebi primeiro a sua agitada respiração. Depois, um leve
borbulhar. Parecia manipular algum líquido. E o aroma do azeite
de oliva chegou inconfundível.
Mas para quê?
Em seguida Davi golpeou o solo com alguma coisa
contundente. O som surdo me pareceu igualmente indecifrável.
Alguma coisa deve ter falhado porque, descontrolado, lançou
uma série de pragas e maldições. Contive a respiração.
Segundo golpe e nova imprecação. E ao terceiro, claramente
metálico, vi cintilar uma diminuta chama verde-azul. A mais
formosa das visões...
O susto e a alegria me desnortearam. E pela segunda vez
choquei-me contra o solo duro.
Davi, sem perda de tempo, tomou a chama e começou a
preparar a primeira das improvisadas lanternas. E o lençol de
linho, empapado em azeite, incendeu-se e encheu a caverna
com um penetrante vapor. E, o que era mais importante, de uma
luz amarela e salvadora.
Não sei o que predominou: o reconfortante sorriso do
eficiente criado ou a minha desolação. Ao vê-lo com a tocha na
mão compreendi. Mas era demasiado tarde. O bom homem,

desejoso de obter uma pronta e aceitável iluminação, lembrouse
do baú depositado no fundo da gruta. O velho e empoeirado
cofre de madeira que Ismael me havia mostrado à maneira de
isca. E com a melhor das intenções, alheio ao singular valor
daquele objeto, apanhara a harpa e golpeara com ela, sem
piedade, a rocha. Agora eu entendia os enigmáticos sons.
Uma vez secionada, envolveu os braços da harpa em diversas
tiras de linho e empapou-as em azeite. Foi um triste achado.
O venerável instrumento, que eu pude acariciar durante
breves instantes, estava agora destroçado e consumido. Tive de
conter-me. Todos os meus esforços, ardis e sacrifícios para
alcançar aquele tesouro, uma das poucas lembranças do
amorável Rabi da Galiléia, vendida por Jesus ao saduceu fazia
dezessete anos, acabavam de virar fumaça. O destino, como
disse, voltava a zombar de mim.
Davi sugeriu que me encarregasse da segunda tocha; de
momento, por prudência, não considerou oportuno acendê-la. E
sem mais palavras, aceitando os fatos, apanhei a outra metade
da harpa e revisei e reforcei o linho que a cobria, enquanto o
criado retirava a jarra com o azeite. Depois fiz o mesmo com a
taça de argila que guardava a providencial reserva de
fósforos. Nunca pensei que aquelas modestas lascas e palhas
de centeio de oito ou dez centímetros, praticamente cobertas
de enxofre fundido, tivessem um papel decisivo na nossa
história. A invenção, de uso comum em todo o império, era tão
simples como eficaz. Eu as havia examinado em alguns dos lares
pelos quais passara. Para provocar a ignição bastava a
pederneira e um suporte metálico. A limpeza e rapidez da
operação, proporcionando um fácil acendedor de lanternas,
fogões e tochas, o converteu em um artigo de grande
popularidade e, naturalmente, em um belo negócio.
Por precaução, o velho criado reservou um punhado de pavios
e os acomodou no seu cinto. Sem mais demora iniciámos o
seguinte e não menos delicado objetivo: a exaustiva exploração
da gruta. Assaltado por tantas incertezas e negros presságios,
eu lutava por sobreviver e me agarrava a uma única e obsessiva

idéia: aquele pesadelo não podia prolongar-se. Tinha de haver
uma solução. Tinha de haver uma saída...
Inspirei profundamente. Calma. Sobretudo, calma. Cada passo
devia ser meditado. Davi me observava, aguardando alguma
indicação. Voltei até a escada. E o adverti: de agora em diante
procure ficar junto a mim, iluminando os meus movimentos.
Concordou nervosamente. Inspecionei a pesada rocha. Negativo.
Nem a força de quatro homens a haveria deslocado.
Calma!, fui repetindo mentalmente.
Virei-me e prestei maior atenção naquele primeiro nicho.
Exatamente como no subterrâneo existente sob a casa de
Tiago, tratava-se de uma sala escavada na rocha calcária.
Servia, como me dissera o servente, como armazém. À primeira
vista, a cobertura grosseiramente cinzelada não tinha condutos
ou chaminés de ventilação. Aquilo era uma massa pétrea,
cerrada e compacta. E a angústia aumentou no meu coração.
Caminhei para cima e para baixo aparentando uma frieza que
realmente não tinha. O covil não apresentava saída. Aquele
caixão, de cinco metros de comprimento por quatro de largura e
dois e meio de altura, era apenas uma ratoeira. A primeira
ratoeira... O exame dos armários fortaleceu em parte minhas
débeis esperanças. Em situações extremas, quão pouco precisa
a alma para impelir a vontade!...
A voz de Davi, enumerando os diversos conteúdos de
cântaros, ânforas e vasilhas, me reconfortou. O corrupto
sacerdote, fazendo justiça à filosofia saducéia, dispunha de
uma sortida e luxuosa despensa. Ali, meticulosamente
etiquetados, guardava as mais requintadas e cobiçadas
tâmaras de Jericó: as cariotes, de suco espesso; as secas e
intermináveis nicolás, assim denominadas em memória de
Nicolás de Damasco, o secretário de Herodes O Grande; as
dáctilos, retorcidas e enormes como dedos; as dulcíssimas
adélfidos e as suculentas patetes. E, naturalmente, uma
generosa coleção de ânforas de um metro de altura com a
genuína rosa da ilha de Rodes gravada em uma das asas e
contendo o mais granado dos vinhos gregos e de palmeira, tão

freqüentemente cantados por Plínio e sempre obrigatórios nas
mesas dos ricos.
Foi suficiente. Davi seguiu meu conselho, interrompendo o
inventário das provisões, mais que suficientes para alimentarnos
durante semanas. Ao menos nossa morte não seria pela
fome. Morte? Rebelei-me contra mim mesmo. Estava disposto a
reencontrar-me com o Mestre e nada nem ninguém se interporia
no caminho. E aquele fogo interior quase me ergueu do solo.
- O cofre! - ordenei ao criado -. Vejamos o que tem.
Em meio ao silêncio, apenas alterado pelo crepitar da tocha,
quando nos dispúnhamos a examinar o interior da arca, um
distante e amortecido queixume nos sobressaltou. Não poderia
afirmá-lo, mas o associei com um lamento.
Entreolhamo-nos. E um tremor se propagou pelo braço de Davi
fazendo oscilar a chama. Instintivamente levei o dedo indicador
aos lábios e reclamei silêncio de Davi. O tempo parou. Mas
aquele grunhido, ou o que fosse, não se repetiu.
E meu companheiro sussurrou uma palavra que me eriçou o
cabelo: - Ratazanas!
Como é frágil a natureza humana! A recente e traumática
experiência nos túneis da gruta de Tiago com aquela massa de
ratazanas negras e peludas devorando a sandália de Jacó, o
pedreiro, me descompôs, e toda a minha suposta força se
eclipsou. Retrocedi derrotado, banhado novamente em suor e
com os olhos esbugalhados.
Mas o ancião Deus o bendiga! -, precavido, evitou que eu
desfalecesse. Antes que o choque arruinasse minha precária
estabilidade emocional me desferiu uma calculada e sonora
bofetada. Santo remédio! E as lágrimasnunca soube se de
vergonha, dor ou raiva pelo meu comportamento infantil
vieram em meu auxílio, serenando-me.
- Sinto, senhor desculpou-se Davi, mais aturdido, se era
possível, do que este infeliz explorador -. Devo recordar-te das
tuas palavras? Fiz que não com a cabeça e a imagem de meu
irmão no módulo serviu para me refazer de vez. Éra parte da

mais excelsa missão jamais confiada a homem algum e aquele
desgraçado acontecimento não alteraria o seu rumo.
Meu amigo, comovido, me abraçou, animando-me a
prosseguir.
E assim foi.
O enferrujado cofre nos reservava uma surpresa. Em meio ao
pó e a uma dúzia de túnicas roídas, apanhei uma grossa corda
de cânhamo comum, de uns quinze metros de comprimento.
Mesmo não sabendo se poderia ser-me de alguma utilidade,
enrolei-a em bandoleira e apontei a Davi um negro buraco que
se abria no fundo do covil. Davi, contagiado, respondeu com
outro sorriso.
- Adiante! - animei-o e me animei -. Aí dentro nos espera a
solução.
- Aí resmungou ele -, aí, senhor, só encontraremos...
- Eu já disse interrompi-o, negando-me a encarar a realidade
-, aí está a chave.
Não me enganava. O que não imaginava era que a solução
do nosso problema chegaria, como quase sempre, de Forma
imprevista e impensável. E, resignado, inclinando-se, me
precedeu pelo escuro buraco. A tocha mostrou-nos uma estreita
passagem de um metro de altura e cerca de setenta centímetros
de largura. E a caminhada, tateante, foi lenta e trabalhosa.
Assim que penetramos na galeria observei que descia
suavemente. Toda ela parecia escavada a mão. Percorridos uns
dez metros, o sufocante túnel infletiu bruscamente à esquerda.
Davi se deteve. À nossa direita, em plena curva, surgiu uma
abertura circular. O criado introduziu o facho no seu interior e
explicou: o depósito de azeite. Arrebatei-Lhe a tocha e me
acocorei na abertura. Minha intenção era não deixar passar sem
exame um só recanto do covil. Atravessei o umbral e fui
erguendo-me lentamente. A cova, praticamente redonda, de
quatro metros de diâmetro por três de altura, era apenas um
enorme desfiladeiro trabalhosamente cavado na massa calcária
sedimentada.

Procurei impetuosamente uma greta, uma tímida corrente de
ar, uma esperança. No centro se espremiam quatro rotundas
ânforas encravadas no solo por meio de diferentes cavidades.
Examinei o lado posterior: rocha pura.
Desalentado, percebendo que as possibilidades se reduziam,
perguntei ao ansioso criado se a gruta tinha continuação.
Disse que sim e, empunhando de novo a tocha, apontou o
fundo.
Arrastamo-nos por uns quatro ou cinco metros e de repente a
luz da tocha à minha frente desapareceu. Fiquei imóvel,
desorientado. Nem mesmo ouvia o penoso arrastar do calçado
do meu amigo. Era como se a terra o tivesse tragado. Aflito,
lancei-me à frente aos trambolhões e aos choques com as
paredes.
O acesso à grande sala, de gatinhas e ofegando, mais morto
do que vivo, foi desonroso para o meu maltratado espírito. Ao
erguer a vista, o medo foi substituído pelo ridículo. O túnel
conduzia a uma nova e espaçosa gruta. E meu amigo, ao chegar
a ela e erguer-se, me havia deixado involuntariamente às
escuras e sujeito às mais insanas conjecturas. Davi, alertado,
aproximou-se da boca da galeria, iluminando-a e procurando a
razão da minha descomposta entrada. Só consegui sorrir, como
um perfeito estúpido. Mais calmo, examinei o recinto e
interroguei o criado com o olhar.
- Isto é tudo resumiu Davi desalentado.
Tomei como referência a boca do passadiço. Diante dela,
como vinha dizendo, abria-se o que de fato constituía o coração
daquele subterrâneo: uma grande cavidade, em boa parte de
origem natural. Apesar das suas muitas e irregulares saliências
e contrafortes, guardava certa forma quadrangular.
Calculei uns dez metros de largura. A abóboda, a cerca de
dois metros, estava ao alcance das mãos. O piso rebaixado a
martelo havia sido cuidadosamente pavimentado com gesso de
uma brancura notável. E o mesmo se podia dizer das paredes.
No chão, quase no centro geométrico da sala, sobressaía uma

crista calcária de uns cinqüenta centímetros de altura,
arredondada, dominando com os seus seis metros de diâmetro
boa parte do lugar.
- Isto é tudo repetiu o velho, com voz trêmula, diante da
dura realidade.
A um primeiro e superficial exame a gruta não oferecia de fato
muitas alternativas. Mas, que digo? Não oferecia nenhuma.
Sentindo que começava a ser dominado pelo medo, tentei
acalmar-me com o único recurso de que podia lançar mão nas
circunstâncias: manter-me ocupado, investigar, explorar cada
milímetro. E confiar.
Sem saber muito bem por onde começar, lutando por dominar
os primeiros tremores nas pernas e braços, expliquei a Davi que
precisava examinar cada palmo da caverna. Ele achou inútil a
idéia, admirado do meu insólito otimismo, mas mesmo assim me
cedeu sua tocha, jurando por sua vida que se eu o arrancasse
daquela trágica situação me serviria até a morte.
Sorri contrafeito, agradecendo o generoso gesto. Mas Davi,
de repente, deu um tapa na testa, desculpou-se, tomou-me de
novo a tocha e se encaminhou para a parede da direita. Era
como se tivesse esquecido alguma coisa. Incrível. Não me
cansarei de repeti-lo. Em circunstâncias semelhantes, qualquer
movimento, palavra ou sinal que possa concorrer para uma
solução é um derivativo.
Só que a tênue esperança durou pouco. Tudo não passava da
luz projetada por cinco candeeiros de azeite, estrategicamente
distribuídos por outras cinco cavidades das paredes. Como
quer que fosse, aquilo facilitou nossos movimentos, o que não
foi pouco.
E com o ancião ao meu lado e uma tocha que se consumia sem
remissão, tomei a direção da rocha situada à nossa direita.
Examinei e apalpei o gesso, incluindo cada centímetro da
abóboda. A parede e a cobertura, como nas câmaras pelas
quais já passáramos, não mostravam fissura alguma. O exame
da segunda parede, inclinada, deu o mesmo e frustrante

resultado.
Ao atingir o canto a chama se agitou. Foram alguns décimos
de segundo. O suficiente, no entanto, para nos alertar.
Aproximei a tocha da abóboda, tocando a pedra com a língua
de fogo. De novo a chama acusou uma leve corrente de ar.
Pressionei a madeira com as duas mãos, tentando localizar a
infiltração.
Dentro em pouco localizei uma milimétrica greta que corria até
o centro da gruta. Escalei nervosamente a crista rochosa que se
erguia no meio da sala, buscando, ansiando e gritando no
íntimo que a fissura fosse dar em uma abertura.
Decepcionado, baixei os braços. A brecha era natural e
terminava sobre a minha cabeça, permitindo a passagem de não
mais que um dedo.
Inspirei profundamente. Os tremores aumentaram. A sentença
do criado - Isto é tudo - começou a martelar meu cérebro,
ameaçando minha sanidade. Agora sei quanto estive próximo do
desastre. E não apenas por causa da aparente blindagem da
caverna. O perigo real foi o risco de loucura. E muito me custa
entender o que foi que me susteve. Ou sei e não tenho coragem
de o reconhecer? Juntei-me a Davi e agradeci no íntimo seu
discreto silêncio. Juntos desfilamos diante da terceira parede,
quase como autômatos. Rocha. Gesso. Rocha...
Isto é tudo...
- E isso?
Davi aproximou a tocha, dirigindo a luz sobre três orifícios que
havia no piso, em linha, muito próximos à quarta e última
parede e separados uns dos outros por pouco menos de dois
metros.
- Silos.
Não percebi o menor entusiasmo no esclarecimento. Mas o
instinto me fez vibrar.
- São utilizados para os grãos e os frutos secos e
entregando-me o archote acrescentou: - São estanques. Não

conduzem a lugar nenhum.
Ajoelhei-me diante do primeiro. E apesar da conclusão
desanimadora de Davi explorei-o com atenção. A abertura, de
um metro, permitia fácil acesso.
Achava-me diante de uma concavidade na rocha, em forma de
pêra, de uns três metros de profundidade por três de diâmetro
máximo e pintada de vermelho. Tratava-se, sem dúvida, de uma
típica construção da Nazaré troglodítica, igual a centenas que
havia nas grutas que proliferavam na colina de Nebi. De acordo
com as informações que tínhamos e isso já constatara no
subterrâneo da casa de Tiago -, esses silos, escavados a duras
penas, formavam cachos que se superpunham uns aos outros. Os
estudos e escavações de pesquisadores como Loffreda, Bagatti,
Daoust, Manns ou Testa eram irrefutáveis. Em certos pontos
essas intrincadas redes de grutas-armazéns comunicavam-se com
os pátios e currais interiores das casas. E foi isso que me
animou a procurar localizar algum canal ou escada que pudesse
levar-nos para fora.
Pobre ingênuo! O fundo e as côncavas paredes eram tão
herméticas como tudo que víramos antes. Repeti a operação no
segundo silo, mesmo enfrentando o ceticismo do meu
companheiro. A única diferença em relação ao anterior era a cor.
Esse havia sido pintado de azul. As dimensões e a solidez eram
as mesmas. E ambos estavam vazios.
Davi, vencido, foi sentar-se à beira da última boca. E
aguardou o desastre.
A terceira exploração não resultou em mudança alguma
importante. Medidas um pouco menores ao redor de dois
metros de profundidade por outros dois de diâmetro -, tinta
verde e o único pormenor que me chamou a atenção: alguns
sacos mal empilhados ao fundo, talvez com algum cereal, duas
canastras de regular tamanho, feitas de folhas de palma e
cheias de pedras e uma sandália aparentemente abandonada.
O conteúdo do silo especialmente as pedras me deixou
confuso. E durante uns momentos continuei ajoelhado, com meio
corpo dentro da abertura, refletindo.

- Te adverti disse-me o criado, interrompendo minhas
reflexões -. Não têm saída.
Mantive silêncio sobre o que tinha diante de mim e não me
dei conta de um quase insignificante detalhe: meu amigo, o
escravo, havia inspecionado comigo os dois primeiros silos;
nesse último, ao contrário, ficou sentado, sem se erguer uma
única vez. Meu erro e grave foi não fazer um só comentário
sobre o carregamento depositado no poço. É que eu supunha
que Davi o conhecia. Decepcionado diante da inexistência do
que verdadeiramente importava uma saída esqueci
momentaneamente o assunto e me concentrei no pouco que
ainda restava por explorar.
Davi, humilhado, não se movia. Continuava sentado, com o
rosto enfiado entre os joelhos. Eu não sabia o que fazer ou
dizer. A incursão pela gruta até aquele momento era um
fracasso. Por sorte os terrores que me haviam assaltado até
pouco antes não voltaram. Apesar do amargor da situação, uma
doce e inesperada melancolia foi afastando no meu espírito a
angústia e o medo. Seria o princípio do fim? Estaria já me
resignando? Admitia não haver esperança? Ainda hoje não
encontro a explicação daquela estranha sensação, mescla de
paz e vaga tristeza. Mas fui-Lhe grato.
Ao fim da quarta parede, a pequena distância dos silos,
tropecei com os restos de um pequeno forno doméstico, meio
encravado na rocha. A face frontal, construída de ladrilho,
mostrava uma abertura de um metro, com um piso de pedras
basálticas. Uma espessa camada de poeira que cobria a escura
e reduzida cantaria vulcânica indicava prolongada falta de uso.
A caverna ou ao menos aquela última cavidade não
parecia muito freqüentada. O forno em ruínas foi a confirmação
final.
Aí terminaria o exame da grande sala. E durante alguns
minutos impotente e com a mente vazia limitei-me a
contemplá-la.
Isto é tudo. Mas o pior estava por chegar. E chegou pelo
caminho mais insuspeito. É possível que a Fortíssima tensão o

houvesse provocado. Não sei. O fato é que aos poucos me
dominou. Isto é o que lembro e está em um caderno de notas:
Primeiro foi a imagem da Senhora e de seus filhos. Depois um
desvairado vaivém dos pensamentos, sem ordem nem lógica.
.. Eles virão... A gruta só tem uma saída... Eles sabem... Mas
e se não for assim?...
A proximidade da chama em minha mão interrompeu
momentaneamente meu delírio. Reagi e voltei para junto de
Davi. Sentei-me defronte a ele, deixando entre nós a boca do
terceiro silo. Davi não ergueu o rosto. E com os restos da tocha
faiscando ao meu lado fui novamente assaltado pelo mal que
me consome e que não duvido me levará para a tumba.
.. A tocha... - debati-me em um caos mental -. A tocha se
apaga... É o sinal... Eles não podem tardar... Pegarei a outra
metade... Então aparecerão... 20 21
Mas a lucidez voltou logo. Fechei os olhos espantado.
Esfreguei as faces com as pontas dos dedos, tentando sair da
crise. Deus! Que me sucede? Nova crise. Mas dessa vez o
bloqueio mental agravou-se com um cortejo de desconexas
risadas e uma voz rude que alarmou o pobre Davi.
.. Mas não pode... A tocha é a harpa do Mestre... Devo
preservá-la... Foi feita com suas próprias mãos... Ele cortou o
abeto... Sim, a madeira é branda, flexível e resistente.
Além disso, as cordas não ardem... São de tripa de carneiro...
Oito ou nove cordas? Não, estamos todos enganados... Não é
uma harpa... É um kinnor... Devo corrigir a memória de Papai
Noel... Um kinnor ou uma lira?... Josefo se engana... O kinnor
não tem dez cordas... E Davi tomou a harpa ou foi uma cítara?
- e tocou-a com sua mão... Livro primeiro de Samuel...
Não, o kinnor de Davi era de berosh... E este é de abeto...
Salomão, ao invés, fê-lo de madeira de almug... Livro primeiro
dos Reis... O que depois me vem à memória, no episódio, é
meu companheiro sacudindo-me pelos ombros e erguendo sua
voz para tirar-me do delírio.

- Senhor, que te sucede? Volta a ti!
E Deus misericordioso teve piedade. A ressaca psíquica
passou, ao menos por algum tempo. Esse transtorno mental, não
classificado ainda pela medicina e que, como já mencionei em
outras partes deste diário, tinha origem em uma inversão de
massa dos swivels, provocava o que, em termos simples,
poderíamos descrever como uma repentina dissociação entre o
consciente e o subconsciente. As desconhecidas mutações nas
redes de neurônios do hipocampo ameaçavam o explorador com
esse e outros distúrbios. Um em particular a correta regulagem
do conceito e da noção de espaço e tempo foi o que mais nos
preocupou e fez-nos sofrer ao longo daquele segundo salto no
tempo e, sobretudo, no terceiro e mais prolongado.
Mas também não é meu desejo desviar a atenção do
hipotético leitor destas memórias para os sofrimentos que a
sorte nos reservou. Só Ele e o que aprendemos e passamos ao
seu lado importa realmente. E só com o intuito de tornar mais
clara e completa a compreensão de quanto Lhe aconteceu é que
respeito a ordem cronológica dos fatos. A história de qualquer
ser humano exatamente como a do Filho do Homem não
pode ser interpretada e julgada corretamente se nos limitarmos
a uma curta etapa da sua existência. Esse, em minha humilde
opinião, foi o maior dos pecados dos escritores sagrados.
- Senhor!...
Um frio intenso sucedeu ao delírio. Davi, consternado, sem
saber o que fazer, continuava interpelando-me.
Não pude dizer muito. Minhas palavras, mais calmas e
coerentes eu me esforçava por tranqüilizá-lo e tranqüilizar-me
devolveram-Lhe o equilíbrio. E ao perceber meus calafrios e
tremores sugeriu-me que seguisse seus conselhos.
Desembaracei-me da corda que trazia a tiracolo e do lençol
estraçalhado. Davi tirou sua túnica e me fez vesti-la.
Depois, improvisando uma almofada com o lençol, fez-me
deitar no chão e, com o melhor dos sorrisos, recomendou-me que
descansasse. Sem escolha, vencido pelo horror, aceitei
submisso, pagando-Lhe com outro sorriso. E logo caí em um sono

reparador.
- Davi!... Que aconteceu?
Ergui-me logo, sem clara consciência do que me rodeava. Nem
precisei fazer muito esforço. A silhueta do ancião, sentado no
mesmo lugar e iluminado por instantes pela chama de uma
tocha, dissipou minhas dúvidas. A gruta, silenciosa, iluminada
pobremente pelas lamparinas de azeite, não havia apresentado
mudança nenhuma. Estávamos como no primeiro instante. Se
não pior.
Meu amigo não me respondeu. Melhor assim. Por que
atormentar-me? Tornei a sentar-me e perguntei-lhe quanto
tempo se passara.
As explicações imprecisas -, além de não me satisfazerem
me puseram em alerta. Agora era o velho que fraquejava. Não o
censurei. Aquelas duas horas ou talvez mais na tensa
solidão do subterrâneo, velando o sono de um desconhecido,
haviam esgotado suas forças. A seus pés, junto à tocha,
descobri uma jarra de barro e três tigelas. Ele adivinhou meu
pensamento e me estendeu um dos recipientes. Distingui na
penumbra uma sábia mistura de figos secos, nozes e suco de
tâmaras. Davi, constrangido, pensou que eu não aprovara a
mistura e perguntou-me se preferia vinho. Aceitei ambas as
ofertas. O espesso líquido negro e os frutos me estimularam.
Os calafrios haviam cessado e, pela primeira vez naquele
cárcere, desfrutei uma sensação de alívio, que até me levou,
contra toda a lógica, a tentar uma conversa que nada tinha que
ver com o nosso problema. E acertei, porque, ao mostrar
interesse pela vida do ancião, ambos esquecemos por algum
tempo onde estávamos.
Davi resumiu sua história mostrando o furo no lóbulo de sua
orelha direita. Consumido por dívidas, sem outra opção, um dia
teve de vender-se ao seu credor, escravizando-se. O amo e
senhor fácil imaginar não era outro senão o saduceu, que ao
lado disso se dedicava ao imoral negócio da usura, proibido até
certo ponto pela Lei mosaica.

E foi ao terminarmos nosso vinho que, de repente, ficamos em
suspenso. Meu amigo baixou lentamente sua tigela. Eu,
perplexo, mantive a minha diante dos lábios. Davi apanhou a
lanterna e a levou à altura do peito. A chama oscilou. O medo
de novo apertava-nos o coração.
- Ouviste? - sussurrou, sabendo de antemão a resposta. Movi
a cabeça afirmativamente. E um segundo grunhido ou lamento
(impossível definir), mais claro e prolongado, propagou-se pela
gruta. E a tigela escorreu entre meus dedos.
Impelidos pelo medo, pusemo-nos em pé ao mesmo tempo,
com os cabelos eriçados e a respiração ofegante.
- Ratazanas? - consegui perguntar.
Davi, atento à possível repetição dos sons, não respondeu. E
rapidamente verteu o azeite da lamparina sobre o pano
enrolado no segundo bastidor da harpa, que ardeu.
Longe de me tranqüilizar, a iniciativa de Davi aumentou minha
ansiedade. E sem saber para onde olhar, imaginando um
iminente ataque de centenas de roedores, esmagado pelo
medo e pelo silêncio, atirei-me sobre o cântaro de barro,
brandindo- o desesperadamente.
Um novo grunhido me paralisou. Dessa vez o identifiquei. Era
igual ao que nos surpreendera na primeira cova, quando nos
dispúnhamos a revistar o cofre. Uma espécie de apagado
lamento, entre humano e animal. Parecia vir dos silos.
Cabelos em pé, coração disparado, vi que meu companheiro
se ajoelhava diante do primeiro poço. Introduziu a tocha na
escuridão e permaneceu imóvel por alguns segundos. Mas os
lamentos cessaram. Juntei-me a Davi e fiquei olhando o que já
havia visto na primeira observação: os sacos em desordem, o
par de canastras e a sandália de couro, com as tiras rotas.
Davi iluminou com a tocha o carregamento de pedras e
mostrou estranheza. Aquilo disse não era lógico. Por que
guardar pedras em um silo destinado a forragem, grãos e frutos
secos? E desde quando os humildes felahos camponeses de
Nazaré se permitiam o luxo de abandonar uma preciosa

sandália? E uma idéia a mesma, suponho nos ocorreu de
pronto. De mútuo acordo decidimos descer e examinar
detidamente a cova. ; O ancião me ajudou na operação. Atei a
corda à sua cintura e, com a tocha na mão, deslizei até o fundo
do buraco. Seguindo as indicações do meu companheiro comecei
o exame pela sandália. O material, seco e desgastado pelo
uso, não me sugeriu nada. O pó da sola podia ser de qualquer
dos caminhos de acesso à aldeia. Ergui a vista para os cabelos
brancos de Davi e dei de ombros. A verdade é que não fui capaz
de uma identificação. Era uma sandália como tantas outras.
Então atirei-a para cima e pedi ao criado que a examinasse.
Sem resultado. Também ele não encontrou nela pista alguma.
Concentrei então minha atenção nos sacos. Estavam
perfeitamente fechados por uma costura de esparto. Tateei um
dos sacos e deduzi que devia conter trigo ou cevada. Passei ao
seguinte e meus dedos afundaram facilmente.
O detalhe, irrelevante na aparência, mostrar-se-ia decisivo.
Curioso, apalpei de novo o saco e um suave cicio confirmou
minha suposição. Os grãos vazaram por alguma ruptura.
A princípio, devo reconhecer, não Lhe prestei muita atenção.
E me pergunto com horror o que haveria ocorrido se eu não
houvesse cedido à curiosidade. Mas algo, ou alguém (?), me
impeliu a explorar o fundo, à procura de uma saída. Deus
misericordioso! Ali encontrei um filete de grãos de trigo duro,
elipticos, quase diáfanos, que escorriam devagarinho para o
piso do silo e desapareciam por uma rachadura! Davi,
impaciente, continuava a me pedir informações.
Sinceramente, eu o havia esquecido.
Imobilizando a tocha entre os sacos mais próximos e já com
a firme intuição de que ali estava a nossa salvação -, empenheime
em uma frenética limpeza do lugar. Arrastei como pude
uma das canastras cheias de pedras. Minha túnica, folgada,
restringia meus movimentos; então, diante do olhar perplexo do
seu dono, desembaracei-me dela.
Não me enganara. Cerrei os punhos, entusiasmado, e gritei

para Davi: - Um alçapão!
No meu aturdimento usei a expressão em inglês. Era a terceira
vez que incorria nesse lapso. A primeira, no pátio da casa de
Elias Marcos, em Jerusalém, na presença do jovem João Marcos,
quando em conexão auditiva com o módulo. A segunda, dias
depois, em Caná, na casa de Meir, o rofé das rosas, ao ser
despertado por Maria, a Senhora, em pleno pesadelo.(1)
Felizmente corrigi-me logo e o deslize passou despercebido, em
meio à desbordante alegria de meu companheiro de infortúnio.
Davi me pediu que o deixasse descer, mas lembrei-lhe que ele
era o responsável pela corda e então se conformou. Ao terminar
a limpeza da reduzida área da cova deparei com a magnífica
lâmina de um tosco soalho de uns oitenta centímetros de
largura. Nunca uma coisa tão corriqueira me pareceu tão
sublime.
De súbito o já familiar grunhido soou de novo na cova,
derrubando-me de susto sobre as canastras. Não havia dúvida.
O som provinha do vácuo que, com toda a certeza, se abria
sob o soalho. Indeciso diante do perigo que poderia acarretar a
abertura do poço, pedi a opinião de Davi. Agitado, mandou que
eu subisse. Que animal desconhecido se ocultava debaixo dos
meus pés? Mas a imperiosa necessidade de acabar de vez com
aquela tortura foi mais forte do que o instinto de segurança.
Ignorei as sensatas advertências do criado, apanhei a tocha e
me ajoelhei sobre o madeiramento apodrecido.
Silêncio.
Os dedos, cautelosos, apalpavam uma das fendas. A chama, a
um palmo do soalho, acusou uma forte e preciosa corrente de ar.
Ganhei coragem. Se se tratasse de outro silo estanque, sem
saída, a chama da tocha não se teria movido.
E o animal? Por que teria emudecido? Que estava próximo era
óbvio. Aguardaria que eu transpusesse a passagem para me
atacar? E o tenso silêncio como que um aviso me traspassou
as entranhas. Tateei o alçapão. Deslizei os dedos por uma das
brechas e, contendo a respiração, arranquei a tábua com força.

Silêncio.
E o suor, os calafrios e o medo me assaltaram ao defrontar-me
com a escuridão da furna. Agora, a distância, entendo o pobre e
indefeso Jasão e me compadeço dele. A obsessão por aquele
animal ou animais me oprimia a alma.
Lutando contra a escuridão, em um desesperado empenho por
localizálo, incidi em novo erro. Descarreguei quase todo o peso
do meu corpo na mão esquerda, firmemente assentada sobre o
alçapão. A escuridão era absoluta. Inquieto, movia-me de um
lado para o outro, atento ao menor ruído ou movimento.
Ali estava.
Pensei haver distinguido uma sombra informe, de grande
tamanho, agitando-se e grunhindo. Transtornei-me. Ainda tinha
tempo para fugir, mas, dominando o instinto, quis ir adiante.
Segundo erro. Introduzi a chama pela estreita abertura e me
pus de cócoras sobre o frágil soalho. A partir daí, tudo foi
confusão. Minhas lembranças não estão claras. Vencida pelos
meus oitenta quilos, a madeira cedeu de repente e com
estrépito. Tentei reagir. Impossível. A tocha escapou-me da mão
e eu, impotente, me precipitei no vazio. E daquele dramático
segundo apenas me vem à memória o grito de terror de Davi.
E os acontecimentos, como disse, se encadearam a grande
velocidade.
Fui cair de bruços sobre uma espécie de prancha, também de
madeira, que por sorte aliviou o impacto. A tocha estava ao
alcance das minhas mãos. Senti dores mas não tive tempo para
lamentar-me porque o segundo soalho, por sua vez, despencou
e se fez em pedaços. E me vi suspenso pelas axilas entre
estilhaços cortantes. Minhas pernas balançavam no vácuo,
buscando um apoio que não existia.
Tinha de libertar-me. Cravei as unhas nas tábuas que ainda
resistiam. Mobilizando o que me restava de forças, fazendo
alavanca com os cotovelos, tentei galgar os restos do alçapão.
Ofegante, músculos retesados, mandíbulas rangendo, olhos
esbugalhados, lutei durante instantes que me pareceram

eternos. O tórax elevou-se uns centímetros. Fechei os olhos e,
tentando controlar a respiração, preparei-me para uma nova
arremetida.
Essa segunda tentativa foi ruinosa. Um rangido pôs a perder
todo o meu esforço. A fortíssima pressão acabava de romper o
sarrafo que me serviria de apoio para subir. Em um movimento
reflexo, procurando onde agarrar-me, corri os olhos por toda a
área da cova. Só pude ver a tocha faiscando no chão e aquele
vulto negro aproximando-se a pequenos saltos... Depois, as
trevas. O soalho ruiu definitivamente, e eu com ele. E outra
cãimbra, quase uma labareda, queimou minhas entranhas.
Dois? Três? Cinco metros?...
Nunca o soube. A queda isso sim me pareceu interminável.
E este infortunado explorador, bracejando na escuridão, foi
dar nas águas frias de uma das cisternas do subsolo de Nazaré.
Submergi e cheguei ao fundo. Reativado pelo súbito e forte
choque, dei um pontapé na rocha e subi velozmente até a
superfície. Mal havia recobrado o fôlego e uma turbulenta
corrente me arrastou em meio às trevas. Pensei em nadar. Mas
para onde? E a violência da corrente subterrânea despertada
sem dúvida pelas recentes e intensas chuvas me arremessou
contra umas paredes invisíveis. Tentei agarrar-me a uma das
saliências. Inútil. A rocha, erosada, era uma farpa. Em minha
desesperada luta para sobreviver, acabei batendo a fronte
contra a rocha. E o Destino, assim, dava por concluído esse
ingrato e inesquecível capítulo na outra Nazaré.
O tordo um bulbul inclinou a cabecinha de azeviche, me
observou curiosamente, desferiu um canto fugaz e, assustado e
aborrecido, desferiu o vôo, deixando visível a brilhante mancha
amarela do pescoço. Os juncos, vibrando, arquearam.
Tentei falar. Quis pedir-lhe que não me abandonasse. Não
pude.
E durante alguns instantes aquelas imagens resumiram para
mim o mundo. Todo o mundo.
O verde juncal recuperou a galharda verticalidade. Olhando

sem ver, uni-me ao lento e obstinado vôo dos montanhosos e
ameaçadores cúmulos-nimbos.
Que havia sucedido? Não houve resposta.
Senti-me cansado. Muito cansado. Talvez por isso,
deliberadamente, me abandonei sem resistência. E não posso
dizer em que agora, em que momento histórico se situava
minha mente. Era um estado desconcertante, doce e amargo ao
mesmo tempo. Não pensava, ou talvez pensasse em escalas
remotíssimas.
Mas os golpes da corrente de água entre meus pés nus
despertaram minha errante memória. E o embate de um violento
rio subterrâneo, arrastando-me, me reconduziu ao olho do
furacão.
A caverna! Tentei acomodar-me. Uma dor aguda na fronte me
deteve. Palpei e percebi um grande hematoma. E minhas
recordações começaram a afluir. Caí de novo de costas, mais
abalado pelo trauma da recente experiência do que pela
pertinaz dor na testa.
Santo Deus!
Revi o despencar da última plataforma de madeira e minha
queda nas águas da cisterna. Revi as trevas e a desesperada
luta com a impetuosa correnteza. E depois? Como havia chegado
até ali? Tremi como uma criança. Os cúmulos-nimbos vindos do
Mediterrâneo, rumo ao sul, continuavam cobrindo Nazaré. Havia
deixado de chover.
Nazaré? Estaria eu realmente na aldeia? E as interrogações se
atropelaram em minha mente, esmagando-me o ânimo.
Que dia era?... Ainda aquela fatídica quinta-feira, 27 de abril
do ano 30?... Quanto tempo havia transcorrido desde o brutal
choque com a rocha?... E Davi, meu fiel companheiro, onde
estaria?... E minhas roupas?... E a vara de Moisés? Cheio de
angústia, consegui, enfim, sentar-me. E comecei a recuperar a
memória. Percebi que me achava na margem direita do rio que
descia do Nebi. Em frente, do outro lado, elevava-se o talude
de vinte metros que rematava a parte ocidental da povoação.

Procurei referências. E, torrente abaixo, por trás de um maciço
de oliveiras, divisei o acinzentado perfil da casa.
Mas como havia escapado daquele inferno?
Só pude achar uma explicação. Minha estranha aparição na
margem do rio devia ter relação com os grossos canhões de
água que fluíam violentos em diferentes pontos das rochas.
Contei até seis. E supus que servissem para regular o volume
dos reservatórios da tenebrosa Nazaré subterrânea.
Provavelmente a impetuosa onda acabou por atirar-me para o
exterior através de algum dos desaguadouros que eu tinha à
vista. O resto não era difícil de imaginar.
Seminu, sentado à margem do generoso rio, ergui o olhar e
dei graças a esse Pai imprevisível e bondoso por me haver
prolongado a vida. E sorri no íntimo. A vida tem desses
paradoxos. Ou não seria a vida? A furiosa chuva que me
empapara pela manhã, forçando-me a me despojar das roupas,
me salvaria à tarde. Casualidade? Que teria sido de mim se não
tivesse chovido tão torrencialmente? Mas deixei de lado as
hipóteses e me dispus a agir. Busquei o sol, adivinhando-o com
dificuldade na obscuridade da tormenta. Podia ser a hora
décima, ao redor das quatro da tarde. Isso significava umas
duas horas e cinqüenta minutos de luz. Fiz os cálculos e,
admitindo que fosse mesmo quinta-feira, deduzi que a estada
na caverna se teria prolongado por quase cinco horas.
E a lembrança de Davi, angustiosa, encheu meu coração e se
tornou prioridade. Continuaria na cripta? Era imperioso correr em
seu auxílio.
Mas ao erguer-me dei-me conta do penoso da minha situação.
Roupas, bolsa e a vara de Moisés, eu supunha, continuavam
em poder da víbora. Tinha de recuperá-las imediatamente. A
perda do manto e da túnica não era grave. A bolsa de borracha,
ao contrário, com as crótalos, o salvo-conduto de Pôncio
Pilatos e o dinheiro, os últimos e preciosos cento e trinta e um
denários de prata, isso me preocupava. Quanto ao cajado, a
sua desaparição teria sido irreparável. Boa parte da Operação
funcionara, e devia continuar funcionando, graças aos seus

complexos dispositivos técnicos.
Optei por caminhar rio acima. Vadear o poderoso curso dágua
e subir a escarpa não era aconselhável. E lentamente alcancei a
débil pontezinha de troncos. A recente e amarga experiência, ao
cruzá-la com a Senhora, perdendo no acidente o saco de viagem
e com ele as sandálias eletrônicas, fez-me redobrar a cautela.
Ao ver deserta a olaria, situada a um passo da ponte, estranhei
e me preveni. Era estranho que os filhos do desaparecido Natan
não estivessem em pleno trabalho. Mas, tomado pela obsessão
de recuperar meus pertences e ajudar Davi, passei direto e
esqueci o assunto.
Esquivei-me ao emaranhado cinturão de hortas daquela zona
ocidental e me decidi pelo caminho mais curto, à beira do
terrapleno, até a esplanada em que se erguia o casarão que
abrigava ao mesmo tempo a sinagoga e a moradia do saduceu.
A uns vinte metros da fachada norte detive a cada vez mais
nervosa e acelerada caminhada. Uma raiva surda e um crescente
sentimento de vingança começavam a perturbar-me. Precisava
acalmar-me e não podia cair em novos erros. Mas como agir? O
Destino aplainou o problema.
O que primeiro me chamou a atenção foi a cortina de lã
vermelha que pendia habitualmente no saguão da casa de
Ismael.
Estava no chão, na pequena esplanada. Indeciso, permaneci
na expectativa. O poço de pedra, a quatro metros do muro
caiado, estava tão solitário como o resto do lugar. Os recentes
aguaceiros faziam brilhar o úmido tripé metálico. O cubo de
madeira, cheio de água da chuva, rangia de instante a instante,
ao embate do maarabit, o pontual vento do oeste.
As duas portas da sinagoga à esquerda não mostravam
alteração. Continuavam fechadas.
O único sinal de vida, naquele ponto do casarão, era um jorro
d'água, do calibre de um punho, que saía por um cano aberto no
terraço. De quando em quando, em sua queda, provocava
cintilações nas pedras cinzentas que revestiam as paredes do

velho edifício.
Ao fundo, por trás da construção, a meia centena de passos, a
aldeia, como que adormecida, parecia alheia a tantas
tribulações. Uma vez mais me enganava.
Havia chegado a hora. Não podia suportar aquela incerteza
nem mais um minuto. Quanto ao sacerdote e demais pessoas da
casa, pensaria em algo durante a caminhada. Com passos
enérgicos venci a distância que me separava da entrada e
penetrei no vestíbulo como um tornado. Mas ali também não
havia ninguém. Agucei os sentidos. Em algum lugar alguém se
lamuriava.
Descarga sobre descarga de adrenalina aumentavam o furor
com que eu havia entrado. A pressão arterial elevou-se e o
coração, estimulado, me transformou em um aríete. Não sei o
que teria sido do saduceu se eu cruzasse com ele nesse estado
de descontrole.
Sem quase roçar o polido piso de mármore travertino, fui cair
como um tigre na sala seguinte. E ali, entre as refulgentes
paredes de bronze, vi uma cena que, por um lado, me teria
encantado protagonizar e, de outro, viria acalmar minha
justificada mas pouco recomendável ira.
Jacó, o pedreiro, voltou a cabeça sobressaltado. E ao
reconhecer-me empalideceu. Sua mão esquerda empunhava uma
larga espada de fio duplo um gladius-, com a ponta roçando a
garganta de um indivíduo lamurioso tombado junto à luxuosa
mesa de madeira de limoeiro.
Não reconheci logo o sujeito. Seu rosto estava voltado para
uma das me norah (o candelabro sagrado de sete braços)
incrustadas nas pranchas. Foi a sua ginecomastia (anormal
volume das mamas), oscilando para cima e para baixo a cada
convulsa respiração, que me trouxe à mente o nome do odiado
Ismael. Não havia dúvida. Ali estavam os demais sinais da sua
cirrose: a acentuada frouxidão muscular, o enrubescimento das
palmas das mãos, a ascite (acúmulo de líquido na cavidade
abdominal) e, sobretudo, aqueles vasos dilatados, nas mãos e
nas faces, em forma radial, como as patas das aranhas.

Que havia acontecido?
Não me atrevi a interrogar o ruivo e desajeitado cunhado de
Tiago. Ele também não disse palavra. Mas me pareceu saber o
que estava detrás da sua atitude.
O pé direito do habitualmente tímido e reservado amigo de
infância de Jesus continuava pressionando o vultoso ventre do
sacerdote. E a espada, implacável, continuava ameaçando a
garganta do aterrorizado ancião. A branca e antes impecável
túnica de linho do chefe do conselho tinha a manga esquerda
despregada e a faixa solta e em desordem.
Era evidente que o saduceu tinha oferecido resistência.
Jacó decerto não tinha a intenção de executar o inimigo da
família, agora suficientemente humilhado. As aparências
indicavam que ele só queria imobilizá-lo. Num gesto instintivo
levou as mãos à espada para aliviar a sua pressão na garganta.
- Bas... bas... tardo! - tartamudeou o colérico pedreiro,
lançando uma ameaça que obrigou a víbora a retrair-se de novo
-. Concede-me... o prazer de... de... libertar a mim... e ao meu
povo... de tua... tua presença! O genro da Senhora não teria
tido o atrevimento de planejar sozinho aquela quase suicida
incursão nos domínios do representante máximo da lei. Era o
que eu pensava. Por isso mesmo esquivei-me de submetê-lo a
um interrogatório ainda mais na presença do saduceu e
preferi fazer uma revista no lugar com a esperança de esclarecer
o enigma.
Observei uma das paredes. Entre as lâminas de bronze
destacava-se o estreito retângulo preto da porta secreta,
aberta, pela qual Davi e eu havíamos cruzado essa mesma
manhã.
As peças continuavam a encaixar-se. Aproximei-me da porta
decidido a transpô-la e enfrentar o irritante mistério. Mas ao
afastar com os pés os almofadões de seda persa esparramados
sobre as pedras de bree cia, o rumo dos acontecimentos mudou
substancialmente. Em parte para bem e claro também para
mal. Explico.

O coração bateu-me forte. Esquecendo tudo quanto me
rodeava, precipitei-me até o lugar em que, na mesma desordem,
se encontravam semi-ocultos o cajado e minhas roupas. Aliviado,
felicitei-me de novo. Muito antes do que podia imaginar, e da
forma mais insuspeita, consegui reaver a túnica, a chlamys azulceleste
e a insubstituível vara de Moisés.
Acariciei o cajado, examinando-o com cuidado. Nada errado
com ele, ao menos na aparência. E sem mais demora vesti a
túnica, enrolando o incômodo manto ao redor do tórax e sobre
os ombros.
Pode parecer pueril. Mas ao contato com a cálida e familiar lã
da Judéia, ganhei novo ânimo. E me senti até mais seguro.
Ajustei as cordas egípcias que formavam o cinto. Então
reparei que estava descalço e que faltavam, entre as minhas
coisas, o calçado e a bolsa impermeabilizada. Lembrava-me bem
de que me havia descalçado e colocado no saguão as sandálias
eletrônicas, o último par disponível. Quanto à bolsa, eu mesmo
a prendera à vara, entregando as duas, muito a contragosto,
aos cuidados de um dos criados.
Nervoso, revolvi os almofadões. De gatinhas revistei até os
pés de marfim da mesa. Nem rastro...
Preocupado ante a idéia de perder também as lentes de
contato e o dinheiro, continuei a arrastar-me pelo aposento,
afastando pratos, jarras, restos de comida, bandejas e outros
utensílios espalhados, talvez, na luta entre o saduceu e Jacó,
antes que o sacerdote fosse subjugado. Minha busca terminaria
bruscamente e da pior maneira: em minha sofreguidão, sem
rumo algum, fui topar impetuosamente com as coxas de Jacó.
Desequilibrado, ele se esparramou rotundamente no chão.
Ouvi uma maldição. Depois vi que ele se revolvia na tentativa
de erguer-se. Mas em vão. O manto de listas verticais pretas e
vermelhas o atrapalhou. E ao pisar a barra do amplo roupão caiu
de novo.
Foram alguns segundos. Suficientes, todavia, para que o
prostrado Ismael reagisse. Ao ver-se livre do gládius, saiu

berrando como um bezerro e se perdeu na escuridão da
passagem secreta.
Quando tentei pedir desculpas por meu imbecil procedimento,
a lâmina fria da espada entre meus olhos me deixou sem fala.
O pedreiro, pensando que o choque tivesse sido uma traição
minha, enrubesceu de raiva. E os olhos azuis, enevoados pelo
rancor, me fulminaram.
De joelhos a seus pés, pensei que minha hora havia chegado.
Mas sua reação me surpreendeu. Não sei se foi meu aturdido
olhar, sem maldade alguma. Não sei o que foi... A questão é
que, após uma ligeira vacilação, incapaz, suponho, de
descarregar o golpe fatal, me atirou uma cusparada, jurando que
eu pagaria por meu dúplice jogo.
- Jacó!
Ao inesperado chamamento ele suspendeu o amargo lance
final.
Pareceu-me reconhecer aquela voz grave e cheia de
autoridade.
Não me enganava. No umbral da porta secreta recortava-se a
corpulenta figura de Tiago, o irmão do Rabi da Galiléia.
Vestia sua costumeira túnica branca e a longa e ajustada
faixa vermelha. Cingia-Lhe a fronte e os encanecidos e fanados
cabelos uma tira de pano preto. Empunhava outra espada das
mesmas características e, o que era mais importante, trazia de
volta o escorregadio saduceu, dominado sem contemplação.
Estava claro que o surpreendera e agarrara em plena fuga. E
com a moderação que o caracterizava liquidou a dramática cena.
- Já basta!
O pedreiro, mais confuso ainda, me apontou com a mão
direita, balbuciando a palavra traição.
Neguei como pude. Mas Tiago, empurrando o lívido sacerdote,
não prestou atenção nem a mim nem a Jacó. Seus pensamentos
não estavam ali. E isso mesmo ele resumiu em uma frase:

- Nosso objetivo foi alcançado. Vamos voltar.
Não consegui entender. A que objetivo se estaria referindo?
Jacó recolheu a espada e foi colocar-se ao seu lado. E diante de
mim teve um desfile que esclareceria minhas dúvidas e que
nunca esquecerei. Logo atrás de Tiago vi aparecer João
Zebedeu encolhido e cambaleante, auxiliado em seu instável
caminhar por um dos filhos de Natan, o oleiro. O rosto fino,
abatido, tinha uma cor leitosa. Estremeci. Os olhos pretos, que
antes vie penetrantes, pareciam perdidos. Olhei-o da cabeça
aos pés e então me voltaram à memória recentes e dolorosas
imagens.
Faltava-Lhe uma sandália! E a dramática cena do silo, já na
iminência de cair nas águas da cisterna, i aquele vulto
grunhindo e agitando-se, ganhou sentido. Então entendi a razão
das canastras cheias de pedras e da sandália abandonada
entre os sacos de cereais.
Deus, quanta torpeza!
E umas fatídicas frases pronunciadas por Ismael na manhã de
quarta-feira, no decurso de minha entrevista com o pomposo
personagem, me acudiram à memória, elucidando
definitivamente o acontecimento: ... quanto a esse Zebedeu...
talvez tua minúcia tenha ficado já explicada..
A aparição, a seguir, do segundo dos oleiros, igualmente
armado e agarrando pelos cabelos sem piedade um indivíduo
atarracado, confirmaria outras deduções que eu estivera
formulando. O ossudo e mal-encarado rosto do novo prisioneiro
me pareceu familiar. Onde o teria visto? Não demorei a me
lembrar. Os gemidos aflautados do sujeito me transportavam no
mesmo instante às portas da aldeia, rememorando a
sanguinária imagem de Judá, o acólito do sacerdote, a
introduzir a mecha ardente na garganta do infeliz réu executado
naquela mesma manhã de quinta-feira.
Alguma coisa, porém, não se enquadrava. Aceitando-se que a
hipótese fosse correta e que o chefe do conselho houvesse
sepultado Zebedeu na caverna, como explicar a presença de
Tiago e sua gente? Como haviam sabido? Mas as surpresas não

paravam por aí. Fechando a comitiva, irrompeu na sala ninguém
menos que outro estimado amigo que eu quase acabara por
esquecer.
Davi!
O velho criado, imóvel, de costas para a porta, reagiu à luz
dourada e intensa lançada pelas grandes lanternas de ferro
pendentes do teto. Pestanejou como se os olhos lhe doessem e
procurou identificar quem o chamava. Ao ver-me, depois de me
julgar morto, ensaiou um sorriso e, tomado por forte emoção,
caiu em pranto. Fui ao seu encontro e, arrastado pela alegria,
lancei-me sobre meu leal companheiro e o abracei.
- Mas, senhor...
O bom homem, ainda chorando, tentava perguntar,
compreender.
Para acalmá-lo, prometi que lhe daria todas as explicações.
Mas a voz firme de Tiago, pedindo a atenção de todos, cortou
minha palavra.
- E agora fica sabendo sentenciou o irmão do Mestre,
dirigindo-se ao esquálido saduceu -. Se tu e esse grupo de
fanáticos nos esquecerem para sempre...
Acentuou o para sempre.
.. nós também esqueceremos esse ultraje.
Ismael conseguiu por fim erguer o olhar e, destilando um ódio
tão denso e repulsivo como o seu hálito, desafiou o sereno
galileu: - Ultraje?... De que ultraje falas?
Do alto da sua sabedoria, apontando os presentes, quis
deixar claro que ele e só ele era depositário da verdade.
.. Cumpri o meu dever colocando uma vala em torno à Torá.(2)
Tiago, conhecendo suas distorcidas interpretações, corrigiu-o:
- Não utilizes à tua vontade a sabedoria da Grande
Assembléia. Aqueles homens prudentes disseram: Sede
cautelosos no julgamento, promovei muitos discípulos e colocai
uma vala em torno à Torá. Esta sim é toda a verdade.

E dando mais ênfase às suas palavras com uma pausa,
acrescentou: - Onde está a tua moderação?
E indicando a Zebedeu, a mim e a Davi, rematou: - Nem
sequer os escutaste.
O saduceu acusou o golpe. A cólera acentuou o rubor das
teias de aranha do rosto. Respirou com dificuldade,
balançando as proeminentes mamas, e, quando tentou replicar,
Tiago, excelente conhecedor dos textos sagrados, desarmou-o: -
Lembro-te a sentença de alguém mais justo do que tu.
Simão, filho de Onias,(3) costumava dizer: Sobre três coisas
se sustenta o Universo: sobre a Torá, sobre o culto e sobre a
caridade. Tu pareces ignorar as três...
Brandiu a espada a um palmo dos trêmulos lábios do
sacerdote e fez-Lhe uma última e direta advertência: - Meu Irmão
e Mestre me ensinou a antepor a caridade à lei.
Mas não abuses de minha paciência.
Deu-lhe as costas e se encaminhou para a saída, disposto a
abandonar a casa. E o ódio de Ismael o seguiu como uma onda.
Tiago e os seus se enganavam. Aquela ratazana não conhecia
o perdão. A crispação da sua face era um aviso.
E o grupo, em silêncio, com as espadas erguidas, se moveu
sem perder de vista o aparentemente vencido saduceu e seu
verdugo. Quanto a mim, prudentemente me retirei com eles. Mas
o Destino não havia virado ainda aquela lamentável página.
Não para mim.
Provavelmente cometi uma nova tolice. Mas me alegro de que
tenha sido assim. Em vez de imitar meus companheiros saindo
de costas, o excesso de confiança levou-me a caminhar de
frente.
E paguei por isso, embora, insisto, com imensa satisfação...
Subitamente, de par com uma injúria - Bastardo! -, senti no
ombro direito o impacto de algo contundente. Meus amigos, já
distanciados nesse momento, não se advertiram da última
explosão de raiva de Judá.

Voltei-me rapidamente. No chão, a meus pés, estavam os
cacos de um dos vasos de ágata. Olhei firmemente para o
atacante e, decidido, com uma súbita e irrefreável idéia na
cabeça, dei um passo à frente.
Ainda não refeito da recente humilhação, e desconcertado
diante da atitude serena daquele estrangeiro, o verdugo
empalideceu. Interrogou o saduceu, que, num gesto típico, sem
palavras, o incitou a cortar-me a garganta de um só golpe.
Desarmado, o esbirro hesitou. Percorreu com a vista o
aposento, enquanto eu, muito à vontade, deslizava os dedos
pela extremidade superior da vara de Moisés até localizar o
cravo de cobre que ativava os raios ultra-sons. E mesmo não
dispondo das crótalos confiei em meu tino.
Divertido, exibindo o mais cínico dos sorrisos, esperei que ele
recuperasse um mínimo de calma. Ismael, por sua vez, a meiavoz,
saboreando o que considerava o início da sua vingança,
continuava incitando o algoz a acabar com a minha vida.
Deitei um olhar à porta e, certo de que o grupo já se afastara
da casa, fiz pontaria na cabeça do vacilante energúmeno. E uma
descarga de vinte e um mil hertz atingiu-o em cheio, alterandolhe
o aparelho vestibular, responsável pela percepção das
sensações e da permanente informação sobre a posição do
corpo e da cabeça no espaço. As ondas ultra-sônicas, de
natureza mecânica e cuja freqüência se situa acima dos limites
da audição humana (superior aos dezoito mil hertz), invadiram o
ouvido interno do verdugo, bloqueando o conduto semicircular
membranoso. Perdido o controle, com os olhos desorbitados,
desabou.
Sem entender o que se passara, Ismael olhou atônito para o
inconsciente Judá. Depois, erguendo o rosto para as vigas do
teto, interrogou o céu sem resposta. E eu aguardei,
serenamente. Respondi ao seu medo supersticioso com um
gélido e calculado olhar. Alguma coisa ele intuiu. Então,
trocando os papéis, com uma notável teatralidade, caiu de
joelhos, implorando clemência. E assim, de joelhos, se
aproximou. Mas só obteve justiça.

E um segundo cilindro infravermelho, protegendo os ultrasons,(
4) partiu do cajado, em direção à calva do miserável. Em
centésimos de segundo desabava também ele.
Ainda que inócuo para a saúde, o dispositivo de defesa
garantia a imobilização por vários minutos. Satisfeito, dei por
liquidada minha pequena e pessoal vingança. E já ia
retirando-me, para juntar-me ao grupo, quando uma idéia me
reteve. Inclinei-me sobre o corpo do inconsciente Judá e vi que
não havia errado.
As sandálias eletrônicas!
O miserável, sabendo do meu encarceramento na gruta, não
hesitou em apropriar-se delas e usá-las. Desatei-as
rapidamente e enquanto as calçava, achei que devia revistar o
resto do seu corpo. A presunção de que tivesse feito o mesmo
com a bolsa e os denários era de uma lógica absoluta. Tirei sua
hagorah a faixa em que era costume guardar armas e dinheiro
mas achei-a vazia. Também não tive sorte no restante da
revista.
Não quis tentar uma busca no próprio saduceu e decidi retirarme.
Mas a Providência me iluminou, porque assim que cruzei o
saguão encontrei Davi, o criado. Preocupado com a minha
demora, retornara à minha procura, disposto a entrar de novo na
casa e ajudar-me uma vez mais. Tranqüilizei-o como pude, com
uma meia verdade. Mostrei as sandálias, explicando que o tal
Judá havia necessitado de certos argumentos para se
convencer de que devia restituí-las a seu dono.
Visivelmente preocupado, sugeriu que nos afastássemos o
mais rápido possível da casa da víbora.
Impaciente por conhecer os pontos obscuros do seu resgate e
também da presença do Zebedeu na gruta, interroguei-o a
respeito enquanto me deixava guiar pelo enlameado terreno até
o labirinto da aldeia.
Foi assim que pude reconstituir em definitivo a história da
oportuna chegada de Tiago e sua gente ao casarão do chefe do
conselho. Uma história bastante simples, se levarmos em conta

a dramaticidade dos antecedentes.
De acordo com a narração do criado, assim que fomos
encerrados o linguarudo Judá não perdeu tempo para propalar a
façanha de seu amo e senhor. E com a inestimável ajuda de
um par de jarras de vinho, toda a casa do rã ficou sabendo da
história com pormenores. Débora, a burrinha, sabendo da
minha entrevista com Ismael, achou que devia correr à casa da
Senhora para contar-Lhe o que acontecia.
A confidência da prostituta ratificava o que a família já sabia
por outros : os seus aliados em Nazaré: o tal Jairo, o velho de
barbas desfiadas, que na tarde de terça-feira havia batido à
porta do curral da casa de Maria e informado Tiago da ida à
vizinha Séforis do braço direito do saduceu Judá -, com o
objetivo de pedir instruções ao tribunal sobre a suposta
blasfêmia do irmão do Ressuscitado.
Aparentemente mas Davi não se lembrava claramente disso
-, as confidências de Jairo continham mais elementos do que as
de Débora. É mais que provável - disse-Lhes - que João, o
discípulo do Mestre, haja tido idêntica sorte e esteja sepultado
em algum lugar do subterrâneo. Aquilo esclarecia a até então
inexplicável desaparição de João. E depois de muito discutirem
o grave assunto, com a compreensível oposição das mulheres,
Tiago e seu cunhado tomaram a decisão de procurar o vingativo
sacerdote e esclarecer tudo. E na previsão de mais que
prováveis complicações solicitaram o apoio dos filhos de Natan,
o oleiro, assim como dos vizinhos com mais afinidade.
Mas só dois dos três oleiros aceitaram. O resto da vizinhança,
com medo, se escusou. A proposta era de fato atemorizadora. E
a aldeia, como é natural, foi tomada de verdadeira comoção
pela ocorrência e por seus previsíveis desdobramentos.
Entendi então o porquê da olaria fechada, a cena de Jacó
ameaçando o saduceu com a espada e sua palidez ao
reconhecer-me. Se a suposição era de que eu permanecia
encerrado em algum recanto da cripta, como havia chegado até
ali? Mas o pedreiro, empenhado na luta com o saduceu, não
estava em condições de me fazer perguntas.

Segundo Davi, logo depois de eu desaparecer na escuridão
da cisterna percebera o ranger da mó e um grande vozerio.
Minutos depois, Tiago e um dos oleiros desciam pela corda,
guiados pelas confusas informações do criado e pelos
misteriosos grunhidos. E ao atingir o segundo silo, buscando o
pobre Jasão, foram encontrar um João Zebedeu com os pés e as
mãos atados e uma mordaça.
A surpresa do escravo, diante da aparição de João, foi igual à
minha ao vêlo, em péssimo estado, mais tarde, na casa do
saduceu.
O resto eu já conhecia, pouco mais ou menos. Minha entrada
na sala coincidiu com a de Tiago e demais integrantes da
expedição.
De minha parte, como prometera, dei-lhe as únicas
explicações que conseguira guardar, mais por intuição, sobre a
minha libertação do subterrâneo.
As mesmas que já narrei.
E repetindo sem parar Deus está comigo, o compungido
ancião continuou guiando-me entre rampas e becos. Os recentes
aguaceiros, cobrindo de barro, calhaus e intermináveis rios as
voltas e reviravoltas da labiríntica aldeia, tornavam mais
penosa a caminhada. Diante das portas, pátios e currais,
homens, mulheres e crianças lidavam com toda classe de
vasilhas e cântaros para esgotar as águas de enxurrada que
desciam do Nebi e inundavam as miseráveis construções.
Algumas das matronas, surpreendidas pela nossa passagem,
cochichavam entre si, comentando o caso do dia a audaz
intervenção dos filhos de Maria, a das pombas - que não
podia trazer nada de bom. Não se enganavam.
E quase sem tomar conhecimento do rumo traçado por Davi,
fomos desembocar diante da familiar fachada sem janelas da
casa da Senhora. Então o instinto me pôs em guarda. Que me
reservaria ainda aquela tarde? Devia entrar? Como reagiria o
rebelde João? Teria esquecido sua hostilidade para comigo? Por
um momento, enquanto o ancião batia timidamente à diminuta

porta, pensei em dar meia-volta e despedir-me ali mesmo do
leal criado. Faltava hora e meia para o pôr-do-sol.
Mais do que suficiente para alcançar a cidade de Caná. Meus
objetivos em Nazaré estavam cumpridos. As informações sobre a
incorretamente chamada vida oculta de Jesus, ao menos no
substancial, já as tinha obtido. A volta ao yam e ao saudoso
módulo não podia demorar mais. Era necessário, além disso,
que eu estivesse presente à possível nova aparição do
Ressuscitado, anunciada para o próximo sábado, 29 de abril.
Por outro lado, meu combalido ânimo não teria suportado um
trauma como o que acabava de sofrer: Todavia, apesar de todas
essas ponderáveis razões, a triste realidade da perda da bolsa
me foi inclinando a ficar. Tinha de localizá-la.
O súbito impulso duraria pouco. Uma voz, do outro lado da
porta, liquidou minhas vacilantes intenções.
Davi anunciou-nos e a porta foi aberta. O criado, alheio às
minhas reflexões, tirou as sandálias e entrou na casa, que
estava em penumbra. Esperava, claro, que eu o seguisse. Ainda
assim hesitei. E foi o gesto de Tiago, fazendo sinais para que
me apressasse, o que acabou por render-me.
E ao galgar o alto degrau me vi diante de um novo
manicômio.
A família, quase completa, em pé ao redor da mesa de pedra,
estava empenhada em uma das habituais rixas, em que todos
gritavam ao mesmo tempo, misturando argumentos e
impropérios.
Uma lamparina de azeite, no centro da roda de moinho que
servia de mesa, assistia assustada, agitando-se a cada ida e
vinda dos gesticulantes irmãos. Faltavam Rebeca e Esta, a
mulher de Tiago.
Passei a vista pelo aposento, procurando Maria, a Senhora.
Estava à minha esquerda (continuo tomando como referência
a porta de entrada da casa), na plataforma proeminente que
servia de cozinha e dormitório. Acocorada junto ao fogão, era a
única que não estava envolvida na discussão. Outra lamparina,

a seus pés, iluminava seus pômulos salientes e os negros e
sedosos cabelos recolhidos na nuca. Tinha os olhos e a atenção
na contenda. E parecia assustada.
Ao ver-me ergueu-se com dificuldade e tentou chegar aos
degraus que amenizavam a descida até a parte do aposento em
que eu estava. Mas seu joelho direito ressentiu-se, fazendo-a
cambalear. Apressei-me a caminhar ao seu encontro para ajudála.
- Jasão!
Aquele terno abraço e o belíssimo verde-erva de seus olhos
amendoados fizeram-me esquecer desgostos e desatinos.
- Estás bem? Que aconteceu?... Que tens aí?
Era a primeira pessoa, com exceção de Davi, que se
interessava pelo estado deste maltratado explorador. E também
foi essa a primeira ocasião em que graças à compassiva
Senhora pude aliviar o hematoma subcutâneo que deformava
minha fronte e havia chamado sua atenção. Envolvido em tantos
acontecimentos, quase não tivera oportunidade de examinar-me
e conhecer a real extensão do traumatismo. Sentia-me bem
ligeiramente dolorido, é certo -, mas, ante a insistência da
obstinada senhora, aceitei seus cuidados.
Maria caminhou até a arca e dela retirou um espelho e um
grande lenço.
- Observa disse, entregando-me um pequeno espelho
redondo de bronze brunido. Depois aproximou a lâmpada de
azeite e aguardou meu parecer.
A briga continuava. Os gritos eram cada vez mais fortes.
Ansioso por averiguar quanto antes as razões de tão
lastimável espetáculo, abreviei o exame. Apesar de haver
desmaiado quando me feri na cisterna, a contusão não parecia
encerrar maiores complicações. As pupilas não apresentavam
midríase (dilatação) bilateral ou unilateral reativa. Estavam
normais. Qualquer alteração nesse sentido me haveria alertado
sobre algum grave dano do tronco cerebral ou a presença de um
não menos delicado hematoma intracraniano, respectivamente.

Examinei as outras áreas da cabeça e não achei senão leves
escoriações, conseqüência dos múltiplos choques com as
paredes da cisterna. O pulso estava normal. A intensa dor de
cabeça inicial havia passado. De resto, não havia tido náuseas,
vômitos ou sintomas convulsivos que sinalizariam um incremento
da pressão intracraniana. Sinceramente, apesar dos pesares,
podia considerar-me um homem de sorte. E se eu tivesse podido
contar naquele momento com a farmácia de campanha, a
administração de uma simples dose de paracetamol teria
eliminado a dor de cabeça e todo o conjunto de sintomas.
Mas a Senhora, à sua maneira, compensaria com juros essa e
outras carências.
- E então?... Sorri e, piscando-Lhe um olho, gracejei:
- Teu anjo continua sendo o mais galante...
Maria, brincalhona, arrebatou-me o espelho com uma palmada
e, confortada por este grego, imune ao desalento, esboçou um
sorriso que a transfigurou. Os brancos e harmônicos dentes se
mostraram fugazmente. Fingindo dureza, apontou-me o piso da
plataforma e mandou que me ajoelhasse. Obedeci simulando
submissão. E ela, resmungando, colocou sobre o hematoma um
denário de prata banhado em vinagre e o manteve estável com
o lenço.
- Agora é que estás galante! - replicou, devolvendo-me a
piscadela.
Com a fronte coberta com o lenço voltei à cena principal. A
Senhora, refeita do abatimento em que eu a encontrara,
aproximou-se dos quatro degraus e, de mãos na cintura, ficou
assistindo àquele alvoroço que parecia interminável. Fiquei
receoso. Sabia alguma coisa do temperamento de ferro da mãe
do Galileu e de suas imprevisíveis reações. Davi, acovardado,
continuava ao pé da porta, teso como uma árvore e com os
olhos fixados em Jacó, que no momento vociferava mais que
todos. No canto direito, encostado às ânforas, vi afinal o
Zebedeu.
Mantinha o mesmo olhar perdido. Embora presente ao

conflito, não parecia ver nem escutar.
- Não permitirei que mamãe Maria fuja de sua casa e de sua
terra!...
E milagrosamente o pedreiro acompanhou a última frase com
um gesto da mão esquerda, indicando a plataforma. E digo
milagrosamente porque, ao dar com a figura da sogra, refeita
e a ponto de estourar, o arrebatado galileu encolheu-se no
mesmo instante.
A brusca interrupção e o temor que se estampou no seu
semblante na previsão do vendaval que se aproximava não
passaram despercebidos. Gritos, imprecações e sarcasmos
cessaram como que por encanto. E o grupo todo, percebendo a
borrasca, baixou a cabeça.
Maria, contrariando minhas previsões, limitou-se a passear
sua justa indignação diante de cada uma das caras. Sem dizer
palavra estendeu o braço para que eu a ajudasse a descer. E
num eloqüente silêncio, com a censura pendente do olhar,
caminhou diante dos pasmados Tiago, Míriam, Ruth e Jacó.
Sem saber onde esconder-me, continuei a seu lado sentindo
no punho esquerdo a pressão dos grandes e calosos dedos.
Uma pressão que traduzia a sua angústia.
Mas a Senhora sabia muito bem o que fazia. E aproximandose
do deprimido discípulo sem uma só palavra reprovou a
inconseqüente conduta dos seus. Envolvidos na contenda,
esqueceram o que era prioritário e infringiram o mais elementar
senso de hospitalidade.
Os filhos compreenderam de pronto e, discreta e
prudentemente, rodearam a mãe. Mas ninguém disse nada.
Inclinada sobre o apático João, reclamou a lanterna. Ruth
prontamente estendeu-Lhe a que estava sobre a mesa de pedra.
Coloquei-me junto à Senhora, deixei meu cajado sobre uma
das esteiras de palha que tapetavam o piso e examinei João.
O pulso me preocupou. Estava lento. A pele, pálida e fria,
perdera a elasticidade. Não descobri ferimentos ou contusões.

Apenas umas leves esfoladelas nos punhos e tornozelos, as
quais atribuí ao atrito das ligaduras.
- Que achas?
Não pude responder de pronto à pergunta de Maria.
Auscultei-Lhe o peito. Afora a bradicardia e a lentidão do
pulso, a que já me referi, a pressão caraca me parecia normal.
A freqüência respiratória não me chamou a atenção. Fiz incidir
a chama do candeeiro sobre os olhos vítreos, para um lado e
outro. Embora timidamente, com certa apatia, as pupilas
reagiram, acompanhando os pausados movimentos.
Tentei recapitular os fatos. Se as informações estavam
corretas, o jovem havia sido capturado na manhã de terça-feira,
25, e encerrado na caverna imediatamente. Seu resgate, na
tarde de quinta, 27, indicaria um inevitável estado de inanição,
ainda que em primeiro grau e felizmente sem danos para os
sistemas principais. Em todo o quadro clínico, o que realmente
avultava, à primeira vista, era o forte choque emocional. Algo
que eu mesmo sofrera e nas mesmas condições.
Persuadido da pouca importância do problema uma
desnutrição secundária, muito mais grave, me haveria impedido
de atuar -, resumi à Senhora o diagnóstico e recomendei que
tentasse reanimar o discípulo com freqüentes e reduzidas
porções de alimentos de fácil digestão. Se possível, a princípio,
à base de leite, azeite e mel. E tudo, naturalmente,
acompanhado de um forçoso descanso.
Ruth e Míriam, a um sinal da mãe, acercaram-se do fogão e
iniciaram os preparativos.
Acariciando o rosto de João, Maria tentou reanimá-lo, fazendo
ver que tudo havia passado e em breve poderia estar
regressando a Saidan. E levando o indicador esquerdo aos
lábios aconselhou silêncio.
Retiramo-nos para junto da mesa de pedra, ao mesmo tempo
em que as mulheres já retornavam com a primeira ração. E,
pacientemente, como se tratasse de um filho, a Senhora,
sustentando a cabeça de João com a mão direita, com a

esquerda foi vertendo o espesso caldo nos trêmulos lábios do
discípulo.
E, docemente, com um carinho que me cativou, assim fez até
que ele tivesse sorvido a última gota. Então o Zebedeu lançou
um profundo suspiro, fechou os olhos e agradeceu com um gesto
suave de cabeça.
Feliz diante daquela manifestação positiva de João, Maria
mostrou-me sua alegria com um comentário espontâneo que,
claro, só eu podia entender em toda a sua dimensão: - Sim,
jasão, o mais galante!
Ainda que pudesse parecer o contrário, a Senhora não
esquecera os motivos que haviam arrastado seus filhos àquela
rude polêmica. E, deixando a platéia em suspense, pediu que
tomássemos lugar em torno à mesa de pedra.
Ruth, o pequeno esquilo, sentou-se ao lado da mãe. E num
gesto que expressava e resumia o sentimento de todos,
descansou a cabeça no ombro da Senhora, tomou-lhe as mãos
entre as suas e as apertou e acariciou em silêncio, com os olhos
baixos. Creio que o meu comovido olhar deve ter-se
materializado e tocado suas faces porque no mesmo instante
me lançou um olhar e ruborizou-se, encobrindo parte da
constelação de sardas que as enfeitava.
Refugiando-se de novo naquele tom grave que não admitia
desvios, Maria pediu que os filhos, um após outro e sem
intromissões, repassassem a situação e dessem uma franca e
moderada opinião sobre o que convinha fazer. Mas ninguém
respondeu. Diante do embaraçoso silêncio, Davi e eu decidimos
retirar-nos compreendendo que nossa presença era motivo de
inibição. A Senhora, porém, vetou secamente nossa resolução.
Tanto o ancião Davi como eu afirmou estávamos
envolvidos no mesmo conflito. Mais ainda: havíamos sofrido
pela Família e isso nos convertia em parte do clã.
Agradecemos sua cordialidade e voltamos aos nossos lugares.
O criado, um pouco mais atrás, junto à porta; eu, à direita da
Senhora, com sua filha Míriam à minha direita.

Tiago, acomodado entre Ruth e seu cunhado, o pedreiro,
rompeu, enfim, o incômodo silêncio. E, sereno, percorrendo os
expectantes rostos com aqueles olhos castanhos, profundos e
sem dissimulação, traçou as linhas essenciais do problema: -
Como sabeis, hoje, quinta-feira, em sua costumeira reunião, o
tribunal de Séforis rejeitou a denúncia desse malnascido...
Maria, franzindo o rosto, sem uma palavra, recriminou-o.
- Segundo as notícias vindas do pequeno Sinédrio
prosseguiu o galileu suavizando suas expressões -, o texto da
denúncia pelo chefe do conselho local não contém indício de
blasfêmia.
E, dando demonstração de sua excelente memória, facilitou
minha tarefa e suponho que a da maioria relembrando as
frases que ele mesmo pronunciara na manhã da última terçafeira
diante de Ismael e de um grande número de circunstantes:
- Será que te atreves a negá-lo?... Diz-nos: reconheces em Jesus
o Filho Deus vivo? Jacó, a única testemunha, além de mim, do
pronunciamento que de fato desencadearia o terremoto,
concordou com um gesto de cabeça, empalidecendo.
- Tu o disseste. Reconheço-o como tal.
Novo e pesado silêncio.
- Pois bem prosseguiu Tiago, elevando o tom e deixando
transparecer uma indubitável satisfação -, como diz a Lei, os
juízes tiveram de render-se à evidência: não há blasfêmia.
Ruth, menos familiarizada com os subterfúgios dos intérpretes
da lei, pediu um esclarecimento.
Era muito simples. E seu irmão, condescendente, lembrou
primeiro uma das passagens do Levítico (24, 10 e seguintes),
na qual se conta que, por ordem de Yahweh, se lapidou o filho
de uma israelita por haver blasfemado o Nome.(5) Ruth
continuou sem entender. Tiago, recorrendo às interpretações
dos juristas, lembrou-lhe e a nós também um ponto chave,
toda uma sutileza, acolhido e respeitado pela mais antiga
tradição oral. De acordo com essa norma legal, o blasfemo não
é culpado enquanto não mencionar explicitamente o Nome.

Quer dizer, enquanto não pronuncie o nome de Deus de forma
clara e precisa. (Assim está, de fato, na Misná: ordem quarta, capítulo VII, 5, e
nos textos desse mesmo tratado Yom 3,8; 6, 2 e Sot 7, 6.)
Tiago, conhecedor da artimanha, havia respondido com a
verdade ao saduceu, mas sem cair na cilada. A história, como
creio haver mencionado, voltava a repetir-se. Jesus de Nazaré,
interrogado em termos idênticos por Caifás, o sumo sacerdote,
respondeu com as mesmas palavras e habilidade. Mas Tiago
teve a sorte de contar com um tribunal suficientemente honesto
e imparcial.
- E apesar dos protestos e alegações de Ismael concluiu
Tiago com alívio -, os juizes, sabedores da velha animosidade
desse indivíduo para com nosso Irmão e nossa casa, rejeitaram
sua denúncia e o admoestaram pelo que consideraram
impudica e tendenciosa manipulação dos fatos.
Ruth, eufórica, aplaudiu. E pouco faltou para que os demais,
tomados pelo mesmo entusiasmo, se unissem à espontânea
ruivinha.
A Senhora ergueu as mãos pedindo compostura. E ao seu
gesto a chamazinha que animava a reunião tremulou. Sua grossa
e imperativa voz, a seguir, impediu uma nova desconcentração.
Retomou o comando e lembrou-lhes que aquela vitória só
podia trazer desgostos e um clima mais belicoso. (Nem ela
mesma podia imaginar quão certa era a sua advertência...)
Jacó protestou, repetindo o argumento que os havia levado a
um beco sem saída: - Mamãe Maria não deixará sua casa e seu
povo... Não o permitirei.
Míriam, apoiando o marido, fez um gesto de concordância com
a cabeça, sem atrever-se a falar.
Tiago, decepcionado com a retomada da velha e inútil
polêmica, manifestou sua oposição com monossílabos.
A ruiva, angustiada, limitava-se a mover a cabeça,
acompanhando as opiniões que se contrapunham.
Quanto a mim e ao criado Davi angustiados -, temendo o
pior, assistíamos em silêncio ao que parecia uma segunda

batalha campal.
Mas a Senhora, endurecendo o olhar e fazendo baixar a
inflexão da voz, recuperou o domínio, calando vozes e vontades.
Nunca a havia visto tão segura de si e dominadora.
E presumi que alguma coisa importante rondava seu coração.
- E agora escutai-me com atenção porque não repetirei...
Alisou com calma os negros cabelos e inspirou com ansiedade,
como se o que se dispunha a revelar fosse arrancado das
entranhas. Os finos lábios hesitaram. Semicerrou as pálpebras
e, finalmente, após uma segunda e profunda inspiração, os
verdes e rasgados olhos se abriram saturados de luz.
Ruth, com sua fina sensibilidade, captou o poderoso esforço
da mãe. E estreitando de novo suas mãos olhou-a assustada.
Ninguém respirava.
- Durante anos, bem o sabeis, não compreendi vosso Irmão...
O tom alterou-se. E as aletas do pequeno e reto nariz
tremeram. Mas foi só por um instante. Recuperou o autodomínio
e prosseguiu com a vista fixa na chama da lanterna.
- Enfrentei até mesmo suas aparentemente absurdas e loucas
idéias. Não sabia do que falava quando se referia a seu Pai
Azul... Pior ainda: eu não quis saber nem entender...
Fez uma pausa. Ergueu os olhos e, exibindo uma segurança
que nos alcançou a todos, confessou corajosamente: - Pois bem,
agora, sim, eu o sei. Agora (demasiado tarde, também o sei),
compreendo o que repetia sempre. Compreendo e me
envergonho por não haver ficado de seu lado... por não haver
feito minha a sua frase favorita: Que se faça a vontade de
Deus!
A sincera e admirável confissão em uma mulher que
sustentou até o final a idéia e a imagem de um Jesus
libertador político -, acabou por quebrantá-la. Cerrou os olhos,
baixou o rosto, e as lágrimas falaram por ela.
Contagiada, assaltada por um pranto incontrolável, Ruth
abraçou-a, beijando-lhe os cabelos, a fronte, as faces e as

mãos, sem ordem e sem pausa.
Tiago, com um nó na garganta, refugiou-se em um de seus
gestos típicos: começou a pentear nervosamente a encanecida e
abundante barba com a mão esquerda. E os olhos se lhe
umedeceram.
Jacó, branco como a parede, com a boca entreaberta,
buscando ar e forças para não sucumbir à avassaladora emoção,
contemplava com incredulidade a inédita imagem de uma Maria
frágil e arrependida, ao mesmo tempo que audaz e luminosa.
Míriam, cópia quase exata da mãe no físico e no
temperamento, reagiu como o teria feito Maria se o
protagonista houvesse sido qualquer dos presentes: observou-a
com doçura e, batendo palmas, reclamou calma, lembrando à
das pombas que aqueles eram seus filhos e que não devia
envergonhar-se porque simplesmente todos se achavam na
mesma situação. Quem poderia vangloriar-se do contrário?
Quem, dentre os familiares do Mestre, o havia entendido e
ajudado nos anos de pregação? E a filha mais velha, em seu
empenho por reforçar os argumentos, revelou algo que
realmente era novo para mim.
Para refrescar a memória coletiva referiu-se estas foram as
suas palavras à ruptura que deixara Jesus isolado nos
primeiros dias de vida pública.
- Não vos recordais de suas lágrimas? - rematou com frieza -.
Talvez vos tenhais esquecido de seus contínuos esforços por
fazer-nos ver qual era a sua missão. E, todavia, que foi que
fizemos? Maria, enxugando as lágrimas e buscando refazer-se da
emoção, apoiou o discurso de Míriam, agradecendo com um
trêmulo e amoroso sorriso a compreensão e o respeito da
família. E deixou que a filha concluísse o que todos sabiam:
- Nós o abandonamos. Pior do que isso: murmuramos às suas
costas, crendo-o louco...
Tive um choque. De que estava falando? Nenhum dos
evangelistas faz alusão ao desprezo de sua própria família.
Não, ao menos, com a clareza de Míriam. Mas, do que me

assombrava? Porventura já não havia eu mesmo constatado a
dolorosa inépcia dos malchamados escritores sagrados? E nesse
instante implorei à Grande Inteligência que nos permitisse
prosseguir em nossos planos. Ardia em desejos de concluir o
terceiro salto e verificar por mim mesmo o que realmente
sucedera naquela etapa da existência do Filho do Homem,
presumivelmente também manipulada.
Foi difícil conter meus impulsos. Mas não faria perguntas.
Dessa vez não. Preferia descobri-lo pessoalmente... no
momento certo.
- Está bem interveio por fim a Senhora com a voz já serena -,
o que tento dizer-vos é que a partir de agora honrarei tudo o
que vosso Irmão defendeu. Se é a vontade do Pai e o tom
voltou enriquecido com aquela prodigiosa segurança ficarei.
Estendeu o indicador esquerdo para o grupo, desenhou no ar
um círculo e encerrou a sentença sem concessões: - Ficaremos em
Nazaré. Se não for o certo, Ele nos indicará o caminho...
A vontade do Pai? E como descobrir algo tão abstrato e
aparentemente distante da percepção humana? As respostas a
essas imperativas perguntas deste perplexo explorador iriam
chegando pouco a pouco. Principalmente ao longo da
inolvidável peripécia que seria o terceiro e próximo salto no
tempo...
Mas devo conter-me...
E operou-se o milagre. A contundente linguagem da Senhora,
amparada em uma convicção que sem dúvida jazia adormecida
em seu coração, teve uma resposta unânime e imediata.
Ninguém se mostrou contrafeito ou sequer insinuou a mais leve
oposição.
E admitindo que estavam diante da fórmula que haveria
agradado ao desaparecido Irmão, adotaram a resolução de
esperar e ver em que desembocaria aquele clima hostil que
afetava parte da aldeia.
Em minha opinião é triste e injusto que os evangelistas e
João estava presente não tivessem dedicado uma só linha aos

fatos e circunstâncias que envolveram a família depois da
Crucificação e que criaram uma situação tão comprometida
quanto patética. A não ser, é claro, que a abatida e histérica
imagem do Zebedeu naquele momento induzisse por motivos
de conveniência ao silêncio geral. Seja como for, o certo é que
uma vez mais os que se consideram fiéis se sentiriam burlados.
E a Senhora, de ânimo recomposto, voltou ao problema
imediato, não menos premente, falando em primeiro lugar da
necessidade de que Tiago se reunisse à família para informá-los
e tranqüilizá-los. Esta, sua mulher, e Rebeca não estavam a par
dos últimos acontecimentos.
O galileu, a princípio, resistiu. Mas Maria, indicando com os
olhos o entrançado das grossas e calafetadas vigas de sicômoro
que sustentavam o teto, e reforçando a ordem com um malicioso
sorriso, pediu-lhe que não esquecesse seu ainda quente
compromisso: - Ele nos protegerá...
Ao compreender o significado daquele olhar, que se estendia
para além da folhagem caída e da terra pisoteada que
contornava o terraço, a totalidade dos que ali estávamos, com
os olhos fixados como tontos no teto, se apressou a desfazer o
erro. Os olhares se cruzavam, as faces ruborizaram-se, e a
Senhora, com uma oportuna e franca gargalhada, dissipou o que
restava de receio.
Tiago concordou. Pôs-se em pé e, antes de sair, fez seu
cunhado jurar que ao menor sinal de violência correria a avisálo.
Depois, olhando para mim, sem necessidade de palavras, me
advertiu que a segurança de sua gente também era coisa minha.
Agradeci a confiança respondendo com um quase imperceptível
e afirmativo sinal de cabeça. Ele sorriu e se dirigiu para a porta.
Então se deu conta da silenciosa e tímida figura de Davi e da
incerta situação que enfrentava como escravo fugido. Então
voltou-se e interrogou a Senhora.
Maria não vacilou. Sabia que a lei protegia o escravo fugido
(6) e que Davi poderia até ter denunciado seu amo por atentar
contra a sua vida. E, interpretando os sentimentos do nobre
criado, tranqüilizou Tiago e acrescentou que se esse fosse o

desejo do ancião podia contar com a ajuda da família.
Davi aceitou a gentileza da Senhora. Por nada no mundo
haveria regressado à casa do saduceu. E, agradecido, arrojouse-
lhe aos pés, beijando-Lhe as mãos.
Constrangida, ela ordenou-Lhe que se levantasse. E o ancião,
com grandes e contínuas reverências, estendeu sua gratidão a
todos os presentes e voltou ao seu lugar junto à porta. Quase
não o ouvi falar dali por diante. Chegava ao fim aquele dia.
O sol já se punha e a família, mais serena, passou a ocuparse
dos preparativos do jantar.
Míriam, diligente, tratou de poupar novos e desnecessários
trabalhos à mãe e tomou a dianteira. O joelho dolorido não
aconselhava que Maria subisse na plataforma. Ruth, a conselho
da irmã mais velha, continuou junto à mãe. O Zebedeu,
profundamente adormecido, continuava alheio a tudo.
A envolvente Míriam, com os olhos brilhantes, voltou-se de
repente para o marido e mandou-Lhe que movesse o traseiro se
desejasse participar do jantar. Dócil como um cordeiro, e
conhecendo o temperamento tempestuoso da mulher, Jacó
dispôs-se imediatamente a acatar a ordem da mulher. Nesse
instante, súbito e seco estrondo nos sobressaltou. E um forte
aguaceiro começou a cair sobre o quebradiço telhado,
maltratado pelas copiosas chuvas anteriores.
Foi quase instantâneo. A água abriu caminho entre a
folharada e a lama do terraço, despencando com certeira
pontaria sobre a cabeleira ruiva do pedreiro. O incidente
provocou a indignação do homem, que, maldizendo sua má
estrela, aproveitou para evocar um velho refrão do livro dos
Provérbios (27, 15) e provocar a mordaz Míriam: - A goteira
contínua em dia de aguaceiro e a mulher encrenqueira fazem
parelha...
Como era de prever, a mulher não deixou a provocação sem
resposta. Voltou-se, agarrou o bigode do marido, desprevenido,
puxou-o pelos degraus de acesso à plataforma e entoou
triunfante outro dito popular, tirado também dos Provérbios

(26,5):
- Responde ao imbecil segundo a sua imbecilidade, não vá
ele acreditar-se sábio...
Os ais e protestos não comoveram a esposa. E o pitoresco
incidente nos relaxou, provocando o riso geral. A alegria,
entretanto, cessou bruscamente. E eu fui partícipe de um
suplício que não tinha remédio senão acostumar-se a ele.
O dilúvio deixou seqüelas. As goteiras propagaram-se por
vários pontos, transformando a aprazível vivenda em um
atordoado vaivém de todos nós, no discutível empenho de
controlar as goteiras com vasilhas, pratos, cântaros e tudo o que
aparasse a água. Até que, rendido, o oFegante grupo optou por
sentar-se de novo, aparando sem glória cada nova goteira.
Aquela tragicômica situação, em especial na época de chuvas
(entre outubro e abril, aproximadamente), constituía o pãonosso-
de-cada-dia para os habitantes da maior parte das
aldeias de Israel.
E por quase uma hora, enquanto a borrasca se despejava
sobre Nazaré, o jantar e as conversas tiveram a animação do
pipocar da água sobre a argila e o metal. A princípio, devo
reconhecer, não podia acreditar na atitude resignada dos meus
amigos. Mas, como disse, aquilo fazia parte do cotidiano e não
afetou nem o apetite nem a espontaneidade dos galileus.
Remexi a fumegante sopa com curiosidade. Míriam, apesar
das circunstâncias, se havia esmerado: ervilhas, abóbora sem
sementes, uma espécie de alface repolhuda cortada em tirinhas,
dentes de alho macerados, cebola em rodelas e a saborosa
parte branca de uns enormes alhos-porros.
Senti-me feliz. E para satisfação dos meus amigos elogiei a
boa mão da cozinheira. O segundo prato não lhe foi inferior:
croquetes de pescado rebuçados em nozes tostadas e picadas.
Aquelas bolinhas, fritas em grande quantidade de azeite,
quase me fizeram esquecer onde estava.
Mas o brusco despertar do Zebedeu devolveu-me à crua
realidade. Ruth e a Senhora, ainda às voltas com as goteiras,

correram a assisti-lo. O discípulo parecia notavelmente refeito.
Vi que conversavam com ele em voz baixa mas não consegui
ouvir nada. De vez em quando, isso sim, Ruth, a única que não
abriu os lábios, me procurava na penumbra, cravando seus olhos
nos meus. Pressenti que João, ao ver-me junto à mesa de pedra,
comentava coisas passadas e protestava contra a presença
suponho daquele traidor naquela casa. Maria sussurrou-Lhe
alguma coisa ao ouvido e o olhar do Zebedeu agora vivo e
desperto fixou-se neste incômodo explorador.
Acreditei perceber certo ar de incredulidade a despontar entre
o velho rancor. Não havia dúvida da atitude para comigo
aquele grego que se negou a auxiliar seu amigo Natanael
continuava tão hostil quanto antes, talvez mais. Resignei-me,
prometendo-me que procuraria manter-me longe do instável
discípulo.
A Senhora sorriu. Deu umas carinhosas palmadinhas nas faces
do jovem, e João voltou a cerrar os olhos. Instantes depois, por
indicação da mãe, Míriam foi ao fogão e aqueceu uma nova
ração de leite, azeite e mel.
Nada mudou, porém, no ambiente. Jacó e Davi começavam a
cochilar, vencidos pelo cansaço, e em poucos minutos, sem
resistência, caíram em benéfico sono. Quanto a mim, sem saber
o que fazer, aguardei impacientemente a volta da Senhora.
Prometera a Tiago velar pela segurança de sua gente; mas
como fazê-lo? E, sobretudo, como manter-me alerta se como
presumia aquele invencível torpor que me invadia só
aumentava? Tudo foi mais simples. Maria contemplou o ancião e
o genro e, na ponta dos pés, coxeando, foi inclinar-se sobre
mim, depositando um beijo no lenço que me cobria a fronte.
- Descansa, meu anjo querido. Demos a cada dia seu afã...
Essa última frase me pareceu familiar. Onde a havia
estudado? E a mulher, fazendo um sinal às filhas, depois de
alimentar a lanterna com uma carga extra de azeite, foi com elas
para a plataforma. Aí muniram-se de uma segunda luminária e
estenderam sobre o piso os edredons que serviam de cama.

Depois, em pé, entoaram o Ouve, Israel, uma das orações
obrigatórias, acomodando-se em seguida com os pés em
direção às brasas que começavam a apagar-se no pequeno
fogão de ladrilho refratário.
E caiu o silêncio, apenas quebrado por algumas das quase
esgotadas goteiras e o distante e apagado troar dos cúmulosnimbos,
rumo ao Jordão.
Dei uma vista de olhos ao meu redor. Jacó, acomodado sobre
a pedra, dormia com uma respiração ritmada e saudável. O
criado, junto ao alto degrau da entrada, feito um novelo,
conservava a postura inicial. Não sei exatamente por que mas
me senti intranqüilo. Aparentemente não havia motivo. No
exterior tudo era quietude, rompida a momentos pelos
lastimosos miados da gataria no cio.
Atribuí a incômoda sensação à solidão, que uma vez mais me
acompanhava. Em tais momentos, longe de meu irmão, via-me
assaltado por uma singular tristeza que me custava combater.
Apesar da intensidade e dureza da missão quase sem
trégua e sem tomar fôlego eu, para não falar de Eliseu, tive
de suportar difíceis períodos de obrigatória espera e
inatividade
nos quais a memória do nosso verdadeiro presente (o
século XX) fundia-se com o agora do século I, provocando um
turbilhão mental de difícil acomodação.
Buscando sacudir aquela ameaça e o sono que já afetava meu
organismo, optei por erguer-me. Um pouco de movimento me
faria bem.
Apanhei uma lanterna, com o máximo sigilo, e cheguei até a
porta da abandonada oficina em que o jovem Mestre trabalhava
como carpinteiro.
A pálida luz revelou muito pouco do estreito quartinho. E mais
uma vez me emocionei diante do banco de oitenta centímetros
de altura com os pés em V invertido. Passei as pontas dos
dedos sobre a pequena plaina de duas asas e por alguns
instantes permaneci absorto, recreando-me com a imagem de um

Jesus alegre e suarento, aplainando a madeira e falando com
ela.
Tudo continuava igual. As ferramentas, empoeiradas, pendiam
dos tabiques. As teias de aranha estavam por todos os cantos e
por toda parte se viam cabos para enxada, paus de nora para
cavalos e arados simples e leves, tudo ainda por acabar.
O chão, forrado de serragem e aparas frisadas, rangia
suavemente sob as minhas sandálias. Retirei a viga que
escorava a porta e, abrindo devagarinho a folha que comunicava
com o curral, saí para a noite timidamente.
O frescor e um aroma penetrante de terra molhada me
estimularam momentaneamente.
A frente borrascosa se havia afastado, deixando no negro e
transparente firmamento uma esteira de estrelas que
tremeluziam raivosas. Vênus e Júpiter, muito próximos entre si,
quase em conjunção, brilhavam como faróis a vinte ou vinte e
dois graus sobre o horizonte oriental.
Foi como um pressentimento. Como se as enfurecidas
chispas do planeta Vênus o astro mais brilhante naquela
noite quisessem advertir-me. Mas como imaginar o que ia
ocorrer? A escuridão era completa. À minha esquerda, no muro
do fundo, arrulhavam inquietas as pombas sobreviventes. Mas
também não soube ler a advertência.
Temendo tropeçar nos tantos utensílios e trastes velhos que
se empilhavam no desordenado pátio, decidi suspender o
passeio e voltar para dentro. Devolvi a lanterna ao seu lugar na
mesa de pedra e lentamente fui recostar-me na parede da
fachada, a um passo do criado, que dormia.
As goteiras haviam cessado. E por espaço de alguns minutos
poucos aquela espécie de aviso continuou vibrando em meu
interior. Mas eu não soube ou não pude traduzi-lo. O
esgotamento me desarmou literalmente e deixei de resistir.
É muito possível que nos achássemos ainda na segunda
vigília (a de meia-noite) aquela em que, como reza o Salmo
130, a sentinela anseia pela aurora -, quando,

lamentavelmente para todos, o sono me desligou da realidade.
*NOTAS
(1) Ver Operação Cavalo de Tróia 2 e 4 pp. 385 e 108 respectivamente. (N. A.)
(2) No tratado abot, sobre os pais ou sábios de Israel, é especificado que
Moisés recebeu a Torá a lei oral no Sinai, transmitindo-a depois a Josué e este,
por sua vez, aos anciãos (Jos. 24, 31). E os anciãos passaram-na aos profetas (Jei: 7,
25), e estes, finalmente, aos homens da Grande Assembléia: o tribunal de 120
membros, que começou a atuar com Esdras, depois do exílio na Babilônia. (N. Do m.)
(3) Referia-se, talvez, a Simão I, sumo sacerdote que viveu em 280 a.C. Outras
fontes falam de Simão II, também sumo sacerdote (200 a.C.). (N. Do m.)
(4)Para evitar o difícil problema do ar inimigo dos ultra-sons -, os especialistas
da Operação Cavalo de Tróia idealizaram um sistema capaz de encarcerar e guiar os
ultra-sons, através de um finíssimo cilindro ou tubagem de luz laser de baixa
energia, cujo fluxo de elétrons livres ficara congelado no instante de sua emissão.
Ao conservar um comprimento de onda superior aos 8000 angstrem (0,8 micra), o
tubo laser continuava mantendo a propriedade essencial do infravermelho, ou seja,
só visível com o uso das lentes de contato (crótalos). Dessa forma, as ondas ultrasônicas
poderiam deslizar pelo interior do cilindro ou túnel formado pela luz
sólida ou coerente, podendo ser lançadas a distâncias que oscilavam entre os 5 e
25 metros. (Ver informação sobre o sistema de ultra-sons em Operação Cavalo de
Tróia 1, p. 323.)
(5) A passagem em questão diz assim: Havia saído com os israelitas (do Egito) o
filho de uma mulher israelita e de pai egípcio. Quando o filho da israelita e um
homem de Israel brigaram no acampamento, o filho da israelita blasfemou e
amaldiçoou o santo Nome, e por isso o levaram para Moisés.
Sua mãe chamava-se Salumite, filha de Dribi, da tribo de Dan.
Colocaram-no na prisão até a decisão de Moisés, segundo a ordem de Yahweh.
Então Yahweh falou a Moisés: «Faz sair do acampamento o blasfemo; todos que o
ouviram que ponham as mãos sobre sua cabeça, e que o lapidem toda a assembléia.
E dirás assim aos israelitas: Todo aquele que amaldiçoar o seu Deus levará o seu
pecado. Quem blasfemar o nome do Senhor será punido de morte: toda a assembléia
o apedrejará. Quer seja estrangeiro ou nativo, se blasfemar o santo Nome, será
punido de morte. (N. Do m.)
(6)No apaixonante capítulo da escravatura entre os judeus ao qual espero
dedicar minha atenção no futuro -, ao contrário do que acontecia com os romanos, se
um escravo conseguisse escapar não poderia ser devolvido ao seu senhor.

