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sábado, 6 de agosto de 2011

Pós Golpe - A Ditadura no Brasil

Thomas Skidmore, com seu Brasil: de Getúlio a Castelo (1930-1964), hoje um
clássico da história republicana, livrou a compreensão do passado recente das
amarras da crônica. Contribuiu com uma visão complexa e sofisticada, que integra
o estudo da tensão no interior das elites com os conflitos frente às classes
populares, as políticas públicas e o sistema partidário. Numerosos pesquisadores
foram influenciados por este livro, que acabou por indicar novos rumos no estudo
de nossa história contemporânea. Nesta nova incursão na política brasileira,
Skidmore confirma todas as qualidades de seu livro dedicado ao período anterior,
abrindo ainda novas perspectivas.

Antes de Skidmore, durante muito tempo, a análise da conjuntura ficou por
conta das memórias e do registro jornalístico. Sempre se alegava a dificuldade
da documentação e obstáculos para uma visão distanciada. Esse historiador nos
mostrou como fazer a análise do presente. Seu arsenal de documentação é
impressionante. Sua familiaridade com os principais atores (com inúmeras e
sucessivas entrevistas) e com os grupos sociais no processo brasileiro é
completa. Há uma concreção de dados sobre a atualidade econômica que permite uma
reavaliação rigorosa de todas as crises do período. Dificilmente um pesquisador,
das mais diferentes áreas das ciências humanas ou qualquer leitor interessado em
entender o Brasil depois de 1964, poderá passar ao largo desse trabalho
monumental.

Thomas Skidmore nos apresenta neste livro um relato muito mais completo do
que o esperado de um brasilianista e historiador. Trata-se de uma obra de
cientista político sensível que situa o caso brasileiro numa perspectiva
comparada internacionalmente. O caso do autoritarismo e os rumos da transição
democrática ganham, assim, novos e originais enfoques. Resultado de uma delicada
pesquisa desenvolvida por um dos mais finos observadores da história e da
política do Brasil pós-1930, Brasil: de Castelo a Tancredo constitui-se,
portanto, numa importante ferramenta para a compreensão do regime autoritário,
das Forças Armadas, da abertura política e, o que mais importa, dos cenários
futuros. Isto tudo num texto rigoroso, onde não falta a emoção.

Thomas E. Skidmore é professor de História da América Latina e ex-diretor de
estudos Ibero-Americanos na Universidade de Wisconsin, Madison. É autor de
Brasil: de Getúlio a Castelo (1930-1964)1 e Preto no Branco, ambos publicados no
Brasil pela Editora Paz e Terra. E co-autor (corn Peter H. Smith) de MODERN
LATIN AMERICA. Desenvolve ainda as atividades de editor da THE CAMBRIDGE
ENCYCLOPAEDIA OF LATIN AMERICA AND THE CARIBBEAN, além de ter publicado inúmeros
artigos e resenhas de livros em jornais como o HISPANIC AMERICAN HISTORICAL
REVIEW, AMERICAN HISTORICAL REVIEW e JOURNAL OF LATIN AMERICAN STUDIES.
Sumário

Prefácio 11
Agradecimentos 15

I - As Origens da Revolução de 1964 19

II - Castelo Branco: arrumando a casa - abril de 1964 - março de 1965 45
Os Militares assumem o poder 45
O Novo governo: aliança UDN-militaers 50
Os Expurgos e a tortura 55
Defensores e críticos 63
Estabilização econômica: um enfoque quase ortodoxo 68
Política salarial 77
Convencendo os credores e investidores estrangeiros 82
A UDN: uma base política viável? 89
Derrota nas urnas e reação da linha dura 93

III - Castelo Branco: a tentativa de institucionalizar 101
O Segundo Ato Institucional e suas conseqüências
políticas 101
Fontes de oposição 107
Tratando da sucessão 110
A UDN e Lacerda novamente 113
O Cenário econômico em 1966 116
Segurança nacional e uma nova estrutura legal 118

Sumário
O Desempenho da economia no governo Castelo
Branco 121
Fortalecendo a economia de mercado 127
O Legado político de Castelo Branco 133

IV - Costa e Silva: os militares endurecem 137
Uma nova equipe 138
A Nova estratégia econômica 141
Política: volta ao "normal"? 148
Da Frente Ampla ao desafio de
estudantes e trabalhadores 151
Provocação à linha dura 160
A Repressão autoritária 165
Surge a guerrilha 171
A Economia: o pragmatismo dá resultado 181
Um presidente incapacitado e a crise da sucessão 189
Os Estados Unidos: um embaixador seqüestrado e algumas reflexões 203

V - Mediei: a face autoritária 211
A Personalidade, o Ministério e o estilo de governar de Mediei 212
RP em novo estilo 221
Mediei e a política eleitoral, 1969-72 224
A Eliminação da ameaça guerrilheira 233
Os Usos da repressão 249
A Igreja: uma força de oposição 269
O "Boom" econômico e seus críticos 274
Abrindo a Amazónia: solução para o Nordeste? 289 Continuidade da manipulação
eleitoral e a escolha de Geisel , 295
Direitos humanos e relações Brasil-Estados Unidos 304
Um balanço: que tipo de regime? 309

VI- Geisel: rumo à Abertura 315
A Volta dos castelistas 315
Liberalização a partir de dentro? 322
Novembro de 1974: uma vitória do MDB 335
Descompressão sob ameaça 339

Sumário 9
Novos problemas econômicos 349
Vozes da sociedade civil 354
Problema do Planalto: como ganhar eleições 369
Resposta do governo: o "pacote de abril" 372
Divergência Estados Unidos-Brasil: tecnologia nuclear e direitos humanos 375
Geisel subjuga a linha dura 385
O "Novo sindicalismo" em ação 397
O Desempenho da
economia desde 1974 e o legado de Geisel 401

VII - Figueiredo: o crepúsculo do governo militar 409
Natureza do novo governo 410
As Greves de 1979 413
Delfim Neto novamente 417
A Questão da anistia 422
Reformulando os partidos 427
Outro desafio dos trabalhadores 433
Explosões à direita 442
O Balanço de pagamentos: nova vulnerabilidade 447
As Eleições de 1982 452
A Economia em profunda recessão 458
A Campanha por eleições presidenciais diretas 465
Aspirantes do PDS à presidência 472
A Vitória da Aliança Democrática 481
Reviravolta econômica 487

VIII- A Nova República: perspectivas para a democracia 491
Até onde a democratização dependeu da pessoa de Tancredo? 493
Como os militares reagiram à democratização? 512
Como o governo democrático enfrentou as difíceis opções econômicas? 526
A Dívida Externa: Intervalo para Tomar Fôlego 527
Plano Cruzado: Nova Arma Contra a Inflação 531
Conclusão 545
A Democratização previa a criação de uma sociedade mais igual? 546

Sumário
Tendências dos Indicadores Sociais e Econômicos Sob o Regime Autoritário 546
Realizações do Novo Governo 552
Trabalho Urbano 556
Reforma Agrária 573
Tratamento de Presos 582
Pós-Escrito: realidades econômicas e desdobramentos políticos 585
índice Remissivo 597

Prefácio

Os leitores do meu livro Brasil: de Getúlio Vargas a Castelo Branco, 1930-
1964 talvez perguntem em que ele se relaciona com este. Naquele trabalho
remontei até 1930 na análise da política e das diretrizes econômicas do país
porque a literatura secundária existente era escassa. Meu principal propósito,
no entanto, era explicar a deposição do governo Goulart em 1964, ruptura
constitucional que, para mim, representava o fim da democracia brasileira que se
iniciara em 1945. Visto pela perspectiva de duas décadas depois, aquele
julgamento parece confirmado. Ao analisar o processo histórico que desaguou em
1964, examinei detidamente de que modo a elite política lidara com as difíceis
opções da política econômica, detendo-me no sistema partidário e na estrutura
constitucional, assim como nas idéias econômicas dos nacionalistas e na
capacidade de proselitismo eleitoral dos políticos populistas. Finalmente,
concentrei-me nos atores decisivos do movimento de
1964 - os militares, especialmente os do Exército.

A raison d'être do meu novo livro remonta também a 1964, só que o que procuro
descrever e explicar é o processo político criado pela determinação dos
militares de não devolver imediatamente o poder aos civis, como o fizeram após
todas as outras intervenções que realizaram a partir de 1945. Que tipo de regime
eles criaram com as sucessivas medidas de endurecimento que adotaram em 1965,
1968 e 1969? E que tipo de oposição emergiu? Para dar resposta a estas
perguntas, tratei em profundidade da presidência do general Mediei (1967-74),
que viu o "estado de segurança nacional" em sua forma mais pura. Aqueles anos
repug-

12 Prefácio
naram a muitos estudiosos, tanto por causa da indesculpável repressão
governamental quanto pelos seus êxitos superficiais (conquista do campeonato
mundial de futebol de 1970, 11 por cento de crescimento econômico etc.). Mas só
é possível compreender a democracia da Nova República se se compreender em
profundidade a era autoritária - tanto a repressão quanto a oposição armada
- da qual ela surgiu.

É obviamente mais difícil estudar um sistema político autoritário do que um
sistema aberto, pois a censura e a repressão distorcem os fatos e a negociação
política é feita em grande parte às ocultas. Por isso as fontes escritas não
refletem plenamente o choque de interesses, quer regionais, setoriais, de
classes ou institucionais. Somos obrigados a inferir muito mais do que, por
exemplo, no período de 1934-64, o que significa que qualquer interpretação
estará invulgarmente sujeita a extensa revisão na medida em que se tornam
disponíveis mais fontes oficiais e relatos pessoais significativos.

Durante seu governo os militares se mantiveram notoriamente calados para com
aqueles que não pertencessem ao seu círculo íntimo. No entanto, muitos oficiais
ilustres contaram sua história (e mais revelações sem dúvida surgirão). Os
jornalistas brasileiros também produziram uma quantidade preciosa de reportagens
e comentários, apesar de suas difíceis condições de trabalho. Em suma, as fontes
impressas sobre os anos do autoritarismo no Brasil são mais ricas do que
sobretudo um estrangeiro pode supor. Em comparação com os governos militares da
Argentina, Uruguai e Chile, o do Brasil foi mais acessível. Isto se deve em
parte ao fato de que a repressão brasileira foi menos severa do que a daqueles
outros três países. Mas cabe observar também que a cultura política brasileira
após 1945 foi mais aberta do que, por exemplo, a da Argentina, com a qual o
Brasil é geralmente comparado. Esta relativa abertura é uma grande Vantagem para
os pesquisadores, tanto brasileiros como estrangeiros.

Uma das conseqüências desse fato foi a rápida maturação das pesquisas
brasileiras no campo das ciências sociais. Se alguma vez os brasileiros
precisaram saber inglês para adquirir conhecimentos sobre seu país, esse tempo
há muito ficou para trás. Neste trabalho procurei colher o máximo possível de
subsídios que essa rica e cada vez mais abundante literatura brasileira oferece.
Em muitos casos, porém, só pude usar algumas obras escolhidas. Espero que

Prefácio 13
minhas notas orientem os leitores que desejem penetrar mais profundamente nessa
literatura.

Um conjunto de atores históricos sobre os quais muito se tem falado são
certas organizações de nível local, como as comunidades eclesiais de base, as
associações de bairro e a atividade sindical em nível de fábrica. Ao lado destas
há grupos estabelecidos da elite desenvolvendo intensa atividade, como a Ordem
dos Advogados, a Conferência Nacional dos Bispos e as associações industriais e
comerciais. Todos brandiram sua força política, embora em diferentes ocasiões e
para fins diversos. A continuação das pesquisas sobre o papel daqueles grupos
será essencial, não somente para revelar como o Brasil emergiu do regime
autoritário, mas também para esclarecer a dinâmica e o potencial democrático da
Nova República. Tal como a polarização política do período 1945-64 determinou
muito da configuração do regime militar, assim também a dialética política dos
anos autoritários continuará a exaurir-se na medida em que os hábitos
democráticos forem reforçados. A política brasileira tem-se destacado por sua
continuidade, e a Nova República não é exceção. Não é por coincidência que o
presidente José Sarney e o presidente da Câmara dos Deputados Ulysses Guimarães
são políticos cuja carreira remonta à fase anterior a 1964.

As esperanças do Brasil, contudo, estão compreensivelmente voltadas para
aquilo que mudou. Meu capítulo final é dedicado a uma análise dos primeiros
quinze meses (com um pós-escrito até junho de 1987) da Nova República. Já está
claro que a nova democracia do Brasil será rigorosamente posta à prova pela
necessidade de lidar com difíceis opções econômicas e com a insistente demanda
de maior grau de justiça social. Aqueles de nós que estudam o Brasil a distância
e que aprenderam a amar este país e seu povo fazem ardentes votos para que ele
possa realizar a democracia, a prosperidade e a paz que suas melhores
inteligências tantas vezes articularam tão eloqüentemente.


Agradecimentos 15

Durante a preparação deste livro recebi ajuda de muitos amigos que facilitaram
minhas pesquisas e fizeram inapreciáveis sugestões e comentários. Dentre os
americanos cito Barry Ames, Werner Baer, Thomas Bruneau, John Cash, Joan Dassim,
Peter Evans, Albert Fishlow, David Fleischer, Stanley Hilton, Samuel Huntington,
Peter Knight, Joseph Love, Abraham Lowenthal, Dennis Mahar, Frank McCann, Samuel
Morley, Robert Packenham, Carlos Peláez, Riordan Roett, Keith Rosenn, Alfred
Stepan, David Trubek, Brady Tyson e John Wirth.

Muitos amigos brasileiros conduziram-me até às fontes e me deram preciosos
conselhos: Neuma Aguiar, Márcio Moreira Alves, Fernando Henrique Cardoso, Luiz
Orlando Carneiro, Cláudio de Moura Castro, Roberto Cavalcanti, Celso Lafer,
Bolivar Lamounier, Pedro Malan, Carlos Guilherme da Mota, Vanilda Paiva, José
Pastore, Paulo Sérgio Pinheiro, Wanderley Guilherme dos Santos e Sandra Valle.
Dois veteranos intérpretes da realidade brasileira, Alberto Dines e o general
Golbery do Couto e Silva, tiveram a bondade de ler o primeiro esboço,
colaboração que também me prestou Jim Bumpus. Todos fizeram importantes
comentários mas nenhum viu a versão final. Ao longo dos anos foram muito úteis
as conversas que tive com Carlos Chagas, Oliveiros Ferreira e Fernando Pedreira,
três conceituados jornalistas sempre dispostos a dividir comigo suas penetrantes
observações sobre a política brasileira.

16 Agradecimentos
Outros amigos brasileiros de muitos anos que foram especialmente generosos com
seu apoio e seus conhecimentos são Francisco de Assis Barbosa, Fernando
Gasparian, Francisco Iglesias, Hélio Jaguaribe, Isaac Kerstenetzky, Roberto da
Matta, José Honório Rodrigues e Alberto Venâncio Filho. Entre os que serviram em
postos do governo dos Estados Unidos no Brasil e me ajudaram muito cito Myles
Frechette, Lincom Gordon, John Griffiths, Robert Sayre e Alexander Watson. John
Crimmins bondosamente forneceu-me comentários pormenorizados sobre um esboço do
Capítulo VI.

Foi-me de grande valia a generosidade da Fundaçãp Ford no Rio de Janeiro, que
me permitiu usar suas instalações, e por isso sou grato a Eduardo Venezian,
David Goodman, James Gardner e Bruce Bushey. Destaco os nomes de Michael Turner
e Steve Sanderson, do setor de programas da Fundação Ford, pelo tempo que
generosamente me dispensaram. Uma palavra especial de agradecimento a Prescilla
Kritz pela infinidade de tarefas que desempenhou com uma eficiência que
multiplicou por várias vezes o valor de minha estada no Brasil. Sou grato também
aos funcionários da Biblioteca da Câmara dos Deputados (Brasília) e de O Estado
de S. Paulo pela solicitude com que providenciaram cópias xerox de recortes.

Através dos anos beneficiei-me da ajuda de competentes pesquisadores como
Judith Allen, Megan Ballard, Peter de Shazo, Thomas Holloway, Steve Miller,
Ernie Olin, Carlos Baesse de Souza, Anne True e Hélio Zylberstajn. Destaco a
admirável paciência e a extraordinária precisão de Kate Hibbard na manipulação
do processador de palavras. Robert Skidmore preparou o índice remissivo.

Pelo apoio financeiro em sucessivas etapas deste livro sou grato à Fundação
John Simon Guggenheim, ao Woodrow Wilson International Center for Scholars, à
Fulbright Faculty Research Abroad e, na Universidade de Wisconsin, ao Graduate
School Research Committee e ao Nave Fund.

Sheldon Meyer tem sido o meu editor ao longo de toda a minha carreira
académica. Seu apoio e seus argutos conselhos são da maior significação para
mim. Embora numerosos amigos tenham feito importantes comentários sobre partes
do manuscrito, nenhum

Agradecimentos 17
o viu na forma final. Infelizmente, os erros por ventura existentes são de
minha exclusiva responsabilidade. Agradeço a minha mulher pelos motivos que as
pessoas que a conhecem bem ou trabalham com ela compreenderão.
T. E. S.
Madison, Wisconsin Julho de 1987


I
As origens da Revolução de 1964

Foi ao amanhecer de 1.° de abril de 1964. Na véspera o presidente João
Goulart viajara para o Rio ignorando que o país já estava mergulhado na crise
que poria fim ao seu governo. Logo cedo, no Palácio Laranjeiras, onde
pernoitara, recebeu de seus assessores imediatos a informação de que unidades
revoltadas do Exército estavam marchando rumo ao Rio de Janeiro para depô-lo.
Alguns desses assessores, sobretudo os mais ferrenhos defensores da situação,
ainda tentaram minimizar a rebelião, procurando convencer Goulart de que os
militares lhe eram leais e logo deteriam a facção revoltada.

Com o passar das horas, contudo, as notícias tornavam-se mais alarmantes: um
contingente do Primeiro Exército, sediado no Rio, fora enviado para interceptar
a coluna de revoltosos que se aproximava; mas o comandante legalista e seus
subordinados se aliaram aos rebeldes quando as duas forças se encontraram. No
Rio os fuzileiros navais, de prontidão, só aguardavam a ordem para agir contra
Carlos Lacerda, governador do ex-estado da Guanabara (hoje o Grande Rio) e
talvez o mais exaltado adversário de Goulart. Quando mais alta era a tensão no
Arsenal da Marinha, um tanque subitamente partiu, sem autorização, para o
Palácio Guanabara, de onde Lacerda liderava a resistência civil. À chegada do
tanque, sua guarnição aderiu à revolta e foi saudada com júbilo pelo governador
e seus auxiliares. As fileiras das tropas legalistas diminuíam a cada momento.
Mais tarde, ainda pela manhã, Goulart certificava-se de que a balança do apoio
militar pendia contra ele. Mas restava-lhe uma

20 Brasil: de Castelo a Tancredo
esperança: o Segundo Exército, com sede em São Paulo, sem cujo apoio nenhum
golpe militar lograria êxito. Era seu comandante o general Amaury Kruel, que não
aderira à Revolução, em parte por causa de sua inimizade com o general Castelo
Branco, destacado líder do movimento. O presidente telefonou para o general
Kruel e lhe pediu que continuasse leal ao governo. Mas Kruel condicionou seu
apoio ao rompimento de Goulart com o CGT (Comando Geral dos Trabalhadores)
liderado por comunistas, e cuja influência os militares rebeldes não toleravam.
Mas o presidente objetou, alegando que o apoio da classe trabalhadora lhe era
indispensável. "Então, Sr. Presidente", Kruel respondeu, "não há nada que
possamos fazer."1

Goulart convencera-se aí de que seu governo realmente chegara ao fim. Na sede
da representação diplomática norte-americana o embaixador Lincoln Gordon e seus
auxiliares se mantinham atentos ao tráfego de veículos entre o Palácio
Laranjeiras e o aeroporto Santos Dumont no centro da cidade, onde o diplomata
colocara observadores.

Pela manhã a limusine presidencial fora vista em direção ao aeroporto mas
logo retornara ao palácio. Teria o presidente mudado de idéia? Enquanto isso, em
Washington, o assessor de Segurança Nacional, McGeorge Bundy, monitorava
pessoalmente o tráfego telegráfico originário do Brasil, sinal indisfarçável da
preocupação da Casa Branca de que o país desse uma guinada para a esquerda.2

1. Alberto Dines, et ai., Os idos de março e a queda em abril (Rio de Janeiro,
José Álvaro, 1964), p. 144.

2. O papel do governo dos Estados Unidos na deposição de João Goulart
foi objeto de muita especulação e debate. Os nacionalistas radicais afirmavam
que os Estados Unidos, usando meios públicos e clandestinos, contribuíram
significativamente para a vitória dos inimigos de Goulart. É esta a opinião de
Edmar Morei, O golpe começou em Washington (Rio de Janeiro, Editora
Brasiliense, 1565). Em apêndice a Politics on Brazil, 1930-1964: An
Experiment in Democracy (New York, Oxford University Press, 1967), tratei das
evidências sobre o papel dos Estados Unidos a partir de janeiro de 1967.
Publicações subseqüentes não me induziram a modificar muito minha interpretação.
Pesquisas posteriores revelaram que o governo americano acompanhou atentamente
os eventos, destacando a importância que o presidente Johnson e seus auxiliares
atribuíam ao Brasil. O relato mais bem documentado do papel dos Estados Unidos
é o de Phyllis R. Parker, Brazil and the Quiet Intervention, 1964 (Austin,
University of Texas Press, 1979). Para conhecimento de importantes documentos,
reve-

As Origens da Revolução de 1964 21
No final da manhã os observadores da Embaixada norte-americana viram novamente a
limusine presidencial rumando para o Santos Dumont. Desta vez Goulart seguiu
diretamente para bordo do avião que o levaria para Brasília.

Estaria ele pensando em organizar seu último bastião de defesa na capital
federal, como lhe aconselhava Darcy Ribeiro, seu mais graduado assessor civil?
Mas resistir sem apoio militar seria suicídio, e o próprio presidente estava
persuadido de que não contava com qualquer parcela de apoio nas forças armadas.
De Brasília, Goulart voou para o seu estado natal, o Rio Grande do Sul, onde o
comandante do Terceiro Exército ainda não havia aderido ao golpe, circunstância
de que se valeu o então deputado Leonel Brizola, cunhado do presidente e
exaltado porta-voz do nacionalismo radical, para conclamar o povo à resistência.
O presidente não apoiou a articulação de Brizola, e no dia 2 de abril o Terceiro
Exército aderiu à rebelião impedindo assim a repetição de 1961, quando se
revoltara em defesa do direito de Goulart suceder a Jânio Quadros, direito que
os ministros militares não queriam reconhecer. Dois dias depois, um Goulart
relutante atravessava a fronteira do Uruguai, refúgio habitual de exilados
políticos sulamericanos.3

Como foi que os inimigos do presidente brasileiro conseguiram expulsá-lo do
governo e do país? A explicação mais imediata é que seus obstinados adversários
civis haviam conquistado a simpatia dos militares, fator essencial para o bom
êxito de um golpe. Para alguns militares, no entanto, o trabalho de persuasão
dos civis foi dispensável, pois em 1963 se haviam convencido de que
___________
lados por um brasileiro, da biblioteca presidencial Lyndon B. Johnson, ver
Marcos Sá Corrêa, 1964 visto e comentado pela Casa Branca (Porto Alegre, L & PM,
1977). Para uma tentativa de interpretação mais ampla da influência americana no
Brasil, ver Jan Knippers Black, United States Penetration of Brazil
(Philadelphia, University of Pennsylvania Press, 1977).
3. Em Politics in Brazil, analisei com pormenores as origens da Revolução
de 1964, com extensa referência a fontes impressas. A partir de então surgiu
vasta bibliografia sobre o assunto. As obras adicionais citadas neste capítulo
são simplesmente exemplos dessa bibliografia relativamente a tópicos
específicos.

22 Brasil: de Castelo a Tancredo
Goulart estava levando o Brasil para um estado socialista que extinguiria os
valores e às instituições tradicionais do país. Estas idéias estavam contidas em
um memorando que circulou nos quartéis de todos os estados brasileiros e
sustentavam que o presidente devia ser deposto antes que suas ações (nomeações
de militares, decisões financeiras etc.) enfraquecessem a própria instituição
militar. O coordenador dos conspiradores na área das forças armadas era o chefe
do Estado-Maior do Exército, general Castelo Branco, um soldado calado,
reservado, que participara da Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Itália em
1944-45. Sua escolha para coordenador deveu-se ao fato de ser ele um oficial de
impecável correção e alheio à política.4

Os conspiradores sustentavam idéias marcadamente anticomunistas desenvolvidas
na ESG (Escola Superior de Guerra), segundo o modelo do National War College dos
Estados Unidos. No Brasil, a ESG já era um centro altamente influente de estudos
políticos através de seus cursos de um ano de duração freqüentados por igual
número de civis e militares destacados em suas áreas de atividade. Da doutrina
ali ensinada constava a teoria da "guerra interna" introduzida pelos militares
no Brasil por influência da Revolução Cubana. Segundo essa teoria, a principal
ameaça vinha não da invasão externa, mas dos sindicatos trabalhistas de
esquerda, dos intelectuais,/das organizações de trabalhadores rurais, do clero e
dos estudantis professores universitários. Todas essas categorias representavam
séria ameaça para o país e por isso teriam que ser todas elas neutralizadas ou
extirpadas através de ações decisivas.5

Essa forma de pensar radicalmente anticomunista não era nova para a política
brasileira. Em 1954 o presidente Getúlio Vargas
___________
4. É talvez curioso o fato de que o primeiro biógrafo de Castelo Branco
foi americano. Para um trabalho feito com muita atenção, embora destituído de
imaginação, ver John W. F. Dulles, Castello Branco: The Making of a Brazilian
President (College Station, Texas A&M University Press, 1978), que cobre a vida
de Castelo antes de sua ascensão à presidência. O período presidencial é coberto
por Dulles em President Castello Branco: Brazilian Reformer (College Station,
Texas A&M University Press, 1980).
5. A evolução das idéias políticas dos militares brasileiros é analisada
minuciosamente em Alfred Stepan, The Military in Politics: Changing íw"-
Patterns in Brazil (Princeton, Princeton University Press, 1971). John Markoff

As Origens da Revolução de 1964 23
fora levado ao suicídio por uma conspiração militar semelhante à que selou a
sorte de Goulart. Vargas, que anteriormente governara o Brasil de 1930 a/1945
(os últimos oito anos como ditador), havia voltado à presidência pelo voto
popular em 1951.6 Dadas as semelhanças entre a queda de Vargas em 1954 e a
deposição de Goulart uma década depois, os anos 50 requerem exame mais atento.

A atribulada presidência de Vargas no período 1951-54 foi marcada pelo
aprofundamento da polarização política. O principal apoio político do presidente
provinha do PTB (Partido Trabalhista Brasileiro), fundado sob a égide de Vargas
em 1945. Seguia as linhas dos partidos socialistas democráticos europeus, e
chegou a ser o principal partido de esquerda, mas era marcado pelo personalismo
e seu matiz ideológico variava de um estado para outro. O presidente lançou
ambicioso programa de investimentos públicos, frustrado entretanto pelo
insucesso econômico, causado pela vertiginosa queda dos preços do café no
mercado internacional e pelo aumento da inflação internamente. Determinado a
executar seu programa econômico nacionalista (como a criação do monopólio
nacional do petróleo) e ao mesmo tempo melhorar os salários dos trabalhadores,
Vargas, agora um populista, viu-se forçado em 1953 a adotar um programa
antiinflacionário altamente impopular. Como se a crise econômica não fosse
bastante, ele também enfrentou uma conspiração militar, pois sua política de
cunho nacionalista e populista provocara indignada reação entre os oficiais
anticomunistas, que em 1953 haviam empalmado a liderança militar. Estes ficaram
especialmente contrariados no início de 1954 com a proposta de um elevado
aumento do salário mínimo, enquanto os proventos dos militares continuavam a
encolher. O ministro do Trabalho que recomendara o aumento de salário fora João
Goulart,
_____________
e Silvio R. Duncan Baretta, " Professional Ideology and Military Activism in
Brazil: Critique of a Thesis of Alfred Stepan", Comparative Politics, XVII, N.°
2 (janeiro de 1985), pp. 175-91, fazem convincente avaliação crítica da lógica
global da análise de Stepan, mas para os fins deste trabalho a descrição dos
tipos de comportamento dos militares feita por Stepan continua válida.

6. Para uma análise da história do Brasil no século vinte, pondo em contexto o
golpe de 1964, ver Peter Flynn, Brazil: A Political Analysis (Boulder, Westview
Press, 1978).

24 Brasil: de Castelo a Tancredo
um jovem político do PTB, protegido de Vargas, natural dos mesmos pagos gaúchos
que o presidente.7

Os políticos adversários do governo e a imprensa apelidaram Goulart de "chefe
do peronismo brasileiro".8 Sob intensa pressão política, Vargas, em fins de
fevereiro de 1954, demitiu Goulart, a primeira baixa na luta do presidente
contra os antipopulistas. Estes eram capitaneados pela UDN (União Democrática
Nacional), fundada para combater a ditadura em 1945 e que logo se tornaria o
principal partido conservador. Em 1954 era a força antigetulista por excelência
e tinha como seu mais ardoroso porta-voz Carlos Lacerda, talentoso jornalista
que através do seu vespertino, Tribuna da Imprensa, desfechava contra Vargas
todo o tipo de ataque pessoal e político.9

A demissão de Goulart não foi solução, pois os problemas de Getúlio somente
pioraram. As vendas de café no exterior caíram drasticamente, devido em parte a
políticas de comercialização mal orientadas. O ex-ministro das Relações
Exteriores de Vargas acusava-o de conspirar com Juan Perón, da Argentina, para
formar um bloco anti-Estados Unidos na América Latina, enquanto a imprensa
divulgava reportagens sobre escândalos financeiros do governo. Diante destas
investidas, Vargas tratou de procurar aliados políticos.
_____________
7. A era iniciada com a Revolução de 1930 está sendo fartamente documentada
graças ao arquivo e publicações do Centro de Pesquisa e Documentação de
História Contemporânea do Brasil (CPDOC) no Rio de Janeiro. O Centro possui
arquivos pessoais e histórias orais das principais figuras do período pós-1930.
Entre as obras que já publicou sobre Getúlio Vargas citam-se: Valentina de Rocha
Lima, ed., Getúlio: uma história oral (Rio de Janeiro, Editora Record, 1986);
Ana Lígia Silva Medeiros e Maria Celina Soares d'Araújo, eds., Vargas e os anos
cinqüenta: bibliografia (Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1983); e
Adelina Maria Alves Novaes e Cruz, et ai. eds., Impasse na democracia
brasileira, 1951-1955: coletânea de documentos (Rio de Janeiro* Fundação Getúlio
Vargas, 1983). Para uma das mais lidas interpretações do meio século que se
seguiu à Revolução de 1930, ver Luiz Bresser Pereira, Development and Crisis in
Brazil, 1930-1983 (Boulder, Westview Press, 1984).

8. O Estado de S. Paulo, 12 de janeiro de 1954.

9. Para um excelente estudo sobre a UDN, ver Maria Victoria de Mesquita
Benevides, A UDN e o udenismo: ambigüidades do liberalismo brasileiro, 1945-1965
(Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1981). Há também um bom estudo sobre e o PSD em
Lúcia Hippolito, De raposas e reformistas: o PSD e a experiência democrática
brasileira, 1945-64 (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1985).

As Origens da Revolução de 1964 25
Em maio, decretou um aumento de 100 por cento do salário mínimo, mais até do que
João Goulart havia recomendado. Mas a medida chegava/tarde demais para ajudá-lo
a mobilizar o apoio da classe trabalhadora.

Em agosto, Vargas havia sido isolado pelos seus adversários, cujas fileiras
engrossavam diariamente. O chefe da guarda pessoal do presidente, perturbado
pelos apuros do seu chefe, resolveu providenciar a eliminação de Carlos Lacerda,
o maior algoz de Getúlio Vargas. O assassino contratado para matar Lacerda
apenas o feriu, matando, porém, um oficial da Força Aérea que acompanhava o
jornalista. Vargas não tivera conhecimento da trama assassina que, no entanto, o
tornara muito mais vulnerável para os seus inimigos. A Força Aérea criou a sua
própria comissão de inquérito, rapidamente localizando o assassino no palácio
presidencial. O inquérito também revelou novos escândalos financeiros,
fornecendo assim mais munição para Lacerda e a UDN.

A palavra definitiva vinha agora do Exército, sempre o árbitro final nas
contendas da política brasileira. Vinte e sete generais, inclusive
antigetulistas e centristas, lançaram um manifesto exigindo a renúncia do
presidente. Depois de acusá-lo do "crime de corrupção", o manifesto dizia que a
"crise político-militar" ameaçava de "danos irreparáveis a situação económica do
país". Finalmente, informava que havia uma ameaça de "graves perturbações
internas".10

Desafiando seus acusadores, o presidente os advertiu que jamais renunciaria.
Após receber outro ultimato dos militares endossado pelo ministro da Guerra, e
em seguida a uma melancólica reunião ministerial a 24 de agosto, Vargas exerceu
sua última opção. Retirou-se para os seus aposentos e suicidou-se com um tiro no
coração. Deixou uma carta-testamento culpando por sua derrota "uma campanha
subterrânea de grupos nacionais e internacionais". Atingia assim as companhias
petrolíferas internacionais que haviam combatido a criação da Petrobrás, o
monopólio nacional do petróleo. A carta denunciava também a "violenta pressão
sobre nossa economia ao ponto de termos que ceder", referindo-se
____________
10. O manifesto está transcrito em Bento Munhoz da Rocha Netto, Radiografia de
novembro, 2." ed. (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,
1961), pp. 118-19.

26 Brasil: de Castelo a Tancredo
à reação dos Estados Unidos à tentativa do Brasil de não deixar cair o preço do
café. O documento concluía: "Eu vos dei a minha vida. Agora ofereço a minha
morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e
saio da vida para entrar na história".11

Com o seu suicídio Vargas fez o feitiço virar contra o feiticeiro. Os seus
inimigos vinham até então procurando ocupar o vazio criado pelo descrédito moral
e político do governo. Mas, transformado agora o presidente em mártir, os
antigetulistas passaram subitamente para a defensiva. Carlos Lacerda, antes o
herói ferido, tratou primeiro de ocultar-se antes de seguir para o exílio.
Multidões iradas apedrejaram a Embaixada norte-americana e incendiaram caminhões
de entrega de O Globo, inflamado vespertino antigetulista. Esses alvos
enquadravam-se na descrição dos algozes do presidente, mencionados em sua carta-
testamento.

O desenlace do governo Vargas de 1951-54 criou o contexto político e as
linhas de ação para a década seguinte. Havia, em primeiro lugar, a questão do
nacionalismo econômico. Como o Brasil deveria tratar os investidores
estrangeiros? Que áreas (como petróleo, minérios etc.) deveriam ser reservadas
para o capital nacional, público ou privado? Como poderia o país maximizar seus
ganhos com o comércio exterior?

Outra área básica era a eqüidade econômica, refletida no debate público em
torno do reajustamento do salário mínimo, questão que em 1954 infernizara a vida
de Vargas. Que se entendia por índice "justo" de salários? Até que ponto os
trabalhadores poderiam negociar coletivamente? A lei trabalhista corporativista
(criada pela ditadura de 1937-45) virtualmente proscrevia a negociação. Não
obstante, líderes trabalhistas independentes de São Paulo - isto é, sem qualquer
dever de gratidão para com o governo ou grupos de esquerda como o Partido
Comunista - estavam fazendo progressos. A curto prazo surgiriam daí mais
problemas políticos para Vargas.12
___________
11. O texto da carta está transcrito em Afonso César, Política, cifrão e sangue:
documentário do 24 de agosto, 2.* ed. (Rio de Janeiro, Editorial Andes, 1956),
pp. 219-20.
12. Este capítulo relativamente não estudado é analisado em José
Álvaro Moisés, Greve de massa e crise política (São Paulo, Editora Polis,1978).

As Origens da Revolução de 1964 27

As relações trabalhistas no setor agrícola também reclamaram atenção durante
o governo de Getúlio Vargas. No início de 1954 o presidente autorizou o ministro
do Trabalho, João Goulart, a dar começo à organização dos trabalhadores
agrícolas do estado de São Paulo.13 O maior índice de pobreza do Brasil era
apresentado pelo campo, onde a renda e os serviços públicos eram muito precários
em relação aos das cidades. Faltava entretanto a Vargas qualquer apoio político
mobilizável para aquela iniciativa. Por outro lado, os grandes proprietários de
terras estavam bem representados em todos os níveis governamentais, daí
resultando o aumento do número dos inimigos ativos do presidente sem que ele
conseguisse realizar qualquer reforma.

Finalmente, o governo de Vargas e sua morte trágica suscitaram questões
políticas decisivas. Primeiro era o futuro do sistema de partidos políticos. A
UDN havia alcançado sua meta imediata: afastar Getúlio do poder. Mas também
fizera dele um mártir, ajudando com isso o PTB, que agora empunhava a bandeira
varguista do nacionalismo econômico. À medida que este partido se fortalecia, a
UDN era empurrada para um combate quase permanente das teses contidas no ideário
petebista. Enquanto isso, o PSD (Partido Social Democrático) era apanhado no
fogo cruzado UDN-PTB. O PSD foi o terceiro dos três principais partidos criados
em 1945. Seus primeiros dirigentes foram recrutados entre os administradores de
alto nível e os oligarcas políticos favorecidos pela ditadura do Estado Novo.
Por sua ideologia e atuação, era um partido de centro, tendo à direita a UDN e à
esquerda o PTB. Pretensamente pragmáticos e pacificadores por natureza, os
líderes pessedistas não fizeram jus às suas louvadas virtudes de conciliadores
quando os ânimos políticos se inflamaram em 1954.

Em 1955, assentada a poeira da crise, o PSD elegeu para um mandato de cinco
anos o seu correligionário Juscelino Kubitschek. Seu governo foi caracterizado
pelo rápido crescimento econômico e pela criatividade que resultou em inovações,
como a construção da nova capital federal em Brasília e a criação da SUDENE, a
repartição incumbida de executar a política de desenvolvimento para o Nordeste
brasileiro. Juscelino foi o protótipo do político do PSD centrista; minimizou a
ideologia e procurou
__________
13. César, Política, cifrão e sangue, pp. 121-24.

28 Brasil: de Castelo a Tancredo
atrair o máximo de apoio para a sua industrialização "desenvolvimentista". Da
mesma forma que convidou o capital estrangeiro a investir em setores como a
indústria automobilística, promoveu ruidoso rompimento corn o FMI (Fundo
Monetário Internacional) em 1959, por se recusar a aceitar o programa ortodoxo
de estabilização proposto por aquela instituição, e com isso desencadeou uma
onda de exaltado nacionalismo em todo o país. A UDN e os militares
antigetulistas atacaram o governo pessedista de Juscelino, mas, graças à
exuberância do seu estilo político e à criatividade do seu programa de metas
econômicas, os ataques diminuíram.

Finalmente, em 1960, a UDN achou que havia chegado a sua oportunidade. O
partido nunca havia feito um presidente, mas Jânio Quadros, um modesto ex-
professor de São Paulo, mas dotado de excepcional carisma político, pareceu o
candidato ideal para receber o seu apoio. Jânio havia sido eleito prefeito da
cidade de São Paulo e depois governador do estado, postos em que enriqueceu o
seu currículo como homem público. Não era entretanto um político convencional,
pois a identificação partidária no seu caso era mera conveniência, tanto assim
que já havia trocado algumas vezes de partido. A UDN queria Jânio porque ele
professava muitas das posições udenistas, como a intransigência com a corrupção,
a suspeita em relação a obras faraônicas, a preferência pela livre empresa e a
ênfase nos valores do lar e da família. Jânio também prometia erradicar a
inflação e racionalizar o papel do Estado) na economia. Mais importante, a UDN
queria Jânio Quadros porque ele era verdadeiro fenômeno em matéria de conquista
de votos.

Vencendo a eleição presidencial de 1960, Jânio não decepcionou a UDN, por
cuja chapa (juntamente com outros) se candidatara. Mas foi uma vitória altamente
pessoal, confirmada pelo fato de que seu companheiro de chapa,. Milton Campos,
perdeu para João Goulart, candidato da oposição à vice-presidência (a lei
eleitoral permitia o voto em candidatos de partidos diferentes).

Jânio assumiu em janeiro de 1961, cercado de enorme prestígio político. Sua
campanha (tinha por símbolo uma vassoura) convencera tanto amigos como inimigos
que ele pretendia cumprir o que prometera. Os militares, especialmente,
depositavam nele grande esperança, pois há muito desejavam que surgisse alguém
capaz de desfechar uma cruzada moral contra o que consideravam políticos sem
princípios e oportunistas. É que circulavam na época

As Origens da Revolução de 1964 29
fortes rumores de que membros da classe política teriam recebido gordas propinas
(de empreiteiras de Brasília, de vendedores de terras em Minas Gerais e de
representantes de empresas multinacionais). Jânio transmitia a impressão de que
seria experimentado piloto ao leme no Planalto, o palácio presidencial em
Brasília. Dali, com sua famosa vassoura, ele visava os políticos desonestos e os
burocratas ociosos.

A magia política do novo presidente não levou muito tempo para ser posta à
prova. Sempre conhecido por suas excentricidades, começou, para surpresa geral,
a flertar com a esquerda. Concedeu a Che Guevara a Ordem do Cruzeiro do Sul, a
mais alta condecoração brasileira conferida a estrangeiros. Por que estaria ele
homenageando um guerrilheiro argentino-cubano?, indagava a UDN. Pouco depois
Jânio hesitaria pôr em prática um programa de estabilização econômica, ao estilo
do FMI, que prometera como remédio para debelar a inflação. Estaria recuando da
austeridade económica? O presidente também se queixava de que o Congresso estava
obstruindo o seu programa legislativo, embora houvesse até então enviado poucos
projetos de lei.

As atenções de Jânio para com o governo de Cuba foram o bastante para fazer
ferver a ira de Carlos Lacerda, ainda a voz mais poderosa e estridente da UDN,
que dirigiu pesados insultos ao chefe do governo, também temível polemista. Mas
este não quis travar combate verbal com o seu grande opositor. Ao contrário,
para surpresa geral, enviou uma carta ao Congresso, em agosto de 1961,
renunciando à presidência. Seu gesto caiu como uma bomba sobre a nação. Os
milhões de brasileiros que lhe deram o voto ficaram perplexos vendo frustradas
suas melhores esperanças. Embora possa ter pensado que o Congresso o chamaria de
volta dando-lhe poderes para governar ao estilo de um De Gaulle (o que
aparentemente desejava), Jânio abandonou Brasília no mesmo dia e se foi
incógnito.

Os líderes do Congresso rapidamente eliminaram o clima de incerteza aceitando
a renúncia como fato consumado. Com sua atitude, Jânio subitamente fez do vice-
presidente João Goulart seu sucessor legal. Assim o destino (e Jânio) elevou à
presidência o mesmo político do PTB que a UDN ajudou a expulsar do seu posto em
1954. Na ocasião, como se de propósito quisesse acentuar suas inclinações
ideológicas, Goulart realizava uma visita de boa vontade à República Popular da
China.

30 Brasil: de Castelo a Tancredo
Antes que Goulart pudesse voltar, os três ministros militares, tendo à frente o
ministro da Guerra, marechal Odílio Denys, anunciaram que não lhe seria
permitido assumir a presidência. Alegavam que, na condição de ministro do
Trabalho de Getúlio Vargas, João Goulart havia entregue cargos-chave nos
sindicatos a "agentes do comunismo internacional". O manifesto dos ministros
terminava expressando o receio de que uma vez na presidência Goulart promovesse
a infiltração das forças armadas, transformando-as assim em "simples milícias
comunistas". O fantasma de um conflito entre trabalhadores e militares não podia
ter sido mais bem descrito.14

Os ministros militares presumiram poder impor seu veto ao direito de Goulart
à sucessão, mas tal presunção era infundada, como logo ficou provado. O
manifesto estimulou a criação de um movimento pela "legalidade" de âmbito
nacional, cujos membros exigiam que os militares respeitassem o direito legal do
vice-presidente à sucessão. A espinha dorsal do movimento era constituída pelo
PTB e grupos aliados da esquerda, incluindo também políticos centristas e
oficiais das forças armadas, os quais achavam que o acatamento à constituição
era a única maneira- de fortalecer a democracia brasileira. Em outras palavras,
João Goulart deveria ter a oportunidade de confirmar ou desfazer as acusações da
direita.

O elo mais fraco da corrente de forças que apoiavam os ministros militares
era o Terceiro Exército, sediado no Rio Grande do Sul, cujo comandante, o
general Machado Lopes, rejeitava o veto. Sua atitude recebera entusiástico apoio
do jovem governador, Leonel Brizola, cunhado de Goulart e o principal agitador
petebista da campanha pela "legalidade". Brizola e Machado Lopes conceberam o
seguinte plano para frustrar a ação dos ministros: Goulart entraria no Brasil
via Rio Grande do Sul; se a Marinha ameaçasse intervir, Brizola reagiria
mandando afundar bastantes navios para impedir o acesso ao porto de Porto
Alegre. Esta medida derrotou os ministros, que não tiveram alternativa a não
ser negociar.
___________
14. O manifesto está transcrito em Mário Victor, Cinco anos que
abalaram o Brasil (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1965), pp. 347-48.

31

A solução encontrada foi que Goulart assumiria a presidência, mas com poderes
reduzidos. Uma emenda constitucional aprovada apressadamente transformou o
Brasil em república parlamentar. O poder executivo era efetivamente transferido
para o gabinete, que governaria com o apoio da maioria do Congresso. Goulart
aceitou com relutância este compromisso, mas imediatamente começou a planejar a
reconquista dos plenos poderes presidenciais. Conseguiu em janeiro de 1963,
quando um plebiscito nacional lhe devolveu o sistema presidencial. Mas então só
lhe restava pouco mais da metade do mandato original de cinco anos.

Com que espécie de Brasil João Goulart se defrontou? A questão principal era
de natureza econômica. Desde 1940 o PIB brasileiro crescia a 6 por cento ao ano,
algo que poucos países do Terceiro Mundo podiam igualar. Tanto os brasileiros
como os observadores estrangeiros, notando a abundância de recursos de quase
todo o tipo, previam brilhante futuro para o maior país da América Latina. A
campanha de Juscelino pela industrialização e a construção de Brasília pareciam
assinalar a "decolagem" do Brasil.

Mas a continuação do desenvolvimento não seria fácil porque a infra-estrutura
básica era deploravelmente inadequada. A produção de energia elétrica, por
exemplo, não conseguia atender à demanda básica do Rio e São Paulo. Os gerentes
de fábricas do parque industrial paulista eram obrigados muitas vezes a recorrer
a geradores a diesel para não paralisarem a produção e no Rio de Janeiro
freqüentemente se racionava água e eletricidade. O total de estradas
pavimentadas em um país maior do que os Estados Unidos continentais era de
aproximadamente mil quilómetros.15 O sobrecarregado sistema ferroviário usava
bitolas diferentes em diferentes regiões e a maior parte do seu material rodante
era antiquado.

O sistema educacional era um pouco melhor. A instrução primária e secundária
era atribuição dos municípios e dos estados, mas menos de 10 por cento dos
alunos matriculados no primeiro grau concluíam o curso primário, e apenas 15
por cento dos estu-
___________
15. Brasil 1960: situação, recursos, possibilidades (Guanabara, Ministério das
Relações Exteriores, 1960), p. 725.

32 Brasil: de Castelo a Tancredo
dantes secundários conseguiam ir até o fim do curso.16 As causas incluíam
recursos inadequados para contratar professores e construir escolas, indiferença
dos pais, falta de dinheiro para pagar uniformes escolares, pressão dos pais
para que os filhos trabalhassem, e muitas outras. Na maior parte das cidades as
melhores escolas secundárias eram particulares e atendiam aos filhos dos ricos
que levavam enorme vantagem nos exames de admissão às universidades federais
gratuitas. Não causava surpresa o fato de as universidades do governo serem
freqüentadas em sua maioria por filhos de gente bem de vida. Com mais da metade
das verbas para educação canalizadas para as universidades federais, o governo
na realidade trabalhava contra a ascensão social via educação.

O sistema educacional não somente deixava de cumprir as metas mínimas de
alfabetização para o povo em geral, mas também não procurava preparar a força de
trabalho qualificada que a industrialização reclamava. O Brasil dependia quase
totalmente de tecnologia importada possuída por empresas como a Brown Boveri
(geradores), Bayer (medicamentos), Bosch (equipamentos elétricos), Coca-Cola
(refrigerantes) e Volkswagen (veículos). O governo brasileiro sequer imprimia a
sua própria moeda (exceto cédulas de um cruzeiro que rapidamente desapareciam).
Este trabalho era feitck pela American Bank Note Company ou por Thomas Larue,
Imi. Jinglesa), dependendo da que colocasse lobistas mais eficientes junto às
autoridades brasileiras.

A assistência à saúde era outra área esquecida. Na saúde, como na educação,
os grandes contrastes eram entre a cidade e o campo. A população das cidades,
mesmo os favelados, geralmente recebia mais serviços sociais do que os
habitantes do campo. Até que ponto a pobreza rural resultava do sistema de
propriedade da terra? Embora o sistema variasse de acordo com a região, quase
por toda a parte havia grandes extensões de terras completamente ociosas
pertencentes a proprietários privados ou a órgãos governamentais. A pouca
distância dessas terras sem uso havia milhões de lavradores na miséria por falta
de terra onde pudessem ganhar a vida. Por que eles não invadiam as terras
________
16. Franz Wilhelm Heimer, "Education and Politics in Brazil", Comparative
Education Review, XIX, N.° l (fevereiro de 1975), pp. 51-67.

As Origens da Revolução de 1964 33
ociosas? Porque o poder de polícia no campo era controlado pelos grandes
latifundiários ou seus aliados entre as elites das cidades. Mas não era apenas a
coerção que dissuadia os sem-terra e os proprietários de terras marginais. Era
também a teia de relações sócio-econômicas e morais que ligava os poderosos aos
que se achavam em patamar inferior. Essa teia incluía o sistema do compadrio: o
afilhado procurava o padrinho para lhe pedir proteção e favores. Este sistema
canalizava as aspirações do inferior para o papai grande de quem não se duvidava
que atenderia de boa vontade seu tutelado moral. Era precisamente o oposto do
impulso coletivista, que leva os inferiores a extraírem concessões pelo uso da
força de todos. O resultado foi que os movimentos camponeses no Brasil do século
vinte nunca exigiram, por exemplo, uma reforma agrária, como aconteceu no México
ou na Bolívia. Nem a reforma agrária era alta prioridade para a esquerda
política, presa ao dogma marxista tradicional de que somente o proletariado
urbano poderia desencadear a revolução.

Nas cidades o recém-empossado presidente João Goulart veria o surgimento de
uma população de migrantes que abandonavam o campo em busca de vida melhor. Mas
o que encontravam eram favelas em expansão. Contudo, por mais chocantes que
parecessem aqueles barracos, para muitos dos seus moradores representavam o meio
de alcançarem melhor situação econômica. Os migrantes não rejeitavam trabalho.
As mulheres se empregavam como domésticas ou como vendedoras no comércio
varejista, os homens, como trocadores de ônibus, porteiros ou apontadores do
jogo do bicho. Os mais afortunados conseguiam empregar-se no setor formal,
coberto pelo salário mínimo e portanto pelo sistema da previdência social.

Estes últimos trabalhadores formaram a base natural para um movimento
sindical urbano. Mas poderiam ser eles considerados como bom material para a
sindicalização? O presidente Vargas apropriou-se desta matéria durante sua
ditadura semicorporativista do Estado Novo (1937-45), elaborando um código
trabalhista que dava ao Estado enorme poder sobre as relações de trabalho. Pelo
código getulista a filiação sindical era compulsória, bem como o pagamento de
uma taxa (deduzida da folha de pagamento e enviada ao Ministério do Trabalho
que, por sua vez, a entregava ao sindicato, à federação ou à confederação). Não
havia espaço para a negociação coletiva e as greves eram virtualmente ilegais.
Os

34 Brasil: de Castelo a Tancredo
dissídios, se considerados legais, passavam antes por uma intrincada rede de
tribunais trabalhistas para efeito de homologação. Em resumo, era uma estrutura
destinada a impedir o surgimento de líderes sindicais independentes. A
continuidade e o êxito do seu funcionamento dependiam da existência de um grande
excedente de mão-de-obra. Dependiam também da disposição do governo de aumentar
o salário mínimo com regular freqüência de modo a satisfazer os poucos
sindicatos urbanos combativos (portuários, bancários, metalúrgicos). Os aumentos
do salário mínimo em geral não passavam de mera compensação da inflação passada,
embora os aumentos concedidos por Getúlio em 1954 e por Juscelino em
1956 e 1959 tenham restabelecido, ainda que por pouco tempo, o poder aquisitivo
real do salário. Mas o Brasil, como o México, tinha grande excedente de mão-de-
obra que inevitavelmente enfraquecia a força dos sindicatos na hora da
negociação.17

Ao analisar as características básicas da economia no início dos anos 60, o
observador tem sua atenção voltada para dois sérios problemas que por muito
tempo atormentaram os responsáveis pela elaboração das políticas brasileiras. O
primeiro era o déficit crônico na balança de pagamentos. No início da década de
60 o déficit brasileiro podia ser atribuído a vários fatores. Primeiro, a
receita das exportações dependia de um único produto, o café, cujo preço no
mercado internacional era muito variável. No governo Vargas de 1951-54, por
exemplo, o Brasil envolveu-se em uma guerra de preços do café com os Estados
Unidos e perdeu. Principal produtor mundial de café, o Brasil procurou manter
elevado o preço do produto no mercado de Nova York, enquanto os Estados Unidos,
como principal consumidor, se esforçavam por manter o preço baixo. Diante disso,
o Brasil retirou o café do mercado na esperança de forçar a elevação dos preços.
A jogada fracassou quando outros produtores, tentando imitá-la, levaram
17. Para uma clara explicação das origens do sistema de relações trabalhistas no
Brasil, ver Kenneth Paul Erickson, The Brazilian Corporative State and Working-
Class Politics (Berkeley, University of Califórnia Press, 1977). Dados sobre o
salário mínimo real na Guanabara de 1952 a 1964 são apresentados em Programa de
ação econômica do governo: 1964-66, (Rio de Janeiro, Ministério do Planejamento
e Coordenação Econômica, 1964), p. 86; e em São Paulo em Paulo Renato Souza, O
que são empregos e salários (São Paulo, Brasiliense, 1981), p. 57.

As Origens da Revolução de 1964 35
os varejos de café norte-americanos a diminuir suas compras. Agravando a
situação, vários congressistas acusaram o Brasil de haver tentado chantagear as
donas de casa dos Estados Unidos. A menos que o Brasil procurasse diversificar
suas exportações, permaneceria vulnerável a flutuações como estas de um único
mercado.

Do lado das importações, eram enormes as necessidades do Brasil: bens de
capital para se industrializar, petróleo para movimentar seus veículos,
matérias-primas como cobre e potassa, para citar apenas algumas. O nível das
importações estava estreitamente ligado ao crescimento industrial: quanto mais
rápido o crescimento maior a demanda de importações.

Além das importações, havia outros itens negativos na balança de pagamentos:
remessas de lucros, amortização de empréstimos e repartição de capitais eram os
principais. Eram equilibrados por novos investimentos estrangeiros, juntamente
com empréstimos e subvenções (como as das agências internacionais). Somadas as
contas estrangeiras, verificou o Brasil que parcela cada vez maior dos seus
ganhos de exportação era para atender ao serviço da dívida. Em 1960 era de
36,6 por cento, quando cinco anos antes atingira apenas 11,6 por cento.18 Poucos
observadores duvidavam do potencial de desenvolvimento do Brasil a longo prazo,
mas a curto prazo faltavam-lhe divisas para financiar as importações necessárias
à continuidade de um rápido processo de industrialização. As opções eram duras:
o país podia cortar as importações, sacrificando a indústria e os transportes
(por causa da redução das importações de bens de capital e de petróleo); ou
podia suspender o pagamento dos empréstimos e proibir as remessas de lucros
sobre investimentos estrangeiros. Qualquer destas duas últimas medidas
assustaria os credores e investidores estrangeiros (uma comunidade fechada de
capitalistas com idéias praticamente iguais), os quais colocariam o Brasil em
suas respectivas listas negras. Em suma, o Brasil tinha que elaborar um plano
económico que satisfizesse aos seus credores, de modo que o comércio continuasse
a ser exercido de acordo com as regras do capitalismo internacional.

____________________
18. Donald E. Syvrud, Foundations of Brazilian Economic Growth
(Stanford, Hoover Institution Press, 1974), p. 183.

36 Brasil: de Castelo a Tancredo
Jânio Quadros enfrentara este problema e decidira recorrer ao FMI. O endosso
desta instituição é decisivo porque é por ele que esperam os credores quando um
país se propõe executar um programa de ajustamento suficientemente ortodoxo. O
programa de Jânio havia sido aprovado e entrara em execução, mas quando começava
a fazer sentir seus efeitos - inevitavelmente recessivos
- ele renunciou à presidência.

Goulart assumiu o governo com seus poderes reduzidos e encontrou os credores
do Brasil em estado de profundo ceticismo.19 As negociações tiveram que ser
recomeçadas e os credores haviam tomado boa nota da desagradável luta política
que precedera a posse do novo presidente. Não deixaram de notar também sua
orientação esquerdista - um grave risco aos olhos dos banqueiros internacionais.
O segundo e urgente problema económico com que Goulart se defrontou foi a
inflação que de 1949 a 1959 variou de 12 a 26 por cento. Como muitos latino-
americanos, os brasileiros são mais tolerantes com a inflação do que os norte-
americanos e os europeus ocidentais; por experiência própria, eles têm
consciência de que não podem esperar a mesma estabilidade monetária com que as
economias do Atlântico Norte podem contar. Em 1960, contudo, a inflação
escandalizou até os próprios brasileiros quando chegou a 39,5 por cento. Os
depósitos de poupança se desvalorizavam mais rapidamente e os principais
credores simplesmente se recusavam a (formar compromissos de longo prazo. O
grande negócio era descobrir um empréstimo com alta taxa de juro negativo. As
empresas estatais, especialmente as de serviços públicos, ficaram com suas
tarifas, geralmente fixadas por políticos eleitos,
__________
19. A mais completa análise do governo Goulart foi feita por Moniz Bandeira, O
governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil: 1961-1964 (Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 1977), que se baseia em material não publicado de
arquivos privados, assim como em entrevistas com os seus principais atores.
Bandeira é simpático a Goulart e dá ênfase à pressão estrangeira, econômica e
política, ou seja, dos Estados Unidos, contra o governo Goulart. Também eu
analisei este assunto em Politics in Brazil. Para uma análise pormenorizada dos
problemas económicos com que Goulart se defrontou e como sua inabilidade para
enfrentá-los contribuiu para que fosse deposto, ver Michael Wallerstein, "The
Collapse of Democracy in Brazil: Its Economic Determinants", Latin American
Research Revíew, XV, N.° 3 (1980), pp. 3-40, e os comentários de Werner Baer.

As Origens da Revolução de 1964 37
muito abaixo da inflação. Em conseqüência, o déficit do setor público inchou,
agravando-se ainda mais com a arrecadação defasada dos impostos.

Mas nenhum governo brasileiro de pós-guerra se dispôs a executar um programa
ortodoxo antiinflação. Tanto Getúlio como Juscelino, por exemplo, tinham metas
de desenvolvimento que não desejavam sacrificar à ortodoxia. Ambos conseguiram
manter a economia em funcionamento sem concordar com programas de estabilização
ao estilo do FMI. Para Goulart, contudo, o tempo era curto porque a economia que
herdara não dava margem a manobras.

Em fins de 1962, os problemas do balanço de pagamentos e da inflação se
tornaram praticamente intoleráveis. A resposta do presidente foi convocar os
melhores cérebros da esquerda moderada, San Thiago Dantas e Celso Furtado, para
elaborarem um programa de estabilização. No início de 1963 eles apresentaram um
plano que teve a aprovação tanto do FMI como do presidente Kennedy. Mas os
credores, cujas suspeitas não se haviam desfeito, foram mais exigentes: cada
empréstimo ao Brasil ficava na dependência dos progressos demonstrados na
implementação do programa de estabilização.

O plano Dantas-Furtado propunha a desvalorização do cruzeiro, o que elevaria
o custo de importações como petróleo e trigo, que por sua vez elevaria o custo
do pão e das passagens de ônibus - dois itens básicos no orçamento do
trabalhador urbano. O plano também propunha a contenção dos aumentos salariais,
outra medida impopular, pois a inflação já estava ultrapassando a casa dos 50
por cento. Para reduzir o déficit do setor público, o governo teria que
dispensar empregados, outro golpe para a força de trabalho urbana. João Goulart,
velho político da esquerda, sentiu-se tolhido com um programa de estabilização
que poderia agradar a UDN mas nunca o seu PTB. Além disso, Dantas e Furtado não
podiam dar qualquer garantia sobre o tempo necessário para o plano produzir
resultados, embora Goulart só tivesse pouco mais de dois anos de mandato.

O presidente engavetou o plano por uns seis meses. Em junho de 1963, depois
de muita reflexão, concluiu que seus custos eram altos demais, e adotou nova
opção, a estratégia do nacionalismo radical. Esta corrente afirmava que o setor
externo da economia

38 Brasil: de Castelo a Tancredo
era a causa das graves dificuldades do país. A maioria dos investidores
estrangeiros, diziam, ingressava no Brasil apenas para conquistar o poder
monopolista do mercado e em seguida enviar o máximo de lucros para suas matrizes
lá fora. Nas indústrias farmacêuticas e de equipamentos elétricos pesados, por
exemplo, eles manipulavam o mercado a fim de bloquear as empresas brasileiras. A
tecnologia que eventualmente traziam, alardeavam os nacionalistas radicais,
continuava como propriedade da empresa e exercia pouco efeito multiplicador na
economia em geral. A solução? Controle mais rigoroso das empresas estrangeiras,
do que foi exemplo a aprovação pelo Congresso, em 1962, de uma lei mais severa
de remessa de lucros (o nacionalismo radical predominava então no Legislativo).

Os termos em que se realizava o comércio exterior do Brasil passaram a ser
também objeto de vigorosos ataques. Os nacionalistas afirmavam que os preços das
exportações brasileiras eram manipulados pelos seus principais parceiros, como
os Estados Unidos, reduzindo-se assim a receita que o país obtinha com a venda
dos seus produtos. Ao mesmo tempo os preços das importações industriais, também
supostamente manipulados pelos principais parceiros, aumentavam constantemente.
A conseqüerite tendência negativa nos termos de intercâmbio do Brasil (a relação
entre os preços das exportações e os preços das importações) contribuía
consideravelmente para o crônico déficit da balança de pagamentos.

Finalmente, os nacionalistas radicais culpavam o FMI e o Banco Mundial pelo
papel que supostamente desempenhavam mantendo países em desenvolvimento, como o
Brasil, em permanente subordinação económica. Era verdade que o Banco Mundial
havia suspendido todos os empréstimos ao Brasil por discordar das políticas (de
taxas de câmbio, fiscal etc.) que orientavam a campanha de industrialização. P0r
sua parte, a ortodoxia do FMI exigia políticas monetárias e fiscais mais
rigorosas, coisa que o Brasil, como outros países em desenvolvimento, rejeitara
como inadequada para a sua economia. A questão é que o Brasil não podia obter
ajuda dos seus credores sem submeter-se à estratégia ortodoxa do FMI.

Subjacente a essa análise do nacionalismo radical havia a suposição de que os
países industriais, especialmente os Estados

As Origens da Revolução de 1964 39
Unidos, bloqueariam qualquer forma de desenvolvimento econômico do Terceiro
Mundo que ameaçasse o controle que exerciam do comércio e das finanças mundiais.
Na verdade, na década de 50, os Estados Unidos geralmente se recusaram a ajudar
empreendimentos industriais de propriedade do Estado. Goulart não aceitara
totalmente este diagnóstico do setor externo da economia, mas em meados de 1963
movia-se claramente em sua direção.

Outro aspecto do retorno de Goulart à esquerda foi a política interna, em que
ele se sentia mais à vontade. O plano Dantas-Furtado revoltara a sua clientela
política original: os sindicatos. Por isso, a partir de meados de 1963, ele
passou a defender com crescente entusiasmo um conjunto de "reformas de base" que
incluíam reforma agrária, educação, impostos e habitação. Dizia ele agora que a
crise económica do Brasil - da qual o impasse do balanço de pagamentos e a
inflação eram os sintomas mais imediatos só podia ser resolvida com a aprovação
do seu pacote de reformas. Ligando-as entre si, o presidente passou
deliberadamente a correr os riscos de sua atitude.

Os seus adversários mais implacáveis - a UDN e os militares - começaram então
a afirmar que Goulart não tinha a intenção de executar suas apregoadas reformas.
Ao contrário, estava tentando polarizar a opinião pública e assim preparar o
terreno para a tomada do seu governo pelo nacionalismo radical, que subverteria
a ordem constitucional de dentro para fora. Com efeito, seus inimigos o estavam
acusando de já ter violado a Constituição de 1946, fato que por si só o privava
da legitimidade constitucional.

Na opinião das combativas forças anti-Goulart, o recurso legal era o
impeachment. Já que, segundo alegavam, a conduta inconstitucional do presidente
chegava às raias da provocação pelo seu espalhafato, bastava levá-lo a
julgamento perante o Congresso.20 Mas o impeachment exigia a maioria dos votos
da Câmara dos Deputados, o que os adversários de Goulart não possuíam,
___________
20. Os artigos 88 e 89 dispunham sobre o impeachment (pela Câmara dos Deputados)
e o julgamento (perante o Supremo Tribunal Federal ou o Senado Federal,
dependendo da natureza das acusações). Para uma edição de todas as constituições
brasileiras de 1824 a 1967 (corn suas 25 emendas a partir de 28 de novembro de
1985) ver Senado Federal, Subsecretária de

40 Brasil: de Castelo a Tancredo
pois os deputados do PTB certamente apoiariam o presidente e os do PSD não
votariam uma medida que só poderia beneficiar a UDN.

Para os militares contrários ao presidente criava-se um problema: queriam
afastá-lo do governo por suas supostas ilegalidades, mas não tinham o meio legal
de fazê-lo. Esta, porém, não seria uma dificuldade irremovível. Afinal, não
descobriram o meio de depor Getúlio Vargas em 1945 e novamente em 1954? Por isso
a falta de maioria parlamentar não seria causa maior de preocupação para os
conspiradores. Com efeito, eles tinham importantes aliados civis, como os
governadores Carlos Lacerda, da Guanabara, Adhemar de Barros, de São Paulo, e
Magalhães Pinto, de Minas Gerais. Contavam também com o apoio de jornais
influentes, como o Jornal do Brasil, O Globo, O Estado de S. Paulo e Correio da
Manhã. Havia, por outro lado, uma instituição que se transformara em importante
reduto oposicionista, o IPES, fundado no começo da década de 60 por um grupo de
empresários, advogados, tecnocratas e oficiais das forças armadas. O IPES
transformou-se numa espécie de governo marginal, publicando estatísticas sobre a
economia (não confiava nos números do governo), criando grupos de estudo sobre
questões como recursos para a educação, controle da população, reforma da lei
trabalhista e desenvolvimento do setor mineral. Sua postura era claramente
conservadora, bem à direita da maioria dos membros do Legislativo e muito mais à
direita da posição de Goulart no final de 1963. Paralelamente ao IPES,
funcionava também um movimento feminino, o CAMDE, especializado na organização
de marchas de protesto contra a inflações suposta participação de comunistas no
governo e outros assuntos polêmicos. Num país em que a mobilização em massa de
mulheres para fins políticos ainda era rara, as marchas do CAMDE podiam exercer
forte impacto sobre a opinião da classe média.21
____________
Edições Técnicas, Constituições do Brasil (Brasília, Senado Federal, 1986),
2 vols. O segundo volume ê um índice utilíssimo por tópicos de todas as
constituições (e emendas).
21. A pesquisa mais exaustiva sobre o papel do IPES na queda de Goulart é de
René Armand Dreifuss, 1964: a conquista do Estado (Petrópolis, Vozes, 1981). A
interessante análise do autor é às vezes obscurecida por rígida argumentação e
excesso de pormenores. Heloísa Maria Murgel

As Origens da Revolução de 1964 41

No começo de 1964 o presidente se achava cercado por todos os lados. Não
tinha muita esperança na aprovação pelo Congresso de qualquer das reformas que
propusera - acima de todas, a reforma agrária. (Os mesmos parlamentares do PSD
que votariam contra a reforma agrária não estavam dispostos, paradoxalmente, a
votar em favor do impeachment.) O período de governo do presidente ficava cada
vez mais curto, mas nem por isso ele desejava recolher-se a um papel meramente
protocolar. Queria lutar por suas reformas. Mas como? Os nacionalistas radicais
que o cercavam aconselharam-no a preterir os políticos e levar sua luta
diretamente ao povo.22

Goulart aceitou o conselho e marcou uma "série de comícios através do país.
Realizou o primeiro no Rio, no dia 13 de março, uma sexta-feira. Milhares de
espectadores agitando flâmulas (muitos trazidos de ônibus a expensas do governo)
aplaudiram o presidente quando ele anunciou o decreto de nacionalização das
terras a seis milhas das rodovias federais, das ferrovias ou das fronteiras
nacionais. Entusiasmado, o presidente prometeu mais comícios e mais decretos.

É claro que Goulart havia tomado uma decisão muito importante: resolvera
desafiar o Congresso e os adversários de suas reformas. Os nacionalistas
radicais diziam-lhe que seus inimigos estavam em fuga. Os principais líderes
trabalhistas lhe asseguravam que o poder sindical estava aumentando diariamente
e era a base ideal para os seus próximos comícios. Seus principais conselheiros
militares sabiam que oficiais dissidentes estavam se organizando, mas os
descartavam como insignificante minoria.

Quando Goulart se voltou para a esquerda, verificou que ela não tinha
unidade. O Partido Comunista Brasileiro (PCB), da linha de Moscou, com sua
amarga experiência dos tempos do Estado Novo (1937-45), aconselhava cautela. Já
o Partido Comunista do Starling, Os senhores das Gerais: os novos inconfidentes
e o golpe de 1964 (Petrópolis, Vozes, 1968), que estuda a conspiração mineira, e
Solange de Deus Simões, Deus, pátria e família: as mulheres no golpe de 1964
(Petrópolis, Vozes, 1985), sobre as marchas das mulheres nas manifestações
contra Goulart, seguem o enfoque de Dreifuss.
_____________
22. Com efeito, o sistema político brasileiro deteriorara-se ao ponto de
estagnar, como o demonstra claramente Wanderley Guilherme dos Santos, em
Sessenta e quatro: anatomia da crise (São Paulo, Editora Vértice, 1986).

42 Brasil: de Castelo a Tancredo
Brasil (PC do B), da linha de Pequim, pedia medidas radicais, mas o número dos
seus militantes era pequeno. Duas figuras políticas nacionais também pediam
ações radicais: o governador Miguel Arraes, de Pernambuco, que defendia uma
política direta, embora paciente, de redistribuição drástica da renda e. da
riqueza, especialmente da terra; e Leonel Brizola, cunhado de Goulart e deputado
federal pelo PTB da Guanabara, eleito em 1962 com uma votação recorde. Brizola
tinha aspirações políticas mais ambiciosas e estava organizando seus "grupos de
onze" em todo o Brasil para entrarem em ação quando ele desse o sinal. A mais
importante força da esquerda, tanto em número quanto em ardor militante, eram os
chamados jacobinos, nacionalistas combativos que não haviam aceitado a
disciplina nem do PCB nem do PC do B, e que pertenciam à esquerda católica ou à
UNE (União Nacional dos Estudantes). Os jacobinos eram políticos amadores que
encorajavam o indeciso governo Goulart a tomar medidas mais fortes. Quando
somado, esse mosaico de frágeis forças esquerdista dificilmente serviria de base
para um sério ataque à ordem estabelecida do Brasil.

Havia ainda a questão das reais intenções do presidente; no início de 1964
todos tinham suas suspeitas, para as quais havia amplos motivos. Em outubro de
1963 ele havia solicitado ao Congresso a decretação do estado de sítio por um
prazo de 30 dias. O pedido supostamente originou-se da inquietação dos ministros
militares com a onda de greves e a violência de fundo político através do país.
Três dias mais tarde, contudo, Goulart retirou o pedido. É que ele alarmara até
os líderes sindicais que receavam ir para a cadeia (durante o estado de sítio.
com essas medidas o presidente generalizou o temor em torno dos seus planos.23
Sobre um ponto não podia haver dúvida: era certo que sua nova estratégia
política mobilizaria a oposição. Passando por cima do Congresso o presidente
estava ajudando a convencer a opinião centrista de que representava uma ameaça à
ordem constitucional. Além disso, ele resolvera apoiar uma medida ancilar que
iria enfurecer a oficialidade das forças armadas: a sindicalização de soldados
e praças graduados. Os oficiais viram nisto uma óbvia ameaça
____________
23. Esta fragmentação da esquerda é descrita com riqueza de pormenores de
Skidmore, Politics in Brazil, pp. 276-84.

As Origens da Revolução de 1964 43
à disciplina militar, imobilizando a linha final de defesa para os
conservadores. Esta ameaça à hierarquia militar alarmou até oficiais centristas
que haviam hesitado em conspirar contra um presidente legalmente eleito.

Em fins de março de 1964 as tensões políticas haviam atingido um grau sem
precedentes, com o presidente participando de uma série de comícios ruidosos em
cada um dos quais anunciava novos decretos. Enquanto isso, a conspiração
militar-civil aumentava de intensidade. O general Castelo Branco, que coordenava
o recrutamento de oficiais para a conspiração, achou que a mudança de Goulart
para as hostes da esquerda havia simplificado seu trabalho. Não obstante, ainda
eram grandes os obstáculos a transpor, pois muitos militares não queriam estar
entre os primeiros a aderir à conspiração com receio de que ela fracassasse, nem
entre os últimos, com medo de que fosse vitoriosa.

Os últimos dias de março foram decisivos, como vimos. Os militares de mais
alta patente através do país, dos quais somente alguns conspiraram ativamente,
logo apoiaram o golpe. Virtualmente não houve luta, apesar de apelos à
resistência do ministro da Justiça, Abelardo Jurema, no Rio, e do chefe do
Gabinete Civil da Presidência, Darcy Ribeiro, em Brasília. A convocação de uma
greve geral pelos líderes do CGT igualmente ficou sem resposta. O presidente e
seus nacionalistas radicais descobriram que a mobilização popular que realizaram
não lograra maior profundidade. Uma vez mais, como em 1954, um governo populista
foi posto abaixo pelos homens de farda.

Começava agora a luta sobre quem chefiava o novo governo. Os militares -
principalmente o Exército mas também a Marinha - rapidamente tomaram conta da
situação, prendendo ativistas da esquerda, como líderes estudantis e sindicais,
organizadores de grupos católicos, como a JUC (Juventude Universitária Católica)
e a AP (Ação Popular), e organizadores de sindicatos e de ligas camponesas.
Centenas foram encarcerados no Rio, enquanto muitos outros ficaram confinados em
um improvisado navio-prisão ao largo da baía de Guanabara. A repressão foi
particularmente rigorosa no Nordeste, onde o Quarto Exército e a política
estadual e local dissolveram energicamente as ligas camponesas e os sindicatos
de trabalhadores rurais recentemente legitimados. Alguns organizadores da classe
camponesa simplesmente desapareceram,

44 Brasil: de Castelo a Tancredo
vítimas de execução sumária, enquanto outros sofreram torturas geralmente
aplicadas nos quartéis do Quarto Exército.

A repressão também foi exercida pelo governo de Lacerda, no Rio, e pelo de
Adhemar de Barros, em São Paulo. Em ambos os casos, a polícia política (DOPS)
saiu em perseguição de ativistas políticos da esquerda que há muito vinham sendo
vigiados. O golpe recebeu esmagador apoio da imprensa, que salientou a atuação
dos civis. Governadores de outros estados e parlamentares em menos evidência
também se manifestaram em favor do golpe recebendo com isso o benefício de
valiosa publicidade.

Mas a destituição de Goulart foi primeiro e sobretudo uma operação militar.
As forças civis contrárias ao seu governo não puderam impedir a sua guinada para
uma estratégia nacionalista radical. No máximo poderiam ter fomentado uma
confrontação crescente em áreas sensíveis como a reforma agrária e a militância
sindical. Com efeito, uma guerra civil disfarçada já estava ocorrendo, com
grupos paramilitares anticomunistas de São Paulo (MAC, CCC) intimidando líderes
estudantis de esquerda, e proprietários de terras pagando pistoleiros para
executarem os organizadores da massa camponesa. Ainda assim, isto não teria
derrubado um governo com os poderes que Goulart estava consolidando. Aliás, foi
a relativa fraqueza das forças civis adversárias do presidente que levaram
oficiais de alto nível a concluir que somente sua intervenção podia salvar o
Brasil de uma prolongada guerra civil.

II
"Castelo Branco: arrumando a casa abril de 1964 - março de 1965

Os conspiradores militares e civis que depuseram João Goulart em março de
1964 tinham dois objetivos. O primeiro era "frustrar o plano comunista de
conquista do poder e defender as instituições militares"; o segundo era
"restabelecer a ordem de modo que se pudessem executar reformas legais".1 O
primeiro foi fácil. O segundo seria muito mais difícil.

Os Militares assumem o poder
A primeira tarefa dos rebeldes após a vitória militar foi assumir a
presidência e a vasta maquinaria executiva sob sua jurisdição. Mas a
Constituição de 1946 (artigos 66, 88 e 89) estipulava apenas três formas legais
pelas quais um presidente vivo podia abandonar o cargo antes do fim do seu
mandato: por renúncia, por impedimento votado pelo Congresso ou por se afastar
do país sem aprovação legislativa.

Os adversários de Goulart no Congresso nem sequer tentaram o seu impeachment
porque sabiam que não dispunham dos votos necessários, tal como os inimigos de
Getúlio Vargas (que
___________
1. Estas frases são do manifesto expedido em 30 de março pelo chefe do Estado-
Maior do Exército, Castelo Branco, que deu início à rebelião militar contra o
governo Goulart; Luís Viana Filho, O governo Castelo Branco (Rio de Janeiro,
José Olímpio, 1975), p. 3.

46 Brasil: de Castelo a Tancredo
tinham as mesmas origens ideológicas e partidárias dos inimigos de Goulart)
quando tentaram depô-lo em 1954. Embora muitos parlamentares suspeitassem das
intenções de Goulart, nenhum líder centrista do Legislativo estava preparado
para comandar uma campanha de impeachment, nem para apoiar os udenistas (como
Bilac Pinto) nessa cruzada - principalmente porque receavam que o afastamento do
presidente desencadeasse um expurgo geral dos que participavam do poder ou lhe
davam apoio. Quanto aos outros dois meios que justificavam a declaração de
vacância da presidência, Goulart certamente não iria renunciar nem havia ainda
deixado o país. Como, então, ocupar a presidência? O presidente do Senado, Auro
Moura Andrade, resolveu o problema. Os militares estavam exigindo que fosse
facilitado o caminho para a posse de um novo presidente que eles indicariam -
sem dúvida um general. Diante disso, nas primeiras horas da manhã de 2 de abril,
Moura Andrade simplesmente declarou vacante a presidência, ato sem qualquer
amparo legal que provocou furiosos protestos dos deputados do PTB. A
Constituição especificava que se a presidência vacasse o próximo a ocupá-la
seria o presidente da Câmara dos Deputados (Ranieri Mazzilli) por um prazo
máximo de 30 dias, enquanto o Congresso tratava de eleger um novo chefe de
governo. Neste ponto a Constituição foi observada: Mazzilli tornou-se presidente
em exercício. A assunção ao poder da Revolução, nascida de um ato arbitrário,
estava agora seguindo a mais estrita constitucionalidade. Não seria este o
último exemplo de semelhante esquizofrenia.

O obstáculo seguinte era a obrigatoriedade de eleição, para a qual não havia
precedente. Não era o mesmo que em 1954 quando o Exército, após o suicídio de
Getúlio, endossou a sucessão do vice-presidente Café Filho. Era também diferente
de 1961, quando os defensores da legalidade colocaram o vice-presidente
João Goulart na presidência (embora com poderes reduzidos). Agora não havia vice
disponível para assumir o governo, pois Goulart o havia feito em 1961. Impunha-
se encontrar um candidato à presidência e os políticos começaram as suas
sondagens. Qual seria o seu perfil? Um experiente pessedista de centro-esquerda,
como Tancredo Neves, ou um político mais velho, como Gustavo Capanema? Talvez um
general centrista, como o comandante do Segundo Castelo Branco: arrumando a casa

47
Exército Amaury Kruel? Ou ainda um patriarca militar-civil, como o marechal (e
ex-presidente) Eurico Dutra?2

Tudo isso, no entanto, não passava de especulação. A sucessão pertencia aos
militares, e estava sendo decidida por trás dos bastidores. A grande maioria dos
oficiais, os mais francos dos quais eram conhecidos como membros da linha dura,
mantinha-se inflexível: era imperioso parar o carrossel que vinha girando desde
1945 em que as periódicas intervenções militares eram seguidas pelo rápido
retorno dos civis ao poder.3 Os partidários da linha dura achavam que esta
estratégia não havia resolvido nada, por isso não queriam mais eleições
presidenciais diretas até que eles mesmos mudassem as regras políticas. O que
especialmente eles mais desejavam era a saída de cena dos atores mais perigosos.
O porta-voz da linha dura era o general Arthur da Costa e Silva que se nomeara a
si mesmo (como o general da ativa mais antigo no Rio em l de abril) ministro da
Guerra do novo governo. Após assumir o posto, anunciou a organização de um
Comando Supremo Revolucionário do qual participavam o almirante Rademaker e o
brigadeiro Francisco de Assis Correia de Melo. Os dois
_______________
2. Estes fatos são descritos em Auro Moura Andrade, Um congresso contra o
arbítrio: diários e memórias, 1961-1967 (Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1985), pp. 240-47.
3. Esta dimensão do papel dos militares brasileiros na política é analisada em
Stepan, The Military in Politics. Para um comentário historiográfico sobre os
militares, ver Edmundo Campos Coelho, "A instituição militar no Brasil", BIB,
N.° 19 (1.° semestre, 1985), pp. 5-19. O acesso a fontes relacionadas com a
linha dura é difícil. Um dos melhores exemplos do seu anticomunismo é fornecido
por Pedro Brasil (pseudônimo), Livro branco sobre a guerra revolucionária no
Brasil (Porto Alegre, O Globo, 1964), panfleto escrito no formato de documento
de estado-maior e publicado pouco antes do golpe de 1964. Transcrições dos
inúmeros julgamentos ante tribunais militares após 1964 seriam uma fonte
excelente, embora, ao que eu saiba, não estejam ao acesso do público.
Exemplos dos critérios observados nesses julgamentos são encontrados em
Inquérito Policial Militar 709, O comunismo no Brasil, 4 vols. (Rio de Janeiro,
Biblioteca do Exército, 1966-67). Uma das mais estimulantes análises
sobre o novo papel dos militares é a de Guillermo A. O'Donnell, Modernization
and Bureaucratic-Authoritarianism: Studies in South American Politics
(Berkeley, Institute of International Studies, 1973), que compara o Brasil
com a Argentina sob o golpe de 1966. Para um comentário abrangente sobre as
idéias de O'Donnell à luz do desenvolvimento latino-americano, ver David
Collier, ed., The New Authoritarianism in Latin America (Princeton, Princeton
University Press, 1979).

48 Brasil: de Castelo a Tancredo
últimos assumiram os outros ministérios militares por serem conspiradores da
primeira hora com legitimidade aos olhos dos seus camaradas adversários de
Goulart. Este Comando extralegal foi a defesa que imaginaram contra um possível
contragolpe de militares de alta patente ainda leais ao governo.

O presidente em exercício Mazzilli confirmou os poderes de jacto,
obedientemente nomeando os três como ministros militares do seu governo. A 7 de
abril os novos titulares fardados exigiram publicamente legislação de emergência
suspensiva dos procedimentos legais para realizarem expurgos no serviço público,
na área militar e entre os ocupantes de cargos eletivos em todos os níveis. Mas
os líderes parlamentares conservadores ainda não estavam prontos para abrir mão
dos seus poderes. Por isso redigiram seu próprio "Ato Constitucional", que
delegava ao Comando Revolucionário (somente com dois terços dos votos do
Congresso) poderes limitados para expurgar o Legislativo e a burocracia
federal.

Os três ministros militares ignoraram o projeto dos políticos, e a 9 de abril
emitiram seu próprio "Ato Institucional" - que seria seguido por muitos outros.4
Seus autores foram Francisco Campos, o jurista que redigira a Constituição do
Estado Novo em 1937, e Carlos Medeiros da Silva, um advogado de posições
extremamente conservadoras. O Ato não regateava elogios à Revolução, que "se
distingue de todos os outros movimentos armados pelo fato de representar não os
interesses e a vontade de um grupo, mas os interesses e a vontade de uma nação".
Não menos importante, "a revolução vitoriosa legitima-se a si própria". O
Congresso, afirmava, recebia sua legitimidade do "Ato Institucional" e não vice-
versa. Para resolver o impasse político, o Ato continha, entre outras, as
seguintes estipulações:
(1) O presidente pode apresentar emendas constitucionais ao Congresso, que
terá apenas 30 dias para examiná-las, sendo neces-
____________
4. O texto do Ato é reproduzido em Alberto Dines, et ai., Os idos de março e a
queda em abril (Rio de Janeiro, José Álvaro, 1964), pp. 401-3, e suas cláusulas
são analisadas em Ronald M. Schneider, The Political System of Brazil:
Etnergence of a " Modernizing" Authoritarian Regime, 1964-1970 (New Ygrk,
Columbia University Press, 1971), p. 127. Sobre a tentativa de adequííosVatos
institucionais" ao sistema legal brasileiro, ver Jessé Torres Pereira Júnior,
"Os atos institucionais em face do direito administrativo", RevistaErasileira de
Estudos Políticos, N." 47 (julho de 1978), pp. 77-114.

Castelo Branco: arrumando a casa 49
sário para sua aprovação apenas o voto da maioria (ao contrário dos dois terços
requeridos pela Constituição de 1946).

(2) O presidente tem o exclusivo poder de apresentar projetos de lei
envolvendo despesas ao Congresso, o qual fica impedido de alterar para mais
qualquer artigo referente a gastos do governo.
(3) O presidente tem o poder de declarar o estado de sítio por até 30 dias ou
prolongá-lo por mais 30 dias no máximo (com a exigência de um relatório ao
Congresso dentro de 48 horas).
(4) O presidente, "no interesse da paz e da honra nacional", tem amplos
poderes para suspender por 10 anos os direitos políticos de qualquer cidadão e
cancelar os mandatos de legisladores federais, estaduais e municipais.
(5) Suspensão da estabilidade dos servidores públicos por seis meses.
O aumento dos poderes do Executivo era necessário, segundo o Ato, para "a
reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil". O objetivo era
"a restauração da ordem interna e do prestígio internacional do nosso país". Os
novos poderes eram necessários porque os poderes constitucionais existentes não
tinham sido suficientes para deter um governo que "estava deliberadamente
tentando bolchevizar o país".

Este Ato Institucional não foi uma total surpresa, mas apenas a última de uma
série de respostas à crise de autoridade política evidente no Brasil desde
meados da década de 50. O presidente Jânio Quadros, por exemplo, queixara-se de
que lhe faltavam bastantes poderes para lidar com o Congresso. E citou a
irresponsabilidade dos "políticos" como razão de sua abrupta renúncia após seis
meses apenas no governo em 1961. Goulart, que repetira a queixa de insuficientes
poderes presidenciais, chegou até a propor um estado de sítio em outubro de
1963, e no começo de 1964 apresentou propostas específicas para fortalecer o
Executivo. O Supremo Comando Revolucionário de 1964 adotou, contudo, uma tática
diferente. Não tentou observar as regras da política democrática, como fizeram
seus antecessores, mas unilateralmente mudou as regras.

O impacto mais imediato foi sobre a própria presidência. Esvaziando a
cláusula da Constituição de 1946 que tornava os oficiais das forças armadas
inelegíveis para cargos eletivos e determinando a realização de eleições para
presidente e vice-presidente dentro de dois dias a partir de sua publicação (ao
contrário dos

50 Brasil: de Castelo a Tancredo
23 dias que ainda faltavam decorrer segundo a provisão constitucional de 30
dias), o ato do Comando tornou inevitável a eleição do candidato de consenso dos
militares e dos governadores antiGoulart. O candidato foi o general Castelo
Branco, coordenador da conspiração militar, escolhido pela esmagadora maioria
dos revolucionários militares e civis. A 11 de abril o Congresso respeitosamente
elegeu Castelo Branco por 361 votos, contra 72 abstenções e 5 votos para outros
heróis militares conservadores.

O Novo governo: aliança UDN-militares

Castelo Branco era um interessante produto de influências brasileiras e
estrangeiras.5 Nasceu no Ceará, em pleno Nordeste,
________
5. O melhor retrato do governo Castelo Branco visto "de dentro" é o de Viana
Filho, O governo Castelo Branco. O autor foi íntimo colaborador do presidente na
qualidade de chefe de sua Casa Civil. Valioso depoimento sobre os eventos deste
período é apresentado por Carlos Castello Branco (parente muito distante), em Os
militares no poder (Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1976), uma coleção
de comentários publicados em sua apreciada coluna diária no Jornal do Brasil.
Sobre as ásperas apreciações de um general que fora o líder da revolta anti-
Goulart em Minas Gerais mas que logo depois se desentendeu com Castelo Branco e
Costa e Silva, ver Olímpio Mourão Filho, Memórias: a verdade de um
revolucionário (Porto Alegre, L & PM, 1978). Entre os primeiros livros que
abordaram em geral a história brasileira a partir de 1964, os mais úteis são
Schneider, The Political System of Brazil, que dá ênfase à narrativa política e
é rico em pormenores sobre o alinhamento político dos militares, e Georges-André
Fiechter, Lê Regime modernisateur du Brésil, 1964-1972 (Geneva, Institui
Universitaire de Hautes Études Internationales, 1972), traduzido para o inglês e
o português. O trabalho de Fiechter contém grau maior de análise sócio-
econômica. A semelhança de títulos revela interessante convergência do
pensamento estrangeiro sobre o Brasil. Carlos Chagas, A guerra das estrelas,
1964-1984: os bastidores das sucessões presidenciais (Porto Alegre, L & PM,
1985) é um misto de memórias e narrativas sobre a política presidencial de
Castelo Branco a Figueiredo. Um quadro simpático da presidência Castelo Branco
por um historiador americano é o que apresenta John W. F. Dulles, President
Castello Branco: Brazilian Reformer (College Station, Texas A&M Press, 1980).
Uma das tentativas mais originais de um cientista social brasileiro de investir
contra o novo governo foi a de Cândido Mendes, "Sistema político e modelos de
poder no Brasil", Dados, N." l (1966), pp. 7-41. Não menos útil é a cronologia
em Luísa Maria Gaspar Gomes, "Cronologia do governo Castelo Branco", Dados, N.os
2-3 (1967),

51
filho de um oficial do Exército. A família mudou-se muitas vezes sempre que
chegava a vez de o pai ser transferido para outras guarnições. Quando morava no
Rio Grande do Sul, Castelo ingressou na academia militar de Porto Alegre.
Escolhendo a arma de infantaria, fez um curso notável distinguindo-se entre os
seus companheiros de turma na importante escola. Posteriormente fez o curso de
dois anos na École Supérieure de Guerre na França e, em Fort Leavenworth, nos
Estados Unidos, o curso de estado-maior e comando. Adquiriu experiência de
combate na Força Expedicionária Brasileira, que lutou ao lado do Quinto Exército
norte-americano na Itália em 1944-45. Castelo teve assim longa vivência pessoal
nos dois países estrangeiros que mais profundamente influenciaram o Brasil no
século vinte: França e Estados Unidos.6

Conhecido como um oficial cauteloso e introspectivo, Castelo era baixo, quase
sem pescoço, e acostumado com os nem sempre caridosos comentários sobre a sua
aparência (seu futuro sogro pediu-lhe que fizesse um exame médico antes de
consentir no casamento). A exercícios físicos extenuantes ele sempre preferiu a
leitura e o estudo. Homem de poucas palavras e dado à reflexão, Castelo estava
determinado a devolver dignidade à presidência.

O chefe revolucionário era também reconhecido como o líder do grupo da
"Sorbonne" - oficiais estreitamente ligados à Escola
_____________
pp. 112-32. Cuidadosa análise política da presidência Castelo Branco é
encontrada em James Rowe, "The Revolution and the 'System': Notes on Brazilian
Politics", American Universities Field Staff Reports, East Coast South American
Series, XII, N.08 3-5 (1966); e seu "Brazil Stops the Clock Part I: Democratic
Formalism Before 1964 and in Elections of 1966", ibid., XIII, N." l (1967); e
"Brazil Stops the Clock - Part II: The New Constitution and the New Model",
ibid., XIII, N.° 2 (1967). Para um proveitoso depoimento sobre o período de
1964-67, ver José Wamberto, Castelo Branco, revolução e democracia (Rio de
Janeiro, 1970). O autor foi secretário de imprensa de Castelo Branco. Muito útil
também é o trabalho de Peter Flynn, Brazil: A Political Analysis (Boulder,
Westview Press, 1978), cujo capítulo 9 cobre os anos de 1964-67. O presente
capítulo amplia minha análise anterior do período 1964-65 em Skidmore, Politics
in Brazil, 1930-1964 (New York, 1967), pp. 303-21; e Skidmore, "Politics and
Economic Policy Making in Authoritarian Brazil, 1937-71", em Alfred Stepan, ed.,
Authoritarian Brazil (New Haven, Yale University Press, 1973), pp. 3-46.

6. A carreira de Castelo Branco antes de tornar-se presidente é o assunto do
livro de John W. F. Dulles, Castello Branco: The Making of a Brazilian
President.

52
Brasil: de Castelo a Tancredo
Superior de Guerra (ESG), instituição patrocinada pelos militares, cujos cursos
de um ano atraíam igual número da elite militar e civil. Outros conhecidos
oficiais da Sorbonne eram os generais Golbery do Couto e Silva, Cordeiro de
Farias, Ernesto Geisel e Jurandir de Bizarria Mamede. Este grupo, mais moderado
do que a linha dura, defendia a livre iniciativa (embora considerando também
necessária a existência de um governo forte), uma política externa
anticomunista, a adoção preferencialmente de soluções técnicas e fidelidade à
democracia, achando, no entanto, que a curto prazo o governo arbitrário se
impunha como uma necessidade. A coesão desses oficiais da Sorbonne resultou das
experiências comuns que viveram na FEB, durante a Segunda Guerra Mundial; na ESG
(não só como estagiários mas sobretudo como professores); e em cursos em
instituições militares do exterior, especialmente nos Estados Unidos. Esses
oficiais ficaram mais tarde conhecidos como castelistas e desempenhariam
importante papel em subseqüentes governos militares.7

Como vice-presidente o Congresso elegeu José Maria Alkmim, do PSD de Minas
Gerais, partido a que o cargo foi prometido em negociações anteriores naquele
mesmo mês entre representantes de Castelo Branco e o ex-presidente Juscelino
Kubitschek, chefe nominal da agremiação pessedista. Muitos udenistas ficaram
furiosos com o acordo que, afinal, reabilitava "velhos e corruptos políticos". O
que os contrariava era o fato de o compromisso beneficiar o PSD, um rancoroso
adversário que, segundo eles, a Revolução devia ter eliminado de qualquer função
no novo governo. Lembravam-se muito bem da crise de 1954 quando o suicídio do
presidente Vargas os deixou desarvorados, o que os impediu de assumirem o
controle político em sua plenitude.8 Mas a UDN tinha agora razão para estar
satisfeita com os seus despojos no Congresso. Daniel Krieger, veterano militante
udenista e advogado gaúcho, assumira a presidência do Senado, enquanto Bilac
Pinto, um dos agitadores da campanha udenista de mobilização antiGoulart, se
tornou presidente da Câmara dos Deputados.
_____________
7. Devemos nossa compreensão desses alinhamentos entre os militares a Stepan,
The Military in Politics, pp. 229-48.

8. Dulles, President Castello Branco, p. 19.

53
O novo Ministério ficou constituído em parte por indicações de Costa e Silva
imediatamente após o golpe e por escolhas de Castelo Branco na semana seguinte9,
formando uma combinação de conservadores e tecnocratas. Os ministros da Marinha
e da Aeronáutica, que haviam assumido no dia 2 de abril, foram afastados.
Rademaker, conhecido por suas idéias fortemente direitistas, foi substituído
pelo almirante Ernesto de Melo Batista, sendo Correia de Melo substituído pelo
brigadeiro Lavanère Wanderley. Possuindo o Exército maior peso político, o papel
dos titulares da Marinha e da Aeronáutica era relativamente secundário.

Entre os mais destacados membros do ministério de Castelo Branco contavam-se
o senador Milton Campos (Minas Gerais), ilustre constitucionalista e duas vezes
candidato derrotado à vicepresidência pela UDN, ministro da Justiça; marechal
Juarez Távora, candidato derrotado da UDN à presidência em 1955, ministro dos
Transportes e Obras Públicas; Flávio Suplicy de Lacerda, reitor da Universidade
do Paraná e ativo militante da UDN, ministro da Educação; Raimundo de Brito,
também da UDN, ministro da Saúde; o diplomata de carreira (mas conhecido como
simpático à Revolução) Vasco Leitão da Cunha, ministro das Relações Exteriores;
deputado do PSD Daniel Faraco (Rio Grande do Sul), ministro do Comércio e da
Indústria. Outra ilustre figura política da UDN, Luís Viana Filho (Bahia), foi
nomeado chefe da Casa Civil, com status ministerial. Para chefe da Casa Militar
foi escolhido o general Ernesto Geisel, notabilizado pela sua autoconfiança e um
dos elementos de maior destaque na conspiração que derrubou o governo Goulart.
O mais importante ministério, o da Fazenda, foi confiado ao professor Octavio
Gouveia de Bulhões, da Fundação Getúlio Vargas, respeitado centro de ensino e
pesquisas econômicas financiado pelo governo. Acatado monetarista, foi
absolutamente franco quanto à necessidade de reorganizar toda a estrutura
financeira do Brasil e "sanear" suas finanças públicas. Apesar do vigor de suas
idéias,
________
9. Neste e em capítulos subseqüentes falo dos membros dos gabinetes
presidenciais não por causa da importância política de todos os ministros e de
sua influência nas decisões de governo, mas porque só o fato de terem sido
escolhidos pode fornecer boas pistas sobre as reais intenções do governo no
campo das decisões políticas e administrativas. O leitor deve notar também que
nem todas as mudanças de ministros serão mencionadas.

54 Brasil: de Castelo a Tancredo
Bulhões era um profissional pouco dado à retórica partidária ou à intriga
burocrática.10

A outra posição económica chave, Planejamento e Coordenação Económica, foi
entregue a Roberto de Oliveira Campos, personalidade com interesses mais
variados e bastante controvertida. Campos era um economista que resolvera fazer
carreira no prestigioso corpo diplomático do seu país. Na década de 50, um
tecnocrata em ascensão, servia na Comissão Económica Mista BrasilEstados Unidos
(1951-53), que estabeleceu as prioridades de investimento para o Brasil. No
final da década era diretor do Banco Nacional de Desenvolvimento Económico
(BNDE) e figura-chave no frustrado programa de estabilização económica de 1958-
59 mandado elaborar pelo presidente Juscelino Kubitschek. Para obter a aprovação
do FMI - indispensável à renegociação da dívida externa em andamento - o governo
de Juscelino teria que adotar políticas muito restritivas de salários, de
crédito e fiscal, perspectiva que provocou uma onda de oposição nacionalista.
Durante as batalhas políticas em torno das medidas antiinflação altamente
impopulares, Campos caracterizou-se pela agressividade com que conduzia os
debates. Tinha especial agrado em ridicularizar os nacionalistas que atacavam
o capital estrangeiro. Em virtude de suas idéias consideradas entreguistas pelos
adversários, estes lhe plantaram o apelido de "Bobby Fields", uma brincadeira
não muito sutil em torno do seu nome.11

O novo Ministério tinha alguns aspectos interessantes. Primeiro, era
marcadamente udenista. Segundo, além dos ministros militares e do chefe da Casa
Militar da Presidência (que sempre fora ocupada por um oficial superior),
possuía apenas um militar
________
10. O pensamento de Bulhões está expresso em Octavio Gouveia de Bulhões, Dois
conceitos de lucro (Rio de Janeiro, APEC Editora, 1969).
11. Campos não se esquivava de responder aos seus críticos. Os seus discursos
enquanto ministro do Planejamento estão .incluídos em Roberto de Oliveira
Campos, Política econômica e mitos políticos (Rio de Janeiro, 1965). Artigos
publicados depois de deixar o governo, geralmente comentando suas políticas e as
dos seus sucessores, foram reunidos em Do outro lado da cerca (Rio de Janeiro,
1967); Ensaios contra a maré (Rio de Janeiro, 1969); com Mário Henrique
Simonsen, A nova economia brasileira (Rio de Janeiro, 1974); com Mário Henrique
Simonsen, Formas criativas no desenvolvimento brasileiro (Rio de Janeiro,
1975); O mundo que vejo e não desejo (Rio de Janeiro, 1976), e outros volumes.
Castelo Branco: arrumando a casa

55
com atuação recente no serviço ativo: o general Cordeiro de Farias, ministro
para a Coordenação de Agências Regionais.12 Estariam os vitoriosos considerando
cumprida sua missão? Ou planejavam exercer influência através de canais
extraministeriais? E qual seria o papel de organizações como o IPES (Instituto
de Pesquisas e Estudos Sociais), grupo bem financiado de pesquisa e ação0'que
desde 1961 reunira militares influentes e políticos de moderados a
conservadores, profissionais (especialmente economistas) e homens de negócios?
Esse grupo criou um "governo marginal", com planos para a reforma do ensino, os
investimentos estrangeiros e a classe trabalhadora. O IPES e o IBAD (Instituto
Brasileiro de Ação Democrática) contribuíram muito para mobilizar a oposição ao
governo Goulart. As idéias e projetos do IPES vingariam no governo Castelo
Branco?13

Os Expurgos e a tortura

Os militares que conspiraram contra Goulart esperavam enfrentar resistência
armada. Supunham que oficiais legalistas defenderiam o presidente e seu governo,
talvez mergulhando o Brasil em uma guerra civil. Por isso queriam atacar antes
que os legalistas pudessem se mobilizar.

Para surpresa virtualmente de todos, a resistência jamais se materializou. Os
rebeldes estavam "empurrando uma porta aberta", na clássica expressão dos
brasileiros. Mas eles não estavam à procura apenas de adversários armados;
queriam pôr as mãos também naqueles líderes "subversivos" que supostamente
estavam levando o Brasil para o comunismo. Milhares foram presos através do país
na "Operação Limpeza", inclusive membros de organizações católicas, como o
Movimento de Educação de Base (MEB), a Juventude Universitária Católica (JUC) e
outras cujas atividades de organização ou caritativas atraíram a suspeita da
inteligência militar ou
_______
12. A longa carreira de Cordeiro de Farias foi explorada sob a forma de
história oral: Aspásia Camargo e Walder de Góes, Meio século de combate:
diálogo com Cordeiro de Farias (Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1981).
13. Só um capítulo de Dreifuss, 1964: a conquista do estado, é dedicado à
influência do IPES/IBAD no governo Castelo Branco.

56 Brasil: de Castelo a Tancredo
do DOPS, a polícia política. Partidos políticos da esquerda também foram
atingidos, como o pró-Moscou Partido Comunista Brasileiro (PCB), o maoísta
Partido Comunista do Brasil (PC do B) e os trotskistas, como a Organização
Revolucionária Marxista-Política Operária (ORM-POLOP). Outros alvos foram
oficiais e praças das três armas considerados pelos setores de inteligência dos
rebeldes como favoráveis à esquerda, assim como os organizadores do proletariado
tanto urbano como rural.14

A repressão foi especialmente severa no Nordeste. Nem era de surpreender,
pois ali atuavam muitos líderes considerados perigosos, como o governador de
Pernambuco Miguel Arraes, o superintendente da SUDENE Celso Furtado, o
especialista em alfabe-
________
14. O melhor e mais conciso trabalho sobre esta repressão é o de Maria Helena
Moreira Alves, State and Opposition in Military Brazil (Austin, University of
Texas Press, 1985), pp. 34-38. Este livro analisa sistematicamente o "estado de
segurança natural" criado em lei e na prática após 1964. É indispensável para
qualquer estudo sobre esse período. O inventário mais completo de denúncias de
tortura em 1964-65 encontra-se em Márcio Moreira Alves, Torturas e torturados
(Rio de Janeiro, Idade Nova, 1966), e em Alves, A Grain of Mustard Seed: The
Awakening of the Brazilian Revolution (Garden City, New York Anchor
Books, 1973), pp. 78-87. Para um relato dos desdobramentos do golpe em Recife,
ver Paulo Cavalcanti, O caso eu conto, como o caso foi (São Paulo, Alfa-Ômega,
1978), pp. 337-72. Cavalcanti era antigo ativista da esquerda e estudioso da
história literária. O trabalho de Alves dá mais ênfase ao Nordeste. Aguardamos
uma análise abrangente da repressão que se abateu sobre o Brasil imediatamente
após o golpe. Para um conhecimento altamente útil das atividades da esquerda nos
anos 60, inclusive dos movimentos armados após 1964, ver Daniel Aarão Reis Filho
e Jair Ferreira de Sá, Imagens da revolução: documentos políticos das
organizações clandestinas de esquerda dos anos 1961-1971 (Rio de Janeiro, Marco
Zero, 1985). Um estudioso muito lido da Revolução de 1964 e dos seus
desdobramentos nota que "a repressão foi menos violenta do que era temida em
vista das condições predominantes na época. Foi bastante violenta parcialmente
para satisfazer aos oficiais da linha dura e deve ter chamado a atenção dos
brasileiros para pelo menos alguns deles através do país". Georges-André
Fiechter, Brazil Since 1964: Modernization Under a Military Regime (New York,
John Wiley & Sons, 1975), p. 44. Fiechter deixa por conta do leitor a conjectura
sobre o significado das expressões "do que era temida" e "deve ter chamado a
atenção dos". Vários autores que escreveram extensamente sobre 1964 não fazem
menção das prisões em massa e dos maus-tratos aos detidos nas semanas que se
seguiram ao golpe. É o caso de Peter Flynn, Brazil: A Political Analysis, e John
W. F. Dulles, President Castello Branco.

Castelo Branco: arrumando a casa 57
tização Paulo Freire, o advogado Francisco Julião, das ligas camponesas, e o
velho ativista do Partido Comunista, Gregório Bezerra. Aliás, o estado de
Pernambuco servira de abrigo para um dos maiores centros de atividade do Partido
Comunista no Brasil, embora modesto em números absolutos.

A G-2 (inteligência) do Quarto Exército vinha há muito observando de perto o
trabalho dos organizadores das ligas camponesas e os ativistas políticos de
esquerda. Vitoriosa a Revolução, os militares prenderam centenas deles, trazendo
muitos para o Recife, onde fica o quartel-general do Quarto Exército. Alguns
foram submetidos a torturas, como o "telefone" (tapa que se aplica
simultaneamente, com as mãos em concha, nos dois ouvidos da vítima, muitas vezes
lhe estourando os tímpanos), o pau-de-arara (pau roliço que, depois de passado
entre ambos os joelhos e cotovelos flexionados, é suspenso em dois suportes,
ficando a vítima de cabeça para baixo e como que de cócoras, sujeita a pancadas
e choques elétricos) e o "banho chinês" (mergulhar a cabeça da vítima em uma
tina de água fervida ou de óleo até virtualmente sufocá-la).

Os torturadores acreditavam que seus prisioneiros sabiam de segredos vitais,
como os nomes de seus contatos russos ou de militares brasileiros que seriam
exterminados. Foram divididos em dois grupos: os que haviam confessado e os que
precisavam de mais interrogatório.

Notícias dessas torturas logo chegaram ao Rio, onde o Correio da Manhã,
outrora entusiástico defensor do golpe, publicou matérias com abundância de
pormenores. Márcio Moreira Alves, jovem e audacioso repórter do jornal, foi
mandado ao Nordeste para cobrir o assunto. Segundo informações que recolheu, 39
prisioneiros haviam sido torturados, com pelo menos dez oficiais das forças
armadas envolvidos diretamente. Márcio fez ampla descrição das torturas,
enriquecendo seu trabalho com o relato de médicos que trataram das vítimas.
Veteranos repórteres policiais denunciaram que as torturas eram do tipo usado
para arrancar confissões de suspeitos de crimes comuns.

A violência contra os detidos por motivos políticos não se limitou ao
Nordeste. O Rio tinha dois centros de torturas: o CENIMAR (Centro de Informações
da Marinha) e o DOPS (a polícia política do estado da Guanabara). O primeiro
reduziu substancialmente o uso da violência logo após o golpe, mas o

58 Brasil: de Castelo a Tancredo
segundo continuou. O DOPS, um instrumento a serviço do inconstante governador do
estado, Carlos Lacerda, fora aparelhado para caçar o pessoal da esquerda e sua
felicidade consistia em perseguir os líderes das organizações sindicais,
religiosas e estudantis. Outras partes do país conheceram também a prática de
torturas, embora o que se divulgou a respeito tenha sido muito pouco. O estado
de Goiás, por exemplo, testemunhou atos de extrema violência contra presos
políticos quando os militares e os políticos da UDN ali intervieram para depor o
governador do PSD, Mauro Borges.

Quais foram as dimensões globais da repressão? Talvez em sua maior parte
tenha ocorrido nos dez dias entre a deposição de Goulart e a eleição de Castelo
Branco, embora no Nordeste tenha continuado até junho. O número dos detidos em
conseqüência do golpe só pode ser estimado, pois não se divulgaram dados
oficiais a respeito; provavelmente o total variou entre 10.000 e 50.000. Muitos
foram libertados dentro de dias, e outros, de semanas. Chegaram talvez a
centenas os que sofreram torturas prolongadas (mais de um ou dois dias). Os
apologistas da repressão costumavam dizer que os possíveis excessos seriam
insignificantes em comparação com o que a esquerda teria perpetrado se houvesse
conquistado o poder. No entanto, permanecia o fato de que elementos da polícia è
das forças armadas, devidamente autorizados, recorreram à tortura.15
________
15. As contínuas reportagens sobre torturas publicadas pelo Correio da Manhã e o
Ultima Hora preocuparam o governo Castelo Branco, mas não o bastante para
determinar providências imediatas. A situação mudou em meados de setembro quando
se soube da morte de um sargento do Exército, Manoel Alves de Oliveira, no
início de maio em um hospital militar do Rio de Janeiro. Ao que se dizia, sua
morte fora causada por torturas que sofrera quando preso em sua própria unidade.
Numerosos oficiais que haviam permanecido indiferentes aos abusos contra presos
civis preocuparam-se agora com que a tortura houvesse infectado sua instituição,
o que representaria perigosa quebra da disciplina militar. O presidente Castelo
Branco imediatamente ordenou ao general Ernesto Geisel, chefe de sua Casa
Militar e um dos seus mais fiéis colaboradores, que investigasse as acusações
pessoalmente em Recife, Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo e Fernando de
Noronha (uma ilha ao largo da costa do Nordeste, onde havia muitos presos
políticos). Em seu relatório Geisel concluiu que as acusações eram infundadas,
exceto em Recife. Como Geisel começou sua investigação em meados de setembro, só
chegou a Recife meses depois do auge da repressão. Além disso, o leitor poderia
justificadamente duvidar que tal investigação,

Castelo Branco: arrumando a casa 59

Na área política o novo governo resolveu aplicar não a tortura mas o poder de
cassar mandatos legislativos e suspender direitos políticos. Esse poder
(concedido pelo Art. 10 do Ato Institucional) devia expirar em 15 de junho de
1964, tendo Castelo Branco apenas dois meses para completar os expurgos.
Os militares da linha dura possuíam uma lista de cerca de 5.000 "inimigos" cujos
direitos políticos pretendiam suspender. Com isso, formou-se uma atmosfera de
caça às bruxas nos gabinetes governamentais, com a mistura de ideologia com
vendettas pessoais. Os acusados não tinham direito de defesa, nem as acusações
contra eles foram jamais publicadas.16 O novo governo alegava (extra-
oficialmente) que, sendo revolucionário, podia criar suas próprias regras para
punir os subversivos e os corruptos. Dar satisfações não era uma das suas
regras.

Alguns militares queriam que se prorrogasse a vigência do Art.
10 até 9 de novembro de modo a coincidir com a data de expiração dos expurgos do
funcionalismo público. Neste sentido, o marechal
___________
confiada a um subordinado militar, apresentasse resultados capazes de embaraçar
autoridades superiores. Luís Viana Filho defende vigorosamente o relatório
(nunca divulgado) de Geisel, notando que não foram confirmados casos de tortura,
salvo em Recife, que Luís Viana chamou de "lamentáveis incidentes em um período
desorganizado, que logo foi devolvido à legalidade". Luís Viana Filho, O governo
Castelo Branco, pp. 139-41. O presidente usou linguagem semelhante em sua
entrevista coletiva de 30 de outubro, dizendo que muitas informações eram
exageradas ou enganosas e que os poucos casos confirmados "quase todos datavam
dos primeiros dias da Revolução". Humberto de Alencar Castelo Branco,
Entrevistas: 1964-1965 (Rio de Janeiro, Departamento de Imprensa Nacional,
1966), p. 31. Uma comissão civil, nomeada pelo comandante do Quarto Exército
para investigar acusações de maus-tratos a presos políticos em Recife, informou
no início de outubro a confirmação de quatro casos de violências físicas
sofridas por presos. O relatório foi publicado em Moreira Alves, Torturas, pp.
65-80. Nenhum dos militares e policiais envolvidos foi jamais julgado ou punido.

16. Em seus primeiros meses o governo Castelo Branco prometeu publicar um "livro
branco" documentando a corrupção e a subversão contra as quais se fizera a
Revolução. Castelo referiu-se ao assunto em uma entrevista concedida no dia 14
de maio de 1964. Castelo Branco, Entrevistas: 1964-1965, p. 23. À medida que os
meses passavam, o governo encontrava dificuldades cada vez maiores para compilar
o documento porque os pecados de corrupção e (em menor grau) cooperação com a
subversão não eram desconhecidos entre alguns luminares da Revolução. Não tardou
muito e o "livro branco" tornou-se letra morta.

60 Brasil: de Castelo a Tancredo
Taurino de Rezende, presidente da comissão geral de investigações, se dirigiu
publicamente ao general Castelo Branco. Mas a opinião dos "moderados" prevaleceu
e o Art. 10 expirou no prazo previsto.

O expurgo não teve a dimensão que muitos temiam.17 O governo revolucionário,
em 60 dias, suspendeu os direitos políticos e/ou cassou os mandatos eleitorais
de 441 brasileiros, dentre os quais três ex-presidentes; seis governadores de
estado; 55 membros do Legislativo federal; e vários diplomatas, líderes
trabalhistas, oficiais militares, intelectuais e funcionários públicos.

A lista dos políticos expurgados continha poucas surpresas. O nome de João
Goulart, por exemplo, era uma conclusão inevitável. O mesmo se podia dizer de
Jânio Quadros, que desencadeara a crise que o país atravessava, com sua
incompreensível renúncia em agosto de 1961. Com a cassação de 45 parlamentares,
foi duramente atingida a Frente Nacionalista Parlamentar (FNP), coalizão de
esquerda empenhada em desviar o Brasil de sua tradicional postura pró-Estados
Unidos para uma posição mais nacionalista tanto em economia como em política. O
partido mais representado na FNP era o PTB, em que militavam, deputados (agora
expurgados) como Leonel Brizola, Sérgio Magalhães e Rubens Paiva.18
17. Há muita confusão sobre o total de brasileiros atingidos por medidas
punitivas dos governos militares. O total de 441 para o período de 60 dias do
Ato Institucional é fornecido por Edmar Morei, O golpe começou em Washington
(Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1965), pp. 248-59. O próprio Morei
foi um dos punidos. Em reportagem publicada a l de abril de 1965, o Correio da
Manhã dá um total de 378. A análise mais detalhada é a de Marcus Faria
Figueiredo, Política de coerção no sistema político brasileiro (Rio de Janeiro,
Comissão de Justiça e Paz, 1978). Incluindo as aposentadorias forçadas e as
demissões não realizadas explicitamente por imposição do Ato Institucional,
Figueiredo encontra um total de 2.985 punidos em 1964. Outro pesquisador,
louvando-se em dados não publicados da Aeronáutica, relaciona 1.408 í demissões
no serviço público civil em 1964 e 1.200 punições de militares. Maria
Helena Moreira Alves, Estado e oposição no Brasil, 1964-1984 (Petrópolis,
Vozes, 1984), pp. 63-65. Dulles dá um total de 4.454 aposentadorias forçadas
durante os seis meses de vigência do Art. 7 do Ato Institucional, isto é, até 9
de outubro de 1964, compreendendo 1.697 civis e 2.757 militares (President
Castello Branco, 1979).

18. Os governos militares após 1964 nunca justificaram oficialmente as punições
que aplicaram nos termos dos sucessivos atos institucionais. Todas as análises,
inclusive a minha, são especulativas. O golpe na FNP é notado em Schneider, The
Political System of Brazil, pp. 127-28. O assunto

Castelo Branco: arrumando a casa 61
Um nome constou da lista que, entretanto, causou surpresa: o ex-presidente
Juscelino Kubitschek, então senador por Goiás. Castelo relutou muito em puni-lo
dentre outras razões por ser ele presidente de honra do PSD, de cuja ajuda no
Congresso o chefe revolucionário não podia prescindir. Juscelino era também
candidato à eleição presidencial de 1965, tendo iniciado sua campanha (a eleição
para um segundo mandato consecutivo era proibida) logo após deixar o governo em
1961. Era inegavelmente fortíssimo candidato a uma eleição marcada para dentro
de 19 meses. Sua larga base de apoio político, sustentada pelo PSD (que
fornecera o vice-presidente de Castelo), era ajudada por sua imagem de líder
dinâmico que criara a indústria automobilística e construíra Brasília.
A Embaixada americana, que apoiou com entusiasmo a Revolução, advertiu o
presidente e a cúpula militar que o expurgo de Juscelino seria mal recebido pela
opinião pública americana e européia. Juscelino, explicava a Embaixada, era
visto favoravelmente tanto pelo acervo de suas realizações em favor do
desenvolvimento econômico como pela sua fidelidade ao processo democrático.19
O ex-presidente sabia que seus inimigos estavam fechando o cerco em torno
dele.20 Os militares da linha dura, que há muito
____________
também é tratado de forma inequívoca em Gláucio Ary Dillon Soares, "La
cancelación de los mandatos de parlamentarios en Brasil", Revista Mexicana de
Sociologia, XLII, N.° l (janeiro-março de 1980), pp. 267-86.

19. Castelo Branco disse ao embaixador americano Lincoln Gordon na época que a
suspensão dos direitos políticos de Juscelino, como o diplomata relembrou, era
"não só uma necessidade política, mas também um ato plenamente justificado pelas
provas, cuja divulgação na íntegra seria desconcertante para a nação". Carta de
Lincoln Gordon a Luís Viana Filho, 27 de julho de 1972, em Arquivo Humberto de
Alencar Castelo Branco (Centro de Pesquisa e Documentação de História
Contemporânea do Brasil - Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro). Falando na
Escola Superior de Guerra em fins de 1966, Castelo afirmou que, a partir de 1956
(quando Juscelino começou o seu mandato presidencial), houve "uma política de
gradual destruição interna juntamente com a desmoralização do país no exterior,
o que era totalmente contrário aos interesses do povo". Castelo Branco,
Discursos: 1966, p. 80. Apesar das freqüentes acusações de corrupção contra o
ex-presidente Kubitschek, nenhum governo após 1964 apresentou qualquer prova
para fundamentá-las.

20. A versão de Juscelino dos fatos que levaram à sua cassação é dada em uma
entrevista de setembro de 1964, em Madri, reproduzida em Osvaldo Orico,
Confissões do exílio-JK (Rio de Janeiro, F. Alves. 1977).

62 Brasil: de Castelo a Tancredo
queriam vê-lo punido, agora bombardeavam Castelo via ministro da Guerra Costa e
Silva, acusando Juscelino de corrupção e colaboração com os subversivos. Estas
acusações eram uma espécie de mercadoria em depósito nas dispensas dos
udenistas, sobretudo de Carlos Lacerda, que também aspirava à presidência e que,
portanto, gostaria de ver seu concorrente expulso do campo.

Muitos dos assessores políticos do ex-presidente concitaram-no a manter-se
discreto, minimizando possíveis pretextos para o seu expurgo. No início de junho
aumentara de tal modo a pressão da linha dura que Juscelino chegou a oferecer-se
para renunciar à sua candidatura. Era tarde demais. A pressão militar vencera os
recalcitrantes do Planalto, e a 6 de junho Castelo assinava o decreto
suspendendo por dez anos os direitos políticos de luscelino Kubitschek e os de
outras 39 figuras de menor importância.21

A cassação do ex-presidente representou um divisor de águas. Ao contrário de
Jânio Quadros ou de João Goulart, ele demonstrou que podia realizar um governo
eficiente convivendo com interesses conflitantes e aspirações concorrentes. Seu
governo exercido entre 1956-61 assinalara o último triunfo de uma política à
moda antiga. Os militares da linha dura queriam sepultar tal política como coisa
do passado. Nada melhor para a conquista deste objetivo do que a morte política
de Juscelino.22

As punições políticas não ficaram restritas aos civis; também os militares
tiveram sua quota. Entre l de abril e 15 de junho, cerca de 122 oficiais foram
forçados a se aposentar (embora com pensão integral). Muitos deles haviam feito
oposição ao golpe, enquanto outros eram acusados de considerar o novo governo
constitucionalmente ilegítimo. Outros ainda eram tidos como tão extremadamente
esquerdistas, ou tão identificados com Goulart, que não podiam merecer
confiança. Expurgos de militares não eram novidade no Brasil sublevações
anteriores, como a Revo-
___________
21. O ministro do Planejamento Roberto Campos, que participara com destaque do
governo Kubitschek, foi o único que discordou da decisão do Conselho de
Segurança Nacional de privar o ex-presidente dos seus direitos políticos. Campos
apresentou sua renúncia, que não foi aceita. Ele permaneceu no posto. Dulles,
President Castello Branco, p. 38.
22. Dulles, President Castello Branco, pp. 32-44; Viana Filho, O governo
Castelo Branco, pp. 94-96.

Castelo Branco: arrumando a casa 63
lução de 1930 e a intentona comunista de 1935, foram seguidas
por iguais transferências forçadas para a inaitividade.23

Defensores e críticos

A Revolução de 1964 foi entusiasticamente festejada pela maior parte da mídia
brasileira. Jornais importantes como o Jornal do Brasil, Correio da Manhã, O
Globo, Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo pugnavam abertamente pela
deposição do governo Goulart. Não ficava atrás em sua oposição a cadeia de
revistas, jornais e estações de rádio e TV dos "Diários Associados". O único
jornal importante que combateu o golpe foi o Ultima Hora, cujo diretor e
fundador, Samuel Wainer, teve que fugir.24

Os advogados constituíram outra força oposicionista através do seu órgão de
classe, a Ordem dos Advogados do Brasil, cujo Conselho Federal bateu palmas à
deposição de João Goulart.25 Foi uma posição arriscada, dada a irregularidade da
transição de Goulart para Mazzilli, mas no início de 1964 a classe se alarmara
tanto com a ameaça ao constitucionalismo vinda da esquerda que faria vistas
grossas para os defeitos legais da sucessão.

A hierarquia da Igreja foi outra fonte de opinião de elite que apoiou a
intervenção militar. Em manifesto de 26 de maio um grupo de bispos influentes
elogiou o golpe notando que "as forças armadas intervieram a tempo de impedir a
implantação de um regime
__________
23. A lógica por trás desses expurgos militares é explicada em Stepan, The
Military in Politics, cap. 10. Figueiredo, Política de coerção, fornece os dados
de acordo com as principais fases governamentais. Os dados de 1964 são
apresentados com abundância de pormenores em Morei, O golpe, pp.
248-59.

24. Para uma análise desses jornais, ver Stepan, The Military in Politics, pp.
57-121. As ações arbitrárias-expurgos-torturas da junta militar e em seguida
do governo Castelo Branco imediatamente provocaram críticas da imprensa. Uma
coleção destas críticas está publicada em Thereza Cesário Alvim, ed., O golpe de
64: a imprensa disse não (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1979).

25. Alberto Venâncio Filho, Notícia histórica da Ordem dos Advogados do Brasil:
1930-1980 (Rio de Janeiro, OAB, 1982), p. 132. Deve-se notar que no início de
outubro o Conselho Federal da Ordem começara a discutir o que considerava ações
ilegais do novo governo (ibid., p. 133).

64 Brasil: de Castelo a Tancredo
Castelo Branco: arrumando a casa
bolchevista em nosso país". Embora a declaração defendesse os ativistas do
laicato. progressista da acusação de comunismo, seu efeito foi reforçar os
receios da classe média de que a luta contra •;o governo Goulart fosse na
verdade uma luta pelo seu futuro. Por outro lado, "à posição da hierarquia
deixou perplexos e profundamente irritados os católicos mais jovens que
militavam em certos grupos como a Ação Católica Brasileira e a Ação Popular. A
prisão de muitos deles e os maus-tratos que receberam fizeram com que alguns
membros do episcopado reconsiderassem seu apoio ao golpe.26

Quanto aos políticos, o golpe de 1964 apanhou muitos de surpresa. Os civis
mais conhecidos envolvidos na conspiração não perderam tempo, contudo, para usar
a intervenção militar em proveito próprio. Virtualmente toda a UDN e metade do
PSD rapidamente apoiaram a Revolução, aumentando o rol das denúncias contra o
governo Goulart.

O movimento liderado pelos militares forçara o presidente legal a exilar-se e
instalou um governo que nunca poderia Ter alcançado o poder pelo voto. Até onde
iria esta reversão ao autoritarismo? Ninguém desconhecia que os militares da
linha dura estavam procurando um pretexto para silenciar maior número de
políticos. Muitos membros do PTB e da ala esquerda do PSD, não obstante,
concentraram-se na discussão da duvidosa legalidade da [deposição de Goulart, e
denunciaram as cassações de figuras ilustres, como o nutricionista e
especialista em saúde pública Josué de Castro, o economista Celso Furtado e o
reformador do sistema educacional Anísio Teixeira. A nova publicação de
esquerda, Revista Civilização Brasileira, tachou as cassações de "terrorismo
cultural" e historiou em 60 páginas a crónica das prisões, vexames
_________
26. O documento dos bispas é reproduzido em Luiz Gonzaga de Souza Lima,
Evolução política dos católicos e da Igreja no Brasil (Petrópolis, Vozes,
1979), pp. 14749. Para uma discussão do seu contexto, ver Thomas C. Bruneau,
The Political Transformation of the Brazilian Catholic Church (Cambridge,
Cambridge University Press, 1974), pp. 120-22. Os ativistas E que estavam
sendo defendidos eram da Ação Católica e do Movimento de Educação de Base
(MEB). A reação dos ativistas católicos mais jovens me foi descrita pelo Padre
Tibor Sulik, entrevista no Rio de Janeiro, em 9 de junho de 1983, e por Frei
Betto, entrevista em São Paulo, 30 de junho de 1983.

65
e intimidações a destacadas personalidades das artes, da ciência e da
educação.27

O libelo contra o governo foi liderado pelo editor Ênio Silveira, o
romancista e comentarista político Carlos Heitor Cony, o crítico literário
austríaco Otto Maria Carpeaux e o jornalista Márcio Moreira Alves. Os três
últimos escreviam no Correio da Manhã, que apoiara fortemente a deposição de
Goulart, mas que se achava agora desiludido com a atuação do governo militar.28
Outro respeitado crítico era Alceu Amoroso Lima, ensaísta e veterano líder do
laicato católico. Ele via o Brasil sob a Revolução guinando para a direita e
advertiu em abril de 1964 que "a extrema direita era tão antidemocrática quanto
a extrema esquerda.. ." Um mês depois fazia uma advertência ainda mais ominosa:
"até hoje nunca tive medo do comunismo no Brasil. Agora começo a ter."29
Outros adversários à esquerda comparavam a "Revolução" do Brasil a um
pronunciamiento centro-americano - uma grave acusação para os oficiais
brasileiros que se imaginavam bem acima dos seus colegas hispano-americanos. A
esquerda descartava os milita-
__________
27. A Revista Civilização Brasileira apareceu primeiro em março de
1965. Seu principal editor era Ênio Silveira, diretor da Editora Civilização
Brasileira. O primeiro número da revista informava que o seu objetivo básico
era pôr em relevo os interesses nacionais do Brasil, "mas não se limitará a um
nacionalismo sentimentalista e estreito, nem se deixará envolver pelo projeto
geopolítico ou o planejamento estratégico continental que o Departamento de
Estado e o Pentágono promovem e que alguns dos nossos políticos colocam em
ação". O tom relativamente moderado desta declaração sugere que a esquerda ainda
usava de cautela, mesmo um ano depois da queda de Goulart. O artigo sobre
"terrorismo cultural" foi publicado nas páginas 239-97 e a declaração de
princípios da revista nas páginas 3-4, ambos em Revista Civilização Brasileira,
I (março de 1965).

28. As colunas de Cony foram publicadas em Carlos Heitor Cony, O ato e o fato:
crônicas políticas (Rio de Janeiro, 1964), e as de Alves em Márcio Moreira
Alves, A velha classe (Rio de Janeiro, Editora Arte Nova, 1964). Para uma
coleção de artigos destes e outros críticos, ver Alvim, ed., O golpe de 64.
29. Alceu Amoroso Lima, Revolução, reação ou reforma? (Rio de Janeiro,
Tempo Brasileiro, 1964), pp. 224-32. Para um volume de muitos autores sobre o
importante papel de Amoroso Lima na cultura brasileira, inclusive na era
repressiva dos anos 60 e 70, ver Francisco de Assis Barbosa, ed., Alceu Amoroso
Lima, memorando dos 90 (Rio, Nova Fronteira, 1984).

66 Brasil: de Castelo a Tancredo
rés como nada mais do que agentes do imperialismo e dos ricaços e privilegiados
do Brasil, que lutavam desesperadamente para impedir que o país empreendesse
reformas sociais básicas.30

O governo dos Estados Unidos foi outro entusiástico defensor do golpe. Por
sugestão do embaixador Lincoln Gordon, o presidente Lyndon Johnson enviou
mensagem de congratulações a Ranieri Mazzilli horas depois de seu juramento como
presidente em exercício. Johnson se dizia satisfeito em saber que os brasileiros
estavam resolvendo suas dificuldades "no, contexto da democracia
constitucional", o que não era, naturalmente, a plena expressão da verdade.
Johnson também afirmou prever a "intensificação da cooperação no interesse do
progresso econômico e da justiça social para todos".31

Dos Estados Unidos começariam a chegar rapidamente outras demonstrações de
apoio ao golpe. No começo de abril Adolf Berle, ex-embaixador americano no
Brasil e um dos criadores da Aliança para o Progresso, declarou que Goulart
estava levando o seu país para as fileiras do comunismo cubano e por isso tinha
que ser deposto. Berle era um autêntico representante do estabelecimento liberal
que defendia a política da cenoura e do porrete na América Latina - a cenoura
para os reformadores apoiados pelos Estados Unidos e o porrete para os
revolucionários que ameaçassem com reformas radicais. A ele juntou-se no início
de maio o ex-embaixador Gordon, que descreveu a Revolução brasileira de 1964
como um evento que "pode na verdade figurar ao lado do Plano Marshall, do
Bloqueio de Berlim, da derrota da agressão comu-

30. Este era o tema de Morei, O golpe.
31. O envolvimento dos Estados Unidos recebeu a sua mais completa documentação e
análise em Phyllis R. Parker, Brazil and the Quiet Jntervention, 1964 (Austin,
Universityy'of Texas Press, 1979). Minhas citações de Johnson são extraídas da
página 85. O autor garimpou documentos oficiais nas bibliotecas presidenciais
Kennedy e Johnson, assim como obteve entrevistas de importantes
participantes americanos, como o ex-embaixador Lincoln Gordon e o ex-adido
militar, general Vernon Walters. Importantes documentos da Biblioteca
Johnson foram publicados em português em Marcos Sá Corrêa, 1964 visto e
comentado pela Casa Branca (Porto Alegre, L & PM, 1977). O apoio americano ao
novo governo brasileiro é colocado no contexto das relações brasileiro-
americanas após 1964 em Robert Wesson, The United States and Brazil Limits of
Influence (New York, Praeger, 1981).

Castelo Branco: arrumando a casa 67
nista na Coréia e da solução da crise dos mísseis em Cuba como um dos momentos
decisivos da história do mundo na metade do século vinte".32

Mas a Embaixada já demonstrava nervosismo com a caça às bruxas em pleno
andamento. O embaixador Gordon advertiu os brasileiros que era preciso
distinguir entre subversão e oposição política, embora reiterando também a
probabilidade de um golpe comunista se Goulart tivesse permanecido no poder. As
palavras do diplomata tinham por fim expressar a preocupação dos Estados Unidos
e assim manter a devida distância entre o governo do seu país e os possíveis
excessos dos revolucionários.33

Durante os seus primeiros meses como presidente, Castelo Branco tentou
dissociar o seu governo dos revolucionários de extrema direita. "Caminharemos
para a frente com a segurança de que o remédio para os malefícios da extrema
esquerda não será o nascimento de uma direita reacionária, mas o das reformas
que se fizerem necessárias", anunciou Castelo em seu discurso de posse.34 Mas a
forte ênfase do governo no anticomunismo, de par com a cassação de uma figura
com a popularidade de Juscelino, mostrava que a influência da linha dura era uma
grande verdade.

Era também verdade que o programa econômico e político do novo governo, que
incluía medidas antiinflacionárias e reformistas, estava destinado a provocar
vigorosa oposição. Os extremistas estavam determinados a exigir a retomada de
poderes de emergência se a estabilidade do novo governo fosse ameaçada? E, em
tal caso, que espécie de regime adotariam? E poderiam os Estados Unidos se
identificar com um regime altamente impopular?
_______
32. É a minha tradução de uma passagem do texto em português publicado em O
Estado de S. Paulo, 4 de maio de 1964.
33. Dulles, President Castello Branco, 19. Lincoln Gordon disse depois que ficou
tão abalado com o (primeiro) Ato Institucional que quase voltou para
Washington. Não o fez porque confiava que Castelo Branco (o candidato de
consenso a ser eleito) usaria seus poderes arbitrários com moderação e
conduziria a nação de volta à legitimidade constitucional em poucos meses. Carta
de Gordon (27 de julho de 1972) a Luís Viana Filho, Arquivo de Castelo Branco.
34. Humberto de Alencar Castelo Branco, Discursos: 1964 (Rio de Janeiro,
Secretaria de Imprensa, s.d.), p. 14.

68 Brasil: de Castelo a Tancredo
Estabilização econômica: um enfoque quase ortodoxo

Após consolidar a tomada do poder e centralizar a autoridade no Executivo,
Castelo Branco e seus companheiros revolucionários voltaram-se para os males
econômicos do Brasil.35 Como eles sempre afirmaram que precisavam de poderes
arbitrários para executar uma política econômica eficiente, tal fato comporta
exame pormenorizado. Por quaisquer cálculos, a economia brasileira se achava em
extremas dificuldades no início de 1964. O governo Goulart, sem crédito no
exterior e com uma dívida de US$3 bilhões, caminhava a passos largos para a
insolvência. Os fornecedores estrangeiros, como as companhias internacionais de
petróleo, não concediam mais crédito ao Brasil. As vendas só eram feitas à
vista, em divisas, e estas se haviam esgotado. A inflação alcançara a taxa
__________
35. A literatura sobre as políticas de estabilização do Brasil pós-1964 é
extensa. Entre os estudos favoráveis às medidas do governo citam-se: Alexandre
Kafka, "The Brazilian Stabilization Program, 1964-66", Journal of Political
Economy, p. 75 (agosto de 1967), pp. 596-631; os capítulos assinados por Howard
S. Ellis, Mário Henrique Simonsen e Octavio Gouveia de Bulhões em Howard S.
Ellis, ed., The Economy o] Brazil (Berkeley, Universky of Califórnia Press,
1969). A análise mais detalhada favorável ao governo Castelo Branco é de Mário
Henrique Simonsen, Inflação: gradualismo x tratamento de choque (Rio de Janeiro,
APEC, 1970). A análise crítica mais penetrante das políticas de 1964-67 é de
Albert Fishlow, "Some Reflections on Post-1964 Brazilian Economic Policy".
Fishlow dá ênfase às hipóteses monetaristas ortodoxas relativamente
rígidas do enfoque Campos-Bulhões. Para uma excelente apreciação que põe as
políticas de Castelo em contexto mais amplo, ver Werner Baer e Isaac
Kerstenetzky, "The Brazilian Economy in the Sixties", em Riordan Roett, ed.,
Brazil in the Sixties (Nashville, Vanderbilt University Press, 1972). Uma
crítica representativa da esquerda à política econômica do governo durante a
presidência de Castelo Branco é a de Cibilis da Rocha Viana, Estratégia do
desenvolvimento brasileiro: uma política nacionalista para vencer a atual crise
econômica (Rio de Janeiro, Civilização) Brasileira, 1967). Uma crítica mais
branda, aparecida na imprensa no período 1964-66, foi publicada em forma de
livro: Antônio Dias Leite, Caminhos do desenvolvimento (Rio de Janeiro, Zahar
Editores,, 1966). Dias'Leite foi o mais conhecido dos críticos "moderados" e
posteriormente foi ministro das Minas e Energia no governo Costa e Silva. Para
uma idéia do pensamento da equipe econômica que subiu ao poder com Costa e Silva
(e que questionava o diagnóstico dos responsáveis pelas decisões políticas do
governo Castelo Branco), ver Samuel A. Morley, "Inflation and Stagnation in
Brazil", Economic Development and Cultural Change, XIX, N.° 2 (janeiro de 1971),
pp. 184-203. Muitas das

Castelo Branco: arrumando a casa 69
anual de 100 por cento, e a interminável miscelânea de subsídios e controles
governamentais estava distorcendo a alocação de recursos através da economia.
Homens de negócios, banqueiros e até o homem comum achavam a situação tão
caótica que passaram a adiar suas decisões econômicas salvo as mais imediatas.

A equipe econômica do novo governo, liderada por Roberto Campos e Octavio
Gouveia de Bulhões, parecia bastante qualificada para a sua ingrata tarefa.
Tanto Campos como Bulhões possuíam contatos na comunidade empresarial e
financeira e ambos haviam adquirido grande experiência anteriormente durante a
execução do programa de estabilização que o ex-presidente Juscelino Kubitschek
adotara em 1958 para depois engavetar em 1959. O diagnóstico econômico do novo
governo estava contido numa puíblicação de 240 páginas intitulada Programa de
Ação Econômica do Governo (PAEG)36, elaborado por Campos e Bulhões. Como muitos
outros diagnósticos da economia brasileira nos primeiros anos da década de 60,
este identificava na inflação acelerada o principal obstáculo a um sadio
desenvolvimento econômico. Os autores afirmavam que a inflação era causada
principalmente pelo excesso de demanda, que, por sua vez, tinha as seguintes
causas: déficits do setor público, excesso de crédito para o setor privado e
excessivos aumentos de salário. Quando a base monetária era ampliada para
atender à demanda, estimulava um "crônico e violento processo inflacionário".
O resultado era um monte de distorções econômicas: bruscas oscilações nas taxas
de salários reais, desorganização do mercado de crédito, distorção do mercado de
___________
idéias e economistas do governo Castelo Branco foram recrutados
no? Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais - Guanabara (IPES-GB), um grupo
de pressão do Rio de Janeiro patrocinado por empresários. Campos estivera
intimamente ligado ao grupo antes de assumir o Ministério do Planejamento.
Norman Blume, "Pressure Groups and Decision-Making in Brazil", Studies in
Comparative International Development, In, N.° 11 (1967-68). Blume
acentua as diferenças entre os grupos do IPÊS do Rio e de São Paulo. Este
virtualmente não tinha influência no governo. A influência do IPÊS é
também confirmada por Stepan, The Military in Politics, pp. 186-87. Quem
mais amplamente tratou da influência do. IPÊS (e de outro grupo político
com a mesma linha ideológica, o IBAD) foi Dreifuss, 1964: a conquista do
Estado, cobrindo principalmente o período anterior ao golpe de 1964.

36. Ministério do Planejamento e Coordenação Econômica, Programa de ação
econômica do governo, 1964-66 (Rio de Janeiro, 1964).

70 Brasil: de Castelo a Tancredo
trocas externas e incentivo ao uso de capital para manipular inventários ou
especular com moedas estrangeiras. O caos resultante excluía a possibilidade de
investimentos a longo prazo de que o Brasil tanto necessitava.

Diante de paciente tão anêmico, Bulhões e Campos receitaram um enfoque
"gradualista", em contraste com o "tratamento de choque" defendido pelo FMI e
que consiste no congelamento de todos os salários e preços. Propuseram-se então
os dois ministros a reduzir gradualmente (daí o rótulo "quase ortodoxo") o
déficit do setor público, contrair o crédito privado e estabilizar os índices
salariais. Com estas e outras medidas, o governo planejava, segundo os melhores
princípios monetaristas, reduzir a taxa de crescimento dos meios de pagamento na
economia (que fora de 64 por cento em 1963 e atingiria 86 por cento em 1964)
para 30 por cento em 1965 e 15 por cento em 1966. Supondo uma velocidade
constante de circulação do dinheiro, isto reduziria a taxa de inflação anual de
100 por cento no início de 1964 para 25 por cento em 1965 e 10 por cento em
1966.37

O governo considerava o déficit como o item que precisava de ação mais
imediata. Em 1963 o déficit do governo federal fora 4,2 por cento do PIB.38 Se
não fosse reduzido através de medidas fiscais ou compensado por uma absorção de
poupanças privadas, seria inevitavelmente inflacionário. Os novos gestores da
economia dispuseram-se a cortar o déficit público eliminando todas as despesas
"não essenciais", tornando rentáveis as operações das empresas estatais e
aumentando a arrecadação de impostos.
__________
37. Ministério do Planejamento, Programa, p. 35. Havia a implicação de que a
taxa "residual" devia permanecer em 10 por cento. Os números de 1963 e 1964 são
de Fishlow, "Some Reflections on Economic Policy", p. 72. Para uma detalhada
análise da política monetária no período Castelo Branco, ver Syvrud, Foundations
of Brazilian Economic Growth, rico em dados. Syvrud foi representante do Tesouro
americano junto à Embaixada dos Estados Unidos no Rio de 1965 a 1969. Sua
avaliação é favorável ao enfoque relativamente ortodoxo da política de
estabilização dos ministros Campos e Bulhões. Para uma excelente análise da
política monetária brasileira de um ponto de vista comparativo, ver Alejandro
Foxley, "Stabilization Policies and Stagflation: The Cases of Brazil and Chile",
em World Development, VIII, N.° 11 (novembro de 1980), pp. 887-921.

38. Este número é extraído de Fishlow, "Some Reflections on Post-1964 Brazilian
Economic Policy", p. 72.

71
A formulação de políticas era apenas o primeiro passo. Muito mais difícil
iria ser aplicá-las. Nenhum observador perspicaz poderia ter deixado de notar
que no início dos anos 60 o Brasil não possuía capacidade administrativa para
implementar complexas políticas econômicas. O estilo de governo voltado para
questões específicas, como acontecia nos anos 50, era mais compatível com um
período de expansão econômica do que com uma fase de dificuldades. Por isso
nenhum governo que se instalasse no começo de 1964, fosse da direita ou da
esquerda, poderia ter evitado a necessidade de uma reforma institucional.39

A falta de um verdadeiro banco central era apenas um dos itens que
justificavam a reforma. O Banco do Brasil, emprestador que o setor público
procurava em último recurso, era também o principal banco comercial. Havia,
ainda, a Superintendência da Moeda e do Crédito (SUMOC), que fora criada em 1947
como agência coordenadora da política monetária. Mas não conseguira escapar ao
controle do Banco do Brasil e por isso não se transformara em banco central. O
novo governo só teve condições para criar tal banco em abril de 1965, quando
converteu a SUMOC em Banco Central do Brasil que, ainda assim, precisou de
vários anos para funcionar efetivamente. Enquanto isso, a equipe CamposBulhões
rapidamente instituiu um Conselho Monetário Nacional que, a partir da segunda
metade de 1964, atuava como órgão de previsão e coordenação das contas fiscais
e monetárias.40

A reorganização dos instrumentos de política fiscal foi feita mais
rapidamente com a ajuda do primeiro Ato Institucional, que deu ao presidente
autorização exclusiva para propor leis aumentando despesas. Esta autorização
Castelo Branco delegou-a a Roberto Campos, ministro do Planejamento, que logo
propôs lei proibindo que os governos estaduais emitissem títulos sem permissão
federal. Era uma medida importante para o controle financeiro do setor público,
porque os governos estaduais no passado emitiram papéis por conta própria para a
cobertura de déficits orçamentários.
___________
39. Para um relato favorável das reformas institucionais levadas a
efeito pelo governo Castelo Branco, ver "A imaginação reformista" de
Mário Henrique Simonsen, capítulo 6, em Simonsen e Roberto de Oliveira
Campos, A nova economia brasileira (Rio de Janeiro, 1974).

40. Syvrud, Foundations of Brazilian Economic Growth, pp. 59-81.

72 Brasil: de Castelo a Tancredo
Bulhões e Campos voltaram-se a seguir para a área das empresas públicas, pois o
diagnóstico do PAEG concluíra corretamente que a inflação fora alimentada por
déficits do governo federal. Este cobria os grandes déficits com emissões de
moeda precisamente por lhe faltar determinação política para aumentar preços e
controlar os gastos das empresas estatais. O governo Castelo Branco por isso
mesmo tratou de pôr fim imediatamente aos gigantescos déficits das indústrias
federais que administravam ferrovias, navegação e exploração de petróleo. Em
cada caso era fatal o aumento dos preços dos serviços, medida que elevava
diretamente o custo de vida a curto prazo. Mas a cobertura de custos significava
a possibilidade de investimentos há muito adiados voltarem a ser feitos nas
empresas estatais aumentando-lhes a produtividade e, conseqüentemente, reduzindo
seus custos no futuro. O governo aumentou também o preço em cruzeiros de
importações básicas, como petróleo e trigo, usando uma taxa de câmbio realista
em vez das taxas anteriores artificialmente baixas. A defasagem da taxa de
câmbio fora usada intencionalmente por Goulart (e outros antes dele) para manter
baixo o preço das passagens de ônibus (altamente dependentes do petróleo
importado) e do pão (fabricado com trigo importado). Os aumentos "corretivos"
decretados pelo governo fizeram a inflação subir a curto prazo, mas os
responsáveis pela política econômica explicavam que os reajustes feitos de uma
só vez eram necessários para eliminar anteriores subsídios (inflacionários),
cujos efeitos haviam sido simplesmente reprimidos. Os aumentos de preços,
contudo, eram profundamente impopulares e o público não ocultava sua revolta com
a elevação dos preços dos ônibus, dos trens, da eletricidade e do pão. Um
governo eleito poderia ter executado tais medidas e ainda assim sobreviver?
Provavelmente não.41
__________
41. Discutir esta questão é resvalar para o terreno sempre traiçoeiro dos
"inevitáveis históricos". Todos os cinco programas antiinflação tentados no
Brasil na década precedente foram abandonados. Uma das razões básicas era o alto
custo político que os governos teriam que pagar para dar continuidade aos
programas. Roberto Campos, obviamente um juiz não imparcial nesta matéria,
afirmou em 1969 que nenhum governo eleito poderia ter executado o PAEG. Roberto
Campos, Temas e sistemas (Rio de Janeiro, APEC, 1969)j pp. 282-87. Certamente
seria razoável concluir que, em virtude da disposição das forças políticas em
1964, nenhum governo potencial teria tido coragem de enfrentar esse desafio.
Pesquisas recentes puseram em

73
O outro lado da política fiscal - os impostos - também foi vigorosamente
atacado. Como muitos países em desenvolvimento, o Brasil era notoriamente
ineficiente em matéria de arrecadação de impostos, salvo o de vendas e
consignações. Parte da ineficiência era devida à estrutura tributária
terrivelmente complexa vigente nas esferas federal, estaduais e municipais. Para
ela também contribuía a vantagem que o contribuinte obtinha atrasando o
pagamento de impostos não reajustados para compensar a inflação. Os lucros da
depreciação induzida pela inflação do imposto de um contribuinte excedia de
muito as penalidades por atraso de pagamento.

O novo governo atacou o problema de dois modos: primeiro, reformulou a
regulamentação tributária penalizando os infratores; segundo, sujeitou todos os
impostos em atraso, inclusive as contribuições para a previdência social, à
correção monetária para reajustar o valor do dinheiro corroído pela inflação. O
contribuinte inadimplente daí por diante não tinha mais qualquer vantagem em
atrasar seus pagamentos.42

Os ministros Campos e Bulhões não anunciaram a indexação como instrumento de
política geral, tanto assim que ela fora mencionada apenas de passagem no PAEG.
O primeiro uso da indexação foi determinado pela lei 4357 aprovada pelo
Congresso em julho de 1964. Estabelecia a correção obrigatória de todos os
ativos fixos e dos impostos em atraso e autorizava a criação de um novo título
do governo, a Obrigação Reajustável do Tesouro Nacional (ORTN), reajustada
mensalmente segundo uma média móvel do índice de preços por atacado.43 Em agosto
seguiu-se a lei 4380
________
dúvida o argumento de que os governos democráticos não são capazes de executar
programas de estabilização econômica. Em "The Politics of Economic
Stabilization: IMF Standby Programs in Latin America, 1954-1985", Comparative
Politics, XIX, N. l (outubro de 1986), pp. 1-24. Karen Remmer afirma, a partir
de uma comparação entre nove países ao longo de 31 anos, que as democracias são
(ligeiramente) mais capazes de cumprir os acordos standby com o FMI. Sua
afirmação não se aplica à minha análise precedente porque muitos dos malogrados
programas de estabilização do Brasil não envolveram acordos standby com o FMI.
42. Keith Rosenn, " Adaptations of the Brazilian Income Tax to Inflation",
Stanford Law Review, XXI, N.° l (novembro de 1968), pp. 58-105.
43. Werner Baer, The Brazilian Economy: Growth and Development (New York,
Praeger, 1983), p. 244.

74 Brasil: de Castelo a Tancredo
criando o Banco Nacional de Habitação (BNH) é dando-lhe autorização para indexar
tanto os papéis de sua emissão quanto os empréstimos hipotecários que
concedesse. Do P AEG constavam todos esses usos da indexação sem descrevê-los,
contudo, como inovação importante. Em julho de 1965 a lei 4728 estendeu a
indexação a virtualmente todo o mercado de capital (a taxa de indexação era a
mesma da ORTN).44 Sem ser anunciada como tal, a indexação, ou correção
monetária, estava se tornando instrumento indispensável da política económica
pós-1964.

O governo instituiu a indexação como medida "transitória" para induzir uma
alocação de recursos mais eficiente com redução da inflação. O objetivo era
fazer com que todos os participantes do processo econômico pensassem em termos
reais e não em como se beneficiarem com a diferença entre créditos ajustados
pela inflação e débitos não corrigidos monetariamente. O uso da indexação no
Brasil não foi bem-aceito em certos círculos financeiros ortodoxos como o FMI,45
mas o país não precisava preocupar-se com
_____________
44. Para um relato histórico da introdução da indexação, ver Simonsen, Inflação,
pp. 183-88. Para um relato cobrindo o assunto até 1973, ver Werner Baer e
Paul Beckerman, "Indexing in Brazil", World Development, II, N.08 1-12 (outubro-
dezembro de 1974), pp. 35-47. Para outra explicação daquele período enfatizando
até onde o sistema de indexação podia ser e na verdade era manipulado pelo
governo, ver Albert Fishlow, "Indexing Brazilian Style: Inflation Without
Tears?", Brookings Papers on Economia Activity (1974, 1), pp. 261-82. Dez anos
depois Roberto Campos, comentando sobre o recurso à indexação no governo Castelo
Branco, dizia: "Dado o fato de que a inflação crônica gerara a crença de que os
preços não parariam de subir, a correção monetária foi o meio de controlar essa
expectativa e de impedir um impacto desagregador em outros setores da economia".
Mário Henrique Simonsen e Roberto de Oliveira Campos, Formas criativas no
desenvolvimento brasileiro (Rio de Janeiro, APEC, 1975), p. 68. Para uma
explicação de como a indexação desenvolveu-se durante os subseqüentes governos
militares, ver Peter T. Knight, "Brazil: Deindexation and Economic
Stabilization" (documento preparado no Banco Mundial, 2 de dezembro de 1983).

45. Baseado em entrevistas do autor com funcionários do Fundo Monetário
Internacional e do Banco Mundial em outubro de 1971 e setembro de
1977. Nas prolongadas negociações do Brasil com o FMI no início de 1983 a
questão do papel da indexação na propagação da inflação foi objeto de vivos
debates. Para uma análise comparativa da função da indexação no Brasil, Chile,
Argentina e Colômbia, ver Gustav Donald Jud, Inflation and the Use of Indexing
in the Developing Countries (New York, Praeger, 1978).

Castelo Branco: arrumando a casa 75
opiniões ortodoxas a menos que lhe fosse preciso recorrer àquela instituição.

As rigorosas medidas de arrecadação de impostos resultaram em significativa
elevação da receita federal. Ela passou de 7,8 por cento do PIB em 1963 para 8,3
por cento em 1964, depois para 8,9 por cento em 1965 e 11,1 por cento em 196o.46
A combinação de corte de despesas e aumento de impostos reduziu o déficit
público anual de 4,2 por cento do PIB em 1963 para 3,2 por cento em 1964 e 1,6
por cento em 1965.47 O declínio do déficit foi financiado através de títulos do
tesouro (ORTN), devidamente indexados e pagando juros de 6 por cento.48
O segundo instrumento importante da política de estabilização de Campos e
Bulhões foi o controle do crédito do setor privado. Este controle não pôde ser
feito nos planos de estabilização dos anos 50 e 60 por causa das desavenças
entre o Ministério da Fazenda e o Banco do Brasil, uma vez que os esforços de
estabilização ortodoxos do primeiro eram frustrados pelas políticas pró-
__________
46. Syvrud, Foundations of Brazilian Economic Growth, p. 130.
47. Fishlow, "Some Reflections on Economic Policy", p. 72.
48. Depois de seu primeiro ano no poder o governo Castelo Branco orgulhava-se do
relativo sucesso do programa de estabilização e da ampla reorganização do setor
público. O presidente e o ministro do Planejamento apelavam constantemente para
um retorno a políticas "racionais". Eles se consideravam como conduzindo o
Brasil de volta a uma compreensão "realista" do seu próprio potencial e do ritmo
em que devia se desenvolver. (Ver, por exemplo, a severa pregação de Campos aos
empresários no fim de 1964 e começo de 1965. Campos, Política econômica e mitos
políticos.) Um observador, resumindo o "modelo de desenvolvimento" de
Castelo Branco, notou que ele dava ênfase ao aumento dos vínculos com os Estados
Unidos e outras nações capitalistas e que expressava um nível inferior de
expectativas relativamente a soluções principalmente brasileiras para certos
problemas básicos. Rowe, "Brazil Stops the Clock: Part II", p. 8. Os alvos do
ataque do governo eram as políticas populistas por haverem supostamente iludido
a nação prometendo mais do que a economia podia produzir e administrando a
política governamental de forma incompetente. Além disso, alegava-se que
aqueles políticos ameaçaram a base da economia de mercado - propriedade privada
e investimentos estrangeiros. Goulart e seu governo eram o símbolo
mais imediato desta "irresponsabilidade". Atacar o presidente deposto era
um refrão constante com que o governo Castelo Branco pensava fortalecer a sua
legitimidade. (Ver, por exemplo, o discurso do presidente de 22 de dezembro de
1965, Castelo Branco, Discursos: '965. pp. 109-23.)

76 Brasil: de Castelo a Tancredo
empresas privadas do último. Campos e Bulhões não tiveram esse tipo de problema
por causa de suas incontrastáveis autoridades.

Mas o problema não era apenas de coordenação. Os brasileiros estavam céticos
em relação a qualquer nova tentativa de estabilização económica por causa do
malogro dos programas de 1953-54, 1955-56, 1958-59, 1961 e 1962-63.49 Essas
experiências haviam treinado tanto os devedores como os credores nos hábitos da
sobrevivência econômica durante a inflação - hábitos que eles estavam pouco
inclinados a abandonar. A inflação que ultrapassa as expectativas favorece o
devedor que pode pagar o empréstimo e os juros em moeda desvalorizada. E a
inflação brasileira não era exceção. Nessas condições os emprestadores, correndo
o risco da falência, não queriam ou não podiam emprestar senão em prazo
curtíssimo, significando semanas ou no máximo meses. Os emprestadores
sobreviveram às décadas de 50 e 60 por causa dos vultosos subsídios
governamentais canalizados para setores prioritários, como agricultura, bens de
capital e infra-estrutura. Os ministros da área econômica sabiam que esta
precária estrutura de crédito precisava urgentemente de reformulação. Enquanto
isso, tiveram que deixar as taxas de juros do setor privado ao sabor do
mercado.50

A reação do setor privado seria obviamente decisiva para o bom êxito da
estabilização. O objetivo era induzir os homens de negócios a pensarem em termos
de recursos reais, o que permitiria o fornecimento de créditos para
empreendimentos que garantissem taxa real de retorno mais alta.51 A expectativa
de empresários,
____________
49. Um destacado economista brasileiro que seria ministro da Fazenda no governo
Geisel afirmou que o fracasso da tentativa de estabilização de Juscelino foi
decisivo. "Foi em 1959 que a inflação brasileira começou a se acelerar, sendo a
causa imediata abandono de um promissor programa de estabilização monetária."
Mário Henrique Simonsen, "Brazilian Inflation: Postwar Experience and Outcome
of the 1964 Reforms", Economic Development Issues Latin America (Committee for
Economic Development Supplementary Paper N.° 21, New York, agosto de 1967), p.
267.

50. Syvrud, Foundations, pp. 95-107.
51. Para análises das distorções na alocação de recursos introduzidas pela
inflação ver Werner Baer, "Brazil: Inflation and Economic Efficiency", Economic
Development and Cultural Change, XI, N.° 4 (julho de 1963), pp. 395-406. Werner
Baer e Mário Henrique Simonsen, "Profit Illusion and Policy Making in an
Inflationary Economy", Oxford Economic Papers, XVII,

Castelo Branco: arrumando a casa 77
banqueiros e comerciantes, ainda que apoiassem em princípio a ação
governamental, era a de se sentirem ameaçados quer fossem devedores (com a
possibilidade de perder se uma inflação menor majorasse o valor real dos seus
débitos além do esperado) quer credores (contrariados com cortes nos habituais
subsídios ao crédito). Campos e Bulhões sabiam disto, daí porque afirmavam aos
empresários que perseguiriam a qualquer preço suas políticas. Era uma escaramuça
decisiva na batalha das expectativas.

Política salarial

O terceiro grande instrumento do programa antiinflação depois da redução do
déficit público e do controle mais rigoroso do crédito foi a política salarial.
Para se compreender esta política sob o governo Castelo Branco, convém examinar
a estrutura das relações trabalhistas no setor urbano a partir de 1964. A
estrutura legal (Consolidação das Leis do Trabalho, ou CLT) codificada durante o
Estado Novo de Getúlio Vargas (1937-45) foi uma construção semicorporativista em
que os sindicatos ficaram estreitamente ligados ao controle do governo federal.
Primeiro, todos os empregados cobertos pela CLT eram obrigados a uma
contribuição sindical (um dia por ano) descontada de seus contracheques. O
dinheiro ia diretamente para o Ministério do Trabalho, que o repassava aos
sindicatos, cujas despesas eram supervisionadas pelo Ministério. Segundo, todas
as eleições sindicais eram fiscalizadas pelo Ministério, que tinha que validar
os resultados, podendo até desqualificar candidatos. Além disso, todos os
dirigentes sindicais eram sujeitos a remoção pelo Ministério, de acordo com
diretrizes propositadamente vagas. Terceiro, a lei tornava as greves
virtualmente ilegais, já que quase todas as possíveis disputas tinham que ser
transferidas para os tribunais trabalhistas para efeito de decisão. Quarto, os
sindicatos podiam ser formados para representar apenas
__________
N.° 2 (julho de 1965), pp. 279-90; e Werner Baer, Isaac Kerstenetzky e Mário
Henrique Simonsen, "Transportation and Inflation: A Study of Irrational Policy
Making in Brazil", Economic Development and Cultural Change, XIII, N. 2
(janeiro de 1965), pp. 188-202.

78 Brasil: de Castelo a Tancredo
uma categoria dentro de um só município. Poderia haver uma federação (ao nível
estadual) e uma confederação (ao nível federal) desses sindicatos. Mas negociar
em qualquer daqueles dois níveis era extralegal. Igualmente importante, o código
não dava status legal a alianças horizontais de sindicatos, isto é, de
categorias diferentes. Qualquer tentativa de uma CGT ao estilo francês ou
argentino era portanto extralegal. Finalmente, a lei desencorajava fortemente,
se não impedia, a negociação direta. Uma das questões mais vitais, o salário
mínimo, era controlada pelo governo. Quase todas as outras questões iam para os
tribunais do trabalho para decisão compulsória.52

A "redemocratização" do Brasil em 1945-46 deixara intacta essa estrutura de
relações corporativistas do trabalho. A Constitui-
___________________
52. Para breve descrição da estrutura legal do sistema de relações de trabalho
no Brasil, ver Octavio Bueno Magano, Organização sindical brasileira (São Paulo,
Editora Revista dos Tribunais, 1982). A análise histórica clássica do sistema é
de Evaristo de Moraes Filho, O problema do sindicato único no Brasil (Rio de
Janeiro, Editora A Noite, 1952). A descrição mais cuidadosa do sistema na forma
como operava no início da década de 60 é de Kenneth Paul Erickson, The Brazilian
Corporative State and Working Class Politics (Berkeley, University of Califórnia
Press, 1977). Kenneth S. Mericle analisa detidamente a evolução do sistema nos
anos 60 em "Conflict Regulation in the Brazilian Industrial Relations System"
(dissertação de Ph. D., University of Wisconsin-Madison, 1974), sendo o assunto
parcialmente resumido em Mericle, "Corporatist Control of the Working Class
Authoritarian Brazil Since 1964", em James Malloy, ed., Authoritarianism and
Corporatism in Latin America (Pittsburgh, University of Pittsburgh Press,
1977), pp. 303-38. Uma história muito útil da estrutura das relações de
trabalho, inclusive as mudanças introduzidas após 1964, é a de Heloísa Helena
Teixeira de Souza Martins, O Estado e a burocratização do sindicato no Brasil
(São Paulo, Editora Hucitec, 1979). A autora passou alguns anos trabalhando para
o DIEESE, o órgão de pesquisas não governamental, intersindical que depois de
1964 se tornou virtualmente a única fonte independente de dados sobre o custo de
vida e os níveis de salário real. Para apreciações altamente úteis da literatura
sobre a matéria, ver Leôncio Martins Rodrigues e Fábio Munhoz, "Bibliografia
sobre trabalhadores e sindicatos no Brasil", Estudos CEBRAP (São Paulo, 1974), e
dois estudos de Luiz Werneck Vianna, "Estudos sobre sindicalismo e movimento
operário: resenha de algumas tendências", BIB (Boletim Informativo e
Bibliográfico de Ciências Sociais), N." 3 (1978), pp. 9-24, e "Atualizando uma
bibliografia: 'novo sindicalismo', cidadania e fábrica", BIB, N." 17 (1984), pp.
53-68. Em capítulos subseqüentes haverá referências à vasta literatura sobre o
sistema de relações industriais brasileiras e o movimento trabalhista desde
meados da década de 1970.

Castelo Branco: arrumando a casa 79
cão de 1946 reconheceu o direito à greve (Art. 158), ficando para ser
regulamentada a sua aplicação em lei ordinária que, entretanto, cairia no
esquecimento. As disputas entre empregadores e sindicatos a partir de 1945
geralmente eram levadas aos tribunais trabalhistas e, como os seus juizes eram
nomeados pelo governo, estes procuravam não contrariá-lo.

Está claro agora por que sucessivos governos acharam fácil conviver com a
estrutura da CLT. No final dos anos 40 o governo do presidente Dutra usou-a para
expurgar a liderança sindical de todos os esquerdistas. Em seu período
presidencial de 1951-54 Getúlio Vargas usou-a através do seu jovem ministro do
Trabalho João Goulart, para estimular a mobilização trabalhista em São Paulo. No
começo dos anos 60 o presidente Goulart usou a estrutura sindical oficial para
gerar apoio político às suas malfadadas reformas.53 A despeito de ideologias
políticas diferentes, sucessivos governos exploraram habilmente a estrutura
corporativista em proveito de seus próprios objetivos.

Como se comportou essa estrutura quando se tratou de aplicar programas de
estabilização? A experiência de Goulart foi instrutiva. Em meados de 1963,
quando seu governo enfrentava violenta inflação, Goulart criou o Conselho
Nacional de Política Salarial com autoridade para fixar salários para todo o
setor público (e o de economia mista), inclusive para todas as empresas privadas
licenciadas para prestar serviços públicos.54 O governo esperava que este novo
mecanismo controlasse melhor os salários e em conseqüência detivesse os aumentos
de preços praticados por aquelas empresas, cuja produção pesava fortemente no
custo de vida. Mas a verdade é que os ajustes salariais naquelas empresas
durante o resto de 1963 não foram inferiores aos das empresas não con-
____________________
53. Esta tendência na atividade sindical é bem descrita em Erickson, The
Brazilian Corporative State, A análise do CGT, instituição muito discutida (e
tecnicamente extralegal) e bastante ativa neste período, é feita em Lucélia de
Almeida Neves, O Comando Geral dos Trabalhadores no Brasil,
1961-64 (Belo Horizonte, Editora VEGA, 1981).
54. Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos
(DIEESE), "Dez anos de política salarial", Estudos Sócio-Econômicos, I, N. 3
(agosto de 1975).

80 Brasil: de Castelo a Tancredo
troladas. Goulart caiu antes que pudesse experimentar novas formas de controle
de salários.

A Revolução de 1964 prometeu mudar o sistema de formulação da política
econômica. O primeiro Ato Institucional fortaleceu o poder do presidente às
custas do Congresso. Em nenhuma outra área estava o novo governo mais ansioso
para demonstrar seus poderes do que na da política trabalhista. O governo
Castelo Branco estava firmemente determinado a assumir o controle dos salários.
E começou com uma vassourada nos líderes sindicais. Durante os dois primeiros
meses de expurgos o governo afastou de seus cargos conhecidos dirigentes
trabalhistas, como Clodsmith Riani, Hércules Correia dos Reis, Dante Pelacani e
Oswaldo Pacheco da Silva, e suspendeu seus direitos políticos; alguns foram até
julgados por acusações de subversão.55 Mesmo depois de expirado o prazo que
tinha para realizar expurgos, o governo usou os poderes normais que lhe dava a
lei trabalhista para intervir nos sindicatos e afastar seus líderes. Um total de
428 sindicatos havia sofrido intervenção até o final de 1965, inclusive
muitos dos grandes sindicatos industriais.56

Eliminada a possibilidade de qualquer oposição nos sindicatos, o novo governo
passou à definição de sua política salarial em junho e julho de 1964. A meta era
impedir que os salários subissem mais depressa do que a taxa descendente de
inflação. Campos e Bulhões concentraram-se primeiro nos salários do setor
público. Reorganizaram o Conselho Nacional de Política Salarial de João Goulart
e criaram uma complexa fórmula para cálculo dos futuros aumentos salariais do
setor público. Primeiro, os salários seriam reajustados somente a cada 12 meses.
Segundo, o salário reajustado seria baseado em: (1) o salário real médio pago
nos últimos 24 meses; (2) compensação do aumento de produtividade do ano
anterior; e (3) reajustamento da inflação residual esperada no
____________
55. Mário Victor, Cinco anos que abalaram o Brasil (Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, 1965), p. 550.
56. Argelina Maria Cheibub Figueiredo, Política governamental e funções
sindicais (Tese de mestrado apresentada ao Departamento de Ciências Sociais da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo,
outubro de 1975), p. 67. Este trabalho inclui detalhada análise das intervenções
do governo em sindicatos de 1964 a 1970.

Castelo Branco: arrumando a casa 81
correr do ano seguinte, segundo previsão do governo. Esta fórmula, embora
ligeiramente modificada em meses e anos sucessivos, serviu de base para a
política salarial do governo até 1979. O que mais importava, naturalmente, eram
os números introduzidos na fórmula.57

Quanto aos salários do setor privado, a lei de 1963 deixou-o livre para fixá-
los, cabendo a última palavra sobre as disputas à autoridade das cortes
trabalhistas. O novo governo manteve essa lei, esperando que as firmas privadas
e os tribunais seguissem a orientação oficial em seus acordos salariais no setor
público. Mas o otimismo não era justificado. Os salários do setor privado
aumentaram muito mais rapidamente, além dos níveis toleráveis especificados no P
AEG. Em agosto de 1965 o governo solicitou ao Congresso a extensão ao setor
privado da autoridade que possuía para fixar salários no plano federal. Campos e
seus colegas argumentaram que reajustar salários "simplesmente aplicando índices
de aumentos de custo de vida é incompatível com a política antiinflação".
Líderes sindicais combateram o projeto de lei, mas inutilmente. A lei foi
aprovada pelo Congresso (expurgado dos principais porta-vozes da classe
trabalhadora) e, embora os sindicatos tivessem apelado para os tribunais, estes
decidiram em favor do governo em setembro de 1965.58 A nova lei também prorrogou
por três anos a autoridade abrangente do governo para fixar salários. Os
resultados é que em meados de 1968 a estabilização havia sido alcançada e a
negociação coletiva pôde "retornar" às condições livres que o PAEG
implicitamente endossava.
_______________
57. A fórmula é explicada em Ministério do Planejamento, Programa, pp. 83-85.
Uma análise mais detalhada, usando geometria, é feita em Simonsen,
Inflação, pp. 26-28. O cálculo da fórmula . sua aplicação na prática gerou
forte controvérsia. Para uma apreciação crítica representativa do sistema do
ponto de vista da esquerda, ver Fernando Lopes de Almeida, Política salarial,
emprego e sindicalismo, 1964-81 (Petrópolis, Vozes, 1982). A relação entre
política salarial e eqüidade social no Brasil pós-1964 é criteriosamente
pesquisada em Samuel A. Morley, Labor Markets and Inequitable Growth: The Case
of Authoritarian Capitalism in Brazil (Cambridge, Cambridge University Press,
1982). Para uma história da aplicação da lei salarial, ver Lívio de Carvalho,
"Brazilian Wage Policies, 1964-81", Brazilian Economic Studies, N.° 8 (1984),
pp. 109-41.
58. DIEESE, "Dez anos de política salarial", pp. 12-13.

82 Brasil: de Castelo a Tancredo
Convencendo os credores e investidores estrangeiros

A luta contra a inflação era vital não somente em si mesma mas também para o
restabelecimento da credibilidade lá fora. A guinada do Brasil para a moratória
unilateral da dívida no governo Goulart deixara os credores estrangeiros
profundamente desconfiados. O governo Castelo Branco enfrentava agora a
dificuldade de lhes reconquistar a confiança.

A primeira fase era psicológica: convencer a todos que o Brasil confirmava
tudo o que dizia e tinha forças para continuar no páreo. A história do Brasil
após 1945 estava repleta de programas de estabilização abandonados. Em todos os
casos o governo achava os custos políticos altos demais e arquivava o programa.
Castelo Branco tinha que provar que agora seria diferente. Uma de suas primeiras
medidas foi repudiar o nacionalismo radical ("nacionalismo romântico", como
dizia Roberto Campos) que recebera crescente apoio no Brasil a partir da metade
dos anos 50.59 Em julho de 1964 o governo agiu no sentido de revogar a lei de
remessa de lucros de 1962, que fixara um teto para as remessas (10 por cento por
ano do investimento original, exclusivamente os lucros reinvestidos).60 Muitas
firmas e governos estrangeiros, especialmente os Estados Unidos, haviam
protestado, considerando a lei injusta. Como no caso da lei salarial, o governo
garantiu apoio parlamentar, já que anteriormente expurgara os principais
legisladores que professavam o nacionalismo radical. Revogando a lei de
1962 (e através de outras medidas explicadas adiante), os ministros econômicos
esperavam rápido aumento dos investimentos estrangeiros privados que trariam
consigo tecnologia, assim como a melhoria da balança de pagamentos. Por outro
lado, tais investi-
___________
59. Roberto de Oliveira Cantos, A moeda, o governo e o tempo (Rio de Janeiro,
1964), p. 184. O nacionalismo - de um tipo que ele achava ilusório ou pernicioso
era alvo favorito da retórica de Campos.
60. Para um estudo do funcionamento da lei de remessa de lucros de 1964, ver Jan
Hoffman French, "Brazil's Profit Remittance Law: Reconciling Goals in Foreign
Investments", Law and Policy in International Business, XIV (1982), pp. 399-451.
A política brasileira para corn as multinacionais até 1976 é comentada em
Stefan H. Robock, "Controlling Multinational Enterprises: The Brazilian
Experience", Journal of Contemporaty Business, VI, N.° 4 (1977), pp. 53-71.

Castelo Branco: arrumando a casa 83
mentos poderiam ajudar a dar vida nova aos empresários brasileiros sacrificados
pelo aperto deflacionário.61 Castelo Branco achou também que uma aproximação com
os investidores estrangeiros ajudaria a convencer o governo dos Estados Unidos e
as agências internacionais - FMI, Banco Mundial e Banco Interamericano de
Desenvolvimento - que o Brasil estava novamente comprometido com a economia do
"mundo livre".

Embora o governo expusesse com extrema sinceridade a nova postura brasileira,
as dúvidas persistiam no exterior. Quase três meses depois da Revolução, o
Brasil não havia recebido a garantia de nenhum compromisso por parte de qualquer
credor externo, público ou privado, apesar de ter elaborado seu plano de
estabilização sobretudo para agradar o FMI, o juiz mais rigoroso.62 A questão
foi finalmente superada no final de junho quando os Estados Unidos anunciaram um
"programa de empréstimo" de US$50 milhões dando ao governo brasileiro grande
flexibilidade em seu uso.

Quanto à dívida externa, o Brasil precisava desesperadamente renegociar o
programa de amortizações. Desde o final da década de 50, o país fizera uso cada
vez maior de créditos estrangeiros de curto prazo para financiar déficits
comerciais. O governo Goulart abrira as negociações da dívida em 1963 mas não
chegara a nenhum resultado. Seus assessores haviam estimado que para 1964 o
serviço da dívida consumiria 40 por cento da receita das exportações, número
altamente preocupante pelos padrões históricos. A curto prazo o país não tinha
escolha a não ser pedir uma renegociação. Enquanto isso, os fornecedores
recusavam-se a conceder mais recursos.

Os credores brasileiros ficaram na expectativa de um governo mais cooperativo
em Brasília e receberam corn satisfação (em geral
___________
61. Num discurso em julho de 1964, Castelo Branco anunciou que a política
antiinflacionária não seria paga com a estagnação. O crescimento viria, dentre
outras coisas, da "restauração dos ingressos de capital estrangeiro e do retorno
a entendimentos sérios com as organizações financeiras internacionais, inclusive
a Aliança para o Progresso", Humberto de Alencar Castelo Branco, Discursos:
1964, p. 66.
62. Roberto Campos, entrevista com o autor, Londres, 3 de julho de 1978. Na
ausência de indicação específica, a fonte dos dados e informações para o
restante desta seção é Syvrud, Foundations of Brazilian Economic Growth, cap.
VIII.

84 Brasil: de Castelo a Tancredo
extra-oficialmente) a deposição de Goulart e a nomeação de uma equipe econômica
com pontos de vista ortodoxos. Querendo capitalizar esta receptividade, Castelo
Branco providenciou rapidamente o escalonamento da dívida. Em julho de 1964 os
representantes brasileiros concordaram com um novo plano de pagamentos
envolvendo todos os principais credores, inclusive os Estados Unidos, o Japão e
a Europa Ocidental. Por exemplo, 70 por cento dos pagamentos de créditos
comerciais a médio prazo com vencimentos em 1964 e 1965 foram refinanciados com
o Tesouro norte-americano, o FMI, o Eximbank e um consórcio de credores
europeus. Isto reduziu os encargos da balança de pagamentos em 1964-65 em
US$153 milhões e melhorou consiedravelmente a capacidade importadora do Brasil,
sempre crucial em uma recuperação econômica.

A próxima renegociação aconteceu no início de 1965, e o Brasil concentrou-se
na questão dos atrasados comerciais, devido sobretudo às importações de
petróleo, que em janeiro de 1965 totalizavam US$109 milhões. Em fevereiro de
1965 o Brasil fez acordo com os bancos comerciais e os fornecedores dos Estados
Unidos e da Europa para regularizar seus pagamentos em níveis realistas para o
país. Campos e Bulhões ficaram satisfeitos mas longe de eufóricos, pois
esperavam enfrentar negociações adicionais de reescalonamento em 1966, quando o
Brasil teria que apresentar provas de uma verdadeira mudança em sua economia
doméstica.63

Embora a renegociação da dívida fosse mais urgente, atrair novos capitais do
estrangeiro era também vital. O êxito aqui, entretanto, foi muito mais difícil.
Os US$50 milhões do empréstimo inicial dos Estados Unidos não induziram fluxos
de capital para cá, e as agências internacionais permaneceram cautelosas até
meados de 1964. Somente no início de outubro surgiram sinais encorajadores. O
Banco Mundial avaliara favoravelmente as novas políticas e anunciou a intenção
de reiniciar seus empréstimos (após um hiato de 14 anos). Mas outras agências
multilaterais não seguiram o seu exemplo, e em fins de 1964 o Banco Mundial
ainda não havia formalizado qualquer empréstimo. Em meados
_________
63. Ibid., pp. 182-87. Importante também sobre a história da dívida externa de
1947 a 1966 é John Donnelly, "Externai Debt and Long-Term Servicing Capacity",
em H. John Rosenbaum e William G. Tyler, eds., Contemporary Brazil Issues in
Economia and Political Developtnent (New York, Praeger, 1972), pp. 95-123.


Castelo Branco: arrumando a casa 85
de novembro Castelo Branco estava tão frustrado que considerou seriamente
suspender as negociações então em curso com uma equipe visitante do FMI.M
Nesses meses de dificuldades o mais fiel aliado do novo regime continuou a ser o
governo dos Estados Unidos. Em princípio de novembro de 1964 o embaixador
Lincoln Gordon anunciou que, nos sete meses a partir de abril, o governo
americano havia comprometido US$222 milhões para o Brasil. Em meados de
dezembro, o diretor da USAID (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento
Internacional) David Bell, depois de visitar os projetos financiados pelo seu
governo no Brasil, anunciou uma ajuda adicional de US$650 milhões. Tio Sam
aumentava suas apostas na revolução que aplaudira com tanto entusiasmo.

Em fevereiro de 1965 os compromissos finalmente começaram a multiplicar-se. O
Banco Mundial anunciou uma série de novos empréstimos. O FMI anunciou um acordo
standby de US$ 126 milhões e uma "linha de crédito" sobre a qual o Brasil podia
sacar a qualquer tempo. Era uma medida importante, pois representava a mais alta
classificação de crédito que o FMI oferecia. Significava também que o Fundo
estava apoiando (apesar do ceticismo de alguns dos seus funcionários) o PAEG (e
outras políticas) como suficientemente ortodoxo pelos padrões da instituição.

A credibilidade do governo Castelo Branco era maior do que a de qualquer
outro governo dos últimos 15 anos? O Banco Mundial evidentemente pensava assim,
pois seus empréstimos de 1965 foram os primeiros ao Brasil desde 1950. Ou teria
o Banco moderado seus padrões? Talvez um pouco de ambos. Roberto Campos era
altamente respeitado nos círculos financeiros dos Estados Unidos e da Europa e
muito eficiente na defesa das pretensões brasileiras. Era certo também que o
plano relativamente ortodoxo de Campos e Bulhões, se levado a efeito, melhoraria
substancialmente o balanço de pagamentos do Brasil, e era isto, afinal, a
principal preocupação do FMI.

O programa econômico brasileiro exigia uma política de desvalorização
bastante agressiva para manter o cruzeiro com um valor realista. Em 1964 foram
feitas cinco sucessivas desvaloriza-
________________
64. Lincoln Gordon, carta (27 de julho de 1972) a Luís Viana Filho, Arquivo
Castelo Branco.

86 Brasil: de Castelo a Tancredo
ções, reduzindo o valor do cruzeiro em 204 por cento contra o dólar norte-
americano. Duas dessas desvalorizações foram feitas antes da queda de Goulart,
sendo que as três seguintes representaram 57 por cento do total. No começo de
1965 o novo governo já havia desvalorizado até o ponto que o FMI desejava antes
de conceder o standby. A taxa cambial que prevalecia no fim de 1964 - 1.825
cruzeiros por dólar - foi mantida até novembro de 1965, quando o cruzeiro
sofreu nova desvalorização de 21 por cento.65

Ao conceder o status de standby, o FMI finalmente estava acendendo a luz
verde para credores e investidores que estivessem pensando em aplicar no Brasil.
Nova demonstração de confiança era dada logo a seguir pelos Estados Unidos. Em
agosto de 1965 uma missão chefiada pelo senador William Fulbright, chairman do
Comité de Relações Exteriores do Senado, e constituída por três outros
senadores, pelo presidente do Eximbank e o secretário de Estado adjunto Thomas
Mann, visitou o Brasil. Fulbright anunciou no Rio que sua missão oficial era uma
"evidência da aprovação" nos Estados Unidos dos eventos ocorridos a partir de
abril de 1964.66

O entusiasmo das agências internacionais e do governo dos Estados Unidos não
bastava, contudo, para satisfazer aos investidores privados. Nem tampouco
garantias legais, como o acordo Brasil-Estados Unidos, de fevereiro de 1965,
protegendo os investidores americanos contra expropriações. Que, então, estava
faltando? O investidor estava examinando a perspectiva de crescimento econômico,
o único capaz de gerar lucros. Ora, em meados de 1965 não havia qualquer certeza
de que o programa do governo produziria logo o crescimento, por isso os
investidores privados permaneceram cautelosos. Em 1964 os novos investimentos
líquidos do setor privado estrangeiro caíram para US$28 milhões em comparação
com os US$30 milhões em 1963. E o total para 1965 chegava somente a US$70
milhões. Os investimentos estrangeiros líquidos só foram reiniciados em nível
significativo após 1967 e assim mesmo quase sempre a curto prazo.
__________
65. Um útil resumo das mudanças nas taxas de câmbio oficiais do Brasil é
apresentado em Syvrud, Foundations of Brazilian Economic Growth, pp. 194-95.
66. New York Times, 10 de agosto de 1965.

