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sábado, 30 de julho de 2011

A História de Igreja Católica

HISTÓRIA DA IGREJA CATÓLICA
Pierre Pierrard

Contracapa:
Esta História da Igreja Católica, bem elaborada, acessível e estruturada, oferece ao leitor as articulações, os dinamismos, as tensões e os malogros de uma evolução
que não revela apenas as lições mas ainda a inteligência da economia divina: uma Igreja no Mundo.
Um clássico recomendado a quem deseja uma visão de dois milénios cristãos.


NOTA DO EDITOR

A História da Igreja Católica, que agora se publica em edição portuguesa a partir da 3ª edição francesa revista e aumentada em 1991, é uma das muitas que Pierre
Pierrard assinou, e é desde há muito um clássico, recomendado não apenas aos iniciados na disciplina de História, mas também a quem deseja ter uma visão completa,
precisa e atraente destes dois milénios cristãos.
A edição francesa cobre os acontecimentos que marcaram a Igreja Universal e a actividade pastoral de João Paulo II até ao ano de 1990 e apresenta uma ampla bibliografia,
classificada segundo os grandes períodos e justamente comentada. Em anexo, e depois da celebração do Bicentenário, o Autor apresenta o essencial das publicações
recentes sobre a Igreja e a Revolução Francesa. E estes contributos confirmam, sem dúvida, o interesse pedagógico já elevado desta obra sempre renovada, destinada
a atravessar o limiar do milénio.
Esgotada a edição portuguesa, não quisemos reeditar esta obra sem atender às várias críticas feitas a determinadas falhas existentes nessa edição. Assim, para melhor
servir o leitor, fez-se uma revisão profunda da tradução, aproximando-a o mais possível do pensamento do autor.
Conforme assinalamos, a edição francesa termina com a actividade pastoral do papa João Paulo II até 1990 pelo que

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decidimos solicitar a colaboração de Artur Roque de Almeida, antigo Professor de História da Igreja da Universidade Católica de Lisboa que amavelmente se disponibilizou
completando e actualizando em Apêndice Complementar a actividade pastoral do Santo Padre até ao final do século XX.

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PREFÁCIO

Historia est magistra vitae: máxima admirável que condensa, ao mesmo tempo, uma experiência milenar e um princípio de elevada cultura. É urgente que, contra as reivindicações
infantis de uma espontaneidade que se afirma a única criadora, se medite sobre as lições e as leis da História, tanto para o conhecimento das civilizações como na
tradição viva da Igreja. O enraizamento inteligente no passado é a garantia da projecção do futuro; o presente não é mais que o ponto nevrálgico desta dialéctica.
É precisamente aí que nascem os profetas.
É verdade que o nosso axioma não deixa de ter alguma ambiguidade e que a própria palavra história, sobretudo na nossa língua (1), abarca conteúdos e métodos muito
diferentes. O recurso à História é um método equívoco. Então, como ler esta História da Igreja, de forma a corresponder tanto à intenção do autor como à verdade
do seu objecto? Seria inquietante verificar que, na Igreja em despertar evangélico, a renovação bíblica e a renovação litúrgica não engrenam, com uma sensibilidade
mais viva, no movimento da História, abandonando-as a um positivismo pastoral demasiado tacanho, fora da compreensão de uma economia definida como "história da salvação",
iluminada pelos "sinais dos tempos", inclusive na vida sacramental.

Nota 1: Francesa e, na portuguesa, igualmente. [N. do T.]

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Durante vários séculos, incluindo a Idade Média até cerca de meados do século XIX, considerou-se a história um conjunto de "modelos" (de exempla, dizia a língua
latina medieval) e o seu objectivo uma empresa moral. Os "ensinamentos" da História não se podem resumir a estas lições, cuja referência ao passado implica o imobilismo
do homem e das sociedades. Frequentemente, a História da Igreja é tratada apenas como um reportório, onde tanto o teólogo como o pastor vão buscar enunciados e normas
já estabelecidos, com o perigo de se ficarem por adaptações casuísticas. Por isso, compreende-se a impaciência dos "inovadores".
Trata-se de um grave malentendido, tanto da história do homem como da tradição da fé. Esse positivismo dogmático esvazia a dimensão essencial de uma economia que
desencadeia e anima a entrada de Deus na História. Na verdade, a História entra no tecido da fé, que aí encontra não apenas materiais exemplares, mas também a compreensão
do seu dinamismo; porque "o Espírito, que conduz o curso dos tempos e renova a face da Terra, está presente nesta evolução" (Vaticano II, Constituição da Igreja
Gaudium et spes, 26).
O que importa, portanto, é que o cristão, desde o momento em que nele emerge a consciência do seu ser cristão, esteja disponível ao entendimento da História, da
História "sagrada", incluindo os condicionamentos terrestres que constituem o lugar de seu mistério. Não se trata de curiosidade de erudito, mas de maturidade da
fé.
Eis aqui, portanto, uma História da Igreja elaborada em traços rápidos e agradavelmente acessível que, estruturada com delicadeza e títulos sugestivos, revela ao
leitor as articulações, os dinamismos, as tensões e os fracassos de uma evolução que não fornece apenas lições, mas também o entendimento da economia divina: uma
Igreja no Mundo.
M. D. Chenu

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I
A IGREJA OCULTA

Capítulo I
O NASCIMENTO

1. O terreno: a civilização greco-romana, o judaísmo

O fundador do cristianismo é Jesus de Nazaré. Nazaré era uma pequena cidade judia perdida no seio do imenso Império Romano. Portanto, Jesus nasceu judeu, súbdito
de Augusto. A sua doutrina surgiu numa terra enriquecida pela civilização greco-romana e pelo judaísmo.
Quando Jesus nasceu, o mundo romano estava em paz. Nas costas do Mediterrâneo estendia-se um império admiravelmente organizado: Roma era o seu coração vivo e a sua
luz; ao conquistar o mundo, o seu povo de camponeses-soldados, tinha-se educado. Mas o panteão romano - que o Olimpo grego havia reforçado e renovado - mantinha
apenas o prestígio de lendas deslumbrantes. Claro, havia sempre soldados para invocar Marte, doentes para implorar a Esculápio e artesãos para pedir a protecção
de Minerva. Nas províncias pacificadas, a deusa Roma e o divino Imperador ainda despertavam um sentimento de reconhecimento que poderia passar por culto. Mas o helenismo
difundira amplamente no mundo mediterrânico o gosto pelas coisas do espírito, assim como uma nova concepção do homem: o cosmos, entendido como um todo animado por
uma lei racional e ao qual o homem deve harmonizar a sua vida. Pregadores de linguagem realista e plena de imagens falavam de

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um Deus universal, centro e animador do mundo; proclamavam a igualdade e a fraternidade dos homens, canonizando o exercício ascético como fonte da sua verdadeira
felicidade e da paz de espírito.
Por outro lado, as conquistas de Alexandre haviam colocado o mundo grego em contacto com o Oriente; ora, a Frígia, a Capadócia, a Síria e o Egipto eram ricos em
cultos antropomórficos e naturalistas com ritos excitantes. De Alexandria, chegaram aos portos mediterrâneos - e daí às cidades, até mesmo a Roma - os mistérios
de Isis, a deusa benfeitora, mãe de toda a civilização, e de Serápis, o protector da saúde que faz do homem o eterno contemplador dos deuses. Os marinheiros fenícios
e os comerciantes sírios propagaram o culto colorido dos Baals e a ideia, tão cara aos semitas, da transcendência divina. Uma liturgia sensual e purificadora instalara-se
no próprio coração de Roma, com Cibele, a grande mãe de Pessinunte. O orfismo desviava os espíritos do pensamento discursivo, levando-os a considerar que entre Deus
e o coração dos homens havia intermediários, um Verbo, diziam os pitagóricos. Mas era, sobretudo, para Mitra, o jovem deus-sol dos Arianos, cujo culto se fortalecia
na astrolatria caldeia, que se voltavam as almas que se sentiam convidadas a satisfazer a sua necessidade de imortalidade e de justiça.
No centro deste mundo tão diversificado, simultaneamente corrompido e suspirando pela pureza, velava, irredutível ao sincretismo helenístico, o pequeno povo judeu.
Era realmente um povo à parte. Na Palestina - a Terra Prometida - não passavam de um milhão. Os judeus da diâspora, cinco a seis milhões, formavam colónias importantes
na Mesopotâmia, na Síria e no Egipto, sobretudo em Alexandria. No entanto, o coração de todos estava em Jerusalém, cidade única: não que ela se pudesse comparar
a Antioquia ou a Éfeso, mas porque o seu Templo era a morada do Deus único, o refúgio de um monoteísmo muito elevado que dava a cada um dos filhos de Israel, por
mais pobre que fosse, a consciência de uma superioridade indestrutível. Todos estavam unidos pela fé num Deus

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santo, transcendente, que criou o homem à sua imagem, que o convida à esperança num messias libertador e numa eternidade bem-aventurada, cumulada pela contemplação
das perfeições divinas.
Entre este Deus - Yahweh = Javé - e o seu povo há uma ligação concreta, santa, viva: a Tora - lei de Moisés ou Pentateuco -, ao mesmo tempo fonte da vida e da sabedoria,
e colectânea de preceitos religiosos e morais que completava um ensino oral transmitido de geração em geração. O sinédrio, presidido pelo sumo sacerdote, e os escribas
eram os guardiães desses tesouros, cuja posse fazia dos Judeus o povo de onde viria a salvação.
Mas o judaísmo alexandrino já assimilara as riquezas do platonismo e do estoicismo. Fílon de Alexandria (13 a. C. - c. 54 d. C.) era um representante típico desses
judeus helenizados que organizavam a doutrina extraída das Escrituras num sistema teológico e filosófico elaborado, cuja influência chegava às comunidades judaicas
da Ásia Menor e da Síria. Este sistema preparará o caminho para a teologia cristã.
Na Palestina, a situação era outra. No tempo dos Selêucidas, os Judeus permaneceram refractários ao helenismo. Quando Antíoco Epifânio ousou erguer um Júpiter olímpico
no próprio coração do templo, levantou-se, atrás dos Macabeus, um povo inteiro armado para a guerra santa e que triunfou. Quando a força invencível de Roma acabou
por sujeitar Israel à condição de vassalo, o povo de Deus apegou-se à sua fé com um fervor ainda maior e uniu à sua volta os melhores dos seus filhos, os fariseus
(perouschim = separados) herdeiros dos Hasidim (os piedosos) do tempo dos Macabeus.
Para os fariseus, cuja vida religiosa se centrava na meditação e na prática da Lei, o judeu que ensinasse grego a seu filho era maldito. Exigiam a rígida observação
do sabat, a pureza leal e o pagamento das dízimas sagradas, porque a seus olhos, a alegria nascia dessa fidelidade aos mais pequenos mandamentos de Deus. Aliás,
mantinham a fé na imortalidade da alma, na ressurreição, na existência dos anjos, ao contrário dos saduceus, que apenas se cingiam às prescrições da Tora.

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Ao fervor farisaico - guardião da chama sagrada - ligava-se o ardor dos zelotas, resistentes que combatiam abertamente os Romanos e representavam o nacionalismo
judaico na sua forma virulenta. E os essénios (cerca de quatro mil) levavam, à margem da vida religiosa oficial, uma vida de cenobitas, obedecendo a uma regra rigorosa.
Foi no seio deste pequeno povo indomável que nasceu Jesus.

2. Jesus

"O nome de Jesus não se inscreveu simplesmente na história do Mundo; marcou-a profundamente", escrevia Emerson. Nisso, toda a gente está de acordo. Mas, entre os
estudiosos, há divergências sobre a realidade histórica da pessoa de Cristo e sobre a origem da sua mensagem. O homem comum, se não foi catequizado em profundidade,
revela acerca de Jesus ideias já feitas ou confusas: um Jesus taumaturgo, charlatão, vendedor de sonhos e de ilusões, "o primeiro socialista do Mundo" ou, quando
muito, "o grande amigo" consolador.
Durante séculos, Jesus, filho de Deus, foi objecto de uma fé quase sem problemas. A exegese alemã, no século XIX, baseando-se nos progressos da filologia e da história
literária, e num conhecimento mais completo do Antigo Oriente, chegou a audaciosas conclusões nascidas do racionalismo.
Já Reimarus (falecido em 1768) via nos apóstolos apenas uns falsários e nos Evangelhos a expressão de uma impostura; segundo ele, Jesus não passava de um profeta
revolucionário que fracassou. Com A Vida de Jesus, de David Strauss, publicada em 1835, desemboca-se em plena mitologia: segundo Strauss, os discípulos de Jesus,
ao narrar a vida do Mestre, teriam criado um Cristo ideal. Um dos representantes mais célebres desta escola mítica foi Couchoud que, em O Mistério de Jesus (1924),
fez de Jesus o produto dos sonhos das primeiras comunidades cristãs. A essa escola se opôs a escola de Tubinga, particularmente representada por F. C. Bauer (falecido
em 1860) que se deixou levar pela fantasia de uma imaginação criadora.

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Para A. von Harnack (falecido em 1930), chefe da escola liberal, tudo o que, no Evangelho, ultrapassar o quadro do misticismo não será mais que uma adaptação momentânea
às concepções caducas da época ou uma vegetação parasita que revela as deformações efectuadas pelos discípulos na obra do Mestre. Em face deste misticismo de contornos
nebulosos, a escola escatológica (J. Weiss, A. Loisy e A. Schweitzer) desenvolveu uma concepção aparentemente mais positiva, que consiste em fazer descer o Evangelho
ao plano do judaísmo contemporâneo. Por seu lado, os defensores da chamada escola "da história das religiões" (Bousset e Guignebert) procuraram a origem do cristianismo
num sincretismo do judaísmo com as religiões pagãs do século I.
Actualmente, a nova interrogação sobre o "Jesus da História" deriva das posições do exegeta luterano Rudolf Bultmann que aplica a Formgeschichte ("história das formas")
aos Evangelhos sinópticos e manifesta a originalidade do pensamento de S. Paulo e de S. João. Segundo ele, o Jesus da História não pode ser, se facto, alcançado
pela investigação; a interrogação sobre o Jesus da História não se justifica teologicamente nem, aliás, tem alguma importância para a fé. A partir de 1930, a escola
de Lovaina, com L. Cerfaux, aplica sistematicamente ao estudo do Novo Testamento o método da Formgeschichte, libertando-a dos pressupostos filosóficos e dos preconceitos
históricos.
Como se vê, Jesus permanece um "sinal de contradição".
O que não impede a subsistência de dúvidas razoáveis sobre a existência de Jesus. Hoje em dia, já não se põe essa questão por se considerar inútil. E muitos superaram
o abismo que alguns pretenderam estabelecer entre o "Jesus da História", a personagem que viveu e morreu na Terra, e o "Cristo da fé", desligado da História e prestes
a tornar-Se uma personagem mítica.
Na falta de uma biografia no sentido estrito do termo, é possível, graças aos Evangelhos, seguir Jesus ao longo da sua curta vida - uma trintena de anos - na Palestina,
submetida ao jugo romano, e extrair uma mensagem que, mesmo para um incrédulo, se situa no nível mais elevado da história dos homens.

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Jesus nasceu da Virgem Maria, em Belém, no ano 5 ou 4 antes da era que tem o seu nome. Deitado numa manjedoura, teve como primeiros admiradores alguns pastores e,
depois, uns magos vindos do Oriente. Após uma estada no Egipto, instalou-se com Maria e José - seu pai adoptivo - na aldeia de Nazaré da Galileia. No ano de 27,
de lá saiu para receber o baptismo das mãos de João, que O apresentou às multidões como "o cordeiro de Deus".
Foi nas margens do lago de Tiberíades que Jesus escolheu os seus apóstolos - fundamento da sua Igreja - e foi aí que começou a sua pregação. Comentando um texto
da Lei na sinagoga de Cafarnaum, assombra os seus ouvintes; pois, contrariamente aos escribas, fala com autoridade, solicitando que se ultrapassem as prescrições
farisaicas, afirmando que não tinha vindo para revogar a Tora, mas para lhe dar pleno cumprimento, e anunciar o Reino que virá.
Ainda que Jesus tenha ido a Jerusalém para a celebração da Páscoa, em 28 e em 29, é na Galileia que a sua mensagem ganha expressão. Foi lá que Ele proferiu as suas
mais belas parábolas e foi às multidões que acorriam à Galileia que Ele ensinou o Pai-Nosso e anunciou a sua Paixão; foi para essas multidões - esfomeadas e pobres
como Ele -, que multiplicou os pães; foi sobre elas que lançou o estranho e paradoxal programa que deveria ser a carta de uma nova humanidade: "Bem-aventurados os
pobres, os mansos, os aflitos, os que têm fome e sede de justiça, os misericordiosos, os puros, os que promovem a paz, os perseguidos...", todos aqueles que o "mundo"
rejeita, desde o aparecimento do Homem sobre a Terra.
Quando, no fim do ano de 29, Jesus desce lentamente até Jerusalém, sabe que será entregue aos Romanos. A glória dos Ramos precede de pouco a prisão, o julgamento
diante do sumo sacerdote e, depois, perante Pilatos, a morte na cruz e a sepultura, provavelmente em Abril do ano de 30.
É fácil admitir a morte de Jesus. Já a sua ressurreição choca, escandaliza ou provoca sorrisos. No entanto, o testemunho dos apóstolos centra-se na relação entre
a morte e a ressurreição de Jesus: aquele que alguns viram agonizar, morrer e, passados três dias, vivo, idêntico a Si mesmo, capaz de ser apalpado e

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de partilhar a refeição dos seus amigos. É o Cristo ressuscitado que os seus discípulos pregarão e que constitui o fundamento do cristianismo: "Se Cristo não ressuscitou,
a nossa fé é vã", escreveu Paulo. Foi no júbilo da ressurreição de Jesus e, depois, na expectativa de uma parúsia iminente que as primeiras comunidades cristãs se
expandiram.

3. As primeiras comunidades cristãs

Em 2 de Outubro de 1963, aquando do debate relativo ao esquema sobre a Igreja no Concílio Vaticano II, Mons. Van Dodewaard bispo de Harlem (Holanda), fez votos para
que os laços entre a Igreja Católica e Abraão e os Judeus fossem mais evidentes, "já que a Igreja é herdeira do povo judeu". Fazia-se eco da expressão famosa de
Pio XI: "Nós somos espiritualmente semitas." Porque o cristianismo nasceu da pregação de um judeu, cujos primeiros discípulos - igualmente judeus - se dirigiram,
em primeiro lugar, aos judeus. Para o cristão, o Antigo Testamento é inseparável do Evangelho e dos escritos apostólicos.
Os membros da pequena comunidade, a Igreja, que Jesus, após a sua ascensão, deixara em Jerusalém, apresentavam-se como judeus que viviam a sua religião de uma forma
mais pura do que os seus pais; porque, transcendendo o ensinamento bastante elevado, mas ritualista, dos fariseus, eles tinham como referência as palavras do Mestre
- considerado por eles como o Messias anunciado - que dava o lugar primordial às disposições do coração.
Era uma comunidade bem temerária aquele primeiro grupo judeo-cristão que, durante algum tempo, viveu confinado à sala superior da casa onde Jesus celebrara a Ultima
Ceia. Pouco depois, acontece o Pentecostes, aquele vendaval que enche toda a casa; o Espírito que fortalece os corações tímidos e transforma aqueles homens humildes
em arautos tão vibrantes perante quem os escuta que, desde o início, os acusam de estarem bêbedos. A festa judaica levara a Jerusalém uma multidão enorme. Pedro,
um pescador, ainda ontem um renegado, dirige-se a ela: "Israelitas, escutai estas palavras: Jesus de Nazaré, homem

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que Deus creditou junto de vós com milagres, foi entregue conforme o desígnio e a presciência de Deus; vós condenaste-O à morte; mas Deus ressuscitou-O e disso nós
somos testemunhas."
Escutaram-no, sobretudo os judeus da diáspora, o que explica a presença, bem cedo, de um pequeno grupo de judeus cristãos em Damasco, Antioquia, Alexandria e Roma.
Um certo número desses "helenistas" permaneceu em Jerusalém e, para se ocuparem deles, os "doze" designaram os diáconos (em número de sete, dizem os Actos dos Apóstolos).
Estêvão, um dos sete, é uma figura de proa: não hesitando em identificar com a idolatria o culto prestado a Deus no Templo de Jerusalém, substituía-o, na sua pregação,
pela nova ordem instaurada pelo Filho do Homem. Muito naturalmente, foi lapidado como blasfemo. A posição avançada de Estêvão, porta-voz dos "helenistas", assinala
uma primeira etapa na evolução da comunidade judeo-cristã.
Durante a lapidação de Estêvão aparece, pela primeira vez nos Actos, um jovem judeu da Ásia, Saulo, que mudará o nome para Paulo.
Temos muito poucos elementos sobre a vida de Paulo antes da sua conversão. A sua família, judia de origem, mas que havia adquirido o direito de cidadania romana,
estabelecera-se na Cilicia, em Tarso, cidade amplamente aberta às rotas comerciais e aos sincretismos religiosos: foi aí que Saulo nasceu no princípio da era cristã;
mas, em Jerusalém, seguiu as lições de um doutor famoso, Gamaliel, sendo atraído pelo ideal farisaico. Com um temperamento apaixonado, perseguiu o cristianismo nascente,
no qual não via senão impostura.
Derrubado do cavalo por uma força invencível no caminho para Damasco - "Saulo, Saulo, porque Me persegues?" -, passa algum tempo nos ermos do reino nabateu antes
de rumar a Jerusalém, onde encontra os chefes da comunidade judeo-cristã, Tiago e Pedro, e, junto deles, fortalece a sua fé em Cristo crucificado e perseguido. De
Jerusalém, parte para Antioquia na companhia de Barnabé, onde o encontraremos a preparar a sua primeira viagem missionária.
Na Palestina, os discípulos de Jesus alargam timidamente o seu campo de acção. Os Actos relatam o episódio da entrada

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na Igreja do eunuco - um semita - da rainha da Etiópia, graças ao diácono Filipe. Os eunucos eram excluídos da comunidade de Israel. Mais significativa ainda é a
pregação do mesmo Filipe, depois de Pedro e de João, aos Samaritanos, esses pestilentos, como lhes chamavam os judeus. Melhor: é o Espírito que leva Pedro - que
em Cesareia, cidade pagã, baptiza o centurião Cornélio - a quebrar um tabu, universalizando a mensagem cristã; mas os murmúrios escandalizados - "Entraste em casa
de incircuncisos e comeste com eles!" - que acolhem Pedro, no seu regresso, provam que os espíritos ainda não estavam preparados para essa etapa.
Nesse meio tempo, na comunidade cristã, os ritos judaicos enriquecem-se com uma liturgia original: administração do baptismo e também por ocasião das ceias comunitárias,
o rito eucarístico da partilha do pão. É provavelmente no decurso dessas reuniões que os irmãos se interrogam sobre Jesus e a sua mensagem, rememorando as suas lembranças,
interrogando as testemunhas da vida do Mestre, controlando os materiais de que são feitos os Evangelhos sinópticos. Mas a jovem Igreja aparece como o verdadeiro
Israel e o Antigo Testamento é atentamente examinado à luz do Novo.

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Capítulo II
FORA DA PALESTINA

1. Paulo

O caso de Paulo é único. Ao lado de Pedro e da comunidade judeo-cristã, eis que surge um "novo", alguém que não viu o Mestre, que não faz parte dos doze e que, assumindo
inesperadamente uma vocação exigente, se lança no meio dos pagãos, seus irmãos, sendo o primeiro a perceber que se podia passar directamente da idolatria para Cristo.
Personagem excepcional, a sua autoridade foi de tal modo fulgurante que alguns julgaram poder ver nele o primeiro foco do cristianismo; porque, enquanto os Actos
dos Apóstolos, dos seus vinte e quatro capítulos, consagram quinze ao apostolado de Paulo, muito pouco nos informam acerca da actividade de Pedro - "o príncipe dos
Apóstolos" -, cujo rasto se perde rapidamente. Aos que opõem Paulo a Pedro, pode responder-se que os Evangelhos - inclusive o Evangelho de João - sublinham, por
várias vezes, a importância do papel de Pedro como intermediário entre Jesus e os outros apóstolos; que os Actos mostram Pedro a presidir à eleição de Matias e a
falar em nome dos seus; que o próprio Paulo, na sua primeira Epístola aos Coríntios, apresenta Pedro como a primeira testemunha da ressurreição: aliás, foi junto
de Pedro que buscou a confirmação da sua missão.

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Isso não impede que este pequeno judeu helenizado seja, com toda a propriedade e significado da palavra, "o apóstolo", isto é, a testemunha, o pregador e o organizador.
Paulo contribui para este apostolado com as riquezas de uma personalidade excepcional, de uma fé ardente, de uma sensibilidade muito viva por vezes desconfiada,
de uma vontade dominadora, de uma saúde débil, de uma inteligência apurada pelas formas quotidianas da vida apostólica e de uma dialéctica marcada tanto pelo rabinismo
como pelo helenismo; enfim, de uma caridade insondável.
Três grandes intuições deram a esta existência a sua densidade: a universalidade do reino de Deus e da salvação pela fé, o primado do espírito sobre a letra e a
liberdade dos filhos de Deus.
No ano de 44, Paulo encontra-se em Antioquia: Barnabé, chefe da comunidade cristã, chamou-o de Tarso, de onde se irradiou a sua fama de pregador. Durante um ano,
Paulo e Barnabé trabalham juntos. Na Primavera de 45, embarcam para Chipre e, depois, vão para a Panfília. Paulo, tornado chefe da missão, irradia influência em
redor de Perge e, depois, Antioquia da Pisídia; posteriormente, percorre a Licaónia: Icónio, Listra e Derbe. Por toda a parte, procede da mesma maneira: na sinagoga
toma a palavra como lhe permite o ritual judaico e esforça-se por demonstrar pelas Escrituras que Jesus é o Messias esperado por Israel; depois, a sua pregação orienta-se
para os gentios. Não lhe faltam dificuldades: aqui, os judeus incitam a multidão a apedrejá-lo; acolá, tomam-no pelo eloquente Hermes, enquanto outros desejam adorar
Barnabé, cuja estatura evoca Júpiter.
Regressado a Antioquia, Paulo choca-se com os judeo-cristãos que pretendem ligar a salvação ao rito da circuncisão. Embora sujeitando-se às prescrições judaicas
- "Para os que estão sujeitos à Lei, fiz-me como se estivesse sujeito à Lei, se bem que não esteja sujeito à Lei, para ganhar aqueles que estão sujeitos à Lei" -,
Paulo não compreende que se imponha a circuncisão aos gentios desejosos de ingressar na Igreja. A controvérsia é levada a Jerusalém, perante os chefes da comunidade
cristã, Pedro e João, que avalizam os métodos paulinos, malgrado a resistência de muitos irmãos.

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No Outono de 49, Paulo volta a sair de Antioquia para uma viagem missionária que durará três anos. Separa-se de Barnabé e leva consigo Silas, cidadão romano. Em
Listra, Paulo junta a si Timóteo, jovem grego nascido de mãe judia. Os três atravessam a Frigia e a Galácia, penetram na Macedónia e alcançam Filipos, onde são presos.
Chegam a Tessalonica, onde os judeus os acusam de actuar como adversários do imperador ao apresentarem Jesus como rei. Chegam a Bereia; a sinagoga acolhe avidamente
a palavra de Paulo, "examinando, todos os dias, as Escrituras para ver se tudo era exacto". E eis que Paulo chega a Atenas. Todos os dias discute na Agora com os
gregos subtis e cultos, mas cépticos e levianos. Encontra-os no Areópago, onde anuncia um Deus desconhecido, único e invisível que fez a Terra e os homens e que
"fixou um dia para julgar o universo com justiça, por um homem que Ele destinou, oferecendo a todos uma garantia ao ressuscitá-Lo de entre os mortos". Um escravo
crucificado e saído do túmulo! Com risos zombeteiros, mandaram o orador de volta aos seus sonhos: "Ouvir-te-emos sobre isso outro dia!"
O pequeno judeu desce a Corinto, o porto cosmopolita onde, entre duzentos mil homens livres servidos por quatrocentos mil escravos, trabalham numerosos orientais
mais bem preparados que os gregos para receber a mensagem evangélica. Paulo, misturando-se com os pobres e os marinheiros - ele próprio faz-se tecelão de tecidos
de pêlo de cabra para tendas -, permanece dezoito meses em Corinto. E, depois de o seu ministério se ter iniciado "na fraqueza, no temor e em grandes atribulações",
Paulo adquire segurança e fala da Cruz sem receio de chocar o orgulho judeu ou de escandalizar a razão grega. É de Corinto - onde se organiza uma importante comunidade
cristã - que Paulo remete as suas duas cartas aos Tessalonicenses que quer fortalecer na fé, mantendo-os na esperança do retorno do Senhor. Após uma breve escala
em Éfeso, Paulo retorna à Síria por mar.
Mas, a partir da Primavera de 53, empreende a sua terceira viagem missionária, a mais longa. Escolhe Éfeso como quartel-general; Éfeso, a magnífica, emula de Alexandria,
estendida, inteiramente branca, sob o sol implacável, em torno do templo

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de Artemis ou Artemísia, uma das maravilhas do Mundo. Apesar de conduzir numerosas almas para Cristo, Paulo tem de travar em Éfeso aquilo que designará, na sua segunda
Epístola aos Coríntios, como o seu "combate contra as feras": "São ministros de Cristo? Como insensato digo: muito mais eu. Muito mais, pelas fadigas; muito mais,
pelas prisões; infinitamente mais, pelos açoites. Muitas vezes, vi-me em perigo de morte..." É de Éfeso que Paulo remete duas das suas mais belas cartas. Na Epístola
aos Gálatas, exorta-os e intima-os a sacudir definitivamente o jugo da Lei, depois de lhes relembrar a origem e a força da sua própria vocação. E com que soberano
júbilo enumera os "frutos do espírito", opostos aos frutos da carne: caridade, alegria, paz, paciência, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão e temperança!
A primeira Epístola aos Coríntios (Primavera de 57) tornou-se necessária devido às divisões que enfraqueciam a comunidade de Corinto; tratar-se-ia de uma ofensiva
de judaizantes ou da acção de gnósticos acobertados pela autoridade de um certo Apoio? A ética helénica e ao legalismo judaico, Paulo contrapõe a liberdade do cristão,
para quem a ressurreição de Cristo é justiça, santificação e redenção.
Paulo é forçado a sair rapidamente de Éfeso porque um fabricante de estatuetas de Artemis provocou um grande tumulto contra os cristãos que prejudicavam o seu negócio.
Vai para a Macedónia (Verão de 57), de onde envia aos Coríntios uma segunda epístola: um poderoso partido - difícil de identificar - minava a autoridade de Paulo;
daí que ele considerasse necessário relembrar o fundamento da sua autoridade. De Corinto, onde permanece três meses, escreve aos Romanos para pedir-lhes que o ajudem
numa viagem que, de Roma, deveria conduzi-lo à Península Ibérica.
Mas, antes disso, é preciso levar a Jerusalém o produto da colecta feita no Oriente a favor da Igreja-mãe. Parte de Filipos para Tróade, de onde ruma para Mileto.
Aos irmãos de Éfeso que foram vê-lo, confidencia os seus pressentimentos: "E agora estou certo de que nunca mais vereis o meu rosto. [...] Mas não considero preciosa
a minha vida, contanto que leve a bom termo a minha carreira e cumpra o ministério que recebi do Senhor Jesus..."

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Começa, então, a paixão de Paulo, de que se conhecem apenas alguns episódios. Em Cesareia, onde desembarca, tentam detê-lo, mas em vão; o Pentecostes judaico (em
58) já o vê em Jerusalém: a sua presença desencadeia a cólera daqueles que o consideram um traidor do judaísmo. Prestes a ser linchado, é preso como agitador. Para
não ser flagelado, usa a sua condição de cidadão romano, conseguindo que o levem até Cesareia, onde reside o procurador Félix, que faz arrastar o assunto durante
dois anos (58-60). O seu sucessor Festus, cansado de ouvir Paulo apelar para César, acaba por enviá-lo para Roma. Passando por Sídon, Creta, Malta e Puteoli, numa
travessia movimentada, Paulo chega à capital do Império, onde vive dois anos em liberdade vigiada, correspondendo-se com os fiéis de Colossos, Éfeso e Filipos. A
narrativa dos Actos detém-se aí.
As cartas pastorais - a Tito e a Timóteo, cuja autenticidade é contestada - deixam supor que o apóstolo sobreviveu ao primeiro cativeiro romano; o cativeiro, a que
a 71 Epístola a Timóteo se refere, seria a prisão no tempo de Nero. Segundo Eusébio, Paulo teria sido decapitado em Roma no ano de 67 e enterrado junto de Pedro.

2. A sementeira cristã

Na Igreja palestiniana - mais estruturada do que o mundo paulino -, Pedro era o chefe incontestado e, depois dele, Tiago. As viagens de inspecção de Pedro à Judeia,
à Samaria e até a Antioquia testemunham a irradiação da Igreja-mãe que, no entanto, mais do que as comunidades da Ásia e da Grécia, tinham dificuldade de se desembaraçar
dos laços muito fortes do judaísmo. Mas o que aconteceu com Pedro? "Uma coisa é certa - afirmava Renan -, Pedro morreu como mártir; e não se pode conceber que tenha
sido mártir noutro lado que não em Roma." Não se tem as provas absolutas; mas as investigações empreendidas por ordem de Pio XII provaram que, no século II, se sabia
que um mártir muito importante - e porque não Pedro? - tinha sido enterrado numa necrópole da colina vaticana.

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Pode afirmar-se que a primeira comunidade cristã de Roma foi fundada por Pedro? Parece mais certo que a semente do cristianismo tenha sido semeada em Roma por alguns
judeus vindos de Jerusalém, pouco depois do Pentecostes. Em 61, quando Paulo chega a Roma, os irmãos já são numerosos. Seja como for, a tradição católica sustenta
que Pedro permaneceu durante muito tempo na capital do Império, onde foi crucificado por volta do ano de 60. O primado de Pedro é transmitido ao chefe da Igreja
romana. Na memória dos cristãos, Pedro, saído da tradição judeo-cristã, e Paulo, o apóstolo dos gentios, permaneceram inseparáveis.
Na Palestina, as comunidades continuam a ter uma vida difícil. Em 62, Tiago foi executado. Depois de 70, Jerusalém foi esmagada e destruída por Tito; sobrevivem
alguns pequenos grupos de cristãos na Transjordânia; separados da grande corrente, transformar-se-ão em seitas heterodoxas contaminadas pelo agnosticismo e pelo
maniqueísmo.
Se a fisionomia de Paulo é esclarecida pelos textos sagrados e se a silhueta de Pedro e do próprio Tiago se perfilam, por vezes, no horizonte do século I, que sabemos
dos outros apóstolos e da sua acção apostólica? Nada ou quase nada. Eusébio e Rufino pretenderam que, após a morte de Tiago, foi designada a cada um deles uma zona
de acção: assim, a terra dos Citas (Sul da Rússia) a André, a da índia Citerior a Bartolomeu, a terra dos Partos a Tomé, a Etiópia a Mateus... Mas trata-se apenas
de uma bela lenda. No entanto, quem poderia acreditar que algum dos doze pudesse esquecer a directriz do Mestre: "Ide, ensinai todas as nações..."?
O autor do primeiro Evangelho - Mateus, o antigo publicano - revela uma rica personalidade, mas nada sabemos da sua vida. As lendas que cercam a história de João
- o apóstolo que Jesus amava - desaparecem diante do ardor dos seus escritos. Após a morte de Paulo, João está em Éfeso: parece ter sido, na Ásia, a mais elevada
autoridade espiritual do fim do século I. Tertuliano pretendeu que João sofresse em Roma, sob Domiciano, o suplício da água a ferver: teria saído são e salvo e,
relegado para Patmos, acabaria por morrer já centenário, em Éfeso. O quarto Evangelho - o de João - é um documento único

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que, no essencial, coincide com os sinópticos; mas João interessa-se menos pela Galileia, onde Jesus pregou e curou, do que por Jerusalém, onde se estabeleceu a
nova aliança; menos pelas parábolas de Cristo do que pelas reflexões sobre os mistérios de Deus: Jesus Deus, Verbo, Luz e Pão da Vida, Jesus formando um só com o
Pai, propagando a vida pelo amor. Sem dúvida, a ideia de um Verbo era familiar à filosofia da época; mas em João o Logos não é o pensamento de Deus, antes a sua
Palavra incarnada. Terá sido escrito algo mais prodigioso do que o famoso prólogo: "No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus"?
Quais são as causas da progressão assombrosa do cristianismo no decurso dos três primeiros séculos? Depois de Paulo e Pedro, o silêncio da História recai sobre a
actividade dos seus discípulos e seus sucessores, e nenhum nome de propagador ou de arauto chegou aos nossos dias. Mas essa obscuridade não foi infecunda. A Boa-Nova
foi transmitida de boca em boca por mercadores, viajantes, vendedores ambulantes, escravos libertos, judeus helenizados conquistados para Cristo ou gentios convertidos.
É verdade que a "missão" cristã beneficiou de um contexto histórico e geográfico privilegiado. Uma boa rede de relações humanas, facilitada pela segurança das estradas
e pela actividade dos portos, permitia que os homens e as ideias circulassem e se difundissem rapidamente. No caso do cristianismo, as inúmeras comunidades judaicas
da diáspora e, depois, as comunidades paulinas serviram naturalmente de apoio à evangelização. Não foi por acaso que os principais centros do cristianismo nascente
foram Antioquia, encruzilhada de caravanas, Éfeso, o grande porto da Ásia, Tessalonica, porta aberta para a Macedónia, Corinto, em contacto com o mar Egeu e o mar
Adriático, e Roma, o coração do Império.
Mons. Duchesne dizia justamente que o Império Romano foi "a pátria do cristianismo". De facto, foi Roma quem indicou à Igreja as suas primeiras fronteiras: a Pax
Romana favoreceu, no interior do Império, os intercâmbios necessários. Roma forneceu à Igreja cristã os seus quadros jurisdicionais: a cidade, a província e, mais
tarde, a diocese. De resto, sabe-se que o

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terreno espiritual - sobretudo nas costas orientais do Mediterrâneo - estava pronto para receber a semente cristã. O próprio Paulo se inspirara, na sua pregação,
no vocabulário e na ideologia do helenismo.
Não devemos considerar o cristianismo um sincretismo, o resultado de uma amálgama de religiões misteriosas com a gnose pagã, porque há dois elementos que estabelecem
a diferença essencial entre a religiosidade que reina no século I e a religião de Jesus pregada por Paulo: o constante recurso à Bíblia e à pessoa histórica de Cristo
- "Transmiti-vos, em primeiro lugar, o que eu mesmo recebi: Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo rezam as Escrituras. Foi sepultado, ressuscitou ao terceiro
dia, segundo as Escrituras. Apareceu a Cefas (Pedro) e depois aos Doze" (ICor 15,3-5). É esse cristocentrismo, ao lado da consciência da sua autonomia em relação
ao judaísmo, que faz a originalidade do cristianismo e a unidade das comunidades dispersas; é ele que dá um sentido típico ao termo que Paulo introduziu: a Igreja,
corpo de Cristo e centro vivo do reino de Deus.
Quaisquer que tenham sido as facilidades oferecidas pelo contexto do Império Romano e pelas preparações ideológicas, há um "milagre cristão", como houve um "milagre
grego", que encantava Bérulle: "Diante de um mundo poderoso, organizado e triunfante, um punhado de pobres homens sem instrução nem poder; o império eterno estabelecido
por pobres pescadores mudos como peixes, de entre os quais foram tirados sem intriga nem prudência, sem exército nem violência."
Diante de Jesus e dos seus humildes intérpretes, levanta-se um mundo no qual a virtude certamente não está morta; mas em que, apesar de tudo, oficialmente triunfam
o ouro e o estupro, a força e o gozo, o respeito medroso pelo mais forte e o desprezo pelo pobre; um mundo, cujos recursos materiais e espirituais são mobilizados
em proveito de uma aristocracia; um mundo, no qual a maioria dos homens constitui aquilo a que Toynbee chama "o proletariado interno": a massa de escravos, base
económica do Império; os peregrini, gente sem lar nem pátria, os humiliores, os tenuiores (1). Existem ainda matronas à

Nota 1: Os mais humildes, os mais fracos. [N do T.]

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antiga, mas uma sensualidade desenfreada é a expressão do desprezo pela mulher... Nesse mundo, o cristianismo propõe uma doutrina e uma vida cujos elementos essenciais
são a pureza, a caridade universal, a pobreza e o desapego das honrarias, elementos não totalmente novos, mas renovados e ressuscitados com Cristo.
No fim da era apostólica (ano 70), a Igreja cristã conta com inúmeras comunidades no Oriente: Síria, Ásia, Macedónia e Grécia. É provável que Alexandria tenha conhecido
o cristianismo antes do fim do século I. Para o Ocidente, os progressos são mais lentos. No início do reinado de Trajano (ano de 98), Roma é o único centro cristão
comprovado: parece que o cristianismo foi aí recrutar adeptos inicialmente entre os indivíduos oriundos do Oriente, de língua grega, essa língua que foi o primeiro
veículo do Evangelho.
Foi precisamente através dos orientais que se implantou, no século II, a primeira Igreja cristã da Gália, a de Lião, com os seus dois primeiros bispos, Fotino e
Ireneu, originários da Ásia; metade dos quarenta e oito cristãos martirizados, em 177, tinha nomes gregos. E foi também do Oriente que chegaram, no século II, os
fundadores da Igreja da África.
No decorrer do século III, a Igreja espalha-se por toda a parte: na Ásia, onde as comunidades se multiplicam e não somente junto das costas, na Síria, no delta e
no vale do Nilo e na Cirenaica. Para lá das fronteiras do império, alcança a Mesopotâmia. No Ocidente, da Ilíria à Hispânia são implantadas uma centena de igrejas:
a Itália Central, o Sul da Gália e a costa mediterrânica da Hispânia são as zonas mais favorecidas. A (Grã) Bretanha e a Sicília conhecem Cristo e encontram-se cristãos
nas cidades-fronteiras, face aos bárbaros, na margem esquerda do Reno e na margem direita do Danúbio. O Norte de África abre-se amplamente ao Evangelho: por volta
de 235, um concílio reúne uma centena de bispos em torno do bispo de Cartago.
Mas este nascimento da Igreja realizou-se no sofrimento.

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3. A Igreja que sofre

O Império Romano terá sentido a ascensão desta nova seiva? Antes do fim do século I, certamente não. O mais antigo documento oficial, em que se faz referência aos
cristãos data do ano de 112; trata-se da carta dirigida a Trajano por Plínio, o Jovem, procônsul na Bitínia, província na qual o cristianismo prosperava.
Durante muito tempo, a opinião pública confunde judeus e cristãos, e sobre ambos correm as mesmas maledicências: hábitos impuros, sacrifícios humanos... Em Roma,
no entanto, desde o reinado de Nero, parece que já se fez a distinção.
Nero! A História já depôs suficientemente contra essa personagem para que nós venhamos apertar ainda mais os seus grilhões, pois sabemos bem o que o imperador histrião
representa na tradição cristã. Na noite de 18 para 19 de Julho de 64, três quartos da cidade de Roma foram devastados por um incêndio que só seria dominado passados
seis dias: a opinião pública atribuiu o sinistro - parece que erroneamente - à loucura de Nero. Acusado, o imperador procura e encontra os culpados plausíveis: os
cristãos que o povo mal conhece, tendo-os por misantropos, ateus e homens dados a ritos orgíacos. E o circo de Nero, situado no local onde actualmente se ergue a
Basílica de São Pedro, assiste durante a noite de 15 de Agosto de 64, a uma das cenas mais atrozes de um reinado fértil em ignomínias: cristãos transformados em
tochas vivas iluminando os jogos e as orgias.
Tertuliano afirma que Nero deu um instrumento jurídico à sua acção contra os cristãos: o Institutum Neronianum, cuja proibição essencial era: "Non licet esse Christianos."
Os historiadores mostram-se divididos quanto a esse facto; mas, em todo o caso, não foi a razão de Estado que levou Nero (falecido em 68) a perseguir os cristãos.
A situação prolongou-se durante o tempo de Domiciano (81-96). Na última década do século I, a religião cristã fez grandes progressos, ganhando adeptos mesmo entre
os círculos vizinhos do imperador: assim, por exemplo, M. Flávio Clemente e Flávia Domitila, primos-irmãos de Domiciano, e Acílio Glábrio, um dos cônsules de 91.
O autoritarismo e os tiques

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físicos de Domiciano alimentam os sarcasmos da elite romana; por isso, o imperador procura atingi-la, castigando os cristãos, que são espoliados ou executados por
ateísmo. A perseguição parece ter sido particularmente violenta na Ásia.
Dois anos depois da morte de Domiciano, o Império cai nas mãos de Trajano (98-117), o optimus, que leva as qualidades de homem de Estado ao grau supremo. Trajano
vangloria-se de manter a antiga tolerância romana. Respondendo a Plínio, o Jovem, procônsul na Bitínia, que o consultara sobre a conduta a manter em relação aos
cristãos, fixa uma norma de conduta: os cristãos, com efeito, são ateus; se convictos, devem ser punidos, mas não se deve procurá-los e deve deixar-se de lado as
denúncias anónimas: todo o inculpado que se arrepender deve ser libertado. Este "rescrito" de Trajano (112) iria fazer jurisprudência, embora a atitude do poder
a respeito dos cristãos, no decurso dos séculos II e III, não seja nada clara. Os grandes Antoninos: Adriano (117-138), Antonino, o Pio (138-161), e Marco Aurélio
(161-180) nada fariam para agravar a legislação anticristã; mas, aqui e ali, eclodiriam chamas de antagonismo e tombaram mártires, devido às pressões do povo sobre
o poder local, pois é inegável que a cólera popular, alimentada por maledicências, invejas, aborrecimento ou patriotismo exagerado arrastou mais de um cristão aos
seus tribunais e ao suplício: a multidão sempre se mostrou covarde em relação às minorias e às pessoas vigiadas pela polícia.
Mais hostis foram os Severos. Septímio Severo (193-211) assina, em 202, um rescrito que visa, ao mesmo tempo, os judeus e os cristãos: é proibido não só fazer-se
cristão, mas também "fazer" cristãos; a justiça não deve apenas esperar as denúncias, mas igualmente procurar os cristãos: é, sobretudo, no Egipto e em África, onde
o cristianismo progride rapidamente, que esse rescrito faz mais vítimas.
O cruel Caracala (211-217), Heliogábalo, um oriental desequilibrado (218-222), e o religiosíssimo Alexandre Severo (222-235) deixam adormecida a legislação precedente.
Quiseram fazer de Alexandre Severo um admirador de Cristo, o que é certamente falso; aliás, o seu reinado foi marcado, esporadicamente, por execuções de cristãos
denunciados pela multidão.

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Fenómeno idêntico no tempo de Filipe, o Árabe (244-249), transformado abusivamente em cristão. No entanto, é verdade que, em meados do século III, houve entre os
funcionários do Império mais de um discípulo de Jesus: "Nós enchemos os campos, as cidades, o Fórum, o Senado e o Palácio", escrevia Tertuliano, com algum exagero,
levado pela sua consciência de cristão.
A grande vaga de perseguições desencadeou-se na época do valoroso Décio (249-251), preocupado com que o envelhecido Império regressasse às virtudes e ao culto da
antiga Roma. Em 250, todos aqueles que, no território do Império, beneficiassem do direito de cidadania romana, eram obrigados a manifestar expressamente (através
de um sacrifício, de uma libação ou da participação numa refeição sagrada) a sua adesão à religião oficial: certificados (libelli) atestarão o facto e os infractores
poderão ser punidos com a morte. A aplicação desse édito provoca muitas abjurações, mas também encontra alguns resistentes que dão origem a numerosos martírios em
Roma, na Ásia, no Egipto e em África.
Valeriano (253-260), através de dois éditos, agrava essa legislação, visando a cabeça do corpo cristão: bispos, padres e diáconos; a Igreja de África é dizimada.
Sobrevêm oito anos de paz sob o reinado de Galiano (260-268), inimigo das desordens policiais. Aureliano (268-275) não tem tempo de impor ao Império o seu sincretismo
solar.
Quando, após dez anos de anarquia, Diocleciano assume as rédeas do Império (284), o Mundo conhece um mestre, cujas reformas profundas permitiriam que Roma manifestasse
um derradeiro esplendor. Mas a vontade imperial de unificação administrativa e religiosa, a impossibilidade para os cristãos de associar o culto de Jesus ao rito
da adoratio - essencial aos olhos de Diocleciano e de Maximiano, seu associado - e o papel cada vez mais importante desenvolvido pelo cristianismo na sociedade romana
explicam suficientemente a duração (303-313) e a violência da última perseguição, à qual o nome de Diocleciano permaneceu definitivamente ligado. Houve muitos mártires,
ainda que, em muitos locais, as ordens vindas de cima tenham sido amortecidas pelo enfraquecimento das posições pagãs ou pela coabitação fraterna entre pagãos e
cristãos.

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Seria ilusório querer enumerar os mártires dos três primeiros séculos bem como os apóstatas, os lapsi, particularmente numerosos, parece, na África do Norte. Aqui,
a severa hagiografia deve tomar o lugar das lendas, por mais belas que sejam.
As Actas e as Paixões dos mártires - as mais antigas peças hagiográficas - foram, por vezes, retocadas, num sentido edificante, a ponto de se transformarem em verdadeiras
canções de gesta cíclicas, aparecendo aí invariavelmente - como nos filmes de zvesterns - os elementos da epopeia: o imperador malvado ou o procônsul dissoluto,
o carrasco cuja mão treme, as pretensas testemunhas oculares, interrogatórios prolixos e estereotipados, o terrífico arsenal de torturas, o abuso dos bons, os enterros
durante a noite... As Actas de Sta. Cecília, de Sta. Tecla, de S. Sebastião, a Paixão de S. Julião encontram-se entre os mais célebres desses romances piedosos.
Dispomos de testemunhos suficientes em primeira mão, cuja brevidade é garantia de autenticidade, para nos convencer de que muitos cristãos se mostraram corajosos
perante a morte e que as Gesta Martyrum têm um valor de apologia. Em 177, por exemplo, uma carta-circular dirigida pelas Igrejas de Lião e de Viena às Igrejas da
Ásia, relativa à morte do bispo Fotino e dos seus companheiros - entre os quais a escrava Blandina - fornece um relato sem ênfase, mas individualizado, dos sofrimentos
dos cristãos. As Actas dos mártires cilicanos - levados de Scillicum para Cartago em 180 - são um breve diálogo, certamente estenografado, entre o procônsul Saturnino
e Speratus, porta-voz dos seus humildes companheiros. O mesmo tom de autenticidade se regista nas Actas proconsulares de S. Cipriano, bispo de Cartago (258), de
S. Frutuoso, bispo de Tarragona, e dos seus diáconos (259), de S. Maximiliano, o conscrito de Tebessa (295), de S. Marcelo, o centurião, em Tingi (Tânger) (296),
de S. Fileias de Tunes (305), etc.
Muitas vezes se repetiu que o "sangue dos mártires foi uma semente de cristãos". Incontestável e etimologicamente, um mártir é uma testemunha e o seu testemunho
- por vezes voluntário - tem um valor apologético; tem também um valor redentor, sendo uma vitória sobre o mundo e Satã. Considerado como o grau culminante da santidade,
o martírio aureola

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os seus eleitos com uma veneração de que é testemunho a própria Eucaristia que era, e ainda é, celebrada sobre os seus túmulos. Mas era a um testemunho perpétuo
que cada um dos membros da Igreja cristã era chamado.

4. A Igreja que vive

Quando se pretende evocar a vida dos cristãos dos três primeiros séculos, é inevitável que se imponham as imagens coloridas dos superfilmes americanos ou italianos:
Barrabâs, Quo Vadis, Ben Hur e muitos outros. Os cristãos aparecem aí como um tímido grupo conduzido por anciãos trémulos - a não ser que se revelem possuídos por
um profetismo grandiloquente. Desta multidão gemente, destaca-se um belo hércules apaixonado por uma frágil pagã ou sobressai uma linda cristã cortejada pelo filho
de um procônsul: o amor impele-os para o pé da cruz e, mais tarde, para a arena ensurdecedora invadida pelas feras. De qualquer forma, o heroísmo tenso de "Polieucto"
é mais sadio do que a suave graça da "Fabíola" de Wiseman.
Ao relermos os documentos sobre a vida cristã dos primeiros séculos, deixados por Tertuliano, Orígenes, Clemente de Alexandria ou Hipólito, ficamos com uma impressão
muito diferente. Os cristãos não se distinguem dos outros homens por nenhum pormenor exterior; participam inteiramente da vida da cidade, mas os seus chefes exigem
que eles, perante os costumes pagãos - excessos de luxúria, comezainas, espectáculos obscenos ou cruéis e divórcio -, reajam com firmeza. O Evangelho deve dar forma
às relações quotidianas. Pede-se a homens fracos uma atitude viril, um controlo permanente dos seus gestos e dos seus pensamentos. A iniciação dos catecúmenos e
a reconciliação dos pecadores não são formalidades ou ritos destituídos de sentido: exigem uma força e uma humildade singulares.
No século II, o catecumenato comporta três fases: uma, durante a qual os audientes (1) são instruídos na vida cristã e se

Nota 1: Ouvintes. [N. do T]

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exercitam praticando-a; outra que é a preparação imediata dos electi (1); e, finalmente, o baptismo por tripla imersão, precedido de exorcismos, de uma longa vigília
e seguido pela imposição das mãos, verdadeiro sacramento (confirmação).
A disciplina da reconciliação (sacramento de penitência) abrange: a confissão do pecado ao presbítero ou ao bispo; a exclusão pública do pecador que passou para
a categoria e grupo dos penitentes; a reconciliação que tem lugar na Páscoa, como o baptismo. Para os casos de adultério, de homicídio e de apostasia, a penitência
dura muito tempo, por vezes até à morte. Os mais exigentes chegam ao ponto de advogar que a reconciliação seja negada nos casos graves de reincidência.
Assim é, porque, de facto, nem todos os cristãos foram necessariamente heróis. O livro de Hermas - escrito em meados do século II - demonstra que, embora a Igreja
contasse, então, com numerosos santos e mártires, muitos cristãos apegavam-se aos bens deste mundo; ricos que, nas assembleias, se recusavam a ficar junto de pessoas
humildes; diáconos que traíam os interesses temporais de que eram responsáveis; a apostasia era um escândalo muito comum. A Igreja avançava lentamente; mas, como
o seu Mestre a caminho do Gólgota, por vezes também ela tropeçava.
Os centros cristãos são essencialmente "comunidades", em que os ritos de reuniões desempenham um papel capital: assembleia eucarística a que preside o bispo cercado
de presbíteros, com a oração de consagração e a distribuição do pão eucarístico ao povo; assembleias quotidianas de instrução, com leituras e homilias, e ágapes
fraternas.
Inicialmente, os cristãos reuniam-se numa sala posta à disposição por um deles. No século III, já encontramos lugares de culto autónomos, que pouco a pouco são construídos
segundo uma arquitectura específica (tipo basilical). Os cristãos dispõem, a partir do século II, de cemitérios próprios: primeiro, cemitérios de superfície e, depois,
sobretudo em Roma, em galerias subterrâneas ou catacumbas, onde o culto cristão se refugia em tempos difíceis: aí se desenvolve uma arte protocristã

Nota 1: Eleitos ou escolhidos. [N. do T]

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frescos, mosaicos e sarcófagos -, evocando a vida cristã e fornecendo um alimento perpétuo à catequese.
No fim do século II, a hierarquia parece fixada uniformemente nas comunidades cristãs. Na cúpula, o bispo, designado pelo povo; abaixo dele, os presbíteros e os
diáconos, ordenados pelo bispo, e como auxiliares activos: os acólitos, os leitores, os exorcistas e os ostiários. Em meados do século III, contam-se em Roma quarenta
e seis presbíteros, sete diáconos, quarenta e dois acólitos, cinquenta e dois clérigos menores. A população cristã está dividida em sete regiões, tantas quantas
o número de diáconos. O pessoal eclesiástico, além do serviço litúrgico, dedica-se também a funções administrativas e de assistência: em Roma, por exemplo, mil e
quinhentos pobres estão permanentemente a cargo da comunidade cristã. O primado do bispo de Roma, a sua influência doutrinal - quando não disciplinar - é, segundo
Sto. Ireneu, "uma tradição apostólica"; no entanto, acerca dos primeiros papas, quase só conhecemos os nomes.
A escala da província e mesmo da diocese, impõe-se pouco a pouco a autoridade do metropolita (mais tarde, designar-se-á por arcebispo e patriarca). Junto das ordens
eclesiásticas hierarquizadas, a Igreja primitiva cria um lugar para os confessores, ou seja, os cristãos que foram presos por causa da fé, para as viúvas, futuras
diaconisas, e para as virgens. A superioridade da virgindade sobre o casamento é, desde logo, admitida; no entanto, alguns advogam mesmo o encratismo, a renúncia
ao casamento, considerada como condição de ingresso na Igreja. Este excesso filia-se em numerosas deformações que representam um perigo constante para a cristandade
nascente e, de modo especial, no gnosticismo.

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Capítulo III
A IGREJA QUE FALA

1. Ireneu perante a gnose

A gnose é uma ciência religiosa, uma forma de conhecimento superior. O gnóstico pretende possuir relativamente aos problemas angustiantes da metafísica um conhecimento
directo, intuitivo, total e beatificante: não é um "fiel", mas um "iniciado". Os gnosticismos - porque são muitos - revelam convicções comuns: o carácter essencialmente
mau das operações da matéria e da carne; a infelicidade do homem, prisioneiro do seu corpo, do mundo, do tempo e da sua alma inferior pecadora, porque ele tem uma
alma celeste. O fundamento da gnose é o dualismo.
A carne, a gnose opõe o espírito; ao criador do mundo visível - o demiurgo -, opõe um deus desconhecido, que é luz e bondade. Os gnósticos cristãos dos primeiros
séculos oporiam o homem-Jesus ao Verbo. Porque, embora possa ter existido uma gnose pré-cristã, especialmente judaica (os essénios de Qumrã), uma gnose judeo-cristã
(os ebionitas) e uma gnose extracristã (mandeísmo, sabeísmo) que sobreviveu na Mesopotâmia, a verdadeira gnose desenvolveu-se, em particular, durante os primeiros
séculos cristãos.
Como os seus congéneres, os gnósticos cristãos têm como referência ensinamentos misteriosos e vão buscá-los em parte

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a numerosos evangelhos apócrifos. A maioria recusa-se a acreditar na incarnação e na morte de Cristo; na sua opinião, os sacramentos cristãos não diferem dos mistérios
pagãos e das iniciações ocultas. As suas posições morais são extremas: ou um ascetismo desumano ou um amoralismo total, dado que aqueles que possuem a gnose salvadora
estão colocados acima das leis morais instituídas pelo demiurgo.
O cristianismo primitivo na Ásia, na Síria e no Egipto, testemunha uma proliferação das confrarias gnósticas. O Apocalipse de João denuncia dois grupos de gnósticos
asiáticos: os discípulos de um certo Balaão e os nicolaítas que amaldiçoavam o Deus do Antigo Testamento e praticavam o libertinismo absoluto.
Mas o chefe de seita mais prestigiado é Simão, o Samaritano, também chamado o Mago ou o Mágico, personagem muito culta que os seus discípulos consideram o primeiro
deus, adversário dos anjos criadores do mundo. As confrarias simonianas espalham-se por toda a parte, até mesmo em Roma. Samaritano como Simão, Menandro apresenta-se
como um mágico imortal, semelhante a Cristo.
Na cosmopolita Alexandria, a gnose floresce com Basilides, fundador de um culto de mistérios, no qual só se podia ingressar apenas passados cinco anos de silêncio
completo. Nela, Carpócrates é objecto de uma adoração póstuma. Valentim vai de Alexandria para Roma na época do papa Higino e disputa a sucessão de Pio: a sua teologia
poderosa seduz muitos cristãos. Marcião (falecido cerca de 160) foi a Roma na mesma época de Valentim; exagerando o pessimismo paulino perante a carne e a criação,
rejeita totalmente os ensinamentos do Antigo Testamento; as Igrejas marcionistas multiplicam-se no mundo mediterrânico, mas, sobretudo, na Mesopotâmia, onde abrem
caminho ao maniqueísmo.
Para a Igreja nascente, a gnose representa um perigo mortal, porque corrompe a ideia judaica da transcendência divina. Ela confunde os mistérios cristãos e a ideia
paulina da miséria do homem com o esoterismo das religiões antigas. O misticismo impreciso, mas tentador, e o pessimismo fundamental do gnosticismo ameaçam desviar
a esperança cristã - alimentada pela

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crença num Homem-Deus histórico - para um desejo de libertação próximo do nirvana. Exasperando a ascese ou, pelo contrário, os desejos da carne, a gnose coloca-se
contra a moral evangélica, feita de mansidão e equilíbrio. Todo o corpo da Igreja visível está ameaçado de morte. Ainda mais quando um sacerdote frígio de Cibele
convertido ao cristianismo, Montano, pretende que a preeminência da Igreja pertença não aos bispos, mas aos profetas, em virtude da iminência da parúsia.
Face a essas doutrinas efervescentes, face à gnose e ao montanismo, ergue-se Ireneu, bispo de Lião (França), que é a voz do corpo eclesial. Este grego de Esmirna
conheceu Policarpo, discípulo do apóstolo João. Sabe onde estão as fontes do cristianismo e é capaz de distinguir a corrente evangélica, através dos solavancos da
história. Aos chefes de seitas, ele opõe a autoridade colegial e institucional dos bispos, autoridade oriunda dos apóstolos e da qual a Igreja de Roma é depositária.
Às doutrinas extravagantes, em que o sublime convive com o insólito, opõe a regra da fé cristã, tal como provém das Escrituras e chegou aos fiéis através da tradição
apostólica. Ireneu recapitula tudo em Cristo: a história dos homens - incluindo o Antigo Testamento - e o próprio homem. A seus olhos, a unidade é a própria condição
da vida da Igreja e essa Igreja não é uma justaposição de confrarias, em que cada uma, isoladamente, pretende penetrar mais profundamente no mistério de Deus; mas
é uma comunidade humana em marcha para um Deus ressuscitado: Ubi Ecclesia, Ibi Spiritus. Eis porque o Adversus haereses de Ireneu é, na História da Igreja, um livro
capital.

2. Uma apologia pela pena e pelo sangue

Ireneu morreu mártir? Há dúvidas. Outros, antes ou depois dele, acrescentaram o testemunho da sua morte ao das suas palavras e escritos. De entre eles, destaca-se
Inácio de Antioquia (falecido em 107) e Policarpo de Esmirna (falecido em 155).
Bispo de Antioquia, talvez nomeado por Pedro ou por Paulo, Inácio foi condenado às feras no tempo de Trajano; mas, para sofrer esse martírio, teve de fazer a longa
viagem até Roma,

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guardado por dez soldados. Em Esmirna, onde Policarpo o recebe, avista-se com os delegados das Igrejas do Oriente e daí escreve a cada uma delas e também aos Romanos
para os prevenir da data aproximada da sua chegada e transmitir-lhes a alegria que sente em morrer para dar testemunho de Cristo. As sete cartas - autênticas - que
ficaram deste mártir são um monumento precioso: evidenciam, contra o docetismo, o carácter simultaneamente divino e humano da pessoa de Jesus, a autoridade unificadora
dos bispos e a catolicidade da Igreja no início do século II.
Policarpo, o anfitrião de Inácio, anuncia aos Filipenses que, em breve, irão receber o relato do martírio do bispo de Antioquia. E ele próprio deverá renovar a gesta
inaciana. Na época de Antonino, perseguido durante muito tempo pela polícia do procônsul Quadratus, Policarpo, quase centenário, é preso e, depois, levado montado
num burro, ao centro do anfiteatro de Esmirna, repleto de espectadores ávidos. Quadratus, manifestamente impressionado pelos gritos da multidão, interpela-o: "Blasfema
e eu te soltarei! Insulta Cristo!", mas o velho replica: "Já há noventa anos que O sirvo e Ele nunca me fez mal. Por que motivo haveria eu de O renegar?" O interrogatório
é breve e a fogueira que devora Policarpo é feita pelos espectadores que invadem a arena. A carta com a qual os cristãos de Esmirna descrevem o relato dessa morte
alimentará o fervor de várias gerações de cristãos na Ásia.
Justino, morto como mártir em Roma por volta de 165, é um filósofo grego convertido: colocou a sua dialéctica ao serviço do cristianismo que considera o florescimento
do ideal platónico. É o mais destacado dos apologistas do século II - Aristides, Apolinário, Melitão... - que, dirigindo-se directamente ao chefe do Império, procuram
demonstrar-lhe que, longe de renegar o helenismo, o cristianismo transcende as suas riquezas.
Mas é em Alexandria e em África que a jovem Igreja encontra os seus defensores mais bem preparados. Enquanto, aos olhos dos poderosos, o cristianismo não passa de
uma seita de gente humilde - "uma religião de cardadores, sapateiros e lavadeiras", como ironiza Celso -, aqueles dois focos permitem

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que a nova religião possa dialogar, sem ridículo, com o
pensamento greco-latino.

3. Dois pólos de pensamento cristão: Cartago e Alexandria

Em Cartago, os cristãos são em grande número e empregam quase exclusivamente o latim na liturgia. Foi Tertuliano (155-220) quem deu à Igreja de África e a toda a
latinidade a sua linguagem teológica, tão diferente do estilo oriental.
Personalidade fora de série, este Quintus Septimius Florens Tertullianus, cartaginês, filho de centurião, fez estudos que lhe permitiram exercer em Roma, na época
de Septímio Severo, o cargo de advogado. Foi, talvez, o espectáculo da morte dos mártires que o levou ao cristianismo. Regressando a África, como presbítero, chefe
dos catecúmenos, coloca todo o seu entusiasmo e talento - poder-se-ia mesmo dizer o seu génio - de jurista e de polemista ao serviço de um ideal cristão que coloca
num ponto muito alto, mesmo demasiado alto, desumanamente inacessível. Porque Tertuliano pertence à classe dos convertidos intransigentes, à dos Rance, dos Veuillot,
dos Huysmans e dos Bloy, cujo bisturi nem sempre respeitou a carne boa. Embora se possa lamentar que Tertuliano - como mais tarde La Mennais - tenha chegado a injuriar
e depois a deixar a Igreja-mãe julgada demasiado sonolenta.
O latim do século III deixou poucas obras tão substanciais como Ad martyres, exortação ao martírio, ou De Praescriptione haereticorum, método de combate baseado
na autoridade jurisdicional e histórica da Igreja. E esse Apologeticum, onde a erudição do escritor reforça a veemência da sua fé para combater a idolatria! Mas
já nesta obra se revela o rigorismo moral de Tertuliano, a impossibilidade que ele experimenta de partilhar a vida de uma cidade ainda pagã. Pouco a pouco, chega
ao ponto de só respeitar os fiéis "pneumáticos" - aqueles que acreditam estar em contacto directo com o Espírito -, esmagando com o seu desprezo e crueldade os fiéis
comuns, ao mesmo tempo que acentua as mesquinhezes da vida quotidiana: espectáculos, modas e segundas núpcias, nada escapa aos seus ataques.

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No seu tratado De Poenitentia, Tertuliano ergue-se com veemência contra a longanimidade do papa Calisto que admite a remissão de todos os pecados e, depois, afunda-se
lentamente no esquecimento daqueles que desligaram as suas ágeis canoas do grande e pesado barco da Igreja. Tomando o lugar de Tertuliano, eis Cipriano (Thascius
Caecilius Cyprianus), que foi bispo de Cartago desde 248 até à sua morte, ocorrida por decapitação, em 258. O juridicismo latino faz com que o Ocidente cristão se
preocupe menos com o ascetismo e a teologia do que com a disciplina. Na sua obra-prima De Unitate Ecclesiae, Cipriano insiste na autoridade unificadora do bispo
na comunidade cristã e afirma o primado de Roma, não a considerando incompatível com a colegialidade dos bispos.
Em Alexandria, centro do helenismo cristão, o clima é bem diferente. Enquanto na África latina, a fé se orienta para a acção, no Egipto, floresce uma cultura refinada,
uma literatura especulativa que atinge pontos culminantes, desembocando na miraculosa síntese da filosofia grega com o espírito evangélico. Uma escola cristã alexandrina
havia sido fundada por um tal Panteno, de quem foi discípulo Clemente (falecido por volta de 215) que deu renome a essa escola. Tanto na sua cátedra como nos próprios
escritos - o Pedagogo, os Stromata... -, Clemente de Alexandria quer demonstrar que existe concordância entre a sabedoria antiga e o Evangelho: multiplica as analogias,
aproximando a Bíblia dos poemas de Hesíodo e de Homero (o bonito quadro das raparigas de Jetro comparadas a Nausica na caminhada para o lavadouro!); mas, ao mesmo
tempo, insiste na unidade da Revelação disseminada pelo Verbo nas diversas culturas. Tudo isso está muito longe do judeo-cristianismo e da austeridade de Tertuliano:
que o cristão nunca se esqueça de que é cristão, mas que assuma, sem fanfarronice nem vergonha, o seu lugar na cidade terrestre. Se a Igreja romana não admitiu Clemente
no seu martirológio foi porque ele, nos seus Stromata, desenvolveu estranhas teorias sobre a gnose. E semelhante desventura aconteceria também a Orígenes, outro
grande alexandrino do século III.
Filho de um mártir, Orígenes estava destinado às letras profanas quando o bispo de Alexandria, Demétrio, lhe pede

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para o ajudar como catequista. Nessa qualidade, o jovem toma contacto com a apologética cristã, mas, sentindo-a muito frágil diante da dialéctica grega, passa a
estudar a filosofia neoplatónica. De 212 a 231, Orígenes dirige em Alexandria e, depois, em Cesareia na Palestina, a Didascália, uma espécie de universidade, onde
todos os conhecimentos humanos são recapitulados à luz do Evangelho.
A obra escrita de Orígenes é colossal: trabalhos sobre as Escrituras, exegéticos - entre os quais as célebres Hexaplas, primeiro monumento da crítica cristã -, apologéticos,
polémicos... e uma correspondência importante. É claro que algumas afirmações origenistas - crença na eternidade da matéria e na preexistência das almas - foram
condenadas como erradas, mas Orígenes teve o mérito de abrir caminho a quase todas as ciências sagradas.
Pela refutação que Orígenes promoveu (Contra Celsum), conhece-se o Verdadeiro Discurso do filósofo pagão Celso, que vê no cristianismo apenas ilogismo e estupidez.
Não pensemos que os apologistas cristãos não encontraram nenhum adversário. A reacção pagã desenvolver-se-ia até ao século V.
Uma primeira forma dessa reacção foi o sincretismo, que faz de todos os deuses - incluindo o deus dos judeus e o deus dos cristãos - uma mesma divindade panteísta.
Apolónio de Tiana e Numério são os dois mais célebres representantes dessa tendência.
Mais vigoroso é o ataque conduzido pela escola neoplatónica, fundada em Alexandria, no século II, por Amónio Saca. Conta entre os seus discípulos Plotino (205-270),
que elaboraria uma doutrina baseada essencialmente no platonismo, do qual Plotino aproveitou sobretudo a metafísica, colocando-a na base de uma moral da pureza,
condição de elevação da alma até ao Uno. Fervoroso adepto do helenismo, Plotino não persegue os cristãos, mas só conhece o cristianismo - uma religião sem ética
- na sua versão deformada pela gnose.
Com Porfírio (cerca de 234-305), discípulo de Plotino, e Jâmblico (cerca de 250-330), o neoplatonismo torna-se violentamente anticristão. Baseando-se na filologia
e na história, estes filósofos

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examinam criticamente o texto da Bíblia, insistem nas divergências entre os relatos evangélicos, indignam-se com a Paixão de Jesus e só descobrem no cristianismo
incoerências e mentiras. Os quinze livros que Porfírio elaborou contra os cristãos, e que foram destruídos em 448, constituem a mais forte maquinação montada no
século III contra a religião de Jesus. No entanto, isso não impede que esta, no alvorecer do século IV esteja pronta a suceder ao paganismo.

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II
A IGREJA PEDAGOGA DO OCIDENTE

Capítulo I
DE CONSTANTINO A TEODÓSIO

1. Constantino ou a emergência

Quando, em 305, Maximiano e Diocleciano abdicam a favor de Constâncio e de Galério - que completaram a tetrarquia, designando como césares Severo e Maximino Daia
-, o Império penetrou num período obscuro: lutas breves, mas implacáveis, opuseram os imperadores ou os seus filhos.
Foi através de Constantino, filho de Constâncio, que o Império reencontrou a unidade e a paz. Em 28 de Outubro de 312, vindo da Gália, Constantino esmagava e matava,
na ponte Milvius, diante dos muros de Roma, o filho de Maximiano, Maxêncio. Seis meses mais tarde, Licínio, que Galério designara como augusto por ocasião da morte
de Severo (307), batia, na Trácia, Maximino Daia, levando-o ao suicídio. Já não havia mais que dois imperadores: Constantino em Roma e Licínio na Nicomedia.
Ao mesmo tempo, o cristianismo emergia da clandestinidade, porque, com a instalação de Constantino no coração do Império, realizava-se um milagre que o próprio Tertuliano
acreditaria ser impossível: um imperador cristão. Quando é que Constantino abraçou o cristianismo? Foi na Gália? E por que influências? E ele quem era? Eis algumas
das questões a que os historiadores não cessam de dar as mais diversas respostas. Devemos acreditar no bispo Eusébio de Cesareia - o historiógrafo

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de Constantino - que fez dele um modelo de virtude? Ou no pagão Zózimo que viu nele o responsável pela decadência romana? Deve dar-se fé ao episódio lendário, segundo
o qual, junto da ponte Milvius, os soldados de Constantino colocaram nos seus escudos o símbolo cristão, pois o vencedor de Maxêncio tivera uma visão que apresentava
a cruz de Cristo com a inscrição: Neste sinal vencerás? O facto de Constantino só ter pedido o baptismo no leito da morte (337) será uma prova de falta de fervor
cristão, apesar de os baptismos tardios serem frequentes na Igreja primitiva?
O certo é que, desde o início do seu reinado, Constantino manifestou, em relação ao cristianismo, uma simpatia militante de que é prova evidente aquilo que se designou
impropriamente o Édito de Milão (313). Trata-se menos de um acto jurídico do que dos resultados concretos das conferências realizadas em Milão entre Licínio e Constantino:
esquecimento do passado, total liberdade dos cultos, reparação dos prejuízos sofridos pelos cristãos. Na realidade, só com Teodósio (390-395) é que a situação privilegiada
do paganismo cessou totalmente a favor do cristianismo.
Embora a amizade de Constantino para com os cristãos tenha contribuído para preparar essa mudança, no Oriente, Licínio, permanecendo pagão, contentava-se em ser
tolerante. No Ocidente, desde 323, os símbolos cristãos começam a substituir os signos pagãos nas moedas; as basílicas - de configuração rectangular, com naves sobre
colunas e tectos com vigas aparentes - multiplicam-se em Roma e em todo o Império; o vocabulário cristão infiltra-se na legislação; os filhos do imperador são criados
no cristianismo, exemplo contagioso num Estado romano fortemente monarquizado. E não só: os julgamentos dos tribunais episcopais são oficialmente válidos e as Igrejas
têm a faculdade de construir um património próprio. No entanto, a famosa "doação de Constantino" ao papa Silvestre não passa de lenda forjada somente no século VIII.
Quando Constantino, desembaraçando-se de Licínio, se torna o único senhor do Império, transforma Bizâncio na esplêndida Constantinopla (324), criando uma "nova Roma"
especificamente cristã.

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2. Uma ameaça para a Igreja: a ingerência do Estado

Entretanto, Constantino permanecia na linha autoritária de Diocleciano. Aliás, no século IV, seria impensável uma separação entre o temporal e o espiritual. Assim,
o imperador não se limitou a interessar-se pela Igreja cristã, mas quis ser também a sua "eminência parda", preocupado tanto com os interesses do Estado como com
os dos fiéis de Cristo. Foi ele quem convocou e presidiu ao primeiro concílio ecuménico, em Niceia, no ano de 325, e decidiu as medidas que seriam tomadas contra
os hereges, embora, três anos mais tarde viesse a tornar-se protector deles. Poder-se-á, então, falar de césaro-papismo? Esta expressão é anacrónica, quando aplicada
ao século IV. Mas não é menos verdade que a Igreja se tem mostrado profundamente marcada - e até aos nossos dias! - pela sua experiência de cristandade constantiniana.
É durante a crise ariana que o peso do império se mostra mais forte. Por volta de 320, um padre de Alexandria, Ario, começou a ensinar que Jesus, a primeira das
criaturas, apenas possuía uma divindade secundária e subordinada. Forçado pelo bispo Alexandre, um concílio egípcio condenou Ario que se sabia apoiado por diversos
teólogos orientais. Em breve, todo o Oriente estaria envolvido na querela, embora um concílio geral, reunido em Niceia (325), graças aos cuidados do imperador, definisse
que o Filho de Deus foi gerado pelo Pai, não criado, consubstancial ao Pai, e Se fez carne para a salvação dos homens. A paz não surgiu em Niceia porque, divididos
sobre o sentido da palavra consubstancial os bispos hesitaram entre fórmulas diversas. A fé nicena encontra um arauto na pessoa do jovem bispo de Alexandria, Atanásio,
que Constantino - agora, já partidário de Ario - mandou exilar para Tréveros (336). No tempo de Constâncio II, imperador único, e, depois, no Oriente, no tempo de
Valente, também ele príncipe ariano, a confusão chegou ao seu ponto culminante.
Foi necessária a autoridade de Teodósio (379-395) para que, por um édito assinado em Tessalonica (28 de Fevereiro de 380), todos os povos submetidos ao Império fossem
chamados "a aderir à fé transmitida aos Romanos pelo apóstolo Pedro, ou seja,

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à fé professada pelo pontífice Dâmaso e pelo bispo de Alexandria, que consiste no reconhecimento da Santíssima Trindade do Pai, do Filho e do Espírito Santo". O
segundo concílio ecuménico, reunido em Constantinopla, em 381, por pressão de Teodósio, fez triunfar a fé nicena. O catolicismo ortodoxo tornava-se a religião oficial
de todo o mundo romano. Teodósio ia mais longe: empreendeu a destruição do velho politeísmo romano e, ao mesmo tempo, beneficiou o cristianismo com múltiplos privilégios
fiscais e judiciais. Os bens confiscados dos templos pagãos foram entregues às igrejas que, amiúde, ajudadas pelos benefícios imperiais, se tornaram muito ricas.
Poderá dizer-se que, desde então, a Igreja se terá enfeudado ao Estado? Não há dúvida de que ela se cola à estrutura administrativa aperfeiçoada por Diocleciano:
cada cidade com o seu bispo, cada província com o seu metropolita. Mas, enquanto os funcionários imperiais eram "nomeados" pelo imperador, os bispos eram pastores
livremente eleitos pelo clero local e pela população, de tal maneira que a autoridade religiosa era bem distinta da autoridade civil; fundamento de uma monarquia
de direito divino, a Igreja representava também um poder espiritual, sem o qual o próprio Império já não se poderia conceber. Além do mais, a decadência do Império
no Ocidente, no século V, não foi acompanhada pela queda da jovem Igreja.
Porque esta Igreja já está fortemente organizada: o primado da cátedra de Pedro que é perceptível, sobretudo, no notável pontificado de Dâmaso (366-384); a importância
dos sínodos provinciais e dos concílios ecuménicos; a autoridade dos metropolitas e dos bispos que, por seu turno, asseguram a colegialidade necessária; a livre
circulação das instruções e das ordenações canónicas, e a fluidez favorável à irradiação de fortes personalidades como Atanásio de Alexandria e Ambrósio de Milão.
A partir dos finais do século IV, operam-se grandes agrupamentos regionais, normalmente em redor dos mais antigos centros cristãos: Constantinopla, Antioquia, Jerusalém
e Alexandria.
Assim, quando Teodósio morre, em 395, a Igreja já encontrara a paz e a protecção necessárias aos seus grandes

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amadurecimentos. Mas, na sombra calma, já dormem também os inimigos que, por dezenas de vezes, no curso da sua História, tentarão arrebatar-lhe o tesouro da sua
pobreza e da sua liberdade.

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Capítulo II
BALANÇO DO CRISTIANISMO EM MEADOS DO SÉCULO IV

1. Uma visão de conjunto

Teodósio deixa o império aos seus dois filhos, jovens e incapazes: o Oriente a Arcádio, o Ocidente a Honório. Os dias da velha Roma estão contados. Enquanto a onda
bárbara avança a ponto de engolir o Império, que zonas do mundo se podem qualificar como cristãs?
Para lá dos limites do Império, as Igrejas prosperam. No Império Sassânida - apesar da longa perseguição de Shapur II (309-379) -, a Mesopotâmia possui centros de
fervoroso cristianismo em Edessa, Selêucia (Ctesifonte) e Nísibis. Fortalecidas por S. Marutas - o segundo fundador da Igreja persa -, elas difundem-se ao longo
do golfo Pérsico e no Curassão, preparando a penetração cristã na Ásia Central.
Entalada entre Roma e o Irão, a Igreja da Arménia, que beneficia da conversão do rei Tiridates (por volta de 280), é organizada por S. Gregório, o Iluminador, e
por seu neto Nerses. A Igreja georgiana tem na sua origem uma escrava cristã, Nino. Na Etiópia, Frumêncio, sagrado bispo por Atanásio (cerca de 330), funda uma Igreja
com um futuro notável, mas cujos primórdios se desconhecem. Terá havido infiltração cristã no Iémen e na Arábia durante o século IV? É bem possível.

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Entre o Danúbio e o Dniepre viviam tribos germânicas, os Godos, e foi um dos seus prisioneiros, Ulfilas, que os levou ao cristianismo, na forma ariana; substituindo
os caracteres rúnicos por um alfabeto original, Ulfilas traduziu a Bíblia para gótico. Pouco a pouco, o cristianismo ariano vai ganhando os Visigodos, os Ostrogodos,
os Burgúndios, os Suevos e os Vândalos. Entre os Germanos, somente os Francos e uma parte dos Lombardos permaneciam fora do domínio cristão.
No interior do império, havia um nítido contraste entre o Oriente e o Ocidente. Embora, desde o fim das perseguições, a densidade das comunidades cristãs já fosse
grande na Ásia Menor, na Síria, no Egipto, na África e também na Itália Central e Meridional, a verdade é que a Gália, a Itália do Norte e a Península Ibérica manifestavam
um atraso que só seria parcialmente superado durante o século IV. Assim, a Gália que, em 313, contava apenas com uns cinquenta bispados, terá mais de uma centena
um século mais tarde; em breve seria fixado o mapa eclesiástico da antiga França, muito semelhante ao das cento e catorze cidades galo-romanas do Baixo Império.
O limes (1), a linha fortificada romana do Reno-Danúbio estava pontilhada por numerosas comunidades cristãs, como as de Colónia, Ratisbona e Passau, destinadas a
um glorioso futuro. E não se deve esquecer que foi a sul da muralha de Adriano que nasceu, por volta de 389, o apóstolo da Irlanda, Patrício. Mas até que ponto essas
populações eram cristãs?

2. A elite intelectual e o cristianismo

Nesta época, o cristianismo é, essencialmente, uma religião de cidades. À volta do bispo movimenta-se um clero numeroso; em redor dos padres e dos diáconos formigam
os clérigos menores, que canalizam as multidões de fiéis para as basílicas.
Necessariamente, nem todos esses fiéis eram santos. Com o seu número crescente, a Igreja sentia pesar sobre si o mistério da sua existência, o mistério de Cristo
unido a um corpo

Nota 1: Limite, fronteira. [N. do T.]

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tanto místico como social, coberto de pecados e de fraquezas. As pequenas comunidades primitivas tinham crescido privilegiando a "massa", essa massa cristã de que
se fala e que tanto escandaliza, pelo seu peso e pela sua falta de fervor, aqueles que sonham com uma Igreja despojada, jovem, viva e totalmente generosa. "A massa
- escreve monsenhor Duchesne, falando do século IV - era cristã como podia sê-lo uma massa superficial e formal: a água do baptismo tinha-a tocado, mas o espírito
do Evangelho não tinha penetrado nela." Os teatros e circos não haviam perdido a sua clientela; à volta do imperador - que frequentemente era um cristão medíocre
-, fervilhava um bando de funcionários, cortesãos e cortesãs, cuja religião se acomodava aos costumes decadentes.
Aliás, em certos meios letrados e aristocráticos, sobretudo as famílias senatoriais permaneceram durante muito tempo hostis ao cristianismo, ainda considerado uma
religião bárbara, igualitária e sem poesia. A apostasia do imperador Juliano, educado no culto das tradições pagãs e da filosofia neoplatónica (361-363), outra coisa
não foi senão uma renascença semelhante àquela que, mais tarde, o século XVI conheceria, porém mais efémera, cujo elemento principal era a admiração pela filosofia,
pelas artes e pelas letras antigas. Filósofos, retores (1), gramáticos e sofistas tornariam ainda por muito tempo, a vida difícil ao cristianismo: a escola filosófica
de Atenas só fecharia as suas portas em 529. O neoplatonismo seria o adversário por eleição da religião do Galileu.
Ora, o século IV foi precisamente a idade de ouro dos padres da Igreja - os últimos fogos do paganismo iriam apagar-se diante dessa intensa luz.

3. Os três pólos do humanismo cristão: Ambrósio, Jerónimo e Agostinho

Os padres da Igreja pertencem, quase todos, à elite da sociedade e é notável a semelhança da sua formação e da sua

Nota 1: Ou retóricos. [N. do T.]

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trajectória dentro da Igreja: estudos literários que fazem deles escritores distintos, promissora carreira profana interrompida pela "conversão", período fortalecedor
passado em solidão, intensa actividade pastoral, acompanhada de forte influência doutrinal. Atanásio de Alexandria, Basílio de Cesareia, Gregório de Nazianzo, João
Crisóstomo, Cassiano, Dâmaso de Roma, Hilário de Poitiers, nunca a Igreja contará tantos doutores, ainda mais que dessa lista fazem parte também os três pilares
do humanismo cristão do século IV: o milanês Ambrósio, Agostinho, o Africano, Jerónimo, o mestre de Belém. Estes homens viram um mundo inteiro desmoronar-se e sabiam
que a frágil cristandade contava muito com as suas palavras e os seus actos para se manter de pé.
Governador da Ligúria e da Emília com residência em Milão, Ambrósio foi aclamado bispo aos 34 anos por um povo milanês conquistado pela sua sabedoria. Foi como orador,
como chefe e como jurista que enfrentou o paganismo e que quis dissociar do Estado romano. Mas o bispo de Milão não é um especulativo; os seus escritos, pregados
antes de serem publicados, visam a instrução; da sua obra-prima, De Officiis Ministrorum, imitada de Cícero, irradia uma paz admirável onde a moral cristã aparece,
três séculos depois da morte de Jesus, como uma flor perfeita!
Muito diferente de Ambrósio (falecido em 397) é Jerónimo, que lhe sobreviveria longo tempo (falecido em 420), e que se revelaria antes de mais nada um sábio, mas
a sua ciência volta-se para a acção. Tendo deixado Roma, depois da morte do seu amigo, o papa Dâmaso, Jerónimo viveria trinta e cinco anos junto da gruta da Natividade,
dedicando-se a um gigantesco e original trabalho de exegeta, de tradutor (a Vulgata) e de historiador: obra imensa e diversa que ele marca com a sua personalidade
vigorosa e, por vezes, derrotista. Através dele, o latim da Igreja obtém o seu título de nobreza. Ao mesmo tempo, enquanto a velha Roma tomba sob os golpes de Alarico
(410), ele sustenta a coragem dos homens que a noite ameaça envolver abruptamente.
No outro lado do Mediterrâneo, à entrada da África cristã, em Hipona, onde é bispo desde 396, brilha Agostinho, cujo

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pensamento e actividade literária pertencem ao património universal: o agostinismo a par do tomismo é uma das formas originais da filosofia cristã. Este convertido
do prazer e do neoplatonismo desenvolveu, durante os trinta e quatro anos do seu episcopado, uma actividade que ultrapassa em muito os limites da sua pequena diocese.
As centenas de sermões tinham como objectivo instruir o seu povo, mas as suas cartas - de que se conservaram 276 - dirigiam-se a todas as cabeças pensantes do mundo
romano. Os tratados de Agostinho giram ao redor daquilo que ele considerava como os três flagelos da época: o maniqueísmo, cujo universo espiritual lhe parecia caótico;
o donatismo, cisma africano provocado pelo bispo Donato, que pretendia excluir os pecadores da Igreja; e o pelagianismo, doutrina de um monge bretão, Pelágio, que
proclamava a força da vontade do homem em detrimento da graça divina. Ao mesmo tempo, Agostinho esforçava-se por demonstrar aos pagãos, na Cidade de Deus, que o
cristianismo podia vivificar um mundo novo. Escritor subtil a ponto de atingir a mais alta poesia, as suas Confissões só encontram comparação nos Pensamentos de
Pascal. Agostinho revela-se, na África invadida pelos Vândalos e num mundo submerso em trevas, como a consciência viva do Ocidente.

4. A cristianização dos campos

Confunde-se muitas vezes paganismo (paganub = camponês) com rusticismo, como se, no século IV, a idolatria, inteiramente erradicada das cidades, não passasse de
um fenómeno natural. Trata-se de uma definição abusiva, ainda que as massas camponesas, menos influenciadas pela cultura antiga e pelas ideias novas, estivessem
menos avançadas do que as cidades quanto à cristianização. O velho pano de fundo das crenças populares - mais ou menos assimiladas pelo politeísmo greco-romano -
permaneceu vivo até ao século V nos campos do Ocidente: a Germânia, por exemplo, resistiu durante muito mais tempo. Os missionários cristãos depararam aí com um
paganismo heteróclito, onde se misturavam o culto das forças da Natureza,

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das fontes e dos bosques e o culto das divindades domésticas e locais.
Delicado problema era o da penetração do cristianismo no campo, pois é certo que os nossos ancestrais aderiram ao Evangelho com toda a sua bagagem de crenças e práticas
supersticiosas. O objectivo dos missionários - um Jonas na Trácia, um Victrício entre os Morinos, um Vigílio nos Alpes julianos ou um Martinho na Gália Central -
era, evidentemente, o de vencer a resistência dos camponeses pela autoridade das suas palavras e da sua conduta, mas, sobretudo, pelos seus milagres: os relatos
hagiográficos mostram com abundância árvores sagradas cortadas, templos incendiados, estátuas de deuses derrubadas... Tratava-se também de substituir as superstições
pelos gestos cristãos: quantas "fontes sagradas" não foram exorcizadas pela implantação de uma cruz, mas, em contrapartida, quantos santos não foram confundidos
no culto popular com os deuses que eles substituíam! "Onde acaba o feitiço e começa a oração?", perguntava o cónego Drioux, que foi um dos pré-historiadores das
dioceses em França.
Houve núcleos duros de resistência. No Norte da Gália, a idolatria sobreviveu até ao fim do século VII. O ritual do baptismo propagou-se muito lentamente: um clero
e fiéis pouco preparados, igrejas em número muito escasso, pequenas e medíocres, eis o que não facilitava a penetração do espírito evangélico.
Não admira, por isso, que - segundo a bela fórmula do professor Le Brás: "A prática religiosa em todo o Ocidente propagou-se, graças ao duplo prestígio do maravilhoso
e da autoridade." - se tenha, por vezes, concluído que o cristianismo se impôs pela força a uma população ignorante e embrutecida. Mas ver na introdução e na manutenção
do cristianismo apenas um fenómeno de ilusão colectiva, facilitado pelo regime senhorial, é uma simplificação fácil, pois estamos perante uma operação singularmente
lenta, complexa e delicada: a infiltração capilar do cristianismo nas camadas mais profundas da sociedade ocidental.
É verdade que, decorridos quinze séculos, com a ajuda do tempo e das forças novas, o cristianismo aparece, em muitos

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lugares, como uma religião puramente sociológica cujo verniz já estalou há muito tempo. É verdade que a Turena de S. Martinho é a mesma de Rabelais e de Paul-Louis
Courier. Mas quem poderá dizer qual a simbiose, qual a metamorfose que presidiu ao florescimento do cristianismo na Bretanha, onde, durante três séculos, se justapuseram
as crenças primitivas e o cristianismo céltico? Sem dúvida, se notará que a Bretanha, como o Oeste francês e como a Polónia, foram marcadas pelo feudalismo durante
muito mais tempo do que outras regiões; que o bretão afastado do seu meio se torna rapidamente um indiferente; que inúmeros habitantes do campo que permaneceram
fiéis praticam uma religião superficial ou de medo. Mas o humo - e o humo faz-se sempre de boas e más ervas - acumulado por quinze séculos de cristianismo produziu
inumeráveis santos; e não falamos apenas dos canonizados. Também brotaram muitos espinhos e plantas inúteis ou sem frutos; mas que simbiose de forças misteriosamente
fundidas foi necessária para dar ao mundo Joana d'Arc, Vicente de Paulo, João-Maria Vianney, João Bosco, Damião, João XXIII... para citar apenas camponeses? E foi,
sobretudo, o campesinato que alimentou, durante séculos, a profunda corrente monástica.

5. Correntes profundas e balanço aparente

Desde o fim do século III, o monaquismo, aparecido no Egipto com Sto. Antão, um camponês rico, e Pacómio, um soldado convertido, atraiu para os desertos e para os
conventos milhares de homens desejosos de viver em toda a sua integridade o ideal cristão. Rapidamente implantada em todo o Oriente, a vida monástica organiza-se
de modo esporádico e em formas diferentes no Ocidente: em Roma com Jerónimo, na África com Agostinho, nas ilhas Lérins com Honorato, em Ligugé e Marmoutier com Martinho...
Ininterrupta até aos nossos dias, a corrente monástica - que o mundo ignora ou finge ignorar porque ela é silenciosa - não cessou de alimentar a fonte secreta de
uma Igreja constantemente ameaçada pela seca, pela corrupção, pelo juridicismo e

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pelo farisaísmo. Na crista das altas vagas da História, a barca de Pedro será sempre salva do naufrágio por alguns navegantes desconhecidos. Mas isso não impede
que se coloque ao historiador com insistência a questão de saber qual foi o contributo do cristianismo para a civilização greco-romana em declínio. A primeira vista,
a influência cristã sobre a sociedade do século IV é superficial. Se o Código teodosiano tira do Cristianismo os elementos de uma legislação menos facilitista em
relação ao divórcio, mais suave em relação à condição servil e ao regime das prisões, a Igreja não pode extirpar o uso do abandono de crianças, a generalização da
tortura e do regime pré-feudal. Foi preciso esperar até ao ano de 438 para ver a cessação oficial dos combates de gladiadores. E as exortações morais da Igreja foram
de pouco efeito sobre o terror, a tirania e a crueldade do Baixo Império, ainda que se tenha visto um bispo cheio de prestígio como Ambrósio exigir uma penitência
pública do imperador Teodósio que, por muito cristão que fosse, havia mandado massacrar sete mil habitantes de Tessalonica. O contributo essencial da Igreja para
a civilização é representado pela caridade no sentido social do termo: caritativa e hospitaleira, a Igreja aparece, desde então, como o refúgio dos pobres.

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Capítulo III
NO OCIDENTE A IGREJA SUBSTITUI-SE AO IMPÉRIO

1. Mené, Teqel, Farsin

Entre 410 (saque de Roma por Alarico) e 476 (tomada de Roma por Odoacro), o Império Romano do Ocidente agoniza. Depois de depor o último imperador de Roma, Odoacro,
o Hérulo, envia as insígnias imperiais a Zenão, que reinava no Oriente e que, em paga, o faz patrício romano. Acabava de rebentar um abcesso enorme e já antigo,
formado pela lenta infiltração no Império de homens vindos do outro lado do Reno e do Danúbio, cujas hordas tinham sido contidas a muito custo pelos imperadores.
No começo do século V, irrompem Godos e Alanos, arrastando consigo Vândalos e Suevos, e empurrando os Burgúndios: todos fugiam dos Hunos, que se haviam voltado bruscamente
para o Ocidente. Integrados no Império Romano como federados ou instalados como conquistadores, viram por ocasião do ataque de Alarico a Roma a profunda fraqueza
do Império. Então, os Francos avançaram até ao rio Soma, às portas da Mancha, os Burgúndios instalaram-se desde a Sabóia ao rio Sona; os vândalos, expulsos da Hispânia
pelos Visigodos, pilharam a África cristã; enquanto isso, os Anglos forçavam os Bretões a expatriar-se. E Jerónimo perguntava: "Quem poderá acreditar, que historiador
fará compreender à posteridade que Roma combateu no seu próprio território, não pela glória, mas pela sua própria salvação?"

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A jovem Igreja cristã iria também ser arrastada neste desmoronar? Com efeito - se tivermos em conta a incúria do Império do Oriente -, ela era a única força capaz
de dominar o drama do Ocidente e dar-lhe um sentido. No entanto, os quadros eclesiásticos tinham sido perturbados - de vários modos conforme as regiões - pelas investidas
dos Bárbaros. Na Panónia, na Nórica e na Récia, o cristianismo é abalado durante dois ou três séculos e a Ilíria desagrega-se. Na Renânia, na Bélgica e na Normandia,
as listas episcopais são, nesse período, interrompidas.
Na Provença e na Itália, onde o ostrogodo Teodorico age como inteligente herdeiro do Império; na Aquitânia e, depois, na Península Ibérica, onde se instalaram os
Visigodos; no vale do Ródano, onde estão os Burgúndios, a velha civilização greco-romana prolongará suavemente a sua agonia, ainda lançando os seus últimos fogachos.
Entretanto, o arianismo desses grandes Estados bárbaros mais ou menos romanizados provoca a inimizade das comunidades de obediência romana e, particularmente, na
África, onde a luta entre os vândalos arianos e os autóctones católicos só terminará em 533, quando Belisário reinstalar os Bizantinos nessa África cristã que, enfraquecida
pela crise donatista, oferecerá pouquíssima resistência ao Islão.
Um facto curioso: são as populações germânicas menos marcadas pelo romanismo, os Francos, que, ao passar directamente do paganismo ao catolicismo, obtêm o apoio
da Igreja romana, dos seus bispos e dos seus monges.

2. Bispos e monges perante os Bárbaros

É incontestável que muitos bispos das civitates desempenharam perante os Bárbaros um papel de defensores, mediadores e sustentáculos de uma civilização. Agostinho
em Hipona assediada pelos Vândalos, Nicásio em Reims, Aignan em Orleães, Paulino em Nola, Sinésio de Cirene, Eucher de Lião, Máximo de Turim e o bispo de Roma, Leão
I, foram, entre outros, os baluartes das suas cidades.
Depois, quando o furacão dos Hunos, em meados do século V, uniu os Germanos à volta dos destroços do Império

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Romano e as rudes virtudes dos Bárbaros começaram a desfazer-se no contacto com uma civilização decadente, os bispos ainda tiveram de enfrentar a situação de um
mundo informe, em que triunfavam a corrupção e a crueldade. Então, o bispo tinha de relembrar a todos a doutrina evangélica; também devia oficiar, administrar os
bens da comunidade, entrar em contacto com os bárbaros estabelecidos na sua Igreja, trabalhar na libertação de cativos - muitos bispos chegaram a vender os vasos
sagrados -, proteger, alimentar e salvar os pobres que, nas crises, são sempre os primeiros ameaçados.
O papa Leão I (440-461) é, certamente, a figura mais notável desse terrível século V. Como chefe, levanta-se perante Átila (452); à autoridade vacilante de Bizâncio
na Itália (Ravena), opõe a autoridade de Roma, "trono sagrado de Pedro"; e socorre a miséria dos Romanos com os seus cuidados e os seus bens. A sua correspondência
- cento e setenta e três cartas que ainda se conservam - e o seu trabalho no Concílio da Calcedónia (451) testemunham que ele não foi apenas o chefe espiritual da
Itália, mas também o árbitro da jovem cristandade.
Outros pastores marcaram profundamente a terra onde trabalharam e onde se criou, graças a eles, a primeira rede de igrejas rurais. Hilário de Aries foi o animador
da Gália Meridional fortemente romanizada. Auvergne deve muito a Sidónio Apolinário, bispo de Clermont e poeta como alguns dos seus pares. Pedro Crisólogo em Ravena,
Leandro e, depois, o seu irmão Isidoro em Sevilha, Martinho de Braga, fundador da Igreja portuguesa, Avito de Viena, primaz dos Burgúndios, desempenharam um papel
semelhante.
Em França, a lembrança de Remígio de Reims permaneceu bem viva. Súbdito de Siágrio e, depois - após a derrota e morte deste (486) -, do jovem rei dos Francos, Clóvis,
impôs-se sem fanfarronices à atenção do brutal guerreiro: "Socorre teus concidadãos, encoraja os aflitos, protege as viúvas, alimenta os órfãos..." A ambição leva
Clóvis a combater os Burgúndios e os Visigodos arianos, senhores da Gália do Sul, mas é a influência de Clotilde, sua esposa, sobrinha católica de Gondebaud, que
faz com que ele, juntamente com inúmeros companheiros, se decida a ser baptizado por Remígio, provavelmente no Natal

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de 496. Acontecimento importante, porque, aos olhos dos bispos, o rei franco - único soberano bárbaro católico - tornava-se o seu protector natural e propagandista
de eleição da religião cristã entre os Bárbaros. Quando Clóvis, com a vitória de Vouillé (507), se torna senhor do Sudoeste visigótico, a Gália inteira saúda nele
um "novo Constantino". Em 511, reuniria em Orleães o primeiro concílio nacional da Gália franca: como primeiro imperador cristão, Clóvis intervém decididamente nos
assuntos do clero. É verdade que os concílios provinciais que se multiplicavam em Itália, em Espanha (Toledo), na Provença (Aries e Vaison) e noutros lugares, se
tinham tornado imperiosos devido à necessidade de reagrupar as forças espirituais que se haviam dispersado no tempo das invasões.
A acção da Igreja estava intimamente ligada à acção dos monges. Não se trata ainda de um monaquismo vigoroso, mas da irradiação de algumas grandes comunidades autónomas,
onde o eremitismo e o cenobismo se combinavam. Honorato fizera de Lérins, desde o fim do século IV, uma "ilha de santos", um alfobre de bispos e de doutores, não
somente para a Provença, mas também para Lião, Genebra e Troyes. Por outro lado, S. Vítor de Marselha, com João Cassiano (falecido cerca de 430), Asán em Aragão
(fundado por Sto. Emiliano) e Dúmio na Galiza, formavam, como dizia brilhantemente Sto. Hilário de Poitiers, ao falar dos monges, "um episcopado muito especial".
É verdade que bispos e monges colaboravam estreitamente; ao reunir à sua volta uma pequena comunidade fraterna de padres e ao dar-lhes um regulamento, o bispo de
Hipona, Agostinho - pai dos cónegos regulares -, já demonstrara a força de que é capaz a aliança entre os bispos e os monges. Aliás, não foi precisamente um monge
tornado Papa, Gregório I, quem dominou o fim do século VI no Ocidente?