A Lei assim o protegia, amparada no Deuteronômio (23, 15): Não entregarás ao
seu amo o escravo fugitivo que se refugiar em tua casa. Ele ficará contigo, em tua
terra, no lugar que tiver escolhido numa de tuas cidades, onde melhor lhe aprouver, e
não o molestarás. (N. Do m.)
28 DE ABRIL, SEGUNDA-FEIRA (ANO 30)
Alguém abordou-me com violência: - Senhor!
Uma fumaça branca e espessa impediu-me de distinguir com
clareza o indivíduo que me havia arrancado de um profundo
sono.
- Senhor!
E entre aquela fumaceira, por fim, consegui identificar um Davi
que se retorcia num convulsivo ataque de tosse.
- Senhor!
Meus pulmões, cheios de fumaça, reagiram como os do criado,
submetendo-me a um suplício extra. Apesar da confusão do
momento, lembro-me de que entre as colunas de fumaça
pareceu-me ver um oscilante e intenso reflexo avermelhado.
- Senhor, - tornou o ancião -, a porta!...
E tateando e curvando-se a cada acesso de tosse, tomou a
iniciativa bendito seja! - e abriu a porta de um golpe. A
fumaça, como um ser vivo, alongou-se na direção da noite,
retorcendo-se no umbral da porta. E uma golfada de ar puro
envolveu-nos.
Aos tropeções, esquecendo até o cajado, precipitei-me atrás
de Davi, tentando chegar ao exterior como um possesso. Só
consegui reagir um segundo depois. E o fiz primeiro com
perplexidade, depois com vergonha.
A família!
Indignado comigo mesmo, precipitei-me porta a fora,
espantando com as mãos os rolos de fumaça. Sufocado pelos
repetidos ataques de tosse, procurei ao meu redor, tentando em

vão ajudar Maria e os seus. Com os gritos do criado, e diante da
sufocante fumaça, mulheres e homens já haviam saído.
Por sorte, a fumaça diminuíra ao ser sugada pela corrente de
ar. De início não me dera conta do porquê daquela intensa e
salvadora corrente. Também como o poderia, em meio a tão
grande loucura? O que importava era que o cômodo principal
começara a ser evacuado.
Antes que conseguissem coordenar um único pensamento, o
pedreiro, Ruth e Míriam haviam olhado para a entrada da
carpintaria, encoberta por uma coluna de fumaça, visto chamas e
dado o alarme: - Fogo!
E a família enlouqueceu.
Os alaridos desesperados das mulheres confundiram ainda
mais os homens. A tosse foi invadindo gargantas e
multiplicando o caos.
A Senhora, equilibrada à borda da plataforma, mandou que os
filhos saíssem para buscar socorro, mas ninguém a escutava.
Ruth, tomada de um ataque histérico, havia voltado e subido
na mesa de pedra. Sua falta de controle levou-a a pisotear
sobre a mesa e acabar por derrubar a lamparina. Chama e
azeite caíram sobre uma das esteiras de palha que forravam o
chão, incendiando-a.
Míriam, gritando ainda mais, passou a insultar a irmã
desajeitada e, numa arriscada tentativa de apagar o fogo,
correu para pisá-lo. Mas os pés descalços logo acusaram as
queimaduras e, coxeando, saiu de costas e deu um encontrão
com um não menos assustado Zebedeu. Caíram os dois entre
maldições e lamentos, por cima das ânforas.
Em meio àquela confusão, Jacó, recobrando um mínimo de
serenidade, fez-se ouvir aos gritos e ordenou que o ajudassem
com os cântaros. E saltando por cima do que encontrava pelo
caminho aproximou-se das ânforas, empurrou sua esposa e João,
tirou o manto e destampou o recipiente mais bojudo.
Durante um tempo, só se ouviam suas ordens e suas
imprecações ao pedir os cântaros.

Davi, recém-saído de seu assombro, foi o primeiro a reagir, e
o fez à sua maneira, com inteligência. Recolheu as vasilhas
espalhadas pelo piso, que haviam servido para aparar a água
da chuva, e jogou o líquido sobre a crepitante cortina de fogo.
A precisa intervenção do criado reverteu a situação. Míriam
refez-se e imitou Davi. O Zebedeu, por sua vez, movido pelo
instinto de sobrevivência, juntou-se a Jacó, dando-Lhe tudo que
pudesse aparar água.
O pedreiro, frenético, animando-se e entusiasmando as
pessoas, foi enchendo gamelas, pratos, cântaros e jarras com o
que tinha nas mãos: a reserva do vinho. E por meio da corrente
formada pelo resto do grupo, o espesso líquido foi derramado
nas chamas, que lentamente se apagaram.
Somente Ruth, a Senhora e quem isto escreve mantiveram-se à
margem dos acontecimentos. A primeira, paralisada pelo horror.
A segunda, porque ao descer a escada para colaborar na ação
conjunta perdeu o equilíbrio provavelmente por causa de seu
frágil joelho -, caiu de bruços e bateu o rosto contra a borda da
mesa de pedra. Mas só nos daríamos conta desse acidente mais
tarde, quando já estava recuperada. A boa mulher, para não
chamar a atenção para si, guardou silêncio e esperou, sem que
a víssemos, meio caída e banhada em sangue.
Quanto a este explorador, as razões foram muito diferentes.
Ainda que minha reação imediata tivesse sido seguir o
exemplo do criado, no último instante detive-me. E assim o fiz
por causa do odiento código da não-intervenção do Cavalo de
Tróia. O Férreo treinamento se impôs uma vez mais. Muito a
contragosto não podia agir. O incêndio, avivado pelo colchão
de serragem, as apas e as madeiras secas armazenadas na
oficina, recobrou forças, afetando de modo dramático o local.
Eu não devia mover um músculo sequer. No meu íntimo, sentime
desolado.
Nessa ocasião, todavia, meu comportamento anormal não
provocou efeitos secundários. A própria confusão daqueles
que ali estavam me protegeu perfeitamente, camuflando meu

aparente e inconcebível desinteresse. E quando, graças à água
e ao vinho, as chamas cederam, só então unindo-me aos gritos
e aos gemidos e evitando a fila formada pelas pessoas -, joguei
sobre o rescaldo e os estalidos das madeiras o ar de algumas
gamelas ... previamente esvaziadas.
Como disse, para a sorte deste explorador, a simulação
passou sem ser percebida e, uma vez superada a ameaça,
suarento e igualmente desiludido, deixei-me cair junto aos
desolados proprietários do lugar.
Durante alguns minutos somente se ouviram as já
enfraquecidas lamúrias do pequeno esquilo e a agitada e
descontrolada respiração do grupo. Como pude ter sido tão
desatento a ponto de não reparar no estranho silêncio da
Senhora? Possivelmente meus pensamentos tivessem sido
travados por aquela enervante realidade que tinha diante de
mim.
Que havia acontecido? Como fora possível que aquela oficina
tão querida tivesse pegado fogo? Na hora lembrei-me do
inquieto arrulhar das pombas e daquele inexplicável
pressentimento. Alguém, quase com certeza algo me diz -,
aproveitando-se da noite, passou pela casa, esgueirou-se até o
curral e consumou o atentado.
Faltou pouco para falar-Lhes das minhas suspeitas, mas,
entendendo que me faltavam provas e não querendo piorar o já
quase nulo ânimo da família, optei pelo silêncio. Então me
levantei e fui até a fumegante oficina.
Uma raiva malcontida acompanhou-me naquela inspeção.
As chamas haviam reduzido a cinzas um dos poucos vestígios
físicos e tangíveis da passagem do Mestre por este mundo. O
Destino ou quem fosse parecia especialmente interessado
em apagar todas as pegadas materiais do Filho do Homem.
Primeiro seu corpo, misteriosamente volatilizado no sepulcro.
E agora, os trabalhos em madeira e as tantas ferramentas que
usava como entalhador...
Na ocasião, sinceramente, não entendi. Mais tarde, graças à

magia da volta no tempo, durante o terceiro salto, o próprio
Jesus me faria ver o porquê de tudo aquilo. E soube que nada
é casual.
Ensimesmado diante do triste espetáculo, não percebi a
aproximação de Jacó. O pedreiro, num gesto nobre, mas
interpretando mal a verdadeira razão de minha presença ali,
suplicou que perdoasse sua atitude equivocada no abrigo do
saduceu.
- Sei quanto amavas o Mestre concluiu com a voz embargada
e o que significa para ti a perda desta sagrada lembrança.
E baixando os olhos, depois de reiterar seu pedido de
perdão, acrescentou: - Obrigado por tua ajuda...
Mas um grito tirou-nos dali. E o que vi fez-me temer o pior.
Míriam, ajoeLhada junto à mãe, gemia e gesticulava,
chamando por Jacó. A Senhora, estendida sobre as esteiras,
parecia desmaiada ou morta.
João, Davi e Ruth, igualmente sobressaltados diante da
imobilidade de Maria, correram para junto de Míriam e rodearam
a Senhora. O pequeno esquilo, tomando a mãe pelos ombros,
tratou de levantá-la. Mas ao descobrir o sangue que escorria
pelo rosto, pescoço e peito, já com pouca resistência, caiu sem
sentidos.
O pedreiro abria caminho como pôde e ficou atarantado
diante da cena e das ensurdecedoras lamúrias de sua mulher. A
voz, os sentidos e a ação ficaram definitivamente bloqueados.
Não sei de onde tirei a serenidade. Mas, fazendo ouvidos
moucos à justificada histeria de Míriam, afastei-a sem muita
consideração, ordenando a Davi que me assistisse com a
lamparina. Com o coração apertado, apressei-me a examinar a
amiga querida e confidente.
A primeira impressão estava errada. Maria estava viva, ainda
que seu pulso estivesse fraco. E quando já me dispunha a
procurar a possível causa da hemorragia, o Zebedeu, em pé às
minhas costas, evidentemente recuperado, explodiu num
chorrilho de imprecações impublicáveis contra mim. Vou

mencionar somente as mais suaves: - Não te atrevas a tocá-la,
bastardo imundo!... Filho do pecado, afasta-te!...
O criado olhou-o sem nada entender. E quem isto escreve,
rangendo os dentes de indignação, fingiu não haver escutado.
Quem ouviu, sim, o feroz ataque do discípulo amado foi
Jacó.
Que saindo de seu estupor enfrentou o Zebedeu, empurrandoo
contra a parede e jurando por tudo que Lhe era sagrado que o
partiria ao meio se voltasse a abrir sua boca pestilenta.
Depois, voltou para junto da ensandecida Míriam, friamente
deu-Lhe um tapa no rosto. E a tranqüilidade pareceu
restabelecer-se naquela mulher até então aflita.
No meio a um doloroso silêncio, o pedreiro levantou sua
mulher, abraçou-a com ternura, pedindo-Lhe que se acalmasse.
Maria, pelo que pude ver, apresentava um talho pouco
profundo, junto do septo nasal. O golpe, porém, produzira uma
enorme hemorragia interna, e isso foi o que alarmou a família.
A princípio, à luz da lamparina, não observei nenhuma
deformação na pirâmide nasal. Com o máximo cuidado iniciei
uma lenta e progressiva apalpação. Não houve reação, o que
me deixou animado. A ausência de dor, especialmente no septo,
fez-me pensar que não existia fratura. Tampouco pude observar
hematoma na região nem enfisema subcutâneo. Em resumo, o
impacto fora mais espetacular do que danoso.
Míriam, entre soluços, aproximou-se deste recomposto
explorador e me interrogou num fio de voz. Sorri, tranqüilizandoa,
e seus enormes olhos verdes me envolveram.
Os passos seguintes os únicos possíveis foram igualmente
simples. Pedi água fervida e, desamarrando o lenço que me
cobria a testa segurando entre os lábios o denário -, fiz uma
minuciosa limpeza da ferida e dos coágulos. Naquele instante
não me dei conta da transcendência do significado daquele
sangue recolhido nas pontas do tecido.
Ao contato com a umidade, a Senhora abriu os olhos e

observou as expressões angustiadas dos que a rodeavam.
Depois, cerrando-os novamente, suspirou relaxada.
Jacó e sua mulher foram prestar assistência à esquecida Ruth
e a reanimaram. O Zebedeu, encolhido entre os cântaros, não
deixava de me observar. Seus olhos negros destilavam um brilho
pouco tranqüilizante. Ignorei-o.
O pequeno esquilo, depois de repetir mil vezes que se
sentia perfeitamente bem, não me permitiu que eu continuasse
a atender sua mãe. Colocou a cabeça da Senhora em seu regaço
e, terna e solícita, prosseguiu ela mesma os curativos.
Mais ou menos às quatro da manhã (na vigília do canto do
galo), Jacó saiu correndo até a casa de Tiago. E este
explorador, acabrunhado e em silêncio, saiu pela porta da
entrada, precisando de algumas golfadas de ar puro e um pouco
de paz. A noite continuava profusamente enfeitada de estrelas,
e a aldeia, a duas horas do amanhecer, pareceu-me
irritantemente insensível à tragédia daquele lar.
Como é possível que os vizinhos não tivessem escutado os
gritos da família? Ou será que ouviram? Um sussurro distraiu
minha atenção, afastando meus pensamentos daquele dilema.
Davi, na entrada da casa, chamava-me com urgência. Aproximeime
alarmado. Que nova desgraça teria desabado sobre nós?
Apontava a face exterior da porta e aí pude comprovar minhas
suspeitas. Quando aproximou a lamparina meu coração deu um
salto. O incêndio da carpintaria não fora obra do acaso.
No meio da porta pendia uma bolsinha presa por uma adaga,
e logo abaixo, numa escrita com cal, lia-se áboda-zara
(idolatria). Nem o criado nem eu havíamos reparado naquele
aviso porque era disso que se tratava -, quando, semiasfixiados,
corremos para fora.
De repente, ao examinar a arma com mais atenção, pensei ter
reconhecido a bolsinha emborrachada. Mas não tive
oportunidade de tirá-la dali, pois logo chegaram Tiago, Jacó e
Rebeca. Os homens, agitados, ficaram alguns segundos junto de
Davi e deste atônito explorador. As mulheres, ainda mais

assustadas, correram para dentro da casa como um raio.
Tiago e seu cunhado observavam o aviso com incredulidade.
Depois de um instante de hesitação, maldizendo Ismael, o
pedreiro arrancou a adaga e atirou-a com fúria na escuridão.
Apressei-me a recolher a bolsinha que havia caído e verifiquei
que, de fato, se tratava da bolsa emborrachada que me
pertencia e desaparecera. Nervoso, sabendo de antemão que a
revista seria inútil, abri-a. Não havia nem sinal das crótalos,
nem das moedas, nem do salvoconduto de Pôncio...
À maldição de Jacó acrescentei mais uma.
Mas as coisas estavam malparadas mesmo, e não valia a
pena lamentar-me. Assim, esfarelando a borracha da bolsinha,
fui reunir-me ao clã.
As mulheres formavam um círculo de cochichos em torno da
Senhora. Tiago, informado de tudo por Jacó, permaneceu algum
tempo junto de sua mãe. Em seguida, acompanhado o tempo
todo pelo cunhado, entrou na oficina. E eu com eles.
Atônito, o então filho mais velho foi inspecionando a área do
sinistro. Circunspecto, mordendo os lábios, não fez comentários.
Com os olhos foi percorrendo os restos calcinados do banco, as
ferramentas retorcidas e inutilizadas, as paredes enegrecidas e
o teto, praticamente ruído. Depois de tudo pensei a família
ainda podia considerar-se com sorte, pois caso as chamas não
fossem apagadas logo poderia ter perdido absolutamente tudo.
Tiago, olhando atentamente a porta inutilizada que separava
o lugar do pátio de trás, deu uns passos na sua direção para
observá-la melhor. Estava aberta, encostada no tabique no qual
se encaixava. A folha fora escorada com uma viga, e eu mesmo,
depois do curto passeio dessa noite, a havia recolocado em seu
lugar. Parecia evidente que alguém a tirara dali. Adivinhando
meus pensamentos, o galileu concentrou seu exame nas
dobradiças.
- Malditos!
O cerco foi-se estreitando. As dobradiças, de fato, pareciam

ter sido arrancadas dos batentes. Comecei a intuir o porquê da
providencial golfada de ar que fez com que a fumaça fosse
reduzida.
Tiago, dando meia-volta, pôs-se a remexer nas cinzas com a
ponta da sandália esquerda. Que estaria procurando? De
repente, resvalou em alguma coisa e abaixou-se. Sem pressa,
desenterrou algo que parecia um pedaço de argila e cheirou-o
algumas vezes. Finalmente, olhando para seus intrigados
amigos, anunciou com amargura: - Asfalto.
Minhas suspeitas Foram confirmadas. O intruso ou intrusos,
depois de arrombar a porta, jogaram uma porção daquela
substância betuminosa provavelmente o chamado betume da
Judéia -, ateando-Lhe fogo.
Quanto à autoria do atentado, estava bem clara. O aviso na
porta de entrada, com minha bolsinha, providencialmente
desaparecida na casa do saduceu, sinalizava com precisão na
direção do vingativo sacerdote.
Ninguém, no entanto, se manifestou. Tiago, mais abatido
ainda que Jacó e eu, dispôs-se a enfrentar uma situação
delicada.
Sua mulher, Esta, com eficiência e autodomínio admiráveis,
ocupou-se de Míriam. Até aquele momento, nenhum dos
presentes, nem mesmo Esta, se havia dado conta de suas
queimaduras. As chamas, pelo que pude observar, haviam
somente lesado a camada superficial da epiderme. As plantas
dos pés apresentavam queimaduras de primeiro grau (0,5, de
acordo com a regra dos 9, de Walesca). Doloridas, mas sem
gravidade.
Uma vez tratadas com água fria, Esta passou a untá-las com
um ungüento oleoso que segundo as suas explicações
continha um extrato de uma planta malvácea (Althaea
officinalis), de raiz forte e amarelada, que nasce em solo rico
em salitre e que a Senhora, excelente conhecedora de medicina
natural, procurava sempre ter por perto. Não me surpreendeu,
pois já havia testemunhado essa habilidade de Maria quando
cruzamos o wadi Hamâm. A tal planta era excelente como

calmante para as membranas mucosas e como emoliente ou
relaxante de regiões inflamadas.
Quanto à Senhora, atendida a todo instante por Ruth e
Rebecca, parecia estar mais sossegada. Concluídos os primeiros
socorros em Míriam, as mulheres, depois de uma confabulação,
decidiram dar a Maria uma beberagem que apressaria a
cicatrização da ferida. Fiquei alarmado, e, levado pela
curiosidade, acompanhei a tranqüila Esta até a despensa que
ficava na cozinha-dormitório.
Colocou dois punhados de umas folhas verdes e brilhantes no
caldeirão de água que já estava fervendo no fogão. E antes que
me atrevesse a perguntar, e já suspeitando de minhas
intenções, esclareceu a dúvida que me intranqüilizava.
Estava enganado, não era o que eu pensara. Aquelas folhas
compridas e de nervuras irregulares eram de uma sanícula, outra
planta medicinal rica em saponina, tanino e alantoína, muito
abundante nos solos onde nascem carvalhos e faias.
Eu estava confuso porque, na realidade, a poção não seria
para beber, mas para ser aplicada em compressas na região
ferida, por seus efeitos anti-inflamatórios. Esta deve ter
captado minha surpresa, pois deu-me um largo sorriso. Deixou a
infusão repousar e depois aplicou as compressas no rosto de
sua sogra.
A hora havia chegado, e Tiago, aproximando-se do grupo,
disse-Lhes o que se segue: - Escutai-me todos...
Seu tom de voz, num misto de dor e raiva, não admitia
contestação.
- Por conselho de mãe Maria tomamos a decisão de deixar o
assunto de nossa permanência em Nazaré nas mãos do Pai. Ele
nos mostraria sua vontade...
A maioria dos presentes, adiantando-se às palavras de Tiago,
baixara os olhos, rendida diante da evidência. A Senhora, com a
cabeça reclinada no colo do pequeno esquilo, não quis ou não
pôde contestar. Seu filho estava coberto de razão.
- Entendo continuou ele enfaticamente que o Pai foi

bastante claro. Não devemos continuar na aldeia. O que ocorreu
aqui, esta noite, é uma viva manifestação de sua vontade...
Surpreendido diante de sua própria segurança, hesitou por
alguns instantes. Refazendo-se, deixou-se levar pelo que lhe
ditava seu coração e o senso comum.
- Não convém, não é bom nem para nós nem para a obra
iniciada por nosso Irmão, que permaneçamos em Nazaré.
Pessoalmente assumo esta responsabilidade e vos peço que
compreendais e me ajudeis.
Dirigindo o olhar para o teto imitando o gesto de sua mãe e
o corajoso pronunciamento da noite anterior reforçou suas
palavras: - Neste difícil momento creio interpretar, e interpretar
bem, o desejo de nosso Pai Celestial.
Pouco mais pôde acrescentar. Evidentemente, a situação
havia entrado numa fase insustentável e irreversível que
aconselhava ceder com astúcia e inteligência. Se resistisse, a
hostilidade do chefe do conselho local e dos inimigos do Mestre
poderia desencadear males ainda maiores.
De comum acordo, Tiago e Jacó traçaram um plano que
deveria ser executado sem demora: ao amanhecer, reunidas as
provisões e pertences imprescindíveis, todos à exceção de
Míriam, Esta, Rebecca, o pedreiro e os filhos de ambos os
casais partiriam para Caná. O grupo chefiado por Jacó iria na
direção de Séforis, onde permaneceria sob a proteção da casa
de Rebecca.
Não houve oposição. O Zebedeu continuou encerrado em seu
mutismo e Davi, por sua vez, expressou sua gratidão diante da
bondade e generosidade de família, que Lhe permitia seguir
junto e compartilhar a mesma sorte. Da parte deste explorador,
devo dizer que a prudente decisão tranqüilizou-me. Em boa
medida pelo fato de não ter de viajar até o lago só com o
recalcitrante João Zebedeu.
E com a aurora às 05h30 -, a primeira das expedições,
apressada pelo inquieto Jacó, desapareceria rumo ao cume do
Nebi, encurtando assim o caminho para a vizinha Séforis.

Ninguém se lamentou, ninguém disse uma palavra mais alta.
Ninguém se despediu. E o segundo grupo, depois de trancar
as portas da casa, a um sinal de Tiago, pôs-se a caminho, às
pressas, pela solitária rua norte, cheia de lama, na direção
das portas de Nazaré.
Como Maria estivesse impossibilitada de caminhar com
segurança e presteza, seus filhos lhe prepararam uma padiola.
Ainda que não fosse perfeita, a Senhora pôde viajar com
relativa comodidade. Os homens, salvo o Zebedeu, nos
revezamos no transporte das cargas, colocadas numa espécie de
maca. Por um tempo até alcançarmos o que batizei como a
cota 511 -, a responsabilidade pelo transporte coube a Tiago,
secundado por Davi. Ambos levavam às costas mochilas de couro
com as viandas e as roupas que haviam sido selecionadas pelas
mulheres. Ruth, assim como João, fora liberada de toda carga e
só trazia presa ao cinto uma pequena sacola com uma jarrinha
de vidro com o extrato de sanícula, junto com uma providencial
reserva de lenços de linho.
E este explorador, como se tratasse de uma maldição, voltou
a responsabilizar-se pelo incômodo porém necessário odre de
água e vinagre. O volume, de uns vinte log (por volta de quinze
litros), era suficiente para abastecer os seis viajantes durante
as quase duas horas que, em princípio, nos separavam de Caná.
O caminho por entre os casebres, agora pintalgados de cor
laranja pelo amanhecer, surpreendeu-me. O familiar e monótono
ruído da moenda do grão já escapava pelas portas
entreabertas.
Todavia, não sei se por medo ou indiferença, nenhum dos
vizinhos saiu ao nosso encontro. Ninguém teve coragem de
aparecer. Ainda que eu não tenha visto um único rosto na
penumbra das janelas, sabia que a precipitada saída de Maria
e os seus estava sendo vista. E insisto: é injusto que os
evangelistas tenham silenciado sobre esse penoso
acontecimento. Por que não mencionaram a destruição da
carpintaria do Mestre? Por que não falaram daquela letal
oposição de boa parte de Nazaré à família do Ressuscitado? E

instintivamente pus minha atenção em João Zebedeu.
Caminhava com lentidão, mas notavelmente recuperado de seu
recente trauma. Como creio haver narrado em outras
oportunidades, a incorrigível vaidade desse íntimo de Jesus o
acompanharia pelo resto de sua vida. E mais, apostaria o pouco
tempo que me resta de vida, como essa lamentável
desinformação teve muito que ver com esse afã de ocultar as
passagens nas quais sua imagem não aparecia exatamente
digna. Mas esse vício não foi exclusivo do filho do trovão.
Mais adiante teria eu ocasião de presenciar outros
acontecimentos de maior e menor importância -, que também
não seriam relatados ou foram intencionalmente deformados
pelos próprios apóstolos.(1) Ao passarmos pela fonte, ao ver
um madrugador que, cercado de matronas, se apressava a
encher-lhes os cântaros de água, Ruth cobriu a cabeça com um
manto negro que Lhe ocultava o rosto. E apertou o passo até
chegar atrás da Senhora.
Risadinhas maldosas e mal contidas enfureceram o Zebedeu,
que as desafiou com o olhar. Tiago, porém, com um simples
gesto de cabeça, forçou-os a recomeçar a marcha.
Pouco a pouco a exuberante várzea entre rosadas colinas foi
ficando para trás. O céu, azul e cristalino, pressagiava uma
jornada sem sobressaltos.
Meus olhos e meu coração despediram-se com pesar do altivo
palmeiral que punha ordem no poeirento caminho de acesso à
aldeia.
Quando para ali regressaria? Impossível sabê-lo naquele
doloroso momento. E deixando dominar-me por uma singular
emoção às vezes suave e nostálgica, outras vezes rancorosa -,
detive-me por alguns instantes para me apropriar da imagem
daquela Nazaré branca, arisca e incrustada nos contrafortes do
Nebi Sain. Uma fumaça virgem e indefesa fugia assim como
nós - da aldeia, formando finas e fugidias colunas sobre os
terraços e despedindo-se de nós à sua maneira. E ao longe,
além dos vinhedos e oliveiras, alheios a tudo, os bosques de
nogueiras e alfarrobeiras coloriam o horizonte com um severo

tom de verde. Prometi a mim mesmo que contaria tudo quanto
havia vivido e conhecido entre aqueles ingratos e indiferentes
notzrim (nazarenos).
Depois de vencido o primeiro aclive, ao conquistar a cota
511 , o grupo descansou. O Zebedeu alcançou os que levavam
a padiola e, por breves instantes, vi-os conversar. Pareciam
referir-se ao abrupto caminho que devia conduzir-nos pelos
próximos quatro quilômetros e que desembocava no desfiladeiro
dos leprosos. E a lembrança do incidente em Ein Mahil
intranqüilizou-me. ;, Segundo o combinado, substituí o criado no
transporte da Senhora. Acomodei a vara de Moisés junto a
Maria e, refeitas as forças, atacamos o segundo lance. Ainda
que o peso não fosse excessivo, o íngreme terreno em
permanente e pronunciado declive -, unido à espessa e fechada
vegetação, converteram a caminhada numa tortura.
Maria, sem queixar-se, teve de suportar alguns solavancos por
conta da trilha pedregosa, mas também como conseqüência na
maioria dos casos de minha proverbial tontice.
A uma hora, mais ou menos, de caminhadas, arquejantes e
suados, entramos em uma garganta de altas encostas, hoje
conhecida por Ein Mahil e que então constituía o forçoso refúgio
dos leprosos da região.
E como acontecera no caminho de ida, ao olhar o desfiladeiro
homens e mulheres tiveram um estremecimento. Ninguém falou,
mas os olhares esquadrinharam desconfiados os quatrocentos
ou quinhentos metros que nos separavam do extremo do
silencioso barranco. Tiago, em voz baixa, preveniu-nos. Era
necessário atravessá-lo em sigilo e o mais rápido possível.
Nunca cheguei a me acostumar àquele ancestral e irracional
terror que demonstram as pessoas de todas as classes e
condições sociais em relação a uns desafortunados que, como
aqueles, sobreviviam em cavernas, minas abandonadas e
distantes bosques ou pântanos. Exatamente por isso, ao
comprovar que o Mestre se havia aproximado desses infelizes
inúmeras vezes, minha admiração pelo Rabi da Galiléia não
teve limites. Mas destes emocionantes acontecimentos me

ocuparei no momento certo.
Levantei os olhos na direção do agreste e das escarpas
verticais, mas só o que me chamou a atenção foi a quietude das
moitas de ezov (o hissopo sírio) e os esparsos terebintos. As
entradas das galerias habituais refúgios desses impuros -
também me pareciam tranqüilas.
A um sinal de Tiago, o medroso grupo iniciou a marcha
acelerada por aquela acidentada e estreita passagem. O
Zebedeu, enrolado em sua capa, provavelmente com mais
ansiedade e medo que os outros, tomou a dianteira sem olhar
para trás.
Davi, segurando firmemente a mão de Ruth, manteve-se à
nossa esquerda, no mesmo e difícil ritmo dos que levavam a
carga.
De repente, as arestas calcárias que sulcavam o fundo da
garganta transformaram-se em obstáculo.
E aconteceu o que parecia inevitável.
Em pleno esforço, com a respiração descompassada, Tiago
pisou em falso e caiu sobre os traiçoeiros sulcos. E macas,
mulher e grego nesta ordem caíram em cascata.
Preocupados, o criado e o pequeno esquilo retrocederam
imediatamente, na tentativa de ajudá-los. Por sorte, Tiago se
recuperou na mesma velocidade em que caíra. Em princípio, tudo
não passara de um grande susto. Examinou o estado de sua
mãe e perguntou-me como me sentia. Empunhei de novo as
extremidades das varas e respondi que me sentia muito bem
disposto.
Retomamos a caminhada, ao mesmo tempo em que
escutávamos às nossas costas os primeiros e indignados ame
(impuros) e os impactos de uma súbita saraivada de pedras.
Minutos depois, com o coração na boca e um vergonhoso medo
reconheço-o que maculou minha suposta dignidade,
deixamos para trás a garganta rochosa, refugiando-nos entre os
muitos terebintos centenários, com suas cascas aromáticas e
reluzentes.

Mas os dissabores do grupo não haviam terminado.
Sinceramente, não sei o que foi pior: se a marcha acelerada
pelo desfiladeiro ou a conduta do impaciente e irritado
Zebedeu. Num primeiro momento, não me havia dado conta da
atitude agressiva do discípulo. Para mim era algo habitual.
E enquanto Ruth assistia a Senhora, aproveitando o descanso
para aplicar-Lhe novas compressas, João, premido pela sede,
não teve remédio senão dirigir-se a mim, pedindo o odre de
água com um timbre acre que a julgar pelas expressões não
agradou a ninguém.
Atendi à sua solicitação, mas, ao soltar o odre que eu trazia
dependurado às costas, observei desolado que a quase
totalidade do líquido havia desaparecido.
Examinei o fecho de madeira e vi que não estava fechado.
Deduzi que o fecho pudesse ter-se soltado em algum dos
acidentes, na descida para o Ein Mahil.
Tiago e Davi, atentos aos meus movimentos, souberam reagir
com cavaLheirismo, tratando de me sossegar, argumentando que
aquilo poderia ocorrer a qualquer um. Além do mais, nos
achávamos a um quilômetro ou menos do caudaloso manancial
que abastecia Caná. Mas, contrariado por tão imperdoável
estupidez, apressei-me a cortar o fio de água que escapava
diante de meus atônitos olhos.
- Maldito idólatra!
Não consegui nem tocar na boca do velho odre de pele de
cabra. O Zebedeu, num acesso de cólera, arrancou-o de minhas
mãos, destilando o veneno que havia acumulado.
- Somente trouxeste a desgraça para esta família! Tiago
apressou-se a intervir mas, apesar de suas sensatas e
pacificadoras palavras, o ódio do discípulo me desafiava como
uma víbora. E assistimos , - eu mais do que os outros a um
ataque brutal e desarrazoado. João, fora de si, com as artérias
do pescoço infladas e chispas de violência saindo- Lhe pelos
olhos, uma vez por outra se erguia nas pontas dos pés e, por
sobre os ombros de Tiago, gritava toda a sorte de impropérios

contra este pagão, filho da abominação.
O chefe da família fazia desesperados esforços para contê-lo,
agarrando com ímpeto aquele feixe de nervos. Mas o Zebedeu,
disposto a falar o que lhe estava atravessado na garganta, e
tomando meu forçoso silêncio como sinal de desprezo,
arrematou suas injúrias com uma pergunta que me pegou
desprevenido e anuviou ainda mais o semblante das
envergonhadas e desconcertadas testemunhas.
- Será que acreditas que a adaga e tua suja bolsa na porta
não são a prova do que afirmo? Tiago tentou silenciá-lo
tapando-Lhe a boca com uma das mãos, mas foi inútil. O
Zebedeu, agitando-se como um bambu, conseguiu safar-se e
concluir suas acusações:
- Idolatria! Acusam-nos de idolatria por tua causa! Abodazara.
E a lembrança daqueles dizeres me confundiu de vez. Do
que estava falando? Tiago, visivelmente entediado, tentou pôr
um fim naquela tão pouco edificante cena, fazendo o possível e
o impossível. Sem mais uma palavra, desferiu uma tremenda
cabeçada na testa do apoplético discípulo. E o neurótico
desabou, inconsciente.
Durante alguns minutos compridíssimos para mim -, o
embaraçoso silêncio só foi quebrado pelo distante canto das
andorinhas e o eco dos enfurecidos gritos em meu cérebro. Que
será que ele quis dizer? Em seus ataques, naquele emaranhado
de insultos e acusações desarrazoadas, acreditei detectar algo
muito concreto e preciso. Que tinha que ver este grego pagão,
claro com a acusação de idolatria? Que estavam me
escondendo? Por que minha bolsa, com efeito, fazia parte do
aviso? Comecei a suspeitar de que algo havia escapado de
meu controle.
As vertiginosas reflexões cessaram diante da proximidade de
um Tiago visivelmente alterado. Não o culpo. A inesperada
explosão de Zebedeu foi a gota d'água para sua paciência.
Observou-me nervoso. Esquivou-se ao meu olhar inquisidor e
desculpou-se secamente em nome do discípulo e da família.

Tentei esclarecer a grave acusação, mas o galileu, sem
esconder o enfado que Lhe produzia aquela triste história, saiuse
com um esquece tudo.
Dando meia-volta, apanhou o odre e esvaziou-o com violência
sobre o rosto do descomposto João. O aturdido discípulo,
voltando a si com dificuldade, lançou um mudo olhar de
reprovação aos que o rodeavam, afastando-se pelo caminho que
conduzia a Caná.
Não houve perguntas nem comentários. Davi ocupou meu
posto e a silenciosa comitiva reencetou a marcha. E aquele
quilômetro de subida até o depósito de água que abastecia a
povoação de Meir, o rofé das rosas, foi um dos trechos mais
penosos para quem isto escreve, na viagem de retorno ao yam.
Penoso porque minha mente não deixou de lutar, procurando em
vão a explicação para as acusações do Zebedeu.
Idolatria! Acusam-nos de idólatras por tua causa! Por mais
que buscasse na memória não consegui resolver o mistério.
Durante nosso intenso treinamento havíamos tido acesso a
uma vasta documentação sobre o tratamento da idolatria por
parte da legislação judaica e as relações entre pagãos e
israelitas.
Nada do que me lembrava parecia encaixar-se nas graves
insinuações. Eu, com certeza, em meu papel de grego da
Tessalônica, era considerado como gentio. Ainda que nem
sempre tivesse sido tratado com cortesia por aquele povo, a
verdade é que os incidentes originados da minha qualidade de
não-judeu foram poucos. Como em outros aspectos do
cotidiano, as complicadas normas religiosas eram uma coisa e a
prática, especialmente entre as pessoas simples e de bom
senso, outra muito diferente. Por mais que se esforçassem os
doutores da Lei, o emaranhado de disposições rabínicas
acabava tão difícil de lembrar como de cumprir.(2)
Outra questão era que alguém por vingança ou por
exagerado zelo religioso apresentasse uma denúncia por nãocumprimento
de algumas dessas sutis e mesquinhas disposições
legais. Só a disposição que trata de abodazara ( sobre

idolatria) reúne cinqüenta normas e proibições.
Vingança? Isso sim encaixava-se com o que ocorrera em
Nazaré e com o perfil do saduceu. Mas, admitindo a hipótese,
em que podia basear-se? Qual fora o meu erro? Em que pude
comprometer a família? Acusam-nos de idolatria por tua causa!
Por minha causa? Que me lembrasse, durante minha estada na
aldeia não acontecera nenhuma compra ou venda entre a família
e quem isto escreve. Tampouco era portador de ídolos ou havia
incitado alguém a cultos idólatras. Sim, fiquei a sós com os
membros do clã. Percorri também o povoado em companhia dos
filhos da Senhora. Mas, sinceramente, fatos como aqueles eram
freqüentes e normais. Ainda mais na liberal Galiléia. O próprio
sacerdote conversou comigo em várias ocasiões em particular.
Não, aquilo estava muito complicado. Nenhum tribunal teria
acolhido uma denúncia como aquela.
De repente, me veio à lembrança a cura sem transcendência
efetuada em Maria. Segundo o rigoroso código religioso,
quando o médico não recebia honorários, isso sim podia
qualificar-se como uma violação das normas e, portanto, como
um pecado de idolatria. Recusei essa possibilidade. O simples
exame da ferida e a posterior limpeza somente haviam sido
presenciados pelos filhos, o criado e o Zebedeu. Nenhum deles
havia feito qualquer denúncia. Ou sim? Quem sabe o vingativo
discípulo? Impossível tratei de tranqüilizar-me -, João
permanecera sob vigilância o tempo todo.
Fui incapaz de encontrar um argumento que justificasse a
acusação de Zebedeu. A atitude esquiva de Tiago, no entanto,
parecia dar-Lhe razão. Tinha de interrogá-los, tinha de livrar-me
daquela mortificante dúvida.
Mergulhado nessas reflexões vi-me de repente na minguada
planície localizada na cota 532, na qual reinava, como grande
protagonista, aquele salto d'água de cinco metros. O grupo
parou na frente do tanque semicircular para saciar a sede e
refrescar-se. E eu fiz mais. Soltei a bandana que segurava o
denário de prata junto de minha testa e examinei o hematoma.
Havia involuído consideravelmente. E depois de um rápido

asseio não desejando chocar a Senhora recoloquei a moeda
na fronte, dando um nó no lenço de linho.
Tiago, mais descontraído, observava de soslaio a operação e
chegou a esboçar um sorriso, divertido diante do perfil então
ridículo daquele grego. Estive a ponto de abordá-lo,
aproveitando-me da favorável conjuntura. Mas a aparição do
funcionário responsável pelo serviço de água de Cariá conteveme.
Perguntou-nos se desejávamos incenso, e Tiago, escudandose
no estado de sua mãe, recusou-o. Dessa vez não haveria
cerimônia nem oração no altar dos mirrados terebintos.
E o guardião, contrariado pela perda do aluguel do oratório
com o incenso e a candeia, afastou-se na direção da cabana de
troncos de onde viera, resmungando entre dentes algo sobre
aqueles miseráveis e irreverentes notzrim, incapazes de
respeitar a tradição de seus superiores.
Davi e Ruth acomodaram-se junto ao tanque, desfrutando a
momentânea paz. Ninguém deu por falta do Zebedeu. Suponho
que deram por certo que ele havia seguido para o casarão do
velho rofé de Caná.
Tiago tirou de sua mochila algumas provisões e repartiu-as:
grãos de trigo torrados, bolos de flor de farinha amassada com
azeite e uma pitada de hortelã-pimenta, cebolas cruas e um
delicioso e aromático mel de alecrim. E o grupo, faminto, deu
boa conta do frugal desjejum.
Aquele era o momento. As tensões haviam relaxado e,
decidido, perguntei sobre a incógnita que me consumia. No
entanto, apesar da delicada prudência e dos encarecidos rogos,
voltei a esbarrar no silêncio.
O pequeno esquilo, mais disposta, pediu licença ao irmão
com um olhar. Mas Tiago, com uma quase imperceptível negativa
de cabeça, recusou a solicitação e a boa intenção da mulher.
A Senhora, por sua vez, limitou-se a baixar a cabeça,
concordando com os demais.
A impenetrável atitude, no fundo, ratificaria minhas suspeitas.
Algo grave havia ocorrido em Nazaré. E, vencido, resignei-me

esperar uma nova oportunidade.
Mas o criado, silenciosa testemunha de minha inútil tentativa,
comovido talvez pelo desalento que endurecia meu semblante,
subitamente mobilizou-se. Observei seus movimentos por pura
inércia. Uma vez em pé, procurando não ser visto pela família,
fez um gesto convidando-me a me juntar a ele. Vi-o afastar-se
na direção do verde luminoso que amuralhava a clareira. Deixei
que se embrenhasse no bosque de terebintos e, ao comprovar
que se dispunha a urinar, segui seus passos e seu exemplo.
E durante esse prosaico episódio fui informado das chaves
daquele enigma.
A verdade, uma vez mais, resultou em algo mais simples do
que eu imaginara.
Segundo meu companheiro, tudo começou por causa de uma
indiscrição da própria Maria. Ao entrar em Nazaré num desejo
humano de compartiLhar as experiências na acidentada viagem
de volta do yam -, a Senhora, entre outras coisas, relatou aos
vizinhos o difícil e emocionante parto que assistira por ocasião
do encontro com a caravana da Mesopotâmia.(3) E, levada pela
alegria e pela inocência, deu-Lhes todos os detalhes. E quem
sabe por descuido ou por sua própria repulsa pela mentira,
narrou os fatos tal e qual aconteceram. Segundo erro. Ao
explicar como se vira forçada a substituir o paralisado Jasão,
não se deu conta de que, no fim, desencadearia a raiva do
Zebedeu: até aí, para os discípulos que nos acompanhavam
naquela ocasião (João e Natanael), o único artífice do feliz
parto era este grego da Tessalônica.
Maria, generosa e prudentemente, soube guardar silêncio
sobre minha aparente covardia. Quando João Zebedeu soube
do fato, tendo ainda fresco em sua memória o incidente com a
cerastes (a serpente que atacou Natanael), sua cólera explodiu.
E a narração de Maria como era de prever terminou por
chegar aos ouvidos do saduceu. Mas, sinceramente, não
chegava a compreender. Aonde estava o pecado? - Muito
simples esclareceu Davi -. A Lei é inflexível: uma israelita não
deve assistir o parto de uma gentia porque dessa forma

participa do nascimento de um novo idólatra.
Confusão e indignação caminharam juntas. Confusão porque
semelhante norma não constava de minhas informações. (Ao
voltar ao módulo e consultar o banco de dados do Papai Noel,
nosso computador, observamos com relação que de fato a tal
disposição não constava do manuscrito de Munie uma das
mais importantes fontes sobre idolatria e tampouco nos
preceitos de Nápoles. Resumindo, ignorávamos aquele cruel
dispositivo religioso-ideológico de acordo com as explicações
do criado -, os falsos e hipócritas rabinos autorizavam o
contrário, ou seja, a ajuda de uma gentia no parto de uma
israelita.
Indignação porque, uma vez mais, o perigoso sacerdote
amparando-se em um preceito que só era respeitado pelos
fanáticos havia buscado única e exclusivamente sua satisFação
pessoal. Em outras palavras: sua vingança. E o pior é que se
aquela acusação se alastrasse, a Senhora conforme o
estabelecido na Lei mosaica podia ser castigada com a pena
de morte. Cruamente, com a pena por lapidação.(4) Aí sim
compreendi as razões íntimas que levaram Tiago a abandonar a
aldeia às pressas. E também percebi com nitidez o porquê do
feroz ataque do Zebedeu e a verdadeira dimensão de suas
palavras: Idolatria! Acusam-nos de idolatria por tua causa!. E
até certo ponto estava coberto de razão. O discípulo associou o
pecado da Senhora com minha negativa ao auxiliar a beduína
de Murashu, culpando-me definitivamente pelo desastroso
acontecimento.
Estranho Destino! Ao ter-me negado a levar adiante o parto
acabei por provocar a intervenção de Maria, caindo eu também
no delito de idolatria na condição de indutor.
Estranho Destino mesmo! O rígido código ético do Cavalo de
Tróia, como já citei, proibia aos expedicionários qualquer ação
que pudesse alterar o curso normal dos acontecimentos.
No entanto, essa mesma passividade paradoxalmente havia
influído no futuro histórico. Um cruel dilema que obviamente só
poderíamos resolver de uma maneira: suspendendo a missão e

regressando ao nosso tempo.
E outra vez o estranho Destino!
Estávamos autorizados a cancelar a Operação Cavalo de Tróia
em situações muito específicas. Devíamos retornar no hipotético
caso de alguma doença ou acidente grave dos pilotos, ou
diante de uma emergência insolúvel nos dispositivos de
controle, propulsão ou abastecimento energético do berço.
Aquele problema, por outro lado, nem sequer fora cogitado
pelos responsáveis pela missão.
Cientistas e técnicos se deixaram levar pelo entusiasmo
diante da fascinante oportunidade, fechando os olhos para o
mais importante: que ignorávamos tudo sobre as possíveis
conseqüências de uma viagem tão especial.
O certo é que, com base nesse incidente, Eliseu e eu
tomamos plena consciência de nossa delicadíssima presença
naquele agora. E ainda que tomássemos todas as precauções
para manter-nos em um plano digamos - neutro, devo
confessar que nem sempre nos saímos tão bem.
Verdadeiramente os caminhos de Deus são inescrutáveis.
Desolado, permaneci nos limites do bosque, enquanto o
providencial criado voltava para junto do grupo. E uma
demolidora tristeza e uma funda gratidão invadiram-me por
igual. Aquela gente boa que se dispunha a reencetar a
caminhada consciente da gravidade e do irreversível problema
não havia querido fazer-me partícipe de sua angústia,
livrando-me assim de uma preocupação contra a qual, claro,
pouco poderia fazer.
E Deus é testemunha. Ali mesmo, no amargo silêncio de meu
coração, agradeci-Lhes. De repente, a tristeza e a gratidão
vieram somar-se a um terceiro sentimento. Não sei exatamente
como surgiu. Mas fez-se irrefreável. Não me sentia com forças
para seguir viagem na companhia de Tiago e os seus. Não
podia suportar a idéia de caminhar junto com eles e simular que
nada sabia sobre o ocorrido. Qualquer olhar, silêncio ou gesto
me teria traído. Além do mais, como agir com naturalidade no
curso dos vinte e cinco quilômetros que nos separavam do lago,

com um João Zebedeu disposto a massacrar-me à menor
oportunidade? A última coisa que eu queria e precisava era um
novo embate com o discípulo.
Estava decidido: prosseguiria só. E esse passo seguinte
tampouco era fácil. Que poderia eu dizer-Lhes? A intenção de
Tiago era descansar um pouco na casa de Meir, seguir viagem
nessa mesma manhã para o yam e chegar à aldeia de Saidan
antes do pôr-do-sol. Mas que desculpa Lhes daria, já que
seguíamos todos na mesma direção? Não tinha muito sentido
dizer que pretendia ganhar alguns minutos, com isso escusandome
de cumprir a obrigação de entrar na casa do bondoso rofé
das rosas. Sinceramente, senti-me desarmado. E uma vez mais
lembrando-me do estilo do Mestre entreguei o caso nas mãos
do Destino. Por essa razão por que esconder - eu continuava
refugiando-me na palavra Destino. Mais adiante, aprenderia a
chamar as coisas pelo seu nome...
E o Destino tornou a compadecer-se deste indeciso
explorador.
O perspicaz Davi, responsabilizando-se por meu estado de
ânimo, substituiu-me no transporte das padiolas com a carga.
E os viajantes, carregando os odres, embrenharam-se no
arvoredo incrustado na encosta do terreno, para, mais abaixo,
encontrar os altos carvalhos do Tabor.
Depois de alguns instantes de muitas dúvidas optei por
segui-los. Se minhas referências não estivessem erradas,
estávamos mais ou menos a dois quilômetros de Caná. Algo me
viria à mente. A decisão estava tomada. Não voltaria atrás,
buscaria uma forma de me despedir e, circundando a cidade,
entraria no caminho que conduzia à estrada principal. Mas
pouco antes da bifurcação dos dois caminhos, o Destino,(5) com
efeito, tomou as rédeas.
Ruth, intrigada pela inesperada troca de turnos na padiola e
pelo meu não menos estranho afastamento, lançou-me vários
olhares desconfiados. Finalmente, deixando-se levar por um de
seus impulsos, deteve-se para me esperar. O grupo das macas,
com a atenção presa no difícil terreno, não se deu conta de que

ela se havia afastado.
O pequeno esquilo acolheu-me com um doce sorriso e,
apontando para a bandagem em minha fronte, perguntou sobre
minha saúde. Foi uma maneira, como outra qualquer, de quebrar
o constrangedor silêncio.
Observei-a agradecido e, escondendo minha inquietude, falei
sobre a primeira coisa que me veio à mente. Durante alguns
minutos, a paciente jovem escutou-me discorrer sobre a
maravilhosa natureza que nos rodeava. Nunca me distingui pelo
conhecimento da complexa personalidade feminina. E naquela
oportunidade tampouco fui capaz de detectar as verdadeiras
intenções de minha acompanhante. E como um tolo continuei
falando e falando sobre as olorosas copas de um verde
carregado, das alfarrobeiras e dos carvalhos, dos escarpados
esplêndidos que íamos deixando para trás, de ambos os lados,
e das escandalosas pegas ou assustadiças perdizes que voavam
à nossa passagem.
Até que, esgotado o repertório, a jovem, tomando-me
delicadamente pelo braço, atravessou-me com seus radiantes
olhos verdes, e atacou sem rodeios o problema que me
consumia.
Que instinto sutil o das mulheres!
Gratamente surpreendido, não soube nem quis mentir. E
abrindo meu coração expressei o que sabia, contando-Lhe
também até que ponto me sentia desolado e agradecido. Ruth
não me pareceu contrariada por aquela confissão. Ao contrário,
seu olhar tornou-se mais doce e ela limitou-se a pressionar meu
braço com seus compridos e finos dedos. E aquele fervor foi
mútuo.
Durante algum tempo andamos em silêncio. Um silêncio cálido,
transparente, afetuoso, discretamente acompanhado pelo
murmúrio das águas do canal a céu aberto que seguia conosco
por entre a vegetação cerrada e os profundos vales cobertos de
bosques.
De repente, Caná surgiu diante de nossos olhos.

A radiante luz da manhã transformou-a numa fita branca,
amarrada ao olival. Ruth suspirou aliviada.
E aproveitando a breve pausa, atrevi-me a lhe expor minhas
intenções de prosseguir a sós. Curioso, tudo foi tão natural e
tranqüilo que não precisei lançar mão de desculpas. Seu olhar
transparente envolveu-me com amor, em sinal de compreensão e
aceitação. Prometendo que contaria tudo o que faláramos para
sua mãe e seu irmão, abraçou-me emocionada e acrescentou
algo que me deixou perplexo:
- Aquele grego, aquele Jasão que conheci há anos nos amou e
nós a ele...
Mas tu és muito mais galante.
Como já disse, teríamos de esperar o evento do terceiro
salto para desvendar aquele repetitivo mistério. Por que
alguns dos personagens desta aventura faziam constantes
alusões a esse outro Jasão, que asseguravam ter conhecido? E
alvoroçada afastou-se rapidamente, embrenhando-se no olival
que flanqueava a Parte oriental de Caná. Com o espírito
reconfortado pela providencial conversa, dispus-me a terminar a
última fase daquela inesquecível viagem.
De acordo com o estabelecido, apressei-me a deixar para trás
os frondosos hortos de romã, que distinguiam e favoreciam a
laboriosa Caná, entrando no caminho cheio de altos e baixos
que unia a cidade à estrada que me levaria ao yam. Desta vez,
ao contrário do que ocorrera na viagem de ida, na qual me vi
obrigado a carregar o debilitado Natanael, a descida entre os
muitos e regulares canyons foi ráPida e fácil. E os dois
quilômetros e quatrocentos metros que me separavam do desvio
foram cobertos em mais ou menos vinte minutos. Se a sorte me
acompanhasse, os vinte e dois quilômetros restantes até o lugar
do assentamento do módulo podiam ser feitos em umas três
horas. Talvez menos se minhas forças respondessem e se eu
fosse capaz de desenvolver a velocidade de um quilômetro por
dez ou doze minutos. As recentes experiências, todavia, me
fizeram reformular, Pois esse tipo de caminhada estava quase
sempre sujeito a um sem-número de fatores imprevisíveis.

Consultei o sol. Estava quase na hora terça (9 da manhã). E
ao pisar o terreno enegrecido e descarnado de terra prensada
da estrada que unia o mar do Kennereth a Megiddo e à planície
de Esdrelon, a oeste de Israel, surgiu o primeiro contratempo.
Melhor dizendo, o primeiro aviso.
Diante de mim, na direção de Tiran, apareceu um casal de
esforçados camponeses tocando uma fila de jumentos que
carregavam feixes de linho recém-colhidos, com as flores azulceleste
balançando ao nervoso trote dos animais. E ao cruzarem
com aquele indivíduo engrouviado, ataviado com um lenço
avermelhado e tão chamativo sobre a testa, responderam ao
meu respeitoso Schalom alekh hem (a paz esteja convosco) e
depois explodiram numa estrondosa gargalhada. Voltei-me
intrigado e os dois dobravam-se de rir. Ao perceberem meu
espanto, mostraram-me o trapo vermelho dependurado entre os
olhos de um dos animais, comparando-o, com uma exagerada
gesticulação, ao lenÇo que caía sobre minhas costas e que
estava manchado do sangue da Senhora. Pareceu-me entender o
porquê do alvoroço e das troças dos felah. Como já havia
observado entre os supersticiosos judeus, era raro o viajante
que empreendia uma jornada por mais curta que fosse sem
colocar um daqueles trapos grenás ou uma cauda de raposa
sobre a testa de sua cavalgadura. Não fazê-lo poderia significar
um acidente na certa. E imaginei que aquela fora a primeira vez
que viam um lenço vermelho não na testa da cavalgadura, que
era o correto, mas sim na do viajante.
Então resolvi desamarrar o pano, tirar o denário e guardar os
dois na bolsa; e foi aí que me dei conta de que não tivera a
delicadeza de devolver a moeda a Ruth. Aquele descuido
aborreceu-me, mas esse sentimento logo se viu substituído por
outra preocupação que trazia desde Nazaré e que, no torvelinho
daquela sucessão de acontecimentos que já relatei, mantinhase
em segundo plano. Durante um bom trecho da viagem
aumentou de tamanho e passou a martelar-me sem piedade.
A situação não podia ser mais crítica. O furto do conteúdo da
bolsinha nos havia deixado sem dinheiro. Os cento e trinta e um

denários de prata eram a última reserva. Certamente, os
responsáveis pela Operação nos entregaram uma soma que
correspondia às necessidades dos quarenta e cinco dias de que
constava aquele segundo salto no tempo. (6) O que ninguém
previu foi a possibilidade de assaltos e roubos.
A questão é que, com essa lamentável perda, as coisas se
haviam precipitado e nos encontrávamos diante de outro
espinhoso problema: como completar o resto da fase oficial?
09H30.
Absorto em meus pensamentos, passei ao largo do primeiro
dos desvios, o que conduzia à pequena aldeia de Tiran. Alguns
aldeões, geralmente mulheres acompanhadas dos filhos,
apregoavam cantando os produtos da terra. Forcei a marcha.
Aqueles dois quilômetros e meio foram feitos em menos de
meia hora.
À direita e à esquerda, grupos de felah rompiam a monotonia
do dourado e ondulado horizonte, à espera da ceifa da cevada.
A colheita, em pleno apogeu, reunia nos campos dezenas de
famílias que se animavam entoando cânticos monótonos. E entre
carroças e asnos, um bando de crianças, alegre e indomável,
corria sem cessar, para cima e para baixo, espantando com seus
gritos e palmas os pássaros que voavam em nuvens.
A fase oficial?
A bem da verdade, era o que menos me preocupava. Minha
obsessão naquele momento encontrava-se no terceiro salto.
Esse sim constituía um gravíssimo problema. Como
empreender semelhante aventura sem um mísero asse? Eliseu e
eu já o havíamos discutido, e estávamos de acordo: seguir toda
a vida pública do Mestre estimada em uns quatro anos
obrigava- nos a contar, entre outros importantes elementos, com
recursos monetários de certo peso que obviamente não
tínhamos. Ainda que Eliseu, sagaz como ele só, houvesse
prometido solucionar, as perspectivas eram ínfimas.
Como obter os fundos necessários para subsistir? Como
enfrentar as inumeráveis contingências que seguramente

viríamos a encontrar? Trabalhar? Também descartamos essa
idéia. Todavia, a necessidade de permanecer diariamente junto
ao Rabi da Galiléia praticamente minuto a minuto tornava
tal possibilidade algo utópico e inexeqüível. Meu irmão sugeriu
outra fórmula que a princípio pareceu-me absurda: por que não
recorrer ao imenso potencial dos dispositivos técnicos para
amealharmos uma boa reserva? Como disse, num primeiro
momento não prestei muita atenção à sugestão. Ainda que o
manual de instruções não fizesse nenhuma alusão a semelhante
proposta, sinceramente não me pareceu correta. Mas a semente
estava plantada; e à medida que me aproximava da pousada do
caolho - de tão triste recordação -, o tema foi ganhando
terreno em meu quebrantado espírito.
10h00.
O lugar encontrava-se solitário e silencioso; não querendo
desafiar minha boa sorte, cruzei rapidamente o escuro túnel de
acesso do estabelecimento. A sede começava a tornar-se
insuportável. Mas, ansioso para chegar o quanto antes ao lago,
afastei-me na direção da referência seguinte: a encruzilhada
que indicava o pequeno vilarejo de Davi.
Os dispositivos técnicos?
Nada má a solução continuei lucubrando -, sempre e quando
soubéssemos manejá-los com discrição e sem quebrar o rígido
código do Cavalo de Tróia. Mas como materializar a idéia? A
que instrumentos referia-se meu irmão? Como empregá-los para
obter recursos? Instintivamente olhei para o cajado que em
minha mão direita marcava o ritmo da marcha forçada. Sim, ali
poderia estar uma das chaves.
O que não suspeitava naquela hora era o quão próximo me
encontrava da execução da brilhante proposição de Eliseu...
E atormentado voltei ao problema de base. Fosse como fosse,
era vital que encontrássemos de imediato uma solução. Nenhum
dos planos previstos e muito menos a sonhada aventura não
oficial do terceiro salto - poderia ser desenvolvido com um
mínimo de serenidade se não contássemos com os recursos
imprescindíveis. As viagens, em especial, não teriam prosperado

sem a necessária reserva monetária.
E que dizer de nossa própria sobrevivência? Ainda admitindo
a sempre generosa ajuda da família dos Zebedeu e dos outros
íntimos de Jesus, o custo de vida naquela região ainda que
não tão alto quanto o de Jerusalém obrigava-nos a dispor de
pelo menos um denário de prata por pessoa ao dia.(7) 11 h00.
Este esgotado explorador necessitou de uma pausa.
Aproveitei para isso a confluência com o pedregoso e estreito
caminho que descia do pico em que se assentava a aldeia de
Lavi.
Perto da bifurcação, sentada com as pernas cruzadas à beira
do caminho, encontrava-se uma velha conhecida: a vizinha que
dias antes havia sido interpelada pelo grupo de nômades de
Murashu e que por causa de sua disartria (disfunção
proveniente de alguma lesão nos músculos da fonação e que
dificulta a articulação das palavras), provocou a confusão e o
nervosismo dos beduínos. Fiz-Lhe uma saudação sorridente,
desviando logo o olhar para a mercadoria que ela estava
vendendo. Claro estava que mais cedo ou mais tarde eu teria de
repor minhas esvaídas forças. Mas o preço não me satisfez.
Lentilhas recémcolhidas, alho e cebolas crus, farinha de
cevada d'entre outras coisas. Quanto às cabaças com vinho
algumas com água de duvidosa procedência -, também as
descartei. As normas da Operação, como já referi, eram
extremamente rígidas no que tocava à alimentação e,
sobretudo, em relação à água. Pensei em comprar uma porção
de alho e cebolas. Quem sabe assim conseguiria enganar um
pouco a fome e a sede. Mas com os dedos dentro da bolsa, ao
apalpar o denário algo me fez desistir. Aquela moeda quase
sem me dar conta havia custado algo que nada tinha que ver
com o valor puramente material. Era muito mais. Era um símbolo,
uma recordação, uma manifestação do amor e da generosidade
da mãe terrena do Filho do Homem. Iria guardá-la, sem sombra
de dúvida. Seria algo assim como um talismã. Voltei atrás e abri
mão da frugal refeição. Dei-lhe um sorriso amarelo e, quando já
me dispunha a reencetar a caminhada, a mulher, percebendo

minha intenção, em um confuso e desconectado linguajar, pediume
que a ajudasse com algumas leptas. E abrindo o braço
direito, mostrou-me a criança que estava adormecida contra seu
peito. Estremeci. Tinha entre cinco e seis anos, apresentava uma
erupção generalizada, com a pele endurecida, inchada e de um
tom avermelhado muito intenso.
O rosto estava particularmente afetado. Numerosas bolhas,
cheias de pus, deformavam as maçãs do rosto, o nariz e os
lóbulos das orelhas, subindo até o couro cabeludo. A cabeça,
então, estava monstruosamente inchada.
Foi além das minhas forças. Movido por um sentimento de
piedade algo que raras vezes experimentei -, inclinei-me para
o menino. A galiléia, desconfiada, voltou a cobri-lo com a manga
de sua túnica. Como pude, expliquei-Lhe que não queria causar-
Lhe mal algum. A mulher, indecisa, acabou por ceder, sem saber
na realidade quais eram os propósitos daquele estrangeiro. A
bem da verdade, nem eu.
Uma alta febre o consumia. Examinei a pele e, pelo tato,
observei que as bordas da inflamação se salientavam,
nitidamente delimitadas, como se se tratasse de uma parede.
Aquelas intensas inflamações, as vesículas e a formação de
flegmões fizeram-me suspeitar de um quadro de erisipela. Uma
das muitas infecções bacterianas que assolavam as pessoas
daquela época.
Instintivamente parei de examiná-lo. Se fosse o que supunha,
tal infecção aguda na pele e no tecido celular subcutâneo
provocada pelo estreptococo hemolítico B do grupo Á - podia
ser transmissível pelo simples contato. Era muito possível que a
entrada do estreptococo se tivesse dado por um simples
arranhão, por uma ferida acidental no couro cabeludo ou ainda
utilizando a via de uma úlcera nos braços ou pernas.
A doença teoricamente -, se não for atacada com um
enérgico tratamento à base de antibióticos (de preferência
penicilina ou eritromicina), pode desembocar numa catástrofe
generalizada, com alterações degenerativas nas vísceras,
acidentes vasculares provocados por embolias, inflamações nas

meninges, pleura, peritônio e membranas sinoviais,
broncopneumonia e septicemia. A morte do garoto, claro, não
podia ser descartada.
Que fazer? Como agir? A norma proibia-me de interferir. Por
outro lado, privado da farmácia de campanha, pouco ou nada
tinha ao alcance das mãos. Pela enésima vez vi-me enfrentando
um dos aspectos mais doídos de nosso trabalho. Meu coração
ansiava por salvar a vida daquela inocente criatura. Meu férreo
treinamento, por outro lado, tolhia a minha boa intenção. É
curioso. Esse dramático dilema nos ajudaria a compreender
melhor as difíceis e muito semelhantes circunstâncias pelas
quais teve de passar o Mestre em muitos momentos de sua vida
de pregação. Mas não adiantemos os acontecimentos...
A mãe olhou-me com ansiedade. Claro estava para ela que
aquele indivíduo era um curador ou algo parecido. Ansiosa,
perguntou-me exatamente o que desejava ouvir: - Podes salválo?
A luta dentro de mim era tão abrasadora que a mulher, lendo
em meus olhos, passou de suplicante a consoladora.
Incrível pirueta do Destino!
Tomou minhas mãos e, aproximando-as de seus lábios, beijouas.
Explodi por dentro. E ela, com um sussurro desculpou-se: -
Sei que nossos pecados são muitos... Obrigada por ao menos
tentar.
Aquela pobre gente dominada pela tradição e as
distorcidas interpretaÇões rabínicas admitia sem discussão
que a doença era o castigo lógico para seus pecados. E
acreditava de pés juntos na maldição do colérico Yahweh, que
não perdoava o menor erro. Essas faltas negociadas por Deus
na forma de males e calamidades afetavam inclusive seus
filhos e as gerações futuras. Quanto lutou o Mestre por apagar
da mente de seus contemporâneos tão absurda e infantil idéia!
Quanto lutou para fazê-los ver que o verdadeiro Deus é, na
realidade, um Pai amoroso! De repente, revoltando-me contra
mim mesmo, numa reação que não pude explicar, resolvi usar a
vara de Moisés. Não podia curá-lo, certamente, mas podia

aliviar seu sofrimento.
Deixando-me guiar por aquele frenético sentimento e pela
idéia que acabara de me iluminar, pedi a ela que se retirasse.
Obedeceu na hora. Acomodei o menino sobre a esteira de
palmeira e me ajoelhei a seu lado. Colocando sua cabeça em
minhas pernas lancei um rápido olhar ao redor. Ninguém.
Procurando serenar-me, aproximei a parte superior do cajado
do rosto do menino, até situá-lo a uns vinte centímetros da
pele.
E me dispus a pulsar o botão do laser de gás até a posição
de desfocalização, reduzindo assim o alto potencial energético
ao nível dos 500 hertz. Lamentavelmente, por não dispor das
crótalos, a radiação num comprimento de onda de 904
manômetros (não visível) devia ser dirigida de forma
instintiva. Seu poder de penetração, no entanto, até cinco
centímetros, superando a barreira cutânea e subcutânea,
garantia uma ampla e segura ação antibacteriana que em
questão de minutos me serviria inclusive de orientação.
Protegendo os olhos da criança com a mão esquerda, fui
traçando círculos sobre a área da infecção, varrendo a
totalidade do rosto. E depois de seis ou sete minutos, diante
da atônita galiléia, a energia de luz invisível, agindo
biomolecularmente nas células dos tecidos enfermos, operou o
milagre: a desintegração das vesículas e o paulatino
desaparecimento das inflamações.(8) Aumentei a freqüência
para mil e quatrocentos hertz, dedicando os outros quinze ou
vinte minutos a uma nova regeneração que se estendeu
também às orelhas e couro cabeludo.
E feliz diante da eficácia daquela vitamina-luz, fui entregar-
Lhe o filho. A galiléia, sem conseguir acreditar na súbita
transfiguração da criança, observou-me com um medo cheio de
reverência. Seus olhos encheram-se de lágrimas, mas os meus
também.
Eu sabia que a infecção não havia desaparecido e que, muito
provavelmente, transcorridos os efeitos daquela energia em

estado puro, a erisipela reapareceria, comprometendo a vida
daquela criança. Mas, pelo menos, ainda que só por algum
tempo, havia conseguido aplacar a angústia do coração daquela
mãe.
E sem necessidade de palavras, com o melhor dos meus
sorrisos, despedi-me da boa mulher. Mas quando me dispunha a
pôr o pé na estrada, a mulher, finalmente saindo de seu
assombro, tomou uma gamela de barro e, atirando-se a meus
pés, soluçando e afundando o rosto no chão de terra, suplicou
que eu aceitasse a humilde oferenda. Dessa vez eu é que me
senti desconcertado; e, tomando-a pelos braços, obriguei-a a
levantar-se. Meu Deus! Como explicar-Lhe que aquilo nada tinha
de milagroso? Deveria desiludi-la confessando que a melhora
era só aparente? Optei pela única coisa que podia e devia
fazer: guardar silêncio. E, agradecendo seu gesto, sabendo que
não seria justo insultá-la com uma negativa, aceitei duas
suculentas cebolas.
12h00.
À minha frente, até a encruzilhada da aldeia de Arbel,
esperavam-me outros três quilômetros. Que novos sobressaltos
me reservaria o Destino? Eu estava errado. Essa etapa foi
excelente. Sozinho, saboreei as suculentas cebolas e aproveitei
o cálido perfume que vinha por sobre os trigais e a miríade de
cores das colinas ao longe, ora verdes, ora vermelhas, ora azuis,
por capricho de olivais, argila e bosques de alfarrobeiras,
carvalhos, terebintos e pinheiros de Alepo.
E meus pensamentos voltaram-se para a mulher e o menino de
Lavi. O acontecimento encheu-me de satisfação e, ao mesmo
tempo, de inquietação. Entendi que não era bom abusar
daquelas prerrogativas. Era preciso endurecer meus
sentimentos.
Nossa missão não era essa. Por outro lado, dei razão a Eliseu.
Se fôssemos capazes de utilizá-los com cautela e sabedoria, os
dispositivos técnicos a nosso alcance poderiam solucionar
alguns dos problemas que nos inquietavam. Propus-me,
portanto, a estudar a fundo o assunto se o Destino me

permitisse chegar até a nave.
Entrar no berço? Ao perceber o desaparecimento das
crótalos, as vitais lentes de contato, já pensara nisso.
Como localizar o módulo coberto e disfarçado pela radiação
IR sem a ajuda das lentes? Consolei-me, confiando na
comunicação auditiva. Ainda assim, aquele tropeço significava
uma perda irreparável. No módulo somente restava um estojo
contendo um par de crótalos sobressalente. Tínhamos de
aumentar as precauções. A destruição ou roubo daquelas últimas
lentes haveria de trazer sérias dificuldades na hora de
entrarmos em nosso refúgio e manipular os instrumentos
contidos na vara de Moisés. Quanto ao salvo-conduto de
Pôncio ainda que tivesse pela frente uma incerta viagem a
Cesaréia-, não me preocupava muito. Havia me saído de coisas
bem piores...
12h30.
Foi o instinto? Já não sei o que pensar...
Ao vencer os três quilômetros e divisar o caminho secundário
que, partindo da estrada principal, serpenteava entre as fileiras
de oliveiras até o vilarejo das redes (Arbel), tornei a parar.
Olhei para o apertado conjunto de casinhas, perdido na
distância, e, como um aviso, lembrei-me da inquietante solidão
do wadi Hamân. Aquele desfiladeiro conhecido também como
o Vale das Pombas não me inspirava confiança. Não para
atravessá-lo sozinho. E ainda que pudesse enfrentar um
hipotético assalto de bandidos e salteadores que se ocultavam
por aquela região, concluí que mais prudente seria evitar o
provável risco.
Calculei a distância da cidade de Tiberíades por volta de
quatro a cinco quilômetros e confiando em que pudesse
avistar o yam em pouco ou mais de uma hora, deixei-me levar
pela intuição. E agora me pergunto: teria mesmo sido o destino
que me fizera mudar de idéia? Seja como for, bendito seja.
Como repetia o Mestre, quem tem ouvidos que ouça.
E a passos vigorosos enfrentei aquela etapa, e uma etapa

inédita para este explorador. Essa circunstância não vou negar
pôs-me em alerta. Ignorava o que me esperava. E ainda que
meu único e obsessivo propósito fosse reunir-me a meu irmão,
não descartei a possibilidade de ver-me outra vez envolvido em
novos problemas ou por ser pagão ou por qualquer outro
capricho do Destino.
Conforme avançava, essa proposição foi tornando-se mais
sólida. Meu coração agitou-se ao peso da premonição.
Uma discreta brisa prenúncio próprio do maarabit, o vento
mediterrâneo que sopra entre abril e outubro refrescou por
algum tempo a marcha e a rapidez de meus pensamentos. Com a
subida do sol e a proximidade do lago, a temperatura fora
subindo. Talvez estivesse ao redor de 25 ou 28 graus
centígrados.
A uns dois quilômetros do yam, a trilha até então deserta foi
ganhando maior atividade.
Passei por vários grupos de asnos conduzidos por barulhentos
felah, desejosos como eu de alcançar o mais cedo possível seu
destino: presumivelmente a capital do lago, Tiberíades, ou
algumas das localidades costeiras. A princípio não reparei no
porquê de tanta pressa. Depois, já às portas da cidade de
Herodes Antipas, compreendería a razão.
Ocupados com a carga de legumes, cerâmica, flores, cueijos e
dos enormes odres de vinho das longínquas regiões de
Queruhaim (ao norte de Jericó), Beth Rimá e Beth Laban, nas
montanhas da Judéia, galileus e judeus mal prestavam atenção
em mim. Ao cruzar com eles, saudei-os como se devia, mas na
maioria das vezes a resposta ou fora um lacônico shalom ou as
inevitáveis maldições contra minha mãe, naturalmente
quando detectavam o sotaque daquele maldito pagão.
Tudo transcorria com relativa normalidade até que, ao dobrar
uma das poucas curvas, faltando pouco mais de um quilômetro e
meio para atingir a cota do nível do mar (na época o yam
estava a 208 metros abaixo da superfície do Mediterrâneo), fui
surpreendido a palavra exata por um espetáculo que não
constava de nossas informações e que me obrigou a refrear a

marcha.
Deus! Quanto ainda nos faltaria para ver tudo naquela
Palestina do século I! Subitamente, os prósperos campos de
cereais desapareceram. À direita e à esquerda da estrada, até
onde a vista podia alcançar, surgiu um inferno. Algo
semelhante eu havia visto nas imediações de Jerusalém. Mas
aquilo ultrapassava qualquer imaginação.
Milhares de choças! Não creio que tenha exagerado. Uma forte
sensação de medo, angústia e raiva foi tomando conta de meu
espírito, obrigando-me quase a parar. Jamais pude imaginar
que nos arrabaldes da presunçosa e helenizada Tiberíades
existisse tanta miséria, sujeira e doenças. Um horror! Os
casebres, feitos de adobe, palha, paredes de esterco, troncos
de árvores, caniços quebrados, restos de tonéis apodrecidos e
outros materiais, apertavam-se umas contra as outras, formando
um conjunto preto e branco. Aqui e ali, entre fogueiras e colunas
de fumaça negra que o vento se encarregava de espaLhar,
tornando toda a região irrespirável, perambulavam verdadeiros
espectros. Uma população andrajosa, castigada por todo tipo
de doenças de pele, mal podia andar, tal a desnutrição. Uma
concentração de indivíduos, com certeza, muito superior à
população da própria Tiberíades. (Naquela época o censo da
capital do yam era de 25.000 a 30.000 habitantes.) Mas o que
mais me surpreendeu foi o mau cheiro que envolvia aquele
calvário. Comovido e aflito, retomei a caminhada, cobrindo-me
com o manto. Mas, a cada metro, o coração me apertava ao ver
aqueles rostos cadavéricos, expressões de resignação nos
homens, mulheres e crianças.
As filas de burros que iam à minha frente aceleraram a
marcha, enquanto os arrieiros, com as espadas
desembainhadas, colocavam-se na traseira dos animais para
proteger as cargas.
Logo viria a saber por quê.
Não podia acreditar no que estava vendo. Dos dois lados da
estrada, de pé ou de cócoras, colocados um ao lado do outro
em intermináveis fileiras, um verdadeiro exército de anciãos e

crianças esquálidos, imundos e semidespidos assistia ao desfile
dos viajantes e das caravanas, esperando para apanhar
qualquer coisa que viesse a cair das cargas. Nesse caso,
dependendo da sorte e da benevolência dos felah, os mais
audaciosos arriscavam-se a pilhar a carga de cima dos jumentos.
Em um desses arriscados assaltos, assisti impotente a uma
cena constrangedora. Um daqueles desafortunados um
adolescente por volta de dez a doze anos tentou roubar um
maço de pepinos que, sacudido pelo trote do animal, se havia
desequilibrado e estava prestes a tombar. Quando um
camponês viu o jovem com os dedos já quase no maço, correu
para ele, desferiu-lhe um golpe certeiro de seu gladius, e
cortou-Lhe a mão. O jovem caiu desmaiado sobre a estrada
poeirenta.
A cruel e desproporcionada ação do felah fez-me paralisar.
Vi-o afastar-se comemorando a façanha, sem ao menos olhar
para trás. Ninguém reagiu, ninguém protestou, ninguém atreveuse
a deter o agressor. Tampouco acudiram o jovem desmaiado,
sangrando e pisoteado pelos animais.
Quanto a mim, perplexo, tinha um só pensamento: sair dali.
Um dos asnos acabou por dar-me um encontrão e eu, entre
tropeções e imprecações dos responsáveis pelos animais, fui ao
chão. Levantei-me mas perdi o manto. Em questão de segundos,
uma montanha daqueles infelizes precipitou-se sobre ele,
disputando-o a mordidas e pontapés.
Nem pensei em tentar recuperá-lo. Teria sido um suicídio.
Enfim, alguém mais necessitado que eu teria como protegerse
durante a noite.
Durante o terceiro salto no tempo, em uma das andanças do
Mestre, teríamos a oportunidade de penetrar naquele inferno
e descobrir o porquê daquela vergonha. O lugar, conhecido
como a cidade dos mamzerim, era um dos quistos mais
populosos da classe social mais desprezada pelos israelitas: a
dos bastardos. Para os judeus ortodoxos em particular, e para a
comunidade em geral, um mamzer era um indivíduo que

carregava uma marca grave, que o incapacitava para contrair
matrimônio com levitas, israelitas de origem pura, e
descendentes ilegítimos de sacerdotes. A proibição vinha dos
tempos de Moisés, baseada no que fora ordenado por Yahweh
e que está no Deuteronômio (23, 2-3).(9) Essa disposição
afastava dos bastardos a assembléia de Yahweh, reduzindoos
a lixo. E, com o tempo, o que se supõe que haja sido um
princípio religioso acabou se convertendo em pecado social da
pior espécie, que a tudo conspurcava. Por exemplo, o mamzer,
além de estar incapacitado por lei para ocupar cargos de
responsabilidade, devia manter-se afastado do resto da
população, desempenhando as funções chamadas desprezíveis
e vivendo sob a tirania de ricos e pobres, sacerdotes e leigos e
dominadores e dominados. Seu direito a herança era discutível
e sua presença num tribunal impugnava a sentença. E tudo por
causa de um nascimento não reconhecido ou, o que era mais
dramático, como conseqüência de matrimônios não autorizados
pela Lei mosaica, que podiam remontar a dez gerações.(10)
Isso, em muitas ocasiões, causava situações desesperadoras.
Se o bastardo não se lembrasse de sua genealogia, e
principalmente de qual fora o primeiro de seus antepassados
mamzer, a pecha podia perpetuar-se por séculos. Muitos desses
infelizes, incapazes de resolver o problema, punham um ponto
final à existência insuportável, pelo suicídio.
Pois bem, estou ciente de que as informações sobre essa dura
realidade da qual tampouco falam os evangelistas são
interessantes para ajustar com precisão algumas das palavras e
ações do Rabi da Galiléia. Quando nos textos sagrados há
menção sobre um Jesus que freqüentava os meios de
pecadores, a maioria dos fiéis associa esse qualificativo ao
que hoje interpretamos como pecado. Ledo engano. A maior
parte das vezes e espero narrar alguns exemplos mais adiante
esses pecadores eram, na realidade, mamzerim ou
bastardos, ebed (escravos), am-ha-arez (o povo inculto que
seguia a Torá) e, por último, gentios, samaritanos, publicanos
(cobradores de impostos) e os demais aliados do poder invasor
de Roma. Que fossem honrados, leais, generosos e justos era o

de menos.
Para a intolerante ortodoxia judaica tratava-se de
pecadores da pior espécie.
E pouco a pouco fui compreendendo qual era a nossa
verdadeira situação a de repulsivos pecadores -, o porquê
do ódio de João Zebedeu e o real alcance daquela violenta
divisão social que a nação judaica enfrentava e a que o Filho do
Homem dedicou parte de sua vida de predicação. Um panorama,
insisto, cuja compreensão é vital para apreciar as idéias e
ações do Mestre. Aqueles que pretendem trasladar ao século XX
o modelo de atuação do Rabi da Galiléia, correm um sério risco:
muitas das circunstâncias sociais eram por demais diferentes.
Sua mensagem permanece absoluta mas, como disse, convém
conhecer em profundidade o marco histórico-político-religiososocial,
para entender que Ele também ensinou o que devia para
um meio de sua época que é totalmente desconhecido para nós,
hoje.
E a partir daquelas aventuras e as sucessivas entre os
bastardos, foi que entendi por que a expressão mamzer era
considerada a pior das injúrias, sendo inclusive punida com
trinta e nove chibatadas.
Não quero passar por alto sobre a reflexão que, por causa de
meus contatos com os mamzerâm e as odiosas leis que os
oprimiam, marcaram muito meu ser e se chocaram violentamente
com um dogma da Igreja católica. Apenas mencionei o assunto
em outras páginas deste apressado diário, mas creio que este
seja o momento de abri-lo de vez. Quando os católicos falam da
virgindade de Maria, sinceramente não posso evitar: meu
sangue ferve. Não consigo compreender ou sim (?) - por que
os responsáveis e padres de tal Igreja se empenham em ocultar
a verdade. Ou será que nem sequer se preocuparam em
perguntar quais eram os costumes daquele tempo? Ao tê-lo feito
com objetividade, teriam descoberto que o proposto pelos
Evangelhos colocava automaticamente o Rabi da Galiléia na
categoria de mamzer. Em outras palavras, puro lixo, manchado
para sempre e sem direitos. Se a Senhora tivesse concebido seu

Filho antes de casar-se com José assim rezam os textos de
Lucas (1, 2629) e Mateus (1, 18-25) -, teria entrado na já
mencionada dinâmica dos mamzerim. Doutores e rabinos antes
inclusive do nascimento do Mestre haviam discutido isso.
Que consideração teria o Filho nascido de uma prometida
(não-casada oficialmente)? O tratado Sinédrio (cap. VII, 9),
como já mencionei, diz o seguinte sobre o tema: Aquele que
tem relações sexuais com uma jovem (Deuteronômio 22, 23 e
seguintes) só não será culpado se ela não for jovem, virgem e
prometida (em matrimônio) e se não estiver na casa de seu
pai. Para uma das correntes de pensamento em vigor naquela
época, os filhos resultantes desse tipo de união ameaçada
com pena de morte legal, na Torá eram inexoravelmente
mamzerim. E ainda que o próprio Hillel um dos brilhantes
sábios que precederam o Filho do Homem tenha lutado para
rebater essa norma,(11) o certo é que no ano menos sete,
quando nasceu Jesus, era vigente, com todas as suas funestas
conseqüências.
Os fiéis movidos pela fé, mas sem rigor jurídico
pressupõem que a gravidez de Maria foi justificada diante dos
olhos de José e da sociedade judaica, com base nas palavras
do Evangelho: engravidou por obra do Espírito Santo. Duplo
erro.
Em primeiro lugar porque tal argumento engravidar de forma
sobrenatural -, se tivesse sido usado naquela ocasião, não teria
feito o menor sentido para os juizes e afins. E o peso da férrea
Lei mosaica, insisto, teria recaído sobre a Senhora e sua
família, pondo em risco até sua vida.
Disse e sustento:
Sei que Deus existe, e estou convencido de que age tanto
com inteligência quanto sensatez. Se os fatos se deram como
pretendem os evangelistas, a magnífica obra desse Deus-Pai a
respeito da Encarnação de Jesus teria topado com um
grandíssimo e desnecessário problema: o da Lei, das intrigas e
das suspeitas. A Grande Inteligência pode e é capaz de tudo.
É o homem, com sua miopia cósmica, quem reduz e manipula

esse poder, comercializando-o segundo sua conveniência.
Segundo equívoco: os fiéis, como é natural, aceitam os textos
sagrados como a palavra de Deus revelada aos homens.
Pessoalmente tenho lá minhas dúvidas. Um escrito de tal
transcendência dificilmente poderia conter erros, silêncios e
manipulações como as apresentadas pelos Evangelhos. Ainda
mais claro: se considerarmos que tanto Lucas quanto Mateus
estavam a par do que significava a condição de bastardo, como
resolver essa pertinaz obsessão por apresentar Maria como uma
virgem grávida por obra divina? Fica evidente que nenhum dos
citados escritores teve bom senso se incluiu em suas memórias
algo que poderia manchar a imagem de um Deus. A explicação
deve ser encontrada em uma interpolação posterior. Mas não
quero estender-me em um tema que, lamentavelmente,
continuará aparecendo.(12) Com o coração aliviado, prossigo
contando aquela viagem de retorno ao módulo. Uma viagem que
me reservava algumas surpresas interessantes.
13h30.
O Destino foi misericordioso...
Ao deixar o lago, a miséria humana que eu havia deixado
para trás quase desapareceu diante do sereno azul do
Kennereth.
Inspirei fundo, enchendo os pulmões com o perfume daquelas
águas tranqüilas, levemente tocadas pelo vento do oeste.
Dezenas de velas brancas, vermelhas e negras singravam
aquele pequeno mar deixando poucos rastros e seguidas por
nervosos bandos de gaivotas. Ao fundo, ao norte, envolto em
luz, o nevado Hermon, uma cadeia de montanhas na qual
viveríamos um dos momentos mais íntimos com o saudoso
Mestre. E ao me regozijar de estar na tranqüilidade prateada de
Saidan e Nahum as cidades de Jesus -, a lembrança do
gigante sacudiu-me.
Que força, que magnetismo, que singular magia irradiava
daquele Homem para que, em tão curto espaço de tempo,
chegasse a obcecar-me. E ali mesmo, frente à verdejante colina

na qual repousava o invisível berço, pensei na atraente
possibilidade de levar adiante o terceiro salto no tempo. O
desejo de reunir-me novamente com Ele, vê-lo, escutá-lo e
seguir seus passos, começava a dissolver perigosamente o meu
interesse pelo resto das missões que tínhamos por cumprir.
Assim que pisasse no módulo falaria abertamente com meu
irmão, falando-lhe sobre a ansiedade que, gota a gota estava
invadindo meu espírito.
E levado por essa idéia, mal prestei atenção à pérola do
lago: Tiberíades, cidade branca, movimentada, prostrada a
meus pés e apoiada à sombra da altiva e cintilante fortaleza,
com seus cento e noventa metros de altura acima do nível do
yam.
Animado pela proximidade da ladeira na qual me aguardava
Eliseu a duas horas de caminhada desci pelo caminho que
desembocava na via maris. A estrada romana, que vinha do sul,
margeava a costa ocidental do Kennereth, passando a
cinqüenta metros da porta norte de Tiberíades. Meu objetivo
era simples: entrar naquela estrada, sem deter-me, rodeando
Migdal e as outras povoações, e subir ao módulo por volta da
hora décima (quatro da tarde). Mas meus desejos como irei
relatando contaram pouco para o nada retilíneo destino.
A primeira advertência chegaria justamente naqueles
trezentos metros que me separavam da via romana. Meus
reflexos, porém, falharam. Não fui capaz de interpretar o vozerio
das caravanas que, ao que parece, anunciavam alguma coisa
relacionada com uma tormenta. Os felah que partiam da costa,
ao cruzarem com os asnos e os viajantes que, como eu, dirigiamse
a Tiberíades, falavam muito excitados de pedras e
chuvas. Mas, como dizia, não prestei a devida atenção e
prossegui, despreocupado. O dia estava radiante. Uma
tempestade? Impossível. O horizonte apresentava-se claro, com
uma visibilidade praticamente total. E, inocente, me fui
aproximando da encruzilhada, mais atento aos grupos que se
formavam diante da porta da cidade do que aos comentários
dos viajantes. Ainda que as aglomerações nas portas das

cidades cercadas por muralhas fossem parte da paisagem
habitual, pressentindo algo estranho, tratei de precaver-me. A
curiosidade, todavia, parece que foi mais forte do que minhas
precauções.
Ao pisar nas grandes lajotas negras de basalto que
pavimentavam a estrada, senti-me atraído pelos grandes grupos
de homens e animais que permaneciam junto ao muro de
pedras, de quinze metros de altura, que cercava a cidade.
Consultei o sol. Teria tempo de sobra, pois faltavam umas cinco
horas para o ocaso. E querendo olhar mais de perto, saí da via
maris e cortei caminho para chegar logo àquele pitoresco e
multicolorido universo.
A porta norte aparecia coroada por um soberbo arco,
também trabalhado em pedra basáltica, colocado a dez metros
da base da muralha. No centro estava a deusa Tyche, filha de
Zeus e protetora de Tiberíades, também conhecida por Fortuna.
(13) A bela estátua, de mármore branco, portava na mão direita
uma esfera e uma cornucópia na esquerda. Intrigado, juntei-me
àquele caos e ali vivi algumas cenas que também foram
experimentadas pelo Filho do Homem.
De repente, vi-me assaltado por uma legião de mendigos.
Alguns autênticos, outros fingidos. Pouco podia eu oferecerlhes,
tanto que, cansados de pedir, afastaram-se maldizendo
minha mesquinharia.
Ali também montavam guarda, desde o amanhecer até o sol
se pôr, verdadeiros expertos em todo tipo de doenças e males
em geral. Ao longo das muralhas, contei pelo menos cinqüenta
falsos cegos, caolhos, surdos, coxos, mancos, leprosos e
aleijados. Todos eles disfarçados e maquiados com mestria.
Ali, sentados de pernas cruzadas, enganando sem qualquer
pudor escravos e camponeses, estavam os que se ofereciam
para escrever cartas. Naturalmente só usavam tinta
simpática...
Diante de improvisadas tendas de pele de cabra, estavam as
ambulatarae (prostitutas ambulantes, da mais baixa categoria),

usando as obrigatórias perucas amarelas e com as pálpebras e
sobrancelhas pintadas de azul. Algumas, animadas pela
tolerância da clientela e pelo calor (cerca de 30 graus
centígrados), exibiam peitos tatuados ou pintados de vermelho
e dourado, e usando saias transparentes.
Ali, espantando moscas e brigando com os viajantes,
vociferavam e barganhavam os comerciantes que tinham um
lugar fixo no mercado da cidade.
Ali havia muitas cabras de enormes orelhas e rebanhos de
barbarines (os famosos carneiros de cinco quartos, cujas
caudas o quinto quarto podiam chegar a pesar dez quilos.
Mas o que mais me chamou a atenção naqueles rebanhos foi
um anel de madeira colocado no focinho de algumas das
oveLhas.
Ao examinar melhor, compreendi o porquê. Os responsáveis
pelo gado amarravam pedacinhos de pimenta à madeira, para
provocar espirros no animal e assim fazê-los expelir os insetos
que entravam em suas narinas. Dessa forma conseguiam evitar
algumas das enfermidades que as dizimavam.
Ali podia-se alugar carregadores de todas as idades de
crianças a anciãos por umas míseras leptas ou um prato de
comida.
Ali, por último, se concentravam os bandidos, os aventureiros
e os fugitivos da justiça. Tiberíades como teríamos
oportunidade de comprovar mais tarde distinguia-se dos
restantes povoados da Galiléia por ser muito liberal, o que,
irremediavelmente, acabou por se converter no refúgio de toda
sorte de malfeitores e indesejáveis.(14) Aquele submundo,
apesar de sua particularidade, exercia sobre mim um fascínio
irresistível. Tenho de reconhecer que essa fraqueza me causaria
alguns problemas. Mas que poderia fazer? E durante mais de
uma hora aproveitei aquele povo até cansar. Um povo digo
desde já -, mistura de judeus e gentios, que seria o autêntico
protagonista na vida pública de Jesus de Nazaré. Foram aqueles
lamentos de mendigos e aleijados, aqueles barulhentos pregões
dos comerciantes, carregadores, aguadeiros e aquela atmosfera

densa e sufocante
- entre poeira, suor e balidos de ovelhas e carneiros -, que
formaram o pano de fundo das andanças do Mestre.
E quando já me dispunha a reencetar a marcha, uma segunda
advertência veio ao meu encontro. Encontrava-me absorto,
contemplando e escutando um curioso personagem que, de pé
em um dos silhares da muralha, tentava a duras penas elevar
sua voz, em tom de reprimenda, por sobre a algazarra
generalizada.
O indivíduo, enxuto como uma espada, com a barba em
desalinho e lábios molhados, coberto com um talitbranco (xale
com borlas nas pontas, usado para pregações e orações),
atacava com fúria aquela Tiberíades impudica, idólatra e
preguiçosa. E com grande teatralidade invocando sem muito
entusiasmo o capítulo 9 do Eclesiástico ameaçava com fogo e
enxofre os que freqüentavam as prostitutas e os que apenas
olhassem para elas, para as cantoras e donzelas sem véu. E
nisso estava quando, perto dele, debaixo do arco da deusa
Fortuna, percebi um movimento inusitado. Uma fila de asnos
que, imaginei, se dispunha a sair da cidade, parou,
atrapalhando os que entravam e saíam. Mas eu estava distraído
com a furiosa arenga do iluminado. Ouvi vozes e maldições.
Tudo perfeitamente habitual. De soslaio, observei a
gesticulação exagerada dos condutores de caravanas. Para meu
espanto, os felah, a golpes de vara, obrigaram os jumentos a
voltar para trás. Tampouco soube captar esse segundo aviso.
E assim como os céticos que assistiam ao profeta, e
cansado de tanta estupidez, acabei por afastar-me. Logo
comprovaria que a maior parte dos falsos messias e enviados
de Deus, que pululavam na Palestina, eram na verdade um
bando de desequilibrados, psicóticos e esquizofrênicos.
E tomei a direção da via maris, mas quando estava prestes a
entrar por ela voltei a parar. Um pregão de um velho camponês
deixou-me perplexo. A seus pés alinhavam-se réstias de alho,
cebolas e rabanetes picantes. Segundo o cântico do vendedor,
os melhores afrodisíacos para a noite do Sabbath. Ao dar-se

conta do meu interesse, aumentou o tom de sua litania,
recordando maliciosamente a chegada do Sabbath e a sagrada
obrigação de cumprir com os deveres conjugais. E que melhor
estímulo para o esposo que os magníficos produtos do jardim de
imperadores, reis e xeques de Moab? Foi aí que me lembrei da
pressa dos guias das caravanas. Efetivamente, com o entardecer
da sexta-feira, os judeus festejavam a entrada do dia santo.
Ainda que os camponeses e comerciantes fossem pagãos, a
paralisação também os afetava, mesmo que indiretamente.
Daí a urgência de chegar ao destino ou descarregar as
mercadorias antes do pôr-do-sol. Negócios, tratos e pagamentos
deviam ser resolvidos pelo menos entre judeus e entre esses e
os gentios antes que um fio branco pudesse ser confundido
com um negro.
Enquanto seguia meu caminho, perguntei-me por que o
comportamento dos felah fora tão estranho na porta norte.
Será que tinha relação com a aproximação do Sabbath? Não
me pareceu lógico, já que ainda faltavam umas quatro horas
para o pôr-do-sol. Tempo de sobra para chegar a qualquer ponto
do yam ou a lugares próximos. Dei de ombros e esqueci-me do
assunto, já que não conseguira resolver o mistério.
Acelerei o passo, concentrando-me na estrada e na última
fase da viagem: a delicada entrada no módulo. A falta das
crótalos poderia complicar meu encontro com Eliseu. Segundo
o planejado, ao chegar à altura de Migdal deveria estabelecer a
conexão via laser. Como já expliquei, as sandálias eletrônicas
haviam sido dotadas de um segundo dispositivo também
colocado na sola -, que permitia ao piloto que estava no berço
seguir pela tela do radar os passos de seu companheiro. Um
microtransmissor emitia impulsos eletromagnéticos à razão de
0,0001385 segundos que, devidamente amplificados na vara
de Moisés, eram transportados por meio de laser até as telas
da nave. .
Essa conexão, puramente informativa, viria a substituir a
auditiva, válida tãosomente num raio de quinze mil pés.

Ao longo dos primeiros quilômetros, a estrada se foi
estreitando entre os altos promontórios do monte Arbel e um
perigoso talude (à minha direita), de quatro a cinco metros, que
caía quase verticalmente sobre as águas do lago. Comecei
então a observar que não me parecia normal. A entrada
apresentava pouquíssimo movimento de viajantes. Ainda mais:
só se dirigiam a Tiberíades. Só eu caminhava rumo norte.
Percebi também que todos os judeus e gentios que comigo
cruzaram não levavam nenhum animal. Aqueles indivíduos
circulavam com muita pressa e falavam e discutiam sobre um
tema familiar para mim: as pedras, as chuvas e um castigo
divino.
15h30.
A coisa de dois quilômetros e meio de Tiberíades, ao deixar
para trás uma curva suave, acabei por topar com a explicação de
tudo que vinha ouvindo desde que divisara o yam. Atônito,
continuei avançando lentamente.
A via encontrava-se interrompida por uma avalanche. Os
quatro metros e meio de pavimentação haviam sido invadidos
por várias toneladas de pedras e terra vindos do grande
complexo rochoso que se levantava à minha esquerda. Entendi
então as alusões às chuvas. A recente tormenta, que eu havia
enfrentado em Nazaré, tinha sido a responsável pelo desastre.
As freqüentes e terríveis torrentes, quase com certeza,
encarregaram-se de lavar e remover os picos do Arbel,
provocando a avalanche. Aquele tipo de fenômeno realmente
perigoso dava-se quase sempre na época das chuvas e, em
especial, nas regiões desérticas de Judá e do mar Morto.
Examinei a situação. O summum dorsum (as lajotas da
estrada) estava totalmente recoberto pelas pedras. Não havia
por onde passar. No centro da via estava a rocha mais
volumosa, de uns dois metros de altura, ocupando quase a
totalidade da largura da estrada. O caminho, interrompido, não
oferecia muitas alternativas. À direita e à esquerda da grande
pedra, outros penhascos de menor tamanho fechavam o resto da
estrada.

Descer pelo talude, entrar na água e tornar a subir era viável,
mas muito incômodo. Restava uma única solução: subir nas
pedras situadas em volta da central e, equilibrando-me com
dificuldade, saltar. Foi isso que fizeram muitos dos viajantes que
se dirigiam a Tiberíades e que eu também fiz.
Uma vez, porém, vencido o obstáculo, fui dar com a verdadeira
dimensão do problema. O panorama do outro lado era
desolador, e justificava a excitação dos caravaneiros. Os
viajantes que estavam só com cargas leves podiam considerarse
com sorte. Para os grupos de jumentos e bois que se
espremiam uns contra os outros no que restara da estrada, a
situação era desesperadora. A passagem dos animais pelas
rochas era impossível. Os donos e condutores, indignados, iam
até a barreira e voltavam xingando, lamentando-se e discutindo.
Alguns, juntando-se, tentaram inutilmente levantar as pedras
menores. Mas a luta demorou pouco tempo. As pequenas foram
tiradas rapidamente, mas as que estavam no centro lá ficaram.
Suarentos e vermelhos, acabaram por sentar-se nelas,
desolados.
Os animais várias dezenas ocuparam toda a largura da
estrada. Essas caravanas, levando canastras e cântaros de
todos os tamanhos, desciam diariamente do monte Hermon com
uma delicada mercadoria: neve. Geralmente aproveitavam a
noite para transportá-la até os lugares mais afastados de Israel.
E, apesar do perfeito acondicionamento, o forte calor
começava a derretê-la. Os fardos vazavam muito, para o
desespero dos encarregados.
Aqueles homens galileus na maioria -, tentando resolver o
problema, entraram em discussões intermináveis. Um dos
condutores um coxo -, mais sensato, falava com serenidade,
mas o que ele sugeria não foi aceito pelos companheiros. Na
verdade não restavam muitas opções. O homem sugeria que se
contratassem embarcações, onde poriam toda a neve que,
assim, seria transportada para Tiberíades. Pela gritaria geral, a
proposta não fora aceita porque presumia custos adicionais.