87
Considerando-se um pouco o fluxo de capital líquido para o Brasil, verifica-
se que o relutante investidor privado não era o único problema. Igualmente
penosas eram as transações com o Eximbank e as agências multilaterais. Estas
instituições contribuíram com um ingresso de capital líquido de apenas US$82
milhões em 1964, mas retiraram do país em 1965 capital líquido no valor de US$6
milhões.

Dois fatores explicavam esta tendência. Primeiro, para obter empréstimos de
organismos como o Banco Mundial e o BIRD (Banco Interamericano de Reconstrução e
Desenvolvimento), o Brasil tinha que preparar solicitações de empréstimos para
projetos (rodovias, escolas, usinas hidrelétricas etc.), que em seguida deviam
ser processadas. Mesmo os novos empréstimos do Banco Mundial, por exemplo,
totalizaram menos do que o pagamento pelo Brasil de empréstimos anteriores. De
1964 a 1967, o Banco Mundial levou mais dinheiro para fora do Brasil (em
amortizações de empréstimos) do que enviou para cá. Segundo, o Eximbank, que
fizera grandes empréstimos ao Brasil, queria agora reduzir a parcela de sua
responsabilidade (20 por cento) no saldo da dívida externa desse país. Durante
seis anos a partir de 1964 as amortizações brasileiras ao Eximbank ultrapassaram
em US$200 milhões os novos créditos. Assim, no governo Castelo Branco (1964-
67) tanto o Banco Mundial como o Eximbank tiraram mais dinheiro do Brasil do que
lhe deram.

Felizmente, outros credores salvaram a situação. Um deles foi o BIRD, que
contribuiu com US$172 milhões de capital líquido entre 1964 e 1967. Mas o grande
salvador mesmo foi o governo dos Estados Unidos, especialmente a USAID, o
principal instrumento daquele governo para a execução da Aliança para o
Progresso. Em 1965 a USAID aplicou no Brasil US$147 milhões, e de 1964 a 1967 o
total foi de US$488 milhões. O governo brasileiro recebeu com especial agrado
essa ajuda por duas razões. Primeiro, a USAID tinha flexibilidade para
desembolsar dinheiro rapidamente. Segundo, grande parte do dinheiro vinha sob a
forma de program loans (empréstimos-programa). Como se disse antes, esses
empréstimos não eram destinados a projetos específicos, ao contrário dos
"empréstimos-projeto" da própria USAID, do Banco Mundial e do BIRD.
Um bem informado economista estimou que

88 Brasil: de Castelo a Tancredo
a USAID forneceu mais de 80 por cento do capital líquido a longo prazo que
entrou no Brasil entre 1964 e 1967.67

Não surpreende que tal forma de ajuda fosse concedida sob condições. Os
empréstimos-programa da USAID, por exemplo, exigiam que o governo brasileiro
apresentasse àquele órgão relatórios trimestrais de performance macroeconômica,
enquanto no caso dos empréstimos-projeto a USAID só recebia relatórios a
respeito dos próprios projetos. À medida que os relatórios trimestrais eram
fornecidos, a Embaixada dos Estados Unidos examinava detidamente ô desempenho de
toda a economia do governo. Este processo acabou transformando os Estados Unidos
em uma espécie de FMI unilateral, supervisionando todos os aspectos da política
econômica brasileira.

Indiferente às obrigações legais para com o contribuinte americano, o efeito
político era dramatizar a proximidade do governo Castelo Branco com o dos
Estados Unidos. Houve uma rápida proliferação de contratos com a USAID nos
campos da educação agrícola, da reforma agrária, produção pesqueira, erradicação
da malária, produção de livros didáticos, treinamento de líderes trabalhistas e
expansão de mercados de capital.68 Essas atividades concorreram para promover a
imagem dos Estados Unidos como o poder onipresente, pronto para fornecer
dinheiro, tecnologia e assessores para todas as necessidades do desenvolvimento
brasileiro. Quando chegou ao Brasil em 1966, o novo embaixador americano não
conteve uma sensação de desalento ao verificar que, "em quase todos os gabinetes
brasileiros envolvidos em decisões impo-
___________
67. Syvrud, Foundations, p. 206. A fonte oficial sobre assistência dos Estados
Unidos ao Brasil é a Agency for International Development, Bureau for Program
and Policy Coordínatian, Office of Statistics and Reports, U.S. Overseas
Loans and Grants and Assistance from International Organizations Obligations and
Loan Authorizations, July l, 1945-June 30, 1971 (Washington, 1972), p. 38.
68. "United States Policies and Programs in Brazil", Hearíngs Before the
Subcommittee on Western Hemisphere Affairs of the Committee on Foreign
Relations, United States Senate, Ninety-second Congress, Primeira sessão: 4, 5 e
11 de maio de 1971 (Washington, US Government Printing Office, 1971), pp. 218-
29.

Castelo Branco: arrumando a casa 89
pulares sobre impostos, salários ou preços, havia também a indefectível presença
de um assessor americano".69

A UDN: uma base política viável?}

Desde o início do seu governo os revolucionários não se entenderam sobre a
profundidade da reforma por que deveria passar a estrutura política brasileira.
Os três ministros militares resolveram inicialmente a questão editando o
(primeiro) Ato Institucional em 9 abril de 1964. Limitaram-se ali a um
cronograma relativamente curto. Tudo de que necessitavam eram os expurgos
políticos de abril-junho de 1964. A partir daí a nação presumiIvelmente voltaria
ao regime constitucional. Mas Castelo Branco l descobriu que sua tarefa era
muito mais difícil do que se pensava, pois não se limitava simplesmente a
remover "subversivos" da vida pública. Exigia também, como ele disse em abril de
1964, "condições que, certamente, não alcançaremos sem levar a cabo algumas
reformas destinadas a abrir novos caminhos e novos horizontes, para a ascensão
de cada qual na medida da sua capacidade".70 Que reformas? Na posse da terra? Na
educação? Nas relações trabalhistas? Na habitação? Os revolucionários não
conseguiram chegar a um consenso quando se tratou de formular e implementar
reformas importantes nessa área. Em suas primeiras semanas no poder o governo
revolucionário deu-se conta de que os 18 meses que faltavam para o térmi-
_________
69. O embaixador John Tuthill lançou um plano amplamente divulgado para reduzir
o tamanho da missão, embora não a escala da assistência econômica. Ele a
descreveu com espírito, em Tuthill, "Operation Topsy", Foreígn Policy, N." 8
(Outono de 1972).
70. Castelo Branco, Discursos: 1964, p. 30. Não tentei fazer uma análise
abrangente das decisões econômicas de 1964 a 1967. Diversas áreas, inclusive
agricultura, educação, moradia e bem-estar social, foram omitidas. Estes
tópicos foram cobertos em dois volumes do início dos anos 70 sobre o Brasil:
Rosenbaum e Tyler, eds., Contemporary Brazil, e Roett, ed., Braztt in the
Sixties. Cada política foi assunto de pesquisa monográfica. Uma excelente fonte
sobre esta pesquisa é encontrada nas bibliografias regularmente publicadas em
BIB, Boletim Informativo e Bibliográfico de Ciências Sociais. A primeira edição
foi publicada como parte de Dados, N." 15 (1977), embora logo tenha se
transformado em publicação separada, sendo editada a partir de 1985 pela
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Rio).

90 Brasil: de Castelo a Tancredo
no do mandato de Goulart eram um prazo curto demais para que alcançasse suas
metas. A equipe econômica sabia em meados de 1964 que não tinha condições para
debelar a inflação até 20 de janeiro de 1966, quando um novo presidente deveria
assumir o poder. Além disso, as medidas de estabilização certamente irritariam
grande parte da população. Ora, se as eleições presidenciais fossem realizadas
em novembro de 1965, como previsto, os revolucionários poderiam perder.
Precisavam portanto de mais tempo.

Castelo Branco recusava-se até a discutir a prorrogação do seu mandato.71
Comprometido com os princípios do governo legal, constitucional e democrático,
ele afirmava que a prorrogação do seu mandato seria a essência da ilegalidade.
Como certa vez confidenciou, "não tenho vocação para ditador". Aliás, em 1963,
ele relutara em participar da conspiração contra o presidente legal.
Ironicamente, foi sua crença na legalidade e sua convicção de que João Goulart
estava atentando contra ela que transformou Castelo em conspirador. Em seu
discurso de posse ele declarava: "Nossa vocação é a da liberdade democrática -
governo da maioria com a colaboração e o respeito das minorias".72 Por mais que
nutrisse ambições (nenhum oficial chegaria a general sem as ter), ele não
demonstrava cobiçar o poder a longo prazo.

Em julho de 1964 finalmente se rendeu. Aceitou uma emenda constitucional
(facilmente aprovada pelo Congresso) prorrogando seu mandato por 14 meses (até
março de 1967) e adiando a próxima eleição presidencial para novembro de 1966.
Os revolucionários defendiam a prorrogação como necessária para terem tempo de
afastar os subversivos e os corruptos e implementar as reformas. Só depois disto
estaria o país preparado para retornar a um governo constitucional.

Embora o presidente se esforçasse por evitar a impressão de sectarismo
político, ninguém duvidava de que quando ele falava em "normalidade" política
tinha em mente o poder nas mãos da UDN. Não somente Castelo professava a
filosofia política udenista, mas também era pessoalmente ligado a líderes do
partido como Juracy Magalhães, Milton Campos e Bilac Pinto. Aliás, a campanha
arquiconservadora de Bilac Pinto em 1963-64 contra Goulart ajudou a convencer
Castelo de que somente uma conspiração contra
_________
71. Castelo Branco, Discursos: 1964, p. 40.
72. Ibid., p. 13.

Castelo Branco: arrumando a casa 91
o chefe do governo poderia salvar a democracia brasileira. Castelo, portanto,
achou apenas natural que a UDN desempenhasse papel central na "restauração" da
democracia.

A primeira medida que ele tomou nesse sentido foi acrescentar um dispositivo
na emenda constitucional de julho de 1964 que adiava a eleição presidencial,
exigindo, para o futuro, maioria absoluta do voto popular para eleger o
presidente. Era esta uma modificação pela qual a UDN há muito pugnava.73 Em
1951, por exemplo, o partido tentou impedir a posse de Getúlio Vargas (em vão)
argumentando que sua vitória por maioria simples não atendia o requisito,
implícito na Constituição, de maioria absoluta. O mesmo argumento foi usado pelo
partido em 1955 quando Juscelino também ganhou por maioria simples. Agora,
instalados no poder por um golpe militar, os políticos da UDN tinham a sua vez.
Como lhes disse Castelo: "Não podemos deixar de inscrever na Carta Magna esse
salutar princípio do nosso partido".74 E assim foi feito.

O próximo passo do presidente foi tratar de consolidar a UDN unificando-a. A
missão era penosa, em grande parte porque a opinião mais acatada do partido era
a do inconstante Carlos Lacerda que não se distinguia pelo espírito de equipe.
Lacerda aspirava à presidência, e combatera com extrema veemência a extensão do
mandato de Castelo.75 É que ele receava que os generais logo fechassem a porta à
sua única esperança de chegar à suprema magistratura: eleições diretas.

73. Os vínculos da UDN com o governo militar e o destino posterior do partido
são lucidamente descritos em Maria Victoria de Mesquita Benevides, A UDN e o
udenismo: ambigüidades do liberalismo brasileiro, 1945-1965 (Rio de Janeiro, Paz
e Terra, 1981), pp. 125-43. O argumento da UDN em favor da maioria absoluta é
recapitulado na entrevista de Prado Kelly em Lourenço Dantas Mota, ed., A
história vivida, Vol. l (São Paulo, O Estado de S. Paulo, 1981), pp. 158-60.
74. Dulles, President Castello Branco, p. 53.
75. Uma extensa autobiografia de Lacerda, resultado de várias entrevistas
coletivas gravadas um mês antes de sua morte em 1977, foi publicada em Carlos
Lacerda, Depoimento (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1977). Inclui um relato de
suas relações com o governo Castelo Branco. Para uma proveitosa análise do
apoio político a Lacerda, baseada em uma apreciação dos sistemas de
votação e outros dados referentes ao Grande Rio, ver Gláucio Ary Dillon Soares,
"As bases ideológicas do lacerdismo", Revista Civilização Brasileira, N.° 4
(setembro de 1965), pp. 49-70.

92 Brasil: de Castelo a Tancredo

Castelo Branco e seus auxiliares sabiam do perigo que o então governador da
Guanabara representava quando fazia oposição, pois era conhecida a sua reputação
de destruidor de presidentes. Em 1954 ele mobilizara a opinião pública (e, mais
importante, a opinião militar) contra Getúlio Vargas, que se suicidou em vez de
renunciar. Em 1961 foi ele quem ajudou a incitar Jânio Quadros à renúncia, e em
1964 foi ainda ele, com a estridência de sua oratória, quem liderou a oposição
civil contra João Goulart. Castelo Branco tentou com muita dificuldade manter-se
em bons termos com o seu renegado governador. Em julho de 1964 ofereceu-lhe um
posto no Ministério, convidando-o para ajudar na luta centra a inflação. Mas
Lacerda não somente recusou; desfechou impiedoso ataque contra todo o programa
antiinflacionário do governo. O presidente, preocupado com sua reduzida base
política civil, preferiu manter uma atitude discreta.

No horizonte presidencial de Lacerda pairava agora nova ameaça: o Planalto
queria adiar a convenção udenista marcada para novembro de 1964, a fim de
escolher o candidato do partido à presidência da República. A manobra fracassou
e Lacerda saiu candidato com 309 votos de um total de 318, realmente uma vitória
esmagadora. O partido, em cujo apoio Castelo baseara sua estratégia política,
escolhera um imoderado adversário de seu governo, o qual, para complicar ainda
mais as coisas, estava aliciando o apoio de militares da linha dura, como sempre
o fizera ao longo de sua carreira política. Isto o tornava duplamente perigoso.

Apesar deste revés, o presidente continuou sua tentativa de fortalecer a UDN.
Em novembro de 1964, por exemplo, viu no episódio Mauro Borges mais um meio de
ajudar o seu partido predileto. Membro do poderoso clã Ludovico, que há muito
controlava a política de Goiás, Mauro Borges governava o estado em nome do PSD.
Mas fizera muitos inimigos, tanto no plano local como no nacional, e, dentre
eles, militares da linha dura. Esses adversários fizeram circular boatos ligando
o nome de Borges a um movimento guerrilheiro contra o regime. Não podia haver
notícia melhor para os líderes da UDN estadual, que esperavam alcançar o poder
através do expurgo dos Ludovico pelo governo federal. Como o Ato Institucional
n.° l havia expirado, Castelo não dispunha mais do poder arbitrário usado em
expurgos políticos anteriores. Em vez disso, ele procurou persuadir a assembléia
estadual a requerer intervenção federal. Mas o Congresso federal tornou
desnecessária a solicitação votando pela "intervenção" em Goiás. Mauro Borges
foi afastado e um idoso marechal do Exército, escolhido a dedo pelo presidente,
nomeado interventor. O expurgo de um governador meses após haver expirado a
vigência do Ato Institucional indicava que a "fase negativa" da política
revolucionária não havia terminado.76

A inclinação de Castelo Branco pela UDN manifestou-se novamente quando o
pessedista Ranieri Mazzilli, que há muito presidia a Câmara dos Deputados,
tentou a reeleição em fevereiro de 1965. Muitos parlamentares supunham que a
reeleição fosse coisa pacífica. Mas Castelo não pensava assim; seu candidato era
Bilac Pinto, e depois de ativas negociações realizadas por intermediários do
chefe do governo, Bilac Pinto foi eleito.77 A ascensão da UDN, via intervenções
arbitrárias, continuava velozmente.

Derrota nas urnas e reação da linha dura

Os estrategistas políticos de Castelo Branco sabiam que os expurgos políticos e
o programa de estabilização econômica indisporiam com o governo muitos
eleitores. A questão era que parcela da opinião pública pró-revolução podia ser
retida até que o programa econômico começasse a dar resultados. O primeiro revés
eleitoral do governo aconteceu com a eleição para prefeito de São Paulo em março
de 1965. Foi um revés porque o vencedor, brigadeiro Faria Lima, havia sido
apoiado por Jânio Quadros, já privado dos seus direitos políticos. Embora o
governo Castelo Branco não tivesse interesse direto na eleição, o resultado
desagradou os militares da linha dura, que estavam ficando nervosos com. a
eleição de onze governadores marcada para outubro de 1965 (os outros nove seriam
sufragados em um ciclo eleitoral diferente). Para muitos militares, a solução
era suspender as eleições diretas de modo a se evitar a derrota do governo.
_________________
76. Para um sombrio relato de um jornalista local adversário de Borges, ver
Lisita Júnior, Goiás, novembro 26 (Goiânia, Liv. Figueiroa, 1965).
77. Dulíes, President Castello Branco, pp. 123-26.

94 Brasil: de Castelo a Tancredo

Dois estados eram de importância principal, Guanabara e Minas Gerais.78 Os
respectivos governadores (legalmente impedidos de se candidatarem à reeleição)
eram preeminentes líderes da UDN - Carlos Lacerda na Guanabara e Magalhães Pinto
em Minas Gerais. Ambos tinham sido destacados defensores da conspiração anti-
Goulart, mas se haviam transformado agora em violentos críticos do programa de
estabilização. É óbvio que os candidatos da oposição também atacavam fortemente
as políticas dos ministros Campos e Bulhões. A vitória de qualquer dos dois
candidatos em ambos os estados, portanto, podia ser interpretada como um
protesto contra o governo federal.

Na esperança de aumentar as possibilidades de vitória da UDN, Castelo Branco
apertou o controle do seu governo sobre o sistema eleitoral.79 Primeiro ele
conseguiu que o Congresso aprovasse uma emenda constitucional, supostamente para
reduzir a "corrupção eleitoral", a qual exigia que os candidatos comprovassem
quatro anos de domicílio eleitoral nos estados por onde pretendessem concorrer.
A segunda medida foi uma "lei de inelegibilidade", aprovada pelo Congresso sob
forte pressão governamental em julho de 1965, que, entre outras coisas, vetava a
candidatura de quem quer que houvesse servido como ministro do governo Goulart
depois de janeiro de 1963. Esta medida, como a precedente, visava os políticos
oposicionistas que o Planalto achava que dificilmente poderiam ser derrotados
nas eleições que se aproximavam.

Os candidatos da UDN ao governo nos dois estados-chave foram Roberto Resende
em Minas Gerais e Flexa Ribeiro na Guanabara. Ambos eram vigorosamente apoiados
pelos seus governa-
____________
78. Para uma apreciação das eleições, ver Schneider, The Political System
of Brazil, pp. 162-69.
79. O teste a que se submeteram as reformas da lei eleitoral em 1965 é
apresentado em Senado Federal: Subsecretária de Edições Técnicas, Legislação
eleitoral e partidária: Instrução do TSE para as eleições de 1982, 4." ed.
(Brasília, Senado Federal, 1982), pp. 5-107. Para uma sucinta explicação de como
a lei eleitoral se enquadra na evolução política a partir de 1945, ver Robert
Wesson e David V. Fleischer, Brazil in Transition (New York, Praeger, 1983),
capítulos 3 e 4. A análise mais sistemática do sistema partidário no período
1945-64 é de Olavo Brasil de Lima Júnior, Os partidos políticos brasileiros: a
experiência federal e regional: 1945-64 (Rio de Janeiro, Graal, 1983).

95
dores, que procuraram distanciá-los das políticas impopulares de estabilização
de Castelo Branco. Em agosto os partidos da oposição tanto na Guanabara como em
Minas Gerais saíram em busca de candidatos antigoverno corn possibilidade de
serem eleitos. Pela manipulação das regras do jogo político, o governo havia
praticamente imobilizado a oposição. Não era de surpreender, portanto, que
muitos dos seus candidatos não lograssem a aceitação da linha dura militar. Na
Guanabara o candidato favorito do PTB era Hélio de Almeida, engenheiro muito
conhecido e respeitado, que foi logo desqualificado nos termos da lei de
inelegibilidade, embora a principal preocupação do governo a seu respeito fosse
o seu peso eleitoral. A segunda opção do PTB foi o marechal Henrique Lott,
ministro da Guerra "nacionalista" de Juscelino (1956-61) e mais tarde candidato
presidencial derrotado em 1960. Os linhasduras odiavam Lott por sua suposta
aceitação do apoio comunista em 1960, bem como por sua alegada confraternização
coM elementos "subversivos". A candidatura de Lott foi cancelada por motivo de
domicílio eleitoral pelo Tribunal Eleitoral, deliberando sob intensa pressão
governamental. Foi então que PTB e PSD conjuntamente escolheram Negrão de Lima,
um rebento pessedista que exercera as funções de ministro das Relações
Exteriores do governo Kubitschek.

Em Minas Gerais o PSD (o PTB era fraco ali) escolheu Sebastião Paes de
Almeida, destacado membro do partido e último ministro da Fazenda de Juscelino.
Os militares linhas-duras o consideravam uma bete noire pela reputação que tinha
de comprar votos. Acionado o Tribunal Eleitoral, este o considerou inelegível a
pretexto de que exercera influência inadequada para vencer uma eleição anterior.
O candidato que o substituiu foi Israel Pinheiro, também pessedista, e outro
velho amigo e protegido de Juscelino. As indicações de Negrão de Lima e Israel
Pinheiro foram aceitas, talvez porque o Planalto e os líderes udenistas achavam
que poderiam derrotá-los. Essas eleições assumiram a forma de acirradas disputas
entre UDN e PSD, corn este último conquistando logo largas faixas da oposição.
Tanto o governo quanto a oposição viram no pleito para os dois importantes
estados o primeiro grande teste eleitoral desde o golpe. O interesse pela
campanha intensificou-se quando o expresidente Juscelino Kubitschek, após
dramático retorno de seu exílio na Europa, apoiou ambos os candidatos do PSD.

96 Brasil: de Castelo a Tancredo

As eleições foram uma amarga decepção para o Planalto. Negrão de Lima
derrotara Flexa Ribeiro e Israel Pinheiro ultrapassara de muito Roberto Resende.
Os candidatos udenistas perderam fragorosamente, e em ambos os casos para
proteges de Juscelino.80 Candidatos pró-governo (ou, pelo menos, não
oposicionistas) venceram nos outros nove estados. No entanto, as atenções
estavam voltadas para os dois grandes, que o Planalto e a imprensa haviam
descrito como o verdadeiro teste para o governo.

Oficiais do Primeiro Exército no Rio ficaram furiosos corn os resultados das
eleições e muito mais furiosos coM Castelo Branco por haver prometido respeitar
o veredicto das urnas. Circularam boatos de que os militares mais exaltados
estavam em vias de depor Castelo Branco para instalar um "genuíno" governo
revolucionário. Até os oficiais mais moderados se achavam profundamente
contrariados. Ao que se propalava, dois grupos de oficiais conspiravam: um,
constituído por membros da entourage de Lacerda, queria o golpe para instalar o
seu chefe no poder. Mais ameaçador era o segundo grupo, liderado pelo general
Albuquerque Lima. Os seus membros mais radicais queriam ir até o estádio do
Maracanã, onde se fazia a contagem dos votos, para queimar as cédulas, marchando
em seguida para o Palácio Laranjeiras, residência presidencial no Rio. Todas
essas tramas tinham um elemento comum: repúdio dos resultados eleitorais e
instalação de uma ditadura ostensiva.81

Castelo Branco de repente se viu confrontado com a crise mais grave de seu
curto governo. Como poderia manter o seu compromisso com a democracia e ao mesmo
tempo afastar os linhas-duras que ameaçavam depô-lo? As medidas políticas
radicais não conseguiram impedir a volta de políticos do PSD do tipo que
tornaram a Revolução necessária.
____________
80. Schneider, The Politic System of Brazil, pp. 167-68. Deve-se notar que a
posição pessoal de Castelo Branco era mais complicada do que sugere este relato.
Ele era amigo de Negrão de Lima e provavelmente preferisse sua vitória à de
Flexa Ribeiro, que, como protege de Lacerda, representava ameaça tão grave
(talvez mais) ao governo federal quanto o candidato da Oposição. Mas não era
assim, naturalmente, que o grande público e os camaradas de Castelo nas forças
armadas pensavam.
81. Fernando Pedreira, O Brasil político (São Paulo, DIFEL, 1975), p.162;
Dulles, President Castello Branco, p. 202; Carlos Chagas, Resistir é preciso
(Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1975), p. 50.

Castelo Branco: arrumando a casa 97

Este desafio político acontecia dentro do contexto de um programa de
estabilização que estava alienando o apoio dos eleitores. Os tecnocratas,
liderados por Roberto Campos, temiam que seu programa agora corresse risco por
se haver transformado num entrave político para os candidatos da UDN. Seria
possível que as políticas necessárias para o desenvolvimento econômico a longo
prazo do Brasil devessem ser vítimas de futuras eleições?82

A preocupação tinha razão de ser. Em meados de 1965 a estratégia antiinflação
do governo estava começando a dar resultado. Registrava-se forte queda na taxa
de crescimento da base monetária e no nível das despesas públicas, que haviam
caído de 12,1 por cento do PIB em 1963 para 10,5 por cento em 1965.83 Mas as
medidas ortodoxas haviam gerado recessão no coração industrial de São Paulo em
fins de 1964, embora o crescimento do PIB tivesse subido 2,9 por cento durante
todo o ano. Em 1965 a produção industrial caiu 5 por cento, sinal ameaçador para
uma sociedade atormentada por tanto subemprego e desemprego.84 Apesar do
declínio da indústria, o PIB subira 2,7 por cento em 1965. Mas os responsáveis
pela formação da opinião pública viviam no Triângulo do Sudeste (formado por
Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo), e graças ao combate que desfecharam
contra a depressão industrial nesta região, suplantaram a crítica oposicionista
à política económica. Ficou também demonstrado que em vista do aumento
demográfico de 2,8 por cento, o crescimento do PIB per capita foi efetivamente
zero em 1964 e 1965. A oposição política causada pela queda da produção
industrial comprovava, ironicamente, que o remédio dos tecnocratas estava
funcionando.
__________
82. Campos posteriormente explicou que antes de 1964 o Congresso era uma
"máquina de inflação", corn a sua prodigalidade em gastar e um "fator de
distorção" dos investimentos por causa de sua hipersensibilidade às
pressões regionalistas que pode destruir a coerência e o equilíbrio de planos e
programas. A decisão de cassar-lhe o poder de gerar leis envolvendo despesas ou
de elevar o total dos recursos solicitados pelo presidente da República
"resultou das úteis lições da experiência e não de fúteis caprichos dos
tecnocratas". Roberto de Oliveira Campos, "O poder legislativo e o
desenvolvimento", em Cândido Mendes, ed., O legislativo e a tecnocracia (Rio de
Janeiro, Imago Ed., 1975), pp. 31-41.
83. Syvrud, Foundations, p. 130.
84. Ibid., p. 50.

98 Brasil: de"Castelo a Tancredo
Mas a rigorosa política monetária seria em breve prejudicada por dois fatores
que nada tinham que ver corn a opinião pública. O primeiro foi o café,
tradicionalmente o principal produto de exportação, cuja safra de 1964-65 era
uma das maiores da história da agricultura brasileira. O governo, seguindo a
política habitual, garantiu preço mínimo para todo o café oferecido a venda.
Colhida a safra, o governo se viu às voltas corn a compra de um enorme
excedente. Para fazê-lo, teve que emitir dinheiro, medida que aumentou muito o
déficit público em conseqüência da pressão inflacionária.85

O segundo fator inesperado foi o superávit em conta corrente na balança de
pagamentos. As políticas constritivas fiscal e monetária haviam causado a
desaceleração da economia doméstica, reduzindo, por sua vez, a demanda de
importações. Como a receita das exportações permaneceu relativamente constante,
assim como a conta de capital, a balança de pagamentos acusou um imediato
superávit, surpresa para a qual o governo não estava preparado. Incertas de que
o superávit comercial - tão raro para o Brasil pós-1945 - persistiria, as
autoridades económicas não tomaram medidas para neutralizar ("esterilizar", no
jargão econômico) o ingresso resultante de moeda estrangeira. Esta foi
imediatamente convertida em cruzeiros, alargando assim a base monetária e
criando mais pressão inflacionária.

A luta contra a inflação não foi sacrificada apenas pelas reações à
gigantesca safra de café nem pelo inesperado superávit comercial. O governo
agravou o problema anunciando, no início de 1965, uma redução de impostos sobre
bens de consumo duráveis. O propósito expresso da medida era estimular a demanda
e assim elevar a produção industrial. Sem dúvida, destinava-se também a
fortalecer os candidatos pró-governo às eleições para governadores de outubro de
1965. De qualquer modo, os dois fatos elevaram para 75 por cento a expansão da
base monetária em 1965, mais do dobro da meta de 30 por cento estabelecida no
PAEG.86
___________________
85. Detalhes sobre as transações do governo federal corn o café podem ser
encontrados em Edmar Bacha, Os mitos de uma década (Rio de Janeiro, 1976), pp.
137-75, e em Syvrud, Foundations, cap. X.
86. Fishlow, "Some Reflections o.n Post-1964 Brazilian Economic Policy", p. 72.

Castelo Branco: arrumando a casa 99

Na esteira do resultado das eleições de novembro, os militares da linha dura
apresentaram um ultimato ao presidente. Só poderia continuar como chefe do
governo se vetasse a posse dos dois governadores pessedistas eleitos. Houve até
pressão para que os vencedores fossem investigados por tribunais militares. Mas
Castelo Branco acreditava firmemente que a legitimidade da Revolução dependia do
acatamento dos resultados de eleições legais.87 Após demorada negociação,
chegava-se a um compromisso: Negrão de Lima e Israel Pinheiro poderiam tomar
posse no Rio e em Minas Gerais, mas somente se o governo assumisse poderes para
evitar tais reveses políticos no futuro. Assim pressionado, Castelo primeiro
tentou convencer o Congresso a aprovar lei concedendo ao governo aqueles
poderes. Provavelmente ele tinha bastantes votos no Senado, mas não na Câmara.
Tentou por isso influenciar os líderes do PSD, inclusive e especialmente Amaral
Peixoto e Gustavo Capanema, para que apoiassem as medidas legais e políticas
essenciais à volta do Brasil à normalidade constitucional. Mas a liderança
pessedista, que se recusara a votar tais poderes após a deposição de
Goulart, mais uma vez se opôs.

Tal como a recusa anterior do PSD levara ao primeiro Ato Institucional, assim
também a de agora levou o governo a editar em 27 de outubro o segundo Ato
Institucional. O documento dava ao governo poderes para abolir os partidos
existentes e transformar em indiretas as futuras eleições para presidente, vice-
presidente e governador.88 O novo Ato era um compromisso entre as exigências dos
linhas-duras e dos moderados. Era também o reco-
__________
87. Na véspera das eleições para governadores de outubro de 1965, Castelo
Branco afirmou que era o compromisso do Brasil com as liberdades civis e com os
procedimentos democráticos que explicava o "crescente respeito dos outros povos
e os contínuos ingressos de recursos estrangeiros". Castelo Branco, Discursos:
1965, p. 285.
88. Os violentos debates sobre este novo recurso ao poder arbitrário são
descritos em Rowe, "The 'Revolution' and the 'System'", pp. 24-26; e Stepan, The
Military in Politics, pp. 254-57. Stepan baseou sua análise em longas
entrevistas com participantes e observadores. Os intensos esforços do Planalto
para obter aprovação legislativa são relatados em Viana Filho, O governo
Castelo Branco, pp. 340-55. Viana Filho habilmente resumiu o ponto de
vista do Planalto ao notar que "o dilema não era preservar ou não a legalidade,
mas permitir ou não que a nação vacilasse entre uma ditadura fascista da direita
e o retorno das forças depostas em 1964" (ibid.. p. 353).

100 Brasil: de Castelo a Tancredo
nhecimento pelo governo de que a busca de base política o forçava a manipular os
atores políticos mais plenamente do que os moderados haviam previsto. A
implicação era perturbadora. Por quanto tempo ficaria o eleitorado privado do
direito de escolher os governadores de sua preferência e o presidente da
República? E quem seria beneficiado corn a manipulação? Quereria este golpe
mostrar-se "revolucionário" devorando muitos dos seus próprios filhos?

III
Castelo Branco: a tentativa de institucionalizar

Com o segundo Ato Institucional (AI-2) em vigor, Castelo pôs fim às suas
esperanças de que os malefícios políticos e económicos do Brasil poderiam ser
debelados a curto prazo. Mas os castelistas, como vieram a ser chamados os
militares moderados, não abandonaram a crença de que tinham o remédio para
transformar o Brasil em uma democracia capitalista estável. Levaria apenas um
pouco mais de tempo. O restante da permanência de Castelo no poder é a história
da aplicação de doses cada vez mais fortes do mesmo remédio. Enquanto isso, ele
justificava sua crescente manipulação política como ações de curto prazo que
fortaleceriam a democracia com o correr do tempo.1

O Segundo Ato Institucional e suas conseqüências políticas

O principal propósito do AI-2, corn duração prevista até 15 de março de 1967
(fim do mandato de Castelo), era tornar mais difícil qualquer vitória eleitoral
da oposição. O presidente, vicepresidente e todos os governadores seriam a
partir de agora eleitos indiretamente - o presidente e o vice-presidente
pelo Congresso e os governadores pelas assembléias legislativas. Os últimos

1. Foi característico o discurso do presidente de 11 de dezembro de 1965 em que
previa que o Brasil reiniciaria gradual e ininterruptamente a vida normal de uma
democracia. Castelo Branco, Discursos: 1965, pp. 289-91.

102 Brasil: de Castelo a Tancredo
eram mais facilmente controláveis por Brasília, já que grande parte dos recursos
estaduais e outros favores eram determinados pelo governo federal.

O Ato número dois, tal como o número um, deu novamente ao chefe do governo o
poder de cassar os mandatos de todas as autoridades eleitas, inclusive
parlamentares, assim como a autoridade para suspender por 10 anos os direitos
políticos de qualquer cidadão. O documento estabelecia ainda o aumento de 11
para 16 do número de ministros do Supremo Tribunal Federal. Esta reforma do STF
fora imposta a Castelo pelos militares da linha dura irados com as sucessivas
decisões da mais alta corte judiciária contra os procuradores do governo em
graves casos de "subversão". O presidente do Tribunal, ministro Ribeiro da
Costa, denunciou a manobra, mas inutilmente.2 Finalmente, o AI-2 abolia todos os
partidos políticos então existentes.3

O efeito colateral mais danoso do AI-2, do ponto de vista do governo, era que
ele alienava ainda mais os políticos moderados e conservadores (sobretudo da
UDN), dos quais Castelo dependia para a sua base política civil. Milton Campos,
ministro da Justiça udenista e figura altamente respeitada da tradição legal de
Minas Gerais, recusara-se a elaborar o documento. Renunciou e foi prontamente
substituído por Juracy Magalhães, veterano udenista da Bahia, que se achava
preparado para executar o edito do autoritarismo.4
_____________
2. Quando o projeto referente ao STF estava sendo formulado, Ribeiro da Costa
atacou a intervenção militar como "algo nunca visto em nações verdadeiramente
civilizadas". A declaração provocou violenta resposta do ministro da Guerra
Costa e Silva que a chamou "sem dúvida de a maior injustiça jamais praticada
contra o soldado brasileiro". O principal assessor militar de Castelo Branco,
general Ernesto Geisel, que não morria de amores por Costa e Silva, ficou
revoltado com o que considerou uma intromissão do ministro em área tão delicado
e veementemente recomendou sua demissão. Castelo manteve o titular da Guerra.
Dulles, President Castello Branco, pp. 182-84.

3. Para uma proveitosa análise das cláusulas do AI-2 e como ele se relacionava
corn o contexto político, ver Maria Helena Moreira Alves, State and Opposition,
pp. 54-66.

4. Em Minhas memórias provisórias (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,
1982), pp. 189-96, Juracy Magalhães dá sua versão de como o Ministério lhe foi
oferecido e de seu papel subseqüente na elaboração do segundo Ato Institucional.

102
Para Castelo o AI-2 foi um penoso compromisso entre seus princípios
democrático-liberais e a necessidade que tinha de manter o apoio dos militares
da linha dura. Ele enviara o Ato para o Congresso, mas seus aliados não
conseguiram os votos necessários, apesar dos recentes expurgos. A derrota foi
assegurada pela facção da UDN pró-Lacerda, para a qual os novos poderes eram uma
ameaça às perspectivas presidenciais do seu candidato. Castelo teve que
proclamar o AI-2 unilateralmente, tal como a Junta Militar o havia feito corn o
primeiro Ato Institucional em abril de 1964. Ele o fez em sua qualidade de
"Chefe do Governo Revolucionário e Supremo Comandante das Forças Armadas".5

Castelo tentou salvar a dignidade udenista nomeando Milton Campos e Adauto
Lúcio Cardoso, pilares da respeitabilidade do partido, para o Supremo Tribunal.
Ambos, no entanto, recusaram a honraria. Ao mesmo tempo, o presidente reduziu
grandemente o seu próprio poder político ao insistir, apesar dos veementes
apelos de seus auxiliares mais próximos, que se incluísse uma cláusula
no AI-2 tornando-o inelegível para a eleição presidencial de 1966.6

Carlos Lacerda reagiu ao AI-2 dramaticamente renunciando à sua candidatura
presidencial. Embora houvesse dividido o partido com a luta pela sua indicação e
com suas ácidas críticas ao governo, a retirada do seu nome enfraqueceu a UDN.
Seu gesto Bambem punha em evidência as escassas perspectivas de qualquer
político que desafiasse o governo através do processo político civil.

Castelo Branco sabia que para os políticos ele havia abraçado direita. Para
demonstrar seu indesviável compromisso corn a {moderação, imediatamente fez uso
dos seus poderes sob o AI-2 contra extremistas militares da direita, os mais
visíveis dos quais se agrupavam na LÍDER (Liga Democrática Radical). Esses
extremistas tinham conseguido controlar muitos inquéritos policial-militares
(IPM) e, a partir de posição tão vantajosa, excediam-se na repressão. Em junho
de 1965, o coronel Osnelli Martinelli, figura
____________
5. Castelo Branco, Discursos: 1965, p. 35.
6. Costa e Silva foi, como sempre, extremamente franco: "Castelo, ainda que
você não pretenda permanecer no poder, não demonstre sua intenção no Ato. corn
você fora, o problema da sucessão abrir-se-á mais cedo do que deve. Todos os
candidatos entrarão na refrega, inclusive eu"; citado em Daniel Krieger, Desde
as missões... saudades, lutas, esperanças (Rio de Janeiro, José Olympio, 1976),
p. 200.

104 Brasil: de Castelo a Tancredo
chave na LÍDER, publicamente criticou o fato de o governo não punir todos, os
subversivos e corruptos. A denúncia cresceu de gravidade ao anunciar que o
presidente era simplesmente um representante do Supremo Comando da Revolução.
Foi o bastante para Castelo. Martinelli foi punido corn prisão domiciliar por 30
dias, enquanto o presidente escrevia ao ministro da Guerra Costa e Silva,
concitando-o a enquadrar os linhas-duras, que precisavam "ser adequadamente
esclarecidos, refreados e, se necessário, reprimidos".7

O ministro da Justiça Juracy Magalhães adotou então as medidas necessárias
para dissolver a LÍDER. Enquanto isso, Castelo advertia para uma "furtiva
conspiração" entre militares radicais, advertência que não deixou de repetir nos
meses seguintes. Em fevereiro de 1966, ele disse aos seus ministros militares
que temia a emergência de uma ditadura militar. Em maio, a questão do papel dos
militares surgiu sob forma diferente. O general Alves Bastos, comandante do
Terceiro Exército, queria candidatar-se a governador do Rio Grande do Sul mas
não poderia fazê-lo a menos que a exigência de domicílio eleitoral constante do
código de 1965 fosse revogada. O general Amaury Kruel, comandante do Segundo
Exército, tinha igual pretensão em relação a São Paulo e enfrentava o mesmo
obstáculo. Sabedor de que Castelo se opunha à revogação, Bastos denunciou a
exigência do domicílio eleitoral e, por implicação, o presidente. Castelo
imediatamente demitiu o comandante do Terceiro Exército nomeando para
substituí-lo o general Orlando Geisel, irmão do chefe de sua Casa Militar.
Kruel, que fora mais discreto do que Bastos, reteve o seu comando.8

Castelo adotou outra importante medida que na ocasião não foi muito
comentada: a revisão da lei dispondo sobre promoção e transferência para a
reserva dos militares. Antes de 1964 não havia limite para o tempo de
permanência na ativa dos generais de quatro estrelas. Em dezembro de 1965 o
Planalto regulamentou a lei que especificava a promoção ou a passagem forçada
para a reserva em cada uma das quatro patentes do generalato, estabelecendo que
nenhum posto, nesse nível, poderia ser exercido por
_____________
7. Dulles, President Castello Branco, pp. 157-58; o texto da carta é transcrito
(em inglês) nas pp. 499-500.
8. Ibid., pp. 321-22.

Castelo Branco: a tentativa de institucionalizar 105
mais de 12 anos ou além dos 62 anos de idade. O presidente queria reduzir a
oportunidade de oficiais mais antigos aumentarem o círculo de suas dedicações
pessoais que pudessem ser mobilizadas para fins políticos. Em outras palavras,
ele queria impedir que algum futuro general fizesse o que ele mesmo fez na
conspiração contra Goulart. Dois outros dispositivos eram talvez os mais
importantes. O primeiro limitava a quatro anos a permanência no posto dos
generais de quatro estrelas (general de Exército). O segundo limitava todos os
oficiais a um máximo de dois anos fora do serviço ativo antes de passarem para a
reserva ou de voltarem à ativa.9

Ao mesmo tempo que infernizava a vida dos militares direitistas, Castelo
tratava de rever o sistema eleitoral. O objetivo era reiniciar a atividade
política abertamente, porém em termos "mais responsáveis". Achavam muitos
militares que a crise política brasileira podia ser atribuída ao seu sistema
multipartidário. Inconstantes em suas alianças, os políticos, ao que se alegava,
manobravam em proveito pessoal, mas a expensas do interesse público, A resposta
consubstanciada no AI-2 foi abolir todos os partidos políticos existentes. corn
o Ato Suplementar n.4 (novembro de 1965) criaram-se as regras para a formação de
novos partidos, que exigiam um mínimo de 120 deputados e 20 senadores. Embora o
total de cadeiras no Congresso (409 deputados e 66 senadores) desse para a
criação de três partidos, os organizadores da agremiação pró-governo rapidamente
aliciaram 250 deputados e 40 senadores. A sobra deu para a formação de apenas um
partido, no qual se abrigaria toda a oposição parlamentar. O partido
governamental foi a ARENA (Aliança Renovadora Nacional) e o da oposição, o MDB
(Movimento Democrático Brasileiro). Os autores da regulamentação dos partidos
proibiram o uso dos nomes de antigas organizações políticas. Não obstante, este
fato teria sua importância: é que a maior parte dos que se filiaram à ARENA
haviam pertencido aos quadros da UDN, corn número quase igual
___________
9. Alfred C. Stepan, Os militares: da abertura à nova república, (Rio de
laneiro, Paz e Terra, 1986), p. 98; Viana Filho, O governo Castelo Branco, p.
207; e Wilfred A. Bacchus, "Long-Term Military Rulership in Brazil: Ideologic
Consensus and Dissensus, 1963-1983", Journal of Politícal and Military
Sociology, XIII (Primavera de 1985), p. 100.

106 Brasil: de Castelo a Tancredo
pertencente ao PSD, enquanto no MDB o maior número era do antigo PTB, vindo em
seguida o PSD.10 Em virtude das políticas económicas impopulares do governo, a
criação de um sistema bipartidário iria acelerar a polarização. O prestígio do
bipartidarismo nas democracias anglo-saxãs sem dúvida influenciou as autoridades
do Planalto.11 Estas, no entanto, dotaram o Brasil de um sistema mais rígido,
não conhecido nem por americanos nem por ingleses nos últimos anos. A firme
crença de Castelo Branco na manutenção de sua neutralidade política o fez adiar
a implementação dos novos partidos até março de 1967, quando deixou a
presidência.

Em mais um esforço para mostrar seu perfil democrático, Castelo modificou o
seu Ministério entre novembro de 1965 e janeiro de 1966 corn nomes que haviam
sido anteriormente bemsucedidos em disputas eleitorais. Para a Agricultura foi
nomeado o governador Nei Braga, do Paraná; para o Trabalho, o deputado federal
Peracchi Barcelos, do Rio Grande do Sul; para a Justiça, o senador Mem de Sá,
também do Rio Grande do Sul; para as Relações Exteriores, Juracy Magalhães, o
líder baiano transferido da Justiça; para a Educação e Cultura, Pedro Aleixo, o
eminente líder da UDN que recebeu o cargo de Flávio Suplicy de Lacerda. Este
tornara-se um dos principais alvos da oposição por causa da violenta campanha
que empreendeu para proscrever das universidades a atividade política
dissidente. Castelo estava procurando dar ao seu governo uma imagem mais
politicamente conciliadora.
__________
10. Um economista muito lido e ultraconservador, Eugênio Gudin, escreveu em sua
coluna em O Globo que o Brasil devia adotar o sistema de partido único do México
"que tem dado e está dando bons resultados", citado em Dulles, President
Castello Branco, pp. 195-96. Havia rumores insistentes de que o próprio Castelo
Branco estava examinando o modelo do partido único, baseado no PRI mexicano, mas
não encontrei qualquer prova disso. Para uma análise do funcionamento do sistema
bipartidário, ver David Fleischer, "A evolução do bipartidarismo no Brasil,
1966-79", Revista Brasileira de Estudos Políticos, N.° 51 (julho de 1980), pp.
154-85. O sistema eleitoral para o período 1964-79 é analisado em profundidade
em Christiano Germano, Brasilien: Autoritarismus und Wahlen (Míinchen, Weltforum
Verlag, 1983).
11. Fiechter, Brazil Since 1964, p. 88. Para um relato sobre o pensamento do
Planalto sobre a reformulação partidária, ver Viana Filho, O governo Castelo
Branco, pp. 369-73.

Castelo Branco: a tentativa de institucionalizar 107
Mas a verdade é que ele havia sido fortemente empurrado para a direita. A
política mais importante agora era a de corpo de Exército.12

Novos Atos estavam por vir. Foi assim que em fevereiro de 1966 o Planalto
decidiu que necessitava de. um terceiro Ato Institucional para se proteger nas
próximas eleições. Os prefeitos das capitais dos estados e de outras cidades
consideradas de "segurança nacional" seriam, nos termos do novo Ato, nomeados
pelos governadores (agora eleitos pelas assembleias legislativas). O governo
estava reconhecendo que não podia mais dar-se ao luxo de se arriscar a eleições
abertas e diretas em qualquer nível que interessasse. Outro dispositivo do AI-3
adiou o cronograma para a implementação do novo sistema partidário. A fim de
neutralizar a linha dura, o Planalto tinha que mostrar resultados eleitorais o
mais rapidamente possível.

Fontes de oposição

Apesar dos três atos institucionais, dos átos suplementares e de outras
medidas arbitrárias, o governo Castelo Branco não conseguiu reformular a seu
gosto a política brasileira. Em 1966 era forte o sentimento antigoverno que
lavrava no seio da população, sendo que alguns adversários haviam optado pela
violência em 1965. Em março, um contingente de 30 homens entrou no Rio Grande
procedente do Uruguai, dominou soldados da Brigada Militar em Três Passos, tomou
em seguida uma estação de rádio local e transmitiu um manifesto contra o
governo. Subseqüentemente entraram em choque corn a polícia local e foram
finalmente capturados no Paraná, dois estados ao norte do Rio Grande do Sul.
Esta malograda coluna rebelde era ligada a Leonel Brizola, exilado no Uruguai, e
tinha como comandante o coronel lefferson Cardim, que fora involuntariamente
colocado na reserva após o golpe de 1964. Novos ataques terroristas de menor
importância (executados por grupos diferentes) ocorreram em todo o
_________
12. Fiechter, Brazil Since 1964, pp. 87-88; Viana Filho, O governo Castelo
Branco, pp. 356-64.

108 Brasil: de Castelo a Tancredo
país em 1963.13 Em fevereiro, a casa do cônsul americano em Porto Alegre foi
bombardeada; em junho, foram atiradas bornbas no edifício da biblioteca do USIS
em Brasília. O incidente mais sério aconteceu em fins de julho no aeroporto de
Recife. Os guerrilheiros plantaram ali uma bomba para explodir exatamente à
chegada do ministro da Guerra Costa e Silva. Mas, pouco antes, um defeito no
motor do seu avião modificou seus planos de viagem, e ele não apareceu no
aeroporto na hora marcada. Mas a bomba dos assassinos explodiu matando três
pessoas e ferindo nove. No início de outubro, registraram-se explosões de bombas
no Ministério da Guerra, no Ministério da Fazenda e na residência do ministro
das Relações Exteriores. Embora preocupantes e perigosos, esses ataques não
sinalizaram o início de uma séria ofensiva guerrilheira.

O ano de 1966 também viu grande número de manifestações e marchas de
protesto. Eram na maioria lideradas por estudantes universitários, embora,
ironicamente, tenha sido a tentativa do governo Castelo Branco de reorganizar o
sistema de ensino superior que ajudara a mobilização estudantil. Uma das
reformas em discussão era a cobrança do ensino ministrado pelas universidades
federais (que era e continua a ser gratuito). No começo de julho de 1966, a UNE,
organização estudantil posta na ilegalidade mas que continuava ativa, liderou
marchas e manifestações de protesto contra o ato do governo revolucionário que
fechou sua sede e as de todas as suas filiais nos estados. Num audacioso desafio
à sua proscrição, a entidade realizou seu congresso nacional em Belo Horizonte,
em julho de 1966. A polícia dissolveu a reunião antes mesmo de sua instalação.
Mais de 20 estudantes foram presos e acima de 100 se refugiaram em conventos
dominicanos e franciscanos, onde a polícia tinha escrúpulo de persegui-los. A
disposição dos religiosos de acolher os estudantes mostrava que
__________
13. João Batista Berardo, Guerrilhas e guerrilheiros no drama da América Latina
(São Paulo, Edições Populares, 1981), p. 251. A repressão militarpolicial no
Brasil (1975), pp. 97-98. Este último é uma documentação de antigos
guerrilheiros e vítimas da repressão. Tendo sido compilado quando a censura e a
repressão eram ainda onipresentes, os autores não são mencionados.

Castelo Branco: a tentativa de institucionalizar 109
alguns militantes da Igreja se haviam transformado em ativos opositores
do regime.

As manifestações estudantis de protesto continuaram pelos meses de agosto e
setembro, com ataques cada vez mais violentos à "ditadura". E nas eleições para
os diretórios estudantis, os universitários reconduziram os seus antigos membros
ou votaram em outros corn idéias semelhantes. Choques entre estudantes e a
polícia, embora raramente envolvendo mais do que algumas centenas de
manifestantes, espalharam-se através do Brasil em fins de setembro, sendo que
cada refrega só fazia fortalecer a linha dura militar. Aliás, alguns membros da
oposição começaram a se perguntar se não haveria agents provocateurs por trás
das manifestações.

Um setor que se destacara no apoio à Revolução dava agora sinais de
descontentamento: a Igreja. A figura principal era Dom Helder Câmara, que fora
nomeado arcebispo de Olinda e Recife logo em seguida ao golpe de 1964. Em seu
posto anterior como bispo auxiliar do Rio de Janeiro, Dom Helder tornara-se
conhecido e estimado por sua pregação em favor da justiça social, conquistando
muitos admiradores dentro e fora do país. Foi ele um dos primeiros críticos do
governo revolucionário, suscitando com isso a ira de Castelo Branco. Em julho de
1966, Dom Helder liderou 15 bispos dos estados de Pernambuco, Paraíba, Rio
Grande do Norte e Alagoas no apoio formal a um manifesto lançado em março por
três grupos ativistas católicos atacando a estrutura social injusta do Brasil, a
exploração de sua classe trabalhadora e as perseguições policiais. Oficiais
militares de Fortaleza ficaram revoltados, e distribuíram um panfleto
"clandestino" atacando Dom Helder.

Castelo tinha esperança de pôr fim ao conflito. Num gesto hábil, substituiu o
comandante que aprovara a distribuição do panfleto e em julho aproveitou uma
viagem a Recife para encontrar-se corn Dom Helder. Mas a conversa dos dois (e o
discurso que Castelo logo depois pronunciou na Universidade Federal de
Pernambuco) apenas pôs em destaque a concepção radicalmente diferente de ambos
sobre o adequado papel da Igreja.14
____________
14. Dulles, President Castello Branco, pp. 296-300.

Brasil: de Castelo a Tancredo

Castelo Branco: a tentativa de institucionalizar 111

Tratando da sucessão
A forte influência da linha dura contribuiu para o principal problema
político de Castelo Branco em 1966: como conduzir a sucessão presidencial.
Sabiam os amigos do presidente que a sua condição de lame-duck (presidente em
final de mandato e, por isso, enfraquecido) reduziria a eficiência do seu
trabalho. Esperavam minimizar o problema obtendo do candidato oficial o
compromisso de, uma vez eleito, dar continuidade às políticas castelistas. O
candidato que, de longe, precedia os demais era o general Arthur da Costa e
Silva, que se nomeara a si mesmo ministro da Guerra em l de abril de 1964,
tornando-se a partir de então o porta-voz da linha dura. No rastro tumultuado da
eleição de outubro de 1965, por exemplo, Costa e Silva falou pelos seus
camaradas militares que exigiam que fosse vetada a posse dos dois governadores
eleitos pela oposição. O papel que desempenhou naquela crise confirmou seu apoio
a uma decisiva facção dos militares.

Costa e Silva era um oficial de caserna com modos joviais que lhe granjeavam
a estima de oficiais mais jovens.15 Seu estilo não poderia ter sido mais
diferente do de Castelo Branco e dos seus companheiros da "Sorbonne", como os
generais Golbery e Ernesto Geisel. Para estes, Costa e Silva era incapaz de
compreender a profunda reorganização política que a Revolução começara. Os
ministros Campos e Bulhões receavam que ele abandonasse sua política econômica
por um nacionalismo impensado ou por uma "prematura" redistribuição da renda.

Castelo tinha outra objeção a Costa e Silva: sua visceral antipatia por
qualquer ministro do governo que fizesse campanha política retendo o exercício
de suas funções. Castelo achava isso um abuso dos privilégios que o alto cargo
assegurava ao seu titular, que capitalizava a seu favor uma vantagem negada a
outros candidatos. Para Castelo, era especialmente contristador que o candidato
fosse o ministro da Guerra, cujo supremo dever, em sua opinião, era preservar a
integridade profissional do Exército. Aqui, o ponto de vista de Castelo era mais
do que irônico, porque ele mesmo, enquanto exercia alta posição administrativa,
coordenou a conspiração militar que derrubou um presidente.
______________
15. O estilo de Costa e Silva é descrito em Vernan A. Walters, Silent Missions
(Garden City, New York, Doubleday, 1978), p. 405.

111
Em fins de 1965 e no começo de 1966, Castelo tentou afastar a candidatura
Costa e Silva apresentando seu próprio candidato. Em 1964, teria sido Carlos
Lacerda, mas ele renunciara à disputa. Em 1965, nomes como o marechal Cordeiro
de Farias, general Jurandir Mamede, Juracy Magalhães, senador Daniel Krieger,
embaixador Bilac Pinto e governador Nei Braga foram discutidos no Planalto. Mas
era tarde demais. Costa e Silva vinha pedindo apoio para o seu nome no seio da
oficialidade desde 1964 e sua posição na crise de outubro de 1965 consolidara o
seu proselitismo entre os membros da linha dura.16

Os partidários da candidatura Costa e Silva afirmavam que somente ele seria
capaz de preservar a unidade militar. Era este um argumento poderoso para
Castelo, que sabia muito bem dos perigos de uma divisão no Exército. Sem a
unidade do Exército, nada mais se poderia fazer - muito menos as complexas
reformas que os castelistas achavam essenciais à Revolução de 1964.

Depois de cuidadosa sondagem e de um encontro pessoal no final de fevereiro
de 1966, Castelo e Costa e Silva resolveram estabelecer um modus vivendi.
Castelo, juntamente com seus principais assessores, como os generais Golbery e
Geisel, pressionou por um compromisso no sentido da continuação da política
econômica de Campos e Bulhões. Castelo também queria um compromisso explícito
com a democracia. Seu próprio governo, disse ele, "teve que optar pelo
enquadramento legal, em vez de enveredar pela ditadura".17

Castelo não recebeu garantias de Costa e Silva, o que não era de surpreender,
pois, tendo combatido desde o início a candidatura do seu ministro da Guerra,
não exercia sobre ele a mínima influência. Mas os partidários do ministro
silenciaram sobre os termos de sua campanha, atenuando assim o temor castelista
de que tivessem a intenção de minar a campanha governamental por
_____________
16. Viana Filho, O governo Castelo Branco, p. 341; há um relato muito
interessante da luta pela sucessão presidencial em Krieger, Desde as missões,
pp. 221-37. A análise mais penetrante destes eventos é a de Stepan, The Military
in Politics, pp. 248-52, o qual achava que o grupo de Costa e Silva devia ser
chamado "nacionalistas autoritários" e não "linhas-duras".
17. As citações diretas são de um memorando de 27 de janeiro de 1966 sobre a
sucessão que Castelo Branco enviou aos principais comandantes do Exército. Viana
Filho, O governo Castelo Branco, pp. 380-83.


112 Brasil: de Castelo a Tancredo
reformas em 1966.18 Enquanto isso, Castelo resolvera fazer da necessidade
virtude. Tendo perdido a capacidade de controlar a indicação, afirmou em uma
entrevista coletiva, em abril, que, para ele, expressar sua preferência seria um
"ato personalista, intempestivo e até de desrespeito ou menosprezo para corn a
organização política revolucionária".19

Em maio, a convenção da ARENA simplesmente carimbou a escolha da oficialidade
do Exército de Costa e Silva para presidente. Seu companheiro de chapa foi Pedro
Aleixo, outro astucioso e veterano político de Minas Gerais. Partilhava corn seu
antecessor na vice-presidência, José Maria Alkmin, antecedentes políticos
comuns. A ascensão de ambos fizera-se em seus respectivos partidos (Aleixo, da
UDN, e Alkmin, do PSD) em Minas Gerais, ambos tinham grande experiência na
política partidária, embora fossem rivais irreconciliáveis na política estadual
e nacional. Em julho, Costa e Silva começou sua campanha como candidato oficial,
e no mesmo mês Castelo Branco decidiu ingressar na ARENA, a fim de demonstrar
que a ala moderada estava cerrando fileiras corn o ministro da Guerra. Era
também outro sinal de que a rápida "arrumação da casa" que Castelo e outros
moderados esperavam concluir em 1964 malograra. Seria necessário pelo menos mais
um período presidencial, presidido por outro general.

A campanha foi praticamente desnecessária. O MDB já havia anunciado que
boicotaria a eleição de Costa e Silva como protesto contra a manipulação
eleitoral do governo. Mas ele fez a campanha através do país, numa jornada
parecida com as viagens de um candidato presidencial mexicano do partido oficial
PRI. A eleição mexicana é decidida quando um punhado de líderes do PRI escolhe
um candidato, que então vence a eleição por maioria esmagadora. Mas o candidato
oficial, não obstante, percorre o país durante meses participando de debates e
colóquios corn grupos de interesse e autoridades locais. A campanha brasileira
lembrava
____________
18. A luta para escolher o sucessor de Castelo é tratada extensamente em Dulles,
President Castello Branco, pp. 237-76; Viana Filho, O governo Castelo Branco,
pp. 377-90; e Daniel Krieger, Desde as missões, pp. 221-37. Krieger, do Rio
Grande do Sul, fora líder da UDN e era agora figura-chave na ARENA. Castelo
promoveu sem êxito a candidatura de Krieger durante a luta pela sucessão.
19. Castelo Branco, Discursos: 1966, p. 372.

113
agora a do México, só que o órgão de decisão era o Alto Comando Militar e não os
chefes do partido.

O cronograma eleitoral de 1966 começou em setembro com a eleição de
governadores. Todos os candidatos apoiados pelo governo ganharam, embora no Rio
Grande do Sul Castelo tivesse que expurgar alguns deputados para garantir a
eleição de seu candidato, Walter Peracchi Barcellos. A 3 de outubro, o Congresso
Federal elegeu, como convinha, o general Costa e Silva para sucessor de Castelo
Branco por 295 votos contra 41. Os votos contrários foram principalmente
abstenções do MDB.

A UDN e Lacerda novamente

Apesar deste aparente sucesso, o governo temia as eleições parlamentares
marcadas para 15 de novembro. Em meados de outubro, Castelo Branco usou o AI-2
para expurgar seis deputados federais, inclusive o líder do MDB, deputado Doutel
de Andrade, e Sebastião Paes de Almeida. O governo considerava todos culpados de
um ou mais dos pecados de subversão, corrupção ou participação em um novo
movimento de oposição, supostamente apoiado por Juscelino e João Goulart. Como
de hábito, não era dada qualquer explicação pública. As cassações tinham por fim
intimidar a oposição nas eleições para as duas casas do Congresso. Castelo teve
que manter seus críticos do MDB sob controle para preservar sua credibilidade
com os militares.

Neste caso, porém, um dos mais íntimos colaboradores civis de Castelo criou
dificuldades. Foi ele Adauto Lúcio Cardoso, presidente da Câmara dos Deputados,
que ficou indignado com as cassações, as quais não reconheceu, tendo convidado
os deputados cassados a participar dos trabalhos legislativos no edifício do
Congresso. A significação do fato era tanto maior quanto Cardoso era um velho
baluarte da UDN e amigo pessoal de Castelo. Este respondeu com o Ato Suplementar
n.° 23, que pôs em recesso o Congresso até uma semana após as eleições. A
notícia do recesso foi levada ao Congresso por um contingente bem armado da
polícia do Exército que antes tomou a precaução de cortar a eletricidade do
edifício. Ao tomarem conhecimento do Ato Suplementar, os congressistas se
dispersaram. Quando Castelo reconvocou a Câmara dos Deputados
um mês depois para examinar o projeto da nova

114 Brasil: de Castelo a Tancredo
Constituição, o continuado protesto de Cardoso foi rejeitado, sendo os seis
deputados declarados cassados. Cardoso imediatamente renunciou à presidência.

Nas eleições de novembro para o Congresso, as assembléias estaduais e as
câmaras municipais, a ARENA conquistou um grande triunfo, pelo menos em termos
nacionais. Ganhou 277 cadeiras contra 132 na Câmara (ficando com 68 por cento) e
no Senado conquistou 47 cadeiras contra 19 do MDB (ficando com 71 por cento).
Somente na Guanabara o MDB superou a ARENA em votos tanto para o Senado como
para a Câmara dos Deputados. Como o Rio sempre fora um reduto oposicionista (com
qualquer governo), esses resultados não representavam uma nova tendência. Mais
encorajador para a oposição foi o fato de que nas principais cidades do Centro-
Sul desenvolvido o MDB superou por boa margem a ARENA, comprovando-se que a
rápida urbanização do Brasil o estava beneficiando. Finalmente, os votos nulos e
em branco nas eleições de 1966 totalizaram 21 por cento, comparados com 7 por
cento em 1954, 9 por cento em 1958 e 18 por cento em 1962. Este novo recorde
refletia não somente a natureza confusa do processo de votação, mas também a
eficiência dos ativistas antigoverno que recomendavam os votos em branco como
sinal de protesto.20

À medida que aumentava a manipulação política do governo em 1966, um prócer
partidário continuou a agir como se fazer política abertamente ainda importasse.
Carlos Lacerda, que renunciara à sua candidatura presidencial pela UDN em 1965,
decidira agora criar um novo veículo para as suas ambições políticas. Como havia
apenas dois partidos legais, a situação impunha que se recorresse com habilidade
a um circunlóquio. Ele batizou seu novo movimento com o nome de Frente Ampla.
Mas como nunca havia feito proselitismo em âmbito nacional, precisava aliar-se a
políticos largamente conhecidos no país. As escolhas óbvias eram Juscelino e
Goulart, não obstante a antiga hostilidade de Lacerda a ambos. Através de
emissários em meados de 1966, ele contatou Juscelino em Portugal e João Goulart
no Uruguai, pedindo o apoio preli-
_______
20. Para uma análise das eleições de 1966, ver Revista Brasileira de Estudos
Políticos, N.08 23-24 (julho de 1967/janeiro de 1968), que inclui artigos
comentando os resultados em escala nacional, bem como seletivamente por estados.

115
minar dos dois. Redigiu um manifesto em setembro e o publicou em fins de outubro
no Brasil, sem as assinaturas de Goulart ou Juscelino. No documento anunciava um
novo movimento popular a ser lançado em l de janeiro de 1967. Seus objetivos:
volta do país à democracia e retorno ao nacionalismo e à independência em
política externa. A política econômica não devia mais permanecer na condição de
refém do FMI. Salários mais altos determinariam demanda interna mais forte,
reduziriam o desemprego e conseqüentemente aumentariam o controle do Brasil
sobre seu destino econômico. Em resumo, o objetivo era pressionar o presidente
eleito Costa e Silva a fazer concessões econômicas exatamente do tipo que os
castelistas temiam.

Embora o manifesto estivesse mais próximo das antigas posições de Juscelino e
de Jango do que das de Lacerda, somente este o assinara. Juscelino, após algumas
sugestões sobre o texto, manteve-se cauteloso, evidentemente por causa de
pressões do governo brasileiro (apoiadas pela implícita ameaça de vexames a
qualquer momento que ele voltasse ao Brasil). As razões de Goulart para não
assinar foram menos claras, mas provavelmente tinham que ver com sua fundamental
desconfiança de Lacerda, um dos principais arquitetos de sua deposição.
Posteriormente Lacerda convenceu Juscelino a assinar, em novembro, uma
"Declaração de Lisboa" semelhante em conteúdo ao manifesto anterior. A
assinatura de Goulart continuava ausente, em grande parte porque Juscelino
persuadira Lacerda que àquela altura o nome do ex-presidente seria um risco
político. A Declaração anunciava um novo (terceiro) partido político e defendia
o reinicio do desenvolvimento econômico segundo diretrizes nacionalistas.
Em entrevistas à imprensa Lacerda afirmava que tal partido poderia, com o seu
apoio, legitimar o governo Costa e Silva, cuja posse estava próxima. Não
surpreende que a equipe do novo presidente ignorasse Lacerda. Ele causava apenas
ceticismo entre o público e a elite política que não podia esquecer que sua
retórica nacionalista contradizia suas idéias dos últimos 15 anos. O fracasso
do desesperado salto de Lacerda para o nacionalismo era um sinal seguro de que o
fascínio que o seu estilo político despertava acabara.21
____________
21. Há um relato pormenorizado da emergência da Frente Ampla em Dulles,
President Castello Branco, pp. 318-70. Lacerda deu sua versão em Depoimento, pp.
379-97.

116 Brasil: de Castelo a Tancredo
O Cenário econômico em 1966

Os castelistas tinham melhor sorte no setor econômico do que no político. O
programa brasileiro de estabilização econômica continuava a receber elogios (e
dólares) do governo dos Estados Unidos e das agências multilaterais com sede em
Washington. Em dezembro de 1965, o governo americano anunciou mais um empréstimo
de US$150 milhões,22 e em fevereiro de 1966 o FMI e os Estados Unidos reiteraram
sua confiança com novos compromissos financeiros. A partir do final de 1965 e
começo de 1966 os credores estrangeiros acreditavam que o Brasil estava em vias
de voltar a crescer. Até os russos juntaram-se a essa crença, anunciando a
concessão de um crédito comercial de US$100 milhões no início de agosto de 1966.

Essa ajuda estrangeira era merecida em virtude dos progressos obtidos pelo
Brasil no controle da inflação. De 1965 a 1966 foi de um terço a queda da
inflação - de 61 por cento para 41 por cento. Três fatores determinaram essa
queda.

O primeiro foi a política governamental de compras de café. Roberto Campos,
que pagara caro pela débâcle dos excedentes do produto em 1965, congelou o preço
de compra garantido pelo governo para a safra de 1966 ao nível de 1965. Como a
inflação fora de 66 por cento em 1965, os cafeicultores receberiam do governo
menos da metade do que lhes fora pago no ano anterior, em termos reais. A medida
permitiu também que Campos evitasse pressão adicional sobre o Tesouro causada
pelas compras de café. Com efeito, a conta de café do governo apresentou um belo
su-
____________
22. Houve um pequeno grupo de críticos americanos que se opuseram à concessão de
ajuda ao Brasil. O senador Wayne Morse, integrante permanente da dissidência no
Congresso, propôs em outubro de 1965 a suspensão de toda a ajuda por causa da
virada autoritária representada pelo AI-2. Na USAID e no Departamento de Estado
uma minoria de funcionários compartilhava da reação de Morse. Exerciam pouco
impacto, contudo, e o governo americano continuou a apoiar vigorosamente e às
vezes até a elogiar o governo Castelo Branco. Detalhes sobre este debate no
governo dos Estados Unidos podem ser encontrados em Jerome Levinson e Juan de
Onís, The Alliance that Lost Its Way (Chicago, Quadrangle Books, 1970), pp. 194-
200. Levinson, que trabalhava na USAID naquela época, era o porta-voz dos
dissidentes derrotados.

117
perávit em 1966, à custa dos cafeicultores.23 Em segundo lugar, manteve-se
severa vigilância sobre o comportamento da balança comercial. Embora em 1966
acusasse outro superávit comercial, foi inferior ao de 1965 e menores, portanto,
seus efeitos potencialmente inflacionários. Assim, duas das principais causas de
pressão inflacionária foram largamente neutralizadas em 1966.

Enquanto isso, com as eleições de 1965 para trás, e tendo em vista os amplos
poderes executivos do AI-2, os ministros Campos e Bulhões puderam aplicar
políticas monetaristas mais ortodoxas sem medo das conseqüências políticas.24 A
taxa de aumento do crédito bancário para o setor privado foi reduzida para 36
por cento em 1966 de 55 por cento que fora em 1965. O aumento do salário mínimo
em 1966 foi de 31 por cento, contra 54 por cento em 1965. Com a elevação de 41
por cento do custo de vida em 1966, o poder aquisitivo do salário mínimo
obviamente caiu. Final-
__________
23. Syvrud, Foundations of Brazilian Economic Growth, p. 252. A política
cafeeira merece mais pesquisas, especialmente seus aspectos políticos. Uma boa
fonte para o contexto econômico é Edmar Lisboa Bacha, "An Econometric Model for
the World Coffee Market: The Impact of Brazilian Price Policy" (dissertação de
Ph. D., Yale University, 1968). Uma tradução do cap. I apareceu em Dados, N.°
5 (1968), pp. 144-61. O fracasso do programa de controle da produção até 1968
é descrito em Kenneth D. Frederick, "Production Controls Under the International
Coffee Agreements", Journal of Inter-American Studies and World Affairs, XII,
N.° 2 (abril de 1970), pp. 255-70; e Stahis Panagides, "Erradicação do café e
diversificação da agricultura brasileira", Revista Brasileira de Economia,
XXIII, N.° l (janeiro-março de 1969). Material de origem pode ser encontrado em
Instrumentos da política cafeeira, 2 vols. (Rio de Janeiro, Escola
Interamericana de Administração Pública, 1967), publicação patrocinada pela
Fundação Getúlio Vargas e o Banco Interamericano de Desenvolvimento. Somente
depois de 1967 os incentivos de mercado (se se define "mercado" incluindo
compras oficiais de excedentes) voltaram-se contra os investimentos no café para
muitos plantadores, como Frederick explica. A afirmação de Leff de que os
cafeicultores não tinham força para obter apoio do governo antes de 1964 não
encontra base nas evidências. Nathaniel Leff, Economic Policy Making and
Development in Brazil 1947-1964 (New York, Willy, 1969), especialmente pp.
19-33. O governo Castelo Branco continuou a política de excedentes em 1965 e
1966, conseqüentemente enfraquecendo o programa antiinflação.
24. Os dados seguintes são extraídos de Fishlow, "Some Reflections on Economic
Policy", p. 72; e Syvrud, Foundations of Brazilian Economic Growth, p. 50.

118 Brasil: de Castelo a Tancredo
mente, o aumento da base monetária para 1966 foi fixado numa faixa
surpreendentemente baixa, 15 por cento. Igualmente importante, o déficit de
caixa do governo federal, como percentagem do PIB, foi reduzido a 1,1 em 1966,
menor do que o de 1965, que foi de 1,6, e do que o de 1964, de 3,2.

Pelos critérios da política monetarista, o governo brasileiro estava fazendo
tudo certo em 1966. Reduzira drasticamente a base monetária, diminuíra a taxa do
salário mínimo real e cortara a fundo o déficit do setor público. No entanto a
inflação ainda alcançava 41 por cento em 1966, taxa que não parecia muito melhor
do que os 46 por cento de 1965. Pelo visto, mantendo-se persistentemente alta, a
inflação parecia zombar das previsões outrora confiantes de Campos e Bulhões.
Na verdade, o quadro da inflação iria melhorar no final de 1967 - tarde demais
para ajudar o governo Castelo Branco. Em um ponto este podia ter algum motivo de
satisfação: o crescimento do PIB fora de 5,1 por cento em 1966, grandemente
ajudado pelo estímulo dado à indústria em fins de 1965.

Segurança nacional e uma nova estrutura legal

Embora os castelistas tivessem conseguido um vago compromisso de Costa e
Silva com a continuidade política, a probabilidade de ser cumprido era muito
remota.25 Por isso dedicaram seus últimos meses no governo a limitar a liberdade
de ação do próximo governo tanto na área política como na económica. Assim é que
tentaram criar uma nova estrutura legal que protegesse o Brasil contra excessos
quer da direita quer da esquerda. Esta estrutura tinha três importantes
componentes.

O primeiro foi uma nova Constituição, que uma equipe de quatro
constitucionalistas nomeada pelo presidente (Levy Carneiro, Temístocles
Cavalcanti, Orozimbo Nonato e Miguel Seabra Fagun-
____________
25. As preocupações dos castelistas sobre continuidade são relatadas em Visão,
julho 29, 1966, p. 11; agosto 12, 1966, p. 11; agosto 5, 1966, pp. 22-26; março
3, 1967, p. 11. Após a metade de 1966 houve constante especulação de que Castelo
poderia tentar continuar no poder. Visão, agosto 19, 1966, P. 13.

Castelo Branco: a tentativa de institucionalizar 119
dês, que renunciou antes de concluído o projeto) elaborara no decorrer de 1966.
Este anteprojeto foi depois revisto, de um ponto de vista mais autoritário, pelo
ministro da Justiça, Carlos Medeiros da Silva. A nova versão foi formalmente
apresentada ao Congresso em 17 de dezembro de 1966, e a primeira votação
realizou-se em 21 de dezembro. Nem os debates, liderados por ilustres
constitucionalistas como Afonso Arinos de Melo Franco, nem a avalanche de
emendas propostas introduziram qualquer alteração no texto final. A nova
Constituição foi aprovada em 24 de janeiro de 1967, por 223 a 110 na Câmara dos
Deputados e por 37 a 17 (com 7 abstenções) no Senado. Castelo e seus assessores
conseguiram o que queriam.

Em que a nova Carta Constitucional diferia da de 1946? Uma mudança básica era
a eleição indireta do presidente. Uma segunda era o aumento do controle pelo
governo federal dos gastos públicos (o Congresso ficava proibido de propor leis
criando despesas ou aumentar despesas propostas pelo governo), medida
vigorosamente defendida por Roberto Campos. A terceira eram os amplos poderes
dados ao governo federal para "a apuração de infrações penais contra a segurança
nacional, a ordem política e social, ou em detrimento de bens, serviços e
interesses da União, assim como de outras infrações cuja prática tenha
repercussão interestadual e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em
lei" (Art. 8). Em essência, a nova Constituição era uma síntese dos três atos
institucionais e leis correlatas.26

As modificações não se limitaram à nova Constituição. Houve também novas leis
e decretos executivos. Um dos mais importantes foi um decreto-lei de fevereiro
de 1967 submetendo todo o Executivo ao planejamento segundo o estilo militar.
Planos plurianuais deviam ser revistos anualmente e todas as mudanças seriam
coordenadas através de uma complexa rede ligando todos os Ministérios. No topo
desta pirâmide administrativa ficava o presidente, com a responsabilidade final
pela formulação e controle da política nacional. Seria assessorado pelo Alto
Comando das Forças Armadas, Estado-Maior das Forças Armadas e Serviço Nacional
de Infor-
_______________
26. Para análise da Constituição de 1967 e sua adoção, ver Maria Helena Moreira
Alves, State and Opposition, pp. 70-79; Feichter, Brazil Since 1964, pp. 112-18;
Schneider, The Political System of Brazil, pp. 195-202; e Dulles, President
Castello Branco, pp. 381-420.

120 Brasil: de Castelo a Tancredo
mações (SNI). A lei permitia que o SNI se instalasse em todos os Ministérios e
que seus funcionários tivessem acesso a todos os gabinetes do governo para
fiscalizar mais facilmente a política oficial, cabendo-lhes ainda dar parecer
sobre todas as nomeações e promoções.

Outra lei procurava enquadrar particularmente a mídia, que fora um espinho na
garganta de Castelo. Os novos motivos que justificavam a intervenção
governamental, a censura, ou a instauração de processos eram muito amplos indo
desde a divulgação de segredos de Estado até notícias induzindo ao descrédito o
sistema bancário. Quando o anteprojeto de Castelo se tornou conhecido, choveram
protestos de influentes jornais como o Jornal do Brasil, Correio da Manhã e O
Estado de S. Paulo. Em sua versão final (após a aprovação pelo presidente de
várias emendas importantes), a lei foi amplamente aceita pela imprensa. Mas
Castelo podia ter imposto sua versão original (mais rigorosa) simplesmente
assinando um decreto-lei (sobre o qual o Congresso não exercia controle). Foi
este um dos raros exemplos, no final de 1966 e começo de 1967, em que o
presidente decidiu permitir a influência da opinião pública e do Congresso na
elaboração de leis destinadas a institucionalizar a Revolução.

Mas ele não teve a mesma generosidade em relação à Lei de Segurança Nacional
que impôs por decreto-lei quatro dias antes de deixar o governo. A LSN visava à
defesa contra o tipo de "guerra interna" que supostamente ameaçara o Brasil
durante o governo Goulart. Novas penalidades eram previstas agora para os
responsáveis por guerras psicológicas ou para os promotores de greves que
pusessem em risco o governo federal. A linguagem e os conceitos da lei provinham
das doutrinas desenvolvidas na Escola Superior de Guerra da qual Castelo fora
ativo participante. O presidente e seus camaradas das forças armadas estavam
obrigando todos os brasileiros a seguirem as doutrinas que, segundo eles,
salvaram o Brasil em 1964. O Art. l dava o tom: "Toda pessoa natural ou jurídica
é responsável pela segurança nacional, nos limites definidos em lei". Seguia-se
o detalhamento das várias formas de infração da segurança nacional. Nas mãos de
um governo agressivo esta lei seria simplesmente devastadora para as liberdades
civis. As implicações para a vulnerabilidade política de todos os cidadãos não
passaram despercebidas dos políticos do MDB nem Castelo Branco: a tentativa de
institucionalizar

121 da imprensa oposicionista. Mas seus inflamados protestos a nada
conduziram.27

O frenético recurso à lei tinha por fim moldar definitivamente o Brasil pós-
1967. Mas a tentativa continha forte dose de ironia. Ao codificar os poderes
arbitrários considerados necessários, por exemplo, Castelo achava que podia
impedir no futuro novas leis para impor medidas ainda mais arbitrárias. Ao
formularem um plano econômico decenal, Castelo e Campos pensavam poder evitar
novas políticas económicas fortuitas, míopes e ineficientes. Ao elaborarem uma
nova Constituição e a Lei de Segurança Nacional, Castelo e seus colegas
pretenderam criar um sistema político que reconciliasse as idéias militares e
constitucionalistas do país, da sociedade e do indivíduo. Mais importante e
paradoxal, os castelistas acreditavam que tais leis - quase todas em conflito
corn os princípios constitucionais anteriores a 1964 - eram o único meio de
preservar a democracia. Na realidade, eles foram vítimas da suposição elitista
há muito predominante em Portugal e no Brasil de que a solução de qualquer
problema consistia em uma nova lei. A UDN, o partido de Castelo, era o exemplo
acabado deste tipo de mentalidade. Seu governo operava, portanto, no contexto de
uma velha, melhor dizendo, antiquíssima tradição política brasileira.

O Desempenho da economia no governo Castelo Branco

Os castelistas acreditavam que os elementos politicamente mais vulneráveis de
suas formulações econômicas eram o encorajamento ao capital estrangeiro e a luta
contra a inflação.28 Os receios do governo sobre uma possível mudança de
política na gestão de Costa e Silva resultavam em parte do fato de que muitos
militares da linha dura sustentavam ideias econômicas fortemente
__________
27. Há uma detalhada comparação da lei de 1967 com as leis de segurança nacional
de 1969 e 1978 em Ana Valderez A. N. de Alencar, Segurança Nacional: Lei n.°
6.620/78 - antecedentes, comparações, anotações, histórico (Brasília, Senado
Federal, 1982).
28. Para um esclarecedor estudo de casos das decisões do governo Castelo e
(parte do) Costa e Silva nas áreas de salário, educação e remoção de favelas,
ver Barry Ames, Rhetoric and Reality in a Militarized Regime: Brazil Since 1964
(Beverly Hills, Sage Publications, 1973).

122 Brasil: de Castelo a Tancredo
nacionalistas. O general Albuquerque Lima e seu círculo, por exemplo, não faziam
segredo de seu nacionalismo econômico e, ao que se sabia, mantinham contatos com
o próximo presidente.

Com o fim de impedir tal apostasia, a equipe de Roberto Campos preparou um
Plano Decenal de Desenvolvimento Econômico e Social em sete volumes, publicado
em março de 1967.29 Suas metas laboriosamente esboçadas para toda uma década
obviamente limitariam a liberdade de ação de qualquer nova equipe económica. Na
verdade, o plano foi letra morta desde o início, pois já no começo de 1967 o
brain trust de Costa e Silva (chefiado pelo ministro da Fazenda designado Delfim
Neto) estava dando forma às suas idéias antes mesmo da divulgação do Plano
Decenal.

Mas qual foi o legado econômico do governo Castelo Branco? Todos concordam
que ele enfrentou altos riscos e limitou seu espaço de manobra, apesar dos
poderes arbitrários que possuía. Três das principais metas económicas de Castelo
Branco foram: (1) reduzir a inflação, (2) melhorar a balança de pagamentos pelo
aumento das exportações, e (3) lançar as bases do desenvolvimento a longo prazo.
Analisemos a performance do governo nessas áreas, cada uma das quais envolvia
implicações de longo alcance para o bem-estar social da população brasileira.

Praticamente não causou surpresa o fato de o governo não haver conseguido
alcançar a meta de reduzir a inflação a 10 por cento em 1966. Apesar disso, ela
foi trazida da taxa anual de aproximadamente 100 por cento em março de 1964 para
38 por cento em 1966. Em 1967 cairia ainda mais, ficando em 25 por cento.

O declínio inflacionário foi devido sobretudo às políticas fiscal, monetária
e salarial. O valor real do salário mínimo, por exemplo, caiu 25 por cento nos
três anos que se seguiram à ascensão de Castelo ao poder em 1964.30 Nenhuma
declaração pública
__________
29. Ministério do Planejamento e Coordenação Económica, Plano Decenal de
Desenvolvimento Econômico e Social, 7 vols. (Rio de Janeiro, março de
1967). Os sete volumes foram divididos em 10 subvolumes, prova do enorme
trabalho de staff consumido em sua preparação.
30. DIEESE, Dez anos da política salarial, pp. 64-65. Albert Fishlow estimou
o declínio do salário mínimo real de 1964 a 1967 em 20 por cento. Fishlow,
"Some Reflections on Economic Policy", p. 85. O presidente tenazmente
defendia suas políticas salarial e trabalhista. Ele afirmava que

Castelo Branco: a tentativa de institucionalizar 123
afirmou explicitamente a meta salarial em termos de redução do seu valor real,
mas esta tendência não aconteceu por acaso. Obviamente o governo decidira
reduzir o salário mínimo, como se pode ver pela maneira como as fórmulas de
reajustes eram calculadas e aplicadas. Na aplicação da fórmula de reajuste
anual, subestimava-se sistematicamente a inflação residual para o ano seguinte.
Além disso, não se fazia qualquer esforço nos anos subseqüentes para compensar o
trabalhador pelas perdas sofridas com a manipulação dos técnicos. Com as
lideranças sindicais expurgadas e o Congresso garroteado, os ministros Campos e
Bulhões podiam arrochar os salários, com isso melhorando, segundo esperavam, a
competitividade do Brasil no mercado internacional. Não há dúvida de que uma
outra função da política salarial do período 1964-67 era simbólica. Destinava-se
a sinalizar à comunidade empresarial brasileira e ao mundo exterior que o Brasil
estava pronto para tratar duramente o trabalhador, com todas as óbvias
implicações desta atitude para os custos de produção.31 Um governo eleito
diretamente poderia ter levado a efeito tal política salarial em meados
da década de 60? As malogradas tentativas de estabilização dos anos 50 e início
dos 60 demonstraram amplamente que não. Agora, entretanto, era fácil, com a
cobertura de um governo autoritário, instalado por golpe militar.

O comércio exterior era outra área decisiva para o desenvolvimento económico
do Brasil. Outro tipos de importações eram vitais: (1) bens de capital para a
industrialização; (2) petróleo, indispensável porque o Brasil, com escassez
deste combustível (importando 80 por cento de suas necessidades em 1964), optara
pelo transporte com motor de combustão interna; (3) matérias-primas que o Brasil
não possuía em forma prontamente explorável, como cobre e bauxita; e (4)
tecnologia e serviços.

O pagamento dessas importações exigia superávits comerciais ou ingressos de
capital sob a forma de empréstimos, créditos, sub-
_________
o governo queria aumentar os salários reais, não simplesmente os salários
nominais. Em nenhum dos seus discursos referiu-se às críticas de que o salário
mínimo estava caindo. Castelo Branco, Discursos: 1965, pp. 317-22; Castelo
Branco, Discursos: 1966, pp. 1-16, 31-41.
31. Albert Fishlow em comentários orais, em conferência na Universidade de Yale
sobre "Authoritarian Brazil", em abril de 1971.

124 Brasil: de Castelo a Tancredo
venções ou investimento estrangeiro direto. A partir dos anos 50, muitos
políticos e economistas brasileiros, tal como seus colegas latino-americanos, se
mostravam cada vez mais pessimistas sobre a possibilidade de aumentos
satisfatórios da receita de suas exportações.32 Como os preços dessas
exportações - sobretudo produtos primários - eram altamente instáveis, em
contraste com os preços das importações dos bens acabados, que subiam
constantemente, os termos de intercâmbio eram geralmente desfavoráveis à América
Latina. Segundo este raciocínio, enunciado com muita clareza pelo economista
Raul Prebisch e a Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), fundada e
por muito tempo presidida por ele, as economias da América Latina não podiam
esperar vantagens de sua participação na economia mundial e deviam, portanto,
adaptarse a esse desfavorável clima internacional procurando industrializar-
se.33
__________
32. Detalhes sobre as políticas de exportação do Brasil podem ser encontrados em
William G. Tyler, Manufactured Export Expansion and Industrialization in Brazil
(Tiibingen, 1976) [Kieler Studien, Institut für Weltwirtschaft an der
Universitát Kiel, p. 134], que cita literatura brasileira, especialmente os
estudos do IPEA. Para um surpreendente exemplo do "pessimismo em relação às
exportações" predominante entre os críticos das políticas económicas de
Castelo Branco, ver Antônio Dias Leite, Caminhos do desenvolvimento (Rio de
Janeiro, 1966), pp. 127-41. Dias Leite faz uma apreciação desanimadora do
potencial de exportação, descartando a possibilidade de exportações
significativas de açúcar e nunca mencionando a soja. O peso do seu argumento é
que o Brasil devia concentrar-se na substituição das importações, desistindo de
obter recursos com a expansão em larga escala das exportações. Com toda a
justiça, deve notar-se que antes de 1968 virtualmente ninguém previra a enorme
expansão que ocorreria no setor brasileiro de exportação. Entrevista com
funcionários do Banco Mundial, setembro de 1977.
33. Para uma excelente análise do contexto político das decisões em matéria de
comércio exterior brasileiro, ver Steven Arnold, "The Politics of Export
Promotion: Economicl Problem-Solving in Brazil, 1956-69" (Dissertação de Ph.
D., School of Advanced International Studies, Johns Hopkins University,
#Washington, 1972). Sou grato ao Dr. Arnold por ter-me cedido um exemplar de sua
dissertação. Para um cuidadoso estudo das relações económicas externas do Brasil
até 1966, ver Joel Bergsman, Brazil Industrialization and Trade Policies
(London, Oxford University Press, 1970). Os economistas divergiam fortemente
sobre o papel que os "constrangimentos à importação" desempenharam na
desaceleração econômica do início dos anos 60. Nathaniel Leff analisou o que lhe
pareceu o "impasse das importações" em dois artigos: "Export Stagnation and
Autarkic Development", Quarterly

125

Os ministros Campos e Bulhões rejeitaram esse enfoque. Eles achavam que o
potencial de exportação do Brasil fora grandemente subestimado. Lançaram,
portanto, uma campanha de exportação para explorar não somente as enormes
reservas naturais do Brasil (minério de ferro, madeira e produtos alimentícios,
por exemplo), mas também produtos acabados, área em que o país desenvolvera
recentemente capacidade de exportação. Os ministros econômicos esperavam ainda
que a "disciplina" do mercado que agora estava sendo promovida certamente
aumentaria a eficiência industrial. Finalmente, e muito importante, eles
aguardavam a entrada de mais capital estrangeiro no setor de exportação.34

A tentativa Campos-Bulhões de usar investimentos estrangeiros na promoção de
exportações provocou veementes críticas no país. Um bom exemplo foi o setor de
mineração de jazidas de ferro. O governo Castelo Branco aprovara concessões à
empresa americana Hanna Corporation para minerar e exportar manganês. Esta
medida foi como tocar em um nervo exposto dos nacionalistas e de alguns
militares, sendo que estes manifestaram seu protesto diretamente ao presidente.
Após intenso debate dentro do governo, chegou-se a um compromisso. A concessão
feita à Hanna seria equilibrada com substancial aumento do investimento oficial
na Vale do Rio Doce, a estatal brasileira de minério. Nem mesmo um governo
autoritário podia desprezar completamente a opinião nacionalista.35

A diversificação das exportações veio muito devagar para ajudar
significativamente a balança de pagamentos durante o governo Castelo Branco. Mas
os escassos resultados da campanha de promoção das exportações não importaram
muito no curto prazo,
_____________
Journal of Economics, 81 (1967), pp. 286-301; e "Import Constraints and
Development: Causes of the Recent Decline of Brazilian Economic Growth", Review
of Economics and Statistics, 49 (1967), pp. 494-501. O último artigo provocou
comentários críticos de Joel Bergsman e Samuel A. Morley, em Review of Economics
and Statistics, 51 (1969), pp. 101-2.
34. Arnold, "The Politics of Export Promotion".
35. O caso é analisado em Raymond F. Mikesell, "Iron Ore in Brazil: The
Experience of the Hanna Mining Company", em Mikesell, et ai., Foreign Investment
in the Petrãeum and Mineral Industries: Case Studies of Investor - Host
Country Relations (Baltimore, Johns Hopkins University Press, 1971), pp. 345-
64.

126 Brasil: de Castelo a Tancredo
porque a balança de pagamentos melhorou mais rapidamente do que se esperava. Em
fins de 1965, havia bastante divisas para atender a todas as obrigações da
dívida externa nos devidos prazos, de modo que não houve necessidade de se
repetir os reescalonamentos de julho de 1964 e fevereiro-abril de 1965. Este foi
um resultado totalmente involuntário da redução da demanda por importações
resultante da política constritiva fiscal e monetária de 1964 e começo de 1965.
Houve um superávit de US$85 milhões na balança comercial (bens e serviços) em
1964, que se elevou surpreendentemente para US$293 milhões em 1965. Em 1966 a
balança comercial acusou um déficit de apenas US$23 milhões, um número baixo
para o estágio de desenvolvimento econômico do Brasil. Este déficit
aumentaria nos anos seguintes para US$314 milhões, mas então o governo possuía
suficientes reservas de divisas que durariam até que financiamentos em maior
volume começassem a chegar.

A melhoria do perfil da dívida externa brasileira foi um dos principais
êxitos do governo. Castelo Branco pôde deixar para o seu sucessor espaço muito
maior para manobrar no setor da dívida do que recebera por ocasião de sua posse
em 1964. Os Estados Unidos ajudaram muito a sua administração com a
flexibilidade dos seus empréstimos-programa. Estes, no entanto, foram usados
mais para pagar credores estrangeiros do que para financiar importações
justamente quando estas sofriam forte queda com o lento crescimento de 1964-65.
A conseqüência política dessas medidas era previsível. Os críticos brasileiros
atacaram os Estados Unidos por darem preferência ao financiamento de uma
política de pagamentos a banqueiros externos do que à criação de empregos no
Brasil. Em 1966 funcionários da USAID se perguntavam se, do ponto de vista
americano, não teria sido melhor a continuação dos empréstimos-projeto - para
escolas, obras civis, programas de saúde, campanhas de alfabetização etc. O
presidente eleito Costa e Silva, consciente da importância do apoio dos Estados
Unidos, visitou Washington em janeiro de 1967 para uma conversa com o secretário
de Estado Dean Rusk, tendo recebido calorosa demonstração de simpatia por parte
do cardeal de Nova York, Francis Spellman, o mais poderoso membro do clero
católico norte-americano. Em março, apenas dias antes de Costa e Silva assumir o
poder, o embaixador Tuthill, dos Estados Unidos, e o presidente Castelo

Castelo Branco: a tentativa de institucionalizar 127
Branco assinaram acordo referente a um empréstimo de mais US$ 100 milhões. O
governo de Castelo Branco terminava como havia começado, com um conspícuo placet
do governo americano.36

Fortalecendo a economia de mercado

Campos e Bulhões achavam que o crescimento econômico saudável requeria um
setor privado funcionando com eficiência. Como o ministro do Planejamento
gostava de observar, o capitalismo não fracassara no Brasil; apenas nunca fora
experimentado.

Para onde quer que os dois ministros voltassem as vistas só encontravam
obstáculos à eficiência do capitalismo brasileiro. Uma breve discussão sobre a
rotatividade da mão-de-obra ilustrará o problema. Os empresários há muito se
queixavam de que as leis trabalhistas os obrigavam a fazer uso ineficiente da
força de trabalho. Criticavam especialmente a lei de estabilidade, que
estipulava o pagamento de elevada indenização ao empregado com mais de 10 anos
de serviço que fosse demitido sem "justa causa". A multa era tão rigorosa e tão
certa (os tribunais raramente reconheciam "justa causa") que os patrões se
protegiam rotineiramente demitindo os empregados com nove anos de casa, e às
vezes tornando a admiti-los por um novo período de nove anos. O resultado era
desorganizar a produção e prejudicar políticas racionais de pessoal.

Foi então que o governo instituiu o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço
(FGTS) financiado compulsoriamente por contribuições do empregador e do
empregado. O direito do empregado ao novo fundo representava o equivalente à
indenização, embora
________
36. A "identidade básica de pontos de vista" entre o governo Castelo Branco e as
autoridades financeiras internacionais e o governo dos Estados Unidos é
destacada em Teresa Hayter, Aid as Imperialism (London, Penguin Books, 1971),
pp. 135-42. Um indicador da seriedade com que os Estados Unidos tratavam o
Brasil era o fato de que a missão da USAID no Brasil era maior do que a de
qualquer país do mundo exceto a índia e o Vietnã. Stepan, The Military in
Politics, p. 232. No início de 1967 a embaixada informava a Washington que o
"apoio público total do governo Castelo Branco às políticas dos Estados Unidos
tem servido mais para aumentar o antiamericanismo do que para diminuí-lo",
citado em Dulles, President Castello Branco, p. 442.

128 Brasil: de Castelo a Tancredo
ele só pudesse retirá-lo no caso, entre outros, de casamento, compra de casa,
aposentadoria ou desemprego. Quanto mais tempo de serviço maior a compensação.
Eliminando o ponto "artificial" de dispensa aos 10 anos, a nova lei supunha
estar removendo uma distorção do mercado de trabalho. A medida era parte da
campanha para melhorar a mobilidade fatorial e assim promover um mercado
eficiente.

Nos termos da nova lei, o candidato a emprego podia optar ou pelo FGTS ou
pela estabilidade. Na prática, contudo, os empregadores recusavam-se a admitir
candidatos que optassem pela estabilidade. Com o correr do tempo, o FGTS
substituiu a estabilidade na maior parte da economia. Esta mudança de facto foi
asperamente denunciada por líderes sindicais e por elementos da oposição,
especialmente da esquerda. Afirmavam que os trabalhadores estavam perdendo a sua
garantia de emprego (os-empregados já com estabilidade podiam continuar neste
regime) em troca de um duvidoso plano de poupança forçada que podia ser
facilmente manipulado pelo governo.37

A falta de capital de investimento no Brasil era outra barreira ao
desenvolvimento, na opinião dos economistas que assessoravam Castelo Branco.
Dentro desta linha de pensamento, procuraram aumentar o capital disponível
promovendo a poupança doméstica. O primeiro passo foi a criação de um
instrumento financeiro que protegesse o principal contra a inflação por meio da
indexação, oferecendo ao mesmo tempo uma atraente taxa de juros. O primeiro
desses instrumentos foi um título indexado do Tesouro, a Obrigação Reajustável
do Tesouro Nacional (ORTN) lançada em meados de 1964 como parte do esforço para
financiar o déficit
__________
37. Uma história desta reforma institucional pode ser encontrada em Wanderley J.
M. de Almeida e José Luiz Chautard, FGTS: uma política de bem-estar social (Rio
de Janeiro;, 1976). Para uma atualizada explicação do sistema do FGTS, ver Celso
Barroso Leite, O que todo trabalhador deve saber sobre FGTS (Rio de Janeiro,
Edições de Ouro, 1980). O contexto da opção pelo Fundo de Garantia é
sucintamente explicado em Erickson, The Brazilian Corporative State, pp. 165-67.
Os fundos do FGTS eram canalizados para o financiamento dos programas de moradia
do Banco Nacional de Habitação. Para uma avaliação que acentua como os recursos
não foram aplicados em moradia para famílias de baixa renda, ver Gabriel
Bolaffi, A casa das ilusões perdidas: aspectos sócio-econômicos do Plano
Nacional de Habitação (CEBRAP, Caderno 27, São Paulo, 1977).

129
público. Seguiu-se a criação de uma rede de bancos de poupança (cadernetas de
poupança) que logo se tornaram importantes na captação de recursos privados,
principalmente para investimentos em habitação.

O governo também tentou fortalecer e ampliar o pequeno mercado de ações, mas
aqui os resultados foram decepcionantes. O fracasso foi devido em parte à forte
preferência dos brasileiros por manterem seus negócios sob controle familiar, em
vez de correrem os riscos de abri-los ao público. Apesar dos incentivos às
firmas privadas que desejassem fazer lançamentos públicos de ações e de
generosas deduções (12 por cento do imposto de renda de pessoa física)
concedidas aos subscritores, o mercado de ações não se tornara uma nova e
importante fonte de financiamentos em 1967, embora estivesse acontecendo um boom
nas bolsas de valores.38

Outro componente vital para o crescimento a longo prazo era a tecnologia. Em
meados da década de 60 a infra-estrutura educacional e científica do Brasil era,
por consenso universal, claramente inadequada para as suas necessidades
econômicas. Era urgente a necessidade de reestruturar as escolas, as
universidades e as instituições de pesquisa do país e aumentar consideravelmente
seus recursos. A política de estabilização, contudo, determinara profundos
cortes nos gastos públicos, importando em grande sacrifício das verbas para a
educação. Para as empresas que precisavam de tecnologia a alternativa a curto
prazo era procurarem as firmas ou missões técnicas estrangeiras. Contudo, as
firmas estrangeiras jamais poderiam substituir a modernização a longo prazo do
sistema educacional brasileiro.

Havia uma última - e crucial - característica do capitalismo que o governo
Castelo Branco tentava fortalecer: a mentalidade empresarial. Toda uma geração
de homens de negócios do Brasil fora protegida da concorrência estrangeira por
uma proibição quase total de importações competitivas, por empréstimos a taxas
de juros negativas, transporte abaixo do custo etc. Depois que os empresários
absorveram o impacto da estabilização, Roberto Cam-

38. O esforço e suas limitações são muito claramente analisados em David M.
Trubeck, "Law, Planning and Development of the Brazilian Capital Market",
The Bulletin of the Institute of Finance Graduate School of Business
Administration, New York University, N.os 72-73 (abril de 1971).

130 Brasil: de Castelo a Tancredo
pôs lhes fez ver a necessidade de "uma profunda mudança em sua maneira de
pensar. Precisavam parar de pensar em termos de pouca quantidade e preços altos,
de contar com empréstimos excessivos através de crédito subsidiado pelo governo,
e precisavam também perder o medo mórbido da concorrência".39 Os empresários
foram advertidos de que não podiam mais esperar ganhar dinheiro através de
favoritismo; agora isto só seria possível por meio de práticas comerciais
regulares. A mensagem governamental foi seguida por uma redução seletiva de
tarifas, sob a alegação de que o aumento da concorrência tornaria os produtores
brasileiros livres para se tornarem mais eficientes.

Os ministros Roberto Campos e Octavio de Bulhões conseguiram construir o
capitalismo brasileiro? A resposta a partir de 1957 foi ambígua na melhor das
hipóteses.40 Dentre outras coisas, porque as medidas antiinflacionárias
provocaram severa recessão industrial. A combinação de fraca demanda e política
monetária apertada, especialmente após os últimos meses de 1965, associada à
menor proteção contra as importações estrangeiras, levou muitos empreendimentos
brasileiros à beira da falência. E não pode ser negado que por causa de sua
forte dependência de crédito, agora sob rigoroso controle, muitas firmas locais
financeiramente deprimidas foram compradas por empresas estrangeiras (que tinham
acesso ao crédito fornecido por suas matrizes no exterior). O setor privado
sofreu muito, e diversos homens de negócios não pouparam o governo de violentas
críticas.41
___________
39. Campos estava falando para um grupo de empresários do Rio em dezembro de
1964; Campos, Política econômica e mitos políticos, p. 29.
40. Para uma avaliação de importante líder do I PÉS e destacado partidário do
golpe de 1964, ver Glycon de Paiva, artigo em O Estado de S. Paulo, 29 de março
de 1969, um de uma série.
41. Esta "desnacionalização" das empresas brasileiras foi um dos resultados mais
vigorosamente discutidos da política governamental. Um dos mais conhecidos
críticos era Fernando Gasparian, cujos artigos e discursos estão reunidos em Em
defesa da economia nacional (Rio de Janeiro, Editora Saga, 1966). O problema
tornou-se tão sério que foi objeto de uma comissão de inquérito da Câmara dos
Deputados (embora poucos acreditassem que um Congresso castrado tivesse
possibilidade de adotar qualquer "providência"). O texto do relatório
#publicado da comissão parlamentar pode ser encontrado em Rubem Medina,
Desnacionalização: crime contra o Brasil? (Rio de Janeiro, Editora Saga, 1970).
Celso Furtado compareceu para dar seu testemunho técnico perante a comissão
(voltando por pouco tempo ao

Castelo Branco: a tentativa de institucionalizar 131

O contrapeso brasileiro à expansão da presença estrangeira foi o setor
público. Não deixava de ser irónico, pois os revolucionários de 1964 repudiaram
as políticas anteriores pró-setor público porque supostamente sufocavam o setor
privado. Bastante curioso é que, enquanto Castelo desmantelou algumas das
principais empresas estatais, reorganizou outras para aumentar-lhes a produção e
a produtividade.42

Outra característica económica do período 1964-67 merece ser mencionada: a
relutância do governo em repensar a estrutura industrial do Brasil. Os
economistas de Castelo diziam que desejavam fortalecer a "racionalidade" na
economia, mas nunca perguntaram se a estrutura industrial do país a partir de
1964 era uma base ótima para o futuro desenvolvimento. A industrialização de
Juscelino (1956-61) dera ênfase aos bens de consumo duráveis, como veículos
motorizados, refrigeradores, aparelhos de ar condicionado etc. Entretanto, a
demanda por esses produtos declinara após 1962. O meio mais rápido de dinamizar
a economia era estimular a demanda de bens duráveis de consumo, ativando assim a
capacidade ociosa. Mas seguir esse caminho era elevar o poder
___________
Brasil para esse fim). Seu depoimento foi depois publicado em Celso Furtado, Um
projeto para o Brasil (Rio de Janeiro, Editora Saga, 1968). Uma tradução inglesa
está incluída em seu Obstacles to Development in Latin America (Garden City, New
York, Anchor Books, 1970). Furtado via o Brasil de após 1964 como um importante
exemplo do que é essencialmente uma nova interpretação "estruturalista" da
"dependência" tecnologicamente imposta. A vantajosa posição de crédito
desfrutada pelas empresas estrangeiras é discutida também em Samuel A. Morley e
Gordon W. Smith, "Import Substitution and Foreign Investment in Brazil", Oxford
Economic Papers, XXIII, N.° l (março de 1971), p. 134.
42. Um dos mais capazes defensores das políticas de Campos durante a era Castelo
Branco nunca se cansou de apoquentar os esquerdistas pelo fato de que era um
governo supostamente direitista que estava socorrendo o setor estatal da
economia. Gilberto Paim, "Realidade econômica", em Mário Pedrosa, et ai.,
Introdução à realidade brasileira (Rio de Janeiro, Editora Cadernos Brasileiros,
1968), pp. 35-71. Paim colaborou muito na imprensa do Rio em 1967-68. Ver,
por exemplo, "Aliança com a modernização", Jornal do Brasil, 7 de julho de 1968.
Paim também escreveu o prefácio para Campos, Do outro lado da cerca.

132 Brasil: de Castelo a Tancredo
aquisitivo de um segmento relativamente afluente; da sociedade brasileira.
Os ministros Campos e Bulhões demonstraram isso quando procuraram inverter o
declínio da atividade econômica no início de 1965. Suavizaram as restrições às
compras pelo crediário, de grande importância na comercialização de bens de
consumo duráveis. Esta medida, lógica em um contexto macroeconômico de curto
prazo, reforçou a estrutura industrial existente. Mas qual o trabalhador rural
no interior do Nordeste que, afinal, teria condições de possuir uma geladeira,
quanto mais um Fusca? Os bens de consumo ao alcance do segmento de baixa renda -
como roupas baratas, bicicletas e fogões - não acusaram aumento de demanda
porque a política salarial havia reduzido o poder aquisitivo dos seus potenciais
compradores. O sistema, portanto, reforçava-se a si mesmo: aumento da demanda
por bens duráveis, expansão da capacidade produtiva para esses produtos, e em
seguida a necessidade de aumentar novamente a demanda dos 10 por cento situados
no topo da escala de renda. A estrutura industrial dos anos 50 tornara-se um
cruel instrumento para a perpetuação de um sistema de distribuição de renda
altamente distorcido.43

Havia alternativa? Não sem uma mudança fundamental na industrialização
brasileira. E como esperar isto do governo Castelo Branco? Os ministros Campos e
Bulhões se haviam lançado à formidável tarefa da estabilização e, embora
comprometidos com as reformas, não tinham nem mandato nem tempo para repensar os
hábitos de consumo que haviam herdado. Na verdade, o que lhes agradaria era
desencadear as forças do mercado. Mas alguns participantes da manifestação de
março de 1964 pró-Revolução, intitulada "Marcha da Família por Deus e pela
Pátria", esperavam que o governo lhes dissesse que dali por diante os utensílios
domésticos seriam mais difíceis de comprar. A Revolução de 1964, afinal, teve
por objetivo afastar os políticos populistas que eram os principais defensores
de maior igualdade social.
____________
43. Algumas destas questões são discutidas em William G. Tyler, "Brazilian
Industrialization and Industrial Policies: A Survey", World Development, IV
(1976), N.os 10-11, pp. 863-82.

Castelo Branco: a tentativa de institucionalizar 133

O Legado político de Castelo Branco

Que é que Castelo e os revolucionários deixaram de marcante em março de 1967?
Na esfera política, codificaram poderes arbitrários para o Executivo, reduziram
consideravelmente os poderes do Legislativo e do Judiciário e recorreram à
manipulação direta das eleições e dos partidos, ao mesmo tempo banindo da vida
pública a maior parte dos políticos de esquerda e alguns do centro.

Um aspecto do período 1964-67 era inequivocamente claro. O general eleito
pelo Congresso em 1964 tinha a firme determinação de não se transformar em
caudilho. A austera personalidade de Castelo Branco e seu extremo senso do dever
combinavam-se com uma profunda antipatia por tudo o que lembrasse o militar
todo-poderoso, tão comum na moderna América Espanhola.44

Castelo não se desviou dessa postura mesmo quando em 1964 exerceu o poder
arbitrário de expurgar políticos, oficiais das forças armadas e funcionários
públicos, e apesar de uma poderosa força que o empurrava para fora dos limites
da democracia civil. Esta força era representada por militares que se
consideravam ultrajados com a ação dos políticos que eles consideravam
subversivos ou corruptos, ou ambos. Após as eleições estaduais de 1965, Castelo
procurou desesperadamente um meio constitucionalmente respeitável de satisfazer
à pressão militar que pedia novos poderes para cassar e suspender direitos
políticos. Seu malogro estabeleceu o critério que a Revolução seguiria nos anos
seguintes.

Mas ainda aí ele resistiu à tentação de assumir maiores poderes, o que ficou
mais claro com sua insistência (contra o conselho unânime dos seus assessores
civis) em uma cláusula no segundo Ato Institucional tornando-o inelegível para
novo mandato
___________
44. Flynn colocou isto bem ao referir-se à "convicção cromwelliana de Castelo de
sua própria honradez e ao seu profundo desprezo pela demagogia". Peter Flynn,
"Sambas, Soccer and Nationalism", New Society, N.° 463 (12 de agosto de 1971),
p. 327. Para uma análise de conteúdo de uma amostra dos discursos presidenciais
de Castelo Branco, ver Eurico de Lima Figueiredo, Os militares e a democracia:
análise estrutural da ideologia do Pres. Castelo Branco (Rio, Graal, 1980). A
ideologia que Lima Figueiredo analisa aqui foi importante elemento no que se
tornou a corrente castelista de pensamento militar.

134 Brasil: de Castelo a Tancredo
presidencial. Com esta cláusula e mais tarde com sua disposição de aceitar o
consenso militar em favor da candidatura Costa e Silva, Castelo estabeleceu o
precedente para os subseqüentes governos militares: nada de caudilhos e sucessão
somente por consenso militar.

Em termos práticos, o sistema de tomada de decisões no Exército continuou fiel
aos preceitos hierárquicos, como anteriormente. Este procedimento inibia a
emergência de caudilhos porque se baseava em regras estritas sobre promoção e
passagem para a reserva. Tais regras criavam uma rotatividade relativamente
rápida nos níveis mais altos de comando do Exército brasileiro. Por mais que
tivesse concordado em prorrogar o seu mandato por um ano, ao recusar-se a
aceitar a possibilidade de um segundo mandato, Castelo Branco deixava clara sua
convicção de que presidentes militares não deviam permanecer por períodos muito
longos no poder.

O resultado mais importante foi a manutenção do sistema de promoções e,
portanto, da unidade militar. Se esta unidade fosse rompida, os resultados
poderiam ser incalculáveis. Se fosse mantida, então o processo de tomada de
decisões, para o melhor ou o pior, era irrestrito. Analisar o ponto de vista da
oficialidade militar exigia íntimo conhecimento do sistema de promoções. Os
jornalistas tentaram por todos os meios descobrir o estado de ânimo dentro dos
quartéis, mas quase todos os oficiais se recusaram a emitir publicamente suas
opiniões políticas. Formados na tradição militar brasileira, tratavam de
proteger suas carreiras negando ao outsider informações sobre divisões internas.
Por falta de informações, os outsiders, isto é, os políticos civis, não podiam
tentar recrutar uma facção militar para servir às suas ambições.

Que dizer dos partidos, políticos e de sua participação no legado de Castelo?
O presidente acreditava firmemente na UDN. Foi o partido que lutou contra os
populistas. O partido que pensara haver conquistado o poder com a deposição de
Goulart. Repetidas vezes Castelo dependeu dos líderes udenistas em questões
delicadas, mas nem sempre sua confiança foi correspondida. Nem isto devia ter-
lhe causado surpresa. Afinal, a UDN fora um partido minoritário na política
nacional pré-1964. Incapaz de conquistar a presidência com a sua própria
bandeira, bandeou-se em

Castelo Branco: a tentativa de institucionalizar 135
1960 para o excêntrico Jânio Quadros, cuja quixotesca renúncia em 1961 destruiu
suas esperanças de um período normal no poder.

Por que a UDN era incapaz (pelas regras normais) de conquistar as vitórias
eleitorais que Castelo e os militares esperavam dela? De quem a culpa? Dos
políticos udenistas ou do eleitorado? Castelo preferiu acreditar que fosse deste
último. Assim, para impedir que os eleitores votassem em candidatos errados,
foram suspensos os direitos políticos de alguns deles (no topo da primeira lista
vinha o nome de Jânio Quadros, uma espécie de nêmese udenista), e as eleições
para os postos mais altos tornaram-se indiretas. Nasceu assim a lógica eleitoral
revolucionária: o Brasil precisava de uma democracia tutelada até que o corpo
político fosse totalmente expurgado de seus elementos subversivos e/ou
corruptos. Quanto tempo duraria tal situação? A vigência do AI-2 deveria expirar
no dia em que Castelo Branco deixasse o governo.

A avaliação de Castelo sobre o potencial da ARENA para conquistar votos
contribuiu fortemente para a sua crença (e dos seus assessores políticos) de que
tanto a Revolução quanto a população brasileira poderiam voltar a desfrutar de
uma democracia relativamente aberta em março de 1967. Uma avaliação mais
realista das possibilidades da ARENA talvez tivesse levado o governo a favorecê-
la mais e assim fortalecê-la. Aqui novamente os escrúpulos do presidente (que
sem dúvida refletiram um aspecto do pensamento militar) foram decisivos. Ele
achava "injusto" que o governo favorecesse a ARENA sobre os demais partidos.
Esta inibição, mais o fato de que o governo criara por lei um sistema
bipartidário de jacto, simplificava a tarefa do MDB de consolidar a oposição.
Afinal, se esta se transformasse em ameaça, o governo podia mudar novamente as
regras do jogo, embora Castelo achasse que isto não seria necessário. Em agosto
de 1966, por exemplo, ele explicava que "até 15 de março de 1967, a Revolução
vai completar a sua' institucionalização básica, para, numa fase seguinte,
robustecer a democracia brasileira e o desenvolvimento econômico do país".45

Quando se aproximavam seus últimos dias no Planalto, Castelo tinha a
convicção de que em seus três anos (menos algumas
_______________
45. Castelo Branco, Discursos: 1966, p. 61.

136 Brasil: de Castelo a Tancredo
semanas) de mandato havia cumprido a missão que se propusera por delegação
revolucionária. Os subversivos e populistas haviam sido derrotados,
desacreditados e expurgados. A economia se achava estabilizada, o sistema
financeiro reorganizado e a dívida externa renegociada. O Brasil podia agora
ingressar de novo nas fileiras das democracias, embora com uma Constituição que
aumentara consideravelmente o poder Executivo (e dos militares) em detrimento do
Legislativo e do Judiciário.


IV
Costa e Silva: os militares endurecem

Foi um momento tenso quando o marechal Costa e Silva recebeu a faixa
presidencial em 15 de março de 1967. Castelo Branco e seus aliados lutaram
obstinadamente contra a candidatura do ex-ministro da Guerra. Perdida a batalha,
fizeram aprovar um punhado de novas leis e até uma nova Constituição,
ostensivamente para consolidar a Revolução, mas também para enquadrar o governo
que se iniciava.

Quando Costa e Silva acabou de colocar a faixa, o Brasil disse adeus a um
conturbado período presidencial. Este período começou com a eleição de Jânio
Quadros em 1960, seguida de sua renúncia em 1961, continuou com o tumultuado
acesso ao poder de João Goulart em 1961, o sistema parlamentar imposto pelos
militares de 1961 a 1963, a deposição de Goulart em 1964 e, finalmente, o
governo Castelo Branco que os militares prorrogaram por um ano além do mandato
original de 1961-66. Costa e Silva estava dando início agora ao primeiro mandato
presidencial completo desde a Revolução.1
___________
1. Nelson Dimas Filho, Costa e Silva: o homem e o líder (Rio de Janeiro, Edições
O Cruzeiro, 1966) é a biografia do candidato à presidência escrita por um
jornalista para melhorar a imagem do então ministro da Guerra. Para úteis
cronologias sobre os anos do governo Costa è Silva, ver Lúcia Maria Gaspar
Gomes, "Cronologia do 1. ano do governo Costa e Silva", Dados, N." 4 (1968), pp.
199-220, e Irene Maria Magalhães, et ai., "Segundo e terceiro anos do governo
Costa e Silva", Dados, N.° 8 (1971), pp. 152-253. Uma fonte inapreciável é Jayme
Portella de Mello, A revolução f o governo Costa e Silva (Rio de Janeiro,
Guavira Editores, 1979). O

138 Brasil: de Castelo a Tancredo

A curiosidade em torno do novo governo se traduzia em grande número de
indagações. Costa e Silva "humanizaria a Revolução", como prometera? Isto
significaria um afrouxamento das políticas salarial e de crédito? Ou políticas
mais nacionalistas em relação ao capital estrangeiro? O grupo castelista estava
apreensivo com o que aconteceria. E como qualquer mudança política afetaria a
opinião da oficialidade do Exército, agora o cadinho da política brasileira?

Uma nova equipe

O novo presidente ajustava-se ao estereótipo do militar latino-americano. Era
jovial e mais interessado numa boa corrida de cavalos do que na leitura de
enfadonhos tratados de estratégia militar.2 O aparente contraste com o austero e
intelectual Castelo Branco não podia ser maior. Mas este contraste de imagens
não era inteiramente correto. Costa e Silva graduara-se em primeiro lugar no
Colégio Militar e na Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais. Fizera um curso de
treinamento de seis meses em Fort Knox em 1944, passara dois anos como ajudante
militar na Embaixada brasileira em Buenos Aires e comandara o Quarto Exército em
1961-62 em um Nordeste politicamente inconstante. O novo presidente era uma
figura mais talentosa e mais complexa do que sua imagem popular sugeria.

O novo Ministério não incluiu um remanescente sequer do governo anterior. A
falta de continuidade que Castelo e Roberto Campos temiam era agora evidente,
pelo menos quanto a pessoal.
______
autor foi chefe da Casa Militar da presidência e também chefiou o estado-maior
de Costa e Silva quando este era ministro da Guerra de Castelo Branco. O livro
de mil páginas de Portella de Mello é um relato dia a dia das atividades do
presidente, e inclui os textos de numerosos documentos e discursos do chefe do
governo. A interpretação de Portella é especialmente interessante no que toca à
política militar. A mais penetrante interpretação dos anos de Costa e Silva em
Flynn, Brazil: A Political Analysis, pp. 366-440. De bastante ajuda são também
Schneider, The Political System of Brazil, pp. 203-311, e Fiechter, Brazil Since
1964, pp. 123-77.

2. Seu codinome na conspiração de 1964 contra Goulart era Tio Velho, uma
pista para a sua personalidade. Portella de Mello, A revolução e o governo Costa
e Silva, p. 646.

139
Dos três Ministérios militares (Marinha, Exército e Aeronáutica), dois foram
entregues a linhas-duras: ao almirante Augusto Hamann Rademaker Grunewald coube
a Marinha e ao marechal-do-ar Márcio de Souza e Melo, a Aeronáutica. O novo
ministro do Exército foi o general Aureliano de Lyra Tavares, ex-comandante da
ESG e claramente identificado com o grupo da "Sorbonne". A quarta posição
militar importante, a chefia da Casa Militar, foi ocupada pelo general Jayme
Portella de Mello, íntimo colaborador de Costa e Silva na conspiração anti-
Goulart.

Duas outras importantes posições no Ministério foram preenchidas por oficiais
do Exército. O Ministério dos Transportes, pelo coronel (da reserva) Mário David
Andreazza, braço direito de Costa e Silva quando este ocupava o Ministério da
Guerra; o Ministério do Interior, pelo general (da reserva) Afonso Augusto de
Albuquerque Lima, conhecido engenheiro e famoso pela sua postura nacionalista no
campo da economia. Finalmente, o delicado posto de chefe do Serviço Nacional de
Informações (SNI) foi assumido pelo general Emílio Garrastazu Mediei,
relativamente desconhecido, que fora adido militar em Washington e, mais
importante, amigo íntimo de Costa e Silva. A posse de Mediei em 17 de março foi
marcada por um incidente: o boicote do general Golbery, fundador do SNI e de
cuja chefia estava se despedindo. Foi um gravíssimo insulto à equipe vitoriosa
de Costa e Silva por parte de um dos principais colaboradores de Castelo.

Reforçando a predominância militar no Ministério, mais três titulares
originários do Exército, todos da reserva: general Edmundo de Macedo Soares e
Silva, ministro da Indústria e do Comércio; coronel Jarbas Gonçalves Passarinho,
ministro do Trabalho e da Previdência Social, e coronel José Costa Cavalcanti,
ministro das Minas e Energia.

Entre os ministros civis, as figuras principais do setor econômico eram
Antônio Delfim Neto, da Fazenda, e Hélio Beltrão, do Planejamento. Delfim Neto,
de 38 anos, era um brilhante economista de São Paulo em ascensão; Beltrão,
respeitada figura da empresa privada, chefiara o setor de planejamento do
governador Carlos Lacerda, da Guanabara. Os restantes ministros civis eram
pessoas respeitáveis, embora pesos leves politicamente, com duas exceções: uma,
José de Magalhães Pinto, o novo ministro das Relações Exteriores, que fora
governador de Minas Gerais e um dos principais membros da conspiração contra
Goulart, mas que

140 Brasil: de Castelo a Tancredo
depois se tornou um dos mais veementes críticos das políticas de austeridade de
Castelo Branco. Era agora o ministro civil mais conhecido politicamente. A outra
exceção era o professor Luís António da Gama e Silva, o novo ministro da
Justiça, reitor da Universidade de São Paulo, a principal do estado e sede de
uma famosa faculdade de direito, da qual Gama e Silva fora diretor. O novo
titular da Justiça, no entanto, não era um liberal, tanto assim que na crise de
outubro de 1965 partiu dele a proposta de que Castelo Branco assumisse poderes
ditatoriais totais.3

O novo vice-presidente foi Pedro Aleixo, veterano político de Minas Gerais,
estado de fundamental importância para a política brasileira. Aleixo era um
veterano parlamentar udenista que exercera a liderança da maioria no governo
Jânio Quadros (1961) e novamente no governo Castelo Branco, até janeiro de 1966,
quando assumiu o Ministério da Educação. Os militares fizeram escolha semelhante
em 1964 quando indicaram José Maria Alkmin, outro conhecido líder político
mineiro, para a vice-presidência. Em ambos os casos, tratou-se de um gesto
destinado a conquistar legitimidade por parte da classe política.

A composição fortemente militar do Ministério era inevitável. Afinal, os
políticos há muito tinham saboreado os frutos do poder. Por que os militares,
que haviam (segundo seu raciocínio) salvado o Brasil do caos e do comunismo, não
deviam exercer o controle do governo pelos benefícios que poderiam proporcionar
aos seus compatriotas e a setores civis favorecidos, se outras razões não
existissem? Mas que o gabinete fosse predominantemente militar não significava
que se parecesse com o seu antecessor. Um detido exame do Ministério Costa e
Silva deixa claro que alguns dos ministros seguiam os mesmos princípios de
austeridade que caracterizavam Castelo Branco e seus mais íntimos colaboradores.
com efeito, esses oficiais representavam uma versão política muito diferente da
castelista.4 Eles não eram da "Sorbonne" nem jamais foram influenciados por ela,
não participaram da FEB e poucos tinham vínculos estreitos com os Estados
Unidos. O novo perfil ministerial sugeria possivelmente uma posição mais nacio-
______
3. Viana Filho, O governo Castelo Branco, p. 351.
4. Este contraste é claramente posto em relevo em Stepan, The Military in
Politics, pp. 248-52.

Costa e Silva: os militares endurecem 141
nalista. O Brasil se afastaria da instintiva dependência dos Estados Unidos
revelada pelo governo Castelo Branco?

A Nova estratégia econômica

A mais urgente tarefa do novo governo era a economia, ainda vagarosa por
causa das políticas deflacionárias de 1966 de Roberto Campos. Os críticos da
esquerda, assim como muitos representantes do comércio e da indústria, haviam
denunciado Castelo Branco e Campos por terem adotado as fórmulas ortodoxas do
FMI. O famoso economista Celso Furtado, por exemplo, acusou o governo Castelo
Branco de submeter o Brasil a um plano "pastoril", como o que os Estados Unidos
haviam supostamente tentado impor à Alemanha em 1945. Por esse plano, o
investimento industrial seria "reduzido a zero", enquanto os gastos do governo
seriam concentrados no campo.5 Esses críticos previam a ruína da indústria
brasileira em face de generosas concessões ao capital estrangeiro. Não menos
importante, acusavam, era o empobrecimento do trabalhador brasileiro, atingido
pela queda das taxas do salário real induzida pelo governo. Castelo Branco e
Roberto Campos trataram essas acusações com desprezo, alegando que o Brasil
estava saneando suas finanças - coisa que apenas os ineficientes tinham razão de
temer.

Que a economia (e os negócios brasileiros) havia sofrido com o plano de
estabilização era irrefutável. Que firmas estrangeiras compraram algumas
empresas brasileiras também era verdade. Os salários reais caíram; certas
famílias na cidade de São Paulo, por exemplo, conseguiram manter seus níveis de
renda real somente porque alguns dos seus membros tiveram a sorte de se
empregar. Todos os setores econômicos sofreram perdas. A questão
_________
5. Celso Furtado, "Brasil da república oligárquica ao estado militar", em
Furtado, ed., Brasil: tempos modernos (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1968), pp.
16-19. Furtado estava se referindo ao infame Plano Morgenthau, um documento de
trabalho do Tesouro dos Estados Unidos que nunca se transformou em política
oficial. O autor escrevia do exílio depois que o Alto Comando da Revolução (a
junta militar que governou nas primeiras semanas após o golpe) o demitira da
superintendência da SUDENE e o privara dos seus direitos políticos.

142 Brasil: de Castelo a Tancredo
consistia na alocação dessas perdas, e este era um crucial problema político.
Havia, no entanto, outra verdade: as políticas impopulares do governo Castelo
Branco haviam deixado uma herança macroeconômica favorável para o novo governo.
Fora reduzida a inflação e consideravelmente melhorada a balança de pagamentos;
reduziu-se o déficit do setor público, tanto pelo corte de despesas quanto pelo
aumento da arrecadação; racionalizou-se o setor público, inclusive com uma
administração melhor das empresas estatais; incentivos tributários e creditícios
foram habilmente usados em áreas-chave como a promoção de exportações;6
finalmente, completou-se a renegociação de grande parcela vencível a curto prazo
da dívida externa com um conseqüente aumento de ingressos de capital
(principalmente público) que ajudou a fortalecer a balança de pagamentos do
Brasil, dando-lhe mais espaço para manobra.

O receio do governo Castelo Branco era que os nacionalistas provocassem o
ressurgimento da inflação ou o nacionalismo econômico na administração Costa e
Silva.7 Mas tal receio não se materializou, pois a política económica passou
para as mãos de tecnocratas que ideologicamente pensavam praticamente da mesma
forma que os membros da equipe que os precedera. A figura predominante agora era
o destacado economista AntÔnio Delfim Neto, como se disse antes.8 Baixo,
corpulento e fluente no falar, de uma
______________
6. Estes esforços em prol da promoção das exportações só começaram a produzir
retorno em 1968-69. Carlos von Dollinger, et ai., A política brasileira de
comércio exterior e seus efeitos: 1967-73 (Rio de Janeiro, IPEA/IPES,
197.4), pp. 8-13.
7. Quando Hélio Beltrão tomou posse em março de 1967 como sucessor de Campos,
este não podia ter sido mais explícito: "Todos gostariam de alcançar o máximo
de desenvolvimento com o mínimo de inflação. Mas aqueles que acham ser possível1
transigir na luta contra a inflação a fim de estimular o desenvolvimento
acabarão tendo mais inflação do que desenvolvimento". Revista de Finanças
Públicas, XXVII, N.° 257 (março de 1967), p. 9. O pensamento de Delfim ficou
patente em um comentário de 1969 sobre os seus críticos monetaristas: "Não vamos
sacrificar a meta do desenvolvimento econômico apenas para passarmos à história
como o homem que acabou com a inflação a qualquer custo". O Estado de S. Paulo,
30 de novembro de 1969.
8. Este relato da carreira de Delfim é baseado em artigos em O Estado de S.
Paulo, l de janeiro de 1967, e Jornal da Tarde, 17 de maio de 1971.

Costa e Silva: os militares endurecem 143
família de imigrantes italianos, estudara economia na Universidade de São Paulo,
cuja faculdade de economia é uma das poucas do Brasil com projeção
internacional. Especializado em econometria, em 1958 conquistou a cadeira de
teoria econômica de sua universidade, suplementando sua atividade de professor
com a prestação de consultoria externa. Em 1966, aos 37 anos, foi nomeado por
Castelo Branco para secretário de economia do estado de São Paulo, em seguida à
intervenção que depôs o governador Adhemar de Barros. Em menos de um ano Delfim
pôs em ordem a situação caótica das finanças estaduais, reduzindo
consideravelmente o déficit da máquina administrativa. No curso desse processo,
desenvolveu laços estreitos com os líderes do comércio e da indústria de São
Paulo. Seu trabalho não passou despercebido de Roberto Campos, por cuja
recomendação foi nomeado para dois conselhos de planejamento de alto nível do
governo federal. Agora ele podia aspirar à conquista de novos mundos, tanto mais
quanto era um entusiasta da Revolução de 31 de Março, que descreveu como "uma
manifestação maciça da sociedade contra o estado de coisas vigente. Resultou,
portanto, do consenso da coletividade".9

Quem quer que examinasse a economia brasileira no início de 1967 concluiria
que ela possuía excesso de capacidade capaz de admitir aumento da produção com
pouca pressão sobre os preços. Sendo assim, uma política monetária mais branda
era a opção óbvia. Mas a equipe de Campos se firmara na opinião de que a única
alternativa para o Brasil era continuar com o remédio ortodoxo das severas
políticas fiscal e monetária. Por quê? Porque a inflação ainda era muito alta
(38 por cento em 1966) e a indústria {doméstica ainda ineficiente demais para
um sadio reinicio do crescimento a longo prazo.

Delfim Neto tinha opinião muito diferente. Ele e sua equipe (a maioria seus
ex-alunos e economistas do IPEA, um instituto de pesquisa do governo) fizeram
uma nova análise da inflação brasileira e concluíram que ela não era induzida
pela demanda e sim pelos custos. E o custo mais importante era o crédito,
comprimido ainda mais em 1966-67. Propunham, portanto, uma reviravolta
na
__________
9. O discurso de Delfim, perante um seminário na Universidade de São Paulo, foi
reproduzido em Revista de Finanças Públicas, XXVIII, N." 275 (setembro de 1968).

144 Brasil: de Castelo a Tancredo
política de crédito dos ministros Campos e Bulhões: a orientação agora era
estimular a demanda pelo afrouxamento do crédito. Delfim sustentava que se podia
alcançar "rápido desenvolvimento sem aumento da inflação", por causa do excesso
de capacidade.10 A meta econômica do novo governo, explicava, era
"desenvolvimento rápido sem pressões inflacionárias". Isto significava "aumentar
o crescimento per capita, expandir rapidamente o emprego, reduzir as
desigualdades entre indivíduos e regiões e manter um relativo equilíbrio
monetário", tudo isso, Delfim acrescentava, "sem grandes problemas para o
balanço de pagamentos".11 Uma pretensão excessiva, como os seus próprios
admiradores teriam admitido.

Quando tomou posse em março de 1967, Delfim tratou sem perda de tempo de
injetar crédito na economia. O seu diagnóstico recebia confirmação. Em 1967, o
crédito bancário ao setor priva-
___________
10. Delfim Neto esboçou estas idéias em discurso na véspera de assumir o
Ministério. O Estado de S. Paulo, 12 de março de 1967. O novo diagnóstico foi
apresentado em maio de 1967 por um grupo de economistas do governo, que
afirmavam haver o Brasil experimentado "profunda" mudança na natureza do
processo inflacionário. Desde 1966, eles diziam, a inflação era empurrada para
cima pelo "custo" enquanto Campos continuava a suprimir a demanda. O
governo Castelo Branco foi criticado por adotar uma política fiscal e monetária
"sem grande continuidade" em 1964 e 1965 e depois uma "política monetária um
tanto inflexível" em 1966. Ministério do Planejamento e Coordenação Geral,
Diretrizes de governo: programa estratégico de desenvolvimento (1967), pp.
145-62. Uma abalizada crítica dos fracassos de Campos (assim como dos seus
êxitos) no campo da política monetária é apresentada em artigos nos volumes
anuais publicados pela APEC [Análise e Perspectiva Econômica]: A economia
brasileira e suas perspectivas. A avaliação resumida de Mário Henrique Simonsen
do período 1964-69 está incluída em Inflação: gradualismo x tratamento de
choque, cap. 2. Uma análise convincente da forma em que a política de crédito
inadvertidamente promovera tanto a inflação como a estagnação entre
1962 e 1967 é encontrada em Morley, "Inflation and Stagnation in Brazil". Morley
esteve no Brasil em 1966-68 e trabalhou com o grupo de economistas do IPEA
responsáveis pelo diagnóstico crítico citado acima. Informações sobre o
pensamento de Delfim e dos seus colegas da Universidade de São Paulo também
podem ser encontradas em António Delfim Neto, et ai., Alguns aspectos da
inflação brasileira (São Paulo, Editora Piratininga, 1965).
11. Estas citações são extraídas de discursos de Delfim divulgados em O Estado
de S. Paulo, 12 de março de 1967; e Revista das Finanças Públicas, XXVII, N."
257 (março de 1967).

Costa e Silva: os militares endurecem 145
do aumentou 57 por cento e a economia cresceu 4,8 por cento, enquanto a inflação
chegava apenas a 24 por cento.12

Mas correr a toda velocidade não significava ignorar a elevação dos preços,
que a equipe de Delfim tratou com a maior seriedade. Para refrear as
expectativas inflacionárias, o ministro recorreu a uma solução distintamente
não-livre iniciativa: o controle de preços.13 O governo Castelo Branco tentou um
sistema voluntário de controle de preços (iniciado em fevereiro de 1965) que
dava às empresas facilidades tributárias e creditícias se elas seguissem as
diretrizes sobre preços estipuladas pelo governo. Estas eram aplicadas somente
às metas antiinflacionárias dos ministros Campos e Bulhões, e como tais metas
eram largamente ultrapassadas a cada ano, poucas empresas seguiram as
diretrizes.

Delfim adotou linha diferente. Um decreto de dezembro de 1967 exigiu que
todos os aumentos de preços tivessem aprovação prévia do governo. O sistema
recebeu um mecanismo administrativo próprio em agosto de 1968 com a criação do
Conselho Interministerial de Preços (CIP). O governo assumia agora o controle
___________
12. Fishlow, "Some Reflections on Economic Policy", p. 72. O artigo de Fishlow
examina com detalhes as hipóteses subjacentes das políticas de Campos e Bulhões.
Ele afirma que o excesso de capacidade disponível em 1967 facilitou grandemente
o crescimento. Nota também a baixa taxa de poupança - algo que limitaria os
investimentos e, portanto, o crescimento futuro. Antes Delfim advertiria que
a inflação zero não era sua meta principal. Em seu primeiro discurso
como ministro ele observou: "O desenvolvimento econômico e a inflação
acelerada são incompatíveis, mas é perfeitamente possível acelerar o
desenvolvimento com uma inflação controlada de cerca de 15 por cento". O Estado
de S. Paulo, 30 de março de 1967. Este discurso aborreceu Roberto Campos. Em
fevereiro de 1969 ele escreveu um artigo explicando o surto de crescimento pós-
1967 e novamente advertindo contra políticas monetárias perigosamente brandas
(embora evitando ataque direto aos responsáveis pelas decisões
econômicas do governo Costa e Silva). Ele atacou "nossa mania de acreditar que
a 'inflação brasileira é diferente', apesar das lições da história e do exemplo
dos nossos vizinhos". Roberto de Oliveira Campos, Temas e sistemas (Rio de
Janeiro, APEC, 1969), pp. 112-14.
13. Uma história detalhada do sistema de controle de preços é' apresentada em
Fernando Rezende, et ai., Aspectos da participação do governo na economia (Rio
de Janeiro, IPEA/INPES, 1976). O controle de preços, usado com freqüência antes
de 1964, foi mantido em uma forma ou outra após 1964. Este uso, aparentemente
em conflito com o compromisso da Revolução com o mercado livre, merece estudo
cuidadoso.

146 Brasil: de Castelo a Tancredo
total dos preços e anunciava severas punições para os transgressores. O CIP
transformou-se no órgão central de formulação de políticas, e a ele eram
obrigados a recorrer os empresários sempre que pretendiam elevar seus preços. O
controle de preços, por mais importante que fosse, estava longe de ser o que a
comunidade dos homens de negócios imaginou ao dar apoio à Revolução de 1964.14

O novo governo também se tornou até mais intervencionista em matéria de
política salarial. A princípio, Campos e Bulhões limitaram sua autoridade aos
salários do setor público, mas em 1965 a estenderam ao setor privado. A
observância da lei tornou-se obrigatória, mas sua vigência era de três anos
apenas, expirando em 1968, o que levou o governo Costa e Silva a decidir pela
sua continuação.

Não houve qualquer dificuldade. Em 1968, o governo solicitou ao Congresso que
tornasse a lei permanente, e este prontamente concordou. Os revolucionários
brasileiros, produto de uma rebelião contra suposta ameaça estatizante da
esquerda, praticavam agora o seu próprio dirigisme: o controle dos salários por
tempo indeterminado.

Ninguém discorda que os trabalhadores sofreram grande perda de salário real
durante o programa de estabilização de 1964-67. Castelo afirmava que a correção
das nocivas políticas do passado requereria o sacrifício de todos a curto prazo.
Mas a aplicação da fórmula salarial reduziu a taxa do salário mínimo real por
subestimar repetidamente a inflação esperada. Em 1967 esta subavaliação custou
aos trabalhadores pelo menos 25 por cento do seu poder de compra pela taxa do
salário mínimo. Delfim resolveu então acrescentar um elemento novo na fórmula -
uma "correção do resíduo inflacionário" - para compensar perdas anteriores
devidas à avaliação por baixo da inflação. Ele deu a mais ampla publicidade a
esta medida, esperando com1 isso popularizar o governo Costa e Silva.15
14. Uma excelente análise das dimensões políticas do sistema de controle dos
preços pode ser encontrada em Celso Lafer, O sistema político brasileiro (São
Paulo, Perspectiva, 1975), pp. 89-100.
__________
15. Ver notas ao capítulo anterior para fontes sobre política salarial
brasileira. Uma história das mudanças da lei salarial de 1964 'a 1974 é
apresentada em Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-
Costa e Silva: os militares endurecem

147
Foi mínimo o impacto da mudança. Em 1968 e 1969 o valor real do salário
mínimo aumentou ligeiramente. Em 1970, contudo, o declínio recomeçou. Enquanto
isso, Costa e Silva prorrogava indefinidamente o seu poder de fixar o salário
mínimo. Mais, a estrutura corporativista das relações de trabalho continuou
intacta, e os protestos dos trabalhadores, até então raros e pouco vigorosos,
foram habilmente suprimidos. Enquanto o governo Costa e Silva afrouxava o
crédito para acelerar o crescimento, o setor trabalhista parecia não apresentar
problemas.

Ao tornar permanente em 1968 o controle do salário mínimo em todos os
segmentos da economia, o governo inaugurava uma nova fase em política económica.
Enquanto Castelo Branco falava de medidas temporárias - controle salarial,
indexação - para alcançar a estabilização, Delfim adaptava agora esses
instrumentos para uso a longo prazo. Não havia dúvida de que o Brasil se
preparava para, ultrapassando a estabilização, iniciar uma nova estratégia de
desenvolvimento econômico.

Balizando a nova rota, Delfim fez extraordinárias afirmações sobre a total
ausência de interesse pessoal no seio do governo. Raramente a história do Brasil
conheceu "um governo como este", disse ele, "com absolutamente nenhum
compromisso com classes sociais ou grupos econômicos, e sem o mínimo interesse
na defesa ou preservação de instituições sociais nocivas à atividade econômica".
Falava aqui o tecnocrata por excelência, descartando envolvimento nas questões
sociais e morais inerentes à formulação de políticas económicas.16
___________
Econômicos (DIEESE), Dez anos da política salarial; uma das primeiras análises
dos efeitos da distribuição de renda da política salarial após 1964 é encontrada
em Edmar Bacha, Política econômica e distribuição de renda (Rio de Janeiro, Paz
e Terra, 1978), pp. 25-52. Em Labor Markets and Inequitable Growth, Samuel
Morley levanta importantes questões sobre a interpretação dos dados sobre
salários e acentua a necessidade de se usar uma ampla gama de indicadores para o
julgamento de mudanças no bemestar pessoal.
16. As citações são de um discurso de Delfim Neto na Universidade de São Paulo e
reproduzido na Revista de Finanças Públicas, XXVIII, N.° 275 (setembro de 1968).

148 Brasil: de Castelo a Tancredo

Política: volta ao "normal"?

O presidente Costa e Silva trabalhou arduamente para projetar uma imagem
conciliatória. Começou seu mandato prometendo humanizar a Revolução. E a nação
se divertia com as piadas sobre o presidente, sinal de que o público respirava
mais aliviado. Costa e Silva dialogava com diferentes grupos, do clero aos
homens de negócios e aos políticos garantindo-lhes que seu governo daria atenção
aos legítimos pedidos de mudanças. Criou na presidência a Assessoria Especial de
Relações Públicas (AERP) com o objetivo de ajudar a trazer bem informados os
setores da opinião pública aos quais o governo se dirigiria.

Mas os políticos da oposição (e alguns pró-governo) não entrariam em um
diálogo educado. A massa de novas leis, decretos e atos institucionais do
governo Castelo Branco reduziu drasticamente a participação do povo - pelo menos
através dos seus representantes eleitos - no governo. A oposição tinha profundo
ressentimento do regime militar pela sua constante usurpação do poder. Por outro
lado, qualquer tentativa de reconquistá-lo ia de encontro às novas regras do
jogo político. Costa e Silva estaria pronto para afrouxar a camisa-de-força
legal que Castelo preparara?

O novo governo parecia letárgico e mal coordenado durante seus primeiros
meses. Os ministros prometiam novos projetos importantes sem examinar seus
custos. O presidente, embora conciliador no tom, parecia hesitante e inseguro. A
indecisão do governo espelhava a hesitação da oposição legal. A Frente Ampla de
Lacerda ainda não se havia materializado, e os amigos deste no governo
(Magalhães Pinto e Beltrão) lhe pediam que desse uma oportunidade a Costa e
Silva. Enquanto isso, a esquerda do MDB manobrava para certificar-se de que sua
influência seria levada em conta caso a Frente Ampla realmente se constituísse.

Em abril, Costa e Silva adotou uma medida para demonstrar a sua moderação.
Anunciou aí proscrição dos IPMs, inquéritos policiais militares conduzidos em
tribunais irresponsáveis sob o governo Castelo Branco. Mas até este gesto foi
condicionado pela advertência de que os exilados políticos - novamente,
Juscelino era o alvo mais evidente - teriam que cooperar evitando qualquer
atividade política.

Enquanto o presidente cortejava a oposição legal, surgiram sinais da
emergência de uma oposição ilegal. Em abril, o Exército

Costa e Silva: os militares endurecem 149
descobriu um campo de treinamento de guerrilheiros em Minas Gerais. Em junho, o
quartel-general do Segundo Exército foi atacado por subversivos. Ambos os
incidentes, no entanto, foram descartados como secundários e a oposição legal
continuou a merecer as honras da publicidade.

Mas a atmosfera política estava se tornando superaquecida. Exemplo disso foi
o grave incidente que se seguiu à morte de Castelo Branco na colisão de dois
pequenos aviões, em julho de 1967. A Tribuna da Imprensa, outrora controlada por
Lacerda e ainda refletindo suas ideias, publicou um rancoroso necrológio,
dizendo que "a humanidade pouco perdeu, ou melhor, nada perdeu com a morte de
Castelo Branco (.. .) um homem frio, insensível, vingativo, implacável,
desumano, calculista, cruel, frustrado (...) de coração semelhante ao Deserto do
Saara".17 Os colegas de farda de Castelo ficaram revoltados, e Costa e Silva
reagiu mandando prender o autor (e dono do jornal), Hélio Fernandes. Este
incidente convenceu Lacerda de que já era tempo de dar partida ao seu movimento,
e anunciou sua candidatura à eleição presidencial de 1971. Pouco depois, em
agosto, ele informava que Juscelino estava apoiando a Frente Ampla, cujas metas
incluíam a redemocratização e um desenvolvimento econômico mais rápido.18
Lacerda voltava agora ao seu papel favorito: o orador arrojado e, por isso
mesmo, imprudente. Com sua fascinante oratória, cobria de insultos Costa e Silva
e seus ministros. Em fins de agosto <o mês fatídico do suicídio de Getúlio
Vargas em 1954 e da renúncia de Jânio em 1961), ele foi impedido de aparecer na
televisão. A humanização estava longe de ser coisa simples.

Em setembro, políticos da ARENA e do MDB debateram longamente suas relações
com a Frente Ampla, que estava monopolizando o interesse dos comentaristas
políticos. No final do mês Lacerda visitou Montevidéu e obteve o apoio de João
Goulart. Leonel Brizola, contudo, não aderiu, pois resolvera não apoiar qualquer
movimento de oposição política dentro do Brasil. Jânio
____________
17. Citado em Fiechter, Brazil Since 1964, p. 131.
18. Lacerda deu a própria versão desses fatos em seu Depoimento, pp. 379-97.
Como Juscelino ainda era sem dúvida o político mais popular do Brasil, Lacerda
precisava muito do seu apoio. Pedreira, O Brasil político, p. 277.

150 Brasil: de Castelo a Tancredo
Quadros, o outro ex-presidente cassado, hesitou e depois decidiu não apoiar.

Nos meses subseqüentes a Frente definhou, em parte porque Lacerda teve que se
concentrar em restabelecer seus contatos da direita. Seus antigos prosélitos
militares da linha dura estavam irritados devido ao seu acordo com Goulart, e
denunciaram seu "retorno ao passado". O "Círculo Militar de Fortaleza" do
ministro do Interior Albuquerque Lima, importante indicador da opinião da linha
dura, também lhe atirou aquela acusação.

Nesse interregno, a esquerda, especialmente ex-líderes do PTB, exigiu
providências decisivas para modificar a política salarial e restabelecer a
democracia. Em compensação, em outubro de 1967, Costa e Silva começou a dar
mostra de mais energia. Disse aos congressistas da ARENA que não tinha intenção
de modificar a Constituição ou alterar a política salarial. Em sua mensagem na
sessão de encerramento da sessão legislativa advertiu que tinha as armas
necessárias para combater possíveis atos de subversão.

Em dezembro, Lacerda descalçou as luvas. Em vários discursos como paraninfo
de turmas universitárias, chamou o governo de ditadura corrupta que havia
comprometido a soberania do Brasil através de transações com interesses
econômicos estrangeiros. Suas invectivas estavam começando a reproduzir o teor
daquelas proferidas pelos parlamentares nacionalistas que os militares
expurgaram.19

Em fevereiro, e parte de março, Lacerda continuava a dirigir a encenação de
sua Frente Ampla. Agora manobrava em todo o espectro político. Teve dois
encontros com o embaixador americano John Tuthill, que vazaram para a imprensa e
provocaram comentários de que os Estados Unidos estariam tergiversando em seu
apoio a Costa e Silva.20 Os militares linhas-duras se irritaram e acusaram os
políticos da ARENA de responderem com inépcia à agressividade da oposição. Em
meados de março Lacerda escolheu para alvo o general Jayme Portella, chefe da
Casa Militar de Costa e Silva. Repetindo ataques anteriores de membros da Frente
Ampla, denunciou Portella como um Svengali que usurpara os poderes
_______________
19. Para uma pespectiva não brasileira sobre esses ataques, ver o New
York Times, 28 de dezembro de 1967.
20. New York Times, 6 e 12 de março de 1968.

Costa e Silva: os militares endurecem 151
presidenciais de um incompetente Costa e Silva. Alguns militares identificados
com Albuquerque Lima acharam que o governo devia ser mais duro com Lacerda. O
que realmente os preocupava era que a Frente Ampla se transformasse em algo mais
do que um Cavalo de Tróia para o retorno de Juscelino e João Goulart. Mas os
assessores de Costa e Silva sabiam que num entrevero com Lacerda era um equívoco
deixá-lo com a iniciativa. Aguardaram por isso uma boa oportunidade para medir
forças com ele.

Da Frente Ampla ao desafio de estudantes e trabalhadores

A Frente Ampla não era o único problema político do governo. Mais importante,
pelo menos a curto prazo, era a oposição estudantil. Um breve exame da história
posterior a 1964 dos estudantes na política é necessário para se compreender o
papel da classe em 1968.21 Antes do golpe de 1964, o radicalismo estudantil com
suas ruidosas manifestações era um elemento que empurrava o governo Goulart para
a esquerda. Foram, portanto, o alvo principal para a repressão pós-golpe.
Conhecidos líderes do movimento estudantil foram presos, alguns torturados e
seus órgãos associativos ao nível federal, estadual e universitário (o mais
conhecido era a União Nacional dos Estudantes - UNE), abolidos. O governo
Castelo Branco pressionou com êxito o Congresso para aprovar uma lei de novembro
de 1964 (logo apelidada de "lei Suplicy de Lacerda", nome do ministro da
Educação e Cultura), criando uma nova estrutura de associações estudantis
proibidas de engajar-se em atividades políticas.
__________
21. Uma história da política estudantil através de 1967 pode ser encontrada em
Arthur José Poerner, O poder jovem (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,
1968). O autor corajosamente defende os estudantes que fizeram manifestações de
protesto. Para uma análise sucinta da política estudantil de 1964 a 1971, ver
Robert O. Myhr, "Student Activism and Development", em H. Jon Rosenbaum e
William G. Tyler, eds., Contemporary Brazil: Issues m Economic and Political
Development (New York, Praeger, 1972), pp. 349-69. Para apreender o sabor dos
protestos estudantis, ver Luís Henrique Romagnoli e Tânia Gonçalves, A volta da
UNE de Ibiúna a Salvador, (São Paulo, Alfa-Omega, 1979).

152 Brasil: de Castelo a Tancredo

Os estudantes mais ativistas recusaram-se a ser intimidados durante os anos
de 1965 e 1966. Em muitos campi eles sabotaram as eleições compulsórias para os
diretórios das instituições governamentais de ensino e organizaram protestos
contra expurgos de professores na Universidade de Brasília, contra a repressão a
reuniões da UNE posta fora da lei e contra a proposta do governo de pagamento do
ensino nas universidades federais.

Em fins de 1966 os líderes do movimento começaram a enfrentar maiores
dificuldades. Uma combinação de desunião (as batalhas ideológicas entre PCB,
maoístas, trotskistas e facções independentes não paravam) e a pressão policial
obrigou-os a operar na clandestinidade. A atmosfera repressiva nas universidades
continuou a radicalizar muitos dos estudantes mais politizados, especialmente
nas áreas de ciências sociais e humanidades. Mas, quando Costa e Silva assumiu o
governo, o radicalismo estudantil parecia controlado, incapaz de mobilizar-se em
escala nacional, como acontecera em 1965 e 1966.

No início de 1968 a cena mudou. Uma série de protestos irrompeu no Rio no mês
de março. A ação política dos estudantes - completamente dominada pela esquerda
- dirigia-se contra o aumento das taxas universitárias, as salas de aulas
inadequadas e os cortes no orçamento do governo para a educação. No centro da
cidade, perto da Universidade Federal, havia outra queixa: um restaurante
("Calabouço") onde os estudantes estavam exigindo melhor comida e término da
construção do prédio.

Em 28 de março houve uma manifestação no local e a polícia militar chegou
pronta a agir com energia. Logo ouviu-se um tiro. Disparado pela polícia,
atingiu o estudante Edson Luís de Lima Souto, que caiu morto. Agora os ativistas
tinham um mártir, uma morte que podia mobilizar o sentimento antigoverno. Os
colegas de Edson conduziram seu corpo para a assembléia estadual (controlada
pelo MDB), onde montaram uma vigília. Um experiente advogado oposicionista
advertiu-os a se certificarem de que o corpo não "desapareceria", como
acontecera a outras vítimas da violência policial desde 1964. O funeral no dia
seguinte transformou-se numa gigantesca marcha pelo centro da cidade. No dia 4
de abril foi celebrada missa pela alma de Edson, ao meio-dia, na igreja da
Candelária, localizada no coração do Rio de Janeiro. Compareceram
milhares, inclusive empregados de escritório que aproveitaram a hora do almoço
para expressar sua tristeza e seus

Cosia e Silva: os militares endurecem 153
sentimentos contra o governo. Ao sair da igreja, a multidão foi atacada a sabre
pelos cavalarianos da polícia, atitude que apenas fez crescer o movimento de
protesto. Marchas de solidariedade foram realizadas em muitas outras cidades,
inclusive Salvador e Porto Alegre. Brasília seria o próximo ponto de ignição
onde uma greve estudantil acabaria degenerando em conflito no início de abril.

O governo Costa e Silva decidiu então tomar medidas contra Lacerda. A 5 de
abril o ministro da Justiça Gama e Silva proibiu novas atividades políticas por
parte da Frente Ampla. A imprensa foi proibida de publicar qualquer declaração
ligada à Frente ou a qualquer dos seus membros ou outros cassados. O governo
estava usando a agitação estudantil como pretexto para liquidar a Frente Ampla.
Estava também respondendo à pressão da linha dura, que ainda se achava revoltada
com a ineficácia da ARENA contra Lacerda.

A Frente Ampla foi enquadrada, mas as exigências estudantis continuavam. O
seu protesto, com efeito, era legítimo, pois se insurgiam contra o anacronismo
do sistema de ensino superior no Brasil, muito aquém até dos padrões sul-
americanos. O crescimento econômico não fora acompanhado por uma equivalente
expansão do sistema universitário federal. Os candidatos a cursos superiores
precisavam ser aprovados em um exame vestibular de âmbito nacional, e como o
número deles era duas vezes e meia o número de vagas, o exame passou a tornar-se
cada vez mais difícil para manter baixo o número dos "aprovados". Em 1967, por
exemplo, submeteram-se ao vestibular 183.150 candidatos, mas só passaram
30 por cento, ou 70.915. No período 1964-66 o aumento do número de candidatos
foi de 12 por cento ao ano, mas em 1967 o percentual de aumento subiu para 48
por cento, salto que sem dúvida contribuiu para a crescente tensão entre as
famílias de l classe média.22
____________
22. Os dados são de Fay Haussman e Jerry Haar, Education in Brazil (Handen,
Conn: Archon Books, 1978), cap. 6. Para uma apreciação sobre o ensino superior
no Brasil até o início dos anos 70, ver Douglas Hume Graham, "The Growth, Change
and Reform of Higher Education in Brazil: A Review and Commentary on Selected
Problems and Issues", em Riordan Roett, ed., Brazil in the Sixties (Nashville,
Vanderbilt University Press, 1972), pp. 275-324.

154 Brasil: de Castelo a Tancredo

Era grande a pressão dos estudantes para se matricularem nas universidades
federais gratuitas, pois as universidades particulares (para onde geralmente se
voltavam os reprovados no vestibular) cobravam mensalidades muito altas. Os
candidatos frustrados e suas famílias constituíam verdadeira represa de
descontentamento, especialmente porque um diploma universitário era o passaporte
indispensável para o ingresso nas fileiras da elite. O grito dos estudantes
durante suas manifestações em 1968 era "vagas! vagas!" e alguns desses gritos
vinham de alunos do curso secundário prestes a enfrentarem o fantasma do
vestibular.

Virtualmente todos concordavam com a necessidade de uma reforma
universitária, inclusive uma reformulação do sistema de admissão. Mas também
havia profundas divergências sobre o que exatamente deveria ser modificado.23 O
governo Castelo Branco propusera reformas ambiciosas (para todos os níveis de
ensino) a serem planejadas e executadas pelo Ministério da Educação (MEC) em
conjunto com a USAID (daí o rótulo MEC-USAID). O programa foi imediatamente
atacado pelos nacionalistas, especialmente os estudantes, que o denunciaram como
"infiltração imperialista na educação brasileira".24

Não era de satisfação o sentimento do governo Costa e Silva em relação a
alguns projetos conjuntos MEC-USAID, especialmente na área do ensino superior,
cuja vigência expiraria no final de julho de 1968. Em dezembro de 1967 o
presidente nomeara o general Meira Mattos para presidir uma comissão encarregada
de investigar o sistema universitário e fazer recomendações. Seu relatório,
embora confidencial, recomendava, ao que se sabia, reformas
_________
23. Tópicos do debate foram os oito artigos no "Caderno Especial" do Jornal do
Brasil, de 10 de junho de 1968. Em 14 de julho o mesmo jornal publicou uma
reportagem com o título "O Ministério da Educação e Cultura tem
centenas de repartições, até uma fábrica de spaghetti, mas ainda assim não
funciona".
24. Seminário da União Nacional dos Estudantes, Infiltração imperialista no
ensino brasileiro (UNE, 1967). Os textos dos numerosos acordos MEC-USAID são
transcritos em Márcio Moreira Alves, Beabá dos MECUSAID (Rio de Janeiro, Edições
Cernasa, 1968), juntamente com mordazes comentários do autor. Outra útil análise
contrato por contrato é de José Oliveira Arapiraca, A USAID e a educação
brasileira (São Paulo, Cortez, 1982).

155
institucionais juntamente com severas medidas para impedir o ressurgimento
do estilo de política estudantil anterior a 1964.25

Mas as manifestações estudantis não pararam, e por causa delas em fins de
junho tanto a Universidade Federal quanto o sistema escolar do Rio de Janeiro
foram fechados. Dias depois um grupo de pelo menos 100 mil manifestantes
protestaram contra a violência policial, na maior manifestação política desde
1964. Para desarmar os espíritos, o governo autorizara a manifestação, que, no
entanto, pareceu aos militares ter sido uma fraqueza.26

Aprendida a lição, o ministro da Justiça Gama e Silva no início de julho
proibiu a realização de quaisquer novas marchas de protesto no Brasil. O
Conselho de Segurança Nacional, fortemente influenciado pelos militares da linha
dura, apoiou a proibição, que Costa e Silva imediatamente reiterou.

Em julho, havendo expirado o projeto de ensino superior do MEC-USAID, o
presidente anunciou seus próprios preparativos para a reforma universitária que,
em sua opinião, era muito necessária, apesar da recente politização do assunto.
Para preparar o plano ele nomeou um grupo de trabalho de 12 membros, que deveria
tomar como ponto de partida o relatório Meira Mattos. Os doze incluíam dois
estudantes, que foram nomeados mas se recusaram a participar.

Os esforços do presidente não conseguiram apaziguar os estudantes. Em fins de
agosto manifestações na Universidade de Minas Gerais forçaram a suspensão das
aulas. Na Universidade de Brasília, em 30 de agosto, para reprimir
manifestações, a polícia ocupou o compus prendendo alunos e professores. Ante as
fortes cenas de violência, Costa e Silva ordenou imediata investigação do
comportamento policial, que foi conduzida pelo general Garrastazu Mediei, chefe
do SNI. Seu relatório no início de outubro
________
25. O relatório Meira Mattos foi publicado na íntegra em um suplemento especial
de O Estado de S. Paulo, 31 de agosto de 1968. A comissão chegou a uma
"conclusão básica e fundamental: a concepção do ensino brasileiro deve ser
totalmente reformulada. Deve ser renovada e revitalizada".
26. As idéias, táticas e disposição de ânimo dos líderes estudantis
militantes foram bem capturadas em "Eles querem derrubar o governo", Realidade,
julho de 1968; e "Eis o que pensa um novo líder da esquerda" e "A faculdade está
ocupada", ambos em Realidade, agosto de 1968.

156 Brasil: de Castelo a Tancredo
permaneceu secreto - sempre o meio de ocultar críticas internas às forças de
segurança.

Após os excessos policiais de agosto em Brasília, o Congresso reforçou o
clamor contra a violência da repressão. A circunstância de os eventos terem
ocorrido na capital federal deu maior dimensão à sua importância. Alguns dos
estudantes envolvidos eram filhos de parlamentares e de funcionários do governo
(até de militares). Em fins de setembro uma comissão de inquérito da Câmara dos
Deputados acusou a Polícia Federal de violência premeditada. No mesmo mês o
presidente enviou ao Congresso sua proposta de reforma universitária. Dentre as
muitas estipulações constava a regularização do status de 7.000 professores, que
ficavam qualificados para a percepção de salário por tempo integral. Outra
cláusula dispunha sobre a ampliação do sistema universitário federal, que era
exigência constante dos estudantes e suas famílias nas manifestações públicas
que realizavam.27

Mas o mal já tinha sido feito. As manifestações e a violência policial haviam
exacerbado a tensão entre o Executivo e o Congresso (inclusive muitos
parlamentares da ARENA) e prejudicado a tentativa de Costa e Silva de conciliar
a oposição. E, o que era mais grave para o governo, a maioria dos manifestantes
pertencia à classe média, a espinha dorsal da Revolução de 1964.

Enquanto as manifestações faziam aumentar as tensões, o governo enfrentava a
combativa oposição de outro setor, menos esperada e potencialmente mais
perigosa. Em abril de 1968 os
___________
27. O projeto presidencial tornou-se a lei 5540 (1968). Por esta reorganização
as universidades brasileiras abandonaram o modelo francês (em que foram baseadas
desde as décadas de 20 e 30) e passaram a adotar o modelo americano. A lei
dispunha sobre a criação de departamentos e a eliminação dos todo-poderosos -
professores catedráticos, bem como sobre a transição para o sistema de créditos.
Haussman e Haar, Education in Brazil, pp. 80-88. Muitas das reforma tinham sido
metas do projeto MEC-USAID sobre ensino superior. Foi mais fácil para o governo
Costa e Silva - ainda preocupado com a opinião pública - promover as reformas
após o término do projeto MEC-USAID no fim de junho de 1968. Estas reformas
incluíam muitas modificações defendidas pelo IPÊS, o grupo de estudos e pressão
dos empresários. Maria Inez Salgado de Souza, Os empresários e a educação: o
IPÊS e a política educacional após 1964 (Petrópolis, Vozes, 1981), pp. 193-205.
Diversos brasileiros que trabalharam nos projetos MEC-USAID ou ligados ao IPES
cooperaram para formular ou lançar as bases da reforma de 1968.

157
metalúrgicos de Contagem, cidade industrial de Minas Gerais, ocuparam sua
fábrica num movimento tão ousado quanto duvidoso. Era a primeira grande greve
que acontecia no Brasil desde 1964. Os trabalhadores protestavam contra a
constante queda do salário real e exigiam um aumento imediato de 25 por cento.
Os grevistas elegeram sua própria comissão, completamente independente do
sindicato, cujos dirigentes descartaram qualquer participação no movimento. Das
conversações realizadas com a administração da empresa resultou uma oferta de 10
por cento de aumento (a deduzir do próximo aumento anual de salários), que foi
rejeitada.

Enquanto isso, outros trabalhadores industriais da área entraram também em
greve, elevando para 15.000 o número dos que desafiavam a ordem de volta ao
trabalho dada pelo ministro do Trabalho Jarbas Passarinho. O ministro,
procurando aplicar a política de liberalização de Costa e Silva, acedeu em
negociar. Convenceu os empregadores a não deduzirem o abono de 10 por cento do
aumento anual. Mas os trabalhadores, revelando notável solidariedade, rejeitaram
também isto. Passarinho decidiu então endurecer. Contagem foi ocupada pela
polícia, as reuniões proibidas (prejudicando assim a assembléia dos
trabalhadores que havia orientado a comissão) e os patrões ameaçaram demitir os
que não quisessem voltar ao trabalho. A greve fracassou, tanto por causa da
repressão do governo quanto pela falta de experiência e organização dos
trabalhadores.

Não obstante, o abono salarial de 10 por cento foi concedido em Contagem e,
por decisão do ministro do Trabalho, em todo o Brasil. A greve deu ao governo a
oportunidade de fazer o que já havia resolvido, isto é, romper com a política
salarial de Castelo Branco.

A cadeia de comando da greve de Contagem contornara a autoridade dos líderes
oficiais do sindicato. Aliás, eles nem sequer se envolveram nas negociações.
Dialogando com a comissão independente, a administração da empresa reconheceu-
lhe a legitimidade. Este reconhecimento foi salientado quando Passarinho se
encarregou das negociações que resultaram no abono de 10 por cento. O governo
havia abrandado a sua atitude para com a combatividade da classe trabalhadora?
Em maio ocorreu sério incidente em São Paulo que fez prever a eclosão de grandes
problemas na área trabalhista. Um contin-

158Brasil: de Castelo a Tancredo
gente de 800 trabalhadores ativistas (do meio de uma multidão de 20.000)
irrompeu em um comício de Primeiro de Maio promovido por líderes sindicais
nomeados pelo governo (pelegos), escorraçaram do palanque os locutores e
personalidades oficiais (inclusive o governador de São Paulo, Abreu Sodré),
fizeram seus próprios discursos atacando a política econômica do governo e
terminaram corn uma marcha que culminou em um protesto em frente à filial
paulista do Citibank. A polícia de choque, que não previra problemas, chegou
tarde demais.28 Dois meses depois uma greve semelhante à de Contagem - ou assim
parecia - eclodiu em Osasco, subúrbio industrial de São Paulo. Novamente seus
promotores eram os metalúrgicos, mas desta vez faziam exigências mais
ambiciosas: 35 por cento de aumento salarial, contrato de trabalho de dois anos
e reajustes trimestrais. Os folhetos sobre a greve atacavam a "lei antigreve" do
governo e o FGTS.

Na verdade, esta greve foi muito mais política do que a de Contagem. O
presidente do sindicato de Osasco, José Ibraim, não era somente um metalúrgico
mas também um universitário das fileiras dos ativistas católicos. Os militantes
antigoverno desse sindicato foram encorajados pela mobilização dos estudantes do
Rio, conseguida a despeito (e no fim por causa) da repressão do Exército e da
polícia.

Para o ministro do Trabalho Passarinho, a greve foi especialmente ameaçadora.
Primeiro, porque o sindicato assumiu a responsabilidade pelo movimento, o que
não acontecera em Contagem, podendo esta atitude servir de exemplo para outros
sindicatos. Segundo, suas exigências e sua liderança eram explicitamente
contrárias ao governo. Terceiro, o local era São Paulo, o coração industrial do
Brasil.

Embora Passarinho tivesse negociado em Contagem, o compromisso do governo
Costa e Silva com a liberalização estava dando sinais de desgaste. No segundo
dia da greve o ministro do Trabalho interveio no sindicato. Seu presidente, ao
mesmo tempo
___________
28. O planejamento e execução dos eventos são descritos por um dos seus líderes
em José Ibrahim, O que todo cidadão precisa saber sobre comissões de fábrica
(São Paulo, Global, 1986), pp. 51-71; e em Antônio Caso, ed., A esquerda armada
no Brasil 1967-1971 (Lisboa, Moraes, 1976), pp. 62-66. O último volume foi
primeiro publicado em espanhol pela Casa de Lãs Américas em Havana sob o título
Los Subversivos.

Costa e Silva: os militares endurecem 159
estudante e trabalhador, sabendo o que estava por vir, fugiu. Forças policiais e
militares ocuparam a área e houve prisão em massa de trabalhadores, alguns dos
quais levados diretamente para sessões de tortura.29 O compromisso de
"humanização" de Costa e Silva começara a ser esquecido. Todos viam claramente
que o governo não estava preparado para alterar significativamente sua política
salarial ou permitir negociações com líderes representativos de suas categorias
profissionais. Mais uma vez foi a repressão que enfrentou os protestos dos
trabalhadores.

Este ativismo sindical era parte de crescente confrontação entre o segundo
governo militar e seus mais ousados adversários. A Igreja transformou-se em
outro importante campo de batalha. Muitos bispos abandonaram sua posição
entusiasticamente pró-governo militar, adotando uma conduta mais crítica. Dom
Helder Câmara, arcebispo de Olinda e Recife, surgiu como o líder dos
"progressistas", que atacavam as políticas do governo, as quais, para eles,
reforçavam ou aprofundavam as injustiças sociais existentes. Em 1968, a Igreja
foi apanhada nas mesmas correntes que estavam radicalizando os estudantes
universitários e os trabalhadores das indústrias. Enquanto isso, ela
experimentava seu próprio processo de intenso auto-exame e renovação interna,
cujo resultado final era incerto.

Uma tendência, contudo, era inequívoca. A Igreja não tinha alternativa, senão
combater a Doutrina de Segurança Nacional do governo, com sua tentativa de
controlar todas as instituições sociais, inclusive a própria Igreja.30 Em julho
de 1968 a Conferência
___________
29. A fonte principal sobre as greves em Contagem e Osasco é Francisco C.
Weffort, "Participação e conflito industrial: Contagem e Osasco, 1968", Caderno
5 (São Paulo, CEBRAP, 1972), que habilmente trata dos distintos contextos
político e institucional das greves. Detalhes adicionais são dados por José
Ibrahim em Caso, A esquerda armada, pp. 50-81.
30. Para uma extensa discussão da Doutrina da Segurança Nacional e sua
importância ,no contexto pós-1964, ver Moreira Alves, State and Opposition, pp.
3-28. A relevância da doutrina para a Igreja é explicada em Bruneau, The Church
in Brazil, pp. 58-60. O teólogo belga José Comblin, que viveu e ensinou no
Brasil até sua expulsão em 1972, escreveu longamente sobre a Doutrina da
Segurança Nacional. José Comblin, The Church and National Security State
(Maryknoll, New York, Orbis Books, 1979). O documento dos bispos foi publicado
em Correio da Manhã, 21 de julho de 1968. O documento comparava a situação do
Brasil com a da Alemanha nazista, onde

160
Brasil: de Castelo a Tancredo
Nacional dos Bispos do Brasil divulgou um documento de trabalho denunciando
aquela doutrina como "fascista".

Em outubro o Cardeal Rossi, de São Paulo, recusou-se a celebrar missa de
aniversário para o presidente Costa e Silva no quartel-general do Segundo
Exército, gesto que no Brasil católico era inevitavelmente considerado como
insulto pessoal ao presidente. A Igreja estava sendo arrastada (gostasse ou não)
para a tempestade política cada vez mais ameaçadora. (Outros pormenores sobre
este tópico daremos no próximo capítulo.)31

A direita também se mobilizava através do Comando de Caça aos Comunistas
(CCC) e do Movimento Anticomunista, as duas organizações mais conhecidas. A
tática favorita de ambas em 1968 era invadir um teatro durante a apresentação de
uma peça taxada pelos seus membros de "subversiva" e atacar fisicamente os
atores e às vezes até o público. Em 1968, o CCC, juntamente com estudantes da
Universidade Mackenzie, instituição privada profundamente conservadora, sitiaram
a Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, cujos alunos e
professores, segundo eles, eram "agentes comunistas". Os atacantes do CCC
destruíram o interior do edifício principal enquanto a polícia apenas
assistia.32

A política havia ganho as ruas, e a pergunta que se fazia era se o governo
Costa e Silva perdera o controle do processo de "humanização". Nenhum grupo
tinha mais interesse neste assunto do que os militares.

Provocação à linha dura

Desde 1964 os militares da linha dura divergiam dos seus colegas moderados
sobre até que ponto o governo devia fazer uso
____________
os cristãos "aceitavam as doutrinas do governo sem reconhecer que elas
contradiziam as verdadeiras exigências da cristandade..." Os bispos advertiam
que o Brasil enfrentava a mesma ameaça. Era uma linguagem forte para os
militares, que se orgulhavam de haver combatido a Wehrmacht na Itália em 1944-
45.
31. Stepan, The Military in Politics, pp. 258-59; Bruneau, The Political
Transformation of the Brazilian Catholic Church, pp. 200-202.
32. João Quartim, Dictatorship and Armed Struggle in Brazil (New York, Monthly
Review Press, 1971), pp. 146-47; Flávio Deckes, Radiografia do terrorismo no
Brasil,
1966-1980 (São Paulo, ícone, 1985), pp. 49-67.
Costa e Silva: os militares endurecem
161
da repressão. Costa e Silva estava tentando com muito esforço operar dentro do
sistema legal. A Constituição de 1967 e as leis dela decorrentes destinavam-se a
criar um "governo forte" juntamente com um resíduo de democracia representativa
e de império da lei. Mas os movimentos de protestos colocaram o governo na
defensiva. Por trás dos bastidores, a linha dura atacava os moderados por terem
subestimado a oposição. A radicalização estava tomando conta dos oficiais de
todos os níveis, agora os mais descrentes de todos os políticos. Este estado de
espírito era também alimentado pela irritação dos militares com sua perda
progressiva de status e a implacável erosão dos seus soldos.33

Um fator adicional complicava a situação brasileira. Estava em marcha uma
onda de protestos estudantis em todo o mundo que trazia agitadas cidades como
Berlim, Paris, Berkeley e Tóquio. Através do mundo industrializado os estudantes
ganharam as ruas às centenas de milhares. Em Paris, que sempre influenciou muito
a elite brasileira, os estudantes se aliaram aos trabalhadores para obter
importantes concessões do governo - salários mais altos para os trabalhadores e
promessa de reorganização da antiquada estrutura universitária da França. Nos
Estados Unidos o movimento de protesto chegou a ameaçar o apoio da população à
guerra do Vietnã, tendo os estudantes desempenhado papel fundamental. Estes
fatos alarmaram os linhas-duras brasileiros, temerosos de que os protestos no
Brasil se tornassem incontroláveis. Se o governo não agisse com energia e
rapidez, diziam eles, poderia ter que defrontar-se com números maiores,
controláveis somente com o uso de uma força mais numerosa, que talvez envolvesse
tropas do Exército. E isto era anátema para os oficiais militares, que temiam
pelo futuro do Exército, se lançado no combate ao povo.

A situação estava nesse pé quando sobreveio um desafio completamente
inesperado. Começou com um discurso na Câmara dos
___________
33. Entrevistando oficiais militares de julho a outubro de 1968, Stepan notou um
crescente sentimento antipolítico. Stepan, The Military in Politics, p. 259.
Para sentir-se melhor a retórica da linha dura em meio às crises políticas de
1968, ver "Críticas sérias de jovens oficiais", Visão, 22 de novembro de 1968. O
manifesto dos oficiais da Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais foi transcrito
no Jornal do Brasil, de 7 de novembro de 1968.

162 Brasil: de Castelo a Tancredo
Deputados praticamente despercebido, mas que logo se tornaria questão de vida ou
morte. Em fins de agosto e princípio de setembro de 1968 Márcio Moreira Alves, o
ex-jornalista agora deputado e combativo crítico do governo, pronunciou uma
série de discursos denunciando a brutalidade policial (como na recente repressão
aos estudantes em Brasília) e a tortura de presos políticos. Ele sugeriu que os
pais protestassem contra o regime militar impedindo que seus filhos assistissem
à parada de Sete de Setembro, dia da Independência.34 Alves propôs a "Operação
Lysistrata", durante a qual as mulheres brasileiras, como as suas antepassadas
na comédia de Aristófanes, boicotariam seus maridos até que o governo
suspendesse a repressão. Os leitores de jornais que viram a notícia acharam
graça e nada mais do que isto. O próprio Alves disse depois que a proposta não
passou de um chiste, já que a verdadeira crítica ao governo estava em suas duras
invectivas contra a tortura e a penetração econômica estrangeira.

Mas os militares se fixaram no conselho do deputado às suas mulheres.35 O
"discurso Lysistrata" foi reproduzido e enviado a todos os quartéis do país,
deixando lívidos os oficiais que o liam. Afinal, punha-se em dúvida sua honradez
e ameaçava-se sua virilidade. Os três ministros militares exigiram que o
Congresso suspendesse as imunidades parlamentares de Márcio Alves para que ele
fosse processado por insulto às forças armadas (infração da Lei de Segurança
Nacional). O pedido presidencial foi encaminhado à Comissão de Justiça da
Câmara, onde a ARENA tinha maioria. Mas surpreendentemente as primeiras
sondagens mostraram que a Comissão votaria contra o requerimento do Executivo.
Até os parlamentares mais amigos do governo não lhe deram apoio. Os militares
cada vez mais impacientes exigiam ação. Os
_____________
34. Como jornalista e deputado federal, Alves expôs francamente suas idéias e
publicou livros sobre questões altamente controvertidas, como a tortura em
Torturas e torturados (1966), católicos radicais e sua perseguição pelo governo
em O Cristo do povo (1968), e a tentativa dos Estados Unidos de transformar o
sistema educacional brasileiro em Beabá dos MEC-USAID (1968). Alves deu seu
depoimento sobre os eventos que desaguaram na votação de 12 de dezembro em A
Grain o f Mustard Seed: The Awakening o f the Brazilian Revolution (Garden City,
New York, Anchor Books, 1973), pp. 4-25.
35. Alves, A Grain of Mustard Seed, p. 17.
Costa e Silva: os militares endurecem

163
generais usaram um recurso publicitário (que corretamente interpretaram como
contendo uma mensagem da mais alta gravidade) e dele fizeram o pivô de uma luta
não somente sobre a liberdade de expressão, mas também sobre os poderes do
Congresso.

Acontece que os militares da linha dura tinham o seu próprio programa antes
da eclosão desta crise. Há muito batalhavam para eliminar da política um grupo
de parlamentares agressivamente antigoverno (apelidados de autênticos), dos
quais Márcio Alves se tornara subitamente ò mais conhecido.36 Seu discurso, de
tão pouca importância em si mesmo, e a hesitação do Planalto deram à linha dura
a oportunidade de radicalizar a opinião da oficialidade contra a frágil
estrutura constitucional dos castelistas. Para tornar as coisas piores, a nação
estava vivendo uma fase perigosa. Como escreveu Carlos Castello Branco, "as
classes produtoras estavam apreensivas, os estudantes insubmissos, o clero
rebelde, os políticos desmoralizados e os militares frustrados. Todos sentem que
algo deve mudar, e mudar antes que o quadro de equívocos degenere em drama de
proporções maiores".37

Embora o Sete de Setembro já estivesse longe e o Congresso em recesso, os
militares recusaram-se a deixar o assunto morrer. O prestígio do presidente
estava agora em jogo, tanto quanto o de Castelo Branco na crise de outubro de
1965. Respondendo à pressão militar, Costa e Silva convocou extraordinariamente
o Congresso no início de dezembro. Antes dera ordem aos líderes da ARENA para
que alterassem a composição da Comissão de Justiça, que tinha jurisdição sobre o
caso. Os membros da Comissão contrários à suspensão das imunidades de Márcio
Alves foram substituídos por deputados cuja falta de conhecimentos de direito
___________
36. Em meados de setembro o ministro da Justiça Gama e Silva pediu ao senador
Daniel Krieger, presidente nacional da ARENA, que o ajudasse a obter permissão
da Câmara dos Deputados para processar os deputados Israel Dias Novais, Luiz
Sabiá e Davi Lerer que o haviam difamado. Nada resultou dessa bravata. Krieger,
Desde as missões, p. 327. No início de dezembro o general Portella de Mello,
principal assistente militar do presidente, ordenou vigilância policial sobre
Lerer e Sabiá, além de Márcio Alves, Mário Covas, Mata Machado, Hermano Alves e
outros esquerdistas, de modo que pudessem ser presos a qualquer momento, mas só
mediante autorização. Portella, A revolução e o governo Costa e Silva, p. 648.
37. Castello Branco, Os militares no poder, vol. 2, p. 519.

164 Brasil: de Castelo a Tancredo
constitucional era excedida somente por sua avidez em atender às ordens
presidenciais. Reconstituída a Comissão, agora em favor do governo, foi
obedientemente votada a suspensão das imunidades do deputado. A recomendação da
Comissão seguiu para o plenário da Câmara em 10 de dezembro de 1968.