3. Gregório Magno, "cônsul de Deus"

Os três futuros bastiões da Igreja Católica romana - França, Espanha e Itália - começavam, então, a sobressair na massa ocidental.

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No Ocidente a Igreja Substitui-se ao Império
Os Francos católicos eram, ainda em vida de Clóvis, os senhores da Aquitânia visigótica; depois da morte prematura do rei (511), a velha Provença (532) e, depois,
a Burgúndia (534), que passara para o catolicismo havia já trinta anos, ampliaram as possessões francas. Na Ibéria, a conversão dos Suevos arianos fez-se sem grandes
choques (por volta de 450), mas o mesmo não aconteceu com os Visigodos, tenazes arianos como os Vândalos de África. Quando Leovigildo subiu ao trono de Toledo (567),
esboça-se uma reviravolta a favor de Niceia e de Roma; mas o facto acaba por assumir contornos políticos: o filho do rei, Hermenegildo, que tinha renegado o arianismo
por influência de Leandro de Sevilha, coloca-se à frente de uma sedição de católicos; depois, arrependido, tenta negociar com seu pai que o mandou executar (585).
Um ano mais tarde, Recaredo, irmão de Hermenegildo, sucedia a Leovigildo e, pouco depois, abraçava a fé romana. Começava a história da católica Espanha.
Em Itália - menos unificada que os seus dois vizinhos -, a situação é mais confusa. Entre 493 e 526, Teodorico, o Ostrogodo, reina, a partir de Ravena, sobre a península,
onde o poder de Bizâncio é apenas teórico. Teodorico empreende a tarefa de restaurar a civilização romana, mas os seus sucessores são incapazes de evitar a reconquista
da Itália por Justiniano (535-553), uma reconquista brutal e desastrosa, além de efémera, pois o domínio bizantino, insuportável para os Italianos, abre caminho
ao domínio dos Lombardos, cujo rei Alboíno se instala, em 572, no palácio de Teodorico em Pavia. Os Bizantinos mantêm apenas os territórios costeiros e o exarcado
de Ravena; depois da morte de Alboíno, uma feudalidade militar reparte os seus Estados e toda a Itália se vê reduzida àquilo que será até meados do século XIX: uma
"expressão geográfica".
Foi nesta altura que o papado se viu obrigado a desempenhar um papel salvador. Em 590, atormentados pelo miserável estado da Itália e de uma capital assolada pela
inundação e pela peste, o povo e o clero romanos elegem como Papa o patrício Gregório que, à santidade de monge, juntava a experiência do diplomata e do funcionário,
porque, além de apocrisiário em Constantinopla, fora também prefeito de Roma. Ameaçado a norte e a sul pelos ducados lombardos, humilhado

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pelo orgulho de Bizâncio e pela indignidade de muitos dos seus colaboradores, o papado parece estar moribundo. Gregório I, a quem a posteridade chamou "Magno", serve
a cidade terrestre visando edificar a Cidade de Deus. Bispo de Roma, toma a seu cargo ou controla as funções civis, sobretudo as que se referem à assistência e à
educação; ao mesmo tempo, entrega-se a uma pregação voluntariamente prática; o tempo não é para os doutores, mas para os pastores - o Tratado de Pastoral, de Gregório
I, ficará na História; aliás, é forçoso confessar que a exegese e a teologia desse tempo são, pela sua pobreza, testemunhas da decadência geral da cultura antiga.
Mas, além de Roma, Gregório trata directamente com os Lombardos, ignorando o débil exarca. A sua correspondência revela que nada que se refira à vida da cristandade
o deixa indiferente. Voltando as costas a Bizâncio, deposita as suas esperanças nos povos germânicos, mais jovens, menos embrutecidos: nos Francos, nos Lombardos
que prepara pacientemente para a conversão, e nos Anglos, a quem deu provas da sua predilecção, enviando alguns monges romanos levados por Agostinho que se fixa
em Cantuária. Em breve, será a vez de a Igreja anglo-saxónica influenciar todo o continente.
"Cônsul de Deus", eis como o autor desconhecido do seu epitáfio chama a Gregório Magno. Numa Roma esvaziada não apenas da sua glória, mas até da sua própria alma,
Gregório e os seus sucessores assumem o papel do Império ferido: tornam-se os pedagogos do jovem Ocidente. Começa a surgir a Igreja medieval; poderemos lamentar
não só a sua dureza e o seu paternalismo, mas também o facto de vários pontífices se terem esquecido da bela definição do pontífice romano, dada por Gregório I:
Servus servorum Dei. Mas, apesar de tudo, foi essa Igreja que fez com que os seus cânones conciliares, infiltrando-se no direito germânico, acabassem por humanizar
os costumes bárbaros. A um mundo em que a crueldade e o estupro faziam lei, ela apresentava a sabedoria dos seus monges e a pureza das suas virgens. No horizonte
merovíngio, ela conseguiu fazer brilhar uma luz muito diferente da dos incêndios.

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4. A Igreja e os Merovíngios

Em meados do século VI, o eixo das influências, no Ocidente, transferiu-se de Itália (Roma, Milão e Ravena) para as margens do Sena e do Mosa. A dinastia dos Merovíngios
- herdeiros de Clóvis - (511-571) torna-se a principal força política: uma realeza absoluta e dura, dado que no Ocidente merovíngio não existe Estado e o reino é
considerado, pelo seu senhor, um património pessoal a partilhar em cada sucessão. Se, por um lado, o rei pode exigir muito dos homens livres, em contrapartida ele
não lhes presta nenhum serviço. O "palácio" é frequentemente um inferno de ódio, de cupidez e de luxúria: o assassínio e a libertinagem provocam habitualmente a
morte prematura dos reis. E o que dizer de rainhas como Fredegunda?
Numa sociedade essencialmente rural que se imobiliza, a cidade galo-romana, anémica, já não é o órgão vivo de um grande corpo político; no entanto, a presença do
bispo evita a sua morte. O povo é formado essencialmente pelos servos da gleba, uma massa nem melhor nem pior que a de outras épocas, frequentemente dizimada pelas
epidemias e épocas de fome, cuja piedade ingénua ainda se alimenta de superstições pagãs, quando não desaparece no culto apaixonado das relíquias.
Do outro lado estava o corpo episcopal. As doações e as imunidades haviam-no tornado rico e poderoso. Como tinham a missão de vigiar os condes, os bispos eram, em
certa medida, funcionários, aliás, vigiados muito de perto pelo rei que os escolhia pessoalmente, amiúde no seu próprio círculo, inclusive entre os leigos. Mas essa
escolha não era necessariamente má. Sem dúvida, a simonia era já uma praga secreta da Igreja e poderíamos citar inúmeros pastores que não passavam de indivíduos
sem escrúpulos. Mas nunca como na época merovíngia o povo cristão - Vox populi, vox Dei - beatificou tantos bispos: Pretextato em Ruão, Arnulfo em Metz, Leger em
Autun e Elói de Noyon, cuja memória ficou ligada para sempre à de Dagoberto, representaram, entre tantos outros, luzes nas trevas.
Os bispos francos não descansavam: entre 611 e 614, realizaram-se na Gália quarenta e dois concílios e, como o Estado

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merovíngio não se preocupava com a assistência e a instrução, era sob a protecção da Igreja que se encontravam todos os fracos, todos aqueles que sofriam com a crueldade
da época.
A cultura greco-latina, praticamente ignorada pelos leigos, refluíra das cátedras de retórica e de gramática, há muito abandonadas, para as escolas episcopais, onde
jovens clérigos tonsurados viviam em comunidades, procurando manter as escolas presbiteriais, antepassadas das nossas escolas de aldeia. A palavra clérigo (1) tanto
designava o homem da Igreja como o homem culto, pois a cultura havia decaído muito, e a gramática era o único domínio em que se fazia alguma reflexão.
Implicitamente, reis e bispos contavam com os monges para manter terra cristã sempre pronta para voltar a ser semeada, favorecendo-os com a sua protecção e as suas
doações. Alguns dos maiores nomes da história monástica - Saint-Germain des Frés, Saint-Médard de Soissons, Saint-Denis, Sainte-Croix de Foitiers, Stavelot, Murbach...
entraram na história do Ocidente na época merovíngia.
Mas foi da brumosa Irlanda que surgiu um novo tipo de monge e de missionário.

5. Uma luz na bruma: o monaquismo celta

Sem choques nem mártires, mas graças ao zelo e à sabedoria de Patrício, seu herói nacional, a Irlanda passou do druísmo para o cristianismo mais ardente. Desde o
fim do século V, estava coberta de mosteiros-bispados: Bangor, Armagh, Clouard... que eram, ao mesmo tempo, focos de cultura e de ascetismo. O que se passou a chamar,
talvez com exagero, o "milagre irlandês" consiste no facto de este país (onde Roma não tivera acção directa) ter sido o local de onde partiu a salvação do continente:
o espírito errante e o fervor dos Celtas impeliram-nos a levar a luz até ao outro lado do mar.

Nota 1: A palavra clerc, em francês, e clerk, em inglês, ainda hoje significam escrivão, funcionário, vestígio desse tempo. [N. do T.]

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Bem cedo começou a extraordinária epopeia dos monges irlandeses cercada por uma espécie de auréola dourada. É impossível seguir o trajecto de todos os grandes giróvagos
que, enfrentando perigos de toda a natureza, atravessaram os mares: Columbano, fundador do convento de Iona, onde nasceria a cristandade caledoniana e de onde partirão
os evangelizadores da Islândia; os apóstolos da Armórica, onde tantas "paróquias" mostram ainda as marcas de monges e de bispos, cujo hagiógrafo traça com prudência
a sua vida maravilhosa: Malo, Brieuc, Cadoc, Guénolé, Gildas...
Cansar-nos-íamos, se pretendêssemos seguir o rasto do maior desses missionários irlandeses: Columbano (falecido em 615), um gigante e um profeta, tão exigente com
os outros como consigo mesmo. Podemos vê-lo nos vales do Loire, do Sena, do Mosela, nos Alpes, no Jura... Cada etapa de Columbano é marcada pela fundação de um mosteiro
e a sua morte, ocorrida em Itália, não esmorece o entusiasmo dos seus discípulos. Luxeuil, Arbon, Saint-Gall, Bóbio, Jumièges, Saint-Bertin, Saint-Riquier, Saint-Armand...,
eis alguns dos prestigiosos mosteiros que nasceram do trabalho dos monges irlandeses. Estabelecidos quase sempre em regiões montanhosas ou florestais, foram pólos
activos de desbravamento, de colonização e também de reconquista cristã onde as invasões tudo tinham destruído.
Mas Columbano era um furacão, um vento que passava sem se preocupar com os obstáculos nem com os homens. A hierarquia episcopal depressa considerou incómodo este
profeta que, de resto, exigia dos seus monges uma vida incrivelmente austera, em que as mais pequenas fraquezas eram evitadas a golpes de disciplina e de chicote,
e de repreensões violentas. A longo prazo, este cristianismo forçado iria afastar os homens de boa vontade nascidos sob céus mais luminosos do que o céu da Irlanda.
Ora, foi precisamente num país de sol, na Sabina romana, que Deus fez aparecer aquele que seria o Pai dos monges do Ocidente.

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6. Bento ou o equilíbrio

Com efeito, foi dado a Bento da Núrsia restabelecer o equilíbrio, de que toda a vida monástica recebe a sua razão de ser. A sua vida (480-547), que mal é conhecida,
foi marcada por duas grandes etapas: Subiaco, onde o jovem nobre, chocado com a corrupção romana, leva uma existência de eremita até ao dia em que os seus discípulos
são em número suficiente para formar uma comunidade; monte Cassino, onde, sobre as ruínas recentes de um templo de Júpiter, constrói um mosteiro que ainda hoje é
o coração da grande família beneditina.
O essencial da obra de Bento - e por isso a História deve contá-lo na sua elite - é a sua regra, uma regra vivida, feita de experiência e intuição, uma obra-prima
de discrição e equilíbrio; um molde suave do qual saíram centenas de milhares de monges, vinte e três papas, cinco mil bispos. Na sua base, está a honestas romana,
a antiga probidade, que a humildade e a obediência evangélicas sublimam. Desse texto emana uma tal serenidade que se chega a duvidar que tenha sido elaborado numa
época tão conturbada, da reconquista da Itália por Bizâncio e das invasões lornbardas. Aliás, foi para os homens deste século desumano que a regra beneditina foi
feita: oferecia o caminho para Deus, através da oração litúrgica (lectio divina), do trabalho manual reabilitado e do estudo, mas também através de uma vida comum,
fraterna, menos santificada pela mortificação do corpo do que pela suave autoridade do abade (abbas = pai) e pela elevação do coração. Deus é mais bem servido e
amado graças ao testemunho da vida monástica - eis o objectivo primordial de Bento. Os contemporâneos não se enganaram ao considerarem a regra de Bento como a regra
de vida por excelência. A comunidade beneditina não é uma congregação de privilegiados, mas um porto seguro para os leigos ávidos de estabilidade e de paz, numa
época em que Romanos e Bárbaros, pobres e ricos se viam arrastados ao sabor de um século de terror.
A regra beneditina propagou-se de tal forma que, durante séculos, "beneditino" e "monge" seriam quase sinónimos. O velho tronco beneditino, mesmo aparentemente seco,
faria

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brotar constantemente, e até aos nossos dias, diversos ramos e novas folhas. Desde o século VII, a ordem de São Bento nunca deixou de ser um celeiro de missionários.

7. Germanos evangelizam Germanos

Vimos partir para a Inglaterra Agostinho - ele próprio um filho de S. Bento - e os seus monges enviados pelo papa Gregório Magno. Rapidamente, os reinos anglo-saxões
do Sul passaram ao cristianismo. O Norte da Inglaterra era domínio dos monges celtas - pouco desejosos de colaborar com os missionários romanos: na ilhota de Lindisfarne
(Holy Island), Aidan estabelecera, em 635, um mosteiro que se tornaria o principal centro religioso e cultural dos Anglos. Por volta de 650, os reis de Mercie e
do Essex pediram o baptismo. O Wessex era o feudo do bispo Wini e o Sussex era domínio do intransigente Vilfredo, cuja figura não deixa de revelar aspectos comuns
com os de Thomas Becket.
No fim do século VII, a Inglaterra cristã - que beneficiou da efervescência celta e da ponderação romana - possui os seus quadros eclesiásticos e os seus centros
de irradiação; em Iorque e Cantuária estão os seus dois arcebispos. É uma terra de santidade e de cultura cristã; o continente logo conhece o nome dos seus filhos:
Cuthbert (falecido em 687), glória da abadia de Melrose e, depois, bispo de Lindisfarne; Bento Biscop Baducing (falecido em 690), fundador da abadia de Wearmouth,
que, por diversas vezes, atravessa a Mancha para ir buscar livros e relíquias; Teodoro (falecido em 690), arcebispo de Cantuária, que multiplica as escolas monásticas
e que, no Concílio de Hertford, submete a Igreja inglesa à disciplina romana. Mas, no início do século VIII, não surge ninguém comparável a Beda, o Venerável (falecido
em 735): passou quase toda a vida no mosteiro de Jarrow, em Northumberland; continuando sempre como professor de Teologia - uma teologia então reduzida apenas à
explicação dos textos das Escrituras -, Beda estudava tudo, como genial iniciador: a Métrica, a Cronologia e, sobretudo, a História; deixou o primeiro Martirológio
crítico e, com a sua História Eclesiástica da Nação dos Anglos, legou um documento

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insubstituível sobre as origens inglesas. Um discípulo de Beda, Egberto, fundou a escola de Iorque (por volta de 750), de onde sairiam Alcuíno e outros mestres da
Renascença carolíngia.
Além disso, a Inglaterra forneceu alguns missionários às regiões germânicas, ainda bárbaras, do continente. Um discípulo de Vilfredo, o monge Vilibrordo (falecido
em 739), desembarcou, em 690, na Frísia: com o apoio do conquistador Pepino de Herstal evangeliza o país; a morte de Pepino (ocorrida em 714) obrigou-o a refugiar-se
no mosteiro que tinha fundado em Echternach; mais tarde, regressa à Frísia, depois vai ao estuário do Escalda e ao futuro Luxemburgo. Ludgero foi quem prosseguiu
a sua obra.
A Germânia Ocidental e Meridional recebera missionários celtas desde o século VII: Fridolino, na Germânia, o beneditino Pirmin, fundador em Reichenau da primeira
abadia estabelecida em terras germânicas, Suitbert na Renânia, o escocês Kilian na Turíngia, Rupert na Baviera, Corbiniano no Tirol. Mas esses bispos-viajantes não
conseguiram estabelecer uma organização eclesiástica duradoura na Germânia, ficando essa tarefa reservada a Bonifácio.
Anglo natural de Wessex, monge beneditino, Vilfredo foi encarregado pelo papa Gregório II de uma missão oficial: a organização da Igreja germânica e o despontar
da Igreja franca; e recebeu o nome de um mártir, Bonifácio. A sua missão na Germânia, iniciada na Frísia, estendeu-se à Turíngia e ao Hesse, com o apoio de Carlos
Martel. Arcebispo de Mainz, Bonifácio organiza os quatro bispados bávaros: Passau, Ratisbona, Freising, Salzburgo e, depois, dá um pastor a Erfurt e Vurzburgo na
Francónia, e a Buraburgo, no Hesse. Em 741, funda a abadia de Fulda, que se torna o seminário das missões germânicas e o centro religioso e cultural mais importante
da outra margem do Reno.
Enviado à França Ocidental por Pepino, o Breve - que ele sagraria rei dos Francos -, Bonifácio esboça uma restauração da Igreja franca, onde pululam os clérigos
concubinários, guerreiros e caçadores. Mas não consegue organizar o episcopado franco segundo o modelo inglês, à volta de um primaz, promotor designado de toda a
reforma. Quando Bonifácio é morto pelos Frisões (em 754), juntamente com cinquenta e dois

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dos seus monges, o Ocidente já se valorizara com territórios que seriam chamados a desempenhar um papel capital no enriquecimento da civilização cristã: os Países
Baixos, a Bélgica, a Alemanha Central e Meridional.

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Capítulo IV
A UNIDADE QUEBRADA

1. O difícil diálogo com o Oriente

Em 330, Constantino fez de Bizâncio, a antiga colónia megariana, a esplêndida Constantinopla, acerca da qual um concílio declarará: "O bispo de Constantinopla terá
o primado depois do bispo de Roma, porque Constantinopla é uma nova Roma." Uma Roma oriental, mais colorida, mais quente, mais passional e que não se fizera para
se entender com a outra, a Roma latina, a realista. A partilha do Império depois da morte de Teodósio, dando ao mundo duas capitais, evidenciou ainda mais esses
antagonismos.
Perante os Bárbaros, o Ocidente e o Oriente reagiram de modo diferente: enquanto Roma os integrava ou os federava esperando ser submersa por eles, Constantinopla
desviava para a Itália os seus incómodos vizinhos, os Godos. Depois da queda, em 476, do Império do Ocidente, o imperador de Constantinopla pretendeu assumir toda
a herança de Roma; de facto, só Justiniano (527-565) - por pouco tempo e de forma incompleta - pôde constituir um Mediterrâneo bizantino. A verdade é que o Império
Bizantino, fortalecido por um helenismo e por um cristianismo antigos, factores de unidade, mostrava-se um organismo muito mais sólido do que o Ocidente bárbaro;
por isso, a sua sobrevivência até 1453 não foi um acontecimento fortuito.

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Com efeito, a sua longa história confunde-se com uma luta quase incessante contra as dissensões internas (a palavra bizantino tornou-se sinónimo de ocioso e de intempestivo)
e as pressões externas: Persas, Árabes, Eslavos e Búlgaros.
Entretanto, o Império Bizantino sofreu por causa do carácter absoluto, divino do poder imperial, da ausência de uma regra precisa de sucessão, da confusão do plano
político com o religioso, e também da multiplicidade das querelas teológicas centradas sobre a pessoa de Cristo e nascidas das subtilezas gregas. Jesus, Deus como
o Pai/ era também um homem? Tinha somente a natureza (physis) divina, como pensava a escola de Alexandria (monofisita), ou duas naturezas e duas pessoas, como sustentavam
a escola de Antioquia e o patriarca de Constantinopla, Nestório? O Concílio de Efeso, terceiro ecuménico animado por Cirilo de Alexandria, condenou Nestório em 431,
definindo simultaneamente a unidade da pessoa em Jesus e a maternidade divina de Maria. Mas as intervenções nos sentidos diferentes do imperador e dos seus funcionários,
as intrigas da corte e, mais ainda, os movimentos de uma multidão instigada por monges apaixonados pela teologia, criaram uma confusão que apenas acalmou em 433.
No entanto, quando o papa Leão I, numa carta ao patriarca Flaviano de Constantinopla, afirmou que existem duas naturezas, mas uma só pessoa em Jesus Cristo, os monofisitas,
conduzidos pelo velho monge Eutíquio, explodiram. O monofisismo foi condenado pelo Concílio de Calcedónia, quarto ecuménico, em 451, que aderiu à doutrina de Leão,
definindo a união hipostática e, então, desencadeou-se uma crise extremamente grave que dividiu até aos nossos dias as Igrejas orientais.
Eliminado da Síria, o nestorianismo passara para a Pérsia onde, mau-grado a perseguição masdeísta, se desenvolveu à margem da Igreja universal, uma Igreja nacional
dita nestoriana que, de tal modo, se propaga na Ásia Central, na Mongólia e na China, que chegará a contar cerca de duas centenas de bispos nestorianos: trata-se
de um cristianismo mitigado, mas ainda suficientemente vivo para que, no século XIII, um missionário como Piancarpino ou um viajante como Marco Polo encontrem uma
verdadeira elite entre os nestorianos da Mongólia.

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No Egipto, a oposição às decisões do Concílio de Calcedónia foi a expressão de unidade nacional: a antiga língua copta, falada por um povo pouco helenizado, tornou-se
o veículo de uma fé que fez do patriarca de Alexandria o chefe de uma Igreja separada. E, assim, o monofisismo, a partir do Egipto, estendeu-se pela Etiópia, onde
os primeiros convertidos se colocaram sob a obediência do patriarca de Alexandria.
Na Síria, em redor de Antioquia, desenvolveu-se uma forte corrente antibizantina e os cânones de Calcedónia foram considerados uma expressão da opinião dos "imperiais"
ou melquitas (do siríaco melek - imperador); assim, o monofisismo encontra, nessa velha província cristã, um terreno favorável. A Igreja monofisita síria, também
designada Igreja jacobita (1), do nome de um dos seus primeiros chefes, Tiago Baraddai, contou, sobretudo no século VI, com notáveis doutores, como Severo de Antioquia,
e alguns importantes centros de vida religiosa.
A Arménia, disputada por Bizantinos e Sassânidas, também foi ganha em grande parte pelo monofisismo, mas este cisma não deve fazer esquecer como despontou no século
VI o génio nacional da Arménia. A partir da invenção de um alfabeto arménio por Mesrop, multiplicam-se as diversas obras: traduções da Bíblia, poesias sagradas,
crónicas, tratados científicos...
Deste modo, o espírito bizantino provocara alguns cismas, de cujas consequências toda a Igreja ainda sofre. Mas nós, ocidentais, romanizámos de tal forma as nossas
perspectivas que ainda temos a tendência de ignorar as riquezas que Bizâncio durante dez séculos fez frutificar. Bizâncio não se limitou a fazer frente aos invasores,
mas edificou, entre o Ocidente latino e o o Oriente asiático, a mais brilhante civilização da Idade Média: Ravena, Sicília e Sta. Sofia, por exemplo, ainda continuam
a fascinar-nos. Independentemente da desmesura, do hieratismo e das contradições características do Oriente, o historiador ocidental pode facilmente descobrir belezas
e fervores. Bizâncio foi a pátria de poetas, como Romanos, o Melodioso, ou João Damasceno, de doutores brilhantes como Cirilo, Efrém e, sobretudo, João Crisóstomo,
o pequeno homem de boca de ouro, que

Nota 1: Jacob, em hebraico e latim. [N. do T.]

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pagou com a vida por se ter levantado contra a hipócrita corrupção da corte de Eudóxia e contra a tibieza dos cristãos. O Oriente Bizantino foi a terra do monaquismo,
um monaquismo em crescimento constante, truculento e fervoroso: anacoretas empoleirados em colunas ou enterrados vivos em túmulos e cenobitas desbravadores de florestas
que atraíam homens ávidos de uma existência equilibrada.
Bizâncio, império cristão, cujo código de leis, devido a Justiniano I, se inspirou largamente no Evangelho, marcou profundamente a nossa civilização. Bizâncio, onde
nasceu uma liturgia dramática, prolixa e sumptuosa, mas de tal forma comunitária, que se desenvolve, nos edifícios brilhantes, para a admiração de pessoas humildes
e de bárbaros, que têm nela o seu único contacto com a Beleza. Bizâncio dos ícones: a iconoclasia de certos imperadores do século VIII não foi apenas uma heresia;
foi também uma grave falta de psicologia. Além disso, Bizâncio mostrou-se educadora dos povos da Europa Oriental: Arménios, Morávios, Búlgaros, Sérvios, Romenos
e Russos.
No entanto, é preciso ter em conta que a distância entre Constantinopla e Roma é infinitamente superior aos mil e quinhentos quilómetros que as separam. São dois
mundos diferentes, cujo diálogo sempre se revelou difícil e que, lentamente, desde o século V, as fez afastar-se mais uma da outra. Antagonismo político - papa ou
basileu? -, cultural e litúrgico - grego ou latino? -, e também teológico; mas, sobretudo, um estilo de vida diferente. Assim, à unidade romana sucedeu prontamente
a divisão da História em "Oriente Bizantino" e em "Idade Média Latina". Os dois rios transbordantes não encontraram o ponto de confluência, privando-se um e outro
das suas riquezas recíprocas.
Mas a integridade cristã, no século VII, iria ser muito mais gravemente ameaçada por uma vaga formidável nascida no deserto da Arábia.

2. O islão

Quando, em 24 de Setembro de 622, Maomé - portador de uma mensagem divina - deixou a sua cidade natal, Meca,

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onde a sua acção encontra resistência, partindo para Iatribe (Medina), abriu-se ao mundo uma nova era: até mesmo em extensas províncias da antiga romanidade ir-se-ia
apagar a lembrança do nascimento de Jesus Cristo.
Os habitantes de Meca não podiam admitir que os seus ídolos e o seu egoísmo fossem postos de lado pelo zelo de um jovem que, não contente em chamá-los ao Islão,
isto é, à inteira submissão à vontade de Deus, ainda lhes pregava a imortalidade da alma, a ressurreição dos mortos, um Deus único, criador todo-poderoso e juiz
soberano, Alá, de quem Maomé se dizia ser profeta. Segundo Maomé, tratava-se de um retorno à pura religião de Abraão, o antepassado ancestral dos Árabes, já que
a Tora dos Judeus e o Evangelho dos Cristãos haviam alterado as revelações primitivas. O Corão, leitura por excelência, é não só a palavra incriada de Deus, transmitida
a Maomé pelo arcanjo Gabriel, mas também uma colectânea de dogmas e de preceitos que são as bases do direito muçulmano.
Pouco a pouco, Maomé, mestre de Medina, viu a sua autoridade estender-se a todos os beduínos. Quando regressa triunfalmente a Meca (630), dois anos antes da sua
morte, já é o senhor de quase toda a Arábia. De uma península, onde, até então, predominava o egoísmo tribal, ele fizera levantar-se uma potência unificada, possuída
por uma fé nova que a tornava uma força respeitável. Porque, embora Maomé só tivesse empunhado a espada para cortar as resistências na Arábia, os quatro primeiros
califas e, depois, os Omíadas, fizeram da guerra um meio de expansão do islão.
Voltado para o jovem Estado árabe, o mundo oriental impaciente por sacudir o jugo dos Bizantinos e dos Sassânidas, encontraria nele um guia e no islão um poderoso
factor de unidade. O espantoso avanço dos Árabes na Ásia e em África, nos séculos VII e VIII, não se explica somente pela audácia - nascida do desprezo pela morte
e da expectativa da presa - dos cavaleiros de Alá nem mesmo pela sua adaptação à guerra no deserto; tem a sua origem principal no ódio das populações autóctones
- rurais, montanheses, felás e nómadas - à tirania teológica, fiscal e política dos Gregos e dos Persas. Um ódio que, aliado à ignorância religiosa das massas, explica
a cumplicidade

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de que o islão beneficiou perante um Império Sassânida e de um Império Grego que, no tempo de Chapur II e Heraclio, acabavam de se degladiar numa guerra desgastante.
A Síria foi a primeira a cair: Damasco capitulava já em 635 e Jerusalém em 638. A partir daí, os Árabes não tiveram nenhuma dificuldade em submergir o Império Persa,
em ocupar Chipre, Creta e Rodes, de se instalar no vale do Indo e no Turquestão, e de chegar à Mongólia; em 712, já se encontravam nas fronteiras da índia, base
de um novo impulso que transportaria o islão até à Indochina e à Insulíndia.
Para oeste, a vitória árabe foi mais rápida: Alexandria é tomada em 638, a Tripolitana é invadida e bastam apenas oito anos (700-708) para atirar ao mar os últimos
bizantinos de África e ocupar o Magrebe até ao Atlântico. Em 711, doze mil berberes muçulmanos desembarcam em Gibraltar e, em 713, apesar da sua valentia, não resta
outra saída aos cristãos godos a não ser esconder-se nas montanhas do Nordeste da Hispânia. Em 718, os muçulmanos atravessam os Pirenéus, mas os Francos de Carlos
Martel obrigam-nos a regressar à Hispânia.
A vaga árabe avançou e o mundo cristão teve de contar as suas perdas. Sem dúvida, Constantinopla, guardiã da Ásia Menor e da Europa Oriental, onde, por duas vezes,
em 673 e 718, o fluxo muçulmano se detivera, não parecia poder sucumbir tão depressa. Mas, na Síria, na Mesopotâmia, no Egipto, na África do Norte e na Hispânia,
a velha civilização greco-romana e cristã daria lugar a uma civilização semita, mais próxima das origens populares. A língua árabe substituiria rapidamente o grego
como veículo de civilização, porque os dialectos berberes do Norte de África, durante muito tempo cartaginesa, e os dialectos púnicos da Andaluzia aparentavam-se
com o árabe, tal como o aramaico no "Crescente Fértil": Palestina, Síria e Caldeia. O Corão - O Livro - tornar-se-ia a base do ensino primário, além de manual de
ciência e de educação.
O islão também era uma religião que facilmente se impunha aos espíritos simples, superficialmente atingidos pelo cristianismo bizantino, pois possuía uma dogmática
clara e, além disso, muito elevada: a transcendência de Deus, um culto sem complicações, sem clero nem liturgia; uma moral muito pouco

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exigente no plano pessoal e não excedendo o quadro das prescrições rituais e, todavia, fazendo eclodir no plano social as virtudes da hospitalidade, da generosidade
e da fidelidade, que de Lyautey a Massignon, de Psichari a Foucauld, causaram a admiração dos cristãos que quiseram ver para além das aparências. Por exemplo, lembremos
uma página belíssima de A Viagem do Centurião, onde Psichari, no silêncio do deserto, compara a grandeza dos seus pobres companheiros muçulmanos à ridícula satisfação
consigo mesma da sociedade farta de Paris: "[...] Aqui, a sagrada exaltação do espírito, o desprezo pelos bens terrestres, o conhecimento das coisas essenciais,
a distinção entre os verdadeiros bens e os verdadeiros males. [...] Havia nesse deserto pessoas prudentes que sabiam evitar as tempestades da luxúria e os escolhos
do orgulho." Mas o próprio Psichari - embora incrédulo - se indignava com a máxima muçulmana: "A tinta dos sábios vale mais do que o sangue dos mártires"; segundo
ele, era precisamente nisso que residia o ponto de discórdia entre o islamismo e o cristianismo, o que, a seus olhos, consagrava a superioridade deste último.
Seja como for, o islão desde o século VIII, apesar de uma longa decadência parcialmente ligada à do Império Otomano, aumentou o seu domínio na Ásia e na África Negra,
opondo constantemente ao cristianismo missionário um bloco insuperável.

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III
A IGREJA FEUDAL

Capítulo I RUMO À EUROPA CRISTÃ

1. Uma estrutura: o Império restabelecido no Ocidente

Enquanto o diálogo entre Roma e Constantinopla é interrompido por silêncios cada vez mais prolongados; enquanto, de Tíflis a Tânger e às Astúrias, uma parte substancial
do velho mundo se torna muçulmano; o Ocidente saído das invasões bárbaras procura um guia. Por todo o lado, reina a superstição e a violência, sem nenhuma unidade
política. A Inglaterra, o centro mais brilhante, está dividida em pequenos reinos hostis uns aos outros. Na Gália, os Merovíngios chafurdam na devassidão e apenas
a Austrásia, graças aos prefeitos do palácio, emerge da anarquia. A Hispânia cristã está reduzida a uma estreita marca. Na Itália, o Papa, senhor do "território
de S. Pedro", vê-se apertado entre as possessões bizantinas a sul e os rudes Lombardos a norte. O conjunto a que se chama Europa está ameaçado a norte pelos FrisÕes
e Saxões, a leste pelos Avaros, a sul por contingentes de salteadores muçulmanos - os Sarracenos - que, em 725, avançarão até Autun. Pouco a pouco, vai-se formando
a ideia entre as elites pensantes - que eram todas da Igreja - da criação de uma Respublica Christiana que, sistematicamente, introduziria as noções evangélicas
no Direito e nas instituições. Esse império, herdeiro do Império Romano, caberia a um homem que a Providência designaria ao Papa que, desde Gregório Magno,

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aparecia como a mais alta autoridade do antigo mundo romano. Ora, por volta de 750, o papado encontrava-se em conflito com o basileu, cujas teses teológicas (monotelismo
e iconoclasia) se opunham às suas e cujos representantes na Itália - os exarcas - manifestavam um autoritarismo orgulhoso e severo. Além disso, os Lombardos pressionavam
as fronteiras pontifícias e a aristocracia romana atacava vivamente, na própria Roma, a independência do Papa.
Então, os pontífices romanos voltaram-se para os prefeitos do palácio, a prestigiosa família da Austrásia, cujo chefe, Pepino de Landen, tinha sido substituído por
seu neto Pepino d'Herstal e, depois, pelo filho deste último, Carlos Martel, tornado desde 719 o verdadeiro senhor de todo o reino franco. Foi a Carlos Martel que
Gregório II confiou a protecção do bispo missionário Bonifácio. O filho de Carlos Martel, Pepino, o Breve, desembaraçou-se do último merovíngio e fez-se sagrar rei
dos Francos por Bonifácio, em Soissons (751). Foi no seu reino, em 754, em Champagne, que o papa Estêvão II, ameaçado pelas pretensões de Aistulfo, rei dos Lombardos,
se refugiou, desligando-se decididamente de Bizâncio. Em Ponthion, foi selada a aliança entre o papado e o rei franco: enquanto o Papa, renovando em S. Dinis a sagração
de Pepino, confirmava solenemente a ascensão de sua família ao trono, Pepino prometia ao papa - que alegava a (falsa) doação de Constantino - que iria fazer com
que os Lombardos lhe devolvessem os direitos sobre Roma: uma dupla expedição de Pepino em Itália (756) fez com que o papa se tornasse o único senhor do ducado de
Roma e do exarcado de Ravena; tinha nascido o Estado pontifício; no espírito de Estêvão II, isso representava uma garantia de independência.
A fase decisiva foi alcançada por Carlos Magno, filho e sucessor de Pepino, o Breve (falecido em 768). Quem foi Carlos Magno? Encontramo-nos diante de uma personalidade
poderosa, cuja complexidade escapa aos nossos olhos de homens do século XX. Em 1165, Frederico Barba-Ruiva, visando os seus interesses, arrancará a Pascal III a
canonização de Carlos Magno. Ora, o rei franco não foi nenhum santo: nunca se conseguiu calcular o número das suas concubinas nem dos seus filhos bastardos; e da
sua memória resta a lembrança, entre outras, do

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massacre de quatro mil e quinhentos saxões de Verden. Em certos aspectos, a corte de Aix-la-Chapelle devia assemelhar-se à do Baixo Império Romano. Mas o rude bárbaro
foi realmente um génio que, considerando-se como o representante de Deus na terra, desejou instaurar a Cidade de Deus sonhada por Sto. Agostinho.
Durante trinta anos, Carlos Magno construiu um império. Em 774, apossou-se da coroa de ferro dos Lombardos vencidos e submeteu a Itália meridional. Instalou-se na
Aquitânia, onde os Francos eram mal vistos; apoderou-se da Baviera e da Caríntia, enquanto os Avaros e os Eslavos se proclamavam seus vassalos. Criou a província
da Bretanha e a da Hispânia diante dos muçulmanos que não conseguiu derrotar. A Saxónia e a Frísia foram convertidas e cristianizadas - pelo terror -, depois de
uma longa luta, na qual se distinguiu o general e chefe saxão Witukind que acabou por aceitar o baptismo.
E, enquanto o Ocidente se reagrupa pelas mãos de Carlos Magno, Bizâncio cabe por sucessão a Irene. Desde logo, pergunta-se: o título de imperador deverá ser usado
por quem apenas o herdou ou por quem possui, de facto, o poder de imperador? A opinião pública está preparada, como no tempo de Augusto e de Constantino, e aplaude
quando, na noite de Natal de 800, em Roma, Leão III coroa Carlos Magno imperador dos Romanos. Mas o imperador do Oriente só reconheceria o seu "irmão" do Ocidente
passados doze anos.

2. A Renascença carolíngia

A partir de então, o imperador Carlos trata de acabar a obra do rei Carlos. Uma obra notável, sobretudo, no plano das instituições e da cultura. Mais ainda do que
Constantino e Teodósio, Carlos Magno confunde, constantemente e com toda a sinceridade, o aspecto espiritual e o temporal. Todos os súbditos do imperador devem ser
cristãos; tudo deve terminar na capela imperial, órgão centralizador composto por clérigos; os pares de missi dominici são geralmente compostos por um bispo e um
alto funcionário; os bispos participam das batalhas.

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Em contrapartida, a hierarquia eclesiástica depende quase inteiramente do imperador que nomeia e controla, no quadro da reforma eclesiástica começada por Pepino,
o Breve. As capitulares têm força de lei, mesmo em relação às decisões conciliares: costumes, liturgia, teologia e prática religiosa, tudo isso é regulamentado pelas
capitulares.
Deveremos lamentar esta clericalização da sociedade? Põe-se aqui o eterno problema das relações Igreja-Estado; questão que os homens do século XX baseando-se na
experiência, optaram geralmente pela separação. No século IX, esta empresa formidável foi, talvez, a salvação de um Ocidente mergulhado nas trevas: em todo o caso,
nessa época, não se concebia a instauração de uma civilização que não fosse cristã. Graças a Carlos Magno, o velho paganismo galo-romano foi, a pouco e pouco, varrido
do continente e ganhou-se o hábito de ver os clérigos - de quem o imperador exigia um mínimo de instrução e uma conduta exemplar - a cuidar dos doentes e dos pobres.
O território cristão cobriu-se de mosteiros e centros de cultura; por isso, o mais belo título de glória de Carlos Magno foi aquilo que se chamou, com algum exagero,
a Renascença carolíngia.
De facto, quando Carlos Magno assume o trono dos Francos, o Ocidente já possui alguns centros intelectuais: Lindisfarne, Córbia, Saint-Gall, Fulda e Bóbio, onde
os monges recopiam os manuscritos da Bíblia ou dos Antigos com um zelo que, pouco a pouco, difunde o uso da minúscula perfeita, dita carolina; acrescentam-se grandes
ilustrações à moda antiga ou ornatos à irlandesa. Pedro de Pisa e Paulo Diácono, em Itália, o ibérico Teodolfo e Aícuíno mestre-escola de Iorque, têm já uma boa
reputação. Reunindo à sua volta - na famosa Escola do Palácio - os letrados da época como Alcuíno, de quem ele faz abade de São Martinho de Tours, ou Teodolfo, nomeado
bispo de Orleães, o imperador estimula a actividade desses centros intelectuais. Sem dúvida, as obras dessa época não são originais: a cultura, à base de gramática
e de métrica, desemboca com demasiada frequência numa literatura pomposa e numa teologia servil, mas presta um imenso serviço à civilização ocidental, ao manter
vias de comunicação com a Antiguidade Clássica através dos pântanos bárbaros. Ao mesmo tempo, as cópias forneciam textos aos missionários.

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O grande mérito de Carlos Magno foi, sobretudo, o de legislador. Ele pretendia que cada mosteiro tivesse a sua escola, um ensino simples - cantos, salmos, contas
e gramática -, apoiado em textos cuidadosamente corrigidos, preparando clérigos e monges suficientemente instruídos para poderem cumprir perfeitamente as suas obrigações.
Ainda se confundia clericalismo e cultura.

3. Uma estrutura que se revela frágil

No plano político, o império de Carlos Magno desaba rapidamente. O seu filho e sucessor, Luís X, o Piedoso ou o indulgente (814-840), revelava mais inclinação para
a administração e para a reforma eclesiástica do que para as actividades guerreiras. Preparou com antecipação, a partir de 817, a sua sucessão, confiando um reino
a cada um dos três filhos: Luís, Pepino e Lotário. Mas, subordinando Luís e Pepino a Lotário associado ao Império e atribuindo, em 829, uma grande parte dos seus
Estados a um quarto filho, Carlos, o Calvo - nascido de Judite da Baviera -, Luís, o Piedoso, desencadeia guerras fratricidas, que minaram o Império e enraizaram
o regime feudal. Os homens da Igreja, os mais elevados espíritos do tempo, Wala de Córbia, Agobardo de Lião, Pascásio Radberto, Rábano Mauro e Hincmar, desempenharam
um papel importante nessas lutas, geralmente num sentido unitário, pois a unidade política, aos olhos desses agostinianos, era o garante da unidade cristã, mas o
comportamento do soberano devia ser julgado pela autoridade espiritual. Não se trata ainda de depor os imperadores, mas o século IX não findaria sem se realizar
uma notável transferência de poder das mãos de Carlos Magno para as mãos do Papa. Nunca como sob Luís, o Piedoso - "o rei dos bispos" -, a Igreja foi tão plenamente
dona e senhora do poder no Ocidente. Verdadeiro homem da Igreja, o imperador impulsiona a Renascença carolíngia; a reforma eclesiástica, problema sempre novo, expressa-se
em concílios anuais realizados em Aix-la-Chapelle. Luís, o Piedoso, quer sobretudo restaurar nos mosteiros o fervor e a austeridade que o tempo, perpétuo reconstrutor
das dunas, ameaça

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constantemente. Para tanto, deposita toda a confiança num monge, Bento que, em 782, fundou na Provença, em Aniane, uma pobre comunidade, em que a regra beneditina,
estritamente observada, atraía trezentos religiosos e rapidamente se estende por todo o Império. Em 815, o imperador instala Bento, de Aniane perto de Aix-la-Chapelle,
em Inden, e faz dele o animador de um sínodo do qual sai uma capitular célebre - o capitulare monasticum - que, em setenta e cinco capítulos, pormenoriza os deveres
dos monges. Mesmo que Inden não tenha podido representar o papel centralizador que Cluny desenvolveria no século X, Bento de Anian teve o mérito de reagir contra
a ignorância dos monges e o isolamento dos mosteiros.

4. Esforço missionário para norte e para leste

Tanto na época de Luís, o Piedoso, como na de Carlos Magno, a expansão franca
foi acompanhada de avanços missionários. Da igreja bávara nasceu, em 847, nas margens do lago Balaton, a Igreja panónia. Com os Germanos submissos e nominalmente
catequizados, restavam os Eslavos e os Escandinavos.
A vaga eslava havia submergido a Rússia e alcançado o Elba e o Saale, cobrindo a Boémia e a Bulgária até aos Balcãs. Haviam surgido três Estados eslavos: a Bulgária,
rival de Bizâncio; a grande Morávia que, no tempo de Svatopluk (por volta de 870), se estendia sobre a Boémia e a Hungria Oriental; e a Rússia - de facto, o principado
de Kiev -, que viria a ter um futuro glorioso.
Roma e Bizâncio interessaram-se, ao mesmo tempo, pela evangelização dos Eslavos. Os Croatas tinham sido atingidos muito antes de Carlos Magno, mas o cristianismo
só fez reais progressos entre eles quando os Francos forçaram os Croatas da Dalmácia e da Panónia a reconhecerem a sua dominação: em 833, o arcebispo de Salzburgo
consagrava a igreja de Nitra, na actual Eslováquia. Os missionários francos trabalharam também na Morávia e na Boémia: por volta de 845, os chefes das casas principescas
da Boémia, dos Prjemyslides e dos Slavniks, receberam o baptismo em Ratisbona juntamente com muitos dos seus vassalos.

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Para lá da Panónia, do Danúbio aos Balcãs, viviam as tribos búlgaras ainda pagãs. Os Francos e o papado, por prestígio, e Bizâncio, por necessidade política, cobiçaram
simultaneamente o benefício da conversão dos Búlgaros. Essa emulação teve, por vezes, aspectos de competição. Por volta de 860, Bóris, príncipe búlgaro, rompeu com
Rastislau, príncipe dos Morávios, e voltou-se para os Francos. Imediatamente Rastislau se aliou aos Bizantinos e pediu-lhes alguns missionários gregos que conheciam
a língua eslava. O regente de Bizâncio, Bardas, e o patriarca Fócio aproveitaram a oportunidade e designaram dois missionários tessalonicenses, dois irmãos, Cirilo
e Metódio. Cirilo, homem excepcionalmente inteligente, sabendo que os Morávios não tinham alfabeto que os ajudasse a transcrever a sua língua, criou um, combinando
o grego com elementos hebraicos e coptas: foi o alfabeto glagolítico que permitiu a tradução para o eslavo antigo (o eslavónio) dos livros sagrados e dos livros
litúrgicos. De 864, data da sua chegada, até 884, data da morte de Metódio - que sobrevivera a Cirilo, morto em 869 -, os missionários gregos realizaram uma obra
notável, convertendo quase toda a Morávia e criando um clero nativo.
Mas isso não se fez sem dificuldades. Permanentemente perseguidos pelos bispos bávaros que se inquietavam com as suas inovações e consideravam o uso litúrgico do
eslavo um sacrilégio, foram denunciados ao papa que os apoiou: Adriano II nomeia Metódio como bispo regional da Grande Morávia, com sede em Sirmium. Com a morte
de Metódio, o bispo alemão de Nitra obtém de Estêvão V a supressão da liturgia eslava e a partida dos discípulos de Cirilo e de Metódio. No entanto, logo nos primeiros
anos do século X, a Grande Morávia desapareceria sob a vaga dos Magiares. Os missionários gregos refugiaram-se na Bulgária, cujo rei Bóris fora baptizado (cerca
de 864); depois de ter hesitado entre Roma e Constantinopla, acabou por ligar a Igreja búlgara a Fócio (870). Bizantina de cultura, a jovem Igreja não possuía uma
língua litúrgica: Clemente, discípulo de Cirilo, forneceu-lhe uma, baseada no alfabeto cirílico, ancestral do alfabeto búlgaro e versão búlgara do eslavo. Quando
os Bizantinos conquistaram a Bulgária no século X, os cristãos refugiados na Rússia kieviana introduziram aí a escrita cirílica como veículo do cristianismo.

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Carlos Magno e Luís, o Piedoso, haviam-se detido no curso inferior do Elba, diante da muralha do Danevirk que, construída através do istmo de Schleswig, isolava
a província saxónica -a mais setentrional - do grande império dos Viquingues! As incursões na Europa Ocidental e Meridional desses escandinavos davam bem a medida
da sua força. O cristianismo penetra entre esses guerreiros adoradores de Odin e de Thor por intermédio de um chefe dinamarquês, Haraldo, refugiado entre os Francos,
a quem Luís, o Piedoso, tinha exigido que pedisse o baptismo (826). Quando Haraldo quis voltar à Dinamarca, teve como acompanhante o picardo Anscário que, praticamente
sozinho, penetrou em pleno país viquingue. Por diversas vezes perseguido, mas continuando constantemente a sua acção a partir de Hamburgo - de onde se torna bispo
- e, depois, Bremen, Anscário pôde criar dois centros cristãos: um em Riba, porto da Dinamarca, outro em Birka, no lago Mälar, na Suécia. A sua morte, ocorrida em
865, levou ao abandono a missão escandinava.
É verdade que, então, o Ocidente desmembrado vivia sob o terror dos Viquingues.

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Capítulo II
OS SÉCULOS NEGROS

1. O grande terror escandinavo

Navegando em barcos leves e rápidos, os ousados marinheiros escandinavos, desde há muito tempo, sulcavam os mares do Norte e o oceano à procura de zonas ribeirinhas
ricas e mal defendidas; desde o fim do século VIII, os Noruegueses já apareciam na Irlanda e os Dinamarqueses nas costas inglesas. E, como autênticos comerciantes
viquingues, traficavam com Bizâncio através do Neva e do Dniepre.
Com a morte de Carlos Magno, puderam ver-se os Escandinavos e os Normandos a destruir portos nas costas da Europa Ocidental. Instalados em ilhas fluviais, os Normandos
sobem os rios, massacrando, queimando e pilhando. Podemos encontrámos em Hamburgo e Antuérpia, no Gironda, em Chartres, Blois e Paris - sitiada quatro vezes em quarenta
anos -, em Sevilha e, mesmo, em Pavia. Os monges fogem diante deles, levando as suas relíquias, enquanto os príncipes compram a sua fuga, pagando tributos ou entregando-lhes
províncias para pilhagem. Seria preciso esperar pelo século X em França, e pelo século XI noutros lugares, para ver os terríveis Normandos dos mares fixarem-se em
Estados poderosos e originais.
O século IX, depois da morte de Carlos Magno, já pertence aos chamados séculos negros, nos quais se instala a anarquia

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no Ocidente, provocando o seu parcelamento, adentro das suas fronteiras ameaçadas. Não há chefes nem, tampouco, grandes bispos para fazer frente às incursões normandas;
é verdade que os subtis marinheiros não operam com base em vagas poderosas como os Germanos do século V que não davam muitas hipóteses de réplica.
Com o desaparecimento de Luís, o Piedoso, em 840, o Império foi dividido em três partes, segundo as cláusulas dos juramentos de Estrasburgo (843). Carlos, o Calvo,
recebe a futura França (a Francónia Ocidental), Luís a futura Alemanha (Francónia Oriental) e Lotário, uma Lotaríngia artificial, em que a presença de Roma e de
Aix-la-Chapelle não bastava para esconder a fragilidade do seu título e do poder imperial que lhe coubera.

2. O recuo da Europa

Nesta altura, o regime feudal ganha os seus verdadeiros contornos em vários territórios do Ocidente. A autoridade real de tipo carolíngio desmorona-se. O rei já
não é o doador de terras do século anterior e o serviço de vassalagem - já existente no tempo dos merovíngios - deixa de ser privilégio do rei. Homens fortes, por
vezes até condes, passaram a atrair naturalmente os homens livres, ameaçados pelos Normandos ou pelos Sarracenos, que o soberano não estava em condições de proteger.
Ao Estado de tipo romano - um Estado de funcionários -, sucede um conjunto hierarquizado de proprietários fundiários. A predominância de uma classe de guerreiros
e a classificação generalizada em vassalos e suseranos, cujas relações substituem a sujeição ao Estado, superpõem-se a um regime essencialmente rural. O guerreiro
é, ao mesmo tempo, senhor e proprietário. A terra transforma-se na única riqueza; as cidades - à excepção dos portus dos grandes rios - esvaziam-se. Carlos, o Calvo
(875), e, depois Carlos, o Gordo (885), tentam reunificar e fortalecer o Império, mas já é demasiado tarde.
A Igreja - que faz parte do corpo social da época - vê-se evidentemente afectada pelo regime feudal que representa um novo perigo. À integração na hierarquia administrativa
do Estado

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imperial sucede a ameaça de dissolução na nova sociedade. Os senhores secularizam de boa vontade as terras eclesiásticas e os seus rendimentos; mas há pior: os clérigos
também se encomendam a um senhor que se toma assim o governante das Igrejas, distribuindo os títulos eclesiásticos. Nos mosteiros, a vida regular é gravemente ferida.
Abades indignos ou concubinos, bispos caídos em desgraça, clérigos reduzidos à mendicidade e padres administradores, são os males que, durante dois séculos, a Igreja
terá de aguentar e que já estavam em incubação desde meados do século IX. A longa disputa das investiduras já reunia todos os seus elementos.
Mas nem por isso todos os centros espirituais foram eliminados. De Luís, o Piedoso, a Carlos, o Calvo, a Renascença carolíngia prossegue a sua acção. Os historiadores
Nithard e Hincmar; o polígrafo Rábano Mauro, abade de Fulda; Valfredo Estrabão, de Reichenau, cujo manual da Sagrada Escritura faria escola; o grande poeta Notker
de Saint-Gall, que enriqueceu o canto da Igreja com novas fórmulas; Pascásio Radberto, de Córbia, teólogo da Eucaristia; o universal João Escoto Eriúgena - todos
esses homens da Igreja continuam a fazer frutificar o património cultural da Humanidade.
Inicialmente, o papado parece não só escapar ao feudalismo romano, mas também oferecer à Igreja a oportunidade de guiar essa sociedade sem mestres. Ao tempo da partilha
de Estrasburgo, reina Nicolau I (858-867), um homem de aço, que afirma a autoridade espiritual de Roma perante os metropolitas e os reis. "Desde o bem-aventurado
Gregório - escrevia Réginon - nenhum papa se pôde comparar a Nicolau." Muitos anos passariam antes que outro Nicolau surgisse.
Adriano II (867-872) pretendeu agir, mas, tendo a sua mulher - porque ele fora casado - sido raptada por um amante, toda a sua acção reformadora ficou evidentemente
paralisada. João VIII (872-882) tenta lutar contra as incursões sarracenas e contra o crescente ataque dos leigos, fortalecendo a autoridade imperial: mas os dois
titulares seguintes da coroa imperial - Carlos, o Calvo, e Carlos, o Gordo, revelaram-se pouco dignos da confiança do papa. Sobretudo Carlos, o Gordo -, que não
conseguiu opor aos Normandos e à crescente anarquia mais que

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uma covardia revoltante. Quando, sob o pontificado do incompetente papa Estêvão V, Carlos, o Gordo, foi deposto por incapacidade (887), caiu um grande véu negro
sobre o Ocidente.

3. Século X, o "seculum obscurum"

Para os historiadores italianos o século X é um século de ferro, o saeculum obscurum. A instalação dos Viquingues na rica Normandia (911) não põe termo às suas depredações.
Os Sarracenos sobem os vales alpinos sem encontrar resistência. E todo o século é abalado pelo terror das hordas húngaras que avançam até Orleães. No interior, a
sociedade feudal torna-se mais densa e ramifica-se, agravando a secularização dos bens da Igreja e o domínio dos feudais sobre as eleições episcopais e sobre os
mosteiros, tornados herança de família; a simonia - compra de cargos sagrados - e o concubinato dos clérigos são cancros naturalmente alimentados por um corpo social
enfraquecido; os pobres pululam.
Também em Roma se instala o feudalismo, onde grandes casas feudais se tornam donas do trono pontifício. No século X, sucedem-se papas-fantoches e muitos deles deixaram-nos
apenas os seus nomes, por vezes carregados de ignomínia. Tendo o papa Formoso (891-896) coroado um bastardo como imperador, Arnulfo da Germânia, em detrimento de
outro descendente de Luís, o Piedoso, Lamberto de Espoleto, lutas sangrentas opuseram, depois da morte de Formoso e de Arnulfo, espoletanos e antiespoletanos; o
episódio mais atroz foi o "concílio cadavérico" de Janeiro de 897: a múmia de Formoso foi retirada do túmulo, vestida com os paramentos pontificais, sentada numa
cadeira, julgada, condenada, desnudada e lançada ao Tibre.
Por volta de 900, subiu nos céus de Roma a estrela do senador Teofilacto, marido de Teodora. Talvez tenha estado ligado aos sangrentos episódios que conduziram ao
trono pontifício Sérgio III (904), sucessor de Leão V, morto na prisão, cuja desgraça havia sido o facto de se ter apaixonado por Marózia, filha de Teofilacto, resultando
daí um filho adulterino. Um dos sucessores de Sérgio III, João X (914-928), teve questões com Alberico,

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marquês de Espoleto, marido de Marózia. Durante quinze anos, a dupla Alberico-Marózia e, depois da morte de Alberico, a dupla Marózia-Guido de Toscana, dominaram
Roma. Marózia chegou mesmo a ser a única dona da cidade, quando o papa João X - que desejara libertar a Igreja - foi asfixiado com um travesseiro; foi ela quem "fez"
os seus dois efémeros sucessores, Leão VI e Estêvão VII. Mas o cúmulo foi quando, em 931, subiu à cátedra de Pedro o filho bastardo de Marózia e do papa Sérgio III,
que tomou o nome de João XI. Mas, como Marózia havia casado, em terceiras núpcias, com Hugo da Provença (932), Alberico II, filho de Alberico, revolta-se, lançando
na prisão a sua mãe e João XI.
Alberico II, mais religioso do que a mãe, toma o título de "príncipe e senador de todos os romanos". Os quatro papas que "reinaram" durante os vinte anos do seu
patriciado não passaram de fantoches de Alberico II, embora Leão VII (936-939) tenha apoiado a reforma cluniacense. Mas a Igreja ainda não tinha chegado ao fundo:
em 16 de Dezembro de 955, tornava-se Papa com o nome de João XII um jovem de 19 anos, Octaviano, filho de Alberico II. Mesmo que deixemos de lado as acusações mal-intencionadas
de Liutprando de Cremona, ainda há muitas faltas, as suficientes para esmagar João XII, um nobre mais devasso do que pontífice. O seu reinado foi, porém, marcado
por um acontecimento capital: o restabelecimento do Império no Ocidente.

4. O Sacro Império e os papas "alemães"

No dia 2 de Fevereiro de 962, João XII coroava imperador o rei da Germânia, Otão da Saxónia. O Sacro Império Romano-Germânico - Germânia, Itália e Borgonha -, assim
fundado, apenas desaparecerá em 1806. Desde o começo, este Império Germânico fez incidir sobre a Igreja romana uma pesada hipoteca: por uma espécie de concordata
assinada por Otão I e João XII (Privilegium Ottonianum), o imperador, mesmo confirmando os direitos do papa sobre os territórios romanos, estabelecia um controlo
estrito da administração pontifícia; a própria

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eleição do papa ficava submetida à sua escolha ou ao seu veredicto. Prevêem-se longas lutas que hão-de ocorrer nos séculos XI e XII: a Igreja só sairá vitoriosa
porque o Sacro Império saído do feudalismo, assente em bases frágeis, nunca será o que haviam sido os impérios de Constantino e de Carlos Magno: uma monarquia centralizada.
Entretanto, a teoria dos "dois gládios" inflecte em detrimento do espiritual. Otão I faz e desfaz os papas: destituição de João XII, em 963, e de Bento V, em 964.
João XIII (965-972) não foi mais do que um arquicapelão do imperador. Mas Otão e os seus sucessores da dinastia saxónica não foram insensíveis à reforma eclesiástica;
e a sua família também não deixava de ter os seus santos: Matilde, mãe de Otão I, Adelaide, sua esposa, Bruno de Colónia e Henrique II, terceiro sucessor de Otão.
Bento VII (974-983), encorajado pelo imperador, presidiu a diversos concílios destinados a combater a simonia, tendo protegido também Cluny e as suas filiais.
No entanto, isso não quer dizer que os dias sombrios da Igreja romana houvessem acabado: a morte violenta de João XIV e do seu adversário Bonifácio VII (984), a
dominação da família romana dos Crescenzi que "faz" João XV (985), esperando que Otão III "fizesse" Gregório V (996), são acontecimentos escandalosos. De repente,
descobre-se uma nesga de céu: em 999, Otão III designa como Papa um verdadeiro pastor, o seu antigo professor, o monge arvernês Gerberto, que escolheu o nome Silvestre
II (999-1003). Era um erudito - fora mestre de Teologia em Reims -, cuja reputação de homem de ciência, mesmo deformada (porque alguns fizeram dele um alquimista
e um feiticeiro), alcançava todo o Ocidente. O seu curto reinado ilumina o final do século X e o ano mil carregado de terror. Silvestre II luta com intransigência
pela liberdade da sede apostólica; nos seus sermões e nos seus actos perpassa já um sopro gregoriano.
A morte de Silvestre II, seguindo de perto a de Otão III, voltou a mergulhar a Itália e Roma na anarquia: os Crescenzi "fizeram" João XVII (falecido em 1003), João
XVIII (falecido em 1009), Sérgio IV (falecido em 1012), ao passo que Bento VIII (falecido em 1024) foi pessoa da família de Túsculo. Assiste-se a um novo escândalo:
um rapazinho do partido tusculano, Bento IX

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(falecido em 1045), a disputar o trono de Pedro com Gregório VI (falecido em 1046), aliás um pontífice notável; mas ambos foram depostos por Henrique III, que nomeia
Clemente II (falecido em 1047) e, depois, Dâmaso II (falecido em 1048).
Quando o sínodo de Worms designa o alsaciano Bruno de Toul com o nome de Leão IX, a Igreja abandonou a zona sombria: ir-se-ia desencadear a reforma pré-gregoriana,
preparada pela santidade e pela fecundidade de Cluny.

5. Uma fonte viva: Cluny

Como tantas vezes acontece ao longo da História da Igreja, é nas suas próprias profundezas que o grande corpo em perigo encontra as forças salvadoras. Enquanto Roma
se revela apenas o coração ressequido de uma Igreja asfixiada pelo feudalismo, eis que uma fonte brota num valezinho da Borgonha. Um grande senhor feudal de idade
avançada, Guilherme, o Piedoso, duque da Aquitânia, cansado das alegrias deste mundo, possuía em Cluny uma bela casa de campo; em 909, doou-a, juntamente com os
seus servos, bosques, vinhas e moinhos, para que ali se construísse um mosteiro em honra de S. Pedro e S. Paulo, e se estabelecessem os beneditinos, sob a direcção
de Bernão, o reformador da abadia de Beaume-les-Messieurs. A cláusula capital do acto de doação outorgava a Cluny uma liberdade cheia de promessas: o mosteiro será
autónomo em relação a todas as autoridades civis ou religiosas, prestando contas única e directamente a Roma.
Bernão foi um religioso entusiasta, mas foi com Odão, seu sucessor (927-942), que Cluny se elevou acima de todos os mosteiros do Ocidente. Encorajado pela imperatriz
Adelaide e pelo papa que, em 931, o autorizou a colocar na sua dependência todos os mosteiros que ele reformasse, e ainda ajudado por inúmeros bispos e senhores
feudais, que restauraram mosteiros arruinados, Odão estabelece a sua influência na Borgonha, na Aquitânia e na Itália. A sua obra foi continuada por uma extraordinária
linhagem de abades, cuja fama e glória só encontraram similar na sua longevidade. Mayeul (948-994) restaurou muitos mosteiros

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romanos e reanimou vários focos de cultura já extintos: Marmoutier, Lérins e Saint-Bénigne de Dijon. Odilão (994-1049), um homem pequeno de vontade férrea, fez com
que o número de casas ligadas a Cluny passasse de trinta e cinco para sessenta e cinco. Hugo (1049-1109) reformou, entre outros, La Charité-sur-Loire, Saint-Martin-des-Champs,
Saint-Bertin e Vézelay, além de fundar postos avançados diante da Espanha sarracena e também um mosteiro de beneditinas em Marcigny-sur-Loire. Ao fervor do religioso
e à prudência do diplomata, Hugo alia os talentos de construtor: é a ele que a Idade Média deve a sua mais vasta e mais sumptuosa igreja, a da abadia de Cluny, infelizmente
destruída em 1823.
A morte de Hugo assinala o apogeu da ordem cluniacense que conta, em 1109, mil cento e vinte e quatro casas, das quais oitocentas e oitenta e três em França. Se
algumas mantinham um abade, nomeado pelo de Cluny, a maioria delas é dirigida por um superior (prior) passível de substituição, dependendo estritamente da abadia-mãe.
A influência da ordem cluniacense sobre a civilização ocidental foi considerável, a tal ponto que se podia falar, sem exagero, de "centro real da Igreja" e de "capital
espiritual da Europa". O privilégio de isenção pontifícia, a sua administração centralizada e independente do regime feudal, e a sabedoria acumulada de quatro grandes
abades, entre 927 e 1109, permitiram que Cluny alimentasse uma poderosa corrente de reforma monástica e cristã. As características próprias da reforma cluniacense
são: aumento do número de monges-padres, dando uma nova importância à celebração da missa; a supressão quase total do trabalho manual em favor do ofício divino cantado
solenemente nas amplas igrejas por grupos compactos de monges (duzentos a trezentos em Cluny), e também - embora subsidiariamente - a favor do trabalho intelectual,
ainda que Cluny não desenvolva nesse domínio o papel que assumirá nos séculos XVII e XVIII a congregação beneditina de Saint-Maur.
Esta vida consagrada essencialmente à oração litúrgica e à vida do espírito necessitava de um contrapeso material: os "usos e costumes" cluniacenses previam sempre
refeições sem carne, mas substanciais. A paz e a moderação - os dois fundamentos

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da ordem beneditina - caracterizaram Cluny e garantiram a sua influência numa sociedade rural dominada pela violência e pela imoderação. Mesmo não inovando em matéria
de liturgia e de observância, Cluny foi testemunha do Evangelho vivido. Todas as ignorâncias e terrores de um simples povo cristão reduzido à servidão; todas as
fraquezas, todas as concessões feitas ao mundo pelos clérigos, prelados e papas; e todas as depredações e cobiças dos poderosos acabavam por se dissolver nesses
"vasos de eleição" que eram Cluny e suas filiais. Além disso, numa época de economia fechada, em que surgiam frequentemente grandes surtos de fome e desgraças, os
mosteiros cluniacenses foram os principais refúgios dos pobres; num domingo da Quinquagésima de determinado ano, do abadado de S. Hugo, sete mil pobres foram alimentados
pela abadia borgonhesa.
Aplicando os seus recursos na construção de numerosas igrejas e claustros, Cluny renovou a arquitectura cristã: os seus abades itinerantes popularizaram a arte romana
no Ocidente, enriquecendo-a com a adopção de capitéis esculpidos, com a moda dos portais com imagens, com o esplendor dos frescos.
Mas foi através dos seus monges que foram papas que Cluny actuou mais fortemente numa cristandade enfraquecida.

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Capítulo III
O RETORNO DO PAPADO À RIBALTA

1. Os papas duniacenses

Leão IX (1049-1054) não foi um Papa como os outros. Bispo de Toul, foi eleito no Concílio de Worms por vontade do imperador Henrique III. Mas, numa patética inovação,
vai a Roma vestido de peregrino e faz-se reeleger canonicamente pelo clero romano. E entrega-se, imediatamente, ao espírito de reforma que inspirou a sua acção pastoral
na Lorena. Rodeia-se de auxiliares decididos a secundá-lo nessa tarefa; os mais notáveis foram dois monges: o cardeal Humberto, um loreno, e o cluniacense Hildebrando,
futuro Gregório VII. Leão IX viaja muito, afirmando por toda a parte o poder supremo de Roma em matéria espiritual, reunindo diversos sínodos, pedindo contas aos
dignitários eclesiásticos simoníacos e fornicadores, condenando as doutrinas antieucarísticas de Berengário de Tours (1050) e coligindo a colecção dos "Setenta e
Quatro Títulos", primeiros elementos do direito Canónico.
Embora Vítor II (1055-1057) ainda esteja na linha dos papas "alemães", o abade do monte Cassino, que se tornou Papa com o nome de Estêvão IX (1057-1058), faz um
autêntico golpe de Estado, fazendo-se eleger apenas pelo clero e pelo povo de Roma, sem solicitar a investidura imperial. Este natural da Lorena, admirador de Leão
IX, nunca abandonou a sua atitude de

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independência durante o seu curto pontificado, marcado pela grande figura do cardeal Humberto; em 1057, este publicou o tratado Adversus Simoniacos, estigmatizando
ao mesmo tempo o vício simoníaco e a intervenção dos poderes laicos nas eleições episcopais. Tais ideias encontraram uma incidência canónica num decreto de Nicolau
II (1059-1061) que estipulava que, de futuro, a eleição dos papas seria da competência exclusiva dos cardeais-bispos, depois de terem consultado os cardeais-padres
e cardeais-diáconos; até então, os cardeais eram apenas os bispos, os padres e os diáconos principais (cardinais) dos Estados do Papa. Assim, de simples conselho,
o seu corpo tornava-se um colégio eleitoral.
A reacção foi viva, sobretudo na Alemanha, mas nada adiantou, porque, em 1061, o bispo de Luca foi designado apenas pelos cardeais com o nome de Alexandre II. Pressionado
pela nobreza romana e pelo imperador, ele estava prestes a voltar aos velhos erros, quando se ergueu, com autoridade, a voz de Pedro Damião (falecido em 1072). Este
eremita de Ravena, criado cardeal de Óstia, estigmatizava através dos seus escritos e sermões cheios de força - o seu Gomorrhianus é particularmente violento - os
clérigos e monges debochados e, mais ainda, as suas companheiras. Foi decisiva a sua intervenção a favor de Alexandre II, ameaçado por um concorrente imperial. O
Papa, fortalecido, pôde prosseguir a obra de regeneração moral e disciplinar iniciada pelos seus antecessores. As bulas de Alexandre II atestam que os juizes de
Roma já eram considerados irreformáveis; os seus legados - Pedro Damião e o cardeal Estêvão - apoiavam a sua autoridade, sobretudo em França. O Papa encorajou o
desembarque normando em Inglaterra; em Espanha, onde a liturgia romana substituiu a liturgia moçárabe, a ideia de uma reconquista cristã encontrou nele um defensor;
apoiou a acção dos normandos de Guiscardo que, em 1072, depois de expulsarem os Sarracenos, se tornaram senhores da Sicília.
Estava preparado o terreno para Hildebrando que, em 22 de Abril de 1073, seria eleito com o nome de Gregório VII.

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2. Gregório VII

A Igreja acabava de escolher um dos seus maiores pontífices. Este monge toscano tinha haurido, na fonte cluniacense, a fé, a piedade, a caridade, o amor pela paz
e uma longa prática das Escrituras. Gregório VII queria coroar a obra dos seus antecessores; aquilo a que se chamou "a reforma gregoriana" não foi mais do que o
culminar de um já longo trabalho.
O Papa adoptou, inicialmente, o método de conciliação -o mesmo que Pedro Damião preconizara - com o imperador Henrique IV, o Simoníaco, com Guiscardo, um salteador,
e com o rei de França, Filipe I, cujo adultério endémico escandalizava a cristandade. Gregório VII teria preferido "converter" estes príncipes e associá-los à sua
acção reformadora. Mas o seu silêncio incitou-o, no Concílio de Roma de 1074, a acabar com as duas manchas do clero: a simonia e o nicolaísmo. Embora já muitos o
tenham salientado, o que distingue Gregório VII é a sua tenacidade em fazer observar a legislação eclesiástica e a severidade das sanções (interdição e excomunhão)
aplicadas em todos os países cristãos por legados vigilantes.
Os decretos gregorianos foram mal recebidos. No Concílio de Roma, em Fevereiro de 1075, Gregório VII retomou-os, acrescentando-lhes um cânone que proibia os bispos
e os padres de receberem os seus cargos das mãos de um leigo: isto era subverter uma situação de facto quase universal. Algumas semanas mais tarde, vinte e quatro
proposições extremamente enérgicas, expressas em termos pouco habituais, foram inseridas nos registos pontifícios: são os Dictatus Papae, onde se encontram frases
como estas: "A Igreja romana foi fundada pelo Senhor. [...] Apenas o pontífice romano merece ser chamado universal. [...] É-lhe permitido depor os imperadores."
A teoria da supremacia pontifícia encontra aí a sua codificação.
Mas a centralização administrativa e a libertação das Igrejas não eram, no espírito do Papa, senão um meio de alcançar o seu objectivo último: a moralização dos
costumes sacerdotais. A acção do Papa tendia a fazer-se sentir até ao nível dos fiéis, por meio de legados permanentes ou itinerantes dotados de poderes excepcionais,
em detrimento dos primazes, dos

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metropolitas e até dos bispos, já que o Papa alargou a numerosos regulares o privilégio da isenção pontifícia.
A oposição a tal política foi, naturalmente, considerável. Bispos símoníacos, como Hermano de Bamberga e Manassés de Reims, desafiaram publicamente o Papa. No baixo
clero, onde o concubinato era corrente, circularam vários folhetos antigregorianos. Como a História registou apenas os casos de resistência, é difícil fazer um balanço
da reforma de Gregório VII, sobretudo no plano moral, mas é incontestável que a centralização pontifical se fortificou durante o seu reinado.
A intervenção do Papa na condução dos Estados do Ocidente foi suportada mais ou menos pacientemente pelos príncipes. O Normando em Inglaterra, o Capeto em França,
fingindo submeter-se às directrizes do Papa, não deixaram de o enfrentar. Com a Germânía e o imperador, travou-se uma luta aberta, uma guerra que - conhecida pelo
nome de "Querela das Investiduras" e, depois, "Luta do Sacerdócio e do Império" - haveria de se prolongar durante quase dois séculos. A luta pessoal entre Henrique
IV e Gregório VII foi patética e dura, porque o imperador apoiava-se no feudalismo eclesiástico da Alemanha que lhe permitia lutar contra os grandes senhores feudais.
Deposto pelo Papa, excomungado em 1076, abandonado pelos seus vassalos, desligados canonicamente dos seus deveres feudais, Henrique IV humilhou-se em Canossa (1077).
No entanto, deposto novamente em 1080, fez eleger Guiberto com o nome de Clemente III e foi instalar-se em Roma. Gregório VII, sitiado no Castelo Sant'Angelo, foi
libertado por Guiscardo, cujas exacções obrigaram o Papa a retirar-se para Salerno, onde acabou por morrer. A sua morte foi tomada como uma derrota do papado, mas
o movimento de reforma que Gregório VII tinha relançado era irreversível. Lentamente, o clero, apoiado pelos monges, emergiria da sociedade feudal e, mesmo que não
fosse plenamente digno dessa missão, afirmou suficientemente a sua distância em relação ao mundo para o guiar e iluminar.

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Capítulo IV
O PRIMEIRO RASGÃO NO MANTO SEM COSTURA

1. Uma etapa em direcção à ruptura entre Roma e Constantinopla: hlicolau I e Fócia

No momento em que, finalmente, a Igreja alcançava a dimensão da sociedade feudal, o fosso que separava Roma e Constantinopla alargava-se bruscamente. Desde o século
IV, o diálogo entre o Oriente e o Ocidente tinha sido interrompido com uma frequência cada vez maior. O restabelecimento do Império Romano a favor de um bárbaro,
no ano de 800, tinha sido acolhido com bastante frieza em Bizâncio. Ainda por cima, veio juntar-se à questão do Filioque. O Credo de Niceia-Constantinopla (381)
dizia: "Creio no Espírito Santo que procede do Pai (Credo... in Spiritum Sanctum qui ex Patre procedit"); a origem eterna do Espírito Santo era explicitamente relacionada
apenas com o Pai. Ora, desde finais do século VI, a Igreja de Espanha, e, depois, a Igreja franca, vulgarizaram a fórmula "que procede do Pai e do Filho" (... Filioque
procedit). Carlos Magno entusiasmou-se com esta adição que tinha a vantagem de apanhar os Gregos em falta, que se mostravam escandalizados por ouvir cantar esse
Filioque aos latinos de Jerusalém. O imperador mobilizou os seus teólogos, mas Roma resistiu às ordens imperiais e, em 810, o assunto foi enterrado durante sessenta
anos.

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Em 858, aparece a grande figura de Fócio. Este aristocrata bizantino, um erudito tornado dignitário da corte de Constantinopla, tinha sido indicado para substituir
o patriarca Inácio que fora deposto; os legados do Papa e os outros três patriarcas orientais ratificaram o acontecimento que o papa Nicolau I recusara reconhecer
em 863; mas o basileu tomou partido a favor de Fócio. Nicolau ripostou, enviando alguns missionários para a Bulgária, cujo rei Bóris, recentemente baptizado, hesitava
entre a obediência a Roma e a obediência a Bizâncio. Esta intromissão dos latinos na proximidade das suas fronteiras provocou a cólera dos Gregos, sobretudo quando
souberam que os legados de Roma estavam a caminho de Constantinopla, onde deveriam informar o basileu de que a Bulgária era decididamente latina; presos antes de
terem entrado no território imperial, os legados do Papa foram expulsos em 866 e Fócio enviou uma carta aos patriarcas orientais estigmatizando a conduta daqueles
"ocidentais bárbaros", cujas inovações dogmáticas e disciplinares (jejum ao sábado, celibato eclesiástico, Filioque...) eram denunciadas em termos veementes. Um
concílio reunido em Constantinopla (867) depôs Nicolau I, que morreu nesse mesmo ano, dez dias antes de Fócio ter sido destituído na sequência de uma revolução palaciana.
Restabelecido na sede patriarcal, Inácio renova os laços com Roma, mas estes permanecem frágeis, ainda mais que, de 879 a 881, Fócio recupera momentaneamente o seu
prestígio. A Bulgária, que não conseguira obter de Roma um patriarcado nacional, passa-se inteiramente para Bizâncio.
O papel de Fócio foi capital na ruptura entre Roma e Constantinopla: foi o primeiro defensor da ortodoxia diante do Papa; pouco a pouco, a Igreja grega começara
a conduzir-se como Igreja ortodoxa, na medida em que o Filioque aparecia como um erro romano por excelência. A primazia da honra do bispo de Roma não era contestada,
mas a sua jurisdição espiritual chocava com a dos patriarcas orientais.
Durante o século X, o apagamento do papado feudal contrasta com o esplendor e a força da dinastia macedónica que reina em Constantinopla, de 857 a 1057. Basílio
II (963-1025), vencedor dos árabes fatímidas - a quem arrancou Antioquia -

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e conquistador da Bulgária, deixou um império que nada tinha a invejar ao de Justiniano. Constantinopla afirmou a sua autoridade espiritual, levando os Russos ao
cristianismo: em 957, a princesa de Kiev, Olga, viúva de Igor, vai à capital bizantina receber o baptismo e seu neto, Vladimiro, implanta definitivamente o Evangelho
na Rússia kieviana: os seus delegados ficaram de tal forma maravilhados com as cerimónias religiosas de Bizâncio ("Nós já não sabíamos se estávamos no Céu se na
Terra"), que Vladimiro decidiu que o seu povo abraçaria o cristianismo bizantino. Em 1039, um metropolita instala-se em Kiev: o primeiro titular foi um grego. Foi
nas traduções para eslavo dos tesouros literários e patrióticos, deixados por Cirilo e Metódio, e enriquecidas pelos Búlgaros, que a Rússia - a terceira Roma - se
alimentou espiritualmente. Os contactos entre russos e latinos eram quase inexistentes, pois a verdade é que, desde 1054, a ruptura entre Roma e o mundo bizantino
tinha sido consumada.

2. Cerulário

Depois da morte de Fócio, a união foi superficialmente salva, mas muitos incidentes revelaram a sua fragilidade. No começo do século X, as quartas núpcias do imperador
Leão VI opuseram a sede romana ao patriarca de Constantinopla, Nicolau, o Místico, que considerava a tetragamia uma fornicação. A criação do Sacro Império Romano-Germânico
- que renovava o gesto do ano de 800 - e a reforma pré-gregoriana conduzida num sentido centralizador haviam representado um golpe nas pretensões da Igreja bizantina
que, fortalecia pela "Renascença macedónia", aspirava à autocefalia. Quando Miguel I Cerulário subiu ao trono patriarcal em 1043, os laços entre Roma e Bizâncio
eram dos mais tensos. O novo patriarca julgou que não tinha obrigação de anunciar a sua eleição ao Papa, o triste Bento IX. Depois veio Leão IX - um papa reformador
- que, para rechaçar Normandos e Sarracenos do Sul da Itália, concebeu o projecto de aliar os dois impérios cristãos (1052). Parece que Cerulário receou que a sua
autoridade sofresse com essa iniciativa; assim, por interposta pessoa - em carta de um bispo búlgaro a um bispo

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italiano -, acusou Roma no plano da liturgia: uso do pão ázimo, padres sem barbas..., bagatelas. Leão IX talvez tenha errado ao confiar a réplica ao cardeal Humberto,
cuja impulsividade e tom eram inadequados para sufocar o desprezo que Cerulário manifestava a respeito dos "Bárbaros do Ocidente". Despachado para Constantinopla,
em 15 de Julho de 1054, vai a Santa Sofia à hora do serviço solene e entrega o texto de uma sentença de excomunhão contra Cerulário.
Ora, o legado não estava habilitado para realizar este gesto. Aliás, Leão IX já tinha morrido havia três meses; consequentemente, o gesto dos latinos voltou-se contra
si próprios. Toda a Bizâncio tomou partido pelo seu patriarca, que mandou queimar o texto de excomunhão na praça pública. Reunido um sínodo por sua iniciativa em
24 de Julho, retoma todos os velhos motivos de queixa anti-romanos e afirma que a única Igreja ortodoxa era aquela que estava reunida em redor do basileu e do patriarca
de Constantinopla. A intervenção mediadora do patriarca de Antioqua não obteve nenhum resultado.
Nem Roma nem Bizâncio se aperceberam imediatamente da gravidade deste rasgão feito no manto sem costura da Igreja. Mas o silêncio que aumentaria com os anos tornou
cada vez mais sensível um antagonismo que vários acontecimentos, ocorridos depois, iriam agravar: as Cruzadas, sobretudo, exasperaram o ódio dos gregos em relação
aos latinos espalhados pelo Oriente. As aproximações oficiais registadas no século XIII (Concílio de Lião) e no século XV (Concílio de Florença) representarão apenas
actos políticos sem continuidade e que, de qualquer forma, não contarão com alguma adesão das populações do Império do Oriente.

3. Um escândalo, uma esperança

Se, nos nossos dias, se iniciar um novo diálogo, convirá confiar, pelo menos em parte, na acção mediadora das Igrejas orientais que permaneceram unidas a Roma ou
que, posteriormente, se colocaram sob a sua obediência: os uniatas e os rutenos da Europa Central, da Ucrânia e dos Estados Unidos, os

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maronitas, a quem Alexandre IV deu um patriarca (Antioquia) em 1254, e as pequenas comunidades e unidades de rito bizantino, arménio, sírio, caldeu e copta: ao todo,
cerca de dez milhões de católicos para cento e setenta milhões de fiéis das Igrejas separadas.
Um padre uniata escreveria em 1963: "Nós somos as dolorosas testemunhas do cisma. Um católico romano nem sempre tem consciência da perda que representa para a riqueza
da Igreja o Cisma do Oriente. Um ortodoxo ateniense geralmente ignora quase toda a riqueza espiritual da Igreja Católica. Mas nós, orientais unidos, estamos na fronteira
entre os dois mundos..." E acrescentava: "Nós somos a ponte entre o Oriente e o Ocidente." (1) Com efeito, como latinos, temos estado, desde há dez séculos, privados
das riquezas exploradas pelos nossos irmãos do Oriente: vida mística intensa, preparação do segundo advento de Cristo, sentido muito vivo da oração de adoração,
culto fervoroso do Espírito Santo e da Ressurreição, liturgia cuja sacralidade é mais manifesta e mais popular do que a nossa.
De facto, a partir de 1054, a maior parte da Sérvia, da Roménia, da Grécia, da Bulgária, da Anatólia e da Rússia - sem contar as Igrejas copta e síria saídas de
anteriores cismas - seguem caminho fora das águas romanas. Em meados do século XI, devido ao Islão e ao cisma, toda a bacia oriental e meridional do Mediterrâneo
fica separada de Roma.
A partir de então, a Igreja romana passa a ser confundida, de facto, com a Europa Ocidental ainda adolescente.

Nota 1: Podemos afirmar também que os orientais, unidos pela sua ligação a Roma, endureceram um pouco mais as posições dos ortodoxos. [N. do T.]

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IV
A JUVENTUDE DA EUROPA

Capítulo I
NAS PEGADAS DE GREGÓRIO VII

1. A caminho do primeiro Concílio de Latrão

Morto Gregório VII, julgou-se que a sua obra reformadora não lhe sobreviveria. Quando o abade do monte Cassino se tornou papa com o nome de Vítor III, foi por vontade
dos Normandos de Itália (1086): a falta de autoridade desse pontífice erudito beneficiou Henrique IV e o seu antipapa Clemente III Porque, nos séculos XI e XII,
era frequente acontecer que os imperadores tivessem um antipapa de reserva. Aliás, Henrique IV estimulou a difusão na cristandade de libelos difamatórios para a
memória de Gregório VII.
Entretanto, foi um dos filhos espirituais de Hildebrando, o francês Eudes de Châtillon, monge de Cluny e antigo legado em Itália, que sucedeu a Vítor III, tomando
o nome de Urbano II. Urbano possuía a ciência e a firmeza de Gregório; a sua acção beneficiou, entre os canonistas e os polemistas, de uma viva corrente a favor
das ideias gregorianas: Deusdefit, Anselmo 3e Luca, Ivo de Chartres, Gebardo de Salzburgo, Manegoldo de Lautenbach e outros esclareceram vivamente, nos seus escritos,
a doutrina da superioridade do Papa sobre o imperador, superioridade que podia ser exercida através de um controlo permanente e, mesmo, pela possibilidade de depor
o soberano.

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Modelado e penetrado pela ascese cluniacense, Urbano II manifestava um horror instintivo pelas depravações dos sentidos entre os clérigos. Durante muito tempo, ele
percorreu pessoalmente a Europa, desmascarando a simonia, o nicolaísmo e a investidura leiga. No Concílio de Melfi (1089), decide que os filhos de padres seriam
afastados das funções sacras e que o colégio dos cardeais - o Sacro Colégio - se associaria ao governo pontifício; o Concílio de Plaisence (1094) decreta o retorno
às legações permanentes; em Clermont (1095) - onde se realiza o concílio da Primeira Cruzada -, o Papa excomunga o adúltero rei de França, Filipe I. A França, seu
país natal, recebe cuidados especiais do Papa: ele comparece para intervir nas divergências que opõem bispos e regulares, multiplicando os privilégios monásticos,
obrigando o rei a renunciar à investidura pelo báculo e pelo anel; em suma, contribuindo de forma poderosa na edificação da monarquia pontifícia, a seus olhos obra
de salvação pública.
Natural de Ravena, Pascoal II (1099-1118) - mais um monge de Cluny - segue as pegadas de Urbano II, só que com menos segurança. Ainda não tinha renovado as medidas
anteriores, condenando a investidura laica; entretanto, o rei de Inglaterra, Henrique I, e o jovem imperador Henrique V faziam reviver a querela dos dois gládios:
o primeiro, expulsando o arcebispo reformador de Cantuária, Sto. Anselmo - teólogo genial que aprofundou o mistério da Redenção no seu Cur Deus Homo -; o segundo,
inspirando um opúsculo saído em Liège, em que a tese germânica sobre a investidura se expressava com violência. Pascoal, por momentos, cedeu a Henrique V, que o
vigiava, mas os protestos do clã gregoriano obrigaram-no a retractar-se: morreu pouco depois, numa Roma atacada pelos partidos alemães.
O Papa Gelásio II (1118-1119) excomungou Henrique V que lhe opõe um fantoche, Gregório VIII. Calisto II (1119-1124), sucessor de Gelásio, resolveu acabar com esta
querela que dividia a cristandade. Depois de longas conversações e baseando-se numa teoria do canonista Ivo de Chartres - distinção entre a investidura espiritual
e a investidura temporal -, Calisto II, em 23 de Setembro de 1122, assinou em Worms com Henrique V uma concordata que consagrava a renúncia do imperador à

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investidura pelo báculo e pelo anel e registava a sua promessa de respeitar a liberdade das eleições pontifícias e episcopais; em contrapartida, o imperador mantinha
a sua autoridade propriamente feudal sobre o bispo eleito.
A Concordata de Worms exigia uma confirmação solene no plano eclesial: daí o I Concílio de Latrão que se realizou na igreja episcopal do Papa - facto significativo
-, de 10 de Março a 11 de Abril de 1123. Sinal de um despertar da Igreja: tratava-se do primeiro concílio ecuménico (estilo romano) convocado desde 870. A autoridade,
ao mesmo tempo, monárquica e colegial da Igreja romana, após duzentos e cinquenta anos de lutas ou de anarquia, ia poder afirmar-se: de 1123 a 1312, realizar-se-iam
sete concílios "ecuménicos", dos quais quatro em Latrão, tantos quantos no curso dos onze primeiros séculos da nossa era e mais do que do séculos XV ao século XX.
Mas também é verdade que as Igrejas orientais ortodoxas nunca mais participaram nos concílios.
A assembleia de 1123 - trezentos bispos e abades - codificou e desenvolveu todo o trabalho de reforma iniciado no século XI; votou vinte e cinco cânones que incidiram
sobretudo na condenação da simonia, nas usurpações laicas e nas violações da Trégua de Deus. Quererá isto dizer que, nas profundezas da sociedade cristã, esta reforma
tão solenemente aprovada tenha sido, de facto, aplicada? Enquanto, na Alemanha e na Itália - regiões profundamente desconjuntadas pelo regime feudal ou pelo particularismo
das cidades -, a reforma gregoriana caminhava muito lentamente, a Igreja tinha alguns aliados mais seguros entre as jovens realezas de França e da Inglaterra. Preocupados
em pacificar e alargar o seu próprio domínio, os primeiros Capetos - Luís VI e, sobretudo, Luís VII - apoiavam-se nos clérigos e nos monges que cumulavam de doações
e prebendas, e que protegiam contra as pilhagens dos senhores feudais. Tanto os legados pontifícios como os concílios provinciais podiam aplicar com eficácia as
disposições romanas: uma nova geração de pastores, libertos das sujeições feudais e eleitos pelo povo e pelo clero, encheu os quadros da Igreja francesa.
No reino anglo-normando, a reforma gregoriana encontra mais obstáculos, devido ao absolutismo de Henrique I, filho do

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Conquistador, e à resistência feroz de uma parte do clero à instauração do celibato eclesiástico. Em Espanha, a rivalidade que opunha o arcebispo de Toledo ao de
Compostela prejudicava o progresso da reforma e da Reconquista. Em contrapartida, o papado encontrou um sólido apoio em dois jovens reinos cristãos: a Hungria e
a Polónia, cujos fundadores, Estêvão I (Sto. Estêvão) e Boleslau I, nos primeiros anos do século XI, tinham conseguido fazer com que as suas Igrejas se desligassem
do Império.
Porém, quaisquer que tenham sido os êxitos do papado, poderá dizer-se que a civilização ocidental, no século XII, era profundamente cristã?

2. Uma sociedade cristã?

O clero secular desse tempo era muito diferente do nosso, mais numeroso e muito menos bem formado. Não havia seminários e só um em cada cem clérigos frequentava
as escolas; a "catequese" era empírica e a residência dos párocos não era um hábito. Sto. Agostinho tinha compreendido desde há muito que só a "comunidade" poderia
salvar o padre da mediocridade e da decadência; na sua peugada, papas e bispos favoreceram a constituição de "colégios de presbíteros", cujos membros renunciavam
à propriedade privada. Assim se desenvolveram as sociedades de "cónegos regulares" inspiradas numa regra que se atribui a Sto. Agostinho: S. Vítor em Paris, Windesheim
na Holanda, os cónegos de Latrão, de Grand-Saint-Bernard, de Saint-Maurice de Agaune, sobretudo os premonstratenses, fundados em 1120 por S. Norberto, perto de Laon;
em 1230, já agrupava um milhar de comunidades. Os cónegos regulares estimularam, no século XII, uma vasta classe de padres vinculados ao ministério paroquial. Os
austeros cartuxos, instalados por S. Bruno no fim do século XI num agreste e solitário ponto das montanhas de Grenoble, não deixaram de ser testemunhas mudas de
um Evangelho nunca suavizado.
Era todo o povo feudal que a Igreja se esforçava por erguer ao nível do Evangelho, essa mensagem que, verdadeiramente incorporada na vida, dava um sentido ao amor,
ao dinheiro,

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ao trabalho e ao poder. No século XII, falava-se muito de "amor cortês". A promoção da mulher - à qual o culto da Virgem não foi estranho - encontrou na Igreja uma
aliada. Percorrendo as compilações canónicas dos numerosos concílios ou sínodos realizados no Ocidente durante o século XI, deparamos com papas e bispos que lutam
contra o adultério, o divórcio, a violação, o rapto e a luxúria, vícios que a violência feudal favorecia. Aliás, os canonistas elaboraram nessa época a legislação
sobre o casamento: a Igreja rodeia o pacto conjugal - essência do sacramento - de ritos solenes e expressivos, como o uso da aliança e a bênção do leito nupcial.
Respeito pela mulher; mas também respeito a Deus, através do repouso dominical e dos pobres. A violência feudal atacava, sobretudo, os fracos. Desde o século XI,
na França Meridional, desenvolveu-se um movimento a favor da paz que assumiu duas formas complementares: a Paz de Deus, que protegia os não-combatentes, e a Trégua
de Deus, que limitava a guerra a certos dias, impondo-se algumas sanções eclesiásticas sobre os contraventores. Um concílio provincial em Elna (1027) interditou
a guerra privada desde a tarde de sábado até à manhã de segunda-feira; em 1041, em Nice, a interdição cobria quase toda a semana - de quarta a segunda-feira. Um
sínodo de Narbona (1054) decide que seriam sagradas as datas litúrgicas do Advento, Natal, Quaresma e as festas da Virgem e dos Apóstolos. Urbano II, em Clermont
(1094), inspirou o seguinte cânone: "Os monges, os clérigos e as mulheres beneficiam todos os dias do benefício da paz de Deus; a ruptura dessa paz só é autorizada
para as outras pessoas, se elas forem atacadas de segunda a sexta-feira." O I Concílio de Latrão (1123) ameaçou com a excomunhão aqueles que roubassem os peregrinos.
Da França, estas instituições de paz passaram para a Espanha, a Alemanha e a Itália; mas, embora não tenham conseguido pôr termo às guerras, pelo menos habituaram
os senhores feudais a resolver os seus litígios pela via do direito, já que as violências estavam excluídas pela promessa solene, de que o suserano era depositário,
cuja violação era punida com pena de morte.
Um dos fenómenos mais importantes da Idade Média foi a transformação da cavalaria - até então uma casta de combatentes

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a cavalo - num corpo privilegiado devotado a um ideal religioso. Desde 878, João VIII propôs aos senhores feudais que dirigissem o seu ardor bélico contra os infiéis.
No século XI, a Igreja intervém na cerimónia de armar os cavaleiros, no decurso da qual, em presença do seu suserano e dos seus pares, o jovem nobre devia fazer
prova da sua força e destreza; depois, o jovem tomava um banho e passava a noite em oração: a espada estava pousada em cima do altar; a missa da manhã era seguida
de um festim e, a seguir, o jovem nobre, perante numerosa assistência, recebia a espada benzida com o talabarte; cobriam-no com a sua armadura, também ela benzida
por um padre e, depois de ter recebido as insígnias do seu padrinho, ouvia o oficiante proclamar que era seu dever proteger especialmente os fracos, os pobres, as
viúvas e os órfãos, e abster-se de toda a violência. Seria absurdo afirmar que todos os cavaleiros foram fiéis a esse juramento e que as guerras da Idade Média se
revelaram isentas de qualquer outro propósito. A História Geral encarregar-se-ia de desmentir tal ingenuidade. Mas, mesmo assim, se o termo "cavalheiresco" permaneceu
carregado de nobreza, não será isso pela sua longa tradição? Um Bayard, um S. Luís não teriam sido possíveis, se uma certa gentileza - apanágio do verdadeiro cavaleiro
-, tirada do modelo evangélico, não houvesse humanizado os cavaleiros herdeiros dos brutos Francos.

3. Uma arte ao alcance do homem cristão

Pegue num guia de uma das nossas províncias mais antigas e deixe-se perder voluntariamente numa estrada local desconhecida; a maior parte das vezes, serão as humildes
e maravilhosas igrejas dos séculos XII ou XIII que definirão as etapas dessa viagem imaginária. E essa viagem conduzirá inevitavelmente a alguma abadia ou catedral,
cujo tranquilo esplendor atesta ter havido um tempo, em que os homens encontraram na sua fé o equilíbrio necessário para a produção das suas obras-primas. Nunca
mais, na história do mundo cristão ocidental, se talharam, ao mesmo tempo, tantas e tão perfeitas flores de

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pedra; nunca mais se encontrará essa conjunção de uma técnica perfeita, de uma vida religiosa activa, de uma poesia interior e de tanto equilíbrio psicológico.
A arquitectura determina todas as outras formas de arte: é com a pedra, o mais nobre material, que a arte da Idade Média se exprime. Foi por intermédio da parede
(construída num chão, de que, finalmente, o homem se tornou senhor, segundo uma vigorosa lógica) que o homem travou o seu diálogo com Deus. Enriquecida pelas experiências
dos séculos anteriores, a arquitectura românica - aquela que se espalha pela cristandade no século XII - beneficia de uma espantosa série de conquistas técnicas:
a abóbada de pedra substitui decisivamente as vigas visíveis; a técnica procede da adaptação de fórmulas inspiradas por Roma - rainha do "grande aparelho" - ou pelo
Oriente Bizantino que era tributário da Pérsia e da Mesopotâmia. Embora a arquitectura românica se baseie numa relação vigorosa das forças e das formas, desenvolve-se
com uma extrema diversidade: esta arte universalista e humanista é também uma arte flexível que extrai a sua seiva em todos os territórios e recebe as ideias que
viajavam mais livremente na jovem Europa: abóbadas em forma de berço aplicadas a volumes alongados, abóbadas em semicírculo, abóbadas de arestas sobre compartimentos
isolados, abóbadas em semicúpula nas ábsides, filas de cúpulas, cúpulas sobre pendentes... Uma arquitectura de possibilidades infinitas, que valoriza a mais exuberante
escultura, cujos santos com rostos de artesãos ladeiam monstros, em que as flores se perdem em arabescos abstractos, onde se misturam a Bíblia, as lutas feudais,
a tocante tragédia humana, o cómico quotidiano, a vinha, o pão... Nunca a pedra construída e a pedra esculpida tiveram relações tão íntimas! E nós, que pertencemos
à geração dos prefabricados e dos buildings medonhos, nunca enfrentamos Moissac, Charroux, Tournus, Sto. Albano, Montmajour, S. Bento, Hildesheim, Viterbo ou Ripoll
- e esta lista nem sequer é um resumo da arte românica - sem um sentimento de inferioridade; nunca seremos capazes de entrar numa dessas igrejas frescas como um
celeiro e puras como a noite, sem nos sentirmos como que purificados das nossas manchas.
Arte de sábios, de arquitectos, de pedreiros, de pintores, de miniaturistas anónimos, a quem um povo inteiro emprestava

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as suas mãos. Arte de Igreja e de cristandade: porque (embora tenha sido encorajada pelos poderosos - príncipes, bispos e abades -, embora se tenha podido difundir
sobretudo na França dos Capetos - o país mais bem organizado do Ocidente - e, embora as estradas, que se abriam aos peregrinos de Compostela ou às Cruzadas, tivessem
sido, naturalmente, semeadas de igrejas) a arte românica, o Românico, foi essencialmente uma arte monástica, o reflexo de uma contemplação.
Alargando a sua estrutura, o feudalismo permitiu a multiplicação de aldeias, paróquias e igrejas. A igreja, a catedral, soma das artes do tempo, tornou-se a verdadeira
casa do povo, um povo que já não tinha de percorrer um demorado caminho para encontrar Deus, um povo no qual o gosto pelo maravilhoso e pela crendice se misturavam
com um sentido do sobrenatural incentivado pela prática dos sacramentos, pela sequência litúrgica do calendário, pela realização de cerimónias à maneira romana.
É evidente que Anoncefaite à Marie não é uma página de história da Idade Média, dessa Idade Média, cujas crónicas e poesias revelam os seus vícios, mas a intuição
de Claudel, o pai de Violaine e de Anne Vercors, que revelou aquilo que tornou transcendente uma civilização: a fé.
O povo cristão vivia rodeado por um clero secular próximo dele; mas sofria, sobretudo, a influência do mosteiro ao qual, é verdade, o servo estava, com frequência,
subordinado. A vida monástica difundia-se em todo o Ocidente, e numerosas foram as vilas e as cidades que se formaram em redor de um prior ou de uma abadia de beneditinos
ou de cistercienses! Nos confins do Ocidente, o enraizamento cristão era fruto da implantação monástica. Se os Húngaros, por exemplo, se adaptaram à vida sedentária
na grande bacia do Danúbio, foi em grande parte devido aos noventa e cinco mosteiros que, no fim do século XII, aí se encontravam instalados. Mas esse poder espiritual
da Igreja não seria um germe de riqueza temporal?