A segunda possibilidade voltar e vender a carga nas
cercanias tampouco havia agradado aos comerciantes. O
preço da neve, com certeza, baixaria consideravelmente.
Que outra solução poderiam esperar? A demolição das pedras
demoraria um ou dois dias. Ao que parece, os grupos de
hodopoioi (pessoas responsáveis pela manutenção das
estradas) e os contingentes de escravos já estavam a par do
acontecido.
Mas, por mais energia que colocassem no trabalho, com a
chegada da noite tudo se complicaria. À situação crítica ainda
devia ser acrescentada a entrada no Sabbath. Muitos dos que
ali estavam eram gentios, mas os judeus viam com horror aquela
calamidade, pois a ela se somava o pecado. Segundo as rígidas
Leis mosaicas, dentre os trabalhos proibidos figurava,
naturalmente, transportar de um lugar a outro.(15) Em caso de
neve, a Lei consentia no transporte, assim como tudo que fosse
para ser conservado (tratado de Sabbath VII,
3).O resto dos animais que transportavam mineral de ferro da
Fenícia, madeiras do vale de Hule ou cristal de Nahum, entre
outras mercadorias, estava sujeito à rígida norma religiosa.
Mas o pior não era o sentimento de pecado ou os sacrifícios
rituais que estavam obrigados a executar. O que
verdadeiramente receavam e os angustiava era não poder
vender a carga, tachada de impura, pelo fato de haver sido
transportada no Sabbath.
De repente, senti-me na obrigação de ajudá-los. No princípio
hesitei, mas ao ver a neve derreter-se daquela maneira, minha
resistência foi sendo quebrada. Analisei o problema e me
convenci de que não se tratava de algo crucial ou irremediável.
Cedo ou tarde, as rochas seriam demolidas e retiradas. A ajuda
que tinha em mente só aceleraria o processo que poderíamos
chamar de nível inferior e que, como já disse, não tinha
reflexos no esquema vital daqueles indivíduos. Hoje, em meu
retiro, tendo à minha frente a perspectiva do tempo e da
distância, não está claro para mim se aquela intervenção foi
correta. Claro que os responsáveis pela Operação não a teriam

aprovado. O que me consola mais ou menos é que nunca
vieram a sabê-lo.
Escolhi o ponto certo. Por lógica, economia e rapidez o lugar
ideal correspondia aos penhascos que fechavam a estrada
pavimentada, pelo flanco situado junto do promontório. À minha
frente havia duas grandes rochas, ambas com mais de um metro
e meio de comprimento, com altura máxima de um metro. O peso
estava em torno de quinhentos ou seiscentos quilos.
A composição das rochas calcário com predomínio de calcita
e faixas estreitas de terra calcária não era o maior problema.
Examinei a textura, verificando o que já sabíamos por estudos
anteriores. Densidade, um pouco inferior a 2,71.
Um grão do tipo mediano, com diâmetros de 3,3 a 1,0
milímetros e entre 10/1 10/2 grãos por centímetro quadrado e, o
mais importante: um nível de dureza 3 na escala de Mohs.(16)
Em outras palavras, um material dócil, fácil de trabalhar.
Quando tive certeza de onde e como executar a operação,
voltei-me para olhar os homens e os animais. Aquela era, sem
dúvida, a parte mais delicada do trabalho que me dispunha a
realizar. Tinha de conseguir que a manobra passasse
despercebida, por isso preferia que não se aproximassem. Mas
como? Comerciantes, condutores de animais e felah continuavam
metidos na discussão. Ao olhar novamente para os jumentos,
encontrei a solução. Se desse resultado, aquilo me daria certa
vantagem. Disposto a tentar a sorte, dirigi os ultra-sons para a
testa de um asno da primeira fila. A súbita queda do animal
alarmou os guias das caravanas, que o rodearam para examinálo
e tentar levantá-lo. Mas os pontapés, as varadas e os
impropérios de nada adiantaram.
Aquela era a hora. Metendo-me no meio dos inquietos
animais, acionei o botão que ativava o laser de gás,
posicionando-o na potência mínima (umas frações de watts). E
sem perda de tempo apontei o cajado para as ancas dos
animais que estavam voltados para a direção de Migdal. Em
cinco segundos, outros tantos jumentos acusaram também o
impacto levíssimo (inferior a vinte e cinco micras) e o invisível

facho de calor. A reação foi a que eu esperava. Com dores e
assustados, escoiceando e relinchando, puseram-se a trotar,
provocando um estouro entre boa parte dos outros. Logo depois
do primeiro instante de surpresa e confusão, a quase totalidade
dos condutores dos animais, vociferando e com as varas nas
mãos, saíram na perseguição dos animais. Os gritos e as
imprecações só serviram para assustá-los e aumentar a distância
entre eles e os homens.
Se tudo corresse bem, a manobra para recuperá-los demoraria
de vinte a trinta minutos. Com essa vantagem, voltei para a
barreira, concentrando-me nos penhascos que eu já havia
selecionado. Como precaução, coloquei-me do outro lado das
rochas (o que dava para Tiberíades), mas sem perder de vista
os felah que permaneciam ao lado do jumento desmaiado.
Recostando-me no promontório, e adotando uma postura de
descanso, pus mãos à obra. Acionei o laser de gás novamente,
aumentando a potência até oito mil watts. Aumentando a
precaução (a falta das crótalos me obrigava uma vez mais a
manejar a vara sem visualizar o cilindro infravermelho),
apontei o jato de fogo para o calcário, iniciando o corte da
primeira pedra.(17) Cada uma delas seria cortada em quatro,
transversalmente. Pelos meus cálculos, três talhos seriam
suficientes e o poderoso bisturi, trabalhando a uma
velocidade de cinco centímetros por segundo, poderia demolir
cada bloco em sessenta ou setenta segundos.(18)
Dessa forma, seria possível removê-los com rapidez, abrindo
uma passagem de quase um metro e meio de largura.
E com meus cinco sentidos repartidos entre o laser e os
homens, acabei a primeira das divisões. O dióxido de carbono,
implacável, fez o segundo corte. Mas, de repente, às minhas
costas, na direção de Tiberíades, escutei um baruLho abafado.
Contrariado, vi que um grupo de pessoas vinha em nossa
direção. Procurei tranqüilizar-me. A curva na qual acabavam de
aparecer se encontrava a uns quinze metros. Isso significava
uma margem de três ou quatro minutos até que chegassem à
barreira. Aumentei a intensidade para quinze mil watts e o

invisível e silencioso fluxo praticamente devorou a pedra
calcária. Segundo penhasco.
Os dois primeiros talhos foram resolvidos em menos de um
minuto. Mas as coisas pareciam destinadas a complicar-se. O
jumento que jazia por terra recuperou-se e os guias, a fim de
endireitar os fardos, não deram mais atenção a ele. Se um deles
se acercasse de mim, eu teria de suspender a operação.
Mais complicações. Ao voltar o rosto, vi, desolado, que o
grupo formado por mais ou menos trinta homens se aproximava
mais rapidamente do que eu estimara. Esperei alguns segundos,
e tratei de fazer o sexto corte. Por sorte, os guias resolveram
subir a uma pedra mais alta e quando divisaram o pelotão que
chegava explodiram de alegria. Eram os hodopoioi, na maioria
gentios, encarregados de desimpedir a estrada.
Mais morto do que vivo, pude completar meu trabalho. O
êxito, no entanto, não foi total.
De repente, ao levantar os olhos do bloco de calcário, dei com
o coxo, olhando atônito para o traçado simétrico do corte das
pedras. Há quanto tempo estaria ali? Parecia hipnotizado.
Soltando a muleta, atirou-se sobre os restos do penhasco.
Apalpou-os, examinou-os e sentiu um leve calor do último
corte. Comprovou que não era um sonho; a perfeição do corte a
laser não deixava lugar a dúvidas. Aquilo não era acidental.
E depois, em uma rápida reflexão, cravou seus olhinhos vivos
nos deste não menos aturdido grego. Bem sabe Deus que tentei
dissimular, mas um leve sorriso muito próximo à estupidez
acabou por delatar-me. Reagi sem muito cuidado, enfiando os
pés pelas mãos. Procurar uma desculpa teria sido perda de
tempo e um insulto à inteligência daquele homem. E saltando
por cima da minha obra, tratei de me afastar sem olhar para
trás. Os animais, reorganizados, pouco a pouco voltavam para o
lugar da barreira.
Mas a fuga foi breve. O Destino ainda não dera a última
palavra. Havia percorrido cem metros quando a voz do coxo soou
imperativa às minhas costas. Fingi não tê-lo escutado.

Pressionado, porém, por sua insistência e vendo que assim eu
só pioraria a situação, cedi aos seus rogos.
Apesar de sua coxeadura, avançou ligeiro. Estava só, o que
me tranqüilizou... mais ou menos. E, uma vez mais, o Destino me
desarmou. Pus-me em guarda, disposto a tudo. Mas aquele
judeu helenizado com quem chegaria a travar uma sincera
amizade não era como o restante dos guias de caravanas. À
sua notável inteligência havia que acrescentar um tato e um
instinto muito especiais.
Observou-me, curioso. Depois, adiantando-se com um largo
sorriso, sossegou-me: - Não tenhas medo exclamou,
apontando para seus companheiros -. Aqueles infelizes são
piores que suas cavalgaduras. Não vêem nem escutam nem
entendem...
Entender? Não o compreendi. E vendo minha estranheza,
esclareceu-me: - Tenho rezado e os céus atenderam minhas
súplicas. Fui um infiel seguidor do construtor de barcos de
Nahum e sei que o Pai nunca desampara seus filhos.
Construtor de barcos de Nahum? A quem se referia? De
repente, estremeci: aquele homem, para designar o Pai, havia
empregado o termo Ab-bã, especialmente querido ao Rabi da
Galiléia. Quando o Mestre se dirigia a Deus quase sempre o
fazia chamando-o Áb-bã: Ou seja, papai.
Então Jesus de Nazaré trabalhou também como construtor de
barcos? Se não me falhava a memória, até os vinte e dois anos
desempenhara os ofícios de carpinteiro, entalhador de
exteriores, chefe de um armazém para abastecimento de
caravanas, forjador em Séforis e, ocasionalmente, lavrador,
pescador em um e yam e instrutor ou professor particular de
seus irmãos. Francamente, aquilo me surpreendeu. Mas não o
quis interromper.
- Não sei quem és, nem de onde vens acrescentou ele,
reforçando seu sorriso acolhedor -. Tampouco como o fizeste.
Não vou perguntar. O Mestre falou-nos da próxima vinda do
reino e dos prodígios que a acompanhariam. E eu creio nele.

Agora eu tinha certeza. Falava do gigante.
E refugiando-se no incidente das pedras aceitando-o como
uma confirmação dessa iminente chegada do reino -, reforçou
seus pensamentos citando uma passagem do livro de Jeremias
(43, 8-12):
- Toma em tuas mãos pedras bem grandes e, diante dos
olhos dos judeus, coloca-as na estrada em frente da porta do
palácio do Faraó (...) E Assim falou o Deus de Israel:
Vou mandar chamar meu servo, o rei da Babilônia, e colocarei
seu trono sobre estas pedras (.....), e sobre elas estenderá seu
tapete. Ainda que esse texto, evidentemente, se referisse a
Nabucodonosor, conservei-me em respeitoso silêncio. De certo
modo, tinha razão. O prodígio do laser estava anunciando
uma era nova. Tanto meu irmão quanto eu de certa forma nos
podíamos considerar como enviados, ainda que de um reino
muito diferente. Fosse como fosse, a mágica presença destes
exploradores naquele agora remoto, vinha conFirmar o já dito:
os caminhos, fios e artes desse imenso e sábio Ab-bã parecem
sustentar-se mais que por inteligência graças a uma
inesgotável imaginação.
Concluído o solene discurso, o bom homem apresentou-se.
Disse chamar-se Murashu ou Muraschu. O nome soou-me
familiar.
Morava em Tiberíades e exercia a profissão de monopolei
(uma espécie de atacadista no mercado de trigo, neve, pesca,
fruta e qualquer outra mercadoria que pudesse ser importada ou
exportada). E tentei achar o fio da meada. Que estranho é o
Destino! Aquele indivíduo era o contato do qual me havia falado
Elias Marcos ao abandonar sua casa em Jerusalém. Mas,
discretamente, não mencionei o pai do jovem João Marcos.
Naquela hora por causa da pressa que tinha de voltar ao
módulo não fazia muito sentido.
Insistiu em que sua casa seria honrada com minha visita. Por
último, metendo a mão numa bolsinha de lã tirou uma moeda. O
rosto bronzeado se iluminou e com a voz suplicante pediu que

aceitasse.
- O Mestre nos ensinou a dar sem interesse nem compromisso.
Recebe-a em nome de todos.
E aproximando o aureus, depositou-o na palma de minha mão.
Ao despedir-se, disse:
- Um pouco de ouro e muita gratidão... Que o Todo Poderoso,
o Ab-bã, continue te guiando.
E a duas horas do ocaso empreendi a marcha, tenso e
emocionado pelos últimos acontecimentos. Verdadeiramente, o
afável e generoso monopolei tinha razão. Talvez não saiba
explicar-me. Não me é fácil escrever. Na verdade, sentia-me
mesmo guiado. Quase protegido. Era uma sensação
reconfortante.
Muito sutil, mas bem firme. Como se alguém invisível e
muito próximo permanecesse atento a tudo. Poucas horas antes,
por exemplo, este desconfiado explorador batia-se numa
batalha consigo mesmo, atormentando-se pela falta de
dinheiro. Pois bem, de repente, essa força(?) teceu o Destino
de tal maneira que um desconhecido acabara por dar-me o
equivalente a trinta denários de prata. Uma quantia mais que
suficiente para sair do impasse. Podia-se chamar de
casualidade? Com o tempo, como já referi, o Rabi da Galiléia
nos demonstraria que nada é fruto do acaso. Lamento por meus
colegas, os cientistas...
Na altura de Migdal, segundo o planejado, estabeleci
comunicação com o berço. Graças aos céus, aqueles últimos
oito quilômetros transcorreram sem contratempos.
Por volta das 18h00 a uns quarenta minutos do crepúsculo -,
depois de verificar que a estrada para Nahum estava
desimpedida e deserta, peguei a suave ladeira do monte das
Beatitudes, à procura do módulo invisível. A entrada na nave
seria mais fácil e mais simples do que eu havia suposto.
Ainda que eu estivesse sem as lentes de contato, Eliseu, com
a ajuda do radar, foi-me dirigindo com precisão. Também

orientado pelos canteiros de anêmonas vermelhas e as flores
violetas dos cardos, que atapetavam aquela encosta do
promontório, alcancei o limite do primeiro cinturão de segurança
que rodeava o berço: cento e cinqüenta pés (cinqüenta
metros). E seguindo as instruções de meu irmão, parei.
- Roger a voz de Eliseu soou forte e clara através da
comunicação auditiva -, passo agora a desativar a barreira IR.
Câmbio.
- OK! Pronto para avançar. Câmbio.
- Adiante! - brincou meu irmão-. Se o filho pródigo não ordenar
o contrário, desligarei o escudo gravitacional ao descer a
escada. Câmbio.
Olhei novamente em volta. Tudo parecia tranqüilo.
- De minha parte repliquei não vejo inconvenientes. Há
algum target?((19) Câmbio.
- Negativo. Tudo limpo na tela. Câmbio.
- Entendi limpo... câmbio.
- Roger. Quando quiser.
Depois de haver interrompido a poderosa emissão de ondas
gravitacionais que envolviam a nave até uma distância de trinta
pés, Eliseu ativou o mecanismo hidráulico da escada.
Era esse um dos momentos mais críticos da entrada. Para um
hipotético observador, a pequena escada metálica surgia do
nada, mantendo-se na vertical como por magia sobre a
plataforma de rochas onde repousava o berço invisível.
Claro que essa assombrada testemunha também não teria
compreendido a cena seguinte: um indivíduo subindo
apressadamente por aquela escada e desmaterializando-se
pouco a pouco, à medida que subia os degraus.
Por sorte, nada disso aconteceu. A colina estava mesmo
deserta. Uma vez dentro da nave e puxada a escada, Eliseu
reativou o duplo cinturão de proteção e recebeu-me de braços
abertos. Emocionados, sem muitas palavras, comentamos que

aqueles cinco dias nos haviam parecido uma eternidade.
O resto da jornada transcorreu rapidamente. Eliseu,
recuperado de sua fErida na testa, foi o primeiro a relatar as
novidades. Na realidade, nenhuma ou quase nenhuma, graças a
Deus. A nave operava sem problemas e os estudos sobre o
misterioso corpo glorioso do Ressuscitado, e o não menos
enígmático fenômeno registrado no sepulcro da madrugada do
domingo, 9 de abril, haviam evoluído... relativamente. Mas
desse tema vou ocupar-me mais para a frente.
Quando me coube a vigília, procurei fazer-Lhe uma síntese a
mais precisa possível de tudo que me havia acontecido naquela
viagem a Nazaré. Soube escutar-me em silêncio, quase sem
interrupções. E dessa feita, seguindo minha intuição, preferi não
Lhe ocultar nenhum dos problemas que nos envolviam. Na
seguinte ordem: Primeiro, e mais crítico: falta de dinheiro.
Tínhamos apenas um aureus. (Eliseu respeitou minha vontade de
guardar o denário da Senhora.) Com sorte, talvez pudéssemos
trocá-lo por trinta ou trinta e cinco denários de prata. Mas esse
montante só daria para uma ou duas semanas, mesmo bem
administrados.
No máximo, três. Se não encontrássemos uma solução a
Operação teria de ser abortada.
Segundo: as medidas de segurança dos exploradores. Era
mister reforçá-las. Uma situação como a da caverna do saduceu
não podia repetir-se.
E, terceiro e não menos importante, a atitude de alguns dos
íntimos do Mestre de franca hostilidade a mim obrigava- nos
a rever a forma de trabalho nas fases imediatas da missão.
Apoiando-me nessa lamentável realidade, propus-Lhe a
possibilidade de adiantarmos o terceiro salto no tempo.
Apesar do cansaço, durante boa parte da noite ocupamo-nos
da exaustiva análise desses imprevistos. Eliseu, longe de ceder
à tentação de suspender a missão, mostrou-se sensato e
entusiasmado. Foi ele quem injetou ânimo e acabou por dissipar
o pessimismo que tomara conta de mim.

Prometeu ocupar-se do ingrato assunto do dinheiro. E a julgar
pelo sorriso maroto devia ter algo em mente. Creio mesmo que o
tivesse, mas como fosse muito vivo soube guardar silêncio para
uma ocasião mais oportuna. As surpresas o fascinavam! Também
falamos da utilização dos dispositivos técnicos como fonte
extra de ingresso. A recente experiência com o laser de gás
havia sido promissora. Mas ao mesmo tempo tivemos de admitir
que esse tipo de aventuras trazia em si grandes riscos e
mereciam uma análise mais demorada. Não o descartamos, mas
deixamos nas mãos do Destino.
Quanto às medidas de segurança, Eliseu adorou a idéia de
estrear o sistema que havíamos batizado como tatuagem. No
dia seguinte, com a ajuda do computador central, pusemos mãos
à obra. No domingo, 30 de abril, resolvemos prová-lo sobre o
terreno.
O último problema, duplo, e o mais abstrato, foi o que nos
tomou mais tempo. Não era fácil recuperar a amizade de João
Zebedeu e de outros íntimos do Mestre claramente influenciados
pelo filho do trovão. O desenvolvimento das três seguintes
missões obrigava-me a permanecer junto ao grupo. Minha
posição, evidentemente, não era cômoda. Como consegui-lo?
Procurando animar-me, meu irmão fez-me ver que talvez eu
estivesse exagerando. Nem todos os discípulos partilhavam a
intransigente posição do Zebedeu. Além disso, contava eu com
o incondicional apoio da Senhora e seus filhos. Maria, de certo
modo, sabia da verdade. Mesmo sabendo das desvairadas e
neuróticas reações do discípulo amado (?), não me mostrei
otimista. E não me enganaria.
Claro, a sugestão de adiantar o salto no tempo entusiasmou
meu companheiro. Ele, mais do que eu, estava louco para sair
ao exterior e compartilhar a vida do Mestre. Mas à medida que
avançávamos na tão esperada aventura a crua realidade foi
colocando as coisas no seu lugar. Primeiro: nem Eliseu nem eu
nos havíamos sentido tranqüilos deixando pela metade a
missão oficial. O dever e nossa própria curiosidade nos
forçava a terminar o já iniciado. Por outra parte, além do
problema monetário, faltavam as datas. Este explorador não

havia ainda conseguido a informação exata sobre as datas dos
acontecimentos da chamada vida pública do Filho do Homem. Em
parte, como já expliquei, porque nem mesmo os apóstolos
estavam de acordo quanto a recapitular esse momento
transcendental. Sem contar que não podíamos abusar das
inversões de massa dos swivels dado o mal que já nos afligia.
O terceiro e extra-oficial salto devia ser executado com a
máxima precisão e para isso tínhamos de aproveitar as três
últimas incursões obtendo, fosse como fosse, o ano e mês
precisos. (O que não imaginava é que tal informação chegaria,
curiosamente, pelas mãos de alguém que não pertencia ao
colégio apostólico.) Por último, concordamos que os
preparativos para tão prolongada, complexa e arriscada missão
achavam-se ainda muito crus. Necessitávamos um salvo-conduto
especial que garantisse na medida do possível nossa segurança
no território de Israel, de ponta a ponta. Tal documento,
logicamente, só seria obtido do governador romano. Por isso é
que minha presença em Cesaréiahabitual residência de Pôncio
fora programada para a semana seguinte.
E como esquecer o novo assentamento do berço? A
definição e o acondicionamento da base-nave-três não era
tarefa simples e rotineira. Mas o sono e o cansaço terminaram
virando a página daquela intensa e fascinante sexta-feira.
*NOTAS
(1)Maiores informações em meu livro Testamento de São João.
(N.A.) (Editora Mercuryo, 1989, São Paulo.)
(2) A título de orientação vou dar alguns exemplos, em vigor na época de
Jesus de Nazaré, sobre a absurda, complexa e, em alguns casos, ridícula
legislação sobre a comunidade judaica em relação aos pagãos. Uma legislação,
insisto, baseada exclusivamente no aspecto religioso. Vejamos: três dias antes
das festas dos gentios, os judeus proibiam todo tipo de comércio com os
chamados pagãos. Não podiam emprestar dinheiro ou qualquer objeto nem
tampouco recebê-los. A Lei obrigava-os até a não receber dinheiro nem pagar
dívidas. A justificativa para isso dizia: ao concluir o contrato comercial, o
pagão ficaria satisfeito e aproveitaria a festa para agradecer a seu ídolo, o
que teria sido causado pelo israelita, de forma indireta. (Tratado abodazara,
capítulo I,1.) O critério para marcar essas festas pagãs já trazia em si

üma arbitrariedade que constituía um permanente engodo para os judeus.
Segundo a norma religiosa, eram consideradas festas não-judaicas as
calendas (para uns, o primeiro dia do ano e para outros, o primeiro de cada
mês); as saturnais (festas de Saturno: dia 17 de dezembro, a oito dias do
solstício); o dia do aniversário ou subida ao trono dos reis; o dia da vitória de
Augusto sobre Cleópatra; o dia do aniversário de um indivíduo; o de seu
falecimento, com uma curiosa exceção: se o indivíduo fosse cremado, aí seria
culto idolátrico; a primeira vez que o jovem se barbeasse ou cortasse o cacho,
o que marcava a sua entrada na puberdade; o dia em que um gentio regressa
de uma viagem marítima (?); o dia em que sai da prisão e, por fim, até o dia
em que um pagão festeja o casamento de seu filho.
A meticulosa tradição mosaica estabelecia até que era proibido vender
frutos e animais aos gentios naquelas festas, para que não fossem oferecidos
aos ídolos. Por exemplo: incenso, abacaxi, figos brancos (com seus cabinhos) e
galos brancos. Para alguns sábios, era autorizada a venda de galos brancos
sempre que também fossem vendidos galos de outras cores. Ao comprar outros
galos, juntamente com o branco - argumentavam: o pagão mostra que não vai
usá-lo com fins idolátricos. Outros doutores da Lei permitiam o comércio de
galos brancos se antes Lhes fosse cortado um dedo, pois com esse defeito
estaria inutilizado para o culto. Tampouco era lícito vender-Lhes gado ou
asnos, defeituosos ou não. O raciocínio era igualmente estranho: o gentio
podia trabalhar com ele nos Sabbaths e Yahweh havia estabelecido que
também o gado devia descansar nesse dia. Leões, ursos e qualquer outro
gênero de feras eram proibidos porque podiam causar danos às pessoas.
Essas leis opressivas confundiam muitos dos preceitos de Yahweh, levando a
interpretações racistas. Por exemplo, não podiam deixar o gado nas pousadas
dos gentios porque diziam são suspeitos de praticar a bestialidade. E
invocavam o Levitico (19,14). Quando se lê essa passagem é fácil entender
que a advertência de Yahweh não era dirigida unicamente aos pagãos: Não
amaldiçoarás o mudo nem colocarás obstáculos diante do cego, mas temerás o
teu Deus. Eu sou Yahweh.
Tampouco era permitido a uma mulher judia permanecer a sós com um gentio
porque segundo a Lei - eles são suspeitos de incontinência(San. 21 a b).
Quanto aos varões israelitas, as normas eram as mesmas. Razão: os pagãos
são suspeitos de intenções homicidas.
A prática da medicina não era uma exceção para a rigorosa legislação
religiosa dos judeus. Um médico gentio e esse era o meu caso podia curar
um israelita, sempre e quando o fizesse por dinheiro. Se a cura fosse gratuita,
o judeu caía em pecado de idolatria. (Segundo Guemara, a cura do dinheiro
era também a cura dos animais. A cura do corpo, ao contrário, referia-se a
uma pessoa.) A situação chegava a tal extremo que um judeu, por exemplo,
não podia ter seus cabelos cortados por um pagão, em nenhuma circunstância.
Claro que, quando existia a possibilidade de obter algum benefício
econômico, as normas judaicas faziam concessões desconcertantes. Vejamos

algumas: Era proibido beber o leite que tivesse sido extraído da vaca por um
gentio, se um judeu não o estivesse assistindo. Mas era permitido
comercializar o leite. Se a ordenha fosse assistida por um judeu, o leite ia para
o consumo dos judeus. O mesmo acontecia com o pão, azeite, legumes cozidos,
conservas, peixes, etc.
Um pagão podia pisar a uva ao lado de um israelita. No entanto, a Lei
proibia que ambos a colhessem juntos.
Por último, para encerrar este interminável quadro de aberrações, vou
relembrar ao hipotético leitor deste diário que todo judeu ou judia que
comprava ou recebia qualquer objeto das mãos de um gentio achava-se na
obrigação de purificá-lo antes de seu uso. Se fossem utensílios de metal ou
vidro, havia que submergi-los para que ficassem limpos da natural impureza
dos pagãos. Se se tratasse de facas, bastava que fossem afiadas novamente.
No caso de carnes, deveriam ser levadas ao fogo purificador. (N. Do m.)
(3) Ampla informação em Operação Cavalo de Tróia 4, pp. 40 e 55. (N.
A.)
(4) A tradição oral religiosa dos judeus, posta por escrito na segunda
metade do século II, ou talvez na primeira década do III, dizia a respeito: Os
seguintes deverão ser lapidados: aquele que mantém relações sexuais com sua
mãe ou com a mulher de seu pai, ou com a nora, ou com um varão ou com um
animal, a mulher que leva um animal (para copular com ela), o blasfemo, o
idólatra, o que oferece seus filhos a Molok, o nigromante, o adivinho, o
profanador do Sabbath, o que difama o pai ou a mãe, o que copula com uma
jovem prometida, o indutor (que índuz alguém à idolatria)esse podia ser o meu
caso, à luz da legislação religiosa judaica -, o sedutor (que leva toda uma
cidade à idolatria: Deuteronômio 13,13), o feiticeiro e o filho obstinado e
rebelde. Se alguém manteve relações sexuais com sua mãe, é culpado por ser
sua mãe (Levitico 18,7) e por ser a esposa de seu pai (Levitico 18, 8). Se
alguém mantiver relações sexuais com a mulher de seu pai, é culpado por ser
ela a mulher de seu pai e a mulher de um varão (Levitico 18,20), seja seu pai
vivo ou falecido, esteja ela só desposada ou já casada. Se alguém mantiver
relações com sua nora, é culpado por ser ela sua nora (Levitico 18,15) e por ser
a mulher de üm varão, seja durante a vida de seu filho e depois de ele
falecido, seja ela desposada ou casada. Se alguém mantiver relações com um
varão ou com um animal, ou se uma mulher copular com um animal morrerão
lapidados (Levitico 20, 15-16). Se o homem peca, que pecado comete o
animal? Porque através do animal o homem cai em pecado, assim fala a
Escritura sobre ele: Será lapidado.
Outra explicação: para que o animal não cruzasse a praça e dele se
dissesse: Por causa dele foi lapidado fulaninho. (A honra obriga a que se
evite lembrar o crime dessa pessoa.) (Sinédrio 7, 4.) (N. Do m.)
(5) O caminho desdobrava-se em um ramal que ia para o sudeste, na
direção do monte Tabor, e uma segunda pista pela qual caminhávamos que
morria em Nazaré. (N. Do m.)

(6) Ver informação em Operação Cavalo de Tróia 2, p. 130.
(7) Como simples referência, à guiza de orientação, darei os preços de
alguns produtos básicos. Uma ração de pão de trigo, por exemplo, saía a dois
asses (um denário de prata equivalia a vinte e quatro asses). Dez ou doze
figos podiam ser comprados na Galiléia por um asse. Na Cidade Santa, por
outro lado, por esse mesmo valor só se conseguiam três ou quatro.
Uma medida de leite (um log: por volta de 600 ml), um asse.
Meia dúzia de ovos, entre dois e três asses. Uma rola não custava menos
que 1 /8 de denário. Dois qinnim (ninhos de pássaros), seis asses. Um kab (um
pouco mais de 2 kg) de frutas, dependendo do gênero, entre 1 /4 e 1 /8 de
denário.
Dois log de azeite, entre dez e doze asses. Quanto ao vinho, segundo sua
origem e qualidade, oscilava entre três ou quatro denários o bat (por volta de
301). (N. Do m.)
(8) Como sabem os especialistas em laserterapia, a energia lüminosa é
absorvida pelos tecidos, estimulando ou modificando os processos
metabólicos. O professor Pollack, da Universidade da Filadélfia, demonstrou
que a ação do laser sobre as células provoca a transformação de ADP em ATP
acelerando o tempo da mitose. Por isso esse tipo de radiação contribui para
que a reconstituição e a normalização dos tecidos seja mais rápida,
favorecendo a síntese de NA e RNA sem alterar as características genéticas e
hiscofuncionais da célula.
Segundo os expertos, os principais efeitos biológicos do laser podem ser
sintetizados nos seguintes termos: aumento do fluxo hemático por
vasodílatação arterial e capilar, com a conseqüente ação antiflogística,
antiedemosa e estimulante do metabolismo celular; modificação da pressão
hidrostática intracapilar, com uma melhor resposta para absorção dos líquidos
incersticiais e a eliminação ou redução dos edemas; aumento do grau de
percepção das terminações nervosas algotropas, com o óbvio benefício
analgésico; estímulo da regeneração eletrolítica do protoplasma celular,
acelerando assim os processos metabólicos; fulminante açáo antibacteriana,
provocando o reforço do sistema imunológico e a multiplicação dos anticorpos.
(N. Do m.)
(9)Em uma das normas surrealistas (quase hitleriana), Yahweh dizia
textualmente: O homem que tiver os testículos amassados ou o pênis mutilado
não será admitido na assembléia de Yahweh. O bastardo não será admitido na
assembléia de Yahweh, nem sequer na sua décima geração. Sem comentários.
(10) O problema fundamental, ou seja, o que era entendido por bastardo,
era tema de muitas discüssões entre os doutores da Lei, àquele tempo. Em seu
raciocínio tão sábia e ardorosamente combatido por Jesus de Nazaré -,
aqueles sábios consideravam três grandes possibilidades: a) Deviam ser
qualificados como mamzer todos os descendentes de uma união proibida pela

Torá,. Ou seja, incesto, adultério, etc., excluindo-se os nascidos da união entre
um sumo sacerdote e uma viúva. Também eram bastardos os filhos de uma
halüsah (viúva de um homem falecido sem descendência, cujo irmão negava o
matrimônio levirático com a cunhada); a prole de uma mulher que tornava a
casar-se baseada no anúncio de sua viuvez, mas que mais tarde era
comprovado o engano; o filho nascido de um casamento legítimo no qual a
mulher nunca o marido estava sob suspeita de adultério, e a descendência
de uma mulher divorciada, cujo documento de repúdio levava a assinatura de
um escravo, em lugar de uma testemunha legalmente qualificada.
b) Para outros rabinos, o significado jurídico de mamzer era estabelecido,
única e excusivamente, pelas alusões da Torá e as penas de morte
relacionadas às uniões sexuais não autorizadas. Suas opiniões eram
respaldadas no texto do Levitico (20, 10-21). Entre outras faltas castigadas
com o extermínio trinta e seis no total destacavam-se, por exemplo, o
incesto, as relações com a cunhada, com a irmã da mulher divorciada e, até o
ato sexual durante o período da impureza menstrual. Os filhos gerados nos
primeiros casos entravam de cheio na qualificação de bastardos.
c) O último critério o mais moderado (?) - considerava mamzer os nascidos
de üma união ameaçada pela Torá com uma pena de morte legal. Ou seja, os
filhos gerados em circunstâncias que Yahweh havia condenado com as penas
de lapidação, abrasamento, decapitação e estrangulamento.
Por exemplo: se um homem mantivesse relações sexuais com uma mulher
que fosse jovem (entre os doze e doze anos e meio: idade de casamento entre
as hebréias), virgem, prometida em matrimônio, e se encontrasse em casa de
seu pai -, com ou sem o seu consentimento, o varão era condenado à
lapidação. Se para o ato houvessem concorrido dois homens, o primeiro
morreria por lapidação, o segundo por estrangulamento. Se nascesse um filho
de tal união seria marcado para sempre como bastardo. Da mesma maneira,
como já citei em páginas anteriores, eram igualmente réus de lapidação
aqueles que mantivessem relações sexuais com sua mãe, com a mulher de seu
pai, com a nora, etc. Se descendência houvesse, seriam todos mamzerim.
A esse tenebroso panorama havia que acrescentar os Filhos gerados entre
judeus e escravos.
A aberração e loucura desses jaber (os que observavam escrupulosamente
as leis da pureza) chegavam ao extremo de tachar como bastardos os filhos de
um casal em que a impotência do marido fosse pública e notória. Naturalmente
não existia diferenciação entre origem orgânica e psíquica, registrando-se,
pois, os lamentáveis erros e injustiças bastante conhecidos hoje pela medicina.
(Pouco importava se a impotência fosse passageira. A suspeita recaía sobre a
família como uma maldição.) (N do m.)
(11) Hillel (em 20 a.C.), partindo de um fato bastante freqüente as
mulheres grávidas no período dos esponsais (espécie de noivado) -, enfrentou
a opinião generalizada dos doutores da Lei, que considerava os filhos dessa
união bastardos, argumentando que, ao não existir casamento propriamente

dito, a possível descendência não podia ser julgada como gerada no adultério.
Trazei-me os contratos matrimoniais de nossas mães, disse-Lhes. Eles os
levaram e mostraram o que estava escrito: Desde que entres em minha casa -
a partir das bodas, não dos esponsais -, serás minha mulher segundo a Lei de
Moisés e de Israel. Mas o razoável critério de Hillel como se vê no tratado
Sinédrio - e no KetxcbbotIV - não vingou. Em parte porque os judeus de
Alexandria haviam aberto um precedente, incluindo nos esponsais promessas
por escrito de casamento, ao estilo egípcio.
(12) Como uma simples orientação complementando as palavras do major
lembro ao leitor que os manuscritos mais antigos sobre os Evangelhos (o
chamado papiro p45) remontam aos princípios do século III. Ou seja, mais de
cem anos depois da escritura do último Evangelho, o de João.
Lamentavelmente, os códices que Constantino fez seu bibliotecário, Eusébio,
transcrever no século IV com textos do Antigo e Novo Testamento perderamse.
Os únicos que se conservaram são o Codex Sinaiticus e o Tiaticanus. Mas
esses códices originam- se de fontes desconhecidas. Também existe um
fragmento evangélico pertencente, ao que parece, a Marcos, escrito em papiro
e encontrado na Caverna 7, em Qumran, no mar Morto. Esse texto, denominado
7Q5, que é tema de grandes discussões entre os expertos, poderia remontar
ao ano 50 d.C. Contém a passagem 6, 52-53. Referindo-se aos apóstolos,
depois de verem Jesus caminhar sobre as águas, diz textualmente: ... pois não
haviam entendido aquilo dos pães, já que sua mente estava embotada. A
respeito dos fragmentos mais antigos do Evangelho de Mateus - p64 e p77
-, tudo parece indicar que remontam ao final do século II. Evidentemente,
diante de semelhante pobreza de manuscritos evangélicos originais, os erros,
silêncio e manipulações - como aFirma o major impregnados nos textos que
chegaram até nós podem ser incalculáveis. E arrematarei esta nota com uma
tristemente célebre carta, que diz respeito a essas possíveis manipulações. Foi
dirigida a Anísio, bispo de Tessalônica, pelo papa Sirício, no ano 392.
Seu pontificado viu-se conturbado pelas heresias dos priscilianistas, que
praticavam um asceticismo exagerado, e pelas de Joviniano e Bonoso, que,
d'entre outras coisas, negavam a virgindade de Maria. Pois bem, na tal
missiva, Sirício (384-398) afirmava: ...Com razão sua santidade sentiu-se tão
horrorizado (referindo-se às opiniões de Bonoso) ao ouvir que do mesmo
ventre virginal do qual nasceu, segundo a carne, Cristo, pudesse ter originado
outro parto. Porque o Senhor Jesus não teria escolhido nascer no ventre de üma
virgem, se a julgasse capaz de incontinência e que, com o sêmen de uma união
humana, viesse a macular o seio no qual fora gerado o corpo do Senhor, aquele
seio, palácio do Rei eterno. Porque aquele que isso afirma, não afirma outra
coisa senão a maldade judaica dos que dizem que Ele não nasceu de uma
virgem.
Fica claro, portanto, que as críticas à virgindade de Maria vinham de longa
data e por parte daqueles os judeus que conheciam bem as Leis mosaicas.
(13) A deusa Fortuna representava para o mundo pagão o destino, com
todas as suas incógnitas. O culto que mais se destacava era o de Preneste, no

Lácio, onde, ao que tudo indica, üm tal de Numerius Suffustus descobriu umas
misteriosas tabuinhas (sortes) com inscrições mágicas. Num primeiro momento,
os habitantes de Preneste conheceram Fortuna como Primigênia (a primogênita
de Jupiter). Posteriormente seria introduzida em Roma, provavelmente durante
a segunda guerra púnica. Os romanos a veneraram sob vários nomes: Fortuna
publica popiili romani e Fortuna Muliebris (a que protegia as matronas univirae
ou casadas uma só vez). Era comum que uma estatueta de ouro de Fortuna
fosse encontrada nos dormitórios dos imperadores e dos cidadãos que se
achassem favorecidos pela sorte. Destes se dizia que possuíam uma Fortuna.
Tyche chegaria a converter-se na protetora das cidades-fortaleza, dos
navegantes e pescadores. De fato, muitas das embarcações do Kennereth
levam-na na proa.
Contava-se que Fortuna havia recebido de seu pai, Zeus, o poder de decidir
sobre a sorte dos homens e das cidades. Uma deusa caprichosa que honrava a
pagã, volúvel e cosmopolita pérola do yam.
(14) Como pudemos verificar nas sucessivas visitas, Tiberíades construída
por rodes Antipas sobre uma antiga necrópole era qualificada pelos judeus
ortodoxos de cidade maldita e abominável. Como explica Flávio Josefo, em
Antiguidades (XVIII, 2-3), para vencer a resistência dos israelitas a povoar a
cidade, Antipas viu-se obrigado a libertar milhares de escravos, com a condição
de ali se estabelecerem. E com esses escravos também chegaram centenas de
zelotes ou qanaítas, assim como uma infinidade de assassinos, ladrões e
mamzerim.
(15) O pesadelo das proibições do Sabbath chegava a extremos tão
pitorescos como estes: a Lei judaica, por exemplo, não admitia o transporte de
palha, ainda que somente fosse para encher a boca de uma vaca. Tampouco
era autorizado o transporte de vinho (era considerado pecado se a quantidade
fosse superior a 1 /4 de log 150 ml). Era igualmente delito o transporte de um
mínimo de leite ou mel, numa quantidade para passá-los numa ferida de
homem ou animal, de azeite para passar no dedo de um recémnascido, de
água para diluir um colírio e, enfim, qualquer líquido (até ¼ de log) ou
substância que pudesse ser derramada. Também era proibido o transporte de
corda, de pimentão, óleo de peixe, perfumes, metais, pedras de altar e até as
partes deterioradas de um livro (em qualquer quantidade). Em sua loucura, a
lei proibia até o transporte de algo com a mão direita ou com a esquerda, no
peito ou sobre as costas porque assim costumavam transportar coisas os filhos
de Coat (segundo Números 7, 9, eles eram os encarregados de levar nas costas
os objetos do Tabernáculo). Por outro lado, era lícito transportar qualquer coisa
nas costas da mão, nos pés, na boca, no dedo, na orelha, nos cabelos, nas
sandálias ou numa sacola com a boca virada para baixo. Essa absurda
legislação, como é fácil de imaginar, dava lugar a situações realmente cômicas.
(16) Segundo a antiga escala de Mohs, o diamante está na mais alta
graduação dos níveis de dureza, com 10 pontos.
(17) Como já citei em outras oportunidades, este laser de gás (com base no

dióxido de carbono) foi programado como um elemento diversionista, para ser
utilizado em animais ou objetos inanimados. A potência podia ser regulada
entre frações de watts e várias centenas de quilowatts. Por causa de sua
natureza militar, não estou autorizado a falar a respeito de suas principais
características. Mas posso dizer, que graças a seu alto grau de rendimento e
facilidade de dispersão técnica, prestou excelentes serviços à missão.
(18) Esse laser era capaz de perfurar o titânio (a uma potência de 20.000
watts) à razão de 10 cm/s.
(19) No jargão aeronáutico, um objeto captado pelo radar. (N do m.)
29 DE ABRIL, SÁBADO
Despertei em sobressalto. Quase o havia esquecido. O
computador central, nosso fiel Papai Noel, não entendia de
pássaros. E fazia muito bem. Meu irmão, depois de observar o
visor, me tranqüilízou. Algumas aves madrugadoras, em bandos,
como a cada amanhecer, ao penetrarem no escudo infravermelho
haviam feito saltar os sinais acústicos e luminosos do panel
panic. E isso era inevitável nesse mecanismo. Pouco a pouco,
porém, nos iríamos acostumando. Mais do que isso, ficaríamos
agradecidos. As pontuais irrupções das colônias migradoras e
autóctones em torno da nave se converteram no meLhor
despertador para nós, extenuados exploradores.
Dessa vez, ao contrário, não se tratava das alegres e
confiadas pombas ou rolas, tão abundantes nos alcantis do har
Arbel. Ao chegar a uma das escotilhas descobri contrariado que
os intrusos eram pretos e fúnebres corvos de cauda em leque
(Corvus chipidurus), comedores de carniça, recebidos sempre a
pedradas pelos supersticiosos judeus. E apesar de minha
suposta inteligência vi-me contagiado por aquele sentimento de
rejeição. Como terminaria a jornada?
Eliseu me chamou à realidade imediata. As leituras dos

sensores externos do berço pareciam as melhores possíveis.
O emagrama de Stiive apresentava inversão térmica, calma
no mar (ao redor de 1020 mb), pressão em ascensão,
visibilidade ilimitada e uma temperatura preocupante para as
primeiras horas da manhã: 15 graus centígrados no orto solar
(05h 15).
Depois de um excelente café da manhã à americana
certamente -, enquanto meu irmão atacava com entusiasmo o
preparo da delicada tatuagem (o dispositivo de segurança
que deveríamos usar na indispensável exploração do lugar em
que assentaria em definitivo a nave), eu repassei pela enésima
vez o plano previsto para aquele sábado.
Ao abandonar o lago, a caminho de Nazaré, a situação era a
seguinte: Na manhã de 23 de abril, o impulsivo Simão Pedro
iniciou um apaixonado discurso diante do casarão dos Zebedeu,
em Saidan.
Desejava abrir os olhos à boa nova da Ressurreição de
Jesus à multidão que se concentrava na aldeia. Mas a prédica
foi interrompida por alguns de seus companheiros.
Como já relatei, naquele domingo se registraria uma
desagradável polêmica entre os íntimos de Jesus. Parte dos
discípulos, com o fogoso e irrefletido Pedro à frente, decidiu
que havia chegado o momento de sair pelos caminhos e
anunciar o formidável acontecimento da Ressurreição. Esse
grupo, com a aberta oposição de João Zebedeu, Mateus Levi e
André, o irmão de Simão Pedro, pretendia mais que o anúncio
de que o reino se iniciava em Jerusalém. (Pedro estava
convencido de que Jesus se achava definitivamente junto ao Pai
e que não voltaria durante um tempo.) João, todavia, baseandose
em algo que Lhe fora dito pelo próprio Ressuscitado na
última das aparições, defendia o contrário: convinha esperar no
lago até que se produzisse a terceira presença do Mestre.
Essa polêmica criou uma situação explosiva. Pedro, irritado,
enfrentou os dissidentes. Mas, covarde e inseguro como sempre,
se vingou em seu irmão, humilhando-o por duvidar de suas
palavras. Finalmente firmaram uma trégua. Se o Ressuscitado

não aparecesse em uma semana, Simão Pedro seguiria adiante
com seu plano. E, regressando para junto do gentio, os
convocou para a hora nona (três da tarde) do sábado, (2), na
praia da aldeia. Então falaria abertamente.
Não me cansarei de insistir nisso. Aquela disputa seria o
princípio do fim. Estávamos assistindo ao nascimento de um
líder Simão Pedro, e a uma irremediável divisão entre os
onze. Uma ruptura ideológica que culminaria nos célebres e
manipulados fatos registrados na festa de Pentecostes.
Enquanto o grupo de Mateus Levi, o publicano, pretendia
estender a autêntica mensagem do Mestre (a realidade de um
Deus-Pai e a fraternidade entre os homens), Pedro e os demais,
deslumbrados pela Ressurreição, centraram as prédicas na figura
do Rabi da Galiléia. E surgiria uma religião a propósito de
Jesus. Mas não antecipemos os acontecimentos. O que
importava naquele momento é que nos achávamos ao final da
trégua firmada havia pouco.
Agora, tudo dependia da suposta nova aparição do Galileu.
Mas aconteceria mesmo? E, no caso afirmativo, onde e
quando? Só o que estava claro naquele quebra-cabeça era que,
se a nova presença não se desse, Simão Pedro, cumprindo o
prometido, se dirigiria à multidão às três da tarde na praia de
Saidan.
Meu trabalho, em decorrência, consistiria em permanecer o
mais próximo possível dos discípulos, tentando assistir ao
prodígio, supondo que ocorresse. A aparentemente simples
tarefa tropeçava, todavia, com dois inconvenientes. Primeiro: a
já conhecida hostilidade de alguns dos discípulos para comigo.
Isso podia embaraçar o desenvolvimento do meu trabalho.
Segundo: a possibilidade, nada remota, de que os apóstolos
houvessem embarcado na noite anterior para pescar, como de
costume. Isso continha um risco: que a pretendida aparição do
Mestre ocorresse naquela madrugada tendo os apóstolos como
únicas testemunhas. De fato, isso acontecera na sexta-feira, 21
de abril.(1)
Se assim fosse, parte daquela missão haveria fracassado.

Admitimos também a hipótese de uma aparição ao longo do
dia e em lugar fechado. Tampouco seria novidade. Onde? Pela
lógica, no casarão dos Zebedeu. Ali se refugiavam os discípulos
e, presumivelmente, se a viagem fosse normal, os
expedicionários procedentes de Caná. Esses, junto a Natanael,
o urso, deviam ter chegado a Saidan às primeiras horas do dia
anterior. E deduzi que ali permaneceriam. Mas, obviamente,
tudo não passava de especulações.
O difícil dilema nos levou a preparar o lançamento de um dos
olhos de Curtiss. Mas para onde? E no caso de não
descobrirmos o local da aparição do Ressuscitado, quanto
tempo deveríamos mantê-lo no ar? Finalmente desistimos,
confiando em minha boa estrela. Faríamos da forma habitual:
apostamos por uma investigação direta e no solo. Naturalmente,
como já terá adivinhado o hipotético leitor destas memórias, as
coisas se encadeariam ao contrário do que havíamos suposto.
Sem perda de tempo, às 9 horas, com o último par de
crótalos e a inseparável vara de Moisés, abandonei o
berço disposto a percorrer os sete quilômetros que me
separavam de Saidan, a aldeia de pescadores. Se eu tivesse a
fortuna de presenciar a nova aparição do Filho do Homem, o
plano era simples: alertar o módulo, via laser, e catapultar um
dos olhos. Mas como eu dizia, o homem propõe...
E ao inspecionar os arredores dei-me conta de um novo erro: a
estrada que margeava o extremo sul da nossa colina, ligando
Tiberíades a Migdal e Nahum, parecia estranhamente solitária.
Também o yam, azul e adormecido, apresentava pouca
atividade. Contei oito ou dez embarcações que, lutando à força
dos remos, ou à deriva, próximo à costa oriental, aproveitavam
a amenidade da manhã para executar suas tarefas.
Estúpido que fui! Esqueci que nos achávamos num Sabbath.
Isso excluía a hipótese de que os discípulos do Rabi
houvessem embarcado. Ainda que a maioria não comungasse
com a enfermiça rigidez do descanso sabático, por interesse
pessoal procurava respeitá-lo no substancial.
Animado pelo que parecia um golpe de sorte, desci à via

maris. Apesar da ausência de caminhantes, por pura precaução
escolhi o rumo do circo basáltico que se abria na costa oriental
do promontório. Tomar o caminho principal pelo contraforte sul
teria sido arriscado.
Em minutos deixei a estreita e ziguezagueada pista de terra
avermelhada que partia da cripta localizada entre as enormes
moles de basalto.
Um cemitério de triste memória para Eliseu e para mim.
Tudo continuava praticamente igual. Os dourados campos de
trigo duro e escândea, castigados pelas recentes e fortes
chuvas, começavam a recuperar a verticalidade, dobrando as
cabeças ao peso das espigas.
Ao pisar a estrada romana, à vista dos negros muros de
Nahum, assaltou-me uma incômoda dúvida. Um dos objetivos
daquela incursão era trocar o denário de ouro. A trezentos ou
quatrocentos metros da cidade me perguntei se devia entrar e
aventurar-me na sempre irritante operação de câmbio. Absortos
nos problemas magnos, nem Eliseu nem eu havíamos dado muita
atenção a essa aparentemente secundária operação doméstica.
A experiência, todavia, nos iria ensinando. Nenhum desses
assuntos podia ser descuidado, por mais trivial que pudesse
parecer-nos. Alguns, como já tenho contado e espero seguir
relatando, chegariam mesmo a colocar-nos em situações
francamente conflitivas. Essa seria uma delas, para minha
desgraça.
Sendo Sabbath prossegui nas minhas reflexões -, o rotineiro
negócio podia alterar-se. Mesmo assim ponderei talvez
valesse a pena tentá-lo. Precisávamos de moeda fracionária.
Não era prático carregar uma única peça e de tão alto valor.
Indeciso, continuei a caminhar e cheguei ao labirinto de
hortas que circundavam Nahum no lado ocidental. Alguns
proprietários, quase ocultos entre os espessos sicômoros, as
elevadas nogueiras, as figueiras e as radiantes amendoeiras em
flor, ocupavam-se de estacar a terra e de reparar as muretas de
pedra basáltica. Ao ver-me, conhecedores da proibição de
trabalhos Sabbath, largaram precipitadamente as ferramentas e

as cestas de esterco, adotando as mais inocentes e
convencionais posturas. Elevavam os braços para o céu,
entoando aos gritos o Ouve, Israel ou correspondiam à minha
saudação com exageradas e hipócritas inclinações de cabeça.
( A Lei proibia até o transporte de esterco ou areia fina para
abastecer os talos de um alfarrobeiro.) E a poucos metros da
tríplice porta me detive. Que devia fazer? A questão ficou
prorrogada quase no mesmo instante, por obra e graça da
inevitável turba de mendigos, aleijados e truões que se agitava
sob os arcos, atento cada um deles à possível vítima. Não tive
ânimo para cruzar aquele viveiro de possíveis problemas. Passei
ao largo e deixei o câmbio para melhor oportunidade. Talvez na
volta de Saidan, consolei-me.
Assim, contornei Nahum para alcançar a pequena ponte sobre
o rio Korazin.
Instantes depois teria de admitir que a decisão de adiar o
câmbio não fora tão acertada como podia supor.
À minha frente, à direita do caminho, surgiu algo com que
não contava. Ou, melhor dizendo, que havia esquecido: a casa
térrea que servia de aduana entre os territórios de Filipo, ao
norte, e Antipas, seu meio irmão, pelas quais eu transitava.
E, como dizia, um problema aparentemente inócuo, o câmbio
de moeda, acabaria por complicar-se e me arrastar a uma
situação limite.
O estúpido esquecimento me transtornou. Se o guarda
reclamasse a taxa de trânsito, que não passaria de um asse (um
denário de prata equivalia a vinte e quatro asses), que poderia
eu fazer? Mostrar-lhe o aureus? Supondo que aceitasse, qual
seria o risco? Provavelmente ser furtado no câmbio.
Devia seguir? Neguei-me categoricamente. A presença de dois
soldados, junto de uma das enormes figueiras que sombreavam
a fachada do casarão, levou-me a ser cauteloso.
Simulando naturalidade, aproximei-me dos mercenários.
Quase nem me olharam. Continuavam conversando em um jargão
indecifrável para mim. Supus que fossem voluntários

geralmente sírios, trácios, espanhóis ou germânicos -,
integrantes das tropas auxiliares. Longe da rígida disciplina
imposta pelos suboficiais, e acossados pela alta temperatura,
se haviam desembaraçado das couraças anatômicas, dos gibões
de couro sobre os quais vestiam as armaduras e dos capacetes
metálicos. Tudo isso, junto com as lanças, espadas e escudos
quadrangulares, havia sido deixado a curta distância, à sombra
da árvore. Uma túnica vermelha, de mangas curtas até os
cotovelos, constituía o único vestuário... de momento.
Depois de uns segundos de vacilação, estranhando a
ausência do grego que revistara dias antes minha malograda
cesta de víveres, me atrevi a interrompêlos, perguntando pelo
funcionário. Não obtive mais que o silêncio e olhares hostis.
Supondo que não entendiam o aramaico galileu, repeti a
pergunta em koiné, o grego descafeinado de uso corrente em
todo o Mediterrâneo. O resultado não foi melhor. Foi pior ainda.
Sentindo-se molestados pela insistência daquele estrangeiro,
um dos mercenários, por única resposta, lançou uma cusparada a
um palmo das minhas sandálias. Estava claro.
Então, para evitar um possível incidente, dei meia-volta e
voltei para a estrada.
Felicitei-me pela ausência do funcionário. Mas a alegria durou
pouco. Um sonoro bastardo! me obrigou a parar. Em parte me
tranqüilizei: foi pronunciado em um péssimo aramaico.
Não me enganei. Ao me virar vi na porta o grego de gorro de
feltro e o distintivo de latão sobre a túnica. Autoritário, fez um
gesto para que me aproximasse. Obedeci contrariado. De maus
modos como se houvesse interrompido alguma coisa
importante -, perguntou-me o que queria. Dentro em poucos
segundos saberia o motivo da sua indignação.
Uma sensual voz feminina fez-se ouvir no interior da casa,
reclamando sua presença. Os soldados ilustraram a cena com
risadas mordazes. Aquilo só serviu para piorar a embaraçosa
situação. O aduaneiro, roxo de raiva, perdeu a pouca paciência
e, considerando-me cúmplice dos guardas na pouco caritativa
interrupção, ergueu a mão para esbofetear-me.

Detive o golpe, prendi-Lhe o punho direito com uma rápida
chave e dobrei-Lhe o braço nas costas, imobilizando-o.
Surpreendido, gemendo, chamou em seu auxílio os
mercenários.
E antes que me desse conta as brilhantes pontas em flecha
dos dardos oscilavam, ameaçadoras, diante da minha garganta.
Soltei o aduaneiro e, tentando acalmar os ânimos, fiz-lhes ver
que só queria pagar a taxa e retomar o caminho para Saidan. E
aí cometi o pior dos erros. Levado por uma ingenuidade tão
comovente quanto perigosa, peguei a bolsa de borracha e
mostrei o denário de ouro.
Eu devia prever. A aparição do aureus foi milagrosa.
Suspeitosamente milagrosa. O grego e os soldados mudaram
a agressiva atitude e logo, baixando os dardos, fizeram-se
modelo de cordialidade e boas maneiras.
A um sinal do funcionário, os mercenários voltaram para
debaixo da árvore. E o grego esqueceu até as obscenas
reclamações da mulher. Desfez-se em fingidos elogios à minha
coragem e destreza e pediu-me que desculpasse sua conduta. A
seguir tomou-me pelo braço, me acompanhou até a via maris e
me disse que eu não era obrigado a pagar pedágio uma vez
que não trazia bagagem. Senti-me um perfeito imbecil. Aquela
falha de informação poderia ter-me custado muito caro.
Desconcertado, nem sequer suspeitei das intenções do
corrupto funcionário e seus sequazes. Ainda tinha muito que
aprender.
O maldito grego despediu-se com uma reverência forçada,
recomendando-me que fosse precavido no caminho para
Saidan.
Como disse, não adivinhei a razão daquela súbita e singular
mudança. Mas não tardaria a descobrir.
Um pouco mais sereno, cruzei a ponte e tomei a vereda de
terra que nascia nos contrafortes da estrada. A via maris, como
eu já mencionei a seu tempo, assim que atingia as terrosas

águas do Korazin, infletia bruscamente para o norte, perdendose
entre olivais e plantações de cereais.
A partir do rio, por espaço de quilômetro e meio, a senda era
espaçosa, com algumas formações rochosas à esquerda e as
tranqüilas águas do lago a pouco mais de cem metros pela
direita. Daí seguia até o fundo de um wadi, ou depressão pouco
profunda, improdutivo e de rampas salpicadas de arbustos de
alcaparra, cardos, giestas e outros. Aquele era o ponto mais
afastado da costa: ao redor de meio quilômetro. Dali até o
Jordão, com algumas suaves curvas, a vereda penetrava em um
sombrio e espesso bosque de tamasqueiras e grossos álamos
do Eufrates. No total, da aduana até as rápidas e barrentas
águas do rio bíblico, devia percorrer uns três quilômetros e
meio.
E, prudentemente, ao descer pelo wadi, fiz a última conexão
auditiva com o módulo. Aquele barranco a quinze mil pés do
berço - era o limite. A partir dali só poderia enviar sinais via
laser -, mas sem possibilidade de resposta da parte de meu
irmão.
Por sorte, absorvido em seu trabalho, Eliseu havia mantido
fechado o canal auditivo. (Por causa do penoso incidente na
cripta funerária do circo basáltico, essa conexão fora retificada,
podendo ser aberta por qualquer dos pilotos.(2) Se tivesse
ficado aberto, Eliseu teria tomado conhecimento do
desagradável incidente na aduana. E na crença de que o
episódio, superado que fora, não merecia maior consideração,
ocultei-Lhe o ocorrido. Mas Eliseu sagaz como sempre
interrogou-me. Sabendo que a partida do berço fora
registrada no computador às 9 horas e que o tempo empregado
normalmente até Saidan não devia superar uma hora e meia,
como se explicava que a conexão se desse às 10 e a meio
caminho da aldeia? Não querendo inquietá-lo improvisei uma
escusa que em parte se aproximava da verdade: me demorara
por ter pensado em conseguir a troca do aureus. Não ficou
convencido e insistiu em que eu redobrasse a prudência, pelo
menos até que a tatuagem estivesse no ponto de ser lançada.

Reconhecendo a sensatez do seu conselho penetrei no
cerrado bosque de álamos e tamasqueiras. E durante um curto
trajeto desfrutei o relaxante frescor e aroma da espessa
vegetação.
Os cinzentos, quase brancos troncos dos álamos (o Arbor
populi ou árvore do povo para os romanos) se estiravam,
desafiadores, até trinta metros de altura, formando uma
abóboda verde, púrpura, amarela e rosa. Por baixo, mais
humildes mas igualmente belos, se apertavam os Tamarixgallica:
as tamasqueiras, de três a seis metros, de troncos múltiplos,
ramificados desde a base e vestidos de escuro cinza. As folhas,
pequeníssimas, competiam em um verde-mar com os longos
penachos de florzinhas rosadas que rematavam a ramagem
horizontal, em permanente disputa com a sóbria verticalidade
de seus irmãos os álamos.
De súbito a paz foi interrompida por um rangido, que soou
nítido às minhas costas. Virei-me, pensando que podia tanto
tratar-se de um caminhante como de um animal. Inspecionei a
senda que serpenteava entre as árvores, mas não consegui
descobrir a origem do som. Não dei maior importância e retomei
a caminhada.
Instantes depois, porém, uns cochichos surdos me puseram em
guarda.
Virei-me de novo e a cerca de vinte metros me pareceu
distinguir uma sombra que se ocultava precipitadamente atrás
de um dos corpulentos álamos.
O instinto, acompanhado de um calafrio, me avisou que algo
não ia bem. Apanhei lentamente as crótalos e as adaptei aos
olhos. E as cores foram novamente traduzidas por meu cérebro.
O branco dos troncos tornou-se prata, o verde surgiu vermelho e
laranja e o azul-celeste mais escuro e marinho.
Aguardei tenso. Em pouco, percebendo que haviam sido
descobertos, dois indivíduos se destacaram sem ruído entre a
vegetação, entraram na pista e caminharam resolutos na minha
direção. Em frações de segundo tomei consciência do erro que
cometera na aduana e o porquê da brusca mudança de atitude

do funcionário.
Deixei-os avançar.
As túnicas vermelhas, agora pretas, e as espadas que
empunhavam briLhando em um branco refulgente os
identificaram de pronto. Também suas intenções eram claras.
Mas eu não estava disposto a ceder. O aureus continuaria
comigo.
Ao chegarem a cinco ou seis metros se detiveram. A intensa
caminhada que haviam feito para alcançar-me os havia coberto
de suor. Rostos, braços, mãos e pernas estavam como que
tingidos de uma ameaçadora cor azul verdolenga. Deslizei os
dedos até o cravo do laser de gás e me preparei.
Os soldados, apontando para mim as temíveis espadas de
duplo fio, indicaram a bolsa que pendia do meu cinto. Entendi
perfeitamente: exigiam a moeda.
Eu sabia que ainda que as entregasse minha vida não seria
poupada. Uma denúncia ao chefe da guarnição em Nahum
poderia acarretar-Lhes a morte por apaleamento.
Imóvel, com as mandíbulas apertadas e o semblante tenso,
aguardei a primeira arremetida.
Irritados diante da minha insolência, repetiram o gesto,
brandindo as espadas com impaciência e pronunciando a
palavra aureus, a única que pareciam dominar com perfeição.
Mas só obtiveram de mim o silêncio e um ricto de desprezo.
Paciência esgotada, um deles levantou o gladius acima da
cabeça, disposto a encerrar a reunião e assassinar-me da
maneira mais rápida. Nesse instante, um fio de luz negra
partiu do cajado fazendo a mira, com uma potência de cinqüenta
watts, nos dedos desnudos que sobressaíam entre as tiras da
sandália direita. Aos gritos o mercenário caiu aos meus pés.
A queimadura, ainda que superficial, o incapacitaria durante
algum tempo.
O segundo mercenário, atônito, não entendia o que via e não
soube o que fazer. E antes que reagisse, uma nova descarga,

desta vez de quinhentos watts, perfurou o metal da sua espada.
(O dióxido de carbono permitia cortar uma prancha de aço
flexível de 1,5 mm de espessura à razão de um centímetro a
cada 0,07 segundos.) Desvairado, com os olhos quase a sair
das órbitas, viu que um poder invisível incendiava e enegrecia
com a rapidez de um raio a espada que empunhava. E em 0,42
segundos a lâmina, de 6 centímetros de largura, derreteu-se a
dois dedos do cabo, caindo ao chão. Sem olhar para mim, e
esquecendo o companheiro, deu meia-volta e fugiu aos berros.
O soldado caído, ao perceber a fuga do companheiro, ergueuse
como pôde e, coxeando e gemendo, fugiu em direção a
Nahum. No chão ficaram as espadas, como testemunhas mudas
do fracassado assalto.
Certamente me ocorrera usar os ultra-sons, mais rápidos e
seguros, mas naquelas circunstâncias preferi um método que
ninguém poderia esquecer. Se eu voltasse a encontrá-los
saberiam o que os esperava. Só não poderia imaginar é que
esse incidente me favoreceria em um futuro muito próximo...
A bom passo, para recuperar o tempo perdido, cruzei a ponte
sobre o Jordão e penetrei nos domínios de Filipo. À borda do
bosque, como já assinalei, bem próximo aos marcos que
indicavam o território do filho de Herodes o Grande, o caminho
dividia-se em dois. O da esquerda levava ao nordeste,
perdendo-se em uma extensa planície pantanosa de doze
quilômetros quadrados, coalhada de minifúndios, canais, choças
de palha, pequenos pomares e tanques.
Aquele braço, com um calçamento melhor do que o outro,
conduzia à cidade que era a capital da região: Bet Saida Julias,
em honra da filha de Augusto.
Tomei o segundo e pior caminho, evitando os charcos e as
perigosas nuvens de mosquitos que zumbiam à direita e à
esquerda. Aqueles quinhentos metros, até a desembocadura do
Jordão, eram uma séria ameaça para os viajantes. Lamentei ter
deixado o manto na nave. A senda avançava com dificuldade
entre um mosaico de lagunas de águas esverdeadas, pouco
recomendáveis, infestadas de canas, leandros, juncos de mar,

papiros e um entremeado de arbustos cheios de espinhos. Só os
cardumes de martins-pescadores de peito branco e dorso verdeazul,
revoluteando inquietos sobre as tulipas esfogueadas, os
delgados ramos de açucenas e as perfumadas moitas de menta,
davam uma nota de tranqüilidade no insalubre e rumoroso
pântano.
Bem à frente, junto ao delta, divisei uma nebulosa Saidan. E
me inquietei de novo. Como me apresentar no casarão dos
Zebedeu? Como neutralizar a rude oposição de João? Os últimos
mil metros, reconheço, foram um suplício. Diminuí a marcha,
pensando rápido. Mas não consegui arrumar uma única idéia de
como entrar e permanecer na casa com naturalidade.
À minha esquerda, em um terreno plano e desimpedido, entre
grãos-de-bico e canteiros de favas, comecei a distinguir as
silhuetas das camponesas a carregar baldes ou entregues ao
cuidado da terra.
Continuei a andar com um crescente nervosismo. Tinha de
achar uma solução...
À direita do caminho, a pouco mais de cinqüenta metros, o
yam deixava ouvir sua voz com um rítmico e seco golpe sobre a
areia da praia.
Uma solução...
Desalentado, mente em branco, detive-me um pouco diante
de uma colônia de tartarugas que fazia a sesta ao sol da
manhã.
Quem sabe eu estava exagerando? Quem sabe como
sugeriu Eliseu as coisas se apresentassem sob um signo
favorável? Ainda enredado nas dúvidas, lancei um novo olhar à
aldeia. O lugar parecia tranqüilo. Algumas colunas de fumaça
subiam lentamente. As famílias, sabedoras da próxima e
incômoda chegada do maarabit, se apressavam a preparar a
comida do Sabbath, geralmente mais cuidada e sortida.
Deixei-me levar uma vez mais. O Destino, sempre imprevisível,
ditaria meus atos. E até creio que já fizera isso...
Venci os últimos cem metros e atingi a rampa de quase trinta

graus que levava a Saidan sobre a várzea. À vista das primeiras
casas me detive de novo sob o perfumado bosquezinho de
salgueiros e tamasqueiras do Jordão que davam sombra aos
últimos metros do caminho. Os relógios do módulo deviam estar
marcando onze e meia.
O anárquico cenário de casinholas surgiu aos meus olhos
como um dilema. Que rumo tomaria? Iria diretamente à porta
principal do casarão dos Zebedeu? Rodearia as vielas e
chegaria à praia? Aguardaria a chegada da multidão convocada
por Pedro para a hora nona? Então me veio outro pensamento.
Já fazia uma semana que Pedro fizera a solene promessa de
falar abertamente à multidão sobre a Ressurreição do Mestre.
Será que o povo estaria lembrado disso? Obedecendo a um
estranho impulso tomei a resolução de ir para a rua principal.
(O hipotético leitor deste diário saberá entender e desculpar a
licença. A suposta rua principal era apenas a continuação do
rústico caminho que conduzia à aldeia e a atravessava de ponta
a ponta).
Caminhei entre os escuros muros de basalto, afundando sem
remédio na lama. As chuvas haviam transformado o lugar em um
atoleiro pelo qual corriam alegres e despreocupados grupos de
meninos descalços, armados de varas e paus, a perseguir
enlameados e escandalosos gansos.
Algumas mulheres observavam minha penosa caminhada de
suas portas sempre abertas ou pelos estreitos postigos que
faziam a vez de janelas.
E o zumbido das moscas, geradas aos milhares nas
esterqueiras que se amiudavam nas vielas, o cheiro de guisados
ordinários e peixe frito que se exalava dos pátios e a fumaceira
dos fogachos que iluminavam os míseros casebres acabaram por
me envolver e infligir um verdadeiro sofrimento.
Com o tempo eu acabaria por me acostumar também a esses
sufocantes cenários que certamente constituíam o dia-a-dia do
Rabi da Galiléia.
Ao defrontar-me, por fim, com a porta de duas folhas do lar

dos Zebedeu, a cruciante dúvida me conteve. Aqueles instantes
de vacilação eram decisivos. Estremeço ao pensar no que
haveria sucedido se, como era a minha intenção, batesse à
porta.
Do outro lado do muro, no pátio a céu aberto, ouviam-se
vozes. Algumas delas reconheci. Simão Pedro, João Zebedeu,
Natanael, André e Tomé, discutiam, gritavam e repisavam suas
palavras entre contínuas imprecações, insultos e maldições.
Apurei o ouvido e entendi por que altercavam de novo. O sol
aproximava-se do zênite e, ao que parecia, a esperada aparição
do Mestre não havia acontecido. Simão Pedro, impaciente e
impiedoso, invocou a sua autoridade, atacando o gruPo de
João, que obviamente pretendia selar a trégua. Mas da
polêmica inicial esperar ou não até às três da tarde uns e
outros acabaram por passar à insolência e aos ataques
pessoais. Pedro, encabeçando o grupo que desejava a imediata
mobilização dos embaixadores do reino, apodava os
moderados de mulheres assustadiças, comadres repugnantes e
indignos seguidores do Filho de um Deus.
O Zebedeu, de sua parte, não ficou atrás. Secundado pelos
não menos inconstantes André, Mateus Levi e o urso de Caná,
replicou, histérico, que ali só havia um covarde: ele, Pedro.
Mordaz e ferino, atirou-Lhe na cara as quatro negações. E,
suplantando a enrouquecida voz de Pedro, em um de seus
típicos arrebatamentos de vaidade, lembrou aos presentes que
ele, e só ele, era o discípulo amado por Jesus: o único que
recostava a cabeça em seu peito.
Não quis mais continuar escutando. Abatido, retirei-me,
caminhando sem rumo. Se tivesse entrado na casa em momento
tão crítico, só Deus sabe o que haveria sido deste odiado
pagão.
Antes de me dar conta vi-me diante do estreito, tortuoso e
turbulento rio Zaji. A fonte de Saidan, no outro extremo da
ponte de pedra sem parapeitos, estava deserta. Olhei distraído
o punhado de casas e choças que se amontoavam junto à doca
e, necessitado de sossego, caminhei pela margem direita do rio

em direção à praia.
A áspera contenda me constrangeu. Lembrei-me dos corvos
que voejavam em redor do berço. Como terminaria esse dia?
Claro que nenhum desses desentendimentos seria jamais
narrado pelos evangelistas. Sua imagem, deveriam pensar,
sairia arranhada. Creio que se enganavam. Depois de tudo,
eram apenas homens. Se tivessem mantido fidelidade aos fatos,
os futuros crentes e seguidores do Mestre haveriam
compreendido e aceitado, venerando talvez com mais fervor, se
possível, sua memória. Mas por que a minha estranheza? Outros
fatos, infinitamente mais importantes, também foram
silenciados.
A costa estava deserta. Diante da meia dúzia de escadas de
pedra que davam acesso à aldeia naquela área descansavam
umas vinte lanchas, sobre uma areia basáltica vermelha, preta
e branca, brilhante ao sol do meio-dia. De súbito, o maarabit
começou a mover os barcos ancorados à margem. Continuei
passeando entre montes de redes e grandes lanchas; e,
lentamente, sem propósito, fui parar na quinta pedra, o lugar
de atracação dos Zebedeu: a rocha prismática de meio metro de
altura, com um orifício na parte superior (à maneira de olho),
que servia para amarrar os barcos fundeados junto à praia.
Alguns barcos em atividade diante da primeira
desembocadura do Jordão estenderam as velas, aproveitando
as primeiras brisas. E o yam começou a encrespar-se. As
gaivotas, voando com a ajuda do vento, se reagruparam,
animando os pescadores com seus chilreios.
Olhei na direção da casa dos Zebedeu. Parecia tranqüila.
Oprimido pelo calor, que devia estar pelos trinta graus
centígrados, entrei na água, deixando o cajado e as sandálias
entre os calhaus. O relativo frescor me serenou. Molhei o rosto e
os braços e por minutos permaneci com os olhos fechados,
placidamente, e o rosto erguido para o sol. Aquilo era como uma
bênção e me ajudou a esquecer momentaneamente o infortúnio
da minha situação.

Mas de súbito o instinto (?) me alertou. Foi uma claríssima
sensação. Alguém estava às minhas costas. O silêncio era quase
total, apenas quebrado pelo leve marulho da água e o quase
humano sibilo do vento entre os cordames dos barcos que
balouçavam ao meu redor.
Estremeci. Uma familiar e querida imagem me veio à mente.
O Mestre?
Neguei-me a admitir.
Abri os olhos e, rapidamente desejando que assim fosse -,
voltei-me para a terra.
Ao descobrir a presença sorri no íntimo. O instinto acertara.
Eu, ao contrário, fora vítima daquela velha obsessão.
À minha frente, junto à vara de Moisés e às sandálias, me
observava de fato uma pessoa. Mas não quem eu imaginava.
Seu rosto, grave, mudou ao reconhecer-me. E com um leve
sorriso avançou para a água, abraçando-me. A desilusão foi
compensada pela fraternal recepção do chefe dos Zebedeu. O
ancião, conforme suas palavras, não podendo suportar o clima
provocado pela áspera disputa entre os discípulos, resolvera
sair de casa para refugiar-se, como eu, na foz do yam.
E durante duas horas, à sombra de uma das barcaças, frente a
frente aos enegrecidos degraus que uniam aquela franja da
costa com a parte posterior do casarão, o chefe do clã dos
Zebedeu e eu passamos em revista um bom número de assuntos
de especial interesse.
Assim é que fiquei sabendo, por exemplo, que a Senhora e
sua gente haviam chegado sem incidentes em casa. E também
que o joelho de sua mulher se recuperava bem.
E o honrado e sincero varão não omitiu a delicada situação
criada entre seu filho João e este covarde pagão. E falou
sobre isso como era de seu costume, sem rodeios. Maria e Tiago
o haviam posto a par do que acontecera na viagem a Nazaré,
assim como das desventuras padecidas na aldeia da Senhora. E
através de algumas insinuações pude deduzir que a mãe do

Mestre Lhe revelara parte da verdade sobre minha autêntica
identidade. Mas o intuitivo galileu, atravessando-me com seus
olhos azuis, me tranqüilizou.
- Se fosses o que diz meu tolo e impetuoso filho comentou
com dignidade nem o Rabi, nem sua mãe, nem Tiago e nem eu
mesmo sentiríamos tão sólido afeto por tua pessoa...
E pondo suas grossas e calosas mãos sobre meus ombros
rematou, encerrando o desagradável assunto: - Não temas.
Minha amizade e hospitalidade continuam inalteradas. Desculpa
a João. É jovem e orgulhoso. Precisa de tempo. Há anos tive o
privilégio de conhecer a outro Jasão, muito parecido contigo.
De novo a estranha história...
- Aquele grego, especialmente amado por Jesus, comportou-se
sempre como um leal amigo. Tu, sob muitos aspectos, és
idêntico àquele bondoso e enigmático personagem. Não
duvides de nós. Creia que te queremos e respeitamos. E te
ajudaremos, como fizemos com o outro Jasão, a cumprir essa
importante missão.
Deve ter notado meu agradecimento. Envolvendo-me em um
interminável sorriso, me acolheu como um pai. E seu curtido e
enrugado rosto se tornou doce.
Animado por aquela espécie de confissão, me atrevi a
interrogá-lo sobre alguns pontos que, se esclarecidos pelo
ancião, excelente conhecedor da região, certamente facilitariam
nossos próximos movimentos.
Não fez perguntas. Nem mesmo se mostrou surpreendido pela
singularidade das minhas perguntas. Assim era Zebedeu pai:
discreto, respeitoso, inteligente, generoso. Lastimável que os
incorretamente chamados escritores sagrados não mencionem
esse notável grupo de personagens de segunda ordem? - que
foi íntimo de Jesus e contribuiu e de que forma para a sua
Encarnação.
Pelas catorze horas, para nossa surpresa, pelo leste
(desembocadura do Zaji), pelo oeste (seguindo o caminho de
Nahum) e pelas escadas que desciam da aldeia, começou um

lento e ininterrupto afluxo de homens, mulheres e crianças. E me
lembrei da convocação de Pedro: na praia, à hora nona.
O velho Zebedeu, pouco amigo desse tipo de concentração,
fez um gesto de despedir-se. Aturdido, no entanto, pelo que
qualificou de imperdoável descuido, me pediu que
compartilhasse com eles a refeição do Sabbath. Com todo o tato
de que fui capaz expliquei-lhe que dadas as circunstâncias que
ele bem conhecia não me parecia prudente apresentar-me em
sua casa. E bem que o lastimava. Mas preferia esperar na praia.
Quando Pedro concluísse o seu discurso eu deixaria Saidan. E
prometi visitá-lo nos próximos dias. Na verdade, uma das fases
da missão me obrigava a isso.
Ele aceitou minhas razões, desejou-me paz e desapareceu
escada acima, rumo ao seu lar.
Durante quase uma hora permaneci agradavelmente sentado
à sombra da embarcação, atento aos grupos que iam ocupando
a praia e que como eu buscavam um refúgio ao pé das lanchas.
Alguns meninos alheios ao real motivo da presença dos pais
no lugar acabaram fazendo o mais sensato naquele momento
de sol abrasador: abandonando túnicas e sandálias na margem
atiraram-se à água, brincando e desfrutando o agradável banho.
E nadando até os barcos próximos os tomaram de assalto. Ali
prosseguiram a diversão, atirando-se à água com alarido e em
todas as posturas imagináveis. Os gritos, risadas e pancadas
na água me mantiveram distraído durante longos minutos.
Ao que pude observar, aquelas pessoas, em sua maioria,
eram da classe felah, simples trabalhadores e artesãos das
povoações vizinhas. Também identifiquei um bom número de amha-
arez (a escória do povo), seminus e abrigando-se do sol por
lenços pretos e vermelhos que enrolavam na cabeça. Não vi
sacerdotes ou representantes da sinagoga mais próxima, a de
Nahum. Nem soldados.
Mal chegados à praia, muitos dos grupos se moveram em
duas direções. Enquanto uns percorriam a costa em busca de
todo tipo de combustível, outros, especialmente mulheres, se

ajoelhavam na areia, descamando e abrindo tilápias. E pouco a
pouco, aqui e acolá, foram surgindo pequenas fogueiras. Os
homens, de pé, de costas para o lago, formaram muralhas
protetoras, para impedir que o vento apagasse as fogueiras. E
as mulheres assavam os peixes.
Aquilo, mais do que uma reunião de caráter religioso, me
parecia uma festa de campo ou de praia, conforme o ponto de
vista. Ninguém parecia preocupado com a anunciada presença
dos discípulos do Rabi da Galiléia. E não ouvi um único
comentário sobre as supostas presenças do Ressuscitado. Por
alguns momentos se limitaram a comer o seu almoço
improvisado.
De quando em quando os meninos, chamados pelas mães,
corriam até as fogueiras, apanhavam um gorduroso naco de
peixe e voltavam alvoroçados para as suas brincadeiras.
E assim continuou a festa até que, pouco antes da hora
nona (três), os quatrocentos ou quinhentos congregados foram
fazendo silêncio. E os olhares se fixaram na porta traseira do
casarão dos Zebedeu, aberta de par em par. Levantei-me.
Pedro foi o primeiro a surgir. Deteve-se uns instantes e,
colocando a mão esquerda sobre os olhos à maneira de
viseira observou o gentio. Às suas costas, o restante do grupo,
melhor dito, o seu grupo.
De onde eu estava, a coisa de cinqüenta ou sessenta metros,
não pude observar nitidamente a expressão do seu rosto. Mas,
a julgar pela disposição com que se pôs a caminhar, a
concentração deve ter-Lhe agradado. E ao pisar na praia foi
diretamente a um dos barcos e nele se encarapitou. Mas teve
azar. Nem bem saltou para dentro da embarcação tropeçou em
um dos cabos e levou um tombo. Uma geral e espontânea risada
celebrou a impetuosa e grotesca irrupção do galileu. Os gêmeos
Felipe e Tiago Zebedeu correram a auxiliá-lo. Não foi preciso.
Vermelho de raiva, ergueu-se depressa e corrigiu a posição da
espada que sobressaía sob a faixa. Arrumou as pregas da túnica
com furiosas palmadas no avultado abdome e, sem mais
preâmbulos, enfrentou a divertida platéia. As graçolas e risadas

cessaram diante do seu inquisidor olhar.
O estudado silêncio do apóstolo se prolongaria por uns dois
minutos. Só a gente miúda, entretida em seus brinquedos,
empanou o clima de espera. Simão Pedro, pouco hábil ainda
nesse terreno, apontou para a criançada. As mulheres
compreenderam o recado, saíeam correndo ao encontro da
garotada e mandaram que se calassem. Alguns obedeceram.
Outros, fazendo-se de surdos, atiraram-se à água,
recomeçando a diversão.
Notei a falta da Senhora e sua família. Também o bando de
João estava ausente.
A porta fora fechada e no alto da escada se recortou a figura
do jovem João Marcos, que, obedecendo ao seu hábito, sentouse
num degrau.
A cara redonda e branda de Pedro recuperou certa
serenidade.
Por fim, com voz rouca dirigiu-se à massa lembrando quem era
o Filho do Homem.
Depois, gesticulando, com as artérias insufladas, foi elevando
o tom à medida que entrava nos pormenores da Ressurreição. E
o suspense surpreendeu a multidão. Com sinceridade, fiquei
maravilhado. Pedro vivia o discurso.
Tinha uma inegável capacidade para arrebatar e conduzir.
Sabia quando e como prolongar a emoção. Instintivamente,
forçava ou reduzia a inflexão da voz, acelerando ou acalmando
os corações. Parecia conhecer o formidável efeito das pausas. E
as empregava com admirável precisão.
Aquele provavelmente seu primeiro discurso a sério deixou
tão agradavelmente surpreendidos seus companheiros que,
tacitamente, foi admitido como o novo líder.
E a paixão e a certeza de suas palavras foram tais que em
pouco aqueles que o ouviam atrás da porta do casarão
acabaram saindo para a praia. João Zebedeu, Mateus Levi,
André, Tomé, Simão o Zelote e Natanael, em um gesto que os

honrava, desceram lenta e silenciosamente e se juntaram aos
demais emocionados discípulos.
Ao ver a chegada dos seus amigos, Pedro fixou os olhos claros
em seu irmão, ligou com habilidade as últimas referências ao
reino, fazendo pública confissão dos seus recentes erros, e
advertiu o gentio de que a imperfeita e vil natureza humana é
justamente a única condição exigida para penetrar nele.
André respondeu ao imprevisível Pedro com uma leve
inclinação da cabeça. Tenho dito e não me importo de o repetir.
Aquelas contendas não abalaram o sincero e entranhado carinho
que se devotavam. Assisti a muitas. Algumas, até, como espero
relatar, mais virulentas. Todavia, cedo ou tarde, fazia-se a paz.
Uma paz sem rancores. Uma paz sem memória.
As ardentes palavras mobilizaram os sentimentos dos mais
oprimidos os am-ha-arez -, que em coro se puseram a pedir
entusiasticamente sua entrada nesse reino. E Pedro, pedindo
calma, fez-Lhes ver que só havia um caminho: imitar o
Ressuscitado.
Esse, em minha opinião, foi o único erro do magnífico e
arrebatado orador. Aí nasceria a futura religião cristã.
Naquele sábado, 29 de abril do ano 30, na remota praia de
Saidan, e sendo quase 16 horas, foi plantada a semente de
uma Igreja que esqueceu o fundo em benefício da forma.
Após cinqüenta minutos de discurso, com um público
embevecido e rendido, Simão Pedro encerrou a alocução com um
audaz ato de fé: - E afirmamos que Jesus de Nazaré não está
morto. E declaramos que Ele se levantou do túmulo. E
proclamamos que o vimos e falamos com Ele.
Digo audaz ato de fé, porque, como se recordará, a casta
sacerdotal proibira qualquer alusão à suposta Ressurreição do
Galileu. (No dia seguinte ao da Ressurreição, segunda-feira, 10
de abril, o sumo sacerdote Caifás, seu sogro Anás, os saduceus,
escribas e demais fanáticos se reuniram em caráter de urgência
e, ante as inquietantes notícias que circulavam pela Cidade
Santa, adotaram as seguintes e drásticas medidas: Primeira:

todo aquele que aborde ou comente (em público ou na
intimidade) os assuntos do sepulcro ou a pretensa volta à vida
de Jesus de Nazaré será expulso das sinagogas.
Segunda: aquele que proclamar que viu ou falou com o Galileu
será condenado à morte.
E ainda que essa última sanção não tivesse sido submetida a
votação, o certo é que o descumprimento dessas normas podia
acarretar sérias dificuldades ao infrator. Pedro sabia disso e,
não obstante, arriscou-se corajosamente. Esse era Simão Pedro:
um homem atolado nas contradições.
E de repente, ao fim do discurso, quando o discípulo, em meio
a um respeitoso silêncio, se preparava para saltar da lancha,
aconteceu algo que obviamente ninguém esperava.
Foi tão incrível que, não fora aquele meio milhar de
testemunhas, eu teria duvidado da minha capacidade de
percepção e até mesmo da minha sanidade mental. Mas os
fatos, como disse, foram reais.
A multidão, atônita, não esboçou nenhuma reação. Como fazêlo?
Lembro-me de que o vento cessou. E cessou bruscamente e
de forma intempestiva. O maarabit sopra indefectivelmente,
entre abril e outubro, desde o meio-dia até o entardecer.
Estávamos, mais ou menos, na hora décima (quatro).
Restavam portanto duas horas e quarenta minutos para o ocaso.
E as fogueiras - alimentadas (?) por uma força invisível
estiraram suas labaredas. Mas foi um crepitar silencioso.
Silencioso?
Na realidade, tudo era silêncio. (As palavras não me
ajudam.) Talvez eu esteja tentando racionalizar o irracional.
Talvez os fatos nem tenham ocorrido nessa ordem. Talvez tudo
tenha sido simultâneo.
De uma coisa estou certo: tudo era um imenso e antinatural
silêncio. Deixei de ouvir o marulho do yam. As risadas e o
chapinhar das crianças na água se extinguiram. E também o
distante alvoroço das gaivotas. No entanto, as ondas batiam na

costa, os meninos continuavam em suas traquinagens e as aves
voejavam incansáveis ao redor das embarcações, algumas com
as velas subitamente desinfladas.
Que se passava?
E naquele atroador silêncio, no centro do barco, surgiu uma
alta figura.
Creio que em minha precipitação não estou sendo fiel. Não
presenciei o primeiro instante da aparição. Explico. Alertado por
aqueles fenômenos que referi, havia voltado a olhar para o
lago, tentando descobrir a razão daquele súbito emudecimento,
do colapso de todas as sonoridades do lugar. E estava nisso
quando, inesperadamente, vi a multidão retroceder. Alguns
tropeçaram e caíram. Não ouvi exclamações. O movimento,
provocado pelo medo, foi igualmente silencioso.
E ao girar de novo a cabeça para a lancha vi o homem.
Quero com isso dizer que as pessoas já contemplavam a
imagem um ou dois segundos antes de mim. Um pequeno
grande detalhe que me convenceu da realidade do que estava
presenciando. Não houve, portanto, sugestão coletiva. E por
que deveria haver? A quase totalidade dos que compunham a
multidão, como já mencionei, poderia ser catalogada na classe
dos curiosos, incapazes de provocar fenômenos complexos e
precisos como o congelamento do maarabit, o brusco
incremento das fogueiras e o emudecimento do lago. Seria
demasiado, em meu entender, para homens humildes, mulheres
e crianças que só pretendiam desfrutar o descanso sabático e
as palavras de um grupo de loucos que pregava a volta à vida
de outro não menos louco.
Fiquei petrificado. Diante de mim, a pouco mais de cinco
metros, estava o saudoso Rabi. Vestia sua longa túnica branca
e não trazia manto. Seus braços descaíam ao longo do corpo.
Durante alguns instantes como medir o tempo em tais
circunstâncias? - seus olhos circunvagaram pela surpreendida e
temerosa platéia. Percebi um ligeiro movimento da cabeça da
esquerda para a direita acompanhando a espécie de

inspeção.
Não sei o que mais me surpreendeu: a presença do
Ressuscitado ou aquele indefinível e incompreensível silêncio
que o envolvia e nos envolvia.
O rosto, relaxado, parecia diretamente iluminado pelo sol que
descambava para o oeste. Notei outro interessante detalhe.
Os formosos e amendoados olhos reagiram à intensa radiação
solar, obrigando-o a pestanejar. Seu aspecto era o mesmo que
tinha em vida. Os cabelos, dourados, caíam lassos e dóceis
sobre os longos e musculosos ombros. Não pude ver os pés,
ocultos pelo casco do barco. As mãos, longas, bronzeadas,
quase não se moveram.
Utilizar a vara de Moisés? Impossível. Não houve tempo.
Nem sequer consegui avisar o módulo. Somente tive olhos
para desfrutar aquela figura.
Abrindo os finos lábios, com sua modulada, vigorosa e
acariciante voz, exclamou: Que a paz seja convosco...
Fez uma brevíssima pausa.
Sei que pode parecer loucura. Eu mesmo continuo fazendo-me
mil e uma perguntas. Foi surpreendente. As palavras soaram
perfeitas em um cenário perfeitamente dessonorizado.
.. Minha paz vos deixo...
E no mesmo instante deixei deixamos de vê-lo.
Simplesmente (?) volatilizou-se.
Sem intervalo algum, com o eco da última frase na minha
cabeça, tudo recuperou a normalidade. O vento arremeteu
contra as espigadas chamas, subjugando-as, e o yam despertou
com todos os seus sons habituais.
Pedro, com as mãos sobre a borda e o rosto voltado para o
lugar que o Ressuscitado havia ocupado, continuou de boca
aberta. Os discípulos, com a mesma expressão de assombro,
não conseguiram mover-se. Quanto à multidão, imóvel como
árvores, acabou erguendo os olhares para buscar no céu uma
explicação para o inexplicável.