Márcio Moreira Alves e Hermano Alves (nenhum parentesco), outro deputado com
pontos de vista semelhantes, cuja imunidade o presidente também desejava
suspender, trabalharam eficientemente seus colegas. Votar pela suspensão 'das
imunidades, eles diziam, converteria o Congresso em uma instituição pouco
respeitável. Os dois deputados também se prevaleceram da culpa dos parlamentares
por não haverem combatido o autoritarismo em momentos cruciais desde 1964.
Fator importante a esta altura foi a consciência dos liberais da ARENA, todos
virtualmente da UDN. Confrontados com uma votação direta, eles redescobriram
seus princípios democráticos. Exemplo disso foi o senador Daniel Krieger,
presidente nacional da ARENA, que se manifestou contrariamente ao pedido do
presidente. Outro foi o deputado Djalma Marinho, presidente da Comissão de
Justiça da Câmara, que também se opôs ao pedido do governo.38 A periódica
reversão da ARENA a questões de princípio não escapara à atenção dos militares.
No início de 1968 eles se irritaram com o vácuo criado, em sua opinião, pelo
fato de a ARENA ter-se abstido de agir como partido do governo. Muitos outros
casos podiam ser apontados. Em setembro de 1968, por exemplo, 70 deputados da
ARENA protestaram contra a repressão policial na Universidade de Brasília. Em
outubro a comissão executiva do partido advogara eleições diretas para
presidente, embora Costa e Silva se opusesse enfaticamente. Estava claro que,
apesar de todas as pressões e expurgos, a ARENA
____________
38. No auge da crise, Krieger disse ao ministro do Trabalho Passarinho que
jamais cooperaria na castração do Congresso e na violação da Constituição de
1967. Krieger, Desde as missões, p. 335. Marinho achava que a questão era "se
podemos observar a Constituição adotando controles totalitários que sufocam a
liberdade de expressão...", ibid., p. 339. Um destacado comentarista político
observava ironicamente que Marinho ao mesmo tempo que tratava do assunto
conseguiu espalhar o "germe perigoso das considerações éticas". Castello Branco,
Os militares no poder, vol. 2, p. 545.

165
estava aquém do partido "revolucionário" que os militares esperavam e agora
estavam exigindo.39

A votação do caso Márcio Moreira e Hermano Alves configurou-se como a mais
importante desde 1964. A 10-11 de dezembro os militares da linha dura foram
surpreendidos com nova causa para alarme: o Supremo Tribunal ordenara a
libertação de 81 estudantes, inclusive os principais líderes das marchas no Rio,
que estavam presos desde julho. Todos os jornalistas em Brasília sabiam que o
ministro da Justiça Gama e Silva tinha um novo Ato Institucional pronto em sua
gaveta. Estaria ele blefando para impressionar o Congresso?

A Câmara realizou a votação em 12 de dezembro. Para surpresa de muitos e
revolta dos linhas-duras, o pedido do governo foi rejeitado por 216 a 141 (com
15 abstenções). Seguiu-se verdadeiro pandemônio no plenário da Câmara. Alguém
começou a cantar o hino nacional e todos fizeram o mesmo. Os deputados
congratulavam-se mutuamente por sua coragem. A emoção de haverem desafiado os
militares era contagiante. Mas Márcio Alves sabia que era agora o inimigo
público número um. Rapidamente abandonou o recinto da Câmara e desapareceu
clandestinamente rumo ao exílio.

A Repressão autoritária

A reação do presidente foi rápida - como devia ser para que continuasse no
poder. O seu principal assessor militar já vinha sendo bombardeado pelos
generais que exigiam ação imediata. Na manhã de 13 de dezembro ele convocou os
23 membros do Conselho de Segurança Nacional (os ministros, o vice-presidente,
os chefes de estado-maior das três armas, o chefe do estado-maior das forças
armadas, os chefes das casas militar e civil da presidência e o chefe do SNI)
para informá-los do novo Ato Institucional na iminência de ser proclamado. O
ministro da Jus-
____________
39. Schneider, The Political System of Brazil, pp. 265-72. A crescente tensão
entre o Legislativo controlado pela ARENA e o Planalto é mostrada claramente em
Sérgio Henrique Hudson de Abranches e Gláucio Ary Dillon Soares, "As funções do
legislativo", Revista de Administração Pública, VII, N." l (janeiro/março de
1973), pp. 73-98.

166 Brasil: de Castelo a Tancredo
tiça começou a ler a minuta vazada em termos mais draconianos do que se
esperava. O ministro do Exército, irritado, o interrompeu: "Desta maneira a casa
virá abaixo". Gama e Silva, cuja verbosidade e pobreza de julgamento eram uma
constante dor de cabeça para o Planalto, redigiu então um segundo esboço nos
termos recomendados por Costa e Silva e outros militares. Durante a longa
discussão todos ficaram a favor, menos o vice-presidente Pedro Aleixo, que em
vão defendera a alternativa constitucional de se invocar o estado de sítio. As
altas patentes militares irritaram-se com a proposta de Aleixo, que ele se
recusou a retirar. Naquela mesma noite o presidente promulgou o Ato
Institucional n.° 5 e o Ato Suplementar n.° 38, este último pondo o Congresso em
recesso indefinidamente.40

Acobertada pelo novo instrumento militar legal, a censura atingiu a imprensa,
não poupando nem mesmo os jornalistas de mais prestígio. Carlos Castello Branco,
o mais conhecido colunista político do Brasil, foi preso, juntamente corn o
diretor do seu jornal, Jornal do Brasil. Posteriormente, seria preso também o
editor do mesmo jornal, Alberto Dines. Os linhas-duras, liderados pelo ministro
do Interior Albuquerque Lima, fizeram saber que o Brasil precisava de 20 anos de
regime autoritário. Defendiam também a necessidade de um partido novo e
confiável caso o Legislativo voltasse a funcionar. Costa e Silva resumiu a
opinião militar em seu primeiro discurso público depois da edição do AI-5,
quando perguntou: "Quantas vezes teremos que reiterar e demonstrar que a
Revolução é irreversível?"41

Nos seis meses seguintes o governo promulgou uma série de atos
institucionais, atos suplementares e decretos, todos visando a aumentar o
controle executivo e militar sobre o governo e os cidadãos.42 O Congresso foi
expurgado, primeiro de 37 deputados
__________
40. Detalhes sobre as reuniões do Conselho são dados em Portella, A revolução
e o governo Costa e Silva, pp. 651-57. A análise mais sistemática do elevado
grau do poder autoritário é de Klein e Figueiredo, Legitimidade e coação no
Brasil pós-1964. O contexto da política militar é dado em Stepan, The Military
in Politics, pp. 259-66.
41. Portella, A revolução e o governo Costa e Silva, p. 668.
42. Maria Helena Moreira Alves afirma isto diferentemente:, "Talvez a mais grave
conseqüência do Ato Institucional é que ele abriu caminho para o uso desenfreado
do aparelho repressivo do estado de segurança nacional". State and Opposition,
p. 96.

Costa e Silva: os militares endurecem 167
da ARENA, depois de outros 51 parlamentares, começando com Márcio Moreira Alves
e Hermano Alves. Carlos Lacerda, um dos principais defensores da Revolução de
1964, foi finalmente privado dos seus direitos políticos. Muitas assembléias
estaduais, inclusive as de São Paulo e Rio de Janeiro, foram fechadas. No início
de 1969 Costa e Silva assinou um decreto colocando todas as forças militares e
policiais dos estados sob o controle do ministro da Guerra, estipulando mais que
as forças estaduais deveriam ser sempre comandadas por oficiais das forças
armadas em serviço ativo. Além disso, todas as forças policiais ficariam
subordinadas à agência estadual responsável pela ordem pública e a segurança
interna. Cada vez mais o poder de zelar pela segurança estava passando para a
esfera do governo federal, enfraquecendo a estrutura federal, a qual até os
militares procuravam lisonjear.43

O Judiciário foi outro alvo da ofensiva governamental. Em janeiro de 1969
três ministros do Supremo Tribunal Federal foram forçados a se aposentar: Victor
Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva. O presidente do Tribunal,
ministro Gonçalves de Oliveira, renunciou em sinal de protesto. Usando o sexto
Ato Institucional de l de fevereiro de 1969, Costa e Silva reduziu então o
número de magistrados do Supremo de 16 para 11 e transferiu todos os delitos
contra a segurança nacional ou as forças armadas para a jurisdição do Supremo
Tribunal Militar e dos tribunais militares de categoria inferior. O governo
também decretou por um ato de força a aposentadoria do general Pery Bevilacqua,
ministro do Supremo Tribunal Militar que os linhasduras consideravam complacente
demais com os réus.

A censura ad hoc, que surgira mal coordenada em dezembro de 1968, foi
regularizada em março de 1969 por um decreto que tornava ilegal qualquer crítica
aos atos institucionais, às autoridades governamentais ou às forças armadas.
Como se quisessem indicar de onde achavam que se originava a oposição, os
arquitetos da censura também proibiram a publicação de notícias sobre movimentos
de trabalhadores ou de estudantes. Toda a mídia foi colocada sob a supervisão
dos tribunais militares.44
____________
43. Dalmo Abreu Dallari, "The Força Pública of São Paulo in State and National
Politics" (manuscrito não publicado).
44. Informações sobre a censura, organizadas de forma algo caótica, podem ser
encontradas em Paolo Marconi, A censura política na imprensa

168 Brasil: de Castelo a Tancredo

Setenta professores da Universidade de São Paulo (USP) e de várias outras
universidades foram involuntariamente aposentados em maio de 1969. Entre eles
figuravam mestres internacionalmente conhecidos, como os antropólogos Florestan
Fernandes e seus antigos alunos (depois professores) Fernando Henrique Cardoso e
Octavio Ianni. Outros nomes conhecidos eram os de Isias Raw, diretor do
Departamento de Bioquímica da USP, e José Leite Lopes, professor de física,
juntamente com Abelardo Zaluar, professor de belas-artes na Universidade Federal
do Rio de Janeiro. Nunca se conheceram as razões dessas punições, embora algumas
das vítimas pertencessem ostensivamente à esquerda e muitas outras tivessem
defendido a modernização da antiquada estrutura do sistema universitário. Como
sempre, ressentimentos pessoais e enormes ambições estiveram presentes na hora
da compilação da lista de punidos.45

De par com esses expurgos, o governo lançou o que lhe pareceu uma medida
positiva, um novo dispositivo curricular para promover o patriotismo. No início
de 1969 um decreto-lei criou compulsoriamente o curso de Educação Moral e Cívica
que todos os estudantes deviam fazer anualmente - com instrutor e material
didático devidamente aprovados. Destinada a apoiar a versão brasileira da
Doutrina de Segurança Nacional, a idéia do curso partira de um grupo de trabalho
da Escola Superior de Guerra como resposta à necessidade de se reformular a
mentalidade das vindouras gerações em conformidade com as novas realidades da
Revolução de 1964.46

Lançado no início de 1971, o plano exigia que todo aluno matriculado - do
primeiro grau à pós-graduação - fizesse o
___________
brasileira: 1968-1978 (São Paulo, Global, 1980). Por causa da censura à imprensa
brasileira após dezembro de 1968, usei freqüentemente como fonte as reportagens
de correspondentes estrangeiros. O funcionamento e os efeitos da censura serão
discutidos com mais detalhes no capítulo seguinte.

45. New York Times, 6 de maio de 1969; Christian Science Monitor, 9 de maio de
1969. Os expurgos no magistério e nos meios intelectuais são analisados com
riqueza de informações em Philippe C. Schmitter, "The Persecution of
Political and Social Scientists in Brazil", PS, 111, N.° 2 (Primavera de
1970), pp. 123-28.
46. Luiz António Cunha e Moacyr de Góes, O golpe na educação (Rio, • Zahar,
1985), pp. 74-75.

Costa e Silva: os militares endurecem 169
curso. A lei definia o programa como destinado a "defender os princípios
democráticos pela preservação do espírito religioso, da dignidade do ser humano
e do amor à liberdade, com responsabilidade sob a inspiração de Deus".
Destinava-se também a promover "obediência à lei, dedicação ao trabalho e
integração na comunidade". Todo o material de ensino tinha que ter a aprovação
do governo, que estimulava a produção de um amontoado de volumes medíocres com
histórias de heróis e a discussão de problemas (certamente legítimos porém, o
que é mais importante, seguros), como a necessidade de mais projetos
hidrelétricos e mais tecnologia. Do ginásio para cima, muitos alunos
consideravam o curso uma pilhéria, mas seu conteúdo oferecia uma pista de como o
governo militar desejava definir o futuro do Brasil.47

Finalmente, o governo arremeteu contra o que considerava a posse de bens
obtidos "ilicitamente" por políticos ou funcionários públicos em todos os níveis
(exceto presumivelmente os militares). Com esse objetivo, criou uma nova
Comissão Geral de Investigações para apurar e julgar todos os casos de
corrupção. A jurisdição desse órgão foi logo ampliada para incluir qualquer um
suspeito de enriquecimento "ilícito".

O governo Costa e Silva estava revertendo ao uso dos poderes arbitrários que
caracterizavam os meses iniciais da Revolução. A justificação, contudo, tinha
que ser diferente. Nos dias e semanas que se seguiram ao fechamento do Congresso
e à promulgação do Ato Institucional n.° 6, o presidente defendeu as novas
medidas autoritárias como necessárias para "reativar a Revolução". Queixou-se
amargamente de que a tolerância do seu governo fora respondida com a
intolerância, a sua magnanimidade vista como fraqueza. Afinal, ele não podia
cruzar os braços e ver a democracia destruir-se, supostamente em nome da
democracia, afirmou.48 A
_______
47. As passagens do projeto são citadas por Maria Inez Salgado de Souza, Os
empresários e a educação: o IPÊS e a política educacional após
1964 (Petrópolis, Vozes, 1981), pp. 176-78. Para um exame altamente crítico do
programa e de alguns dos seus livros de texto, ver "Moral e cívica: deformações
e violações de uma disciplina", Jornal do Brasil, 24 de agosto de 1974.
48. Portella de Mello, A revolução e o governo Costa e Silva, p. 669; Magalhães,
et al., "Segundo e terceiro anos do governo Costa e Silva", Dados, N." 8 (1971),
p. 171.

170 Brasil: de Castelo a Tancredo
justificativa apresentada para a medida de força foi a Doutrina de Segurança
Nacional, a qual sustentava que a nação, e em última análise os militares, tinha
o dever de defender-se dos inimigos internos tanto quanto dos externos. Esta
doutrina era agora tanto mais invocada quanto mais o Brasil mergulhava no
autoritarismo.

Os primeiros seis meses de 1969 presenciaram um constante recuo das eleições
que Costa e Silva esperara presidir. O governo não desejava nem a agitação de
uma campanha nem a possibilidade de uma derrota. Por isso o oitavo Ato
Institucional de fevereiro de 1969 suspendeu a realização de todas as eleições
até o nível municipal. Em junho, os estrategistas políticos do governo
conceberam interessante solução ad hoc para os problemas de organização
político-partidária. A nova regulamentação eleitoral permitiu que os candidatos
dos dois partidos oficialmente organizados, a ARENA e o MDB, fossem
identificados por uma "sublegenda", indicando a filiação a um dos antigos
partidos, como UDN ou PSD. Achava o governo que a sublegenda, que atrairia
eleitores ainda identificados com aquelas agremiações políticas, ajudaria mais
a ARENA do que o MDB. Era uma medida de curto prazo que em nada comprometeria a
meta de um sistema estritamente bipartidário.

Em virtude desta rápida modificação do cenário político e da propensão dos
militares brasileiros para a legitimidade formal, era inevitável uma nova
Constituição. Durante a primeira metade de 1969 o próprio presidente trabalhou
numa versão preliminar, em grande parte esboçada pelo vice-presidente Pedro
Aleixo. Em fins de agosto o esboço do projeto estava virtualmente terminado.49
Por que essa mania por mais uma Constituição? É que nela refletia-se o desejo
contínuo dos revolucionários, até dos militares da linha dura, de estarem
reunidos de uma justificativa legal para a afirmação de sua autoridade
arbitrária. Agora, contudo, havia gritante contradição entre o compromisso com o
constitucionalismo e a vontade de mandar, porquanto a mais importante
autojustificação do governo, o AI-5, não tinha prazo para expirar. E, além do
mais, dava ao presidente poder para suspender indefinidamente
__________
49. New York Times, 27 de agosto de 1969.

171
o habeas-corpus. Pela primeira vez, desde o golpe de 1964, não havia data
marcada para o retorno ao império da lei.50

Surge a guerrilha

À medida que a nova ordem autoritária tomava forma, Costa e Silva enfrentava
um problema que atormentara Castelo Branco: como reconquistar o controle do
governo depois da virada autoritária forçada pela linha dura. Logo após o AI-2,
Castelo teve que lutar com grande firmeza para continuar no poder. Agora Costa e
Silva e seus camaradas mais graduados tinham que convencer os linhas-duras de
que os novos atos e leis manteriam a oposição longe do poder; aliás, impediriam
a oposição até de propagar suas ideias.

Esta estratégia teve, contudo, suas desvantagens. O silêncio forçado da
oposição legal criou um vácuo que a oposição armada tentou ocupar.51 As
guerrilhas não eram novidade na América Latina. O formidável triunfo de Fidel
Castro sobre as tropas mal treinadas e mediocremente comandadas do ditador
Fulgêncio Batista ajudou a criar a teoria do "foco". Sustentavam seus
proponentes que mediante cuidadosa escolha de uma base rebelde no
_________
50. Um estudioso da história política do Brasil descreveu o AI-5 e a guinada
autoritária que o acompanhou como o primeiro golpe puramente militar no Brasil
"sem o apoio ou estímulo de qualquer setor político civil". Pedreira, O Brasil
político, pp. 163, 278.
51. A história completa da resistência armada aos governos pós-1964 jamais será
contada, pois muitos guerrilheiros importantes foram mortos e os membros das
forças de segurança tiveram óbvias razões para não documentar seu trabalho.
Uma apreciação muito útil dos movimentos de oposição armada no Brasil pode
ser encontrada em João Batista Berardo, Guerrilhas e guerrilheiros no drama da
América Latina (São Paulo, Edições Populares, 1981). Uma análise do caso
brasileiro a partir de 1973 é feita em James Kohl e John Litt, Urban Guerrilla
Warjare in Latin America (Cambridge, Mass, MIT Press, 1974), pp. 29-170. Uma
preciosa coleção de manifestos e programas da esquerda clandestina até 1971 é
fornecida em Daniel Aarão Reis Filho e Jair Ferreira de Sá, Imagens da
Revolução. Um relato de primeira mão cobrindo outubro de 1967 a maio de 1971 por
um menino de ginásio do Rio que se tornou completo guerrilheiro é feito com
espírito em Alfred Syrkis, Os carbonários: memórias da guerrilha perdida (São
Paulo, Global, 1980). Para uma coleção de depoimentos e documentos

172 Brasil: de Castelo a Tancredo
campo um pequeno contingente de guerrilheiros disciplinados podia - através da
ação armada e da propaganda dirigida no sentido de agitar as massas -
desestabilizar um governo opressor e posteriormente derrubá-lo. Esta teoria, que
funcionou em Cuba, não logrou êxito em nenhum outro lugar da América Latina.52 A
tentativa de Che Guevara de reproduzir o feito na Bolívia só lhe trouxe o
martírio e a morte. Mas o desastre do Che não desencorajou os revolucionários
que aspiravam a impor suas idéias em outros países da América Latina.
Confrontados com regimes militares repressivos, como o do Brasil após 1964 e o
da Argentina após 1966, alguns ativistas, na maioria jovens e da classe média,
recusaram-se a abandonar seu compromisso revolucionário.

A teoria e estratégia da guerrilha no Brasil emergiu devagar, estreitamente
relacionada com a sorte da esquerda após 1964,53 e para a qual o golpe foi uma
surpresa muito desagradável. Nos últimos meses do governo Goulart os
nacionalistas radicais tinham se convencido de que estavam assumindo o controle
do poder. Acreditavam que os militares direitistas tinham sido neutralizados e
que o apoio popular a João Goulart estava aumentando diariamente. Entre os que
menos se surpreenderam estavam os comu-
__________
de guerrilheiros, ver Caso, A esquerda armada no Brasil. Outra perspectiva da
guerrilha revolucionária é apresentada em Quartim, Dictatorship and Armed
Struggle in Brazil. Para um interessante retrato jornalístico baseado em
entrevistas com guerrilheiros do Brasil exilados na Argélia, ver Sanche de
Gramont, "How One Pleasant Scholarly Young Man from Brazil Became a Kidnapping,
Gun Toting, Bombing Revolutionary', New York Times Magazine, 15 de novembro de
1970.
52. Para uma excelente reconstituição da história dos movimentos
guerrilheiros na América Latina feita recentemente, ver a edição de Guerrilla
Warfare de Che Guevara (Lincoln, University of Nehraska Press, 1985) editado
com uma introdução e estudo de casos por Brian Loveman e Thomas M. Davies Jr. E
significativo (e-4alvez justificado) que o livro não contenha uma só referência
ao Brasil.
53. Esta discussão não tem a pretensão de explorar em profundidade a sorte da
esquerda após 1964; o foco aqui está voltado para as origens dos movimentos
guerrilheiros. Resumos das matérias mais amplas podem ser encontrados em John W.
F. Dulles, "La Izquierda Brasilena: Esfuerzos de Recuperación", Problemas
Internacionales, XX (julho-agosto de 1973), pp. 1-39, que cobre 1964-70.
Para um exemplo da reavaliação feita pelo PCB, ver Assis Tavares, "Causas da
derrocada de 1° de abril de 1964", Revista Civilização Brasileira, N.° 8 (julho
de 1966), pp. 9-33.

Costa e Silva: os militares endurecem 173
nistas da linha de Moscou (PCB) que ainda se lembravam de sua fracassada revolta
militar de 1935 e dos anos de prisão que se seguiram. Por isso, quando o golpe
foi desfechado, os líderes do PCB já haviam passado à clandestinidade.

Após desfechado o golpe, a esquerda envolveu-se em amargos debates sobre a
sua própria conduta na fase pré-Revolução. Como é que diagnosticou tão mal o
cenário político? Por que houve tão pouca resistência ao golpe? Que devia fazer
agora a esquerda?54 O PCB continuou extremamente cauteloso. Com os seus líderes
na clandestinidade, não cessava de denunciar o governo "fascista" e seus patrões
"imperialistas". O partido não se manifestou em favor da resistência armada,
precaução compatível com a linha de Moscou, à qual o PCB ainda era leal.55
_____________
54. O contexto latino-americano desses debates é esboçado em Richard Gott,
Guerrilla Movements in Latin America (Garden City, New York, Doubleday,
1971); William E. Ratliff, Castroism and Communism in Latin America, 1959-1976
(Stanford, Hoover Institution, 1976); e Donald C. Hodges, The Latin American
Revolution: Politics and Strategy from Apro-Marxism to Guevarism (New York,
William Morrow, 1974), embora nenhuma dessas obras dê significativa atenção ao
Brasil.
55. A fonte indispensável sobre a história do PCB é Ronald H. Chilcote, The
Brazilian Communist Party: Conflict and Integration, 1922-27 (New York,
Oxford University Press, 1974). Uma valiosa coleção de documentos ê PCB: vinte
anos de política, 1958-1979: documentos (São Paulo, Livraria Editora Ciências
Humanas, 1980), que dá interessantes detalhes sobre como o PCB perdeu alguns dos
seus membros para os novos grupos de guerrilheiros. Ver também Edgar Carone, O
PCB: 1964-1982 (São Paulo, DIFEL, 1982), e Moisés Vinhas, O partidão: a luta
por um partido de massas, 1922-1974 (São Paulo, Hucitec, 1982). Um relato das
lutas intrapartidos após 1964 é feito por Luís Carlos Prestes, o veterano
secretário geral do PCB, em suas entrevistas publicadas por Dênis de Moraes e
Francisco Viana, Prestes: lutas e autocríticas (Petrópolis, Vozes, 1982), pp.
177-96. Os dissidentes pró-maoístas do PCB foram expulsos em 1961 e
formaram seu próprio partido, o Partido Comunista do Brasil (PC do B). Há uma
coleção dos seus documentos e manifestos em Partido Comunista do Brasil,
Cinqüenta anos de luta (Lisboa, Edições Maria da Fonte, 1975). Para
outras coleções de documentos, ver duas publicações do Partido Comunista do
Brasil: Política e revolucionarização (Lisboa, Ed. Maria da Fonte, 1977) e
Guerra Popular: caminho da luta armada no Brasil (Lisboa, Ed. Maria da Fonte,
1974). A influência do PCB sobre radicais em idade universitária é descrita
poeticamente em Álvaro Caldas, Tirando o capuz (Rio de Janeiro, CODECRI, 1981),
pp. 144-45.

174 Brasil: de Castelo a Tancredo

A esquerda não-PCB era outra coisa. A maioria recém-chegara à política, sendo
poucos os que tinham experiência prática de esquivar-se da polícia ou ludibriá-
la. Eram quase todos jovens muitos na casa dos 20 anos - e em geral ativistas da
política estudantil. Pertenciam predominantemente à classe média, que no Brasil
significava os 5 a 10 por cento mais ricos da população.

Esses militantes saíram de dois principais grupos para o ativismo radical: os
partidos revolucionários de esquerda (como o PC do B maoísta ou o POLOP, um dos
vários grupos trotskistas) e o movimento católico radical (como a Ação Popular -
AP, o Movimento de Educação de Base - MEB ou a Juventude Universitária Católica
- JUC).

Com o golpe, muitos desses militantes afastaram-se rapidamente do cenário
político, uns por medo, outros por prudência. Não foram poucos os detidos na
"Operação Limpeza" em 1964. Com o passar dos meses, contudo, alguns radicais da
esquerda, tanto civis como militares, começaram a organizar uma oposição armada.

Quem participou (ou apoiou) das guerrilhas, e por quê? Não foi o PCB, cuja
posição alienou - em geral revoltou - os militantes da esquerda. Alguns membros
do PCB que não puderam tolerar por mais tempo aquela posição desertaram e,
juntamente com veteranos de grupos trotskistas e católicos, formariam a espinha
dorsal da resistência armada ao governo militar.

Os dissidentes eram poucos entre 1964 e 1967, mas assim mesmo realizaram uma
série de ações terroristas, especialmente a explosão de bombas em instalações do
governo americano e no aeroporto de Recife.56 No decorrer de 1966 os ataques
preocuparam as autoridades, mas as forças de segurança os consideravam pouco
mais do que uma amolação. No início de 1967, contudo, ocorreu a primeira
tentativa séria de abertura de uma frente de guerrilha rural. A operação
estreitamente ligada a Leonel Brizola (exilado no Uruguai) desenvolveu-se na
Serra do Caparão entre
___________
56. Por amor à simplicidade, os responsáveis pelas ações desses grupos
terroristas (na linguagem das autoridades) ou guerrilheiros (na linguagem dos
autores e seus adeptos) não se identificaram. Adiante neste capítulo os
principais grupos serão discutidos.

175
Minas Gerais e Espírito Santo. Os guerrilheiros, na maioria ex-militares
expurgados de suas corporações no início do governo Castelo Branco, foram
detectados pelo Exército antes de poderem estabelecer contato com a população
local. Alguns foram capturados, mas grande número fugiu. Brizola disse mais
tarde que esta aventura o convencera de que a guerrilha não era viável no
Brasil.57 No ano de 1967 verificaram-se também explosões de bombas no escritório
dos Voluntários da Paz no Rio e na residência do adido da Força Aérea americana,
também no Rio.58 O lançamento de bombas era uma forma grosseira de protesto
talvez eficiente para agitar a opinião pública, mas praticamente inútil como
ameaça ao governo. Se os militantes da esquerda queriam transformar a política
do Brasil, precisavam de uma estratégia a mais longo prazo.

Um evento fundamental no desenvolvimento da guerrilha foi a defecção de
Carlos Marighela das fileiras do PCB. Marighela, um baiano alto, musculoso, fora
membro do PCB desde a sua juventude na metade dos anos 30. Em 1939, preso pela
polícia de Felinto Míiller, passou seis anos na cadeia. Em 1946, juntamente com
seu companheiro e membro do PCB, Jorge Amado, foi eleito para a Assembléia
Constituinte. Em 1953-54 visitou a República Popular da China. De volta ao
Brasil, continuou a demonstrar a coragem e a energia que lhe granjearam um lugar
na comissão executiva do partido. Em maio de 1964 Marighela foi detido e preso
por dois meses. Em seguida voltou à atividade partidária, mas o excesso de
cautela do PCB após 1964 o estava deixando cada vez mais frustrado, de tal sorte
que em dezembro de 1966 renunciou ao seu posto na comissão executiva. Em agosto
de 1967 participou em Havana da primeira conferência da Organização Latino-
Americana de Solidariedade (OLAS). Como o PCB, seguindo a linha de Moscou,
estava boicotando a conferência, a presença de Marighela dramatizou sua
alienação do partido, do qual se afastou oficialmente ao voltar de Havana. Mais
tarde, no mesmo ano, ele fundou um novo movimento, a Ação Libertadora Nacional
(ALN), tornando-se o principal teórico da resistência
______________
57. A história desta ação guerrilheira está documentada e analisada em Gilson
Rebello, A guerrilha de Caparão (São Paulo, Alfa-Ômega, 1980).
58. New York Times, 2 de agosto e 26 de setembro de 1967.

176Brasil: de Castelo a Tancredo
armada no Brasil. Seu principal aliado na ALN foi Joaquim Câmara
Ferreira, outro que abandonara o PCB.59

Mas as guerrilhas estavam desunidas. Havia pelo menos meia dúzia de grupos
armados na área Rio-São Paulo-Minas Gerais. Por razões de segurança eles tinham
que operar em pequenas células, para minimizar os danos no caso de captura de
alguma célula ou qualquer dos seus integrantes. Rivalidades ideológicas e
pessoais dividiam esses grupos, de sorte que as ações guerrilheiras eram
geralmente descoordenadas. Não obstante houve êxitos iniciais. Precisando de
dinheiro, aprenderam a técnica de roubar bancos e no começo de 1968 já estavam
subtraindo verdadeiras fortunas de instituições bancárias escassamente
policiadas. Estes ataques tornaram-se "uma espécie de exame de admissão para a
aprendizagem das técnicas da guerra revolucionária", nas palavras de
Marighela.60 Para treinamento em táticas de guerrilha e obtenção de armas e
apoio logístico, os brasileiros se voltaram para Cuba e a Coréia do Norte, entre
outros países.61

Eram vários os objetivos das guerrilhas. Primeiro, esperavam atrair a
simpatia da população urbana pobre que podia prontamente identificar-se com um
ataque a um símbolo evidente do poder capitalista. Nisto imitavam os êxitos até
mais épicos dos guerrilheiros tupamaros do Uruguai. Segundo, queriam mostrar que
a resistência aos militares era possível. Que melhor maneira de fazê-lo do que
através de roubos de bancos executados com precisão militar? Terceiro, as
guerrilhas precisavam de dinheiro, e em grande quantidade. Muitos dos
companheiros na clandestinidade não podiam trabalhar e tinham que ser mantidos.
Finalmente, os ataques a bancos forçariam os seus diretores a aumentarem sua
guarda armada, revelando assim, na lógica guerrilheira, a ausência de força num
setor básico da sociedade capitalista.
___________
59. Uma das mais detalhadas fontes sobre Marighela é Frei Betto, Batismo
de sangue: os dominicanos e a morte de Carlos Marighela (Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 1982). O autor foi grande admirador de Marighela, cujos
escritos o tornaram o mais conhecido revolucionário brasileiro da esquerda.
Uma importante coleção dos seus trabalhos está em Carlos Marighela, For the
Liberation of Brazil (London, Penguin Books, 1971), que inclui o famoso "Mini-
Manual of the Urban Guerrilla".
60. Ibid., p. 81.
61. Entrevista com António Carlos Fon, São Paulo, 27 de junho de 1983.

177
O súbito retorno das manifestações dos trabalhadores e do público no início
de 1968, especialmente no Rio e em São Paulo, encorajou muito as guerrilhas. As
greves em Contagem e em Osasco, juntamente com os comícios e marchas estudantis
no Rio, estendendo-se posteriormente a outras cidades, mostraram que alguns l
setores sociais estavam preparados, pela primeira vez desde 1964, l para ganhar
as ruas. Esta evidência de ativismo fortaleceu a posição daqueles que na
esquerda defendiam a ação armada.

Pouco antes desses eventos, a ALN de Marighela, com os cofres abarrotados
graças a uma série de roubos de bancos no início de 1968, apelou para a luta
armada nas cidades. Em junho, outro grupo, a VPR (Vanguarda Popular
Revolucionária), que incluía marxistas não-PCB de São Paulo, atacou um hospital
do Exército na capital paulista e fugiu com armas capturadas. O comandante do
Segundo Exército, general Manoel Lisboa, revoltado, convocou uma entrevista
coletiva, em que disse aos gritos para os jornalistas: "Eles atacaram um
hospital. Quero vê-los atacarem meu quartel! Quatro dias depois guerrilheiros da
VPR arremeteram um caminhão carregado de dinamite contra o quartel-general do
Segundo Exército, matando uma sentinela. Mordendo a isca atirada pelo general,
os guerrilheiros deram um exemplo de como podiam afastar-se do seu objetivo a
longo prazo, correndo o risco de identificação, captura ou morte.62

Em outubro de 1968, a VPR aumentou o valor de sua aposta na luta armada ao
assassinar o capitão do Exército americano Charles Chandler quando ele saía de
sua casa em São Paulo. É Chandler estava fazendo cursos (na altamente
conservadora Universidade Mackenzie) como parte de seu treinamento para ensinar
português em West Point. Os guerrilheiros interpretaram a presença de Chandler
no Vietnã e na Bolívia como prova de que ele estava no Brasil para ajudar a
treinar grupos paramilitares direitistas, como o Comando de Caça aos Comunistas
(CCC). A VPR e a ALN formaram um tribunal secreto em que condenaram Chandler
à morte por seus supostos crimes no Vietnã e sua suposta atuação como agente da
CIA no Brasil. Os assassinos do capitão esperavam com a sua "execução" (era o
termo) dramatizar o papel dos Esta-
__________
62. Emiliano José e Oldack Miranda, Lamarca, o capitão da guerrilha
(São Paulo, Global, 1980), pp. 42-43.

178 Brasil: de Castelo a Tancredo
dos Unidos como o indispensável esteio do regime militar. Os folhetos espalhados
na cena do crime terminavam com o famoso grito de Che Guevara: "Dois, três,
muitos Vietnãs". Era evidente agora que o governo militar do Brasil tinha pela
frente uma séria oposição guerrilheira. Washington alarmou-se e destacou o chefe
adjunto do seu Serviço de Segurança no Brasil para trabalhar em tempo integral
com as autoridades brasileiras na apuração do assassínio de Chandler.63

Em janeiro de 1969, as guerrilhas receberam de braços abertos 'um novo
convertido. O capitão do Exército Carlos Lamarca desertara para as fileiras da
VPR com três sargentos e um caminhão carregado de armas. Lamarca era uma
importante aquisição para as guerrilhas. Campeão de tiro, fora destacado para
ensinar os guardas de bancos a atirar. Aliás, o público conhecia o rosto de
Lamarca pelos cartazes que o mostravam dando aulas de tiro. Sua deserção
enfureceu os militares.64

Seis meses depois a VPR alcançou um tipo diferente de vitória no Rio. Foi o
caso da caixinha de um legendário corrupto, Adhemar de Barros, ex-governador de
São Paulo e leal defensor do golpe de 1964. O cofre estava guardado na casa de
uma amante de longa data de Adhemar. Os guerrilheiros conheciam o local e
conceberam um plano cuidadosamente formulado. Lamarca comandou um grupo de 13
guerrilheiros, que se disfarçaram em agentes
__________
63. O assassínio de Chandler é contado por um dos seus autores em Caso, A
esquerda armada no Brasil, pp. 159-71. Eles haviam planejado assassiná-lo em 8
de outubro, primeiro aniversário da morte de Che Guevara. Ficaram vigiando sua
casa o dia inteiro, mas Chandler não saiu à rua em nenhum momento, por isso
tiveram que reprogramar a ação para 12 de outubro. Uma longa reportagem sobre a
morte de Chandler e o "tribunal" em que ela foi decidida foi publicada em O
Estado de S. Paulo, 10 de abril de 1980. Um breve relato do inquérito da
Embaixada dos Estados Unidos sobre a morte de Chandler figura em "United States
Policies and Programs in Brazil", Hearings Before the Subcommittee,on Western
Hemisphere Affairs of the Committee on Foreign Relations, United States Senate,
Ninety-second Congress, First Session, 4, 5 e 11 de maio de 1979 (Washington,
U.S. Government Printing Office, 1971), pp. 41-42.

64. A história de Lamarca é contada em Emiliano José e Oldack Miranda, Lamarca,
o capitão da guerrilha. Os autores não citaram fontes, embora digam que usaram
material publicado especialmente em Pasquim, Em Tempo e Coojornal, bem como
entrevistas com sobreviventes.

Costa e Silva: os militares endurecem 179
da polícia federal. Eles entraram na casa, fizeram interrogatórios e vasculharam
tudo à cata de "subversivos". Enquanto isso, um subgrupo localizou o cofre de
quase 270 quilos e o retirou por uma janela do segundo andar. Quando os "agentes
federais" terminaram sua blitz, o cofre estava sendo levado para um esconderijo
da VPR. Aberto a marretadas, continha 2,5 milhões em dinheiro americano. As
preocupações dos guerrilheiros por causa de dinheiro acabaram durante algum
tempo.65

Mas os perigos estavam aumentando, em parte porque cada incursão os expunha a
possível detecção e captura. No início de Í969 as forças de segurança
descobriram importante operação da VPR em preparo e prenderam muitos dos
envolvidos. A eficiência policial e militar aumentara durante o ano anterior por
causa das informações que rotineiramente obtinha torturando os suspeitos de
participação no movimento guerrilheiro (ou quem quer que estivesse possivelmente
vinculado a ele).66 Métodos brutais de interro-
__________
65. José e Miranda, Lamarca, pp. 59-60; Alex Polari, Em busca do tesouro (Rio de
Janeiro, CODECRI, 1982), pp. 93-94.
66. As acusações de tortura' foram mais freqüentemente dirigidas contra o
governo militar brasileiro depois da imposição do Ato Institucional n.° 5 em
dezembro de 1968. O governo negou todas as acusações de prática de tortura por
suas forças de segurança, em qualquer nível. Uma das primeiras acusações
documentada e amplamente divulgada no exterior foi o "Livre noir: terreur et
torture au Brésil", uma coleção de relatos de primeira mão Sobre tortura e
perseguição de padres, líderes camponeses e estudantes publicada na edição de
dezembro de 1969 de Croissance dês Jeunes Nations ÍParis). Este dossiê foi
entregue ao Papa Paulo VI no fim de 1969, provocando uma das muitas repreensões
do Vaticano ao governo brasileiro. Em 31 de dezembro de 1969, The Wall Street
Journal, dificilmente na vanguarda da crítica estrangeira, publicou uma
reportagem descrevendo a tortura oficializada como fato consumado. As
notícias desses suplícios aumentaram em 1970 e 1971 levando ainda a mais
ausações do exterior. Uma das mais eficientes foi a de Ralph della Cava,
"Torture in Brazil", Commonweal, XCII, N.° 6 (24 de abril de 1970). "' Pau-de-
arara"': a violência militar no Brasil (México, Siglo XXI Editores, 1972)
incluiu depoimentos pessoais de vítimas de tortura corn detalhes sobre tempo,
lugar e identidade dos torturadores. O Report on Allegations of Torture in
Brazil, da Anistia Internacional (London, Amnesty International, 1972),
relacionou por nomes 1.076 vítimas de tortura a partir de setembro de 1972. Este
dossiê era particularmente importante por causa do conhecido escrúpulo da
Anistia Internacional em conferir a veracidade de todas as acusações. Esta
sistemática doumentação da tortura por unidades do governo brasileiro (polícia e
militares) convenceu

180 Brasil: de Castelo a Tancredo
gatório, como o "pau-de-arara", a "cadeira do dragão" e a "geladeira", fizeram
muitos suspeitos falar. Apesar dos esforços das vítimas para guardarem seus
segredos, havia sempre alguma pista - um apelido, um endereço, uma palavra em
código - que os interrogadores conseguiam arrancar.67 Com esses fragmentos a
polícia e os militares entravam em ação arrastando novos suspeitos, que eram
esbofeteados e sofriam choques elétricos para que fornecessem novas pistas. Os
grupos clandestinos da direita também não estavam ociosos. Em maio de 1969 um
desses grupos assassinou o Padre António Henrique Pereira Neto, que trabalhava
direta«mente com Dom Helder Câmara em Recife. Dada a obsessão do governo em
silenciar o arcebispo, o significado desse assassínio não podia passar
despercebido.

Em junho de 1969, a polícia e os militares de São Paulo introduziram uma nova
técnica repressiva: a rede de arrasto, que fazia detenções aos milhares,
examinando os documentos de todos. Os inocentes eram intimidados, e os
guerrilheiros tinham que se precaver muito mais em sua movimentação. A nova
técnica, logo muitos no exterior em 1971. Em razão da censura, muitas das provas
divulgadas no estrangeiro não chegaram ao conhecimento dos brasileiros. Para
aqueles dispostos a ouvir, contudo, não faltaram histórias arrepiantes contadas
por parentes, amigos e conhecidos das vítimas. Um dos casos mais trágicos foi o
de Frei Tito de Alencar Lima, um jovem frade dominicano que foi cruelmente
torturado, depois exilado, tendo finalmente cometido suicídio na França. Sua
história é contada em Pedro Uchoa Cavalcanti, et ai., Memórias do exílio: Brasil
1964-19?? (Lisboa, Editora Arcádia, 1976), pp. 347-69.
_________
67. O "pau-de-arara" era um pau roliço que, depois de ser passado entre ambos os
joelhos e cotovelos flexionados, ficava suspenso em dois suportes. A vítima era
então espancada com um remo de cabo curto e recebia choques elétricos. Um
sobrevivente disse que seus torturadores da OBAN ouviam sambas enquanto ele era
supliciado. Entrevista com Paulo de Tarso Wenceslau, São Paulo, 30 de junho de
1983. A "cadeira do dragão" era a réplica de uma cadeira de dentista onde a
vítima amarrada recebia choques elétricos e era submetida ao castigo da broca
dentária. A "geladeira" era uma caixa tão pequena que a vítima não podia ficar
nem em pé nem deitada. Uma vez lá dentro era submetida a grandes e rápidas
variações de calor e luz, sendo bombardeada por sons de alta intensidade. As
vítimas que experimentaram as três formas de tortura em geral disseram que a
"geladeira" era a pior. Várias fontes me informaram que a idéia desta máquina
foi dos ingleses.

181
estendida a outras cidades, era parte da "Operação Bandeirantes", uma ação
conjunta polícia-Exército.68

Em resumo, o governo brasileiro estava agora, em meados de 1969, usando todos
os meios (tortura de criancinhas na presença de seus pais e estupro de uma
mulher por verdadeira quadrilha diante do seu marido foram documentados)
para obter informações necessárias ao extermínio da ameaça guerrilheira. As
torturas dos suspeitos às vezes duravam até dois meses, mesmo quando os
inquisidores já haviam perdido a esperança de extrair a mínima informação. A
tortura transformara-se em horrível ritual, num ataque calculado à alma e ao
corpo.

Os brasileiros que pensavam em ingressar na oposição ativa tinham agora que
refletir bastante. A prática dessa verdadeira orgia de torturas parecia feita de
encomenda para os sádicos que podem ser encontrados em todas as forças policiais
e instituições penais de qualquer país.

Mas a tortura tornara-se alguma coisa mais. Tornara-se um instrumento de
controle social. Nada circulava mais rápido, especialmente entre a geração mais
jovem, do que a notícia de que meu amigo ou um amigo do meu amigo caíra nas mãos
dos torturadores. Estes advertiam suas vítimas para que não abrissem a boca,
sabendo muito bem que muitos o fariam. Em síntese, a tortura era um poderoso
instrumento, ainda que degradante para seus usuários, para subjugar a sociedade.
Em meados de 1969 esta máquina (discutida no próximo capítulo) funcionava corn
toda a eficiência.

A Economia: o pragmatismo dá resultado

Embora fosse uma crise político-militar que levara à expansão do poder
executivo, o grande beneficiário desta nova situação foi
__________
68. O título "Operação Bandeirantes" foi abreviado para OBAN pela polícia e os
jornalistas. Os bandeirantes foram os famosos desbravadores da era colonial cuja
base ficava em São Paulo. Um repórter policial preso e torturado pela OBAN em
setembro de 1969 disse: "Se existe o inferno, a Operação Bandeirantes é pior".
António Carlos Fon, Tortura: a história da repressão política no Brasil (São
Paulo, Global, 1979), p. 11. Fon grenjeou a reputação de um dos mais bem
informados jornalistas sobre o aparato repressivo em São Paulo. Isto lhe custou
várias ameaças de morte.

182 Brasil: de Castelo a Tancredo
a política económica.69 Falando na Escola Superior de Guerra em dezembro de
1968, Costa e Silva confessou que seu poder de legislar por decreto estava
tornando mais fácil executar o Programa Estratégico.70 E logo em seguida
confirmava essa afirmação decretando uma revisão da política tributária. Muito
importante foi uma emenda constitucional em janeiro, inspirada por Delfim Neto,
que reduzia de 20 por cento para 12 por cento a parcela estipulada pela
constituição dos impostos arrecadados em todo o país e distribuídos aos governos
estaduais e municipais. Isto atingiu duramente o Nordeste, já que a antiga
fórmula de distribuição favorecia os estados mais pobres. Delfim também tinha as
vistas voltadas para o orçamento da SUDENE (Superintendência do Desenvolvimento
do Nordeste), cujo orçamento queria controlar ainda mais.71
__________
69. Os dados econômicos citados aqui e em capítulos subseqüentes, a menos que
indicados de outra forma, são do Economic Survey of Latin America publicado
anualmente pela Comissão Econômica para a América Latina. Estes dados diferem um
pouco da série padrão publicada por fontes oficiais brasileiras, como a Fundação
Getúlio Vargas e o Banco Central. As ordens de magnitude são, contudo,
semelhantes e as tendências ao longo do tempo consistentes. Os dados que formam
o Economic Survey of Latin America têm a vantagem para o historiador de refletir
as estimativas com as quais os economistas responsáveis pelas decisões
governamentais trabalharam na época.
70. Programa estratégico de desenvolvimento: 1968-70 (Brasília, Ministério do
Planejamento e Coordenação Geral, 1968), 2 vols. Em sua introdução, o ministro
do Planejamento Hélio Beltrão acentuava a importância do mercado interno e a
necessidade de fortalecer as empresas nacionais. Beltrão, pelo menos em sua
retórica, era mais nacionalista do que Delfim. Devido ao monopólio pelo ministro
da Fazenda das decisões econômicas, Beltrão teve pouca oportunidade de
implementar propostas contra as quais Delfim poderia se insurgir.
71. Syvrud, Foundations of Brazilian Economic Growth, pp. 136-39; entrevista
corn Luiz Fernando Correia de Araújo (diretor de planejamento da SUDENE),
Recife, 23 de maio de 1975. Mário Simonsen aplaudiu as mudanças na alocação da
receita tributária. Ele acusou os municípios de terem muitas vezes desperdiçado
seus recursos em "chafarizes iluminados, praças inúteis e outros projetos não
essenciais". Mário Simonsen, Ensaios sobre economia e política econômica (Rio de
Janeiro, APEC Editora, 1971), p. 39. A mesma avidez em tirar proveito dos
procedimentos autoritários foi demonstrada por Glycon de Paiva, um engenheiro e
figura importante por trás da Revolução de 1964, o qual achava que o "eficiente
instrumento legal do AI-5" oferecia oportunidade ideal para "eliminar de uma vez
por todas o resíduo inflacionário nos próximos dois anos sem interromper o

Costa e Silva: os militares endurecem 183

Estas medidas provocaram forte reação de dois importantes administradores. Em
janeiro de 1969, o ministro do Interior Albuquerque Lima, considerado como
provável candidato presidencial em 1970, renunciou ao seu posto em protesto
contra as políticas de Delfim. Ele representava uma ameaça ao ministro da
Fazenda porque defendia mais gastos federais para a correção das desigualdades
sociais do Brasil. Por outro lado, sustentava opiniões mais nacionalistas sobre
o capital estrangeiro. Ambas as posições contraditavam a estratégia de Delfim de
crescimento rápido, que maximizava os investimentos (inclusive estrangeiros)
independentemente de seus efeitos regionais. Em vez de transferir-se para a
reserva, contudo, Albuquerque Lima voltou à ativa, esperando com isso consolidar
o apoio dos seus camaradas militares. Dias depois, seu gesto foi acompanhado
pelo general Euler Bentes Monteiro, diretor da SUDENE, também revoltado corn o
corte dos recursos federais para a sua instituição. Ele e Albuquerque Lima
haviam defendido vigorosamente a distribuição de mais recursos para os estados
com índices de pobreza mais elevados, mas em vão. Isto provava que a virada
autoritária de dezembro de 1968 tornara até mais fácil para Delfim e seus
tecnocratas evitarem o debate público sobre prioridades fundamentais econômicas
e financeiras.

Enquanto o Brasil mergulhava ainda mais profundamente no autoritarismo, sua
economia reagia bem à estratégia do governo. Em 1967, um ano de transição, o PIB
cresceu 4,7 por cento, menos do que os 5,4 por cento do ano anterior. Este
decepcionante crescimento podia ser atribuído à anêmica performance industrial,
somente 2,4 por cento. A agricultura, em contraste, cresceu 7,1 por cento. Em
1968, contudo, quando se completou o primeiro ano do governo Costa e Silva, os
resultados foram excelentes. O crescimento do PIB foi de 11 por cento,
continuando a inflação
___________
desenvolvimento..." O Estado de S. Paulo, 6 de abril de 1969. Em novembro de
1968 Delfim instara Costa e Silva a pressionar em favor de uma emenda que
reduzisse a parcela da arrecadação federal entregue aos estados e municípios. O
presidente respondera: "Esqueça esta idéia. Traga-me outra sugestão, porque
precisamos aprender a trabalhar com a Constituição que temos". Citado em Carlos
Castello Branco, Os militares no poder, vol. 2, (Rio, Editora Nova Fronteira,
1977), pp. 532-33. Uma vez com os poderes do AI-5, o presidente não perdeu tempo
em usá-lo para decretar precisamente aquela emenda.

184 Brasil: de Castelo a Tancredo
em 25 por cento, a mesma de 1967. O crescimento industrial foi de 13,3 por cento
justificando a nova política de crédito mais fácil. O crescimento agrícola foi
de 4,4 por cento, confortavelmente à frente do aumento demográfico de 2,8 por
cento, enquanto o aumento das exportações alcançava 14 por cento. Tudo isso
resultado dos esforços feitos em 1967 e 1968 para estender os incentivos à
exportação, especialmente aos industriais, mediante crédito especial para
financiar a produção e redução de impostos sobre os lucros das vendas externas.
A meta era pôr fim à dependência a longo prazo do Brasil da receita das
exportações de café. Esta política mostrava bons resultados, pois já em 1968 as
exportações, exceto o café, aumentaram em 17,6 por cento.72

A forte recuperação industrial em 1968 foi liderada por equipamentos para
transporte (especialmente veículos de passageiros), produtos químicos e
equipamentos elétricos. A construção subiu 19 por cento - crescimento devido aos
grandes fundos provenientes de deduções compulsórias das folhas de pagamentos
para o Banco Nacional de Habitação (BNH). Cerca de 170.000 unidades residenciais
de baixo custo foram construídas com esses recursos. O único sinal de perigo
potencial foram os 28 por cento de aumento nas importações, sugerindo que a
estratégia de elevadas taxas de crescimento criariam contínuos problemas para a
balança de pagamentos. Mas o déficit comercial resultante era coberto
por fortes ingressos de capital líquido. Este maciço ingresso de capitais era
altamente importante por permitir que Costa e Silva evitasse um retorno ao FMI.
As políticas não ortodoxas de Delfim Neto certamente não eram do agrado dos
detentores das rígidas fórmulas daquela instituição internacional.

O presidente mostrava-se eufórico com as condições favoráveis da economia. Em
março de 1968, ele disse na Escola Superior de Guerra: "Estamos construindo uma
grande civilização no hemisfério sul porque recusamos npfe curvar ao
determinismo geográfico".73
__________
72. Syvrud, Foundations of Brazilian Economic Growth, 1981. As notas
32 e 33 no capítulo anterior contêm mais referências sobre a elaboração da
política comercial brasileira.
73. O discurso foi reproduzido na Revista de Finanças Públicas,
XXXVIII, N.° 269 (março de 1968). Costa e Silva insinuou sua futura retórica
presidencial quando previu que "não há nada nem ninguém que possa impedir o
Brasil de alcançar o seu radiante destino".

A filosofia do segundo governo revolucionário era mais pragmática do que a
dos ministros Campos e Bulhões. Eram menores as preleções sobre mercado livre
(embora bem maiores as que pregavam a necessidade de muito trabalho), dando-se
mais ênfase à solução de problemas imediatos como preços e salário mínimo
(abordados anteriormente neste capítulo). Outra área-chave era a política
cambial. Campos e Bulhões haviam suposto que a inflação podia ser reduzida a
zero, ou pelo menos a uma taxa não superior à dos Estados Unidos e da Europa
Ocidental em 1967 (a taxa média nos Estados Unidos até 1967 foi menos de 2 por
cento), o que tornaria a política cambial uma coisa simples. Com a taxa de
inflação brasileira não superior à dos Estados Unidos e da Europa Ocidental, não
haveria necessidade de desvalorização da moeda. Mas as coisas não eram bem
assim. Mesmo que a inflação brasileira se houvesse estabilizado na faixa dos 10-
20 por cento (que Delfim às vezes considerava como uma meta de facto), ainda
haveria crescente desequilíbrio entre o cruzeiro e o dólar. Apesar das projeções
mais otimistas de Delfim, a tendência do cruzeiro era sempre para a
supervalorização.

Os ministros Campos e Bulhões no começo estabeleceram uma taxa de câmbio
fixa. Quando o cruzeiro começou a cair, o governo brasileiro comprou bastantes
cruzeiros por dólares (ou outras moedas fortes) para restabelecer o valor fixo
do cruzeiro. Obviamente, isto só poderia continuar enquanto o Brasil tivesse os
dólares para prosseguir comprando. E os dólares poderiam desaparecer rapidamente
se os homens de negócios e banqueiros procurassem defender-se especulando contra
o cruzeiro. O jogo acabou em 1968.74 A fuga do cruzeiro desorganizou o mercado
de capitais brasileiro, levando à desvalorização de janeiro de 1968, de 18,6 por
cento em relação ao dólar. Nos seis meses seguintes cresceu a pressão por nova
desvalorização, e em agosto o governo desvalorizou novamente o cruzeiro em 13,4
por cento. Mas as sucessivas desvalorizações tornavam impossível a execução de
uma política monetária coerente por causa da intensa especulação. O governo
decidiu então
___________
74. Os dados do balanço de pagamentos para a primeira metade de 1968 convenceram
os economistas que tinham que rever sua política de taxas de câmbio. Carlos von
Doellinger, et ai., A política brasileira de comércio exterior e seus efeitos,
1967-73 (Rio, IPEA), p. 14.

186 Brasil: de Castelo a Tancredo
adotar um sistema de taxas cambiais "flexíveis". Estava criado o sistema das
minidesvalorizações (1-2 por cento).75

Embora o incentivo para esta inovação fosse a necessidade de eliminar a
desorganização dos fluxos de capital provocada pela especulação, a taxa flexível
logo se tornou famosa como poderoso instrumento para estimular as exportações. A
razão era simples. Uma das grandes incertezas do exportador era a taxa de câmbio
pela qual ele receberia o pagamento de suas exportações. Com as grandes e
esporádicas desvalorizações, um exportador podia perder facilmente de 15 a 25
por cento em sua transação se apanhado entre duas desvalorizações. A perda nada
tinha que ver com a qualidade do produto ou a sua competitividade em matéria de
preço. Era esta incerteza que desencorajava as empresas brasileiras de entrarem
no mercado exportador. A nova política de minidesvalorizações de Delfim, se
mantida, eliminaria esse risco.76

Em retrospecto, muitos observadores consideraram a taxa flexível como a
indispensável contrapartida à indexação - ambas dispositivos "automáticos" que
habilitavam o Brasil a conviver com a inflação. Na verdade, nenhuma das duas era
automática ou neutra em suas aplicações. Ambas estavam sob o contínuo e
discricionário controle dos responsáveis pela política econômica.

Dois exemplos de indexação ("correção monetária") do período Castelo Branco
são bem ilustrativos. A fim de combater a
________
75. A melhor análise dos fatos que levaram à decisão de adotar a taxa flexível é
feita por Donald E. Syvrud, Foundations of Brazilian Growth, pp. 167-215. A
preocupação de Delfim Neto com a movimentação de capitais como o principal fator
que p fez introduzir a taxa cambial flexível foi destacada por funcionários do
Banco Mundial que entrevistei em dezembro de 1971. Para uma defesa da recém-
introduzida política de taxa cambial flexível, ver António Delfim Neto, "Verdade
cambial e inflação", O Estado de S. Paulo, 13 de outubro de 1968.
76. A taxa de câmbio no mercado livre não foi o único fator a determinar a
lucratividade das exportações. Outros fatores foram o depósito prévio, os
múltiplos impostos oficiais, créditos tributários e movimentação de capitais.
Pelo menos a administração das minidesvalorizações parecia ter impedido qualquer
desincentivo potencial da taxa cambial Um analista observou que a partir de
agosto de 1968 (quando começou a política de minidesvalorizações) até 1972 as
desvalorizações brasileiras praticamente igualaram o diferencial entre a taxa
de inflação do Brasil e a dos seus mais importantes parceiros comerciais.
Syvrud, Foundations of Brazilian Economia Growth, p. 196.

187
inflação, o governo fixara o retorno total (juros e indexação) dos títulos de
sua emissão (ORTNs) em 54 por cento para 1965 e 46 por cento para 1966. Como a
inflação de 1965 foi de 55 por cento e a de 1966, 38 por cento, os portadores
daqueles papéis gozaram de relativa proteção do seu capital em 1965 e tiveram
uma significativa taxa de juros real (8 por cento) em 1966. Compare-se isto com
os efeitos da correção monetária aplicada nos mesmos anos ao salário mínimo. Em
1965, os trabalhadores do setor privado, ainda não inteiramente sob controle
federal, receberam um aumento médio- de 40-45 por cento, enquanto os do setor
público tiveram seus salários congelados. Com a inflação em 54 por cento, o
pessoal do setor privado sofreu um retrocesso, enquanto o do setor público foi
empurrado contra a parede. Em 1966, o aumento do setor privado foi de 30-35 por
cento e o do setor público, 35 por cento. A taxa de inflação de 38 por cento
ainda ultrapassava os aumentos nominais de salários. Estes dois exemplos mostram
como nos mesmos anos a aplicação da indexação produziu resultados profundamente
diferentes. Poder-se-ia objetar que esses resultados simplesmente refletiam
prioridades diferentes do governo: a necessidade de reduzir taxas salariais
"artificialmente" altas e de atrair poupanças privadas para financiar o déficit
público. Mas esta explicação, próxima da lógica de Roberto Campos, apenas
reforça o exemplo apresentado.77

Uma terceira área básica da política econômica era a agricultura78, a que a
equipe de Delfim deu alta prioridade por várias
____________
77. Os dados são extraídos de Syvrud, Foundations, pp. 107-8; 157. A
proliferação de tabelas de diferentes fórmulas oficiais para a
correção monetária pode ser vista em Acir Diniz Chara, Compêndio de índice de
correção monetária (Rio, APEC, 1971). O caráter discricionário da aplicação da
indexação no Brasil é posto em destaque em Gustav Donald Jud, Inflation and the
Use of Indtxing in Developing Couniries (New York, Praeger, 1978), p. 68.
78. Há uma vasta literatura sobre a política e a performance do setor agrícola
brasileiro. Extenso comentário sobre os dados e suas principais interpretações
é fornecido por Fernando B. Homem de Melo, "Políticas de desenvolvimento
agrícola no Brasil", Universidade de São Paulo, Instituto de Pesquisas
Econômicas, Trabalho para Discussão N.° 29 (janeiro de 1979). Para análises de
decisões governamentais na área da agricultura durante a década e meia anterior
ao governo Costa e Silva, ver Gordon W. Smith, "Brazilian Agricultural Policy,
1950-1967", em Howard S. Ellis, ed., The Economy of Brazil, pp. 213-65; e
William H. Nicholls, "The Brazilian

188 Brasil: de Castelo a Tancredo
razões. Primeiro, o preço dos alimentos pesava consideravelmente no custo de
vida. A luta contra a inflação seria perdida se a produção agrícola pelo menos
não acompanhasse a crescente demanda gerada pelas rendas reais urbanas mais
altas e pelo crescimento da população. Segundo, o Brasil tinha que aumentar
rapidamente as exportações, e os produtos agrícolas seriam mais facilmente
exportados a curto prazo. Terceiro, o aumento da renda rural deteria o êxodo
para as cidades já sobrecarregadas.

Por maior que fosse sua reputação como economista ortodoxo, Delfim não
hesitou em comprometer seus princípios para estimular o setor agrícola. Assim,
como primeira medida, ele conseguiu que o Conselho Monetário Nacional abrisse
mão dos impostos sobre produtos agrícolas. Em seguida estendeu esta vantagem,
por etapas, a todos os insumos agrícolas básicos - fertilizantes, tratores,
máquinas para beneficiamento etc. Em segundo lugar, Delfim convenceu o Conselho
Monetário a aprovar taxas especiais de juros para a agricultura, que poderiam
ser até negativas.79 Finalmente, ampliou o programa de preços mínimos para
livrar o agricultor da incerteza sobre preços na hora da colheita. Como as
instalações para armazenagem eram limitadas ou inexistentes, os agricultores não
tinham poder de barganha quando sua produção ou seu gado estavam prontos para o
mercado. Agora, com a segurança de preços mínimos garantidos pelo governo, o
agricultor tinha incentivo para manter ou aumentar seu investimento.

Como estes exemplos mostram, Delfim pregava as virtudes do livre mercado ao
mesmo tempo que erguia uma pilha de incentivos específicos. Todos representavam
um custo para o pú-
____________
Agricultural Economy: Recent Performances and Policy", em Roett, ed., Brazil in
the Sixties, pp. 147-84; Para outra importante apreciação até 1976, ver Fernando
B. Homem de Melo, "Economic Policy and the Agricultural Sector During the
Postwar Period", Brazilian Economic Studies, N." 6 (1982) (publicado pelo
Instituto de Planejamento Econômico e Social, Rio de Janeiro), pp. 191-223.
79. A magnitude da expansão do crédito agrícola foi surpreendente. De
1968 a 1974 o crédito agrícola montou a 26 por cento em média do crédito total,
enquanto de 1960 a 1967 a média foi de 13 por cento do crédito total. Homem de
Melo, "Economic Policy and the Agricultural Sector During the Postwar Period",
p. 214.

189
blico, em geral não como verbas consignadas, mas como concessões tributárias e
creditícias.80

O governo Costa e Silva também provou o sabor do sucesso na área da balança
de pagamentos. O balanço em conta corrente fora positivo em 1964, 1965 e 1966,
principalmente devido aos baixos níveis de importações resultantes dos efeitos
recessivos da estabilização. Tornou-se negativo em 1967 e nos anos subseqüentes,
por causa da redução do superávit comercial e da crescente saída líquida de
recursos para pagamento de serviços e de dividendos. Como, então, iria o Brasil
financiar seus déficits em conta corrente? Principalmente através de ingressos
de capital. Em 1968, por exemplo, o ingresso líquido foi de US$541 milhões, mais
do que o dobro em qualquer ano desde 1961. Em 1969, ocorreu um novo salto, para
US$871 milhões. Em outubro de 1968, o Banco Mundial anunciou que estava
emprestando um bilhão de dólares para projetos de desenvolvimento. Esses
ingressos eram em parte resultado do vigoroso esforço do governo Castelo Branco
para atrair capitais tanto públicos quanto privados. Era também uma reação ao
êxito daquele governo na redução da inflação e no fortalecimento das finanças
públicas. Não menos importante, o recomeço do crescimento econômico do Brasil a
altas taxas tornou o país novamente atraente para os investidores estrangeiros
privados. A economia estava se acelerando, ao menos pelos indicadores
macroeconômicos convencionais, e a equipe de Delfim se achava bem situada para
explorar as tendências favoráveis.81

Um presidente incapacitado e a crise da sucessão

A abrupta virada autoritária de dezembro de 1968 distanciou § governo Costa e
Silva de sua promessa de humanizar a Revo-
__________
80. A evolução da política agrícola de 1967 a 1973 é utilmente comentada em
"Economia teve impulso decisivo na gestão Delfim", O Estado de S. Paulo, 14
de março de 1974. Minha breve abordagem da política agrícola visa
apenas ilustrar certos aspectos das decisões econômicas da administração Costa
e Silva. As questões agrícolas tinham abrangência muito maior do que se pode
sugerir aqui.
81. Dados muito úteis e uma análise do balanço de pagamentos são apresentados
em Syvrud, Foundations of Brazilian Economic Growth, cap. VIII.

190 Brasil: de Castelo a Tancredo
lução. Até onde iria ainda esse distanciamento? Uma breve comparação entre os
surtos autoritários de outubro de 1965 e dezembro de 1968 ajudará a colocar em
perspectiva o resto do governo Costa e Silva.

Apesar das boas notícias na área econômica, 1968 foi um ano difícil para o
governo. Mal se festejavam os êxitos econômicos quando irromperam as greves de
Contagem e Osasco. Vieram em seguida as tumultuosas marchas estudantis de
protesto que degeneraram em violência no Rio e em Brasília. Onde estava a base
de apoio civil esperada por Costa e Silva? A ARENA, o partido do governo, não
podia sequer neutralizar um MDB emagrecido pelos expurgos. Pior ainda, Carlos
Lacerda, outrora um esteio da Revolução, estava agora* tentando forjar uma
aliança com os ex-presidentes Kubitschek e Goulart, oficialmente proscritos. Em
novembro aumentaram as tensões, e os militares ficaram ainda mais frustrados por
não terem logrado uma "satisfação" no caso Márcio Alves. Costa e Silva estava no
centro em que se cruzavam essas pressões tal como Castelo Branco em outubro de
1965. Ambos enfrentaram a reação militar depois que os políticos pró-governo não
apresentaram o resultado que haviam prometido e os militares exigido - vencer as
eleições-chave de 1965 e conseguir o voto do Congresso contra a imunidade
parlamentar em 1968. Ambos os presidentes foram forçados a fazer uma mudança
radical de curso, pendendo para um governo mais arbitrário, o que um e outro
sempre pretendeu evitar.

Ainda que a hora da verdade fosse semelhante para ambos, os dois reagiram de
modo muito diferente. Em outubro de 1965, Castelo Branco conduziu-se de acordo
com o esperado, obstinadamente comprometido com a aceitação dos resultados
eleitorais. Quando, no entanto, viu o inevitável, saltou em tempo de permanecer
à testa da reação militar e ser o presidente que promulgou o AI-2. Tomada esta
decisão, Castelo sentiu-se profundamente confiante para executá-la. Em dezembro
de 1968, por outro lado, Costa e Silva, um homem emotivo, acreditou demais nos
parlamentares pró-governo que lhe asseguraram uma vitória no affair Márcio
Moreira Alves. A verdade era que os bem informados consideravam aquela
perspectiva cada vez menos provável. Mas o Planalto fora longe demais para
voltar atrás.

Em meio à crise que levaria o Congresso a uma votação adversa, o médico
presidencial observou atentamente Costa e Silva,

Costa e Silva: os militares endurecem 191
que era um hipertenso crônico. Quando se aproximou a hora da votação, sua
pressão subiu e o médico sugeriu-lhe que tomasse o remédio para equilibrá-la.
Mas o presidente recusou, dizendo: "Hoje eu preciso dela realmente alta!"82 O
motivo era a próxima reunião do Conselho de Segurança Nacional, onde ele
enfrentaria enormes pressões militares. Como Castelo, ele teria que dominá-los
ou ser dominado por eles. Presidiu a promulgação do AI-5, mas nunca fez a
transição emocional do presidente "humanizador" para a de ditador sul-americano.
Após o AI-5 ele ainda manobrava o leme do Estado, mas a direção deste estava nas
mãos dos homens mal-encarados da segurança, dos grampeadores de telefones e dos
torturadores.83 O Brasil agora ostentava a duvidosa distinção de merecedor das
atenções especiais da Anistia Internacional.

Como vimos anteriormente, Costa e Silva reagiu ao mergulho do seu governo no
autoritarismo entregando-se ele mesmo à elaboração de uma nova Constituição. De
algum modo, raciocinava, deve haver um meio de reconciliar o novo poder
arbitrário (AI-5) com a futura redemocratização constantemente prometida desde
1964. Foi isto, dada a diferença de contextos, exatamente o que Castelo Branco
tentara fazer com a Constituição de 1967 e seus muitos corolários legais.

O vice-presidente Pedro Aleixo fez o esboço inicial da nova Constituição, que
estava pronta em 26 de agosto. Foi então submetida a um painel de eminentes
constitucionalistas, todos implicitamente dispostos a aceitar, pelo menos por
curto prazo, uma Constituição ofuscada por grosseiras restrições militares às
liberdades
__________
82. Portella de Mello, A revolução e o governo Costa e Silva, p. 653.
83. Costa e Silva teve um ministro do Exército (general Lyra Tavares) incapaz de
disciplinar oficiais superiores que criticavam as políticas governamentais. A
incapacidade do ministro de neutralizar os desafios chamou a atenção no caso do
general Moniz Aragão, que acusou Costa e Silva de obter favores para seus
parentes. A exasperação com a ineficiência de Lyra Tavares era notória
(ibid.). Para declarações do ministro do Exército durante 1967, ver Gen. A. de
Lyra Tavares, O exército brasileiro visto pelo seu ministro (Recife,
Universidade Federal de Pernambuco, Imprensa Universitária, 1968). Seus
problemas como ministro do Exército estão incluídos em suas memórias: A. de Lyra
Tavares, O Brasil de minha geração, 2 vols. (Rio de Janeiro, Biblioteca do
Exército, 1976). O autor, infelizmente, não revela muito a seu respeito
ou sobre as contínuas batalhas na política militar daquele período.

192 Brasil: de Castelo a Tancredo
civis. As modificações sugeridas, inclusive várias de Costa e Silva e de membros
do seu Ministério, foram estudadas pelo vice-presidente Pedro Aleixo, que
elaborou a minuta final. O presidente ficou encantado corn o texto e fez planos
para promulgar a nova Carta (como emenda à Constituição de 1967, não via AI-5)
no dia 2 de setembro para entrar em vigor a 7 de setembro, dia da Independência
e véspera da reabertura do Congresso. Mas o governo não estava de pleno acordo
com esse cronograma, tanto assim que em 27 de agosto os três ministros militares
advertiram Costa e Silva que a maioria dos comandantes militares era contrária à
reabertura do Congresso tão cedo e igualmente contrária à renúncia a quaisquer
poderes que possuíam em decorrência dos atos institucionais. Era a mesma
mensagem que o presidente ouvira em maio dos generais comandantes do Primeiro
Exército (Syzeno Sarmento), do Segundo Exército (José Canavarro Pereira) e do
Terceiro Exército (Emílio Garrastazu Mediei).84

Apesar disso, Costa e Silva continuou até mais determinado a levar avante seu
plano de promulgar a Constituição, o que fez crescer a oposição dentro do
Exército. Oficiais ambiciosos atacavam o ministro do Exército procurando
explorar o desejo dos militares que defendiam um regime mais repressivo. Costa e
Silva sabia que a reabertura do Congresso e a promulgação de uma nova
Constituição revoltariam os militares radicais.

Em 27 de agosto, quando falava com o governador de Goiás, o presidente ficou
momentaneamente desorientado, incapaz de continuar a conversa. No dia seguinte o
seu médico o advertiu: "Presidente, o senhor deve repousar imediatamente. O
senhor não pode sobreviver neste ritmo". Mas ele respondeu: "Somente depois de
8 de setembro. Esta será a semana mais importante do meu governo. No dia 8 eu
darei um presente à nação".85

Mas o tempo corria, e a 28 de agosto Costa e Silva sofreu um ataque que
deixou seu lado direito paralisado, inclusive sua face
_________
84. Carlos Chagas, 113 dias de angústia: impedimento e morte de um presidente
(Porto Alegre, L & PM, 1979), pp. 27-28; Portella de Mello, A revolução e o
governo Cosia e Silva, p. 760.
85. Chagas, 113 dias de angústia, p. 41. Cinco anos depois o decano dos
comentaristas políticos brasileiros, Carlos Castello Branco, descreveu Costa e
Silva como tendo se deixado "imbuir de uma inesperada e tenaz consciência de
suas responsabilidades civis". Jornal do Brasil, 5 de setembro de 1974.

Costa e Silva: os militares endurecem 193
direita. Apesar de poder ouvir e compreender, ele não podia falar. Subitamente o
governo militar altamente centralizado tinha um comandante mudo e imobilizado.86

A primeira providência do staff do presidente enfermo, chefiado pelo general
Portella de Mello, foi prosseguir com o plano de viagem ao Rio de Janeiro.
Procurando ocultar o verdadeiro estado de saúde do chefe do governo, seus
assessores cobriram-lhe o lado paralisado do rosto com uma echarpe. No aeroporto
do Galeão, no Rio, havia uma comitiva à espera para dar-lhe as boasvindas -
ministros do governo e uma formação de cadetes da Aeronáutica para ser passada
em revista, nenhum dos quais sabia da doença do presidente, apesar dos boatos
que estavam circulando. Os ministros receberam cada um firme aperto de mão
(esquerda) do presidente silencioso e os cadetes viram apenas um fraco aceno
pelo vidro traseiro da limusine. O carro seguiu direto para o Palácio
Laranjeiras, onde os ministros militares se reuniram para saber como conduzir
esta mais nova crise.

Os três ministros imediatamente concordaram em rejeitar o Art. 78 da
Constituição de 1967, que estipulava: "Se o presidente ficar incapacitado será
substituído pelo vice-presidente, se vagar o cargo o vice-presidente o
exercerá". O motivo era simples: eles
_________
86. Chagas, 113 dias de angústia é um relato de primeira mão da crise política
criada pela doença de Costa e Silva, de quem Chagas era secretário de imprensa.
A primeira edição deste livro (Rio de Janeiro, Agência Jornalística Image, 1970)
foi confiscada pela Polícia Federal sob a alegação de que infringia a "segurança
nacional". A segunda edição (1979) inclui muitos documentos novos. Outra
importante fonte sobre a crise de 1969 da autoria de alguém que a acompanhou "de
dentro" é Portella, A revolução e o governo Costa e Silva. Embora Chagas e
Portella não se admirassem mutuamente, seus relatos harmonizam-se
substancialmente. A menos que indicado diferentemente, eles são a fonte para a
.narração no restante deste capítulo. Para uma incisiva exposição sobre a crise
sucessória, ver Flynn, Brazil: A Political Analysis, pp. 425-40. Uma análise
brasileira que acentua a interação de grupos civis de oposição e os militares é
de Eliezer R. de Oliveira, As forças armadas: política e ideologia no Brasil,
1964-1969 (Petrópolis, Vozes, 1976). Ver também Schneider, "The Brazilian
Military in Politics", em Robert Wesson, ed., New Military Politics in Latin
America (New York, Praeger, 1982), pp. 51-77. Pistas para o pensamento dos
militares neste período podem ser encontradas nos comentários políticos de
Carlos Castello Branco reunidos em Os militares no poder, vol. 2: O Ato 5 (Rio
de Janeiro, Nova Fronteira, 1978); e Fernando Pedreira, O Brasil político (São
Paulo, DIFEL, 1975).

194 Brasil: de Castelo a Tancredo
tinham profunda desconfiança de Pedro Aleixo, o vice-presidente. Não havia ainda
amainado a revolta com quê o viram recusar-se a apoiar a promulgação do AI-5 em
dezembro de 1968; consideravam-no apenas mais um político tolhido por seus
escrúpulos legais em face de vis insultos às forças armadas. O staff
presidencial deliberadamente não informou Aleixo da doença do presidente
enquanto os ministros militares não chegaram a acordo sobre sua estratégia.

Eles não levaram muito tempo para excluir todos os outros i sucessores
constitucionalmente previstos: o presidente da Câmara dos Deputados, o
presidente do Senado e o presidente do Supremo Tribunal Federal. Os dois
primeiros estavam rejeitados porque sua sucessão exigiria a reabertura do
Congresso - a que os militares se opunham - e o terceiro porque os ministros do
STF ainda eram suspeitos por causa de sua excessiva independência durante o
governo Castelo Branco.

Os ministros militares em seguida precisaram decidir sobre quem exerceria
agora a presidência. O general Portella sugeriu uma "Regência Trina" dos
ministros militares governando em nome do presidente (e sem prejuízo de suas
posições ministeriais). O precedente, afirmava Portella, estava na Regência da
década de 1830, que governou durante a menoridade do Imperador Pedro II até que
ele assumiu o trono em 1840. Os três ministros recusaram-se a tomar uma decisão
por conta própria, e transferiram a questão para o Alto Comando das Forças
Armadas. Este órgão era composto pelos três ministros militares, o chefe do
estado-maior geral das forças armadas e o chefe do gabinete militar da
presidência. Decidiu então o Alto Comando designar os três ministros militares
para governarem interinamente, mas observou que era "necessária alguma forma de
decreto" para legalizar a ação.87 Como três dos cinco membros do Alto Comando
compunham o órgão ao qual o poder seria delegado, a preocupação daquela
instituição demonstrava como, até em momentos de decisões arbitrárias, os
militares brasileiros persistiam na crença de que suas ações deviam ter a
cobertura de uma respeitável justificativa legal.

O vice-presidente Aleixo, ainda em Brasília, logo deu-se conta de que o
presidente tinha mais do que um simples resfriado. Seus
_________
87. Portella de Mello, A revolução e o governo Costa e Silva, p. 827.
Costa e Silva: os militares endurecem

195
colegas do Congresso pressionaram-no a lutar pelos seus direitos à sucessão
apesar da oposição militar. Um avião da Força Aérea foi enviado para levá-lo ao
Rio. Em seu encontro com os ministros militares, foi rudemente informado de que
eles iam governar em nome do presidente "de modo que a paz que a nação
desfrutava não fosse prejudicada pondo em perigo o programa político que o
presidente desejava levar a cabo".88 O vice-presidente, muito contrariado,
defendeu firmemente seu direito à sucessão. Ele fora convocado ao Rio, queixou-
se, "não para examinar a situação, nem para consulta ou para uma decisão
conjunta". Antes, fora "convocado para ser informado de um fait accompli. . ." E
advertiu: "É deplorável, não pelo mal que me causa, mas pelo mal que causa à
nação".89 Os ministros finalmente resolveram falar com mais clareza e revelaram
a Aleixo que "vários comandos das forças armadas através do país" tinham se
manifestado contra o seu acesso ao poder e que o "Alto Comando das Forças
Armadas tinha que levar em conta a vontade de tais unidades militares porque
elas são a base do governo".90 Pedro Aleixo não ficou convencido e pensou em
voltar para Brasília, supostamente para organizar a reação ao golpe de que fora
vítima. Esta opção desapareceu quando os militares o informaram de que
não podia deixar o Rio sem permissão.

Pedro Aleixo era apenas o membro mais recente de uma geração de ilustres
políticos da UDN (Milton Campos, Adauto Lúcio Cardoso e Daniel Krieger) que
assumiram a liderança pró-governo no Congresso para depois se convencerem de que
não podiam reconciliar uma consciência liberal com as exigências militares de
mais e mais poder arbitrário.91
___________
88. Ibiâ., p. 831. O general Portella de Mello escreveu depois: "Vetar o vice-
presidente seria um ato revolucionário, tão revolucionário quanto o AI-5 ou
colocar o Congresso em recesso" (ibid., p. 818).
89. Hélio Silva e Maria Ribas Carneiro, Os governos militares: 1969-1974 (São
Paulo, Editora Três, 1975), p. 102. Os autores não dão a fonte para a citação de
Aleixo. De qualquer forma o tom das observações é semelhante ao de outras feitas
por Aleixo na época.
90. Portella de Mellcf, A revolução e o governo Costa e Silva, p. 831.
91. Pedro Aleixo não fez qualquer tentativa de capitalizar politicamente o fato
de ter sido impedido de assumir a presidência sucedendo Costa e Silva. Em
entrevista a uma revista em 1975 ele notou que tivera que "reconhecer a
impraticabilidade de qualquer reação dada a responsabilidade

196 Brasil: de Castelo a Tancredo

Naquela noite o Ministério, menos o vice-presidente, reuniu-se e aprovou o
Ato Institucional n.° 12, que fora elaborado horas antes pelo veterano advogado
Carlos Medeiros. Pelo novo ato de força, os ministros militares eram autorizados
a substituir temporariamente o presidente.92 As coisas foram feitas rapidamente.
Há dois dias apenas, sexta-feira, 29 de agosto, o presidente caíra doente, e o
quadro que o país apresentava agora era o de um presidente acamado, de um vice-
presidente incomunicável e de um triunvirato militar dando as ordens.

O acordo era obviamente instável. Quanto à saúde do presidente, os relatórios
dos médicos eram extremamente cautelosos. Muitos dentro e fora do governo
duvidavam seriamente de que ele pudesse rècuperar-se. Os militares mais
graduados estavam profundamente preocupados porque qualquer instabilidade
governamental suscitaria ambições políticas no seio da oficialidade que poderiam
ameaçar a unidade do Exército. Não obstante, eles tinham que dar início ao
processo de escolha de um novo presidente. Teria que ser uma espécie de eleição
partindo das três armas com regras nem sempre explícitas. Setembro foi um mês de
muita política envolvendo generais, almirantes e brigadeiros e seus camaradas
mais jovens. Até então os militares brasileiros haviam, apesar das crises de
outubro de 1965 e de dezembro de 1968, evitado sérias divisões dentro dos
serviços ou entre eles. Que efeito teria a luta por esta sucessão?
_________
assumida pelos três ministros militares que se apossaram do governo e acabaram
distribuindo entre si o poder". José Carlos Brandi Aleixo e Carlos Chagas, ed.,
Pedro Aleixo: testemunhos e lições (Brasília, Centro Gráfico do Senado Federal,
1976), p. 289.
92. O seguinte período do Ato mostra como os militares desejavam aparecer: "A
nação pode confiar no patriotismo dos seus líderes militares que agora, como
sempre, sabem honrar o legado histórico dos seus antecessores, permanecendo, em
tempos de crise política, leais ao espírito nacional, à evolução ordeira e
cristã do seu povo e contrários a ideologias extremistas e soluções violentas".
O Ato está publicado em Chagas, 113 dias de angústia, pp. 231-33. Posteriormente
a Junta expediu um documento prometendo continuar a política anterior, inclusive
quanto ao "restabelecimento da normalidade democrática". Carlos Castello Branco,
Os militares no poder, vol. 3: O baile das solteironas (Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 1979), p. 335.

Costa e Silva: os militares endurecem 197

Era uma conclusão inevitável que o sucessor de Costa e Silva seria outro
general e este direito o Exército reivindicava até porque o presidente que
indicara provavelmente não pudesse concluir seu mandato. Mais importante ainda,
o Exército era de longe o maior serviço e possuía o maior número de oficiais
servindo em postos governamentais. Talvez o seu maior interesse no êxito do
governo militar decorresse do fato de que, em última análise, era o Exército que
teria de manter a ordem civil.

Mas, apesar da superioridade do papel do Exército, cada arma devia participar
do processo de seleção indicando três ou quatro dos seus nomes mais cotados. O
processo de sondagem entre a oficialidade (os inferiores, isto é, abaixo de
tenente, eram ignorados) nunca foi especificado. O tipo de consulta variava, mas
para todas as três armas a ordem final de preferência devia ser decidida pelos
seus oficiais mais antigos.93

O candidato mais conhecido do Exército era o general Albuquerque Lima,
crítico veemente das políticas econômicas de após 1964. Suas ideias
nacionalistas sensibilizavam muitos políticos e intelectuais, inclusive ex-
militantes do PTB, mas também incomodavam alguns homens de negócios
e militares. Em meados de setembro, Albuquerque Lima tomou a invulgar decisão
(para aquela época) de defender publicamente suas idéias nacionalistas, medida
que o indispôs com muitos oficiais, os quais achavam que a disputa devia ser
mantida estritamente dentro das fileiras militares.94

Decorrido o mês, Albuquerque Lima havia conquistado forte apoio na Marinha e
na Aeronáutica que reforçou seu prestígio no Exército. Ele era especialmente
popular entre os oficiais mais jovens, muitos dos quais consideravam seus
comandantes incapazes de uma liderança dinâmica. A esta crítica respondiam os
oficiais mais antigos que a felicidade do Brasil foi nunca ter possuído
"personalidades militares carismáticas" que poderiam ter levado os seus homens e
a nação ao desastre. Tais comentários, sempre feitos em tom paternalista, apenas
encorajavam as forças de Albu-
________
93. Uma analista da política militar brasileira diz que havia um "colégio
eleitoral" não oficial de 104 generais (que ela relaciona pela posição)
"responsáveis por recolher sugestões dos oficiais das forças armadas". Maria
Helena Moreira Alves, State and Opposition, pp. 105-6.
94. New York Times, 18 de setembro de 1969.

198 Brasil: de Castelo a Tancredo
querque Lima. Seu candidato estava claramente liderando o páreo da sucessão.95
Não havia, contudo, falta de candidatos, um dos quais era obviamente o ministro
do Exército Lyra Tavares. Mas, exausto de lutar para conter a indisciplina
dentro de sua força, ele proibiu qualquer menção a seu nome para a presidência.
Candidato mais forte era o general António Carlos Muricy, chefe do Estado-Maior
do Exército, que fizera contatos nos quartéis da corporação através do Brasil.
Mas sua imagem não se recuperara de sua desastrada candidatura (vetada por
Castelo Branco) a governador de Pernambuco em 1965. Outro candidato era o
general Orlando Geisel, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas. Estava,
entretanto, estreitamente identificado com os castelistas, sendo considerado
inimigo do grupo de Coita e Silva. O general Syzeno Sarmento, comandante do
Primeiro Exército e candidato, também não era bem-visto pelos amigos do
presidente enfermo. A causa de sua impopularidade foi tentar várias vezes
apossar-se do controle da polícia e da censura após a promulgação do AI-5.
Syzeno apoiaria depois Albuquerque Lima, aumentando-lhe a força na importante
área do Primeiro Exército (Rio). Finalmente, havia o general Emílio Garrastazu
Mediei, comandante do Terceiro Exército e ex-diretor do SNI. Era amigo íntimo do
presidente e provavelmente teria sido o escolhido por Costa e Silva para seu
sucessor. Isto influenciou alguns oficiais da mais alta patente, os quais
achavam que o presidente acamado não merecia ser substituído por alguém
contrário às suas políticas básicas. Medici era o candidato mais apagado e
repetidamente anunciara a disposição de não aceitar a sua escolha.

Ainda no final de setembro, tudo indicava que Albuquerque Lima continuava
muito forte no Exército, a concluir-se pela intensa atividade política dos seus
seguidores, lançando manifestos e nego-
___________
95. Esta mentalidade doy oficiais mais antigos foi eloqüentemente expressada
pelo general Muricy na cerimónia em que o general Lyra Tavares deixou o posto de
ministro do Exército para tornar-se embaixador na França. "Na Revolução
brasileira felizmente não existe nem nunca existiu o líder carismático,
cegamente obedecido por fanáticos e que sempre leva o país à mais extrema
ditadura e conseqüentemente ao caos. Os militares brasileiros mais graduados não
têm espírito militarista, muito menos a detestável figura do messias humano que
tem a cura para tudo e que é para si e seus adeptos o senhor de toda a verdade e
o único salvador de seu país." Chagas, dias de angústia, p. 288.

Costa e Silva: os militares endurecem 199
ciando com personalidades civis de renome o preenchimento de posições em seu
governo. Estava começando a parecer que o número dos oficiais mais jovens pró-
Albuquerque Lima prevaleceria sobre o dos seus superiores, caso se fizesse uma
contagem.

No início de outubro, os ministros militares se reuniram para avaliar a
situação. Albuquerque Lima e Mediei estavam empatados no Exército. Os ministros
ficaram contristados, pois haviam decidido que Albuquerque Lima tinha que ser
excluído. Por quê? Primeiro, seria um desrespeito a Costa e Silva - cujo mandato
devia ser completado - porque as idéias nacionalistas e populistas de
Albuquerque Lima contraditavam as do presidente enfermo. Mais importante até, os
ministros militares e virtualmente todos os generais de mais alta graduação não
concordavam com as idéias de Albuquerque Lima. Discordavam também do seu nome
porque ele fizera campanha fora dos meios militares, tornando assim os militares
suscetíveis de manipulação vinda de fora. Finalmente, eram apontados os seus
laços com Carlos Lacerda como prova de sua inferior capacidade de julgamento.
Embora fossem estas as verdadeiras razões para a exclusão de Albuquerque Lima,
os ministros evitaram trazê-las a público. Felizmente para eles, tinham
outra solução.

Ninguém teria deixado de observar que dos seis candidatos do Exército todos
menos um tinham quatro estrelas. A exceção era Albuquerque Lima, com apenas
três. Até então, não se fizera um acordo explícito sobre a patente mínima que os
candidatos deveriam possuir. Mas, confrontados com a ameaça da candidatura de
Albuquerque Lima, os ministros militares anunciaram que somente generais de
quatro estrelas eram elegíveis. Os ministros estavam aplicando à presidência a
regra militar de que nenhum comandante pode ter graduação inferior à dos seus
comandados. Como o presidente devia dar ordens a generais de quatro estrelas,
não podia ter graduação menor.

Esta decisão provocou violenta carta de protesto de Albuquerque Lima ao
ministro do Exército, advertindo dos perigos futuros se a sua "nova mensagem ao
povo brasileiro" fosse agora esquecida. Igualmente- sério era o perigo de "novas
e profundas divisões do Exército causadas por decisões de cúpula que ignoram os
verdadeiros sentimentos daqueles sob seu comando". Ele afirmava representar "a
maioria das forças armadas", que breve poderia apoiar "outros líderes talvez
mais imprudentes e menos cau-

200 Brasil: de Castelo a Tancredo
telosos". O tom da carta dava a impressão de que Albuquerque Lima estava
lançando as bases de uma futura campanha. Lyra Tavares respondeu (levianamente,
segundo alguns dos seus camaradas) dizendo: "O que não fizemos nem podíamos
fazer; sem comprometer as tradições democráticas do Exército, foi uma eleição
entre todos os níveis da hierarquia militar, porque nossa instituição não é um
partido político".96 O argumento do ministro de que as tradições democráticas do
Exército não incluíam eleições punha em relevo o problema dos militares; como
chegar a um consenso militar que incluísse todos os postos sem criar divisões e
sem produzir um resultado que os oficiais superiores não pudessem aceitar?

O Alto Comando do Exército tinha agora que entrar em acordo sobre o seu
candidato. Com Albuquerque Lima de fora, Mediei era o que lograra maior número
de sufrágios. O maior obstáculo à sua escolha era convencê-lo a aceitá-la, pois
se recusava categoricamente a admitir a indicação do seu nome. Os generais
resolveram este problema convocando-o (do seu comando do Terceiro Exército no
Rio Grande do Sul) ao Rio. Ali convenceram-no de que ele era o único candidato
capaz de manter a coesão do Exército e dos militares. Era uma "missão" que
somente ele podia desempenhar. Colocando a questão em termos militares, os
generais conseguiram fazer com que Mediei aceitasse.

Mas as forças pró-Médici ainda não tinham o caminho inteiramente
desobstruído. Já que a opinião da oficialidade do Exército se dividira tanto,
era importante que as duas outras forças apoiassem fortemente a escolha do Alto
Comando. A Aeronáutica já o fizera, mas a Marinha ainda apoiava vigorosamente
Albuquerque Lima. O único jeito era o ministro Rademaker, da Marinha, intervir.
E ele prontamente o fez, apelando aos seus colegas almirantes, em nome da
solidariedade entre as forças armadas, que apoiassem Mediei. Foi bem-sucedido,
mas apenas por pequena margem. Então os ministros apelaram para a consulta
"oficial" de cada força. Curiosamente, todas as três apresentaram a mesma ordem
de preferência: (1) Mediei; (2) Orlando Geisel; (3) Muricy; e (4) Syzeno. Lyra
Tavares tinha razão - não era uma simples eleição das fileiras inferiores para
cima.
_________
96. Ambas as cartas estão em Portella de Mello, A revolução e o governo
Costa e Silva, pp. 887-91.

Costa e Silva: os militares endurecem 201
Mediei anunciou então a sua escolha do almirante Rademaker para a vice-
presidência. Este a princípio recusou, atento a que os três ministros militares
haviam prometido não se candidatar ao cargo que estavam exercendo interinamente.
Mas o almirante sucumbiu ao mesmo argumento (uma "missão" a desempenhar) que
usara para convencer Mediei. O esforço bem-sucedido de Rademaker para trazer
seus colegas para o campo de Mediei não passou despercebido do presidente
designado.

A questão fundamental no final de setembro era o estado de saúde do
presidente. Ele não conseguira recuperar a fala e suas chances de recuperação
pareciam remotas. Um relatório dos médicos deixou claro que, ainda que se
recuperasse, o presidente não poderia novamente tolerar o desgaste físico e
emocional que o exercício do cargo impõe. Isto era tudo o que o Alto Comando das
Forças Armadas precisava ouvir. Reunindo-se nos dias 8-9 de outubro, escolheu
Mediei para presidente e Rademaker para vice-presidente. Ambos haviam discordado
fortemente de sua escolha, o que parecia estar se tornando condição sine qua non
para o êxito político de militares de graduação mais elevada.

O Alto Comando também resolveu reabrir o Congresso, suspenso desde dezembro
de 1968, para eleger o presidente e o vice-presidente. Sem votação pelo
Congresso, afirmava-se, "a impressão que ficava era a de uma ditadura, daí
resultando uma péssima imagem dentro e fora do país".97 E isto era tudo o que se
podia esperar da sensibilidade política da alta cúpula militar. A 14 de outubro
o Alto Comando expediu o Ato Institucional n.° 16, que declarou vacante a
presidência, estipulou a duração do novo governo até 15 de março de 1974,
criando assim um novo mandato completo, e fixou as regras para a eleição do
próximo presidente e vice-presidente. O Congresso deveria reunir-se novamente e
os partidos apresentar seus candidatos. Conforme especificado, a eleição no
Congresso realizou-se em 25 de outubro, tendo a ARENA, agora isenta de qualquer
pretensão à independência, eleito obedientemente Mediei e Rademaker. O MDB
absteve-se num gesto extremo a que podia dar-se o luxo.

Os militares também outorgaram ao Brasil uma nova Constituição. Mediei
promulgou-a a 17 de outubro, oito dias antes de o
___________
97. Ibid., p. 926.

202 Brasil: de Castelo a Tancredo
Congresso reunir-se para elegê-lo. Este fato dramatizou a situação do Congresso,
cuja fraqueza o impedia até de rever a lei mais importante do país. A nova
Constituição consistia em longos blocos não revistos da Constituição de 1967,
juntamente com alterações básicas (tornou-se conhecida como a Constituição de
1967 com a emenda de 17 de outubro de 1969). As alterações aumentavam o poder do
Executivo como, por exemplo, a que fortalecia a Lei de Segurança Nacional,
visando à ameaça guerrilheira, e a que aumentava o prazo máximo do estado de
sítio. As assembléias legislativas eram outro alvo. O número de cadeiras na
Câmara dos Deputados foi reduzido de 409 para 310, e o número total de assentos
em todas as assembléias estaduais foi reduzido de 1.076 para 701. Especialmente
importante era o método de alocar os deputados federais por estado. A nova base
seria o número de eleitores registrados por estado e não, como anteriormente, o
total da população por estado. A mudança destinava-se a favorecer os estados
mais desenvolvidos, cujas taxas mais altas de alfabetização produziam índice
mais elevado de eleitores registrados. O alcance da imunidade parlamentar era
reduzido - não deveriam repetir-se casos como o de Márcio Moreira Alves.
Finalmente, havia um novo dispositivo para impedir que os parlamentares
da ARENA votassem contra o governo. A "fidelidade partidária" exigia agora que
todos os legisladores (federais e estaduais) votassem com a liderança do partido
se esta considerasse uma votação de importância capital para o partido. Esta
medida visava também impedir a repetição do voto independente, como aconteceu no
caso Márcio Moreira Alves.98

A crise de 1968 não havia ainda saído de cena, mas a liderança militar
empalmava agora todos os poderes que seus advogados puderam conceber e
codificar. O Congresso, depois de celebrar o ritual da eleição que lhe fora
exigido, entrou de novo compulsoriamente em recesso. A oposição legal, o MDB,
passara
____________
98. "Political Parties in Authoritarian Brazil", Margaret S. Jenks (dissertação
de Ph. D., Duke University, 1979), p. 178. Como o texto constitucional que Costa
e Silva tinha pranto para promulgar não foi publicado não é possível compará-lo
com sua versão final. Carlos Chagas considerou as mudanças mais importantes do
que o general Portella de Mello. Chagas, 113 dias de angústia, p. 175; Portella
de Mello, A revolução e o governo Cosia e Silva, p. 947.

Costa e Silva: os militares endurecem 203
pelo crivo dos expurgos e era mantida acuada pela intimidação e pela censura. As
guerrilhas eram incômodas, mas também úteis porque ajudavam a justificar a
repressão.

A verdadeira ameaça ao governo não vinha da esquerda mas de dentro dos
quartéis. A escolha de Mediei fora um processo contundente. Generais como Syzeno
Sarmento e Albuquerque Lima, revoltados, fizeram graves ameaças. Não
surpreendeu, pois, que o Ato Institucional n.° 16, dispondo sobre a eleição de
Mediei, fosse acompanhado pelo Ato Institucional n.° 17, fortalecendo o poder do
presidente para reprimir a indisciplina militar. O chefe do governo agora podia
transferir para a reserva qualquer oficial "que cometesse ou planejasse cometer
crime contra a unidade das forças armadas. . ."" Esta rigorosa penalidade era
abrandada por um artigo que assegurava às vítimas seu salário integral e outros
emolumentos.

Em seu primeiro discurso à nação em outubro o presidente Mediei disse que
esperava "deixar a democracia definitivamente implantada em nosso país no fim de
meu governo".100 Enquanto isso, ele pediu um diálogo mais estreito com os
estudantes, o clero, a imprensa etc. Era a face de Jano da Revolução - assumindo
mais poderes autoritários, porém prometendo que, se o povo cooperasse, o Brasil
voltaria algum dia ao império da lei.

Os Estados Unidos: um embaixador seqüestrado e algumas reflexões

Devemos agora voltar as vistas para o início de setembro quando um seqüestro
subitamente projetou os Estados Unidos no centro da crise sucessória. O rápido
apoio dos Estados Unidos aos governos militares pós-1964, juntamente corn sua
tradicional posição de principal investidor e parceiro comercial do Brasil
transformaram-no em alvo natural da oposição nacionalista. Estudantes radicais e
ativistas católicos voltaram suas baterias para o imperialismo americano como
uma (alguns diziam á) das principais causas dos males do Brasil. Os que
ingressaram nas guer-
___________
99. Os atos institucionais n.*8 12-17 estão reproduzidos em Chagas,
113 dias de angústia, pp. 231-38.
100. Emílio Garrastazu Mediei, O jogo da verdade (1970), p. 10.

204 Brasil: de Castelo a Tancredo
rilhas envolviam-se em pequenas ações, como vimos, enquanto outros estavam agora
reunindo forças para uma operação mais importante. Resolveram agir no Rio
seqüestrando o embaixador dos Estados Unidos Charles Burke Elbrick no dia 4 de
setembro.101 Os seqüestradores pertenciam à ALN e ao MR-8, movimento
revolucionário cujo nome se inspirava na data de 8 de outubro, que lembra a
morte de Che Guevara. Elbrick foi escondido em uma casa alugada em Santa Teresa,
uma colina no Rio de Janeiro, enquanto os seqüestradores fizeram duas exigências
ao triunvirato militar que então governava o país.

Primeiro, seu manifesto revolucionário tinha que ser transmitido dentro de 48
horas por todas as estações de rádio brasileiras. Segundo, o governo tinha que
libertar 15 presos políticos especificados. A lista dos presos foi feita para
chamar a atenção do mais amplo espectro possível da oposição. Incluía os líderes
estudantis Luís Travassos e Vladimir Palmeira, o líder sindical José Ibraim, o
guerrilheiro Onofre Pinto, ex-sargento da Aeronáutica, e o veterano ativista do
PCB Gregório Bezerra, de Recife. Citando nominalmente os presos a serem
resgatados, os rebeldes forçavam o governo a libertá-los (revelando sua condição
física) ou a admitir que estavam mortos. O governo ficava advertido dali por
diante de que no futuro o nome de qualquer preso poderia subitamente aparecer em
uma lista de resgate. Era, para citar um advogado criminalista, um habeas-corpus
de fato.102
_____________
101. Expressivos detalhes sobre o seqüestro de Elbrick são dados por Fernando
Gabeira, um dos seqüestradores do embaixador e posteriormente famoso por um
livro de memórias sobre o seu tempo de guerrilheiro e os anos que passou no
exílio. Fernando Gabeira, Carta sobre a anistia (Rio de Janeiro, CODECRI, 1979),
pp. 41-57; e Gabeira, O que é isso, companheiro? (Rio de Janeiro, CODECRI,
1980), pp. 107-30. Gabeira foi preso pela polícia e torturado. Em junho de 1970
foi um dos quarenta presos políticos trocados pelo embaixador da Alemanha
Ocidental que outros guerrilheiros haviam seqüestrado. Sobre o caso Elbrick,
ver também A. J. Langguth, Hidden Terrors (New York, Pantheon Books, 1978), pp.
167-96. Langguth, ex-repórter do New York Times, entrevistou não só
Elbrick mas também Gabeira. Obtive preciosas informações sobre o seqüestro de
Elbrick graças a uma entrevista (30 de junho de 1983, em São Paulo) com Paulo de
Tarso Wenceslau, um ex-guerrilheiro baseado em São Paulo e que foi enviado ao
Rio para ajudar na logística da operação.
102. Entrevista com J. Ribeiro de Castro Filho, Rio de Janeiro, 10 de junho de
1983.

Costa e Silva: os militares endurecem 205

Em seu manifesto os seqüestradores afirmavam "que é possível derrotar a
ditadura e a exploração se nos armarmos e nos organizarmos". Acusavam o governo
militar de "criar uma falsa felicidade a fim de esconder a miséria, a exploração
e a repressão em que vivemos". Terminavam com uma ameaça: "Finalmente, queremos
advertir todos os que torturam, espancam e matam nossos camaradas que não mais
consentiremos que isto continue". E concluindo: "Agora será olho por olho e
dente por dente".103

A tática dos seqüestradores não há dúvida de que foi bem concebida para o
curto prazo. Haviam feito prisioneiro o embaixador do mais poderoso aliado do
Brasil, cujo governo se via obrigado agora a fazer aparentes concessões na área
mais sensível para os militares: a guerra contra a esquerda armada.
As exigências dos seqüestradores também provocaram acalorados debates entre os
militares. Uma facção (localizada especialmente na Vila Militar, subúrbio do
Rio) queria que o embaixador ficasse entregue à própria sorte, alegando que o
preço de sua vida seria a humilhação dos militares. Como era de esperar, o
governo americano estava fazendo forte pressão sobre a junta militar para
libertar Elbrick. As tensões criadas por essa pressão poderiam ter até levado à
rejeição das exigências dos seqüestradores, caso o governo houvesse preferido
atacar a prisão de Elbrick, uma residência privada vigiada noite e dia pela
inteligência naval.104

Vozes moderadas prevaleceram, contudo, e as exigências foram atendidas. O
manifesto revolucionário foi lido em todas as emissoras do país e os presos
reunidos. A 7 de setembro, dia da Independência, deixaram o Rio rumo ao México,
segundo as instruções dos guerrilheiros. Quando chegou a notícia de que o avião
aterissara em segurança no México, os seqüestradores libertaram Elbrick, que foi
imediatamente chamado a Washington pelo Departamento de Estado.
________-
103. New York Times, 6 de setembro de 1969. Um dos autores do manifesto
depois explicou que ao redigi-lo estavam tentando fugir à usual "prosa tediosa
da esquerda". Gabeira, O que é isso, p. 114.
104. Fernando Gabeira, Carta sobre a anistia (Rio de Janeiro, CODECRI,
1979), pp. 50-54; Langguth, Hidden Terrors, p. 186. Um guerrilheiro sobrevivente
envolvido no seqüestro de Elbrick duvida que as forças de segurança houvessem
identificado a casa. Entrevista corn Paulo de Tarso Wenceslau. Mas o depoimento
de Gabeira parece convincente.

206 Brasil: de Castelo a Tancredo

A aquiescência às exigências dos rebeldes provocou violenta oposição nos
quartéis, como os guerrilheiros previram. A 6 de setembro oficiais pára-
quedistas invadiram uma estação de rádio perto do Rio de Janeiro e anunciaram
que estavam assumindo o poder no Brasil. Mas deixaram imediatamente o estúdio e
nunca mais voltaram à superfície. Incidente mais sério ocorreu quando o avião
com os presos a bordo estava na pista pronto para levantar vôo para o México.
Duzentos fuzileiros navais (da linha dura da Marinha) cercaram o aparelho
recusando-se a deixá-lo decolar. Foram finalmente persuadidos (ou receberam
ordens) a desistir pelas autoridades superiores, temerosas de que o atraso
pusesse em risco a vida do embaixador americano. O último incidente aconteceu
logo depois da chegada dos presos no México, quando um grupo de coronéis
atacou a decisão do governo. Mas era tarde demais. O precedente fora
estabelecido: o governo brasileiro permutaria presos políticos por diplomatas
estrangeiros seqüestrados.105

Em conseqüência do seqüestro a Junta imediatamente adotou medidas duras. A 5
de setembro promulgou dois atos institucionais, como vimos anteriormente. O AI-
13 dava ao governo o poder de banir permanentemente do país qualquer brasileiro
considerado perigoso para a segurança nacional (a lei foi imediatamente aplicada
aos 15 reféns que voaram para o México). O AI-14 restabelecia a pena de morte
(inexistente em tempo de paz no Brasil desde 1891) para casos de "guerra
externa, ou guerra psicológica revolucionária ou subversiva". O governo militar
concedera-se o direito de fazer virtualmente tudo em nome da segurança nacional.
Em meados de setembro as forças de segurança tinham detido 1.800 suspeitos,
muitos dos quais sofreram torturas.106
_______________-
105. New York Times, 7 e 10 de setembro de 1969.
106. O seqüestro de Elbriek aparentemente teve pouca influência sobre as lutas
intramilitares pelo poder que emergiram após a doença de Costa e Silva. O relato
detalhado desses eventos, seja por Carlos Chagas ou por Jayme Portella de Mello,
não dá muito peso à reação militar ao seqüestro. Chagas, 113 dias; Mello, A
revolução e o governo Costa e Silva. Quando entrevistei um dos seqüestradores de
Elbrick, perguntei se haviam escolhido 4 de setembro porque a doença de Costa e
Silva fizera o governo parecer mais vulnerável. Demonstrando surpresa, ele
disse: "Absolutamente, queríamos ficar o mais possível perto do Sete de
Setembro" (Independência do Brasil). Paulo de Tarso Wenceslau, entrevista.

207
Entre os detidos estavam guerrilheiros da ALN de Carlos Marighela.
Evidentemente os inquisidores extraíram bastante informação para preparar uma
armadilha para o próprio Marighela. Em 4 de novembro ele foi tocaiado e morto a
tiros em uma rua da cidade de São Paulo. O governo trombeteou a notícia (e a
inesquecível foto de Marighela morto, parcialmente estirado no assento traseiro
de um Volkswagen), dizendo que as informações sobre os movimentos do
guerrilheiro provinham de vários frades dominicanos que supostamente colaboravam
com a ALN. Considerando-se o poder da censura, foi fácil ao governo impor sua
versão ao público.107 As autoridades aplicaram um duplo golpe: a liquidação do
mais conhecido (e mais capaz) líder guerrilheiro e o descrédito de muitos dos
elementos da Igreja, agora um dos principais focos de oposição. Como disse mais
tarde um dos seqüestradores de Elbrick, "a morte de Marighela foi a espetacular
resposta do governo ao seqüestro do embaixador americano".108
___________
107. Levou mais de uma década para a versão do governo ser questionada por
documentação nova. A fonte mais importante foi Frei Betto, Batismo de sangue: os
dominicanos e a morte de Carlos Marighela (Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, 1983). Betto concede que os dominicanos, sob tortura, deram
informações a Sérgio Fleury sobre Marighela. Mas afirma convincentemente que
Fleury e seus homens devem ter tido informações de outras fontes,
provavelmente de delatores profissionais. Betto também analisa a cena da
emboscada, revelando muitas incoerências na versão oficial, precisamente com
o propósito de dividir a esquerda e os cristãos militantes. Uma fonte anterior
afirmara que membros da ALN capturados pela polícia, não os dominicanos, deram a
informação. Quartim, Dictatorship and Armed Struggle, p. 215.
108. Gabeira, O que é isso, p. 135. Um estudioso do terrorismo muito lido
descreveu Marighela como "predominantemente interessado em ações militares (isto
é. terroristas): quanto mais radicais e destrutivas melhor". E acrescenta:
"Para esta atitude antiintelectual e até irracional havia talvez atenuantes: os
estéreis e infindáveis debates da esquerda latino-americana, geralmente uma
reapresentação de idéias importadas da França". Walter Laqueur, Terrorism
(Boston, Little Brown, 1977), p. 185. Para o serviço fúnebre de dezembro em
memória de seu ex-companheiro do PCB, Jorge Amado enviou uma mensagem a esse
"incorruptível brasileiro, a esse filho da Bahia, de sorriso jovial e
coração apaixonado..." Batista Berardo, Guerrilhas e guerrilheiros, p. 259.

208 Brasil: de Castelo a Tancredo

As novas medidas de força do governo, contudo, somente reforçaram as dúvidas
dos Estados Unidos que vinham aumentando desde a virada autoritária de 1968.109
Em 1964 o governo americano entusiasmou-se com a Revolução dando forte apoio às
políticas de estabilização e de reforma de Castelo Branco. Em sua avaliação o
AI-5 foi, no entanto, um gigantesco retrocesso na marcha do país para o regime
constitucional. Em meados de dezembro o Departamento de Estado tornou conhecida
sua preocupação através de comentários divulgados pela imprensa sem menção da
fonte.

Mas os jornais não tinham por que usar de discrição. O New York Times
escreveu em editorial: "Os líderes militares comportaram-se como crianças
mimadas e empurraram ainda mais para o futuro o dia com que os brasileiros
sonham em que esta gigantesca nação assumirá uma posição de liderança respeitada
nas Américas e no mundo".110

Mais uma vez Washington ouvia uma reapresentação da velha discussão sobre a
política americana mais adequada em relação às ditaduras latino-americanas.
A crise brasileira de dezembro de 1968 apanhou Washington em um momento de
transição. A administração Johnson em final de mandato, que seria em pouco tempo
substituída pela de Richard Nixon, recebera com surpresa a forte virada
autoritária do AI-5. Em represália a Casa Branca atrasou o desembolso de US$50
milhões em ajuda e de US$125 milhões em créditos anteriormente aprovados para o
Brasil. Tendo assumido a presidência em janeiro de 1969, Nixon manteve o
congelamento. As autoridades da USAID disseram que a medida fazia parte do
reexame pelos Estados Unidos de sua forte identificação com os generais
brasileiros. O congelamento, continuou até maio, quando os "realistas" do
governo levaram a melhor e a ajuda foi reiniciada. Não obstante, a assistência
bilateral americana ao Brasil para 1969
_________
109. Sobre as relações Estados Unidos-Brasil, ver Jerome Levinson e Juan de
Onís, The Alliance that Lost Its Way (Chicago, Quadrangle, 1970) e Peter Bell,
"Brazilian American Relation", em Roett, ed., Brazil in the Sixties, pp. 77-102.
110. New York Times, 18 de dezembro de 1968.

209
totalizou apenas US$27,3 milhões, um dramático declínio da média de US$303
milhões por ano de 1964 a 1968.111 Mas essa ajuda era também muito menos
importante para o Brasil agora em vista do aumento dos ingressos de capital e da
receita proveniente do aumento das exportações.

Do ponto de observação de Washington, o Brasil era apenas o exemplo de uma
tendência para o autoritarismo na América Latina. Em meio a um acalorado debate
sobre como os Estados Unidos deviam reagir a essa tendência, o presidente Nixon
recorreu a uma tática corriqueira: nomeou uma comissão para estudar o
problema.112 O presidente foi Nelson Rockefeller, ilustre político republicano
que há muito participava dos assuntos Estados Unidos América Latina (tanto em
postos do governo quanto na condição de investidor privado). Em junho a comissão
partiu para uma viagem pela América Latina. A visita ao Brasil era importante
por causa da recente suspensão do congelamento sobre a ajuda americana.

O governo Costa e Silva distinguiu os visitantes mesmo antes de sua chegada.
Assim é que advertiu a imprensa brasileira a não divulgar notícias desfavoráveis
sobre a missão, nem quaisquer referências a greves, manifestações estudantis,
suspensão de direitos políticos ou qualquer outro assunto proibido.113 Em meados
de junho, no Brasil, Rockefeller manifestou preocupação com o destino do
Congresso brasileiro em recesso já há sete meses.114 Mas o relatório final da
missão, divulgado no final de agosto, revelava uma preocupação diferente. "A
subversão comunista", observava, "é hoje uma realidade com alarmante potencial."
Uma recomendação básica era que os "Estados Unidos invertessem a recente
tendência à redução das subvenções para ajudarem a treinar as
____________
111. Estes dados foram extraídos de um quadro em "United States Policies and
Programs in Brazil", Hearings Before the Subcommittee on Western Hemisphere
Affairs of the Committee on Foreign Relations, United States Senate, Ninety-
second Congress, First Session, 4, 5 e 11 de maio de 1971 (Washington, U.S.
Government Printing Office, 1971), p. 162.
112. Para exemplos do debate, ver New York Times, 22 de dezembro de 1968 e 28 de
abril de 1969.
113. Christian Science Monitor, 11 de julho de 1969.
114. Extensa cobertura foi dada à visita de Rockefeller no New York Times, 9 e
16-18 de junho de 1969.

210 Brasil: de Castelo a Tancredo
forças de segurança de outros países hemisféricos".115 Esta proposta falava mais
alto do que comentários eventuais sobre a falta de liberdades democráticas no
Brasil. Os Estados Unidos fizeram no máximo uma débil tentativa de pressionar os
revolucionários brasileiros quanto às indagações mais presentes na mente dos
críticos do governo brasileiro, tanto internamente quanto no exterior: quando o
Brasil retornaria ao império da lei, e quando suas políticas econômicas
começariam a ajudar os milhões que viviam na mais abjeta pobreza?
___________
115. The Rockefeller Report on tite Américas (Chicago, Quadrangle,
1969), pp. 34-63. ' - ; ; •

V
Medici: a face autoritária

O general Emílio Garrastazu Mediei era virtualmente desconhecido do público
quando assumiu a presidência em outubro de 1969. Em contraste, seus dois
antecessores foram figuras destacadas da Revolução de 1964. Ambos tinham muitos
adeptos entre os militares e a população ao tempo em que se tornaram
presidentes. E ambos tinham muita vontade de alcançar o posto. Mediei, ao
contrário, era apenas um soldado profissional, que se opôs categoricamente à
escolha do seu nome para a chefia do governo e que só cedeu por razões de dever
militar. Tornou-se presidente, não porque os seus eleitores militares achassem
que ele tinha a visão ou os conhecimentos de que um presidente precisava, mas
porque era o único general de quatro estrelas que podia impedir o aprofundamento
da divisão que lavrava no Exército.1
_______________
1. Em seu primeiro discurso depois de ser escolhido pelos militares, o próprio
Mediei disse que fora escolhido pelo Alto Comando porque era "capaz de manter as
forças armadas da .nação unidas e trabalhando juntas na busca dos ideais da
Revolução de março de 1964". Emílio Garrastazu Mediei, O jogo da verdade
(Brasília, Secretaria de Imprensa da Presidência da República, 1971), p. 9. Há
uma útil cronologia dos primeiros anos de Mediei como presidente em Fernando
José Leite Costa e Lúcia Gomes Klein, "Um ano de governo Mediei", Dados, N." 9
(1972), pp. 156-221. Uma fonte preciosa sobre os primeiros dezesseis meses de
Mediei é a coleção das colunas diárias de jornal de Carlos Castello Branco, Os
militares no poder, vol. 3: O baile das solteironas (Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 1979). Mediei aparentemente não pretendia escrever memórias. Não
concedia entrevistas até que apareceu uma em Veja, 16 de maio de 1984. Nela
Mediei discutiu suas políticas e técnicas de governar. Uma versão mais elaborada

212
Brasil: de Castelo a Tancredo

A Personalidade, o Ministério e o estilo de governar de Mediei

Médici era outro filho do Rio Grande do Sul, estado que vinha rapidamente
monopolizando a presidência. Fora chefe do Estado-Maior de Costa e Silva no fim
dos anos 50 quando este comandava a Terceira Região Militar, período em que se
tornaram grandes amigos. No governo Castelo Branco serviu como adido militar em
Washington. De volta ao Brasil, foi nomeado chefe do SNI, posto que o fez
familiarizar-se rapidamente com os problemas brasileiros. Parlamentares que o
conheceram nessa época descreveram-no como homem acessível e "sempre interessado
no diálogo político".2 Mais tarde ele diria que o SNI o "fez conhecer um pouco
do direito e do avesso das coisas e dos homens do Brasil".3 Em 1969, após
receber sua quarta estrela, Medici foi nomeado comandante do Terceiro Exército
no Rio Grande do Sul, de onde saiu para ocupar a presidência. Um dos primeiros
convertidos à conspiração contra Goulart, Medici apoiava a linha dura, embora
nunca tenha sido um dos seus mais conhecidos porta-vozes.

Do Ministério de Medici, constituído na maior parte de figuras novas no
cenário do poder, o nome mais conhecido era o de Delfim Neto, o tecnocrata
inigualável e arquiteto do boom econômico, que se revelara à nação no governo
Costa e Silva. Sua manutenção na pasta da Fazenda significava a continuidade da
aplica-
212
_______________
da entrevista apareceu em forma de livro em A. C. Scartezini, Segredos de Mediei
(São Paulo, Editora Marco Zero, 1985). Medici revelou-se orgulhoso do seu
governo (inflação sob controle, a dívida externa, idem, os projetos
governamentais concluídos no prazo etc.) mas ressentido pela imagem que seus
críticos projetaram de um presidente que torturava e mantinha os salários
baixos. Parte do materiajf deste capítulo foi publicada anteriormente em Thomas
E. Skidmore, "The Political Economy of Policy-Making in Authoritarian Brazil,
1967-70", em Philip O'Brien e Paul Commack, eds., Generais in Retreat: The
Crisis of Military Rule in Latin America (Manchester, Manchester University
Press, 1985), pp. 115-43.
2. Carlos Castello Branco, Os militares no poder, vol. 3, pp. 336-37. Castello
estava parafraseando os depoimentos de políticos civis que descreviam Mediei
como "discreto e de modos serenos". Esta era uma expressão que poucos
observadores teriam associado com o SNI.
3. Mediei, Jogo, p. 23.

213
cão de suas políticas econômicas tão bem-sucedidas (em termos de crescimento) e
tão controvertidas (em termos de eqüidade social). O outro principal tecnocrata
mantido foi João Paulo dos Reis Veloso, que fora o pesquisador-chefe do
Ministério do Planejamento no governo anterior, e agora promovido a ministro.
Veloso formava uma dupla muito afinada com Delfim e tinha grande habilidade em
lidar com a crescente burocracia do Estado.

Outros ministros vindos do governo Costa e Silva foram: António Dias Leite,
das Minas e Energia; Mário Andreazza, dos Transportes; José Costa Cavalcanti, do
Interior; Márcio de Souza e Mello, da Aeronáutica; e Jarbas Passarinho, que
permaneceu no Ministério mas transferido do Trabalho para a Educação.

Os novos ministros eram principalmente administradores, em contraste com
outros Ministérios desde 1964, constituídos mais com políticos profissionais e
representantes de interesses econômicos ou sociais. O governo Mediei afirmava
ser um Estado elevando-se "acima" de sua sociedade, com os tecnocratas e os
militares administrando atentos aos melhores interesses dos setores sociais
nominalmente não representados. Como Mediei explicou em outubro de 1969, fizera
a escolha dos seus ministros "imune a pressões de toda ordem (...) políticas,
militares, econômicas". Esta postura "não política" era o que mais agradava aos
militares. Segundo o presidente, "compromissos, só os tenho com a minha
consciência e com o futuro de nosso país".4 O ministro da Justiça foi o advogado
paulista Alfredo Buzaid, o da Agricultura, Luiz Fernando Cirne de Lima, um
agrónomo gaúcho, e o do Trabalho, Júlio de Carvalho Barata, ex-presidente do
Superior Tribunal do Trabalho. O Ministério da Indústria e Comércio foi entregue
a Fábio Riodi Yassuda, ex-diretor de uma cooperativa agrícola de São Paulo e o
primeiro brasileiro descendente de japoneses a ocupar um posto com status
ministerial. Para a Saúde foi nomeado o médico pesquisador Francisco de Paula
Rocha Lagoa, e para as Relações Exteriores, Mário Gibson Barbosa, diplomata
de carreira que fora recentemente embaixador nos Estados Unidos. Para o
Ministério das Comunicações foi o coronel Higino Corsetti, relativamente
desconhecido. Os dois novos ministros militares foram Orlando Geisel, cotado
logo em seguida a Mediei na consulta
4. Ibid., pp. 23-24.

214
Brasil: de Castelo a Tancredo
feita nos quartéis para a sucessão de Costa e Silva, que ocupou o Ministério do
Exército,5 e Adalberto de Barros Nunes, o Ministério da Marinha.

Medici também escolheu novos auxiliares para dois outros postos-chave do
Ministério. O novo chefe da Casa Civil foi João Leitão de Abreu, advogado do Rio
Grande do Sul e cunhado do general Lyra Tavares. Para chefe da Casa Militar foi
nomeado o general João Batista de Oliveira Figueiredo. A chefia do SNI foi
confiada ao general Carlos Alberto Fontoura.!

O general Mediei começou seu governo em circunstâncias muito diferentes
daquelas dos seus dois antecessores. Castelo Branco assumira confiante em que os
22 meses restantes do mandato de Goulart seriam suficientes para expurgar os
subversivos, restaurar a ordem econômica e executar reformas importantes. Costa
e Silva tomou posse prometendo liberalizar, já que o país tinha uma nova
Constituição. Mas tanto Castelo quanto Costa e Silva assumiram o poder com muito
otimismo.

Medici chegou ao governo em momento mais sombrio.6 Dez meses antes uma onda
de repressão avassalara o país. E agora o consenso militar exigia que a
repressão continuasse. A linha dura tinha as rédeas nas mãos.7

Visto pelas suas aparências, o governo Mediei foi de relativa calma. Não
houve marchas estudantis, piquetes de trabalhadores em greve, nem comícios com a
costumada oratória demagógica. Ou, pelo menos, nada que o grande público pudesse
ver ou saber.8
__________
5. Era também o irmão de Ernesto Geisel, que sucederia Mediei na presidência.
6. Fernando Pedreira foi dos poucos que usaram de franqueza. Ele disse que a
esperança foi tão grande com Mediei quanto o fora com Costa e Silva em 1967.
Pedreira, O Brasil político, p. 152. Não decorreram muitos meses para Pedreira
ficar decepcionado corn o novo governo (ibid., pp.166-67).
7. Nas palavras do sempre bem informado colunista Carlos Castello Branco, os
militares acreditavam que o "rígido controle do país pelas forças armadas pode
ao mesmo tempo esmagar a subversão e produzir desenvolvimento". Castello Branco,
Os militares, vol. 3, p. 345.
8. Houve, contudo, protestos e tumultos espontâneos. O péssimo serviço de trens
suburbanos do Rio provocou vários distúrbios espontâneos promovidos pelos
passageiros a partir de 1974. Eles são analisados em José

Medici: a face autoritária 215
A repressão e a censura do governo eram a razão principal. Os estudantes, por
exemplo, um dos principais focos de oposição em 1968, foram silenciados pela
violenta intervenção nas universidades, que resultou em expulsões, prisões e
torturas para muitos. A repressão mostrava-se também eficiente contra as
guerrilhas.

A oposição legal, o MDB, ficou de pés e mãos atados. Os políticos emedebistas
até que faziam discursos inflamados de contestação, mas os seus textos eram
revistos e censurados antes de chegarem aos meios de comunicação. As tenazes da
repressão foram tão apertadas que Mediei não precisou fazer uma só cassação. A
Igreja Católica tornou-se, faute de mieux, a única instituição capaz de
enfrentar o governo e sobreviver. Mas mesmo dentro dela havia divisões, o que a
impediu, às vezes, de defender membros do clero dos horrores da tortura.

Mas não é somente a repressão que explica o Brasil de Mediei. Juntamente com
o porrete, oferecia-se a cenoura. O rápido desenvolvimento económico levou ao
paraíso os brasileiros situados no vértice da pirâmide salarial - os
profissionais, os tecnocratas, os administradores de empresa. Aliás, os salários
dessas categorias ultrapassaram os dos seus colegas de igual categoria dos
Estados Unidos e da Europa Ocidental. Os salários mais baixos podem não ter
subido muito, mas 10 por cento anuais de crescimento econômico criaram novos
empregos em todos os níveis. Muitos trabalhadores receberam promoções que
representavam mais cruzeiros em seus contracheques mensais, enquanto
outros tantos, desempregados, conseguiram encontrar ocupação.9 Finalmente, as
universidades federais, embora sob rigoroso controle político, receberam verbas
recordes. A tirada de Mediei de que o destino do Brasil era se tornar potência
mundial feriu uma corda sensível no íntimo dos brasileiros eufóricos com o
aumento cada vez maior
_____________
Álvaro Moisés, et ai., Contradições urbanas e movimentos sociais (Rio de
Janeiro, CEDEC, 1977). Distúrbio semelhante por causa de um grande aumento dos
ônibus em Brasília em 1974 é descrito em Peter Evans, Dependent Development
(Princeton, Princeton University Press, 1978), p. 3.
9. As questões sobre o sistema salarial e a mobilidade da mão-de-obra, são
tratadas mais amplamente no Capítulo VIII. A distribuição de renda é discutida
na seção sobre "O boom econômico e seus críticos" adiante neste capítulo.

216
Brasil: de Castelo a Tancredo
de suas rendas. Por isso, muitos deles alistaram-se fervorosamente na defesa do
regime.

Ao mesmo tempo, contudo, milhões de brasileiros não sentiram qualquer
melhoria em sua condição de vida. Os que viviam no campo não tinham coragem de
se organizar por causa do rigoroso controle exercido conjuntamente pelo governo
e os grandes proprietários de terras. Os da cidade nada podiam fazer por se
acharem acuados pela repressão governamental. Tanto os desfavorecidos do campo
quanto os das cidades sentiam-se inibidos por causa dos hábitos de consideração
profundamente arraigados incutidos pela cultura tradicional. Em conseqüência,
não havia manifestações continuadas de protesto em nível significativo, quer
pelo trabalho organizado, quer não.

Visto em conjunto o governo estava se saindo bem - em seus termos. O
crescimento econômico acelerado funcionava. A propaganda governamental
funcionava. A repressão funcionava. A censura funcionava. Os militares da linha
dura, repetidamente frustrados desde 1964, estavam se vingando recuperando tanto
tempo perdido.

O estilo de governo do general Mediei foi completamente diferente daquele dos
seus dois antecessores. Castelo Branco teve interesse pessoal em certas áreas
políticas, especialmente a economia. Costa e Silva projetou inicialmente a
imagem do general alegre, porém medíocre, quando lutou para estabilizar o regime
autoritário que fora além das medidas. Ambos os presidentes intervieram
diretamente sempre que consideraram decisiva uma determinada questão.

Medici era muito mais desinteressado. Dividiu seu governo em três áreas: a
militar, a econômica e a política. O ministro do Exército Orlando Geisel ficou
encarregado de administrar todos os assuntos militares, a área mais sensível. O
ministro da Fazenda Delfim Neto ficou responsável por todos os assuntos
econômicos. A Leitão de Abreu, chefe da Casa Civil, coube a supervisão de tudo o
que tivesse a ver com política. Cada um tinha poderes de vice-rei dentro do seu
território; os tecnocratas e até outros ministros tinham que trabalhar através
deles.10 O mesmo proce-
____________
10. Em retrospecto, Mediei insistia que "as decisões do meu governo
sempre foram minhas". Quanto aos seus ministros, eles tinham "o poder de
escolher seus subordinados, mas eram proibidos de decidir qualquer coisa

Medici: a face autoritária 217

dimento aplicava-se às pessoas que operavam fora do governo, como os homens de
negócios e os donos de terras. No caso da economia, a ampla delegação de poderes
conferida a Delfim Neto consolidou a supremacia dos tecnocratas que ocupavam
postos nos bancos, empresas de serviços públicos e demais instituições do
Estado. Sua ascensão começou quando Roberto Campos foi investido no posto mais
importante em 1964 e prosseguiu com a nomeação de Delfim em 1967. Agora a
presença dos tecnocratas no poder era endossada pelo governo mais rigorosamente
linhadura que o Brasil já vira. O centro de celebração das políticas (não
económicas) domésticas dentro dessa estrutura foi o Conselho de Segurança
Nacional.11

A delegação de poder de Mediei permitia-lhe manter distância da necessidade
de tomar decisões que o dia-a-dia impunha. Era um estilo bem adequado a um
regime repressivo, em que o presidente jamais tinha que responder a qualquer
pergunta da imprensa devidamente controlada.

Dentro dessa estrutura o elo mais importante era a aliança militar-
tecnocrática. Como ela se formara? Comecemos com os militares da linha dura.
Extremamente autoritários, eles não acreditavam que o Brasil pudesse, a curto
prazo, alcançar o crescimento econômico com um sistema político aberto. Estavam
determinados portanto a impedir o acesso ao governo da minoria que combatiam, a
qual, segundo eles, por pouco não empalmou o poder antes de 1964 - a esquerda
subversiva. Eles viam o Brasil como um país infelicitado por políticos de
caráter duvidoso e intelectuais traidores. Como os linhas-duras nunca emergiram
na arena pública para defender suas idéias, sua força só podia ser avaliada
através das políticas que impuseram aos sucessivos gover-
________
contra a minha vontade". Veja, 16 de maio de 1984, p. 15. A questão óbvia era
quantas decisões importantes foram tomadas que nunca lhe foram submetidas.
Outras evidências indicariam que foram muitas.
11. O Conselho de Segurança Nacional era composto pelo presidente, todos os
ministros de Estado, todos os membros do Alto Comando das forças armadas e o
chefe da Casa Civil. Maria Helena Moreira Alves, State and Opposition, p. 77.
Fernando Pedreira ficava cada vez mais alarmado corn as funções do Conselho à
medida que durava o governo Mediei. Pedreira, O Brasil político, pp. 166-67, 190
e 214.

218 Brasil: de Castelo a Tancredo
nos revolucionários. E o aperto da tenaz autoritária era eloqüente prova dessa
força.

O principal motivo para que a linha dura não defendesse a sua posição
publicamente estava na estrutura do sistema militar. A essência da organização
dentro das forças armadas são a hierarquia e a disciplina. No Brasil, contudo,
esta estrutura abriu espaço para um complexo processo de tomada de decisões
compartilhadas, como ficou demonstrado na escolha de Mediei para suceder Costa e
Silva.12 Os níveis superiores dão a palavra final, mas não podem divergir demais
dos pontos de vista dos oficiais mais abaixo. Em cada crise política os oficiais
discutiam acaloradamente a política governamental adequada e ocasionalmente
vazavam informações para a imprensa, mas a controvérsia era essencialmente
privada. O exato alinhamento das facções e seus argumentos era conhecido somente
dos participantes de nível mais elevado e de alguns privilegiados outsiders
(especialmente certos jornalistas que protegiam suas fontes raramente dando
detalhes).

Assim o cerne do processo de tomada de decisões na política brasileira depois
de 1964 - formação da opinião da oficialidade - permaneceu oculto do público. A
fim de preservar a disciplina e a imagem de unidade, as divergências submergiam
na posição final adotada pelo comando superior. Esta política pode ter sido
depois submetida a ataques e a revisão, mas somente no mundo fechado dos
quartéis. Com raras exceções, os perdedores guardavam total silêncio. Esta linha
de manutenção da unidade, pelo menos em público, contrastava fortemente com as
freqüentes divisões surgidas entre os oficiais nas crises político-militares
entre 1945 e 1964. Quando divididos, como em 1961, os militares acharam ser
simplesmente impossível intervir com eficiência. Após 1964 seu poder tornou até
maior a necessidade de união, para que não viessem a seguirá o exemplo
argentino, cujas facções desavindas geralmente não conseguiam impor
aos civis qualquer política consistente.

Dentro deste fechado contexto de tomada de decisões, os oficiais mais
autoritários tomavam cada vez mais a iniciativa.
__________
12. O processo de tomada de decisões entre os militares é claramente explicado
em Stepan, The Military in Politics.

Medici: a face autoritária 219
Castelo Branco .fora claramente um moderado; mas Costa e Silva defendeu mais
poderes arbitrários para o presidente em 1964-65, codificados primeiro no AI-2 e
depois no AI-5. Agora Mediei estava inequivocamente identificado com os linhas-
duras. O governo Costa e Silva em geral relegava a explicação do lado
autoritário do governo a apologistas civis, como os sucessivos ministros da
Justiça Gama e Silva, Carlos Medeiros e Alfredo Buzaid.13 Os militares
verdadeiramente combativos não acreditavam no compromisso oficial com o
princípio da democracia liberal, mas até agora não tinham tido nem vontade nem
autoconfiança intelectual para emergir por conta própria e acabar com a
simulação de governo civil. Assim, ao contrário dos militares peruanos na
Revolução de 1968, eles preferiram usar pretextos. Uma explicação adicional
para a hesitação em governar abertamente na condição de líderes militares estava
no forte consenso entre os oficiais superiores de não admitir a instauração de
uma ditadura caudilhesca, como foi, por exemplo, a de Franco na Espanha.

Na ausência de qualquer base explícita por parte da linha dura, os advogados
do governo tiveram que continuar a reeditar as velhas formas constitucionais a
fim de "legalizar" os crescentes poderes do Executivo. Embora evitasse repudiar
a idéia liberal per se, o governo usou emendas constitucionais, atos
institucionais e decretos executivos para reduzir ainda mais as funções das
assembléias legislativas e do Judiciário. A Lei de Segurança Nacional de
setembro de 1969 foi um excelente exemplo. Autorizava o governo federal a
intervir em virtualmente qualquer nível de atividade social se julgasse que a
segurança nacional havia sido violada. Em outubro o presidente Mediei promulgou
(o Congresso estava em recesso forçado) uma longa emenda à Constituição de
1967 que dava ao Executivo vastos poderes para proteger a segurança nacional
(foi expedida na seqüência do seqüestro do embaixador dos Estados Unidos).14 Ao
mesmo tempo a emenda restrin-
_____________
13. Medeiros, por exemplo, rejeitara as eleições presidenciais diretas para o
Brasil, explicando que elas causavam muita "agitação" e portanto tornariam o
país ingovernável. "Medeiros responsabiliza eleições diretas pelas crises",
Jornal do Brasil, 23 de junho de 1968.
14. Para maiores detalhes, ver Maria Helena Moreira Alves, State and Opposition,
p. 118.

220 Brasil: de Castelo a Tancredo
gia (e às vezes suspendia) as liberdades civis e os direitos de organização
política.

O rigoroso sistema autoritário tornou possível a "estabilidade" política, que
os militares da linha dura definiam como a ausência de qualquer oposição ou
crítica séria, satisfazendo assim seu desejo de suprimir a tensão e os conflitos
públicos de um sistema aberto. Eles não tinham mais que tolerar a retórica
marxista, as manifestações estudantis ou os conchavos dos políticos na
repartição de favores entre estados, regiões e grupos sociais.

Mas a aplicação desta filosofia política reacionária não foi apenas função
exclusiva do sistema autoritário. Pelo contrário, para a maior parte dos
brasileiros do setor intermediário talvez fosse a função principal. Afinal, eles
nem tinham apreço pela segurança nacional nem pela polarização (torturadores vs.
terroristas-seqiiestradores) que procuravam lhes impor. Mas foram os primeiros a
reconhecer o notável progresso econômico iniciado em 1964 e pareciam aceitar
tacitamente o sistema autoritário porque possibilitava uma nova continuidade e
coerência na formulação das políticas econômicas.

O resultado foi uma eficaz aliança entre militares radicais e tecnocratas.
Cada um tinha suas próprias razões para desejar um regime autoritário e ambos se
precisavam mutuamente. Os militares da linha dura precisavam dos tecnocratas
para fazer a economia funcionar. Os tecnocratas precisavam dos militares para
permanecer no poder. As altas taxas de crescimento por seu turno davam
legitimidade ao sistema autoritário.

Sem dúvida os tecnocratas eram menos felizes com o aumento do autoritarismo
do que os militares radicais que nunca tiveram ilusões sobre as virtudes da
democracia liberal. Quaisquer que fossem os escrúpulos que os tecnocratas possam
ter sentido, contudo, eles apreciavam a extraordinária base de poder de que
desfrutavam e torciam para que os militares continuassem a lhes dar carie
blanche para executarem suas políticas económicas. Uma evidência indisfarçável
dessa mútua aliança está no fato de que os linhas-duras geralmente pouparam as
faculdades de economia em seus periódicos expurgos levados a cabo nas
universidades brasileiras.

Medici: a face autoritária 221
R P em novo estilo

A face do presidente Mediei tornou-se rapidamente conhecida dos brasileiros
como peça central de uma astuta estratégia de relações públicas. O novo governo
transmitiu a mensagem de que o Brasil estava velozmente se transformando em
potência mundial, graças aos seus 10 por cento anuais de crescimento econômico e
à intensa vigilância do governo contra os negativistas e os terroristas. Muitos
brasileiros naturalmente concluíram que o aumento do poder nacional conjugado
com rápido crescimento da economia era resultado do autoritarismo vigente.

A ofensiva de relações públicas do Planalto era montada e executada na
Assessoria Especial de Relações Públicas (AERP). Chefiada agora pelo coronel
Octavio Costa, fora fundada em 1968 com o objetivo de criar um único centro de
propaganda do governo. Anteriormente cada órgão governamental tinha o seu
próprio setor publicitário.15

Os homens do coronel Costa transformaram a AERP, que não conseguira decolar
no governo Costa e Silva, na operação de RP mais profissional que o Brasil já
vira. Uma equipe de jornalistas, psicólogos e sociólogos decidia sobre os temas
e o enfoque geral, depois contratava agências de propaganda para produzir
documentários para TV e cinema, juntamente com matéria para os jornais. Certas
frases de efeito davam bem a medida da filosofia que embasava a AERP: "Você
constrói o Brasil!" "Ninguém Segura Este País!" "Brasil, Conte Comigo!" Um
estudo de 116 spots contratados com 24 agências de propaganda mostrou que
80 por cento exaltavam a importância do trabalho, o valor da educação e o papel
construtivo das forças armadas.16 As mensagens eram razoavelmente sutis, com
habilidoso uso de imagens sonorizadas e o emprego de frases extraídas da
linguagem popular. Destinavam-se as mensagens, nas palavras do coronel Octavio
15. Sérgio Caparelli, Televisão e capitalismo no Brasil (Porto Alegre, L&PM,
1982), p. 156; Muniz Sodré, O monopólio da fala (Petrópolis, Vozes. 1977),
pp. 91-99.
16. Neuma Aguiar. "Papéis sexuais na propaganda governamental", em Maria Isabel
Mendes de Almeida e Margareth de Almeida Gonçalves, eds., Sociologia do
cotidiano (a ser publicado), p. 1. Um pesquisador de comunicações achou os spots
de TV e cinema da AERP muito superiores aos spots comerciais tradicionais porque
mais habilmente eles exploravam "as associa-

222 Brasil: de Castelo a Tancredo
Costa, a fortalecer "uma saudável mentalidade de segurança nacional" que é
"indispensável para a defesa da democracia e para a garantia do esforço coletivo
com vistas ao desenvolvimento".17 O uso da televisão em campanhas promocionais
não surpreendia. O Brasil emergira subitamente como um dos mais dinâmicos
mercados de TV do Terceiro Mundo. Generosos planos de compras a crédito tinham
sido estendidos aos aparelhos de TV em 1968, e o público correspondeu com um
grande movimento de compras. Em 1960 apenas 9,5 por cento das residências
urbanas tinham TV, mas em 1970 já chegavam a 40 por cento.18 Quando Mediei
assumiu, o Brasil tinha 45 emissoras de TV licenciadas. Seu governo concedeu
mais 20 licenças e nesse processo ajudou consideravelmente o crescimento da Rede
Globo. Criada por um império jornalístico conservador muito bem-sucedido, a TV
Globo aceitara anteriormente financiamento parcial das organizações Time-Life.
Seus adversários - especialmente aqueles ligados a uma rede de TV concorrente
que estava perdendo suas licenças para a TV Globo - denunciaram que os laços
financeiros desta com Time-Life violavam a lei brasileira de telecomunicações
que proíbe a propriedade por estrangeiros de órgãos de comunicação. O governo
rejeitou a denúncia, e a TV Globo continuou a crescer ultrapassando suas
concorrentes como líder de audiência. Diziam seus críticos que esta ascensão
podia ser explicada pela defesa dos interesses oficiais através da programação
da Rede Globo durante o governo Mediei.19
___________
ções inconscientes das pessoas". Luiz Fernando Santoro, "Tendências populistas
na TV brasileira ou as escassas possibilidades de acesso às antenas", em José
Marques de Melo, coord., Populismo e comunicação (São Paulo, Cortez, 1981), p.
140.
17. Caparelli, Televisão e capitalismo, p. 160.
18. Departamento de Estados e Indicadores Sociais: Superintendência de Estudos
Geográficos e Sócio-Econômicos, Indicadores sociais: tabelas selecionadas
(Rio de Janeiro, IBGE, 1979), p. 100.
19. Carlos Rodolfo Amendola Ávila, A teleinvasão: a participação estrangeira na
televisão do Brasil (São Paulo, Cortez Editora, 1982), p. 109; Sérgio Mattos,
"Advertising and Government Influences: The Case of Brazilian
Television", Communication Research, XI, N.° 2 (abril de 1984); Mattos, "The
Impact of the 1964 Revolution on Brazilian Television" (San Antônio,
Klingesmith, 1982), p. 67; Caparelli, Televisão e capitalismo, pp.
165, 178.

Mediei: a face autoritária 225

O tema central dá AERP era a emergência do Brasil como uma sociedade dinâmica
original, tendo como pano de fundo o rápido, crescimento econômico, então de 10
por cento ao ano. O órgão acrescentava a sua própria mensagem sobre a unidade
nacional do Brasil, suas novas metas, sua marcha disciplinada para a companhia
das nações desenvolvidas.

Uma das técnicas mais eficientes da AERP consistiu em associar futebol,
música popular, presidente Mediei e progresso brasileiro. Mediei era excelente
material para tal campanha. Adorava posar de pai e era fanático por futebol. A
AERP explorou ambas as preferências.20 Mediei ficou tão nervoso com o
treinamento da seleção brasileira para o Campeonato Mundial de Futebol no
México, em 1970, que se queixou à comissão nacional supervisora. Esta demitiu
imediatamente o técnico.21 O presidente previu a vitória do Brasil, e assim
aconteceu, para felicidade de todo o povo. O Brasil foi o primeiro país a
conquistar por três vezes a taça Jules Rimet tendo o direito de ficar com ela
definitivamente.

Ao retornar, a seleção brasileira encontrou o país em delírio. O governo
decretou feriado para que o povo pudesse fazer o carnaval de recepção. Mediei
recebeu os jogadores no palácio presidencial e deu a cada um o prêmio de
US$18.500 livre de impostos. As fotos mostravam um Mediei sorridente e feliz
entre os membros da seleção e admirando a taça. Era esta exatamente a imagem de
que o Planalto precisava para neutralizar as críticas estrangeiras à repressão
do regime internamente.

A equipe de RP do governo não perdeu tempo em colher todos os dividendos
possíveis da conquista do tricampeonato mundial. A popular marchinha "Pra Frente
Brasil", composta para a seleção brasileira, foi oficializada e era tocada em
todos os eventos públicos. Logo surgiu também uma multidão de cartazes mostrando
Pele em um salto espetacular após fazer um gol e ao seu lado o slogan do governo
"Ninguém Segura Mais Este País". Esta estra-
__________
20. É digno de nota que o presidente Castelo Branco rejeitou com indignação
qualquer idéia de uma campanha de RP para melhorar sua imagem. Dulles, President
Castello Branco, p. 286.
21. Janet Lever, Soccer Madness (Chicago, University of Chicago Press,
1983), pp. 67-68.

224 Brasil: de Castelo a Tancredo
tégia de pão e circo funcionou brilhantemente, para desgosto da oposição
desmoralizada e fragmentada.22

Medici e a política eleitoral, 1969-72

Medici e sua equipe de tecnocratas e militares não tinham muitos motivos para
recear a oposição eleitoral. Os poderes arbitrários contidos no AI-5 davam ao
Executivo autoridade ilimitada para intimidar e silenciar seus críticos. Mas o
Planalto estava determinado a criar a impressão de que dispunha de apoio popular
dentro do sistema eleitoral.23

Estabelecida esta meta, a primeira providência de Mediei foi decidir como
lidar com a ARENA. Os militares há muito se queixavam do partido oficial, que
consideravam não confiável, quando não, desleal. O fato de não ter garantido em
1968 os votos necessários para suspender as imunidades parlamentares de Márcio
__________
22. A estratégia do governo é bem descrita em Flynn, "Sambas, Soccer, and
Nationalism", pp. 627-30. A função social do futebol no Brasil naqueles anos é
bem analisada em Lever, Soccer Madness, pp. 63-69. Para uma crítica de Lever a
pretexto de que ela não relaciona satisfatoriamente o futebol ao seu contexto
social e político, ver John Humphrey e Alan Tomlinson, "Reflections on
Brazilian Football: A Review and Critique of Janet Lever's Soccer Madness",
Bulletin of Latin American Research, V, N.° l (1986), pp. 101-8. Ulysses
Guimarães, o líder do MDB, reconheceu que o governo estava astutamente
explorando a psicologia brasileira (masculina):'"Enquanto houver cachaça, samba,
carnaval, mulata e campeonato de futebol, não haverá rebelião no Brasil. O
Coríntians segura mais o povo do que a Lei de Segurança Nacional".
Ulysses Guimarães, Rompendo o cerco (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978), p.
24.'A tentativa do governo Mediei de explorar o futebol para fins políticos
começou a causar irritação à medida que os anos passavam, como se vê em Robert
M. Levine, "The Burden of Success: Futebol and Brazilian Society through the
1970s", Journal of Popular Culture, XIV, N." 3 (Inverno de 1980), pp. 453-64.
23. A posição autoritária do Executivo encontrou eco entre os parlamentares pró-
governo, como Petrônio Portella, proeminente senador pela ARENA, que no início
de novembro de 1969 atribuiu os problemas políticos do Brasil aos políticos que
se envolvem em disputas "que somente beneficiam os radicais, esses destruidores
da ordem democrática constitucional. Não havia alternativa senão o remédio
heróico do quinto Ato Institucional". Petrônio Portella, Tempo de Congresso
(Brasília, Senado Federal, 1973), vol. l, p. 137.

225
Moreira Alves deixara neles uma frustração que ainda não haviam absorvido. Tanto
assim que muitos militares da linha dura achavam que a" utilidade da ARENA não
tinha mais sentido. Mas o presidente não pensava assim. Achava que o partido
podia ser recuperado, e começou pela sua liderança. Juntamente com os seus
assessores, o presidente escolheu Rondon Pacheco, experiente político de Minas
Gerais e ex-chefe da Casa Civil de Costa e Silva, como seu candidato à
presidência do partido. Medici não foi menos agressivo na escolha dos
governadores a serem eleitos indiretamente pelas assembléias estaduais no início
de outubro de 1970.24 Simplesmente estabeleceu as normas a serem seguidas pela
liderança da ARENA em cada estado. Deve-se notar que Mediei discordava da
candidatura de oficiais militares da ativa que, em sua opinião, poderia
enfraquecer a hierarquia militar.25 Ê este um claro exemplo do consenso militar
contrário à ocupação de postos políticos civis por militares, politizados,
já que pode conferir a alguns deles uma autoridade capaz de causar divisionismo
entre a oficialidade.

O comando pessoal do presidente foi decisivo na escolha do candidato e
portanto do ganhador em todos os estados, exceto uns poucos, como a Guanabara
(Grande Rio), onde a ARENA não controlava a assembléia legislativa. Mas até o
vencedor pelo MDB na Guanabara, Chagas Freitas, não representava qualquer ameaça
esquerdista (ou mesmo centrista). Seu poder político fora construído com a
propriedade do jornal mais sensacionalista do Rio, O Dia, e graças a uma
estreita aliança com os banqueiros do jogo do bicho. Como era previsível, seu
governo não significou qualquer problema para Brasília.26

Tendo feito os preparativos da eleição de quase todos os novos governadores,
Mediei se achava bem colocado para orquestrar o
_____________
24. Há uma discussão sobre a escolha de Mediei em cada estado em Schneider, The
Political System of Brazil, pp. 320-22.
25. Fernando Pedreira achava que o presidente Mediei escolhera figuras
politicamente ineptas, o que generosamente atribuía à tendência do novo
presidente de governar com o comando militar. Pedreira, O Brasil político, pp.
169-72.
26. Há uma excelente análise da ascensão política de Chagas Freitas em Eli
Diniz, Voto e máquina política: patronagem e clientelismo no Rio de Janeiro (Rio
de Janeiro, Paz e Terra, 1982).

226 Brasil: de Castelo a Tancredo
pleito de novembro - o primeiro em nível nacional desde a guinada autoritária de
1968-69.27 Os militares, é importante lembrar, não haviam abolido o Congresso,
embora o tivessem colocado em recesso desde dezembro de 1968 (salvo durante a
breve convocação para ratificar a sucessão de Mediei à presidência).28 Apesar de
sua bem-sucedida campanha de relações públicas, os estrategistas do governo
estavam nervosos com a aproximação das eleições.

Sua primeira reação foi alterar as regras eleitorais. Por mais que a ARENA
possuísse confortável maioria no Congresso, o Planalto (especialmente Leitão de
Abreu, chefe da Casa Civil) temia possíveis reveses e, decidiu reformular todo o
sistema legislativo federal. Embora essas mudanças tenham sido mencionadas no
capítulo anterior, só entraram em vigor no governo Mediei. A primeira medida
reformista reduzia o número de cadeiras na Câmara dos Deputados de 409 para 310.
Mudava a base para cálculo da representação parlamentar por estado, que seria
pelo número de eleitores registrados e não pelo total da população. Achava o
governo que esta reforma estimularia a organização partidária em nível municipal
criando a necessidade de diretórios locais e o registro de novos eleitores. Os
estrategistas do governo achavam também que a enorme clientela da ARENA e os
gastos públicos dar-lhe-iam vantagem decisiva sob o novo método de determinar as
representações estaduais à Câmara dos Deputados e ao Senado. Com efeito, a
mudança de método favorecia os estados mais desenvolvidos no Centro-Sul, cujos
índices mais altos de alfabetização e de expectativa de vida significavam que o
percentual de sua população de eleitores registrados era maior do que nos
estados menos desenvolvidos, especialmente no Norte e no Nordeste.
________
27. A análise a seguir baseia-se extensamente no relato de Margaret S. Jenks,
"Political Parties in Áuthoritarian Brazil" (dissertação de Ph. D., Duke
University, 1979).
28. Um estudo detalhado dos debates parlamentares (ambas as casas) no governo
Mediei pode ser encontrado em Lidice A. Pontes Maduro, et ai., "O Congresso
Nacional no atual sistema político brasileiro: sétima legislatura (71-74)",
Revista de Ciência Política, XXI (número especial, dezembro de 1978).
Infelizmente os debates - analisados por posição partidária são citados quase
inteiramente em paráfrases e não dão o nome do orador original nem a data. Para
uma discussão do relacionamento do governo com o Congresso, ver Castello Branco,
Os militares, vol. 3, pp. 330-37.

Medici: a face autoritária
227

O Planalto em seguida, em mais uma mudança, fixou as datas das futuras
eleições municipais (1972, 1976 e 1980) para não coincidirem com as eleições
legislativas (1974, 1978 e 1982). A idéia era impedir quê a discussão de
questões nacionais influenciasse os problemas locais e vice-versa. O raciocínio
do governo aqui era que a impopularidade do governo federal (por causa de suas
decisões macroeconômicas) pudesse prejudicar os candidatos arenistas ao nível
local. Finalmente, exigia-se agora o voto vinculado para a eleição de deputados
estaduais e federais. Obrigando o eleitor a escolher candidatos do mesmo partido
para os dois níveis do Legislativo, o governo pensava poder eliminar as alianças
interpartidárias ("dobradinhas") entre governo e oposição para a divisão de
despojos em nível local ou estadual. Essas alianças irritavam de modo especial
os militares, que as consideravam "negócios" desonestos. Os militares que assim
pensavam desejavam impor à ARENA uma lealdade partidária mais próxima da
disciplina militar.29

Por que toda esta tentativa de remendar o sistema eleitoral? Ipada a sua
posição e seus poderes, por que o governo não abolia as eleições? Ou por que não
recorria a mais eleições indiretas (como já o fizera para governadores e para
presidente)? A resposta é que os militares (e seus colaboradores civis) ainda
viam as eleições como importante processo de legitimação. Elas tinham que ser
mantidas, e manipuladas se necessário.

Não menos relevante, porque o MDB continuava a participar do jogo eleitoral?
Afinal, o presidente tinha o poder, no AI-5, de se livrar de qualquer político
que ele e seus assessores considerassem indesejável. Esta ameaça colocava a
oposição constantemente sob a mira de uma arma. Não é de surpreender, portanto,
que alguns dos membros do partido achassem que o MDB deveria retirar-se do
cenário eleitoral. Tratava-se de uma farsa, afirmavam, e participar dela apenas
conferia legitimidade ao regime militar. Esta opinião, contudo, não prevaleceu
em parte porque quase todos os políticos emedebistas radicalmente de esquerda,
que podiam levar o partido à dissolução, tinham perdido seus direitos políticos
__________
29. David V. Fleischer, "Constitutional and Electoral Engineering in Brazil: A
Double-Edged Sword: 1964-1982", em D. Nohlen, ed., Wahlen und Wahlpolitik in
Lateinamerika (Heidelberg, Esprint Verlag, 1983).

228 Brasil: de Castelo a Tancredo
e portanto qualquer influência na agremiação. Por isso o MDB continuou a
apresentar candidatos e a manter viva sua estrutura partidária, sobretudo ao
nível local.

A esfera municipal dava ao partido uma importante razão de continuidade. Em
suas fileiras refugiaram-se os membros dos antigos partidos - PSD, PTB e PDC -
que ainda exerciam influência ao nível estadual e local. Os interesses locais
outrora representados por aqueles partidos estavam agora sendo canalizados
através do MDB. E o espaço para manobras políticas em muitos estados e cidades
permanecera bastante amplo para os políticos da oposição poderem cooperar com
êxito.

O MDB também continuou a disputar o jogo eleitoral porque era o único refúgio
partidário para qualquer adversário do governo. Com o exercício do poder
arbitrário, o governo criava um número muito grande de inimigos, os quais,
quaisquer que fossem as suas divergências, tinham em comum a necessidade de um
guarda-chuva sob o qual continuassem a fazer oposição. Assim o governo,
permitindo o funcionamento de um partido da oposição, criara um processo de
recrutamento ideal para o MDB.

Em 1970, contudo, as circunstâncias conspiravam contra a oposição legal. As
eleições deviam renovar toda a Câmara dos Deputados, dois terços do Senado e
todas as 22 assembléias estaduais. Os governos estaduais também seriam eleitos,
mas só no início de outubro, pelas assembléias estaduais ainda não renovadas,
que deveriam seguir as instruções do presidente Mediei, como já vimos. O próprio
Mediei fazia ativa campanha pelos candidatos arenistas às eleições de novembro.

Apesar de todos os seus trunfos eleitorais, o governo (especialmente as
forças de segurança) demonstrava nervosismo com a aproximação do pleito. No
início de novembro a polícia e os militares lançaram nas grandes cidades a
chamada "Operação Gaiola", que prendeu ou deteve na primeira quinzena de
novembro pelo menos 5.000 suspeitos entre os quais políticos de ambos os
partidos, ativistas políticos e todos aqueles que as forças de segurança
consideraram suspeitos. A explicação oficial para o ato de força foi a
necessidade de frustrar a deflagração de uma operação guerrilheira,
compreendendo sequestros e lançamento de bombas, para u| prejudicar as eleições.
Os guerrilheiros estariam supostamente agin-

Mêdici: a face autoritária 229
do no primeiro aniversário da morte de Carlos Marighela em 4 de novembro de
1969.30

Esta atmosfera, juntamente com a lembrança dos expurgos de 1968-69, que
atingira tantos dos líderes radicais do MDB, fez com que muitos dos seus membros
passassem a adotar uma posição mais discreta. Afinal, eles sabiam que não era o
momento para um ostensivo desafio à legitimidade do regime militar. Enquanto
isso, o presidente Medici afirmava que a campanha eleitoral estava se
desenrolando em "clima de grande liberdade". O presidente pensava que este
exemplar exercício de democracia devia silenciar todos aqueles críticos que,
dentro ou fora do país, afirmavam que o Brasil não era democrático.31

Contados os votos, a ARENA conquistara contundente vitória. No Senado, o mais
alto cargo federal ainda preenchido por eleição direta, a ARENA ganhou 40
cadeiras, enquanto o MDB apenas 6. Como do terço não renovado somente um era do
MDB, a ARENA ficou com 59 senadores contra apenas 7 do seu adversário. Na Câmara
dos Deputados a ARENA conquistou 220 cadeiras contra 90 do MDB. Este na
realidade melhorou de situação, pois as 132 cadeiras do MDB ganhas na eleição de
1966 tinham sido reduzidas por subseqüentes expurgos a apenas 65 em 1970. Entre
os candidatos derrotados estavam o presidente do partido Oscar Passos, os vice-
presidentes Ulysses Guimarães e Nogueira da Gama, o tesoureiro José Ermírio de
Morais, bem como os líderes da minoria no Senado e na Câmara.32 A vitória da
ARENA foi ainda mais ampla ao nível municipal, onde o poder federal era maior
Sobre
___________
30. A censura efetivamente limitou o que os brasileiros podiam saber sobre a
repressão. New York Times, 7 e 16 de novembro de 1970, e Newsweek, 23 de
novembro de 1970, publicaram a história. Newsweek notou que "não havia
explicação para as prisões. Freiras, políticos, jornalistas, músicos, favelados,
empregados, domésticas e até donas de casa eram levados para os cárceres".
Segundo a mesma publicação, especulava-se que "os generais da linha dura,
que constituíam a espinha dorsal do atual regime brasileiro, queriam lembrar a
todos - inclusive Medici - que eles estavam efetivamente no comando e que o
melhor que os brasileiros tinham que fazer era continuar indo aos jogos de
futebol com o presidente e esquecer as discussões sobre democracia".
31. Emílio Garrastazu Mediei, A verdadeira paz (Brasília, Departamento de
Imprensa, 1973), p. 176.
32. Schneider, The Political System of Brazií, p. 323.

230 Brasil: de Castelo a Tancredo
os eleitores cuja única esperança de obter recursos de que precisavam
imensamente para suas comunidades era votar na ARENA.33

É claro que o governo ganhara por maioria esmagadora. Um exame mais detido,
porém, mostrava que muitos eleitores tinham se manifestado contra o governo sem
nunca haver votado no MDB. Nos votos válidos para o Senado a ARENA obteve 44 por
cento contra 29 por cento para o MDB. Para a Câmara dos Deputados a ARENA obteve
48 por cento contra 21 por cento para o MDB. Mas os votos em branco totalizaram
22 por cento para o Senado e 21 por cento para a Câmara. Examinemos mais de
perto as eleições para o Senado, a única instituição para a qual ainda havia
eleição direta. Alguns votos em branco eram normais. Em 1966, por exemplo, os
votos em branco nas eleições para o Senado totalizaram 12 por cento. Mas em 1970
foram quase o dobro.34 Por quê?

Primeiro houve uma campanha nas grandes cidades (especialmente capitais de
estado) instando os eleitores a votarem em branco. Votar na ARENA ou no MDB,
argumentava-se, era aceitar a legitimidade do sistema manipulado pelo governo.
Assim, a única ação realmente construtiva era depositar nas urnas o voto em
branco. Havia outra razão para o voto em branco. Nas eleições em que o MDB não
tinha candidatos ou em que seus candidatos não tinham chance, o voto em branco
era elevado. Em muitos casos isto era um protesto contra o status de partido
único de fato da ARENA.35

Essas mudanças não importavam ao Planalto, feliz com a celebração da vitória
da ARENA. Mas não eram só os votos em branco e as abstenções que deviam
preocupar os estrategistas políticos do presidente. A divisão do voto rural-
urbano não era menos
_______
33. Um exemplo de estudo de política neste nível pode ser encontrado em Geert A.
Banck, "The War of Reputations: The Dynamics of the Local Political System in
the State of Espírito Santo, Brazil", Boletín de Estúdios Latinoamericanos y dei
Caribe, N.° 17 (dezembro de 1974), pp. 69-77.
34. Nas eleições de 1974, que foram muito mais competitivas do que as de 1970, a
incidência de votos em branco foi de 9 por cento. Ruy Santos, "A eleição de
1974", Revista Brasileira de Estudos Políticos, N." 43 (julho de 1976), p. 8.
35. Uma cuidadosa análise das disputas para o Senado mostrou que quanto mais
apertada a disputa menor a percentagem de votos em branco, o que tende a
confirmar que era maior a quantidade de votos em branco quando a oposição tinha
pouca chance de ganhar.

Medici: a face autoritária 231
preocupante. Como vimos, o governo havia em 1970 mudado a base de cálculo da
representação parlamentar, computando-a sobre o número de eleitores registrados
e não sobre o total da população. Nas eleições de 1970, a ARENA ganhou
folgadamente nas áreas rurais, o que não surpreendeu, já que lá estava a sua
maior clientela e para lá o governo dirigia boa parte dos seus gastos, cuja
aplicação era controlada pelo partido oficial. Além disso, o MDB não possuía
organização em muitos municípios rurais. Em contraste, era forte a oposição nas
áreas urbanas, como se podia prever, especialmente no Centro-Sul, o que sugeria
que o voto emedebista poderia aumentar consideravelmente na medida em que o
Brasil se transformasse em uma sociedade predominantemente urbana.

Que informavam as eleições sobre a situação política do Brasil? Informavam
que: primeiro, o governo não hesitaria em usar a força ("Operação Gaiola", por
exemplo), a fim de intimidar a oposição; segundo, a mais alta taxa de apoio
eleitoral à ARENA estava no setor rural; terceiro, muitos eleitores estavam
alienados do próprio processo eleitoral, como a elevada incidência de votos em
branco evidenciava; finalmente, a vitória da ARENA em termos de candidatos
eleitos foi tão ruidosa que muitos observadores chegaram a se perguntar se o
Brasil não estaria caminhando para o regime de partido único, como no México.
Ativistas desanimados do MDB também se perguntavam se o partido tinha ainda
alguma significação.

Essas indagações preocupadas sobre o futuro não pareciam incomodar o
presidente Mediei e seus assessores empolgados com as notícias de sua
espetacular vitória. Os analistas da Embaixada dos Estados Unidos, reproduzindo
o pensamento do governo brasileiro, asseguravam aos visitantes americanos que a
eleição demonstrara a enorme popularidade de Mediei.

Na seqüência da vitória eleitoral de 1970 a liderança do MDB não tinha outra
coisa a fazer senão agachar-se e deixar passar a onda onipresente da repressão.
Ironicamente, um dos lugares mais seguros era o Congresso, onde a minoria podia
se manifestar acobertada pelas prerrogativas parlamentares.36 Contu-
__________
36. Os deputados e senadores do MDB podiam falar no Congresso mas suas funções
legislativas foram substancialmente reduzidas após o AI-5. Basta ver o que
aconteceu com os projetos de lei. Em 1967-68 cerca de 83

252 Brasil: de Castelo a Tancredo
do, era uma hora sombria para o MDB. Pairando sobre seus líderes, havia a
permanente ameaça de vexames, cassações, prisões, ou pior. Assim mesmo, alguns
poucos ainda se dispunham a escarnecer do Planalto. O deputado emedebista
Alencar Furtado, por exemplo, em setembro de 1971, denunciou com desprezo o
"culto pagão" dos adoradores do presidente.37 O ponto mais alto desse culto
ocorreu em meados de novembro de 1971, quando o governo se investiu do poder de
expedir decretos secretos.38 Embora secretos, tais decretos deveriam ter, no
entanto,, o endosso da lei. A propósito, um veterano político e jornalista
concluiu que "estar na oposição hoje é mais difícil do que em qualquer outro
período de nossa história".39 Alguns membros influentes do MDB se manifestaram
em favor da dissolução do partido como um protesto final contra os abusos de
poder praticados pelo Executivo.

O MDB declinou da idéia de autodissolver-se, mas dividiu-se profundamente em
matéria de estratégia e tática. Os autênticos defendiam uma postura agressiva,
de protesto contra as ilegalidades e os atos arbitrários do governo militar. Os
moderados, por outro lado, recomendavam uma linha de cautela, de modo a
minimizar possíveis pretextos para novos abusos de poder. Os moderados
consideravam os autênticos extremamente impetuosos e imaturos, cumprimento que
estes devolviam tachando os moderados de oportunistas sem princípios.40
____________
por cento dos projetos apresentados por legisladores foram posteriormente
aprovados enquanto 98 por cento dos enviados pelo Executivo foram transformados
em lei. Em 1970-73 somente 8 por cento dos projetos de iniciativa de
parlamentares lograram aprovação, enquanto 98 por cento daqueles originários do
Executivo se tornaram leis. Gláucio Ary Dillon Soares, "Military
Authoritarianism and Executive Absolutism in Brazil", Studies in Comparative
International Development, XIX, N.08 3-4 (Outono-Invemo de 1979), pp. 104-26.
37. Alencar Furtado, Salgando a terra (Rio de Janeiro, Paz e Terra,
1977), p. 29.
38. Foi o decreto-lei n.° 69.534 expedido em 11 de novembro de 1971. Seu texto
era, naturalmente, secreto. Para detalhes, ver Maria Helena Moreira Alves, State
and Opposition, p. 119.
39. Carlos Chagas, Resistir ê preciso (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1975), P-32.
40. Ibid., pp. 23-24; Jenks, "Political Parties", pp. 211-12. i

Medici: a face autoritária 233
De qualquer forma o partido se mantinha unido, conscientes seus militantes de
que a única coisa que podiam fazer era manter viva a esperança do retorno,
algum dia do império da lei e da democracia. E isto não era nem fácil nem pois,
nas palavras de um jornalista, política para o MDB era como jogar futebol sem
bola.41

Como era de esperar de um partido com tanto poder, a ARENA condescendeu com
algumas atitudes mal visadas . No início de 1972 o presidente Mediei nomeou ' o
senador Felinto Miiller para a presidência da ARENA. Foi uma escolha
surpreendente para um governo supostamente preocupa , sua imagem militar.
Müller jamais se pertubara pelo fato de Ter sido chefe de polícia do Rio de
Janeiro durante a ditadura de Getúlio Vargas de 1937 a 1945, quando a
tortura policial de suspeitos políticos se tornara rotina. O MDB não perdeu
tempo em levantar o negro passado do seu adversário.

O passado de Müller, no entanto, fora um detalhe já esquecido por muitos
brasileiros. O presidente continuava imensamente popular (embora o controle
oficial da mídia dificultasse uma estimativa objetiva), e seus poderes
pareciam crescer diariamente. (A popularidade de Mediei é discutida com final
deste capítulo.) O governo mais autoritário na memória do povo brasileiro
povo brasileiro desenvolvia-se com todo o ímpeto. Não seriam simples eleições
que iriam fazê-lo saltar dos trilhos.

A Eliminação da ameaça guerrilheira

Vimos anteriormente que os guerrilheiros se haviam tornado incômodos, mas que
não representaram grande ameaça para o governo antes do fim de 1969. Aliás,
pelos padrões latino-americanos, eles não chegavam a impressionar. Em número de
armas e de adeptos, eram muito inferiores (medidos per capita) aos tupamaros do
Uruguai e aos motoneros da Argentina. Os guerrilheiros do Brasil se tornaram
mais conhecidos por causa do sequestro do embaixador dos Estados Unidos. No
entanto, esta foi uma operação marginal em que os seqüestradores queriam salvar
alguns
________
41. Chagas. Resistir é preciso, pp. 19-21,

234 Brasil: de Castelo a Tancredo
camaradas presos da tortura ou da morte. Os guerrilheiros pretenderam também,
com o seqüestro, dividir o governo (chegaram perto) e mobilizar a opinião
pública contra os generais, esta última uma meta fora de alcance. O público
observava fascinado os apuros do embaixador com sua vida pendendo da balança,
mas 'eram poucos os que achavam ter alguma coisa a ver com todo aquele drama. A
posição dos guerrilheiros ficaria melhor se o governo tivesse recusado a
transação do resgate? Em tal caso eles teriam matado o embaixador Elbrick e
envenenado as relações brasileiro-americanas, uma das suas metas. O episódio
talvez aprofundasse a polarização entre os brasileiros, outro alvo da
guerrilha.42

Os militares brasileiros excluíram esta opção atendendo todas as exigências
dos guerrilheiros. Libertaram os prisioneiros indicados e divulgaram o manifesto
subversivo, obrigando-os assim a libertar o embaixador. Era bastante forte o
contraste com outros sequestros políticos ocorridos na América Latina em 1970.
Em março o embaixador da Alemanha Ocidental von Spreti foi morto por
guerrilheiros guatemaltecos quando o governo se recusou a libertar 24
prisioneiros políticos. Em julho o assessor de assuntos policiais dos Estados
Unidos Daniel Mitrione foi seqüestrado e morto pelos tupamaros quando o governo
uruguaio se recusou a negociar a sua libertação.43 Em comparação, o governo
brasileiro preferiu adotar uma atitude humanitária, fator crucial no que era
acima de tudo uma guerra simbólica e psicológica.

Outros sequestros foram praticados por guerrilheiros no Brasil durante o
resto de 1970. Em março foi seqüestrado Nobuo Okuchi, cônsul-geral do Japão em
São Paulo. Sua possível morte preocupou a influente colônia nipo-brasileira e o
governo japonês, um parceiro comercial cada vez mais importante e fonte de
capital de investimento para o Brasil. O cônsul-geral foi resgatado em troca de
cinco presos políticos especificados, que seguiram de avião para o México. No
início do mês seguinte, elementos da VPR executaram mal um atentado ao cônsul
dos Estados Unidos em Porto
___________
42. Não estou afirmando que os guerrilheiros queriam este resultado. O fato é
que, em retrospecto, tal desfecho deve ter servido melhor aos seus objetivos de
muito curto prazo.
43. O caso Mitrione é analisado extensamente em Langguth, Hidden Terrors. Antes
de trabalhar em Montevidéu, Mitrione passou vários anos como assessor de polícia
em Belo Horizonte e no Rio de Janeiro.

Medici: a face autoritária 235
Alegre, o qual, embora ferido, arremeteu com o seu espaçoso furgão contra a
barreira formada pelo Volkswagen dos guerrilheiros.44 O governo Mediei viu-se
então obrigado a reforçar suas medidas de segurança.

Perdoe o leitor se o induzimos a pensar que os guerrilheiros passavam todo o
seu tempo seqüestrando diplomatas. Na verdade, o seqüestro começou como meio de
salvarem seus companheiros da cadeia e de fazerem chegar ao público sua mensagem
através dos meios de comunicação. Eles forçaram o governo a impor odiosas
medidas de segurança - constantes pedidos de identificação das pessoas,
vigilância indiscreta etc. Tudo isso era embaraçoso para o governo, sobretudo no
que se referia ao pessoal diplomático. Mas dificilmente contribuiria para o que
os guerrilheiros mais necessitavam: o recrutamento de milhares de brasileiros
para se organizarem clandestinamente contra o governo militar. Ora, isto só
podia ser feito através de um trabalho paciente e de longo prazo. Para serem
bem-sucedidos, os novos recrutados teriam que evitar qualquer ação pública, como
o seqüestro, aguardando o momento certo para virem à superfície. Homens com mais
experiência, como Carlos Marighela, sabiam da necessidade de projetar as ações
para longo prazo. Mas os infantes eram menos pacientes. Estes guerreiros, muitos
na casa dos vinte anos e outros ainda adolescentes, não se interessavam por
estratégia a longo prazo. Odiavam os militares e queriam demonstrar sua valentia
agora. Assim, a estratégia de seqüestrar diplomatas manteve-se como o
desaguadouro mais conveniente e imediato para as suas ações.

Em junho a VPR atacou novamente no Rio de Janeiro. Desta vez o seqüestrado
foi o embaixador da Alemanha Ocidental Ehrenfried von Holleben, que irritou
profundamente seus captores com suas maneiras arrogantes. Eles pediram como
resgate 40 prisioneiros cujos nomes especificavam. O tamanho desse número era um
sinal não somente da melhoria da eficiência policial mas também do desespero dos
seqüestradores. Na verdade, divergências
____________
44. Os aspirantes a seqüestradores eram membros da VPR no Rio Grande do Sul, que
temeram não poder executar a ação. Tinham sido convencidos a levá-la a cabo por
emissários da VPR do Rio e só concordaram porque queriam desesperadamente
resgatar alguns companheiros que estavam presos e ameaçados de (ou sofrendo)
torturas, índio Vargas, Guerra é guerra, dizia o torturador (Rio de Janeiro,
1981), pp. 96-101.

236 Brasil: de Castelo a Tancredo
sobre os nomes que deveriam figurar na lista de resgate resultaram em
vergonhosas brigas entre os guerrilheiros. O desfecho do seqüestro foi rápido,
para alívio dos militantes da VPR. Von Holleben fora apanhado em 11 de junho. No
dia 14 o governo chegara a acordo; no dia 15 os 40 prisioneiros voaram para a
Argélia e no dia 17 os guerrilheiros libertaram o embaixador alemão.45

Que foi que os subversivos conseguiram com este seqüestro? Salvaram novamente
alguns companheiros da tortura e de possível morte. Pressionaram com êxito o
governo (como parte da negociação para libertar von Holleben) a publicar outro
grandiloqüente manifesto dizendo que o "descontentamento popular é crescente" e
advertindo que "somente uma revolução guerrilheira (...) pode levar o povo
brasileiro à sua própria libertação".46

Entretanto, poucos foram os brasileiros que prestaram atenção ao manifesto.
Seus olhos e ouvidos estavam colados nos aparelhos de rádio e TV, acompanhando o
jogo da seleção brasileira na Cidade do México pela disputa do campeonato
mundial de futebol. O que eles queriam saber era se o Brasil ganharia a Copa
pela terceira vez, o que de fato aconteceu (pouco depois do seqüestro de von
Holleben), levando os brasileiros a explodir nas ruas de todas as cidades do
país em frenéticas comemorações. Não sobrava tempo para pensar em embaixadores
sumidos ou em manifestos subversivos.47

A subversão voltou à carga no início de dezembro de 1970, tendo como alvo o
embaixador da Suíça Giovanni Enrico Bucher, cujo guarda-costas foi morto na
operação. Foi a primeira fatalidade no seqüestro de um diplomata.48 Os
guerrilheiros estabeleceram três condições para libertar Bucher. Primeiro, o
resgate de 70 prisioneiros corn os nomes devidamente especificados, um novo
___________
45. Alfredo Syrkis, Os carbonários: memórias da guerrilha perdida (São Paulo,
Global, 1980), pp. 176-95. Syrkis foi um dos seqüestradores.
46. Emiliano José e Oldack Miranda, Lamarca: o capitão da guerrilha (São Paulo,
Global, 1980), pp. 99-101.
47. José e Miranda, Lamarca, p. 101.
48. A melhor fonte sobre o seqüestro de von Holleben é Syrkis, Os carbonários.
Há informações também em José e Miranda, Lamarca. A menos que indicado
diferentemente, minha análise subseqüente se baseia nessas fontes.

Medici: a face autoritária 237
recorde.49 Segundo, divulgação de quatro em quatro horas de um manifesto em que
os guerrilheiros declaravam "guerra total" contra o governo Mediei. Terceiro,
viagem de trem gratuita para os moradores dos subúrbios do Rio. A cada seqüestro
os guemlheiros aumentavam suas exigências.

O governo, enquanto isso, agia com renovada confiança. Ignorou as exigências
de irradiar o manifesto e de fornecer passagens de trem grátis.50 Quanto a
entregar os 70 prisioneiros, Sérgio Fleury e seu Esquadrão da Morte de São Paulo
(ver a seção seguinte) responderam primeiro. No mesmo dia do seqüestro de Bucher
os serviços de segurança informaram que Eduardo Leite (com o nome de guerra de
"Bacuri" desertara do Exército com Lamarca), um dos mais astutos e corajosos
guerrilheiros da VPR, morrera em um tiroteio. Durante dois meses ele sofrera
revoltantes torturas (ambos os olhos arrancados, ambas as orelhas cortadas, os
dentes todos removidos, as pernas paralisadas). Ao tomar conhecimento do
seqüestro de Bucher, Sérgio Fleury sabia que Leite encabeçaria a lista de
resgate. O único meio certo de evitar sua entrega era executá-lo. Os
seqüestradores entenderam o recado do Esquadrão da Morte.51

Os guerrilheiros enviaram sua lista (nunca divulgada) e o governo vetou 18
nomes, alguns por terem cometido crimes capitais, outros por não quererem
aceitar a pena de banimento permanente do Brasil (imposta a todos os
prisioneiros resgatados nos sequestros). Carlos Lamarca, chefe da operação
Bucher, ficou preocupado. O governo estava realizando uma caçada de grandes
proporções para descobrir o esconderijo dos seqüestradores e, presumivelmente,
atacá-los. Tal não foi o caso no rapto do embaixador Elbrick. Pelo
___________
49. O melhor lingüista dos seqüestradores disse a Bucher em inglês que o
imperialismo ianque comprara quinze presos, o Japão cinco e a Alemanha quarenta.
Agora é a vez dos bancos suíços comprarem as vidas de alguns dos nossos
companheiros torturados. Syrkis, Os carbonários, p. 237.
50. Para se ter uma idéia da severidade da censura governamental, basta notar
que o representante brasileiro da Associated Press foi preso por transmitir a
notícia do seqüestro de Bucher. Quando matérias subseqüentes foram enviadas para
o exterior pela Agência France-Presse, seu correspondente foi deportado. Marvin
Alisky, Latin American Media: Guidance and Censorship (Ames, lowa State
University Press, 1981), p. 111.
51. Syrkis, Os carbonários, pp. 243-44; A repressão militar-polidal no Brasil
(,n.p.: foto offset, 1975), p. 106.

238 Brasil: de Castelo a Tancredo
contrário, a inteligência da Marinha, que sabia da localização de Elbrick logo
após sua captura, assegurou que não havia qualquer medida contra os
seqüestradores. No caso do. embaixador alemão, o governo logo cancelou suas
buscas a fim de facilitar as negociações. Agora, porém, a polícia estava fazendo
batidas e vistorias no trânsito através do Grande Rio.

Decidiram então os rebeldes que não tinham alternativa senão aceitar o veto
do governo aos 18 nomes. Mandaram uma lista substitutiva, da qual alguns nomes
foram também vetados. Além disso, as forças de segurança haviam conseguido pela
intimidação obrigar vários prisioneiros políticos da lista anterior a declarar
pela TV que se recusavam a deixar o Brasil em troca da libertação de diplomatas
seqüestrados. Os guerrilheiros davam-se conta agora de que estavam lidando com
um regime mais ardiloso. Poderiam ser empurrados para uma posição em que teriam
que executar Bucher?

As prolongadas negociações deixaram-nos com os nervos à flor da pele. Com o
decorrer das semanas os vigias do embaixador também deixaram de usar capuzes em
sua presença. Eles o faziam para evitar posterior identificação (muitos
torturadores também usavam capuzes, pela mesma razão). Por serem repetidamente
forçados a apresentar novas listas de nomes, os guerrilheiros começaram a ficar
ainda mais frustrados. Finalmente, não contendo a raiva, chegaram à conclusão
que os táticos mais cínicos do governo esperavam: sua honra exigia que matassem
o embaixador e encerrassem o assunto. Fez-se uma eleição e a maioria foi
favorável à execução, para espanto de Bucher que falava fluentemente o
português. Felizmente para ele, o comando guerrilheiro não era uma democracia.
Carlos Lamarca, que sabia mais de execuções do que seus camaradas mais jovens,
disse não. Eles deviam continuar tentando chegar a um acordo sobre os nomes.52

A paciência de Lamarca foi recompensada. O governo aprovou 70 nomes de 100
que haviam sido enviados. Os 70 foram enviados de avião para o Chile em meados
de janeiro, onde receberam uma recepção de heróis por parte de exilados
brasileiros e simpatizantes chilenos, ainda radiantes com a recente ascensão de
Salvador Allende à presidência.
____________
52. José e Miranda, Lamarca, p. 104.

Medici: a face autoritária 239
Bucher foi libertado em 14 de janeiro. Ficara detido por 40 dias, muito mais do
que qualquer outro diplomata seqüestrado. Mas a ação guerrilheira teve uma
conclusão curiosa. Logo após a libertação de Bucher, eles roubaram dois grandes
caminhões de entrega do depósito de uma cadeia de supermercados, lotaram-nos com
alimentos e produtos enlatados e partiram para a favela do Rato Molhado, uma das
mais pobres do Rio. Ali distribuíram a carga roubada aos moradores a princípio
espantados mas logo a seguir exultantes com a generosidade. Os subversivos
tiveram o prazer de ver a polícia e os militares (com helicópteros) convergirem
para o local tarde demais para apanhá-los.53

Apesar do mau começo, o seqüestro de Bucher acabou conduzido da mesma maneira
que o de Elbrick. Ambos os lados negociaram, chegou-se a um entendimento, os
presos foram despachados para o exterior e o diplomata libertado. O governo
brasileiro continuava a apresentar sua face humana ao mundo demonstrando
presteza em negociar para salvar vidas.

A outra parte da resposta do governo a cada seqüestro de diplomata podia ser
tudo menos humana.54 Logo depois que os presos resgatados voavam para fora do
país, a polícia e os militares saíam à procura dos subversivos ligados ao caso.
Nos primeiros dias estes usaram uma tática de despistamento. Por um pacto que
fizeram entre si, qualquer um que fosse capturado deveria segurar qualquer
informação pelo menos por 24 horas. Era o tempo que teriam para abandonar seus
endereços e contatos. Depois deste prazo o preso podia confessar, pois suas
informações não causariam prejuízos. A tática funcionou nos primeiros dias do
movimento guerrilheiro, mas os homens da segurança logo descobriram o ardil, e
passaram a fazer os interrogatórios com impiedoso rigor no mesmo dia da prisão.
Era um sofrimento que poucos presos podiam suportar - choques elétricos, surras,
quase afogamentos, execuções simuladas e acompanhamento forçado da tortura de
amigos ou membros de sua família.