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Capítulo II
UMA DIFICULDADE: A POBREZA

1. Os "pobres" que recalcitram

"O Filho do homem não tem onde repousar a cabeça." Ao longo de todos os tempos, os cristãos sempre desejaram intimamente que os seus pastores vivessem, com toda
a verdade, a palavra do Mestre. Mas nunca, como na Idade Média, o problema da pobreza eclesiástica despertou tanta paixão, porque a complexa sociedade feudal tinha
considerado todos os leigos prisioneiros dos latifúndios e, mais ainda, os clérigos enriquecidos ao longo de sete séculos de doações e prebendas.
Algumas seitas de "pobres" intransigentes, virulentas e, muitas vezes, insólitas, proliferaram numa Europa mais ou menos cristianizada, mais ou menos bem conservada
e protegida pelo clero. Durante mais de quarenta anos, na primeira metade do século XII - depois de um Tanchelin e de um Pedro de Bruys -, ecoaram na Europa as maldições
de um padre de Bréscia, Arnaldo. Nos púlpitos de Bréscia, de Paris, de Zurique e, mesmo, de Roma, ele reclamava a supressão de toda a propriedade eclesiástica e
gritava contra os padres dissolutos e os bispos ávidos de bens; mas, quando acusou o austero Papa cisterciense Eugênio III "de engordar o corpo e encher a sua bolsa",
ultrapassou as medidas. Tendo aceitado ser o chefe do município de Roma, Arnaldo de Bréscia foi entregue por Adriano IV ao

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braço secular e decapitado. Deixava alguns discípulos, os "lombardos", que talvez se tenham confundido com outros "pobres", os "humiliatas ou humilhados", que surgiram
nessa Lombardia mercantil rica e, simultaneamente, obcecada pela pobreza evangélica. Os "humilhados" eram pessoas casadas, mas continentes, austeras e correctas,
vestidas com uma simples túnica cinzenta, que tinham no trabalho da lã o seu único meio de subsistência. O seu ideal era o retorno à Igreja primitiva. Alguns deles,
sequazes de Vacário, eram violentamente anticlericais e rejeitavam todos os actos exteriores de culto, incluindo os sacramentos; mas a maioria dos conventículos
dos humilhados foram recuperados pela Igreja, no início do século xm, e integrados nas sociedades religiosas.
Mais revolucionário, que terminou em dissidência, foi o movimento valdense, cujo nome lhe adveio de um rico comerciante lionês, Pierre Valdo (falecido em 1217),
de quem se sabe pouca coisa; dizia-se que, no decurso de uma grande fome, em 1176, se tinha deixado impressionar com as palavras de Sto. Aleixo, pobre voluntário
que, depois de ter posto as suas duas filhas num mosteiro, abandonou tudo, arrastando consigo para uma vida de absoluta pobreza homens e mulheres que passaram a
ser chamados os "Pobres de Lião". Esta seita foi excomungada em 1184; mas, a partir do século XIII, implantou-se nos vales piemonteses, onde ainda possui dezasseis
paróquias. Noutros territórios, como em Espanha, foi dizimada ou, como no Norte da Europa, confundiu-se com movimentos semelhantes, como o anabaptismo. Pelo seu
biblicismo absoluto, pela rejeição do culto dos santos, da missa e da confissão auricular e pelo sacerdócio dos leigos, os valdenses preparavam o caminho ao protestantismo,
a que aderirão em 1532. Mas a sua hierarquia de "perfeitos" ou apóstolos, superiores aos amigos, aparentava-se com o movimento neomaniqueísta dos cátaros.
De facto, nesse século XII, em que a Europa, saindo da longa letargia feudal, via animarem-se novamente os caminhos da terra e do mar que conduziam ao Oriente, ao
Mediterrâneo ou ao Báltico, também as ideias - mesmo as já enterradas há séculos - ressurgiram e se puseram em marcha. As velhas ideias gnósticas e maniqueístas,
reforçadas pelas doutrinas anti-sacerdotais

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e anti-sacramentais, retomaram o seu vigor em contacto com a jovem Europa. O Império Bizantino, desde o século X, tinha conhecido os bogomilos e os paulicianos que
professavam um dualismo mitigado: a existência eterna de um Deus reinando sobre um universo espiritual e cujo filho revoltado, Satanael, teria sido o criador do
mundo material e do homem. Os ensinamentos dos bogomilos chegaram à Bósnia, à Albânia e, depois, à Lombardia, uma grande encruzilhada de caminhos; mas, a partir
daí, pelos desfiladeiros alpinos, estendeu-se ao longo das planícies provençais e languedócias, onde os senhores feudais - sobretudo o conde de Toulouse -, tinham
permanecido fora do império capeto e o clero estava menos preparado para lutar contra as doutrinas heterodoxas. Como a cidade de Albi parece ter sido o centro da
zona de influência dos cátaros, os seguidores da seita ficaram conhecidos como albigenses.
A doutrina albigense, sincrética, de inspiração maniqueísta e gnóstica, baseava-se no dualismo de Deus, na rejeição de uma Igreja corrompida desde "a doação de Constantino",
na distinção entre, por um lado, uma minoria de "perfeitos", ascetas e missionários e, por outro, uma massa de fiéis que não estavam sujeitos a qualquer código moral
definido, mas que, à beira da morte deveriam, para ser salvos, receber o consolamentum, uma espécie de sacramento. Uma doutrina simples, um clero edificante e persuasivo,
uma moral sem dificuldades e ainda mais atraente, já que lançava a dúvida sobre a legitimidade do direito de propriedade: eis o que explica o progresso do catarismo
junto do povo humilde numa época marcada por um desejo de renovação religiosa. Além disso, as pessoas da Idade Média eram naturalmente dualistas na expressão do
seu pensamento; viviam na obsessão do Diabo e a sua concepção do Mundo era espontaneamente pessimista.
Para os capetíngios e para o Norte da França, a França Meridional era uma espécie de província perdida que era preciso recuperar a todo o custo. Para a Igreja, o
catarismo ameaçava fazer desaparecer radicalmente o cristianismo numa das mais antigas terras cristãs; talvez abusivamente, acusava os cátaros de ameaçarem a ordem
social e a hierarquia feudal. Quando, junto dos "hereges", fracassaram os esforços dos cistercienses

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e do próprio Domingos de Gusmão; quando foi massacrado um legado pontifício (1208)/ Pedro de Castelnau, uma hedionda cruzada, conduzida por Simão de Montfort, arrasou
o Sul da França, desde Béziers até Marmande; e foi o Capeto quem mais lucrou com ela. A Igreja, se quis extirpar a heresia, teve de recorrer à Inquisição que, sendo
inicialmente apenas um processo de averiguações, tomou, sob Lúcio III (1184), uma forma mais precisa: de futuro, os hereges obstinados podiam ser entregues pelos
juizes da Igreja à autoridade secular, mas apenas no século XIII, quando uma severa inquisição monástica foi instituída pela Santa Sé com a ajuda das ordens mendicantes,
a expressão "braço secular" e a condenação à morte na fogueira passaram a figurar na legislação e no vocabulário inquisitoriais.
Quantos mortos fez a Inquisição? É difícil determinar, mas, embora esse número de mortos pareça demasiado elevado aos nossos olhos de homens do século XXI, a História
deve registar o facto de a Inquisição ter sido a arma de uma sociedade essencialmente religiosa que não admitia a dissidência voluntária. Seja como for, no começo
do século XIV, o catarismo já tinha desaparecido.

2. Bernardo ou a pobreza fecunda

Todas as seitas tinham proliferado no silêncio dos clérigos e dos monges, no grande silêncio de Cluny, porque o imobilismo tinha substituído a revolução cluniacense.
Os monges negros já não ofereciam à sociedade os dois princípios que eram a sua razão de ser: o trabalho e o ensino. As doações, de que os mosteiros tinham beneficiado,
pouco a pouco foram habituando os religiosos a abandonar o trabalho manual, deixando-o à família monástica, composta por servos, colonos e rendeiros. Por outro lado,
o ensino monástico, tão do agrado de Carlos Magno, foi negligenciado: no século XII, a abadia-mãe de Cluny, com trezentos monges, ensinava apenas seis crianças-oblatas.
O monaquismo - na sua origem um refúgio de leigos - clericalizava-se; a atracção por uma vida tranquila, acolhedora, ao abrigo dos ventos frios do feudalismo, substituía
a vocação de muitos monges.

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A pretexto de que S. Bento previra certas "pitanças" extraordinárias/ reforçava-se a ementa; os monges-ecónomos apropriavam-se de rendas, enquanto os abades levavam
uma vida faustosa.
Quando a Europa se abriu ao comércio e aos progressos técnicos, quando a propriedade fundiária perdeu a sua preponderância em favor das cidades, os monges que viviam
nos campos mostraram-se exigentes em relação aos seus arrendatários em matéria de rendas e a sua impopularidade agravou-se, pelo facto de os bispos considerarem
que esses "isentos" eram perigosos concorrentes.
Então, para ocupar, na casa de Dama Pobreza, o lugar dos monges negros avançaram os beneditinos vestidos de branco, conduzidos pelo borgonhês Bernardo de Fontaines.
Este jovem, cujas incríveis austeridades nunca estragaram a sua beleza, estava literalmente devorado pelo zelo da casa de Deus: na Primavera de 1112, apresentou-se,
na companhia de trinta jovens nobres, à porta do mosteiro de Cister, situado numa clareira da imensa floresta borgonhesa. O mosteiro de Cister, fundado por Roberto
de Molesmes, em 1098, era a nudez absoluta; Bernardo mergulhou ali como num banho de purificação. A regra cisterciense - carta caritatis, a constituição da caridade,
que nome belíssimo! - convinha-lhe às mil maravilhas, dedicando-se à pobreza completa, à verdadeira solidão, aos trabalhos agrícolas e a uma sobriedade que se evidenciava
mesmo na oração coral e nas cerimónias litúrgicas.
A partir de 1115, o abade encarrega Bernardo de fundar Claraval, na nascente do Alba: eclipsando a abadia-mãe, Claraval irá tornar-se o centro vivo da ordem cisterciense
que atrairá nobres e camponeses, clérigos e plebeus, e se espalhará não só em França, mas também fora dela, a ponto de, nos finais do século XII, se contarem já
quinhentas e vinte e cinco abadias cistercienses. Durante dez anos, o estudo, a doença, a penitência e a condução dos monges preparam Bernardo para o papel de "coluna
da Igreja", que ele desempenhará, desde 1130 até à sua morte, em 1153. A sua santidade, o entusiasmo do seu zelo, o fogo da sua palavra e dos seus escritos difundem-se
por toda a cristandade. Aos chefes de seitas, como Arnaldo de Bréscia, que pretendem criar uma Igreja pura sem a Igreja, ele chama-os

129

a uma Igreja unida. Trabalha no sentido de pôr termo ao cisma que se segue à morte de Honório II (1130); apesar de ser conselheiro de um monge de Claraval que se
tornaria o papa Eugênio III, não deixa de, nas obras que lhe dedica, denunciar com veemência os abusos da corte de Roma, porque, para ele, o ministério da Igreja
existe para servir e não para dominar. Bernardo é o indiscutível pregador da Segunda Cruzada, em Vézelay e nas cidades renanas; o árbitro das eleições episcopais,
dos processos entre as abadias, das discussões entre os príncipes; tanto o crítico da decadência monástica como também o cantor da Virgem e da humanidade de Cristo,
e ainda o comentador inspirado do Cântico dos Cânticos. O eterno doente foi a alma de um século de ferro e foi a voz dos pobres num século ávido de novas riquezas.
Era assim que interpelava os prelados do seu tempo: "Os que estão nus gritam! Os que têm fome gritam e perguntam-vos: "Dizei-nos, pontífices, que está a fazer todo
esse oiro no freio dos vossos cavalos? Quando o frio e a fome nos atormentam, que fazem essas vestes metidas nos armários ou cuidadosamente dobradas em alforges?
São nossos os bens que dissipais; e o que gastais em vaidades foi-nos cruelmente roubado!"" Só os grandes contemplativos são capazes de semelhantes audácias. E,
no entanto, o lúcido Bernardo permaneceu sempre filho apaixonado da Santa Madre Igreja.
Se a Europa deve muito a Bernardo, deve também muito aos seus monges: em trinta e cinco anos, Bernardo fundou sessenta e nove abadias que, por seu turno, se espalharam
de maneira que, dos trezentos e quarenta e cinco mosteiros cistercienses que existiam à data da sua morte, cento e sessenta e sete estavam dependentes de Claraval,
repartidos por doze países. A regra cisterciense, que era a de S. Bento compreendida na sua literalidade, estabelecia que os monges não poderiam aceitar nem domínios
nem benefícios nem servos nem dízimos e que viveriam do trabalho das terras incultas que lhes fossem entregues e que eles próprios deveriam cultivar. Para evitar
a dispersão dos monges em pequenos priorados isolados em terras distantes, a ordem cria "granjas", zonas de exploração situadas a um dia de marcha da abadia: as
terras eram trabalhadas por irmãos-conversos que, aos sábados, regressavam à comunidade.

130

podemos considerar os cistercienses os primeiros agricultores do século XII em França, nos Países Baixos, na Península Ibérica, na Alemanha e, até, nos postos avançados
da cristandade, entre os Eslavos ou face aos Mouros.
Além disso, a Ordem de Cister impôs um estilo arquitectónico bem tipificado, caracterizado por uma clara austeridade. As igrejas cistercienses, simples nas formas,
mas admiravelmente proporcionadas, têm apenas uma nave, mas um amplo transepto. O conjunto é nobre e harmoniza-se eficazmente com as linhas sóbrias do mosteiro.
Em boa hora os monges arquitectos adoptaram a ogiva, cuja difusão na Europa parece ser-lhes parcialmente atribuída.
Por isso, ainda hoje podemos encontrar em França muitos desses lugares de isolamento e de paz: Pontigny, Bonport, Obazine, Font-froide, Sénanque e essa Escale-Dieu,
cujo duplo nome evoca não sabemos que inimaginável asilo, alguma etapa para a Jerusalém celeste com que sonhavam os séculos das Cruzadas.

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Capítulo III
A NOSTALGIA DO ORIENTE

1. Rumo a ti, Jerusalém.,.

Na origem do movimento das Cruzadas - que foram, ao longo de dois séculos, um dos grandes "pensamentos" do papado - esteve a prática cristã da peregrinação ao túmulo
de Cristo, feita em condições muito violentas, num espírito de sacrifício e de purificação, porque, desde o ano 1000, a esperança no regresso de Cristo a Jerusalém
reforçava no espírito de muita gente o desejo de a salvar.
Pouco a pouco, foi crescendo no Ocidente a ideia de uma guerra santa contra os Muçulmanos. Não que os Turcos, senhores da Cidade Santa depois dos Árabes (1080),
se mostrassem muito menos tolerantes para com os peregrinos cristãos, mas porque o islamismo era o Anticristo. Aliás, desde que o basileu Romano IV Diógenes tinha
sido esmagado por Alp Arslan, em Mantzikert (1071), entregando aos Turcos toda a Ásia Menor, o papado sentia a necessidade de se defender do lado do Oriente. Alexandre
II e Gregório VII já tinham actuado contra os Mouros de Espanha, prometendo, em bulas, grandes favores espirituais aos senhores feudais aragoneses, catalães, franceses,
italianos e normandos da Sicília, que iniciaram a Reconquista, celebrada em toda a cristandade, pela tomada de Barbastro (1065). Em 1074, Gregório VII parece ter
manifestado o desejo de assumir a liderança

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de uma cruzada ao Oriente, projecto sem conclusão imediata, mas que habituou os espíritos à ideia de uma reconquista cristã pela guerra, dirigida por Roma, e do
estabelecimento de um reino de Deus, de que o Papa seria o soberano. Isso representou uma evolução capital da mentalidade ocidental, até então estranha à aliança
entre a Igreja e as armas.
Quando Urbano II, em 1095, no decorrer de uma das suas viagens por França, reuniu o Concílio de Clermont, a ideia da cruzada já estava madura. Quem seria o chefe
da santa expedição? O imperador Henrique IV e o rei de França, Filipe I, estavam excomungados; Guilherme, o Ruivo, de Inglaterra não tinha ainda reconhecido oficialmente
o Papa e este, não podendo contar com nenhum dos grandes príncipes cristãos, convida directamente os cristãos com vocação militar para partirem para Jerusalém: o
seu sinal de união seria a cruz (27 de Novembro de 1095); o bispo de Puy, Ademar de Monteil, foi designado para representar o Papa na chefia dos cruzados. Formaram-se
quatro exércitos que foram alimentados pelo feudalismo ocidental, mas sobretudo pela cavalaria francesa. Ao mesmo tempo, desenvolveu-se uma cruzada popular conduzida
por um monge da Picardia, Pedro, o Eremita, que explorou certamente as tendências populares para a escatologia popular e para a parúsia imediata; essa multidão ardente
e miserável, inicialmente saudada com admiração e, depois, hostilizada pelas populações, foi dizimada pelos Turcos na Ásia Menor.
Em Julho de 1099, Jerusalém caía nas mãos dos cruzados e tornava-se, a partir de 1100, a capital de um reino latino que, com o principado de Antioquia, o condado
de Edessa e o condado de Trípoli, formaria uma espécie de confederação com ligações bastante frouxas; a ideia da formação de um Estado-vassalo da Santa Sé foi rapidamente
abandonada. Durante dois séculos, esses principados - aos quais se juntaram Chipre e a Pequena Arménia - mantiveram nas costas do Mediterrâneo, desde a Cilicia até
Gaza, uma civilização latina e feudal com os seus castelos e as suas igrejas, as suas dissensões e a sua grandeza. Mas tal dominação, esporádica, foi efémera.

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2. Uma instituição permanente destinada ao fracasso

Durante muito tempo falou-se de oito cruzadas: uma forma cómoda para designar essas "viagens gerais", as mais marcantes das quais foram as de Luís VII (1148), a
de Filipe Augusto e Ricardo I, Coração de Leão (1191), e as de S. Luís (1249 e 1268), sem contar a estranha "IV Cruzada", que se entregou ao "saque" de Constantinopla.
Aliás, a ideia de cruzada sobreviveu por vários séculos, depois da tomada de Acre pelos Turcos (1291). Nos séculos XV, XVI e XVII, os papas ainda lançaram, sem grande
sucesso, os cristãos contra os Turcos, como também estenderam a indulgência da cruzada aos Teutões que defendiam as cristandades da Prússia e da Livónia contra os
pagãos bálticos, aos Húngaros atacados pelos Mongóis, aos adversários dos Albigenses e dos Hussitas e, até mesmo, aos partidários de Carlos de Anjou, espoliado,
em 1285, pelo rei de Aragão.
Nos séculos XII e XIII, a cruzada foi uma instituição permanente: a cada passo, os barões tomavam a cruz, alguns como verdadeiros peregrinos e outros como conquistadores,
dispostos a ajudar os Francos do Oriente, mas logo se apossavam das ligações douradas do Jardim no Oronte. Tais vagas tinham as suas pausas. Para assegurar a protecção
constante dos cristãos e o acolhimento dos peregrinos pobres, fundaram-se algumas ordens de monges-soldados, como os Cavaleiros do Templo (Templários) e a ordem
hospitalar de S. João de Jerusalém (mais tarde de Rodes e depois de Malta), que foram as mais célebres. A longo prazo, elas haveriam de se dobrar, como os Templários,
sob o peso das riquezas acumuladas; mas também elevariam - e os cavaleiros de Malta ainda existem para testemunhar isso mesmo - o ideal da cavalaria. Sabemos quais
os benefícios temporais que o Ocidente - especialmente para as cidades marítimas italianas, como Pisa e Veneza, sobretudo - obteve em dois séculos de intercâmbio
entre um Ocidente em pleno despertar e um Oriente de costumes mais apurados e de riquezas muito variadas. E que haverá de mais paradoxal do que ver marinheiros venezianos
a abastecer de escravos brancos da Europa Oriental os Muçulmanos que os seus irmãos cristãos combatiam?!

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Que proveito tirou a Igreja das Cruzadas, ela que foi a sua principal instigadora? Quando, um por um, sob os golpes dos Turcos, foram caindo os principados franceses
da Palestina, da Síria e de Chipre; quando os Bizantinos recuperaram o efémero império latino de Constantinopla (1261), de onde emergiram durante algum tempo o ducado
francês de Atenas e a Moreia franca, o passivo era bastante pesado, mas a História desconfia sempre deste tipo de balanço. No plano temporal foi um fracasso: o mundo
turco tornou a fechar-se nos Lugares Santos, esperando estender-se em direcção a Roma, até Constantinopla e até ao Danúbio. O Ocidente deixava lá monumentos, santuários,
patriarcados latinos ou uniatas, aliás esqueléticos - excepto os maronitas -, e também um nome, o dos Francos, confundido com cristãos, e cujo prestígio no Médio
Oriente iria sobreviver a todas as humilhações e culpas. Mas cristãos eram também o maquiavélico Frederico II; Filipe Augusto e Ricardo de Inglaterra (que foram
lobos um do outro); e também os genoveses e os venezianos que, sem escrúpulos, se incrustaram nas ruínas dos impérios cristãos; e ainda os Normandos que massacraram
os Tessalonicenses; e esses mesmos Francos que, em 1204, depois de massacrarem e violarem durante três dias, colocaram uma prostituta no trono do patriarca em Constantinopla.
É aqui que atingimos a chaga secreta e viva, o agravamento, provocado pelas Cruzadas, do cisma entre Roma e as Igrejas orientais. Bizâncio ameaçada, havia inicialmente
solicitado a intervenção dos barões ocidentais e, em 1097, foi Constantinopla o ponto de convergência dos quatro primeiros exércitos de cruzados. Foi acordado que
as cidades tomadas aos Turcos pelos cruzados, mas que houvessem pertencido aos Bizantinos, lhes fossem devolvidas. Assim foi com Niceia; mas Antioquia foi simplesmente
considerada pelo normando Boemondo de Tarento sua presa pessoal. A partir daí, os latinos agiram como em terra conquistada: instalaram-se no Oriente os quadros feudais
e eclesiásticos do Ocidente. Quando o conde da Flandres e do Hainaut foi colocado no trono do basileu e o veneziano Tomás Morosini na sede patriarcal de Constantinopla
(1204); quando Henrique da Flandres, segundo imperador latino, se aliou aos Turcos contra Lascaris, que fundara o império grego de Niceia (1211), todo

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o Oriente cristão explodiu e, a partir daí, Roma passou a ser, aos olhos dos ortodoxos, a vergonhosa protectora de senhores feudais sem princípios e de mercadores
sem fé. Seria preciso esperar sete séculos para ver um Papa e um Patriarca de Constantinopla abraçarem-se nos mesmos lugares em que se tinham desenrolado as Cruzadas.
Por outro lado, poder-se-á afirmar, como certos historiadores, que a cristandade ocidental saiu mais unida e mais fortalecida das Cruzadas? Isso é discutível. Embora
muitos cristãos ficassem com saudade dos Lugares Santos, outros só sentiam a falta do clima de gozo que viveram no Oriente. Apesar de a boa-fé dos papas permanecer
intacta, podemos lamentar o facto de as Cruzadas terem dado lugar à fiscalidade pontifícia: para financiar as longínquas expedições, os papas criaram taxas sobre
as rendas eclesiásticas; manifestaram tendência para conceder a indulgência àqueles que contribuíam com donativos para as Cruzadas; aliás, os senhores feudais deviam
pagar ou comprar a sua ausência de cada cruzada.
Mas essas práticas não chegaram a manchar o prestígio do papado. Pelo contrário, humilhado definitivamente o imperador, o papado assegurava então o comando único
do Ocidente.

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Capítulo IV
O TRIUNFO DE ROMA

1. Quando Roma toma Claraval como referência

Quando Honório II morreu (1130), Roma estava dividida em duas facções: Frangipani e Pierleoni opunham-se no próprio seio do Sacro Colégio. O corpo de Honório não
tinha ainda arrefecido e já as duas famílias inimigas provocavam uma crise religiosa de tal ordem que a obra de Gregório VII e dos seus sucessores parecia estar
em perigo. Uma dupla eleição teve lugar em 14 de Fevereiro de 1130: os Frangipani elegeram Inocêncio II e os seus adversários escolheram Anacleto II. Como não tinha
sido adoptado o procedimento fixado por Nicolau II em 1059, era impossível resolver a questão. Foi S. Bernardo - verdadeiro árbitro da Europa - quem conseguiu a
adesão do Capeto, da Inglaterra, do imperador Lotário III e, depois, com diligências pessoais, da Itália e da Sicília, à obediência a Inocêncio II, cujos méritos
pessoais eram, a seus olhos, infinitamente superiores e cuja eleição era mais ajustada. Mas o "cisma de Anacleto" apenas se extinguiu com a morte de Anacleto II,
em 1138.
Com as mãos livres, Inocêncio pôde fazer avançar as ideias gregorianas e fortificar a centralização pontifícia. Na presença de várias centenas de prelados, ao abrir
o II Concílio de Latrão (Abril de 1139), pronunciou estas palavras reveladoras: "Vós sabeis que Roma é a cabeça do Mundo." Os trinta cânones do

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concílio limitaram-se a retomar as decisões dos concílios não "ecuménicos" realizados desde 1123 contra a usura, a simonía, o nicolaísmo... Em todos os países do
Ocidente e também no Oriente latino, os legados pontifícios asseguraram a aplicação das actas conciliares.
O primado de Inocêncio II na Europa foi também assinalado pela intervenção do Papa na escolha dos soberanos em casos de contestação. Assim aconteceu na Alemanha,
onde o candidato romano Conrado (III) de Hohenstaufen foi preferido a Henrique da Baviera (1138) e também na Inglaterra, onde, depois da morte de Henrique I, o legado
pontifício apoiou os direitos de Matilde contra Estêvão de Blois.
O mesmo domínio sobre o temporal ocorreu sob o reinado de um dos discípulos de S. Bernardo, o monge cisterciense Bernardo de Paganelli tornado Eugênio III (1145-1153).
Em França, onde reina o maleável Luís VII, o Papa é senhor, com S. Bernardo: foi Eugênio III que levou Luís a empreender a Segunda Cruzada proclamada em Vézelay
por Bernardo (1146). Um facto sintomático: o principal conselheiro do rei de França foi um monge, Suger, abade de São Dinis. Na mesma época, um canonista toscano,
o camaldulense Graciano, publicou a Concórdia Discordantium Canonum que, sob o nome de "Decreto de Graciano", se iria tornar a mais importante colectânea canónica
sistemática da Idade Média: essa enorme e inteligente compilação foi colocada ao serviço da supremacia romana, do governo sacerdotal.
Atrás de Eugênio III está Bernardo, cujo tratado De Consi-deratione é um verdadeiro manual para uso dos papas; o abade de Claraval denuncia aí os abusos nascidos
da organização da monarquia pontifícia: luxo e cupidez dos clérigos da corte, centralização excessiva no domínio judiciário e usurpação de cargos puramente administrativos.
E o autor sonha com uma cúria romana organizada à maneira de um convento cisterciense. Praesis ut prosis, non ut imperes ("És chefe para servir e não para mandar"):
esta admirável sentença foi endereçada por Bernardo a Eugênio III e, na sua pessoa, a todos os seus sucessores. Por isso, compreende-se bem que a História tenha
mantido Bernardo entre o número dos reformadores que, se tivessem

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sido seguidos, teriam evitado à Igreja as humilhações e as defecções dos séculos que se seguiram.

2. Barba-Ruiva ou o Império humilhado

Eugênio III e Bernardo morrem ambos, em 1153, com seis semanas de intervalo. Ora, a coroa imperial acaba de ser entregue a um vurtemburguês de trinta anos, Frederico
I de Hohenstaufen, conhecido como o "Barba-Ruiva". Tomando a sério o título de imperador romano, Frederico, assegurando sempre a sua autoridade na Alemanha, pretende
ser o senhor efectivo de Roma e das ricas cidades do Norte de Itália. Herdeiro de Carlos Magno - que faria canonizar em 1165 pelo "seu" papa Pascoal III -, aspira
ao dominium munâi. Desde logo se mostrou aliado do papa Adriano IV (1154-1159), o único Papa inglês da História, que ele livra de Arnaldo de Bréscia e faz coroar
em 1155.
Mas rapidamente, os "dois gládios" se levantaram de novo um contra o outro, talvez ainda com mais determinação, quando, em 1159, ascendia ao trono pontifício o enérgico
Rolando Bandinelli que, sob o nome de Alexandre III, seria para Barba-Ruiva um adversário de peso. O duelo que opusera Henrique IV a Gregório VII retomava-se entretanto,
só que com outros protagonistas: agora, era um duelo muito mais duro porque os interesses materiais e o poder temporal do papado eram mais importantes do que no
século XI.
A Alexandre III, reconhecido pela França, Inglaterra, Espanha e Portugal, Frederico opõe logo Octaviano de Monticello, chamado Vítor IV, que instala em Roma. Alexandre
teve de se refugiar em França, em Sens, onde viveu até 1165, tendo regressado a Itália para dirigir a luta contra o imperador que, depois da morte de Vítor IV (1164),
lhe opôs Pascoal III (falecido em 1168) e, a seguir, Calisto III (falecido em 1178). Apoiando-se nas poderosas cidades lombardas unidas contra os devastadores tedeschi
(1) de Barba-Ruiva, Alexandre III acabou por vencer o imperador que, em 29 de Maio de 1176, em Legano, foi esmagado

Nota 1: Alemães. [N. do T.]

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pelas milícias urbanas e pelas tropas pontifícias. A paz de Veneza (1177) pôs termo ao cisma, recolocando Frederico sob a obediência de Alexandre, mas este acto
diplomático não consagrava juridicamente a predominância pontifícia.
Então, ao retomar vigorosamente nas suas mãos as rédeas da cristandade, Alexandre III convocou o XI Concílio Ecuménico (estilo romano), que se realizou em Latrão,
entre 5 e 22 de Março de 1179. De entre os vinte e sete cânones do III Concílio de Latrão, o mais célebre é aquele que estabelece - e ainda está em vigor - a eleição
dos papas. Tratava-se de pôr termo às ameaças de cisma e ao desregramento da cooptação: de futuro, seria eleito o cardeal que reunisse uma maioria de dois terços
dos votos, devendo o eleito da minoria desistir imediatamente sob pena de sanções. Além disso, o Concílio condena de novo o nico-laísmo, a simonia e a usura, e codifica
certas instituições de paz, sobretudo a Trégua de Deus. No essencial, ou seja, quanto à direcção da cristandade, depositava-se confiança no Papa, cuja autoridade
soberana foi reconhecida pelo concílio, pois "os seus fortes ombros estão aptos a sustentar a massa da Igreja vacilante", como declarou no discurso inaugural do
Concílio o bispo de Assis.
Mais do que um teólogo, Alexandre III foi um canonista, cujos mais de quinhentos decretos - com a ajuda do direito romano - deram um vocabulário e um estilo àquilo
que um historiador designou com felicidade de "empirismo centralizado" característico do governo pontifício. Mas a multiplicação dos apelos à Santa Sé - muitas vezes
inspirados, sob Alexandre III, por um agudo sentido de justiça - já tornava pesada a burocracia romana; a fiscalidade pontifícia começava a organizar-se: Alexandre
III levava consigo, por toda a parte, o seu Liber censuum ou livro de contas; havia um discreto nepotismo que dava ao círculo do pontífice esse ambiente de "corte"
familiar que logo seria vivamente deplorado.

3. "Becket ou a honra de Deus"

A autoridade do Papa teve muitas ocasiões de ser exercida no Ocidente. A luta gigantesca que, desde 1162 a 1170, opôs

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Henrique II Plantageneta a Tomás Becket mostra claramente essa autoridade. Duelo célebre ilustrativo da oposição entre uma sociedade ainda fortemente marcada pelo
feudalismo e uma Igreja que, mantendo a sua autonomia, pretendia proteger a liberdade do homem.
Revelando grandes talentos, Tomás Becket tinha sido chanceler do seu amigo Henrique da Inglaterra, durante trinta e sete anos. Em 1162, esperando poder controlar
mais eficazmente as manobras da Igreja inglesa, o rei provoca a ascensão de Tomás a primaz de Cantuária. Mas a sua expectativa não se confirmou porque, abandonando
o seu estatuto real, Tomás deu aos seus clérigos e ao seu povo o exemplo de uma vida verdadeiramente evangélica.
Renunciou à chancelaria, considerando que um bispo não podia ser, ao mesmo tempo, ministro do rei e pastor da Igreja; esse abandono provocou a fúria do rei. Tanto
mais que, na reunião de Clarendon (1164), como Henrique II pretendia subordinar a justiça real e ligar o episcopado britânico à realeza anjevina, Tomás protestou
eloquentemente; ameaçado de prisão, refugiou-se em França, onde Alexandre III assumiu a causa do primaz da Inglaterra e condenou as decisões de Clarendon.
Receoso das ameaças do Papa, Henrique II acabou por se reconciliar com Tomás que regressa a Inglaterra, mas comete o erro de lançar algumas bulas de suspensão contra
os seus sufragâneos. O rei, que tinha ficado na Normandia, permite que o rodeiem vários dos prelados suspensos e deixa escapar algumas palavras de cólera, talvez
estas: "Não haverá ninguém que me livre desse clérigo presunçoso?" E logo se encontraram alguns cavaleiros para abater com as suas espadas, na catedral, o arcebispo
de Cantuária (29 de Dezembro de 1170), que a opinião pública passa imediatamente a considerar como mártir. Em 25 de Janeiro de 1171, Alexandre III lançava o interdito
sobre a Inglaterra; em 1172, canonizava Tomás Becket; embora protestando inocência, Henrique II teve de se submeter a uma duríssima penitência pública. Já não era
o tempo de levantar impunemente a mão contra a pessoa de um clérigo, pois todo o Ocidente acabara por aceitar a cristandade.

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V
A ADESÃO DO OCIDENTE À CRISTANDADE

Capítulo I
O SÉCULO DE INOCÊNCIO III

1. Um ponto alto da História?

Gabriel Le Brás, o mestre da sociologia religiosa, repetia a cada passo que "em História, não existe nenhum século grande" e, recentemente, Jean Delumeau teve razão
ao denunciar "a lenda da Idade Média cristã". Isso não impede que a história dos homens tenha momentos privilegiados e o século XIII no Ocidente parece ter sido
um desses momentos. Foi dominado por cinco personagens: um papa, Inocêncio III; um rei, S. Luís de França; um doutor, S. Tomás de Aquino, e dois homens de hábito:
S. Francisco de Assis e S. Domingos. Todos eles foram homens de Igreja, mas dos cinco, só o Papa não foi canonizado. No entanto, foi profundamente religioso este
pontífice, cujo reinado (1198-1216) ocupa um ponto alto na História da Igreja romana. Mas pretendeu-se fazer dele o sustentáculo absoluto da teocracia, embora a
nossa época, democrática e anticlerical, possa subscrever perfeitamente o julgamento que o historiador protestante Paul Sabatier pronunciou sobre Inocêncio III:
"Mais rei que padre, mais papa do que santo."
A acção política de Inocêncio, a plenitudo potestatis que constantemente reivindicava, deixou na obscuridade a sua acção reformadora que foi original e, até, liberal,
dirigida no sentido de ver a Igreja, plenamente livre, tornada digna da sua missão,

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como pedagoga da cristandade. O Papa, que se considerava o administrador de Deus sobre a terra (Dei vices gerens in terris) e a cabeça da Igreja, quis assumir plenamente
essa missão: tarefa difícil, mesmo num tempo em que as estruturas da sociedade eram cristãs. Como Tomás de Aquino, Inocêncio III tinha a paixão da síntese: para
ele, a lógica suprema, a única salvação do Ocidente, residia na congregação de todos os homens, príncipes, clérigos, monges e fiéis, sob o bastão de mando do "vigário
de Cristo", em função deste silogismo: Cristo tem todo o poder; o Papa é o seu vigário; logo, tem todo o poder.
O temporal - o político - submetido ao espiritual e este ao eterno, eis a visão do mundo que Inocêncio III desejava que todo o homem tivesse no coração. E foi este
ideal que apresentou aos Padres do IV Concílio de Latrão, em 1215. Essa assembleia - a mais importante da Idade Média - foi verdadeiramente o reflexo da cristandade
romana pelo seu número (mil e duzentos) e pela variedade de bispos, abades, priores e embaixadores ali presentes. Inocêncio III dominou todo o concílio, ainda que
as decisões aprovadas tivessem marcado um momento importante na vida da Igreja: legislação precisa sobre o casamento, considerado como um acto sagrado; a obrigação
da confissão e da comunhão pascal. Além disso, preocupado em assegurar a pregação ao povo cristão, o Papa toma oficialmente sob a sua protecção os Irmãos Pregadores
(Dominicanos); condena a riqueza dos monges e dos clérigos, dando pormenores precisos sobre o que devia ser o hábito clerical. Ele próprio reduziu o nível da sua
casa.
Jurista, mas também pastor, Inocêncio III multiplicou as bulas e as legações, perseguindo a imoralidade tanto entre os reis como entre os clérigos, vigiando permanentemente
para que "a semente evangélica não fosse asfixiada pelos espinhos".

2. Uma vitória demasiado cara

Entretanto, é incontestável que esse ideal - que visava apenas erguer toda a cristandade ao nível do Evangelho - se desvalorizou terrivelmente em contacto forte
e rude com o século XIII

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que começava. Querendo relançar a cruzada, Inocêncio III embate na inércia calculada de Filipe Augusto e na indiferença de João-Sem-Terra, do rei da Hungria e dos
Italianos. A exemplo de Urbano II, tentou comunicar a sua chama ao feudalismo. Mas a cruzada conduzida por Bonifácio de Montserrat e Balduíno da Handres cobre-se
com o sangue dos bizantinos, pois a rapacidade de Veneza e dos cavaleiros ocidentais foi mais forte que o apelo do Papa. A esperança de uma reaproximação com os
Gregos afastava-se, tanto mais que o Papa, como testemunham as suas cartas ao imperador Alexis Ange e ao patriarca João X Camatero, concebia a união apenas como
um gesto de submissão dos Gregos à Santa Sé. E a cavalgada sangrenta dos senhores feudais franceses no Languedoc atrás de Simão de Montfort só por ironia se poderá
designar cruzada. Mesmo que tenha havido moderação pessoal de Inocêncio a respeito dos albigenses, não podemos deixar de pensar que tal facto não acrescentou nada
ao prestígio do papado.
Numerosos historiadores alemães referiram que Inocêncio III não visava apenas a dominação espiritual do mundo cristão, mas também a temporal. É verdade que o Papa
pretendeu intervir directamente na designação do imperador: apoiou Otão de Brunsvique que coroou, em 1209, contra Filipe da Suábia, e quando Otão IV - o futuro vencido
de Bouvines - se voltou contra ele, Inocêncio excomungou-o (1210) e substituiu-o pelo seu pupilo, o filho de Henrique IV, que se tornará Frederico II. O Papa não
só dispôs da coroa imperial, mas quis estabelecer certos laços de vassalagem entre a Santa Sé e os reinos cristãos; interveio em Aragão, na Hungria, na Polónia e
na Inglaterra, onde João-Sem-Terra coloca o seu reino sob a protecção de Roma; e em França, apesar das admoestações do Papa, Filipe Augusto recusa retomar a sua
esposa legítima. Por diversas vezes, certos reinos ocidentais em plena formação - especialmente o rei da França - já consideram pouco aceitável a pretensão romana
de ligar e desligar, mesmo no plano temporal.
Estava a caminho a ideia laica de uma separação entre o temporal e o espiritual, entre o facto de consciência e o seu dado exterior. Mas Inocêncio III possuía um
prestígio que Bonifácio VIII não tinha; Filipe, o Belo, conseguiu menos avanços do que o

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seu antecessor nas relações com o papado. Quando morreu, em 16 de Julho de 1216, Inocêncio levava consigo a visão de um mundo, de que pretendera ser o magistrado
supremo e com que, pelo menos na aparência, a cristandade tinha concordado inteiramente. Mas terá ele percebido que o jovem que havia educado para lhe confiar o
império, apenas com 20 anos, não tinha nada de cristão?

3. Frederico II ou o leopardo

Durante cinquenta anos, a Igreja romana parece não ter deixado o zénite. No entanto, os quatro primeiros sucessores de Inocêncio III, ao longo da última fase da
luta do Sacerdócio e do Império - Honório III (1216-1227), Gregório IX (1227-1241), Celestino IV (1241-1243) e Inocêncio IV (1243-1254) -, tiveram de enfrentar um
adversário terrível, Frederico II.
Este Hohenstaufen, filho de uma siciliana, era mais italiano do que germânico. A sua verdadeira pátria era a Sicília cheia de sol, ao mesmo tempo sumptuosa e andrajosa,
tolerante e ecléctica, ainda meia muçulmana, uma espécie de asilo para o livre-pensamento nos confins do mundo cristão. Frederico II não era, como os seus ancestrais,
um guerreiro temível, mas antes um erudito prodigiosamente subtil, apaixonado pelas artes e pelas ciências ocultas, amigo de Raimundo Lulo, dos Judeus e dos Árabes,
uma espécie de homem da Renascença nascido dois séculos mais cedo, céptico, dissoluto e faustoso, deslocado no século de S. Luís. Inocêncio III, seu protector, tinha-o
feito rei da Germânia na condição de que renunciasse às suas terras italianas. Ora, toda a política de Frederico II, rei dos Romanos em 1216, imperador em 1220,
consistiria em restabelecer a união das duas coroas - a germânica e a italiana - e, depois, restaurar o Império Romano sob a sua égide, com Roma como capital. Dos
seus ancestrais normandos herdara uma duplicidade e uma falta de escrúpulos que o hão-de incitar a escolher os mais diversos meios para alcançar os seus fins.
Excomungado pela primeira vez por Gregório IX por ter adiado a sua partida para a cruzada, Frederico II decidiu partir

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para a Terra Santa, mas sem intenções religiosas (1228); obteve do sultão do Egipto a posse de Jerusalém, com a promessa de não atacar o Egipto. Julgava-se, então,
o senhor do Mundo, mas os cristãos fugiam deste excomungado. Frederico foi a Itália humilhar-se diante do Papa que o absolveu das penas espirituais em que incorrera
(San Germano, 1230). O imperador fortalece o seu poder na Sicília e no Norte de Itália, onde a "liga lombarda" foi esmagada (1237); depois, invade o "património
de S. Pedro" e cobiça Roma. Excomungado pela segunda vez, replica com um manifesto dirigido a todos os príncipes do Ocidente, onde propunha a reunião de um concílio
geral para julgar o Papa. A morte de Gregório IX (1241) suspendeu essa luta por algum tempo.
Quando, após um interregno de dois anos, foi eleito, com o nome de Inocêncio IV, o genovês Fieschi (1243), o mundo reconheceu que outro Inocêncio III estava decidido
a fazer triunfar o papado. Depois de algumas tentativas de negociação com Frederico II, o novo Papa, instalado em Génova e depois em Lião, convoca um concílio ecuménico
que se deveria realizar, de 24 de Junho a 17 de Julho de 1245, nesta última cidade. A assembleia foi dominada pela questão imperial. Sinal dos tempos: não era para
tratar do estado moral do clero, mas apenas ou quase só do processo do imperador: Frederico II foi solenemente deposto. Ainda resistiu durante cinco anos; contudo,
não era mais do que um homem isolado na sua Sicília. O triunfo do papado foi completo, quando, em 13 de Dezembro de 1250, o imperador morreu de disenteria. Uma bula
triunfal anunciou o feliz acontecimento à cristandade...
Inocêncio IV regressou a Roma, onde nunca mais nenhum alemão se instalaria como senhor. Terminava uma luta, da qual o império saía enfraquecido para sempre, mas
que, aos olhos do mundo, dessacralizava o papado. É verdade que a cristandade podia, então, glorificar-se com um rei, S. Luís, cujo poder temporal só se poderia
comparar à sua autoridade moral.

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Capítulo II
O SÉCULO DE S. LUÍS

1. Uma "fonte de justiça"

Todos os testemunhos concordam: Luís IX, rei da França de 1226 a 1270, foi a mais prestigiada figura do século XIII. Vol-taire dizia mesmo que ninguém podia ser
mais perfeito do que ele. Canonizando-o em 1297, Bonifácio VIII mais não fez do que ratificar o juízo de todo o Mundo, porque S. Luís não pertence apenas à história
de França, pois a sua influência foi universal. Pelas suas qualidades de rei e de cavaleiro; pelo equilíbrio controlado do seu temperamento; pela abundância de riquezas
morais hauridas numa terra e numa raça cristianizadas, S. Luís aparece como uma figura excepcional.
Ainda que não seja indiferente nem fortuito que tal figura vigorosa se tenha imposto nas terras de França, S. Luís pertencia à velha dinastia dos capetos, nascida
do acordo da Igreja e marcada por um carácter sobrenatural pela sagração de Reims: durante três séculos e meio, os seus catorze soberanos - a descendência masculina
nunca falhou, uma só vez que fosse! - foram os mais extraordinários "unificadores" das terras do Ocidente. E que terras! As mais ricas em colheitas e em igrejas.
Eram homens "vulgares", esses Capetos, mas singularmente eficazes; o seu título de rei cristão não era apenas um adorno, mas impunha-lhes deveres. Foi em S. Luís
que as virtudes da

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sua raça se revelaram com maior harmonia. Nele, houve uma santidade ministerial ligada ao exercício da função real.
Era belo, seu rosto bem proporcionado - as feições um pouco pesadas dos Capetos - revelava a calma tranquila herdada de sua avó Isabel de Hainaut. Era bom e generoso
para com os pobres, mas intratável para os que tinham um coração duro e os rebeldes. Atento a todos os pormenores e muitas vezes perdido em Deus; humilde, mas a
sua humildade era a forma delicada de uma consciência, em que estavam sempre presentes as obrigações assumidas pela sagração. Filho submisso da Igreja, sabia sacudir
os clérigos e os monges acomodados ou indignos que alegavam possuir um poder conferido directamente por Deus e não delegado pelo Papa. Este rei que lavava as chagas
dos leprosos e pedia que se evitassem as palavras duras - semente de querelas - na batalha e na cruzada, manifestava uma coragem sem igual que evidenciava um agudo
sentido do "outro", mesmo que fosse inimigo.
Em toda a parte, S. Luís era uma "fonte de justiça". Na França, todos os espoliados - e a sociedade feudal era fecunda em abusos - tomavam-no como juiz: o episódio
de Vincennes não é uma lenda. O parlamento real aparecia, por sua competência e moderação, como o modelo dos tribunais de recurso. No sentido mais estrito, S. Luís
foi realmente o árbitro de uma Europa feudal, cuja complexidade jurídica e territorial era motivo de inúmeros protestos. Foi um dos primeiros príncipes a ter o sentimento
da unidade da regra moral, aplicando-a tanto aos indivíduos como aos reis e aos Estados.
No reino, o rei vigiou estritamente os seus oficiais, administradores e chefes de justiça, obrigando-os a sujeitarem-se a inquiridores que controlavam a sua gestão
e recebiam as queixas dos administrados; enquanto isso, dispositivos legais perseguiam todas as formas de corrupção e de abuso, porque a "função do rei", como "ministro
de Deus", era a de não deixar que "nenhuma injustiça se escondesse".
Ora, a injustiça suprema, aos olhos de Luís IX, era a posse de Jerusalém pelos infiéis (os Turcos haviam retomado a Cidade Santa em 1244). De entre os soberanos
convocados por Inocêncio IV, ele foi o único que tomou a cruz: primeiro, em 1248, e,

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depois, em 1270. Sofreu um duplo fracasso: no Egipto, teve de capitular perante Mansourah, ficando cativo dos muçulmanos (1250). Em 1 de Julho de 1270, em plena
canícula, embarca para a Tunísia: estava tão fraco que chegaram a dizer que procurava o martírio; em 25 de Agosto desse ano, morria às portas de Tunes. Aos olhos
de um mundo que "não tinha fé", S. Luís surgiu como o último cruzado.
Os chefes das jovens nações cristãs (a Inglaterra dos Plantagenetas, Castela, Aragão e Navarra - fortalecidas pela vitória sobre os Mouros em Navas de Tolosa -,
Portugal nascido em 1139, Carlos de Anjou da Sicília e Bela IV da Hungria) logo considerariam "messire S. Luís" o modelo exemplar dos reis.

2. A era do gótico

Para um parisiense, a lembrança de S. Luís - "esse homem puro de coração e de corpo", dizia Inocêncio III - está ligada aos contornos puros da Sainte-Chapelle. Assim
é porque a arte gótica deve muito a Luís IX, não somente porque manteve durante quarenta anos o seu reino numa atmosfera de paz e de fé, mas também porque ele próprio
ordenou e dirigiu numerosos trabalhos: Royaumont, a igreja dos menores em Paris, os Quinzevingts, o hospital de Compiègne, as fortificações de Aigues-Mortes... Alguns
arquitectos conhecidos, como Robert de Luzarches, Jean de Chelles, Pierre de Montreuil, ou anónimos enxamearam o Norte da França com catedrais e igrejas. Para citarmos
apenas um caso - e na verdade particularmente significativo -, foi no reinado de S. Luís, que teve lugar, em 24 de Outubro de 1260, a consagração da Catedral de
Chartres, "a flecha perfeita..., a flecha única no mundo".
Se a arte românica se desenvolveu, sobretudo, a partir da França Central e da Borgonha, a arte gótica foi uma arte capetíngea, raciocinada e clara, à qual convinha
o céu da Ilha de França. As experiências tentadas anteriormente na Inglaterra e na Borgonha encontraram a sua aplicação na bacia do Sena: igrejas mais altas e mais
bem iluminadas; utilização de uma nova forma de abóbada conhecida desde a Antiguidade: abóbada

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de arestas ou sobre ogivas cruzadas, que repartia a tensão, permitindo que as paredes fossem menos espessas, mais altas e com janelas para deixar entrar a luz, a
ponto de a parede - elemento essencial da arquitectura - ser, por vezes, sacrificada: apresentar-se-ão conjuntos talhados mas secos, de uma graça muito estudada
que, por vezes, evoca um sistema de peças desmontáveis. O vitral triunfa com a arte ogival e, se o século anterior foi mestre na profusão escultural no interior
dos monumentos, a iconografia da pedra invade agora os portais que se tornam sumas enciclopédicas da criação.
Arte essencialmente religiosa: a paz das catedrais reflecte a paz de Deus, onde tudo é ordem e harmonia, onde tudo testemunha a grande ideia do século XIII, da hierarquia
das criaturas, da inscrição da história dos homens na história de Cristo. Do Norte de França e da Normandia, adaptando-se às condições locais, a arte gótica estendeu-se
ao Sul de França, à Península Ibérica, aos Países Baixos, à Alemanha, à Boémia, ao Império latino de Constantinopla, aos Estados francos do Oriente, à Itália e à
Inglaterra. No fim do século XIII, a Europa inteira possuía a mesma linguagem arquitectónica, expressão de uma fé comum, de uma unidade moral e de uma síntese espiritual
que teve em Tomás de Aquino o seu teólogo.

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Capítulo III
O SÉCULO DE FRANCISCO E DE DOMINGOS

1. Francisco ou a nudez

As catedrais testemunham o contributo das cidades para saírem da época feudal. A economia senhorial, de que o castelo e o mosteiro eram os pólos, recuava lentamente
perante uma economia jovem, menos concentrada, em que o comércio, as estradas, a navegação e a banca se desforravam da terra.
Ora, a Igreja era o suporte da sociedade feudal e era ela quem, através da cavalaria, se esforçava por assegurar o reinado da justiça, organizando um verdadeiro
regime de previdência social, praticando a caridade oficial, remédio quase-jurídico aplicado ao desequilíbrio da distribuição dos bens. Por isso, tanto os senhores
como os clérigos e os monges viram com maus olhos desenvolver-se o movimento comunal, favorecido pelos reis. Os forais pareciam-lhes resultar de turbulências apressadas
para se desembaraçar do juramento feudal. O seu egoísmo, nascido da riqueza - a partir do século XII também a austera ordem cisterciense fora invadida por ele -,
não os deixava perceber as transformações do Mundo e tornava ineficazes os apelos evangélicos lançados à cristandade.
Mas eis que, num dia de Verão do ano de 1210, o papa Inocêncio III recebe um jovem úmbrio, vestido com o simples burel dos camponeses, uma corda à cintura e os pés
nus

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enfiados numas sandálias: numa linguagem simples, mas ardente, confia ao pontífice as suas esperanças de pregar o Evangelho em toda a sua pureza ao mundo novo. Inocêncio
viu que esse Francisco Bernardone não era um desses incontáveis reformadores que, por toda a parte, mas com rudeza e violência, proclamavam a decadência de uma Igreja
que se esquecera da pobreza. Não havia nele nada da mística esotérica do monge italiano Joaquim de Flores (falecido em 1202), também ele defensor dos humildes. Ao
dar o seu aval à missão de Francisco e dos seus companheiros - que tomaram o nome duplamente modesto de fratres minores (1) -, Inocêncio III fazia brotar no seio
da Igreja, para um mundo sedento, uma fonte pura e abundante. Uma fonte pura porque se alimentava do próprio coração do Evangelho, já que a regra de Francisco consistia
nestas palavras: "A vida dos irmãos menores consiste em observar o santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo, vivendo na obediência sem ter nada de próprio."
Fonte abundante, porque a família franciscana é, ainda nos nossos dias, a mais numerosa das sociedades religiosas masculinas.
Não foi uma iluminação súbita que incitou o bom Francisco a viver na pobreza absoluta. Filho de um rico comerciante de panos de Assis, associara-se ao negócio do
pai desde os 15 anos; portanto, conhecera a avidez da nova Itália pelos prazeres nascidos da opulência e das lutas entre cidades rivais. A sua natural generosidade
levou-o, pouco a pouco, a escutar, no silêncio dos seus retiros cada vez mais prolongados, a voz do Evangelho. Aos 23 anos, levado diante dos magistrados e do bispo
de Assis que o convidavam a regressar à casa paterna, ele atira toda a sua roupa aos pés do pai, proclamando que, de futuro, só terá um pai, o Deus que cuida das
aves do Céu. E cumpriu à letra: a curta vida de Francisco - morreu aos 44 anos - foi o grito de alegria de um homem completamente despojado que, no tempo em que
era penetrado pelos estigmas dolorosos da Paixão de Cristo, escrevia um Cântico ao Sol.
A ordem mendicante fundada por Francisco - aquando da sua morte, contava já com seis províncias: Alemanha,

Nota 1: Frades menores. [N. do T.]

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Espanha, França, Hungria, Síria e Inglaterra - era um instrumento
admiravelmente adaptado às necessidades espirituais do século XIII. Não se tratava já de se encerrar num mosteiro, situado no meio de terras dadas em colonato, mas
sim de percorrer as estradas animadas pelo comércio, de viver sem tecto fixo, comendo apenas do que mendigavam. É preciso dizer que os inconvenientes de uma vida
tão despojada depressa se revelaram: na sua maioria, os frades eram leigos entusiastas, mas pouco instruídos. Ora, ao testemunho da pobreza dos franciscanos devia
acrescentar-se a pregação. E apenas a aquisição de uma ciência religiosa numa casa conventual poderia resolver essa dificuldade. Mas como conciliar tal necessidade
com a concepção bastante idealista que Francisco tinha do cumprimento evangélico? Estas divergências - que, no século XIV, chegariam ao cisma - estalaram ainda em
vida do fundador e opuseram os
frades que preconizavam uma vida comunitária de religiosos estudantes e pregadores (aliás, pobres) aos partidários de uma fraternidade de mendicantes de estrita
observância.
Por força das circunstâncias, os frades menores agruparam-se em conventos, construções modestas, inicialmente ocasionais e depois fixas, situados não nos campos,
mas nos arrabaldes populares e estudantis. Assim, em Paris, a partir de 1230, o rei S. Luís, que gostava muito dos mendicantes pelo seu espírito infantil, instalou-os
perto da Porta de Saint-Germain e, nesse mesmo ano, Gregório IX decretou que os nuntii leigos poderiam gerir as esmolas em vez dos frades, a quem o Papa dava uma
ordo studens tal como já tinham os dominicanos. Os studia dos Franciscanos iriam ser incorporados nas universidades, pois a
Igreja queria que a ordem de Francisco se juntasse no seu campo de acção à dos Irmãos Pregadores.

2. Domingos ou a palavra

Os dominicanos eram os filhos espirituais de um espanhol, Domingos, um cónego regular. Em 1206, acompanhando o seu bispo à Dinamarca, atravessou o Languedoc e pôde
ver quanto aquela velha terra cristã era sacudida por um feudalismo tenaz,

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pela ignorância dos clérigos e pela sedução do catarismo. No regresso, conseguiu permissão para se fixar aí e, pela controvérsia (1), pelo exemplo da pobreza vivida
e da independência em relação aos senhores feudais, Domingos - à margem da horrível cruzada antialbigense - esforça-se por fazer regressar os cátaros ao seio da
Igreja. Em 1215, com a ajuda do bispo Foulque, reuniu em Toulouse alguns companheiros para quem obteve do Papa, em 1217, a confirmação do seu título de fratres praedicatores,
Irmãos Pregadores. Colocada à disposição da Igreja, a companhia estendeu-se a Paris - onde os frades instalados nos subúrbios de Saint-Jacques se tornaram populares
sob o nome de jacobinos (2) - e, depois, à Espanha, Bolonha e Roma.
A regra dominicana é a chamada "regra de Sto. Agostinho" praticada pelo fundador que incorporou nela alguns elementos estruturais que tornam a Ordem dos Pregadores
aparentada com as associações municipais, com as corporações de ofícios e com as universidades. Porque a ordem dominicana distingue-se das antigas ordens pelo seu
carácter democrático: a autoridade, a todos os níveis, exerce-se através de eleições permanentes e renovadas; não há um abade à frente do convento, mas um "prior"
escolhido pela comunidade. Assim, os dominicanos mostram-se defensores de uma teologia da vida social, à qual sempre se opuseram, como que instintivamente, todos
os voluntarismos.
Perante os "perfeitos" cátaros, os frades dominicanos apresentavam-se como pobres, de espírito, de atitude e de hábito. A exemplo de Francisco de Assis, o evangelismo
implicava para Domingos uma ruptura com o regime feudal, pela recusa das dízimas e dos benefícios. Mas nunca os dominicanos se esquecerão de que, acima de tudo,
são pregadores; daí a primazia que a sua regra dá aos estudos face ao próprio ofício. Sabendo como os cistercienses, primitivamente enviados para o Langue-doc, estavam
desprotegidos perante o catarismo, mantiveram largamente aberto o seu horizonte intelectual. Daí a posição de vanguarda assumida por estes religiosos vestidos de
branco,

Nota 1: Debate público sobre um assunto; neste caso, a religião. [N. do T.]
Nota 2: Do nome Jacques. [N. do T.]

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isto é, uma posição desconfortável, não ditada por um secreto desejo de bravata, mas imposta por uma vocação original profunda.
Instalando-se nas cidades, os mendicantes - franciscanos e dominicanos - não perderam o seu carácter missionário. Os frades menores assumiam de bom grado as paróquias
populosas e suburbanas; os pregadores encontrar-se-ão entre os mais equilibrados inquisidores. Além disso, desde o século XIII, encontram-se uns e outros nos países
submetidos ao islão ou momentaneamente ocupados pelas Cruzadas: em Marrocos, no Egipto - onde Francisco de Assis esteve -, na Palestina, na Pérsia e na Guiné; mas
também encontraremos franciscanos e dominicanos nos postos avançados da cristandade, no coração da Ásia.
O paralelismo na evolução das duas grandes ordens mendicantes reside na criação de uma ordem de monjas contemplativas - a segunda ordem, clarissas e monjas dominicanas
-, bem como numa terceira ordem secular, denominação significativa da implantação das novas ordens mendicantes num mundo laical em promoção cultural e eclesial.
E foi na Universidade de Paris que se destacaram dois grandes doutores: o franciscano Boaventura e o dominicano Tomás de Aquino.

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Capítulo IV
O SÉCULO DE S. TOMÁS

1. A revolução do ensino. A Universidade de Paris

Catedrais, obras colectivas; cartas de foral, garantias dos direitos das comunidades urbanas; corporações; cruzadas, impulso das multidões; ordens mendicantes devotadas
a um novo mundo: são tudo componentes de um mesmo esforço. Na atmosfera exigente do século XIII, a fé, mesmo a dos leigos, sentia a necessidade de se confrontrar
com o mundo criado por Deus não no silêncio das bibliotecas ou nos círculos fechados das escolas monásticas e episcopais, mas "ao ar livre", na livre discussão,
em torno de mestres amados, admirados, procurados e ligados aos seus alunos por laços fortes e queridos.
Nasce assim uma palavra nova que engloba outra realidade: a "Associação" ou "Universidade" (1) dos "mestres e dos alunos" (Universitas magistrorum et scolarium),
que é resultado da acção da Igreja e cujo arquétipo foi Paris. Porque, embora a escola de Direito de Bolonha - que representou um papel capital na introdução do
Direito Romano no Direito Comum (consuetudinário) ocidental -, já brilhasse desde o século XII, não constituía propriamente uma universidade, dado que os estudantes
eram autónomos. Se a Europa pôde vangloriar-se das

Nota 1: Totalidade, conjunto. [N. do T.]

163

universidades de Oxford, Pádua, Toulouse, Coimbra e Valhadolid, pôde fazê-lo devido à influência de Paris, "a mais nobre cidade de toda a vida espiritual".
Em Paris, que já atraía muitos estrangeiros, as escolas da Ille de la Cité, submetidas à jurisdição do chanceler do capítulo da catedral, surgem desde os primeiros
anos do século XIII e espalham-se pela margem esquerda do Sena, o actual Quartier Latin, onde o dono da casa, o abade de Sainte-Geneviève, depressa se vê submerso
pelo formigueiro intelectual e pela "balbúrdia" de uma juventude numerosa. Pouco a pouco, depois de uma luta épica, mestres e alunos conseguem todos os privilégios
de uma corporação eclesiástica; a Universidade de Paris é liberada por Filipe Augusto de uma jurisdição laica e, por outro lado, os papas afastam-na, em seu benefício,
da jurisdição episcopal. A bula Parens scientiarum de Gregório (1236) permite-lhe mesmo tratar de igual para igual com o rei.
Formada por quatro faculdades - Artes Liberais, Direito Canónico, Medicina e Teologia -, diferenciada pelas suas "Nações" - Normandia, Picardia, Inglaterra e França
-, a Universidade de Paris transformara-se numa verdadeira "instituição mundial" e eclesial, porque todos os estudantes e todos os professores são, forçosamente,
de Igreja. Como fica situada nos flancos da colina de Sainte-Geneviève, multiplicam-se as fundações caritativas, os "colégios", que recebem os estudantes pobres.
Como a universidade não possuía qualquer estabelecimento próprio, os mestres ministravam os seus cursos nesses colégios, transformados pouco a pouco em locais de
ensino. Um deles, o colégio de Sorbon, dará o seu nome à Faculdade de Teologia e, depois, à Universidade de Sorbonne; outros, como o colégio de Cluny ou o de Navarra,
conheceriam também eles um destino especial.
A Faculdade de Teologia e a Faculdade das Artes eram as mais importantes e as mais vivas: a especulação encontrava aí um terreno propício. Por volta de 1250, sob
a influência de Oxford, de Aristóteles e do pensamento árabe, a Faculdade das Artes tornou-se uma verdadeira faculdade de Filosofia. Inicialmente, os teólogos tiveram
alguma dificuldade em romper com os antigos métodos; mas, depois, através do simples comentário dos textos bíblicos, passaram a desenvolver uma teologia sistemática

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e, da simples quaestio (questão), passaram à disputatio (discussão), ou seja, a um exercício vivo e organizado em redor de um tema escolhido e animado pelo mestre.
Alexandre de Hales, por volta de 1220, desencadeou uma pequena revolução, introduzindo no ensino magistral as Sentenças de Pedro Lombardo, bispo de Paris (falecido
em 1160). Os quatro livros das Sentenças estão pejados de textos patrísticos dispostos de maneira a formar um ensino completo da fé. Alexandre de Hales foi um mestre
que, mesmo continuando a ser ortodoxo, procurou fazer despertar o espírito universitário, esse espírito do qual Alberto Magno e, sobretudo, Tomás de Aquino foram
os exemplos mais extraordinários.

2. Um modelo para o pensamento cristão: o tomismo

Alexandre de Hales era um frade menor, Alberto Magno e Tomás de Aquino eram pregadores. Bem cedo as duas grandes ordens mendicantes encontraram no meio universitário,
jovem e efervescente, as melhores condições de florescimento, ainda que os clérigos seculares e a universidade tenham, por vezes, combatido a influência dos regulares,
a seus olhos, demasiado dependentes da Santa Sé.
Entre os dominicanos, a presença de um professor de Teologia era tão necessária ao estabelecimento de uma comunidade como a de um prior. A escola conventual da Rua
de Saint-Jacques, em Paris, tornou-se rapidamente a mais prestigiosa da ordem: fortaleceu a universidade, onde duas cadeiras de Teologia foram ocupadas pelos melhores
mestres dominicanos. Os franciscanos já tinham organizado em Bolonha, ainda em vida de S. Francisco, um studium ou convento de estudos e, a seguir, vários studia
generalia foram incorporados nas universidades: em 1231, Alexandre de Hales funda a escola conventual de Paris, onde afluíram muitos jovens religiosos e, entre eles,
um futuro geral da ordem, João Fidanza da Toscana, que, em religião, tomou o nome de Boaventura.
Mas os frades menores, formados na livre espiritualidade de S. Francisco, próxima da iluminação doutrinal, não consideravam que a filosofia fosse um fruto de uma
curiosidade,

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mas uma tendência religiosa. Para Boaventura, toda a metafísica deve juntar-se a um vasto simbolismo que faz considerar a Natureza como um livro divino a decifrar.
Os frades menores não aceitavam entregar-se nos estudos filosóficos, a não ser que estes pudessem servir os dogmas teológicos; afirmavam-se seguidores das ideias
platónicas e do ensino de Sto. Agostinho: o universo eterno submetido a ciclos imutáveis, evidência da existência de Deus, unidade e simplicidade do mundo das ideias
e a autonomia impossível do mundo físico.
Os pregadores mostravam-se mais preocupados em evitar uma ruptura radical entre o corpo de sabedoria profana e o sentido da fé cristã. O seu desígnio era tornar
inteligível aos ocidentais a ciência e a razão gregas, personificadas em Aristóteles, cujos textos e comentários eram, então, por toda a parte, traduzidos do grego
e do árabe. Alberto de Colónia, chamado "Magno", que foi lente em Paris em 1254, foi o primeiro dos grandes peripatéticos cristãos: "Em matéria de fé e de costumes
- escrevia ele -, é preciso acreditar mais em Sto. Agostinho do que nos filósofos, se não concordarem uns com os outros; mas, quando falamos de Medicina, então,
volto-me para Galeno e Hipócrates; e, se se tratar da natureza das coisas, é a Aristóteles que me dirijo ou a qualquer outro perito na matéria."
Retomando o caminho aberto pelo seu mestre, mas ampliando-o para que toda a gente pudesse nele mergulhar, aparece Tomás de Aquino, o "doutor angélico". Desde 1257,
com 32 anos, esse nobre napolitano é mestre em Paris; no seu ensino, essencialmente dinâmico, como nos próprios escritos - sobretudo nas suas sumas: Summa Contra
Gentiles e Summa Theologica -, Tomás tende a construir a síntese teológica das verdades reveladas e a síntese filosófica das verdades acessíveis à razão. Para Tomás
de Aquino, a adesão à Palavra de Deus deve desencadear uma curiosidade, em que natureza e graça sejam igualmente solicitadas. A Teologia torna-se uma ciência, ao
mesmo tempo, contemplativa e especulativa, e a fé é sempre uma busca da inteligência; por isso, razão e fé distinguem-se para se unirem. A própria vida de Tomás
de Aquino - na mansidão, na humildade e fidelidade às tarefas quotidianas - foi a ilustração constante dessa dupla avidez do espírito e do coração.

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Jacques Maritain, um dos mestres do tomismo contemporâneo, esclareceu perfeitamente o lugar ocupado por Tomás de Aquino no coração da História da Igreja, no centro
desse século "orgânico" que foi o século XIII: "Ele leva a inteligência ao seu objecto, orienta-a para o seu fim, entrega-a à sua natureza. Diz que ela é feita para
o ser, sujeita ao objecto, mas para chegar à sua verdadeira liberdade, pois é nessa submissão que ela restabelece dentro de si as suas hierarquias essenciais e a
ordem das suas virtudes." Quanto ao padre M.-D. Chenu, o seu grande mérito é o de ter mostrado que os teólogos do século XIII não foram apenas leitores de Aristóteles,
mas também religiosos que encaravam a sua fé numa atmosfera espiritual.
Violentamente combatido pela sua antropologia, desde o século XIII, pelos franciscanos imbuídos de agostinismo, deformado no século XV pelos abusos da escolástica
e, depois, afastado a favor do nominalismo, transformado nos séculos clássicos em privilégio de uma escola, o tomismo emergiu no fim do século XIX, graças à acção
de Leão XIII, um Papa que considerava o tomismo uma doutrina, cujos princípios podiam permitir o aprofundamento da tradição e a resolução dos problemas postos pela
evolução das artes, das ciências, da sensibilidade humana e das estruturas sociais. Nos nossos dias, o tomismo revivificado em boa hora pela escola de Saulchoir
(Chenu e Congar), vê-se confrontado com um mundo profundamente laicizado, marcado pela técnica e pelo materialismo. No século XIII, todas as forças da Natureza e
da graça participavam na construção de um sistema de pensamento cristão; no entanto, esse século ainda não morrera e já o homem se via tentado a dissociar o mundo
da Natureza do mundo da graça.

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Capítulo IV
O TEMPO DA INQUIETAÇÃO

1. O esforço missionário da Idade Clássica

Desde meados do século XII que "a coagulação da Europa" (G. Le Brás) estava concluída. O cristianismo romano estendia-se sobre a maior fatia da Europa Ocidental,
da Irlanda à Sicília, da margem oriental do Adriático à Irlanda, englobando a parte meridional da Escandinávia, da Polónia, da Boémia e da Hungria. Para norte, a
Igreja embate nos Prussianos, nos Bálticos e nos Finlandeses pagãos; para leste nos Estados Russos, nos Búlgaros de obediência bizantina e nas estepes dominadas
pelos Comenos; e a Península Ibérica de além-Tejo ainda é muçulmana.
Aos olhos do papado, o esforço de unidade não podia limitar-se à reunião das terras cristãs. A partir de 1238, os mouros na Península estão confinados ao reino de
Granada; a Ibéria católica deseja incutir sangue novo na velha cristandade. No Norte da Europa, missões de cistercienses escandinavos e de alemães penetram entre
os Bálticos e os Finlandeses, enquanto os Polacos intervêm junto dos Lituanos; a cruzada de Érico, em 1157, conduz à anexação da Finlândia. Em 1211, o cisterciense
Alberto, fundador de Riga, sagra o primeiro bispo da Estónia e torna-se arcebispo da Prússia; em 1215, o rei da Lituânia pediu o baptismo. Mas a hostilidade dos
Bálticos em relação ao clero alemão, a dos Finlandeses em relação aos Escandinavos e a acção violenta

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dos Cavaleiros Teutónicos retardam a penetração do cristianismo nessas populações. Quanto à missão da Coménia, dirigida por dominicanos húngaros, a partir de 1221,
é destruída em 1250 pelos Mongóis; um número elevado de comenos abraça às pressas o cristianismo para se poderem refugiar na Hungria, onde foi preciso evangelizá-los
durante muito tempo.
Mas o espinho no coração da Igreja era o imenso Oriente. Os Balcãs e a Ásia Menor eram, em grande parte, de obediência ortodoxa; para além, era o mundo islâmico,
onde viviam muitos cristãos afastados de Roma. Criando os Estados Latinos, as Cruzadas foram a oportunidade de a Igreja romana tentar, a partir do Próximo Oriente,
uma penetração missionária na Ásia continental. As duas jovens ordens mendicantes, franciscanos e dominicanos, já instaladas em África, sobretudo no Norte, desempenharam
um papel de primeiro plano tanto pelas intervenções missionárias como pelas tentativas para reunificar a cristandade. Uma província franciscana fora criada na Síria
em 1217; durante a Quinta Cruzada (1219), Francisco de Assis procurou converter o sultão do Egipto. Em 1228, já havia uma comunidade franciscana em Jerusalém; em
1235, podiam-se encontrar frades menores e pregadores na Pérsia, na Caldeia, em Constantinopla, em Chipre e, mesmo> na índia. Em 1239, Gregório IX enviava oito dominicanos
à Geórgia e, a partir do seu convento de Tíflis, espalharam-se por entre os povos do Cáucaso.
De súbito, apareceram os Mongóis de Genghis Khan e os seus partidários: um após outro, os impérios muçulmanos caíram nas suas mãos. Durante muito tempo, os Latinos
acreditaram que os terríveis nómadas eram cristãos, porque a Igreja nestoriana estava implantada na Mongólia; segundo Marco Polo, o Grande Kubilai Khan, embora inclinado
para o budismo, elogiou e beijou um dia o Evangelho que os padres nestorianos lhe apresentaram. Mas quando as velhas terras da Hungria, da Polónia e da Boémia foram
devastadas pelos Mongóis, então, o Ocidente cristão compreendeu o perigo que corria.
Inocêncio IV, que acreditava mais na eficácia das missões do que na das cruzadas, fez partir de Lião, em 1245, quatro embaixadores. O franciscano Domingos de Aragão
dirigiu-se para a Arménia; o dominicano André de Longjumeau foi

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encarregado de estabelecer contacto com os prelados caldeus e siríacos separados de Roma. Quanto ao pregador Ascelino de Cremona e o menor Pian di Carpino penetraram
na Mongólia; o franciscano, mais flexível do que o outro, foi bem recebido em Caracórum por Guyuk que, aliás, se limitou a convidar o Papa a reconhecer-se seu vassalo.
Mas depressa correu no Oriente cristão a notícia de que um filho de Batu, fundador da Horda de Ouro, havia recebido o baptismo; S. Luís julgou que esse era o momento
de enviar à corte do Grande Mangu Khan o franciscano flamengo Guilherme de Rubrouck que permaneceu oito meses entre os Mongóis e acompanhou o seu chefe a Caracórum,
onde numa igreja nestoriana celebrou o ofício da Páscoa e sustentou, na presença de Mangu, uma discussão religiosa com muçulmanos e budistas. Mas Rubrouck não conseguiu
do Khan mais do que uma ordem de submissão dirigida ao rei de França.
Entrementes, os mendicantes ligavam-se a esta Ásia, onde desejavam construir uma terra cristã. No fim do século XIII, os franciscanos tinham dois vicariatos na Tartária,
uma custódia na Crimeia mongólica, um convento na capital dos Khans da "Horda de Ouro". Muitos desses monges adoptaram os costumes e a vida dos Mongóis e acompanhavam-nos
por toda a parte; em contrapartida, foi sob a túnica franciscana que morreu, em 1312, Toctai, Khan de Quiptchac. Todavia, trinta anos mais tarde, a maioria das dinastias
mongóis tinha-se passado para o islão. A China, conquistada em 1279 pelo mongol Kubilai, recebeu o franciscano João de Montecorvino: o missionário conseguiu que
muitos nestorianos retornassem à obediência e à fé romanas e, como primeiro bispo de Pequim, fez inúmeras conversões entre os Mongóis e os Chineses; mas a missão
da China foi, juntamente com a dinastia mongol, expulsa de Pequim pelos Mings.
O fracasso das missões da Ásia incitou os papas a tentarem reaproximar-se das Igrejas separadas.

2. E a união das Igrejas?

As ordens mendicantes foram, também neste terreno, os instrumentos do papado. Em 1237, o patriarca dos jacobitas

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submetia-se a Roma e tomava o hábito dos dominicanos; os maro-nitas estavam prestes a aderir à Igreja romana. No entanto, a Igreja nestoriana, apoiada por Frederico
II, permaneceu nas suas posições e o mesmo aconteceu com os Georgianos. Na Arménia, a acção dos dominicanos com vista a uma aproximação com Roma apenas dará os seus
frutos no século XIV.
Mas os papas sempre se deram muito mal com Constantinopla. Favorecendo por todas as maneiras o Império Latino de Constantinopla, Inocêncio III e os seus sucessores
puseram o clero e o povo gregos contra a Igreja romana; no entanto, Inocêncio IV, mais lúcido, alimentou laços com o imperador de Niceia, João III Vatatzès. A queda
do Império Latino, em 1261, pôs termo, senão às conversações, pelo menos à esperança de um real entendimento, porque as aproximações oficiais não significavam a
adesão dos povos.
Quando o imperador bizantino Miguel Paleólogo pressentiu que o irmão de S. Luís, Carlos de Anjou, sonhava apenas em reconstruir para si próprio o Império Latino
de Constantinopla, decidiu prestar obediência e fidelidade a Roma. Isso aconteceu no II Concílio de Lião, presidido por Gregório IX (1274), onde participaram o patriarca
de Constantinopla e o metropolita de Niceia. Mas embora tenha havido submissão solene e oficial do basileu, não se pode, todavia, dizer que fosse clara a união de
coração entre as Igrejas de Roma e de Constantinopla.

3. Sintomas de crise

Quando se encerrou o II Concílio de Lião, o papado parecia não ter já adversários e o sonho de unificação do mundo cristão, que foi o de Inocêncio III, parecia começar
a realizar-se. Todos os soberanos enviaram embaixadores a Lião; o título imperial, depois de Frederico II, não foi restabelecido e Rodolfo de Habsburgo, rei dos
Romanos, deixa ao Papa o caminho livre em Itália. No entanto, uma situação difusa impede que se fale de uma completa vitória.
Assim é, porque, em 1281, a união com Constantinopla é rompida, já que o papado se mostrava de novo fascinado pelas

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ambiciosas miragens de Carlos de Anjou. Por outro lado, a cruzada decidida no Concílio de Lião não consegue ser organizada pela recusa dos soberanos cristãos; dessa
forma reaparece o abismo entre o Ocidente e o Oriente. O clero do Ocidente, bastante rico, não respeita muito os cânones conciliares relativos à reforma dos costumes;
favorecendo a autonomia das ordens mendicantes, o papado desagrada à hierarquia eclesiástica e aos clérigos seculares que ficam com menos força na sua luta contra
os regulares. O nepotismo e a burocracia pontifícia limitam a acção reformadora do papado.
Não há dúvida de que, após a morte de Frederico II, o Papa é o chefe espiritual da cristandade: teólogos, filósofos e cano-nistas fazem da supremacia pontifícia
uma doutrina sólida que se expressa nas Decretais. Mas a teocracia só aparece como "uma construção de escola, sem influência sobre a evolução do universo católico".
Sente-se isso muito bem logo depois das Vésperas Sicilianas (1282), onde pereceram os partidários de Carlos de Anjou, o protegido do Papa: Pedro de Aragão coroado
em Palermo é excomungado por Martinho V; a interdição é lançada sobre a Sicília, mas ninguém se preocupa e o aragonês organiza a ilha a seu bel-prazer.
Três anos mais tarde (1285), sobe ao trono de França o neto de S. Luís, Filipe, o Belo, que iria ser o coveiro da supremacia pontifícia.

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VI
A IGREJA SOB ACUSAÇÃO

Capítulo I
A CRISTANDADE HUMILHADA

1. Uma nova atmosfera

Seria ridículo comparar, ponto por ponto, o século XIV com o século XIII; mas não há dúvida de que o século XIV traz consigo os germes do mundo moderno, esse mundo
que iria questionar tudo, a começar pela unidade do Ocidente. Tudo parecia síntese e equilíbrio; as disciplinas do espírito eram transcendidas na Teologia, no conhecimento
de Deus; a arte era não só elegância, mas também simplicidade. Em redor do Papa e da liturgia romana, organizava-se uma sociedade, cuja língua única era o latim
e que parecia encontrar no cristianismo toda a sua força; os reis e o próprio imperador integravam-se numa hierarquia que nada parecia poder derrotar.
O harmonioso monumento do tomismo foi logo ameaçado por toda parte, enquanto, no começo do século XIV, a Universidade de Paris já não tinha o brilho e a autoridade
que contribuíram para o seu prestígio. De Oxford partiam fortes correntes de ideias que traduziam uma verdadeira impaciência em relação aos quadros fixados pela
"filosofia dos parisienses". Um facto curioso: face aos dominicanos de Paris, os "impacientes" ingleses são frades menores. Nenhum deles se voltou mais para o futuro
do que Roger Bacon (1214-1292); a base de seu ensino filosófico não está nem no Livro das Sentenças nem nas Sumas escolásticas, mas na Bíblia que, segundo ele, só
pode ser

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interpretada validamente por filólogos que dominem a fundo o Grego e as línguas semitas. Bacon entende ser desejável a experiência mística, desde que seja continuada
pela experiência científica, e purificada e aclarada pelo espírito crítico; desse modo, tudo o que honra e dá vitalidade ao nosso tempo - o movimento científico,
a crítica textual e a teologia positiva - já se encontra no pensamento de Bacon, o doutor admirável
O escocês Duns Escoto (1266-1308) foi o doutor subtil. Adversário da iluminação agostiniana e, simultaneamente, da especulação tomista, o escotismo acentua a limitação
do saber filosoficamente demonstrável em proveito da crença. Para Escoto, é a vontade que tem a primazia sobre o conhecimento intelectual.
Mas, entre esses "modernos", ninguém rejeitou tão ardorosamente o jugo tomista como o franciscano inglês Guilherme d'Occam (1295-1350), teórico do nominalismo e
percursor do empirismo inglês: atacando o realismo, opondo o sensível ao inteligível, afirmando que apenas o conhecimento sensível garante a existência dos seres
e dos fenómenos, Occam esvaziava a metafísica e apontava como domínio da ciência o particular; o individual, o concreto, o singular tomavam o lugar das ideias gerais,
dos "universais". Assim, o pensamento laicizava-se, tornando-se muito exigente no plano científico e experimental.
Isso representava um perigo para o pensamento cristão, dado que, na outra extremidade do mundo, renovado pelo aristotelismo, prosperava, sempre atraente, o averroísmo
que S. Tomás havia colocado em primeiro lugar entre os seus inimigos. Averróis, filósofo árabe e cordovês do século XII, tinha sido o mais brilhante introdutor do
sistema filosófico de Aristóteles no Ocidente. Mas desse sistema desenvolveu os elementos racionalistas e materialistas: o carácter eterno e incriado do movimento
e da matéria, a teoria da "dupla verdade", isto é, da existência de opiniões racionais que se opõem aos dogmas religiosos e a necessidade fatal dos acontecimentos.
Ensinado por Siger de Brabante e condenado pelo bispo de Paris em 1277, o averroísmo espalhou-se pela Itália, sobretudo em Pádua, cuja universidade, fundada em 1222,
depressa se tornou célebre pela importância que dava às disciplinas científicas e pela sua independência de pensamento que chegou a ser rotulada de "libertinagem".

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O averroísmo era, aliás, muito menos um corpo de doutrinas do que uma atmosfera que, pouco a pouco, impregnava as mentalidades. Assim é porque houve um averroísmo
moral, perceptível em inúmeras obras do fim do século XIII, bem como nas páginas libertinas da segunda parte do Romance da Rosa, escrito por João de Meung. Houve
também um averorroísmo político que encontrou a sua perfeita expressão no Defensor pacis de Marsílio de Pádua, verdadeiro breviário do Estado laico. O próprio Dante
(falecido em 1321), colocando Siger de Brabante no quarto céu do seu Paraíso, revela que era partidário da separação dos poderes e da autonomia das ciências profanas.
Através do seu simbolismo sagrado, A Divina Comédia é, talvez, o mais admirável reflexo daquilo que foi a cristandade no fim da Idade Média; é toda a cristandade
que serve de moldura à tragédia dantesca. Por sentir que a unidade cristã está ameaçada é que Dante se mostra severo em relação à Igreja que ama, uma Igreja - a
Igreja de Bonifácio VIII e dos primeiros papas de Avinhão - que se deixou perverter pelo luxo, pelo lucro, pelo tráfico de influências e pelo negócio, e pela mediocridade.
Dante foi uma voz patética. Mas houve outras vozes, mais ásperas, que se elevaram, protestando contra o carácter muito terrestre da Igreja de Deus e convidando os
cristãos a uma vida mais despojada, e, por vezes, roçavam o evangelismo, o neomaniqueísmo, a feitiçaria ou o panteísmo, esquecendo-se daquilo que faz a essência
do cristianismo. Algumas correntes subterrâneas - que a Inquisição não podia atingir - alimentavam movimentos aparentemente espontâneos, mas, de facto, aparentados
uns com os outros: os Irmãos do Livre-Espírito, provavelmente discípulos de Ortlieb de Estrasburgo; os begardos, as beguinas e os irmãozinhos de todos os tipos;
os apostolici, cujos sonhos místicos se aparentavam com o catarismo e que foram condenados em 1311 pelo Concílio de Viena; os flagelantes e os penitentes que percorriam
a Europa angustiada, porque Joaquim de Flora havia vaticinado o fim do mundo para o ano de 1260...
Os eremitas, ao mesmo tempo migrantes e homens públicos, pululavam, como Fra Pietro, anacoreta de Mont-Murrone que o cardeal Orsini, em 1294, teve a extraordinária
ideia - alguns diriam providencial - de eleger Papa com o nome de Celestino V

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(São Pedro Celestino); o seu curto reinado - renuncia à tiara cinco meses depois de sua sagração - não foi mais que um longo tormento de um "faisão a esconder a
cabeça debaixo da asa". O realista Bonifácio VIII não teve nehuma dificuldade em obter o consentimento do velho eremita para a sua reclusão perpétua. Ora, muitos
monges haviam considerado como "seu" Papa esse Celestino coberto de farrapos e ainda há historiadores que consideram que a rejeição de um Papa pobre e humilde pela
Igreja representou, para ela, uma maldição. Entre os franciscanos, os espirituais eram admiradores de Celestino V e constituíam numerosos grupos na Marca, na Provença
e na Toscana; pretendiam praticar a pobreza absoluta, mas embateram no papa João XXII - a seus olhos, um verdadeiro Lúcifer -, que lhes opunha a fórmula: "A pobreza
é grande, mas a integridade é ainda maior." Muitos deles não se subordinaram e, mau grado os autos-de-fé, continuaram numerosos e populares na Itália até ao fim
do século XV, com o nome de Fraticelos,
Entretanto, na paz dos conventos nórdicos, nos Países Baixos e na Renânia, desenvolvia-se uma mística que não era angústia, mas que procurava ultrapassar o plano
da especulação teológica. A ordem de São Domingos polarizou essas novas forças: algumas comunidades semimonásticas e semi-seculares colocaram-se sob a direcção dos
dominicanos; as casas de monjas e de terceiras regulares dominicanas multiplicaram-se: em 1287, contavam-se setenta somente na Alemanha, sendo sete em Estrasburgo.
O dominicano Eckhart - Mestre Eckhart - foi a alma do imenso movimento místico que se desenvolveu no século XIV no Norte da Europa; pedia aos religiosos e religiosas
o despojamento espiritual, a identificação da sua vontade com a de Deus. "Amigos de Deus": eis o que os discípulos de Eckhart se desejavam tornar; na primeira fila
desses discípulos estava João Tauler (falecido em 1361) que, em muitos aspectos, prenunciava João da Cruz e esse extraordinário Henrique Suso (falecido em 1366),
cuja vida foi assinalada por incríveis austeridades e se exprimiu numa poesia ardente e patética, inspirada pelo Calvário.
Podemos encontrar o vocabulário eckhartiano - despojamento, abandono, silêncio obscuro, etc. - no flamengo João Ruysbroeck (falecido em 1381): depois de ter exercido,
durante

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vinte e cinco anos, o ministério sacerdotal em Bruxelas, conseguiu atrair para Groenendael inúmeros discípulos, para os quais redigia obras, cujos títulos se revelam
sugestivos: As Núpcias Espirituais, O Espelho da Salvação Eterna, etc. Esses tratados eram elaborados em flamengo, como várias obras de Eckhart e de Suso o eram
em baixo-alemão. Petrarca e Dante exprimiram-se em toscano e o erudito bispo de Ruão, Oresmo (falecido em 1382), escrevia em francês. É um facto muito importante,
porque, embora o latim ainda permanecesse por longo tempo como a língua dos eruditos, a literatura popular - e com ela a literatura de devoção - começava a deslatinizar-se;
era um verdadeiro fenómeno de laicização, ligado ao aparecimento das línguas nacionais e dos nacionalismos.
Essa laicização vai ser transposta para o plano político pela luta que oporá Bonifácio VIII e Filipe, o Belo.

2. Anagni ou o mundo laico

Gregório VII e Henrique IV, Alexandre III e Frederico Barba-Ruiva, Gregório X e Frederico II: estes antagonismos dominaram a longa luta que opusera o papado ao Império
pelo governo do Mundo. No alvorecer do século XIV, Roma encontra-se confrontada por adversários aparentemente menos temíveis, mas que, de facto, estão infinitamente
mais bem armados do que os antigos titulares da coroa imperial. Trata-se dos chefes dos jovens Estados ocidentais (Inglaterra, Aragão, França, etc.) que, tendo emergido
do mundo feudal, apoiados na burguesia das jovens cidades e num clero impaciente com o jugo pontifício, sonham libertar-se das sujeições próprias de uma cristandade
unificada e estática. Não se trata somente de investiduras laicas, mas de uma laicização substancial dos órgãos políticos e das relações entre o temporal e o espiritual.
Na primeira fila, a França, o mais fortemente organizado de todos os jovens Estados. Em 1285, chega ao seu trono Filipe IV, o Belo, político realista, mas também
rei devoto e, no sentido mais pleno do termo, "muito cristão". Intransigente na defesa dos seus direitos, será um dos artesãos mais activos de uma

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poderosa monarquia; desconfiado em relação aos nobres, prefere gente mais humilde, legistas como Pedro Flote, Guilherme Nogaret e Enguerrando de Marigny, meridionais
imbuídos de direito romano, esse direito que não dava à Igreja nenhum lugar no Estado.
Em Roma, o Papa francês Martinho IV (falecido em 1285), depois, Honório IV (falecido em 1287) e Nicolau IV favorecem os Franceses; adivinha-se em que atmosfera deliquescente
assume o trono pontifício - do qual afastou Celestino V - o cardeal Benedito Caetani, tornado Bonifácio VIII (1294). Este gentil-homem de grande estatura, dominador,
que acrescentaria uma segunda coroa à tiara, não estava destinado a entender-se com Filipe, o Belo. Já em 1296, quando o rei pretendeu fazer com que os clérigos
contribuíssem para as despesas públicas, o Papa - em termos categóricos (bula Clericis Laicos) - fez a apologia das imunidades eclesiásticas. Filipe replica, proibindo
a exportação de prata e ouro para a Itália. Depois veio a conciliação e Bonifácio VIII canonizou Luís IX (1297).
No jubileu triunfal de 1300 - que, diz-se, atraiu cerca de duzentos mil peregrinos a Roma -, o Papa acreditou, erroneamente, que já era o senhor do Mundo. Ora, eis
que logo um dos protegidos de Bonifácio, o bispo de Pamiers, Bernardo Saisset, conhecido pelos seus sentimentos antifranceses, foi preso por ordem do rei de França,
que o acusava de trair a sua causa. O Papa lança a bula Ausculta fili (1301), onde estigmatizava os conselheiros do rei e preconizava uma grande reunião do clero
gaulês, para julgar a realeza francesa. Escamoteada, falsificada e substituída por documentos injuriosos, a bula espalhou a indignação pelo reino da França; sem
dificuldades, Pedro Flote obtém de uma assembleia de deputados das "três ordens" um voto de violentas advertências a enviar ao Papa, enquanto canonistas e legisladores
se batiam a golpes de libelos, para saber se o Papa era ou não senhor dos reis. O ardente Bonifácio respondeu à sua maneira e de forma excessiva: a bula Unam Sanetam
(1302) estabelecia a submissão ao pontífice romano como condição necessária para a salvação.
Então, Nogaret, tido como neto de albigenses, preparou uma atroz contra-ofensiva, por conta de Filipe, o Belo. Numa

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cristandade e numa França enfraquecidas, não houve mentira fabricada por ele que não encontrasse eco: ilegitimidade da eleição pontifícia, acusações de simonia e
perjúrio, etc. E, quando Nogaret obtém de Filipe, o Belo, a prisão do Papa e a sua comparência diante de um concílio, é aclamado por todo o povo. A expedição que
conduziu Nogaret a Anagni, onde estava o Papa (1303), fracassou: Bonifácio permaneceu digno e firme diante daqueles que levantavam a mão contra ele e a cidade de
Anagni levantou-se em seu favor. Mas, retornando a Roma, Bonifácio VIII apenas sobreviveu um mês ao drama que lançara um indiscutível descrédito sobre o papado.
O Papa acreditara que poderia agir à maneira de Inocêncio III e Inocêncio IV, mas os tempos tinham mudado. A estada dos papas em Avinhão tornaria ainda mais sensível
o enfraquecimento do papado, aliás, bastante paradoxalmente essa estada iria manifestar, ao mesmo tempo, o progressivo abandono dos papas à pretensão de governar
a cristandade e o enraizamento da monarquia pontifícia, administrativa e centralizada.

3. A instalação do papado em Avinhão

Roma, a turbulenta, nunca fora uma residência aprazível para os papas: de 1100 a 1304, os papas viveram cento e vinte e dois anos fora de sua capital.
Com a morte de Bonifácio VIII, a cidade eterna dividiu-se com a luta que opunha os Caetani - família do falecido pontífice - aos Colonna. Assim, Bento XI estabeleceu-se
em Perugia, onde morreu em Julho de 1304, após dez meses de pontificado. Esse santo dominicano (Bento XI seria beatificado em 1736) foi substituído pelo arcebispo
de Bordéus, Bertrando de Got, um gascão súbdito do rei da França, mas vassalo do rei da Inglaterra, então senhor da Aquitânia. Coroado em Lião, na presença de Filipe,
o Belo, desejoso de reunir um concílio geral em Viena, Clemente V dirige-se para o condado Venaissin, território pontifício desde 1229. Mas, ao invés de residir
numa das pequenas cidades do condado, estabelece-se em Avinhão, entroncamento de estradas e domínio dos Anjou de Nápoles que, eventualmente,

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poderiam tornar-se protectores: trata-se de uma instalação provisória - Clemente V aloja-se inicialmente no convento dos dominicanos (1309) -, mas a má saúde e o
carácter indeciso do pontífice obrigam-no a uma estada bem longa.
O antigo bispo de Avinhão, Jacques Duèse, sucede a Clemente V (1316) com o nome de João XXII e, também ele gascão, nem sequer pensa em deixar o doce céu do Sul da
França. Nas proximidades das terras de Filipe IV, Avinhão vai entrar na sombra do reino da França e os inimigos do papado não deixariam de ter razão ao censurá-lo
de se deixar domesticar pelos capetos. Clemente V não faz muito para calar tais acusações e diante de Filipe, o Belo, a sua fraqueza não encontra saída: absolve
os autores do "atentado de Anagni" e, de facto, revoga as bulas de Bonifácio VIII. Em 1314, num total de vinte e quatro cardeais, apenas seis são italianos: a maioria
é composta de franceses e antibonifacianos.
A questão dos Templários manifestou flagrantemente a sujeição do papado à realeza francesa. A Ordem Militar do Templo, bem administrada, havia enriquecido consideravelmente
nos dois últimos séculos; terminadas as Cruzadas, prosseguira o seu papel de banqueiro universal; mas os templários tinham má reputação: a riqueza nunca foi uma
boa recomendação de uma ordem religiosa; proliferavam histórias infundadas como maus costumes, especulação, etc, sobre os tesouros monásticos. Nogaret e Filipe,
o Belo, resolveram tirar partido tanto das riquezas como das calúnias. Mas com que intenção? Nesse ponto, a História tem-se perdido em conjecturas. Seja como for,
no dia 13 de Outubro de 1307, todos os templários do reino foram presos e os seus bens sequestrados. A gloriosa Ordem do Templo pereceu nessa emboscada, desarmada
pelo ardil do rei e dos seus legistas. Interrogados e torturados pelos juízes reais antes de serem levados à Inquisição, numerosos templários confessaram crimes
imaginários, arriscando-se a terem de se retractar e, em 13 de Maio de 1310, cinquenta e quatro deles foram queimados como relapsos em Vincennes.
Quando Clemente V inaugurou o XV Concílio "ecuménico", em 16 de Outubro 1311, em Viena, sabia que a questão dos Templários representava uma iniquidade, mas as suas
hesitações

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foram vencidas por Filipe, o Belo, presente em Viena: em 13 de Abril de 1312, Clemente V pronunciava a supressão do Templo, cujo chefe, Tiago Molay, foi queimado
em 19 de Março de 1314, depois de ter reafirmado a pureza da ordem. Naquele mesmo ano, morriam Clemente V, em 20 de Abril, e Filipe IV, em 29 de Novembro; dizia-se
que Molay os havia denunciado diante do tribunal de Deus. E foi assim que, aos olhos dos cristãos, o papado perdeu nesta questão o seu carácter de magistratura soberana.
Entre os papas de Avinhão, João XXII (1316-1334) foi o mais criticado: esse gascão idoso e fraco foi um administrador enérgico e astucioso que fez muitos inimigos.
Para julgá-lo com equidade, não se devem esquecer as palavras de Dom Mollat: "No século XIV, mesmo para uma potência de ordem essencialmente espiritual, não era
possível dominar o Mundo a não ser baseando os seus meios de acção na propriedade territorial e na fortuna imobiliária." Os papas sofreriam, assim, a tentação de
se esquecer do espiritual em proveito dessa propriedade e dessa fortuna.

4. O fortalecimento do poder temporal dos papas

Tanto João XXII como Clemente V consideraram o nepotismo o prolongamento natural da monarquização do papado; membros da família Duèse, amigos quercinenses e franceses
invadiram a cúria e os cargos da corte; a expressão "cardeal-sobrinho" iria entrar no vocabulário e na lista de títulos. Por outro lado, João XXII representa um
papel essencial no fortalecimento da centralização pontifícia, tornada necessária pelo crescimento do particularismo nacional e do poder monárquico nos países da
Europa. Os processos multiplicaram-se nas cortes de Avinhão. Foram estabelecidos os mecanismos da administração: a Câmara Apostólica -, conjunto dos sectores encarregados
dos assuntos financeiros da Santa Sé; a Chancelaria Apostólica que se ocupava da expedição das cartas pontifícias; a administração judiciária, com o Consistório,
os tribunais eclesiásticos, a audiência das causas do Palácio apostólico ou Rota. A Penitenciária Apostólica eram enviados o perdão das censuras eclesiásticas e
as

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concessões de dispensas. Estendendo a "reserva" a um número crescente de benefícios cuja concessão dele dependia, João XXII obedecia a uma vontade de primazia, mas
também a certas preocupações financeiras.
Na verdade, a manutenção da sua corte e da sua acção religiosa e política - principalmente a guerra de Itália - reclamavam recursos consideráveis que os papas de
Avinhão procuram obter, taxando os benefícios eclesiásticos e acumulando os impostos (anatas, décimas, censo, direito de espólio, etc), recolhidos tanto pela chancelaria
como pelos cobradores pontifícios. Assim, durante dezoito anos, João XXII recolheu mais de quatro milhões, deixando setecentos e cinquenta mil florins ao seu sucessor.
A acção da fiscalidade, severamente controlada, provocava na cristandade vivos descontentamentos e murmúrios escandalizados; entre os franciscanos da Provença, os
"espirituais", que anunciavam a era do Espírito Santo, chegavam ao ponto de apresentar João XXII como o anticristo, guardião do orgulho e da avareza.
O Concílio de Viena (1311) já tinha condenado as teses de um "espiritual", Pedro Oliva, que muitos veneravam como santo e cujas cinzas João XXII mandou espalhar.
O Papa foi um decidido adversário de todos os misticismos e de todos os iluminismos: até condenou o "panteísmo" de Mestre Eckhart. Para se justificar, afirmava que
o próprio Cristo admitira o direito de propriedade, embora tivesse vivido pobre. Mas os "espirituais" eram tão persistentes quanto o Papa e, para lutar contra ele,
tiraram proveito das dificuldades pontifícias na Itália. Com a morte do imperador Henrique VII, em 1314, houve uma dupla escolha, mas o Papa pronuncia-se a favor
de Frederico da Áustria contra Luís da Baviera que excomunga. Em 1328, Luís chega a Roma, cercado de inimigos de João XXII e, na primeira fila, Marsílio de Pádua,
o teórico do Estado laico, nomeado "vigário de Roma". Luís da Baviera transforma um franciscano "espiritual" em Papa, com o nome de Nicolau V, e, perante a fúria
da multidão romana com o prolongamento do "cativeiro da Babilónia", depôs João XXII como herege. Mas, em 1330, "a aventura romana" cai no fracasso e Nicolau V submete-se.
Então, os "espirituais" tentam contra João XXII um processo de heresia,

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pretextando que o Papa afirmara que as almas dos justos não eram admitidas na bem-aventurança antes do juízo final. A morte do Papa (1334) apagaria esse novo foco
de discórdia.
Depois deste combatente, um humilde cisterciense dos Pirenéus, Bento XII (1334-1342), que foi um Papa reformador, avesso ao nepotismo, apesar de ter acrescentado
uma terceira coroa à tiara. Fez regressar aos seus lugares de origem numerosos titulares de sedes episcopais que se flanavam ao sol quente de Avinhão e perseguiu
os monges giróvagos. Mas um reinado tão curto e o espírito muito jurídico limitaram os efeitos dessas reformas. Paradoxalmente, foi precisamente este Papa austero
que empreendeu a construção de um palácio papal em Avinhão.
O arcebispo de Ruão - um correziano tranquilo e grão-senhor - sucedeu a Bento XII com o nome de Clemente VI (1342-1352), sonhando dar à corte de Avinhão o fausto
da corte de França que ele frequentou. Por isso, em 1348, Clemente VI compra Avinhão a Joana de Nápoles e, depois, manda construir um segundo palácio, cuja sumptuosidade
ainda pode ser admirada. Em plena Guerra dos Cem Anos, enquanto a peste negra avassala a Europa, Avinhão torna-se um centro de festas sumptuosas e também um centro
artístico de tal vulto que se chegou a falar de Renascença. O luxo da corte pontifícia - Clemente compraria mil e oitenta peles de arminho para o seu guarda-roupa
- esgota os cofres do Papa. Mas é preciso creditar-lhe os cuidados com que cerca os atingidos pela peste em Avinhão e a protecção oferecida aos Judeus, a quem a
multidão, ingenuamente, imputava a epidemia.
Inocêncio VI (1352-1362) era um espírito pouco clarividente e o seu reinado foi marcado, sobretudo, pelas incursões das Grandes Companhias, como a de Arnaldo de
Cérvola que obrigou o Papa a fortificar Avinhão. Urbano V, um lozerense (1362-1370), foi o "bom Papa" de Avinhão e também um homem de estudos, protector das escolas
e universidades. Querendo dar aos bispos e abades o exemplo da residência, decide restabelecer a sede apostólica em Roma: deixa Avinhão em 30 de Abril de 1367, para
chegar a Latrão em 16 de Outubro do mesmo ano. Mas como recomeçara a guerra entre a França e a Inglaterra, Urbano pensou intervir como mediador, retornando a Avinhão

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em 1370, onde morreria logo depois. Seu sucessor, o limosino Gregório XI (1370-1378), era um homem muito virtuoso e consciente da grandeza do seu papel. Apesar das
queixas da gente de Avinhão e das reclamações de uma cúria apegada ao clima suave do condado, o Papa e a sua corte tornaram a Roma, no início de 1377. Gregório XI
é saudado como o salvador da Igreja..., mas, um ano mais tarde, a sua morte iria lançar a cristandade numa humilhação pior do que o "cativeiro" de Avinhão.
Será delicado fazer um balanço da longa estada do papado no vale do Ródano. Pode, no entanto, sublinhar-se alguns aspectos, que iriam moldar a face da Igreja dos
tempos modernos.
Embora se apresente cada vez menos como o dono da cristandade, o Papa é cada vez mais o senhor da Igreja. O único concílio "ecuménico" realizado nesse período, o
de Viena em 1311, pôde repetir tudo aquilo que fora dito anteriormente sobre o carácter absoluto do poder pontifício; mas a verdade é que perdera o sentido de cristandade;
será preciso lembrar que a tomada de São João de Acre, último bastião cristão na Palestina, em 1291, pelos Turcos, não teve nenhuma repercussão no Ocidente? Por
outro lado, os papas de Avinhão são soberanos sedentários, cuja responsabilidade praticamente já não é limitada por decisões colegiais; alguns deles são mecenas
e a sua acção prefigura aquilo que seria a Roma pontifícia do século XV. Portanto, porque não lhes imputariam o relaxamento geral, se era justamente a sua voz que
dominava todas as outras na Igreja?
A influência espiritual dos papas de Avinhão foi limitada. O vulgum pecus dos cristãos revelou-se mais sensível a uma certa oposição anarquizante - a dos "espirituais"
e a de um Wyclef, etc. - do que ao belo edifício monárquico de Avinhão. Preparando as sessões do Concílio de Viena, o bispo Durando de Mende havia elaborado um Tratado
do Concílio Geral; nele, indicavam-se claramente projectos de reforma: fortalecimento da autoridade dos bispos, limitação da prática administrativa pontifícia, restauração
da constituição sinodal da Igreja e melhoria da formação do clero. Mas o Concílio de Viena fez silêncio sobre o assunto. Um historiador chegou a dizer que esse concílio
estava "na fronteira entre dois mundos"; e, com o grande cisma, penetramos num novo mundo: o nosso.