Finalmente os gêmeos de Alfeu puseram-se a gritar,
quebrando a paralisação geral. E uns e outros, saltando,
chorando, rindo e se abraçando, converteram a praia dessa
vez sim em autêntica festa.
Mais confuso do que ninguém, me deixei cair sobre a areia,
incapaz de raciocinar.
Era a terceira aparição na Galiléia. Muito breve. Talvez não
tivesse durado dez segundos, mas foi clara, categórica.
Nenhum dos evangelistas fala dela. Só João faz uma vaga
alusão quando, no capítulo 20 (30-31) do seu Evangelho, afirma
que Jesus deu outros sinais em presença dos discípulos, que
não estão escritos neste livro. E me pergunto então: por que
não foi essa aparição registrada? Será que não era
suficientemente importante? Tratando-se do Mestre e,
sobretudo, de uma soberba demonstração da existência de vida
depois da morte, certamente que sim. Que foi então que
ocorreu? João perdeu a memória? No meu fraco entender, só
uma explicação é possível: João sucumbiu de novo à sua
incorrigível vaidade, dando prioridade à sua boa imagem e só
de passagem à do restante do colegiado apostólico. Se o
evangelista se houvesse decidido a narrar o acontecimento das
primeiras horas da tarde daquele Sabbath diante da aldeia de
Saidan, uma de duas: ou mentia ou dizia a verdade. E optou por
uma terceira: o silêncio.
Se houvesse sido fiel teria de dar as razões da presença
daquela multidão na praia. E isso significaria o reconhecimento
de uma divisão entre os sagrados embaixadores do reino.
Mais ainda: seria forçado a admitir que ele e parte do grupo se
mantiveram alheios ao brilhante discurso de Pedro durante boa
parte dele. E, igualmente, que acabaram rendendo-se.
Tanta sinceridade não parecia prudente naqueles difíceis
albores da comunidade cristã... E convido o desconhecido leitor
deste livro a explorar os quatro textos evangélicos.
Não encontrará um só parágrafo em que se intua a mais
mínima dissidência entre os íntimos do Mestre. E parodiando a
conclusão de João no seu Evangelho eu também me atrevo a

escrever: Estes sinais do Ressuscitado todos foram escritos
para que alguém, quem sabe, algum dia conheça a verdade
toda a verdade e saiba a que confiar-se. A praia foi ficando
vazia e durante um tempo continuei absorto, lutando por
compreender. Reconstruí o ocorrido várias vezes. E sempre me
via enfrentando a mesma e irritante conclusão: incompreensível.
A ciência não estava não está preparada. E humildemente
me pus de joelhos, aceitando quanto havia visto e ouvido.
O retorno ao módulo foi rápido e sem incidentes. Para dizer a
verdade, estranhei o fechamento da aduana. O que não poderia
imaginar é que eu fosse o responsável. Mas devo conter-me e
respeitar a ordem cronológica dos acontecimentos.
Troquei o aureus em Nahum (com relativo êxito: trinta e três
denários de prata) e depois de adquirir um bom sortimento de
provisões, cheguei à nave com as primeiras sombras do
anoitecer.
Eliseu, como sempre, me recebeu com alívio. E o resto da
jornada foi dedicado a dois temas, cada qual mais atrativo: a
exploração do lugar onde deveria aterrissar o berço nos
próximos dias e o cada vez mais desconcertante assunto do
fenômeno do sepulcro e as aparições do Mestre.
Como já tive ocasião de dizer, durante minha estada em
Nazaré, meu irmão analisou bagas, folhas e ramos do sicômoro
existente diante da gruta em que havia sido colocado o corpo
de Jesus de Nazaré.(3) Essa árvore, como aconteceu com outras
plantas frutíferas próximas, foi afetada, como se recordará, pela
misteriosa língua de luz que partiu da boca da cripta. A radiação
(?), de um branco azulado brilhantíssimo, dessecou parte da
ramagem do corpulento ficus, destruindo e fossilizando bom
número de frutos.
Não cansarei o leitor com os complexos processos de análise.
(4) Só falarei dos resultados, ainda que seja útil adiantar que,
longe de esclarecer o fenômeno, acabamos na maior
perplexidade. Talvez a ciência, algum dia, à vista desses dados,
possa chegar mais longe.
Antes do exame químico, foram as amostras submetidas a um

detector Geiger. Mas não se obteve o menor indício de
emissões radioativas.
Os exames fisiológicos-estruturais, em níveis celulares,
mostraram intensa desidratação, de quase cem por cento. Em
alguns casos, elementos-chave, como o cálcio, sódio, cobre e
potássio, surgiram quase irreconhecíveis e convertidos em
pedra. Lamentavelmente, o fato de não saber exatamente o
que deveríamos pesquisar acabou por confundir e desanimar
meu irmão. Evidentemente, aquele ser vivo fora submetido a
uma intensa modificação celular. Mas o que terá alterado sua
estrutura? Calor? Uma radiação desconhecida? Uma fonte
eletromagnética? Um dos indícios mais relevantes naquele
enigma surgiu na análise dos elementos minerais. Enquanto os
índices dos componentes habituais nesse gênero de árvore se
mostravam em limites mais ou menos aceitáveis, o do
manganês, ao contrário, se elevou sempre, em todas as
amostras, acima das 2800 ppm (partes por milhão). (Em um
sicômoro saudável a quantidade de Mn oscila ao redor das 300
ppm). Pensar em uma alteração como conseqüência de
tratamento fungicida pareceu-nos fora de lugar. Não dispondo
de amostras do terreno onde assentava o ficus, as avaliações
tiveram de ser interrompidas. Algumas semanas mais tarde, em
nova incursão à Cidade Santa, pude lidar com tais amostras e
comprovar o que supúnhamos: a plantação de José de Arimatéia
radicava em solo do tipo médio, basicamente calcário, com
razoáveis proporções de manganês.(5) Não se devia atribuir,
portanto, a elevada toxicidade descoberta no sicômoro às
características naturais da capa de terra sobre a qual assentava
a horta.
Qual terá sido a causa da elevação do volume daquele
nutriente (o manganês) até 2 830 ppm? Honestamente, não
sabemos.
Eliseu, eu e Papai Noel debatemos o enigma até o
esgotamento. Mas não conseguimos achar a solução.
No que diz respeito à misteriosa desaparição do corpo do
Mestre, a hipótese não se encaixava com as vibrações

percebidas antes e durante o rodar da pesada mó que fechava
a cripta, nem com o jato luminoso que se projetou até as
árvores.
Nossa teoria apontava para uma infinitesimal e intensíssima
aceleração da putrefação do corpo de Jesus. O instrumental
detectou nas colônias quânticas que flutuavam sobre o sudário
em que estivera deitado o corpo uns swivels claramente
removidos e estacionados em um agora histórico (ano 35)
que obviamente nada tinha que ver com aquele presente (ano
30).A decomposição foi consumada, portanto, em décimos ou
centésimos de segundo.
Um processo que se houvesse seguido as etapas da Natureza
teria necessitado justamente de algo ao redor de cinco anos.
Nós conhecíamos essa fantástica possibilidade de modificar
os eixos ortogonais destas unidades subatômicas
elementares.
Mas tais inversões axiaisao menos com a tecnologia do
Cavalo de Tróia nunca foram acompanhadas dos fenômenos já
mencionados: vibrações e raios luminosos. Fenômenos que
evidentemente alteraram o meio. A não ser que os dois
acontecimentos aceleração da decomposição e língua
luminosa fossem independentes.
Papai Noel propôs então uma via alternativa que nos deixou
perplexos: quem sabe alguém, operada a Ressurreição,
tivesse desejado deixar o registro físico dos fatos. Uma espécie
de ata notarial, válida para aquele tempo e para o nosso.
Verdadeiramente, tanto aquela quanto as gerações futuras
têm contado com o esplêndido legado do sudário que cobriu o
Rabi da Galiléia por trinta e seis horas. Nele, como já disse,
encontra-se encerrada a informação que pode esclarecer essa
última fase da Ressurreição: a misteriosa desaparição do corpo.
Quanto aos índices anormais de manganês, à desidratação e à
fossilização, era justo reconhecer que constituíam outra
interessante prova. Uma prova que, de acordo com as
imprevisíveis regras de Deus, nos coube resgatar do

esquecimento.
Como dizia o Mestre, quem tiver ouvidos...
Eliseu defendia a aparentemente absurda e anticientífica
sugestão de Papai Noel. Eu no momento me abstive de
opinar, esperando que a ciência esteja em condições de
esclarecer o mistério.
Também o intrincado enigma das aparições do Ressuscitado
não foi fácil resolver em bases racionais. Aquelas súbitas
materializações e desmaterializações ignoro qual poderia ser
o termo que as definisse corretamente chocavam-se contra
tudo o que se sabe e conhece.
Baseando-nos nas descobertas feitas durante a segunda das
presenças na Galiléia() - registrada a curta distância da nave
-, meu irmão e eu nos colocamos várias soluções (?).
Nenhuma, claro, pôde ser dada como definitiva. Citarei
sumariamente a que, em princípio, apresentava maior solidez
(?). De acordo com os cálculos do computador, a julgar pelos
movimentos atômicos detectados no que poderíamos
qualificar como encéfalo e no resto do não menos fantástico
sistema nervoso central, aquele corpo glorioso parecia
desfrutar uma assombrosa capacidade para modificar à
vontade o ritmo vibratório dos seus trilhões de átomos. (8)
Essa desconhecida e magnífica potestade permitia,
aparentemente, que a matéria que conformava aquele
organismo começasse a vibrar vertiginosamente dentro dos
seus limites espaciais, alcançando uma velocidade próxima à da
propagação da luz. (É difícil traduzir em conceitos humanos o
que, sem dúvida, são realidades sobrenaturais.) Pois bem, em
tais circunstâncias, a massa do corpo glorioso perdia as
propriedades de massa pesante, adquirindo as
correspondentes às de uma massa inercial de proporções
similares às que poderia ter alcançado aquele corpo
trasladando-se pelo espaço a uma velocidade próxima à da luz.
(A mesma em que vibravam seus componentes atômicos.) Os
efeitos cinéticos dessa massa inercial seriam superiores em
milhares de vezes aos registrados pela massa do corpo em seu

estado normal de vibração atômica. (Um estado que, em linhas
gerais, é denominado de repouso.) E chegamos ao que
importa. Essa elevadíssima velocidade em todos e cada um dos
átomos estimulada, insisto, à vontade do indivíduo -
comprimia (?) a matéria até colocá-la nos limites da
adimensionalidade. O passo seguinte era o já conhecido da
brusca desmaterialização. Simplesmente (?) o corpo glorioso
desaparecia da vista.
Cumpria-se, assim, a teoria de Fitzgerald. Lamentavelmente,
aí terminavam nossas especulações. E não era pouco.
O que não se enquadrava no que a Física atual aceita além
de outros pormenores era a evidente ausência de implosão.
Nesse momento crítico ao desaparecer o corpo glorioso -,
o volume ocupado no espaço deveria converter-se em um vácuo.
E o ar que rodeava o Ressuscitado teria de precipitar-se em sua
direção. Todavia, em nenhuma das aparições que presenciei, ou
nas que me foram relatadas, se produziu estampido algum. A
exploração instrumental também não trouxe novidade a
respeito.
Melhor dizendo, houve, sim. Os dispositivos técnicos do
berço - ao menos na segunda aparição na Galiléia não
foram capazes de localizar esse vácuo. A massa de ar que havia
sido ocupada pelo corpo comportou-se normalmente: sem
movimento, tensão ou sucção.
Teria essa anomalia (?) alguma relação com os silêncios que
precediam e acompanhavam as aparições? Também ignoramos.
Para estes confusos exploradores só cabia uma explicação: a
desmaterialização era uma realidade objetíva, mas só ao nível
visual. Em outras palavras: aquela entidade, ao cruzar a
fronteira da adimensionalidade, continuava ocupando o
mesmo espaço em nosso mundo mas instalada em um
universo (?) de natureza e dimensões desconhecidas.
Continuava ali, mas não para nós.
Certamente nem os radares, nem o cinturão IR, nem mesmo o
bombardeio teletermográfico forneceram a menor pista. Aquele

Ser podia existir simultaneamente em dois mundos (?)
diferentes. E por que em dois? Por que não em um número
infinito de planos? E nos perguntávamos com emoção: será
justamente isso que nos aguarda depois da morte? Esta, nem
mais nem menos, foi a mensagem de esperança que pulsou por
trás de cada uma das aparições do Filho do Homem.
*NOTAS
(1) Ampla informação em Operação Cavalo de Tróia 3, pp 295 e ss. (N. A.)
(2) Ampla informação sobre esse acontecimento em Operação Cavalo de Tróia
3, pp 376 e ss. (N. A.)
(3) Ampla informação em Operação Cavalo de Tróia 1 e 2, pp 552 e ss., e
261 e ss, respectivamente. (N. A.) (4) As determinações foram levadas a cabo
por meio dos seguintes métodos instrumentais, entre outros:
espectrofotometria, emissão (NA e K: AAS), sistema Kjeldhal (N) e absorção
(Ca, Mg, Fe, Mn, Cu, Zn e Mo: AAS). (N. Do m.)
(5) Como sabem os expertos em fitotecnia, os solos em geral contêm
quantidades suficientes de manganês (Mn). O problema não é a quantidade
total desse elemento, mas a fração livre e intercambiável de Mn2. Na opinião
de especialistas como Coppenet, volumes de Mn da ordem de 20 mg por quilo
de solo, representam um nível satisfatório para um p H de 6. No caso da
plantação onde se encontrava o sicômoro, nossas análises deram o seguinte
resultado: entre 20 e 50 mg de Mn/kg. (Os índices das árvores frutíferas não
variavam muito. As sadias apresentavam uma quantidade de manganês que
oscilava entre 100 e 125 ppm. As afetadas pela língua de fogo - igual ao
sicômoro doente - tiveram seus índices elevados de 2800 a 2900).) Segundo
o banco de dados do módulo, nem sequer os terrenos considerados altamente
tóxicos levavam para suas árvores, cereais ou legumes níveis tão violentos de
Mn. Nos solos ácidos, por exemplo, com um p H < 5,5, ricos em húmus bruto e
com altas condições redutoras, pode provocar um acúmulo de Mn altamente
tóxico. Mas esses níveis dificilmente se aproximavam da metade do detectado
por Eliseu nas amostras atingidas pela estranha radiação. Os estudos das
folhas mostram o excesso e a toxicidade de manganês, por exemplo, quando a
soja apresenta 250 ppm, os cítricos, 300, os vinhedos, 500 e os sicômoros, ao
redor de 600. Essa árvore não se distingue por sua necessidade especial de
Mn, mais própria das azinheiras e bétulas. (N. Do m.)
(6) Ver informação sobre esse particular em Operação Cavalo de Tróia 2, pp
425 e ss. (N. A.) (7) Ampla informação sobre esses achados em Operação
Cavalo de Tróia 3, pp 356 e ss. (N. A.)
(8) Já que só nos foi possível analisar o processo em sua última fase a
passagem (?) à desmaterialização propriamente dita -, essa hipótese arriscada
diz respeito somente à metade do interessantíssimo fenômeno. Como é

óbvio, nossa ignorância em relação à outra metade - o salto (?) do nada à
materialização do corpo - é, todavia, maior. (N do m.)
(9) O efeito é semelhante ao estrondo do trovão, ocasionado, como se
sabe, pelo ar que rodeia o tubo de vácuo produzido pela trajetória do raio.
Esse ar flui de todas as direções, enchendo o tubo e restabelecendo o
equilíbrio atmosférico.
(N do m.)
DE 30 DE ABRIL A 3 DE MAIO
Ao concluir os estudos tivemos de reconhecer que talvez
estivéssemos invadindo sagrados domínios que não eram da
nossa competência. Essas e outras lições similares serviriam
para colocar o orgulho intelectual e científico de quem isto
escreve em seu justo lugar, praticamente no zero.
Desde então aprendemos a contemplar o imenso Poder
daquele Homem com humildade e respeito.
Mas sigamos adiante nesta apaixonante aventura. Uma
aventura que apenas começava...
Dizia eu também que boa parte daquele sábado, 29 de abril
do ano 30 da nossa era, foi empregada em rever a
indispensável exploração do local em que necessariamente
pousaríamos a nave quando do Próximo e instigante terceiro
salto no tempo.
Na manhã seguinte, domingo, iniciamos a exploração com uma
fase que poderíamos qualificar de sondagem, em que os olhos
de Curtiss e o material filmado no sobrevôo do lago
desempenhariam um papel essencial.
O nosso assentamento que chamarei desde agora de basemãe-
3 (BM-3) - devia reunir uma série de importantes
requisitos. Primeiro e fundamental: condições mínimas de
segurança. O ponto de contato teria de ser um lugar isolado,
não freqüentado por homens ou animais e que ao mesmo temPo

permitisse uma rápida deslocação até as aldeias do lago,
presumivelmente freqüentadas pelo Rabi da Galiléia durante
seus anos de pregação.
De outra parte, a penúria de combustível nos obrigava a um
vôo curto. (Depois do último périplo sobre o yam, em que foram
queimadas quase duas toneladas, a disponibilidade era de
47,5 por cento. Quer dizer, o suficiente para voltar a Masada.)
Era preciso, por isso, que BM-3 se localizasse a reduzida
distância do monte das Beatitudes.
E durante horas avaliamos as diferentes alternativas. Os
estudos cartográficos realizados no citado sobrevôo e as
informações recolhidas pelos olhos de Curtiss e por mim foram
determinantes. Devo destacar nesse sentido as valiosas
informações de Zebedeu pai em torno, sobretudo, dos fatos que
especialmente nos preocupavam: o banditismo e os caçadores
de pombas no maciço que em princípio foi apontado como
candidato número um. Esse promontório, o monte ou har Arbel,
que se ergue à margem ocidental do yam, com uma altitude de
181 metros sobre o lago,(1) apresentava as condições ideais:
um cume descampado, rochoso e sem vegetação e um acesso
relativamente fácil a cidades como Tiberíades (a quase quatro
quilômetros), Migdal (a um e meio) e Saidan (a catorze,
aproximadamente).
A tentadora localização, apesar de tudo, foi descartada. O
primeiro inconveniente, como já fiz ver, foi notado na viagem a
Nazaré, na travessia do wadi Hamân. Esse desfiladeiro, do qual
era parte o har Arbel, era tomado em sua face norte por um
número enorme de cordas que pendiam do cume até as
numerosas cavernas existentes nessa parede. E as primeiras
informações, dadas por João Zebedeu naquela acidentada
viagem, seriam ratificadas e ampliadas na praia de Saidan por
seu pai.
Tais cavernas serviam de excelente refúgio para ladrões,
escravos fugidos, miseráveis, assassinos e zelotes que
participavam dos bandos de guerrilheiros que regularmente se
insubordinavam contra o poder de Roma. Apesar da repressão

exercida por Herodes o Grande no ano 39 a.C., (2) tomando de
assalto as grutas, com o passar do tempo novas levas de
assassinos e rebeldes haviam voltado a ocupá-las. E era
freqüente vê-los subir ou descer pelas cordas, cometendo toda
sorte de tropelias na solidão do desfiladeiro das Pombas. As
recomPensas oferecidas pelas suas cabeças não davam grandes
resultados. A população das imediações, aterrorizada, era
impotente para enfrentar aqueles bandidos. Nem mesmo as
patrulhas romanas destacadas para a região levavam a melhor
contra eles. Entre outras razões, segundo Zebedeu, porque
parte dos oficiais e suboficiais se acumpliciavam com os chefes
dessas quadrilhas, levando gordas comissões sobre os butins
roubados dos viajantes. Só quando a criminalidade chegava a
limites insuportáveis o governador de Cesaréia ou o tetrarca
Antipas tomavam em suas mãos a repressão e realizavam
operações mais drásticas e eficientes. Mas aos poucos, como
uma maldição, outros bandos vinham substituir os mortos ou
aprisionados, convertendo de novo o seco wadi em um
paradoxal rio de sangue. À vista desse sinistro panorama, tive
de reconhecer que a sorte (?) nos acompanhou naquela
travessia com a Senhora, João Zebedeu e o urso de Caná.
E ainda havia que somar a tudo um segundo problema: os
caçadores de rolas e pombas torcazes que percorriam o Arbel
dia e noite, armados com suas tradicionais redes. Esses
indivíduos, moradores de Migdal e Tiberíades na maioria,
desempenhavam além disso o papel de espias e correios de
uns e outros. Ou seja, dos bandoleiros e dos corruptos
centuriões e optios.
Em troca desse serviço podiam mover-se livremente pelo
maciço e pelas escarpas.
E o aprazível Arbel teve de ser cancelado definitivamente do
projeto.
Depois de um minucioso e tenaz exame da região, no qual
colaboraram eficientemente os seis olhos de Curtiss
disponíveis, (3) Eliseu e eu nos decidimos por um segundo
candidato, situado a três quilômetros e meio do perigoso

desfiladeiro. Tratava-se de outro espetacular penhasco de cento
e trinta e oito metros de altitude, com perfil e característícas
muito semelhantes aos de Arbel. Era chamado de Ravid e
distava uns oito quilômetros da base-mãe-2.
Os informes dos sucessivos olhos de Curtiss destacados na
vertical desse har foram animando-nos progressivamente:
estávamos diante de um maciço liso, com uma curiosa forma de
barco cuja proa apontava para o sudeste, em direção ao
lago. As dimensões nos pareceram perfeitas: ao redor de dois
mil e trezentos metros de proa a popa (seguindo o eixo
longitudinal do suposto navio ou sapato) e duzentos no
ponto mais distante. O cimo era dividido em duas partes
claramente diferenciadas: a da proa formava um triângulo
eqüilátero, cuja base coincidia com a largura máxima citada
(200 m.). A partir daí, o Ravid se inclinava para o noroeste em
uma ladeira suave que morria nos contrafortes dos montes da
Galiléia. Escarpas pronunciadas constituíam as amuras do
grande contraforte ou plataforma triangular. Essas paredes
verticais, entre 100 e 131 metros de altura, tornavam
praticamente inacessível o que chamei de proa do Ravid.
Abaixo, pela esquerda (lado de bombordo) do que podemos
denominar também como porta-aviões, corria o caminho escuro
e estreito que unia Migdal à distante cidade de Maghar, a
noroeste. O abrupto corte existente nesse flanco acabou unindose
com a vereda, em uma cota zero, ao fim da referida encosta
de dois mil e trezentos metros.
A estibordo, ao contrário, embora a escarpa fosse
igualmente perdendo altura, até chegar aos quatrocentos
metros, o porta-aviões conservava sua providencial
inacessibilidade. Nos fundos do vale, ele se fundia com uma
modesta cadeia montanhosa, cujas altitudes oscilavam entre
213 e 121 metros. Esses picos, pouco arborizados, não
apresentavam nenhum indício de assentamentos humanos.
Durante três dias, as eficientes esferas de aço de 2,19
centímetros de diâmetro pentearam o porta-aviões em um
amplo raio, fornecendo imagens e uma infinidade de dados

sobre a natureza geológica do terreno, da flora e fauna,
condições meteorológicas, movimento de homens e caravanas,
distâncias, pontos considerados estratégicos, rotas alternativas
para escalada e descida, configurações e desenho das possíveis
áreas de aterrissagem e as medidas de segurança destinadas à
nossa proteção.
E o Ravid, prévia e exaustivamente avaliado pelo computador
central, foi dado finalmente como a região adequada.
Aquela massa pétrea, integrada por rochas calcárias e
dolomíticas do Cretáceo Superior e do Eoceno, com resíduos
basálticos no cume, aparentava um lugar solitário, varrido pelos
ventos e sem uma só vereda que atingisse o cume.
Segundo nossas investigações, nada havia ali que pudesse
despertar o interesse dos caçadores da região. A pouca terra
avermelhada que despontava entre as erodidas agulhas
rochosas, ainda que fértil, era impraticável. O cimo, como já
expliquei, era apenas pedra e não permitia cultivo algum
imediatamente rentável. Do mesmo modo, o gado de Migdal,
Tiberíades e Guinosar (as cidades mais próximas) não se
arriscava a pisar aquelas alturas, povoadas unicamente por
serpentes, escorpiões e por uma curiosa família subterrânea
que, seja dito de passagem, prestaria um inestimável serviço a
estes exploradores.
O único atrativo, de duvidosa rentabilidade comercial, que
conseguimos descobrir no cenário de buracos calcários e negros
basaltos, era oferecido por um heróico batalhão de arbustos e
cardos, entre as quais identificamos o Thymbra spirata (da
família da menta), a Centaurea iberica, os também cardos sírio
e leiteiro, a Gundelia de Tournefort (de raiz grossa e
comestível), o Teucrium creticum (de altos talos), o Echinops
adenocaulus e as impressionantes Íris, umas plantas de
formosíssimas flores violetas.(4) Naturalmente, por um
elementar senso de prudência, as fases seguintes da exploração
foram realizadas pelos pilotos, vale dizer, Eliseu e eu,
diretamente sobre o terreno. A segunda-feira, 1 de maio, foi o
meu dia de turno. Na terça-feira, com um conhecimento mais

exato e preciso do Ravid e seus arredores, repetimos a incursão.
Desta vez tive a alegria de ver-me acompanhado por Eliseu. E
sua habitual perspicácia foi de grande utilidade para
materializar os cinturões de segurança que deveriam envolver o
berço.
Graças às meticulosas imagens e medições fornecidas pelos
olhos de Curtiss, o caminho de ida, da base-mãe-2 à popa
do Ravid (o fim da suave ladeira), foi resolvido sem incidentes
e em tempo recorde: oito quilômetros e meio em uma hora e
quarenta minutos.
De acordo com as observações prévias, a rota escolhida para
o ingresso no porta-aviões corria pela via maris durante os
primeiros cinco quilômetros, cruzando os pomares e os moinhos
de Tabja, a ponte sobre o rio Ammud e o luxurioso jardim de
Guinosar. Ao alcançar o segundo rio em importância da costa
ocidental do yam -, o Salmon -, limite para a conexão auditiva,
nosso caminho particular dobrava à direita e prosseguia para
o oeste.
Para evitar possíveis futuros problemas e suspeitas entre os
caminhantes, decidimos dispensar a passagem pela cidade de
Migdal, situada a um quilômetro da desembocadura do Salmon.
Se tivéssemos contornado o povoado, teríamos podido atingir
a vereda que levava a Migdal, encurtando a distância até o
Ravid. Essa vereda corria paralela ao caudaloso leito do rio
Salmon, de um lado, e a uma cerrada floresta, do outro. A
obrigatória passagem pela margem do rio, eriçada de altas
espadanas, adelfos venenosos, juncos de lagos e os míticos
aravah ou salgueiros de diminutas flores esverdeadas,
inclinou-nos a reforçar uma das medidas de segurança rotineiras:
a da pele de serpente. E não nos enganamos.
Aquele trecho, do mesmo modo que outras áreas pantanosas
pelas quais transitávamos forçosamente, oferecia permanente e
sério risco: os numerosos insetos transmissores de moléstias
como o impaludismo, a febre amarela, o dengue, a
leishmaniose, o tifo e a tripanossomíase, entre outras. Como
pudemos observar nas freqüentes incursões por aquela jungle

do Salmon, as colônias de Anopheles, o mosquito responsável
pela malária ou impaludismo, proliferam mais com a primavera e
as altas temperaturas. Não podíamos arriscar-nos a contrair uma
moléstia dessas. E ainda que fôssemos vacinados e usássemos
os antibióticos, (5) fizemos bem em incluir a proteção da pele
de serpente ao rosto, pescoço, mãos e pernas.) Desde esse
primeiro de maio, portanto, todas as nossas saídas da nave
foram precedidas da pulverização geral do nosso corpo.
A três quilômetros a oeste, em uma ampla e quase perfeita
curva de duzentos metros, o rio se alargava consideravelmente,
oferecendo muitos vaus que permitiam atravessá-lo facilmente.
Aquela curva, conhecida entre nós como a ferradura, marcava
o fim do que designávamos como a jungle, o trecho mais difícil
e trabalhoso do caminho para Ravid. Quinhentos metros mais
adiante, na direção sudoeste, depois de cruzar alguns vales
incultos de pouco mais de cinqüenta metros de profundidade, o
caminhante chegava finalmente ao extremo do caminho de terra
preta e esponjosa que se perdia até Maghar.
Aquela rota, imprópria para chegar ao porta-aviões, nos
levava a Migdal em questão de vinte minutos, coisa de dois
quilômetros. Mas só seria utilizada para descer. Para o retorno à
colina das Beatitudes decidimos suprimir os três quilômetros de
floresta, margeando a via maris pela estrada que, repito, levava
a Migdal e Maghar, respectivamente. Uma vez instalados no
Ravid, salvo emergências, os caminhos de ida e volta seriam
assim escolhidos: o ingresso na nave, sempre pela floresta; a
descida para o lago, pela escura senda que margeava a escarpa
à esquerda do porta-aviões.
Transpostos, pois, os vales que separavam a ferradura da
rota MigdalMaghar, dava-se com a popa do Ravid. Nesse
ponto, como eu dizia, as agressivas paredes do costado de
bombordo perdiam toda a sua altura e se nivelavam com a
cota da senda.
Bastava cruzá-lo para entrar em nossos domínios.
Depois de certificar-me de que o caminho estava solitário,
tomei a rampa (de uns seis graus) que me levaria até a suave

encosta de dois mil metros que terminava na proa do Ravid.
Essa rampa, de uns cinqüenta metros de extensão,
representava o setor mais fraco no que se refere à segurança. A
situação do explorador ficava realmente comprometida. Aí
estávamos expostos aos olhares de eventuais viajantes que
caminhassem em uma ou outra direção. E o problema não tinha
remédio. Não havia como nos camuflarmos naqueles malditos
cinqüenta metros.
A única alternativa era a que eu usava: esperar que o caminho
ficasse deserto.
Ao deixar para trás a zona morta, o terreno quase se
aplainava e o caminhante se esquivava a olhares indiscretos.
A partir desse momento, fixei a atenção nas referências que já
havíamos detectado do ar e que nos serviriam de orientação
nas futuras subidas e descidas.
O primeiro desses marcos, quase no centro da popa do
porta-aviões (a uns cem metros da zona morta), seria
especialmente útil. Em plena planície, como um capricho da
natureza, elevava-se uma solitária e singular árvore. A única em
todo o maciço de Ravid: uma macieira de Sodoma (Calatropis
procera), misteriosamente desterrada do seu hábitat. Esta
peculiar planta, própria dos oásis, cresce habitualmente no mar
Morto e no baixo Jordão. O mais provável é que a semente,
plana e dotada de um penacho, houvesse sido levada pelo
vento ou pelos pássaros. O caso é que, milagrosamente, e
para nosso benefício, esse estranho exemplar bíblico cantado
por Josefo se havia radicado no meio de uma encosta árida e
cheia de pedras vulcânicas e calcárias. E nos alegramos por dois
motivos. Primeiro, porque, como já disse, constituía um
magnífico sinal. Segundo, porque manteria distantes os
judeus. Essa árvore simbolizava o mal e a condenação de
Sodoma e Gomorra, sendo evitada geralmente pelos israelitas.
A atitude do povo em relação à macieira de Sodoma é
comentada pelo próprio Flávio Josefo em sua obra A Guerra dos
Judeus.
Diz textualmente: Assim como as cinzas de seus frutos, que

têm uma cor apetitosa, mas que, espremidos com as mãos,
tornam-se fumaça e cinzas. Esse fruto se desenvolve
rapidamente, formando dois corpos redondos parecidos com
uma maçã, de sete a dez centímetros de diâmetro, sem polpa,
cheios de pêlos e com um suco venenoso. Os ramos destilam um
licor leitoso que produz irritação ao contato.
Aquele esplêndido exemplar atingia uma altura de quase
quatro metros, com dez de envergadura. A ramagem era
espessa, trançada horizontalmente. Suas foLhas tinham uma
largura de até vinte centímetros e ficavam carregadas de
milhares de flores prateadas com as pontas dos lóbulos cor de
amora brilhante.
Eram nove horas aproximadamente e o calor sufocava. Depois
de observar detidamente a escarpa que se abria diante de mim
prossegui pelo centro do porta-aviões. O terreno, como já
sabia, inculto e rude, era dominado por uma rocha calcária
avantajada, avermelhada e oxidada e um cobalto negro e
desintegrado que rangia sob as sandálias.
A bom passo, os dois mil metros de suave ascensão até a
proa do Ravid foram percorridos em pouco menos de vinte
minutos.
Por fim pude ver-me diante da plataforma rochosa que nos
acolheria por longo tempo.
A princípio, confirmando a impressão da fase da exploração, o
lugar me pareceu esplêndido. Na boca do triângulo eqüilátero
que formava a proa viam-se os restos de uma muralha,
aparentemente de origem romana. Esse informe montão de
pedras azuis ocupava a totalidade da base (duzentos metros) e
estabelecia uma clara divisão entre as duas áreas do cume: a
escarpa que eu acabara de galgar e o triângulo que receberia a
nave em questão de horas.
Percorri a área com atenção, explorando cada metro
quadrado.
Mas só encontrei algumas moitas de cardos e arbustos e o
fugidio ziguezaguear de serpentes e lagartos.

A julgar pelo traçado e a orientação, tais ruínas poderiam ter
constituído um sistema defensivo destinado à vigilância da rota
entre Migdal e Maghar. Segundo nossas informações e as de
Zebedeu pai, a muralha-fortim remontava à época de Pompeu
(ano 63 a.C.) ou quem sabe à da Campanha de Herodes o
Grande na Galiléia (ano 40 a.C.).
Entre os escombros, que não ultrapassavam um metro e meio
de altura e cinco de fundo, percebiam-se cinco torres,
intercaladas a espaços de quarenta metros. O lugar, era
evidente, estava abandonado fazia muitas décadas. E ao
estudar a posição dos blocos e como se distribuíam no solo,
deduzi que a destruição devia ter sido provocada por um forte
sismo. No ano 35 a.C., segundo narra Josefo na mesma obra a
que nos referimos (A Guerra dos Judeus, I, cap. XIV), houve no
país um tremor de terra em que pereceu muito gado e trinta mil
homens... Por mais que buscasse não consegui achar um só
vestígio das guarnições. Então iniciei a inspeção da última
área: a proa do Ravid.
A plataforma triangular, com seus duzentos metros na lateral,
mostrou-se mais intensamente castigada pelo mar de rochas
que sua irmã, a escarpa de dois quilômetros que a precedia.
Caminhar por aquele contraforte significava evitar
continuamente todo um recife de brancas agulhas calcárias,
afiadas pelos elementos e gretadas pelas oscilações térmicas.
A maior parte dessas formações pétreas devia medir uns
quarenta ou cinqüenta centímetros de altura. E apesar da
aparente hostilidade da paisagem, senti-me reconfortado pela
singela e funcional beleza do que em breve seria o nosso
lar. Disputando as poucas clareiras de terra vermelha que
aquela rochosidade oferecia, uma intrépida família de cardos
perenes (a mencionada Gundelia de Tournefort) humanizava a
superfície azul e acerada das pedras com o amarelo rasante de
suas diminutas florzinhas.
E lentamente, observando cada detalhe, cada sítio e cada
rocha, fui-me aproximando do vértice do Ravid.
Nervoso e confuso a princípio, em meu afã por completar a

informação fornecida pelos olhos de Curtiss, não reparei
naqueles montinhos de terra finamente triturada. E ao atingir a
proa do porta-aviões, cumprindo a programação, dirigi o
cajado para o nordeste e dei a Eliseu, via laser, a boa nova: o
êxito da ascensão.
De cima daquela magnífica atalaia, o panorama era
simplesmente soberbo. Uma Migdal em miniatura, praticamente
em frente, ensolarada e desconhecida, se destacava como a
mais próxima das povoações. As entradas e saídas da cidade,
assim como boa parte da estrada romana, a via maris, podiam
ser vigiadas com estimável precisão. E mais além, para o norte,
recortava-se, limpa e majestosa, a costa ocidental do lago, com
os seus alvos núcleos urba nos. Naquela luminosa manhã se
distinguiam até o negro caos de Saidan a doze quilômetros
em linha reta e o habitual agrupamento de lanchas na baía da
Betijá.
Mas houve algo que me inquietou. Algo que já havíamos
percebido e que, entretanto, não avaliáramos suficientemente.
A meus pés, junto ao caminho de escória vulcânica que
bordejava o flanco esquerdo do Ravid, em uma extensão de
meio quilômetro, apontava uma verde e recente plantação, com
um confuso mosaico de hortas e estreitas manchas de árvores
frutíferas e palmeiras. Essa franja de terra, que partia do lado
oeste de Migdal, prolongando-se, por quinhentos metros, pela
margem direita da estrada que levava a Maghar, podia
representar um dos poucos e hipotéticos focos de conflito.
Entre as hortas e pomares distinguiam-se umas quinze
cabanas que presumivelmente seriam os depósitos das
ferramentas e utensílios de lavoura. Pouco a pouco, de fato,
iríamos descobrindo que os proprietários e arrendatários
daqueles lotes eram moradores de Migdal e dos demais
povoados costeiros.
E ainda que a zona morta (o ponto de acesso ao portaaviões)
se achasse a quilômetro e meio da plantação - assim
batizamos a horta -, a verdade é que a relativa proximidade nos
tirou o sono durante as primeiras semanas. E prometi cuidar do

assunto plantação na viagem de retorno ao módulo.
A inspeção das escarpas, até onde minha vista alcançou, foi
satisfatória. As minuciosas imagens transmitidas pelos olhos
de Curtiss estavam corretas. As paredes, à direita e à esquerda
do triângulo, em queda vertical, eram praticamente inacessíveis.
Aqueles cem e cento e trinta e um metros representavam a
melhor das barreiras contra um muito pouco provável ataque.
Tentar escalar semelhantes escarpas seria quase um suicídio.
Durante o resto da manhã, até a indefectível chegada do
maarabit, ocupei-me do último exame: a zona de contato
especificamente. Completei as medições e, feliz, tive de
reconhecer a eficiência do nosso Papai Noel. Seus cálculos,
como sempre, haviam sido perfeitos. A nave, colocando sempre
a segurança como fator prioritário, deveria pousar o mais
próximo possível do vértice do Ravid. O lugar, com suas rochas
pequenas, não parecia obstáculo para os pés extensíveis e
telescópicos do módulo. Outra questão, mas inteiramente
secundária, era o conforto dos pilotos em suas subidas e
descidas do berço.
Marquei os pontos possíveis e ideais para a tomada de
contato do trem de aterrissagem e, como havia sido combinado,
usando o laser de gás, desintegrei o calcário, aplainando-o.
Dessa forma, se tudo decorresse normalmente, o
assentamento seria mais fácil. Do ar, como verificaríamos nessa
mesma tarde com o lançamento de um novo olho de Curtiss, os
quatro círculos se afiguravam uma excelente ajuda nos instantes
finais da aproximação.
Se o vôo transcorresse regularmente, a nave ficaria
estacionada a seis metros do vértice. E nessa posição, com as
medidas habituais de segurança mais as especiais, previstas
inicialmente para cobrir a totalidade da escarpa, desfrutaria
um raio de ação desafogado o suficiente para proteger-se
quase cem por cento.
Ali pelas doze um maarabit sibilante me pôs em alerta. Era o
momento de iniciar a descida. Avisei Eliseu das minhas
intenções e me dispus a vencer os cento e setenta e três metros

que mediavam entre o vértice e a muralha. Foi aí, ao esquivarme
do cume das agulhas rochosas, que eu vi. Aquilo passara
despercebido nas análises das imagens aéreas.
Inclinei-me intrigado.
Demônios!
Protegido por um dos maciços de Gundelia erguia-se um
montículo de terra avermelhada, finamente triturada, de não
mais de trinta centímetros de altura. O vulcão apresentava
junto à base um orifício de uns sete centímetros de diâmetro.
Recolhi um punhado. Era quase pó. Seco, sem vestígios de
excrementos. Toupeiras. Estranhei a descoberta naquele
penhasco desértico, com um subsolo de especial dureza e que
presumivelmente não hospedava gusanos, insetos e pequenos
invertebrados, alimentos habituais das toupeiras.
Ao percorrer de novo a plataforma triangular descobri a
existência de pelo menos uma dezena mais daqueles
misteriosos cones, quase sempre ao abrigo das espinhosas
gundelias.
Caminhei sobre os escombros da muralha, fui penteando a
escarpa e verifiquei que boa parte dela estava igualmente
perfurada. Não consegui estabelecer padrão algum entre os
vulcões. Surgiam aqui e ali, sem ordem, com um único
denominador comum: todos surgiam nas proximidades dos
cardos e arbustos. Para ser preciso, à sombra das plantas de
raízes grossas e comestíveis. No total, desde o vértice do
triângulo até quase a metade da encosta, cheguei a contar
quarenta orifícios com seus inseparáveis vulcões. E à medida
que descia até a macieira de Sodoma, cones e agulheiros foram
diminuindo até desaparecerem a uns 1200 metros do vértice do
Ravid. Ali, estranhamente, cardos e arbustos desapareciam
igualmente, sufocados pelo calcário e grandes quantidades de
escória vulcânica.
Concentrado na viagem de regresso esqueci por momentos as
toupeiras. Teríamos de aguardar o assentamento da nave para
identificar a colônia que se agitava no subsolo. Uma descoberta

a que fui alheio e que seria aproveitada por Eliseu para me
pregar um dos maiores sustos da minha vida.
A zona morta foi superada sem novidade. Chegando ao
caminho inaugurei a rota de retorno. Aqueles dois
quilômetros, até os arredores de Migdal, percorri-os sem
companhia.
Ao chegar à altura da plantação reduzi o passo, para poder
reter o máximo de detalhes. Tratava-se, efetivamente, de um
rico e florescente vergel, conquistado duramente a uma áspera
colina de cinqüenta e poucos metros de altitude. Em canteiros
escalonados, os tenazes felah haviam cultivado amendoeiras,
figueiras, oliveiras, alfarrobeiras, alfostigueiras, macieiras da
Síria e tamareiras. E, entre a massa de pomares, hortas, quase
de brinquedo, esmeradamente cercadas e protegido pelas
espinhosas pimpinelas. Ali dava de tudo, desde o suculento
porro até o alho, passando por uma grande variedade de
lentilhas, um carnoso grão-de-bico, favas e uma incrível cebola
de até vinte centímetros de diâmetro. Sem saber eu estava
desfilando diante do que seria uma de nossas principais fontes
de abastecimento de frutas e verduras. E com o tempo
descobriríamos também o segredo daqueles enormes e
deliciosos frutos.
Alguns camponeses desafiavam o calor lidando com as
hortaliças ou tirando água dos dois poços.
Outros, menos dispostos, dormitavam às portas das choças de
adobe e telhados de palmeira.
Suponho que me viram passar, mas sem me prestar atenção.
Como eu imaginava, aquela pequena concentração de
camponeses estava longe de representar risco.
Em dado momento reparei em uma plantação que me havia
passado despercebida em minhas correrias anteriores. Não era
funcho (erva-doce), como pensei a princípio. Aquelas plantas de
um metro de altura, com talos ramificados, folhas compostas e
pequenas flores brancas recém-brotadas, eram a Conium
maculatum: a célebre e perigosa cicuta que provavelmente o

filósofo Sócrates preferiu beber a renunciar ao seu magistério.
Eu sabia da alta toxicidade dessa umbelífera, rica em coniina,
um alcalóide de grande poder narcótico. Mas que uso podiam
fazer dela esses camponeses? Mas essa não foi a única
surpresa. Alguns passos mais adiante descobri outros canteiros,
igualmente bem cuidados, de uma planta também famosa: a
mandrágora, com seus aromáticos e alaranjados frutos em forma
de ameixa. Dessa vez entendi a razão do seu cultivo. Judeus,
gregos e romanos a tinham em especial apreço pelos seus
poderes afrodisíacos. Os gregos a denominavam a maçã do
amor, considerando-a um infalível filtro amoroso, se empapada
em vinho. A tradição rabínica ia até mais além, assegurando
que procedia diretamente do Paraíso e que o seu uso, além de
curar a esterilidade, multiplicava a riqueza. Fosse como fosse, o
certo é que essa solanácea alcançava altos preços no mercado.
E chegaríamos a descobrir autênticos especialistas no trato
desses frutos, muito abundantes em cemitérios e lugares de
execução.
Depois de circundar Migdal retornei à via maris, caminhando
para o norte, ao encontro da ponte sobre o rio Salmon.
Pouco depois, já passada a hora nona (três da tarde), sem
nenhum tropeço, consegui chegar ao módulo.
A primeira exploração sobre o terreno, em princípio, podia
ser considerada um completo êxito. Só houve um detalhe
preocupante: a meia centena de misteriosos orifícios e
montículos que de fato o olho de Curtiss confirmaria nesse
mesmo dia no alto do Ravid. No banco de dados do Papai
Noel não constava pista alguma. E tivemos de nos resignar,
confiando em que o enigma seria esclarecido na segunda visita
ao porta-aviões.
2 de maio.
Aquela terça-feira amanheceu igualmente radiante. Não
podíamos nos queixar. Ao amanhecer, com Eliseu não menos
radiante, saímos os dois com destino ao Ravid, já familiar.
Papai Noel passou a responsabilizar-se pelos cinturões de
segurança, ficando com a faculdade de estender a barreira

gravitatória até o limite da colina em caso de emergência.
(Duzentos metros na direção sul e até quatrocentos para o
norte.) Tudo bem no caminho, com exceção das paradas de meu
irmão, deslumbrado pela paisagem e os paisanos. Mais de uma
vez me vi obrigado a resgatá-lo de entre os felah que ofereciam
suas mercadorias à margem da via maris.
Atravessamos sem impedimento a solitária floresta do rio
Salmon e, pelas nove horas, depois de vadear a curva da
ferradura, avistamos a senda de Maghar e a odiosa rampa de
acesso ao Ravid.
E aí surgiu o primeiro inconveniente. Naquele momento o
caminho estava tomado por uma récua de burros vinda de
Migdal.
Era demasiado tarde para retroceder e nos ocultar entre os
barrancos. Os tropeiros, com certeza, nos haviam visto. E
fizemos a única coisa razoável. Descemos até o caminho e,
saudando os homens, prosseguimos pela senda de terra
vulcânica simulando que íamos ao lago. Minutos mais tarde,
desaparecida a tropa, demos a volta e, mais cautelosos,
subimos rapidamente pela zona morta. E sem fôlego chegamos
à macieira de Sodoma.
Eliseu e eu pusemo-nos de acordo: aquele caminho podia
trazer complicações. Devíamos encontrar alternativa. Mas qual?
Os demais possíveis acessos ao Ravid já haviam sido avaliados
e rejeitados. Escalar as escarpas, por qualquer dos flancos,
representava um risco inútil. Seriamente preocupados,
reiniciamos a subida para a proa.
Tudo na desolada paisagem continuava na mesma. Eliseu
inspecionou minuciosamente os vulcões e orifícios, mas, como
eu mesmo, nada pôde concluir. Durante as horas que passamos
no cume chegamos até a sentar-nos pacientemente diante
daqueles cones de terra, na esperança de ver aparecerem os
supostos moradores do subsolo. Eliseu, com o emprego dos
longos e flexíveis talos de Gundelia, explorou o interior das
bocas, e só o que descobriu foi que galerias nasciam e
avançavam paralelamente à superfície. Isso foi tudo. Apesar do

nosso esforço, não houve forma de detectar um ruído, um
movimento, um sinal qualquer. Já admitindo que talvez os túneis
estivessem abandonados, concentramos nossa atenção nos
objetivos básicos daquela nova exploração.
Em primeiro lugar repetimos as medições, verificando os
cálculos do computador central com respeito aos três grandes
cinturões de proteção. E ficamos satisfeitos.
Revisamos igualmente os parâmetros e o desenho do ponto
de contato do módulo; depois, pela enésima vez, rastreamos a
plataforma triangular. E Eliseu deu a sua aprovação.
Por último, com os ânimos relaxados, convencidos do acerto
da escolha do lugar, passamos a experimentar a nova medida
de segurança pessoal: a tatuagem que deveríamos carregar
conosco obrigatoriamente desde esse dia.
Meu irmão, responsável pelos retoques finais, foi o primeiro a
testá-la.
Sorriu feliz. Olhou ao seu redor e escolheu um alvo.
- Que tal a muralha?
Concordei. E ele, aproximando-se das ruínas, apanhou um dos
pequenos blocos, colocou-o de pé, de modo a salientar-se no
montão de pedras, afastou-se quatro ou cinco passos e, dandome
uma piscadela, estendeu a palma da mão esquerda e pulsou
repetidas vezes o delicado mecanismo. Cerrou o punho
suavemente e apontou para a pedra com o sinete de ouro e
ágata que trazia no dedo médio. Um segundo depois, para
nosso regozijo, a pedra desapareceu, literalmente, com um
seco e discreto estampido.
Eliseu me olhou e sorriu, satisfeito. Correspondi com um
sorriso e o estimulei a completar a experimentação. Ele repetiu
a operação e alvejou o espaço que o bloco desaparecido
ocupava. Em um segundo, como por milagre, a pedra se
materializou e reapareceu no ponto e na posição anteriores.
Ele a examinou e não constatou na pedra alteração alguma.
Nem na forma, nem na textura, nem no colorido. Então voltou-se
e me convidou: - Sua vez, major...

Dessa vez selecionamos um dos frondosos maciços de cardos.
Abri por minha vez a palma da mão esquerda e, incendido o
sistema, programei o objetivo (Gundelia de Tournefort),
distância (quatro metros), volume espacial (um cubo de dois
metros de lado), finalidade (desmaterialização) e tempo de
execução (um segundo). Finalmente pulsei o ponto ômega e
dei luz verde ao microcomputador. E como fizera meu irmão,
fechei o punho, apontando as plantas com o sinete, alojado no
mesmo dedo médio.
Um segundo mais tarde, os talos, as folhas espinhosas e os
belos cachos de flores amarelas e avermelhadas se
extinguiram com um quase imperceptível estalido. E no solo
apareceram as covas ocupadas até pouco antes pelas raízes.
Reprogramei a tatuagem e, tal qual sucedera com a pedra
da muralha, um segundo depois da ativação do ômega e de
apontar para o presumido alvo, a planta reapareceu intacta.
Essa jóia do projeto Cavalo de Tróia, desenhada com o
concurso de especialistas da AFOSI, AFORS (Escritórios de
Investigações Espaciais e Científicas da Força Aérea Norteamericana),
ITM (Instituto de Tecnologia de Massachusetts),
Universidades da Pennsylvania, Michigan e Maryland, e Instituto
de Tecnologia de Tóquio, era na realidade uma das esplêndidas
aplicações do grande achado mencionado nas primeiras páginas
deste diário: os swivels,) as partículas elementares
generalizadas no Cosmo que algum dia, quando forem de
domínio público, deixarão para trás os antiquados conceitos
sobre a natureza e o comportamento da matéria.
O swivel, ou elo, como já comentei, pulverizou nossas
teorias a respeito do espaço euclidiano, com as suas tramas de
pontos e retas, obrigando-nos a reconsiderar todo o
conhecimento acerca das estruturas atômicas. Essa partícula
possui uma propriedade singular: pode modificar a posição
dos seus hipotéticos eixos, transformando-se em outro swivel
diferente.(8)
Os especialistas aproveitaram essa qualidade não só para
manipular o tempo mas também para modificar à vontade a

natureza das coisas, ou, como no caso em questão, para
desmaterializar e materializar qualquer objeto sem causar-lhe
alteração alguma. Bastava para isso, como expliquei, penetrar
nas redes de suivels, forçando os ângulos dos hipotéticos eixos
ortogonais à posição desejada. Na aniquilação do bloco de
pedra, por exemplo, o processo, muito sintetizado, era o
seguinte: o microcomputador recebia, entre outros parâmetros, a
identificação do objeto a ser desmaterializado. Em seguida, se
o objetivo constasse em seu milionário banco de dados,
sintonizava as posi ções habituais das cadeias de swivels com
essa determinada matéria, programando as inclinações
necessárias para obter a aniquilação. O mais simples, para
conseguir a extinção da pedra, era mobilizar seu enxame
atômico para os ângulos correspondentes a qualquer dos gases
que integram o ar. Essa operação-chave deveria ser
complementada por uma série de informações igualmente
básicas: distância, volumes espaciais a remover e tempo para
a inversão. A tatuagem estava preparada até mesmo, se o
explorador o desejasse, para executar as duas manobras
(desmaterialização e materialização) em um só processo e em
tempos igualmente programados. Para isso, o microcomputador,
uma vez esgotado o tempo de aniquilação, empurrava os
eixos dos swivels do hidrogênio do ar, por exemplo, para as
posições que davam forma ao bloco de pedra.
Tal tecnologia, quase mágica, pareceria grosseira se a
comparássemos com a prodigiosa modificação, à vontade, da
vibração atômica do corpo do Ressuscitado. Enquanto nós nos
víamos obrigados a recorrer a dispositivos técnicos, Ele podia
aparecer e desaparecer com um simples ato de vontade.
Com a tatuagem, se a programação estivesse correta, não
se lesava nem comprometia a natureza íntima dos objetos
manipulados, proporcionando aos exploradores ampla margem
de segurança em situações de alto risco.
Se eu tivesse contado com ela quando fui encerrado na
caverna do saduceu, o mais provável é que as coisas haveriam
corrido de maneira muito diferente.

Por que não foi utilizado desde o começo da Operação? Muito
simples: os diretores do projeto não o consideraram
conveniente. Em momento algum imaginaram sequer as sérias
dificuldades em que nos vimos envolvidos. E, dado o seu caráter
espetacular, aconselharam que o seu emprego se desse única e
exclusivamente em casos muito especiais. Como chefe da
missão, assumi a responsabilidade do seu uso e posso adiantar
que não me enganei. A adoção dessa medida foi um ato
acertado, tirando-nos de situações conflitivas que nos
aguardavam.
E ainda que eu não esteja autorizado a revelar as linhas
mestras dessa magnífica obra de engenharia eletrônica, tentarei
expor superficialmente algumas das suas características, em
benefício de uma melhor compreensão dos acontecimentos que
nos coube viver e nos quais fomos auxiliados por essa
tecnologia. Uma tecnologia guardada zelosamente pelos
responsáveis pela Operação. Não é preciso ser muito perspicaz
para imaginar o que se poderia fazer com ela, se caísse em
mãos ou governos errados...
A tatuagem devia sua denominação ao fato de haver sido
concebida como uma aparente pintura, permitindo seu
transporte sem levantar suspeitas. E ainda que, naturalmente,
não se tratasse de um elemento introduzido sob a epiderme, o
efeito especial e o tato eram similares.
Os engenheiros o desenharam inicialmente em forma de
estrela de Davi (de seis por seis centímetros), ainda que a
natureza dos seus componentes possibilitasse uma distribuição
aleatória, de forma que pudesse adotar qualquer outro
desenho.
Essa estrela de seis pontas (dois triângulos eqüiláteros
superpostos), suscetível de ser fixada e separada da palma da
mão com extrema facilidade, foi confeccionada com milimétricas
malhas trançadas de polianilina, um polímero orgânico
sintético parecido com os filmes fotográficos de 35 milímetros,
com excelentes propriedades. Parte dos circuitos foi mesmo
fabricada com elementos poliméricos, baseados na

sesquitiofeno, molécula de cadeia curta e grande
flexibilidade.
No interior desse material extraplano, tingido de azul em um
requinte de miniaturização, foi colocada a quase totalidade dos
complexos componentes: cerca de 2,16 por 10 canais
informativos com elementos que, em muitos casos, não mediam
mais do que 0,07 mm3; dois microcomputadores (um sempre na
reserva); um conduto emissor conectado ao anel (com
capacidade de emissão de feixes troncocônicos de ondas em
uma freqüência de 6,77 por 102 graus ciclos por segundo); duas
pilhas atômicas de curie 244 (uma na reserva) e os
correspondentes ativadores (o chamado ponto alfa, para a
abertura e o fechamento do sistema, respectivamente, e o
ômega, destinado à projeção dos feixes troncocônicos que
materializavam as inversões dos swivels), entre outros
dispositivos que talvez eu vá descrevendo mais adiante.
Cada microcomputador autêntica alma do engenho foi
construído com uma imensidão de circuitos integrados
topologicamente em cristais estáveis denominados
amplificadores nucleicos.(10) Alguns desses componentes
para termos idéia de seu ínfimo tamanho mediam 0,0006
milímetros cúbicos, com canais elétricos ou portas que
oscilavam entre 0,1 e 0,3 micrômetros (equivalente, por
exemplo, à largura de uma fibra de DNA ou à milésima parte da
grossura de um cabelo humano). Naturalmente, a integração só
pôde ser feita com microscópios eletrônicos.
A capacidade de memória desses microcomputadores, graças
aos citados cristais de titânio, cujos bilhões de átomos atuavam
como portadores de algarismos, era tão fantástica que só
poderíamos defini-la em termos de terabytes (uma soma de
informação superior à contida na biblioteca do Congresso norteamericano).
Também a sua velocidade de transmissão era fantástica. Cada
microcomputador podia trabalhar à razão de um milhão de
operações por femto-segundo, vale dizer, 10-15 segundos.
O sistema era completado por um enlace de 1,5 cm, feito

também de polianilina dopada, que unia a extremidade
superior direita da estrela com o falso sinete ou anel de ouro
e ágata. Essa gema, da família do quartzo criptocristalino,
encontrada pela equipe da Operação Cavalo de Tróia no
deserto egípcio de Jebel Abu Diyeiba, foi esvaziada
completamente para que no seu interior fosse colocado um
minúsculo cristal de boro. A extraordinária dureza deste isótopo
estável garantia a projeção dos feixes troncocônicos destinados
às inversões axiais dos swivels. O alcance máximo do fluxo foi
estabelecido em cem metros. Uma distância razoável para um
instrumental que requeria uma especial discrição.
Quanto à distribuição dos principais dispositivos na estrela
de Davi, ainda que sujeita a modificações segundo variasse o
desenho da tatuagem, inicialmente foi fixada da seguinte
maneira: as duas pilhas atômicas, de duração praticamente
ilimitada, ocuparam as pontas do lado esquerdo (ambos os
vértices da estrela penetravam nas chamadas eminências
tênar e hipotênar da mão esquerda). No centro se alinhavam os
microcomputadores e o miniteclado. O ponto alfa, que ligava
e desligava a totalidade do sistema, foi alojado na ponta
superior da estrela. O ômega, responsável pelo disparo dos
feixes, ficou no extremo oposto.
Por último, as duas pontas da direita foram reservadas para
um complemento ou periférico tão prodigioso como seu
irmão e que prefiro descrever oportunamente.
A tatuagem, em suma, era a culminância e o promissor
exemplo do que deverá ser algum dia a informática. Uma
máquina perfeita e, ao mesmo tempo, quase invisível. Um
sistema que nada tem que ver com esses computadores que
escravizam o homem. Um engenho que auxilia e, graças ao seu
ínfimo tamanho, passa despercebido, permitindo que
inteligência, imaginação e esforço humanos possam ser
dedicados a tarefas mais nobres. A tatuagem teria feito as
delícias de cientistas tão admiráveis como Mark Weiser,
defensor dessa informática que é e não é e avança de
gatinhas...

Satisfeitos, passamos à segunda fase da experimentação: a
execução da dupla operação desaparição e reaparição da
matéria com uma só programação.
Êxito completo. A tatuagem atuava com tal precisão e
inocuidade que quando desmaterializamos uma planta os
insetos que deambulavam por suas folhas ou voavam ao seu
redor permaneciam ilesos, caindo por terra ou zumbindo
confusos diante da súbita desaparição do vegetal.
E o resto da manhã, até o regresso ao monte das Beatitudes,
converteu-se em um festival. Desfrutamos o sucesso até cair
rendidos.
O processo inverso, a aparente criação de objetos e sua
posterior eliminação, foi talvez a parte mais brilhante e
surpreendente dos ensaios. Simulando diversas situações de
emergência, meu irmão e eu fizemos aparecer sobre o solitário
cume do Ravid todo tipo de pontes, muros, escadas e até
assombrosos e gigantescos cubos de gelo. O banco de dados
do microcomputador era tão rico que bastava indicar
objetivos, materiais e tamanhos para que, em um femtosegundo,
programasse cálculos de resistência, dilatações,
cimentação e tudo o mais.
Os únicos inconvenientes da tatuagem - para serem sempre
lembrados eram os feixes troncocônicos, que podiam lesar
qualquer ser vivo que se interpusesse em seu caminho, e os
inevitáveis estrondos provocados pelas implosões na fase de
eliminação.
3 de maio.
Uma quarta-feira inesquecível. Um dia decisivo. Já estávamos
mais perto do ansiado momento. Breve, muito breve,
voltaríamos a vê-lo...
O orto solar às 05h 15 de um suposto TU (Tempo Universal)
naquele ano 30 liberou as atividades nas colinas da costa
oriental do yam. E Nahum, a nossos pés, espreguiçou-se e
apagou as últimas tochas.
Tudo estava preparado para a decolagem. Obedecendo a um

impulso, deixei a nave em silêncio. Eliseu, compreendendo meus
sentimentos, não interferiu. Reconheço que tive tivemos
muita sorte. Meu irmão e eu chegamos a entender-nos com o
olhar. Fico aterrado ao pensar o que poderia haver ocorrido se
não houvesse entre nós tão completa afinidade. Aproximei-me
dos lírios e das anêmonas, me ajoelhei, agradeci aos céus sua
benevolência e implorei luz e forças para não falhar.
Acariciei as flores orvalhadas e, ainda que avesso às
despedidas, disse-Lhes adeus. Nunca voltaríamos a pousar
naquele promontório.
E às 06h00, banhada pela dourada luz do novo dia, a nave
elevou-se agitando a superfície do monte das Beatitudes com o
jato do poderoso J 85. E o suave silvo do motor principal foi
como um precioso canto.
Os sistemas reagiram docilmente. E o módulo subiu veloz até
o nível de cruzeiro (800 pés).
- Tempo invertido: vinte e seis segundos... Queimando a cinco
vírgula dois quilos...
A precária disponibilidade de combustível obrigou-nos a
trabalhar com especial zelo. (A nave decolou com 7 785,8 kg.)
As condições meteorológicas estavam a nosso favor. O tenaz
anticiclone dos últimos dias continuava ativo, proporcionandonos
uma WX que certamente não deixamos de aproveitar.
- Visibilidade ilimitada. Ao nível oito (800 pés), vento
precioso... Leio catorze graus centígrados...
- Roger... Dê-me nível de consumo...
O plano de vôo para o Ravid era quase um brinquedo. E
Eliseu, como bom piloto, não deixou passar a oportunidade.
Tomou de Papai Noel o controle, desfrutando o prazer da
rápida operação.
- Jasão, atenção... Dê-me nível de consumo...
- Queimando segundo a previsão. Leio cinco vírgula dois
quilos.
- Roger respondeu meu irmão mobilizando o J 85 em 90

graus -, nível oito... Lá vamos... Rumo dois-dois-cinco.
- OK! Regulagem sem variação...
- Consumo?...
- Leio quatro quilos por segundo...
- Não é justo lamentou-se Eliseu -. Isto é um abrir e fechar
de olhos...
Compreendi seu justificado aborrecimento. A nave, a 18.000
pés (6 quilômetros) por minuto, cobriria os 8000 mil metros que
nos separavam da vertical do Ravid em um minuto e trinta e três
segundos.
Um suspiro, para dizer a verdade.
- Atenção! - adverti-o -. Ponto BM-3 no radar.
- Estou vendo... Preparados foguetes auxiliares.
A plataforma rochosa que eu apelidei de porta-aviões, que
parecia tingida de azul e ocre, mostrava-se solitária e tranqüila
sob a nossa nave.
- Continuo no rumo dois-dois-cinco... Estacionário.
- Roger... Tempo calculado para reunião treze segundos.
- Abaixo a vinte e três!
- OK! Não a force.
- Roger... seiscentos pés... Abaixo a quinze por segundo.
- Freando... Adiante, querida!
- Leio cinco para reunião...
- Atenção... Onze adiante... Luzes de altitude.
- Descendo a três vírgula cinco... Ponto de contato à vista.
- Roger... Já é nosso!
- Vejo poeira...
- Um pouco mais... Dois adiante... Derivando à direita.
- Luz de contato!
A nave tocou a proa do Ravid suavemente, pousando nos

quatro círculos de calcário previamente rebaixados. E Papai
Noel corrigiu o pequeno desnível alargando as seções
telescópicas do trem de aterrissagem.
- Ventilação de oxidante...
- Roger... Sem problemas... Tudo de primeira classe.
Felicitei meu companheiro.
- Ativados cinturões de segurança.
E o computador assumiu o comando.
- E agora interveio Eliseu apontando o medidor de consumo
as más notícias... Leio quinhentos e setenta e quatro vírgula
oito quilogramas.
- Não está mal comentei no fútil intento de o animar. -
Verificarei com Papai Noel.
E o computador resumiu a situação.
Em 2 minutos e 12 segundos (tempo total de vôo), havíamos
consumido mais de meia tonelada de combustível. Exatamente
574,8 kg. Isso significava que dispúnhamos de quase 492 da
reserva.
- Bem refleti em voz alta -, escapamos por pouco...
Meu irmão não respondeu. Intranqüilo, consultou de novo o
computador.
A rota prevista para o retorno, como já comentei a seu tempo,
perfazia 109 milhas (196 quilômetros). Com a mudança para o
Ravid queimamos 4,4 miLhas e 574,8 kg de combustível.
Se o vôo para a meseta de Masada não tivesse problemas, a
nave, a partir do novo assentamento, necessitaria 6896 quilos,
aproximadamente. Como o estoque era de 7211 e mais 492 na
reserva, poderíamos atingir a orla ocidental do mar Morto com
uma sobra de 315 kg, sem contar os tanques de emergência.
Eliseu me olhou em silêncio. Não era muito, certamente, mas
insisti: - Suficiente para voltar.
E, inspirado no estilo do Mestre, sublinhei, dando por
encerrado o assunto: - Demos a cada dia a sua tarefa. Você já

sabe que o Destino joga com cartas marcadas.
E tão marcadas! Quem poderia imaginar naquele instante que
a viagem de volta ao nosso tempo terminaria como terminou...
Sorriu forçado, aceitando o conselho. E passamos a checar as
telas do módulo e dos habituais cinturões protetores. O
gravitatório, última das defesas, capaz de provocar uma barreira
igual a um vento de furacão, foi prolongado, segundo a
indicação de Papai Noel, até 205 metros (contando sempre
desde a nave), ou seja, a pouco mais de trinta passos dos
restos da muralha romana. O IR ficou fixado a 1 500 metros.
Uma primeira vista de olhos pelas escotilhas, situadas a sete
metros da plataforma rochosa, ratificaria a leitura da radiação
infravermelha.
- Negativo. Não vejo target na tela. Triângulo e escarpa
permanecem limpos. (11) E depois de uma última revisão nos
sistemas acionamos a escada hidráulica. E fomos tomar posse
- se me for permitida a licença do cume do Ravid.
De acordo com o planificado, antes de consolidar o terceiro
cinturão de segurança percorremos sem pressa o que a partir
daquela quente manhã seria nosso lar. Descemos
discretamente até a macieira de Sodoma e chegamos à
cabeceira do caminho de Migdal e Maghar. Tudo em paz.
Estranhamente felizes poucas vezes havíamos desfrutado
tanto sossego iniciamos a instalação do cinturão extra de
que já falei. Uma barreira protetora ainda por estrear.
Eliseu repassou os cálculos: distâncias, graus, freqüência e
demais parâmetros, deixando os controles nas incansáveis mãos
de Papai Noel.
E um invisível leque de raios de microlaser se abriu desde o
ponto mais alto do berço, invadindo o cimo do Ravid. Essa
colossal radiação, também na faixa do infravermelho, era
integrada por milhões de raios laser que partiam de uma
espécie de olho implacável, batizado como o ciclope e
constituído, fundamentalmente, de trinta pares de espelhos de
arseniuro de alumínio e gálio. Em cada centímetro quadrado

dessa superfície haviam sido gravados, por meio de três
técnicas diferentes,(12) dois milhões de raios laser. Sob a
rigorosa vigilância do computador central, o ciclope varria o
Ravid uma centena de vezes por segundo, cobrindo o ângulo
desejado. Em nosso caso, a cobertura foi programada com uma
amplitude de 180 graus e uma inclinação suficiente para
alcançar a macieira de Sodoma, a 2300 metros da nave. Dessa
forma, para nossa tranqüilidade, o porta-aviões ficava
completamente controlado, incluindo a borda dos precipícios.
O dispositivo outra maravilha da miniaturização emitia em
um comprimento de onda de um micrômetro (radiação
infravermelha), sendo invisível ao olho humano. Só com as
crótalos e os canais de visão noturna da nave era possível
desfrutar essa seria a palavra adequada o formidável
espetáculo daquela cortina de luz. De outra parte, o consumo,
calculado sobre uma potência de 100 miliwatts, era realmente
baixo, permitindo-nos um funcionamento contínuo se o
desejássemos.(13)
O único ponto não submetido à vigilância por esse terceiro e
eficiente cinturão se encontrava às costas do módulo, na
estreita franja de seis metros que nos separava da proa.
Mas o abismo, ali, era uma defesa natural e qualquer cautela
seria redundante.
Durante boa parte da manhã nos ocupamos de todo tipo de
testes, sob a escrupulosa supervisão de Papai Noel.
E o ciclope reagiu prontamente. Primeiro fui eu o encarregado
de penetrar na fronteira dos microlaser. Pois assim que pisei
nesse limite, situado à altura da macieira de Sodoma, a nave
foi alertada simultaneamente. Eliseu, por meio da conexão
auditiva, foi-me dando conta dos excelentes resultados. Em uma
linha de 200 metros (a largura máxima da popa do portaaviões),
os sucessivos e vertiginosos feixes, com uma
inclinação de 22 graus, alvejavam o terreno, com impacto, nada
menos do que seis mil vezes por minuto. O muro,
simplesmente, era impossível de escalar. Qualquer ser vivo, com
uma temperatura corporal mínima, capaz de emitir IR, era

fulminantemente detectado. A sensibilidade do sistema era
tamanha que registrava variações técnicas de menos de 2 graus
Fahrenheit; e podia, além disso, perceber as mudanças de
temperatura de lábios e nariz nos movimentos de inspiração e
expiração.
Quando os feixes surpreendiam o intruso, o computador
central processava a sua imagem e a projetava na tela com uma
importante informação complementar: direção, velocidade de
deslocação e características físicas.(14) Por último, a vibrante
barragem foi testada no automático.
Meu irmão e eu, caminhando ombro a ombro, depois
separados, violamos os microlaser por diversos pontos e no
mesmo instante o sinal de alerta foi registrado no computador.
Eliseu, ainda assim, não se deu por completamente satisfeito.
Aqueles silvos, via conexão auditiva, não lhe pareciam
suficientemente
explícitos. Pensando no terceiro salto no tempo, que nos
obrigaria a prolongadas ausências do Ravid, convinha
aperfeiçoar a comunicação com Papai Noel. E prometeu
estudar o processo denominado terceiro olho, incluído entre
as ajudas aos observadores da Operação Cavalo de Tróia.
E o dia, repito, transcorreu em paz. Em uma inusitada e
inquietante paz. Que nos reservava o destino? Eliseu, com um
elã admirável, prosseguiu os preparativos para esse terceiro
salto. Não fez comentário algum, mas eu já havia aprendido a
ler em seu coração, que, como o meu, saltava impaciente,
imaginando o grande momento: o encontro com o Filho do
Homem.
*NOTAS
(1) É bom lembrar que o Kennereth estava naquele tempo a 208 m abaixo
do nível do Mediterrâneo. (N. Do m.) (2) Ver Flávio Josefo (Antiguidades, XIV,
15, 3-6 e Guerras, I,16, 4). (N. Do m.)
(3) Apesar de já ter sido detalhado antes, acho bom refrescar a memória do
hipotético leitor deste relato sobre a natureza e as principais características
desses prodigiosos olhos telecaptadores. Ainda que os olhos de Curtiss
estejam no âmbito do segredo militar e eu não tenha autorização para
desvelar as chaves de seus micro-sistemas, posso, sim e com isso não estou

violando nenhuma norma descrever as funções que estavam diretamente
relacionadas com o nosso trabalho. Em síntese, essas pequenas esferas haviam
sido munidas de câmaras fotográficas eletrostáticas, com uma propulsão
magnetodinâmica que lhes permitia subir até mil metros com capacidade para
captar imagens fotogramétricas e toda sorte de sons. Em seu interior foi
colocado um microfone diferencial, integrado por 734 células de ressonância,
sensibilizadas, todas elas, com uma gama muito restrita de freqüências
acústicas. O campo de audição estendia-se dos 16 ciclos por segundo até
19.500. Os níveis compensados com resposta praticamente plana possuem
uma faixa inferior a 6 decibéis. (Preciso acrescentar que as células
registradoras de freqüências infra-sônicas, por causa de suas micro-dimensões,
não trabalham com ressonância própria.) O nível de corte superior era de 118
decibéis.
Outro dos dispositivos alojados no olho de Curtiss consistia de um
detector de hélio líquido (imprescindível), capaz de registrar freqüências
eletromagnéticas que se estendem da gama centimétrica até a betta. O
equipamento de registro discrimina freqüências, amplitude e fase, controlando
simultaneamente o tempo em que se verificou a detecção.
Também dispõe de um emissor de faixa múltiplo, gerador de ondas
gravitacionais, de grande utilidade nas comunicações com os órgãos de
controle situados no berço, e de um retransmissor para a informação captada
por diferentes equipamentos. O olho podia imobilizar-se no ar graças a um
dispositivo, igualmente miniaturizado, de nível gravitacional, que lhe permite
ficar estacionário em diferentes altitudes por meio do registro do campo
gravitacional e o correspondente dispositivo Propulsor. (A medição do campo é
verificada com um acelerômetro que mede a constante g em cada ponto,
controlando o comportamento de queda livre de uma molécula de SCN2 H-g
(tiocinato de mercúrio). O delicado engenho podia deslocar-se de acordo com
dois sistemas de controle. Em alguns casos, um transceptor de campo
gravitacional de alta freqüência emitia impulsos codificados de controle que
eram automaticamente corrigidos quando o olho encontrava-se nas
imediações de üm obstáculo. O operador, em terra, podia observar numa tela
todo o campo visual detectado pela esfera.
Este procedimento era complementado pela carga de uma seqüência de
imagens e perfis topográficos do terreno que se queria espionar. Daí a
importância do circuito aéreo sobre as treze partes em que foi dividido o litoral
do lago. Essa varredura televisual servia de guia para o olho de Curtiss. A
sucessão de imagens levava fixada a trajetória, que, por sua vez, era
memorizada numa célula de titânio cristalizado, quimicamente puro. No interior
do olho, uma microcâmara cujo filme foi substituído por uma tela que traduz a
recepção de fotons em impulsos elétricos, recolhe as sucessivas imagens dos
lugares por onde voa a esfera. (A sensibilidade da tela estende-se até uma
freqüência de 71012 ciclos por segundo espectro infravermelho -, com o que é
possível sua orientação mesmo em plena escuridão.) Tais imagens são
superpostas às registradas na memória e que, insisto, foram previamente

tomadas pelo módulo no já citado vôo ao redor do mar de Tiberíades. Esse
equipamento óptico explora ambas as imagens e, quando as primeiras não
coincidem com as já memorizadas, impulsos de controle corrigem a trajetória
dos equipamentos propulsores e de direção. Desse modo, o olho de Curtiss
pode orientar seus próprios movimentos, sem necessidade de manipulação
exterior de natureza teledirigida. Em nosso caso, o controle feito do berço foi
praticamente contínuo. Lamentavelmente, hoje, uma parte desse prodigioso
siseema acabou por infiltrar-se em outros círculos militares e de inteligência
que, mesmo de forma incompleta, começaram a desenvolver o que se designa
por sistema de guia TERCOM (Terrain Contour Mapping) e sistema SMAC (Scene
Matching Area Correlation), tristemente usados para guiar mísseis. (N. Do m.)
(4) A memória do comPutador central contava com um razoável volume de
informações sobre a flora que podíamos definir como bíblica. Essa
documentação estava baseada em toda sorte de textos antigos e
contemporâneos. Podíamos ali consultar, entre outros, os estudos de botânicos
de grande prestígio como o holandês Leonhardt Rauworlf, que empreendeu
viagens pela Arábia, Síria e por Israel entre 1583 e 1586. Suas coleções de
plantas, em esPecial sua Relation dun voyage au Levant (1717), foram de
grande utilidade. Também estavam ali os estudos de Pier Forsskal (1761) e
Haselquist (1777), ambos alunos de Linnaeus. Dispúnhamos igualmente da
monumental obra Flora orientalés, do exPlorador suíço Edmond Boissier (1867-
1888), em cinco volumes e um suplemento, assim como o valioso livro
Botanique Biblique, também de sua autoria, Publicado em Genebra, em 1861.
Havia ainda que acrescentar a essa numerosa documentação uma infinidade de
artigos e livros de especialistas como Hart, Dalman, Iristram, Post e Balfour.
Papai Noel também dispunha de uma completa bibliografia além de
ilustrações e comentários dos diferentes exegetas e eruditos da Bíblia, que
se ocuparam em identificar os cento e dez nomes de plantas que aparecem nos
textos talmúdicos e nos do Velho Testamento. Uma obra-chave nesse sentido
foi o quarto volume de Die flora der juden ( 1938), de E. Loew, assim como
Plants of the Bible (1952), de H. N. E L. Moldenke. O trabalho de Loew, em
especial, com sua longa lista de nomes hebraicos e suas traduções, nos foi
utilíssimo. Também contamos com os conhecimentos de expertos como
Hareuveni, J. Felix (com sua obra Olam ha-tzomeah hamikras), M. Zohary e
muitos outros.
(N. do m.)
(5) Como barreira quimioprofilática especialmente contra o perigoso
impaludismo -, Eliseu e eu ingeríamos doroquina (300 mg) duas vezes por
semana, reforçada pela associação com pirimecamina-dapsona, se algumas das
cePas (caso da P. Fakiparum) se tornassem resistentes à cloroquina. (N. Do m.)
(6) Como já citei, os observadores do Cavalo de Tróia deviam usar
obrigatoriamente o que no jargão da Operação foi batizado como pele de
serpente. Por meio de um processo de pulverização, o explorador cobria seu
corPo desnudo com uma série de aerossóis protetores, formando uma epiderme

artificial milimétrica que defendia o organismo de possíveis agressões
mecânicas e bacteriológicas. Esse ultra-eficaz vestuário transparente resistia
a impactos equivalentes a um projétil de calibre 22 americano a vinte pés de
distância, sem interromper o processo normal de transpiração. (N. Do m.)
(7) Ver Operação Cavalo de Tróia 1, p. 60 e ss. (N. A.)
(8) A título de recordação, vou insistir no que já expus. Os swivels
mostraram que todos os esforços da ciência para descobrir novas partículas
subatômicas não são mais que uma ilusão condenada ao fracasso, ou a uma
interminável seqüência de supostas descobertas. A razão é muito simples: não
existe um número indefinido de partículas. A matéria está sabiamente
organizada com base numa única entidade, os swivels, com a prodigiosa
capacidade de converter-se em outras, graças a essa faculdade de variação de
seus eixos ortogonais. As diferentes posíções desses pacotes de feixes
ou eixos (sempre teóricos) fazem com que os cientistas os interpretem como
outros tantos e distintos quantum, como momentos orbitais, como cargas
elétricas, como massa, etc., sem dar-se conta de que, na realidade, são a
mesma partícula com eixos orientados em diferentes direções. Algo
parecido ao que acontece com as cores do espectro. Todas, ainda que
diferentes, são a mesma coisa. As tonalidades só dependem do tipo de
freqüência.
Cada swivel é integrado por um feixe desses eixos, que não podem
entrecruzar-se. A aparente contradição ficou explicada quando os expertos
comprovaram que não se tratava de eixos propriamente ditos, mas de ângulos.
O segredo, portanto, estava em atribuir aos ângulos um novo caráter: o
dimensional.
Em outras palavras, a matéria está ordenada em cadeias de swivels, e
cada swivel, com sua própria e peculiar orientação.
No início, muitas das tentativas de inversão da matéria acabaram em
fracasso, em conseqüência da falta de precisão na manipulação dos eixos. Ao
não conseguir a inversão completa, o corpo sofria o conhecido fenõmeno da
conversão da massa em energia. Por exemplo, ao desorientar no centro do
átomo de Mol um só nucleon (um próton), obtinha-se um isótopo do Nióbio
10 (E = mC2 + K), sendo m a massa do próton e K, uma constante. Quando,
por fim, alcançamos a inversão absoluta de todos os eixos dos swivels,
comprovamos que o processo era instantâneo e com apreciável aumento de
energia. Tal energia, entretanto, era restituída integralmente, reconvertendose
no novo marco tridimensional em forma de massa. (N. Do m.)
(9) Os polímeros (plásticos e fibras sintéticas) são grandes moléculas
orgânicas formadas por unidades menores. Os utilizados pelo Cavalo de Tróia
foram previamente contaminados ou dopados para favorecer a condução
elétrica. A polianilina estava preparada para conduzir até 500 ampères por
volts e cm.
(N. do m.)

(10) Como já mencionei a seu tempo, os computadores a serviço do Cavalo
de Tróia pouco ou nada tinham que ver com os atuais sistemas de computação,
baseados em circuitos eletrônicos, ou seja, tubos de vácuo, transístores ou
diodos sólidos, condutores e semicondutores, indutâncias, etc. Os nossos
eram diferentes porque neles não se amplificam as tensões ou intensidades
elétricas, mas a potência. Uma função energética de entrada injetada no
amplificador nucleico era refletida na saída em outra função analiticamente
mais elevada. A liberação controlada de energia se realizava em função da
massa integrada no amplificador, realizando-se o fenômeno dimensionalmente
em escala molecular. No processo intervêm os átomos suficientes para que a
função possa ser considerada macroscopicamente como contínua.
A estrutura básica desses supercomputadores até onde posso detalhar
era a seguinte: os computadores digitais usados comumente precisam de uma
memória central de núcleos de ferrita, assim como de unidades de memória
periférica, fitas magnéticas, discos, tambores, varetas com faixa helicoidal, etc.
Todas elas são capazes de acumular, codificados magneticamente, um número
muito limitado de bits, ainda que sempre se fale de cifras milionárias. Pois
bem, as bases dos computadores do Cavalo de Tróia sustentadas pelo titânio
eram diferentes. Sabemos que o envoltório eletrônico de um átomo pode
estimular-se, fazendo com que os elétrons alcancem diversos níveis energéticos
que chamamos quânticos. A passagem de um estado a outro é realizada pela
liberação ou pela absorção da energia quantificada, que leva associada uma
freqüência característica. Assim, um elétron de um átomo de citânio pode
mudar de estado em seu córtex, liberando um fóton, mas no átomo de titânio,
como noutros elementos químicos, os elétrons podem passar a vários estados
emitindo diversas freqüências. A esse fenômeno damos o nome de espectro
de emissão característico desse elemento químico, que permite identificá-lo
por valoração espectroscópica. Se conseguirmos alterar à vontade o estado
quântico dessa capa eletrônica do titânio, poderemos convertê-lo em portador,
armazenador ou acumulador de uma mensagem elementar: o número.
Se o átomo é capaz de alcançar, por exemplo, doze ou mais estados, cada
um desses níveis simbolizará ou codificará um algarismo de zero a 12. E uma
simples pastilha de titânio, como se sabe, contém bilhões de átomos. Imaginese
a informação codificada que pode reunir! (N. Do m.)
(11) O cinturão de segurança chamado IR (radiação infravermelha e também
o sistema de teletermografia dinâmíca, como já expus, tinham a capacidade de
detectar qualquer corpo vivo a distâncias previamente programadas. Essa
detecção baseava-se fundamentalmente na propriedade da pele humana,
capaz de comportar-se como um emissor natural de radiação infravermelha.
Como se sabe pela fórmula da lei de Stephan-Boltzmann (W = EJT/4), a emissão
é proporcional à temperatura cutânea, e dado que T é elevada à quarta
potência, pequenas variações em seu valor provocam aumentos e diminuições
marcados na emissão infravermelha (W: energia emitida por unidade de
superfície; e: fator de emissão do corpo considerado; J: constante de
StephanBoltzmann e T: temperatura absoluta). Em numerosas experiências,

iniciadas por Hardy em 1934, pôde-se comprovar que a pele humana comportase
como um emissor infravermelho, similar ao corpo negro. (Esse espectro de
radiação infravermelha emitido pela pele é amplo, com um pico máximo de
intensidade fixado em 9,6 p. Nosso cinturão IR consistia, portanto, num sistema
capaz de localizar a distância intensidades de radiação infravermelha.
Basicamente constava de um dispositivo óptico que focalizava o IR sobre um
detector. Este era formado por substâncias semicondutoras (principalmente SBIr
e Ge-Hg) capazes de emitir um mínimo sinal elétrico cada vez que um fóton
infravermelho de um intervalo de comprimento de onda determinado incidia em
sua superfície. E ainda que o detector fosse do tipo preciso, Cavalo de Tróia
havia conseguido ampliar seu raio de ação por meio de um complexo sistema
de varredura, formado por miniespelhos rotatórios e oscilantes. A alta
velocidade da varredura permitia analisar a totalidade de um corpo ou de uma
zona, até cinqüenta vezes por segundo. (N. Do m.)
(12) O dispositivo de defesa altamente secreto foi construído graças a
uma eficaz combinação de poços quânticos, a denominada epitaxia de feixe
molecular e as técnicas normais de fotolitograma. (N. Do m.)
(13) Uma das características que diferenciavam os microlasers do ciclope
de seu irmão, o laser normal (tipo diodo), consistia em que aqueles
nasciam de forma perpendicular à base de emissão e amplificação. Por outro
lado, sua geometria espacialem forma de mangueira- não permitia que
houvesse a dispersão fora dos limites programados. (N. Do m.)
(14) Graças a uma micropastilha com oitenta mil elementos detectores
térmicos inventada pela Texas Instruments & Honeywell -, o ciclope
proporcionava maravilhosas imagens dinâmicas. Em seguida à emissão, o sinal
elétrico correspondente à presença de fótons infravermelhos era amplificado e
filtrado, sendo conduzido posteriormente a um osciloscópio miniaturizado.
Nele, graças à alta voltagem existente e a uma varredura sincronizada com a
do detector, obtinha-se a imagem correspondente, que ficava armazenada na
memória de cristal de titânio do Papai Noel. Claro, o ciclope dispunha de
uma escala de sensibilidade térmica (0,1,0,2, e 0,5 graus centígrados, etc.) e
de uma série de dispositivos técnicos adicionais, que facilitaram a medida de
gradientes térmicos diferenciais entre zonas do termograma (isotermas, análise
linear, etc.). As imagens assim obtidas podiam ser de dois tipos: na escala de
cinzas e em cores (entre 8 e 16), muito útil para efetuar medições térmicas
diferenciais. (N. Do m.)

DE 4 A 14 DE MAIO
Aquela quinta-feira, 4 de maio (ano 30), e também os dias
seguintes, tiveram para mim um caráter experimental. E
concluímos, eu e meu irmão, que havíamos incorrido no pecado
do otimismo. A escolha do har Ravid foi acertada do ponto de
vista estratégico e de segurança: mas para as nossas
obrigatórias deslocações a Nahum e Saidan a coisa se
complicava. Ainda que sem nenhum incidente, eu perderia de
cinco a seis horas entre ida e volta. Um tempo precioso que
infelizmente não podíamos dedicar a tarefas mais úteis. E já
pensando no próximo terceiro salto, Eliseu e eu concordamos
na necessidade de variar o esquema de visitas aos lugares
freqüentados pelo Mestre. Ir todas as manhãs a essas cidades e
regressar à base-mãe-3 antes do ocaso seria tão esgotante
como pouco prático. Além dos trinta quilômetros a cobrir
diariamente e dos riscos que implicava o ser visto às mesmas
horas e pelos mesmos lugares, devia-se somar outro fator não
menos preocupante: segundo nossas informações, durante os
quatro anos de vida pública Jesus de Nazaré vagou
incessantemente pelo território de Israel e regiões fronteiriças.
Se o principal objetivo que levávamos era o de nos
convertermos em sua sombra, dificilmente poderíamos conciliar
essas estadas longe do lago com a volta diária ao Ravid.
E aquela primeira saída oficial do porta-aviões, como eu
disse, ratificaria nossos temores. Por sorte, tanto a ida como o
regresso, na viagem à aldeia de Saidan, foram tranqüilos.
As horas que passei no casarão dos Zebedeu, todavia, foram
de constante nervosismo e inquietude. Suponho que era
inevitável. Sabia que me aguardavam outras três horas de
marcha e que era vital alcançar nosso lar antes do anoitecer.
Daí para diante, a partir da sexta-feira, 5 de maio,
estabelecemos de comum acordo que eu permaneceria em
Nahum ou Saidan o tempo necessário para concluir a fase
seguinte da missão. Transposto o limite de conexão auditiva
(cinco quilômetros), eu me comunicaria com a nave, via laser, ao

amanhecer e ao pôr-do-sol, salvo em casos de emergência.
A fórmula, simples ao extremo, contemplava duas
possibilidades: minha comunicação se basearia no código
morse.
Quanto ao meu companheiro, até que não fosse ativado o
terceiro olho, dado que não poderia responder aos meus
sinais, decidimos fixar um procedimento que servisse de aviso
para voltar imediatamente à base.
Diante de qualquer ameaça, avaria ou transtorno grave, o
cíclope mudaria a posição habitual, emitindo o leque
silencioso para o céu. Eu, com a ajuda das crótalos, deveria
vigiar o cume do Ravid periodicamente. A privilegiada sentinela,
situada, como já disse, a dez quilômetros em linha reta de
Nahum e a catorze e meio de Saidan, era visível praticamente
em toda a costa do yam, à exceção do litoral sudoeste. Nessa
orla, ainda que a gigantesca radiação do cíclope pudesse
chamar minha atenção, a interposição do Arbel (com seus 181
metros) impediria a recepção do laser lançado da vara de
Moisés.
E durante aqueles primeiros quatro dias, até segunda-feira, 8,
minha vida transcorreu quase toda no agradável lar dos
Zebedeu, em Saidan. A bondade e hospitalidade do chefe do
clã não tiveram limite, permitindo-me residir e pernoitar em uma
das dependências, vazia no momento pela viagem de seus
filhos, Tiago e João.
Na sexta-feira acompanhei o Zebedeu pai ao estaleiro de sua
propriedade, em Nahum, mantendo com ele prolongadas
conversas que pouco a pouco me permitiram conhecer seu
grande segredo sobre o Mestre. Um segredo nunca revelado,
ignorado até dos discípulos.
E naquele 4 de maio vim a saber também da partida de todos
os íntimos de Jesus, na manhã de domingo, 30 de abril, rumo a
Jerusalém. Parece que os embaixadores do reino, como eram
chamados os discípulos, estavam convencidos de que a próxima
aparição do Mestre se daria na Cidade Santa e mais para
multidões. Saíram de Saidan entusiasmados e dispostos a

empreender a grande aventura da revelação da boa nova da
Ressurreição do Filho do Homem. A Senhora e Tiago se haviam
unido ao grupo. Ruth ficou na casa dos Zebedeu. E sua ajuda foi
de grande importância para mim, em especial para montar o
plano que serviria de guia para o terceiro salto no tempo.
O ancião Zebedeu, com uma fina visão, mostrou-se cético com
respeito às intenções dos discípulos de Jesus. E confirmou o que
eu próprio já havia visto e intuía: as contraditórias
interpretações da mensagem do Mestre terminariam provocando
um cisma.
Na madrugada de sexta, 5 de maio, ao deixar a base-mãe-
3, deixei-me levar pela intuição. E diante do olhar perplexo de
meu irmão coloquei no saco de viagem, junto à camuflada
farmácia de campo, com uma boa quantidade de papiros,
prudentemente lembrados pelos responsáveis pela Operação.
Esse rústico vegetal, muito usado naquele tempo para todo
tipo de escritos, de uma espécie chamada de amphitheatrica,(1)
fora cuidadosamente elaborado segundo as velhas tradições
egípcias.(2) Cada folha, de oito por dez polegadas (24 por 30
cm), permitia escrever nas duas faces, que eram reunidas,
depois, com uma singela costura. Esses textos maiores recebiam
o nome de rolos, já que, por comodidade, eram enrolados a
um ou dois paus redondos. E na mochila foram colocados
também um par de calamus ou juncos, cortados obliquamente e
fendidos, que me serviriam de penas, e meia dúzia de pequenos
cubos de tinta solidificada (de uns duzentos gramas de peso
cada um), com o respectivo tinteiro de barro. (Ao contrário do
que ocorre em nossa época, a tinta usada no tempo do Mestre,
geralmente feita de fuligem e borracha, conservava-se seca e
em blocos de diferentes tamanhos, sendo diluída em água no
momento do uso. Se o indivíduo desejasse conservar o
documento, a tinta era impregnada em uma infusão de absinto.
O sabor amargo evitava o ataque dos roedores.)
Em princípio, se a sorte continuasse favorecendo-nos, o
retorno ao Ravid ficava programado para a tarde de segundafeira.
Mas, claro, o Destino tinha outros planos para este

ingênuo e confiante explorador...
Eliseu, em minha nova ausência, continuou trabalhando em
vários objetivos capitais: a mencionada preparação técnica e
logística do terceiro salto, a complexa abertura do terceiro
olho de Papai Noel e em algo relacionado com as medidas de
segurança do berço. Sorrindo maliciosamente, não quis
revelar-me, de momento, o que seria o algo...
- Espero que ao regresso de Saidan -, disse-me com ar
sentencioso e sem mais explicações você mesmo possa
experimentá-lo.
E estava certo.
Mas tentarei retomar o fio dos acontecimentos.
Como vinha dizendo, ao obedecer àquele impulso, incluindo a
coleção de papiros no saco de viagem, acertei em cheio.
Fazia tempo que eu descobrira, graças a uma indiscrição da
Senhora,(3) que o Mestre, antes de iniciar a vida de pregação,
havia viajado por uma longa temporada fora da Palestina. Mas
a confidência, feita nas horas amargas que se seguiram à
Crucifixão, não passara de uma simples e fugaz citação. E foi no
decorrer dessas tranqüilas conversas com Zebedeu pai que
surgiu a surpresa. Tentando obter com exatidão a data do início
da chamada vida pública do Nazareno, expus ao ancião minhas
dúvidas. Os íntimos de Jesus não chegavam a um consenso a
respeito. Uns falavam do Batismo no Jordão; outros afirmavam
que o seu ministério começou a partir do milagre de Caná.
E para minha surpresa o velho refutou todas as versões
categoricamente: - Nem o Jordão, nem as bodas de Caná... Só
eu tive o privilégio de conhecer a verdade. Maria e meu filho
João sabem alguma coisa, é certo, mas só eu conheço tudo o
que o Mestre fez nesses anos.
E foi assim, na busca de um simples dado, que descobri todo
um tesouro. Planejado pelo Destino? Quem sabe? Estava claro
que o velho pescador e construtor de barcos estava ansioso
para partilhar essa responsabilidade. E pouco a pouco,
conquistada a sua confiança com uma sutil mas férrea

insistência, me abriu seu coração e seu segredo...
.. agora está morto justificou, liberando-se da palavra dada
ao Rabi -. Prometi-Lhe silêncio enquanto vivia. Não creio que
possa importar-lhe, já agora, que eu revele a história daquele
período... Querido amigo, em consideração ao teu amor pelo
Mestre e a essa importante missão que dizes cumprir,
acederei a teu desejo, se me jurares pela memória do próprio
Jesus que nada do que vou revelar-te será passado aos
discípulos...
Concordei com veemência, impaciente por penetrar em um
segredo que, exatamente como eu supunha, jamais foi
abordado, nem mesmo em parte, nos textos evangélicos.
.. eles provavelmente não entenderiam acrescentou com
desalento -. Tu, ao contrário, entenderás o sentido daquela
aventura.
E abrindo uma velha e grande arca mostrou-me uma vintena
de grossos rolos confeccionados também em papiro e escritos
de seu punho.
Segundo Zebedeu, foi o Mestre quem rogou que o ajudasse
na redação do texto que resultou da apaixonante etapa. E o
ancião o fez sob ditado. Durante três meses, no mais absoluto
segredo, o Filho do Homem historiou cronológica e
minuciosamente quanto viu, experimentou e disse em pouco
mais de três anos. Precisamente, de março do ano 22 a julho de
25.
De momento não entendi a atitude de Jesus. Por que pedir a
colaboração do velho Zebedeu? O Mestre, assim me constava,
dominava ao menos três idiomas. Por que não redigir ele mesmo
as memórias? E, sobretudo, qual a razão de tanto mistério? Por
que o texto foi conduzido de forma tão sigilosa? Muitos dos
íntimos eram homens cultos. Bem mais do que a História nos
passou. Por que, como insinuava o dono dos estaleiros, não
estariam capacitados para entender o sentido daquela
aventura? Parte destas interrogações ficou explicada ao
conhecer-se a longa e intensa crônica da vida terrena do Rabi
da Galiléia.

O conteúdo podia verdadeiramente ser qualificado de
explosivo.
E concordei com o sábio e prudente critério do meu amigo: os
discípulos judeus, a final de contas haveriam assimilado a
experiência do Mestre fora de Israel com dificuldade. Era
melhor assim.
Quanto às demais dúvidas, também se resolveriam com o
passar do tempo. Mas teria de ser paciente e aguardar, por
exemplo, o retiro de quarenta dias no deserto para conhecer as
razões que levaram o Filho do Homem a negar-se a deixar
documentos escritos de seu próprio punho.
E por que foi escolhido o Zebedeu pai para escrever e guardar
esses manuscritos? Primeiro, e fundamentalmente, pela velha e
sólida amizade que os unia. Uma amizade que nada tinha que
ver com o que dizem os evangelistas. E posso adiantar que mais
uma vez eles não foram fiéis à verdade. Ao ler as crônicas dos
supostos escritores sagrados. As pessoas têm a impressão de
que Jesus conheceu João e Tiago de Zebedeu quando passeava
pela margem do yam, praticamente nos primeiros dias da sua
vida de pregação. É o que se deduz, pelo menos, de Mateus,
Marcos e Lucas. Pois nem o Mestre escolheu os quatro primeiros
discípulos na margem do lago, nem a designação de filhos do
trovão nasceu como e quando contam os evangelistas. E ainda
que tencione narrar esses acontecimentos
no momento oportuno, insisto: a amizade entre Jesus e o clã
dos Zebedeu era mais antiga. Para ser exato, vinha do ano de
22 de nossa era. Em outras palavras, uns quatro anos antes do
que dizem os três evangelistas. Foi ao trabalhar pela primeira
vez nos estaleiros de propriedade de Zebedeu que o Galileu se
fez íntimo do ancião e seus filhos.
Se alguém tiver a curiosidade de abrir o quarto Evangelho o
de João Zebedeu perceberá uma das sutilezas desse discípulo
que confirma o que eu disse. No capítulo 2 (versículos 35 ao
51), João, testemunha presencial, relata a designação dos
irmãos André e Simão Pedro e, posteriormente, a de Felipe e
Natanael, o urso de Caná. E situa o cenário no rio Jordão, não

no Kennereth. O curioso é que não diz uma palavra sobre a
escolha de seu irmão, Tiago, e tampouco da sua como
embaixadores do reino. Por que essa distorção com relação
aos demais evangelistas? Muito simples. João Zebedeu sabia
que não houvera tal designação. Mateus (eleito apóstolo meses
mais tarde), Marcos (então uma criança) e Lucas (nem mesmo
conheceu Jesus), que não assistiram aos fatos, fiaram- se
provavelmente na palavra de João. Mas o discípulo amado,
vaidoso até a morte, não contou toda a verdade. Tiago e ele
não foram eleitos como os outros quatro. Não existiu tal
designação. E não houve devido a essa antiga e cálida amizade
a que me referia. Essa circunstância, como veremos mais
adiante, trazia implícita a admissão dos Zebedeu no primigênio
grupo de seguidores do Mestre. E por que João não o explicou
assim? Simples: porque naquela histórica jornada, seu
comportamento, soberbo e orgulhoso, valeu-Lhe uma dura crítica
de Jesus de Nazaré...
Mas estou caindo de novo na tentação de adiantar-me aos
acontecimentos. Haverá tempo para voltarmos a essa
interessante e também manipulada passagem da vida do
Nazareno.
E durante três dias, como vinha dizendo, recolhidos na paz do
casarão de Saidan, Zebedeu pai e eu nos dedicamos à leitura
do grande segredo. Fiquei fascinado. O ancião, contagiado
pelo meu entusiasmo, e feliz diante da inesperada e magnífica
oportunidade de rememorar velhos tempos, foi respondendo a
minhas inumeráveis perguntas e assim ampliando e matizando o
texto escrito. E lenta e pacientemente aquele tesouro foi
transvasado para as foLhas de papiro deste perplexo e não
menos feliz explorador.
Verdadeiramente, aqueles três anos podiam, sim, merecer o
qualificativo de ocultos. Os únicos em toda a existência
humana do Rabi que foram intencionalmente preservados. E
hoje, enquanto ponho em ordem e transcrevo as notas daquela
inolvidável viagem à Palestina de Jesus, continuo a perguntarme
se devo incluir essa aventura neste díário.

Talvez eu tome a decisão mais adiante...
Ao ler os papiros compreendi o alcance das palavras do chefe
da família Zebedeu: nenhum dos discípulos conhecia a fundo a
verdade. E estava certo. Segundo aqueles rolos, o Filho do
Homem estreou a Divindade e sua intensa atividade como
mensageiro do Pai muito antes do que se sabe e foi
divulgado. Uma atividade (não estou pensando na pregação
propriamente dita) que também não teve repercussão e que
tivemos a sorte de Presenciar. Uma atividade que precedeu e
preparou o que seria o posterior ministério. Lamentavelmente,
ainda que o Mestre tenha falado nisso, os discípulos não
puderam ou não quiseram captar o formidável significado.
Teria sido excessivamente complexo para suas mentes?
Subestimaram- no ao redigir os Evangelhos Porque se chocava
com a versão do Antigo Testamento? A questão é que o
resultado final seria uma catástrofe literária. Os evangelistas
não entenderam, não se aproximaram sequer do que foi a
definitiva tomada de consciência, por parte de Jesus, de sua
Divindade. Misturaram e confundiram cenários, palavras e
acontecimentos. Parte do que se passou na cadeia montanhosa
do Hermon, ao norte, nos Evangelhos foi situada no deserto,
durante o citado retiro de quarenta dias. E o que
verdadeiramente se registrou nesse último cenário seria ou
silenciado ou distorcido. Como disse, e reafirmo, um desastre
total.
Creio haver dito e provavelmente o repetirei: Jesus de Nazaré,
o Filho de Deus, jamais foi tentado como nos dizem os textos
sagrados. O que houve em ambos os lugares Hermon
primeiro e depois o deserto da Peréia foi muito mais
importante e de outra natureza. Decisivo, eu diria, para
compreender em profundidade as obras e pensamentos
posteriores do Rabi da Galiléia. Fraco serviço prestaram ao
mundo os escritores evangélicos suprimindo ou modificando
essas passagens! Graças ao conhecimento do que ocorreu
nesses ignorados anos do Mestre fora da Palestina, tive acesso
igualmente a outro dado, vital para a escolha da data do novo
retrocesso no tempo. O rigor e minuciosidade de Jesus naquele

relato nos permitiu fixar com exatidão dia, mês e ano. E uma vez
mais tive de render-me diante das estranhas artes do Destino.
Aquela fugidia e irritante data, que chegou a tirar-nos o sono,
não se revelou peLos canais aparentemente lógicos: os
discípulos. Para meu assombro, chegou-nos pela mão do
próprio Galileu, ou seja, do último personagem a imaginar.
Casualidade? Agora sei que a Operação foi programada por
seres humanos e por alguém mais...
E já que falamos de casualidades, como devo interpretar esta
revelação do meu amigo e confidente, o ancião Zebedeu? Ao
entardecer de domingo, 7 de maio, concluída a transcrição dos
rolos, ao perguntar-me por meus planos, expliquei-lhe que a
missão que me fora confiada me obrigava a viajar por algum
tempo para Cesaréia. Foi então que, ao saber que eu deveria
encontrar-me com o governador romano, me contou algo que de
fato podia resultar de utilidade.
Pela aldeia contou-me com o seu habitual ceticismo -, como
também por outras povoações próximas, circulava fazia alguns
dias um estranho boato. E dadas as características do
protagonista - sorriu maliciosamente -, quase tinha certeza de
que eu tinha alguma coisa que ver com a incrível história.
Constava que um grego varapau, com um cajado na mão,
pusera em fuga dois mercenários das tropas auxiliares romanas
acantonados em Nahum.
Estremeci.
Mas o mais surpreendente continuou ele acentuando o
crônico sorriso é que, segundo dizem, o tal grego, valendo-se
de poderes mágicos, conseguiu desarmar os soldados
derretendo suas espadas com a força dos seus olhos.
A notícia me apanhou desprevenido. Pouco importava que o
boato exagerasse o incídente. A gravidade estava na
repercussão do fato. Vencidos os primeiros minutos de
perplexidade, em retribuição à sua franqueza, confessei que o
fato era verídico.
Narrei-Lhe o que se passara na aduana e no bosque,

zombando, porém, das referências às supostas artes marciais
que me atribuíam. Mas meu amigo, deixando de lado o capítulo
do derretimento das espadas, retomou o caso com ênfase no
ponto-chave. O único que me afetava realmente e que, ao fim e
ao cabo, mexeria nos meus planos.
- Já vês que não te pergunto pelo método esclareceu o
ancião -. Mas é que, segundo as notícias que tenho, a alguém
mais importante do que eu interessa o como.
- Não te compreendo...
- O lamentável enfatizou é que o assunto chegou aos
ouvidos do governador exagerado e distorcido sem dúvida por
esses delinqüentes em sua tentativa de encobrir sua patifaria.
- Pôncio está sabendo?
Assentiu com um gesto de cabeça.
- E o pior, querido Jasão, é que expediu ordem de captura do
poderoso mago...
O resto daquele aprazível domingo dediquei-o a passear pela
praia. A publicidade do incídente com os soldados me manteve
tenso. E pouco a pouco uma idéia arriscada me dominou. Valia a
pena tentar. Se me saísse bem, a forçosa viagem a Cesaréia
acabaria sendo mais rápida e benéfica do que prevíamos.
Observei novamente o cume do Ravid. O cíclope não havia
mudado de orientação. Tudo continuava OK. E de acordo com
o combinado, ao pôr-do-sol comuniquei-me com meu irmão,
resumindo as notícias do dia. Mas silenciei o problema criado
pelos mercenários.
8 de maio.
Aquela segunda-feira, depois de confiar os preciosos
manuscritos aos cuidados do bondoso anfitrião, parti de Saidan
com os primeiros albores do dia. A lua cheia, iluminando o
Ravid, me pareceu um excelente augúrio. E a briLhante idéia
tomou corpo definitivamente. Devia arriscar-me. Se o ambicioso
Pôncio mordesse o anzol, talvez eu voltasse com uma boa bolsa,

resolvendo assim nosso problema financeiro.
Enviei uma saudação a Eliseu da desembocadura do Jordão,
avisando-o que acabava de modificar o programa e que, com
alguma sorte, nessa mesma noite dormiria em Cesaréia. E,
lembrando-Lhe suas enigmáticas palavras quando deixei o
porta-aviões, paguei-Lhe com a mesma moeda. Prometi-Lhe
mais informações quando voltasse. Esfreguei as mãos como um
colegial, imaginando a sua curiosidade. Certamente não foi o
primeiro nem seria o último gracejo naquela odisséia.
E ali pelas seis e meia avistei o meu objetivo.
Ao contrário do que ocorria com outros núcleos importantes, a
guarnição romana de Nahum se localizava fora da cidade. Não
constituía um acampamento ao estilo das tradicionais
fortificações militares de Roma. Nem a tropa se alojava em
casas de civis, seguindo o costume que denominavam militare
hospitium e que o código de Justiniano chamaria mais tarde
metata. Neste caso, desde o tempo da conquista de Pompeu, os
invasores se limitaram a requisitar uma das propriedades
existentes na entrada da vila, reformando-a e convertendo-a em
um quartel de dimensões adequadas, o suFiciente para a coorte
ali destinada. Uma coorte, esclareça-se, oficialmente debaixo da
tutela do tetrarca Antipas, mas em verdade só a título
honorífico. Aqueles quinhentos ou seiscentos homens e os dez
centuriões(4) que os comandavam obedeciam a Pôncio e a seus
chefes naturais, o tribuno e oficiais da unidade mais veterana: a
coorte Itálica, com base em Cesaréia.
Depois de cruzar a tríplice arcada da porta norte
encaminhei-me decidido para a guarnição, situada a poucos
metros e do lado direito do cardo maximus, a larga rua de
trezentos metros de comprimento que dividia Nahum de norte a
sul.
O quartel, com seus altos muros de cinco metros, solidamente
edificados com a abundante pedra preta basáltica da região,
era inconfundível. No centro da fachada abria-se um enorme
portão de ferro, geralmente escancarado do alvorecer ao pôr-dosol.