A coragem dos subversivos opunha-se agora a desentendimentos prolongados.
Cada operação sucessiva aumentava o risco de
___________
53. Syrkis, Os carbonários, pp. 289-94.
54. Um relato mais completo da repressão governamental, inclusive o tratamento
dispensado aos presos, é apresentado na próxima seção deste capítulo.

240 Brasil: de Castelo a Tancredo
captura, na medida em que as forças de segurança ficavam mais bem informadas. Os
amigos, parentes e contatos suspeitos dos guerrilheiros eram colocados sob
vigilância, tendo sua correspondência censurada e seus telefones grampeados. Os
homens da segurança recebiam pistas de uma verdadeira legião de informantes. No
meio dessas pistas vinha um monte de indicações envolvendo pessoas inocentes.
Mas, neste sistema de delações, o preso era considerado culpado até prova em
contrário. A prova consistia em mostrar que, mesmo sob tortura, ele ou ela não
sabia de qualquer segredo. O aumento da vigilância e a sistemática tortura dos
suspeitos proporcionaram amplas matérias. As cidades estavam "se transformando
em cemitério para os revolucionários.. ,"55 O recrutamento de novos membros
tornou-se perigoso, pelo medo de infiltração. Com efeito, um infiltrador já
estava trabalhando com o CENIMAR e outros órgãos de segurança. Era José Anselmo
dos Santos, que na condição de marinheiro (daí seu apelido "Cabo Anselmo")
havia, no início de 1964, comandado uma revolta de seus colegas da Marinha, a
qual assustou tanto as altas patentes militares ao ponto de apressarem a
deposição de Goulart. Quando começou a resistência armada ao governo militar,
Anselmo entrou para a VPR e partiu para Cuba para fazer treinamento de
guerrilhas. De volta ao Brasil, entrou secretamente em contato com Sérgio Fleury
e posteriormente forneceu informações que levaram (pela sua estimativa) a 100-
200 prisões. Ele foi diretamente responsável pela liquidação de toda a unidade
da VPR em Recife. Anselmo tinha a personalidade adequada ao seu papel,
repetidamente livrando-se com uma boa conversa de uma confrontação com os
companheiros que suspeitavam dele. Em uma ocasião, afirmou ter conhecido outros
"seis ou oito" infiltradores.56
_________
55. Caldas, Tirando o capuz, p. 186. Caldas estava parafraseando Debray, ainda a
Bíblia de muitos esquerdistas.
56. Depois de terminada a guerra de guerrilhas no Brasil, Anselmo fez cirurgia
plástica e tomou a precaução de viver no exterior. Deu várias e longas
entrevistas em que relatou fragmentos do seu passado, mas nunca a história
completa. As opiniões se dividem sobre quando ele começou a trabalhar para a
inteligência militar. Ele afirmou que foi depois do seu treinamento em Cuba,
quando se desiludiu com o comunismo. Alguns jornalistas e ex-guerrilheiros acham
que ele estava trabalhando para os militares mesmo antes de 1964 - que fora
plantado na Marinha pelo serviço secreto

Medici: a face autoritária 241
O aparato repressivo foi bem-sucedido na caça aos líderes revolucionários.
Carlos Marighela morrera em uma emboscada em 1969, fruto de informações obtidas
através de tortura. Em fins de outubro de 1970 Joaquim Câmara Ferreira, ex-
parlamentar e sucessor designado de Marighela como líder da ALN, foi capturado e
torturado até a morte na cadeia.

A captura de Carlos Lamarca demorou um pouco mais.57 O seqüestro de Bucher o
convencera de que a VPR tinha que mudar de rumo. Eles agora não chegavam a 30
militantes em constante perigo de prisão. No início de 1971 os seus companheiros
de VPR pediram a Lamarca que saísse do país, afirmando que ele era importante
demais para se arriscar a ser capturado nos meses difíceis (talvez anos) que
tinham pela frente.

Retirar-se da luta contrariava o caráter de Lamarca. Ao contrário, ele
concebeu a construção de uma base revolucionária no campo. Em maio deixou a VPR,
porque era "vanguardista" demais, e ingressou no MR-8, o grupo responsável pelo
seqüestro de Elbrick e agora praticamente extinto. Quando seu líder, Stuart
Jones, foi capturado em meados de maio, Lamarca e sua amante, a guerrilheira
Yara lavelberg, fugiram rumo ao norte.58 Assim começou
_________

brasileiro - talvez trabalhando com a CIA. Henrique Lago, "Cabo Anselmo, um
agente secreto", Folha de S. Paulo, 14 de outubro de 1979; Marco Aurélio Borba,
Cabo Anselmo (São Paulo, Global, 1981); e Octavio Ribeiro, Por que eu traí:
confissões de Cabo Anselmo (São Paulo, Global, 1984).
57. O relato a seguir é extraído principalmente de José e Miranda, Lamarca.
58. Jones posteriormente morreu torturado. Foi atado à traseira de um carro com
a boca no cano de descarga e arrastado em volta do pátio da prisão. Seu suplício
foi descrito por Alex Polari, um companheiro de guerrilha preso com ele, em Em
busca do tesouro, pp. 163-98. Jones tinha pai americano e mãe brasileira, esta
uma desenhista de modas muito conhecida com o nome profissional de Zuzu Angel,
que nunca recebeu qualquer explicação oficial sobre a morte de seu filho. Mulher
de enorme persistência, ela protestou contra o silêncio do governo junto a quem
quer que fosse, e sendo conhecida nos círculos da moda dos Estados Unidos e da
Europa, esses protestos eram reproduzidos pela imprensa estrangeira. Quando
o secretário de Estado Henry Kissinger visitou o Brasil em fevereiro de 1976,
ela conseguiu despistar a fortíssima segurança e atirar em suas mãos documentos
sobre a morte de seu filho para constrangimento e raiva dos funcionários do
Ministério das Relações Exteriores. Ela estava convicta de que o governo
planejara matá-la (deixou uma declaração a este respeito).

242 Brasil: de Castelo a Tancredo
a caçada que Sérgio Fleury e a inteligência militar tão ansiosamente previram.
Eles odiavam Lamarca porque era um desertor e um adversário arrogante. Matara a
sangue-frio (ou ordenara a execução) de um tenente do Exército em operação
anterior. Lamarca era o único membro vivo dos "três grandes" - Fleury já havia
se encarregado de despachar Carlos Marighela e Joaquim Câmara Ferreira. Lamarca
e Yara separaram-se; ele seguiu para o interior da Bahia e ela para a capital do
estado, Salvador. Logo a polícia a surpreendeu em um apartamento, mas ela se
matou antes de ser capturada, carregando consigo no ventre o filho esperado de
Lamarca.

Enquanto isso, o guerrilheiro continuava a internar-se no interior baiano,
descobrindo que o território escolhido para base de suas operações não era
satisfatório por causa do solo demasiado pobre. Ao mesmo tempo todo o aparato de
repressão do Brasil estava no seu encalço. O braço de inteligência de cada
serviço militar (o CIEX ou Central de Informações do Exército, o CISA ou Centro
de Informações da Aeronáutica e o CENIMAR ou Centro de Informações da Marinha),
os DOI-CODI tanto da Bahia quanto do Rio e o DOPS achavam-se todos sob o comando
ostensivo do Quarto Exército. Cada unidade queria ter a honra de acabar com a
vida do famoso fugitivo, e não iria ser difícil. Lamarca e seu companheiro, um
camponês da região, eram um alvo fácil, pois estavam exaustos, tendo coberto 300
quilômetros nos últimos
___________
e na verdade morreu em 14 de abril em acidente de automóvel, semelhante ao que
matou Karen Silkwood. Folha de S. Paulo, 26 de julho de 1976; Silva, Governos
militares, pp. 132-36. Amigos do consulado americano no Rio informaram-me que
depois de demorada investigação do acidente chegaram à conclusão de que a
possibilidade de ter sido o mesmo criminoso era de pelo menos 50-50. Quatro
meses depois outro acidente de automóvel matou o ex-presidente Juscelino
Kubitschek. Embora as circunstâncias parecessem muito menos suspeitas, alguns
imediatamente levantaram dúvidas também sobre este "acidente". A viúva de
Juscelino, Dona Sarah, disse depois que "a suspeita é grande de que não foi
acidente". "Entrevista: D. Sarah Kubitschek: a suspeita morte de JK", Jornal do
Brasil, 19 de outubro de 1986. Qualquer que seja a verdade sobre as duas mortes,
o fato de que muitos membros da oposição acreditassem nesses assassinatos
orquestrados pelo governo diz muito sobre a atmosfera política durante
o terceiro ano do governo Geisel.

Medici: a face autoritária 243
20 dias. Quando uma unidade do Exército encontrou Lamarca no começo de setembro,
ele estava descalço e doente. José Carlos (o companheiro) tentou sacar da arma e
foi imediatamente morto. Lamarca, o campeão de tiro, estava dormindo sob uma
árvore e não teve vez.

O governo deu o máximo de publicidade à morte de Lamarca, inundando a
imprensa com documentos sobre os últimos dias do guerrilheiro. Havia as cartas
de amor a Yara lavelberg, fotos da cena da morte, relatos detalhados de como a
população local prestara informações sobre o paradeiro de Lamarca e seu
companheiro. O efeito desejado era mostrar a morte do revolucionário como
inevitável e convencer qualquer aspirante a terrorista (o termo do governo) de
que seu fim não seria diferente. Eis como um importante jornal conservador do
Brasil terminou sua reportagem sobre a ascensão e a queda de Lamarca: "Como
Guevara, ele sonhou em ver o continente transformado em uma série de Vietnãs.
Agora seus sonhos estão sepultados".59

No Rio e em São Paulo as principais unidades de guerrilha urbana entraram em
colapso e os seus militantes ainda em atividade não tinham condições para montar
qualquer operação significativa. No início de 1972 não restava mais nenhuma
unidade; muitos dos seus líderes tinham sido executados, os outros estavam
presos ou exilados.

A cidade, contudo, não era a única frente de batalha. Todos os
revolucionários sempre consideraram importante a abertura de uma frente no
campo, um foco, para usar o termo de Régis Debray. Marighela dissera no início
de 1969 que a luta urbana devia levar à guerra de guerrilhas na zona rural. Bem-
sucedidos em ambas as frentes, "prosseguiremos com a formação do Exército
Revolucionário de Libertação Nacional" e "a ditadura militar será liquidada".60
Pouco antes de sua morte Marighela estava fazendo planos
_________
59. Ver, por exemplo, Diário de São Paulo, 19 de setembro, O Globo, 20 de
setembro, Manchete, 2 de outubro e O Estado de S. Paulo, 19 de setembro de 1971.
60. Marighela, For the Liberation of Brazil, pp. 98-101; uma linha
semelhante de raciocínio é desenvolvida em "Algumas questões sobre as guerrilhas
no Brasil", em Jornal do Brasil, 5 de setembro de 1968, e transcrito em Escritos
de Carlos Marighela (São Paulo, Editorial Livramento,
1979), pp. 117-30.

244 Brasil: de Castelo a Tancredo
para a abertura de uma frente revolucionária rural.61 Entretanto, muitos grupos
guerrilheiros não conseguiram tentar essa tarefa, em parte porque eram formados
por jovens de áreas urbanas que nada sabiam sobre o campo.

Houve um grupo, porém, que deu as costas à cidade, os dissidentes maoístas do
PC do B que se haviam separado do PCB em 1962. Escolheram para suas operações o
Araguaia, em plena floresta tropical amazônica, numa região localizada na parte
oriental do Pará perto da fronteira norte de Goiás. A região possuía enormes
jazidas de ouro, manganês e outros minérios e ficava próxima de Carajás, também
no Pará, que já havia sido escolhido como sede de gigantesco projeto de extração
de minérios.62

Ali habitavam índios e camponeses, estes agricultores de subsistência. Quando
os responsáveis por projetos de desenvolvimento e os especuladores chegaram, os
camponeses passaram à defensiva. Em 1970 a eles se juntaram (poucos de cada vez)
69 militantes do PC do B. Somente estes, no entanto, permaneceriam como o
principal grupo a liderar a operação de guerrilha rural. Outros grupos
revolucionários não participariam com eles da eclosão do movimento.

O Araguaia foi escolhido por ficar bastante longe para permitir que o grupo
do PC do B criasse raízes na região, e porque estava estrategicamente situado
perto da jazida de minérios de Carajás e de terras disputadas por camponeses e
especuladores.63

Os guerrilheiros tinham um plano de ação bem concebido.64 Seu objetivo
inicial foi construir e residir em moradias iguais às
___________
61. João Batista Berardo, Guerrilha e guerrilheiros no drama da América Latina
(São Paulo, Edições Populares, 1981), p. 259.
62. Apoiei-me aqui no útil trabalho sobre a frente do Araguaia em Maria Helena
Moreira Alves, State and Opposition, pp. 121-23.
63. Marighela escreveu que os guerrilheiros "deviam evitar uma confrontação com
a esmagadora superioridade do inimigo ao longo do litoral atlântico, onde ele
concentrou suas forças". No interior, dizia Marighela, os militares estariam
pisando em terreno pouco conhecido e os guerrilheiros urbanos poderiam cortar as
suas linhas de abastecimento a partir do litoral. Escritos de Carlos Marighela,
p. 121.
64. A história mais completa da guerrilha do Araguaia é de Fernando Portela,
Guerra de guerrilhas no Brasil (São Paulo, Global Editora, 1979), que é uma
versão ampliada de uma série de artigos seus no Jornal da Tarde, janeiro de
1979. Uma útil coleção de documentos e entrevistas pode ser encontrada em
Palmério Dória, et. ai., Guerrilha do Araguaia (São Paulo,

Médici: a face autoritária 245
dos camponeses. Aos poucos iriam ganhando a confiança deles mostrando-lhes os
cuidados que precisavam ter com a saúde e ensinando-lhes métodos produtivos de
cultivo do solo. Durante esta primeira fase os camponeses não conheceriam a
verdadeira identidade dos novos moradores. Nos anos de 1970 e 1971 os 69
militantes cumpriram à risca seu plano sem qualquer incidente, ignorando os
demais moradores quem eles eram e quais seus propósitos.

Mas em 1972 as coisas mudaram. A inteligência militar descobriu o foco
subversivo em gestação, mas a ação inicial do Exército foi extremamente inepta.
Saturou a área de soldados, embora não tivesse informações detalhadas da região
nem dos guerrilheiros. Os soldados, mal preparados para o terreno, imediatamente
ficaram desorganizados, até disparando suas armas entre si. O grupo do PC do B
estava proporcionando ao Exército a primeira experiência de confronto com uma
insurreição rural bem organizada. O comando militar, compreendendo que não podia
montar uma verdadeira operação de contra-insurreição, retirou-se. Foi a partir
daí que o Exército criou a sua força de guerra na selva treinada para operar em
pequenas unidades.

Voltando ao teatro de operações, o Exército começou a executar metodicamente
a sua tarefa. Toda a área foi declarada zona de segurança nacional, sujeita a
poderes especiais, policiais e militares. Os moradores eram obrigados a portar
documentos de identidade em qualquer ocasião. Um heliporto, um aeroporto e cinco
novos alojamentos foram construídos. Num dos alojamentos funcionava um centro
para o interrogatório de suspeitos.

Apesar de todos esses recursos, o Exército levou mais de dois anos para
completar sua missão. Em 1975 todos os guerrilheiros estavam mortos ou na
prisão; apesar de seus preparativos e de sua valentia, não puderam resistir às
equipes de contra-insurreição do Exército, tal como o uso da tortura pela
polícia e o Exército havia anteriormente extirpado as guerrilhas urbanas. Muitos
camponeses inocentes foram apanhados em ações repressivas e tortu-
____________
Alfa-ômega, 1978). A fonte mais completa pelo lado da guerrilha é Clóvis Moura,
ed., Diário da guerrilha do Araguaia (São Paulo, Alfa-Omega, 1979),
aparentemente um conjunto de diversos documentos. Meu relato apóia-se
principalmente em Portela, Guerra de guerrilhas.

246 Brasil: de Castelo a Tancredo
rados, e aqueles que haviam aderido aos revolucionários foram caçados
implacavelmente. O Exército, ao que se dizia, decaptava os insurretos e os
exibia aos camponeses e demais moradores. Se tal coisa de fato aconteceu, foi um
retorno à tática que os portugueses usaram no combate aos rebeldes em pleno
Brasil colonial dois séculos atrás.65

O coronel Jarbas Passarinho, que foi ministro do governo Mediei, chamou o
front do Araguaia "o único bem preparado e importante". Talvez foi por isso que
o governo daquele presidente ocultou do público todas as notícias até 1978
(exceto uma reportagem que inexplicavelmente apareceu em O Estado de S. Paulo,
de 24 de setembro de 1972). A experiência do Araguaia demonstrou os problemas de
comunicação com que se defrontaria qualquer levante guerrilheiro na zona rural
do Brasil. Os trabalhadores urbanos de São Paulo, que eram o alvo final dos
militantes do PC do B, estavam a milhares de milhas de distância do Araguaia,
lugar que alguns nem saberiam localizar no mapa. Os revolucionários enviaram
boletins mimeografados (um correio especial os levara a São Paulo), mas nunca
foram citados na imprensa, que não podia publicar qualquer matéria envolvendo
assuntos militares.66

A ameaça guerrilheira fora enfrentada e achava-se agora liquidada tanto nas
cidades quanto no campo. Os combatentes mais disciplinados, como aqueles do PC
do B, abriram sua frente de luta num dos locais de mais difícil acesso deste
país, e conseguiram conquistar a confiança dos camponeses muito melhor do que,
por exemplo, Che Guevara na Bolívia. Mas não foi bastante. Os céticos há muito
diziam que o Brasil era grande demais para ser dominado pela luta urbana ou por
qualquer foco singular.
A der-
_____
65. Entrevista com Técio Lins e Silva, Rio de Janeiro, 7 de julho de
1983.
66. Consultando os arquivos do escritório da Associated Press no Rio, encontrei
a cópia mimeografada de uma declaração do "Comando das Forças Guerrilheiras do
Araguaia" datada de 21 de outubro de 1972. Havia também um comunicado de maio de
1974, N.° 44, da "União da Juventude Patriótica", um grupo guerrilheiro da
Amazônia. A reportagem da AP de 27 de junho (presumivelmente não publicada no
Brasil) identificou os autores como "um grupo clandestino pró-Cuba dissidente
do PCB na ilegalidade". O redator da AP estava bem informado, pois a notícia
dizia que os guerrilheiros resistiram até o fim contra um pesado ataque
governamental, inclusive com reconhecimento aéreo.

Médici: a face autoritária 247
rota das guerrilhas entre 1969 e 1975 pareceu confirmar esta
crença.67

A liquidação da frente de luta do Araguaia pôs fim ao desafio revolucionário
no Brasil. Na Argentina e no Uruguai a ação dos insurretos ameaçou seriamente
seus governos. Em Cuba e na Nicarágua a oposição armada triunfou. No Brasil,
entretanto, essa mesma oposição não conseguiu vingar.68 Por quê?

Primeiro, o Brasil não é território promissor para a estratégia guerrilheira.
Este tipo de guerra só obtém êxito em circunstâncias especiais.69 Por exemplo,
num país sob domínio estrangeiro, formal ou informal, porque neste caso o
movimento rebelde pode capitalizar o sentimento nacionalista contra o poder
colonial ou imperial. Cuba e Nicarágua cabem neste exemplo. Mas o Brasil não.

Segundo, o Brasil não sofre de divisões étnicas ou religiosas que possam
fornecer às guerrilhas uma base de apoio. Falta aqui qualquer minoria de língua
não portuguesa comparável aos índios dos Andes que falam Quechua e Aymara, ou
uma minoria étnica de elite como os chineses na Malásia. As possíveis tensões
raciais existentes no Brasil não fornecem pretexto suficiente para o
recrutamento de guerrilheiros.

Há outro fator neste país que conspira contra a oposição armada: as enormes
distâncias econômicas, sendo o Nordeste onde ocorre a maior concentração de
miséria do hemisfério. Aqui talvez um determinista econômico pudesse esperar
campo fértil para a radicalização política. Mas o crescimento econômico de 10
por cento ao ano, juntamente com uma hábil propaganda governamental, gerou o
otimismo do povo em relação às chances econô-
_________
67. Numa conversa com índio Vargas no Uruguai, Leonel Brizola certa vez
descartou Régis Debray e sua teoria do "foco" assim: "Não engula essa. O Brasil
não é Cuba: nosso país é um continente e nós precisaríamos de centenas de focos
guerrilheiros", índio Vargas, Guerra ê guerra, dizia o torturador (Rio de
Janeiro, CODECRI, 1981), p. 27.
68. Um esquerdista militante que examinou o fracasso da esquerda no Brasil
afirmou que na Argentina, Chile e Uruguai os trabalhadores já estavam
organizados como classe. Não, contudo, no Brasil. Quartim, Dictatorship and
Armed Struggle, p. 123.
69. Há volumosa literatura sobre este assunto. Duas obras úteis sobre a América
Latina são Loveman e Davids, eds., Guerrilla Warface, e Georges Fauriol, ed.,
Latin American Insurgencies (Washington, National Defense University Press,
1985).

248 Brasil: de Castelo a Tancredo
micas do indivíduo, por mais improvável que possam ter sido. Como um desiludido
Carlos Lamarca confessou em 1970, "era ridículo durante o campeonato mundial de
futebol afirmar que o capitalismo brasileiro estava em crise de estagnação. Há
três anos está crescendo a 10 por cento ao ano e a esquerda foi a última a
notar".70

Há outra frente em que o Brasil é relativamente invulnerável: a militar, com
indiscutível influência sobre o governo, e que não alimenta qualquer dúvida
quanto à legitimidade ou à moralidade de suas ações. Os que tiveram alguma
dúvida ou a esconderam ou se viram forçados a deixar o serviço ativo
prematuramente. Os militares não são, portanto, um bom alvo para dividir o
governo.

Finalmente, os guerrilheiros sofriam de uma inerente desvantagem: eram
predominantemente jovens da classe média e superior de algumas cidades. Embora
fossem destemidos e altamente eficientes, não tinham, como alguns depois
reconheceram, profundo conhecimento da sociedade brasileira. Recém-saídos das
universidades ou dos conventos, conheciam melhor o pensamento político de Régis
Debray do que a geografia brasileira. Seu intenso intelectualismo não podia se
expressar melhor do que na decisão de sequestrar os diplomatas entrangeiros pela
ordem descendente de importância dos seus investimentos no Brasil (Estados
Unidos, Japão, Alemanha Ocidental e Suíça). Este pormenor passou inteiramente
despercebido do público brasileiro.

Vários fatores técnicos foram também importantes para frustrar os planos dos
revolucionários. Primeiro, a preferência por um Estado moderno em qualquer
confrontação com a oposição armada, quando mais não seja por causa da poderosa
tecnologia de que dispõem os governos modernos. As forças de segurança do Brasil
eram muito mais capazes de monitorar as atividades da oposição do que se teria
previsto y/a 1964. A rede de comunicações do governo crescera enormemente:
teletipo, "links" com a cobertura de satélites, telefone com discagem direta a
distância através de microondas etc. Com o uso de um banco de dossiês
computadorizado, as autoridades de segurança puderam manter uma vigilância
altamente eficiente de suspeitos em âmbito nacional.
_________
70. Syrkís, Os carbonários, p. 280.

Medici: a face autoritária 249

Segundo, o governo federal centralizara o controle sobre as forças de
segurança. A constante erosão do federalismo após 1964 em nenhuma outra área foi
mais acentuada do que no combate à "subversão". Todas as secretarias de
segurança dos estados eram subordinadas a uma orientação federal, ou seja, ao
Alto Comando do Exército.

Terceiro, a tortura foi efetivamente muito eficaz para a obtenção de
informações e para aterrorizar possíveis aspirantes a guerrilheiros.
Tomados em conjunto, esses fatores conspiraram contra a esquerda armada do
Brasil. Apesar do seu sucesso inicial embaraçando o governo com os sequestros,
jamais constituiu ameaça política significativa ao regime militar. Mas seus
ataques, mesmo quando pouco importantes, confirmavam a previsão da linha dura de
uma ameaça armada. No final, o resultado maior da ação guerrilheira foi
fortalecer a opinião daqueles que defendiam o aumento da repressão.71

Os Usos da repressão

A tortura praticada pelo governo não acabou com a derrota das guerrilhas, nem
era para surpreender, uma vez que os torturadores não esperaram a ocorrência de
uma ameaça armada para começar seu trabalho. A tortura pelo governo de suspeitos
políticos no Nordeste, por exemplo, começou dias depois do golpe de 1964, muito
antes do aparecimento de qualquer oposição armada.72 As autoridades voltaram a
usá-la e a intensificá-la em 1968, antes
__________
71. O diretor de Isto Ê foi franco neste ponto, afirmando que a violência
guerrilheira fora usada para "justificar o rigoroso controle que o governo
exercia sobre a sociedade civil..." António Fernando de Franceschi em Paulo
Sérgio Pinheiro, ed., Crime, violência e poder (São Paulo, Brasiliense, 1983),
p. 175. Outro destacado jornalista foi igualmente categórico, afirmando que
foram as guerrilhas, especialmente seus sequestros, que ajudaram a alcançar a
"reconciliação entre os militares e a opinião pública". Pedreira, O Brasil
político, p. 279. O efeito sobre a esquerda foi profundo. Nas palavras de um
sobrevivente da tortura, "a esquerda brasileira experimentou em dez anos o que
não experimentara em quarenta, e ela pagou um custo elevado em penoso sofrimento
humano". Álvaro Caldas, Tirando o capuz (Rio de Janeiro, CODECRI, 1981), p. 140.
72. Alves, Torturas e torturados.

250 Brasil: de Castelo a Tancredo
também de qualquer significativa operação revolucionária. Com os roubos de
bancos e sequestros em 1969, os militares da linha dura tiveram a evidência de
que necessitavam para justificar a adoção de medidas de força. O governo Mediei
afirmou que tinha que proteger o público contra os conspiradores que queriam
mergulhar o Brasil no caos. "Guerra é guerra", respondiam os oficiais do
Exército, quando indagados sobre os métodos que usavam em seus interrogatórios.

Em fins de 1971 a guerrilha urbana fora reduzida a um incómodo sem maior
importância, e no início de 1972 pareceu ter havido um concomitante declínio da
tortura. Mas já em maio as forças de segurança voltavam a usá-la, e em julho o
presidente Medici anunciava que as restrições às liberdades civis continuariam
por causa da ameaça subversiva. A Anistia Internacional informara em setembro,
como notamos, que havia confirmado 1.076 casos de tortura no Brasil praticados
por nada menos que 472 torturadores. Por que continuavam a torturar?73

Para responder a esta pergunta precisamos considerar a estrutura
institucional da repressão e o contexto psicológico e político em que ela opera.
Um ponto de partida essencial é compreender a administração da justiça criminal
no Brasil.74 Estudiosos da história da atuação policial no país concordam que
pelo menos desde
__________
73. Anistia Internacional, Report on Allegations of Torture in Brazil.
74. Obviamente, tais generalizações sobre a administração da justiça no Brasil
são perigosas. No entanto devemos de algum modo seguir o raciocínio repetido por
muitos intelectuais e outras vítimas da era repressiva. Alguma orientação é dada
pelos repórteres policiais. Os jornalistas fizeram o máximo para abrir os olhos
do público brasileiro (isto é, da elite) para o recurso rotineiro da polícia à
violência ao lidar com criminosos comuns ou suspeitos de crime. Alguns dos
trabalhos (que geralmente resultam de reportagens em revistas ou jornais)
são de Percival de Souza, Marcos Faerman e Fernando Portela, Violência e
repressão (São Paulo, Edições Símbolo, 1978), e Octavio Ribeiro, Barra pesada
(Rio de Janeiro, CODECRI, 1977). Os horrores da vida em prisões abarrotadas são
graficamente descritos em Percival de Souza, A prisão: histórias dos homens que
vivem no maior presídio do mundo (São Paulo, Alfa-Omega, s.d.); e André Torres,
Ilha Grande (Petrópolis, Vozes, 1979). Nenhuma área dos maus-tratos policiais
causou mais revolta do que a relativa aos menores, como está documentado em
Carlos Alberto Luppi, Agora e na hora de nossa morte: o massacre do menor no
Brasil (São Paulo, Ed. Brasil Debates, 1982).

Médici: a face autoritária 251
o fim do século dezenove a tortura física é rotina nos interrogatórios de presos
não pertencentes à elite.75 Para isto, a disseminação da escravatura deve ter
desempenhado papel importante. Como em muitas sociedades escravocratas, a elite
dominante mantinha a disciplina do escravo através da brutalidade dos castigos.
Um dos mais famosos estudiosos da escravidão brasileira, Gilberto Freyre,
publicou um livro baseado em anúncios classificados informando sobre fuga de
escravos. O meio de identificação fornecido pelos seus donos eram cicatrizes
(descritas com "pormenores nos anúncios) de antigos espancamentos.76

Durante a Velha República (1889-1930) a polícia usava a tortura física contra
os pobres tanto do campo quanto da cidade. Mas raramente tocava em gente da
elite. Esta era protegida pelo entendimento da autoridade (usualmente tácito) de
que era imune a tal tratamento. Esta imunidade foi minada durante a ditadura
estadonovista de Getúlio Vargas (1937-45). O chefe de polícia do Rio na maior
parte deste período, Felinto Müller, introduziu novas técnicas, como o choque
elétrico, para arrancar informações e confissões de suspeitos políticos, que
geralmente pertenciam à elite.77

O fim do Estado Novo permitiu que os ativistas políticos da elite respirassem
mais aliviados. Reconquistaram então sua imunidade da tortura física. Mas as
medidas policiais contra os suspeitos comuns assumiram nova feição. Em 1958 o
chefe de polícia do Rio, general Amaury Kruel, organizou o Grupo de Diligências
________
75. Paulo Sérgio Pinheiro, "Violência e cultura", em Bolivar Lamounier,
Francisco C. Weffort e Maria Victoria Benevides, eds., Direito, cidadania e
participação (São Paulo, T. A. Queiroz, 1981), pp. 31, 33-49; Pinheiro, "Polícia
e crise política: o caso das polícias militares", em Roberto da Matta, et. ai.,
Violência brasileira (São Paulo, Brasiliense, 1982), p. 71. Um estudioso que
pesquisou os arquivos criminais de São Paulo referentes ao período 1880-1924
encontrou freqüentes referências na imprensa a maustratos físicos a
prisioneiros: Boris Fausto, Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo,
1880-1924 (São Paulo, Brasiliense, 1984), p. 163. Não estou discutindo aqui a
extensão em que a violência policial (na forma de tortura) foi usada como meio
em geral de controle social. Esta questão muito mais ampla é tratada de modo
geral em Alberto Passos Guimarães, As classes perigosas (Rio, Graal, 1982).
76. Gilberto Freyre, "O escravo nos anúncios de jornal do tempo do império",
Lanterna Verde, N.° 2 (1935), pp. 7-32.
77. Aderito Lopes, O esquadrão da morte (Lisboa, Prelo, 1973), p. 29; Pinheiro,
"Violência e cultura", pp. 51-54.

252 Brasil: de Casteto a Tancredo
Policiais (GDE), que foi logo acusado de assassinar presos suspeitos de roubos e
assassinatos. Foi esta, ao que se diz, a origem do Esquadrão da Morte no Rio,
que teve tanta notoriedade na década de 60.78

Poder-se-ia dizer que nos anos 60, pelos processos policiais "normais", os
suspeitos eram tratados de acordo com o seu status social aparente. Este tipo de
conduta orientada para o status origina-se na sociedade altamente estratificada
produzida pelos extremos de riqueza e pobreza que ocorre através da história do
Brasil. Não é uma simples questão de poder contratar um advogado, pagar fiança e
reunir evidências favoráveis. É também o direito do suspeito a um tratamento
físico decente. Todo o cidadão portador de diploma de nível superior, assim
como o funcionário no exercício de alto cargo público, por exemplo, têm
tradicionalmente o direito a prisão especial, se for detido. Qualquer suspeito
aparentemente de classe média ou alta em geral recebe tratamento preferencial
porque a polícia supõe que ele ou ela tenha parentes ou amigos bem relacionados
com os ocupantes do poder. Caso a suposição do policial prejudique o status do
suspeito, aquele pode ter problemas com seus superiores.

Pela mesma razão, o prisioneiro pobre ou de status inferior não se surpreende
com o tratamento grosseiro que lhe é dispensado. Nas palavras de um policial
para um suspeito: "Você quer falar com ou sem tortura?" O suspeito sensatamente
respondeu: "Sem".79 Interrogatórios sobre crimes comuns, como roubos e assaltos,
podem incluir maus-tratos físicos que praticamente não deixam marcas
(espancamento com uma vara enrolada em toalhas úmidas, choques elétricos, quase
sufocação etc.). Para a polícia, o status social inferior do preso implica a
possibilidade de culpa,
_________
78. Lopes, O esquadrão da morte, p. 30; Maria Victoria Benevides, Violência,
povo e polícia (São Paulo, Brasiliense, 1983), p. 77.
79. Fernando Gabeira, Carta sobre a anistia; a entrevista do Pasquim;
conversação sobre 1968 (Rio de Janeiro, CODECRI, 1979), p. 27. Gabeira foi um
dos muitos presos políticos que ficaram de olhos abertos enquanto encarcerados.
"Na prisão você aprende a conhecer o outro lado do Brasil." O que o preocupava
era que, com o fim da violência contra presos políticos (que incluía muitos das
classes superiores), a elite esquecesse a violência rotineiramente praticcada
contra os pobres (ibid, p. 30). Outro preso político que demonstrou a mesma
preocupação ao observar o tratamento dispensado a presos comuns foi índio
Vargas, Guerra ê guerra, pp. 84-87.

Medici: a face autoritária, 253
sobretudo se o crime foi cometido contra alguém socialmente superior.
Dado este contexto de métodos policiais normais, o tratamento dispensado pelo
governo aos suspeitos políticos depois de 1968 atende à perspectiva. A polícia e
os militares começaram a tratar os detidos da classe média e alta (de onde saiu
a maior parte dos líderes guerrilheiros) como se fossem suspeitos comuns. Estes
logo se deram conta de que seus amigos ou parentes politicamente importantes não
podiam fazer nada no mundo dos inquisidores. Os dissidentes de status social
superior estavam agora sendo intimidados pela violência tradicionalmente
reservada para controlar os presos de status inferior.

Neste ponto vale a pena lembrar que o uso da tortura pela polícia ou a
justiça não é incomum na história humana. Os governos que a dispensaram são
poucos e principalmente de safra recente. Na Europa medieval e mesmo do início
dos tempos modernos, por exemplo, a tortura era rotineiramente usada para obter
prova em processos de crime comum. Em nossos próprios dias um professor de
filosofia no City College de Nova York afirmou que "há situações em que a
tortura é não apenas permissível mas moralmente obrigatória". E citou o exemplo
clássico do terrorista capturado que plantou uma bomba que matará um número
incalculável de vítimas inocentes. "Se o único meio de salvar aquelas vidas é
submeter o terrorista às dores mais torturantes, que razões haveria para não
fazê-lo?" Foi exatamente este o argumento usado pelos torturadores brasileiros
das décadas de 60 e 70.80

Até meados de 1968 os militares não tinham se envolvido direta e
sistematicamente no interrogatório de presos políticos, exceto nos meses que se
seguiram imediatamente ao golpe de 1964. A esperança de muitos oficiais era que
os expurgos de burocratas e parlamentares recolocassem o Brasil no caminho
certo. Fora esta também a esperança do presidente Costa e Silva. Mas o ano de
1968 liquidou essas esperanças. Os protestos estudantis e as greves trabalhistas
pareciam um retorno à era de Goulart. Como vimos,
__________
80. A história da tortura desde os tempos da Grécia e de Roma é discutida em
Edward Peters, Torture (New York, Basil Blackwell, 1985) e Peter Singer,
"Unspeakable Acts", The New York Review of Books, 27 de fevereiro de 1986, pp.
27-30. O filósofo foi Michael Levin, "The Case for Torture", Newsweek, 7 de
junho de 1982, p. 13.

254 Brasil: de Castelo a Tancredo
muitos militares estavam convencidos de que lhes cabia assumir um controle mais
direto das atividades dos "subversivos". Eles tinham uma explicação: pela
doutrina da segurança nacional, era responsabilidade direta dos militares zelar
pela segurança interna. Por esta lógica, uma ameaça subversiva de dentro era tão
grande, se não maior, do que uma ameaça de fora.81 Defendia este ponto de vista
o general Jayme Portella, chefe da Casa Militar de Costa e Silva,82 que advogava
uma atuação mais enérgica dos militares no combate à subversão.

O primeiro sinal de sua estratégia apareceu no início de 1969, como notamos
anteriormente, com a criação da OBAN (Operação Bandeirantes). Ela combinava
forças da polícia com oficiais de segurança das forças armadas e recebia apoio
financeiro de conhecidos homens de negócios de São Paulo, que forneciam ao
movimento equipamentos e dinheiro. Do grupo de financiadores da OBAN fazia parte
destacadamente Henning Albert Boilesen, um dinamarquês naturalizado brasileiro
que presidia a Ultragás, próspera companhia de gás liqüefeito. Boilesen era
especialmente competente em levantar fundos de firmas multinacionais ou de seus
executivos. Firmas brasileiras também foram pressionadas a contribuir com
dinheiro, carros, caminhões e outras formas de ajuda em espécie para a OBAN e
para a unidade que a sucedeu, o DOI-CODI. Alguns empresários aderiam com
entusiasmo, outros somente sob coação. Certos comerciantes, por exemplo, com
filhos na cadeia, sofriam intimidação para contribuir. O governador Abreu Sodré
ajudou a levantar fundos privados para a entidade, também apoiada pelo prefeito
Paulo Maluf que considerava a OBAN um importante projeto cívico.83
___________
81. Fon, Tortura, pp. 27-32. O pano de fundo desta linha de pensamento dos
militares é bem analisado em Stepan, The Military in Politics.
82. Fon, Tortura, pp. 15-16.
83. Ibid., pp. 55-58; Moniz Bandeira, Cartéis e desnacionalização (Rio de
Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1979), pp. 204-5; Veja, 15 de
janeiro de 1986, p. 27. Entrevista com Kurt Mirow. Entrevistas com Antônio
Carlos Fon, São Paulo, 27 e 29 de junho de 1983. Boilesen tinha acesso às salas
de tortura onde insultava os presos. Em abril de 1971 guerrilheiros mataram
Boilesen a tiros de metralhadora num calculado ato de vingança. Custou caro. Em
uma semana toda a equipe que participou do assassinato foi capturada. Syrkis, Os
carbonários, p. 295; Langguth, Hidden Terrors, pp. 122-23.

Medici: a face autoritária 255

O apoio militar à Operação Bandeirantes, contudo, ficou bem longe da
unanimidade. O comandante do Segundo Exército, general Carvalho Lisboa, recusou-
se a cooperar na criação da unidade.84 Ele e outros céticos do Exército
argumentavam que os militares não eram treinados para executar funções
policiais. Outros críticos alegavam que, assumindo uma função policial, o
Exército prejudicaria sua capacidade de exercer o papel tradicional que lhe cabe
na sociedade brasileira. Finalmente, os críticos alegavam que, participando do
aparato repressivo, os oficiais ficariam expostos a possíveis atos de corrupção,
já que os esquadrões da OBAN tinham acesso a dinheiro ou bens apreendidos nas
batidas.

Mas o ímpeto político que animava os militares sepultou essas dúvidas. O
próprio presidente deu o tom. Em fevereiro de 1970 Mediei anunciou que não
haveria direitos" para os "pseudobrasileiros", e um mês depois advertiu: "Sim,
haverá repressão - rigorosa e implacável. Mas somente contra o crime e somente
contra os criminosos".85 Em novembro do ano anterior o senador Petrônio
Portella, líder da ARENA, explicou que medidas extralegais seriam usadas somente
contra aqueles que estivessem à margem da lei", os quais deviam esperar
"remédios extralegais". O senador desejou êxito ao presidente "na destruição, de
uma vez por todas, dos focos de subversão abrindo caminho assim para a
construção do futuro do Brasil".86

Em julho de 1969 este sentimento já resultará na aquiescência do Segundo
Exército à criação da OBAN. Enquanto isso, os militares se dedicavam ativamente
à organização de sua própria rede de repressão.87 Seu local de trabalho era a
sede do setor de inteli-
__________
84. Fon, Tortura, p. 18. Um dos sucessores do general Carvalho Lisboa, general
Humberto de Souza Mello, que comandou o Segundo Exército de janeiro de 1971 a
janeiro de 1974, era conhecido por seu entusiástico apoio ao aparato repressivo
em São Paulo. Amostras do seu pensamento podem ser encontradas em Humberto de
Souza Mello, Idéia e ação: pronunciamentos (São Paulo, Secretaria de Cultura,
Esportes e Turismo do Estado de São Paulo, 1974).
85. Emílio Garrastazu Mediei, Nova consciência do Brasil (Brasília,
Departamento de Imprensa Nacional, 1973), pp. 29-91.
86. Petrônio Portella, Tempo de Congresso (Brasília, Centro Gráfico do Senado
Federal, 1973), pp. 140, 144.
87. Para uma cuidadosa descrição dessa rede de segurança, ver Maria Helena
Moreira Alves, State and Opposition, pp. 121-32.

256 Brasil: de Castelo a Tancredo
Medici: a face autoritária 257
gência de cada um dos serviços armados: CIEX (para o Exército), CISA (para a
Força Aérea) e CENIMAR (para a Marinha). Todos tinham autoridade para efetuar
prisões e iniciar investigações.

A entrada dos militares na área da repressão logo gerou conflitos de
jurisdição com a polícia civil. Esta ressentiu-se do ingresso em seu território
de um poder supostamente superior. Às vezes a rivalidade civil-militar
degenerava em guerra aberta, como aconteceu no caso de unidades agressivas do
tipo Esquadrão da Morte (de que tratamos abaixo) liderado por Sérgio Fleury em
São Paulo. Os militares resolveram este problema criando outro nível burocrático
na estrutura das forças de segurança. Cada região militar tinha um CODI (Comando
Operacional de Defesa Interna), um órgão interserviços sob comando militar (na
prática sob as ordens dos Exércitos regionais pertinentes). Um nível abaixo
ficava o DÓI (Destacamento de Operações Internas), a unidade operacional ao
nível local. Era uma "força de ataque" de militares e policiais, todos em trajes
civis. Em São Paulo o DOI-CODI substituiu a OBAN. Enquanto isso, o governo
federal reorganizava a Polícia Militar (PM), a unidade de controle do tráfego e
do público, antes sob o comando dos governos estaduais, e agora subordinada ao
Ministério do Exército, através do Estado-Maior Geral e dos comandos dos quatro
Exércitos regionais. Com essa reorganização, o Exército pôde usar as PMs como
força antiguerrilhas, evitando assim o uso de seus soldados no que a cúpula
militar sabia ser um negócio sujo.88

Essas novas unidades tiveram um problema imediato: faltavam-lhes pessoas com
experiência em interrogatórios. Por isso, pediram a colaboração de detetives da
polícia que sabiam interrogar presos "comuns", o mais notório dos quais foi
Sérgio Fleury, do Esquadrão da Morte paulista.89 Como os líderes de esquadrões
da
___________
88. Pinheiro, "Polícia e crise política", pp. 59-64.
89. A melhor fonte singular sobre Sérgio Fleury é Hélio Pereira' Bicudo, Meu
depoimento sobre o esquadrão da morte (São Paulo, Pontifícia Comissão de Justiça
e Paz de São Paulo, 1977). Bicudo foi o promotor paulista que corajosamente
tentou durante anos fazer com que a lei fosse aplicada contra Fleury e seus
companheiros do Esquadrão da Morte da polícia paulista. Também útil é Lopes, O
esquadrão da morte. Várias vezes Bicudo conseguiu pronunciar Fleury, mas as
autoridades superiores - do Judiciário ou do Executivo - sempre impediram a
condenação. Uma vez o governo federal emendou o código penal (medida que ficou
conhecida como lei morte no estado do Rio de Janeiro, Fleury se tornou conhecido
pela brutal execução de suspeitos de crimes comuns, especialmente traficantes de
drogas. Comentava-se que ele mesmo era viciado, e com seu trabalho policial
tinha acesso aos narcóticos. Fleury e seu grupo estavam também ligados a
violentas facções de direita, como o CCC (Comando de Caça aos Comunistas).90 Em
1969 ele e sua equipe foram transferidos do DEIC (Departamento Estadual de
Investigações Criminais) para o DEOPS (Departamento Estadual de Ordem Política e
Social) que era o equivalente em nível estadual ao DOPS (Departamento de Ordem
Política e Social), a polícia federal. Agora ele tinha licença oficial para
caçar guerrilheiros.

Fleury tinha a personalidade ideal para conduzir interrogatórios na base da
violência. Possuía o instinto apurado para seguir pistas e descobrir suspeitos.
Bastava aparecer na sala de interrogatório para criar pânico entre os presos - o
que não surpreendia, pois havia torturado muitos deles. Freqüentemente entrava
em divergência com os militares e com o DOI-CODI. Às vezes não os informava
sobre os seus prisioneiros e não raro os escondia em sua fazenda no interior de
São Paulo. No início de 1970, quando forçado a entregar um preso ao DOI-CODI,
quebrou as costelas do homem, incapacitando-o para novas torturas.91 Fleury
recebia forte apoio militar da Marinha, através da inteligência naval (CENIMAR),
que trabalhava muito bem com ele e o protegia dos
_____________
Fleury) para permitir que o réu ficasse em liberdade enquanto aguardasse a
decisão do júri. Este, em geral, o absolvia de todas as acusações. A melhor
análise do contexto histórico em que emergiu o Esquadrão da Morte é de Deborah
L. Jakubs, "Police Violence in Times of Policial Tension: The Case of Brazil,
1968-1971", em David H. Bayley, ed., Police and Society (Beverly Hills, Sage,
1977), pp. 85-106.
90. Um born trabalho sobre os grupos de direita é de Délcio Monteiro de Lima, Os
senhores da direita (Belo Horizonte, Antares, 1980).
91. Fon, Tortura, pp. 51-53. O preso em questão era Shizuo Ozawa, elemento de
ligação com Carlos Lamarca, o alvo número um do governo. Fleury foi disciplinado
por este incidente com um exílio de seis meses em uma delegacia policial da
periferia. De lá foi salvo em agosto de 1970 pelo CENIMAR, que o reconduziu ao
DOPS para que interrogasse um importante comandante guerrilheiro, Eduardo Leite
(com o nome de guerra Bacuri), que acabara de ser capturado por aquele órgão da
Marinha.

258 Brasil: de Castelo a Tancredo
demais serviços. A Marinha demonstrou-lhe sua gratidão conferindo-lhe a medalha
de Amigo da Marinha.92

No gulag brasileiro havia três tipos de especialistas: os torturadores, que
aplicavam choques elétricos, espancamentos, quase afogamentos na combinação
certa, para arrancarem confissões; os analistas, que recebiam informações sobre
a última sessão de tortura e as comparavam (às vezes por computador) com dados
anteriores, para indicarem o que mais a vítima poderia saber; e os médicos, que
examinavam o estado físico das vítimas, para informarem até que ponto
resistiriam a novas torturas se continuassem de boca fechada.93

As notícias sobre a disseminação da tortura em 1969 aterrorizaram aqueles que
pensavam em entrar para a oposição ativa.94 Era imediato o impacto quando vazava
para o público a informação de que um preso político da classe média ou alta
fora torturado ou morto. Quanto mais conhecida a vítima, maior o choque. Rubens
Paiva foi um exemplo perfeito.95 De origem socialmente
_________
92. Hélio Bicudo, Meu depoimento, p. 51. Um guerrilheiro preso que viu Fleury em
ação disse que ele era claramente adulado por todos os militares. Polari, Em
busca do tesouro, p. 237.
93. Exemplo típico é descrito em Gabeira, O que ê isso, pp. 160-61. Perguntou-se
aos médicos quanto tempo o preso ainda tinha de vida.
94. Um relato comovente de sua tortura e de nove anos na prisão é feito por
Alípio de Freitas, Resistir é preciso: memória do tempo da morte civil do Brasil
(Rio de Janeiro, Editora Record, 1981). O autor era português de nascimento e
ex-padre. Desenvolvera intensa atividade na organização dos camponeses no
Nordeste antes de 1964 e depois aderiu à guerrilha. A prisão e a tortura
estimulam a criatividade em algumas vítimas. Uma das mais conhecidas foi Alex
Polari (de Alverga), cujos poemas do cárcere estão publicados em Inventário de
cicatrizes (São Paulo, Global, 1979) e Camarim de prisioneiro (São Paulo,
Global, 1980). Os governos autoritários latino-americanos dos anos 60 , e 70
recorreram tantas vezes à tortura que os intelectuais desses países começaram a
estudar sistematicamente o impacto da "cultura do medo" não somente sobre o
sistema político mas também sobre a sociedade em geral. Para detalhes de um
projeto, ver Joan Dassin, "The Culture of Fear", Social Science Research Council
Items, XL, N.° l (março de 1986), pp. 7-12.
95. Detalhes sobre o caso Paiva são dados em Hélio Silva e Maria Cecília Ribas
Carneiro, Emílio Mediei: o combate às guerrilhas, 1969-1974 (São Paulo, Grupo de
Comunicação Três, 1983), pp. 103-29; o caso Paiva foi freqüentemente citado pela
oposição, como em Marcos Freire, Oposição no Brasil, hoje (Rio de Janeiro, Paz e
Terra, 1974), pp. 88-100; algumas

Medici: a face autoritária 259
elevada, era um respeitado engenheiro-geólogo. Paiva foi capturado no Rio por
uma unidade do DOI-CODI, que depois afirmou ter sido ele seqüestrado quando,
dias após a detenção, estava sendo transferido de uma prisão para outra. A
história foi universalmente rejeitada porque os detalhes do rapto eram
implausíveis, inclusive a afirmação de que o corpulento Paiva tinha, não se sabe
como, saltado do banco traseiro de um Volkswagen de duas portas para dentro de
um carro que lhe deu fuga enquanto os policiais à paisana presumivelmente
observavam. As forças de segurança declararam desconhecer o paradeiro
subseqüente do preso. A crença geral era que ele fora morto (e seu corpo lançado
no Atlântico) pelo PARA-SAR, a bem treinada equipe de socorro ar-mar.96 O
extermínio com tal impunidade de uma figura tão conhecida demonstrava
que todos os brasileiros eram igualmente inermes diante das forças de segurança.

Na medida em que o público se identificava com as vítimas, sua desmoralização
e senso de isolamento os transformavam nos cidadãos assustados que os defensores
da segurança nacional preferiam. Só assim era possível identificar e liquidar os
inimigos internos.

O governo continuou a usar o aparato repressivo muito depois de haver
desbaratado as guerrilhas. Tratava-se de um instrumento poderoso, com a mais
recente tecnologia - sistemas de comunicação por microondas, listas de suspeitos
preparadas por computador e gravadores para registrar conversas telefónicas
grampeadas. Além disso, era relativamente barato, uma vez que a polícia e as
forças militares tinham que existir de qualquer modo. Finalmente, qualquer
governo do Terceiro Mundo, lutando para estabilizar sua base política (medida
por aquiescência, se não por apoio), pode achar a repressão um recurso tentador.
As prisões em massa nas vésperas
_________
conjecturas educadas sobre por que Paiva era um alvo para as forças de segurança
são feitas em Marco Antônio Tavares Coelho, em Carlos Rangel, 1978: a hora de
enterrar os ossos (Rio de Janeiro, Tipo Editor, 1979).
96. Em setembro de 1986 novas informações vieram à luz demolindo a afirmação de
que Paiva fora seqüestrado. O Dr. Amílcar Lobo, oficial do exercito e psiquiatra
que trabalhou no DOI-CODI do Rio em janeiro de 1971, disse ter visto Paiva ali
em estado de choque por causa de uma hemorragia alastrada por todo o seu corpo,
agonizando para morrer, e podendo apenas murmurar seu nome. Veja, 10 de setembro
de 1986, pp. 3641.

260 Brasil: de Castelo a Tancredo
das eleições de 1970 foram um exemplo marcante de como a repressão pode ajudar a
produzir uma vitória eleitoral.97

O aparelho repressivo operava em parte pelo seu próprio ímpeto. Alguns dos
seus membros - militares e policiais - recebiam recompensas monetárias de civis
fanaticamente anti-subversivos ou retendo bens confiscados em batidas. Se a
repressão parava, as recompensas também cessavam. Mas havia em ação outro fator,
mais sinistro. Quando um detetive ou um oficial militar torturava seu primeiro
prisioneiro, ingressava, quisesse ou não, na fraternidade dos torturadores. Sua
moralidade virava de cabeça para baixo: para salvar o Brasil cristão e
democrático, tinha que violar suas convicções morais e legais. Não que a tortura
fosse nova na história do Brasil. Vimos que não. Entretanto a maioria dos
torturadores sabia estar fora da lei, operando contra as tradições morais e
constitucionais às quais até os presidentes militares professavam lealdade. Este
sentimento de culpa explica em parte por que os torturadores tentavam tanto
ocultar sua identidade. Explica também por que eles se consideravam os poucos
com bastante coragem para participar de uma atividade vergonhosa a fim de salvar
seu país.

Mas houve um fato que ameaçou a função dos torturadores: a escassez de
suspeitos plausíveis. Com a liquidação da guerrilha urbana no início de 1972, o
DOI-CODI saiu à procura de novos inimigos. Ante o seu pequeno número, os homens
da segurança, no seu fanatismo, alegavam que a inatividade dos subversivos era
apenas aparente. E se gabavam de que fora por causa de sua vigilância que o
Brasil estava agora livre de assaltos a bancos e de sequestros. Finalmente, a
tortura sob o comando do Exército tornou-se tão disseminada e institucionalizada
que nenhuma alta pa-
__________
97. Uma das mais eloqüentes e penetrantes análises do impacto social da tortura
e do aparelho de repressão é o documento enviado pelos presos políticos à Ordem
dos Advogados do Brasil em novembro de 1976, que está reproduzido em Luzimar
Nogueira Dias, ed., Esquerda armada: testemunho dos presos políticos do presídio
Milton Dias Moreira, no Rio de Janeiro (Vitória, Edições do Leitor, 1979), pp.
85-110. Um observador de longa data notou no início de 1973: "O que é
significativo é que o Exército brasileiro institucionalizou e protegeu a tortura
e a brutalidade como instrumentos de controle social e que tais métodos tenham,
e pretendam ter, conseqüências de intimidação de largo alcance". Brady Tyson,
"Brazil: Nine Years of Military Tutelage", Worldview, XVI, N.° 7 (julho de
1973), pp. 29-34.

Medici: a face autoritária
261
tente podia afirmar não se ter envolvido com ela. Virtualmente todos exerceram
um comando onde os torturadores operavam. Como "resultado, os generais e os
coronéis ficaram implicados, mesmo que indiretamente.

Alguma autoridade do governo poderia ter previsto o que a repressão,
especialmente a tortura, faria para o Brasil? Juntamente com os fragmentos de
informações que talvez incriminassem o grupo decrescente de guerrilheiros, a
tortura produziu montanhas de fatos sem relação entre si. Mas, para mentes
obcecadas pela segurança, não havia fatos sem relação: todos eram pistas para
tramas da oposição. Um gigantesco aparato de segurança observava todas as fontes
de possível oposição: salas de aula das universidades, sedes de sindicatos,
seminários, associações de advogados, escolas secundárias e grupos religiosos.
Os brasileiros, geralmente um povo alegre e espontâneo, calaram a boca. Nascera
o Grande Irmão brasileiro, todo o respeito era pouco.

Este aparelho repressivo não escapou, entretanto, completamente aos limites
institucionais. A autoridade legal para as forças de segurança era a justiça
militar. Na Constituição de 1946 a jurisdição da justiça militar fora limitada a
crimes militares, embora se estendesse a civis que praticassem "crimes contra a
segurança externa ou as instituições militares". O AI-2 de outubro de 1965
substituiu "segurança externa" por "segurança nacional", e a Constituição de
1967 (emendada em 1969) manteve a modificação. Dada a ampla interpretação desses
termos, virtualmente todas as pessoas presas pelas forças de segurança caíam na
jurisdição da justiça militar. Esta se compõe de 21 tribunais inferiores
(auditorias), servindo em cada um quatro oficiais militares e um civil; o nível
seguinte (e mais alto) é o Superior Tribunal Militar, composto de dez ministros
militares e cinco civis. Apelar de uma decisão do STM para o Supremo Tribunal
Federal é teoricamente possível, mas tornou-se raríssimo depois de 1965.98

A jurisdição da justiça militar era importante particularmente para os
advogados criminais que chegavam quase ao desespero para localizar seus clientes
na polícia e no labirinto das instalações militares. A maior dificuldade para os
advogados era a ausência
____________
98. Para uma explicação da estrutura da justiça militar, ver Joan
uassm, ed., Torture in Brazil {New York, Random House, 1986), pp. 141-60.

262 Brasil: de Castelo a Tancredo
do habeas-corpus. Por isso eles atormentavam os tribunais militares, tentando
qualquer estratagema para encontrar seus presos. Com persistência e coragem
conseguiam às vezes extrair migalhas de informações. Estas também lhes chegavam
através de telefonemas anônimos dizendo-lhes do paradeiro de um preso. Seriam
esses informantes funcionários da justiça militar? Os presos recorriam a várias
formas de comunicação: leves batidas nos interruptores elétricos ou em caixas de
descarga, ou enviando notícias de novos internos através de prisioneiros em vias
de serem libertados."

O maior aliado das vítimas da repressão foi a natureza tradicional da justiça
militar. O conhecido defensor dos direitos civis, advogado Sobral Pinto, sempre
disse que no Brasil a justiça militar era mais liberal do que a justiça
civil.100 No governo Mediei esta tradição foi potencialmente reforçada porque o
regime nomeou generais com formação liberal para ministros de modo a afastá-los
dos comandos ativos. Os funcionários do tribunal e alguns ministros às vezes
colaboravam com os advogados na tentativa de localizar prisioneiros. Em geral
encontravam a maior má vontade, precisavam transpor verdadeira muralha. Não
obstante, a justiça militar algumas vezes funcionou como pára-choque entre o
mundo do DOI-CODI e seus assustados cativos.

Como foi o seu desempenho durante a presidência de Mediei, o mais repressivo
de todos os governos militares? Os dados disponíveis (que cobrem 1964-73, ainda
que a maioria dos casos se refira a 1969-73) mostram um índice de absolvições de
45 por cento - surpreendentemente alto para um regime militar repressivo, embora
muitos dos absolvidos possam responder que a humilhação, a degradação e por
vezes as torturas que sofreram antes do julgamento tenham ofuscado o veredicto
final.101 O estudo mais abrangente do trabalho da justiça militar durante todo o
período repressivo trata de 695 dos 707 julgamentos ocorridos entre abril de
1964 e março de 1979. Foi de 7.367 o número de réus, dos
_______
99. Esta descrição de como os advogados dos presos lutaram para penetrar no
labirinto é baseada em entrevista com Técio Lins e Silva (Rio de Janeiro, 7 de
julho de 1983), José Carlos Dias (São Paulo, 29 de junho de 1983) e J. Ribeiro
de Castro Filho (Rio de Janeiro, 10 de junho de 1983).
100. "Quem tem medo da Justiça Militar?", em Rangel, A hora de enterrar os
ossos, pp. 83-90.
101. O Globo, 17 de abril de 1978, p. 6.

Medici: a face autoritária 263
quais 1.918 informaram ter sofrido torturas. Outros 6.385 foram acusados logo da
instauração dos respectivos processos, mas nunca chegaram à fase de julgamento.
Destes, cerca de dois terços foram presos.102 Quanto ao número de absolvições
versus condenações, a fonte mais abrangente informa (tomando por base um período
de tempo ligeiramente diferente) que 6.196 acusados foram julgados, de outubro
de 1965 a novembro de 1977, com 68 por cento absolvidos e somente 32 por cento
condenados.103 Novamente, um índice impressionante de absolvições.

Uma das absolvições mais noticiadas foi a de Caio Prado Júnior, que fora
acusado de "incitar à subversão" durante uma entrevista coletiva. O ilustre
historiador e intelectual de São Paulo ficou preso (não foi torturado) durante
um ano. Em 1971 foi considerado inocente pelo Superior Tribunal Militar e
libertado (dois outros acusados no mesmo processo foram declarados culpados).104
Em outro caso de São Paulo, as pessoas presas na esteira da apreensão dos frades
dominicanos em 1969, como parte da caçada a Carlos Marighela, foram absolvidas
de todas as acusações dois anos depois.105

O grau até onde a atuação da justiça militar suavizou a repressão não deve
ser superestimado. Os torturadores às vezes simplesmente desafiavam os
tribunais, maltratando e não raro assassinando seus prisioneiros, pouco se
importando com sua responsabilidade perante a mais alta autoridade militar.
Havia também prisioneiros que eram "desaparecidos" antes que qualquer advogado
pudesse confirmar sua localização. Finalmente, havia a lentidão da justiça, que
podia ser altamente perigosa para o preso.106

A justiça militar, apesar de tudo, modificou bastante a situação. Representou
um mecanismo que para alguns prisioneiros
_________
102. Dassin, ed., Torture in Brazil, pp. 77-80.
103. Veja, 21 de dezembro de 1977, p. 23.
104. A opinião do tribunal foi publicada em Revista Trimestral de
Jurisprudência, LIX, pp. 247-59. Sou grato ao Prof. Keith Rosenn, da University
of Miami Law School, por esta referência.
105. Frei Betto, Batismo de sangue, p. 153.
106. Os presos políticos que em 1976 analisaram o funcionamento da justiça
militar viram-na como pouco mais do que a "continuação lógica da tortura" e um
instrumento para "encobri-la". Nogueira Dias, ed., Esquerda armada, pp. 93-110.
Se souberam de alguma absolvição, não a consideraram relevante.

264 Brasil: de Castelo a Tancredo
significou a oportunidade de sobreviver ou de reduzir a sua permanência no
cárcere. (Dizer quantos exigiria extenso estudo das atas do tribunal, além de
testemunhos pessoais.) Por outro lado, era uma arena legal, onde os casos
podiam finalmente ter uma solução definitiva. Em termos práticos, isto
significava que os réus absolvidos de todas as acusações escapavam da obrigação
de ficar posteriormente marcando passo numa espécie de limbo legal. A este
respeito havia grande diferença entre os tribunais inferiores e o Superior
Tribunal Militar. Este era mais liberal e, nos casos de apelação, não raro
revogava as condenações ou reduzia as rigorosas penas aprovadas pelas
auditorias.107 A justiça militar serviu ainda como "salvaguarda da dignidade da
nação", nas palavras da revista Veja.108 Esta função foi importante
mais tarde na transição do regime militar para o governo civil. Forneceu aos
militares um simbólico ponto de reunião, prova de que pelo menos alguns oficiais
observaram a tradição de legalidade e decência no tratamento dado aos
prisioneiros.

Finalmente, o funcionamento da justiça militar permitiu que se registrasse em
seus arquivos, nos seus mais horríveis detalhes, a história da repressão. Foi
esta a fonte que a equipe de pesquisa da arquidioceses de São Paulo usou para o
extraordinário documentário Brasil: Nunca Mais. Como resultado, o principal
libelo contra as violações dos direitos humanos perpetradas pelo governo militar
brasileiro foi documentado com material extraído dos arquivos militares
oficiais. Parece também provável que o acesso àqueles arquivos tenha sido
conseguido com a ajuda de alguém que trabalhava no tribunal. Se é verdade, o
fato ressalta novamente o papel desempenhado pela justiça militar tanto durante
quanto após a repressão. Na Argentina, em compensação, a fonte teve que ser o
relato de sobreviventes, de testemunhas ou parentes, que sempre pode ser
contestado como de segunda ou terceira mão. No Brasil os militares e seus
apologistas jamais poderão impugnar as fontes reveladoras dos arrepiantes
fatos sobre os anos de terror.

Mas nunca se soube de qualquer notícia de que a justiça militar tivesse
ameaçado a estrutura fundamental da repressão.
___________
107. F. A. Miranda Rosa, Justiça e autoritarismo (Rio de Janeiro, Zahar,
1985), pp. 34-37.
108. Veja, 21 de dezembro de 1977, p. 23.

Medici: a face autoritária
265
Isto só podia vir do mais alto comando militar, ou de qualquer outra força capaz
de extingui-la.

Um exemplo bastante ilustrativo do assunto ocorreu no fim de 1971. Naquela
época a Força Aérea havia desenvolvido sua própria rede de interrogatórios e de
tortura, teoricamente subordinada ao comando das forças armadas. Mas a verdade
era que as equipes daquele serviço operavam cada vez mais por conta própria,
tendo como oficial responsável o brigadeiro Burnier, um torturador de notório
sadismo. Em fins de novembro de 1971, o ministro do Exército Orlando Geisel,
vice-rei de fato das forças armadas, forçou a renúncia do ministro da
Aeronáutica Souza e Mello, que vivia se gabando dos seus esquadrões anti-
subversão. Quando o novo ministro tomou posse, os esquadrões, que não cediam sem
luta, tentaram continuar funcionando. Com o apoio de Geisel, o ministro mandou
para a reserva mais dez oficiais de alta patente, inclusive Burnier.109

A significação dessas demissões não é que Orlando Geisel e o Planalto tenham
desfechado um golpe contra a tortura. Ao contrário, estavam afirmando seu
controle sobre as operações de segurança. Especular que tal força pudesse um dia
ser usada para eliminar a tortura em nada confortava aqueles que estavam
atravessando o inferno infestado por Sérgio Fleury e os da sua laia.

O presidente Mediei ou os ministros militares poderiam ter acabado com a
tortura, se o tivessem desejado? Havia várias barreiras institucionais. Antes de
tudo, os torturadores tinham interesse em sua continuação. Os de São Paulo, por
exemplo, recebiam favores financeiros dos empresários locais após cada operação
bem sucedida. Sérgio Fleury fazia ostentação dos seus ganhos traduzidos em uma
mansão e um iate.110 Mas esta bonança só continuaria se os torturadores tivessem
sempre à mão um contínuo suprimento de suspeitos que justificasse seu sistema.
___________
109. Fiechter, Brazil Since 1964, p. 149. Propalava-se na época que
i alguns dos oficiais demitidos também foram culpados de corrupção (ligada
à construção da gigantesca ponte Rio-Niterói), o que deu ao Alto Comando
um motivo a mais para o expurgo. A repressão militar-poilcial no Brasil
(n.p., foto off-set, 1975), p. 64.
110. Rivaldo Chinem e Tim Lopes, Terror policial (São Paulo, Global, 1980), p.
17; circulou a notícia de que homens do Segundo Exército deram a Fleury uma
recompensa de 50.000 cruzeiros pela morte de Joaquim Câmara Ferreira, o sucessor
de Marighela no comando da ALN. A repressão militar-

266 Brasil: de Castelo a Tancredo
Os linhas-duras afirmavam que os subversivos se haviam infiltrado em todas as
instituições, portanto devia haver grande quantidade de suspeitos entre os
ativistas do clero, entre os alunos e professores das universidades, entre os
militares expurgados, os artistas e jornalistas. Como a alta cúpula militar
levava tempo para reconhecer e decidir como reagir ao fato de que as guerrilhas
foram efetivamente eliminadas, o aparato de segurança continuava a executar sua
sinistra tarefa.

Os torturadores tinham também a vantagem de acesso direto aos militares de
maior graduação. Podiam prontamente mostrar-lhes a mais recente evidência da
atividade guerrilheira (uma publicação clandestina, uma confissão incriminadora,
uma carta ou um telefonema interceptados) para provar que o perigo não acabara.
Finalmente, podiam alegar que qualquer declínio da atividade subversiva era
devido diretamente à sua vigilância. Reduzi-la seria um convite ao retorno dos
revolucionários armados.

Além do mais, qual o oficial militar de alto nível com autoridade moral e
política para acabar com a tortura? Em 1971 todos os oficiais de patente
superior haviam exercido comandos onde se praticava a tortura. Se qualquer deles
resolvesse pôr um fim àqueles horrores, correria o risco de ser tachado de
hipócrita.111 E havia mais a preocupação de que algum dia pudessem vir a ser
julgados pelas barbaridades praticadas sob seu comando. Era o que os jornalistas
chamavam de "síndrome de Nuremberg".

A censura era outro instrumento governamental de repressão. Começara em
meados de dezembro de 1968 sob a autoridade do AI-5. Até meados de janeiro de
1969 foi exercida por oficiais do Exército. Em seguida começou um período de
autocensura nego-
___________
policial no Brasil, p. 131". O governador de São Paulo Abreu Sodré outorgou a
Fleury uma comenda por seu "ato de bravura" matando Marighela; Chinem e Lopes,
Terror policial, pp. 15-16.
111. Encobrir mortes, especialmente por tortura, era o mais grave envolvimento
para um comandante. Um general com experiência no serviço de segurança comentou
mais tarde que "para dar destino secretamente a um corpo a ordem teria que vir
de alguém com pelo menos quatro estrelas (ou o equivalente nas outras duas
forças)". Rangel, A hora de enterrar os ossos, p. 14. O corpo desaparecido de
que mais se falou foi o de Rubens Paiva, cujo destino provavelmente ficou a
cargo do PARA-SAR, um serviço de resgate de elite da Força Aérea.

Mediei: a faie autoritária 267
ciada entre donos de jornais e as autoridades militares. Este acordo rompeu-se
quando a censura foi assumida pela Polícia Federal em setembro de 1972, e os
donos dos meios de comunicação se recusaram a tratar com aquela instituição.
Posteriormente a polícia passou a mandar suas ordens de censura aos editores,
por telefone ou por escrito. Os assuntos geralmente proibidos eram atividades
políticas estudantis, movimentos trabalhistas, pessoas privadas dos seus
direitos políticos e más notícias sobre a economia. As notícias mais sensíveis
eram as referentes aos militares - o que quer que pudesse causar dissensão nas
foiças armadas ou tensão entre os militares e o público.112

A censura era simplesmente o reverso da campanha de propaganda do Planalto
conduzida pela AERP. O trabalho dos censores era impedir que a mídia lançasse
qualquer dúvida sobre o quadro apresentado pela AERP de uma nação dinâmica e
eficientemente governada sob a liderança de militares, avidamente apoiados pela
cidadania. Um bom exemplo dos censores em ação forma carta que eles impediram
que fosse publicada em O Estado de S. Paulo. A carta (escrita por Ruy Mesquita,
da família proprietária do jornal) atacava a censura dizendo que ela havia
reduzido o Brasil ao "status de república de bananas". Esta metáfora enfurecia
os militares que se consideravam muitos furos acima dos tradicionais ditadores
hispano-americanos. Os censores conseguiram evitar a publicação no jornal
patlista, mas o Correio do Povo de Porto Alegre, que não sofria censura prévia,
publicou a carta. A polícia local, advertida, cercou a oficina de impressão e
confiscou toda a edição antes de ser posta à venda.113
___________
112. Joan R. Dassin fornece excelentes informações sobre este assunto em "Press
Censorship - How and Wíy", Index on Censorship, VIII, N.° 4 (julho-agosto de
1979), e "Press Censoiship and the Military State in Brazil", em Jane L. Curry e
Joan R. Dassin, eds., Press Contrai Around the World (New York, Praeger, 1982),
pp. 149-86- O período de autocensura é omitido no relato de Dassin. Argemiro
Ferreira, "Informação sob controle", Revista Arquivos, N." 165, pp. 94-110.
Agradeço a Alberto Dines os detalhes sobre como a censura foi aplicada. Para
reportagens estrangeiras sobre a censura no Brasil, ver o New York Times, 28 de
dezembro de 1970 e 17 de fevereiro de 1973. Para um relato em primeira tão de
como a censura funcionava em O Estado de S. Paulo, ver a entrevista com o
editor-chefe do jornal, Oliveiros Ferreira, em Rangel, A hora de enterrar os
ossos, pp. 92-99.
113. Robert N. Pierce, Keeping tlfe Flame: Media and Government in Latin America
(New York, Hastings House, 1979), p. 45.

268 Brasil: de Castelo a Tancredo

Em setembro de 1972 o governo militar decidiu assumir mais diretamente o
controle da imprensa.114 As ordens agora eram dadas por escrito especificando o
que não podia ser publicado. Na lista de assuntos proibidos a prioridade era
para as atividades do aparelho de segurança e a luta pela sucessão presidencial.

Os excessos da censura inevitavelmente produziam sua própria reação. Um dos
maiores desafios com que ela se defrontou foi o semanário humorístico Pasquim,
impiedoso para com os generais tanto nos cartuns quanto no texto. Em 1970 todo o
staff do semanário foi preso por mais de um mês (a notícia circulou
imediatamente de boca em boca). Com a libertação dos seus responsáveis, a
circulação do semanário subiu para 200.000 exemplares, um recorde para esse
gênero de publicação no Brasil. Mesmo quando privado do sarcasmo de seus cartuns
e de seus textos, o Pasquim uniu os espíritos contra a edênica propaganda do
governo militar.115

Outros alvos prediletos dos censores foram: Opinião, um semanário de centro-
esquerda; Movimento, semanário combativamente esquerdista; O Estado de S. Paulo,
diário conservador da capital paulista, de propriedade da pugnaz família
Mesquita; O São Paulo, semanário orientado pela arquidiocese de São Paulo; e a
centrista Veja, a principal revista de notícias do Brasil.

Os meios de comunicação eram um campo de batalha para os censores. Mais
importantes, do ponto de vista do impacto público, eram a televisão e o rádio. E
também aqui o governo ditava o que podia e o que não podia ser transmitido.116
Eram especialmente controladas as músicas de certos compositores-cantores, como
Chico Buarque de Holanda, Gilberto Gil e Caetano Veloso, estes dois últimos
viveram no exterior no período Mediei.117
_____________
114. Uma reflexão sobre o fatos que levaram a esta decisão encontra-se nos
artigos de Carlos Chagas em O Estado de S. Paulo. De meados de abril a agosto
suas colunas veiculavam fábulas, indicação certa de que os nomes não podiam ser
mencionados. Chagas, Resistir ê preciso, pp. 31-40.
115. Pierce, Keeping íhe Flame, p. 44; Marvin Alisky, Latin American Media:
Guidance and Censorship (Ames, lowa State University Press, 1981), pp. 110-11.
116. Gerald Thomas, "Closely Watched TV", índex on Censorship, VIII, N.° 4
(julho-agosto de 1979), pp. 43-6.
117. Krane, "Opposition Strategy", p. 55.

269
Todas as medidas dos censores da Polícia Federal eram destinadas supostamente
a impedir a circulação de palavras perigosas, cartuns e músicas dos inimigos do
estado de segurança nacional. Controlando a mídia, os generais pensavam que
podiam controlar o comportamento. A curto prazo conseguiam. A mídia submetia-se.

A Igreja: uma força de oposição

Quando a repressão se abateu sobre o Brasil, a Igreja Católica Romana
representou virtualmente o único centro de oposição institucional.118 Vimos
antes como alguns dos seus elementos foram
___________
118. Como um ativista da Igreja disse mais tarde, o governo não podia nomear um
bispo da mesma forma que nomeava, por exemplo, o reitor da Universidade de
Brasília. Entrevista com Frei Betto, São Paulo, 30 de junho de 1983. Nos anos 70
a Igreja Católica do Brasil emergiu como uma das mais inovadoras e
controvertidas do mundo. Para detalhes sobre este processo, ver Ralph delia
Cava, "Catholicism and Society in Twentieth Century Brazil", Latin American
Research Review, XI, N.°2 (1976), pp. 7-50, e Thomas Bruneau, The Political
Transformation of the Brazilian Catholic Church (Cambridge, Cambridge University
Press, 1974). Bruneau continuou a história até 1978 em seu The Church in Brazil:
The Politics of Religion (Austin, University of Texas Press, 1982), que inclui
estudos sobre várias comunidades eclesiais de base. A tentativa mais bem-
sucedida de colocar a Igreja contemporânea do Brasil em perspectiva é de Scott
Mainwaring, The Catholic Church and Politics in Brazil,1916-1935 (Stanford,
Stanford University Press, 1986), rica em detalhes sobre conflitos Igreja-
governo e o processo de mudança dentro da Igreja. Ver também Ralph delia Cava
"The 'People's Church', the Vatican and the Abertura" a aparecer em Alfred
Stepan, ed., Demócratizing Brazil (a ser publicado, Oxford University Press),
que trata principalmente do período após 1970. Cava é especialmente interessante
ao tratar das influências européias sobre os elementos progressistas e
conservadores da Igreja. Há uma série de entrevistas com bispos em Helena Salem,
ed., A igreja dos oprimidos (São Paulo, Ed. Brasil Debates, 1981). Os
pesquisadores podem consultar um índice extremamente útil num arquivo de
imprensa, em Paris, sobre a Igreja brasileira. Ralph delia Cava, ed., A igreja
em flagrante: catolicismo e sociedade na imprensa brasileira, 1964-1980 (Rio de
Janeiro, Editora Marco Zero, 1985). Para uma importante reportagem na imprensa
estrangeira sobre as críticas da Igreja ao governo, ver o New York Times, 27 de
julho de 1972. Ver também o importante estudo de Márcio Moreira Alves, L'Eglise
et Ia politique au Brésil (Paris, Lês Editions du CERF, 1974), que contém
valiosa análise institucional da Igreja.

270 Brasil: de Castelo a Tancredo
arrastados à luta contra o governo Costa e Silva, especialmente após dezembro de
1968. As lutas decorreram sempre dos esforços que a Igreja fazia para defender
os membros do clero ou do laicato desavindos com as forças de segurança.119 Os
católicos mais propensos a choques com o aparelho de repressão eram os que
militavam em certos grupos ativos como a Ação Popular (AP) a Juventude
Universitária Católica (JUC) e a Juventude Operária Católica (JOC), e outros
grupos mais identificados com a esquerda política.

Foram esses os elementos "populares" que emergiram da fermentação intelectual
e institucional ocorrida no interior da Igreja na década de 50 e no início da de
60. No entanto, muitos católicos outrora ativos suspenderam sua militância com
medo das conseqüências. Mas outros (leigos e religiosos) não cederam. Viram que
o aprofundamento da repressão política e o aumento da desigualdade económica
confirmavam o diagnóstico da esquerda radical sobre o capitalismo brasileiro.

Esse tipo de pensamento radical tornara-se cada vez mais comum entre o clero
católico em três regiões do país. Uma era a região amazônica, onde a construção
da Rodovia Transamazônica, o desenvolvimento da criação de gado em larga escala
promovida pelo governo e as promessas oficiais de distribuição de terras
resultaram em uma guerra aberta (de que tratamos adiante neste capítulo) •em
áreas-chave do vale amazônico. O clero - em geral missionários e em boa parte
estrangeiros - quase sempre to-
__________
119. Para um excelente sumário e cronologia sobre os ataques do governo à
Igreja, ver Centro Ecumênico de Documentação e Informação, Repressão na Igreja
no Brasil: reflexo de uma situação de opressão, 1968-1978 (São Paulo, Comissão
Arquidiocesana de Pastoral dos Direitos Humanos e Marginalizados da Arquidiocese
de São Paulo, 1978). Para uma principal fonte sobre a repressão policial e
militar contra o clero, ver Frei Fernando de Brito, Frei Ivo Lesbaupin e Frei
Carlos Alberto Libanio Christo, O canto na fogueira (Petrópolis, Vozes, 1977),
que consiste em cartas e diários durante sua prisão de 1969 a 1973. Frei
Fernando e Frei Ivo foram acusados de envolvimento com Carlos Marighela e
descritos como delatores pelo detetive Sérgio Fleury na emboscada do chefe
guerrilheiro em São Paulo, fato que teve a mais ampla divulgação. Frei Betto
(Carlos Alberto Libanio Christo) foi preso pouco depois da emboscada, como
também Frei Tito, um irmão dominicano que ficou perturbado da mente em
conseqüência de tortura e cometeu suicídio na França logo depois de sair da
prisão.
271

mava o partido dos posseiros e dos pequenos agricultores que vinham sendo
pressionados, muitas vezes com violência. Tanto as autoridades federais quanto
as locais - quando presentes - quase -invariavelmente apoiavam os graúdos
interessados em grandes projetos. O clero, que nunca fizera política, ficava
cada vez mais indignado e convencia os bispos de sua região de que estavam sendo
praticadas graves injustiças sociais. Os bispos, por sua vez, elevavam a voz em
tom radical, influenciando o clero de outros 'pontos do país. Radicalização
paralela ocorria entre o clero do Nordeste, onde a injustiça social vinha de uma
estrutura econômica velha de séculos e que perpetuara as mais brutais
desigualdades sócio-econômicas do Brasil. Os bispos do Nordeste, como os da
Amazónia, denunciaram a totalidade do sistema econômico como injusto. Outro
importante centro de oposição radical ao governo ficava em São Paulo, onde o
arcebispo recém-nomeado (1970), Dom Paulo Evaristo Arns, estava denunciando a
repressão que atingira ativistas da Igreja, organizadores sindicais, estudantes
e jornalistas com violência maior do que em qualquer outro lugar.

A Igreja brasileira estava fortemente dividida em relação ao papel que lhe
cabia na política, tomada esta no mais amplo sentido. Os bispos formavam-se mais
ou menos em três alas, que refletiam tanto a opinião clerical quanto a leiga.120
Uma era a ala "progressista", cuja figura mais destacada era Dom Helder Câmara,
o internacionalmente famoso arcebispo de Olinda e Recife, no coração do Nordeste
brasileiro torturado pela pobreza.121 Os bispos deste grupo pregavam contra a
violência do governo e, com igual veemência, contra a injustiça social.
Condenando esta, eles assumiam uma posição política mais radical, de vez que
necessaria-
__________
120. O repórter do New York Times no Brasil estimou em fevereiro de
1974 que, de 240 prelados, aproximadamente cinqüenta eram "conservadores" que
apoiavam o governo militar e aproximadamente quarenta eram "radicais de
esquerda". Os outros 150 eram "moderados". New York Times, 24 de fevereiro de
1974. Esta estimativa é mais ou menos semelhante a um levantamento da opinião
dos bispos publicado pelo Jornal do Brasil de 29 de julho de 1980, que
relacionava 39 conservadores, 62 progressistas e 159 moderados. Citados-
em Marcos de Castro, A igreja e o autoritarismo (Rio de Janeiro, Jorge Zahar,
1985), p. 54.
121. Para um estudo altamente simpático a Dom Helder, ver Marcos de Castro, Dom
Helder (Rio de Janeiro, Graal, 1978).

272 Brasil: de Castelo a Tancredo
mente tinham que atacar as políticas do governo que haviam contribuído para o
aumento da desigualdade econômica.

O segundo grupo de bispos formava a ala "conservadora", da qual Dom Geraldo
de Proença Sigaud, arcebispo de Diamantina, era o nome mais conhecido.122 Eles
eram o contrapeso direitista à ação dos "progressistas". Denunciavam a ameaça
"subversiva" ao Brasil e imperturbavelmente apoiavam o regime militar.

O terceiro grupo pertencia à ala "moderada", formada por bispos que
procuravam evitar a tomada de qualquer posição pública sobre justiça sócio-
econômica ou política. É que temiam pela sobrevivência da Igreja numa luta
contra o governo, apesar da urgência de certas questões. Os "moderados" tendiam
a unir-se aos "progressistas", formando assim a maioria, sempre que o próprio
clero era vítima de vexames e de tortura. Quando lutavam para se protegerem a si
mesmos, os bispos estendiam seu manto sobre todas as vítimas da repressão. Seu
instrumento era a Comissão de Justiça e Paz, vigorosamente apoiada pelo
Arcebispo Arns em São Paulo. Nesta Comissão trabalhava um pequeno mas dedicado
grupo de sacerdotes, voluntários leigos e advogados que se esforçavam para
localizar presos políticos, dar-lhes representação legal e aconselhar suas
famílias. Às vezes não podiam fazer mais do que aconselhar.

Os militares faziam um juízo obtuso da oposição da Igreja. Os linhas-duras há
muito, aliás, acusavam o clero de ajudar os revolucionários armados. Em 1969
acharam ter encontrado a oportunidade de mostrar que tinham razão. Depois da
morte do líder guerrilheiro Carlos Marighela no mês de outubro em São Paulo, em
uma emboscada policial, sete frades dominicanos foram presos e acusados de lhe
terem dado ajuda. Reportagens inspiradas pelo governo informaram que os
dominicanos, sob tortura, tinham se prestado a atrair Marighela para a morte. A
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) rejeitou a acusação. Sabendo
que o governo militar capitalizaria a seu favor a oposição do público à
violência revolucionária, o Cardeal Rossi, então arcebispo de São
___________
122. Num congresso anticomunista realizado no Rio em janeiro de 1974, Dom
Geraldo Sigaud fez um discurso inflamado atacando os "subversivos" tanto da
direita quanto da esquerda. Recebeu uma censura do arcebispo do Rio, Dom Eugênio
Sales, o qual disse que Dom Sigaud .não falava pela Igreja. Este devolveu
imediatamente a censura. A divergência foi uma boa

Medici: a face autoritária 273
Paulo, denunciou toda a violência, esperando assim construir a necessária
credibilidade para futuras críticas ao governo.

O ano de 1969 vira a violência aumentar contra os religiosos. Em maio, como
já dissemos, o Padre Pereira Neto, um jovem sacerdote que trabalhava intimamente
ligado a Dom Helder Câmara em programas para a juventude, foi linchado em
Recife. Os matadores nunca foram identificados, mas poucos duvidaram que tal
crime só podia ter sido cometido por alguém estreitamente ligado às forças de
segurança. Em outros lugares, a polícia fazia batidas regularmente em conventos
e escolas. Uma prisão de 40 suspeitos incluiu a madre superiora de um convento.
Em meados de novembro o arcebispo de Ribeirão Preto no estado de São Paulo
excomungou o chefe de polícia local e seu substituto imediato por terem
maltratado alguns religiosos. Em meados de dezembro o bispo de Volta Redonda (no
estado do Rio de Janeiro) e 16 outros padres foram denunciados sob a acusação de
distribuírem literatura subversiva. Um dia depois mais 21 suspeitos foram
presos, inclusive nove frades dominicanos. O Cardeal Rossi e outros
18 membros dos 32 que compõem a Comissão Central da CNBB hipotecaram vigoroso
apoio ao bispo acusado. Violentos choques prosseguiram ao longo de 1970. Prisões
periódicas de padres alternavam-se com denúncias dos bispos progressistas sobre
atos de tortura praticados pelo governo. Aqueles geralmente associavam as suas
declarações antigovernamentais com denúncias de terrorismo, qualquer que fosse a
fonte, esperando assim manter a credibilidade.

Como resultado, a Igreja tornou-se o mais conspícuo opositor do estado
autoritário brasileiro. Não era apenas a CNBB procurando agressivamente defender
sacerdotes e leigos contra a tortura (muitas vezes sem êxito). Eram também os
ativistas católicos que mobilizavam seus contatos no exterior - no Vaticano, no
seio do clero e do laicato da Europa e dos Estados Unidos, e de outros ativistas
dos direitos humanos, gerando assim protestos na impren-
_____________
indicação das divisões políticas que lavravam na Igreja. New York Times,
23 de janeiro de 1974, pp. 26-27. Gustavo Corção era um dos mais conhecidos
membros do laicato conservador. Para exemplo de muitas de suas colunas atacando
os progressistas da Igreja, ver O Globo, 16 de setembro de 1971.

274 Brasil: de Castelo a Tancredo
sa estrangeira. A crítica dos meios católicos estrangeiros inquietava
especialmente os militares brasileiros.123 *

Em janeiro de 1970, por exemplo, um cardeal canadense e membro da Comissão de
Justiça e Paz da Igreja informou que o Papa estava acompanhando detidamente os
acontecimentos no Brasil, e se achava especialmente preocupado com as violações
dos direitos humanos. Mais tarde, ainda em 1970, o jornal do Vaticano,
L'Osservatore Romano, sugeriu que o governo brasileiro evitasse a repressão. Em
outubro o próprio Papa falou contra a tortura, embora não mencionando o Brasil
pelo nome. O governo Mediei ficou amargamente ressentido com esta campanha
internacional, e plantou matérias contra a Igreja na imprensa brasileira. Ao
mesmo tempo, a oposição ficou torcendo para que essa pressão de fora ajudasse a
extinguir o pesadelo da repressão.

Através dos restantes anos de Mediei a Igreja continuou a ser uma espinha na
garganta do regime militar. Em março de 1973, por exemplo, os bispos se
manifestaram abertamente contra as restrições à liberdade. Isto simplesmente
confirmava para a linha dura a cumplicidade da Igreja com a subversão armada.
Mas a Igreja manteve-se firme, apesar de suas fraquezas e divisões internas.
Aliás, ela tornou-se um ponto de reunião para católicos e não católicos
brasileiros que em tempos normais talvez não lhe dessem muita atenção.

O "Boom" econômico e seus críticos

Á doença do presidente Costa e Silva em setembro de 1969 suscitou
imediatamente a pergunta: continuarão as políticas econômicas de Delfim? Mas o
general Mediei rapidamente deixou claro que não desejava fazei grandes mudanças.
Mais importante, os principais responsáveis por essas políticas, Delfim na
Fazenda e Reis Velloso na Secretaria do Planejamento, permaneceram. Em virtude
da mão forte do governo autoritário sobre o país, nenhum grupo de interesse ou
setor social ganharia alguma coisa pressio-
_________
123. Mais detalhes sobre protestos no estrangeiro contra violação dos direitos
humanos no Brasil são dados na seção "Surge a guerrilha", no capítulo
precedente.

Medici: a face autoritária 275
nando de público o governo (por trás dos bastidores obviamente era diferente).
Os tecnocratas ainda se achavam ao leme e navegando com segurança.124

Na primeira reunião ministerial de Mediei em janeiro de 1970, Delfim Neto
anunciou três metas econômicas: (1) 8-9 por cento de crescimento do PIB; (2)
inflação abaixo de 20 por cento; (3) acrescentar pelo menos US$100 milhões às
reservas estrangeiras. Reis Velloso, agora ministro do Planejamento e da
Coordenação, queria que seus colegas pensassem numa "tríplice perspectiva": o
mandato de Mediei (até 1974), toda a década de 1970 e até o fim do século,
atentos à "nossa entrada no mundo desenvolvido".125

Este enfoque ambicioso veio novamente à baila quando o governo Mediei
publicou seu primeiro documento de planejamento abrangente em setembro de 1970.
O espírito das Metas e Bases para a Ação do Governo era claro na introdução.126
A Revolução de marco de 1964 criara "as condições básicas para o verdadeiro
desenvolvimento, a democracia e a soberania". O Brasil precisava, "acima de
tudo, de um governo sem compromissos com os interesses de qualquer grupo,
classe, setor ou região".127 Aqui novamente os tecnocratas proclamavam seus
desinteressados serviços à nação.

124. A fonte principal para dados sobre tendências macroeconômicas nesta seção é
o Economia Survey of Latin America para 1969-74, da Comissão Econômica das
Nações Unidas para a América Latina. A menos que indicado diferentemente, os
dados procedem desta fonte.
125. O Estado de S. Paulo, 7 de janeiro de 1970. Ao assumir o Ministério do
Planejamento em novembro de 1969, Velloso fez soar a mesma nota: "É altamente
importante selecionar as áreas de nossas Grandes Decisões estrategicamente
cruciais e de alta prioridade e depois alocar maciços recursos para levá-las a
cabo". Desenvolvimento e planejamento: pronunciamentos dos ministros João Paulo
dos Reis Velloso e Hélio Beltrão na transmissão do cargo, em 3 de novembro de
1969 (n. p., Ministério do Planejamento e Coordenação Geral, novembro de 1969),
p. 19.
126. Presidência da República, Metas e bases para a ação de governo: síntese
(Brasília, setembro de 1970). Este documento era apenas um esboço inicial de
metas. Foi seguido pelo / Plano Nacional de Desenvolvimento (PND) - 1972-74
(Brasília, 1971), que definia as metas por setor.
127. Metas e bases, p. 3.

276 Brasil: de Castelo a Tancredo

Se a repressão era objeto de graves objeções ao governo Mediei na opinião
internacional, o boom econômico era o seu maior trunfo. Observadores tanto
brasileiros quanto estrangeiros concordavam que o rápido crescimento estava
"legitimando" o regime, especialmente aos olhos da classe média.128 As três
metas de Delfim foram amplamente alcançadas. O crescimento econômico apresentava
a mais alta taxa sustentada desde os anos 50. O PIB subiu à média anual de 10,9
por cento de 1968 a 1974. O setor líder foi a indústria, com 12,6 por cento ao
ano. A performance mais modesta foi a da agricultura, com a média de 5,2 por
cento. A inflação ficou na média de 17 por cento (embora o número oficial de
15,7 por cento para 1973, como se admitiu depois, tenha sido uma atenuação da
verdade).129 Quanto às reservas, subiram de US$656 milhões em 1969 para US$6,417
bilhões em 1973.

Alguns críticos haviam anteriormente previsto que altas taxas de crescimento
seriam improváveis, se não impossíveis. Economistas como Celso Furtado
apresentaram uma análise subconsumista afirmando que o melhor que se podia
esperar era a estagnação da metade dos anos 60. Para esses economistas, o
crescimento só podia ser alcançado através da realização de reformas estruturais
(como reforma agrária, reforma educacional etc.) para redistribuir a renda e
conseqüentemente aumentar a demanda efetiva. Mas Delfim Neto e seus tecnocratas
estavam obtendo o crescimento rápido através de meios diferentes, como
incentivos tributários, hábil manipulação do sistema financeiro e redução dos
custos da mão-de-obra. Não parece ter havido escassez de demanda, como
128. Um bom exemplo foi a exuberante mensagem do jornalista Murilo Melo Filho em
três best-sellersjno Brasil: O desafio brasileiro (Rio de Janeiro, Edições
Bloch, 1970), O milagre brasileiro (Rio de Janeiro, Edições Bloch, 1972) e O
modelo brasileiro (Rio, Edições Bloch, 1974). A cada volume o autor se tornava
mais confiante que o Brasil adotara exatamente as opções políticas e econômicas
corretas para assegurar a prosperidade futura. Ele confiou nos dados oficiais,
às vezes até colaborando para melhorá-los.
____________
129. O Banco Mundial logo reagiu aos números manipulados da inflação oficial de
1973 e fez sua própria estimativa de 22,5 por cento, que se tornou amplamente
usada no Brasil, embora a censura impedisse sua divulgação. Folha de S. Paulo,
31 de julho de 1977.

Furtado e outros destacados críticos como Maria da Conceição Tavares agora
reconhecem.130

A performance econômica em 1969 definiu a tendência para o resto do governo
Mediei. O PIB cresceu à taxa de 10,2 por cento, liderado pela indústria com 12,1
por cento. O setor industrial mais dinâmico foi o de veículos motorizados, que
cresceu à taxa anual de 34,5 por cento. Dessa produção, que atingiu o total
anual, em 1969, de 354.000 unidades, 67 por cento eram carros de passageiros, o
resto caminhões e ônibus. Essa relação contrastava fortemente com o período
1957-69, quando a parcela dos carros de passageiros era apenas 49 por cento. A
produção estava se inclinando para a forma de transporte menos eficiente quanto
a uso de combustível.

Várias decisões de política econômica pós-1964 contribuíram para essa atitude
da indústria automobilística. Uma foi a política de crédito mais fácil começada
em 1967, estabelecendo condições especiais para a compra de carros. Os governos
posteriores a 1964 também abriram o mercado brasileiro aos três gigantes
americanos - General Motors, Ford e Chrysler - que não tinham feito
investimentos no Brasil (na produção de veículos de passageiros) porque achavam
muito pequeno o lucro com a fabricação apenas dos pequenos carros econômicos
estipulada pelo governo quando a indústria do automóvel foi criada no final da
década de 1950. Depois de 1964, os regulamentos foram revistos, permitindo a
produção de carros médios (pela definição de Detroit). O consumidor reagiu bem e
as vendas de carros aumentaram consideravelmente.

Não foram pequenos os custos sociais decorrentes da expansão da indústria
automobilística. Em primeiro lugar, a grande ênfase em carros de passageiros
encorajou uma forma relativamente ineficiente de transporte. A questão do
combustível era vital, porque o Brasil importava então 80 por cento do seu
petróleo.
___________
130. Celso Furtado, Análise do "modelo" brasileiro (Rio, Civilização Brasileira,
1972); Furtado, O mito do desenvolvimento econômico (Rio de Janeiro, Paz e
Terra, 1974); Maria da Conceição Tavares, Da substituição de importações ao
capitalismo financeiro: ensaio sobre economia brasileira (Rio de Janeiro, Zahar,
1973).

278 Brasil: de Castelo a Tancredo

Em segundo lugar, a concentração da demanda em automóveis estimulou mais
investimentos no setor, em detrimento de outros onde havia imperiosa necessidade
de injetar recursos, como a saúde e a educação, para não falar dos bens de
consumo não-duráveis, cuja taxa de crescimento vinha caindo sensivelmente nos
últimos anos. É interessante notar que o argumento em prol de uma política
favorecendo os bens de consumo duráveis, especialmente automóveis, nunca figurou
nem jamais foi defendido em qualquer dos dois documentos econômicos principais
(1970 e 1971) do governo Mediei. Em sua retórica o governo enfatizava os
investimentos sociais, vigorosamente defendendo o setor privado e evitando
discutir os prováveis efeitos globais de sua política distributiva.

A performance de 1969 também foi impressionante no setor público. O governo
demonstrou capacidade para aumentar significativamente a arrecadação de
tributos. O maior aumento em 1969 verificou-se na arrecadação do imposto de
renda, que subiu 60 por cento em termos reais. Era algo impressionante para um
país onde os céticos achavam que o imposto de renda era inexequível. Em sua
totalidade, a gestão financeira do setor público não era inflacionária, já que o
governo vendia bastantes títulos para financiar seu déficit. Esta neutralização
do déficit público fez com que a taxa de elevação dos preços em 1969 ficasse em
20,1 por cento em comparação com a de 1968 que fora de 26 por cento. Parecia
que a equipe de Delfim havia descoberto o segredo do crescimento rápido com
inflação declinante.

A outra boa notícia de 1969 foi na balança de pagamentos, sempre crucial para
a estratégia do desenvolvimento brasileiro. As exportações em 1969 subiram 22,9
por cento, criando um superávit comercial, algo em que não se ouvia falar desde
1966, quando uma recessão industrial reduziu a demanda de importações. Ó surto
de exportações resultou do agressivo uso pelo governo de incentivos tributários
e creditícios para favorecer as vendas ao exterior. Importante também foi o uso
continuado de minidesvalorizações, assegurando aos exportadores um valor
realista do cruzeiro para as suas vendas.131 A balança de pagamentos fortaleceu-
se ainda
_________
131. Atenção favorável dos Estados Unidos à política de taxas cambiais do Brasil
pode ser vista em artigos como "The 'Crawling Peg' Works in Brazil", Business
Week, 16 de setembro de 1972.

279
graças ao ingresso de mais de US$1 bilhão, a maior parte em empréstimos, de
capital estrangeiro. Isto era mais do dobro dos ingressos de 1968 e cinco vezes
mais o total de 1967. Ao todo, 1969 foi outro ano excelente medido pelos
critérios macroeconômicos ortodoxos. O Brasil era privilegiado com essa bonança
em sua balança de pagamentos, porque suas políticas econômicas não agradavam de
modo algum o FMI. Em seu relatório anual de 1971, o Fundo criticou a dependência
do Brasil da indexação e das minidesvalorizações cambiais, afirmando que, se
elas facilitavam viver com a inflação a curto prazo, "tornavam mais difícil a
sua futura eliminação".132 Como o Brasil ia muito bem em matéria de balança de
pagamentos, não tinha necessidade de pedir ajuda ao Fundo e portanto não
precisava ceder à sua ortodoxia.

Os resultados obtidos em 1969 foram largamente mantidos durante o restante do
governo Mediei (1970-73). O crescimento continuou a quase 11 por cento ao ano. O
setor público continuou a operar sem inflação cobrindo qualquer déficit (não
eram grandes) com empréstimos e evitando emitir moeda. Tratava-se na verdade de
um esforço significativo, levando-se em conta o desempenho anterior do setor
público no Brasil e no resto da América Latina.

Os anos 1970-73 viram também o comércio exterior do Brasil crescer
rapidamente. As exportações aumentaram 126 por cento, indo de US$2,7 bilhões em
1970 para US$6,2 bilhões em 1973. As importações aumentaram um pouco mais,
passando de US$2,8 bilhões em 1970 para US$7,0 bilhões em 1973. Como no passado,
o crescimento rápido era intensivo de importações.

O êxito do Brasil na área das exportações tinha várias explicações. Seus
termos de intercâmbio melhoraram substancialmente de 1971 a 1973 e para isso foi
decisivo o aumento de 137' por cento no preço internacional médio da soja, de
1972 a 1973, produto que o Brasil só começara a exportar no final da década de
1960. Por outro lado, o Brasil diversificou bastante a sua pauta de exportações,
procurando imprimir mais ênfase nos produtos industriais. As exportações
industriais aumentaram 192 por
________
132. Folha de S. Paulo, 14 de setembro de 1971, p. 21. Delfim Neto respondeu
caracteristicamente afirmando que qualquer política antiinflação deve tentar
acelerar o desenvolvimento reduzindo simultaneamente a inflação".

280 Brasil: de Castelo a Tancredo
cento de 1970 a 1973; com sua participação no total das exportações subindo de
24 para 31 por cento. Ao contrário do que muitos críticos tinham previsto, o
Brasil estava abrindo mercados para os seus produtos industriais tanto nos
países desenvolvidos quanto no Terceiro Mundo. Além disso, as políticas adotadas
pelos presidentes Castelo Branco e Costa e Silva foram decisivas para estimular
as exportações brasileiras. Os incentivos tributários e creditícios foram
sobremaneira importantes, porque ajudaram a convencer o setor privado que
exportar podia ser bastante lucrativo.133

Finalmente, o Brasil continuava a atrair grandes ingressos de capital
estrangeiro, que eram vitais para a cobertura de seus déficits em conta
corrente. Esses ingressos eram representados principalmente por empréstimos a
médio e longo prazo. Duas importantes medidas estavam em funcionamento no país:
altas taxas de juros reais, asseguradas através da indexação regular, e as
minidesvalorizações, que permitiam que o investidor estrangeiro retirasse seu
dinheiro a uma taxa cambial realista.

A curto prazo o ingresso de capitais foi altamente benéfico, pois ajudou a
financiar o déficit comercial causado pelo aumento das importações indispensável
para que o Brasil mantivesse o desenvolvimento acelerado. Havia também o déficit
a ser coberto na área de serviços que incluíam embarques de mercadorias, seguro,
remessa de lucros e juros sobre empréstimos. A indústria brasileira, o setor
mais dinâmico da economia, consumia grande parcela das importações,
especialmente bens de capital e produtos de petróleo. Ironicamente, a bem-
sucedida política de substituição de importações produzira uma estrutura
industrial que era, pelo menos a curto prazo, intensiva de importações. Não era
de surpreender, de vez que o Brasil havia tentado uma industrialização global,
abrangendo áreas em que a tecnologia era altamente sofisticada e sujeita a
rápida obsolescência. Esta grande necessidade de importações a curto prazo,
combinada com os grandes déficits no setor de serviços, ultrapassou o
crescimento das exportações tornando o desenvolvimento brasileiro dependente dos
ingressos de capital estrangeiro. Como estes vinham principalmente sob a
___________
133. O uso bem-sucedido do crédito e dos incentivos tributários é analisado em
Bela Balassa, "Incentive Policies in Brazil", World Development, VII, N.°s 11-12
(novembro-dezembro de 1979), pp. 1023-42.

Medici: a face autoritária 281
forma de empréstimos, os compromissos do país com o pagamento de juros e
amortizações cresciam cada vez mais. Por fim, verificou o Brasil que esses
compromissos só podiam ser atendidos com a receita de suas exportações, pois
cada empréstimo que contratava era mais uma hipoteca sobre o seu futuro.

Essa estratégia de financiamento era convencional. Foi seguida por todas as
nações em fase de industrialização exceto o Japão. Os Estados Unidos, por
exemplo, foram tomadores de capital estrangeiro líquido até cerca de 1900,
quando inverteu os papéis e passou a exportador líquido até a década de 80. Em
princípio, o Brasil não estava trilhando caminho desconhecido.

Em 1973 os ingressos de capital haviam alcançado o nível recorde anual de
US$4,3 bilhões, quase o dobro do nível de 1971 e mais de três vezes o de 1970. O
governo brasileiro ficou preocupado com o aumento do poder de compra do cruzeiro
criado pelo fluxo de dinheiro externo. Por isso começou a exigir que uma
percentagem (primeiro 25 por cento, depois 40 por cento) dos empréstimos ficasse
em depósito. Estabeleceu também um período (primeiro seis anos, depois dez) para
que os empréstimos permanecessem no Brasil. O depósito compulsório era um meio
de reduzir o impacto dos recursos externos sobre a base monetária, que de outro
modo ter-se-ia expandido subitamente, acelerando a inflação. O tempo limite
mínimo desestimularia os especuladores e tornaria mais previsível a época das
saídas de capital. Poucas vezes em sua história, o Brasil foi forçado a limitar
os ingressos de capital.134
__________
134. O ingresso de capital também liberou a poupança privada para consumo e
assim tornou mais fácil para os brasileiros evitar o uso da poupança doméstica
em investimentos de longo prazo. Isto reforçou a aversão (do ministro da
Indústria e Comércio) à importação de bens de capital, exacerbando assim a
tendência, intensiva de capital, da indústria brasileira. José Eduardo de
Carvalho Pereira, Financiamento externo e crescimento econômico no Brasil: 1966-
73 (Rio, IPEA/INPES, 1974), pp. 182-99. Cabe notar também que por alguns
indicadores os investidores estrangeiros estavam prejudicando mais do que
ajudando a balança de pagamentos. Em 1960-69, por exemplo, as remessas das
empresas americanas quase excederam seus novos investimentos. "U.S. Policies and
Programs in Brazil", p. 215. Em 1974 o impacto líquido de 115 empresas
multinacionais na balança de pagamentos do Brasil foi de US$1,73 bilhão
negativo. Jornal do Brasil, 30 de maio de 1976.

282 Brasil: de Castelo a Tancredo

No final do governo Mediei, o tamanho da dívida externa já estava começando a
preocupar alguns observadores, tanto brasileiros quanto estrangeiros. No começo
de 1974, a dívida era de US$12,6 bilhões, 32 por cento superior à de 1972 e 90
por cento maior do que a de 1971. Mas Delfim Neto minimizou as preocupações,
argumentando com o rápido aumento das exportações e as reservas cambiais, que
em fins de 1973 estavam em US$6,4 bilhões. A julgar-se por estas duas variáveis,
ele dizia, o Brasil está em boa posição para administrar prudentemente sua
dívida.

O boom econômico também resultou em altos salários para profissionais e
administradores. O governo Mediei aumentou o orçamento para a educação superior,
o que representou maior número de vagas nas universidades e contratação de mais
professores. Houve por esse tempo também uma reversão no êxodo de talentos que
ocorrera no período 1964-70, em contraste com a contínua hemorragia causada pelo
autoritarismo do Chile, Uruguai e Argentina. Para os brasileiros dispostos a se
conformar em viver em uma ditadura, as recompensas podiam ser grandes, não só
para eles mas também para as suas instituições. O apelo do governo sensibilizou
especialmente os jovens dos setores sociais médios e superiores - justamente os
segmentos nos quais a oposição armada outrora se abasteceu com tanto êxito.
Assim os ganhos econômicos contribuíram para gerar apoio do setor intermediário
ao governo. As eleições parlamentares de 1970, que a ARENA venceu por esmagadora
maioria, pareceram confirmar esse apoio. Até os brasileiros desgostosos corn o
governo autoritário orgulhavam-se com a evidência de que o país estava realmente
em franca ascensão. Quaisquer que fossem suas imperfeições políticas, o Brasil
estava se aproximando do status internacional em ritmo mais rápido do que muitos
ousaram esperar no início dos anos 60. Os sinais eram tranqüilizadores. Em 1974
as reservas estrangeiras do Brasil excediam as da Inglaterra, enquanto a sede
alemã da Volkswagen, operando com baixos lucros internamente, congratulava-se
consigo mesma pelo extraordinário sucesso de sua subsidiária brasileira. Os
setores intermediários, no entanto, permaneciam em atitude ambivalente. Embora
conscientes dos seus ganhos materiais, revoltavam-se e assustavam-se quando a
repressão os atingia, ou, mais freqüentemente, os seus filhos. A brutalidade dos
agentes do poder forçou alguns a fazer perguntas embaraçosas sobre o governo.

283 Medici: a face autoritária

Neste quadro as classes trabalhadoras contavam pouco em termos de força
coletiva. Os sindicatos eram rigidamente controlados, e as tentativas de
protestos espontâneos, como em 1968, eram facilmente esmagadas e limitavam-se a
ações ocasionais. A possibilidade de atuação coletiva no campo ainda era mais
sombria, em virtude da longa e eficiente repressão ali exercida. Isto não
significa que os trabalhadores individualmente não se tenham beneficiado dos
anos em que a economia mais se expandiu. Alguém tinha que ocupar as novas
posições criadas pelo desenvolvimento acelerado. Sobretudo na região Centro-Sul,
que se industrializava rapidamente, os trabalhadores se beneficiaram com
promoções e com a definição de novos empregos. Mas esses ganhos resultavam do
crescimento econômico e da mobilidade individual da mão-deobra,
não da ação coletiva.

Mas a estratégia de crescimento do país não recebia somente aplausos. Tinha
também seus críticos em líderes do MDB, como Alencar Furtado, Franco Montoro,
Ulysses Guimarães e Freitas Nobre, que freqüentemente, no Congresso, atacavam as
políticas de Mediei e Delfim (em geral com prudência) que supostamente
aprofundavam as divisões econômicas internas e concediam favores indevidos aos
investidores estrangeiros.135 A credibilidade de tais críticos se impunha a
qualquer um que comparasse os mais recentes edifícios de apartamentos de São
Paulo (com garagem para três e quatro carros) com os milhares de garotos de rua
da cidade (imortalizados no filme Pixote), que viviam de pequenos furtos ou
coisas piores.

O censo de 1970 forneceu mais munição para os críticos. Os dados sobre a
distribuição da renda podiam agora ser comparados com os de 1960, tornando
possível no Brasil a primeira série de tempo relativa a tão importante
indicador. Os dados mostravam que entre 1960 e 1970 a distribuição da renda no
país,
__________
135. Discursos desses líderes do MDB podem ser encontrados em Alencar Furtado,
Salgando a terra (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977); Franco Montoro, Da
"democracia" que temos para a democracia que queremos (Rio de Janeiro, Paz e
Terra, 1974); Ulysses Guimarães, Rompendo o cerco (Rio de Janeiro, Paz e Terra,
1978); e Freitas Nobre, Debate sobre problemas brasileiros (Brasília, Coordenada
Editora de Brasília, 1974).

284 Brasil: de Castelo a Tancredo
medida pelo desvio de uma distribuição perfeitamente igual (coeficiente de
Gini), aumentara de forma mais desigual.136

A publicação dos dados causou furor no Brasil. O governo Mediei estava
presidindo a um boom econômico, com a produção e as exportações aumentando
constantemente. A euforia era a ordem do dia entre os membros do governo, na
medida em que planejadores e economistas do mundo inteiro visitavam o Brasil
para conhecer o seu segredo. Mas esta imagem foi prejudicada em maio de 1972
quando o presidente do Banco Mundial Robert McNamara, numa conferência das
Nações Unidas sobre o comércio e desenvolvimento, acusou o Brasil de haver
negligenciado o bem-estar dos pobres no seu processo de crescimento. O líder do
MDB Alencar Furtado aproveitou a deixa: "A análise dos perfis de demanda mostra
que o processo comercial-industrial dos anos recentes agravou a desigualdade de
poder de compra entre setores sociais, assim como aumentou as desigualdades
regionais de desen-
__________
136. A primeira análise de dados de renda do censo de 1970 foi de Albert
Fishlow, "Brazilian Size Distribution of Income", American Economic Review,
LXII, N.° 2 (maio de 1972), pp. 391-402. Fishlow, que afirmava que as políticas
do governo (como a salarial) haviam exacerbado as desigualdades, teve grande
publicidade no Brasil quando o semanário Veja publicou um longo artigo sobre o
assunto, inclusive uma entrevista com Fishlow. Mas Veja teve o cuidado de cercar
Fishlow com uma extensa entrevista de Delfim Neto e um relatório de Carlos
Langoni, sobre um estudo pedido pelo governo, mostrando que as disparidades de
renda podiam em parte ser atribuídas as diferenças de nível educacional. A
questão da distribuição de renda tornou-se uma das principais controvérsias no
estudo da economia brasileira e das políticas dos governos militares, e sua
bibliografia é hoje muito grande. Há uma útil coleção de artigos básicos até
1975 em Ricardo Tolipan e Arthur Carlos Tinelli, eds., A controvérsia sobre a
distribuição de renda e desenvolvimento (Rio de Janeiro, Zahar, 1975). A questão
crucial do" dualismo entre eqüidade e crescimento no Brasil - a que o debate
sobre a distribuição de renda era usualmente reduzido - é tratada extensamente
em Lance Taylor, Edmar L. Bacha, Eliana A. Cardoso e Frank J. Lysy, Models of
Growth and Distribution for Brazil (New York, Oxford University Press, 1980) que
inclui no capítulo 10 detalhado exame dos dados da década de 60 e suas
principais interpretações. Para um desafio bem documentado à sabedoria
convencional relativa à distribuição de renda no Brasil, ver Samuel A. Morley,
Labor Markets and Inequitable Growth (Cambridge, Cambridge University Press,
1982). Para reanálises mais recentes e discussão das tendências na área do bem-
estar econômico e social em 1960-80, ver Capítulo VIII, adiante.

Medici: a face autoritária 285
volvimento". Furtado disse mais: "Vivemos em uma economia que beneficia uns
poucos ao mesmo tempo que sacrifica milhões.. ."137

O governo Mediei, sabendo que sua legitimidade tanto interna quanto externa
girava em torno do "milagre" econômico, reagiu vigorosamente à acusação de que
negligenciara o bem-estar dos brasileiros menos privilegiados. Delfim Neto,
nunca modesto em tais circunstâncias, defendeu suas políticas de altas taxas de
crescimento, dizendo: "Não tenho absolutamente qualquer dúvida de que há neste
país um consenso em favor do desenvolvimento acelerado". Aqui ele repetia o
conhecido argumento de que a aceleração do crescimento era mais importante do
que a melhoria da distribuição a curto prazo. Assim a disputa imediata entre
crescimento e eqüidade tinha que ser resolvida em favor do crescimento. Em
seguida repetiu o pensamento de seus colegas neoliberais Roberto Campos e Mário
Henrique Simonsen de que o crescimento acelerado tendia a aumentar as
desigualdades a curto prazo, ainda que aumentasse a renda absoluta de todos. Por
essa razão Delfim recusou mudanças na distribuição da renda relativa (em
oposição a padrões de vida absolutos) como a forma de medir mais adequadamente o
progresso de uma economia como a brasileira. E tomou o exemplo do trabalhador
na indústria de construção civil e na indústria automobilística. Obviamente, os
salários nesta são mais desiguais do que naquela. "Eu gostaria de perguntar às
pessoas que estão preocupadas com a distribuição de renda se preferiam trabalhar
na construção civil ou na indústria automobilística'", disse. E quem não
concordaria que o crescimento acelerado deve ser a principal prioridade? Talvez,
respondeu Delfim, "algum intelectual suficientemente rico e que agora ache
necessário dar preferência à distribuição".138
__________
137. Alencar Furtado, Salgando a terra, p. 55.
138. As citações são da entrevista de Delfim Neto em Veja, 7 de junho
de 1972. Roberto Campos nunca se cansou de pregar a doutrina do crescimento
antes da redistribuição. Ver, por exemplo, um artigo de jornal de 1969
reproduzido em Roberto de Oliveira Campos, Temas e sistemas, (Rio de Janeiro,
APEC, 1969), p. 159. Há uma detalhada defesa da política governamental com
respeito à distribuição de renda e crescimento em Mário Henrique Simonsen,
Brasil 2002 (Rio de Janeiro, 1972), pp. 47-64. O primeiro documento de
planejamentoo do governo Mediei rejeitara os "excessos redistributivos" que
impediriam a "aceleração da taxa de crescimento nacional", Metas e bases para a
ação do governo, p. 6.

286
Outros defensores da política governamental apressaram-se em argumentar que os
dados do censo tinham sido mal interpretados pelos críticos. Afirmavam que o
período 1960-1970 fugira ao padrão habitual, pois sofrera a instabilidade
política da metade da década de 60 e em seguida o programa de estabilização de
Castelo Branco. Como só haviam sido coligidos dados decenais, era impossível
perceber as tendências dentro da década. Assim, não se podia isolar o que foi
feito pelos governos após 1964, que era o que o MDB e outros críticos queriam.
Finalmente, a ARENA e os porta-vozes do governo afirmavam que, embora pudesse
ter aumentado a desigualdade, cada decil representava crescimento absoluto da
renda. Assim, o boom econômico estava melhorando a condição de todos os
brasileiros, ainda que a taxas diferentes.

Os contra-ataques do regime Mediei resumiam-se a dois pontos: primeiro, o
governo já estava tomando medidas para melhorar a distribuição de renda através
de reajustes do salário mínimo, de mais programas de bem-estar social (melhor
serviço de saúde, mais moradias subsidiadas, mais escolas, maior participação
nos lucros, pensões etc.) e melhoria da renda rural. Segundo, a verdadeira
resposta à pobreza e à distribuição desigual de renda era o crescimento
econômico acelerado, aumentando conseqüentemente o bolo econômico total. Tal
foi, segundo Roberto Campos e os tecnocratas do governo, o segredo da
prosperidade dos norte-americanos e dos europeus ocidentais. O Brasil também
podia alcançar essa meta, se não sucumbisse à tentação de dividir logo um bolo
incompleto. Como afirmava Delfim: "Não se pode colocar a distribuição na frente
da produção. Se o fizermos, acabaremos distribuindo o que não existe".139
____________
139. Veja, 7 de junho de 1972. O Planalto estava bastante consciente da questão
da distribuição de renda, como se pode ver em Mediei, O jogo, pp. 34, 91;
Medici, Entrevista coletiva (Brasília, Departamento de Imprensa Nacional, 1971),
p. 27; New York Times, l de abril de 1971. Os governos militares lançaram vários
programas visando a necessidades sociais, como o MOBRAL (alfabetização),
PROTERRA, PIN e PRORURAL (programas agrários), e PIS e PASEP (formação do
patrimônio de empregados e servidores públicos). Detalhes sobre tendências
sócio-econômicas após 1964 (e como os fundos e programas governamentais as
afetaram) podem ser encontrados no capítulo de autoria de Wanderley Guilherme
dos Santos, em Hélio Jaguaribe, et ai., Brasil sociedade democrática (Rio
de Janeiro, José Olympio, 1985), e em Edmar Bacha e Herbert S. Klein, eds., A
transição incompleta: Brasil desde 1945 (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986), 2
vols.

Médice: a face autoritária 287

Abrindo a Amazônia: solução para o Nordeste?

Embora Mediei tenha continuado muitas das iniciativas econômicas que herdara,
seu governo tinha um estilo próprio em matéria de decisões políticas. Sua grande
preocupação concentrou-se em duas regiões: o Nordeste, que sempre fora uma fonte
de problemas para os governos, e a Amazônia, região que muitos dos seus
antecessores simplesmente ignoraram.

O Nordeste apresentava um problema econômico cuja solução estava muito além
dos recursos alocados por qualquer governo anterior.140 Nenhuma região do Brasil
podia comparar-se à escala de miséria em que viviam mais de 30 milhões de
nordestinos. Em 1961 o governo federal estabelecera uma dedução de 50 por cento
dos impostos das empresas que investissem no Nordeste. A medida provocou um
surto de investimentos nos novos parques industriais da Bahia e da periferia de
Recife. Mas seu efeito final nas economias locais foi questionado por muitos
críticos, porque os investimentos quase invariavelmente foram em tecnologias
intensivas de capital e não de mão-de-obra.141 O governo Castelo Branco,
preocupado em cortar as despesas governamentais, fez muito pouco pelo Nordeste.
O governo Costa e Silva começou dizendo que era necessário ajudar o Nordeste
para promover a integração nacional. Mas esta conversa não se traduziu na
alocação de recursos
_________
140. Uma apreciação muito útil da política para o Nordeste a partir de meados da
década de 70 ó de Roberto Cavalcanti de Albuquerque, "Alguns aspectos da
experiência recente de desenvolvimento do Nordeste", Pesquisa e Planejamento,
VI, N.° 2 (agosto de 1976), pp. 461-88. Os documentos relativos a uma
conferência na Universidade de Glasgow sobre problemas de desenvolvimento do
Nordeste foram publicados em Simon Mitchell, ed., The Logic of Poverty: The Case
of the Brazilian Northeast (London, Routledge & Kegan Paul, 1981).
141. A criação do programa de crédito tributário (conhecido como "artigo
34/18", depois da regulamentação que o criou em 1961) é delineada em Albert
Hirschman, Journeys Toward Progress (New York, Twentieth Century Fund, 1963),
pp. 1-92. Hirschman escreveu um estudo complementar em "Industrial Development
in the Brazilian Northeast and the Tax Credit Scheme of Article 34/18", em A
Bias for Hope (New Haven, Yâle Uniyersity Press, 1971), pp. 124-58, altamente
otimista no tocante à eficiência do programa. Para a opinião de um ex-
funcionário do governo americano sobre o fracasso em promover a criação de
empregos no Nordeste, ver Harold T. Jorgenson, "Impeding Disaster in Northeast
Brazil", Inter American Eco-

288 Brasil: de Castelo a Tancredo
significativos. Delfim Neto e sua equipe tinham como missão fortalecer a
economia nacional, que significava principalmente desenvolver o Centro-Sul. Não
viam razão para desviar grandes somas ^ para uma área onde o retorno dos
investimentos era muito baixo. Quando Mediei substituiu Costa e Silva, não era
pensamento [de Brasília alterar sua política em relação ao Nordeste. Mas a
[situação mudou rapidamente quando uma seca devastadora se (abateu sobre o
Nordeste em 1970. Medici voou para Recife para uma inspeção pessoal,142 e ficou
profundamente chocado. Dezenas [de milhares de flagelados rumavam para as
cidades costeiras, apenas para se desencantarem ainda mais com a comida escassa
e a precária moradia que lhes ofereciam. Ninguém sabia quanto tempo a seca
poderia durar. Mediei determinou a providência óbvia: o f aumento de recursos
federais para alívio de emergência. Mas o [presidente logo descobriu, como
muitos antes dele, que não havia [solução mágica para a miséria do Nordeste. A
seca simplesmente E deixara exposta uma agonia há muito evidente.
Forçado a meditar sobre o futuro do Nordeste, Medici concluiu o óbvio: a
região, considerados os seus recursos, tinha excesso de população. Como era
impossível transferir para lá novos recursos, ele optou pela idéia de tirar os
nordestinos de lá. Mas enviá-los para onde? Um projeto da SUDENE do início dos
anos 60 tentara a colonização no Maranhão, projeto que, entretanto, malogrou. De
volta do Recife, Mediei decidiu que o Nordeste e a Amazônia deviam ser atacados
como um só problema. O Brasil construiria uma estrada transamazônica que abriria
o "despovoado" vale amazônico. O excesso de população do Nordeste seria levado
para a Amazônia atraída pelas terras férteis e baratas proporcionadas pelo
Programa de Integração Nacional (PIN). Mediei chamou a isso "a solução de dois
problemas: homens sem
__________
nomic Affairs, XXI, N.' l (Verão de 1968), pp. 3-22. Um estudo de 1975 da SUDENE
(a agência de desenvolvimento do Nordeste) mostrou que de 11968 a 1972 não houve
aumento de empregos industriais no Nordeste. O Estado de S. Paulo, 8 de abril
de 1975, transcrito em Diário de Pernambuco, 17 de abril de 1975.
142. Minha narração da visita de Mediei ao Nordeste por ocasião da seca
de 1970 baseia-se em Fernando H. Cardoso e G. Müller, Amazônia: expansão do
capitalismo (São Paulo, Brasiliense, 1977), 167 ff., e em seu próprio relato em
Veja, 16 de maio de 1984, p. 16.

Medici: a face autoritária 289
terra do Nordeste e terras sem homens na Amazônia". O PIN deveria incluir três
elementos: (1) abertura do vale amazônico através de uma nova rodovia que
facilitaria a colocação de 70.000 famílias; (2) irrigação de 40.000 hectares no
Nordeste no período 1972-74; e (3) criação de corredores de exportação no
Nordeste.143 O processo, segundo o documento de planejamento inicial do governo,
seria a "ocupação gradual de espaços vazios", frase indicadora do pensamento de
Mediei.144 Problemas sociais difíceis como a miséria em que vivia pelo menos um
terço do Brasil seriam resolvidos não pela nacionalização ou redistribuição da
riqueza ou da renda de quem quer que fosse, mas pela descoberta de novos
recursos. A gigantesca população do Nordeste seria desviada de sua rota normal
de migração para os "superpovoados centros metropolitanos do Centro-Sul" e
levada para as regiões semi-úmidas do próprio Nordeste e da Amazônia e Planalto
Central.145 "Absoluta prioridade" foi dada à construção das rodovias
Transamazônica e Cuiabá-Santarém.146 Um novo programa tão ambicioso
obviamente exigia recursos federais em escala substancial. Mas onde encontrá-
los? Delfim informou o presidente de que não havia recursos - "a menos que os
retiremos do fundo de incentivos". A solução, portanto, era requisitar fundos
federais já consignados para o Nordeste nos programas de incentivo tributário.
Medici disse mais tarde que desviara "somente 30 por cento" do fundo de
incentivos.147

Por que Mediei e seus auxiliares imediatos consideraram o desenvolvimento da
Amazônia uma solução atraente para a crise
______________
143. Emílio Garrastazu Mediei, A verdadeira paz (n. p., Imprensa Nacional,
1970), p. 149; Banco Mundial, Brazil: An ínterim Assessment of Rural
Development Programs for the Northeast (Washington, World Bank,
1983), p. 35.
144. Metas e bases, p. 60.
145. Ibid., p. 29.
146. Ibid., p. 80.
147. Entrevista de Medici em Veja, 16 de maio de 1984. Os nordestinos ficaram
#especialmente revoltados com este desvio de fundos outrora destinados para uso
exclusivo da SUDENE. Nas palavras de um ex-deputado cearense, "O sonho da
Transamazônica foi pago, aos bilhões, pelo Nordeste". E censurando Brasília: "O
governo tornou-se um depositário infiel porque não entregou o que recebera para
um fim designado". "J. Colombo e Sousa, O Nordeste e a tecnocracia da revolução
(Brasília, Horizonte Editora, 1981), p. 173.

290 Brasil: de Castelo a Tancredo
nordestina? Primeiro, porque um ataque direto aos problemas do Nordeste teria
sido proibitivamente dispendioso, tanto econômica quanto politicamente. Teria
exigido maciça transferência de recursos do Centro-Sul para elevar a
produtividade da agricultura, do comércio e da indústria nordestinos. O capital
privado nunca se interessara em tal escala porque a taxa de retorno sobre os
investimentos era muito mais alta no Centro-Sul e no Oeste. A ajuda ao Nordeste
exigiria que os brasileiros de outras áreas abrissem mão de benefícios
econômicos a fim de subsidiar (pelo menos a curto prazo) o desenvolvimento
daquela região.

O governo Mediei, como os seus antecessores pós-1964, não tinha mandato para
executar tão radical redistribuição regional. Com efeito, os grupos que antes de
1964 haviam exigido a reestruturação do poder no Nordeste, como as ligas
camponesas e os intelectuais das cidades litorâneas, foram os mais violentamente
reprimidos pelos governos militares a partir da Revolução. Suas vozes há muito
estavam silenciadas quando a seca de 1970 começou.

O interesse de Mediei pela Amazônia tinha outra lógica, além da necessidade
de ajudar o Nordeste com o deslocamento dos seus habitantes. A elite brasileira,
especialmente os militares, há muito receava que o país perdesse a Amazónia por
falta de colonização. Gerações de cadetes do Exército brasileiro foram
conscientizados sobre a significação geopolítica da Amazônia, agora, como
oficiais, temiam possíveis incursões de peruanos e venezuelanos pelo vasto mas
esparsamente povoado território rio acima. Esta preocupação aumentou quando a
extraordinária riqueza mineral da região especialmente jazidas de ferro - se
tornou conhecida. A controvérsia sobre a exploração por estrangeiros dos
recursos da Amazônia acentuou-se com o lançamento do Jari, o gigantesco projeto
florestal do bilionário americano Daniel Ludwig, por concessão do governo
Castelo Branco^48 Assim a seca nordestina ofereceria
___________
148. A concessão do Jari, maior do que o estado de Connecticut, provocou irados
nacionalistas brasileiros como se vê em Marcos Arruda, et ai., The Multinational
Corporations and Brazil (Toronto, Brazilian Studies/ Latin American Pesearch
Unit, 1975), pp. 131-207. Uma das investigações mais cuidadosas das questões
científicas envolvendo o Jari é de Philip M. Fearnside e Judy M. Rankin, "Jari
and Development in the Brazilian Amazon", Interciencia, V, N.° 3 (maio-junho de
1980), pp. 146-56. Para uma

Medici: a face autoritária 291
um novo estímulo à histórica aspiração brasileira de desenvolver a Amazônia. Nas
palavras de Mediei, "precisamos adiantar o relógio amazônico, que está muito
atrasado".149

A rodovia Transamazônica tinha uma atração adicional. Era um desafio que os
engenheiros do Exército poderiam atacar com agrado. Concentrando-se na estrada,
Medici propôs-se uma tarefa formidável mas não impossível, pois o traçado do
grandioso empreendimento tinha princípio e fim bem definidos. Podia ser
visitado, fotografado e descrito. Como a construção de Brasília e da rodovia
Belém-Brasília durante o governo de Tuscelino, a abertura da Transamazônica
tinha grande valor simbólico.150 Cortar a floresta espessa e construir uma
estrada pioneira seduzia aqueles muitos brasileiros cuja visão romântica da
Amazônia-era bem parecida com a dos norte-americanos e europeus ocidentais. O
empreendimento seduzia talvez em grau maior as grandes firmas construtoras, cujo
advogado no governo era o ministro dos Transportes Mário Andreazza. Ao mesmo
tempo que obtinham altos lucros com a execução de gigantescos contratos no vale
amazônico, não se esqueciam de oferecer importante apoio às ambições
presidenciais de Andreazza.

Delfim Neto foi colocado em difícil situação pela medida de Mediei de
despejar recursos em larga escala na Amazônia. Não havia como defender a decisão
pelos critérios normais de investimento. Em 1967, por exemplo, o governo Castelo
Branco elaborou um plano viário nacional, e a Transamazônica nem sequer
aparecia.151 Antes da decisão de Medici em 1970, a rodovia não tinha fortes
defensores. Depois da decisão do presidente no entanto, Delfim rapidamente
aderiu.

Em julho de 1970 ele explicava que o PIN "era uma tentativa de deslocar o
centro de gravidade da economia, empurrando-o para o Norte, e tentar repetir
naquela região o que já se conseguiu análise autorizada destes problemas do vale
amazônico, ver Philip M. Fearnside, Human Carrying Capacity of the Brazilian
Rainforest (New York, Columbia University Press, 1968).
____________
149. Mediei, A verdadeira paz, p. 147.
150. Fernando Morais, et ai., Transamazônica (São Paulo, Brasiliense,
1970), 12 ff.
151. Cardoso e Müller, Amazônia, p. 169.

292 Brasil: de Castelo a Tancredo
na região Centro-Sul do país".152 Meses depois ridicularizava os críticos que
questionavam a viabilidade da Transamazônica sob o ponto de vista do custo-
benefício. "Nada que alterou a face do mundo passa por um teste preliminar de
rentabilidade", ironizava. "Se Pedro Álvares Cabral tivesse que provar a
rentabilidade de sua viagem, o Brasil ainda não estaria descoberto", sugeria o
ministro da Fazenda. Dizia a seguir que a Transamazônica seria um investimento
tão bom quanto a Belém-Brasília, surpreendente comparação feita por um ministro
cujo governo constantemente denegria Juscelino Kubitschek, o construtor da
mencionada rodovia. Finalmente, Delfim fazia uma afirmação totalmente não
científica levado pelo seu entusiasmo sobre os recursos da região, ao declarar
que "existe na Amazônia uma mancha de terra roxa comparável à de qualquer estado
da região Centro-Sul".153 Aqui ele repetia o mito da fertilidade dos solos
amazônicos, que na verdade são constituídos principalmente por laterita e
portanto contra-indicados para a agricultura por causa da rápida lixiviação do
solo provocada pelas chuvas torrenciais.

Esta retórica apresentava interessantes aspectos psicológicos. O projeto da
Transamazônica, básico para o PIN, por exemplo, atendia à aspiração brasileira
de atingir as enormes distâncias despovoadas nas fronteiras do país. Em outubro
de 1970 Medici exuberantemente anunciou que "a Amazônia, mais da metade do
território nacional, poderia absorver muito mais do que toda a população atual
do Brasil".154 E em fins de 1972 ele afirmava que "para o Brasil não chegou o
tempo do mundo finito, cabendo-nos o privilégio de incorporar a cada passo novos
e imensos espaços, praticamente vazios, ao nosso patrimônio econômico".155
_____________
152. Depoimento de Delfim Neto no Senado Federal reproduzido em Revista de
Finanças Públicas, XXX, N.° 298 (agosto de 1970), pp. 51-52. Para projeções
altamente otimistas de quantas famílias podiam ser assentadas na área recém-
aberta da Amazônia, ver a entrevista com o presidente do INCRA (Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária) em Jornal do Brasil, 27 de
setembro de 1971.
153. O texto da entrevista coletiva de Delfim Neto foi publicado na Revista
de Finanças Públicas, XXX, N.° 300 (outubro de 1970), p. 6.
154. Mediei, A verdadeira paz, p. 148.
155. A declaração é do discurso de Mediei por ocasião do terceiro aniversário de
sua posse na presidência, publicado em Revista de Finanças Públicas, XXXII,
N.312 (novembro-dezembro de 1972), pp. 1-5.

293
Com efeito, o ecossistema amazônico era e é extremamente frágil e seu potencial
agrícola fortemente limitado, como se verifica, pelos seus solos. Mas na
impetuosa atmosfera do governo Mediei não havia tempo para dúvidas. Como ele
confiantemente disse em outubro de 1970, "há poucos exemplos de países tão
abençoados em recursos naturais e humanos e tão lentos quando se trata de
utilizá-los. É esse tempo perdido que temos que compensar, cumprindo
conseqüentemente um compromisso fundamental da Revolução".156 Os programas
amazônicos eram ideais para a campanha triunfalista de relações públicas do
governo que exaltava a "grandeza" do Brasil e seu inexorável salto para o status
de potência mundial.

Assim, a decisão política em relação à Amazônia foi um interessante exemplo
do governo autoritário brasileiro em plena ação. O presidente e seus assessores
podiam facilmente ignorar os agrônomos, os geógrafos e os antropólogos que
conheciam as limitações da região para efeito de desenvolvimento. Podiam
igualmente ignorar os seus adversários, como os líderes políticos do Nordeste,
que viam os seus recursos de origem federal desviados para outra área. O centro
tradicional de oposição, o Congresso, achava-se em recesso forçado (decretado
por Medici no fim de 1969) quando o programa da Amazónia foi aprovado.

Finalmente, a tentativa do governo Mediei de resolver o problema do Nordeste
pelo desenvolvimento da Amazônia tinha seus precedentes. O presidente Juscelino
Kubitschek (1956-61), por exemplo, usou a construção de Brasília como "solução"
parcial para problemas como a pobreza rural endêmica no interior do Brasil. Ele
afirmava que a construção de meios de transporte ligados a Brasília estimularia
a comercialização da agricultura e portanto aumentaria as rendas. O programa
amazônico de Medici parecia-se com a criação de Brasília por outro aspecto:
ambos eram
__________
156. Ibid., p. 147. Para um exemplo de indignado ataque de um cientista
brasileiro aos programas de emergência para "desenvolver" a Amazônia, ver
Orlando Valverde, "Ecologia e desenvolvimento da Amazônia", Revista Brasileira
de Tecnologia, XII, N.° 4 (outubro-dezembro de 1981), pp. 3-16. Ele afirma que o
uso de tecnologia inadequada e a insuficiência de estudos sobre a região
amazônica causaram sérios danos à ecologia da região. Seu ponto de vista é
compartilhado por muitos cientistas do Brasil e do exterior.

294 Brasil: de Castelo a Tancredo
projetos monumentais em que seus autores investiram enorme prestígio. Neste
sentido o grandioso projeto de Mediei seguia a corrente principal da tradição
política, pouco tendo a ver com os propósitos do golpe de 1964.157

Os projetos ambiciosos do governo militar no setor público, como no caso da
Amazônia, devem ser vistos no contexto de uma estratégia econômica cujo objetivo
era maximizar tanto o investimento privado quanto o público. No setor privado o
capital devia provir dos seus crescentes lucros - engordados por uma política
salarial que dava aos empregadores a maior parcela dos ganhos de produtividade -
e de incentivos tributários, especialmente na agricultura e no setor de
exportações. Nas empresas públicas, o capital viria dos seus lucros retidos -
facilitados por políticas de preços de custo total - e de empréstimos concedidos
por instituições estrangeiras como o Banco Mundial e o Banco Interamericano de
Desenvolvimento. Ambos tornaram-se os principais emprestadores de recursos para
o Nordeste e a Amazônia.

Examinemos mais uma vez o desempenho econômico global
___________
157. O programa de colonização da Transamazônica foi um fracasso, como está
documentado em vários trabalhos de Emílio Moran, "Current Development Efforts in
the Amazon Basin", em J. H. Hopkins, ed., Caribbean Contemporary Record, vol. l
(New York, Holmes & Meier, 1983), pp. 171-81; "Colonization in the Transamazon
and Rondônia", em Marianne Schmink e Charles H. Wood, eds., Frontier Expansion
in Amazónia (Gainesville, University of Florida Press, 1984), pp. 285-303, e "An
Assessment of a Decade of Colonisation in the Amazon Basin", em John Hemming,
ed., The Frontier After a Decade of Colonisation (Manchester, University of
Manchester Press, 1985), pp. 91-102. A forma como o comportamento da burocracia
brasileira contribuiu para o fracasso das ambiciosas metas governamentais para a
colonização amazônica está documentada em Stephei G. Bunker, Underdeveloping the
Amazon (Urbana, University of Illinois Press, 1985). A política para a Amazónia
continuou a ser um tópico de intenso debate, como em Sue Branford e Oriel Glock,
The Last Frontier: Fighting Over Land in the Amazon (London, Zed Books, 1985). A
rodovia Transamazônica também foi um projeto extremamente ambicioso. As pesadas
chuvas a deixavam intransitável, segundo a descrição de Valdir Sanches,
"Transamazônica: a travessia do inferno", Afinal, 20 de maio de 1986. O autor
descreve em termos arrepiantes como o seu carro ficou atolado na lama ou nos
enormes buracos da estrada. A análise mais sistemática do potencial do vale
amazônico para colonização e desenvolvimento é de Philip M. Fearnside, Human
Carrying Capacity of the Brazilian Rainforest (New York, Columbia University
Press, 1986).

Medici: a face autoritária 295
de Mediei e suas implicações sociais. A política básica era maximizar o
crescimento a partir da estrutura existente de produção e renda. Isto
significava estímulo ao setor de bens duráveis, o qual tinha a capacidade e a
experiência para produzir com eficiência e, quando necessário, ampliar
efetivamente sua capacidade. As fábricas de automóveis estavam em franca
prosperidade enquanto a indústria de vestuário sofria dificuldades. Por quê?
Porque a renda continuava a ser concentrada nas camadas superiores. A estratégia
de Mediei também exigia fortes investimentos do setor público - energia,
transporte, educação, desenvolvimento regional, matérias-primas etc.

A descrição lembra a estratégia econômica dos anos de Juscelino Kubitscheck.
Então o setor privado líder era o de bens duráveis, enquanto o setor público
também fazia investimentos em larga escala - em transporte, energia e
desenvolvimento regional (SUDENE), sem contar Brasília. Obviamente as políticas
de Kubitscheck eram formuladas e executadas num contexto muito diferente, um
sistema democrático em que o governo tinha que defender suas decisões contra uma
oposição bem orientada. E não foi fácil a Juscelino avaliar os efeitos sociais
de suas políticas. Não obstante, um exame de sua performance mostra que as
políticas de Mediei para a Amazônia e o Nordeste eram surpreendentemente
parecidas com as do presidente Kubitschek.

Continuidade da manipulação eleitoral e a escolha de Geisel

Apesar de sua confiança na repressão, o governo Mediei continuou a realizar
eleições, embora sujeitas a súbitas mudanças nas regras do jogo. Depois da
esmagadora vitória da ARENA nas eleições de 1970, o presidente continuou a
manter forte controle pessoal sobre o partido. O presidente do Senado, Petrônio
Portella, e o presidente da Câmara, Pereira Lopes, ambos escolhidos a dedo pelo
governo, foram inquestionavelmente leais ao Planalto. É digno de nota, contudo,
que os postos de liderança foram uniformemente divididos entre membros da ex-UDN
e do ex-PSD, provando que até um poderoso governo militar tinha que dar
cuidadosa atenção às forças políticas do período pré-1964. Enquanto isso, o
Planalto não tinha dificuldade para controlar o programa

296 Brasil: de Castelo a Tancredo
de trabalho do Congresso e seus resultados; O mesmo acontecia nos estados cujos
governos eram controlados pela ARENA.

A sucessão presidencial, sempre uma operação delicada para qualquer regime
militar, causou mais problemas. Em 1972 a central de boatos começou a espalhar
nomes de futuros sucessores de Mediei, embora a eleição só estivesse marcada
para janeiro de 1974, para um mandato que começaria em março. Esta especulação
estava começando a prejudicar a eficiência do presidente, ameaçando transformá-
lo prematuramente no que os americanos chamam de "lame duck", isto é, um
presidente já praticamente sem poderes, aguardando apenas passar o cargo ao
sucessor. Mediei reagiu rapidamente. Em fins de março de 1972 proibiu qualquer
discussão pública da sucessão antes da metade de 1973.158 Graças à censura, a
presunção era que este edito seria prontamente cumprido.159 Medici e seus
assessores estavam determinados a impedir o divisionismo nas forças armadas
gerado pela escolha do sucessor de Castelo Branco em 1965-66 e de Costa e Silva
em 1969.

Apesar da advertência do presidente, O Estado de S. Paulo continuou a
publicar matérias sobre o assunto. No fim de agosto o governo impôs censura
prévia ao prestigioso matutino paulista por haver publicado, em desobediência à
censura, uma reportagem sobre divergências entre Delfim Neto e o ministro da
Agricultura Cirne Lima em que o primeiro era descrito como "amoral". Toda a
matéria a ser publicada pelo Estado tinha que ser agora examinada pelo censor.
Mesmo sob a censura prévia, O Estado de S. Paulo e o Jornal da Tarde, o
vespertino da mesma empresa, tinham permissão (editores de outras publicações
tentaram e falharam) de preencher os espaços deixados pelo material censurado
com itens extravagantes, como receitas (às vezes de pratos não comestíveis) e de
versos extraídos de "Os Lusíadas", de Luís de Camões. Ao ver esses fillers, o
leitor sabia que uma matéria de determinado tamanho fora censurada. Este lapso
da boa prática do autoritarismo era típico dos governos militares brasileiros.
Não raro a ditadura
____________
158. Emílio Garrastazu Mediei, O sinal do amanhã (Brasília, Secretaria de
Imprensa da Presidência da República, 1972), p. 33.
159. Roberto N. Pierce, Keeping the Flame, p. 31; Dassin, "Press Censorship", p.
166.

Medici: a face autoritária 297
era exercida imperfeitamente, parecendo denotar por parte dos seus executores
total falta de confiança em sua ideologia e total ausência de compromisso com a
sua aplicação. O funcionamento da justiça militar, como vimos anteriormente,
oferecia exemplo semelhante.

Em abril de 1972 o governo Medici preocupou-se com outra frente eleitoral. O
problema era que a Constituição (emendada em 1968) estabelecia eleições diretas
para governadores de estado em 1974. Agora, contudo, o governo previa provável
derrota em importantes estados, por isso o Planalto promoveu uma emenda
constitucional tornando as eleições para governadores indiretas já em 1974 e
adiando o pleito direto para 1978. Os líderes do MDB atacaram esta mais recente
manipulação das regras eleitorais, mas inutilmente.

Para o regime Mediei sobrava agora um só teste nas urnas: as eleições
municipais de novembro de 1972, que a ARENA ganhou de modo retumbante, ficando
com 88 por cento das prefeituras. Foi, contudo, uma vitória que todos esperavam,
dada a atmosfera de contínua intimidação contra o MDB e tendo-se em conta a
vantagem da ARENA no controle da clientela governamental. Embora gravemente
enfraquecido, o partido da oposição de modo nenhum desistiu da luta. Preservou
sua estrutura organizacional, especialmente nas cidades mais importantes, onde
as futuras eleições federais e estaduais seriam provavelmente decididas.
Apesar de sua esmagadora vitória nas eleições, o governo Mediei não tinha uma
doutrina política bem definida. Exemplificava-se nele o que o sociólogo Juan
Linz chamou uma "situação autoritária" ao contrário de um "regime autoritário"
institucionalizado.160 Para este vácuo deslocou-se um grupo de teóricos de
direita liderados pelo ministro da Justiça Alfredo Buzaid. Eles propuseram um
modelo corporativista para o Brasil, revertendo ao movimento integralista dos
anos 30 com o qual vários deles tinham laços pessoais. O modelo corporativista
devia substituir as instituições representativas (que os militares haviam
retido, embora de forma truncada) por órgãos funcionalmente definidos, reco-
_____________

160. Juan J. Linz "The Future of an Authoritarian Situation or the
instuuuonahzation of an Authoritarian Regime: The Case of Brazil", em Altred
Stepan, ed., Authoritarian Brazil, pp 233-54

298 Brasil: de Castelo a Tancredo
meçando o poder executivo do ponto em que a ditadura semicorporativista de
Getúlio Vargas havia parado em 1945.

O debate público sobre essa ofensiva corporativista em 1971- 72 foi
silenciado pela censura. Mas a Ordem dos Advogados combateu vigorosamente a
idéia, como também um pequeno segmento da imprensa. O que sepultou a proposta
dos corporativistas foi o rumo tomado pela sucessão presidencial, que dominou a
política em 1973. Mediei podia impedir legalmente a especulação pública sobre a
identidade do seu provável sucessor, mas dificilmente podia impedir a
especulação privada.

Primeiro foram os boatos de que não haveria novo presidente em 1974, porque o
mandato de Mediei seria prorrogado.161 Poucos bem informados acreditavam,
contudo, em tal boato, porque os militares tinham horror à perspectiva de um
possível caudillo, um homem forte militar mandando pessoal e indefinidamente.
Outros boatos davam o candidato como um "militar populista", um general
comprometido com maciço ataque às necessidades sócioeconômicas básicas, como
educação, saúde, reforma agrária e desenvolvimento do interior (não apenas do
vale amazônico). Em resumo, era a esperança de um novo Albuquerque Lima, que
erguera essa bandeira na luta que perdeu para suceder Costa e Silva.162
Entretanto, poucos acreditavam que o número de oficiais favoráveis a essa
posição aumentara desde o malogro de Albuquerque Lima em 1969. Se havia uma
tendência, era contra o populismo militar, idéia tão suspeita para muitos
oficiais quanto o plano de prorrogar o mandato de Medici.

Quem, então, seria o novo general-presidente? Leitão de Abreu começou uma
campanha para indicar um candidato civil. Este civil, da confiança dos
militares, deveria lançar um programa para "desmilitarizar a Revolução". Mas a
tática de Leitão não sobreviveu por muito tempo". Embora alguns observadores de
fora possam ter sabido, os castelistas mais influentes estavam reunindo suas
forças para assumir o controle da sucessão. O general Gol-
___________
161. Hélio Silva e Maria Cecília Ribas Carneiro, Os governos militares:
1969-1974 (São Paulo, Editora Três, 1975), pp. 149-50.
162. A esperança, geralmente à esquerda, de alguns intelectuais brasisileiros da
emergência de um "militar populista" está claramente refletida em Flynn,
"Sambas, Soccer and Nationalism", p. 330.

Medici: a face autoritária 299
bery, seu porta-voz mais articulado (em particular, raramente falava em
público), ajudou a dirigir a campanha castelista para reconquistar o poder
designando o novo presidente. Seu candidato era o general Ernesto Geisel,
presidente da Petrobrás, ex-chefe da Casa Militar de Castelo Branco e ex-
ministro do Superior Tribunal Militar. O irmão de Ernesto Geisel, Orlando, era o
ministro do Exército, um fato decisivo porque o detentor desse posto podia
controlar dissensões no seio da oficialidade, cuja opinião coletiva pesava
fortemente no processo de seleção. Orlando estava também em condições de
neutralizar o chefe do SNI, general Carlos Alberto Fontoura, poderoso adversário
da indicação de Ernesto. Em maio de 1973 Ernesto Geisel obteve o consenso dos
militares,163 e em junho foi designado candidato da ARENA. Seu companheiro de
chapa seria o general Adalberto Pereira dos Santos, ministro do Superior
Tribunal Militar e pouco conhecido fora dos círculos militares. A escolha
de Geisel, mesmo quando em gestação em 1972, pôs um fim abrupto à tentativa do
ministro da Justiça Buzaid de convencer os generais de que um modelo
corporativista seria o mais adequado ao futuro do Brasil. Assim o governo
Medici perdeu toda a possibilidade de institucionalizar a Revolução segundo
as suas próprias luzes.164

Medici e os duros haviam perdido o controle da sucessão. Geisel fora seu
candidato, e eles viam a volta dos castelistas como pressagiando perigosa
diminuição do fervor revolucionário. Mas com Orlando Geisel no Ministério do
Exército, os castelistas assumiram o posto de comando. Orlando era ajudado pelo
fato de que muitos oficiais linhas-duras mais jovens, que exigiram medidas
radicais em 1964, 1965 e 1968, estavam agora preocupados com suas carreiras, já
que dissentir da sucessão poderia prejudicar
___________
163. Chagas, Resistir é preciso, pp. 51-53; Oliveiros S. Ferreira, A teoria da
"coisa nossa" ou a visão do público como negócio particular (São Paulo, Ed. GRD,
1986), pp. 11-24. O autor teve estreitos contatos militares durante esses anos.
Em qualquer disputa intramilitar o ministro do Exército tinha uma arma poderosa
a seu dispor: o Ato Institucional n." 17 (de outubro de 1969), que tornava
qualquer oficial que se insurgisse "contra a unidade das forças armadas" sujeito
a transferência para a reserva.
164. O esforço corporativista é descrito em Pedreira, Brasil política, PP. 279-
82.

300 Brasil: de Castelo a Tancredo
suas futuras promoções. Mediei e seus aliados foram superados em habilidade.165

O MDB não tinha ilusões ao desafiar a candidatura de Geisel no Colégio
Eleitoral, a reunir-se em janeiro de 1974. Não obstante, o partido decidiu
entrar na disputa eleitoral. Indicou para presidente o deputado federal por São
Paulo Ulysses Guimarães, e para vice-presidente Barbosa Lima Sobrinho. Este era
um ilustre intelectual nacionalista natural de Pernambuco, que também presidia a
Associação Brasileira de Imprensa. Ulysses Guimarães era um veterano
parlamentar, tendo sido eleito pela primeira vez deputado federal em 1951 na
chapa do PSD. Depois de 1965 emergiu como enérgico e destemido líder da
oposição, conquistando a presidência do MDB em 1971. Ulysses tornara-se também
um dos mais eloqüentes e mordazes críticos do governo Mediei. Aliás, para muitos
oficiais ele era anátema. Sua indicação pelo MDB no fim de setembro de 1973
provocou diatribes por parte desses oficiais, que consideravam os líderes do MDB
pouco mais do que apologistas do terrorismo e da traição. Os líderes emedebistas
tinham plena consciência dessa forma de pensar dos militares a seu respeito. O
lançamento do nome de Ulysses foi portanto um desafio direto àqueles adversários
do MDB.

No discurso em que aceitou sua indicação em setembro, Ulysses desancou os
"tecnocratas presunçosos, que amaldiçoam e exorcizam os adversários.. ."166 Um
presidente emedebista, ele prometeu, será comprometido "com a inadiável ruptura
da maldita estrutura da miséria, da doença, do analfabetismo, do atraso
tecnológico e político".167 Em virtude do sólido apoio do governo a Geisel, sua
eleição em janeiro de 1974 parecia um resultado inevitável.
__________
165. Nas palavras do bem informado jornalista Carlos Chagas, a administração
Mediei teve que "aceitar um candidato que não compartilhava de seus
conceitos". Chagas, Resistir ê preciso, p. 16. Outro comentarista
político achou que a escolha de Geisel fora muito tranqüila em face de um
alinhamento potencialmente muito divergente dentro dos quadros militares.
Pedreira, Brasil política, p. 286; Ferreira, A teoria da "coisa nossa", p. 18.
166. Ulysses Guimarães, Rompendo o cerco (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1973),
p. 46.
167. Ibid., p. 44.

Medici: a face autoritária 301

Os líderes da ARENA não faziam segredo de sua confiança. No fim de outubro de
1973 o senador pelo MDB de São Paulo Franco Montoro atacou a censura
governamental, lendo para constar dos anais recente relatório sobre a censura no
Brasil apresentado à Associação Interamericana de Imprensa por Júlio de Mesquita
Neto, da família proprietária de O Estado de S. Paulo. Montoro sabia que nem o
relatório nem matérias a seu respeito seriam tolerados pelos censores, sendo
estritamente verboten na imprensa qualquer menção à censura. Assim Montoro tirou
proveito de tal absurdo.

O senador Eurico Rezende, líder da maioria da ARENA, respondeu agressivamente,
afirmando que o Brasil precisava da censura, pois "só assim não se formaria uma
imagem negativa do Brasil no exterior". E aproveitou para dirigir um desafio a
Montoro: por que não fazer um plebiscito sobre o AI-5 e saber se o povo quer que
desapareça ou não? "Se o presidente Mediei discursasse em São Paulo, na
Guanabara e em Belo Horizonte V. Exa. verificaria que, no seu estado, o AI-5
obteria pelo menos 70 por cento da votação popular a favor da sua manutenção
durante algum tempo ainda, inclusive com o apoio dos eleitores que enalteceram e
dignificaram a investidura parlamentar de V. Exa.", Era uma tirada retórica que
não implicava risco, pois nenhum dos líderes jamais aceitaria tal plebiscito.168

No começo de dezembro de 1973 o senador Petrônio Portella, da ARENA,
felicitou o governo pela competência com que "defendeu a nação contra o
terrorismo". O governo distinguira com acerto entre o "necessário e útil
trabalho da oposição" e os "métodos sub-reptícios dos agentes da subversão". As
condições políticas haviam sido idílicas: "as campanhas eleitorais sucederam-se
sem qualquer pressão ou coerção, em clima de mútuo respeito".169 Falando perante
o Colégio Eleitoral em janeiro de 1974, Portella, com ar de superioridade,
descreveu o MDB como um "partido que encolhia a cada eleição", e que "lhe
faltava tanto a estrutura política quanto o apoio popular para eleger um
presidente da República".170
___________
168. André Franco Montoro, Da "democracia" que temos para a democracia que
queremos (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1974), pp. 69-78.
169. Portella, Tempo de Congresso, II, p. 51.
170. Ibid., pp. 59-60.

302 Brasil: de Castelo a Tancredo

Alguns líderes do MDB participavam dessa conclusão, embora não dos argumentos
que a ela conduziam. Eles haviam defendido a dissolução do partido como protesto
para que cessasse a colaboração com o simulacro de democracia dos militares. Mas
tiveram que recuar quando o MDB indicou Ulysses Guimarães e Barbosa Lima
Sobrinho em setembro de 1973.

Agora a questão que se colocava para o MDB era: como fazer campanha de acordo
com as regras- do governo e ainda assim preservar a própria integridade? A
maioria dos líderes do partido respondeu com a idéia de uma campanha
"simbólica". Eles se declarariam os "anticandidatos", negando a legitimidade
tanto da "anticonstituição" quanto das "antieleições". Denunciariam a tortura, a
censura, o abandono dos trabalhadores e o favoritismo a interesses econômicos
estrangeiros. Não menos importante, esta tática permitiria que o MDB continuasse
sua campanha de mobilização entre um grande número de brasileiros receosos de se
manifestarem contra o governo militar.171 O espírito da campanha emedebista era
traduzido no lema: Navegar é preciso, viver não é preciso.112 Ulysses e Barbosa
Lima cruzaram o Brasil em todos os sentidos, atacando a atuação do governo mas
nunca os próprios militares. Eles pressionaram os censores do governo para que
autorizassem o acesso ao público dos seus discursos, e disso resultou melhor
cobertura pela mídia das atividades do MDB. Mas as forças de segurança
continuavam a vigiar severamente e a intimidar, através da polícia,
os comícios da oposição.

A reunião do Colégio Eleitoral em janeiro foi um anticlímax. Geisel e seu
vice foram eleitos por 400 a 76. Ulisses e Barbosa Lima nem sequer receberam
todos os votos do seu partido. Um grupo dissidente (os autênticos) de 23
deputados se absteve. Em seu manifesto anunciaram que "estavam devolvendo os
votos ao grande ausente: o povo brasileiro, cuja vontade, excluída deste
processo, devia ser a fonte de todo o poder". E exigiram a restauração das
"garantias democráticas" (também exigida por Ulysses l e Barbosa Lima) e
apelaram aos brasileiros para que apoiassem seu protesto.173
__________
171. Moreira Alves, State and Opposition, pp. 133-37.
172. As palavras foram extraídas da letra de uma música de Caetano Veloso, que
a tomou emprestado ao poeta português Fernando Pessoa.
173. Freire, Oposição no Brasil, pp. 11-12.

Medici: a face autoritária 303

Esta divisão no MDB foi menos séria do que possa ter parecido na ocasião.
Achava-se em discussão o papel adequado do partido sob um regime altamente
repressivo. Ambas as facções queriam o fim desse regime. Ambas queriam
permanecer fiéis aos seus princípios morais e políticos. Ambas sabiam que não
havia solução simples para seus apuros eleitorais. Ambas estavam trabalhando
para assegurar ao seu partido papel importante no Brasil mais livre do futuro.
A sobrevivência do poder legislativo fornecia uma indicação nesse sentido. É
verdade que o Congresso fora humilhado no fim de 1968 - suspenso por quase dois
anos, despojado em grande parte dos seus poderes. Os parlamentares do MDB foram
submetidos a vexames e a atos de intimidação. Mas o fio da legitimidade
legislativa não se partira. O Congresso nunca foi abolido, como aconteceu na
Argentina, no Chile e no Uruguai na vigência de governos militares nos anos 60 e
70. Aliás, o Congresso brasileiro foi cenário de acesos debates entre membros da
ARENA e do MDB em ambas as suas casas.174 Alguns deputados e senadores foram
expurgados (nenhum no governo Medici) e a ameaça de tal intervenção arbitrária
pendia sobre a cabeça de cada parlamentar da oposição (e de alguns do governo);
não obstante, os discursos parlamentares eram raramente censurados. É verdade
que os trechos com ataques mais violentos jamais lograram divulgação a não ser
nas páginas do Diário do Congresso. Mesmo assim, os membros da ARENA respondiam
aos fustigantes ataques emedebistas às políticas do governo em todas as esferas,
dos impostos à tortura. Até o regime Mediei, o mais repressor do Brasil desde
1964, achou de boa política reabrir o Congresso em 1970. Os generais resolveram
deixar entreaberta uma porta que abrisse caminho para a democracia e o império
da lei.
__________
174. Em março de 1973, o deputado Freitas Nobre, líder do MDB, pronunciou forte
discurso contra a censura mostrando o "absurdo" de que "hoje o Diário do
Congresso é a mais liberal de todas as publicações, de vez que, com raras
exceções, publica o que é dito nas sessões". Freitas Nobre, Debate sobre
problemas brasileiros (Brasília, Coordenada Editora, s.d.), p. 16.

304 Brasil: de Castelo a Tancredo

Direitos humanos e relações Brasil-Estados Unidos

Vimos no capítulo anterior que a tortura praticada pelas forças de segurança
do governo Costa e Silva chamou a atenção em todo o mundo. O regime brasileiro
preocupava-se mais com a reação dos Estados Unidos, seu mais importante parceiro
comercial, investidor, aliado político e mentor em matéria de anticomunismo.
Estar em bons termos com os Estados Unidos, portanto, era algo decisivo para o
desenvolvimento brasileiro. Quando da guinada autoritária de dezembro de 1968, a
aliança entre os dois países ficara estremecida, tendo sido congelada a ajuda
americana nos primeiros cinco meses de 1969. Essa ajuda foi reiniciada na metade
do ano, não porque o desempenho do Brasil na área dos direitos humanos tivesse
melhorado mas porque os "realistas" do governo americano consideravam o
congelamento contraprodutivo. Com efeito, a influência americana estava
minguando, porque o valor em dólar da assistência governamental tornara-se
marginal em relação à balança de pagamentos do Brasil e aos gastos do seu setor
público interno. No ano fiscal de 1974, por exemplo, a ajuda americana totalizou
apenas US$69,9 milhões, dos quais US$52,7 em ajuda militar. Esta podia ser
facilmente substituída se o Brasil usasse seus próprios dólares para comprar
armas em qualquer outro país.175

O que quer que pensassem os "realistas" dos Estados Unidos sobre a
alavancagem americana, o tratamento dispensado pelo Brasil aos direitos humanos
piorou durante o ano de 1969. Em dezembro a prática de atos de tortura no Brasil
foi denunciado pela Anistia Internacional, o grupo de vigilância que segue o
rasto dos "prisioneiros de consciência" através do mundo. Esta denúncia
estimulou a primeira de muitas "investigações" oficiais do governo brasileiro,
desta, vez presidida pelo ministro da Justiça. Em 1970 as acusações foram
repetidas pela Civiltá Cattolica, uma
____________
175. Esta mudança no poder de barganha do governo dos Estados Unidos foi
discutida na última seção do capítulo sobre o governo do general Costa e Silva.
Para uma discussão adicional das relações Estados Unidos Brasil no governo
Mediei, ver Skidmore, "Brazil's Changing Role in the International System:
Implications for U.S. Policy", em Riordan Roett, ed., Brazil in the Seventies
(Washington, American Enterprise Institute for Public Policy Research, 1976),
pp. 9-40.

Medici: a face autoritária 305
publicação dos jesuítas, e pela Comissão Internacional de Juristas.17* O governo
americano juntou-se ao coro expedindo uma declaração em abril em que expressava
sua preocupação ao governo brasileiro.177 Em agosto de 1970 o governo Mediei
criou o Conselho de Direitos Humanos para ouvir casos de supostas violações a
esses direitos. Ao subordiná-lo ao ministro da Justiça, que negara todas as
acusações, o governo condenou o Conselho à futilidade. Em outubro o presidente
Mediei negou categoricamente todas as acusações de tortura por parte do seu
governo. Dois dias depois, no entanto, o Papa fez uma declaração condenando a
tortura e aludindo ao Brasil. No início de dezembro o ministro da Educação
Jarbas Passarinho abriu a primeira fenda na blindagem governamental ao admitir
que ocorrera tortura, mas somente em casos isolados.178 Acusações e desmentidos
continuaram em 1971. Uma testemunha da dimensão de William F. Buckley Jr.
mostrou-se alarmada em fevereiro de 1971. Informando do Rio de Janeiro, e
empenhando a palavra de um homem de negócios "apolítico", declarou que o governo
estava torturando. Aliás, lamentou Buckley, "o receio é que no Brasil a tortura
esteja se tornando endémica", ao contrário da ditadura militar grega, onde ela
era apenas "episódica".179

Mas com o declínio da ameaça guerrilheira, a repressão governamental passou a
receber menos cobertura no exterior. O governo Mediei também se beneficiou,
ironicamente, do aumento da tortura em outros países, cuja notoriedade eclipsou
a do Brasil. Enquanto isso, o governo simplesmente desafiava todas as críticas.
Não mostrava sinais de dúvida ou vergonha. Pelo contrário, os porta-vozes de
Mediei acusavam seus críticos de serem direta ou indiretamente manipulados por
comunistas ou marxistas. O governador de São Paulo, Abreu Sodré, por exemplo,
esfolou Dom Helder Câmara, o destemido crítico que fazia constantes conferências
nos Estados Unidos e na Europa, tachando-o de "Fidel
___________
176. A documentação dessas acusações é apresentada no capítulo
anterior.
177. New York Times, 23 de abril de 1970.
178. New York Times, 21 e 23 de outubro e 4 de dezembro de 1970.
179. William F. Buckley Jr., "Is Torture Becoming Characteristic of Brazil?",
Washington Evening Star, 20 de fevereiro de 1971.

306 Brasil: de Castelo a Tancredo
Castro de batina", que pertencia à "máquina de propaganda do Partido
Comunista".180

Críticos americanos há muito afirmavam que, pela sua ajuda em larga escala ao
Brasil, o governo dos Estados Unidos estava implicado na repressão brasileira.
Em maio de 1971 o senador Frank Church, democrata de Idaho e influente
adversário da política americana para o Brasil, conduziu audiências sobre
"Políticas e Programas dos Estados Unidos no Brasil", que permitiram um exame
abrangente de todos os programas oficiais americanos desde 1964. Informações
detalhadas sobre as operações no Brasil do Office of Public Safety (um programa
da USAID para assessorar e ajudar as forças de segurança dos países ajudados)
forneceram aos críticos mais munição para afirmarem que os dólares dos
contribuintes americanos estavam sendo usados para treinar e equipar possíveis
torturadores. Houve acusações de que assessores de polícia americanos
participaram de interrogatórios e até de tortura de prisioneiros.181 Em outubro
de 1971 o senador Fred Harris pediu
__________
180. Lopes, O esquadrão da morte, pp. 94-95. No início de 1970 Delfim Neto
pronunciou um discurso em Nova York em que afirmou que a "sociedade
brasileira de modo nenhum está violando a consciência de quem quer que seja .nem
privando os cidadãos dos seus direitos humanos". Discurso reproduzido nn Revista
de Finanças Públicas, XXX, N.° 295 (maio de 1970), p. 4. Para outro exemplo, ver
o discurso de 1970 do vice-líder do partido do governo na Câmara dos Deputados,
Cantídio Sampaio. Ele citou o Cardeal Eugênio Sales, que acabava de voltar da
Europa, e que disse que os europeus engoliam toda e qualquer acusação sobre
tortura por causa da "hábil distorção das informações feita por aqueles que
desejam desacreditar o Brasil". O Estado de S. Paulo, 18 de junho de 1970.
181. "U.S. Policies and Programs in Brazil." O senador Church conduziu as
audiências na qualidade de chairman do Subcomitê de Relações Exteriores do
Senado sobre Assuntos do Hemisfério Ocidental. O exame mais longo das operações
do OPS no Brasil é de A. f. Langguth, Hidden Terrors (New York, Pantheon, Ã978).
Nem Langguth nem o senador Church forneceram qualquer prova conclusiva de que os
assessores do OPS ensinaram seus colegas a praticar a tortura. Cabe lembrar que
muitos dos métodos de tortura usados em presos políticos, como a
palmatória, o "pau-dearara" e o quase afogamento eram usados há muito pela
polícia brasileira contra os suspeitos de crimes comuns. O uso do choque
elétrico começou na ditadura do Estado Novo (1937-45). O instrumento mais novo
de tortura (a geladeira) foi supostamente herdado dos ingleses que o teriam
usado contra suspeitos do IRA (Exército Republicano Irlandês). Fon, Tortura,
pp. 72-74, descreve a geladeira e sua aquisição dos ingleses, como o faz

Medici: a face autoritária 307
o corte da ajuda ao Brasil, citando a prática continuada da repressão por parte
do seu governo.182 Mas não houve apoio suficiente para a aprovação da proposta.

O governo brasileiro continuou simplesmente a esperar que passasse a
publicidade desfavorável, e sua paciência foi recompensada. O governo Nixon logo
tornou-se forte aliado do regime Mediei, tanto por seu êxito econômico quanto
por suas credenciais anticomunistas. Mediei visitou Washington em dezembro de
1971 e foi homenageado com um jantar de gala na Casa Branca. Do outro lado da
Avenida Pensilvânia, no Parque Lafayette, um pequeno grupo de manifestantes mal
podia ser visto.183 Quaisquer que fossem suas restrições sobre violações dos
direitos humanos no Brasil, o governo Nixon decidiu apoiar publicamente o
governo Medici. No mês seguinte o secretário do Tesouro John Connally visitou o
Brasil e declarou sua satisfação com as políticas de Delfim Neto.184 Em julho
Arthur Burns "chairman" do Federal Reserve Bank, o banco central mais influente
do Ocidente, voltou de uma visita ao Brasil exaltando o "milagre" operado por
Delfim.185

A opinião pública americana, contudo, inquietou-se com o aprofundamento do
autoritarismo que acompanhava a explosão do crescimento econômico brasileiro.
Dias após a visita de Burns ao um general anônimo em "O caso Rubens Paiva: o
general está falando sobre a tortura", em Rangel, A hora de enterrar os ossos,
pp. 12-14. Encontrei apenas uma descrição de primeira mão Je interrogatório por
funcionários dos Estados Unidos: Frei Betto, Batismo de sangue, pp. 219. O autor
confirmou em minha presença e acrescentou que em seu interrogatório por
americanos não foi torturado, embora o tenha sido quando pessoal brasileiro
começou a ouvi-lo. Entrevista com Frei Betto em São Paulo, 30 de junho de 1983.
Um advogado que representava presos políticos disse a um jornalista que vira um
"norte-americaro fazer uma demonstração de tortura em um indivíduo vivo". Fon,
Tortura, p. 60. Fon deixa implícito que foi Mitrione.

182. New York Times, 7 de outubro de 1971.
183. A visita de Mediei recebeu grande cobertura da imprensa americana. O New
York Times, por exemplo, publicou uma reportagem por dia entre 7 e 12 de
dezembro.
184. New York Times, 10 de junho de 1972.
185. Ibid., 5 de julho de 1972.

308 Brasil: de Castelo a Tancredo
Brasil, um editorial do New York Times indagava se o Brasil precisava de
repressão para alcançar born êxito na economia.186 O senador John Tunney,
democrata da Califórnia, propôs a suspensão de toda a ajuda militar ao Brasil
até que as acusações de tortura sistemática pelas autoridades brasileiras fossem
satisfatoriamente esclarecidas.187

O senador Frank Church juntou-se a Tunney na crítica ao regime Mediei.
Membros influentes de instituições acadêmicas e religiosas dos Estados Unidos
continuaram a atacar o "modelo brasileiro", afirmando que a repressão impedia
que se continuasse a condenar as gritantes injustiças sociais. Bastante
interessante, o Programa de Segurança Pública da USAID foi desativado em 1972.

Apesar desses ataques, o governo Nixon considerou o rumo do desenvolvimento
brasileiro mais de acordo com suas preferências. O secretário de Estado William
Rogers visitou o Brasil em maio de 1973, demonstrando a continuação do apoio
norte-americano ao governo Medici.188 Sua visita foi o prelúdio de um anúncio
feito em junho de que os Estados Unidos haviam concordado em vender caças
supersônicos ao Brasil, decisão adotada após vivos debates na Casa Branca.189
Virtualmente o único voto contrário foi o do Departamento de Estado. Os
militares argumentaram vigorosamente em favor da transação, afirmando que
recusá-la apenas alienaria um importante aliado. A decisão desgostou os críticos
da política brasileira no Congresso americano, pois não achavam correto armar um
governo militar tão implicado na repressão ao seu próprio povo. Receavam também
esses críticos que a venda dos aviões ao Brasil estimulasse as nações vizinhas a
escalarem suas compras de armas. Em janeiro de 1974 o Times repetia sua pergunta
sobre o vínculo entre políticas autoritárias e desenvolvimento econômico: Era
necessário um governo repressor para se alcançar o crescimento econômico? Teriam
os Estados Unidos prejudicado suas futuras relações com o Brasil identificando-
se tão estreitamente com os militares desse país?190
__________
186. Ibid., 10 de julho de 1972.
187. Ibid., 5 de julho de 1972.
188. Ibid., 23 de maio de 1972.
189. Ibid., 6 de junho de 1973.
190. Ibid., 23 de janeiro de 1974.

309
Um balanço: que tipo de regime?

No fim da primeira década de governo militar o Brasil era uma "situação
autoritária", nas palavras do sociólogo político Juan Linz.191 com isso ele
queria dizer que o Brasil não havia executado a institucionalização típica da
Espanha de Franco. Mesmo o uso de controles políticos pelo governo Mediei após
1968 ficou aquém de total, como na Europa Oriental de pós-guerra, na Cuba de
Fidel Castro ou no Portugal de Salazar. Para milhões de brasileiros, na verdade,
os anos de Mediei provavelmente pareceram pouco diferentes dos que os
precederam. O grau relativamente baixo de participação política anterior, mesmo
antes da deposição de Goulart em 1964, significava que muitos (talvez a maioria)
dos brasileiros do setor intermediário não estavam grandemente incomodados com a
perda de suas opções políticas.

Consultas de opinião realizadas em 1972-73 (e nas quais as respostas foram
notavelmente francas) mostraram que "para os pobres, a política cede a vez à
pobreza e, para os ricos, ao crescimento industrial e às amenidades que o
acompanham. Em nenhuma parte independentemente de posição social, a participação
política sai do último lugar na escala das prioridades da massa".192 A grande
maioria de uma amostragem de trabalhadores urbanos no Brasil central e sudeste,
por exemplo, disse que "um governo forte é mais importante do que um eleito".193
Isto confirmava o que muitos políticos, jornalistas e diplomatas diziam na
época: Mediei conseguira um número significativo de adeptos.
____________
191. A distinção entre "situação autoritária" e "regime autoritário"
foi desenvolvida em Linz, "The Future of an Authoritarian Situation". O governo
militar brasileiro era menos estável do que fora o regime de Franco.
Acontecimentos posteriores confirmaram amplamente a análise de Linz.
192. Peter McDonough, "Repression and Representation in Brazil",
Comparative Politics, XV, N." l (outubro de 1982), p. 85. 193. Youssef Cohen,
"The Benevolent Leviathan: Political Consciousness among Urban Workers under
State Corporatism", American Political Science Review, LXXVI, N.l (março de
1982), pp. 102-104. Um dos mais conhecidos comentaristas políticos observou na
época que Medici era "grandemente respeitado e até popular". Pedreira,
Brasil política, p. 279. A confiabilidade dos dados compilados por McDonough e
Cohen está sujeita a questionamento por que sua coleta foi feita numa época de
violenta repressão. Mas ambos os pesquisadores defendem convincentemente a
exatidão das respostas que analisam.

310 Brasil: de Castelo a Tancredo

A hábil campanha de RP sem dúvida ajudou muito. Não menor foi a contribuição
do extraordinário crescimento econômico. Qual o presidente eleito que não
gostaria de lançar a seu crédito um crescimento de 11 por cento ao ano? Não
menos importante foi a conquista do campeonato mundial de futebol em que o
presidente empenhara o seu prestígio. Se Mediei não fosse popular, ter-se-ia
arriscado a comparecer regularmente aos estádios, onde a vaia espontânea é
sempre um perigo para políticos imprudentes? Seu governo explorou essa
popularidade para desviar a atenção da repressão e da distribuição cruelmente
desigual dos benefícios do crescimento.194

Se os militares da linha dura tiveram a iniciativa durante este período, e se
era tão grande sua determinação de restringir o conflito político de modo a
conformá-lo à sua concepção dos limites da oposição, por que mantiveram a
presunção de um futuro retorno à democracia liberal? Por que não promoveram a
criação de um sistema político totalmente novo, talvez seguindo o modelo do
Partido Revolucionário Institucional (PRI) do México? Em resumo, por que não
eliminaram as ambigüidades, como fez Getúlio Vargas em 1937? Criando um sistema
de partido único, o governo poderia ter resolvido os conflitos sociais fora das
vistas do público mais eficientemente do que usando um Legislativo emasculado,
como aconteceu no início dos anos 70.

Abolir os partidos e o poder legislativo inteiramente, como o governo militar
fez depois no Chile, provavelmente teria tornado sua tarefa administrativa mais
fácil. Além disso, havia prontamente à mão um fundamento ideológico para tais
soluções: o corporativismo. Como vimos, um pequeno grupo de altos auxiliares do
governo Medici tentou vender a idéia ao presidente e à cúpula militar. Sua
tarefa era facilitada pelo fato de que alguns elementos
____________
194. Uma extensa análise do governo Mediei a partir de 1971 pode ser encontrada
em Philippe C. Schmitter, "The 'Portugalization' of Brazil?", em Stepan, ed.,
Authoritarian Brazil, pp. 179-232. Embora a história posterior não
correspondesse ao título, a coleta de dados feita por Schmitter e sua
inteligente sondagem das características sistêmicas do governo militar até
1971 tornam o seu trabalho o ponto de partida essencial para qualquer análise.
Para as atitudes da elite (excetuados os militares) no início dos anos 70 -
indispensável à compreensão dos acontecimentos políticos subseqüentes - ver
McDonough, Power and Ideology in Brazil.

Medici: a face autoritária 311
corporativistas já haviam entrado na estrutura legal do Brasil na década de 30,
e especialmente durante o Estado Novo de Vargas. Havia, ademais, forte apoio ao
corporativismo entre a elite, como demonstraram as consultas de opinião de 1972-
73.195

Mas a campanha dos corporativistas foi interrompida quando os adeptos de
Ernesto Geisel assumiram o controle da sucessão presidencial. Nem regime de
partido único nem regime sem partidos foi adotado. Por quê? Uma explicação pode
estar na crença persistente, embora frágil, de que o funcionamento irregular do
sistema representativo era somente temporário, de que se apenas mais uma leva de
políticos corruptos ou subversivos ou irresponsáveis pudesse ser expurgada então
tudo passaria a correr bem no sistema político. Esta autude - que parece ingénua
em retrospecto - prevaleceu durante a era de Castelo Branco, e Ernesto Geisel e
seus adeptos eram castelistas leais.

Outra explicação para a atitude dos revolucionários civis pode ter sido sua
posição em relação a Vargas e ao que ele simbolizava. Para os ex-líderes da UDN
influentes no governo Castelo Branco, como Juracy Magalhães, Milton Campos,
Eduardo Gomes, Juarez Távora e Luiz Vianna Filho, o golpe de 1964 deu-lhes a
oportunidade de se instalarem no poder federal que eles raramente puderam
conquistar disputando com os políticos populistas. Agora eles podiam reverter a
história e desfazer o mal causado pelo seu arquiadversário, Getúlio. Entretanto,
que é que eles estavam tentando reverter? Era o político eleito democraticamente
em 1951-54 ou o ditador do Estado Novo? Seu antipopulismo doutrinário não
permitia distinguir. Poder-se-ia suspeitar que suas lembranças do Estado Novo os
inibiam de pensar na criação de uma nova estrutura para a Revolução de 1964.
Tancredo Neves, veterano político e líder da oposição, escarnecia deles chamando
a Revolução de 1964 "o Estado Novo da UDN".196 É provável que muitos civis
moderados temessem demais o fantasma político de Getúlio para emular a
construção autoritária do seu Estado Novo.

Tal ingenuidade não podia, contudo, ser atribuída aos linhas-duras. Estes
nunca tinham alimentado ilusões sobre a viabilidade da democracia representativa
no Brasil a curto ou mesmo médio
____________
195. McDonough, "Repression and Representation", pp. 77-78.
196. A citação é de Krane, "Opposition Strategy", p. 54.

312 Brasil: de Castelo a Tancredo
prazo. Contudo, evitavam publicamente repudiar a fé da elite política na idéia
liberal. Por quê?

Ironicamente, pode ser que os extremistas militares não tivessem confiança em
sua própria capacidade de proclamar e dirigir um regime plenamente autoritário
por temerem a condenação da opinião internacional. Influenciados em grande parte
por seus contatos com os militares americanos, desejavam manter estreita aliança
com os Estados Unidos. Prezavam o apoio americano não somente por sua
significação militar e econômica, mas também pela sua importância simbólica.
Eles viam a América como o bastião do anticomunismo, ideologia que fornecia a
justificação para o seu inflexível controle do leme do poder no Brasil. Os
enormes investimentos da América no Vietnã eram, em sua opinião, uma prova do
compromisso americano com a luta que eles travavam contra a subversão em seu
país.

Ao mesmo tempo, a América pregava a doutrina da democracia liberal. Assim a
dependência deles, como militares autoritários, dos Estados Unidos reforçaria
sua posição contraditória no cenário da política doméstica. Em compensação, eles
pediam poderes de emergência para combater a guerra contra a insurreição que a
política externa dos Estados Unidos parecia estar promovendo. Buscavam também o
apoio da opinião pública americana, que preferia governos democráticos e
garantias para as liberdades civis. Outro motivo que inibiu os tecnocratas de
abraçarem o autoritarismo mais abertamente foi, ao que parece, o receio do seu
impacto sobre a opinião mundial. Educados nos ideais do liberalismo político,
eles admiravam o progresso técnico e econômico conquistado pelas democracias
americana e européia. Muitos preferiram por isso acreditar que o Brasil não
tinha necessidade de optar por uma solução autoritária a longo prazo.

Quanto tempo poderia durar a aliança dos linhas-duras corn os tecnocratas?
Repetir-se-ia 1945? O compromisso tantas vezes reiterado com a
democraciarliberal voltaria finalmente a assombrar os revolucionários? A
resposta parecia depender de duas variáveis: o contexto mundial e o desempenho
econômico. Com respeito ao primeiro, vale a pena lembrar que o Estado Novo de
Vargas naufragou quando a derrota do Eixo destruiu os governos fascistas através
da Europa - exceto na península ibérica. O golpe de 1964 coincidiu com uma
guinada para o "pragmatismo" na política dos Estados Unidos para a América
Latina. O tema do anticomunismo

Medici: a face autoritária 313
e da empresa privada foi ressuscitado, após um intervalo de calma durante a
presidência de Kennedy. A propósito, o Rockefeller Report (1969) pode ser
considerado como um documento básico daquela política. Se esta houvesse mudado,
o regime autoritário brasileiro teria recebido muito menos apoio no plano
internacional.