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5. O grande cisma do Ocidente

O sucessor de Gregório XI, o napolitano Prignano, que se tornou Urbano VI depois de uma movimentada eleição (8 de Abril de 1378), era um homem virtuoso, mas violento
que, desde o início, publicamente e em diversas ocasiões, critica os cardeais, culpados, em sua opinião, de viverem como príncipes faustosos. Entre eles, o cardeal
de Amiens, homem de confiança do rei de França, Carlos V: em torno dele, organiza-se um "partido francês" que, argumentando com a invalidade - discutível - da eleição
de Urbano VI, elegeu em Fondi, sob o nome de Clemente VII, o cardeal Roberto de Genebra, um antigo chefe de caminheiros, devotado de corpo e alma à causa francesa
(20 de Setembro).
Não era a primeira vez que a cristandade se encontrava na presença de dois papas; mas não se estava na época de um Gregório VII ou de um Alexandre II que podiam,
só com o seu prestígio, colocar os seus competidores nos seus devidos lugares. Em 1378, a autoridade do papado estava enfraquecida; os nacionalismos, a política
e os interesses pessoais endureciam as posições e opunham não somente dois papas, mas dois campos inteiros. Do lado de Urbano: o imperador, a Inglaterra, a Itália
à excepção de Nápoles, Flandres e Portugal; do lado de Clemente: a França e seus aliados, a Sabóia, a Escócia e, mais tarde, Castela, Aragão e Navarra.
A situação chegou a tal ponto que muitos não viram outra solução senão o recurso às armas. As operações desenvolveram-se em detrimento de Clemente VII que, batido
em Marino (1379), recuou feliz para Avinhão, onde se encontraria entre franceses, como nos belos dias de João XXII. Avinhão, com efeito, passou a viver novamente
numa atmosfera de fausto, como um Papa mecenas e guerreiro, que multiplicava os favores espirituais e temporais para quem se comprometesse a reconquistar-lhe a Itália;
de facto, Clemente VII não passava de um arquicapelão do rei da França.
O pior é que Urbano VI, para ganhar ou manter partidários, também multiplicava graças e benefícios e, quando morreu em 15 de Outubro de 1389, os cardeais deram-lhe
logo um sucessor.

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o jovem Bonifácio IX, que, encontrando os cofres vazios, organizou um jubileu (1390) e decretou que as anatas seriam, dali em diante, exigidas de todos os benefícios,
sem excepção.
A Igreja gemia. Por todo lado, orações, procissões, queixas e opúsculos testemunhavam a participação dos cristãos nesse mal terrível que era o cisma. Em Janeiro
de 1394, a Universidade de Paris, abandonada pelos partidários do Papa de Roma - Ingleses, Alemães e Flamengos -, mas cuja autoridade ainda era grande, preconiza
o caminho da cessão (de demissão) para a solução do cisma. A morte súbita do Papa de Avinhão, em 16 de Setembro, parece oferecer uma saída fácil para a situação;
mas, apesar do aviso premente de Carlos VI, os cardeais de Avinhão designaram o aragonês Pedro de Luna que se torna Bento XIII (28 de Setembro de 1394). De seguida,
foi convidado a demitir-se pelo rei de França e pela Universidade; com a sua recusa, um sínodo parisiense e uma ordenação real (1398) quebraram os laços de obediência
que uniam os súbditos da França a Bento XIII. A longa obstinação do Papa de Avinhão - feita de orgulho aragonês, de subtileza de canonista e de uma elevada ideia
das prerrogativas papais - foi a causa essencial do prolongamento do cisma. Entrincheirado em Avinhão, Bento resiste durante quatro anos antes de fugir, derrotado,
em 12 de Março de 1403; durante vinte anos, errante perpétuo, permanecerá inflexível; aliás, antes de terminar o ano de 1403, a França regressava à sua obediência.
Por momentos, Bento XIII procura aproximar-se de seu adversário, mas a entrevista entre os seus enviados e Bonifácio IX foi tão tempestuosa que o Papa romano, já
gravemente enfermo, acabou por morrer (1404).
O patriarca de Aquileia suplica aos cardeais romanos que renunciem à substituição de Bonifácio IX, mas não foi ouvido e Cosma Migliorati, um septuagenário sem energia,
torna-se Inocêncio VII; Bento XIII lança um anátema sobre o novo rival. No entanto, Inocêncio havia manifestado o desejo de reunir um concílio para pôr fim ao cisma.
Em 6 de Novembro de 1406, foi levado pela apoplexia. Pela terceira vez desde 1378, os cardeais romanos se reuniram, não sem prometer que forçariam o seu eleito à
demissão, logo que Bento XIII abdicasse ou morresse. Foi eleito um veneziano que tomou o nome de Gregório XII.

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O vento soprava a favor da reconciliação; chegou-se, inclusive, a acertar um ponto de encontro: Savona. Na realidade, o que se montou foi uma sinistra comédia: cada
um dos adversários deteve-se a uma jornada de marcha do outro, depois voltaram sem nada conseguir (1407).
Ultrajados, oito cardeais romanos fugiram para Pisa; a ele se juntaram sete cardeais de Avinhão e lá organizaram um concílio, que se inaugurou em 25 de Março de
1409, na presença de uma numerosa assistência. Em 5 de Junho, por influência determinante da Universidade de Paris, os dois papas estavam depostos, para grande alegria
da população local; no dia 26, o cardeal Pedro Filárgio era eleito sob o nome de Alexandre V, mas morreu passados dez meses de reinado, sendo substituído por João
XXIII (17 de Maio de 1410). A confusão chegou ao ponto culminante, pois os dois papas depostos recusaram-se categoricamente a abdicar. Instalado em Barcelona, Bento
XIII - ainda apoiado pelos Estados ibéricos e pela Escócia - refugia-se no rochedo de Peniscola, uma espécie de monte Saint-Michel espanhol, onde, abandonado, resistiu
até à sua morte, em 1423, quase centenário. Gregório XII, também abandonado - os seus conterrâneos venezianos renegaram-no miseravelmente -, só encontrou refúgio
em Rimini, a pequena capital dos Malatesta.
Enquanto isso, João XXIII, o Papa pisano, tentava fazer esquecer um passado bastante escandaloso, mostrando veleidades de estabilizar novamente a barca de Pedro;
mas um concílio, realizado em Roma em 1413, não deu nada. Expulso de Roma pelas tropas do rei de Nápoles, Ladislau, vai para Bolonha, onde sabe que o rei dos Romanos,
Segismundo do Luxemburgo, na qualidade de "advogado e defensor da Santa Igreja" e por um edictum universale, tomara a iniciativa de convocar um concílio geral, que
se realizaria em território alemão, em Constança, no ano da graça de 1414.

6. Concílio ou Papa?

Um concílio fora de série, esse Concílio "ecuménico" de Constança (de 16 de Novembro de 1414 a 22 de Abril de 1418).

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Convocado por um príncipe leigo, tinha por objectivo impor ao papado o fim de um cisma escandaloso. Os papas, aliás, evitaram-no: do seu rochedo espanhol, Bento
XIII ameaça de excomunhão os prelados de sua obediência que fossem a Constança; Gregório XII acabou por enviar apenas dois observadores; quanto a João XXIII, foi
com a maior desconfiança que chegou a Constança, onde lentamente se aglomeravam cem mil pessoas, das quais quinhentos bispos e dois mil representantes das universidades.
Inaugurado em 16 de Novembro de 1414 por João XXIII, o concílio arrasta-se por muito tempo, sem abordar nenhum problema fundamental, preocupando-se, sobretudo, em
saber que modalidade de votação adoptaria, se por ordem se por cabeça. Finalmente, para contrabalançar a acção dos italianos, os ingleses, os alemães e os franceses
- adversários de João XXIII - conseguiram o voto por nação, cabendo o quinto voto ao colégio de cardeais. Entrementes, João XXIII, desiludido por não se ver confirmado
no cargo, começava a preparar o fracasso e a dissolução do concílio: em 20 de Março de 1415, fugia para Schaff-house e daí para Friburgo, em companhia de oito cardeais,
o que provocou em Constança - cheia de mercadores forasteiros - um pânico que acaba com o sangue-frio de Segismundo.
O concílio continua sem o Papa; é um facto grave, mas também é grave o tom da declaração feita diante da assembleia, em 23 de Março, por João Gerson, chanceler da
Universidade de Paris: "A Igreja ou o concílio geral que a representa é a regra que Cristo, segundo a directriz do Espírito Santo, nos deixou, de sorte que qualquer
homem, não importa quem seja, de qualquer condição que seja, mesmo papal, é obrigado a ouvi-la e a obedecer-lhe." O concílio seguiu Gerson e, pelo decreto Sacro-sanctae
de 6 de Abril, decidiu que o concílio ecuménico reunido em Constança era a representação da Igreja inteira e recebia o seu poder directamente de Cristo; o próprio
Papa devia-lhe obediência em matéria de fé, de unidade da Igreja e de "reforma da cabeça e dos membros".
Em 17 de Maio, João XXIII foi preso em Friburgo e, em 29 desse mês, o concílio aprovava a sua deposição como "indigno, inútil e prejudicial"; antes de retomar o
seu lugar no Sacro

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Colégio, o ex-papa permaneceu três anos na prisão. Em Julho de 1415, Gregório XII demitia-se humildemente. Para obter a abdicação do tenaz Bento XIII, Segismundo
fez inutilmente uma viagem a Perpinhão; só em 1417 é que o concílio aprovaria a deposição de Bento, abandonado pela maior parte dos seus seguidores; mas, nem por
isso, acata a decisão. Em Constança, onde se exasperavam os sentimentos nacionais - irlandeses contra ingleses, castelhanos contra aragoneses, armanhaques contra
borgonheses -, discutia-se para saber se a reforma da Igreja devia ser tratada antes da eleição de um Papa ou, se, pelo contrário, seria preciso acabar com o cisma
antes de promover a reforma. O bispo de Vorchester propôs uma solução de compromisso: a eleição seria realizada imediatamente, mas, entretanto, os decretos de reforma
já prontos seriam publicados e o futuro Papa, por decreto do concílio, seria obrigado a executá-los.
Com efeito, em 9 de Outubro de 1417, o decreto Frequens fazia dos concílios gerais uma instituição regular da Igreja e uma espécie de instância de controlo do papado:
decreto revolucionário que, se fosse efectivamente aplicado, iria provocar uma reviravolta na organização e na vida da Igreja romana. Mas o cardeal Otão Colonna
que, em 11 de Novembro de 1417, depois de trinta e nove anos de cisma e com alegria universal, se torna o papa Martinho V, por muito moderado que fosse, não pretendia
sacrificar dessa maneira o poder papal. Nisso, foi ajudado pelos desentendimentos que opunham as "nações" do concílio quanto às reformas a aplicar à Igreja devastada
pelas exigências dos cobradores pontifícios, o cúmulo de benefícios, a riqueza dos cardeais, a concessão das décimas, o absentismo dos bispos, a ignorância dos clérigos
e também pelos movimentos heréticos, como os de Wyclef e de João Huss.
Assim sendo, a ideia de reforma, que rondava os espíritos por toda parte, não se corporizou. Ninguém se iludiu com o alcance da declaração pontifícia publicada ao
mesmo tempo que os decretos chamados de "reforma geral", editados alguns dias antes do encerramento do concílio que ocorreu em 22 de Abril de 1418. Voltando triunfalmente
a Roma, em 29 de Setembro de 1420, Martinho V condena o chamamento do Papa ao concílio; no entanto, querendo permanecer fiel à letra do decreto Frequens,

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o Papa convoca um Concílio para Pavia; aberto em 23 de Abril de 1423, logo em Julho a reunião foi transferida para Sena. Os poucos padres que compareceram ao Concílio
de Pavia queriam pôr o dedo na ferida, mas tiveram de se separar em 18 de Fevereiro de 1424, sem nada se conseguir; mesmo assim, fixaram para 1431 o próximo concílio,
que deveria reunir-se em Basileia. A autoridade papal, de facto, havia triunfado. Infelizmente para o papado, Martinho V morreu em 20 de Fevereiro de 1431. O seu
sucessor, Eugênio IV, muito pouco decidido, ficou demasiado dependente do Sacro Colégio para que pudesse dominar o conflito que explodiu no concílio de Basileia
entre o "conciliarismo" e a doutrina do primado do Papa.

7. Basileia e Florença

O Concílio de Basileia começou em 23 de Julho de 1431, mas na presença de tão reduzido número de padres, em 18 de Dezembro, o papa ordenou a sua dissolução. Acontecimento
de extrema gravidade: não é obedecido e, pior ainda, o concílio, cujo número de participantes aumentava, renova o decreto de Constança Sacrosanctae e convida Eugênio
IV a justificar-se. O Papa hesita, mas de tal maneira que, pouco a pouco, a maior parte da cristandade coloca-se ao lado do concílio que, em meados de 1432, contava
com a participação de sete reis, tendo-se transformado literalmente numa "assembleia soberana", ainda que as suas decisões, de facto, dependessem do consentimento
dos príncipes. A luta opondo o Papa e o concílio agrava-se a tal ponto que, em 1433, no Concílio de Basileia, já se falava da próxima deposição de Eugênio IV. Mas,
em Junho de 1434, o Papa teve de fugir de Roma, que é proclamada República, e refugia-se em Florença, acabando, em 15 de Dezembro, por anular o decreto de dissolução:
os "conciliaristas" haviam triunfado.
Chegavam a Basileia os projectos de reforma eclesiástica - reunião regular de sínodos, supressão dos apelos a Roma, etc. -, solicitando o zelo dos padres conciliares,
mas eram tão heteróclitos e as soluções propostas tão disparatadas que o concílio limitou-se a marcar passo. Contudo, relativamente à "reforma

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do Papa", havia um entendimento quase perfeito, tendo-se decretado (num momento em que Eugênio IV e a cúria careciam de (dinheiro) a supressão do pagamento das anatas
e de outras taxas pontifícias, a prestação de contas dos cobradores pontifícios ao concílio, a obrigação de o Papa jurar que observaria os decretos de Constança
e de Basileia, em vigor ao tempo da sua eleição, a proibição de qualquer nomeação directa feita pelo Papa... A ruptura era inevitável e ocorreu a propósito do lugar
onde se realizaria um concílio de união com os Gregos.
O caso era que, reduzido pelos Turcos a Constantinopla e à Moreia, o Império de Bizâncio parecia a ponto de submergir, a menos que o Ocidente fosse em seu socorro.
Eugênio IV tentou aproveitar-se da situação desesperada para realizar a união das Igrejas. Os participantes do concílio propuseram como lugar de encontro Basileia
ou Avinhão, mas Eugênio IV indicou Florença ou Udine. Duas embaixadas adversárias deslocaram-se a Constantinopla, onde o partido do Papa vence o confronto, fazendo
com que Ferrara fosse aceite como sede de uma conferência de união. Em 18 de Setembro 1437, Eugênio IV com toda a sua autoridade transferiu o Concílio de Basileia
para Ferrara, mas apenas uma minoria, conduzida por Nicolau de Cusa, se dirigiu para Ferrara; a maioria permaneceu em Basileia, suspendeu Eugênio IV e intimou-o
a comparecer em 24 de Janeiro de 1438. No entanto, em 8 de Fevereiro, setecentos gregos - entre os quais o imperador João VIII Paleólogo, o patriarca José de Constantinopla
e mais três representantes de outros patriarcas - desembarcaram em Veneza, rumaram a Ferrara e, depois, a Florença, para onde o Papa transferira o concílio, em Janeiro
de 1439, por questões de alojamento. Gregos e latinos puseram-se de acordo sobre a questão do Filioque, admitindo que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho.
Após prolongadas discussões, a questão do primado do Papa foi regulada de acordo com a seguinte fórmula muito significativa: "A sede apostólica e o Papa possuem
o primado sobre toda a Terra. Enquanto sucessor de Pedro e representante de Cristo, o Papa é o chefe da Igreja universal, o Pai e o Doutor de todos os fiéis, com
poder de governar toda a Igreja, em conformidade com os actos e cânones dos antigos concílios." Considerada como explicativa pelos latinos,

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a última linha era restritiva aos olhos dos gregos, mas a bula de união Laetentur Coeli foi proclamada em 6 de Julho de 1439.
Na realidade, no plano da união das Igrejas, o Concílio de Florença não teve êxito: o clero e o povo gregos tinham menos repulsa pelos Osmanlis do que pelos Latinos;
o concílio aparecia-lhes como "o triunfo da opressão papal", já que o Papa se aproveitara da situação do Paleólogo. Portanto, deverá dizer-se que "Florença era exactamente
aquilo que não se deveria fazer em matéria de ecumenismo".
Em contrapartida, Florença pareceu aos ocidentais uma vitória do primado papal sobre um Concílio de Basileia que, em 25 de Junho de 1439, se dava ao ridículo de
depor Eugênio IV e, em 5 de Novembro, após uma paródia de conclave - apenas um único cardeal permanecerá em Basileia -, eleger o duque de Sabóia, um leigo, pai de
nove filhos, que, tornando-se Félix V, logo se revela um boémio bastante ávido. Em breve, não se entendendo com os participantes do Concílio de Basileia, Félix V
vai para Lausana em 1442. Cansado, o Ocidente vai, pouco a pouco, aderindo a Eugênio IV e a seguir, após sua morte (1447), a Nicolau V. Expulsos de Basileia em Julho
de 1448, os dirigentes da reunião de Basileia refugiam-se junto de Félix V que, finalmente, abdica em 7 de Abril de 1449.
O papado romano salvara a sua autoridade e a unidade da Igreja. Mas, quando se iniciou o ano jubilar de 1450, enquanto multidões de peregrinos chegavam a Roma para
aclamar Nicolau V - o primeiro Papa da Renascença -, nada daquilo que preocupava os cristãos (a reforma, em primeiro lugar) havia sido solucionado ou, ao menos,
francamente abordado. E as Igrejas nacionais, cada vez com maior frequência, habituavam-se a voltar-se para seus príncipes.

8. O tempo das Igrejas nacionais

"Mais do que uma assembleia da Igreja, o Concílio de Constança parecia um congresso das nações" (P. Ourliac). Além disso, sabe-se que as decisões do Concílio de
Basileia dependeram do consentimento dos príncipes. O desmembramento da cristandade

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era correspondido pela exaltação de monarquias seculares que, notadamente na França, garantiam a vida religiosa dos súbditos, tanto leigos como clérigos. Assim,
não conseguindo conciliar os interesses de cada nação, Martinho V havia decidido - antes de encerrar o Concílio de Constança - assinar uma concordata particular
com cada uma das cinco nações que compunham a assembleia: a alemã, a inglesa, a francesa, a italiana e a espanhola.
A Bula de Ouro de 1356 fizera do imperador um soberano alemão: de futuro, a sua designação iria ser feita sem coroação romana nem ratificação pontifícia. Muito em
breve, as instituições imperiais debilitadas iriam ser substituídas pelas austríacas. A concordata de 1418, mesmo fazendo recuar a influência da cúria sobre o império,
não atingia os abusos mais profundos e seria numa Alemanha bastante feudal e muito medieval, onde o patronato se exercia em todos os níveis, que nasceria, em 1483,
Martinho Lutero.
Mais do que qualquer outra, a Igreja inglesa não aceitava o jugo de Roma. Nos territórios que ocupavam em França, os Ingleses tinham a reputação de ser hereges.
A concordata de Constança reforçou de tal maneira a autoridade do rei sobre o clero que o consentimento do Papa nas nomeações eclesiásticas já não passava de uma
formalidade, aliás, frequentemente negligenciada. A Igreja inglesa - anglicana já era uma Igreja real; se o rei rompesse com Roma, toda a nação o seguiria no cisma.
É bem verdade, que a opinião pública inglesa ficara marcada, profundamente, pelo pensamento de João Wyclef (1320-1384), um professor de Oxford que, na época do grande
cisma, não só negara a suserania pontifícia como também condenara as indulgências e preconizara a secularização dos bens do clero. Por outro lado, Wyclef sustentava
que as Escrituras eram bastante claras, podendo ser compreendidas sem os comentários da Igreja. Os Miarás, os poorpriesters que pregavam uma vida cristã baseada
unicamente na autoridade da Escritura e os camponeses que, sob a direcção de Wat Tyler, se revoltaram em 1381, eram admiradores ou, mesmo, discípulos de Wyclef,
cujo pensamento alimentava o anticlericalismo e o antipapismo da plebe; não seria nenhum exagero ver em Wyclef um ancestral, senão o precursor do anglicanismo.

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Na Boémia, o ódio que os Checos sentiam em relação aos alemães que se infiltravam nas suas cidades estendia-se à Igreja romana, considerada como sua cúmplice. Esse
país, mais do que nenhum outro na Europa Central, era agitado pelas teorias joaquímitas, valdenses e wiclefianas sobre as Escrituras, único fundamento da fé, sobre
Cristo como o único mediador entre Deus e os homens, sobre o carácter infame das cerimónias romanas e do luxo dos dignitários romanos. E eis que, em 1402, o reitor
da jovem Universidade de Praga - fundada em 1348 -, João Huss, tomava a palavra na capela praguense de Belém e clamava também contra os abusos eclesiásticos. João
Huss tinha, então, 33 anos: marcado pelo ocamísmo, havia estudado os tratados de Wyclef que o seu amigo Jerónimo de Praga levara de Oxford. Husss não possuía uma
doutrina original, mas a sua pregação, essencialmente evangélica e de tom revolucionário, tocava profundamente a gente humilde, porque preconizava um retorno à Igreja
primitiva. Excomungado duas vezes, foi protegido pelo povo de Praga que não deixou que o decreto de condenação fosse proclamado publicamente; ele chegou a apelar
para Jesus Cristo como único chefe da Igreja. Em 1414, João foi intimado pelo Concílio de Constança, onde se apresentou munido de um salvo-conduto do imperador Segismundo
que, entretanto, o abandonou nas mãos do concílio; os padres conciliares prefeririam uma abjuração infamante a uma condenação à morte que poderia ser considerada
um martírio; mas Huss recusou retractar-se, sendo, por isso, condenado à fogueira (6 de Julho de 1415). Em 30 de Maio de 1417, Jerónimo de Praga, momentaneamente
enfraquecido, sofreria a mesma pena.
Enquanto a Boémia se unia toda contra a Igreja romana e contra os Alemães, os hussitas dividiram-se em duas tendências. Os moderados ou calistinos (de cálix ou cálice),
que se atinham, sem dogmatizar, ao esquema de João Huss - livre pregação da palavra de Deus, comunhão sob as duas espécies (utraquismo, da palavra latina utraque,
uma e outra, as duas), abolição do poder temporal e da riqueza da Igreja, castigo de todo pecado mortal. Os taboritas (do monte Tabor), pelo contrário, muito próximos
dos valdenses, rejeitavam toda a tradição; dos sacramentos, só consideravam o baptismo e a eucaristia; e

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condenavam todo o luxo no culto, constatando-se que a Hungria, a Croácia e o Sul da Alemanha se mostraram sensíveis às suas doutrinas democráticas e socialistas.
Unidos contra Roma e contra o império com prestigiosas vitórias, calistinos e taboritas dividiram-se depois. Em 1433, assinaram com os padres do Concílio de Basileia
as compactata que só lhes permitiam a comunhão sob as duas espécies. Foi preciso esperar que os taboritas fossem esmagados em Lipany (1434), para que a paz se restabelecesse
na Boémia. Cansados de tantas lutas, os Checos reconheceram Segismundo; mas a reforma luterana iria, muito naturalmente, substituir o movimento hussita na Boémia,
ao passo que os taboritas mais violentos se passaram para os "Irmãos Morávios".
Em Pisa e Constança, dois representantes prestigiados da Igreja francesa, João Gerson e Pedro d'Ailly, foram eloquentes defensores da teoria conciliar, associando
o seu triunfo à defesa das liberdades galicanas. O galicanismo já era antigo, mas a luta entre Filipe IV e Bonifácio VIII tinha-o fortalecido; a Universidade de
Paris e o Parlamento nascente haviam-se feito seus defensores. Quando a França saiu da Guerra dos Cem Anos, o seu património eclesiástico estava arruinado; o regime
de benefícios, provocando rivalidades por toda a parte, iria levar o rei a intervir frequentemente na vida da Igreja francesa. Os cobradores pontifícios encontravam
um país arrasado e, contra eles, os oficiais de um soberano, cujas necessidades financeiras cresciam com os seus poderes. Carlos VII, o rei da renovação, era homem
piedoso e, como "rei cristianíssimo", tinha consciência das suas responsabilidades em relação à sua Igreja. A concordata assinada em Constança em 1418 e a de 1425
não resolveram nada de essencial; continuaram numerosos os apelos à corte de Roma.
Em 1438, Carlos VII consultou o seu clero em Bourges: a 7 de Julho, proclamava-se uma ordenação em vinte e três artigos que, homologada pelo rei, se transformou
na Pragmática Sanção de Bourges. Denunciando a incúria pontifícia, esse acto regulava unilateralmente a disciplina geral da Igreja da França e as suas relações com
a Santa Sé, afirmava a superioridade dos bispos reunidos em concílio sobre o Papa, restabelecia a eleição dos bispos e abades pelos capítulos, retirava à Santa Sé
os seus direitos em matéria de recebimento dos benefícios eclesiásticos,

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contestava o princípio dos julgamentos com apelo a Roma, enquanto não se esgotassem as jurisdições intermédias e limitava a prática das excomunhões. Mau grado a
sua exploração por uma realeza francesa de tendências cada vez mais absolutistas, apesar da concordata de 1516 - em que o Papa e o rei dividiram entre si as nomeações
-, a Pragmática Sanção continuaria a ser, de facto, até 1789, a carta da Igreja galicana.
A Itália (um mosaico de reinos, cidades e principados) e a Espanha, dividida em quatro reinos rivais, podiam parecer fiéis à "ideia papal", se comparadas com a nação
alemã (uma comunidade cultural) e com os dois Estados modernos (a França e a Inglaterra). A prática dos benefícios não encontrava muitos obstáculos na Itália. Já
a Igreja espanhola distinguia-se pela sua fidelidade à unidade cristã e pelo carácter apaixonado da sua vida religiosa. Mas embora, antes dos reis católicos, cristãos
e mouros vivessem em bom entendimento, depois, o anti-semitismo iria revestir-se de fanatismo. Em Espanha, os reinos concluíram acordos com o papado, salvaguardando
os direitos dos soberanos pontífices.
Em meados do século XIV, longamente humilhada, a cristandade estava em gestação.

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Capítulo II
A CRISTANDADE EM ACÇÃO

1. A "devoção moderna"

Quando o papado se reinstala em Roma, iniciando uma transformação que fará dela uma capital das artes em vez de foco de renovação religiosa, a Igreja parece estar
salva: a monarquia pontifícia ocupa novamente o seu lugar próprio e os seus mecanismos funcionam bem. Mas este magnífico monumento não pode fazer esquecer o profundo
abalo provocado na cristandade ocidental pelas forças, ideias e aspirações, a que se adapta perfeitamente o epíteto de "modernas".
O século XIV e, mais ainda, o século XV voltar-se-iam para um futuro, do qual o homem da Renascença, triunfante, pensará tornar-se senhor, mas que a consciência
da cristandade, obscuramente, sentia cheia de ameaças. Porque a unidade cristã está quebrada, O ideal de S. Luís é substituído pelos de Maquiavel, dos Médicis e
de Luís XI; aos pastores seguidos por seus rebanhos sucedem-se monarcas de tríplice coroa, preocupados com uma hábil diplomacia; o monumento luminoso de Tomás de
Aquino é submergido pela sombra do nominalismo. Os homens já não recebem orientações comuns e cada um volta-se para si mesmo.
Trata-se de um processo, por vezes, moroso e com a presença do terror, porque os homens dessa época têm medo: a

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guerra endémica, as epidemias, a atroz peste negra de 1348, a miséria, os assaltos, as pilhagens e a revolta dos pobres colocam-nos em contacto permanente com a
morte. As efígies suaves do século XIII sucedem-se, nos túmulos, anatomias arruinadas pela doença e pela velhice, marcadas pela vida. As "danças macabras" povoam
os frescos, as miniaturas e os poemas, misturando no mesmo desprezo papas, reis, mulheres bonitas, clérigos e monges. Muito naturalmente, os cristãos voltam-se para
o Cristo supliciado, para o Cristo da pietà (1) e para a Virgem das Dores, a Virgem do Calvário e do Sepulcro. Os "mistérios" tornam-se "paixões" e os peregrinos,
"flagelantes". As devoções tornam-se mais humanas, mais quentes: Ave-Maria, Via-Sacra, festa do Precioso Sangue, culto mais vivo da Eucaristia. A pessoa de Jesus
é o centro da devoção.
Claro que esta patética devoção é acompanhada por abusos e desvios, sobretudo entre a gente humilde. As peregrinações transformam-se, com frequência, em actos supersticiosos;
as pessoas procuram, sofregamente, as relíquias, verdadeiras ou falsas, e acumulam as indulgências tendo em vista a eternidade. A demonologia e a alquimia perturbam
os espíritos e têm numerosos seguidores; nunca se consegue distinguir o santo do feiticeiro: basta lembrar Joana d'Arc acusada de feitiçaria e Luís XI, moribundo,
a chamar para junto de si Francisco de Paula como se fosse um curandeiro.
Mas a superstição não é mais do que um parasita indestrutível da verdadeira devoção. Os dois séculos que precederam a reforma protestante viram engrossar uma extraordinária
corrente de misticismo. Na sua origem esteve aquilo a que os historiadores chamam "a devoção moderna" (devotio moderna), uma nova orientação da vida espiritual caracterizada
pela perda de prestígio das teorias sábias e por um método de oração simples, racional, acessível a todos, visando a perfeição cristã e a união com Deus num abandono
ou entrega que, aliás, não é quietismo, mas ascese. Foi nos países do Norte, mais propícios a este processo, que a escola mística se desenvolveu; já o vimos a propósito
de Ruysbroek e dos dominicanos renanos.

Nota 1: Da piedade. [N. do T.]

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Nos Países Baixos, um discípulo de Ruysbroek, Gerardo Groot, de Deventer (falecido em 1384), foi o verdadeiro fundador desta devotío moderna que encontra entre os
cónegos regulares de Windesheim e entre os irmãos da vida comum - fundados por Groot - um terreno particularmente fértil.
A maior parte dos escritos místicos do século XV são colectâneas de sentenças sem ligação aparente, alimento fácil para a meditação. A obra que teve a mais extraordinária
repercussão (dela conhecemos oitocentos manuscritos) foi incontestavelmente a Imitação de Jesus Cristo, composta por um irmão da vida comum, Tomás de Kempis (falecido
em 1471): o seu conteúdo alimentou a vida espiritual de numerosíssimos cristãos. Dos Países Baixos, a devotio moderna alcançou a França, através de Standonck, reitor
do colégio de Montaigu: em 1499, num espírito evangélico, fundou a Sociedade dos Pobres, que se pode considerar o primeiro seminário da França, embora não se pretenda
afirmar que tenha sido Standonck quem inaugurou a grande reforma do clero secular.
Por seu turno, o corpo monástico estava arruinado pelo cancro da comenda e das prebendas; no entanto, em certos lugares, as comunidades reagiam espontaneamente.
O velho tronco beneditino apresentava sempre alguns rebentos verdes: os oli-vetanos, nascidos perto de Siena (Itália) no século XIV, que rapidamente chegarão a ter
uma centena de fervorosos mosteiros; a reforma de Sta. Justina de Pádua (1409), a de Melk na Áustria (1418) e a de Bursfeld em Hanôver (1430), encorajadas pelo Concílio
de Basileia. Mas não chega à venerável congregação de Cluny que não conseguia despertar da rotina.
Entre os mendicantes, um sangue novo suscita reformas mais gerais. O papa Eugênio IV (1431), ao pretender suavizar o rigor da antiga observância, provocou uma cisão
entre os carmelitas que opôs os "observantes" aos "conventuais" ou mitigados. Paralelamente ao movimento cismático dos "fraticelos", desprezado pelo seu radicalismo,
multiplicaram-se os observantes entre os frades menores, a ponto de, em 1415, um decreto pontifício instituir um vigário-geral de toda a reforma, primeiro passo
para a divisão da ordem: em 1517, os menores da observância regular separaram-se dos conventuais. Dois vigários dos

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observantes alcançariam renome universal: João de Capistrano (falecido em 1456) e Bernardino de Siena (falecido em 1564), que a Igreja iria canonizar. O franciscano
Francisco de Paula (falecido em 1507), fundando os Mínimos, pretendeu fazer reviver o espírito do poverello. Vicente Ferrier (falecido em 1419) foi o mais célebre
dominicano na época do grande cisma, pela sua eloquência tempestuosa e truculenta. A segunda ordem franciscana - as Clarissas - encontra uma segunda fundadora na
pessoa de uma reclusa, Coleta de Córbia (falecida em 1447).
Aliás, os séculos XIV e XV foram séculos de santas; séculos de inquietações e angústias, foram salvos por frágeis mulheres, cuja vida espiritual intensa se orientava
naturalmente para a acção reformadora: Brígida da Suécia (falecida em 1373), cujas Revelações juntam dramáticas visões da vida de Cristo e da Virgem e admoestações,
suplicando à Igreja que voltasse à sua pureza; Catarina de Siena (falecida em 1380), uma estigmatizada que exerce junto de Gregório XI e de Urbano VI o papel exercido
por Bernardo junto dos papas do século XII; Francisca Romana (falecida em 1440), Angela de Foligno (falecida em 1309), Ana de Montepulciano (falecida em 1317), Juliana
Falconieri (falecida em 1341) e tantas outras. Sem esquecer a maior e mais misteriosa de todas, Joana d'Arc (falecida em 1431), cuja curta epopeia foi passada e
repassada pelo mais severo crivo da história, prova da qual ela saiu intacta, com o seu sadio frescor de camponesa e a sua vocação indomável e explosiva. Paralelamente,
encontramos o extraordinário Raimundo Lulo (falecido em 1316) que foi chamado doutor iluminado; durante quarenta anos, multiplicou as menos conformistas experiências
e, sobretudo, usou um método pacífico de conversão dos Muçulmanos.
Bastante espectacular - testemunha disso é o gótico flamejante -, a religião dos cristãos desse tempo era afectiva e popular, materializando-se em devoções, mas
também, em relação aos dogmas e à Bíblia, bastante autónoma e individual. Porque foi a época daquilo a que Albert Dufourcq chamou, com inteira justiça, "a desorganização
individualista"; a cristandade carecia de direcção espiritual. Pode compreender-se perfeitamente por que motivo o espírito dos cristãos era assaltado pela ideia
de reforma.

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2. Anseios de reforma

A ideia de reforma, de reformação - esta palavra é bastante mais forte que a primeira -, é muito anterior a Lutero. Todas as classes da sociedade, todas as elites
pressentiram, mais ou menos confusamente, mas desde há muito, que a Igreja devia renovar-se não apenas no sentido de uma correcção dos abusos, mas também, e sobretudo,
por um regresso ao espírito evangélico, às Sagradas Escrituras, como alimento substancial, e por uma renovação espiritual de todos os cristãos.
De Valdo a Wyclef, aos Irmãos do Livre Espírito e a João Huss, muitos romperam, de facto ou no seu coração, com a Igreja romana, cujas estruturas demasiado visíveis,
muito humanas, não lhes pareciam interessar a uma reforma, simultaneamente evangelista, pietista, puritana e democrática. Outros, sem renegar a Igreja, faziam estremecer
as paredes desse velho edifício; nos séculos XIV e XV, desenvolveu-se a pregação popular em vernáculo e, perante enormes multidões prontas a vibrar, os pregadores
insistiam e citavam de bom grado o Apocalipse e, até, as profecias joaquimitas; alguns deles chegaram ao visionarismo. Os franciscanos Bernardino de Siena, João
de Capistrano e Oli-vier Maillard dispuseram de auditórios tão grandes que os de hoje são meros grupinhos; o dominicano Vicente Ferrer, montado num burro e protegido
por guardas junto de largas massas humanas, foi designado como "o pregador do fim do Mundo". Sessenta anos mais tarde, em pleno reinado de Alexandre VI Bórgia, um
dos seus irmãos em religião, Jerónimo Savonarola (1498), sacudiu a opulenta Florença; em primeiro lugar, com os seus sermões à moda da época - "Vede estes prelados
dos nossos dias: só têm pensamentos para o mundo e para as coisas terrenas; a preocupação pelas almas já não lhes toca o coração. Nos primeiros tempos da Igreja,
os cálices eram de madeira e os prelados de oiro; hoje, a Igreja tem cálices de oiro e os prelados são de madeira..." Depois, o monge branco impôs-se na capital
dos Médicis através de uma verdadeira ditadura na base da austeridade; mas, como assumiu em relação a Alexandre VI, que lhe pedia contas das suas profecias, uma
atitude rebelde, foi excumungado e queimado vivo.

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Havia outros que (embora fora das normas, mas distantes das visões apocalípticas) também sonhavam com a reforma. Estavam na primeira linha os teólogos e, à frente
deles, os professores da Universidade de Paris, com o mais importante de todos: João Gerson (falecido em 1429). Teórico do poder conciliar, Gerson foi também o teórico
da monarquia, desse culto pelo rei de França que Joana d'Arc, sua contemporânea, situava na mesma linha que a devoção ao rei do céu; mas este teólogo, mais próximo
de S. Boaventura do que de S. Tomás, revelava-se também um místico subtil e terno - foi ele o verdadeiro criador da devoção a S. José -, um pregador de linguagem
familiar, um autor de opúsculos piedosos e populares, e também um educador, porque pensava que a reforma da Igreja devia começar pelos mais jovens. Gerson e o seu
amigo, o cardeal Pedro d'Ailly (falecido em 1420) - que, na sua Imago mundi, pôs o problema da esfericidade da Terra -, já são modernos, no sentido em que, neles,
o occamismo e o nominalismo, ao dissociarem a razão e a fé, favoreciam a experiência mística pessoal e davam a Deus uma larga parte na economia da salvação.
As gerações seguintes mostraram-se ainda mais exigentes. Na segunda metade do século XV, o fogo novo nascido na Itália espalhou-se por toda a parte, porque a palavra
Renascimento engloba uma realidade extremamente viva: um humanismo que propõe uma nova arte de viver, uma cultura universal alimentada pela filologia, uma observação
e um conhecimento aprofundados dos autores, dos sábios e dos artistas gregos e latinos, uma visão, ao mesmo tempo, optimista e crítica do homem e da Natureza, um
desejo de síntese jamais saciada, uma ruptura voluntária e reflectida com uma escolástica ultrapassada e fechada, um cotejo constante de todas as disciplinas, o
triunfo do leigo sobre um sacerdócio desvalorizado. Alguns lugares privilegiados favoreceram essa irradiação, entre outros: a Florença dos Médicis e das suas academias,
a Roma dos papas, Paris e o Colégio de França, Alcalá de Henares, cuja universidade, fundada por Cisneros, esteve na origem da primeira Bíblia poliglota, Leida,
Nuremberga, Basileia, Montpellier... A invenção e a difusão da imprensa contribuíram largamente para saciar essa "fome sagrada". Calcula-se que, pelo menos, setenta
e cinco

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por cento do total produzido pelas tipografias, entre 1445 e 1520, foi de obras religiosas, tendo-se multiplicado, em particular, as traduções da Bíblia.
Muito naturalmente o humanismo conduziu a uma filosofia que, aproximando do cristianismo a própria filosofia grega, se exprimiu também como um neoplatonismo cristão,
que considera que as verdades essenciais da religião de Cristo se encontram presentes, embora escondidas, nos sábios de todos os povos. Por isso, depressa se espalhou
uma teologia neoplatónica, essencialmente optimista, confiante de que, ao aprofundar-se a mensagem da sua própria religião, os infiéis se converteriam e o cristianismo
se tornaria universal, desde que se despojasse e se interiorizasse.
Verificou-se, desde logo, uma efervescente Renascença cristã, um humanismo cristão marcado pelo culto da exegese bíblica, caracterizado por uma concepção optimista
do homem, por certas interpretações abertas dos dogmas, por uma maior ligação às experiências místicas do que às dissertações teológicas, pelo desejo de uma Igreja
evangélica e tolerante, mas também pela fidelidade ao corpo da Igreja romana. Nesta procura de uma religião simplificada, o toscano Marsílio Ficino (falecido em
1499) junta-se com o cardeal alemão Nicolau de Cusa (falecido em 1464) que, muito antes de Galileu, abandonou o geocentrismo e a explicação literal da Bíblia. O
extraordinário erudito Pico de Mirândola, morto aos 31 anos (1494), considerava o cristianismo o ponto de convergência de todas as formas anteriores do pensamento
humano; amigo de Savonarola, também sabia que o caminho mais curto para chegar até Deus é o mesmo que Jesus Cristo pobre proclamou. Na Alemanha, João Reuchlin (falecido
em 1522) foi o iniciador do estudo científico da língua hebraica. Se, na Inglaterra, João Colet (falecido em 1519), professor de Oxford, atingiu uma espécie de wiclefismo,
Tomás Moro (falecido em 1535), que será chanceler de Henrique VIII, evocava na sua Utopia uma terra ideal em que triunfariam a mais pura democracia e a partilha
de todos os bens, tendo por única lei o Evangelho. Em diversos aspectos, este evangelismo aparentava-se com o que se exprime na obra truculenta e muito optimista
de Rabelais (falecido em 1553).

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Em França, centro de cultura medieval, as riquezas do passado fundiam-se com as exigências do novo humanismo que beneficou da protecção da rainha de Navarra, Margarida
de Angolema, irmã de Francisco I, cujas inquietações religiosas se encontram em obras poéticas francesas tão intensamente marcadas de evangelismo. Margarida era
confessada e dirigida pelo bispo de Meaux, Briçonnet, um verdadeiro pastor, preocupado com a reforma da sua diocese; o seu vigário-geral, Lefèbvre d'Étaples, mostrava-se
digno dele, podendo também ser considerado como o mestre do humanismo cristão em França. Este professor era um erudito nunca satisfeito, um filósofo aristotélico,
um teólogo, um exegeta e um místico que sonhava levar a Igreja romana a sair do espartilho do juridismo.
Mas será ao genial holandês Erasmo (falecido em 1536) que se ficará a dever o facto de propor o humanismo cristão como programa de renovação em toda a Europa. Personalidade
excepcional, foi considerado de vários modos; os seus principais méritos foram o de ter abandonado as malhas da teologia positiva, que esteve na origem do progresso
das ciências sagradas, e o de ter imposto os métodos rigorosos da História ao estudo da Revelação. A sua autoridade de exegeta e de reformador fez de Erasmo, em
vésperas da reforma luterana, um mestre de pensar na Europa, mesmo que a Faculdade de Teologia de Paris tenha duvidado da sua ortodoxia, embora a vasta e poderosa
corrente do humanismo cristão já transbordasse as suas margens; normalmente, devolvia-se ao papado a missão de o canalizar. Aliás, como o papado estava bastante
ocupado, não seria o povo de Deus capaz de se reformar a partir de dentro?

3. E o povo cristão?

Os historiadores contemporâneos mostram-se naturalmente interessados no estado real da cristandade em vésperas da Reforma protestante. Mas seria esse terreno já
propício e teria os antídotos suficientes?
Uma primeira verificação: qualquer homem, nos séculos XV e XVI, era realmente cristão. "Do nascimento até à morte, uma série

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completa de cerimónias, tradições, costumes e práticas, cristãs ou cristianizadas, agarrava o homem contra a sua vontade e tornava-o prisioneiro, por mais que afirmasse
que era livre." (L. Febvre)
Resta saber, porém, se os homens desse tempo estavam profunda ou superficialmente cristianizados. Ora, se pensarmos apenas nos rurais - que formavam o grosso da
população -, é verdade que no começo do século XVII ainda muitos deles permaneciam dominados pela mentalidade animista; os encantamentos e os ritos da feitiçaria
ou da magia ocupavam largo espaço no "cristianismo", mais ou menos folclórico, pautado por um processo de paganização e onde as sobrevivências do paganismo galo-romano
continuavam numerosas.
Muitos deles refugiam-se friamente nos braços de Deus e da Virgem, na sombra dos ostensórios e nas dobras das casulas, porque sentem à sua volta a tremenda presença
do Demónio. Em muitas consciências cristãs, os mandamentos da Igreja sobrepõem-se muitas vezes aos mandamentos de Deus e a superstição mal se distingue da devoção.
Quanto aos padres, revelam-se muitas vezes abaixo das suas tarefas. Muitos são concubinos, quer por levarem uma vida dissoluta, quer por viverem com uma mulher,
sendo naturalmente os seus filhos os ajudantes da missa, quando não se tornam até os seus sucessores. No entanto, não será propriamente a concubinagem dos padres
que fará sacudir uma parte da Europa e a colocará ao lado da reforma protestante; será, sobretudo, a sua ignorância, a sua falta de formação, a sua falta de zelo
e a não-resistência que caminha a par da inflação sacerdotal.
Esses defeitos podem encontrar-se em muitos prelados, ainda que nos séculos XIV, XV e XVI a Igreja tenha contado com muitos bispos piedosos, instruídos e edificantes.
Mas há ainda mais grave: o próprio papado dá o exemplo e parece esquecer as suas responsabilidades.

4. Os papas da Renascença

Os setenta anos que decorrem entre o advento de Nicolau V (1447) e a publicação por Lutero das suas teses contra as indulgências

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(1517) pesaram duramente sobre o destino da Igreja romana. Enquanto a Europa Ocidental era literalmente sublevada pela Renascença; enquanto a Igreja, entre os membros
mais humildes, estava em estado de reforma, sucederam-se dez papas que, embora - à excepção de Alexandre VI - não tenham sido padres indignos, foram, de facto, príncipes
seculares com tudo o que, na Itália de Maquiavel, dos condottieri, do luxo e da volúpia, podia comportar de violências e comprometimentos. Foram os "papas da Renascença"
e a História não deixa de registar esse título, que significa mais vergonha que glória. Nesse tempo perturbado que fazia florescer muitas riquezas, eles adoptaram
os gostos artísticos e as preocupações políticas em vez de assumir inteiramente os sofrimentos e as aspirações espirituais. Embora não se possa argumentar apologeticamente
a favor da Igreja pelo facto de não ter perecido por causa dessas negligências, a verdade é que a corrente de santidade a percorria sempre nas suas profundezas;
também não é menos verdade que a cristandade saiu desse período muito dilacerada.

1449: o último antipapa da História, Félix V, abdica; 1450: o jubileu reúne em redor de Nicolau V uma imensa multidão. Podemos pensar que regressaram os dias gloriosos
do século XIII, enquanto alguns legados percorrem a cristandade: Nicolau de Cusa, na Alemanha; João de Capistrano, na Europa Central; o cardeal de Estouteville,
na França... Ou melhor, em Março de 1452, Frederico III fazia-se coroar em Roma; é verdade que a autoridade desse habsburgo sem prestígio em nada é comparável à
dos Hohenstaufen do século XI e Nicolau V não é Ino-cêncio III. Na Europa, o Papa esbarra constantemente com o prestígio crescente dos reis, como aconteceu com Carlos
VII que, pela Pragmática Sanção, se tornou o chefe da Igreja galicana.
Não há por que escondê-lo: Nicolau V e os seus sucessores imediatos serão mais papas italianos do que pontífices universais; serão chefes de um dos Estados dessa
Itália, onde as ambições se agudizam; no Sacro Colégio, os cardeais italianos são em maior número. Nicolau V acreditou que podia pôr alguma ordem naquela Itália
fragmentada, mas a Paz de Lodi e a Liga Itálica (1454) foram um esboço sem futuro da unidade italiana. Aliás, afirmava-se que tudo aquilo que fizera a unidade do

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Mundo se destinava ao desaparecimento, porque, em 29 de Maio de 1453 - sem que o Ocidente esboçasse o mínimo gesto -, Constantinopla caía nas mãos dos Turcos: era
engolido o último bastião do Império Romano. Alguns projectos de cruzada lançados pelo Papa e pelo imperador rebentaram como bolhas ou, como o célebre "Voto do Faisão",
pronunciado em Lila por Filipe, o Bom, não foram mais do que o picante dessas festas mundanas.
Roma saiu arruinada de vários séculos de anarquia e de guerras civis. Nicolau V quis torná-la digna do seu título de capital dos cristãos. Além dos enormes e necessários
trabalhos de reconstrução, o papa pretendeu - como homem da Renascença - construir sobre o Vaticano uma cidade pontifícia separada do resto da cidade, simultaneamente
palácio e fortaleza. Nesta perspetiva, mandou demolir a velha Basílica de Constan-tino, sobre cujas ruínas se erguerá, mais tarde, a Basílica de São Pedro. Além
disso, Nicolau V foi o criador da Biblioteca do Vaticano onde, como bibliófilo e humanista sensato, acumulou muitos manuscritos antigos.
Durante os três anos do seu pontificado (1455-58), Calisto III, um Bórgia de Espanha, teve apenas um objectivo: retomar a luta contra os Turcos que tinham alcançado
o Danúbio. Já que não era possível conseguir que os cristãos organizassem uma cruzada, pelo menos sentia-se a alegria de ver o exército húngaro, conduzido por João
Hunyadi e animado por João de Capistrano, deter o islão diante de Belgrado (14 de Julho de 1456). Mas Calisto III cometeu o erro de fazer do nepotismo uma verdadeira
instituição: desejoso de limitar o direito de controlo dos cardeais, colocou os Bórgias ou espanhóis nos postos-chaves da Cúria e concedeu a púrpura a três dos seus
sobrinhos, dos quais o mais devasso, Rodrigo, se tornará Alexandre VI.
Com Pio II - Aeneas Sylvius Piccolomini - (1458-1464) pode dizer-se que o Humanismo se instalava na cadeira de S. Pedro. A obra literária deste italiano frouxo,
com um passado pouco edificante, não era desprezável. Pio II foi o último papa com tendências universalistas: a sua bula Exsecrabilis (1460) condenou em termos enérgicos
tudo o que restava das teorias conciliares e um congresso reunido em Mântua, em 1459, decidiu uma

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cruzada contra os Turcos que nunca se chegou a realizar. Pio II julgou que triunfaria, em França, se obtivesse de Luís XI a ab-rogação da Pragmática (1462), mas
este Valois manhoso foi, pouco a pouco, apanhando o que tinha parecido abandonar. Em resumo: foi mais como humanista do que como pastor que Pio II captou a atenção
dos doutos deste mundo.
Um patrício de Veneza, Pietro Barbo, sucedeu-lhe com o nome de Paulo II (1464-1471). Como os seus predecessores, também não respeitou o pacto eleitoral que tinha
acompanhado o conclave e que, entre outras coisas, preconizava a rápida convocação de um concílio geral para reformar a Igreja. Este homem superior apreciava os
objectos artísticos e os carnavais romanos, mas a sua estada preferida era no Palácio de Veneza, em Roma. Mas foi a instalação dos Turcos em Négrepont, terra veneziana,
que acordou o Ocidente do seu torpor e fez com que a Itália abandonasse as suas lutas intestinas.
Durante os treze anos do pontificado de Sisto IV (1471-1484), a camarílha dos Delia Rovere invadiu a administração romana. Entretanto, ao chegar ao trono pontifício,
o irmão mais novo, Francisco delia Rovere, fazia nascer alguma esperança: sabia-se que, como geral da sua ordem, tinha feito uma obra de reformador. Mas, instalado
em Roma, Sisto IV foi unicamente um príncipe amante da vida faustosa, manietado pelas miseráveis tramas de uma política estritamente italiana. Pelos seus sobrinhos
- seis deles foram cardeais -, Sisto IV, apoiado pelos Pazzi, lutou até à morte contra os Colonna e os Médicis. As personalidades indignas que rodeavam o pontífice
deram o tom a uma corte corrupta que, setenta anos mais tarde, haveria de ser estigmatizada por Du Bellay. A venalidade dos cargos tornou-se uma armadilha do governo
pontifício. Para se conseguir dinheiro, o papa multiplicou os empregos; por isso, em 1482, havia um colégio de cem solicitadores... Paulo II criou a Quindécima,
espécie de imposto sobre os benefícios detidos pelos religiosos. Sisto IV tornou obrigatória a "Composição", retribuição pelo beneficiário de uma graça pontifícia.
Por toda a parte, mas sobretudo na Europa Central e Setentrional, a aplicação de dízimas tornou odioso o nome do Papa, por vezes comparado a Lúcifer. É evidente
que, no fim do reinado de Sisto IV, a Biblioteca do

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Vaticano possuía 3500 volumes manuscritos e o Papa tinha aberto ao público o Museu do Capitólio, levando para Roma obras de Boticelli, Perugino, Pinturicchio...,
ligando ainda o seu próprio nome à Capela Sistina. Mas que representavam esses esplendores em relação à decadência da cristandade?

5. A caminho do V Concílio de Latrão

O genovês Inocêncio VIII (1484-1492) - dois filhos naturais deram-lhe uma deplorável reputação - fracassou em todas as suas combinações políticas, mas 62 mil ducados
foram o fruto da criação de vinte e quatro novos postos de secretários apostólicos. Viram-se falsas bulas fabricadas por funcionários da Cúria com pressa de se indemnizar
a si próprios e, ao mesmo tempo, tirando o valor às actas autênticas do pontificado. Mas houve pior: Inocêncio VIII celebrou o casamento do seu filho Franceschetto
Cibo com Madalena, filha de Lourenço, o Magnífico; como recompensa, o filho deste último, João de Médicis, uma criança de 13 anos, recebeu a púrpura cardinalícia.
Foi durante o pontificado de Alexandre VI Bórgia (1492-1503) - eleito na sequência de um conclave rodeado de intrigas e negociatas - que a Igreja romana chegou ao
fundo da sua humilhação. Com este sedutor espanhol não se trata já de nepotismo, mas de paternidade. Escreveu-se tudo - e do pior! - sobre Alexandre e os seus quatro
filhos - sobretudo, César e Lucrécia - que, como cardeal, tivera da bela romana Vannozza Catanei; o nome Bórgia forneceu matéria a uma vasta literatura mais próxima
do romance negro do que da História. Mesmo que se coloque a memória desta família fora do quadro de todas as infâmias acumuladas durante os últimos quatro séculos,
ainda restariam abusos, excessos e violências suficientes para se poder lamentar que um homem como Rodrigo Bórgia tenha sido o pastor supremo da Igreja. Incapaz
de refrear os seus apetites, Alexandre VI colocou os seus talentos de diplomata ao serviço da sua insaciável família. Na altura do assassínio do seu filho preferido,
o duque de Gândia incitou-o, em 1497, a lançar uma bula de reforma; mas, depois, os hábitos estabelecidos voltaram com

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toda a força. Em 1498, a fogueira desembaraçara o Papa do terrível Savonarola que, durante seis anos, tinha atentado contra os Bórgias em termos como estes: "Outrora,
quando os padres tinham filhos, designavam-nos como sobrinhos; agora não têm sobrinhos, mas têm filhos, filhos verdadeiros... Igreja infame! Igreja prostituída!
Descobriste as tuas vergonhas perante os olhos do universo inteiro!" Em 18 de Agosto de 1453 [nota da digitalização: erro da edição em papel, é 1503], Alexandre
VI morria brutalmente; disse-se que teria sido envenenado. E Maquiavel pôde mostrar a sua alma escoltada até Deus pelas suas três "criadas fiéis": a crueldade, a
simonia e a luxúria.
Pio III, oriundo de Siena, mostrou-se decidido a acabar com essas vergonhas, mas reinou apenas durante alguns dias...
E chegou o tempo de Juliano delia Rovere, Júlio II (1503-1513), o "uomo terribile", o homem forte, de quem todos os cardeais unanimemente pensavam que a Igreja precisava.
Este Papa brusco, mais soldado do que pontífice, rapidamente limpou os seus Estados de todo o banditismo; depois, desejoso de ser o verdadeiro senhor da Itália,
montou em redor da poderosa Veneza e com o auxílio de Luís XII de França um cerco que se revelou eficaz. Mas, logo a seguir, voltou-se contra os Franceses, os barbari;
mas eles resistiram, embora, depois da morte de Gaston de Foix, tivessem de deixar a península. Júlio II dispunha-se a expulsar de Nápoles os espanhóis, quando a
morte o derrubou. Este chefe militar foi um mecenas inteligente e, graças a ele, Roma viu trabalhar, quase lado a lado, Miguel Angelo no seu Julgamento Final, Rafael
a decorar a Câmara dos Actos e Bramante a iniciar a instalação do estaleiro de onde surgiria a Basílica de São Pedro. Foi ainda Júlio II quem, pouco antes da sua
morte, fez a convocatória de um concílio ecuménico para Latrão (19 de Abril de 1512); é verdade que se tratava de pregar uma partida a um concílio antipapal laboriosamente
posto de pé em Pisa, por iniciativa de Luís XII, que fracassou imediatamente.
Este Concílio de Latrão (1512-1517), quase exclusivamente composto por bispos italianos perfeitamente submetidos ao Papa, não colocou o dedo na ferida nem abordou
a reforma geral da Igreja. É verdade que o pacífico Leão X (1513-1521), sucessor de Júlio II, não queria chegar tão alto. Este Médicis, o filho mais novo de Lourenço,
o Magnífico, concedeu todas

214

as atenções às artes. "Depois de Vénus e de Marte, Minerva" (1), diziam as más línguas que logo acrescentavam ser Roma, de facto, governada por Rafael, o genial
decorador das câmaras do Vaticano e das loggie. O Papa apressou-se também a pôr termo às lutas contra os Franceses e, depois de Marignan, encontrou-se em Bolonha
com o jovem rei Francisco I e assinou com ele (em Agosto de 1516) a Concordata que, até à Revolução Francesa, regularia as relações de Roma e da Igreja de França.
O rei voltaria a fazer a nomeação para os benefícios superiores - sendo, então, sacrificada a classe dos plebeus -, mas só o Papa detinha o direito de investidura
canónica; restabeleciam-se as anatas sobre o território do reino e a França renunciava às teorias conciliares. O rei de França foi o principal beneficiário desse
tratado, cujas disposições serão, muitas vezes no futuro, alteradas em seu proveito; de facto, dispunha da fortuna da Igreja de França e, mais do que nunca, "rei
cristianíssimo", a sua ortodoxia não deixaria de se afirmar. Quanto à Igreja galicana, a sua submissão ao rei não a impedirá de ser o guia de outras Igrejas.
O gosto de Leão X pela erudição, pelas artes e também pela caça e pela festa romana ficava demasiado dispendioso, embora os abusos fiscais da administração pontifícia
tivessem sido agravados. O Concílio de Latrão avançava, apesar das chicotadas de alguns padres conciliares, como a do geral dos agostinhos: "Os homens devem ser
transformados pelos santos e não os santos pelos homens." Promulgaram-se alguns úteis decretos de reforma: proibição do acúmulo de benefícios, restrição sobre a
comenda, censura ao Sacro Colégio pelo seu luxo, e condenação da superstição e da bruxaria. Mas, excepto nalgumas dioceses, essas medidas não passaram de meras intenções.
E, depois, ninguém ousou atirar-se aos vícios do papado, apenas houve uma alusão a esse facto enviada de Espanha: "A Justiça deve começar na casa do Senhor."
A 16 de Março de 1517, após doze sessões ao longo de cinco anos, os padres do concílio dispersaram-se. Sete meses depois, em 31 de Outubro, Martinho Lutero afixava
as suas noventa e cinco teses no átrio da igreja do castelo de Vitemberga.

Nota 1: Depois do amor humano e da guerra, as artes. [N. do T.]

215

Capítulo III
A CRISTANDADE DILACERADA

1. Lutero, a Igreja e a Escritura

"É impossível - dizia Newman - que o protestantismo dure há trezentos anos sem uma grande verdade ou uma grande parte de verdade." Explicar a revolução luterana
pelos apetites de um monge obrigado a quebrar os seus votos ou, pelo contrário, pela devassidão romana que escandalizava e revoltava um jovem religioso; e considerar
essa revolução apenas o resultado das ambições políticas alemãs ou uma consequência da crise económica e social que a Europa atravessava, na época dos Fugger, de
Gutenberg e de Colombo, é só ver as suas aparências ou uma paródia a um grande drama.
Martinho Lutero foi um fervoroso eremita de Sto. Agostinho, estudioso, desejoso de ir para lá das aparências e das palavras; embora fiel à espiritualidade inquieta
do seu tempo, entrou aos 22 anos no convento de Erfurt "para conquistar a sua salvação" (1505). Estudante, padre (1507) e professor na Universidade de Vitemberga
a partir de 1511, Lutero procura alcançar e abraçar Deus. A sua formação teológica é muito medíocre: um occamismo mal explicado ensinou-lhe que, embora o homem seja
capaz de ultrapassar o pecado por sua própria vontade, os actos humanos só se tornam meritórios, se Deus os aceitar; mas "esta aceitação é absolutamente incondicional".
Ora isso

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pode conduzir ao desespero. Irmão Martinho lança-se na prática de um ascetismo religioso com uma vontade vigorosa, mas com um coração intranquilo. Então, estudando
Sto. Agostinho, os místicos e a Theologia deutsch - sobretudo, Tauler -, procura "essa passividade amorosa que lhe permitirá atingir, no mais profundo de si mesmo,
o Deus imanente".
De súbito, durante o Inverno de 1512-1513, enquanto prepara os cursos de exegese bíblica, a luz invade o seu espírito e a paz enche o seu coração. Esse "milagre"
é feito pelas Escrituras que, de futuro, serão o centro de toda a sua actividade doutrinal e apostólica; essas Sagradas Escrituras, pouco manuseadas pela teologia
do seu tempo e que Lutero, ultrapassando a exegese sábia dos humanistas, vai constantemente questionar. E é graças às Escrituras que ele resolve este aparente paradoxo:
"Como é que Deus pode ser misericordioso e, simultaneamente, justo?"; a Epístola aos Romanos fornece-lhe a resposta: "O homem é justificado pela fé, independentemente
das obras da lei." Lutero fará este comentário famoso: "O cristão sabe que é sempre pecador, sempre justo e sempre arrependido." Trata-se da "descoberta da misericórdia",
de que se pôde afirmar que foi a origem da Reforma. Ao mesmo tempo, Lutero descobre que à segurança dada pelas obras se opõe a certeza, tirada do Evangelho, de que
o homem se salva apenas pela graça de Deus, unicamente recebida pela fé. Não que deva rejeitar as obras, mas é a fé que as deve suscitar.
Nesse tempo, andava pela Alemanha, como "um vendedor ambulante", o dominicano Tetzel, delegado pelo arcebispo-elei-tor Alberto de Brandeburgo a pregar uma indulgência,
cujas receitas deviam, em parte, servir para saldar as dívidas que o prelado fizera para pagar as taxas impostas por Roma na altura da junção de três dioceses (1515),
servindo o resto para financiar a conclusão da Basílica de São Pedro de Roma. Os florins caíam abundantemente nas caixas de Tetzel porque ele prometia a plena remissão
de todos os pecados àqueles que - "contritos de coração e confessados de boca", e tendo realizado certos ritos - entregassem uma oferenda, tarifada segundo o seu
nível de riqueza. Até então, havia apenas um exagero na doutrina da Igreja respeitante às indulgências; mas Tetzel errava

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quando afirmava que a indulgência a favor das almas do purgatório - também ela tarifada - era eficaz, independentemente do estado de graça; e chegava mesmo a afirmar
que essa indulgência era, automática e imediatamente, aplicada à alma do purgatório designada pelo seu nome.
Em 31 de Outubro de 1517, aliás conforme um procedimento universitário corrente, Lutero afixava na porta da igreja do castelo de Vitemberga as suas 95 teses contra
as indulgências, em que a última esclarecia todas as outras: "É preciso exortar os fiéis a entrar no céu através de muitas atribulações, em vez de descansar na segurança
de uma falsa paz." Duas semanas depois, copiado e espalhado por estudantes entusiastas, o documento era conhecido em toda a Alemanha; muitos pressentiram que, independentemente
da doutrina das indulgências, era o conjunto de uma reforma religiosa e de uma renovação espiritual que o monge saxónico estava prestres a abordar. Denunciado a
Roma, Lutero, protegido pelo eleitor da Saxónia, mas que não pensava de modo nenhum romper com Roma, recusou sujeitar-se às razões do cardeal Caetano que não só
tinha apontado no pensamento de Lutero alguns erros essenciais: a justificação pela fé, o ataque à noção de mérito, o apelo à autoridade das Escrituras contra o
magistério e as tradições da Igreja, mas cuja viva inteligência também tinha pressentido, através de Lutero, os graves problemas que se colocavam à Igreja. Na altura
da disputa de Leipzig (1519), Lutero, empurrado pelo doutor dominicano Eck, defendeu João Huss contra as decisões do Concílio de Constança e pretendeu afirmar que
a Igreja tinha apenas um chefe: Cristo.

2. A explosão do luteranismo

Depois de ter sido condenado pelas Universidades de Paris, Colónia e Lovaina, Lutero foi intimado, pela bula Exsurge Domine de Leão X (15 de Junho de 1520), a submeter-se
nos próximos sessenta dias; mas o agostinho replicou com aquilo a que os protestantes designaram os três "grandes escritos da reforma".

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O Manifesto à Nobreza Alemã (Agosto de 1520) é, apesar do próprio título, um apelo a todos os cristãos: às pretensões dominadoras de Roma - "a vermelha prostituta
de Babilónia" -opõe o sacerdócio universal dos cristãos e exige também a reforma da Cúria e a supressão do celibato eclesiástico, lembrando que a "verdadeira reforma"
deve fazer-se no coração do homem. No pequenino tratado Da Liberdade Cristã (Setembro do mesmo ano), Lutero define a Igreja como uma Igreja invisível, de que apenas
fazem parte aqueles que vivem da verdadeira fé; à autoridade da Igreja, assente nas Escrituras e na Tradição, opõe a autoridade única das Escrituras. Mas é num latim
destinado aos teólogos que, no Cativeiro de Babilónia (Outubro desse ano), esboça uma doutrina dos sacramentos; Lutero mantém apenas o baptismo, a ceia e, em rigor,
a penitência; critica a missa e a transubstanciação, exige a comunhão sob duas espécies e opõe a Sagrada Escritura à acção automática dos sacramentos.
As coisas precipitam-se imediatamente. No Natal de 1520, Lutero queima publicamente a bula Exsurge Domine. Levado perante Carlos V na Dieta de Worms, recusa retractar-se
e é expatriado do império (1521). Escondido em Vartburgo, começa a tradução da Bíblia para alemão e, em 1522, deve regressar a Vitemberga, porque já alguns, aproveitando-se
do carácter complacente de Melâncton, amigo e colaborador de Lutero, utilizam a mensagem luterana de uma forma temerária. Num sentido radical, pietista e iluminista,
Karlstadt e Munzer - este é o pai dos anabaptistas - preconizam "uma Igreja dos santos", cujos membros estariam em comunhão directa com o Espírito Santo, apagando-se,
deste modo, todos os vestígios da Igreja visível. Lutero combate-os e, até, rompe com o humanismo cristão de Erasmo e com o humanismo reformista, mas autoritário,
de Zuínglio. Aliás, vê-se, depois, confrontado com as guerras civis: a dos pobres cavaleiros do Sul (1522-1523) e a dos camponeses (1524-1525) que, em nome das novas
ideias, ensanguentam a Alemanha Central e Meridional.
Contra sua vontade, Lutero é levado a regulamentar a liturgia que se baseará no "culto" dominical: nele, dá-se o lugar principal à leitura, à pregação da palavra
de Deus e à oração comum sob a forma de cantos corais, em alemão; no entanto,

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reagindo contra Karlstadt, Lutero mantém um quadro litúrgico. Aliás, os erros e os excessos que foram consequência da pregação da "liberdade cristã" por Lutero levam-no
a afastar o "democratismo" e a refugiar-se atrás da autoridade dos príncipes passados ao luteranismo: cada um é encarregado de fornecer uma constituição à Igreja
do seu próprio Estado. A partir de 1525, Lutero entra na fase mais tranquila da sua vida: casa com uma cisterciense, Catarina von Bora; escreve contra Erasmo o seu
tratado De Servo Arbítrio, em que defende a ideia da predestinação; redige os seus catecismos; conclui a tradução da Bíblia; aprova a Confissão redigida por Melâncton
e apresentada à Dieta de Ausburgo, em 1530. Com os Artigos de Esmalcaída (1537), a Confissão de Ausburgo constitui a base da doutrina luterana, onde se rejeita tudo
o que pareça contrário às Escrituras, como os votos monásticos; aceita-se tudo o que não for contrário às Escrituras, tal como o episcopado.
Quando Martinho Lutero morre, em 18 de Dezembro de 1546, na sua cidade natal de Eisleben, já o rosto da cristandade se encontra profundamente modificado. Os amigos
de Lutero foram realmente os primeiros luteranos e o seu grupo foi rapidamente reforçado por membros do clero regular, mas também vieram importantes contingentes
da burguesia das cidades imperiais em luta contra os seus bispos. Embora, por um lado, a guerra dos cavaleiros e a dos camponeses tenham afastado de Lutero - que
as desaprovou - muitos nobres empobrecidos e muitos rurais, por outro, atraíram para o luteranismo muitos dos grandes senhores feudais, tentados não só pela secularização
dos bens da Igreja, mas também pela oportunidade de se oporem ao imperador; é o caso de Alberto de Hohenzollern, que secularizou a sua Ordem Teutónica e se fez duque
da Prússia (1525-1526). Desde 1518, Lutero tinha leitores e discípulos em Antuérpia. Depois de ter libertado a Suécia da dominação dinamarquesa (1523), Gustavo Vasa
secula-rizava os bens de um clero mais ou menos desacreditado e organizava uma Igreja luterana estreitamente ligada à coroa. Em 1526, a Dinamarca passava também
para o luteranismo e Cristiano III, em 1537, instaurava uma Igreja dinamarquesa-norueguesa.

221

Nas fronteiras do luteranismo - e muitas vezes contra ele -, desenvolviam-se alguns movimentos mais violentos. Assim, o anabaptismo - que se espalhara de Estrasburgo
a Amesterdão e a Múnster - não só negava qualquer valor ao baptismo das crianças, mas também, partindo do princípio de que Lutero não tinha promovido senão uma reforma
religiosa, pretendia construir uma sociedade comunista, liberta dos padres e dos príncipes, na qual o baptismo dos adultos seria um sinal distintivo. Esmagado atrozmente
pelo sangue (1535), o anabaptismo desapareceu, mas ainda permanecem algumas das suas ideias entre os baptistas.
Na Suíça, onde se refugiara depois da ruptura com Lutero (1522), Karlstadt preparou o caminho para Zuínglio que, no plano espiritual, se mantinha ligado ao humanismo
cristão; segundo as normas do reformismo erasmiano, pregou na igreja colegial de Zurique sobre o conjunto dos textos evangélicos e do Novo Testamento, em vez de
comentar simplesmente o Evangelho do dia. No entanto, na esteira de Karlstadt, quis devolver a Igreja à sua simplicidade original; essa reforma foi efectuada através
da autoridade, impondo-se aos edis de Zurique e exercendo aí um verdadeiro césaro-papismo. Embora exigisse o recurso exclusivo à Bíblia como fundamento da fé e da
autoridade, e o uso da língua alemã na liturgia, atribuía maior importância ao problema da santificação do que ao da justificação. Assim, o zuinglianismo justifica-se
ou caracteriza-se por um humanismo e um radicalismo, e também por um racionalismo, todos eles estranhos ao luteranismo; a piedade zuingliana é sobretudo social;
o baptismo e a ceia já não são sacramentos, mas simples memoriais, isto é, a afirmação da comunhão dos fiéis. De resto, Zuínglio mostrava-se contrário às formas
de culto - imagens, paramentos sagrados e música - e tendia a confundir a Igreja e o Estado, reconhecendo a este último o direito de intervir nos problemas religiosos.
Se a reforma zuingliana se impôs em Estrasburgo, Basileia, Berna e Schaff-house antes de 1530, os velhos cantões montanheses da Helvécia - Lucerna, Uri, Schwyz...
- permaneceram católicos e foi a combatê-los, em Kappel, que Zuínglio acabou por ser morto em 1531.

222

O zuinglianismo preparou, sem dúvida, a acção levada a cabo por Calvino.

3. Calvino e a fundação de uma Igreja

Em França, o reformismo humanista encontrou um terreno favorável, e as ideias e as obras de Lutero foram aí recebidas com simpatia. Desde 1521, a Sorbonne levantava-se
contra as teses do monge saxónico e, em 6 de Agosto, mandava para a fogueira o primeiro mártir protestante da França, João Vallière. Mas muito rapidamente o evangelismo
exaltado por Margarida de Angolema se distanciou do "protestantismo". Quando a política aproximou Francisco I de Clemente VII e, quando, na noite de 17 para 18 de
Outubro de 1534, um cartaz de inspiração zuingliana foi afixado nos apartamentos do rei, este tornou-se perseguidor de um protestantismo francês, aliás pouco vigoroso
e que competia a João Calvino animar.
Este picardo, nascido em Noyon em 1509, que na sua juventude levara uma vida confortável junto de um eclesiástico impregnado de humanismo, converteu-se depois às
ideias novas, em 1533. Em 1536, de Basileia, onde teve de refugiar-se, Calvino envia para França algo explosivo, A Instituição da Vida Cristã, obra escrita em latim,
mas que, depressa traduzida para francês (1539), se tornará, pelas suas qualidades de lógica e de concisão, um dos clássicos da jovem língua francesa.
A Instituição é uma suma, mas é sobretudo a expressão de uma experiência vivida. Como Lutero, Calvino revela-se um homem de uma concepção pessimista e a sua doutrina
sobre a justificação irá mesmo até ao predestinacianismo, ainda que tenha apresentado a predestinação como um mistério imposto pela noção de omnipotência de Deus.
Mas, indo além de um simples desejo de salvação, Calvino exige que o cristão honre a Deus e O sirva; a sua teologia é essencialmente teocêntrica, mas revela-se também
social: a piedade calvinista sente-se chamada à acção social, científica e estética "para afirmar por toda a parte o reino do Eterno". Lutero era um monge muito
desprotegido perante a sociedade; Calvino é um leigo que, em contacto

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com o Mundo, julga que, para apoiar o esforço dos fiéis para a santidade, é preciso uma Igreja que pregue a palavra de Deus e um Estado que faça reinar a ordem.
Genebra será, pois, o campo de experiência de Calvino; será aí que, em 1536, um emigrado francês, Guilherme Farei, o retém, depois de ter fundado uma activa comunidade
zuingliana. Apesar das dificuldades, Calvino consegue criar uma Igreja presbiteriana constituída por pastores eleitos, encarregados de ensinar as Escrituras e que
se reuniam em sínodos; esses pastores são secundados pelos doutores, por um consistório de ministros e de leigos e por diáconos. O culto, que se dirige unicamente
a Deus, é levado à sua simplicidade primitiva. A reforma é assegurada por uma pregação incessante de que a Bíblia é assunto único; o que pressupõe um público conhecedor
e atento; por isso, multiplicam-se as escolas elementares e cria-se o "Colégio de Genebra", que se tornará um dos mais prestigiados centros humanistas. Estão, assim,
quebradas as oposições; em 1555, o Consistório de Genebra recebe do Conselho da cidade o direito de excomungar. Durante dez anos, Calvino é o senhor da cidade; mas
embora a Suíça continue a ser influenciada pelo zuinglianismo, Calvino começa a influenciar toda a Europa, sobretudo a França; a Academia protestante de Genebra,
de que Teodoro de Bèze é o primeiro reitor, torna-se um viveiro de ministros reformados. Genebra tornara-se "aquilo que Vitemberga não conseguira ser: a capital
da Reforma militante".
Em França, o protestantismo reformado - designado cal-vinismo nos meios católicos -, penetrou no meio dos artesãos e dos comerciantes, atingindo a grande nobreza;
tendo encontrado defensores como António de Bourbon ou Coligny, os hu-guenotes realizaram o seu primeiro sínodo nacional em 1559 e a Confissão de La Rochelle e a
Disciplina Eclesiástica foram adoptadas como cartas do calvinismo francês. Em 1566, contavam-se já centenas de Igrejas reformistas, mas depressa as guerras religiosas
fariam da França um campo de batalha, em que se opunham católicos e calvinistas.
A partir de 1540, as ideias reformistas de Calvino tinham-se estendido aos Países Baixos, a Antuérpia sobretudo, "a Genebra

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do Norte"; penetraram na burguesia mercantil das províncias setentrionais, aquelas mesmas que, revoltando-se contra os Espanhóis em 1579, constituirão as Províncias
Unidas. Dos Países Baixos e de Genebra, o calvinismo alcançou o vale do Reno, mas fixou-se definitivamente apenas no Palatinado, graças a Frederico III (falecido
em 1576). Na Europa Oriental, a Livónia e a Polónia foram arrancadas ao calvinismo que aí penetrara em 1548; e a Igreja evangélica da Lituânia teve o seu primeiro
sínodo em 1557. A Batalha de Mohacs (1526) dizimou o clero húngaro e, em 1537, a Hungria tinha apenas três bispos: a partilha do país entre Habsburgos e Turcos favoreceu
o desenvolvimento do calvinismo.
Mas o caso da Grã-Bretanha é particular. Na Inglaterra, onde a ideia de uma Igreja oficial era familiar, Henrique VIII tinha, desde o começo do seu reinado, tomado
a iniciativa de uma reforma disciplinar, aliás bastante hostil ao luteranismo; mas, desejando a ruptura do seu casamento com Catarina de Aragão, tia de Carlos V,
o rei não conseguiu que o Papa lhe permitisse o divórcio. Então, o Parlamento, sob pressão de Henrique VIII, votou a subordinação da Igreja à coroa (11 de Fevereiro
de 1531), enquanto o chanceler Tomás Moro continuava a perseguir os luteranos. Encorajado por Tomás Cranmer, teólogo de Cambridge, o rei casou com Ana Bolena, sendo,
a seguir, excomungado (1559). Tomás Moro e outros, como João Fisher, pagaram com a vida a sua oposição ao soberano que, no Book ofarticles (1537), definiu um evangelismo
ainda próximo do catolicismo; como na Escandinávia, manteve-se a hierarquia episcopal, mas os bens da Igreja foram vendidos e o bill dos seis artigos (1539) criou
um sistema de repressão inquisitorial.
Até à morte de Henrique VIII (1547), houve apenas cisma. Sob o reinado do seu jovem filho Eduardo VI (falecido em 1553), o protector Somerset inspirou uma segunda
reforma no sentido do calvinismo, porque este já penetrara na Inglaterra graças a um discípulo de Calvino, João Knox. O Book of common prayer de 1549 e o bill dos
42 artigos de 1553 suprimiram a missa e autorizaram o casamento dos padres. Após o intervalo sangrento da católica Maria Tudor (1553-1558), que eliminaria as instituições
republicanas dos reformistas, o advento de Isabel I (1558)

225

provocou um retorno ao anglicanismo e rejeitou o calvinismo presbiteriano na oposição puritana; três bills votados em 1559 restabeleceram a supremacia completa da
coroa inglesa sobre a Igreja. Contra Isabel, Roma tinha julgado poder contar com a Escócia, mas a queda de Maria Stuart (1567) e a entusiástica pregação de João
Knox - que, desde 1560, fizera adoptar uma Confissão de fé -, conseguiram fazer triunfar, no reino escocês, uma Igreja reformada presbiteriana, estritamente calvinista,
republicana e sem bispos.
Em 1564, em Genebra, morria João Calvino; pode dizer-se que ele foi o "fundador de uma civilização".

4. Fogo contra a cristandade?

Quando Calvino morre, o mapa religioso da Europa é como um espelho quebrado que deforma o rosto da Igreja. Ao Norte, o protestantismo domina: o luteranismo conquistou
dois terços da Alemanha; o imperador, numa guerra frouxa e através do Tratado de Ausburgo (1555), reconheceu a existência oficial de Igrejas e de Estados protestantes
no Império, onde é aplicada a fórmula cujus régio, hujus religio, ou seja, que os sujeitos devem conformar-se à religião do seu Governo. O catolicismo manteve fortes
posições no Sul e no Oeste alemão e esta situação revela-se cheia de dificuldades, de que apenas se sairá no século XVIII, com a terrível Guerra dos Trinta Anos.
A Prússia, a Curlândia, os Países Bálticos e a Escandinávia romperam com Roma. Os Países Baixos e a Escócia são os bastiões do calvinismo. A Suíça e a Alsácia mostram-se
fortemente influenciadas pelo zuinglianismo. A Boémia e a Hungria estão também marcadas, mas a Polónia não está indemne nem a Áustria. Em França, um calvinismo militante
- que, durante muito tempo, se verá mergulhado em lutas terríveis contra o Estado católico - instalou-se ao longo do país: vale do Reno, Baixo Languedoc, Cévennes,
Sudoeste, Poitu, Normandia e Picardia. Enquanto o reino de Inglaterra se confunde com a Igreja anglicana ou Igreja "estabelecida", o presbiterianismo calvinista
triunfa na Escócia. A Irlanda, com excepção do Norte, permanece fiel

226

a Roma: é verdade que a luta contra o anglicanismo e o calvinismo é aí uma forma de resistência ao opressor britânico. A Itália, Espanha e Portugal (este sob domínio
espanhol entre 1580 e 1640) vêem-se rapidamente depurados dos elementos protestantes, pela acção conjugada dos papas, dos Habsburgos, da Inquisição e também por
uma vigorosa reforma católica.
Tornando-se capital para o futuro do catolicismo, a Espanha e Portugal - países de navegadores - revelaram-se precisamente como os pioneiros das grandes descobertas
e os fundadores dos dois primeiros impérios coloniais. Os Portugueses estavam a caminho, desde o começo do século XV, das costas de África, dos Açores ao cabo da
Boa Esperança, que foi dobrado em 1487. Desde 1479, as Canárias tinham sido reunidas à coroa espanhola e em 1492 - o ano da tomada de Granada -, Colombo descobria
a América, ao desembarcar no Haiti. Então, a pedido dos Reis Católicos, interveio Alexandre VI; através das chamadas cartas alexandrinas - a principal é a segunda
bula Inter cetera (28 de Junho de 1493), designada a "bula de demarcação" -, o papa fazia doação aos reis de Espanha de todas as terras descobertas ou a descobrir
pelos Espanhóis e separava o seu domínio do dos Portugueses por uma linha imaginária que passava a cem léguas a oeste e ao sul dos Açores e das ilhas de Cabo Verde.
Em contrapartida, os soberanos católicos comprometiam-se a converter ao catolicismo as populações submetidas. O Tratado hispano-português de Tordesilhas (7 de Junho
de 1494) alargou para duzentas e setenta léguas mais a oeste a linha de demarcação, mas a ignorância em que se estava das terras a descobrir e da sua configuração,
custou aos Espanhóis o Brasil, que se tornará terra portuguesa. Foi assim que quase toda a América se tornou espanhola e católica. Os Portugueses, que se contentavam
em trazer para a Europa as riquezas da África e da Ásia, ocupavam apenas alguns pontos costeiros. Numa zona reclamada entre Espanhóis e Portugueses, as Filipinas
conheceram, em 1571, a mesma sorte da América Latina.
Por isso, quando a Europa Ocidental se encontrava dilacerada, o Novo Mundo passava inteiramente para o catolicismo. Será necessário esperar pelo começo do século
XVII, com a instalação dos Holandeses calvinistas na Insulíndia e a chegada

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à Nova Inglaterra dos presbíteros que fugiram aos Stuarts, para se desenvolverem, fora da Europa, algumas zonas de influência protestante.
A geografia da Reforma na Europa Ocidental escapa a qualquer explicação sistemática, porque o movimento protestante é de origem essencialmente religiosa; podemos
lamentar que não tenha evoluído no quadro da velha Igreja o que poderia ser a "segunda reforma interior" - tendo a primeira ocorrido nos séculos XI e XII. A princípio,
houve um fortíssimo desejo de regressar a um Evangelho vivo, e a uma religião pura e despojada, de proclamar a graça de Cristo e a transcendência de Deus. Não se
trata, como muitos católicos pretendem, de uma atitude negativa, puramente protestatária; a espiritualidade dos reformados centrou-se na palavra de Deus, constantemente
confrontada com o comportamento social. O reformado desconfia daquilo que, então, se designa como "realidade sensível", que o católico considera como origem de renovação,
mas que também pode ser para ele uma tentação de facilidade, como os sacramentos e as devoções. A Igreja aos olhos do reformado não pode ser uma instituição hierarquizada
e monarquizada, de magistério infalível; mas tem de ser a comunidade invisível dos verdadeiros crentes, "as Igrejas", em que as suas diversas instituições não devem
ser mais do que "manifestações visíveis mas insuficientes da sociedade espiritual". Ao sacerdócio especializado dos católicos, os reformados opõem, sobretudo, o
sacerdócio universal dos crentes. A seus olhos, a unidade do catolicismo não passa de um monolitismo estéril: "Agrada-nos, Monsenhor, pertencer a Igrejas que mudam,
Ecclesia reformata semper reformanda", retorquira jurieu a Bossuet, autor das Variações das Igrejas Protestantes.
Salvo algumas excepções, as relações entre católicos e protestantes foram, desde a Reforma do século XVI, as de irmãos inimigos; os contactos tornaram-se muitíssimo
mais difíceis do que com os ortodoxos - que, no Oriente, formam massas homogéneas -, porque os protestantes viviam num universo conquistado pela Inglaterra dissidente
e pela França católica, vendo-se, por isso, constantemente confrontados com os "papistas". Em França, na Alemanha, na Suíça e nos Países Baixos, as minorias

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religiosas estiveram, durante muito tempo, ou num estado de agressividade ou de defesa. A desconfiança mútua continuará a ser regra, muito depois de se terem acalmado
as lutas violentas como as guerras religiosas e que serão inflamadas por certas atitudes sectárias, como a de Luís XIV na Revogação do Édicto de Nantes.
No século XIX, para a opinião comum, os protestantes ainda não deixam de ser "caixeiros-viajantes vestidos de negro que desejam impor as suas Bíblias falsificadas
e desfiguradas" (La Revue catholique, 1836); por sua vez, os protestantes continuarão a anunciar que "as três coroas do Papa hão-de cair todas ao mesmo tempo" (Athanase
Coquerel, O Catolicismo e o Protestantismo, 1864).
Contudo, muito lentamente, alguns protestantes começam a descobrir os valores católicos: o valor de uma liturgia mais viva, o mistério do sacramento, a vida monástica
e a mariologia; certos agrupamentos importantes permitiram às Igrejas protestantes concentrar as suas riquezas e as suas forças. Por seu lado, os católicos aperceberam-se
de que a Reforma podia interessar-lhes, sobretudo pelo sentido das próprias Escrituras, da Bíblia - de que muitos católicos se desviaram ao longo de séculos -, a
necessidade de um regresso à simplicidade nas relações entre os membros da Igreja, a colegialidade fortalecida e o papel do leigo na Igreja. Nessa altura, opera-se
uma aproximação - que ainda não se sabe quando chegará ao fim - facilitada pela acção de João XXIII, pelo II Concílio do Vaticano e pelo movimento ecuménico lançado
pelos protestantes há meio século. Além disso, a Igreja anglicana desempenha um papel de Igreja-ponte (Bridgechurch), porque reúne "a constituição tradicional da
Igreja Católica com a liberdade de se dirigir directamente a Deus através de Cristo": uma Igreja Católica com elementos protestantes, mesmo que a declarada compreensão
do anglicanismo não deva incitar os cristãos a um sincretismo inconsistente.
Mas terá sido necessário que a Europa cristã se despedaçasse durante o século XVI, para, finalmente, se poder chegar a esta esperança de unidade? Podemos responder
que "os caminhos de Deus são insondáveis"; os católicos censuram Lutero por não ter sido o seu grande reformador, por não ter utilizado

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todas as suas capacidades e coragem "para limpar as ervas daninhas do jardim de Deus" no interior da Igreja romana. Mas a isso os protestantes respondem que Lutero
não pretendeu "reformar" a Igreja, mas "salvar o homem pecador e perdido" e dar o seu contributo ao catolicismo. A incontestável reforma católica do século XVI é,
pois, aos olhos dos católicos, a prova de que o cisma luterano não era necessário; e os protestantes pensam que os reformadores católicos não fizeram mais do que
"retomar as posições que fizeram a força do protestantismo" (E. G. Léonard).
Por seu turno, o historiador limita-se a afirmar a verificação de uma ruptura que lançou uns na dissidência e impôs a outros uma posição defensiva, rasgando o manto
da própria Igreja.

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VII
A IGREJA À DEFESA

Capítulo I
A REFORMA CATÓLICA

1. Reforma ou Contra-Reforma?

A expressão "contra-reforma" tornou-se corrente. Era, evidentemente, cómodo apresentar o grande movimento religioso que sublevou a Igreja Católica, desde meados
do século XVI até meados do século XVII, como uma simples reacção à Reforma protestante, como um brutal despertar durante a tempestade. Ora, no século XVI, a ideia
de reforma (tão velha como a Igreja) tinha penetrado até às profundezas da sociedade cristã. Depois da ruptura entre católicos e protestantes, a reforma foi continuada,
"nos dois lados da barricada, por um bom número de almas sinceras e pacíficas, preocupadas em cumprir a mensagem de Jesus Cristo" e que deixaram "aos controversistas
o trabalho das hostilidades contra as outras confissões" (A. Willaert).
Por isso, houve simultaneamente uma "reforma católica", enriquecimento de uma fonte desde há muito alimentada, e uma "contra-reforma", recurso católico destinado
a colmatar as brechas abertas pelo protestantismo e, até mesmo, para reconquistar as zonas submersas. O Concílio de Trento foi ao encontro dessas duas correntes.
Na verdade, a expressão "contra-reforma" engloba a primeira fase do movimento, quando, sob a influência dos mediterrânicos - italianos e espanhóis representados
no Concílio de

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Trento -, a assembleia adoptou uma atitude radical que correspondia à também radical dos luteranos.
A uma obra difícil e, talvez, prematura de síntese, a Europa mediterrânica preferiu o estabelecimento de uma fronteira rígida. Aí está a explicação das objecções
da França - que se inclinava para uma solução irénica - à "recepção" de um concílio que denunciava qualquer possibilidade de conciliação.
Aliás, o Concílio de Trento não tem uma excelente reputação. É sintomático o facto de os observadores não católicos no II Concílio do Vaticano se terem abstido de
participar, em 3 de Dezembro de 1963, na comemoração do encerramento do Concílio de Trento, quatro séculos antes. Além disso, alguns católicos manifestam certa desconfiança
a respeito de uma assembleia que se estenderá por dezoito anos e censuram-lhe o facto de ter encerrado a Igreja romana numa fortaleza dourada, em que todos os tesouros
estariam, para sempre, ao abrigo de cobiças, sob a vigilância de um pontífice supremo com poderes acrescidos. As coisas, porém, são menos simples e as realidades,
mais profundas.
É claro que os padres do Concílio de Trento tomaram posição face ao protestantismo e opuseram à Confissão de Ausburgo certas definições canónicas que incidiram em
três pontos essenciais: a Escritura, o papel da fé e das obras, e os sacramentos. Aos protestantes que vêem no Livro inspirado - directamente apreendido e livremente
interpretado - a fonte única da Revelação, opuseram a missão orientadora da Igreja: vigiar pela integridade das duas fontes da fé, a Escritura e a Tradição. Contra
Lutero, o concílio afirmou que a justificação não se obtém exclusivamente pela fé nem pela convicção de que se está justificado, mas pela conjunção das obras e da
fé. Quanto aos sete sacramentos, não são simples alimentos da fé dos fiéis nem sinais; contêm realmente a graça. Mas o Concílio de Trento foi também "o ponto de
encontro de todas as forças católicas da Reforma". O próprio Lutero, em 1518 e, depois, em 1520, tinha apelado para um concílio "cristão e livre", ou seja, não convocado
pelo papa, em que os padres e leigos tivessem voto deliberativo.
Lutero estava ainda em Vartburgo, quando Leão X morreu (1 de Dezembro de 1521); o seu sucessor, Adriano VI, um

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holandês, foi muito mal recebido por Roma que achou ridículo este pequeno "Bárbaro" carrancudo, disposto a estragar os antigos hábitos. Adriano VI quis sinceramente
"o restabelecimento da disciplina eclesiástica no seu antigo esplendor" e, para o conseguir, propôs a realização de um concílio ecuménico numa cidade alemã. A Dieta
de Worms aceitou esse princípio, mas recusou a cláusula luterana do direito dos leigos de participar e votar nesse concílio.
Depois da morte do Papa (14 de Setembro de 1523)/ tudo foi posto de novo em causa, porque a Igreja romana recebeu como chefe o prelado menos destinado a promover
uma reforma profunda: um bastardo de Juliano de Médicis, transformado em Clemente VII (1523-1534), que, pelas suas artimanhas diplomáticas, mais faz lembrar um vulgar
podestà italiano (1) do que um pastor de almas. Ora aliado, ora adversário de Carlos V - cuja desastrada política de reunificação cristã se fazia ao gosto dos desejos
pontifícios -, Clemente VII conheceu a maior vergonha de que a Cidade Eterna jamais se viu fustigada: o saque de Roma pelas tropas imperiais, a que o Papa, prisioneiro
no Castelo de Sant Ângelo, teve de assistir (5 de Maio de 1527). Sinal de um tempo, em que, por toda a parte, a Igreja romana via amontoarem-se as ruínas e não lhe
serem poupadas as humilhações. Tal pontífice era incapaz de organizar um concílio que, aliás, temia, ao lembrar-se de Constança e de Basileia; por isso, sentiu-se
muito feliz por se poder desculpar com a má vontade de Francisco I para adiar a sua convocação.
Seguiu-se Paulo III (1534-1549) que, à primeira vista, era um "papa da Renascença", um Farnésio que ficou a dever a sua nomeação a sua irmã, amante do futuro Alexandre
VI; tivera já quatro filhos e praticou o nepotismo; confiou a Miguel Angelo a direcção dos trabalhos da Basílica de São Pedro e a execução dos frescos da Capela
Sistina. No entanto, os historiadores mostram-se de acordo em dizer que o seu pontificado foi decisivo: porque, tornando-se Papa, Alexandre Farnésio colocou toda
a sua tenacidade em promover uma reforma que, de papa em papa, sempre se adiava. O Sacro Colégio, que não passava de

Nota 1: O equivalente ao nosso actual presidente da câmara. [N. do T.]

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uma "latrina de intrigas", foi depurado e viu-se entrar nele João Fisher que, depois, morreu nas prisões de Henrique VIII, Gian Pietro Caraffa, futuro Paulo IV,
e Giovanni Morone Con-tarini; este foi a alma da Comissão Preparatória do Concílio Geral. Em 1537, essa comissão fazia aparecer um documento capital: Conselho dos
cardeais escolhidos e outros prelados sobre a reforma da Igreja.

2. O Concílio de Trento

Apesar dos interesses, ambições, nacionalismos e hábitos, Paulo III decidiu realizar esse concílio. Contudo, só Deus sabe que dificuldades foram surgindo no seu
caminho! Em 29 de Maio de 1536, lançava a bula de convocação para um concílio que devia realizar-se em Mântua e que, na realidade, se efectuou em Vicência, na presença
de... cinco padres conciliares. Esta magra assistência e o recomeço da guerra entre Carlos V e Francisco I fizeram adiar o concílio sine die (21 de Maio de 1539).
A segunda bula, em 1542, não alcançou sucesso algum. Depois, o Tratado de Crépy entre o imperador e o rei de França permite a Paulo III convocar o concílio para
terras do império, em Trento, com início em 15 de Março de 1545. A abertura oficial fez-se somente em 13 de Dezembro, com a presença de uns trinta padres, acompanhados
por quarenta teólogos. Mas nenhum protestante. A direcção do concílio estava assegurada por três legados pontifícios, mas apenas os bispos, os gerais das ordens
e os representantes das ordens monásticas tinham direito de voto, com exclusão dos mandatários, dos representantes dos corpos eclesiásticos e das universidades;
por isso, evitou-se o emprego da fórmula de Constança e de Basileia: Ecclesiam universalem repraesentans. É claro que se estava muito longe da assembleia democrática
reclamada por Lutero.
O Concílio de Trento propôs-se trabalhar na definição dos dogmas católicos e, ao mesmo tempo, na reforma da Igreja. A quarta sessão, em Abril de 1546, foi capital,
porque definiu que as tradições apostólicas deviam ser aceites com o mesmo respeito que as Escrituras, fixando-se, então, o seu cânone: a Vulgata

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de S. Jerónimo foi declarada autêntica, quer dizer, suficiente para a demonstração dogmática. Em 7 de Janeiro de 1547 (sexta sessão), a doutrina católica sobre a
justificação foi exposta em dezasseis capítulos: insistiu-se principalmente na colaboração da vontade humana com a graça santificante. Alguns historiadores pensaram
que, se esse decreto fosse aprovado não em Trento, mas no V Concílio de Latrão, a ruptura luterana talvez tivesse sido evitada, o que fazia pensar que a Reforma
católica fora desencadeada com algum tempo de atraso. Contra a não-residência dos bispos, o decreto de 25 de Fevereiro não foi mais que uma "solução menor", por
aplicar as sanções aos culpados apenas depois de uma ausência ininterrupta de seis meses. A sétima sessão, em 3 de Março, define a doutrina sobre os sacramentos,
proíbe a acumulação de bispados e regulamenta a função episcopal em função das exigências pastorais.
No dia 11 de Março, sob o pretexto de epidemia - na realidade, para escapar à iniciativa do imperador -, a maioria dos padres conciliares decidiu a mudança do Concílio
para Bolonha, mas o esmagamento dos protestantes em Mühlberg (24 de Abril) destruía qualquer esperança de reconciliação entre as duas confissões. Em Bolonha, nada
se fizera de decisivo e, para evitar um cisma - uma minoria de padres tinha-se recusado a abandonar Trento -, Paulo III suspendeu o concílio (Janeiro de 1548), Todavia,
na Dieta de Ausburgo, Carlos V propôs que se fizesse um compromisso com os vencidos - o interim d'Ausburgo - de inspiração católica, cujas únicas concessões eram
a comunhão sob as duas espécies e o casamento dos padres. Quase à força, os protestantes aceitaram participar no Concílio de Trento - não no de Bolonha -, com a
condição de que não estivessem sob a direcção do Papa e se discutissem de novo os decretos conciliares anteriormente apresentados.
Essas mesmas reservas ainda permaneciam, quando Júlio III, em Fevereiro de 1550, sucedeu a Paulo III. O novo Papa impôs como objectivo a retomada do Concílio de
Trento. Os trabalhos prolongaram-se durante o Verão de 1551, mas, ao longo do Outono, foi consagrado o termo transubstanciação, a extrema unção foi declarada sacramento
e definida a necessidade da confissão oral, embora também se abordassem os problemas da

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comenda - velha praga e chaga da Igreja -, do hábito clerical e do direito de padroado. A passagem de alguns teólogos luteranos não resultou em nada e depois o imperador,
pressionado pelas tropas do eleitor da Saxónia, que fugira de Innsbruck, o concílio acabou uma vez mais por ser adiado (Abril de 1552). No começo de 1555, Júlio
III morria e Marcelo II reinou apenas durante alguns dias. Foi eleito Gian Pietro Caraffa com o nome de Paulo IV (1555-1559), mas o novo Papa, rígido nos seus hábitos,
julgou que podia realizar a reforma sozinho: transformou a fisionomia do Sacro Colégio, onde os homens zelosos e instruídos formavam uma maioria; atacou a Dataria,
gabinete dos favores pontifícios e principal fonte de receitas da Santa Sé; perseguiu os monges giróvagos em Roma e, a seguir, em toda a cristandade. O seu sucessor
Pio IV (1559-1565) nomeou o sobrinho, o admirável Carlos Borromeu, como auxiliar na renovação da disciplina.
A penetração do calvinismo em França sob Henrique II fazia recear a eventualidade de uma França protestante; por isso, Pio IV convocou de novo os padres conciliares,
que eram em número de 114, para a Catedral de Trento em 18 de Janeiro de 1562. Em 26 de Fevereiro, esforçaram-se por levar por diante um grande projecto de reforma,
mas o problema da residência dividiu-os durante muito tempo; em Julho, adoptaram os cânones relativos ao sacrifício da missa considerada como a comemoração e a reiteração
do sacrifício de Cristo. Depois, Espanhóis, Franceses e imperiais, partidários de um acréscimo do poder episcopal, opuseram-se violentamente aos Italianos, defensores
da supremacia do Papa. O legado Morone tirou o concílio desse impasse ao propor aos padres - que o adoptaram em Novembro e Dezembro de 1563 - um esquema de reforma
geral - de Refor-matione - em quarenta e dois artigos, que podemos considerar a essência da reforma tridentina; assim, definiu-se a nomeação e os deveres dos cardeais,
a organização dos sínodos e dos seminários diocesanos, a visita à diocese feita pelo bispo, a reforma dos capítulos e das ordens monásticas, etc. Paralelamente,
o decreto fametsi regulava as condições de validade do casamento e definia os cânones sobre o purgatório, as indulgências e o culto dos santos. Os padres conciliares
abandonaram Trento em 6 de

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Dezembro de 1563 e a bula Benedictus Deus, de 26 de Janeiro de 1564, assinada por Pio IV, confirmou as decisões do concílio e comunicou-as à cristandade.
Mas as "falhas" do concílio tornaram-se evidentes. Não se definiu nenhuma doutrina sobre a Igreja; por isso, nesta matéria, haverá durante muito tempo, deploráveis
e perigosas aproximações. Reclamando a participação de leigos no concílio, Lutero falava como profeta, mas a sociedade do século XVI tinha ainda uma ideia muito
vaga acerca do leigo. É claro que, se se instaurasse um verdadeiro diálogo entre católicos e reformados em Trento, talvez a Igreja tivesse evitado um desperdício
de forças, de que ainda sofre; mas seria possível esse diálogo na atmosfera de violência mantida pelos príncipes cristãos? Podemos, pois, lamentar que os padres
de Trento não tenham conseguido realizar a reforma da Cúria romana e que os fantasmas de Constança e de Basileia tenham podido reduzir a colegialidade apenas aos
dignitários da Igreja. Nascidas de um desejo de extirpação e de defesa, certas instituições como a Congregação da Suprema e Universal Inquisição ou Santo Ofício
(1542) e o Index (1557) não terão limitado - a longo prazo - a própria audiência da Igreja?
Mas a obra levada a cabo pelo Concílio de Trento revela alguns aspectos positivos. Por um lado, graças a um trabalho colectivo considerável em que colaboram teólogos
bem informados, a doutrina católica mostra-se mais definida; o aparecimento do Catecismo do Concílio de Trento (1566), a edição da Vulgata, a reforma do breviário
(1568) e do missal (1570), a transformação do calendário e do martirológio (1582) foram as principais aplicações práticas dessa obra dogmática, única pela sua importância
na História da Igreja.
Aliás, os decretos tridentinos de reforma, embora só muito lentamente tenham penetrado na "carne e no sangue da Igreja", a verdade é que modelaram fortemente o seu
futuro. Em termos precisos, definem a estrutura hierárquica bem como o regime de benefícios, as condições de uma liturgia viva e da vida sacramental, os deveres
dos clérigos e também os dos príncipes.
Mas o Concílio de Trento não teria sido mais do que uma longa e inútil discussão, se os muitos e santos padres nele

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presentes não tivessem, ao mesmo tempo, criado um clima favorável à reforma católica.