Ao chegar diante das sentinelas não pude evitar um
estremecimento. Quem me garantia que a nova aventura teria
um final feliz? Como reagiriam as autoridades ao descobrir
minha identidade? Um dos três mercenários que montavam
guarda no portão reparou em minha presença e se aproximou
sem pressa. Todos pareciam embrulhados no uniforme de
campanha: saia de couro trançada à base de malhas de ferro
que protegiam o corpo até o meio da coxa, caindo sobre um
gibão de couro das mesmas dimensões. E tudo isso por cima da
característica túnica vermelha de mangas curtas. Os capacetes,
sem viseira, de uma sóbria elegância, refletiam o ainda fraco sol
da manhã. A rígida disciplina mantinha presas debaixo do
queixo as buculae, cordões de bronze que faziam parte do
capacete. E seguindo uma velha tradição, praticada geralmente
em combate, cada um dos soldados exibia sobre o elmo um
chamativo penacho, formado por três plumas vermelhas de um
côvado (quase meio metro) de altura. O uso desses adornos
obedecia principalmente a uma razão de ordem psicológica.
Ainda que a altura mínima para o recrutamento na legião (ao
menos nas coortes principais) fosse de 1,72 m,(5) tanto em
batalha como nos serviços de vigilância aqueles cinqüenta
centímetros a mais Lhes proporcionavam um aspecto imponente
destinado a impressionar o inimigo. Um largo cinturão de couro,
revestido com cabeças de cravos, completava o uniforme. O
inseparável gladius pendia do flanco direito.
Uma das sentinelas apresentava, além disso, várias tiras de
ferro que caíam do centro do cinturão, protegendo o baixo
ventre. Por último, as temíveis caligas, sandálias de correias
com as solas eriçadas de cravos, me trouxeram distantes e
dolorosas recordações. A curta distância, formando pirâmide,
os ovalados escudos. Encostados ao muro, os pillum ou lanças
de dois metros de comprimento, com hastes de ferro flexível e
as pontas de aço.
Respirei com alívio. O jovem soldado, de uns vinte anos,
provavelmente originário da Gália, percebeu que eu não era
judeu. E falou comigo em koiné.
Disse-Lhe que desejava falar com o chefe da guarnição e ele,

claro, perguntou-me o motivo. Adotando um tom grave de voz
fiz-Lhe ver que se tratava de assunto confidencial e que só
podia revelá-lo ao centurião em comando.
Seus companheiros, intrigados, aproximaram-se. O que
parecia mais veterano, também gaulês, examinou-me dos pés à
cabeça, e interrogou a primeira sentinela em uma daquelas
impenetráveis línguas. Temendo que a situação me escapasse
das mãos, interrompi o obscuro diálogo e invoquei o nome do
governador.
A oportuna alusão produziu efeito. Ainda insisti na amizade
com Pôncio. Hesitaram, mas, por fim, diante da firmeza e
transparência do olhar daquele estrangeiro, preferiram não se
comprometer. Mandaram que eu esperasse. Então um deles
entrou pelo lado direito, em direção a um quartinho de pedra
contíguo ao alto parapeito e a poucos metros do portão.
Fiel ao costume, aproveitei a pausa para anotar referências.
Se não me equivocava, naquele lugar se achava designado,
ou já estivera, outro dos protagonistas das múltiplas e
misteriosas curas de Jesus de Nazaré durante sua vida pública.
Ainda que não pudesse afirmá-lo, creio que os evangelistas
mencionavam um centurião que teria solicitado ao Mestre a cura
de um de seus servos. Mateus e Lucas não fornecem a
identidade, mas certamente os homens ali concentrados tinham
de se lembrar do prodígio e do nome do suboficial. E por
espaço de alguns minutos fotografei mentalmente tudo que
me cercava.
No ponto em que eu estava situavam-se os dormitórios do
tosco e austero quartel. Ao redor de um pátio quadrangular a
céu aberto, de uns sessenta metros de lado, erguiam-se três
edificações iguais, com dois cômodos cada. O muro pelo qual eu
acabara de passar cerrava o quadrado. E tudo, certamente,
construído com o generoso basalto de Nahum. A julgar pela
disposição e número de portas da tríplice ala, deduzi, como
disse, que me achava diante das celas da tropa.
No centro do pátio, primorosamente pavimentado com leves
pedras vulcânicas desgastadas pelo tempo e úmidas e

brilhantes da lavagem matutina, erguiam-se quatro veteranas
palmeiras-tamareiras de vinte metros de altura. O verde das
encurvadas folhas e o marrom dos cachos de flores quebravam
um pouco a severidade do recinto, em que predominava o
azeviche dos blocos de alto. Um poço não menos antigo,
aparelhado com um tripé metálico, e praticamente cativo entre
os Phoenix dactylifera, completava o quadro espartano.
No piso baixo da ala central, ao final de um estreito túnel,
adivinhava-se uma esplanada de terra suja e batida, fechada
ao fundo por barracões de madeira. Alguns soldados, trazendo
unicamente as leves túnicas vermelhas, cuidavam de meia dúzia
de cavalos, escovando-os ou fazendo-os andar com a ajuda do
cabresto.
A verdade é que tanto silêncio me intrigou. Depois o
compreenderia. As sentinelas, postadas nos batentes do portão,
não me perdiam de vista.
E caí em nova tolice. Em minha apressada inspeção, descobri
algo que me impeliu a dar uns passos até o quartinho que
presumivelmente servia de posto da guarda. Na parede à minha
frente via-se uma placa de mármore branco.
Nela, em caracteres latinos, estava gravada uma legenda.
Esquecendo os soldados, movido pela curiosidade, avancei
mais três ou quatro passos, tentando lê-la. O irrefletido gesto,
no entanto, foi contido por um grito e uma espada.
O mercenário mais jovem, com a agilidade de um felino,
fechou-me o caminho, ameaçando-me com o gladius no meu
abdome.
Sorri, tentando apaziguar os ânimos. E os dedos da mão
direita deslizaram instintivamente até a extremidade do cajado,
ao mesmo tempo em que, com a mão esquerda, apontava-lhe a
placa que brilhava às suas costas entre o escuro basalto. Mas o
rapaz, bem adestrado, não moveu um músculo. E eu, no inútil
empenho de ganhar sua confiança, ainda acabei reincidindo e
cometendo uma segunda imprudência.
Depois de dar uma rápida olhada na inscrição e de reconhecer

o texto e o autor, fiz-Lhe uma pergunta que piorou as coisas:
- Rômulo?
O jovem, como única resposta, contrariado diante da teimosia
e desobediência daquele desconhecido, pressionou-me com a
arma a boca do estômago, ordenando que me afastasse. Em
circunstâncias normais, o golpe, não excessivamente violento,
teria sido amortecido pela roupa. Mas, ao atingir com a ponta
do gladius a pele de serpente, o soldado sentiu uma
inesperada resistência. E, surpreendido, franzindo o cenho,
repetiu a manobra com idêntico resultado.
Afastei-me, disposto a defender-me. Mas o Destino acudiu em
meu favor.
Nesse instante apareceram no pátio o mercenário que havia
entrado no quartinho e um segundo militar, também provido da
couraça de campanha, mas sem capacete. O cabelo grisalho,
tatuagens nos dois braços, a espada no flanco direito e um
pugio (pequeno punhal) no esquerdo levavam-me a pensar que
se tratava de um optio.(6) Quase certamente, o suboficial no
comando da guarda.
Ao observar a sentinela com o gladius na mão viu logo que
alguma coisa não ia bem. E seu rosto endureceu. Renegando
minha estupidez, temendo o pior, aproximei os dedos de novo
no cravo que ativa os ultra-sons. O que a princípio parecia
rotineira e calma visita ao chefe da guarnição começava a
complicar-se.
Então o optio, dirigindo-se ao soldado ainda aturdido, o
interrogou naquela endiabrada língua. Mas o jovem, não
recomposto da surpresa, não soube ou não quis explicar-se.
Como convencer o rude e ressabiado responsável pela guarda
que a espada havia tropeçado no ventre daquele indivíduo
com uma parede de ferro? Então, inteligentemente,
embainhando o gladius, fez com a cabeça um gesto negativo,
minimizando o episódio. Olhei para ele satisfeito, mas
naturalmente não chegou a captar o que tentei expressar.
E o optio, de má vontade, recorrendo a um péssimo grego,

repetiu a cantilena, exigindo que eu adiantasse esse assunto
confidencial que só podia confiar ao centurião-chefe.
Armei-me de paciência e, sem perder de vista o jovem
mercenário, que continuava à minha direita, repeti o que já
havia dito às sentinelas. E enquanto eu falava e insistia, com
ênfase, no interesse do governador pela notícia que deveria
dar ao capitão da coorte, o suboficial foi-me rodeando em
silêncio e examinando-me atentamente. Persuadido de que eu
não trazia armas, encarou-me de novo e assumiu um tom de
prepotência. Estava claro. Ordens eram ordens. Se eu pretendia
falar com o centurião-chefe teria primeiro de anunciar o motivo.
Portanto, já veríamos... Talvez te açoitemos - sorriu zombeteiro
-. Tudo dependerá das mentiras que contares... Os soldados
riram da graça. Todos menos o que me havia ameaçado com o
gladius. Provavelmente intuiu que o optio se enganava e que
aquele estrangeiro não era um indivíduo comum.
Diante da chula atitude do optio tratei de não envenenar
mais a situação e acabei por ceder parcialmente. Tomei o
suboficial pelo braço e falei-lhe a sós. Disse-Lhe que conhecia a
identidade do poderoso mago que dias antes desarmara
soldados daquela guarnição e que, segundo notícias que ouvira,
Pôncio queria que descobrissem.
O sujeito me ouviu com incredulidade. E quando acabei de
falar, supondo que eu zombava dele, me arrastou, colérico, para
junto da placa de mármore que luzia na parede do quarto do
guarda, intimando-me a que a lesse. E assim fiz, atônito diante
da brusca reação do gaulês: - Anda e anuncia aos romanos que
é vontade dos deuses celestiais que a minha Roma seja a
capital do mundo.
Portanto, que eles pratiquem a arte militar, e que saibam, e
que comuniquem isso a seus sucessores, que não haverá poder
humano capaz de resistir às armas romanas.
Essa legenda, recolhida por Tito Lívio e atribuída ao fundador
e primeiro rei de Roma Rômulo -, que apareceu depois de sua
morte a Júlio Próculo, lembrava, com efeito, a militares e civis
quem era o legítimo dono do mundo naquele tempo.

Desembainhando a espada, esclareceu em parte a razão da
sua cólera: - Um poderoso mago?. . Este é o verdadeiro
poder... E não conheço magia que possa fundir o fio da minha
espada... Os que apregoam semeLhantes fantasias são inimigos
de Roma e merecem a morte.
E levando a espada para cima parecia disposto a golpear-me.
Mas um seco e imperativo Alto! congelou no ar suas
intenções, suspendendo ao mesmo tempo o disparo de ondas
ultra-sônicas que eu apontava para o seu crânio. Os gritos do
energúmeno haviam alarmado a guarnição e três centuriões
irromperam providencialmente no pátio. Só um trazia cota de
malha e a arma no flanco esquerdo (ao contrário da tropa). Os
outros, certamente fora de serviço, vestiam apenas as curtas e
leves túnicas vermelhas de linho. Aproximaram-se, decididos e
contrariados.
Sem querer, o optio, em seu arrebatamento patriótico, ao
proclamar que não conhecia magia capaz de fundir o fio da sua
espada, confirmou o que eu já sabia por Zebedeu pai. E em
parte, apesar da delicadeza do lance, me senti animado. A
notícia se confirmava.
Para meu alívio, os recém-chegados tomaram a seu cargo o
problema. Ouviram a versão do enfurecido optio e depois, sem
perder a compostura, mas com firmeza, me interrogaram,
mostrando um insuspeitado interesse pelo tema do citado
mago. E fui tão sincero quanto julguei oportuno. Havia
planejado dormir essa noite em Cesaréia e tinha de consegui-lo.
Ao insistir em meu desejo de conversar em particular com o
comandante da coorte, o que servia de porta-voz (o único
armado e com o ramo de videira na mão(7) deitou por terra
minhas pretensões: estava ausente de Nahum, em uma das
manobras de rotina da guarnição. E compreendi o porquê do
sing ular silêncio.
Fulminei com o olhar o astucioso optio.
Perceberam que eu estava decepcionado e não sei se por
delicadeza ou curiosidade -, explicaram que, como centuriões

prior,(8) assumiam justamente a máxima responsabilidade das
tropas até o retorno do chefe. Se o desejasse eu poderia falar
abertamente com eles.
E eu, sem alternativa, arrisquei um tudo-ou-nada, anunciando-
Lhes que estavam diante do poderoso mago que buscavam. E
sem dar-Lhes tempo de pensar acrescentei que me oferecia com
prazer para comparecer diante dos governados e contar o que
ocorrera.
Ao ouvir a revelação, o impulsivo optio tentou desembainhar
de novo o gladius. Mas dois dos prior, a um só tempo,
estenderam as palmas das mãos, impondo calma.
Refeitos da surpresa, depois de trocarem um significativo
olhar, o da cota de malha sussurrou algo a seus companheiros.
Concordaram com um gesto e um deles, fazendo um sinal ao
optio para que o seguisse, se separou do grupo. Falou-lhe em
voz baixa e logo, cumprindo a ordem, o suboficial de guarda se
afastou pelo túnel que desembocava no pátio.
- Bem sentenciou o centurião de serviço em um tom nada
tranqüilizador -, daqui a pouco averiguaremos se dizes a
verdade.
- Falas com bom senso. Encontro-me nesta região tentando
reconstruir a história de um Homem santo já falecido.
Chamavam-no de Jesus de Nazaré...
Ao me ouvirem mencionar o nome do Mestre voltaram a trocar
um eloqüente olhar. Evidentemente o haviam conhecido ou
sabiam dele. Um, em especial, pestanejou nervosamente e seu
rosto se transfigurou. Agora sei. A direta e audaz alusão ao
Filho do Homem, considerando-o santo, sacudiu os sentimentos
e as recordações daquele veterano centurião. Mas, obviamente,
não me atrevi a perguntar.
.. sou amigo dos Zebedeu prossegui dirigindo-me quase
exclusivamente ao prior que parecia haver conhecido o Galileu -.
E ali, em Saidan, casualmente, tive notícias do rumor que corre
pelo yam sobre esse poderoso mago. Pois bem, não se trata
de rumor, mas de um fato real. O assunto e adotei um tom

sombrio e teatral -, como bem sabeis, é suficientemente sério
para merecer um máximo de precauções...
Concordaram com um ligeiro movimento de cabeça.
.. antes de adotar uma resolução era preciso confirmar o que
me fora relatado em Saidan. E nada melhor do que vir a este
quartel para saber se, de fato, o governador reclama a minha
presença.
O ardor e a sinceridade das minhas palavras impressionaram
os centuriões. E, para reforçar minha posição, acrescentei: -
Como amigo de Pôncio e de Civílis, o primipilus, eu nunca
permitiria que as gloriosas forças de Roma caíssem em ridículo.
É por isso que sou o primeiro interessado em esclarecer o
penoso incidente com vossos soldados...
A referência a Civílis, o centurião-chefe da coorte de Cesaréia
e homem de confiança de Pôncio, foi um bálsamo. E a tensão
inicial se relaxou consideravelmente.
Naquele instante reapareceu o optio, acompanhado de um
dos mercenários que eu havia visto trabalhando na esplanada
de terra batida. Ao primeiro relance não o reconheci. Depois, à
medida que ele se aproximava, notei-Lhe uma bandagem no pé
direito e dei-me conta da sua identidade e da manobra dos
centuriões para apurar a verdade dos fatos. E me preparei para
a difícil acareação.
O soldado, ferido no bosque pelo laser de gás, parou a uns
dez passos. Acabava de me reconhecer. Observou-me
assombrado e o sangue fugiu-Lhe das faces. E o optio,
grosseiramente, agarrou-o por uma manga e o arrastou até as
brias. A cena foi decisiva. E os centuriões compreenderam.
Por pura rotina, o de serviço o interrogou em sua língua. O
mercenário balbuciou algumas respostas, apontando para mim a
cada passo. O medo o fazia gaguejar. E os prior deduziram logo
que sua história fora mal contada.
Perdendo a paciência, o suboficial que o interrogava levantou
a voz insistindo em uma das perguntas. Mas o mercenário, com
os nervos descontrolados, cometeu um erro.

Levou as mãos aos olhos e, gritando mais que o centurião,
repetiu algo que eu supus que se relacionava com o fogo do
meu olhar. O capitão não gostou do seu grito e bateu-lhe na
cara com a simbólica vara de videira. E o optio, por sua vez,
completou o castigo com um pontapé no baixo ventre. E o
desgraçado, dobrando-se, rolou no chão.
Não pude conter-me. Irritado, dei um empurrão no miserável
optio e auxiliei o soldado. E entre as suas intensas dores o
sujeito me olhou com a maior surpresa. E me pareceu ver em
seus olhos um mudo agradecimento.
Dessa vez interveio o prior que parecia saber de Jesus.
Apartou-me e, mandando que o optio se ocupasse do
mercenário, pediu-me que não tornasse as coisas mais difíceis.
Então reuniu-se com seus companheiros e o grupo passou a
trocar impressões.
Talvez eu cometa um erro. Talvez devesse esperar. Mas quero
também ser fiel aos sentimentos, ali onde se produziram. E
naquele pátio, e naquela límpida manhã, entre mim e aquele
centurião surgiu uma inexplicável corrente de simpatia. Mais
adiante ou mais atrás, conforme se veja entenderia a
razão. A questão é que desde os primeiros momentos ele me
chamou poderosamente a atenção. Talvez tenha sido o que
menos falou. Mas seus olhos azuis irradiavam uma paz e uma
serenidade pouco comuns. Devia estar pelos quarenta ou
quarenta e cinco anos. Seu perfil, verdade seja dita, não casava
com o de um aguerrido soldado: estatura média, aparentemente
frágil, de uma magreza preocupante, calvo, mal barbeado e de
mãos largas e ossudas. A voz, cavernosa, emitida com
dificuldade, me levou a pensar em alguma doença irremediável.
Era surpreendente que comandasse duas centúrias.
Como veterano do exército, com mais de vinte e cinco anos de
serviço, só aspirava a obter a sua baixa a honesta missio -(9)
e desfrutar suas terras e a pensão anual, orçada em uns 2500
denários de prata. Era ele, realmente, posso adiantar desde já,
o célebre centurião mencionado pelos evangelistas.
Mas essa descoberta só ocorreria no terceiro salto no

tempo...
Concluído o breve debate, reconheceram que eu estava com a
razão. Ao menos parte dela. E o porta-voz teve a gentileza de
traduzir o último e acidentado interrogatório. Segundo eu já
disse, o da queimadura no pé me havia identificado com o
grego que os atacou na aduana quando intervieram em defesa
do funcionário.
Neguei com a cabeça mas deixei-o continuar. O funcionárioprosseguiu
o centurião sem se alterar fora vilmente agredido
ao exigir o obrigatório pedágio. O agressor seria, naturalmente,
eu. E o mercenário jurava, além disso, que a sua queimadura e o
derretimento da espada do seu companheiro haviam sido
provocados pelo poder mágico que partiu do meu olhar.
Efetivamente, como eu presumia, os prior céticos por
profissão não acreditaram na fantástica história. Mas
quiseram ouvir minha versão.
Para surpresa geral endossei o relato do mercenário, mas
retificando-o em dois pontos: que a agressão ao funcionário
fora em legítima defesa e que o meu olhar nada tinha de
extraordinário. Quanto à queimadura no pé e à ruptura da
espada foi minha única mentira simplesmente disse que
ignorava como aconteceram. E fui mais além. Elogiei a corajosa
conduta dos soldados ao socorrerem o responsável pela
aduana.
Conhecia os castigos(10) que aqueles canalhazinhas teriam
recebido no caso de que se apurasse toda a verdade e,
honestamente, pareceu-me que seria um exagero. Tanto o
assalto como o abandono das armas eram considerados delitos
graves, punidos com penas de prisão, privação de comida,
sangrias e, sobretudo, açoites e apaleamento.
A julgar pelas caras, suponho que não me acreditaram
inteiramente. Mas perceberam que eu não queria comprometer
seus homens e viram isso com simpatia. Assim, o incômodo e
obscuro caso foi encerrado por ali.
Então o último e mais delicado dilema: o que fazer com

aquele grego que acabava de complicar-Lhes a manhã. Como
militares não podiam desconhecer a ordem de capturar o
suposto poderoso mago. E durante alguns minutos discutiram
acaloradamente. Era justa, a meu ver, a sua preocupação.
A ordem, partida do supersticioso Pôncio Pilatos, encerrava
um secreto desejo: conhecer e interrogar tão prodigioso
feiticeiro. Mas se a magia não existira, que é que restava em
defesa dos mercenários? Como reagiria o brutal governador ao
saber que a alegação dos soldados era mentirosa? Quem
conseguiria explicar-Lhe que a espada havia sido fundida
apenas na imaginação de dois prováveis farsantes? Finalmente
chegaram a um acordo. O melhor era esquecer o caso e
esquecer a mim. Aquele grego não existia. Nunca estivera no
quartel. E se alguém fizesse perguntas indiscretas, ninguém
sabia de nada.
Aquilo me alarmou. Tal decisão não estava nos meus planos.
Por uns momentos senti que fracassara. Todo o esforço havia
sido inútil.
Então os centuriões passaram ao seguinte e não menos
espinhoso capítulo: como manter minha boca fechada? Dessa
vez afastaram-se até o poço e debateram confidencialmente. E
um mau pressentimento se desenhou nos dois rostos. O terceiro
o centurião dos olhos claros -, fez um gesto negativo, em
desacordo com a idéia dos companheiros.
Devia fugir? Pensei na possibilidade, mas logo compreendi
que não era a solução e tentei raciocinar mais rapidamente que
os suboficiais. Ao reparar nas altas palmeiras acreditei
encontrar a fórmula para conjurar o novo perigo e reconduzir o
caso ao objetivo prioritário: minha presença em Cesaréia.
Simulando calma, fui interrompê-los e propus uma saída muito
mais honrosa. Ficaram intrigados e receosos. Antes de começar,
adotei certa solenidade para ajudar a vender-lhes a arriscada
idéia. Se me saísse mal era provável que fosse forçado a
recorrer a meios mais drásticos...
À medida que fui expondo meu plano os três centuriões iam

rejeitando sistematicamente. Mas não me rendi. E voltei à
carga, assegurando que minha presença diante do governador
poderia resultar em benefício para todos. Por motivos pessoais
acrescentei eu tinha especial interesse em mostrar a Pôncio
alguns de meus poderes mágicos.
Contestaram, lembrando minhas declarações anteriores. Pedi
calma e procurei convencê-los de que em momento algum eu
negara minha condição de mago. Não saber como se dera a
fusão do gladius era outra questão.
Não ficaram muito convencidos. Mas o optio da voz cavernosa
socorreu-me, sugerindo que me deixassem terminar.
Concordaram contrafeitos mas me recomendaram que fosse
rápido o suficiente. E assim o fiz. Disse-Lhes que se me
autorizassem a demonstrar os tais poderes eu e eles obteríamos
vários benefícios. Se concordassem, eu estava disposto a viajar
para Cesaréia, devidamente escoltado, claro, e reconhecer
diante de Pôncio que era eu o autor da fusão da espada. A
guarnição, com isso, teria cumprido o seu dever e ganharia
alguns pontos. Quanto a mim enfatizei -, talvez saísse da
audiência com uma boa bolsa...
Eles se mostraram temerosos mas visivelmente tentados pela
minha oferta. E, sem comprometer-se, condicionaram a decisão
final ao resultado dessa demonstração mágica.
Aceitei. E, pedindo que me acompanhassem, conduzi-os até
as proximidades do portão. As sentinelas, alheias à manobra,
acompanhavam nossos movimentos com curiosidade. Para
aumentar a surpresa, dirigi-me de novo, a grandes passadas,
até as tamareiras.
Trinta metros...
Examinei os talos. Os caules estavam cobertos desde a base
por folhas ressecadas. Parecia claro.
Ergui a vista, confirmando a primeira impressão: folhas
penduradas, ascendentes, arqueadas, esverdeadas, aguçadas,
com pequenos espinhos e formando uma coroa na extremidade.
Flores nada notáveis... Quanto ao fruto, estava quase certo.

Mas surgiu uma dúvida séria. Se não acertasse com o tipo exato
de palmeira, o truque falharia e eu com ele.
Senti-me angustiado. O gênero Phoenix engloba cerca de
trinta espécies. Tratava-se da dactylifera, como eu supunha, ou
da cananiensis. Essa última, bastante comum também na
Palestina de Jesus de Nazaré, possuía um talo mais tosco e uns
segmentos foliáceos mais largos e rígidos, de uma cor verde
mais brilhante. Também tinha fruto, mas só o da dactylifera era
comestível.
Contrariado, tive de retroceder e fazer aos centuriões uma
pergunta vital mas um tanto estranha: eram gostosas as
tâmaras daquelas palmeiras? Surpresos, responderam com um
excelentes que me aliviou a tensão. Sorri agradecido. O
mistério que me envolvia aumentava.
Estava certo, pois. Os esbeltos exemplares eram da espécie
dactylifera.
Voltei para junto do meu objetivo e, aprimorando a encenação
com teatrais elevações de braços, iniciei a nova inspeção das
palmeiras dando duas voltas em torno delas. Na segunda, parei
e me deixei ficar meio oculto pelo alto parapeito e pelos
troncos. Centuriões e sentinelas, atônitos e divertidos,
aguardavam imóveis como estátuas.
Pulsando a tatuagem programei o microprocessador para
uma dupla operação. Acertei os parâmetros e, com um andar
vagaroso, contando mentalmente os segundos, voltei para junto
do grupo.
Postei-me adiante dos suboficiais, levantei o braço esquerdo,
mantendo-o na posição vertical durante dois segundos, e
depois, para criar um clima litúrgico que muito me divertia,
baixei-o lentamente até dispô-lo paralelamente ao solo e com
os dedos apontando o centro das palmeiras.
E o silêncio aliou-se a mim para aumentar a expectativa.
Cinco segundos...
Três... dois...

E as cadeias de swivels das Phoenix foram empurradas para
a posição correspondente ao oxigênio.
E as quatro desapareceram com um discreto estampido.
Capitães e soldados, tomados de assombro, retrocederam
atropeladamente, tropeçando uns nos outros.
Eu, orgulhoso, encarando os pálidos centuriões, convidei-os a
examinar o lugar, para se certificarem da autenticidade do
truque. Mas tive de insistir. O pânico era maior que a
surpresa. Tomei a iniciativa e encaminhei-me sozinho até o
poço. Então, pouco a pouco, incapazes de articular palavra, e
evitando contato comigo, foram aproximando-se das quatro
profundas covas ocupadas até momentos antes pelas raízes. E
as observaram demoradamente, incluindo o interior do poço.
O optio dos olhos azuis, depois de lançar um demorado olhar
nos buracos, olhou para mim com uma intensidade que nunca
poderei esquecer. Penso que compreendi o que tinha em mente;
mas nada pude fazer para demovê-lo do seu erro. O bom
soldado devia ter associado meu poder, com o de outro Homem
a quem havia estimado e admirado.
Pouco antes da segunda fase da operação obriguei todos, em
um tom enérgico, a se retirarem até a entrada do quartel.
Obedeceram com presteza, sem entender a razão daquela
nova, imperativa e bem estudada ordem. Mas logo o
descobriram.
Cinco minutos depois do desaparecimento, dentro do
programado, o microprocessador inverteu os eixos ortogonais
dos swivels, conduzindo-os às posições angulares primitivas.
E as esbeltas Phoenix se materializaram instantaneamente.
Dessa vez já não houve pânico. Ao invés, as atônitas
testemunhas, como se tratasse de uma vitória, prorromperam em
gritos de júbilo, atirando ao ar capacetes, espadas e lanças.
E alguém, ébrio de alegria, me propôs para general. Outros,
igualmente perplexos, solicitaram uma imediata entrevista com
o imperador. Sem que eu pudesse evitar, centuriões e

sentinelas se atiraram sobre mim, carregaram-me e me fizeram
desfilar como um herói. Alertado pelo barulho, o resto da
guarnição acabaria aparecendo no pátio. E muitos, sem saber
sequer do que se tratava, uniram-se ao clamor geral, proferindo
em coro uma palavra que me aterrorizou: imperador.
Um título que se outorgava aos que conquistavam dois ou três
grandes triunfos nos campos de batalha.
Antes de prosseguir, quero e devo fazer algumas reflexões
sobre este incidente. Em primeiro lugar, oferecia-nos uma
visão e um cálculo exatos do que poderia suceder se
abusássemos dos meios técnicos a nosso alcance. Durante um
tempo, em silêncio, lamentei essa exibição, que esteve a ponto
de alterar os verdadeiros objetivos da missão.
Por último, a reação daqueles homens lógica e natural
serviu igualmente para entender e partilhar os sentimentos do
Mestre quando, depois de realizar um dos seus portentos, viu-se
assaltado por uma multidão enlouquecida que pretendia fazê-lo
rei de Israel.
Dito isto, continuemos com os acontecimentos tal como se
registraram.
Quando, por fim, a muito custo, consegui que os ânimos
serenassem, os centuriões, dispostos a tudo, aceitaram a
proposta, dando ordens para que eu fosse conduzido, o mais
depressa possível, à residência do governador na cidade
costeira de Cesaréia. Havia conseguido meu propósito, sim, mas
a um preço que me repugnava.
E pela hora terça (às 9 horas), aborrecido, vi-me cavalgando
pela via maris, em direção a Tiberíades. E à minha volta,
escoltando-me como a um precioso tesouro, onze cavaleiros
armados. Durante algumas milhas, com a proa do Ravid à
vista, pensei em meu irmão. Haveria aprovado aquela
estratégia? Mas devo ser mais objetivo. A verdade é que a
partir da demonstração tudo correu a bom ritmo e
satisfatoriamente para mim. O caminho até Cesaréia, graças aos
respeitosos e disciplinados componentes da decúria, transcorreu
sem incidentes e em tempo recorde. Informado da urgência da

missão, o decurião que comandava a fila estabeleceu desde o
princípio um galope curto mas constante, tentando ganhar os
oitenta e sete quilômetros antes da hora décima (4 da tarde).
E como eu supunha, ao avistar as portas da capital do yam o
decurião virou à direita, tomando a rota que eu conhecia e que
descrevi em páginas anteriores: a de Caná. Ao chegar às
proximidades do inferno dos mamzerim, o chefe da patrulha,
sem olhar para trás, ergueu o dardo que carregava na mão
direita e, sem palavras, brandindo-o à direita e à esquerda,
transmitiu uma ordem a seus homens. Para minha surpresa, os
dez cavaleiros tomaram novas posições e formaram um escudo
protetor. Seis deles se situaram imediatamente atrás do
decurião, formando o desenho de uma ponta de flecha e
ocupando a totalidade da poeirenta estrada. Os quatro
restantes continuaram galopando às minhas costas, cerrando o
triângulo.
E ao penetrar entre as choças, a decúria, como um só homem,
golpeou os flancos dos animais e os lançou a furioso galope.
Os dardos foram inclinados para o solo. E aquele trecho, com
a constante pressão das ampulhetas de barro dos
medicamentos nos rins, meio cego pelo pó e temendo o
atropelamento de algum daqueles infelizes, foi para mim o mais
angustioso de toda a viagem. Homens, mulheres, meninos e
fileiras de burros, atraídos pela gritaria, mal tiveram tempo de
afastar-se. E às nossas costas ouvimos toda sorte de
impropérios.
Deixado atrás o povoado, o contus ou lança do centurião
tornou a ser erguido, sinalizando aos cavaleiros que
retomassem a primitiva formação. E os suarentos cavalos
moderaram a marcha, passando a um trote ligeiro.
Ao ver adiante o cruzamento para a aldeia de Lavi meu
coração acelerou. Ao pé do caminho, no mesmo lugar onde o
havia auxiliado, aguardava nossa passagem o menino da
erisipela. Atrás, com a mercadoria de sempre, outra veLha
conhecida: a mãe. Ao chegar junto deles vi, feliz, que rosto e
cabeça continuavam limpos e em vias de recuperação. E sem

poder conter-me agitei o cajado, saudando-os. O pequeno,
deslumbrado pelos brilhantes capacetes, as cotas de malha com
ombreiras, os ovalados e violáceos escudos, os dardos, as
spatha pendentes em bandoleira e, sobretudo, pelos altos e
poderosos cavalos, não reparou no meu sinal. A mulher, porém,
me reconheceu e se ergueu rapidamente. Agitando os braços,
correspondeu ao cumprimento. Alguns dos cavaleiros os
observaram indiferentes. De súbito, movida por um nobre
sentimento, a mulher precipitou-se sobre as vasilhas de argila,
apanhou várias cebolas e pôs-se a correr em perseguição à
decúria. Estremeci. Dado o rígido e implacável caráter daqueles
soldados era impossível predizer seu comportamento com
respeito à boa mulher. Ofegante, sem deixar de sorrir,
conseguiu alcançar-nos. Passou à frente da fileira de cinco
cavaleiros que trotavam às minhas costas, fez um último esforço,
arrojou-se sobre o meu cavalo e ofereceu-me as brancas e
enormes cebolas. E o destino foi misericordioso.
Nenhum dos cavaleiros fez um movimento para conter ou
afastar minha amiga. Tomei as cebolas e, sorrindo, agradeci-
Lhe. E ela ficou ali, satisfeita, dizendo adeus com a mão,
envolvida numa nuvem de pó e no meu agradecimento.
Passamos impetuosamente pela pousada do caolho e em
pouco alcançávamos o desvio que conduzia à branca e
sossegada Caná.
A partir dali, o caminho era-me desconhecido. A patrulha
prosseguiu para o noroeste, ajustando a marcha ao sem-fim das
suaves colinas que ondulavam a paisagem. Colinas, nos
contrafortes dos montes da Galiléia, soberbamente
conquistadas pelos esforçados felah. À direita e à esquerda,
até onde a vista alcançava, as encostas eram uma interminável
sucessão de verdes, brancos e dourados proporcionados pelos
brilhantes e extensos olivais, as amendoeiras banhadas de luz e
os oceanos de trigo e cevada.
Aquela, realmente, era a Galiléia autêntica que Jesus
percorrera.
Contornamos Séforis, capital da baixa Galiléia, penetrando

pelo sul. E o linho, na fase de secagem das canas, as figueiras e
os vinhedos dominaram a paisagem, escurecendo os minguados
vales e planícies. Alguns camponeses previdentes podavam já
as altas e retorcidas videiras, escorando as prometedoras ramas
com canas e estacas. Em cada plantação, como mandava a lei,
elevavam-se torres de pedra de até dez metros de altura que
serviriam para vigilância durante a vindima.
Por volta das onze descemos até a estreita e longa planície
de Jezreel, um dos celeiros de Israel.
Eu não saía do meu assombro. A disciplina e a austeridade
daqueles cavaleiros eram realmente espartanas. Nem um só
deles abriu a boca. Nem um só, nas duas horas de marcha, usou
o seu cantil. De quando em quando o chefe da fila voltava-se
para se inteirar, em silêncio, do estado de homens e montarias.
Só em uma ocasião me atrevi a oferecer ao decurião as
suculentas cebolas. Foi ao atravessarmos os campos de linho de
Séforis.
O suor escurecia as pantalonas vermelhas e justas que Lhe
cobriam as penas até o meio, empapando igualmente a camisa
violeta de mangas compridas. Mas recusou-as com um ligeiro
sorriso. Prudentemente, devolvi-as ao saco de viagem.
Transpusemos o rio Kishon e, conhecedores do terreno,
apertaram a marcha, cobrindo a galope os cinco últimos
quilômetros da planície. Tinham razão. Entre o ouro dos trigais
maduros, a turquesa das hortaliças e o azeviche dos restolhos
de cevada recém-calcinados, abundavam charcos e lagunas de
pouca profundidade, cobertas de nuvens de mosquitos
zumbidores. Minutos mais tarde, ao alcançarmos a cadeia
montanhosa do Carmelo, respiramos aliviados. E iniciamos uma
subida difícil. A estrada, pacientemente pavimentada pelos
audazes engenheiros romanos, subia e descia entre precipícios
profundos. A partir dali a paisagem mudou. Entramos em um
frondoso bosque, tão abundantes naquela Palestina do tempo
de Jesus. E cavalos e homens agradecemos a sombra. Durante
pouco mais de meia hora desfrutei o perfume e a música da
mata e o jogo do sol entre as árvores. Uma massa vegetal em

permanente competição, mas dominada pelo indestrutível
berosh (nome genérico dado pelos judeus às três espécies de
ciprestes sempre-verdes), o sagrado e majestoso allon ou
carvalho do Tabor, o tidhar ou alfeneiro de flores brancas (a
glória do Carmelo) o tirzah ou pinheiro pinhoneiro (de pinhões
comestíveis), com suas protetoras copas em forma de guardasol,
e seu irmão, o Etz shemen, o pinheiro de Alepo, também
orgulho do Carmelo, com os olorosos e gotejantes córtex
esturricados de tanino. E notei com assombro a extraordinária
proliferação de esquilos amarelados surgindo curiosos e
confiantes diante de nós ou mordiscando indiferentes entre a
ramaria a rica variedade de bagas. E aqui e ali, revoluteando e
replicando ao trinos de suas companheiras, bandos de pombas
selvagens, andorinhões de asas circulares, gorriões chiadores
pintalgados de prata e, sobretudo, as serenas bonelli, as
águias de roupagem branca e mosqueada, adestrando as crias
nos profundos desfiladeiros.
O espetáculo me fascinou. Cada bonelli (Hieratus fasciatus)
trazia sobre as asas um dos filhotes e o deixava cair a uns
trezentos ou quatrocentos metros. A aguiazinha, aterrorizada,
batia as curtas asas no vão intento de vencer a gravidade.
Mas a uma centena de metros do mais profundo do vale,
quando o desastre parecia iminente, a mãe fechava as asas e
partia, celeramente, a pique, em direção à cria. E com uma
precisão extraordinária agarrava-a e a levava para o ninho. E o
treinamento recomeçava até que o filhote conseguia safar-se
por si mesmo. E comecei a entender o porquê do profundo amor
do Mestre por aquela bela e desprendida natureza.
Mas a diversão foi subitamente interrompída. Em uma das
curvas surgiu diante de nós uma pequena fortificação com altos
muros de pedra calcária e uma torre igualmente branca e
aparentemente desproporcionada. No primeiro momento não
entendi a razão daqueles quase vinte metros de altura. Mas
logo o descobriria. E ficaria novamente maravilhado diante do
engenho daquele exército.
O lugar tinha o nome de Capercotnei. Tratava-se, na

realidade, de um modesto posto de vigilância e uma estação de
provisionamento e descanso para as tropas que iam ou vinham
entre a costa mediterrânea e o yam. A privilegiada localização,
em uma cota de quinhentos metros, permitia controlar a grande
planície que acabávamos de cruzar e a estrada que descia pelo
sul em direção à plataforma costeira de Sharon.
Então o decurião, erguendo a lança, deu ordem de desmontar.
Em pouco fomos rodeados por vários infantes de serviço no
fortim. Houve um breve diálogo e os cavalos foram levados para
o interior. O centurião entrou atrás deles. Seguindo o exemplo
dos cavaleiros, acomodei-me à sombra dos corpulentos
carvalhos, aproveitando a parada para refazer as forças. Os
homens, em silêncio, abandonaram os contus e os escudos e,
desembaraçando-se dos pesados capacetes de ferro, limparam
com os dedos o suor que empapava as têmporas, as faces e o
pescoço.
Vencida a inicial resistência, ofereci as cebolas aos
impenetráveis soldados. Nenhum sorriu ou agradeceu.
Limitaram-se a cortá-las com as longas espadas e a devorá-las
ou sorver-lhes o suco avidamente. E com uma frieza e indiferença
pasmosas liquidaram-nas até a última, deixando-me a ver
navios.
Ainda bem que três dos mercenários do fortim nos trouxeram
dali a pouco diversas porções de carne defumada e posta em
abundância. Recusei a água com vinagre e aceitei um pequeno
naco de carne.
Nesse momento algo brilhou no alto do torreão. Então
compreendi a razão da aparentemente exagerada altura da
construção. Quatro soldados, entre os quais reconheci o
decurião, manipulavam uma enorme e polida prancha de bronze
de uns dois metros de lado. Direcionada para o sudoeste,
ligeiramente inclinada, a prancha lançou uma série de sinais
luminosos provocados pela luz solar. Claro que não consegui
decifrar o que poderia ser uma mensagem. Pela posição do
espelho, os sinais pareciam ser dirigidos para Cesaréia, que
estava próxima. Pus-me em pé, tentando localizar uma possível

sinalização de resposta. Mas o intrincado bosque, com suas
dezenas de quilômetros quadrados, impossibilitou a tentativa.
Passados quatro ou cinco minutos, concluída a transmissão,
ocultaram o farol no piso da torre e com os olhos fixos no
horizonte esperaram. Suponho que recebessem pronta resposta
à mensagem porque logo depois, erguendo de novo a
prancha, repetiram a operação, mas limitada a quatro ou cinco
breves reflexos solares. Finalmente desapareceram.
Com o sol no zênite, o chefe da decúria retornou para junto de
seus homens. Após ele, os cavalos, já cuidados. E saltando
sobre a silha de couro daquele dócil e jovem tordilho me
preparei para retomar a viagem. Ao contrário do que eu
supunha, o decurião silenciou sobre a comunicação com o
quartel-general do governador. Mas o aviso estava dado e eu
não tardaria em comprovar a eficiência do sistema.
Durante uma meia hora descemos pela vertente sul do
Carmelo, chegando às fontes do nahal Iron, um cristalino e
ruidoso tributário do rio Hadera, que faziam a prosperidade das
imensas e ricas plantações de frutas, cereais e legumes da não
menos afamada planície de Sharon.
Cerca das três da tarde (hora nona), antes do previsto, com
um último e alegre galope, a patrulha abria passagem entre os
enfurecidos e gesticulantes viajantes e caravanistas que
adentravam ou deixavam da surpreendente Cesaréia.
Surpreendente?
A verdade é que me custa encontrar o qualificativo adequado.
Cesaréia, visitada também por Jesus de Nazaré, não guardava
relação alguma com o que eu já havia visto. Aquela pujante e
rumorosa urbe, fundada por Herodes o Grande,(11) era a
sublimação da cor branca e do paganismo. Nem mesmo em
Decápolis, entre as cidades helenizadas, pude achar um clima,
um estilo e costumes tão romanizados como ali.
Herodes, ao construí-la, quis incensar o imperador César
Augusto e os romanos souberam aproveitar o esbanjamento
arquitetônico e a converteram na capital administrativa e militar

da província.
Ao contemplá-la a distância fiquei deslumbrado, repito, por
sua absoluta e dominante brancura. Tudo, naquele gigantesco
semicírculo de 3000 hectares era prateado. E tudo limpo e
cuidado. E meticulosa e sabiamente desenhado.
A alta muralha, de um quilômetro de comprimento, foi traçada
como um arco protetor que cobria a totalidade do flanco
oriental. E a cada centena de passos, rotundas e sólidas torres
de vigilância de dez metros de diâmetro.
Pelo norte, bem perto de uma das monumentais portas que se
abriam no branquíssimo calcário da muralha, se alinhavam,
paralelamente, dois aquedutos de oito milhas (14,4 km) que
transportavam as águas do Carmelo.
Prestes a cruzar o arco da porta leste (no centro geométrico
da muralha), o decurião ergueu a lança e saudou a meia dúzia
de infantes que montava guarda nas torres gêmeas que se
elevavam de cada lado do portão. Seus homens o imitaram,
erguendo os dez dardos. E a passo, com as afiladas lanças
apontando novamente para o exterior, eretos, graves e
orgulhosos, iniciaram a marcha pela artéria principal, o cardo
maximus.
Instintivamente voltei a cabeça. Não me enganara. Um dos
soldados, provido de um espelho, fazia sinais luminosos de uma
das torres, em direção ao mar.
E de novo aquele branco irritante. Edifícios, ruas, praças,
fontes, monumentos, colunas, tudo brilhava com uma claridade
difícil de encontrar naquela Palestina em geral suja, barreada,
poeirenta, jungida ao adobe e à pobreza.
E reconheci a mestria e o delicado gosto do sanguinário
tirano, tão pouco conhecido como engenheiro hidráulico e
construtor. Herodes o Grande devia sentir-se orgulhoso ao
concluir semelhante maravilha. Nesta e mais ainda nas visitas
seguintes, tive a magnífica oportunidade de conhecer o
primoroso traçado da cidade. Praticamente todas as ruas
desembocavam no mar. O grande semicírculo parecia dividido

com precisão por duas artérias capitais que se cruzavam
formando uma cruz, segundo o modelo imperante no urbanismo
greco-romano.
Mármore e calcário haviam sido esbanjados. Pavimentação,
fachadas, estátuas, templos, teatros, anfiteatros e colunatas
competiam entre si, eclipsando os pórfiros verdes e vermelhos
da Lacônia e Jebel Dhokan, no Egito. Só o azul de um
Mediterrâneo sempre enfadado e o arco-íris dos extensos
roseirais se atreviam a rebelar-se contra a cegante luz da
cidade dos arranha-céus. E digo bem: arranha-céus.
Assim que penetramos na avenida principal, entre o bulício
de gente de mil origens, cavalgaduras, escandalosos
bufarinheiros, patrulhas de infantaria, lentos palanquins e
liteiras carregados por escravos, mendigos, desocupados e
matronas em permanente regateio com artesãos e comerciantes,
vi-me novamente surpreendido por edificações que se alinhavam
a um lado e outro do cardo maximus. Eram as famosas insulae,
tão em moda naquele tempo. Blocos de vivendas de cinco e seis
pavimentos, similares aos modernos (?) apartamentos do século
XX. Algumas daquelas construções, desafiando as disposições
de Augusto, superavam os setenta pés (em torno de 23 metros).
Proporções realmente perigosas para os métodos de construção
da época. No fundo, tudo está inventado. A verdadeira
justificativa para tão arriscadas colmeias teria de ser buscada
na ambição de construtores e proprietários. Ainda que as
insulae tivessem nascido como conseqüência da estreiteza da
velha Roma, obrigando a construir em sentido vertical, o
achado não tardaria a revelar-se como um próspero negócio.
Cada pavimento era vendido ou alugado por preços que iam
baixando conforme a altura. Assim, na parte baixa ou nobre,
instalavam-se geralmente as pessoas mais abonadas, ou se
abriam as não menos célebres tabernae, autênticas cadeias de
lojas e supermercados que pouco ou nada tinham que invejar
às do nosso tempo. Nos pavimentos superiores, cada
apartamento ou cenaculum dispunha de uma escadaria externa,
com amplos vãos para a rua. E como verificaríamos no terceiro
salto, naquelas moradiaspraticamente idênticas e com áreas

que roçavam pelos quarenta metros quadrados se instalavam
duas ou três famílias. A maior parte desses andares de aluguel
pertencia aos ricos proprietários das tabernae. (O grande Marco
Túlio Cícero, dono de várias dessas lojas, foi um excelente
inovador em matéria de grandes armazéns.) No curso de uma
das raras visitas a Cesaréia, acompanhando Jesus de Nazaré,
pude averiguar o número aproximado de tabernae existentes
então na cidade: mais de seiscentas. E muitas delas sob o
controle das castas sacerdotais e como não de um
governador corrupto e ambicioso. Nessas cadeias de lojas, como
espero detalhar mais adiante, o comprador judeu ou gentio
encontrava o que desejasse. Desde o último grito em calçado
ou vestuário até requintados instrumentos de tortura para
escravos, passando por pássaros e animais exóticos, dentes
artificiais, pedras preciosas, inventos hidráulicos para acionar
moinhos, amuletos, neve recém-trazida do Hermon e a maior
coleção de preservativos, confeccionados com toda sorte de
tripas.
Aquele tumulto era ensurdecedor. Nunca compreendi como os
cem mil habitantes de semelhante manicômio podiam repousar
ou dormir. E, transpondo as distâncias, aderi à justificada
queixa de Marcial em seus Epigramas.(12) 182
E, lentamente, diante da mórbida curiosidade daquela massa
de gregos, sírios, egípcios, judeus, mesopotâmicos e negros
africanos, que nunca souberam se o homem que cavalgava entre
as filas de ginetes era um prisioneiro ou um distinto
personagem, fomos chegando no coração da urbe: o grande
fórum.
Na intercessão das duas largas artérias principais, Herodes
havia erguido outra soberba obra arquitetônica: um tetrapilon
ou arco triunfal de quatro portas, todo ele em mármore
dolomítico de um amarelo pálido e suave, extraído das canteiras
de Tessino. A obra não passava, claro, de outro gesto de
adulação para com a figura do que fora seu amigo, o imperador
Augusto, inventor dos arcos triunfais. Vãos, vigas e áticos
ostentavam numerosos medaLhões e baixos-relevos alusivos aos
triunfos de César. E no alto duas quadrigas de elefantes

conduzidas por várias e gigantescas estátuas, de bronze
dourado, do divino Otávio. E em torno do tetrapilon, em uma
ampla e esmerada plataforma retangular, perfeitas réplicas, em
escala reduzida, de alguns dos monumentos do genuíno fórum
de Roma: os templos, belíssimos, quase nacarados, de Apolo,
deus protetor de Augusto, Marte Vingador, construído pelo
falecido imperador depois de empreender a guerra de Filipos, e
Júpiter Tonante, assim como uma basílica Emília, sede da corte
judicial de Cesaréia, e outras duas estátuas, de doze metros, do
indefectível Augusto.
Deixando para trás o fórum, a decúria, em trote moderado e
uniforme, retomou a impecável estrada romana, já agora livre da
fervilhante massa de populares e animais, e irrompeu em um
parque cujos limites não pude precisar. Então voltei a
maravilhar-me. Entre roseiras, repuxos, salgueiros, álamos e
tanques das mais variadas formas geométricas se elevavam
dezenas de jaulas com uma sonolenta colônia de felinos, búfalos
africanos, mandris, ursos pardos do Hermon, pequenos elefantes
asiáticos e numerosos representantes de antílopes e cervos da
alta Galiléia e das montanhas de Judá. E no centro do zoo,
coroando um modesto penhasco de uns trinta metros de altura,
outro brilhante templo de mármore branco-azulado, erigido
especialmente em memória do homem que confirmou Herodes o
Grande como rex socius Otávio Augusto. E no seu interior, ainda
que eu não pudesse descobri-lo até mais tarde, a enésima
efígie de César vencedor de Accio e uma cópia da estátua de
Roma similar à de Hera, localizada em Argos.
Aquela construção, com dois fogos perpétuos no alto das
escadarias, servia de farol e referência aos navegantes.
Minutos mais tarde, no recinto do parque, surgia diante de
mim a fortaleza e residência de Pôncio. Penetramos por um dos
altos e estreitos portões; era o fim da acelerada e esgotante
viagem.
A partir desse instante as peripécias em Cesaréia
aconteceriam em um ritmo endiabrado.
Nas quinze horas seguintes, até a definitiva e precipitada

saída da cidade, aconteceu de tudo e com um encadeamento
delirante.
Não é preciso dizer que nossos movimentos estavam sendo
meticulosamente controlados desde a troca de sínais luminosos
em Capercotnei. E assim que pisamos no pátio, sem tempo
quase para desmontar, um dos optio abordou o decurião,
saudando-o com o braço erguido. O chefe da fila tirou do
interior do cinturão um fino rolo de papiro e o entregou ao
suboficial.
Supus que fosse um informe dos centuriões de Nahum. Num
instante, a um sinal do optio, dois dos infantes armados que
integravam a excubiae ou guarda de dia naquele setor, sem
sequer olhar para mim, revistaram como de rotina minhas
roupas, saco de viagem e bolsa. Fizeram com a cabeça um sinal
negativo e o veterano optio, visivelmente apressado, ordenoume
que os seguisse.
Quis despedir-me da decúria. Impossível. Os onze cavaleiros
se distanciavam já em direção a um dos túneis abobadados. E
me vi assaltado por uma inquietante pergunta: como me
arranjaria para regressar ao lago? Dei de ombros e procurei
esquecer a pergunta, preferindo concentrar-me no importante
objetivo que me havia arrastado até aquela intrincada
fortaleza, mais branca, se era possível, do que a cidade que
acabara de atravessar.
Intrincada, sim. Essa é a definição. Apesar dos esforços por
fixar e reter referências, a confusa disposição de escadas,
corredores, pátios interiores, passadiços e outras dependências
da residência do governador impediu minha tentativa de
orientar-me em seu interior. Isso me inquietou.
Se surgisse algum contratempo, como escapar de semelhante
labirinto? Depois de galgar quatro empinados lances de
escadas, em que cruzamos com alguns centuriões armados, eu e
o optio desembocamos em outro silencioso e brilhante corredor
de mármore frígio, magnificamente barrado por galactitas
violetas. Um sol já a caminho do poente mostrava-se nas
pequenas janelas à nossa esquerda. Bem ao longe vislumbrei

um Mediterrâneo encrespado por um rude vento do leste.
Quase não podendo ver nada devido aos reflexos das
espadas luminosas, e caminhando sempre atrás do suboficial,
não reparara em Civílis até que cheguei junto dele.
Evidentemente nos aguardava, mas não esperava ver o grego
de Tessalônica.
Ao verificar que o poderoso mago cuja identificação era
exigida pelo governador era eu, o pétreo e inexpressivo rosto
não pôde esconder a surpresa. Mas, erguendo o braço em
saudação, limitou-se a esboçar uma ameaça de sorriso.
Não trazia armadura nem capacete. Só a curta túnica
vermelha, como os infantes, e as inseparáveis armas: gladius à
esquerda e o familiar punhal com a punhadura em forma de
antílope em pleno salto.
Recebeu o rolo e sem mais preâmbulos me convidou a
acompanhá-lo. Naquele momento o optio percebeu algo que
passara inadvertido na revista. Apontou a vara de Moisés e
tentou ficar com ela. Ainda que eu não ignorasse o regulamento,
o instinto se impôs e resisti. Os educados protestos do
suboficial chamaram a atenção do primipilus e centurião-chefe
da corte. Dando meia-volta, com um leve mas imperativo brandir
da vara de videira, mandou que não me importunasse e se
fosse. Agradeci o gesto, acrescentando com um toque de humor
que meus poderes não seriam os mesmos sem o lituus (o
bastão curvo dos áugures). Não respondeu.
Continuou impassível até o fundo do corredor. Nunca me
acostumei à granítica frieza daquele corpulento militar. Mas
nunca me decepcionou.
Ao alcançarmos a porta branca de duas folhas que se abria
entre as paredes violetas, as duas sentinelas de guarda abriram
caminho, retirando mecanicamente as lanças cruzadas.
E continuaram rígidos como os ferros dos seus pilum.
Civílis saudou-os golpeando o peito com a uitis e empurrou a
porta.
Imaginei que Pôncio estaria naquele cômodo. Mas não. A sala

estava solitária. Ali me esperava a primeira das provas que
deveria enfrentar nas intensas horas daquela segunda-feira, 8
de maio. Provas que teriam um desfecho insuspeitado...
O primipilus avançou devagar. E ao chegar ao centro,
agitando o galho da videira, me animou a penetrar sem medo
no surpreendente recinto. A verdade é que, atônito, eu ficara
cravado a um metro da porta. Ao ver minha surpresa esboçou
outro simulacro de sorriso. Mas sempre mudo.
Luxo? Tudo que eu lembrava da torre Antônia em Jerusalém
era um pálido reflexo daquilo que meus olhos perplexos estavam
vendo.
Aquele salão quadrado, de uns dez metros de profundidade,
me paralisou. Jamais pude imaginar até onde poderia chegar o
refinamento do representante de Roma. Mas as descobertas
haviam apenas começado. Durante alguns minutos, diante do
irônico olhar do enigmático centurião, examinei intrigado e
maravilhado as altas paredes.
Paredes? Sim e não...
Tudo naquela sala paredes, solo e teto era um espetacular
espelho, enquadrado em lâminas de prata brunida que refulgiam
à claridade de três amplas janelas abertas no lado oposto à
porta. E, entre o deslumbrante revestimento, trepadeiras e
jasmins erguiam-se até o teto, proporcionando uma agradável
tonalidade verde e um delicado perfume.
Nos cantos, à maneira de sentinelas, quatro soldados núbios
de quase dois metros de altura, com lanças e escudos, tudo
esculpido no preto, nobre e caro coração do hbu, o ébano
egípcio. Ao examiná-los melhor a minha surpresa cresceu: os
braços articulados, a perna esquerda ligeiramente avançada e
as gretas e a deterioração generalizada deram-me a impressão
de que se tratava de peças egípcias muito antigas. Talvez de
Assigt, da décima segunda dinastia.
Mas como seria possível? Eu sabia da predileção do
governador por tudo que era do Egito. Mas aquilo remontava
provavelmente ao Médio Império. Quer dizer, aos anos 1700 a

2000 antes do nascimento de Cristo.
Não podia ser...
O resto do mobiliário era integrado por uma mesa, uma
poltrona-trono e dois tamboretes. Tudo disposto a curta
distância das janelas. Do assento principal tinha-se uma
relaxante visão do mar.
E com o exame daqueles utensílios voltaram as surpresas. A
esplêndida mesa, em cedro maciço, tinha os pés engastados em
socos de prata e as pernas finamente lavradas com grupos de
hieróglifos igualmente egípcios que, em uma primeira e
apressada leitura, me lembraram os ankh, símbolo da vida.
Os tamboretes, de uns quarenta e cinco centímetros de altura,
com pernas brancas, rematadas por garras de felinos, me deram
a pista da possível origem das valiosas peças. Entre as
delgadas varinhas de madeira dourada que reforçavam as
pernas distinguia-se o símbolo da união das duas terras, com
os lírios e papiros atados ao redor. Mas refutei a idéia. A
hipótese era descabelada.
Os assentos, côncavos, eram completados por fofos
almofadões de plumas.
Ao aproximar-me da poltrona-trono e ler os nomes daqueles
dois deuses egípcios, a aparentemente absurda teoria ganhou
força. Senti um frêmito. Estaria ficando louco? O trono, de um
metro de altura por uns setenta centímetros de largura, e ao
redor de cinqüenta de fundo, era um soberbo tesouro. O
respaldo, delicadamente curvo, era embutido em um tamborete
com pernas cruzadas e esculpidas em forma de cabeças de
patos selvagens. Toda a madeira era um resplandecente e
luxurioso esbanjamento de ouro, marfim, massa de vidro,
diminutas gemas e terra envernizada de turquesa e lápis-lazúli.
No alto do respaldo, como disse, entre outros hieróglifos, dois
nomes bem conhecidos meus: Aton e Amon.
Repassei incrédulo o friso superior. Não havia dúvidas. Ali,
entre os uraeus (as cobras azuis e douradas), ressaltava o
inconfundível disco de Aton, com o nome do legendário deus em

diversos pontos.
Aton?
A pista conduzia ao Novo Império (entre 1000 e 1580 a.C.).
Mais precisamente, à dinastia XVIII egípcia. Um deus, um
faraó e um período do Egipto, que, casualmente (?), haviam
sido uma das paixões da minha juventude...
Confuso, voltei a duvidar do que parecia evidente.
Certamente não passavam de magníficas réplicas...
Sobre a tampa da régia mesa empilhavam-se alguns
pergaminhos, bem enrolados e colocados em uma bandeja de
prata. Ao seu lado, destruindo meus bons propósitos de
esquecer aquela loucura, a última (?) surpresa: uma paleta de
escriba de uns trinta centímetros de comprimento, feita em
finíssimo marfim, com dois pães de tinta vermelha e azul
alojados cada qual em uma cavidade circular. E no centro da
caixa, um depósito retangular com um bom sortimento de
cálamos. Entre as minúsculas incrustações de obsidiana,
cornalina (uma variedade de ágata) e vidro colorido, alguns
hieróglifos reveladores com os nomes do faraó Tut-ankh-amon,
amado dos deuses Aton, Amon-Ra e Thot.
O deus Aton e o rei Tut-ankh-amon. Será que Pôncio...?
Aturdido, ergui a vista procurando Civílis. Mas o centurião, com o
rosto voltado para a porta, estava atento ao recém-chegado. E
deixando para melhor ocasião a terrível suspeita, apressei-me a
me reunir com o primipilus.
A baixa estatura (ao redor de 1,55 m), o ventre volumoso e
aquela peruca, de um amarelo agressivo, o tornavam
inconfundível. E um Pôncio de pés nus, nervoso e mal-encarado
irrompeu no salão de despacho. Ergueu o braço direito de má
vontade e, com os olhos azuis e saltados fixos nos espelhos do
chão, foi diretamente sentar-se no trono, creio que sem olhar
para mim.
Ficamos em volta da mesa, em pé, diante de um irritado
governador. Por um momento temi que o causador da sua azeda
atitude fosse eu. Mas, dirigindo-se a seu homem de confiança

perguntou-lhe em latim: - Chegou?
A pergunta me confundiu. Civílis, imperturbável, fez um gesto
negativo de cabeça.
Pôncio enrubesceu. Alisou nervosamente a estudada madeixa
que lhe caía sobre a fronte e, assoprando como uma baleia,
amaldiçoou entre dentes não sei que família de caravaneiros.
Respirei aliviado. Aparentemente, o assunto não me dizia
respeito... de momento. De qualquer forma, diante da
obscuridade do cenário, redobrei a guarda.
Pôncio deu um profundo suspiro, agitou os dedos rosados e
roliços e pediu a mensagem que o centurião tinha nas mãos. E
em silêncio, um incômodo silêncio, Civílis estendeu-lhe o rolo
escrito pelos responsáveis pela guarnição de Nahum. O
governador rompeu o lacre resmungando alguma coisa
relacionada com sua esposa Cláudia e a ceia daquela noite.
Olhei para Civílis furtivamente, mas sua expressão continuava
gelada, quase ausente.
Desenrolando o papiro, como se tentasse concentrar-se em um
problema que o havia levado até ali, observou-me rispidamente.
Mas o intumescido e leitoso rosto inclinou-se de novo sobre a
mensagem, esquecendo-me. Uma de duas: ou não me
reconheceu ou o seu enfado era de tal tamanho que não se
dignou dizer uma palavra de saudação ou cortesia. E eu
pacientemente à espera...
Seu vestuário, adequado às altas temperaturas da costa, era
mais leve e confortável do que o que usava em Jerusalém: túnica
de seda púrpura com brocados de ouro no pescoço e mangas e
um cinto branco trançado com fibras de linho.
No começo leu sem interesse. Depois, conforme avançava, o
rítmico tamborilar de seus dedos sobre o cedro foi espaçando
até extinguir-se. E uma sombra negra flutuou na sala.
Então aquele pícnico de temperamento volúvel e imprevisível
abandonou a leitura e com um olhar de aço perguntou a Civílis: -
Dois soldados desarmados?

O centurião, que obviamente não conhecia o conteúdo do
documento, respondeu apenas com um vago gesto. E Pôncio,
descarregando sua ira e surpresa sobre o insolente grego que
havia ousado ridicularizar seus homens, ameaçou em koiné: -
Sabes que posso encarcerar-te por isso?
Antes que eu conseguisse responder submergiu de novo no
papiro, ignorando-me olimpicamente. O primipilus me lançou um
olhar escrutador. Neguei com a cabeça, tentando equilibrar as
posições.
Pôncio empalideceu. Ergueu novamente o rosto e, incrédulo,
me examinou dos pés à cabeça. Aferrou-se ao pequeno falo de
marfim que Lhe pendia do curto e seboso pescoço. Os lábios
tremeram. Sem dar crédito ao que acabara de ler, e sem separar
a vista do texto, repetiu em voz alta um dos parágrafos:
- ... e esse grego, que diz chamar-se Jasão e afirma desfrutar
a amizade de vossa excelência, pela graça do seu poder, sem
truque ou artifício conhecidos, fez reaparecer as palmeiras no
mesmo lugar que sempre ocuparam... Colocou o documento
sobre a mesa e, perplexo, estalando os dedos, levantou-se.
- Jasão!... O do salvo-conduto!... O adivinho!
Compreendi. O desmemoriado governador não me havia
reconhecido. Sorri timidamente, sem saber a que me apegar.
Não me enganava.
Sem deixar de brincar com o falo, voltou a sentar-se,
repassando a leitura do informe de Nahum. E o papiro tremeu
entre as rechonchudas mãos. E eu não sabia o que era pior: um
Pôncio colérico ou tomado de um medo supersticioso.
Contorceu-se inquieto. Por fim, estendendo o rolo ao
centurião, perguntou algo que desgostou Civílis: - São de
confiança?
O militar examinou as assinaturas e sem ler o conteúdo
respondeu com um categórico e desafiante certamente. Seu
rosto, pétreo por natureza, anuviou-se diante da injusta
insinuação do governador. Pôncio agradeceu a sinceridade de
seu chefe de coorte e, ladino, mudou de tática. Beijou o falo e,

enquanto esperava o veredicto do centurião, ficou-me
observando com uma curiosidade maldosa. Consegui sustentar o
inquietante exame. E a gravidade do meu rosto convenceu-o de
que não se achava diante de um homem assustado. A dúvida
continuava a atormentar aquele ser instável, beneficiando meus
planos.
Civílis devolveu o papiro.
- E então?
Apesar do seu natural ceticismo, não titubeou. Colocou-se ao
lado dos companheiros.
- Se eles viram sentenciou com serenidade eu vi...
O governador sorriu satisfeito, mostrando os três dentes de
ouro e as negras cáries. Então, medindo as palavras, entrou
enfim no que me interessava: - Astrólogo e também mago...
- A teu serviço apressei-me a fingir.
- Vamos por partes cortou sem me olhar -. Aqui diz que te
responsabilizaste pelo abrasamento do gladius.
Concordei com um gesto.
.. o que não entendo é por que te apresentas
voluntariamente à guarnição de Nahum e agora a mim. Desarmar
e ferir meus homens é um delito grave.
- Nada tenho que ocultar. Simplesmente me defendi
contestei, imaginando que o informe não trazia a declaração de
legítima defesa -. E teus corajosos mercenários pouco puderam
fazer diante do meu poder.
A ousadia o desconcertou.
.. e se eu estou em tua presença remeti friamente é
porque sou cumpridor das leis. Segundo eu soube, expediste
uma ordem de captura desse poderoso mago. Pois aqui me
tens.
Esclarecerei quanto desejares. Mais ainda: te favorecerei com
meus poderes.
Olhou-me com desconfiança.

- Favorecer-me?
E tocou o ponto-chave:
.. e tu que queres em troca?
- Algo simples e que está ao alcance da tua generosa mão...
Não pude concluir. Ergueu-se irritado, rodeou a mesa e se
aproximou de mim em atitude ameaçadora. E elevando-se nas
pontas dos pés vociferou a um palmo do meu peito: - Te atreves
a pedir?... Sabes que podia prender-te? Pior ainda retorceu-se
em sua cólera -, sabes que posso dispor da tua vida?
Resisti à arremetida. Com voz pausada, um torpedo entre as
palavras, repliquei: - Sei que não o farás. A guarnição de
Nahum, ao comprovar minha magia, falou de informar de
imediato ao divino imperador...
Sobressaltou-se. E a cólera se desvaneceu, substituída pela
palidez. E eu rematei sem piedade: - ... a Tibério e Sejano não
lhes agradaria saber que Jasão, discípulo de Trasilo, o astrólogo
de César, foi encarcerado ou executado.
Retrocedeu trêmulo. E lancei a isca:
.. mas não temas, querido governador. Agradecido por tua
generosidade em Jerusalém, quero que sejas tu quem informe a
Roma e, se achares oportuno, te convertas em meu protetor.
- Sejano!
Pôncio balbuciou com horror o nome do temido general e
favorito de Tibério. E olhando para Civílis buscou sua ajuda.
Mas o centurião, divertindo-se sem dúvida com a fraqueza do
seu chefe, deu de ombros, vingando-se do recente insulto aos
seus homens.
.. e em troca de uma insignificância concluí suavizando a
tensão te farei conhecedor de alguns dos meus segredos.
E dirigindo-me ao primipilus fiz brilhar a isca:
- As bravas legiões poderiam beneficiar-se igualmente do meu
extraordinário poder...
Civílis moveu os lábios com indiferença. Compreendendo que

não podia contar com aquele bloco de gelo me concentrei de
novo no assustado Pôncio. O governador deixou-se cair no trono
e, ausente, dedicou uns instantes, de novo, à mensagem de
Nahum. Parecia procurar as alusões a Tibério e Sejano. E
imaginei que não encontraria. Então me preparei. A hélice
mental daquele sujeito, ágil e distorcida, girava a grande
velocidade. Eu não podia baixar a guarda. E assim foi.
Depois do silêncio de chumbo, julgando que as ameaças não
passavam de bravatas, reanimou-se e murmurou quase que para
si: - E quem vai saber que um anônimo e miserável grego
desapareceu? Voltou a mostrar os dentes de ouro e, lenta e
pausadamente, com um ar co, deixou a mesa e caminhou para
mim:
- Teus segredos?
Cruzou altivamente por mim e foi deter-se às costas de Civílis.
E os pêlos pretos descendo pelo pescoço e contrastando com a
peruca foram como um aviso. Mas surpreendeu-nos.
Subitamente, apoderando-se do pugio que pendia do flanco
direito do soldado, saltou sobre mim e introduziu o punhal entre
as pregas da minha túnica, pressionando meus testículos.
- Teus segredos?
Civílis, desconcertado, levou a mão à empunhadura do
gladius. E Pôncio, com um sorriso triunfal, revelou a manobra que
acabava de urdir.
- Vejamos quais são esses segredos. Te atreverás a desarmarme
como fizeste com os soldados? Confiante na proteção da
pele de serpente, longe de ceder, aproveitei a circunstância
para explorar sua frágil segurança e arrastá-lo definitivamente
para o meu terreno.
Lancei um primeiro olhar para o centurião. Continuava tenso,
com a mão direita aferrada à empunhadura da espada. Sorri
para ele, mostrando calma. E Civílis entendeu o sinal.
- Responde!
Procurei devagar a cabeça do cravo que ativava os ultra-sons
e, finalmente, dando-lhe um estudado sorriso, contra-ataquei: -

Meu querido governador, não é isto o que procuro...
Minha inesperada compostura surtiu efeito. E ele começou a
desmoronar.
.. não vou satisfazer a teus desejos por duas razões.
Os carnosos e sensuais lábios de Pilatos se abriram
incrédulos.
.. primeira, porque seria uma lástima abrasar e destruir tão
belo punhal.
O centurião, atônito, não compreendia minha fria atitude.
Foi a única vez que o vi franzir o sobrecenho.
.. segunda, porque o representante de César tem direito a
uma demonstração mais de acordo com sua nobilíssima
hierarquia.
Humilhado, retrocedeu cambaleante. Aquele era o momento.
Penetrei em seu acovardado espírito como um elefante em
uma loja de cristais. E apontando os tesouros que tinha à vista
joguei com sua mórbida superstição.
- Diz-me: qual a tua peça preferida?
O suboficial, já agora calmo e, de certo modo feliz pelo
desenlace do tenso incidente, soltou o gladius e ficou
observando com curiosidade o enxovalhado governador.
- Minha peça favorita? - reagiu com dificuldade Para quê? -
Se o desejas tentei-o posso fazê-la desaparecer...
Ele mordeu o anzol. Indeciso, olhou para Civílis, que, com um
rápido movimento de cabeça, deu sua aprovação. Depois,
refugiando-se no falo e esfregando-o sem cessar entre as
grossas mãos, passeou o olhar por toda a sala. Vacilante,
caminhou para cima e para baixo. Por fim, voltando para a mesa,
recuperou o pugio, avançou para os espelhos que rodeavam a
dupla porta e, erguendo o punhal, foi cravá-lo no umbigo da
escultura núbia localizada no ângulo direito. Depois,
bamboleando, retornou ao trono e me convidou a executar a
magia. Espertamente, como eu já esperava, escolheu a peça

menos valiosa.
- Estás certo? - insinuei, encurralando-o.
Levando a mão direita à testa sede da sabedoria para os
romanos com uma repugnante hipocrisia jurou por seu sagrado
gênio pessoal.(13) Sorri condescendente. E ele, sabendo que
infringia uma das sagradas normas da religião romana, beijou o
amuleto de marfim, com os olhos baixos.
Cumprindo o planejado dispus-me a executar a nova
representação, decisiva para conquistar um dos objetivos.
Em minha memória retumbava ainda o eco da perigosa
exibição no quartel de Nahum. Mas me justifiquei com o
argumento de que era necessária para a boa execução do
terceiro salto. Nessa ocasião, além disso, a experiência só
teria duas testemunhas.
Muito a meu pesar, tropeçava uma vez ou outra na mesma
pedra...
Seguindo os textos de Horácio, Virgílio e Apuleio sobre
cerimônias mágicas,(14) procurei cercar-me de uma rigorosa e
refinada liturgia. E para espanto dos meus acompanhantes
comecei despindo-me. Pôncio me vigiava com um temor
reverencial.
E ainda que a fralda não fosse branca, nem de linho, nem
tampouco de franjas vermelhas, como aconselhavam os cânones,
acho que o gesto valeu. Então, tomando o cajado, o lituus,
aproximei-me do soldado núbio escolhido pelo governador.
Seguindo a prescrição de Plínio,(15) tracei sobre os espelhos
um imaginário templum ou círculo, encerrando nele a bela
escultura negra. E de costas para os intrigados espectadores
programei os microprocessadores, registrando os dados básicos:
ébano (Diospyros ebenum), um tamanho suficiente (cilindro de 2
m de altura por 1 m de diâmetro), distância (5 m) e tempo para
a eliminação (3 minutos). Prudentemente, na previsão de
possíveis contratempos, pospus a fase de materialização. E o
Destino me iluminou...
Retrocedi até junto às janelas e simulei que consultava a

posição do sol.(16) Depois, ajoelhando-me junto à mesa em
direção ao objetivo, erguendo os braços e a vara, entoei o
obrigatório canto mágico. Nesse instante, aborrecido talvez
pelos preparativos que conhecia à perfeição, o governador
inclinou-se para Civílis sussurrando algo sobre o problema dos
caravaneiros.
Continuei com as invocações a Hécate, deusa das
encruzilhadas e do mundo subterrâneo, à Lua, protetora da mãe
dos magos, e a Circe, sua filha,(17) tentando captar ao mesmo
tempo a conversa em latim. Abreviei a litania, entoando a
monocórdia canção com as sete vogais gregas.
Pôncio elevou o tom, dizendo a Civílis que o barro do mar de
Asfalto era o presente surpresa e que se não chegasse
pontualmente cortaria as mãos dos malditos fenícios.
Atrevi-me a interrompê-los, pedindo silêncio. E o governador,
conhecedor das regras,(18) desculpou-se com uma leve
reverência.
Concluído o cerimonial, em um novo esforço, cuspi sobre o
fulgurante piso, tal como mandava a ortodoxia. E invoquei os
pensamentos de Cícero sobre aquela orgulhosa e ao mesmo
tempo temerosa civilização romana.(19) Mas eu estava onde
estava e não havia remédio senão fazer das tripas coração.
Quando estavam chegando ao fim os três minutos, recuperada
a atenção dos meus espectadores, estendi o braço esquerdo e
cerrei o pulso brandamente. E o silêncio, apenas quebrado pelo
marulho do Mediterrâneo ali próximo, aumentou a tensão no
enfermiço ânimo de Pôncio Pilatos. Então a ordem de
mobilização dos swivels partiu em direção à escultura.
Um, dois, três segundos ...
Cinco, dez ...
Não podia ser.
O coração, bombeando aceleradamente, me advertiu. Algo ia
mal. O hierático soldado egípcio continuava no salão.
Que havia ocorrido?

E o suspense se voltou como uma víbora contra mim.
Onde estava a falha?
Tinha de averiguar. Tinha de comparar os parâmetros e
reprogramar a tatuagem. Mas precisava de tempo. O problema
era como consegui-lo. Em tais circunstâncias, um fracasso
haveria sido catastrófico. O governador não perdoaria.
Em meio à minha angústia cheguei a cogitar na imediata e
fulminante utilização dos ultra-sons.
Fugir? Um suor frio caiu-me pelas têmporas.
Não, a saída da fortaleza arruinaria meus objetivos e
comprometeria gravemente a missão. Tempo. Essa era a chave.
Mas como obtê-lo?
De súbito, as precisas recomendações de Festo sobre o
sagrado silentium me pareceram a solução. Ergui-me e, fingindo
contrariedade, caí em cima do governador acusando-o sem
misericórdia de infrator das leis santas da magia.
Pôncio ficou atônito e empalideceu. E eu, decidido a transpor
aquela primeira e aguda dificuldade, não dei trégua.
Como um tornado arrasei o supersticioso espírito, reprovando
sua recente interrupção. E o pusilânime governador caiu na
minha manobra.
Escusou-se, reconhecendo a inoportuna falta. A conversa com
Civílis fez malograr a bruxaria. E, desarvorado, rogou que eu
tentasse de novo. Era o que eu queria. Vencido o difícil
obstáculo, me apressei a inspecionar a escultura. E o Destino,
como já disse, foi complacente.
Tornei a examinar a textura. A deteriorada superfície da
pintura, feita basicamente com chumbo e fuligem, me deu uma
pista. Estúpido! Como pude? Confirmava-se a suspeita: a
informação ministrada à tatuagem tinha sido errada.
Arranquei o punhal e, deixando-me levar por outra idéia,
examinei o interior.
Exatamente! A intuição jamais se engana. Entendi a causa do

perigoso fracasso. E maldisse o excesso de confiança. Por baixo
do escuro verniz, a escultura não apresentava a dureza e o
clássico colorido preto do ébano maduro.
Mas tratei de certificar-me. O hbu, o ébano egípcio, é macio e
branco nos primeiros anos. Só com o tempo torna-se preto e
granítico.
Não havia dúvida. Aquela madeira não era Diospyros. Ainda
que forte, compacta e resistente como o ébano, aquela espécie
mostrava um grão mais fino, retorcido e com uma reveladora
tonalidade leitosa. Os habilidosos egípcios falsificaram a peça
usando um Pirus communis, uma vulgar pereira subespécie
Piraster. E a pintura fez o resto.
Ali mesmo retifiquei a programação. Tornei a cravar o
providencial pugio no atlético soldado e retornei para junto dos
pacientes observadores. Ajoelhei-me de novo, pedi silêncio,
adotei um ar solene e repeti as invocaÇões e a cantoria. Cinco
segundos depois, os swivels convertiam em hidrogênio o metro
e noventa centímetros de pereira. E o punhal saltava sobre os
espelhos, piruetando triunfalmente.
Pôncio, olhos fora das órbitas, pôs-se em pé de um salto.
Civílis, atônito, levou a mão à espada, desembainhando-a. E
o silêncio atestou e homologou o trabalhoso êxito. E como
acontecera em Nahum, ninguém se atreveu a mover-se. Quanto
a mim, aparentei indiferença, vesti a túnica, amarrei o cinto e
pendurei no ombro meu saco de viagem. E esperei.
O governador, empapado em copioso suor, não sabia para
onde olhar: para o canto do salão, para mim, para o canto do
salão.
Finalmente, convencido do prodígio, fixou o olhar naquele
poderoso mago. E tentou falar. Mas os trêmulos lábios não se
abriram. Não sei o que mais o impressionara: a aniquilação do
núbio ou a aparente serenidade da minha expressão.
Um minuto depois, Civílis rompia o cinturão do medo,
caminhando resolutamente até o canto onde caíra o punhal. Mas
o exame da arma foi inóquo.

Agachou-se, tomou o punhal, esgaravatou o montículo de pó
preto que se pegara às plaquinhas de prata. E os restos de
tinta escorreram entre seus dedos. Ergueu-se e repôs o gladius,
ao mesmo tempo em que me dirigiu um olhar em que se
juntavam a admiração e a surpresa. Naquele instante eu soube
que havia ganho um incondicional aliado.
A cena seguinte não me agradou. O temperamento ciclotímico
de Pôncio a-instável, de um humor imprevisível o levou ao
cúmulo do servilismo. Gemendo, e antes que o centurião e eu
pudéssemos fazer qualquer coisa para o impedir, arrojou-se a
meus pés suplicando perdão e benevolência. Apressei-me a
erguê-lo e, irritado, citei-lhe em seu idioma um dos versos de
Ênio: ... moribus antiquis res state Romana uirisque... (Os
antigos costumes e a coragem dos seus homens mantêm firme o
Estado romano.)(20) As lágrimas e uma crise incontida de
soluço foram a única resposta. E o primipilus, surpreendendo-se
de novo, sublinhou minhas palavras com uma sentença do poeta
Propércio: ...
porque somos poderosos pela espada.(21)
Pela espada e pela piedade, completei, agradecendo o
apoio com um largo sorriso.
E tomando o desmantelado governador pelos ombros
acompanhei-o até o trono. E não hesitei em servir-me da
propícia situação para conseguir um dos meus propósitos.
Suavemente, mas com firmeza, desanuviei sua memória
solicitando a insignificância que me havia levado à sua
presença. Apontei para os pergaminhos que se empilhavam
sobre a mesa e perguntei se podia conceder um salvo-conduto
especial a meu irmão e a mim. Como um autômato, arrasado
pelos soluços, atendeu-me de pronto. E dócil, com mecânicos e
afirmativos movimentos de cabeça, concordou em redigi-lo nos
termos propostos por mim.
O documento, em grego, foi datado do mês de elul (agostosetembro
do calendário judeu) do ano 26. Ou seja, logo após
sua investidura no cargo de governador da Judéia.

Impressionado pelo que se passara naquela sala, nem sequer
teve forças para perguntar a razão de tão estranha data. Nem
eu o esclareci.
O pergaminho incluía uma cláusula vital para a realização do
nosso trabaLho durante o terceiro salto: ... e os gregos
anteriormente mencionados, amigos pessoais e servidores do
divino Tibério poderão viajar livremente pelos territórios desta
província procuratoriana,(22) sendo assistidos, se assim o
solicitarem, pelas coortes e guarnições sob minhas ordens... E
ao lançar assinatura e sinete, comovido pela aparente
fragilidade daquele homem em sua tentativa de compensar-me,
deixei-me levar pelo coração. Guardei o precioso salvo- conduto
e, conciliador, perguntei por aquele barro do mar de Asfalto
(mar Morto) que tanto o preocupava.
(A julgar por seu comportamento posterior, este ingênuo
explorador se enganava de novo, Aquele indivíduo, como
escreve Fílon, era todo um exemplo de crueldade, insolência e
rapacidade. E acrescento com base nas minhas próprias
observações: hipócrita, astuto, de uma maldade quimicamente
pura... e enfermo mental.) Mas continuemos pela ordem.
Animado pelas minhas palavras, Pôncio foi readquirindo certa
estabilidade. E sem entender o sentido das minhas perguntas,
num fio de voz, esclareceu o que eu já sabia em parte.
Casualmente (?), aquela segunda-feira 8 de maio era dia do
aniversário de sua esposa. E o barro, simplesmente um
presente. Um presente muito estimado por homens e mulheres,
por suas virtudes como tratamento de beleza e como remédio
para determinadas afecções da pele, reumatismo, artrose e
outros males. Um presente surpresa que por motivos
desconhecidos não havia chegado a tempo a Cesaréia.
E incorporei a idéia definitivamente. Depois de tudo, que mal
podia haver se eu Lhe proporcionasse uma pequena alegria?
Com um pouco de sorte, até a operação poderia ganhar com
isso, facilitando-nos o acesso ao seguinte e não menos
interessante objetivo. E pondo mais lenha no mistério disse-
Lhe algo que logicamente o surpreendeu: - Aceitarias a humilde

ajuda deste poderoso mago? Os apagados olhos azuis
brilharam. Adivinhando em parte minhas intenções, Pôncio
suplicou como um menino:
- Serias capaz?
Sorri maliciosamente e, dando-lhe as costas, me aproximei
das janelas. Devia atuar com rapidez e precisão. E rogando aos
céus que não me deixassem errar de novo me concentrei na
tatuagem, programando a materialização de um barro preto
que podia valer-me a definitiva confiança do governador e, o
que era mais importante, a amizade de Cláudia Procla, sua
mulher.
Pôncio e Civílis, sem se atreverem a me interromper, espiavam
meus movimentos em um silêncio reverente. Sabendo disso,
preparei o esquema com a mais rica encenação de que fui
capaz.
E planifiquei o presente com especial esmero.
Continente: ânfora para vinho de duplas asas (modelo
Dressel), de carbonato estalagmítico impropriamente chamado
mármore ônix ou alabastro oriental, procedente das jazidas
de Bon-Hanifa, próximas ao povoado romano de Aquae Sirensis,
na atual Argélia. Fundo plano e capacidade para dez litros.
Conteúdo: barro preto do mar Morto.
Com o simples enunciado, o banco de dados do
microprocessador estabeleceria componentes e proporções:
água (27 por cento), sal-gema (39 por cento), fragmentos
vegetais
(1 por cento) e os 33 por cento restantes integrados por
carbonato, dolomita, quartzo, feldspato e minerais argilosos.
(23)
Peso total nove quilos. E acertei o teclado em uma distância
de quatro metros e um tempo de execução de dois minutos.
Ativado o ponto ômega, dei meia-volta, escolhendo o lugar
de assentamento. E diante de um Pôncio atônito e um Civílis
novamente tenso, limpei a mesa, retirando pergaminhos e

paleta de escrever. O governador, instintivamente, colocou-se
atrás, empurrando o encosto do trono.
Retrocedi uns passos, imobilizei-me e, erguendo o rosto para
o teto, prossegui o cálculo mental.
Um minuto...
O silêncio os devorava. Quarenta segundos...
Revirei os olhos e, com voz potente, elevando os braços com
força, reclamei a ajuda dos deuses maiores do Olimpo.
Vinte segundos... Relaxei.
Pôncio, enrodilhado no trono, havia sucumbido. Um medo
irracional o punha à beira de um infarto. E ao observar sua
peruca, deslocada pela forte pressão da cabeça contra a
poltrona-trono, estive a ponto de pôr a perder a
representação. Fazendo imensos esforços para sufocar o riso,
preparei-me para guiar o fluxo dos swivels.
Cinco segundos... Estendi o braço esquerdo e apontei.
Três segundos...
Procurei medir com exatidão: cinqüenta centímetros por cima
da mesa.
Aquele era um momento crítico. O desvio dos eixos ortogonais
devia dar-se em um espaço livre de obstáculos e ao mesmo
tempo o mais próximo possível da base de sustentação
escolhida.
Dessa forma evitaria a degeneração do recipiente, submetido
a inevitável precipitação pela gravidade. Se errasse nos limites
espaciais, provocando a materialização, por exemplo, no interior
da mesa de cedro, o sistema se bloquearia automaticamente,
anulando a inversão.
Dois, um...
E, como um milagre, uma bela, polida e translúcida ânfora
de quarenta e cinco centímetros de altura surgiu do nada. E
pousando na superfície da mesa, balançou levemente.
O súbito impacto e a inesperada aparição do campanudo

alabastro foi demais para o aterrorizado governador.
Histérico, começou a uivar. E na tentativa de fugir foi tal a
força que fez contra o espaldar que a poltrona tombou.
Foi um cataclismo. Pôncio caiu de costas, naufragando
debaixo do móvel e perdendo a peruca.
Pálido como a cera, o centurião correu em auxílio do
vociferante governador tentando tirá-lo do suplício e do ridículo.
Então, esquecendo trono, peruca e quanto o rodeava precipitouse
para a ânfora, apalpando-a e acariciando-a entre nervosas e
estridentes risadas.
Civílis, definitivamente entregue, seguiu seus passos,
manuseando a ânfora com a mesma ansiedade. Um instante
depois de farejar o interior, um Pôncio desvairado ordenava ao
primipilus que comprovasse a natureza do conteúdo.
De má vontade, contrafeito, o soldado desembainhou o
punhal, introduziu-o no barro, extraiu dele uma pequena porção
e deu- a ao governador para examiná-la. Pôncio beliscou a
úmida argila com as trêmulas polpas dos dedos, triturou-a
suavemente e cheirou-a duas vezes. E a insuportável risadinha
castigou de novo os nossos ouvidos.
Por fim, apanhou uma porção do barro e esfregou-o nas faces
balofas. E saltitando e cantarolando, começou a dar voltas ao
nosso redor.
Civílis, envergonhado, não se atrevia a olhar para mim.
Pensei ter adivinhado seus pensamentos. Aquele era o
autêntico Pôncio. Nem Fílon, nem os Evangelistas acertaram. Eu
mesmo o julguei erradamente nos históricos momentos da
Paixão de Jesus de Nazaré.
Cruel, sim. Despótico, também. Covarde ou diplomata, não.
Aquele personagem, com suas bruscas oscilações, sem meiotermo
entre o riso e as lágrimas, imotivado, de idéias
delirantes, sensual, amante da boa mesa, com uma mórbida
ambição de poder e uma desmedida ânsia de luxo e riqueza,
era na realidade um doente. Um perigoso psicopata maníaco

depressivo.
Baseando-me nos estudos de especialistas como Kraepelin,
Pinel, Baillarger, Falret, Kahlbaum e outros, posso assegurar que
Pôncio, talvez por uma falha genética, havia derivado da
ciclotimia a uma patologia séria e preocupante. Essa psicose
maníaco-depressiva (PMD), também chamada transtorno
bipolar, devia ser antiga. Como defendia Abraham, é possível
que não tivesse superado uma ferida narcisista, provocada na
infância por atos reais ou imaginários.
Sim, eu me precipitei...
Sua anômala, fraca e injusta decisão ao condenar o Mestre
não foi fruto de uma argúcia diplomática destinada a evitar as
iras de Tibério ou do temível general Sejano. Agora eu
compreendia. Apesar da origem predominantemente biológica
da enfermidade, aquele fator as ameaças de Caifás e sua
gente - desencadeou um novo surto maníaco. Para esses
enfermos, a hipotética perda da posição social ou profissional
pode constituir um gravíssimo choque, mergulhando-os em
profundas crises. Uma inteligência sã, por muito que seja
pressiionada, dificilmente aprova a execução de um inocente.
Menos ainda se em mãos tem o máximo de poder jurídico e
militar da província.
Se Pôncio tivesse sido uma pessoa normal, haveria
contornado sem dificuldade as conhecidas tentativas de
chantagem por parte da casta sacerdotal judaica. Mas o
misterioso Destino (?) não colocou na Judéia um governador de
mente saudável.
Não fosse isso, o desenlace teria sido outro...
E aquele psicopata reagiu como tal: cegado pela crise
projetou sua responsabilidade fora de si. Transtornado,
refugiou-se em outra das constantes dos maníacos-depressivos:
a idéia delirante e obsessiva. E recorreu ao ritual da lustratio ou
purificação mística, lavando as mãos. Uma cerimônia, em minha
modesta opinião, que não tem sido analisada com suficiente e
detido rigor. Uma passagem que confirma a demência de Pôncio.
E me explico.

Talvez por desconhecimento, muitos dos chamados fiéis
consideram a lustratio algo quase anedótico. Nada mais longe
da realidade. Naquele tempo, entre os ritos expiatórios grecoromanos,
a lustratio, individual ou coletiva, era uma prática
antiga e de especial significação. Homero alude a ela (Ilíada,
16), ainda que com um caráter simplesmente higiênico em caso
de derramamento de sangue. Na religião romana, bem
conhecida pelo governador, a lustratio equivalia, de certo modo,
ao sacramento da confissão da Igreja católica.
Tratava-se de uma purificação simbólica que eliminava as
faltas do indivíduo. Esses supostos pecados, segundo os
romanos, atraíam a inimizade dos deuses, submergindo o
infrator em permanente maldição que se estendia a quantos o
rodeavam. Pois bem, esse ritual, por sua enorme
transcendência, não podia ser praticado pelo próprio pecador.
Para pagar suas culpas, o impuro tinha a inexorável obrigação
de procurar os sacerdotes ou purificadores profissionais. Mais
claro ainda: o gesto de Pôncio foi nulo do ponto de vista da
estrita ortodoxia religiosa. Mas, se o sabia, por que não
respeitou a santa norma? Só há uma explicação: foi uma
conseqüência (ou um sintoma) do transtorno que o alienava. O
pensamento dos maníacos-depressivos é geralmente dominado
por uma elevada auto-estima e uma onipotência que os
conduzem a todo tipo de desatinos.
E insisto: nenhum cidadão romano em seu juízo perfeito, muito
menos em público, se haveria atrevido a exculpar-se
administrando a si mesmo a lustratio.
Um ritual que, além de tudo, para ser efetivo, exigia uma
concreta preparação.
A liturgia sacerdotal especificava que a salvadora água
lustral, colhida em determinadas fontes sagradas, devia ser
previamente santificada com sal e fogo, manipulada e benzida
pelos sacerdotes de Apolo e colocada em recipientes nas
entradas dos templos, servindo precisamente para a purificação.
Nada disso se cumpriu na manhã daquela sexta-feira, 7 de
abril do ano 30. Nem em Jerusalém havia água lustral, ou

templos pagãos, ou sacerdotes de Apolo ou Elêusis, nem Pôncio
obedeceu à tradição...
À farsa do processo contra Jesus soma-se, pois, a atuação
de um psicopata, mais a flagrante violação dos ritos religiosos
romanos.
Mas tampouco devemos estranhar. Assim que tomou posse do
cargo (ano 26), Pôncio já dera sinais da perigosa moléstia.
De fato, seu mandato como governador da Judéia terminaria
bruscamente (ano 36) devido a outra de suas genialidades.
Como se recordará, ao chegar à Palestina, desafiando o povo
judeu e a norma de Roma, mandou afixar em Roma várias efígies
do imperador Tibério. Nenhum de seus antecessores,
respeitadores de uma tradição que proibia as imagens, havia
cometido semelhante despropósito. (A hostilidade,
desencadeada por triviais frustrações, é uma das características
dos maníaco-depressivos.) E milhares de indignados hebreus
viajaram a Cesaréia exigindo a retirada das efígies. Durante
cinco dias e cinco noites permaneceram às portas da fortaleza.
Prontamente Pôncio apareceu à multidão. E quando
acreditavam que ia ceder, o psicopata ordenou a seus soldados
que advertissem homens, mulheres e crianças que se não
aceitassem os bustos de César seriam despedaçados. Mas os
judeus, diante das espadas desembainhadas, se arrojaram ao
chão, declarando que preferiam a morte ao sacrilégio. Então o
governador, com a volubilidade típica desses psicopatas,
reconsiderou. E as efígies foram recolhidas ao interior da torre
Antônia. (Como sustenta Leff, nesses indivíduos algumas idéias,
o poder ilimitado, por exemplo, adquirem autêntico caráter
delirante.
Só um personagem seriamente transtornado podia ignorar as
disposições do império a que servia, chegando à fronteira da
irracionalidade.) Também o incidente narrado por Flávio Josefo,
em sua obra Antiguidades (XVIII, 4), oferece uma clara amostra
do comportamento anormal de Pôncio. Em outra extravagância,
típica dos maníaco-depressivos, embarcou em uma aventura
financeira sem medir o custo. Iniciou a construção de um

aqueduto que devia abastecer Jerusalém a partir dos
mananciais de Ein Atan, nas colinas situadas entre Hebron e
Belém. No total, 55,5 km. E em uma decisão tão aparatosa como
descontrolada, usou o tesouro do Templo. Aquilo, logicamente,
incendiou o ânimo do povo, provocando toda sorte de
distúrbios. (Os negócios ruinosos, envolvendo a si próprios e a
estranhos, sem uma visão mínima de suas conseqüências, são
outra fraqueza desses hiperativos.) Por último, abstraindo o não
menos sangrento episódio da matança de judeus no Templo
(Lucas, 13,1 ), convém recordar qual foi o final desse na verdade
pouco conhecido governador.
Seis anos depois da morte do Mestre, numerosos samaritanos
reuniram-se em torno a um suposto messias que prometia
descobrir os vasos sagrados enterrados por Moisés em Samaria.
Pôncio soube da grande concentração no monte Garizim e, em
mais uma manifestação psicótica, desnecessária,
desproporcionada e nascida de seus delírios de poder e
onipotência, carregou contra os indefesos fanáticos, levando a
cabo uma verdadeira carnificina. Os protestos foram tais que
Vitélio, legado imperial na Síria, viu-se obrigado a levá-lo para
Roma. E o Destino, inflexível, reservava-Lhe uma surpresa. O
imperador Tibério faleceu antes da sua chegada a Roma e foi a
outro louco que teve de prestar contas: Caio, aliás Calígula. E
Pôncio viu-se desterrado para as Gálias.
Muito provavelmente, ainda que não tenhamos dados
fidedignos, aquele desastre deve ter destruído de vez sua
mente. E, em outra reação clássica dos maníaco-depressivos,
suicidou-se.
Concluo estas reflexões com uma crença muito pessoal. Se
naquela sextaFeira, 7 de abril, o réu houvesse sido outro, e as
circunstâncias as mesmas, Pôncio teria do mesmo modo lavado
as mãos.
Para mim está claro: os enigmáticos fios do Destino (?)
puseram no caminho terreno do Filho do Homem vários
personagens-chave. Todos eles, como espero continuar
narrando, necessariamente com sérios problemas mentais (como

estava no roteiro). João Batista seria o primeiro; Judas
Iscariotes, o segundo e, finalmente, o governador da Judéia.
Mas, de novo, não nos precipitemos. Minha estada em
Cesaréía ainda não terminara. A agitação daquele psicopata,
dançando ao nosso redor, cessaria logo. Sem deixar de
cantarolar, juntou-se de novo a nós com a ânfora nas mãos,
tomou um punhado de barro e, sem aviso, com uma inocência
que me confundiu, empastelou meu rosto. Civílis baixou os
olhos. Em seguida, depositou um sonoro beijo em minha mão
esquerda e retomou a quase esquecida conversa, declarando
com grande pompa:
- Ficas ungido... Escolheste bem. De agora em diante sou teu
protetor.
O mundo é nosso.
Não pude evitar um estremecimento. Quem eu enfrentaria?
Logo ia saber...
De repente, ao descobrir nos espelhos a calva desnuda, seu
balofo semblante crispou-se. E esquecendo sonhos e
solenidades lançou-se a uma obsessiva busca da peruca.
Engatinhou sob a mesa, deu a volta na poltrona e aos gritos
reclamou a colaboração do centurião. E a patética cena se
haveria prolongado indefinidamente não fosse a oportuna
intervenção do paciente Civílis. Em silêncio, foi ao encontro do
governador e entregou-lhe a peruca. Pôncio, em sua fúria,
arrebatou-a e correu a colocá-la... ao contrário.
Depois disso, deu por concluída a audiência, ergueu o braço e
se retirou.
Um acesso de riso mal contido esteve a ponto de perder-me.
O primipilus, fulminando-me com o olhar, me advertiu. E o
sangue gelou em minhas veias.
Pôncio deu meia-volta, observando-nos sem entender. E
ambos, magicamente inspirados, saímos do impasse com uma
simultânea inclinação de cabeça. Então o governador,
sorridente, com a cara embarreada, apontou minha túnica
empoeirada e recriminou o suboficial pela sua lamentável falta

de hospitalidade. E mudando de assunto perguntou-me: - A que
signo pertences?
Não consegui entender. E ele, impaciente:
- Em que mês nasceste?
- Sou de Virgem respondi ainda sem perceber sua intenção.
Dirigiu-se de novo a Civílis e concluiu a recomendação com um
misterioso: ... Já sabes...
Minutos mais tarde, seguindo o hermético chefe da coorte, me
detinha defronte a uma estreita porta. Nela, cravejada, uma
lâmina de bronze. Então pensei haver descoberto o porquê do
interesse de Pôncio por meu signo zodiacal. A prancha
representava a figura de uma jovem virgem alada com uma
espiga entre as mãos: o símbolo de Virgo.
Soltando a aldrava da porta deu-me passagem para o que
seria o meu alojamento durante o resto do dia. Um aposento
difícil de esquecer...
Poupando palavras, recomendou-me que me lavasse e
procurasse descansar. Pouco antes da vigília da noite, com as
primeiras estrelas, passaria para levar-me a cear. Muito
discretamente perguntou-me se desejava ser banhado pela
criadagem. Declinei da sugestão. Depois de tão longa viagem
disse-Lhe -, preferia um pouco de solidão.
Ao penetrar naquele quarto de hóspedes vi-me de novo
assaltado por uma das obsessões do governador. Seu gosto
pelo luxo estava em todos os cantos da fortaleza. Ao cerrar a
porta vi-me diante de um estreito e acolhedor terraço
retangular, voltado para o oeste. Uma enorme e escandalosa
cortina de oito metros, de seda cor de romã, o separava do
resto das dependências.
O calor diminuía e, antes de fazer uma minuciosa inspeção do
lugar, aproximei-me da balaustrada e tentei recapitular. De
momento podia dar-me por satisfeito. Havia obtido o salvoconduto
e a possibilidade de chegar ao segundo objetivo: a
entrevista com Cláudia Procla. Mas não podia descuidar-me.

As imprevisíveis reações daquele demente eram um risco
permanente. E me propus abandonar Cesaréia quanto antes
possível. Só não imaginava naquele plácido momento que tal
saída pudesse ser tão súbita e acidentada.
As últimas claridades do dia me reconfortaram. O mar,
purpúreo, verde e branco, cessava suas correrias a meus pés,
atroando nas escarpas sobre as quais se elevava a fortaleza.
À minha esquerda descobri o impressionante porto
semicircular, orgulho de Israel, construído todo ele com enormes
blocos de calcário branco. Um porto decantado com toda a
justiça por Josefo.(24) E apesar do costumeiro exagero do
historiador judaico-romanizado tive de render minha admiração.
Aquela meia-lua, seguindo as diretrizes do grande Vitrúvio, era
um soberbo exemplo da engenharia marítima dos romanos.
Como assinalaria Raban, esse porto herodiano era um modelo
para os homens do século XXI. Quando, mais adiante, pudemos
inspecioná-lo, comprovamos que Sebastos pretendia ser uma
réplica do porto de Pireu, mas, como suspeitávamos, suas
medidas estavam quase dobradas na descrição de Josefo.
Enquanto o famoso porto de Atenas apresentava um
comprimento de três quartos de milha por umas seiscentas
jardas de largura (ao redor de 540 metros), o orgulho de
Herodes não superava os duzentos metros de comprimento,
com um dique de uns trinta.
E ainda que gigantescos, os blocos de calcário também não
correspondiam ao registrado em Antiguidades. O anel, aberto
para o noroeste, era formado por uma cadeia de silhares cujas
dimensões máximas eram trinta e seis pés de largura (12
metros) por dez de altura e largura (3 metros). Tanto meu irmão
como eu calculamos a profundidade do dique em uns nove
metros. Ainda assim, como disse, o porto, destinado
exclusivamente à frota de guerra de Roma e a embarcações de
recreio, nos surpreendeu. Tudo nele era colossal e
minuciosamente desenhado. As vigas de madeira e os sistemas
de fechamento para as paredes submersas eram calcados nas
especificações do grande arquiteto romano Vitrúvio. Além das

defesas citadas por Josefo, chamou-nos a atenção uma
complexa rede de canais que perfurava os diques e que, graças
a uma série de comportas, permitia o controle e a limpeza das
águas, evitando a obstrução do porto. A pequena distância de
Sebastos, na direção sul, adentrava o mar um longo espigão
construído com toscas pedras agregadas entre si por vigas de
Ferro. Esse dique protegia o porto comercial propriamente dito,
localizado na linha da costa que unia o grande anel com o
espigão. Ali alinhavam-se os amplos armazéns portuários que
Josefo menciona. Ali, em suma, a vida palpitava e era
incessante o tráfego de homens e mercadorias procedentes de
todo o mundo conhecido. E ali, na companhia do Mestre,
presenciaríamos cenas inesquecíveis. Lastimável que, com o
decorrer dos séculos, esse formidável porto fosse vítima da
rapina e da inveja.(25)
Um par de secas e decididas batidas na porta interromperam
minhas observações. E num instante uma tímida e amarelada
candeia dissipou a penumbra. Por trás, mudos e reverenciosos,
dois criados. Um, o que trazia a lanterna, me pareceu familiar. A
considerável estatura e a chamativa e longa cabeleira loira me
transportaram para a torre Antônia, em Jerusalém. Sim, aquele
era o escravo gaulês que nos servira no triclinium ou refeitório
secreto e pelo qual Pôncio disse haver pago a nada desprezível
soma de mil sestércios (uns cento e sessenta e seis denários de
prata).
E como coisa habitual começou a abastecer os grandes falos
de argila espalhados pelo aposento e que faziam as vezes de
lâmpadas.
O criado mais baixo, sustentando uma bandeja repleta de
frutas, aguardou que o companheiro terminasse sua tarefa;
depois colocou em uma das mesas generosas rações de
tâmaras, pinhões, nozes de terebinto, amêndoas, figos secos e
tappuah (espécie de damasco anão, dulcíssimo, importado da
Ásia).
Então o gaulês, com uma ousadia quase insultante, observoume
da cabeça aos pés, deu uma volta completa ao meu redor e,

sem explicações, inclinou a cabeça e se retirou. O segundo
indivíduo examinou as condições do edredon e dos almofadões
que compunham o colchão da imensa cama e, satisfeito, seguiu
os passos do loiro.
Intrigado e um tanto ferido pela impertinente atitude do
criado cabeludo, inspecionei a suntuosa suíte no que dizia
respeito à segurança. Pôncio, na aparência, havia destinado
doze dePendências a outros tantos hóspedes. E cada uma
designada com o correspondente signo zodiacal.
Ao descerrar os cortinados, novo deslumbramento. Aquilo não
era só uma paixão. Aquele esbanjamento só podia ser fruto de
uma mente doente e alienada. Diante de mim surgiu um
dormitório de oito metros de largura, primorosamente revestido
de mármore vermelho. O teto era composto por painéis de
marfim. No centro do teto, em granito negro, um monumental e
fino relevo da suprema e universal deusa Ísis, ajoelhada e com
as asas abertas. Nos círculos iniciáticos, a irmã-esPosa de Osíris
era considerada portadora do segredo da vida e da
ressurreição. Para os egípcios, encarnava o símbolo de Virgem.
Mas a obsessão do governador por aquela miscelânea, pelo
sincretismo das religiões e das filosofias egípcia e romana ia
muito além. (Pouco depois eu descobriria que a autêntica
devota do Egito era sua esposa.) Na parede da direita
(tomada sempre como referência a grande cortina de seda cor
de romã), a metro e meio do solo, presidindo à cabeceira do
leito, havia quatro nichos que, à maneira de altares, guardavam
os deuses Protetores: o pilar djed, o cão Anúbis, uma figurinha
que não consegui identificar e Osíris, o deus dos mortos. E
imaginei que Pôncio não hesitaria em substituir os adicionais
lares ou deuses tutelares das casas romanas(26) por seus
primos, gênios egípcios.
O resto do refinado mobiliário era integrado por uma enorme
cama de dois por dois metros, uma mesa também de cedro
maciço, três tamboretes, um tabuleiro retangular de pedra
sustentado por uma coluna e um manequim em tamanho natural.
E ao terminar a inspeção minha surpresa só aumentou.