O êxito econômico do regime foi importante porque a não manutenção de altos
índices de crescimento poderia alienar boa parte do apoio que lhe dava o setor
intermediário, que nunca aceitara a justificação da linha dura para o
autoritarismo. Com a continuação da expansão da economia mundial, não havia
razão a priori para que a economia brasileira inteligentemente administrada não
continuasse a apresentar altas taxas médias de crescimento. Entretanto, o
sucesso econômico contínuo era mercadoria rara, especialmente na América Latina.
Talvez tivesse sido mais prudente supor que em algum momento a taxa de
crescimento vacilaria, as contradições do modelo brasileiro se tornariam mais
evidentes e que a não institucionalização da Revolução de 1964 pareceria mais
custosa. Mas não há provas de que algum membro do governo estivesse
pensando assim em 1974.

O governo militar brasileiro a partir de 1974 pode ser definido como uma
"situação autoritária" em parte porque não produziu um Franco. O governo Mediei
ateve-se ao cronograma da sucessão em 1974, apesar de alguns membros da linha
dura e seus aliados civis estarem agitando a bandeira da prorrogação do mandato
presidencial. Se bem-sucedidos, teriam levado o Brasil na mesma direção mais
tarde seguida por Pinochet no Chile. Como se evitou isso? Evitou-se porque a
maioria dos militares tinha um acordo para não permitir a emergência de
caudilhos, de homens fortes que se plantassem no poder indefinidamente. Mediei
honrou este princípio. Aproximava-se o momento em que ele passaria o governo a
outro general, mas com passado diferente, aliados diferentes e programa
diferente. Embora esse revezamento no poder não fosse garantia de mudança, pelo
menos excluía o caudilho, cujo mandato é limitado apenas por Deus e pelo número
de canhões dos seus inimigos.

VI
Geisel: rumo à Abertura

A ascensão de Ernesto Geisel à presidência foi o ponto culmiminante de uma
campanha cuidadosamente orquestrada. Os castelistas, havendo perdido o controle
do Planalto em 1967, foram mantidos a distância durante os governos de Costa e
Silva e Mediei Não lhes foi fácil, por isso, abrir caminho novamente para a
reconquista do poder. Mas trabalharam com competência. Indicado o novo general-
presidente, conseguiram sólido consenso militar em torno do seu nome.1 Foi a
sucessão presidencial mais tranqüila desde 1964.

A Volta dos castelistas

O novo presidente era também natural do Rio Grande do Sul,2 filho de um
convicto luterano alemão que emigrara para o Brasil
________
1. Um dos relatos mais penetrantes das forças sociais e políticas mais amplas em
ação durante o governo Geisel é o capítulo 7 de Maria Helena Moreira Alves,
State and Opposition. Um valioso depoimento jornalístico da luta política no
período 1974-80 está em Bernardo Kucinski, Abertura, a história de uma crise
(São Paulo, Brasil Debates, 1982). Versão um pouco diferente publicada como
Brazil State and Struggle (Londres, Latin American Bureau, 1982) é uma excelente
apreciação do período Geisel e da parte inicial do governo Figueiredo. O autor
não acreditava nos reais motivos dos castelistas. Para um bem desenhado
retrato do Brasil emergente do boom econômico dos anos Mediei, ver Norman Gall,
"The Rise of Brazil", Commentary, LXIII, N.l (janeiro de 1977), pp. 45-55. O
retrato de Gall também cobre os primeiros dois anos do governo Geisel.
2. Há úteis informações sobre os antecedentes de Geisel e seus ministros em
Fernando Jorge, As diretrizes governamentais do presidente Ernesto Geisel (São
Paulo. Edição do Autor, 1976). Um comentário altamente

316 Brasil: de Castelo a Tancredo
em 1890, aí tornando-se professor. Ernesto freqüentou a escola militar e em
seguida o adestramento preliminar ao oficialato, sendo sempre o primeiro da
turma, no que correspondia à expectativa do pai que desde cedo inculcara nos
filhos a importância da educação. A partir de então fez uma carreira ortodoxa no
Exército, com interessantes intervalos políticos. Em 1934, por exemplo, ocupou
por breve período a Secretaria de Finanças e Obras Públicas da Paraíba, onde o
governo federal havia intervido. Em 1945 freqüentou o Army Command and General
Staff College em Fort Leavenworth, Kansas - o tipo de experiência americana
padrão dos castelistas. Em 1946-47 foi membro influente do staff do governo
Dutra que expurgou dos sindicatos os comunistas e esquerdistas. Posteriormente
foi membro do corpo permanente da Escola Superior de Guerra, outro reduto
castelista. Seu posto seguinte foi o de presidente da Petrobrás, o gigantesco
monopólio do petróleo, onde teve oportunidade de aprimorar suas qualidades de
tecnocrata militar.

Entre 1961 e 1967 Geisel envolveu-se profundamente na política nacional como
oficial em serviço ativo. Estava lotado no gabinete do ministro da Guerra Odílio
Denys em agosto de 1961, quando o presidente Jânio Quadros subitamente
renunciou. Durante a interinidade na chefia do governo do presidente da Câmara
dos Deputados, Ranieri Mazzilli, enquanto aguardava a volta de João Goulart em
visita à República Popular da China, Geisel foi nomeado chefe da Casa Civil da
Presidência da República. Coubelhe papel importante na formulação do compromisso
político graças ao qual Goulart, que os ministros militares não queriam no
poder, pôde assumir a presidência, embora com poderes consideravelmente
reduzidos sob o sistema parlamentar.

Imediatamente após o golpe de 19 M, Geisel participou da pressão militar
sobre o Congresso para que Castelo Branco fosse eleito* presidente. Uma
vezyeleito, Castelo o nomeou chefe de sua Casa Militar, onde ele ajudou a manter
a linha dura à distância enquanto também procurava aumentar os poderes
presidenciais, como no caso do AI-2. Geisel combateu por todas as formas a
favorável dos dois primeiros anos do governo Geisel é apresentado em Adirson de
Barros, Março: Geisel e a revolução brasileira (Rio de Janeiro, Editora
Artenova, 1976).

Geisel: rumo à Abertura 317
candidatura presidencial de Costa e Silva e, juntamente com Golbery, lutou
contra ela até o fim.

Deixando o Planalto em 1967, assumiu o posto de ministro do Superior Tribunal
Militar. Ali era conhecido pela sua rigorosa interpretação das leis de segurança
no julgamento de acusados, como os líderes estudantis presos em 1968. Após dois
anos no Tribunal, deixou o posto para assumir a presidência da Petrobrás,
posição cobiçada para um tecnocrata militar. À testa da grande empresa estatal
(1969-73), opôs-se com êxito à campanha para estender o monopólio da produção de
petróleo à petroquímica e à distribuição de produtos de petróleo.

Com essa decisão ele estava seguindo o ponto de vista castelista de que o
papel econômico do Estado devia ser reduzido em favor da iniciativa privada. Na
Petrobrás Geisel continuou a política que recomendava a exploração moderada do
petróleo no Brasil, política sensata numa época em que o óleo barato era
abundante no mercado mundial.

Em suma, Geisel levou para o Planalto um cabedal de experiência dos mais
ricos para um general do Exército. Na Petrobrás especialmente, que figura entre
as maiores empresas do mundo, era sua atribuição a análise econômica e a tomada
de decisões em nível macroeconômico, particularmente incomum para um militar de
alta graduação. Igualmente importante foi a sua permanência no Superior Tribunal
Militar, onde sentiu diretamente o custo da repressão que se intensificou após
dezembro de 1968. E como luterano, foi o primeiro presidente não católico do
Brasil.

Geisel era conhecido por sua personalidade relativamente fechada. Seu estilo
autocrático de administrar tinha pouco do encanto e cordialidade tão
característicos do homem público brasileiro. Esse estilo evidenciou-se
rapidamente no rebaixamento de status da AERP, o poderoso órgão de relações
públicas que tão eficientemente promoveu a imagem do presidente Mediei.3 Como
seu mentor, Castelo Branco, Geisel detestava seu envolvimento pessoal em
qualquer campanha de propaganda. As fotos oficiais mostravam agora um presidente
cuja conduta austera era o oposto da fácil identificação do seu antecessor com
jogadores da seleção campeã
_________
3. Sérgio Caparelli, Televisão e capitalismo no Brasil (Porto Alegre, L & PM,
1982), p. 160.

Geisel: rumo à Abertura 319
de futebol. Geisel era também conhecido como um perfeccionista que gostava de
mergulhar em detalhes administrativos. Por isto mesmo os seus subordinados o
chamavam de devorador de papéis. Em resumo, era um administrador duro, que
decidia por conta própria. Em seu governo ninguém tinha dúvidas sobre quem era o
responsável final por tudo.

O Ministério de Geisel não revelou surpresas. Delfim Neto, o mais poderoso
ministro civil do governo que saía, foi substituído por Mário Henrique Simonsen,
outro professor de economia cujas políticas eram aparentemente mais ortodoxas do
que as de seu antecessor. Este foi nomeado embaixador na França, um dos postos
de maior prestígio da diplomacia brasileira. É evidente que o novo governo
desejava Delfim e seus formidáveis talentos e ambições políticas longe do
Brasil. O Ministério do Planejamento, em compensação, permaneceu com João Paulo
dos Reis Velloso, um economista natural do Nordeste que era agora o principal
elo no setor da política econômica com o governo Mediei. Os Ministérios da Saúde
(Paulo de Almeida Machado), Comunicações (comandante Euclides Quandt de
Oliveira), Minas e Energia (Shigeaki Ueki), Agricultura (Alysson Paulinelli) e
Interior (Rangel Reis) foram entregues a técnicos de boa reputação em seus
respectivos campos.

Entre as nomeações políticas mais interessantes destacavam-se Armando Falcão
(Justiça), que ocupara o mesmo posto no governo de Juscelino Kubitschek, e Ney
Braga (Educação), democratacristão (PDC) e ex-governador do Paraná, o que fazia
dele um dos dois únicos ministros (o outro era Falcão) que já haviam conquistado
um cargo público importante por eleição. O novo ministro do Trabalho e
Previdência Social, Arnaldo da Costa Prieto, era figura relativamente secundária
da ARENA do Rio Grande. Severo Gomes, o novo ministro da Indústria e Comércio,
era um homem de negócios de São Paulo que começara sua carreira política na
ARENA e fora ministro da Agricultura de Castelo Branco, ganhando a partir daí a
reputação de um dos líderes do nacionalismo econômico. O Ministério das Relações
Exteriores foi ocupado por António Francisco Azeredo da Silveira, diplomata de
carreira, cujo posto mais recente fora o de embaixador em Buenos Aires. Para o
Ministério dos Transportes e Obras Públicas foi nomeado o general Dirceu
Nogueira, um sul-riograndense formado em engenharia.

O homem que enfeixava o maior poder político do Ministério era o general
Golbery do Couto e Silva, chefe do gabinete civil da presidência. Após deixar o
Planalto em 1967, Golbery trabalhou para a Dow Chemical, primeiro como consultor
e depois como seu presidente para o Brasil. O fato de exercer esse posto
altamente remunerado em uma empresa multinacional expôs Golbery a constantes
ataques por parte de civis nacionalistas e militares da linha dura (embora os
censores impedissem a divulgação dessas críticas).4 A chefia do SNI foi ocupada
pelo general João Batista de Oliveira Figueiredo, que fora chefe do gabinete
militar do presidente Mediei, mas que também era considerado castelista. O novo,
titular do seu antigo posto foi o general Dilermando Gomes Monteiro, igualmente
um fiel castelista.5

Várias características deste novo Ministério eram dignas de nota. Primeiro,
não havia "superministros", como Delfim e Orlando Geisel foram no governo
Mediei. Este era um Ministério chefiado pelo presidente. Segundo, não havia
importantes figuras de estatura política independente.

O governo Geisel - isto é, o presidente e seus colaboradores castelistas -
tinha quatro alvos principais. O primeiro era manter o apoio majoritário dos
militares reduzindo ao mesmo tempo o poder da linha dura e restabelecendo o
caráter mais puramente profissional dos membros das forças armadas. O sólido
apoio militar era a condição sine qua non; sem ele nenhum presidente podia
realizar qualquer mudança política significativa. Embora os castelistas tivessem
conquistado folgadamente a sucessão presidencial, as três armas estavam repletas
de linhas-duras que suspeitavam dos planos do novo governo em relação à
liberalização política. Muitos daqueles militares estavam diretamente envolvidos
na rede de tortura que funcionava sob o comando do Exército. Geisel teria que
mantê-los na defensiva na esperança de reduzir-lhes o número
__________
4. A cobertura jornalística do general Golbery nunca foi muito grande porque ele
fazia questão de trabalhar por trás dos bastidores. Para uma rara reportagem de
capa sobre Golbery, ver "O fabricante de nuvens", Veja, 19 de março de 1980,
pp. 20-31, por Élio Gaspari, antigo redator da revista e, segundo se dizia, o
jornalista que tinha mais intimidade com o general.
5. Por causa de grave ferimento na perna (sofrido em um acidente de bicicleta),
o general Dilermando não pôde assumir seu posto, sendo substituído pelo general
Hugo de Andrade Abreu.

320 Brasil: de Castelo a Tancredo
pelo habilidoso recurso (através dos ministros militares) às promoções e à
designação para serviços. Nenhum aspecto desta política intramilitar podia ser
discutido publicamente. A nação tomaria conhecimento apenas de banalidades (corn
as nuanças ignoradas de todos, menos dos envolvidos nos fatos) através de
declarações em cerimônias públicas de caráter militar.

O retorno dos militares a um papel mais "profissional" significava convencer
a oficialidade de que os interesses a longo prazo das corporações militares e do
Brasil exigiam o abandono das funções de polícia nacional repressora em favor da
modernização dos equipamentos, da organização e do planejamento das três armas.
Este enfoque atraía especialmente os oficiais que nem eram da linha dura nem
castelistas mas que queriam ver os militares "afastados da política". Por ele
também se interessavam aqueles que se inquietavam com a corrupção que penetrara
nas fileiras militares desde que os generais se apossaram do poder.6
A segunda meta do novo governo era controlar os "subversivos". Quase nenhuma das
guerrilhas armadas sobreviveu à repressão do governo Mediei (exceto alguns
remanescentes moribundos na Amazónia). No entanto, as forças de segurança -
lideradas pela linha dura - continuavam a descobrir inimigos perigosos em cada
canto do território brasileiro. Geisel e Golbery concordavam que ainda havia
subversivos no Brasil, mas sabiam que as forças de segurança eram um foco de
oposição à liberalização e acreditavam que elas estavam superestimando a ameaça
subversiva para promover seus interesses políticos. Eles teriam que prosseguir
devagar, de modo que o governo não fosse surpreendido desarmado diante da
subversão. Não queriam dar oportunidade à linha dura de acusar o governo Geisel
de "brando" com a esquerda.

Perseguir as duas primeiras metas - manter o apoio militar e controlar os
subversivos - exigia um delicado ato de equilíbrio. Para legitimar-se aos olhos
dos militares a fim de combater a linha dura, Geisel teria que agir com rigor
contra não somente os subversivos mas também todo o centro-esquerda.

A terceira meta era o retorno à democracia, embora de uma variedade
indefinida. Aqui Geisel era fiel à visão de Castelo Bran-
6. Em meados de 1973, por exemplo, seis coronéis do Exército foram demitidos,
por envolvimento em corrupção, New York Times, 18 de julho de 1973.
Geisel: rumo à Abertura

321
co: a Revolução de 1964 devia, após um limitado período governamental de
emergência, conduzir a um pronto retorno à democracia representativa. As alusões
de Geisel à redemocratização geraram intensa especulação entre os adversários do
governo na Igreja, no MDB, na Ordem dos Advogados e na imprensa.

Qual era a idéia de redemocratização de Geisel-Golbery? Na falta de
declarações detalhadas pré-1974 dos seus advogados, podemos, ainda assim,
identificar vários pontos. Primeiro, os castelistas haviam descartado as idéias
corporativistas que certos assessores de Mediei defenderam em 1970-71. Os
castelistas decidiram também contra a transformação da ARENA em um sistema de
partido único no estilo mexicano.7 Falando na sua primeira reunião ministerial
em março de 1974, Geisel prometeu "sinceros esforços para o gradual, mas seguro,
aperfeiçoamento democrático". Acrescentou que a "imaginação política criadora"
poderia possibilitar a substituição dos "poderes excepcionais" por "salvaguardas
eficazes" compatíveis com a "estrutura constitucional".8 Apesar dessas
garantias, Geisel e sua equipe não tinham intenção de permitir que a oposição
chegasse ao poder. Eles imaginavam uma democracia em que o partido do governo
(ou partidos) continuasse a mandar sem contestação. Foi esta colocação que levou
alguns observadores a acreditar que Geisel, apesar dos seus desmentidos,
realmente tinha em mente um partido no estilo do PRI. Mas o governo
também sabia que jamais podia caminhar, mesmo para este tipo de liberalização, a
menos que, ao mesmo tempo, executasse um delicado trabalho para tranqüilizar os
militares.

A quarta meta era manter altas taxas de crescimento, de cuja importância os
castelistas estavam bem conscientes. Eles sabiam que o governo Mediei dependeu
da aceleração do crescimento econômico para se legitimar. Geisel deixou claro
aos tecnocratas responsáveis pela política econômica que era essencial crescer a
taxas elevadas. O novo governo preocupava-se também com a distribuição
__________
7. Em meados de 1974 Geisel deixou clara sua oposição a que a ARENA
evoluísse para um partido único que, segundo ele, seria "uma das formas mais
indisfarçadas de ditadura política". O Estado de S. Paulo, 18 de agosto de 1974.
8. Geisel, Discursos, vol. l (Brasília, Assessoria de Imprensa da Presidência da
República, 1974), p. 38.

322 Brasil: de Castelo a Tancredo
cada vez mais desigual dos benefícios do crescimento econômico. Embora o governo
não considerasse esta meta prioritária, achava não obstante que uma distribuição
mais uniforme devia acompanhar a liberalização política. Um primeiro passo foi a
criação de um novo Ministério da Previdência e Assistência Social para reunir os
mal coordenados programas sociais criados por governos anteriores. Seu primeiro
ministro foi Luiz Gonzaga do Nascimento e Silva, um advogado e tecnocrata que
dirigiu o Banco Nacional de Habitação no governo Castelo Branco.

Medidas para distribuir melhor os benefícios do "milagre" econômico seriam
mais fáceis de adotar se o crescimento continuasse a taxas altas. Com o bolo
crescendo, as fatias relativas podiam ser alteradas sem que ninguém perdesse em
termos absolutos. Era esta uma razão a mais para manter o crescimento acelerado.

Liberalização a partir de dentro?

Geisel e Golbery queriam liberalizar o regime autoritário que herdaram. Mas a
mesma coisa queriam muitos outros brasileiros. Numerosos intelectuais,
jornalistas e políticos, tanto da ARENA quanto do MDB, tinham idéias sobre como
desativar o regime militar repressivo do Brasil. Todos, no entanto, se
defrontavam com uma grande barreira psicológica: como passar gradualmente do
autoritarismo absoluto (expresso em documentos como o AI-5 e a Lei de Segurança
Nacional) para um sistema mais aberto, semi-império-da-lei, semidemocrático? O
termo "semi" ilustra o problema. Podia haver um "semi"-habeas-corpus? A lei do
habeascorpus era para ser respeitada ou não respeitada? O regime podia fazer
apenas "semi" censura? Como podia o governo "semi" recorrer ao decreto que
permitia decretos secretos? Golbery gostava de dizer que "fora do governo não há
solução". Agora ele tinha a oportunidade de formular as soluções castelistas.
Estas questões começaram a ser discutidas mesmo antes do fim do mandato de
Mediei.9 Leitão de Abreu, chefe do gabinete
____________
9. Para um índice de grande utilidade em relação a importantes discursos,
declarações e artigos de jornal sobre a liberalização, ver Marcus Faria
Figueiredo e José António Borges Cheibub, "A abertura política de 1973
Geisel: rumo à Abertura

323
civil de Mediei, em meados de 1972 tomou a iniciativa de discutir como a
repressão podia ser desativada em favor de um sistema mais aberto. Dessas
discussões também participou o professor Cândido Mendes de Almeida, influente
líder católico e cientista político. Por iniciativa de Cândido Mendes, o
professor Samuel Huntington, cientista político de Harvard especializado nas
políticas dos países em desenvolvimento e dos militares, visitou o Brasil em
outubro de 1972 para demorados contatos com Leitão de Abreu e Delfim Neto.
Huntington posteriormente descreveu a ambos como tendo "reconhecido a
necessidade de extinção das formas extremas de repressão que existiram e de uma
abertura do sistema político". Leitão colocou algumas questões difíceis para o
seu visitante: "Como pode ocorrer a descompressão em sistemas políticos
autoritários?" e "Qual o melhor modelo para o Brasil seguir a esse respeito?"

A pedido de Leitão, Huntington escreveu em 1973 um documento intitulado
"Métodos de Descompressão Política" ("Approaches to Political Decompression"),
dando suas respostas às perguntas do chefe do gabinete civil de Mediei. Afirmava
o professor americano que "o relaxamento dos controles em qualquer sistema
político autoritário pode muitas vezes ter efeito explosivo em que o processo
sai do comando daqueles que o iniciaram.. ." Acrescentava que tais regimes devem
dar prioridade máxima à institucionalização, e sugeriu que o governo brasileiro
estudasse atentamente o sistema de partido único do México de administração de
uma sucessão tranqüila. Huntington também enfatizava no
_____________
a 1981: quem disse o quê, quando - inventário de um debate", Boletim informativo
e bibliográfico de ciências sociais [BIB] (pub. pela Associação Nacional de Pós-
Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais), N.° 14, (1982), pp. 29-61. Após a
morte de Medici a viúva afirmou que seu marido desejara iniciar a abertura antes
do fim do seu mandato, mas que Geisel ameaçou renunciar a sua candidatura se o
presidente pusesse em prática aquela iniciativa. Entrevista com D. Scilla
Mediei, em Jornal do Brasil, l de junho de 1986. A declaração provocou uma
avalancha de desmentidos e recriminações. Geisel permaneceu em silêncio. O
debate pode ser acompanhado em Veja, 11 de junho de 1986, p. 51; Correio
Brasiliense, 12 e 15 de junho de 1986; Folha de S. Paulo, 17 e 18 de junho de
1986. Para discussão de um estudo em que se afirma que a abertura se originou no
governo de Mediei, ver Jornal do Brasil, 8 de junho de 1986, e Fatos, 23 de
junho de 1986, pp. 28-29.

324 Brasil: de Castelo a Tancredo
documento a fraqueza dos partidos políticos brasileiros, apontando o PRI do
México como modelo de um partido eficiente. E concluía recomendando o México e a
Turquia como exemplos de países comparáveis do Terceiro Mundo que havia m
institucionalizado corn êxito seus sistemas políticos.10

O trabalho de Huntington estimulou o debate imediato entre intelectuais e
estudiosos. Wanderley Guilherme dos Santos, cientista político com estágios na
Universidade Stanford, deu a mais completa resposta em Estratégias de
Descompressão Política, documento apresentado em um seminário realizado em
setembro de 1973 e patrocinado por um instituto parlamentar não partidário de
pesquisa em Brasília.11 Wanderley apresentou uma base sofisticada para um
processo gradual e altamente controlado de liberalização política. Ao contrário
de Huntington, que deu pouca importância à reintrodução dos direitos liberais
clássicos, Wanderley considerou como meta brasileira a restauração de seis
princípios, em ordem descendente de importância: independência do Judiciário;
liberdade de expressão e de imprensa; habeas-corpus e outros direitos
individuais; liberdade de organização em apoio de idéias políticas; regras
relativas à disputa do poder político; procedimentos legais bem definidos
para o uso da coerção.12
___________
10. Tive acesso a uma cópia deste documento graças à bondade do Prof. Wanderley
Guilherme dos Santos. Sou grato ao Prof. Huntington pela descrição do seu papel
nas etapas iniciais da liberalização política. Carta de 21 de maio de 1986 de
Samuel P. Huntington ao autor.
11. Seu documento e depoimento, inclusive perguntas de congressistas, foram
publicados em Wanderley Guilherme dos Santos, Estratégias de
descompressão política (Brasília, Instituto de Pesquisas, Estudos e Assessoria
do Congresso, 1973). Estão reproduzidos em Wanderley, Poder e política: crónica
do autoritarismo brasileiro (Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1978); uma
condensação foi publicada no Jornal do Brasil de 30 de setembro de 1973,
provocando um debate de âmbito nacional. Poder e política inclui também uma
série de 17 artigos de jornal publicados por Wanderley entre julho e dezembro de
1974. Estes artigos ajudaram a estimular a discussão de possíveis cenários de
redemocratização quando o assunto era alvo de acalorados debates dentro do
governo Geisel e entre representantes de destacados grupos da sociedade
civil. Para um interessante projeto de liberalização política estimulado
pelo documento de Wanderley, ver Roberto Campos, A nova economia brasileira (Rio
de Janeiro, Editora José Olympio, 1974), pp. 223-57.
12. Esta e subseqüentes referências são extraídas de Wanderley, Poder e
política, pp. 153-60.

Geisel: rumo à Abertura 325
Wanderley defendeu uma estratégia gradual para a conquista dessa meta. A
política devia ser "incrementalista", fazendo-se avanços moderados para evitar
"os riscos da recompressão" que, positivada, poderia devolver o Brasil a uma
situação de autoritarismo até mais profundo. O segredo consistia em evitar
"pressão simultânea" em frentes diferentes, bem como "a acumulação de desafios",
os quais poderiam sobrecarregar a capacidade do regime autoritário de "absorver"
discretas medidas de liberalização. A seguir ele defendeu a necessidade de um
acordo sobre quais medidas deviam ser implementadas e em que ordem. E afirmou
que a primeira medida devia ser a eliminação da censura e a reintrodução da
liberdade de expressão. Outras medidas viriam depois, juntamente com a
reorganização das estruturas político-partidárias.

O documento de Wanderley foi importante sob vários aspectos. Primeiro, o
autor afirmava que a liberalização só podia ser alcançada se a oposição
colaborasse com o governo em um processo gradualista. Este conselho não agradou
certos militantes combativos, como o líder do MDB Ulysses Guimarães, que exigiam
completo e imediato retorno à democracia e ao império da lei. Segundo, Wanderley
nunca mencionou os militares. Sua referência ao perigo de uma "recompressão"
obviamente visava os linhas-duras, mas o leitor tinha que fazer esta ilação.
Sua omissão não surpreendia, pois refletia uma tática comum à oposição moderna
que procurava preservar a ficção da neutralidade militar em política. Seu
objetivo era manter espaço para os militares se retirarem do poder com decoro.
Evitando atacá-los diretamente, os moderados esperavam usar a auto-imagem de
neutralidade política dos militares para convencê-los a se afastarem, assumirem
seu papel mais tradicional (poder moderador) e permitirem o prosseguimento
da liberalização.

Em subseqüente debate no seminário parlamentar, o senador por Pernambuco
Marcos Freire (MDB-centro) atacou a estratégia de Wanderley por "ajudar
regiamente aqueles que justificam o autoritarismo político'-'.13 Freire
considerava estratégia muito melhor a que foi seguida na redemocratização de
1945-46, quando o presidente Getúlio Vargas foi deposto e a Assembléia
Constituinte eleita, elaborando em seguida a constituição de uma nova república.
Para o senador pernambucano, "o problema agora é
_________
13. Ibid., p. 182.

326
Brasil: de Castelo a Tancredo
daqueles que detêm o poder estarem realmente dispostos a aceitar tão-somente a
vontade dó povo".14 Esta era a mentalidade do tudo ou nada que Wanderley lutava
para rejeitar. O outro participante do MDB foi o deputado Lisaneas Maciel,
pregador metodista e implacável crítico esquerdista do regime militar. Referiu-
se aos militares como "o único grupo com poder de decisão no país", e perguntou
mordazmente se eles não estavam sujeitos a "pressões externas", especialmente
dos Estados Unidos.15 Em sua resposta Wanderley contornou a questão, afirmando
que qualquer consideração a respeito deveria ser feita após a implementação de
medidas gradualistas com vistas à liberalização.

A expectativa de boa parte da elite em relação ao novo governo centrava-se na
esperança de que Geisel controlasse o aparato de repressão, especialmente os
torturadores. O homem comum, no entanto, mal podia partilhar dessa esperança, já
que era vítima de atos de repressão policial, tanto em regime democrático quanto
em regime autoritário. Em fins de fevereiro Geisel, como presidente-eleito,
alimentou essas expectativas conferenciando com o Cardeal Arns de São Paulo,
conhecido crítico do governo por suas freqüentes violações dos direitos humanos.
Emissários da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) reuniram-se com o
general Golbery e ficaram encorajados com o que ouviram. Pressionados por
críticos religiosos e seculares a assumir o compromisso de devolver o país ao
império da lei, Golbery demonstrou sincera receptividade, embora falando
invariavelmente em caráter não oficial. O otimismo aumentou quando em meados de
março Geisel prometeu "sinceros esforços para o gradual, mas seguro,
aperfeiçoamento democrático", embora também tenha apropriadamente advertido que
a "segurança" era indispensável para assegurar o desenvolvimento.16 Afinal,
tratava-se ainda de um governo militar.

Havia, no entanto, uma pista sobre o caminho que o novo governo trilharia. Em
fevereiro de 1974 Golbery convidou Samuel Huntington a vir novamente ao Brasil
para discussões adicionais ao seu documento de 1973. Golbery estava
particularmente interessado em como promover o aumento gradual mas constante da
___________
14. Ibid., p. 185.
15. Ibid., pp. 202-5.
16. Geisel. Discursos, vol. l (1974), p. 38.

Geisel: rumo à Abertura 327
participação no sistema político. Referia-se ao que chamava de "órgãos
intermediários", como a Igreja, a imprensa, as universidades e a classe
trabalhadora. Achava ele que o governo tinha que estabelecer canais de consulta
com esses grupos incorporando-os ao sistema político um de cada vez. Golbery
tinha também uma lista de questões mais específicas, como, por exemplo, a
maneira de fortalecer o Congresso e os partidos políticos, como limitar a
influência do dinheiro nas eleições e como expandir o eleitorado.17

Uma coisa era clara. Geisel e Golbery não planejavam um simples retorno a
1964. Entretanto, que tipo de oposição eles permitiriam que fosse legalizada? O
Partido Comunista? Qual deles? E os outros partidos da esquerda fragmentada? Que
dizer dos populistas, alvo principal da Revolução?

O desejo dos castelistas de liberalizar provinha de sua fé nas instituições
políticas que pretendiam modificar? Se era assim, que características da
estrutura autoritária seriam mantidas? O AI-5? A Lei de Segurança Nacional? As
emendas de 1969 à Constituição? Não surpreenderia que o governo sequer
insinuasse suas respostas a qualquer das importantes perguntas sobre o futuro
político a médio e longo prazo. Só uma coisa era certa. Geisel e Golbery
imaginavam uma abertura gradual e altamente controlada.18
____________
17. A visita de Huntington em fevereiro foi noticiada pelo Jornal do Brasil, 10
de fevereiro de 1974. Huntington voltou ao Brasil em agosto de
1974 para uma conferência sobre "O papel dos legislativos nos países em
desenvolvimento" (The Role of Legislatures in Developing Couritries), em que
cientistas políticos dos Estados Unidos, Canadá e Alemanha Ocidental discutiram
um tópico de grande interesse para o novo governo, assim como para a oposição.
Após a conferência Huntington, acompanhado do seu colega, o cientista
político americano Austin Ranney, voou para Brasília a fim de discutir a
conferência e seus temas corn Golbery. O seminário foi analisado na coluna de
Carlos Castello Branco no Jornal do Brasil de 13 e 15 de agosto de 1974. A
disposição do governo de permitir e até encorajar tais eventos (Huntington
chamou Golbery "o patrono silencioso" do seminário) é analisada em O
Estado de S. Paulo, 25 de agosto de 1974.
18. Numa entrevista de julho de 1985 com Alfred Stepan, Geisel explicou que em
1974 sua tarefa se complicou pelo fato de que os militares ligados aos órgãos de
segurança eram veementemente contrários à liberalização. Geisel estava
determinado a não perder o controle do governo (como ele achava que acontecera
tanto a Castelo Branco como a Costa e Silva)

328 Brasil: de Castelo a Tancredo

Ora, a elite, em sua maioria, queria dar ao presidente o benefício da dúvida.
Afinal, a redemocratização só podia acontecer sob a liderança dos militares, e
destes dificilmente se podia esperar que arriscassem súbitas mudanças em larga
escala. Após suas primeiras semanas na presidência, Geisel notava que a imprensa
lhe era excepcionalmente favorável. Em fins de março o New York Times, uma
liderança inconteste no jornalismo internacional, elogiava a atuação do novo
chefe do governo brasileiro.19 Mas a oficialidade do Exército tinha opiniões
menos favoráveis, ainda que menos públicas. Em fevereiro um maldoso manifesto
anti-Golbery começou a circular nos quartéis, seguido de dois outros, em meados
de abril. Mas Golbery minimizou sua importância, notando que aquelas opiniões a
seu respeito sempre tinham existido.

Os primeiros seis meses do governo Geisel foram de contínuas manobras
encetadas por autoridades governamentais e críticos civis em torno de uma
possível redemocratização. Era claro desde o início que a meta de liberalização
de Geisel-Golbery os levaria a um confronto com os torturadores e o SNI. O
objetivo militar de Geisel era devolver o poder aos generais de quatro estrelas,
que haviam perdido autoridade na mata espessa do DOI-CODI, do SNI e dos
tumultuados grupos terroristas paramilitares de direita. Dos observadores que
percebiam a iminente batalha, poucos eram os que achavam que Geisel e Golbery
teriam alguma chance.

O presidente resolveu começar sua administração com uma campanha para refrear
as unidades do DOI-CODI. O general Reinaldo Mello de Almeida (um liberal, e
filho do renomado escritor político José Américo de Almeida), comandante do
Primeiro Exército (sediado no Rio), fez algum progresso. Muito menos, contudo,
foi alcançado em outros pontos do país. Um aspecto
_____________
e estava convencido de que o essencial era impor forte liderança sobre as forças
armadas. Não estabeleceu um cronograma para a liberalização, embora pretendesse
abolir o AI-5 antes do fim do seu mandato. Em outras entrevistas com Stepan, o
general Golbery deu detalhes de como o governo tentava proceder, especialmente
em relação à Igreja. Stepan, Os militares, pp. 44-49.
19. Editorial no New York Times, 23 de março de 1974. Para dúvidas propriamente
ditas na imprensa brasileira, ver a coluna de Carlos Castello Branco em Jornal
do Brasil, 5 de setembro de 1974.

329
dessa luta impressionou as forças de Geisel: a hierarquia militar fora muitas
vezes desrespeitada, já que as forças de segurança (DOI-CODI) podiam
rotineiramente ignorar a cadeia de comando. Isto significava que as equipes de
torturadores podiam prosseguir sem perigo de serem contidas pelo comando
superior. Geisel e os castelistas viam esta "subversão da hierarquia militar"
como altamente perigosa e dela fizeram o alvo principal de sua ofensiva contra
os torturadores.20

Nos primeiros meses do governo Geisel os linhas-duras deram mostras de que
ainda controlavam o aparato de repressão e o estavam usando para enfraquecer os
esforços visando à liberalização. Um incidente no Nordeste foi bem ilustrativo.
Dois dias antes da posse de Geisel, o comando do Quarto Exército, com sede em
Recife, prendeu Carlos Garcia, respeitado jornalista que chefiava a sucursal de
O Estado de S. Paulo na capital pernambucana. Após ser submetido a
interrogatório e tortura, Garcia foi libertado. Os donos de O Estado,
arquiinimigos e ferrenhos críticos do regime militar, protestaram vigorosamente
contra os maus-tratos sofridos por seu repórter, contra o qual não foram feitas
acusações públicas. O incidente pareceu bem escolhido para dar ao governo
Geisel, recém-iniciado, a pior publicidade possível.21

A linha dura achava-se em franca atividade também em outros lugares. No
início de abril um ilustre advogado de São Paulo, Washington Rocha Cantral, foi
preso e torturado. Ao ser libertado, processou o CODI por detenção ilegal e
maus-tratos, e a Ordem dos Advogados protestou veementemente contra "as torturas
físicas e morais" sofridas por seu colega. O fato de terem podido arrastá-lo e
torturá-lo mostrava quão pouco mudara o comportamento do governo em comparação
com a era de Mediei. Mas a circunstância de ele ter ousado processar o Exército
e de a Ordem dos Advogados havê-lo apoiado tão ruidosamente mostrava o quanto
mudara a disposição de ânimo público. O medo das violências das forças de
segurança começara a refluir e uma instituição da elite estava pronta para
desafiá-las.22
____________
20. Fon, Tortura, pp. 65-66.
21. Minhas fontes foram Carlos Garcia, outros jornalistas de Recife,
funcionários consulares americanos e o New York Times, 25 de março de
1974.
22. New York Times, 4 de novembro de 1974.

330 Brasil: de Castelo a Tancredo

Como um dos colegas de Rocha disse, a repressão é "tão má, quanto sempre o
foi. Mas agora temos esperança de que o governo faça alguma coisa a respeito, e
é isso que estamos insistindo na questão".23 Em abril houve também um ataque ao
CEBRAP (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), centro de pesquisa de
ciências sociais internacionalmente conhecido, organizado com recursos da
Fundação Ford, por professores expurgados da Universidade de São Paulo em 1969.
Dois pesquisadores foram presos e um deles muito torturado. Aqui novamente as
forças de segurança (aparentemente o DOI-CODI e o CIEX) escolheram um alvo
internacionalmente visível, prejudicando gravemente a imagem do governo no
exterior.

O que tornava esses fatos entristecedores era que colidiam com a esperança
que a equipe de Geisel suscitara. Jornalistas estrangeiros noticiaram com
detalhes as promessas feitas extraoficialmente pelo novo governo:24 a censura
seria abrandada; as forças de segurança, postas sob controle; e o governo veria
com satisfação o aumento da energia construtiva da sociedade civil brasileira.

No final de maio novos sinais apareceram de que a linha dura poderia estar
predominando. Os censores federais reprimiram violentamente a mídia, inclusive o
influente semanário de notícias Veja, que agora sofria censura mais rigorosa dos
seus textos.25 Era uma reação contra as críticas mais agressivas da oposição. A
Ordem dos Advogados do Brasil expressou preocupação com o descaso do governo não
apurando o paradeiro de pessoas que se acreditava terem sido presas pelas forças
de segurança. Mesmo
__________
23. New York Times, 9 de julho de 1974.
24. São exemplos as reportagens do New York Times de 30 de maio e 11 de agosto
de 1974.
25. New York Times, 29 de maio de 1974. Para crise semelhante por causa da
censura em fins de março, ver New York Times, 25 de março de 1974. Um alvo
favorito dos censores era o semanário Opinião, que rotineiramente tinha mais da
metade dos seus textos proibida pelos censores em Brasília. A publicação
sobreviveu, não obstante, de 1972 até 1977, quando os seus responsáveis
finalmente a fecharam em protesto contra a pressão governamental. A documentação
da luta é dada em J. A. Pinheiro Machado, Opinião x censura: momentos da luta de
um jornal pela liberdade (Porto Alegre, L & PM, 1978). Informações gerais sobre
a censura, organizadas um tanto caoticamente, podem ser encontradas em
Paolo Marconi, A censura política na imprensa brasileira: 1968-1978 (São
Paulo, Global, 1980).

331
durante a repressão de Mediei sabia-se que a maioria dos detidos estaria em
alguma dependência da polícia ou em quartéis. Esta localização (embora muitas
vezes mudada abruptamente) permitia que os grupos de defesa dos direitos humanos
no Brasil e no exterior seguissem o rasto dos presos e tentassem intervir em seu
favor. No caso dos "desaparecimentos", contudo, as forças de segurança podiam (e
assim faziam) alegar desconhecer os "desaparecidos", frustrando assim a abertura
de inquérito.26

Em julho o MDB requereu formalmente ao ministro da Justiça que comentasse
sobre o destino de pessoas que se acreditava detidas pelo governo.27 O Cardeal
Arns chefiou uma delegação que apresentou ao general Golbery uma lista de 22
"pessoas desaparecidas", com farta documentação fornecida por aqueles que as
tinham visto pela última vez, muitas na prisão. Das 22 da lista, 21 tinham
desaparecido a partir da posse de Geisel. A pergunta subentendida era óbvia: não
estava o governo controlando o aparato de segurança? Golbery prometeu investigar
todos os casos e responder prontamente.28 Em agosto a OAB dedicou sua convenção
nacional no Rio inteiramente ao tema "O advogado e os direitos do homem". Num
emocionante discurso de encerramento o presidente da entidade, João Ribeiro de
Castro Filho, declarou que "os tecnocratas continuarão a trabalhar como máquinas
enquanto formos os defensores do homem".29

Em outubro surgiram novas evidências de que a liberalização estava muito
longe de iminente. A primeira foi a prisão e tortura
___________
26. New York Times, 30 de maio e 11 de agosto de 1974; Capital Times (Madison,
Wisconsin), de 30 de dezembro de 1974, publicou uma história fornecida pelo Los
Angeles Times News Service sobre alguém que "desaparecera" em 1974.
27. New York Times, 10 de julho de 1974.
28. O Rev. Jaime Wright, cujo irmão Paulo estava na lista, foi um dos membros da
delegação e informou que Golbery ficou visivelmente comovido quando leu a
documentação de cada caso. Entrevista com Jaime Wright, São Paulo, 14 de
maio de 1975. Há uma lista nominal de 32 vítimas da abertura em Kucinski,
Abertura, pp. 4546.
29. Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Anais da V Conferência
Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, Rio de Janeiro, 11-16 de
agosto de 1974 (Rio de Janeiro, Conselho Federal da OAB, 1974), p. 101. O New
York Times publicou matérias sobre a convenção dos advogados em 11 e 13 de
agosto de 1974.

332 Brasil: de Castelo a Tancredo
em Recife de um ex-missionário metodista, um americano que abandonara o serviço
de sua igreja e se instalara no Brasil como correspondente do Time e da
Associated Press. Seus inquisidores aparentemente achavam que ele era
responsável por reportagens divulgadas no exterior favoráveis a Dom Helder
Câmara, um dos principais críticos do governo militar. Era mais do que provável
que o comando do Quarto Exército, repleto de linhas-duras, estivesse
deliberadamente desafiando o governo Geisel. Fred Morris tornou-se a primeira
pessoa corn plena cidadania americana (isto é, sem dupla nacionalidade) a ser
torturado.30 A princípio o comando do Quarto Exército negou que estivesse
detendo Morris com esta informação Brasília comunicou à Embaixada americana que
não havia um caso Morris. Logo depois, para vexame do governo, o

Quarto Exército admitiu estar de posse de Morris. O cônsul americano o visitou
então no quartel do Exército e confirmou que ele fora torturado, notícia que
indignou a embaixada. O episódio deixou claro também que as forças de segurança
haviam escolhido uma vítima, um americano, cuja detenção criaria sério embaraço
para o governo Geisel.

Logo depois que o cônsul visitou Morris, sua tortura foi suspensa, mas ele
ainda ficou preso várias semanas, talvez para que os sinais das violências a que
fora submetido desaparecessem. Morris foi em seguida expulso do país por decreto
presidencial. Este caso deu ênfase ao interesse do governo dos Estados Unidos na
"liberalização". Por outro lado, provocou uma campanha pela imprensa (inspirada
pelo governo) contra o embaixador americano John Crimmins, que protestara
vigorosamente junto ao governo brasileiro contra o tratamento dispensado a
Morris. No final de novembro Crimmins seguiu para Washington em férias e a
campanha parou. De volta a Brasília, contudo, descobriu que o incidente reduzira
sua eficiência junto a setores militares do governo
_________
30. Morris relatou suas experiências em "In the Presence of Mine Enemies: Faith
and Torture in Brazil", Harpers Magazine (outubro de 1974), pp. 57-70. Para mais
detalhes sobre o caso Morris, ver "Torture and Oppression in Brazil", Hearing Be
fore the Subcommittee on International Organizations and Movements of the
Committee on Foreign Affairs, House of Representatives, Ninety-third Congress,
Second Session, 11 de dezembro de 1974 (Washington, U.S. Government Printing
Office, 1975).

Geisel: rumo à Abertura 333
Geisel. Mas o Departamento de Estado o apoiou, e ele permaneceu no Brasil.31

O segundo incidente em outubro girou em torno de Francisco Pinto, deputado
pelo MDB baiano e conhecido agitador. Em meados de março, quando chefes de
Estado estrangeiros se reuniram em Brasília para a posse de Geisel, Francisco
Pinto falou na Câmara dos Deputados denunciando o presidente Pinochet do Chile
(que se apossara do poder meses antes no golpe contra Salvador Allende) como
"fascista" e "opressor do povo chileno". Os linhas-duras ficaram revoltados que
um oficial de um Exército amigo da América Espanhola - e um líder anticomunista
pudesse ser tão maltratado por um parlamentar brasileiro. O ministro da Justiça
imediatamente providenciou o processo de Pinto nos termos da Lei de Segurança
Nacional.32 Com esta arma ainda apontada para o seu peito, o deputado repetiu o
ataque a Pinochet em programa de rádio no interior da Bahia. O governo Geisel
deve ter receado que as explosões de Francisco Pinto se transformassem numa
reedição do caso Márcio Moreira Alves, de 1968, que forneceu pretexto para a
ascensão da linha dura. Pinto foi acusado de insultar o chefe de Estado de uma
nação amiga, crime previsto na Lei de Segurança Nacional. Seu processo arrastou-
se e finalmente, em outubro, teve o seu mandato cassado e ficou privado dos seus
direitos políticos. O fato de o delito do deputado ter sido enquadrado na Lei de
Segurança Nacional e não no AI-5 foi interpretado como uma distinção que
encorajava os otimistas, os quais esperavam que Geisel deixaria esse
instrumento.

Apesar das erupções periódicas das forças de segurança predominantemente
constituídas por elementos da linha dura, continuavam animadas as conversações
sobre a liberalização. Em agosto o professor Samuel Huntington, sempre disposto
a atender ao chamamento dos reformadores brasileiros, voltou ao Rio para tomar
31. Este relato é baseado em parte em entrevistas com funcionários da Embaixada
dos Estados Unidos em Brasília e do consulado americano em Recife em 1975. Ver
também New York Times, 26 de novembro de 1974. O vigor da reação da Embaixada
americana podia ser explicado em parte pelo seu conhecimento de que as forças de
segurança estavam vigiando Morris; a embaixada advertira o governo brasileiro
que estaria acompanhando o caso muito de perto.
_________
32. New York Times, 5 de abril de 1974.

334 Brasil: de Castelo a Tancredo
parte de um seminário sobre "Legislaturas e Desenvolvimento". O simples fato de
o seminário poder ser realizado era algo notável, dado o fato de que o aparato
repressivo de segurança continuava em plena atividade.33 O Estado de S. Paulo
elogiou o governo Geisel por encorajar o debate sobre questões de organização
política básica.34 Mais objetivamente, o presidente logo depois reiterou seu
compromisso com a liberalização, embora advertindo também a oposição contra a
tentativa de manipular a opinião pública a fim de pressionar o governo. Tais
pressões, lembrou Geisel, "servirão, apenas, para provocar contrapressões de
igual ou maior intensidade, invertendo-se o processo da lenta, gradativa e
segura distensão, tal como se requer, para chegar-se a um clima de crescente
polarização e radicalização intransigente, com apelo à irracionalidade emocional
e à violência destruidora. E isso, eu lhes asseguro, o governo não o
permitirá".35 As "contrapressões" de Geisel eram a linha dura e a escória dos
seus aliados civis, inclusive o ministro da Justiça Armando Falcão, que agia
como contato do governo junto a eles. Pelas regras implícitas da discussão
política de então ninguém podia dizer abertamente que os militares eram o objeto
de suas preocupações. Na cobertura da imprensa sobre os debates referentes à
liberalização o leitor só encontrará veladas referências a opiniões divergentes
entre os militares.

Podia-se, no entanto, ler nas entrelinhas. Em meados de agosto, por exemplo,
Carlos Castello Branco achava que as perspectivas de liberalização haviam
melhorado, "tanto mais quanto se acredita que as condições de retaguarda estejam
sendo sistematicamente saneadas pelo atual presidente da República". O uso do
termo militar "condições de retaguarda" não era simples coincidência. Mas no dia
seguinte Castello informava seus leitores de que o governo Geisel decidira não
depender do crescimento econômico acelerado para se legitimar, já que este não
oferecia suficiente estabilidade a longo prazo. A única saída, portanto, era a
liberalização. Mas este era um jogo perigoso, porque inevitavelmente conduziria
a manobras de desestabilização da linha dura, ou do "fanatismo", no eufemismo de
Castello Branco.36 Uma coisa era certa. O gover-
____________
33. Ver a cobertura em Jornal do Brasil, 13 e 15 de agosto de 1974.
34. O Estado de S. Paulo, 25 de agosto de 1974.
35. Geisel, Discursos, vol. l (1974), p. 122.
36. f ornai do Brasil, 15 e 16 de agosto de 1974.

Geisel: rumo à Abertura 335
no Geisel não admitiria ser pressionado para adotar um rígido cronograma de
reformas políticas. O Planalto imprimiria o ritmo, não a oposição.37

Na esperança de acelerar a liberalização, os políticos e os
constitucionalistas começaram a usar a "imaginação criadora", conforme apelo do
presidente. Flávio Marcílio, figura importante da ARENA e presidente da Câmara
dos Deputados, sugeriu que o AI-5, o elemento essencial do regime arbitrário,
fosse incorporado à Constituição. Imediatamente foi atacado pelo deputado do MDB
Marcos Freire, que achou um "absurdo" pensar em incorporar à Constituição um ato
extraconstitucional.38 Obviamente, não seria fácil encontrar fórmulas legais
para adequá-las a novas realidades políticas.

Novembro de 1974: uma vitória do MDB

Todas essas lutas entre o governo e seus críticos não passavam de um prelúdio
às eleições parlamentares de 1974, o teste eleitoral mais importante ao nível
federal desde 1964. O governo Geisel recebeu um legado eleitoral contraditório
do seu antecessor. Por um lado, Mediei impediu que o MDB controlasse qualquer
governo estadual transformando em indiretas as eleições para governadores,
marcadas para outubro de 1974. As assembléias estaduais, facilmente manipuladas
por Brasília, procederiam à eleição. Já as eleições parlamentares de novembro,
no entanto, seriam diretas. O regime Mediei tinha seu próprio meio de enfrentar
esses desafios políticos. Nas eleições parlamentares de 1970, por exemplo,
Brasília recorreu a maciça intimidação do eleitorado e hostilizou a oposição.
Mas o que aconteceria se as eleições fossem relativamente livres?

A ARENA ganhou folgadamente as eleições para governadores. Nem era para
surpreender, já que ela controlava todas as assembléias estaduais onde se travou
o pleito, mas os estrategistas políticos do Planalto talvez tivessem
interpretado mal o significado
__________
37. O Estado de S. Paulo, 29 de agosto de 1974.
38. O Globo, 26 de agosto de 1974; O Estado de S. Paulo, 28 e 30 de agosto de
1974.

336 Brasil: de Castelo a Tancredo
da vitória. De quando em quando os revolucionários moderados subestimavam o
alcance da oposição eleitoral ao governo militar. Este falso senso de segurança
talvez lhes fosse transmitido pelos líderes da ARENA, confiantes demais em seu
sucesso nas próximas eleições para o Congresso. No início de outubro poucos eram
os observadores políticos bem informados capazes de apostar contra uma
esmagadora vitória da ARENA.

A atitude do presidente foi decisiva. A sua maneira de ver as eleições era
muito parecida com a de Castelo Branco, inclusive sua opinião altamente
moralista sobre os candidatos e os eleitores. Como Castelo, Geisel acreditava
que o eleitor brasileiro votaria em bons candidatos, se lhes dessem
oportunidade. A ARENA dar-lhes-ia tal oportunidade.

Geisel também acreditava nos líderes do partido oficial, especialmente no
presidente do Senado Petrônio Portella, o principal estrategista da campanha, e
achava que eles podiam levar o partido e o governo à vitória nas urnas. O que
ele não chegou a compreender foi o estado de espírito da opinião pública em
1974. Do contrário, teria concluído que sob o regime autoritário qualquer
disputa bipartidária acabaria desta vez em inevitável plebiscito sobre o
governo. Como a repressão e a política de distribuição de renda profundamente
desigual tendia a alienar o eleitor comum, especialmente nas cidades, o
plebiscito quase certamente se definiria contra a ARENA nas áreas urbanas.

Este raciocínio era especialmente correto em novembro de 1974, embora
bastante irônico, pois o governo envidara todos os esforços para que não
pairassem dúvidas sobre a honestidade das eleições. Recomendações especiais
foram feitas sobre a segurança nas seções eleitorais, e para neutralizar
qualquer vantagem "injusta" que a ARENA pudesse ter como o partido no poder na
maioria das localidades.39

No começo de novembro, o clima político que tanto favorecera a ARENA mudou
rapidamente. Para surpresa geral, o governo resolveu permitir a todos os
candidatos acesso relativamente
___________
39. Em agosto, Carlos Chagas informou que Geisel estava ordenando severamente a
todos os governadores e aos diretórios regionais da ARENA que não se envolvessem
em qualquer tipo de intimidação do eleitor ou outras práticas eleitorais
questionáveis. Geisel claramente supunha que a ARENA ainda venceria. O Estado de
S. Paulo, 18 de agosto de 1974.

337
livre à televisão.40 Subitamente o eleitorado começou a imaginar que seus votos
poderiam modificar o panorama político. Talvez o MDB representasse verdadeira
alternativa; talvez o presidente estivesse preparado para cooperar com a
oposição. Esta maneira de pensar não era casual. O MDB há alguns meses vinha
afirmando que estava mais afinado com os planos de liberalização do presidente
do que o partido do governo. Quinze dias antes da eleição um frêmito de
entusiasmo tomou conta da oposição.

Até militantes da esquerda, que antes zombavam das eleições (e recomendavam o
voto em branco), concluíram que podiam enviar uma "mensagem" ao governo votando
no MDB. O resultado das eleições foi surpreendente.41 O MDB quase dobrou sua
representação na câmara baixa (o número de cadeiras tinha sido aumentado de 310
para 364), saltando de 87 para 165; a ARENA caiu de 223 para 199. Embora a ARENA
tivesse obtido a maioria dos votos para deputados federais com 11,87 milhões
contra 10,95 milhões, esta margem empalidecia em comparação com as eleições de
1970, quando o partido oficial ganhou por 10,9 milhões contra 4,8 milhões. O
resultado no Senado não foi menos dramático. A representação do MDB subiu de 7
para 20, enquanto a ARENA caiu de 59 para 46. Na votação para senador (o melhor
indicador da opinião nacional por ser a eleição majoritária), o MDB fez 14,6
milhões de votos contra 10 milhões da ARENA. A esmagadora vitória do MDB
surpreendeu até os seus mais otimistas estrategistas.

A derrota do governo não parou ao nível do parlamento federal. As eleições
para as assembléias legislativas estaduais foram profundamente adversas para a
ARENA e o governo. O MDB
________
40. Um especialista em televisão comentou depois que as eleições de
1974 foram decididas pela televisão, assinalando assim a quebra do tradicional
isolamento da maior parte do eleitorado rural. Sodré, O monopólio, p. 29.
41. Para uma análise detalhada das eleições de novembro de 1974, ver Bolívar
Lamounier e Fernando Henrique Cardoso, eds., Os partidos e as eleições no Brasil
(Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1975); Margaret J. Sarles, "Maintaining Political
Control Through Parties: The Brazilian Strategy", Comparative Politics, XV,
N.° l (1982), pp. 41-72; e Revista Brasileira de Estudos Políticos, p. 43 (julho
de 1976), inteiramente dedicada às eleições. Meus dados são tirados desta
última. Para uma apreciação divertida e irreverente das eleições, ver
Sebastião Nery, As 167 derrotas que abalaram o Brasil (Rio de Janeiro, Francisco
Alves Editora, 1975).

338 Brasil: de Castelo a Tancredo
assumiu o controle das assembléias de São Paulo, Rio Grande do Sul, Rio de
Janeiro (inclusive a cidade do Rio), Paraná, Acre e Amazonas. Anteriormente o
partido só controlava o Legislativo do Grande Rio (então ainda estado da
Guanabara). Agora a oposição ganhara em estados-chaves onde o eleitorado urbano
era decisivo.

Que significava a vitória do MDB? O partido concentrara sua campanha em três
questões: justiça social (denunciando a tendência a uma distribuição mais
desigual da renda), liberdades civis (violações dos direitos humanos que tanto
indignavam os críticos da oposição) e a desnacionalização (denunciando a
infiltração estrangeira na economia do Brasil).42 Os líderes emedebistas
afirmavam que sua vitória mostrava que o povo os havia aceitado como autênticos
representantes da oposição.43 No mínimo, todos concordavam que as eleições
haviam comprovado amplamente que faltava apoio à "Revolução". No Maranhão, por
exemplo, o MDB
___________
42. O sabor da campanha do MDB pode ser encontrado em coleções de discursos de
dois dos seus líderes: Franco Montoro, Da "democracia" que temos para a
democracia que queremos (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1974), e Marcos Freire,
Oposição no Brasil, hoje (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1974). Montoro era
senador pelo MDB de São Paulo, e Freire, senador pelo MDB de Pernambuco.
As idéias políticas do Congresso a partir do início de 1975 foram analisadas em
um levantamento conduzido por A. C. Guimarães e Luís Henrique Nunes Bahia e
publicado em Jornal do Brasil de 14, 15, 16 e 17 de abril de 1975. A
maioria dos parlamentares da ARENA e do MDB era favorável à redução das
atividades das multinacionais no Brasil e desejava também que a intervenção do
Estado na economia continuasse pelo menos ao nível atual.
43. Esta foi a conclusão de Lamounier e Cardoso em sua detalhada análise dos
resultados das eleições, em Os partidos e as eleições no Brasil. Um pesquisador
que antes notara forte apoio da classe trabalhadora a Mediei tinha agora que
explicar por que ela votou tão maciçamente no MDB em 1974. A resposta de Cohen
foi que o MDB havia astutamente dado prioridade às questões econômicas e
instruído os trabalhadores sobre as diferenças entre os dois partidos.
Finalmente, afirmava Cohen, "eles simplesmente desejavam um governo que
melhorasse a situação econômica (...) em vez de uma reorientação fundamental
da política". Cohen, "The Benevolent Leviathan", p. 56. Para uma penetrante
análise de como os lavradores do interior de São Paulo consideravam as eleições
de 1974 irrelevantes para as suas aperturas, ver Verena Martinez Alier e
Armando Boito Júnior, "The Hoe and the Vote: Rural Labourers and the National
Election in Brazil in 1974". The Journal oi Peasant Studies. IV. N." 3 (Abril de
1977), pp. 147-70.

Geisel: rumo à Abertura 339
nem sequer apresentou candidato ao Senado, e o candidato vitorioso da ARENA
recebeu menos do que o total das abstenções mais os votos em branco e os
anulados.44 Em São Paulo o MDB concorreu com um político desconhecido, Orestes
Quércia, que ganhou por três milhões de votos contra o altamente respeitado
candidato da ARENA, Carvalho Pinto, que fora governador, senador e ministro. A
recessão econômica de 1974 certamente foi fator importante nesses resultados.
Mesmo assim, o Planalto não podia mais alimentar ilusões sobre a capacidade da
ARENA de ganhar eleições relativamente livres. Para o governo, no entanto,
restava um consolo: a campanha extraordinariamente bem-sucedida do MDB fora
contra Mediei, não contra Geisel, detalhe que o senador Franco Montoro
posteriormente reconheceu.45

Descompressão sob ameaça

Em dezembro o controle de Geisel sobre o cenário político era muito menor do
que aquele que herdara de Mediei em março. Os resultados das eleições de
novembro iriam anuviar o resto do seu governo. Primeiro, o MDB conquistara mais
de um terço do Congresso, o que significava que o governo perdera a maioria de
dois terços necessária para emendar a Constituição. Agora qualquer emenda
constitucional rejeitada pelo MDB só podia converter-se em lei mediante o uso do
AI-5, que Geisel pretendera evitar. Segundo, as eleições puseram em dúvida a
capacidade da ARENA de servir como o efetivo partido do governo. Geisel estava
contando com uma ARENA forte para controlar o cenário político civil durante o
processo de liberalização gradual. Mas com um partido tão inepto e impopular, o
que poderia impedir que o MDB, se as eleições continuassem livres, conquistasse
o poder muito mais rapidamente do que a linha dura toleraria? E o que impediria
a esquerda do MDB de ganhar o controle do partido quando este assumisse o poder?
Terceiro, as eleições haviam mostrado que a liberalização eleitoral, isto é,
permitir a todos os candidatos livre
__________
44. Chagas, Resistir ê preciso, p. 114. Chagas afirmou que a votação de
1974 foi mais contra Mediei do que a favor do MDB.
45. Entrevista com o senador Franco Montoro, Brasília, 7 de maio de
1975.HM

340 Brasil: de Castelo a Tancredo
acesso à TV e parar com a intimidação e a hostilidade à oposição, poderia
conduzir a resultados muito imprevisíveis. E surpresas não figuravam nos planos
de Geisel-Golbery. Uma surpresa vinda da esquerda (na lógica da linha dura)
poderia levar à "recompressão" sobre a qual Wanderley advertira - uma regressão
comparável a 1965 ou 1968.

Os estrategistas de Geisel sentiram-se acuados. Estavam preparados para
transmitir o poder real à oposição? Em São Paulo e no Rio Grande do Sul, por
exemplo, o MDB controlava as assembleias legislativas que elegeriam os novos
governadores. O Planalto estava preparado para aceitar governadores da oposição
em estados tão importantes?

O presidente Geisel apressou-se em assegurar que os resultados das eleições
seriam respeitados. Reforçava a sua decisão o fato de que o MDB conquistara
somente posições legislativas e o Congresso há muito estava privado de qualquer
poder de iniciativa. Os assessores presidenciais também afirmavam, em caráter
privado, que a derrota eleitoral fora vantajosa para o processo de
liberalização. Agora o governo tinha a prova de que devia adaptar-se rapidamente
ao público muito mais politizado e consciente que emergira durante o reinado de
Mediei.46

Em janeiro o governo adotou uma medida conciliatória: suspendeu a censura
prévia em O Estado de S. Paulo, pouco antes das comemorações do centenário do
jornal.47 Esta concessão pôs
___________
46. Um veterano jornalista americano visitando o Brasil em fevereiro de 1975
notou, após longas conversas com jornalistas e influentes personalidades
políticas, que "a ditadura militar brasileira (...) será talvez o único governo
do mundo a se deleitar com o que representa uma generalizada derrota nas urnas".
Tad Szulc, "Letter from Brasília", The New Yorker, 10 de março de 1975, p. 72.
Mais ou menos a mesma impressão foi a de Ulysses Guimarães, presidente
nacional do MDB, e Célio Borja, líder do governo na Câmara dos Deputados,
em entrevistas em Veja, 27 de novembro de 1974, pp. 31-34. Um jornalista
brasileiro explicou a paradoxal situação política do seu país
afirmando: "nestas circunstâncias, quem apostaria no êxito da atual
abertura política? Ninguém. Só, talvez, esses incorrigíveis otimistas, os
brasileiros". Fernando Pereira, "Decompression in Brazil?", Foreign Affairs,
LIII, N.° 3 (abril de 1975), pp. 498-512.
47. New York Times, 5 de janeiro de 1975. Não houve anúncio de que a censura
fora suspensa, mas o leitor atento teria notado que os versos de Camões,
naturalmente usados para preencher o espaço do material

Geisel: rumo à Abertura 341
fim, pelo menos temporariamente, a uma áspera luta entre os donos do jornal (a
família Mesquita) e o governo militar. Nenhuma das outras publicações sujeitas a
censura prévia - Veja, O São Paulo, Pasquim, Opinião e Tribuna da Imprensa - foi
retirada da lista. O governo fizera um gesto limitado, típico do estilo de
Geisel. Enquanto isso, todas as demais publicações continuavam sujeitas a
apreensão pela Polícia Federal por ordem dos censores. Esta ameaça forçou os
jornais a continuarem a prática da autocensura (que O Estado de S. Paulo sempre
se recusara a fazer, mas com a qual agora concordava). Finalmente, os censores
mantiveram o poder de ordenar aos editores que não publicassem certas matérias
específicas. Neste ponto, a Folha de S. Paulo, geralmente pró-governo, emergiu
como poderosa voz da oposição. Sob a chefia de Cláudio Abramo e Alberto Dines, o
jornal abriu suas páginas editoriais e de colaboração a conhecidos críticos do
governo militar. A partir daí, a Folha tornou-se a tribuna mais importante para
o debate nacional sobre a necessidade de reformas políticas, econômicas e
sociais de base.48

Em fevereiro de 1975 a oposição estava novamente pedindo providências sobre
presos políticos. O MDB e os ativistas da Igreja Católica Romana, que em meados
de 1974 procuraram uma explicação sobre o paradeiro dos 22 "desaparecidos",
apertavam agora Golbery, que prometera uma resposta. Mas o mês de março foi
assinalado apenas por nova onda de prisões, especialmente em São Paulo. Golbery
nunca deu qualquer satisfação. Pelo contrário, tudo o que havia sobre o assunto
era um discurso que o ministro da Justiça Falcão fizera pelo rádio e a TV em
fevereiro em que tratara de casos que nada tinham a ver com a questão,
terminando por omitir qualquer explicação satisfatória sobre os 22. A conclusão
era inevitável: o governo Geisel não controlava as forças de segurança. O
malogro de Golbery não passou despercebido da
____________
censurado, não estavam sendo publicados pela primeira vez desde agosto de 1972.
O general Golbery em fins de 1974 dissera a um estudioso americano que a
restauração da liberdade de imprensa era crucial. Stepan, Os militares, p. 48.
48. Para detalhes sobre a emergência da Folha como o principal jornal da
oposição, ver Carlos Guilherme Mota e Maria Helena Capelato, História da Folha
de S. Paulo: 1921-1981 (São Paulo, IMPRES, 1980), 204 ff.

342 Brasil: de Castelo a Tancredo
oposição. Para muitos, agora, o regime de Geisel não era melhor do que o de
Mediei.49

A esta altura, o governo começou a agir a partir de sua desconfiança básica da
oposição. Em janeiro de 1975, o ministro da Justiça desfechou violenta repressão
sobre o Partido Comunista (o PCB, da linha de Moscou), afirmando que ele estava
por trás da vitória do MDB nas eleições de 1974. Era apoiado (ou incitado?)
pelos militares da linha dura, que estavam fazendo circular um memorando secreto
afirmando que o deputado estadual paulista Alberto Goldman era um agente
comunista destacado para manipular o MDB.

As forças de segurança vinham há algum tempo caçando a liderança do PCB.
Desde o fim de 1973, quatro membros do Comitê Central se achavam entre 21
militantes da oposição "desaparecidos". Os outros, e todos estavam supostamente
mortos, pertenciam aos remanescentes do movimento guerrilheiro (VPR, ALN e
outros grupos dissidentes). Esta técnica de "desaparecer" com os suspeitos era
uma inovação sinistra, já que anteriormente a polícia e os militares mantinham
os presos em suas próprias dependências. A repressão contra o PCB era uma amarga
ironia, pois o partido se recusara terminantemente a pegar em armas. Mas era um
alvo fácil, e Falcão precisava de provas para satisfazer à paranóia militar. Não
importava no momento que o Planalto estivesse longe de comprar a teoria
conspiratória de Falcão.50 Seguiram-se as prisões e a tortura dos detidos,
inclusive o filho do conceituado general Pedro Celestino da Silva Pereira.51
Pelo tratamento dispensado a
_____________
49. Kucinski, Abertura, pp. 44-45.
50. Ibid., pp. 4446; Fon, Tortura, pp. 67-68. Em meados de 1976, a Anistia
Internacional (AI) estimou que cerca de 2.000 "simpatizantes comunistas
suspeitos" foram detidos, dos quais 240, segundo a AI, eram "presos de
consciência". A AI levou ás provas que possuía sobre violações dos direitos
humanos no Brasil ao conhecimento da Comissão de Direitos Humanos das Nações
Unidas em fevereiro de 1976. The Amnesty International Report: June 1975-31 May
1976 (London, Amnesty International Publications, 1976), pp. 89-92.
51. O Estado de S. Paulo, 21 de março de 1975. No início de maio de 1975
conversei com um coronel do Exército do staff presidencial que não demonstrava
preocupação com os excessos da repressão. Quando citei o caso do filho do
general Pedro Celestino, ele respondeu: "e quantos dos nossos camaradas
tombaram?" Em seguida referiu-se a um oficial seu colega

Geisel: rumo à Abertura 343
um preso com tão boas conexões no meio militar, as forças de segurança
demonstravam novamente sua autonomia e testavam também o novo governo. Entre os
demais presos havia 10 dirigentes sindicais do Rio acusados de crimes
subversivos praticados antes de 1964. Eram tão obscuros que o adido trabalhista
dos Estados Unidos no Rio jamais ouvira falar deles. Em maio o Rio estava
fervilhando de boatos sobre uma virtual tentativa de golpe da linha dura contra
Geisel.52 A Igreja, a Ordem dos Advogados e o MDB replicaram com novos protestos
contra a tortura e as ações arbitrárias da polícia. O comandante do sempre
importante Terceiro Exército, general Oscar Luís da Silva, respondeu citando
Portugal onde, dizia ele, os protestos haviam redundado diretamente em ameaça de
controle pelos comunistas.

Em julho de 1975 Geisel decidiu-se a usar novamente seu poder arbitrário,
desta vez para disciplinar um senador pela ARENA de Pernambuco que fora
supostamente apanhado (havia gravação em fita) em flagrante de extorsão
política. O senador Wilson Campos e duas outras figuras políticas secundárias
foram privados dos seus mandatos. Estas cassações, feitas por razões moralistas,
isto é, corrupção, não subversão, pareciam-se com muitas decretadas por Castelo
Branco. A censura continuava rigorosa, estimulando mais protestos de artistas e
intelectuais.

No princípio de agosto de 1975 Geisel fez um discurso definindo a atitude do
seu governo para com a liberalização. Afirmou que tal mudança tinha que ser
lenta porém segura. "O que almejamos para a nação (...) é um desenvolvimento
integrado e humanístico, capaz, portanto, de combinar, orgânica e
homogeneamente, todos os setores - político, social e econômico - da
no Planalto que perdeu metade da mão no ataque a bomba no aeroporto de
Guararapes, em Recife, em julho de 1966. "Guerra é guerra", ele disse,
acrescentando que tinha três primos que se envolveram "na subversão - um no
Chile, um em Paris e outro na Argélia". Seus exemplos eram mais uma prova de que
os guerrilheiros saíram principalmente dos membros dissidentes da elite.
Entrevista em Brasília, 9 de maio de 1975. O general era um fiel castelista.
52. Entrevista corn James Shea, adido trabalhista, junto ao consulado americano
no Rio, 30 de abril de 1975. A experiência de Shea no Brasil datava de 1957.
344

Brasil: de Castelo a Tancredo
comunidade nacional. corn esse desenvolvimento é que alcançaremos a distensão -
isto é, a atenuação, se não eliminação, das tensões multiformes, sempre
renovadas, que tolhem o progresso da nação e o bem-estar do povo." Anunciou no
mesmo discurso que o governo não pretendia abrir mão dos poderes contidos no Ato
Institucional n.° 5.53 Sua intenção era clara: a política governamental só podia
emergir de um compromisso entre pontos de vista militares divergentes. Somente
se os militares sentissem confiança na segurança nacional, como eles a definiam,
poderia a oposição esperar um retorno ao império da lei. Ao mesmo tempo, Geisel
desencadeou uma retórica digna dos melhores linhas-duras, atacando uma suposta
infiltração comunista na mídia, na burocracia e especialmente nas instituições
de ensino.54 Assim, o governo Geisel achava-se fragilmente equilibrado: as
prisões e a tortura continuavam, mas a censura prévia fora suspensa para O
Estado de S. Paulo, e a representação parlamentar do MDB grandemente aumentada
ocupava seus assentos em Brasília. Este "equilíbrio" estava na iminência de ser
duramente abalado.

A Igreja e a Ordem dos Advogados estavam entre os poucos que podiam
efetivamente contestar os contínuos desmentidos do governo sobre a continuação
da tortura e das arbitrariedades das forças de segurança. Em meados de setembro
as duas instituições voltavam à ofensiva, citando maus-tratos do governo aos
índios e tortura de presos políticos.

Subitamente os adversários do governo foram surpreendidos com a morte mais
sensacional de um preso político desde a posse de Geisel. A vítima era Vladimir
Herzog, respeitado diretor do departamento de notícias do canal de televisão
não-comercial de
__________
53. Ernesto Geisel, Discursos, vol. 2 (Brasília, Assessoria de Imprensa da
Presidência da República, 1976), pp. 139-56.
54. Ibid., pp. 151, 175, 236. A censura prévia continuou em vários jornais e
revistas. Um deles foi o esquerdista Movimento que em fins de 1976 teve todo um
número especial interditado. Era sobre o "Esquadrão da Morte", e o curioso é que
todo o seu conteúdo - palavra por palavra já havia sido publicado em outros
órgãos, principalmente O Estado de S. Paulo e o Jornal da Tarde. Este tipo de
censura era simplesmente uma forma de hostilidade destinada a desequilibrar
a esquerda e causar prejuízos financeiros à publicação. Jornal da Tarde, 6 de
novembro de 1976.

Geisel: rumo à Abertura 345
São Paulo.55 Herzog, de 38 anos, era um judeu iugoslavo que emigrara com sua
família para o Brasil. Era formado pela Universidade de São Paulo, em cuja
Escola de Comunicações lecionara. Posteriormente dedicou-se à sua profissão
tendo alcançado os mais altos postos no jornalismo. Era também conhecido pelos
seus três anos de atividade no Serviço Brasileiro da BBC, e pelos seus muitos
contatos no exterior. Em outubro de 1975 Herzog soube por amigos que as forças
de segurança do Segundo Exército estavam à sua procura. Num esforço sincero para
cooperar, compareceu pessoalmente ao quartel daquela unidade. Ele não tinha a
mínima idéia de que o serviço de inteligência daquele órgão militar o
considerava um conspirador comunista.

No dia seguinte o comando do Segundo Exército informou que Herzog havia
cometido suicídio em sua cela depois de ter assinado uma confissão declarando-se
membro do Partido Comunista. São Paulo ficou espantado; ninguém acreditava na
versão de suicídio.56 Ali estava um membro proeminente do jornalismo subitamente
morto, certamente por desmandos dos torturadores. O fato de Herzog ser judeu
aumentava a assustada reação dos paulistas, porque houvera insinuações de anti-
semitismo na conduta passada da linha dura. Estudantes e professores entraram em
greve por três dias na Universidade de São Paulo e o sindicato dos jornalistas
declarou-se em sessão permanente para exigir a abertura de inquérito, exigência
feita também pela Ordem dos Advogados.
____________
55. Um dos mais completos relatos da morte de Herzog e do protesto que ela
desencadeou é de Fernando Jordão, Dossiê Herzog: prisão, tortura e morte no
Brasil (São Paulo, Global, 1979). O autor fora colega de Herzog dos tempos em
que trabalharam juntos na BBC. É útil também Hamilton Almeida Filho, A sangue
quente: a morte do jornalista Vladimir Herzog (São Paulo, Alfa-ômega, 1978),
versão em livro de assunto tratado pela revista EX em 1975. Para uma coleção de
reações à morte de Herzog, ver Paulo Markun, ed., Velado retraio da morte de um
homem e de uma época (São Paulo, Brasiliense, 1985).
56. A explicação oficial foi que Herzog enforcou-se pendurando-se na travessa de
uma janela. Contudo, em uma fotografia oficial a travessa parecia muito perto
do solo para ter sido usada por alguém da estatura de Herzog. O atestado de
óbito confirmando suicídio foi assinado pelo Dr. Harry Shibata, que depois
admitiu que nem viu o corpo nem fez autópsia. Anistia Internacional USA,
Matchbox, novembro de 1980.

346
Brasil: de Castelo a Tancredo
Além disso, quarenta e dois bispos de São Paulo assinaram uma declaração
denunciando a violência do governo.

O medo tomou conta da família de Herzog e de grande parcela da comunidade
intelectual e cultural de São Paulo. Os líderes da oposição decidiram mostrar
sua determinação realizando uma cerimônia pública em honra de Herzog, mas sua
mãe e vários rabinos amigos do morto foram contrários à iniciativa. O prefeito
advertiu também que se alguma cerimônia pública fosse realizada não podia
garantir proteção policial.

O Cardeal Arns, figura cada vez mais importante da oposição em São Paulo e no
Brasil, tomou então o assunto em suas próprias mãos. Organizou e presidiu
impressionante serviço fúnebre ecumênico para Herzog na catedral de São Paulo,
do qual participaram dois rabinos e um pastor protestante. No tempo de Mediei as
forças de segurança teriam usado toda a sua energia para impedir o i evento.
Agora, contudo, a polícia recorria apenas a vexames sem ! maior gravidade para
dissuadir os participantes, como parar todos os carros com destino ao centro da
cidade a pretexto de fiscalizálos, com o que reduziu grandemente o
comparecimento. Assim mesmo, o serviço foi realizado - um pequeno triunfo para
uma comunidade tomada pelo medo.

A comoção causada pela morte de Herzog foi tanto maior quanto muitos dentro e
fora do governo pensavam que o presidente Geisel tinha sob controle o aparato de
segurança.57 Seguindo o procedimento rotineiro, o chefe do governo ordenou
imediata investigação do incidente (por uma comissão só de militares). Os obser-
_____________
57. O senador pelo MDB Francisco Leite Chaves criticou o uso do Exército para
fins de repressão, como no caso Herzog, e notou que até Hitler criou as SS para
executar "tais crimes ignominiosos", conseqüentemente salvando a honra do
Exército. A resposta do Alto Comando do Exército foi imediata e indignada. Mas o
MDB e a ARENA encontraram uma fórmula de apaziguar osyânimos. Chaves fez um
discurso elogiando o Exército e as cópias do Diário do Congresso com o seu
discurso anterior foram destruídas. Hugo Abreu, O outro lado do poder (Rio de
Janeiro, Nova Fronteira, 1979), pp. 109-10. O Comitê de Solidariedade aos
Revolucionários do Brasil realizou sessões secretas anuais, começando no início
de 1973. Seus relatórios anuais incluíam listas de vítimas de torturas,
torturadores e detalhes sobre as operações do aparelho repressivo.
Publicar listas de torturadores (mesmo sob a forma de boletins datilografados)
era potencialmente explosivo, pois alarmava a linha dura. Obtive cópias dos
relatórios de 1975, 1976 e 1977 graças à gentileza de um jornalista brasileiro.

Geisel: rumo à Abertura 347
vadores céticos quanto à imparcialidade da comissão viram suas dúvidas
justificadas no fim de dezembro, quando o grupo de investigadores confirmou a
morte como suicídio. Um tribunal militar reiterou o laudo da comissão no início
de março do ano seguinte.

São Paulo e a nação continuavam sob o impacto do triste episódio.58 As
atenções concentraram-se no comandante do Segundo Exército, general Ednardo
d'Avila Melo, que há muito dera virtual autonomia ao DOI-CODI local. Os
observadores recordavam com amargura que ao tempo em que assumiu seu comando
(janeiro de 1974) o general Ednardo fora saudado por muitos como sendo muito
mais esclarecido do que o seu antecessor linha-dura, general Humberto de Souza
Mello, um franco apologista da repressão.59 No final de 1975, muitos
oposicionistas achavam que a "descompressão" estava condenada. O presidente,
temiam, era fraco demais para enfrentar os extremistas militares. Ou talvez
nunca tivesse assumido real compromisso com a liberalização. De qualquer modo,
não havia razões para otimismo.

Os homens da segurança obviamente acharam que agora nada tinham a temer das
autoridades superiores. No início de janeiro de 1976 já estavam submetendo a
interrogatório Manoel Fiel Filho, do sindicato dos metalúrgicos, um dos mais bem
organizados e mais combativos.60 De repente vazou a notícia, através de um
empregado do hospital, que ele estava morto. A versão oficialmente divulgada foi
a de outro suicídio. Mas podia alguém duvidar que
____________
58. O abalo foi registrado também no exterior. Cinco especialistas
americanos em Brasil (inclusive o autor) assinaram uma declaração denunciando a
morte de Herzog e o possível envolvimento dos Estados Unidos no aparato
repressivo brasileiro. "Brazil: The Sealed Coffin", The New York Review of
Books, 27 de novembro de 1975.
59. Em uma conferência pública de 1974 para estudantes e professores das
Faculdades Metropolitanas Unidas, o general Ednardo comentou entre outras coisas
a história brasileira (pouca população, raças fracas), o lugar do Brasil na
América do Sul (o Brasil cercado por um oceano de população de língua espanhola)
e a atual ameaça (forças ocultas prontas para usar novamente os estudantes).
Para um estrangeiro, o tom pareceu arrogante e reacionário, mas amigos do
consulado americano, assim como outros amigos brasileiros me asseguraram
que neste ponto o general Ednardo era mais moderado do que o seu
antecessor.
60. Muita documentação sobre este caso pode ser encontrada em Carlos
Alberto Luppi, Manoel Fiel Filho: quem vai pagar por este crime? (São Paulo,
Escrita, 1980).

548 Brasil: de Castelo a Tancredo
ele fora morto sob tortura? O desafio do Segundo Exército (e do general Ednardo)
a Geisel não podia ser mais espetaculoso. O presidente ficou lívido ao tomar
conhecimento da notícia, e só pensava no papel ridículo que fizera quando
defendera o general Ednardo d'Ávila no caso Herzog. Aliás, na ocasião Geisel
advertira Ednardo que não toleraria mais tais incidentes. Após convencer-se dos
fatos, demitiu sumariamente Ednardo d'Ávila e o substituiu pelo general
Dilermando Gomes Monteiro, um conhecido moderado e íntimo colaborador de
Geisel.61 Mais importante do que a demissão foi o fato de Geisel ter agido sem
consultar o Alto Comando do Exército, medida normalmente essencial na mudança de
um comandante de tão alto nível.62

Ser capaz de agir por conta própria demonstrava o grande poder do presidente
no seio da oficialidade do Exército, poder que até então não tinha precisado
demonstrar. Com a demissão do general Ednardo, Geisel emitiu uma onda de choque
através das fileiras militares. Mais algumas demissões desse tipo e o equilíbrio
entre linhas-duras e moderados talvez mudasse consideravelmente. A linha dura
ficou abalada. Seus membros integrantes das forças de segurança não mais
poderiam presumir que os seus superiores lhes dessem cobertura quando se
repetissem cenas de clamor público por causa de violências contra suspeitos
políticos.63
61. Em uma entrevista, o general Dilermando explicou depois que exerceu
controle sobre o DOI-CODI exigindo que todas as prisões fossem aprovadas por
ele. Afirmou também não ter encontrado provas de tortura durante o comando do
seu antecessor. Veja, 14 de março de 1979.
62. O general Hugo Abreu, chefe da Casa Militar de Geisel, descreveu uma reunião
do Alto Comando três dias depois da demissão do general Ednardo na qual,
embora não tivesse havido votação, cinco dos onze generais apoiaram o ato
de Geisel e três foram contrários. Todos, no entanto, acabaram expressando
completo, apoio ao presidente. Abreu, O outro lado do poder, p. 112. Dois dias
após a demissão de Ednardo, Geisel disse a Severo Gomes que agira não porque
Ednardo estivesse envolvido em tortura mas porque ele não conseguiu manter o
controle sobre todas as atividades subordinadas ao seu comando. Severo Gomes,
"Gato e Fabiano", Folha de S. Paulo, 23 de maio de 1982.
63. O general Abreu achava que o êxito de Geisel em fazer com que a oficialidade
mais radical aceitasse a demissão de Ednardo deveu muito ao apoio efetivo do seu
ministro do Exército, general Frota, e ao substituto interino de Ednardo,
general Ariel Pacca da Fonseca. Abreu, O outro lado do poder, p. 113.

A demonstração de força de Geisel dentro dos meios militares, como o
demonstrou a sua habilidade na remoção do general Ednardo, teve um preço. Para
manter o apoio da oficialidade ele agora tinha que mostrar dureza no meio
político civil contra a corrupção e a subversão, como os castelistas as
definiam. Esta definição só poderia emergir do comportamento do governo.

Novos problemas econômicos

O governo Geisel começou corn grandes esperanças na economia. O Plano
Nacional de Desenvolvimento (1975-1979), datado de setembro de 1974, fixava uma
taxa de crescimento de 10 por cento por ano a ser alcançada mediante a mudança
de ênfase sobre os bens de consumo duráveis para a de produtos industriais
intermediários e bens de capital. A aceleração do crescimento era para melhorar
a distribuição de renda e exigiria a continuação de altos índices de ingressos
de capital, assim como um aumento da poupança doméstica. Apresentando o plano, o
presidente Geisel admitiu que "não havia motivo para exagerado otimismo". Mas
referiu-se à "energia criadora da liderança" dos setores público e privado e
lembrou como "enfrentamos as dificuldades internas do começo da década de 1960
com energia, convicção e capacidade de planejar e executar".64
____________
64. As citações são do Plano Nacional de Desenvolvimento: (1975-
1979) (Rio de Janeiro, IBGE, 1974). Para uma análise do plano, ver Carlos Lessa,
A estratégia do desenvolvimento, 1974-1976: sonho e fracasso (Rio de Janeiro,
Tese apresentada à Faculdade de Economia e Administração da Universidade Federal
do Rio de Janeiro para Concurso de Professor Titular em Economia Brasileira,
1978). Ver também Sebastião C. Velasco e Cruz, "Estado e planejamento no Brasil,
1974-1976", Estudos CEBRAP, N." 27 (1980), pp. 103-26. Uma avaliação provisória
da implementação do plano foi feita por Roberto Cavalcanti de Albuquerque, "A
execução do planejamento: o que se obteve em dois anos com o II PND", Política
(Fundação Milton Campos), N.° 4 (abril-julho de 1977), pp. 51-59. Para uma
avaliação mais crítica a partir de meados de 1976, ver Jornal do Brasil, 30 de
junho de 1976. Minha fonte básica para esta análise da política econômica é,
como nos capítulos anteriores, o Economic Survey of Latin Americana publicado
anualmente pela Comissão Econômica para a América Latina, sediada nas Nações
Unidas em Nova York. Os volumes consultados foram os referentes a 1974-79.

Brasil: de Castelo a Tancredo

Essas esperanças logo se ofuscaram, contudo, por causa da deterioração do
clima econômico internacional. A OPEP triplicara o preço mundial do petróleo e o
Brasil, que importava 80 por cento do produto, de repente se viu às voltas com
uma insuportável drenagem de suas divisas apenas para ocorrer a um item de suas
compras no exterior. Como o país se tornara tão vulnerável?

A explicação não envolve mistério. No final dos anos 50 o governo Kubitschek
decidiu ampliar o sistema de transporte do país construindo mais rodovias do que
ferrovias (embora considerando prioritária a melhoria das linhas férreas
existentes). A razão era simples: num país tão vasto o custo inicial por milha
era mais baixo para construir uma rodovia do que uma ferrovia. Optando pelo
transporte por caminhão, os governos federal e estaduais podiam continuar a
construir uma extensa rede de estradas vicinais baratas não pavimentadas. Tão
logo o tráfego justificasse a despesa, as estradas seriam pavimentadas. Em
contraste, a locomotiva, altamente eficiente quando colocada sobre trilhos, para
cobrir o território brasileiro exigiria investimento inicial muito alto na
construção da via permanente.

A decisão de Juscelino pareceu eminentemente sensata na época. Em pouco tempo
caminhões Mercedes-Benz estavam cruzando o país geralmente em estradas de chão.
Eram movidos a óleo diesel, facilmente disponível e barato no mercado
internacional. A Petrobrás, empresa petrolífera estatal, concentrava-se no
refino e distribuição do óleo importado. Explorava também as reservas
brasileiras mas em pequena proporção, em virtude da disponibilidade de petróleo
barato no exterior e da opinião geral de que no continente brasileiro era muito
escassa a possibilidade de existir petróleo que justificasse grandes
investimentos em sua exploração. Por coincidência o presidente Geisel fora
presidente da Petrobrás de 1969 a 1973, precisamente quando a empresa consolidou
sua dependência do petróleo importado.

Quando ocorreu o choque do petróleo decretado pela OPEP, o governo Geisel
confiou no fator tempo. A suposição era que o cartel não duraria, e talvez o
Brasil pudesse negociar, em termos bilaterais, um preço melhor para as suas
importações de petróleo. Se o aumento de preços da OPEP fosse irreversível,
então o Brasil teria que alterar radicalmente sua política energética. Poderia
também repensar sua política para o Oriente Médio que, por tra-

Geisel: rumo à Abertura 351
dição, fora sempre moderadamente favorável a Israel.65 Os economistas do governo
responderam à necessidade de uma estratégia a longo prazo de vários modos.
Primeiro, a Petrobrás expandiu seu programa de exploração no mar - um alvo mais
promissor do que o continente, onde a quantidade de petróleo descoberta fora até
então decepcionante. Mesmo com investimentos rápidos em larga escala, um retorno
significativo demoraria anos. Em seguida começou-se a pesquisar outras fontes de
energia. No mundo industrial a alternativa mais falada era a energia nuclear.
Mas a capacidade nuclear brasileira era rudimentar (um reator Westinghouse sendo
instalado, dependente de combustível dos Estados Unidos) e exigiria a importação
de muito capital para alcançar nível significativo. A segunda alternativa era o
álcool, que exigiria a destilação de etanol da biomassa (principalmente cana-de-
açúcar) para abastecer motores especialmente desenhados.66 Nenhuma das
___________
65. Para uma incisiva análise das políticas econômicas tanto de Geisel como nos
capítulos anteriores, o Economic Survey of Latin America publiPolitical Economy
of Crisis Management", em Alfred Stepan, ed., Democratizing BraziW (a sair). Há
uma esclarecedora comparação das políticas de Geisel e Figueiredo em cinco áreas
básicas em Barry Ames, Political Survival: Poliiicians and Public Policy in
Latin America (Berkeley, University of Califórnia Press, a sair). A estratégia
de investimentos do governo Geisel é favoravelmente avaliada em António Barros
de Castro e Francisco Eduardo Pires de Souza, A economia brasileira em marcha
forçada (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1985), pp. 11-95. Albert Hirschman sugeriu
que talvez o Brasil "pobre em petróleo" teve "uma bênção disfarçada" em
comparação com o México "rico em petróleo" porque os economistas oficiais do
Brasil foram forçados a ser mais criativos e assim lograram um desempenho
superior em termos de crescimento. Hirschman, "The Political Economy of Latin
American Development: Seven Exercises in Retrospection" (documento apresentado
ao XIII Congresso Internacional da Associação de Estudos Latino-Americanos,
Boston, 23-25 de outubro de 1986).
66. O estudo mais completo sobre o programa brasileiro do álcool é de Michael
Barzelay, The Politicized Market Economy: Alcohol in Brazil's Energy Strategy
(Berkeley, University of Califórnia Press, 1986). Para uma crítica mais ampla
da política energética do Brasil, ver Peter Seaborn Smith, "Reaping the
Whirlwind: Brazil's Energy Crisis in Historical Perspective", Inter-American
Economic Affairs, XXXVII, N.°l (Verão de 1983), pp. 3-20. As questões
mais amplas são também tratadas em J. Goldemberg, "Energy Issues and
Policies in Brazil", Annual Review of Energy, VII (1982), pp. 139-74. O programa
do álcool continuou a ser alvo de críticas, com o aumento do custo do subsídio
aos produtores domésticos de açúcar. Ver, por exemplo, Alan Riding, "Oil Price
Fali Perils Brazil

352 Brasil: de Castelo a Tancredo
alternativas poderia ajudar a balança de pagamentos do Brasil a curto prazo.
AliáS; ambas exigiriam pesados investimentos antes de eventualmente produzirem
resultados satisfatórios. Finalmente, havia a energia hidrelétrica. Mesmo antes
do choque da OPEP, o Brasil iniciara o ambicioso programa de construção de uma
usina. O local famoso era Itaipu, no Rio Paraná, entre o Brasil e o Paraguai, e,
quando pronta, a enorme central hidrelétrica seria a maior do mundo. Mas toda
essa eletricidade não serviria para abastecer caminhões, ônibus ou automóveis.67

O que tornava tão difícil o ajustamento do Brasil à pressão sobre sua balança
de pagamentos era que o crescimento acelerado desde 1967 fora intensivo de
importações. De 1970 a 1973 as importações brasileiras cresceram à taxa anual de
24 por cento. Em termos grosseiros isto significava que cada um por cento de
crescimento do PIB exigia dois por cento de aumento no volume das importações.

Dado o gigantesco aumento de preço do óleo importado, como poderia o Brasil
administrar a pressão sobre a balança de pagamentos? A curto prazo havia apenas
três opções: reduzir as importações não petrolíferas, sacar sobre as reservas em
moeda estrangeira, ou tomar emprestado no exterior.

Cortar as importações não petrolíferas reduziria o desenvolvimento - preço
que o governo Geisel se recusava a pagar. Aumentar a receita das exportações era
difícil em face da recessão mundial criada pelo choque de preços da OPEP. As
soluções óbvias eram usar as reservas cambiais e pedir empréstimos no exterior.
____________
Alcohol Fuel", New York Times, 29 de julho de 1985. A esquerda também investiu
contra o programa, como em Ricardo Bueno, Pró-álcool rumo ao desastre
(Petrópolis, Vozes, 1980), que descompôs o governo por negligenciar o sistema
ferroviário. -67. Para uma análise da complexa base legal e administrativa do
gigantesco projeto Itaipu, ver José Costa Cavalcanti, "A Itaipu Binacional
- um exemplo de cooperação internacional na América Latina", Revista de
Administração Pública, X, N.° l (janeiro-março de 1976), pp. 19-68. O Brasil
preparou cuidadosamente o caminho para os seus projetos hidrelétricos de
fronteira, assinando acordos prévios, em princípio, para atividades multipaíses,
como o Tratado da Bacia do Prata (1969) e a Declaração de Assunção sobre o Uso
de Rios Internacionais (1971), ambos assinados pela Argentina, Bolívia, Brasil,
Paraguai e Uruguai.

353
O Brasil de Geisel fez as duas coisas. Somente em 1974 o país quase duplicou sua
dívida externa líquida, de US$6,2 bilhões para US$11,9 bilhões.68

A fim de atrair empréstimos estrangeiros muitíssimo necessários, o governo
aboliu o depósito compulsório de 40 por cento que os tomadores de novos
empréstimos tinham que fazer. Reduziu também o período mínimo de permanência do
empréstimo de 10 para 5 anos. A medida final foi reduzida de 25 por cento para 5
por cento o imposto sobre remessas de lucros para o exterior. Estas normas
datavam todas do início dos anos 70 quando o Brasil teve que reduzir os
ingressos de capital (por causa dos seus efeitos freqüentemente inflacionários.
Agora as necessidades eram o oposto. O efeito líquido das novas medidas foi
reduzir o controle do país sobre a movimentação do capital estrangeiro.

A equipe econômica de Geisel conseguiu manter o crescimento acelerado em
1974. O desempenho econômico daquele ano comporta um exame mais detido porque
indicava o que estava reservado para a economia brasileira na segunda metade dos
anos 70. A taxa de crescimento alcançou 9,5 por cento, mas a inflação saltou de
15,7 por cento para 34,5 por cento. Este diferencial é suspeito devido à
manipulação pelo governo do índice em 1973 e início de 1974. Com efeito, as
taxas de inflação para 1973 e 1974 talvez se mantivessem relativamente próximas
se os órgãos de estatística do governo não tivessem sofrido interferência
política na compilação dos dados para 1973.

A taxa de crescimento global de 9,5 por cento em 1974 era composta de um
aumento de 9,9 por cento na produção industrial, ligeiramente menor do que a
média de 13,1 por cento do período 1968-73, e de um aumento de 8,5 por cento na
agricultura, que foi maior em todos os anos, exceto um, desde 1968. Estas taxas
de crescimento seriam motivo de grande satisfação não fossem as notícias sobre o
balanço de pagamentos.

Embora as exportações tivessem aumentado 28,2 por cento em
1974, as importações pularam para 104 por cento, refletindo em
___________
68. Comissão Econômica para a América Latina, Economic Survey of Latin America:
1973, pp. 141-42. Para uma análise mais detalhada das elasticidades de
importação neste período, ver Richard Weisskoff, "Trade, Protection and Import
Elasticities for Brazil", The Review of Economics and Statistics, LXI, N.° l
(1979), pp. 58-66.

354 Brasil: de Castelo a Tancredo
parte a quadruplicação dos preços do petróleo imposta pela OPEP. Somente em 1974
as importações brasileiras dobraram passando de US$6,2 bilhões para US$12,6
bilhões. A balança comercial (importações versus exportações), que praticamente
se equilibrou em 1973, subitamente acusou um déficit de US$4,7 bilhões. A conta
de serviços contribuiu com um déficit adicional de US$2,4 bilhões. O déficit
resultante de US$7,3 bilhões em conta corrente foi coberto por um ingresso
líquido de capital de US$6,8 bilhões (um aumento de 56,6 por cento sobre 1973) e
o uso de US$1,2 bilhão de reservas cambiais. Em 1974 o Brasil sobrevivera ao
impacto inicial da chantagem da OPEP. Mas até quando poderia esse expediente com
finalidade específica dar resultado?

Vozes da sociedade civil

As forças de segurança sob a ditadura de Mediei contavam corn o medo para
ajudá-las a descobrir e eliminar os "inimigos internos" do Brasil. A repressão
atingiu especialmente os grupos que tentavam organizar as classes trabalhadoras.
Os sindicatos, por exemplo, eram submetidos a controles draconianos. Os membros
do clero que tentassem organizar qualquer atividade potencialmente política
passavam a ser vigiados, incomodados, quando não submetidos a humilhações mais
graves. As forças de segurança também vigiavam muito de perto qualquer forma de
organização envolvendo os moradores das favelas e os trabalhadores rurais. Era
como se o governo militar acreditasse na propaganda dos guerrilheiros de que as
massas brasileiras estavam prontas para se insurgir contra os seus dirigentes.
Em 1973 até os poucos remanescentes das guerrilhas haviam renunciado a essa
crença.

O governo Mediei também disseminara o medo entre os membros da elite.69 As
famíliais de presos políticos raramente encon-
_______
69. Baseado em suas entrevistas com membros representativos das elites
brasileiras (exceto os militares) no início dos anos 70, Peter McDonough
concluiu que o que as levou a questionar a legitimidade do regime foi "o senso
de que ele mergulhara o país em um clima de profundo terror e ilegalidade
arbitrária de que as próprias elites não estavam a salvo". Peter McDonough,
Power and Ideology in Brazil (Princeton, Princeton University Press, 1981), p.
232.

Geisel: rumo à Abertura 355
travam um advogado que quisesse patrocinar sua causa. Os advogados tinham medo
de desafiar as forças de segurança em nome de um cliente marcado politicamente.
A imprensa era outra instituição intimidada pela repressão.70 A prisão e tortura
de jornalistas, as pressões (ou incentivos) sobre os proprietários dos jornais,
juntamente com a censura direta, haviam reduzido quase toda a mídia, exceto uns
poucos semanários de pequena circulação, à condição de líderes da torcida do
governo ou, no mínimo, de simples caixas de ressonância das informações geradas
no palácio presidencial.

Finalmente, havia os homens de negócios. Estavam lucrando com o boom
econômico, e de meados até o fim dos anos 70 os salários dos executivos
brasileiros se achavam entre os mais altos do mundo.71 Mas os empresários
estavam irritados com a quantidade de incentivos e controles criados por Delfim
e seus tecnocratas. Receavam também que o setor público em rápido crescimento se
unisse, de fato, com as empresas estrangeiras para expulsá-los da atividade
produtiva. O governo Medici não precisava recorrer a prisões para manter o
empresariado sob controle. Bastava somente usar alguns dos seus muitos
instrumentos (taxas de juros, contratos com repartições públicas, incentivos
tributários etc.) como recompensa e punição.72 (A oposição dos homens de
negócios ao governo é discutida adiante.)
________
70. A reação de um dano de jornal foi bem expressa por Ruy Mesquita, da família
proprietária de O Estado de S. Paulo e Jornal da Tarde, que em 1975 referiu-se
ao "processo de gangrena que invadiu as instituições brasileiras graças à
crescente arbitrariedade do poder revolucionário". Ruy Mesquita, prefácio a
Bicudo, Meu depoimento, p. 11.
71. Para reportagens sobre altos salários dos executivos, ver New York Times, 2
de setembro de 1974 e 11 de julho de 1976. Enquanto isso, uma reportagem de 25
de janeiro de 1976 descrevia quão pouco atingiram os trabalhadores os benefícios
do boom econômico. Para uma análise de dados sobre distribuição de renda
proporcionados pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios ou PNAD, ver
Paul Singer, "Quem são os ricos no Brasil", Opinião, 14 de fevereiro de 1975.
72. Para uma penetrante análise da campanha dos empresários contra a propagação
da influência do Estado na economia, ver Charles Freitas Pessanha, "Estado e
economia no Brasil: a campanha contra a estatização: 1974-1976" (tese de M.A.,
IUPERJ, 1981). Uma voz destacada nesta campanha foi o semanário Visão. Ver, por
exemplo, sua edição de 26 de maio de 1975, metade da qual ê dedicada a
documentar o papel supostamente excessivo do Estado na economia brasileira. Para
uma coleção de artigos de

356 Brasil: de Castelo a Tancredo
Em suma, o autoritarismo brasileiro tornara tanto as instituições não
elitistas quanto as elitistas da sociedade civil incapazes de ação autônoma
importante. Seu medo e imobilidade refletiam o tipo de Brasil que os linhas-
duras se esforçaram por criar.

Foi neste palco que Geisel fez sua aparição falando de um novo diálogo com os
líderes da sociedade civil. O presidente e Golbery queriam aliviar a repressão
que haviam herdado.73 Mas qualquer ditador com bastante experiência poderia lhes
ter dito que tentar reduzir a repressão gradualmente é perigoso. E o perigo está
no fato de que o medo, tão importante para inibir a oposição, pode desaparecer
da noite para o dia se o governo der a impressão de estar perdendo autoridade e
poder.

As relações com a Igreja eram decisivas para a estratégia de descompressão de
Geisel.74 Durante os anos de Mediei houve uma
_________
jornal de 1976-77 advogando a redução do papel do Estado na economia, ver J. C.
de Macedo Soares Guimarães, Para onde vamos? (Rio de Janeiro, Ed. Record, 1977).
O ministro do Comércio e Indústria Severo Gomes apresentou uma cuidadosa e bem
arrazoada defesa do papel histórico do Estado brasileiro em conferência na
Escola Superior de Guerra, reproduzida em Folha de S. Paulo, 18 de julho de
1976.
_________
73. Há um excelente relato do despertar da sociedade civil em Sebastião C.
Velasco e Cruz e Carlos Estevam Martins, "De Castello a Figueiredo: Uma Incursão
na pré-História da 'Abertura' ", em Bernardo Sorj e Maria Hermínia Tavares de
Almeida, eds., Sociedade e política no Brasil pós-64 (São Paulo, Brasiliense,
1983), pp. 13-61. Para uma coleção de documentos analisando movimentos populares
em São Paulo, como o dos negros, das mulheres, dos católicos leigos e os
movimentos de bairro, ver Paul Singer e Vinícius Caldeira Brant, eds., São
Paulo: o povo em movimento (Petrópolis, Vozes, 1981). Para estudos semelhantes
dando ênfase ao aumento da participação pública que esses grupos estimularam,
ver Cláudio de Moura Castro, ed., "Do Sebastianismo aos 'grass-roots': novas
estruturas e formas de organização no Brasil", mimeo (Brasília, IPEA/Instituto
de Planejamento, setembro de 1983); José Álvaro Moisés, et ai., Alternativas
populares da democracia: Brasil, anos 80 (Petrópolis, Vozes, 1982); José Álvaro
Moisés, et ai., Cidade, povo e poder (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982) e
Renato Raul Boschi, Movimentos coletivos no Brasil urbano (Rio de Janeiro,
Zahar, 1982).
74. É grande a quantidade de escritos e análises sobre a recente Igreja Católica
do Brasil. É óbvio que só trato aqui daqueles aspectos da Igreja que têm relação
direta com as linhas principais do desenvolvimento político e econômico do
Brasil no governo Geisel. Baseei-me especialmente em Bruneau, The Church in
Brazil, e Mainwaring, The Catholic Church and Politics in Brazil, 1916-1985
(Stanford, Stanford University Press, 1986). Ver também

Geisel: rumo à Abertura 357
longa sucessão de graves choques entre o governo e ativistas católicos, sendo
que vários destes foram presos e torturados. Poucos meses antes da posse de
Geisel mais de 40 ativistas católicos na Grande São Paulo foram presos, a maior
parte deles jornalistas ou organizadores sindicais.75 Em fevereiro o governo
Mediei tentara impedir a ação de todos os missionários católicos que trabalhavam
junto aos índios.76 Esta medida resultava da preocupação do governo com sérios
conflitos oriundos de alegados títulos de posse da terra e os direitos dos
índios. Os missionários católicos defendiam, às vezes agressivamente, tanto os
índios quanto os pequenos agricultores, que eram ameaçados pelos especuladores
de terras e pelos grandes proprietários e seus pistoleiros. A prisão de
ativistas em São Paulo e a medida contra os missionários eram parte da
estratégia da linha dura para fortalecer o poder do novo governo, e ao mesmo
tempo demonstrar um compromisso de fato com a firmeza em relação à Igreja.

Aqueles que desejavam melhores relações entre a Igreja e o Estado voltavam-se
avidamente para o governo em busca de alívio. Este sinal foi dado quando em
janeiro e fevereiro representantes do presidente eleito Geisel se reuniram
confidencialmente com seis influentes prelados.77 Em julho veio um sinal da
Igreja de que as relações já haviam melhorado. O Cardeal Agnello Rossi, ex-
arcebispo de São Paulo (até 1971) e agora no Vaticano como presidente da Sagrada
Congregação para a Evangelização dos Povos, anunciou no Brasil que as relações
Estado-Igreja eram completamente harmoniosas. O Arcebispo Dom Paulo Evaristo
Arns, de São Paulo, estava também otimista, dizendo em fins de agosto que o
diálogo tinha começado.

A fim de compreender os pontos altos e baixos da Igreja quando a
descompressão começou, devemos primeiro considerar duas importantes mudanças
internas que ela realizou durante os anos Mediei. Uma foi a emergência da CNBB
como porta-voz
_________
Ralph delia Cava, "The 'People's Church', the Vatican and the Abertura", em
Alfred C. Stepan, ed., Democratizing Brazil? (a sair), que é especialmente
esclarecedor sobre a relação entre a Igreja brasileira e o Vaticano.
75. New York Times, 31 de janeiro e 24 de fevereiro de 1974.
76. Ibid., 18 de fevereiro de 1974.
77. Ibid., 24 de fevereiro de 1974.

358 Brasil: de Castelo a Tancredo
institucional da Igreja. A Conferência dos Bispos fora fundada em
1952 sob a direção de Dom Helder Câmara, que habilmente a fez adotar posições
políticas e teológicas progressistas das quais muitos prelados não participavam.
Mas a transferência de Dom Helder para Recife em 1964 e o apoio dos bispos ao
golpe de 1964 colocaram a CNBB numa posição política relativamente passiva até
1968. A repressão subseqüente, contudo, levou os bispos a uma oposição
agressiva, como observamos antes. Em 1974 aquela instituição havia consolidado a
sua situação como principal órgão da Igreja em suas relações com o governo
brasileiro. Seu staff tinha a confiança da maioria dos bispos, em parte porque
as políticas repressivas do governo convenceram os bispos "moderados" a apoiar
uma posição agressivamente antigovernamental.

A segunda mudança interna na Igreja foi o rápido crescimento das Comunidades
Eclesiais de Base (CEBs).78 Estas são constituídas por células de estudos leigos
cuja criação foi encorajada pela hierarquia eclesiástica a partir dos anos 60.
Não têm estrutura definida. O agente pastoral, ou organizador, é usualmente um
padre ou uma freira. As comunidades se compõem em média de 15-25 pessoas, embora
seu número possa chegar a 100-200 na zona rural. Começaram como grupos de estudo
da Bíblia, com reuniões semanais. Uma das razões da hierarquia para o lançamento
das CEBs
________
78. Para uma detalhada análise de como as CEBs funcionam em diversas regiões do
Brasil, ver Bruneau, The Church in Brazil. Para as observações de um dominicano
que serviu como agente pastoral de uma CEB e que anteriormente fora preso pelo
governo militar, ver Frei Betto, O que é comunidade eclesial de base (São Paulo,
Brasiliense, 1981). Para uma declaração da CNBB dando uma justificação para as
CEBs, ver Comunidades eclesiais de base no Brasil: experiências e perspectivas,
2. ed. (São Paulo, Edições Paulinas, 1981). Uma comparação das CEBs com outras
inovações religiosas populares é feita em Rowan Ireland, "Comunidades eclesiais
de base, grupos espíritas e a democratização no Brasil", em Paulo Krischke e
Scott Mainwaring/eds., A Igreja nas bases em tempo de transição (1974-1985)
(Porto Alegre, L & PM, 1986), pp. 151-83. Um estudo colocando as CEBs no
contexto de outros movimentos de base é de autoria de Cândido Procópio Ferreira
de Camargo, Beatriz Muniz de Souza e António Flávio de Oliveira Pierucci,
"Comunidades eclesiais de base", em Paul Singer e Vinicius Caldeira Brant, eds.,
São Paulo: o povo em movimento (Petrópolis, Vozes, 1980), pp. 59-81. Em "As CEBs
na 'abertura': mediações entre a reforma da Igreja e as transformações da
sociedade", ibíd., pp. 185-207, Paulo Krischke estuda como as reformas
estruturais dentro da Igreja se relacionaram com a democratização da sociedade
brasileira.

Geisel: rumo à Abertura 359
foi a desesperada escassez de padres seculares e religiosos. Operam por conta
própria, aumentando assim a participação dos leigos sem requerer a presença
adicional de membros do clero. Preocupava a hierarquia também a rápida
disseminação do protestantismo, bem como do espiritismo e dos cultos afro-
brasileiros (principalmente a umbanda). De nenhum modo pretendia o episcopado
que as CEBs se transformassem em qualquer tipo de igreja "paralela". No início
dos anos 70 a hierarquia, através de sua ação pastoral, deu alta prioridade às
CEBs. Em 1974, ao que se afirmava, seu número já era de aproximadamente 40.000
espalhadas através do Brasil. Todos os observadores são de opinião que o
crescimento das comunidades aumentou consideravelmente a participação dos leigos
nas atividades da Igreja.

Não obstante as intenções originais do episcopado, as CEBs logo assumiram
vida própria. Muitas tornaram-se uma força na "igreja popular", movimento que dá
ênfase às bases da Igreja mediante a integração de elementos praticantes de um
catolicismo folclórico e a propagação da quase revolucionária teologia da
libertação, representada no Brasil por teólogos como Leonardo Boff. CEBs deste
tipo também deram à Igreja muitos fiéis dedicados capazes de ser mobilizados
para a ação social. Outros foram convocados para o Movimento do Custo de Vida,
uma forma popular de protesto iniciada em 1973 e que alcançou o pico em 1977-78.
Entre os seus objetivos estava o de estimular o público a voltar às ruas para
manifestações de protesto.79

Vale notar que o rápido crescimento das CEBs inquietou muitos membros do
regime militar. Este gostava de pensar que a oposição da Igreja provinha de
"oportunistas" isolados como Dom Helder Câmara que os militares da linha dura e
seus sequazes civis odiavam cordialmente. Eles o descartavam como um egomaníaco
________
79. Tilman Evers, "Sintesis interpretativa dei 'Movimento do custo de vida', un
movimiento urbano brasileno", Revista Mexicana de Sociologia, XLIII, N.» 4
(outubro-dezembro de 1981), pp. 1371-93; Kucinski, Abertura, pp. 103-5. A
tática de protesto deste grupo lembrava as marchas antiGoulart do início de 1964
por serem lideradas por donas de casa. As origens sociais, contudo, eram muito
diferentes - as mulheres da classe trabalhadora marcharam em 1977-78 enquanto as
da classe média e alta marcharam em 1964. Para detalhes sobre uma série de
marchas em São Paulo, ver "O protesto das panelas vazias", Movimento, 6 de
novembro de 1978. O movimento também incluía membros da esquerda maoísta.

360 Brasil: de Castelo a Tancredo
que tirava partido das tensões sociais a fim de preparar o caminho para o
assalto comunista ao poder. Esses militares e seus aliados civis não podiam
tolerar a idéia de que Dom Helder (ou suas opiniões) pudesse ter apoio de massa
na Igreja. Se tinha, então uma repressão mais profunda seria necessária para
extirpar esse apoio.

A Igreja, portanto, começou os anos Geisel com uma coordenação mais estreita
na cúpula (CNBB) e uma participação mais ampla na base (as CEBs). Dado o clima
político repressivo, ela se concentrou em suas enormes necessidades internas,
essencialmente pastorais. Mas Geisel não conseguiu impor a "descompressão". A
linha dura e as forças de segurança sabotaram a política desde o início. Seu ato
mais espetacular foi a morte em outubro de 1975 de Vladimir Herzog no quartel do
Segundo Exército em São Paulo. O serviço fúnebre ecumênico promovido pelo
Cardeal Arns na catedral foi um desafio direto ao governo. As forças de
segurança de São Paulo, comandadas pelo ultra-reacionário coronel Erasmo e
acompanhadas pelos seus cães de ataque pastores alemães, não tardaram em dar a
resposta. Quando o cardeal se encontrava em Roma, elas invadiram a Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo destruindo equipamentos e materiais de
pesquisa e espancando os estudantes e professores que não conseguiram escapar a
tempo. Mais de 700 estudantes foram presos. Foi um dos mais violentos ataques a
uma instituição acadêmica no Brasil desde 1964.

O ano de 1976 assistiu a um surto de violência direta contra o clero. Em
julho o Padre Rodolfo Lunkenbein, missionário alemão junto aos índios na
Amazônia, foi assassinado por fazendeiros. Em outubro a polícia da mesma região
assassinou o Padre João Bosco Penido Burnier, que vinha protestando contra a
tortura de mulheres locais. Mas a violência não se limitou à fronteira menos
povoada do país. Em setembro houve um revoltante incidente no coração do moderno
Centro-Sul do,Brasil. Bandidos não identificados seqüestraram Dom Adriano
Hypolito, bispo de Nova Iguaçu (na periferia do Rio de Janeiro), espancaram-no,
despiram-no e o lançaram à beira da estrada.80 Para dar mais ênfase à sua
mensagem,, os seqüestradores dirigiram o carro até à sede da CNBB, onde o
_______
80. Dom Adriano colaborou muito para ajudar a organizar as associações de
bairros em Nova Iguaçu, fator que sem dúvida o transformou em alvo de difamação
e intimidação. Sobre a situação em Nova Iguaçu, ver

Geisel: rumo à Abertura 361
explodiram. Representantes da Igreja protestaram violentamente contra o ataque a
um bispo, mas nunca receberam satisfação de qualquer autoridade.

A violência contra o clero mostrava que o governo Geisel não podia controlar
a política e os "vigilantes" de direita (sem dúvida ligados às forças de
segurança). Mais importante do ponto de vista político, a violência ajudava a
unir os bispos em torno de uma dura posição antigoverno. Sem esses constantes
ultrajes ao clero, os prelados "moderados" jamais apoiariam manifestos que
somente os "progressistas" assinariam no início dos anos 70. Os linhas-duras
ajudaram a fazer com que a Igreja se tornasse uma voz poderosa e agressiva em
defesa da sociedade civil.

O peso da opinião episcopal pendeu também para os "progressistas" na medida
em que os prelados examinavam detidamente as políticas sócio-econômicas dos
sucessivos governos militares. O censo de 1970 apontara aumento na desigualdade
de renda, sendo conhecidos numerosos estudos - muitos deles produzidos pelo
próprio governo - mostrando a enorme necessidade de mais investimentos em saúde,
educação, saneamento e habitação. Enquanto os executivos brasileiros ganhavam
salários dos mais altos do mundo, as crianças das favelas paulistas corriam
riscos cada vez maiores de doença ou morte.81

Como a Igreja fizera uma "opção pelos pobres", isto é, adotara uma orientação
deliberadamente voltada para os que se encontravam no plano mais baixo da escala
social, os membros do clero e do laicato em número cada vez maior se
conscientizaram das miseráveis condições de vida de uma considerável parcela do
povo brasileiro.82 A Igreja e seus fiéis se identificaram com o clamor
_________
Scott Mainwaring, "Grass Roots Popular Movements and the Struggle for Democracy:
Nova Iguaçu, 1974-1985", em Stepan, ed., Democratizing Brazil? (a sair).
81. Um dos estudos mais importantes sobre padrões de vida é de Cândido
Procópio Ferreira de Camargo, et ai., São Paulo 1975: crescimento e pobreza (São
Paulo, Edições Loyola, 1976). A pesquisa foi feita pelo staff no CEBRAP, a
pedido da Pontifícia Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo.
82. Esta orientação pode ser vista na "Comunicação Pastoral ao Povo de Deus"
divulgada por uma comissão da CNBB em outubro de 1976. Está reproduzida em Luiz
Gonzaga de Souza Lima, Evolução política dos católicos e da Igreja no Brasil
(Petrópolis, Vozes, 1979), pp. 240-54.

362 Brasil: de Castelo a Tancredo
por justiça social que fora apoiado pela Conferência Episcopal Latino-Âmericana
(CELAM) em Medellin, em 1968.

A Igreja brasileira, portanto, sofreu dupla radicalização. Primeiro, foi
forçada a assumir uma atitude de desafio em matéria de direitos humanos na
medida em que membros do clero e do laicato (bem como pessoas não filiadas à
Igreja) eram atingidos pela violência governamental. Segundo, dando prioridade
ao trabalho pastoral junto aos necessitados, denunciava radicalmente o tipo de
capitalismo que os tecnocratas e seus mentores militares construíam para o
Brasil.

A figura mais proeminente dessa Igreja católica radicalizada não era mais Dom
Helder Câmara, sobre quem os censores não permitiam que uma só palavra chegasse
aos meios de comunicação. Mesmo sem este handicap, Dom Helder teria sido
eclipsado pelo Cardeal Arns de São Paulo.83 Titular de uma das maiores
arquidioceses católicas do mundo, o cardeal demonstrara desde a sua nomeação em
1971 ser um ativista agressivo e eficiente. Sob sua direção, as CEBs e as
pastorais leigas e religiosas de São Paulo se multiplicaram criando uma rede de
ativistas no maior e mais industrializado centro urbano do Brasil.

Por este quadro via-se claramente que, numa fase em que se tentava uma
descompressão, a Igreja era a única instituição que podia elevar a voz contra o
regime militar e ao mesmo tempo mobilizar seus membros espalhados por todo o
país. Era também considerada geralmente a Igreja Católica mais progressista do
mundo, reputação que conquistou como defensora dos direitos humanos e de
reformas radicais para ajudar os pobres. As lideranças destes últimos defendiam
uma "igreja popular" e gozaram de influência na Igreja brasileira durante todo o
governo Geisel e nos primeiros anos do de Figueiredo. Os religiosos e leigos
conservadores ficaram
________
83. Sobre o Cardeal Arns há um retrato altamente favorável em Getúlio
Bittencourt e Paulo Sérgio Markum, O cardeal do povo: D. Paulo Evaristo Arns
(São Paulo, Alfa-Ômega, 1979). Há uma coleção de entrevistas com o cardeal em D.
Evaristo Arns, Em defesa dos direitos humanos (Rio de Janeiro, Ed. Brasília/Rio,
1978). Infelizmente, as entrevistas individuais concedidas entre 1970 e 1978 não
são datadas. Ver também a reportagem de capa em Veja, de 5 de outubro de 1977, e
a entrevista de agosto de 1986 (feita por Joan Dassin) em NACLA Report on the
Américas, XX, N." 5 (setembro-dezembro de 1969), pp. 66-71.

Geisel: rumo à Abertura 363
aguardando melhor oportunidade, enquanto os "moderados" não mereciam confiança
para assumir como aliados posições extremas de longo prazo, inclusive as
preconizadas pela "igreja popular".84 A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) foi
outra tradicional instituição que se tornou ativa adversária do governo
militar.85 A advocacia foi sempre a profissão de mais prestígio no Brasil e o
caminho preferido para a conquista do poder público. Apesar da forte influência
no Brasil do liberalismo europeu e norte-americano e de terem sido advogados os
autores das constituições brasileiras de 1824, 1891 e 1946, o regime autoritário
não era novidade para eles. Todas as revoluções ou golpes no Brasil sempre
encontraram advogados dispostos a fornecer uma justificação jurídica para a
tomada do poder. O ano de 1964 não foi exceção. O Ato Institucional de abril de
1964, que legalizou os expurgos realizados pelo governo revolucionário, foi
redigido por Francisco Campos, o jurista mineiro que também escrevera a
Constituição autoritária que Getúlio Vargas usou para legitimar sua ditadura.
__________
84. Um destacado estudioso do papel contemporâneo da Igreja brasileira conclui
que "a Igreja tornou-se o principal foco institucional de dissidência
no país. Não é exagero declarar que as ações autoritárias e arbitrárias do
regime impuseram esse papel à Igreja". Bruneau, The Church in Brazil, p. 151.
85. Uma fonte importante sobre a atuação da Ordem dos Advogados é Alberto
Venâncio Filho, Notícia histórica da Ordem dos Advogados do Brasil, 1930-1980
(Rio de Janeiro, Ordem dos Advogados do Brasil, 1982). Uma útil narração do
movimento dos advogados pelo retorno do estado de direito é feita em James A.
Gardner, Legal Imperialism: American Lawyers and Foreign Aid in Latin America
(Madison, University of Wisconsin Press, 1980), pp. 109-25. Beneficiei-me também
muito de entrevistas com quatro ex-presidentes da OAB: Seabra Fagundes (7 de
junho de 1983), J. Ribeiro de Castro Filho (10 de junho de 1983), Bernardo
Cabral (7 de junho de 1983) e Raymundo Faoro (2 de julho de 1983). A história da
luta pelas liberdades civis é tratada com uma dimensão profundamente humana em
Patrícia Weiss Fagen, "Civil Society and Civil Resistante ih Chile and
Brazil", Human Rights Internet: Special Paper No. l (Washington, Human Rights
Internet, 1982), que se concentra em quatro corajosos advogados: Anina de
Carvalho, Modesto da Silveira, Hélio Bicudo e Dalmo Dallari. Como nota Fagen,
"aqueles que se opunham aos militares responderam com duas linhas de ação:
procuraram proteger as vítimas da repressão por meio da defesa legal e da
denúncia de violação dos direitos humanos, e se esforçaram por criar
organizações que fossem capazes de defender os direitos econômicos e
também os políticos" (pp. 3-4).

364 Brasil: de Castelo a Tancredo
Muitos udenistas partidários da queda de João Goulart eram também eminentes
advogados, como Adauto Lúcio Cardoso, Prado Kelly, Afonso Arinos de Melo Franco,
Bilac Pinto e Milton Campos. Não tiveram dificuldade em conciliar sua crença no
império da lei com a deposição de um presidente legalmente no poder.
Justificaram sua posição como necessária para proteger o governo legal, que
Goulart, segundo eles, estava subvertendo.

No entanto, muitos desses mesmos advogados udenistas ficaram profundamente
preocupados com o regime autoritário imposto pelos militares da linha dura
depois de 1964. No auge do governo Mediei poucos juristas de alto nível da UDN
podiam ser apontados entre os defensores ativos do governo. O "clássico" estilo
udenista de defesa do governo militar chegara ao fim.86

Após 1968 a Revolução assumira uma dimensão radicalmente diferente. Gritantes
violações dos direitos humanos por toda parte, o desacato em massa ao poder
judiciário e a prática corriqueira de ações arbitrárias produziram uma situação
sem precedente desde o fim da ditadura Vargas em 1945.

A evidência mais notável desse estado de ilegalidade era a verdadeira
montanha de violações dos direitos humanos. Os torturadores tinham sinal verde
para agir mas, apesar da censura, a notícia de suas carnificinas se espalhava
rapidamente. O verdadeiro teste da tradição brasileira de respeito pela lei foi
a reação da classe dos advogados às grosseiras transgressões dos direitos do
homem.

A partir de 1968, quando Sérgio Fleury e seu bando de torturadores ganharam
liberdade de ação, a reação não era de molde a impressionar. Eram raros os
advogados que atendiam aos desesperados apelos das famílias e amigos de presos
políticos.

Os poucos que o fizeram, talvez não mais do que 30 ao todo, eram na maioria
advogados criminais, e tudo o que podiam fazer era pressionar os tribunais
militares sobre a localização e o estado físico dos presos. Eram inúmeros os
casos confiados a esses advo-
_________
86. Esta desilusão de proeminentes figuras da UDN é o fim da história contada
tão incisivamente em Benevides, A UDN e o udenismo, pp. 125-36. Ver também "UDN:
o poder aos 30 anos", Opinião, 25 de abril de 1975. Não pretendo dar a entender
que só foi a UDN que sofreu esta desilusão. Mas o fato é significativo
simplesmente porque a retórica daquele partido era um exemplo bastante claro do
pensamento tradicional da OAB.

Geisel: rumo à Abertura 365
gados, às vezes 50 ou 100 de uma vez. Não raro o máximo que podiam fazer era
nada mais que um gesto, mas em certos casos conseguiam uma resposta do tribunal
militar, pelo menos confirmando onde determinado preso podia ser encontrado. O
efeito total do trabalho desses advogados não ameaçava o leviatã brasileiro, mas
foi tão notável que acabou abalando a consciência dos homens que faziam do
direito a sua profissão.87

Embora os advogados tivessem razões especiais para se escandalizar com o que
ouviam sobre a violência - o governo simplesmente se declarava acima da lei -
muitos deles, assim como grande parte da cidadania, realmente duvidavam que
fossem comuns a tortura, a mutilação e a morte. Em 1972, contudo, poucas dúvidas
restavam, e no final do governo Mediei era muito grande o sentimento de revolta
entre os advogados. Aqueles que insistiam que a tortura era uma aberração
ficaram profundamente abalados, por exemplo, quando falaram com vítimas de
torturadores levadas por seus defensores à Ordem dos Advogados.

Em 1972 a Ordem dos Advogados do Brasil, ao término de uma reunião em
Curitiba, expediu uma declaração em que dizia que "a causa de maior importância
para o nosso país é o primado do Direito". E numa advertência aos tecnocratas e
aos generais: "Se é verdade que para o desenvolvimento são indispensáveis paz e
segurança, não é menos verdade que não existe tranqüilidade e paz quando não há
liberdade e justiça".88

Em sua convenção realizada no Rio de Janeiro em agosto de 1974, a OAB se
comprometeu com uma ativa defesa dos direitos dos presos políticos, inclusive
corn a segurança contra prisões arbitrárias e a tortura. A convenção tinha por
lema "O Advogado e os Direitos do Homem".89 Como conseqüência a instituição
lançou uma campanha para educar o público sobre a importância para cada cidadão
dos direitos fundamentais legais e políticos. A meta perseguida pela OAB era a
restauração do habeas-corpus, a revo-
_______
87. Entrevistas com José Ribeiro de Castro Filho (10 de junho de 1983), José
Carlos Dias (29 de junho de 1983) e Técio Lins e Silva (7 de julho de
1983). Todos os três são advogados que defenderam presos políticos.
88. Transcrito em Venâncio Filho, Notícia histórica, pp. 157-58.
89. Os discursos e documentos relativos à convenção estão reproduzidos em
Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Anais da V Conferência.

366 Brasil: de Castelo a Tancredo
gação do AI-5 e a anistia. A curto prazo o máximo que a campanha podia fazer era
convencer o público de que os governos militares pós-1964 eram ilegítimos porque
a Constituição que outorgaram não resultou de uma assembléia constituinte eleita
pelo povo, como o foram as constituições adotadas após os golpes de 1889, 1930 e
1945.

Com sua firme posição a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) se organizava
para minar as bases do regime autoritário. Como a Igreja, era uma instituição
nacional (suas convenções nacionais realizavam-se em pontos diferentes do país)
em cooperação com as seções estaduais. Sua ofensiva antigoverno no início da
gestão de Geisel, geralmente coordenada com a Associação Brasileira de Imprensa
(ABI), reverberou pelo país afora. A campanha atingiria importantes segmentos da
população, especialmente os políticos, tanto os de dentro quanto os de fora do
governo.90

A ofensiva da OAB irritou o governo Geisel. Na convenção nacional de 1974 o
ministro da Justiça Armando Falcão, que fora convidado para a solenidade de
encerramento, não apareceu. Sua atitude não causou surpresa em razão dos ataques
que durante toda a semana os participantes dirigiram ao governo. Em 1976 o
governo apontou a sua própria metralhadora contra a OAB propondo, como parte da
reforma geral do Judiciário, a revogação do singular status daquela organização,
a única não sujeita ao controle direto do governo. Este privilégio, segundo o
governo, devia acabar, submetendo-se a OAB ao controle e supervisão do
Ministério do Trabalho.91 Esta violenta ameaça ao status legal da entidade e,
portanto, a todos os advogados, levou-os a assumir uma posição combativa, tanto
quanto a cumplicidade do governo na violência contra o clero galvanizara os
"moderados" da Igreja.
_______
90. Entrevista com Eduardo Seabra Fagundes, 7 de junho de 1983.
91. Em seu discurso ao assumir a presidência da OAB em abril de 1976, Eduardo
Seabra Fagundes terminou salientando a importância da "independência da
destemida Ordem" que ele disse ser "mais importante do que a independência dos
juizes porque quando os advogados defendem a autonomia da Ordem não estão
motivados por interesses de sua classe, mas pelos interesses da nação". Discurso
de posse do Dr. Eduardo Seabra Fagundes como presidente da Ordem dos Advogados
do Brasil, pronunciado em 22 de abril de 1976 (datilografado). Os advogados
foram bem-sucedidos na luta contra a tentativa do governo de eliminar sua
autonomia legal. Venâncio Filho, Notícias históricas, pp. 183-201.

367
Começaram investindo contra a "ordem jurídica ilegítima", que eles
contrastavam com a "ordem jurídica legítima". A primeira, afirmavam, fora criada
por meio de atos arbitrários, acima de todos o AI-5. Esses atos e decretos
constituíam um "estado de exceção". O "estado de direito" só podia ser
restaurado com a revogação do AI-5 e o restabelecimento do habeas-corpus. O
passo subseqüente, no pensamento da OAB, era convocar uma assembléia
constituinte, que redigisse uma nova e legítima ordem constitucional para o
Brasil.92

A OAB foi assim outra instituição da sociedade civil que, a partir de 1974,
decidiu contestar a legitimidade do governo revolucionário. Desafiou a estrutura
"revolucionária" que os militares da linha dura e seus advogados haviam erigido
desde 1968 e apoiou também os esforços em defesa de presos que sofreram
brutalidades dos torturadores. Tal como a Igreja, a OAB era tradicionalmente um
órgão conservador cujos membros se tornaram mais radicais após confrontar-se com
o Estado autoritário. Assim, tanto a Igreja quanto a OAB estavam no âmago da
sociedade civil que reconquistara a capacidade de opinar precisamente quando o
governo Geisel resolvera aplicar seu mal definido projeto de liberalização.
Nenhuma oposição, especialmente sob um regime altamente autoritário, pode
organizar-se se lhe faltam meios de comunicar-se internamente com o público. A
Igreja e a OAB tinham seus próprios canais de comunicação com base no âmbito
nacional de suas organizações. Mas como trazer parcela maior da sociedade civil
para a oposição?

A mídia tinha sido atingida de modo especialmente rigoroso pela repressão.93
Os censores controlavam facilmente o rádio e a televisão porque seus
proprietários podiam ser ameaçados com a
_____
92. A lógica da OAB é bem analisada em Maria Helena Moreira Alves, State and
Opposition in Military Brazil, pp. 160-62.
93. O papel da imprensa neste período é examinado em Joan Dassin, The Brazilian
Press and the Politics of Abertura", Journal of Interamerican Studies and World
Affairs, XXVI, N." 3 (agosto de 1984), pp. 385-414. Apesar da censura, circulava
uma publicação do tamanho de um livrete, Notícias censuradas, contendo histórias
recentemente cortadas pela tesoura dos censores. Encontrei uma cópia do N.° 15
(setembro de 1974) nos arquivos da Associated Press no Rio, em maio de 1975. A
circulação deve ter sido, reconhecidamente, muito limitada.

368 Brasil: de Castelo a Tancredo
perda de suas concessões (dadas pelo governo) ou através de pressão sobre os
anunciantes. Assim o rádio e a TV foram incapazes de assumir qualquer posição
contrária ao governo nos anos iniciais de Geisel.

No caso da imprensa, entretanto, a coisa era diferente. O Brasil possuía uma
antiga e ilustre tradição jornalística, embora na seqüência do AI-5 os censores
tivessem praticamente anulado os jornais e revistas. Os principais jornais eram
o Jornal do Brasil, do Rio, e o O Estado de S. Paulo e o Jornal da Tarde, os
dois últimos de propriedade da família Mesquita. Estes eram os jornais mais
respeitados, lidos em todo o país (embora em número menor fora do Rio e São
Paulo), e que exerciam o maior impacto sobre a opinião da classe média para
cima. Desde 1972 a sensacionalista Tribuna da Imprensa e os dois jornais dos
Mesquita estavam sujeitos a censura prévia.

O governo Geisel tinha plena consciência do papel básico da imprensa. Em
janeiro de 1975, como vimos, a censura fora abolida para O Estado de S. Paulo e
o Jornal da Tarde. Mas até no restante da imprensa havia margem para a cobertura
de eventos ou personalidades controvertidos de tal modo que o leitor inteligente
podia perceber os fatos.

Ironicamente, a rigorosa censura à imprensa estimulou a criação de um novo
género de publicações, o semanário político. Os mais conhecidos eram Opinião e
Movimento, ambos nascidos de profunda convicção política, pertencendo o primeiro
à centro-esquerda e o último à esquerda radical. Ambos foram vítimas da censura
mais rigorosa que lhes causou grandes prejuízos, já que a composição da matéria
tinha que ser paga antes da revisão do censor. Aproximadamente metade da matéria
do Opinião em sua fase inicial foi censurada, exigindo a sua substituição por
matérias novas a custos adicionais. O simples fato de que esses dois semanários
sobreviveram nos primeiros anos do governo Geisel demonstra que havia restado
algum espaço para a oposição. Embora mutilados pelos censores, Opinião e
Movimento permaneceram como pontos de reunião, especialmente para os
intelectuais.

Em 1975 a remoção da censura a O Estado de S. Paulo e a criação de um clima
de liberalização tiveram conseqüências imprevistas. A tortura e outras violações
dos direitos humanos pelas forças de segurança continuavam a todo vapor e a elas
a imprensa

Geisel: rumo à Abertura 369
passou a dar o maior destaque. A morte de Vladimir Herzog, por exemplo, em
outubro de 1975 foi amplamente coberta pelos principais jornais, bem como o
serviço fúnebre ecumênico em sua memória. Ao criar uma atmosfera ligeiramente
menos rígida para a imprensa, o regime Geisel tornou possível uma opinião
pública mais bem informada e mais facilmente mobilizada. E essa opinião estava
se inclinando maciçamente, especialmente nas cidades, para a oposição, como
ficou provado nas eleições de 1974. Geisel estava ajudando a sociedade civil a
despertar novamente, mas não estava preparado para ouvir o que a voz da
sociedade tinha para dizer.

Problema do Planalto: como ganhar eleições

No início de 1975 o governo enfrentou delicada situação política. Nos seus
primeiros dias na presidência, Geisel parecera receptivo à idéia da oposição de
que o AI-5 fosse desativado, apressando assim o retorno ao império da lei.
Alguns líderes da ARENA no Congresso chegaram a propor a sua "incorporação" à
Constituição, solução imediatamente recusada pelo MDB. Ou o governo seria
limitado por normas constitucionais, afirmava o partido, ou então continuaria
apoiado no poder arbitrário. Não podia haver mistura dos dois.

Entretanto, meses após sua posse, Geisel advertiu os congressistas de ambos
os partidos que não extinguiria os poderes extraordinários do AI-5, e não tardou
a demonstrar o que dizia. Antes de terminar 1975, ele recorreu àquele
instrumento de força para demitir três juizes por supostos atos de corrupção e
para resolver uma disputa política sobre a prefeitura de Rio Branco no distante
estado do Acre. Estes casos eram tão insignificantes que os otimistas do MDB
ainda tinham esperança de que o Ato Institucional desaparecesse por falta de
uso. Mas a determinação do governo de punir os remanescentes da "subversão"
tornou inevitável o uso daquele instrumento autoritário.

Ao longo de 1975, como vimos anteriormente, Armando Falcão, o ministro da
Justiça, ordenou uma caça aos comunistas, que ele e as forças de segurança
achavam terem desempenhado um papel fundamental na vitória do MDB nas eleições
parlamentares de novembro de 1974. Em março de 1975 ele promoveu julgamentos

370 Brasil: de Castelo a Tancredo
em que os acusados foram sentenciados por tentar reconstruir o destroçado
Partido Comunista ou por terem pertencido à outrora ativa ALN de Carlos
Marighela. Em outubro os militares anunciaram a prisão de outros 76 supostos
comunistas, dos quais 63 seriam membros da polícia militar.

Em janeiro de 1976 Geisel usou o AI-5 para cassar os mandatos de dois
deputados estaduais paulistas acusados de terem recebido apoio eleitoral dos
comunistas. No fim de março o presidente adotou medida idêntica contra dois
deputados federais que tinham atacado com violência o governo e os militares.
Quando o decreto estava prestes a ser assinado no Planalto, o deputado Lysaneas
Maciel, um dos maiores adversários emedebistas da Revolução, discursava na
Câmara em defesa dos dois deputados. Somente pela força, ele afirmou, o governo
podia se manter no poder. A notícia do seu violento discurso chegou ao palácio
presidencial a tempo de seu nome ser incluído na lista dos cassados. A
informação sobre sua punição foi conhecida na Câmara quando Lysaneas ainda se
achava na tribuna, o que ocasionou a troca de fortes insultos entre emedebistas
e arenistas, estes últimos defendendo o ato governamental contra os seus
colegas, num espetáculo verdadeiramente deprimente. A liderança do MDB,
profundamente frustrada com essa reversão da "descompressão", atacou o recurso
do governo à "violência".

Poucos políticos surpreenderam-se com a punição dos jovens deputados do MDB,
cujos desafios ao autoritarismo ultrapassavam os limites da tolerância militar.
Mas o uso pelo presidente do AI-5 contra deputados federais de importância
secundária demonstrava que a influência da linha dura no Planalto ainda era
significativa. Uma prova de que a coordenação no seio do governo era imperfeita
foi a atitude da censura federal vetando no início de 1976 uma apresentação pela
TV do Bale Bolshoi. Como o governo havia recentemente atenuado a censura>xà
decisão pareceu ridícula, justificando as piadas sobre possível "contaminação"
provocada pelos bailarinos comunistas na televisão.

Em fins de junho o presidente tomou uma medida mais séria para controlar a
mídia. Pediu e obteve do Congresso uma lei (conhecida como "lei Falcão", para
estigma do ministro da Justiça) proibindo o uso para fins de campanha política
do rádio ou televisão, onde só poderia aparecer a imagem sem som do candidato
(medida extensiva aos dois partidos). Foi uma violenta reação às eleições de

Geisel: rumo à Abertura 371
1974, quando os candidatos do MDB usaram a televisão para atrair votos'
decisivos nas últimas semanas que precederam o pleito. Todas essas medidas
reforçavam o cerco do governo ao MDB, ao qual Geisel se referia como o
"inimigo".

Se o MDB tivesse que observar as regras do jogo político, alteradas desde
1974, possuía cartas muito boas.94 O partido era muito forte em vários estados
importantes - São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul - onde haveria
eleições para governadores em 1978. Qualquer eleição direta para governador
nesses estados seria quase com certeza ganha pelo MDB. O governo não podia
recorrer a eleições indiretas, pois isto exigiria uma emenda constitucional, e a
ARENA não possuía a maioria de dois terços necessária no Congresso. Nem tampouco
as assembléias estaduais ofereciam qualquer saída para o governo, pois nos
legislativos daqueles três estados a maioria era do MDB. O governo Geisel,
portanto, encontrava-se num cul-de-sac político. O compromisso com a
"descompressão" fora preterido pelo medo de derrotas eleitorais que poderiam
enfraquecer a capacidade dos militares de decidirem quando e até que ponto
afrouxarem seu controle. Enquanto isso, a liderança do MDB decidiu
aparentar moderação para esperar colher os frutos da vitória nas eleições de
1978, distantes ainda três anos.

Nos meses finais de 1976 a política complicou-se pela deflagração de uma
força há muito temida - o terrorismo da direita. Era temida porque podia tornar-
se rapidamente o pretexto para o sistema se fechar ainda mais. E uma aparente
carie blanche aos terroristas implicava influência da linha dura sobre o comando
militar. Em setembro explodiu uma bomba na sede da ABI no Rio, e no início de
outubro houve novos atentados a bomba e ameaças telefônicas a membros da Igreja
conhecidos por suas críticas ao governo, como aconteceu com o bispo que foi
seqüestrado e espancado. Por este atentado responsabilizou-se um
grupo autodenominado "Aliança Brasileira Anticomunista", réplica sinistra do
grupo terrorista argentino. Esses atos de violência eram uma resposta direta ao
despertar da sociedade civil encorajado pela "descompres-
_________
94. Para um típico exemplo de como os políticos tanto da ARENA como ,do MDB
especulavam sobre possíveis mudanças nos regulamentos partidários, ver "Questão
de tática e tempo", Visão, 26 de julho de 1976, PP. 37-38.

372 Brasil: de Castelo a Tancredo
são" de Geisel. Mas os incidentes direitistas não assumiram maior envergadura
nem o governo mudou de rumo, e os responsáveis (sem dúvida ligados à polícia e
aos militares) ou foram freados por seus superiores ou decidiram por conta
própria fingir-se de mortos.

O fato político mais importante do final de 1976 foram as eleições municipais
de 15 de novembro. A ARENA, como era esperado, ganhou folgadamente nas regiões
menos desenvolvidas, onde fazer-lhe oposição era muitas vezes suicídio político.
Mas nas cidades maiores o MDB demonstrou sua força, obtendo a maioria nas
câmaras municipais do Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre,
Salvador, Campinas e Santos. A vitória da oposição em tantas e tão importantes
cidades era mau sinal para o futuro eleitoral da ARENA. No Rio cerca de 150.000
eleitores votaram no "feijão preto", produto básico da classe trabalhadora que
havia sumido do mercado (os fornecedores o estavam retendo à espera de um
aumento de preço) havia um mês, causando distúrbios. Era outro sinal de perigo
para o governo.95

Resposta do governo: o "pacote de abril"

No início de 1977 o governo Geisel finalmente começou a agir objetivamente em
relação às conseqüências políticas dos resultados das eleições parlamentares de
1974. Essas eleições criaram dois problemas, um imediato, outro a longo prazo. O
problema a longo prazo era impedir que o MDB conseguisse fortalecer-se
significativamente pelo voto. O imediato era descobrir um meio legal de
neutralizar essa ameaça na próxima eleição. O Planalto estava extremamente
preocupado com as eleições para governadores em 1978 que, segundo estipulava a
Constituição, deviam ser diretas.

Uma derrota do governei - que parecia muito provável em vários estados-chave
- só podia ser impedida de dois modos. Um seria intimidar o eleitorado em escala
até maior do que em 1970, quando o governo Mediei prendeu milhares nas vésperas
das elei-
________
95. Para uma análise em profundidade de quatro eleições municipais, ver Fábio
Wanderley Reis, ed., Os partidos e o regime: a lógica do processo eleitoral
brasileiro (São Paulo, Edições Símbolo, 1978).

Geisel: rumo à Abertura 373
coes. Mas uma operação com tais proporções contradiria o estilo do governo
Geisel e daria demasiado poder à linha dura. A outra saída, e a favorita desde
1965, era transformar em indiretas as eleições para governadores. Mas isto
exigiria uma emenda constitucional, e a ARENA não possuía a maioria necessária
de dois terços no Congresso. O governo podia usar o AI-5, mas tal só podia
ocorrer, conforme o próprio Ato, se o Congresso não estivesse funcionando.
Geisel preferiu a solução de uma emenda constitucional através do AI-5, e em l
de abril de 1977, fechou o Congresso. O pretexto para o ato de força foi um
ambicioso projeto de reforma judiciária que o MDB rejeitava, pois, segundo
afirmava, a reforma pleiteada pelo governo não fazia sentido sem que antes
fossem revogadas leis arbitrárias como o AI-5 e a Lei de Segurança Nacional.
Invocando os poderes arbitrários do AI-5, Geisel anunciou uma série de
importantes reformas constitucionais (apelidadas de "pacote de abril"), todas
visando direta ou indiretamente tornar a ARENA imbatível nas próximas eleições.
Doravante as emendas constitucionais exigiriam maioria simples apenas; todos os
governadores de estado e um terço dos senadores seriam escolhidos indiretamente
em 1978 por colégios eleitorais estaduais (que incluiriam os vereadores, ficando
assegurado o controle da ARENA);96 os deputados federais teriam o seu número
fixado à base da população e não do total de eleitores registrados (como fora
nas eleições de 1970 e 1974); e o acesso dos candidatos ao rádio ou à televisão
ficava rigorosamente limitado nos termos da lei Falcão já aprovada pelo
Congresso em 1976.97

O MDB reagiu violentamente a esta nova manipulação das regras políticas. A
imprensa teceu fartos comentários sobre a apa-
________
96. Como esses senadores não precisavam mais ser eleitos diretamente, a imprensa
os apelidou de "senadores biônicos" à maneira do herói e heroína da TV
americana que pareciam dotados de vida quando na realidade eram máquinas
indestrutíveis.
97. O "pacote" também incluiu uma medida de grande significação na administração
policial. As PMs, ou polícias estaduais, geralmente subordinadas ao braço civil
do governo do estado, passavam a ter agora o seu próprio sistema de justiça
interno. Isto as colocaria sempre na linha de frente do controle das multidões,
fora do alcance da jurisdição dos canais civis. Pinheiro, "Polícia", p. 61.

374 Brasil: de Castelo a Tancredo
rente traição de Geisel ao seu compromisso com a descompressão.98 Mas o
presidente respondeu marcando a reabertura do Congresso para o dia 15 de abril.
Ele estava ansioso para reiniciar o jogo sob as novas regras.

Uma das primeiras questões submetidas ao Legislativo federal após a reforma
constitucional foi a legalização do divórcio, objeto de uma campanha de décadas
liderada pelo senador Nelson Carneiro, do Rio de Janeiro. A matéria era vetada
pela Constituição, daí a necessidade de uma emenda para legalizá-la. Tentativas
haviam sido feitas anteriormente que esbarravam, entretanto, na maioria de dois
terços nunca conseguida. Com a maioria simples estipulada pelo "pacote de
abril", as coisas se tornavam mais fáceis. Ora, em junho de 1977 Geisel
encorajou os defensores da emenda dizendo que não exigiria o cumprimento da
disciplina partidária, liberando portanto os arenistas para votarem de acordo
com a própria consciência. A emenda foi aprovada (permitindo o divórcio uma vez
só) para alegria do público que lotava as galerias. A votação que sem dúvida
teve o apoio da maioria do país subitamente legitimara de novo o Congresso, pois
o transformara, pelo menos temporariamente, no centro de decisão sobre um tema
controvertido de alta significação social. O episódio serviu para dissipar a
raiva que muitos, tanto do governo quanto da oposição, sentiram com a decretação
do "pacote de abril".

A votação teve outro significado. Foi uma fragorosa derrota da Igreja que,
embora combativa na defesa dos direitos humanos e da justiça social, era
absolutamente contrária à legalização do divórcio. O governo Geisel (chefiado
por um luterano) não podia deixar de alegrar-se de certo modo com a derrota do
clero que não cessava de combatê-lo.

O resto de 1977 não ofereceu escassez de evidências para aqueles que
duvidavam do compromisso de Geisel com a liberalização. Em maio de 1977 o
ministro da Justiça informou que a censura seria estendida a todas as
publicações importadas. Logo após a divulgação de um manifesto anticensura
assinado por 1.000
_________
98. Muitos observadores estrangeiros estavam igualmente perplexos. Um
especialista americano em assuntos da Igreja brasileira concluiu que "este
regime não estava liberalizando ou abrindo, mas fazendo o contrário, e que o
pretenso democrata era um completo autocrata". Bruneau, The Church in Brazil, p.
74.

Geisel: rumo à Abertura 375
intelectuais em janeiro, 2.750 jornalistas fizeram um protesto de âmbito
nacional (que tais protestos pudessem ser realizados, deve-se notar, demonstrava
o grau de abertura política já conseguido).99 Em junho Geisel cassou o mandato
do líder do MDB na Câmara, Alencar Furtado, e o privou dos seus direitos
políticos por dez anos. Geisel agiu em resposta a acusações ao presidente que
Furtado fez em programa de televisão (pela lei a oposição dispunha de uma hora
por ano) pouco antes no mesmo mês.100

Ainda em 1977 surgiram sinais de oposição ao governo revolucionário de outra
área mais conhecida - os estudantes. Os protestos que eles haviam realizado em
março evoluíram para manifestações contra a Revolução no mês de maio em diversas
universidades.101 Embora a repressão tivesse sido enérgica na maioria dos casos,
a polícia às vezes demonstrou certa hesitação inicial. O ministro da Justiça
vetou quaisquer novas manifestações, o que não impediu tentativas de greve na
Universidade de Brasília e um encontro "nacional" de estudantes em Belo
Horizonte para exigir a restauração da democracia. Pela primeira vez desde 1968,
estudantes ativistas perceberam que podiam desafiar o aparato de segurança.
Naturalmente muitos deles eram jovens demais para se lembrar da repressão
sangrenta de que foram vítimas seus antecessores em 1968. Mesmo assim, suas
entusiásticas manifestações eram um sinal de que a promessa de liberalização de
Geisel despertara a simpatia de importante segmento da população. Eram também um
sinal de que a paciência com a estratégia do governo e suas freqüentes
concessões à linha dura - estava se esgotando.

Divergência Estados Unidos-Brasil: tecnologia nuclear e direitos humanos

Os revolucionários militares e civis de 1964 consideravam os Estados Unidos
como o aliado indispensável do Brasil. Ao longo
________
99. Maria Helena Moreira Alves, State and Opposition, pp. 164-65.
100. O discurso pela televisão, juntamente com uma seleção de outros discursos,
está transcrito em Alencar Furtado, Salgando a terra (Rio de Janeiro, Paz e
Terra, 1977).
101. Kucinski, Abertura, pp. 105-8.

376 Brasil: de Castelo a Tancredo
,da década de 60 foi aquele país o principal investidor, parceiro comercial e
aliado militar do Brasil, do qual, entretanto, distanciou-se um pouco com a
guinada autoritária de 1968-69. Mas o governo Geisel imprimiu um novo estilo às
relações com os Estados Unidos. O presidente era menos inclinado do que os seus
antecessores a aceitar a idéia de ser a nação americana um "aliado
indispensável" do Brasil. Ele queria mais espaço para manobra, um alinhamento
menos "automático" com a liderança dos Estados Unidos. Deste ponto de vista
participava entusiasticamente o ministro das Relações Exteriores Azeredo da
Silveira.

A aliança entre os dois países nunca fora absolutamente tranquila, tinha
também seus pontos de discórdia. O mais importante do ponto de vista de Brasília
eram as relações econômicas, especialmente as restrições ao acesso ao mercado
americano e o desinteresse dos Estados Unidos em apoiar uma reforma do sistema
comercial e financeiro internacional. Esta questão fora, aliás, o ponto
principal da política externa de João Goulart. O governo Castelo Branco desistiu
desta reivindicação, como o fizeram seus sucessores. Mas os argumentos
persistiram em forma mais pragmática, quando Delfim Neto lutou para melhorar ò
acesso do Brasil aos mercados, ao capital e à tecnologia.

Mas não foi a economia que atritou o relacionamento brasileiro americano
durante o governo Geisel, porém a tecnologia nuclear e os direitos humanos. A
primeira derivava da necessidade do Brasil de buscar fontes alternativas de
energia, pois o país era pobremente dotado de combustíveis fósseis, e o óleo
importado quadruplicara de preço desde 1973. Uma alternativa era a energia
hidrelétrica, mas técnicos brasileiros haviam calculado que, à taxa histórica de
crescimento do país, seu potencial hidrelétrico estaria esgotado no final do
século, se não antes.102 A outra alternativa lógica, baseada na experiência dos
países industriais, era a energia nuclear.
______
102. Para exemplo de um estudo colocando a energia nuclear no contexto de outras
fontes de energia do Brasil, ver António Aureliano Chaves de Mendonça. "O Brasil
e o problema da energia nuclear", Boletim Geográfico, N.° 247 (outubro-dezembro
de 1975), pp. 28-50. O autor tornou-se vice-presidente em 1979. Com efeito, o
Brasil superestimou suas futuras necessidades de energia, em parte como
resultado de inadequado trabalho de staff. Entrevista com o embaixador Robert
Sayre, Washington, D.C., 16 de maio de 1983.

377
Mas a tecnologia nuclear, se incluísse o ciclo completo de combustível, podia
ser usada também para produzir armas nucleares, e esta era uma questão
extremamente sensível para os Estados Unidos.103

Desde 1945 os Estados Unidos vinham lutando, finalmente com êxito, para
impedir a proliferação da tecnologia de armas nucleares. Obviamente, eles não
podiam deter os soviéticos, nem tentaram impedir os ingleses ou franceses de se
tornarem autosuficientes em todas as fases da tecnologia nuclear, inclusive a
produção de armas. Mas a coisa mudava de figura tratando-se de nações menores
(pelo menos em capacidade tecnológica) que desejavam desenvolver o átomo como
fonte de energia.

A curto prazo esses países não tinham outra alternativa a não ser buscar a
tecnologia nuclear em uma grande potência, que no caso do Brasil eram os Estados
Unidos. Os americanos encorajaram esta política na esperança de reduzirem a
propagação da tecnologia nuclear que também podia ser usada, como já dissemos,
para a fabricação de armas. Esta meta, no entanto, só podia ser alcançada se a
nação recebedora não adquirisse a capacidade de produzir urânio enriquecido, uma
tecnologia necessária tanto para manter o abastecimento de um reator quanto para
a produção de explosivos nucleares.

Em 1972 a Westinghouse Electric ganhou um contrato para construir a primeira
usina de energia atómica do Brasil. A empresa
_________
103. Um oportuno sumário do atrito Brasil-Estados Unidos por causa da energia
nuclear pode ser encontrado em Wesson, The United States and Brazil, pp. 75-89.
Uma das primeiras análises que ainda tem atualidade é a de Norman Gall, "Atoms
for Brazil, Dangers for AU", Foreign Policy, 23 (Verão de 1976), pp. 155-201.
Uma apreciação mais recente é encontrada em David J. Myers, "Brazil: Reluctante
Pursuit of the Nuclear Option", Orbis, XXVII, N.° 4 (Inverno de 1984), pp. 881-
911. Para úteis informações sobre a política nuclear brasileira, ver Wolf
Grabendorff, "Bedingungsfaktoren und Strukturen der Nuklearpolitik Brasiliens"
(Ebenhausen, West Germany, Stiftung Wissenschaft und, Politik, dezembro de 1979,
mímeo). Para uma crítica da política oficial pelo principal físico nuclear
brasileiro, ver José Goldemberg, Energia nuclear no Brasil (São Paulo, Editora
Hucitec, 1978). A critica doméstica mais amplamente lida da política nuclear do
Brasil é de Kurt Rudoif Mirow, Loucura nuclear (Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, 1979). Mirow é um industrial brasileiro de origem alemã, muito bem
informado sobre os aspectos concernentes à Alemanha Ocidental do acordo nuclear.

378 Brasil: de Castelo a Tancredo
só decidiu entrar na concorrência quando o governo americano garantiu abastecer
o Brasil com urânio enriquecido em sua gigantesca fábrica de Oak Ridge,
Tennessee. Depois de 1973 os brasileiros pressionaram a Westinghouse a firmar um
contrato que lhes fornecesse o ciclo completo de combustível. Em vez disso, a
empresa, seguindo as diretrizes do governo americano, ofereceu mais reatores,
todos dependentes de fornecimento de combustível enriquecido nos Estados Unidos.

Dois eventos em 1974 puseram fim à disposição do governo brasileiro de
aceitar aquele relacionamento. O primeiro foi a explosão pela índia de um
dispositivo nuclear. A tecnologia necessária foi fornecida pelo Canadá e o país
se tornou o primeiro do Terceiro Mundo a produzir a bomba. O sucesso da índia
estimulou os militares brasileiros e argentinos a exigirem progresso mais
rápido na aquisição de sua própria capacidade nuclear (com a implicação de que
seria com o ciclo completo de combustível).

O segundo evento em 1974 foi o anúncio da Comissão de Energia Atómica dos
Estados Unidos de que em virtude de sua limitada capacidade de processamento não
podia mais garantir ao Brasil (e a outras nações) o atendimento de suas
necessidades totais de urânio enriquecido.104 A notícia foi divulgada em meio às
negociações de um gigantesco contrato com a Westinghouse, que se comprometia a
fornecer ao Brasil até 12 reatores, pelo valor de US$10 bilhões. Quando os
Estados Unidos retiraram a garantia do combustível as negociações desmoronaram.
A aparente facilidade com que os Estados Unidos revogaram seu compromisso
parecia confirmar as sinistras previsões dos nacionalistas brasileiros (tanto da
direita quanto da esquerda) que há muito criticavam a política do governo de
indefinida dependência de uma fonte estrangeira para a obtenção do elemento
crucial no ciclo de combustível nuclear;. Esta crítica era muito conveniente aos
objetivos do governo Geisel, que procurava seguir uma política nacionalista.
Ajudava também os negociadores brasileiros que já
________
104. Segundo um ex-embaixador dos Estados Unidos no Brasil neste período, a
previsão de que os Estados Unidos não poderiam garantir futuros suprimentos de
urânio enriquecido foi baseada em um relatório errôneo. Não obstante, mereceu
crédito imediatamente no Brasil. Entrevista com o embaixador Robert Sayre,
Washington, D.C., 16 de maio de 1983.

Geisel: rumo à Abertura 379
haviam iniciado os entendimentos para a compra de reatores da Alemanha
Ocidental.

A tecnologia nuclear da Alemanha Ocidental era avançada, além do que o país
procurava avidamente clientes para o seu produto, o que o tornou a fonte mais
lógica para onde o Brasil se voltaria. Acresce que o governo Geisel considerava
a Alemanha um dos pólos, juntamente com o Irã, das novas relações geopolíticas
do Brasil. O contrato com o consórcio germânico foi assinado em junho de 1975.
Previa a compra de dois a oito reatores gigantes, estes últimos ao custo total
de US$10 bilhões.

Se o Brasil tivesse comprado todos os oito reatores teria promovido uma
transferência recorde de tecnologia nuclear para um país em desenvolvimento.
Teria dado também enorme impulso à indústria alemã de geradores nucleares que
estava sem encomendas. (Os países industriais construíam seus próprios
reatores.) Os alemães adoraram ter derrotado a Westinghouse numa nação tão
importante do Terceiro Mundo, mas do ponto de vista político havia outro aspecto
ainda mais importante. A tecnologia a ser fornecida incluía a capacidade de
produzir armas nucleares (seja pelo enriquecimento de urânio ou pela separação
do plutônio durante o reprocessamento do combustível usado).

Enquanto a negociação do contrato estava em andamento, o governo americano
decidiu que a Alemanha Ocidental não estava fazendo esforço suficiente para
impedir que os brasileiros adquirissem a tecnologia de fabricação de armas
nucleares. A recusa do Brasil em assinar o Tratado de Não Proliferação Nuclear
de 1970 apenas concorria para aumentar as preocupações americanas. Washington
primeiro pressionou Bonn para não assinar o contrato, mas quando este expediente
falhou tratou de persuadir a Alemanha Ocidental a fazer um acordo com
salvaguardas contra o uso da tecnologia para fins não pacíficos. As duas nações
concordaram, embora o processo de implementação não fosse tão rigoroso,
especialmente depois que o Brasil tivesse adquirido a tecnologia do ciclo
completo de combustível.105
_______
105. Sobre as preocupações dos Estados Unidos com o iminente contrato, ver o New
York Times, 4, 10 e 15 de junho de 1975. Preocupações sobre a conclusão do
acordo foram noticiadas no Wall Street Journal, 2 de julho de 1975.

380 Brasil: de Castelo a Tancredo

Tacitamente os brasileiros afirmaram o direito de se engajar na proliferação
nuclear contra a qual os Estados Unidos se insurgiram desde que seu próprio
monopólio foi primeiramente ameaçado. O governo americano proibira às empresas
do país a oferta ao Brasil de tecnologia nuclear adaptável para uso militar. Mas
agora, graças ao acordo com a Alemanha Ocidental, o Brasil podia aspirar a
juntar-se ao clube exclusivo de nações (a Argentina estava na frente) que
possuíam o ciclo completo de combustível nuclear.

Os negociadores brasileiros do contrato trabalharam quase todo o tempo em
segredo. Os militares e o Ministério das Relações Exteriores tomaram a frente,
ignorando experimentados técnicos brasileiros em energia (Petrobrás e
Eletrobrás) e os cientistas nucleares do país. Foi uma operação típica do estilo
autocrático de Geisel. Quando finalmente o acordo lhe foi submetido, o Congresso
o aprovou por unanimidade. Durante as negociações Geisel manteve sempre uma
atitude extremamente discreta. Os volumes oficiais com os seus discursos
relativos a 1975 e 1976, por exemplo, nada incluem sobre o assunto. Finalmente,
em março de 1977, o Brasil publicou um Livro Branco explicando o programa
nuclear. Continha uma introdução de dois parágrafos em que Geisel enfatizava que
o programa nuclear do Brasil "conta com o apoio unânime da vontade nacional e se
baseia no nosso esforço próprio, conjugado com a cooperação externa, e na
aceitação de salvaguardas, que garantem sua estrita aplicação pacífica".106

No cenário doméstico, Geisel não precisava pedir desculpas pelo acordo
nuclear com a Alemanha Ocidental. A esmagadora maioria da elite política estava
feliz com o esforço da imagem do Brasil como nação soberana. Afinal, o Brasil
perseguira com êxito uma política que os Estados Unidos combateram veementemente
(a pressão dos Estados Unidos concentrou-se sobre a Alemanha Ocidental como
fonte da tecnologia). O governo Geisel conseguira afirmar o direito do Brasil de
decidir por si mesmo até onde tentaria ir no desenvolvimento de sua capacidade
nuclear, embora tivesse aceitado salvaguardas no acordo e ficasse dependente da
Alemanha Ocidental. De grande importância para o governo, muitos oficiais da
linha dura ficaram satisfeitos com a atitude de um
________
106. Ernesto Geisel, Discursos, vol. 4 (1977) (Brasília, Assessoria de Imprensa
da Presidência da República, 1978), p. 39.

381
governo que, sob outros aspectos, eles detestavam. Enquanto isso, vozes
importantes da oposição, como O Estado de S. Paulo, apoiaram o acordo. Não podia
haver dúvida: o governo descobrira uma questão que tocava profundamente no
sentimento nacionalista da elite.

Em outro nível, o governo brasileiro adotou uma medida para aumentar a
cooperação brasileiro-americana. O ministro das Relações Exteriores Azeredo da
Silveira, tirando proveito de sua amizade pessoal com o secretário de Estado
Kissinger, formulou um memorando conjunto (assinado em 21 de fevereiro de 1976
durante visita de Kissinger a Brasília) que dispunha sobre reuniões bilaterais
regulares de consulta sobre um amplo leque de questões.107 A idéia era criar um
mecanismo para assegurar que problemas vitais (e não tão vitais) fossem
discutidos rotineiramente, antes que se avolumassem os mal-entendidos. Assinando
esse memorando, os Estados Unidos estavam reconhecendo a emergência do Brasil
como o poder econômico preeminente na América Latina. O Brasil, por sua vez,
estava reafirmando "a solidariedade do Mundo Ocidental", como dizia o texto.
O memorando que Silveira há muito vinha instando os Estados Unidos a assinar
proporcionava um meio conveniente para o governo tranqüilizar os sei.:, críticos
militares profundamente anticomunistas (e alguns civis como os representados por
O Estado de S. Paulo) que ficariam felizes com uma aparente retomada da aliança
com os Estados Unidos. Para eles, a nação americana era uma espécie de estrela
guia da Revolução de 1964, especialmente em momentos de preocupação geopolítica
como os provocados pela radicalização de Portugal, hoje em mãos moderadas, e em
Angola, onde o Brasil foi a primeira nação importante a reconhecer o MPLA pró-
Moscou.108

107. Esta análise é baseada em parte em entrevistas com funcionários do
Departamento de Estado dos Estados Unidos e com funcionários do Ministério das
Relações Exteriores do Brasil em julho de 1976.
108. Minha análise do memorando de 21 de fevereiro concentrou-se em seus
vínculos com a política interna brasileira, nosso principal interesse aqui. Há
muito a ser dito sobre a importância do memorando para as relações econômicas do
Brasil com os Estados Unidos, a Europa (o Brasil já possuía semelhantes
instrumentos de consulta com a França, o Reino Unido e a Alemanha Ocidental) e o
Terceiro Mundo

Brasil: de Castelo a Tancredo

Em 1976, tendo Gerald Ford perdido a eleição presidencial, assumiu a Casa
Branca o presidente Jimmy Cárter, que anunciou reformas na política externa
americana. O novo presidente deu alta prioridade às medidas para impedir a
proliferação nuclear, precisamente a questão que determinara as pressões
exercidas pelos Estados Unidos sobre os alemães ocidentais e indiretamente sobre
os brasileiros na época em que o acordo entre os dois países foi assinado, junho
de 1975.109

Cárter, que fora outrora oficial de Marinha especializado em engenharia
nuclear, imprimiu grande dimensão ao desafio pelo Brasil da posição dos Estados
Unidos sobre proliferação nuclear. No início de 1977, como uma de suas primeiras
iniciativas, montou uma ofensiva contra a Alemanha Ocidental e o Brasil,
exigindo o cancelamento do acordo nuclear já com dois anos de vigência. O
secretário de Estado adjunto Warren Christopher veio ao Brasil como portador da
exigência americana, mas o governo se manteve inflexível. A curto prazo, pelo
menos, a pressão de Cárter apenas endureceu a determinação do governo Geisel.110
Nem os Estados Unidos continuaram a pressionar a Alemanha Ocidental. Afinal, o
país estava sendo repelido pelas duas nações que tinham sido os mais confiáveis
aliados da América após 1945 em suas respectivas regiões. Em fins de 1977 Cárter
já havia desistido da tática de confrontação. Sua ardorosa campanha havia
simplesmente tornado Bonn e Brasília mais determinados. Ambas as capitais
encorajaram a especulação de que o zelo de Cárter tinha
_____
109. As relações Brasil-Estâdos Unidos durante o governo Cárter ocupam um
capítulo em Robert Wesson, The United States and Brazil: Llmits of Influence
(New York, Praeger, 1981). O contexto mais amplo da política americana de
direitos humanos para o Brasil é apresentado em Lars Schoultz, Human Rights and
United States Policy Toward Latin America (Princeton, Princeton University
Press, 1981). As questões económicas são postas em destaque em dois artigos de
Albert Fishlow: "Flying down to Rio: U.S.- Brazil Relations", Foreign Affairs,
57:2 (Inverno de 1978/79), pp. 387-405, e "The United States and Brazil: The
Case of the Missing Relationship", Foreign Affairs, LXI, N.° 4 (Primavera de
1982), pp. 904-23.
110. Para conhecer as idéias de um funcionário do governo Cárter que desempenhou
papel básico tentando fazer com que os brasileiros reconsiderassem o acordo
nuclear com a Alemanha Ocidental, ver Joseph S. Nye Jr., "The Diplomacy of
Nuclear Non-Proliferation", em Alan K. Henrikson, ed., Negotiating World Order:
The Artisanship and Architecture of Global Diplomacy (Wilmington, Delaware,
Scholarly Resources, Inc., 1986), pp. 79-94.

Geisel: rumo à Abertura 385
mais que ver com o negócio que a Westinghouse perdera do que com o desejo
americano de salvar o mundo da proliferação nuclear.

A controvérsia em torno da política nuclear produziu alguns benefícios
políticos para o governo Geisel. Um deles, por exemplo, foi o apoio dos
militares que há muito se preocupavam com a liderança nuclear da Argentina.
Alguns deles queriam que o Brasil desenvolvesse as suas próprias armas nucleares
e por isso se revoltavam contra a pressão americana, inclusive no que se referia
à política brasileira sobre direitos humanos.111 Não menos importante, o acordo
nuclear ofereceu oportunidade ao governo para vencer a esquerda brasileira, uma
voz que ainda se ouvia, porém abafada. Finalmente, o imbróglio nuclear deu a
Geisel a oportunidade de praticar o nacionalismo de uma maneira que muitos civis
da classe média podiam compreender.

Cárter, que assumiu o governo em janeiro de 1977, inadvertidamente ajudou a
consolidar o apoio militar a Geisel por causa de outra questão: os direitos
humanos. É verdade que a iniciativa fora do Congresso antes da posse de Cárter.
Na lei de ajuda externa de 1976 exigia-se que o Departamento de Estado (em uma
cláusula conhecida como emenda Harkin) expedisse um relatório anual sobre a
situação dos direitos humanos nos países que recebessem assistência militar
americana. O Brasil recebia essa ajuda e o primeiro relatório preparado pelo
Departamento de Estado apareceu no início de 1977, embora sua elaboração tivesse
precedido a mudança de governo. Criticava fortemente o Brasil com base em
documentos como os da Anistia Internacional.112
______
111. O colunista Jack Anderson, especialista em expor ao público segredos de
pessoas e governos, noticiou em 1979 que o Brasil estava prestes a testar um
dispositivo nuclear "como meio de apaziguar os militares linhas-duas".
"Washington Merry-Go-Round" [Boston], Times Herald Record, 14 de novembro de
1979. Não houve tal teste.
112. A história da legislação americana de direitos humanos é bem contada em
Schoultz, Human Rights and United States Policy Toward Latin America, pp. 194-
98. A Anistia Internacional (AI) continuou a monitorar os maus-tratos aos
presos políticos ("prisioneiros de consciência" é o termo da AI) desde o seu
Report on Allegations of Torture in Brazil de 1972 relacionando mais de mil
vítimas. Em seus relatórios de 1972-73, 1973-74, 1974-75 e 1975-76, a AI
documentou não somente as tendências dos procedimentos judiciais mas também
casos individuais de violação. Para uma análise posterior do papel dos Estados
Unidos, ver a entrevista com o ex-presidente Cárter em Veja, 3 de outubro de
1984.

384 Brasil: de Castelo a Tancredo
O governo Geisel reagiu com calculada indignação. O ministro das Relações
Exteriores Azeredo da Silveira, conhecido pelo seu antagonismo pessoal aos
Estados Unidos, denunciou a intolerável interferência em assuntos internos do
Brasil. Até alguns líderes do MDB cerraram fileiras publicamente ao lado do
governo. Usando a ajuda bilateral para promover a causa dos direitos humanos, o
Congresso americano excitou o nacionalismo brasileiro. O presidente Geisel
perfilhou inteiramente a reação nacionalista, até porque temia que a pressão
externa prejudicasse seu plano de uma liberalização gradual e altamente
controlada.113 Em questão de dias o governo brasileiro anunciou o cancelamento
de um acordo militar com os Estados Unidos assinado em 1952. Em setembro mais
quatro acordos militares foram cancelados, inclusive um pelo qual os Estados
Unidos participavam do mapeamento aéreo do território brasileiro. O embaixador
americano John Crimmins notou que as ações do governo brasileiro haviam
desmontado "toda a estrutura formal da cooperação militar entre os dois
países".114 Rejeitando toda a ajuda militar, o governo Geisel eliminou
temporariamente qualquer pretexto para relatórios do Departamento de Estado
sobre direitos humanos no Brasil.

O presidente Cárter programou uma visita ao Brasil para o fim de novembro na
esperança de poder reparar os danos causados às relações entre os dois países.
No princípio de novembro ele cancelou a visita, em parte porque Brasília reagiu
com indiferença. A viagem foi reprogramada para o fim de março de 1978.
Em lugar dele, no entanto, quem fez a visita oficial foi a Primeira Dama norte-
americana, em junho de 1977. No Brasil Rosalyn Cárter foi imediatamente
envolvida na controvérsia sobre os direitos humanos, quando um estudante lhe
entregou uma carta denunciando o governo. Durante uma escala em Recife a Sra.
Cárter teve um encontro com dois missionários americanos que lhe fizeram um
relato arrepiante sobre os maus-tratos que sofreram na polícia dias antes, tendo
ela prometido tratar do assunto com seu marido. O efeito da viagem da Sra.
Cárter foi dramatizar novamente a
_______
113. Stumpf e Pereira Filho, A segunda guerra, p. 23; Kucinski, Abertura, p. 67;
Stepan, Os militares, p. 53.
114. Entrevista com o embaixador John Crimmins, Washington, D.C.,16 de maio de
1983.

Geisel: rumo à Abertura 385
tentativa dos Estados Unidos de influenciar as políticas do governo brasileiro.
Os militares da linha dura usaram a reação à crítica estrangeira para explorar
os sentimentos nacionalistas dos seus colegas mais moderados. Embora as
críticas do governo Cárter e do Congresso americano às violações dos direitos
humanos tivessem suscitado ressentimento no Brasil - dentro e fora do governo
aqueles que trabalhavam pela redemocratização do país acharam que as pressões
americanas ajudaram muito. Diplomatas americanos informavam com freqüência sobre
conversas com brasileiros que expressavam gratidão pela posição dos Estados
Unidos. Não obstante, ninguém pensava que o efeito fosse mais do que marginal.

Geisel subjuga a linha dura

Enquanto isso, dentro do governo a luta intensificara-se entre os linhas-
duras e os moderados (embora as posições tivessem assumido complexidade maior do
que essa dicotomia sugere). O ministro do Exército, general Sylvio Frota, era
agora o líder da linha dura, e para isso tinha certamente credenciais. Em 1955,
ainda oficial inferior, juntou-se aos seus colegas mais graduados em oposição ao
"golpe preventivo" do ministro da Guerra Henrique Lott garantindo a posse do
presidente eleito Juscelino Kubitschek. Tanto Lott quando Kubitschek eram.,
anátemas para a linha dura. Fora também ativo conspirador contra o presidente
João Goulart, e em dezembro de 1968, foi um dos principais defensores do aumento
da repressão. Em 1972 assumiu o comando do Primeiro Exército, onde,
curiosamente, foi um infatigável adversário da tortura, atitude pouco comum para
um comandante militar naquele período. Em maio de 1974 foi nomeado ministro do
Exército em substituição à escolha original de Geisel, o general Dale Coutinho,
famoso linha-dura que morreu dois meses após assumir o posto.

Frota acreditava que o Brasil corria perigo iminente de subversão comunista.
Considerava a liberalização uma artimanha para facilitar a vida dos subversivos,
muitos dos quais, segundo o ministro, já haviam infiltrado o MDB, a Igreja e
todas as demais instituições básicas. Dessas idéias nunca fez segredo, já que as
enunciava publicamente sempre que se apresentava a ocasião. Muito importante,
Frota considerava-se candidato à sucessão presidencial e ma-

386 Brasil: de Castelo a Tancredo
nipulava o serviço de inteligência do Exército, o CIEX, para contatos
confidenciais com seus subordinados em busca do indispensável apoio militar.
Acontece que, embora conhecesse bem aquele órgão, pois ajudara a criá-lo em
1967, não controlava o SNI, o órgão máximo de inteligência do governo, que era
chefiado pelo general João Batista Figueiredo que Geisel escolheu para seu
sucessor. Graças ao SNI, o Planalto era informado de todas as ações de Frota.
O comportamento do ministro do Exército irritou o presidente sob vários
aspectos. Primeiro, Geisel deixara claro que não desejava que se iniciasse a
discussão da sucessão presidencial antes de janeiro de 1978,115 No entanto, a
campanha de Frota estava em pleno andamento, com uma ala de parlamentares
rufando os tambores no Congresso em favor do seu nome. Em segundo lugar, o
ministro era adversário declarado da liberalização contra a qual dirigia fortes
ataques. Em aberto desafio ao expresso desejo presidencial, em maio de 1977
começou a cortejar os membros do Congresso procurando .atraí-los para a sua
candidatura. Em julho criticou publicamente a estratégia do governo Geisel
especialmente em relação aos subversivos. Em setembro o general Jayme Portella,
ex-chefe da Casa Militar de Costa e Silva, juntou-se às forças de Frota para
ajudar a coordenar o apoio militar. A esta altura informava-se que pelo menos 90
parlamentares estavam comprometidos com a candidatura do ministro do Exército.
Os jornais especulavam até quando Geisel toleraria aquele espetacular desafio à
sua autoridade.

Não teriam que esperar muito. Em 10 de outubro o presidente comunicou aos
seus auxiliares mais íntimos que iria demitir Frota no dia 12, um feriado. Com o
Congresso e as repartições públicas fechados, não seria fácil para o ministro
reunir suas forças. Geisel também alertou os comandantes militares regionais,
dizendo-lhes da iminente demissão de Frota e de sua substituição pelo general
Fernando Belfort Bethlem. Quando o presidente aplicou em pessoa
_________
115. O presidente não pareceu observar a sua própria recomendação. Em meados de
1977, Humberto Barreto, assessor de imprensa e auxiliar direto de Geisel,
anunciou a candidatura presidencial do general João Batista Figueiredo, então
chefe do SNI. Geisel sem dúvida foi forçado a acelerar seu cronograma devido aos
apoios que Frota vinha rapidamente recebendo.

Geisel: rumo à Abertura 387
o coup de grace em seu ministro, este de volta ao Palácio do Exército
providenciou o lançamento de veemente manifesto, acusando o governo de
"complacência criminosa" com a "infiltração comunista" nos altos escalões do
poder. O documento atacava o reconhecimento pelo Brasil em 1974 da República
Popular da China e o reconhecimento em 1975 do governo marxista de Angola. Ao
ordenar o envio do manifesto a todos os quartéis do país, o ministro
evidentemente não sabia que o Planalto já havia comunicado a sua demissão a
todos os comandantes de Exército. O manifesto jamais foi transmitido.116

Frota tentou outro estratagema de última hora. Convocou uma reunião em
Brasília do Alto Comando (seus membros principais eram os comandantes dos quatro
Exércitos regionais) perante o qual discutiria a sua situação. Mas Geisel
novamente fora mais rápido. Todos os membros do Alto Comando também tinham
recebido ordens para irem a Brasília, porém diretamente para o Planalto. Quando
cada general chegava ao aeroporto, encontrava à sua espera dois carros, um
enviado por Frota, outro por Geisel. Todos preferiam o carro presidencial,
sabendo muito bem que o ministro já havia sido demitido. No Planalto, o general
Hugo Abreu, chefe do gabinete militar, convocou os jornalistas para anunciar a
demissão de Frota e sua substituição por Bethlem. A declaração negava que a
mudança tivesse conexão corn a sucessão presidencial, mas acrescentava, em
aparente contradição, que qualquer discussão do assunto antes de janeiro de 1978
seria "prejudicial ao país".117
_______
116. O manifesto de Frota foi publicado pela imprensa em 13 de outubro de 1977.
Ele advertia seus camaradas que se não seguissem seus conselhos sobre a
"preservação de um Brasil democrático" então, "quando as pesadas cadeias do
totalitarismo marxista fizerem correr um suor de amargura pelo rosto pálido de
suas viúvas, não quero que em seus gritos de desespero elas acusem o general
Frota de não lhes ter apontado a ameaça iminente".
117. A declaração é transcrita em Hugo Abreu, O outro lado do poder (Rio de
Janeiro, Nova Fronteira, 1979), p. 144. As divisões entre os militares por causa
das políticas do governo podiam vir à tona em virtude de um evento dramático,
mas logo a disputa era resolvida em questão de dias, não de semanas. As medidas
tomadas nas horas iniciais foram muitas vezes as mais decisivas, como o fato de
Geisel impedir Frota de se comunicar com qualquer comandante por já haver
nomeado o general Bethlem como seu sucessor.

388 Brasil: de Castelo a Tancredo
Frota previra sem dúvida sua demissão e pensou que ainda podia contar com o
apoio da linha dura e assim forçar o presidente a engolir uma candidatura
anteriormente inaceitável. Aparentemente achou que podia forçar o presidente a
uma reversão, como aconteceu com Castelo Branco em outubro de 1965, ou com Costa
e Silva em dezembro de 1968. Mas os tempos haviam mudado. Não acontecera
qualquer evento dramático que revoltasse a linha dura, como as eleições para
governadores em 1965 ou a votação no Congresso contra a suspensão das imunidades
parlamentares de Márcio Moreira Alves em dezembro de 1968. Os linhas-duras, por
mais simpáticos que fossem à ardorosa retórica anticomunista de Frota,
resolveram não desafiar Geisel. Os três anos de liberalização sem dúvida
causaram grandes desfalques à linha dura. Ela encolheu em número e defrontava-se
com um sentimento público abertamente hostil aos seus métodos. A sociedade civil
tornara-se mais difícil de intimidar. A posição de Frota teve o apoio de figuras
conhecidas da direita militar. Todas, no entanto, se achavam na reserva - como o
marechal Odílio Dênis, o brigadeiro Márcio de Sousa Melo e os almirantes Augusto
Rademaker e Sílvio Heck -, velhos críticos anticastelistas e com reduzida
influência quer nos círculos militares quer nos civis. Os oficiais da ativa
sabiam que se optassem por uma causa perdida poderiam considerar suas carreiras
prejudicadas ou encerradas. A determinação de Geisel deixara isto bem claro.