3. "No sangue e na carne da Igreja"

Mas não será preciso encontrar, para esses santos padres, uma sede apostólica? Um facto é certo: a maioria dos papas pós-tridentinos foram sacerdotes dignos, piedosos
e zelosos; mas, numa Europa dilacerada que era apenas cristã de nome, a sua acção foi perturbada pela qualidade de soberano absoluto de um Estado italiano que teve
os seus aliados, os seus adversários, as suas finanças, as suas "combinazioni". De futuro, mais sedentários, os papas, eles próprios italianos, nem sempre escaparão
às tentações da centralização e às pressões de um séquito fortemente italianizado, cujas preocupações serão, por vezes, mais burocráticas do que pastorais. As susceptibilidades
nacionalistas, a ingerência dos princípes no próprio seio do conclave e o veto efectivo oposto por certos Estados cristãos à aplicação dos decretos de Trento hão-de
enfraquecer ainda a posição dos papas em relação ao Mundo moderno.
O sucessor de Pio IV (falecido em 1565), Pio V (1566-1572) - o primeiro papa canonizado depois de Celestino V (falecido em 1296) e o último antes de Pio X (falecido
em 1914) - foi um verdadeiro santo: catecismo, missal e breviário entraram, graças a ele, nos hábitos clericais; mas, se a vitória de Lepanto conseguida em 1571
sobre os Turcos, por Don Juan da Áustria, o encheu de alegria, isso depois não voltou a acontecer. A Gregório XIII (1572-1585), um sábio, deve-se a fundação de uma
vintena de seminários e da Universidade Gregoriana e foi ele quem concedeu às nunciaturas permanentes o seu carácter definitivo. O irmão mais novo dos Peretti tornado
Sisto V (1585-1590) colocou os seus cuidados na visita canónica regular dos conventos, impôs aos bispos a visita ad limina e organizou as congregações cardinalícias
- sendo o número de cardeais fixado em 70 - para a administração judiciária nos Estados pontifícios e na Igreja universal.
O facto de Clemente VIII (1592-1605) ter elevado ao cardinalato sábios como o historiador Barónio e o teólogo Belarmino

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prova a sua preocupação em fazer do Sacro Colégio um corpo de elite. Paulo V (1605-1621), cujo reinado assistiu à conclusão da Basílica de São Pedro de Roma, tentou
aplicar os decretos triden-tinos sobre a residência episcopal e a comunhão frequente, mas foi desconsiderado pelo seu nepotismo e pelo apoio financeiro que concedeu
ao imperador durante a Guerra dos Trinta Anos. As missões estrangeiras devem muito a Gregório XV (1621-1623), criador da Congregação da Propaganda, em 1622; também
as regras actuais da eleição dos papas datam do seu pontificado.
A Renovatio in capite (reforma da cabeça) era, pois, um bom caminho. Com os bispos, aborda-se a reforma in membris, de que é impossível traçar um quadro de conjunto.
Em todo o caso, é verdade que, embora o corpo episcopal actual pertença por inteiro à elite da Humanidade, no fim do século XVII era uma desolação. Pensemos em 1579,
quando quarenta e três dos cento e quarenta bispados franceses estavam desprovidos de titulares e um cardeal como Carlos de Lorena (falecido em 1607), arcebispo
de Reims durante nove anos, foi titular simultaneamente de seis outros bispados e abade comendatário de inúmeras abadias. Nos hábitos do tempo, o humanismo, a política,
a diplomacia e a guerra eram perfeitamente compatíveis com o episcopado considerado então como uma carreira.
No entanto, não faltavam na Igreja os pastores zelosos e fervorosos: por exemplo, Tomás de Villeneuve (falecido em 1555), arcebispo de Valença, cujos rendimentos
eram destinados às obras hospitalares que fundara; ou o sábio bispo de Salerno, Seripando (falecido em 1563) ou outros como Roberto Belarmino (falecido em 1621),
arcebispo de Cápua, Giberti (falecido em 1543), bispo de Verona, cujas ideias reformadoras influenciaram certos decretos de Trento (1).
Mas aquele de quem se pode dizer que "refez o episcopado da Europa" pelo sentido do seu exemplo foi Carlos Borromeu (falecido em 1584), sobrinho de Pio IV; depois
de ter animado os últimos debates do concílio, foi durante vinte anos arcebispo

Nota 1: Faz parte do número dos grandes padres conciliares tridentinos o português Dom Frei Bartolomeu dos Mártires, arcebispo de Braga, beatificado em Outubro de
2001, fundador do Seminário Conciliar da arquidiocese, em constantes visitas pastorais e grande moralizador do seu clero. [N. do T.]

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de Milão: o ensino metódico do catecismo, a renovação da pregação pastoral, a restauração do espírito de penitência, a administração digna dos sacramentos, a visita
metódica da diocese, a realização regular dos sínodos diocesanos e provinciais - eis alguns dos aspectos capitais da acção de Borromeu que podem dar a ideia de o
ultrapassarem, tratando-se de um bispo, mas, no século XVI, isso tinha o seu valor como exemplo. O cardeal Hosius (falecido em 1579), bispo de Ermland, Briçonnet
(falecido em 1534), bispo de Meaux, Sadoleto de Carpentras (falecido em 1547), Prévost de Sansac (falecido em 1591), arcebispo de Bordéus, e o seu sucessor François
de Sourdis (falecido em 1628), Josaphat Kuncevicz (falecido em 1623), arcebispo de Polock, Wilfgang Von Salm em Passau, o primaz da Hungria, Pasmany (falecido em
1637), situam-se, entre muitos outros, na tradição borromiana.

4. O tempo dos santos padres

"A descida do episcopado corresponde a decadência do clero." A chaga do clero do século XVI era a ignorância. Por isso, que sedução não devia provocar um livro como
a Instituição Cristã de Calvino sobre os espíritos embotados pelo charlatanismo dos pregadores da época! Clérigos giróvagos, sem bispo, clérigos incapazes de pronunciar
as fórmulas válidas de um sacramento, tudo isso tinha sido deplorado no Concílio de Trento. A condição essencial de uma reforma clerical era, pois, uma sólida formação
intelectual e espiritual dos futuros padres - e, por consequência, dos futuros bispos -, nos seminários e nas universidades. A idade de oiro espanhola, sob Filipe
II, foi também a idade das universidades ibéricas de irradiação universal: Salamanca, Alcalá de Henares, Valladolid e Coimbra. Em Roma, a Sapiência, o Angelicum,
a Gregoriana; em França, Bordéus, Toulouse e a velha Sorbonne; nos Países Baixos, Douai e, sobretudo, Lovaina; na Alemanha, Salzburgo, foram, com as suas faculdades
de Teologia, os centros de reforma e os centros de formação clerical. Um decreto de Trento (1563) tinha prescrito a cada igreja catedral a manutenção de um seminário;
essa prescrição só será aplicada muito lentamente, perante a indiferença, a falta

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de professores, a inveja dos colégios tradicionais, colocando obstáculos que, em França, só serão levantados no século XVII. No entanto, antes do fim do século XVI,
muitas dioceses italianas e espanholas já possuíam um seminário.
Tal como no século XI a instituição dos cónegos regulares insuflara no clérigo paroquial um pouco do fervor monástico, também o século XVI viu multiplicar-se os
"padres reformados" ou os "clérigos regulares", sociedades religiosas novas, caracterizadas pela manutenção do espírito monástico adaptado "à mobilidade de um apostolado
num mundo em transformação", substituindo a estabilidade de um mosteiro pela obediência reforçada, substituindo o ofício do coro pela oração mental na forte tradição
da devotio moderna. A maior parte dessas fundações foram italianas ou espanholas: os Teatinos (1517), fundados por Gaetano de Thienne (falecido em 1547) e Caraffa
(Paulo IV); os Barnabitas (1530) do cremonês António Maria Zaccaria (falecido em 1539); os Somascos hospitalários, devidos ao veneziano Jerónimo Emiliano (falecido
em 1537); os clérigos regulares ministros dos enfermos ou Camilianos, do romano Camilo de Lellis (falecido em 1614), cuja vocação se aproxima da dos Irmãos da Misericórdia,
fundados em 1540 em Espanha pelo português João de Deus. Em Roma, o aragonês José Calasans (falecido em 1648) fundou, para educação das crianças do povo, os Clérigos
Regulares das Escolas Pias.
Mas foi a Inácio de Loiola (1491-1556), uma vez mais ainda um espanhol, que foi dada a honra de criar, com a Companhia de Jesus, a mais célebre comunidade de clérigos
regulares e, de facto, a mais poderosa das ordens religiosas modernas. Quando, numa capela de Montmartre, Inácio se tornou estudante em vez de soldado e pronunciou
com alguns companheiros os votos de pobreza, de castidade, de humildade, de evangelizar os infiéis e de, no caso de ser isso impossível, colocar-se ao serviço do
Papa, não pensava então fundar uma congregação religiosa. No entanto, as necessidades do apostolado incitaram os companheiros a agrupar-se definitivamente; em 1540,
a Companhia de Jesus era reconhecida por Paulo III.
Escreveu-se de tudo sobre os jesuítas: um historiador de sucesso, ainda recentemente, fez de Inácio e dos seus discípulos

243

simples iniciados na cabala e no ocultismo! A palavra jesuíta teve honras duvidosas pela sua "derivação própria e imprópria", como dizem os gramáticos: jesuitério,
jesuitizar, jesuitismo, etc... O jesuíta Basílio de Béranger e d'Estaunié, o jesuíta laxista de Pascal, o jesuíta mumificado pelo famoso perinde ac cadáver, os monita
secreta, o "Papa negro" e a "Congregação" são, entre muitos outros, os epítetos que a História carreou e que a ignorância popular engrossou. É evídentíssimo que
nem todos os duzentos mil jesuítas que viveram depois de Sto. Inácio foram santos; mas fazer dos jesuítas os escravos obstinados de forças ocultas sob o pretexto
de que a Companhia está fortemente hierarquizada e a obediência é a sua lei essencial, é esquecer que tal género de obediência não é a abdicação da personalidade,
antes um quadro para o verdadeiro exercício da liberdade. A extraordinária vitalidade da ordem - trinta e cinco mil membros em 1990 -, a diversidade do seu apostolado,
a facilidade com que enfrenta todos os problemas têm como fundamento vocações profundamente testadas por uma sólida formação intelectual e espiritual.
Um instrumento tão flexível e tão temperado foi, imediatamente, utilizado pelos papas reformadores. Em primeiro lugar, como equipa missionária, os jesuítas foram
levados, a partir de 1547, a adoptar o ministério do ensino; tendo criado um colégio em Messina que conheceu sucesso, Inácio criou outro em Roma: o colégio romano
- le Gesú -, que é a alma da Companhia (1551). Avançando através da Europa, fixando-se nas fronteiras dos países ganhos para o protestantismo, os jesuítas multiplicaram
os colégios - em 1580, já dirigiam cento e quarenta e quatro -, onde se formou a elite europeia: a sua originalidade e o seu êxito deviam-se a uma pedagogia fortemente
clássica e, ao mesmo tempo, aberta às ciências, ao teatro e à controvérsia1; tudo isto dava um lugar importante à disciplina que, em muitos aspectos, estava próxima
do ideal de Montaigne. Aliás, pela aplicação dos Exercícios Espirituais de Sto. Inácio, os jesuítas tornar-se-iam os guias das almas desejosas de encontrar um itinerário
simples para chegar até Deus.

Nota 1: Debate público sobre assuntos de interesse. [N. do T.]

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Uma outra forma de renovação clerical foi aplicada por um padre romano, bondoso e brincalhão, Filipe de Néri (falecido em 1595) - "Pepo buono", para o povo simples
- que lançou as bases do Oratório, sociedade sem votos públicos, cujos membros vivem em comunidade para trabalhar na pregação e no ensino. Espalhando-se pela França
no começo do século XVII, o Oratório tornar-se-á um elemento capital da Reforma católica. O século XVI foi também o século dos monges descalços, isto é, dos que,
nas antigas ordens, preconizavam uma reforma austera em oposição aos mitigados ou não descalços. Assim, houve os eremitas descalços de Sto. Agostinho, os servitas
e os trinitários descalços, sobretudo, os carmelitas descalços, porque a antiga Ordem do Carmelo estava também dominada pela decadência: uma carmelita espanhola,
Teresa de Almunada (falecida em 1582), levada por uma vocação excepcional, decidiu reagir e, em 1562, em Ávila, fundou o primeiro convento das carmelitas descalças;
vinte anos depois, já se contavam dezassete em Espanha; a reforma ganhou ainda a ordem masculina, graças ao grande místico João da Cruz (falecido em 1591); em 1593,
os carmelitas descalços tornaram-se numa ordem independente.
Entre os franciscanos, duas vagas de renovação: a dos "minoritas da mais estrita observância", discípulos do espanhol Pedro de Alcântara (falecido 1562), que foi
um prodígio de penitência e, sobretudo, o dos capuchinhos. Em 1525, o observantino Mattea Baschi deixava furtivamente o Convento de Montefalcone para ir solicitar
ao Papa que lhe consentisse observar à letra a regra franciscana; foi essa a origem da Ordem Franciscana Autónoma dos Capuchinhos, que teria uma enorme prosperidade,
porque actualmente são uns quinze mil: a bonomia dos capuchinhos, a sua caridade e a sua predilecção pelos pobres fizeram deles a ordem mais popular.
Assim, de Itália e de Espanha uma forte corrente mística estendeu-se pela Europa católica, aquecendo os corações e inclinando-se para uma devoção menos inquieta
do que no século anterior, mas sempre bastante entusiástica. Assim, a vida espiritual dos católicos seria renovada. Com os clérigos regulares, sobretudo os jesuítas,
desenvolveu-se o aspecto sensível da religião. Na Itália, nasceu assim a arte barroca, expressão essencial

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da reforma católica, que renovou a iconografia religiosa pela sua vontade de deslumbrar e de comover. Arte de imaginação, de invenção, de sumptuosidade, de contrastes,
a arte barroca é diferente dessa procura de equilíbrio e de harmonia que formará o ideal clássico. E opõe-se também à austeridade querida pelo protestantismo.
A partir de Itália, a arte barroca, com as suas diversas formas, espalhar-se-á pela Espanha, França, Alemanha e Europa Central.
Quanto às conquistas e reconquistas que acompanharam a Contra-Reforma, temos hoje o direito de perguntar se foram sempre inspiradas pelo espírito evangélico.

5. Para uma Igreja maior

As tendências absolutistas dos monarcas do século XVI não podiam acomodar-se à dissidência religiosa. O pano de fundo da Reforma - protestante e católica - revela-se,
em traços largos, marcado por atrozes sevícias, guerras medonhas e o espectáculo escandaloso de "um Evangelho armado".
Durante dez anos, Henrique VIII mergulhou a Inglaterra num terror que fez mártires tanto entre os católicos - é o caso de Tomás Moro - como entre os calvinistas,
como aconteceu com Ana Askew. A "lei da traição" foi de novo aplicada no tempo de Eduardo VI e, depois, sob a católica Maria Tudor, chamada "a sanguinária": e O
Livro dos Mártires de João Fox enriquece-se com duzentos e setenta e sete nomes. A seguir, os exércitos de Isabel esmagaram os irlandeses rebeldes ao Acto de Supremacia;
da sua polícia perseguiu os padres chegados do continente, executando 144; e os presbíteros calvinistas tiveram de entrar na clandestinidade e aí continuaram sob
o reinado dos Stuarts.
Entre 1562 (massacre de Wassy) e 1598 (Edicto de Nantes), a França conheceu trinta anos de horror: uma longa guerra santa agravada pela intervenção dos Espanhóis
e dos Ingleses. A Noite de S. Bartolomeu (1572) fez algumas dezenas de milhares de vítimas e marcou o auge do sectarismo. E o último Valois,

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Henrique VIII, encontrou-se entre os extremistas da Liga católica e o Estado huguenote, numa situação trágica de que Henrique IV faz sair a França através de um
acto de grande sabedoria: o Edicto de Nantes, que conferiu aos protestantes as garantias suficientes.
Lutero tinha contribuído fortemente para dar consistência ao sentimento nacional alemão, mas a Alemanha saíra territorialmente dilacerada das lutas religiosas; portanto,
foi em vão que Carlos V se esforçou por reunificá-la. Essa fraqueza foi mantida pelos seus sucessores e também pelas cobiças estrangeiras: a Guerra dos Trinta Anos
(1618-1648) - é não só a última guerra religiosa, mas também a mais atroz - deixará a Alemanha exangue: a sua população reduzida a metade e o seu apagamento político
durante dois séculos.
Filipe II (falecido em 1598), filho de Carlos V, foi o senhor de um magnífico império; no centro, a Espanha, que já estava no "século de oiro", o de Cervantes, de
El Greco, de Inácio de Loiola e de João da Cruz. Os "Reis Católicos" tinham-lhe dado um instrumento tremendo: a Inquisição espanhola, que soube utilizar para extirpar
das suas terras o islão, os Judeus, os iluminados (alumbrados), que reclamavam uma reforma pelo espírito, e também os primeiros indícios espanhóis do protestantismo:
por exemplo, o erasmiano Valdés teve de se exilar. Nas ricas províncias dos Países Baixos, herdadas da Borgonha, Filipe II escapou a um calvinismo decidido, reforçado
pelo seu patriotismo; o Conselho do duque de Alba (falecido em 1582) não se cansou de multiplicar as condenações à morte - fala-se em 1800 -, mas os homens frios
do Norte não cederam; animadas pela família de Orange, depressa as sete províncias setentrionais fizeram a sua secessão (1586): foram as Províncias Unidas - a Holanda
- com um prodigioso futuro. No entanto, as províncias do Sul (as da futura Bélgica), onde os jesuítas eram numerosos e onde se impunha a prestigiada Universidade
de Lovaina, mantiveram-se fiéis a Roma. O fracasso da Invencível Armada lançada por Filipe II contra a herética Isabel I (1588) consolidou, na Inglaterra, o sentimento
nacional em que um dos elementos era o antipapismo.
Na Itália, a Inquisição de Paulo III, Caraffa, sufocou os evidentes progressos da Reforma, obrigando os seus chefes - Ochino,

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Vermigli e Vergerio - a fugir. Apenas os valdenses, que tinham aderido à Reforma, resistiram: em 1545, centenas deles foram massacrados no vale de Durance.
Aliás, a reconquista católica utilizou armas mais pacíficas ou dispôs, sobretudo, de um exército admiravelmente preparado: a Companhia de Jesus, cuja acção, "com
base em colégios e pregações", foi apoiada, por vezes de modo indiscreto, pelos governos católicos. Em 1549, instalou-se em Ingolstadt o jesuíta Pedro Canísio que,
durante trinta anos, foi a alma da reconquista do Sul da Alemanha, das regiões renanas, da Boémia e da Polónia: Friburgo, Gratz, Munique, Colónia, Bransberga e Praga
foram alguns dos pontos de apoio dos jesuítas auxiliados pelos seus "alunos": Alberto V e, depois, Guilherme V da Baviera, Fernando da Áustria, que obrigou a nobreza
da Estíria, da Caríntia e da Carniola a abandonar o protestantismo, Henrique Bathory e, depois, Segismundo III que conduziram a Polónia inteira à obediência romana.
Os jesuítas pensaram na Escandinávia, na Rússia e, em 1595, os Rutenos faziam a sua adesão ao Papa. Na Hungria, o jesuíta Pázmany (falecido em 1637) tornou-se primaz
e dotou o país de um clero autónomo, ao fundar em Viena o seminário Pázmaneum; não só instalou a sua ordem nas cidades protestantes, mas também numerosas famílias
magiares voltaram ao catolicismo.

6. A Igreja fora da Europa

Muito naturalmente, a Companhia de Jesus foi associada ao movimento missionário subsequente à formação dos impérios coloniais espanhóis e portugueses, porque estes
povos conduziram as frentes da colonização e da evangelização; por diversas vezes, os papas, em actas oficiais, ligaram o estabelecimento de igrejas coloniais à
implantação europeia; assim, em 1501, Alexandre VI concedeu à Coroa espanhola o dízimo recebido da América e impôs-lhe, em contrapartida, o encargo de fundar e dotar
algumas comunidades cristãs. Fundadores, protectores, administradores da Igreja nas índias Orientais e Ocidentais, os reis ibéricos instauraram aí o regime do "patronato"
que,

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misturando o espiritual com o temporal - "as almas e a pimenta" -, tornou os missionários parcialmente responsáveis pelos excessos da colonização, sobretudo na América
Latina. Esses excessos, desencadeados pela sede das especiarias e do oiro, são bem conhecidos: trata-se menos de massacres - que uma "lenda negra" exagerou - do
que de um violento regime colonial.
Portugal, país pequeno, dispunha de poucos homens para fazer mais do que estabelecer feitorias e postos periféricos nas costas de África e da Ásia. Podemos considerar
como missionários os bispados estabelecidos em Marrocos (1421), na Madeira (1514), nos Açores (1534); no Congo, dominado pela escravatura, uma jovem Igreja indígena
(1490) não teve futuro, tal como aconteceu em Moçambique (1561), onde reinava o islão; em Angola (1560), os missionários portugueses não passaram de párocos dos
colonos; na Etiópia - o misterioso reino do Preste João -onde os jesuítas não puderam penetrar. Nas índias Orientais, os Portugueses cometeram o erro fundamental
de impor aos autóctones "convertidos" as regras de um catolicismo europeu estreitamente ligado aos interesses lusitanos.
Com um zelo devorador, um dos discípulos de Inácio de Loiola, o navarro Francisco Xavier (falecido em 1552) lançou-se sobre a índia portuguesa - Goa, Cochim, Colombo,
Macau... -, mas sem um conhecimento suficiente dos costumes e das riquezas do hinduísmo; logo foi contestada a eficácia do seu apostolado. Na verdade, esse missionário
cheio de zelo era inteligente e soube corrigir os seus primeiros erros. A viagem que fez ao Japão (1549-1551) convenceu Francisco Xavier da necessidade de uma adaptação
e de uma formação especiais para os missionários que tivessem de abordar o Extremo Oriente. Os seus sucessores não esqueceram, pois, as lições: o padre Matteo Ricci
(falecido em 1610) - Li Mateou para os letrados chineses - considerará que os ritos tradicionais do culto dos antepassados e do confucionismo não têm nada de idolátrico;
quanto ao padre de Nobili (falecido em 1656), portar-se-á como um brâmane entre os brâmanes. Aliás, não se insistirá nunca muito sobre a extraordinária irradiação
dos jesuítas em Pequim, sobretudo no século XVII. Mas se a maioria dos jesuítas pretendia desocidentalizar o cristianismo e admitir nas civilizações da Ásia tudo

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o que não era incompatível com o Evangelho, em face deles os dominicanos, os franciscanos e os vigários apostólicos saídos das Missões estrangeiras exigiam conversões
completas. Desta oposição nasceu a excessiva e interminável "querela dos ritos" (1645-1744) que agravou a luta travada pela Igreja no Ocidente contra as sequelas
do paganismo e que terminou pela derrota dos jesuítas no tempo de Bento XIV, porque tal intransigência acabaria por produzir frutos bem amargos.
No imenso Império Espanhol, franciscanos, dominicanos e depois jesuítas foram auxiliares dos colonos. Enquanto os Portugueses - excepto no Brasil - se furtaram aos
sistemas filosóficos ou às religiões sólidas (islão, bramanismo, etc), os Espanhóis, na América, fizeram muito facilmente tábua rasa da teocracia militar das civilizações
ditas pré-colombianas. É sintomático que um edicto do cardeal Ximenes de 1516 tenha obrigado que cada navio que deixasse a Espanha a caminho da América levasse consigo
pelo menos um padre. Dioceses, escolas, igrejas, seminários organizaram-se assim em território americano, mas a acção da Igreja teve de se harmonizar com uma instituição
oficiosa, tão pouco cristã quanto possível: a encomienda, que colocava um vasto território e os seus habitantes índios na total dependência de um colono, o encomendem.
Associada à prática do repartimiento - requisição assalariada apenas em teoria -, a encomienda assegurou a constituição de vastas explorações agrícolas, a exploração
das minas e a rápida diminuição do povoamento índio. No Brasil português, os donatários representaram um privilégio semelhante ao dos encomenderos. Na Igreja, muitos
ficavam calados, por terem um pacto com os exploradores, alguns dos quais acreditavam na ideia de que os índios não tinham alma ou sublinhavam mesmo a sua intangível
inferioridade moral.
O mais corajoso protestatário foi o dominicano Bartolomeu de Las Casas (falecido em 1566): em 1542, dirigiu a Carlos V a Brevíssima Relação da Destruição dos índios,
cujo título é dramaticamente sugestivo. Mas embora tenha estado na origem das Novas Leis que prepararam a progressiva extinção da encomienda, Las Casas teve de sofrer
a dor de ver aquela ser substituída pelo tráfico dos negros levados de África: miseráveis, de quem o jesuíta Pedro Claver (1654) se tornará um apóstolo cheio de
amor.

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Contudo, não se pode contestar que os missionários católicos mostraram realmente interesse pelos índios. Para os proteger contra a corrupção espanhola, organizaram
aldeias, onde os colonos não entravam, e que eles mesmos dirigiam. Os jesuítas, desde o fim do século XVI, criaram no Uruguai, no Paraguai e no Brasil "reduções"
(1), que concentraram quase cem mil autóctones. Aliás, as línguas indígenas, sendo aos olhos dos missionários a barreira natural contra os vícios dos "civilizados",
permitiram ainda, por exemplo a P. Acosta, no Peru, compor catecismos em línguas quíchua e aimara, enquanto o padre Anchieta foi o autor de uma gramática e de um
dicionário tupi-guarani. Por outro lado, o franciscano Sahagún foi um especialista da língua huatle.
Este regime de tutela não causa admiração porque, se os missionários conduziam os índios para o cristianismo, não era para os fazer aceder ao sacerdócio, já que
a ideia de um clero indígena não era sequer concebível na atmosfera colonialista da época. Muito poucos missionários e mal preparados podiam ver nos "americanos"
outra coisa que não fossem infiéis, "os bons selvagens"; assim, a religião associava-se a um sistema económico-social bastante duro, incidindo muitas vezes num substrato
de superstição e quase de crueldade: eis o que podem esclarecer ainda alguns dos problemas actuais da América Latina, oficialmente um "continente católico", mas
cujas estruturas semifeudais, geradoras de injustiças, ainda se confundem com uma religião mestiçada, com frequência formalista.
Quanto à América do Norte, ela mal começava, no princípio do século XVII, a entrar em comunicação com a Igreja, uma vez que só em 1790 o México e a América do Sul
contarão sete arcebispados e trinta e sete bispados, havendo somente duas sés (Quebeque e Baltimore) ao norte do rio Grande. O papel dos missionários franceses revelou-se
aqui preponderante e é verdade que o século XVII foi, também no plano religioso, um século francês.

Nota 1: Reservas. [N. do T.]

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Capítulo II
O TEMPO DA IGREJA EM FRANÇA

1. A idade de oiro da Igreja em França

A chegada ao poder de Henrique IV em França corresponde ao apagamento da Espanha e da Itália que tinham sido o centro da reforma católica. Com a França bourboniana,
a Igreja galicana sobe no horizonte do século XVII nascente; podemos dizer que essa Igreja vai representar durante muito tempo, na história da Igreja universal,
um papel principal. Mas a sua idade de oiro será conhecida ao longo dos sessenta anos que hão-de decorrer entre o Edicto de Nantes e a morte de Mazarino e, herdando
assim "o mais belo reino do Mundo", Luís XIV beneficiará dos esforços de duas gerações de santos.
Na sua origem, um esplendor espiritual único, uma teologia mística alimentada pelo agostianismo, pelo humanismo cristão, pela mística espanhola e pela corrente renoflamenga,
mas mantendo um tom muito francês pelo seu sentido do equilíbrio e pela sua aptidão para realizar obras úteis e duradouras. Toda a vida espiritual moderna foi informada
por essa teologia que professa a transcedência de Deus, mas exalta o mistério de Cristo incarnado, o único capaz de sublimar o vazio do homem. A virtude da religião,
o "puro amor", a contemplação da vida de Cristo são os aspectos marcantes da escola francesa de espiritualidade, cujos desvios se poderão adivinhar: um

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quietismo, uma religião individualista, uma procura das "consolações" e uma iconografia adocicada e moralizante.
Não havia frivolidade entre os pioneiros, apesar das aparências de um francês espontaneamente exuberante, muito próximo das suas origens e cheio de sumo. Assim,
a gentileza de Francisco de Sales (falecido em 1622), o mestre a quem Bremond chamou primorosamente "humanista devoto", não nos deve iludir acerca da sólida cultura
deste saboiano que foi aluno dos jesuítas. Bispo de Genebra-Annecy, pregador, polemista anti-calvinista, escritor (Tratado do Amor de Deus e Introdução à Vida Devota),
esse belo gentil-homem optimista, muito franciscano de espírito - que seria demasiado fácil opor a outro genebrino, Calvino - propõe às numerosas almas que dirige
um heroísmo sorridente, uma religião pessoal e consciente, num clima de recolhimento e de cultura, de que a oração mental é o alimento principal. Em Paris, Francisco
de Sales frequenta o círculo Acarie, mantido por uma das suas penitentes, Madame Acarie, que justamente foi apontada como "a animadora de toda a Paris espiritual";
é lá que encontra um jovem padre humanista, Pedro de Bérulle (falecido em 1629), também ele aluno dos jesuítas. Em 1604, Bérule consegue duas vitórias: obtém de
Henrique IV o regresso dos jesuítas banidos em 1595, depois da conjura de Châtel, e negoceia a instalação em Paris do primeiro carmelo reformado. Da capital, as
teresianas - às quais se junta Madame Acarie, tornando-se, então, Maria da Incarnação - espalham-se por toda a França. A influência carmelita juntamente com a dos
jesuítas contribuirá para centrar sobre Cristo a escola beruliana.
Bremond falou de "invasão mística" e, com efeito, os géiseres brotam por toda a parte, em que se destacam jesuítas como Luís Lallemand (falecido em 1635), instrutor
do terceiro ano e cuja elevada doutrina modelou várias gerações na Companhia; Richeome (falecido em 1625) com a sua Pintura Espiritual ou a Arte de Admirar, Amar
e Louvar Deus, e Surin (falecido em 1663). Ou ainda como o franciscano Bomai, o dominicano de Chardon (falecido em 1615), o capuchinho Joseph du Tremblay, "eminência
parda" de Richelieu, autor de uma Introdução à Vida Espiritual; mesmo o carmelita João de Saint-Simon (falecido em 1636) e depois os discípulos de Francisco de Sales,
como Camus

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(falecido em 1652), bispo de Belley, os discípulos de Bérulle, como Condren (falecido em 1641), autor das Considerações sobre os Mistérios de Jesus Cristo, Bourgoing
(falecido em 1662), Olier (falecido em 1657) e a sua célebre jornada Cristã, João Eudes (falecido em 1680) e a sua Vida e o Reino de Jesus. E muitos outros.
Mas toda a espiritualidade viva se exprime naturalmente nos actos e nas obras. Francisco de Sales funda em Arvnecy, em 1610, a Ordem da Visitação de Maria, aberta
a saúdes delicadas e cuja vida interior se exprime nestas palavras: "Que toda a sua vida seja para se unir a Deus e ajudar a Igreja." Segundo uma forma de colaboração
frequente na história dos santos, o bispo de Annecy encontrou em Joana de Chantal uma alma gémea e, na altura da sua morte (1641), já se contará mais de uma centena
de conventos das visitandinas. A "santa estima ou santa amizade" salesiana inspirará no século XIX a obra benemérita de João Bosco, fundador dos salesianos e das
salesianas.
Na França de Luís XIII, a vida religiosa refloresceu. A velha ordem beneditina renova-se em "congregações" e as duas mais célebres são francesas: a Congregação de
Saint-Vanne (de Verdun), formada em 1605, que agrupará a partir de 1630 uns cinquenta mosteiros espalhados por vários lugares e orientados pela regra de Monte Cassino;
e a Congregação de Saint-Maur, mais prestigiosa, criada em Paris em 1618, cujo centro será a velha Abadia de Saint-Germain-des-Prés: Dom Tarisse, o primeiro superior-geral,
não se contentou em reformar os mosteiros da sua obediência (poderão contar-se 191 no fim do século XVII): orientou a actividade dos seus monges para a erudição
histórica, em que mauristas como Mabillon, Ruinart e Montfaucon serão famosos. Aliás, em Cluny e em Cister, continuam a reinar a comenda e a opulência. E é para
reagir contra o esquecimento dos ensinamentos de S. Bernardo que Armando de Rance, em 1664, transforma a abadia cisterciense de Notre-Dame de Trappe, na Normandia,
num centro de austeridade que, avançando a pouco e pouco, animará a extraordinária Ordem dos Trapistas.
Em 25 de Setembro de 1609, a abadia cisterciense feminina de Port-Royal conheceu também o seu Pentecostes: recusando definitivamente ao Mundo o acesso à sua comunidade,
a jovem abadessa Angélica Arnauld abriu à sua abadia uma grande e

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terrível carreira. De todo o lado afluem a França religiosas e religiosos: carmelitas, ursulinas, filhas de S. Tomás, teatinas e bernardas, sem contar os quarenta
colégios fundados em sete anos pelos jesuítas. Das cento e dezoito comunidades que, em 1789, haverá em Paris, 82 delas foram fundadas no século XVII e 48 durante
o reinado de Luís XIII.
Tal balanço, favorável aos regulares, não deve iludir o verdadeiro estado da Igreja galicana, da qual Richelieu, nos Estados-Gerais de 1614, dizia que "estava inteiramente
despida do seu antigo esplendor e nem sequer era reconhecível". Os principais males da Igreja de França consistiam no facto de, por um lado, a comenda, as guerras
de religião e os benefícios eclesiásticos se terem tornado para a realeza uma caixa de pensões; e, por outro, a ignorância e a imoralidade do baixo clero, a miséria
e o embrutecimento do povo continuarem a grassar. Mas coube a honra aos representantes do clero nos Estados Gerais de 1614 - e ao seu porta-voz, Richelieu - de,
contra a sua vontade, "receber" os decretos do Concílio de Trento, apesar das tramóias do rei e da resistência dos parlamentos. A reforma católica tornava-se, em
França, uma tarefa oficial que foi dificultada pelos hábitos adquiridos, pela Guerra dos Trinta Anos e pela Fronda que semearam tudo de ruínas; mas que foi bastante
ajudada pela protecção de Richelieu, do piedoso rei Luís XIII e, sobretudo, pela acção de alguns padres santos que tinham um duplo objectivo: a formação de um clero
fervoroso e zeloso, a instrução e a atenção pelas camadas populares.

2. Um novo padre

A prolongada degradação do clero e a agitação trazida por Lutero e pelos reformadores à própria noção de sacerdócio obrigaram a Igreja pós-tridentina a institucionalizar
uma classe sacerdotal de quem, no futuro, exigirá a prática das mais elevadas virtudes. Nos seminários nascidos da reforma católica vai ser doravante, mesmo até
aos nossos dias, modelado um tipo muito característico de padre: um ser isolado, embora colocado no coração do mundo, cuja perfeição deverá exceder a

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dos religiosos e cuja acção terá de estar constantemente associada à de Cristo, "o religioso de Deus seu Pai". Neste domínio a França do século XVII fará escola.
Foi em 1611 que Pedro de Bérulle reuniu, numa casa da Rua de Saint-Jacques, no sítio do actual Val-de-Grâce, cinco padres que foram os primeiros membros da Congregação
do Oratório formada de padres "reunidos e retirados em conjunto para se disporem à perfeição do estado sacerdotal, segundo o seu sentido original e para exercerem
as suas funções na obediência e dependência dos bispos".
O ideal de Bérulle ao lançar as bases do Oratório era reabilitar o estado sacerdotal aos olhos dos cristãos, muito habituados a desprezá-lo. O público, graças a
ele, vai habituar-se a a ver os padres andar de batina por toda a parte e aliar a uma cultura sólida uma preocupação de perfeição que Bérulle leva ao ponto de os
oratorianos e o seu fundador, em 1615, fazerem colectivamente o voto de dedicação (1) perpétua a Jesus Cristo e à Humanidade deificada.
Trata-se de um verdadeiro regresso as origens. Na Igreja primitiva - escreve Bérulle - "o clero manifestava tão profundamente gravada em si mesmo a autoridade de
Deus, a santidade de Deus, a luz de Deus... que os primeiros padres eram não só os santos, mas também os doutores da Igreja". Depois, como o tempo "que corrompe
todas as coisas, foi relaxando a grande maioria do clero; e aquelas suas três qualidades (autoridade, santidade e doutrina) que o espírito de Deus tinha juntado,
também foram sendo divididas pelo espirito do homem e pelo espírito do mundo, a autoridade ficou entregue aos prelados, a santidade aos religiosos e a doutrina às
Academias". Três outras personalidades fizeram também uma obra duradoura em matéria de formação do clero. O excêntrico Bourdoise (falecido em 1655) formou a comunidade
paroquial de Saint-Nicholas de Chardonnet onde, entre 1631 e 1644 se formaram mais de quinhentos padres e clérigos vindos de toda a França. O pároco da imensa paróquia
Saint-Sulpice, em Paris, Olier (falecido em 1657), alarga a experiência de Bourdoise, formando no

Nota 1: "Escravidão" foi a palavra usada. [N. do T.]

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seminário interdiocesano de Saint-Sulpice três espécies de estratos: um corpo de directores - os "Messieurs de Saint-Sulpice" ou Sulpicianos -, uma reserva de padres
santos e um viveiro de aspirantes ao clero. Na mesma altura (1643), um padre normando, João Eudes (falecido em 1680), fundava em Caen a Congregação de Jesus e de
Maria, cujos membros - os eudistas - tomaram a seu cargo a maioria dos seminários da Normandia para aí poderem preparar os padres para o seu apostolado junto das
massas.
As massas! Cidades fustigadas pela guerra, enxameadas de pobres e vagabundos, juncadas de crianças abandonadas; as aldeias entregues à miséria e à desmoralização,
desamparadas por um baixo clero indigno ou esmagadas pelas colectas eclesiásticas! Para tratar destas chagas era necessário um homem que reunisse em si as virtudes
do camponês e do padre, manifestasse bom senso, humildade, paciência e uma actividade tenaz: foi essa a maior graça do século XVII: ter conhecido esse milagre na
pessoa de S. Vicente de Paulo (falecido em 1660).
Este padre charnequenho, saído de uma pobre família de agricultores, poderia ter-se contentado com a comodidade vantajosa de um lugar de capelão junto da rainha
Margot ou ao pé dos opulentos Gondi. Mas Deus, que o destinara a uma vocação excepcional, multiplica os seus encontros e experiências aparentemente sem ligação entre
si, que acabaram por alargar ao infinito o seu campo de acção. Por ter tido Bérulle como director espiritual, por ter sido amigo de Francisco de Sales, por ter conhecido
como pároco de Châtillon-les-Dombes "a grande piedade das igrejas de França" e por, depois, como capelão das galés, ter tocado o fundo da miséria humana, Vicente
revela-se aos 45 anos um homem de grandes obras, dentro de três orientações principais: a evangelização dos campos, a formação dos padres e a protecção dos pobres.
Aos pobres dos campos, Vicente envia equipas sacerdotais - os lazaristas -, a quem recomenda acima de tudo que evitem "as pregações alineadas" à maneira do tempo.
Mas, para um povo que se deseja fiel, é preciso um clero santo; ora os "maus padres" ainda são demasiado numerosos. Para os clérigos que se preparam para as ordens
(para os ordinandos), Vicente organiza retiros ou exercícios e, para os "antigos", funda as

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Conferências da terça-feira que, até à morte do santo, haverão de reunir a elite do clero francês.
A imagem que se guarda de S. Vicente de Paulo é a de um bom rosto que se inclina sobre os doentes, os pobres e os abandonados. A princípio, algumas mulheres - as
"Dames de Charité" - oferecem-lhe a sua ajuda; mas, depois, uma delas, Louise de Marillac, destaca-se e, no rasto de Vicente, acabará por criar o grupo mais amado
que o mundo havia conhecido: as Filhas da Caridade ou "vicentinas", como também lhes chamam: inicialmente, apenas quatro humildes camponesas que, em 1633, se tornaram
servas dos pobres. Por comodidade, as grandes asas do antigo toucado das vicentinas quase desapareceram, mas as Filhas da Caridade ainda conservam o timbre do seu
hábito tradicional, do qual Jean Guitton diz, com delicadeza: "De um cinzento-azulado sombrio e profundo, que é a cor da sombra, da noite clara, do pensamento e
da solicitude, esse azul tão do século XVII que simboliza a França camponesa, os dias vulgares, a dor quotidiana e monótona". Em muitos casos, as vicentinas são
as únicas intermediárias entre a Igreja e as gentes mais simples.
É necessário dizer que o impulso dado pelos santos não se estendeu à escala do mundo por ausência de um papado que os Tratados de Vestefália (1648), fazendo triunfar
os nacionalismos, afastaram completamente do "concerto europeu". Urbano VIII (1623-1644), Inocêncio X (1644-1655) e Alexandre VII (1655-1667) não dominaram o seu
tempo. E os seus sucessores, longe de poderem entregar-se a uma acção universalista, cada vez mais incomodados pelos medíocres Estados pontifícios que os rebaixam
à categoria de pequenos príncipes italianos serão, depois, confrontados com as querelas doutrinais levantadas sob os raios do Rei-Sol.

3. A harmoniosa fachada da Igreja em França

Costumam identificar-se os sessenta anos do reinado de Luís XIV com a harmoniosa fachada - ao lado dos jardins - do Palácio de Versalhes. Mas isso é esquecer as
misérias e os vícios que, atrás desse admirável alinhamento, se aliavam à glória e à etiqueta. A Igreja de França, microcosmos da Igreja universal,

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apresenta o mesmo contraste. A sua solidez e a sua vitalidade não sofrem contestação; as instituições do período anterior trazem os seus frutos. Ao lado de prelados
da corte, muitos são os pastores atentos cujo talento como escritores e pregadores por vezes não tem paralelo: Bossuet em Meaux, Fénelon em Cambrai, Massilon em
Clermont, Flèchier em Nimes, Mascaron em Agen, Lascaris em Limoges, Roquette em Autun, Camus em Gre-noble. Sob os passos de um clero mais bem formado, nascem e prosperam
as obras. As missões multiplicam-se: missões estrangeiras (a sociedade e o seminário das Missões Estrangeiras são constituídos regularmente em Paris, em 1664), mas
sobretudo missões internas, populares, rurais.
Claude Poullard des Places funda, em 1702, o Seminário do Saint-Esprit para a formação de um clero adaptado às regiões mais pobres. No Oeste encontra-se Louis-Marie
Grignion de Montfort (falecido em 1716), aluno de Olier, que se revela um missionário frouxo, mas de boas qualidades apostólicas/ que, tendo trabalhado nos campos
de Saint-Malo a Saintes, deixa aí espalhadas três famílias espirituais: a Companhia de Maria (montfortinos), missionários dos campos; os Irmãos do Espírito Santo,
mais tarde Irmãos de S. Gabriel; as Filhas da Sabedoria, cuja silhueta se tornou quase tão popular como a das "vicentinas". Fora de França, as missões populares
têm como animadores Schacht e Jeningen na Alemanha, Segneri na Itália, López e González em Espanha. A instrução das crianças do povo é uma iniciativa do século de
Luís XIV. Pupulam já as congregações locais de religiosas e muitas aldeias possuem as suas "boas irmãs", para retomar um vocábulo carregado de familiaridade, mas
que encobre muita gratidão. Para as crianças, a fórmula perfeita é encontrada por um padre, João Baptista de La Salle (falecido em 1719), que inaugura uma forma
de vida religiosa adaptada ao ensino popular: religiosos não-padres, em escolas cristãs, entregam-se inteiramente a uma tarefa pela qual o seu criador fundou uma
pedagogia sem pedantismos, mas tão prática quanto possível. E o grande chapéu tricórnio, o mantode mangas largas, o cabeção branco dos irmãos "ignorantinos" serão,
como as grandes asas das Irmãs da Caridade, um pouco como a "salvação" das pobres gentes.

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Cinquenta anos de cultura clássica alimentada de cristianismo - cinquenta anos de educação jesuística - impregnaram de fé a vida de muitas famílias aristocráticas
e burguesas; a literatura religiosa é numerosa e não espanta muito ver Corneille ler as suas Horas e traduzir a Imitação ou Madame de Sévigné mergulhada nas obras
de devoção. O sucesso do culto do Sagrado Coração, de que João Eudes e a visitandina Maria Alacoque (1690) são os propagandistas, testemunha que a mística cristológica
não morreu. E nem vale a pena contar as conversões mais retumbantes, porque em Versalhes o próprio Luís XIV entende lembrar duramente, do alto do próprio trono,
as verdades evangélicas. Embora os fiéis sejam mais exigentes com a sua Igreja e os seus pastores, estes respeitam o dever de residir na paróquia, estão mais bem
formados e revelam-se mais dignos; ou, seja, em condições de melhor representarem o seu papel de "educadores da fé".
Nesta época, nasce-se cristão como se nasce francês. As sondagens feitas em numerosas paróquias rurais pelo sociólogo G. Le Brás levam a acreditar que a prática
religiosa "nunca foi mais generalizada do que entre 1650 e 1789". Mas este mesmo historiador dirá em seguida: "Não existe um grande século na História da Igreja",
pretendendo referir assim que as massas sempre foram difíceis de dominar e sempre se mostram dispostas a um verdadeiro paganismo. Sob o reinado de Luís XIV, é-se
oficialmente cristão porque os refractários ao dever pascal são interditos pelo bispo de se casar na igreja. A revogação do Edicto de Nantes (1685), privando os
huguenotes de qualquer personalidade civil, é da parte de Luís XIV um acto de tirania que torna mais duvidosa a "fidelidade" de certas campanhas.
E é aqui que surge o reverso do Grande Século. Controlo da coroa sobre a Igreja, aliança íntima do poder e da religião, imensa fortuna do clero - elemento de beneficência
e também de paralisia -, domesticação do alto clero, desordem dos costumes - eis algumas da fraquezas da Igreja galicana; mas podemos encontrá-las, muitas vezes
agravadas, em todas as Igrejas nacionais, porque as forças católicas se mostram em declínio.

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4. A Igreja fora de França

Nessa altura, a Itália está estagnante e aí se encontram, sem dúvida, alguns missionários zelosos, como Francisco de Geromino (falecido em 1716), que se flagela
perante um público reticente, mas o clero italiano não tem a importância do clero francês e a doce Itália vive um catolicismo colorido, mas bastante acomodado.
O povo espanhol é bastante religioso, ainda que as suas devoções se revelem por vezes pueris, supersticiosas e intolerantes; a Inquisição, aliás, não está morta.
O alto clero de Espanha, imensamente rico, está em parte ligado aos fidalgos. Este país de seis milhões de almas, em plena decadência, conta setenta mil eclesiásticos,
de quem se gostaria de dizer que formam um clero esclarecido. Quanto ao imenso império da América, ele "prospera" sob o regime do patronato.
Nos Países Baixos espanhóis - em breve austríacos - uma impressão bem diferente: a reforma católica é aí intensa, os seminários de Bois-le-Duc (1625) e de Antuérpia
(1638), as missões e os colégios de jesuítas, o esplendor de Lovaina são elementos de que precisamos lembrar-nos a propósito da admirável Bélgica. De resto, foram
os jesuítas belgas - os bolandistas - que, publicando as Acta sanctorum, deram as suas cartas de nobreza à hagiografia. Nas Províncias Unidas (1) calvinistas, os
trezentos mil católicos beneficiam muito rapidamente de uma tolerância efectiva, mas o Cisma de Utreque, no começo do século XVIII, enfraquecerá as suas posições.
A tolerância não é um facto nos países escandinavos, onde qualquer "papista" é indesejável; nem na Inglaterra, onde Carlos II impõe aos funcionários o repúdio da
transubstanciação e a prestação de um juramento em favor da supremacia real (1673); a queda de Jaime II, em 1688, torna mais severa a política anticatólica que,
depois do Tratado de Limerick (1690), é aplicada à Irlanda com rigor. Na Alemanha, depois dos Tratados de Vestefália - que fizeram passar no Norte catorze bispados
para o protestantismo -, as duas comunhões encontram-se em

Nota 1: Holanda. [N. do T.]

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aberta hostilidade. Algumas "conversões" principescas de uma e de outra parte compensam aqui e ali, mas no interior dos Estados as minorias sofrem muitas vezes medidas
repressivas. A vida religiosa alemã, influenciada pelo pietismo, sofre necessariamente com essa situação.
No fim do século XVII, os Estados hereditários dos Habsburgos revelam-se um bastião do ultramontismo e da contra-reforma, com as suas três universidades, os seus
colégios de jesuítas e as suas ricas ordens religiosas. O decreto de 1651 impõe aos protestantes da Caríntia, da Carniola e da Silésia a escolha entre a conversão
e a emigração. Na Boémia, o protestantismo é posto fora da lei, mas na Hungria os Habsburgos, para não sublevarem uma parte notável da população, têm de condescender
muito. A Polónia tinha sido inteiramente reconquistada para o catolicismo e o povo polaco, sob a influência, sobretudo, das ordens religiosas, enraizou-se numa piedade
colectiva e entusiástica que não o abandonou ao longo de três séculos de vicissitudes. O clero polaco, por volta de 1700, possuía oitocentos e sessenta mil servos
e a comenda era um flagelo que os reis, sempre falidos, erigiam como instituição. Os papas contaram muito com a Polónia.
Após Clemente IX (1667-1669) e Clemente X (1670-1676), que foram eclipsados pelo seu parceiro Luís XIV, o reinado de Inocêncio XI (1676-1689) brilhou com algum esplendor:
o Papa devia agir depressa e conter o avanço dos Turcos; mas não tendo podido fazer melhor do que colocar de pé uma Santa Liga sempre periclitante, os seus esforços
levaram à libertação de Viena por João Sobieski, em 12 de Setembro de 1683, e à exclusão dos Turcos da Hungria.
Inocêncio XI sofreu com a incapacidade da sede apostólica para refazer a unidade dos cristãos. Como os seus predecessores, favoreceu as negociações irénicas. Depois
de 1660, com efeito, estabeleceram-se alguns contactos entre católicos e Russos, entre católicos e protestantes (correspondência entre Bossuet e Leibniz de 1678
a 1702), houve mesmo controvérsias anglicano-romanas, que não conduziram a nada, por não serem as Igrejas muito sensíveis àquilo que as opunha. Permaneciam as missões
exteriores, que permitiam ganhar novos fiéis. A

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Congregação da Propaganda, criada em 1622, representou um papel essencial com a ajuda da França instalada desde 1604 em Acádia, na Nova Escócia. Ultrapassando o
patronato/patroado ibérico, a Propaganda quis dar uma direcção das missões aos bispos apenas dela dependentes, desejando a formação de um clero indígena para auxiliar
os missionários europeus. Por isso, para fornecer o recrutamento das missões, os primeiros vigários apostólicos favoreceram a criação em Paris, na Rua do Bac, da
Sociedade das Missões Estrangeiras e do seu seminário (1664). Pouco a pouco, os missionários foram libertados, no Extremo Oriente, das ingerências portuguesas e
somente os jesuítas das índias, Sião e China, foram dispensados do juramento feito aos vigários apostólicos (1689).
Mas foram ainda os jesuítas que fizeram, muitos deles à custa do próprio sangue, o Canadá francês. Como na América Latina, sedentarizaram os índios, agrupando-os
em aldeias onde os ensinaram a cultivar a terra: estes "rudes" mostraram-se particularmente dóceis. Em 1658, Montmorency-Laval foi nomeado vigário apostólico da
Nova França e, em 1674, tornava-se bispo do Quebeque, diocese francesa impermeável às querelas anti-romanistas que, na época, enfraqueciam as posições da Igreja
na Europa.

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Capítulo III
O ANTI-ROMANISMO UNIVERSAL

1. A grande vaga do jansenismo

"O jansenismo - nunca é de mais repetir isso - foi em primeiro lugar, como a Reforma protestante, um debate teológico." (J. Delumeau). O problema das relações entre
a graça divina e a liberdade humana ou livre-arbítrio, sempre assediou a teologia cristã. Sto. Agostinho, por motivos de polémica contra a heresia pelagiana, insistiu
particularmente na omnipotência da graça, e na miséria e a fraqueza do homem. Lutero e Calvino apoiaram-se nisso, mas o Concílio de Trento, em 1547, evitou definir
as relações do livre-arbítrio e da necessidade da graça.
Na segunda metade do século XVI, as posições agostinianas foram atacadas por teólogos jesuítas, sobretudo por Molina (falecido em 1601), que afirmou que a graça,
suficiente para fazer o bem, não produzia o seu efeito senão pela decisão do livre-arbítrio. Violentas controvérsias se verificaram no centro principal que foi a
Faculdade de Teologia da Universidade de Lovaina: já em 1567 as teses pessimistas de Baius, chanceler dessa Universidade, tinham sido condenadas por Roma, porque
pretendiam afirmar que apenas a imputação do mérito de Cristo pode encontrar a salvação.
Uma intransigência semelhante presidiu, entre 1628 e 1636, à elaboração do Augustinus, vasta súmula composta por outro

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doutor de Lovaina, Jansénio, bispo de Ypres a partir de 1635. Augustinus aparece apenas em 1640, depois da morte de. Jansénio, mas reabre então a querela sobre a
graça, sobretudo em França, onde um amigo pessoal de Jansénio e também discípulo de Bérulle, João Duvergier de Hauranne, abade de Saint-Cyran (falecido em 1643),
chefe do "partido devoto", era desde há vários anos director espiritual do mosteiro cisterciense de Port-Royal de Paris, de que Angélica Arnauld era abadessa. Saint-Cyran
extraiu do Augustinus, tratado essencialmente doutrinal, uma espiritualidade original, muito alargada e esclarecida pela "guerra cruel", a que se entregam esses
dois homens, para uso das religiosas de Port-Royal ávidas de santidade. Saint-Cyran, cujo modo franco de falar e independência desagradavam a Richelieu (1638), foi
preso em Vincennes, donde apenas saiu para morrer. António Arnauld, o mais novo irmão de Angélica, aceitou a substituição com brio, ajudado pelos seus sobrinhos
Le Maistre que, dos campos foram para Port-Royal, se tornaram os seus primeiros "solitários". Em 1643, Arnauld publicou o Tratado Da Comunhão Frequente, em que,
para combater o "laxismo" dos jesuítas, apresentava a comunhão eucarística não como um meio de se santificar, mas como uma recompensa adquirida pela mortificação
e, portanto, raramente merecida. Se Vicente de Paulo e Olier reagiram contra esse rigorismo, muitos outros em Paris, sobretudo os inimigos dos jesuítas, não deixaram
pelo contrário de aplaudir.
Formou-se assim em redor de Port-Royal e dos Arnauld um "partido jansenista", composto por pessoas, como as cistercienses de Port-Royal, que levavam uma vida santa
(embora marcada por um secreto orgulho), por piedosos leigos entregues a si mesmos como os Arnauld e mesmo por clérigos galicanos. Portanto, o jansenismo não foi
apenas uma teologia e um rigorismo, foi também uma eclesiologia que exaltou o episcopado em detrimento das ordens religiosas e do papado, e cujas tendências presbiterianas
são evidentes.
O partido enfrenta constantemente as decisões de Roma: Inocêncio X em 1653, depois de ter condenado as cinco proposições heréticas que a Sorbonne extraíra do Augustinus,
confrontou-se com os jansenistas que afirmavam que o livro não

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as continha. O auxílio veio-lhes de um convertido, Blaise Pascal (falecido em 1662), matemático e físico de génio, que na "noite de fogo" de 23 de Novembro de 1654
tinha "apostado" a favor de Deus. As dezoito Cartas Provincianas que lançou (1656-1657) sobre os jesuítas casuístas acusados de acomodarem a religião às exigências
e aos vícios do século, permanecem como uma obra-prima em que o fervor e a indignação inspiraram uma verve feroz.
Este lance, porém, não salvou os jansenistas que Mazarino e o jovem Luís XIV consideravam personagens que faziam sombra ao poder real. Em 1661, as noviças e as educandas
de Port-Royal foram expulsas; em 1664, as religiosas recusaram assinar o formulário que condenava Jansénio e foram reunidas nos campos; aliás, quatro bispos franceses
imitaram-nas nessa recusa. A Paz Clementina (1669-1679) não foi mais que uma trégua, mas foi também o tempo dos Granges em Port-Royal dos campos e dos grandes "solitários":
Lancelot, Nicole, Hamon, Le Maistre de Sacy. Assim, Port-Royal dos campos tornou-se (tendo sido, então, o seu bonito outono) o ponto de encontro de toda uma grande
elite; mas, por falta de meios, o mosteiro iria desaparecer. Quando morreu no exílio, Arnauld (1694), o oratoriano Quesnel (falecido em 1719), instalado nos Países
Baixos, depois nas Províncias Unidas, tornou-se o chefe do jansenismo. No entanto, Luís XIV, já velho, não podia suportar mais a dissidência, fosse sob que forma
fosse. Depois, um escrito de Eustáquio, confessor da comunidade de Port-Royal, Um Caso de Consciência, foi condenado por Clemente XI e, desde logo, a sorte das cistercienses
se precipitou: excomungadas (1707), expulsas, dispersas pela província, não deixaram atrás de si mais do que simples ruínas; em 1712, até o cemitério das religiosas
era devastado.
O partido jansenista não estava ainda destruído. Em 1713, a bula Unigenitus de Clemente XI, tendo condenado 101 proposições extraídas das Reflexões Morais de Quesnel,
um grupo importante de eclesiásticos franceses reclamou do Papa a realização de um concílio geral. Mas a resistência a essa bula não foi popular. Aliás, o jansenismo
enleou-se em várias querelas ligadas ao galicanismo parlamentar e dividiu-se a propósito da autenticidade dos "milagres" que tiveram lugar sobre o túmulo

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do diácono jansenista Paris. O profetismo e a expectativa escatológica com o culto das relíquias de Port-Royal foram outros aspectos do declinante jansenismo. A
partir de 1730, os clérigos jansenistas foram privados de qualquer apoio episcopal e, apesar do auxílio das Nouvelles ecclésiasticjues, gazeta impressa e divulgada
clandestinamente, "o partido não passou de um nome e de um espantalho". Contudo, a sua influência oculta não era desprezável e, assim, o Código Curial do jansenista
Maultrot, salientando deliberadamente o papel dos curas na Igreja, contribuiu certamente, em 1789, para fazer do baixo clero um activo elemento da Revolução.
Fora da França, o jansenismo não se espalhou por muitas zonas. Nos Países Baixos espanhóis, onde nascera, teve alguma oposição ao Papa no seio do corpo episcopal;
mas, desde 1718, a submissão era completa. Em contrapartida, o jansenismo encontrou um clima favorável nas Províncias Unidas, provocando mesmo, em 1705, a secessão
da diocese de Utreque: em 1724, Varlet, bispo suspenso de Babilónia, consagrou o arcebispo Stee-noven como chefe da Igreja cismática dos Velhos Católicos, que aumentou
durante o século XVIII com as dioceses de Haarlem e de Deventer. Os Velhos Católicos - actualmente 13 mil fiéis agrupados em vinte e oito paróquias - não reconhecem
ao Papa senão um primado honroso e celebram a liturgia em língua nacional. Na Itália, o jansenismo foi menos uma tomada de posição doutrinal do que uma atitude de
espírito: liberdade de pensamento, austeridade, antijesuitismo ou admiração por Port-Royal, mas sem afectar muito o baixo clero.
Para poder fazer-se um julgamento sobre o jansenismo, seria necessário em primeiro lugar limitar exactamente o seu conteúdo, o que se torna difícil dado os diferentes
aspectos que assumiu no decorrer dos séculos. Do pré-jansenismo do fim do século XVI aos clãs esotéricos do século XIX, passando pelo jansenismo religioso de Port-Royal,
pelo mais político e parlamentar do começo do século XVIII, sem falar do jansenismo exaltado dos convulsionários, com muitas as variedades.
Mas podemos extrair algumas linhas de força. Em primeiro lugar, o jansenismo reage contra a sua época porque recusa tudo o que, do humanismo da Renascença, o Concílio
de Trento

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conseguiu integrar no catolicismo. Assim se explica, pois, o feroz teocentrismo e ao mesmo tempo se explicam também as suas relações profundas com o cristocentrismo
de Bérulle ou dos grandes espirituais da Escola francesa. De resto, trata-se de uma crise religiosa interna que prolonga na ortodoxia o choque inicial da Reforma
quanto ao problema da graça.
O último aspecto não se revela menos paradoxal. De facto, o que espanta no jansenismo é a participação activa dos laicos, porque se estes lutam por uma vida espiritual
pessoal, alimentada pela Bíblia, isso acentua e reforça a tendência individualista do homem moderno, saído da corrente luterana e para lá disso da devotio moderna
dos países nórdicos do século XV.
Com efeito, trata-se de um paradoxo, porque como partido em guerra contra o homem para melhor exaltar a majestade divina, o jansenismo abriu finalmente caminho à
afirmação de uma consciência individual, que o opôs ao longo dos séculos às sociedades espirituais ou temporais que o perseguiram, castigando nele a sua vontade
de salvação através de caminhos individualistas.

2. O galicanismo

"O soberano deve ver, pensar e agir em relação a toda a comunidade", eis as palavras de Frederico II, rei da Frússia, que não fazia mais do que retomar as posições
de Luís XIV e dos seus antecessores. A Concordata de 1515 tinha outorgado ao rei de França a autoridade temporal sobre o clero; os bispos deviam, pois, prestar-lhe
juramento de fidelidade. Com o advento do Rei-Sol, "a união do espiritual e do temporal devia ser estabelecida como princípio de governo". Foi Luís XIV que tomou
pessoalmente a iniciativa de abolir com uma simples assinatura a existência legal do protestantismo em França; interveio directamente na querela jansenista e Port-Royal
só existiu enquanto ele quis. Em 1695, Bossuet condenava Madame Guyon, acusada de ter defendido, no seu Meio Breve e Muito Fácil para a Oração, de 1686, uma doutrina
mística chamada quietista, atitude contemplativa na base da passividade, mas esquecida das exigências da moral.

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Fénelon protegeu-a, mas a sua bela Explicação das Máximas dos Santos (1697) atraiu sobre o doce prelado as raivas e os sarcasmos do bispo de Meaux. Inocêncio XII
mostrava-se bastante hostil ao galicano Bossuet, mas este fez entrar Luís XIV em acção, cujas ameaças obtiveram do Papa a condenação de vinte e três proposições
extraídas do livro de Fénelon.
"A independência absoluta do rei em matéria temporal" é então um dogma, a que se referem tanto o parlamento do rei como o clero de França e este vigia para que as
liberdades e os costumes da Igreja galicana sejam protegidos pelo rei contra o absolutismo romano. Quanto aos oficiais do reino, vigiam para que seja salvo o direito
do rei de defender as relações entre Roma e os seus súbditos, devendo aquele controlar o exercício da autoridade eclesiástica em França. Quando o rei trata com o
Papa, fá-lo com um respeito próximo da condescendência; mas, sentindo-se contrariado nos próprios desígnios, volta-se para os seus súbditos e, sobretudo, para o
seu clero, cujas assembleias decenais se tornam para Luís XIV o melhor obstáculo às iniciativas ultramontanas. Assim aconteceu no demorado conflito que o opôs a
Inocêncio XI (1676-1698) e cuja origem foi a pretensão real à regale universelle, ou seja, à generalização do direito de arrecadar os rendimentos dos bispados vagos
e nomear para os benefícios deles dependentes. Perante as resistências do papa, Luís XIV mandou Bossuet redigir uma declaração em quatro artigos, que proclamava,
nomeadamente, a independência absoluta dos reis do ponto de vista temporal e a superioridade do concílio ecuménico sobre o Papa. Esta declaração foi aceite, em 12
de Maio de 1682, pela Assembleia do Clero e, nesse mesmo dia, o rei prescreveu o seu ensino em todos os seminários. Mas era ir longe de mais e, em 1693, Luís XIV
teve de se retractar.
O galicanismo não estava morto e viverá ainda durante o século XVIII sob a forma parlamentar e sob a sua forma presbiteral. O clero de Luís XV e de Luís XVI será
geralmente digno, muitas vezes douto, mas facilmente prevaricador; o cura galicano estará sempre disposto a resmungar contra uma sociedade que não lhe oferece o
papel a que tem direito; pouco romano, influenciado pelo jansenismo, importunado por uma espécie de presbiterianismo católico, esse clero será um agente activo

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da Revolução de 1789. O Parlamento intervém muitas vezes num sentido galicano e, em 1766, sem consultar Clemente XIII, formou uma "Comissão dos Regulares" que, com
o pretexto de enfraquecimento das ordens monásticas, adiou, autoritariamente, a idade para a emissão dos votos e suprimiu muitas casas religiosas, sacrificando,
assim, ao filosofismo antimonástico.
Porque certos estudos recentes provam que é falso falar, então, de "falta de vocações". O Parlamento tinha feito melhor quando, na sequência de um processo civil
ligado à queda de um missionário jesuíta, o padre La Valette, obtivera de Luís XV o mandato geral da expulsão dos religiosos da Companhia de Jesus, considerados
os principais agentes do ultramontanismo (1764). A surpresa atingiu o máximo quando se soube que Clemente XIV, pelo breve Dominus ac Redemptor (1773), tinha abolido
a Companhia que contava então vinte e três mil membros. Em pleno "Século das Luzes" e de um só golpe, o papado privava-se dos seus melhores defensores, manifestando
com este acto, devido à pressão das cortes, o estado de fraqueza do Soberano Pontífice, quinze anos antes da Revolução.

3. A luta contra "a infame"

Paul Hazard, numa obra célebre, julgou poder vislumbrar uma "crise da consciência europeia", uma mudança moral que teria feito do século XVIII o contratipo do século
anterior. O pirronismo metódico e sorridente, o deísmo vago, a fé no progresso ilimitado do homem, a dessacralização do Mundo, o ódio pelos dogmas, o epicurismo,
a crítica de toda a autoridade, o não-conformismo: eis alguns dos aspectos característicos deste "século de Voltaire", que facilmente se opõe ao "século de Luís
XIV".
Na realidade, não se deu um brutal desvio. Diderot tinha razão ao dizer que "tivemos alguns contemporâneos no tempo de Luís XIV", porque o século XVII cristão e
monárquico escondia sob a sua massa imponente uma larga corrente de cepticismo e de epicurismo, cujas fontes eram profundas e longínquas. As dúvidas de Erasmo e
de Montaigne em relação aos ergotismos teológicos prepararam desde há muito o caminho a um certo

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fideísmo; as querelas doutrinais nascidas da Reforma protestante e, depois, do jansenismo agravaram esse estado de espírito. Pouco a pouco, o "homem íntegro" deu
o seu lugar ao "homem honesto" que apagou o "filósofo" amante da sabedoria e das luzes.
A esta nova humanidade faltava realmente uma nova religião: uma religião simplificada que era já a dos humanistas erasmitas e que conduziu "à árida crença num Deus
simples e sem rosto". O século XVIII teve a mania de tudo simplificar para aí poder ver com mais clareza. O humanismo cristão quis em primeiro lugar desembaraçar-se
pelo caminho que leva ao Evangelho, pretendeu o filosofismo que, afastando de si qualquer revelação, negando a necessidade que a humanidade tem de um resgate, fabricou
uma ideal "religião natural" pela eliminação das "superstições" próprias das religiões positivistas, tendo essa religião como missão "manter os homens na ordem".
No entanto, o cristianismo mantém-se ainda de pé, mesmo depois de ser tão utilizado e sempre regressando "ao seu núcleo primitivo de religião natural": a caridade
tornar-se-á beneficência, a razão será uma regra universal, a física substituirá a Revelação. O padre não será para os racionalistas mais do que um "oficial de moral";
os "sensíveis" inclinar-se-ão a favor do "vigário saboiano" de Jean-Jacques Rousseau, cujo deísmo se acomoda a uma dogmática sem consistência, porque uma das características
do século XVIII será "o eclipse do dogma e a promoção da moral", o nivelamento por cima de certas noções admitidas por toda a Humanidade. Bossuet foi, perante a
imensa onda avassaladora, o último bastião do século de Luís XIV e já denunciava, desde 1701, a indiferença a respeito das religiões como a "loucura do século".
Fazendo-se eco disso mesmo no campo contrário, Saint-Evremond declarava: "A doutrina é contestada por toda a parte, servirá eternamente como matéria na disputa entre
todas as religiões, mas deverá ter-se sempre em conta os costumes". Este moralismo penetrará profundamente a mentalidade dos nossos contemporâneos, incluindo os
cristãos; mas do cartesianismo, o filosofismo apenas conservará o livre exame, a dúvida metódica e a concepção de um universo mecânico. Quanto ao teísmo newtoniano,
transplantado para França, tornar-se-á um vago deísmo.

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A Igreja Católica devia necessariamente ser, entre todas as "fortalezas da intolerância e do dogmatismo", a mais violentamente atacada. Corpo visível, fortemente
estruturado, instituição alicerçada numa teologia activa, mas participando nas fraquezas da sociedade em que está implantada, foi por todos os lados visada e durante
muito tempo quase se mostrou incapaz de resistir.
Pensemos na vanguarda, fortemente influenciada pelo deísmo inglês, por Locke (O Cristianismo Racional, 1695), Toland, Collins, Tindal. Pensemos nos refugiados huguenotes
da Holanda e no mais activo dentre eles, Pedro Bayle (falecido em 1706), com as suas Notícias da República das Letras que dirige de Roterdão, lutando contra todas
as formas de intolerância; o seu Dicionário Histórico e Crítico (1697), que contará dez edições em sessenta anos, onde evidencia notas como esta: "É preciso verificar
necessariamente que todo o dogma particular é falso quando é refutado, seja por estar contido nas Escrituras, seja porque é proposto através das noções claras da
luz natural." Fontenelle (falecido em 1757) foi nos salões parisienses "o introdutor discreto das ideias ousadas" e um desses vulgarizadores científicos de que o
século se encherá com nomes como os de Franklin, Buffon, Watt, Montgolfier, que terão maior ressonância que o nome de Jesus. Quanto ao oratoriano Richard Simon (falecido
em 1712), a sua História Crítica do Antigo e do Novo Testamento constitui o primeiro ensaio de exegese racionalista acerca da Bíblia.
Depois da morte de Luís XIV (1715) e da Regência, abrem-se todas as grandes comportas. Libelos, panfletos, jornais, estampas copiadas, impressas às escondidas ou
no estrangeiro, difundidas clandestinamente, afluem aos milhares. Clubes, cafés, salões e academias propagam as novas ideias. Triunfa, assim, o inimitável espírito
francês e a sua frase elegante, cortante, ligeira, perfeita de que se começa a degenerar. A enorme produção é dominada por alguns grandes espíritos: Montesquieu,
cujas "flechas persas" fazem rir o mundo inteiro; o seu Espírito das Leis exalta o regime que asseguraria "ao homem o máximo de independência com maior igualdade",
e condena implicitamente a aliança do trono e do altar; Diderot, o homem-orquestra do Século das Luzes, ávido de tudo, profunda e encarniçadamente

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hostil a toda a estupidez, à intolerância, às ideias feitas, é, no fundo, um verdadeiro ateu. E será pela Enciclopédia, animada por ele e por d'Alembert, feroz adversário
do cristianismo, que passará, através da densidade de um texto desigual, o melhor do espírito desse século: um optimismo que repousa na confiança na ciência e na
liberdade de pensamento que, sem que isso se diga abertamente, substitui, no espírito do leitor, as exigências de uma religião estreita e pouco esclarecida.
Voltaire, que chegou a assinar-se "Christomoque" (1), foi verdadeiramente o "rei" deste século e do que se seguiu. "Monsieur de Voltaire - escrevia o seu inimigo
La Beaumelle - é o primeiro homem do Mundo para escrever o que os outros pensaram", e isso era implicitamente homenagear o espírito, a pena e em definitivo a audiência
desse "simplificador hábil, claro, delicado e persuasivo". Em qualquer instrumento de que se sirva - dicionário, conto, poema... - lá se encontra ele a perseguir
"a infame", a Igreja Católica em que descobre ou julga descobrir o que mais detesta: a teocracia, as seitas - as ordens religiosas -, os abusos de poder, "uma moral
disfarçada" e desumana, sobretudo um dogmatismo baseado nas Escrituras, em que Voltaire apenas vislumbra histórias absurdas ou cruéis e numa tradição dominada pela
intolerância. É verdade que Voltaire foi o defensor de alguns dos nossos bens mais queridos: a tolerância, o direito e a liberdade, mas devemos convir que este espírito
brilhante foi um sábio sem profundidade e um filósofo sem metafísica. No entanto, por volta de 1760, na época em que brandiu a sua arma mais afiada, o Dicionário
Filosófico, Voltaire revelava-se muito forte.
Perante ele, os lutadores mais corajosos, que se batem como franco-atiradores, não falham; Albert Monod recenseou, para o período de 1670 a 1802, mais de seiscentas
obras apologéticas: mas a maioria delas revelam-se como obras medíocres, mal documentadas, pouco a par do progresso das ciências, da geologia e da história. A apologética
da época insiste nos argumentos usados e tirados das maravilhas da Natureza ou da superioridade, claramente contestada pelos seus adversários, da moral cristã.

Nota 1: Zombador de Cristo. [N. do T.]

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4. A Igreja em crise

"Face a tantos ataques que vão da ironia contra as superstições à crítica do dogma e à própria negação de Deus, o catolicismo mantém-se na defensiva e dá evidentes
sinais de fadiga" (J. Delumeau).
Os papas que se sucedem ao enérgico Clemente XI são padres muito respeitáveis, mas revelam-se bastante baços, sem brilho, muitas vezes eleitos num conclave dominado
e sujeito às pressões seculares, que se refugia facilmente num voto de compromisso. Inocêncio XIII (1721-1724) é um velho delicado e conciliador; o dominicano Bento
XIII (1724-1730) permanece fiel à austeridade da sua ordem, mas deixa que o turbulento Coscia governe; Clemente XII (1730-1740), octogenário cego, é também esmagado
pelo seu papel como chefe dos medíocres Estados pontifícios; Clemente XIII (1758-1769) e Clemente XIV (1769-1774) são pontífices sem autoridade. Apenas Bento XIV
(1740-1758) pode ser creditado por um grande pontificado: dá vida aos seus Estados, enfrenta os déspotas obstinados e, sobretudo, tem a coragem lúcida de enfrentar
o filosofismo a que ele opõe, segundo uma prática muito esquecida que utilizarão os papas do nosso tempo, algumas encíclicas doutrinais, como Vix pervenit (1745),
que retoma o problema do dinheiro na conjuntura económica da época. Mas, em 1775, ascende à cadeira de
S. Pedro um belo italiano, João Angelo Braschi, tornado Pio VI, que se mostra amigo do luxo, egoísta e fraco, mas a quem irá caber a pesada provação da Revolução.
Mas o aspecto mais grave não é o nepotismo, que refloresce na Roma do século XVIII; é antes o facto de a influência real de Roma sobre o avanço do Mundo se mostrar
então extremamente enfraquecida. "Ao abranger com o olhar a evolução cultural do século XVIII, nada se torna mais penoso do que verificar a ausência da Igreja e
da sua direcção suprema na discussão dos problemas candentes. Tudo se passa como se essa discussão tivesse passado por Roma sem despertar o seu interesse. [...]
O diálogo com o Mundo nesse século XVIII tão instável foi negligenciado de forma quase sistemática" (L. J. Rogier). Em tais condições, a reunião de um concílio geral
não pode sequer ser levada a cabo.

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Por isso, os "déspotas iluminados" e sem nenhum escrúpulo tentam enfrentar este papado sem vigor. Déspotas, porque, à imagem de Luís XIV pretendem não depender senão
de Deus ou de si próprios. Iluminados, porque a Filosofia admite que a libertação e o progresso da Humanidade pressupõe um governo forte. Muito naturalmente, controlam
a actividade dos corpos constituídos, mesmo a das Igrejas, como acontece na Prússia com Frederico II, na Rússia com Catarina II, na Suécia com Gustavo III e na Dinamarca
com Struensee. Nos países de obediência romana, o despotismo obstinado ganha uma forma aguda e facilmente sectária.
Em Portugal, o ditador Pombal condiciona a influência da Igreja, confia a censura aos leigos e expulsa os jesuítas, incluindo os do Brasil e das índias (1759). Em
Parma, Tillot imita Pombal, e os padres da Companhia é que pagam os custos da sua política (1767). Em Nápoles, sob Dom Carlos, Tanucci é o senhor: suprime os privilégios
dos membros napolitanos das congregações romanas e instaura o casamento civil; todo-poderoso após a partida de Carlos para Espanha (1759), expulsa os jesuítas (1773),
imitando Carlos que se torna Carlos III de Espanha e que, em 1767, privou o seu império dos serviços dos filhos de Santo Inácio de Loiola.
Mais doutrinário no plano religioso foi o despotismo dos príncipes católicos alemães. Em 1763, João de Hontheim, coadjutor do arcebispo de Tréveros, publicava, com
o pseudónimo de Justinus Frebonius, um tratado que criticava a forma monárquica da Igreja romana, reclamava para os bispos uma grande autonomia e o regresso aos
princípios do Concílio de Basileia. O livro de Febronius foi largamente conhecido na Europa e muito bem recebido, apesar de ter sido posto no Index em 1764. A retractação,
muito formal, de Hontheim não impediu os avanços do febronianismo numa Alemanha federal, em que a independência austera dos bispos se fortalecia muitas vezes com
a própria posição soberana. Na Baviera, Maximilíano José III (falecido em 1777) tornou mais pesado o domínio da coroa sobre o clero, limitou a censura eclesiástica
apenas aos livros dogmáticos, exigiu certas formalidades civis para o casamento, limitou às fundações o direito de alienar bens. No fim do século, Montgelas,

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o "Pombal bávaro", levará ao máximo este despotismo anticlerical e suprimirá os mosteiros, inspirando-se, para isso, no josefismo.
Os Habsburgos consideravam que o catolicismo era a única ligação das diversas populações que constituíam os seus Estados hereditários. Assuntos do Estado no seu
verdadeiro sentido, os assuntos religiosos deviam ser regulados pelo soberano. Maria Teresa limitou, pois, a influência dos jesuítas e controlou os exames de teologia;
mas foi o seu filho José II (falecido em 1790) quem deu nome e forma a uma política religiosa que visava limitar a acção de Roma apenas ao domínio dogmático, unificar
a legislação dos vários Estados, reconduzir a Igreja à sua primitiva pureza e combater o misticismo. A supressão da Companhia de Jesus levou ainda José II a suprimir
os mosteiros dos contemplativos, considerados inúteis e cujos rendimentos passaram para o clero e para as escolas paroquiais; nos seus seminários gerais vigiou de
perto a formação do clero. Teórico de vistas curtas - chegaram a designá-lo como "o rei-sacristão" -, José II gostava de fazer pirraças e tropelias: comunicação
prévia e censura dos sermões, proibição de peregrinações e procissões, regulamentação minuciosa do culto. Inquieto com tudo isto, Pio VI fez uma viagem até Viena
(1782), mas essa insólita deslocação não serviu de nada.
Nos Países Baixos austríacos - Bélgica, rica e viva -, o josefismo foi aplicado com uma absoluta falta de tacto: contribuiu largamente para a impopularidade dos
Habsburgos e os acontecimentos de 1789 mostrá-lo-ão claramente. Na Lombardia austríaca, a Universidade de Pavia era um centro de josefismo e de jansenismo: o ensino
ministrado por um Pedro Tamburini, entre outros, não deixava de ter influência. Mais sistemática e mais estreita foi a aplicação das ideias josefistas no grande
ducado da Toscana, governado, entre 1765 e 1790 por Leopoldo II, irmão mais novo de José II: suprimiu a Inquisição (1787), mas também uma boa parte dos mosteiros;
desprezou a truculenta e excessiva piedade toscana, impôs uma hora para o estudo da religião, obrigou os seminários a utilizar os livros teológicos idos de Viena
e de Paris e apoiou a acção do bispo jansenista de Pistóia, Scipione Ricci.

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Deste modo, privada desde a Reforma de muitos dos seus filhos, dominada pelo racionalismo, a Igreja romana era combatida, no seu meio, pelos seus próprios filhos:
o poder papal estava realmente aniquilado, a vida monástica era desprezada. Sinal dos tempos: a Polónia foi esmagada e enfraquecida por três príncipes pertencentes
às três confissões cristãs: o Habsburgo católico, o Romanov ortodoxo e o Hohenzollern protestante. A Europa não protesta e o Papa não esboçou sequer um gesto eficaz.
Maquiavel e Voltaire eram reis. Nenhuma grande obra parecia ser inspirada pelas ideias cristãs. Nos braços da colunata de Bernini, Pedro estava mudo. A tempestade
que se preparava nos céus de França iria dilacerar e, depois, aniquilar os últimos restos de cristandade?

5. A "Aufklärung" católica

De facto, o josefismo e os seus irmãos não foram invenções dos leigos e não se desenvolveram fora da Igreja. "Por detrás de cada ordem josefista, está um teólogo
ou um canonista como inspirador" (L. R. Rogier). Os próprios excessos do josefismo testemunham o desenvolvimento, na Europa Ocidental e, sobretudo, depois de 1770,
de um "catolicismo esclarecido", de uma Aufklärung ("Filosofia das Luzes") católica. À mesma distância dos integristas, "imutavelmente agarrados aos cânones do Concílio
de Trento", e da corrente jansenista, distingue-se uma espécie de "Terceiro partido", um grupo muito activo de cristãos, clérigos e leigos, "decididos a evangelizar
uma humanidade paralisada nas suas transformações espectaculares" e que procuram "uma nova linguagem mais bem adaptada, uma inserção nos grandes fermentos intelectuais
do seu tempo" (B. Plongeron). Deste ponto de vista, é necessário identificar um período longo (1770-1830) da Aufklärung católica, em que as revoluções de 1830 e
a eleição de Gregório XI marcam um nítido corte, a ruptura definitiva da civilização das Luzes e da cristandade.
Na perspectiva desse catolicismo esclarecido, assistimos, no último terço do século XVIII, à entrada em prática de algumas questões de renovação eclesial, temas
que de novo surgem nos nossos dias: uma Igreja renovada nas suas estruturas, com

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participação mais ampla dos corpos intermédios em detrimento de um curialismo paralisante; uma Igreja ao serviço do povo cristão, uma Igreja pobre, atenta aos carismas
das suas origens, afastando as devoções barrocas em proveito do espírito evangélico, uma Igreja inteligível para todos e promotora da cultura popular. Um grande
esforço é feito, então, pelos cientistas católicos no domínio filológico, histórico e hagiográfico, enquanto a literatura mística detém um enorme prestígio face
às superstições ainda em voga. Um certo espírito crítico, um espírito de procura, uma inquietude viva opõe~se também à acção persistente, mas bastante anestesiante,
de um catolicismo demasiado estritamente tridentino.
A Aufklärung católica encontra o seu terreno de eleição nos países germanos. Enquanto num país latino, a atitude da Igreja face à Filosofia parece ser como a "do
rochedo no meio das ondas", na Áustria, na Baviera e na Renânia, a Igreja faz o seu exame de consciência e, dessa forma, põe fim "à mediocridade dos estudos sagrados".
Tudo é renovado, desde os estudos teológicos à formação dos padres, das práticas de devoção ao ministério pastoral aplicado aos problemas sociais e económicos. A
Aufklärung é, sobretudo nestes países, uma reacção - por vezes excessiva, como testemunha o josefismo - contra a piedade barroca repleta de devoções exageradas e
de práticas supersticiosas. Mas não se deve perder de vista que a política de José II, por exemplo, contribuiu fortemente para reparar o nível cultural e social
do clero e dos fiéis.
É que foi precisamente isso o essencial na Reforma católica: a sua inserção na vida religiosa quotidiana. Mas as aparências, nesse plano, são falsas, porque embora,
na véspera da Revolução Francesa, noventa e cinco por cento dos rurais sejam praticantes, embora a maioria deles assista à missa dominical, a verdade é que existe,
de facto, uma grande indiferença, ou mesmo, hostilidade nos seus comportamentos como cristãos, muitas vezes, fruto do conformismo e do hábito mais do que da adesão
íntima a um ideal evangélico. Mas até que ponto os cristãos de 1789 estavam realmente cristianizados? E que cristianismo praticavam eles? Eis algumas das questões
que a sociologia religiosa tem posto e ainda não foram resolvidas.

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Tendo em conta todos os abades e prelados não residentes, o clero secular nunca foi tão digno como nessa época: em 1789, os seus próprios inimigos reconheceram que,
no conjunto, eles pertencem à elite da nação. Mas esse clero não é exactamente formado para uma missão da Igreja. "O sistema actual de quase todas as dioceses do
reino - escreverá um padre francês em 1786 - é o de prender as pessoas às disputas teológicas; um jovem aspirante e que num exame satisfez perfeitamente sobre os
mistérios da predestinação, é imediatamente colocado à frente de trezentos camponeses que nunca ouviram falar de Lutero nem de Jansénio...". E poderia depois acrescentar
"que sabem, pelos vendedores ambulantes, que existe um senhor Voltaire, que há novas ideias, monges que abusam, curas que vivem bem, um Papa vestido como um ídolo...".
Mas isto não quer dizer que a França, em 1789, se encontre descristianizada; as numerosas e santas personagens que viverão depois de 1800 serão contemporâneas de
Luís XVI, saídas de famílias burguesas ou camponesas fortemente impregnadas de fé. No entanto, a atmosfera que se respira nas altas esferas e que, pouco a pouco,
se tornará a das camadas sociais mais modestas, faz-se de incredulidade, de anticlericalismo, de impertinência, de libertinagem e, até, de ateísmo. Pequenos poetas,
libelistas, novelistas, copistas e gravadores revelam ser capazes de fazer rir tanto Maria Antonieta como o cardeal de Rohan, Maria Alacoque ou mesmo Benoit Labre
(falecido em 1783), esse mendigo peregrino coberto de farrapos e de piolhos, de quem Daniel-Rops dizia justamente que foi "um vivo protesto contra as loucuras do
seu tempo".
Assim, a França representa aqui ainda um papel importante e não deixa de ser oportuno lembrar que a Europa do século XVIII foi francesa de alma e de linguagem. O
catolicismo belga e alemão conheceu os mesmos impulsos e as mesmas vicissitudes que o catolicismo galicano, mas nos países germanos a Aufklärung católica produziu
os frutos que se conhecem.
Claro, é sempre difícil falar da Itália do século XVIII, porque tem na verdade má reputação. Basta lembrar que a Aufklàrung imposta no Sínodo de Pístóia, em 1786,
encontrou na península pouco eco. No entanto, a Igreja, por detrás da fachada de

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uma religião bem-comportada, retornava constantemente o seu trabalho missionário. Os santos não deixaram de aparecer na Itália da época e com três místicos à cabeça:
Afonso de Ligório (falecido em 1787), fundador da popularíssima congregação missionária de Redentoristas; Leonardo, o franciscano de Port-Maurice (1751), Paulo da
Cruz (falecido em 1775), fundador dos Passionistas. Uma piedade calorosa, colorida, muito italiana liberta-se das suas palavras e dos seus escritos. Mas existem
também alguns humildes religiosos, cuja vida é digna de se inscrever na lenda dourada de São Francisco: tal como José de Copertino, um irmão cozinheiro, cujos êxtases
merecerão se torne no futuro o patrono dos aviadores.
A Igreja portuguesa não tinha qualquer importância, submetida como estava ao Estado, vítima de uma política de luxo e da Inquisição, que elaborou quatro mil oitocentos
e setenta e dois processos em oitenta anos. Com os seus quarenta e sete mil padres beneficiários - contra quinze mil que efectivamente trabalhavam -, a Igreja de
Espanha encontrava-se numa situação semelhante e, durante o reinado de Fernando VI, Madrid assistiu a trinta e quatro autos-de-fé: todas as ideias heterodoxas eram
logo sufocadas na origem.
Conhece-se também a anglomania deste século. O deísmo, nascido de um compromisso tácito entre os antipapistas do outro lado da Mancha, o utilitarismo, o sensualismo
e o cepticismo, destilados por Hobbes, Locke, Pope, Hume e Gibbon penetraram na mentalidade europeia. A franco-maçonaria, instalada em França e na América por volta
de 1730, na Alemanha em 1740, revela-se também de importação inglesa; sem ter, enquanto corpo, parte directa e preconcebida na preparação da Revolução Francesa,
contribuiu para retomar a ideia de uma religião natural sobre o deísmo. Mas a franco-maçonaria não foi o centro de um movimento anticristão; a sua condenação por
Roma em 1738 e 1751 não impediu que muitos padres nela se filiassem: e tal facto fornece, aliás, uma nova prova da incapacidade da velha Igreja romana para impor
as suas opiniões a todos os seus filhos.
Portanto, a Revolução Francesa teria, necessariamente, de se confrontar com graves problemas religiosos.

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6. A Revolução Francesa: o acontecimento

Durante um quarto de século - de 1789 a 1814 -, a História do Mundo esteve ligada à da França e toda a Igreja romana viveu a hora da Igreja em França. Sem dúvida,
a Revolução Francesa - prolongada pelo Consulado e pelo Império - foi, segundo a expressão de Barnave, o "cume" de uma revolução europeia produzida pela burguesia
enriquecida, mas a França devia muito naturalmente orientar o enorme caudal de forças: centro da filosofia das Luzes, nação jovem, estruturada e dinâmica, os seus
exércitos iriam espalhar através da Europa as ideias que à distância dariam os seus frutos. Os papas da Idade Média tinham realizado a unidade da Europa na cristandade;
a França revolucionária concentrará os espíritos em redor de algumas ideias generosas - liberdade, igualdade e fraternidade - que, embora se liguem ao Evangelho
através da "religião natural", não se inscrevem verdadeiramente num contexto cristão: o triunfo da burguesia que marcará o século XIX será acompanhado de uma laicização
profunda das mentalidades. Podemos dizer com Mathiez que a Declaração dos Direitos do Homem (26 de Agosto de 1789), além de ter sido "a condenação implícita dos
antigos abusos", foi, sobretudo, "o catecismo filosófico da nova ordem".
Rapidamente - e, embora entrassem numa matéria prometedora -, os Estados Gerais, transformados, passadas seis semanas e graças aos duzentos padres deputados, em
Assembleia Nacional Constituinte (Junho de 1789), foram dominados pelos elementos saídos do jansenismo, do galicanismo e do livre-pensamento. A partir de 2 de Novembro
de 1789, um decreto colocava "à disposição da nação" todos os bens eclesiásticos. Acontecimento capital porque não apenas se desmantelava um imenso e muito antigo
património, mas também porque se operava uma gigantesca mudança de bens em proveito de centenas de milhares de compradores de "bens nacionais", cujos interesses
estarão de futuro ligados a uma política anticlerical. De resto, era feita ainda uma importante transferência de influência, com a laicização progressiva dos cargos
próprios do clero: assistência, ensino, estado civil. O decreto de 3 de Fevereiro de

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1790, que proibiu os votos religiosos e suprimiu as congregações não-hospitalares ou educativas, seguia a melhor tradição josefista. Mas houve um facto mais grave:
em 12 de Julho de 1790, a Assembleia Nacional, sem consultar Roma, votava uma lei que reorganizava a Igreja em França, onde não apenas as circunstâncias eclesiásticas
eram decalcadas na base da organização administrativa do país, como o clero se tornava um corpo de funcionários remunerados pelo Estado ou pelas comunas, eleitos
pelo povo, e inteiramente submetidos à autoridade civil, com prestação de juramento de fidelidade à constituição civil do clero que caucionava essa submissão. Dilacerada
entre padres refractários e padres ajuramentados, a Igreja de França, que recebeu tardiamente (10 de Março de 1791) as ordens de Pio VI, encontrava-se ainda enfraquecida.
Durante o curto período de existência (1791-1792), a Assembleia Legislativa foi rapidamente conduzida a uma política anti-clerical pela acção dos deputados girondinos
- grandes burgueses voltairianos ou rousseaunianos -, pelas fanfarronadas dos emigrados, pela ameaça de uma guerra anti-revolucionária desejada pelas cortes da Europa
e pelo próprio Pio VI, e que a Legislativa prevê ao declarar-se em atitude de hostilidade com a Áustria (20 de Abril de 1792). Por outro lado, já o decreto de 29
de Novembro de 1791 tinha qualificado de "suspeitos" os padres refractários e os primeiros reveses militares incitaram o Governo a persegui-los. A queda da realeza
(10 de Agosto) e a aproximação dos Prussianos provocaram não só a aprovação de decretos que praticamente colocavam fora da lei a religião católica, mas também os
massacres de Setembro durante os quais morreram muitos clérigos.
A Convenção, dominada pelos clubes, pelas secções parisienses, pela imprensa de Marat e de Hébert, e, sobretudo, pela Comuna insurreccional, empenhou-se numa política
de descristianização que regressou à perseguição. Enquanto em toda a Europa se albergavam, em condições muitas vezes miseráveis, alguns milhares de bispos, padres
e religiosos, enquanto o Ocidente se batia pelo rei e pela fé, a França assediada de todos os lados, encontrando a sua salvação apenas no terror, servida por representantes
em missão sem piedade, despadrava-se e secularizava

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a vida nacional e a vida diária, chegando a mandar para o catafalço padres e religiosas.
O Termidor (1794) não produziu nenhuma mudança essencial, porque a détente apenas serviu para os corruptos. No entanto, a separação das Igrejas e do Estado aprovada
pela Convenção do Termidor (21 de Fevereiro de 1795) permitiu ao catolicismo sair da clandestinidade. Os homens do Directório, muito imbuídos de filosofismo ou de
ateísmo, preferiram a indiferença à perseguição até ao dia (Frutidor, ano V) em que os jacobinos regressados ao poder se puseram a deportar padres, a encerrar igrejas
que tinham sido reabertas, a protegeram o culto decadário e a teofilantropia. Na Bélgica anexada, os administradores franceses, evitando enfrentar uma opinião fortemente
marcada pelo antijosefismo, aplicaram em princípio as leis revolucionárias com prudência, mas o Frutidor mudou tudo: alguns milhares de religiosos foram expulsos
e, embora os Belgas tivessem reagido com inércia à aplicação da lei sobre a venda dos bens da Igreja, a lei de conscrição de 1798 provocou um começo de revolta,
enquanto milhares de padres belgas foram presos e algumas centenas deles deportados.
No termo da sua extraordinária campanha da Itália em 1796-1797, Bonaparte que, na Lombardia, recebeu o acolhimento entusiástico da burguesia voltairiana, tinha-se
recusado a obedecer ao Directório que pretendia destruir a Santa Sé; Pio VI permaneceu na Roma ocupada pelos Franceses. Mal Bonaparte partiu, a revolta dos Romanos
levou o Directório a proclamar a República romana (15 de Fevereiro de 1798); Pio VI foi levado como prisioneiro para Parma e, em 13 de Julho, era encerrado na cidadela
de Valença, em França, onde morreria seis semanas mais tarde. A República Romana que instaurou um regime draconiano foi efémera; por duas vezes, em Novembro de 1798
e em Setembro de 1799, os Napolitanos, loucamente aclamados, libertaram Roma. Mas no Brumário, ano VIII, a tomada do poder por Bonaparte colocava de novo em questão
toda a política religiosa da França.