O leito, tal qual os utilizados em campanha por imperadores e
faraós, podia ser dobrado graças a dois sistemas de dobradiças
alojados na parte central do madeirame. O colchão de rede
metálica, tecido em resistente cânhamo, dava ao conjunto
grande flexibilidade. Completava o conjunto um leve edredon de
plumas e uma dezena de almofadões que, ao abri- los, me
deixaram assombrado. Todos estavam repletos de pétalas de
rosas, dessecadas, que perfumavam a cama discreta e
agradavelmente.
Só me decepcionei com o travesseiro. Em forma de sela de
montar, o arco destinado a acomodar a nuca era de marfim,
pintado em faixas paralelas vermelhas, pretas e marrons. E digo
que me decepcionei não pelo desenho ou pelo material, mas
porque evidentemente desconfortável. Ainda que a almofada
fosse conhecida, muita gente apreciava aquele tipo de apoio,
geralmente de pedra basáltica. Com o tempo acabaria
acostumando-me também a essas aparentemente antinaturais
almofadas. E ainda que não pretenda adiantar
acontecimentos, lembra-me agora a profunda impressão que me
causou ver Jesus de Nazaré a repousar a cabeça em uma dessas
cilíndricas e escuras pedras vulcânicas.
Na parede da esquerda, sobre uma mesa muito parecida à
que acabara de conhecer na sala de despachos do governador,
havia um estojo de uns trinta centímetros de comprimento.
Examinei- o repetidas vezes sem conseguir adivinhar sua função.
Parecia um senet egípcio, uma espécie de jogo da glória.
Peões e caixa eram magistralmente esculpidos em ébano e
marfim. E lamentei não haver recebido treinamento sobre esse
apaixonante capítulo.
Junto à mesma parede, rente ao cortinado, dava o tom ao
lugar a peça mais insólita: um manequim sem braços de um
metro e setenta centímetros de altura, de madeira estucada.
Pintura e maquiagem davam-lhe uma esquisita sensação de
vida. O corpo era pintado de rosa-carne e as pupilas, olhos e
sobrancelhas delicadamente desenhadas na cor preta. Uma das
orelhas tinha o lóbulo perfurado.

Veio-me pronto à memória a escultura do soldado núbio
aniquilada pela tatuagem. Envolto na luta dialética com
aquele energúmeno, esqueci-me de trazê-la de volta...
Dei de ombros. Duvido que a História a reclame.
Mas foi ao inspecionar a grande arca que decorava o lado
direito da cama que aquela louca idéia que me assaltara no
exame do mobiliário da sala de despachos ressurgiu-me com
renovada força, reabrindo a velha suspeita. O baú, de madeira
policromada, de uns quarenta e quatro centímetros de altura por
sessenta de comprimento e outros quarenta de largura, era
decorado com cenas em miniatura da guerra entre os sírios e o
faraó Tut-ankh-amon.
Não era possível. Não tinha lógica. Mas que havia, afinal, de
racional em toda aquela aventura? As duas vertentes da
cobertura abobadadas mostravam igualmente algumas
inconfundíveis pinturas com cenas de caça a antílopes, hienas e
avestruzes e várias feras fugindo do assédio da comitiva real. E,
para desfazer qualquer dúvida, a efígie do faraó, repetida
quatro vezes, esmagando seus inimigos sob as patas dos
cavalos e as rodas do carro.
Mas de novo me neguei a aceitá-lo. Aquela e as peças da
sala de despacho eram idênticas às descobertas na tumba de
Tut-ankh-amon. Mas se a memória não me traía, o histórico
achado ocorreu nos primeiros anos do século XX. Cem anos
depois da fundação da Egitologia por Champollion, lorde
Carnavon, sua filha Evelyn e Howard Carter chegaram
maravilhados ao faustoso sepulcro do jovem rei egípcio. E voltei
a perguntar-me: se a tumba estava selada no momento da
abertura, como explicar a presença de componentes dela no ano
trinta da nossa era e na longínqua Cesaréia? Só encontrei uma
explicação. Mas, como já disse, tão fantástica que a rejeitei de
vez.
Se as peças existentes na fortaleza do governador da Judéia
procediam da tumba de Tut-ankh-amon, que foi que Carnavon e
sua equipe descobriram? Houve duas sepulturas gêmeas?
Aceitando a descabelada hipótese, qual a autêntica? A múmia

depositada no terceiro sarcófago e trazida à luz pelos
arqueólogos em novembro de 1922 era de Tut-ankh-amon?
Então eram falsas as peças de propriedade daquele louco? A
verdade é que, conhecendo os freqüentes assaltos ao Vale dos
Reis, a teoria de uma dúplice tumba também não podia ser
descartada. O faraó certamente sabia dessa profanação. Quis
assim enganar os profanadores? Eu precisava resolver a
mortificante incógnita. Tinha de interrogar o governador sobre a
procedência do tesouro. Como e onde o havia conseguido?
Necessitado de um derivativo, aproximei-me do tabuleiro
retangular de pedra que sustentava uma bandeja de frutas.
Faminto, tratei de alimentar-me.
Obcecado pela charada de Tut-ankh-amon, quase me esquecia
de explorar o último cômodo.
Surpresa? A essa altura supus que nada mais me assombraria.
Novo equívoco. Na parede oposta ao cortinado via-se uma
miúda, grácil e misteriosa porta branca. Ao transpô-la, uma brisa
suave agitou a meia dúzia de flâmulas que pendiam das
paredes.
Bendito Deus! A sede de luxo do governador era insaciável. A
sala, eufemisticamente conhecida como lugar secreto, reunia
uma mescla de banheiro e terraço. Em seus oito por quatro
metros encontrei muito mais do que hoje (em pleno século XX)
poderia achar em qualquer hotel ou mansão de cinco estrelas.
A parede voltada para o lado leste e que ficava em frente à
porta era em realidade uma belíssima e delicada sucessão de
vitrais, separados entre si por sete colunas de pavonazzeto (um
frágil mármore frígio com raias pretas). Cada uma das seis
folhas havia sido elaborada com vidros coloridos que
representavam atribuições e simbolismos de Virgo: o número
seis, o fogo, o selo de Salomão, a água, os seis triângulos
eqüiláteros desenhados em um círculo e o laço de Ísis, garantia
de imortalidade.
Todas permaneciam abertas, brindando o hóspede com a
rutilante visão de uma Cesaréia iluminada por centenas, talvez
milhares de tochas. O resto era neve. Paredes, teto e solo,

revestidos de mármore fenício branco como o nácar, como que
tremulavam ao refletir as inquietas e amarelecidas chamas das
lanternas.
E sobre o piso um fofo e acariciante tapete de pele de lontra.
Uma? A peça, de quatro por cinco metros, devia ostentar ao
menos vinte peles daqueles mustelídeos, tão abundantes no
Jordão e no vale de Hule.
Do lado esquerdo aquele sibarita colocou uma enorme
banheira circular de três metros de diâmetro, provida de
degraus e feita de um bloco maciço de mármore de Carrara. As
duas torneiras eram de ouro e esculpidas em forma de falo.
Mais uma vez aturdido, li em cada uma: Água doce... Água
salgada...
Eu já tinha conhecimento do excelente sistema de águas e
esgotos da cidade,(27) mas aquilo, em grego e latim, era
demais. Manipulei as torneiras e confirmei: jatos diferentes de
água marinha e potável jorraram com força na banheira.
Demais? Não, ainda faltava o melhor.
A meio metro de altura da banheira, formando esquadria,
embutidas nas paredes, duas estantes de mármore também
branco, com trinta ou quarenta recipientes de todos os
tamanhos e formas imagináveis: de alabastro, marfim, osso,
bronze, argila e prata. Conteúdos: azeites, ungüentos e
essências para serem usados depois do banho. Pôncio não
ligava a gastos. Ali podia-se desfrutar o caríssimo bálsamo de
Jericó e Ein Gedi, na orla ocidental do mar Morto; podia o
hóspede escolher entre uma enorme variedade de gálbano,
cremes contra rugas, nardo, incenso, aloés, canela, alfena,
tintas para os cabelos brancos,(28) substâncias hidratantes e
de limpeza da pele e uma coleção de perfumes que não pude
identificar.
Em caixinhas de obsidiana e vidro, estrategicamente
espalhadas, o borit (um sabão feito com cinzas de plantas
aromáticas e potássio), pedra-pomes, cimelou (outra pedra
calcária rica em barrilha) e esponjas cinzentas do mar Vermelho.

A parte restante daquela parede da esquerda era ocupada
por um grande armário duplo. Na parte inferior se guardavam os
lenços de algodão utilizados como toalhas, delicadamente
dobrados e salpicados com bolinhas de menta. Ao abrir-se as
portas de cima estava-se diante de um soberbo espelho de um
metro quadrado, de bronze polido, no qual estava gravada uma
fina e quase imperceptível cena: duas jovens nuas banhandose.
Uma delas, Lara, a divindade etrusca.
Pendentes das prateleiras laterais, os estrigilos, ganchos
metálicos empregados para raspar a pele antes do banho.(29)
Ao fundo, sob o espelho, uma primorosa caixa de higiene de
madeira de cipreste, revestida de lâminas de marfim. Em oito
compartimentos achava-se o necessário para os cuidados do
cabelo e da barba, pintura para olhos e rosto, instrumental de
depilação e pentes contra parasitas. Depois, um espelho de
mão de prata polida e com cabo em forma de talo de papiro;
uma coleção de escovas e frisadores para o cabelo; espátulas,
pincéis, pinças e facas para a depilação e pentes de duplo uso,
de concha e madeira de sândalo. (De um lado, os dentes mais
abertos para o penteado; do outro, uma fileira mais compacta
para catar piolhos.) Os produtos de maquiagem estavam
acondicionados em xícaras sem asas ou tacinhas de vidro.
Suponho que nada faltava: antimônio, fuligem, galena,
malaquita, kohl e lápis-lazúli para os olhos, cílios e pálpebras;
extrato de murex e algas para os lábios e unhas; cera para dar
brilho e firmeza aos complicados penteados; cremes para
máscaras noturnas e diurnas,(30) emplastros contra as rugas e,
(31) em suma, toda uma série de pós de origem mineral e
vegetal para o bronzeado artificial da pele.
Mas, como já disse, ainda não havia visto tudo. A grande
surpresa me aguardava no canto oposto, à direita da porta. E a
verdade é que, ao ver aquilo, não soube se ria ou chorava.
Não havia dúvida: Pôncio desvairava...
Nesse canto, iluminado por três tochas, vi algo que no
primeiro momento confundi com um altar. Um altar no lugar

secreto? Mas logo percebi o engano. Sobre um pedestal de
alvenaria de dois metros de largura por um de altura, revestido
de granito preto e provido de degraus para a frente, aquele
gênio colocou a estátua de um anão. Pelo menos foi o que me
pareceu a julgar pela anatomia.
Tratava-se de uma escultura de madeira policromada. O
suposto ídolo sentava-se à turca e com um sorriso malévolo
que enchia o rosto redondo e bochechudo. Tinha certa
semelhança com a escultura do grupo egípcio de Seneb, o anão,
e sua esposa.
Ao notar um orifício de quinze centímetros, aberto entre as
curtas pernas cruzadas do anão, veio-me a explicação da
verdadeira natureza da peça. Eu estava diante, mesmo, da
mais insólita latrina que havia visto em minha vida. O hóspede
daquela extravagante suíte devia sentar-se sobre as pernas do
anão e satisfazer suas necessidades fisiológicas.
Quanto aos braços articulados, qual seria a sua função?
Também estaria explicada num instante. Bastava mover o da
direita para a frente para que o interior do pedestal fosse
inundado por quatro potentes jatos de água salgada. O
esquerdo, ao ser puxado para a frente, punha em funcionamento
um engenhoso mecanismo que liberava uma fragrância de
essência de lírios.
Mas não era tudo, no invento do governador...
Ao observar o corpo vermelho do anão achei o que me parecia
a explicação para aquela figura concreta. No peito, em
caracteres latinos em relevo, lia-se um nome: Gávio Apício.
E ainda que de momento não me ocorresse quem era o tal
Apício, imaginei que a escultura tinha muito que ver com algum
inimigo de Pôncio. Uma brincadeira? Uma vingança? Uma coisa e
outra se encaixavam na sinuosa mente daquele maníaco.
No meu regresso ao módulo, Papai Noel ofereceu uma
possível solução para o enigma. Ao tempo de Augusto e Tibério,
parece, viveu em Roma um excêntrico milionário, M. Gávio
Apício, tão famoso por sua fortuna como por seus desperdícios.

(32) O sujeito, de vida escandalosa e refinada, acabaria
convertendo-se em um mito, invejado e odiado na mesma
proporção. E supus que sua presença no lugar secreto
obedecia a uma dessas razões. Ou às duas, quem sabe? Para a
limpeza final, o hóspede dispunha de um sistema, último grito
da moda escatológica, que fazia furor entre os patrícios e
classes endinheiradas: do punho direito do tal Apício pendia um
pequeno cubo de couro com uma boa reserva de papiros.(33) E
logo descobri atônito que a maior parte deles trazia as mais
incríveis e grosseiras frases. Algumas, impossíveis de reproduzir,
rezavam textualmente, em grego ou latim: Para Apício...
Para Macro e seu chefe...(34)
Para Crono: devora-o se puderes...
E uma me intrigou especialmente:
Para Jasão e os malditos sonhos da leprosa...
Jasão? Evidentemente não podia tratar-se daquele estupefato
grego da Tessalônica, ou seja, eu. A quem aludia então a
carinhosa dedicatória? E quem era a leprosa? Nessa mesma
noite teria o esclarecimento.
Mas a alienação do governador não parecia ter limites. Meu
assombro, também não. Não bastassem os papiros manuscritos,
e suponho que para estimular a morbidez do hóspede, Pôncio
instalou junto ao altar um pequeno escritório, com outro
arsenal de folhas e os respectivos tinteiros e cálamos. Dessa
forma podia o convidado dedicar-se à vontade às suas
pequenas ou grandes vinganças.
Cuidadoso com os detalhes, Pôncio, por fim, pensou na
hipótese de que o inquilino da suíte fosse mulher. Foi o que
deduzi ao examinar um segundo cubo amarrado no punho
esquerdo do disforme Apício. No interior encontrei várias
compressas de linho ou de uma mistura de algodão e linho.
Esses panos, utilizados pela maioria das judias ou gentias
durante a menstruação, diferiam dos habituais pelos luxuosos
cordões que serviam para prendê-los, amarrando-os à cintura ou
à roupa interior.

Junto com as compressas um recipiente de vidro que me
deixou não menos espantado ao abri-lo. Contei quatro
preservativos de tripas de animais (possivelmente gatos e
porcos) e lubrificados com azeite.
Atordoado com tanta excentricidade segui o conselho de
Civílis. Durante um bom tempo fiquei na banheira, desfrutando
um banho bem relaxante. E devo ter dormido porque ao voltar
para o dormitório notei que alguém havia estado ali. Sobre a
cama e vestindo o manequim havía diversas túnicas com os
cintos e dois pares de sandálias sem uso. As finas vestes, de
linho âmbar uma e a outra de leve seda azul-celeste, ajustavamse
ao meu talhe como se feitas sob medida. Então me lembrei
da petulante atitude do escravo de luminosa cabeleira loira.
As sandálias, de couro de vaca, eram outra especialidade do
refinado Pôncio. Fiel à moda, presenteou-me com um modelo
que eu já tivera ocasião de ver na breve visita do Mestre a
Herodes Antipas em Jerusalém. Para eliminar o desagradável
odor da transpiração, sobretudo em climas quentes como o de
Cesaréia, os engenhosos sapateiros judeus e sírios
aperfeiçoaram aquele tipo de calçado com uma série de
almofadinhas impregnadas de mirra. O peso do corpo fazia o
resto. Os vaporizadores expeliam a cada passo invisíveis
nuvens de perfume, envolvendo o indivíduo em uma
reconfortante atmosfera.
Escolhi o linho e minhas próprias sandálias, as eletrônicas. A
perda do par havia sido irreparável.
Muitas das futuras missões deviam ser controladas por Eliseu
por meio de um dispositivo alojado nas solas. As conexões
laser, sobretudo, eram vitais.
Hesitei. Levaria o cajado? Não sabia que gênero de jantar me
esperava.
Prudentemente, amparando-me na minha qualidade de
áugure, decidi não me separar dele. E a escolha, como
veremos, não foi acertada...ou sim.
Prendi a bolsa imperméável no cinto cor de romã e,

extraordinariamente descansado, me preparei mentalmente para
o novo salto. Uma aventura que também não esquecerei
facilmente.
Pontual, obedecendo ao combinado, o primipilus apareceu no
meu alojamento com as primeiras estrelas. Sua roupa era a
mesma. Isso me tranqüilizou. A ceia devia ser íntima.
Pura ilusão...
Ao entrar no triclinium (o grande refeitório), pensei que me
havia enganado de novo. O centurião-chefe da coorte me
conduziu em silêncio à parte al ta da fortaleza. Depois de
atravessarmos um pátio ou presídio entramos por uma porta
pesada, de bronze, guardada por dois soldados armados.
E continuaram os sustos. Eu devia ter imaginado. A suíte era
um inocente jogo ao lado daquele como qualificá-lo? -
faraônico?, revolucionário?, psicótico recinto? Felizmente fomos
os primeiros, o que me permitiu examiná-lo e formar uma idéia
do lugar, sabendo como proceder, além disso, numa emergência.
Por onde começar?
Poderia dizer que o triclinium, a mais nobre e cuidadosa parte
da residência,(35) foi concebido com um ar tão modernista
que teria impressionado os arquitetos da nossa época. A
parede, de uns três metros de altura, revestida de massa de cal
hidratada, formava um círculo espetacular: cinqüenta metros de
diâmetro! Civílis, zombando do meu visível assombro, retirou-se
para o fundo, onde estava uma enorme mesa repleta de
manjares. E eu, provavelmente com cara de estúpido, me
mantive junto ao portão de bronze.(Uma entrada que utilizarei
como referência).
Por cima da parede circular, ainda que não encravados nela,
arcos metálicos quase milagrosos voavam de um extremo ao
outro, suportando um teto abobadado e composto por pequenos
painéis de um caro e raríssimo material denominado pedra de
sangue.(Um clorite de um belo verde-maçã com incrustações de
jaspe cor de sangue.) Placas que só podiam provir da remota
região vulcânica do Deccan, na península de Kathiawar, na

Índia.
A princípio não entendi porque os tirantes de metal não
estavam presos no alto da parede. Pareciam flutuar por trás
dela, ligados a alguma coisa não visível do piso do triclinium.
Depois, no transcurso do agitado banquete, Pôncio se
encarregaria de revelar o mistério.
O imenso refeitório abria-se no lado oeste. Em frente ao
portão de bronze, a longa parede era rasgada por uma janela
de dimensões igualmente imperiais: trinta metros! Toldos de
franjas vermelhas e brancas, enrolados em longas varas,
permitiam fácil fechamento. O panorama do mar era magnífico e
a orientação, nada menos que perfeita.(36) No centro
geométrico da sala, outro capricho do governador: do alto da
cúpula precipitavam-se em uma concha de mármore rosa de um
metro de altura três grossos jorros de água. Aquele castelo
aquático superava em vistosidade e arrojo o célebre de Side e
o septizônio de Séptimo Severo, em Roma.
Ao caminhar para a concha senti que o solo rangia sob meus
pés.
Assombroso! O piso era uma praia artificial, pacientemente
montada com cacos de brilhantes conchas marinhas, todos,
absolutamente todos brancos.
O castelo de água, cujo sistema de bombeamento não
consegui descobrir, era alimentado pelo mar. E apesar da altura
de que a água se precipitava (em torno de dez metros), a
estrutura côncava da concha impedia que transbordasse. Tive de
reconhecer, uma vez mais, o pouco que sabia daquela civilização
romana.
Ao redor da cascata, vários criados instalavam uns trinta
triclínios, os longos sofás sem espaldar nos quais se recostavam
os comensais. (O nome de triclinium, que geralmente se dava
ao refeitório, procedia desses sofás. Originalmente, entre os
gregos, cada mesa [cline] era rodeada por três desses
assentos. Daí a designação de triclínio. Com o tempo, todavia,
o costume foi perdendo-se e as salas de banquetes acabaram
reunindo um número ilimitado de triclínios. Também as mulheres

deixaram de comer sentadas, como mandava a tradição,
adotando o costume masculino: recostadas e com as pernas
pendendo pela parte posterior.) Aquilo me deu uma idéia do
número de convidados para o banquete de aniversário de
Cláudia Procla.
À esquerda da concha (sempre olhando-se do portão de
bronze), separado do resto, foi preparado o triclínio
presidencial. Provavelmente o do anfitrião. Os outros vinte e
nove compunham um bojudo U em torno do castelo.
Prossegui nas minhas observações, cada vez mais curioso, e
minha atenção foi despertada pelo recheio dos almofadões.
Não continham plumas ou pétalas de rosas. Apalpei-os e
percebi que o couro, suave, resistia. Um dos criados, ao
perceber o meu achado, sorriu. Na verdade os almofadões
eram inúteiS.
Como veremos mais adiante, aquilo também tinha sua razão
de ser.
Pôncio, parece, desejava divertir-se e fornecer diversão. ; Daí
a pouco estava eu diante da jóia do lugar. No rigoroso
treinamento que precedeu a Operação, recebemos noções sobre
instrumentos musicais da época. E soube da existência daquele
prodigioso aparelho. Mas uma coisa era dar e documentar-se;
outra, bem diferente, contemplá-lo.
Maravilhoso! Simplesmente maravilhoso! Entre os triclínios que
formavam a base do U e a parede da direita, como um desafio
ao errôneo conceito do homem do século XX sobre aquelas
civilizações supostamente atrasadas, erguia-se um exemplar do
chamado hydraulis, um órgão hidráulico de três metros de
altura, com vinte e um tubos de estanho e uma extraordinária
maquinaria. Fiquei tão surpreendido que durante uns minutos
somente tive olhos para o curioso ancestral dos nossos
órgãos.
Como teria chegado até a fortaleza? A julgar pelo luxo que
cercava o governador, a pergunta não tinha fundamento. Era
mais do que provável que o hydraulis, inventado no século III

a.C. Por Ktesibios, engenheiro fixado na cidade egípcia de
Alexandria,(37) fosse um divertimento bastante comum entre os
potentados do império.
Insisto: sabemos pouco a respeito da forma de vida e do
conforto desses povos...
Antes de examinar as misteriosas pinturas que decoravam a
parede esquerda do triclinium aproximei-me, não menos
surpreso, da escultura que montava guarda às costas do sofá
presidencial.
O ventre avultado, os amplos quadris, o rosto fino e
pontiagudo... Não estava certo mas me recordou outra das
célebres estátuas egípcias. Mais precisamente, uma peça
depositada no museu do Cairo. Autêntica? Não sei dizer. A
escultura, em calcário, representava o rei Akhenaton, o here
da XVIII dinastia, com mitra azul e sustentando nas mãos a
bandeja das oferendas sagradas. Ali, porém, o irreverente
Pôncio a havia destinado a um uso muito menos místico. As
oferendas consistiam em taças de prata e longos recipientes
de alabastro. Botijas para vinho, supus. Akhenaton convertido
em armário-bar! Civílis, com uma jarra entre os dedos,
continuava me observando de uma mesa junto à grande janela.
De súbito irrompeu no triclinium um segundo grupo de escravos.
Vestiam o mesmo uniforme dos primeiros: túnica curta, até a
metade da coxa, sem mangas e de uma vistosa cor de açafrão. A
entrada e a saída, no refeitório, eram feitas por um curioso jogo
de duas portas, muito próximas à extremidade direita da quase
interminável mesa. Na parte superior delas estavam pintados
rabinos judeus nus, de frente e de costas, marcando as direções
de entrada e saída para os criados.
Uma vez transpostas, molas as devolviam à posição natural,
fechadas.
Aquela meia dúzia de servos, trazendo lâmpadas de longo pé
metálico, foi diretamente ao U e distribuiu as tochas entre os
sofás.
Um indivíduo com uma túnica do mesmo corte, mas de cor
marfim, vigiava rigorosamente os silenciosos criados. E cada

triclínio recebeu uma daquelas lanternas, providas, como disse,
de uma haste de ferro de metro e meio de altura. E imaginei
que o severo sujeito que dirigia a criadagem era o tricliniarcha,
uma espécie de maitre ou mordomo, responsável pela cozinha e
o perfeito andamento do banquete.
Com as trinta novas candeias, o recinto, já iluminado por
sessenta tochas penduradas ao longo da parede circular, ficou
simplesmente fulgurante. E as miríades de jaspe vermelho da
abóboda tremeluziram como um segundo firmamento.
Tudo, ao que parecia, estava pronto para o festim. Uma
celebração, como não tardaria em comprovar (e padecer), no
mais puro estilo romano. Pressentindo que Pôncio e seus
desconhecidos convidados apareceriam de um momento para o
outro, apressei-me a dar uma vista de olhos aos grandiosos
murais que adornavam o semicírculo esquerdo do triclinium. E à
medida que os inspecionava sentia-me cada vez mais
perturbado.
Aquilo não podia ser casual. Nem mesmo fruto da calorosa
imaginação de um artista.
Parei um pouco para serenar-me e voltei a examinar os murais.
Em um arco de sessenta metros (quase a metade do
triclinium), magistralmente pintadas sobre estuque e na
complexa técnica do afresco, cinco cenas aparentemente
relacionadas. A última, já próxima do portão de bronze, ainda
estava em fase de execução, apenas esboçada a carvão sobre o
segundo suporte de cal hidratada.(38) Provavelmente, em uma
nova sessão o pintor a acabaria.
O primeiro dos afrescos, à esquerda da grande janela, foi o
mais fácil (?) de interpretar. E eu, repito, tornei a experimentar
uma incômoda sensação. No seu gélido brilho, entre vermelhos
gritantes de cádmio, pretos-martes e alquímicos, azuis-ultramar,
brancos-alpinos, verdes-mata tostados, identifiquei um velho e
familiar herói mitológico: Jasão, príncipe de Tolco.
O mito da Tessália, como narra a lenda,(39) calçado com uma
só sandália, matava com sua lança uma monstruosa serpente. Ao

fundo, pendurado a uma árvore, o famoso uelocino de Ouro. E
junto a Jasão a feiticeira Medéia, sua namorada.
Mas o que mais me impressionou foi a cabeça do réptil. O
artista a substituíra por outra perfeitamente reconhecível: a de
Pôncio. Jasão matando o governador.
No meu regresso da Palestina de Jesus de Nazaré creio haver
interpretado a cena. A morte do dragão era um símbolo. E
suponho que o hipotético leitor deste diário não terá
dificuldade para perceber a que gênero de morte me refiro.
A imagem de Pôncio esboçada nestas pobres páginas
constitui um golpe mortal em quantas versões sobre sua
personalidade já circularam pela História.
Bem, e qual seria a origem dessa inspiração? Como explicar
a figura do simbólico Jasão pintada naquela parede? Ninguém,
em Cesaréia, conhecia minha verdadeira identidade nem os
autênticos motivos da minha presença em Israel. Senti-me
estremecer.
Mas tudo ali tinha sentido. A explicação chegaria pela mão de
um personagem tão singular quanto desconhecido. E ao
encontrar a solução, como sucedera ao Pôncio do afresco, o
enigma me feriu de morte...
A cena seguinte, sem dúvida, foi mais pesada e
surpreendente. Em especial pelo insinuado na arma de um dos
protagonistas. E quando me dei conta, uma anestesiada
angústia se apossou de mim.
Em um azul-cerúleo dominante, levemente salpicado por
nervosas pinceladas em ocre-trigo, preto-petróleo e vermelhosangue,
o enigmático pintor havia recriado a imagem de Jasão,
acompanhada agora de um Pôncio totalmente nu.
Ambos, de joelhos, devoravam ansiosamente um terceiro
indivíduo, que, com a cabeça voltada para o espectador, sorria
cinicamente.
Sua mão direita empunhava uma longa foice.
Ao ler a legenda escrita sobre o cutelo meu coração se

deteve.
Impossível! Aquilo só podia ser um pesadelo. (E eu estava
certo).
Em números romanos e caracteres latinos lia-se: Três mil
dias.
Aquele terceiro personagem, devorado pelo governador da
Judéia e por um herói de uma só sandália, era Cronos, deus do
tempo.(40) Minhas suspeitas se veriam confirmadas pouco
depois por essa interessante pessoa a que aludi anteriormente.
A intuição me pusera no caminho certo. Mas como era possível?
Quem sabia? Instintivamente associei a macabra cena à minha
própria tragédia. Também pensei entender a do governador,
ainda que não estivesse tão certo. O que o instinto me ditou
foi: Tanto Pôncio quanto Jasão (o mitológico e o de carne e
osso) venceriam o tempo. Os dois primeiros passaram à
História.
Devoraram Cronos. O terceiro, o Jasão da Tessalônica, à
sua maneira, também dominou o tempo e talvez faça história,
não nos calendários, mas nos espíritos. Mas aquela vitória
encerrava uma segunda leitura. Menos importante mas
igualmente dramática. Assim, pelo menos, a interpretei.
Como não podia deixar de ser, Cronos acabaria por vingar-se.
O descarado sorriso não deixava dúvida. E o prazo para a
mortal desforra estava sinistramente marcado na simbólica e
implacável foice: Três mil dias. Em outras palavras, nove anos,
aproximadamente.
E uma velha companheira, uma angústia desterrada a duras
penas no mais profundo da alma, se me apresentou, não menos
sarcástica. A grave doença de que padecíamos, conseqüência
das inversões de massa, havia fixado nossa expectativa de vida
justamente, e casualmente (?), nesse limite. Casualidade? Era
aquilo outra casualidade? Categoricamente, não. Atrás dos
murais, como veremos, aninhava-se algo que anulou meus
esquemas...
Quanto a Pôncio, pelo que deduzi, nunca soube nem

suspeitou do caráter premonitório daquela pintura. O aviso,
todavia, também lhe dizia respeito.
Essa foi a minha interpretação.
Embora, como já disse, não dispomos de dados concretos e
confiáveis sobre seu possível suicídio, é verossímil que tivesse
morrido nove anos depois daquele histórico 30 de nossa era. De
uma coisa estamos convictos: o governo desse psicopata
encerrou-se bruscamente no final do 36. Devido à matança de
samaritanos de que já falei, Vitélio, legado de César na Síria,
ordenou a remoção de Pôncio para Roma. E sabemos igualmente
que o imperador Tibério morreu no decurso dessa viagem,
precipitando a sorte do governador da Judéia. Pois bem, se a
morte do velhinho ocorreu em 16 de março de 37, isso quer
dizer que Pôncio chegou à capital do império pouco depois.
(Naquela época, entre 10 de novembro e 10 de março, o tráfego
marítimo pelo Mediterrâneo ficava praticamente paralisado
devido às más condições meteorológicas. As viagens, por isso,
se faziam por terra. Levando-se em conta que a distância entre
Cesaréia e Roma exigia pelo menos cinqüenta e quatro dias de
viagem, Pôncio teria partido da Palestina aí por janeiro ou
fevereiro desse ano de 37. Só assim se explicaria que chegasse
depois da morte de Tibério.) Para sua desgraça, o sucessor de
Tibério seria Caio César, conhecido por Calígula e Botinha. E,
como já foi dito, o ex-governador acabaria desterrado.
Aceitando-se que a ordem fosse firmada ao longo desse ano de
37, a presença de Pôncio nas Gálias pode ter-se dado entre 37
e 38. (Algumas tradições indicam a atual Suíça como a região
em que se instalou e se matou.) A questão é que, curiosamente,
no primeiro trimestre de 39 se completaram os três mil
vaticinados no afresco de Cesaréia.
Quem sabe algum dia as descobertas arqueológicas ou
documentais permitirão esclarecer a data precisa da morte
desse maníaco-depressivo, confirmando a minha versão e
abençoando a premonição que tive a fortuna de contemplar?
Seja como for me pergunto: se o artista ou sua fonte de
informação acertou no vaticínio sobre Jasão e seus três mil dias,
por que duvidar do prazo marcado para o desaparecimento de

Pôncio? A terceira pintura aludia ao governador, quase
exclusivamente. E digo quase porque quando consegui decifrála
descobri, emocionado, sob o sim bolismo, a estrela de outro
Personagem muito querido...
Em uma cadeira transportável, tipo curul, usada geralmente
pelos romanos para distribuir justiça, o pintor havia retratado
um Pôncio menino, com expressão e vestes de louco.
Parece que alguém mais partilhava comigo a certeza da
enfermidade mental do governador. O incrível é que o suspicaz
e agressivo Pôncio houvesse admitido semelhante insulto na
parede do triclinium, à vista até de estranhos.
Também havia uma explicação, muito típica de um ser
escravizado às superstições. O menino, deformado por um rosto
de adulto, mostrava-se encolhido, temeroso e quase perdido na
enorme cadeira. Vestia túnica vermelha e um estranho toucado
amarelo e no pescoço trazia um colar ou renda azul com
cascavéis brancas rajadas de preto e atadas aos pés
ensangüentados.
As mãos eram garras. Provavelmente de crocodilo. A direita
empunhava um rolo de papiro. A esquerda segurava um
recipiente de vidro transparente, semelhante a um vaso e
aparentemente vazio.
Os olhos salientes do menino, aterrorizados, fixavam o vaso.
Melhor dizendo, uma diminuta figura alada, sem cara (uma
espécie de fada) sentada à borda do vaso.
A princípio não fui capaz de descobrir o significado daquela
pintura, verdadeiro criptograma. Minutos depois, no transcurso
do jantar, esse alguém responsável, como já disse, pela
inspiração, esclareceria o mistério. E entendi o certeiro
alcance da cena em geral e da suposta fada em particular.
Para facilitar a narração adiantarei o que me foi revelado a
respeito. Aquele Pôncio simbolizava bestialidade (garras de
crocodilo), irresponsabilidade (vestimentas e adornos de louco)
e inconsciência (aspecto de menino). Quer dizer, alguém
malvado e irrefletido o suficiente para abrir o perigoso vaso de

Pandora, outro dos mitos clássicos.(41)
O trono da justiça e o papiro, segundo meu confidente,
simbolizavam um fato concreto da vida do governador.
Um acontecimento que eu mesmo presenciei, aliás, na manhã
de sexta-feira, 7 de abril: o simulacro de julgamento de Jesus de
Nazaré por Pôncio e a nota com a advertência de sua esposa
aconselhando-o a absolver aquele Justo.
E numa pirueta mágico-simbólica, a chave da pintura: a
pequena criatura alada sentada à borda do vaso. Apesar de sua
carência de noção de justiça, debilidade e delírio, Pôncio, sem o
saber, estava propiciando a aparição no mundo da Grande
Esperança.
Certamente meu informante não teve a percepção do enorme
valor esotérico do que lhe foi ordenado pintar. Simplesmente se
limitou a cumprir fielmente a ordem. Ou a teve em parte: o
papel desempenhado pelo governador no acontecimento. O
simbolismo do vaso de Pandora,I) todavia, passaria
inadvertido.
Do penúltimo quadro, além de descrevê-lo, pouco posso dizer.
Nem a pessoa que o ditou soube dar-me a razão, nem eu
próprio consegui decifrar seu enigmático conteúdo. Eliseu, meu
irmão, trabalhou por meses tentando decifrar a indubitável e
simbólica mensagem, e fracassou. Talvez algum outro perito ou
iniciado, ao ler estas linhas, tenha mais sorte do que nós.
Aquele afresco era dominado por uma tormentosa combinação
de brancos espumantes, vermelhões solares, azuis submarinos e
pretos funerários. Em primeiro plano, sobre uma pira mortuária,
vislumbrava-se com dificuldade a figura de um homem. E digo
com dificuldade porque aquele cadáver estava sendo
incinerado. O rosto certamente não pertencia a ninguém que eu
conhecesse. O semblante expressava uma intensa paz. Na
verdade, em vez de morto, parecia adormecido. As chamas, altas
e de um vivíssimo vermelho, chegavam praticamente ao céu.
O indivíduo, nu, trazia na mão o que me pareceu um coração.
À direita da pira, de frente, o artista havia representado um

segundo e não menos misterioso personagem: uma mulher
jovem, de cabeleira negra, vestida com uma longa túnica branca
e trazendo nas mãos um pergaminho aberto. Tinha os olhos fixos
no rolo. E parecia evidente que o lia com atenção. Um pranto de
cor azul escorria-Lhe pelas faces e vestes até fundir-se com o
solo. Um solo que parecia ser o mar. E tive a impressão de
que lágrimas e mar formavam um todo.
Ao ler o título escrito no pergaminho a minha confusão foi
total. Aquela repetição, precisamente, explicaria nossas
sucessivas tentativas de penetrar o irritante criptograma. No
primeiro momento imaginamos que poderia guardar relação com
nossas próprias pessoas ou com o governador. Mas, como disse,
o mistério permaneceria indecifrável.
Três mil dias. Assim dizia a legenda.
Aquela loucura estava a ponto de perder-me. O fundo do
enorme mural era um firmamento (?) fechado e brilhante, com um
gigantesco sol nascente (?) E no interior do disco, cinqüenta e
oito pequenos círculos, todos de um branco prateado; e no que
ocupava o centro geométrico do suposto sol, três palavras.
A primeira em aramaico e as duas outras em latim: Ab-bã
janua vié. Tradução: Pai: porta da vida. A insólita combinação
me deixou perplexo. Era a primeira vez que via, em uma mesma
frase, conceitos pertencentes a culturas tão diFerentes e todavia
magistralmente reunidos. Mas havia algo mais naquele título.
Algo sutil que nos remeteu de pronto à filosofia do Filho do
Homem. Como creio haver dito, Jesus de Nazaré era um
enamorado, um entusiasta dessa palavra: Ab-bã. Um termo
que, para o Mestre, significava muito mais do que pai. O
sentido exato era o de papai, mas dirigido a seu Pai Celestial.
Um Papai - Deus e porta da vida...
Para mim, depois de caminhar com o Galileu durante tanto
tempo, a expressão tinha um profundo e esperançoso
significado. E evidentemente também para o desconhecido que
ardia na pira funerária. Mas quem era? Como eu disse, cada um
dos símbolos foi minuciosamente analisado. O Fato objetivo da
incineração nos fez descartar, em princípio, os judeus. Naquele

tempo, contrariamente ao costume dos romanos, os hebreus
sentiam autêntica repugnância pela cremação dos cadáveres.
(42) Isso ia contra suas crenças sobre a vida eterna. O morto
devia, pois, ser um gentio.
Talvez um romano.
Quanto ao coração na mão, todas as consultas foram inúteis.
Eliseu sugeriu uma hipótese que obviamente não passou
disso: talvez o artista quisesse significar que aquele homem,
por sua generosidade, trazia o coração não no peito mas na
mão.
Também a imagem da mulher não forneceu maior informação.
Só um detalhe parecia claro: vestia-se de branco, símbolo de
luto entre aquela gente. Tinha vínculo com o morto? Podia ser a
viúva? O pranto por si próprio expressava alguma relação
afetiva com o cadáver. Mas por que azul? E por que a Fusão das
lágrimas com o suposto mar?
Todas essas interrogações se avolumariam ao enfrentarmos o
pergaminho. Que havia no rolo desdobrado pela jovem? Por que
se repetia a trágica cifra? Que tinha que ver aquele indivíduo
com os três mil dias? Significava para ele o mesmo que para
Pôncio e para Jasão? O não menos enigmático sol (?), por
último, foi o remate.
Não houve forma de interpretá-lo. Com exceção das três
palavras, os cinqüenta e oito pequenos círculos resistiram a
todas as nossas tentativas.
Um sol nascente? Tratando-se da morte, também podia ser um
crepúsculo.
Cinqüenta e oito círculos rodeando a frase Papai (Deus):
porta da vida..., O círculo, em muitas mitologias, simbolizava
perfeição, poder divino, céu e tempo.
Tempo?
Entre os mesopotâmicos, por exemplo, foi uma medida de
tempo. Dividiram-no em 360 graus, agrupados em seis
segmentos de 60. Shar, justamente, queria dizer Universo.

Uma medida de tempo... Para que ou para quem? Que
segredo escondia aquela pintura? Talvez falasse dos anos
vividos pelo personagem da pira? Cinqüenta e oito? As dúvidas
só aumentavam.
Apenas as palavras do disco central se mostraram
relativamente acessíveis. Estava claro que refletiam uma idéia
capital para o protagonista da cena. Mas que pagão, naquele
tempo, adorava ou considerava um só Deus? Para dizer a
verdade, nenhum. Apenas os judeus professavam uma religião
monoteísta. Mas aquele, aparentemente, não o era. Ademais,
nenhum hebreu se atreveria a designar o sempre distante e
severo Yahweh com o carinhoso e familiar apelativo de Papai.
Como é sabido, nem sequer pronunciavam seu nome.
E uma pesada dúvida nos acompanhou pelo resto da missão.
Aquele gentio o homem do coração na mão, como desde
logo o batizamos devia ter conhecido o Mestre e seus
ensinamentos.
Mas por que foi imortalizado naquele triclinium? E,
principalmente, por que tive eu de saber de sua existência? Uma
coisa é certa: nada é casual...
E insisto: se as restantes pinturas encerravam inegável valor
simbólico, quase profético, por que duvidar da natureza
igualmente premonitória (?) do penúltimo afresco? Sei que
alguma coisa muito especial me foi mostrada pelo Destino (?).
Mas, como já disse, meu curto conhecimento não foi bastante
para o descobrir... por enquanto.
Quanto ao último esboço...
A verdade é que quase não pude fixar-me. Subitamente ouvi
música. Civílis cruzou o grande círculo apressadamente e se
reuniu a mim. Os soldados que faziam guarda ao portão de
bronze se enquadraram e, recolhendo os pilum, deram passagem
a um Pôncio sorridente e eufórico. E atrás, uns trinta convidados,
igualmente joviais, falantes e despreocupados.
O governador, ao ver-me, mudou de direção e, movendo-se ao
ritmo da música, aproximou-se de mim e me abraçou.

Depois, sem perder o compasso até ao castelo. Suponho
que enrubesci. E o centurião, divertido, o seguiu.
No primeiro momento, aturdido pelo gesto do governador,
não identifiquei claramente aquele repugnante cheiro. A cara de
Pôncio, é certo, apresentava uma grossa e leitosa maquiagem,
realçada por finas pinceladas verdes sob os olhos. Pouco
depois, Cláudia Procla satisfaria minha curiosidade. O
desagradável perfume emanava da máscara de seu marido,
elaborada com excrementos de crocodilo, outra das modas do
momento.
Fechando a comitiva, essa figura singular e desconhecida a
que venho me referindo: Cláudia Procla ou Prócula. Uma mulher
excepcional. Atrás dela dois criados atiravam sobre sua cabeça
pétalas de rosas e uma orquestra composta por meia dúzia de
músicos fenícios uniformizados com túnicas pretas tocava os
instrumentos que faziam furor no império: a kithara de sete
cordas, com sua grande caixa de ressonância;(43) a lira, feita
de uma carapaça de tartaruga toda sarapintada e dois chifres
de cabra;(44) o tricordon ou alaúde de pescoço longo de três
cordas; o duplo aulos, espécie de flauta frígia, de(45) som
doce e apaixonado, preso à cabeça pelas phorbeis ou correias
de couro, o tympanon ou pandeiro e as curiosas krotala,
pequenas castanholas de madeira surgidas séculos antes no
culto a Dioniso.
E ao som da alegre canção de Seikilos, um canto aos prazeres
e à vida breve,(46) entraram no fulgurante triclinium. Num
instante, a um sinal do mestre-sala, os criados de túnica
açafrão passaram a servir vinho. Feito assim o primeiro brinde,
no qual Cláudia pronunciou a obrigatória oração a seu lar: - Eu
te louvo, ajuda-me. Eu te ofereço, concede-me - o grupo, entre
risos e abraços, começou a felicitar a governadora. Entre os
assistentes, ainda que praticamente não chegasse a relacionarme
com eles nem guardasse seus nomes, contei uns doze
centuriões prior e três ou quatro decuriões, todos pertencentes
à coorte destacada em Cesaréia. Vestiam túnicas vermelhas e,
como o primipilus, traziam as armas regulamentares. O resto,
com exceção do tribuno responsável pelo regime da

administração das forças auxiliares, era formado por
funcionários, ricos proprietários das tabernae (as cadeias de
lojas), armadores, alguns comerciantes e abastados monopolei
(importadores e exportadores, geralmente de cereais e
matérias-primas). Não reconheci um só judeu.
E logo saberia por quê.
Incapaz de mover-me, fiquei a observá-los a distância. A
maioria vestia custosas túnicas de linho, tingidas de cores
cálidas. Pôncio, dando atenção a todos, havia mudado de
roupa, escolhendo para a especial ocasião um saio folgado ou
casaca de musselina semitransparente, de uma cor púrpura
quase violeta, podia-se dizer feminina.
A roupa chegava-Lhe aos pés e com isso dissimulava com
razoável êxito o pronunciado e bamboleante abdome. E,
coroando a minguada mas pomposa figura, a inseparável,
instável e escandalosa peruca amarela, com a não menos
inevitável e delatora cola preta escorrendo pela nuca.
Quase a totalidade dos convidados estava maquiada. Cútis
branqueadas com alvaiade ou mascaradas com espessos véus
de um kohl terroso e olhos cuidadosamente sombreados com
antimônio.
Entre flores, música, felicitações, vinho e risos, Civílis, com um
controle tão férreo quanto sutil de tudo quanto cercava o
governador, inclinou-se discretamente sobre Cláudia, em dado
momento, sussurrando-Lhe alguma coisa. E o olhar do centurião
para mim pôs-me em guarda. Suponho que ao ver-me solitário
quis corrigir a incômoda situação. E a mulher, girando a cabeça
em minha direção, atendeu à quase certa sugestão do
primipilus. O Destino (?) agia de novo...
Procla, concordando, separou-se do gruPo em que estava e
caminhou em minha direção. Sem pressa. Examinando-me. Ao
abordar-me, aquela frágil figura adiantou um cordial sorriso e,
com sua voz grossa, perguntou-me em um impecável koiné: - O
poderoso mago...?
Correspondi com uma leve e respeitosa reverência,

devolvendo o cortês sorriso. E me pus à sua disposição.
Aquela mulher, de uns quarenta anos, extremamente fina de
corpo e de uma estatura igual à do marido, era outro dos meus
objetivos em Cesaréia. Eu tinha de averiguar o conteúdo do
famoso sonho que, ao que tudo indica, a transtornou na noite
anterior à Crucificação de Jesus de Nazaré. Mas como fazer isso?
Pois ali mesmo, junto às misteriosas pinturas, o Destino (?) me
ofereceria uma oportunidade magnífica. Que aproveitei.
- Meu marido falou-me de ti...
Depois das primeiras frases de sondagem, Cláudia e eu nos
dedicamos a uma mútua, dissimulada e implacável análise.
Dada a minha pouca experiência de psicologia feminina precisei
de um tempo para entender a razão da exagerada maquiagem
que ocultava boa parte do seu corpo. Rosto e pescoço haviam
desaparecido sob uma tintura ocre. Até aí ainda posso dizer que
entendia. O inexplicável, porém, era que também braços e
pernas, que se viam através das finíssimas gazes e da saia de
baixo, estavam rebocadas com um barro avermelhado.
- Está entusiasmado contigo...
Uma peruca de tamanho natural enquadrava o estreito e
anguloso rosto. Os caracóis do cabelo, alinhados
horizontalmente, escondiam a fronte sob uma ampla franja,
caindo sedosos e brilhantes até os ombros, ao estilo da deusa
egípcia Hathor.
- Esse barro do mar de Asfalto foi o melhor presente...
Os grandes olhos, de um negro tição, pareciam notavelmente
maiores sob o sombreado verde de malaquita; e me chamaram a
atenção desde o primeiro momento. Apesar do aparatoso da
maquiagem pareciam ter luz própria, irradiando uma serenidade
que não encontrei em seu marido.
- Sei que és médico...
Os lábios finos, coloridos de vermelho, abriram-se mostrando
uma saudável fileira de dentes. Mas me pareceu ter captado
nesse momento um ricto de amargura. Não soube defini-lo. O
fato é que alguma coisa a atormentava.

- Diga-me, como está o imperador?
E quando ela ergueu a taça de prata que tinha entre os dedos
comecei a compreender o porquê daquela amargura. Acabou de
beber o forte e espesso licor e, voltando a aparentar
naturalidade, apontou para os murais na intenção de animar o
fraco diálogo.
- Jasão... É curioso...
Convidando-me a segui-la, caminhou até a grande janela,
deixando atrás de si um forte aroma de espicanardo, o
apreciado perfume hindu.
Olhando para o primeiro dos afrescos Jasão atacando a
serpente com sua lança -, repetiu o comentário: - Jasão!... Que
casualidade!
E o Destino (?), como eu dizia, abriu-me as portas do enigma.
Cláudia, amável e desejosa de agradar a tão poderoso
mago, imaginando que eu desconhecia o simbolismo das
esplêndidas pinturas, começou a explicar-me a legenda.
Deixei-a falar. A certa altura a interrompi e, aproveitando uma
deixa, completei a já mencionada história do príncipe de Iolco.
Impressionada, observou-me como só o fazem as mulheres: do
mais profundo do coração. E começou a perceber que aquele
médico, mago e áugure era muito mais do que dizia ser.
Mas antes de qualquer reação dela interroguei-a em seu
estilo. Aberta e diretamente perguntei pelo autêntico, pelo
significado oculto daquela cena. A que vinha a alteração no
dragão? Por que o artista havia substituído a cabeça do animal
pela de Pôncio?
Seus lábios tremeram. E a chispa dos olhos me atingiu.
Finalmente, guiando-se, suponho, pelo sempre certeiro
instinto feminino, confessou que aquele, e os demais quadros,
não eram simples pinturas decorativas.
Minha curiosidade e interesse cresceram. Que estaria ela
querendo dizer? Confiando na firmeza e transparência do meu
olhar, explicou timidamente que aquilo tudo fora vivido por

ela... em sonhos. E o mistério foi desfazendo-se quase por si
mesmo.
Os célebres sonhos de Cláudia Procla...
De acordo com suas revelações, cada uma das pinturas era o
reflexo fiel de um pesadelo. E, abalada, ainda desconhecendo o
significado da maioria, quis perpetuá-los, à espera de que
alguém pudesse decifrá-los.
Entusiasmado, tratei de aprofundar. Busquei detalhes que os
murais não mostravam. Possíveis erros. Contradições. Algum
sinal de patologia... Era uma pessoa normal? Sofria de
transtornos mentais? O interrogatório foi bastante esclarecedor.
Cláudia Procla, aparentemente, apresentava um apreciável
equilíbrio psíquico, sem sintomas esquizóides, sem dependência
alcoólica nem estresse emocional. Certamente não era o caso de
pensar em fármacos estimulantes atuando como fatores
precipitantes.
Epilepsia? Em tão curta entrevista não poderia chegar a um
diagnóstico. Mas sutilmente, com todo o tato, tentei descobrir
se seria vítima do mal sagrado.
Cláudia mostrou saber do que eu falava e negou
categoricamente. Jamais havia tido uma daquelas crises.
Nunca, após os pesadelos, despertara com mordeduras de
língua, cefaléia ou incontinência de esfíncteres. Também não
tinha consciência de episódios de violência durante o sonho.
(47) Tratava-se simplesmente de um típico fenômeno de
pesadelos vividos ou padecidos, segundo o ponto de vista.
Mais freqüentes nas mulheres adultas, esses pesadelos
costumam apresentar-se bem construídos, com um longo enredo
e um componente de terror que angustia o indivíduo e
geralmente o desperta, tirando-o da fase REM ou sonhos
paradoxais.(48) E o protagonista guarda perfeita lembrança da
história.
Em princípio, pois, aquelas visões noturnas de Cláudia não
pareciam ter origem patológica.

Mas que importava que tais pesadelos fossem provocados por
uma enfermidade? Uma vez mais me enganava. Na verdade eu
estava misturando coisas. Diante do fato concreto que eram os
pesadelos, que fossem ou não conseqüência de ansiedade,
esquizofrenia ou alcoolismo era o que menos devia preocuparme.
O importante, o que merecia uma reflexão, era o conteúdo.
Hoje, psiquiatras e neurologistas reconhecem que sobre sonhos
e pesadelos sabemos ainda muito pouco. A História mostra uma
galeria de gênios, místicos e profetas muitos deles com sérios
problemas mentais cujos pesadelos comoveram o mundo.
No caso Procla, nenhuma das explicações científicas sobre a
matéria resolvia o mistério.(49) Então resolvi centrar minha
atenção no conteúdo e nas informações da mulher.
Cláudia se mostrou segura. As respostas foram claras e
precisas. Não percebi erros ou contradições. Recordava-se dos
pesadelos com nitidez. Mais ainda: falou-me de detalhes que
não poderiam ter sido incorporados pelo artista. Por exemplo,
as vozes que acompanharam as visões. Tanto na história do
deus Cronos como no da suposta viúva, alguém, em grego,
repetia sem cessar a frase pintada na foice e no pergaminho:
três mil dias. Alta e sonora, voz de homem. E, segundo
Cláudia, foi dita em claro tom de aviso.
Quanto ao simbolismo das estranhas e traumáticas
seqüências, salvo em dois dos murais Cláudia não captou seu
significado.
Talvez tivesse sido melhor assim.
No afresco do homem com o coração na mão ofereceu uma
interpretação pouco verossímil. Para ela, a cena significava a
morte do marido, aos cinqüenta e oito anos e em um lugar
próximo do mar. Mas quando lhe perguntei a idade de Pôncio,
deduzi que a interpretação não se ajustava aos dados
históricos. Uma informação que naturalmente ignorava.
O governador, segundo os dados, acabava de completar
quarenta e dois anos. Se aceitássemos, como já mencionei, que
o suicídio pode ter ocorrido em fins do ano 38 ou princípios do
39, isso dava uma idade de cinqüenta ou cinqüenta e um anos

no momento da morte.
Quanto à generosidade do psicopata, melhor não falar...
Sobre o pesadelo de Jasão alanceando a serpente com
cabeça de Pôncio e do deus Cronos devorado, a governadora
reconheceu que todas as consultas haviam sido inúteis. Ninguém
soube decifrar o duplo enigma. E eu, prudentemente, esquiveime
à tentação de tentá-lo. Entre outras razões porque não me
achava autorizado a desvelar-lhe o futuro e não queria magoála.
Somente em dois dos pesadelos observei um alto grau de
acerto da interpretação de Cláudia. A de Pôncio menino e louco,
segundo suas explicações, foi interpretada, em parte, depois do
quinto sonho. Esse último, esboçado a carvão na parede do
triclinium e ao qual Mateus, o evangelista, dedica uma breve
referência, me foi narrado pessoalmente pela protagonista.
Comovida e feliz pelo interesse daquele grego por seu
tesouro, deu toda a ênfase ao relato, ilustrando-o com luxo de
detalhes. E respondeu às minhas perguntas com idêntica
franqueza. Assim foi que consegui atingir o segundo dos meus
objetivos em Cesaréia.
Mas antes de narrar o famoso e histórico pesadelo, penso que
convém destacar um fato importante. Ou melhor, dois.
Primeiro: ainda que o episódio onírico tivesse ocorrido poucas
horas antes do comparecimento do Mestre diante de Pôncio,
Cláudia não soubera da prisão até a manhã de sexta-feira, 7 de
abril. O sonho, insisto, se produzira durante a madrugada de
quinta para sexta-feira. Pois bem, ao despertar, presa de
angústia, perambulou pela torre Antônia sem saber o que fazer,
nem a quem dirigir-se. Obviamente não compreendia o sentido
daquele trágico e violento sonho. Foi depois, ao ver seu marido
sentado na poltrona curul e o Filho do Homem diante dele, que
as duas enigmáticas histórias ganharam sentido. Foi nesse
momento, repito, que interpretou em parte o sonho de Pôncio
louco e menino, com um pergaminho na mão. E foi esse sonho,
exatamente, que a levou a escrever a nota advertindo Pôncio a
que deixasse em paz aquele Justo.

(Os caminhos de Deus, na verdade, são inescrutáveis...)
Segundo: como me disse a governadora, Jesus de Nazaré não
era um desconhecido para ela. Nem para seu marido. A
poderosa rede policial de Pôncio o tinha sob suas vistas
desde o início da sua vida de pregação. E sabia dos seus
prodígios e ensinamentos. Ela, Cláudia, em mais de uma
ocasião havia até comparecido em segredo às concorridas
reuniões do Mestre, para ouvir sua palavra. Isso prova que
ambos estavam a par das atividades do suposto rei dos
judeus. E ainda que Cláudia nunca se confessasse crente, é
certo que sentiu curiosidade e, mais do que isso, intensa
atração pela pessoa e as audaciosas manifestações daquele
atraente e corajoso judeu, capaz de desafiar e humilhar a
hipócrita classe sacerdotal. Em outras palavras: ao vê-lo diante
de Pôncio na manhã de sexta-feira, reconheceu-o prontamente.
Fechado o obrigatório parêntese, retomemos a descrição do
pesadelo com as próprias palavras de Cláudia: ... E de repente
me vi em um lugar desconhecido. Talvez nem fosse exatamente
um lugar. Só aquele homem. Aquela horrível pira. Aquele terrível
céu e as vozes... No sonho se ouviam de fato vozes. Vozes e
gritos distantes. Um grande vozerio...
Mas não sabia de quem eram nem por que clamavam. E
precisei de um tempo. (?) para decifrar o que diziam... Os
grandes olhos perderam brilho. E percebi que a lembrança a
arrasava.
.. Então o vi. Eu estava mais abaixo, com um pergaminho e
uma pena nas mãos... Era um homem alto. Muito alto. E estava
de pé sobre um enorme monte de caveiras humanas... Mas
aqueles crânios tinham olhos... E se moviam sem parar, olhando
para todas as direções... Tive a sensação de que pediam
socorro...
O homem vestia uma longa túnica branca e tinha as mãos
atadas à frente. Tentei identificá-lo mas não foi possível.
Sua cabeça estava inclinada sobre o peito e o longo cabelo
tapava-lhe o rosto. Recordo que chorava. Mas serena e
silenciosamente. Mas aquelas lágrimas... Cláudia me olhou,

buscando, suponho, minha compreensão.
Olhei-a com carinho e animei-a a continuar.
As lágrimas, estimado amigo, escorriam pela barba, mas, ao
invés de cair, subiam... Não sei como explicar... Subiam.
Voavam... Um pranto que voava. E as gotas, límpidas e
transparentes, subiam como dardos até aquele terrível e
ameaçador céu... Sim, um céu que me produzia estremecimentos.
Vermelho e coalhado de estrelas pretas. E cada lágrima
tornava branca uma estrela. E a estrela ardia e se consumia. E
quando a última lágrima atingiu a última estrela ouviu-se um
grande estrondo...
E o vozerio cessou, emudeceu... E tudo foi silêncio. E as
caveiras fecharam os olhos... E o grande firmamento vermelho
começou a girar sobre si mesmo e se converteu em um enorme
disco preto. E aquele gigantesco sol preto desabou sobre o
homem, sobre o vozerio e sobre mim... A voz se tornou
entrecortada. E as lágrimas ameaçaram a maquiagem. Mas,
dominando a emoção, prosseguiu decidida: ... E o pânico
paralisou-me. E o pergaminho e o cálamo escaparam de entre
meus dedos...
Então aquele homem ergueu a cabeça... Era o pregador!...
Era o Rabi da Galiléia! E Ele, olhando para o grande disco,
abriu os lábios e gritou algo. Mas só consegui distinguir uma
palavra: Ab-bã... E o sol parou... E era tão grande que cobria o
céu.
E as caveiras abriram de novo os olhos... Entendi então o
que clamavam...
Não és amigo de César!
E o sol se tingiu de sangue... E aquele sangue, como uma
onda, caiu sobre nós... E tudo foi sangue... Quis gritar mas o
medo me inibiu.
E quando pensei que estava morta, despertei... Suada... O
coração me saltava no peito. E sentada na cama tentei
compreender. Não pude. E com uma angústia e um medo como

jamais havia sentido, caminhei como uma louca, sem rumo e sem
saber o que fazer. A quem contar?... Tentei acalmá-la. Depois,
pouco a pouco, fui tirando minhas deduções. E Cláudia rematou
o relato.
Nessa mesma manhã de sexta-feira, quando a notícia da
prisão de Jesus correu pela fortaleza Antônia, nossa
protagonista tentou confirmar a história. E perplexa assistiu a
uma cena que a faria decifrar parte dos sonhos.
Seu marido, sentado na cadeira de justiça, tinha diante de si
um Homem de longa túnica branca, com as mãos atadas. E ao
reconhecer o Galileu, o pregador, sentiu-se morrer. E entendeu
também o significado daquele Pôncio menino, louco, sentado na
cadeira curul com um pergaminho entre as garras de crocodilo.
E pela primeira vez em sua vida, impelida por uma força
irrefreável decidiu intervir em assuntos oficiais de seu esposo.
Foi assim que tomou a iniciativa de escrever a nota e fazê-la
chegar a Pôncio em pleno interrogatório, E devo esclarecer outro
aspecto que julgo importante. Segundo Cláudia, sua advertência
ao governador nada teve que ver com o desejo de salvar o FiLho
do Homem. A mulher foi sincera. Na realidade, o que a moveu
foi o intuito de evitar que seu esposo praticasse um erro que
poderia prejudicá-lo.
E, suspirando, comentou quase que para si mesma: - Mas,
vencido por aquelas ratazanas, não me ouviu. E como sabes o
Rabi foi executado. E nesse mesmo dia, quando o sol se
apagou, vi meu sonho tornado realidade. E soube que Pôncio
havia errado. E ele também ficou sabendo...
Pedi-Lhe que se explicasse com mais precisão.
- O que ninguém sabe confessou sem ocultar certa
satisfação é que, aterrorizado pelo acontecimento, vomitou de
medo e teve de ir para a cama.
Apontei para o esboço a carvão, no qual se via a silhueta de
um homem sobre um tétrico monte de crânios humanos, e
perguntei-Lhe se pensava terminar a pintura.
- Claro respondeu com convicção -. Não sei quem era

realmente aquele galileu, mas meu marido não cometeria outra
injustiça como aquela. Essa imagem o advertirá enquanto for
governador.
A bem-intencionada Cláudia estava enganada. Pôncio, como
todo psicopata, falharia de novo e tragicamente. E
aproveitando a cálida corrente de simpatia nascida daquelas
confissões e dos inolvidáveis afrescos, atrevi-me a tocar em um
capítulo não menos intrigante: como agira para que o impetuoso
governador aceitasse pinturas tão desfavoráveis à sua imagem?
Sorriu malevolamente e respondeu:
- Usei seu próprio medo...
E apontando o pergaminho e a pequena criatura alada
sentada à borda do vaso de Pandora, completou a explicação:
- Tentou destruí-las, sim, mas ameacei-o de revelar as terríveis
palavras escritas no pergaminho e o significado profético do seu
gesto, abrindo o vaso das calamidades.
E, triunfante, com uma piscadinha de cumplicidade, resumiu: -
Aterrorizado, obrigou-me a guardar silêncio. Como sabes, não
suporta os meus augúrios.
Em troca, até que não disponha de outra coisa, tenho podido
conservar meu tesouro... Cláudia parecia conhecer muito bem a
sinuosa psicologia de seu esposo. Maníaco-depressivos
apresentam de fato notáveis contradições em sua conduta.
Apesar da permanente e odiosa onipotência, do poderio e da
auto-suficiência, na hora da verdade suas ações mostram o
contrário.
Quando lhe perguntei acerca das terríveis palavras do
pergaminho, das quais não me havia falado, Cláudia soltou uma
contagiosa gargalhada e confessou: - Não existe tal escrito...
Entendi.
- É triste acrescentou sem sinal de aflição -, mas todo mundo
sabe que Pôncio não está bem...
Penso que adivinhei o sentido da nova confidência.
Aparentemente, envolvia de um segredo... público. Para a

inteligente e observadora romana, como para quantos rodeavam
o governador, era notório que o volúvel, cínico, violento e
depressivo Pôncio estava desequilibrado. Mais ainda: ao longo
do banquete pude surpreender alguns detalhes e atitudes que
confirmavam a indiferença de Procla pela enfermidade de seu
marido e me fizeram suspeitar de uma profunda crise conjugal.
Certamente a segunda ameaça - o significado profético do
gesto de Pôncio abrindo o vaso das calamidades - foi
igualmente um foco de luz. Como disse, Cláudia não conseguiu
decifrar em toda a sua extensão o magnífico simbolismo
daquele sonho. Significado profético. Esse, sim, foi um aspecto
dos sonhos e pesadelos noturnos da governadora que me
fascinou. E durante muito tempo tentei resolvê-lo. Confesso,
porém, que não tenho argumentos. A ciência, humildemente,
deve render- se.
De momento não sabemos como. Ignoramos tudo sobre a
gestação de tão assombrosos episódios oníricos. É claro que
não foram os primeiros nem serão os últimos. Outras pessoas
viveram e viverão experiências similares. Calpúrnia, esposa de
César, teve um desses pesadelos premonitórios na noite
anterior ao assassínio do marido. O grande químico Kekulé, por
exemplo, descobriu a estrutura do benzeno graças à
informação surgida em sonhos. E o mesmo poderíamos dizer
de gênios como Leonardo, Michelangelo, Dickens ou o músico
Tartini.
Mas Qual poderia ser a explicação? Sinceramente, só me
ocorre uma. Sei que não é científica mas não tenho outra.
As vivências e imagens (visuais e acústicas), registradas
durante o sonho RéM devem ter sido injetadas nas redes
neuronais daquela mulher o acesso direto a Pôncio, não
esqueçamos por alguém ou algo que acima do espaço e do
tempo. Alguém capaz de ministrar informação computador
cerebral do mesmo modo que eu posso fazer com nosso Papai
Noel. Dessa forma o fenômeno do sonho se converteria também
em um excelente canal informativo. Teríamos em conseqüência
dois grandes ti pos de sonhos: os próprios (meramente

fisiológicos, com suas múltiplas variantes) e os induzidos.
Darei um exemplo. Ainda que grosseiro. Talvez ajude a ilustrar
o que pretendo explicar. Os cientistas têm conseguido intervir
na fase REM dos mamíferos.(50) Como se sabe, durante as
horas de sono, o cérebro ordena uma atonia ou ímobilização
muscular quase generalizada.(51) Essa redução do tônus
postural muscular não afeta o diafragma nem os olhos. Pois
bem, ao destruir alguns determinados neurônios do tálamo
cerebral resPonsáveis por essa paralisia parcial da musculatura,
os pesquisadores observaram com surpresa que os gatos
adormecidos com os quais faziam as experiências se levantavam
em pleno sono e atacavam seres e coisas invisíveis ou fugiam
delas. Essas imagens pertenciam, com toda a certeza, a sonhos
tidos na fase REM.
É evidente que pouco a pouco o ser humano poderá entrar
em seus próprios sonhos, programando-os e manipulando-os à
vontade. E chegará o dia, estou convencido, em que, graças a
essa intervenção, será possível a conquista de uma infinidade
de objetivos de todo tipo. Desde a prevenção de moléstias até
a visão do futuro, passando pela solução de conflitos
domésticos. De fato, alguns iniciados já o fazem.
Então me pergunto: se a ciência trabalha nessa direção, quem
sou eu para duvidar dessa outra Ciência, a que rege e governa
o destino do homem? Maiores prodígios havia visto, e
continuaria vendo, para negar que os sonhos de Cláudia Procla
podiam ser induzidos.
Sonhos proféticos ou premonitórios?
Categoricamente, sim. E acrescento: minuciosa e
perfeitamente teledirigidos. Para quê? Talvez, simplesmente,
para nos advertir de que não estamos sós. E foi uma lástima
que os escritores sagrados (?) não quisessem dar-se ao
incômodo de pesquisar acerca dos fascinantes sonhos da mulher
de Pôncio. Ao menos sobre os que faziam referência ao Mestre.
Sempre acreditei que a vida e os pensamentos de um ser
humano, com mais razão os do Filho do Homem, só podem ser
compreendidos com um mínimo de rigor se se dispõe de um

máximo de informação.
Mas vejo que volto a desviar-me.
Cláudia, observando que sua taça estava vazia, acenou a um
criado. Imediatamente o próprio maitre ou tricliniarcha
aproximou-se pressuroso com segunda dose. E me vi obrigado
por cortesia a brindar com minha nova e atenciosa amiga,
degustando um vinho escuro e quente como a noite,
aromatizado com canela. E sabendo que a animada festa não
me permitiria voltar a conversar a sós com Cláudia, decidi
encerrar a entrevista arriscando-me em um terreno pessoal e
francamente constrangedor. Uma vez mais me deixei conduzir
pela intuição.
E afortunadamente me saí bem.
Desde os primeiros momentos da nossa conversa, como já
disse, chamou-me a atenção a carregada maquiagem da
governadora. Em especial a crosta avermelhada de pernas e
braços. E ao reparar nos dedos supus entender a razão de tão
impró prio disfarce e a da angústia revelada por sua voz.
Lembrando minha condição de médico, atrevi-me a tomar sua
mão esquerda, com o intuito de examinar as pontas dos dedos,
deformadas. Surpreendida, fez um gesto de recolhê-la. Mas
reforçando minha boa intenção com palavras de alento e um
sorriso sem duplicidade, retive-a. E animei-a a falar do mal que
a atormentava.
Hesitou um pouco mas a tristeza, nos profundos e negros
olhos, disse sim antes que a sua vontade o dissesse.
Nervosa, olhou ao derredor, assegurando-se de que ninguém
podia ouvir-nos, e confirmou minhas suspeitas.
Cláudia sofria de uma artrite psoriásica, uma moléstia da
pele, complicada por um processo agudo de artrite. A inflamação
das articulações interfalanges distais era um indício claro.
Também as unhas estavam afetadas, com o típico pontilhado. E
por suas informações deduzi que a psoríase havia invadido o
couro cabeludo, a região articular dos joelhos, o umbigo, braços
e pregas glúteas. Afastando parte dos caracóis deixou a

descoberto as ulceradas lesões das orelhas. E entendi, repito, o
porquê do barro, da peruca e, sobretudo, da frase escrita em um
dos papiros que pendiam do Apício, no lugar secreto do meu
alojamento: Para Jasão e os malditos sonhos da leprosa.
Lamentavelmente, essa doença, como outras, era confundida
por aquela ente com algo muito sinistro: a lepra. E o psicopata,
dando largas à sua torpeza, utilizou os papiros para sua
particular e rasteira vingança.
Esse era o governador Pôncio Pilatos.
E um duplo sentimento se apossou de mim. Não soube ou não
quis evitá-lo. Não importa. Por um lado, aquela raiva surda.
Aquela injúria do maníaco liberou meus escrúpulos. Por outro,
o terno e indefeso olhar de Cláudia, pedindo sem pedir, me
levou a agir.
Em princípio, ainda que esse tipo de psoríase possa
complicar-se, não considerei que uma pequena ajuda a Cláudia
violasse o código ético da Operação Cavalo de Tróia.
E em retribuição às suas preciosas confissões decidi tratá- la.
No mesmo instante pedi-Lhe que alguém me indicasse o
caminho da suíte. Ela chamou outro velho conhecido: o escravo
gaulês da esplêndida melena loira. Conduzido pelo silencioso
criado, saí por momentos do triclinium.
Uma vez no dormitório examinei meus medicamentos de
campanha. Apanhei duas das ampulhetas de barro. Não era
grande coisa, mas, à falta de corticosteróides ou metotrexato,
podia servir. As doses de vitaminas concentradas (B, C, Hi e Dz)
e ácido linol-linoleico em pó remediariam durante um temPo o
penoso estado da governadora.
(Inadvertidamente, ao confiar no gaulês, Cláudia e eu
cometemos um erro.) Retornei ao triclinium, pus os
medicamentos em suas mãos, instruindo-a sobre o uso e as
proporções que devia ingerir diariamente. O aspecto do
remédio, um simples pó branco amarelado, não despertou
receios. Ao contrário. A modesta contribuição à saúde e à paz
de espírito da complexada Cláudia teria mais imPortância para

mim do que supus no momento. A chave foi Civílis.
Aparentemente, meus movimentos de saída e de volta podem
ter passado despercebidos para quase todos, menos para ele.
Mas disso eu não teria conhecimento até bem entrada a
madrugada, quando ocorreu o que ocorreu...
Os olhos da mulher se iluminaram e me iluminaram.
Agradecida, converteu-se em minha valiosa e inseparável
companheira. E foi assim, graças ao Destino (?) e à sua
generosidade, que tive minucioso conhecimento de outros
assuntos relacionados com Jesus de Nazaré aos quais, estou
certo, não teria acesso a não ser por essa casualidade (?).
Por alguns minutos, guiado por uma Cláudia divertida diante
das minhas ingênuas perguntas, observei os manjares disPostos
na enorme mesa, uma espécie de bufê cada vez mais
movimentado por convidados e pela criadagem.
Aquele tipo de banquete-celebração, em que os costumes
greco-romanos se misturavam anarquicamente, constava de três
etapas ou rituais. A ceia começava com o propoma, alguma
coisa parecida com o nosso aperitivo. Servia-se vinho. Faziam-se
os brindes e as obrigatórias oferendas aos lares (deuses
domésticos). Em seguida passava-se à refeição propriamente
dita. Os comensais, rigorosos com a etiqueta, não tocavam os
manjares. Limitavam-se a apontar ou pedir o que desejavam. O
resto era missão da criadagem. E os de túnica açafrão, sob a
supervisão do mestre-sala, trinchavam e arrumavam,
oferecendo os alimentos em suntuosas travessas de prata. Cada
peça da baixela tinha gravado seu peso. O detalhe obedecia
ao secreto desejo do anfitrião de deslumbrar o convidado. E
ainda que esses utensílios, pratos e vasos de ouro e prata
fossem proibidos pelo imperador Tibério aos particulares,
destinando-os unicamente aos sacrifícios aos deuses, a verdade
é que a classe romana abastada simplesmente ignorava essa
disposição.
Fome satisfeita, o jantar entrava no terceiro e último ato: o
denominado simposion ou reunião de bebedores. Era, sem
dúvida, o ritual mais aguardado, no qual os convidados bebiam

até a inconsciência. Segundo o lugar, o anfitrião, o momento e
as circunstâncias, o simposion podia ser acompanhado de
música, jogos, espetáculos de dança, adivinhos, bufões,
pantomimas ou discursos.
E a mórbida inclinação de Pôncio ao luxo brilhou de novo
naquela descomunal mesa de quase trinta metros de
comprimento.
Cláudia, tomando-me pela mão, foi dando o nome dos
refinados e insólitos manjares.
O governador dava com aquela festa mais um expressivo
exemplo da sua dissipação. Tudo quanto era receita em moda
no império estava naquela mesa: alcachofras em vinagre e mel,
aspargos grossos como o meu cajado, rui-senhores e pássaros
canoros fritos (avaliados, segundo Procla, em cem mil
sestércios), travessas de sissitias (um famoso guisado
espartano de cor preta, sazonado com sangue, vinagre, porco e
sal), línguas de carpas (provavelmente ao redor de mil),
cabritinhos de Ambraccia assados e perfumados com anis e
menta, rodovalhos da ilha de Hela, grandes morenas fritas da
Pomerânia (de quase cinco palmos e os afilados dentes
enfeitados com maçãs anãs da Síria), barbos marinhos sem
espinhas (os valiosos mullus, comprados à razão de cinco mil
sestércios por exemplar), torres de fígados de cavala, omeletes
com cristas de galos, ostras em leite de morena, bolotas de mar
(brancas e pretas) e uma interminável variedade de mariscos.
E como prato forte peito de porco na brasa, rins de veados
e javalis, aves empanadas e sangrentas caçarolas de miolos
crus de macacos. E para os menos audaciosos a especialidade
do maitre (grego, certamente): o kykeón, uma espécie de
sopa à base de sêmola de cevada aromatizada com poejo,
menta ou tomilho. E numa extremidade da mesa as sobremesas
e o indispensável complemento do simposion: meia centena de
pequenas taças repletas de favas e grãos-de-bico tostados.
Limitei-me, prudentemente, a pedir um pouco de carne na
brasa, amêndoas, nozes e figos secos.
Cláudia, surpreendida com a frugalidade daquele mago, me

conduziu por fim ao setor sagrado da grande mesa: o serviço
de bebidas. E o criado responsável pelo sortido bar me deu a
escolher: vinho resfriado na neve, vinho quente, vinho com água,
vinho com água salgada, vinho com mel, cerveja de cevada ou
sucos de frutas aromatizadas.
Por pura cortesia optei pelo vinho quente de Thasus,
misturado com água. O criado filtrou o vinho, passou-o para uma
espécie de coqueteleira também de prata e perguntou-me se
queria muita ou pouca água.
- Pouca... pouca água ordenou o governador, aproximandose
de mim sorridente. Tinha nas mãos uma abundante e
sangrenta porção de miolos de macaco que comia com os dedos.
- Estás te divertindo? - Perguntou, mas afastou-se antes que
eu pudesse responder, juntando-se ao seu fiel escravo gaulês.
E fiquei grato. A verdade é que não sei o que foi mais
repugnante: os miolos esmigalhados e vertendo sangue pelos
lábios e queixo ou o insuportável fedor da maquiagem.
De repente vi o atlético criado inclinando-se e cochichando ao
ouvido do amo e pressenti alguma coisa.
Pôncio ouviu e, ao olhar-me, traiu-se. Mas não disse nada.
Continuou a perambular, com demonstrações de jovialidade
para todos os convidados. E quis o Destino que o meu olhar se
cruzasse em seguida com o do primipilus. Civílis, no canto
esquerdo da mesa, conversava com companheiros de armas.
Ambos presenciáramos a cena. Mas eu a esquecera
prontamente. O centurião, ao contrário, e para minha sorte, a
guardara bem.
A música, localizada ao pé do hydraulis, baixou de tom. E uma
vez servidos os primeiros pratos, parte dos criados retirou-se
para retornar dentro em pouco com uma série de pequenas
mesas circulares de três pernas (tipo cabriolé) que colocaram
junto aos sofás. Terminada a operação, a um estalo de dedos
do dinâmico tricliniarcha os escravos tomaram posição de novo
por trás do bufê, em posição para continuar servindo.
Durante um bom tempo me vi na obrigação de passar de

grupo a grupo, acompanhando a diplomática anfitriã. Mas as
conversas dos ricos comerciantes, como era de esperar, só
conseguiram aborrecer-nos. O tema central, quase exclusivo, foi
sempre o dinheiro, as prósperas ou malogradas operações
comerciais e, sobretudo, as queixas contra os impostos e a
baixa ruinosa dos rendimentos, fixados no momento para todo
o império em uma média de três por cento. (Só a Grécia e a
Ásia Menor desfrutavam oito ou nove.) Efetivamente, nada novo
sob o sol...
Satisfeita a cerimônia de cumprimentos, Cláudia solicitou a
atenção geral. A música parou. E ela, fiel à sua religião,
apanhou tigelas com sal e farinha, elevou os braços e fez as
oferendas de preceito aos penates, outro grupo de deuses
domésticos aparentados com os já citados lares e gênios.(52)
Era claro por que nenhum judeu teria assistido de bom grado
a essa cena.
Neste ponto devo fazer um novo parêntese.
Durante nossa intensa preparação pude comparar algumas
piedosas tradições cristãs que insinuavam ou afirmavam a
conversão de Cláudia Procla à própria igreja de Simão Pedro.
Pois bem, a julgar pelo que eu estava vendo e deduzi das
minhas conversas, a especulação não tem fundamento.
Se uma mulher tão importante, esposa, além do mais, do
verdugo de Jesus de Nazaré, se tivesse unido à confraria dos
primeiros discípulos, a notícia sem dúvida teria figurado em
algum dos textos evangélicos ou nos Atos e Epístolas dos
Apóstolos.
Não podemos ignorar que seus princípios religiosos,
nitidamente romanos, estavam profundamente arraigados. Por
outro lado, ainda que Cláudia não esquecesse a figura do
Mestre e os incidentes daquela sexta-feira, 7 de abril do ano
30,sua condição de cônjuge do governador da Judéia tornava
muito difícil a suposta conversão. Um ato como esse criaria um
conflito com Pôncio, desapiedado inimigo dos judeus em geral,
e com Roma.

Depois, com o exílio, é muito provável que essa etapa
acabasse esquecida.
E se me arrisco a manifestar-me com tanta segurança é porque
logo depois da oferenda aos penates tive ótima oportunidade
para continuar indagando sobre a vida e as idéias dessa
sensível mulher.
Aquela conversa seria efetivamente muito ilustrativa e
confirmaria o que eu disse.
Prossigamos com a ceia. Um convite que só podia acabar de
uma maneira...
A música voltou a fazer-se ouvir, e com renovado entusiasmo,
e o vinho começou a desatar as línguas. Alguns comensais,
reclamando aos gritos novas provisões, se acomodaram nos
triclínios, reiniciando com ardor as discussões sobre rendas,
fortunas e negócios. E o maitre, multiplicando-se, encheu as
pequenas mesas de travessas e jarras. E para cada um dos
sofás foi designado um par de criados atentos às cada vez mais
rudes ordens dos convidados e sobretudo ao incessante
reabastecimento das taças vazias.
Fiquei preocupado. O simposion não havia ainda começado e
a maioria de funcionários monopolei, o governador incluído, já
apresentava inquietantes sintomas de embriaguez.
Só Civílis e seus oficiais pareciam resistir à tentação. E, ao
verem que Procla e eu nos dirigíamos para o triclínio situado à
esquerda do sofá presidencial, discreta mas rapidamente
tomaram novas posições a curta distância. A julgar pelo seu
sóbrio comportamento, era evidente que não estavam ali para
se divertir. E de certo modo a postura de vigilância e proteção a
Pôncio e sua esposa me tranqüilizou.
Cruzei novo olhar com Civílis, mas o impenetrável rosto só
devolveu frieza.
Cláudia deitou-se sobre os almofadões inflados e eu,
cravando a vara de Moisés entre os cacos de conchas, tomei a
liberdade de sentar-me no chão, muito perto da cabeceira do
triclínio ocupado pela governadora. Ao notar a delicadeza com

que eu cravei o símbolo de áugure fez-me uma pergunta que eu
esperava havia tempo:
- E tu, Jasão, quantas vezes foste condenado?
Entre as supersticiosas romanas, fanáticas por toda sorte de
áugures e adivinhos, estava na moda o trato com magos e
astrólogos, principalmente se, como escreveria anos mais tarde
o poeta sacírico Juvenal, houvessem sido processados,
desterrados e postos a ferros. Se aqueles indivíduos
aparecessem envolvidos em processos políticos, muito melhor.
Curiosamente, apesar da severa legislação promulgada contra
a magia,(53) desde o imperador até o último cidadão a
sociedade acabava nas garras desses desprezíveis tipos. E
muitos se tornavam escravos morais dos milhares de egípcios,
mesopotâmicos, gregos e sírios que diziam ler o futuro e ter
contato com os deuses.
Louvando-me nos Anais de Tácito inventei descaradamente,
(54) em resposta à pergunta da governadora: - Fui expulso da
Itália no ano 16 por um senatus-consulto do divino César. E
antes caiu sobre este humilde áugure a condenação de Tibério
contra os druidas.(55)
- Não sabia que os druidas eram magos...
- Nem eu tampouco -, respondi, temendo que ela quisesse
aprofundar-se em um assunto que eu desconhecia.
- Todavia, pelo que sei o velhinho ouviu teus sábios
conselhos...
A informação que eu dera a Pôncio numa das visitas à
fortaleza Antônia, em Jerusalém, me ajudou a conduzir a
conversa para o terreno que me interessava.
- Vejo, querida senhora, que teu marido não tem segredos
para ti...
Sorriu amargamente.
- Saberás também acrescentei preparando o caminho que
lhe anunciei o portentum do escurecimento do sol...(56) Aquilo
interessou-a vivamente.

- Não, nunca soube...
E mordeu o anzol.
- Conta-me.
Intencionalmente ampliei o vaticínio feito ao governador na
manhã de sexta-feira, 7 de abril.(57) E a surpresa, à medida
que eu entrava em detalhes, encheu-Lhe os grandes olhos.
- Então exclamou furiosa esse bastardo soube que alguma
coisa ia ocorrer...
- Sim e não corrigi.
Creio que não me ouviu. Ergueu o corpo no triclínio e procurou
Pôncio com os olhos. Temi o pior. Felizmente o psicopata estava
de costas, junto ao bufê, recebendo uma segunda porção de
cérebros de macaco.
Civílis, vigilante, pôs-se em pé e aproximou-se. Mas a
governadora, recobrando a calma, estendeu a mão e ordenoulhe
que voltasse ao seu posto. Reclinou-se, esboçou um sorriso
e me devolveu a palavra.
- Dizias...
- E ainda que o soubesse prossegui numa tentativa de voltar
atrás -, quem pode modificar o Destino? Olhou-me com dureza.
- Pôncio, sim, foi capaz...
Ao notar minha perplexidade deixou vazar:
- Ele tem o poder. Não era o primeiro judeu que julgava, nem
será o último... Mas está louco.
Aproveitando o seu arroubo de sinceridade toquei no tema
capital: - És demasiado severa. Imagino que os remorsos...
Não me permitiu continuar:
- Remorsos? Vejo que não o conheces. Aquela execução está
esquecida.
Pergunta a ele!
- Mas...
Cláudia, inflexível, golpeou de novo:

- Esquecida, meu querido e ingênuo mago! O governador tem
uma especial capacidade para esquecer o que não Lhe
interessa.
- Queres dizer que a Crucifixão...?
- Uma a mais cortou sem rodeios. Só o sinal no sol, como já
comentei contigo, o afetou durante umas horas...
- Então manobrei em outra direção também polêmica não
informou a Tibério...
Cláudia lançou-me um olhar comovedor. E adivinhei a
pergunta.
- E por que iria fazê-lo?
- As acusações contra Jesus de Nazaré...
Moveu a cabeça negativamente.
- Que acusações? De que se proclamou rei? De que esse
reino não era deste mundo?
E argumentou com razão:
- Se não deu conta ao imperador dos incidentes provocados
pelas efígies em Jerusalém ou pela apropriação do tesouro do
Templo para a construção do aqueduto, por que aborrecê-lo por
causa de um anônimo metido em rixas religiosas com seus
patrícios? Jesus se notabilizou por seus ataques a Roma? Era um
perigo para o império? Tive de dar-lhe razão.
- Pôncio é demente mas não tolo. Que é que podia dizer ao
velhinho? Que ele havia condenado à morte um judeu contra o
qual nada apurara? Que cedera às pressões do populacho? As
sólidas colocações de Procla esclareciam um outro capítulo sobre
o qual muito se tem escrito: as supostas Atas de Pilatos, nas
quais haveria contado os pormenores do processo e Crucificação
do Filho do Homem.(58) A verdade é que quando li e analisei
esses ingênuos textos adotei a opinião da maioria dos
especialistas. Estávamos diante de cartas ou informes
dirigidos a Tibério que não apresentavam a menor consistência
histórica. Os defensores dessas descaradas falsificações, caso
de Reinach e Volterra, davam por indiscutível a autenticidade

dessa correspondência, coisa que nunca ficou provada e que só
teria contribuído para prejudicar os interesses políticos de
Pôncio, como afirmava a própria Cláudia.
Essas atas apócrifas contêm, além de tudo, tal acúmulo de
erros e despropósitos que só se pode atribuí-las a fanáticos ou
a pessoas bem-intencionadas, ou seja, empenhadas em
preservar a memória do governador da Judéia mas muito malinformadas.
Só assim se pode entender, por exemplo, que façam
extensivo o fenômeno do escurecimento do sol a todo o planeta.
Hoje sabemos que naquele dia de sexta-feira, 7 de abril do ano
30 da nossa era, não ocorreu eclipse nem fenômeno astronômico
algum. O acontecimento, como já narrei, teve caráter muito
localizado, afetando unicamente Jerusalém e arredores.
Estávamos na noite de segunda-feira, 8 de maio. Haviam
transcorrido trinta dias desde a execução de Jesus de Nazaré.
Tempo mais do que suficiente para que Pôncio houvesse
redigido e enviado tais informes ao imperador. Mas, como
assegurava minha anfitriã, esse documento não tinha razão de
ser e jamais seria escrito.
Os cristãos, em geral, guardam hoje uma lembrança entre
benevolente e romântica da figura do governador. E não os
culpo. A História, uma vez mais, sublimou a realidade. E ocultou
fatos e condutas, aparentemente anedóticos, que mostravam
perfeitamente o autêntico perfil de Pôncio.
Por exemplo, a violação da sagrada norma da lustratio, ou
lavagem de mãos. Outro exemplo: Mais uma insólita reação do
psicopata, praticamente desconhecida, que se encaixava em seu
perfil maníaco-depressivo. O achado surgiu sem querer na
instrutiva conversa com Cláudia Procla.
- Suponho que ao menos insinuei sem perceber a
importância do tema que levantava -, ainda que haja esquecido
a execução tentaria conjurar o signo celeste...
Cláudia não pôde conter a risada.
- Vejo que estás a par de nossos ritos.
- Esse louco?... Pedir perdão a Júpiter? - acrescentou

pesarosa.
Antes de prosseguir devo esclarecer um ponto tão importante
quanto ignorado. O escurecimento do sol calhava plenamente,
para a supersticiosa sociedade romana, no que denominavam
signa ou sinais. Qualquer sinal ou fenômeno prodigioso e o
escurecimento do sol (?) o foi sobejamente era tomado em
princípio como uma advertência ou manifestação punitiva dos
deuses. A divindade mostrava assim a sua cólera. E o cidadão
testemunha da maravilha corria a consultar os áugures buscando
uma interpretação e a correspondente expiação de suas
hipotéticas culpas. Para isso, a religião estabelecia um solene e
sagrado procedimento: a procuratio. Ou seja, uma série de
normas visando a restabelecer a paz entre a divindade ofendida
e o homem. Essa procuratio dos signos era um ato de especial
transcendência. Não esqueçamos que a ira dos céus caía sobre
o suposto infrator e sobre quantos o rodeavam.
Pois bem, cada signa, uma vez estudada pelo áugure, exigia
uma procuratio ou compensação concreta. Nos livros do colégio
profissional de áugures de Roma havia uma longa lista de
reparações aos deuses, criada nos distantes tempos de Numa.
Se o fenômeno, por exemplo, consistia em uma chuva de
pedras, a satisfação ou procuratio obrigava a testemunha ou
testemunhas a guardar nove dias de férias. Se o portento era o
nascimento de um monstro (homem ou animal), os deuses
davam-se por satisfeitos com arrojá-lo ao fogo ou ao mar.
Cada procuratio, todavia, estava sujeita ao oscilante critério
do arúspice de plantão...
No caso de que falamos um portentum ou manifestação
divina através da matéria inanimada -, o problema envolvia uma
gravidade a mais. Cada signa, para a religião romana, era
provocada por um deus específico. Uma perturbação na terra,
por exemplo, era um signo de Telus. Se no mar, refletia a
indignação do deus Netuno. Se o prodígio era celeste, a cólera
procedia de Júpiter. E, como disse, o escurecimento do sol,
competência do grande Júpiter, não era um fenômeno comum, de
todos os dias. A ofensa atingia o número um, a divindade

tutelar do império, o soberano do mundo, o pai da magia, o
garante do direito, o senhor da luz, o dono do raio e das
tormentas...
A suposta falta, em suma, era de extrema gravidade, exigindo
uma procuratio do mesmo peso. E não posso deixar de admirar a
finíssima manipulação da Providência. Até os símbolos pagãos
eram magistralmente incorporados à encarnação humana desse
Filho de Deus... E comecei a suspeitar que aquele misterioso
objeto (?) que se interpôs entre o sol e Jerusalém sabia
muito bem o que fazia.
- Aliviar a ira de Júpiter?... Recorrer à procuratio?... É disso
que estás falando? Confirmei, sem perceber o que havia por trás
das capciosas perguntas de Cláudia.
- Meu querido amigo esclareceu por fim -, não só não houve
expiação como, orgulhoso e auto-suficiente, repudiou o
prodígio,(59) acusando os judeus de provocar a ira de Júpiter.
A confissão de Procla, na minha opinião, vinha confirmar dois
pontos já comentados.
Primeiro: o reduzido juízo crítico de Pôncio acerca de si
próprio. Mais um sintoma de seu problema mental. Entre os
enfermos maníaco-depressivos, essa atitude contrasta com a
sua demolidora capacidade para julgar os outros. Abjurar as
responsabilidades - lavando as mãos - é peculiar a esses
psicopatas. Sua habilidade nesse campo chega ao extremo de
conseguir que os que os rodeiam se sintam responsáveis pelos
seus próprios atos.
Segundo: o repúdio à procuratio ou compensação aos deuses
provava o nulo senso de culpa na condenação do Mestre. Esse
vácuo ético, como já expliquei, só podia obedecer a um
estado de crise psíquica. Não era de estranhar, portanto, que
esquecesse rapidamente a execução.
E volto a lamentar-me. Sinto, sim, que esses pequenos
grandes fatos não tenham repercutido, obscurecendo a
realidade. E uma sufocante dúvida me inquieta desde há muito
tempo. Se os evangelistas sabiam da enfermidade do

governador, por que guardaram segredo? Empanava a imagem
do Mestre? Não convinha dizer que Jesus de Nazaré foi julgado
(?) por um doido? Como afirmava o Galileu, quem tiver
ouvidos...
- E quando, enfim, venceu o medo e se decidiu a deixar a
cama prosseguiu a mulher com um ricto de desprezo -, ele,
muito cínico, me anunciou que, além de repudiar o prodígio do
escurecimento do sol..., omen accipio! Cláudia fez uma pausa e
desviou o olhar para a rumorosa cascata.
Estava claro: Pôncio, maximo todo maníaco-depressivo,
revelava uma preocupante fuga de idéias. Aquele omen accipio -
recebido como um bom agouro - era mais um sintoma da sua
demência.
Além de refutar ou repudiar a sagrada cólera do grande
Júpiter e atirar a culpa nos judeus, mudou de tática,
transformando o prodígio solar em bom presságio.
Cláudia, saindo das suas reflexões, acrescentou:
- Minhas críticas não foram ouvidas. E durante dias aquele
maldito omen accipio foi sua cantilena favorita.
Procla sublinhou o estribilho em tom de censura.
- E o pior é que está convencido. Crê firmemente que nossa
sorte mudou.
Não comentei. Nisso acertou. O que Pôncio não podia
imaginar era o rumo tomado pela dita sorte.
A conversa estava árida. Para amenizá-la, perguntei a Cláudia
como era a sua vida e a do governador. Soube, assim, entre
outras coisas, que ambos eram divorciados. Ela ostentava com
orgulho o título de portadora de estola, menção honorífica
reservada às mães de três ou mais filhos. Pôncio tinha uma só
filha, fruto também, como os de Procla, de seu casamento
anterior. Em seu novo estado, que obedecera a razões políticas,
o governador se negou a ter novos descendentes.
Cláudia era uma mulher culta. Admirava Homero e dizia haver
lido várias vezes a Eneida de Virgílio. Agora, nesse desterro,

achava falta das animadas tertúlias de Roma e, sobretudo, seu
conventus matronarum, uma espécie de corporação de
mulheres criada no século anterior e que tinha por finalidade
principal a manutenção do culto religioso.
Pôncio, ao contrário, era um rústico. Jamais o vira ler. Só Lhe
interessava o dinheiro. E desde que tomara posse como
governador aquela obsessão fora apoderando-se dele até o
extremo de aventurar-se em todo tipo de negócios ilícitos e
complicados. Mas o que mais a irritava era a perigosa e
corrupta relação comercial com os dirigentes religiosos judeus.
Nesse momento, graças a trapaças e negociatas, a fortuna do
psicopata orçava pelos trinta milhões de sestércios, sem contar
o luxuoso mobiliário e duas vilas de recreio nos bairros do
Palatino e o Viminal, em Roma.
Estava claro que aquele matrimônio não assentava no amor.
As relações, tensas, pareciam condenadas a um novo divórcio.
Essa frieza e distanciamento entre os esposos, de par com a
vergonhosa enfermidade que ela suportava, haviam feito de
Cláudia um ser profundamente magoado, com uma tristeza
permanente que devia, entretanto, ocultar em razão do cargo de
seu marido.
E fiquei sabendo também que a inquieta muLher encontrara
um raio de luz desde que se interessara pela história e pelo
culto de Ísis, a deusa egípcia de muitos nomes. Vestia linho
sempre que podia, invocava duas vezes ao dia a salvadora e
cheia de graça, fazia-se benzer com água do Nilo e respeitava
os jejuns prescritos por uma religião que fazia furor em todo o
Mediterrâneo.
Então compreendi meu engano. A serenidade e a paz dos
seus olhos não procediam dos ensinamentos de Jesus de
Nazaré.
Pouco depois, de maneira casual, teria oportunidade de
penetrar mais fundo em suas crenças religiosas.
Aproveitando a confiança e a entrega da minha confidente,
apontei-lhe a escultura de pedra do rei Akhenaton, perguntando

pela origem daquele tesouro.
Cláudia fechou a cara, com ar de desagrado, e insultou
Pôncio: - Essa besta...
E indicando com o olhar os copos e recipientes sobre a
bandeja lamentou-se: - Não te alarmes diante da irreverência
desse malnascido.
Faz tudo para me mortificar. Ele sabe da minha veneração
pelo Egito.
E de suas explicações extraí dois fatos com o mesmo
denominador comum a arte egípcia -, mas curiosamente
distintos pela intenção.
Por outro lado, as inquietantes peças eram outra mostra da
voracidade do governador pelo dinheiro. Cláudia desconhecia a
procedência delas. Só o que sabia é que haviam custado uma
fortuna e que Pôncio pretendia revendê-las quando regressasse
a Roma. Em outras palavras: o enigma da tumba de Tutankhamon
continuava sem resolução. De outro lado, o Egito servia
para estimular a postura provocativa do demente. O fino olfato
desses doentes para captar as áreas sensíveis dos que os
rodeiam o levara a agredir o culto mais íntimo e fervoroso de
sua esposa. Ela admirava e partilhava a filosofia egípcia? Pois
nada melhor para castigar seu orgulho do que ridicularizar o
sagrado faraó-sacerdote convertendo-o em móvel-bar.
Esse era o autêntico governador da Judéia...
Mas a interessante conversa e minha vontade de esclarecer o
mistério do enxoval funerário foram súbita e lamentavelmente
cancelados. Na realidade não podia queixar-me. A paz até que
havia durado muito...
Então um Pilatos cambaleante surgiu no triclínio. Na mão
direita carregava precariamente a travessa de prata com os
úmidos e sangrentos miolos. Atrás, não menos ébrio, o tribuno.
Ergui-me e, por cautela, empunhei o cajado.
Então o governador, sem deixar de cantarolar, elevou os
braços e a travessa, saudando Cláudia com um efusivo domina

(o equivalente ao atual dona ou madame).
Mas os vapores do vinho começaram a agir. E ao querer
completar a galanteria com uma reverência tão caprichada
quanto falsa, a comida resvalou da travessa e precipitou-se
sobre o peito de Procla. E suas finas gazes receberam em cheio
aquela massa de sangue e miolos.
- Bastardo!...
Pôncio, atônito, retrocedeu. Mas o longo saio de musselina
reservava-lhe outra surpresa. Ao pisar a barra perdeu a precária
estabilidade e se esparramou de costas como um fardo.
Cláudia, com os olhos incendiados, pôs-se em pé. No mesmo
instante, o mestre-sala, a criadagem e o primipilus se
reuniram em torno a Pôncio, caído, e a Cláudia, desolada.
Para culminar, os músicos, desorientados, interromperam
bruscamente suas melodias. E diante do assombro geral, a
mulher, em pranto, abriu caminho aos repelões e saiu correndo
em direção ao portão de bronze.
Sagaz e instintivo, o tricliniarcha ordenou aos boquiabertos
músicos que prosseguissem. E os convidados, sem entender o
que acontecia, foram aproximando-se timidamente. Mas Pôncio,
ajudado por Civílis e o tribuno, depois de recuperar uma
precária verticalidade, rompeu em uma sonora gargalhada.
E os olhares vagos dos bêbados se apaziguaram.
Então, sem o menor traço de sentimento de culpa, ostentando
uma desinibição típica dos maníaco-depressivos, ergueu de
novo os braços, agitou as mãos e saudou a perplexa assembléia
exclamando:
- Omen accipio!
Depois disso, lentamente, comensais e criados retornaram a
seus lugares, os primeiros celebrando o bom humor do anfitrião
com mais uma das infinitas taças.
Quanto a Pôncio, sob o estrito controle de Civílis, foi reclinarse
no sofá presidencial. E apesar do excesso de vinho, a
hiperatividade do governador não deu trégua.