Com suas atitudes desassombradas, Geisel demonstrara ter acumulado mais poder
pessoal do que qualquer dos seus antecessores, sendo prova disso a decisão sem
precedente de demitir o ministro do Exército sem consultar o Alto Comando. Os
presidentes militares anteriores experimentaram todos uma perda de poder dentro
do Exército, quando assumiram o governo. Geisel não apenas reteve esse poder,
mas o aumentou com as demissões e/ou renúncias do comandante do Segundo
Exército, general Ednardo, do ministro Frota e do general Hugo Abreu. O
presidente estava usando agora o seu poder aumentado dentro do Exército para
promover a liberalização.118
__________
118. Estas lutas dentro do governo Geisel são tratadas com clareza em três
relatos jornalísticos fartamente informativos: André Gustavo Stumpf e Merval
Pereira Filho, A segunda guerra: sucessão de Geisel (São Paulo, Brasiliense,
1979); Walder de Góes, O Brasil do general Geisel (Rio de Janeiro,

Geisel: rumo à Abertura 389

A questão política básica, como sempre, era a sucessão presidencial. Quem
seria o candidato oficial à eleição de 1978? Seria alguém comprometido a
executar a estratégia política de Geisel e Golbery?119 Desde a sua posse Geisel
dissera aos seus assessores mais íntimos que queria como seu sucessor o general
João Batista Figueiredo, então chefe do SNI. No fim de dezembro de 1977 o
presidente tornou pública sua escolha (o que equivalia à escolha pelo partido).
Para vice-presidente foi escolhido um civil: Aureliano Chaves, engenheiro
elétrico, especialista em energia e ex-governador de Minas Gerais.

Embora Figueiredo parecesse o ganhador certo, havia um embaraçoso problema
relacionado com sua patente militar. É que ele só possuía três estrelas,
enquanto todos os presidentes anteriores foram generais de quatro estrelas. Ele
devia ser promovido no devido tempo, mas por enquanto quatro generais estavam
colocados à sua frente. Prevaleceu a vontade de Geisel; seu novo ministro do
Exército, Bethlem, um aparente moderado, fez a encenação necessária para colocar
nas platinas de Figueiredo a quarta estrela.120
________
Nova Fronteira, 1978); e Getúlio Bittencourt, A quinta estrela: como se tenta
fazer um presidente no Brasil (São Paulo, Editora Ciências Humanas, 1978). Um
jornalista bem informado descreveu Geisel como "mantendo seus colegas fardados a
distância e explorando magistralmente suas fraquezas individuais..." Kucinski,
Abertura, p. 42. Em dezembro de 1977 Geisel dirigindo-se a líderes da ARENA
referiu-se a um "saudável clima" [político] que fora conquistado "apesar de
obstáculos de toda a espécie - desde a rigidez de revolucionários sinceros mas
radicais até a irresponsabilidade, se não a má-fé, de adversários apaixonados
sob a forma de subversivos obstinados ou desordeiros impenitentes..." Geisel,
Discursos, vol. 4, p. 345. Nesta descrição Geisel foi mais explícito sobre os
militares da linha dura do que poderia ter sido nos anos iniciais de seu
governo.
119. Especular sobre a identidade do escolhido para a sucessão presidencial
tornara-se um esporte favorito. Um destacado jornalista e comentarista político
faz uma deliciosa paródia de tudo isso em Alberto Dines, E por que não eu? (Rio
de Janeiro, CODECRI, 1979). O autor acorda um dia e decide tornar-se presidente,
empreendendo uma chistosa e fantástica viagem através da paisagem cultural e
política do governo Geisel.
120. Vale a pena lembrar que em 1969 Albuquerque Lima fora vetado Pelos
militares de graduação mais alta a pretexto de que só tinha três estrelas. Na
verdade, o veto tinha que ver com as idéias, não com a patente de Albuquerque.
No caso de Figueiredo, ele teve como mentor um presidente no pleno exercício de
suas funções e que possuía um poder sem precedentes dentro do Exército.

390 Brasil: de Castelo a Tancredo
Em abril, durante sua convenção nacional, a ARENA apoiou os nomes de Figueiredo
e Aureliano de uma forma que não deixava dúvida sobre a escassa margem de
iniciativa que esse partido "governamental" se podia permitir.121
Embora Geisel controlasse com pulso firme a sucessão, o não-conformismo
continuava a grassar entre os militares. O general Hugo Abreu, chefe do gabinete
militar da presidência e comandante dos pára-quedistas que liquidaram as
guerrilhas na Amazônia, renunciou em protesto pela escolha de Figueiredo.122 Foi
substituído pelo general Moraes Rego, conhecido pela sua lealdade ao chefe do
governo. Apesar da liderança indiscutível que exercia sobre os seus camaradas,
pelo menos no episódio de sua sucessão. Geisel ainda enfrentava problemas com a
linha dura, embora relatórios da Anistia Internacional informassem que o número
de suspeitos de subversão tivesse declinado a partir do início de 1976.123
Do outro lado do espectro político, as vozes da sociedade civil, especialmente a
Igreja e a OAB, continuavam a exigir rápida transição para o estado de direito,
ajudados por uma atenuação bastante sensível da censura. Em agosto de 1977, por
ocasião do sesquicentenário do ensino do direito no Brasil, um ilustre professor
da 121. Houve uma chapa dissidente na ARENA formada pelo senador Magalhães Pinto
(para presidente), veterano líder mineiro da UDN e um dos pais da Revolução de
1964, e Severo Gomes (para vice-presidente), que fora ministro da Indústria e do
Comércio do governo Geisel até renunciar em fevereiro de 1977. Vendo que suas
chances eram zero, Magalhães Pinto e Severo Gomes não apareceram na convenção,
afirmando que a escolha já havia sido ditada pelo presidente.
122. Abreu deu sua revoltada versão de como a candidatura de Figueiredo foi
"imposta" em Hugo Abreu, O outro lado do poder (Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1979) e na obra póstuma Tempo de crise (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980),
na qual incluiu recomendações para a reorientação das diretrizes políticas,
econômicas e sociais do Brasil.
123. Amnesty International Report: 1977 (London, Amnesty International
Publications, 1977), pp. 127-29. A fácil irritação do governo tornou-se evidente
em setembro de 1977 quando pressionou a Folha de S. Paulo a suspender a coluna
semanal de Alberto Dines ("Jornal dos Jornais") um retrospecto de matérias
divulgadas pela imprensa na semana anterior, e destacando com mordacidade as
publicações quê resistiram ao governo ou a outras pressões em suas reportagens e
comentários. Para uma típica coluna de Dines, ver "Frivolidade, viagens, dores
grandes e pequenas", Folha de S. Paulo, 13 de junho de 1976.

Geisel: rumo à Abertura 391
Faculdade de Direito de São Paulo divulgou uma "Carta aos Brasileiros" pedindo
imediata redemocratização e o retorno ao império da lei. Em seguida uma multidão
de 3.000 manifestantes marchou através das ruas centrais da cidade de São Paulo,
sem interferência da polícia.124 Em maio de 1978 a convenção nacional da
Associação dos Advogados em Curitiba foi inteiramente dedicada à supremacia da
lei e suas implicações. A convenção terminou com uma "Declaração dos Advogados
Brasileiros" pedindo a volta do estado de direito e também a elaboração de uma
nova Constituição, a concessão de anistia e a completa revisão da legislação
trabalhista em vigor. Sob a presidência de Raimundo Faoro, a OAB tornara-se
altamente agressiva na disseminação de sua mensagem, revivendo seu ativismo do
início da década de 70. Mesmo assim, os líderes pró-liberalização de dentro do
governo pediam mais pressão pública para ficar bem claro por que as mudanças
"tinham" que ser realizadas. Foi o caso, por exemplo, do ministro da Justiça
Petrônio Portella, que pediu a Faoro que intensificasse a publicidade em favor
da anistia. Faoro concordou, a OAB redobrou seus esforços e as reformas foram
feitas para facilitar mais adiante a concessão da importante medida.125
Enquanto isso, uma nova voz da sociedade civil fazia-se ouvir: a comunidade
empresarial. É verdade que anteriormente ela se manifestara criticando as
políticas de crédito, de controle das importações e de controle dos preços. Mas
tratava-se de críticas indivi-
124. O professor de direito foi Goffredo da Silva Telles, que depois disse ter
sofrido uma inundação de mensagens de apoio de todos os pontos do país,
inclusive de "duas áreas militares, que a discrição me impede de identificar".
Isto Ê, 17 de agosto de 1977. Para uma irônica apreciação de um estrangeiro
sobre a contínua hostilidade aos intelectuais e pesquisadores durante o governo
Geisel, especialmente na Universidade de Brasília, ver Jeremy J. Stone,
"Brazilian Scientists and Students Resist Repression", FAS Public Interest
Report, XXX, N." 9 (novembro de 1977).
125. A "Declaração" e o discurso de Faoro, assim como grande quantidade, de
outros documentos, estão no Conselho Federal da Ordem dos Advogados do
Brasil, Anais da VII Conferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil,
Curitiba, 7 a 12 de maio de 1978 (Curitiba, Conselho Federal da OAB, 1978).
Entrevista com Raymundo Faoro, Rio de Janeiro, 2 de julho de 1983. Para uma
simpática análise do pensamento de Faoro e do seu papel na abertura, ver Mark J.
Osiel, "The Dilemma of the Latin American Liberal: The Case of Raymundo Faoro",
Luso-Brazilian Review, XXIII, N.° l (Verão de 1986), pp. 37-59.

392 Brasil: de Castelo a Tancredo
duais, isoladas de empresários mais desassombrados que, no entanto, não falavam
em nome de sua classe. Agora, entretanto, os empresários podiam falar com mais
desembaraço esperançosos de que suas reivindicações fossem vistas com simpatia
pelo governo Geisel, pois tinham alguém no Ministério que podia falar por eles:
Severo Gomes, ministro da Indústria e Comércio e anteriormente, no governo
Castelo Branco, ministro da Agricultura.

Severo conhecia bem a atividade empresarial, pois havia trabalhado durante
muito tempo nas fábricas de tecido de sua família. Era conhecido pelo seu
nacionalismo em política econômica, por suas atitudes em prol do fortalecimento
da classe produtora doméstica e pela sua defesa da expansão do mercado interno.
Em 1976 foi uma das vozes mais destacadas pregando a necessidade da
liberalização política, que, em sua opinião, era essencial para que o setor
econômico privado pudesse prosperar. Severo Gomes refletia e também estimulava o
debate no seio da comunidade empresarial, em especial o setor orientado
principalmente para o mercado interno. Os homens de negócios eram por natureza
cautelosos, por causa do temor que muitos tinham de uma ameaça da esquerda,
tanto assim que apoiaram entusiasticamente o golpe de 1964. Alguns ajudaram
mesmo a financiar o Esquadrão da Morte de São Paulo até que a extinção das
guerrilhas justificasse a suspensão de sua colaboração.126 A cautela que
assinalava sua conduta provinha também do fato de que eles dependiam do governo
praticamente para tudo - crédito, licenças de importação, controles de preços,
fixação de salários, avaliação de impostos, compras governamentais, para citar
apenas alguns itens. Embora a economia prosperasse (segundo um estudo de 1976,
os executivos brasileiros tinham os mais altos salários do mundo), a principal
queixa do setor empresarial era a enorme presença do Estado na economia.127
Agora, contudo, com a censura atenuada e a atmosfera menos carregada, como o
indicava a atitude da Igreja, da OAB e da imprensa, muitos homens de empresa
passaram também a emitir suas opiniões. Em novembro de 1977 o Quarto Congresso
Nacional das Classes Produtoras pediu mais diálogo, de modo que os empresários
pudessem defender melhor seus interesses. Na sessão de encer-
126. Fon, Tortura, p. 67.
127. Negócios em EXAME, 16 de junho de 1976.

Geisel: rumo à Abertura 393
ramento o Congresso defendeu um novo programa de desenvolvimento econômico e
social que "só se pode realizar (.. .) com um grau desejável de liberdade
política, numa sociedade pluralista, numa sociedade múltipla, na medida em que
haja descentralização do poder econômico. . ."128

A referência à descentralização era uma forma de enfatizar a campanha dos
empresários para reduzir o papel do Estado na economia. Eles acusavam o governo
de ter invadido um número demasiado de setores à custa da iniciativa privada.
Seu lema por isso era "desestatizar!" O apoio que davam à democratização, que
surpreendeu muitos observadores, tinha várias origens. Uma era a crença geral na
conveniência do governo representativo e no império da lei. Outra, a esperança
de que sob tal regime o empresariado teria mais chance de influenciar a
política, especialmente contra os burocratas e os interesses das empresas
estrangeiras que o autoritarismo havia favorecido. Não eram poucos os homens de
negócios também contrariados com a expressão das firmas estrangeiras, os quais
afirmavam que o governo devia fazer mais para ajudá-los.

Na medida em que começaram a se fazer ouvir, os empresários tornaram-se mais
uma força no jogo político. O porta-voz do setor dentro do governo, Severo
Gomes, como notamos, afirmava que as políticas governamentais haviam
indevidamente favorecido os investidores estrangeiros. O Planalto não gostou da
forma ostensiva como o ministro da Indústria e Comércio estava falando, da
crescente ênfase que imprimia à necessidade de reformas políticas, ou dos
ataques semi-públicos à linha dura. Geisel pediu-lhe que
__________
128. Kucinski, Abertura, pp. 33-34; Maria Helena Moreira Alves, State and
Opposition, pp. 169-70. Para análise altamente informativa do papel de líderes
empresariais na abertura, ver Fernando Henrique Cardoso, "O papel dos
empresários no processo de transição: o caso brasileiro", Dados, XXVI, N.° l
(1983), pp. 9-27; e Eli Diniz, "Empresariado e transição política no Brasil:
problemas e perspectivas" (Rio de Janeiro, Instituto Universitário de Pesquisas
do Rio de Janeiro, série Estudos, N.° 22, fevereiro de 1984). Luiz Carlos
Bresser Pereira afirmou então e depois que a ruptura da aliança entre a
burguesia e o Estado (ou a tecnoburocracia) era a chave para a liberalização.
Ver o seu O colapso de uma aliança de classes (São Paulo, Brasiliense, 1978),
pp. 125-31. Embora o ataque dos empresários fosse muito importante, era apenas
um fator entre outros. O documento acima mencionado de Diniz é convincente a
este respeito.

394 Brasil: de Castelo a Tancredo
renunciasse no início de fevereiro de 1977.12? Mas não se podia ignorar o fato
de que um setor sócio-econômico da maior importância, outrora dócil ao governo,
passara a ter outras idéias. Em 1979 oito eminentes industriais paulistas
lançaram um manifesto pedindo rápido retorno à democracia. Entre os subscritores
figuravam Severo Gomes, José Mindlin, António Ermírio de Moraes e Laerte
Setúbal. Foi a declaração mais forte oriunda da comunidade empresarial, que
também sinalizava uma divisão em suas fileiras. A ala mais conservadora era
representada por Teobaldo de Nigris, de longa data presidente da Federação das
Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), que fora um virtual yesman dos
governos militares, porém inflexível no tratamento com os representantes dos
trabalhadores. Os liberais eram representados pelos oito signatários do
manifesto e por elementos mais jovens como o industrial Luiz Eulálio Bueno
Vidigal, que liderou uma campanha de dois anos para derrotar de Nigris em 1980
para a presidência da FIESP. Esta nova geração não hesitava em criticar o
governo, nem temia arriscar suas posições nas relações com a classe trabalhadora
e com os mentores da política econômica. Ainda que o empresariado não fosse uma
instituição presente em todo o país como a OAB ou a Igreja, suas críticas eram
um fator significativo para minar a legitimidade de um governo que professava
estar promovendo o capitalismo.130

A campanha eleitoral para a presidência acabou sendo mais interessante do que
a princípio prometia. O MDB decidiu concorrer com sua própria chapa, embora
soubesse que suas chances eram zero. Para presidente foi escolhido o general
Euler Sentes Monteiro, ex-diretor da SUDENE, cujos recursos procurou proteger
sem êxito durante o regime Mediei. A convenção do partido aprovou Euler,
juntamente com o senador pelo MDB gaúcho Paulo Brossard, eloqüente defensor do
retorno ao estado de direito, para a vice-presidência. A chapa foi apoiada pela
Folha de S. Paulo, agora um dos principais órgãos da oposição. Alguns
emedebistas achavam
_________
129. Logo depois de deixar o governo, Severo Gomes publicou Tempo de mudar
(Porto Alegre, Editora Globo, 1977), uma coleção de discursos e entrevistas em
que expõe claramente suas idéias nacionalistas. Ele continuou a expressar essas
idéias freqüentemente, como em longa entrevista em Movimento, 6 de
novembro de 1978.
130. Entrevista corn Luiz Eulálio Bueno Vidigal, 27 de junho de 1983.

Geisel: rumo à Abertura 395
que o partido não devia participar da eleição, alegando que isto daria
legitimidade a uma ordem ilegítima. Mas predominou a opinião da maioria de que a
eleição oferecia boa oportunidade para uma campanha "simbólica" que podia
instruir o público sobre questões fundamentais.

A campanha realizou-se animadamente, com discursos e comícios. Figueiredo
prometeu dar continuidade à democratização gradual. Euler defendia a convocação
de uma assembléia constituinte para redigir uma nova Constituição. O MDB
advogava também uma nova política econômica para corrigir as gritantes
desigualdades econômicas. Para surpresa de ninguém, o colégio eleitoral dominado
pela ARENA elegeu Figueiredo e Aureliano em 14 de outubro de 1978 por 355 a 266.

Um mês depois houve as eleições parlamentares.131 As mudanças na lei
eleitoral constantes do "pacote de abril" garantiram maioria à ARENA. Um terço
do Senado, ainda por uma disposição do referido pacote, foi eleito indiretamente
(o que assegurava ao governo número bastante de senadores para vetar qualquer
emenda constitucional - em setembro de 1978 a irreverência dos brasileiros
apelidou esses senadores de "biônicos") e uma revisão da fórmula de
representação na Câmara dos Deputados permitiu à ARENA o controle de ambas as
casas. Mas a tendência na eleição direta era óbvia: o total de votos diretos
para senador em todo o país em novembro de 1978 foi de 52 por cento para o MDB,
34 por cento para a ARENA e 14 por cento inutilizados ou em branco.

No fim de 1978 Geisel cumpriu sua promessa de desativar elementos básicos da
estrutura autoritária. Em outubro o Congresso aprovou um conjunto de reformas
conhecidas como Emenda Constitucional n.° 11. O MDB boicotou a votação final,
afirmando que as propostas não eram bastante abrangentes e, portanto, votá-las
seria legitimar uma impostura. A mudança mais importante foi a abolição do AI-5,
extinguindo conseqüentemente a autoridade pre-
_________
131. Dados e análises das eleições de 1978 podem ser encontrados em eleições
nacionais de 1978, 2 vols. (Brasília, Edições da Fundação Milton Campos, 1979);
em artigos de Luiz Navarro de Britto, Aloízio G. de Andrade Araújo e Carlos
Alberto Penna Rodrigues de Carvalho em Revista Brasileira de Estudos Políticos,
N." 51 (julho de 1980); e Bolívar Lamounier, ed., Voto de desconfiança: eleições
e mudanças políticas no Brasil, 1970-1979 (Petrópolis, Vozes, 1980).

396 Brasil: de Castelo a Tancredo
sidencial de declarar o Congresso em recesso, cassar parlamentares ou privar os
cidadãos dos seus direitos políticos. O habeas corpus foi restabelecido para as
pessoas detidas por motivos políticos, a censura prévia suspensa para o rádio e
a televisão e as penas de morte e prisão perpétua abolidas. A independência do
Judiciário foi restaurada pela garantia do exercício do cargo e pela
despolitização das decisões sobre os salários dos juizes e as atribuições dos
tribunais. Ao mesmo tempo, contudo, os artigos 155-158 da emenda davam novos e
vastos poderes ao Executivo para decretar "medidas de emergência", "estado de
sítio" ou "estado de emergência", medidas que podiam ser renovadas por pelo
menos 120 dias sem aprovação legislativa. Com esses novos poderes o governo
podia fazer o que quisesse, desde a suspensão das garantias legais, nomeação de
governadores, à censura. A Ordem dos Advogados e a oposição atacaram esses novos
dispositivos como uma ressurreição levemente disfarçada do AI-5.132

O governo propôs também uma versão revista da Lei de Segurança Nacional que
muitos especialistas em direito constitucional consideravam uma fonte de poder
arbitrário tão importante quanto o AI-5. O número de possíveis crimes contra a
segurança do Estado foi reduzido e as penas atenuadas. Mas a lei ainda dispunha
que os presos fossem mantidos incomunicáveis por oito dias (em vez de dez). Na
previsão de que ocorressem torturas nos dias imediatamente seguintes à prisão,
os defensores dos direitos humanos rejeitaram as revisões propostas na lei como
fraude. Com efeito, o Congresso nunca votou a revisão da lei que foi promulgada
(lei 6620/78) em dezembro por decurso de prazo, uma cláusula que considerava
aprovado qualquer projeto de lei do governo não votado pelo Legislativo em 40
dias.133

No final de 1978 Geisel tomou outra medida para promover a reconciliação
política. Revogou os decretos de banimento de mais de 120 exilados políticos, a
maior parte dos quais havia deixado o Brasil em 1969-70 em troca de diplomatas
estrangeiros seqües-
____
132. Maria Helena Moreira Alves, State and Opposition, pp. 167-68.
133. Para um cuidadoso estudo da nova lei, incluindo sistemáticas comparações
com a lei de segurança nacional anterior, ver Ana Valderez A. N. de Alencar,
Segurança nacional: lei 6620/78 - antecedentes, comparações, anotações,
histórico, 2. ed. (Brasília, Senado Federal, Subsecretária de Edições Técnicas,
1982).

GGeisel: rumo à Abertur 397
trados por guerrilheiros. Oito dos mais famosos exilados, no entanto, foram
excluídos. Entre eles Leonel Brizola, o ex-governador do Rio Grande do Sul que
pregara uma insurreição em 1964, e Luís Carlos Prestes, veterano secretário
geral do Partido Comunista Brasileiro. Ambos eram as betes noires da linha dura.

O "Novo sindicalismo" em ação

Não somente no campo político 1978 foi um ano movimentado. Enquanto Geisel
submetia a linha dura e agia por trás dos bastidores para indicar o nome do
general Figueiredo, subitamente veio-lhe à mente outro segmento importante da
sociedade civil: o trabalho organizado.

Na década que se seguiu às greves autônomas de 1968 em Contagem (Minas
Gerais) e Osasco (São Paulo) os trabalhadores foram desmobilizados. O máximo que
podiam conseguir eram movimentos reivindicatórios durante os quais diminuíam o
ritmo de trabalho, o que não representava desafio direto às forças de
segurança.134 A presença repressiva do regime, através do Ministério do
Trabalho, da polícia e dos militares, pôs fim a qualquer tentativa de
reconstruir o movimento trabalhista segundo o ambicioso esquema imaginado no fim
dos anos 50 e início dos 60, com uma CGT etc. A liderança sindical não tinha
alternativa a não ser trabalhar dentro da estrutura existente.

Mas forçá-la a operar dentro da estrutura oficial teve um resultado
inesperado em São Paulo e em algumas outras áreas urbanas: permitiu que suas
atividades se concentrassem na discussão dos principais problemas que se
apresentavam no ambiente de
_________
134. Para uma excelente apreciação deste período, ver José Álvaro Moisés,
Problemas atuais do movimento operário no Brasil", Revista de Cu/fura
Contemporânea, I, N." l (julho de 1978), pp. 49-61. Ver também Mana Hermínia
Tavares de Almeida, "O sindicato no Brasil: novos problemas, velhas estruturas",
Debate e Crítica, N.° 6 (julho de 1975), pp. 49-74; da mesma autora, "Novas
demandas, novos direitos; experiências do sindicalismo paulista na última
década", Dados, XXVI, N.° 3 (1983), pp. 265-90; e Amaury de Souza, "The Nature
of Corporativo Representation: Leaders anã Members of Organized Labor in BraziT
(dissertação de Ph. D., Massacnusetts Institute of Technology, 1975).

398 Brasil: de Castelo a Tancredo
trabalho. Alguns sindicatos liderados com competência obtiveram concessões no
que se refere a benefícios adicionais ou a remuneração igual para os recém-
contratados. Conseguiram também impor suas reivindicações sobre outras regras,
como as cláusulas especiais dispondo sobre o trabalho da mulher grávida. A maior
parte dessas conquistas foi obtida nos tribunais trabalhistas, instrumento
central da estrutura corporativista das relações de trabalho. Atendendo a certas
exigências sindicais, os tribunais continuavam funcionando na forma paternalista
idealizada pelos seus criadores nos anos 30 - as reivindicações eram obtidas não
do empregador mas de um órgão designado pelo governo. Não obstante, a atividade
sindical criou uma convergência que algumas vezes fizera muita falta nas
relações trabalhistas: o elo entre o trabalhador e o representante sindical. A
ausência desse elo não era casual. A estrutura corporativista definira os locais
dos sindicatos geograficamente, isto é, por município, o que fragmentava o
sindicato horizontalmente. Havia, por exemplo, quatro sindicatos metalúrgicos
na Grande São Paulo - nos municípios de Santo André, São Bernardo, São Caetano e
São Paulo. A atividade sindical forçada dentro do ambiente de trabalho estimulou
a emergência de uma nova geração de líderes, principalmente em São Paulo, que
começaram a denunciar a estrutura corporativista das relações de trabalho e a
construir um novo movimento sindical independente (novo sindicalismo) pela
rejeição dos velhos prepostos do governo (pelegos).135 O mais famoso desses
novos líderes foi Luiz Inácio da Silva, conhecido pelo apelido de "Lula", que
era presidente do Sindicato dos Me-
_____________
135. O "novo sindicalismo" no Brasil estimulou uma verdadeira explosão de
análises. Importantes artigos assinados por Amaury de Souza, Bolívar Lamounier,
Maria Hermínia Tavares de Almeida e Luiz Werneck Vianna apareceram em Dados,
XXVI, N.° 2 (1981). Uma útil opinião de um veterano observador é a de Thomas G.
Sanders, "Brazil's Labor Unions", American Universities Field St^ff Reports,
1981, N." 48 (América do Sul). O clima de intenso interesse no Brasil é evidente
em Ricardo Antunes, ed., Cadernos de Debate 7: por um novo sindicalismo (São
Paulo, Brasiliense, 1980). Uma das mais importantes contribuições em matéria de
pesquisa é de John Humphrey, Capitalist Contrai and Workers Struggle in the
Brazilian Auto Industry (Princeton, Princeton University Press, 1982), baseado
em cuidadoso estudo das reais condições ,no ambiente de trabalho. Humphrey
também analisa com detalhes as greves de 1978 e 1979 na indústria
automobilística. Cabe notar que este fermento na liderança sindical surgiu
sobretudo em São Paulo, onde ganhou a publicidade adequada à condição de

Geisel: rumo à Abertura 399
talúrgicos de São Bernardo, subúrbio industrial de São Paulo, com uma grande
concentração de indústrias básicas, especialmente a automobilística.136

Era inevitável que os novos líderes sindicais, há tanto tempo freados pela
repressão, se unissem aos demais órgãos da sociedade civil que exigiam reformas.
Uma questão que especialmente irritava os trabalhadores era p fato de o governo
não compensar plenamente a inflação quando fixava os novos índices do salário
mínimo. Esta prática vinha se repetindo desde 1964, provocando uma sistemática
distorção que fora, no entanto, documentada (usando um índice mais completo do
custo de vida) pelo DIEESE, um órgão independente de estatística de São Paulo
para orientação dos sindicatos. Membros do MDB, assim como críticos da Igreja e
das universidades, atacaram violentamente essa política salarial.137

O reajustamento do salário mínimo em 1973 foi uma distorção especialmente
flagrante. Era o último ano do governo Mediei e Delfim Neto estava aparentemente
determinado a registrar uma taxa de inflação próxima da que o presidente previra
(13 por cento) no início do ano. Delfim a fixou em 15 por cento, embora fontes
não governamentais a situassem em 20-25 por cento.

Era pouco o que os trabalhadores, os sindicatos ou quem quer que fosse podiam
fazer então em virtude da atmosfera repressiva. Mas o Banco Mundial introduziria
um dado inesperado na questão. O Banco obviamente precisa de informações
corretas sobre os seus clientes. A discrepância no percentual da inflação para
1973 era tão grande que distorcia todos os dados oficiais brasileiros pós-
____________
centro industrial do Brasil. Ao mesmo tempo, contudo, muitos sindicatos
permaneceram distantes dos trabalhadores e tiveram pouco apoio no interior das
fábricas. A melhor análise isolada é de Margaret E. Keck, "The 'New Unionism' in
the Brazilian Transition", em Alfred Stepan, Democratizing Brazitt (a ser
publicado).
136. Da noite para o dia Lula tornou-se uma das personalidades mais famosas
do Brasil. Dados sobre sua carreira e suas idéias são fornecidos em Mário Morei,
Lula, o metalúrgico (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1981).
137. O governo foi acusado de outras manipulações que prejudicaram os
trabalhadores. Um exemplo importante foi o cálculo dos ganhos de
produtividade. Os trabalhadores virtualmente não receberam esses ganhos que, ao
contrário, foram retidos pelos empregadores.

400 Brasil: de Castelo a Tancredo
1972. Diante disso os economistas do Banco Mundial apresentaram sua própria
estimativa da inflação de 1973, que alcançava 22,5 por cento.138 Os líderes
sindicais paulistas usaram o estudo do Banco Mundial como prova de que tinham
sido enganados em todos os reajustes salariais pós-1973.

A primeira ação em larga escala empreendida pelos trabalhadores no governo
Geisel começou em maio de 1978 com uma greve branca.139 Sob o comando de Lula,
2.500 metalúrgicos da fábrica de caminhões e ônibus Saab-Scania no subúrbio
industrial paulista de São Bernardo do Campo bateram o relógio de ponto,
assumiram seus postos, cruzaram os braços, sentaram-se e recusaram-se a ligar
suas máquinas. A greve obedeceu a uma tática engenhosa, pois os trabalhadores
não a iniciaram com piquetes fora da fábrica, onde a polícia podia (como no
passado) prontamente atacá-los e prendê-los. A greve branca era novidade na
história do ativismo trabalhista. A direção da empresa não estava preparada para
arrastar os trabalhadores ociosos para longe de suas máquinas.

O exemplo dos operários da Scania não tardou a ser imitado. Dentro de dez
dias 90 empresas da Grande São Paulo entraram em greve, paralisando 500.000
empregados, os quais, dada a posição "liberal" do governo, ficaram em situação
favorável. Com a decisão dos empregadores de negociar diretamente, os
metalúrgicos receberam um aumento extra de 11 por cento (haviam pedido 34 por
cento) para ajustar o seu salário-base de modo a compensar a inflação
subestimada do passado. Os futuros cálculos da inflação usariam a nova base
como ponto de partida. A greve de 12 dias
_______
138. Folha de S. Paulo, 31 de julho de 1977.
139. Para uma coleção de entrevistas com trabalhadores e líderes sindicais
envolvidos nas greves deAnaio-julho de 1978, ver A greve na voz dos
trabalhadores da Scania a Itu (São Paulo, Alfa-ômega, 1979), que é o N.° 2 da
série História imediata. Um relato conciso baseado em longas entrevistas é dado
por John Humphrey em Capitalist Contrai and Workers Struggle, pp. 160-75. Muitos
documentos importantes da greve de 1978 (e 1979) estão transcritos em Luís
Flávio Rainho e Osvaldo Martines Bargas, As lutas operárias e sindicais dos
metalúrgicos em São Bernardo: 1977-1979 (São Bernardo, FG, 1983). Outro relato
detalhado baseado em extensas entrevistas é apresentado em Amneris Maroni, A
estratégia da recusa: análise das greves de maio/78 (São Paulo, Brasiliense,
1982).

Geisel: rumo à Abertura 401
na indústria automobilística e em especial a subseqüente negociação direta foram
fartamente noticiadas pela imprensa, tendo alguns jornais descrito o movimento
como a resposta dos trabalhadores à prometida liberalização do presidente
Geisel.140

Mas as greves não tiveram o mesmo êxito em outros setores, como aconteceu no
caso dos bancários (um sindicato tradicionalmente combativo) e dos trabalhadores
na indústria do fumo. Em outubro de 1978, outro grupo de metalúrgicos não logrou
alcançar as reivindicações que fazia porque o seu líder, o presidente da
Federação dos Metalúrgicos, de âmbito estadual, encurtou a duração da greve,
aceitando um acordo com ganhos limitados para os trabalhadores. O contraste era
assim muito acentuado entre o Lula do "novo sindicalismo" e o "Joaquinzão",
velho colaborador do governo.

O Sindicato dos Metalúrgicos e Lula ganharam surpreendente notoriedade, sendo
este descrito por grande parte da imprensa (ajudada em alguns casos por
sugestões do Planalto, isto é, Golbery) e pelos progressistas da Igreja como o
legítimo representante, não comunista, da classe trabalhadora. Lula de repente
tornou-se o mais conhecido líder trabalhista desde 1945. Os comentários na
imprensa lembravam que quanto mais o governo se aproximava da redemocratização
tanto mais se impunha o processo de negociação entre o capital e o trabalho. A
abertura política foi usada portanto para justificar o ativismo sindical e a
resposta do governo foi a melhor evidência de suas verdadeiras intenções.

O Desempenho da economia desde 1974 e o legado de Geisel

Quando o governo Geisel chegou ao fim de 1978, seu último ano de mandato, os
comentaristas econômicos começaram a fazer o balanço de suas realizações. Como
tinha se comportado a econo-
____________
140. Alguns empregadores tiveram reações violentas ante o surgimento do ativismo
sindical, como se vê em Laís Wendel Abramo, "Empresários e trabalhadores: novas
idéias e velhos fantasmas", Cadernos do CEDEC, N.° 7 (São Paulo, CEDEC, 1985).

402 Brasil: de Castelo a Tancredo

mia a partir de 1972? A estratégia econômica do governo mudara? O desafio da
OPEP pôs fim ao "milagre" econômico?141

Julgada pelos indicadores macroeconômicos básicos, a performance da equipe
econômica de Geisel foi boa. Entre 1974 e 1978 o PIB cresceu a uma taxa anual
média de 7 por cento, embora nos últimos dois anos houvesse ocorrido um
decréscimo - 5,4 por cento em 1977 e 4,8 por cento em 1978. Pelos padrões
anteriores a média de 7 por cento era um excelente desempenho, embora inferior
aos 10,8 por cento de 1968-73, o período do "milagre".

No que se refere à inflação, a tendência foi semelhante. Para 1974-78 a taxa
de inflação foi em média de 37,9 por cento. Mas piorou depois, com a taxa de
1977 situada em 38,8 por cento e
____________
141. O ministro do Planejamento João Paulo dos Reis Velloso, o principal
tecnocrata do governo Geisel, mais tarde defendeu vigorosamente a política
econômica de cuja execução participou. O déficit em conta corrente permaneceu
virtualmente estável, disse ele, registrando US$7 bilhões em 1978 contra US$7,1
bilhões em 1974. A dívida externa aumentou para US$43,5 bilhões no fim de 1978
contra US$17,2 bilhões no fim de 1974. Contudo, afirmou Reis Velloso, as
elevadas reservas cambiais de US$11,9 bilhões no fim de 1978 traziam a dívida
externa líquida para apenas US$31,6 bilhões. Afirmava, por isso, que as medidas
do governo Geisel deixaram um legado econômico favorável para o seu sucessor.
Entrevista com João Paulo dos Reis Velloso, Rio de Janeiro, 8 de junho de 1983.
O ex-ministro do Planejamento tratou de alguns dos mesmos tópicos em seu Brasil:
a solução positiva (São Paulo, Abril-Tec, 1978). Para uma importante crítica da
oposição às medidas de Geisel, ver Roberto Saturnino Braga, "Um modelo econômico
de oposição", Folha de S. Paulo, 26 de junho de 1977. Um dos críticos mais lidos
é Edmar Bacha, economista treinado em Yale, cujas obras Os mitos de uma década:
ensaios de economia brasileira (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976) e Política
econômica e distribuição de renda (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978) criticam
as políticas do governo para questões básicas como distribuição de renda e a
crescente desnacionalização da indústria brasileira. Bacha é um líder da nova
geração de economistas, dos quais muitos, embora nem todos; foram treinados na
Europa e nos Estados Unidos. Rapidamente tornaram-se importante força no debate
público sobre política econômica tanto através de artigos e entrevistas nos
principais jornais, como através de novas publicações que lançaram, como
Economia: revista da ANPEC (primeiro número em novembro de 1977). ANPEC é a
sigla da associação nacional dos centros de pós-graduados em economia.
Uma outra publicação nova, iniciada em 1977, foi o Boletim do IERP, publicado
pelo Instituto dos Economistas do Estado do Rio de Janeiro. Assim como a
publicação da ANPEC, procura também discutir questões fundamentais de política
econômica em linguagem acessível ao grande público.

403
a de 1978 em 40,8 por cento. A média de 37,9 por cento para
1974-78 era quase exatamente o dobro da média de 19,3 por cento para 1968-73. O
aumento da inflação preocupou muitos que participavam ou não do governo mas,
usando a indexação e as minidesvalorizações, o governo pôde impedir que as altas
taxas inflacionárias distorcessem gravemente os preços relativos. Confrontados
com a opção entre baixar a inflação e manter o crescimento, os assessores de
Geisel decidiram pelo crescimento.

O último importante indicador da saúde econômica era o balanço de pagamentos.
Vimos atrás que de 1967 a 1973 a economia do Brasil foi impulsionada pelo
crescimento industrial acelerado, que por sua vez era intensivo de importações,
especialmente bens de capital. O choque do petróleo em 1973 pôs em perigo essa
estratégia de crescimento por haver subitamente duplicado a conta de petróleo do
Brasil, ameaçando de cortes as importações necessárias para a indústria.
Em 1974 o Brasil sobreviveu à crise de sua balança de pagamentos usando suas
reservas cambiais e duplicando a dívida externa. Nos anos seguintes o governo
restringiu severamente as importações, que oscilaram entre US$12 bilhões e
US$12,6 bilhões de 1974 a 1977. Em 1978 elas subiram para US$13,6 bilhões, uma
elevação modesta em comparação com o crescimento da economia brasileira nos
quatro anos anteriores. As exportações subiram de US$7,8 bilhões em 1974 para
US$12,5 bilhões em 1978. A participação das exportações industriais nesse total
foi ainda mais impressionante. Em 1978, pela primeira vez, mais da metade das
exportações brasileiras era de produtos, industrializados. Expressas em números,
as exportações industriais chegavam a 50,2 por cento, as de mercadorias, 48,4
por cento (o restante era incluído na rubrica "outros produtos"). Até 1973 as
mercadorias respondiam por 66 por cento das exportações. Mas o aumento das
exportações, por mais impressionante que fosse, não dava para pagar as
importações, muito menos cobrir o pagamento das remessas de lucros e o serviço
da dívida, que em 1978 já exigia US$4,2 bilhões.

O que salvou o Brasil foi o ingresso contínuo e maciço de capital
estrangeiro, principalmente empréstimos. Em 1978, por exemplo, o ingresso
líquido foi de US$7 bilhões. No fim de 1978, por isso mesmo, a dívida externa
era de US$ 43,5 bilhões, mais que o dobro do nível de três anos atrás. :

404 Brasil: de Castelo a Tancredo

Os economistas do governo, os credores e os críticos passaram agora a
observar detidamente o tamanho da dívida brasileira. O indicador padrão era o
chamado encargo da dívida, isto é, o custo do seu serviço (pagamento de juros
mais amortização) como percentagem da receita das exportações. Em 1978 o encargo
da dívida subira para 58,8 por cento, o número mais alto para a década de
70 e altíssimo pela experiência anterior do Brasil. Graças em parte ao seu
crescimento relativamente rápido, o Brasil atraiu empréstimos de bancos
comerciais dos Estados Unidos, da Europa e do Japão. É verdade que pagava taxas
de juros superiores àquelas cobradas dos clientes domésticos nas economias
industriais, mas essa diferença era desprezível ante o fato de que a taxa de
inflação dos Estados Unidos tornava negativas as taxas dos empréstimos.

Havia, apesar de tudo, óbvios problemas em relação ao "crescimento baseado na
dívida". Se os volumosos empréstimos diminuíssem ou cessassem, o crescimento
econômico do Brasil teria igual comportamento. Em segundo lugar, a maioria dos
empréstimos dos bancos comerciais cobrava uma taxa de juros vinculada à "prime
rate" do mercado do eurodólar de Londres ou Nova York. Era impossível, portanto,
prever o encargo da dívida no futuro, o que era especialmente preocupante numa
fase de taxas de juros sabidamente instáveis. Em terceiro lugar, a febre de
empréstimos tornara o setor privado especialmente vulnerável. A maior parte da
dívida (70 por cento segundo estimativa da ECLA) fora feita pelo setor privado
que achava os juros do eurodólar mais baixos do que os brasileiros. O governo os
mantinha altos justamente para que os interessados procurassem o mercado do
eurodólar, pois tinha interesse nos recursos importados pela iniciativa privada
para ajudar a cobrir o déficit da balança de pagamentos. Como resultado, o setor
privado brasileiro estava amarrado a dois fatores potencialmente inconstantes:
(1) as taxas de juros do eurodólar e (2) a política de taxas cambiais do Brasil.
Os perigos no primeiro caso eram óbvios. No segundo, poderiam ser criados sérios
problemas para as empresas privadas tomadoras de empréstimos se o governo
acelerasse o seu plano de minidesvalorizações ou decretasse uma
maxidesvalorização.

Essas ameaças à estratégia econômica baseada da dívida se materializaram em
vários graus durante o governo Geisel. Os ingressos de capital, pelo menos,
continuaram em volume suficiente

Geisel: rumo à Abertura 405
para financiar o crescimento, intensivo de importações. A disponibilidade dos
empréstimos não ocorria por coincidência, pois vinham principalmente de bancos
comerciais ansiosos para reciclar os petrodólares que o Brasil e outros
importadores de óleo tinham que pagar aos seus fornecedores.

Outro perigo para a estratégia brasileira era a vulnerabilidade do setor
privado ao aumento das taxas de juros no exterior e às desvalorizações no
mercado interno. A propósito, o impacto já se fazia sentir, e bem forte, no
período de Geisel. Os juros crescentes do eurodólar empurraram muitas empresas
brasileiras contra a parede, as quais se sentiam em grande desvantagem face às
multinacionais que tinham acesso ao capital de suas matrizes americanas ou
européias. O governo brasileiro procurou compensar esta desvantagem de que se
queixavam os homens de negócios brasileiros aumentando a disponibilidade de
crédito para as suas firmas. Mas se isto de um lado era bom para os empresários
não o era para o governo que tinha necessidade de maximizar os ingressos de
capital estrangeiro (para fins de balanço de pagamentos) através de empréstimos
privados.

Finalmente, havia o perigo da rigorosa seleção das importações não
petrolíferas, o que já acontecia com os bens de capital. De 1975 a 1978 a taxa
anual de importações de capital flutuou entre US$3,1 e US$4 bilhões. Descontada
a inflação, esses números representavam um declínio relativo no valor real das
importações de bens de capital. O governo Geisel reconheceu o problema e criou
novos incentivos para ampliar a capacidade de substituição de importações
do Brasil, especialmente em bens de capital.

Outro ponto importante da política de desenvolvimento na gestão do presidente
cujo mandato expirava foi o compromisso com projetos de investimento público de
larga escala, como o complexo hidrelétrico de Itaipu na fronteira Brasil-
Paraguai, a siderúrgica Açominas em Minas Gerais, o programa nuclear e a
Ferrovia do Aço. A meta era alcançar auto-suficiência em energia e aumentar as
exportações. Mas todos esses projetos demandariam anos de investimentos antes de
qualquer retorno significativo.

Tais projetos aumentariam também o setor estatal da economia, tendência que a
iniciativa privada brasileira vinha atacando. ° governo prometera fortalecer o
setor privado, mas Geisel exem-

406 Brasil: de Castelo a Tancredo
plificava a mentalidade militar desejosa de apressar o desenvolvimento ainda que
ao custo de um setor estatal mais amplo. E este compromisso crescia de dimensão
quando se tratava de setores estratégicos, como energia e transporte.142
O governo Geisel considerou a crise energética tão aguda que não se arreceou de
violar um velho tabu nacionalista, firmando "contratos de risco" com firmas
internacionais para a exploração de petróleo no Brasil. No final de 1976
assinaram-se contratos com a British Petroleum e a Shell, e posteriormente com
um consórcio de empresas estrangeiras menores. Os críticos nacionalistas
protestaram estridentemente contra a quebra de um monopólio em vigor desde a
criação da Petrobrás em 1953-54. Como nos trechos do território brasileiro que
lhes foram reservados as companhias estrangeiras não encontraram petróleo, os
cínicos insinuaram que as áreas mais promissoras haviam sido reservadas para a
Petrobrás.143

De modo geral, a estratégia de crescimento baseado na dívida permaneceu
viável durante a gestão de Geisel. Seus economistas
_________
142. O setor estatal da economia brasileira custou a receber a análise que
merece. Como exemplo de um jornalista americano que ficou profundamente
impressionado com a posição de comando do Estado na economia no começo do
mandato de Geisel, ver a reportagem de Graham Covey no New York Times, 3 de
julho de 1974. A análise mais completa do papel do Estado na economia brasileira
é de Thomas J. Trebat, The State as Entrepreneur: The Case of Brazil (Cambridge,
Cambridge University Press, 1983). Uma obra importante que coloca o setor
estatal em contexto mais amplo é de Peter Evans, Dependent Development: The
Alliance of Multinational State and Local Capital in Brazil (Princeton,
Princeton University Press, 1979). Luciano Martins, Estado capitalista e
burocracia no Brasil pós-64 (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1985) é um importante
estudo baseado em demoradas entrevistas com administradores do setor estatal
durante o governo Geisel. Os críticos brasileiros ridicularizaram com o termo
faraónicos os gigantescos projetos com que muitas empresas públicas se
comprometeram. Para uma lista dos maiores desses projetos na metade do governo
Figueiredo, ver "O delírio das obras", Isto Ê, 28 de julho de 1982.
143. A história da decisão do governo de abrir o Brasil à exploração de petróleo
por empresas estrangeiras encontra-se em Bernardo Kucinski, ed., Petróleo:
contratos de risco e dependência (São Paulo, Brasiliense, 1977). Para exemplos
das opiniões fortemente conflitantes sobre os contratos de risco, ver Gazeta
Mercantil, 16 de maio de 1975, e Jornal do Brasil, 25 de maio de 1975. As razões
dos nacionalistas contra os contratos são dadas em Opinião, 23 de maio de 1975.

407
confiaram no tempo e ganharam. Mas as perspectivas brasileiras a longo prazo
eram um caso à parte.144

Qual o legado político que Geisel estava na iminência de passar ao seu
sucessor que escolhera a dedo?145 Não havia dúvida de que o presidente e o
general Golbery levaram o projeto de liberalização mais longe do que muitos
observadores consideraram possível em 1974. Habeas-corpus restaurado, AI-5
revogado, a maioria dos refugiados políticos novamente no Brasil, censura
suspensa - eram realizações expressivas para um governo militar. Mas permaneciam
importantes instrumentos arbitrários, especialmente a nova lei de segurança
nacional.146

Cabe lembrar também que desde 1964 o Executivo federal vinha aumentando
acentuadamente seus poderes legais e econômicos. O Congresso, por exemplo, foi
privado em 1965 do que as nações democráticas sempre consideraram a principal
prerrogativa de um Legislativo, o controle sobre o orçamento. Além disso, o
gigantesco aparato de segurança continuou intocado: o setor de
_____________
144. O governo Geisel também tentou promover a expansão industrial nos setores
de bens de capital e petroquímico num esforço tanto para substituir
importações com a produção brasileira quanto para gerar alta taxa de crescimento
doméstico. Os resultados mistos são analisados em Peter Evans, " Reinventing the
Bourgeoisie: State Entrepreneurship and Class Formation in Dependent Capitalist
Development", em Michal Burawoy e Theda Skocpol, eds., Marxist Inquiries:
Studies of Labor, Class and States (Chicago, University of Chicago Press, 1982),
S210-S247.
145. No governo Geisel houve muitos esforços cooperativos no sentido de
diagnosticar os males do Brasil oriundos principalmente da oposição. Um dos mais
interessantes é a coleção de entrevistas com destacados intelectuais,
cientistas e tecnocratas editada por Célcio Monteiro de Lima, Brasil: o
retrato sem retoque (Rio de Janeiro, Francisco Alves Editora, 1978). No início
de dezembro de 1978 o Centro Brasil Democrático, orientado para a esquerda,
realizou uma reunião plenária de três dias para discutir as dificuldades
políticas, económicas, sociais e constitucionais do Brasil. Os trabalhos foram
publicados em Centro Brasil Democrático, Painéis da crise brasileira: anais do
Encontro Nacional pela Democracia (Rio de Janeiro, Editora Avenir, 1979), 4
vols. Esforço semelhante, tratando de temas mais fortemente concentrados, foi
realizado em São Paulo, em meados de 1979, e os documentos foram publicados em
Bolívar Lamounier, Francisco C. Weffort e Maria Victoria Benevides, ed.,
Direito, cidadania e participação (São Paulo, T. A. Queiroz, 1981).
146. Para uma apreciação sobre "os anos Geisel", ver a reportagem de capa de
Veja, 14 de março de 1979.

408 Brasil: de Castelo a Tancredo
inteligência de cada instituição militar, o DOI-CODI do Exército, e o SNI com
seus agentes dentro de cada Ministério. Em virtude da autoridade legal que o
governo se reservara e da onipresença do SNI, qualquer militante da oposição
tinha fortes razões para ainda considerar a política uma ocupação perigosa.
Somente no fim do governo Geisel é que se pôde ver claramente o contraste entre
suas maneiras públicas e o efeito líquido de sua administração. Em público
Geisel era o estereótipo de um alemão no Brasil - empertigado, rígido na
expressão e completamente alheio ao toma-lá-dá-cá informal da política
brasileira.147 No entanto, essa rigidez foi uma vantagem em suas relações com os
militares. Sua insistência no cumprimento de ordens e missões, combinada com uma
intrépida afirmação de autoridade, fez dele uma figura respeitada por seus
camaradas. O mais autocrático presidente desde 1964 vencera o desafio da linha
dura.
__________
147. Para um exemplo da reação negativa, embora retrospectiva, à maneira
autocrática de Geisel, ver Carlos Chagas, colunista político de O Estado de S.
Paulo, 8 de julho de 1981. "Geisel nunca ouviu ninguém", disse Chagas, porque
"ele presumia em sua onipotência que sabia tudo".

VII
Figueiredo: o crepúsculo do governo militar

O novo presidente era membro de uma família de militares. Seu pai, o general
Euclides Figueiredo, comandara um contingente de tropas em 1932, quando São
Paulo se rebelara contra o governo do presidente Getúlio Vargas.1 Três dos seus
filhos, João Batista, Euclides e Diogo, ingressaram no Exército e chegaram ao
generalato. João conquistou sempre o primeiro lugar em todos os cursos que
freqüentou: no Colégio Militar de Porto Alegre, na Escola Militar (Arma de
Cavalaria), na Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais (Cavalaria) e na Escola de
Estado-Maior. Em 1960 fez o curso de um ano de duração da Escola Superior de
Guerra na companhia de destacados representantes das elites militar e civil.
Durante os sete meses da presidência de Jânio Quadros em 1961 Figueiredo
trabalhou sob as ordens do general Golbery no Conselho de Segurança Nacional.
Foi um dos conspiradores da primeira hora contra João Goulart, e depois do golpe
de 1964 voltou a trabalhar com Golbery no Serviço Nacional de Informações (SNI),
o recém-criado e poderoso órgão de inteligência com jurisdição em todo o país.
Golbery, seu criador e primeiro titular, colocou Figueiredo na direção do
escritório do Rio de Janeiro. Em 1969, já no governo Mediei, transferiu-se para
o Planalto na qualidade de chefe do gabinete militar da presidência.
Com Geisel
_______
l- Alguns observadores procuraram interpretar a rebelião do pai contra um
governo "revolucionário" como possível precursora de semelhante atitude do filho
para com a linha dura.

410 Brasil: de Castelo a Tancredo
foi nomeado chefe do SNI, o que lhe dava acesso a todas as decisões de alto
nível. Não é difícil descobrir por que muitos no meio militar viam em Figueiredo
uma "ponte" entre os castelistas e os amigos de Mediei. Ele servira em posições
altamente sensíveis tanto sob as ordens de Geisel quanto sob as de Mediei, e
seus laços com Golbery datavam de 1961. Figueiredo possuía outra qualidade que
seus sequazes achavam importante: uma personalidade afável. Isto poderia ser,
segundo eles, uma vantagem no sistema político mais aberto que estava emergindo.
O toque humano no trato com a imprensa e com o público nunca foi um traço
característico da conduta de Geisel enquanto presidente. No entanto, era agora
tanto mais essencial quanto o chefe do governo passaria a depender menos da
coerção do que da habilidade política convencional.

Natureza do novo governo

O novo Ministério demonstrava mais continuidade do que mudança. O principal
ministro era Mário Simonsen, anteriormente ministro da Fazenda e agora ministro
do Planejamento em um novo "superministério" de política económica. Delfim Neto
deixara seu posto de embaixador em Paris para ocupar o Ministério da
Agricultura. Alguns observadores achavam que ele não teria paciência no cargo,
apesar da afirmação do novo presidente de que os assuntos agrícolas ganhariam
nova ênfase.

O ministro da Fazenda, Karlos Rischbieter, presidira o Banco do Brasil por
quatro anos, tendo sido anteriormente administrador de empresas de alto nível no
Paraná. Para o Ministério do Interior fora nomeado Mário Andreazza, um ex-
oficial do Exército que exercera o Ministério dos Transportes de 1967 a 1974.
Era um político sociável e muitas vezes mencionado como possível candidato à
presidência. Seu envolvimento em gigantescas obras públicas (ponte Rio-Niterói e
Transamazônica) transformou-o inevitavelmente no alvo de boatos de corrupção. A
construção dessas obras permitiu que Andreazza fizesse um número muito grande de
contatos políticos através do Brasil, inclusive entre os donos das empreiteiras
que empreendiam uma luta de vida ou morte na disputa dos contratos
governamentais.

Figueiredo: o crepúsculo do governo militar 411
O ministro do Trabalho Murilo Macedo era um banqueiro que exercera o cargo de
secretário da Fazenda de São Paulo. Tinha a idéia de reformar o arcaico sistema
de relações trabalhistas e estava também preparado para defender modestos
aumentos do salário mínimo. A pasta da Educação foi confiada a Eduardo Portella,
respeitado crítico literário, que também tinha idéias reformistas. Muitos
centristas esperavam que sua nomeação significasse a intenção do novo governo de
rever uma estrutura educacional ultrapassada e subfinanciada.

O ministro do Exército, general Walter Pires, trabalhara estreitamente corn
Figueiredo e Golbery no início dos anos 60. Pires pertenceu ao grupo de
conspiradores contra Goulart em 1964 e chefiou a Polícia Federal de 1969 a 1971
- um período de violenta repressão. Defendeu vigorosamente o nome de Figueiredo
para presidente e era agora uma figura-chave para facilitar o apoio militar ao
prosseguimento do projeto de abertura.

A única figura politicamente interessante era Petrônio Portella, senador pela
ARENA do Piauí, que granjeara grande respeito por sua liderança e capacidade
conciliatória.2 Mas a personalidade política mais influente dentro do governo
era o general Golbery, que mantivera seu posto de chefe do gabinete civil da
presidência. Sua autoridade no Planalto parecia garantir que o plano de
liberalização Geisel-Golbery continuaria, presumivelmente de acordo com
diretrizes graduais e firmemente controladas.3 Ao mesmo tempo, contudo,
conhecidos generais da linha dura foram nomeados para comandos importantes, como
o general Milton Tavares de Souza para o Segundo Exército e outros de igual
mentalidade para o Primeiro e Terceiro Exércitos.4 O novo presidente tinha a
_______
2. Para uma coleção de seus discursos, principalmente os pronunciados no Senado,
entre 1973 e 1979, ver Petrônio Portella, Tempo de Congresso, II, (Brasília,
Senado Federal, 1980). O autor da "apresentação" deste volume póstumo foi,
apropriadamente, o general Golbery.
3. O papel-chave que Golbery chamou a si no governo Geisel é descrito em Elmar
Bonés, "Golbery: silêncio e poder", Tribuna da Imprensa, 2 e 3 de outubro de
1978. Análises sobre como esse papel continuaria no governo Figueiredo são
apresentadas em Walder de Góes, "Golbery no alto do poder", Jornal do Brasil, 18
de fevereiro de 1979; e A. C. Scartezini, "O irremovível Golbery", Folha de S.
Paulo, 12 de março de 1979.
4. Robert M. Levine, "Brazil: Democracy Without Adjectives", Current History,
LXXVIII, N." 454 (fevereiro de 1980), p. 50*

412 Brasil: de Castelo a Tancredo
reputação de ser altamente eficiente no relacionamento com os seus camaradas que
ostentavam as estrelas do generalato. Esta reputação certamente seria testada.

Os hábitos do novo ocupante do Planalto não poderiam ter sido mais diferentes
do que os do seu antecessor. Enquanto Geisel intervinha em uma enorme gama de
processos de decisão, reformulando projetos e memorandos, Figueiredo, segundo
impressões do embaixador americano, lembrava o estilo de Eisenhower: delegava
com liberalidade e esperava que os ministros resolvessem os problemas de suas
respectivas áreas. Figueiredo não tinha estômago para a papelada que Geisel
gostava de saborear.5

O Ministério de Figueiredo parecia-se com o do seu antecessor em vários
respeitos. Primeiro, nenhum dos seus membros tinha significativa projeção
política autônoma. Possuí-la parecia quase uma desqualificação. Segundo, o
Ministério tinha leve inclinação reformista, presumivelmente parte de uma
estratégia para combinar a liberalização política com pequenas doses de reforma
sócio-econômica. Terceiro, no Ministério era pequeno o número de militares. A
questão era saber se a sua relativa ausência no Ministério significaria menos
influência no governo.

Em seu discurso de posse, Figueiredo comprometeu-se a dar continuidade à
liberalização (abertura): "Reafirmo os compromissos da Revolução de 1964 de
assegurar uma sociedade livre e democrática". E acrescentou com ênfase:
"Reafirmo meu inabalável propósito (. ..) de fazer deste país uma democracia".
Prosseguiu no mesmo tom de otimismo prometendo "garantir a cada trabalhador a
remuneração justa" e o "financiamento, por nós mesmos, dos custos do nosso
desenvolvimento".6 A reação da imprensa e do público foi favorável - baseada na
esperança de que Figueiredo continuasse a liberalização que se acelerara no
último ano do governo Geisel.7
_________
5. Entrevista com o embaixador Robert M. Sayre, Washington, D.C.,
13 de maio de 1983.
6. O discurso foi publicado em Jornal do Brasil, 16 de março de 1979. Encontra-
se também em João Figueiredo, Discursos (Brasília, Presidência da República,
Secretaria de Imprensa e Divulgação, 1981), vol. l, pp. 1-8.
7. O começo do governo Figueiredo deu ocasião a que se avaliasse mais
extensamente a transição do Brasil para um regime mais democrático. A Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB) continuou na linha de frente da democratização, como
se vê pelas entrevistas de Raymundo Faoro, o presi-

Figueiredo: o crepúsculo do governo militares
As Greves de 1979

Em 1979 a palavra-chave na política brasileira era "negociação", o
equivalente lógico a abertura para aqueles que desejavam uma nação genuinamente
pluralista. A tendência para à negociação, contudo, estendia-se além do cenário
político. A imprensa em geral afirmava, por exemplo, que a negociação deveria
ser extensiva às relações entre o capital e o trabalho,8 com o que concordavam
calorosamente os "novos sindicalistas" de São Paulo. Estes passaram então a
explorar a abertura política para acelerar o ativismo sindicaL A resposta do
governo seria um indicador de suas intenções - um teste que não tardaria muito.

A experiência das greves de 1978 levara Lula e outros líderes sindicais
independentes a planejar uma estratégia diferente quando expirasse seu acordo
anual em março de 1979, que por coincidência era o mês da posse de Figueiredo.9
A era das greves brancas,
____________
dente que saía, e Seabra Fagundes, o que o substituía, em Jornal do Brasil,
21 de março de 1979. Esforço comparável foi a conferência, em junho de
1979, sobre "Direito, Cidadania e Participação", organizada pelos centros de
pesquisa de São Paulo, CEDEC e CEBRAP, e a OAB. "Pelo direito de maior
participação", Isto Ê, 4 de julho de 1979, pp. 82-85. As conclusões da
conferência foram publicadas em Bolivar Lamounier, et ai., Direito, cidadania e
participação (São Paulo, T. A. Queiroz, 1981). Um alvo de contínuos ataques da
oposição era a Lei de Segurança Nacional, ou LSN. Para conhecer os argumentos
típicos contrários à lei, ver Pela revogação da Lei de Segurança Nacional (São
Paulo, Comissão Justiça e Paz de São Paulo, 1982), que inclui colaborações de
Hélio Bicudo e José Carlos Dias; e 'Sociedade civil condena a LSN por
unanimidade", Folha de S. Paulo, 15 de maio de 1983, que noticia um julgamento
simulado da LSN no "Tribunal Tiradentes". No fim de 1983 uma LSN revista tornou-
se lei, reduzindo o número de crimes puníveis por ela. A oposição não ficou
satisfeita porque queria a completa revogação da lei.
8. Depois de comparar vários países latino-americanos nos últimos vinte anos um
pesquisador concluiu no início dos anos 80 que o Brasil era a nação mais
atrasada no uso efetivo da negociação coletiva para a resolução de conflitos.
Erfren Cordova, ed., Lãs relaciones coletivas de trabajo en America Latina
(Geneva, International Labour Organization, 1981).
9. Para uma descrição dos argumentos básicos usados pelos metalúrgicos nas
greves de 1979-80, ver José Álvaro Moisés, Lições de liberdade e de opressão: os
trabalhadores e a luta pela democracia (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982).

414 Brasil: de Castelo a Tancredo
tão bem-sucedidas em 1978, passara, tanto mais quanto não somente o governo
federal (através de um novo decreto proibindo greves que afetassem a "segurança
nacional") mas também os empregadores (através de novos procedimentos de
segurança) estavam muito melhor preparados do que em 1978. Além disso, nada
mudara na estrutura legal das relações de trabalho. Em 1978 o governo decidira
ser menos rigoroso no cumprimento do código trabalhista (CLT).

A liderança dos metalúrgicos do ABC (os três principais subúrbios industriais
paulistas de Santo André, São Bernardo e São Caetano) estava determinada a um
novo teste. Liderada por Lula, convocou uma greve dos seus 160.000 membros em
meados de março de 1979 após terem os empregadores rejeitado suas
reivindicações. Eles pediam um aumento salarial de 78 por cento, muito acima da
inflação oficial do ano anterior, de cerca de 45 por cento. Pediam também
reconhecimento legal dos representantes sindicais não oficiais que haviam
surgido para concorrer corn os pelegos sindicais.

O movimento de 1979 foi mais complicado do que a greve branca de maio de
1978. Desta vez os metalúrgicos de São Bernardo estavam na liderança, mas
tiveram que reduzir suas reivindicações a fim de obter apoio da Federação-dps
Metalúrgicos, de âmbito estadual, cuja liderança virtualmente não incluía
líderes independentes.

Os empregadores resolveram desta vez assumir uma posição inflexível e
acreditavam que o governo os apoiaria. Recusaram-se a negociar com os grevistas
até que eles voltassem ao trabalho.10 Reunidos em um campo de futebol, onde Lula
os arrebatou com sua oratória, responderam com um estrondoso "não". A indústria
automobilística, a maior do Terceiro Mundo e na expectativa de tornar-se grande
exportadora de veículos, jazia agora paralisada por uma greve claramente ilegal
pelas leis corporativistas do trabalho. O desafio ao governo era óbvio para
todos.

No dia seguinte ao voto contrário dos grevistas o Ministério do Trabalho
"interveio" no sindicato de São Bernardo, afastando
___________
10. Para exemplos da linguagem áspera dos empregadores, ver Laís Wendel Abramo,
"Empresários e trabalhadores: novas idéias e velhos fantasmas", Cadernos do
CEDEC, N." 7 (São Paulo, CEDEC, 1985).

415
Lula e outros dirigentes eleitos. Após uma espera de duas semanas a polícia de
São Paulo reprimiu violentamente os grevistas prendendo pelo menos 200 deles, no
que ficou sendo considerado como um teste para o movimento independente. Teria
ele condições de sobreviver à perda de seus líderes justamente quando enfrentava
o poder combinado dos empregadores e do governo? Muitos observadores,
especialmente aqueles que participavam do governo, esperavam uma rápida
capitulação.

Mas isto não aconteceu, porque os grevistas permaneceram firmes exigindo
imediata negociação. Como não possuíam recursos, passaram a depender de parentes
e amigos e de uma nova fonte de apoio: o clero católico e os leigos que lhes
doaram dinheiro e comida para que a greve não pairasse. Estabelecia-se assim um
elo direto entre o "novo sindicalismo e os católicos radicais - duas das mais
importantes expressões da sociedade civil que emergiram no fim dos anos 70. Na
prolongada luta que se seguiu, a Igreja, liderada pelo Cardeal Arns, forneceu
local para reuniões (os grevistas achavam que ficaria reduzido o risco de
batidas policiais se operassem do interior de um templo) e apoio moral - que os
grevistas agradeceram ante a ameaça de represália dos empregadores contra os
líderes do movimento.11

À medida que a greve se arrastava a posição dos trabalhadores se enfraquecia.
Em fins de abril os empregadores ofereceram um aumento de 63 por cento mas
nenhum pagamento pelos dias de greve. Em resposta à mediação da Igreja, Lula
decidiu ser aquela a melhor oferta possível nas circunstâncias e convenceu uma
agitada massa de 90.000 trabalhadores a aceitá-la. Se o que conseguiram ficou
aquém do que pediram, pelo menos o acordo resultara da negociação direta. Além
disso, Lula e os outros líderes expurgados tiveram permissão para voltar aos
seus cargos, de vez que o ministro do Trabalho supôs que eles tivessem ficado
com-
_______
11. Uma figura-chave neste elo entre a esquerda católica e o "novo sindicalismo"
é Waldemar Rossi, um metalúrgico que foi coordenador nacional da Pastoral
Operária (organização de trabalhadores patrocinada pela Igreja) e que em 1974
fora preso e torturado. "Entrevista: Waldemar Rossi, exclusivo: 'Fui demitido
depois do discurso para o Papa", Revista de Cultura Vozes, LXXVII, N." 2 (março
de 1981), pp. 44-61.

416 Brasil: de Castelo a Tancredo
prometidos perante os seus companheiros. A suposição era falsa. O comício anual
do Dia do Trabalho em Vila Euclides, HO campo de futebol, transformou-se em
esmagadora demonstração de apoio a Lula, agora importante figura política do
Brasil.

Vários precedentes foram estabelecidos pela greve de 1979 dos metalúrgicos.
Primeiro, continuaram a surgir novos líderes sindicais desdenhosos dos pelegos
apoiados pelo governo que, desde 1964, colaboraram com as normas trabalhistas
ditadas pela repressão, que facilitaram acordos salariais contrários aos
interesses dos trabalhadores. Como se viu nas greves dos metalúrgicos em 1978 e
1979, os novos líderes demonstravam ser bem disciplinados, em constante contato
com os membros do sindicato e bastante hábeis em contornar a vigilância
policial. Por exemplo, eles se revezavam nos postos de comando e evitavam o uso
de nomes próprios, além do que os seus companheiros eram treinados para evitar
mencionar os nomes dos líderes sindicais. Esta tática seria inútil em um regime
verdadeiramente repressivo (que tinha meios para prontamente obter os nomes),
mas as coisas agora eram diferentes. Afinal, fora a morte por tortura do
metalúrgico Fiel Filho nas mãos do DOI-CODI e do Segundo Exército em
1976 que exacerbou a ira de Geisel e fortaleceu o punho dos castelistas.

Um segundo precedente estabelecido pela greve foi a disposição de alguns
empregadores de negociar diretamente corn os trabalhadores. As matrizes da
Volkswagen e da General Motors, por exemplo, estavam acostumadas à negociação
coletiva em seus países. Contudo, a estrutura legal das relações trabalhistas no
Brasil tendia a enfraquecer a negociação direta, porque tanto os empregadores
quanto os sindicatos podiam interrompê-la apelando para o tribunal do trabalho
que imporia um acordo, em geral mais favorável aos patrões. .Assim o aumento da
negociação direta - para aqueles que a queriam (com exclusão de muitos
empregadores e líderes sindicais) - era inibido pela vigente estrutura legal das
relações trabalhistas. Apesar de tudo, no período 1979-82 houve rápido
crescimento no número dos acordos negociados diretamente, que criou um conjunto
de mútuas obrigações paralelas ao sistema oficial de normas e procedimentos
legais. O sistema de negociação direta desenvolveu-se porque os "novos" líderes
sin-

Figueiredo: o crepúsculo do governo militar 417
dicais e os empregadores viram que esse by-passing parcial do sistema
corporativista atendia aos seus interesses imediatos.12

O terceiro precedente foi a solidariedade demonstrada aos trabalhadores por
outros elementos do público, como a Igreja e seus grupos leigos, juntamente com
os profissionais da classe média. Achava-se em marcha a mobilização a partir de
baixo? Qualquer excesso de confiança dissipava-se ante a lembrança dos
esquerdistas que se gabavam da mobilização popular supostamente em andamento nos
mesesnfínais do governo Goulart em 1964.

Embora a atuação dosonetalúrgicos de São Paulo recebesse grande publicidade,
não foram eles somente que recorreram à greve em 1979 em prol de suas
reivindicações. A atmosfera de abertura e os precedentes criados pelo movimento
operário paulista, juntamente com o aumento da inflação (41 por cento em 1978 e
77 por cento em 1979), levaram os trabalhadores de outras categorias a agir.
Entre janeiro e outubro de 1979 houve mais de 400 greves. Os motoristas de
ônibus e os professores do Rio entraram em greve em março, como também os garis.
Em Belo Horizonte os trabalhadores na construção civil promoveram distúrbios,
sobressaltando aquela cidade tradicionalmente conservadora. Outros setores
atingidos por greves foram o siderúrgico, o portuário, o de transporte de carga
por caminhão, o bancário e o de telecomunicações. Todos os funcionários civis do
Estado de São Paulo também cruzaram os braços, assim como os seus colegas do Rio
Grande do Sul. As greves desses empregados públicos, embora pouco eficazes
quanto às reivindicações salariais, ajudaram a transformar a atmosfera das
relações trabalhistas (e conseqüentemente as políticas). Muitos desses
empregados (professores, funcionários civis) pertenciam à classe média e suas
greves deram legitimidade aos protestos econômicos das diferentes categorias.

Delfim Neto novamente

Os conflitos trabalhistas não eram o único problema no front econômico
interno. Sinais de tormenta estavam se desenhando tam-
______
12. Este modelo emerge claramente do estudo de uma amostra nacional de acordos
coletivos de trabalho registrados em 1979-82: Amaury Guimarães de Souza,
Os efeitos da nova política salarial na negociação coletiva (São Paulo, Nobel,
1985).

418 Brasil: de Castelo a Tancredo
bem na economia mundial. O Brasil manteve seu alto crescimento econômico desde o
choque do petróleo de 1973 somente porque passou a tomar mais empréstimos no
exterior. O ministro do Planejamento Mário Simonsen, principal assessor
econômico de Figueiredo, afirmou que agora a crescente pressão sobre o balanço
de pagamentos não deixava ao Brasil outra opção a não ser desacelerar sua
economia. Um claro sintoma do problema era a taxa de inflação subindo além dos
40 por cento de 1978.13

Simonsen começava a emitir seu diagnóstico quando o novo governo anunciou a
elaboração de um plano econômico qüinqüenal. Forçado a explicar a necessidade de
uma recessão, o ministro do Planejamento tornou-se o alvo da ira de todos os
setores. O MDB há muito afirmava que a estratégia econômica do governo
apresentava graves falhas e via o diagnóstico de Simonsen como uma confirmação
do seu ponto de vista. Estrategistas políticos do governo não estavam mais
favoravelmente dispostos. Não haviam aceitado seus cargos no governo apenas para
descobrir que o "milagre" chegara ao fim. Como dar continuidade à liberalização
com a economia vacilando?

A comunidade empresarial ficou contrariada por razões mais imediatas( Somente
uma economia vibrante poderia manter suas fábricas e negócios corn alto índice
de capacidade, garantindo-lhes bons lucros. Qualquer recessão mais significativa
levaria à falência
______
13. O problema da inflação é acentuado em "Panorama", artigo de abertura de
Conjuntura Econômica, fevereiro de 1979, edição que divulga um levantamento
retrospectivo da economia brasileira durante 1978. Para um excelente comentário
dos principais problemas econômicos a partir do final de 1979, ver Revista da
ANPEC, In, N.° 4 (outubro de 1980), que inclui documentos apresentados à
convenção anual das faculdades de economia (curso de graduação). Para uma
concisa descrição dos problemas econômicos enfrentados pelo novo governo em
1979, ver Werner Baer, The Brazilian Economy: Growth and Development, 2.' ed.
(New York, Praeger, 1983), cap. 6. O semanário financeiro americano altamente
conservador Barrons publicou um editorial, em 18 de setembro de 1978, sob o
título "Distant Early Warnnig Brazil's 'Economic Miracle' hás Lost its Lustre".
O argumento do editorial resumia-se- a um novo ataque à indexação. Apreciações
importantes sobre a política econômica do governo Figueiredo encontram-se em
Fishlow, "A Tale of Two Presidents" e em Edmar L. Bacha e Pedro S. Malan,
"Brazil's Debt: from the Miracle to the IMF", ambos em Alfred Stepan, ed.,
Democratizing Brazil? (no prelo).

Figueiredo: o crepúsculo do governo militar 419
muitas empresas brasileiras que funcionavam com margem perigosamente pequena de
capital de giro.

Nem tampouco o público brasileiro estava preparado para a mensagem de
Simonsen. O país vivera 11 anos de ininterrupto crescimento econômico. Eram
poucos, especialmente entre a elite, os que se achavam preparados para acreditar
que a situação podia continuar. Por isso as premissas do diagnóstico de Simonsen
foram recusadas, afirmando-se (ou esperando-se) que o Brasil podia, de algum
modo, isolar-se da economia mundial e manter altas taxas de crescimento. ^-^
Simonsen não sabia conviver com as intrigas da burocracia oficial nem tinha
inspiração política para se mostrar altamente eficiente em público. Estes
aspectos de sua personalidade concorreram para desacreditá-lo quando ele
divulgou a má notícia de que a economia tinha que reduzir o seu ritmo para que o
Brasil não fosse colhido por uma inflação galopante e por grave crise cambial.

Em circunstâncias diferentes, o ministro talvez tivesse podido vender sua
mensagem - se estivesse, por exemplo, na segunda metade de um mandato
presidencial, e talvez se o pai do "milagre" não estivesse atento à sua volta. O
declínio da credibilidade de Simonsen só fez aumentar a de Delfim, que não fazia
segredo de sua crença de que o diagnóstico econômico do seu colega do
Planejamento estava errado. Como sempre fora menos ortodoxo do que Simonsen.
Delfim presenteou o público com a esperança que ele desejava: tinha condições
para operar novo "milagre" e manter o crescimento do país. Igualmente
importante, os assessores de Figueiredo partilhavam dessa esperança.

Pressionado por todos os lados e extremamente indeciso, Simonsen finalmente
renunciou em agosto de 1979, tendo sido ministro de Figueiredo durante apenas
cinco meses. Delfim foi imediatamente nomeado seu sucessor,14 para júbilo da
comunidade empresarial de São Paulo. Centenas de homens de negócios, sobre-
________
14. O ministro da Fazenda Karlos Rischbieter sobreviveu aos seus
desentendimentos com Delfim até janeiro de 1980, quando finalmente renunciou,
para ser substituído por Ernane Galveas, veterano membro da equipe tecnocrática
de Delfim anterior a 1974. Como Simonsen, Rischbieter discordava profundamente
do prognóstico irrealisticamente otimista de Delfim.

420 Brasil: de Castelo a Tancredo
tudo paulistas, voaram para Brasília para a cerimônia de posse. Afinal de
contas, Roberto Campos em 1966-67 saíra do governo mais ou menos como Simonsen
agora. E Delfim na época encontrou o caminho certo. y

O novo titular do Planejamento começou assegurando ao público, à comunidade
empresarial e ao novo governo que o crescimento continuaria. Na verdade, de
agosto a dezembro ele tratou de acelerá-lo. Mas o que estava por trás dessa
política? A versão oficial era o In Plano Nacional de Desenvolvimento: 1980-
1986, elaborado na segunda metade de 1979 e aprovado pelo Congresso em maio de
1980.15

O III Plano era um documento curioso, pois virtualmente não continha números.
O capítulo inicial o descrevia como "acima de tudo um documento qualitativo" que
evitaria a "fixação de metas rígidas".16 Os principais problemas do momento eram
devidamente mencionados, como a crise de energia, as condições embaraçosas do
balanço de pagamentos, os custos crescentes da dívida externa e a pressão
inflacionária cada vez maior.

Apesar desses problemas, os autores do plano anunciavam solenemente que "um
país em desenvolvimento com tantas potencialidades e problemas como o Brasil não
pode renunciar ao crescimento, seja DQT legítimas aspirações do seu povo por
maior prosperidade, (seja pelo alto custo social da estagnação ou do
retrocesso".17 Era a linguagem típica de Delfim. O que é surpreendente é a
suposição de que o Brasil podia escolher entre aceitar ou recusar uma redução no
ritmo de crescimento, talvez até uma recessão. Na exposição da "estratégia" do
plano, voltava o otimismo, como no argumento de que "a continuação do
crescimento pode ser compatível com a contenção do processo inflacionário e o
controle do desequilíbrio externo".18
________
15. Plano Nacional de Desenvolvimento: 1980-1985 (Brasília, Presidência da
República, Secretaria de Planejamento, março de 1981). O plano fora aprovado
pelo Congresso em maio de 1980. O atraso na publicação pode ter refletido o
desejo de Delfim de reduzir sua importância. A elaboração do plano começara
quando Simonsen ainda era ministro do Planejamento. Quando Delfim assumiu, a
avaliação das perspectivas de inflação e crescimento foi alterada para se
adaptar à sua visão mais otimista.
16.Plano Nacional de Desenvolvimento, pp. 5-7.
17. Ibid., p. 6.
18. Ibide., pp. 16-17. •

Figueiredo: o crepúsculo do governo militar 421
Delfim esperava repetir sua performance anterior. O plano notava que de 1968 a
1974 (os anos anteriores do ministro no poder) o Brasil havia combinado altas
taxas de crescimento com inflação em queda. Assim o aumento dos investimentos,
da produção e do emprego podia combinar-se com a redução das expectativas
inflacionárias. "Este é o ensinamento básico que orientará a política
antiinflacionária do governo."19 A meta para a inflação era o nível alcançado no
início dos anos 70, isto é, 15-20 por cento.

O resto do plano enfatizava o aumento da produção agrícola como fator
essencial para reduzir a inflação e expandir as exportações. A indústria, em
compensação, era contemplada apenas com duas páginas sem muitas especificações.
Outras prioridades eram energia (expansão das alternativas internas não-
petrolíferas) e necessidades sociais, como educação, saúde e habitação. Os
investimentos nestas últimas áreas deveriam "conjugar-se com o objetivo básico
de progressiva redefinição do perfil da distribuição da renda em benefício da
população mais pobre".20 O documento continha também muita retórica sobre
redução de desigualdades regionais, especialmente através de ajuda ao Nordeste.

Delfim poderia repetir seus êxitos do passado? Ou a deterioração da economia
mundial excluía a possibilidade de adoção de uma estratégia de crescimento
acelerado no Brasil? No fim de 1979 a resposta veio parcialmente. Os indicadores
econômicos eram mistos. O PIB crescera a 6,8 por cento, a melhor taxa desde
1976. Mas a inflação disparara para as alturas dos 77 por cento, quase o dobro
da taxa de 1978 e a mais alta de qualquer ano desde 1964. As notícias do setor
externo não eram menos desfavoráveis. O déficit em conta corrente passara de
US$7 bilhões em 1978 para US$10,5 bilhões em 1979 e o ingresso de capital
estrangeiro caíra de US$10,1 bilhões em 1978 para somente US$6,5 bilhões em
1979. Para cobrir o déficit do balanço de pagamentos o Brasil teria que reduzir
suas reservas cambiais em US$2,9 bilhões.

O diagnóstico anterior de Simonsen parecia comprovado. A economia brasileira
estava sendo atingida pelos dois problemas tão
_________
19. Ibid., p. 19.
20. Ibid., p. 47.

422 Brasil: de Castelo a Tancredo
conhecidos desde 1945 - aceleração da inflação e emagrecimento das divisas
cambiais - com os quais o ministro não se preocupou no período 1967-74 quando
agiu como verdadeiro tzar da economia. Agora, porém, esses problemas existiam.
Não podendo mais aplicar a política de altas taxas de crescimento que anunciara
inequivocamente em agosto, Delfim decidiu arriscar. Decretou uma
maxidesvalorização de 30 por cento em dezembro de 1979 e logo em seguida, em
janeiro, anunciou o plano de desvalorizações e de correção monetária antecipada
para todo o ano de 1980. A meta era reduzir as expectativas de inflação e
inverter o seu ímpeto. Mas, se a inflação excedesse a uma taxa prefixada, o
cruzeiro superdesvalorizado encorajaria as importações, desestimularia as
exportações e estimularia os investidores a evitarem instrumentos financeiros
que pagassem taxas de juros reais negativas. A jogada do ministro não lhe foi
favorável, porque as forças por trás da inflação e o déficit na balança
de pagamentos estavam profundamente enraizados na estrutura da economia
brasileira e em suas relações com a economia mundial.21

A Questão da anistia
"Embora os problemas econômicos fossem urgentes, uma das primeiras e mais
importantes decisões de Figueiredo foi política. Dizia respeito à anistia,
questão vital para que o Brasil abandonasse o regime autoritário e reintegrasse
na sociedade e na política os milhares de exilados políticos que tinham fugido
do país ou
______
21. Para uma detalhada análise da maxidesvalorização, ver o artigo de Edy Luiz
Kogut e José Júlio Senna em Jornal do Brasil, 19 de dezembro de 1979. As novas
medidas foram, amplamente debatidas pelos economistas. Ver, por exemplo, a
entrevista eom José Serra, um economista da Universidade de Campinas, em
Folha de S. Paulo, 12 de dezembro de 1979. Serra atacou a nova política como um
"tratamento de choque para um paciente muito fraco". Mudanças na política
econômica estavam entre outras medidas anunciadas pelo presidente Figueiredo em
seu discurso de 7 de dezembro de 1979. Adotando a estratégia de desvalorizações
e indexação prefixadas, Delfim estava seguindo políticas semelhantes praticadas
na Argentina e no Chile. Achava evidentemente que eles haviam descoberto o
caminho para a estabilidade financeira.

423
sido perseguidos no exterior desde 1964.22 Esta era uma questão para a qual a
oposição conseguira mobilizar considerável apoio. Os entusiastas da anistia
apareciam onde quer que houvesse uma multidão. Nos campos de futebol suas
bandeiras com a inscrição Anistia ampla, geral e irrestrita eram desfraldadas
onde as câmaras de TV pudessem focalizá-las. Esposas, mães, filhas e irmãs se
destacavam de modo especial pelo seu ativismo, o que tornava mais difícil o
descrédito do movimento por parte da linha dura militar. O Cardeal Arns chamou
mais tarde a luta pela anistia "a nossa maior batalha".23

A revogação por Geisel em dezembro de 1978 da maior parte dos atos de
banimento foi seguida agora pela lei da anistia, aprovada pelo Congresso em
agosto de 1979. Foram beneficiados com a medida todos os presos ou exilados por
crimes políticos desde 2 de setembro de 1961 (a data da última anistia - houve
47 na história do Brasil). Ficaram excluídos os culpados por "atos de
terrorismo" e de resistência armada ao governo, os quais foram reduzidos a
apenas uns poucos, quando da aplicação da lei. A anistia também restabelecia os
direitos políticos daqueles que os haviam perdido nos termos dos atos
institucionais.24
_________
22. Parte da campanha da anistia destinava-se a lembrar aos brasileiros (e aos
militares brasileiros) que as anistias foram freqüentes em sua história e
desempenharam papel de importância vital na manutenção de sua unidade a longo
prazo. Este enfoque é evidente em Roberto Ribeiro Martins, Liberdade para os
brasileiros: anistia ontem e hoje (Rio, Civilização Brasileira, 1978). Para uma
coleção de retratos de brasileiros exilados e de entrevistas com eles, ver
Cristina Pinheiro Machado, Os exilados: 5 mil brasileiros à espera da
anistia (São Paulo, Alfa-Ômega, 1979). Seu objetivo era gerar apoio para a
anistia dando ênfase à injustiça que os exilados sofreram. Para uma apreciação
da situação dos direitos humanos no começo do governo Figueiredo, ver Joan
Dassin, "Human Rights in Brazil: A Report as of March 1979", Latin American
Studies Association Newsletter, X, N." 3 (setembro de 1979), pp. 24-36,
transcrito de Universal Human Rights, I, N.3 (1979).
23. Entrevista corn Paulo Evaristo Arns em NACLA Report on the Américas, XX,
N.° 5 (setembro-dezembro de 1986), p. 67.
24. Para uma discussão da lei, ver Moreira Alves, State and Opposition, pp. 211-
12. A história do projeto de anistia pode ser acompanhada através de reportagens
em Veja, 27 de junho, 29 de agosto e 5 de setembro de 1979. O Planalto ofereceu
um coquetel quando o presidente apresentou o projeto de anistia que estava
enviando ao Congresso. Ele chorou muito, lembrando

424 Brasil: de Castelo a Tancredo
A nova lei trouxe de volta grande número de exilados, inclusive Leonel Brizola e
Luís Carlos Prestes, anteriormente excluídos por determinação do presidente
Cíèisel. Achavam-se novamente no Brasil outras betes noires dos militares como
Miguel Arraes, Márcio Moreira Alves e Francisco Julião, juntamente com figuras-
chave do PCB e do PC do B (ambos ilegais).25 A anistia foi um poderoso tônico na
atmosfera política, dando imediato reforço à popularidade do presidente.
Mostrava também que Figueiredo confiava que podia resistir às objeções da linha
dura por ter permitido o reingresso na política de tantos "subversivos". Com os
comunistas de antiga linhagem e os trotskistas novamente no Brasil, e com a
imprensa virtualmente livre (embora sujeita a pressões, ameaças e até violências
ocasionais), o sistema político brasileiro parecia mais aberto do que em
qualquer outra época desde 1968.26

O movimento pró-anistia, contudo, não estava satisfeito com a nova lei.
Queria que fossem chamados à responsabilidade os que deram sumiço a 197
brasileiros que se acreditava terem sido
________
que seu pai fora duas vezes anistiado depois de ter participado de revoltas
contra o governo. Jornal de Brasília, 28 de junho de 1979. No início de outubro
os tribunais militares haviam libertado 711 presos políticos. O Globo, 3 de
outubro de 1979. O decreto regulamentando a aplicação da anistia foi publicado
em O Estado de S. Paulo, 2 de novembro de 1979.

25. As idéias de Miguel Arraes não mudaram significativamente em relação a
1964, conforme se vê na extensa entrevista publicada em Cristina Tavares e
Fernando Mendonça, Conversações corn Arraes (Belo Horizonte, Vega, 1979). '"'
26. Para uma atualização das vidas políticas dos mais famosos beneficiários da
anistia, como Luís Carlos Prestes, Leonel Brizola e Francisco Julião, ver Veja,
13 de agosto de 1980, que concluía afirmando que "quando o governo os temia na
verdade tinha medo de sua própria sombra". A questão da autoconfiança polítici
do governo surgiu em forma dramática em fins de 1979. O presidente Figueiredo
fez uma visita oficial a Florianópolis e foi objeto, enquanto falava, de vaias e
insultos pessoais. Figueiredo ficou com tanta raiva que desceu do palanque e
saiu em perseguição dos seus algozes, entre os quais estudantes e espectadores
jovens. Vários foram presos e depois processados pela Lei de Segurança Nacional.
O incidente é contado em detalhes em Robert Henry Srour, A política dos anos 70
no Brasil: a lição de Florianópolis (São Paulo, Econômica Ed., 1982). Figueiredo
certamente demonstrou o toque do homem comum, virtude que supostamente fez
Geisel favorecê-lo.

Figueiredo: o crepúsculo do governo militar 425
assassinados pelas forças de segurança desde 1964. Sobre muitos deles havia
dossiês detalhados, inclusive relatos de outros presos que foram testemunhas
oculares. Aqui a oposição tocava em um nervo exposto - o medo dos militares de
que uma investigação judicial algum dia tentasse fixar responsabilidades pela
tortura e morte de prisioneiros. Um bom exemplo da reação da linha dura (talvez
partilhada por "moderados" cujos antecedentes possivelmente lhes fossem
desfavoráveis) aconteceu em março de 1979 quando os militares tomaram medidas
para fechar a revista Veja por ter publicado uma reportagem sobre supostos
campos de tortura com ilustrações fotográficas.27 A polícia também apreendeu
exemplares de Em Tempo, quinzenário esquerdista que em meados de março publicara
uma lista de 442 supostos torturadores.28

Nenhum torturador foi mais perverso do que Sérgio Fleury, o detetive paulista
que planejou a emboscada a Marighela, matou Joaquim Câmara Ferreira e realizou
os interrogatórios-torturas de inúmeros presos políticos.29 Seria possível
estender também a ele a anistia? Os eventos de 1.° de maio tornaram essa questão
puramente acadêmica. Fleury havia comprado recentemente um iate e estava ansioso
para experimentá-lo em Ilha Bela, aprazível balneário no litoral paulista. Foi
para bordo ao anoitecer e, tentando passar para um iate vizinho, escorregou e
caiu na água. Os amigos que o puxaram para bordo conseguiram fazer que ele
recobrasse a 27. O artigo, "Descendo aos porões", de Antônio Carlos Fon,
apareceu em Veja, 21 de fevereiro de 1979. Está reproduzido, em formato
diferente, em Fon, Tortura.
_____
28. A lista de torturadores foi feita pelo Comitê de Solidariedade aos
Revolucionários do Brasil e publicada em Portugal pelo Comitê pró-Anistia Geral
do Brasil.
29. O detetive Fleury freqüentou muito o noticiário em março de 1979, quando a
freira católica Maurina Borges da Silveira voltou do exílio no exterior e
testemunhou perante um tribunal militar que, depois de sua prisão em 1969, fora
torturada por Fleury (ele supervisionou a aplicação nela de choques elétricos,
"rindo e zombando quando eu dava saltos"). Ela fora acusada de ajudar um grupo
guerrilheiro e em 1970 foi resgatada, juntamente com outros presos, em troca da
liberdade do cônsul japonês, que os guerrilheiros haviam seqüestrado. O
tribunal militar de 1979 absolveu-a unanimemente de todas as acusações. Jornal
do Brasil, 16 de março de 1979, e Folha de S. Paulo, 30 de março de 1979.

426 Brasil: de Castelo a Tancredo
consciência, mas, vítima de um ataque cardíaco, morreu no local. Seu corpo não
foi submetido a autópsia.30

Logo espalharam-se boatos de que o acidente fora "planejado" por aqueles
(preeminentes figuras civis e militares) receosos de que Fleury viesse a revelar
muitos segredos da era da repressão. Mas esta explicação perdeu sua razão de ser
quando os observadores examinaram mais cuidadosamente as circunstâncias. Na
noite de sua morte Fleury havia bebido. Além disso, dizia-se que ele era viciado
em drogas e estava com excesso de peso, combinação que aumenta a possibilidade
de um acidente como o que o acometeu. Do ponto de vista político a explicação
precisa não importava. O que contava era que Fleury fora eliminado como alvo
principal da oposição. Como ele era extremamente arrogante e se divertia
defendendo a si próprio contra acusações de tortura (já sobrevivera a muitas
denúncias em São Paulo), jamais concordaria em adotar uma atitude discreta. Não
podia haver dúvida: a Inorte de Fleury atendia muito convenientemente ao plano
de Figueiredo de prosseguir com o projeto de abertura.

A questão de uma possível ação contra os torturadores foi de |ato resolvida
pela inclusão na lei de anistia de uma definição [que incluía os praticantes
tanto de "crimes políticos" quanto de "crimes conexos" este último eufemismo em
geral entendido como um artifício paira dar cobertura aos torturadores.31 Foi
uma transação política. Os líderes da oposição sabiam que só podiam passar a um
regime aberto com a cooperação dos militares. Poderia haver futuras tentativas
de reabrir a questão, especialmente por parte daqueles mais próximos das vítimas
da tortura. Mas por enquanto os políticos brasileiros receberam uma lição, para
o melhor ou o pior, sobre a arte da "conciliação". Havia numerosos
______
30. Hélio Bicudo, o promotor do estado de São Paulo que tentou sem exilo
processar Fleury, não ficou convencido de que a morte foi por acidente, achando
que foi mais provavelmente uma vingança tramada por traficantes de drogas.
Rivaldo Chinem e Tim Lopes, Terror policial (São Paulo, Global Editora, 1980),
pp. 13-14. A morte de Fleury recebeu ampla cobertura ilustrada em Manchete, 19
de maio de 1979, e Fatos e Fotos/Gente, de 14 de maio de 1979. Um destacado
semanário esquerdista concluiu que "seus amigos e inimigos concordam: ele não
mereceu a morte que teve", Em Tempo, 3-9 de maio de 1979.
31. O texto do decreto de anistia foi publicado em O Estado de S. Paulo, 2 de
novembro de 1979,

Figueiredo: o crepúsculo do governo militar 427
precedentes na história do Brasil. O Estado Novo, por exemplo, terminou em 1945
sem qualquer investigação sobre os excessos de suas forças de repressão.32 ,

Reformulando os partidos

O governo Figueiredo tinha um problema político fundamental com a ARENA, que
procurava desvincular-se de qualquer identificação com as políticas repressivas
pós-1964 e com o fraco atrativo eleitoral da UDN, sua verdadeira precursora. A
rápida aceleração da inflação criou uma dificuldade adicional. Dada a recente
história brasileira, a "oposição" levava uma natural vantagem no sistema
bipartidário em vigor em sua luta contra o governo, especialmente nas cidades e
no Centro-Sul mais economicamente desenvolvido.

Os estrategistas políticos do presidente, à frente o general Golbery,
imaginaram uma solução parcial: dissolver o sistema bipartidário e promover a
criação de múltiplos partidos com elementos da oposição, mas preservando as
forças do governo em um único partido (presumivelmente com novo nome). O governo
manteria assim o seu controle seja pela divisão dos votos da oposição ou pela
formação de uma coalizão com os elementos mais conservadores do partido
adversário.33 Acima de tudo, o governo tinha que romper a unidade oposicionista.
_________
32. Raymundo Faoro, que acabara de se afastar da presidência da OAB, ajudou a
convencer um grupo de mães e viúvas dos que foram mortos pela repressão de que
não havia perspectiva real de punir os torturadores. Entrevista com Faoro, 2 de
julho de 1983. Seabra Fagundes, sucessor de Faoro como presidente da OAB, lutou
contra a anistia para os torturadores e, perdendo, lutou para torná-los
passíveis de ação civil, esforço que também não logrou êxito. Entrevista com
Seabra Fagundes, 7 de junho de 1983.
33. Em julho de 1980 o general Golbery proferiu uma conferência na Escola
Superior de Guerra em que analisou o cenário político e explicou como o governo
podia reter a iniciativa, se demonstrasse paciência e habilidade para negociar.
Esta conferência foi a mais completa declaração pública de Golbery sobre a
estratégia política do governo Geisel. Golbery do Couto e Silva, Conjuntura
#política nacional, o poder executivo e geopolítica do Brasil (Brasília, Editora
Universidade de Brasília, 1981), pp. 3-35. A estratégia política de Figueiredo
estimulou grande quantidade de análises da cena política e das perspectivas
de aumento da liberalização. Entre os

428 Brasil: de Castelo a Tancredo
Um projeto de lei com esse objetivo foi enviado ao Congresso e aprovado em
novembro.34 E já no fim de 1979 novos partidos tinham sido formados. A ARENA
reagrupou-se como Partido Democrático Social (PDS) enquanto a maior parte do MDB
aglutinou-se no Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB); esta
prestidigitação verbal atendeu ao mesmo tempo às novas regras (proibindo o uso
de legendas anteriores) e irritou o governo porque a oposição preservava o
reconhecimento do 'seu nome e o uso dos termos "democrático" e "brasileiro".
trabalhos coletivos, todos com vários capítulos sobre aspectos da liberalização,
citam-se os de Bernardo Sorj e Maria Hermínia Tavares de Almeida, eds.,
Sociedade e política no Brasil pós-64 (São Paulo, Brasiliense, 1983); Helgio
Trindade, ed., Brasil em perspectiva: dilemas da abertura política (Porto
Alegre, Ed. Sulina, 1982); Paulo J. Krishke, ed., Brasil: do "milagre" à
"abertura" (São Paulo, Cortez Editora, 1982); Bolívar Lamounier e José Eduardo
Faria, eds., O futuro da abertura: um debate (São Paulo, Cortez Editora, 1981);
Lamounier e Faria, eds., "O Brasil agora e depois", Jornal da Tarde, 2 e 9 de
junho de 1984. Lamounier publicou muitos outros importantes artigos, inclusive:
"Apontamentos sobre a questão democrática brasileira" em Alain Rouquié, et ai.,
eds., Como renascem as democracias (São Paulo, Brasiljénsèv 1985), pp. 104-40;
"Opening Through Elections: Will the Brazilian Become/a Paradigm?", Government
and Opposition, XIX, N.° 2 (Primavera de 1984), pp. 167-77; e "Authoritarian
Brazil Revisited: The Impact of Elections on the Abertura", a aparecer em
Stepan, ed., Democratizing Brazil? (no prelo). Entre as muitas outras análises
brasileiras citam-se Eli Diniz, "A transição política no Brasil: uma reavaliação
da dinâmica da abertura", Dados, XXVIII, N.° 3 (1985), pp. 329-46;
Luciano Martins, "The Liberalization of Authoritarian Rule in Brazil", em
Guillermo O. Donnell, Philippe C. Schmitter e Laurence Whitehead, eds.,
Transitions from Authoritarian Rule: Latin America (Baltimore, Johns Hopkins
University Press, 1968), pp. 72-94, e Luiz Gonzaga de Souza Lima, "A transição
no Brasil: comentários e reflexões", Contexto Internacional, I, N.° l (janeiro-
junho de 1985), pp. 27-59. Estudiosos não; brasileiros também fizeram
proveitosas análises, como Thomas C. Bruneau e Philippe Faucher, eds.,
Authoritarian Capitalism: Brazil's Contemporary Economic and Political
Development (Boulder, Westview Press, 1981) e Wayne A. Selcher, ed., Political
Liberalization in Brazil (Boulder, Westview Press, 1986). Outra apreciação é
feita em Riordan Roett, "The Transition to Democratic Government in Brazil"
World Politics, XXXVIII, N.°2 (janeiro de 1986), pp. 371-82.
34. Para uma completa análise desta lei sobre os partidos, ver os dois artigos
de Alfredo Cedilio Lopes, em Problemas Brasileiros: Revista Mensal de Cultura,
XVII, N." 186 (abril de 1980), pp. 4-22.

Figueiredo: o crepúsculo do governo militar 429

Mas a estratégia de Golbery confirmou-se pelo menos a curto prazo quando
emergiram outros partidos de oposição. Foi abundante a publicidade em torno da
disputa pela legenda do PTB, que Leonel Brizola cobiçava e para a qual tinha
boas credenciais. Ele era, afinal, produto político do Rio Grande do Sul, local
de nascimento de Getúlio Vargas e do PTB. Por este partido Brizola fora
governador do seu estado e também eleito deputado federal pela Guanabara (cidade
do Rio de Janeiro) em 1962, com a maior votação (269.000) jamais recebida por um
candidato à Câmara dos Deputados. Mas as autoridades eleitorais, provavelmente
por sugestão do governo, concederam a legenda a Ivete Vargas, figura política
secundária, que era sobrinha-neta de Getúlio Vargas, mas que também era bem
relacionada com o general Golbery. O novo PTB era uma pálida cópia do seu
antecessor de antes de 1964 e suas perspectivas não pareciam ser de longa
sobrevivência, embora contasse com alguns bolsões de apoio disseminados através
do país. Brizola fundou então o seu Partido Democrático Trabalhista (PDT). À
esquerda dessas duas agremiações políticas surgiu o Partido dos Trabalhadores
(PT), liderado por Lula.35 Fechando o círculo, surgiu o Partido Popular (PP) a
mais irônica de todas as legendas, já que era liderado por conhecidas
figuras do estabelecimento, como Magalhães Pinto (banqueiro) e o veterano
político Tancredo Neves.

Vale a pena examinar mais detidamente o PT, que foi a primeira tentativa
séria em 30 anos de organizar um genuíno partido da classe operária. Em maio de
1978, após quase um ano do novo estilo de atuação dos trabalhadores, Lula e
seus companheiros começaram a considerar que o ativismo nos locais de trabalho
talvez não fosse suficiente. Por mais que tivessem realizado com êxito uma
greve, eram vistos com profunda suspeita pelos empregadores que reagiram de
maneira muito mais unificada do que esperavam os líderes sindicais. Durante o
ano seguinte Lula e seu grupo (que incluía alguns intelectuais) discutiram muito
sobre se deveriam ingressar na política. Sob o regime militar repressivo dos
primeiros anos da década de 70 eles só poderiam fazê-lo se descarregassem seus
votos na grande frente política que era o MDB,
35. Uteis informações sobre a fundação do PT são dadas em Mário Pedrosa, Sobre o
PT (São Paulo, CHED Editora, 1980).

430 Brasil: de Castelo a Tancredo
o único partido legal de oposição. Nas eleições parlamentares de
1974, por exemplo, os líderes emedebistas lançaram violento ataque contra as
políticas trabalhistas do governo militar e o partido recebeu maciça votação dos
trabalhadores nos centros industriais de São Paulo. Apesar dos esforços do MDB,
contudo, alguns ativistas sindicais acharam que havia chegado a hora de criarem
seu próprio partido. Por que não continuar operando através do MDB, que estava
se tornando cada dia mais forte, especialmente em São Paulo? Em parte, porque os
dirigentes sindicais (dos quais nem todos eram a favor de um novo partido)
tinham profunda desconfiança do MDB, sobretudo pelo apoio que recebia do Partido
Comunista Brasileiro (PCB), dos comunistas maoístas dissidentes (PC do B) e dos
pelegos, todos inimigos dos independentes na luta pelo controle sindical. O PCB
opunha-se fortemente à criação do PT, alegando que Lula e seus sequazes deviam
limitar-se à organização sindical. Mas Lula respondia que os trabalhadores
jamais poderiam conquistar influência política enquanto não tivessem um partido
que falasse exclusivamente por eles. Por maiores que fossem os seus méritos,
dizia-se, o MDB representava interesses amplamente contraditórios, dos quais um
apenas era os trabalhadores. Como em qualquer coalizão, os trabalhadores
poderiam achar que seus interesses teriam sido sacrificados em momentos
decisivos. Quanto ao PCB, os independentes o consideravam uma burocracia
desacreditada e enfadonha cuja rigidez dogmática o incapacitava para falar pelos
trabalhadores. O debate sobre o PT prosseguiu de acordo com as previsões. Lula e
seus aliados afirmavam que a estrutura das relações de trabalho, tendo sido
criada e posta em prática pelo governo, somente poderia ser mudada por aqueles
que controlavam o poder. Esta argumentação foi muito combatida por alguns
seguidores de Lula e por colegas destes que lideravam outros sindicatos, os
quais afirmavam que a prioridade devia ser o fortalecimento da estrutura, ainda
muito frágil, da nova liderança sindical independente.36 Os pelegos e os
comunistas continuavam fortes e só poderiam ser
________
36. Para as idéias de um organizador sindical independente que preferiu não
seguir o caminho do PT, ver a entrevista com Waldemar Rossi, em Bernardo
Kucinski, Brazil: State and Struggle (London, Latin American Bureau, 1982).
Figueiredo: o crepúsculo do governo militar

431
desalojados mediante uma organização sistemática e paciente. Por que pensar em
um partido de trabalhadores se os independentes nem sequer controlavam os
sindicatos industriais?

Alguns dos opositores suspeitavam que a fama de Lula lhe tivesse subido à
cabeça. Ele fascinava o público, ele que desafiara a gigantesca indústria
automobilística, os tradicionais exploradores da classe operária, os comunistas,
o governo. O novo PT teria que usar fartamente o nome de Lula, pelo menos no
início, e isto reforçaria seu trabalho pessoal. Assim a criação do PT provocou
uma cisão entre os seus fundadores e os que optavam por um esforço concentrado
na organização sindical. Ignorando as advertências, Lula e seus aliados fundaram
o PT em outubro de 1979. O partido criou um novo pólo de liderança nas relações
trabalhistas, especialmente em São Paulo. A curto prazo desviava elementos
valiosos que militavam no meio sindical, o que necessariamente o enfraquecia em
sua luta para obter o controle dos sindicatos-chaves. Em compensação, oferecia
uma solução alternativa para o trabalho de líderes como Lula que o governo
expurgara da direção do seu sindicato. Além disso, tal situação interessava à
estratégia do governo de dividir a oposição. O Planalto apressou-se portanto em
facilitar - não ostensivamente - a emergência do PT.

O novo partido não esperava causar logo grande impacto eleitoral, exceto
talvez no estado de São Paulo. Isto refletia o fato de que a base em que se
apoiava eram os fortes sindicatos industriais daquele estado. A chance de
começar a influenciar já a política nacional era remota. Mas os entusiastas do
PT com grande otimismo se lançaram à tarefa de registrá-lo município por
município.

A base natural do PT era o coração industrial do país sobretudo São Paulo,
mas também áreas urbanas do Rio de Janeiro, Minas Gerais, Paraná e Rio Grande do
Sul. A nova lei eleitoral exigia que todos os partidos apresentassem candidato a
governador em cada estado. O recém-criado PT cumpriu a lei, o que o forçou a
espalhar seus recursos humanos através do Brasil, muitos dos quais ainda não
preparados para a militância exigida por um partido de trabalhadores.

432 Brasil: de Castelo a Tancredo
Mal o novo partido se havia estruturado, começaram as manobras para as eleições
de 1982. Poucos achavam que o Planalto havia acabado de fazer os reparos que se
propusera na máquina eleitoral. É que, como na brincadeira do gato e do rato, o
governo e a oposição tentavam adivinhar o próximo passo um do outro,
especialmente as possíveis condições da campanha. O PDS sofreu grave perda com a
morte no início de janeiro de 1980, vítima de ataque cardíaco, do ministro da
Justiça Petrônio Portella, que contribuiu decisivamente para o fortalecimento do
partido em todo o país. Portella não teve sucessor adequado, seja no Ministério
da Justiça ou na liderança de PDS.37

Apesar do compromisso freqüentemente reiterado do governo Figueiredo de
promover a abertura, muitos brasileiros permaneciam céticos. Em maio de 1980 o
governo apenas fortaleceu as dúvidas dos que não acreditavam em seus propósitos
ao cancelar as eleições municipais que seriam realizadas em todo o país no fim
do ano. A grande maioria dos prefeitos e dos vereadores pertencia ao PDS, e o
governo receava uma grande derrota se o pleito ocorresse no prazo previsto.
Ironicamente, o PMDB também era favorável ao adiamento porque temia não poder
organizar-se com bastante rapidez nos termos da lei dos partidos de 1979. Em
setembro de 1980 o Congresso aprovou lei adiando as eleições para 1982 quando
seriam eleitos diretamente os governadores estaduais, um terço do SenadíV-x3s
membros da Câmara dos Deputados e de todas as assembléias legislativas. Na
opinião do governo, o PDS, não a oposição, seria beneficiado com tantas eleições
em um mesmo dia. Mas, depois que a campanha estivesse nas ruas, conseguiria o
governo realmente a folgada vantagem tão antecipadamente prevista? Em meados de
julho de 1981, o presidente reiterou veementemente seu compromisso com as
eleições.38

Outra ação governamental aparentemente contrária à liberalização foi a lei
extremamente rigorosa (agosto de 1980) regulamentando a entrada e a permanência
de estrangeiros no Brasil. A lei dava ao governo maior autoridade para impedir o
acesso ao
_________
37. A significação política da morte de Petrônio Portella foi enfatizada na
imprensa, como na cobertura de página inteira do Jornal do Brasil, de
8 de janeiro de 1980.
38. O Estado de S. Paulo, 10 de julho de 1981.

Figueiredo: o crepúsculo do governo militar 433
país ou para a expulsão de estrangeiros, o que incluía numerosos refugiados de
outros países latino-americanos (não deixa de ser irónico que os governos
militares, com suas elevadas taxas de crescimento econômico, tivessem acolhido
tais refugiados, especialmente se qualificados), bem como grande parte dos
padres católicos que eram estrangeiros.39 Alguns destes tinham irritado
autoridades locais e estaduais por incentivarem protestos populares, como a
resistência aos donos de terras invadidas na fronteira agrícola do Oeste, do
Nordeste e da Amazônia. A CNBB e os ativistas dos direitos humanos lutaram pela
revisão da lei, afirmando que se tratava de uma mudança radical na tradicional
política brasileira de portas relativamente abertas aos estrangeiros.

O governo permaneceu firme, contudo, não se sensibilizando ante a forte
oposição do PMDB e até de membros do PDS. Estes, no entanto, conseguiram
protelar a votação do projeto, até que, ultrapassado o prazo-limite de 40 dias,
o governo o promulgou por decurso de prazo, no início de agosto.40 Foi mais um
exemplo da limitação dos poderes dos legisladores. A agressividade do governo
fez-se sentir novamente em outubro, quando deportou um padre italiano por ações
supostamente contrárias ao interesse nacional.41

Outro desafio dos trabalhadores

O governo Figueiredo acompanhou cautelosamente a agitação da classe
trabalhadora por ocasião de sua posse em 1979. Após extrair todas as
conseqüências da greve daquele ano, o novo ministro do Trabalho Murilo Macedo
concluiu que o conflito podia reverter em benefício do governo. Ele convenceu o
presidente de que deveriam ser feitas mudanças significativas na fórmula de
39. Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, Situação do clero no Brasil (São
Paulo, Edições Paulinas, 1981), p. 11.
_______-
40. Para o texto da lei, juntamente com outras leis e decretos anteriores, ver
Juarez de Oliveira, Série Legislação Brasileira: Estrangeiros, 2.* ed. (São
Paulo, Editora Saraiva, 1982).
41. O sacerdote foi o Padre Vito Miracapillo, que há muito vinha irritando as
autoridades em Pernambuco, com suas idéias políticas radicais. Ele ganhou uma
reportagem de capa em Veja, 29 de outubro de 1980.

434 Brasil: de Castelo a Tancredo
reajuste anual do salário mínimo.42 Todos os analistas concordavam que o valor
real do salário mínimo caíra desde 1964. A estimativa mínima era de uma perda de
25 por cento, mas o DIEESE, o instituto de pesquisa independente dos sindicatos,
a colocava em percentual muito mais elevado.43 Macedo, hábil negociador, propôs
duas importantes mudanças que o Congresso aprovou pela lei 6708. Em primeiro
lugar, os reajustes salariais seriam agora semestrais, medida de crucial
importância, já que a inflação andava pela casa dos 100 por cento anuais.
Segundo, o percentual dos reajustes seria variável, de acordo com as categorias
salariais. Os trabalhadores que recebessem o equivalente a menos de três
salários mínimos por mês (cerca de 70 por cento da força de trabalho) seriam
reajustados pela inflação total mais 10 por cento. Os que ganhassem de três a
dez salários mínimos receberiam o total da inflação mais o reajuste de
produtividade. Finalmente, os que ganhassem além de dez salários mínimos
receberiam 80 por cento apenas. Era uma deliberada tentativa de redistribuir a
renda salarial. Era também uma tentativa de enfraquecer a crescente mobilização
ope-
______
42. Para os discursos do ministro do Trabalho expondo seu pensamento de 1979 a
1981, ver Murilo Macedo, Trabalho na democracia: a nova fisionomia do processo
político brasileiro (Brasília, Ministério do Trabalho, 1981). Para uma
análise das razões apresentadas para as freqüentes mudanças na legislação
salarial no governo Figueiredo, ver Maria Valéria Junho Pena, "A política
salarial do governo Figueiredo: um ensaio sobre sua sociologia", Dados,
XXIX, N. l (1986), pp. 39-59. Mudanças no sistema de relações de trabalho entre
1979 e 1984 são o tema de José Pastore e Thomas E. Skidmore, "Brazilian Labor
Relations: A New Era?", em Hervey Júris, Mark Thompson e Wilbur Daniels, eds.,
Industrial Relations in a Decade of Economic Change (Madison, Wisconsin,
Industrial Relations Research Association, 1985), pp. 73-113, que também inclui
dados sobre os efeitos no desemprego da recessão de 1981-84.
43. Das inúmeras obras sobre política salarial, contei com as seguintes:
Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos
(DIEESE), Dez anos da política)salarial (São Paulo, 1975); Edmar Lisboa Bacha,
Política econômica e distribuição de renda (Rio de Janeiro, Paz e Terra,
1978), pp. 25-52, e Lívio W. R. de Carvalho, "Brazilian Wage Policies,
1964-81", em Brazilian Economic Studies, N.° 8 (1984), pp. 109-41. O grau até
onde os trabalhadores se beneficiaram subindo na escala salarial é destacado em
Samuel A. Morley, Labor Markets and Inequitable Growth: The Case of
Authoritarian Capitalism in Brazil (Cambridge, Cambridge University Press,
1982). Morley com muita razão afirma que a questão maior da pobreza não pode ser
compreendida sem que se analisem os efeitos do crescimento rápido numa economia
capitalista com grandes excedentes de mão-de-obra.

Figueiredo: o crepúsculo do governo militar 435
rária e a simpatia pública pela causa dos trabalhadores, tão evidente nas greves
de 1978 e 1979. A abertura só poderia ser bem-sucedida se os trabalhadores
fossem mantidos sob controle, segundo os estrategistas tanto de Geisel quanto de
Figueiredo. Macedo estava agora tentando reconquistar esse controle sobre os
sindicatos mais combativos de São Paulo.

A liderança dos metalúrgicos não se impressionou corn a nova fórmula salarial
de Macedo. Todos conheciam muito bem a habilidade do governo em distorcer
qualquer fórmula em vigor. Além disso os líderes independentes queriam compensar
o acordo desfavorável que foram obrigados a aceitar em 1979. Exigiam portanto um
aumento real de salários de 15 por cento, mais o reconhecimento dos fiscais de
fábrica e garantia de emprego de 12 meses (o que importaria de fato em
permanência indefinida, já que os contratos eram firmados por um ano). Esta
última exigência era para impedir que os empregadores recorressem com tanta
freqüência à rotatividade da mão-de-obra como forma de minimizar o número de
trabalhadores com mais tempo de serviço e portanto mais bem pagos.

Os empregadores ofereceram 3,6 por cento (depois elevados para 5,9 por cento)
e nada quanto à garantia de emprego, por isso os trabalhadores entraram em greve
em l de abril de 1980.44 A paralisação concentrou-se na região do ABC, sob a
liderança geral de Lula. Desta vez o Ministério do Trabalho estava determinado a
manter o controle do front trabalhista de São Paulo. Por isso apelou
imediatamente para o Tribunal do Trabalho, que decidiu em favor dos patrões. O
Tribunal fixou o aumento real de salários em 6-7 por cento e negou as
reivindicações de 12 meses de garantia no emprego e reconhecimento dos fiscais
de fábrica; mas não declarou a greve ilegal - uma vitória secundária para os
trabalhadores.45 Os grevistas, lotando novamente o estádio de futebol de Vila
Euclides, discutiram a decisão do Tribunal demonstrando em altos brados a sua
raiva. Ainda com forte apoio público, especialmente da Igreja, os trabalhadores
desafiaram a justiça e os empregadores e votaram pela continuação da greve.
________
44. O contexto desfavorável desta greve é descrito em artigo com o indicativo
título de "Lula sob fogo cerrado", em Veja, 2 de abril de 1980.
45. Para uma detalhada descrição desta greve, do ponto de vista do ministro do
Trabalho, ver Macedo, Trabalho na democracia, pp. 217-68.

436 Brasil: de Castelo a Tancredo

Eram maiores agora os riscos para o governo. O presidente Figueiredo, há
apenas um ano no poder, estava lutando para reconquistar o controle sobre os
acontecimentos em São Paulo. Após uma semana o ministro Macedo declarou a greve
ilegal e desfechou violenta ação repressiva. A área de greve foi tomada pela
polícia, pela inteligência do Exército e pelos agentes de segurança. Os piquetes
foram atacados, e centenas de trabalhadores, presos. O Ministério "interveio"
nos sindicatos e destituiu seus dirigentes, inclusive Lula, que ficaram presos
durante um mês. A seguir o governo proibiu as empresas de negociarem
diretamente. Quando o fizeram em 1978 e 1979 o Ministério fez vista grossa.
Agora era tempo de enquadrar os empregadores também, e eles prontamente
acederam.

A greve continuou e mais uma vez o público simpático ao movimento levantou
dinheiro e forneceu comida aos trabalhadores parados. Políticos e ativistas da
esquerda até alguns do centro se manifestaram em favor dos grevistas. A prisão
de Lula e de outros líderes sindicais apenas fazia aumentar a sua fama. As
temíveis forças de segurança, usando cães policiais, tropas de choque e oficiais
da segurança secreta do Exército (DOI-CODI) fizeram lembrar os horrores dos anos
de Mediei.

No início de maio, após 41 dias de greve, os operários voltaram ao trabalho
com suas reivindicações não atendidas. Por que haviam malogrado? Uma das razões
foi a falta de fundos. Outra, a ameaça de que os patrões começassem a contratar
novamente, o que sempre era possível em uma economia como a brasileira com
excesso de mão-de-obra. A greve saiu muito cara para os trabalhadores, uma vez
que trouxe de volta a repressão governamental, apesar das conversas sobre
abertura e a nova fórmula de reajuste salarial. Os limites da tática
estabelecida pelo "novo sindicalismo" estavam claros agora. Como poderiam os
trabalhadores jamais conseguir negociações diretas com os empregadores se o
governo sempre tomava o partido destes? A indexação automática para a inflação
constante da lei salarial de 1979 privara os líderes sindicais mais combativos
de uma de suas principais bandeiras. Com efeito o número de greves declinara de
429 em 1979, para 42 em 1980, e 34 em 1981.46
______
46. Dados fornecidos pelo Ministério do Trabalho.

Figueiredo: o crepúsculo do governo militar 437
Mas a lei salarial de 1979 durou somente dois anos. Economistas conservadores, a
partir de meados de 1980, começaram uma campanha contra a indexação dos salários
e a lei salarial, afirmando ser ela um grande estímulo à inflação por causa do
reajuste de 110 por cento nos níveis mais baixos. Ironicamente, seus esforços
ajudaram a aprovar uma nova lei em dezembro de 1980 (lei 6886) que mantinha
intocado o percentual de 110 por cento na base, mas que reduzia ainda mais o
reajuste dos que se encontravam nos níveis mais elevados.

O ano seguinte, 1981, introduziu uma modificação no sistema de greves dos
anos recentes. Para os metalúrgicos paulistas a situação era até mais difícil do
que em 1980. Em fevereiro de 1981 um tribunal militar condenou Lula e 10 outros
líderes sindicais por violação da Lei de Segurança Nacional. Lula já havia sido
afastado do posto que ocupava em seu sindicato pelo ministro do Trabalho. Além
disso, alguns líderes de greves anteriores tinham sido demitidos, porque as leis
em vigor davam pouca proteção contra retaliações pelos empregadores. Quando
chegou o momento do seu reajuste anual em março de 1981, os metalúrgicos não
fizeram greve. Estavam enfraquecidos pela perda de sua liderança, mas também por
causa de uma forte recessão que causara um número gigantesco de dispensas nas
empresas de São Paulo que tinham sido os alvos principais nas greves anteriores.
Enquanto isso, a justiça brasileira adotava postura mais liberal e em setembro o
Superior Tribunal Militar reformava a condenação de Lula e seus companheiros por
violação da segurança nacional. Houve novos julgamentos e Lula foi absolvido em
todos os processos, exceto o seu segundo afastamento da presidência do sindicato
paulista. Mesmo esta foi uma punição apenas nominal, pois Lula continuou a
participar das deliberações do seu sindicato (embora não aparecendo
formalmente).

Trabalhavam em favor dos combativos líderes sindicais o interesse e o apoio
que eles provocaram no Brasil e no exterior. As greves criaram uma região de
simpatizantes, liderados em São Paulo pelo Cardeal Arns e os seus bem
organizados grupos de leigos. Os novos sindicalistas também atraíram interesse e
apoio de governos estrangeiros, sindicatos e fundações da Europa Ocidental,
especialmente da Alemanha Ocidental. Os adidos trabalhistas norte-americanos
através do Brasil mantinham estreito contato com os líderes trabalhistas
brasileiros e patrocinaram viagens de

438 Brasil: de Castelo a Tancredo
estudo aos Estados Unidos para muitos deles, Todo esse envolvimento estrangeiro
significava também que uma repressão governamental aos líderes sindicais (mais
violenta do que a de 1980) indisporia a opinião pública americana e européia -
conseqüência que o governo Figueiredo preferia evitar.

O presidente não tinha necessidade de se preocupar com as reivindicações
operárias em 1982 ou 1983. Em ambos os anos, como veremos, a profunda recessão
reduziu o poder de barganha dos sindicatos. Como resultado, eles foram forçados
em sua maioria a aceitar o reajuste salarial fixado pelo governo.47

Alguns setores conseguiram escapar a essa tendência. As empresas ligadas à
exportação estavam funcionando bem, algumas até acusando crescimento, uma vez
que o governo continuava a pagar altos subsídios aos exportadores. Os produtos
agrícolas beneficiados eram soja, açúcar, café e suco de laranja; dentre os
industriais destacavam-se calçados, veículos e toda uma gama de bens
intermediários.

A atividade sindical nesses prósperos bolsões de exportação tornou-se mais
freqüente do que nos setores atingidos pela recessão, e os acordos coletivos
ficaram mais complexos e sofisticados. Acresce que novos mecanismos para a
solução de conflitos ao nível de fábrica começaram a ser criados no setor de
exportações. Isto significava uma descentralização da atividade sindical de
âmbito municipal estipulada na lei trabalhista. Embora essas mudanças não tenham
transformado o sistema de relações trabalhistas, especialmente a forte presença
do Estado, representaram uma nova fronteira no que se refere às relações de
trabalho no Brasil.

Um setor que cabe mencionar é o programa para produzir álcool da cana-de-
açúcar. Forçado a substituir o petróleo, 75 por cento do qual era importado no
fim dos anos 70, o Brasil aumentou sua produção anual de álcool de 900 milhões
de litros em 1979 para 9 bilhões de litros em 1984, destinando-se a produção a
abastecer automóveis movidos com esse combustível (hoje 90 por cento da produção
da indústria automobilística brasileira). Este gigantesco aumento, baseado em um
aumento igualmente gi-
_________
47. O período de 1982-83 foi marcado por apenas algumas greves ao nível de
fábrica, especialmente contra empresas do setor de exportação. Em 1984 esta
tendência alcançou o setor rural, sobretudo as plantações de cana-de-açúcar que
produzem para o programa do álcool.

439
gantesco da área plantada com cana-de-açúcar, afetou consideravelmente as
relações de trabalho naquelas plantações. Os trabalhadores envolvidos na
produção de álcool tornaram-se agressivos, tanto os bóias-frias (termo geral
para o trabalhador rural itinerante) quanto os empregados das usinas. Nas zonas
rurais onde tanto os trabalhadores quanto os patrões não tinham experiência corn
a atividade sindical que os trabalhadores urbanos possuíam, tal fato fez crescer
o conflito trabalhista, por sua vez forçando o sistema a se organizar e
inovar.48 Onde os sindicatos rurais tinham uma história mais antiga, como no
estado nordestino de Pernambuco, as greves periódicas eram mais administráveis.
Enquanto isso, o governo Figueiredo e o Congresso (quando em sessão)
demonstravam notável incoerência em matéria de legislação salarial. Os críticos
não cessaram seus ataques aos reajustes de 110 por cento para os trabalhadores
na faixa de 1-3 salários mínimos que incluía cerca de 70 por cento da força de
trabalho (embora somente 30 por cento da massa total de salários).49 Em janeiro
de 1983 - quando o Congresso estava em recesso - o presidente Figueiredo expediu
o decreto-lei 2012, que reduziu o reajuste de 110 por cento para 100 por cento,
o reajuste para a faixa de 3-7 salários mínimos para 95 por cento e para a faixa
de 7-15 salários para 80 por cento. O resto permaneceu inalterado. Foi o corte
mais drástico para as categorias salariais superiores jamais visto, coincidindo
com a supressão do abono para as de
________
48. Em maio de 1974 os bóias-frias provocaram distúrbios em protesto contra seus
baixos salários e precárias condições de trabalho. Queimaram canaviais,
saquearam um supermercado e destruíram um prédio do governo. Imediatamente
receberam aumento de salário e outras concessões que melhoraram as condições de
trabalho. Veja, 23 de maio de 1984. A principal estudiosa do problema dos bóias-
frias é Maria Conceição D'Incao e Mello, que foi entrevistada em Exame, 30 de
maio de 1984. Ver também o seu Qual ê a questão do bóia-fria (São Paulo,
Brasiliense, 1984).
49. Embora a lei salarial de 1979 (lei 6708) fosse atacada como causa central da
inflação, muitos estudos empíricos descobriram que outras causas (o déficit do
setor público, a indexação no setor financeiro etc.) eram mais importantes
#do que os 110 por cento de reajuste para as categorias na base da escala
salarial. Ver, por exemplo, José Márcio Camargo, "Salário real e indexação no
Brasil", Pesquisa e Planejamento, XIV, N.° l (abril de 1984), pp. 137-60, e
Paulo Vieira da Cunha, "Reajustes salariais na indústria e a Lei Salarial de
1979: uma nota empírica", Dados, XXIV, N.« 3 (1983). PP- 291-314.

440 Brasil: de Castelo a Tancredo
menor remuneração. Em maio de 1983 o governo teve que voltar atrás por pressão
do Congresso, e expediu o decreto-lei 2024 que estabelecia reajuste de 100 por
cento para a faixa de 1-7 salários mínimos, restaurando conseqüentemente o
reajuste pelo total da inflação para os situados na categoria salarial de 3-7
salários. Em julho de 1983 mudava outra vez de idéia, pois cedera às pressões do
FMI para reduzir o valor dos salários. O decreto-lei 2045 estabelecia agora um
reajuste de 80 por cento para todas as categorias e declarava ilegal qualquer
acordo negociado acima daquele nível. Foi a primeira vez desde 1979 que a
fórmula de reajuste não favoreceu os empregados de remuneração mais baixa. A
medida era altamente impopular, e o governo teve que declarar estado de
emergência em Brasília durante a votação da matéria para impedir maciças
manifestações da oposição.

O decreto-lei 2045, como todas as outras recentes leis salariais, teve vida
curta. Em outubro de 1983, somente três meses depois - em atmosfera política
mais calma -, o Congresso aprovou o decreto-lei 2065, restabelecendo o reajuste
de 100 por cento para 1-3 salários mínimos e fixando 80 por cento para
3-7 salários mínimos e 50 por cento para as faixas de 7-15. O decreto dispunha
também que a indexação automática só se aplicaria até meados de 1985, para o
resto do ano o reajuste seria de 70 por cento, para 1986 ficaria em 60 por
cento, e para 1987, em 50 por cento. As partes seriam livres para negociar o que
quisessem além da inflação até meados de 1988, depois do que os aumentos
salariais passariam a depender completamente da negociação.

Esta medida assinalou a primeira vez em 50 anos que o governo explicitamente
promovia a negociação coletiva como forma de resolver disputas salariais. Mas
sua duração foi curta. Depois de seis meses o decreto-lei 2065 estava sob fogo
cerrado, o que não surpreendia pois reduzira os salário da classe média. Em
outubro de 1984 o Congresso aprovou nova lei restaurando o reajuste de 100 por
cento da inflação para as classes de 1-7 salários mínimos. As categorias com
salários superiores teriam um reajuste só de 80 por cento, sendo permitida a
negociação somente até 100 por cento da fórmula de indexação. Esta nova lei
extinguiu o plano que previa a transição gradual para a negociação. Em resumo, o
Brasil simplesmente voltou a reajustar os salários pela indexação para 90 por
cento de sua força de trabalho.

Figueiredo: o crepúsculo do governo militar 441
As confusas mudanças nas fórmulas de indexação serviram apenas para suscitar
novas exigências de negociação, pois nenhuma das fórmulas agradou à grande
maioria. O efeito real de todas essas leis salariais (exceto a 2045) foi alterar
significativamente a distribuição da renda salarial em benefício dos dois terços
dos trabalhadores com remuneração mais baixa, e em detrimento do grupo de 1,6
por cento situado nos diversos níveis do topo da pirâmide salarial. O governo
Figueiredo recebeu pouco crédito dos sindicatos por esta distribuição de renda,
enquanto os assalariados das classes média e superior se mostravam revoltados
com suas perdas relativas. Em parte isto se devia à compreensível preocupação
dos trabalhadores com o declínio do poder aquisitivo dos seus salários
absolutos.50 Enquanto isso, o FMI continuava a exigir austeridade, estipulando
que o total dos salários não devia aumentar além de 80 por cento do índice
oficial do custo de vida.

O impacto da crise económica mundial e da recessão nacional sobre as relações
trabalhistas brasileiras após 1980 foi, portanto, misto. Nos setores deprimidos
o efeito imediato foi fortalecer tanto o poder de barganha dos empregadores
quanto o controle governamental sobre os sindicatos e sobre todo o sistema de
relações de trabalho. Nos setores de exportação e de energia, os trabalhadores
conquistaram mais espaço e poder de barganha. Esta variação demonstrava que na
medida em que a economia se tornava mais complexa o mesmo acontecia corn o
sistema de relações trabalhistas.

Na esfera política a liberalização, naturalmente, prosseguira. Em novembro de
1980 o Congresso aprovou uma emenda constitucional originária do Executivo
reintroduzindo eleições diretas
________
50. O instituto de pesquisa intersindical independente DIEESE publica há alguns
anos sua própria análise das variações no custo de vida. O número de janeiro de
1983 do Boletim do DIEESE (o título variava), por exemplo, dava o número de
horas (ao nível de salário mínimo) necessárias para comprar os gêneros básicos,
segundo definição do governo. Os dados do DIEESE quase sempre mostravam uma taxa
de inflação mais alta - medida pela cesta de mercadorias ou cesta básica - do
que a taxa oficial que era usada para calcular os reajustes do salário mínimo. A
classe média não estava menos atenta aos efeitos da política salarial sobre o
líquido do seu contracheque, como se vê em Renato Boschi, "A abertura e a nova
classe média na política brasileira: 1977-1982", Dados, XXIX, N." l (1986), pp.
5-24.

442 Brasil: de Castelo a Tancredo
para governadores de estado e a totalidade do Senado. Era uma parcial revogação
do "pacote de abril" do governo Geisel que permitira à ARENA fazer maioria nas
duas casas do Congresso nas eleições de 1978. Figueiredo achava que ainda podia
contar com essas maiorias, e por isso resolveu ir adiante com a abertura.

Explosões à direita

Mas nem todos desejavam que a liberalização prosseguisse. Os adversários
clandestinos da abertura estavam preparando sua campanha de violências.51
Durante o ano de 1980 e o início de 1981 o Brasil foi sacudido por explosões.
Nas bancas de jornais os jornaleiros recebiam bilhetes ordenando-lhes que
parassem de vender publicações esquerdistas. Os que se recusaram tiveram suas
bancas destruídas a bomba durante a noite. Atemorizados com tanta violência,
dezenas de donos de bancas de jornais suspenderam as vendas das publicações
vetadas, cuja circulação (apurada principalmente pela venda nas bancas)
cahrverticalmente. Muitas delas jamais se recuperaram do golpe financeiro, e não
tardaram em desaparecer. O terror anônimo (oriundo do SNI ou da inteligência
militar, segundo a maioria dos jornais) obteve o que a censura não conseguira.
Mas nem todos os atos de violência foram incruentos. Uma carta-bomba enviada à
sede da Ordem dos Advogados matou uma mulher que teve a infelicidade de
abri-la. Considerando-se a liderança daquela organização na luta pela
redemocratização, quase ninguém duvidou de que a agressão só podia ter partido
da direita.52
_______
51. Para uma importante cronologia da violência durante o governo Figueiredo,
ver Paulo Sérgio Pinheiro, Escritos indignados (São Paulo, Brasiliense, 1984),
pp. 256-68.
52. Seabra Fagundes, presidente da OAB quando ocorreu a explosão da bomba, achou
que o atentado fora obra do DOI-CODI. Apenas dias antes, ele havia solicitado ao
DOI-CODI que providenciasse uma sessão de reconhecimento com alguns dos seus
membros para que o professor de São Paulo, Dalmo Dallari, identificasse seus
recentes seqüestradores que, para a oposição, se encontravam entre os agentes de
segurança. Entrevista corn Seabra Fagundes, Rio de Janeiro, 7 de junho de 1985.
A onda de terrorismo político contra a esquerda alarmou muitos membros do
Congresso, que logo criaram uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para
ouvir depoimentos. Acusações e contra-acusações foram feitas pelas testemunhas
Veio então a explosão maior e mais escandalosa em 30 de abril de 1981. O
incidente começou quando um capitão e um sargento do Exército pertencentes ao
DOI-CODI (em trajes civis) chegaram ao parque de estacionamento de um local de
diversões do Rio (Riocentro), onde estava sendo realizado um espetáculo em
benefício de causas esquerdistas. Minutos depois uma bomba explodiu no carro
matando o sargento e ferindo gravemente o capitão. Apesar dos comunicados logo a
seguir distribuídos pelo Exército negando qualquer envolvimento no caso, todas
as evidências indicavam que os dois estavam conduzindo a bomba para interromper
o espetáculo e talvez até gerar pânico em massa. Esta suspeita foi reforçada
pelo fato de que outra bomba explodira sem causar danos no interior do prédio de
um gerador de energia.53 O escândalo do Riocentro era aparentemente um gesto
desesperado dos militares da direita que achavam ter perdido o controle do
processo político, isto é, que a abertura estava se aproximando de um ponto
irreversível. O Exército imediatamente avocou a investigação para a sua esfera,
fazendo descer inabilmente sobre o caso uma cortina de silêncio, tanto mais
suspeita quanto as autoridades civis já haviam expedido um relatório médico
sobre o sargento morto que contradizia a versão fornecida pelo Exército.54
_________
que, no entanto, também forneceram preciosas informações àqueles que procuravam
resolver o labirinto de atividades terroristas da direita. Para exemplos de
cobertura pela imprensa dos trabalhos da CPI, ver O Estado de S. Paulo, 19 de
abril, Jornal da Tarde, 11 de setembro, e Correio Brasiliense, 18 de setembro de
1981.
53. Um relato minucioso, segundo uma visão jornalística, é apresentado em Belisa
Ribeiro, Bomba no Riocentro (Rio de Janeiro, CODECRI, 1982).
54. A imprensa teve um dia movimentado expondo as contradições da investigação
oficial. Os jornais foram apenas informados (não foram permitidas perguntas)
pelo coronel Job Lorena de Sant'Anna, que dirigiu o inquérito oficial. Partes
vitais da explicação do coronel eram contraditadas pelo laudo da autópsia
emitido separadamente pelas autoridades civis. Isto É, 8 e 22 de julho de
1981. O semanário humorístico Pasquim (9 de julho de 1981) satirizou as
incoerências da história do coronel. O embaraço dos militares era resultado
da abertura, ela mesma contraditória. Órgãos como o DOI-CODI ainda existiam, mas
a censura fora suspensa e as autoridades civis haviam reconquistado seu status.
Antes da abertura teria sido fácil encobrir o escândalo do Riocentro. Os
militares teriam simplesmente confiscado o desmoralizado laudo da autópsia e
evitado o briefing para a imprensa.

444 Brasil: de Castelo a Tancredo
Líderes do Congresso condenaram o ato de terrorismo e muitos se preocuparam com
o fato de que a ocultação da verdade fosse prova de que os linhas-duras ainda
poderiam sabotar a abertura.

Ninguém tinha maior interesse na continuação do processo de liberalização do
que Golbery. Imediatamente ele providenciou (por trás das cortinas como
Acostumava trabalhar) no sentido de que o inquérito sobre o incidente do
Riocentro fosse conduzido abertamente com toda a honestidade. Quando a
dissimulação se tornou óbvia, ele se viu cada vez mais isolado no palácio
presidencial. Renunciou em agosto de 1981.55

A saída de Golbery provocou agitação no cenário político. Ele fora o
principal estrategista do governo, sustentando batalhas em diversos fronts. A
primeira foi a luta para que continuasse de forma gradual o processo de
redemocratização. Golbery ajudara a lançar essa política quando chefiava o
gabinete civil do presidente Geisel (1974-79) e prosseguiu com seu mais
eficiente advogado no governo Figueiredo. Para ele, a redemocratização, embora
de tipo limitado, era certa e necessária Reconhecia que o sistema bipartidário,
criado em 1965, colocara o partido do governo (PDS) na defensiva, por isso
formulou a reorganização partidária de 1979 como medida preparatória para as
eleições de 1982.

A estratégia política de Golbery foi prosseguir firmemente com a abertura,
escamoteando ao mesmo tempo as regras eleitorais e usando todas as armas
tradicionais de um governo em pleno exercício (clientelismo etc'.). Ele partia
da intuição de que o governo, agindo com habilidade, podia continuar obtendo a
margem eleitoral necessária. Estava planejando a estratégia para as eleições de
1982 quando renunciou.

A principal oposição à estratégia de Golbery vinha da linha dura militar. Seu
líder mais .eficiente era o general Octavio Aguiar de Medeiros, chefe do
poderoso SNI, que Golbery ajudara a criar
_______
55. Para avaliações sobre a renúncia de Golbery por dois bem informados
jornalistas políticos do Brasil, ver a coluna de Mino Carta em Folha de S.
Paulo, 12 de agosto de 1981, e Élio Gaspari em Jornal do Brasil, 21 de agosto de
1981. A reportagem de capa de Veja, de 12 de agosto de 1981 foi apropriadamente
intitulada (dada a imagem de Golbery no Brasil) "O feiticeiro desistiu".

Figueiredo: o crepúsculo do governo militar 445
e do qual fora o primeiro titular.56 Esses oficiais temiam um sistema eleitoral
aberto pois preferiam o caminho autoritário trilhado pelos generais na
Argentina, Chile e Uruguai. Ameaçados pela abertura, seus colegas mais
audaciosos estavam preparados para engajar-se no terrorismo aberto ou velado.
Para eles, o encobrimento do caso do Riocentro era essencial para proteger sua
rede clandestina. Pela mesma razão, Golbery queria uma investigação completa,
com ampla publicidade da punição aplicada aos militares responsáveis. Ganhou o
pessoal da linha dura.57

Outra das frentes de batalha de Golbery foi a política económica. Ele vinha
defendendo medidas ligeiramente "populistas" para fortalecer o PDS nas eleições
de 1982 - alívio das restrições sobre aumentos salariais, envio de recursos
públicos para candidatos aos governos estaduais leais a Figueiredo, adiamento de
qualquer aumento das contribuições de empregados e empregadores para o sistema
de seguridade social financeiramente cambaleante e, mais importante, atenuar a
política recessiva que estava reduzindo a produção industrial e aumentando o
desemprego. Todas estas medidas eram, naturalmente, onerosas. Elevariam o
déficit público e conseqüentemente a inflação, que, em meados de 1981, acusava a
taxa anual de 111 por cento. Nenhuma delas, por isso
_______
56. Golbery estava lutando contra Medeiros como parte de sua oposição ao "grupo
de Medici" que ele temia reconquistasse a presidência. Ver as colunas de Carlos
Chagas em O Estado de S. Paulo, 6 de dezembro de 1981 e 6 de julho de 1982. Um
jornalista que no início dos anos 80 descortinava amplamente o cenário
político escreveu: "A diferença entre os governos Geisel e Figueiredo é
que com Geisel o presidente da República também comandava o Serviço Nacional de
Informações, enquanto com Figueiredo a autonomia e influência operacional do SNI
é maior do que a de todos os ministros militares". Oliveiros Ferreira, A
teoria da "coisa nossa", p. 12.
57. Deve-se acrescentar, contudo, que muitos militares de alta patente ficaram
contrariados com o envolvimento do Exército na tentativa de atentado a
bomba ou com a grosseira ocultação da verdade, ou ambas as coisas. A linha dura
ganhou apenas na questão imediata de impedir uma honesta investigação. A opinião
militar na época é analisada em Stepan, Os militares, p. 79. O general Gentil
M. Filho, comandante do Primeiro Exército baseado no Rio, tinha autoridade
formal sobre o DOI-CODI. Não demorou muito a ser afastado do seu comando,
sendo privado da compensação de rendoso emprego numa empresa pública, com que o
governo contemplava os que haviam exercido altos postos na hierarquia militar.

446 Brasil: de Castelo a Tancredo
mesmo, obteve aprovação do ministro Delfim Neto. Quando Golbery renunciou,
Delfim já havia conseguido aumentar as contribuições para a previdência social.
Muitos previam que ele não tardaria impor seus pontos de vista sobre política
salarial, com isso provocando a saída do ministro do Trabalho, Murilo Macedo, um
dos poucos liberais ainda no Ministério.

Golbery foi imediatamente substituído como chefe do gabinete civil por João
Leitão de Abreu, que ocupara o mesmo posto com Mediei. Leitão, um advogado
gaúcho, era tido como ligado a militares direitistas, com os quais trabalhara
estreitamente no governo Mediei. Isto podia ser mau prenúncio para a abertura,
que requeria um conjunto muito diferente de aptidões políticas. Mas o ímpeto que
empurrava para a frente a redemocratização permanecia forte. Muito importante,
não havia base social significativa, especialmente entre a classe média urbana,
para uma volta à repressão do início dos anos 70. Apesar de tudo, a saída de
Golbery eliminara o defensor mais convicto e poderoso da abertura junto ao
presidente.

O efeito imediato da renúncia de Golbery foi o maior desembaraço com que
Delfirn tratou de intensificar a desaceleração da economia pela qual optara após
o malogro de sua política de dezembro de 1979 de fixação antecipada das
desvalorizações cambiais e da indexação dos reajustes. Agora a prudência
econômica (definida por imposição do balanço de pagamentos) prevaleceria, pelo
menos em 1981. A saída de Golbery significava também que os militares
direitistas provavelmente teriam acesso mais direto ao presidente, o que
sugeria que Figueiredo era um fraco, ou na melhor das hipóteses, um indeciso.
Golbery renunciou porque sua influência estava refluindo, não porque Figueiredo
resolvera mudar de rumo. O presidente continuou com o seu compromisso
vigorosamente proclamado em favor de eleições mas com um Ministério que
não visava com o mesmo entusiasmo essa meta. A tendência nas recentes nomeações
de Figueiredo recaíra sobre homens estreitamente identificados corn Mediei, o
autoritário por excelência.

A explosão do Riocentro colocara os militares direitistas na defensiva.
Embora eles e seu aparato repressivo de segurança não tivessem sido tocados,
contudo, haviam sido neutralizados. Os atos de terrorismo pararam, como para
confirmar que a direita militar resolvera aguardar melhor oportunidade.
Finalmente, os militares

Figueiredo: o crepúsculo do governo militar 447
pró-abertura estavam prontos para reafirmar sua "fé na democracia", com isso
revigorando a marcha para a democratização.

Um fato ocorrido em setembro de 1981 poderia ter interrompido o processo de
abertura - o infarto sofrido pelo presidente. Em 18 de setembro Figueiredo
hospitalizou-se, e seus ministros militares em menos de 24 horas anunciaram que
o vice-presidente Aureliano Chaves assumiria o governo. O receio da oposição de
que os militares vetassem o vice-presidente, como acontecera a Pedro Aleixo, com
a doença de Costa e Silva, foi acalmado quando o ministro do Exército, Walter
Pires de Albuquerque, declarou seu apoio a Aureliano, o primeiro civil a ocupar
a presidência desde 1964. O vice-presidente exerceu o governo durante oito
semanas, até Figueiredo reassumir no início de novembro. Os médicos do
presidente acertaram ao dizer que ele poderia voltar a desempenhar em toda a
plenitude as suas funções. Durante a sua ausência o governo funcionou
normalmente (embora Aureliano não participasse das decisões sobre assuntos
militares ou de segurança), não tendo havido qualquer modificação
política significativa. As coisas desta vez foram muito diferentes que em 1969,
quando Costa e Silva caiu seriamente doente. Por quê?

O primeiro fator foi o estado de saúde de Figueiredo atestado pelos médicos.
Desde o início estes afirmaram que ele havia sofrido um ataque cardíaco sem
muita gravidade, nada comparável à paralisia de Costa e Silva, doze anos antes.
Figueiredo estaria recuperado em questão de semanas. Segundo, não havia ameaça
de guerrilhas no horizonte, ao contrário de 1969. Terceiro, os linhas-duras
estavam na defensiva, incapazes de tirar partido dos acontecimentos. Em suma, a
liberalização, no ponto em que estava, tinha bastante ímpeto para sobreviver a
este susto.

O Balanço de pagamentos: nova vulnerabilidade

A economia, contudo, estava novamente causando graves preocupações. Para se
compreender como a situação econômica do Brasil se deteriorara, devemos voltar a
1980. No decorrer daquele ano, o público se inquietou com os efeitos da
estratégia econômica que Delfim Neto lançara em dezembro de 1979. A política de
indexação prefixada e de desvalorizações tinha por fim reduzir

448 Brasil: de Castelo a Tancredo
as expectativas inflacionárias. Mas a inflação subiu além do previsto, levando a
taxas de juros reais negativas e a um cruzeiro supervalorizado. Em 1980 a
inflação pulou para 110 por cento, um recorde para este século. O governo criara
um desincentivo para poupar (com taxas de juros reais negativas) e um incentivo
para importar (com um cruzeiro supervalorizado). Não causou surpresa que o
balanço de pagamentos piorasse em 1980. Os US$3,5 bilhões de déficit global
tinham que ser cobertos, como em 1979, com saques sobre as reservas cambiais. O
PIB cresceu 7,2 por cento, mas a esta taxa as reservas não podiam durar muito.
No fim de 1980 Delfim aceitou o inevitável. Abandonou a prefixação das
desvalorizações e da indexação dos reajustes e revogou sem a menor cerimônia a
estratégia de crescimento acelerado, tão confiantemente incluída no In Plano
Nacional de Desenvolvimento. A primeira medida visava a uma taxa de câmbio mais
realista. Infelizmente para o Brasil, o clima econômico internacional se tornara
hostil. As taxas de juros estavam subindo, os termos de intercâmbio do Brasil
declinando, e as nações industriais de vento em popa rumo à recessão.

O ano de 1981 acabou sendo dedicado a uma espécie de tomada de contas. Pela
primeira vez desde 1942 o PIB brasileiro acusava declínio, de 1,6 por cento.
Mesmo num ano de profunda crise como 1963 o PIB crescera 1,1 por cento. Para
piorar a situação, com a alta taxa de crescimento demográfico do país o PIB per
capita de 1981 chegou a 4,3 por cento negativo. O único setor bem-sucedido foi a
agricultura, com um crescimento de 6,4 por cento. Os outros setores sofreram
queda: a indústria 5,5 por cento; o comércio 2,8 por cento; e transporte e
comunicações 0,2 por cento.

A inflação caiu ligeiramente em 1981 chegando a 95,2 por cento, depois do
recorde de 110,2 por cento de 1980. Quanto ao balanço de pagamentos, os US$11,7
bilhões de déficit em conta corrente foram quase completamente cobertos pelos
US$ 11,5 bilhões de capital importado a longo prazo. Embora um verdadeiro dom
dos céus a curto prazo, esse dinheiro aumentava a já elevada dívida externa
brasileira. No fim de 1981 ela já era de US$61,4 bilhões, e seu serviço naquele
ano exigia a assustadora quantia de US$7 bilhões, ou 65,6 por cento do valor das
exportações. Em apenas três anos o pagamento de juros da dívida mais do que
triplicara (de

Figueiredo: o crepúsculo do governo militar 449
US$2,7 bilhões em 1978 para US$9,2 bilhões em 1981). Era óbvio que esta taxa de
crescimento da dívida externa não podia continuar por muito tempo.58

Um exame mais detido do balanço de pagamentos em 1981 revelava o problema
pelo lado das importações. Atingiram US$27,2 bilhões, número inferior aos
US$27,8 bilhões de 1980. Mas devido ao aumento de 11 por cento nos preços das
importações em 1981, o Brasil estava pagando mais por uma quantidade menor de
produtos adquiridos no exterior. Como a indústria brasileira era intensiva de
importações, este aperto ajudou a contribuir para a queda de 5,4 por cento da
produção industrial.

A única resposta viável no curto prazo era cortar drasticamente as
importações ou arriscar um aumento ainda maior dos
_________
58. A crise da dívida externa estimulou uma avalancha de análises na imprensa e
em forma de livro. Um útil sumário da história da dívida brasileira está em
Sérgio GoldensteLn. A dívida externa brasileira (Rio de Janeiro, Guanabara,
1986). A dívida foi colocada em perspectiva econômica mais ampla em Pérsio
Árida, ed., Dívida externa, recessão e ajuste estrutural: o Brasil diante da
crise (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1983), com a colaboração de 13 economistas
da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Paulo Nogueira Batista
Jr., Mito e realidade na dívida externa brasileira (Rio de Janeiro, Paz e Terra,
1983) é uma análise que trata especialmente da relação entre a dívida e a
política de taxas monetária e cambial. Para uma análise que acentua o vínculo
entre a dívida e o contexto político interno no Brasil, ver Eul Soo Pang,
"Brazil's Externai Debt: Part I: The Outside View" e "Brazil's Externai Debt:
Part II: The Inside View", USFI Reports, 1984, N.°s 37-38 (América do Sul). Para
uma apreciação bastante otimista no início de 1986 do balanço de pagamentos do
Brasil e das perspectivas da dívida externa, ver Marcílio Marques Moreira, The
Brazilian Quandary (New York, Priority Press, 1986), que apresenta uma excelente
análise das negociações da dívida na primeira metade dos anos 80. O autor foi
depois nomeado embaixador do Brasil nos Estados Unidos. Outras importantes
análises são: Edmar L. Bacha, "Vicissitudes of Recent Stabilization Attempts
in Brazil and the IMF Alternative", em John Williamson, ed., IMF Conditionality
(Cambridge, MIT Press, 1983), pp. 323-40; Bacha, "Brazil and the IMF: Prologue
to the Third Letter of Intent", Industry and Development, N.° 12 (1984), pp.
101-13; Bacha e Pedro S. Malan, "BraziTs Debt: From the Miracle to the IMF", em
Stepan, ed., Democratizing Brazil? (no prelo); Carlos F. Diaz Alejandro, "Some
Aspects of the 1982-83 Brazilian Payments Crisis", Brookings Papers on Economic
Activity (Washington, D.C., Brookings Institutions, 1983), N. 2, pp. 515-52, e
Jeffrey A. Frieden, "The Brazilian Borrowing Experience: From Miracle to Debacle
and Back", Latin American Research Review, XXII, N.l (1987), pp. 95-131.

450 Brasil: de Castelo a Tancredo
empréstimos externos para financiar o déficit em conta corrente. Delfim,
evidentemente, optou por mais empréstimos.

Teria sido uma boa tática no passado. Na década de 70 o Brasil como tomador
de empréstimos tinha muito bom conceito entre os banqueiros de Nova York,
europeus e japoneses, e foi o que lhe valeu quando os déficits em conta corrente
cresceram depois de 1973. Praticou-se então uma política agressiva de
contratação de empréstimos para as empresas estatais brasileiras, como a
Petrobrás (petróleo) e a Eletrobrás (energia elétrica). Cada empréstimo era
dirigido para um programa específico de investimento, mas imposições do balanço
de pagamentos levaram à execução de projetos marginais. Só que esses
investimentos geravam retorno em cruzeiros, não em moeda forte necessária para
atender ao serviço da dívida. A pressão pelo aumento dos empréstimos cresceu com
o segundo choque do petróleo em 1979 e Delfim, ganhando tempo, jogou rapidamente
para as alturas a dívida externa em 1980 e 1981. Mas eram inúmeros os fatores
negativos com que o Brasil então se defrontava: deterioração dos termos de
intercâmbio, elevação das taxas de juros e queda da demanda estrangeira pelas
exportações brasileiras. Todos os empréstimos eram feitos na esperança de que o
país obteria as divisas necessárias para pagá-los. Mas se tal não acontecesse?
Teria que se tornar inadimplente (impensável para o governo militar) ou bater às
portas do FMI, medida altamente impopular internamente.

Essa questão pareceu secundária para os economistas e homens de negócios
brasileiros em 1981. Sua preocupação imediata era com o declínio da economia. A
elite administrativa há muito acreditava que o Brasil não podia "permitir-se"
uma recessão, crença cuidadosamente espelhada no In Plano Econômico de Delfim.
Por essa crença o Brasil podia assumir o controle do seu destino econômico, o
que era uma ilusão, conforme ficou provado em 1981. Nos primeiros seis, meses
daquele ano a produção caiu 3,3 por cento. As vendas totais (inclusive
exportações) da indústria automobilística nos primeiros sete meses caíram 23,2
por cento em comparação com o mesmo período de 1980. Em agosto a Mercedes-Benz
demitiu um quarto dos seus 20.000 empregados e fechou sua linha de produção por
um mês e meio. O desemprego na Grande São Paulo era estimado em 320.000 (embora
para os pesquisadores dos sindicatos fosse o dobro). Apesar de toda a retórica
do governo e de toda a sua manipulação das alavancas econô-

Figueiredo: o crepúsculo do governo militar 451
micas, o Brasil havia mergulhado em sua mais grave recessão em
30 anos.

O que agora tornava ainda mais difícil a formulação política era o fato de
tratar-se de um ano eleitoral. Figueiredo mantinha a promessa de realizar as
eleições de novembro de 1982, as mais importantes desde 1974. Delfim, animal
visceralmente político, manobrou para maximizar a vantagem do governo na
campanha política. Com a economia ainda apresentando certa folga, o ministro
procurou suavizar os controles para mostrar melhor desempenho econômico (ou,
pelo menos, o não agravamento da deterioração) por ocasião do pleito de
novembro, e foi bem-sucedido. No ano civil de 1982 o crescimento do PIB foi
positivo atingindo 1,4 por cento, com a agricultura acusando -2,5 por cento, a
indústria 1,2 por cento, o comércio com crescimento zero, e transporte e
comunicações com 4,0 por cento. A inflação era de 99,7 por cento, apenas
ligeiramente acima dos 95,2 por cento de 1981.

O setor externo era o teste decisivo. A comunidade bancária mundial fora
abalada pela comunicação do México em agosto de 1982 de que não podia mais
atender ao serviço de sua dívida externa. Nervosos, os banqueiros começaram a
olhar com desconfiança o Brasil, cuja dívida até ultrapassava a do México. Novos
empréstimos e rolagens por parte dos bancos comerciais credores subitamente
escassearam, o que fez o país recorrer a medidas extremas para equilibrar
suas contas externas. Até o dia da eleição (15 de novembro), Delfim Neto e seus
tecnocratas negaram qualquer intenção de ir ao FMI - sempre uma bandeira
vermelha para os nacionalistas brasileiros. Imediatamente após a eleição, o
ministro e sua equipe anunciaram que o Brasil havia aberto negociações formais
com o FMI.

O balanço de pagamentos de 1982 era até pior do que os críticos tinham
previsto. O déficit em conta corrente disparara para US$16,3 bilhões em
comparação com US$11,7 bilhões em 1981. O balanço global era negativo em US$9
bilhões. Este número sem precedentes resultava de dois principais fatores: (1) o
aumento do déficit em conta corrente; e (2) a queda violenta no ingresso líquido
de capital estrangeiro, que em 1982 totalizou apenas US$7,9 bilhões contra
US$12,8 bilhões em 1981.

O déficit global foi coberto por uma variedade de pequenos empréstimos
negociados às pressas, sob extrema pressão, no fim

452 Brasil: de Castelo a Tancredo
de novembro e em dezembro. Era tão desesperada a situação do Brasil que os
navios da Petrobrás que voltavam carregados de petróleo recebiam ordens para
desviar seu curso para Rotterdam, onde vendiam o produto no mercado livre em
troca de moeda forte, elevando assim a receita das exportações. Era de 1.114 o
número de bancos estrangeiros credores do Brasil e cada um tinha que concordar
com uma rolagem, um novo empréstimo, alteração de taxa de juros ou qualquer
outra mudança nos compromissos em vigor. Embora houvesse um grupo de 40 bancos
principais coordenando o trabalho, os procedimentos eram muito incómodos.59 O
Banco Central do Brasil passou mais de dois dias sem parar expedindo por telex
aos credores sua proposta de refinanciamento da dívida. Uma ajuda substancial do
FMI levaria mais tempo, pois o Brasil teria que apresentar-lhe um plano de
estabilização aceitável. Apenas para sobreviver em 1982 o país teve que gastar
US$3,5 bilhões de suas reservas cambiais. Recebeu também um "empréstimo ponte
bancos estrangeiros, sendo US$1,5 bilhão do Tesouro americano, US$500 milhões do
FMI, e US$500 milhões do BIS (Banco Internacional de Compensações )com sede na
Suíça. Estes empréstimos freneticamente negociados permitiram que o Brasil
atravessasse 1982 sem deixar de pagar os juros da dívida. Desde meados de 1982 o
país sequer tentara fazer amortizações.

Delfim Neto, João Figueiredo e o sexto governo revolucionário achavam-se
agora no pior dos mundos possíveis. O crescimento econômico, meta consensual da
elite, acabara. O Brasil era agora apenas mais um suplicante das boas graças do
FMI. Uma das vantagens dos governos militares a partir de 1967 fora sua relativa
autonomia em matéria de decisões econômicas. Durante 15 anos eles não tiveram
necessidade do FMI. A crise da dívida acabou com isso.

As Eleições de 1982

Na frente política o ano de 1982 foi dominado pela perspectiva das eleições
de novembro. Pela primeira vez desde 1965 os
_______
59. Veja, 15 e 29 de dezembro de 1982.

Figueiredo: o crepúsculo do governo militar 453
governadores seriam eleitos diretamente. Como as eleições tinham sido adiadas de
1980 para 1982 o eleitor deveria votar em candidatos para todos os níveis exceto
o presidencial. Tanto o PDS quanto o PMDB se organizaram para uma propaganda
sofisticada pelos meios de comunicação; os partidos menores, como o PT, PDT e
PTB, tinham que contar com a boa vontade de grupos voluntários para contatos de
rua diretamente com o eleitor, e com os comícios em praça pública. Em muitas
localidades, esta eleição, como todas as demais de âmbito federal desde 1974,
transformou-se em plebiscito sobre as políticas do governo, exceto onde o PDS
podia capitalizar efetivamente o interesse do eleitor por alguma questão local
ou estadual.

O que a oposição se propunha se ganhasse a eleição? Algumas pistas eram
apresentadas no manifesto expedido pelos líderes dos quatro principais partidos
(todos menos o PDT de Brizola) que se reuniram em meados de julho para discutir
estratégias cooperativas para a eleição.60 Eles propunham o direito de voto para
os analfabetos, aumentar a autonomia sindical, legalizar as greves e adotar uma
"justa política" de distribuição da renda. Defendiam também o fim dos
"privilégios concedidos às grandes empresas, às multinacionais e ao capital
financeiro" e propunham "fortalecer" o mercado internacional. Os políticos
inspiradores deste manifesto não eram absolutamente figuras radicais. Afinal,
líderes peemedebistas como Tancredo Neves, Franco Montoro e Ulysses Guimarães
eram nomes conhecidos por sua moderação da era pré-1964. Em compensação, a
Câmara dos Deputados possuía agora 36 dos seus membros que anteriormente tiveram
seus direitos políticos ou mandatos cassados. Isto indicava que a abertura
estava começando a incorporar ao sistema elementos políticos antes excluídos.61
Apesar de tentativas de sabotagem da linha dura e do compreensível pessimismo do
público, as eleições foram um impressionante exercício de civismo: mais de 45
milhões de eleitores compa-
_______
60. O manifesto foi publicado em Jornal do Brasil, 16 de julho de 1981.
61. Country Reports on Human Rights Practices for 1983: Report
Submitted to the Committee on Foreign Affairs, U.S. House of Representatives and
the Committee on Foreign Relations by the Department of State (Washington, D.C.,
U.S. Government Printing Office, 1984), p. 489.

454 Brasil: de Castelo a Tancredo
receram às urnas, o maior eleitorado de todos os tempos na América Latina. Foram
relativamente pequenas as acusações de fraude e o Brasil podia congratular-se
consigo mesmo por haver dado uma lição de democracia eleitoral, coisa
extremamente rara no Terceiro Mundo.

Os resultados eleitorais amplamente confirmaram a estratégia original de
Golbery. Embora a oposição tivesse recebido 59 por cento do total dos votos
populares, não conseguiu fazer maioria no Congresso (considerando as duas casas
juntas) ou no colégio eleitoral, que devia escolher o sucessor de Figueiredo. Na
Câmara dos Deputados a oposição (reunindo todos os quatro partidos PMDB, PDT,
PTB e PT) agora ultrapassava o PDS por 240 a 235, mas no Senado tinha uma
vantagem de 46 sobre 23 da oposição. No colégio eleitoral (formado por ambas as
casas do Congresso mais seis representantes do partido majoritário em cada
estado) o PDS tinha uma maioria de-356 sobre um total de 330 das oposições
reunidas.

Vários aspectos desses resultados mereceu observação. Primeiro, o partido do
governo perdera a maioria absoluta na Câmara dos Deputados. Se a oposição
votasse unida podia vetar qualquer lei proposta pelo governo (embora o Planalto
contasse com o decurso de prazo se não houvesse votação). Segundo, mesmo para
manter sua relativa força no Congresso e no colégio eleitoral, o governo tinha
que depender fortemente dos estados menos populosos e menos desenvolvidos, onde
os governos podiam colocar a máquina de favores públicos a serviço do PDS para a
obtenção de votos.

Os problemas governamentais eram igualmente evidentes nas chefias de
Executivos estaduais. O PDS era pretensamente o partido do governo mas seus
líderes nem sequer eram ouvidos na hora das decisões, mesmo quando o partido era
diretamente interessado. Como resultado, os líderes pedessistas eram
identificados com políticas que não ajudaram a formular. Eles eram "do" governo,
mas não estavam "nele", o que os tornava extremamente vulneráveis nas urnas.
Votar contra os candidatos do PDS era para o eleitor comum o melhor meio que
encontrava para se manifestar contra o governo militar de Brasília.
Figueiredo: o crepúsculo do governo militar

455 A oposição conquistou os governos de nove estados, inclusive São Paulo, Rio

de Janeiro, Minas Gerais e Paraná.62 Leonel Brizola, que os militares
continuavam a hostilizar, foi eleito governador do estado do Rio, tendo como
vice-goverador Darcy Ribeiro, que, na qualidade de assessor de Goulart,
conclamou o povo a ganhar as ruas contra o golpe de 1964.63 Com efeito, tanto
Brizola (agora social-democrata ao estilo da Europa Ocidental) quanto Darcy
passaram a adotar atitudes moderadas (induzidas talvez por suas reflexões
enquanto no exílio). Brizola procurou realizar um programa mais ou menos
populista, inclusive com a construção de escolas pré-fabricadas, os Centros
Integrados de Educação Popular (CIEPs), mais conhecidos como
"Brizolões", que deveriam servir também como centros comunitários. Os demais
oposicionistas que conquistaram governos estaduais eram políticos do PMDB, como
Franco Montoro, em São Paulo, e Tancredo Neves, em Minas Gerais.
______
62. Para uma avaliação por um veterano estudioso das eleições brasileiras, ver
Ronald M. Schneider, 1982 Brazilian Elections Project Final Report: Results and
Ramifications (Washington, Georgetown University Center for Strategic and
International Studies, 1982). Uma utilíssima apreciação das eleições e do
sistema partidário de 1964 até as eleições de 1982 é feita no capítulo 4 de
Robert Wesson e David Fleischer, Brazil in Transition (New York, Praeger,
1983). Para uma coleção de detalhados estudos sobre as eleições de 1982, ver
Revista Brasileira de Estudos Políticos, N.° 57 (julho de 1983). Os vínculos
entre as eleições de 1982 e a eleição presidencial de 1985 são explorados em
David Fleischer, "Brazil at the Crossroads: The Elections of 1982 and 1985",
em Paul W. Drake e Eduardo Silva, eds., Elections and Democratization
in Latin America, 1980-1985 (San Diego, University of Califórnia, San Diego,
Center for Iberian and Latin American Studies, 1986), pp. 299-327. Detalhes
sobre as eleições em estados nordestinos-chave são dados em Joaquim de Arruda
Falcão Neto, ed., Nordeste: eleições (Recife, Massangana, 1985). O lado mais
leve da campanha é apresentado por Carlos Eduardo Novaes, Crónicas de uma brisa
eleitoral (Rio de Janeiro, Nórdica, 1983). Para preciosas informações sobre as
tendências mais profundas em ação nas eleições pós-1964, ver Raimundo
Pereira, Álvaro Caropreso e José Carlos Ruy, Eleições no Brasil pós-64 (São
Paulo, Global, 1984) e Gláucio Ary Dillon Soares, Colégio eleitoral, convenções
partidárias e eleições diretas (Petrópolis, Vozes, 1984).
63. Para uma análise da composição racial dos eleitores de Brizola até onde
se pode saber - ver Gláucio Ary Dillon Soares e Nelson do Valle e Silva, "O
charme discreto do socialismo moreno", Dados, XXVIII, N.° 2 (1985), pp. 253-73.

456 Brasil: de Castelo a Tancredo
Um exame mais atento nos resultados das eleições revelava que a oposição (PDT e
PMDB) fizera governadores no Centro-Sul mais desenvolvido, enquanto o PDS ficou
principalmente com o Nordeste e os estados escassamente povoados do oeste,
exceto Santa Catarina e Rio Grande do Sul, onde também ganhou. O PDS tinha a seu
favor uma margem de 14 votos no Congresso e de 38 no colégio eleitoral. Como os
votos do partido oficial, segundo a experiência do passado, não eram confiáveis,
o governo talvez viesse a ter problemas em futuras votações no Legislativo ou
até no colégio eleitoral.

O fenômeno mais interessante na política partidária foi o PT. Embora tivesse
conseguido menos votos do que os seus entusiastas esperavam, representou uma
força política nova e importante. O partido registrou-se em todos os estados
brasileiros, formando núcleos de voluntários locais que podiam ser da maior
importância em futuras batalhas eleitorais. A independência ideológica do PT foi
demonstrada pelo fato de que o Partido Comunista (PCB) o desprezou Iç^cpntinuou
a apoiar o PMDB, como o fez o maoísta PC do B. O verdadeiro problema do PT era
se ele podia crescer com a rapidez necessária para sobreviver sob a legislação
eleitoral. Como o governo estava fazendo tudo para dividir a oposição, poderia
dar ao PT o benefício da dúvida na aplicação da lei. Havia também o problema
maior relativo à capacidade do PT de atrair o enorme eleitorado urbano decisivo
em qualquer sistema democrático (uma pessoa/um voto).

Sua melhor performance em 1982 foi, o que não era surpresa, em São Paulo, não
somente na capital, mas também através de todo o estado. O partido elegeu seis
deputados federais por São Paulo, mais um por Minas Gerais e outro pelo Rio de
Janeiro. Lula concorreu para governador de São Paulo e perdeu para Franco
Montoro, senador com muita popularidade ali. Na verdade, Lula ficou em quarto
lugar, atrás de Jânio Quadros (PTB), o enigmático e imprevisível ex-presidente,
e do candidato do PDS, Reynaldo de Barros. O partido conseguiu eleger deputados
estaduais, prefeitos e vereadores, sobretudo no estado de São Paulo.64
________
64. Para uma análise da eleição de 1982 em São Paulo, ver Bolívar Lamounier e
Judith Muszynski, "São Paulo, 1982: a vitória do (P)MDB", (São Paulo, IDESP,
Texto n." 2, 1983). O fato de que Lula podia concorrer para governador de
São Paulo mas não para presidente do seu sin-

Figueiredo: o crepúsculo do governo militar 457
Quanto ao PMDB, demonstrou mais força e coesão do que vaticinavam os céticos.65
Muitos previram uma cisão no partido, com a direita, formando um Partido Liberal
centrista, e a esquerda, um Partido Socialista. Os dois principais estados que,
segundo as previsões, votariam no PMDB para governador - Rio Grande do Sul e
Pernambuco - não o fizeram por diferentes razões. No Rio Grande, Leonel Brizola,
que tinha influência em seu estado natal, cindiu a oposição apoiando seu próprio
candidato (PDT) que ganhou por maioria. Em Pernambuco, em compensação, o
vitorioso candidato do PDS beneficiou-se do velho clientelismo eleitoral no
interior e de uma hábil campanha difamatória contra Marcos Freire, o candidato
do PMDB que enfrentou divisões em suas próprias fileiras.

A oposição agora tinha o controle de estados-chave, mas o governo detinha
firmemente o Executivo federal. Os governadores oposicionistas Franco Montoro,
de São Paulo, Leonel Brizola, do Rio de Janeiro, Tancredo Neves, de Minas
Gerais, e José Richa, do Paraná, não tinham condições de empreender experimentos
radicais. Assumindo o poder em meio à pior recessão do Brasil desde a década de
30, eles precisavam muito de ajuda financeira e de outras formas de cooperação
de Brasília. Mas o governo Figueiredo não estava em posição de ser generoso,
pois já tinha sido forçado a subordinar metas domésticas ao serviço da dívida
externa. Pela primeira vez desde 1966 o Brasil estava modificando seus
agressivos objetivos de crescimento para satisfazer aos credores estrangeiros.

As resultantes políticas de austeridade significaram que os governadores da
oposição, altamente dependentes do governo federal em recursos financeiros,
ficaram sem dinheiro suficiente para atender às necessidades urgentes. Graças à
abertura, a oposição chegava ao poder, mas justamente numa hora em que a
economia
__________
dicato é um interessante exemplo da natureza arcaica da lei trabalhista
brasileira. Ou talvez a mensagem fosse corretamente transmitida: como governador
do estado ele representava um risco menor para o status quo do que como
presidente de um sindicato-chave.
65. Em meados de 1981 o partido começou a publicar a Revista do PMDB, contendo
manifestos do partido e artigos sobre os principais problemas econômicos e
sociais.

458 Brasil: de Castelo a Tancredo
se achava em pleno declínio. Isto poderia desacreditá-la? O eleitor estava tão
interessado em redemocratização quanto em prosperidade? Achava tratar-se de uma
transação entre ambas?

Um caso dramático aconteceu em São Paulo. No início de abril de 1983 uma
marcha de protesto dos desempregados foi organizada por um pequeno grupo
político da extrema esquerda. Sua intenção/^rà demonstrar que tinha bastante
força, mas perdeu o controle dos-manifestantes, os quais se dispersaram pelas
ruas da cidade, saqueando o comércio. Um grupo marchou para o Palácio do Governo
(Palácio dos Bandeirantes), onde pôs abaixo uma grade de ferro (mais decorativa)
que cercava o palácio e ficou a olhar para uma grande janela no andar superior,
de onde o governador Montoro, demonstrando profundo nervosismo, olhava para
baixo. O incidente no palácio acabou pacificamente e poderia ter sido
rapidamente esquecido, não fosse a fotografia amplamente divulgada de Montoro
visivelmente abalado na janela, olhando para os manifestantes e para a grade
derrubada. Essa foto inquietou muitos que acharam Montoro fraco demais para
liderar, e forneceu argumentos para os que diziam que o Brasil não estava
preparado para a democracia.

À Economia em profunda recessão

O colapso total da estratégia de crescimento esboçada no In Plano de Delfim
foi confirmado em 1982. Não cabia mais ao Brasil "escolher" ou "recusar" uma
recessão. Em fins de 1982 a necessidade de evitar a inadimplência externa
suplantou todas as demais metas econômicas. PIB, produção industrial, emprego,
bem-estar social, tudo ficou subordinado à descoberta de dólares para pagar os
juros da dívida. .

Numerosos eventos externos causaram as aperturas em que o Brasil se debatia.
Primeiro foram os choques do petróleo de 1974 e 1979. Depois foi a subida
vertiginosa dos juros do mercado do eurodólar de 8,7 por cento em 1978 para 17
por cento em 1981, salto provocado pela mudança radical na política monetária
dos Estados Unidos em 1979. Desencadeou-se em conseqüência grave recessão
mundial, que reduziu a demanda de exportações do Brasil, com substancial redução
da receita de suas vendas ao exterior.

Figueiredo: o crepúsculo do governo militar 459

Seguiu-se a queda nos termos de intercâmbio do país que sofreram uma redução de
46 por cento entre 1977 e 1982. Foi tremenda a seqüência de golpes, rematada com
o susto financeiro causado pela moratória mexicana em agosto de 1982.
O Brasil não estava só em seus apuros. A Argentina e o México haviam mergulhado
também na crise de pagamentos, como de resto quase toda a América Latina e o
Terceiro Mundo. Mas os responsáveis pela economia brasileira pensavam que eram
diferentes. Consideravam-se superiores no tratamento que dispensavam às contas
externas. A campanha sustentada de exportações, inclusive o firme crescimento da
parcela representada pelos produtos industriais, havia granjeado para o Brasil
alto conceito entre os banqueiros e analistas do mercado do eurodólar. Mas nem
por isso o país teve qualquer tipo de tratamento especial quando a tempestade se
abateu sobre as suas finanças.

Todos os economistas que orientavam a política econômica do governo estavam
agora desacreditados aos olhos do público, apesar do fato de que forças externas
incontroláveis exerceram enorme influência. Afinal, Delfim e sua equipe nunca
hesitaram em atribuir-se crédito pelo "milagre". Por que agora se devia negar-
lhes créditos pelo desastre? Quaisquer que fossem as metas anunciadas pelo
governo, e foram muitas, o público reagia com desprezo. O retundo Delfim, czar
inconteste da economia, era o tema favorito dos cartunistas. Muitos dos seus
críticos irritavam-se ainda mais ao saber que ele se divertia com os cartuns,
dos quais tinha em casa uma coleção emoldurada. Mas não se tratava mais da
sabedoria ou popularidade de Delfim. Agora o Brasil era obrigado a seguir os
ditames dos seus credores.

Após demoradas negociações, o governo Figueiredo assinou uma "carta de
intenções" com o FMI em janeiro de 1983, pela qual o Brasil se comprometia a
cumprir metas especificadas de política fiscal e monetária, assim como de
política cambial e tarifária. Para continuar a receber periodicamente parcelas
do empréstimo do Fundo ("drawing", no jargão da entidade), o Brasil teria que
alcançar as metas com as quais se comprometera, ou então reconhecer a sua falta
e pedir uma espécie de perdão (waiver). A natureza da receita do FMI para a
doença econômica do Brasil não causava surpresa. Seguia o paradigma clássico de
verificar por que o candidato potencial a empréstimo entrou em dificul-

460 Brasil: de Castelo a Tancredo
dades cambiais e como sair delas. O remédio consistia simplesmente na aplicação
de sua fórmula ortodoxa: reduzir a taxa de expansão da base monetária, apertar o
crédito, diminuir o déficit do setor público, fazer desvalorizações mais
freqüentes, eliminar subsídios e restringir aumentos salariais.

O recurso do governo Figueiredo ao FMI desencadeou uma onda de inflamados
protestos por parte dos economistas da oposição. Dentre estes, ,e mais conhecido
era Celso Furtado, um dos mais constantes e ^sistemáticos críticos da política
econômica do regime militar desde o golpe de 1964. Foi de sua autoria o enérgico
manifesto Não à Recessão e ao Desemprego, em que afirmava que "devemos nos
libertar da tutela do FMI e, como nação soberana, decidir até que ponto o Brasil
honrará seus compromissos financeiros no contexto da crise internacional". A
condenação de Furtado ao acordo com o FMI foi apoiada por manifestações de
revolta do segmento nacionalista da opinião brasileira. Mas não impressionaram
Delfim ou seus colegas que sabiam da fuzilaria que iriam provocar e também das
respostas que tinham na ponta da língua.66

Relações satisfatórias com o FMI eram essenciais porque os bancos comerciais,
detentores da maioria dos créditos contra o Brasil, agora aguardavam o sinal
verde daquela instituição para conceder novos empréstimos. Antes de 1982, eram
os próprios bancos que avaliavam a saúde econômica do Brasil na hora de
________
66. Celso Furtado, No to Recessíon and Unemployment: An Examination of the
Brazilian Economic Crisis (London, Third World Foundation, 1984), p. 3. O
original intitula-se Não à recessão e ao desemprego (Rio de Janeiro, Paz e
Terra, 1983). Uma lúcida análise da situação do Brasil à luz da política
do FMI é de Edmar Bacha, "Prólogo para a terceira carta", Revista de Economia
Política, In, N." 4 (outubro-dezembro de 1983), pp. 5-19. Para ataques mais
radicalmente nacionalistas, ver Argemiro lacob Brum, O Brasil no FMI
(Petrópolis, Vozes, 1984); Marco Antônio de Souza Aguiar, Marcos Arruda
e Parsifa1! Flores, Ditadura econômica versus democracia (Rio de Janeiro,
CODECRI, 1983); e Nilson Araújo de Souza, Sim: reconstrução nacional (São Paulo,
Global Editora, 1984). O autor afirma: "com o seu novo 'negócio' o FMI e os
banqueiros estrangeiros não pretendem atacar a inflação. Seu objetivo
é usar a devastação econômica que suas medidas provocarão a fim de preparar o
caminho para uma penetração mais profunda do capital imperialista em nosso país"
(p. 110). Para uma enérgica defesa do FMI contra tais ataques, ver Jahangir
Amuzegar, "The IMF Under Fire", Foreign Policy, N.° 64 (Outono de 1986), pp. 98-
110. O autor é um ex-diretor executivo do FMI.

Figueiredo: o crepúsculo do governo militar 461
rolarem velhos empréstimos ou autorizarem novos créditos. Para os economistas
brasileiros isto era bom, dava-lhes bastante espaço de manobra, já que nenhum
banco isoladamente, ou grupo de bancos, possuía uma equipe tão experimentada e
qualificada quanto o FMI. Esse privilégio acabou quando a ameaça de colapso
financeiro do México, em agosto de 1982, induziu os banqueiros assustados a
suspender novos compromissos e a transferir para o FMI o julgamento sobre a
credibilidade do Brasil.67

A cautela do consórcio de credores atendia à indignada oposição dos seus
acionistas à concessão de novos empréstimos (até prorrogações ou rolagens) a
clientes latino-americanos. Rédeas curtas ao Brasil era a palavra de ordem do
FMI, dos bancos comerciais e dos governos americano e europeus. Delfim Neto e
sua equipe passaram todo o ano de 1983 lutando pelos dólares necessários para o
Brasil manter atualizado o pagamento dos juros (amortização do principal era
coisa de que não se cogitava).

Nesse intervalo, a economia mergulhou ainda mais profundamente na recessão. O
PIB caiu 5,0 por cento em 1983, o pior desempenho desde a criação da
contabilidade da renda nacional. A indústria foi fortemente atingida caindo 7,9
por cento, enquanto o declínio do comércio foi de 4,4 por cento. Contrariando
esta tendência, a agricultura cresceu 2,1 por cento, devido principalmente ao
café e a outros produtos de exportação. A queda global de 5 por cento do PIB
traduziu-se em um declínio de 7,3 por cento da renda per capita.
A indústria de bens de capital foi a principal vítima da desaceleração da
economia. Sua produção caiu 23 por cento em 1983, o quarto ano consecutivo de
queda. Os seus melhores clientes, as empresas estatais, foram obrigados a
reduzir seus orçamentos como parte do programa de estabilização imposto pelo
FMI. As dívidas destas empresas ficavam atrasadas durante meses e até anos e
quando pagas não eram reajustadas pela correção monetária. Por causa disso
muitas firmas credoras das estatais faliram no final
_________
67. Para uma pesquisa jornalística sobre a capacidade do Brasil de continuar a
honrar o serviço de sua dívida externa, ver "When the Music Stopped", The
Economist, 12 de março de 1983. A conclusão do autor, depois de muitos
subterfúgios, foi otimista: "para credores bilionários, o Brasil em 1991 ainda
parece um bom risco".

462 Brasil: de Castelo a Tancredo
de 1983, ocasião em que a capacidade ociosa era estimada em
50 por cento. Esta alarmante situação fazia parte do que os críticos do governo
chamavam de "desindustrialização" do Brasil.

Em dezembro de 1983 o emprego nas regiões metropolitanas do Rio e São Paulo
caiu 15 por cento em comparação com as médias de agosto de 1978. A produção
industrial, especialmente atingida, caiu em fevereiro de 1984 em 14 por cento em
relação ao seu nível médio( no) decorrer de 1980. O emprego foi ainda mais
atingido. Comparado com a média de agosto de 1978, o emprego industrial em
dezembro de 1983 caíra 26 por cento na Grande São Paulo e 30 por cento no Grande
Rio. Os salários reais em São Paulo foram mantidos até 1982 mas caíram
acentuadamente em 1983 e primeiros meses de 1984. Estes dados sobre salários
médios na verdade subestimam o declínio, de vez que durante uma recessão os
trabalhadores com remuneração mais baixa são os primeiros a ser dispensados. Os
empregados de salário mínimo no Rio ou São Paulo sofreram até maiores perdas.
Coincidindo com a recessão, a inflação acelerou-se (gerando a "estagflação")
batendo novo recorde de 211 por cento em 1983, mais do dobro da de 1982. A estas
taxas, a inflação devastava a economia apesar da indexação. Os salários, por
exemplo, estavam agora perdendo seu valor real cinco vezes mais rapidamente do
que em 1978, o ano que precedeu imediatamente a decisão do governo Figueiredo de
reajustar os salários duas vezes por ano em vez de uma só vez. (Por esse
raciocínio, com uma inflação anual de 200 por cento, os reajustes salariais
deveriam ter sido pelo menos trimestrais.)

