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domingo, 31 de julho de 2011

O Advogado do Diabo

O ADVOGADO DO DIABO
Morris West
CAPÍTULO I

A sua profissão consistia em preparar outros homens para a morte; por isso, chocou-o estar tão mal preparado para a sua própria morte.
Era um homem razoável e a razão dizia-lhe que a
sentença de morte de um homem vem escrita na palma
da mão desde o dia em que nasce; era um homem frio,
pouco agitado por paixões, de maneira alguma avesso
à disciplina, embora o seu primeiro impulso fosse agarrar-se desesperadamente à ilusão de imortalidade.
O recato da morte mandava que se apresentasse discretamente, de rosto velado e mãos ocultas, à hora a que
menos fosse esperada. Devia aproximar-se lenta e suavemente como seu irmão, o sono - ou rápida e violentamente como a consumação do acto de amor, para que o momento
da rendição fosse de acalmia e saciedade, em vez de uma separação violenta entre o espírito e a carne.
O recato da morte. Era por isso que os homens aspiravam vagamente, rezando por ela como se estivessem
dispostos a tal - lamentando-se amargamente quando
sabiam que Ihes seria negada. Blaise Meredith lamentava-o naquele momento, ali sentado, desfrutando o ameno sol primaveril, observando os cisnes em lenta
procissão pela Serpentine, os casais de namorados na
relva, os caniches que, levados pela trela, trotavam
com enfado ao longo dos carreiros, atrás das saias esvoaçantes das donas.
No meio de toda aquela vida - a relva farta, as árvores repletas de seiva nova, o balancear dos crocos e
dos narcisos silvestres, os languidos jogos amorosos
dos jovens, o vigor dos mais velhos que também por
ali passeavam - somente ele, ao que parecia, fora
marcado para morrer. Não havia que confundir a urgência ou a determinação do mandato. Estava escrito, para todos quantos o desejassem saber, não nas linhas da palma
da sua mão, mas sim na folha quadrada da radiografia, onde uma pequena mancha cinzenta revelava a sua sentença.
- Carcinoma! - O dedo brusco do cirurgião demorara-se um instante no centro da mancha cinzenta, depois movera-se para fora dela, traçando a expansão do tumor. -
De crescimento lento mas de implantação bem definida. Tenho visto demasiados para haver possibilidades de me enganar com este.
Ao observar o pequeno ecrã translúcido e o dedo que
se movimentava atrás dele, Blaise Meredith dera-se subitamente conta da ironia da situação. Toda a sua vida
fora passada a confrontar os outros com a verdade
acerca de si próprios, as culpas que os perseguiam, as
concupiscências que os desgastavam, as loucuras que
os diminuíam. Agora olhava para as suas próprias entranhas, onde uma pequena malignidade estava a crescer como uma raiz de mandrágora, até chegar o dia em que o
destruiria.
Reunindo toda a calma de que foi capaz, perguntou:
- É operavel?
O cirurgião desligou a luz que iluminava o ecrã, fazendo a pequena mancha cinzenta diluir-se na opacidade; em seguida sentou-se, ajustou o candeeiro da secretária
de maneira a fazer que o seu rosto ficasse na penumbra e o do paciente fosse iluminado como uma cabeça de mármore num museu.
Blaise Meredith reparou no pequeno artifício e compreendeu. Ambos eram profissionais. Cada um deles
xxx
lidava, à sua maneira própria, com o animal humano. Ambos deviam preservar um distanciamento clínico
que Ihes permitisse refrear uma entrega excessiva, para
não os tornar tão vulneráveis e apavorados como os
seus pacientes.
O cirurgião recostou-se na cadeira, pegou numa faca
de papel e segurou-a com a mesma delicadeza com que
manusearia um bisturi. Aguardou um momento, reunindo as palavras, escolhendo esta, recusando aquela,
para depois as dispor num modelo de precisão meticulosa.
- Sim, pode ser operado. Se o fizer, dentro de três
meses estará morto.
- E se não for operado?
- Viverá um pouco mais, mas, também, morrerá
com um pouco mais de sofrimento.
- Quanto tempo mais?
- Seis meses. Doze no máximo.
- É uma escolha difícil.