Sentou-se, voltou a deitar-se, ergueu-se de novo e, eructando
cavernosamente, exigiu a presença do escravo gaulês, para que
o descalçasse.
Nesse momento contemplei algo que também o retratava
perfeitamente.
As solas das sandálias eram pintadas. Pareceu-me reconhecer
a imagem alada da deusa Ísis. Procla, minutos mais tarde,
tiraria minhas dúvidas. A extravagância não era gratuita.
Pôncio expressava assim seus mórbidos sentimentos de
vingança.
Todos os seus inimigos e todo aquele a quem odiava haviam
sido pintados em sua incontável coleção de botas, sandálias,
pantufas, etc. E cada dia, ao despertar, dependendo do humor,
selecionava quem deveria ser pisoteado durante a manhã.
À tarde e à noite trocava de calçado... e de inimigos. E para
a festa de aniversário da esposa por que não? - o símbolo
mais venerado por Cláudia: a deusa Ísis.
Esse era o homem que julgou Jesus de Nazaré...
E o mudo e paciente atleta da cabeleira loira inclinou a
cabeça assentindo ao último desejo de seu amo: mais vinho e
mais miolos.
Então, agitando os rosados e roliços dedos, convidou o
tribuno e a mim para nos acomodarmos aos seus pés. O jovem
oficial responsável pela administração da coorte a quem
chamavam Védio -, foi o primeiro a obedecer. E Pôncio, mais
lúcido do que eu supunha, o obsequiou com o brilho dos seus
três dentes de ouro.
O tribuno, a julgar por sua juventude (provavelmente estava
pelos vinte anos), era um membro da classe senatorial que
cumpria o serviço militar na qualidade de tribuni laticlauis, ou
seja, um recomendado que assim preparava o cursus honorum,
fundamental para ingressar no senado de Roma.
Naturalmente só desempenhava funções de chefe
administrativo.

Ao lado do experimentado primipilus, aquele bisonho era uma
caricatura. Um arremedo de soldado que de certo modo aliviou a
pestilência dos excrementos de crocodilo que rebocavam o
edematoso rosto do psicopata. Digo isso porque o tal Védio
ostentava outra das maquiagens em voga entre os
privilegiados do império. Sobre uma peruca de pêlo de cavalo,
tingida de um vibrante escarlate, trazia uma branca pirâmide de
sebo de vinte centímetros de altura recheada com mirra
alaranjada. A função de tão insólito toucado era calculada.
Ao calor das tochas e da cálida noite, o cone derretia e
gordura e perfume escorriam pelo rosto e pela túnica,
impregnando o ambiente com uma penetrante fragrância.
O amaneirado jovem se deixou cair com dificuldade sobre o
branco e rangente piso e, sem dizer palavra, introduziu a mão
sob a túnica de um dos escravos que nos atendiam. Naquele
instante desejei abandonar o triclinium e a cidade. Mas o
Destino ainda não havia virado a página daquele borrascoso
dia.
Então redobrei a atenção e fui colocar-me à cabeceira do
sofá.
Civílis trocou umas palavras com o prior e encaminhou-se
apressadamente para a saída do triclinium. Os movimentos do
primipilus não passaram despercebidos ao governador. E com a
língua engrolada, sob o efeito do vinho, explodiu de repente: -
Rameira!... Essa raposa pensa que não sei de nada...
Védio girou a cabeça bruscamente, buscando a explicação
para a exaltação de Pôncio. E sebo e mirra salpicaram os pés
nus de Pôncio. Mas o chefe dos centuriões já havia transposto o
portão de bronze: 244
O governador arqueou-se no sofá, comprimindo o volumoso
ventre, recolheu gotas de maquiagem com as pontas dos dedos,
introduziu-as na boca e provou-Lhes o sabor. Depois, mostrando
a negra dentadura, arremeteu como um búfalo:
- Tem o gosto da leprosa!...
Indignei-me.

Mas a descarga daquele bruto ainda não havia terminado.
Introduziu os dedos pela segunda vez entre os lábios sensuais
e, lambendo-se, golpeou de novo: - Tem o gosto do Civílis!...
E cuspindo sobre os fragmentos de conchas, escolheu a fuga: -
Tomo por bom agouro!...
O tribuno, adulador, ainda desconhecendo o sentido das
sibilinas e torpes insinuações, uniu-se ao demente com outro
expressivo omen accipio. Então o governador, em uma pirueta
que me apanhou desprevenido, apontou-me acusadoramente e
mudou o alvo:
- E tu, de que falavas com a leprosa?... Também te andou
seduzindo? Dessa vez não me contive. E golpeei onde podia
feri-lo.
- Não, excelência... Tua ilustre esposa e este poderoso mago
me diverti com o poderoso mago - conversavam sobre um de
teus últimos erros...
O tribuno empalideceu. E a onipotência de Pôncio cresceu
como a espuma.
- Como te atreves?
Seus olhos me fulminaram. Mas não só não me intimidei como
o humiLhei sem piedade.
- Um juiz justo não condena um inocente.
- Inocente? - balbuciou, tentando recordar-se -. Impossível! - Tu
enviaste à cruz o Profeta da Galiléia...
Franziu a testa e desviou o olhar para Védio, em busca de
apoio.
- Profeta da Galiléia?
Eu mal podia acreditar. Cláudia tinha razão. O maníaco havia
afastado da memória o drama. Mas eu é que não estava
disposto a deixar passar aquela oportunidade de ouro. E o
obriguei a desbloquear a mente.
- Sim, o rei dos judeus...
O tribuno perguntou quem era aquele rei. Na minha opinião,

a absoluta ignorância de Védio sobre a Crucificação do Mestre
refletia uma situação que não foi bem avaliada pela História.
Para crentes e não crentes, com o benefício que a distância no
tempo outorga, a Paixão de Jesus tem sido considerada como
um acontecimento da máxima relevância, que teria feito
estremecer os pilares da sociedade judaica.
Nada mais distante da realidade. Com exceção da família,
dos amigos, seguidores, da casta sacerdotal e da força
acantonada na fortaleza Antônia, os fatos da sexta-feira 7 de
abril não comoveram a ninguém.
A notícia circulou por determinadas regiões da Palestina, sim,
mas isso foi tudo. A morte do Filho do Homem não seria
conhecida no império até alguns anos depois. Na época, como
demonstrava a pergunta do tribuno de Cesaréia, muito poucos
tiveram conhecimento do processo, das torturas e execução do
quase anônimo Galileu. Quanto ao significado da inteligente
Ressurreição, melhor nem comentar...
- Jesus de Nazaré insisti.
Pôncio, por fim, abrindo os olhos ao máximo, foi concordando
em silêncio.
- Inocente, sim exclamei enfurecido -, mas pendurado de uma
cruz.
Espantado pela súbita lembrança, passou da afirmação a uma
febril e convulsiva negação com a cabeça.
- Não foi um erro? - encurralei-o com todo o atrevimento de
que fui capaz.
Pediu vinho aos gritos. O gaulês, como um autômato, deixou
comida e bebida sobre a mesinha redonda que me separava de
Védio. Esgotou a taça e, esfregando a mão no rosto, na nervosa
tentativa de enxugar os filetes do espesso e quente vinho,
deslocou parte dos excrementos da maquiagem e os introduziu
na boca. Ficou vermelho, cuspiu, deu patadas no frágil móvel.
Então, mesa, jarras, vinho, travessa, miolos de macaco, tudo
rolou pelo chão.

Descontrolado pelo incidente, esqueceu minha pergunta e,
como a coisa mais natural do mundo, mudou sua fúria para o
assustado tribuno.
- Tu e tuas maravilhosas maquiagens!...
O tricliniarcha entrou em ação. E depois de recompor e limpar
o ambiente, perguntou a Pôncio se considerava oportuno entoar
o peán. Com esse cântico dava-se início ao terceiro e último
ato do convite: o temido simposion.
O governador ignorou-o e retomou o tema pendente: - Um
erro?
As mudanças de assunto, as abstrações e a hiperatividade
eram angustiantes. O pensamento, todavia, não era incoerente
nem dissociado. Sabia do que falávamos. Nunca o vi perder o
fio condutor. Também não captei sinais de desintegração do eu.
A sombra da esquizofrenia, no momento, não parecia ameaçálo.
- Tens razão esgrimiu, baixando o prepotente tom.
E a inesperada tática me deslocou. Será que reconheceria o
erro? Mas o imediato e irônico sorriso mostrou ao mesmo tempo
suas cáries e o sombrio coração. E me convenci de que para
aquele doente a palavra erro não figurava em seu vocabulário.
- Foi um lamentável erro... dos judeus...
Golpeou as coxas com ambas as mãos e riu do gracejo.
- Além disso apanhou de novo os miolos com ansiedade -,
agora é que me recordo, o tal Jesus era só um iluminado.
- Sim reconheci -, mas capaz de escurecer o sol...
Pôncio engoliu o meu torpedo junto com os miolos.
Engasgado, fez cair uma chuva de pequenas e sangrentas
porções da repelente comida sobre o efeminado tribuno.
E, tossindo e arfando, ainda repetiu, apesar da sufocação: -
Omen accipio!
E Védio, alheio ao assunto do portentum, quis saber o que
era. Como se recordará, o fenômeno só foi visível em Jerusalém.

Expliquei-lhe isso.
- Está claro explicou o tribuno dirigindo-se ao
governador, já recuperado -, Como sustentava o grande
Virgílio, um prodígio semelhante só pode ter sido obra dos
manes. Se o réu era em verdade inocente regressou para se
vingar...
A inoportuna reflexão do tribuno só serviu para acelerar o
pulso e o espanto do supersticioso Pôncio.
Os manes faziam parte dos já citados deuses de segundo
grau.
E ainda que a confusão fosse muita acerca do seu verdadeiro
significado, a maior parte da sociedade romana, incluído o
poeta Virgílio, os considerava almas de defuntos, encarregadas
de fazer o bem e o mal entre os vivos.(60)
Mas meu receio era infundado. O governador se refez
rapidamente do susto. Então, felicitando o incauto Védio pela
proposição, abordou a tese da vingança e concordou, triunfante
e convencido:
- Isso é possível. Os manes do profeta poderiam voltar do
além para castigar os judeus...
Depois da tergiversação acerca das atribuições desses
espíritos, olhou para mim e, em tom paternalista, censurou
minha amizade com sua mulher: - Deverias ter mais cuidado...
Suponho que sabes que os manes se infiltram nos sonhos,
provocando pesadelos quando não os honramos devidamente.
Apontando os murais às suas costas, queixou-se: - A leprosa
venera agora Ísis e esqueceu o culto aos mortos...
Pôncio mentia. Mas em sua sinistra psicologia o argumento
era inevitável.
Qualquer escusa era boa para responsabilizar os outros.
- E eles insistiu, para me pôr à prova voltam e castigam. É
o que estão fazendo com ela com essa maligna doença. Quanto
a ti, já veremos...

Continuou petiscando os miolos de macaco e, diante do meu
silêncio, que Lhe parecia a prova de que me vencera, optou pela
bajulação.
- Mas não te preocupes. Sou teu protetor. Diz-me onde
repousam os teus mortos e amanhã mesmo os cobrirei de flores.
(61) Adulação. Tentativas para dividir. Projeção de
responsabilidades. Mentiras frias, calculadas e sistemáticas.
Onipotência. Conduta provocativa. Ausência de inibição.
Bruscas mudanças de humor. Alta capacidade para medir a
resistência alheia. Fino instinto para ferir. Pensamento
vertiginoso. Nenhum senso de autocrítica. Julgamento sempre
severo e feroz para com os outros. Idéias delirantes...
Inútil continuar. Encerrei o assunto Jesus de Nazaré. Com
aquele psicopata era difícil argumentar. Não lembrava. Não se
sentia culpado. Pior ainda: culpava os judeus. A Crucifixão, em
suma, passara à história em sua mente enferma e devastada.
Assim era Pôncio Pilatos.
Então uma deslumbrante e renovada Cláudia Procla veio
arrancar-me de tão amargas reflexões. A governadora, com uma
nova e imaculada túnica branca de linho, reapareceu feliz e
radiante. E, como se nada houvesse ocorrido, foi instalar-se no
triclínio contíguo.
Pôncio deixou de tagarelar. E o seu olhar, turvado pelo vinho,
fixou-se no magnífico peitoral que pendia do pescoço da
governadora. Eu mesmo, ainda que por outras razões, vi-me
fascinado pelo colorido e o fausto da delicada peça. Entre
marfins, corindos e lápiz-lazuli, sobressaía uma turquesa
gigante, grande como um punho, trabalhada em forma de
pássaro com as asas curvas e estendidas. Corpo e cabeça eram
cobertos por finas lâminas de calcedônia semitransparente que
imitavam o escaravelho sagrado dos egípcios. Das garras, de
prata, pendiam lírios e lotos. E sobre as pinças do escaravelho
uma barca entaLhada com esmeraldas, transportando o udj o
olho divino, de ouro maciço.
O reflexo das tochas sobre o pesado pendente fez o

governador pestanejar. Com um sorriso desafiante, a mulher
apanhou uma taça de vinho, aproximou-a da boca e, sem deixar
de olhar para o marido, submergiu a língua na escura, espessa e
cálida bebida. E, sensual e vingativa, passou-a lentamente
pelos finos e rubros lábios, umedecendo-os.
Comecei a tremer.
Cláudia havia voltado com a acha de guerra. O símbolo
egípcio no peito, desaFiando Pôncio, só podia desencadear uma
catástrofe. Mas a súbita aparição do primipilus desviou
subitamente a ira do psicopata. E creio não errar se afirmo que
o passo marcial do centurião a multiplicou.
Procla, sem o menor pudor, girou também o olhar para o
recém-chegado.
O sorriso a transformou, iluminando-a. Com a travessa de
miolos sobre as pernas, Pôncio não sabia para onde olhar.
Civílis ou Procla? Procla ou Civílis?
O soldado, porém, continuou andando, alheio à admiração de
uma e ao furor do outro. E ao acercar-se do bufê pediu vinho
com mel.
Agarrei a vara de Moisés. O terremoto parecia iminente.
Mas Védio Deus o abençoe -, sem se dar conta do clima de
alta voltagem, salvou sem querer a tempestuosa situação. Com
a ousadia que o excesso de vinho provoca dirigiu-se à
governadora e retomou o debate sobre os manes, perguntando
se as pinturas representavam a vingança dos espíritos dos
mortos.
Procla, confusa, pediu que se explicasse.
E o tribuno saindo pela tangente resumiu a recente
polêmica em torno do Crucificado e a hipótese de Pilatos sobre
os manes e suas magníficas artes.
A mulher, aproveitando a esplêndida oportunidade,
capitalizou o tema, rebatendo e humilhando o marido.
- Morto? Que morto? - replicou com ironia -, O governador foi
imediatamente informado da Ressurreição do Galileu.

E sem medir o alcance das palavras, com a única intenção de
esmagar a maledicência do marido, acrescentou: - Meus sonhos
não são obra de mortos, mas de vivos...
Védio, entre risos, refutou a absurda notícia da volta à vida
do Profeta. Para minha satisfação fui testemunha, em seguida,
de uma acalorada discussão sobre deuses e crenças religiosas.
E, ainda que seja meu propósito voltar a esse apaixonante e
transcendental capítulo ao qual também Jesus de Nazaré teve
de enfrentar -, não posso deixar de resumir a essência de tão
instrutivo duelo. Um debate que sepultou de vez a suposta
comunhão de idéias de Cláudia com o cristianismo.
O jovem aspirante a senador, pertencente, como a
governadora, à classe dirigente romana, era adepto do
epicurismo, uma das correntes filosófico-religiosas dominantes
ao tempo.
No caso de Védio, essa busca da felicidade através da razão
e do conhecimento das coisas enfrentava violentamente as
velhas tradições, que defendiam a supremacia absoluta dos
deuses (uns trinta mil, segundo Hesíodo). Devido à sua extrema
juventude, o rapaz ainda não havia conseguido desembaraçarse
desse pesado lastro.
Como iríamos comprovando ao longo da nossa missão, esse
era o angustioso dilema de boa parte das novas gerações
minimamente cultas do império. Não compreendiam o porquê de
tantos deuses. E duvidavam de sua eficácia e do seu suposto
controle sobre o homem. E certo dia alguém começou a abrir-lhes
os olhos.
Esse personagem, o filósofo grego Epicuro, falecido em 270 a.
De C., viria a abalar os pilares religiosos do mundo civilizado.
Esse mestre, filho de mestre, teve a audácia de questionar o
papel dos milhares de divindades e os correspondentes ritos,
superstições, castigos e prêmios. E suas magistrais idéias
desestabilizaram a mentalidade da época. Esse aluno de Pânfilo
e Xenócrates ensinou a seus contemporâneos que o fatalismo
era uma fraude e os deuses, um meio para sujeitar e governar
vontades. E animou-os a pensar por si próprios.

Epicuro combateu sem descanso a religião baseada no terror
e na permanente submissão aos deuses. Sua moral tinha por
ponto de partida o reconhecimento das necessidades humanas
e a imperiosa obrigação de satisfazê-las. E baseava a
felicidade na prudência. Era essa virtude que devia regular os
atos dos homens. Provavelmente seu conceito de prazer não foi
bem entendido.
Não defendia a sensualidade desenfreada ou o prazer dos
fartos. Isso foi praticado pelos maus epicuristas. Seus objetivos
não eram hedonistas. Não perseguia o prazer como único e
último fim. O empenho desses homens e mulheres era outro: a
obtenção da ausência de dor física como o grande bem, como a
ataraxia da alma (o eu imperturbável diante das agressões
do mundo).
E fixou os princípios para o estudo científico que deveria levar
a um meLhor conhecimento das coisas e, em definitivo, à
compreensão do lugar ocupado pelo homem na Natureza. E com
uma visão genial do que um dia seria a física quântica, teve a
coragem de romper com o determinismo mecanicista de
Demócrito introduzindo o conceito de indeterminismo, em
virtude do que chamou clinamen (certa declinação espontânea
dos átomos). E considerou a alma uma entidade individual,
construída por átomos simples, ainda que mortal e finita.
Muitos dos discípulos fundaram centros epicuristas em
Lampsaco, Egito, Mitilene, Roma e Antioquia. E anos antes do
nascimento do Mestre, Fedro, Zenão e Filodemo de Gadara
ensinaram essa doutrina na capital do império, causando um
grande impacto e levantando ondas de protestos entre os
ortodoxos. Desde fins do século I a. De C., em especial com as
calorosas prédicas de Lucrécio,(62) o movimento de Epicuro
atingiu o auge, semeando a discórdia entre gerações. Para esse
ilustrado discípulo, a fé não passava de um espectro
gigantesco que se elevava da terra ao céu, cuja dura pisada
esmagava ignominiosamente a vida do homem, enquanto que
seu rosto o ameaçava cruelmente do alto. E numerosos
pensadores, Ovídio, primeiro, e Epícteto mais tarde, se
rebelaram contra a heresia, exigindo respeito para com os

deuses e censurando quem, com esse veneno, destruía os
espíritos jovens, desgarrando-os.
Graças a esse providencial herege, muitos passaram a aceitar
que o verdadeiramente importante era trabalhar e esforçar-se
por elevar o estatuto e a dignidade do homem, renegando as
superstições que os aprisionavam. Algo realmente louvável se
levarmos em conta que a filosofia epicurista negava toda
transcendentalidade.
E do mesmo modo que o estoicismo e o cinismo, as outras
duas grandes tendências filosóficas existentes em vida de
Jesus, o epicurismo contribuiu em grande parte para fazer mais
compreensível a originalíssima mensagem do mestre e a
posterior ação missionária de seus discípulos. Foram
sementes, que a História e a própria Igreja católica parecem
ter esquecido.
E já que o menciono, seria o caso de traçar umas rápidas
pinceladas que refrescassem a memória do hipotético leitor
deste diário com respeito a essas filosofias, que de certa
maneira abriram o caminho do Mestre. Doutrinas que Jesus de
Nazaré conheceu muito bem, que respeitou e que foram tema de
inolvidáveis e brilhantes debates com gentios e judeus. Um
capítulo, como veremos a seu tempo, tão belo e fascinante
quanto desconhecido...
O estoicismo, em síntese, fundado em fins do século II.
Por Zenão de Cítio, não pode considerar-se como uma
religião. Foi, isso sim, uma filosofia de luxo, muito próxima, em
alguns aspectos, ao doutrinado pelo Filho do Homem.
Acreditavam em uma Razão superior, em um Deus-Razão, que
governava a Natureza. A virtude, o grande objetivo destes
preclaros pensadores, consistia na harmonia com o criado. A
alma, diziam, era de origem divina e, mesmo encarcerada em um
corpo físico e detestável, devia esforçar-se por obter esse
equilíbrio com homens e coisas.
Consideravam-se descendentes desse Deus-Razão e, em
conseqüência, pregavam a irmandade entre os seres humanos.

O melhor prêmio a que aspiravam chamava-se esforço. Esforço
por conquistar a virtude. Tudo o mais os deixava indiferentes.
Infelizmente nunca identificaram Razão-Deus com Deus-Pai,
com o Áb-bã que Jesus de Nazaré patenteou.
De sua parte, os cínicos, uma seita na qual provavelmente
se inspiraram os estóicos, nunca se elevaram à espiritualidade
dos homens-razão.
Antístenes (435 a 370 a.de C.), discípulo de Sócrates, pode
ter sido o criador dessa escola. Outros asseguram que foi
Diógenes, o ateniense.
Basicamente, seus princípios centravam-se no desprezo da
matéria. Não valorizavam riquezas, saúde, ciência ou deuses.
Tudo isso era inútil e desprezível. A única coisa positiva
para os cínicos era livrar-se dos desejos. Só assim, afirmavam,
seria possível desfrutar a felicidade.
Diante do assombro do mundo lançaram-se a pregar pelos
caminhos a salvação mediante a simplicidade, a virtude e a
castração dos desejos.
Foram os primeiros missionários. E sua filosofia, ainda que
incompleta, preparou a grande revolução. Uma revolução, a do
Irrepetível, que melhor será compreendida se não perdermos
de vista essa caótica situação em que se debatiam os povos
quando o Mestre decidiu iniciar a vida pública.
Cláudia, depois de ouvir as excelências do epicurismo e as
explicações sobre a alma mortal e sem possibilidades de
ressurreição, expostas por um Védio arrogante e dono da
verdade, arremeteu como uma loba: - Então te atreves a duvidar
da sabedoria dos nossos antepassados? Como podes negar a
proteção dos deuses? Procla, como já expliquei, participava
firmemente das tradições dos seus ancestrais. O culto a Ísis,
como outros rituais, era uma manifestação a mais das religiões
de massas, dominantes em todo o império e nos restantes
países civilizados. Epicuristas, estóicos e cínicos constituíam
uma minoria diante dessas crenças institucionalizadas.
As religiões oficiais, que poderíamos definir como

mistéricas, estavam intimamente ancoradas nos mitos ou
mistérios legendários, com as inevitáveis cortes de deuses de
todo tipo. Umas religiões que favoreciam o nascimento de
sociedades secretas e herméticas, com suas inseparáveis
liturgias, líderes, superstições e aberrações. Todos vendiam
felicidade e salvação eterna, em troca, claro, de submissão,
dinheiro e sacrifícios sem conta.
- Prudência? Ataraxia? O eu imperturbável?... - a
governadora o fustigou sem piedade -, Vosso admirado Lucrécio
fez de tolos a todos vós...
E sorrindo com satisfação o encurralou:
- Epicuro teria aplaudido o seu suicídio?
Lucrécio de fato matou-se aos quarenta e três anos.
- Prefiro terminar assim respondeu Védio sem voltar atrás
a viver sob a bota de uns deuses adúlteros, cruéis, ladrões e
caprichosos.
Procla ensaiou o contra-ataque. Mas o tribuno não havia
terminado.
- Essa mitologia que vos consome é um conto que engorda
sacerdotes e confunde o homem.
Pôncio, inexplicavelmente, fechou os olhos. Mas não parecia
adormecido.
- Será que não conheces Sêneca? - atacou de novo a
governadora referindo-se a um dos mais ilustres representantes
do estoicismo -. Ele sim defende uma divindade superior e uma
legião de deuses menores.
- Sêneca é um estóico? - zombou o jovem -. O único equilíbrio
e harmonia que enxerga e pratica é o do dinheiro e da
adulação.
E acrescentou, atenuando:
.. Vejo, querida Cláudia, que tu é que não conheces esse
falacioso. Seu estoicismo ele o resumiu em uma frase: A lógica
não é conveniente para a sabedoria.

E Védio, mais bem informado do que eu supunha, desnudou o
célebre escritor, filósofo e advogado cordovês: - A única Razão
Deus para Sêneca é Sêneca. Desde quando um político crê na
virtude? De verdade o importante para Sêneca é o homem?
E rindo com vontade disparou:
- Se é assim, amanhã mesmo lhe pedirei a metade da sua
fortuna.(63) E cuspindo a mistura de sebo e mirra que lhe
escorria pelo rosto, deixou clara sua oposição a Lúcio Anneo
Sêneca:
- Um autêntico estóico não incide no estupro e na violação.
E te digo mais: logo descobriremos o seu verdadeiro senso de
prudência. Por trás de seus sábios escritos e discursos só existe
um desmedido desejo de poder. Sêneca não sossegará
enquanto não entrar no senado...
- Calúnias! - interrompeu-o Cláudia com uma indignação
crescente.
- Pergunta-lhe defendeu-se o tribuno -. Neste momento está
em Alexandria com seu tio Caio Galério, o prefeito... Além disso
desqualificou-a sem misericórdia -, eu sou epicurista.
- Estóicos, epicuristas... Que mais teremos! Todos sois iguais.
Todos buscais a destruição do império...
Védio voltou a rir, negando com um gesto de cabeça.
- Pobre infeliz! - sentenciou ela amparando-se na segurança
da sua hierarquia -. Pretendes mudar o mundo? - Só o homem
distinguiu o inteligente amaneirado -. O outro, no devido
tempo...
- E como? - interrogou-o Cláudia ferindo-o no mais íntimo -.
Fugindo da dor? Ganhando batalhas com legiões de
efeminados? Védio buscou amparo em outra taça de vinho.
- Tua mente atrofiada retrucou por fim com frieza -,
pisoteada pela insensatez da superstição, não pode
compreender. Só vês pelos olhos desses sacerdotes e deuses
que te exigem, te ameaçam, te escravizam. Mas chegará o dia
em que o homem ocupará esses altares...

- Blasfemo!
O tribuno não se impressionou:
- E chegará o dia em que as necessidades do homem serão
mais importantes do que essas ridículas necessidades dos
deuses.
- Que obsessão explodiu a governadora -. Como podeis
comparar uma coisa com outra? Vós mesmos reconheceis que o
homem é algo finito, que volta ao nada...
- Sim, somos apenas átomos assentiu o tribuno,
desfechando em seguida outra cutilada mortal -. Mas tuas
divindades nem sequer existiriam se não fossem esses átomos.
- A imortalidade dos deuses vacilou Cláudia perigosamente
-, é inquestionável.
- Quem o disse?
E Védio respondeu a si mesmo:
- A tradição? O imperador? Os áugures?
- Herege!
- Sim inflamou-se o jovem -, um herege que quer manobrar
o timão de sua vida, de seus atos, de seus erros...
E erguendo a taça pronunciou um brinde que envenenou
definitivamente sua contendora: - Pela vida!... Por um mundo
sem obscuridade... Por mim mesmo, que posso dispor dessa vida
quando quiser! E Cláudia, erguendo a sua, não ficou atrás.
- Pelos deuses!... Por Ísis, a luz divina!... Pela deusa Fortuna!
Que ela te confunda! - Loucos! Estais loucos! - acometeu ele
entre risadas -.
Será que não sabeis que o acaso é conseqüência do
clinamen? Como podeis entronizar como deusa um simples
fenômeno físico? Pobres escravos do determinismo!...
- Não queiras confundir-me bramiu Cláudia -. Determinismo
não. Vontade divina sim.
- O nada governando o nada! - murmurou Védio já acusando o
cansaço do encarniçado duelo -. O acaso como grande protetor

dos indignos! - Foi o acaso ou a vontade dos deuses que
permitiu a Ísis encontrar o corpo de seu irmão Osíris? A questão
colocada pela iracunda governadora não foi muito feliz. E o
tribuno a destroçou:
- Em que ficamos? Não dizes que os deuses são imortais?
Quem então conseguiu despedaçar o pobre Osíris?(64) Cláudia,
perplexa, não soube responder.
- Vontade dos deuses voltou Védio enterrando-a -, ou de
uns sacerdotes que não querem perder o favor de tão
prometedora e saborosa clientela? - Sacrílego!
Nesse instante Pôncio abriu os olhos e riu sarcasticamente.
Procla, surpreendida pelo inesperado ataque do marido,
não conseguia ir-se: rebatia o insolente jovenzinho ou ajustava
contas com o psicopata? A esitação perdeu-a. Védio, triunfante,
continuou acutilando a desconcertada governadora: - Vou dizerte
o que penso. Osíris, se é que existiu, foi um louco. E sua
irmã, uma histérica...
A risota do governador feriu de novo em cheio a mulher. E
desejei com todas as minhas forças que alguém acudisse em
nosso auxílio. E para minha surpresa esse alguém fui eu mesmo.
- Duvidas da magia de Ísis? - recuperou-se Procla olhando
depois para mim Pergunta-lhe! Senti-me apanhado.
- Pergunta ao mago!
O tribuno me obsequiou com uma observação petulante: -
Outro adivinho?
Dessa vez, Pôncio não se calou.
- Ignorante, a magia existe!...
E a governadora sacou a pergunta fatídica:
- Queres uma demonstração?
Tentei dizer alguma coisa, num esforço por impedir os
propósitos de Procla. Foi inútil.
- Jasão! - ordenou a mulher sem contemplação -. Mostra a este
epicurista ateu e orgulhoso até onde chega o teu poder.

Mas os insultos funcionaram. E me salvaram...
momentaneamente.
- Ateu? - ironizou Védio -. Me chamas ateu?
Cláudia, desorientada pela súbita réplica, deixou em
suspenso a ordem e o terror que me dominava.
- Não sois vós vociferou o amaneirado fora de si os que
adorais o raio e o lobo? Não sois vós, pobres inconseqüentes,
que haveis reduzido as divindades a monstros cheios de ira,
inveja, ciúmes e concupiscência? Onde estão a espiritualidade e
a liberdade desses supostos deuses? Não sois vós, cegos e
tolos, que venerais a matéria inanimada? A certeira
argumentação era inapelável.
- Gente como vós prosseguiu para meu alívio condenou
Sócrates e o grande Aristóteles por não acatarem os
deusezinhos de suas cidades.
E tomando fôlego rematou:
- Leste a Metafísica? Nela, Aristóteles define Deus como um
ser eterno e perfeito. Vale dizer, o pensamento do
pensamento...
Arquejante e farto da discussão foi baixando o tom: - A isso
aspiramos. Isso é o epicurismo. É isso ateísmo? Quem é o ateu?
Tu, adoradora de astros, ou eu, da inteligência?
Mas a governadora, com suas idéias fixas, voltou a apontarme
com o dedo.
E Védio, adiantando-se, nos desdenhou:
-Astrólogos!... Magos!... Feiticeiros!... Adivinhos!... Já sei, os
novos deuses! E aludindo ao cajado que eu tinha sobre as
pernas (o lituus curvo de áugure), se lamentou:
- Fabricantes de felicidade empacotada... e a domicílio.
Puderam os teus astrólogos predizer o escurecimento do sol?
Pôde esse mago e profeta da Galiléia predizer sua morte? Meu
cérebro processava a grande velocidade. Devia interrompê-lo,
alongando assim a discussão? Uma vez concluída a peroração, à

vista da teimosia de Cláudia, estava claro que sobraria para
mim. Que podia fazer? Preliminarmente, qualquer coisa menos
converter-me em uma atração. E o Destino (?) ouviu minha
súplica...
- Nenhum de teus deuses vangloriou-se o tribuno é capaz
de matar-se a si mesmo. Eu, ao contrário, posso fazê-lo agora
mesmo.
E para assombro geral, sacando um punhal oculto entre as
pregas da sua túnica, colocou-o sobre o coração. Cláudia lançou
um grito. Pôncio ergueu-se de um salto. E os centuriões
priores, como um só homem, caíram sobre Védio, arrebatandolhe
a arma. Civílis interveio prontamente, erguendo o afetado
tribuno. As lágrimas do jovem, irrefreáveis, deram-me uma idéia
de quão perto estivéramos de uma tragédia. O convicto
militante do epicurismo falava a sério.
E Procla, compreendendo também que o debate havia ido
demasiado longe, se apressou a consolar o tribuno, esquecendo
qualquer ressentimento. Aborrecidos por tão longa espera, os
convidados organizaram um cordial e jovial protesto, golpeando
as mesas com punhos, jarras e taças e depois gritando em coro.
Isso pôs fim à segunda parte do convite e à minha incerteza: -
Pean!... Pean!... Pean....
Até a música foi suplantada pelos protestos e o rítmico e
bem-vindo apelo. A partir daí a festa o simposion
propriamente dito decorreu febrilmente, quase
endemoninhado.
E houve de tudo, naturalmente.
Pôncio, reclamando paz, concordou. Então os convidados, de
pé, entoaram o pean, um cântico de louvor a Dioniso, a
bondade divina. A criadagem serviu vinho puro. E o
governador, seguindo a tradição, molhou os dedos na bebida e
a espargiu no ar com rápidos e nervosos toques.
E em cada aspersão invocou o nome e a bênção do deus.
Novos brindes. Esse por todos os presentes. E os bêbados
encerraram o ritual com outra demonstração de alegria:

ergueram os braços e estalaram os dedos.
E o simposion prosseguiu entre vivas, aplausos, tragemata
(frutos secos), vinho à vontade, um vibrante solo do músico
responsável pelo aulos duplo... e vomitórios.
Os escravos, bandeja na mão, ofereciam duas opções: a
tradicional pena de ganso, com a qual o comensal podia
provocar o refluxo, ou uma pastosa e escura poção à base de
infusão de escamônea de Alepo, uma planta herbácea
importada da Síria. O drástico purgante era eficaz cem por
cento. E como alguma coisa habitual, sem constrangimento,
alguns dos convidados vomitaram vinho e comida meio digerida
nas bacias de prata trazidas por imperturbáveis criados. Então
pediram novos manjares.
Rei do banquete... O mestre-sala distribuiu dados de
argila.
A cerimônia, obrigatória nos banquetes de categoria,
consistia na eleição do simposiarca, o rei ou diretor do
simposion, o qual ficava investido de todo poder. Suas ordens
eram sagradas. Entre as atribuições figuravam as de estabelecer
as proporções de vinho e água, o número de taças a ingerir, a
ordem das atrações, concursos, etc., e sobretudo os castigos a
impor a quem ousasse perturbar a festa.
A maioria, demasiado embriagada, declinou do convite.
Cláudia não teve sorte. Seu dado marcou um ás (o um). E
chegou a vez do governador. Beijou o falo que pendia do
pescoço e lançou o cubo. E a peça, depois de repicar sobre o
piso de conchas, foi parar aos meus pés. O tricliniarcha, atento,
cantou o seis, a tirada de Afrodite. Vivas e aplausos. Pôncio
colocou-se na cabeceira.
Instintivamente, mais por cortesia, recolhi o dado e ao lançar
os olhos nele descobri perplexo que todas as faces tinham
gravada a letra grega correspondente ao número seis (a
dseta, com uma vírgula alta à direita). Onipotente... mas
falcatrueiro.
E o mestre-sala, ao pedir-me o dado, me lançou uma

piscada de cumplicidade. Naturalmente, o governador seria
proclamado rei do banquete... Na realidade, como iria
comprovando a cada passo, tudo ou quase tudo naquele
simposion estava perfeita e meticulosamente programado
pelo psicopata.
Coros...
A outro sinal do maitre, com prévia aprovação do rei, a
música parou. E dez meninos uniformizados com túnicas azuis
irromperam no triclinium alinhando-se disciplinadamente diante
do sofá de Cláudia. Dois adultos, com roupagem idêntica,
dirigiam os cantores.
A governadora simulou surpresa. E, depois de pedir silêncio,
sob a batuta de um dos elementos de azul, o coro entoou a
primeira canção. E a orquestra, em um discreto e heterófono
segundo plano, mais divergente que convergente, mas com
notável boa vontade, acompanhou a melodia.
E ao estilo grego, sem alarde, sem tons mais altos, com notas
máximas de duas oitavas (às vezes em uma só), os infantes
fizeram a delícia da homenageada. Éclogas de Virgílio,
fragmentos do Orestes de Eurípides e a canção de Sicilo. E tudo
isso interpretado e dançado pelo segundo adulto, um tipo de
mimo-bailarino.
Fiquei maravilhado. E aquela poesia, cantada e expressada
como um balé, me relaxou. Pôncio, reclinado no triclínio
presidencial, bocejou sem dissimulação. E como fecho de ouro
ao especial presente a Procla, o virtuosismo do aulétrida.
O músico do duplo aulos afastou-se de seus companheiros e,
animado pela doçura da sua kithara, improvisou simples e
genialmente. E seus acordes em oitavas inflamaram os
sentimentos da mulher.
Os olhares de Procla e Civílis se encontraram mais de uma vez.
Aplausos cerrados despediram o coro. E o músico do oboé,
entre assobios, foi obrigado a beber a taça de vinho que
pessoalmente Lhe ofereceu a emocionada governadora. E a
bebida, sem mistura, continuava correndo perigosamente...

Dançarinas... A nova atração foi o princípio do fim.
A aparição no triclinium de meia dúzia de homens e mulheres,
provavelmente sírios e béticos(*), completamente nus e
pintados com pequenos círculos vermelhos, pretos e brancos, foi
acolhida com aplausos, vivas, assobios, saltos e brindes.
Védio saiu do seu letargo e, saracoteando, saiu ao encontro
dos bailarinos, com a intenção de juntar-se à frenética agitação
de peitos e quadris. A orquestra se concedeu uma folga,
deixando de guarda tambores e pandeiros. Os dançarinos
ocuparam o centro do grande refeitório e, contorcendo-se
provocativamente, circularam entre mesas, tochas e sofás.
Védio e seu cone de gordura e mirra não tardariam em beijar
o chão. E ali ficaram, em plácido sono.
Vários convidados tentaram agarrar os belos homens e
mulheres. Atentos e ágeis, porém, e ainda por cima lambuzados
de azeite, souberam sempre esquivar-se às libidinosas
investidas. Saturados como esponjas, os excitados funcionários
e monopolei foram tombando, um depois do outro, sobre mesas,
escravos e companheiros.
Por sorte, a embaraçosa situação foi conjurada em parte pela
quase simultânea entrada em cena dos jogos e competições.
O tricliniarcha, veterano nessas lides, tinha tudo calculado.
Melhor dizendo, quase tudo...
No centro do U formado pelos triclínios foi disposto um
enorme odre de pele de porco repleto de vinho. A pele havia
sido previamente untada com gordura. O jogo, a que chamavam
ascoliasmós, era simples. O competidor tinha de subir no odre e
tentar permanecer o máximo de tempo sobre a resvaladiça
superfície. O vencedor ficava com o vinho.
Sorridentes e animados, retorcendo-se ao compasso do
estimulante rufar de um tambor, gracejos e aplausos faziam o
acompanhamento da esperada e rápida queda do ousado.
Depois de dez ou doze tentativas, cada qual mais desastrosa, o
concurso foi encerrado sem vencedor.
Espanhóis e sírios se retiraram e a enlouquecida platéia

readquiriu o equilíbrio... temporariamente. Então teve início
outro dos jogos da moda: o cótabo.
A criadagem colocou no solo, eqüidistante dos triclínios, uma
vasta vasiLha de prata cheia de água. Sobre o líquido,
flutuando, quatro tigelinhas de barro sem asas. Cada comensal,
do seu lugar, depois de beber uma taça de vinho, atirava os
restos da bebida sobre a vasilha, procurando encher e afundar
as tigelas. Ao mesmo tempo, invocava o nome da pessoa
amada.
Um alvo era considerado bom presságio.
Entre vivas e aplausos, o vencedor, com dois afundamentos,
recebeu uma cesta cheia de ovos podres. O disputado cótabo,
com as abundantes e repetidas ingestões de vinho, afundou
por sua vez vários dos pagãos, que se abandonaram
inconscientes sobre os almofadões ou no chão mesmo.
Civílis e seus homens não prestaram muita atenção ao jogo.
Ficaram conversando animadamente às costas dos dois
sofás ocupados pelo governador e Cláudia. Esgotado pelo
espetáculo da borracheira geral, resolvi juntar-me aos centuriões
e decuriões.
Acrobatas...
O rei concordou, com um gesto de cabeça. E logo, a um
toque de chamada do duplo aulos, saltou para o triclinium o não
menos obrigatório grupo de funâmbulos: uma mulher
extremamente delgada, com o cabelo raspado e nua da cintura
para cima, e dois jovens negros. E com uma sugestiva cortina de
tambores, os ginastas iniciaram sua exibição: malabarismo,
equilibrismo, saltos, volteios...
Os convidados, incapazes de distinguir a mão esquerda da
direita, prorromperam em assobios, exigindo algo mais
excitante. Então a atleta, abandonando os exercícios, pediu aos
companheiros um novo aro. Entre murmúrios de admiração, os
negros surgiram com um aro de metal de um metro e meio de
diâmetro. Cláudia protestou. O demente, porém, riu como uma
hiena. Eu estremeci. É que o aro era cruzado por seis espadas,

firmemente presas ao ferro e as afiadas pontas voltadas para a
parte interna.
A acrobata, quase uma menina, hesitou. Parecia procurar o
lugar adequado. Finalmente ordenou aos ajudantes que se
colocassem diante dos triclínios dos anfitriões. Procla fez um
gesto de retirar-se. Mas o rei, com um autoritário gesto das
mãos, obrigou-a a permanecer no sofá.
Civílis, inquieto, deu um passo à frente. E vi que media o
espaço livre entre os extremos das armas: um círculo de
apenas quarenta centímetros de diâmetro. E de novo se ouviu a
risota de Pôncio.
Os atletas, tensos como a própria Cláudia, ergueram e
imobilizaram o rebrilhante aro a pouco mais de um metro do
solo. Suarentos, contiveram a respiração.
A música emudeceu. E com ela os poucos que conservávamos
um mínimo de lucidez. A jovem, contando os passos, retrocedeu
quinze metros. Voltou a calcular visualmente e se concentrou
durante uns segundos eternos.
Nesse instante, obedecendo a um quase imperceptível
movimento de cabeça do governador, o tricliniarcha mobilizou
em silêncio os criados. A atleta, com os olhos cerrados, não
percebeu a manobra.
Então, trinta ou quarenta criados foram ocupar posição junto
aos sofás, às costas da sonolenta platéia. O primipilus e eu
nos olhamos, num sinal de alerta, mas sem compreender.
Demasiado tarde...
A adolescente acabava de iniciar uma elegante e ágil corrida.
Quatro metros: uma primeira e limpa cambalhota.
Exclamações. Sussurros.
Quatro mais: segundo salto com giro completo sobre si
mesma.
Cláudia cerrou os olhos.
Os corações se encolheram.

Terceiro e último salto.
E a jovem se lançou, corajosa, com os braços colados ao
corpo, na direção do aro. E nesse crítico momento trinta ou
quarenta punhais se cravaram nos almofadões inflados sobre os
quais repousavam os bebedores. Estrondos. Quedas. Gritos.
Lâmpadas derrubadas... Boa parte dos convidados rolou pelo
chão.
A ginasta, descontrolada pelo súbito cataclismo, perdeu o
equilíbrio e abriu os braços no instante mesmo em que
penetrava no círculo entre as espadas. E um amargo e pesado
silêncio caiu sobre a sala. Cláudia desmaiou.
Durante alguns segundos, mudos e perplexos, os atletas que
sustinham o aro ainda permaneceram imóveis como estátuas,
sem dar crédito ao que viam.
Impelido por uma raiva incontida, precipitei-me em direção ao
corpo da infeliz. Civílis me seguiu. Nada pude fazer. Duas das
espadas lhe haviam aberto o flanco e literalmente secionado o
coração. A mão esquerda, amputada, jazia sobre os leitosos
fragmentos de conchas, agora rubros do sangue que gotejava
dela incessantemente.
Movi a cabeça negativamente. E o centurião, com um rápido e
frio movimento da uitis, ordenou aos escravos que levassem o
aro, o cadáver e os negros. Priores e decuriões,
instintivamente, rodearam os triclínios presidenciais, isolandoos.
E só se moveram quando os atletas já haviam abandonado o
triclinium.
E aquele repugnante psicopata assassino morto de rir
deixou o sofá, foi recolher a esquecida e ainda quente mão da
acrobata, colocou-a sobre a peruca e se pôs a dançar, entoando
o omen accipio. A paróquia, entusiasmada, acompanhou em coro
o recebo como bom agouro e aplaudiu frenética a excitante
atração, tão magnificamente montada pelo rei.
Civílis leu a indignação que me dominava. Sem palavras,
agarrou-me pelo punho esquerdo e me levou até o solitário
bufê, onde me ofereceu uma taça de vinho e pediu-me calma.

Tinha razão. Era preciso que me controlasse.
Presentes...
E o simposion entrou em uma fase mais relaxada e não menos
esperada pelos bêbados. Na realidade, uma das principais
atrações dessa festa para tanta gente era precisamente o
sorteio que estava a ponto de acontecer. A categoria e o poder
econômico do anfitrião se mediam também pelos presentes
distribuídos entre os convidados. Presentes de todo tipo,
claro... Ao som de música, o próprio Pôncio, ainda com a
sangrenta mão sobre a cabeça, foi distribuindo as papeletas:
pequenos papiros, dobrados e cuidadosamente costurados,
postos em uma urna de vidro.
Então cada comensal, os que ainda sobreviviam, entre
calorosas adulações a tão régio simposion e gracejos alusivos
ao macabro toucado do rei, foi retirando seu papiro surpresa.
O primipilus voltou para junto de seus companheiros de
armas. Eu, com o firme propósito de fugir daquele manicômio
quanto antes possível, segui seus passos.
Cláudia parecia refeita. O rosto, todavia, afilado pelo recente
assombro, não era o mesmo... No intento de confortá- la fui
sentar-me ao seu lado. Agradeceu-me o gesto com um curto e
forçado sorriso.
Então chegou meu turno.
O psicopata, aproximando-se de nós, estendeu-me a urna.
Hesitei. Olho para Cláudia e ela me animou a apanhar um dos
papiros. Pôncio, requebrando-se todo, com maquiagem e túnica
arrasados pelos filetes de sangue, perguntou-me com a voz
enrouquecida e entaramelada pelos litros de vinho: - Divertindote...
Respondi com o silêncio e um olhar de infinito desprezo. E
ele, com o olhar enevoado, anunciou ameaçador: - Prepara-te...
Logo poderás demonstrar teu grande poder...
A advertência me assustou. Que é que pretendia aquele
louco? Em que estaria pensando.

Cada qual dos convidados foi abrindo sua papeleta. Mas no
interior só figurava um número. E supus que o maníaco não
havia esgotado sua fértil e daninha imaginação.
Mas o inicial desencanto da clientela foi rapidamente
neutralizado. O tricliniarcha, diante da expectativa geral, pôs-se
a cantar os números, enquanto a criadagem entregava o
presente correspondente.
Risos. Aplausos. Assobios...
Houve de tudo. Uns receberam exóticos pássaros cantores em
gaiolas de ouro. Outros, misteriosas caixas de osso e marfim.
E ao abri-las, novos gritos...
Uma continha moscas. Outra, uma reluzente esmeralda. Uma
terceira, excrementos humanos rodeando um grande rubi. Mais
além, um preservativo ou uma libra romana (327 gramas) de
plumas de ganso com o preço pintado no fundo: cinco denários
de prata (pouco mais ou menos o salário semanal de um
trabalhador do campo), O tribuno, já quase recobrado, estava
ao pé da grande concha e acolheu com indiferença um dos
presentes mais invejados: uma das dançarinas sírias. E além
disso...
Custosos vasos de cristal e murra. Um soberbo açor
adestrado para a caça. Mantos vermelhos. Um anão nu com um
enorme membro viril. E outra das delicadezas do louco: um
cesto de vime fechado com percintas. O ébrio, atropelado pela
ruidosa companhia, abriu-o de golpe e arrancou com violência a
tela que o cobria. Gritos, carreiras, golpes. E mesas, lâmpadas
e escravos novamente lançados ao chão.
Cláudia, guinchando sem controle, subiu no triclínio.
Civílis e seus centuriões, espadas na mão, saltaram ao centro
do U. Da canastra havia escapado mais assustada talvez que
os comensais uma família de dóceis e inofensivas serpentes
aurora.
Os quinze ou vinte exemplares, de noventa centímetros de
comprimento, escamas verde-oliva sobressaindo no fundo preto
e a inconfundível estria laranja da cabeça à cauda, deslizaram

velozes entre sofás, mesas, gaiolas e bêbados que jaziam
inconscientes, tentando por sua vez fugir daquela chusma de
perigosos seres humanos.
Um dos ofídios, importados das distantes terras da África
meridional (em Israel não existia esse tipo de serpente),
indeciso, aproximou-se dos meus pés.
Procla, histérica, pôs-se a saltar. O primipilus, erguendo o
gladius, já se dispunha a partir o réptil em dois. Então me
interpus e tomei na mão o indefeso bicho. Civílis olhou para mim
perplexo.
Acariciei a cabeça da serpente e deixei que se enroscasse no
meu pescoço. Pôncio, histérico, perdeu a mão mutilada.
Retrocedeu e na fuga foi topar com um grupo que cuidava
também de safar-se. E o justiceiro Destino (?) quis que ele fosse
cair sobre um dos novelos de auroras.
Em segundos as serpentes o envolveram e uma delas coleou
por baixo do seu saio de musselina. Tomado de um ataque de
nervos, o psicopata se contorceu sobre as conchas berrando
como um possesso. Não posso negar: desfrutei o breve castigo.
Era o menos que merecia.
Tricliniarcha e escravos passaram a capturar os répteis. Eu
entreguei o meu e voltei a sentar-me junto ao triclínio da
governadora.
A mulher, pouco a pouco, passou do sufoco ao riso. E a ordem
se fez. Só os músicos, com um estoicismo que teria feito
empalidecer Sêneca, continuavam em seu posto, atacando um
fragmento muito apropriado da comédia Os convidados, do
poeta satírico Aristófanes. Menos mal que os bêbados não
estavam em condições de distinguir um toque de alaúde de um
ornejo...
Civílis continuava a olhar-me com admiração. Então, advertido
pela anfitriã, caí na conta de que ainda não havia aberto o meu
papiro.
O maitre, a um sinal da anfitriã, tirou-o de minha mão e
cantou o número: a iota (o nove). No mesmo momento um dos

criados me entregava uma bolsa de couro, fechada com um nó.
Temeroso de um novo gracejo do rei do banquete,
apalpei- a, procurando adivinhar o conteúdo.
Procla, impaciente, pediu-me que a abrisse. Não me decidia.
Ela, então, rindo, arrebatou a bolsa e desfez o nó
nervosamente. E ao verificar a natureza do presente, seus olhos
se iluminaram. Devolveu-me a bolsa e sussurrou:
- Ísis protege os nobres de coração...
Emborquei a bolsa e sobre a palma da minha mão caiu uma
enorme e iridescente gema montada sobre um anel de ouro e
turmalina azul. Surpreso, examinei a jóia à luz das tochas.
Era uma esplêndida opala branca, do tamanho de uma
amêndoa, de uns quatro centímetros no maior diâmetro, com
uma subterrânea fosforescência verde, devida provavelmente à
presença de algum mineral secundário uranífero.
- Ísis te protege insistiu Cláudia absolutamente convicta.
E sem dissimular sua satisfação acrescentou: - Sabes em
quanto foi cotada?
Então escutei uma cifra que me neguei a aceitar. Atônito,
pedi-Lhe que a repetisse.
- Dois milhões de sestércios!
Bendito Deus! Aquela jóia podia resolver todos os nossos
problemas financeiros... De repente lembrei que não havia
resolvido o terceiro e não menos complexo objetivo. Uma das
razões que me haviam arrastado àquela difícil aventura em
Cesaréia.
Resolvido? Eu diria que com juros. Na verdade, o Destino ou a
Providência, pouco importa o nome, fora magnânimo com estes
exploradores. E pelo caminho mais insuspeitado.
A opala, ao câmbio, representava a salvadora quantia de
333.333 denários de prata. Curiosamente somava nove, meu
número. Toda uma fortuna... Mas seria autêntica? Procla riu do
que supunha um gracejo. Mas eu falava a sério.

Ainda tinha na memória a imagem do anterior obséquio de
Pôncio, entregue a mim na segunda-feira, 10 de abril, durante
uma de minhas visitas à fortaleza Antônia, em Jerusalém.
Naquele almoço, com seu reconhecimento, o governador me
presenteara com uma magnífica esmeralda, com uma anêmona
gravada. Só que era uma hábil falsificação...
- Foi encomendada por esse louco cochichou Cláudia nas
jazidas dos montes Somonka.
Kassa e as minas próximas a Cervenica, ambas na região
oriental da atual Eslováquia, eram dois dos mais importantes
focos de extração de opala naquele tempo. Entusiasmada, a
devota de Ísis foi enumerando as supostas excelências da pedra
que me tocara na sorte:
- A opala absorve e elimina a hipocrisia...
Atento ao rei e ao que podia estar tramando, eu não dava
atenção a Cláudia.
- O desonesto se faz honesto...
O governador cochichava com o tricliniarcha.
- E atua com a lei cármica do retorno...
O maitre, dócil, fazia que sim com a cabeça.
E o instinto, uma vez mais, me pôs em guarda.
- A opala branca serve ao elemento água e ajuda a moderar
as paixões...
Civílis, ao meu lado, já percebera também os estranhos
manejos do seu chefe.
- Os sábios de Ísis dizem que esta gema só pode ser trazida
por homens e mulheres especialmente capacitados e treinados
para a dor, a guerra e o ensinamento...
O centurião, receoso, se reuniu com os oficiais e os alertou.
- E o que dispõe dela abre o seu sexto sentido...
E o meu se abriu.
O mestre-sala deixou o triclinium e Pôncio, dirigindo-se à

orquestra, exigiu algo mais forte.
- E o homem da opala será como uma luz...
E o tympanon e o duplo aulos arremeteram com fúria,
anunciando o desastre final. E o músico da kithara, subindo à
bomba de água do hydraulis, abriu o registro dos órgãos,
preparando-se. E permaneceu atento ao rei do banquete.
- Uma luz que abrirá as consciências...
Foi premonitório.
O tricliniarcha assomou de novo a uma das portas de serviço.
E sob o lintel deu as ordens oportunas. A criadagem, provida
de longas varas com peças cônicas na extremidade, foi
apagando as tochas que pendiam do alto da parede circular.
Cláudia, surpreendida, interrompeu a lição de esoterismo. Os
convidados, prevendo uma nova atração, acolheram a
penumbra com vivas demonstrações de júbilo.
Dali a pouco só as trinta lanternas sustentadas em pés de
barro e distribuídas entre os triclínios iluminavam a expectante
e esgotada reunião de bebedores. Depois disso os criados
desfilaram diante do tricliniarcha e desapareceram com os
apagadores. Só o criado gaulês continuou junto do seu senhor.
Então, sem que nada se soubesse os planos do governador,
aquilo começou a mover-se.
Um sismo?
O trompetista, desequilibrado, interrompeu a ardorosa
composição, caindo ao solo. Seu duplo aulos partiu-se na
queda. Novos gritos. Novo desastre.
Várias das lanternas oscilaram, precipitando-se mais uma vez
sobre os borrachos, um dos quais, com as roupas incendiadas,
readquiriu milagrosamente a agilidade, saltando como uma
lebre até a tríplice cascata.
A totalidade dos presentes teve de buscar algum apoio para
não se deixar desequilibrar também pelo estranho rodopio.
Finalmente compreendi. O triclinium girava.

Cláudia, no solo, amaldiçoou Pôncio.
Civílis e os soldados tentavam manter-se em pé, agarrados à
estátua de pedra do faraó. Eu, apesar dos meus esforços, rolei
sobre o piso de conchas. E o grande salão de banquetes foi
ganhando velocidade.
Tudo, exceto a abóbada, se movia em sentido oposto aos
ponteiros do relógio. Aí entendi porque os arcos metálicos que
prendiam a cúpula não se fixavam na parede. Aquela, sem
dúvida, era outra das extravagâncias do louco. E imaginei que o
giro do triclinium fosse propiciado por algum mecanismo alojado
no subsolo e acionado por tração humana. Muito provavelmente
pelos da túnica açafrão.
E as grandes janelas ofereceram de súbito a visão de uma
Cesaréia arborizada de tochas. Ao apontar para o norte, a
negrura da cadeia montanhosa do Carmelo. Depois, de novo a
lua tremeluzindo no mar.
Alguns dos bêbados, meio refeitos pelo choque, engatinharam
até a parede, tentando frear o mareante carrossel. Mas logo se
esparramavam pelo solo, incapazes de pôr-se de pé.
Pôncio, em êxtase, ergueu braços e rosto para o teto. Mas o
rei não havia terminado. Trôpego, saiu ao meu encontro. E aos
berros anunciou o grande momento. Diante do meu assombro
comunicou aos convidados que o poderoso mago os deleitaria
com um milagre. E acrescentou:
- Jasão, te ordeno que o detenhas!
Risadas. Assobios. Aplausos.
Ergui-me e, firmando-me nos pés, me neguei categoricamente.
As chacotas e protestos aumentaram.
O governador, desafiando minha ousadia e impertinência,
berrou babando: - Faz que se detenha!... Sou teu protetor! Sou o
rei...
Obedece, bastardo!
Um silêncio de morte acolheu minha taxativa resposta: - Meu
poder já não está a teu serviço...

Pôncio pestanejou atônito. Civílis, satisfeito, sorriu com o
olhar. E a matilha, ávida de sangue, passou a golpear de novo
as mesas, reclamando justiça e um adequado castigo para o
insolente.
- Tu podes!...
A mudança de tática não teve sucesso. E o adulador se
desintegrou contra a minha frieza.
- Maldito filho de...!
Apesar da leitosa maquiagem, o rosto do energúmeno ficou
rubro. Agarrando-me pelo peito, arremeteu como uma cobra.
- A ela sim você serve...!
Cláudia, agarrada ao triclínio, empalideceu. Delicada mas
firmemente, retirei de minha túnica suas sebosas mãos. Os
centuriões se moveram inquietos.
Mas o primipilus erguendo o uitis, recomendou-Lhes calma.
Instintivamente, meus dedos deslizaram até o cravo dos ultrasons.
- Ou será que pensas que não sei de tuas mágicas poções?
Civílis e eu fixamos o olhar no servo e confidente da cabeleira
loira.
- Pela última vez!... Pára o triclinium!
Então, para minha surpresa, melhor dizendo, para minha
perplexidade, o triclinium parou bruscamente. E tudo, móveis,
utensílios e pessoas fomos projetados ao solo. Dessa vez o
desastre nos afetou a todos. O fogo das lanternas projetou-se
sobre os convidados, alcançando túnicas, almofadões e sofás.
E o alarido se somou à escuridão.
Tentei erguer-me. A plataforma deixara de girar. Algo falhara.
Ignoro se aquelas bestas associaram o fato ao meu poder. Na
realidade não houve como prová-lo, nem me importava. O certo
é que as conseqüências se voltaram contra mim... Porque ao pôrme
em pé uma das sombras me atropelou e eu fui cair de novo
sobre as conchas.

E perdi a vara. Desesperado, abri passagem aos empurrões,
topando sem cessar com aterrados bêbados.
Não sei quanto tempo pode ter durado aquela angustiosa
cena.
Mas subitamente a grande sala circular se moveu. Foi um giro
breve. E ao deter-se fez-se a luz. A criadagem, com o maitre à
frente, irrompeu naquele caos trazendo novas tochas. Então
entendi: o triclinium fora ajustado até a sua posição inicial.
E o tricliniarcha e sua gente, aos gritos, apagaram com água
da cascata os focos de incêndio que se alastravam por todos os
lados.
Meu coração, acelerado, sentiu a nova tragédia.
A vara de Moisés... Lancei-me frenético à U, que estava toda
em desordem... Nem rastro...
E entre os gemidos dos queimados e o combate ao fogo, que
ainda ardia em mesas e sofás, tive tempo de presenciar uma
fuga que me desconcertou. Um Pôncio a coxear, amparado pelo
gaulês, se afastava em direção ao portão de bronze. E na mão
esquerda do criado... o meu cajado! Como o encontrara? O lituus
era o símbolo do meu poder.
Pretendia humilhar-me? Que vingança suja tramava o
demente? Eu sabia que minha negativa e o desafio público me
trariam funestas conseqüências. Só não imaginava que a
diabólica mente do psicopata agisse com tamanha rapidez.
Humilhar-me? Não, o castigo era menos sutil mas mais
contundente e selvagem. Logo o saberia.
E esquecendo tudo que me cercava voei sobre móveis e
bêbados no intuito de alcançá-los e recuperar meu precioso
instrumento. Mas a meio caminho entre a cascata e a porta
surgiu aquilo: a última atração, malograda em parte pela
avaria do triclinium. Mas a Pôncio nada mais importava. Ao
abandonar a sala, em sua demência, ordenou o fim da festa.
Primeiro ouviu-se um rugido. Talvez dois...
Em seguida, meio evanescentes devido à penumbra, algumas

silhuetas. Civílis, atrás de mim, me aconselhou que ficasse
quieto. Pareceu-me que também ele dera pela súbita
desaparição de Pôncio. Obedeci. A falta de luz tornava difícil a
identificação.
Novos rugidos. E aquilo avançou pausadamente. O
centurião, empunhando o gladius, colocou-se a meu lado.
- Para trás! - sussurrou sem deixar de olhar para as silhuetas -.
Rápido!...
Impotente, não tive alternativa. Ao fundo, Pôncio cuspiu sua
risadinha de hiena. Lentamente, sem perder de vista os recémchegados,
retornei para junto do triclínio de Cláudia.
A mulher, desarvorada diante do dramático espetáculo dos
feridos, continuava agarrada ao braço de um dos decuriões.
Até esse momento, absortos pelo fogo e pelos feridos,
nenhum dos presentes havia reparado no último presente do
rei do simposion. Mas os rugidos, cada vez mais próximos,
acabaram por alertar a devastada reunião de bebedores.
Procla lançou um grito. Os urros se repetiram. Estremeci. Os
oficiais, a um só tempo, desembainharam as espadas. E as
silhuetas começaram a ganhar nitidez à luz das tochas.
Deus!
Escravos, tricliniarcha e quantos podiam manter-se em pé, ao
verem as feras, abandonaram as vítimas do fogo e fugiram em
debandada. A maioria, caindo e atropelando-se, escapou pelas
portas de serviço. Outros, cegos pelo pânico, lançaram-se sob a
mesa do bufê ou se precipitaram para fora pela grande janela.
Uma parelha de guepardos, abrindo as fauces
ameaçadoramente, pôs-se a rodear os sofás tombados. Mas
era uma via de escape o que os animais queriam na verdade.

Amaldiçoei minha precipitação. Se os houvesse identificado a
tempo talvez tivesse podido alcançar o governador e seu criado.
Aqueles carnívoros, de quase dois metros de comprimento, altas
patas e pelagem da cor do leão e mosqueada, não eram
especialmente agressivos. E provavelmente não teriam causado
problemas, não fora a histeria e o terror.
Mas tudo já estava feito...
E de certa maneira a ausência de Civílis me tranqüilizou. O
chefe dos centuriões, esquivando-se aos felinos, conseguira sair
do triclinium. O restante da cena foi igualmente vertiginoso.
Uma das feras, imitando os fujões, cruzou diante do hydraulis e
numa relampagueante corrida passou pelo bufê e desapareceu
pela janela. O músico da kithara, não sei como, apareceu
encarrapitado no mais alto dos tubos do órgão.
O segundo gato quis seguir o irmão, mas um dos
retardatários, sem saber quais as intenções do animal, cortou-
Lhe o avanço, atirando-Lhe uma jarra de prata. A fera,
surpreendida, retrocedeu, vagando até à U e chocando-se com o
grupo dos desorientados monopolei.
Gritos. Pontapés. Empurrões...
Um dos convidados, brandindo uma lanterna, ameaçou o
felino, que fechou a cara, rugiu atroadoramente e descarregou
um par de patadas contra a chama. Com medo da tocha, porém,
recuou e tomou a direção do triclinio da aterrorizada
governadora.
O brusco movimento da fera apanhou desprevenidos os
centuriões, que ao se afastarem tropeçaram uns nos outros e
acabaram no chão e sem as armas.
E Cláudia se viu à mercê do carnívoro.
Paralisada, não foi capaz de emitir um único som. Permaneceu
de pé, com as mãos crispadas sobre o peito. A fera voltou a
rugir mostrando as resas. Presas? Então me dei conta... A
enorme e redonda cabeça do felino avançou ligeiramente,
ameaçando a quase inerte figura que Lhe fechava a passagem.
Cláudia, aterrorizada, olhar opaco, perdeu todo o controle.

Disposto a dar um fim ao dramático lance, caminhei para o
animal e ofereci às suas presas o braço direito... e a pele de
serpente.
Presas? O demente havia preparado a atração com sua
peculiar meticulosidade. Ainda que os felinos houvessem
atacado os convidados os danos teriam sido mínimos. Os
incisivos, assim como as garras não retrateis da parelha de
guepardos, haviam sido exaustivamente... limados! Mas o susto
foi outra questão.
E o encurralado animal acabou ferrando as presas no meu
antebraço. Os soldados, recuperada a compostura, fizeram
menção de ajudar-me. Obriguei-os, porém, a permanecer a
distância. Então arrastei o belo exemplar até as proximidades
do bufê e ali ele largou meu braço e, com uma elasticidade
invejável, se perdeu na escuridão da noite.
Diante da surpresa geral, sem dizer uma só palavra,
abandonei rapidamente o triclinium. A partir desse instante tudo
foi igualmente febril... e providencial. Depois de alguns
extravios alcancei enfim o corredor que conduzia à suíte.
Minha obsessão era o cajado. Como recuperá-lo? Tentaria
falar com o louco. Procuraria enganá-lo, confundi-lo, adulá-lo... E
se ele me prendesse? Então abençoei a feliz idéia de incluir a
tatuagem entre as novas medidas de segurança. Mas estava
claro que não podia confiar inteiramente. Aquele personagem
era extremamente perigoso. Hesitei.
A porta dos meus aposentos estava entreaberta. À amarelada
luz das lanternas que iluminavam o longo corredor observei
alguma coisa que me pôs em guarda. Abaixei-me e constatei
que era sangue. O rastro partia do dormitório e se perdia ao
fundo da galeria.
Tentei captar algum som, mas só percebi o rumorejo do mar.
Tenso, com os músculos prontos para rechaçar um eventual
ataque, penetrei no terraço. O rastro de sangue, menos
espaçado, desaparecia por baixo do grande cortinado cor de
romã. Alguém havia sido ferido. Mas quem era o intruso? Que

fazia na suíte? Com o coração acelerado, pressenti algo. De um
golpe descerrei a cortina, deixando à vista o dormitório. E
aquele inolvidável personagem, acocorado ao pé da cama, ao
ver-se surpreendido, ergueu-se como uma mola, com notável
reflexo. E o semblante de gelo relaxou ligeiramente.
Civílis! Surpreso, aproximei-me do primipilus. A seus pés se
agitavam os restos secionados de uma serpente de um metro.
Deus! Meu saco de viagem estava também no chão, sobre o
brilhante piso de mármore vermelho... Havia sido manipulado.
Várias das ampulhetas de barro estavam espalhadas aqui e
ali.
O centurião, com o ensangüentado gladius na mão, sem
pronunciar palavra, dirigiu-se ao lugar secreto e lavou a arma.
Recolhi os medicamentos e ao recolocá-los no seu lugar
observei novo rastro de sangue que se projetava para o lado
direito da cama. Ali, junto à grande arca, me esperava outra
surpresa. Sobre uma poça de sangue, meio oculta debaixo da
cama, estava a minha vara de Moisés! Lancei-me sobre ela em
delírio.
Não parecia danificada. Abençoei a Providência. E o fiz com
todo o meu ardor. Não fora por aquele rastro de sangue e é
possível que a perdesse para sempre.
Providencial rastro? Não, devo ser justo. Providencial Civílis...
Então entendi o que acontecera no aposento. Ao examinar o
réptil verifiquei que estava diante de uma extremamente
perigosa naja nigrirollis, uma cobra cuspidora de pescoço
preto. O aspecto não deixava lugar a dúvidas: coloração dorsal
grisácea típica, ventre vermelho-escuro, longa faixa preta no
pescoço e uma só escama separando olho e boca.
Não pude deixar de estremecer.
Esse ofídio, originário da África oriental, ainda que
encontradiço nos desertos ardentes do Egito e de Israel, além
de possuir um veneno letal desfruta uma particularíssima
habilidade que o torna especialmente perigoso quando
encurralado e atacado. Como seu nome indica, a cuspidora

pode lançar (não exatamente cuspir) sua carga mortal a
distâncias que oscilam entre dois e três metros.(65) E
geralmente escolhe os olhos da vítima. Sua pontaria é
excepcional. E se falhar pode repetir o lançamento uma segunda
vez.
Alguém próximo ao psicopata (não era preciso lucubrar muito
para descobrir a mão do gaulês), cumprindo sua ordem, tentara
introduzir a cobra no meu saco de viagem. Surpreendido e
provavelmente ferido pelo sagaz centurião, se pusera em fuga
pouco antes da minha chegada.
Se o gaulês tivesse conseguido seu propósito, quem sabe...
talvez agora não estivesse relatando tudo quanto vivi
naquela fascinante aventura na Palestina de Jesus de Nazaré.
Meus olhos eram justamente o único ponto vulnerável naquele
momento e o efeito da cuspidora pode ser gravíssimo. Além
de lesar as mucosas nasais, afeta rapidamente a visão,
ocasionando dolorosas conjuntivites ou cegueira, temporária ou
permanente, segundo a quantidade do veneno projetado.
E a simples idéia de ficar cego tão longe do módulo me
aterrorizou.
Disposto a fugir logo daquele antro, troquei de roupa e
pendurei minha mochila em bandoleira. Só havia um pequeno
problema...
Como enganar Pôncio? Poderia contar com Civílis? Logo o
descobriria...
Ao voltar e verificar que eu mudara de roupa, o centurião se
limitou a indicar a porta de saída com a cabeça. Pensei que
falaria. Que explicaria o sucedido. Enganei-me, naturalmente.
Em silêncio, com passos decididos, abandonou a suíte. E eu,
confiante em suas intenções, segui o corpulento militar e meu
salvador.
Alguma coisa, no meu íntimo, me dizia que devia confiar nele.
Sua ação em meu alojamento era o melhor aval. E durante
rápida descida até a entrada da fortaleza só me falou em uma
ocasião. Foi para perguntar por Cláudia. Tranqüilizei-o e isso foi

tudo. Não houve mais comentários.
Ao desembocarmos no pátio pediu a presença de um dos
optio de guarda. Prudentemente me mantive a distância.
Depois de rápida troca de palavras com o subordinado, me
conduziu a um dos quartos do pavilhão da excubiae.
E minha curiosidade logo foi satisfeita. A pouco iluminada
sala era um armazém de armas, ferramentas e equipamentos em
geral.
Civílis também pensava em grande velocidade. E encontrou a
solução para mim. Escolheu uma túnica vermelha, um gibão de
couro, uma couraça de escamas metálicas, os correspondentes
gladius e pugio e um capacete de centurião com um penacho de
plumas igualmente vermelhas. E mandou que eu vestisse o
uniforme.
Nada perguntei. Obedeci e me meti nas roupas e no
armamento.
Civílis deu a sua aprovação e me levou até o estreito portão
de saída.
Ninguém, entre os suboficiais e mercenários, mostrou surpresa
diante da aparição do novo oficial. Suponho que a companhia
do chefe da coorte dizia tudo. Com a sua costumeira frieza no
olhar, Civílis me advertiu: - Dispões de cinco dias... A partir do
dia treze, mesmo sabendo que és um homem justo, certamente
terei de procurar- te e prender-te.
Cinco dias?... Quis fazer-Lhe perguntas. Mas à chegada do
optio calei-me. Trazia pela corda um nervoso e magnífico cavalo
branco, chamado Posseidon, com uma estrela preta na cabeça.
Quando acabei de montar, Civílis despediu-se esclamando: -
Que teu Deus te proteja!
Sorri-lhe agradecido e respondi:
- Meu Deus... e o teu, amigo!
Com o ramo de videira ele deu uma ligeira pancada na anca
do animal e eu me perdi na escuridão da noite.

Cinco dias?... Que quis ele dizer?
Minha passagem pela silenciosa e adormecida Cesaréia foi
rápida. Dezenas de tochas, como cúmplices secretos, marcaram o
trajeto da artéria principal. Os coletores de excrementos de
cães e lixeiros em geral foram as únicas testemunhas da minha
fuga.
Correspondi à saudação do guarda que vigiava do alto das
torres gêmeas e, ao cruzar a porta oriental, ativei o passo do
cavalo e tomei a estrada então solitária.
Dentro em pouco os tons de laranja no horizonte anunciaram o
amanhecer. A galope distanciei-me daquele pesadelo e do
perigoso Pôncio. Cinco dias? A advertência viajou comigo até
meu regresso ao Ravid. Só então, ao consultar o computador
central, entendi a razão da margem de tempo dada pelo
centurião.
Casualmente, naquele 9 de maio, terça-feira, os romanos
iniciavam uma festa muito particular: os Lemuria.(66) Uma
celebração carregada de medo e na qual todo cidadão, não
importava classe, posição ou profissão, evitava pôr os pés na
rua. Durante três dias (9, 11 e 13 desse mês de maio), se um
dos supersticiosos donos do mundo, os lemures, intimamente
aparentados com Lares, gênios e penates, voltavam da tumba
para atormentar e acossar os humanos. E ninguém estava a
salvo. Aqueles que houvessem participado direta ou
indiretamente da morte violenta de alguém levavam a pior parte
nessas supostas aparições. E quem fosse vítima delas acabava
louco. Esses eram chamados cerriti ou laruati.(67) Durante esses
três dias, em suma, a totalidade das famílias romanas se
enclausurava em casa, procurando agradar os fantasmas com
toda sorte de exorcismos e ritos amáveis.(68) Esse costume não
excluía as guarnições. Daí a advertência de Civílis. Estava claro
agora o porquê do prazo.
E agradeci ao Destino (?) a oportuna delicadeza e a
vantagem sobre o psicopata maníaco-depressivo. Não era muita
mas o suficiente para ganhar terreno e adotar minhas cautelas.
O problema era que a nossa missão oficial exigia duas últimas

deslocações fora do porta-aviões.
Duas incursões mais, antes do anunciado e salvador terceiro
salto no tempo.
Confiando sempre nesse enigmático e benéfico Destino (?),
decidi preocupar-me com o assunto... a seu tempo.
Fortim de Capercotnei. Hesitei. Deveria parar? Obedeci à
intuição e desmontei, deixando que os mercenários cuidassem
do meu animal. Aparentemente eu era um oficial de passagem.
Não tinha o que temer. E de fato nada ocorreu. Ninguém fez
perguntas.
Posseidon recebeu água e eu, depois de repor as energias,
prossegui para o nordeste. E em meio à manhã, ao avistar a
cidade de Séforis, tive uma idéia. Devia tentar? Calculei o risco.
E também a distância que me separava do Ravid.
Com um pouco de sorte, se a operação fosse executada com
eficiência, talvez alcançasse o berço antes do pôr-do-sol.
A viagem, até o momento, havia sido uma delícia. E por que
não? Se conseguisse meu propósito, a discutida paternidade de
José com respeito a Jesus ficaria definitivamente esclarecida...
Mas acho que me estou precipitando. O hipotético leitor destas
memórias não conhece os antecedentes.
Peço perdão.
O assunto era tão simples quanto apaixonante.
Ao meu regresso de Nazaré, trazendo, como se recordará, o
lenço empapado no sangue da Senhora, Eliseu tivera uma
excelente iniciativa. Dispúnhamos do D-N-A do Mestre, extraído
das mechas da barba e dos múltiplos coágulos de sangue
recolhidos na Paixão e morte. Pois bem, podíamos analisar
igualmente o material genético da mãe do Filho do Homem,
estabelecendo assim, cientificamente, o que já conhecíamos: o
parentesco entre ambos.
Mas meu irmão, como já disse, pensou mais alto.
Se conseguíssemos uma amostra que conservasse os
cromossomos de José, a impressão digital do seu D-N-A

resolveria o grande mistério: era José o pai biológico do
Galileu, ou, como defende a Igreja católica, a concepção de
Jesus foi obra divina? Para consumar essa interessante
experiência, já comentada em parte em páginas anteriores,(69)
precisávamos, pois, da terceira pista genética: sangue,
cabelos com raiz, ossos ou qualquer outro resto que houvesse
preservado células vivas, nas quais, como se sabe, se armazena,
entre outros elementos, a espiral da vida, ou D-N-A.
Com a fotografia do D-N-A dos esposos e do filho era viável
a comprovação. Se Jesus tivesse sido concebido com o sêmen de
José, seu código genético apareceria no D-N-A dos pais. Claro
que a obtenção dessa terceira pista não seria fácil. José havia
falecido em 25 de setembro do ano 8 da nossa era. Quer dizer,
fazia vinte e dois anos... Como então conseguir a amostra? A
não ser que Maria houvesse conservado dele alguma mecha de
cabelo (e com raiz), a única possibilidade, logicamente, estava
nos restos ósseos. Em outras palavras: no recôndito cemitério
que eu visitara em companhia de Tiago e seu cunhado Jacó
durante a inútil busca de João Zebedeu.
Solicitar licença à família para a exumação não tinha sentido.
Que é que eu lhes diria? Então sobravam duas alternativas.
Primeira: indagar da Senhora a respeito das mechas de cabelo.
E para isso sempre havia tempo. Segundo: a idéia que acabava
de me ocorrer.
Apesar do risco decidi tentar a façanha. Eu sabia o que me
aconteceria se me pegassem. A manipulação de cadáveres ou
ossos humanos, com exceção dos traslados obrigatórios, era
proibida pela lei e castigada com severidade. Mas o desafio me
incendiou.
À medida que me aproximava de Séforis tentava convencer-me
de que a operação era simples e inofensiva. O trabalho não
tinha por que complicar-se. E um estudo científico dessa
natureza nunca mais seria possível. Seriam suficientes alguns
molares ou premolares. Coisa fácil de ocultar... Bastava esperar
o anoitecer.
Eu conhecia a posição do marco em memória de José e seu

filho Amós, assim como a localização do cemitério e da choça do
coveiro. Tomaria a vereda que subia pela ladeira norte do Nebi
e passava muito próximo do campo santo...
Contava, além disso, com uma lua quase cheia. Em uma ou
duas horas a escavação estaria pronta. E uma vez consumada a
extração dos dentes tudo consistia em fechar a tumba e
desaparecer...
Sim, aquela era uma magnífica oportunidade...
Ao chegar ao pé da colina em que se assentava a branca e
altiva capital da baixa Galiléia, dobrei para o leste, pela
poeirenta senda que a unia a Nazaré, No total, marchando a
passo, apenas uma hora.
Mas eu não contei com o implacável Destino... E os primeiros
contratempos não tardaram a surgir. Os felah que trabalhavam
em hortas e plantações de linho à margem do caminho, ao
descobrirem o odioso centurião romano, cuspiram e
amaldiçoaram. Alguns, mais ousados, erguendo seus
instrumentos, me insultaram aos gritos, encolerizados e
desafiadores.
Demasiado tarde...
Meu aspecto, efetivamente, não era o mais adequado para
cavalgar sozinho. E optei por galopar. Durante um bom trecho,
minha viagem foi um suplício. Todo o tempo tive de esquivarme
de cebolas, pepinos, alhos e pedras.
Ao avistar o cume do Nebi Sain parei, desmontei e, parado à
beira do olival que tomava boa parte da escarpa norte,
dediquei uns minutos a observar atentamente os arredores.
Alguns camponeses, do outro lado da estrada, ergueram a
cabeça , interrompendo o trabalho e espiando-me com
hostilidade. Senti-me perdido.
Aquilo não fazia parte do plano, Que faria?
Esquecia o assalto ao cemitério? Retomava o caminho do
Ravid? O sol, no zênite, ainda levaria de seis a sete horas para
se pôr. Como ocultar-me durante tanto tempo? Inspecionei o

compacto bosque de oliveiras. Os grossos troncos ascendiam
até quase a metade do monte. Uns duzentos metros. Depois
vinha o bosque de alfeneiros. E o cimo.
O que estava claro é que se eu decidisse continuar com o
plano não podia ficar ali plantado em pleno caminho, à vista
daqueles potenciais inimigos. Teimoso, disposto a alcançar o
objetivo, sem avaliar detidamente meus atos, montei de novo e
penetrei no bosque de oliveiras.
O propósito, pouco claro, aliás, era esconder-me nas
proximidades do cume. Ali, supus, entre a ramagem azul e
prateada dos alfeneiros, estaria a salvo de olhares indiscretos.
Mas, como dizia, superestimei minhas possibilidades.
Quando mal havia percorrido quinze ou vinte metros pela
áspera ladeira olhei para trás e me sobressaltei. Como era de
esperar, o repentino aparecimento daquele maldito romano no
Nebi desencadeou a imediata mobilização dos felah.
Quatro deles se reuniram para discutir acaloradamente a
estranha manobra do centurião. O resto, mais distante, optou
por esquecer a disputa, retomando suas tarefas entre hortas e
pomares.
Pressentindo um mau desenlace, amarrei Posseidon a uma
árvore, desfiz-me do capacete e da couraça e fui entrincheirarme
atrás de um dos centenários zavit. Os lavradores, alarmados,
terminado o conclave apanharam enxadas, paus e tesouras de
poda e em magote puseram-se a caminho, dispostos a seguir o
rastro do odiado invasor.
Eu precisava agir com serenidade e rapidamente.
Reconhecendo que me achava demasiado perto do caminho,
apanhei o capacete e a couraça e subi velozmente a escarpa. A
coisa de uns cinqüenta metros abandonei o reluzente capacete.
Mais adiante, quinze ou vinte passos mais, praticamente no
mais espesso do olival, fiz outro tanto com as brilhantes
escamas metálicas.
E voltei a ocultar-me entre os grossos troncos...
Foi meu único acerto naquela desventurada incursão.

O restante dos felah, como eu dizia, parecia haver já
esquecido o incidente. Isso me tranqüilizou relativamente.
Mas, como supunha, os quatro galileus não tardaram em
aproximar-se do cavalo. E, cheios de medo, procuraram ao redor.
Brandindo as improvisadas armas, animando-se entre si com
irreproduzíveis impropérios contra o intruso, formaram uma linha
e avançaram. A primeira isca foi descoberta sem problemas.
Trocaram impressões e, cuspindo no capacete, o atiraram
ladeira abaixo.
Eu fiquei preparado, ajustando as crótalos. Logo mais a
espelhante couraça chamou-Lhes a atenção. Precipitaram-se
sobre ela e, depois de um rápido exame, furiosos, agitaram
paus e ferramentas, intimando-me a mostrar a cara.
E eu obedeci. Um primeiro jato de ondas ultra-sônicas
derrubou o mais próximo.
Os felah, atônitos, emudeceram. Cinco segundos depois, os
quatro camponeses jaziam inconscientes no chão argiloso e
vermelho.
Então percebi que havia feito uma tolice. Que fazer com
aqueles exaltados? Em questão de minutos recuperariam os
sentidos e minha situação seria verdadeiramente difícil. O mais
provável é que os aterrados homens, regressando aos hortos,
lançassem o alarme e mobilizassem meia povoação de Nazaré e
arredores.
Devia fugir?
Contra o mais elementar senso comum, pus-me freneticamente
a atar mãos e pés. Utilizando cintos e faixas, amarrei cada
indivíduo a uma árvore separada. Por último, rasgando a túnica
militar que me cobria, amordacei-os sem contemplação.
Suando, cansado, com o coração na boca, lancei uma vista de
olhos aos hortos. Tudo estava em paz. Então mudei de planos.
Esperar o ocaso teria sido uma loucura. Apesar do meu
esforçado trabalho, os felah podiam achar uma fórmula para
livrar-se e fugir. Loucura? Tudo era uma loucura...

Correndo, cheguei até o extremo do olival. Distanciei-me do
caminho que chegava ao cume do Nebi e, contornando as
árvores, virei à esquerda, à procura do pequeno cemitério.
Ali estava ele!
Repus oxigênio e um mínimo de energia. A ação seguinte era
a mais delicada. O campo santo, um quadrilátero de uns
cinqüenta metros da frente ao fundo, estava deserto e
silencioso. O sol da primavera arrancava uma brancura cortante
das oitenta colunas de pedra das tumbas.
Fileira onze... A choça de palha e adobe do coveiro, no lado
oriental, estava igualmente tranqüila.
Fileira onze e ao centro... E o coveiro? Estaria no interior?
Antes de começar a escavar devia verificar.
Fileira, onze, ao centro e muito perto da cabana... E junto à
linha de oliveiras que cercavam o cemitério fui ganhando terreno
até desembocar às portas do imundo telheiro.
Então ouvi algo, Roncos? De fato.
Ao espiar distingui na penumbra a mulher escandalosamente
pintada que havia conhecido na minha primeira visita: a
carpideira e bustuariae (prostituta). Dormia em uma cama de
folhas escuras e malcheirosas. A seu lado, abraçando-a, um
indivíduo nu que não identifiquei, também dormindo e roncando.
Má sorte! E voltei a hesitar. Devia imobilizá-los? Muito
trabalhoso. Descartei a idéia. Talvez fosse melhor deixá-los
dormir...
Mas e o coveiro? Por mais que olhasse para todos os lados
não enxergava vestígio dele. Ao oeste, em um talude tomado
da colina, as cinco grandes pedras que fechavam os panteões
da gente endinheirada de Nazaré estavam desertas.
Subitamente me lembrei. Eu não chegara a ver o coveiro.
Podia ser o sujeito que dormia com a mulher? O tempo corria.
Tinha de me decidir. E o fiz. Silenciosamente dirigi-me para a
tumba.

Fileira onze....
José e seu Filho Amós. Rogando perdão aos céus pela
ousadia, ajoelhei-me diante do marco. Desembainhei o pugio e,
lançando mais um olhar à cabana, iniciei a escavação.
Argila branda e esponjosa. Bem...
Jamais havia removido uma terra com tanto ardor.
Mais rápido!
Então comecei a suar copiosamente. Ainda não sei se pelo
esforço ou o medo.
Ânimo!
Ao aprofundar o solo, empapado ainda pelas torrenciais
precipitações dos fins de abril, senti-o de repente compacto e
de difícil acesso. Todavia, o punhal continuou colaborando.
Tratei de me acalmar. Inspirei profundamente, ao mesmo
tempo em que vigiava os maravilhosos roncos.
Novo ataque. Com ambas as mãos. Com os cinco sentidos.
De repente, a lâmina quebrou-se.
Droga!
Olho mais uma vez para a choça. E para o olival.
Não me dei por vencido. Ao pôr a mão no gladius reparei no
cajado, estrategicamente colocado à minha esquerda. Estúpido!
Como não pensei antes? Devolvi a espada à bainha, sem as
crótalos, ativei o dispositivo de laser a gás, regulando-o a
15.000 watts. E o bloco de barro começou a desintegrar-se,
produzindo pequenas e ligeiras colunas de vapor de água.
Vinte centímetros...
Vamos lá!
O coração, no limite, acusou o excesso de adrenalina. Tive de
interromper.
Tomado pela tensão, esquecera os roncos.
Roncos? Haviam cessado! Desorientei-me. Dentro em pouco
umas vozes...

Fundi-me contra o terreno. E as vozes se elevaram. Era uma
discussão. E eu com o rosto afundado na argila.
Tinha de alcançar...
Sessenta centímetros!
E comecei a suspeitar que meus problemas não estavam
apenas no exterior. A essa profundidade os restos já deveriam
ter aparecido.
Oitenta!
A disputa na cabana se agravou. O homem pretendia um novo
favor. A mulher queria mais dinheiro.
O laser, implacável, alcançou um metro e vinte centímetros.
E com meio corpo dentro do buraco resfoleguei como um
búfalo.
Não, aquilo não era normal.
O sujeito na cabana cedeu. Pagaria. Por um lado respirei
aliviado. Mas por outro...
Um metro e meio!
Impossível! Onde estavam os ossos?
Fechei o laser. Voltei a ler a legenda gravada na pedra e a
verificar a identidade do morto.
José...
Não estava enganado.
Não desaparece o que morre. Só o que se esquece. O
epitáfio o confirmava. Mas então... Vazia... Vazia... Sim, a fossa
havia sido aberta e os esqueletos removidos.
Deus do céu!
- Necessitas ajuda?
A súbita voz me enregelou.
Levantei a vista, por detrás da branca lápide, e dei com uma
interminável figura de quase dois metros de altura, com um
chapéu de palha e um ameaçador porrete na mão esquerda.

O coveiro?
Claro que não perguntei. E escolhi uma resposta tão
eloqüente quanto pouco honrosa. Pus-me em pé de um salto e
fugi como um coelho. E o gigante, chamando aos gritos os que
estavam na choça, lançou pedradas e maldições ao violador de
tumbas.
Nunca fiquei sabendo se me seguiram.
A descida pelo Nebi foi autenticamente suicida.
Caindo aqui e ali, chocando-me com troncos e ramos,
recuperei voando a couraça e passei como um raio diante dos
perplexos e manietados felah. Do capacete nem me lembrei.
Depois arrastei o não menos atônito Posseidon, cheguei à
borda do caminho e obriguei o nobre eqüino a voar, mais do
que a galopar.
De volta a Séforis tive de suportar uma segunda chuva de
projéteis, duros ou brandos, e uma cerrada gritaria que dedicou
diversas homenagens a meu pai e minha mãe. E aceitei tudo
como uma justa penitência. No fundo o merecia.
Muitas milhas além, perto da confluência com Caná, percebi
que aquela louca corrida era tão absurda quanto perigosa.
Então parei à margem do nahalIphtahel, refugiei-me à sombra
de uma velha e amável figueira e tentei pôr ordem na minha
confusa mente.
Como era possível? A tumba vazia...
Então o Destino, zombeteiro, desenterrou em minha memória
uma cena e uma frase, estranha e misteriosamente esquecidas.
Já não estão aqui...
E lembrei a voz de Tiago, o irmão de Jesus, e sua mão em meu
ombro.

Na primeira visita ao cemitério de Nazaré, enquanto
contemplava emocionado o marco que homenageava a memória
de seu pai, o segundo filho da Senhora, agradecendo minha
respeitosa atitude, insinuou que os restos haviam sido
trasladados.
Já não estão aqui. Vamos... Que queria dizer precisamente?
Minha obstinação, confesso, era quase patológica.
Os ossos teriam sido atirados à fossa comum, ao kokhim?
Nesse caso, pouco poderíamos fazer para obter a terceira pista
genética. Ou talvez se referisse ao ossilegium? Essa prática
funerária era igualmente comum entre as famílias judaicas.
Decorrido, por medida de prudência, certo tempo, os ossos
eram exumados e depositados em ossários de pedra, no interior
de grutas ou panteões. Víramos isso nas duas explorações (a
última de triste memória) da cripta próxima a Nahum. Nesses
depósitos estavam gravados os nomes dos mortos e seus
vínculos familiares.
Se a Senhora e os seus escolheram essa segunda alternativa,
a mais humana, nem tudo estava perdido...
Invulnerável ao desalento, propus-me verificar isso na primeira
oportunidade. O fracasso em Nebi, longe de me curar os
perigosos pendores para a aventura, cravou-se em meu orgulho
como um espinho envenenado.
Mas o esgotamento, o déficit de sono e o sol, filtrando-se em
estilhas entre a ramagem, acabaram com as obsessivas
reflexões deste humilhado explorador. E por sorte caí num
profundo sono, alheio a lamentos, hipóteses e futuros e
arriscados planos.
Lembro que fui bruscamente despertado no meio de um
pesadelo. Pôncio, com seu riso de hiena, empapava minha cara
com aquela pestilenta e úmida maquiagem à base de
excrementos de crocodilo...
Ao abrir os olhos vislumbrei sobressaltado o branco focinho do
aborrecido Posseidon e senti sua língua molhada a lamber- me o
rosto. Acariciei-o e me levantei sem saber muito bem onde

estava.
Ao verificar a posição do sol, já a despedir-se sobre os azuis
da cadeia montanhosa do Carmelo, irritei-me comigo mesmo.
Não gostei daquilo. Cavalgar de noite era incômodo e pouco
recomendável. Mas ainda era a alternativa menos má.
Procurar refúgio e continuar a marcha no dia seguinte podia
representar maiores problemas. De outra parte, as deslocações
projetadas me obrigavam a chegar ao Ravid quanto antes.
E Deus quis que meus temores fossem infundados. A viagem
de regresso, praticamente solitária e auxiliada por uma benéfica
lua, foi quase um passeio. Depois de tudo animei-me -, a
vertiginosa excursão a Cesaréia não havia sido negativa. Os
três objetivos capitais haviam sido atingidos com apreciável
sucesso.
Salvo-conduto. Estava em meu poder e garantia certa
tranqüilidade com vistas à completa e ampla aventura que
estávamos a ponto de inaugurar. O cada vez mais próximo
terceiro salto no tempo nos levaria muito longe e, colocandonos
por vezes em situações altamente conflituosas.
Sonhos de Cláudia Procla. A informação, reveladora, estava no
meu banco de dados. A lamentável lacuna dos evangelistas
ficava definitivamente sanada.
Problemas financeiros. Dois milhões de sestércios! Mais do
que imaginava e A tudo isso somava-se algo de valor
incalculável. Algo que não estava nos meus objetivos e que
simplesmente me foi presenteado: a oportunidade de
aprofundar na verdadeira personalidade do verdugo de Jesus de
Nazaré, E juro que só por isso valera a pena tantos sustos e
dissabores. Como disse, Pôncio Pilatos não foi covarde.
Tampouco um hábil diplomata. Pura e simplesmente foi um
louco agressivo, de uma frieza e brutalidade quimicamente
puras.
E falando de bastardos quase me esquecia. A aldeia dos
mamzerim! Parei indeciso. Devia arriscar-me? Então imaginei que
a essa hora avançada da noite a passagem entre as choças

seria coisa simples.
E o Destino (?) foi generoso. De fato, o galope me tirou
limpamente do negro e adormecido inferno.
Mas, como comentei anteriormente, meu retorno ao Ravid foi
quase um passeio... E o quase esteve a ponto de causar-me
um enfarte.
Tudo foi bem até que desmontei.
Ao deixar para trás as tochas da cidade de Migdal e tomar o
caminho de Maghar, estabeleci a primeira conexão auditiva com
o módulo. Eliseu gratamente surpreendido por meu rápido
regresso, comportou-se com naturalidade. Até se permitiu alguns
gracejos...
- Tenho uma surpresa para você disse-lhe partilhando seu
bom humor -, Melhor dizendo, várias... Câmbio.
- Surpresa? - perguntou Eliseu impaciente -. Boas ou más,
Câmbio.
- Trago companhia, câmbio -respondi alimentando sua
expectativa.
- Feminina? Câmbio.
- A julgar pelo nome creio que não... Câmbio.
- Bom, eu também tenho uma surpresa disse rindo meu
irmão- , Câmbio. .
Não foi possível tirar dele uma palavra mais. Intrigado,
tentando não ser visto, desmontei. E a partir desse momento,
como disse, o Destino interferiu nessa tormentosa jornada.
O céu estava limpo e estrelado, tudo parecia tranqüilo e se
aproximava a meia-noite. Só os cascos de Posseidon, golpeando
às minhas costas na rampa da zona morta, animavam a negra
e silenciosa popa do porta-aviões. E uma vez sobre a
ladeira do Ravid respirei aliviado.
Missão cumprida!
Pobre ingênuo!...
Enquanto cobria a centena de metros que me separava da

primeira referência, a macieira de Sodoma pensava em
Posseidon e perguntava: que vamos fazer com você? O nobre e
carinhoso cavalo, obviamente, não soube responder. Pode sernos
útil?... E por que não? A viagem seguinte à Cidade Santa
sempre seria mais cômoda e veloz em sua companhia. E comecei
a perceber algo que me inquietou: estava tomando afeto por
ele.
Mas a súbita irrupção de Eliseu desviou meus pensamentos.
- Vejo vocês... Mas que é isso?
Meu irmão não pôde conter o riso:
- Um soldado romano e um asno!...
- Um centurião e um bravo cavalo húngaro, ignorante! -
repliquei, no mesmo tom de zombaria -. Câmbio.
- Só vejo dois potenciais inimigos... Terei de ativar as
defesas...
- Ative quanto quiser! Mas, acima de tudo, a cafeteira...
Câmbio.
- Não há café nesta época, ignorante!... Sorte!...
Eliseu corrigiu no mesmo instante:
- Quero dizer, salve!... Câmbio e desligo.
Sorte?
Eu devia ter percebido. A saudação encerrava algo mais do
que uma brincadeira...
Mas, ansioso por reintegrar-me ao módulo, não Lhe dei maior
atenção. E continuei a caminhar pela suave e escura ladeira,
procurando não tropeçar nos calhaus basálticos. Seguindo o
costume não usaria as crótalos até alcançar a muralha.
Posseidon, dócil, se deixava arrastar pela corda. E talvez
tivesse percorrido quinhentos metros quando, de repente, entre
os arbustos espinhosos, me pareceu escutar algo...
Conservei-me em silêncio.
O animal levantou a cabeça. E seus negros e brilhantes olhos

apontaram na mesma direção. E, de novo, aquela espécie de
guincho, que procedia, sem dúvida, dos círculos de gundélias.
Então pus-me em guarda. Posseidon relinchou assustado e,
erguendo-se, escoiceou o ar e retesou as rédeas...
Quis acalmá-lo mas um terceiro e agudo guincho fê-lo eriçar as
crinas.
Agitou-se de novo e de tal forma que fui obrigado a soltá-lo.
Então girou e arrancou a galope, perdendo-se na escuridão.
Posseidon...
Foi inútil. Um distante relincho me indicou que já descia pela
zona da macieira. Foi então que, ao defrontar-me com a rampa
do Ravid, aquela visão me plantou no solo.
Meu primeiro pensamento foi o berço. Não podia ser...
Eliseu acabara de falar comigo. E pulsando o ouvido direito
reclamei aos gritos sua presença, Silêncio...
- Eliseu!... Que é isso?... Está me ouvindo?... Oh Deus!
Silêncio...
Convencido de que alguma coisa Lhe havia ocorrido, lancei-me
contra aquilo. Mas o horror foi mais forte do que o arrojo.
Entre calafrios me senti contido e impotente. E agarrando-me
ao cajado me preparei para a defesa.
A pouco mais de trinta metros, entre os perfis dos cardos
espinhosos, corriam, guinchavam, se erguiam sobre os quartos
traseiros e me observavam uns gigantescos...
Como defini-los?
Naquele momento não soube...
Ratazanas? Não exatamente. Os animais, desnudos, sem
pêlo, rosados, em forma de salsicha, não eram roedores. Ao
menos como os que eu conhecia. E as cabeças...
Retrocedi espantado. Pareciam as de um buldogue, mas com
olhos diminutos, negros e chispantes. Os caninos, aterradores,
sobressaíam como sabres.