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7. A Revolução Francesa: os problemas

O que atrás se referiu constitui uma trama de acontecimentos, mas estes englobam ainda uma massa de problemas inexplorados a que o actual estado da historiografia
religiosa da época revolucionária não pode fornecer muitas respostas.
Dois problemas dominam os outros, porém, já que a sua solução está relacionada com uma melhor compreensão da mentalidade cristã confrontada com enormes agitações:
a do clero constitucional e a da descristianização.
A Igreja oficial, constitucional, "merece mais que desprezo", como escreveu Bernardo Plongeron, a propósito da sua parte mais desprezada: os padres abdicatários.
O padre Sevestre, o historiador do clero normando, apesar de se mostrar pouco benevolente com eles, reconhece: "A boa-fé não esteve ausente entre os ajuramentados
e, mesmo aqueles que continuaram no cisma, provaram-no pelo seu zelo religioso e pelos seus esforços incansáveis de reorganização". Seria fácil evocar muitos dos
padres e bispos constitucionais que procuraram manter uma Igreja viva, mais próxima do povo do que a antiga, dando mais importância à colegialidade e à pastoral,
que dentro da Igreja concordatária se mostrarão como zelosos pastores. Por exemplo, pensemos no cura ajuramentado de Castelnaudary, o austero Luís Belmas (falecido
em 1840), bispo constitucional de Aude e futuro concordatário de Cambraia; no ex-jesuíta Dufraisse, bispo do Cher ou, ainda, nesse Pierre-Joseph Peugniez, cura ajuramentado
de Vitry-en-Artois que morreu corajosamente no cadafalco de Arras em 1794. Quanto a Gregório, verdadeiro chefe espiritual da Igreja constitucional, alguns trabalhos
como os de Bernardo Plongeron mostram que esse padre, "lúcido acerca da realidade humana, mas indomável em matéria de doutrina e de fé", empregou "toda a sua autoridade
moral para alterar as estruturas de uma cristandade que queria vivesse em simbiose com o ideal revolucionário", sendo, por isso, Gregório, em mais de um aspecto,
um precursor.
Mas a pressa das ordenações, sobretudo nas dioceses em que dominavam os não-ajuramentados, o chamamento de muitos ex-religiosos para o apostolado paroquial, explicam
em parte

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a vida difícil da Igreja constitucional. Mas apenas em parte porque, com a descristianização orquestrada pelo governo revolucionário, chegou o medo, que era mau
conselheiro; com a despadrização, o casamento dos padres oficialmente decretado (1793), a indiferença, a facilidade e a tentação instalaram-se no coração de alguns
párocos de aldeia, literalmente abandonados pelo céu e pela terra. Quantos padres ajuramentados se casaram? Dez mil, segundo Consalvi, dois mil, segundo Gregório
que, como muitos bispos constitucionais, se mostrou violentamente hostil à despadrização e muito duro a respeito dos lapsi. O estado actual dos trabalhos históricos
não permite, contudo, avançar números precisos, até porque houve casamentos fictícios, com padres de 30 anos casando-se "oficialmente" com a sua governante sexagenária
ou mesmo octogenária. E depois, muitos dos padres ajuramentados, sem se revelarem traidores ou apóstatas, contentaram-se em regressar ao seio da sua família, para,
desta maneira, ao menos poderem continuar a viver. Mas não é menos verdade que a Igreja constitucional, na altura da queda de Robespierre (Julho de 1794), se encontrava
em completa desordem.
Mas temos ainda os refractários. Uma imensa literatura exaltará, durante o século XIX, em termos elogiosos e romanescos a epopeia dos padres escondidos, exilados
e mártires, ou seja, aquilo a que se chamou - e bem - "a Igreja francesa do silêncio". Se a outra, a Igreja oficial, merece mais do que desprezo, esta merece mais
que o silenciamento dos factos heróicos que a piedade popular, por vezes, deformou. As Acta sanctorum do clero francês durante a Revolução, uma vez decantadas, são
suficientemente substanciais para nos encher de admiração e merecer o nosso respeito.
Não se revela apenas como matéria para "peças de teatro piedoso" nos episódios da vida clandestina de milhares de padres refractários, entre 1792 e 1795, e depois
entre 1797 e 1799. Há matéria para a história de uma verdadeira "resistência", uma resistência pacífica mas perigosa. Mais em segurança nas grandes cidades e nas
"melhores" regiões, como Flandres, Vendeia e Alvérnia, mais perseguidos noutras partes, esses padres celebram a missa às escondidas, socorrem doentes e moribundos,

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prosseguem, apesar da sua vida de pobreza extrema, a obra secular dos filhos de Olier, de Vicente e de João Eudes. Que belas almas as de Jean-Marie Vianney, em Eculliy,
ou de Felicité de Lamennais, em Saint-Malo, para sempre lembradas nas suas existências clandestinas e heróicas! Alguns milhares de outros padres passam ao exílio:
em 1795, contam-se dez mil na Inglaterra, seis mil na Itália, outros tantos na Espanha e Suíça, mas também se encontram espalhados pela Alemanha, pela Rússia e,
mesmo, nos Estados Unidos e no Canadá. Recebidos como santos perseguidos nos Estados do Papa, embatem, na desconfiada Espanha, com todos os preconceitos antifranceses
e são proibidos de circular nas grandes cidades. Nos países protestantes, onde o acolhimento é muito mais amplo, a elevada atitude moral dos padres franceses contribui
para fazer cair muitos dos preconceitos antipapistas. Precisam de trabalhar com as suas próprias mãos, tornam-se padres-operários, mesmo contra a sua vontade: desde
o abade de Belloc, futuro vigário-geral de Auch, que se torna cesteiro em Tortosa, ao cónego Baston, de Ruão, que na Vestefália faz tricô; do padre Regnault que
conquista óptima reputação como alfaiate nos Países Baixos, ao cura de Pommard que se torna pintor da construção civil em Friburgo, há uma longa história colorida
e verdadeiramente edificante para escrever. Bernardo Plongeron mostrou que muitos prelados do antigo regime encontraram na emigração a sua função de doutores da
Igreja universal e isso pelo exercício da colegialidade entre eles e com os prelados estrangeiros.
Esses exilados, no entanto, não deixavam de estar sujeitos aos ventos políticos que lhes permitissem retomar o seu apostolado em França. Foi o caso da relativa acalmia
nascida da reacção termidoriana e prosseguida no começo do Directório (1795-1797), E Gregório denuncia então o regresso dos refractários "que pululam como gafanhotos
do Egipto".
Mas logo esses "gafanhotos" são esmagados. O segundo Directório, com as vítimas do Terror e da guilhotina, com os Noe Pinot, com os Luis-Joseph Hauwel ou com os
Charles Ochin, faz aumentar em centenas de padres (alguns deles constitucionais) mortos lentamente pela "guilhotina sem lâmina" em Rochefort, em Ré, em Oléron, na
Guiana...

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O objectivo do Directório (1797-1799) é o fundo do abismo: Pio VI, prisioneiro aos 83 anos, as igrejas vazias, escancaradas, o incrível vandalismo dos "bandos negros";
e, perante esta miséria, propagam-se nas aldeias a proliferação dos cultos de substituição (culto decadário, teofilantropia) e o paganismo, e nas cidades, o deboche
e a especulação...
Mas eis que logo o advento quase simultâneo de Bonaparte (Dezembro de 1799) e de Pio VII (Março de 1800) faz renascer a esperança na França devastada e no seu clero
dizimado.
O segundo problema essencial colocado pela Revolução é o da descristianização, tendo em conta que se mostra extremamente difícil concentrar uma realidade na palavra
"descristianização"; tanto mais que, muitas vezes, há uma preocupação maior com as acções descristianizantes do que com o resultado dessas acções.
Quando Napoleão Bonaparte, na noite de 19 do Brumário, ano VIII, se torna senhor absoluto da França, a Igreja galicana não passa de uma ruína. A venda dos bens nacionais
que provocou a desafectação, a depradação ou a destruição de milhares de edifícios religiosos, a guerra civil no Oeste, o vandalismo e o abandono, tornaram irreconhecível
o rosto carnal da França religiosa. Abadias transformadas em prisões, em colégios e em oficinas; igrejas transformadas em forjas, cavalariças ou armazéns; extensões
de parede abandonados aos "coleccionadores" de pedras, de estuques ou de tijolos; cidades sem campanários, aldeias em que os vasos sagrados, sujos e destruídos no
meio da palha ou no estrume sem haver um padre que os purifique. É um quadro de miséria que só, aos poucos, se apagará.
Mas às ruínas materiais juntam-se, ainda, as ruínas espirituais. Em primeiro lugar, e sobretudo, uma aceleração da descristianização em França. Plongeron teve o
mérito de estabelecer, concordando, aliás, com teses já admitidas, que a descristianização entre 1793 e 1799 - e mais particularmente durante o Terror (1793-1794)
-, não é um fenómeno passageiro e superficial, um "delírio colectivo" sem futuro, ligado a uma situação excepcional e explosiva. A longa cessação do culto em muitos
locais, a destruição dos sinais do culto e a abdicação dos padres não são mais do que factos episódicos cujos efeitos desapareceram

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logo que as ideias foram reabertas. É, pois, neste nível da fé que Bernardo Plongeron convida a situar o problema da descristianização, essa fé que sobreviveu aqui
e ali, sob formas insólitas, tais como as "missas brancas", reuniões eucarísticas de fiéis sem padre, "conduzidas por leigos promovidos a funções sacerdotais pela
vontade da comunidade". A dramaturgia do Reitor da Ilha do Sena, de Quéffelec (Deus Precisa dos Homens) também aconteceu no Ain, em Yvonne, em Aube, na Normandia,
no Loiret... Ainda durante a Restauração, nas paróquias sem padres, são mestres-escolas os oficiantes.
Mas como observava o general Lacuée a propósito de Orleães, onde estava em missão na altura do golpe de Estado do Brumário: "Ir à missa, ao sermão, às vésperas,
tudo era bom; mas confessar-se, comungar e fazer abstinência não era prática comum senão em ocasiões especiais e pouquíssimas vezes no ano... Nos campos, gosta-se
mais de sinos sem padres do que de padres sem sinos."
Eis o que se revela sintomático e grave. É ao nível da vida sacramental que o cristianismo, minado desde há muito tempo por hábitos preguiçosos ou viciados, sofre
um grave dano por causa da Revolução Francesa que, neste domínio, desempenha um papel revelador. Quando o bispo constitucional da Somme, durante a reacção termidoriana
(1795), afirma "que é notório que nesta diocese como nas outras, os dissidentes (quer dizer, os refractários) repetiram o baptismo, a bênção nupcial, a absolvição
e os outros sacramentos", com o pretexto - falso - de que os ajuramentados não consagram validamente, já não se trata, como diz B. Plongeron, de "querelas de sacristia".
Primeiro, "uma cristandade já hesitante vê-se confrontada com duas representações da fé"; depois, "a partir de 1790, contesta-se a Igreja que se apresenta dividida
entre dois episcopados"; finalmente, inocula-se o "veneno do relativismo no interior da vida sacramental" numa opinião que está absolutamente confusa. Por isso,
não admira que, em Ruão, por exemplo, numerosos cristãos "se declarem publicamente pela neutralidade em relação aos dois cleros", preferindo, por consequência, que
"os filhos cresçam sem instrução, sem confissão nem primeira comunhão e que, por fim, se casem sem a bênção nupcial".

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VIII
A IGREJA CONTEMPORÂNEA:
DO CASAMENTO FORÇADO
AO DIVORCIO
E AO DIÁLOGO

Capítulo I
REENCONTRADO O CAMINHO PARA ROMA

1. Napoleão e a Igreja concordatária

Se Bonaparte como Primeiro Cônsul pretendeu pôr termo à anarquia religiosa, não foi porque obedecesse a um Movimento de fé, mas porque possuía um "sentimento muito
forte da influência do padre sobre as massas populares", influência que "a sua experiência de Itália melhor confirmou". Católico na Vendeia, muçulmano no Egipto
e ultramontano em Itália, considerava que a religião é um mecanismo indispensável do governo de um Estado e da sua pacificação. Como considerava o catolicismo a
religião a que, apesar de dez anos de perturbações, a maioria dos franceses continuava ligada, percebeu que era preciso restabelecer o culto católico, custasse o
que custasse. A Igreja constitucional, muito activa no início do Consulado, como testemunha o concílio nacional organizado por ela em Junho de 1801, poderia fornecer-lhe
o quadro de uma ressurreição da Igreja galicana. Mas o entendimento com o catolicismo romano, com o papado - admirável "alavanca de opinião no resto do Mundo" -,
apresenta para Bonaparte muitas outras vantagens: além da mais importante fracção dos franceses, da imensa maioria dos belgas e dos renanos (então sob o domínio
dos Franceses) preferirem Roma à Igreja galicana constitucional, a irradiação da França junto dos Estados católicos da Europa

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- face ao poderio e antipapismo da Inglaterra - só teria a ganhar com um acordo com Pio VII. Mas podemos pensar com B. Plongeron que, "se se fortalecesse o curialismo,
as concordatas europeias do começo do século XIX destruiriam as esperanças" da Aufklärung católica.
Com Napoleão Bonaparte cônsul, em 1800 e, depois, imperador (1804-1814), a política de descristianização desaparece; a Igreja retoma outra vida, mas, ao mesmo tempo,
o galicanismo na sua forma mais despótica reafirma-se, porque Napoleão é um déspota e não um rei. A sua ditadura, nascida da anarquia, fortificada por qualidades
geniais, nada tem a ver com a legitimidade dos reis de França: face à Igreja e ao seu chefe, actuará com uma desenvoltura e uma brutalidade que apenas se podem explicar
por uma vontade sem freio e uma ambição sem limites dentro da antiga noção de "rei cristianíssimo". Jacobino saído do Século das Luzes", empurrado para a frente
por uma burguesia em grande parte voltairiana cuja ascensão ele protegerá, de todas as formas. Todavia, Napoleão conhece a força do sentimento religioso. Desejando
construir uma França e um império (Bélgica, Itália, Renânia...) sólidos, coloca o acento na própria religião. Desde 7 do Nivoso, três decretos consulares garantem
a liberdade dos cultos, prelúdio para a paz religiosa; mas o primeiro cônsul não pode nem quer edificar essa paz, tão necessária, senão com o Papa, pois não há nada
mais estranho à sua concepção da Igreja do que o episcopalismo e o presbíterianismo.
O sucessor de Pio VI, Barnabé Chiaramonti, era um frade beneditino que, em 14 de Março de 1800, se tornou Pio VII Para se reencontrarem, depois de dez anos de cisma,
o papado e a França deviam percorrer um longo caminho; mas foi o papa que deu a maioria dos passos nesse sentido. Porque, a Concordata assinada em Paris, em 15 de
Julho de 1801 (e que deveria ter muita influência no imenso império francês), não só devolveu à França o livre exercício do culto, mais exactamente dos cultos, mas
também restabeleceu a hierarquia eclesiástica e manifestou com evidência o primado do Papa, embora com algumas e enormes concessões feitas ao pequeno corso, cujas
pretensões absolutistas superavam em muito o galicanismo dos reis de França! O antigo episcopado era, pois, literalmente sacrificado:

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doze bispos constitucionais foram impostos ao Papa e só se toleravam "monges" por serem úteis ao povo nas escolas e nos hospitais; a venda dos bens nacionais era
interrompida e o catolicismo posto em pé de igualdade com outros cultos. Mas houve pior: Bonaparte mandou acrescentar à Concordata setenta e sete artigos orgânicos
de espírito galicano e josefista, que impunham, sobretudo: autorização governamental para a introdução em França das actas pontifícias, ensino da Declaração dos
Quatro Artigos de 1682 nos seminários, proibição de todas as manifestações de colegialidade episcopal, codificação muito apertada da organização do culto, ingerência
do Estado na organização eclesiástica... Os protestos de Roma nada puderam contra isso.
A velha Europa ficou escandalizada com tamanha longanimidade; aqui e ali formaram-se "pequenas Igrejas" cismáticas hostis aos bispos nomeados pelo usurpador. O espanto
atingiu o auge, quando Pio VII, fazendo um gesto único na História, se dirigiu pessoalmente a Paris para o rito oficial da unção do "novo Carlos Magno" (2 de Dezembro
de 1804). Mas a comparação com o grande carolíngio não vai além da cerimónia da sagração. Carlos Magno tinha sido "o bispo" dos seus súbditos, preocupado em introduzir
os valores evangélicos no sangue do jovem Ocidente. Napoleão teve, sem dúvida, o mérito de devolver vida à Igreja; para ele, contudo, a religião não passava de um
mecanismo - essencial, é certo - da enorme máquina imperial; o clero concordatário, dominado, vigiado e rigidamente hierarquizado, estava submetido a um bispo, qual
"prefeito de batina", senhor absoluto da sua diocese e guardião dos costumes e da ordem: as suas orações e as suas acções de graças por ocasião das vitórias do imperador
não podiam senão consolidar a fidelidade do povo ao regime. O Catecismo Imperial, imposto em 1806 a todas as igrejas do império, comporta, no capítulo do quarto
mandamento de Deus, uma surpreendente adenda relativa aos deveres dos sujeitos em relação ao imperador e estabelece sanções graves - indo mesmo até à condenação
eterna - para quem a tal se expusesse.
De facto, o Estado era laico e, muito pior, a atmosfera geral não era cristã. A corte do imperador, debaixo da solene couraça imposta por ele, permanecia jacobina;
a elite intelectual - os

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"ideólogos" - mostrava-se dominada pelo voltairianismo e pelo racionalismo, e tais posições não podiam ser contrariadas pela brilhante, mas frouxa apologia do Génio
do Cristianismo, de Chateaubriand; além disso, o clero, pouco numeroso e absorvido nas necessidades, tinha falta de espíritos pensantes. O Código Civil de Napoleão
- fundamentos da nova sociedade francesa - foi forjado no espírito revolucionário, sendo obra de burgueses liberais, para quem a não-confessionalidade do Estado,
a protecção feroz da propriedade individual e a laicidade dos vínculos matrimoniais eram realmente coisas essenciais. De resto, o monopólio imposto ao ensino pela
Universidade imperial não deixava de inquietar muitos católicos, sobretudo nos departamentos criados fora das fronteiras de 1790. Porque o espírito laico e também
a exaltação da noção de lucro em detrimento da noção de serviço, impregnaram as mentalidades na Europa. Houve, aqui e ali, algumas reacções, como na Bélgica, na
Baviera, na Itália e, sobretudo, na Espanha - uma Espanha de monges armados contra a "França ateia" -; fortaleceram-se com as humilhações impostas ao Papa, a partir
de 1809, pelo imperador, cujas concepções absolutistas não suportavam a posição independente dos Estados pontifícios no Centro da Itália.
Em 2 de Fevereiro de 1808, as tropas francesas ocupam Roma e Pio VI responde, recusando-se a dar a instituição canónica aos bispos apresentados pelo imperador. Em
17 de Maio de 1809, os Estados pontifícios foram anexados ao império e, em 6 de Julho, o Papa é levado de Roma e instalado em Savona. O imperador está no auge do
seu poderio e nada parece poder resistir-lhe; em Janeiro de 1810, a oficialidade de Paris pronuncia a nulidade do seu casamento com Josefina e, três meses mais tarde,
desposando Maria Luísa, Napoleão entra na mais antiga família reinante da Europa; em 1811, nasce um filho a quem, orgulhosamente, dá o título de "rei de Roma". E,
recorrendo a um processo tantas vezes repetido ao longo dos séculos, convoca para Paris um concílio (1811), do qual espera obter a instituição episcopal que o Papa
lhe recusa; mas a maioria dos bispos franceses, italianos, belgas e alemães ali reunidos recusa contrariar a vontade papal. Em Junho de 1812, Napoleão manda levar
Pio VII a Fontainebleau e arranca-lhe um projecto de

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Concordata, cuja aplicação teria feito do imperador o senhor da Igreja (25 de Janeiro de 1813); mas, a partir de 24 de Março, o Papa retracta-se. Entretanto, os
reveses do Império mudam completamente o rumo dos acontecimentos; no começo de 1814, Napoleão liberta o Papa, cuja única vingança será albergar, depois dos Cem Dias,
a família do exilado de Santa Helena. Então, a Revolução é renegada por toda a parte e o antigo regime ressuscitado. Mas as restaurações políticas e sociais que
se operam irão, de facto, provocar um regresso do espírito religioso? E a Igreja romana irá tirar disso algum benefício?

2. As Restaurações: aparências e realidades

Com o imperador derrotado, os Bourbons regressam a Paris, a Madrid e a Nápoles, os Braganças a Lisboa, os Habsburgos a Milão e a Florença, os Oranges instalam-se
em Bruxelas, os Hohenzollern no Reno, o Czar em Varsóvia, Pio VII em Roma... Parece que a Europa revela como preocupação primordial lançar - por cima do abismo da
Revolução - algumas pontes que a voltem a ligar a um "antigo regime", de que - queria continuar a acreditar - nada de essencial a separava.
Esse regresso ao passado fez-se, ora com prudência ora, pelo contrário, com violência, segundo as circunstâncias e o estado dos espíritos. Em França, onde as ideias
revolucionárias impregnavam o povo, Luís XVIII teve de transigir, e mesmo proclamando-se rei por direito divino, manteve a estrutura social edificada por Napoleão;
a concordata de 1801, por instantes ameaçada pela acção dos "ultras", não foi modificada. Pelo contrário, nos Estados pontifícios, o governo de Rivarola apressou-se
a destruir tudo o que pudesse lembrar os Franceses: até se restabeleceu a Inquisição; a acção inteligente de Pio VII e do seu secretário de Estado Consalvi limitou
felizmente as consequências desse sectarismo. Em Espanha, Fernando VII reagiu com a mesma violência; associou tão intimamente o trono ao altar que, a partir daí,
a História religiosa do país será apenas uma alternância de explosões anticlericais e de regressos brutais ao clericalismo.
A contra-revolução teve os seus teóricos. A frente deles estavam Louis de Bonald e Joseph de Maistre, sendo este um escritor

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de raça, mais bem preparado para opor aos filósofos uma teoria da História - que rejeita a de Bossuet -, para iluminar com uma luz trágica a estreita solidariedade
das gerações e as consequências inelutáveis das revoltas do espírito humano. Mas os reis - de facto, foi Alexandre I, influenciado por uma iluminada, Madame de Krudener
- quiseram institucionalizar a contra-revolução, constituindo a Santa Aliança (1815), cujos preâmbulos edificantes escondem muito mal os fortes apetites regalistas.
A Igreja, quase em bloco, associou-se ao movimento contra-revolucionário. Ao sair do que considerava um período de privações, reagiu violentamente contra a Revolução
e as suas sequelas. Diversas gerações de padres e de católicos viverão a ansiedade de um regresso a 89 e a 93, no horror das lembranças, com saudades do Antigo Regime
e sempre à espera da sua ressurreição. Até ao fim do século XIX - e mesmo depois dele - a Revolução aparecerá como a raiz do Mal, mergulhando numa terra envenenada
pelo racionalismo, pelo voltairianismo, pelo laicismo e pela maçonaria. Altar, Trono e Sociedade são os três bens essenciais, a que se sentem ligados os "sequazes
de Satã" ou "demónios vivos" que tinham posto o Estado no lugar de Deus, o povo no lugar do rei, lugar-tenente de Deus, e uma burguesia egoísta no lugar de uma aristocracia,
cuja vocação era apenas a de servir. Católico, Legitimista e Conservador serão palavras que, embora nem sempre nos factos, pelo menos na mentalidade se mostrarão
inseparáveis. Em França, sob Carlos X (1824-1830), a aliança do trono ao altar foi oficializada com uma lei votada em 1825 - mas que não se ousou aplicar - que condenava
à morte o crime de sacrilégio; e pregaram-se algumas missões espectaculares através de todo o país que provocaram, por vezes, grande entusiasmo e regressos a Deus,
mas chocaram frequentemente uma opinião mal preparada para sofrer pressões indiscretas e cujas disposições, em matéria religiosa, não se tinham modificado muito.
Aliás, na alta sociedade, a religião oficial encobria uma indiferença polida e um galicanismo virulento que manifestava um sentido confuso da Igreja, atirando-se
particularmente à Companhia de Jesus, restaurada por Pio VII, em Agosto de 1814No campo oposto - porque se trata, realmente, de uma guerra -, estão os liberais.
O liberalismo "saiu bem armado da Revolução

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e quer influenciar tudo: o Governo, as relações sociais, o trabalho, a indústria e as relações internacionais. A sua doutrina, racional, idealista e optimista, enraíza-se
na filosofia do século XVIII, rejeita todo o despotismo, sobretudo se é religioso, arranca as máscaras atrás das quais desconfia que se esconde um jesuíta. Tudo
o que vibra, principalmente a juventude - mas também os "garantes" da Revolução -, se afirma, ufanosamente, liberal. O liberal intelectual é, muitas vezes, doutrinário
e diz-se seguidor, sobretudo, de Voltaire, cujas obras têm numerosas reedições no tempo da Restauração; mas o liberal da rua, da oficina e da caserna é sentimental
à maneira de Béranger. Contudo, nunca se poderá avaliar a influência profunda das canções de Béranger: a sua brejeirice ingénua, o seu anticlericalismo fácil e o
seu patriotismo vibrante que é apoiado pelo culto a um Napoleão inesperadamente promovido a modelo dos liberais, o seu epicurismo barato e o seu teísmo imediatamente
satisfeito forneceram uma espécie de "catecismo" que, nas "lembranças do povo", devia muitas vezes substituir o outro, o dos "homens de preto" vindos de Roma e cujo
Deus cruel estava o mais distante possível do "Deus das pessoas de bem". Em 1847, Renan escrevia a Berthelot: "Quanto mais avanço, melhor vejo despontar no presente
os elementos de uma religião nova: a revolução não será já a personificação de uma ordem de ideias que, para nós, se tornaram sagradas e objecto de veneração?"
E, no entanto, a liberdade foi reivindicada por cristãos que prolongavam o esforço da Aupdãrung católica. Em primeiro lugar, por um padre genial, Felicite de La
Mennais (falecido em 1854) que pretendia que entre os dois sectarismos - a Igreja abafada pelo poder aliado e a contra-Igreja revolucionária - havia lugar para uma
Igreja livre e viva; a uma Santa Aliança hipócrita, assinada, sem o Papa, por alguns déspotas, e que não conseguia disfarçar o afastamento das massas em relação
ao Evangelho, La Mennais opunha um encontro dos homens nas águas vivas e profundas de um cristianismo livre e, ao mesmo tempo, largamente aberto à fonte que está
em Roma. Esse entusiasta padre bretão atraiu uma multidão de jovens - clérigos e leigos -, cansados da sufocante atmosfera da Restauração; muitos dentre eles serão
os edificadores da Igreja na França contemporânea. Mas

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já choviam em Roma as denúncias contra esse "louco furioso" do La Mennais, porque na atmosfera da época a expressão católico liberal destoava muito: era a mais insidiosa,
a mais perigosa e a mais diabólica aliança de palavras naturalmente inimigas. Mas o facto de ter sido ele o único eclesiástico que marcou a evolução religiosa dos
primeiros trinta anos do século XIX e se separou da Igreja mostra claramente a carência intelectual do clero francês nesse tempo. No entanto, o padre Luís Bautain
vai também esforçar-se, embora isoladamente, em seguir o exemplo dos teólogos católicos alemães.
Porque a preeminência do pensamento teológico alemão, estimulado pela extraordinária fecundidade intelectual do protestantismo germânico (Schleiermacher), permanece
indiscutível com um Gõrres e um Dóllinger, por exemplo. Nas províncias belgas do reino dos Países Baixos, o sentimento nacional fortalece-se com a resistência dos
católicos à política do protestante Guilherme I. Independente em 1830, a Bélgica, pequena, mas viva, colocar-se-á na esteira da França; ou, melhor, segundo a expressão
de um historiador francês, "pelo seu vigor e pela sua independência, a Igreja da Bélgica será, em meados do século XIX, uma espécie de ideal para as outras Igrejas
europeias". A ressurreição da Universidade de Lovaina (1834) será para muitos o começo dessa renovação.
Num contexto muito diferente, mais ambíguo, o movimento católico na Irlanda e na Polónia reforçou o movimento nacionalista: o papado não teve nenhuma repugnância
em lutar com a Grã-Bretanha e com a Rússia, porque a revolta lhe aparecia como um fruto perigoso da Revolução Francesa. Mais paradoxalmente a Renânia, tornada prussiana
em 1814, conheceu, graças a Frederico Guilherme IV, mais inspirado do que seu pai, uma liberdade de que a Igreja Católica se aproveitou: as dioceses renanas acabariam
por se mostrar, durante o século XIX, muito vivas e muito activas. Em contrapartida, na Baviera e entre os Habsburgos da Áustria e da Itália, a burocracia josefísta
impõe-se ainda por muito tempo.
A Itália, cuja população geralmente iletrada não fora muito motivada pelo protestantismo nem pela irreligião revolucionária, permanecia uma terra de extremos. No
reino de Nápoles, a Concordata de 1818 colocou a Igreja numa situação privilegeada,

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mas o antigo feudo de Murat foi o centro de um carbonarismo violento, cujas forças serão absorvidas pelo movimento da "Jovem Itália" de Mazzini. Nos Estados pontifícios,
a aristocracia e os funcionários da Cúria defendiam duramente os seus privilégios; mesmo na corte do papa os zelanti erguiam-se contra qualquer forma de liberalismo,
mas o endémico banditismo e a indiferença da administração favoreciam o desenvolvimento do carbonarismo e do movimento liberal neoguelfo.
Sobre a Espanha e Portugal, desembaraçados dos Franceses - à custa de que heroísmo! -, voltou a cair a capa de uma tradição simultaneamente absolutista, sectária
e galicana, com muito mais força por ter sido em nome do liberalismo que, então, se revoltara a América Latina. É preciso dizer que a situação religiosa nas jovens
repúblicas de língua espanhola e portuguesa era bastante lamentável: as massas eram católicas, mas supersticiosas, o clero pouco numeroso, relaxado e muito agarrado
aos seus privilégios, enquanto a elite intelectual e governante tinha impulsos de febre anticlerical, nascidas das correntes revolucionárias vindas de França.
Na América do Norte, as aparências eram menos evidentes, mas o fundo religioso era mais sólido: o catolicismo americano, de origem irlandesa, e o catolicismo canadiano,
de formação francesa, teriam um futuro promissor. É verdade que essas jovens Igrejas, sobre as quais não pesava um passado de galicanismo ou de josefismo, se voltavam
naturalmente para Roma: pouco a pouco, ameaçadas pela Revolução, as velhas Igrejas da Europa iriam, também elas, concentrar-se à volta de um papado, cuja autoridade
não deixará de crescer.

3. O eclipse das igrejas nacionais

Desde o século XIV, os laços que prendiam a cristandade ao papado foram singularmente relaxados: a reforma protestante, a política particularista dos soberanos católicos
- Bourbons e Habsburgos, sobretudo -, as ocupações materiais e as preocupações territoriais de certos papas, reduziram o papel da Santa Sé, não apenas no Mundo,
mas no próprio seio da Igreja.

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Comparemos Inocêncio IV, proclamando no Concílio de Lião a deposição do imperador Frederico II (1245), com Pio VI, mostrando-se um pedinchão junto de Viena (1782)
e apenas conseguindo arrancar palavras delicadas a José II...
Pio VII saiu engrandecido das provações infligidas pelo Império: surgiu perante a Europa, desperta de um longo pesadelo, como "o símbolo do princípio da ordem e
da autoridade face à revolução ameaçadora". Junto dele, o secretário de Estado, Consalvi, colocou a sua alta inteligência ao serviço desse prestígio reencontrado;
representando o Papa no Congresso de Viena, obteve das potências a restauração da maior parte dos Estados pontifícios e a confirmação do direito de precedência acordado
aos núncios apostólicos sobre todos os embaixadores. Em 1820, quarenta e dois embaixadores ou ministros plenipotenciários estavam acreditados em Roma; ora, em 1789,
havia apenas vinte e sete. Consalvi praticou a política muito ultramontana das Concordatas - de 1814 a 1855 assinaram-se três dezenas - que, oficializando as relações
dos Estados, mesmo não-católicos, com Roma, reforçaram as ligações dos fiéis e do clero com a sede apostólica. Os Estados mais reticentes foram precisamente os mais
oficialmente católicos e também os mais reaccionários: a Áustria e a Espanha. E só em 1851 é que o governo de Isabel assinou com Pio IX uma convenção, aliás muito
favorável à Igreja, que em seguida foi combatida por Espartero e pelos liberais. A Concordata de 1855, concluída entre Francisco José e Roma, devolveu a autonomia
à Igreja austríaca jugulada pelo josefismo, mas teve na prática um carácter medieval "teocrático" que escandalizou os liberais na Europa.
Sob Pio VII, foi na Alemanha que se assinaram concordatas em maior número. O mapa da antiga Alemanha tinha sido perturbado pela Revolução e pelo império: o desaparecimento
dos príncipes-bispos, a atitude ultramontana dos católicos submetidos a soberanos protestantes e o cuidado dos príncipes reinantes em evitar a constituição de uma
Igreja nacional alemã, explicam por que motivo a maior parte dos Estados, da Prússia à Baviera, assinaram algumas convenções com Roma. Assim, a velha Alemanha particularista
ia abrir-se à influência romana, graças sobretudo à escola de Mainz, aos jesuítas e aos redentoristas.

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Aliás, Consalvi concluiu ainda concordatas com a Suíça e, para a Polónia, com o czar.
Mas foi em França, fortaleza do galicanismo, que os progressos do ultramontanismo foram mais rápidos e mais decisivos. O fantasma da Revolução devolveu a Roma o
clero francês; obrigando todos os bispos a inclinar-se perante as decisões papais, a Concordata de 1801 tinha fustigado duramente a orgulhosa Igreja galicana; submetendo
estreitamente aos bispos o baixo clero, os artigos orgânicos levaram este último, outrora bastante galicano, a implorar a protecção de Roma: portanto, é entre os
párocos de aldeia que VUnivers, órgão de Luís Veuillot, arauto entusiasta do ultramontanismo, encontrará durante vinte e cinco anos os seus leitores mais aguerridos.
Outros elementos contribuíram para a morte rápida do anti-romanismo em França: a resignação dos "ultras" quando, em 1817, o Papa se recusou a substituir a Concordata
de Bonaparte por uma nova; a longa campanha levada a cabo por La Mennais em L'Avenir contra a política da Monarquia de Julho, acusada de exercer sobre o catolicismo
uma tutela inadmissível, de recusar a liberdade de ensino e de limitar a autoridade pontifícia sobre a Igreja em França. E, quando La Mennais, condenado por Gregório
XVI, rompe com a Igreja (1834), a submissão imediata dos seus discípulos torna mais manifesta a autoridade romana.
Foram precisamente os partidários de La Mennais que representaram um papel determinante na "romanização" da Igreja galicana: Guéranger restaurou a ordem beneditina
em França (1836) e, tornado o primeiro abade de Solesmes, militou eficazmente pela adopção generalizada da liturgia romana; Ozanam, Rohrbacher e Montalembert como
historiadores - este último exaltando o papel dos "monges do Ocidente" -, e Gerbet como filósofo, trabalharam para orientar para Roma as correntes do passado; o
truculento Combalot retomou as ideias romanas no púlpito e nos presbitérios; mais eloquente e menos indiscreto foi o mais querido discípulo do mestre, Lacordaire,
o primeiro que enfrentou, no púlpito de Notre-Dame, um público voltairiano, antes de aí voltar com o hábito branco dos dominicanos, ordem que reimplantou na sua
pátria. O espírito antimonástico dos galicanos fora derrotado pelos ultramontanos.

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Um núcleo de oposição ao ultramontanismo subsistiu graças a alguns teólogos e também a bispos como Affre, Sibour e Darboy que se sucederam em Paris, ao mesmo tempo
ligados às suas prerrogativas e persuadidos de que a perda de uma certa autonomia episcopal, a uniformização da disciplina e da piedade, a adopção de formas de vida
e de fórmulas muito italianas iriam fazer com que a velha Igreja galicana perdesse virtudes que já tinham dado provas e um fermento que tinha sido a força da Aufklàrung
católica. Mas a acção de Fornari, núncio em Paris durante sete anos (1843-1850); as repetidas condenações do Index contra as obras suspeitas de galicanismo; a intervenção
de Pio IX nas questões religiosas locais, as suas afirmações doutrinais, sobretudo a proclamação do dogma da Imaculada Conceição (1854); a orientação dada ao Concílio
Vaticano I (1869-1870) que, convocado "para encontrar os remédios necessários aos males que afligem a Igreja", terminou - prematuramente, é verdade - pela proclamação
da infalibilidade pontifícia; tudo isso foi quebrando as resistências.
No entanto, a propósito do Vaticano I, cuja obra foi muitas vezes mal compreendida, é preciso lembrar que a Igreja se encontrava, então, pela primeira vez, em presença
de uma razão inteiramente autónoma e do advento histórico de uma descrença socialmente generalizada. E isso justificou, aos olhos dos padres conciliares, um aumento
do magistério pontifício.
Enquanto a política anticatólica que, sob o nome de kultur-kampf, é conduzida durante sete anos por Bismarck (1861-1868), se dissolve com o triunfo do Papa, dois
velhos países dissidentes abrem-se à influência romana. Nos Países Baixos (Holanda), é fundado um jornal católico, em 1845, e a Constituição de 1848 afirma o princípio
da liberdade religiosa, embora, em 1853, Pio IX restabeleça a hierarquia: um arcebispo em Utreque e quatro sufragâneos. Três anos antes, o mesmo Papa tinha reorganizado
a Igreja Católica na Inglaterra: essa ressurreição fora preparada pela emancipação dos católicos, votada pelos Whigs em 1829, e, sobretudo, por um movimento intelectual
e espiritual intenso que se designou genericamente como "movimento de Oxford", porque o seu centro principal foi a Universidade de Oxford, onde jovens clérigos juraram
despertar a Igreja estabelecida:

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à frente deles, Keble, que permanecerá fiel ao anglicanismo, e Newman - uma das almas mais profundas do século - que, tornado padre e prelado romano, continuará
a estimar os seus antigos correligionários; do colégio inglês de Roma saiu Wiseman, de quem Pio IX fez o primeiro arcebispo de Westminster. Wiseman, com mais força,
Newman com maior delicadeza, devolverão ao catolicismo inglês o seu lugar.
Mas é preciso salientar que se o ultramontanismo, tal como o concebeu um século marcado pela Revolução, permitiu à Igreja reagrupar as suas forças espirituais -
Pio IX abandonará ao seu secretário de Estado, Antonelli, a administração temporal dos seus Estados -, teve como revés uma centralização administrativa, cujos excessos
foram denunciados aquando da segunda sessão do Concílio Vaticano II (1963). Este movimento tinha sido iniciado sob Pio VII (falecido em 1823) e Leão XII (1823-1829);
depois do reinado de vinte meses de Pio VIII (falecido em 1830), o austero Gregório XVI (1830-1846) instaurou, com o auxílio de Lambruschini, seu secretário de Estado,
um verdadeiro "despotismo burocrático" que tomou uma forma quase institucional no tempo de Pio IX (1846-1878), cujo longo pontificado, confrontado com a escalada
das forças anti-religiosas, se consolidará numa posição autocrática. Algumas provações como a fuga para Gaeta (1848) e a tomada de Roma (1870), a popularidade do
Papa ligada ao seu encanto pessoal, chegaram até ao culto de admiração e respeito que alguns manifestavam para com o soberano pontífice: essa atitude suscitou as
críticas dos descrentes que apenas viam no papado "uma espécie de lamaísmo" (Renan) e forneceu aos protestantes, adversários de uma teocracia pessoal, um argumento
de peso.
Por outro lado, Pio IX, desejoso de tomar conta pessoalmente da vida da Igreja, reduziu o Sacro Colégio dos cardeais a um corpo sem vida própria: os consistórios
reduziram-se a um solilóquio papal. A organização governativa, administrativa e judiciária - a Cúria -, aí enraizada desde o século XV e, portanto, muito italiana,
viu os seus poderes aumentar: "apelar para Roma" tomou-se uma expressão familiar entre os eclesiásticos. No clima tempestuoso do século XIX, quando católicos conservadores
e católicos liberais se confrontavam com dureza,

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tal procedimento levava por vezes à denúncia; a suspeição exerceu-se, sobretudo, contra os católicos liberais, considerados defensores das ideias subversivas. Mas
o pior era que, a pretexto de barrar o caminho ao liberalismo, os meios romanos - intelectualmente menos evoluídos do que os meios católicos de França e da Alemanha
e pouco ao corrente das tendências modernas -, muitas vezes desconfiaram "dos métodos críticos e dos resultados da ciência contemporânea".
É verdade que a Igreja do século XIX não pretendia, em primeiro lugar, responder aos seus adversários no terreno deles, mas, antes, lançar na acção e pôr ao serviço
dos homens as forças que o ultramontanismo permitira reunir.

4. Uma prodigiosa explosão de forças
Ao traçar, em 1900, o quadro de Um Século da Igreja em França, Mons. Baunard escrevia: "A Igreja de França nunca ergueu ou manteve à sua custa tantas escolas nem
fundou tantos colégios cristãos, às centenas. Nunca edificou tantas igrejas e tantos conventos nem abriu tantos refúgios para todas as misérias... Nunca suscitou
em parte alguma mais vocações e raramente gerou mais santos e santas." O reitor das faculdades católicas de Lille não exagerava: o século XIX libertou na Igreja
Católica enormes forças que fizeram erguer, através do Mundo, muitíssimas obras. Neste aspecto, o papel da Igreja em França foi primordial: em 1900, dois terços
dos missionários católicos em todo o mundo eram franceses; em cento e dezanove padres que morreram nas missões durante um século, noventa e cinco nasceram em França
e três quartos das congregações religiosas fundadas durante o século XIX eram francesas.
Por reacção contra o galicanismo e o josefismo hostis aos monges, o século do ultramontanismo foi o século dos religiosos e das religiosas. Em França, a II República
e, sobretudo, o II Império favoreceram a restauração das antigas ordens e a multiplicação das congregações hospitalares e de ensino. Os jesuítas foram, com os capuchinhos,
os carmelitas, os dominicanos e, particularmente, os redentoristas, os mestres das "missões"

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internas; aliás, os seus colégios multiplicaram-se e foram fundadas inúmeras congregações clericais, como as dos Maristas, dos Marianitas, dos Padres do Santíssimo
Sacramento, dos Padres do Sagrado Coração, Assuncionistas... Atrás dos Irmãos das Escolas Cristãs, que conheceram grande prosperidade, surgiram congregações laicais
e de ensino similares - contavam-se treze em 1854, pertencentes aos irmãos maristas e aos irmãos de S. Gabriel - que, em 1863, dirigiam já três mil e trinta e oito
instituições públicas. Em 1899, porém, contavam-se oitocentas e dezassete congregações femininas, quase todas, simultaneamente, de ensino e de cuidados de saúde,
com essa dupla vocação muito apreciada nas aldeias, que controlavam oito mil escolas públicas e cinco mil e quinhentas escolas livres. Entre as novas congregações,
as Irmãzinhas dos Pobres, unicamente dedicadas aos velhos indigentes, tornaram-se muito populares.
Fora de França, e apesar das escaladas febris antimonásticas - Guerra do Sonderbund na Suíça (1848), leis Cavour na Itália, Revolução de 1868 em Espanha... - o aumento
de congregações foi considerável. A Inglaterra contará cento e sessenta e três conventos em 1862, a Prússia novecentos e cinquenta e cinco em 1872; nos Estados Unidos,
onde em 1900 haverá onze milhões de católicos, um terço dos padres eram religiosos, como os paulistas instalados aí através do padre Hecker (1859), enquanto no Canadá
numerosas congregações locais se expandiram pela América. Na Itália, ao lado de muitíssimos frati adormecidos nos seus conventos confortáveis, ergueu-se João Bosco
- Dom Bosco -, esse modesto padre piemontês que se entregou aos "blusões negros" e aos garotos desprotegidos do seu tempo; pôs ao seu serviço a Sociedade de São
Francisco de Sales, cujos membros - os salesianos -, formam com as Filhas de Maria Auxiliadora, ou salesianas, uma verdadeira família de quarenta mil membros. No
mesmo sentido, actua um padre lionês, Chevrier, fundador da obra do Prado (1860), sinal infalível de prosperidade monacal: a Companhia de Jesus, entre 1853 e 1884,
passou de cinco mil para onze mil e quinhentos membros.
A maioria dessas ordens religiosas - e mesmo diversas congregações femininas - olhavam facilmente para lá dos mares. O século XIX foi incontestavelmente o século
dos missionarios

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franceses: eram trezentos em 1789 e setenta mil, de ambos os sexos, em 1900. Esta expansão foi favorecida pela acção pessoal de Gregório XVI e de Pio IX, pela empresa
eficaz da congregação romana da Propaganda, pelos enormes recursos postos à disposição das missões pela Obra da Propagação da Fé (1822), pela Obra da Sagrada Infância
(1843), pela Obra das Escolas do Oriente (1856), etc. O declínio do Império Turco, a intervenção das potências ocidentais no Oriente e na China, o estabelecimento
da França no Norte de África, na Cochinchina e no Senegal, as explorações africanas e os progressos da navegação a vapor contribuíram também para o desenvolvimento
das missões.
No Próximo Oriente, escolas e colégios religiosos multiplicaram-se: a audiência do catolicismo romano encontrou-se assim mais alargada, como no Líbano, onde os maronitas,
perseguidos pelos drusos (1860), foram protegidos pela França; na Palestina, onde, desde 1847, Pio IX restabelecera o patriarcado latino de Jerusalém; na Síria,
onde o patriarca Máximo III reorganizava uma Igreja melquita católica. E isso é também verdade para o Egipto, para a Pérsia e até para a Anatólia. A índia foi marcada
por um missionário de génio, Mons. Bonnand, que aplicou certos métodos de apostolado muito adaptados; ele não se esquecia de que, no século XVII, a Querela dos Ritos
tinha paralisado toda a acção missionária no Extremo Oriente e, sobretudo, na China. No Império do Meio, entre os extremos da xenofobia dos Chineses e da indiscreta
penetração europeia, os jesuítas, os lazaristas, os dominicanos espanhóis e os franciscanos italianos tiveram um apostolado difícil: em 1870, contava-se na Indochina
quatrocentos mil católicos e havia quinhentos mil na Indochina francesa, domínio dos lazaristas e da Sociedade das Missões Estrangeiras. Por sua vez, o Japão, fechado
para a Europa até 1868, revelou-se, no seu conjunto, pouco permeável ao catolicismo.
Os arquipélagos da Polinésia foram evangelizados sobretudo pelos padres de Picpus e pelos maristas, durante muito tempo perturbados pela acção dos Ingleses. A África,
como continente novo, suscitou maior número de sociedades missionárias especializadas: os Padres Brancos e as Irmãs Brancas de Lavigerie, arcebispo de Cartago, os
Padres do Espírito Santo

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de Libermann, os Missionários Africanos de Lião e também as Irmãs de S. José de Cluny fundadas pela extraordinária Madre Javouhey, "um grande homem", segundo Luís
Filipe. No extremo norte-americano estabeleceram-se os Oblatos de Maria Imaculada, uma congregação marselhesa.
Claro, existe um certo folclore missionário no século XIX: resgate dos chinesinhos, Anais da Sagrada Infância, viagens do padre Huc pela Tartária, missionários que
invadem os colégios franceses ávidos de relatos coloridos... Podemos sorrir com tudo isso. Mas o sangue de um Perboyre na China, de um Chanel nas ilhas Wallis ou
de um Vénard em Aname, os suores e as lágrimas de milhares de padres, de religiosos, de religiosas e de auxiliares não podem ser desprezados. É evidente que a História
deve tratar com precaução os números de "conversões", estudar o seu significado, ter em conta a tremenda campanha que, para os missionários, foi a colonização; deve
lembrar que certas massas como o islão ou o hinduísmo foram quase engolidas pelo catolicismo e que a acção missionária se revelou por vezes uma simples transposição
em terra estranha dos métodos e da mentalidade da metrópole... No entanto,o século XIX, embora pouco clarividente e facilmente satisfeito consigo mesmo, ofereceu
à Igreja uma grande dose de generosidade.

5. Um clero digno e um laicado activo

Diz-se muito mal do clero do século XIX que foi, na maioria dos países da Europa e, sobretudo, em França, um clero concordatário, subordinado, dependente da hierarquia
eclesiástica e, igualmente, de um ministro dos cultos, para quem não era indiferente ser bem ou mal "notado" (1). A ambição, as mesquinhezes e o conformismo tranquilo
são defeitos, aos quais não escapou o corpo clerical cujo nível intelectual deixou a desejar durante muito tempo. Mas quando Mons. Baunard afirma que o clero francês
do século XIX foi "casto e caritativo", é exacto no
Que diz. Com alguns cambiantes e tendo em conta o regime

Nota 1: Estar ligado ao ultramontanismo ou ao galicanismo. [N. do T.]

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mais feudal da Europa Central e Meridional, este elogio pode aplicar-se ao conjunto da Igreja. Ao redor do seu campanário, o padre de paróquia que um longo tempo
de seminário mais austero do que adaptado formou para toda a abnegação e para todos os sacrifícios, esforça-se, no humilde cumprimento dos seus deveres - pregação,
catecismo, celebração dos ofícios, administração dos sacramentos... - por elevar um pouco o nível espiritual, tantas vezes muito baixo, das suas ovelhas.
Um modelo foi proposto na pessoa de um pobre e humilde cura de uma miserável aldeia dos Dombos: quando, em 1818, chega a Ars, Jean-Marie Vianney ouve dizer pelo
seu predecessor que a maioria dos trezentos e setenta habitantes "nada tem que os distinga dos animais senão o baptismo". Durante quarenta e um anos, esse padre
pouco instruído, mas que possui no mais alto grau a inteligência do coração humano, que, pela oração, pela mortificação e pela pobreza, permanece em comunhão perpétua
com Deus, transforma radicalmente a sua paróquia e atrai de todos os lados penitentes e admiradores. Mas cada país tem os seus santos padres: Cottolengo e Cafasso
na Itália, Hofbauer na Alemanha, Balmés na Espanha, Triest na Bélgica...
O século XIX católico não teve a oportunidade de dispor de um Bossuet nem de um Ambrósío. Mas, embora tivesse havido - na Áustria, na Espanha e na Itália mais do
que em França, na Bélgica e na Alemanha - prelados delicadamente instalados no seu palácio episcopal ou que frequentavam os corredores do poder, o episcopado foi,
no seu conjunto, digno e zeloso; os seus chefes foram mais homens de acção e lutadores do que teólogos, mais conservadores do que atentos aos apelos do seu tempo.
Mas não podemos deixar de falar em homens como Pie de Poitiers, Dupanloup de Orleães, Lavigerie de Cartago, Freppel de Angers, Wiseman na Inglaterra, Rauscher em
Viena, Ledochowski na Polónia, Sterck em Malines, Strossmayer na Croácia, Mermillod na Suíça, Gibbons nos Estados Unidos, Ketteler em Mainz...
A acção do clero - um aspecto novo do século XIX - foi coadjuvada por um laicado, podendo mesmo dizer-se que, em França, os cantores do catolicismo foram leigos:
Chateaubriand,

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Veuillot, Montalembert, Falloux, Cochin os irmãos de Melun, Albert de Mun... A Igreja alemã foi dominada pela personalidade de Von Gõrres. Na Bélgica, o Partido
Católico forneceu muitos leigos militantes. Não houve cidade que não tivesse os seus homens e as suas mulheres dedicados às "obras", aristocratas ou grandes burgueses:
o snobismo piedoso e o paternalismo condescendente não foram sempre estranhos às suas diligências, mas muitos deles revelaram-se verdadeiros "santos leigos", absolutamente
desinteressados. A Sociedade de S. Vicente de Paulo, fundada em 1833, por Ozanam e seis jovens estudantes, teve a ambição de ser o ponto de encontro de todas as
obras católicas: com os seus apêndices, sociedades de S. Francisco Xavier, as sagradas famílias, os patronatos para as crianças órfãs ou desprotegidas, as obras
para militares..., tudo estava prestes a alcançar tal objectivo, quando esse impulso foi interrompido pela política neogalicana do II Império já quase no seu fim.
Mas também obras de outra natureza, cuja enumeração seria exaustiva: obras de caridade, de grupo, de juventude, obras a favor do sacerdócio e das igrejas, dos pobres,
das crianças, dos prisioneiros!... E as confrarias, as associações piedosas dedicadas ao Sagrado Coração, ao Santíssimo Sacramento, a S. José e, sobretudo, à Virgem,
cujo culto se mostrou reforçado pelas aparições de Lourdes, de La Salette e da Rua do Bac! Os seus "regulamentos", os seus estandartes e as suas imagens invadiram
as capelas das igrejas; são, de facto, manifestações de piedade, mas - desde as "Donzelas Virtuosas" aos Filhos de Maria - nem sempre é fácil distinguir a virtude
sólida do mero sentimentalismo. Os manuais de caridade, os "guias" do "jovem cristão" e os "missais" com iluminuras góticas tornaram-se repositórios de orações,
indulgenciados ou não, mais ou menos inspirados na devoção italiana - sobretudo na de Sto. Afonso de Ligório -ou na mística fervorosa de Faber, de Scheeben ou de
Mons. de Ségur que são realmente seguros. Por isso, o padre Rayez prestou homenagem à espiritualidade do século XIX, embora também haja autores, cujo estilo piedosamente
exagerado não escapa a uma ingenuidade pateta. Trata-se de um alimento espiritual muitas vezes indigente, com que se contentaram durante muito tempo os católicos
pouco interessados nos estudos bíblicos e

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que só mais tarde reagiram aos esforços de Dom Guéranger para instaurar uma caridade litúrgica e para impor o canto gregoriano.
Ao longo de muito tempo, as condições em que se desenvolveu o culto católico foram mediocremente formadoras. Uma arquitectura sem imaginação contentou-se com pastiches
dos estilos de outrora, sobretudo o gótico, de que os cristãos do século XIX sentiram saudades. Lamentavelmente, Saint-Sulpice deixou o seu nome ligado à escultura
em gesso, feita em série e sem alma. Que grandes obras inspirou a pintura cristã? Durante muito tempo, dos órgãos das igrejas, os fiéis não ouviram senão ecos de
uma música romântica, com alguma religiosidade insípida: missas com grande orquestra, oratórias, pastorais, cânticos ferozmente individualistas e fracamente adaptados
a áreas de "Pont-neuf" ou a vaudevilles do século de Luís XV. "Opera muito bela, análoga ao quinto acto de Robert-le-Diable; mas Robert-le-Diable é mais religiosa",
observava Hippolyte Taine ao sair de um grande casamento parisiense por volta de 1860... A revolução operada pelo organista de Santa Clotilde, César Franck, e, quase
no fim do século, a da Schola cantorum de Carlos Bordes, habituarão, pouco a pouco, os fiéis "a rezar com a beleza".
"Uma imaginação pastoral limitada", eis como se exprime o cónego Aubert referindo-se ao clero do século XIX. É verdade que esse clero, generoso, sério e regular
na sua vida espiritual, teve uma grave falta de perspectivas e uma preparação intelectual muito fraca. Mons. Dupanloup, que foi em Orleães um pastor vigilante, confessava:
"Absorvidos pelos pormenores e pelas milhentas obras das nossas dioceses, nem sempre podemos acompanhar de perto os avanços da impiedade." E pensemos que se tratava
do mais inteligente dos prelados franceses. Face ao liberalismo, ao ateísmo, ao socialismo, ao cientismo ou muito simplesmente ao mundo moderno, o clero sucumbiu
perante o complexo de estar "instalado" e insistiu demasiado na santidade da sua própria causa para confundir os adversários e atrair aqueles que se afastavam dele.

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Capítulo II
O AFRONTAMENTO

1. A Igreja e a sociedade laicizada

Quando Gregório XVI faleceu, em 1846, a Igreja romana assemelhava-se a um cabo ameaçado por todos os lados, a um último refúgio do Antigo Regime. Em 28 de Agosto
de 1847, Renan escrevia: "É já para mim tão evidente que chegará o dia em que o cristianismo estará morto e bem morto; mas nada se poderá fazer para lhe valer nem,
ao menos, transformá-lo." Ora, havia um ano que Mastai reinava em Roma: um jovem pontífice. Pio IX, cujo passado caritativo, sorriso encantador e reformas que introduzira
nos Estados pontifícios e garantias que parecia ter dado ao movimento nacional italiano lhe tinham granjeado uma reputação, bastante artificial, de liberalismo.
O desmentido chegou quase logo, quando, depois de ter fugido da República romana proclamada por Mazzini e Garibaldi (1848), Pio IX, graças às tropas francesas, voltou
a instalar-se na sua capital. De futuro, Pio IX, encorajado pelo seu poderoso e impopular secretário de Estado Antonelli, mostrar-se-á hostil a tudo que possa identificar-se
com o liberalismo.
Os católicos, depois da efémera "primavera dos povos" de 1848, acompanharam o Papa na sua actuação. Em França, a Revolução de Fevereiro parecia ter selado a aliança
da democracia com o catolicismo. Mas, a partir das jornadas de Junho,

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a violenta explosão de descontentamento operário reafirmou a reacção de bispos e católicos: as suas vozes e as suas exortações contribuíram para a eleição à Presidência
da República e, depois, para a posse do império do "homem forte", Luís Napoleão. Entre 1848 e 1860, renovou-se a aliança do trono com o altar, aliança muito mais
perigosa do que no tempo de Carlos X, porque a oposição ao trono imperial incarnou numa geração cujas posições filosóficas eram violentamente anticatólicas. Com
efeito, o vago deísmo evangélico de muitos dos homens de 48 foi sepultado pelo anticlericalismo militante dos Gambetta, dos Ferry, dos Clemenceau e dos Edmond About...
ou seja, uma plêiade de intelectuais que, em 1860, tinham entre 20 e 30 anos. Tinham sido influenciados não só pelo neocriticismo kantiano de Renouvier que negava
toda a metafísica e propunha uma moral puramente racional, mas também pelo positivismo de Auguste Comte, de Littré e de Taine que, ultrapassando a teologia e a metafísica,
se limitava a observar os fenómenos e a determinar as leis que os regiam: um positivismo que, aliás, desembocava em plena sociologia, afirmando-se como moral altruísta
e como religião da Humanidade.
Esta corrente positivista, algumas de cujas fontes remontavam já ao século XVIII, foi reforçada por alguns afluentes importantes. Em primeiro lugar, pelo racionalismo
científico, pelo cientismo ou religião da ciência. Com que paixão os homens da geração positivista seguiram os trabalhos de Boucher de Perthes (falecido em 1868),
pai da Pré-História e de uma concepção evolutiva do homem através dos séculos! O transformismo de Lamarck (falecido em 1829) e de Darwin (falecido em 1884) deu lugar
a uma extraordinária admiração, frequentemente ingénua e por vezes sectária, porque se sabia que ameaçava as velhas posições da Igreja quanto à origem do homem.
A audiência de um Sainte-Beuve, de um Claude Bernard, de um Berthelot, de um Michelet, de um Quinet, de um Vítor Hugo e, mais tarde, de um Charcot não se podia comparar,
nos meios pensantes, à dos padres. Durante quarenta anos, Renan guardou na gaveta o que considerava um manifesto do seu tempo: O Futuro da Ciência, cujo título é
já por si um sinal de sucesso.

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Mas foi esse mesmo Renan que, publicando A Vida de Jesus (1863), provocou um dos mais espantosos escândalos do século; a opinião francesa estava pouco a par da evolução
da exegese bíblica, sobretudo na Alemanha, onde desde há muito Reimarus insinuara que Cristo não passava de um impostor e Paulo de um charlatão genial, enquanto
Strauss (falecido em 1874) considerava a história evangélica um mito saído da ideia preconcebida de que o povo judeu tinha um Messias. Apresentando ao grande público
um Jesus sonhador, embora admirável mas sem dimensão metafísica, Renan atraiu sobre si os insultos, por vezes, ignóbeis dos católicos e elogios cegos de alguns dos
seus adversários. Tendo em conta o progresso da exegese, A Vida de Jesus de Renan rapidamente envelheceu, mas não se pode esquecer os serviços que prestou ao sacudir
o catolicismo latino até aí adormecido.
A bibliografia de Renan é quase inteiramente tirada de trabalhos devidos aos protestantes e a alemães; as ciências históricas e filosóficas - com excepção de Lovaina
e dos bolandistas na Bélgica, a escola de Tubinga e a escola de Mainz na Alemanha - revelavam-se, em 1860, bastante estranhas nos meios católicos, na Espanha, na
Itália, na Áustria e também na França, onde Dom Pitra e o abade Migne eram excepções e a obra dos maristas era prosseguida pela Academia das Inscrições e das Belas-Letras.
Mas, em História da Igreja, eram êxito de livraria as compilações medíocres de Rohrbacher e de Darras.
Nesta época, não existem grandes teólogos, pelo menos entre os latinos: numa época em que o espírito crítico reina, os bispos, os pregadores e os escritores eclesiásticos
recorrem sobretudo à atitude oratória da teologia romântica que satisfaz mais o sentimento religioso do que o espírito. A moral e a apologética invadem a literatura
religiosa, mas as inúmeras "sociedades dos bons livros" e outras "bibliotecas católicas" iludem o problema capital da conciliação do espírito científico, da civilização
industrial e da fé cristã. De uma enorme produção, o futuro reterá muito pouca coisa. A moral parece tornar-se autónoma em relação a um culto desincarnado e a um
dogma sem raízes profundas; e, na moral, a "pureza" ocupa um lugar excessivo, dado que se confunde com uma pudicícia ridícula

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e repousa numa educação sexual puramente negativa; ora isto é tanto mais grave quando essa "pureza" obsessiva esconde outros problemas morais, de ordem comunitária,
que se revelam também importantes. Uma religião reduzida a uma espécie de autodefesa espiritual ou a um entesouramento egoísta não tinha nenhuma possibilidade de
seduzir as massas comprometidas com movimentos mais amplos. Poder-se-ia, no entanto, dizer que a manutenção de numerosas obras na Igreja, o recrutamento sacerdotal
relativamente elevado e a renovação católica do século XX seriam inexplicáveis sem algumas correntes subterrâneas de santidade e de vida.
Mas o positivismo teve outros aliados. Por um lado, a franco-maçonaria que, sobretudo em França, em oposição à maçonaria anglo-saxónica, seguiu o caminho do republicanismo
e do racionalismo. Por outro lado, a ala esquerda do protestantismo com Ferdinand Buisson, Félix Pécaut e Jules Steeg, que pregava um cristianismo liberal sem dogmas
obrigatórios, sem milagres nem autoridades sacerdotais, mantendo unicamente a "substância moral do cristianismo" e apenas se fechando à intolerância clerical; será
nela que, depois, se recrutarão alguns dos fundadores do laicismo em França. Porque as forças novas e aliadas - positivismo, racionalismo, panteísmo, livre-pensamento,
materialismo de Le Dantec e niilismo de Nietzsche - cooperam, em proporções variadas, para o aparecimento de homens de acção.
Em França, são esses homens que animam a oposição ao império; em 1879, apoderam-se do poder republicano e prosseguem, atrás de Jules Ferry, a construção de uma "cidade
liberal", laica e anticlerical, baseada numa escola nova completamente autónoma em relação à Igreja; alguns oportunistas face aos radicais fazem com que essa política
jacobina se prolongue até 1914, com leis anticongregacionistas de 1901-1904 e da separação das Igrejas e do Estado (1905) a assinalar o ponto de ruptura. Assim,
confrontaram-se duas Franças: a conservadora e católica, com frequência, regalista; a republicana, anticlerical e, por vezes, anti-religiosa. Na Bélgica também,
durante uns trinta anos a partir de 1850, a ofensiva liberal e anticlerical teve como objectivo a escola; a partir de 1876, a esquerda estava no poder

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em Itália, os católicos tinham sido afastados da vida política por vontade do papa. A Espanha do século XIX - tal como as suas antigas colónias da América - foi
dilacerada por certos pronunciamientos anticlericais.
Mas a Igreja não se apercebeu imediatamente da gravidade desses ataques. Em França, os favores do II Império adormeceram, durante dez anos, o episcopado e o clero
para, depois, quando o poder temporal do Papa foi ameaçado, quando Napoleão III começou o seu périplo através da sua diplomacia labiríntica, chegar o pânico. Artigos
de L'Univers e brochuras corajosas de muitos bispos - sobretudo de Dupanloup - organizaram-se em torno de um duplo documento emanado de Pio IX: a encíclica Quanta
cura e o Syllabus (8 de Dezembro de 1864), cujas fórmulas secas do texto precisam as condenações da encíclica ao princípio do Estado laico e a todos os erros modernos:
liberalismo, socialismo e racionalismo, ou seja, tudo o que constituía os trunfos da sociedade laica. Os adversários da Igreja consideraram essa atitude - que impedia
qualquer diálogo com os descrentes - o grito de um agonizante; por isso, Vítor Hugo porá na boca do Papa estas palavras:
Eu sou a autoridade, eu sou a certeza,
E o meu isolamento, ó meu Deus, vale a tua solidão.
Era evidente que o Pontífice Romano, tal como o Grande Turco, era o homem doente da Europa nova:
Silêncio, pois, silêncio,
Segui o vosso Deus morto ao seu sepulcro sombrio..Entre os católicos, acentuaram-se as divisões entre os liberais - Dupanloup, Montalembert... - e os integrais -
Pie, Veuillot... -, porque estes afirmavam que a doutrina da Igreja, incluindo os ensinamentos pontifícios, era uma fortaleza que pode proteger contra os maus ventos;
aqueles desejavam poder lançar uma ponte entre Roma e essa nova "terra prometida", em que o homem moderno, liberto pela ciência, se volta decididamente para um futuro
de que Deus está ausente.

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Mas quanto mais os católicos tinham a sensação de estarem a ser cercados tanto melhor percebiam que as suas fileiras diminuíam. Porque a descristianização do Ocidente,
mais ou menos rápida, mais ou menos profunda segundo os países e as regiões, determinada parcialmente pelos acontecimentos políticos e sociais - código civil, bens
nacionais, industrialização, migração, mobilidade social, desenvolvimento dos meios de transporte e de difusão - foi um dos fenómenos importantes do século XIX.
Essa descristianização, que pressupõe muitas vezes uma cristianização incompleta ou superficial e o enfraquecimento de um certo cristianismo, manifesta-se evidentemente
por um abandono, total ou parcial, das práticas do culto, mas sobretudo pela paganização dos costumes e das mentalidades. Nos campos, onde os padres vêem a sua audiência
reduzir-se a favor de notáveis liberais, sobretudo do professor primário - esse antipároco, como dizia Thiers - que, maltratado antes de 1870 por uma legislação
muito clerical, se torna, como testemunhou Péguy, um servidor entusiasta da república laica.
A burguesia divide-se. Uma parte, que estará no poder, evolui para um jacobinismo cada vez mais anticlerical, quase anti-religioso A outra, por vezes por interesse,
mas quase sempre por fidelidade à educação recebida nos colégios religiosos, aproxima-se da Igreja: mas isto não quer dizer que as suas reacções essenciais, sobretudo
perante o amor, a morte e o dinheiro, tenham sido necessariamente uma resultante do espírito evangélico. Mas é também meritório que tenha sido o processo da burguesia
bem-pensante - dos panfletos de Léon Bloy às Palavras de Jean-Paul Sartre - que tenha contribuído para manter uma elite que, nos tempos mais tempestuosos, assegurará
a renovação do pensamento católico. De resto, repita-se, uma vez mais, que sem a santidade escondida de um pequeno número dos seus membros, a Igreja não teria sobrevivido
à longa tormenta do século XIX. Verifica-se, então, o fenómeno observado desde o século XVIII: o de duas curvas que se cruzam, uma a subir e a outra a descer. "A
primeira exprime uma religião qualitativa, a segunda uma adesão quantitativa; a primeira traduz a fidelidade a uma mensagem evangélica mais bem compreendida,

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a segunda, um conformismo que vai estalando à medida que a civilização se transforma" (J. Delumeau).
Mais grave, porém, do que verificar-se que, entre 1870 e 1900, a massa dos intelectuais se mostrou hostil ao catolicismo, terá sido o fracasso quase total da Igreja
face ao socialismo e ao proletariado.

2. A Igreja e os operários

Citam-se com frequência as palavras de Pio XI: "O maior escândalo do século XIX foi a apostasia da classe operária." Mas uma apostasia pressupõe uma adesão, uma
fé anteriores; ora, enquanto classe, o proletariado contemporâneo nasceu e cresceu, como a própria indústria, à margem da Igreja, num contexto essencialmente materialista,
num clima de concorrência implacável e do egoísmo, criado, em parte, pela Revolução Francesa, que erguera como dogma a liberdade de mercado, a não-intervenção do
Estado e o carácter nefasto dos corpos intermédios, corporações ou sindicatos. Não que o operário seja, por definição, um não-cristão; por volta de 1840, ainda se
falava de oficinas em que o patrão presidia à oração da tarde dos trabalhadores. A mão-de-obra da indústria manufactureira foi muitas vezes fornecida pelos campos
relativamente "tradicionais": os Flamengos estabeleceram-se na zona industrial do Norte da França, os Irlandeses trabalhavam na Inglaterra e, durante longo tempo,
mantiveram os hábitos cristãos; é verdade que, sobretudo no último caso, se tratava também de uma forma de resistência à assimilação. Mas as próprias estruturas
da grande indústria, limitando a muito pouco ou mesmo nada os tempos de instrução, de prazer e de reflexão, desenraizando os homens, deslocando a família, mostravam-se
incompatíveis com uma vida cristã paroquial já reduzida pela desafectação geral em relação à Igreja.
Aliás, as Igrejas concordatárias não dispunham das nossas luzes: a formulação histórica e sociológica dos padres era medíocre; o episcopado, piedoso e zeloso, tinha
poucas cabeças pensantes; o Estado evitava empurrar para as primeiras filas padres

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do tipo de La Mennais. De resto, o clero administrativo, muito dependente do Ministério dos Cultos francês, não tinha a liberdade de acção do actual clero. Portanto,
não nos devemos espantar de que, durante muito tempo, se tenha confundido o proletário com o pobre. Porque o próprio Jesus tinha dito: "Tereis sempre pobres entre
vós" e, assim, o clero não via nada de anormal no facto de que o trabalho ao serviço de outrem provocasse naturalmente a pobreza, quase o pauperismo, que é a pobreza
em estado endémico. E a desigualdade social ia progredindo, caminhava por si. Porque o próprio Napoleão, fundador da "nova sociedade", escrevera: "Na religião, não
vejo o mistério da Incarnação, mas o da ordem social. Quando um homem morre de fome ao lado de outro que arrota, é-lhe impossível entender essa diferença, se não
houver uma autoridade que lhe diga: Deus assim o quer, porque é preciso que haja pobres e ricos; mas, depois e durante a eternidade, a partilha far-se-á de outra
forma." Eis um tema retomado cem vezes pelos pregadores, tal como o pároco de Saint-Maurice, em Lille, declarando em 1841: "A desigual repartição dos bens é necessária
para manter a felicidade na terra; o pobre trabalha para o rico e o rico auxilia o pobre; a harmonia da sociedade resulta dessa diferença entre os seus membros,
como a do órgão deriva da grossura desigual dos tubos."
Não se diz que "o industrial paga ao operário", mas que "o rico auxilia o pobre". Existe nisso uma subtileza, uma demarcação, aliás, feita de boa-fé, mas que viria
a custar caro à Igreja. A protecção do operário pelo seu patrão (a palavra, sintomática, passou de moda no vocabulário corrente), a intervenção maciça dos padres,
dos homens e das mulheres na prática da caridade (patronatos, sociedades de beneficência, ajuda social, cooperativas, obras familiares ou de higiene, círculos e
corporações): eis o processo habitual de conceber o "dever social". A sociedade saída da Revolução, sendo intangível de direito divino, seria um crime sacudi-la.
Por isso, todos se contentam, muito cristãmente, em cuidar das chagas físicas e morais provocadas pelo industrialismo triunfante.

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3. A contra-Igreja socialista

Ora, é a uma verdadeira escravatura que, tanto na França, na Bélgica, na Renânia, na Itália e na Espanha, como nos países não-católicos, a massa dos operários da
grande indústria se vê submetida. Viram-se confrontados com máquinas perigosas consideradas o capital essencial e que os "libertariam", encerrados durante um tempo
considerável numa fábrica dirigida por um patrão distante ou anónimo, dominado pela implacável lei da oferta e da procura e da concorrência sem freio. O salário,
considerado simplesmente um elemento do preço de custo, era fixado pelo empregador em função das flutuações económicas: o operário era livre de recusar; mas, noutro
lado, encontraria a mesma lei pesada. Mal pago, o operário levava os filhos para a fábrica para melhor poder viver, mas o trabalho excessivo e duro, uma alimentação
fraca e o albergue - porque, salvo algumas excepções, nunca houve uma política de alojamento -, a taberna, refúgio natural de uma vida sem alegria, tudo isso provocava
uma mortalidade elevada, sobretudo entre os mais novos. Mas o trabalho em casa conhecia também condições muito pesadas.
Portanto, é este estado de coisas que se encontra, com certas variantes, em todos os países marcados pela Revolução Industrial que Durkheim designará como "o imenso
grito de sofrimento" e que provocou a elaboração de doutrinas visando uma reforma radical da organização da sociedade, geralmente pela supressão das classes sociais:
a palavra "socialismo" foi comodamente adoptada para as designar. Do ponto de vista da Igreja, o que as caracteriza é que consideram o cristianismo, e mais particularmente
o catolicismo, absolutamente incapaz de dar uma resposta global à questão social ou, ainda pior, o obstáculo principal à emancipação dos trabalhadores. Para Saint-Simon,
Fourier, Pierre Lenoux..., o cristianismo não era mais que uma fase para um paraíso terrestre feito de amor universal. Para Blanqui, "o exército negro dos padres
avança em plena fúria, vencendo as trevas e afirmando-se por toda a parte como inimigo do progresso. Apoiado pelo Estado, domina, governa, ameaça e oprime. O capital
oferece-lhe todos os meios,

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considerando-o um bom auxiliar, ou melhor a sua última hipótese de salvação." Com Proudhon, que acusava a Igreja romana de ser "adúltera em relação a Cristo" redentor
do proletariado, caminhava-se para uma "variedade anárquica" desse humanimo ateu de que Hegel e Feuerbach se tomaram os teóricos e de que Marx fez a essência do
socialismo científico: "A crítica da religião é a primeira condição de toda a crítica..." Muito antes de Nietzsche, já Marx tinha compreendido que a "morte de Deus"
era a condição essencial da libertação e da promoção do homem e que, como Proudhon, a resignação cristã era uma ilusão: "Ó povo de trabalhadores, povo deserdado,
vexado e proscrito! Povo que se aprisiona, que se julga e que se mata! Povo humilhado, povo sacrificado! Não sabes que a paciência tem limites e a dedicação também?
Até quando continuarás a dar ouvidos a esses oradores do misticismo que te mandam rezar e esperar, pregando a salvação, umas vezes pela religião, outras, pelo poder,
e cuja palavra veemente e sonora te cativa?" (Proudhon, Filosofia da Miséria)
Em resumo: é com o marxismo que, ao longo dos anos, a Igreja se verá mais frequente e tragicamente confrontada. A cidade socialista, caracterizada pelo desaparecimento
das classes, não se situa já, graças a Marx, num futuro aleatório, mas toma-se uma certeza inelutável, cuja realização pode ser apressada pela acção dos homens.
Esta cidade será universal, internacional e realização de um verdadeiro ecumenismo; Jules Guesde exclamará um dia perante os deputados católicos: "Nós somos hoje
o verdadeiro, o único catolicismo; e catolicismo quer dizer universalidade." Mas a religião será tranquilamente afastada dessa cidade como coisa naturalmente perniciosa:
"A religião é tanto o suspiro da criatura oprimida, a alma do mundo sem coração, como é o espírito de uma civilização de onde o espírito está excluído. Ela é o ópio
do povo... Os princípios sociais do cristianismo revelam-se servis e o proletariado é revolucionário" (Karl Marx). E é num tom triunfante que Lafargue, em 1895,
poderá escrever: "Marx expulsou Deus da história, o seu último refúgio."
A Igreja Católica, à Igreja cristã, o socialismo marxista opõe uma contra-Igreja, cujos fiéis se recrutam sobretudo entre os

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pobres. A uma religião que se identifica com uma civilização condenada, com uma sociedade injusta e opressora, opõe uma nova religião que condena a caridade cristã,
"essa intermediária cínica que corrompe o pobre, avilta a sua dignidade e o habitua a suportar com paciência a sua sorte iníqua e miserável. A sociedade capitalista,
que conduz ao extremo limite a exploração do pobre, era a única capaz de erguer como virtude teologal e social a posição do dinheiro" (Paul Lafargue, 1905).
Esta nova religião tem os seus dogmas, que são definidos em vários catecismos, como o Catecismo Comunista de Engels e o Ensaio de Catecismo Socialista de Jules Guesde.
Em todo o caso, é verdade que os católicos reagiram tarde - em número muito reduzido e, durante muito tempo, sempre a medo - à proletarização da classe operária.
E tal facto pode encontrar uma explicação ou, mesmo, uma desculpa no terror que a revolução exercia no papado, no episcopado e no conjunto dos leigos; e, muito naturalmente,
o operário foi identificado com o pobre e a justiça social com a caridade; durante muito tempo, a corporação do antigo regime foi considerada a nostálgica instituição
a que era necessário regressar. Quanto ao resto, sim, ilusões perigosas para a ordem social. "Não vedes que, se impregnardes o operário de ateísmo e de sensualismo,
o entregais a todas as cupidezes impetuosas? Soprais-lhe no coração a sede ardente dos gozos materiais, mas roubais-lhes a resignação e a esperança; tornais-lhes
intoleráveis os seus sofrimentos e forneceis argumentos terríveis à sua inveja..." Esta censura dirigida aos socialistas é de 1866 e foi feita por Mons. Dupan-loup
que passava por ser o mais liberal dos bispos de França. Todavia, é preciso dizer que alguns bispos - como o cardeal Giraud, arcebispo de Cambraia - ousaram condenar
solenemente "a exploração do homem pelo homem".
Ao serviço desse novo "pobre" que era o operário, surgiram inúmeras "obras", como a Sociedade de S. Vicente de Paulo, que permitiram aos católicos possibilidades
de contactarem com a miséria e assim se prepararem para uma acção social mais ampla.

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4. Esforços dos católicos sociais

Não se poderá, sem injustiça, por mais longas que tenham sido as suas hesitações, passar em silêncio os pioneiros do catolicismo social. La Mennais, influenciado
muito cedo pelo "desprezo pelo homem" proclamado pela sociedade industrial, levantar-se-á sobretudo contra "o novo feudalismo" depois de abandonar a Igreja. Nas
obras de alguns dos seus discípulos - Charles de Coux, Gerbet... - encontram-se espantosas fórmulas de condenação do capitalismo. E também em Ozanam, o apaixonado,
que denuncia o liberalismo económico como portador de morte para o operário-máquina. Buchez, indo mais longe, estabeleceu os limites de um "socialismo cristão" que
pretendia reconciliar a revolução e o catolicismo. Mas aí, já estamos na extrema-esquerda do catolicismo social; entre os legitimistas, que se revelavam em maior
número, as soluções preconizadas situavam-se numa perspectiva muito mais apertada, embora desembocasse em importantes realizações. Por exemplo, o visconde Alban
de Villeneuve-Bargemont, cuja "economia política cristã" preconizava a fundação de "colónias agrícolas"; Armand e Anatole de Melun, animadores da "Sociedade de Economia
Caritativa" e do catolicismo paternalista que caracteriza o período de 1848-1870 e se encontrará desamparado perante a Comuna de Paris, considerada não num contexto
histórico e sociológico, mas como uma explosão de ódio infernal.
Não é preciso esconder isso: se, em 1871, o catolicismo social não revelou mais do que um punhado de homens que, aliás, pertenciam às classes dirigentes; se a sua
audiência é limitada, a responsabilidade regressa ao silêncio da hierarquia, com Gregório XVI e Pio IX à frente, ou, se preferirmos, à sua falta de perspectivas;
embora papas e bispos condenem o liberalismo, não vêem que o liberalismo económico é a forma mais desumana e grosseira de todas as misérias; ao deplorarem a descristianização
das massas, atribuem-na à acção das "más doutrinas"; mas não percebem a sua ligação com o "triângulo maldito" - fábrica, casa e taberna - que não deixa qualquer
espaço para a vida paroquial favorecendo o embrutecimento intelectual e a atrofia espiritual.

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Noutros países, o mesmo silêncio, por vezes mais opaco, como na Espanha ou na Itália, onde d'Azeglio é um pensador solitário. Entretanto, em diversas regiões desabrocham
alguns centros: na Inglaterra, com Manning, "o cardeal dos pobres"; na Bélgica, na Universidade de Lovaina, onde desperta a sociologia religiosa e Charles Périn
exalta a associação operária; nos Estados Unidos, onde o cardeal Gibbons protege e defende a poderosa associação operária dos Knights of Labour; na Áustria, com
o barão de Vogelsang.
Na Alemanha, as convicções de Lenming e de Dõllinger sobre o papel decisivo da Igreja no acerto da questão social, inspiram, depois do abalo de 1848, a acção de
von Ketteler, bispo de Mainz, que preconiza as "associações operárias", inspirando, assim, uma nova forma - mais evoluída do catolicismo social: o corporativismo
que reforçará o paternalismo de tipo patriarcal expresso na Reforma Social (1864) de Le Play. A corporação tal como a entende esse catolicismo, simultaneamente social
e contra-revolucionário, é uma "sociedade religiosa e económica", fundada livremente por chefes de famílias industriais, patrões e operários, dentro de um mesmo
corpo de estado e cujos membros são agrupados em "associações de piedade".
Este segundo catolicismo social encontrou em França os seus representantes mais notáveis. A frente os "homens-bons sociais", como Albert de Mun e Renê de La Tour
du Pin que, fundando em 1871 os Círculos Católicos de Operários, pretenderam fazer com que as "classes dirigentes" e as "classes populares" se encontrassem. Depois
de um rápido sucesso, os Círculos abrandaram, tendo absorvido a clientela de obras, através sobretudo de artesãos e empregados; o seu espírito paternalista seduzia
pouco o operário da fábrica nesses anos de crises económicas, de greves monstruosas e, por vezes, sangrentas, quando se formavam partidos operários em que o espírito
marxista se impunha pouco a pouco, enquanto uma proliferante "pequena imprensa", muitas vezes infamemente anticlerical, fazia do "padre" o aliado natural "patrão".
Aliás, os socialistas negavam violentamente aos católicos qualquer direito de ingerência no problema social; basta lembrar os panfletos de Lafargue, Pio IX no Paraíso,
e de Guesde, Carta ao Senhor Leão XIII, Papa do seu

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Estado. "O passado pertence-vos: é todo vosso e unicamente vosso. O que fizestes dele, ó senhores cristãos?", perguntava Jules Guesde, num dia de 1896, a Mun e aos
seus amigos deputados Keller, Thellier de Poncheville... - que, corajosamente, participavam na feitura de uma legislação social. Corajosamente..., porque, no seu
meio natural, o catolicismo social avançava por entre tremendas dificuldades: o conjunto dos bispos, dos padres e dos católicos considerava subversiva qualquer obra
não especificamente caritativa e recusava qualquer intervenção da Igreja no domínio económico.
Mas isso não impedia certas realizações por vezes originais: assim, em França, a de Léon Harmel que, na sua fábrica-modelo do Val-des-bois, une o fraternalismo corporativo
ao esforço associativisra; a federação das sociedades operárias católicas (1868); o congresso das obras sociais e a acção de Mons. Doutreloux e do padre Mellaerts,
na Bélgica; o círculo romano de estudos sociais em Itália. Na Alemanha, o zentrum de Wind-thorst e o volkverein desempenharam um papel importante na elaboração das
leis sociais sob Guilherme II. Na Suíça, Mons. Mermillod organizou, em 1885, encontros sociais internacionais, a que se deu o nome de União de Friburgo, cujo trabalho
inspirou as intervenções do Papa. Com efeito, por um lado, Leão XIII caucionou e libertou o catolicismo social, convidando os católicos franceses a ligarem-se à
República (1892); e, por outro lado, dando, com a encíclica Rerum novarum (1891), uma carta social ao catolicismo; nela, o Papa "proclamava uma verdade esquecida
desde o fim da Idade Média: que a moral evangélica tinha muitos prolongamentos sociais e nenhum crente tinha o direito de os desconhecer".
Surgiu uma nova geração, entusiasta, que se ligou decididamente à democracia e agrupou não os privilegiados, mas as massas: Associação Católica da Juventude Francesa
(1885), "padres democratas", como Naudet, Gayrand e Lemire; congressos operários (1893); círculos de estudos sociais; secretariados permanentes de acção social,
como La Cronique Sociale de Lyon (1892), VAction Populaire (1903), as Semanas Sociais (1904) - verdadeira universidade itinerante -, os Secretariados Sociais (1906)...
Esta ala esquerda do catolicismo social nem sequer receou associar-se às

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iniciativas da República; assim, a lei capital de 1884 autorizando a formação de sindicatos profissionais inspirou algumas iniciativas católicas, como o Sindicato
dos Empregados do Comércio e da Indústria (1887), fundado por alunos das escolas cristãs, que foi o embrião da CFTC. E neste terreno desenvolveu-se - em França,
na Bélgica e na Itália - um ideal de democracia cristã, desejoso de separar o movimento operário da colusão entre a democracia e o anticlericalismo.
Mas muitos padres e a massa dos "fiéis" censuravam violentamente esses católicos ousados que se submetiam à "meretriz", a essa república que, ao mesmo tempo que
recebia os sorrisos dos democratas-cristãos ou de um padre Lemire, perseguia as congregações. Às suas decepções políticas e nacionais, a "direita" católica e regalista
tinha procurado sucessivas compensações: o boulangismo, o anti-semitismo antidreyfusiano, a Acção Francesa; aproveitava-se mesmo das fraquezas dos "católicos sociais":
do esbanjamento dos seus esforços que limitava a sua acção sindical e eleitoral, e também da fraqueza do seu substrato ideológico e teológico. A condenação do Sillon
(1910), vasto movimento democrático e social animado por Marc Sangnier, enfraqueceu momentaneamente a democracia cristã.
Em 1914, o catolicismo social estava ainda embrionário; dispersava-se em "obras" generosas, mas empíricas. De resto, era animado sobretudo por intelectuais e burgueses,
mais reformistas do que revolucionários: faltavam-lhe, sobretudo, as massas operárias, na sua maioria já ganhas por um socialismo de realizações mais imediatas.
E no entanto, o trabalho persistente, penoso e obscuro realizado a partir de 1870 por uma minoria de católicos ia trazer frutos depois da Primeira Guerra Mundial
e assegurar ao catolicismo uma audiência que os contemporâneos nunca julgavam ser possível.

5. Roma sem os Estados romanos

A "questão romana" é um acontecimento com implicações políticas que contribuiu para agravar as relações da Santa Sé com a sociedade moderna. De facto, trata-se do
conjunto de

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problemas postos pela sobrevivência do Estado pontifício num mundo em que todos tinham sido secularizados depois da Revolução. O restabelecimento do poder papal
por Oudinot, em 1849, tinha deixado esse problema intacto. Cavour, no Congresso de Paris (1856), denunciou às potências de então a miséria e os abusos que reinavam
nas terras pontifícias e que foram o assunto de uma brochura célebre publicada em Londres (1859) por Edmond About. A Sociedade Nacional Italiana de La Farina explorou
as aspirações unitárias das populações submetidas à Santa Sé e, em Março de 1860, no termo da guerra de Itália, as Legações revoltadas foram incorporadas no reino
sardo. A anexação de Roma parecia essencial aos partidários da unidade italiana. Aliás, muitos pensavam como Edmond About que, "a partir do dia em que o espiritual
e o temporal estivessem ligados pelo ventre como dois poderes siameses, o mais augusto dos dois perderia necessariamente a sua independência".
Mas Pio IX e a maioria dos católicos calculavam que a posse de um Estado era para o papado a única caução da sua independência espiritual; que as terras pontificais
seriam, de facto, o último Estado cristão da Europa; e, finalmente, que a espoliação seria uma ofensa grave ao direito público, um acto revolucionário e sacrílego.
Além disso, Pio IX, não se contentando com excomungar Vítor Emanuel, organizou um exército de voluntários estrangeiros chamados zuavos pontifícios que, comandados
por Lamoricière, foram derrotados em Castelfidardo (18 de Setembro de 1860). A partir de então, prosseguiu a investida e a conquista dos Estados pontifícios: em
Novembro de 1860, quando as Marcas e a Úmbria votaram a sua integração no reino sardo - em breve, reino de Itália - até à sombria jornada de 20 de Setembro de 1870,
em que o exército italiano ocupou Roma.
Um facto curioso: à medida que o poder temporal de Pio IX se desfazia, o seu prestígio espiritual crescia. Nunca, como no decurso desses anos 60, se viram tantos
bispos, padres e fiéis em redor do Papa na própria Roma; e os vendedores ambulantes familiarizaram os lares mais humildes com o rosto afável do "papa-mártir". O
ultramontismo devorou como um fogo os restos do galicanismo; essa chama ateou-se ainda mais, quando, ao rejeitar a lei italiana das Garantias (Maio de 1871), que
lhe

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assegurava as prerrogativas soberanas e a extraterritorialidade do Vaticano e do Latrão, Pio IX se considerou prisioneiro voluntário. Em França, a causa de Pio IX
esteve ligada à de Henrique V e as peregrinações a Frohsdorf tiveram o mesmo significado que as peregrinações a Paray-le-Monial, onde os cânticos exaltavam Gesta
Dei per Francos.
É preciso ter em conta que a "questão romana" deturpou certas perspectivas e manteve um sectarismo de "direita" que, na verdade, era uma resposta a um sectarismo
de "esquerda". Porque o laicismo e todas as leis que inspirou foram o reflexo de defesa das democracias nascentes, especialmente da III República Francesa. Toda
a vida pública seria, até 1914 e mesmo depois, marcada pela ruptura confessional, pela incomunicabilidade entre as "duas cidades" obrigadas a combater-se e a ignorar
as suas virtudes recíprocas. Perante certas ligas (do Ensino, dos Direitos do Homem...) ergueram-se outras ligas, também muito combativas (dos Patriotas, da Pátria
Francesa, da Action Française...). Mas o facto de o papado ter sido afastado das preocupações temporais e territoriais pela força, iria permitir-lhe elevar-se, distanciar-se
e, por isso, ver a sua autoridade irradiar num mundo que, na verdade, já não se confunde com a cristandade, mas que, marcado por uma civilização desumana e materialista,
está reconhecido - embora confusamente - ao Sumo Pontífice por defender os direitos essenciais do indivíduo e lembrar algumas grandes verdades. Incontestavelmente,
os seis antecessores de Paulo VI pertencem à elite da história contemporânea.

6. Leão XIII e a iniciação ao pluralismo

Leão XIII (falecido em 1903) sucede a Pio IX (falecido em 1878), num momento em que o Ocidente é sacudido pelos progressos científicos, enquanto a burguesia jacobina
assenta o seu poder e o proletariado operário começa a tomar consciência da sua existência como classe. Sem abandonar o depósito da fé, mas também sem multiplicar
os anátemas, Leão XIII, que tem vistas largas, esforça-se por distinguir os temas de

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pensamento incompatíveis com a doutrina católica das realidades do mundo moderno; o seu desejo é fazer deles realidades cristãs, embora saiba que o mundo já não
é cristão. Saindo vencedor da luta contra a kulturkampf na Alemanha e na Suíça, preconiza a ligação dos Franceses à República e faz as pazes com a Bélgica (1884),
quatro anos depois da ruptura provocada pela política anticlerical de Frère-Orban.
O Papa acalenta o projecto de manter relações permanentes com o Governo inglês; recua perante as reclamações do cardeal Manning, mas apoia a tarefa de aproximação
com a Igreja anglicana de que Lorde Halifax e o padre Portal se tomam defensores. Embora não se tenha chegado à validação das ordenações anglicanas, pelo menos as
conversões ao catolicismo multiplicam-se no Reino Unido.
Leão XIII favorece também a expansão do catolicismo nos Estados Unidos, mas previne os fiéis, pela carta apostólica Testem benevolentiae (1899), contra o americanismo,
que é uma tendência para enfraquecer a doutrina da Igreja com vista a adaptá-la à vida moderna influenciada pela descrença; foi por essa tendência já ser conhecida
na Europa, sobretudo através da tradução em 1897 de A Vida do Padre Hekter, que Leão XIII decidiu intervir.
Conhece-se a retumbância da encíclica Rerum novarum. Em Immortale Dei (1885) e, depois, em Libertas (1888), o Papa define o legítimo lugar das liberdades populares
e da liberdade em si mesma. Esta acção de envergadura tem partidários entusiastas, mas atrai contra Leão XIII inimizades sólidas: os católicos "integrais" escandalizam-se
e muitos republicanos sentem dificuldade em acreditar numa "Igreja liberal"; e os socialistas consideram uma aberração a incursão da Igreja no campo social. Quando
o Papa morre, "reina" em França o "paizinho" Combes e a prosperidade burguesa acaba de assistir, com a Exposição de 1900, à sua apoteose; por isso, o mundo ocidental
está longe de se unir à Igreja.
Mas não é menos verdade que Leão XIII traçou e marcou os novos caminhos que permitirão ao catolicismo contemporâneo abandonar os seus guetos. Como escreve Jean-François
Six: "Há nas encíclicas de Leão XIII duas coisas que são radicalmente novas e que os teólogos e os canonistas que se limitaram a repetir os grandes princípios nem
sequer viram: em

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primeiro lugar, o facto de Leão XIII ter exprimido a sua inquietação de ultrapassar as preocupações do seu tempo e de se recusar a pronunciar anátemas. Mas, sobretudo,
porque Leão XIII manifesta uma espantosa lucidez para discernir o permanente do variável. Se o Papa apresenta como princípio a independência e a soberania das duas
sociedades - da Igreja e do Estado, cada qual na sua ordem -, também oferece dois princípios que contêm um germe activo de desenvolvimento e o próprio fundamento
de uma possibilidade do diálogo: o princípio da liberdade da consciência religiosa como garantia dos direitos da pessoa e o princípio do bem comum como norma de
fidelidade ao Estado."

7. Pio X ou a fidelidade

Portanto, é fácil - demasiado fácil até! - comparar Leão XIII, o diplomata subtil, ao seu sucessor Pio X (1903-1914), que manteve no trono pontifício atitudes de
pároco de aldeia. A sua divisa instaurare omnia in Christo revela um Pio X menos preocupado em inovar do que em aprofundar e defender. Preconizando a reforma da
música sacra (1903), um ensino mais sistemático da religião (encíclica Acerbo nimis, 1905), uma frequência mais regular dos sacramentos, sobretudo da comunhão eucarística;
reformando o breviário (1905) e refundindo o Código de Direito Canónico, Pio X quis pôr à disposição dos membros da igreja instrumentos mais adaptados de santificação.
Mas este papa eminentemente religioso - Pio XII, ao canonizá-lo em 1954, testemunhará a sua verdadeira santidade - teve de enfrentar os mais graves problemas nascidos
de uma época sem entraves. Porque antes de se considerar Pio X um "integrista limitado", convém lembrar a atmosfera tempestuosa em que se desenrolou o seu pontificado.
Quando o Governo francês, em 1905, denunciou a Concordata de 1801 e proclamou a separação da Igreja e do Estado, Pio X condenou essa ruptura unilateral e as Associações
de Culto (1906): deste modo, ele sujeitava a Igreja de França a condições materiais difíceis, mas, ao mesmo tempo, libertava-a para tarefas exclusivamente espirituais.

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A democracia cristã, a própria democracia e as suas doutrinas socializantes nunca mereceram a simpatia de Pio X, que considerava mesmo a formação de um "partido
católico" algo de incompatível com a constituição monárquica da Igreja; a menos que "o partido" estivesse estritamente submetido ao episcopado. Por isso, tolerou
- e até encorajou - o Partido Católico belga que crescia à sombra do cardeal Mercier (falecido em 1926) e, na Áustria, o sólido Partido Social-Cristão, cujo anticapitalismo
revelava um anti-semitismo violento. Em contrapartida, o "centro" alemão era muito independente aos seus olhos. Em França e na Itália, Pio X reagiu violentamente
contra uma democracia cristã que já não era, em sua opinião, uma iniciativa autenticamente religiosa.
Em 1909, Pio X excomungou um padre italiano, Romulo Murri, por vezes comparado a La Mennais, pelo seu entusiasmo e popularidade: fundador da Liga Democrática Italiana,
aos seus anátemas contra a civilização moderna, materialista e opressiva, misturava expressões dignas de Savonarola; mas Pio X não era Alexandre VI. Em França, a
condenação de dois jornais dirigidos por "padres democratas" foi seguida pela do Sillon de Marc Sangnier (1910), movimento muito activo e cujo objectivo era não
somente reconciliar a Igreja com a República, mas também realizar em França uma república verdadeiramente democrática, servindo-se das forças sociais do catolicismo;
no entanto, os contornos doutrinais demasiado vagos e a liberdade revelada por esse movimento não agradavam muito a alguns bispos. Ao contrário de Muni, Sangnier
submeteu-se. Os antigos partidários serão, depois da Primeira Guerra Mundial, os animadores de um movimento mais bem definido. No campo oposto, o da Action Française,
movimento monárquico e nacionalista, encontravam-se muitos padres e católicos que, fascinados pela "Igreja da ordem", esqueciam-se do agnosticismo de alguns dos
seus mestres, como Maurras.

8. A crise modernista

Sillon e Acção Francesa, movimentos progressistas e integristas, inovadores e reaccionários, actuais e tradicionais; a

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clivagem que separava as duas tendências do catolicismo há-de prolongar-se até aos nossos dias; se a tendência é actualmente mais favorável à "esquerda", antes de
1914 o catolicismo conservador dominava, tendo-se vivido, então, uma das mais graves crises da História das ideias e da História da Igreja.
No essencial, "a crise modernista nasceu do choque brutal :. do ensino eclesiástico tradicional com as novas ciências religiosas que se constituíram longe do controlo
das ortodoxias e, muitas vezes, contra elas, a partir de um princípio revolucionário: a aplicação dos métodos positivos num domínio e a textos até aí considerados
como fora do seu alcance" (E. Poulat). E essa crise agravou-se ainda mais por ser evidente a distância entre a mediocridade do ensino eclesiástico e o dinamismo
das ciências religiosas.
Quatro países foram atingidos pela crise modernista: a Itália, a Grã-Bretanha, a Alemanha e, sobretudo, a França, onde se verificaram lutas entre os modernistas
desses países que se devem, sobretudo, ao acaso. Seria, pois, falacioso imaginar uma espécie de complô modernista organizado à escala internacional.
Na Itália, o modernismo situa-se na linha do Risorgimento e desenvolve-se essencialmente sobre dois campos: a acção social e a cultura religiosa; exprime uma necessidade
de abalar "uma tutela eclesiástica mais pesada do que noutros lados". Três personalidades dominam o modernismo italiano: Rornulo Murri, Ernesto Buonaiuti e António
Fogazzaro.
Romulo Murri (1870-1944), padre em 1893, fundador da Democracia Cristã, abre aos modernistas a sua revista Cultura sociale que, em 1907, passou a ser Rivista di
Cultura. Suspenso a divinis em 1907, excomungado em 1909, será eleito deputado radical, mas desempenhará um papel parlamentar de pouca importância. Ernesto Bvionaiuti
(1881-1946), padre em 1903, director de um certo número de revistas, sobretudo da Rivista storico-critica delle scienze teologiche (1905-1910), ensina a história
do cristianismo na Universidade de Roma e reivindica, contra a autoridade eclesiástica, a livre investigação histórica, sendo excomungado em 1926.
Quanto ao grande romancista e poeta espiritualista António Fogazarro (1842-1911), procura conciliar a sua fé com as

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teorias da ciência moderna, sobretudo do evolucionismo; esta tendência, a que se mistura uma crítica bastante dura das hipocrisias religiosas, irá valer-lhe a hostilidade
dos meios eclesiásticos; suspeito de modernismo, será condenado pela Igreja e a ela se submeterá. Mas é ainda necessário conceder um lugar especial à efémera revista
Rinnovamento, fundada em 1907 por um grupo entusiástico de jovens católicos e que desaparecerá em 1909.
Na Grã-Bretanha, o modernismo é essencialmente representado por George Tyrrell e o barão Friedrich von Húgel, cuja influência na Inglaterra se exerceu menos sobre
os meios católicos do que sobre os anglicanos. George Tyrrell (1861-1909) é um calvinista convertido que se tornou jesuíta. Apologista de renome, pretende subordinar
o carácter intelectual da Revelação às emoções da piedade. Excluído da Companhia de Jesus em 1906, privado dos sacramentos em 1907, prega a excomunhão salutar e
edita sobretudo The Programme of Modernism (1908). Morreu prematuramente sem se ter reconciliado com a Igreja. Quanto ao barão Friedrich Frelherr von Húgel (1852-1925),
originário de uma grande família austríaca, homem muito culto e de grande coração, sempre preocupado em dialogar, é uma espécie de protector e confidente dos modernistas
europeus; em 1908, publica a sua obra essencial: The Mystical Element ofReligion. Foi ele quem iniciou Tyrrell na escola francesa do dogmatismo moral e Alfred Loisy
na crítica.
Na Alemanha, o modernismo desenvolve-se "na corrente de liberalismo universitário e de reformismo católico que, no século XIX, marcou toda a história deste país".
Mas o modernismo alemão pretendeu permanecer à margem do modernismo latino e anglo-saxónico. As ousadias teológicas de Herman Schell (1850-1906), cuja Dogmática
foi posta no Index em 1898, o antiultramontanismo de François-Xavier Kraus (1840-1901), as teorias reformistas da revista Zwanzigste Jahnindert são algumas das manifestações
de um movimento muito particularista.
Mas foi em França, país apaixonado pelas ideias, que o modernismo encontrou o seu terreno de eleição. "A sua personagem epónima" (E. Poulat) é incontestavelmente
o exegeta Alfred Loisy (1857-1940). Padre em 1879, professor de Hebraico (1881) e, depois, de Sagrada Escritura (1889) no Instituto Católico de Paris,

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Loisy utiliza ousadamente os métodos da filologia moderna no seu ensino e nas obras (que apareceram antes na sua revista L'EnseÍgnement biblique): História do Cânone
do Antigo Testamento (1890), do Novo Testamento (1891), História Criticado Texto e das Versões do Antigo Testamento (1892), tornando-se suspeito pela audácia das
suas ideias. Como historiador, ensinava a independência absoluta da crítica bíblica e da história eclesiástica em relação à Revelação e aos dogmas, concebendo um
Cristo histórico distinto do Cristo da fé. Como filósofo, pretendia afirmar que, na ordem religiosa, as ideias não passavam de metáforas e de símbolos.
Privado da sua cátedra em 1893, aproveitou bem a sua saída para prosseguir nos trabalhos sobre as Escrituras. Em 1902, a pretexto de refutar A Essência do Cristianismo
do exegeta protestante Harnack, publicou O Evangelho e a Vida (1902), onde a apologia da Igreja coincide com a negação das suas origens evangélicas. A obra foi censurada
pelo arcebispo de Paris (1903). Para se defender e responder às críticas provocadas por O Evangelho e a Vida, Loisy escreveu uma apologia, A Volta de Um Livrinho,
que, com mais quatro das suas obras, foi condenada pelo Santo Ofício em 1903.
Outros autores, que evoluíram em diversos domínios, foram também considerados próximos do modernismo e tratados como tal. Mons. Louis Duchesne (1843-1922), historiador
da Igreja antiga e do papado, e grande conhecedor de lendas, teve de abandonar a Faculdade de Teologia do Instituto Católico e passar para a Escola Superior de Letras,
porque o seu ensino sobre os testemunhos do dogma da Trindade ou sobre as origens das Igrejas da Gália fizeram com que fosse declarado suspeito. Mais tarde, a sua
História Antiga da Igreja será posta no índex (1912).
O padre Lucien Laberthonnière (1860-1932), oratoriano e director, a partir de 1905, dos Annales de philosophie chrétienne, desenvolveu a chamada doutrina "da imanência"
nos seus Ensaios de Filosofia (1903), livro que foi colocado no Index em 1906, no próprio ano em que era condenado, por pragmatismo, o livro Dogma e Crítica do filósofo
Edouard Le Roy (1870-1954).
Nos Annales de philosophie chrétienne e no Bulletin critique brilhou durante muito tempo o nome de um amigo de Duchesne,

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o padre Marcel Hébert (1851-1916), director da Escola Fénelon em Paris. No decurso das suas pesquisas de filosofia religiosa, Hébert foi levado, na esteira do símbolo-fideísmo
do pastor Albert Sabatier (1858-1928), a considerar os dogmas como simples símbolos desprovidos de qualquer fundamento histórico (Souvenirs d'Assise, 1899; "La Dernière
idole", in: Revue de métaphysique et de morale, Julho de 1902). Obrigado a retractar-se, Hébert preferiu abandonar a Igreja.
O decreto do Santo Ofício de 4 de Dezembro de 1903, que condenava cinco obras do padre Loisy, atingiu ao mesmo tempo duas obras do padre Albert Houtin (1867-1926):
La Question bibíique chez les catholiques de Trance au XIX siècle (1902) e Mes difficultés avec mon évêque (1903). Houtin deixou oficialmente a Igreja em 1912 e
tornar-se-ia publicista e historiógrafo do modernismo.
Pio X decidiu condenar solenemente o modernismo teológico, exegético, filosófico e histórico. O decreto Lamentabili sane exitu (3-4 de Julho de 1907) condenou sessenta
e cinco proposições heterodoxas relativas à autoridade do magistério da Igreja, à inspiração e à historicidade dos livros sagrados, às noções fundamentais de revelação,
ao desenvolvimento do dogma, à instituição e constituição da Igreja. Dois meses mais tarde (8 de Setembro de 1907), a encíclica Pascendi completava essa condenação;
o documento pontifício visava, sobretudo, os dois aspectos essenciais que constituíram a filosofia modernista: o agnosticismo, que anula todas as demonstrações com
base racional, e a imanência vital, que faz brotar a verdade religiosa das necessidades da própria vida.
Finalmente, em 1 de Setembro de 1910, através do motu próprio Sacrorum antistitum, Pio X impunha a todos os padres o juramento antimodernista e com este acto se
conclui a história exterior do modernismo.
Na verdade, muitos espíritos ditos integristas continuaram a denunciar, sob a capa de modernismo, todas as formas, sobretudo sociais e políticas, do liberalismo.
Alguns padres democratas como Desbuquois, Mons. Lacroix, bispo de Tarentaise, ou ainda Mons. Six, o padre Lemire e Eugène Duthoit, além de numerosos clérigos e católicos,
tiveram de sofrer, especialmente durante o pontificado de Pio X, os excessos de zelo do "intransigentsimo

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católico", sobretudo representado em França pelo padre Emannuel. Barbier, em Itália por Mons. Benigni, animador da Sodalitium Pianum, ou Sapinière.