- Tem de ser o próprio a fazê-la.
- Compreendo.
O cirurgião descontraiu-se na sua cadeira. O pior já
passara. Não se enganara em relação àquele homem.
Ele era inteligente, ascético, controlado. Sobreviveria
ao choque e acomodar-se-ia ao inevitável. Quando a
agonia principiasse, suportá-la-ia com uma certa dignidade. A sua Igreja protegê-lo-ia das necessidades e enterrá-lo-ia com honras quando chegasse a hora; e, se
não houvesse ninguém para o chorar, também o facto
poderia ser considerado como a compensação derradeira do celibato, o abandono discreto da vida sem lamentar os seus prazeres ou recear as suas obrigações por satisfazer.
A voz calma e inexpressiva de Blaise Meredith atalhou-lhe os pensamentos:
- Pensarei no que me disse. No caso de não me
decidir pela operação, regressando ao meu trabalho,
importar-se-ia de me passar um relatório para eu
apresentar ao meu médico local? Um prognóstico
completo, uma receita, talvez?
- Com todo o gosto, Monsenhor Meredith. Trabalha em Roma, não é verdade? Infelizmente não escrevo em italiano.
Blaise Meredith permitiu-se um ligeiro sorriso gelado.
- Eu próprio o traduzirei. Será uma tarefa interessante.
- Admiro a sua coragem, monsenhor. Não partilho
da fé de Roma ou de qualquer outra, mas imagino que
encontre nela uma grande consolação para uma altura destas.
- Espero encontrar, doutor - retorquiu Blaise Meredith, com simplicidade - mas sou padre há demasiado tempo para contar com tal.
Naquele momento encontrava-se sentado num
banco de jardim, ao sol, com o ar impregnado de
Primavera e o futuro reduzido a uma perspectiva
breve e vazia a projectar-se na eternidade. Certa
vez, nos seus tempos de estudante, ouvira um velho
missionário pregar sobre o ressuscitar de Lázaro de
entre os mortos- como Cristo se erguera diante da
tumba fechada e Lhe ordenara que se abrisse, fazendo
que o odor da podridão se espalhasse no ar parado e
seco do Verão; como Lázaro obedecera ao apelo, aparecendo, a tropeçar na mortalha e detendo-se ao sol, a
pestanejar. Que teria ele sentido naquele momento? -
perguntara o velho. Que preço tivera de pagar para regressar ao mundo dos vivos? Teria ele ficado para sempre mutilado, de modo que cada rosa Lhe cheirasse a matéria
em decomposição, cada jovem loura não passasse, aos seus olhos, de um esqueleto bamboleante? Ou caminharia maravilhado pela novidade das coisas, com o coração enternecido
de piedade e amor pela família humana?
A reflexão interessara Meredith durante anos. Em
determinada altura ocorrera-lhe a ideia de escrever um
romance acerca do assunto. Agora, finalmente, tinha a
resposta. Nada era mais doce ao homem do que a vida; nada Lhe era mais precioso do que o tempo; nada mais reconfortante do que o toque da terra e da erva, o sussurro
do ar em movimento, o cheiro das florescências novas, o som das vozes e do tráfego e o canto harmonioso dos pássaros.
Era isso que o perturbara. Há vinte anos que seguia a carreira do sacerdócio, solenemente devotado
à asserção de que a vida era uma imperfeição transitória, a Terra um símbolo indistinto do seu Criador, a
alma imortal no seu invólucro mortal, debatendo-se
numa ânsia para se libertar e entregar nos braços protectores do Todo-Poderoso. Agora, que a sua própria
libertação lhe fora garantida, a sua data determinada,
porque não seria ele capaz de a aceitar, se não com
alegria, pelo menos com confiança?