As autoridades brasileiras continuaram a reduzir as importações por todas as
formas imagináveis, no que foram ajudadas pela severa recessão industrial que
inibia as empresas de continuarem comprando no mesmo ritmo no exterior. Mas o
cancelamento de importações significava atrasos de manutenção, bem como perda de
novas tecnologias de que o Brasil necessitava para competir nos mercados de
exportação. Eram perspectivas sombrias a médio e longo prazo para o setor
industrial.

O grande déficit do setor público era outro item para o qual o FMI exigia
medidas drásticas. Cortando os orçamentos das empresas estatais e reduzindo
consideravelmente a coluna de despesas do orçamento fiscal em 1983, Delfim
conseguiu equilibrar todo o

Figueiredo: o crepúsculo do governo militar 463
orçamento do setor público. O custo foi elevado. O sistema universitário
federal, por exemplo, perdeu pelo menos 30 por cento de suas verbas reais de
1982 até o início de 1984. E as indústrias de construção civil, comunicações e
transporte, fortemente dependentes de encomendas das empresas estatais, caíram
para 50 por cento de sua capacidade ou até mais.

Outra área política importante eram as taxas de juros. Vimos anteriormente
como no final dos anos 70 o governo forçava o aumento dos juros internos acima
das taxas do eurodólar para maximizar empréstimos privados no exterior e assim
elevar os ingressos de capital. Esta política ajudou a reduzir ao mínimo a fuga
de capitais, mas também aumentou os custos dos negócios, alimentando
conseqüentemente a inflação.

Semelhante expediente aplicou-se ao financiamento do déficit do setor público
e da dívida interna. Para assegurar atraente taxa de retorno às ORTNs, os
títulos indexados do governo, seu valor de resgate foi vinculado à cotação do
dólar mais juros. Excedendo a desvalorização a taxa de inflação (ou indexação em
outros ativos), o investidor estaria ganhando. Foi o que aconteceu em 1983,
quando o dólar subiu em relação ao cruzeiro 289 por cento ou 78 por cento além
da taxa oficial de inflação. Esta fenomenal taxa de retorno real incentivou os
investidores a aplicar na "especulação financeira" e não em empreendimentos
produtivos. Com efeito, as empresas com dinheiro ocioso achavam mais lucrativo
comprar ORTNs do que reinvestir em seus próprios negócios.

Todas as demais medidas ortodoxas - contenção da política monetária e
"disciplina" salarial (que na prática significava redução dos salários reais) -
reforçaram a imediata desaceleração econômica. Em 1984 o Brasil vivia o seu
quarto ano sucessivo de declínio econômico. Seu PIB, em termos per capita, caíra
10 por cento entre 1980 e 1983. Anos de progresso econômico arduamente
conquistados foram devorados pela crise.68
68. Os dados são da Fundação Getúlio Vargas e foram publicados em Jornal do
Brasil, 4 de junho de 1984. Em 1980-85, a América Latina como um todo sofreu um
declínio per capita no PIB de 8,9 por cento. Bela Balassa, et ai., Toward
Renewed Economic Growth in Latin America (Washington, Institute for
International Economics, 1968). Para uma interessante análise do vínculo entre
política em geral e política econômica,

404 Brasil: de Castelo a Tancredo
Vozes nacionalistas, que raramente se faziam ouvir nos dias do "milagre",
começaram agora a merecer mais atenção. O presidente nacional do PMDB Ulysses
Guimarães rejeitou as fórmulas do FMI como "extremamente nocivas". Como o Brasil
precisava de mais dinheiro, "a única saída é uma moratória de três anos, sem
pagamento nem dos juros nem do principal".69

Tais opiniões preocupavam os militares, que logo depois do golpe de 1964
expurgaram tanto do Congresso quanto das forças armadas aqueles com sentimentos
nacionalistas mais exaltados. Mas os militares tinham preocupações mais
imediatas. As quase duas décadas que permaneceram no poder haviam desgastado o
seu prestígio público e sua moral interna. Escândalos financeiros envolvendo
oficiais de alta patente estavam explodindo regularmente nas primeiras páginas
dos jornais. Aumentava o ressentimento com o número de cargos altamente
remunerados nas empresas statais ocupados por militares na reserva. A longa
campanha contra a tortura aprofundara na mente do público a associação entre os
militares e a repressão. Havia outro indicador que demonstrava para alguns
oficiais a queda do prestígio militar, a crescente percentagem de cadetes das
classes baixa e média nas academias militares.70

Por outro lado, a cúpula militar estava profundamente inquieta com o
obsoletismo dos seus equipamentos. Armados com material inclusive política da
dívida externa após 1973, ver Bolívar Lamounier e Alkimar R. Moura, "Economic
Policy and Political Opening in Brazil", em Jonathan Hartlyn e Samuel A. Morley,
eds., Latin American Political Economy (Boulder, Westview Press, 1986), pp. 165-
96.
69. jornal do Brasil. 9 de agosto de 1983.
70. Foram muitos os comentários sobre a presença de militares na faixa
superior de cargos da burocracia oficial, como o de Walder de Góes, "Militares
ocupam 1/3 dos cargos federais", O Estado de S. Paulo, 25 de novembro de
1979. Dados sobre a crescente percentagem de cadetes das escolas militares
oriundos da classe média baixa e das classes inferiores são analisados em Frank
D. McCann, "The Military Elite", em Michael Conniff e Frank D McCann, eds.,
Elites and Masses in Modern Brazil (no prelo). A questão dos antecedentes de
classe é baseada em uma comparação dos cadetes de 1985 com os do período 1955-
79. Comparar um ano com 24 é talvez uma forma questionável de fazer
estatística, mas, afinal, o importante é a opinião da oficialidade.

Figueiredo: o crepúsculo do governo militar 465
bélico norte-americano largamente ultrapassado, os serviços militares reagiam
contra a relativa negligência com que foram tratados seus orçamentos pelos
sucessivos governos revolucionários. De 1970 a 1981 o total dos gastos federais
com a defesa caiu de 9,36 por cento para 3,43 por cento, e como parcela do PIB
de 1,63 por cento para 0,67 por cento. O ministro do Exército Walter Pires
achou que os militares precisavam concentrar-se no seu fortalecimento como
instituição. Para isto, no entanto, precisavam abandonar certas comodidades
pessoais (muitas vezes lucrativas) e "voltar aos quartéis", atentos à política,
mas concentrados principalmente na necessidade de reorganizar e reequipar.
Paradoxalmente, os militares brasileiros estavam usando o desejo das lideranças
civis de vê-los afastados da política a fim de defenderem o aumento
dos seus orçamentos.71

A Campanha por eleições presidenciais diretas

À medida que a economia se deteriorava, o Planalto também tinha que enfrentar
uma situação política cada vez mais desgastada. Os resultados das eleições de
1982 minaram o controle de postos políticos importantes detidos pelos governos
militares anteriores. O PDS não somente perdeu a maioria na Câmara dos
Deputados, como também perdeu os governos de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São
Paulo. Além disso, o presidente Figueiredo se achava em posição mais fraca, pois
a maior parte dos poderes arbitrários
__________-
71. Os dados sobre gastos com defesa foram bondosamente fornecidos por Mr. John
Bowen, adido econômico junto à Embaixada dos Estados Unidos em Brasília. Esses
dados são enviados ao FMI que em seguida os torna disponíveis para o governo dos
Estados Unidos. A justificativa para a estratégia dos militares é abordada em
André Gustavo Stumpf, "Volta aos quartéis", Playboy, agosto de 1983. As
preocupações dos militares sobre equipamentos antiquados, orçamentos inadequados
e perda de prestígio são também documentadas em Stepan, Os militares, pp. 68-71
e pp. 85-93. Tais preocupações não eram novas. Em fins de 1971 o chefe do
estadomaior das forças armadas, general Souto Malan, propôs um "desengajamento
controlado das forças armadas" juntamente com uma "reorganização e reequipamento
do Exército". O Estado de S. Paulo, 15 de dezembro de 1971.

466 Brasil: de Castelo a Tancredo
que tiveram os três últimos presidentes, especialmente: Q. A|-5, o general
Geisel revogou.

Figueiredo ainda tinha outra desvantagem - seu precário estado de saúde. Ele
sofrera um ataque cardíaco em setembro de 1981, e em julho de 1983 voou para
Cleveland, Ohio, para uma cirurgia de ponte-safena, sendo novamente substituído
(como em 1981) durante seis semanas pelo vice-presidente Aureliano Chaves. Ao
deixar o hospital, Figueiredo recebeu ordens médicas para reduzir sua carga de
trabalho, abandonar o fumo e perder peso. Como o sistema presidencial (militar
ou não) no clima político cada vez mais aberto do Brasil exigia a constante
presença e intervenção do chefe do governo, reduzindo a sua atividade, ele via
também reduzida sua eficiência no centro do governo. Seu estado de saúde
reforçava outro aspecto, em geral típico de militares no exercício da política:
a antipatia pela negociação. E o presidente já não tinha nem paciência nem
temperamento para realizá-la. ^Mesmo nas melhores situações, as coisas não se
lhe tornavam mais fáceis. Como podia manter a distância a oposição em favor de
um PDS que se consumia em manobras ineficazes ou divisionistas? A vitória
eleitoral do PMDB em 1982 deixara o presidente abalado. Por que o povo votara
contra tantos candidatos do PDS? Como puderam os líderes pedessistas errar
tanto quando lhe asseguravam que o governo tinha apoio popular? com os
resultados do pleito de 1982 como poderia o regime militar obter maioria em uma
disputa eleitoral pública? Esta pergunta atormentava todos os governos militares
desde 1964. O de Figueiredo foi o primeiro a enfrentar tal ameaça num fórum
político relativamente aberto. Mas um aspecto do sistema continuava a favorecer
o Planalto: a eleição presidencial ainda era indireta.

Outra vantagem de Figueiredo: o forte apoio que os militares lhe davam. Isto
ficou demonstrado mais uma vez no fim de 1982 quando o Alto Comando decidiu não
promover a quatro estrelas o general Coelho Neto, o líder da linha dura. Pelo
regulamento militar, Coelho Neto teve que passar para a reserva, desfazendo-se
assim o movimento que começava a se organizar em torno do seu nome com vistas a
lançá-lo no páreo da sucessão presidencial.

A legitimidade da eleição indireta, contudo, estava agora sob ataque frontal,
achando-se em andamento uma campanha em favor

Figueiredo: o crepúsculo do governo militar 467
de eleições diretas para presidente em 1985;72 com este objetivo fora
apresentada uma emenda constitucional pelo deputado do PMDB Dante de Oliveira em
março de 1983. Embora na época tivesse chamado atenção relativamente pequena, os
líderes peemedebistas perceberam que a idéia estava recebendo apoio popular cada
vez mais forte. Em abril de 1983 o Cardeal Arns e Dom Ivo Lorscheiter
(secretário geral da CNBB) apoiaram o movimento. Em junho a direção nacional do
PMDB lançou uma campanha nacional que começou corn um comício em Goiânia, corn a
presença de 5.000 pessoas.

Muitas prestigiosas figuras da oposição aderiram à campanha, entre as quais
Lula, figura obrigatória na maioria dos comícios, bem como os governadores
Leonel Brizola, Franco Montoro e Tancredo Neves. Mas os dois políticos que
gozavam de maior respeito eram Teotônio Vilela e Ulysses Guimarães. Teotônio era
um senador pelo estado nordestino de Alagoas que abandonara o PDS pelo PMDB em
abril de 1979.73 Com seu bigode curvado, os cabelos negros- caindo sobre as
orelhas, a face rija, era bem a caricatura do político latino. Chamava a atenção
pela sua voz de baixo e pelos floreios retóricos que tornaram famosos os
políticos nordestinos. Ninguém ignorava que ele estava morrendo de câncer e isto
imprimia maior urgência à sua mensagem. Teotônio bradava contra o governo
militar que empalmara poderes arbitrários indiferente às prementes necessidades
sociais, resumindo assim a luta da oposição desde 1964. Seu estilo era perfeito
para os comícios nas cidades do interior, pois os organizadores da campanha
estavam reservando as cidades maiores para uma fase posterior.

Ulysses Guimarães suportou bem os anos de repressão. Combateu firmemente os
governos militares, não os poupando por terem violado os direitos humanos e
subvertido o governo representativo. Mas nunca foi cassado nem privado dos seus
direitos políticos. Os militares pareciam considerá-lo uma figura cujo expurgo
seria cus-
______
72. Para um relato da campanha, ver Ricardo Kotscho, Explode um novo Brasil:
diário da campanha das diretas (São Paulo, Brasiliense, 1984). Uma narração mais
breve e repassada de poesia é a de Júlio César Monteiro Martins, O livro das
diretas (Rio de Janeiro, Editora Anima, 1984).
73. Vilela foi o tema de uma detalhada e simpática biografia: Márcio Moreira
Alves, Teotônio, guerreiro da paz (Petrópolis, Vozes, 1983).

468 Brasil: de Castelo a Tancredo
toso demais. Ulysses, como Teotônio, era um mestre na oratória política
tradicional - gestos amplos, voz penetrante, coragem total e capacidade de impor
respeito. Esses dois veteranos homens públicos, cujas raízes políticas
remontavam ao período anterior a 1964, simbolizaram a continuidade política, ao
lutarem pelo retorno do Brasil a um sistema político aberto.

A campanha pelas diretas gerou um ímpeto próprio. Em cidade após cidade o
público reagia entusiasticamente, mobilizado pela oposição, que geralmente
incluía o PMDB, o PDT (partido de Brizola) e o PT. Outras adesões foram
surgindo, como a das associações de advogados e dos principais jornais como a
Folha de S. Paulo. Importante contribuição foi dada também pelos artistas e
personalidades do show business que ajudaram a transformar os comícios em
grandes happenings culturais. A estrela maior foi Fafá de Belém, jovem e
conhecida cantora que se converteu totalmente à campanha, da qual se tornou a
própria personificação. Outros artistas populares foram Chico Buarque de
Holanda, compositor e cantor; Elba Ramalho, uma nordestina cujas músicas gozam
de grande popularidade; e o jogador da seleção brasileira de futebol,
Sócrates. O animador oficial dos comícios era Osmar Santos, conhecido locutor-
comentarista esportivo. Ao fim de cada comício ele entoava o hino nacional
brasileiro, que a multidão cantava vibrantemente, cumprindo assim o ritual corn
que a oposição demonstrava o seu patriotismo.

O governo Geisel abrira mais espaço para a participação do público. E os
líderes das diretas estavam explorando essa abertura, na medida em que a
campanha robustecia o espírito cívico dos brasileiros. Atribuindo a
personalidades do show business um papel proeminente, os organizadores retiravam
do movimento o seu caráter partidário (o PDS e o Planalto se uniram contra a
emenda das diretas quando a campanha começou).

Neste ponto ocorreu interessante reviravolta na cobertura jornalística.
Quando a campanha começou, a TV, sobretudo a TV Globo, ignorou os comícios, por
instruções do governo. Mas à medida que aumentava o entusiasmo popular, as redes
de televisão se deram conta de que estavam perdendo importante matéria
jornalística, bem como relevante evento político. Começaram então a cobrir os
comícios do princípio ao fim. Subitamente, aquele pode-

Figueiredo: o crepúsculo do governo militar 469
roso veículo, que o governo explorara tão habilmente, estava ajudando a
oposição. E a liderança era da TV Globo, à qual o governo militar proporcionara
a oportunidade de crescer e gerar polpudos lucros. Era uma dramática
demonstração de que o prestígio do governo estava declinando.

A campanha agora assumira um ar festivo. Os partidários das diretas
envergavam camisetas (algumas com as cores da bandeira brasileira) com a
inscrição "Quero votar para presidente". Os comícios eram sempre ordeiros,
mostrando uma disciplina que surpreendia os observadores nacionais e
estrangeiros. O clima de festa, de entusiasmo popular e de ordem tornou a
campanha difícil de ser desmoralizada pelos seus adversários, mas, mesmo assim,
foram feitos esforços com tal objetivo. O serviço de inteligência do Exército
fotografou os comícios, sobretudo as faixas que pediam a legalização do Partido
Comunista, e fez circular as fotos no Planalto. Mas passara o tempo em que esses
estratagemas da comunidade de informações desmantelavam os esforços de
organização e mobilização dos militantes oposicionistas. A explosão do
Riocentro foi o último hurra com que foi saudada a desordem direitista
patrocinada pelos militares.

A campanha das diretas concentrava-se agora na votação da emenda, marcada
para o fim de abril. Sendo emenda constitucional, precisava de dois terços dos
votos da Câmara e do Senado, o que parecia impossível. Afinal de contas, o PDS
controlava quase metade das cadeiras na Câmara dos Deputados (235 das 479) e bem
mais da metade (46 das 69) no Senado. Mas as fileiras do PDS estavam começando a
cindir-se. Governadores e deputados do partido do governo individualmente
estavam apoiando a emenda, encorajando os seus defensores. De repente a pergunta
que se fazia a cada parlamentar era sobre a sua posição quanto à emenda Dante de
Oliveira.

Ao se aproximar a data da votação, o número de comícios aumentou. No início
de abril mais de 500.000 pessoas se reuniram no centro do Rio de Janeiro,
aplaudindo os oradores que exigiam o direito de eleger o presidente diretamente.
Mais uma vez celebridades dos esportes e das artes eram as grandes atrações,
juntamente com governadores da oposição e líderes partidários. Foi o maior
comício político jamais realizado no Rio, ultrapassando mês-
a

470 Brasil: de Castelo a Tancredo
mo as concentrações recordes nas vésperas da Revolução de 1964. Em seguida
realizaram-se comícios em Goiânia e em Porto Alegre, ambos com um comparecimento
de cerca de 200.000. Em 16 de abril foi a vez de São Paulo, onde uma multidão de
mais de um milhão, a maior de todas, marcou o clímax da campanha.

A etapa final foi o monitoramento da votação no Congresso. Em todas as
capitais enormes cartazes foram erguidos com a relação dos seus representantes.
O voto de cada um seria anotado para que todos soubessem. Os defensores da
emenda pediram a seguir que a sessão fosse transmitida ao vivo pela televisão.
Eles sabiam que os congressistas hesitantes não teriam coragem de votar "não"
sabendo que seus eleitores estavam acompanhando os trabalhos ao vivo pela
televisão. Como solução de compromisso, o governo permitiu a transmissão direta
pelo rádio.

Desde o começo a campanha das diretas era vista com suspeita pelos militares.
Eles desconfiavam dos motivos dos seus organizadores - a simples participação de
Leonel Brizola ou Lula, por exemplo, era para muitos um sinal de perigo.
Revoltavam-se com os gigantescos comícios, lembrados das concentrações
inspiradas pela esquerda nas semanas finais da presidência de João Goulart em
1964. No entanto, esses preocupados militares não tinham como traduzir seus
receios em ação. Os líderes da linha dura tinham sido derrotados por Geisel e
desmoralizados mais uma vez no caso do Riocentro. Estavam portanto na defensiva,
posição cada vez mais comum para eles.

Mas a linha dura ainda possuía um porta voz no cenário público na pessoa do
general Newton Cruz, ex-chefe da agência do SNI em Brasília e agora comandante
militar do Planalto (Brasília). Cruz era um oficial beligerante, autocrático que
se desentendera com a imprensa em várias ocasiões, uma vez (dezembro de 1983)
agrediu um repórter agarrando-o pelo pescoço - cena imediatamente captada pela
TV e divulgada em cadeia nacional. Com os cabelos prateados, tentando sempre
intimidar os seus interlocutores, o general Cruz foi uma dádiva política para a
oposição. Embora pudesse denunciar os manifestantes e ameaçá-los com prisão, não
executava suas ameaças porque seus superiores, que passaram a adotar atitude
mais discreta, não o apoiariam. Simbolizava assim

471
o poder arbitrário mas impotente, desastrosa combinação naquele clima
político.74

Coma aproximação da votação da emenda no Congresso, o governo receou que os
líderes das diretas coagissem os legisladores com maciças manifestações. Com
este pretexto, Figueiredo impôs o estado de emergência em Brasília. Em resposta
os dirigentes da campanha convocaram o público para se dirigir rumo ao
Congresso, não para entrar no edifício, mas para desfilar em torno com seus
automóveis buzinando sem parar numa demonstração de apoio à emenda.

O general Cruz, responsável pela execução das medidas de emergência, tentou
impedir o "buzinaço" no dia da votação, 25 de abril. Quando viu que os
motoristas não lhe davam atenção, brandiu o chicote com que fustigava seu cavalo
sobre os capôs dos automóveis, como se fosse um George Patton redivivo.
Novamente a mídia captou os gestos com que dava vazão à sua fúria. O simbolismo
era inequívoco: a personificação do militar extremista parecia ao mesmo tempo
impotente e ridículo.

A votação terminou sem que a emenda conseguisse, para ser aprovada, a maioria
de dois terços. Perdeu somente por 22 votos. Precisava de 320 votos de um total
de 479 congressistas, e recebeu 298. Destes votos, 55 eram de deputados do PDS
que votaram a favor, apesar da forte pressão da liderança do partido e do
Planalto. A campanha chegara mais perto da vitória do que alguém teria ousado
prever um ano ou mesmo seis meses atrás. Não menos importante, seus
organizadores haviam realizado as maiores concentrações políticas jamais vistas
no Brasil.75

O presidente, o Planalto, a liderança do PDS e os militares foram todos
apanhados com a guarda baixa. Não podiam interrom-
_________
74. As ações do general Newton Cruz na época da votação pelo Congresso
das diretas são recontadas em Veja, 2 de maio de 1984, com informações
adicionais sobre sua carreira. Para uma análise das medidas governamentais
destinadas a controlar todo o sistema de comunicações referentes à votação da
emenda sobre eleições diretas, ver Moacir Pereira, O golpe do silêncio (São
Paulo, Global, 1984).
75. A reportagem de Veja sobre a rejeição da emenda Dante de
Oliveira sugeria que "a participação popular na campanha por eleições diretas
mudou o eixo central da política brasileira". Veja, 2 de maio de
1984.

472 Brasil: de Castelo a Tancredo
per nem ignorar a robusta campanha que empolgava o país. Alguns elementos eram
familiares, como o tom emocional e os apelos no sentido de pressões diretas
sobre o Congresso. Mas a campanha também tinha seu aspecto peculiar. Era o
ressurgimento do espírito cívico com uma dimensão sem precedentes, acrescendo
que nenhum candidato estava pedindo voto para si mesmo. Ao contrário, o objetivo
era restaurar o direito de voto. Era uma dramática mensagem da sociedade civil
que firmemente reconquistava a sua voz.

Aspirantes do PDS à presidência

A campanha pelas diretas colocou o Planalto em situação difícil. O presidente
obviamente desejava manter a eleição indireta porque contava com a maioria dos
votos do colégio eleitoral, protegendo assim os militares de surpresas na
sucessão presidencial. Tinha interesse também no pleito indireto porque
maximizaria sua influência. Seu problema era como defender esta posição em face
da crescente demanda do povo por eleições diretas. Figueiredo e seus assessores
pensavam que estavam operando a partir de uma posição de força, já que o PDS
dispunha de maioria no colégio eleitoral. Por isso, em meados de 1983, eles, e
quase todos os demais, achavam que a única questão significativa era quem seria
indicado na convenção do PDS. Nesse processo o presidente esperava indicar o
nome de sua preferência, e o colégio eleitoral controlado pelo partido do
governo elegeria o candidato do Planalto. O sistema das últimas quatro sucessões
presidenciais seria portanto mantido.

Havia três principais candidatos no PDS.76 O primeiro era Aureliano Chaves,
vice-presidente de Figueiredo. Com 55 anos, mineiro, civil e formado em
engenharia, como poucos políticos brasileiros, tinha formação técnica. Usou seus
conhecimentos de engenheiro no início da década de 60 em altos postos na
Eletrobrás
_______
76. Curtas biografias dos principais candidatos presidenciais encontram-se em
Villas-Boas Corrêa, et ai., Os presidenciáveis: quem é quem na maratona do
Planalto (Rio de Janeiro, RETOUR, 1983). No começo de 1984 Veja publicou
reportagens de capa sobre cada um dos três principais candidatos: Maluf (25 de
janeiro), Aureliano (8 de fevereiro) e Andreazza (22 de fevereiro).

Figueiredo: o crepúsculo do governo militar 473
e na Cemig, a empresa estadual de eletricidade. Começou sua carreira política
como deputado estadual pela UDN, chegando a líder do governo na assembléia
legislativa de Minas Gerais. Posteriormente serviu no secretariado do governador
Magalhães Pinto, um dos pais da Revolução de 1964. Eleito em seguida deputado
federal, foi um dos poucos deputados da ARENA que votaram em 1968 contra o
pedido do governo de suspensão das imunidades parlamentares de Márcio Moreira
Alves. Com esta atitude Aureliano entrou na lista negra de muitos militares,
mas sobreviveu como deputado federal especializado em política energética. Nessa
qualidade chamou a atenção de Ernesto Geisel, então presidente da Petrobrás, e
com a ajuda deste foi eleito (indiretamente) governador de Minas Gerais, de 1975
a 1978, quando renunciou para candidatar-se a vice-presidente na chapa de
Figueiredo.

À primeira vista Aureliano parecia um candidato improvável, tanto mais quanto
nenhum vice-presidente civil desde 1964 conseguira destacar-se de alguma forma.
Devendo suas posições aos militares, eram meras figuras decorativas. O veto
militar à sucessão de Costa e Silva por Pedro Aleixo por motivo da doença do
presidente, em outubro de 1969, comprovava esse fato.

Mas Aureliano Chaves tinha qualidades reais. Segundo os militares, ele
possuía estatura moral para presidente, pois quando exerceu o cargo
interinamente, em 1981 e 1983, demonstrou boa capacidade de julgamento e
elogiável compostura. Possuía também as credenciais de um leal ex-líder da UDN e
da ARENA. O fato de ser mineiro era igualmente uma vantagem, pois os filhos de
Minas Gerais possuíam um relacionamento político altamente eficiente (canalizado
pela identidade partidária) através de todo o país.

O vice-presidente tinha também suas desvantagens. Durante o período em que
atuou como presidente em exercício a imprensa o descreveu como enérgico e
eficiente, suscitando ressentimentos nos círculos presidenciais. Foi isto, na
verdade, que acabou com as suas chances de obter o apoio de Figueiredo. Ele
tinha também outros problemas. Como vice-presidente, foi perdendo gradualmente
sua base política. Em Minas Gerais o governador era Tancredo Neves (PMDB), o
qual, como líder do PSD pré-1965, era velho adversário da UDN, o antigo partido
de Aureliano. Como vicepresidente, ele não podia divergir muito dos pontos de
vista do

474 Brasil: de Castelo a Tancredo
presidente, com receio de enfraquecer o Planalto e desmoralizar-se como desleal.
Isto o prejudicou, principalmente nas questões económicas, já que o povo culpava
Figueiredo pelo aprofundamento da recessão. Finalmente, o vice-presidente era um
homem impulsivo, de pavio curto.77 Este aspecto do seu temperamento podia
prejudicar sua capacidade de negociação, qualidade extremamente necessária numa
hora em que os militares estavam se afastando do poder.

O ministro do Interior Mário Andreazza, 65, era o segundo nome falado para a
presidência. Foi aluno da escola militar no Rio de Janeiro e no Exército optou
pela arma de infantaria. Fez sua carreira nos quartéis até o posto de tenente-
coronel e em 1964 ingressou no staff do ministro da Guerra Costa e Silva. No ano
seguinte era promovido a coronel, seu último posto na hierarquia do Exército.
Andreazza ajudou a legitimar a ascensão de Costa e Silva à presidência com uma
campanha de relações públicas que apresentava o general como um liberal e homem
de born coração. Na chefia do governo, Costa e Silva o nomeou ministro dos
Transportes, cargo em que permaneceu no governo Mediei. Suas realizações mais
conhecidas foram a rodovia Transamazônica e a ponte Rio-Niterói sobre a baía de
Guanabara. Ambos os projetos foram considerados caros demais em face dos seus
prováveis benefícios. Como ministro do Interior de Figueiredo, Andreazza
novamente envolveu-se com grandes projetos de obras públicas, especialmente nos
setores de habitação, abastecimento de água e eletrificação. Através dos anos
ele teceu uma rede formidável de contatos pessoais e políticos pelo país afora.
com o seu orçamento (em 1984 o Banco Mundial programou o financiamento de mais
ou menos um bilhão de dólares de projetos através do Ministério do Interior)
adquiriu obviamente considerável força política. Os projetos do seu Ministério
eram realizados nas regiões economicamente menos desenvolvidas, que eram também
os centros de influência eleitoral do PDS, fato que aumentou sua vantagem na
campanha por votos, durante a convenção pessedista, para a escolha do candidato.
________
77. Aureliano era também halterofilista, o que dava outra dimensão ao seu
temperamento. Thales Ramalho, veterano congressista, disse: "Aureliano foi
o único deputado que eu jamais vi levantar um assento inteiro. Julgando-se
insultado pelo [deputado do MDB] loão Herculino avançou para ele". Veja, 8 de
fevereiro de 1984.

475
Andreazza tinha a vantagem adicional (para os eleitores do PDS) de ser uma
fisionomia conhecida, alguém que exerceu a responsabilidade ministerial em três
governos militares. Para os políticos pedessistas que detestavam surpresas,
Andreazza era a escolha óbvia. Mas os seus muitos anos de experiência também o
transformaram em alvo de freqüentes acusações de corrupção. Os boatos de
propinas que embolsara em troca da concessão de contratos para a construção da
ponte Rio-Niterói continuavam em circulação. As suspeitas de corrupção o
prejudicaram entre os militares mais moralistas, bem como entre alguns políticos
e setores influentes na formação da opinião pública. Seu nome ficou
irremediavelmente comprometido, como certos objetos desbotados por demorada
exposição ao tempo - não era o que os progressistas do PDS queriam
para um tempo de transição.

O terceiro principal aspirante a candidato pedessista era Paulo Maluf, 52. Ao
contrário de Aureliano ou Andreazza, não participava do governo Figueiredo.
Contudo, trabalhava sem parar para conquistar as boas graças do presidente ou
pelo menos assegurar-se de sua neutralidade no processo de escolha do candidato.
Qualquer pessoa politicamente informada no Brasil geralmente se extremava na
linguagem ao falar de Maluf. Pertencente a um clã riquíssimo de São Paulo (de
origem libanesa) proprietário da Eucatex, poderosa firma de materiais de
construção, é casado com Sílvia Lutfalla, também originária de outra família
muito rica. Maluf portanto fazia política com mais dinheiro de sua família do
que qualquer outro político brasileiro. Ingressou na vida pública graças à sua
amizade com o presidente Costa e Silva (travaram relações porque ambos eram
amantes de corridas de cavalo) que o nomeou presidente da Caixa Económica
Federal de São Paulo em 1967. Voltando a ajudá-lo, o presidente providenciou
para que ele fosse nomeado prefeito de São Paulo em 1969. Como prefeito, deu de
presente um automóvel a cada membro da seleção brasileira de futebol campeã do
mundo. Era uma característica do seu estilo político e dizia muito sobre a
importância de símbolos-chave no Brasil autoritário.

Com a morte de Costa e Silva acabou o apoio de Brasília a Maluf mas não
as suas ambições políticas. Seus olhos não viam outra coisa a não ser o governo
de São Paulo. A disputa seria decidida

476 Brasil: de Castelo a Tancredo
na convenção da ARENA de 1978, já que o partido oficial tinha confortável
maioria no colégio eleitoral. Laudo Nàtel, um exgovernador, era fortemente
apoiado tanto pelo presidente Geisel como pelo presidente eleito Figueiredo. Sua
indicação era praticamente uma certeza. Mas para surpresa de muitos, Maluf
ganhou a convenção, derrotando Natel. Ganhou porque trabalhou infatigavelmente
junto aos membros da convenção fazendo-lhes generosas promessas, de par com a
exposição minuciosa de seu ambicioso plano de governo. Ele beneficiou-se também
do clima de independência política que a nação respirava. Desafiar instruções de
Brasília não era compatível com a abertura?

Como governador, Maluf foi um furacão em termos de atuação administrativa,
construindo escolas, postos de saúde e rodovias. Teve também iniciativas
quixotescas, como a proposta de mudar a capital para o interior,78 e a criação
de uma empresa para exploração de petróleo (Paulipetro). Ambas as idéias não
conseguiram sobreviver ao seu governo. Ele usou o mandato de governador do mais
rico estado do Brasil para promover sua candidatura à presidência. Uma das suas
táticas que logravam farta publicidade era a doação de ambulâncias a cidades
pobres do interior nordestino. Outro ardil era conceder medalhas a brasileiros
de várias partes do país que mandava buscar (pela VASP, a companhia aérea do
estado) e hospedava em hotéis de luxo por conta do governo. A acusação que
geralmente lhe faziam era de corrupção. Mas nenhuma foi provada. Tanto O Estado
de S. Paulo quanto a Folha de S. Paulo combatiam Maluf e presumivelmente,
através de seus repórteres, tudo fizeram para descobrir a sujeira do governador,
mas sem êxito. Seu sucessor (Franco Montoro) passou meses vasculhando tudo para
ver se conseguia provas, mas também nada conseguiu. Acabou afirmando
que Maluf habilmente encobrira as pistas (argumento que pela sua natureza nunca
pode ser refutado) e atacando a imprudência de empreendimentos como a Paulipetro
e projetos hidrelétricos desnecessários. Quanto à sua ideologia, Maluf era
claramente um conservador, como demonstrou com sua hostilidade à greve dos
metalúrgicos em abril de 1980 e com a violenta
________
78. Maluf tomou como modelo vários dos recursos usados pelo ex-presidente
Kubitschek e denominou sua plataforma de "Esperança", palavra favorita de
Juscelino que cognominou Brasília de "capital da esperança".

Figueiredo: o crepúsculo do governo militar477
repressão de protestos públicos em junho de 1980.79 Ele teve um poderoso
advogado no general Golbery, que o descreveu como um "empresário bem-sucedido,
progressista, dinâmico e inteligente" que possui as "melhores qualidades para
enfrentar o difícil período que nos aguarda".80

Maluf renunciou ao governo em maio de 1982 para concorrer a deputado federal
nas eleições de novembro, tendo obtido o recorde brasileiro de 673.000 votos. De
Brasília, tratou de fortalecer ainda mais a sua candidatura, concentrando-se
sobretudo no PDS do Nordeste, que cortejara tão avidamente. Como a campanha era
pelos votos do colégio eleitoral e não da opinião pública, tratou de trabalhar
os 686 deputados, senadores e delegados estaduais. Logo, entretanto, os seus
adversários o acusaram de estar comprando votos.

Maluf, contudo, tinha muitos admiradores através do país. Seus partidários
exaltavam-lhe a lendária capacidade de organização e sua prodigiosa memória,
especialmente para nomes e fisionomias. Ele procurava projetar a imagem de um
líder forte, alguém que podia organizar (diziam alguns) a eternamente
desorganizada cidadania. Seu modo de agir agradava especialmente os
conservadores que temiam a força da esquerda em um sistema mais aberto. As
violentas medidas que adotou como governador contra sindicatos, estudantes e
manifestações públicas de protesto eram exatamente o que, para os conservadores,
estava faltando no plano federal.

Maluf provocava quase apoplexia na esquerda, em boa parte do centro e até em
alguns membros do PDS, que o viam como uma ameaça à democracia emergente. O ex-
governador da Bahia António Carlos Magalhães, por exemplo, declarou em agosto de
1984 que Maluf era o homem mais odiado do Brasil e que não podia andar um
quarteirão sem arriscar sua vida. Imediatamente os
__________
79. Uma publicação hostil a Maluf é de autoria de Fernando Moraes, et al.,
Freguesia do Ò: o inquérito que desmascarou as brigadas de Paulo Maluf (São
Paulo, Alfa-Ômega, 1981).
80. O endosso de Golbery veio em "Basta de trapaça", Veja, 16 de maio de 1984,
uma entrevista em que ele deu sua opinião sobre o cenário político, condenando a
"intoxicação emocional" dos comícios das diretas (depois de elogiá-los como
magnífico espetáculo de civismo) e criticando o assessor presidencial Leitão de
Abreu (que o sucedeu no Planalto) por Pregar a dissolução do sistema partidário
existente.

478 Brasil: de Castelo a Tancredo
advogados do ex-governador paulista entraram com um processo por injúria contra
António Carlos. Hipérboles desse tipo eram a regra quando a discussão girava em
torno de Maluf. Quanto mais ele intensificava sua campanha tanto mais divisões
causava nas fileiras do PDS.

Outros aspirantes a candidatos pelo PDS não pareciam ter grandes chances. O
mais conhecido era Marco Maciel que, eleito deputado federal pela ARENA na
década de 70, logo ascendeu à presidência da Câmara dos Deputados. Foi
governador de Pernambuco por nomeação elegendo-se em seguida senador em 1982. Ê
um jovem político que tem por vício o trabalho, e que ajudou a construir a base
para a redemocratização do Brasil.81 De temperamento retraído, seria talvez
escolhido se houvesse um impasse entre os primeiros colocados.

José Costa Cavalcanti foi outro candidato muito comentado. Começou sua
carreira como oficial do Exército, mas passou para a reserva a fim de
candidatar-se a deputado federal na década de 60, elegendo-se pela UDN. Foi
ministro nos governos Costa e Silva e Mediei. Em 1983 era diretor geral da
Itaipu binacional, a empresa construtora da gigantesca represa no Rio Paraná
entre o Brasil e o Paraguai. Tinha a fama de excelente administrador, mas
faltava-lhe força política.

Hélio Beltrão, ministro da Desburocratização do governo Figueiredo, era outra
possibilidade remota. Seu posto, sem precedentes, era uma espécie de
superombudsman. Encorajou os brasileiros a entrarem em contato diretamente com
ele sobre qualquer problema que tivessem no trato com a burocracia federal,
prometendo cuidar pessoalmente de todas as queixas. Embora ele tenha certamente
ajudado muitas pessoas, a novidade esvaiu-se porque a tarefa era colossal e o
prestígio eleitoral de Beltrão ofuscou-se. Sua principal base de apoio era a
comunidade empresarial que lhe conhecia os antecedentes no comércio do Rio de
Janeiro e seu compromisso de reduzir o setor público em benefício de um clima
econômico mais favorável para o setor privado.

O governador da Bahia António Carlos Magalhães e o ministro da Educação Rubem
Ludwig foram outros candidatos. Ambos
______
81. Para uma coleção dos discursos de Maciel, ver Marco Maciel, Vocação
e compromisso (Rio de Janeiro, José Olympio, 1982).

Figueiredo: o crepúsculo do governo militar 479
eram capazes como políticos, cada um a seu modo, mas suas chances de escolha
eram muito remotas.

Na luta que se seguiu pela sucessão os jornalistas freqüentemente informavam
que Andreazza era o preferido de Figueiredo. De quando em quando a imprensa
anunciava uma data em que o presidente diria de público o nome do seu
candidato.82 A cada data que passava sem o anúncio, Andreazza parecia mais
fraco, já que colocara sua campanha na dependência das bênçãos presidenciais,
que ele (e muitos outros) presumia ser iminente, tal como Geisél fizera no caso
de Figueiredo. Maluf temia tal apoio a Andreazza e trabalhava freneticamente
para evitá-lo.

Em junho de 1984 muitos membros do colégio eleitoral não estavam
comprometidos, e tanto Andreazza quanto Maluf tinham número mais ou menos igual
de partidários entre os delegados dispostos a declarar sua preferência.
Aureliano Chaves estava particularmente em desvantagem nessa luta. Embora
ministros, como Andreazza, tivessem que silenciar suas críticas ao governo,
Aureliano, como vice-presidente, tinha muito mais dificuldade de se distanciar
do poder. Para ele, apoiar, como o fez, a emenda constitucional em favor de
eleições diretas para presidente apenas destruiu o apoio que Figueiredo lhe
prometera e que era crucial na convenção do PDS.

A própria posição política do presidente enfraqueceu-se quando a disputa
sucessória esquentou. Figueiredo dizia há vários meses que não tentaria ditar o
nome do seu sucessor. Ao contrário, prometeu deixar a escolha por conta da
convenção do PDS. Outros presidentes pós-1964 disseram o mesmo e não obstante
procuraram impor o seu preferido. Geisél conseguiu impor Figueiredo como
candidato do PDS e como novo presidente. Figueiredo estaria - manobrando
por trás dos bastidores para fazer o seu próprio sucessor?

As coisas complicaram-se quando o presidente mostrou claros sinais de que
desejava a prorrogação do seu mandato. Dois dos seus colaboradores, César Cais,
ministro das Minas e Energia, e o
_________
82. Uma reportagem em Veja, de 25 de janeiro de 1984, foi um dos primeiros
exemplos. Em junho, Figueiredo estava supostamente mantendo sua preferência por
Andreazza, mas não podia anunciá-la com receio de alienar Maluf. Ver
reportagens de Carlos Chagas em O Estado de S. Paulo, 3 e 9 de junho de 1984.

480 Brasil: de Castelo a Tancredo
chefe do SNI, Octávio Medeiros, abertamente concitavam o presidente a continuar,
talvez por mais dois anos, até que uma nova Constituição fosse adotada. Tal
ambição contrariava diretamente o consenso militar de pós-1964 de que nenhum
general-presidente sucederia a si mesmo (a prorrogação do mandato de Castelo foi
uma exceção). Figueiredo podia facilmente ter desautorizado aqueles balões de
ensaio, mas não o fez. Encorajando tal especulação, estava dividindo as forças
do governo que deveriam ter tido interesse em escolher um candidato forte capaz
de unificar os militares e seus aliados civis.83

O presidente afirmava que deixar a escolha por conta da convenção seria o
procedimento democrático. Enquadrava-se no espírito da abertura, cujo objetivo
era dar ao público maior participação na escolha dos seus líderes - meta apoiada
por toda a classe política. Além disso, contribuía para aumentar o prestígio e o
poder do PDS - meta apoiada por observadores externos que achavam que o Brasil
precisava fortalecer seus partidos. Juntamente com estas razões, havia também
fatores pessoais em causa. Em virtude do seu temperamento e dos seus problemas
de saúde, Figueiredo desejava permanecer fora da luta pela sucessão.

Figueiredo podia permitir-se esta posição em parte porque o PDS parecia
exercer firme controle sobre a próxima eleição presidencial. O colégio eleitoral
que elegeria o novo chefe do governo era de maioria pedessista (356 em 686), o
que significava que, ao longo de um novo mandato, o poder seria exercido por um
presidente escolhido sob a égide do governo militar. O Brasil continuaria assim
a ser governado por um presidente eleito indiretamente para uma terceira década
a partir da Revolução de 1964.

Este sistema era viável para o futuro? Todos os governos militares pós-1964
dirigiram o país com planos para situações específicas, casuísticas. Apesar das
repetidas tentativas de elaborar uma nova estrutura constitucional (1967, 1969 e
1977, para citar apenas os principais exemplos), o problema era sempre como
manter o poder com uma aparência de legitimidade eleitoral. A solução foi tornar
as eleições indiretas, permitindo representação maior às regiões rurais e ao
Nordeste.
__________
83. Stepan, Os militares, p. 79; Gilberto Dimenstein, et ai., O complô que
elegeu Tancredo (Rio de Janeiro, Editora JB, 1985), pp. 28-36.

481
Nem a equipe de Figueiredo nem a liderança do PDS formularam qualquer
estratégia viável para o longo prazo. Seu objetivo era ganhar a eleição
presidencial de 1985. Mas até isto foi uma ilusão, pois o presidente primeiro
encorajou a tese da prorrogação do seu mandato e depois se recusou a escolher um
candidato capaz de se impor ao PDS. Havia também a questão maior de como
transformar o PDS em um partido capaz de ganhar eleições em um Brasil cada vez
mais urbanizado.

A Vitória da Aliança Democrática

A estratégia agressiva de Maluf irritara o PDS. No início de 1984 ele estava
ganhando terreno, primeiro porque sua equipe era melhor equipada e possuía mais
recursos do que a de Andreazza, e segundo porque Aureliano se via inibido de
fazer campanha por causa de seus vínculos com o Planalto. No fim de junho as
forças anti-Maluf no PDS propuseram à Executiva Nacional do partido a realização
de uma consulta prévia nos estados para apurar as preferências das bases
pedessistas - medida destinada a prejudicar Maluf, que não gozava de
popularidade no interior. A resposta deste foi mandar que seus adeptos
superlotassem o recinto da próxima reunião da Executiva. O resultado foi que
eles perturbaram de tal modo os trabalhos que o seu presidente, José Sarney
(veterano senador pelo Maranhão), e outros membros contrários a Maluf
abandonaram a reunião renunciando imediatamente à Comissão Executiva Nacional. A
divisão nas fileiras do partido, a partir daí, continuou a aprofundar-se. Julho
trouxe outra surpresa para os líderes do PDS e seus eleitores: a retirada de sua
candidatura pelo vice-presidente Aureliano Chaves, que seguia o exemplo de Marco
Maciel, o qual também já se havia afastado da disputa, formando uma dissidência
no partido a que deu o nome de frente Liberal. A partir daí cortaram-se todos os
contatos com a Executiva Nacional do PDS dominada pelos malufistas.

A medida desencadeou a defecção em massa da elite política que vinha até
então apoiando o regime militar. A sucessão de políticos da UDN e do PSD que
colaboraram com os generais desde 1964 estava agora interrompida. Justamente
quando os militares estavam tentando começar a última etapa da transição os
políticos

482 Brasil: de Castelo a Tancredo
civis outrora "responsáveis" decidiram que já estavam fartos. Além disso,
acenava-lhes o objetivo da possível conquista do poder.

Maluf estava sendo o elemento de discórdia que seus críticos tinham previsto.
Mas os ataques que recebia apenas aumentavam a sua determinação. Em agosto veio-
lhe a recompensa com a escolha do seu nome para presidente pela convenção
nacional do partido. Foi uma vitória obtida através de intenso lobby junto a
cada delegado a quem Maluf fazia generosas promessas quando do loteamento dos
cargos públicos em seu governo. Mas o PDS estava muito dividido, com as forças
antimalufistas abertamente revoltadas.

O PMDB demonstrava estar mais unificado. Em meados de 1984 o nome do
candidato oposicionista em todas as bocas era o do governador Tancredo Neves, de
Minas Gerais.84 Tancredo foi deputado federal nas décadas de 60 e 70 e senador
de 1978 a 1982. Exerceu três postos-chave - ministro da Justiça (1953-54) no
governo do presidente Getúlio Vargas, uma diretoria do Banco do Brasil
(1956-58) no governo de Juscelino Kubitschek e primeiroministro durante o
parlamentarismo, em 1962, no governo de João Goulart (1961-64). Tinha 74 anos,
mas isto era uma vantagem para os muitos que viam nele a figura de um pai que,
como o primeiro presidente civil eleito desde 1964, podia unir o país. Sem nunca
ter adotado opiniões extremadas ou comportamento agressivo, Tancredo era o tipo
consumado do político.

Analisado por suas opiniões, era um moderado situado à esquerda do centro,
como demonstrava ao dizer que o Brasil não devia sacrificar o seu
desenvolvimento econômico para pagar a dívida externa. Na verdade, suas idéias
moderadas seduziam um público que ia do centro-direita ao centro-esquerda, e
isto o ajudava a tornar-se o candidato ideal contra Maluf. Em agosto Tancredo
foi escolhido pela convenção do PMDB.

Dentro de um mês ele enfrentaria um desafio público de uma área decisiva: os
militares. O ministro do Exército Walter Pires, conhecido no passado como linha-
dura, criticou asperamente os políticos da Frente Liberal que "haviam abandonado
seus compromissos" por um "futuro que parece mais sedutor".85 Era um
_________
84. Para uma narração detalhada do processo que levou à escolha do nome de
Tancredo, ver Dimenstein, O complô.
85. "A história secreta da sucessão", Veja, 16 de janeiro de 1985, p. 43.

Figueiredo: o crepúsculo do governo militar 483
julgamento ameaçador vindo da única área de poder que agora se interpunha entre
o candidato peemedebista e a presidência. Brasília estava repleta de boatos de
que um golpe se achava em preparação. Subitamente os muros foram tomados por
cartazes com Tancredo fazendo o sinal da vitória, tendo ao lado a foice e o
martelo, as letras PCB (Partido Comunista Brasileiro) e as palavras Chegaremos
lá! A polícia de Brasília prendeu vários rapazes que afixavam os cartazes e os
levou para a delegacia, de onde foram libertados por um homem que se identificou
como coronel do Exército. O serviço de inteligência do Exército (CIEX) ou free-
lancer a ele ligados procuraram inabilmente encobrir as pistas na seqüência de
uma operação de "desinformação".86

Havia também outros sinais de que um golpe estava em marcha. No fim de julho,
o Alto Comando do Exército dera ordens para que se aumentassem os estoques de
armas, combustível e alimentos. O general Newton Cruz, o divertido linha-dura
que exercia o comando militar do Planalto, planejou fechar Brasília para o dia
da eleição a fim de impedir manifestações públicas ou cobertura ao vivo da
votação pelo rádio ou a TV.87 Tal operação teria sido o prelúdio mais lógico de
um golpe, com a ocupação pelo governo dos edifícios públicos - tarefa simples em
Brasília com sua concentração de poder em pequena área. Em resposta a esses
boatos, Tancredo e seus assessores formularam um plano pelo qual ele fugiria
para Minas Gerais ou Paraná (dependendo dos comandantes militares locais), onde
organizaria a resistência aos golpistas.

Tancredo não ficou sequer perturbado. É que já havia tranqüilizado os
militares mais influentes de que não tinha intenção de devolver o país à fase
anterior a 1964. Igualmente importante, opôs-se publicamente a qualquer
tentativa de processar os militares ou os policiais acusados de tortura e outras
violações dos direitos humanos. Tancredo acalmou -as preocupações militares
explorando sua vasta rede de contatos militares, inclusive vários generais que
apoiaram Aureliano Chaves e outros tantos que colaboraram com Geisel. Melhor
ainda, fez contato direto com Geisel, que se mantivera relativamente distanciado
da política depois que se afastara
__________
86. p incidente está noticiado em Veja, 19 de setembro de 1984.
87. "A história secreta da sucessão", p. 42.

484 Brasil: de Castelo a Tancredo
da presidência. No fim de agosto os dois tiveram um encontro que recebeu a mais
ampla divulgação, no qual Geisel hipotecou discreto apoio a Tancredo. Foi um
grande respaldo à sua candidatura entre os militares, os quais continuavam a ter
grande respeito por Geisel.88 Os oficiais mais graduados concordaram em
desempenhar um papel discreto na sucessão presidencial, baseado na aceitação da
escolha do colégio eleitoral. Sinal importante da mudança ocorrida na opinião
militar foi a decisão do Alto Comando do Exército afastando de suas funções o
general Newton Cruz e transferindo-o para um posto burocrático.89

Maluf, enquanto isso, continuava a realizar o que a oposição nunca poderia
ter feito: rachar o PDS. A facção dissidente, o Partido da Frente Liberal (PFL),
juntou-se ao PMDB para criar a Aliança Democrática. Seu candidato à presidência
era Tancredo Neves e à vice-presidência, José Sarney, antigo militante da UDN e
posteriormente um baluarte do PDS. Ficou entendido que se a chapa da coalizão
ganhasse, haveria uma divisão dos despojos no novo governo.

O currículo político do senador Sarney era variado. À primeira vista ele
parecia o protótipo do político ao velho estilo brasileiro. Natural do Maranhão,
encravado no Nordeste acossado pela pobreza, estudou Direito, saindo
praticamente da faculdade para militar nas fileiras políticas da UDN.
Sobrevivendo às disputas locais, transferiu-se para o plano nacional como
deputado federal em 1958. Logo faria parte da chamada "bossa nova" da UDN, uma
facção nacionalista e reformista à esquerda do partido,90 dó
_______
88. Veja, 5 de setembro de 1984 e 16 de janeiro de 1985.
89. Os contatos de Tancredo com o ministro do Exército Walter Pires em novembro
de 1984 são descritos em Veja, 28 de novembro de 1984. O encontro de final
de dezembro de 1984 entre Tancredo e o comandante do Terceiro Exército
geners.1 Leônidas Pires Gonçalves, foi descrito como o que assegurou apoio
militar à eleição do candidato da oposição em janeiro. Veja, 14 de maio de 1986.
Para um minucioso relato da escolha do nome de Tancredo e de sua eleição para a
presidência, ver Veja, 16 de janeiro de 1986, que também inclui a citação de
Pires.
90. A facção udenista era rotulada com o mesmo nome de um género de música
popular. A facção oposta denominava-se "a banda de música" porque seus membros
tinham o hábito de sentar-se nas primeiras fileiras na Câmara dos Deputados
(perto dos músicos se fosse uma pista de dança) e de abrir as sessões com
agressivos ataques aos seus adversários.

Figueiredo: o crepúsculo do governo militar 485
qual foi eleito vice-presidente nacional em 1961. Usou o posto para promover
certas posições da "bossa nova", como a reforma agrária e o apoio ao programa de
estabilização econômica do presidente João Goulart (Plano Trienal). Tais
posições foram fortemente atacadas por líderes conservadores da UDN, como Carlos
Lacerda. Quando Jânio Quadros (que fora o candidato do partido) renunciou à
presidência em 1961, a distância entre a "bossa nova" e os conservadores
(conhecidos como "banda de música") aumentou consideravelmente. Vários líderes
da "bossa nova", como José Aparecido e Seixas Dória, foram privados dos seus
direitos políticos por 10 anos. Sarney, em compensação, aderiu à Revolução de
1964 escapando aos expurgos subseqüentes. Em 1965 foi eleito governador do
Maranhão quando aproveitou para fortalecer sua base política com a realização de
vários projetos de obras públicas.

Em 1970 ele voltou a Brasília como senador e logo se tornou ativo defensor
das políticas do governo. Aplaudiu a iniciativa de liberalização de Geisel e em
1977-78 desempenhou importante papel na elaboração da lei de reforma do
Judiciário e do sistema eleitoral. Lutou pela manutenção do sistema
bipartidário, mas perdeu para Golbery, que encorajava a criação de novos
partidos. Como líder nacional do PDS, Sarney se esforçou para dar ao partido um
"moderno" programa reformista dentro de claros limites capitalistas. Era a
mensagem da "bossa nova" com novo rótulo. Sarney chegara ao topo da
representação parlamentar do PDS pelo trabalho árduo, pela linguagem convincente
e por suas maneiras discretas. Com sólida base eleitoral no Maranhão, pôde se
dar ao luxo de concentrar sua ação na política nacional. Foi escolhido como
companheiro de chapa de Tancredo em 1984 não só porque era um dissidente
respeitado e sem atritos, mas também porque como nordestino poderia desviar
votos de Maluf. Em suma, Sarney era o tipo do político equilibrado em quem se
podia confiar para disputar a vice-presidência.

A criação da Aliança Democrática imediatamente modificou o panorama
eleitoral. Maluf, cuja estratégia supunha que ele tinha o controle do PDS, não
dispunha mais do voto maciço do colégio eleitoral que deveria ser uma
conseqüência natural de sua escolha. Ao contrário, o que ele assistia era a uma
defecção em massa dos pedessistas. Na esperança de detê-la, adotou uma medida
desesperada. Mandou o PDS anunciar a decisão de expurgar do partido

486 Brasil: de Castelo a Tancredo
qualquer dos seus membros pertencente ao colégio eleitoral que não votasse na
indicação partidária. A força de Maluf consistia nas promessas que fizera de
vantagens futuras aos seus eleitores, mas esta arma perdera sua significação
quando as suas chances de vitória desapareceram.

No início de setembro o ministro da Aeronáutica Délio Jardim de Mattos teve a
má idéia de acusar o ex-governador da Bahia António Carlos Magalhães de
"traidor" por apoiar Tancredo. António Carlos devolveu a chicotada: "traidor é
quem apoia um corrupto". A revista Veja disse depois que "fora a primeira vez em
20 anos que alguém usara aquele tom com um ministro militar".91

A campanha da oposição ganhou ímpeto motivada pelo enorme entusiasmo por
Tancredo. Sua personalidade e sua imagem eram exatamente o que o povo brasileiro
queria. Em outubro uma consulta de opinião mostrava Tancredo corn 69,5 por cento
de apoio e Maluf corn apenas 18,7 por cento.92 A mídia, especialmente a TV
Globo, era esmagadoramente pró-Tancredo. Com a continuação da campanha, Tancredo
alcançou proporções virtualmente míticas para a maioria dos brasileiros.
Enquanto isso, Maluf, cuja percepção de relações públicas era surpreendentemente
desastrada, surgia na TV e nos jornais como uma figura autoritária e algo
sinistra. A campanha de Tancredo, ainda que para uma eleição indireta, ganhava
força cada vez maior, pressionando os eleitores hesitantes no colégio eleitoral,
sob as luzes ofuscantes da TV, a votarem no candidato da oposição.

A 15 de janeiro de 1985 o colégio eleitoral elegeu Tancredo Neves e José
Sarney por 480 votos de um total de 686. Maluf recebeu apenas 180 votos. Houve
17 abstenções e nove ausências (aqui se incluindo políticos que optaram por
ficar fora da luta ou que - à esquerda - afirmavam que a eleição não tinha
sentido). A composição dos votos era reveladora: Tancredo obteve todos menos
cinco dos 280 votos^do PMDB; recebeu também 166 votos do PDS, quase tanto quanto
os 174 de Maluf. Foi uma autêntica vitória da coalizão.

Como foi possível? Afinal de contas, no início da década de 80 a cúpula
militar não fizera segredo de sua opinião de que a
_______
91. "A história secreta da sucessão", p. 39.
92. New York Times, 28 de outubro de 1984.

Figueiredo: o crepúsculo do governo militar 487
oposição não deveria assumir a presidência antes de 1991.93 Como pôde o governo
ter perdido? Somente por uma combinação altamente improvável de circunstâncias,
como afirmou Alfred Stepan. Primeiro, o candidato do governo alienou tantos
delegados do seu partido que eles desertaram do PDS para apoiar Tancredo.94 Este
uniu então a oposição e habilmente incorporou em sua fileiras os pedessistas
desertores. Figueiredo a esta altura decidira manter-se neutro - outra
contribuição decisiva para o' fortalecimento de Tancredo. Finalmente, os
militares resolveram, apesar da derrota certa de Maluf, permitir a realização do
pleito, contanto que as regras fossem observadas.95

Agora a questão era saber se a coligação vencedora poderia governar.

Reviravolta econômica

Os vencedores receberam um estímulo inicial representado pela melhoria da
situação econômica em 1984. A cruel recessão de 1981-83 fora a pior do Brasil
desde a Grande Depressão.96 Juntamente com o resto da América Latina, o Brasil
viu seus padrões de vida caírem ao mesmo tempo que exportava capital para os
seus credores do Atlântico Norte e japoneses. A recessão precipitara também uma
queda vertiginosa na popularidade do governo
________
93. Stepan, Os militares, p. 64.
94. A questão essencial está no período inicial da reportagem de uma revista em
setembro: "Hoje só há uma pessoa que é absolutamente indispensável para a
vitória de Tancredo Neves no colégio eleitoral em janeiro: o candidato do
governo, Paulo Maluf". Senhor, 5 de setembro de 1984, p. 30.
95. Stepan, Os militares, pp. 73-74. Para uma análise da inépcia das forças do
governo, incluindo não só as do Planalto mas também as do PDS, ver Gláucio Ary
Dillon Soares, "Elections and the Redemocratization of Brazil", em Paul W. Drake
e Eduardo Silva, eds., Elections and Democratization in Latin America, 1980-1985
(San Diego, University of Califórnia, San Diego Center for Iberian and Latin
American Studies, 1986), pp. 273-98. Soares inclui números mostrando o firme
declínio dos votos parlamentares combinados dos partidos conservadores de um
nível superior a 80 por cento em 1945 para apenas 40 por cento em 1978.
96. A dimensão humana da recessão é retratada em Folha de S. Paulo,
28 de maio de 1984.

488 Brasil: de Castelo a Tancredo
Figueiredo.97 O presidente, antes aplaudido por sua lei de anistia (1979),
entendia pouco de economia e demonstrava enfado ante as insistentes perguntas
sobre como o governo pretendia amenizar o desastre económico. Delfim tornou-se o
alvo favorito dos críticos; ele defendia as políticas governamentais atribuindo
as dificuldades da economia aos choques adversos do exterior.98 A impopularidade
ligada à recessão prejudicara o PDS nas eleições de 1982 e ameaçava resultado
semelhante nas futuras.

Em 1983 o país começou a refazer-se da recessão. Mas as coisas só melhoraram
a partir de 1984, quando a capacidade de utilização aumentou e o desemprego
caiu.99 O PIB recuperara-se atingindo respeitáveis 4,5 por cento em 1984. A
inflação, contudo, aumentara de 99,7 por cento em 1981 para 211 por cento em
1982 e 223,8 por cento em 1983. A inflação brasileira diferia muito da inflação
nas economias industriais, onde uma forte recessão normalmente a reduz. Para
muitos, a inflação brasileira havia 'ultrapassado o nível em que a indexação e
as minidesvalorizações conseguem neutralizá-la.

A indexação, por exemplo, tornara-se um incentivo para a especulação
financeira. Como os instrumentos de dívida do governo eram indexados pagando
adicionalmente juros, os investidores preferiam aplicar em papéis oficiais do
que em empreendimentos produtivos, onde os riscos eram mais elevados.
Entretanto, o governo tinha que manter altas as taxas de juros, a fim de
financiar o déficit do setor público. Todos concordavam que os incentivos aos
investimentos precisavam de um reexame.

Na área do balanço de pagamentos as notícias eram boas. A balança comercial
passara de um superávit de US$1,6 bilhão em
_____
97. Em fevereiro de 1984 a pesquisa Gallup informou que a popularidade do
presidente era a mais baixa jamais apurada, com 67 por cento desaprovando o seu
governo. Veja, 14 de março de 1984.
98. Um vereador de Salvador, Bahia, propôs a criação de uma "Penitenciária para
Tecnocratas", com Delfim Neto, Ernâni Galveas e Carlos Langoni como os seus
primeiros internos. Jornal da Bahia, 31 de maio de 1984.
99. A melhoria não chegou em tempo de interromper o projeto de uma escola
de samba de transformar Delfim em alvo de sua sátira no carnaval de 1984. Um dos
carros alegóricos da escola tinha a forma conhecida da maciça cabeça de Delfim,
com o pescoço emergindo de um saco de moedas. Veja, 14 de março de 1984.

Figueiredo: o crepúsculo do governo militar 489
1981 para US$6,5 bilhões em 1983 e, no ano seguinte, 1984 para US$13,1 bilhões,
número realmente sem precedentes. Este extraordinário resultado era devido
sobretudo a uma forte queda nas importações. Entre 1981 e 1983 as exportações
caíram de US$23,7 bilhões para US$21,9 bilhões (como resultado da queda da
demanda e dos preços no exterior) enquanto as importações caíram muito mais
acentuadamente, de US$22,1 bilhões em 1981 para US$15,4 bilhões em 1983. Somente
em 1984 as exportações voltaram a subir, chegando a US$27 bilhões. Assim o
equilíbrio comercial do Brasil explicava-se por sua capacidade de cortar
importações (grandemente ajudada pela recessão) mantendo ao mesmo tempo um bom
desempenho de suas exportações em face de uma economia mundial adversa.

Os superávits comerciais reduziram-se a nada em pouco tempo. A crise de
crédito provocada pela falência de fato do México em meados de 1982 levou os
banqueiros do eurodólar a reduzirem substancialmente seus empréstimos à América
Latina. Em 1981 o Brasil recebeu US$15,6 bilhões em novos empréstimos, mais do
que cobrindo os US$11,7 bilhões de déficit em conta corrente. Em 1982 os
empréstimos caíram para US$12,5 bilhões aquém do déficit de US$16,3 bilhões. Em
1983 caíram ainda mais, para US$8,2 bilhões, excedendo, no entanto, o déficit
muito meior de US$6,8 bilhões. Os empréstimos aumentaram ligeiramente em 1984,
para US$8,5 bilhões, mas então o déficit em conta corrente tinha se transformado
em pequeno superávit (US$166 milhões).

A excelente performance no setor externo encerrava vários aspectos
interessantes. Primeiro, a campanha brasileira em favor das exportações
continuava a dar bons resultados. As exportações estavam cada vez mais
diversificadas, fortalecendo a capacidade do Brasil de penetrar nos mercados
mundiais. Segundo, a economia continuava a substituir importações, política que
para muitos havia acabado. Os incentivos à expansão industrial eram grandes
porque o governo, em face da crise da dívida, limitava as importações. Terceiro,
a performance favorável do balanço de pagamentos a partir de 1984 dava ao
governo mais espaço de manobra em relação ao FMI. As reservas cambiais no fim de
1984 eram de US$12 bilhões. O governo civil que tomava posse em 15 de março de
1985 não teria necessidade de fazer novo acordo com o Fundo Monetário
Internacional. Pelo menos, não imediatamente.

VIII
A Nova República: perspectivas para a democracia

Com a eleição de Tancredo Neves, o Brasil teria o seu primeiro presidente
civil desde 1964, com a circunstância de ser um homem da oposição eleito por
desertores do partido do governo. Durante a campanha convergiram para Tancredo
de todos os lados extraordinárias demonstrações de apoio. De baixa estatura,
cauteloso, de fala suave e persuasiva, conciliador, político na acepção
tradicional, o presidente eleito era visto pelos brasileiros como um novo
Moisés, com a missão de conduzir o país do deserto da desesperança para uma nova
Canaã. Cada brasileiro via em Tancredo a encarnação de suas aspirações. E isto
lhe deu mais legitimidade do que a conferida a qualquer presidente eleito na
história do país.1
_________
1. A palavra-código para esta arte era conciliação. Em sua cobertura altamente
favorável da eleição de Tancredo, um importante semanário ilustrado afirmou:
"Como bom mineiro, Tancredo Neves conduziu sua campanha sob o signo da
conciliação", Manchete, 26 de janeiro de 1985, p. 12. "Conciliação", que bem
descreve a habilidade da elite política de disfarçar os conflitos de classes e
setoriais, é há muito o desespero daqueles que desejam rápidas mudanças sociais.
Para uma abordagem altamente inteligente deste tema, ver A "Conciliação" e
outras estratégias (São Paulo, Brasiliense, 1983) por Michel Debrun, filósofo e
cientista político francês há muito residente no Brasil. A imprensa,
esmagadoramente pró-Tancredo, ajudou a reforçar sua imagem de grande
conciliador. A reportagem de capa de Veja, de 19 de setembro de 1984, por
exemplo, intitulava-se Doutor em alianças: Tancredo aperfeiçoou a arte de unir
os contrários". A mais importante das mídias - a TV Globo - colocou-se
inteiramente a favor de Tancredo. Aliás, todos os observadores achavam que ela
exerceu m papel decisivo na promoção de Tancredo como salvador do Brasil.

492 Brasil: de Castelo a Tancredo
Nos três meses que precederam sua posse Tancredo viajou pelos Estados Unidos,
Europa e outros países da América Latina. Em Washington fez contatos com membros
do Congresso, da Casa Branca e das agências multilaterais de crédito. Conversou
também com grupos religiosos e acadêmicos que sempre criticaram o apoio
_________
A Nova República inspirou novas análises do estado da transição do Brasil para a
democracia. Uma foi de Flávio Koutzii, ed., Nova república: um balanço (Porto
Alegre, L&PM, 1986), que inclui capítulos sobre política e reforma da estrutura
legal. Uma perspectiva histórica mais longa é apresentada em Bolívar Lamounier e
Rachel Meneguello, Partidos políticos e consolidação democrática: o caso
brasileiro (São Paulo, Brasiliense, 1986). Duas outras avaliações incluem uma
discussão do primeiro ano de Sarney: Scott Mainwaring, "The Transition to
Democracy in Brazil", Journal -of Inter-American Studies and World Affairs,
XXVIII, N. l (Primavera de 1968), pp. 149-79, e William C. Smith, "The Political
Transition in Brazil: From Authoritarian Liberalization and Elite Conciliation
to Democratization", em Enrique A. Baloyra, ed., Comparing New Democracies:
Transition and Consolidation in Mediterranean Europe and the Southern Cone
(Boulder, Westview Press, no prelo). A redemocratização do Brasil despertou o
interesse de estudiosos da transição de regimes autoritários em outros países.
Para uma excelente apreciação desta questão, ver Samuel P. Huntington,
"Will More Countries Become Democratic?", Political Science Quarterly, XCIX, N."
2 (Verão de 1984), pp. 193-218. Huntington considerava o Brasil como um dos
países que muito provavelmente continuaria a caminhar para a democracia. Entre
1979 e 1981 o Woodrow Wilson International Center for Scholars em Washington
patrocinou uma série de conferências e reuniões sobre "Transitions from
Authoritarian Rule: Prospects for Democracy in Latin America and Southern
Europe". Um dos quatro volumes que resultaram do projeto é especialmente útil
por colocar a transição brasileira no contexto latino-americano: Guillermo O.
Donnell, Philippe C. Schmitter e Laurence Whitehead, eds., Transitions from
Authoritarian Rule: Comparative Perspectives (Baltimore, Johns Hopkins
University Press, 1986). Em "Redemocratization and the Impact of Authoritarian
Rule in Latin America", Comparative Politics, XVII, N.° 3 (abril de 1985), pp.
253-75, Karen Remmer analisa os efeitos da experiência autoritária nos esforços
de redemocratização, embora o Brasil não seja um dos principais países
incluídos. Uma conferência sob o tema "Reinforcing Democracy in the Américas" em
novembro de 1986, no Centro Cárter da Emory University, produziu outra
quantidade de interessantes trabalhos, inclusive: Juan Linz e Alfred Stepan,
"The Political Crafting of Democratic Consolidation or Democratic Destruction:
European and South American Comparisons"; Guillermo O. Donnell, "Transitions to
Democracy: Some Navigation Instruments"; e Samuel P. Huntington, "The Modest
Meaning of Democracy". Todos os três documentos discutiram ou se referiram ao
caso brasileiro.

A Nova República: perspectivas para a democracia 493
americano ao regime militar brasileiro. Na Europa Ocidental, conferenciou com
governos e partidos políticos e fez a peregrinação compulsória ao Vaticano.
Tancredo, aos 74 anos, fazia tudo para demonstrar sua exuberância física. Por
isso insistia em cumprir uma agenda exaustiva e em levar até o fim todos os
contatos políticos. Seu regime de trabalho deixava extenuados até os seus
assessores muito mais jovens. Na realidade, ele ocultava grave problema de
saúde.2 Há meses vinha lutando contra uma doença intestinal, confiando nos
antibióticos receitados pelo médico de sua família em São João dei Rey, mas
recusando-se a atender-lhe ao pedido de que se submetesse a um exame de saúde
geral. É que ele sabia que, se não estivesse bastante bem fisicamente para tomar
posse, o governo Figueiredo - ajudado por oportunistas e linhas-duras - talvez
se valesse disso como pretexto para não passar o poder ao vicepresidente eleito,
José Sarney. "Façam de mim o que quiserem", disse aos médicos, "mas depois da
posse." Estava determinado a não ceder até o dia 15 de março, quando assumiria o
governo, o poder teria passado para a Aliança Democrática e a "Nova República"
teria nascido.3

Mas não deveria ser assim. Na véspera de sua posse, Tancredo não pôde mais
tolerar as dores. Foi internado no Hospital de Base, em Brasília, e preparado
para se submeter a cirurgia.

Até onde a democratização dependeu da pessoa de Tancredo?

A Aliança Democrática achava-se agora perplexa. Por questão de horas,
Tancredo não se tornara presidente. A Constituição especificava que a sucessão
era do presidente para o vice-presidente e
_________
2. A doença de Tancredo gerou enorme cobertura jornalística. O secretario de
imprensa designado do presidente, que teve a tarefa pouco
invejável de permanecer calmo diante da tormenta jornalística, fez um
tocante relato: António Britto (depoimento a Luís Cláudio Cunha), Assim morreu
Tancredo (Porto Alegre, L&PM, 1986).
3. Carlos Chagas, "País recorda hoje o drama de Tancredo", O Estado de S. Paulo,
21 de abril de 1986.


494 Brasil: de Castelo a Tancredo
deste para o presidente da Câmara dos Deputados. Os parlamentares esquerdistas
do PMDB afirmavam que, não havendo Tancredo assumido o governo, seu sucessor
legal era Ulysses Guimarães, presidente da Câmara. Ora, Ulysses há muito
desejava vir a ser presidente, mas não naquelas circunstâncias. Para alívio de
quase todos, insistiu em que Sarney assumisse como "presidente em exercício". Os
médicos de Tancredo previam que em duas semanas ele estaria em condições de
assumir seu posto. Enquanto isso, Sarney exerceria temporariamente o governo.
Desta forma, a primeira crise constitucional da Nova República foi superada.

A difícil situação de Sarney foi acentuada com a recusa do presidente
Figueiredo em participar da cerimônia de transmissão do poder. Figueiredo estava
profundamente irritado com Sarney, a quem considerava traidor por haver
desertado do partido do governo para concorrer com o candidato da oposição.
Sarney contribuíra para o malogro de sua missão, que era realizar a abertura mas
também eleger outro presidente do PDS. Ironicamente, Figueiredo teria
permanecido em palácio para passar a faixa presidencial a Ulysses Guimarães,
adversário muito mais radical do que Tancredo ou Sarney. Para ele, Ulysses era
um líder oposicionista digno, pois jamais mudara de política. Mas passar a faixa
para Sarney era demais. Abandonou o Planalto por uma porta lateral justamente
quando o novo presidente entrava para tomar posse.4

Figueiredo estava desgostoso da vida pública. A presidência fora mais difícil
e ingrata do que ele jamais sonhara. Teve a má sorte de assumir o governo pouco
antes de o Brasil entrar em sua pior recessão em cinqüenta anos, logo sofrendo a
enorme impopularidade que tal desastre econômico tornava inevitável.5 Para
agravar a situação, caíra em depressão psicológica nos últimos meses, o que o
deixava irritado e hostil. Quando um jornalista lhe pediu que dirigisse suas
palavras finais ao país, durante uma entrevista de despedida pela TV em janeiro,
disse com os nervos visivel-
________
4. A atitude de Figueiredo em relação à posse foi noticiada em Veja,
20 de março de 1985.
5. As calamidades econômicas e políticas que atormentaram Figueiredo são
narradas, juntamente com sua classificação nas pesquisas de opinião, em Veja, 20
de março de 1985. A partir de fevereiro de 1985 as pesquisas registravam 69 por
cento de desaprovação do público ao governo Figueiredo.

A Nova República: perspectivas para a democracia 495
mente em frangalhos: "Que me esqueçam".6 Ele simplesmente queria ir embora. Mas
seu ressentimento pessoal compunha o frágil simbolismo da ocasião. O poder
estava passando de um general ausente para um substituto civil.

O país entrou em estado de choque com a notícia da hospitalização de
Tancredo. As expectativas do público tinham sido estimuladas pela campanha da
oposição e pela confiança que seu candidato despertava. E o governo provisório
de Sarney não tinha condições de corresponder a essas expectativas. Apenas
poucos meses antes Sarney era o líder do partido pró-governo contra o qual a
oposição sempre lutara. Agora ele liderava a coalizão política (PMDB-PFL), e as
coalizões raramente conduzem a governos estáveis. Havia, além disso, enormes
suspeitas entre os dois partidos. O presidente do PMDB Ulysses Guimarães
considerava os membros do PFL como retardatários na campanha pela restauração da
democracia e o império da lei. Sarney e o PFL eram, aos olhos do combativo PMDB,
oportunistas cujo deslocamento através do espectro político era ditado por
interesses pessoais, não por princípios. O PFL, que era quase tão heterogéneo
quanto o PMDB, suspeitava da esquerda peemedebista que incluía bom número de
deputados comunistas.

Como se isto não fosse bastante, o governo Sarney também se viu às voltas com
a incerteza acerca dos seus poderes. Todos esperavam que a Constituição
autoritária de 1969 (com suas emendas) fosse substituída.7 Mas quando? Havia
duas opções. A primeira era eleger uma assembléia constituinte, talvez separada
do
_________
6. A extensa entrevista foi publicada em Veja, 30 de janeiro de 1985. Quando
solicitado a emitir uma opinião franca ao deixar para trás as preocupações do
cargo, Figueiredo fez um gesto obsceno para a câmara. Nem depois de seis anos no
Planalto o presidente perdeu os seus modos grosseiros.
7. Para uma penetrante apreciação sobre a feitura de constituições anteriores no
Brasil, ver Francisco Iglesias, Constituintes e constituições brasileiras (São
Paulo, Brasiliense, 1986). Para uma coleção de artigos sobre questões
constitucionais básicas a serem enfrentadas pela nova assembléia constituinte,
ver Revista Brasileira de Estudos Políticos, N.°s 60-61 (janeirojulho de 1985).
Uma estimulante discussão de como, por exemplo, o novo governo poderia ser
legitimado em uma nova Constituição encontra-se em José Eduardo Faria,
"Constituinte: seus riscos e seus muitos desafios", Jornal da Tarde, 5, 12
e 19 de janeiro de 1985.

496 Brasil: de Castelo a Tancredo
Congresso existente, o mais cedo possível, de preferência ainda em
1985. A outra era adiar essa eleição combinando-a talvez com as eleições
legislativas e para governadores marcadas para novembro de 1986. A primeira
solução era defendida por aqueles (a esquerda do PMDB e a maioria do PDT, PT e
de outros partidos esquerdistas) que queriam desmantelar o mais rapidamente
possível os remanescentes do autoritarismo. A segunda, pelo centro e direita do
PMDB, juntamente com o PFL e o PDS.

Sarney optou por novembro de 1986, alegando que o Congresso então eleito
(juntamente com os senadores com mandato ainda por cumprir) formaria a
assembléia constituinte. Para satisfazer às exigências da esquerda, ele nomeou
uma "Comissão de Notáveis" composta de cinqüenta membros para elaborar um
projeto de Constituição, a partir do qual a constituinte provavelmente começaria
os seus trabalhos em 1987. O presidente da Comissão foi o professor Afonso
Arinos de Melo Franco, ilustre constitucionalista, membro de um clã político
muito conhecido e líder da extinta UDN. Sarney confiou também à Comissão o
estudo de providências em relação às restantes leis do período autoritário. Mas
não resolveu as muitas questões sobre como seu governo iria proceder.

Não tardou muito, no entanto, em esclarecer algumas dessas questões. Anunciou,
por exemplo, que seu governo não faria uso de recursos autoritários, como o
decurso de prazo pelo qual o presidente enviava um projeto ao Legislativo
fixando um prazo (30 ou 45 dias) para a sua votação, findo o qual estaria
automaticamente aprovado. Prometeu também não usar o decreto-lei, de que os
governos pós-1964 usavam e abusavam para preterir o poder legislativo.8 Contudo,
estas promessas, feitas durante a doença de Tancredo, foram meras expressões de
boa vontade. Nada impediria Sarney de usar recursos tão convenientes se os
tempos se tornassem difíceis. O Congresso permaneceu assim grandemente
enfraquecido - comparado com a fase anterior a 1964 - pelas reformas
constitucionais autoritárias herdadas do regime militar.

Sarney não teve alternativa a não ser governar com o Ministério escolhido por
Tancredo. O seu membro civil mais importante era o ministro da Fazenda Francisco
Neves Dornelles, sobrinho de
__________
8. New York Times, 23 de abril de 1985.

497
Tancredo. Era um experiente tecnocrata que se destacara como chefe da secretaria
da receita federal e também por suas idéias econômicas profundamente ortodoxas.
Embora o restante do Ministério fosse uma combinação de líderes do PMDB e do
PFL, este último fora contemplado apenas com quatro pastas cujos ocupantes mais
conhecidos eram Marco Maciel (Educação), Olavo Setúbal (Relações Exteriores) e
Aureliano Chaves (Minas e Energia). Políticos do PMDB ocuparam os Ministérios
restantes, como Fernando Lyra (Justiça), José Aparecido (Cultura), Pedro Simon
(Agricultura), Waldir Pires (Previdência Social) e Almir Pazzianotto (Trabalho).
Este fora secretário do Trabalho do governador de São Paulo Franco Montoro, no
cargo desde 1983. João Sayad, do Planejamento, era um economista universitário
que ocupara o mesmo cargo no governo Montoro. Suas idéias keynesianas diferiam
profundamente da ortodoxia de Dornelles.

O novo Ministério ilustrava importantes aspectos do panorama político.
Primeiro, o PMDB tinha maioria de 9-4 dos ministros (contando apenas aqueles com
clara filiação partidária). Isto refletia o papel predominante do partido de
oposição na transição democrática, mas tal composição poderia tornar-se incômoda
se Sarney permanecesse na presidência por muito tempo e tentasse aumentar a
influência do PFL. Segundo, cinco dos novos ministros (José Aparecido, Renato
Archer, Aluísio Alves, Waldir Pires e Renato Gusmão) foram punidos pelo governo
militar corn a cassação dos seus mandatos ou a perda dos seus direitos políticos
ou ambas. O fato de os militares tolerarem sua volta era mais uma prova de que
tinham revisto sua estimativa do eleitorado brasileiro ou sua avaliação daquelas
figuras outrora perigosas. Os militares já haviam dado sinal desta sua
disposição em 1982, quando não impediram a eleição para o governo do Rio de
Janeiro de Leonel Brizola que há muito consideravam o nome mais amaldiçoado da
esquerda brasileira. Terceiro, tanto o ministro do Exército quanto o chefe do
SNI estavam fortemente comprometidos com o êxito da transição para o governo
civil. Finalmente, o Ministério comportava idéias contraditórias como as do
monetarista Dornelles, ministro da Fazenda, e as de Nelson Ribeiro, da
Reforma Agrária, que defendia modificações radicais na política de propriedade
da terra. Tancredo sintetizava a ambigüidade inerente ao novo governo. Embora um
político centrista, na campanha de 1984 de-

498 Brasil: de Castelo a Tancredo
fendeu medidas ousadas no trato dos enormes problemas sociais e da dívida
externa. No entanto, escolhera um ministro da Fazenda conservador em ambas as
questões. Até onde iria o governo com tal política?

A doença de Tancredo prolongava-se e o público ficava cada vez mais
preocupado. A confiança inicial dos médicos parecia agora falsa. Surgiram
complicações. Ou o primeiro diagnóstico dos médicos fora errado ou
deliberadameníe enganoso. Ou talvez era mero caso de incompetência.9 Os médicos,
agora sob enorme pressão, recorriam cada vez mais a evasivas.

Circularam rumores sobre a ocorrência anteriormente de infecções no hospital
de Brasília que foram objeto de piadas macabras da imprensa. Ante as crescentes
dúvidas sobre a qualidade do atendimento médico a Tancredo, ele foi levado de
avião para o Instituto do Coração em São Paulo, o melhor hospital do Brasil. A
viagem teve lances bizarros como quando ocultaram o rosto do paciente com
lençóis para protegê-lo dos olhares dos circunstantes, ao ser ele retirado do
avião na capital paulista. As orações nas ruas de pessoas em pranto tornavam o
quadro ainda mais desesperador. Seguiram-se as operações, uma atrás da outra.
Decorreu um mês. Tancredo estava agora na Unidade de Tratamento Intensivo,
mantido vivo por aparelhos. Seu estado tornara-se irreversível, mas os médicos
não o admitiam.

Enquanto isso, o novo governo estava virtualmente paralisado, adotando apenas
algumas medidas importantes. O ministro da Jus-
_______
9. A qualidade do tratamento médico de Tancredo tornou-se um tópico de amargas
controvérsias. Muitos observadores acharam que ele contraiu infecção no Hospital
de Base de Brasília, conforme reportagem em Veja,
3 de abril de 1985. A mesma matéria foi repetida em Newsweek, 5 de agosto de
1985, a qual dizia que "perto de 50 pessoas se aglomeravam na sala de cirurgia"
para assistir A primeira operação abdominal. Tal situação foi um dos fatores que
determinaram a transferência de Tancredo para o Instituto do Coração em São
Paulo. Um ano depois o Conselho Regional de Medicina de Brasília divulgou um
relatório criticando severamente o tratamento médico dispensado ao presidente
eleito. O documento informava, em tom de acusação, que Tancredo fora
diagnosticado como necessitando de urgente cirurgia na noite de 14 de março, mas
que a operação só se realizou no início da manhã de 15 de março. Isto Ê, 5 de
abril de 1986. Após a morte de Tancredo, o Hospital de Base foi fechado a fim de
passar por uma limpeza geral.

A Nova República: perspectivas para a democracia 499
tiça Fernando Lyra anunciou o fim da censura política (sempre dependendo de como
o ministro aplicasse as leis em vigor)10 e o ministro do Trabalho Pazzianotto
anistiou todos os dirigentes sindicais destituídos de seus postos desde 1964.
Ambas as medidas foram importantes para criar a atmosfera mais livre prometida
para a Nova República.

A única outra área onde havia iniciativas era a da política econômica. O
governo Sarney herdou um déficit do setor público ainda pior do que o esperado.
Para combatê-lo, o ministro Dornelles ordenou um corte de 10 por cento nos
gastos públicos, suspensão por dois meses dos empréstimos dos bancos
governamentais e congelamento por um ano de todas as contratações de pessoal
para o setor público. Estas não eram boas notícias para políticos que ficaram
fora do poder por duas décadas e que tinham pesadas dívidas políticas para
pagar. As medidas de austeridade também preocuparam o ministro do Planejamento
Sayad, cujo receio era que elas causassem desaceleração econômica ou até
recessão.

A falta de iniciativas em outras áreas tinha pronta explicação. Cargos
importantes dos escalões inferiores do poder estavam vagos, o que enfraquecia
muito o desempenho da burocracia. Tancredo era famoso por ocultar suas cartas
políticas, daí porque conservara para si a identidade de muitos daqueles a quem
prometera nomeações no novo governo. É que ele usara tais promessas (e meias
promessas) como tática básica em sua campanha. Como resultado, formara-se
verdadeira legião de candidatos disputando empregos. Sarney e seus auxiliares
esforçaram-se muito para conciliar suas escolhas com as de Tancredo, quando
conhecidas. A rivalidade PMDB-PFL, que subitamente veio à tona no início de
abril, complicou ainda mais o problema da distribuição de cargos. O conflito
provinha em parte do fato de que a assunção
__________
10. A censura era mais complicada do que imaginava o ministro da justiça Lyra
nos primeiros dias do governo Sarney. A questão básica consistia na
interpretação pelo governo da legislação em vigor, que era sempre muito vaga
para permitir um grau maior de arbítrio. Em janeiro de J986 Lyra, seguindo
instrução do presidente Sarney, proibiu a apresentação no Brasil do filme
de Jean Luc Godard, Je Vous Salue Marie. A decisão de Sarney era parte de uma
concessão política à liderança da Igreja Católica, de cujo apoio ele precisava
para outras questões. Jornal do Brasil,

18 de junho de 1986.

500 Brasil: de Castelo a Tancredo
de Sarney à presidência sofrera a resistência inicial de Ulysses, que depois a
endossou rapidamente. O conflito, no entanto, era mais do que processual. Por
trás dele estavam as preocupações do PMDB de que sua vitória - baseada em anos
de uma solitária batalha contra os governos militares - fosse surripiada por
políticos que apenas meses atrás se sentiam felizes em servir a um general-
presidente. Tanto Ulysses quanto Sarney perceberam os perigos dessa rivalidade.
Recorrendo a sua vasta experiência política (que remontava aos anos 50 para
ambos), fizeram um acordo informal, que imediatamente frutificou no aumento da
cooperação entre os poderes executivo e legislativo.

Mas as atenções ainda continuavam voltadas para os boletins médicos diários
transmitidos pelo secretário de imprensa de Tancredo. Quem sabe se um milagre de
última hora não salvaria o homem destinado a conduzir o Brasil para uma nova era
democrática? Mas o milagre não aconteceu. Tancredo morreu em 21 de abril, depois
de sete operações e 38 dias no hospital. O público, embora cético quanto às
muitas cirurgias "bem-sucedidas", ficou aturdido com a notícia. Em vida Tancredo
assomava como um salvador político. Morto, assumia as proporções de um santo.
Todas as esperanças, acumuladas e centralizadas no homem que não viveu para
materializá-las, manifestaram-se impetuosamente.

A última viagem de Tancredo começou em um carro de bombeiros em São Paulo,
onde dois milhões de paulistas se aglomeraram sobre as vias elevadas para chorar
e acompanhar a sua partida. Seu corpo seguiu primeiro para Brasília, onde
300.000 pessoas contristadas viram o seu esquife subir a rampa do palácio
presidencial, o que ele nunca conseguira fazer em vida. A próxima escala foi em
Belo Horizonte, capital do seu estado, onde um milhão de pessoas lhe prestaram
as últimas homenagens. Por fim, chegou a São João dei Rey, onde foi sepultado no
torrão natal.11

Tancredo era natural do mesmo lugar em que nasceu o mais famoso herói da
independência do Brasil - "Tiradentes" (Joaquim José da Silva Xavier), líder de
malograda conspiração em 1789 contra o domínio colonial português. Por mais uma
coincidência,
_________
11. As manifestações de tristeza do público são descritas em Veja, l de maio de
1985. O título do artigo de fundo transmitia a ironia do evento: "Obra
acabada no governo que não houve".

A Nova República: perspectivas para a democracia 501
Tancredo morreu na data da execução do mártir brasileiro, comemorada a 21 de
abril. Para muitos, isto não foi mero acaso. Era a tentativa de imediatamente
elevar Tancredo às honras da santidade secular prestada a Tiradentes.12

As expressões de tristeza excederam a tudo quanto acudia à memória do povo. A
geração mais antiga concordava que o trauma foi maior do que o causado pelo
suicídio do presidente Getúlio Vargas em 1954. O extravasamento maciço de
emoções demonstrava o vínculo extraordinário que Tancredo desenvolvera com o
público. Os políticos do PMDB faziam a si mesmos a pergunta óbvia: a Nova
República poderia sobreviver sem ele?

José Sarney prestou juramento para assumir o pleno status de presidente em 21
de abril, depois que os médicos declararam o caráter terminal da doença de
Tancredo. Trabalhando agora à sombra que o ilustre brasileiro projetava sobre o
seu governo, Sarney enfrentava formidáveis desafios. Como ele escreveu: "Eu, sem
o desejar, sem ter tido tempo para preparar-me, tornei-me o responsável pela
maior dívida externa sobre a face da Terra, bem como da maior dívida interna.
Minha herança incluiu a maior recessão de nossa história, a mais alta taxa de
desemprego, um clima sem precedentes de violência, desintegração política
potencial e a mais alta taxa de inflação da história do nosso país - 250 por
cento ao ano, corn a perspectiva de atingir 1.000 por cento".13

Muitos questionavam abertamente a sua capacidade para assumir as rédeas do
governo. Ele foi sempre conhecido como um político benévolo e discreto. corn
toda a franqueza, nunca admitiu ser nem o "candidato do protesto" nem o
"presidente da esperança", títulos que Tancredo recebeu durante sua campanha.
Mas Sarney também tinha seus pontos fortes. Estivera no centro da política
nacional por mais de duas décadas. Conhecia intimamente
_____________
12. Um dos destacados cientistas políticos do Brasil explicitamente
comparou Tancredo a Tiradentes, concluindo que "pode-se dizer de Tancredo, como
de Tiradentes, que foi um herói 'levado à loucura pela esperança". Bolívar
Lamounier, Afinal, 30 de abril de 1985.
13. José Sarney, "Brazil: A President's Story", Foreign Affairs, LXV, N.l
(Outono de 1986), pp. 105-6. Para um leque de opiniões sobre a natureza dos
males do Brasil em 1985, ver Lourenço Dantas Mota, ed., A Nova República:
o nome e a coisa (São Paulo, Brasiliense, 1985). Entre os autores citam-se
Roberto Campos, Fernando Henrique Cardoso, Mário Henrique Simonsen e Celso
Furtado.

502 Brasil: de Castelo a Tancredo
o Congresso, o que era uma vantagem numa época em que a restauração dos poderes
do Legislativo representava objetivo básico no processo de redemocratização.
Mais, Sarney tinha inclinações reformistas que vinham dos tempos anteriores a
1964, quando militou nas fileiras da "bossa nova" da UDN, o que lhe dava certo
desembaraço para levar a cabo as muitas reformas constantes do programa da Nova
República.

O governo Sarney gozava de outra vantagem gerada pela atmosfera política.
Havia o consenso, do qual nem a extrema esquerda nem a extrema direita
discordavam, de que o Brasil precisava continuar sua transição para a
democracia. Aliás, todos os setores sociais estavam interessados em como fazer
suas reivindicações através do processo democrático. Este consenso pró-
democracia fora ajudado pela criação do PT que recrutara muitos militantes da
esquerda, os quais de outra forma poderiam ter ficado menos comprometidos com o
processo político "burguês".14

Havia também evidência de que os brasileiros estavam reconquistando a
confiança em sua capacidade de melhorar seu meio de vida através da ação
coletiva direta, ingrediente indispensável em qualquer democracia. Muitos dos
milhares de mutuários em atraso com o Banco Nacional de Habitação, por exemplo,
suspenderam o pagamento de suas hipotecas em protesto contra as taxas de
indexação aplicadas à suas prestações. Os empregados de dois bancos do Rio
Grande do Sul que declararam falência em 1985 deram outro exemplo: organizaram
uma caravana e invadiram Brasília em março, conseguindo persuadir o Congresso e
o Planalto a salvarem os bancos (e os empregados).15 Ativismo semelhante
caracterizou o Movimento de Defesa dos Contribuintes, fundado em meados de 1985,
e que logo se transformou em plataforma para os pequenos empresários que se
sentiam duramente atingidos pelas reformas tributárias do governo Sarney. Houve
também um movimento de base política mais ampla liderado por empresários do
Rio Grande do Sul e de São Paulo com o objetivo de levantar recursos. Os
sindicatos não ficaram atrás, e 230 deles se juntaram 14. Uma eloqüente
exposição do pensamento do PT a este respeito foi feita por um dos fundadores do
partido em Francisco Weffort, Por que democracia? (São Paulo, Brasiliense,
1984).
15. O "resgate" do Banco Sulbrasileiro e do Banco Habitasul é descrito com
ironia em Veja, 3 de abril de 1985.

A Nova República: perspectivas para a democracia 503
para criar o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (DIAP)
destinado a influenciar os parlamentares em Brasília no sentido de defenderem a
classe trabalhadora na hora da votação de reformas que a arcaica legislação
trabalhista estava a exigir.16 Os brasileiros, ironicamente, reagiram aos
últimos anos do regime autoritário aprendendo a proteger seus interesses através
da mobilização política. Esta determinação explicava-se pela fé que depositavam
no processo político, embora suas reivindicações particulares merecessem ser
avaliadas.

Em seu primeiro discurso à nação após a morte de Tancredo, Sarney foi
cauteloso. Prometeu convocar a assembléia constituinte "o mais cedo possível". A
ela caberia decidir sobre muitos assuntos constitucionais urgentes, como a
duração do mandato presidencial (a Constituição em vigor assegurava seis anos a
Sarney). Repetindo palavras de Tancredo, prometeu que o Brasil honraria seus
compromissos com a dívida externa, mas não à custa da fome do povo. Manteria a
austeridade fiscal e monetária, de par com um programa de emergência para
fornecer alimentos e emprego aos mais pobres. Esta promessa era parte de um
programa de 15 anos destinado a elevar os padrões de vida, especialmente no
Nordeste. O ministro da Fazenda Dornelles conseguira adiá-lo anteriormente,
afirmando que o governo não tinha meios de financiá-lo. O apoio subseqüente de
Sarney ao programa mostrava que a influência de Dornelles estava diminuindo.
Alguns diziam que Sarney estava emergindo como um presidente mais progressista
do que Tancredo teria sido, explicando-se isto com o fato de que a imensa
popularidade de Tancredo ter-lhe-ia permitido adiar as exigências do
PMDB por programas sócio-econômicos dispendiosos. Em resumo, Sarney estava
começando a balizar seu próprio terreno.

No princípio de maio, o Congresso aprovou e o presidente promulgou uma série
de leis visando à restauração de instituições políticas democráticas. Uma delas
restabelecia as eleições presidenciais diretas, conseqüentemente eliminando o
colégio eleitoral (com
______________
16. "O lobby dos trabalhadores", Senhor, 27 de maio de 1986, pp. 29-31; Brazil
Watch, II, N.13 (24 de junho-8 de julho de 1985), p. 2. Para informações sobre
o movimento dos contribuintes, ver Veja, 6 de novembro de 1985, e para uma
entrevista com seu líder, o presidente da Associação Comercial de São Paulo
Guilherme Afif Domingos, ver Veja, 11 de dezembro de 1985.

504 Brasil: de Castelo a Tancredo
definições diferentes) que os militares usaram para controlar a eleição dos
generais-presidentes a partir de 1964. Não ficou especificada a data da eleição
do sucessor de Sarney. Foi aprovado também o direito de voto aos analfabetos (do
qual eram privados desde 1882) e a legalização de todos os partidos políticos
que atendessem aos requisitos mínimos de registro. Ambas as medidas haviam sido
fortemente combatidas pelos conservadores antes de 1964.17 Agora, contudo,
passaram com relativa facilidade, indicando a interpretação ampla que a Nova
República dava ao conceito de democratização. A nova lei permitiu a rápida
legalização do Partido Comunista Brasileiro (PCB), da linha de Moscou, e do
Partido Comunista do Brasil (PC do B), originalmente maoísta, assim como de
outros grupos dissidentes da esquerda. Estes abrigaram-se antes sob o guarda-
chuva do PMDB, onde sua participação foi sempre objeto de muitas divergências e
negociações. Como observou o secretário geral do partido, corn a legalização dos
comunistas, o PMDB seria agora "um partido do centro olhando para a esquerda.
Exatamente como o povo brasileiro".18

Muitos políticos conservadores e centristas concordavam que a legalização dos
partidos de esquerda lhes reduziria a influência. Forçados a disputar votos por
conta própria (mesmo apoiando outro partido), dizia-se, demonstrariam sua
fraqueza eleitoral, desarmando em conseqüência a direita que sempre usou o
espectro dos esquerdistas para desmoralizar o centro ou o centro-esquerda.
Finalmente, o Congresso restabeleceu eleições diretas para prefeitos de todas as
cidades nas quais o cargo, por decisão dos militares, passou a ser ocupado por
nomeação, incluindo todas as capitais de estados e territórios e outras cidades
localizadas, segundo o dlktat do regime, em áreas de segurança nacional. As
eleições para prefeito foram marcadas para 15 de novembro de 1985, com a posse
dos eleitos fixada em l de janeiro de 1986. Seria o primeiro teste eleitoral da
Nova República.
_______
17. A história da atitude da elite política brasileira para com a concessão do
direito de voto aos analfabetos é contada convincentemente em José Honório
Rodrigues, Conciliação e reforma no Brasil: um desafio histórico-político (Rio
de Janeiro, Civilização Brasileira, 1965), pp. 135-63.
18. Roberto Cardoso Alves, "Um PMDB sem comunistas", Veja, 31 de julho de 1985,
p. 122.

505
Um aspecto da Nova República com o qual virtualmente todos concordavam era o
fato de serem os partidos políticos fracos, indisciplinados e muitas vezes
manipulados por personalidades fortes. Além disso, segundo os críticos, muitos
políticos colocavam seus interesses pessoais acima do bem-estar comum do povo.
Sem dúvida os políticos davam motivos para estas críticas. O Congresso, por
exemplo, pagava um jeton ao deputado ou senador por seu comparecimento às
sessões mas, por determinação das mesas diretoras das duas casas, o jeton passou
a ser pago com a presença ou não do parlamentar. A justificativa era que a
incorporação desta remuneração variável à parte fixa do salário do parlamentar
era uma forma de suplementar seus ganhos inadequados. Mas a imprensa atacou a
medida como fraude deliberada.19

Outra prática discutível era um colega votar por outro ausente, apertando ao
mesmo tempo o seu botão e o do colega ao lado em resposta à chamada da mesa
durante uma votação eletrônica. A imprensa publicou fotos de deputados
(pianistas) esticando-se para votar duas vezes. A prática foi condenada em
fortes editoriais que acompanharam as reportagens. Outros exemplos eram claros
demais para alguém ignorá-los. Tanto os legisladores estaduais como os federais
se excederam na nomeação de parentes e amigos para lucrativas sinecuras. Em
dezembro de 1985, por exemplo, o senador Moacyr Dália, presidente do Senado,
nomeou 1.554 novos empregados para a Gráfica do Senado, inclusive seu próprio
filho, juntamente com pelo menos nove outros filhos ou filhas de senadores e
deputados.20

Houve decepções mais graves, contudo. O Congresso durante o ano de 1985 não
votou leis vitais para o seu futuro, como me-
_________
19. Uma reportagem de capa atacando o Congresso pelos seus métodos anacrônicos e
de autofavorecimento foi publicada em Veja, 21 de agosto de
1985. O jeton era igual a mais que o dobro do salário regular de deputados e
senadores.
20. A liberalidade do senador Dália, que já se tornara lugar-comum entre os
presidentes da Casa em fim de mandato, estendeu-se também aos jornalistas
sediados em Brasília, como a colunista social Consuelo Badra (e sua filha) e o
veterano repórter político do Jornal do Brasil Haroldo Holanda (e dois
filhos). Isto Ê, 16 de janeiro de 1985. Tais práticas levaram O Estado de S.
Paulo a publicar um sarcástico editorial denunciando a Nova República como não
melhor do que a velha, "A Novíssima veste roupa velha", O Estado de S. Paulo, 15
de maio de 1986.

506 Brasil: de Castelo a Tancredo
didas para reconquistar poderes legislativos fundamentais, especialmente
orçamentários, usurpados pelos governos militares. Mais, nada fora feito em
relação às principais leis autoritárias, como a Lei de Imprensa, a Lei de
Segurança Nacional, ou o Decreto 1077 (autorizando a censura prévia).21

As críticas eram todas bem fundadas, mas não surpreendiam. Os governos
militares, afinal, haviam reprimido o princípio fundamental da política
democrática: que os representantes eleitos procurem julgar e resolver, em
assembléia pública, os conflitos básicos de sua sociedade. Só na pior situação
possível recorrem os políticos em um sistema aberto a decisões clandestinas, que
é a regra em regimes militares-tecnocráticos, como o do Brasil após 1964. Era
portanto razoável esperar que os políticos emergentes após vinte anos de governo
militar procedessem como estadistas atenienses?

A reação do público aos pecados de políticos "sem princípios" da Nova
República procedia em parte do choque que lhe estava causando o processo
político novamente em funcionamento. Esta explicação não altera o fato de que a
conduta política visando ao interesse pessoal (ou de família) prejudica
sensivelmente o interesse público. Mas lembra-nos que o sistema aberto permite
que o público veja as transações essenciais (e às vezes comprometedoras) que num
regime autoritário são encobertas.

Quanto aos partidos políticos, ainda estavam funcionando nos termos da medida
governamental que criou o sistema multipartidário em 1979. Nas eleições de 1982
a predominância ainda era do PMDB e do PDS, sendo o PDT e o PT os novos partidos
mais
_____________
21. A Lei de Segurança Nacional era importante porque todo aquele acusado de
transgredi-la podia ser preso por até 15 dias sem direito a habeas corpus. Além
disso, qualquer ato judicial cairia sob a jurisdição dos tribunais militares.
Entrevista' com Evaristo de Moraes em Veja, 20 de fevereiro de 1985. Em junho de
1986 Carlos Chagas, experiente observador do cenário político de Brasília, notou
que o Congresso "não tinha votado metade do que devia ter votado (...) para
permitir que a Assembléia Constituinte tivesse tempo de tratar das questões
realmente profundas e importantes como o reexame da ordem econômica e social". O
Estado de S. Paulo, 25 de junho de 1986. A crônica falta de quorum na Câmara dos
Deputados, apesar dos apelos dos líderes partidários, foi notada em Jornal do
Brasil, 18 de junho de 1986. Mordazes editoriais contra o Congresso apareceram
em O Globo, 4 de junho de 1986, e Folha de S. Paulo, 20 de junho de 1986.

507
bem-sucedidos. No início de 1984 parecia que o predomínio do PDS-PMDB
continuaria. Mas esta suposição caiu por terra quando o PDS cindiu-se por causa
do crescente prestígio de Paulo Maluf entre os seus membros. Os-dissidentes
pessedistas, que passaram a integrar o PFL, tinham futuro duvidoso como partido
separado. Criado para votar em Tancredo no colégio eleitoral, o PFL tinha quando
muito um futuro incerto.

Como o eleitor via a performance da Nova República? As eleições municipais de
novembro de 1985 eram o primeiro indicador. Estavam em jogo as prefeituras de
201 cidades, inclusive as capitais de 25 estados e territórios. O PMDB sofria as
maiores pressões porque conquistara parcela crescente do eleitorado desde o
início dos anos 70 e era agora o partido majoritário do governo. Com o fim do
governo militar, a suposição era de que ele impusesse suas teses e fizesse um
melhor governo.

O PMDB ganhou em 19 das 25 capitais e em 110 das outras 201 cidades. À
primeira vista este resultado parecia impressionante. Mas o partido perdera em
quatro das mais importantes capitais: São Paulo (onde o ex-presidente Jânio
Quadros derrotou o senador do PMDB Fernando Henrique Cardoso), Rio de Janeiro
(onde ganhou o candidato apoiado por Leonel Brizola, Roberto Saturnino Braga),
Porto Alegre (onde ganhou outro candidato apoiado por Brizola, Alceu Collares) e
Recife (onde uma coalizão de esquerda elegeu Jarbas Vasconcelos).Que se podia
concluir dessas eleições urbanas?22 Primeiro, a maioria do eleitorado votara do
centro para o centro-esquerda. O PDS e o PFL saíram-se muito mal. O PMDB, onde
perdeu, foi, principalmente, não para candidatos direitistas exceto em São
Paulo, mas para candidatos esquerdistas. Esta tendência ficou clara no sucesso
do PT que conquistou a prefeitura de Fortaleza, capital do importante estado
nordestino do Ceará, e chegou em segundo ou terceiro lugar em várias disputas
municipais através do país. Considerando-se que o PT recusou-se a fazer coalizão
com outros
_________
22. Há uma útil avaliação dos resultados da eleição em um painel de debates
intitulado "As eleições municipais de 85 e a conjuntura política", publicada
como Cadernos de Conjuntura, N.° 3 (dezembro de 1985) pelo Instituto
Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), Rio de Janeiro.

508 Brasil: de Castelo a Tancredo
partidos, sua capacidade de penetração no eleitorado foi notável.23 O PDS foi o
maior perdedor, continuando assim o declínio em âmbito nacional (ao contrário do
municipal) do voto conservador (ARENA-PDS) nas últimas duas décadas: em 1966
esse voto foi de 50,5 por cento, em 1970, de 48,7 por cento, em 1978, de 40 por
cento, e em 1982, de 36,7 por cento.

Segundo, o populismo aparentemente reapareceu na forma de dois políticos
anteriores a 1964, Leonel Brizola e Jânio Quadros. Brizola havia anteriormente
sido eleito governador do estado do Rio de Janeiro em novembro de 1982. Tal
fato não constituiu surpresa porque em 1962 ele fora eleito deputado federal
pela cidade do Rio de Janeiro (então estado da Guanabara) com a maior votação
jamais dada a um deputado federal brasileiro. Brizola tinha os olhos grudados na
presidência, como acontecia com outros governadores, com a diferença de que ele
tinha carisma eleitoral, ou pelo menos assim pensavam os jornalistas e os
políticos que o conheciam melhor. De todos os políticos anteriores a
1964 fora ele o que melhor se adaptara à televisão. Tinha também uma percepção
instintiva das questões sócio-econômicas fundamentais e de como passar ao
público a sua mensagem. Ainda se enquadrava na categoria de "populista", como
fora conhecido no Brasil antes de 1964. Agora elegera seus candidatos a prefeito
no Rio e em Porto Alegre, cidades onde era grande o número dos seus adeptos. O
que isto representava para Brizola e seu PDT?

Primeiro, parecia confirmar o poder de aliciamento de Brizola mesmo em
pleitos aos quais não concorria. Apesar disso, os can-
________
23. O rápido crescimento do PT - em termos relativos - foi destacado numa
reportagem de capa em Veja, 25 de dezembro de 1985. O PT mostrou sua força
inesperadamente em várias cidades, como Fortaleza, capital do Ceará, onde sua
candidata Maria Luíza Fontenelle foi eleita prefeita, e Goiânia, onde o
candidato petista teve 40 por cento dos votos, embora tivesse sido derrotado.
Nenhuma das duas cidades era um centro industrial aos quais, segundo os
militantes mais céticos, se limitaria o grosso da votação do partido. Em seu
jornal o PT orgulhosamente analisou os seus ganhos eleitorais em 1985. Sua
parcela do total de votos em todo o país foi de 11 por cento, quase tanto quanto
obtiveram o PDS (4 por cento) e o PFL (9 por cento) juntos. O partido afirmava
que sua votação em 1985 aumentara em 87 por cento em relação a 1982, mas a
comparação era questionável, porque as eleições de 1982 não incluíram prefeitos.
Brasil Extra, N.° 2 (dezembro de 1985).

509
didatos vitoriosos - Alceu Collares em Porto Alegre e Saturnino Braga no Rio -
eram políticos mais antigos bem conhecidos dos seus respectivos eleitorados e
capazes de se eleger por conta própria. Mesmo assim, nenhum conseguiu mais que
um terço da votação (Collares 34 por cento e Saturnino Braga 39 por cento).
Segundo, o PDT de Brizola continuava a ser seu veículo pessoal, como o
demonstrava o destino eleitoral do partido em outras localidades do país. Nenhum
dos candidatos do PDT nas outras 21 capitais de estado sequer se aproximou da
vitória. Terceiro, Brizola continuava sua marcha de longa data rumo à
presidência, que tinha que se basear no declínio do PMDB, cujas derrotas no Rio
e em São Paulo lhe deram a estatura de político mais importante da esquerda.
Esta perspectiva preocupava os militares, cuja antipatia por Brizola remontava a
duas décadas.24

Jânio Quadros, era um caso diferente. Em virtude de suas conhecidas
excentricidades, muitos no estabelecimento político achavam que ele jamais
voltaria a conquistar pelo voto um cargo público. Durante a campanha demonstrou
seu estilo político ambíguo, maltratando a imprensa e ignorando a existência dos
seus adversários. Apesar, ou talvez por causa, de suas excentricidades, o
ilusionismo eleitoral de Jânio funcionou e ele conseguiu a maioria dos votos.
Ganhou atacando o governo peemedebista de Franco Montoro, impopular durante a
recessão e embaraçado por sofrível assessoria de relações públicas. Obteve
também forte cobertura da direita, que não apresentara candidato próprio, tendo
recebido apoio de figuras cor-o Delfim Neto, Aureliano Chaves, Olavo Setúbal e
Paulo Malul, cujo denominador comum era o desejo de
_________
24. A retórica populista de Brizola e sua história de nacionalista extremado,
juntamente com seu estilo de falar altamente eficiente - tanto em pessoa como
pela televisão -, assustaram muitos conservadores, inclusive alguns generais. A
capacidade de Brizola de conquistar votos em escala nacional foi questionada,
contudo, em Gláucio Ary Dillon Soares, Colégio eleitoral, convenções partidárias
e eleições diretas (Petrópolis, Vozes, 1984), PP. 65-73, no capítulo intitulado
"O mito de Brizola e o medo das diretas", em que Soares afirma que na eleição de
1982 para governador Brizola ganhou somente com 31 por cento dos votos, em
comparação com 45 por cento de Franco Montoro em São Paulo e 46 por cento de
Tancredo Neves em Minas Gerais. Soares em seguida afirma convincentemente que o
poder de Brizola não seria bastante grande para derrotar um candidato
presidencial quer do PDS ou do PMDB.

510 Brasil: de Castelo a Tancredo
derrotar o PMDB.25 Jânio ganhou com 37 por cento dos votos, enquanto Fernando
Henrique Cardoso, que fora o favorito, teve apenas 33 por cento e Eduardo
Suplicy, candidato do PT, 20 por cento. A votação do PT foi alta por causa do
grande número de trabalhadores sindicalizados na cidade de São Paulo.

As eleições demonstraram que mais de dois candidatos na disputa enfraqueciam
a força do PMDB. Se a eleição tivesse que ser decidida por maioria então o
candidato centrista - geralmente do PMDB - podia ser derrotado pela direita ou
pela esquerda. Foi este, naturalmente, um dos objetivos do general Golbery em
sua revisão de 1979 da legislação partidária. Não surpreendia portanto que os
expoentes do PMDB estivessem defendendo a introdução de eleições em dois turnos.
Que outras implicações tinham as eleições municipais para o futuro? Primeiro, as
linhas partidárias, ao que parecia, mudariam consideravelmente. A direita, por
exemplo, ainda não tinha um partido adequado. O Partido Popular, organizado em
1979 pelo velho líder udenista Magalhães Pinto e pelo moderado ex-emedebista
Tancredo Neves, deu a impressão de que se tornaria um forte partido de centro-
direita. Mas o PP fundiu-se com o PMDB em resposta às reformas eleitorais de
1981. A direita ressurgiu com certo ímpeto com a formação da União Democrática
Ruralista (UDR) uma aliança de proprietários rurais que resolveram se organizar
para defender seus interesses contra as invasões de terras e outras atividades
dos proponentes da reforma agrária (discutida adiante). Um dos seus objetivos
era pressionar Brasília, e estavam coletando o dinheiro necessário para causar
grande impacto nas eleições de 1986.26
_________
25. Para uma detalhada reportagem sobre o apoio da direita a Jânio, ver Veja, 6
de novembro de 1985. O estilo guerra fria de Jânio, do agrado dos eleitores da
classe média e alta, surgia em declarações como (setembro de 1985):
"Enfrentamos uma conspiração de comunistas e comunistóides que persistem em
desmoralizar militares de alta patente e civis que combatem o comunismo". Veja,
20 de novembro de 1985.
26. Fundada em 1985 e dirigida por um jovem médico, sobrinho de um lendário
"coronel" de Goiás, a UDR recebeu extensa cobertura jornalística em todo o país
quando os conflitos rurais chegaram ao auge em maio-junho de 1986. Dentre as
principais reportagens citam-se as de Veja, 18 de junho, Isto Ê, 10 de junho, e
Folha de S. Paulo, 8 de junho. O movimento, que leiloou gado recebido por doação
para levantar fundos, propagou-se

A Nova República: perspectivas para a democracia511

Uma segunda implicação era o voto cada vez mais polarizado e ideológico. As
enormes lacunas econômicas e sociais reforçadas pelo regime militar pareciam
metas óbvias para os políticos que procuravam ampliar o número dos seus adeptos.
O "novo sindicalismo" e o PT eram prova desta tendência.

Terceiro, o crescimento de grupos não partidários bem organizados, como as
CEBs, os sindicatos independentes e alguns grupos profissionais, podia eclipsar
os partidos políticos privando-os de sua representatividade e flexibilidade.27

Quarto, o Brasil estava clamando por nova liderança política. Não foi por
acaso que em 1985 a elite política civil escolheu como presidente e vice-
presidente dois homens cujas personalidades políticas foram formadas muito antes
de 1964. Das muitas lideranças conhecidas anteriores a 1964 ainda figuram no
primeiro plano nomes como os de Jânio Quadros, eleito presidente em 1960, e
Leonel Brizola, um populista da era pré-revolucionária. Onde estão os novos
líderes, aqueles que ingressaram na política depois de 1964? Os que vêm à mente
são (entre outros) José Richa, Nelson Marchezan, Fernando Lyra, Paulo Maluf,
Orestes Quércia, Aureliano Chaves e Marco Maciel. Estes nomes, no entanto, não
conseguem despertar muito entusiasmo, quer entre os observadores políticos quer
no seio da população.

O Brasil estava pagando o preço pelos anos que passou sob o regime
autoritário. Os que foram bastante corajosos - ou bas-
________
rapidamente, com fortes redutos no Pará, Maranhão, Goiás, São Paulo, Paraná,
Mato Grosso do Sul e Bahia. Em 1986 a UDR estava concentrando os seus esforços e
financiamentos para conquistar o máximo de cadeiras parlamentares nas eleições
de novembro.
27. O senador pelo PMDB Fernando Henrique Cardoso temia que isto acontecesse:
"Estamos correndo um grave risco hoje no Brasil porque, em certo sentido, a
sociedade avançou mais do que os partidos, e a pessoa pode ter a ilusão de que
os movimentos sociais suplantaram os partidos". Cardoso afirmava que os partidos
eram indispensáveis na resolução dos problemas identificados e divulgados pelos
movimentos sociais, e que a comunicação era decisiva para melhorar a cooperação.
Fernando Henrique Cardoso, "Primeiro limpar o entulho autoritário", em Lourenço
Dantas Mota, ed., A Nova República, pp. 57-58. O receio de que a
hipermobilização excluísse os partidos políticos foi expresso em Marcelo Pontes,
"Nas ruas os novos partidos", Jornal do Brasil, l de junho de 1986.

512 Brasil: de Castelo a Tancredo
tante cínicos - para entrar na política naquelas duas décadas receberam um
aprendizado distorcido de governo democrático. O Legislativo castrado,
freqüentes mudanças na legislação eleitoral, espionagem das múltiplas agências
de inteligência, censura dos meios de comunicação e intervenção militar em
virtualmente todas as instituições - tudo isso positivamente impedia que uma
nova geração de políticos se qualificasse para identificar e representar
adequadamente a opinião da cidadania. Ao contrário, aqueles anos favoreceram
dois tipos de políticos: os oportunistas que prosperavam por estar no partido do
governo ou apoiar as suas posições; e os opositores que vergastavam
eloqüentemente o governo pela subversão dos direitos humanos, da democracia e da
soberania nacional. A democracia não estava recomeçando no Brasil, mas
não obstante enfrentava importantes obstáculos. Os brasileiros estavam
aprendendo que abolir os constrangimentos autoritários (nem todos tinham
desaparecido) não tinha efeito mágico, quer sobre os políticos quer sobre o
público.

Apesar de todas essas restrições, o Brasil estava caminhando bem sob a
direção do seu presidente substituto. Em dezembro de 1985, José Sarney havia se
firmado como um político altamente capaz que recebera a impossível missão de
substituir Tancredo Neves. Sarney conseguira afirmar-se e mostrara estar
preparado para eliminar as contradições políticas deixadas por Tancredo, como no
caso da disputa Dornelles-Sayad. Uma coisa era clara: havia democracia depois de
Tancredo.

Mas que tipo de democracia? Até quando duraria? Qual o seu grau de
eficiência? Ao chegar a Nova República aos seus quinze meses de vida, que é
quando estamos escrevendo, sua história está apenas começando. Certas questões
importantes já são claras, contudo, e suas evidências preliminares serão
abordadas seletivamente nas próximas' seções deste capítulo. (Termino com um
pós-escrito acrescentado em junho de 1987.)

Como os militares reagiram à democratização?

A escolha de Tancredo para ministro do Exército, sempre a principal figura na
política militar, recaiu no general Leônidas

A Nova República: perspectivas para a democracia 513
Pires Gonçalves, muito respeitado por seus camaradas. Como comandante do
Terceiro Exército, Leônidas desenvolveu importante trabalho isolando os
militares de mentalidade golpista durante a campanha presidencial. Outra escolha
militar importante foi a do general Ivan de Souza Mendes para chefe do SNI.
Mendes tinha duas importantes credenciais: era declaradamente um castelista e
nunca ocupara qualquer posto na comunidade de informações. Eram sinais
favoráveis para aqueles, inclusive muitos militares, que queriam reduzir o poder
do SNI. Quando Sarney chegou à presidência desenvolveu bom relacionamento
pessoal tanto corn Leônidas quanto com Mendes. Em janeiro de 1986 o ministro da
Aeronáutica, brigadeiro Octavio Moreira Lima, afirmava que o presidente Sarney
era mais popular nas forças armadas do que qualquer líder civil das últimas
quatro décadas.28

Uma das questões mais sensíveis para os militares ha vigência do poder civil
era a possibilidade de virem a ser chamados a responder por violações dos
direitos humanos praticados no passado. Os militares ou policiais seriam
responsabilizados por seus atos de tortura (a preocupação era conhecida como
"síndrome de Nüremberg")? Eles tinham razão para estar apreensivos, pois a
imprensa publicara nomes de torturadores e detalhes de seu sinistro trabalho. O
presidente Figueiredo aparentemente resolvera a questão com a lei de anistia de
1979 tornando impunível os torturadores, assim como os praticantes de delitos
"políticos" aos quais a lei inicialmente visava beneficiar. Na ocasião os
militares e a classe política respiraram aliviados. Virtualmente ninguém nos
meios políticos, mesmo da esquerda, considerava viável processar
os torturadores.

Mas algumas vítimas e seus advogados não deixaram a questão morrer. Queriam
que o assunto fosse julgado pelo tribunal da opinião pública; queriam que os
brasileiros tomassem conhecimento dos custos em vidas humanas do governo
repressivo. Em maio de 1985 a principal casa publicadora da Igreja Católica,
Editora Vozes, lançou um volume que enervou muitos militares.
_________
28. O êxito de Sarney (e suas limitações) com os militares é descrito em Alan
Riding, "Brazil Chief is Wooing the Army", New York Times, 23 de janeiro de
1986.

514 Brasil: de Castelo a Tancredo
Brasil: Nunca Mais era o relatório de um grupo de ativistas católicos de São
Paulo sobre ò submundo da tortura de 1964 a 1979.29 Os casos incluíam os nomes
das vítimas e de seus torturadores, juntamente com a época e o local da tortura.
As descrições eram aterradoras. Correspondiam aos relatos já em circulação, mas
com a força adicional de se basearem em registros militares oficiais. O mesmo
grupo de São Paulo publicou posteriormente uma lista de 444 policiais e oficiais
das forças armadas envolvidos em atos de tortura.30

O interesse do público brasileiro cresceu ainda mais em abril de 1985 quando
nove dos membros das juntas militares que governaram a Argentina entre 1976 e
1982, inclusive os presidentes Videla, Viola e Galtieri, foram julgados pelas
barbaridades cometidas sob seus comandos. Em 1984 a Comissão Nacional sobre os
Desaparecidos na Argentina publicou um relatório baseado em depoimentos das
vítimas e suas famílias e de outras testemunhas. O documento denunciava uma
variedade de crimes - tortura, furto de objetos de uso pessoal - e relacionava o
desaparecimento
_________
29. Brasil: nunca mais (Petrópolis, Vozes, 1985). O cardeal de São Paulo, o
incansável ativista Dom Paulo Evaristo Arns, escreveu o prefácio e deu apoio
decisivo ao projeto que produziu o livro. Os autores eram membros do clero e do
laicato católico há muito envolvidos nas lutas em favor dos direitos humanos em
São Paulo. Através de contatos simpáticos no sistema de justiça militar,
conseguiram mais de um milhão de páginas de documentação que limitaram aos casos
descritos no livro. O fato de que tais documentos foram conservados e
puderam ser obtidos (certamente alguns militares ou empregados civis devem
ter, anonimamente, colaborado) mostra como a repressão ficou ao alcance dos
canais burocráticos regulares do Exército. O contraste com a Argentina não
poderia ser mais notável.
30. O grupo de São Paulo primeiro planejou incluir a lista de torturadores em
Brasil: nunca mais,/cujo lançamento estava marcado para maio de 1985. Mas,
devido às eleições municipais - as primeiras da Nova República - marcadas para
novembro, os autores decidiram adiar a publicação da lista para depois do pleito
para evitarem a acusação de estar prejudicando a campanha com revelações
sensacionalistas. Esta atenção para com as realidades políticas ajuda a
explicar a grande eficiência do projeto como fator de influência sobre a opinião
pública. A lista de 444 torturadores foi publicada nos principais jornais
de 22 de novembro de 1985, como a Folha de S. Paulo e o Jornal do Brasil. As
revistas Veja e Isto Ê também publicaram reportagens em suas edições de 27 de
novembro de 1985.

A Nova República: perspectivas para a democracia 515
de 8.960 pessoas.31 A tortura de presos pelos militares argentinos não diferia
em espécie das atrocidades praticadas pelo DOI-CODI, Sérgio Fleury e o CENIMAR.
Os torturadores brasileiros acompanhavam portanto com apreensão o desenrolar dos
acontecimentos na Argentina.

Essa documentação (que ninguém contestava) como em Brasil: Nunca Mais era
dinamite em potencial no clima político na Nova República. Nem foi essa a única
evidência de passados atos de tortura dos militares a vir à superfície depois de
março de 1985. Em agosto, a deputada federal Bete Mendes - que integrava a
comitiva do presidente Sarney em visita oficial ao Uruguai reconheceu no adido
militar brasileiro, em Montevidéu, o homem que a torturara após sua prisão como
guerrilheira em 1970. Absolvida posteriormente pela justiça militar, e livre
portanto de qualquer acusação criminal, ela solicitou ao presidente que o
removesse do posto. Mas o ministro do Exército Leônidas Pires Gonçalves
interveio em favor do seu colega, afirmando também a Sarney que no futuro
defenderia qualquer outro oficial. Seu objetivo? Manter o "moral militar". O
incidente terminou com declarações conciliatórias do ministro e da deputada. Ele
reconheceu "excessos lamentáveis" e ela expressou sua admiração pelo
Exército.32

O ministro do Exército não precisava ter-se preocupado com qualquer tentativa
de chamar os ex-torturadores à responsabilidade. Embora alguns ativistas da
imprensa e da Igreja defendessem a urgência de investigações, se não
julgamentos, o consenso político de 1979 ainda estava de pé. Este acordo
pragmático foi em parte exeqüível porque o regime militar brasileiro, não
obstante seus erros, causou menos mortes do que as ditaduras militares argentina
__________
31. Os julgamentos na Argentina foram a reportagem principal de Veja, de 22 de
maio de 1985. A capa retratava o quepe de um oficial do Exército sobre um crânio
humano. O relatório da comissão presidencial argentina toi publicado sob o
título Nunca Más (Buenos Aires, Editorial Universitária de Buenos Aires, 1984)
e apareceu em um edição americana. Nunca Mas: lheRepon of the Argentine National
Commission on the Disappeared (New York, Farrar, Straus and Giroux, 1986).
32. O oficial do Exército era o coronel Alberto Brilhante Ustra. A resolução
veio após as primeiras Posições difíceis da deputada Mendes e ao ministro do
Exercito Leônidas Pires Gonçalves. Veja, 28 de agosto e 4 de setembro de 1985.

516 Brasil: de Castelo a Tancredo
e (provavelmente) chilena. O número de brasileiros mortos por tortura,
assassinato e "desaparecimento" sob o governo militar, no período 1964-81, foi,
segundo o cálculo mais autorizado, de 333, incluindo 67 mortos na guerrilha do
Araguaia em 1972-74. A comissão investigadora oficial na Argentina constatou
8.960 mortes e desaparecimentos e muitos observadores bem informados estimam o
total verdadeiro em perto de 20.000. Mesmo aceitando o total mais baixo, na
Argentina o número de mortos per capita foi cem vezes maior do que o do Brasil -
a Argentina perdeu um cidadão para cada 2.647 de sua população, enquanto no
Brasil a perda foi de um para cada 279.279. Embora a morte de um só fosse demais
em ambos os países, a repressão menos assassina no Brasil produziu menor reação
e tornou mais fácil para os políticos da Nova República a convivência com a
anistia de 1979. Desobrigou-os também das intermináveis indagações sobre quem
processar e até onde estender as limitações da lei.33

A aceitação da anistia tinha outra explicação: a veia "conciliadora" da
cultura política brasileira, refletida no incidente da deputada Bete Mendes. As
elites brasileiras, pelo menos nos últimos cem anos, acreditaram que seu povo
tem uma peculiar capacidade de resolver pacificamente suas crises sociais.
Verdadeira ou não, esta crença influencia poderosamente os políticos e os
responsáveis pela formação da opinião pública. No caso em tela contribuiu para
justificar a aceitação da lei da anistia de 1979.

O ânimo conciliador do brasileiro é demonstrado na introdução de Brasil:
Nunca Mais: "Não é intenção do nosso Projeto
___________
33. A lista de 333 "mortos e desaparecidos" foi compilada pela Comissão de
Direitos Humanos e Assistência Judiciária da Ordem dos Advogados do Brasil
(Seção do Estado do Rio de Janeiro) e publicada em Revista OAB-R], N.0 19
(1982), 2." edi, pp. 84-94. Esta lista foi feita com base em compilações
anteriores como a de Reinaldo Cabral e Ronaldo Lapa, eds., Os desaparecidos
políticos: prisões, sequestros, assassinatos (Rio de Janeiro, Ed. Opção, 1979).
A Anistia Internacional estimou que 325 ativistas políticos foram mortos ou
"desapareceram" entre 1964 e 1979 - um total muito próximo dos 333 da OAB.
Power, Amnesty International: The Human Rights Story, p. 100. Meu cálculo per
capita é baseado numa população em 1970 para a Argentina de 23 milhões e de 93
milhões para o Brasil. Em Os militares, pp. 82-83, Stepan faz a mesma observação
sobre a enorme diferença na taxa per capita do Brasil em comparação corn a da
Argentina e do Chile.

A Nova República: perspectivas para a democracia 517
reunir um corpo de evidências a ser submetido a algum Nüremberg brasileiro. Não
estamos motivados por qualquer sentimento de vingança. Em sua busca da justiça,
o povo brasileiro nunca foi motivado por sentimentos revanchistas".34 O que os
autores queriam era a máxima publicidade para a documentação que haviam
desencavado, de modo que a tortura nunca mais fosse praticada no Brasil. Os
militares poderiam conviver com essas revelações comprometedoras, ainda que
malsatisfeitos.35 Assim, futuras denúncias de torturas não parecia pudessem vir
a causar problemas sérios, seja para os militares seja para o governo Sarney.
Para o melhor ou o pior, os "excessos" dos militares e da polícia tinham sido
aparentemente colocados fora do alcance da justiça.36
____________
34. Brasil: Nunca Mais, p. 26. Em maio de 1975 conversei com um padre católico
em São Paulo que trabalhava no escritório do cardeal e cuja principal função era
o monitoramento dos casos de tortura de presos políticos. Ele descreveu a
detalhada documentação que estava reunindo juntamente com seus colegas,
inclusive nomes de torturadores e suas vítimas e o local de suas ações. Ele
falava com tanta paixão e indignação que eu perguntei: "Não há grande desejo de
levar esses homens a julgamento?" "Ah", ele disse, "aqui entra o espírito
conciliador do brasileiro."
35. Alguns militares tentaram replicar na mesma moeda. O Serviço de Informações
do Exército fez circular uma lista de vítimas do terrorismo (ou guerrilhas), com
40 oficiais, soldados e agentes da polícia mortos e 212 feridos. Veja, 4 de
setembro de 1985. Em 1979 o Exército fornecera uma relação de 97 mortos e 350
feridos como resultado da ação guerrilheira, incluindo civis e militares. O
Globo, 27 de março de 1979. Posteriormente o Exército divulgou listas com totais
divergentes, mas o número de mortos ficava sempre entre 91 e 102.
Veja, 10 de setembro de 1986. A contra-ofensiva foi levada mais longe pelo
deputado federal Sebastião Curió, um ex-oficial do serviço de inteligência do
Exército que desempenhou papel-chave na liquidação do movimento guerrilheiro do
PC do B no Araguaia. No fim de agosto, Curió divulgou uma lista de 21 nomes de
autoridades do governo Sarney "ligadas ao movimento comunista
internacional" e ameaçou divulgar mais 4.000 se não cessassem as acusações
contra oficiais das forças armadas. Brazil Watch, II, N.° 18 (2-16 de setembro
de 1985), pp. 12-13. Suas acusações tiveram pouco impacto na atmosfera
amplamente liberalizada da Nova República.
36. Uma questão separada era saber se ex-torturadores confirmados deviam
sofrer punição em suas carreiras. Seus superiores tendiam a promovê-los, embora
em certas ocasiões as autoridades civis conseguissem impedilo. Um dos casos
mais divulgados foi o do coronel Valter Jacarandá, identificado em abril de
1985 como torturador no DOI-CODI do Rio no

518 Brasil: de Castelo a Tancredo

Se era improvável que uma reação à disposição dos torturadores
desestabilizasse as relações civis-militares, tentariam os militares outras
formas de ruptura da ordem política? O SNI, juntamente com os serviços de
inteligência das três forças, continuava a preocupar a maioria dos políticos.37
O SNI tornara-se o repositório de enorme massa de informações, e até de dados
vulgares, prontos para serem usados por qualquer ocupante do poder. Seu
gigantesco orçamento, aliado à enorme autoridade de que dispunha, dava-lhe um
poder virtualmente incontrastável. Por outro lado, os arquivos que possuía com
amplos dados sobre suas operações continham informações que, reveladas,
comprometeriam gravemente muitos militares e civis.38

A questão fundamental relativamente a serviços de inteligência é se, além da
coleta de informações, suas atividades consistem também em operações. Isto
aconteceu durante o governo Figueiredo, quando o poder do SNI dentro da
administração pública aumentou consideravelmente. Se continuasse assim poderia
ameaçar a democracia, especialmente se a sua chefia ficasse em mãos não
confiáveis, já que não seria difícil recorrer a "embustes" ou
___________
início dos anos 70. Ele era vice-diretor do Departamento de Bombeiros do Rio
quando a identificação foi feita. Perdeu apenas o cargo sem qualquer punição
adicional. Veja, 24 de abril de 1985; Latin American Weekly Report, 26 de abril
de 1985, e New York Times, 6 de junho de 1985. Caso mais grave ocorreu no Ceará,
onde um ex-torturador foi nomeado superintendente da Polícia Federal no estado.
A recém-eleita prefeita do PT de Fortaleza protestou contra a nomeação e o
ministro da Justiça Fernando Lyra, a autoridade competente no caso, revogou a
nomeação. Veja, 15 de janeiro de 1986. Tudo indica que a tortura por parte dos
militares terminou com o advento da Nova República, embora continuasse a ser
praticada pela polícia, agora somente em relação a presos "comuns". A informação
é de Paulo Sérgio Pinheiro, citado/em Joan Dassin, "Time Up for Torturers? A
Human Rights Dilemma for Brazil", NACLA Report on the Américas, XX, N.° 2
(abril-maio de 1986), pp. 4-6.
37. Para um interessante inventário do terrorismo de direita, incluindo grupos
ligados aos militares, ver Flávio Deckes, Radiografia do terrorismo no Brasil:
1966/1980 (São Paulo, ícone Editora, 1985).
38. Uma jornalista conhecedora do SNI duvidava que o poder deste órgão estivesse
sendo reduzido ou que seus atos estivessem sob controle: Ana Lagoa, "O destino
do SNI", Lua Nova, In, N." l (abril-junho de 1986), pp. 16-18.

519
à "desinformação". Com suas atividades de vigilância, poderia desestimular os
políticos e prejudicar o processo democrático.39

O potencial desagregador do SNI, que ficara manifesto na campanha para a
escolha do candidato presidencial em 1984, dependia de quem o controlasse, assim
como os demais serviços de inteligência.40 Na prática, tanto o SNI como as suas
réplicas nas três forças só prestavam contas aos três ministros militares.
Estes, por sua vez, eram teoricamente responsáveis perante o presidente da
República. Mas agora, pela primeira vez em vinte anos, o presidente era civil.
Até que ponto ele poderia controlar o SNI ou os militares?41

O SNI herdado por Sarney já estava enfraquecido, pois em fins de 1984, ao que
se informava, alguns dos seus membros trataram de fazer uma queima de arquivos.
Aparentemente tinham bastante o que ocultar. Uma acusação que os embaraçava, por
exemplo, era a de serem responsáveis pela morte de Alexander von Baumgarten, um
jornalista que morreu a tiros no que supostamente teria sido um acidente de
barco em 1982.42 Baumgarten, que
________
39. Numa reportagem sobre o chefe do SNI general Ivan Mendes dois meses depois
do início da Nova República, Veja advertia seus leitores de que não se deixassem
iludir pelo charme e a abertura de Mendes. "O SNI de hoje", a revista declarava,
"é exatamente o mesmo que o SNI de ontem." Veja, 29 de maio de 1985, p. 17. Um
semanário afirmava em junho de 1986 que o SNI ainda estava grampeando pelo
menos 130 telefones de políticos e altas autoridades. A acusação foi
indignadamente desmentida pelo general Ivan, que prometeu pôr no olho da rua
quem quer que fosse apanhado grampeando. Isto Ê, 11 de junho de 1986; Jornal de
Brasília, 10 de junho de 1986.
40. O envolvimento da inteligência do Exército em uma trama malsucedida em 1984
para desmoralizar Tancredo (distribuindo posters em que o candidato da
oposição era apresentado como instrumento do Partido Comunista) foi
noticiado em Veja, setembro de 1984, e confirmado por investigações que vieram
à luz um ano depois. Veja, 30 de outubro de 1985.
41. Para uma excelente apreciação do papel dos militares no primeiro ano da Nova
República, com especial atenção para os serviços de inteligência, ver René
Dreifuss, "Nova República, Novo Exército?" em Koutzii, ed., Nova República, pp.
168-93. Uma sóbria avaliação da constante presença dos militares através da
estrutura estatal é apresentada em Walder de Góes, "Os militares e a
democracia", Política e Estratégia, In, N." 3 (julhosetembro de 1985), pp. 444-
54.
42. A primeira revelação do caso Baumbarten foi em Veja, 2 de fevereiro de 1983.
O caso ainda estava vivo em 1985, quando um chefe de

520 Brasil: de Castelo a Tancredo
figurava na folha de pagamentos do SNI, deixou um dossiê explicando por que
aquele órgão queria matá-lo. O governo obstruiu o prosseguimento da queixa-crime
intentada pela família da vítima, mas o episódio foi outra mancha negra que
tisnou a reputação da entidade, sobretudo para os militares que não confiavam em
sua atuação.43 O SNI ou outro serviço de inteligência militar, ao que se
informava, estava por trás também da morte de Mário Eugênio, jornalista do
Correio Brasiliense, que aparentemente estava investigando um crime de morte
suspeito.44

Prova da necessidade sentida pelo próprio SNI de melhorar a sua imagem foram
os esforços do seu novo chefe visando a um melhor relacionamento com a imprensa.
Em abril de 1985, o general Ivan adotou a medida sem precedentes - para um chefe
do SNI - de realizar uma entrevista coletiva. Colocou-se também à disposição dos
jornalistas para lhes fornecer esclarecimentos sem caráter de entrevista,
prática desconhecida nas anteriores administrações do SNI.45

As pressões militares na fase inicial da Nova República foram mais fortes
onde naturalmente eram mais esperadas: medidas afetando diretamente as forças
armadas. Um exemplo bem ilustrativo foi a lei aprovada pela Câmara dos Deputados
em outubro de 1985 anistiando 2.600 oficiais das três armas que foram ou
cassados ou demitidos administrativamente entre 1964 e 1979. Pela
_________
polícia de São Paulo deu continuidade às suas investigações em torno do mistério
da morte do jornalista. Muitos oficiais do Exército, alguns já mortos, estavam
implicados no inquérito. Folha de S. Paulo, 25 de maio de 1985; Veja, 22 e 29 de
maio de 1985.

43. Em janeiro de 1985 informou-se que o SNI estava examinando a
"desmilitarização" do seu staff, que incluía 460 coronéis e tenentes-coronéis,
noventa dos quais na ativa. Veja, 30 de janeiro de 1985. Os oficiais em serviço
no SNI, além da oportunidade de ganhar salário mais alto, faziam jus a
gratificações e outras varítagens não percebidas por seus colegas do quadro
regular do Exército. Estes, compreensivelmente ressentidos, denunciaram a
"elite" de oficiais do SNI como fator de grave discórdia nas fileiras da
oficialidade.
44. Veja, 30 de outubro de 1985, p. 42.
45. Noticiando esses fatos aparentemente favoráveis, Veja concluía notando
que alguns políticos duvidavam que o SNI realmente tivesse mudado. Informava-se
que nomes representativos do PMDB, como Ulysses Guimarães e Fernando Henrique
Cardoso, estavam "falando muito menos ao telefone hoje do que nos dias do
governo Figueiredo". Veja, 24 de abril de 1985.

A Nova República: perspectivas para a democracia 521
lei eles deveriam receber todos os atrasados e voltar ao serviço ativo na
patente em que estariam se houvessem sido regularmente promovidos. Se todos os
beneficiados voltassem aos seus postos, o caos ter-se-ia instalado. Os chefes
militares se opuseram vigorosamente à medida e conseguiram que o presidente e a
liderança parlamentar a vetassem.46 A cúpula militar também opinou sobre
questões como reforma agrária e lei de greve, adotando em ambos os casos uma
postura conservadora.

Em outras questões os militares foram vencidos. Uma foi a nova lei sobre o
registro de partidos políticos. Os beneficiários imediatos foram o PCB pró-
Moscou e o dissidente PC do B, ambos anátemas para a maioria dos militares.
Apesar disso, o projeto transformou-se em lei. Um segundo exemplo foi o
reatamento de relações diplomáticas com Cuba, suspensas desde o golpe de 1964,
como parte da linha anticomunista do governo Castelo Branco. O reatamento,
recomendado pelo ministro das Relações Exteriores em 1985, teve a oposição dos
militares, mas foi efetivado em julho de 1986.47

Área particularmente importante para os militares era a segurança nacional,
conforme se viu por sua reação ao anteprojeto constitucional preliminar da
Comissão Afonso Arinos preparado para a Assembléia Constituinte de 1987. Questão
polêmica foi a cláusula sobre o papel das forças armadas. A Constituição de 1969
(Art. 91) concedera-lhes um mandato amplo: "As forças armadas, essenciais à
execução da política de segurança nacional, destinam-se à defesa da pátria e à
garantia dos poderes constituídos, e à preservação da lei e da ordem". As
Constituições de 1964 e 1967 tinham outorgado exatamente as mesmas atribuições
com igual redação. A Comissão Afonso Arinos propunha agora que se omitisse a
frase "e à preservação da lei e da ordem", afirmando que o envolvimento das
forças armadas na manutenção da ordem interna fora um desastre tanto para as
instituições militares como para
_________
46. A crise provocada pelo projeto mereceu reportagem de capa em Veja, 30 de
outubro de 1985.
47. O ministro das Relações Exteriores do Brasil em agosto de 1985 recomendara o
reatamento de relações com Cuba, mas o presidente Sarney resolveu adiá-la por
causa da oposição do Exército. Veja, 21 de agosto de 1985.

522 Brasil: de Castelo a Tancredo
a nação. Lançava os militares contra o povo, desmoralizando os homens de farda e
deslocando as autoridades civis que são as verdadeiras responsáveis pela lei e a
ordem. O que os críticos queriam, portanto, era revogar a cláusula
constitucional que transformava os militares em policiais. A estes, sim,
integrantes da Polícia Civil, por maiores que fossem suas queixas, cabia a
responsabilidade pela preservação da ordem.48

Os chefes militares emitiram um documento afirmando que seria "perigosa
lacuna desconhecer a Carta Magna a ampla abrangência dos problemas relacionados
com a segurança nacional..." Dizia mais que, para as forças armadas, "o alegado
uso desmesurado dessa abrangência nos últimos decênios pode e deve ser
corrigido, mas não deve justificar tal lacuna, que seria prejudicial à segurança
da nação e de seu patrimônio de toda ordem, inclusive do regime democrático". Em
particular, outros militares influentes eram mais francos. Um observou:
"Legalizados ou não, os comunistas querem o poder", enquanto dois outros
generais descreveram a comissão constitucional como querendo "transformar a
Constituição num instrumento que evite o golpe. Como se alguém fosse derrubar
governos com a Carta Magna debaixo do braço".49

Os militares queriam, com efeito, um mandato para continuar a desempenhar seu
papel de "poder moderador", expressão usada para descrever a função do imperador
quando o Brasil viveu sob esse sistema político (1822-89). Naquele período, o
imperador podia intervir quando os partidos políticos chegavam a impasse. Depois
de 1889 os militares assumiram o "poder moderador". Nos quarenta anos seguintes
intervieram repetidamente na política quer no plano estadual quer no federal,
embora a Constituição de
________
48. Para um exemplo de tal modo de pensar, ver o artigo, "O poder civil dispensa
tutela", por um advogado e professor do Pará em Veja,
16 de julho de 1986, p. 154.
49. Jornal da Tarde, 5 de junho de 1986. Detalhes sobre o importante papel do
ministro do Exército Leônidas, que foi pressionado pelos seus subordinados a se
manifestar, foram dados em Correio Brasiliense, 10 de junho de 1986. O
irreprimível general Newton Cruz, recentemente comandante militar do Planalto,
acrescentou sua voz, advertindo que se a versão da comissão constitucional
fosse adotada "demoliria a última barreira contra a implantação
de um estado de anarquia". Correio Brasiliense, 11 de junho de 1986.
A Nova República: perspectivas para a democracia

523
1891 não tivesse qualquer cláusula tornando os militares responsáveis pela
manutenção da lei e da ordem.50

Se os militares intervieram tão prontamente no período 1889-1930, quando
nenhuma cláusula justificava sua atitude, porque se preocupavam com ela agora?
Porque tinham consciência da deterioração do seu prestígio a partir de 1964.51 A
comissão constitucional, com efeito, recusou-lhes o pedido para que fosse
incluída referência explícita ao seu poder moderador no anteprojeto preliminar.
E eles deixaram claro que se sentiriam livres para intervir, como o fizeram sob
as constituições anteriores, se lhes parecesse necessário para o bem do povo.
Qual era, então, a concepção que os militares tinham do seu próprio papel a
partir de meados de 1986? Como Alfred Stepan explicou detalhadamente, havia duas
concepções conflitantes.52 O "velho profissionalismo", que tinha as atenções
voltadas para a ameaça externa, sustentava que os militares deviam concentrar-se
na assimilação de conhecimentos técnicos, na disciplina interna e na manutenção
de uma postura não política. Dessa forma preservariam sua integridade
profissional,53 da máxima importância se fos-
_________
50. Para um debate destas questões na perspectiva da elaboração de anteriores
constituições brasileiras, ver João Quartim de Moraes, "O estatuto
constitucional das forças armadas", Política e Estratégia, In, N." 3 (julho-
setembro de 1986), pp. 379-90.
51. Em 1986 conhecido corretor de imóveis do Rio publicou um longo anúncio na
imprensa denunciando o baixo nível das pensões civis em comparação com as
pensões militares. Seu pensamento era inequívoco: "De 1966 a 1985 os ditadores
militares assinaram mais de 18 decretos-leis concedendo-se benefícios
financeiros alienando assim os nossos militares - a maioria dos quais
oriunda da classe média e de famílias pobres - da população civil, vítimas de
muito sofrimento e injustiças". Anúncio colocado por Edgard Clare em O Globo, 23
de junho de 1986.
52. Estas idéias foram expostas no capítulo de autoria de Stepan em Alfred
Stepan, ed., Authoritarian Brazil: Origins, Policies and Future (New Haven, Yale
University Press, 1973), pp. 47-65; e em Stepan, Os militares: da abertura
à Nova República (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986).
53. Para um indignado ataque contra o que um oficial do Exército considerava
corrupção endêmica durante o regime militar, ver coronel Dicksen Grael,
Aventura, corrupção e terrorismo: a sombra da impunidade (Petrópolis, Vozes,
1985). Para dois dos libelos mais amplamente lidos, ver

524 Brasil: de Castelo a Tancredo
sem solicitados a convocar o apoio civil em defesa da nação. Nunca eles adotaram
completamente esta orientação, mas foi a que prevaleceu durante e após a Segunda
Guerra Mundial.

No fim dos anos 50 o "velho profissionalismo" foi desafiado pelo "novo
profissionalismo da segurança interna e do desenvolvimento nacional". Vimos como
esta doutrina, orientada para problemas internos desde a ameaça de guerrilhas
até as mais gritantes desigualdades econômicas, predominou a partir do início
dos anos 60. Nos anos de Mediei o Brasil tornou-se o exemplo didático de um
"estado de segurança nacional", quando os militares impuseram sua doutrina pela
força inspirando a lei do SNI, a Lei de Segurança Nacional, o AI-5 e a
Constituição de 1969.
No entanto o governo que o sucedeu iniciou o processo de liberalização, visando
à restauração do estado de direito. O que acontecera ao dogma do "novo
profissionalismo da segurança interna e do desenvolvimento nacional"? Os
militares estavam voltando ao "velho profissionalismo"?

A resposta está no fato de que os militares brasileiros encaravam sua missão
com um estado de espírito que raiava pela esquizofrenia. Abraçavam ambos os
modelos, tanto o "profissional" quanto o da "guerra interna". O compromisso
relativo com cada um dependia daquilo que pudesse ameaçar o seu
profissionalismo, da gravidade da ameaça interna e, sempre de importância
fundamental, da necessidade de proteger a sua própria unidade. O modelo do
"velho profissional" tinha mais peso agora, na opinião da oficialidade.

O que também reforçou essa mudança de conceitos foram os muitos escândalos
que comprometeram a imagem das forças armadas. Muitos militares se deixaram
envolver diretamente, como no escândalo da Capemi (envolvendo um fundo de pensão
administrado por militares e um projeto de desflorestamento no vale amazônico),
no atentado terrorista do Riocentro e no caso Baumgarten. As freqüentes
excursões do presidente Figueiredo ao exterior e suas José Carlos de Assis, A
chave do tesouro: anatomia dos escândalos financeiros: Brasil 1974-1983 (Rio de
Janeiro, Paz e Terra, 1983), e Os mandarins da república: anatomia dos
escândalos na administração pública: 1968-1984 (Rio de Janeiro, Paz e Terra,
1984).

A Nova República: perspectivas para a democracia 525
atitudes impróprias para com a imprensa prejudicaram ainda mais a imagem
militar.54

Qual o papel dos militares após quinze meses de Nova República? Havia algum
fato político que pudesse levar mesmo os moderados a intervir? Para falar em
termos militares, poderia a ameaça interna à segurança nacional convencer a
maioria dos militares de que não lhes restaria outra alternativa do que repetir
o movimento de 1964? A questão crucial era como os futuros oficiais
interpretariam não somente as leis mas também as realidades políticas à sua
volta.55

Mas os militares ainda eram uma grande presença. Oficiais reformados ocupavam
de 8.000 a 10.000 postos importantes no governo e nas empresas estatais. E ainda
havia o SNI, generosamente provido de recursos, operando na sombra e com número
muito grande de oficiais lotados em suas várias dependências. No entanto, sua
principal preocupação agora parecia ser não qualquer ameaça política potencial,
mas seu equipamento antiquado. Ao contrário dos seus colegas da Argentina, do
Chile e do Peru, os militares brasileiros não usaram sua permanência no poder
para aumentar as verbas das forças armadas. Os oficiais brasileiros julgavam
aparentemente que o país não enfrentava ameaça externa que justificasse amplo
reequipamento de suas forças. Em parte isto refletia o êxito da diplomacia
brasileira na proteção das fronteiras nacionais (projetos hidrelétricos,
comércio) com o Paraguai, o Uruguai e a Bolívia, três vizinhos tradicionalmente
preocupantes. Mas sua autoconfiança recebeu forte abalo quando os argentinos e
os ingleses foram à guerra por causa das Falklands/Malvinas. Os generais
brasileiros viram os argentinos invadir as Malvinas, apenas para serem
humilhados pelo contra-ataque britânico. O episó-
__________
54. A corrupção dos militares foi descrita com cores muito vivas em um artigo de
revista sobre contrabando: Veja, 4 de setembro de 1985, p. 60.
55. No início de 1986 um dos mais argutos correspondentes estrangeiros no
Brasil, Alan Riding, manifestava-se confiante: "Na realidade, as forças
armadas, aliviadas dos afazeres do dia-a-dia do governo, parecem ter revertido a
sua histórica função de árbitros invisíveis da política brasileira, papel que
sempre exerceram sob todos os governos civis desde que a monarquia foi
substituída pela república em 1889". New York Times, 23 de janeiro de 1986,

526 Brasil: de Castelo a Tancredo
dio fez os militares repensarem a defesa de suas milhares de milhas de litoral
atlântico desprotegido. E refletiram novamente sobre a limitada mobilidade de
suas tropas terrestres. Meditaram na escassez de blindados - do tipo que o país
está vendendo em grandes quantidades para outros países. Lembraram-se igualmente
dos mais de dois anos que levaram para derrotar 69 guerrilheiros comunistas no
vale amazônico (Araguaia) em 1972-75.

Decidiram, portanto, dedicar-se ao projeto há muito adiado de modernização e
expansão de suas forças. Em seu último ano, o governo Figueiredo aprovou os
pedidos de recursos e, em 1985, o Exército recebeu autorização para executar seu
amplo programa de reorganização e reequipamento. O plano "FT-90" (Força
Terrestre 1990) tinha por objetivo aumentar o efetivo do Exército de
183.000 para 296.000 homens. Estava prevista também a compra de carros
blindados, tanques, lançadores de mísseis, canhões, radares e helicópteros,
principalmente de fornecedores brasileiros.56 Os militares tinham agora estímulo
para amiudarem seus contatos com os parlamentares que teriam que votar as verbas
destinadas à continuação do programa.

Como o governo democrático enfrentou as difíceis opções econômicas?

Administrar uma economia envolve opções inerentes: inflação versus
crescimento, crescimento versus estabilidade, aumento de renda versus
distribuições de renda. Nesse processo a democracia fica em desvantagem sob um
importante aspecto: a continuação de sua existência depende da aceitação de suas
políticas pelos eleitores. E isto faz com que sejam privilegiadas as decisões
politicamente populares em prazo relativamente curto. Como já observei, quinze
meses do novo governo é muito pouco para uma análise definitiva. Contudo, um
exame seletivo pode começar a lançar luz sobre as possibilidades. Os meus
comentários percorrem a mesma cronologia várias vezes para apresentar o contexto
de cada questão
_________
56. O programa é descrito em José de Souza Fernandes, "FT-90: O novo Exército
brasileiro", Defesa Latina, VI, N.° 37, pp. 16-19, 31-32; e em Latin America
Regional Report: Brazil, 3 de janeiro de 1986.

A Nova República: perspectivas para a democracia 527
econômica abordada. Peço, portanto, a indulgência do leitor pela inevitável
repetição.57

A Dívida Externa: Intervalo para Tomar Fôlego. A dívida externa foi um dos mais
agudos problemas econômicos que Sarney enfrentou ao assumir o governo.58 Era a
maior dívida externa do mundo (aproximadamente US$95 bilhões no início da década
de 80). O Brasil podia atender ao seu serviço sem desmantelar sua própria
economia? A meta seria "uma reprogramação global da dívida externa, em condições
de preservar o povo de sacrifícios insuportáveis e resguardar a soberania
nacional", como afirmava o manifesto da Aliança Democrática, de agosto de
1984?59 A imprensa dos Estados Unidos e da Europa constantemente advertiam que
uma inadimplência mexicana ou brasileira poderia desencadear o colapso do
sistema bancário mundial. Em fins de 1982 a recessão mundial, a elevação das
taxas de juros, o declínio dos termos de intercâmbio e a súbita recusa dos
bancos comerciais de emprestar dinheiro "novo" forçaram o Brasil, juntamente com
outros devedores, a pedir ajuda ao FMI. A esquerda e parte do centro criticaram
fortemente Figueiredo e Delfim por essa decisão, prevendo que as condições do
Fundo Monetário deprimiriam ainda mais a economia brasileira.

O governo Figueiredo sabia dos perigos implícitos na aplicação das fórmulas
do FMI. Mas Delfim Neto e seus colegas não
_________
57. Para uma análise dos prováveis efeitos das opções políticas abertas ao novo
governo, ver Kenneth Meyers e F. Desmond McCarthy, Brazil: Medium-Term Policy
Analysis (Washington, World Bank, 1985), que advertia que "a estratégia de
desenvolvimento dos anos 60 e 70 e a concomitante tecnologia não são mais
adequadas".
58. Uma Comissão Parlamentar de Inquérito realizou audiências em
1983-84 e produziu um sarcástico relatório responsabilizando os tecnocratas pelo
precipitado recurso a maciços empréstimos externos. O relatório foi publicado
como: Sebastião Nery e Alencar Furtado, Crime e castigo da dívida externa
(Brasília, Dom Quixote Editora, 1986). Deve-se notar que a volúpia brasileira
por empréstimos estrangeiros foi reduzida em virtualmente todos os países
do Terceiro Mundo, mesmo que possuidores de medíocre classificação de
crédito. Para uma excelente apreciação da questão da dívida externa nas vésperas
da Nova República, ver Francisco Eduardo Pires de Souza, "Metamorfoses do
endividamento externo", em Antônio Barros de Castro e Pires de Souza, A
economia brasileira em marcha forçada (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1985), pp.
97-189.
59. Dimenstein, O complô, p. 226. •

528 Brasil: de Castelo a Tancredo
viam alternativa, e assim negociaram uma série de acordos (conhecidos como
"cartas de intenção") que especificavam metas políticas para a taxa de expansão
da base monetária, para o tamanho do déficit do setor público, o nível de
reajuste do salário mínimo etc., metas que o Brasil tinha que atingir para
continuar recebendo empréstimos do Fundo. Entre o início de 1983 e o fim de
1984 o Brasil assinou seis dessas cartas e não cumpriu as metas fixadas em
nenhuma delas.

Por que então continuaram a ser assinadas? A única explicação é que ambas as
partes tinham suas razões para querer assiná-las, embora não acreditassem no
cumprimento de nenhuma. Por um lado, o Brasil precisava da aprovação do FMI não
só para poder continuar a receber seus empréstimos, mas também porque outros
credores, especialmente os bancos comerciais, solicitavam o imprimatur daquela
instituição antes de entrar em negociações. Por outro lado, o Fundo reconhecia a
posição básica do Brasil entre os devedores do Terceiro Mundo e desejava
conduzir suas políticas na direção certa. As negociações para uma sétima carta
de intenção estenderam-se até o começo de janeiro de 1985, mas em fevereiro o
FMI rejeitou o plano proposto pelo governo Figueiredo e os entendimentos foram
suspensos. O Fundo suspendeu também novos empréstimos alegando que o Brasil
deixara de cumprir as metas combinadas para o quarto trimestre de 1984.
Obviamente, a entidade estava se preparando para adotar política igualmente
dura para com o novo governo.

O governo Figueiredo também não tomara providências para reescalonar as
pesadas prestações do principal vencíveis nos próximos cinco anos para com os
bancos comerciais, detentores de quase 70 por cento da dívida externa.
Finalmente, o Clube de Paris (nações credoras que anteriormente forneceram ajuda
bilateral ao Brasil) pôs as negociações em banho-maria. Todos os credores
estavam esperando; para conhecer a linha política a ser seguida pelo novo
governo. Sarney prometera em seu discurso de 7 de maio, reiterando advertência
anterior de Tancredo, que a dívida externa não seria paga com a fome do povo.
Destinava-se esta bravata apenas ao consumo interno?

Quando o novo governo se iniciou, à sombra de um Tancredo agonizante, os seus
economistas examinaram com precaução o problema da dívida. Ao ministro da
Fazenda Dornelles (particularmente) teria agradado a pressão dos credores, pois
o ajudaria na

529
execução das medidas ortodoxas de estabilização que defendia. Para a sua posição
de negociador, infelizmente, as perspectivas da balança de pagamentos do Brasil
eram surpreendentemente favoráveis. Em 1984 a balança comercial (exportações
menos importações) alcançou o total recorde de US$13,1 bilhões, quase o dobro do
total de 1983, de US$6,5 bilhões. O aumento resultou do crescimento de US$5,1
bilhões nas exportações e de uma queda de US$1,5 bilhão nas importações. O
crescimento foi o resultado de uma campanha de longo prazo em prol da expansão
das exportações, especialmente de bens manufaturados (que agora representavam
quase metade de todas as exportações). A queda das importações refletia em parte
a política ininterrupta de substituição de importações, não somente na área de
produtos industriais, mas também de matérias-primas (petróleo, potassa). Note-se
que o preço do óleo importado, embora ainda um ônus muito grande, estava
diminuindo rapidamente. O superávit comercial era mais ou menos equivalente aos
juros da dívida. Esta folga no comércio exterior era complementada por
apreciável acumulação de divisas, cerca de US$9 bilhões no fim de 1984. O novo
governo tinha, portanto, espaço para manobra nas negociações com o FMI, o Clube
de Paris e os bancos comerciais.60

As perspectivas para 1985 pareciam igualmente favoráveis. Os números
relativos aos primeiros meses do ano indicavam provável superávit de US$11-12
bilhões. O superávit comercial e o vigor com que aumentavam as reservas cambiais
significavam que não havia problema a curto prazo para atender ao serviço da
dívida. Na situação em que se encontrava o Brasil podia dispensar os dólares do
FMI e portanto poupar os políticos internamente do mal-estar que os acometia
quando o país assinava qualquer acordo com o Fundo.

Com esse espaço para manobras, o governo Sarney pôde escolhei- os credores
nos quais desejava concentrar-se. Optou pelos bancos comerciais que detinham
US$35 bilhões de empréstimos brasileiros vencíveis entre 1985 e 1989. Os
banqueiros estavam
_________
60. Os dados são de Brasil Econômico: Ajustamento Interno e Externo
(Brasília, Banco Central do Brasil, 1986), vol. 10 (fevereiro de 1986), Esta
fonte dá a "posição de liquidez internacional" (definição do FMI) como
US$2 bilhões. A cifra de US$9 bilhões parece uma estimativa mais segura
das verdadeiras reservas cambiais.

530 Brasil: de Castelo a Tancredo
impressionados com a performance comercial do Brasil e seu crescimento interno,
mas o problema do governo Sarney era convencê-los a reescalonar tais empréstimos
sem o aval do FMI às políticas brasileiras. Em fim de julho de 1986 as
negociações eram bem-sucedidas, tendo sido assinado um acordo para a rolagem de
US$15,5 bilhões do principal com vencimentos em 1985 e 1986, e para renovar
US$15,5 bilhões em créditos comerciais.61 Se o superávit comercial continuasse o
governo teria a relativa autonomia para decidir, tão essencial para o seu
ambicioso programa visando a atender às urgentes necessidades dos brasileiros.
Se não continuasse, o acordo de julho passaria a preocupá-lo.

Estas manobras de curto prazo de modo algum alteravam o fato de que o Brasil
continuava a arcar com uma carga extremamente onerosa no que se refere ao
serviço de sua dívida. Em 1985 o Brasil pagaria aos credores externos 5 por
cento do PIB. Este dinheiro devia sair da poupança doméstica, reduzindo o
montante para investimentos no país. Continuar pagando a essa taxa significaria
exportar capital em uma escala inédita no Terceiro Mundo. Em meados de 1986,
contudo, o Brasil estava pagando os juros de sua dívida e gozando de
prosperidade econômica ao mesmo tempo. Por enquanto, as duras opções em relação
ao serviço da dívida podiam ser evitadas.62

Os economistas com posições mais "realistas" tanto da direita quanto da
esquerda afirmam que a democracia nos países em desenvolvimento leva à prática
de políticas desprovidas de "solidez". Uma das razões, dizem, é que os políticos
procuram atender às exigências imediatas da população que favorecem o consumo em
detrimento dos investimentos, prejudicando assim o desenvolvimento futuro.
Dilema semelhante muitas vezes ocorre no que se
________
61. Os termos do acordo foram descritos em The Wall Street Journal,
25 de julho de 1986. A assinatura foi confirmada em Brazil Watch, In, N." 16 (4-
18 de agosto de 1986).
62. Pára um exame da estratégia da dívida externa brasileira por um especialista
que trabalhou no Ministério do Planejamento, ver a entrevista com Paulo
Nogueira Batista em Senhor, 27 de maio de 1986. Para uma excelente apreciação,
ver Moreira, The Brazilian Quandary. Para um ponto de vista sobre o problema da
dívida externa latino-americana a partir de meados de 1986, ver Alejandro
Foxley, "The Externai Debt Problem from a Latin American Viewpoint" (Notre Dame,
Kellogg Institute Working Paper 72, julho de 1986).

531
refere à inflação. Os políticos planejam suas medidas (sobre taxas de câmbio,
taxas de juros reais, salários reais, tarifas de empresas de serviços públicos
etc.) mais para agradar poderosos grupos de pressão do que para manter os
preços, os salários e as taxas de juros no ponto ótimo de relacionamento para os
desejados índices de crescimento.63

Muitos dos economistas da Nova República recusavam vigorosamente este
raciocínio que foi muitas vezes invocado para justificar o regime autoritário do
Brasil. José Serra, por exemplo, afirma que nenhuma das realizações do "milagre"
de 1968-74 pode ser atribuída ao poder autoritário do governo militar.64 Nenhuma
área de decisão econômica pode ser mais relevante para esta matéria do que a
inflação, que há muito se constitui em maldição na América Latina.65
Plano Cruzado: Nova Arma Contra a Inflação. O Brasil experimentara uma série de
programas malogrados de combate à inflação antes de 1964. Em todos os casos o
governo achava os custos
________
63. Um veterano economista do Banco Mundial afirmou que "não há necessidade de
conflito entre completar com êxito a estabilização econômica e alcançar níveis
maiores de crescimento econômico e de eqüidade", Peter T. Knight, "Economic
Stabilization and Médium Term Development in Brazil", em Economic Policy and
Planning (Boston, Center for International Higher Education Documentation,
Northeastern University, 1985), p. 30. Knight faz excelente apreciação dos
problemas econômicos e das perspectivas com que se defronta o novo governo em
1985. Para outra apreciação do legado econômico deixado pelos militares,
ver Maria da Conceição Tavares e J. Carlos de Assis, O grande salto para o
caos: a economia política e a política econômica do regime autoritário (Rio de
Janeiro, Zahar, 1985). Maria da Conceição foi uma das mais eficientes e
implacáveis adversárias da política econômica de pós-1964.
64. José Serra, "Three Mistaken Theses Regarding the Connection
between Industrialization and Authoritarian Regimes", in David Collier, ed.,
The New Authoritarianism in Latin America (Princeton, Princeton University
Press, 1979), pp. 99-163.
65. Para uma apreciação altamente informativa dos problemas econômicos e
políticos do Brasil no início da Nova República, ver Estudos Econômicos, XV, N.°
3 (setembro-dezembro de 1985). O número inteiro, inclusive um painel de debates,
é dedicado a "A dívida externa e a recuperação econômica". Para análises da
política econômica do governo Sarney no seu primeiro ano, ver Plínio de Arruda
Sampaio Júnior e Rui Affonso, "A transição inconclusa", e Paul Singer, "Os
impasses econômicos da Nova República", ambos em Koutzii, ed., Nova República.

532 Brasil: de Castelo a Tancredo
políticos da estabilização econômica altos demais e abandonava a tentativa. Até
o início dós anos 60, a economia conseguiu sobreviver a cada plano fracassado de
estabilização de uma forma ou de outra. Mas João Goulart não encontrou saída
para as crises do seu governo, tanto a financeira quanto a da dívida externa.
Não somente as reservas cambiais se aproximaram de zero, mas também a inflação
em março de 1964 alcançara a taxa anual sem precedentes de 125 por cento. Esta
explosão inflacionária foi o fator principal que motivou a sua deposição. Nos
anos do "milagre" do governo militar a inflação foi contida entre 14 por cento e
34 por cento. A partir daí começou a acelerar-se atingindo três dígitos no
início dos anos 80. Em 1984, último ano completo de governo militar, a inflação
atingiu a alarmante taxa recorde de 222 por cento. No discurso de posse que
Tancredo jamais pôde pronunciar, ele definiu a inflação como "a mais clara
evidência de desordem em nossa economia nacional", acrescentando que "devemos
enfrentá-la desde o nosso primeiro dia".66

O Brasil era um país que supostamente aprendera a conviver com a inflação,
graças à indexação e às minidesvalorizações cambiais. Teve uma inflação média
anual de 32 por cento entre 1968 e 1979, mas também apresentou uma taxa média
anual de crescimento real de 9 por cento. O país aparentemente dava aulas de
como neutralizar a inflação promovendo ao mesmo tempo o crescimento. Em 1979,
contudo, a inflação chegou a 77 por cento, e nos primeiros anos da década de 80
virtualmente todos os economistas concordavam que a inflação brasileira, apesar
da indexação, estava fora de controle. É que a inflação de três dígitos estava
causando severas distorções na economia. O intervalo de seis meses para o
reajuste do salário mínimo, por exemplo, causara grandes perdas de renda real
para os trabalhadores (algumas firmas, após negociarem oficialmente com os
trabalhadores, e independentemente do Ministério do Trabalho, passaram a dar
reajustes trimestrais, aliviando mas não resolvendo o problema). Pequenas
discrepâncias nas taxas de indexação (como entre salários e prestação da casa
própria) agravaram-se quando a inflação ultrapassou a casa dos 200 por cento. O
mercado de capital oferecia outro exemplo. A necessidade do governo de financiar
o grande
_________
66. Dimenstein, O complô, p. 244.

533
déficit do setor público e de manter recursos no país atraindo ao mesmo tempo
capital externo levou o Tesouro a emitir títulos (ORTNs) que asseguravam maior
retorno do que qualquer instrumento financeiro.67 Poupanças privadas cada vez em
maior quantidade foram canalizadas para esse e outros papéis governamentais,
reduzindo o capital disponível para investimentos produtivos, já que a
especulação financeira era a mais rentável atividade no Brasil. Essas distorções
inflacionárias - e muito mais - teriam preocupado qualquer governo. Tancredo
Neves e o ministro da Fazenda Dornelles já haviam identificado a inflação
como o problema número um. Mas a forma de atacá-la dependia de quem se
procurasse agradar. Desde que o FMI estabelecesse as metas, o Brasil teria que
adotar medidas políticas ortodoxas. Era este o enfoque de Dornelles - sem
dúvida, uma das razões por que Tancredo o escolheu. Durante a primeira fase
(provisória) de Sarney como presidente, Dornelles determinou, como vimos antes,
um corte geral de 10 por cento no orçamento e um congelamento de contratos e
empréstimos. O objetivo era diminuir as necessidades de empréstimos, reduzindo-
se com isso uma das causas da pressão inflacionária - a emissão de dinheiro pelo
governo (sobretudo através do Banco do Brasil) para cobrir seu déficit de caixa.
_________
67. Um estudo do Morgan Guaranty Trust mostrou que o Brasil sofreu menos fuga de
capital do que os outros principais devedores da América Latina. Em 1976-86 a
fuga de capitais .no Brasil importou em US$10 bilhões, enquanto na Argentina a
fuga registrada foi de US$26 bilhões e no México, de US$53 bilhões. Medida em
relação ao tamanho absoluto de cada economia, a fuga de capitais do Brasil
parece ainda menor. Estes dados parecem corroborar a afirmação do governo
brasileiro de que aplicou os dólares dos seus empréstimos em investimentos
produtivos. The Latin American Times, N.° 73 (9 de junho de 1986). Esta
afirmação é apoiada pelo professor Ingo Walter, especialista em movimentos
clandestinos de capital. Ele atribuiu o baixo índice de fuga de capitais do
Brasil às suas atraentes oportunidades de investimento e ao otimismo dos
brasileiros sobre o futuro do seu país. Jornal do Brasil, 15 de junho de 1986.
Um estudo baseado em pesquisa do Banco Mundial concluiu que a fuga de capitais
do Brasil no período 1974-82 foi de apenas US$200 milhões, enquanto no México
foi de US$32,7 bilhões, na Argentina, de US$15,3 bilhões e na Venezuela, de
US$10,8 bilhões. O número relativo ao Brasil parece implausivelmente baixo.
Mohsin Kalhn e Nadeem Ul Haque, "Foreign Borrowing and Capital Flight: A Fon-mal
Analysis", IMF Staff Papers. XXXII, N.° 4 (dezembro de 1985), PP 606-28.

534 Brasil: de Castelo a Tancredo
A aplicação desta política partia da suposição de que o Brasil tinha que
negociar um novo acordo com o FMI para que os empréstimos desta instituição
fossem restabelecidos. Se por qualquer razão o acordo não fosse mais necessário,
Dornelles perderia seu trunfo mais forte, o que enfraqueceria sua posição no
governo. Aliás, ele já vinha enfrentando forte oposição do ministro do
Planejamento Sayad, o qual advertia que um programa muito rigoroso de combate à
inflação poderia levar a economia de volta à inflação.

Durou quatro meses a luta entre Dornelles e Sayad. No princípio Dornelles
levou vantagem, mas logo começaria a perder terreno. Os boatos de sua demissão
avolumaram-se. Quando ele reconheceria o inevitável? Tornara-se evidente que o
balanço de pagamentos e as reservas externas do Brasil eram bastante fortes para
poupá-lo da necessidade imediata de um acordo com o FMI. Dornelles ficava
privado assim do seu mais importante aliado. No fim de agosto renunciou. Com ele
renunciou também o presidente do Banco Central, o monetarista António Carlos
Lemgruber.68

O novo ministro da Fazenda foi Dílson Funaro, industrial de São Paulo que era
presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) no
governo Sarney. Tinha a reputação de haver desenvolvido intensa atividade na
Federação das Indústrias de São Paulo, considerada um dos redutos da oposição ao
governo Figueiredo. Funaro era um keynesiano orientado para o desenvolvimento
com ideias próximas às de Sayad. Em fevereiro de 1985 ele dissera que "o Brasil
não pode sofrer nova recessão. Se houver qualquer risco neste sentido, então
devemos renegociar a dívida externa". Funaro era também o primeiro representante
autêntico da comunidade empresarial paulista no governo desde 1964. Trouxe
consigo um grupo de jovens economistas (em regime de tempo integral ou só como
assistentes) das Universidades de São Paulo-Campinas e Católica do Rio
de Janeiro (com idéias mais ou menos semelhantes às de Sayad).69
__________
68. As divergências entre Dornelles e Sayad foram analisadas em "Uma longa briga
sobre como cortar o déficit", Folha de S. Paulo, 27 de agosto de
1985.
69. A citação é de uma extensa entrevista com Funaro em Senhor, 20 de fevereiro
de 1985. Os economistas mais jovens são retratados coletivamente em Veja, 4 de
setembro de 1985.

535
Como membro do PFL, esperava-se que o presidente seguisse a escola de pensamento
ortodoxo. Ao contrário, preferiu fortalecer o lado peemedebista do seu governo.
A julgar pelas tendências da opinião pública, ele agiu corn sabedoria ao optar
por Sayad na luta corn Dornelles. Se demonstrou acerto económico, era outra
questão.

Funaro e Sayad entregaram-se então à tarefa de reformular a estratégia
macroeconômica do governo. De todos os lados sentiam as pressões para que
fizessem um pouco mais para combater a inflação. Todos pediam providências
imediatas - jornais, emissoras de TV, grupos de interesses -, contanto,
naturalmente, que os deixassem a salvo. O governo inicialmente adotou medidas
bastante conhecidas como, por exemplo, o controle limitado de preços. Mas
nenhuma oferecia possibilidade de alívio a longo prazo.

Mais positivo foi o esforço para estimular o crédito. Com este objetivo, o
governo deu prioridade a medidas destinadas a aumentar a produção de alimentos
para consumo interno. Mas tais medidas levariam tempo para dar resultados.
Enquanto isso, era intensa a atividade de remarcação de preços por parte do
comércio em geral.

Alguma coisa estaria errada no diagnóstico do problema pelo governo? Alguns
economistas brasileiros mais jovens assim pensavam.70 Afirmavam que a taxa de
inflação permanecera quase inalterada durante a recessão de 1981-83, quando o
país perdeu 10 por cento do seu PIB per capita e o desemprego aumentou. No
entanto, nas economias industriais adiantadas (de onde fora importada boa parte
da análise econômica), as recessões, acompanhadas do aumento do desemprego,
normalmente reduziam a inflação (variável conhecida como Curva de Phillips). Por
que o mesmo não acontecia no Brasil?71
________
70. O mais influente desses jovens economistas era Francisco Lopes, cujas idéias
foram expostas em uma coleção de artigos publicados como O choque heterodoxo:
combate à inflação e reforma monetária (Rio, Ed. Campus, 1986). Dois outros que
tiveram influência na formulação do Plano Cruzado foram Pérsio Árida e André
Lara Resende, cujas idéias podem ser encontradas em Pérsio Árida, ed., Inflação
zero: Brasil, Argentina e Israel (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986).
71. Para uma explicação da razão por que a Curva de Phillips não funcionou no
caso brasileiro, ver "Inflação inercial e a Curva de Phillips" em Luiz Bresser
Pereira e Yoshiaki Nakano, Inflação e recessão, 2." ed. (São

536 Brasil: de Castelo a Tancredo
A explicação começava com o papel da indexação, Numa economia indexada, corno
a do Brasil, a inflação passada ficava embutida como "inflação inercial". Esta
nunca declinava, servindo de base à qual se acrescentava a nova inflação. A
única maneira de reduzi-la, segundo aqueles economistas, era desindexar a
economia. Mas como? Detalhe importante na aplicação de qualquer política
antiinflacionária são as expectativas do público. Os economistas do governo
debateram o assunto no decorrer de 1985, sem mudar, entretanto, sua orientação
cautelosa e pragmática.

Deve-se notar que analisar os dados da inflação não era tão fácil como
poderia parecer porque a base de mensuração fora mudada. O instrumento do
governo para calcular tanto a inflação como a indexação era o índice Geral de
Preços (IGP) preparado pela Fundação Getúlio Vargas. Em novembro de 1985 o IGP
foi substituído pelo índice de Preços ao Consumidor (IPC) calculado pelo
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Não surpreendia que a
mudança suscitasse acusações de que o governo estava manipulando os dados para
os seus próprios fins.72

Um sinal otimista era que, juntamente com a inflação, o governo Sarney
herdara uma economia em crescimento cada vez mais rápido. O PIB de 1985 subiu
8,3 por cento, tornando o Brasil naquele ano o país com o crescimento mais
rápido do mundo. Era, contudo, um boom dependente da produção de bens de consumo
duráveis. O crescimento resultante beneficiava primeiramente o setor industrial,
só depois de muito tempo estendendo os seus efeitos aos trabalhadores de menor
salário, urbanos e rurais.
_________
Paulo, Brasiliense, 1986), pp. 107-15. Para uma apreciação muito útil sobre o
recente desempenho do Brasil, ver Werner Baer, "The Resurgences of Inflation in
Brazil, 1974-1985" (Trabalho preparado para o seminário "Inflação na América
Latina", realizado em 4-5 de abril de 1986 na Universidade de Illinois em Urbana
Champaign).
72. Houve outro fator que resultou em sinalização falsa da taxa de inflação. De
abril a julho de 1985 o governo impôs um congelamento parcial, reduzindo
artificialmente a taxa de inflação. Medida pelo IPC, a inflação anual de
dezembro de 1984 a março de 1985 foi de 275 por cento, tendo caído de abril a
julho para 156 por cento. Quando o congelamento foi suspenso no fim de
#julho, a inflação disparou para a taxa anual de 305 por cento de agosto de 1985
a janeiro de 1986. Dados de Luiz Bresser Pereira, "Inflação inercial e Plano
Cruzado" (trabalho apresentado no seminário sobre "The Resurgence of Inflation
in Latin America").

A Nova República: perspectivas para a democracia 557
Era o tipo de crescimento econômico que os economistas agora operando de
Brasília haviam criticado.

O boom tinha também o efeito negativo de alimentar a inflação. O aumento da
demanda podia ser satisfeito a curto prazo pelo uso da capacidade ociosa gerada
pela longa recessão. Mas se a economia continuasse aquecida em 1986 atingiria
sua plena capacidade em alguns setores, criando problemas de abastecimento.
Nesse ponto a inflação "inercial" poderia fundir-se com a inflação de demanda
provocando uma explosão de preços bastante grande para abalar os alicerces da
Nova República.

Embora a economia tivesse apresentado notável crescimento (8,3 por cento) em
1985, os economistas de Sarney estavam preocupados com a taxa de inflação de 222
por cento. Tendo evitado o FMI e suas fórmulas ortodoxas, eles estavam
determinados a desenvolver seu próprio plano para reverter a inflação que
ameaçava disparar sem controle.

A inflação de janeiro de 1986 confirmou os seus piores receios. A 16,2 por
cento ao mês, esta taxa combinada com as dos dois meses anteriores resultava em
360 por cento ao ano. Se medida pelo antigo índice (IGP), a inflação de
novembro-dezembro-janeiro alcançava uma taxa anual de 454 por cento. Esta
diferença nos índices, muito discutida pelos jornais, novamente despertou a
desconfiança pública em relação aos dados do governo. Este explicava que o
recrudescimento da inflação era devido em parte a uma violenta seca que mandara
os preços fortemente para cima, explicação que ninguém estava disposto a
aceitar. A imprensa clamava unanimemente por medidas mais rigorosas contra a
inflação. A popularidade de Sarney caíra vertiginosamente nas consultas de
opinião e seu governo, apesar de recente reforma ministerial, estava sendo
considerado ineficaz.73

Ante situação tão sombria, o ministro da Fazenda Funaro ofereceu a Sarney um
plano ousado. Seria um "choque heterodoxo"
_________
73. Fortes críticas à política antiinflacionária do governo Sarney em jornais
influentes, como Jornal do Brasil, Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo,
estão citadas em Latin America Regional Reports: Brazil Report, 7 de fevereiro
de 1986. A malograda luta de um ano do governo contra a inflação ascendente é
narrada nos comentários de Eduardo Modiano, Da inflação ao cruzado: a política
econômica no primeiro, ano da Nova República (Rio de Janeiro, Editora Campus,
1986).

538Brasil: de Castelo a Tancredo
para estancar a inflação. A idéia devia sua inspiração ao economista Francisco
Lopes, juntamente com seus colegas Pérsio Árida ; André Lara Resende. Eles eram
estreitamente relacionados com os economistas argentinos que haviam formulado o
"choque heterodoxo" aplicado pelo governo Alfonsín em junho de 1985. O Brasil
anunciaria uma reforma monetária radical, com as seguintes características
principais: o cruzeiro seria substituído (na proporção de 1.000 por 1) pelo
cruzado, uma nova moeda. A indexação seria abolida.74 As hipotecas e os aluguéis
seriam congelados por um ano, e os preços, por prazo indeterminado. O salário
mínimo seria reajustado pelo seu valor médio nos últimos seis meses mais um
abono de 8 por cento. Os reajustes posteriores seriam automáticos (gatilho)
sempre que a inflação chegasse a 20 por cento. Não obstante, os trabalhadores
teriam liberdade de negociar com os empregadores aumentos adicionais de salário.
Finalmente, criava-se um seguro-desemprego. Para recebê-lo, o empregado teria
que comprovar um prazo mínimo de permanência no emprego e ter contribuído para a
previdência social. O programa seria aplicado ao mercado de trabalho
formal, concentrado no Sudeste e Sul mais desenvolvido. Ainda que os benefícios
fossem pequenos e seu início muito lento, o ministro do Trabalho Pazzianotto se
orgulhava de haver proposto um programa inédito no Brasil.75 A política de taxas
cambiais também sofreria alteração. O governo, graças a uma drástica redução da
inflação, não precisaria mais desvalorizar quase diariamente a sua moeda, como
se tornava necessário com a inflação de três dígitos. Agora o Banco Central
decidiria quando e quanto desvalorizar.