9. Um balanço positivo?

É verdade que estas condenações, fulminando os excessos de anarquia intelectual, poderiam ajudar os pensadores católicos a retomar, numa atmosfera mais tranquila,
o trabalho dos pioneiros. Infelizmente, os seus adversários confundiram facilmente moderno com modernista, ortodoxia com imobilismo, integridade com velhice; quando
se percorre a volumosa História do Catolicismo Liberal do padre Barbier, fica-se pasmado a ver este intransigente conservador arrastar na lama muitos dos espíritos
mais elevados que a Igreja tinha. Foi o tempo do medo, pouco propício ao diálogo. A delação ajudou - porque Roma parece ter sido favorável a uma determinada forma
de zelo - e contribuiu para que se interrompessem muitos impulsos e se destruíssem corações e carreiras.
Mas, embora a crise modernista tenha afectado durante muito tempo o grupo dos investigadores católicos - historiadores e exegetas -, não impediu o extraordinário
movimento de retorno à Igreja e às fontes do Evangelho que se operou, na mesma época, entre os jovens intelectuais, a quem não satisfazia nem o cientismo irreligioso
nem o materialismo simplista nem o anticlericalismo tacanho de muitas pessoas bem colocadas. Entretanto, começou-se a falar de "fracasso da ciência" entre filósofos
como Blondel, Boutroux e Bergson; o mesmo aconteceu com Brunetière, Bourget, Bazin e Barres e uma grande plêiade de jovens romancistas, cuja obra "bem-pensante",
talvez envelhecida, recolocada no seu contexto histórico assume um sentido revolucionário. E houve, depois, a grande escalada de "convertidos" de talento, quase
geniais, chamando a juventude para as verdades postas no coração da religião cristã: Péguy, Bloy, Maritain, Huysmans, Psichari e Claudel, embora não tenham preferido
consumir a sua vida como testemunho, a exemplo de Charles de Foucauld. Da Universidade saem Goyau, Brunbes,

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Ternier, Massis, Fonsegrive, Imbard de la Tour e Joseph Lotte, que não podem ser considerados homens sem interesse. Por outro lado, movimentos como a União pela
Acção Moral, e os encontros internacionais de Pontigny, permitem a certos crentes, como Paul Bureau, Paul Viollet ou Laberthonníère dialogar com homens como Jaurès,
Durkheim e Sabatier. Face à vaga de anti-semitismo provocada pelo caso Dreyfus e ampliada pela Libre Parole de Drumont, pela Action française de Maurras, pela Civilità
Cattolica dos jesuítas romanos e pelos democratas-cristãos austríacos, ergue-se um pequeno grupo de católicos (padres Frémont, Pichot e Brugerette, o advogado lionês
Léon Chaine, Paul Viollet..., e também Péguy) que, como franco-atiradores ou no seio do Comité Católico para a Defesa do Direito, reagem contra a injustiça de que
são vítimas os seus irmãos judeus: trava-se, então, um diálogo judaico-cristão.
Mas sejamos sinceros. Em 1914, nem todos os intelectuais, nem todos os pensadores se enquadram no âmbito da Igreja; afirmar isso seria ridículo, claro. Mas também
há Gide, Alain e o íntegro Martin du Gard, cuja descrença lúcida chocava constantemente com o problema do inal; o seu Jean Barois é um testemunho tal como o é Le
Voyage du centurion. E, depois, ainda há as assembleias legislativas, onde os católicos constituem uma pequena minoria (em Itália, estarão ausentes durante muito
tempo). Viviani, chefe do Governo francês em 1914, orgulha-se de ter "apagado todas as estrelas", a massa dos burgueses sem metafísica ou anticlericais primários,
os professores geralmente racionalistas e, sobretudo, os milhões de proletários, dos quais só um pequeno número segue as palavras de ordem de Roma.
E, no entanto, se compararmos a situação da Igreja em vésperas do primeiro conflito mundial com o que ela era ao tempo da queda de Napoleão, os "ganhos" saltam aos
olhos. Em 1914, a Igreja está bem unida em redor do seu chefe, começa a libertar-se das suas obsessões contra-revolucionárias e a tomar consciência do lugar que
ocupa no mundo moderno. Mas, quando a guerra acabar, estarão ainda vivas essas esperanças?

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Capítulo III
CINQUENTA ANOS DECISIVOS 1914-1963

1. Bento XV e o nascimento de um mundo novo

O curto pontificado de Bento XV (1914-1922) foi quase inteiramente obscurecido pela mancha de sangue que, durante quatro anos, cobriu os campos de batalha da Primeira
Guerra Mundial. Exasperadas por um nacionalismo revanchista e reivindicativo, as nações europeias que, outrora, constituíam a cristandade não compreenderam que se
estavam a devorar umas às outras, entregando-se a uma guerra civil atroz de que sairiam exangues, enfraquecidas e desconsideradas mesmo aos olhos do mundo, que se
habituará depois a dissociar a noção de civilização do conceito de Europa Ocidental. Por isso, o cristianismo e, especialmente, o catolicismo será tacitamente posto
em causa.
A posição do Papa face ao conflito mundial revelou-se delicada. Enquanto se limitou a iniciativas humanitárias - troca de prisioneiros feridos, descanso dominical
nos campos de prisioneiros -, a opinião internacional não reagiu. Mas quando, em 1 de Agosto de 1917, Bento XV, que lamentava o horror da luta fratricida, enviou
aos beligerantes uma nota diplomática com vista à cessação das hostilidades, os católicos franceses, convencidos de que lutavam - com vinte e cinco mil padres, religiosos
e seminaristas mobilizados - para o triunfo da civilização cristã, consideraram que a acção neutralista e pacifista

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do Papa se devia à influência dos impérios da Europa Central e mais particularmente da Áustria católica, cuja aceitação em Roma era conhecida. Seguiu-se uma certa
desafeição em relação à Santa Sé e um novo empenhamento por parte dos movimentos nacionalistas.
De resto, as iniciativas de Bento XV não conduziram a nada. A sua voz, muito fraca, mal se ouviu no rumor das batalhas nem teve qualquer impacte nas conversações
da paz. No fim do século XIX, já a consulta tinha afastado Leão XIII da Conferência de Haia e, desde Abril de 1915, pelo Tratado de Londres, Sonnino, o ministro
italiano dos Negócios Estrangeiros, tinha antecipadamente excluído o papado do futuro Congresso da Paz. No entanto, no Tratado de Versalhes (1919), foi incluído
um artigo que obrigava as potências da Enterite a salvaguardar os interesses das missões. A Sociedade das Nações nunca se abriu à Santa Sé, em quem, aliás, reconhecia
uma elevada autoridade moral. Poucos se lembravam de que Consalvi estivera no Congresso de Viena, mas a Igreja não ganharia muito em invocar esse precedente.
Numa Europa laicizada, Roma descobria outros perigos, nesses tempos de euforia. Em 1917, era imposto na Rússia, graças a Lenine, um marxismo que, excedendo pela
primeira vez o plano doutrinal, se tornava a própria essência de um novo regime que, pela sua brutalidade inicial e pela sua política anti-religiosa, provocou, entre
os Ocidentais e, mais particularmente, entre os católicos, um vivo horror e um secreto desejo de que se afundasse. Ora, os Soviéticos não apenas se implantaram,
mas, quando fizeram de Moscovo o centro da Terceira Internacional ou Komintern (1919), polarizaram as esperanças do proletariado no mundo inteiro. O "cordão sanitário"
dos Aliados nada pôde fazer.
Ameaçado pela formidável "Igreja marxista", o catolicismo via o Ocidente nas garras do "pós-guerra": da détente depois do esforço sobre-humano, do jazz, do fox-trott,
dos vestidos curtos, dos cabelos cortados, das garçonnes, dos "anos loucos", da entrada dos costumes americanos e da pressão de uma civilização sacudida pelos progressos
técnicos - automóvel, avião, rádio, cinema... No conjunto, uma atmosfera fácil, pagã, atravessada

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frequentemente por tempestades: greves assustadoras, períodos de desemprego, expressão de um desequilíbrio social escandaloso. A descristianização avassalava as
massas e as cidades desumanas como as de Fritz Lang ou de Charlie Chaplin: assim era Paris com as suas paróquias de oitenta mil habitantes, a sua zona imunda e os
arredores pagãos; assim era a Metropolis de Fritz Lang e a Chicago de Al Capone.
A diminuição sensível das vocações sacerdotais tornava mais difícil a aproximação a esses meios. Em 1925, Unamuno julgou poder falar da "agonia do cristianismo".
"A boa sociedade acreditava em Deus para não falar dele", escreverá Jean-Paul Sartre em As Palavras, a propósito dos burgueses de "antes de 14". E Julien Green observava
em 1924: "Os católicos mergulharam no hábito da sua religião a ponto de já não se inquietarem em saber se é verdadeira ou falsa, se acreditam nela ou não." Em Itália,
determinado bispo insurgia-se contra este imobilismo: "E necessário uma grande reforma: redução do número de dioceses, de seminários e de paróquias; estudos sagrados
e profanos do clérigo de acordo com as necessidades do nosso tempo; abandonar muitas das devoções e infundir em todos os graus do sacerdócio o espírito de Cristo,
harmonizá-lo com as necessidades e as aspirações do nosso tempo, porque muitas são boas e podem ser cristianizadas."
Poucos problemas surgem na América do Norte, onde os Estados Unidos e o Canadá conhecem um catolicismo jovem e dinâmico, mas demasiado satisfeito consigo mesmo.
A Espanha e Portugal vêem-se dilacerados por lutas políticas e miséria. A Áustria mutilada respira com dificuldade e pensa, sobretudo, em sobreviver, enquanto a
Hungria sofre o domínio de Bela Kun e, depois, a ditadura militar. A Alemanha arruinada, por momentos submersa pelo comunismo, sacode ou disfarça a sua humilhação:
claro, desde Abril de 1919, os noventa deputados do Centro alcançam uma total paridade, a Renânia vê os katholikentag reunir multidões enormes, mas os católicos,
sobretudo na Baviera, não se mostram insensíveis aos sinais do nacionalismo revanchista; muitos já viam em Hitler o "salvador", embora pensassem que a cruz gamada
nunca chegaria a apagar a outra - a de Cristo.

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No conjunto, os católicos sentem-se amarrados às formas do passado. Em França, conservam ainda a nostalgia da realeza e dos séculos de fé; a canonização de Joana
d'Arc (1920) é para eles a consagração de um ideal de fidelidade e de coragem. Um movimento como a Cruzada Eucarística (1915), aliás mais dinâmica que as antigas
"congregações", é característica de uma época em que se referem facilmente as virtudes heróicas dos cavaleiros andantes. Da ruptura da "união sagrada" e do "bloco
nacional" sai, em 1924, um exército pacífico, a Federação Nacional Católica (FNC), dirigida pelo general Castelnau, um desses chefes prestigiados que, com Mangin,
Lyautey, Foch e Pétain, povoam a capela secreta de qualquer católico que, frequentemente, acalenta em si um antigo combatente. São homens muito semelhantes que se
encontram nas fileiras da Acção Francesa, cujo nacionalismo "integral" alimenta por vezes um cristianismo "integral", violentamente anti-republicano.
No entanto, esse pequeno grupo dos católicos sociais, fiéis às palavras de ordem políticas e sociais de Leão XIII, não apenas acompanha, mas alarga a sua acção e
aprofunda as suas posições doutrinais. A ACJF forma os futuros quadros da democracia cristã; a Associação Católica da Juventude Belga (1919) faz um trabalho semelhante.
As reuniões das Semanas Sociais, em Espanha, Itália, Bélgica, Canadá e em França atraem, todos os anos, um público mais numeroso em redor dos temas principais, como
o "papel económico do Estado" (1922). A Acção Popular instala-se em Paris, em 1919, e neste mesmo ano constitui-se a Confederação Francesa dos Trabalhadores Cristãos
(CFTC), com cento e quarenta mil aderentes, e também a Confederação Internacional dos Sindicatos Cristãos. Em Lille, Eugène Duthoit dirige a União de Estudos dos
Católicos Sociais. La Vie catholique, de Francisque Gay, deseja aliar a fidelidade ao Papa com a liberdade do cristão, enquanto Champetier de Ribes funda o Partido
Democrata-Popular (1924). Na Itália, é levantado tacitamente o non expedit (1) de Pio IX, proibindo os católicos de participarem na vida política e, em 1919, Bento
XV autoriza o Partito Populare Italiano de Don Sturzo que, logo a seguir, consegue a

Nota 1: Não convém. [N. do T.]

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eleição de cem deputados e se torna a espinha dorsal da Câmara italiana. Ao mesmo tempo, organizam-se as Semanas dos Escritores Católicos, porque na peugada de Péguy
e de Psichari, falecidos em 1914, o catolicismo participa largamente na expansão da literatura do pós-guerra, com Mauriac, Jammes, Bernanos, Claudel, Montherlant
e muitos outros.
Bento XV tem outros motivos para se sentir satisfeito. O catolicismo inglês e holandês está, depois da guerra, em pleno avanço. A independência da Polónia e da Irlanda
reforça o grupo das nações tipicamente "romanas". Na Itália, o Papa prepara os caminhos para a normalização das relações com o Estado. Melhor, no quadro da lei de
separação, favorece um modus vivendi com a República Francesa: restabelecimento da nunciatura e da embaixada francesa no Vaticano, direito de controlo do Governo
sobre as nomeações episcopais, formação de associações diocesanas dotadas de um estatuto pelo Conselho de Estado. A fraternidade das trincheiras contribuiu para
adormecer o anticlericalismo radical e, em 1919, não se ousou aplicar as leis laicas à Alsácia e à Lorena recuperadas.
Contudo, em 1924, Herriot e o Cartel das Esquerdas julgaram poder retomar a política de Combes e aplicar integralmente as leis que visassem as congregações religiosas.
"Nós não iremos embora!", foi a palavra de ordem do padre Doncoeur seguida por todos os religiosos antigos combatentes; aliás, as reviravoltas da política afastaram
rapidamente o Cartel e sepultaram os seus projectos. De facto, em França, as comunidades religiosas reconstituíram-se numa quase clandestinidade, vestindo à civil.
Bento XV tinha um espírito ecuménico. Mas o ecumenismo, tal como hoje o entendemos, tinha sido até então, salvo algumas excepções, coisa dos protestantes: a Conferência
Internacional de Edimburgo (1910) foi o ponto de partida. Na prática, e tendo em conta a total impreparação dos espíritos na Igreja Católica, o Papa manteve uma
atitude negativa e, assim, em 1918, declinou o convite para uma conferência internacional realizada pelos primazes da Escandinávia; em 1919, nova recusa a propósito
de uma reunião organizada pelo movimento protestante "Fé e Constituição". Mas Bento XV deu passos importantes para uma reaproximação com o Oriente separado, criando

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simultaneamente (1917) a Congregação para a Igreja Oriental e o Instituto Pontifício dos Estudos Orientais.
A margem da Igreja oficial, o ecumenismo marcava alguns pontos. Entre 1920 e 1926, tiveram lugar as Entretiens de Malines, cujos principais protagonistas foram o
cardeal Mercier e Lorde Halifax; estes encontros incidiram essencialmente sobre o primado de S. Pedro e sobre as ordenações anglicanas.
Quando faleceu, em 22 de Janeiro de 1922, o papa Bento XV, um Papa modesto e desconhecido, legava ao seu sucessor alguns novos e preciosos instrumentos.

2. Pio XI, o pastor veemente

Em 6 de Fevereiro de 1922, o conclave escolhe Achille Ratti, arcebispo de Milão, que tomou o nome de Pio XI. Aos 65 anos, este homem atarracado, vivo, autoritário,
prodigiosamente inteligente e culto, apenas tinha exercido durante cinco meses uma função pastoral; mas a sua carreira fizera dele um diplomata e um sábio. Este
bibliotecário, que os livros não esclerosaram - o padre Ratti era um alpinista consumado -, revelou-se logo desde o começo um grande pontífice. Ao mesmo tempo sensível
a todos os avanços modernos e profundamente piedoso, criou a Rádio Vaticano (1931) e a Academia Pontifícia das Ciências (1936); pronunciou doze mensagens radiofónicas
e, depois, sem receio de ser atacado de anacronismo, instituiu a festa do Cristo-Rei e colocou o seu pontificado sob a protecção de uma jovem religiosa contemplativa,
Sta. Teresa do Menino Jesus, que sofreu na carne o ateísmo do mundo moderno e cuja simplicidade era, aos olhos do Papa, o melhor antídoto ao orgulho de uma sociedade
em rápida mutação.
Este Papa que tanto falou e escreveu - deixou, além de trinta encíclicas, um milhar de discursos oficiais - não era um doutrinário. O seu realismo levou-o a oferecer
a todos os católicos condições jurídicas suficientemente sadias para lhes permitir desempenhar o seu papel na sociedade; assinou dezoito concordatas, sobretudo com
os novos Estados nascidos dos tratados de paz, mas também com a Alemanha, em 1933, que rapidamente iria desiludi-lo, e sobretudo com a Itália (1929):

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os acordos de Latrão esvaziaram a irritante "questão romana", reconhecendo ao Papa a soberania sobre o pequeno Estado do Vaticano (quarenta e quatro hectares); de
resto, como verdadeira concordata, esses acordos deram à Igreja italiana uma posição privilegiada, sobretudo, em matéria de ensino e matrimonial. Causaram surpresa,
principalmente, as concordatas assinadas com a Letónia protestante, a Checoslováquia laica e a Roménia ortodoxa. Esses actos, tão afastados do Syllabus, manifestavam
a vontade do Papa de distinguir o espiritual e o temporal.
Em França, uma espécie de galicanismo político, muito hostil ao Ralliement, reforçara-se em redor da Action française e do seu chefe prestigiado, Charles Maurras,
cuja doutrina, aos olhos do Papa, misturava o nacionalismo positivista - porque o catolicismo não representava, para Maurras, senão um papel de "princípio de autoridade"
- com um nacionalismo integral e, portanto, monarquista. Ora, a Acção Francesa exercia sobre a juventude - em França, na Bélgica e noutras partes - uma viva atracção.
Em 29 de Dezembro de 1926, o Santo Ofício promulgava um decreto do Index condenando diversas obras de Maurras e proibindo o jornal L'Action française. A excomunhão
e o interdito atingiram, até 1939, os contraventores. Mas estas medidas provocaram uma crise dolorosa entre inúmeros padres e intelectuais que tinham considerado
a Acção Francesa "o prolongamento natural" da sua fé.
De facto, foi "o fim de uma época". Libertando-se das amarras do passado, muitos católicos entregaram-se a uma acção temporal incarnada na democracia, numa acção
espiritual e intelectualmente bem alimentada. Nos anos 30, proliferou um tipo de católico preocupado em manifestar a sua fé e confrontar o seu tempo com os dados
evangélicos. Em Outubro de 1932, aparecia, no número 1 de Esprit, o manifesto de Emmanuel Mounier, Refaire La Renaissance: "[...] Denunciámos os pecados do materialismo:
pensar sem viver o nosso pensamento e aonde ele nos conduz seria algo de sacrílego. Para nós, a acção entre os homens não é uma vocação ocasional à procura de títulos
de nobreza, mas é a plenitude do nosso pensamento e a perfeição do nosso amor." "Então, os católicos fazem a aprendizagem, por vezes dolorosa, mas também extremamente

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benéfica, da sua diversidade" Q. F. Six). Esta aprendizagem anuncia a aceitação do pluralismo e do diálogo com os não-crentes.
Portanto, é nesta perspectiva de humanismo integral incarnado e também de uma redescoberta da Igreja no seu mistério (corpo místico de Cristo), que se situa uma
das grandes iniciativas de Pio XI: a acção católica, apostolado organizado dos leigos, que colaboram, no seu próprio meio, na extensão do reino de Deus. Fórmula
revolucionária, já que, até aí, os leigos haviam sido considerados apenas capazes de se dedicarem às tarefas caritativas ou intelectuais. Desde a encíclica Ubi arcano
Dei (1922), Pio XI tinha esboçado as grandes linhas da acção católica; na prática, apenas teve de encorajar a iniciativa de um padre belga, o abade Cardijn, que,
em 1924, lançava a JOC (Juventude Operária Católica), que passava para França e irradiava pelo mundo inteiro, contando em 1948 já duzentos e cinquenta mil aderentes.
Organizou-se ao mesmo tempo uma acção católica geral, visando constituir verdadeiras comunidades paroquiais, agir através dos seus serviços de imprensa e de informação
sobre a opinião pública, desenvolvendo ainda uma acção católica especializada e adaptada aos meios de estudantes (JEC), de jovens rurais (JAC), de marinheiros (JMC)
e aos meios burgueses QIC). Alguns movimentos de adultos e movimentos femininos corresponderam a esses movimentos de jovens, a que se juntaram os Escuteiros, as
Guias, os Corações Corajosos, a Cruzada Eucarística e as Federações Desportivas. De Friburgo, as Organizações Internacionais Católicas coordenaram o trabalho de
conjunto.
Um livro recente, Échec de l'action catholique?, sublinhou, sobretudo, o que a acção católica não fez. Mas, embora falte fazer muito - quase tudo - para impregnar
a civilização de cristianismo, diga-se também que o trabalho realizado desde há quarenta anos pela Acção Católica foi considerável; colocou em toda a parte - desde
as fábricas às assembleias deliberativas -, homens e mulheres que, especificamente como cristãos, são parte viva e actuante do seu próprio meio. A conjunção deste
testemunho múltiplo e do trabalho de informação e de aprofundamento dos intelectuais, dos teólogos, da hierarquia e do clero, habituou o mundo moderno a dialogar
com os católicos e a contar com eles.

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No que respeita à questão social, Pio XI, na sua encíclica Quadragésimo anno (1931), alargou ainda as conclusões da Rerum novarum. O sindicalismo cristão ganhou
verdadeiramente corpo sob o seu pontificado: a CFTC contava quinhentos mil aderentes, em 1939, oitocentos mil, em 1948; mas, em 1962, a Confederação Internacional
dos Sindicatos Cristãos agrupará mais de seis milhões de membros.
"Papa das missões", Pio XI dedica todos os cuidados à formação e à exaltação do clero autóctone, nova prova de aceitação pela Igreja de um pluralismo vivificante:
em 1923, sagrava o primeiro bispo indiano e, em 1926, os seis primeiros bispos chineses... Em 1950, em mais de vinte e seis mil e oitocentas missões, mais de dez
mil serão indígenas.
É então que o ecumenismo católico sai da sombra. Alguns centros de encontro e de estudo trabalham num silêncio fecundo, como acontece com o Mosteiro da União em
Amay, fundado em 1925 por Dom Lambert Beauduin e transferido em 1939 para Chevetogne; no Centro Istina, animado por um dominicano, o padre Dumont; a colecção Unam
saneiam fundada em 1937 pelo padre Congar; o movimento alemão Una sancta de Mons. Metzger; a revista inglesa Eastern Churches quarterly de Dom Bede Winslow, etc.
Sem esquecer a acção de um padre lionês, Paul Conturier, promotor da "Semana da Oração Universal" pela santificação de cada um dos grupos cristãos.
O pontificado de Pio XI foi, realmente, o pontificado-entre-duas-guerras: uma breve euforia seguida, a partir de 1929, de uma grave crise económica que acentuou
o desequilíbrio moral e fez pesar sobre a democracia uma trágica ameaça. A miséria, a anarquia e o desemprego lançaram os povos em posições extremas: as ditaduras
proliferaram no terreno revolvido. A partir de 1926, Portugal tornou-se uma república unitária corporativa de que, em 1928, Salazar passou a ser o chefe e a Igreja
tirou vantagens disso. A Espanha, perpetuamente dividida entre anarquistas, anticlericais e militares apoiados na Igreja, passou da ditadura de Primo de Rivera para
a Frente Popular e, depois, na sequência da terrível guerra civil (1936-1939), para o governo autoritário do general Franco: a Igreja de Espanha estará durante muito
tempo intimamente ligada a um poder que a favorece.

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A Itália estava consciente de ter sido arrancada à anarquia por Mussolini; mas poucos eram os espíritos suficientemente clarividentes para entenderem a alienação
da liberdade imposta pelo império do fascismo. A França, atingida também pela crise, parecia entre 1934 e 1937 estar prestes a mergulhar na guerra civil; mas, depois
de uma breve experiência da Frente Popular, acabou por adormecer nos braços de um regime moribundo.
A partir de 1933, Adolfo Hitler era o senhor da Alemanha, onde crescia todos os dias em seu redor o entusiasmo de multidões esmagadas pelo pós-guerra; mas Hitler
era também um doutrinário: o nacional-socialismo, feito de palavras de ordem brutais, exaltava a superioridade da raça germânica, a noção de Nietzsche do super-homem,
o anti-semitismo levado até ao genocídio, a apologia da guerra e da violência. Mein Kampf e O Mito do Século XX tornaram-se a bíblia de milhões de homens e sabemos
as trevas horríveis que provocaram. Mas Hitler, na Europa, tinha admiradores e imitadores; se a Boémia foi anexada pela força, a Áustria e o seu clero, em 1938,
favoreceram o Anschluss, embora, rapidamente, o lamentassem. Na Roménia, a Guarda de Ferro; na Hungria, os Cruzes de Flechas; e na Bélgica, os Rexistas, faziam a
corte a Hitler, enquanto Mons. Tiso, na Eslováquia, dirigia o Estado mais anti-semita do Mundo.
Mas, quando, no meio da floresta de braços e punhos estendidos, os homens de botas cardadas se congratulavam com isso, levantou-se no Vaticano um homem vestido de
branco: estava sozinho, mas tinha a certeza de estar a defender o que a Humanidade possuía de mais precioso. A partir de 1931, na sua carta Non àbbiamo bisogno,
denunciou a incompatibilidade do cristianismo com a "estatolatria pagã" própria do fascismo mussoliniano. Em Março de 1937, com um intervalo de cinco dias, condenou
o comunismo ateu e o seu materialismo dialéctico (encíclica Divini Redemptoris) e, na encíclica Mit brennender sorge, estigmatizando todo o estatismo, o racismo
e o paganismo essenciais ao nacional-socialismo, lembrou os direitos inalienáveis do "homem enquanto pessoa". A guerra, seis meses depois da morte de Pio XI, revelaria
a que abismos podia realmente conduzir o desprezo do homem.

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3. Um doutor: Pio XII

A Pio XI, em 2 de Março de 1939, sucedeu sem sobressaltos o seu secretário de Estado, Eugenio Pacelli, que se tornou Pio XII. Não é cómodo falar sem paixão de Pio
XII, cujo autoritismo e hieratismo facilmente se opõem à bonomia do seu sucessor João XXIII; uns descobrem nele um conservadorismo inspirador de medidas ultrapassadas
a respeito dos pioneiros de um ecumenismo, de uma renovação teológica e de um apostolado missionário de vanguarda; outros, como reacção, consideram-no como o mais
santo Papa dos tempos modernos. A representação da peça de Rolf Huchhuth, O Vigário, onde se apresenta o Papa, durante a guerra, recusando condenar os excessos do
nazismo e, sobretudo, os campos de extermínio, ainda avivou mai as querelas. Podemos discutir infinitamente sobre esse silêncio oficial de Pio XII - mesmo que todo
o mundo saiba do acolhimento paternal que o Papa fez aos judeus refugiados no Vaticano -, mas essa censura parece demonstrar a existência de uma auréola moral que
rodeia o papado contemporâneo.
Este diplomata de elite era também um contemplativo: Pio XII pôs a sua vasta cultura - diz-se que tinha o dom das línguas -, constantemente avivada por um trabalho
sobre-humano de meditação, ao serviço do mundo contemporâneo; e teve um discernimento profético sobre alguns dos problemas desse mundo. Aqueles que o criticam nunca
leram certamente a interminável lista de encíclicas, constituições, mensagens pela rádio e discursos dirigidos aos públicos mais diversos: as mais elevadas questões
teológicas - em 1 de Novembro de 1950 define solenemente o dogma da Assunção - identificam-se aí com os temas mais profanos: o ensino, a mulher, a medicina, os problemas
jurídicos e o desporto. O que atormentava o Papa - através desses factos em que a erudição se exprime numa frase magnífica - era a instauração do espírito cristão
em todas as actividade humanas. Ora, o segundo pós-guerra pôs imediatamente à Igreja Católica novos e mais graves problemas. De repente, uma grande parte da Europa
Central e Oriental passou para a obediência comunista, o que - no tempo de Estaline, senhor implacável, e até à sua morte em 1953 - se traduziu em muitas perseguições,

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expulsões, prisões e, até, na constituição de uma "Igreja do Silêncio" em oposição às Igrejas nacionais ligadas ao regime e desobedientes a Roma. Aliás, a força
de expansão do marxismo manifestou-se, quando, em 1949, a China toda se tornou comunista, polarizando à sua volta as esperanças das massas do Extremo Oriente e de
outras paragens; a partilha da Coreia (1950) e do Vietname (1954) estabeleceu os limites das conquistas futuras. O catolicismo foi naturalmente apresentado como
a religião do colonialismo e, depois, do neocolonialismo. Em 1959, em Cuba, charneira entre as duas Américas, Fidel Castro instalou-se no poder; em princípio, sensível
a um certo caudilhismo social, a América Latina, dominada pelas suas estruturas semifeudais, tornou-se cada vez mais sensível à experiência global do castrismo.
Ora, a América Latina, oficialmente católica, tem falta de padres (um padre para cinco mil trezentos e cinquenta habitantes; em França, um padre para novecentos
e vinte e dois) e a maioria deles, se não são estrangeiros, saíram das classes privilegiadas; uma fé espectacular esconde mal a ignorância religiosa; a passagem
de uma estrutura rural para uma estrutura industrial e urbana interrompe os meios de transmissão da religião: desenraizado, o proletariado das cidades mergulha muito
mais rapidamente num paganismo, por ser mais miserável. A fundação, em 1955, do Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM) permitiu ao episcopado tomar consciência
dos problemas de conjunto de uma civilização inextricavelmente unida ao catolicismo; por isso, em Maio de 1964, os bispos do Brasil declararam: "Os sentimentos religiosos
do nosso povo não devem servir de cobertura àqueles que deformam a verdade, corrompem os costumes ou se entregam aos abusos do capitalismo liberal."
Na América do Norte, o catolicismo mantém as características de juventude, dinamismo e generosidade, mas, sobretudo nos Estados Unidos, coloca o acento nos valores
exteriores; um certo conservadorismo teológico e pastoral, uma certa religiosidade e a consciência ingénua de uma superioridade material incontestável são defeitos
tipicamente americanos.
A África Negra conhece, depois de 1960, os efeitos da aceleração da História: aí, a Igreja anda ligada à revolução

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africana marcada pelo acesso à independência e a revalorização das tradições pré-coloniais; embora tenha sido considerada um elemento da colonização, a sua africanização
ganha - em quaze mil padres, cinco mil são autóctones - permite-lhe entregar-se, sem grandes hesitações, às suas próprias tarefas.
A África do Norte, também ela chegada a independência depois de anos dolorosos, tanto para os colonos como para os autóctones, coloca alguns problemas mais difíceis
a Igreja Católica: a islamização completa das massas e a coincidência dos grupos religiosos cristão e muçulmano com certos grupos sociológicos incompenetráveis.
Quanto à velha Europa Ocidental, saiu da Segunda Guerra Mundial exangue e inteiramente entregue à influência americana Acabadas as lutas heróicas da Resistência
ao nazismo e ao fascismo - em que os católicos tiveram um papel importante -, as divisões políticas, o deixa-correr e o salve-se-quem-puder reconstituíram uma atmosfera
de "anos loucos" com algumas diferenças essenciais; a jovem geração, engolida por uma, demografia galopante, desviou-se depressa do passado - "Hitler? não conheço..."
-, desligou-se do presente e virou-se para um futuro que os avanços técnicos, as explosões atómicas e as conquistas espaciais dos astronautas tornaram sedutor, mas
também ameaçador. O sectarismo e o anticlericalismo estão cada vez menos na moda, ainda que, em França, a questão escolar se mantenha como uma chaga que se julgava
curada. Em 1953 a hierarquia católica foi restabelecida na Suécia, Dinamarca e Noruega. Nos países libertos do regime ditatorial - Alemanha Áustria e Itália - e
também em França e na Bélgica, onde o catolicismo social tinha ganhado raízes desde há muito, acederam simultaneamente ao poder ou participaram activamente na resolução
dos problemas, com o empenhamento dos cristãos.
Uma certa lucidez persistente permitiu que os católicos tomassem consciência das relações sociais, da transformação das estruturas e de uma descristianização, cujas
reflexões e trabalhos de sociólogos religiosos, de pastores como o cardeal Suhard, de missionários como o padre Godin - "França, país de missão?" - denunciam a gravidade.
O catolicismo ocidental torna-se facilmente introspectivo, preocupado com uma espiritualidade

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encarnada, disposto ao diálogo: a sua ala esquerda tende mesmo para um progressismo que nenhuns consideram temerário, porque a minoria integrista, mais sensível
à transcendência do cristianismo do que à sua implantação, reage violentamente contra o que considera uma demissão: um anticomunismo apaixonado que chega a ser doentio,
certas posições políticas extremas que, por vezes, reforçam a sua oposição.
A França, que segundo a fórmula de Paulo VI, "colhe o pão intelectual da cristandade", é sob Pio XII o terreno privilegiado das experiências e dos choques, graças
ao "aguilhão permanente que suscita uma reflexão aprofundada", mas os grandes teólogos franceses, Chenu, Congar e De Lubac passam pela prova de fogo (1954). A "Missão
de França", a "Missão de Paris" e a experiência abortada, mas muito sugestiva, dos "Padres Operários", são, entre outras, certas realizações revolucionárias e sedutoras
que, embora fortemente criticadas por alguns, são uma fase para um apostolado missionário mais desenvolto e mais adaptado. Por toda a parte se espalha esse espírito
de renovação: pastoral paroquial, liturgia, catequese e teologia em contacto mais estreito com a tradição, com a história e com a ciência (Teilhard de Chardin).
O movimento bíblico sacode e ajusta as perspectivas da caridade e da meditação. Mas é ainda uma vez mais a vida religiosa que não se adapta bem à criação dos institutos
seculares.
No entanto, a intuição essencial deste tempo revela o novo papel apontado ao leigo na Igreja. O padre de Montcheuil, morto tragicamente em 1945, que tinha construído
toda a sua eclesiologia sobre a ideia da Incarnação permanente e de uma Igreja como "organismo visível pelo qual Cristo vê e actua neste mundo", tinha já desenvolvido
aprofundadamente as responsabilidades de um laicado insubstituível. Emmanuel Mounier, em Feu la chrétienté (1950), convida o cristianismo, na hora das massas, a
tornar-se plebeu. Quanto ao cardeal Suhard, na sua célebre carta pastoral de 1947, Essor ou aéclin de l'Église, não vê a via de renovação cristã possível no mundo
materialista senão pelo empenhamento total do cristão leigo na vida da cidade. Mas essa honra coube ao padre Congar, ao ter, finalmente, definido o leigo à luz do
Evangelho e das necessidades modernas; "Um leigo é um

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homem para quem as coisas existem, para quem a sua verdade não é engolida e abolida por uma referência superior. Porque, cristãmente falando, o que lhe interessa
é referir ao Absoluto a própria realidade deste mundo, cuja figura passa."
Quando Pio XII morre em Outubro de 1958, o velho tronco da Igreja já renovou a sua seiva.

4. O bom papa João

Em 28 de Outubro de 1958, enquanto o mundo esperava um papa jovem, o conclave elegia um homem de 77 anos, o cardeal Roncalli, patriarca de Veneza. Em França, onde
tinha sido núncio entre 1944 e 1953, passava por ser um bom monsignore, muito franco, mas um pouco retrógrado, de quem se repetiam alguns ditos espirituosos. Imediatamente
lhe chamaram "Papa de transição", até porque, muito curiosamente, escolhera o nome de João porque, como declarara ao Sacro Colégio, os vinte e dois soberanos pontífices
que usaram este nome "tiveram quase todos um pontificado de curta duração". Mas logo brilhou o que, por vezes, se designou como "o milagre Roncalli": o que parecia
ser apenas simples bonomia italiana revelou-se delicadeza e caridade profunda; a tenacidade e a malícia do rural de Bérgamo desdobraram-se neste Papa na humildade
e na indulgência dos verdadeiros padres e na lucidez dos santos. Se Pio XI tinha imposto o respeito e Pio XII, a admiração, João XXIII iria impor o amor. A sua agonia,
no Pentecostes de 1963, foi acompanhada pelo mundo inteiro e, facto único na História da Igreja, a sua morte provocou em milhões de pessoas, crentes ou não, lágrimas
verdadeiramente sentidas.
João XXIII trouxe ao soberano pontificado e ao seu cargo de bispo de Roma um estilo novo: passeava a pé, era visto nas ruas da cidade - cento e cinquenta vezes passou
os limites do Vaticano! - para visitar os seus padres, doentes e presos de delito comum, mostrando em toda a parte um outro rosto, desconhecido ou esquecido, do
papado, em que dominava a bondade.
Mas o "bom papa João" não foi apenas um "pai do povo", mas também o pastor universal, preocupado em derrubar as

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barreiras que por toda a parte o egoísmo dos homens tinha erguido ou as que a história levantou entre os cristãos. Por isso, João XXIII multiplicou os contactos
pessoais, entre outros, as audiências concedidas ao moderador da Igreja presbiteriana da Escócia, ao metropolita Damaskinos, aos presidentes das Igrejas episcopaliana
e baptista dos Estados Unidos e aos metodistas ingleses, e, sobretudo, à filha e ao genro de Khruchtchov, manifestando desse modo até onde ia o acolhimento do Papa.
Por outro lado, João XXIII foi, com Jules Isaac, o iniciador de uma amizade judaico-cristã que marcasse nos factos e se esforçasse por fazer desaparecer as raízes
e os vestígios de um anti-semitismo que foi alimentado pelos cristãos, pouco conscientes de que os judeus são seus pais na fé.
Das oito encíclicas de João XXIII, duas atingiram mais particularmente a opinião pública: Mater e Magistra (15 de Maio de 1961) sobre a questão social e, sobretudo,
o testamento do velho pontífice, a extraordinária "carta aberta ao Universo", Pacem in terris (11 de Abril de 1963): a seu respeito, um publicista falou de sinfonia
- não inspirou ela Darius Milhaud? -, cujo tema fundamental, que retoma por nove vezes, ecoa nestas palavras: "A paz entre todos os povos exige a verdade como fundamento,
a justiça como regra, o amor como razão e a liberdade como clima."
Se, para inúmeros protestantes, João XXIII foi um grande Papa, um deles chegou mesmo a afirmar que foi ele, realmente, o primeiro Papa que escutou, "reconheceu e
compreendeu o alcance e a profundidade do movimento ecuménico". O ecumenismo foi, na verdade, o centro do pensamento do Papa e, nesse domínio, o seu pontificado
foi decisivo porque empenhou a Igreja romana num movimento, em que, até então, os esforços de reagrupamento tinham sido feitos, quase exclusivamente, por cristãos
separados de Roma. Por isso, em 1962, inaugurou-se em Taizé uma "igreja da reconciliação" católica e protestante.

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Capítulo IV
A IGREJA PERANTE UM MUNDO NOVO

1. A grande luz do Vaticano II

Com essa espécie de empirismo genial que é próprio dos grandes chefes e dos profetas, João XXIII apontou imediatamente para muito alto. Em 25 de Janeiro de 1959,
anunciava aos cardeais espantados a sua intenção de convocar um concílio, com uma dupla intenção: assegurar a renovação da Igreja face ao mundo moderno e preparar
a unidade cristã. Em 5 de Junho de 1960, era criado o Secretariado para a União dos Cristãos e, entretanto, todas as comunidades cristãs não-romanas eram convidadas
a enviar os seus observadores ao concílio. O acolhimento foi praticamente feito sem reservas entre os protestantes e entre os velhos católicos, enquanto de entre
os ortodoxos, apenas os russos, os coptas e a Igreja síria enviaram representantes ao Concílio que foi aberto no Vaticano, a 11 de Outubro de 1962, na presença de
dois mil quinhentos e quarenta padres, com uns cinquenta observadores não-católicos.
O discurso de abertura causou sensação porque o Papa utilizou uma linguagem de esperança e apresentou o concílio não como um círculo fechado de teólogos, mas como
uma assembleia destinada a "tornar a Igreja presente no Mundo e a sua mensagem sensível à razão e ao coração do homem empenhado na revolução técnica do século XX".
A primeira sessão do concílio

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sob João XXIII (de 11 de Outubro a 8 de Dezembro de 1962) e a segunda sob Paulo VI (de 29 de Setembro a 4 de Dezembro de
1963) foram menos importantes pelas decisões tomadas - decretos sobre a liturgia, sobre a Igreja, sobre os meios de comunicação social - do que pela atmosfera que
presidiu aos debates e que a discrição desejada pelo Papa tornou mais vivificante embora não muito inesperada. Quando a assembleia - impulsionada pelo cardeal Liénart
- se recusou a eleger imediatamente os membros das dez comissões, dizendo que era preciso que, antes disso, os padres conciliares soubessem quem seriam eles; quando,
em Novembro, graças ainda ao bispo de Lille, o esquema sobre as origens da Revelação, considerado inadequado e dentro das definições do Concílio de Trento, foi enviado
para a comissão de estudo, sentiu-se que um sopro de reforma passava sobre essa Roma que se dizia estar exageradamente ligada à burocracia vaticana. Alguns grandes
temas pareceram constantemente subjacentes às discussões sobre a Igreja, a liturgia ou o ecumenismo: a pobreza ultrajante de dois terços da Humanidade, os pobres
abandonados e deixados fora da Igreja, a colegialidade dos bispos que deu lugar, em Outubro de 1963, a apaixonados debates, o papel próprio dos leigos na Igreja,
os excessos do juridismo da Cúria, sobretudo a confrontação das posições católicas com as riquezas das Igrejas separadas...
A terceira sessão de (14 de Setembro a 21 de Novembro de
1964) debruçou-se sobre duas situações significativas: a admissão de mulheres no Concílio e o envio de observadores por Constantinopla. Três documentos foram promulgados
no fim dessa sessão: a Constituição dogmática sobre a Igreja, o decreto sobre o ecumenismo e o decreto sobre as Igrejas orientais católicas. As discussões mais importantes,
por vezes muito apaixonadas, incidiram na liberdade religiosa, nas religiões não-cristãs e, particularmente, nos Judeus, na Revelação, no apostolado dos leigos,
nos seminários e no casamento. A sessão terminou com
. algum mal-estar, tendo o Papa juntado à constituição sobre a Igreja uma nota relativa ao primado pontifício e feito algumas emendas restritivas ao decreto sobre
o ecumenismo.
A quarta sessão (14 de Setembro a 8 de Dezembro de 1965) é caracterizada por um trabalho intensivo. No seu discurso

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inicial, Paulo VI anuncia a criação de um sínodo episcopal. Onze documentos são promulgados durante esta sessão: a Constituição dogmática sobre a Revelação, a Constituição
pastoral sobre a Igreja e o mundo contemporâneo mais conhecida sobre o nome de Gaudium et Spes, os decretos sobre a tarefa pastoral dos bispos, sobre a renovação
adaptada da vida religiosa, sobre os seminários, sobre o apostolado dos laicos, sobre a vida e o ministério dos padres, sobre as missões, as declarações sobre a
educação cristã, sobre as religiões não-cristãs e sobre a liberdade religiosa. Além disso, o Concílio transmite ao papa um voto sobre os casamentos mistos, que será
reexaminado pelo sínodo episcopal de 1967. Quanto ao problema do celibato eclesiástico, o Papa, em 11 de Outubro, afastava-o do próprio concílio. Em 18 de Novembro,
Paulo VI anuncia a abertura dos processos de beatificação de Pio XII e de João XXIII. Em 6 de Dezembro, na última congregação do concílio, publica um motu próprio
para a reforma do Santo Ofício.
Este enorme trabalho - manifestamente muito ousado - comporta algumas lacunas e também bloqueios. Foram evitados ou adiados temas muito candentes como a justiça
no mundo, a regulação da natalidade, a ordenação de padres casados, os casamentos mistos e, em geral, o lugar da mulher na Igreja.
Mas não deixa de ser um balanço positivo e rico não só pelas realizações imediatas, mas pelo número de pistas traçadas para o futuro. Àqueles que desejavam que tudo
mudasse de repente dentro da Igreja, Paulo VI, na sua homilia de 29 de Outubro de 1965, lembrou oportunamente que a Igreja é um corpo "que vive, pensa, fala, cresce
e se constrói". Por isso, o termo aggiornamento, tantas vezes indevidamente aplicado ao Vaticano II, deve ser entendido não como uma mudança fundamental, mas como
uma primavera cheia de esperança e servida por uma nova seiva. O povo de Deus, a humanidade inteira, graças aos mass media, pôde acompanhar o imenso fervilhar de
ideias de que se revestiu o Concílio Vaticano II.
Entre as pistas traçadas pelos padres conciliares, é preciso salientar como particularmente inovadoras: o reconhecimento do pluralismo dentro e fora da Igreja, a
afirmação da liberdade religiosa, "a confiança dada ao mesmo tempo às pessoas e ao

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homem" (J.-F. Six), a entrada oficial no grande movimento do ecumenismo, o primado dado ao destino comum dos bens sobre a propriedade privada, o alargamento da noção
de colegialidade a toda a hierarquia eclesiástica em detrimento do curialismo, a elaboração de uma nova antropologia que devolva ao universo o seu sentido religioso,
a depuração do conceito de tradição que já não se confunde com o respeito cego pelo passado; finalmente e sobretudo, o caminho largamente aberto a uma participação
cada vez mais activa do laicado na vida eclesial.
"Os homens não pensam suficientemente que, nestes pontos mais que em quaisquer outros, temos, em relação ao sofrimento, o sentido da fraqueza humana, o sentido da
necessidade da ajuda de Deus, o sentido da insuficiência radical do homem e o tormento dos grandes desejos a par do reconforto das grandes esperanças. Os homens
não entendem muito bem que, nestes pontos mais do que em quaisquer outros, os desejos adquirem proporções imensas, têm as dimensões do mundo." Paulo VI mostrava
assim, em Setembro de 1965, as dimensões que, a seus olhos, assumia o II Concílio Vaticano.
Aliás, os homens não se enganaram a esse respeito e é hoje comum falar-se de uma Igreja pós-conciliar, de uma Igreja que, de olhos amplamente abertos sobre um mundo
que anda longe da fonte que é Cristo, se mostra interessada, até à obsessão, nas formas de tornar compreensiva a mensagem evangélica.

2. A Igreja e o Mundo em crise

A crise da nossa civilização não tem precedentes. "Muitos ciclos, muitos períodos e muitas eras acabam simultaneamente, sem que se possa prever os aspectos da nova
era que vai começar" (Jean Guitton). A era industrial, em que o homem apenas utilizava as energias físicas, sucede a era da energia escondida na matéria e, por conseguinte,
a da arma absoluta. O homem evade-se da terra, o seu cérebro, aliviado pelo computador, vê crescer o seu desejo de prazer e de liberdade. As sociedades fechadas
tendem a desaparecer e a riqueza dos povos desenvolvidos exaspera os povos - os mais numerosos - que têm fome;

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a biologia põe em questão não apenas o uso e a finalidade da sexualidade, mas também a existência da família e, até, a própria noção da natureza humana. Entre as
gerações abrem-se enormes fossos que as tornam estranhas umas às outras.
Por sua vez, também a religião é atingida. O sentido do mistério decresce e uma civilização essencialmente laica e técnica despreza todos os mitos, a não ser que
os seus excessos e as suas indignidades levem os jovens a refugiar-se noutros mitos, longe de Cristo e da sua Igreja. Tudo se passa como se "Deus estivesse morto"
e os homens, cada vez mais solidários mesmo contra a sua vontade, se encontrassem também cada vez mais isolados no "deserto do amor".
Nestas condições, era inevitável que a Igreja Católica, corpo vivo formado por homens enraizados no mundo, fosse tocada pela crise da civilização, tanto mais que
ainda subsiste nela algo "do espírito judeu, da subtileza grega, do juridismo romano, da honra feudal e da estabilidade burguesa" (J. Guitton).
De um lado, uma fonte de vida, Jesus Cristo; uma instituição que se diz e se julga capaz de dar à humanidade o meio de se salvar, a Igreja. De outro, um mundo que,
à medida que se exalta com os seus triunfos, que se instala no seu paraíso terrestre, sente crescer dentro de si o desespero, sobretudo na forma mais perigosa, que
é a indiferença.
Portanto, impõe-se às pessoas da Igreja, aos cristãos, com uma violência desconhecida até então, a procura de uma linguagem que sirva de veículo à Palavra libertadora;
mas, então, o catolicismo toma cada vez mais os traços de um mundo livre, comunitário e popular.
Esta admirável movimentação que, naturalmente, só provoca choques, escândalos ou raivas - sobretudo por parte dos tradicionalistas, que são mais sensíveis aos tesouros
abandonados do que às riquezas de um "renascimento" -, não será fecunda se se realizar apenas no seio da Igreja. Sabem isso muito bem os católicos holandeses que,
avisados pela experiência vivida, consideram o cisma como uma mutilação. Extrair do Evangelho as consequências concretas na vida quotidiana, sim; mas sem esquecer
o próprio Evangelho nem o reduzir às suas consequências meramente humanas nem ignorar todo o contributo teológico,

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canónico, exegético, apologético, histórico e patrístico de vinte séculos de Igreja.
O drama do cristianismo não está no facto de os homens se afastarem dele, mas em "ele próprio estar profundamente descristianizado". Se existe uma crise da fé, é
porque já não há ou quase já não há comunidades evangélicas. Não se pode viver a fé sozinho, mas podemos vivê-la no seio da Igreja com outros.
Consequentemente, o sacerdócio parece estar afastado de qualquer relação autêntica; e, daí, o drama dos padres que, mais que os outros cristãos, têm consciência
da discordância existente entre a sociedade dos homens e a Igreja. De onde, também, uma crise grave de vocações tradicionais e um colocar em causa existencial do
estatuto sacerdotal; e, finalmente, uma brutal interrogação que incide no papel primordial dos leigos na vida da Igreja: a tímida experiência de um diaconado renovado
e a ambiguidade que continua a pairar sobre a noção do celibato sacerdotal não são factos que nos forneçam, a curto prazo, uma solução para esse problema essencial.
Mas, apesar de tudo, a Igreja tem esperança, uma esperança de um "parto feliz". Ela experimenta-o quando se interroga e se emenda, tornando-se, todos os dias, um
pouco mais "serva e pobre". E rejeitando sempre o opulento fardo que séculos de "civilização cristã" lhe impuseram, reconhecendo as suas omissões, as suas insuficiências
e, mesmo, os seus erros, procura constantemente os meios mais adequados para transmitir e fazer que se viva a mensagem evangélica, para dar aos clérigos e aos leigos
os instrumentos que farão deles melhores educadores da fé. Mas que corpo, na nossa sociedade, está, como a Igreja - semper reformanda - em perpétua interrogação?
Não se muda a religião; mas, uns com os outros, renovamo-la, sendo esse um sinal global dado pelo conjunto do povo de Deus, de que os não-crentes precisam. Por isso,
o espírito colegial que se manifesta a todos os níveis: sínodos, assembleias plenárias, comissões, colóquios e, até, comunidades de base. É possível que na Igreja
se fale demasiado; mas que mal lhe advirá, se os cristãos reencontrarem a teologia da palavra e do diálogo? Renovação pastoral, catequética, sacramental e litúrgica
no sentido de uma verdadeira educação da fé; pesquisas

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teológicas, tendo como eixo o sentido do cristianismo como uma economia da salvação da História; avanços ecuménicos muito mais fraternos; experiências missionárias
mais autênticas; esforço e contributo do laicado; renovação da espiritualidade conjugal e redescoberta de uma religião popular mergulhada, desde há séculos, numa
religião de clérigos; simplificação e reforço dos meios de comunicação social; renovação da vida religiosa; lutas pela paz e a justiça; sentido do pluralismo; evolução
da Acção Católica no sentido de uma maior responsabilidade; compromisso dos cristãos - e, muitas vezes, profundo - em todos os domínios. E, sobretudo, a renovação
espiritual, a necessidade da oração e do silêncio, com que os grupos carismáticos, que se multiplicam, testemunham com um fervor adaptado à sensibilidade contemporânea.
Eis, pois, alguns dos limites de uma renovação autêntica da Igreja moderna que se revela cada vez menos "europeia" e cada vez mais voltada para as experiências e
para a vitalidade das Igrejas africana, asiática e americana.
Mesmo que se possa afirmar que o mundo é menos "cristão" do que era, os cristãos são, de facto, mais cristãos do que outrora. Porque são menos conservadores; diz-se,
mesmo, que são revolucionários, mas, apesar de tudo, será o fogo que Cristo veio trazer à Terra?

3. Paulo VI, um papa aceite e contestado

O homem que, desde 1963, assegura a terrível vocação de estar no coração dessa formidável mudança é o papa Paulo VI.
Ao morrer, João XXIII tinha dito ao cardeal João Baptista Montini, que
viera de Milão: "Confio-lhe a Igreja, o concílio e a paz." E ninguém ficou admirado quando este herdeiro de um grande pensamento se tornou o 260º sucessor de S.
Pedro (Junho de 1963). Com um temperamento diferente, com menos serenidade talvez, mas com um sentido mais agudo das realidades e das dificuldades, Paulo VI aprofundou
a obra de reforma do seu predecessor. A colegialidade, forma visível da mudança, do diálogo, começa a impor-se, lenta mas seguramente, das camadas profundas da cristandade
para o cume; e, se a Igreja mantém

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a hierarquia que lhe é própria, trata-se cada vez mais de uma hierarquia de servidores: no cume está verdadeiramente "o servo dos servos de Deus".
Mas porque é um servidor, Paulo VI não se julga autorizado a transigir com os ensinamentos da Igreja em proveito dos protestos que lhe parecem perigosos. Por isso,
a encíclica Sacerdotalis celibatus (23 de Junho de 1967) expõe a validade moral e o valor do celibato eclesiástico; e a encíclica Humanae vitae (25 de Julho de 1968)
- cuja publicação provocou reacções importantes, mas contraditórias - convida os fiéis e os homens de boa vontade a elevar-se ao nível de um dos seus mais importantes
deveres: o de transmitir e proteger a vida.
No entanto, Paulo VI mostra-se particularmente atento à transmissão da essência da mensagem evangélica ao coração dos homens e à adaptação dos dados da fé às exigências
do Mundo moderno. A encíclica Populorum progressio (26 de Março de 1967), relativa ao desenvolvimento integral do homem e ao desenvolvimento solidário da Humanidade
no seio da civilização técnica, inspira-se, por exemplo, nos ensinamentos do padre Lebret, fundador em 1942 de Économie et humanisme, cuja expansão é mundial. Quanto
à carta Octogésimo anno (1971), convida os cristãos a exercerem livremente, em política, a sua iniciativa responsável.
A aplicação, tanto na letra como no espírito, das decisões do Vaticano II, leva Paulo VI a simplificar o aparato decorativo pontifício e também a pôr em prática
um novo diaconado, a proceder à reforma litúrgica (generalização da língua vernácula, simplificação e aprofundamento dos ritos) e à do calendário.
Paralelamente, o Papa estabelece e prossegue a reforma da Cúria (Motu próprio Pro comperto sane, 12 de Agosto de 1967, e Constituição Regimini Ecclesiae universae,
15 de Agosto), introduzindo nela um mínimo de arquitectura orgânica, limitando os poderes curiais, tentando acabar com o carreirismo, internacionalizando o recrutamento
das congregações e do Sacro Colégio, multiplicando os pastores junto dos administradores. A nomeação de um francês, o cardeal Jean Villot, para o lugar de secretário
de Estado (1969) revela-se, desse ponto de vista, muito sintomática.
A principal característica do Vaticano II é a importância e a eficácia do seu prolongamento. Para contribuir para colocar

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em prática as decisões e orientações do concílio, diversos organismos permaneceram em funções: o Secretariado para a Unidade dos Cristãos (1963), o Conselho para
a Aplicação da Constituição sobre a Liturgia (1964), o Secretariado para os Não-Cristãos (1965), o Conselho para as Comunicações Sociais (1964). Outros organismos
entram em vigor nos anos seguintes, mas o prolongamento mais importante do Concílio Vaticano II continua a ser o Sínodo Episcopal, cuja primeira sessão teve lugar
em Roma, em 1967, a segunda (extraordinária) em 1969, a terceira em 1971, a quarta em 1974, a quinta em 1977. A expressão "Igreja-comunhão" encontra aí a sua aplicação,
pelo menos ao nível dos clérigos, porque os leigos não ocupam ainda senão um lugar insignificante nas instâncias do Vaticano. Da reforma do Direito Canónico ao estatuto
do padre, da reforma dos seminários à crise da fé e à catequese, todos os problemas candentes são debatidos aí, por vezes com algum sofrimento, à luz das experiências
locais.
Sob Paulo VI, o ecumenismo torna-se uma preocupação permanente para uns e outros, mas cada um pressente o que há de escandaloso, aos olhares de uma humanidade descristianizada,
na divisão dos novecentos e quinze milhões de cristãos. Embora separados por posições doutrinais, por vezes muito distantes, católicos e protestantes - pelo menos,
a sua elite - multiplicam os trabalhos de aproximação. Ou, antes, a espiritualidade protestante que obedece a uma lógica de ruptura e de depuração, e a espiritualidade
católica que obedece a uma lógica de integração, aprofundam-se e renovam-se uma à outra para se encontrarem. O luteranismo, por exemplo, encontra a forma universal
de existir da Igreja e a Igreja romana redescobre o significado da Igreja local. Os encontros multiplicam-se: presença de observadores protestantes no Concílio,
observadores católicos na III Assembleia Geral do Centro Ecuménico das Igrejas em Nova Deli, na quarta assembleia do movimento "Fé e Constituição" em Montreal, em
1963, criação em Énugu (1965) de um grupo de trabalho misto, recepção por Paulo VI do Dr. Ramsey (1966), visita do Papa ao Conselho Ecuménico das Igrejas, em Genebra
(1969). Um episódio significativo entre muitos outros: em Maio de 1963, a velha Universidade de Lovaina, bastião da reforma

363

católica face ao protestantismo, recebe solenemente o primaz da Igreja anglicana. Mas é preciso salientar a importância de Taizé, esse ponto de eferência axial do
ecumenismo em terras borgonhesas, o projecto de uma Bíblia ecuménica (1965), a entrada em vigor de um texto ecuménico do Pai-Nosso e a inauguração, em Jerusalém,
em 1971, de um Instituto Ecuménico de Estudos.
Em relação ao Oriente, onde as reticências se revelam mais sensíveis porque se trata, sobretudo, de uma questão de primado, Paulo VI deu um passo que se pode considerar
histórico: em Janeiro de 1964, foi em Jerusalém que deu o beijo fraterno ao patriarca de Constantinopla. E foi este mesmo Papa - numa atitude inaudita -, quem pediu
perdão, em nome da Igreja Católica, pelos erros cometidos durante a Reforma... "Um milagre, um verdadeiro milagre", não deixou de repetir o cardeal Bea ao abandonar
a recepção aos observadores não-católicos por João XXIII.
Uma fase importante: a criação (Maio de 1964) do Secretariado para os Não-Cristãos, prelúdio para um diálogo com o mundo. Até então, se o Ocidente se dava facilmente
com o resto do mundo, não desejava aceitar nada dele, como se a Ásia e a África nada tivessem para dar! Ora, a verdadeira catolicidade, segundo Paulo VI, "é universalidade,
destino de todos os povos, oferenda de todas as línguas, convite de todas as civilizações, presença em todo o mundo, questão posta por toda a História...". O termo
"católico" liberta-se lentamente da poeira dos séculos; serve cada vez menos para designar um partido de devotos e chegará o tempo em que retomará o brilho da sua
própria origem.
Levando a sério o título de representante de Deus na terra, Paulo VI, quebrando uma tradição bem enraizada, franqueia as fronteiras da Itália e também as da Europa.
Bombaim, Fátima, Ancara, Colômbia, Uganda, Sardenha, Sudeste da Ásia e a Oceânia recebem sucessivamente a sua visita. E ninguém esqueceu a frágil silhueta do Papa
suplicando aos representantes da humanidade que renunciassem à guerra (ONU, em 1965).
No entanto, o fim do pontificado de Paulo VI caracteriza-se por uma certa tensão, simultaneamente sensível no corpo da Igreja e no comportamento do Papa, personalidade
cuja extrema sensibilidade é levada a deter-se tanto nos aspectos positivos como nos negativos de cada problema.

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Concebida e longamente elaborada num espírito essencialmente pastoral, a encíclica Humanae vitae, de 25 de Abril de 1968, sobre a regulação dos nascimentos, suscita
várias reacções cuja violência se revela pouco habitual. Em primeiro lugar, entre os teólogos moralistas: alguns deles consideram que, como imposição do magistério,
a encíclica priva indevidamente a consciência moral do leigo da sua responsabilidade ética num domínio bastante pessoal, o da sexualidade, e também o casal da sua
liberdade de escolha quanto à forma de gerir a ligação entre o desejo carnal e a sua vocação à fecundidade. Por seu lado, várias conferências episcopais lamentam
que, contrariamente aos critérios elaborados pelo Concílio Vaticano II, a encíclica de Paulo VI represente um caso típico do exercício não colegial do magistério.
Dolorosamente atingido por essa oposição, Paulo VI, num plano mais geral, vê-se confrontado com as dificuldades de aplicação do concílio. Algumas correntes e, até,
certas Igrejas locais - como é o caso, sobretudo, da Igreja holandesa que, em 1966, caucionou um catecismo nacional muito distante do modelo tridentino - censuram
Roma por refrear o dinamismo renovador do Vaticano II, sobretudo no que respeita à colegialidade, ao papel do laicado, à atitude da Igreja face à modernidade. Pelo
contrário, outros inquietam-se com uma derrapagem em direcção a um "paraconcílio", a um "metaconcílio", que conduziria o catolicismo à perda da sua identidade, arrastando,
talvez, o próprio cristianismo, reduzindo-os a um mero humanismo. No extremo dessa corrente tradicionalista constitui-se, em redor de Mons. Marcel Lefebvre, antigo
arcebispo de Dacar e antigo superior-geral dos espiritanos, uma corrente, com o rótulo de integrista, que rejeitava radicalmente todas as disposições e, mais ainda,
as orientações do Concílio. Tendo fundado o seu próprio seminário em Ecône (Suíça) e continuando, contra uma ordem expressa do Papa, a ordenar alguns padres, Mons.
Lefebvre, em 1976, é suspenso a divinis, mantém-se renitente, criando, realmente, uma situação cismática.
É preciso dizer que uma inquietação mais razoável, partilhada por Paulo VI, despertou maior interesse nas fileiras daqueles que estavam entre os pioneiros do aggiornamento
conciliar, como os teólogos Joseph Ratzinger e Henri de Lubac, mais tarde

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cardeais. A Comissão Teológica Internacional, instituída em 1969, traduz bem, pelas suas intervenções a constante preocupação do Papa de lembrar aos cristãos que,
embora o Vaticano II lhes tenha recomendado que estivessem no mundo, não os levou a ser do mundo.
Por sua vez, as jovens Igrejas extra-europeias pretendem tirar partido e vantagem da grande esperança que era o Vaticano II. Verifica-se isso nas duas assembleias
maiores, a que Paulo VI assiste: o Simpósio Pan-Africano dos Bispos, que se realiza em Campala, em Julho de 1969, e a Primeira Conferência dos Bispos Asiáticos,
em Manila, em Novembro de 1970; o acento é colocado nas reformas de estrutura que os países do Terceiro Mundo reclamam para assegurar o seu desenvolvimento. Em Medellin,
onde, em Setembro de 1968, igualmente com a presença do Papa, se realiza o Conselho das Conferências Episcopais Latino-Americanas (CELAM), a Igreja da América Latina
vai muito mais longe: deixando de considerar como directivas as tendências da reflexão teológica de origem europeia, elabora, a partir da sua base popular, a partir
de comunidades constituídas essencialmente por pobres, uma teologia da libertação que rompe com a pastoral da elite cara aos europeus. Essa teologia deve conduzir,
através de uma prática evangélica, mesmo pela oposição às estruturas e aos regimes injustos, a uma consciencialização do povo cristão, oprimido não só materialmente,
mas também no papel que deveria ser o seu na grande comunidade eclesial.
Por isso, o Sínodo romano de 1974, consagrado à evangelização do mundo contemporâneo, é conduzido pelas jovens Igrejas, cujo peso é crescente (em 97 conferências
episcopais representadas, 70 pertencem ao Terceiro Mundo), para uma nova leitura do Vaticano II; e, implicitamente, as Igrejas europeias ocidentais são convidadas
a uma "revisão de vida".
Além do mais, o aspecto estrutural da injustiça segregada pela civilização, chamada pós-industrial, coloca-se no centro das preocupações da Igreja. E alguns meses
antes da sua morte, na altura da Conferência Internacional sobre Desarmamento, em Genebra, Paulo VI declara: "As imensas despesas com armamento nunca poderão ser
justificadas, enquanto a humanidade sofredora continuar a viver na pobreza e na fome."

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Capítulo V
A IGREJA NO LIMIAR DO SÉCULO XXI

1. O sorriso efémero de João Paulo I (1978)

O aggiornamento conciliar devia necessariamente alterar a composição do Colégio Cardinalício, cuja função é eleger, em conclave, o Soberano Pontífice. Na altura
do Sínodo de 1969, alguns bispos tinham preconizado abrir esse colégio aos delegados do conjunto do episcopado mundial. Em 1973, Paulo VI também revelou o desejo
de introduzir nele alguns bispos não cardeais; mas, perante a oposição da Cúria, teve de desistir desse propósito. Pela constituição apostólica Romano Pontifici
Eligendo, de Novembro de 1975, contentou-se em fechar o Colégio Eleitoral aos cardeais com mais de 80 anos; no entanto, ao mesmo tempo, alargava-o e chamava para
ele, preferentemente, bispos residenciais, representativos das conferências episcopais nacionais; e, sobretudo, alargava a todos os continentes a internacionalização
do Sacro Colégio.
Mas, na altura da morte de Paulo VI, ocorrida em 6 de Agosto de 1978, o conclave reuniu-se em Roma, em 25 de Agosto e compreendeu que, pela primeira vez, os cardeais
da Cúria não eram mais do que 30 em 111 eleitores e que os 54 cardeais não-europeus eram quase tantos como os 57 cardeais europeus, 28 dos quais, italianos. A opinião
é igualmente sensível ao facto de a maioria dos eleitores não esconder a sua convicção de que

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a Igreja, profundamente afectada pelas mudanças do mundo contemporâneo, precisa de um Papa que seja ao mesmo tempo um verdadeiro cristão, um verdadeiro pastor, um
homem de conciliação e um bispo que sinta a colegialidade, pronto a renunciar a todos os privilégios de prestígio e a dar prioridade aos humanos mais desprotegidos.
Os membros do conclave parecem ter-se posto rapidamente de acordo sobre a designação de um homem que melhor correspondesse a esse perfil, já que, no quarto dia de
escrutínio e por uma forte maioria, foi eleito papa o cardeal Albino Luciani, patriarca de Veneza, de 66 anos, que declara querer adoptar o nome de João Paulo I,
como lembrança ao mesmo tempo do bom papa João XXIII, seu predecessor em Veneza, e de Paulo VI, que o fizera cardeal. E pôde logo de seguida declarar, na altura
do Angelus de 27 de Agosto, a uma enorme multidão concentrada na Praça de São Pedro: "Não tenho nem a sabedoria de coração do papa João nem a preparação e a cultura
do papa Paulo, mas estou no seu lugar e, portanto, disposto a servir a Igreja." Uma frase cheia de humildade que dá o tom ao que será um dos mais curtos, mas um
dos mais significativos pontificados da história contemporânea.
Alguns compararam João Paulo I a Celestino V, aquele eremita que, no fim do século XIII, foi arrancado à sua obscuridade para ser conduzido ao soberano pontificado,
antes que um concorrente mais hábil devolvesse à sua solidão esse santo homem, cujos olhos não se tinham ainda habituado à luz de Roma. Uma comparação excessiva,
sim, porque Albino Luciani tem uma grande experiência pastoral e é demasiado puro para ter medo; mas isso não impede que este papa insólito tenha um carisma particular
que lembra o do "bom papa João". Mas João XXIII, embora fugido à diplomacia vaticana, era mais "romano" do que João Paulo I que ingenuamente confessará: "A primeira
coisa que fiz, mal fui eleito Papa, foi desatar a ler o Anuário Pontifício, para conhecer a organização da Santa Sé."
O papa Luciani - que ignora, como é evidente, a tiara que Paulo VI, aliás, abandonara oficialmente em 1964 - fala, sorri e graceja (diz que gosta da "virtude do
gracejo"), como o faria São Francisco de Assis: cita publicamente Júlio Verne e

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Montaigne, e lê um poema de amor francês diante de jovens casados. Aquando da primeira audiência geral, em 6 de Setembro, pede que se reze para que, diz ele, "o
nosso carro não venha a cair numa cova" e recomenda aos seus ouvintes que sejam "humildes, humildes"; no seu último discurso, a 23 de Setembro, em São João de Latrão,
lembra aos Romanos que quer pôr à sua disposição as suas "pobres forças".
Como dirá uma habitante de Marselha ao cardeal Etchegaray: "João Paulo I tinha alcançado o máximo da sua santidade; então, Deus chamou-o para junto de Si." Com efeito,
na noite de 28 de Setembro, aquele que teve ainda tempo de pregar "um cristianismo quotidiano lúcido e sorridente", foi levado pela morte, trinta dias depois da
sua eleição. Alguns avançarão que alguém teria acelerado esse fim; mas a Roma de 1978 não é a do tempo dos Bórgias. Contudo, é possível que alguns não tenham exagerado
ao lamentar a perda de um Papa que não era de modo nenhum "como os outros", simultaneamente santo e ingénuo; um Papa que - são muitos os que assim pensam -, pelo
contrário, com o tempo haveria de acabar por convencer este mundo, ávido de pureza e de autenticidade, de que o bispo de Roma pode ser menos Sumo Pontífice para
ser cada vez mais o Servo dos Servos de Deus.

2. João Paulo II ou o rochedo polaco

Nada, porém, impede que os 111 cardeais (que, pela segunda vez no ano de 1978, se encontram, a 14 de Outubro, em Roma, para escolher o sucessor de João Paulo I)
tenham de enfrentar um difícil problema. Enquanto em Agosto o consenso fora rapidamente estabelecido sobre a pessoa de Albino Luciani, desta vez os cardeais italianos
mostram-se divididos: uns, mais "conservadores" e mais próximos da Cúria, apoiam a candidatura, um tanto disfarçada, do cardeal Guiseppe Siri, arcebispo de Génova;
outros preconizam a eleição do antigo braço direito de Paulo VI, o cardeal Giovanni Benelli, arcebispo de Florença. O bloqueio assim provocado é de tal ordem que
os conclavistas vêem, imediatamente, a necessidade não de um compromisso,

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mas de uma opção até aí impensável: a designação de um papa não-italiano que pusesse fim ao famoso "privilégio do papado", de a Igreja da Itália gozava havia 400
anos.
Esta opinião mostra-se menos utópica, quando alguns eleitores influentes como o cardeal Narciso Arnau, arcebispo de Barcelona, e o cardeal Franz König, arcebispo
de Viena, propõem um papabile, verdadeiramente aceitável na pessoa do cardeal Karol Wojtila, arcebispo de Cracóvia. Trata-se de um homem ainda novo - nascido em
Wadowice, em 18 de Maio de 1920 -, fisicamente sólido, um desportista que, antes de entrar no seminário, exerceu uma profissão manual e escreveu para o teatro; fala
diversas línguas e alia a uma grande segurança doutrinária - discípulo do padre Garrigou-Lagrange, foi professor de Moral -, uma forte experiência pastoral. Bispo
aos 38 anos, arcebispo aos 44, cardeal aos 47, Karol Wojtila, que foi também capelão de estudantes, está muito a par das experiências missionárias francesas do pós-guerra
(Missão de França e Missão de Paris) e é um entusiasta defensor do personalismo cristão proclamado por Emmanuel Mounier. Durante o Concílio Vaticano II, notado por
várias das suas intervenções, sobretudo quando se tratou do esquema De Ecclesia, o arcebispo de Cracóvia afirmou-se partidário de uma eclesiologia de comunhão e
de uma Igreja-Povo-de-Deus com um grande espaço para o laicado activo. Representou também um papel muito importante durante o IV Sínodo dos Bispos em Roma, em 1974,
tornando-se, a propósito da evangelização do mundo contemporâneo, defensor das Igrejas e dos povos do Terceiro Mundo.
Embora, em 16 de Outubro de 1978, o cardeal Wojtila seja eleito Papa e, por desejo de continuidade, adopte o nome de João Paulo II, a iniciativa dos cardeais eleitores
deve considerar-se uma vitória da imaginação sobre a rotina e as combinações. Não só o novo Papa não é italiano, como também não pertence ao mundo ocidental; é um
homem, um cristão, desse "Segundo Mundo" que é a Europa de Leste, cujos problemas ligados ao marxismo aí reinante convergem, em grande parte, com os das Igrejas
do Terceiro Mundo.
Seja como for, João Paulo II mostra-se, logo a seguir, um Papa capaz de congregar em si o que a Igreja tem de mais firme

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e de mais antigo, e o que ela tem de mais humano e de mais dinâmico. Aliás, vai passar rapidamente aos actos com o vigor de um atleta. O Vaticano, que ele transforma
para o tornar mais funcional e mais acolhedor a multidões mais numerosas, não será mais que uma espécie de porto de matrícula ou porto de controlo para um pastor
que respira a dimensão do Mundo. Moderno e tradicional, bem-disposto e austero, paternal e entusiasta, João Paulo II, apoiando-se no seu magistério secular e no
seu carisma particular, inaugura uma prática inédita do papado.
Paulo VI tinha sido o primeiro papa a sair de Itália, mas João Paulo II torna-se o globe-trotter do Evangelho, realizando várias vezes a volta ao mundo, provocando
à sua passagem um entusiasmo e um fervor sem precedentes. A popularidade do Papa mede-se pela intensidade da emoção que percorre o mundo com a notícia de um atentado
terrorista (manobra búlgara ao serviço do comunismo internacional?) felizmente não mortal, de que foi vítima em Roma João Paulo II, em 13 de Maio de 1981.
A partir de Janeiro de 1979 (deslocação à República Dominicana e ao México), o Papa realiza todos os anos algumas longas viagens, pela América Latina e pela África
Negra, onde volta por diversas vezes, como objectivo de sua predilecção. O que não o impede de visitar e admoestar os velhos países europeus, muito ricos e muito
orgulhosos a seus olhos, sem se esquecer da sua querida Polónia, pólo de resistência em terra comunista. Aqueles que criticam este Papa itinerante de querer concentrar,
na sua pessoa, aos olhos das populações, toda a realidade eclesial e assim reforçar, à custa do Povo de Deus, o magistério ou, até, o monarquismo romano, João Paulo
II responde que essas viagens-peregrinações são essenciais à sua missão catequética e pastoral. Uma missão que consiste, por um lado, em apoiar a promoção dos sectores
do mundo mais desfavorecidos e dar má consciência aos ricos, aos indivíduos e aos povos; e, por outro lado, reforçar a identidade do povo cristão.
Seja como for, o Papa polaco não vive só para dentro: o equilíbrio interior que o caracteriza manifesta-se no exterior por uma linha de conduta sem rupturas e pela
fidelidade ao apelo lançado

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por ele, em 22 de Outubro de 1978, durante a sua homilia de entronização, que foi escutada por bilião e meio de telespectadores: "Não tenhais medo!" Isto é: "Não
tenhais medo do Concílio! Abri, abri todas as grandes portas da humanidade a Cristo!" O que também significa: "Não tenhais medo do mundo que Cristo venceu e permanecei
fiéis à grande disciplina da Igreja deste Cristo!..." Deste modo, aparecem, logo de seguida, os dois elementos que irão constituir o aparente parodoxo de João Paulo
II: homem do Concílio e também homem da tradição cristã.
A defesa da dignidade do homem e instauração de uma civilização de solidariedade baseada na obra da Redenção (garante da autonomia legítima do homem e da sua inalienável
dignidade): eis o tema, constantemente retomado e comentado por João Paulo II, desde a sua alocução na abertura dos trabalhos da III Conferência do Episcopado Latino-Americano,
em Puebla, a 28 de Janeiro de 1979, até ao seu discurso de 22 de Abril de 1990, em Praga, logo a seguir à derrocada do estalinismo, passando ainda pelas suas duas
encíclicas sociais Laborem exercens (14 de Setembro de 1981) e Sollícitudo rei socialis (19 de Fevereiro de 1988).
A fidelidade de João Paulo II ao Concílio Vaticano II não conhece nenhum eclipse. Manifesta-se sobretudo na altura da realização da Assembleia Geral Extraordinária
do Sínodo dos Bispos, que se efectua em Roma, entre 25 de Novembro e 8 de Dezembro de 1985, para fazer o ponto da situação vinte anos depois do encerramento do concílio.
O diálogo com as outras Igrejas e as outras religiões prossegue, sendo particularmente reforçados dois eixos: a aproximação aos anglicanos, mesmo opondo-se à ordenação
das mulheres, aceite por uma parte dos anglicanos, mas rejeitada por Roma; o diálogo judaico-cristão, apesar do caso do Carmelo de Auschwitz, isto é, da manutenção
durante muito tempo de um carmelo no perímetro do campo de extermínio de Auschwitz, lugar "sagrado" e simbólico do Holocausto judeu durante a Segunda Guerra Mundial.
A visita do Papa à Sinagoga de Roma, em 13 de Abril de 1986, é um acontecimento sem precedentes, fortemente carregado de significação. Alguns meses mais tarde, em
27 de Outubro, realiza-se a

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reunião cimeira de todas as religiões, marcada por uma bela oração comum.
Estas atitudes repugnam aos católicos tradicionalistas que criticam o Papa de conduzir o catolicismo à sua ruína, alinhando com as outras religiões. Mons. Marcel
Lefebvre, o chefe da tendência integrista mais importante, volta as costas à Igreja consagrando, por sua conta, em 30 de Junho de 1988, quatro bispos em Écône (Suíça),
sendo excomungado, logo a seguir.
A firme atitude de João Paulo II a respeito dos católicos que não reconhecem o Concílio manifesta-se também em relação àqueles que, abalando as barreiras, parecem
fazer perigar a ortodoxia, o sentido da fé católica e, mesmo, a própria autoridade do magistério romano. O papa encontra na pessoa do cardeal Joseph Ratzinger, designado
prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, um porta-voz muito vigilante. Em particular, Roma não quer teólogos que "perturbam os fiéis com teorias e hipóteses
que eles não são capazes de julgar". É assim que, durante o ano de 1979, três teólogos católicos - o holandês Edward Schillebeeckx, o francês Jacques Pohier e o
suíço Hans Kúng - são, em graus diferentes, chamados à ordem. Despontando graves divisões na Igreja holandesa, considerada particularmente favorável ao acordo da
Igreja conciliar e da modernidade, João Paulo II, em Janeiro de 1980, reúne em Roma, em sínodo particular, os bispos dos Países Baixos; trata-se de um procedimento
insólito que manifesta a vontade do Papa de controlar o destino da Igreja.
Desta maneira, a "verticalidade" hierárquica da Igreja romana dá a impressão - uma impressão cada vez mais sentida - de perturbar o desenvolvimento de uma "horizontalidade"
que vai no sentido pretendido pelo Concílio, afirmando que a Igreja não é uma Sociedade, mas um Povo. A VII Assembleia Ordinária do Sínodo dos Bispos, realizada
em Roma de 1 a 30 de Outubro de 1987, incide na "Vocação e missão dos laicos na Igreja e no Mundo vinte anos depois do Concílio Vaticano II"; insiste ainda no facto
de todos os baptizados serem responsáveis na Igreja. Mas, na prática quotidiana, verifica-se que, no seio de uma instituição ainda muito clerical, a distância e
a distinção entre clérigos e leigos continua a ser considerável; mais ainda:

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o papel da mulher na Igreja permanece hipotecado por uma misogenia de facto que pretende justificar-se com argumentos teológicos.
Mas há um domínio em que a autoridade romana se compromete a fundo, impedindo qualquer escapatória: o comportamento sexual dos católicos, padres e leigos. Os numerosos
pedidos de muitos padres para passarem ao estado laical obriga Roma, por um decreto de 14 de Outubro de 1980, a fixar as normas muito mais restritivas na concessão
da dispensa do celibato sacerdotal, um celibato cujo carácter absoluto é reafirmado em todas as ocasiões por João Paulo II e pela hierarquia.
A exortação apostólica Familiaris consortio, de 22 de Novembro de 1981, reafirma muito fortemente a doutrina tradicional da Igreja no que respeita ao casamento católico:
rejeita a coabitação juvenil (o chamado "casamento à experiência"), que entrou pela porta grande nos hábitos contemporâneos; condenação da união livre e manutenção
da exclusão, para os divorciados recasados, da comunhão eucarística. Esta exortação retoma e amplia as conclusões do Sínodo Episcopal de Setembro de 1980, consagrado
às "Tarefas da família no mundo moderno", à situação, considerada irregular, dos divorciados recasados, e à condenação de todas as formas de contracepção e de aborto.
Em todas as circunstâncias, em todos os pontos do Globo, João Paulo II declara solenemente: "O homem e a mulher não são donos nem árbitros da sua capacidade de procriar;
participam na decisão de Deus para criar."
Mas é certamente neste domínio que o desacordo se mostra mais evidente entre os ensinamentos da Igreja e a prática dos católicos, cujo comportamento sexual beneficia
da evolução de uma ética e de uma ciência médica mais adaptada às realidades da vida dos homens e das mulheres do fim do século XX. Podemos mesmo falar de um fosso
que, nesta matéria, separa a opinião comum e a Igreja; um fosso cuja importância se revela logo depois da publicação, em 10 de Março de 1987, da Instrução da Congregação
Romana para a Doutrina da Fé, condenando todos os métodos de procriação artificial e sobretudo a fecundação "in vitro".

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3. A Igreja em processo perante a modernidade?

O fim do século XX e o despertar do século XXI caracterizam-se, pelo menos no Ocidente dito cristão, pela "irresistível dissolução da coerência de uma visão do Mundo"
(Robert Muchembled), herdada dos séculos de cristandade. O declínio dos absolutos parece ser um elemento muito importante do pensamento pós-moderno. Enquanto o ateísmo
da época moderna, como o dos "mestres da suspeita", de Marx a Sartre, tinha colocado no lugar de Deus toda a espécie de produtos de substituição - a Razão, a Liberdade,
o Homem... -, o ateísmo pós-moderno ignora os absolutos de substituição; o individualismo, a "preocupação consigo próprio" (Michel Foucault) triunfa sobre os idealismos
e renuncia, sem escrúpulos, a todos os fundamentos da ética. Hoje, é-se tranquilamente ateu ou é-se alegremente materialista. O "Não tenhais medo!" de João Paulo
II ecoa, para muitíssimos, como: "Não tenhais medo! Já não há mais nada a esperar!"
Obviamente, a Igreja não é nem pode ser insensível a esta indiferença maciça que traduz, particularmente nos países da velha cristandade, da Europa Ocidental e da
América Setentrional, numa queda vertical da prática religiosa. Mas as pessoas da Igreja estão divididas - profundamente divididas - sobre a resposta a dar à grande
questão colocada aos cristãos por essa indiferença, sobre a atitude a adoptar face a uma modernidade cujo rosto é tão insólito, uma modernidade que é absolutamente
inevitável e interfere na vida quotidiana dos homens.
Alguns, levados pelo dinamismo em grande parte inaplicado do Concílio Vaticano II e do seu compromisso pessoal, quereriam que, liquidando, de uma vez por todas,
o mito da sua incompatibilidade com a Razão, a Igreja estabelecesse com ela uma aliança duradoura. Como escreve Paul Valadier em Église en procés. Catholicisme et
société moâerne, um livro que em 1987 fez grande sucesso: "O cristianismo não é fecundo senão quando aceita a confrontação, o debate com outra religião. O que foi
verdade ontem, é verdade hoje. Se o cristianismo se encerrar sobre si mesmo, caminhar-se-á para a esterilização da fé cristã. Pelo contrário, se aceitar jogar o
jogo do processo com alguém

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diferente dele, podemos esperar que nos encontremos no começo do cristianismo, dado que há sociedades e continentes aos quais ainda se não abriu; outras fecundidades
virão." Por isso, o eixo central do cristianismo não seria o de governar a sociedade, mas o de suscitar liberdades para que elas inventem, numa base ética, os meios
de viver a existência humana.
Para chegar lá, a Igreja romana deve - diz-se - converter-se radicalmente, fazer estalar o seu centralismo clerical e autoritário, instaurar no seu seio um verdadeiro
diálogo que permita ao Povo cristão assumir o seu papel próprio no dinamismo da fé e situar-se francamente na perspectiva eclesiológica conciliar: a do sacerdócio
comum dos fiéis - homens e mulheres -, um sacerdócio efectivo no interior do qual se distinga, sem se separar, o sacerdócio ministerial.
Esta posição e esta orientação são fortemente contestadas, quase combatidas, pelos cristãos que, a uma modernidade considerada secularizadora, portanto errada, opõem
o "retorno das certezas" e uma avaliação menos utópica, menos temerária e menos hedonista do Concílio Vaticano II; um concílio cuja aplicação foi, a seus olhos,
muito marcada por um liberalismo deletério. Portanto, é necessário dar novamente força à Tradição eclesial e, portanto, ao magistério papal que é o garante dessa
tradição, o responsável pelo "depósito sagrado da fé".
O que conforta o "campo" dos partidários de uma "recentralização" de uma Igreja que julgam estar a perder as suas forças, dispersando-as e abandonando-as ao subjectivismo,
é o facto de o papa João Paulo II (cujo prestígio e influência, apesar das críticas crescentes, continuarem a ser consideráveis) ser um pregador entusiasta da "nova
evangelização" de uma Europa e de um mundo em vias de laicização. Uma evangelização com novos custos que será assegurada por uma Igreja que terá encontrado uma identidade
forte, à imagem do padre que no VIII Sínodo dos Bispos, realizado em Roma entre 30 de Setembro e 28 de Outubro de 1990 pretendeu arrancar a um profundo desencanto
e recolocar na perspectiva do Concílio de Trento, que vira no padre "o religioso de Deus".
Então, começa-se a falar, com uma insistência crescente, de identidade cristã, do testemunho insubstituível da

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transcendência, da oração colectiva e pública, da vida comum despojada e carismática. Por isso, vai-se afirmando que a catequese tem o seu projecto próprio: transmitir
a fé na sua integridade e responder de uma forma clara às expectativas do Mundo que, sem dúvida, oferece resistências mais fortes do que outrora à interrogação espiritual,
mas que goza de uma liberdade maior para viver a sua fé de forma responsável, como o provam, no seu comportamento quotidiano, numerosos cristãos, padres e leigos,
homens e mulheres.
Ora, o Papa não esconde que, para si, trata-se de responder e de novamente chamar a si uma comunidade que é muito assediada; de instaurar a "era dos bispos", dos
pastores investidos de uma autoridade mais tranquila; de revigorar a fé; de dar determinação à acção; de afastar o desencanto e a incerteza, e de imprimir um novo
impulso salvador. Em Março de 1988, perante a Assembleia Plenária do Secretariado para os Não-Crentes, declara: "No próprio coração das sociedades mais secularizadas
surge uma nova geração de crentes, ávida de pontos de referência éticos e de valores religiosos permanentes, que procura novas formas para a expressão da fé: pequenas
comunidades e grandes concentrações, celebrações festivas, formação bíblica e teológica, grupos de oração e de reflexão."
A conjuntura parece ser favorável a uma operação que substitua um cristianismo de resistência pela coabitação e pelo diálogo com o Mundo: em 20 de Agosto de 1989,
literalmente incitado por quinhentos mil jovens europeus concentrados em Compostela, João Paulo II lança um apelo solene a esses cruzados dos tempos modernos a que
sejam a vanguarda dos novos evangelizadores de um continente que, sob as aparências de prosperidade, está na linha de perdição espiritual. Apelo semelhante é lançado
em 22 de Abril de 1990, depois de a Checoslováquia se ter desembaraçado, como a maioria dos países de Leste, da ditadura estalinista: convencido de que o afundamento
da "utopia vermelha" abre um imenso espaço livre à renovação cristã, o Papa polaco anuncia a realização, em 1991, de uma assembleia especial do Sínodo dos Bispos
europeus.
É verdade que não faltam cristãos que consideram estas visões como "sonhos", pois julgam que se está a avançar depressa

377

de mais e a antecipar temerariamente um futuro, acerca de que nada nos garante que, depois do malogro da ideologia marxista, escapará ao materialismo normalmente
segregado pelo capitalismo liberal. E também é verdade que, apesar de tudo, o "eurocentrismo" eclesial já passou, dando lugar às jovens Igrejas dos outros continentes,
Igrejas cujas aspirações e experiências vão no sentido de uma verdadeira libertação humana e espiritual.
Resumindo: neste final do século XX, a Igreja vê-se submetida a forças opostas: àqueles que não vislumbram a sua salvação senão na imutabilidade, ou, pelo menos,
numa estabilidade assegurada por uma hierarquia obediente, opõem-se os que a consideram não como uma sociedade estabelecida, mas como uma vasta comunidade, como
um Povo diferente e vivo, cuja fé, vivificada pela acção no coração do Mundo, pode enfrentar todos os riscos.
E, uma vez mais, fala-se de uma Igreja "em crise", de uma crise tanto mais aguda quanto se inscreve numa história sujeita a uma constante aceleração. Para o historiador
que, olhando para trás, abrange vinte séculos de um itinerário, contínuo e caótico, essa nova "crise" testemunha de facto uma vitalidade que se inscreve na História
e está ligada ao carácter irredutível da vocação da própria Igreja: ser o veículo do Evangelho.

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Apêndice Complementar
por Artur Roque de Almeida

O PAPA DO MUNDO

João Paulo II
é o Papa da passagem do milénio.
E esta não é uma simples verificação cronológica.
[...] A sua figura de grande crente
abraçou o mundo e nesse abraço
os homens todos, dos vários credos e religiões,
descobriram-se amados por Deus.
[...] Pode não se gostar dele, mas este Papa
não deixou ninguém indiferente.
Não aconteceu assim
com o próprio Jesus Cristo?
D. JOSÉ DA CRUZ POLICARPO,
Cardeal Patriarca de Lisboa no prefácio de George Weigel,
Testemunho de Esperança, a biografia de João Paulo II

1. Pastor e Mestre
O magistral estudo sobre João Paulo II atrás descrito e posto em dia até 1990 deixa-nos pouca margem para alguma novidade, pois já ali estão apresentadas as linhas
mais significativas deste pontificado.
É certo que a história da Humanidade não se faz apenas com figuras de primeiro plano/ mas também com a contribuição

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de todos. No caso da Igreja, porém, que é animada pelo Espírito Santo, é indispensável o "Pedro vivo", a quem Cristo confiou um serviço: "E tu, uma vez convertido,
fortalece os teus irmãos" (Lucas, 22, 32). É o que hoje chamamos o "serviço petrino" do Papa.
Quando os futuros historiadores se debruçarem sobre as personalidades mais influentes do século XX, o nome do papa João Paulo II assumirá um papel preponderante
nos seus registos. Poucos indivíduos exerceram maior impacto - não apenas religioso, mas também social e moral - sobre o mundo contemporâneo.
João Paulo II continua a ser a voz moral mais influente do nosso tempo, sempre orientada para o sentido apostólico da Salvação proposta por Cristo.
Mas nem sempre percorre um "caminho de rosas". Também sofre contestações, às vezes até da parte de seus irmãos. E a acusação de ser um "Papa político"? Talvez até
seja verdade, no sentido em que dizia S. João Bosco, fundador da Congregação Salesiana (Padres Salesianos), declarado "Pai e Mestre da Juventude" por João Paulo
II em 1988, no primeiro centenário da sua morte: "A minha política é a política do Pai Nosso!"
O que afirmamos como verdade comprovada pela sua vida é que ele é um Pontífice com uma grande sensibilidade pastoral, logo manifestada três meses depois da sua eleição,
em Janeiro de 1979, ao deixar bem claros os grandes propósitos que vão nortear o seu pontificado: "Jesus Cristo, a Igreja e o Homem", aliando a ousadia e a prudência
num equilíbrio admirável.

2. A paixão das viagens apostólicas

Apesar de muito debilitado na saúde, após o atentado de 1981, o Papa não desiste da sua paixão, de amor e sofrimento, de retomar as suas viagens apostólicas, logo
de 12 a 19 de Fevereiro de 1982, à Nigéria, Benim, Gabão e Guiné Equatorial (a décima segunda), trocando o "seu" Vaticano pelo mundo inteiro, como atesta a quase
centena de viagens, que se revestem sempre de especial significado, pois com este "serviço petrino e

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paulino de solicitude por todas as igrejas" continua um novo e dilatado ciclo de evangelização, ao encontro do mundo mergulhado em problemas morais e sociais e sobretudo
- como tem o máximo cuidado em afirmar - ao encontro do Homem.
A última que até agora fez (a nonagésima quarta) foi à República da Ucrânia, de 23 a 27 de Junho de 2001 a convite do Presidente Leonid Kuchma e dos bispos católicos
(os católicos são uma minoria, cerca de seis milhões de rito bizantino e um milhão de rito romano, numa população de cinquenta milhões) apesar do veto do Patriarcado
Ortodoxo de Moscovo. Numa celebração litúrgica teve a alegria de proclamar Beatos trinta filhos da Ucrânia, quer latinos, quer greco-católicos.
E a próxima nonagésima quinta viagem já está agendada para a Bulgária, de 23 a 27 de Maio de 2002, coincidindo com a festa litúrgica dos Santos irmãos S. Cirilo,
monge, e S. Metódio, bispo. Padroeiros da Europa, que trabalharam entre os povos eslavos da Morávia, Chéquia, Eslováquia e Croácia.
Como sempre, o Papa terá encontros com representantes das comunidades católicas, ortodoxa, judia e muçulmana - como sublinha o comunicado comum do ministro dos Negócios
Estrangeiros búlgaro, Solmon Passi e o responsável do protocolo da Secretaria de Estado do Vaticano, monsenhor Renato Boccardo.

3. A paixão da evangelização através da palavra escrita

Mas este Papa viajante revelou-se simultaneamente um apaixonado escritor. Os documentos saídos da sua pena fornecem à Igreja uma doutrina renovada, dialogante com
os tempos, a sugerir novos caminhos, não apenas à medida do mundo, mas a exigir dele a mudança e adesão a uma cultura que respeite a vida humana e a dignidade do
homem.
Impossível citar aqui a prodigiosa actividade literária pastoral e apostólica repartida por dezenas e centenas de Cartas Apostólicas, Constituições Apostólicas,
Discursos (só no ano 2000, no que se refere ao Grande Jubileu, João Paulo II pronunciou 323!), 13 Encíclicas, 11 Exortações Apostólicas, 29 Mensagens/ 14 Motu Próprio
e ainda as Homilias (72 no Ano Jubilar).

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4. A Paixão da Unidade

Com João Paulo II, o doloroso problema da falta de união entre os cristãos rompeu o universo das "boas intenções" e já faz hoje parte da dinâmica pastoral de muitas
comunidades cristãs.
Protestantes, Ortodoxos e Católicos Romanos vão reduzindo lenta, mas provavelmente, as distâncias do passado, construindo um futuro único, respeitando as especificidades
de cada um.
Este é também o Pontífice que, pela segunda vez, reuniu na cidade de Assis, a 24 de Janeiro de 2002, os principais dirigentes das religiões de todo o Mundo numa
oração comum pela Paz, uma prece a diferentes vozes mas com uma única intenção: mostrar que o genuíno espírito religioso é uma fonte inesgotável de mútuo respeito
e de harmonia entre os povos.

5. E muito fica ainda por dizer

Na brevidade deste apêndice deveríamos ainda referir alguns parágrafos que simplesmente indicamos, porque também caracterizam este longo pontificado, o sexto mais
longo da história da Igreja.
A partir de 16 de Outubro de 2002 João Paulo II iniciou o 25º ano do seu pontificado.
a) As numerosas beatificações e canonizações. Ultrapassando em muito todos os Papas seus antecessores. João Paulo II fez delas uma marca do seu pontificado, como
que a dizer que todos somos chamados por Deus a sermos santos. Até agora proclamou centenas de santos e perto de um milhar de beatos. Pensemos que se registaram
apenas 302 santos e dois milhares de beatos nos 400 anos anteriores.
E alguns deles são autênticas novidades: o primeiro índio mexicano, S. Juan Diego (século XVI), as primeiras crianças com apenas dez anos de idade, os beatos Francisco
e Jacinta Marto, videntes de Fátima; a primeira beatificação em conjunto dum casal italiano, Luís Beltrame Quatrocchi e sua esposa Maria Corsini,

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a presença de dois dos seus filhos sacerdotes; o primeiro homem da raça cigana, o mártir Zeferino Gimenez Malla, fuzilado por causa da sua fé, no início da Guerra
Civil de Espanha, a 20 de Agosto de 1936. A "memória dos mártires" do século XX levou-o a dar as honras do altar, durante o Grande Jubileu de 2000, a mais de 600
mártires da fé.
b) As Grandes fornadas Mundiais da Juventude. "Deus deu-me a graça de amar os jovens!" - disse ele no dia 12 de Maio de 1982, na sua visita à Universidade Católica
Portuguesa. A próxima XVII Jornada já está convocada para Toronto (Canadá) de 18 a 28 de Julho de 2002. Será "uma nova ocasião para encontrar Cristo e dar testemunho
da sua presença na sociedade do nosso tempo e tornar-se construtor da civilização do amor e da verdade".
c) "Pedir perdão" noventa e quatro vezes! O repetido "pedir perdão" a todos aqueles a quem a Igreja ofendeu ao longo da sua história de vinte séculos é igualmente
uma atitude inovadora e fundamental, que contém a forma e a substância dum apelo tão pacífico como incómodo lançado ao mundo no Ano Jubilar de 2000, como única atitude
capaz de provocar o "refrescamento da memória" e permitir aos homens de todas as condições o necessário e urgente encontro interior com a Paz de Cristo. Para o Papa,
esta paz é o ponto de partida para a meta final da Paz, estabelecendo para sempre a "civilização do amor".
Mas o maior perdão, que muito comoveu o mundo, foi o que ele próprio ofereceu ao seu agressor no atentado de 13 de Maio de 1981, o jovem turco Mehmet Ali Agca, reiterado
durante uma visita que lhe fez em 1983, na cela da prisão de Roma.
d) O Grande Jubileu do Ano Santo de 2000, A preparar a Igreja para entrar purificada no Terceiro Milénio do nascimento de Jesus Cristo. Este capítulo será bem a
síntese de todo o pontificado de João Paulo II.

385

A BÍBLIA

A BÍBLIA, ou seja, o Livro por excelência (do grego, ton biblion), é a referência comum aos judeus e aos cristãos, na medida em que o Evangelho está enraizado na
tradição judaica. Por isso, o conteúdo da Bíblia é diferente segundo as versões (hebraica ou grega) e segundo as confissões (católica ou protestante).
A Bíblia hebraica é constituída por:
A Tora ou Pentateuco:
Génesis, Êxodo, Levítico, livro dos Números, Deuteronómio.
Os livros dos Profetas (Nebiim):
Primeiros profetas:
Livro de Josué, livro dos Juizes, I e II livros de Samuel, I e II livros dos Reis.
Segundos profetas:
Livros de Isaías, Jeremias, Ezequiel, Oseias, Joel, Amos, Abdias, Jonas, Miqueias, Naúm. Habacuc, Sofonias, Ageu, Zacarias, Malaquias.
Os escritos (Ketubim):
Salmos, livros de Job, dos Provérbios, de Ruth, Cântico dos Cânticos, Qohélet, livro das Lamentações, de Ester (semita), de Daniel (excepto Susana, Bei e o dragão),
de Esdras, de Neemias, I e II Crónicas.
A lista destas obras foi definitivamente fixada pelo cânone de Jamnia no final do século I da nossa era. O texto de que dispomos actualmente é o que foi vocalizado
e fixado pelos Massoretas, sábios judeus da Palestina, entre os séculos V e VII. Trata-se portanto de uma versão antiga que por vezes é necessário corrigir quando
a comparamos com a versão grega, mais antiga.