A que se apegava ele que não tivesse de há muito
rejeitado? Uma mulher? Um filho? Uma família? Não
havia ninguém vivo que lhe pertencesse. Posses? Eram
bastante modestas - um pequeno apartamento perto
da Porta Angélica, uns quantos objectos de ornamento, um quarto cheio de livros, um salário modesto que
lhe era dado pela Congregação dos Ritos, a renda
anual que sua mãe lhe deixara. Nada que tentasse um
homem a manter-se afastado do limiar da grande revelação. Carreira? Talvez houvesse algo aí - auditor da
Sagrada Congregação dos Ritos, assistente pessoal do
próprio prefeito, o cardeal Eugenio Marotta. Era uma
posição de influência, de confiança lisonjeira. Estava-se na sombra do pontífice. Observavam-se os meandros intrincados e subtis de uma grande teocracia. Usufruía-se
de um conforto simples. Dispunha-se de tempo para actuar livremente dentro dos limites da política seguida e da discrição. Algo aí... mas não o suficiente - não
o suficiente, de longe, para um homem
que ansiava pela união perfeita que pregava.
Talvez fosse esse o âmago da questão. Ele nunca ansiara por nada. Tivera sempre o que desejara e nada
mais havia desejado além do que Lhe fora propiciado.
Aceitara a disciplina da Igreja, e a Igreja proporcionara-lhe segurança, conforto e possibilidade de expandir
os seus talentos. Atingira a satisfação num grau superior ao que era permitido à maioria dos homens - e,
se nunca pedira felicidade, fora porque nunca fora infeliz. Até àquele momento... até àquele momento desolado ao sol, ao primeiro da Primavera, e, para Blaise
Meredith, a derradeira.
A derradeira Primavera, o último Verão. A ponta
última da vida mastigada e sugada como uma cana-de-açúcar, depois atirada para cima do monte de lixo. Aí
havia a amargura, o sabor azedo do fracasso e da desilusão. Que mérito poderia ele registar e levar consigo
para o julgamento? Que deixaria ele para trás que os
homens o recordassem?
Nunca tivera um filho, nem plantara uma árvore, nem
colocara uma pedra em cima de outra para construir
uma casa ou um monumento. Não espalhara a cólera,
não dispensara a caridade. O seu trabalho ganharia anonimamente bolor nos arquivos do Vaticano. O mérito
que porventura houvesse florescido do seu ministério era
sacramental, e não pessoal. Nenhum pobre o abençoaria
pelo seu pão, nenhum doente pelo seu estímulo, nenhum pecador pela sua salvação. Fizera tudo quanto
Lhe fora exigido, morreria, porém, vazio, e passado um
mês o seu nome não passaria de um grão de poeira à
deriva no deserto dos séculos.
De repente sentiu-se aterrorizado. Do corpo brotou-lhe um suor frio. As mãos começaram a tremer-lhe e
um grupo de crianças que estivera a jogar à bola perto
do banco afastou-se do clérigo descarnado e de rosto
lívido que ali estava sentado a fitar, de olhos fixos e
ausentes, a água tremeluzente do lago.
Os calafrios abrandaram lentamente. O terror esvaiu-se e a tranquilidade voltou de novo. A razão dominou-o
e começou a reflectir sobre a maneira como devia organizar a sua vida para o resto do tempo de que dispunha.
Quando adoecera, em Roma, altura em que o médico italiano fizera o seu primeiro diagnóstico hesitante, decidira instintivamente regressar a Londres. Já que tinha
de ser condenado, preferia ouvir a sentença pronunciada na sua própria língua. Já que o seu tempo de
vida devia ser encurtado, então desejava passar o que
dele Lhe restava no ar suave da Inglaterra, passear-se
pelas colinas verdejantes e pelos bosques de faias,
escutar o canto elegíaco dos rouxinóis na sombra das
velhas igrejas, onde a morte era mais familiar e amigável, porque os Ingleses tinham passado séculos a ensinar-lhe boas maneiras.
Na Itália, a morte era severa, dramática - um final
de grande ópera com coros lamurientos, plumas que se
agitavam e ataúdes negros barrocos passando em frente de palácios de estuque para as criptas funéreas de
mármore do campo santo. Ali, na Inglaterra, tudo teria um aspecto mais delicado - as orações murmuradas
discretamente numa nave normanda, a sepultura aberta
na relva aparada, entre lápides gastas pelo tempo, as
libações servidas no pub revestido de madeira de carvalho que ficava em frente do portão do cemitério.
Também este aspecto demonstrava agora não passar
de uma ilusão, de um engano patético, de não representar nenhuma defesa contra o inimigo insidioso e
obscuro que se entrincheirava no seu próprio ventre.