Sarney aceitou correr o risco. Anunciou o "Plano Cruzado" (que entrou em
vigor por decreto-lei) à nação em 28 de fevereiro de 1986. Em seu discurso
descreveu a inflação como o "inimigo
__________
74. Em anos recentes têm sido muito debatidas as vantagens e desvantagens da
indexação. Virtualmente todos concordam que os efeitos da indexação nos
anos 80 foram muito diferentes dos seus efeitos nos anos 60 e 70. Para uma
apreciação desta controvérsia, ver Peter T. Knight, "Brazil: Deindexation and
Economic Stabilization" (trabalho preparado no Banco Mundial, 2 de dezembro de
1983).
75. Os que requereram primeiro deveriam receber o benefício em julho. Ao que se
esperava, aproximadamente 200.000 estariam em condições de recebê-lo. Jornal do
Brasil, 4 de junho de 1986.

539
público número um" e convocou todos os brasileiros a se unirem em uma "guerra de
vida ou morte" contra ela. Convidou os cidadãos a se tornarem fiscais dos
preços, enfrentando, como delegados do presidente, os comerciantes que
praticassem aumentos violando o congelamento.76

O plano obteve imediato apoio do público e da noite para o dia Sarney e
Funaro se tornaram heróis nacionais. As mesas telefônicas do governo ficaram
sobrecarregadas com a quantidade de chamadas para aplaudir o ato presidencial.77
O povo entrava nos supermercados e, exibindo bottons com a inscrição "Sou fiscal
do Sarney", verificava os preços e denunciava os gerentes quando notava que o
preço de algum produto havia sido remarcado ilegalmente. O órgão controlador dos
preços dos alimentos (SUNAB) não tinha nem equipamentos nem pessoal em número
suficiente para dar andamento à torrente de queixas que recebia contra
irregularidades em estabelecimentos comerciais. Houve "fiscais do Sarney" que,
fazendo justiça pelas próprias mãos, depredaram lojas surpreendidas remarcando
ilegalmente seus preços.
_________
76. O ministro do Trabalho Pazzianotto afirmou que o Plano Cruzado tinha duas
inovações importantes para o trabalhador: o seguro-desemprego e o gatilho que
dispararia automaticamente quando o índice de inflação atingisse 20 por cento.
Aos críticos que disseram que o plano deveria ter sido enviado ao Congresso como
um projeto normal e não aplicado por meio de decreto-lei, Pazzianotto respondeu
que a medida tinha que ser adotada rapidamente para frustrar a ação dos
especuladores. Entrevista de Pazzianotto em Veja, 5 de março de 1986. O texto
do discurso do presidente Sarney está transcrito em Revista de Economia
Política, VI, N.° 3 (julho-setembro de 1986), pp. 112-14. Para um minucioso
relato de como o plano foi formulado e vendido ao presidente Sarney, ver Ricardo
A. Setti, "O dia em que Sarney derrubou a inflação", Playboy (edição
brasileira), XI, N.131 (junho de 1986), pp. 57-58 e pp. 136-52. Conjuntura
Econômica, XL, N.° 4 (abril de 1986) inclui artigos avaliando o Plano Cruzado
sob diversos ângulos.
77. Uma firma privada de consulta de opinião pública sediada no Rio de Janeiro
fez uma pesquisa junto a chefes de família do Rio e de São Paulo sobre, entre
outras coisas, o que achavam do presidente Sarney. Em maio de 1985, no Rio,
o índice de aprovação foi de 29 por cento e em São Paulo de 13 por cento. Em
janeiro de 1986 o índice de aprovação de Sarney caíra para menos 22 por cento no
Rio e menos 36 por cento em São Paulo. Em março, logo depois do lançamento do
Plano Cruzado, o índice de aprovação disparou para 71 por cento no Rio e 68 por
cento em São Paulo. Senhor, 24 de junho de 1986, p. 35.

540 Brasil: de Castelo a Tancredo

A razão desse entusiasmo era fácil de explicar. O cidadão médio estava farto
da tarefa de ter que inventar constantemente novas defesas contra a inflação.
Afinal, a inflação de três dígitos só beneficiara mesmo a especulação
financeira. Agora ele estava confiante na promessa de estabilidade monetária.

Em junho de 1986 muitos observadores proclamavam o êxito do plano. A inflação
de março-abril-maio manteve-se na taxa tranquilizadora de 3,38 por cento. O
empresariado estava entusiasmado, em parte porque esperava que o plano reduzisse
as astronômicas taxas de juros em vigor anteriormente. Os consumidores
deliravam, crendo que seu poder de compra seria aumentado.78 Os banqueiros
evidentemente não estavam satisfeitos, já que subitamente perderam a fonte de
lucros fáceis que as altas taxas de inflação lhes proporcionavam. Estaria
finalmente chegando ao fim a famosa especulação financeira? Todos concordavam
que o sistema bancário tinha-se ampliado muito. Com suas margens de lucros agora
reduzidas, os bancos imediatamente passaram a cortar despesas, fechando agências
e aumentando as taxas cobradas por seus serviços.79

O que a decisão de adotar um programa tão ousado de combate à inflação
representou em termos de transição para a democracia? O economista do PMDB José
Serra, interessado no relacionamento entre tipos de governo (democrático versus
autoritário) e performance econômica, não tinha dúvida. Semanas depois de
anunciado, ele considerou o Plano Cruzado vitorioso, afirman-
_______
78. Luiz Eulálio de Bueno Vidigal Filho, presidente da Federação das Indústrias
de São Paulo, elogiou o programa por ter posto um fim à "especulação
financeira", Indústria e Desenvolvimento, abril de 1986, p. 4. Delfim Neto foi
também positivo ao dizer: "Acredito que o programa de estabilização vai
funcionar", Nordeste Econômico, XVII, N." 4 (abril de 1986), p. 48; uma
economista, vendo o Plano Cruzado favoravelmente do exterior, advertiu: "O
desafioy1 agora é preparar-se para a transição, quando a economia tiver
que operar com preços estáveis sem a existência de tantos controles. O primeiro
passo é abandonar o fetichismo da inflação zero. O custo de tal fidelidade seria
a supervalorização da taxa cambial e crises sucessivas", Eliana A. Cardoso,
"What Policymakers Can Learn from Brazil and México", Challenge, XXIX, N.° 4
(setembro-outubro de 1986), p. 25.
79. O empresariado americano também manifestou aprovação à nova diretriz
econômica do Brasil, como em "How Brazil is Barreling into the Big Time",
Business Week, 11 de agosto de 1986, e "Brazil Beyond the Cruzado Plan", World
Financial Markets, agosto de 1986, pp. 1-11.

541
do que a "democracia" era "condição necessária" para a sua implementação.
Comparou-o com o programa de estabilização de Roberto Campos em 1964-67
executado "em regime autoritário, que sozinho o tornou viável".80 Edmar Bacha,
economista do PMDB que dirigiu o IBGE, também tomou Roberto Campos como ponto de
referência ao defender o Plano Cruzado. Em junho Bacha citou uma recente
advertência de Campos de que todo programa antiinflação produz uma crise de
estabilização, e o Brasil não podia pretender ser original nesse assunto. Bacha
contra-atacou: "Felizmente o Brasil é mais original do que Roberto Campos. Nós
conseguimos manter a economia em crescimento fazendo um programa radical de
estabilização".81

A comparação dos economistas do PMDB com 1964 não era inteiramente justa. Nem
o teria sido se a escolha houvesse recaído em qualquer tentativa malograda de
estabilização de 1953-54, 1955, 1958-59, 1961 e 1962-63. Em todos esses casos,
bem como em 1964, o Brasil enfrentava severa crise em sua balança de pagamentos.
com efeito, cada um desses programas antiinflacionários foi adotado em parte
para acalmar os credores estrangeiros, sobretudo o FMI. Todos importavam na
aplicação de regras ortodoxas, e até 1964 foram arquivados quando os respectivos
governantes se davam conta dos estragos políticos que provocavam.

A Nova República, em contraste, herdou um dos mais favoráveis superávits
comerciais que o Brasil jamais viu desde 1945. Foi isto que habilitou Sarney a
contornar o FMI e negociar diretamente com os banqueiros privados credores.
Anunciando o Plano Cruzado, o presidente pôde honestamente dizer que "as medidas
não são cópia de nenhum programa instituído por qualquer outro país".82
O Plano Cruzado teve, contudo, seus problemas. Muito importante, foi lançado em
fase de rápido crescimento econômico. Em 1985 a economia atingira uma taxa de
crescimento de 8,3 por cento e no início de 1986 a ascensão continuava. A
implantação do Plano Cruzado teve na verdade um efeito perverso. Congelados os
preços, os consumidores, fortalecidos agora com aumen-
_______
80. Entrevista com José Serra em Veja, 19 de março de 1986.
81. Entrevista com Edmar Bacha em Veja, 18 de junho de 1986.
82. Revista de Economia Política, VL N.° 3 (julho-setembro de 1986), 112. Este
livro pertenço p. 112.

542 Brasil: de Castelo a Tancredo
tos reais de salaries (especialmente no Centro-Sul desenvolvido), entregaram-se
a verdadeira orgia de compras. Os indicadores de excesso de demanda vieram a
tona quase imediatamente. Quem quisesse comprar carro novo tinha que esperar
meses a menos que se dispusesse a pagar um ágio, que obviamente não era
faturado. Os preços dos modelos recentes usados, outro indicador da nova demanda
por automoveis, dispararam. Outros bens de consumo duráveis, quantos houvesse,
eram vendidos. As viagens ao estrangeiro tornaram-se tão populares que as
companhias aéreas brasileiras tiveram que arrendar aviões no exterior. Com o seu
consume varias vezes multiplicado, a carne começou a escassear e logo os
açougueiros estavam cobrando ágio. Os consumidores brasileiros certamente não
estavam se comportando como previram os arquitetos do Piano Cruzado. Eles
esperavam que o povo acreditasse na nova moeda e na volta da estabilidade dos
preços. Mas por suas ações demonstrou precisamente o contrario: que o controle
dos pregos não duraria muito e que portanto era preferível comprar logo, fazer
estoques, antes que tudo aumentasse de novo. É claro que as expectativas
inflacionarias tão profundamente enraizadas na consciência dos brasileiros não
seriam facilmente removidas.

O Brasil estava diante, pois, não somente da inflação inercial mas também da
inflação induzida pela demanda. Quanto tempo faltaria ainda para que o ágio
cobrado pelas revendedoras de carros e pelos acougues se estendesse a outros
produtos? Funaro culpou os criadores de gado e os frigoríficos pela escassez de
carne no mercado e ordenou importações do produto dos Estados Unidos e da CEE. O
leite também desapareceu, queixando-se os fornecedores de que os preços no
varejo eram baixos demais. Em virtude da elevada demanda global, do efeito
variado dos preços congelados sobre os lucres e das limita$6es da capacidade
produtiva, parecia certo o aumento das
pressões inflacionarias.83
________
83. Nos primeiros 60 dias após o inicio do Piano Cruzado, o consume de carne
aumentou 30 por cento e o de leite 15 por cento, segundo números da industria.
Mas o consume de ambos os produtos logo cairia, porque os produtores, em
protesto contra o nível em que seus preços foram congelados, começaram a
recusar-se a abastecer o mercado. O Globo, 16 de junho de 1986. Um funcionario
de importante agenda de turismo de São Paulo disse em julho que suas vendas
tinham subido 40 por cento em relação ao

A Nova Republica: perspective(r) para a democracia 543

Mas outro problema surgira em junho. Apesar do êxito inicial do governo
fazendo cair verticalmente a inflação, os empréstimos a longo prazo não haviam
recomecado.84 O problema era a incerteza do investidor. Com a inflação, quanta
mais longo o prazo do emprestimo maior o risco. O Brasil resolvera o problema
após 1964 indexando virtualmente todos os empréstimos. Extinta a indexaçãoo, o
emprestador ficou sem proteção, suspendendo todas as decisões financeiras de
longo prazo e reduzindo a concessão de empréstimos necessários para financiar os
investimentos e por consequencia o crescimento econômico.

Um ultimo sintoma de incerteza no mercado financeiro era o elevado ágio que o
dólar comandava no mercado "paralelo" (negro). No fim de junho a moeda americana
era vendida com um ágio de 52 por cento sobre a taxa oficial. Em geral, ágio tão
elevado resultava de especulações sobre iminente desvalorização (não tinha
havido nenhuma desde a implantação do Piano Cruzado). As causas eram muitas sem
duvida, mas o fenômeno demonstrava a preocupação do publico com a estabilidade
do cruzado.

Em julho de 1986, com o propósito de reduzir a pressão inflacionaria, Sarney
anunciou um pacote de medidas, cujo principal objetivo era reduzir o consumo e
aumentar os investimentos.85 O governo tratou de frear a excessiva demanda de
automóveis e viagens ao exterior, atingindo diretamente as classes media e alta.
Instituiu um empréstimo compulsório de 20-25 por cento
__________
ano anterior. "A grande revoada", Visão, 8 de julho de 1986, p. 31. O ministro
do Trabalho Pazzianotto descartou assim os comentários de que a economia estava
ficando superaquecida: "Esta e uma ,nação pobre. As pessoas não tem dinheiro
para comprar roupas ou sapatos. Olhando para o país como um todo, o aumento da
demanda e salutar". Jornal do Brasil, 2 de junho de 1986.
84. A incapacidade do Banco Central de vender qualquer coisa com prazo mais
longo do que títulos de 90 dias e analisada em Paulo Sérgio de Souza, "Inflação
e taxa de juro", Bolsa, N.° 748 (16 de julho de 1986).
85. O pacote foi matéria de primeira pagina na imprensa diária, como em O Globo,
23 de julho de 1986.
86. O consumo de gasolina aumentou 13,6 por cento de Janeiro a maio em
comparação com o mesmo período de 1985. A cifra comparável para o álcool foi
24,8 por cento. O aumento do consumo de gasolina teria que

544 Brasil: de Castelo a Tancredo
restituível em três anos sobre as compras de carros novos e usados (ate quatro
anos) e de gasolina e alcool.86 Um empréstimo compulsório de 25 por cento,
também a ser restituído em três anos, foi aplicado igualmente a compra de
passagens aéreas. Para a compra de dólares foi instituída uma sobretaxa não
restituível de 25 por cento.

Estas medidas custaram ao governo Sarney um pouco da popularidade que havia
gozado quando do lançamento do Piano Cruzado. O governador Leonel Brizola e o
PT, por exemplo, atacaram o piano desde o inicio, atacado também pela direita,
representada pela revista Visao.87 A opinião centrista manteve-se coesa, embora
a escassez e a exigência de ágio suscitassem duvidas.

Os donos de automóveis e os turistas receberam com irritação as novas
medidas. Ate os governos militares evitaram o recurso ao empréstimo compulsório
para controlar o consume de gasolina. No inicio de 1977 o governo Geisel,
ainda tonto com um novo aumento do preço do petróleo decretado pela OPEP, esteve
na iminência de impor um compulsório de 2 cruzeiros por litro de gasolina. A
ultima hora, no entanto, o presidente o vetou.88 Certamente refletiu que o prego
político que teria que pagar junto a classe media alta e as classes superiores
de renda não justificava o ganho econômico esperado.

Outras medidas do pacote de julho destinavam-se a promover investimentos em
parte pela criação do Fundo Nacional de Desenvolvimento, encarregado de gerir os
recursos oriundos dos empres-
___________
ser atendido quase inteiramente pelas importações, pois o Brasil ja estava
consumindo virtualmente toda a sua produção domestica. Manchete, 5 de julho de
1986.
87. Em questão de semanas o PT atacou o Piano Cruzado como contrario aos
interesses da classe trabalhadora. Ver, por exemplo, "Pacote arrocha
salários" e matérias correlatas em PT São Paulo, VI, N.° 38 (marco de 1986).
Visão retratou o "pacote da inflação zero" como uma reversão a "demagogia
populista". Visão, 25 de junho de 1986, pp. 16-19. Para uma interessante
coleção de debates na imprensa sobre o Piano Cruzado, e especialmente seus
efeitos sobre os salários, ver Revista de Economia Politica, VI, N.° 3 (junho-
setembro de 1986), pp. 121-51.
88. Passadas experiencias com emprestimos compulsórios exigidos dos consumidores
foram examinadas no Jornal do Brasil, 22 de julho de 1986.

545
timos compulsórios. Tanto as empresas estatais quanto as privadas seriam
autorizadas a emitir novas formas de debentures e outros papeis comerciais numa
tentativa de ressuscitar o mercado de investimentos a longo prazo. A lei
relativa a compra por investidores estrangeiros de ações de empresas nacionais
foi abrandada. Juntamente com as medidas para conter o consumo e estimular os
investimentos, o governo anunciou também um Plano de Metas (que fazia lembrar o
Programa de Metas do governo Juscelino) destinado a promover reformas sociais e
melhorar a qualidade de vida dos brasileiros, outra tentativa de Sarney de
combater as desigualdades econômicas.

Conclusão. O que os primeiros quinze meses do governo Sarney nos dizem da
capacidade de escolha de um regime democrático entre difíceis opções econômicas?
Cabe notar, em primeiro lugar, que Sarney herdou tendências altamente favoráveis
em duas esferas: crescimento econômico e balança de pagamentos. Esta permitiu
que os seus economistas começassem a trabalhar sem necessidade de novo acordo
com o FMI por causa da balança comercial favorável ao Brasil e da posiçãoo de
suas reservas cambiais. O crescimento econômico, em compensação, pode-se definir
como uma benção mista: gerou apoio publico mas também alimentou a pressão
inflacionaria que ameaçou explodir no inicio de 1986. Os economistas de Sarney
surgiram com um piano engenhoso que ganhou imediata aceitação publica. Em
questão de meses, contudo, exigiu medidas corretivas e as duvidas eram cada vez
maiores se ele resistiria a um ano inteiro, conforme o previsto.

Cabe lembrar também que o poder do presidente de governar por decreto-lei
continuava intacto e foi usado tanto para a implementação do Piano Cruzado
quanto para a adoção de medidas envolvendo despesas. A política econômica podia
ser ainda conduzida sem necessidade de consulta as forcas parlamentares
decisivas. Um teste importante da atitude do publico em relação a política
econômica seriam as eleições de novembro de 1986, na qual uma nova Câmara dos
Deputados, um terço do Senado e todos os governadores seriam escolhidos. Poucos
governos democráticos podem resistir a tentação de ajudar seus candidates em uma
eleição vital.

546 Brasil: de Castelo a Tancredo

A Democratização previa a criação de uma sociedade mais igual?
Que se pode dizer, decorridos quinze meses do governo Sarney, das medidas
adotadas pela Nova República para promover a justiça econômica? O PMDB sempre
atacou as políticas dos governos militares pelo fato de supostamente aumentarem
as enormes desigualdades econômicas e sociais. O manifesto peemedebista de 1982
apresentava os princípios e as prioridades com que pretendia governar,
descrevendo o Brasil como "um dos campeões mundiais de concentração. da renda e
da riqueza", apesar de estar classificado como uma das maiores potencias
industriais "entre as economias de mercado". O documento referia-se aos "enormes
bolsões de pobreza absoluta" como uma "vergonha nacional".89

Dados divulgados pelo Banco Mundial coincidiam a esse respeito mostrando que
o Brasil tinha um dos mais injustos sistemas de distribuição de renda do
mundo.90 Os 20 por cento das famílias brasileiras em posição mais elevada
recebiam mais de 60 por cento da renda total. Nenhum dos outros países acima de
60 por cento (Panama, Zambia, Peru e Quenia) eram "nações em processo recente de
industrialização", o que oferecia mais pertinente comparação com o Brasil.
Espantosas deficiências na saúde dos brasileiros foram também documentadas. Em
1983, por exemplo, 47 por cento de todos os rapazes de dezoito anos foram
reprovados nos exames de saúde preparatórios para a prestação do serviço militar
compulsório. As causas principais foram desnutrição, peso aquém do mínimo
exigido, deformações dos membros e da coluna vertebral.91 No entanto, para
colocar em perspectiva estes dados, precisamos passar em revista o que aconteceu
nos últimos vinte anos.

Tendências dos Indicadores Sociais e Econômicos Sob o Regime Autoritário.
Dados sobre Indicadores sociais básicos extraídos de

___________
89. O manifesto intitulava-se "Esperança e mudança: uma proposta de governo para
o Brasil" e foi publicado em Revista do PMDB, II, N.° 4 (outubro-novembro de
1982). As citações são da p. ii.
90. Banco Mundial, World Development Report: 1986 (New York, Oxford
University Press, 1986), pp. 226-27.
91. Os dados foram citados em uma entrevista com o brigadeiro Waldir de
Vasconcelos em Veja, 15 de agosto de 1984.

A Nova República: perspectivas para a democracia 547
três censos (1960, 1970 e 1980) são apresentados no Quadro 1. Verifica-se que
houve melhoria em todos eles através do período. O aumento da expectativa de
vida e o declínio da mortalidade infantil resultaram de progressos obtidos nos
setores de nutrição, assistência a saúde, higiene e habitação. O aumento da taxa
de alfabetizacao92 indicava uma força de trabalho mais educada (embora
"alfabetização" fosse as vezes definida nos termos mais sumários) e os
melhoramentos na área da habitação (água encanada, esgotos e eletricidade)
mostravam que uma percentagem cada vez maior de brasileiros estava desfrutando
padrões de vida comuns em sociedades modernas em processo de industrialização.
Esses progressos resultavam não somente das forças de mercado mas também da
ação governamental. Altas taxas de crescimento criavam mais e melhores empregos,
ajudando assim a absorver a forca de trabalho em rápida expansão. Os governos
nos três níveis - municipal, estadual e federal - financiavam a infra-estrutura
requerida para a melhoria dos padrões de vida.

A questão, portanto, não era se houve progresso, mas se os seus benefícios
foram distribuídos com rapidez e espirito de justiça. A oposição dava ênfase as
deficiências, enquanto o governo apontava para o progresso.

Como comparar o tipo relativamente uniforme de progresso nos padrões de vida
do Brasil como um todo entre 1960 e 1980, indicado no Quadro 1, com a
performance demonstrada pelas tendências da renda e dos salários? O .assunto
provoca sempre viva controvérsia e é complicado não só por problemas de
comparação de dados mas também pelo desacordo sobre a medida a ser usada para
determinar o bem-estar econômico.
_______
92. Os governos militares haviam depositado muita esperança no MOBRAL (Movimento
Brasileiro de Alfabetização), um programa de alfabetiza9§o de emergência que
começou em 1968 e tinha por meta reduzir o analfabetismo a 10 por cento em 1975.
Quando ficou claro que a meta não podia ser atingida, o recem-inaugurado
governo Geisel se propôs a eliminar completamente o analfabetismo ate 1979. Mas
em meados de 1975 a campanha perdeu impeto por falta de verbas e de pessoal. O
Estado de S. Paulo, 22 de agosto de 1974 e 8 de maio de 1975. Para reportagens
posteriores, expondo os problemas do MOBRAL e a persistência do analfabetismo,
ver Folha de S. Paulo, 25 de julho de 1982 e 5 de junho de 1983.

519 Brasil: de Castelo a Tancredo

MUDANCAS NOS INDICADORES SOCIAIS DO BRASIL, 1960-1980
1960 1970 1980
Expectativa de vida no nascimento (anos)a 51,6 53,5 60,1
Mortalidade antes de um ano 121,1 113,8 87,9
(por 1.000 nascimentos vivos)a
Moradias particulares com água 24,3 33,3 55,1

encanada (%, todo o Brasil)a
Moradias particulares com rede de esgoto 23,8 26,6 39,6
ou fossa septica (%, todo o Brasil)a
Moradias particulares com 38,5 47,5 68,5
eletricidade (%, todo o Brasil)a
Índice de alfabetização (15 anos ou mais) 60,5 66,9 74,6
(%, todo o Brasil)a
Moradias particulares com TV
(%, todo o Brasil)b NA 24,1 56,1

Fonte: a) Helio Jaguaribe, et al., Brasil, 2000: para um novo pacto social (Rio
de Janeiro, Paz e Terra, 1986), pp. 138, 140, 142; b) Edmar Bacha e Herbert
Klein, eds., A transição incompleta: Brasil desde 1945 (Rio de Janeiro, Paz e
Terra, 1986), Vol. II, 89.

Os três indicadores óbvios são o salário mínimo, a renda familiar e o grau
de desigualdade da renda. Todos estes instrumentos de medição estão sujeitos a
problemas de comparabilidade ao longo do tempo. Mesmo em termos conceituais,
porem, o salário mínimo e problemático como medida de bem-estar econômico por
pelo menos três razões. Primeira, importantes grupos da população economicamente
ativa não são cobertos pelo salário mínimo - os autônomos, o setor não
integrado da economia urbana e a maior parte do setor rural. Segunda, as
tendencias a longo prazo do valor real do salário mínimo não tem sido uniformes
através do pais: enquanto o seu valor real caiu nas principais áreas industriais
no periodo 1960-80, subiu em algumas das mais atrasadas. Por fim, e
fundamentalmente, o salário mínimo legal não guarda relação

A Nova Republica: perspectivas para a democracia 549
necessária com os verdadeiros níveis de salário (e, portanto, de renda recebida)
que são determinados pelo menos em parte pelas forças de mercado.

Mesmo quando o estudo e concentrado na renda, as inexatidões dos dados (e os
problemas metodológicos criados para corrigi-las) excluem o calculo de uma unica
serie de renda como sendo capaz de descrever corretamente as modificações da
renda no Brasil com o correr do tempo. Isto e valido ate certo ponto em qualquer
pais, porem em grau muito maior no Brasil, para o qual os analistas construiram
diversos ajustamentos plausíveis do custo de vida (em relação aos quais as
comparações de renda são extremamente sensíveis), e que assistiu a uma rápida
passagem dos trabalhadores da economia não monetaria para a monetária. Cabe
notar também que no Brasil o sistema de codificação e outras modificações
tecnícas de um censo para o outro complicam ainda mais a interpretação das
alterações ocorridas na renda.

Felizmente, analistas cuidadosos desenvolveram ajustamentos adequados. Varias
analises recentes das tendências da renda no Brasil desde 1960 revelam
substancial consenso, pelo menos em termos qualitativos.93

É sabido que a distribuição de renda no Brasil e extremamente desigual e que
o grau dessa desigualdade e talvez o mais alto de qualquer das novas nações em
processo de industrialização. Talvez sejam relativamente muito poucos os que
duvidam que tal desigualdade aumentou consideravelmente de 1970 a 1980 mas,
segundo 93. Ha vasta literatura sobre distribuição de renda no Brasil. As fontes
a seguir foram especialmente relevantes para minha analise: David Denslow Jr. e
William Tyler, "Perspectives on Poverty and Income Inequality in Brazil", World
Development, XII, N.° 10 (1984), pp. 1019-28; Guy Pfefferman e Richard Webb,
"Poverty and Income Distribution in Brazil", The Review of Income and Wealth,
Serie 29, N.° 2 (junho de 1983), pp. 101-24; M. Louise Fox, "Income Distribution
in Post 1964 Brazil: New Results", The Journal of Economic History, XLIII, N.° 1
(março de 1983), pp. 261-71; Ralph Hakkert, "Who Benefits from Economic
Development? The Brazilian Income Distribution Controversy Revisited", Boletin
de Estudios Latinoamencanos y del Caribe, N.° 36 (junho de 1984), pp. 83-103, e
Jose Pastore, Helio Zylberstajn e Carmen S. Fagotto, "The Decline in the
Incidence of hxtreme Poverty in Brazil" (Madison, University of Wisconsin,
Department ot Rural Sociology, mimeo, fevereiro de 1983).

550 Brasil: de Castelo a Tancredo
muitas estimativas, a concentração de renda provavelmente continuou em ritmo
muito mais lento. O Quadro 2 mostra dois conjuntos de estimativas de mudanças na
distribuição proporcional da renda (isto e, a percentagem de renda possuída por
cada decil da população). Escolhi estas estimativas porque ambos os autores
apresentam comparações por decis, ambos usam dados do censo e ambos fazem os
ajustes para compensar os dados inexistentes e para os não comparáveis. Uma
limitação do quadro e que a comparação 1960-70 se refere a renda familiar (mais
conceitualmente adequada), enquanto que a comparação 1970-80 a renda individual.
As duas distribuições relativas a 1970 são, contudo, semelhantes; tal semelhança
e plausível no Brasil, onde o grau de estratificação social mantém a maioria das
pessoas mais ou menos na mesma classe de renda que aquela de sua família.

Mesmo compensando a incerteza dos dados, o quadro e relativamente completo.
Ao longo do período, os dois decis inferiores juntos tiveram menos de um
vigesimo da renda; os dois decis superiores tiveram entre metade e dois ter9os
da renda. Entre 1960 e 1970 apenas os dois decis superiores melhoraram sua
posição relativa; todos os outros exceto um perderam terreno. Entre 1970 e
1980 os dois decis superiores tiveram ganhos mais moderados; quatro dos outros
oito decis mantiveram sua posição.

E no que se refere aos níveis absolutos de renda? (Ver Quadro 3.) E possível
que todos tenham melhorado de vida, os ricos naturalmente mais depressa. Aqui o
peso da evidencia sugere que no período 1960-70 houve mudança relativamente
pequena nos níveis de renda global (alguns analistas estimam ligeiro declínio) e
mudança maior nas posições relativas dos diferentes grupos devido provavelmente
ao aumento relativo da pobreza urbana.94 Embora a proporção da pobreza
permanecesse muito semelhante globalmente, a percentagem da população na pobreza
total em áreas urbanas aumentou de cerca de um terço para cerca de metade. As
migrações para as cidades parece terem trazido sua pobreza consigo, o que e
compatível com o aumento da mortalidade infantil (de um nível inicial muito mais
baixo do que o que caracterizava o Brasil como um todo) que ocorreu no Rio de
Janeiro
______
94. Ver Fox, "Income Distribution in Post-1964".

Nova República: perspectives para a democracia 551
e em São Paulo pelo menos durante parte do periodo.95 A analise de Jose
Pastore, et al., também indica que a extrema pobreza no setor rural diminuiu
consideravelmente menos do que no setor urbano.
Quadro 2

DISTRIBUICAO DA RENDA NO BRASIL, POR DECIL (1960-1980, POR CENTO)
Renda familiar Renda individual
1960 1970 1970 1980
10 por cento da base 1,4 1,2 1,2 1,2
2." Decil 2,4 2,4 2,1 2,0
3.° Decil 3,6 3,2 3,0 3,0
4." Decil 4,6 4,1 3,8 3,6
5." Decil 5,6 4,9 5,0 4,9
6." Decil 7,2 6,0 6,2 5,6
7.° Decil 8,1 7,7 7,2 7,2
8." Decil 13,1 10,8 10,0 10,0
9." Decil 14,6 16,6 15,2 15,4
10 por cento do topo 39,4 43,1 46,5 48,0

Fonte: Colunas (1) e (2) M. Louise Fox, "Income Distribution in Post-1964
Brazil: New Results", The Journal of Economic History, Vol. 43, N.° 1 (marco de
1983), Quadro 1, p. 264; Colunas (3) e (4) dados individuals sobre a População
Economicamente Ativa, David Denslow Jr. e William Tyler "Perspectives on Poverty
and Income Inequality in Brazil", World Development, Vol. 12, N.10 (1984),
Quadro 5, p. 1023.

O que aconteceu nos últimos anos do regime autoritário em resposta a recessão
e as mudanças na lei do salario minimo visando expressamente a reduzir a
desigualdade? Dados da Pesquisa Nacional de Domicílios (PNAD) referentes a 1981
e 1982 indicam que os níveis de renda caíram substancialmente, mas os seus
efeitos sobre a desigualdade de renda ainda não estão determinados. Ralph
_______________
95. Ver referencias citadas em Hakkert, Development?", p. 85.
Who Benefits from Economic

552 Brasil: de Castelo a Tancredo
Hakkert cita alguns observadores, os quais afirmam que a queda ocorreu atráves
de todo o espectro da renda e que, em suas palavras, "a economia brasileira e
mais justa na distribuição dos ônus da recessão do que dos benefícios do
desenvolvimento".96

Realizações do Novo Governo. O PMDB, juntamente com outros oposicionistas dos
meios intelectuais, da imprensa, Igreja, esquerda e centro-esquerda, afirmou
durante anos a fio que as políticas econômicas pos-1964 prolongariam e ate
agravariam as desigualdades socio-economicas.97 Em resposta aos seus criticos,
Delfim Neto dizia que o Brasil precisava primeiro formar um bolo maior para que
houvesse alguma coisa a distribuir. De outra forma, afirmava, iríamos
simplesmente "redistribuir a miseria".98 Com plena liberdade de ação durante
duas décadas, os tecnocratas certamente aumentaram o tamanho do bolo. For isso e
que, segundo os economistas peemedebistas, a redistribuição estava ha muito
atrasada. Tancredo não era estranho a estas criticas, que repetiu em seus
discursos de campanha. A forma de melhorar a igualdade econômica foi um dos
tópicos que ele recomendou para estudo a Comissão do Piano de Ação do Governo
(COPAG). Esta comissão temporária de planejamento econômico, nomeada
no início de 1985 e presidida por Jose Serra, então secretario de Planejamento
do governo de São Paulo, foi incumbida de identificar os mais importantes
problemas econômicos que o novo governo teria que en-
___________
96. Ibid., p. 100.
97. Para duas analises (escritas nas vésperas da Nova Republica) das
consequências das políticas econômicas durante os governos militares, ver Paul
Singer, Repartição da renda: pobres sob o regime militar (Rio de Janeiro,
Zahar, 1986), e Sergio Henrique Abranches, Os despossuidos:
crescimento e pobreza no pais do milagre (Rio de Janeiro, Zahar, 1985). Ambos os
autores criticam fortemente os governos militares por não terem adotado medidas
econômicas que fizessem mais por aqueles situados na base.
________
98. A afirmação de Delfim de que qualquer medida significativa para melhorar a
distribuição necessariamente reduziria o crescimento foi refutada nos anos 70 em
William R. Cline, Potential Effects of Income Redistribution on Economic Growth:
Latin American Cases (New York, Praeger, 1972), e Samuel A. Morley e Gordon W.
Smith, "The Effects of Changes in the Distribution of Income on Labor, Foreign
Investment, and Growth in Brazil", em Alfred Stepan, ed., Authoritarian Brazil:
Origins, Policies, and Future (New Haven, Yale University Press, 1973).

A Nova Republica: perspectivas para a democracia 553

QUADRO 3
MUDANCAS NA RENDA MENSAL MÉDIA, POR DECIL E REGIÃO
1970-1980 (Agosto 1980 Cruzeiros)
1970 1980 Percentagem da mudança
Decil
10 por cento da base 938 1.404 50
2." Decil 1.650 2.422 47
3.° Decil 2.415 3.519 46
4.° Decil 3.064 4.260 39
5." Decil 4.037 5.264 30
6° Decil 4.959 6.658 34
7.° Decil 5.798 8.555 48
8.° Decil 8.003 11.794 47
9,° Decil 12.178 18.447 51
10 por cento do topo 37.366 57.183 53

Região
Sudeste 9.746 13.925 45
Rural 4.907 8.589 66
Urbana 11.967 16.593 39
Nordeste 4.486 7.062 55
Rural 2.681 4.141 52
Urbana 4.569 9.533 34
Fronteira 6.678 10.808 56
Rural 4.569 8.459 73
Urbana 9.276 13.323 44
Todo o Brasil 8.040 11.940 49
Fonte: Os dados referem-se aos membros da população economicamente ativa com
rendas positivas, segundo informa9oes prestadas aos recenseadores. David Denslow
Jr. e William Tyler "Perspectives on Poverty and Income Inequality in Brazil",
Quadro 5, p. 1023.

frentar. Entre as recomendações da COPAG estava um programa de emergencia para
ajudar os mais pobres. Incluía a distribuição de leite subsidiado a crianças de
famílias de baixa renda juntamente com programas de obras publicas geradores de
empregos, como construção de moradias em regime de emergência e um piano de
saúde para execução imediata nas áreas mais atrasadas. Estas

554 Brasil: de Castelo a Tancredo
eram apenas medidas de emergência. Para o future, o Brasil precisava de muito
mais investimentos e de planejamento econômico global.99

Mas ate essas medidas de emergência não eram consideradas viáveis pelo
ministro Dornelles e os monetaristas que o assessoravam. De onde poderia sair o
dinheiro para programa tão louvável, já que o orçamento federal sofrera um corte
de 10 por cento? Que Ministério ou agenda governamental abriria mão de recursos
para ajudar os mais necessitados? Cabe notar que alem do problema orçamentário o
peso político dos pobres era praticamente nenhum, embora os analfabetos, agora
com direito de voto, talvez, mais tarde, modificassem o quadro. Afinal, o
governo Sarney era constituído por membros da mesma elite política que governa o
Brasil por incontáveis décadas. Estavam eles preparados para comprometer os
interesses de sua clientela em favor dos desprotegidos?

O programa de emergencia ficou em banho-maria, enquanto o governo procurava
um tanto confusamente administrar os problemas mais urgentes de curto prazo.
Nesse meio tempo Dornelles conseguiu descobrir algum dinheiro, o que permitiu
que em Janeiro de 1986 tivesse inicio a distribuição de leite mas em escala
muito menor do que a esperada pelos seus advogados.100

O presidente, entretanto, não abandonava seus esforços para corrigir as
espantosas desigualdades do Brasil. Desde o inicio dos anos 70 o pais era alvo
de extensas pesquisas de ciência social, em grande parte financiadas pelos
governos militares.101 Os censos
__________
99. Brazil Watch, 29 de abril de 1985.
100. Veja, 17 de abril de 1985, p. 85; Latin American Weekly Report, 26 de abril
de 1985; Veja, 15 de Janeiro de 1986, pp. 72-74.
101. Entre os mais importantes estudos feitos no exterior citam-se
Brazil: Human Resources Special Report (Washington, World Bank, 1979), que esta
resumido em Peter T. Knight e Ricardo Moran, Brazil: Poverty and Basic Needs
Series (Washington, World Bank, 1981). Este cuidadoso estudo trata dos
prováveis custos do aumento dos esforços governamentais em áreas vitais, como
habitação, abastecimento de água, esgotos, nutrição e educação. Nos anos 70
houve intensos debates sobre o estado dos serviços sociais no Brasil. Estes
problemas e muito da literatura a respeito estão sintetizados em Edmar Bacha e
Herbert S. Klein, eds., A transição incompleta, que inclui capítulos sobre as
tendências pos-1964 da população, da composição da força 'de trabalho, economia
e sociedade rural, desigualdade e mobilidade social, riqueza e pobreza,
seguridade social, educação, saúde e assistência medica. Na literatura
monográfica, sobretudo no tocante ao

A Nova Republica: perspectivas para a democracia 555
de 1970 e 1980 e as pesquisas nacionais de domicílios, juntamente com inúmeros
outros estudos, resultaram em considerável massa de informações que Sarney
imediatamente tratou de utilizar. Em
________
sistema de seguridade social, destacam-se James M. Malloy, The Politics of
Social Security in Brazil (Pittsburgh, University of Pittsburgh Press, 1979);
Malloy. "Politics, Fiscal Crisis, and Social Security Reform in Brazil", Latin
American Issues, II, N.° 1 (Meadville, Pennsylvania, Allegheny College,
1985); Amelia Cohn, Previdencia social e processo politico no Brasil (São
Paulo, Ed. Moderna, 1980). Proveitosas criticas sobre a prestação dos serviços
de saúde podem ser encontradas em Saúde em Debate: Revista do Centra Brasileiro
de Estudos de Saúde, que começou a circular em fins de 1976. Outro comentário
critico encontra-se em Saude e trabalho no Brasil (Petropolis, Vozes, 1982), uma
coleção de documentos preparados pelo Institute Brasileiro de Analises Sociais e
Econômicas (IBASE), importante "oficina de talentos" (think tank) de orientação
esquerdista sediada no Rio. Para uma reportagem caracteristica sobre o
inadequado servi5o de saúde publica, ver "A espera as vezes inútil em postos e
centres de saúde", O Globo, 10 de junho de 1984. Uma critica mais abrangente
esta contida em "Um gigante combalido", Senhor, 27 de maio de 1986. A
desnutrição e um terrível flagelo, como esta documentado em Ciencia Hoje, X, N.°
5 (março-abril de 1983), pp. 56, 79. A moradia foi uma área em que os governos
militares fizeram grande esforço, a começar pelo de Castelo Branco. Mas o
sistema que eles criaram (baseado num banco de habitação criado para administrar
fundos provenientes de dedução compulsória recolhida pelas empresas ao FGTS) não
conseguiu alcançar a meta de construção em larga escala de moradias de baixa
renda, como claramente o demonstra Gaston A. Fernandez em "The Role of the State
in Latin America: A Case Study of the Brazilian National Housing Bank"
(dissertação de Ph. D., University of Wisconsin-Madison, 1982). Para uma visão
critica do programa dez anos depois do seu lançamento, ver O Estado de S. Paulo,
22 de agosto de 1974. Para um ponto de vista oficial durante o governo
Figueiredo, ver Roberto Cavalcanti de Albuquerque, " Habitação e desenvolvimento
urbano no Brasil", Revista do Serviço Publico, CX, N.° 2 (abril-junho de 1982),
pp. 41-51. O aumento das favelas foi o mais dramático indicador do problema da
habitação porque representava gritante contraste (especialmente no Rio de
Janeiro) com os diversos edifícios luxuosos de apartamentos. O programa de
remoção de favelas no Rio provocou violentas criticas. Entre os mais conhecidos
críticos citam-se Janice E. Perlman, The Myth of Marginality: Urban
Poverty and Politics in Rio de Janeiro (Berkeley, University of California
Press, 1976); e Licia do Prado Villadares, Passa-se uma casa: análise do
programa de remoção de favelas do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro, Zahar, 1978).
Para reportagens sobre as lutas características do dia-a-dia dos favelados, ver
"Invasores, um perfil em mudança", Folha de S. Paulo, 3 de julho de 1983; e "Em
São Paulo 7,5 milhões moram de forma precária". Folha de S. Paulo, 8 de junho
de 1986.

556 Brasil: de Castelo a Tancredo
agosto de 1985 ele designou o professor Helio Jaguaribe para chefiar um grupo de
estudos encarregado de preparar um relatorio "sobre os graves problemas sociais
brasileiros e a urgente necessidade de criar, através de um novo Pacto Social,
as bases de um amplo consenso nacional, de se adotar medidas e políticas que
encaminhem o país, com a possível celeridade, para uma ordenação social
substancialmente mais eqüitativa". Apresentado no inicio de maio de 1986102 o
relatório pintava um quadro hoje muito conhecido dos brasileiros. Embora
gabando-se de ser a oitava economia do mundo ocidental, o Brasil caia para a
mesma categoria dos países africanos ou asiáticos quando se comparavam os
indices de bem-estar social. A colocação do problema tinha por objetivo chamar a
atenção das elites, as quais, embaladas pela fantasia da poderosa liderança
brasileira no Terceiro Mundo, acordavam agora para verificar que o marginalismo
das massas era uma realidade que julgavam superada ha muito tempo.

O relatório propôs então uma estratégia de quinze anos para elevar os padrões
de vida dos brasileiros ao nível dos vigentes na Espanha ou na Grecia. Para isso
era necessário aumentar substancialmente os investimentos em programas sociais,
inclusive a reforma agraria, de par com uma taxa media de crescimento econômico
de 6 por cento. O relatório defendia uma estratégia por áreas dentro do Piano
Plurianual de Desenvolvimento Social. O presidente Sarney aceitou o relatório e
imediatamente prometeu 12 por cento do PIB para programas de bem-estar social.
Este compromisso tinha condições de ser mantido? Pelo menos o tamanho da "divida
social interna" do Brasil estava agora dimensionado.

Trabalho Urbano. O debate sobre a política de bem-estar social e outras medidas
do governo Sarney e bem ilustrado pela área do trabalho urbano. (A reforma
agraria e o tratamento dado aos presos pela policia serão discutidos adiante.) O
PMDB transformara a política trabalhista em questão fundamental em seu manifesto
de
_______
102. O relatório do grupo Jaguaribe foi publicado no ano seguinte como Helio
Jaguaribe, et al., Brasil 2000: para um novo pacto social (Rio de Janeiro, Paz e
Terra, 1986). Houve um estudo anterior tocando em muitos dos mesmos topicos em
Helio Jaguaribe, et al., Brasil, sociedade democrática (Rio de Janeiro, Jose
Olympio, 1985), incluindo um capítulo altamente esclarecedor de Wanderley
Guilherme dos Santos sobre as mudanças políticas e sócio-econômicas do Brasil
desde 1964.

A Nova República: perspectivas para a democracia 557
1982, em que defendia "uma nova estratégia de desenvolvimento social" que
produzisse "uma distribuição mais justa da renda", o que "só poderia acontecer
com democracia".

A primeira área escolhida para reforma foi a legislação trabalhista. A meta
era a "autonomia sindical", que importava na extinção dos "resquícios de
corporativismo que facilitam a manipulação autoritária dos sindicatos através da
vinculação financeira, da possibilidade de intervenção e de outros mecanismos de
dependência". Estes "vícios precisam ser definitivamente extirpados da
legislação" de modo que "os trabalhadores possam se organizar livremente para
defender seus interesses". Isto requer "a plena restauração do direito de greve
e a possibilidade de que seja estruturada uma organização central dos
trabalhadores com a constituição da Central Onica, como foi resolvido ano
passado na 1 CONCLAT".103 Esta entidade, sigla de Coordenação Nacional da Classe
Trabalhadora, era uma confederação de sindicatos liderada por diferentes grupos,
como o PMDB, PC, PC do B, MR-8, a AIFLD (união da AFL-CIO) e vários
pelegos. A rival da CONCLAT era a CUT (Central Única dos Trabalhadores),
dominada pelo PT e muito mais combativa.

Durante sua campanha presidencial de 1984 Tancredo reafirmara a meta de rever
a legislação trabalhista, especialmente liberando os sindicatos da interven9ao
governamental e ampliando o espaço para as greves legais. Em seu discurso de
posse não pronunciado ele teve "uma palavra especial para os trabalhadores",
chamando-lhes "a maioria do nosso povo" e prometendo-lhes dedicar todo o seu
esforço para que "se ampliem e se respeitem os seus direitos". Ate que ponto em
julho de 1986 o governo Sarney havia cumprido essas promessas?104

O presidente marcara pelo menos um tento ao nomear ministro do Trabalho um
ex-empregado de sindicato. Almir Pazzianotto fora durante dez anos advogado de
importante sindicato de metalúrgicos de São Paulo e tinha idéias definidas
sobre como o governo devia tratar as entidades sindicais e os trabalhadores e
quais as medidas
_______
103. Revista do PMDB, N.° 4, pp. 21-22.
104. Brazil Watch, "Special Report: Brazil's Economic Crisis and the
Iransition to Democracy" (Washington, Orbis Publications, 1984), p. 42; o
discurso esta transcrito em Dimenstein, O complô, pp. 242-47 e em Veia
51 de julho de 1985, pp. 39-45.

558 Brasil: de Castelo a Tancredo
que deveriam ser tomadas para melhorar a situação econômica dos trabalhadores
urbanos e seu poder de negociacao.105

A medida mais obvia era o aumento do salário mínimo real, cujo percentual e
fixado pelo governo.106 £ este um dos mais controvertidos aspectos da política
trabalhista brasileira. A duplicação do mínimo decretado por Getúlio Vargas em
1954 alinhou contra ele os empregadores. Juscelino Kubitschek conquistou o apoio
da classe trabalhadora quando em 1957 fixou um percentual historicamente
elevado. João Goulart lutou sem êxito para proteger os salários contra uma
inflação que se acelerava vertiginosamente.107 Com os governos militares esta
política de cunho populista foi revertida. O salário mínimo real declinou
sensivelmente durante o governo Castelo Branco e os reajustes concedidos nos
governos subsequentes foram rapidamente devorados pela inflação. O governo
Figueiredo e o Congresso fizeram tantas alterações salariais agindo quase
ao mesmo tempo que seus efeitos dificilmente podiam ser avaliados. Esta
experiência demonstrou que a política de salários pode rapidamente tornar-se
caótica se o Executive e o Legislative estiverem desavindos.
__________
105. Os trabalhadores rurais começaram a ser sindicalizados na década de 70 e
durante o governo Figueiredo puderam muitas vezes negociar eficazmente. Este e
um assunto importante, mas infelizmente não pode ser tratado aqui.
106. A relação entre política governamental e comportamento dos salários no
Brasil não e tão óbvia como poderia parecer. Nas épocas em que o emprego fica
difícil, e no caso de pequenas empresas, o salário mínimo pode realmente
determinar o verdadeiro salário. Mas nas empresas maiores, especialmente em
períodos de alto emprego, as pressões do mercado podem produzir não somente
variações positives de salário mas também rotatividade de mão-de-obra na medida
em que os trabalhadores se demitem para ingressar em nova categoria de emprego
com salário mais elevado. Este sistema emerge claramente em Russell Edward
Smith, "Wage Indexation and Money Wages in Brazilian Manufacturing: 1964-1978"
(Dissertacao de Ph.D., University of Illinois, Urbana-Champaign, 1985). A
rotatividade da mão-de-obra e discutida tambem em Morley, Labor Markets and
Inequitable Growth. Para uma cuidadosa analise da política salarial ate a
véspera da Nova Republica, ver Domingo Zurron Ocio, "Salaries e politica
salarial", Revista de Economia Política, VI, N.2 (abril-junho de 1986), pp. 5-
33.
107. João Sabóia, Qual e a questão da política salarial (São Paulo,
Brasiliense, 1985), pp. 16-19. Estes aumentos do salário mínimo decretados por
Vargas e Kubitschek foram logo corroídos pela inflação.

A Nova Republica: perspectivas para a democracia 559
No manifesto de 1982 o PMDB não deixava duvida sobre sua política salarial.
O partido defendia "a reposição gradativa do poder real de compra do salário
mínimo. Esta reposição deveria ser feita através de reajustes sempre superiores
a inflação, visando duplicar o seu valor real num prazo o mais curto possível,
dentro do que for economicamente viável para o pais".108

Alem de prometer uma taxa mais alta de salário mínimo real, o PMDB
comprometia-se também com a reforma da estrutura legal das relações trabalhistas
constantes da legislação de 1943 (CLT), posteriormente emendada. Uma das
estipulações desta lei definia a greve legal de modo tão restrito a ponto de
torna-la quase impossível. Se o governo quisesse cumpri-la a risca podia
declarar virtualmente ilegal qualquer greve - e deixar o resto por conta da
policia. Depois que Costa e Silva usou amplamente dos seus poderes para reprimir
as greves em Osasco e Contagem em 1968, essa arma do trabalhador foi
virtualmente abandonada.

Em 1977, contudo, uma nova gera9ao de lideres sindicais estava pronta para
desafiar a repressão. O governo Figueiredo reagiu cautelosamente evitando o uso
da forca logo no inicio de qualquer paralisação do trabalho. O ministro do
Trabalho Murilo Macedo submeteu a discussão uma possível reforma da lei
trabalhista, mas o assunto não prosseguiu por falta de consenso. A medida que as
greves aumentaram o ministro agiu contra alguns sindicatos (como o dos
petroleiros), punindo a sua diretoria. A relativa tolerância do ministro para
com a intensa atividade grevista - comparada com a dos governos militares
anteriores - suscitou não somente expectativas mas também receios quanto ao
future do sindicalismo.

Um segundo elemento da legislação trabalhista que a oposição atacava era a
dedução compulsória (antes chamada imposto sindical e agora contribuição
sindical) recolhida pelo empregador e enviada ao Ministério do Trabalho. A este
cabia controlar a distribuição dos recursos (menos uma parte retida pelo
Ministério) aos sindicatos, as federações e as confederações. A extinção da
108. Revista do PMDB, N.°4, p. 29. Em maio de 1985 o Ministério do Trabalho
descreveu a política do governo Sarney como sendo "reduzir os móveis de
desemprego e recuperar o poder de compra dos salaries, tentando ao mesmo tempo
diminuir as desigualdades de renda". Ministério do Trabalho. "Mercado de
Trabalho: Evolução 1985 e 1.° Trimestre 1986".

560 Brasil: de Castelo a Tancredo
dedução compulsória, que libertaria os sindicatos do controle financeiro do
governo, significava também, pelo menos no inicio, uma drástica diminuição de
recursos. Embora muitos sindicatos recebessem alguma forma de contribuição
voluntária, provavelmente menos de 10 por cento em todo o pais sobreviveriam a
perda da contribuição sindical. Entre os prováveis sobreviventes incluiam-se os
grandes sindicatos de São Paulo e outros poucos como o dos comerciários do Rio
e o dos têxteis de Blumenau. Os sindicalistas "independentes", como Lula,
apoiaram em principio a abolição da contribuição sindical, não obstante seus
prováveis efeitos a curto prazo. Os sindicatos dominados pelos comunistas,
contudo, se opuseram vigorosamente. Era obvio que assim reagissem porquanto
tornar os sindicatos dependentes de contribuições voluntárias era obrigar os
seus lideres a assumir responsabilidade maior perante os associados.

O pluralismo sindical era outra questão sensível. Pela CLT somente um
sindicato (sindicato único) representava todos os trabalhadores de uma categoria
em determinado municipio. O Ministério do Trabalho depois reconhecia cada
sindicato que ficava assim protegido contra a organização de uma entidade rival
no mesmo município. Os associados elegiam seus dirigentes, em gera com muito
pouco comparecimento. Os resultados da eleição tinham que ser aprovados pelo
Ministério, que podia a qualquer momento substituir os dirigentes eleitos por
outros de sua própria escolha. O sistema do sindicato único favorecia a
continuidade por prazo indeterminado das lideranças. Os que defendiam um
sistema sindical mais livre afirmavam que permitir sindicatos concorrentes na
mesma categoria e no mesmo município seria mais democrático. Em compensação,
poderia criar mais e menores sindicatos com menos poder de barganha. Poderia
igualmente reduzir consideravelmente seu poder político potencial.

O reconhecimento dos fiscais de fabrica e/ou das comissões de fabrica, por
outro lado, foi uma medida capaz de fortalecer as entidades sindicais. Pela lei
trabalhista, os únicos representantes legais do sindicato eram os seus
dirigentes para todo o município. Isto significava que muitos trabalhadores -
normalmente a maioria - não tinham representante ao nível de fabrica para
encaminhar suas queixas e discutir outras questões especificas no local de
trabalho. No fim dos anos 70 começaram a surgir de fato em São

A Nova República: perspectivas para a democracia 561
Paulo fiscais e comissões de fabrica. No entanto, mesmo quando o empregador
decidia tratar diretamente com eles, como no caso da Ford, faltava-lhes status
legal para firmar compromissos.

A garantia de emprego era outra questão pela qual o PMDB se batia. Como vimos
anteriormente, ate 1976 a lei do trabalho garantia a estabilidade após dez anos
de serviço na mesma empresa. Depois de 1964 Roberto Campos e seus tecnocratas
substituíram a estabilidade pelo FGTS, um fundo destinado a indenizar os
empregados dispensados na proporção dos seus anos de serviço. Este instrumento
tornou mais fácil a demissão do trabalhador sem justa causa, e os empregadores a
ele recorriam para aumentar a rotatividade da sua mao-de-obra e consequentemente
reduzir seus custos, pois os aumentos salariais eram concedidos
proporcionalmente ao tempo do trabalhador no emprego contado a partir do ultimo
reajuste. Os empregadores rotineiramente passaram a dispensar empregados pouco
antes da época do reajuste, contratando novos trabalhadores que recebiam somente
uma fração do aumento. Muitas empresas aproveitaram a oportunidade para demitir
empregados com salários mais altos, substituindo-os por colegas de trabalho com
remuneração mais baixa. As empresas podiam portanto seletivamente usar as
demissões (alguma continuidade tinha que ser mantida na forca de trabalho)
para reduzir sua folha de pagamentos a nível inferior aquele do sistema de
estabilidade. O manifesto de 1982 do PMDB declarava que "este mecanismo perverso
e altamente injusto deve ser imediatamente interrompido, para que seja possível
estabelecer a estabilidade".109

Estas eram as principais opções na política trabalhista urbana com que Sarney
se defrontava. Nos seus primeiros meses, como notamos, ele voltou suas atenções
para a necessidade de reduzir a

109. Revista do PMDB, N.4, p. 30. O estudo mais importante sobre esta questão e
de Roberto Brás Mates Macedo e José Paulo Z. Chahad, FGTS e a rotatividade (São
Paulo, Nobel, 1985), que foi encomendado pelo Ministério do Trabalho. Os autores
concluíram, entre outras coisas, que o FGTS deu aos empregadores excessive poder
discricionário para demitir e aos trabalhadores sacrificados inadequada
proteção. Ibid., p. 164. Houve uma tentativa no Congresso em junho de 1986 de
declarar ilegal a demissão sem justa causa, mas a proposta morreu no fim da
sessão legislativa. Para detalhes, ver Folha de S. Paulo, 20 de junho de 1986;
Jornal da Tarde, 20 de junho de 1986; e Exame, 11 de junho de 1986.

562 Brasil: de Castelo a Tancredo
inflação. Com a disputa entre as fac$6es de Dornelles e Sayad, o ministro do
Trabalho Pazzianotto tinha que ser cuidadoso em relação as reformas que desejava
realizar. Agora ele não podia permitir-se uma mudança de grande porte na
arcaica estrutura legal das relações trabalhistas.

Embora muitos brasileiros, inclusive da classe trabalhadora, esperassem do
governo Sarney reformas fundamentals, os lideres sindicais independentes e o PT
as viam como uma ameaça potencial. Eles temiam que qualquer reforma levasse o
público a esquecer sua real necessidade: reformas revolutionárias (não
violentas) na estrutura econômica e política do pais. For isso evitaram entrar
em atrito com o novo governo. Os sindicatos dos metalúrgicos da Grande São Paulo
liderados pelo PT formularam, por exemplo, reivindicações ambiciosas a serem
apresentadas em março de 1985, ocasião do vencimento do reajuste semestral.110
Mas procuravam agir cautelosamente para não dar pretexto aos conservadores
participantes (ou não ) do governo de empurrarem a Nova Republica para a
direita. Eles também sabiam que qualquer medida que tomassem enquanto Tancredo
tivesse chance de se recuperar provocaria a ira popular. Só quando os médicos
oficialmente consideraram impossível salvar a vida do presidente eleito e que
eles resolveram deflagrar sua greve em 10 de abril.

Os sindicatos exigiam 40 horas semanais, reajustes mensais automáticos de
salário e aumento real de 6 por cento por trimestre. Rejeitadas as propostas
pelos empregadores, os metalúrgicos entraram em greve desafiando o governo
Sarney precisamente quando ele emergia do limbo criado pela doença de Tancredo.
Os grevistas do ABC liderados por ativistas vinculados ao PT queriam mostrar sua
independencia de um governo comandado pelo PMDB-PFL. Era a sua resposta ao
boicote pelo PT da eleição presidencial pelo colegio eleitoral em Janeiro de
1985.

A greve arrastou-se por semanas. Os empregadores, inclusive as montadoras
multinacionais de veículos, estavam determinados
________
110. Este relato das greves em 1985-86 e baseado em Latin America Weekly Report,
Latin America Regional Reports: Brazil e Veja. Para uma reveladora analise da
rígida reação dos empregadores a greve dos metalúrgicos, ver Eli Diniz, "O
empresariado e o momento político: entre a nostalgia do passado e o temor do
future", Cadernos de Conjuntura (Rio de Janeiro, IUPERJ), N.° 1 (outubro de
1985), pp. 7-13.

A Nova Republica: perspectivas para a democracia 565
a não ceder na primeira greve importante que submetia a teste a Nova Republica.
Houve momentos de extrema tensão, sobretudo por causa da atitude da General
Motors, com fabrica em São José dos Campos, que demitiu 93 trabalhadores,
inclusive muitos lideres da greve. Revoltados, os dissidentes radicais do
Sindicato dos Metalúrgicos, apoiados pelo grupo trotskista Convergencia
Socialista, assumiram a direção da entidade e convenceram os trabalhadores a
manterem como reféns 370 funcionários do setor administrativo da GM que se
recusaram a fazer a greve, os quais ficaram dois dias sem comer nem dormir. O
encarceramento (não a greve) só terminou em atenção a um apelo direto do
ministro do Trabalho, mas o episódio dos "reféns" prejudicou a imagem do
sindicato entre o público, que sempre simpatizara com as greves anteriores.111

Quando as tensões criadas pela greve se avolumaram, todas as atenções se
voltaram para o ministro do Trabalho Pazzianotto. O ex-advogado sindical
interviria em favor dos grevistas? Ou agiria como os seus antecessores
desencadeando a ação policial quando o governo decidisse que o movimento tinha
que terminar? O ministro da Industria e do Comercio Roberto Gusmao, um linha-
dura, era favorável a repressão. Mas Pazzianotto não tomou qualquer
providencia, deixou que a greve prosseguisse. Certo de que nem o governo de São
Paulo nem o federal usariam a repressão, esperou que empregadores e
trabalhadores esgotassem todo o seu arsenal de argumentos na mesa de
negociações. Ocorre que os patrões não estavam dispostos agora a fazer
concessões, embora tivessem oferecido algumas antes do inicio da greve. Os
grevistas em consequência passaram a ser pressionados. Como a policia e as
forças de segurança não atacaram os seus piquetes, eles perderam a simpatia
publica que a violência da repressão gerava nas greves anteriores.

A paralisação dos metalúrgicos - a mais longa de que se tinha conhecimento -
não terminou. Simplesmente deu em nada após 54 dias sem conseguir obter as suas
reivindicações em geral,
_________
111. O incidente na fabrica da GM e descrito em detalhes em Veja,
8 de maio de 1985. Um economista muito conhecido simpático aos grevistas afirmou
que os trabalhadores da GM caíram em uma "armadilha preparada pela
administração" para forçar a entrada da policia e consequentemente 'desmoralizar
o sindicato. Paul Singer, "GM: a guerra de classes", Lua Nova, !U. N.° 3
(outubro-dezembro de 1985), pp. 90-92.

564 Brasil: de Castelo a Tancredo
embora algumas tenham sido atendidas por certo número de empresas. Na verdade a
motivação dos grevistas era tanto política quanta econômica. Os sindicatos
"independentes" e o PT queriam testar sua força contra o novo governo. Mas este
ganhou ao preservar a independência nem ajudando nem reprimindo os grevistas.
O resultado foi importante por varies outros aspectos. Primeiro, mostrou que se
o governo evitasse a repressão os trabalhadores contariam com menor simpatia do
publico, e isto forçaria os sindicatos mais combativos a reavaliar sua
estratégia. Segundo, o resultado foi uma vitória política para o governo Sarney
porque preservou a posição centrista independente tanto da direita como da
esquerda. Terceiro, a greve e seu desfecho demonstraram que a paralisação do
trabalho e um recurso normal em um sistema democrático com negociações abertas.
Finalmente, muitos lideres grevistas foram demitidos (os dirigentes sindicais
eram protegidos por lei). Como as empresas importantes mantinham em suas listas
negras os nomes dos trabalhadores demitidos por ativismo sindical, muitas
vitimas ficaram sem perspectiva de emprego.

Os metalúrgicos não foram os únicos a fazer greve: foram acompanhados por
varies outros sindicatos. Muitos grevistas eram empregados públicos, como os
ferroviários de São Paulo que reagiam contra a queda dos seus salários reais e
a deterioração de suas condições de trabalho.112 Muitos empregados do INAMPS, o
sistema de assistência social do governo, trabalhavam, por exemplo, em péssimas
condições, num sistema flagrantemente sobrecarregado e com recursos inadequados.
Em virtude da austeridade orçamentária do governo, as repartições publicas não
tinham recursos para pagar melhores salários ou oferecer melhores condições. Por
isso muitas greves deflagradas em repartições governamentais foram
malsucedidas. Cabe notar que o governo estava bem preparado para conviver com o
sistema de reajustes salariais do setor privado que, entretanto, se recusava à
aplicar aos seus empregados. Esta incoerência não escapou a atenção nem dos
lideres nem dos associados dos sindicatos do setor publico.

As greves ocorridas durante a segunda metade de 1985 e o começo de 1986
mostraram uma serie de fatores em ação. Primeiro,
___________
112. Dos dias-pessoa perdidos nas greves de 1985, 72 por cento foram de
empregados públicos. Ministério do Trabalho, "Mercado de Trabalho".

A Nova Republica: perspectivas para a democracia 565
os metalúrgicos não eram o único sindicato bem organizado e competentemente
liderado. Os bancários de São Paulo, conhecidos pelo seu ativismo, fizeram uma
greve de dois dias e conseguiram significativo aumento de salário real, mas não
o reajuste trimestral que era a sua principal reivindicação. Neste case o
interessante foi que o reajuste fixado pelo tribunal regional do trabalho foi
mais generoso do que o esperado por Funaro e Sayad.

Em segundo lugar, as concessões governamentais feitas no momento certo
reduzem a militancia do trabalhador. No inicio de novembro o governo anunciou um
aumento semi-anual do salário mínimo de 5,6 por cento acima da taxa de inflação
dos últimos seis meses, num esforço para repor a perda do valor real do salário
mínimo durante os governos militares. Era também o cumprimento de uma velha
promessa do PMDB de promover aumentos reais. Em São Paulo, onde gigantesca
greve apoiada por uma coalizão de sindicatos fora convocada para novembro, os
operários voltaram ao trabalho depois de dois dias, tendo muitos recebido
aumentos reais de 8 por cento a 20 por cento, reajustes trimestrais e redução de
48 para 45 horas semanais de trabalho.113 Os empregadores podiam dar-se ao luxo
de fazer tais concessões porque a economia estava em franco progresso, não
convindo aos seus interesses greves demoradas. O acordo confirmava que os
sindicatos industriais de São Paulo tinham impressionante poder de barganha.
Finalmente, as greves do segundo semestre de 1985 deram ênfase as divergencias
ideologicas entre a CUT e a CONCLAT, havendo a CUT, mais combativa, ganho
terreno entre os sindicatos individuais. Embora as greves tivessem sido
suspenses, era claro que tanto a CUT como a CONCLAT (que mudara o nome para CGT
- Central Geral dos Trabalhadores) estavam planejando mobilizações ate maiores
para o futuro. A curto prazo, contudo a rivalidade entre ambas poderia
enfraquecê-las na mesa das negociações.

O ciclo de confronto governo-sindicato foi quebrado pelo Piano Cruzado no fim
de fevereiro de 1986. O contexto da nego-
_______
113. Dados do Ministerio do Trabalho indicam que em 1985 as taxas medias de
salário real da industria aumentaram 7,5 por cento para o Brasil e 15 por cento
para o estado de São Paulo. Ibid.

566 Brasil: de Castelo a Tancredo
ciação foi subitamente abalado por uma política totalmente nova de combate a
inflação. Dois itens do piano, o congelamento de preços e o seguro-desemprego,
eram antigas reivindicações do PT e da CUT. O trabalhador recebeu um abono de 8
por cento sobre o ultimo reajuste, o segundo aumento de salário real do governo,
que procurava compensar as perdas passadas e também conquistar o apoio da classe
trabalhadora para o seu programa.

O PT e o DIEESE inicialmente atacaram a formula do governo de calcular os
reajustes salariais sob o Piano Cruzado, afirmando que não era usada a base
correta.114 Não obstante, o publico recebeu o piano com entusiasmo, o que
levou as lideranças sindicais a passarem para a defensiva. Em resposta, Lula e
os outros lideres da CUT e do PT logo começaram a planejar uma greve geral de
âmbito nacional com o objetivo de derrotar a política salarial do Piano Cruzado.
Acontece, porem, que uma greve verdadeiramente geral e quase impossível ser
levada a efeito no Brasil por causa do seu tamanho, das suas variações regionais
e da fraqueza da maioria dos sindicatos. No entanto o governo levou a serio a
ameaça, e se preparou, especialmente para greves em serviços públicos
"essenciais". A greve geral não aconteceu em julho, embora greves importantes
tenham ocorrido no Rio (ferroviários) e em Brasília (funcionários públicos).
Como estes eram empregados públicos, seu empregador era o governo e estava
compulsoriamente nas negociações. Pazzianotto e seus colegas adotaram uma
posição
__________
114. Uma amostra do debate sobre este e outros aspectos do Piano Cruzado
encontra-se em Revista de Economia Política, VI, N. 3 (julho-setembro de 1986),
pp. 124-51. Para o trabalhador médio não teria sido fácil calcular de que modo
a nova lei o afetaria. Uma facção dissidente dos metalúrgicos de São Paulo fez
circular um boletim atacando a aceitação pela liderança do sindicato de um
acordo com os empregadores. O boletim apresentava ao trabalhador nada menos do
que doze operações aritméticas para mostrar-lhe como o novo salário devia ter
ésido calculado. Em base nacional o impacto das greves foi menor em abril de
1986 do que no mesmo mês de 1985. Correio Brasiliense, 15 de junho de 1986. Os
metalúrgicos, contudo, conseguiram aumento de salário real. Em alguns lugares,
como em São Bernardo do Campo, eles também sofreram demissões em larga escala,
destinadas sem duvida a eliminar os militantes sindicais e também reduzir o
numero de empregados qualificados para receber a reposição salarial plena quando
chegasse a época do reajuste. O Estado de S. Paulo, 13 de junho de 1986; Jornal
do Brasil, 27 de julho de 1986.

567
dura nestes casos, pois qualquer concessão do governo tornar-se-ia precedente
imediato para os militantes sindicais em outros setores.

Qual o veredicto sobre o desempenho dos quinze meses do governo Sarney na
área das negociações trabalhistas? Primeiro, cumpriu, embora modestamente, o
compromisso do PMDB de aumentar o salário mínimo real. Segundo, evitou
amplamente a intervenção governamental nas disputas trabalhistas. Era uma
partida rumo ao objetivo - apoiado por Funaro, Sayad e Pazzianotto
- de mais autonomia para as redoes trabalho-capital. Não era esta a primeira
vez desde 1964 que um governo decidia aumentar o salário mínimo real. Isto
aconteceu em 1967 quando o recem-empossado governo Costa e Silva elevou o
salário real como parte de sua tentativa de "humanizar a Revolução" em busca de
apoio do povo quando o voto, embora limitado, ainda era importante. O segundo
caso foi em 1979, quando o governo Figueiredo conseguiu a aprovação pelo
Congresso de uma lei dando um abono de 10 por cento sobre o reajuste do custo de
vida aos trabalhadores com remuneração mais baixa. Aqui também o governo buscava
apoio político numa estrutura autoritária mais frouxa.115 Em suma, esses dois
casos aconteceram ou antes de 1969 ou depois de 1979, isto e, não na década da
maior repressão. Outra questão básica em matéria de relações de trabalho era a
lei de greve. O governo se esforçou muito para apresentar um novo projeto de
lei. O esboço do ministro Pazzianotto começou a circular pelos canais
intragovernamentais em meados de 1985 e finalmente apareceu em sua forma final
em junho de 1986.116 Mas o presidente e seu ministro obtiveram apenas um frágil
consenso sobre ate onde poderiam ir no concernente a legalização das greves. Os
chefes militares, por exemplo, ha muito olhavam os sindicatos com desconfiança e
se opunham ao enfraquecimento do poder do
_________
115. Para detalhes sobre cada caso, ver os capítulos anteriores sobre os
governos Costa e Silva e Figueiredo.
116. O texto do projeto de Pazzianotto foi publicado na Folha de S. Paulo
26 de maio de 1985. A proposta final foi o projeto de lei 8059 (1986). As
diferenças entre as duas versões foram analisadas em editorial de um diário de
São Paulo, o qual concluía que o novo projeto "esta pr6ximo do documento
viável sobre este assunto". Folha de S. Paulo, 30 de julho de 1986.

568 Brasil: de Castelo a Tancredo
governo sobre os grevistas.117 Os industriais de São Paulo também não
participavam da idéia de se criar maiores facilidades para as greves. Eles
estavam satisfeitos com a lei em vigor que dava aos empregadores permanente
vantagem bastando que a lei fosse estritamente aplicada. Tanto os militares como
os industriais paulistas argumentavam agressivamente contra o que denunciavam
como excessiva liberalização do projeto de lei de Pazzianotto.118 O ministro foi
pressionado também por centenas de lideres e associados de sindicatos que
consultara. Todos queriam que o governo se afastasse da política sindical para
que os órgãos de representação dos trabalhadores pudessem exercer o mesmo
direito de greve ha muito possuído pelos seus colegas das nações
industrializadas.119

A nova lei de greve proposta pelo governo Sarney foi finalmente enviada ao
Congresso em julho de 1986.120 Devia substituir a lei de julho de 1964 do
governo Castelo Branco concebida para reprimir as atividades sindicais. A lei
proposta, resultado de elaborados compromissos intragovernamentais, reduziria o
numero dos setores essenciais cujos empregados eram proibidos de fazer greve.121
Grande numero de trabalhadores, como servidores públicos

117. As origens desta animosidade dos militares para com os sindicatos são
reconstituidas em Thomas E. Skidmore, "Workers and Soldiers: Urban Labor
Movements and Elite Responses in Twentieth-Century Latin America", em Virginia
Bernhard, ed., Elites, Masses, and Modernization in Latin America, 1850-
1930 (Austin, University of Texas Press, 1979), pp. 79-126.
118. Os ataques muitas vezes violentos dos empresários a proposta de lei de
greve de 1985 são descritos em Diniz, "O empresariado e o momento político",
pp. 13-30.
119. Para um comentário sobre tais objeções, ver Nair Heloisa Bicalho de Sousa,
"Negociacoes coletivas e direito de greve: uma discussão sobre a mudança das
relações trabalhistas no Brasil", trabalho apresentado ao IX Encontro Anual da
ANPOCS: Grupo de Trabalho, Classe Operaria e Sindicalismo (junho de 1985).^
120. O projeto do governo e analisado em Veja, 30 de julho de 1986, pp. 44-46, e
Senhor, 24 de junho de 1986, pp. 37-39. O leitor deve notar que esta e uma
proposta complexa, da qual apenas alguns aspectos são discutidos aqui.
121. Enquanto isso, a Comissão Afonso Arinos, elaborando o projeto da nova
Constituição, decidiu conceder aos trabalhadores direito irrestrito a greve,
inclusive nos "setores essenciais". Folha de S. Paulo, 11 de junho de 1986. O
principal jornal conservador do Rio imediatamente denunciou em editorial a
decisão da Comissao. O Globo,, 13 de junho de 1986.

569
civis, empregados em hospitais e portuários, ainda permaneceriam na lista de
proibi9oes. Segundo, as greves só poderiam ser autorizadas por votação secreta,
em contraste com o voto nominal que muitos sindicatos praticavam. Terceiro,
trabalhadores e empregadores teriam agora uma nova opção: o recurso a um arbitro
externo que poderia receber a solicitação de recomendar um acordo. Quarto, o
projeto procurava reduzir os obstáculos burocráticos a convocação de uma greve.
Quinto, o empregador ficava proibido de recorrer ao lockout (embora se
esforçasse para legaliza-lo). Finalmente, o anteprojeto de lei mantinha a
autoridade do governo sobre as greves e as ações de greve.

O projeto foi logo atacado por sindicalistas militantes, como Gilmar
Carneiro, membro da diretoria nacional da CUT, que o considerava "uma lei mais
flexível para reprimir greves". Muito controvertida foi a exigência do voto
secreto mínimo para a convocação de greves. Pazzianotto afirmava que a lei não
permitiria mais "greves decretadas por minorias". Muitos observadores achavam
que quanto mais alta fosse a votação mínima exigida menos provável tornava-se a
greve. Em outras palavras, procedimentos mais democráticos a curto prazo
reduziriam a atividade das lideranças sindicais radicais.

O projeto da nova lei de greve era inegavelmente um anticlimax. O governo
levara quinze meses para produzir um documento extremamente cauteloso. Seu
destino dependeria de um complexo jogo de forças no Congresso e no país. E a lei
seria obedecida se fosse aprovada? Cabe lembrar que boa parte das mudanças nas
rela?6es de trabalho desde o fim dos anos 70 fora ou contra ou em torno da lei
existente. Como disse Gilmar Carneiro, "se esta lei for aprovada será
desobedecida tal como a atual". Coloca-la portanto em vigor era o desafio, por
isso os governos anteriores algumas vezes aplicaram as leis trabalhistas
seletivamente.

Informava-se que duas outras importantes mudanças estavam sendo estudadas:122
a abolição da contribuição sindical e a eliminação da exigência de que um so
sindicato representasse os trabalhadores de uma categoria em cada município. Em
outras palavras,
________
122. Veja. 30 de julho de 1986, pp. 45-46; Isto £, 23 de julho de 1986,
PP. 22-23.

570 Brasil: de Castelo a Tancredo
sindicatos concorrentes poderiam representar os trabalhadores em diferentes
locais de trabalho dentro do mesmo município.

Ambas as reformas estavam sendo pedidas em nome de uma maior democracia
sindical. O sindicato dos metalúrgicos de Osasco em São Paulo já tinha um
sistema pelo qual os empregadores deduziam contribuições separadas do salário
dos trabalhadores e as remetiam ao sindicato. Estas contribuições eram paralelas
a contribuição sindical que continuava a ser recolhida mas que o sindicato se
recusava a receber. Contudo, eram poucos os sindicatos preparados para tomar
atitude tão ousada. A introdução do pluralismo sindical presumivelmente
estimularia a democracia sindical porque os lideres precisariam cultivar a
lealdade dos associados a fim de evitar a ação de organizadores rivais.

As duas reformas - abolição da contribuição sindical e da representação
exclusiva - eram defendidas pelos lideres independentes e pelo PT e a CUT. Eles
achavam que obteriam apoio crescente em um clima mais competitivo que vinham
procurando criar desde 1978 com uma estratégia ativista voltada para o interior.
A muitos outros lideres faltava, contudo, essa confiança, por isso se opunham as
reformas, como era o caso do PCB, PC do B, MR-8 e dos antigos pelegos. Uma coisa
era certa: a entrada em vigor dessas mudanças enfraqueceria consideravelmente o
poder de negociação dos sindicatos a curto prazo. Por outro lado, tornaria mais
fácil ao governo Sarney por em pratica seu programa antiinflacao.

Esta situação era especialmente delicada para o ministro do Trabalho
Pazzianotto, que tinha lealdades conflitantes. Ele defendia reformas
sistemáticas das leis trabalhistas mas também estava comprometido com o grito
do Piano Cruzado. A defesa deste prejudicaria a conquista daquelas? Pazzianotto
ameaçou rever adicionalmente as leis do trabalho para desequilibrar os
adversários do programa antiinflação. Obviamente esta tática funcionava mais com
os sindicatos da CGT do que com os da CUT.123 Assim, a política trabalhista
estava interligada com as metas econômicas mais amplas do governo. Democratizar
as estruturas sindicais, tal como democratizar as estruturas políticas, não era
tarefa simples.

A democratização sindical estava sendo ajudada também por outros meios.
Embora a partir do fim da década de 70 os jornais
______
123. Folha de S. Paulo, 16 de junho de 1986.

se ocupassem muito dos movimentos grevistas, havia mudanças menos divulgadas mas
não menos importantes em andamento. Muitas empresas privadas de grande porte e
seus sindicatos, por exemplo, desenvolveram o sistema de negociação coletiva
real em áreas limitadas.124 Em julho de 1985, de 180 firmas estrangeiras
consultadas, 80 por cento responderam que ja pagavam reajustes trimestrais de
salário - isto numa época em que o governo veementemente se opunha a esta
periodicidade na reposição do poder de compra do assalariado.125 Os empregadores
estavam fazendo acordo com os seus empregados ignorando as diretrizes
governamentais. Outro exemplo foi a rápida disseminação das comissões de
fabrica.126 Estas comissões, organizadas pelos trabalhadores, surgiram para
defender os seus interesses no local de trabalho, precisamente onde os
sindicatos baseados no município eram geralmente mais fracos. Em alguns casos,
as comissões obtiveram o reconhecimento dos empregadores que as incorporaram em
comites conjuntos patrão-empregado (algumas vezes também chamados comissões de
fabrica). Estes comites recebiam autorização limitada para decidir sobre
questões como interpretação de regras de trabalho, regulamentos de segurança,
atribuição de serviço extraordinário, demissões e outros assuntos ao nível de
fabrica. Os trabalhadores participantes desses comites variavam dos ativistas
preo-
___________
124. O estudo da Universidade de São Paulo (encomendado pelo Ministério do
Trabalho) sobre dissídios coletivos na primeira metade de 1985 mostrou que
empregados e empregadores estavam evitando cada vez mais o recurso ao sistema da
justiça trabalhista e dando prioridade a negociação direta, especialmente ao
nível de fabrica. No mês de junho em Minas Gerais, por exemplo, 57 das 58
disputas foram resolvidas pela negociação coletiva. Ministerio do
Trabalho/Fundação Institute de Pesquisas Econômicas, Boletim Bimensal de
Acompanhamento dos Acordos, Convenções e Dissídios Coletivos de Trabalho nos
Estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, Ano 4, N.° 4 (julho-
agosto de 1985).
125. A pesquisa foi feita pela Camara Americana de São Paulo e noticiada
em Latin American Daily Post, 7 de setembro de 1985 (suplemento especial), p. 8.
126. Para uma apreciação dos conselhos de fabrica escrita durante o governo
Figueiredo, ver Ricardo C. Antunes e Arnalso Nogueira, O que são comissões de
fabrica (Sao Paulo, Brasiliense, 1981). Para as idéias de um antigo ativista
sindical que instou os conselhos de fabrica e adotaram uma linha radical, ver
Jose Ibrahim, Comissoes de fabrica (São Paulo, Global, 1986).

572 Brasil: de Castelo a Tancredo
cupados em garantir o seu "pão de cada dia" e aqueles que viam no comite" uma
base para futura afio política. Em 1984 havia apenas cerca de 20 comitês mas em
meados de março de 1986 já eram 220.127

Outra influencia democratizadora estava em 3930 dentro dos sindicatos: a
ofensiva de agressivos organizadores da esquerda. Muitos eram sindicalistas
"independentes" agora vinculados a CUT e ao PT. Outros pertenciam a grupos de
esquerda como a Convergência Socialista de orientação trotskista e a Pastoral do
Trabalho patrocinada pela Igreja Católica. Todos esses organizadores trabalhavam
da base para cima fazendo proselitismo entre associados de sindicatos que nunca
se interessaram em desenvolver atividades em seus órgãos representativos. Varies
destes órgãos eram dirigidos por pelegos, cuja posição dependia do fato de serem
passivamente aceitos pelos associados. Qualificados, bem informados e
diligentes, esses organizadores independentes trabalharam a grande massa inativa
de trabalhadores sindicalizados tornando-os mais participativos. Se conseguiram
ou não derrubar velhas lideranças e se foram bem-sucedidos ou não na pregação
de sua ideologia, a verdade e que os sindicatos foram despertados de sua
letargia. A democratização, definida como maior participação dos associados, foi
amplamente promovida.

A questão mais fundamental em matéria de política trabalhista nos centres
urbanos em meados de 1986 era se o Brasil ajustaria seu sistema oficial de
relações de trabalho as novas realidades da d6cada de 80. Suavizar a lei de
greve fortaleceria a posição dos trabalhadores mas de nenhum modo tornaria os
sindicatos invencíveis. Eles ainda teriam que lidar com variáveis, como o
exercito de desempregados prontos para tomarem os seus empregos, a demanda
pelos produtos dos empregadores, o volume dos fundos
__________
127. Informação fornecida por Roque Aparecido da Silva do CEDEC de São Paulo,
18 de junho de 1986. Houve também uma profusão de programas de "relações
humanas" profissionais com staff próprio criados pelos empregadores. Para um
exemplo de como eles pensavam, ver Luiz Antônio Ciocchi, "Vamos subir o nível?",
em Exame, 11 de junho de 1986, p. 82. Um destacado exemplo de comite conjunto
empregado-empregador - criado após grande pressão dos trabalhadores - 6 o da
fábrica da Ford em São Paulo, descrito em José Carlos Aguiar Brito, A tornado
da Ford: o nascimento de um sindicato livre (Petrópolis, Vozes, 1983).

A Nova República: perspectives para a democracia 573
de greve ou de outras formas de ajuda e o ativismo dos seus membros. Facilitando
o recurso a greve, o governo deslocaria o centre do debate da repressão policial
(ou sua ameaça) para as verdadeiras questões pendentes entre empregadores e
sindicatos. Poderiam assim concentrar-se na negociação ha muito aceita no
ocidente industrializado como a forma democrática de abordar as relações
trabalhistas. Reforma Agraria. O manifesto de 1982 do PMDB escolheu o setor
agrário como outra área que clamava por urgente reforma. Os pobres da zona rural
brasileira estavam no fundo do fundo vistos por qualquer indicador social -
mortalidade, morbidez, moradia, higiene, alfabetizacao. No entanto, o Brasil e
um vasto pais com terras ainda inexploradas. O que não deu certo? Por acaso não
houve movimentos de expansão da fronteira agrícola através dos séculos,
inclusive o atual? Sim, mas muitas vezes o sem-terra não podia chegar a
fronteira, ou quando lá chegava encontrava a terra em mãos de especuladores ou
de latifundiários. Como disse ilustre economista do governo: "Estamos todos
conscientes de que vivemos em um pais que tem a mais alta concentração de renda
do mundo e, para ser especifico, uma das mais altas concentrações de terras".128
Neste século o rápido crescimento da população combinou-se com o tipo de
desenvolvimento capitalista do Brasil para produzir grandes bolsões de pobreza
no campo. Entre 1978 e 1984 as políticas do governo, favoráveis aos grandes
empreendimentos rurais intensivos de capital, ajudaram a aumentar o número de
lavradores com pouca ou nenhuma terra de 6,7 para 10,6 milhoes.129
_________
128. Entrevista com Edmar Bacha, Jornal do Brasil, 8 de junho de 1986.
129. Relatório especial sobre reforma agraria, em Brazil Watch, In, N.° 12 (9-
23 de junho de 1985), pp. 10-17. Para uma excelente apreciação bibliografica de
pesquisa sobre o setor rural brasileiro, ver Jose Cesar Gnaccarini e
Margarida Maria Moura, "Estrutura agraria brasileira: permanência e
diversificação de um debate", BIB: Boletim Informative e Bibliográfico de
Ciencias Sociais (Rio de Janeiro), N.° 15 (1983), pp. 5-52. Para um exemplo de
recentes debates sobre a transição de pequenos proprietários para trabalhadores
assalariados, ver David Goodman, Bernardo Sorj e lohn Wilkinson, "Agro-Industry,
State Policy, and Rural Structures: Recent Analyses of Proletarianisation in
Brazilian Agriculture", em B. Munslow e H. Finch, eds., Proletarianisation in
the Third World (London, Croom Helm, 1984), pp. 189-215.

574 Brasil: de Castelo a Tancredo
A forma de melhorar as condições de vida do trabalhador rural e dar-lhe
acesso a terra. Mas como? Em 1964 o governo Castelo Branco considerou a reforma
agraria meta de alta prioridade. O Estatuto da Terra criava a base legal para a
redistribuição da terra que deveria ser promovida por um imposto progressivo
sobre as propriedades ociosas ou subutilizadas. Se rigorosamente aplicado, o
imposto progressivo poderia ter modificado o perfil da posse da terra. Mas os
grandes proprietários conseguiram amplas salvaguardas, como limitações sobre o
poder de expropriação. Muito importante, nem Castelo Branco nem os seus
sucessores nos anos 60 e 70 estavam preparados para alocar a massa de recursos
públicos necessários para ocorrer as indenizacoes.130

com efeito, a político governamental desde a década de 1950 dera a mais alta
prioridade a industrialização. A política agricola favorecia não a
redistribuição mas o aumento da produção, o que usualmente significava grandes
unidades, intensivas de capital.131 Enquanto isso, desde os anos 70 uma parcela
cada vez maior da produção agrícola foi destinada a exportação. Os 7 por cento
de aumento da safra em 1985, por exemplo, foram atribuídos principalmente a
soja, ao algodão e ao trigo (os dois primeiros produtos exportáveis), enquanto o
arroz e o feijão, gêneros alimen-
______
130. Para uma analise da política de reforma agraria de Castelo Branco, bem como
da de Joao Goulart e de todos os governos militares de 1964 a 1975, ver Marta
Cehelsky, Land Reform in Brazil: The Management of Social Change (Boulder,
Westview Press, 1979). Cehelsky concluia: "As escassas evidencias de
reforma agraria disponíveis após quinze anos de uma nova política agraria no
Brasil demonstram a irresistível prevenção capitalista/desenvolvimentista do
esforço e os seus limitados benefícios aos pobres do país" (p. 223). O governo
Figueiredo, ao contrario dos seus antecessores militares, tentou um ambicioso
programa de redistribuição de terra e afirmou ter entregue títulos de
propriedade a 800.000 pessoas, embora os críticos zombassem desses números.
Veja, 28 de maio de 1986, p. 20. Um desses criticos e Carlos Mine, A reconquista
da terra: lutas no campo e reforma agraria (Rio de Janeiro, Zahar, 1985), pp. 7-
12. De 1968 a 1981 o Banco Mundial lançou dez projetos de desenvolvimento rural
no Brasil, e verificou que as pressões políticas e burocráticas quase
invariavelmente frustraram sua meta de alocação e ate de titulação de terras.
Robert L. Ayres, Banking on the Poor: The World Bank and World Poverty
(Cambridge, Mass., MIT Press, 1983), pp. 116-18.
131. Para uma autorizada analise da politica governamental, ver Brazil: a Review
of Agricultural Policies (Washington, World Bank, 1982).

575
ticios obrigatorios na mesa do povo, caiu 3 por cento e estagnou,
respectivamente. "Não tem cabimento o Brasil ser um dos maiores exportadores de
alimentos do mundo e ter 30 milhões de pessoas passando fome", observava o
ministro da Agricultura Pedro Simon.132

Como vivia o morador do campo nesse período de mudanças? Com a
industrialização e a urbanização do Brasil, os moradores das cidades melhoraram
consideravelmente em termos de nutrição, saúde e de outros indicadores sociais.
Mas essas melhorias não se estenderam as zonas rurais que continuaram atrasadas
e pobres.133

O que os habitantes do campo podiam fazer para melhorar de situação? No
inicio dos anos 60 alguns tinham começado a se organizar quando o governo
Goulart e o Congresso estenderam ao setor rural o direito a sindicalização. O
campo foi entao tornado por ativistas de todas as colorações políticas,
especialmente da esquerda. As ligas camponesas, especialmente no Nordeste,
ganharam as primeiras paginas dos jornais por suas exigências de uma reforma
radical nas condições de trabalho dos lavradores. O golpe de 1964 interrompeu
essa mobilização, que foi impiedosamente reprimida, especialmente no Nordeste,
onde o Quarto Exercito empreen-
_________
132. Veja, 18 de setembro de 1985. Não faltaram pesquisas nem obras
esclarecedoras sobre política alimentar. Ver, por exemplo, Fernando Homem de
Melo, "A agricultura nos anos 80: perspectiva e conflitos entre objetivos de
política", Estudos Econômicos, X, N.° 2 (1980), pp. 57-101; e do mesmo autor, "A
necessidade de uma política alimentar diferenciada no Brasil", Estudos
Econômicos, XV, N.° 3 (1985), pp. 361-85. No inicio dos anos 80 a produção per
capita de arroz, mandioca, feijão e milho estava ou estagnada ou em declínio, o
que significava que os pregos dos alimentos estavam quase sempre subindo mais
rapidamente do que os salários, com as obvias consequências de caráter
nutricional. Jaguaribe, Brasil 2000, p. 157. Para uma retrospectiva sobre como
as medidas de 1985 do governo Sarney afetaram a agricultura, ver Guilherme C.
Delgado, "A política econômica e a questão agrícola", Conjuntura Econômica, XL,
N.° 2 (fevereiro de 1986), pp. 165-70. O autor advertia que uma considerável
demanda reprimida por alimentos seria liberada quando os subnutridos e
desempregados começassem a beneficiar-se da recuperação econômica e
de políticas governamentais mais democráticas.
__________
133. O atraso do setor rural em promover a melhoria de indicadores básicos,
como educação, sistemas confiáveis de abastecimento de água, habitação e
assistência medica etc. esta bem documentado em Brazil: Human Resources Special
Report (Washington, World Bank, 1979).

576 Brasil: de Castelo a Tancredo
deu verdadeira caça aos organizadores rurais (matando-os em alguns
casos).134

Depois de 1964 os proprietários de terras passaram a contar com a cobertura
da policia e dos militares, não dando margem a - que os pobres do campo se
organizassem. Mas no inicio dos anos 80 a situação começou a melhorar. A
abertura política em nível nacional encorajou alguns camponeses sem terra e seus
lideres a se organizarem para exigir a redistribuição das propriedades. Esses
grupos estavam geralmente ligados ao clero católico, que no final dos anos 70 e
inicio da década de 80 atuava especialmente na Amazônia, no Centro-Oeste e no
Nordeste. Como, segundo ja vimos, outras instituições da sociedade civil ou se
ausentavam ou não podiam funcionar eficientemente, a Igreja era o único recurso
para os sem-terra e seus pretensos organizadores. Os governos militares reagiram
com irritação ao envolvimento do clero em conflitos de terra e varies padres
estrangeiros foram expulsos do pais. Enquanto isso, a CNBB continuava a lutar
vigorosamente por uma política de desapropriação e redistribuição de terras.135
Os conflitos cada vez mais frequentes foram acompanhados pela escalada da
violência. Segundo um estudo, os assassínios de organizadores rurais aumentaram
de 58 em 1982 para 191 em 1985. Nos primeiros cinco meses de 1986 houve 100
mortes.136 Os gran-
_________
134. Para detalhes sobre a repressão dos militares no Nordeste em
1964, ver Capitulo II.
135. Para uma apreciação do crescente envolvimento da Igreja na
questão agraria depois de 1964, e especialmente apos 1970, ver Mainwaring, The
Catholic Church and Politics in Brazil, pp.-84-89 e pp. 158-64. Para maiores
detalhes, ver Vanilda Paiva, ed., Igreja e questão agraria (São Paulo, Edições
Loyola, 1985). Um ataque tipico da direita foi desfechado por Armando Falcão,
ex-ministro da Justiga do governo Geisel, que denunciou o INCRA como um "ninho
de burocratas marxistas"! Acusou também a "minoria marxista da Igreja" de criar
uma Industrie de conflitos no campo. Folha de S. Paulo, 1 de junho de 1986. O PT
também apresentou as razoes que o levaram a defender uma reforma radical no
setor rural. Ver, por exemplo, Amilton Sinatora, et al., Politica agraria (Porto
Alegre, Mercado Aberto/Fundação Wilson Pinheiro, 1985).
136. Os dados de 1982-85 são do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra,
Assassinatos no campo: crime e impunidade, 1964-1985 (São Paulo, Movimento dos
Trabalhadores Rurais sem Terra, 1986), p. 213. Os dados nem sempre deixam claro
o papel dos assassinatos. Os dados de 1986 são de Isto é, 4 de junho de 1986,
p. 21.

A Nova Republica: perspectivas para a democracia 577
des senhores de terras estavam abertamente reivindicando o direito de se armar
em defesa de suas propriedades. Outros contrataram pistoleiros para se livrar de
manifestantes e invasores.

Logo no inicio do seu governo Sarney comprometeu-se com um ambicioso piano de
redistribuição de terras. Em maio de 1985 ele anunciou a 4.000 esperançosos
delegados ao quarto congresso nacional da CONTAG um piano de reforma agraria que
logo depois foi enviado ao Congresso. O projeto tomava como ponto de partida o
Estatuto da Terra de 1964 e tinha por objetivo assentar por volta do ano 2000 um
total de 7,1 milhões de famílias sem-terra em 480 milhões de hectares,137 dos
quais 85 por cento resultariam da desapropriação de latifúndios. A seleção das
terras seria feita pelo INCRA (Institute Nacional de Colonização e Reforma
Agraria), sendo prioritárias as áreas de conflito. As indenizações seriam em
papeis do governo resgatáveis em 20 anos, com juros de 6 por cento mais correção
monetária. O ministro da Reforma Agraria Nelson Ribeiro, cuja escolha fora
fortemente apoiada pela CNBB, apresentou então a primeira etapa do piano que
consistia na entrega de títulos de propriedade a 100.000 famílias em 1985 e
1986. A nova política justificava-se pelo fato de que o acesso mais fácil a
terra criaria as condições para a população rural tornar-se mais produtiva, mais
prospera e mais saudável. Esperava-se também que a reforma ajudasse a deter os
fluxos de migração para as grandes cidades vítimas de inchaço demografico.138

A implementação do piano envolveria muitas e difíceis decisões. O INCRA teria
a incumbência de selecionar as terras a serem desapropriadas, o que implicava em
medir a produtividade de
____
137. O Estatuto da Terra de 1964 estabeleceu a base legal para a reforma
agraria. Bastava aos governos subsequentes tornar conhecido seu próprio
piano de implementação. Isto simplificou muito o lado político da questão para
o governo Sarney.
138. Veja, 29 de maio de 1985, pp. 114-17; Veja, 19 de junho de 1985, pp. 20-26;
Latin America Weekly Report, 7 de junho de 1985; Latin America Regional Reports:
Brazil, 5 de julho de 1985. O noticiário jornalístico sobre os detalhes
quantitativos dos pianos governamentais de reforma agraria variavam muito.
Em parte isto pode ter sido devido a confusão entre metas a longo e a curto
prazo, ambas em termos de terra a ser desapropriada e de famílias a serem
assentadas. Sou grato a Steven E. Sanderson por ter-me dado acesso a seu valioso
trabalho não publicado (junho de 1986) "Brazilian Agrarian Reform Politics in
the New Republic".

578 Brasil: de Castelo a Tancredo
muitas áreas, já que a produtividade relativa seria o critério de escolha. Em
seguida vinha o calculo da indenização ao proprietário baseado no imposto pago e
na avaliação do seu verdadeiro valor pelo INCRA. Depois que a terra
desapropriada fosse distribuída aos novos donos, o governo teria que decidir
sobre fundos para atender a serviços vitais, como credito, transporte,
tecnologia e instalações para armazenagem. A disponibilidade desses serviços foi
fundamental e inesperadamente dispendiosa em projetos de reforma agraria
realizados por outros países. Finalmente, havia a questão de saber quanto o
governo Sarney destinaria ao programa.

Reforma agraria e assunto particularmente complexo num pais das dimensões do
Brasil, com suas variadas regiões e sub-regiões. Nos países socialistas, como a
União Soviética e Cuba, onde os planejadores do governo não sofrem contestagao
durante décadas, a produtividade agrícola e em geral decepcionante. O mesmo
pode-se dizer de certos países não socialistas, como o México e a Bolivia.
Embora produtividade e produção sejam independentes da redistribuição, nenhum
governo brasileiro pode permitir-se ignorar sua relação, especialmente tendo em
vista a crescente demanda do mercado interno por alimentos.139

A reforma agraria do governo Sarney tinha vários objetivos. O primeiro era
aumentar o numero de proprietários, o que presumivelmente ajudaria a aliviar as
tensões as vezes violentas na zona rural. Por outro lado, o aumento do numero de
pequenos agricultores introduziria um elemento de estabilidade política no
campo, acrescendo o fato de que a permanência do pequeno proprietário no
interior ajudaria a reduzir o êxodo para as grandes cidades extremamente
congestionadas. Por fim, quanto maior o contingente de beneficiados com a
reforma da terra, melhores os resultados em matéria de distribuição da renda. Em
suma, tratava-se de um esforço para promover relações capitalistas mais sadias e
justas na zona rural.140
_______
139. Para uma apreciação sobre evidencias de produtividade após as reformas
agrarias levadas a efeito nos países socialistas, ver Ian M. D. Little, Economic
Development: Theory, Policy, and International Relations (New York, Basic Books,
-1982), pp. 171-75.
140. Para uma sucinta apreciação dos fatores por trás das propostas de reforma
agraria do governo Sarney, ver Sanderson, "Brazilian Agrarian Reform
Politics", p. 9. Vários desses fatores podem ser atribuídos a
A Nova Reptiblica: perspectivas para a democracia

579
O projeto do governo Sarney provocou uma serie de violentas lutas no Congresso.
Conservadores, como Flavio Teles de Menezes, da Sociedade Ruralista Brasileira,
organizaram-se em defesa da propriedade privada. Segundo eles, radicais
perigosos (comunistas ou inocentes úteis) estavam por trás do projeto, que
também não contava com a aprovaçã dos militares da cadeia de comando. A
hierarquia da Igreja deu-lhe apoio, embora muitos dos seus membros mais radicais
o criticassem como extremamente cauteloso.

Os integrantes da Pastoral da Terra e os sem-terra estavam muito bem
informados e tinham conhecimento direto das áreas em conflito. Afirmavam eles
que a reforma agraria generalizada era uma necessidade moral. O projeto teve o
apoio também da CONTAG, organização constituída pelos sindicatos dos
trabalhadores rurais. Eram estes os sindicatos que estavam crescendo mais
rapidamente no Brasil, embora a pobreza de sua organização e a inexperiência de
seus lideres solapassem sua eficiência política.

Em resposta a tempestade de criticas provindas de todos os lados, em outubro
de 1985, o governo apresentou novo piano, muito diferente do original. Agora a
desapropriação seria principalmente de terras públicas, ficando de fora as
propriedades privadas não cultivadas, independentemente do seu tamanho. As
desapropriações deveriam ser feitas sobretudo no extreme norte do Brasil, e
quase metade dos beneficiários deveria pertencer ao Nordeste flagelado pela
miséria. Cerca de 150.000 famílias de camponeses receberiam terras em 1986, e 43
milhões de hectares seriam distribuídos a 1.400.000 famílias ate o fim de 1989.
Os defensores da reforma agraria radical, inclusive ativistas da Igreja e dos
sindicatos de trabalhadores rurais, denunciaram o plane como uma traição José
Gomes da Silva, diretor do INCRA, concordou e renunciou em sinal de protesto.141
___________
política agraria do governo Castelo Branco. O aumento da classe média
rural foi enfatizado em castelo Branco , Discursos: 1964, p. 53, e o aumento
da produtividade foi destacado em Castelo Branco, Entrevistas: 1964-65,
141. Brazil Watch III, N'° 12 concluía com uma nota Pessimista: "Grandes
proprietários continuam a exercer poder excessivo na política brasileira. Sem
uma base igualmente poderosa de apoio político no Executivo Legislativo, e na
ausencia de um consenso político popular de grande

580 Brasil: de Castelo a Tancredo
Enquanto isso, continuavam marcados por grande violência os conflitos de
terra, com invasões de propriedades promovidas por lavradores sem-terra, algumas
vezes encorajados pelo clero catolico.142 Sarney começou a impacientar-se com o
papel dos padres nas invasões, especialmente no vale amazônico, e o ministro da
Justiça Paulo Brossard, que outrora na qualidade de senador se notabilizara por
violentos ataques a repressão dos governos militares, agora voltava-se contra os
radicais da Igreja. Advertia que o clero engajado em atividades políticas, como
a organização de invasões de terras, estaria sujeito as mesmas leis que qualquer
outro cidade. Em resume, o governo Sarney estava afirmando a sua autoridade
secular contra as reivindica9oes morais dos radicais da Igreja. Estes apontavam
as frequentes mortes entre os seus membros como prova de que o poder do Estado
protegia os pistoleiros dos latifundiários. Durante semanas Brossard e o clero
trocaram iradas acusações. Em junho de 1986 o presidente, em um gesto típico do
seu estilo político, procurou eliminar o aspecto religioso da crise indo a Roma
para conversar com o Papa sobre a gravidade do envolvimento dos radicais da
Igreja brasileira em um problema de natureza tão instável. Era uma dramática
confirmação da importância da Igreja na política brasileira, pelo menos nas
questões agrarias.143 Mas esta influencia, conseguida quando a Igreja lutava
sozinha contra os governos repressivos, continuaria?
__________
amplitude, não e provável que uma reforma agraria abrangente aconteça no Brasil
em future próximo". Sanderson chega a conclusão semelhante: "Dado o atual clima
político e a qualidade das lideranças, não se pode identificar forcas políticas
de massa capazes de exigir efetivamente uma verdadeira reforma", Sanderson,
"Brazilian Agrarian Reform Politics", p. 37.

142. Para exemplos da ampla cobertura jornalistica do envolvimento da Igreja nos
conflitos de terra, ver "Agentes da CPT, os próximos a morrer", O Estado de S.
Paulo, 1 de junho de 1986; "Igreja e fazendeiros, a guerra santa no Maranhão",
Jornal do Brasil, 1 de junho de 1986; "Por trás da luta do posseiro, a Pastoral
da Terra", O Globo, 15 de junho de 1986; "A terra assassina", Afinal, 20 de maio
de 1986; e "A vez do padre Josimo", Veja, 21 de maio de 1986.
143. A viagem recebeu grande cobertura na imprensa dos Estados Unidos.
Ver, por exemplo, as reportagens no New York Times de 7 e 11 de julho de 1986.
A Nova Republica: perspectivas para a democracia

581
Em junho de 1986 o presidente Sarney assinou 37 decretos autorizando as
primeiras desapropriações, num total de 257.135 hectares em 12 estados. A maior
desapropriação singular foi da Fazenda Citusa de 43.820 hectares no Maranhão.
Ficou famosa esta propriedade por abrigar 150 trabalhadores que mataram a
foiçadas um pistoleiro suspeito de ter matado varies ativistas engajados na
organização da mão-de-obra rural. No inicio de junho Sarney reiterou sua
promessa de executar o resto do programa de acordo com a programagao.144 Havia
entretanto muitos descrentes que, inclusive, chamavam a atenção para o status do
presidente como proprietário de terras (embora modesto) no Maranhão, estado onde
e grande a pobreza, assim como as desigualdades no setor rural.

Por melhor que fosse o desempenho do presidente no tocante a reforma agraria,
o assunto continuaria a provocar acesos debates. Qualquer desapropriação e
reassentamento seria o bastante para esquentar os ânimos no campo. E se as
medidas fossem consideradas flagrantemente inadequadas pelos sem-terra e seus
organizadores, então o ativismo provavelmente cresceria. A escalada de mortes
demonstrara que a presença da policia - sob o controle dos grandes proprietários
ou mesmo agindo por conta própria - não conseguiria reduzir o nível dos
conflitos. A crise social rural tantas vezes prevista por observadores
brasileiros e estrangeiros parecia mais próxima do que nunca.

Mesmo que a aplicação da reforma agraria fosse tranquila, os perigos eram
"claros. A longo prazo, isto e, alem de 1986, o piano representa pesado encargo
para o Tesouro. Se a produção
_______
144. As desapropria9oes foram noticiadas em Jornal do Brasil, 24 de junho de
1986. Um repórter do citado jornal explicou que o ministro Dante de Oliveira, da
Reforma Agraria, estava perseguindo o "possível", em contraste com o seu
antecessor, Nelson Ribeiro, cujos pianos ambiciosos foram vetados pelo Planalto.
"O compromisso do governo agora e realizar assentamentos de emergencia (...) dos
quais possa extrair o máximo de vantagens políticas." Ibid. A promessa de Sarney
de cumprir a meta de 1986 de dar terra a 150.000 famílias foi feita em um manual
distribuído a todos os candidates da Aliança Democrática nas eleições de
novembro de 1986. Jornal do Brasil, 13 de junho de 1986. Para reportagens sobre
a suposta inépcia e hesitação do governo em executar seu programa, ver "O recuo
no campo", Veja, 28 de maio de 1986, e "Bagunça no campo", Veja,
9 de julho de 1986.

582 Brasil: de Castelo a Tancredo
caísse (como tantas vezes aconteceu com a implantação da reforma agraria em
outros países) e os preços subissem, então a reforma poderia perder rapidamente
sua popularidade entre os políticos da Nova República. Seria também possível,
naturalmente, que a distribuição de terras não utilizadas aos camponeses
aumentasse a produção a longo prazo. Muito iria depender dos serviços postos a
disposição dos novos proprietaries.145

Tratamento de Presos. A bem-sucedida campanha para por fim a tortura de presos
políticos gerou um movimento no sentido de que também acabasse a tortura de
suspeitos, detidos ou presos por delitos comuns.146 Vimos como a policia
brasileira se tornara famosa pelo uso da violência contra suspeitos e presos.147
Esta tradição de brutalidade (existente em muitos países) foi dramatizada quando
a policia e os militares desencadearam a perseguição a suspeitos de atos
políticos contra o governo após o golpe de 1964.

As leis criminais pre-1964 isentaram de encarceramento em prisões comuns um
grupo de brasileiros, de ministros de Estado a sacerdotes e a qualquer portador
de diploma de curso superior. Com efeito, nenhum membro da elite precisava temer
ser relegado
________
145. Para um exemplo de estimativa otimista feita ha dezoito anos sobre como a
redistribuição da terra poderia ter afetado a produção, ver William R. Cline,
"Prediction of a Land Reform's Effect on Agricultural Production: The
Brazilian Case" (Princeton, Woodrow Wilson School, Princeton University,
Discussion Paper N.° 9, maio de 1969).
______
146. Vimos anteriormente no Capitulo V sobre o governo Medici como os estudiosos
brasileiros documentaram a historia dos maus-tratos dispensados pela policia aos
suspeitos comuns. Em anos recentes a imprensa deu ampla cobertura as alegações
de tais torturas. A seguir, apenas uma amostra de muitas das reportagens sobre o
assunto: "O dossiê da tortura", Contato (Mato Grosso), 5 de março de 1986, que
resume noticias da imprensa sobre 80 casos na Grande Cuiabá em 1984-85; "A
escalada da violencia policial .no Brasil em 1974", O Estado de S. Paulo, 25 de
agosto de 1974, que relacionou 23 casos em varias partes do Brasil; "Cadeia
gaucha que era usada para tortura não acolhera mais menores", Jornal do Brasil,
24 de junho de 1986; e frequentes relates de casos individuais, como em Veja,
6 de fevereiro e 3 de abril de 1985, e Isto é, 12 de marco de 1986.
147. O presidente mexicano Miguel de la Madrid, por exemplo, anunciou no inicio
de 1986 um grande esforço para eliminar a tortura que se tornara rotina por
parte dos agentes do Ministério da Justica. William Stockton, "Mexico Trying
to Halt Police Torture", New York Times, 2 de fevereiro de 1987.

A Nova Republica: perspectivas para a democracia 585
a uma cela comum de prisão. Mas, quando a repressão se abateu sobre o pais, esse
status privilegiado subitamente desapareceu.148 Os suspeitos pertencentes a
elite passaram a sofrer agora os mesmos maus-tratos reservados para os suspeitos
comuns, que para muitos eram apenas o primeiro passo para o horror da tortura
sistemática. Para eles, sofrer maus-tratos era novidade, enquanto que para os
suspeitos de delitos comuns raramente fora.

A campanha para liberalizar o regime militar concentrou-se inicialmente na
restauração das liberdades civis, inclusive e sobretudo o habeas-corpus. Mas os
presos políticos em sua maioria sabiam que a liberalização política não
acabaria com os abusos praticados contra os suspeitos de crimes comuns. Como
esta preocupação poderia manter-se viva (principalmente na elite) depois que os
presos políticos respiraram aliviados por ter escapado ao gulag brasileiro?

Os lideres da campanha pela abolição da tortura contra presos comuns
pertenciam a Igreja, a Ordem dos Advogados e aos meios intelectuais, sendo que o
Cardeal Arns deu todo o apoio a Comissão Pastoral sobre os Direitos Humanos e os
Marginalizados.149 Mas não conseguiram muito apoio, porque o publico, inclusive
muitos dos que haviam lutado contra a repressão, estava menos interessado no
destino das vitimas comuns. Afinal, elas não tinham nome. Uma segunda razão
para a falta de apoio a campanha era a raiva do povo por causa do aumento da
criminalidade. Os roubos e assaltos cresceram muito no inicio dos anos 80, ou
pelo menos a imprensa e o publico assim pensavam. A ira do povo explodia em
cenas de linchamentos quando um suspeito em fuga era acuado pela multidão e
morto a pancadas ou pontapés. As vezes a policia intervinha, mas em geral se
limitava a assistir a chacina em que o povo dava
________
148. A qualidade diferencial da cidadania brasileira foi explorada em Roberto da
Matta, A casa e a rua (São Paulo, Brasiliense, 1985), pp. 55-80; e Carnavais,
malandros e heróis (Rio de Janeiro, Zahar, 1979), pp. 139-93. Sou grato ao
professor da Matta pelas informações sobre o emaranhado de leis concedendo
isenção da prisão comum.
149. Para um exemplo do enfoque desta comissão, ver Arquidiocese de São Paulo
(Comissão Arquidiocesana de Pastoral dos Direitos Humanos e Marginalizados de
São Paulo), Fraternidade vence a violência (São Paulo, 1983), que e um manual
para grupos de estudo.

584 Brasil: de Castelo a Tancredo
vazão a sua furia.150 Esta raiva não era evidentemente a atitude necessária
para apoiar uma campanha contra a violencia policial. Pelo contrario, o publico
reagiu pedindo medidas policiais mais severas contra os suspeitos.151

Não obstante, o presidente Sarney adotou varias medidas importantes, pelo
menos simbolicamente. Uma foi assinar a Convenção Interamericana para a
Prevenção e Punição da Tortura, parte de uma convenção maior contra a tortura e
castigos cruéis, desumanos e degradantes.152 Mas a ratificação dessas convenções
não poria fim aos maus-tratos e a pratica da tortura. Mesmo a Constituição em
vigor - elaborada pelo governo militar - exigia que "todas as autoridades
respeitassem a integridade física e moral de quem quer que fosse detido ou
preso" (Art. 153). E no entanto os símbolos e as leis podem ser poderosos na
política, especialmente quando apoiados por um consenso. Mas ate os mais
diligentes reformadores se davam conta de que estavam lutando contra fortissimas
atitudes sociais. Um exemplo expressivo foi o do secretario de Justiça
do governo peemedebista de São Paulo, José Carlos Dias, que tentou reformar a
policia estadual e o sistema penal
________
150. Esta revoltante pratica foi estudada em Maria Victoria Benevides,
"Linchamentos: violência e justica' popular". Para um interessante painel de
debates sobre violencia realizado nos anos 70, ver "Repórteres do crime",
Folhetim (Folha de S. Paulo), 11 de dezembro de 1977. Para um exemplo posterior,
ver "Violência mata mais de 600 por mês em São Paulo", Folha de S. Paulo, 5 de
junho de 1983. Estes exemplos poderiam ser multiplicados muitas vezes.
151. A raiva do povo reforçava as opiniões dos policiais mais cínicos. Um chefe
de policia de São Paulo disse a um pesquisador em 1981: "A forma como
trabalhamos (confissão por espancamento) e usada em todo o mundo e nao ha outra
forma. Já tentamos todas as alternativas mas não funcionaram". Maria Victoria
Benevides, Violência, povo e policia: violência urbana no noticiário da
imprensa (São Paulo, Brasiliense, 1983), p. 76. Outro chefe de policia
paulista com igual mentalidade disse aos repórteres em fins da década de 70:
"Ninguém gosta da policia em lugar nenhum do mundo, mas somos necessários
para garantir a sociedade. Somos semelhantes a lixeiros - ninguém gosta de
lixeiro mas precisa dos seus serviços. Os policiais são os lixeiros da
sociedade. E eu gosto do meu trabalho". E terminou assim: "Olhem,
se vocês vão publicar uma lista de torturadores, não deixem meu nome de fora,
pois eu poderia ser prejudicado". Fon, Tortura, p. 70.

152. Folha de S. Paulo, 3 e 14 de junho de 1986.

A Nova Republica: perspectivas para a democracia 585
cumprindo os regulamentos contra violências físicas. Logo encontrou forte
resistência dos administradores de presídios e dos juizes por haver tentado
punir guardas culpados de torturar suspeitos e presos. Por fim, Dias, um dos
muitos advogados criminais que defenderam presos políticos no auge da repressão,
perdeu e renunciou, justamente no estado onde foi levada a efeito talvez a maior
campanha contra a violência policial.153

Pós-Escrito: realidades econômicas e desdobramentos políticos
Durante os onze meses que se seguiram a conclusão deste capitulo em julho de
1986 ocorreram dois eventos de alta significação: as eleições de novembro de
1986 e a suspensão em fevereiro de 1987 do pagamento de juros sobre US$68
bilhões da divida externa. Os dois estavam estreitamente ligados.

O PMDB obteve uma vitoria estrondosa nas eleições de novembro fazendo 22 dos
23 governadores de estado e conquistando
__________
153. A luta que o secretario de Justiça de São Paulo travou com o sistema penal
recebeu extensa cobertura da imprensa, como em O Estado de S. Paulo, 22 e 25 de
junho de 1986, e Folha de S. Paulo, 23 e 24 de junho de 1986. Para o relate da
tentativa de um anterior secretario de justiça para eliminar a tortura de
suspeitos comuns em São Paulo, ver a entrevista com Octavio Gonzaga Junior, em
Veja, 29 de agosto de 1979, pp. 3-6. O promotor estadual Helio Bicudo, que
corajosamente processou o notório detetive-torturador Sergio Fleury, confessou
que "em São Paulo o governo de oposição [de Franco Montoro] não podia reduzir
a violência, que aumentava, e que só em 1984 mais de quatrocentas pessoas foram
mortas por unidades policiais", Helio Bicudo, "Violência, criminalidade e o
nosso sistema de justiça criminal", Revista OAB-R], N.° 22 (julho de 1985), p.
34. O estado do Rio de Janeiro, em compensação, experimentou o declínio na
incidência da violência policial em 1983-84, gramas aos esforços do governo
Brizola. Country Reports on Human Rights Practices for 1985: Report Submitted to
the Committee on Foreign Affairs, House of Representatives and the Committee on
Foreign Relations US Senate (Washington, U.S. Government Printing Office, 1986),
p. 440. A constante militarização da policia desde 1968 também tornou mais
difícil qualquer reforma, porque o Exercito era necessariamente envolvido em
qualquer mudança de política. Esta questão e destacada em "O inimigo e o
povo ou a policia?", Lua Nova, H, N.° 3 (outubro-dezembro de 1985), pp. 38-45.

586 Brasil: de Castelo a Tancredo
bastantes cadeiras no Congresso para ter maioria absoluta em ambas as casas. O
partido do presidente Sarney, o PFL, conseguiu muito pouco, deixando a coalizão
governamental ainda mais desequilibrada. A abalada legitimidade política do
presidente foi acentuada pelo fato de que o novo Congresso e os governadores
foram eleitos diretamente, enquanto ele fora escolhido por um colégio eleitoral
para um mandate cujo tamanho ainda era incerto.

A vitoria do PMDB podia ser atribuída em parte a sua imagem ainda viva de
partido que lutava contra o governo militar e ao fato de ter deitado raízes ao
nível local, enquanto o PDS se tornava cada vez mais fraco. Mas a vitoria
refletia também a aprovação pelo publico do Piano Cruzado, que ele associava ao
ministro da Fazenda Funaro, ao PMDB e ao presidente da Republica, mas nao ao
presidente do partido.

Muito poucos eleitores sabiam dos enormes problemas em que se debatia o Piano
Cruzado. Com os preços congelados e os salários elevados, o consumidor
brasileiro se entregou a uma verdadeira orgia de compras depois de fevereiro de
1986 que não cedeu nem mesmo depois das medidas de "correção de rumo" de julho.
Alguns economistas aconselharam o presidente a tomar medidas mais enérgicas, uma
das quais seria a desvalorização do cruzado. Mas o congelamento da taxa de
cambio era o símbolo da nova economia para Sarney, que estava se comprazendo com
a enorme popularidade pos-Plano Cruzado. Os lideres do PMDB, igualmente felizes,
procuravam tirar proveito político do boom.

Como vimos antes, a Nova Republica herdara uma balança de pagamentos
altamente favoráveis. Os superavits comerciais de 1984 e 1985 alcançaram os
níveis sem precedentes de US$13 bilhões e US$12,4 bilhões, respectivamente, que
cobriam os juros da divida. Em setembro, contudo, o saldo comercial começou a
cair em parte por causa do aquecimento da economia. A demanda interna em
ascensão determinou o desvio para o mercado domestico de alguns produtos
destinados a venda para compradores externos. As coisas se complicaram porque
os exportadores começaram a sentir a crise da escassez (pecas para veículos, por
exemplo). Ao mesmo tempo algumas importações subiram de volume, especialmente
materias-primas para a industria, e as reservas cambiais começaram a cair.
Finalmente, o cruzado cada vez mais valorizado estava prejudicando as
exportações. Subitamente tornou-se claro que, por mais

A Nova República: perspectivas para a democracia 587
que Sarney e Funaro quisessem o desenvolvimento rápido, as pressões da balança
de pagamentos iriam reduzir seu ritmo.

O desejo de ganhar as eleições de novembro levou o governo a adiar muitas das
medidas corretivas urgentemente necessárias, o que se refletiu nas reservas
acumuladas que caíram de US$8 bilhões para US$5 bilhões. Menos de uma semana
após as eleições o governo anunciou um pacote de medidas rigorosas, incluindo
aumento de impostos sobre cigarros e bebidas alcoólicas, e tarifas mais altas de
eletricidade, telefone e postais. O objetivo era cortar US$12 bilhões do poder
aquisitivo do consumidor. A reação do publico foi de irritação e a popularidade
de Sarney desabou nas urnas. O pacote econômico sem duvida reduziria o impeto da
economia e deteria o desequilíbrio da balança de pagamentos. Mas era bastante?
Na crise de 1982 o Brasil, como muitas nações endividadas da América Latina,
aceitou a intervenção do FMI como o preço para obter os novos empréstimos
necessários para atender ao pagamento dos antigos. Figueiredo e Delfim foram
violentamente criticados por terem concordado com a tutela do Fundo.

Funaro estava determinado a evitar esse caminho. Conseguiu, mas a um custo a
ser ainda determinado. Em fevereiro de 1987 o presidente Sarney anunciou a
suspensão pelo Brasil do pagamento de juros sobre US$68 bilhoes de sua divida
externa a divida de médio e longo prazo para com bancos comerciais dos Estados
Unidos, da Europa Ocidental e do Japão. Continuaria a ser feito o pagamento dos
juros sobre os empréstimos a curto prazo contraídos com bancos privados,
governos e agendas internacionais (Banco Internacional, Banco Interamericano de
Desenvolvimento etc.). Embora Sarney tivesse dado um tom emocional ao seu
anuncio da moratória brasileira, tentando mobilizar o apoio da população, o
Planalto procurou disfarçar a gravidade da situação. Comentários posteriores
sugeriram que a moratória seria por 90 dias mas o governo não falou em prazo.
Funaro então mostrou seu jogo anunciando que o Brasil não negociaria mais com
os bancos comerciais credores, só o fazendo com os governos. Imediatamente
visitou os Estados Unidos e a Europa Ocidental, onde recebeu respostas polidas
mas nenhum compromisso dos principais governos (exceto o britânico, que tornou
claro o seu desagrado).

588 Brasil: de Castelo a Tancredo

A reação do público brasileiro a moratória foi discreta. Não houve explosão
de fervor nacionalista, como aconteceu em 1959, quando o presidente Juscelino
rompeu as negociações com o FMI. O povo, preocupado com a volta da inflação
(16,8 por cento em Janeiro de 1987), ouvira tantas advertências sobre os
encargos da dívida que o anúncio melodramático de Sarney na verdade funcionou
como um anticlímax.

Funaro não recebeu apoio total dentro do governo para as suas medidas. Eram
muitas as criticas, sobretudo do ministro do Planejamento Sayad, que defendeu
medidas mais drásticas em julho de 1986 e continuou a pedir novas providencias a
medida que foram surgindo problemas na balança de pagamentos. Em marco de 1987,
logo após a suspensão do pagamento da divida, Sayad foi forcado a sair do
governo, o que provocou mutuas recriminações entre os defensores do ministro que
renunciava e os do ministro Funaro. A saída de Sayad e a perda de prestigio do
Ministério do Planejamento deixou o governo perigosamente carente de idéias
políticas. Um mês após a moratória Sarney ainda não tinha um piano definido,
quer para dirigir a economia quer para administrar a crise da divida. As taxas
de juros, em virtude mesmo do clima de indefinição, chegaram a casa dos 600 por
cento, continuando elevadas as expectativas inflacionárias. No fim de março
começaram a circular boatos sobre a iminente renuncia de Funaro pelo fato de
Sarney haver pedido a alguns influentes empresários sugestões para reformar a
política econômica.

Em marco os bancos credores começaram a fazer reserves para compensate do que
ja consideravam prejuízos pelos atrasos do Brasil. Especulava-se então que, se
os titulares de créditos a curto prazo resolvessem exigir o pagamento imediato,
o comercio exterior brasileiro seria altamente prejudicado. O fato e que o
próprio Banco Mundial, uma das mais constantes fontes de credito para o Brasil,
decidiu adiar o desembolso de US$2 bilhões ate que visse provas de uma política
coerente. Quanto mais demorasse a suspensão do pagamento da divida, maior o
perigo para a capacidade brasileira de tomar dinheiro emprestado.

A administração da divida externa não era o único problema do Brasil em suas
relações com o setor externo. Os investimentos estrangeiros diretos também
estavam causando serias preocupações. Os revolucionários de 1964 consideraram
essencial o aumento

A Nova Republica: perspective(r) para a democracia 589
dos investimentos estrangeiros, tanto para ajudar a equilibrar a balança de
pagamentos como para introdução no pais de novas tecnologias. Em 1986, contudo,
os investimentos estrangeiros líquidos eram negativos, já que a remessa de
lucres e o resgate da divida excediam em US$1,4 bilhão os investimentos novos
entrados no Brasil.

A crise da divida e o fluxo negativo de investimentos externos diretos
puseram em questão todo o papel do setor externo na economia brasileira. Isto
forneceu munição a forte bancada nacionalista na Assembléia Constituinte, que
dentro em pouco estaria votando sobre medidas constitucionais que afetariam os
investimentos externos.

Quando o governo Sarney se esforçava em junho para formular novo piano
econômico, varies outros problemas persistiam, inclusive dois de política social
analisados anteriormente neste capitulo. A reforma da lei trabalhista de cunho
corporativista que o Ministério do Trabalho começara a elaborar foi suspensa,
tais os esforços que Pazzianotto precisou fazer para impedir a eclosão de greves
ou ajudar em sua negociação. Uma das mais serias foi a dos portuários, seguida
por ameaça de movimento semelhante por parte dos petroleiros no inicio de março
de 1987. A paralisação dos portos causaria consideráveis prejuízos as
exportações brasileiras. A ameaça dos petroleiros não seria menos grave porque
a maior parte dos meios de transporte do pais e movida por derivados de
petróleo. Para frustrar a greve o Exército interveio ocupando as refinarias. Em
meio a tais pressões, nem o Ministério do Trabalho nem os sindicatos ou os
políticos viam vantagem imediata em promover a reforma da estrutura das
relações trabalhistas que todos tinham aprendido a manipular.

A intervenção dos militares nas greves fez reviver a questão relativa ao
papel das forças armadas na Nova Republica. O ministro Leonidas Pires Gonçalves
afastou qualquer receio com o forte apoio que continuou a dar ao governo Sarney,
que, por sua vez, procurava cultivar boas relac5es com os comandantes militares.
O decidido apoio das forcas armadas teria sido essencial a qualquer presidente
naquela fase, no entanto era muito mais importante para Sarney, que não contava
com o apoio de um partido ou de um eleitorado poderoso.

Os progressos na área da reforma agraria também não foram adiante. A
violência no campo diminuiu, ou pelo menos saiu das

590 Brasil: de Castelo a Tancredo
primeiras paginas. Ocorre, por outro lado, que o equivalente a bilhões de
d61ares necessários para a execução do programa de distribuição de terras
anunciado em 1986 seria muito difícil de conseguir, especialmente em vista da
constante pressão dos credores estrangeiros para que o pais reduzisse seus
gastos públicos.

A atenção política no inicio de 1987 ficou voltada para a Assembléia
Constituinte (era também o novo Congresso) eleita em novembro do ano anterior. A
necessidade de elaborar a nova Constituição desviou as lideranças partidárias
dos trabalhos da legislação ordinária. Ficava patente assim que a transição
brasileira para o regime democrático estava incompleta. Na verdade, haviam
decorrido quatorze anos desde que o recem-empossado presidente Geisel lançara o
processo de liberalização. Este extenso período de tempo podia ser visto como
uma prova da capacidade da elite política brasileira de manobrar entre os
obstáculos rumo a democracia eleitoral e ao império da lei. Mas demonstrava
também a capacidade sem rival da mesma elite para evitar as questões
fundamentais relativas a justiça sócio-economica.

Quando a Nova Republica entrou em seu terceiro ano, não havia nem
correspondido as esperanças dos seus entusiastas nem confirmado os receios dos
seus críticos. Não era uma democracia em pleno funcionamento, nem uma
plataforma de lançamento para os "subversivos". Era uma nova transição. A nova
Constituição apontaria os rumos que o pais deveria seguir, e a este respeito a
realidade política era mais importante do que as idéias jurídicas. Enquanto
isso, as atenções do governo Sarney estavam voltadas para a economia,
especialmente a balança de pagamentos.

O fato e que a Nova Republica foi "presenteada" com a conta acumulada durante
a segunda década de governo militar. O Brasil manteve crescimento acelerado (ate
1981) somente porque contraiu uma divida externa verdadeiramente atordoante. Em
1982 a contratação aparentemente interminável de novos empréstimos para pagar
juros de empréstimos anteriores acabou. A recessão resultante suprimiu o status
de milagre com o que o regime militar promovia o seu desempenho econômico.
A conta a ser paga era tão astronômica que faria tremer qualquer banqueiro
prudente. Somente o pagamento dos juros sobre sua divida em 1985 levou o Brasil
a exportar capital na proporção de 5 por cento do PIB. Alguns economistas são
de opinião que

A Nova Republica: perspectivas para a democracia 591
nenhum pais em desenvolvimento pode continuar exportando capital por muito tempo
a taxas tão elevadas. Essa "ajuda externa" as economias industriais adiantadas
pode causar fortes reações no piano interno.

Ha duas décadas terminei livro semelhante sobre a política brasileira notando
que o "crescente endividamento" do pais fora um "compromisso político para
sucessivos governos". De 1951 a 1964, eu dizia, o Brasil "entrou em uma profunda
crise de credito". E concluía que o pais fora "incapaz de descobrir um novo
método de financiar o seu desenvolvimento porque assumira um nível de
endividamento que esgotara toda a tolerância dos seus credores externos".

Durante uma década após 1964 os governos militares pareciam ter resolvido a
crise de credito do Brasil. O governo Castelo Branco renegociou os pagamentos da
divida que vinha aumentando implacavelmente desde a metade dos anos 50. Os
governos Costa e Silva se beneficiaram da bem-sucedida campanha em favor das
exportações e com o retorno dos investimentos estrangeiros diretos. O cheque do
petróleo de 1973-74 atingiu duramente o Brasil, mas o aumento substancial dos
ingressos de capital, principalmente empréstimos, pagou a conta do petróleo e
permitiu que a nação mantivesse altos índices de crescimento. Mesmo o cheque do
petróleo de 1979 não causou danos imediatos ao Brasil. Mas a suspensão dos
empréstimos em 1982 foi altamente prejudicial, pois mergulhou o pais em uma
crise de credito da qual ainda esta por emergir.

Por um aspecto, contudo, o quadro era diferente de 1964. No inicio da década
de 60 o café ainda era a principal exportação brasileira. Em 1982 a primazia era
dos manufaturados, cujos pregos e mercados eram mais confiáveis. O rápido
crescimento das exportações ajudou a tirar o Brasil da recessão de 1981-83 mas
os resultantes superávits comerciais de 1984 e 1985 levaram os economistas de
Sarney a pensar equivocadamente que a crise de credito do pais não era mais um
problema imediato. Eles só perderam essa ilusão em fins de 1986 quando as
reservas cambiais baixaram tanto que os auxiliares mais zelosos do governo
falsificaram os dados reais do intercâmbio comercial. Quando Sarney suspendeu
unilateralmente o pagamento da divida em fevereiro de 1987, adotou uma medida
que nem mesmo o esquerdista Goulart teria ousado tomar.

592 Brasil: de Castelo a Tancredo
Diante desse quadro quais são as perspectivas para a continuação do
desenvolvimento econômico do Brasil? Tentando responder a esta pergunta em 1967,
eu dizia que mobilizar recursos requer três medidas: (1) avaliação técnica
correta da situação; (2) seleção de uma estratégia de ação; (3) construção de
uma confiável base política para a estratégia adotada. Apliquemos estas tres
medidas ao Brasil de meados de 1987.

Quanto a avaliação técnica, haverá poucas nac5es do Terceiro Mundo cujas
alternativas de desenvolvimento econômico tenham sido mais bem estudadas que o
Brasil. Os estudos preparados pelo Ministério do Planejamento e por outros
importantes Ministérios e agendas governamentais são complementados por
minuciosas avaliações de agendas multilaterais como o Banco Mundial e o Banco
Interamericano de Desenvolvimento. No caso do Nordeste extremamente deprimido,
por exemplo, qualquer governo pode simplesmente consultar os detalhados estudos
do Banco Mundial sobre como atender melhor as necessidades humanas básicas
através da ação do poder publico. Alem disso, o Brasil atual (em contraste com o
de 1964) possui as instituições e o pessoal qualificado e experiente para
perseguir o desenvolvimento econômico e atingir os seus beneficiários. Para
tomar outro exemplo, o sofisticado sistema financeiro tem muito mais
sensibilidade do que a estrutura rudimentar (que não contava sequer
com um banco central) que os militares herdaram em 1964.

A segunda medida envolve a escolha de uma estratégia de desenvolvimento. Os
governos militares deram aos seus tecnocratas virtual carta branca. Sua
estratégia de desenvolvimento era neoliberal, com ênfase na industrialização,
que ja vinha sendo praticada, mas com maior promoção das exportações. Os maciços
investimentos públicos foram dirigidos para a infra-estrutura e a indexação foi
aplicada a toda a economia para neutralizar os efeitos da inflação. Esta
estratégia objetivava também dar forte estimulo aos investimentos estrangeiros
que se dirigiram principalmente ao setor industrial, intensivo de capital. Um
dos resultados desta estratégia foi o rápido crescimento industrial,
especialmente no setor de bens de consume duráveis. Outro resultado foi o
aumento da desigualdade de renda em relação ao terço mais pobre da população.

O MDB e o PMDB, como vimos, atacaram duramente essa estratégia como míope,
discriminatória, não democrática e injusta.

A Nova Republica: perspectivas para a democracia 593
Mas, quando a oposição chegou ao poder, sua própria estratégia não ficou muito
clara. Tancredo formulara diretrizes ecléticas mas sua morte o impediu que as
definisse na pratica. Apesar de conferir um timbre nacionalista ao tratamento da
divida externa, ele escolhera um ministro da Fazenda neoliberal, que não
conseguiu permanecer no cargo ao longo de 1985. Seu sucessor lançou o dramático
Piano Cruzado, medida nitidamente populista, que aumentou salários e congelou
preços. O insucesso do Piano Cruzado fez Sarney voltar a ortodoxia substituindo
Funaro por Luiz Carlos Bresser Pereira. Mas nenhum dos três ministros da Fazenda
da Nova Republica conseguiu estabelecer estratégia coerente para o
desenvolvimento a médio e longo prazo.

Isto, no entanto, praticamente não causou surpresa. Tancredo e Sarney
ganharam a eleição de 1985 com uma coalizão cuja heterogeneidade ficou obvia
quando o presidente saiu não do PMDB - o verdadeiro partido da oposição - mas
do PDS (via PFL) que jamais teria vencido uma eleição presidencial direta em
1985.

O governo Sarney tem sofrido as pressões de neoliberais e de populistas ao
tentar formular uma estratégia de desenvolvimento. Dadas as divergências entre o
PFL e o PMDB, qualquer solução torna-se difícil. E a dificuldade complica-se com
as profundas divisões que varrem o próprio PMDB. Durante a primeira metade de
1987 o partido repetidamente não conseguiu chegar a acordo sobre a questão tao
importante como a extensão do mandato do presidente Sarney (após a promulgação
da nova Constituição presumivelmente no fim de 1987), para não falar de
quest5es políticas básicas como as relações de trabalho, a reforma agraria e os
investimentos estrangeiros.

Para a adoção da estratégia de desenvolvimento sobraria a terceira medida:
construção de uma base política para a sua execução. A solução esta no PMDB, mas
suas divergências sobre estratégia refletem as divisões entre os seus lideres e
o seu eleitorado. Se as alas conflitantes do PMDB se separassem para formar
novos partidos, como já foi varias vezes previsto, o problema básico
permaneceria: como articular uma forca política centrista capaz de governar
eficientemente.

Diversamente de 1964, o Brasil não tem muita esperança de receber ingressos
líquidos de capital estrangeiro. Pelo contrario, deve lutar muito para reduzir
as saídas. Para crescer com rapidez e também atender ao serviço da divida
externa, o pais terá que

594
Brasil: de Castelo a Tancredo
mobilizar a poupança interna em escala sem precedentes. Como serao alocados os
ônus da redução do consume?

Ha uma forca política no centre e no centro-esquerda (em que se situa a
grande maioria do eleitorado) pronta e capaz de empreender a mobilização que tal
política requer? Esta mobilização pode ser conseguida em uma democracia?

Somente de 1946 a 1964 o Brasil teve experiência de democracia eleitoral de
massa. Este regime sucumbiu a um golpe possibilitado por uma crise econômica,
por profunda polarização política e grave deficiência de liderança política.
Vinte e três anos depois e possível institucionalizar uma nova e estável
democracia de massa? Poderão seus lideres aplicar políticas que promovam o
rápido crescimento econômico e também elevem o padrão de vida dos mais pobres?
Encontrarão eles um meio de conviver com os credores e investidores
estrangeiros?

O Brasil de 1987 esta muito distante do "estado de segurança nacional" que os
militares se esfor9aram por implantar. Os partidos mais antigos da esquerda - o
PCB e o PC do B - são agora legais, juntamente com o PT, e representam uma
forca maior e potencialmente muito mais poderosa. Os argumentos dos
nacionalistas radicais, que os militares tentaram extirpar, novamente predominam
na política universitária e em parte da imprensa. Manifestações estudantis e
greves de trabalhadores - alvos principais da repressão militar depois de 1964 -
são novamente lugares comuns.

A Nova Republica e então uma volta ao período pre-1964? E claro que não . Os
brasileiros de 1987 sobreviveram a uma traumática travessia. As cicatrizes
físicas e mentais inflingidas pela repressão não desaparecerão tão cedo, e
aqueles não pertencentes a elite ainda enfrentam a ameaça dos maus-tratos
policiais. Essa experiência imprimiu a vida pública uma sobriedade que esteve
muitas vezes ausente da atividade política no inicio da década de 60.

Há também uma diferença de atitudes em relação a democracia eleitoral. Muitos
a esquerda, que antes de 1964 desprezavam a "democracia burguesa", agora a
elogiam como precondição indispensável para a derrota do autoritarismo. Os
chefes militares participam deste ponto de vista, apesar das criticas dos
dissidentes, cujo numero futuramente dependera da estabilidade política da Nova
Republica. Virtualmente todos aqueles que em 1964 consideravam a democracia
pouco mais do que um obstáculo a conquista

595
de metas mais altas hoje defendem a necessidade de se consolidar a nova ordem
democrática.

O Brasil foi a primeira democracia latino-americana a sofrer um golpe militar
na década de 60 e a ultima a se livrar da camisa-de-força do autoritarismo. Com
um eleitorado maior do que o de qualquer nação da Europa Ocidental e uma divida
externa superior a de qualquer pais do Terceiro Mundo, são grandes os riscos
que corre em sua nova experiência com a democracia.


Índice Remissivo

Abramo, Claudio, 341
Abreu, Hugo, 387-8
Abreu, João Leitão de, 214, 216, 226,
298 AERP (Assessoria Especial de Relações Publicas), 148, 221, 223, 267, 317
Agriculture, 27, 187-8, 246, 276, 291, 294, 353, 421, 438-9, 448, 451, 461,
573-5, 579
Alcool, 350-2, 438-9, 543-4
Aleixo, Pedro, 106, 112; Nova Constituição, 170, 192; Crise da
Sucessão, 194-5, 447, 473; Vice- Presidente, 140, 166
Alkmin, Jose Maria, 52, 112, 140
Almeida, Candido Mendes de, 323
Almeida, Helio de, 95
Almeida, Reinaldo Mello de, 328
ALN (Ação Libertadora Nacional),175-6, 204, 207,241, 342, 370
Alves, Aluísio, 497
A1ves, Hermano, 164-5, 167
Alves, Marcio Moreira: jornalista, 56-7, 65; Cassado, 162-5, 167, 190,
202, 224-5, 333, 388; Volta, 424
Alemanha Ocidental, 379-82, 437
Amazônia, 270-2, 287-95, 360, 433, 524-6, 576, 580
Anistia Internacional, 191, 250, 304,383
Andrade, Auro Moura, 46
Andrade, Doutel de, 113
Andrade, Joaquim dos Santos, 401
Andreazza, Mario David, 139, 213, 291, 410, 474-5, 481
Angel, Zuzu, 241 n. 58
Aparecido, Jose, 485-97
Archer, Renato, 497
ARENA (Aliança Renovadora Nacional): Declínio, 508; Descompressão, 322; Eleição
de 1966, 114, 135; Eleição de 1968, 201-2, 224-6; Elei9ao de 1970, 229-33, 295-
6; Eleições de 1972-74, 297-303, 335- 9; Eleições de 1976-78, 369, 372-3,
389-90, 395, 442, 476; Frente Ampla, 170; Começo, 105; Sistema Unipartidário,
321; Convenção Presidencial, 112; Sublegendas, 105; Não confiabilidade, 156,
162-5, 224-5, 343, 371, 473; Fraqueza, 190, 255, 427
Arida, Persio, 538
Arns, Dom Paulo Evaristo, 271, 326, 331, 346, 357-60, 415, 423, 437, 467,
514 n. 29, 583

598 Índice Remissivo
Arraes, Miguel, Governador, 42, 56, 424
Assistencia a Saiide, 32, 126, 245, 278, 286, 298, 361, 421, 476, 553,
564, 575
Atos Institucionais, 119, 148, 165, 423; n.° 1, 48, 59, 71, 80, 89, 92,
99, 102, 363; n.° 2, 99-103, 117, 135, 171, 190, 219, 261, 316; n.° 3, 107; n.°
5, 166, 170, 191-4, 198, 208, 219, 224, 227, 266, 301, 322, 327,
333, 335, 339, 344, 366-374, 395-6, 407, 466, 524; n.° 8, 170; n.° 12,
196; n.° 13,; 206; n.° 14, 106; n.°16, 201; V 17, 203
Atos Suplementares, 105, 113, 166

Bacha, Edmar, 541, 402 n. 141
Balança de Pagamentos, 34-5, 69-70, 824, 117, 122-4, 142-5, 184, 189,
279-81, 304, 352-4, 403-7, 420-2, 447-52, 487-9, 529-30, 534, 541, 545,
586-8
Banco Central do Brasil, 71, 452, 534, 538
Banco do Brasil, 71, 410, 482, 533
Banco Mundial, 38, 83-5, 189, 284, 294, 399-400, 474, 546, 587
Barata, Julio de Carvalho, 213
Barbosa, Mario Gibson, 213
Barcellos, Walter Peracchi, 113
Barros, Adhemar de: Deposto, 143; Governador de São Paulo, 40, 44;
Roubado, 178
Barros, Reynaldo de, 456
Bastos, General Alves, 104
Batista, Ernesto de Melo, 53
Baumgarten, Alexander von, 519, 524
Belo Horizonte, 108, 372, 375, 417, 500
Beltrão, Helio, 139, 148, 478
Berle, Adolf A., 66
Bethlem, General Fernando Belfort, 386-9
Bevilacqua, General Pery, 167
Bezerra, Gregório, 57, 204
BNDE (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico), 54, 534
BNH (Banco Nacional de Habitação) 74, 184, 322, 502
Boff, Leonardo, 359
Boilesen, Henning Albert, 254
Borges, Mauro, 58, 92
Braga, Nei, 106, 111, 318
Braga, Roberto Saturnine, 507
Branco, Carlos Castello, 163, 166, 343
Branco, Humberto de Alencar Castelo: Emenda Constitucional, 91; Coordenador dos
conspiradores de 1964, 22, 43; Morte, 149; Política Econômica, ver Roberto
Campos; Ideologia, 101-2, 106-8, 129-30, 135-6, 142, 218-9, 311, 320, 336-7,
343, 376; Mantendo o apoio militar, 102-3, 110-3; Nova Constituição, 118-9;
Presidente, 50-1, 53-5, 58, 67, 72, 85, 91-9, 171, 189, 194, 214, 290, 316, 521,
568, 574; Pressão sobre o Congresso, 151; Reformas, 154, 208, 280; Substituicao,
296; Política Salarial, 77, 82, 124, 132, 141, 558
Brasil Nunca Mais, 516-7
Brasilia, 153, 156, 162, 165, 190, 324,376, 470, 500, 503
Brizola, Leonel: Critico do Piano Cruzado, 544; Deputado Federal, 21, 60, 508;
Governador, 30, 42; No exílio, 107, 149; Ligado as guerrilhas, 175; Endossos do
PDT, 509; Volta, 397, 424 n. 26, 424-9, 453-7, 467-70, 497, 511
Brossard, Paulo, 394, 580
Bucher, Embaixador Giovanni Enrico, 236-41
Bulhoes, Octavio Gouveia, 53-4, 69- 77, 80, 84-5, 94, 110, 111, 117, 122-
32, 144-6, 185
Burnier, Brigadeiro João Paulo Moreira, 265
Burnier, Padre Joao Bosco Penido, 360

Índice Remissivo 599
Burns, Arthur, 307
Buzaid, Alfredo, 213, 219, 297, 299

Café Filho, João, 46
Cadernetas de Poupança, 129
Café: Dependência do, 24, 34, 184,
438, 461; Política de Compras, 98, 116
Cals, Cesar, 479
Camara, Dom Helder, 109, 159, 180, 271, 305, 358-62
Campos, Francisco, 48, 363
Campos, Milton, 195, 311, 364; Elei9§o de 1960, 28; Ministro da Justiça, 53, 90
Campos, Roberto de Oliveira: Ministro, 54, 69-77, 80-5, 94, 97, 110-1,
117-32, 138, 141, 143-46, 185, 187, 217, 285-6, 420, 541, 561
Campos, Wilson, 343
Central, Washington Rocha, 329
Capanema, Gustavo, 46, 99
Cardim, Coronel Jefferson, 107
Camponeses, 33, 42-3, 57, 290, 354, 375-6, 579
Cardoso, Adauto Lucio, 103, 113, 195, 364
Cardoso, Fernando Henrique, 168, 507, 510
Carneiro, Gilmar, 569
Carneiro, Levy, 118
Carneiro, Nelson, 374
Carpeaux, Otto Maria, 65
Carter, Jimmy, 382-4
Castelistas, 51-3, 140-1, 198-9, 409, 512;
Cura para o Brasil, 101-2, 111-2, 117-8, 121, 163; Concessoes temidas, 114-5,
118-9; Salvando Castelo, 110, 121-2; No governo Geisel, 299, 311, 315-22, 327,
329,349-50, 388, 416
Castro Filho, João Ribeiro de, 331
Cavalcanti, José Costa, 139, 213, 478
Cavalcanti, Temistocles, 118
CCC (Comando de Caça aos Comunistas), 160, 177, 257
CENIMAR (Centro de Informações da Marinha), 57, 240, 242, 256-7,
515
Censura, 207-8, 215-6, 233, 245-6, 261, 264-74, 301-3, 324-5, 330, 34T-3, 355,
364, 367-8, 370, 374-5, 390-1, 407, 412-3, 424, 499, 506, 512, 523-4
CGT (Central Geral dos Trabalhadores), 20, 43, 78, 397, 565, 570
Chandler, Capitao Charles, 177-8
Chaves, Aureliano, 389, 395, 447,466, 472-5, 479, 480-4, 497, 509, 511
Christopher, Warren, 382
CIP (Conselho Intel-ministerial de Pregos), 145
CLT (Consolida9ao das Leis do Trabalho), 77, 79
Coelho Neto, General, 466
Collares, Alceu, 507
Comando Supremo Revolucionário, 47-8
Comissão Econômica para a América Latina, 124
Comissão Geral de Investigações, 169
CONCLAT (Coordenação Nacional da Classe Trabalhadora), 557, 565
Classe media, 174; Temores, 63-4, 153, 309; Oposição a Repressão,
40, 156, 248, 251-3, 259,446; Apoio a Geisel, 383; Apoio a Classe Trabalhadora,
417, 440-1; Apoio a Medici, 282; Sob Sarney, 543-5
Congresso: o affair Alves, 190; Como Parlamenta, 31; Rompimento com os Estados
Unidos, 380; Emendas Constitucionais, 48, 90, 119, 370, 469-72; Controlado, 101-
104, 113, 120, 148, 150-2, 166-7, 209-10, 215, 226, 253, 331, 340, 407; Controle
de Empresas Estrangeiras, 37, 82; Corrupção, 505; Eleição de 1964, 49-51, 79-
80;' Eleição de 1968, 201; Elei9ao de 1970, 228-33, 295; Eleições de 1972-74,
385, 395, 453; Eleição de 1982, 465; Intervenção em Goiás, 92; Leis, 73,
81, 94, 99, 104, 145, 151; Legitimidade, 301,

600 Índice Remissivo
373; Manobra versus Goulart, 39,
41, 46; Novos Partidos, 427; Renuncia de Quadros, 29; Retomando o Poder, 496-
500, 503-4, 520-1, 545, 569, 579, 585-6; Versus Costa e Silva, 156, 160-165
Connally, John, 307 Conselho Nacional de Política Salarial, 79-80
Constituição de 1946, 261, 363, 521;Goulart, 39; Trabalho, 78-79; Função do
Presidente, 45, 49-50, 78-9
Constituição de 1967: Emenda 1967- 69, 181-2, 191-2; Emenda n.° 11,395;
Cria$ao, 118-119; Costa e Silva, 150; Governo forte, 161, 521; com a Emenda de
17 de outubro de 1969, 201-2, 219, 261, 297, 327, 495, 521, 523
Cony, Carlos Heitor, 65
Corção, Gustavo, 272 n. 122
Correio da Manha, 57, 63, 65, 120
Correia de Melo, Francisco de Assis, 47, 53
Corsetti, Coronel Higino, 213
Costa, Coronel Octavio, 221-2
Costa, Ribeiro da, 102
Coutinho, General Dale, 385
Crescimento econômico, 31, 70, 73, 86-7, 97, 116-8, 121-27, 143-47, 153,
181-4, 189, 212-16, 221-23, 247-8, 274-86, 306-10, 313, 321, 349, 355,
392, 401-8, 417-22, 4334, 447-452, 457-8, 460-5, 487-9, 527-31, 530,
536, 541, 544-5, 548-9, 556-7, 590-4
Crimmins, John, 332, 384 n. 114, 384
Cruz, General Newton, 470-1, 471 n. 74, 483, 484, 522 n. 49
Cuba, 172-6, 521, 578
Cunha, Vasco Leitão da, 53 CUT (Central Única dos Trabalhadores),557, 565-6,
569-72; ver também CGT Conselho Monetário Nacional, 71,188

Dalla, Moacyr, 505 Dallari, Dalmo, 442 n. 52
Dantas, San Thiago, 37, 39
Debray, Regis, 243, 248
Deficit, 70, 75, 118, 128, 142, 279,
421, 445, 451, 462, 488-9, 499, 528, 533
Delfim Neto, Antonio, 296, 307, 323, 376, 509, 552; Programa amazonico, 291;
Taxas cambiais flexíveis, 186; Crescimento, 212-13, 275-8, 283-8; Incentives
para a agricultura, 187-9; Aumento do controle, 183-6, 216, 355; Nomeado
ministro da Fazenda, 139, 144-7; Enviado a Franca, 318; Política salarial,
146-7, 399 Conselho de Segurança Nacional, 155, 165, 191, 217, 409
Denys, General Odílio, 30, 316, 388
Dias, Jose Carlos, 584-5
DIEESE (Departamento Intersindical de Estatistica e Estudos Socio-Econômicos),
399, 434, 566
Dines, Alberto, 166, 341
Distribuição de renda, 285-6, 361, 547-56, 572-3, 579-80
Divida Externa, 35-6, 68-70, 73-6, 82- 89, 126, 136, 142, 278-82, 353, 402-
8, 417-21, 449-452, 457-8, 461-4, 487-9, 497-8, 501-3, 527-31, 530 n.
62, 585-9
Divisas cambiais, 69, 72, 98, 276, 282, 448, 459; Crise, 417-22, 530;
Desvalorizacao, 85, 86, 185, 280, 402-8, 445, 463, 487-89; Para Dívida Externa,
125, 405-6, 461, 489; Piano Cruzado, 532-45, 570, 586; Posição forte (1984),
529, 586
Dobradinhas, 227
DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), 44, 56-8, 242, 257
Doria, Seixas, 485
Dornelles, Francisco Neves, 496, 499, 503, 512, 529, 533-4, 552, 562
Dutra, Eurico, 47, 79, 316
Doutrina de Segurança Nacional, 168, 170, 206, 222, 245, 254, 261,
521-5

601
Educação, 31-2, 88, 126, 221, 278, 295, 298, 370, 411, 421, 477, 547; CIEPS,
455; Universidades, 108-9, 129, 143, 150, 153, 160, 168, 215,
220, 261, 266, 282, 286, 327, 463, 534-8
Elbrick, Charles Burke: seqiiestrado, 204, 234, 237-8
Eleições, ver Congresso e Presidente Eletrobrás, 380, 450, 472
Elite: Igreja, 63; Cultural, 346; Ingresso na, 153-4; Fora do Brasil,
148, 247; Política, 120-21, 290, 310-2, 325-30, 354-7, 363-8, 374-5, 380-1,
409-10, 417-9, 448-50, 452-3, 479-81, 511-2, 513-8, 590-2; Privilégios da, 251,
581-5
Erasmo, Coronel, 360
Escola Superior de Guerra, 22, 120, 168, 316, 409; Grupo da Sorbonne, 51-3, 139-
41
Estado de S. Paulo, O, 63, 120, 246, 268, 296, 301, 329, 334, 340, 341,
344, 368, 381, 376
Esquerda, 41-3, 203, 248-9, 320, 326, 383, 425, 442, 458, 477; Ideologia,
33, 150, 495, 552; Trabalho, 77-9, 127-8, 316, 436-7, 573-6; Militantes,
174-5, 205-7, 217, 228, 248-9, 369- 70, 392, 415-7; Moderados, 37, 225,
268-9, 482; Nacionalistas, 378; Estudantes, 151-3; Transição para a democracia,
502-4, 507-8, 513, 530- 2, 591-2
Estabilização, 123, 529-32; 1958-59, 28, 54, 68-9; 1961, 29, 36, 485;
1962-63, 37, 79; 1964-67, 69-70, 75- 7, 81-3, 93-5, 116, 129-32, 136, 141,
146, 189, 208, 286, 541; 1982, 452, 459-65
Eugenio, Mario, 520

Fagundes, Miguel Seabra, 118-9, 363, 442
Falcão, Armando, 318, 331, 334, 340-
2, 366, 369, 374
Faoro, Raymundo, 391
Faraco, Daniel, 53
Farias, Cordeiro de, 52, 55, 111
Fernandes, Florestan, 168
Fernandes, Helio, 149
Ferreira, Joaquim Camara, 176, 242,425
FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço), 127, 158, 561
Fiel Filho, Manoel, 347, 416
FIESP (Federação das Industries do Estado de São Paulo), 394
Figueiredo, João Batista de Oliveira, 214, 319; Anistia, 422-26, 513-17;
Antecedentes e estilo, 409-10, 412, 522-24; Ministério, 410-11; Desafio da linha
dura, 444-45; Campanha das diretas, 465-72; Crise econômica, 450-52, 458-63,
487-8; Política econômica, 417-22, 440-41, 447-49, 457, 527-29, 558, 566, 587;
Eleição de Tancredo, 472-87, 491-93; Eleição de 1982, 452-54, 465-67; Relações
trabalhistas, 414-16, 433-36, 561; Mudança de partido, 427-29; Reequipamentos
das Forças Armadas, 525-26; Relates com a Igreja, 362; Doença, 447; Sucessão,
386, 388, 389; Posse de Sarney, 494
Fleury, Sergio, 237, 242, 256-57, 265, 364, 425-26, 515
FMI (Fundo Monetário Internacional), 115, 184, 541; Pressão 1983- 87, 440-41,
489, 528, 533, 537, 545; Estabilização de 1959, 28, 54; Estabiliza9ao de 1962-
63, 36-7, 74, 85-6, 145, 279; Estabilização de 1982, 451-52, 460-62, 527
Folha de S. Paulo, 63, 394, 468, 476
Fontoura, General Carlos Alberto, 299
Franco, Afonso Arinos de Melo, 119, 364
Freire, Marcos, 325, 335, 457
Freitas, Chagas, 225
Frota, Sylvio, 385-88
Fulbright, William, 86

602 Índice Remissivo
Funaro, Dilson, 53144, 565-67, 586- 88 Fundo Nacional de Desenvolvimento,
544-45
Furtado, Alencar, 232, 284-85, 375 Furtado, Celso, 130, 141, 276, 460;
Piano Dantas-Furtado, 37; Superintendente da SUDENE, 56 Futebol, 223, 233,
236, 248, 310, 317-18, 423, 468, 475

Galveas, Ernane, 451
Gama, Nogueira da, 229
Garcia, Carlos, 329
Geisel, Ernesto: Aprovação da Candidatura de Tancredo, 483-84; Antecedentes e
estilo, 300, 315-17, 412; Rompimento com os Estados Unidos, 375-85; Ministério,
318-19; Censura, 365-69; Relações com a Igreja, 356-62; Política econômica,
349-54, 401408, 544; Eleições de 1974, 335-39; Elei96es de 1976-78,
369-75, 385-96, 415; Metas, 319-22; Chefe da Casa Militar, 52, 110-11;
Liberalização, 322-35, 33949, 397- 401, 410, 423, 435, 468, 484, 590; Sucessão,
311
Geisel, Orlando, 104, 198, 200, 213, 216, 265, 299, 321
Gil, Gilberto, 268
Globo, O, 26, 63, 222
Golbery, General do Couto e Silva, 52, 110, 139, 299, 319-21, 326-328,
331, 33940, 356, 389, 407-10, 427-29, 444-46, 454, 477, 485, 510
Gomes, Eduardo, 311
Gomes, Severe, 318, 393-4
Governo dos Estados Unidos, 140, 281, 492; Ataques ao, 106, 203-10,
219,233,332-33; Rompimento com 375-78; Políticas, 38, 61, 66-67, 82,
85, 88, 116, 126, 150, 177, 304-08, 312-13, 326, 458, 587
Goncalves, General Leonidas Pires, 513, 589
Gordon, Lincoln, 20, 66-67, 85
Goulart, João: Censura de 1964, 60; Conspiração e golpe de 1964, 19-
21, 45, 55, 66, 90-91, 104, 134,137-38, 172, 212, 240, 293, 309-11,
315, 363, 385, 391, 409, 470; Política da dívida, 67, 531; Frente Ampla, 14849,
120; Outras Politicas, 72, 375, 558, 574
Guerra interna, 22, 120
Guerrilhas, 171, 273, 355, 447, 515, 524; Sequestros, 203-05, 228, 233-
39, 392; Liquidação, 24149, 253, 256-60, 266, 306, 320, 390, 391,
525; Versus Castelo Branco, 90, 107-109; Versus Costa e Silva, 148,
174-77, 199
Guevara, Che, 29, 172, 204, 243, 246
Guimaraes, Ulysses, 229, 283, 302, 321, 453, 464, 467-68, 494-95, 500
Gusmao, Roberto, 497, 563

Herzog, Vladimir, 344-46
Holanda, Chico Buarque de, 268
Holleben, Embaixador Ehrenfried, 235
Huntington, Samuel, 323, 326, 333
Hypolito, Dom Adriano, 360

IADB (Inter-American Development Bank), 83, 87, 294, 587
Ianni, Octavio, 168
Iavelberg, Yara, 24142
IBAD (Institute Brasileiro de Ação Democratica), 54
Ibraim, Jose, 158, 204
Impostos, 70, 73, 98, 142, 1824, 188, 276-81, 287, 289, 294, 303, 355,
392, 459, 497, 502, 574, 587
Indexação, 122, 147, 277, 402, 418, 436, 441, 44641, 462, 488, 502,
531, 535-36, 543; ORTNs, 73, 187,463, 533
Inflacao, 34, 36, 68-69, 81, 92, 97-99, 116, 130; Salário mínimo, 147;
Costa e Silva, 142, 183-89; Figueiredo, 414-17, 427, 433, 446-52,

Índice Remissivo 603
417-8, 488; Geisel, 353; Médici, 275-79, 282
Integralismo, 297
IPCA (Índice de Preços ao Consumidor), 563
IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais), 40
1PM (Inquerito Policial Militar), 103, 148
Imprensa, 134, 155, 162, 218, 223, 235, 243, 267, 296, 320-28, 384,
401, 410, 442, 471, 486, 494, 497, 505, 508-10, 514-16, 522, 537, 544,
583; ver tambem Censura

Jacarandá, Valter, 517 n. 36
Jaguaribe, Helio, 556
Japão, 234, 281, 404, 450, 487, 587
Johnson, Lyndon Baines, 208
Jones, Stuart, 241
Jornal do Brazil, 63, 120, 166, 368
Julião, Francisco, 424
Junior, Caio Prado, 263
Jurema, Abelardo, 43

Kelly, Prado, 364
Kissinger, Henry, 381
Krieger, Daniel, 52, 111, 164, 195
Kruel, Amaury: Campanha para governador, 104; Golpe de 1964, 20,
47; Chefe de policia, 251
Kubitschek, Juscelino: Frente Ampla, 114, 149-50, 190; Governo, 27, 131,
289, 318, 350, 385, 558; Presidente do PSD, 52, 95; Expurgado, 60; Apoio ao MDB,
113; UDN, 91

Lacerda, Carlos, 485; Jornalismo antigetulista, 24, 25; Frente Ampla,
114, 152-53, 190; Governador do Rio, 59, 92-93; Ataques a Quadros,
29; não candidatura em 1965, 111; Expurgado, 167; Sucessao de Médici, 169;
Amea9a a Castelo, 103
Lacerda, Flavio Suplicy, 53, 106, 151
Lagoa, Francisco de Paula da Rocha, 213
Lamarca, Carlos, 178, 23743, 248
Lara Resende, André, 538
Lavanere-Wanderley, Brigadeiro, 53
Leal, Victor Nunes, 167
Leite, Antonio Dias, 213
Leite, Eduardo ("O Bacuri"), 237
Lemgruber, Antonio Carlos, 534
LIDER (Liga Democratica Radical),103 Lima, General Afonso Augusto de
Albuquerque, 96; Candidate em 1968, 197-200, 298-99; Ministro do
Interior, 139, 151, 166; Remincia, 183-85
Lima, Alceu Amoroso, 65 Lima, Brigadeiro Octavio Moreira,
511
Lima, Faria, 93
Lima, Hermes, 162
Lima, Luiz Fernando Cirne, 213, 296
Lima, Negrão de, 95, 99
Linz, Juan, 297, 309
Lisboa, General Carvalho, 255
Lisboa, General
Manoel, 177
Lopes, Francisco, 538
Lopes, José Leite, 168
Lopes, Pereira, 295
Lorscheiter, Dom Ivo, 467
Lott, Marechal Henrique, 95, 385
LSN (Lei de Segurança Nacional), 121, 162, 201, 322, 327, 333, 373,
396, 437, 506, 524
Ludwig, Daniel, 290
Ludwig, Rubem, 478
Lyra, Fernando, 259, 511
Lunkenbein, Padre Rodolfo, 360

Macedo, Murillo, 411, 435, 559
Maciel, Lisaneas, 326, 379
Maciel, Marco, 478, 481, 497, 511
Magalhães, Antonio Carlos, 476-78, 486
Magalhães, Juracy, 90, 102, 106, 311
Magalhães, Sérgio, 60
Maluf, Paulo, 509-511; Antecedentes. 256, 476; Candidature, 476-78, 48.1-
86,507

604 Índice Remissivo
Mamede, General Jurandir, 111
Mann, Thomas, 86
Marchezan, Nelson, 511
Marcílio, Flavio, 335
Marighela, Carlos, 207, 229, 235, 240-41, 263, 272, 370
Marinho, Daniel, 164
Martinelli, Osnelli, 103
Mattos, Delio Jardim de, 486
Mattos, Meira, 154
Mazzilli, Ranieri, 46, 66, 93, 315-16
McNamara, Robert, 284
MDB (Movimento Democrático Brasileiro): Autênticos, 230-31, 302; Rompimento com
os Estados Unidos, 384; Criticas ao crescimento, 283-85, 399, 418;
Descompressão, 322, 327, 331, 335-39, 342, 369-72; Eleição de 1966, 112-14;
Eleição de 1968, 201; Eleição de 1970, 228-31; Eleições de 1976-78, 370-72,
394-95; Frente Ampla, 148; Castrado, 215, 225; Come9o, 105; Moderados, 230-3;
Sublegendas, 170; Versus LSH, 120
Medeiros, Carlos, 196, 219
Medeiros, General Octavio Aguiar de, 444, 480
Medici, Emílio Garrastazu, 192; Programa amazônico, 287-95; Antecedentes e
estilo, 212, 216; Ministério, 213; Candidatura em 1968, 199-201; Censura, 266,
272; Chefe do SNI, 139, 155; Comparado a Geisel, 339-41, 354, 362, 410; Eleito
presidente, 201-03, 214; Eleições de 1970, 225-28; Elei9oes de 1972-74,
296-302; Relações internacionais, 304-08; Justiça, 261-63; Reorganização da
policia, 252-54, 264; Substituição, 313, 321-22; Estabilidade, 219-224; Versus
Guerrilhas, 234-38, 256-59, 331
Mello, General Humberto de Souza e, 255, 347
Mello, Jayme Portella de, 139, 193
Melo, Eduardo d'Avila, 347, 388
Melo, Marechal Marcio de Souza e, 139, 213, 265 Melo Filho, Murilo, 276 Mendes,
Bete, 515-16
Mendes, General Ivan de Souza, 513, 520
Menezes, Flavio Teles de, 579
Mesquita, Ruy, 267-68
Mesquita Neto, Julio de, 301
Militares: Responsabilidade, 423, 504-507, 514-18; Projeto Amazônico, 291; com
raiva da ARENA, 164, 224; Antidemocráticos, 133- 36; Tentativa de bloquear
Goulart,30, 39-42; Conspiração de 1954, 22-23; Golpe de 1964, 22, 44, 123;
Declínio de poder e eleição de - Tancredo, 453, 467-75, 486; DOI CODI,
257-61, 262, 328-370, 416; Frutos do poder, 140; Linha Dura, ; 46, 59, 66, 92-
100, 103, 107, 139, 150, 153-4, 160-63, 205, 209, 214, 217-20, 224, 248, 271-74,
311-12, 316-22, 329-35, 339-49, 355-64, 367, 370-75, 382-91, 395-99, 407;
Aumento do orçamento, 463; Não políticos, 214; Corrida nuclear, 378,
383; Operação Bandeirantes, 254; Operação Gaiola, 228, 231; Operação Limpeza,
55, 174; Pressionando Costa e Silva, 189-92; Governo Sarney, 495, 523-26, 577,
581; Governo Paralelo, 55, 118, 137; Crian9as mimadas, 208; Crise da sucessão,
193-203; Sucessão de Geisel, 295-303, 409; Versus Guerrilhas, 171-81, 205, 234-
38, 256-9, 331; Versus Liberalização, 464
Minas Gerais, 102, 112, 139, 140, 155, 225, 389, 405, 431, 455, 465,
474, 481-82
Mindlin, ]os6, 394
Minério de ferro, 125, 244, 290
Monteiro, General Dilermando Gomes, 319, 348
Monteiro, General Euler Bentes, 183, 394

Índice Remissivo 605
Montoro, Franco, 453-58, 467, 476,
509, 552
Moraes, Antonio Ermirio de, 394
Moraes, José Ermirio de, 229
Morris, Fred, 332 •
Mercado de 39068, 129
Mourão Filho, Olympio, 50
Movimento, 268, 344, 368
Movimento do Gusto de Vida, 359
Movimento pela legalidade, 30
Muller, Felinto, 175, 233, 251
Muricy, General Antônio Carlos, 198, 200

Natel, Laudo, 467
Nacionalismo, 54, 95, 96, 115, 125, 140, 142-143, 247, 278, 384, 464,
474, 484, 500; Econômico, 26, 392, 393, 405-6, 460, 590; Militante, 41; Frente
Parlamentar Nacionalista, 60; Radical, 37-38, 44, 82-3
Neves, Tancredo, 19, 311; Ministerio, 496-8, 499, 552; Eleições de 1985, 491-
4; Morto, 500, 562; Governador, 482487; Doen9a, 498; Partido Popular, 429;
Lider do PMDB, 453, 455-7 Nigris, Teobaldo de, 394 Nixon, Richard, 208-209,
307-308 Nobre, Freitas, 283 , Nogueira, Dirceu, 318 Nonato, Orozimbo, 118
Nordeste, 27, 43, 56-7, 109, 132, 180, 182, 226, 247-49, 271, 287-95, 293,
300, 318, 329-32, 333, 338, 394, 411, 421, 439, 467, 477, 480, 503,
507, 575, 579
Nunes, Adalberto de Barros, 214

OAB, 63, 331, 365-66, 367, 390, 391- 93, 394, 396, 442, 583
Okuchi, Nobuo, 234
OLAS, 175 Oliveira, Dante de, 467-72
Oliveira, Gonçalves de, 167
OPEP, 350-51, 352, 354, 402 "Operação Lysistrata", 162
Opinião, 268, 330, 341, 368 Oposi9ao estudantil, 152-55, 158, 161,
172, 190, 203, 215, 220, 273, 375, 384, 477

Pacheco, Rondon, 225
Padrão de vida, 547-52, 590
PAEG, 69, 72, 73-4, 81, 85 •
Paim, Gilberto, 131
Pais de Almeida, Sebastião, 95
Paiva, Rubens, 60, 258-59, 267
Palmeira, Vladimir, 204
Partidos Políticos, 27, 102, 105, 134, 170, 200, 227, 297, 311, 323, 324,
327, 495, 503, 505-6, 522
Pasquim, 268, 341
Passarinho, Jarbas Gorwjalves, 246;
Educação, 213; Ministro do Trabalho e da Prev. Social, 139, 157,
164, 305
Passes, Oscar, 229
Pazzianoto, Almir, 497-99, 538, 557, 562-63, 566, 567, 568-69, 589 PCB, 41, 56,
152, 173-76, 177, 204, 244, 306, 342, 424, 430, 483, 504, 521, 557, 570, 594
PC do B, 42, 56, 174-76, 244, 245, 246, 424, 430, 504, 521, 557, 570,
594 PDS: Reforma Constitucional, 444;Morte de Portela, 432; Mov. das
Diretas, 468-72; Eleições de 1980- 82, 432, 445, 452-7, 466, 477; Eleições de
1985, 486-87, 494, 496,507, 508; Elei9oes de 1986, 586; Começo, 428;
Frente Liberal, 484, 495, 497, 499, 507, 586 PDT: Elei96es de 1980-82,
452-7; Eleições de 1985-86, 506, 508-9; Fundação, 429
Pedro II, Imperador Dom, 194
Peixoto, Amaral, 99
Pelacani, Dante, 80
Pereira, José Canavarro, 192
Pereira, General Pedro Celestino da Silva, 342

606 Índice Remissivo
Pereira Neto, Padre Antonio Henrique, 180, 273
Petrobrás, 316-317, 35C, 380, 403, 417, 450, 452, 473
PIN, 288, 289, 291, 292
Pinheiro, Israel, 95, 96, 99
Pinto, Bilac, 46, 52, 93, 111
Pinto, Carvalho, 339
Pinto, Francisco, 333
Pinto, Magalhaes: Governador, 94; Ministro, 139, 148; Lider do PP,
429, 473
Pinto, Onofre, 204
Pinto, Sobral, 262
Pires, General Walter, 411, 447, 465
Pires, Waldir, 497
Piano Decenal, 122
PMDB - Adversário de Figueiredo, 466; Aliança Democratica, 484;
495, 499; Movimento das Diretas, 467-472; Eleições de 1980-82, 453-
54, 506; Eleições de 1985, 504,507-9, 510, 511; Eleições de 1986,
585-6; Fundação, 428; Manifesto de 1982, 573; Tancredo, 482, 494,
5014; PCB separa-se, 504; Política Salarial, 540-7, 565
Política Monetária, 69, 72, 74, 75-76, 85, 117, 122, 128, 129, 142, 143,
295, 392, 463, 497, 527, 536-40, 552
Populismo: Albuquerque Lima, 197- 8, 298, 302; Brizola, 455-57, 508 9,
511; Goulart, 28, 42, 43, 558; Militares contra, 133-136; Quadros,
28, 508, 511
Portella, General Jaime, 150, 254, 386, 411
Portella, Eduardo, 411
Portella, Petronio, 255, 301, 336, 391, 411, 432
PP (Partido Popular), 310, 429
Prebisch, Raul, 124
Presidente, 62, 198, 201; Ministérios, 139, 212; Eleições de, 101, 134,
135, 165, 211, 225, 227-28, 467, 468, 481; Poderes, 48, 49, 137, 169,
296, 102, 133, 203
Prestes, Luis Carlos, 397, 424
Prieto, Arnaldo da Costa, 318
Programa Estratégico, 182
PSD, 27, 41, 52; Dentro da Arena, MDB, 105-6, 112, 228, 295, 300;
1964-65, 46, 52, 96, 99
PT - Eleições de 1980-82, 452-7, 506; Eleições de 1985-86, 510-1, 563;
Fundação, 429, 431, 502; Vs. Plano Cruzado, 544, 565-6; Vs. Reforma,
562, 564, 570
PTB - Eleições de 1965, 95; Dentro do MDB, 106, 150, 228; Ressurgimento, 429,
453; Apoio a Goulart, 40-1, 46; Apoio a Vargas, 23, 27, 429

Quadros, Jânio: Eleição e Renuncia, 28, 60, 69, 135, 137, 149-50, 316,
456, 485, 507, 511; Governo, 49,62, 140, 509; Estabilização, 36
Quercia, Orestes, 339, 511

Rademaker Grunewald, Almirante Augusto, 47, 53, 139, 200-201, 388
Raw, Isias, 168
Recife, 180, 204, 271, 287-89, 329,332, 358, 384
Rego, Moraes, 390
Reis, Hercules Correia dos, 80
Resende, Roberto, 94, 96
Resende, Eurico, 301
Riani, Clodsmith, 80 :
Ribeiro, Darcy, 21, 43, 455
Ribeiro, Flexa, 94, 96
Ribeiro, Nelson, 497, 577
Richa, Jose1, 457, 511
Rio de Janeiro, 31, 305, 333, 338, 368, 431; Igreja, 343, 360; Governo, 19,
193-95, 225, 429, 465, 497, 507, 508-9; Guerrilhas, 175-80, 204, 235,
238, 243; Trabalho, 97, 417, 550, 560, 566; Militares, 200, 205, 251,
406; OAB, 331, 334; Protestos Estudantis, 152, 158; Tortura, 241,
334

607
Rio Grande do Sul, 104, 107, 200, 212, 338, 340, 371, 379, 429, 431,
446, 456, 457
Rischbieter, Karlos, 410
Rockefeller, Nelson, 209, 313
Rogers, William, 308
Rossi, Cardeal, 160, 272, 357
Rossi, Waldemar, 415, 430
Rusk, Dean, 126


Sa, Mem de, 106
Santos, General Adalberto Pereira dos, 299
Santos, Jose Anselmo dos, 240
Santos, Wanderley Guilherme dos, 324-26, 340
São Paulo: Negócios, 31, 97, 141, 243, 246, 394, 419, 450, 462, 534,
535, 568; Igreja, 268, 271, 346, 357-60, 514; Esquadrão da Morte,
237, 256-66, 345, 392, 416; Governo de, 104, 178, 305, 338-9, 411,
465, 475-78, 507, 584
Sarmento, Syzeno, 192, 198-200
Sarney, José: Reforma Agraria, 589, 591; Antecedentes e Estilo, 485; torna-se
Presidente, 494-5, 501; Política Econômica, 552-6, 587, 588; Eleições de 1985-
86, 484; Eleições de 1986, 585, 586; Reforma trabalhista, 557-8, 567, 568;
Militares, 513-8; Líder do PDS, 481; Restaurando as Instituições, 495, 498-500,
503-4; Consolidando o poder, 491-4; Resolvendo as desigualdades,
589
Salário Mínimo, 25, 33, 34, 117, 122, 146-47, 156, 160, 286, 392, 399,
434, 440, 463, 528, 532, 538, 548
Sayad, João, 497, 499, 512, 534, 535, 562, 565, 688
Serra, Jose, 422, 531, 540, 552
Setubal, Laerte, 394
Setubal, Olavo, 497, 509
Sigaud, Dom Geraldo de Proença, 272
Silva, Artur da Costa e: Antecedentes e estilo, 47,169; Ministério, 53, 139,
149; Comparado com Castelo Branco, 111, 157, 190, 214; Política Econômica, 115,
141-7, 181-2, 280, 567; Relações Internacionais, 209, 312-3; Liberalização, 138,
148, 157, 189-202; Liberdade Limitada,
150, 161; Depressão, 152, 155, 159- 61, 253-4, 304, 559; Doença e Substituição,
274-5; Sucessão, 103,104, 110, 288, 298, 473; Ministro da Guerra, 102, 108, 112,
474
Silva, Carlos Medeiros, 48, 139
Silva, Evandro Lins e, 167
Silva, General Oscar Lins da, 343
Silva, José Gomes da, 579
Silva, Antônio da Gama e, 140, 153, 155, 163, 166, 219
Silva, Luis Inácio Lula da, 398, 413-15, 429, 430, 431, 435, 467,
470, 560
Silva, Luiz G. do Nascimento e, 322
Silveira, Antônio Francisco Azeredo da, 318, 376, 381, 384
Silveira, Ênio, 65
Silva, Maurina Borges da, 425
Simon, Pedro, 497, 575
Simonsen, Mário Henrique, 54, 318, 418
Sistema de Relações de Trabalho, 33, 77, 80, 146, 283, 394, 397-8, 400-1,
430, 437, 438, 441; Organizadores e Lideranças, 20, 27, 123, 401, 413,
430, 437, 577; Protestos, 43, 120, 157-8, 159, 161, 216, 347; PT,
562-5, 566; Reforma do Sistema por Sarney, 585-7, 589
Sistema de Compadrio, 33
SNI, 139, 198, 212, 319, 328, 386, 389, 408, 409, 410, 442, 470, 480,
497, 513, 518, 519, 520, 524, 525
Scares, Edmundo de Macedo, 139
Sobrinho, Barbosa Lima, 300, 302
Sodré, Abreu, 158, 254, 305
Souto, Edson Luis de Lima, 152

608 Índice Remissivo
Souza, General Milton Tavares de, 411
Spellman, Francis Cardeal, 126
Spreti, Embaixador von, 234
Suplicy, Eduardo, Sip

Tavares, General Aurelio de Lira, 139, 166, 191, 198
Tavares, Maria da Conceigao, 277
Távora, Juarez, 53, 311
Tecnocratas: Campos, 53-4, 97, 286, 561; Criticando, 300, 322; Delfim Neto, 142,
143, 147, 216-7, 355, 410, 451; Militares, 53-5, 96-7, 220,
224, 316, 506
Televisão, 63, 221-22, 337, 344, 368, 370, 373, 375, 423, 468, 469, 470,
483, 486, 494, 508, 535
Tortura, 55, 58, 180, 191, 206, 240, 245-46, 257, 303; Igreja, 2714,
331-2; Guerrilhas, 181, 233-4, 237, 241, 256-66, 516; Jornalistas, 344-5;
Nordeste, 434, 56-8; Desativação, 207, 304, 319, 328-32, 385, 396, 425-7, 464,
483, 513-4, 515-8, 582-5; Suspeitos Políticos, 162, 251, 258; Estudantes, 151-2,
215; Trabalhadores, 158
Trabalho, 372; Anistia, 489; Base para Goulart, 39, 40, 41, 42; Controles, 354,
390, 397-8; DlAP, 503; Órgão Intermediário, 327; Lei de Garantia de Emprego,
127-8
Travassos, Luis, 204
Tribuna da Imprensa, 24, 149, 368
Tuthill, Embaixador John, 89, 126, 150

UDN: Antigetulista, 24-5, 26-7; "Bossa Nova", 484, 502; Rompimento com
militares, 364; Castelo Branco, 93, 94, 102-3, 121; Dentro da Arena, 105-6;
Militantes, 39-40, 58, 481; Assumindo o controle em 1964, 64, 90-1, 92, 101, 103
UDR, 510
UNE, 108, 151
USAID, 85, 87, 88, 126, 154-55, 208, 306-8
USIS, 102

Vargas, Getulio, 25, 27, 45, 77, 429; 1937-45, 33, 40, 223, 251, 298, 310,
559; CLT, 79, 414; 1951-54, 22,23, 34, 148, 311, 312, 363, 548
Vargas, Ivete, 429
Vasconcelos, Jarbas, 507
Veja, 264, 268, 341, 425, 486, 498
Velloso, João Paulo dos Reis, 213, 275, 318, 402
Veloso, Caetano, 268
Vianna Filho, Luiz, 53, 140, 311
Vidigal, Luiz Eulalio de Bueno, 394, 540
Vilela, Teotonio, 467
Voto vinculado, 227
VPR, 177, 178-85, 234-35, 236, 237, 240, 241
Westinghouse Electric, 377-79, 383 Wright, Jaime, 331

Xavier ("Tiradentes"), Joaquim José da Silva, 500

Yassuda, Fábio Riodi, 213

Zaluar, Abelardo, 168

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