387

A este respeito, os manuscritos de Qumrân, apesar de fragmentados, são extremamente preciosos em virtude de nos darem a conhecer como era o texto datado da época
romana.
A Bíblia grega está organizada de forma diferente e inclui livros suplementares (traduções gregas cujo original semita se perdeu, ou obras redigidas directamente
em grego na Díáspora).
É constituída pelas seguintes obras:
O Pentateuco (idêntico).
Os livros históricos.
Livros de Josué, dos Juizes, I livro dos Reis (I e II livros de Samuel e I e II livros dos Reis), Paralipomenes (I e II Crónicas), livro de Esdras A (III Esdras),
livro de Esdras B (Esdras + Neemias), livros de Ester (grego), de Judite, de Tobias, I-IV Macabeus.
Os livros poéticos:
Salmos, Odes, Provérbios, Eclesiastes (Qohélet), Cântico dos Cânticos, livro de Job, livro da Sabedoria, Siracidas (ou Eclesiástico), Salmos de Salomão.
Os livros proféticos:
Livros dos quatro grandes profetas: Isaías, Jeremias, Ezequiel e Daniel, livros dos doze profetas menores, livro de Baruque, Lamentações, carta de Jeremias.
Esta versão grega da Bíblia é conhecida pela designação de Septante (LXX) porque, de acordo com uma tradição relatada por Filon e Flávio José, Ptolomeu II Filadélfia
teria pedido autorização ao grande sacerdote Eleasar para mandar traduzir a Bíblia para grego. Para tal, as autoridades de Jerusalém teriam enviado setenta e dois
sábios igualmente versados nas línguas hebraicas e gregas; esses sábios teriam completado a sua, tarefa também em setenta e dois dias, daí o nome Septante. Trata-se
de uma récita maravilhosa destinada a legitimar uma tradução do texto sagrado. De facto, a questão é muito mais complexa; parece que se começou por fazer uma tradução
da Tora, indispensável à Diáspora egípcia, particularmente importante; progressivamente, foram traduzidos os profetas e os escritos. No século II d. C. teria aparecido
uma outra tradução imputada a Áquila, um prosélito grego, e seguidamente mais duas atribuídas a Teodociano e a Símaco. Estes textos diferentes foram comparados no
século III por Orígenes, sábio cristão natural de Alexandria: diversos colonos (Hexaplos) apresentavam o texto hebraico, a sua tradução para o grego, os quatro textos
da Septante, de Áquila, de Teodociano e de Símaco. Por outro lado, Luciano, padre cristão da escola exegética de Antioquia publica em 312 uma crítica ao Septante.
A Bíblia grega foi alvo de várias traduções para latim conhecida por Vetus África, Vetus ítala, Vetus Latina (Velha Africana, Velha Italiana, Velha

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Latina...) - Jerónimo quis colocar à disposição dos cristãos ocidentais de língua latina uma boa versão que levasse em conta o texto hebraico. Esta tradução ficou
conhecida pelo nome de Vulgata.
A Bíblia cristã é constituída pelo Antigo Testamento, onde está incluída a maior parte dos livros da Bíblia grega (excepto o III livro de Esdras, os III e IV livros
dos Macabeus, as Odes e os Salmos de Salomão), e pelo Novo Testamento, constituído pelo Evangelho tetramórfico (Mateus, Marcos, Lucas, João), os Actos dos Apóstolos,
as catorze epístolas de Paulo (I e II aos Coríntios, aos Romanos, aos Gálatas, I e II aos Tessalonicenses, aos Efésios, aos Filipenses, aos Colossenses, I e II a
Timóteo, a Tito, a Filémon, aos Hebreus), as sete epístolas conhecidas por católicas (três epístolas de João, duas epístolas de Pedro, as epístolas de Tiago e de
Judas) e o Apocalipse. Esta lista dos livros peculiares dos cristãos é elaborada a partir do final do século II. Os outros escritos são designados por apócrifos
ou pseudo-epigráficos.
A Bíblia da Reforma preferiu retomar o cânone da Bíblia hebraica em vez do Velho Testamento e suprimiu as epístolas católicas do Novo Testamento. O cânone da Bíblia
católica foi definitivamente fixado no concílio de Trento.

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LISTA DOS PAPAS

Pedro Hispano Portucalense (ou Pedro Julião)
Filósofo e médico, nascido em Lisboa, provavelmente em 1205, fez os primeiros estudos na escola catedral olisiponense, e depois em Paris, vindo a ser nomeado Papa
com o nome de João XXI.
Actualmente persistem sérias dúvidas sobre as obras que efectivamente escreveu, sendo difícil sustentar que - dada a amplidão temática e sobretudo atendendo à diversidade
dos estilos de escrita -, seja efectivamente autor de todas as obras que normalmente lhe são atribuídas.
No entanto, a opinião generalizada atribui a Pedro Hispano a autoria do Tractatus, depois chamado Summulae logicales: um manual pelo qual se procedeu ao ensino da
Lógica nas mais prestigiadas universidades europeias, até ao século XVI, dando-lhe projecção e importância bastante para figurar na Divina Comédia de Dante. Embora
não conhecesse as mil transcrições da obra de Paulo Orósio, são mais de três centenas os manuscritos conhecidos da sua obra e quase outras tantas as edições impressas
nos séculos XVI e XVII. A parte teórica mais importante desta obra é constituída pelos tratados que dão corpo à lógica modernorum e, dentro desta, à problemática
de proprietatibus tenninorum, vulgarmente conhecida como "lógica terminista" onde se inclui a distinção entre a significatio e a suppositio, que apesar de não ser
uma ideia original de Pedro Hispano é por ele magistralmente exposta.
Esta distinção, a par de outras que estuda no seu tratado, como as que se referem à copulatio e appelatio, visa o estudo e correcta compreensão das diversas funções
que as palavras podem adquirir quando utilizadas como "termos" no seio das proposições, o que desde logo supõe uma forte aproximação da lógica à gramática. A distinção
referida apresenta relação com a dialéctica de Pedro Abelardo, sobretudo quando este distingue a "significatio

391

de rebus" da "significatio de intellectibus", aproximando-se cada um destes conceitos, no "Tractatus" do autor português, dos de "significatio" e "supositio" respectivamente,
possuindo o segundo um eminente valor lógico. Pela "significatio de rebus" entendia Abelardo a "demonstração" das coisas em conformidade com a natureza destas; já
a "significatio de intellectibus" visava orientar a lógica num sentido mais formal, ou seja, para o domínio dos "nomes" e seus significados, libertos do contacto
directo com as coisas. Esta temática estava por sua vez integrada na mais vasta polémica sobre os universais, pois que Abelardo, quebrando com a tradição realista,
não entendeu os universais como coisas mas como elementos integrantes do conhecimento e da linguagem. Além do "Tractatus" são-lhe ainda atribuídos, embora com dúvidas,
as obras "Scientia libri de anima", "Commentarium in De anima" e uma obra médica intitulada "Thesaurus pauperum", para além da "Expositio librorum Beati Dionysii".

***

Pedro (+ 64)
Lino (67-76)
Anacleto (76-88)
Clemente I (88-97)
Evaristo (97-105)
Alexandre I (105-115)
Sisto I (115-125)
Telésforo (125-136)
Higino (136-140)
Pio I (140-155)
Aniceto (155-166)
Sotero (166-175)
Eleutério (175-189)
Vítor I (189-199)
Zeferino (199-217)
Calisto (217-222)
Urbano I (222-225)
Ponciano (225-235)
Antero (235-236)
Fabião (236-250)
Cornélio (251-253)
Lúcio I (253-354)
Estêvão I (254-257)
Sisto II (257-258)
Dionísio (259-268)
Félix I (269-274)
Eutiquiano (275-283)
Caio (283-296)
Marcelino (296-304)

Vacatura de Santa Fé

Marcelo I (308-309)
Eusébio (309-310)
Milcíades (311-314)
Silvestre I (314-335)
Marcos (336)
Júlio I (337-352)
Libério (352-366)
Dâmaso I (366-384)
Sirício (384-399)
Anastácio I (399-402)
Inocêncio I (402-417)
Zósimo (417-418)
Bonifácio I (418-422)
Celestino (422-432)
Sisto III (432-440)
Leão I, o Grande (440-461)
Hilário (461-468)
Simplício (468-463)
Félix III (483-492)
Gelásio (492-496)
Anastácio II (496-498)
Símaco (498-514)
Hormisdas (514-523)

392

João I (523-526)
Félix IV (526-530)
Bonifácio II (530-532)
João II (533-535)
Agapito (535-536)
Silvério (536-537)
Virgílio (537-555)
Pelágio (556-561)
João III (561-574)
Benedito I (575-579)
Pelágio II (579-590)
Gregório I, o Grande (590-604)
Sabiniano (604-606)
Bonifácio III (607)
Bonifácio IV (608-615)
Deodato I (615-618)
Bonifácio V (619-625)
Honório (625-638)

Vacatura da Santa Fé

Severino (640)
João IV (640-642)
Teodoro I (642-649)
Martinho I (649-655)
Eugênio I (654-657)
Vitaliano (657-672)
Deodato II (672-676)
Dono (676-678)
Agatão (678-681)
Leão II (682-683)
Benedito II (684-685)
João V (685-686)
Cónon (686-687)
Sérgio I (687-701)
João VI (701-705)
João VII (705-707)
Sisínio (706)
Constantino (708-715)
Gregório II (715-731)
Gregório III (731-741)
Zacarias (741-752)
Estêvão II (752-757)
Adriano I (772-795)
Leão III (795-816)
Estêvão IV (816-817)
Pascoal (817-824)
Eugênio II (824-827)
Valentim (827)
Gregório IV (827-844)
Sérgio II (844-847)
Leão IV (847-455)
Benedito III (855-858)
Nicolau I (839-867)
Adriano II (867-872)
João VIII (872-882)
Mariano I (882-884)
Adriano III (884-885)
Estêvão V (885-891)
Formoso (891-896)
Bonifácio VI (896)
Estêvão VI (896-897)
Romano (897)
Teodoro II (897)
João IX (898-900)
Benedito IV (900-903)
Leão V (903)
Sérgio III (904-911)
Anastácio III (911-913)
Lando (913-914)
João X (914-928)
Leão VI (928)
Estêvão VII (928-931)
João XI (931-933)
Leão VII (936-939)
Estêvão VIII (939-942)
Mariano II (942-946)
Agapito II (946-955)
João XII (955-964)
Leão VIII (963-965)
[Benedito V, anti-papa (964-966)]
João XIII (965-972)
Benedito VI (973-974)
Benedito VII (974-983)
João XIV (983-984)
João XV (985-996)
Gregório V (996-999)
[João XVI, anti-papa (997-998)]
Silvestre II (999-1003)

393

João XVII (1003)
João XVIII (1004-1009)
Sérgio IV (1009-1012)
Benedito VIII (1012-1024)
João XIX (1024-1032)
Benedito IX (1032-1044)
Silvestre III (1045)
Gregório (1045-1046)
Clemente II (1046-1047)
Benedito IX, novamente (1047-1048)
Dâmaso II (1048)
S. Leão IX (1049-1054)
Vítor II (1055-1057)
Estêvão IX (1057-1058)
[Benedito X, antipapa (1058-1060)]
Nicolau II (1059-1061)
Alexandre II (1061-1073)
Gregório VII (1073-1085)
Vítor III (1086-1087)
Urbano II (1088-1099)
Pascoal II (1099-1118)
Gelásio II (1118-1119)
Calisto II (1119-1124)
Honório II (1124-1130)
Inocêncio II (1130-1143)
Celestino II (1143-1144)
Lúcio (1144-1145)
Eugênio III (1145-1153)
Anastácio IV (1153-1154)
Adriano IV (1154-1159)
Alexandre III (1159-1181)
Lúcio III (1181-1185)
Urbano III (1185-1187)
Gregório VIII (1187)
Clemente III (1187-1191)
Celestino III (1191-1194)
Inocêncio III (1198-1216)
Honório III (1216-1227)
Gregório IX (1227-1241)
Celestino IV (1241)

Vacatura da Santa Fé

Inocêncio IV (1243-1254)
Alexandre IV (1254-1261)
Urbano IV (1261-1264)
Clemente IV (1265-1268)

Vacatura da Santa Fé

Gregório X (1271-1276)
Inocêncio V (1276)
Adriano V (1276)
João XXI (1276-1277)
Nicolau III (1277-1280)
Martinho IV (1281-1285)
Honório IV (1285-1287)
Nicolau IV (1288-1291)
Celestino V (1294)
Bonifácio VIII (1294-1303)
Benedito XI (1303-1304)
Clemente V (1305-1314)

Vacatura da Santa Fé

João XXII (1316-1334)
Benedito XII (1334-1342)
Clemente VI (1342-1352)
Inocêncio VI (1352-1362)
Urbano V (1362-1370)
Gregório XI (1370-1378)

Grande Cisma do Ocidente

Papas romanos
Urbano VI (1378-1389)
Bonifácio IX (1389-1404)
Inocêncio VII (1404-1406)
Gregório XII (1406-1415)

Papas de Avinhão
Clemente VII (1378-1494)
Benedito XIII (1349-1423)

Papas de Pisa
Alexandre V (1409-1410)
João XXIII (1410-1415)

Os papas depois do Grande Cisma
Martinho V (1417-1431)
Eugênio IV (1431-1447)

394

Nicolau V (1447-1455)
Calisto III (1455-1458)
Pio II (1458-1464)
Paulo II (1464-1471)
Sisto IV (1471-1484)
Inocêncio VIII (1484-1492)
Alexandre VI (1492-1503)
Pio III (1503)
Júlio II (1505-1513)
Leão X (1513-1521)
Adriano VI (1522-1523)
Clemente VII (1523-1534)
Paulo III (1534-1549)
Júlio III (1550-1555)
Marcelo II (1555)
Paulo IV (1555-1559)
Pio IV (1559-1565)
Pio V (1566-1572)
Gregório XIII (1572-1585)
Sisto V (1585-1590)
Urbano VII (1590)
Gregório XIV (1590-1591)
Inocêncio IX (1591)
Clemente VIII (1592-1605)
Leão XI (1605)
Paulo V (1605-1621)
Gregório XV (1621-1623)
Urbano VIII (1623-1644)
Inocêncio X (1644-1655)
Alexandre VII (1655-1667)
Clemente IX (1667-1669)
Clemente X (1670-1676)
Inocêncio XI (1676-1689)
Alexandre VIII (1689-1691)
Inocêncio XII (1691-1700)
Clemente XI (1700-1721)
Inocêncio XIII (1721-1724)
Benedito XIII (1724-1730)
Clemente XII (1730-1740)
Benedito XIV (1740-1758)
Clemente XIV (1769-1774)
Pio VI (1775-1799)
Pio VII (1800-1823)
Leão XII (1823-1829)
Pio VIII (1829-1830)
Gregório XVI (1831-1846)
Pio IX (1846-1878)
Leão XIII (1878-1903)
Pio X (1903-1914)
Benedito XV (1922-1939)
Pio XI (1922-1939)
Pio XII (1939-1958)
João XXIII (1958-1963)
Paulo VI (1963-1978)
João Paulo I (1978)
João Paulo II, eleito em 1978

395

GLOSSÁRIO

Acumulação. Pluralidade de dignidades e/ou de cargos eclesiásticos confiados a uma só pessoa.
Adopcionismo. Heresia segundo a qual Cristo não é o filho natural de Deus, mas apenas seu filho adoptivo.
Albigense. Vide Maniqueísmo.
Anabaptismo. Tentativa de reforma do cristianismo caracterizada como uma ambição religiosa sem conteúdo muito definido e associada a certas correntes milenaristas
(vide Milenarismo). A recusa do baptismo das crianças, substituído pelo dos adultos, explica a designação atribuída a este movimento religioso nascido no século
XVI.
Anacoresia ou retiro. Designa o acto de deixar a sociedade dos homens para viver no deserto. A anacoresia existiu desde sempre no Egipto, quer para fugir ao fisco,
quer à autoridade. Desde a perseguição de Valério (258) que os cristãos se retiram para as zonas desertas do Egipto para levarem uma vida solitária e este fenómeno
estender-se-ia rapidamente ao deserto de Gaza e à Palestina.
Anglicanismo. Conjunto das Igrejas autónomas que se afastaram da Igreja de Inglaterra - ela própria constituída no século XVI a partir do cisma de Henrique VIII
- mas que permanecem em comunhão com ela.
Aftardocetismo. Doutrina de Júlio de Halicarnasse (século VI) segundo a qual o corpo de Cristo não se teria decomposto após a morte.
Arianismo. Doutrina pregada pelo padre Ário e segundo a qual Cristo é uma criatura subordinada ao Pai. Apesar de condenado pelo Concílio de Niceia (225), o arianismo
difunde-se largamente pelo Oriente. É definitivamente proibido por Teodósio. O padre Wulfila, apóstolo dos Godos, expande-o junto dos bárbaros de tal maneira que
o conflito surge no Ocidente depois das Invasões.

397

Arquidiácono. Auxiliar do bispo encarregado, a partir do século X, de uma circunscrição chamada "arquidiaconado".
Autocéfala. Igreja cuja hierarquia, autónoma, não depende do Papa nem de um patriarca estrangeiro. É o caso de algumas igrejas ortodoxas que elegem o seu próprio
patriarca.
Baptismo. Doutrina próxima do anabaptismo e segundo a qual só o baptismo dos crentes é importante.
Benefício. Honorários de um cargo eclesiástico e resultante dos bens pertencentes à igreja (imóveis, senhorias, dízimas). Este termo também designa o cargo propriamente
dito.
Bogomília. Vide Maniqueísmo.
Carimático. O Movimento Carimático é uma corrente espiritual que exalta a oração individual ou colectiva, a importância dos dons espirituais, a partilha dos bens
e está na origem de novas comunidades cristãs no século XX.
Cátaro. Vide Maniqueísmo.
Catecumenato (do grego, "fazer soar", "instruir de viva voz"). Organização eclesiástica que se destina a ensinar os candidatos ao baptismo. Originalmente era muito
breve; esta fase experimental foi alargada para dois anos e, posteriormente, para três anos.
Catholicos. Título ostentado pelos chefes de algumas Igrejas orientais.
Catolicosato. Circunscrição eclesiástica administrada por um catholicos.
Ceia. A última refeição de Jesus com os doze apóstolos, comemorada na comunidade primitiva pela "partilha do pão" durante a refeição.
Cenobitismo. Organização comunitária da vida ascética que foi fundada por Pacómio, no Egipto, no século IV, desenvolvendo-se sob várias formas tanto no Egipto como
na Palestina, na Capadócia e depois no Ocidente.
Cesaropapismo. Sistema político pelo qual o imperador pretende exercer a sua autoridade absoluta tanto no domínio espiritual como no domínio temporal.
Cisma. Cisão no interior da Igreja, normalmente em relação à autoridade do papa.
Comenda. Usufruto de um benefício eclesiástico, sobretudo de uma abadia, sem exercer responsabilidades e sem a obrigação de residência.
Conclave. Após 1274, foi instituída uma assembleia fechada dos cardeais para a eleição do novo Papa.
Congregacionalismo. Tese teológica pela qual a comunidade local dos crentes é a mais alta autoridade eclesiástica.
Constituição apostólica. Tratado que contém uma decisão pontifical importante em relação à fé, aos costumes ou à administração da Igreja católica.
Constituição dogmática. Disposições solenes que impõem um ponto doutrinário da Igreja católica.
Consubstanciação. Vide Eucaristia.
Cúria. Conjunto dos órgãos do governo pontifical.

398

Decreto conciliar. Lei disciplinar imposta por um concílio.
Diaconisa. Virgem ou viúva que, durante os primeiros séculos da Igreja, se dedicava à missão de assistência caridosa ou à catequese. Posteriormente no século XIX
o protestantismo restaurada esta função.
Diácono. Termo que serve para designar um servidor na comunidade de Jerusalém e é aplicado aos judeus da diáspora que tratam dos judeus helenistas convertidos. Posteriormente,
os diáconos são depois postos à experiência nas diversas comunidades cristãs e dedicam-se sobretudo às obras de caridade.
Diáspora. Termo que serve para designar os judeus que vivem "dispersos", ou seja, fora da Palestina. No seu sentido mais restrito, só existe diáspora em relação
a um Estado judaico, caso contrário, trata-se de galout (exílio).
Diatessarão (do grego, "um através de quatro"). É assim que se designa a adaptação feita por Tatiano no século II dos quatro Evangelhos canónicos.
Docetimo. Heresia segundo a qual Cristo apenas tinha a aparência de homem e, por isso, não teria sofrido na Paixão.
Donatismo. Heresia originária do Norte de África em consequência da perseguição de Diocleciano. A comunidade donatista torna-se rapidamente muito poderosa; em alguns
casos, ela adquire o aspecto de um movimento de reivindicação social. O seu maior adversário é Optato de Milève.
Donativo de Constantino. Falsidade criada na época carolíngia em nome da qual o papado pretendia exercer direitos adquiridos sobre a Itália.
Dragonadas. Perseguições exercidas no reinado de Luís XIV contra os protestantes do Sul de França, depois do Edicto de Nantes, e cujos principais executores eram
os dragões reais.
Ecumenismo. Movimento junto dos cristãos de todas as confissões e que pretende promover uma reaproximação teológica ou espiritual entre as Igrejas.
Encíclica. Carta dirigida pelo Papa à cristandade e designada pelas primeiras palavras em latim do texto que a compõe.
Encratismo (do grego, "autocontrolo"). Designa os movimentos que advogam um ascetismo excessivo, rejeitando o casamento sob o pretexto da iminência do Juízo Final.
Episcopalismo. Tese teológica segundo a qual o conjunto dos bispos possui um poder superior ao do Papa. A Igreja episcopaliana derivou do anglicanísmo.
Eremitismo (do grego, "deserto") - Designa a acção de uma pessoa se retirar para a solidão do deserto para orar e fazer penitência.
Eucaristia. Sacramento que contém o corpo e o sangue de Jesus Cristo sob a espécie ou aparência do pão e do vinho. Para os católicos, na eucaristia existe uma presença
real do corpo e do sangue de Cristo com transubstanciação - a transformação da substância do pão e do vinho na substância do corpo e do sangue de Cristo -; e não
apenas consubstanciação

399

- a existência da substância do pão e do vinho ao lado da do corpo e do sangue como sucede no dogma luterano. Para os calvinistas só existe a presença espiritual.
Fariseus. Membros de uma seita judaica nascida no século II a.C; que atribuíam grande importância ao comentário da Escritura. Esta seita forma doutores de renome
e como são respeitados pela sua moral rigorosa, os fariseus são sobretudo ouvidos pelas classes mais desfavorecidas. Após o encerramento do Templo e da proibição
da liturgia, o judaísmo sobreviverá na sua forma farisaica.
Franco-maçonaria. Associação de pessoas de forma secreta que professam os princípios da fraternidade, reconhecendo-se entre si através de símbolos e de emblemas
e dividindo-se em "lojas". A franco-maçonaria moderna surgiu na Grã-Bretanha no fim do século XVII. No século XIX, a franco-maçonaria francesa é progressivamente
seduzida pelos ideais republicanos e sobretudo pelos nacionalistas.
Galicanismo. Teoria segundo a qual o papado deveria dar à Igreja de França alguma independência, excepto no domínio espiritual.
Gnose. Este termo designa o "conhecimento" no sentido filosófico-religioso. Esta tentativa de tipo místico expande-se sobretudo para o Oriente grego juntamente com
os escritos apocalípticos judaicos dos quais provavelmente recebeu alguma influência. A gnose apresenta a particularidade de se apoiar em cosmologias tão variadas
quanto fantasiosas.
Heresia (do grego, "escolher"). Designa as doutrinas que "fizeram uma escolha" para se constituírem em seita independente da Igreja.
Iconoclasma. Doutrina que condena o culto das imagens.
Iconódulo. Adepto do culto das imagens.
Idolotitas. Carne dos animais sacrificados nos templos pagãos.
Inculturação. Este termo, aplicado no cristianismo, designa a encarnação desta religião numa determinada atmosfera cultural transformando essa cultura através da
alteração dos seus objectivos mas sem considerar a sua personalidade.
Indulgências. Remissão, total ou parcial, da pena do Purgatório aplicada em consequência dos pecados perdoados. Para ganhar as indulgências, o fiel tem de realizar
as obras prescritas (orações especiais, confissão, comunhão).
Inquisição. Tribunal permanente encarregado pelo papado, desde o século XIII, para combater as heresias através dos processos inquisitoriais em que a acção é executada
por um acusador.
Intercomunhão. Prática pela qual os fiéis das Igrejas cristãs separadas se reúnem para participarem na sagrada Ceia.
Interdição. Sentença eclesiástica pela qual as cerimónias religiosas são interrompidas e a celebração dos sacramentos suspensa, excepto em casos de urgência.
Jacobitas. Membros da Igreja síria que recusou a condenação do nestorianismo por Justiniano.

400

Kerigma (do grego, "arauto"). Designa o anúncio da Boa Nova cujo elemento central proclama que Jesus foi crucificado sob Pôncio Pilatos e exaltado pelo Pai através
da Ressurreição.
"Kulturkampf". Conflito entre o Estado prussiano e a Igreja católica em que Bismarck queria submeter todas as actividades da Igreja ao controlo do Estado (1871-1887).
Lapsi (do latim, "deslizar"). Designa os cristãos que se tornaram apóstatas durante as perseguições mas que depois solicitaram a sua reintegração na Igreja. Em África,
a controvérsia sobre a reintegração dos lapsi criou o cisma novaciano, após a perseguição de Décio, e o cisma donatista, após a perseguição de Diocleciano.
Legado. Representante do Papa em missão oficial ou particular.
Maniqueísmo. Religião dualista de origem iraniana, atribuída a Mani no século III, segundo a qual a Criação é disputada entre um deus do Bem e um deus do Mal. Foi
a fonte de inspiração de muitas heresias cristãs (paulinos, bogomilos, cátaros ou albigenses).
Martírio (do grego, "testemunhar"). Designa o sacrifício das testemunhas por excelência que pagaram com as suas vidas a dedicação à fé cristã.
Melquita. Cristão sob domínio muçulmano que se mantém fiel à autoridade espiritual de Constantinopla, antes da conquista desta cidade pelos Turcos em 1453.
Messias (do hebraico, "ungido"). Designa os reis de Israel que recebiam uma unção de óleo quando eram coroados. Após o desaparecimento da monarquia, designa a vinda
de um Salvador segundo as diversas orientações do judaísmo.
Metodismo. Aplicado desde o século XVI a todas as práticas de um "método" de piedade e de santidade, a palavra está actualmente reservada para o movimento religioso
criado na Inglaterra do século XVIII por John Wesley, o qual estava desejoso por provocar um "despertar" religioso.
Metropolita. Cargo de chefia de uma província eclesiástica e sinónimo de arcebispo a partir do século IX.
Milenarismo. Doutrina segundo a qual Cristo irá regressar à Terra para a governar durante mil anos.
Moçárabe. Cristão que vive sob o domínio dos Muçulmanos em Espanha.
Monofisismo. Doutrina pela qual Cristo apenas assumiu uma única natureza unindo a humanidade à divindade. Assim, esta teoria opõe-se portanto à definição do Concílio
de Calcedónia (451) sobre as duas naturezas de Cristo.
Monoteísmo. Fé exclusiva num único Deus e as três grandes religiões mono-teístas são o judaísmo, o cristianismo e o islão.
Momotelismo. Forma atenuada de monofisismo (vide esta palavra).
Nestorianismo. Doutrina de Nestório (século v) segundo a qual as naturezas divina e humana se encontram unidas em Cristo mas apenas pela vontade.

401

Nicolaísmo. Incontinência eclesiástica quer sob a forma de casamento ou de concubinato. Derivação do nome do arcebispo Nicolau (século I) que teria tomado partido
contra o celibato dos padres.
Paracleto (do grego, "defensor"). Designa o Espírito Santo, segundo o Evangelho de São João.
Páscoa. Festa judaica em comemoração da fuga do Egipto e que coincide com a festa da ressurreição de Cristo celebrada pelos cristãos.
Patriarca. Título atribuído ao chefe da Igreja grega, aos dirigentes das diversas comunidades cismáticas, aos bispos de Antioquia, Jerusalém e Alexandria, e, posteriormente,
a outras cúrias (Veneza, Lisboa, etc).
Patripassianismo. Heresia que nega a realidade da natureza humana de Cristo e afirma que foi o próprio Pai quem sofreu a Paixão.
Paz de Deus. Paz instituída pela Igreja nos séculos XI e XII para subtrair às violências guerreiras algumas categorias de pessoas ou de bens.
Pentecostes. Festa judaica celebrada cinquenta dias depois da Páscoa para comemorar a entrega da Lei, ou Aliança, no Sinai. Para os cristãos, esta festa coincide
com a descida do Espírito Santo.
Pietismo. Movimento no interior do protestantismo que acentua sobretudo a experiência religiosa individual.
Presbítero (do grego, "antigo"; origem da palavra "padre"). Empregada no plural, esta palavra designa colectivamente os responsáveis das antigas comunidades cristãs
e, a partir do século II, o presbítero é um ministro ordenado que depende directamente do seu bispo. O conjunto dos presbíteros que dependem do mesmo bispo forma
o "presbitério".
Presbiteriano. Adepto do prebisterianismo, de inspiração calvinista, que confia o governo da Igreja a um organismo misto, ou "presbitério", constituído por pastores
e laicos.
Purgatório. Período probatório para aqueles que, apesar de não terem sido escolhidos, também não merecem o Inferno.
Puritanos. Membros da Igreja de Inglaterra que pretendem obrigá-la a adoptar as estruturas do calvinismo. O puritanismo está na origem de várias confissões como
a presbiteriana, a baptista, a congregacionista, etc.
"Quakers". Membros da seita protestante inglesa conhecida por "Sociedade dos Amigos", foi fundada em 1647 por George Fox e implantou-se na América do Norte.
Quartodecimais. Nome atribuído nos primeiros séculos do cristianismo às comunidades da Ásia que, em relação à cronologia do Evangelho de João, fixam a Páscoa para
o dia 14 de nisan, ou seja, no 14º dia da Lua seguinte ao equinóxio da Primavera, independentemente do dia da semana e as outras Igrejas fixaram esse dia no Domingo.
Quietismo (do latim, "sossego"). Este termo designa, as ideias de um místico espanhol do século XVIII segundo as quais é preciso dar muito menos importância às práticas
e às obras do que à contemplação do "amor puro" de Deus.

402

Reduções. Nos séculos XVII e XVIII no Paraguai, as comunidades onde vivem os índios convertidos ao cristianismo reagrupados sob a autoridade de alguns padres jesuítas.
Revelação. Manifestação do Espírito e da Palavra de Deus através da Bíblia e da Tradição.
Revivalismos (Revivais). Movimentos protestantes que procuram provocar um despertar espiritual nas Igrejas.
Sacerdócio. Função do padre.
Sacramentos. Símbolos sensíveis instituídos por Jesus Cristo para produzirem a graça divina e santificarem as almas. Para os católicos, são sete os sacramentos:
baptismo, crisma, penitência (ou confissão), eucaristia (ou comunhão), extremaunção, ordem e matrimónio.
Sacro Colégio. Conjunto dos cardeais.
Saduceus. Membros de uma seita judaica recrutados sobretudo entre as grandes famílias sacerdotais. Ligados por definição à liturgia oficial, desaparecem, como partido,
após a destruição do Templo.
Secularização. Confiscação dos bens da Igreja pelo poder laico.
Simonia. Pecado atribuído a Simão, o Mágico, o qual tinha oferecido dinheiro ao apóstolo Pedro para que este lhe revelasse os seus dons carismáticos. A partir dessa
altura este termo passou a designar o tráfego associado aos sacramentos ou às coisas espirituais.
Sinédrio. Tribunal judaico composto por anciões e escribas cuja origem é mal conhecida.
Sínodo. Assembleia diocesana com o bispo ou assembleia dos bispos juntos com o Papa.
Starchesivo. Corrente da Igreja ortodoxa russa que dá uma importância especial às funções do staretz (monge cuja sapiência e santidade são notórias).
Subordinacionismo. Heresia originária da teologia de Orígenes a qual ensina que a pessoa do Filho não é igual, mas subordinada, à do Pai.
Superstição. Esta palavra designa, no vocabulário das autoridades eclesiásticas, todas as crenças ou práticas que se afastem, mesmo que muito pouco, do cristianismo
tal como é ensinado e definido.
Teocracia. Poder supremo exercido no plano temporal em nome de Deus, geralmente por membros do clero.
Tradição. Revelação da palavra de Deus por outras formas além da Bíblia, ou seja, através dos cânones dos concílios, os escritos dos doutores e dos autores eclesiásticos,
as orações litúrgícas.
Transubstanciação. Vide Eucaristia.
Tréguas de Deus. Foram instituídas pela Igreja nos séculos XI e XII para proibir os actos de beligerância tanto em certos dias da semana como em certas alturas do
ano.
Ultramontanismo. Conjunto das doutrinas e das atitudes favoráveis à primazia romana nos assuntos da Igreja católica.

403

Uniatas. Fiéis das Igrejas de ritos orientais que estão em comunhão com a Igreja de Roma.
Valdenses. Discípulos de Valdo (fins do século XII) que procuram o ideal evangélico da pobreza; uns integraram-se na Igreja e os outros foram perseguidos pela Inquisição.
Zelotas. Seita judaica a que Judas o Galileu afirma pertencer, recusa o imposto ao imperador e estimula um messianismo político cujo objectivo é a revolta armada
contra Roma.

404

BIBLIOGRAFIA CLASSIFICADA E COMENTADA

Esta bibliografia, acessível ao grande público, é constituída por obras escritas ou traduzidas em francês; exceptuando os clássicos insubstituíveis, trata-se de
autores recentes, escolhidos apenas pela sua importância científica ou pedagógica. A maioria destas obras apresenta, por sua vez, uma bibliografia especializada,
a que o leitor, desejoso de aprofundar as suas pesquisas, poderá recorrer (1).

Obras gerais
Podemos sempre consultar, mas com alguma precaução, tendo em conta os rápidos progressos da historiografia religiosa, os 24 volumes da "Histoire de l'Église", dita
de Fliche e Martin (Bloud et Gay, 1935 e segs.), substituída, nas edições Desclée, por uma "Histoire du Christianisme" em 14 vols. (coeditada com a Fayard), dirigida
por Charles Piétri, André Vauchez, Marc Vénard e Jean-Marie Mayeur. O seu âmbito será mais alargado do que a da "Nouvelle Histoire de l'Église" (Éd. du Seuil, 1963-1975),
dirigida por L. J. Rogier, Roger Aubert, David Knowles, cujos 5 vols. constituem uma fonte sempre abundante.
Embora muito envelhecidos, os 8 vols. da "Histoire de l'Église du Christ", de Daniel Rops (Fayard, 1948-1960) continuam a ser respeitáveis, tendo sido o autor, depois
da Segunda Guerra Mundial, um pioneiro no domínio da grande vulgarização.
Um desejo pedagógico, sobretudo pela utilização de textos esclarecedores e significativos, observa-se na "Histoire de l'Église par elle-même" (Fayard,

Nota 1: Como esta bibliografia incide sobre obras, algumas das quais já traduzidas em Portugal, sempre que possível indicaremos a fonte da edição portuguesa ou faremos
referência a outras de autores portugueses relacionadas com a História da Igreja. [N. do T.]

405

1978), por Jacques Loew, Michel Meslin, Guy Bedouelle e Pierre Pierrard; "l'Église et les hommes" (Droguet-Ardant, Fayard, 1984 e segs.) de J. N. Dumont e colaboradores;
"Pour lire l'histoire de l'Église" (Cerf, 2 vols., 1984-1986), de Jean Comby; "l'Église dans l'histoire des hommes" (Droguet e Ardant, 2 vols., 1982-1984), de Paul
Christophe. O recurso, sempre útil, à cronologia, caracteriza, sobretudo, o "Guide illustré de l'histoire du christianisme" (Centurion, 1982), de Charles Ehlinger
e colaboradores; "Histoire de l'Église. Panorama et chronologie" (Desclée, 1984), de R. Frölich; "Les grandes dates du christianisme" (Larousse, 1989) (1), de François
Lebrum e colaboradores. A Igreja é dotada de instituições; também elas têm a sua história que progride, lenta mas seguramente, graças aos 15 tomos (previstos) de
"Histoire du droit e des institutions de l'Église en Occidente" (Sirey, 1955-1975; Cujas, depois de 1975), que é uma obra científica e monumental.
Pontos de vista mais subjectivos, mas sempre novos, podem ver-se em "Histoire vécue du peuple chrétien" (Privat, 2 vols., 1979), dirigida por Jean Delumeau; "Les
Combats de Dieu dans l'histoire des hommes" (Ed. Ouvrières, 1980), de Robert Pousseur e Jacques Teissier; "Les Hommes de la fraternité" (F. Nathan, depois Ed. Retz,
10 vols. publicados entre 1981 e 1990), de Michel Clevenot, historiador muito singular, mas verdadeiramente apaixonante; "La Longue marche de l'Église" (Bordas,
1984), de Jean Chélini e Antonin Henry.
Algumas curtas, mas excelentes sínteses: "Histoire de l'Église" (Payot, 1955), de Joseph Lortz; "Histoire de l'Église" (Normand, Tours, 1978), de Guy-Marie Oury;
"Histoire de l'Église" (Médiaspaul, 1983), de Michel Lemonnier; "Histoire du catholicisme" (PUF, col. "Que sais-je"?, 1985), de Jean-Baptiste Duroselle e Jean-Marie
Mayeur; "Breve histoire de l'Église catholique" (Desclée de Brouwer, 1988), de Françoise Ladouès.
Para a França, não se pode negligenciar a obra colectiva "Histoire spirituelle de la France. Spiritualité du catholicisme en France et dans les pays de langue française
des origines à 1914" (Beauchesne, 1964). Um livro controverso, mas que continua a ser consultável: "Histoire religieuse de la France contemporaine" (Flammarion,
nova ed., 1985), de Adrien Dansette. Uma breve síntese de Xavier de Montclos: "Histoire religieuse de la France" (PUF, col. "Que sais-je?", 2ª ed., 1988). Finalmente,
quatro grandes conjuntos de tipo clássico: "Histoire du catholicisme en France" (Spes, 3 vols., 1957-1962), redigida por André Latreille, Etienne Delaruelle, Jean
Rémy Palanque, René Rémond; "Histoire religieuse de la France contemporaine" (Privat, 3 vols., 1985-1988), dirigida por Gérard Cholvy e Yves-Marie Hilaire; menos
confessional e menos eclesiocêntrica do que a anterior: "Histoire des catholiques en France, du 15e siècle à nos jours" (Privat, 1980; Hachette-Pluriel, 1985), dirigida
por François Lebrun. Em publicação: "Histoire de la France religieuse" (Seuil, 4 vols., 1988 e segs.), dirigida por Jacques Le Goff e René Rémond.
Para Portugal, referência especial para a "História da Igreja em Portugal" (1910-1922), de Fortunato de Almeida, que se afirma importante pela erudição

Nota 1: Edição portuguesa de Editorial Notícias. [N. do T.]

406

e sentido de objectividade (em 2 vols. da Livraria Civilização, Porto, 1970-71).

Jesus
O nosso conhecimento de Jesus foi fundamentalmente renovado pelas cinquenta obras da prestigiosa colecção "Jésus et Jésus-Christ", dirigida por Joseph Doré, nas
Ed. Desclée. Partindo da realidade de que Jesus é, em todas as hipóteses, uma personagem da história da humanidade, a colecção procura por um lado o que pode significar
no contexto do seu nascimento e da sua vida na Palestina do século I e no seio do povo de Israel e, por outro lado, o que representa para aqueles que, através de
toda a História posterior e com a ajuda de várias disciplinas, se mostram interessados na sua figura humana e na sua mensagem única, no seu exemplo e no seu percurso.
Acessível a um público culto, procura, em diálogo com os diversos saberes humanos e as outras tradições religiosas, demonstrar a permanência da questão "Jesus-Cristo".
Refiro, sobretudo, nessa colecção: "Jésus et l'histoire" (1980), de Charles Perrot; "Jésus, le Christ et les chrétiens" (1981), sob a responsabilidade de Joseph
Doré; "Jésus-Christ dans la tradition de l'Église" (1982), de Bernard Sesboué; Christ (1990), de Maurice Bellet, etc.
Nas Éditions du Cerf, na importante colecção "Théologie et Sciences religieuses. Cogitatio fidei", lançada em 1962, dirigida, depois de 1975, por Claude Geffré,
e que comporta, em 1990, 160 volumes, distingo: "Jésus de Nazareth" (1984), de Bernard Forte, e "Le Christ dans la tradition chrétienne" (1990), de Aloys Grillmeier.
Na mesma editora, uma interessante colecção ainda pouco abundante: "Jésus depuis Jésus", ou seja, vinte séculos de história das representações de Cristo. Poderá
ler-se ainda com proveito o livro de Wolfgang Trilling (Cerf, 1968), "Jésus devant l'histoire". A completar com Xavier Léon-Dufour, "Les Évangiles et l'histoire
de Jésus" (Seuil, 1963) e "Jésus de Nazareth" (Desclée, 1983) -, de Pierre-Marie Beaude.
Uma "biografia" simpática, mas discutível, de Jean-Paul Roux (Fayard, 1989), intitulada "Jésus". Alguns estudos originais, um pouco à margem da teologia tradicional:
"Le fondateur du Christianisme" (Seuil, 1980), de Charles-Harold Todd; "Jésus devant la conscience moderne. L'Histoire perdue" (Cerf, 1990), de Juan Luis Segundo,
obra muito significativa sob a forma como os latino-americanos encaram Cristo; "Un enfant nommé Jésus" (Cerf, 1986), e Claire Huchet-Bisschop, que foi presidente
da Amizade Judeo-Cristã de França e que insiste aqui, muito justamente, na educação judaica de Jesus.
"Jésus le Christ" é o título comum de duas pequenas obras de iniciação publicadas em 1988: uma de Jean-Noël Bezançon (Desclée de Brouwer) a outra de Bernard Rey
(Centurion-La Croix).
Em Portugal, destaque merecido nesta bibliografia sobre Jesus Cristo para a obra do escritor e jornalista Guedes de Amorim, "Jesus Passou por Aqui" (Ed. O Século,
1963).

407

S. Paulo
O estudo desta personagem complexa e capital que foi Paulo de Tarso suscitou recentemente diversos trabalhos, sobretudo "La prédication selon saint Paul" (Gabalda,
1966), de Louis Cerfaux; "Saint Paul et la culture grecque" (Labor et Fides, 1967), "Saint Paul et la Grèce" (Les Belles Lettres, 1983); "Saint Paul et Rome" (Les
Belles Lettres-Desclée de Brouwer, 1986), de Norbert Hugédé; "Lettres aux jeunes communautés. Les écrits de saint Paul" (Centurion, 1972), por A. Brunot; "Paul,
sa foi et la puissance de l'Évangile" (Cerf, 1985); "Le Christianisme des chrétiens. Paul. L'histoire retrouvée" (Cerf, 1988-1990), de Juan Luís Segundo, que é uma
obra importante.
Em Portugal, convém salientar a importância biográfica e visionária do livro São Paulo (1934), de Teixeira de Pascoaes, de que existe edição mais recente pela Assírio
& Alvim, 1989.

Judeus, pagãos e cristãos
Para as ligações existentes entre o judaísmo e o cristianismo, é preciso ler sobretudo: "Naissance de l'Église, secte juive rejetée?" (Cerf, 1968), de Henri Cazelles;
"Jésus le juif" (Desclée, 1978), de G. Vermes; "Le monde et les juifs à l'heure de Jésus" (Desclée, 1980), obra pedagógica extremamente inovadora de André Paul;
"L'attente du Messie en Palestine à la veille et au début de l'ère chrétienne" (Picard, 1982), de Ernest-Marie Lapperrousaz; "Le judaïsme et le christianisme antique"
(PUF, 1985), de Marcel Simon e André Benoît.
O meio ambiente greco-romano do cristianismo primitivo está bem esclarecido por Michel Meslin, autor de um importante trabalho sobre "Le Christianisme dans l'Empire
romain" (PUF, 1970) e que, com Jean-Rémi Palanque, assinou "Le Christianisme antique" (Armand Colin, 1967). Mas é preciso recorrer sempre aos estudos de Marcel Simon,
sobretudo "La Civilisation de l'Antiquité et le christianisme" (Arthaud, 1972), como aos de André-Jean Festugière (falecido em 1982), autor, entre outras obras,
de "L'Idéal religieux des Grecs et l'Évangile" (Gabalda, 1981).
Em edição recente, apareceu a tradução portuguesa do livro de Alain Boissac, "Islão e Cristandade", que é bastante esclarecedor para entender muitos dos aspectos
abordados neste livro de Pierre Peirrard sobre a história da Igreja Católica (Ed. Puma, 1992).

A Igreja primitiva
Jean Daniélou permanece, neste domínio, como uma referência maior, particularmente com "Théologie du judéo-christianisme" (Desclée, 1958, Desclée/Cerf, 1990); "L'Église
des premiers temps; des origines à la fin du 3e siècle" (Seuil, 1963-1985); "L'Église des apôtres" (Seuil, 1970); "Les origines du christianisme latin" (Cerf, 1978,
Desclée/Cerf, 1990). Para o período posterior (séculos IV-VI

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e segs.): Henri-Irénée Marrou, autor de "L'Église de l'Antiquité tardive 303-604" (Seuil, 1963-1985).
Ainda Marcel Simon, cuja obra "Premiers chrétiens" (PLJF, 1960), pode ser completada por "Les Premiers chrétiens" (Seuil, 1967), de Annie Jaubert; "Les Premiers
siècles chrétiens" (Cerf, 1984), de Pierre-Patrick Verbraken; Cest ainsi que l'Église a commencé (Cerf, 1986), de Hermann-Joseph Veretz; "Les Premiers siècles de
l'Église" (Cerf. 1987), de Jean Bernardi.
Os concílios, nestes últimos anos, foram objecto de numerosos trabalhos. À cabeça, deve colocar-se "Histoire des Conciles oecuméniques" (Ed. de l'Orante, depois
de 1962), dirigida por Gervais Dumeige, e a reprodução, em 1973, de uma parte da edição francesa (21 vols.), publicada nas edições Letouzey et Ané de 1930 a 1952,
da clássica "Histoire des conciles d'après les documents originaux", do alemão Cari Joseph Hegele. Nas edições Desclée, a "Bibliothèque d'Histoire du Christianisme"
(nº 15-16,1988), dirigida por Paul Christophe, coloca à disposição do grande público: "Les Conciles oecuméniques", cujos autores são Pierre-Th. Camelot, Pierre Maraval,
Paul Christophe, Francis Frost. Nas mesmas edições, "Breve histoire des Conciles" (Desclée, 1960), de Hubert Jedin.
As actas dos dois concílios mais importantes da Igreja primitiva "Éphèse et Chalcédoine", foram traduzidas e publicadas por André-Jean Festugière (Beauchesne, 1982),

Bizâncio. As Igrejas orientais
Há quatro autores que, de modo especial, renovaram os nossos conhecimentos neste domínio: F. Dvornik, com "Byzance et la primauté romaine" (Cerf, 1964); Jean Decarreaux,
autor de "Byzance ou l'autre Rome" (Cerf, 1982); Raymond Janin, cuja obra sobre "Les Églises orientales et les rites orientaux" (Letouzey et Ané, 1955), continua
a ser capital; Alain Ducellier que, na "Bibliothèque d'Histoire du Christianisme" (Desclée, 1990), acaba de fornecer, com "l'Église byzantine. Entre pouvoir et esprit:
313-1204", um compêndio extremamente útil.

A Alta Idade Média
A muito clássica "Histoire des Papes", de L. von Pastor (1886-1933) foi traduzida e publicada pela Librairie d'Argences (22 vols. publicados antes de 1962). Mais
acessível, o curso de Alphonse Dupront sobre "La Paupauté et l'Église catholique" (Cdu-Sedes, 1968), e eu próprio publiquei um ensaio sobre "Les Papes et la France"
(Fayard, 1981).
Sobre o período do que se designa por Alta Idade Média e sobre a emergência do cristianismo no mundo pós-romano, pode consultar-se: "De Constantin à Charlemagne
à travers le chaos barbare" (Fayard, 1959), de Jean-Remi Palanque; "Éducation et culture dans l'Occident barbare 6e-8e siècles" (Seuil, 1962), de Pierre Riche, que
é também autor de "Écoles et enseignements dans le haut Moyen Âge" (Aubier-Montaigne, 1979); "l'an Mil" (Julliard, 1967), de

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Georges Duby; "L'écclésiologie du haut Moyen Âge" (Cerf, 1968); "Histoire et culture historique dans l'Occident mediéval" (Aubier-Montaigne, 1981), de Bernard Guénée.

A Idade Média clássica
Existem algumas panorâmicas gerais, graças a trabalhos tornados já clássicos como "La Civilisation de l'Occident mediéval" (Arthaud, 1967), de Jacques Le Goff e
"l'Adolescence de la Chrétienté médiévale; l'Europe des cathédrales; fondements d'un nouvel humanisme" (Skira, 1966-1967), de Georges Duby. Registe-se ainda uma
visão sintética em "Les lignes de faîte du Moyen Âge" (Casterman, 6.a ed., 1969), de Louís Génicot.
Sobre a teologia medieval, dois estudos capitais devidos a dois grandes teólogos dominicanos: "La théologie au XIIe siècle" (3.a ed.,VrÍn, 1977), de Marie-Dominique
Chenu, e "Thomas d'Aquin. Sa vision de la théologie de l'Église" (Londres, 1984), de Yves Congar. Para penetrar no domínio da espiritualidade medieval, três bons
guias: "Histoire de saint Dominique" (Cerf, 2 vols., 1957, reed. em 1982), de Marie-Humbert Vicaire; "l'Église et la vie religieuse en Occident à la fin du Moyen
Âge" (PUF, 1971), de François Rapp; "La saintité en Occident aux derniers siècles du Moyen Âge" (de Boccard, 1981), de André Vauchez, autor também de uma obra sobre
"La Spiritualité du Moyen Âge occidental: VIII-XII siècles" (PUF, 1975).
Salientemos ainda em edição recente (1990) e inaugurando o monumento de cultura que será a "Histoire du Christianisme", publicada por Desclée-Fayard, o vol. 6, "Un
temps d'épreuves (1274-1439)", sob a responsabilidade de Michel Mollat e André Vauchez.
O monaquismo representa, como se sabe, um papel capital no estabelecimento da cristandade e da civilização medieval. Entre uma produção espantosa, destaco: "Le monachisme.
Histoire et spiritualité" (Beauchesne, 1980); "Précis d'histoire monastique" (Bloud et Gay, 1959), de Patrice Cousin; "Les moines en Occident" (Fayard, 2 vols.,
1985), de Yvan Gobry; "Les moines" (Desclée), de Guy-Marc Oury; "Les Moines et la civilisation" (Arthaud, 1962), de Jean Décarreaux. E, no que respeita ao Oriente,
"Les moines d'Orient" (Cerf, 5 vols., 1961-1965), de André-Jean Festugière.
Sobre a acção dos papas reformadores, um clássico quase sem rugas: "La réforme grégorienne" (Bloud et Gay, 3 vols., 1924-1937), de Augustin Fliche. Marcel Pacaut,
autor de uma excelente "Histoire de la papauté: de l'origine au concile de Trente" (Fayard, 1977), forneceu também: "La théocratie, l'Église et le pouvoir au Moyen
Âge" (Aubier-Montaigne, 1957), obra que retomou sob outra forma na "Bibliothèque d'Histoire du Christianisme" (Desdée, 1989). A teocracia papal furtou-se às pretensões
dos reis de França quando os papas se instalaram em Avinhão: "Le gallicanisme" (Bloud et Gay, 1929), de Victor Martin, continua a ser, apesar dos anos, uma grande
obra de referência. Quanto aos papas de Avinhão, destacam-se os trabalhos de dois eminentes

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historiadores: Guillaume Mollat, autor de "Les Papes d'Avignon" (Letouzey et Ané, 1941) e Yves Renouard, autor de "La papauté d'Avignon" (PUF, 1964).
A penetração do espírito laico na cristandade desde a Idade Média inspirou a Guillaume de Lagarde uma obra fundamental, "La naissance de l'esprit laïque au déclin
du Moyen Âge" (Nauwelaerts, 1956 e segs.). Este fenómeno é acompanhado de um despertar de "heresias" e de movimentos contestatários como o demonstram bem Jacques
Le Goff e seus colaboradores em "Hérésies et sociêtés dans l'Europe pré-industrielle, XI-XVIII siècles" (Mouton, 1968). À frente dessas "heresias", o catarismo,
estudado entre outros por Jean Duvernoy, em "le Catharisme" (Privat, 1977), e por Anne Brennon em "Le Vrai visage du catharisme" (Ed. Loubatières, 1989). Sobre os
valdenses, podemos consultar de Gabriel Audisio, "Les Vaudois" (Turin, Albert Meynier, 1989). A Inquisição, instrumento de submissão e de punição de heresia, foi
estudada por muitos historiadores, recentemente por G. e J. Testas (PUF, 1966), Jean-Pierre Dedieu (Cerf, Fides, 1987) e Henri Maisonneuve (Desclée-Novalis, 1989).
As Ed. Jêrome Millon deram vida (3 vols.) ao velho clássico de Henri-Charles Lea, "Histoire de l'Inquisition au Moyen Âge".
Em Portugal, a história da Inquisição tem sido também muito abordada pelos nossos ensaístas e historiadores, com destaque para a já "clássica" "História da Origem
e Estabelecimento da Inquisição em Portugal" (3 vols., 1854-1859), de Alexandre Herculano; "Erasmo e a Inquisição em Portugal" (1975), de José Sebastião da Silva
Dias; "Para a História da Cultura em Portugal" (3 vols., 1950-1960), de António José Saraiva; e, mais recentemente, o excelente e bem documentado estudo de António
Borges Coelho, "A Inquisição em Évora" (Ed. Caminho, 2 vols., 1988-89).
O inimigo mais longínquo do cristão é o muçulmano, o sarraceno, carcereiro do túmulo de Cristo. A imensa literatura relativa às Cruzadas tem-se enriquecido, nos
nossos dias, com algumas obras, como "Les hommes de la Croisade" (Tallandier, 1982), de Régine Pernoud; "La chrétitenté et l'idée de croisade" (Albin Michel, 2 vols.,
1954-1959), de Pierre Alphandéry e Alphonse Dupront.
A ideia das cruzadas está ligada à das peregrinações, ideia que inspirou muitos livros, entre os mais recentes salientam-se: "Les marcheurs de Dieu. Pèlerinages
et pèlerins au Moyen Âge" (Armand Colin, 1974), de P. A. Sigal; "Les chemins de Dieu, histoire des pèlerinages des origines à nos jours" (Hachette, 1982), obra dirigida
por Henri Branthomme e Jean Chélini, onde eu assegurei o capítulo respeitante ao século XIX; "Du sacré. Croisades et pèlerinages. Images et langages" (Gallimard,
1937), de Alphonse Dupront.

O Renascimento, a Reforma protestante
A grande viragem do século XVI, caracterizada pela escalada do humanimo racionalista e anti-romano, suscitou inúmeros trabalhos, mas entre os mais recentes convém
destacar, pelo seu valor, o estudo de Pierre Imbart de la Tour sobre "Les Origines de la Réforme en France" (4 vols., 1905-1946),

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que se completa com outra das suas obras "l'Église catholique, la crise et la Renaissance" (Melun, 1948).
Importante como sempre, Pierre Chaunu propõe uma visão original em "le Temps des Réformes. La crise de la chrétienté. L'éclatement: 1220-1550" (Fayard, 1975); "l'Aventure
de la Réforme" (Hermé et Desclée de Brouwer, 1986), e "Église culture et sociéte: essais sur Réforme e Contre-Réforme de 1517 a 1620" (Cdu-Sedes, 1984). Pontos de
vista mais particulares em livros como "Les mythes chrétiens de la Renaissance aux Lumières" (Albin Michel, 1979), de Jacques Sole; "Erasme et Luther" (Dessain et
Tolra, 1981), de Georges Chantraine; "Les dissidents du 16e siècle entre l'humanisme et le catholicisme" (Koerner, 1984), de Marc Lienhard.
Para a história geral do protestantismo, é sempre necessário recorrer aos três volumes de E. G. Léonard (PUF, 1961-1963). Para completar e comparar com Paul Fath,
"Du catholicisme romain au christianisme évangélique" (Berges-Levrault, 1957); Jean Delumeau, "Naissance et affirmation de la Réforme" (PUF, 1965); Pierre Janton,
"Voies et visages de la Réforme au 16e siècle" (Desclée, 1986). Denis Crouzet acaba de publicar de novo a história das guerras de religião em França com "Guerriers
de Dieu, la violence au temps des troubles de religion 1525-1610" (Champ Vallon, 2 vols., 1989). Colocar ainda em lugar de relevo as duas obras essenciais de Lucien
Febvre, "O Problema da Descrença no Século XVI" (tradução portuguesa de Rui Nunes, Ed. Início, 1972) e "Au coeur religieux du 16e siècle" (Albin Michel, 1957, 2.a
ed., 1968). Na colecção catequética, o excelente, embora breve, livro de iniciação de René Marlé, La Réforme et les protestants (Mame, 1982).
Sobre Martinho Lutero, podem destacar-se alguns estudos contemporâneos que escapam aos antigos clichés: "Luther et l'Église confessante" (Seuil, 1962), de Georges
Casalis; "Martin Luther. De la liberté du chrétien" (Aubier-Montaigne, 1969), de Daniel Olivier; "La Réforme de Luther" (Payot, 2 vols., 1970), de Joseph Lortz,
sem esquecer ainda "Un destin: Martin Luther" (Albin Michel, 3.a ed., 1951), de Lucien Febvre, nem "Le cas Luther" (Desclée de Brouwer, 1983), de Jean Delumeau.
A fisionomia e a mensagem de Calvino estão bem esclarecidas por Bernard Gagnebin, em "À la rencontre de Calvin" (Geog, Genebra, 1981), e Albert-Marie Schmidt, autor
de "Jean Calvin et la tradition calvinienne" (Seuil, 1957, com nova edição em Cerf, 1984).

A Contra-Reforma católica
Na origem da Reforma católica situa-se a obra do Concílio de Trento, de que se compreende melhor a sua importância graças a Hubert Jedin e à sua "Histoire du Concile
de Trente" (Desclée, 1965) e a Louis Willaert, autor de "Après le Concile de Trente. La restauration catholique 1563-1648" (Bloud et Gay, 1960). "La Contre-Réforme",
de N. S. Davidson (Cerf-Fides, 1989) apresenta um breve, mas luminoso esboço acerca do esforço da Igreja Católica para

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escapar à tarefa laicizante. Importante estudo é, pois, o de Victor Baroni sobre la "Contre-Réforme devant la Bible: la question biblique" (Slatkine, 1986).
Esse esforço traduz-se, em particular, por um renascer do clericato, como se demonstra na obra de Paul Brotin com o excelente estudo sobre "la Réforme pastorale
en france au XVIIe siècle" (Desclée, 2 vols., 1956) e Pierre Sage, autor de uma tese original e substancial sobre "Le Bon prêtre dans la littérature française" (Droz,
1951). Eu próprio publiquei, na "Bibliothèque d'Histoire du Christianisme" (Desclée, 1986), "Le Prêtre français du Concile de Trente à nos jours". Excelente visão
de conjunto da história do padre pode observar-se em "Deux mille ans d'Église en question: théologie du sacerdoce" (Cerf, 3 vols., 1988-1990), de Gustave Martelet.
O tempo da Contra-Reforma, ou Reforma católica, é também marcado por uma forte escalada da espiritualidade mística: fenómeno que brilhantemente foi estudado por
Henri Bremond através da sua monumental e insubstituível "Histoire littéraire du sentiment religieux en France depuis la fin des guerres de religion" (Bloud et Gay,
11 vols., 1916-1936), cuja reedição está assegurada, desde 1967, por Armand Colin. Uma boa síntese, para o grande público, encontra-se na obra de Raymond Deville,
"L'École française de spiritualité" (Desclée, 1987).
Mas é também o tempo da santidade e mais particularmente dos criadores de congregações e sociedades clericais para a orientação dos seminários. Numa literatura hagiográfica
abundante, e também muito desigual, posso destacar: "Bérulle et le sacerdoce" (Lethielleux, 1969), de Marcel Dupuy, e "Bérulle et l'école française" (Seuil, 1963),
de Pierre Cochois; "Un artisan du renouveau chrétien au XVIIe siècle: saint Jean Eudes" (Cerf, 1985), de Paul Milcent; "Saint Vincent de Paul et la charité" (Seuil,
1966, nova ed. 1976), e "L'Esprit vincentien" (Desclée de Brouwer, 1981), de André Dodin; "Saint Français de Sales et l'esprit salésien" (Seuil, 1962) e "Saint François
de Sales" (G. Victor, 2 vols., 1966), de E. M. Lajeunie; "Jean-Jacques Olier" (Albin Michel, 1943), de Paul Renaudin.

A Época clássica. O Século das Luzes (séculos XVII-XVIII)
No limiar desta grande época, encontramos Pierre Chaunu e os seus dois monumentais estudos sobre "La Civilisation de l'Europe classique" (Arthaud, 1966) e "La Civilisation
de l'Europe des Lumières" (Arthaud, 1971).
A Igreja Católica vê-se então confrontada com novos problemas, com alguns perigos inéditos que nascem da própria modernidade; tornam-se manifestos no fim do reinado
de Luís XIV como demonstra Paul Hazard na sua obra poderosa e inteligente que é "A Crise da Consciência Europeia, 1680-1715" (tradução portuguesa na Ed. Presença,
1971) ou ainda H. R. Trevor-Rope em "De la Réforme aux Lumières" (Gallimard, 1972), completando-se com "Le catholicisme entre Luther et Voltaire" (PUF; nov. ed.
1978), de Jean Delumeau, historiador que, em "Peur en Occident, XIV-XVIIIe siècles" (Fayard, 1978),

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mostra a que ponto a crença de religião resistiu, nas consciências cristãs, à escalada dos racionalismos.
Inúmeros e excelentes estudos universitários têm referido, recentemente, como a "descristianização" começa então a arruinar o grande edifício do catolicismo; refiro
um desses estudos, entre os melhores, que é o de Jean Quéniart (Hachette, 1978), sobre "Les Hommes, l'Église et Dieu dans la France au XVIIIe siècle". Para o século
XVII, deve consultar-se o excelente estudo "Le Catholicisme dans la France classique 1610-1715" (CDU-Sedes, nova ed. 1980), de René Taveneaux.
A Igreja romana - a "infame" para Voltaire, escritor sobre a influência de quem é necessário ler o ensaio de C. Rins, "Voltaire, recherches sur les origines du matérialisme
historique" (Droz, 1962) - é então confrontada com os progressos da primazia dada à ciência: a ciência do Universo como crítica histórica. A este propósito, ver:
"L'affaire Galilée" (Cerf, Fides, 1988), de Jean-Pierre Longchamp, e "Le Siècle des Lumières et la Bible" (Beauchesne, 1986), de Yvon Belaval e Dominique Bourel,
obra que alarga os dados apresentados no livro brilhante de Jean Steinmann, "Richard Simon et les origines de l'exégèse biblique" (Paris, 1960).
No seu interior, Roma vê-se defrontada com a poderosa corrente jan-senísta, acerca da qual se deve sempre consultar Jean Orcibal, cuja "Origines du jansénisme" (Lovaina,
5 vols., 1947-1962), continua como um clássico; e também Louis Cognet, "le Jansénisme" (PUF, 1961), e ainda Antoine Adam, "Du Mysticisme à la révolte. Les jansénistes
du XVIIe siècle" (Fayard, 1968). René Taveneaux, que se impôs como o melhor especialista contemporâneo do jansenismo, assinou uma sugestiva "Vie quotidienne des
jansénistes" (Hachette, 1973).
Por outro lado, a mística e a santidade não estão ausentes do século XVIII, como se demonstra em particular nas obras de Théodule Rey-Mermet, biógrafo do "Saint
du siècle des Lumières: Alphonse de Liguori" (Nouvelle Cite, 1982), e M. Olphe-Gaillard, autor da "Théologie mystique en France au XVIIIe siècle" (Beauchesne, 1984).

A Revolução francesa
Em anexo a esta bibliografia, desenvolveremos melhor sobre a Revolução Francesa e as obras religiosas que ela inspirou.

O período contemporâneo (séculos XIX-XIX)
A produção histórica sobre este período é incomensurável e não deixa de se enriquecer. Mas têm aqui um lugar de relevo as obras gerais relativas à História da Igreja,
que menciono à frente desta bibliografia e convido o leitor a consultá-las. Pode encontrar aí verdadeiras biografias essenciais, tal como a que se esboça, através
da história do pontificado de Pio IX (1846-1878), ao longo do tomo 21 da "Histoire de l'Église", de Fliche e Martin

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(Bloud et Gay, 1964), precisamente intitulada "Le Pontificat de Pie IX", sob a pena sagaz de Roger Aubert. Do mesmo modo, as numerosas histórias gerais do Mundo,
da Europa, da França, que apareceram depois da Revolução Francesa, constituem cada vez mais um importante espaço para a história religiosa, considerada como um elemento
essencial de toda a História, tal como foi definida e posta em prática em França por Lucien Febvre e Marc Bloch, fundadores em 1929 dos "Annales d'histoire économique
et sociale". Sobre o lugar crescente da história religiosa, ver de Jean-Marie Mayeur "L'Histoire religieuse de la France: 19-20e siècles. Problèmes et méthodes"
(Beauchesne, 1975).
A Igreja romana pós-revolucionária é uma potência que representa um papel importante nas relações internacionais e com os governos. Três estudos recentes devem consultar-se
a este respeito: "L'Église et les États concordataires 1846-1981" (Cerf, 1983), de Roland Minnerath; "L'Église catholique et les relations internationales" (Centurion,
1988), de Marcel Merle e Christine de Montclos; l'Église et les États, Histoire des concordats" (Nouvelle Cite, 1990), de Jean Julg. O admirável esforço missionário
da Igreja no século XIX inscreve-se também na história das relações internacionais, onde a propósito merece referência um trabalho que é fundamental: "Histoire universelle
des missions catholiques" (Griind, 1965 e segs.), de Simon Delacroix.
Os rápidos progressos das ideias laicas, particularmente em França, inspiraram contraditoriamente o historiador laico Georges Weill, autor de uma esclarecedora "Histoire
de l'idée laïque au XIXe siècle" (Alcan, 1925) e o historiador eclesiástico Louis Capéran, autor muito antilaico da "Histoire contemporaine de la laicité française"
(Rivière e depois Nel, 3 vols., 1957-1961).
Durante muito tempo, a franco-maçonaria aparece como o Deus "ex machina" do laicismo avassalador: "Église et franc-maçonnerie" (Chalet, 1990) de Luc Néfontaine,
permite uma visão clara sobre as sociedades secretas condenadas pela Igreja.
Outro adversário da Igreja é o marxismo, que desempenha um papel motor no movimento operário ligado à industrialização maciça que caracteriza a segunda metade do
século XIX. Sobre Marx, duas obras de base são devidas a jesuítas franceses: "O Pensamento de Karl Marx", de Jean-Yves Calvez (tradução portuguesa em ed. Tavares
Martins, 1960), e "Analyse marxiste et foi chrétienne" (Ed. ouvrières, 1976), de René Coste, Sobre o afastamento da classe operária em relação à Igreja, permito-me
salientar os 2 vols. da minha obra "l'Église et les ouvriers en France" (Hachette, 1984 e 1990).
No começo do século XX, a crise modernista abala a Igreja. Émile Poulat permanece como a grande referência quando se trata do modernismo, sendo essencial a sua obra
"La Crise moderniste" (Casterman, 2 vols., 1962-1979). Pode consultar-se também "Le Modernisme" (Beauchesne, 1980), de Dominique Dubarle.
O que não impede a Igreja de ser santificada, no interior, pela actividade espiritual e caritativa de muitos dos seus membros, laicos, padres, religiosos e religiosas.
A multiplicação sem precedentes das congregações femininas no século XIX inspirou a Claude Langlois uma obra capital: "Le

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catholicisme au féminin" (Cerf, 1985), que pode aliar-se com a obra de Yvonne Turin, "Femmes et religieuses au XIXe siècle" (Nouvelle Cite, 1989).
Por seu lado, Maurice Nédoncelte evidencia-se bem com "Les Leçons spirituelles au XIXe siècle" (Paris, 1935). Um século que, como devia ser o século XX, foi fértil
em obras e iniciativas de toda a natureza, como a Acção Católica, que inspirou muitos trabalhos, de que destaco: "L'Action catholique" (Ed. Soc. du Nord, Lille,
1946-1948). No meu livro "Les Laïcs dans l'Église de France 19-20e siècles" (Ed. ouvrières, 1988), esforço-me por situar e integrar essa acção católica dos leigos
- homens e mulheres - num conjunto fervilhante.
Perante os progressos da descristianização, a Igreja sente necessidade de contar as suas forças, em parte para se tranquilizar, em parte para alterar as suas estratégias
pastorais. Dos dois fundadores da sociologia religiosa, podemos consultar, entre outros trabalhos: "Premiers itinéraires en sociologie religieuse" (PUF, 1942-1945),
de Fernand Boulard e "Études de sociologie religieuse" (PUF, 2 vols., 1955-1956), de Gabriel Le Bras. A religião popular, que certos historiadores consideram, talvez
abusivamente, como a grande "oportunidade" da Igreja, deu motivo a inúmeras aproximações, cuja síntese foi assegurada por Bernard Plongeron em "La Religion populaire
dans l'Occident chrétien. Approches historiques" (Beauchesne, 1976).
Um reparo para terminar: Leão XIII, Pio X, Bento X e Pio XI esperam ainda os seus verdadeiros biógrafos, mas podemos encontrar elementos interessantes em "La Paupauté
contemporaine", 1878-1945 (PUF, 1946, nova edição, 1971), de F. Marc-Bonnet, e sobretudo em "Les Papes du XXe siècle" (Desclée, 1991), de Yves Marchasson.
Em contrapartida, os ensinamentos sociais dos papas depois de Leão XIII ("Rerum novarum", 1891), têm sido objecto de numerosos trabalhos e estudos, de que se salientam:
"Église et société économique; l'enseignement social des papes de Léon XIII à Pie XII" (Aubier-Montaigne, 1959), de Jean-Yves Calvez e Jacques Perrin, e "La Pensée
sociale de l'Église catholique: un ideal de Léon XIII à Jean-Paul II" (Albatros, 1980), de Patrick de Laubier.
Sobre a atitude da Igreja durante a Segunda Guerra Mundial, dois autores se impõem: Paul Duelos, com "Le Vatican et la Seconde Guerre mondiale" (Pedone, 1955) e
Xavier de Montclos, que assinou "Les Chrétiens face au nazisme et au stalinisme. L'épreuve totalitaire" (Plon, 1983) e que publicou os trabalhos do colóquio de Lião
sob "Les églises et les chrétiens dans la Seconde Guerre mondiale" (PUF, 2 vols., 1978-1982). Acrescentemos a obra recente, monumental e riquíssima que constitui
o vol. 12 da "Histoire du christianisme" (Desclée-Fayard, 1990): "Guerres mondiales et totalitarismes (1914-1958)", sob a responsabilidade de J.-M. Mayeur.

O Concílio Vaticano II (1962-1965). A sua aceitação. A sua aplicação.
Sobre a história, debates e orientações do Concílio Vaticano II, aconselho cinco obras: "Vatican II. Chroniques des quatre sessions" (Centurion, 4 vols.

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1963-1966), de Antoine Wenger; "La Collégialité épiscopale au 2e Concile du Vatican" (Ed. du Cèdre, 1980); "Le Concile de Vatican II" (Beauchesne, 1984), de Yves
Congar; "Les Idées maitresses de Vatican II" (Cerf, 1985), de Gustave Martelet; "Le Concile Vatican II" (Cerf-Fides, 1989), de Joseph Thomas.
Sobre a aceitação e aplicação do Concílio, abundam muitos trabalhos. Recomendo sobretudo "La Réception de Vatican II" (Cerf, 1986), de Giuseppe Alberigo e Jean-Pierre
Jossua. Sobre a aplicação das decisões conciliares: "Les Églises après Vatican II. Dynamisme et prospective" (Actas do colóquio internacional de Bolonha, 1980; Beauchesne,
1981); "De Vatican II à Jean-Paul II" (Centurion, 1981), de Jan Grootaers; "Le Concile: 20 ans de notre histoire" (Desclée, 1982), de Gérard Defois e colaboradores;
"L'Héritage du Concile: le choc des médias" (Desclée, 1985), de Michel Boulet; "Présente Église. Gaudium et Spes 20 ans après" (Centurion, 1985), de Olivier de Denichin;
"Église, qu'as-tu fait de ton concile?" (Centurion, 1985), de Henri Denis.

O papado contemporâneo (depois de Pio XII)
Historiadores e jornalistas, auxiliados pelos meios de comunicação social, cuja audiência não tem paralelo com o passado, têm à vontade explorado a personalidade
- sempre marcante - dos últimos cinco papas. É, pois, necessária uma escolha e esforcei-me por isso: sobre Pio XII um ensaio de Jean Chélini, "L'Église sous Pie
XII" (Fayard, 2 vols., 1983-1985) e as actas de um colóquio universitário (Faculdade de Direito de Aix-en-Provence): "Pio XII et la Cité" (Téqui-Presses universitaires
de Aix-Marselha, 1988).
Sobre o "bom Papa João": "L'Utopie du pape Jean XXIII" (Seuil, 1978), de Giancarlo Zizola (Seuil, 1978); "Jean XXIII, essai biographique" (Centurion, 1981), de Lawrence
Elliott e H. N. Loose; "Jean XXIII devant l'histoire" (Seuil, 1988), de Giuseppe Alberigo e colaboradores; "Jean XXIII, le pape du concile" (Centurion, 1988), de
Peter Hebblethwaite.
A memória de Paulo VI beneficia dos trabalhos de um colóquio organizado, em 1973, pela École française de Roma sobre o tema: "Paul VI et la modernité" que depois
publicou. As memórias de Jean Guitton, familiar deste Papa, são igualmente preciosas: "Dialogues avec Paul VI" (Fayard, 1967); "Paul VI secret" (Desclée de Brouwer,
1980).
Não beneficiando do distanciamento no tempo, os dois papas João Paulo I e II são personalidades que escapam ainda à história serena. No entanto, pode ler-se com
proveito os escritos do papa Luciani, em que se reuniram os discursos e outros escritos sob o título "Humblement vôtre" (Nouvelle Cite, 1978), e o ensaio de Georges
Huber, "Jean-Paul I ou la vocation de Jean-Baptiste" (SOS, 1979), que é esclarecedor.
"Jean-Paul II, l'aventurier de Dieu" (Carrière-Lafont, 1986), é o título de um ensaio de Jean Offredo. Christine de Montclos, por seu turno, analisou as "Voyages
de Jean-Paul II" (Centurion, 1990). O familiar do Papa polaco, André Frossard, confia as suas impressões em "Portrait de Jean-Paul II" (Robert Laffont, 1988).

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Num plano mais geral, poderá consultar-se com vantagem: "Connaissance du Vatican" (Paris, 2.a ed., 1974) e "Le Pape" (PUF, 1980), de Paul Poupard, e também "L'Évêque
de Rome" (Cerf, 1982), de Jean-Marie Tillard.

A Igreja actual
A crise que a Igreja vive em permanência desde o Vaticano II inspirou e inspira uma avalanche de escritos, muitas vezes subjectivos e polémicos, revelando alguns
desses títulos qualquer coisa de apocalíptico: "Le Christianisme éclaté" (Seuil, 1974), de Michel de Certeau e Jean-Marie Domenach; "Le Christianisme va-t-il mourir?"
(Hachette, 1977), de Jean Delumeau; "Fin d'une église cléricale?" (Cerf, 1969), de Paul Guilmot; "L'Église en panique" (Desclée, 1970), de Philippe Brunetière. Na
verdade, estes autores colocam boas questões como faz Danièle Hervieu-Léger e Françoise Champers quando se interrogam se se caminha "Vers un nouveau christianisme"?
(Cerf, 1986). Porque a crise pode desembocar num mundo novo como pensa Gérard Leclerc, autor de "L'Église catholique, 1962-1986. Crise et renouveau" (Denoel, 1986),
ou René Laurentin em "Église qui vient: au-delà des crises" (Desclée, 1989). Por sua vez, Claude Geffré acredita que se avança para "Un nonvel âge de la théologie"
(Cerf, 1972) e Gérard Defois, autor de "Vulnérable et passionante Église" (Cerf, 1977), inclina-se com alguma afectação sobre "L'Occident en mal d'espoir" (Fayard,
1982).
Esta atitude entronca com a de Marcel Gauchet, autor de um importante ensaio "Le désenchantement du monde: une histoire politique de la réligion" (Gallimard, 1985),
que lembra em vários aspectos, a de Alain Besançon, "La confusion des langues. La crise idéologique de l'Église" (Calman-Lévy, 1978); Yves Congar, com "La Crise
de l'Église et Mgr Lefebvre" (Cerf, 1976), esforça-se por abordar com objectividade um dos aspectos mais dolorosos da crise da Igreja.
O diagnóstico é mais frio e, portanto, mais convincente, em Émile Poulat que analisa com finura as crises contemporâneas em "Une Église ébranlée" (Casterman, 1980).
Dentro da mesma linha, ler os debates e trabalhos do Colóquio de Bolonha de 1983 sobre "La Chrétienté en débat" (Cerf, 1984).
Dois pontos de vista opostos, com três jesuítas. Por um lado, sobre o freio que é necessário colocar no caminho de Vaticano II, Jean Daniélou, "Autorité et contestation
dans l'Église" (Genebra, 1970) e Henri de Lubac, "Église dans la crise actuelle" (Cerf, 1969). Por outro lado, Paul Valadier, revela-se um crítico agudo da actual
política do Vaticano em "Église en procès" (Flammarion, 1989).
O Terceiro Mundo e a América Latina inspiram, desde há quinze anos, uma teologia da libertação, que desembocou numa produção abundante de obras, de que se salientam:
"l'Église de l'autre moitié du monde" (Karthala, 1981), de J. de Santa-Anna; "Théologies de la libération: documents et débats" (Cerf, Centurion, 1985); "Mgr Komero,
martyr du Salvador 1917-1980" (Centurion, 1984); "Les Chrétiens et le tiers monde" (Karthala, 1990), de Bertrand Cabedoche.

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O ecumenismo - outro aspecto do cristianismo contemporâneo - está bem estudado por Jacques-Élie Desseaux em "Dialogues théologiques et accords oecuméniques" (Cerf,
1982), e, sobretudo, por Étienne Fouilloux, cujo importante trabalho sobre "Les Catholiques et l'unité chrétienne du 19e au 20e siécle" (Centurion, 1982) permanecerá
certamente como um clássico.
Quanto ao problema comunitário - sob a forma carismática ou não - que modifica a situação da Igreja, tem inspirado muitos escritos, entre os quais se destacam: "Des
communautés pour l'Église" (Cerf, 1981), de Jean Rigal; "Nouveaux témoins de l'Église: les communautés de base" (Centurion, 1982); "Jésus vivant au coeur du Renouveau
charismatique" (Desclée, 1990), volume colectivo, sob a responsabilidade de Bernard Rey.

BIBLIOGRAFIA ANEXA
A história religiosa da Revolução Francesa
Como seria, de esperar, foi da parte dos universitários que os esforços para dar sentido e vigor ao bicentenário da Revolução se revelaram mais importantes e eficazes.
Sem dúvida, muitos dos projectos elaborados a partir de 1983 e submetidos à Comissão Nacional de Pesquisa Histórica para o Bicentenário da Revolução Francesa (secretário-geral
Michel Vovelle) evaporaram-se rapidamente. Sem dúvida, podemos lamentar que a história religiosa tenha aí ocupado, em definitivo, um lugar relativamente restrito
na pesquisa histórica relativa à Revolução. Mas não é menos exacto que, graças a inúmeros e novos trabalhos, mesmo a alguns colóquios notáveis, a historiografia
religiosa saiu enriquecida das próprias comemorações. Como é naturalmente impossível falar desses trabalhos e colóquios de uma forma exaustiva, revelo aqui as suas
linhas principais.
O colóquio histórico mais importante e mais original foi obra de Bernard Plongeron, professor do Instituto Católico de Paris e Director de Pesquisas do CNRS que,
desde há uns vinte anos, é um pioneiro da renovação da historiografia religiosa que incide sobre a Revolução Francesa. Esse colóquio, que se efectuou em Chantilly
de 27 a 29 de Novembro de 1986, reuniu duzentos e cinquenta participantes de dez países e organizou-se em redor do tema: "Práticas religiosas, mentalidades e espiritualidades
na Europa revolucionária, 1770-1820".
Não se tem repetido muitas vezes que a França e, depois, a Europa ocupada pelos exércitos da Revolução, mergulharam no ateísmo militante, como causa de um vasto
"deserto de culto"? Como explicar, então, as eflorescências religiosas do começo do século XX, senão inquirindo seriamente sobre as reacções de milhões de leigos
católicos, protestantes e judeus, que

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vivem a sua fé todos os dias, tanto na clandestinidade como à luz da vida pública?
Pela primeira vez, um colóquio universitário abordava esta questão central não tanto para dar respostas definitivas, mas sobretudo para apresentar alguns esclarecimentos
inéditos sobre essa grande desconhecida: a vida religiosa dos leigos durante a Revolução. Os melhores especialistas da Europa, ao longo de setenta comunicações,
exploraram as práticas, as menralidades e as correntes de espiritualidade sobre casos precisos: transformações de paróquias, casamento e divórcio, sacramentalização
e dessacralização, as mulheres e o seu novo papel, as confrarias e as congregações, etc. Vinte e nove regiões ou províncias da França e da Europa manifestaram assim
as suas diferenças, as suas atitudes e resistências perante o poder jacobino,
As actas deste colóquio foram reunidas num grosso volume (778 páginas), publicado em 1988, nas Ed. Brepols: pelo rigor dos textos que se apoiam directamente nos
arquivos, este livro erudito e prudente nos juízos feitos, é todavia de leitura perfeitamente acessível.
Entre os outros colóquios, destaca-se "Les résistances à la Révolution. La Contre-Révolution" (Rennes, 1985. Universidade de Haute-Bretagne, Rennes II); "Église,
vie religieuse et Révolution dans le Nord-Pas-de-Calais et la Belgique" (Arras, 1988, Universidade de Lille III. Greco-CNRS n.° 2); "Midi rouge et midi blanc" (Avinhão,
1986, Universidade de Provence); "Paroisses, confréries, dévotions â l'épreuve de la Révolution" (Marselha, 1988, Escola de Altos Estudos e Ciências Sociais); "La
Révolution, une rupture dans le christianisme limousin" (Limoges, 1989, Universidade de Clermont).
A esta lista, acrescente-se ainda o colóquio organizado em Toulouse, em 1987, por ocasião do 2° centenário do Edicto da Tolerância (de Luís XVI em proveito dos protestantes)
sobre o tema: "La tolérance, republique de l'esprit".
Entre os inúmeros livros inspirados pela história religiosa da Revolução Francesa, não se encontra nenhuma síntese geral semelhante às duas clássicas que sempre
se podem consultar com interesse, tanto mais que foram as primeiras obras a alargar os horizontes, sobretudo no que respeita à Igreja constitucional, desde sempre
a mal-amada dos historiadores católicos: "l'Église catholicjue et la Révolution française" (Hachette, 1950, nova eds. 2 vols., Cerf, 1970), de André Latreille, e
"la Crise révolutionnaire 1789-1846" (Bloud et Gay, 1951, tomo XX da "Histoire de l'Église", de Fliche e Martin), de Jean Leflon. Podemos também destacar a obra
antiga, mas excelente, de Charles Ledré, "l'Église de France sous la Révolution" (Laffont, 1949). Entre as obras recentes que se aproximam mais destes clássicos:
"La pique et la croix. Histoire religieuse de la Révolution française" (Centurion, 1989), de Bernard Cousin, Monique Cubbels e René Moulinas.
Entre os autores actuais da historiografia revolucionária, muito poucos se dedicam à história religiosa: em particular, François Furet, dá-lhe algum destaque na
sua grande obra "La Révolution, 1770-1880" (Hachette, 1988). Mas devemos destacar o livro de Michel Vovelle, autor já de uma

420

notável obra sobre "La déchristianisation de l'an II" (Hachette, 1976): "la Révolution contre l'Église. De la Raison à l'Être Suprême" (Complexe, 1988). A irritante
e complexa questão religiosa está bem esclarecida por Jacques Sole no seu interessante ensaio: "La Révolution en questions" (Seuil, 1988). E Mona Ozouf permanece
como a indispensável introdutora à "La fête révolutionnaire" (Gallimard, 1988). Um livro breve, mas sugestivo, sobretudo pelas suas ilustrações, é "Religion et France
révolutionnaire" (Herscher, 1989), de Yann Fauchois.
As ideologias, as opções e as convicções pessoais não podiam, evidentemente, estar ausentes de um domínio tão escaldante, onde se discute desde há muito tempo. "Quelle
religion pour la Révolution?" (Ed. da Universidade Livre de Bruxelas, 1989) reflecte um espírito muito fortemente laico. Noutro campo, os ensaios abundam, desde
"la Conjuration de Satan" (Nouvelles édition latines, 1969), de Jacqueline Chauveau, até ao livro de Jean Chaunu (filho de Pierre Chaunu): "Droits de l'Église et
droits de l'homme" (Criterion-Histoire, 1989) - obra inspirada nos escritos de Pio VI -, passando por: "1789. Révolte contre Dieu" (Cèdre, 1976), de Paolo Calliari
(1976); "Christianisme et Révolution" (Nouvelles éditions latines, 1986), de Jean de Viguerie; "Pourquoi nous ne célebrerons pas 1789" (Argé, 1987), de Jean Dumont,
autor também de um ensaio polémico sobre "La Révolution ou les prodiges du Sacrilège" (Criterion, 1989) e de "l'Église au risque de l'histoire" (Criterion, 1989).
A contra-revolução, o espírito contra-revolucionário, cuja perenidade é testemunhada por essas obras, deve ser estudada na perspectiva do esclarecimento feito por
Jacques Godechot, que reeditou felizmente "la Contre-Révolution, 1789-1804" (PUF, 1984). Completar essa leitura com "Révolution et contre-révolution au XIXe siècle"
(Albatros, 1987), de Stéphane Riais e "la Contre-Révolution. Origines, Histoire, Postérité" (Perrin, 1990), sob a direcção de Jean Tulard.
Foi naturalmente a Guerra da Vendeia, com as suas ambiguidades e excessos, que despertou mais ressentimentos e deu vigor a debates nunca acabados. Nem todas as produções
históricas foram prejudicadas por isso, como "La Terreur bleue" (Albin Michel, 1984), de Elie Foumier, que é um estudo essencialmente arquivístico. Muito subjectivo
é "Le Génocide franco-français. La Vendée vengée" (PUF, 1987), de Reynald Schérer. Muito mais sereno e, portanto, mais interessante para os estudos históricos é
"De la Révolution à la chouannerie. Paysans en Bretagne 1788-1794" (Flammarion, 1988), de Roger Dupuy, e "La Vendée de la mémoire 1800-1980" (Seuil, 1989), de Jean-Clément
Martin.
Com uma orientação muito acentuadamente contra-revolucionária, encontramos ainda alguns elementos úteis em "Septembre 1792. Logique d'un massacre" (Plon, 1988),
de Frédéric Bluche, e "Les martyrs de la Révolution française" (Librairie Académique Perrin, 1989), de Ivan Gobry.
Mas, como seria de esperar, é o "cisma" que, a partir de 1791, pela prestação ou não prestação, pelos membros do clero, do juramento cívico, provoca e inspira os
trabalhos mais originais. À frente, é preciso colocar a obra de Bernard Plongeron, a quem se deve de qualquer forma uma reabilitação

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racional da Igreja constitucional. Já em 1964, este historiador se dera a conhecer com uma tese sobre "les Réguliers de Paris devant le serment constitutionnel.
Sens et conséquences d'une option: 1789-1801" (Vrin, 1964). Mais tarde, desbrava um terreno singularmente ensombrado, publicando um admirável estudo: "Conscience
religieuse en Révolution. Regards sur l'historiographie religieuse de la Révolution française" (Picard, 1969), com uma análise nunca feita aos diferentes juramentos,
seguida ainda de "Théologie et politique au siècle des Lumières, 1770-1820" (Droz, 1973), brilhante introdução à nova "crise da consciência europeia", a do fim do
século XVIII. Nas Ed. Beauchesne, em que Bernard Plongeron publicou a sua "Histoire du diocèse de Paris" (1987-88), reuniu a partir de 1986, por regiões, os capítulos
relativos à Revolução, que apareceram nas monografias diocesanas, sob o título geral de "l'Église de France et la Révolution".
Inspirando-me em trabalhos de Bernard Plongeron, publiquei "l'Église et la Révolution" (Nouvelle Cité, 1988), pequeno livro em que coloquei o acento no papel maior
do clero na Revolução de 1789, sobre os méritos reais da Igreja constitucional e sobre a eclesiologia original aplicada, de 1795 a 1800, pela Igreja dos bispos-reunidos
(abade Gregório).
Tratando dos dois cleros, separados pelo Juramento, apareceram alguns excelentes estudos: "La Révolution, l'Église, la France" (Cerf, 1986), de Timothy Tackett;
"1789. Les prêtres dans la Révolution" (Ed. ouvrières, 1986), de Paul Christophe; "Le clergé déchiré: fidèle ou rebelle?" (Ouest-France, 1988), de Jean Quéniart,
na belíssima colecção "Gens de l'ouest, sous la Révolution", enriquecida por trabalhos admiráveis da Universidade da Haute-Bretagne; "le Clergé à l'épreuve de la
Révolution, 1789-1799" (Desclée de Brouwer, 1989), de Charles Chauvin.
Vários padres-escritores contribuíram de algum modo para esse monumento, um pouco heteróclito, da história, muitas vezes emocionante, de certos padres franceses
durante a Revolução. Eis aqui três desses trabalhos: Louis Costel, cuja obra é consagrada ao mundo rural de Cotentin e cujo relato histórico "Mille ans sont comme
un jour. Chronique d'une liberté de conscience" (Éditions universitaíres, 1989), tem como herói o padre Sébastien Lebrun; René Picheloup, da diocese de Toulouse,
autor de uma tese sobre "Les Ecclésiastiques français emigrés ou déportés dans l'État Pontifical" (Publicações da Universidade de Toulouse-Le Mirail); sobretudo
Pierre Flament, da diocese de Sées, autor de um estudo serial sobre "2000 prétres normands face à la Révolution" (Librarie Académique Perrin, 1989), que é um modelo,
aliás, pouco reproduzido.
E já que estou com os estudos regionais, eis dois notáveis: "La Vie religieuse en Haute-Garonne sous la Révolution" (Universidade de Toulouse-Le Lirail, 1982), de
Jean-Claude Meyer; "La Révolution française, une rupture dans le christianisme? Le cas du Limousin (1775-1822)" (Les Honédières, 1982), de Louis Pérouas e Paul d'Hollander.
Existem poucas biografias novas. "Monsieur Emery" (Bonne Presse, 2 vols. 1944-1946), de Jean Leflon permanece como uma referência essencial para

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a Igreja refractária. Esperando a grande biografia que prepara sobre o abade Gregório, cuja memória lhe é familiar, Bernard Plongeron deu-nos entretanto "L'abbé
Grégoire ou l'arche de la Fraternité" (Letouzey et Ané, 1989). Frank-Paul Bowman, autor de "Le Christ des Barricades 1789-1848" (Cerf, 1987), reuniu e apresentou
alguns textos significativos de "L'abbé Grégoire, évêque des Lumières" (France-Empire, 1988). Duas biografias honestas: "L'abbé Grégoire, le prêtre-citoyen" (Ed.
de Nouvelle Republique, 1989), de Fierre Fauchon; "L'abbé Grégoire. Évêque et démocrate" (Desclée de Brouwer, 1989), de Georges Hourdin. A colocar em destaque: "Grégoire
et Cathelineau ou ia déchirure" (Ed. ouvrières, 1988), de Michel Lagrée e Francis Orhant, que é um estudo comparativo extremamente inteligente de dois destinos tão
tocantes como opostos.
Se se desejar entender o jogo político, filosófico e espiritual que mais durou na Revolução Francesa, apresentamos de seguida quatro obras capitais: "Liberté, laïcité.
La guerre des deux France et le principe de la modernité" (Cerf, Cujas, 1987), de Émile Poulat; "La Révolution des droits de l'homme" (Gallimard, 1989), de Marcel
Gauchet; "Réforme et révolution: aux origines de la démocratie moderne" (Presses du Languedoc, 1990), de Paul Viallaneix e colaboradores; "Les origines culturelles
de la Révolution Française" (Seuil, 1990), de Roger Chartier.

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ÍNDICE

NOTA DO EDITOR ... 7

PREFÁCIO ... 11 [nota da digitalização: erro da edição em papel, é 9]

I. A IGREJA OCULTA

CAPÍTULO I. O Nascimento ... 13
1. O terreno: a civilização greco-romana, o judaísmo ... 13
2. Jesus ... 16
3. As primeiras comunidades cristãs ... 19

CAPÍTULO II. Fora da Palestina ... 23
1. Paulo ... 23
2. A sementeira cristã ... 27
3. A Igreja que Sofre ... 32
4. A Igreja que vive ... 36

CAPÍTULO III. A Igreja que fala ... 39
1. Ireneu perante a gnose ... 39
2. Uma apologia pela pena e pelo sangue ... 41
3. Dois pólos do pensamento cristão: Cartago e Alexandria ... 43

II. A IGREJA PEDAGOGA DO OCIDENTE

CAPÍTULO I. De Constantino a Teodósio ... 49
1. Constantino ou a emergência ... 49
2. Uma ameaça para a Igreja: a ingerência do Estado ... 51

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CAPÍTULO II. Balanço do Cristianismo em meados do século IV 55
1. Uma visão de conjunto ... 55
2. A elite intelectual e o cristianismo ... 56
3. Os três pólos do humanismo cristão: Ambrósio, Jerónimo e Agostinho ... 57
4. A cristianização dos campos ... 59
5. Correntes profundas e balanço aparente ... 61

CAPÍTULO III. No Ocidente, Igreja substitui-se ao Império ... 63
1. Mené, Teqel, Farsin ... 63
2. Bispos e monges perante os Bárbaros ... 64
3. Gregório Magno, "cônsul de Deus" ... 66
4. A Igreja e os Merovíngios ... 69
5. Uma luz na bruma: o monaquismo celta ... 70
6. Bento ou o equilíbrio ... 72
7. Germanos evangelizam Germanos ... 73

CAPÍTULO IV. A Unidade Quebrada ... 77
1. O difícil diálogo com o Oriente ... 77
2. O islão ... 80

III. A IGREJA FEUDAL

CAPÍTULO I. Rumo à Europa Cristã ... 87
1. Uma estrutura: o Império restabelecido no Ocidente ... 87
2. A Renascença carolíngia ... 89
3. Uma estrutura que se revela frágil ... 91
4. Esforço missionário para norte e para leste ... 92

CAPÍTULO II. Os Séculos Negros ... 95
1. O grande terror escandinavo ... 95
2. O recuo da Europa ... 96
3. Século X, o seculum obscurum ... 98
4. O Sacro Império e os papas "alemães" ... 99
5. Uma fonte viva: Cluny ... 101

CAPÍTULO III. O Retorno do Papado à Ribalta ... 105
1. Os papas cluniacenses ... 105
2. Gregório VII ... 107

CAPÍTULO IV. O Primeiro Rasgão num Manto Sem Costura ... 109
1. Uma etapa em direcção à ruptura entre Roma e Constantinopla: Nicolau I e Fócio ... 109
2. Cerulário ... 111
3. Um escândalo, uma esperança ... 112

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IV. A JUVENTUDE DA EUROPA

CAPÍTULO I. Nas Pegadas de Gregório VII ... 117
1. A caminho do primeiro Concílio de Latrão ... 117
2. Uma sociedade cristã? ... 120
3. Uma arte ao alcance do homem cristão ... 122

CAPÍTULO II. Uma Dificuldade: A Pobreza ... 125
1. Os "pobres" que recalcitram ... 125
2. Bernardo ou a pobreza fecunda ... 128

CAPÍTULO III. A Nostalgia do Oriente ... 133
1. Rumo a ti, Jerusalém ... 133
2. Uma instituição permanente destinada ao fracasso ... 135

CAPÍTULO IV. O Triunfo de Roma ... 139
1. Quando Roma toma Claraval como referência ... 139
2. Barba-Ruiva ou o Império humilhado ... 141
3. "Becket ou a honra de Deus" ... 142

V. A ADESÃO DO OCIDENTE À CRISTANDADE

CAPÍTULO I. O Século de Inocêncio III ... 147
1. Um ponto alto da História? ... 147
2. Uma vitória demasiado cara ... 148
3. Frederico II ou o leopardo ... 150

CAPÍTULO II. O Século de São Luís ... 153
1. Uma "fonte de justiça" ... 153
2. A era do gótico ... 155

CAPÍTULO III. O Século de Francisco e de Domingos ... 157
1. Francisco ou a nudez ... 157
2. Domingos ou a palavra ... 159

CAPÍTULO IV. O Século de São Tomás ... 163
1. A revolução do ensino. A Universidade de Paris ... 163
2. Um modelo para o pensamento cristão: o tomismo ... 165

CAPÍTULO V. O Tempo da Inquietação ... 169
1. O esforço missionário da Idade Clássica ... 169
2. E a união das Igrejas? ... 171
3. Sintomas de crise ... 172

427

VI. A IGREJA SOB ACUSAÇÃO

CAPÍTULO I. A Cristandade Humilhada ... 177
1. Uma nova atmosfera ... 177
2. Anagni ou o mundo laico ... 181
3. A instalação do papado em Avinhão ... 183
4. O fortalecimento do poder temporal dos papas ... 185
5. O grande cisma do Ocidente ... 189
6. Concílio ou Papa? ... 191
7. Basileia e Florença ... 194
8. O tempo das Igrejas nacionais ... 196

CAPÍTULO II. A Cristandade em Acção ... 201
1. A "devoção moderna" ... 201
2. Anseios de reforma ... 205
3. E o povo cristão? ... 208
4. Os papas da Renascença ... 209
5. A caminho do V Concílio de Latrão ... 213

CAPÍTULO III. A Cristandade Dilacerada ... 217
1. Lutero, a Igreja e a Escritura ... 217
2. A explosão do luteranismo ... 219
3. Calvino e a fundação de uma Igreja ... 223
4. Fogo contra a cristandade? ... 226

VII. A IGREJA À DEFESA

CAPÍTULO I. A Reforma Católica ... 233
1. Reforma ou Contra-Reforma? ... 233
2. O Concílio de Trento ... 236
3. "No sangue e na carne da Igreja" ... 240
4. O tempo dos santos padres ... 242
5. Para uma Igreja maior ... 246
6. A Igreja fora da Europa ... 248

CAPÍTULO II. O Tempo da Igreja em França ... 253
1. A idade de oiro da Igreja em França ... 253
2. Um novo padre ... 256
3. A harmoniosa fachada da Igreja em França ... 259
4. A Igreja fora de França ... 262

CAPÍTULO III. O Anti-Romanismo Universal ... 265
1. A grande vaga do jansenismo ... 265
2. O galicanismo ... 269
3. A luta contra "a infame" ... 271
4. A Igreja em crise ... 275
5. A "Aufklärung" católica ... 278

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6. A Revolução Francesa: o acontecimento ... 282
7. A Revolução Francesa: os problemas ... 285

VIII. A IGREJA CONTEMPORÂNEA: DO CASAMENTO FORÇADO AO DIVÓRCIO E AO DIÁLOGO

CAPÍTULO I. Reencontrado o Caminho para Roma ... 293
1. Napoleão e a Igreja concordatária ... 293
2. As Restaurações: aparências e realidades ... 297
3. O eclipse das igrejas nacionais ... 301
4. Uma prodigiosa explosão de forças ... 306
5. Um clero digno e um laicado activo ... 309

CAPÍTULO II. O Afrontamento ... 313
1. A Igreja e a sociedade laicizada ... 313
2. A Igreja e os operários ... 319
3. A contra-Igreja socialista ... 321
4. Esforços dos católicos sociais ... 324
5. Roma sem os Estados romanos ... 327
6. Leão XIII e a iniciação ao pluralismo ... 329
7. Pio X ou a fidelidade ... 331
8. A crise modernista ... 332
9. Um balanço positivo? ... 337

CAPÍTULO III. Cinquenta Anos Decisivos 1914-1963 ... 339
1. Bento XV e o nascimento de um mundo novo ... 339
2. Pio XI, o pastor veemente ... 344
3. Um doutor: Pio XII ... 349
4. O bom papa João ... 353

CAPÍTULO IV. A Igreja Perante um Mundo Novo ... 355
1. A grande luz do Vaticano II ... 355
2. A Igreja e o Mundo em crise ... 358
3. Paulo VI, um papa aceite e contestado ... 361

CAPÍTULO V. A Igreja no Limiar do Século XXI ... 367
1. O sorriso efémero de João Paulo I (1978) ... 367
2. João Paulo II ou o rochedo polaco ... 369
3. A Igreja em processo perante a modernidade? ... 375

APÊNDICE COMPLEMENTAR ... 379
O Papa do Mundo ... 381
A Bíblia ... 387
Lista dos Papas ... 391
Glossário ... 397
Bibliografias ... 387 [nota da digitalização: erro da edição em papel, é 405]
índice ... 423 [nota da digitalização: erro da edição em papel, é 425]

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