Não tinha possibilidade de escapar-lhe, da mesma maneira que não conseguia fugir à convicção de que falhara como padre e como homem.
Que fazer então? Submeter-se à faca? Acabar imediatamente com a agonia, abreviar o medo e a solidão
até um limite admissível? Não representaria aquele
gesto um novo fracasso, uma espécie de suicídio provavelmente justificável para os moralistas, mas que a
consciência nunca poderia verdadeiramente perdoar?
Já não eram poucas as contas que tinha de saldar;
aquela última poderia levá-lo à falência completa.
Voltar ao trabalho? Sentar-se à velha secretária debaixo do tecto abobadado do Palácio das Congregações, em Roma. Abrir os vastos manuscritos onde as vidas, obras
e escritos dos candidatos à canonização, há muito falecidos, estavam registados pela mão de incontáveis escribas. Examiná-los, dissecá-los, analisar e anotar. Pôr
as suas virtudes em causa e lançar novas dúvidas sobre as maravilhas atribuídas. Fazer mais apontamentos em novo manuscrito. Com que finalidade? Para que mais um
candidato às honras canónicas
pudesse ser rejeitado, porque fora menos que heróico,
menos que sábio nas suas virtudes. Ou que meio século
depois, talvez dois séculos, um papa novo pudesse proclamar em São Paulo que mais um santo fora acrescentado ao calendário hagiográfico.
Importar-se-iam aqueles mortos com o que ele escrevesse sobre eles? Importar-se-iam que um estatuto
recente lhes permitisse usar uma auréola ou que os impressionistas fizessem circular um milhar de bentinhos
com o seu rosto na parte da frente e as suas virtudes
na de trás? Sorririam perante os seus biógrafos condescendentes ou mostrariam má cara aos seus detractores
oficiais? De há muito que tinham morrido e sido julgados, tal como ele não tardaria a morrer e a ser julgado.
Tudo o resto eram adendas, post-scriptum dispensável.
Um novo culto, uma nova peregrinação, uma nova
missa na liturgia, não os afectariam absolutamente nada.
Blaise Meredith, sacerdote, filósofo, canonista, poderia trabalhar doze meses ou doze anos nos seus registos sem acrescentar nada de nada à sua felicidade ou
um único castigo à sua condenação eterna.
No entanto, era esse o seu trabalho e devia realizá-lo, porque já o tinha pronto - e porque se sentia demasiado fatigado para iniciar qualquer outro. Diria
missa todos os dias, cumpriria a tarefa quotidiana que
lhe cabia no Palácio dos Congressos, pregaria ocasionalmente na Igreja inglesa, ouviria confissões de algum colega em férias, regressaria todas as noites ao
seu apartamento na Porta Angélica, ia ler um pouco,
rezar os seus ofícios, depois debater-se-ia ao longo das
noites agitadas até às manhãs amargas. Durante doze meses. Depois morreria. Durante uma semana pronunciariam o seu nome nas missas... "o nosso irmão Blaise Meredith".
A seguir juntar-se-ia aos anónimos e seria esquecido nas comemorações gerais... passando a fazer parte de "todos os fiéis defuntos".
Naquela altura já fazia frio no parque. Os namorados sacudiam as ervas dos casacos e as raparigas alisavam as saias. As crianças seguiam, contrariadas, ao
longo dos carreiros, atrás de pais de má catadura. Os
cisnes voltavam apressadamente ao abrigo das pequenas ilhas, no meio do ruído monótono da hora de ponta do trânsito londrino.
Era tempo de partir. Era tempo de Monsenhor Blaise Meredith arrumar os seus pensamentos conturbados
e compor as suas feições afiladas num sorriso cortês
para participar no chá do administrador em Westminster. Os Ingleses eram um povo educado e tolerante.
Contavam que um homem trabalhasse sobriamente para a sua salvação ou se condenasse com discrição, que
lidasse com a bebida como um gentleman e guardasse
os seus problemas para si próprio. Encaravam os santos com desconfiança e os místicos com prudência e estavam meio convencidos de que Deus Todo-Poderoso era da mesma
opinião. Meredith, mesmo na hora do seu monte das Oliveiras privado, sentia-se satisfeito pelo facto de as convenções o obrigarem a esquecer-se da sua pessoa e a
participar nas conversas dos colegas.