Então caí...
E os guinchos arrasaram o Ravid.
, O tamanho das criaturas, às dezenas, me fez pensar em
alucinação. Mas não. Posseidon também havia captado.
Imensas! Provavelmente um metro de altura. Do chão tentei
uma nova conexão.
Silêncio.
As bestas, raivosas, se atacaram entre si. E os guinchos se
tornaram mais agudos. Os menores, de pele vermelha, subiam
angustiados na manada. E alguns, abrindo as enormes fauces,
mostraram ameaçadores os quatro grandes e afiadíssimos
caninos de morsa.
Então, saltando em minha direção, ensaiaram alguns
movimentos de ataque.
Pensei que enlouquecesse.
E na nave, que se passava?
De onde procediam aqueles monstros?
De repente reparei em algo que me confundiu ainda mais.
Era impossível!
Tinha de ser uma alucinação...
Entre sangue, guinchos, sabres e corridas... uma luz! E não
precisamente da lua.
Uma luz?
Sim, um resplendor intenso, mercurial e banhando a
totalidade dos furiosos animais. Pus-me em pé e percebi um
segundo detalhe que não era normal: a assustada colônia
fosse do que fosse quase não avançava. Tampouco retrocedia.
Parecia fixada num ponto.
Reunindo as minhas últimas gotas de coragem, com os
trêmulos dedos sobre o cravo do laser de gás, dei um passo à
frente.
E os guinchos, em resposta à minha temerária iniciativa, se

multiplicaram. Retrocedi.
E as bestas ganharam posições.
Novamente surpreendido, pareceu-me distinguir naquele
movimento coletivo algo que não encaixava. As enormes
ratazanas (?) sem pêlo se deslocavam ao mesmo tempo. Em
bloco.
Eu diria que sem tocar o solo. Sem uma clara e natural
sensação de avanço progressivo. De fato, nenhuma ficou para
trás.
Então uma repentina idéia me ocorreu. Bastardos! E
avançando em direção àquela massa de sabres, fui tomar
posição a vinte metros da matilha.
E a manada reagiu com ímpeto, lançando-se contra este cada
vez mais indignado explorador. Não havia dúvida. Ao observar o
grande salto, me convenci.
Filho de Satanás!...
Ativei o laser e golpeei os mais próximos. Como supunha, o
impacto, atravessando-os, incendiou as gundélias às suas
costas. Então, do pânico, passei para algo pior: a fúria.
Cruzando entre animais e guinchos, corri como um meteoro
para a muralha.
- Bravo!...
A voz de Eliseu, entrecortada pelo riso, soou 5x5 (forte e
clara). .
As imagens se extinguiram e o silêncio voltou a reinar no
Ravid.
- Lembre-se da advertência Eliseu retomou a conexão em
tom conciliador -, Eu também tinha uma surpresa... Câmbio.
Não respondi. Só queria estrangulá-lo.
- Não esqueça que somos amigos acrescentou sem muita
convicção -. Além disso, antes da sua partida tive a delicadeza
de avisá-lo... Câmbio.
Tinha razão. Então rememorei suas palavras, ao amanhecer de

sexta-feira, 5 de maio: Espero que ao regressar de Saidan você
mesmo possa experimentá-lo, foram as suas palavras, sem mais
explicações, referindo-se a algo em que havia começado a
trabalhar e que tinha estreita relação com os cinturões de
proteção da massa.
Mas ainda que eu tivesse me lembrado, como poderia estar
esperando uma coisa assim? Não, não era justo. Eu o
estrangularia! Mas Deus abençoa e protege os inocentes.
Ao saltar sobre a derruída muralha, a quase cento e setenta
metros do berço, e já me preparando para usar as lentes de
contato, uma chamada familiar me deteve de novo.
Voltei-me e escrutei o negror do porta-aviões.
E o relincho se repetiu.
- Esse sim é um amigo atacou Eliseu. Mordaz, confirmando a
minha própria impressão -, Agora já não sei quem é o asno...
Posseidon...!
E a feliz volta do companheiro acabou por acalmar-me e
neutralizar meu desejo de revanche. Voltei alguns passos e
recuperei-o.
- Amigo? - insistiu o engraçadinho -, Câmbio.
- OK! - cedi encantado -. Com uma condição. Câmbio.
- Está feito! - apressou-se a aceitar meu irmão, vendo a
situação serenada. - Fale, soldado! - Tudo esquecido, sempre
que haja café... - Câmbio e desligo.
E nessa mesma noite, com um fumegante e delicioso café
entre as mãos, Eliseu, sem dissimular sua satisfação, explicou o
segredo da visão que eu acabava de conhecer e sofrer. O
invento era um simples holograma. Em palavras simples, um
encadeamento de imagens que, submetidas a determinados
efeitos de refração, dão lugar a uma ilusão em três
dimensões.
Devo reconhecer que o novo sistema de segurança viria a
prestar vários e inestimáveis serviços.

Durante minha ausência, o incansável cientista fizera o
sacrifício de passar longas horas junto aos cones de terra que
havia em uma ampla franja do Ravid. E a exploração dera
resultado.
Nos momentos mais frescos do dia, geralmente ao amanhecer,
os orifícios que os cones apresentavam entravam em erupção.
Álguém habitava mesmo aqueles túneis. Ao descobrir
finalmente os horrendos vizinhos, meu irmão consultou o
Papai Noel e confirmou a existência, sob os nossos pés, de
uma enorme população de Heterocephalus glaber (de cabeça
diferente e imberbe), curiosos e sociáveis roedores da família
dos batiérgidas.
Os pequenos animais, de trinta ou quarenta gramas de peso,
implacáveis, incansáveis e hábeis escavadores, haviam
construído uma rede de galerias de quase três quilômetros de
comprimento, abarcando uma superfície-junto à muralha romana -
de vários milhares de metros quadrados.
E as ratazanas-topo desnudas Lhe haviam dado uma idéia.
O feio e agressivo aspecto dos bichos conhecidos também
como bebês morsa e salsichas com dentes de sabre podia
ser aproveitado como medida dissuasória ante uma invasão ou
ataque inimigo em nossos domínios.
E a iniciativa funcionou. Disso dou testemunho.
Seguindo as informações armazenadas no computador central,
Eliseu comprovou igualmente que a grande família, composta de
uma rainha e uma centena de mineiros, perfurava e planificava
seus ninhos em função da comida. A dieta consistia basicamente
de raízes dos cardos e arbustos.(70) E justamente nas
proximidades das gundélias localizou os mais importantes
habitáculos.
O resto foi relativamente simples. Tratava-se, como dizia, de
aproveitarmos a figura nada atrativa dos bebês morsa.
Para isso bastaria filmá-los.
Localizados os ninhos, ao final de não poucas tentativas
frustradas, conseguiu introduzir uma das microcâmaras de

reserva, conectada ao módulo por uma fibra contaminada com
érbio. Uma lâmpada estroboscópica de mercúrio acoplada à
filmadora e a potente fibra óptica amplificadora(71) fizeram o
milagre: a tomada e a transmissão das imagens dos trinta ou
quarenta exemplares que integravam aquele núcleo de
ratazanas-topo desnudas às mãos peritas do Papai Noel.
Aos clarões os roedores tinham reagido com agressividade e
confusão, remexendo-se, atacando e sobretudo guinchando
ferozmente. As crias subiam nos adultos e esses, entorpecidos,
tentando fugir, se mordiam mutuamente.
As cenas, ampliadas vinte vezes, como eu tive oportunidade
de comprovar e suportar, eram qualquer coisa de arrepiante.
As fitas selecionadas entraram diretamente na órbita de
Papai Noel, que, depois da codificação, remeteu os
correspondentes feixes objeto e de referência a um cristal
especial (foto-refrativo)(72) que, finalmente, por meio de um
processo que não posso divulgar,(73) revelou as espetaculares
visões.
Hologramas dotados de movimento e som que, uma vez
provados e eu fui, sem querer, a cobaia de eleição foram
armazenados na memória do computador, prontos para
utilização.
A projeção sobre o cimo do Ravid podia efetuar-se manual ou
automaticamente. A princípio, Eliseu fixou o sistema nessa
segunda posição, estabelecendo o cenário entre mil e mil e
quinhentos metros a Partir da nave. Se um suposto visitante
(homem ou animal) transpassasse os dois primeiros cinturões
a varredura em microlaser e a radiação infravermelha(74) -, a
barreira das agressivas ratazanas-topo desnudas era
fulminantemente lançada pelo fiel Papai Noel. A súbita e
terrífica visão só tinha uma falha. Durante o dia, o excesso de
luz tornava-a praticamente ineficaz. Mas nos demos por
satisfeitos.
A proteção da nave e dos pilotos parecia assegurada. Eu
disse bem. Mas não nos adiantemos.

Parecia...
O resto da semana, até segunda-feira, 15 de maio, decorreu
em uma calma tensa. A advertência de Civílis afetou Eliseu mais
do que a mim mesmo. Para ser franco, nada do sucedido em
Cesaréia o alarmou tanto quanto a ameaça de Pôncio. E acho
que tinha razão. Se realmente o louco ordenasse minha captura,
o final da missão oficial e nosso acalentado sonho de
acompanhar o Mestre na totalidade dos seus dias de
peregrinação podiam sofrer um sério revés.
Então aumentamos as Precauções. Em especial a partir do diachave:
13, sábado.
Para começar, minhas saídas da base-mãe-3 foram
drasticamente suprimidas. Só na quinta, 11, e depois de vencer
a natural resistência de meu irmão, pude deixar o Ravid para
visitar meu velho amigo, o pai dos Zebedeu. Além de recuperar
os valiosos papiros que Lhe confiara, tínhamos de acertar alguns
detalhes em torno da iminente viagem a Jerusalém e da venda
da opala branca.
O ancião alegrou-se ao receber em sua casa o poderoso
mago. Como eu temia, as notícias sobre o prodígio no pátio
da guarnição romana de Nahum não haviam tardado a circular
pelo yam. E, lamentavelmente, ao chegarem aos ouvidos de
Zebedeu, já não eram quatro as palmeiras-tamareiras
desaparecidas, mas um bosque inteiro e boa parte da odiosa
soldadesca.
Por sorte, Zebedeu pai se mostrou cético diante daquelas
fantásticas versões. Elogiei sua sensata atitude.
Com relação à viagem para a Cidade Santa, concordou comigo
que efetivamente era mais seguro, ainda que não tão rápido,
fazê-la com uma caravana das muitas que partiam de Nahum ou
Tiberíades, ou que passavam diariamente pela costa ocidental
do lago. Por uma módica quantia, muitos viajantes e peregrinos
se uniam a esses comboios de carga, garantindo assim um
mínimo de proteção.
No momento não achei oportuno entrar em maiores

explicações sobre a autêntica e secreta razão que me impelia a
viajar acompanhado: a ameaça do governador.
Quanto à opala, Zebedeu, depois de examiná-la, moveu a
cabeça negativamente. Assustei-me.
- Não, querido amigo esclareceu -, não é falsa. Ao contrário.
Demasiado boa para se tentar negociá-la nestas corruptas e
pouco confiáveis cidades do yam...
Seguindo seu conselho, adiei a operação. Zebedeu relacionou
alguns nomes de banqueiros e cambistas de relativa confiança
e me aconselhou a adotar duas cautelas: primeira, e a mais
importante, não mostrá-la em público. Minha vida estaria em
perigo. Segunda, não perder de vista a rapacidade desses
traficantes.
Estava certo...
Ao nos despedirmos, o bom homem estranhou meu cálido
abraço.
Mas não fez perguntas e correspondeu com idêntico afeto.
Aquela seria a última vez que o veria... naquele agora
histórico.
E até a viagem a Jerusalém, prevista para a madrugada de
segunda-feira, 15, permaneci ilhado no alto do porta- aviões,
pondo em dia notas e lembranças. Eliseu, por sua parte, com a
minha esporádica colaboração, trabalhou nas análises do
sangue da Senhora e na minuciosa revisão do que deveria ser a
última aventura naquele ano 30: a busca e investigação do
epicentro da misteriosa explosão subterrânea que, segundo os
expertos do Cavalo de Tróia, pôde provocar o célebre terremoto
da sexta-feira, 7 de abril, pouco depois da morte de Jesus de
Nazaré.(74) Operação que foi batizada com o nome de
Salomão.
Mas desses apaixonados temas me ocuparei mais adiante. O
que está por contar e não é pouco tem absoluta prioridade.
Antes de prosseguir devo confessar algo. Pode ser até que
careça de importância. Mas também é bom que o suposto leitor

deste diário conheça minuciosamente o estado de espírito
destes exploradores em cada momento. Afinal de contas éramos
seres humanos e a condição anímica influía poderosamente em
nosso trabalho.
Foi um gesto íntimo do meu companheiro. Um pequeno
pormenor que ilustrou às mil maravilhas a especialíssima fase
que atravessávamos nesses dias, a um passo do ansiado e ao
mesmo tempo temido terceiro salto.
A complexa e ambiciosa meta seguir o Mestre durante
quatro anos -, nascida quase casualmente (?) foi dominando
nosso coração com tal veemência que naquele maio do ano 30
ocupava praticamente todas as nossas conversações.
E pouco faltou para que desprezássemos as demais missões.
O terceiro salto!
Tudo estava preparado. Conhecíamos a data a que teríamos
de retroceder.
Havíamos traçado um magnífico plano inicial. Acreditávamos
saber onde e como encontrar o Mestre...
Só faltava o quando. Quando ativaríamos a nave e a inversão
da massa? A tensão começou a disparar os nossos alertas
interiores.
Devíamos acalmar-nos e agir com mais gelo que fogo. E na
noite anterior à minha partida, como eu vinha dizendo, meu
irmão, presa dessa crescente inquietação, mostrou-me um papel.
E com sua habitual candura disse-me:
- E tenho muitas outras...
Ao ler o conteúdo fiquei perplexo. O cabeçalho dizia tudo:
Perguntas a formular a Jesus de Nazaré.
Contei meia centena.
O ardente desejo de voltar a ver aquele Homem, de fato, se
convertera em obsessão. Uma obsessão diga-se que merecia
e mereceu a pena.

*NOTAS
(1) Baseando-nos em fontes como Plínio, Cavalo de Tróia, entre os nove
tipos de papiros utilizados comumente à época de Jesus, escolheu o modelo
amphitheatre, assim denominado porque a oficina onde eram manufaturados
ficava muito próxima do anfiteatro de Alexandria. Esse papiro, dada a
proximidade do Egito, era um dos mais acessíveis e mais utilizados pelos
judeus. (N. Do m.)
(2) O papiro, planta aquática, foi empregado no Egito como base para a
escrita desde 2600 a.C. Sua técnica de fabricação era extremamente simples.
Cortava-se o talo longitudinalmente em tiras muito finas, colocando-as lado a
lado, até obter-se o tamanho da folha desejada. A segunda camada era
colocada sobre a primeira, no sentido contrário. Formavam uma trama
quadrangular. Geralmente usavam cola e, à guisa de prensa, um peso que
variava de 5 a 10 kg. Postas ao sol para desidratar, as folhas depois eram
polidas com pedra-pomes. Para obter as folhas usadas por mim os expertos da
Operação Cavalo de Tróia necessitaram de um total de dois feixes de talos. Em
caso de necessidade, esse material podia ser lavado ou lixado e
reaproveitado. N. Do m.)
(3) Ver informação em OperaÇão Cavalo de Tróia I, p. 546.
(N. do A.)
(4) Na primeira metade do século I a época imperial -, depois das
reformas de Augusto e Tibério, cada legião, em linhas gerais, somava ao redor
de 5 500 homens e era dividida em dez coortes. A miliaria, com mil soldados, e
as nove seguintes, com quinhentos cada uma (quingenaria).
A coorte destacada em Nahum era, portanto, de nível inferior: Quingenaria.
Essas unidades eram integradas, por sua vez, por três manípulos, com duas
centúrias por manípulo. Salvo exceções, em cada coorte havia um número de
centuriões que a comandavam e que variava entre seis e dez. A esses havia
que acrescentar outros tantos optiones (suboficiais). Uma legião, portanto,
reunia entre sessenta e cem centuriões.
Com Augusto, a tradicional infantaria uniu-se novamente à cavalaria
recobrando o prestígio perdido e um contingente de tropas auxiliares. Em
cada região a cavalaria era formada por 480 ginetes, divididos em turmae, com
três decuriões na chefia de cada turma. Seus objetivos básicos eram a
exploração e o apoio aos infantes. Em Nahum, a coorte era completada por um
desses esquadrões (uma turma), com trinta e três ginetes.
Na organização da legião não figuravam os chamados serviços auxiliares,
formados por músicos, príncipes aliados, artilharia, engenharia e intendência,
que pertenciam à patente mais alta do general-em-chefe.
Até a morte de Augusto, o império contava com um total de vinte e cinco
legiões, aproximadamente de 140.000 homens, mais os que pertenciam às

tropas auxiliares e mais 10000 pretorianos. Os contingentes chegavam a mais
de 320 indivíduos. Na época de Jesus, três dessas legiões a VI Ferrara, a X
Fretensio e a III Gallica encontravam-se concentradas na Síria, ponto
estratégico da região oriental do império, vigiando os panos e, claro, os
judeus rebeldes. No total, na província da Judéia (assim era conhecida em
Roma a nação Palestina), ainda que fosse possível modificar-se o número em
função da necessidade, chegamos a contar até seis coortes, quase todas do
tipo quingenaria (500 a 600 homens).
A mais importante (miliaria), que recebia o nome de Italica, permanecia
acantonada em Cesaréia, residência oficial do governador. O resto se achava
distribuído pelas zonas de conflito de Israel. A fortaleza Antônia, em Israel, era
um desses pontos quentes. Essas unidades eram formadas por tropas
auxiliares, compostas por gregos, trácios, samaritanos, sírios, gauleses,
germânicos e espanhóis. (Os judeus eram isentos do serviço militar.) O
exército de ocupação ainda era integrado por quatro turmae (por volta de 120
ginetes), igualmente distribuídas pelo país, muito embora com um caráter de
volante. (N. Do m.)
(5) O candidato à legião era submetido a um rigoroso exame médico e
psicológico. Se fosse portador de algum defeito físico, ou apresentasse uma
tara moral ou mental, ou se não tivesse uma compleição mínima, era rejeitado.
Se fosse declarado probabilis, recebia uma placa de chumbo, com seu nome
gravado (incumare), para ser usada ao pescoço, e era enviado para uma
coorte. Isso acontecia com todos os recrutas. (N. Do m.)
(6) O optio uma espécie de brigada ou sargento desempenhava o cargo
de ajudante do centurião, que passava a auxiliar as funções administrativas e
a supervisão de alguns pequenos grupos de tropas. Segundo Festo, optio
derivava de optare, já que o centurião podia optar por manter um auxiliar, (N.
Do m.)
(7) O ramo de videira, o sarmento, era o emblema e o símbolo do posto de
centurião.
(8) Na complexa organização das legiões, os centuriões eram selecionados
pelos tribunos, de acordo com sua bravura e capacidade de mandar. Vinham
sempre da tropa e só conseguiam subir de patente depois de muitos anos de
serviços. À época de Augusto esse tempo era de vinte anos. Dez anos para
cada linha de hastate, príncipes e triani, e outros dez de segunda categoria
para que se fossem formando a seu cargo. Os primeiros recebiam o nome de
priores. Como a unidade tática fosse o manípulo (cada coorte constava de três
manípulos), o centurião prior comandava a unidade. (N. Do m,)
(9) A chamada honesta missio era uma das principais metas do soldado
romano. Consistia na licença absoluta e podia beneficiá-lo de duas maneiras:
econômica e juridicamente. A primeira vantagem se concretizava em terras ou
em dinheiro. O veterano podia assim estabelecer-se em colônias ou em
fazendas particulares, ou ainda dispor de uma soma razoável que Lhe
permitisse viver honestamente. A isso ainda vinham somar-se privilégios

legais. Além de não ser obrigado a pagar impostos, o veterano recebia
automaticamente o título de cidadão romano.
Não importava sua origem. Qualquer indivíduo que se alistasse na legião
tinha direito a essa importante classificação, O único inconveniente é que só
recebia tudo isso depois da honesta missio. Esses privilégios para os
marinheiros e membros das tropas auxiliares eram consignados num diploma
militar que certificava, por sua vez, a concessão definitiva do título de cidadão
romano. Tal diploma também concedia aos soldados o princípio de connubium
para legalizar seus casamentos. Como é sabido, os legionários e mercenários
das tropas auxiliares não podiam casar-se oficialmente. Ao receber, portanto, a
honesta missio, tanto as esposas quanto os filhos tidos durante o período de
serviço militar eram automaticamente transformados em cidadãos romanos. O
título de veterano era muito mais que uma distinção honorífica. Bastava sua
apresentação em qualquer ponto do império para que magistrados e
autoridades em geral abrissem as portas para o novo cidadão.
A concessão do título era feita numa solenidade especial.
Eram comemorados os vinte e cinco anos de serviços prestados por aqueles
que se haviam distinguido por suas ações heróicas.
Se o indivíduo incorresse em alguma das faltas graves estabelecidas pela
rígida disciplina militar, corria o risco de ser expulso ou justiçado ou ainda
perder os privilégios na hora da aposentadoria. (N. Do m.)
(10) Apesar de já ter mencionado o assunto quando me referi ao suposto
abandono da guarda romana que custodiava o sepulcro de Jesus de Nazaré, em
Jerusalém, vou estender-me agora um pouco mais sobre esse interessante e
importante capítulo dos castigos militares. Em especial, levando em conta que
isso pode esclarecer alguns dos acontecimentos que nos tocou presenciar
durante a vida pública do Mestre.
Segundo nossas informações, colocadas no banco de dados do Papai Noel,
o exército romano infligia as seguintes penas para os soldados infratores:
castigo, multa pecuniária, trabalhos pesados, mudança de destino,
rebaixamento, a baixa com desonra, tortura e pena de morte.
O castigo castigatio consistia na flagelação (Fustuarium supplicium).
Mas o mais temido era o espancamento, ou apaleamento, que muitas vezes
levava à morte e que era aplicado por negligência nas vigílias noturnas,
abandono do posto, saída não justificada na ordem das marchas, rebelião,
roubo, homicídio no acampamento ou quartel, pilhagem, atentado ao pudor,
perda ou venda de armas e por reincidir em uma falta pela terceira vez.
Existiam, ainda, as penas de prisão, privação de alimentos e sangria.
A multa pecuniária era imposta quando o soldado ou o oficial negligenciava
o trabalho, iniciava um ataque sem ordem ou, simplesmente, não apresentava
um rendimento satisfatório na opinião dos chefes. Nesse caso, era-Lhe
descontada uma parte ou a totalidade do soldo.
Os chamados trabalhos pesados munerum indictio constituíam os

serviços de alto risco ou vexatórios. Se alguém, por exemplo, abandonasse seu
posto podia ser condenado a permanecer em pé a noite toda diante do
pretório ou acampar fora do acampamento, exposto aos perigos de um ataque
inimigo.
Se o delito fosse perda ou venda de armas, o culpado era obrigado a tirar
os calçados e as roupas e ficar assim por um tempo diante de seus
companheiros. Em outras ocasiões, legionários ou oficiais eram levados a
guarnições consideradas de alto risco.
A militiae mutatzo, ou mudança de destino, era uma das penas mais
freqüentes. O insubordinado passava para uma corporação de hierarquia
inferior. Por exemplo, um ginete ou cavaleiro passava para a infantaria e
alguém que estivesse nessa categoria passava para uma coorte de
armamentos leves ou a um corpo auxiliar. As faltas que levavam a essa
situação às vezes eram até ridículas: insultar um companheiro, tomar parte em
uma briga ou sair da formação de uma coluna em marcha sem autorização.
A baixa com desonra- ignominiosa missio- podia recair sobre um só soldado
de uma unidade ou sobre uma legião inteira.
Nesse último caso, os inocentes eram redistribuídos em outras legiões, e a
culpada, extinta. Assim aconteceu na derrota de Varo e também com as legiões
III Gallica e a III Augusta.
César, segundo conta em Bell Afrir. 54, aplicou a ignominiosa missio a
tribunos e a um centurião que haviam fomentado a indisciplina.
O rebaixamento ou gradus deiectio aplicava-se quase que exclusivamente
aos oficiais. Às vezes, claro, esse castigo se prestava a injustiças, abusos e
vinganças pessoais. Conta-se, por exemplo, que Tibério rebaixou um legado por
haver enviado alguns legionários à caça para prover sua mesa.
Em outras ocasiões, o castigo recaía nos chefes que não sabiam defender
uma posição. Foi esse o caso de Aurélio Pacuniola, rebaixado no cerco de
Lipari. Cota ausentou-se, deixando-o à frente das tropas. O inimigo ateou fogo
à paliçada do acampamento e Cota ordenou que o açoitassem, rebaixando-o a
soldado raso, As torturas e a pena de morte, por último, eram o castigo máximo
e somente podiam ser impostas pelo general-em-chefe. Eram aplicadas para
punir delitos como desobediência, insubordinação, abandono de posto, perda
ou venda de armas, traição e, sobretudo, deserção. Geralmente, a pena capital
era precedida de tortura. Era qualificado como desertor aquele que
abandonava a guarnição sem autorização, o que saía das colunas antes do
toque de debandar, o que fugia diante do inimigo e passava para as suas
fileiras. Nesses dois últimos casos, os mais graves, a pena era morrer na cruz.
Se não pegasse pena de morte, tinha as mãos cortadas ou era vendido como
escravo. Em tempos de paz, os desertores eram rebaixados. A disciplina rígida
também atingia os que ajudavam os desertores. Confiscavam-Lhes os bens,
podendo até ser deportados ou condenados a trabalhos forçados. Os castigos
atingiam até os uagus, os preguiçosos, que não se apresentavam a tempo nas
fileiras, e os emansor ou soldados que ultrapassavam o tempo da licença.

Em geral, a maior parte dessas penas era de responsabilidade dos optio e
dos centuriões. (N. Do m.)
(11) Em suas obras Antiguidades (15,9) e Guerras (1, 21), o historiador
judeu-romanizado Flávio Josefo explica como o rei construtor (Herodes o
Grande) havia visto ao longo do mar um lugar chamado Torre ou Pirgo de
Estraton, cuja configuração era muito vantajosa. E ali, sobre a antiga e
decadente povoação, sem ligar para os gastos, edificou uma esplêndida vila e
um porto réplica do Pireu -, no estilo dos melhores centros da época. Chamoua
Cesaréia, em homenagem ao imperador César Augusto. Foi iniciada sua
construção no ano 22 a.C., e concluída em 9 a.C. Três anos mais tarde Roma
usou-a como residência oficial de seus governadores na Judéia. N. Do m.)
(12) O poeta latino de origem hispânica, em seu livro 12 (57), lamenta-se
do insuportável ruído que castigava a Roma da segunda metade do século I.
Escreve textualmente: Como viver em Roma? Aqui em Roma, ó Esparso, o pobre
não pode nem pensar nem dormir. Como viver, diz-me, com os professores de
escola pela manhã, padeiros à noite e com o martelar dos caldeireiros durante
o dia? Aqui há um cambista que se diverte batendo em sua banca suja as
moedas cunhadas com a efígie de Nero; mais adiante, um batedor de cânhamo,
cujo mangual reluzente golpeia sobre a pedra o linho trazido da Espanha. A
cada instante do dia ouvem-se os gritos dos sacerdotes Fanáticos de Belona,
os do náufrago charlatão com sua tigela de esmolas, os do judeu cuja mãe o
ensinou a mendigar...
Quem contasse as horas de sono perdidas em Roma poderia contar
facilmente o número de mãos que golpeiam as gamelas de metal para fazer
feitiços à luz do luar... Sou despertado pelo escândalo que fazem os
transeuntes: Roma inteira está à minha cabeceira. Quando se apodera de mim
o nojo e quero dormir, corro ao campo. (N. Do m.)
(13) Entre a farta informação armazenada no banco de dados do Papai
Noel sobre a miríade de deuses venerada por aquela supersticiosa civilização
romana, figurava o culto ao gênio.
Cada homem tinha o seu. Horácio afirmava que essa espécie de Deus tutelar
nascia e morria com o indivíduo, velando-o e controlando seus atos. Sêneca ia
mais longe, assegurando que o ser humano ao nascer recebia um deles como
guia e protetor.
Esses gênios eram encarregados de suscitar os desejos e apetites naturais
de cada um. Por isso mesmo, satisfazer as inclinações da natureza humana foi
definido como indulgere genio.
Alguns, como Augusto, afirmavam que alma e gênio eram a mesma coisa. Era
comum, nos juramentos, colocar o nome desse gênio particular como
testemunha do que se aFirmava. Se a pessoa mentisse, bastava fazer um
sacrifício para recuperar a amizade e proteção do gênio ofendido.
Com a morte do cidadão, seu gênio ficava sobre o sepulcro, transformandose
em um espírito bondoso, a que chamavam manes, ou um ser maligno,

lemures.
Tudo na natureza até os deuses maiores tinha seu próprio gênio.
Segundo Cícero, o próprio senado desfrutava o privilégio de um desses deuses
de uma categoria inferior.
Suas grandes resoluções eram sempre inspiradas por esses guias protetores.
Os romanos costumavam representá-los como uma serpente, pintada
geralmente nos lugares mais íntimos da casa. Os mais ricos procuravam obter
um réptil vivo, que serpenteava por todos os aposentos ou era guardado numa
urna. (N. Do m.)
(14) Horácio (Epd 5,16), Virgílio (Ecl 8, C4 e ss.) e Apuleio (De Magia, 31).
(N. Do m.)
(15) N. H. 24,171. (N. Do m.)
(16) Nos rituais mágicos, a hora escolhida era de vital importância. Segundo
o Papiro de Paris, o pôr-do-sol e os momentos que antecediam o seu
nascimento eram os de maior força mágica. Também os dias de lua cheia eram
propícios. No meu caso, com o sol próximo ao horizonte do mar, a comédia foi
perfeita. (N. Do m.)
(17) Segundo autores como Sêneca (Phaedr. 420 e Med 840 e 841), além
de Hécate, o mago devia recorrer a todos os deuses gregos ctônicos: Hades,
Cibele, Deméter, as Fúrias, etc., assim como os superiores: Zeus, Apolo, Hera- e
os egípcios Anúbis, Horus e Seth. Diziam que possuir esses nomes era o mesmo
que possuir os deuses. E a súplica era essencial para o bom resultado da
operação mágica. Quantos mais deuses fossem invocados, maior a
possibilidade de êxito. Entre outras razões, porque sempre havia deuses
surdos. (N. Do m.)
(18) Segundo a rígida norma dos áugures do Estado colegiados
profissionalmente (augures public:) -, o silentium nos rituais mágicos era uma
das condições essenciais para a pureza e o bom resultado da operação.
Qualquer interrupção ou falta de respeito invalidava a conjuração,
obrigando o mago a recomeçar. Ninguém podia fazer perguntas. O silêncio
devia ser total. (N. Do m.)
(19) A proliferação de bruxos, adivinhos, intérpretes de sonhos e outros
charlatães era tal que Cícero assim se lamenta em um de seus escritos: A
superstição nos ameaça, nos espreita e persegue por todos os lados: as
palavras de um adivinho, um presságio, uma vítima imolada, uma ave em vôo,
o encontro com um caldeu, um arúspice, um relâmpago, um trovão, um objeto
atingido pelo raio, um fenômeno que tenha algo de prodigioso, coisas que
devem ocorrer com freqüência nos inquietam e nos perturbam o descanso. Até o
sono, no qual deveríamos encontrar o esquecimento das fadigas, converte-se
num manancial de novos terrores. Convém que o hipotético leitor deste diário
não esqueça esta penosa realidade, a mesma que o Mestre deve ter
enfrentado. (N. Do m.)

(20) nio (An. Fr 467 W). (N. Do m.)
(21) Propércio (Elegias 3, 22, 17-22). (N. Do m.)
(22) Naquele tempo o império achava-se dividido fundamentalmente em três
classes de províncias: senatoriais, imperiais e procuratorianas. A Judéia
(Israel), desde a queda de Aryuelau (filho de Herodes o Grande) no ano 6 de
nossa era, pertencia a esse último grupo. E depois do governo Copônius,
Ambíbulus, Rufus e Valérius Gratus, Tibério designou Pôncio (26 a 36 d. C.)
como governador. Os territórios senatoriais totalmente pacificados eram
dirigidos por um procônsul, eleito pelo senado de Roma. Havia falta de legiões
(caso de Anatólia ou Bética, na Espanha). Ao contrário, as chamadas províncias
imperiais, por causa dos muitos conflitos, estavam sob o controle direto do
imperador. E eram tuteladas por um legado. Na Síria, por exemplo, com a
ameaça dos partos em suas fronteiras e dos judeus revoltosos no sul, o legado
imperial dispunha de várias legiões e podia mobilizá-las segundo suas
necessidades. Por último, as procuratorianas figuravam como províncias de
escalão inferior, com poucas forças militares e dirigidas por funcionários,
geralmente pertencentes à distinta ordem eqüestre (caso de Pôncio). Suas
atribuições centravam-se em assuntos administrativos, jurídicos e sobretudo
financeiros. É bastante provável que esses governadores não tivessem
recebido o título de procurador até os anos 41 a 54, com a reforma de
Cláudio. (N. Do m.)
(23) Segundo os estudos de Raz, verificados minuciosamente pelos homens
do Cavalo de Tróia, o principal abastecimento de água do mar Morto (o Rio
Jordão), ao contrário de outros rios, arrasta um importante leque de
sedimentos, formado fundamentalmente por argila. Mais de 80% desses
sedimentos são integrados por componentes de reduzidas dimensões, de até
meio centésimo de milímetro. Esse tamanho ínfimo favorece a
impermeabilidade da argila, evitando a ação do oxigênio, que acaba colorindo
o barro com sua típica tonalidade escura.
Basta descobrir a argila para que o ar oxide o ferro, variando sua cor.
As principais características desse famoso barro negro - de excelentes
propriedades cosméticas e terapêuticas são as seguintes: densidade, 1,65 g
por centímetro cúbico (refiro-me ao que fica a descoberto perto da borda);
quantidade de água, uns 27%, aproximadamente; minerais dissolvidos
(principalmente sal-gema), 39%; fragmentos de vegetais, 1%; minerais
dissolvidos numa mistura oxigenada salgada (10% HCL), 15,7%, e minerais
não solúveis, 17,3%.
Nesse sedimento são freqüentes os cristais de sal-gema, em forma de cubo,
precipitados no interior do barro, como é demonstrado pelo lodo que fica preso
nos cristais durante sua formação. Esse fenômeno se deve, ao que tudo indica,
à capacidade da argila para captar íons. (N. Do m.)
(24) Segundo Josefo em Antiguidades dos Judeus (3, 9), aquela costa, na
rota marítima para o Egito, sempre apresentou um gravíssimo problema, ou
seja, o forte vento da África (sudoeste) que dificultava o atracamento dos

barcos. De Dora a Jope (ou Jaffa) o litoral só oferecia um refúgio
medianamente aceitável. O intenso tráfego se via na necessidade de desviarse
do mar encapelado, ancorando longe da costa, com as lógícas dificuldades
de embarcar e desembarcar passageiros e carregamentos. Mas Herodes o
Grande remediou a situação ao construir a torre de Estraton, eqüidistante de
Dora e Jaffa, uma réplica do sistema portuário do Pireu. E denominou-o
Sebastos. O porto era circular, para que mesmo as grandes embarcações
pudessem acercar-se da costa, submergindo para isso prosseguia Josefo
imensas rochas até uma profundidade de vinte braças. A maior parte delas
tinha cinqüenta pés de comprimento (15,25m) e pelo menos dezoito de largura
(6m) e nove de espessura (3m). E o cais que mandou construir sobre essa
fundação, para resistir ao ímpeto do mar, tinha a largura de duzentos pés (uns
30m). A metade, verdadeira fortaleza contra o mar tempestuoso, estava
preparada para resistir ao empuxo das ondas que arremetiam contra ela de
todos os lados.
E chamou-a quebra-ondas. A outra metade era formada por um muro de
pedras, com várias torres, sendo que a maior, muito bonita, chamava-se Druso,
nome do neto de César, que morreu muito jovem. Fez construir também uma
série de abrigos abobadados, para marinheiros. Em frente a esses abrigos
mandou construir um grande cais de desembarque, que contornava todo o
porto, um belo lugar para passear. A entrada e a abertura do porto estavam
expostos ao vento do norte, mais favorável. No extremo do cais, à esquerda da
entrada, erguia-se um torreão de pedras, para resistir aos inimigos. Sobre o
lado direito, levantavam-se dois grandes pedestais, unidos entre si, mais altos
do que a torre em frente. (N. Do m.)
(25) Como diz o grande arqueólogo submarinho Alexander Flinder, contra a
opinião de expertos como Nicholas Flemming, o poderoso porto da antiga
Cesaréia não desapareceu por causa de um suposto terremoto.
Durante muito tempo continuou sendo um importante entreposto comercial.
O Talmud o menciona em alguns trechos. Foi a partir do século VI, ao que
parece, que se deu sua decadência.
Procópio de Gaza o menciona em seus escritos: O porto da cidade que leva
o nome de César encontra-se em más condições por ser muito velho, à mercê
das ameaças do mar, e já não pode mais ser classificado como porto,
esplendor que só conserva no nome; não se pode esconder suas deficiências
nem as queixas das naves que, ao escapar do mar, acabaram sendo totalmente
destruídas por ele. Para Flinder, ratificando o lamento do major, a explicação
para o desaparecimento de Sebastos deve ser buscada na deliberada e
sistemática obra de destruição daquela gigantesca estrutura por parte de
cidades e reinos próximos. O porto foi simplesmente sendo desmantelado
pedra por pedra, coluna por coluna. O khan El Ourdan, de Acra, por exemplo,
foi feito inteiramente com os restos de Cesaréia. O mesmo aconteceu com
cidades da Itália, Egito e Ásia. Durante a Idade Média, dezenas de navios
partiram do semidestruído Sebastos, transportando uma riqueza arquitetônica
que serviria para remodelar e construir in finidades de palácios, fontes e

mesquitas. A rapinagem chegou ao cúmulo de arrancar os silhares submersos
do grande anel. Apesar dessa lamentável desintegração do orgulho de
Herodes o Grande, a base original em forma de meia-lua pode ser observada
do ar, em dias claros. (N. A.)
(26) De entre os milhares de divindades que conviviam com a cultura
romana, entendo que por sua importância devo deter-me nos chamados lares.
Dos cultos praticados em Roma, esse era dos mais arraigados esses deuses
menores eram os protetores das casas. Segundo consta no canto dos Arvales e
nas obras de Apuleio, entre outros, os lares eram as almas dos mortos,
responsáveis pelas domus (casas). Ainda que a origem dessa veneração não
esteja muito clara, parece que a princípio foram identificados com espíritos
infernais, que perseguiam os humanos. Com o tempo, a crença popular foi
mudando e eles passaram a ser autênticos membros da família. Eram deuses
que, além da saúde, protegiam móveis, casas, jardins, fontes, campos e tudo o
que viesse a fazer parte do lar. Tíbulo chama-os custodes agri, uma espécie de
anjos da guarda.
Dentro da casa ocupavam o lugar de honra, com o obrigatório sacrarium. Ali
ardia permanentemente uma chama sagrada, se faziam as rezas e as súplicas e
se colocavam as oferendas diárias, inclusive pratos de comida. O romano,
sobretudo, recorria aos lares de suas famílias nos momentos mais significativos
de sua vida. Por exemplo, quando o adolescente trocava a bulla (bolinha de
metal ou couro que os filhos dos patrícios usavam no pescoço até os dezessete
anos) pela toga de homem, quando partiam ou voltavam de viagem, ou ao
partir para a guerra. Ao abandonar a casa paterna, o jovem ali fazia suas
preces agradecendo a proteção dos lares e solicitando ajuda para encontrar
seus próprios lares. (N. Do m.)
(27) Herodes o Grande, além dos aquedutos e da rede que distribuía água
potável para quase toda a Cesaréia, dotou a cidade de um gigantesco e
inteligente complexo de cloacas abobadadas que entravam pelo mar. Por esses
túneis, de três metros de altura e meio quilômetro de comprimento, penetrava
a água salgada a cada nova maré, saneando e retirando os detritos. Um
desses condutos estava preparado até para permitir a entrada das águas do
Mediterrâneo nas ruas da cidade, para lavá-las. (N. Do m.)
(28) Segundo pude comprovar, a loção contra cabelos brancos nada mais era
que sangue de boi ou vaca, fervido com azeite.
A crença popular admitia que a cor do pêlo dos animais passava ao
indivíduo que usasse tal mistura. (N. Do m.)
(29) O uso desses estrigilos foi posto na moda pelos atletas gregos, que os
usavam em ginásios e competições, eliminando assim o azeite e a areia. Uma
vez raspada a pele, entravam no banho. (N. Do m.)
(30) Essas máscaras de beleza eram feitas à base de farinha, à qual podiam
acrescentar bolotas de cipreste trituradas com leite, mel, clara e fatias de pão.
Em certas ocasiões, a ornatrix (criada encarregada dos cosméticos) preparava a
máscara à base de pó de alcaiade, um carbonato básico de chumbo de

eficiência duvidosa. (N. Do m.)
(31) As poções contra rugas e outros sinais de envelhecimento eram muito
mais estranhas e sujeitas a todo tipo de superstições. Por exemplo, uma das
mais usadas era uma mistura de incenso, azeite fresco, cera e as já citadas
bolotas de cipreste, moídas com leite de jumenta. O tratamento devia ser
repetido por seis dias. (N. Do m.)
(32) De acordo com o banco de dados do computador central, aquele Gávio
Apício chegou a gastar em orgias, viagens e toda sorte de caprichos entre
sessenta e cem miLhões de sestércios (um denário de prata equivalia a seis
sestércios, mais ou menos). Ápio, num livro sobre esse milionário, conta que
sua loucura era tanta que, em certa ocasião, empreendeu uma fatigante e
longa viagem até o mar de Minturne, na África, porque alguém Lhe assegurou
que naquela zona os caranguejos eram gigantescos. Ao que parece, esse
esbanjador compulsivo acabou por suicidar-se porque, por um erro de cálculo,
acreditou que sua fortuna havia encolhido a uma cifra ridícula e insuportável
de dez milhões de sestércios (mais de um milhão e meio de denários de
prata). A questão é que o nome de Apício se converteria em símbolo de
riqueza e prazer desenfreado. Todo jovem, e os não tão jovens, aspiravam ser
um Apício. Heliogábalo, mesmo, tomou-o como exemplo duzentos anos mais
tarde. (N. Do m.)
(33) Ainda entendendo que não seja um tema agradável, creio que devo ser
fiel aos costumes que vim a conhecer naquela época e naqueles lugares. Um
deles a limpeza depois de satisfeitas as necessidades provocaria
repugnância e consternação em nossos dias. Tanto judeus quanto pagãos, à
exceção dos mais pudicos e refinados, serviam-se do que tivessem mais
próximo. Geralmente pedras, folhas ou simplesmente os dedos. Daí a
obrigação, além de enterrar os excrementos, de lavar-se antes de comer.
Meter a mão direita (a esquerda também, entre muitos judeus) no prato
comum, sem se haver lavado, era qualificado como ofensa grave. E com toda
razão. (N. Do m.)
(34) Poderia tratar-se do chefe supremo das forças romanas destacadas em
Capri, que tinham por missão zelar pela segurança do chefe ou velhinho: o
imperador Tibério. (N. Do m.)
(35) Esses aposentos eram o lugar ideal para mostrar e exibir poder e
riqueza. E as comidas e recepções, o melhor pretexto. O cenáculo, ao
contrário, era reservado para os almoços íntimos. (N. Do m.)
(36) Seguindo as instruções dos arquitetos romanos, em especial do genial
Vitrúvio, as casas das famílias abastadas eram construídas com estudada
precisão. Nada se deixava ao acaso. Refeitórios e banhos de inverno, por
exemplo, eram orientados para a face oeste, por serem utilizados na parte da
tarde. Dessa forma mantinham uma agradável temperatura.
Dormitórios e bibliotecas, por sua vez, orientavam-se para o leste,
propiciando assim a melhor conservação dos rolos e a secagem da roupa de

cama. No Mediterrâneo, os ventos do sul e do oeste sopram carregados de
umidade. Os refeitórios de primavera e outono eram também orientados para o
leste. No caso do de verão voltava-se para o norte para se manter fresco. E o
mesmo ocorria com os salões onde se exibiam pinturas e tapeçarias. Todos
deviam voltar-se para o norte. A luz constante realçava o brilho das cores. (N.
Do m.)
(37) Os modelos romanos do hydraulis, estudados por Ulrich Michels e cujas
investigações nos serviram de documentação, haviam sido, logicamente,
aperfeiçoados. Dispunham de três fileiras de tubos (de bronze ou estanho) a
distância de uma quinta e uma oitava (também a oitava e dupla oitava),
conectados com amplificadores de registros e teclas. O ar era fornecido por um
engenhoso sistema consistente em duas bombas providas de válvula de
retenção. O genial Ktesibios, para equilibrar as rajadas, dirigiu o ar por
pressão para um depósito de metal aberto na parte inferior e encerrado por
sua vez em outro tanque cheio de água. O ar pressionava o líquido para baixo,
forçando a água a subir para o depósito exterior. Ao mesmo tempo, o ar do
recinto interno via-se sujeito a uma pressão uniforme, obtendo-se finalmente
nível de água em ambos os tanques. Existe documentação sobre a utilização
desses instrumentos musicais ao ar livre, especialmente em anfiteatros. (N. Do
m.)
(38) As técnicas do afresco, conhecidas desde o III milênio a. C., alcançaram
o auge durante o império romano. A parede circular daquele triclinium fora
disposta em sua totalidade para a realização desta bela e difícil modalidade
artística.
A parede que servia de suporte recebeu um primeiro reboque, grosso e
rugoso. Sobre esse se aplicou um segundo reboque, mais delicado, a base da
mencionada cal hidratada. Outros artistas preferiam o gesso fino. Sobre esta
segunda preparação o pintor desenhava paisagens ou figuras. Posteriormente
a cobria com uma leve capa de mármore pulverizado (intonaco).
E o esboço, tornando-se transparente, servia de guia para a definitiva
coloração. Geralmente o artista devia ultimar o trabalho em um só dia. O
intonaco que ficasse sem pintura teria de ser raspado e submetido de novo ao
mesmo processo.
Uma das grandes vantagens do afresco consistia na rápida absorção da
pintura pelo reboque, formando um todo compacto e de grande resistência ao
desbotamento. (N. Do m.)
(39) Como creio haver mencionado, o nome de Jasão foi adotado pelos
responsáveis pela Operação Cavalo de Tróia precisamente com base nas
aventuras vividas pelo herói grego em sua busca do Velocino de Ouro. E,
ressalvadas as diferenças, a verdade é que acertaram. Em síntese, a vida de
Jasão, príncipe herdeiro de Iolco (Tessália), foi uma incessante luta para
conquistar o que Jung definiu como um impossível (o que repugna à razão).
Desde muito jovem foi separado da corte de seu pai, o rei Éson, sendo
educado nas artes da medicina, da guerra, da filosofia e da Ciência por

Quíron, um sábio centauro. Nesse tempo, seu tio Pélias destronou Éson e Jasão
retornou a Iolco para reivindicar o trono. No caminho ajudou uma anciã a cruzar
o rio, perdendo uma sandália. A anciã era em realidade a deusa Hera
disfarçada. E Jasão beneficiou-se do seu poder. E ao apresentar-se diante do
usurpador Pélias atemorizou-se.
Parece que um oráculo havia vaticinado que se acautelasse de um
estrangeiro calçando uma só sandália. E tentando ganhar tempo Pélias
prometeu restituir o trono se e quando seu sobrinho Jasão trouxesse o Velocino
de Ouro. Este velo ou lã de ouro pertencera a um prodigioso carneiro dotado
de inteligência e capaz de falar e voar. O fantástico animal foi presenteado
por Hermes aos irmãos Frixo e Hele, filhos do rei beócio Atamante.
Esses irmãos tiveram de fugir do seu reino e o fizeram no lombo do carneiro
voador. Hele caiu ao mar e desde então aquele lugar ficou conhecido como
Helesponto. Frixo conseguiu chegar à Cólquida, no extremo do Ponto Euxino. E
ali, em agradecimento, sacrificou o carneiro a Zeus, dando de presente a
pele (o Velocino de Ouro) ao rei Eetes, dono e senhor da Cólquida. E o
tesouro foi dependurado em uma árvore e guardado por uma serpente que
jamais dormia. Jasão aceitou o quase impossível repto e armou uma nave a
que chamou Árgo. E reunindo os heróis mais famosos lançou-se à aventura,
rumo à Cólquida. E depois de muitas peripécias conseguiu vencer a serpente
com a ajuda de Medéia, filha de Eetes, apoderando-se do precioso butim. (N.
Do m.)
(40) Na mitologia da Grécia antiga o deus Cronos, que despedaçou seu pai
Urano com uma foice, devorava sua prole, induzido por um oráculo que predisse
seu destronamento por um de seus filhos. Conforme nasciam, Cronos os
devorava. Sua esposa Rea, pouco antes de um novo parto, pediu ajuda a seus
pais e foi para Creta, onde deu à luz em uma profunda caverna dos bosques do
monte Ageu. Depois, envolvendo uma grande pedra entre fraldas deu-a a
Cronos, que a devorou na suposição de que se tratava do último rebento. Mais
tarde, como anunciou o oráculo, aquele filho sobrevivente, o grande Zeus,
derrotaria seu pai. (N. Do m.)
(*) Caixa (com tampa), e não vaso, é o recipiente universalmente
associado ao famoso mito de Pandora. Aqui, porém, era forçoso conservar o
termo vaso do original porque foi empregado deliberadamente em
substituição a caixa. (N. T.)
(41) A mitologia conta que durante o reinado de Cronos deuses e homens
firmaram a paz Mas, com o golpe de estado de Zeus, segundo Hesíodo, tudo
mudou. O novo chefe do Olimpo impôs seu poder aos mortais. E em uma
reunião para determinar que partes dos sacrifícios rituais correspondiam aos
deuses e quais aos homens, outro dos heróis, Prometeu, conseguiu enganar
Zeus, cobrindo os ossos de um boi com reluzente gordura. Zeus, colérico,
retirou o fogo eterno que iluminava a Terra. Mas o astuto Prometeu conseguiu
roubar uma chispa desse fogo inextinguível e a entregou aos humanos.
Indignado, Zeus ordenou a Hefestos que moldasse um corpo de barro cuja

beleza superasse a das deusas do Olimpo. E todas as divindades cumularam
de presentes e dons esta jovem virgem. E foi chamada Pandora, que em grego
significa tudo e presente. Um dos deuses, todavia, encerrou em seu coração
a perfídia e o engano. E Zeus a enviou a Epimereu, irmão de Prometeu. E
apesar das advertências desse último, Epimereu acolheu a formosa Pandora. E
aquele foi o pior momento da Humanidade.
Pandora abriu então o vaso (não a caixa) que tinha nas mãos e liberou
males e calamidades. E com a primeira mulher entrou a desgraça no mundo. Só
a Esperança permaneceu imóvel no vaso, como único consolo dos homens. (N.
Do m.)
(42) Ainda que não acreditassem na ressurreição da carne (caso dos
saduceus), o povo judeu dificilmente cremava seus mortos. A incineração era
considerada um atentado contra a Natureza. Se, além disso, criam na vida
eterna, a cremação significava a absoluta impossibilidade de recuperar o corpo
para esse novo estado. Daí que a execução por abrasamento fosse uma das
mais temidas. Para a religião de Moisés só existia o sepultamento. (N. Do m.)
(43) A kithara, pendurada ao ombro, era tocada com a mão direita por meio
de um plektron atado a uma corda. A esquerda tangia as fibras de tripa de
carneiro. (N. Do m.) (44) A lira ou chelus (tartaruga) foi inventada, ao que
parece, por Hermes quando acidentalmente pisou o tendão seco estendido no
interior de uma carapaça de tartaruga. Como a kithara, era consagrada ao culto
de Apolo. (N. Do m.)
(45) O aulos ou kalamos (cana), dispunha de uma palheta dupla, como a
do oboé. No duplo aulos sopravam-se dois auloi. (N. Do m.)
(46) A tonalidade desta canção de moda naquele tempo correspondia à
extensão de uma oitava (mi=mi), nota central lá, com nota superior e final mi.
As semicadências sobre o sol e a distribuição dos semitons davam a
denominada escala frígia. (N. Do m.)
(47) Entre os epiléticos, os fenômenos de agressividade (ictales) costumam
ser comuns durante o sono. Consistem basicamente em comportamentos
anômalos, geralmente violentos, que podem ir desde a agitação das mãos a
manifestações complexas e com objetivos muito especíFicos.
Às vezes, sonhando, podem ser vistos de punhos em riste, em atitudes
ameaçadoras, ou ainda saudando com as mãos. Gritos também são freqüentes,
gemidos, caretas e movimentação brusca das extremidades. Outros indivíduos,
não necessariamente epiléticos, como os sonâmbulos, desenvolvem atividades
durante o sono como caminhar pela casa, sair de casa, arrastar móveis, etc. (N.
Do m.)
(48) Graças aos eletroencefalogramas, a ciência tem comprovado que,
durante o sono, o cérebro emite uma série de ondas elétricas de ritmo lento e
magnitude crescente, misturadas a outras de freqüência rápida. Isso dividiu o
sonho em quatro etapas, segundo a atividade elétrica. Mais tarde, os
cientistas observaram que existia outro estágio, intercalado regularmente no

sono, no qual o EEG (os elétros) simulavam o estado de vigília. Os olhos
movimentavam-se debaixo das pálpebras fechadas, o coração acelerava o
ritmo, a respiração se agitava e a pressão arterial subia. A esse estágio foi
dado o nome de REM (Rapid Eye Movement). O paciente ao ser despertado da
fase REM, lembrava-se do sonho. (N. Do m.)
(49) Atualmente a ciência aceita que mais ou menos 85% dos pesadelos,
sonhos e os demais conteúdos oníricos são registrados na freqüência chamada
REM ou paradoxal. Mas o que gera tais fenômenos ainda não é claro. É
provável que tenham origem nos centros reticulares mesencefálicos e
protuberâncias do cérebro, e que as descargas nervosas conhecidas como PGO
(pontas ponto-genículo-occipitais), ao percorrer os sistemas neurológicos e
alcançar o tálamo e o córtex cerebral, estimulem determinados fragmentos de
vivências, convertendo-os nos típicos sonhos. Esse fenômeno maraviLhoso e
essencial para a manutenção da vida tem sido muito pesquisado em homens e
animais, comprovando-se que é comum a todos os mamíferos, à exceção do
delfim e do urso comedor de formigas. Por razões que ignoramos, esses dois
animais são privados do fascinante prazer de sonhar. Até os fetos sonham.
Mas os fatores neurofisiológicos que intervêm na urdidura do sonho são
tantos e tão complexos que é arriscado tentar raciocinar como e para que
surgem tais sonhos. Nos de Cláudia, nenhuma das teorias científicas atuais
explica
satisfatoriamente a origem e a finalidade deles. Não estou de acordo com
Freud, que propunha a hipótese de estrada real.
Ou seja, os sonhos como via de penetração no inconsciente e o meio para
trazer à tona os mais íntimos elementos da vida psíquica de um indivíduo.
Tampouco creio que os pesadelos podem ser considerados como conseqüência
do acaso, estimulado pela atividade aleatória dos neurônios. É possível, como
defende Jonathan Winson, que os sonhos intervenham nos processos de
memorização. A teoria, não obstante, também não se encaixa no caso
Cláudia. Quanto à hipótese da ativação-síntese que especula sobre sonhos
sem significado, nem sequer cheguei a considerá-la. Tampouco a explicação de
Crick e Mitchison resolveria o problema: os sonhos, para esses pesquisadores,
não são outra coisa senão um sistema de eliminação de tudo aquilo que deve
ser descartado pela memória. Simplesmente Cláudia Procla não sonhou para
esquecer-se. Muito ao contrário. (N. Da m.)
(50) Como já havia assinalado, os mamíferos exceção feita aos golfinhos e
aos ursos que se alimentam de formigas têm um mesmo tipo de estágio REM,
Esse sonho geralmente aparece depois de uma hora e meia do início do
repouso. Dura mais ou menos dez minutos. A segunda e a terceira fase de REM
são mais longas e surgem depois de períodos mais curtos de ondas lentas. Por
último, o quarto e quinto REM alcançam entre vinte e trinta minutos cada. No
transcurso do quinto acontece o despertar do indivíduo, que em muitas
ocasiões consegue lembrar-se dos últimos sonhos.
(N. do m.)

(51) Esse importante componente neurofisiológico do sonho REM aparece
como conseqüência da ativação do núcleo denominado peri-locus coeruleus.
Graças à via tegmento-reticular, se encarrega de mobilizar o foco inibidor
magnocelular reticular bulbar de Magoun e Rhines. E essa ordem-ação
inibidora, ou de proibição do tônus ou movimento muscular, é comunicada por
um canal retículoespinhal aos correspondentes neurônios motores da haste
anterior. Se destruirmos esse núcleo peri-locus ou anularmos o trato tegmentoreticular,
o estágio REM aparecerá com movimentos, produzindo-se
seqüências como a já citada dos gatos atacando ou fugindo de fantasmas.
(N. do m.)
(52) Em geral, segundo nossas fontes, os penates foram lares que com o
tempo adquiriram personalidade própria. Parece que tinham como missão
fundamental tomar conta da despensa doméstica. A verdade é que os romanos
não formulavam uma idéia clara dos penates, confundindo-os com os lares, e
esses com aqueles. O penus ou armazém de provisões era o recinto habitual
desses pequenos deuses de segunda categoria. Suas imagens eram guardadas
também no interior das casas. Em cada refeição a família Lhes oferecia um
prato (geralmente sal e farinha). Alguns dos móveis e utensílios da cozinha
mesas, saleiros, pratos, gamelas, etc. - eram considerados de propriedade dos
penates e, portanto, sagrados. Cada casa, aldeia, povoado e cidade tinha
seus próprios penates, com o que o número de deuses ascendia a milhares.
Augusto, por exemplo, descendente de Enéias, acolheu em sua casa os penates
tutelares de Tróia. (N. Do m.)
(53) As hordas de bruxos e feiticeiros, com seus correspondentes ritos,
invadem Roma a partir da segunda guerra púnica. Tal foi o desastre provocado
entre os crédulos cidadãos que a legislação interveio sem contemplações. Um
senatus-consulto ordenou a destruição dos livros sobre adivinhação, proibindo
também cultos e sacrifícios estrangeiros. No ano 32 a. C., Otaviano, Antônio e
Sépido expulsam os bruxos do império. E o próprio Tibério foi quem introduziu
o termo magus na legislação, para qualificar feiticeiros criminosos. No
entanto, como já disse, magos e arúspices pulid por povoados e cidades,
burlando a lei e aconselhando até os que deviam zelar pelo cumprimento da
tal legislação. Tibério e Nero foram dois bons exemplos.
(N do m.)
(54) Tácito (Anais, 2, 32). (N do m.)
(55) Plínio (História Natural, 30, 1, 3) assegura que foram ditados um
senatus-consulto proibindo sacrifícios humanos e uma lei de Tibério contra
os druidas. (N. Do m.)
(56) A superstição do povo romano era tal que praticamente ninguém dava
um passo importante sem consultar os deuses. Aí intervinham os áugures,
interpretando toda sorte de signa ou sinais, que até podiam ser involuntários,
como o piscar de olhos, o vôo dos pássaros, um espirro, os astros. E pouco a
pouco essa parafernália foi profissionalizando-se, até que nasceu uma curiosa
divisão de signos: o prodigium, o monstrum, o estentum e o portentum. Os dois

últimos eram manifestação divina através da matéria inanimada. Os prodigia
eram atos ou movimentos especiais efetuados pelos seres vivos. Os monstra
correspondiam à natureza orgânica. (N do m.)
(57) Ver informação em Operação Cavalo de Tróia 1, p. 398.
(N A.)
(58) Desde o século VII e ao longo de boa parte da Idade Média aparece no
mundo cristão tanto oriental quanto ocidental uma série de informes e
atas, atribuídos a Pôncio.
Tertuliano e Simão Cefas (apóstolo Pedro) segundo a tradição já haviam
comentado essa confissão do governador da Judéia. Nesses escritos
Anáfora, Paródosis e outras cartas
- Pôncio figura como um decidido defensor de Jesus de Nazaré, comungando
com sua divindade e doutrina. Alguns autores modernos, como Sordi, com um
exíguo conhecimento histórico, defendem a autenticidade de um primitivo
documento, assegurando mesmo que Pôncio acabara convertendo-se num
paladino dos primeiros cristãos. (N do m.)
(59) A religião romana estabelecia igualmente que os auspicia oblatiua ou
sinais não desejados podiam ser recusados pelo cidadão. A tradição dos
áugures fixara vários métodos: non observare (não prestando-lhes atenção),
refutare (desprezando ou repudiando o sinal) ou, simplesmente, seguindo a
política do avestruz (negando-se a ver). (N do m.)
(60) Tanto na Eneida quanto nas Geórgicas, Virgílio refere-se com
freqüência aos manes, conferindo-Lhes diferentes papéis. Por vezes, por
metonímia, representam os inFernos, como lugar de residência dos mortos.
Também os associam às sombras dos falecidos, consideradas coletivamente.
Outros autores chamam manes aos restos mortais dos mortos. O povo acabou
por defini-los como espíritos dos mortos. (N do m.)
(61) Os romanos, com efeito, acreditavam que os manes se irritavam
quando não atendidos com respeito e veneração. E essa, diziam, era a causa
dos pesadelos, dos tiques nervosos, das manias e das doenças misteriosas. A
melhor homenagem eram as flores. Daí justamente o costume de adornar as
sepulturas com rosas, gladíolos, violetas, mirtos e lírios.
As flores eram o símbolo da renovação e os manes gostavam da sua
presença. (N do m.)
(62) Lucrécio, morto em meados do século I a.C., podia considerar-se um
predecessor do moderno ateísmo. Em sua obra Da Natureza das Coisas,
seguindo a física do seu mestre Epicuro, estudou o tema da suprema
felicidade, chegando à conclusão de que a felicidade consiste na indiferença.
Lucrécio adotou uma ordem imutável do Universo, acreditando, portanto, que
o temor pelo sobrenatural (os deuses) era um absurdo.
O homem - aFirmava ele - é unicamente matéria organizada, composta de
átomos, e como tal só pode voltar ao nada do qual surgiu. Estas afirmações

caíram como um balde de água fria na tradicional sociedade romana, que as
classificou como escandalosas. (N do m.)
(63) Sêneca seria acusado anos mais tarde por Suílio de enriquecimento
ilícito. Ao que parece conseguiu trezentos milhões de sestércios em quatro
dias. (N do m.) (64) Parte da lenda da grande feiticeira Ísis segundo
Plutarco dizia assim: Ísis foi a primeira filha de Geb e Nut. Nasceu nos
pântanos do delta do Nilo, foi escolhida para ser a esposa de seu irmão Osíris,
e ajudou-o na sua obra civilizadora. Enquanto Osíris ensinava as técnicas da
agricultura e da fabricação dos metais, Ísis se ocupava das muLheres,
ajudando-as com os teares, a moenda do grão e a cura de doenças. Instituiu
também o casamento, fazendo com que seus súditos se acostumassem a viver
em família.
Quando essa obra foi concluída, Osíris partiu para a Ásia a fim de transmitir
seus conhecimentos ao resto do mundo. E sua esposa permaneceu como
regente. Mas ao regressar ao Egito, o Ser Bom foi vítima da inveja de seu
irmão Seth, que o matou e o encerrou num cofre, atirando-o no Nilo. Conta a
mitologia egípcia que o cadáver de Osíris chegou finalmente às praias da
Fenícia. Ali o encontraria Ísis. Pegando o cofre, escondeu-o nos pântanos de
Buto. Mas Seth conseguiu encontrá-lo, e esquartejou-o em catorze pedaços e
esparramou seus restos. A deusa, porém, sem desanimar foi reunindo os
despojos. E graças ao seu poder reconstituiu o corpo de seu marido-irmão e
devolveu-Lhe a vida eterna. Desde então Osíris passou a ser o deus dos
mortos. (N do m.) (*) Bético: natural da antiga Bética, hoje Andaluzia, na
Espanha. (N. Da T.)
(65) Essa peculiar e perigosíssima característica, que a distingue do resto
dos ofídios, é possível graças à disposição dos caninos. O canal injetor
aparece nas najas nigricollis quase em ângulo reto. Dessa Forma, os poderosos
músculos contrativos que mobilizam o veneno permitem um jato (uma
pulverização) forte. Instintivamente o réptil seleciona o rosto especificamente
os olhos do agressor. É só em casos excepcionais que morde a vítima. (N do
m.)
(66) No banco de dados do Papai Noel aparecia a seguinte inFormação:
Festa semeLhante aos Parentalia, mas celebrada na intimidade do lar e em
homenagem aos mortos. Origem possível: assassínio de Remo por seu irmão
Rômulo. Segundo a lenda, aquele aparecia toda noite para assombrar
Faustulus e Acca Larencia. A sombra em questão foi denominada Remores.
Talvez venha daí a corruptela Lemures. Para conjurar o tormento, Rômulo
estabeleceu aquela festa. Dias: 9, 11 e 13 de maio.
Cada um desses dias, especialmente suas noites, representava para a
supersticiosa sociedade romana uma gravíssima ameaça por parte dos
fantasmas de seus mortos. Considerados dias especialmente nefastos. Templos
fechados. Proibida a celebração de casamentos. Os cidadãos mais
supersticiosos não saem de casa. Atividade praticamente paralisada... (N. Do
m.)

(67) Misturados com os lemures, havia também outros fantasmas,
esqueletos, espectros: as larvas, que são mais daninhas que os lemures. Para
alguns autores larue e lemures são sinônimos. Eram todos almas penadas.
Durante três dias por ano regressavam ao mundo dos vivos para vingar-se. (N.
Do m.)
(68) Um dos rituais obrigatórios nas noites dos lemuria consistia no
seguinte: o cabeça da família levantava-se de madrugada e, descalço, estalava
o polegar contra os outros dedos. Assim fazendo, evitava que os espectros se
aproximassem. Em seguida, lavava as mãos três vezes e ao voltar ao seu
quarto introduzia favas negras na boca. E conforme caminhava atirava-as por
sobre os ombros, repetindo nove vezes: Atiro estas favas!... Por elas resgato a
mim e aos meus! Não podia virar-se, já que se supunha que os mortos o
seguiam. Lavava as mãos outra vez e tocava um objeto de bronze. E o pai de
família convidava as sombras a deixarem a casa, exclamando outras nove
vezes: Manes de meus pais, saí! Só então voltava para a cama.
(69) Ver informação em Operação Cavalo de Tróia 2, p. 381.
(N. A.)
(70) Esses roedores freqüentes no Quênia, Etiópia e Somália alimentamse
basicamente de tubérculos. Depois de devorar a parte interna cobrem a raiz
com a terra removida, favorecendo a regeneração da planta. (N. Do m.)
(71) Como exemplo da enorme capacidade de amplificação dessas fibras,
posso dizer que uma radiação infravermelha de 1,06 micrômetros de
comprimento de onda pode ser ampliada a 50.000, correspondendo a um
ganho de 47 decibéis. Esses canais encontravam-se preparados para suportar
transmissões superiores aos 10.000 gigabites por segundo. E ainda que não
estivéssemos autorizados a tirá-los do módulo, nesse caso excepcional
prestaram um excelente serviço. (N. Do m.)
(72) Esses cristais foram fabricados para a Operação com semicondutores de
arsenito de gálio e vários compostos orgânicos (só posso mencionar o 2-
ciclooctilamino-5-nitropiridina). (N. Do m.)
(73) O holograma movi-som (movimento-som), como é chamado no jargão
militar, é de alto segredo, não me encontrando autorizado a ampliar os
detalhes sobre eles. Basta dizer que sua criação serviu em alguns conflitos
bélicos para enganar forças inimigas, multiplicando, por exemplo, o número de
homens e armas numa visão direta e com isso provocando numerosas
retiradas e rendições. (N. Do m.) (74) Ampla informação em Operação Cavalo
de Tróia, p. 459 e ss. (N. A.)

18 DE MAIO, QUINTA-FEIRA
Rode, a jovem criada, não me reconheceu.
De repente, à luz das tochas, distingui a pequena e agitada
figura do caçula da família, que correu ao meu encontro.
Colocou-se entre a mulher e a porta e, abrindo os negros
olhos, gritou meu nome. Depois, de um salto, pendurou-se em
mim.
Posseidon, assustado, agitou a cabeça.
Ao ver o cavalo, o interesse da criança por este explorador
desapareceu. E por cima dos meus ombros pôs-se a acariciar o
animal.
- É teu? Como se chama?
Maria Marcos, a mãe, aproximando-se, repreendeu-o ao
mesmo tempo em que me convidava a entrar.
Hesitei, mostrando-Lhe que não estava só. Maria, chamando a
criadagem, puxou-me pela mão, sem querer ouvir minhas
desculpas. Eu e o cavalo entramos no pátio a céu aberto do lar
dos Marcos, em Jerusalém.
Mas o entusiasmado João Marcos não permitiu que os criados
se encarregassem de Posseidon. Pelas rédeas, conduziu-o ao
fundo do jardim.
No princípio estranhei, depois compreendi. As roupas velhas e
sujas, a barba por fazer e cabelos despenteados eram sinal de
um profundo sentimento religioso.(1) Lembrando-me do recente
falecimento de Elias Marcos,(2) o cabeça da família, apresseime
a dar minhas condolências à gentil anfitriã.
Maria aceitou-as em silêncio e, tomando-me as mãos, fez-me
sentar junto do fogo no meio do pátio. Fiel ao costume, tentei
levantar-me e saudar as sete vezes que a Lei estipulava (assim
rezava o tratado Baba bathra). Mas a mulher, sorrindo, não me
permitiu fazê-lo.
A julgar por suas precárias explicações, o marido tivera morte

súbita e sem razão aparente. Era relativamente jovem
quarenta e cinco anos e bastante forte. Deduzi que a morte
pode ter sido causada ou por um problema cardíaco ou por
hemorragia cerebral. A questão é que lamentei profundamente a
perda daquele excelente amigo.
O fatídico desenlace os pegara desprevenidos,
principalmente ao jovem João Marcos, que, como se recordará,
estava voltando a Jerusalém.
Maria, evitando o doloroso assunto, assaltou-me com
perguntas. E fui-Lhe respondendo da melhor forma possível...
Expliquei-Lhe que me havia juntado a uma caravana
procedente de Tiro e que, depois de descer pelo caminho do
Jordão, praticamente acabara por entrar na Cidade Santa.
Contei-Lhe também minhas experiências no mar da Galiléia e as
aparições que tivera a sorte de presenciar.
Claro, ela soubera. Seu filho e os discípulos a haviam
informado de tudo detalhadamente.
Os discípulos?
E dessa feita fui eu que a interroguei sobre o paradeiro dos
íntimos: Soube então que os onze encontravam-se ali mesmo, no
cenáculo, no andar superior da casa. O histórico lugar era usado
como quartel-general desde a chegada do grupo a Jerusalém,
na noite de quarta-feira, 3 de maio.
Mas pelos esclarecimentos de Maria Marcos deduzi que os
eufóricos embaixadores do reino, ao estabelecer contato com
a Cidade Santa e perceber o ambiente de hostilidade entre a
casta sacerdotal, haviam voltado a cair numa profunda crise de
medo. E não lhes faltava razão. Como já mencionei, as
disposições do Sinédrio contra todo aquele que se atrevesse a
propagar notícias relacionadas com o Mestre, ou com a
Ressurreição, eram draconianas: expulsão das sinagogas e até a
possibilidade de execução.
Também tomei conhecimento de dois outros fatos,
protagonizados um pelo Ressuscitado, outro pelos apóstolos.
Do primeiro, as notícias eram confusas. Maria só ouvira

rumores.
Ao que parece, o Mestre se apresentara igualmente na noite
de 18 de abril para um grupo de fiéis, em Alexandria.
Para que me enganar? Nessa altura senti-me incapaz de
contar o número de suas aparições. Doze? Catorze?...
Inquieto e irritado por causa daquele descontrole, tomei a
firme decisão de levar a cabo as indagações necessárias para
pôr ordem nesse importante capítulo. Um capítulo, sim,
igualmente manipulado e censurado pelos evangelistas...
O último acontecimento, segundo minha anfitriã, ocorrera na
noite seguinte à chegada dos íntimos a Jerusalém. Nessa
quinta-feira, 4 de maio, os onze se haviam reunido numa
assembléia.
A situação, insisto, continuava sendo grave. Mas Simão Pedro,
tomando a iniciativa, animou seus irmãos a vencer o medo e
aparecer. E recomeçou a veLha rixa.
Bartolomeu, o urso de Caná, foi o porta-voz da oposição
contra Pedro e seu grupo. Não se opunha a sair às ruas e pregar
o novo Evangelho. Natanael, Tomé, Mateus Levi, Simão o Zelote,
João Zebedeu e André estavam igualmente dispostos a anunciar
o reino. No que não concordavam era no planejamento.
Os primeiros e não vou me cansar de repeti-lo -,
deslumbrados pela volta física de Jesus, pretendiam
basicamente comunicar esse fenômeno extraordinário. O urso
e seu bando, ao contrário, mais sutis e fiéis às repetidas
recomendações do Filho do Homem, desejavam transmitir a
grande mensagem: o descobrimento de um Deus-Pai e sua
conseqüência lógica: fraternidade entre os homens.
Mas Bartolomeu e a facção dos puros - se me for permitida a
simplificação foram literalmente atropelados pela eloqüência
de Pedro e o entusiasmo de seus falcões. Entre esses
apareciam também várias das mulheres do primitivo movimento.
Dessa reunião - esquecida pelos escritores sagrados (?),
como é natural -, o impetuoso e nada ponderado Simão Pedro
sairia consagrado como líder indiscutível. E com ele,

lamentavelmente, o que no futuro seria uma religião sobre
Jesus e não sobre sua magnífica e original mensagem.
De repente, interrompendo-se, Maria se pôs em pé, pedindo
perdão. E antes que pudesse evitá-lo reiterando as desculpas
pelo lamentável esquecimento vi-me com uma fumegante
tigelinha de madeira entre as mãos.
- Feita agorinha mesmo disse-me ela, recusando-se a ouvir
meus protestos.
Apesar de já haver jantado, agradeci a hospitalidade e
saboreei a suculenta sopa de cebola e o cremoso queijo que a
recobria. Respirei profundamente, agradecendo aos céus tanta
bondade: uma tranqüila viagem de Nahum à Cidade Santa e,
naquele momento, amigos acolhedores, um fogo, um firmamento
estrelado e aquele embriagador perfume dos jasmins! Não
insisti mais nas perguntas sobre os discípulos. Em parte porque
supus que estivessem dormindo. A primeira vigília da noite já
havia silenciado a cidade. Não era o momento certo para
irromper no histórico cenáculo. Além do mais, quem sabe como
iriam receber-me. O ódio de João Zebedeu pulsava na minha
memória como uma luz de perigo.
Quem sabe com o novo dia... Sim, algo aconteceria. E esse
algo ocorreu, naturalmente. O Destino (?), com efeito, havia
tempo que esperava por mim...
- E por que esse nome?
O garoto voltou, por fim, para junto deste explorador.
- Por que Posseidon?
Carinhoso, foi sentar-se nos meus joelhos, brincando com seu
presente, um saquinho de pano desbotado que me dera
semanas antes e que, por sorte, eu ainda trazia dependurado
no peito.
Sorri e, depositando o vasilhame de sopa ao pé do
tamborete, improvisei: - Me traz sorte..., como teu amuleto.
- Mas que significa? - insistiu, apontando o cavalo branco.
- É um deus repliquei, compreendendo que seu interesse

pelo animal não o faria desistir -. Na realidade deveria mesmo é
chamar-se Possidon.
O pequeno que um dia seria o evangelista Marcos
submeteu-me a um implacável interrogatório. Fiquei-lhe grato.
Durante um bom tempo as ingênuas e deliciosas perguntas
tiraram-me da realidade.
- O deus dos terremotos?... Por isso os cavalos fazem tanto
barulho ao galopar? - Como foi que adivinhaste? - apoiei
encantado. E o garoto continuou a empurrar-me para a lenda de
Posseidon.
- Conta-se que esse deus grego criou o cavalo com um golpe
de seu tridente...
João Marcos arregalou seus enormes olhos negros.
- E te digo mais, Posseidon estabeleceu sua morada nas
profundezas do mar. O palácio, no mar Egeu, era resplandecente
e eterno. E quando saía com seu carro tirado por belos corcéis
de cascos dourados...
- Cavalos com cascos de ouro! Mas Posseidon não tem... - e
franziu o sobrecenho como que protestando.
Ingênuo, não me havia dado conta do olhar contrariado do
menino.
- É que esse cavalo é especial tentei remediar.
- Por quê?
- Porque ele tem o ouro no coração...
Não se convenceu muito, e continuei com a versão de
Heródoto.
- E voava por sobre as águas, provocando tempestades. No
entanto, nenhuma gota o molhava.
- E os cavalos se molhavam?
Embatuquei.
- Suponho que não. Como sabes, cavaleiro e cavalgadura
chegam a ser um todo.

- E ele tinha esposa?
- Sim, ela se chamava Anfitrite. Sabes como foi que ela o
conquistou? Fez que não com a cabeça, e o sono já começava a
dominá-lo.
- Anfitrite, filha de Oceano, não quis saber de Posseidon e
escondeu-se. Mas o deus enviou um delfim para procurá-la e
levá-la ao deus dos mares. O delfim o fez e Posseidon
recompensou seu fiel mensageiro, transformando-o em sol.
João Marcos espevitou-se, afastando o sono:
- É por isso que os delfins podem tirar a cabeça fora d'água? -
Naturalmente. E então riem quando fazem isso.
Aquela conversa, para minha surpresa, iria ter mais
transcendência do que eu podia imaginar. Sem querer, este
explorador cometera um erro na história do delfim...
Mas volto a me precipitar. Melhor que eu ajuste os fatos tal
qual aconteceram: - Então desse casamento nasceram-Lhes três
filhos: Tritão, Bentesicime e Rode...
- Rode? - excitado, pôs-se a rir Rode é filha de um deus?
Dei-me conta. Rode era a escrava que me havia aberto a porta
e que praticamente vira o travesso e inquieto João Marcos
nascer.
Lenta e placidamente, o menino dormiu em meus braços. Dei-o
à mãe e busquei um lugar para dormir no aconchego daquele
lar.
05h 06, hora do nascimento do sol, segundo os relógios do
módulo. As últimas estrelas deram lugar à aurora. Maria Marcos
e os seus começaram a cruzar o pátio, avivando o fogo e
preparando a moenda do grão. Ao fundo, chamando à vida, o
duplo tanger do bronze dos levitas abrindo no Templo a porta
de Nicanor.
06h 00...
Leite quente, mel e pãezinhos servidos sobre a tradicional
prancha abaulada de ferro. Observei o céu. Limpo e amplo,
riscado pelo vôo das alvoroçadas andorinhas de primavera.

06h 15, aproximadamente. A dona da casa dispôs duas
grandes bandejas de madeira, com o desjejum dos onze.
Aproveitei a circunstância. Adiantei-me e Lhe pedi permissão
para ajudá- la.
Sorriu-me, passou-me a bandeja, cruzou o pátio e dirigiu-se à
escada que levava ao piso superior. Decidido, segui-a. Atrás de
mim, com o restante do desjejum, Rode, a filha do deus
Posseidon.
Ao entrar no cenáculo, as lembranças assaltaram-me. Tudo
parecia igual, até o odor acre de ambiente fechado e ocupado
por onze homens durante duas semanas.
À mesa baixa, em forma de U, no mesmo lugar, e também os
divãs ao seu redor. À esquerda da porta, três lavatórios de
bronze com rodas, as jarras e as bacias. Nas paredes brancas,
as tapeçarias vermelhas...
Com a ajuda da claridade acinzentada que se filtrava das
nuvens, distingui os íntimos. Melhor dizendo, uma série de
vultos escuros, deitados parte sobre os triclínios, parte no
soalho.
06h 20...
Maria Marcos bateu palmas, anunciando o novo dia e o leite
quente. Rode depositou a bandeja sobre a mesa e foi organizar
o que havia para comer ao longo do U. Ajudei-a. Depois
apanhou a única lanterna acesa e foi acendendo as outras seis.
Nesse instante, inquietei-me. Como reagiria o Zebedeu ao dar
comigo? Já despertos, à exceção dos gêmeos de Alfeu, os
discípulos espreguiçaram-se nas camas improvisadas, bocejando
ruidosamente. Não pensei duas vezes. Para evitar novos e
desagradáveis confrontos, peguei a bandeja, dei meia-volta e
dirigi-me para a porta. Na realidade, ali não estava
acontecendo nada...
06h 30...
Então, em meio à penumbra, quando já me encontrava a dois
passos da saída, apareceu aquele homem.
Apareceu? Entrou? Estava ali?

Impossível sabê-lo. Na verdade, quase tropecei nele.
Aturdido, ao pedir-Lhe desculpas e tentar desviar-me, ouvi
que me dizia em voz baixa:
- Não se transmudou em sol... Possidon transformou-o numa
estrela.
Estupefato, deixei cair a bandeja, que chegou ao chão com um
enorme estrépito.
O homem, sorrindo, inclinou-se, pegou-a e a pôs nas minhas
mãos, sussurrando: - Mas também não é para tanto...
Passou por mim e se dirigiu ao centro da sala. Como explicálo?
Simplesmente senti-me colado ao chão e a olhar para a
porta.
Atrás de mim soou um grito, e outra bandeja teve a mesma
sorte que a minha. Murmúrios, passadas rápidas, um ou dois
sofás que caíram, e por fim, um nome...
Mestre!
Arrepiado, girei nos calcanhares. Aquele Homem voltou a
agachar-se. Pegou a bandeja de Rode e teve de insistir para
que a aterrorizada mulher a apanhasse.
Pensar? Limitei-me a agir como um robô.
Era Ele..., outra vez!
Manto cor-de-vinho enlaçando o atlético tórax. Túnica branca,
imaculada, com mangas largas...
Devagar, odiando os estalidos do assoalho de madeira,
avancei para o lado esquerdo do U.
O Ressuscitado continuava à cabeceira da mesa, olhando
para o grupo dos íntimos. Mais tarde, ao rememorar a cena,
sorri com meus botões.
Os onze homens, espantados, amontoados num canto,
contrastavam dramaticamente com o semblante das mulheres.
Maria Marcos e Rode, à minha frente, superado o susto,
permaneciam abraçadas, mas controladas, com o olhar fixo no
rosto bronzeado de Jesus de Nazaré.

Rosto bronzeado, cabelos lisos, da cor-de-caramelo, flutuando
sobre os poderosos ombros, nariz proeminente, lábios finos,
barba curta e dividida ao meio, e, sobretudo, os amendoados,
intensos e infinitos olhos cor-de-mel...
Era Ele... outra vez!
Compreender? Raciocinar? Analisar? Para o inferno com a
ciência! Pestanejou e o sereno semblante se iluminou com
aquele sorriso doce e acolhedor. Fez um sinal com as mãos para
que os seus se acercassem. Mas ninguém se moveu.
Ao reforçar o sorriso, seus dentes brancos e impecáveis
refulgiram naquele claro-escuro do cenáculo.
E Pedro foi o primeiro; e atrás dele, passando do pânico à
euforia, todos os outros. E os onze, entre lágrimas e risos,
empurrões e confusão, disputaram e beijaram as mãos do
Galileu.
Então aconteceu algo que não gostaria de omitir.
Emocionado, senti inveja. Também quis beijar aquelas grandes e
mágicas mãos.
Com suavidade mas firmemente, o Mestre foi estendendo-as.
A mão direita dirigiu-se às mulheres e a esquerda, para o que
restava deste pobre explorador.
Aquele seria um beijo que jamais esquecerei...
- Que a paz esteja convosco...
A voz grave e potente tomou um tom sério mas igualmente
cálido e familiar: - Pedi-vos que permanecêsseis aqui, em
Jerusalém, até minha ascensão junto ao Pai...
Os íntimos foram enxugando as lágrimas. Pedro, na primeira
fila, transformou-se. Eu diria que flutuava de alegria.
- Disse-vos que enviaria o Espírito da Verdade, que logo será
derramado sobre toda a carne e que vos conferirá o poder do
alto...
Cotoveladas. E alguns cochicharam entre si. Jesus, fazendo
uma pausa, aguardou. Novas cotoveladas, até que finalmente,
empurrado por seus companheiros, o enegrecido rosto de Simão

o Zelote destacou-se na penumbra. Gaguejando, perguntou:
- Então, Mestre, restabelecerás o reino? Veremos a glória de
Deus manifestar-se no mundo?
Cumprido o encargo, apressou-o a voltar para o seu lugar e
a esconder-se atrás de seus instigadores. Simão Pedro,
olhando fixamente para o Rabi da Galiléia, e sempre sorrindo,
meneava a cabeça afirmativamente. Mas o Mestre, voltando-se
para mim, transmitiu uma clara e triste sensação de impotência.
Depois, dirigindo-se ao antigo guerrilheiro, lamentou-se: -
Simão, ainda te prendes às tuas velhas idéias sobre o Messias
judeu e o reino material...
E o sorriso de Pedro se foi desvanecendo.
- Não te preocupes animou-o -, receberás o poder espiritual
quando o Espírito descer sobre ti.
O Espírito? A que se referia? Em que consistia esse poder? E o
Mestre, erguendo ligeiramente os braços, abriu as mãos e
tentou abrir o entendimento daqueles equivocados galileus. E
sua voz vibrou: - Depois andareis por todo o mundo pregando
esta boa nova do reino. Assim como o Pai me enviou, assim
também vos envio eu agora...
E os sempre tímidos gêmeos, comovidos, agarraram-se outra
vez às mãos do Ressuscitado. Jesus recuperou o sorriso, apertou
os dedos dos Alfeu com força e exclamou como só Ele sabia
fazê-lo: - E quero que vos ameis e tenhais confiança uns nos
outros! Os onze, a uma só voz, replicaram com um decidido Sim,
Mestre!
- Judas já não está convosco acrescentou para reforçar seu
apelo porque seu amor esfriou e porque negou-vos sua
confiança...
A alusão ao Iscariotes surpreendeu-me. Mas teria de viver o
terceiro salto para captar a dimensão daquelas palavras.
- Não lestes nas Escrituras que não é bom que o homem
esteja só? Nenhum homem vive para si mesmo. Todo aquele
que quiser ter amigos deverá mostrar-se amistoso. Acaso não

vos enviei a ensinar dois a dois, para que não vos sentísseis
sós e não caísseis nos erros e sofrimentos provocados pela
solidão? Sabeis também que durante minha Encarnação não me
permiti estar sozinho por muito tempo. Desde o princípio tive
sempre a meu lado dois ou três de vós... inclusive quando falava
com o Pai...
Agitando as mãos, que seguravam as dos gêmeos, deu nova
entonação na voz e ordenou: - Confiai, pois, uns nos outros!
Dias mais tarde eu entenderia também o porquê da
insistência na confiança mútua.
Bartolomeu, acusando o golpe, instintivamente baixou os
olhos.
O Mestre, baixando o tom, sem dissimular um quê de
amargura, concluiu:
- E isso hoje é muito necessário, porque ireis ficar sozinhos...
Os rostos se anuviaram e os murmúrios soaram como um
presságio.
- É chegada a hora...
Pedro e João Zebedeu entreolharam-se sem entender. Alguns
tentaram fazer perguntas. Mas o Mestre, com uma inesperada
gravidade no semblante, deixou-os sem palavras.
- Estou prestes a voltar ao Pai.
Dei-me conta. Aquela era a última vez que Jesus de Nazaré se
apresentava entre os seus: a mal-chamada ascensão.
Fez um aceno para que o seguíssemos. Deu meia-volta e, com
os olhos baixos, seguiu para a porta. As testemunhas, mudas,
paralisadas por aquela notícia, não puderam não pudemos
reagir. Vimo-lo afastar-se e descer as escadas. E uma vez mais
foram as mulheres que obrigaram aquele pelotão de homens
perplexos e inúteis a se mexerem.
07h 00...
Saíram todos correndo atrás de Maria e Rode, mobilizados por
Pedro. Como quase sempre, fui o último a sair. Perturbado, ao

alcançar o pátio, chamaram-me a atenção o espanto da
criadagem e os relinchos de Posseidon, no fundo do jardim.
Maria Marcos e Rode, outra vez abraçadas junto ao fogo,
estavam com o olhar fixo no portal de entrada da propriedade.
A cena só durou alguns segundos. Olhei para o cavalo e vi,
com efeito, que estava assustado. Estranhamente assustado.
Maria, então, com um gesto, indicou-me a saída.
Esquecendo-me até do cajado, corri atrás do grupo, mas me
detive no umbral. Voltei e apanhei a vara de Moisés. Essa
fração de tempo foi decisiva. Perdi-os... Imprequei contra o deus
grego, o cajado e seu portador.
Para onde deveria dirigir-me?
Aquele setor da cidade, o bairro baixo ou súg-ha-tajtôn, era
um labirinto infernal de ruelas, a maior parte formada de becos
sem saída.
Fui observando os rostos dos numerosos transeuntes que iam
e vinham. Nada. Ninguém parecia surpreso. Fui descendo na
direção da muralha sul, passando por quase meio quilômetro de
casinhas brancas e negras, que pareciam escorar-se umas nas
outras.
E dessa feita não reneguei os evangelistas. Depois levou-os
para Betânia... A providencial frase de Lucas foi uma tábua de
salvação.
Guiado pelas colunas de fumaça acinzentada que se cruzavam
no horizonte, optei por uma das rampas em degraus. Saltando,
esquivando-me e tropeçando naquele caminho com crianças,
forninhos, cachorros esquálidos, pilhas de lixo, jumentos e seus
tocadores, fui avançando (?) aos tropeções... para lugar
nenhum.
Arfando, e furioso comigo mesmo, tive de parar pela enésima
vez. Desalentado, encostei-me numa das paredes. Perdido!
Perdido em Jerusalém! De repente, acima de minha cabeça, ouvi
os gritos de uma mulher que se dirigia a outra hebréia, que
também estava à janela. Em grande agitação, disse que havia

visto passar o defunto profeta da Galiléia. A segunda
matrona, surda como uma porta, protestava indignada que ela
não era da Galiléia.
Cortando a conversa, perguntei-Lhe em que direção havia
visto o defunto. Tão nervosa estava ela que não se deu conta
do absurdo de minha pergunta. Apontou para a direita e deu-me
uma preciosa informação-chave: a porta da Fonte. Mas, rápida
como o vento, interpretando a pergunta daquele maldito pagão
como uma chacota, apressou-se a esvaziar o conteúdo do
vasiLhame que tinha nas mãos, ao mesmo tempo em que
manifestava sua mais justa indignação: Lá vai água! Água?
Antes tivesse sido só água... Agradecendo-Lhe efusivamente,
tomei a direção indicada.
O Destino, benevolente, permitiu que aqueles últimos cem
metros fossem percorridos praticamente sem tropeços: algumas
quedas sobre os degraus escorregadios, deliciosamente
atapetados pelo esterco dos animais, meia dúzia de tendas
destruídas, uma pilha de cântaros de barro caindo atrás de mim
e espantando uma interminável fila de jumentos, com as
correspondentes maldições contra aquele corredor alucinado...
A porta da Fonte! Afastando mendigos, aleijados e
desocupados, finalmente vi-me na trilha que levava a Betânia.
Pouco faltou para que este suarento e agitado explorador
voltasse a errar.
Dessa vez, reneguei Lucas... Levou-os para Betânia? Não. Por
sorte, ao passar pelos cruzamentos que saíam daquela muralha,
consegui visualizar o apressado grupo, que seguia bordejando a
muralha oriental.
Aquela direção não era, obviamente, a indicada pelo
evangelista. Deduzi que se dirigiam para o monte das Oliveiras.
Corri ao encontro deles.
O Mestre, à frente, caminhava com suas largas passadas, tão
características dele. Parecia-me que estava com pressa.
Atrás, guardando uma distância de três ou quatro metros,
seguiam os onze, em silêncio. Efetivamente, desceram pela

abrupta encosta do Cedron, na direção da ladeira que fica ao
oeste do monte das Oliveiras.
Bartolomeu começou a coxear, não agüentando o declive
acentuado. Os gêmeos apoiaram-no pelas axilas, e ele pôde
manter o ritmo dos outros.
Era evidente que Jesus de Nazaré, ao escolher aquele
caminho de cabras, pretendia distanciar-se dos viajantes e felah
que transitavam pela rota mais cômoda que levava à
propriedade de Lázaro. Lucas, uma vez mais, fora mal informado.
Ao chegar a uma distância de mais ou menos cinqüenta
metros do cume, o Mestre parou. Saindo da trilha, entrou no
olival.
Ofegantes, sem saber muito bem o que fazer, os discípulos
sentaram-se para descansar. Eu me mantinha sempre a uma
certa distância, discretamente.
Jesus deu alguns passos e virou-se para contemplar a cidade.
A luz do sol banhou-Lhe o rosto e uma suave brisa agitou seus
cabelos.
Eu não podia acreditar, e estava olhando para Ele, ouvia-o
falar. Apesar de tudo, custava-me entender. Morto? Não, Ele era
um ser humano... vivo! Vivo! Meu Deus! Foi como se tivesse lido
meu coração. Seus olhos buscaram os deste atormentado
explorador e confirmaram meu pensamento, com um leve sorriso:
Um ser humano... vivo! Foi-me suficiente.
Mas aquele leve sorriso... Era como um lenço branco agitado
numa despedida. Como a distância. Como o silêncio de um pai
que parte. Como uma lágrima brotando solitária...
Regressando para junto dos seus, dispôs-se a falar-Lhes.
Mudos, amordaçados por aquele lenço no ar. Com um nó na
garganta, fui o único a permanecer de pé.
O Mestre, com a voz embargada, recordou-Lhes o que havia
dito no cenáculo, na casa de Marcos.
- Pedi-vos que permanecêsseis em Jerusalém até que
recebêsseis o poder do alto. Estou prestes a despedir-me de

vós e subir ao Pai. E logo, muito breve, enviar-vos-ei o Espírito
da Verdade a este mundo onde vivi...
Os discípulos, sem entender, olhavam-no como crianças.
- E quando Ele chegar, espalhareis o Evangelho do reino.
Primeiro em Jerusalém. Depois...
E virando o rosto para mim, veio na minha direção.
Estremeci.
- Depois... pelo mundo todo!
Nesse instante eu o soube. Aquele olhar de águia abriu-me a
alma.
Roger! Mensagem recebida! Nossa missão era muito mais do
que um ambicioso e arriscado projeto científico...
E descendo até os onze, com docilidade no semblante e no
tom de voz, continuou: - Amai aos homens com o mesmo amor
com que vos amei. E servi vossos semelhantes como eu vos
servi.
Olhando para cada um daqueles rostos angustiados,
acrescentou: - Servi a eles com o exemplo... e ensinai os homens
com os frutos espirituais de vossa vida. Ensinai-Lhes a grande
verdade...
Silêncio.
- Levai-os a crer que o homem é um filho de Deus.
Nova pausa, e os corações quase pararam.
- Um filho de Deus!
E a mensagem, a grande mensagem, soou 5 x 5: alto e claro.
Roger! Mensagem recebida!
- O homem é um filho de Deus e todos, portanto, sois irmãos.
Erguendo o rosto, fechou os olhos e bebeu do azul do céu. Ao
abri-los de novo, vi neles o Universo.
- Recordai tudo quanto vos ensinei e a vida que vivi entre
vós.

Adiantando-se, foi pousar as mãos na cabeça dos atônitos
galileus.
- Meu amor vos envolverá.
A frase foi repetida onze vezes. Melhor dito, doze. Porque, ao
concluir, avançou em minha direção e, num gesto típico, colocou
as mãos em meus ombros, sussurrando: - Meu amor vos
envolverá...
E aquelas palavras bem no alvo me marcariam para
sempre.
- Até muito breve!
Com uma piscadela de cumplicidade, sufocou-me com um
sorriso. Deu meia-volta, dirigindo-se outra vez aos íntimos, e
concluiu:
- Meu Espírito e minha Paz reinarão sobre vós e levantando
os braços, gritou: - Adeus! E de súbito desapareceu, no mais
completo silêncio. Como uma lágrima imolada ao sol.
Poderiam ser sete horas e cinqüenta minutos... Durante algum
tempo (?) - quem é capaz de dimensionar alguma coisa em tais
circunstâncias -, os doze nos entreolhamos pasmados.
Ninguém o procurou. Nem nos céus, nem entre as oliveiras,
nem na trilha... Ninguém falou. Não houve lamentos, gemidos ou
protestos. E nos corações ficou aquele lenço branco, flutuando
como um adeus definitivo.
Definitivo? Não!...
E a partir daí, as recordações são confusas e desordenadas.
O que posso dizer é que retornei à cidade e que, embriagado
por uma intensa emoção, cavalguei sem parar.
Até muito breve!
Sim, aquele era o sinal.
Nem prestei atenção nos cascos dourados de Posseidon a
última travessura de João Marcos -, nem pensei na necessidade
de trocar a opala branca por dinheiro...
Minha única obsessão era galopar. Alcançar o Ravid...

E, ao ver-me, Eliseu logo soube.
Havia chegado o momento da grande aventura:
O terceiro salto no tempo!
O Mestre nos esperava...
Seu amor nos envolveria.
Primeiro livro em Ab-bã (Cabo de Plata), amanhecendo, às
sete horas e cinqüenta minutos de sábado, 2 de março de 1996
*NOTAS
(1) Entre os judeus, o luto se Prolongava Por trinta dias.
Nos três primeiros, os familiares, além de Praticamente não sair de casa,
não respondiam a saudações nem trabalhavam.
Pelos restantes dias do mês, ao menos entre os mais ortodoxos, vestiam as
rouPas mais velhas e sujas, deixavam de fazer a barba, jogavam cinza na
cabeça e não tomavam banho nem usavam as filacterias nas orações. As
viúvas fiéis colocavam o saq ou tanga que algumas vezes era feita de Pele de
cabra ou camelo. Muitas delas não a tiravam Pelo resto da vida.
Uma vez Por ano, igualmente cumprindo a lei, a família ia à tumba Para
colocar a estela ou Polvilhá-la de cal. Como creio haver mencionado, o branco
era símbolo de luto e, no caso dos cemitérios, servia de aviso Para que os
caminhantes não se aProximassem. O contato com a morte era um grave
Pecado de imPureza. (N. Do m.) (2)
Este exPlorador teve conhecimento da morte de Elias Marcos ocorrida na
Quarta-feira, 3 de maio durante a última visita ao Zebedeu pai, em Saidan.
Segundo me disseram, João Marcos, que viajava com os discíPulos do lago a
Jerusalém, não chegou a vê-lo com vida.
(N. Do m.)
* * *
Uma etapa mágica para J. J. Benitez. Em 1995 completou vinte
anos de literatura, com trinta e duas obras publicadas, treze das
quais pela Mercuryo.
Em 1995, com quinze anos com a Editora Planeta, alcançou a
notável cifra de mais de dois milhões de exemplares vendidos.

Em 1995 começou a escrever Operação Cavalo de Tróia 5, seu
livro mais esperado, uma saga mágica.
Operação Cavalo de Tróia Os Outros Mundos 1995-1996.
Ainda em 1995, outra meta alcançada: a Providência em
suas palavras lhe reconhece o velho sonho de morar junto ao
mar, no sul da Espanha.
Em 1996 o escritor navarro entra na idade dos cinquenta anos, não menos mágica e decisiva.

Livros de J. J. Benitez publicados pela Mercuryo
Operação cavalo de Tróia 1
Operação Cavalo de Tróia 2
Operação cavalo de Tróia 3
Operação Cavalo de Tróia 4
Operação Cavalo de Tróia 5
A Rebelião de Lúcifer
Testamento de São João
Virgem de Guadalupe
Astronautas de Yaveh
Os Visitantes
A Ponta do Iceberg
A Outra Margem
Glória da Oliveira

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