Levantou-se rigidamente do banco, deixou-se ficar
de pé durante um longo momento, como a firmar-se
nas próprias pernas, e a seguir caminhou firmemente
em direcção à Brompton Road.
O Dr. Aldo Meyer tinha, naquela amena noite mediterrânica, uma preocupação muito particular. Tentava embriagar-se - com a maior rapidez e facilidade
que Lhe fossem possíveis.
Todas as probabilidades eram contra ele. O local onde bebia era uma sala baixa, de pedra, com chão de
terra batida que tresandava a vinho azedo. A sua companhia era um proprietário rural abrutalhado e uma
rapariga montanhesa bem nutrida, com um pescoço e
um traseiro bovinos e uns seios que faziam lembrar
melões, a retesar o tecido sebento do vestido preto.
A bebida não passava de uma grappa ardente, de efeitos garantidos no afogamento da mágoa mais renitente
- mas Aldo Meyer era demasiado refinado e inteligente para a apreciar.
Encontrava-se sentado num banco duro em frente
de uma mesa, sobre a qual se inclinava, com um coto
de vela gotejante ao lado, fitando a sua taça e traçando desenhos monótonos no líquido entornado que deslizava preguiçosamente no rasto do seu dedo. O padrone apoiava-se
no balcão do bar, palitando os dentes
com um pequeno pau e sugando ruidosamente os restos do jantar por entre as fendas. A rapariga, sentada
num canto às escuras, aguardava que o doutor esvaziasse a taça para Lha encher novamente. A princípio,
ele bebera com rapidez, engolindo sofregamente, depois abrandara o ritmo, à medida que o álcool barato
se apossava dele. Os últimos dez minutos passara-os
sem beber uma gota. Era como se estivesse à espera
de que algo acontecesse antes de se render finalmente ao esquecimento.
Faltava-lhe um ano para completar os cinquenta,
mas parecia um velho. Tinha o cabelo branco, a pele
do seu típico rosto de judeu esticada sobre os ossos.
As mãos compridas e flexíveis, mas calosas como as
de um operário. Envergava um fato citadino fora de
moda, de mangas desfiadas e lapelas lustrosas, no entanto os sapatos apresentavam-se engraxados e a camisa de linho limpa, com excepção dos pingos recentes de grappa
que a tinham salpicado. Tinha um ar de distinção esmaecido, que contrastava estranhamente com a grosseria do que o rodeava e a vitalidade rude da rapariga e do padrone.
Gemello Minore encontrava-se muito longe de Roma, ainda mais de Londres. A tasca imunda não apresentava qualquer semelhança com o Palácio das Congregações. Contudo,
o Dr. Aldo Meyer preocupava-se, tal como Blaise Meredith, com a morte e, apesar do seu cepticismo, também encarava a bem-aventurança
com apreensão.
Ao fim da tarde fora chamado a casa de Pietro Rossi, cuja mulher estava em trabalho de parto havia dez
horas. A parteira mostrava-se desesperada e o quarto
estava cheio de mulheres que cacarejavam como galinhas, enquanto Maria Rossi gemia e se contorcia com
os espasmos, para depois voltar a gemer debilmente
passados estes. Em frente da casota, os homens formavam um grupo, conversando em voz baixa e passando
uma garrafa de vinho de mão em mão.
Quando chegou, calaram-se, observando-o de soslaio e desconfiados, enquanto Pietro Rossi o acompanhava até dentro de casa. Vivia entre eles há vinte
anos, no entanto continuava a ser um estranho; naqueles momentos da sua vida tribal podia fazer-lhes falta,
porém nunca era bem-vindo.
No quarto, junto das mulheres, foi a mesma história: silêncio, desconfiança, hostilidade. Quando se inclinou para a enorme cama de ferro, apalpando e sondando o
corpo inchado, a parteira e a mãe da rapariga mantiveram-se a seu lado, e, quando surgiu novo espasmo, ouviu-se um murmúrio chocado, como se tivesse sido ele o seu
causador.
Três minutos depois teve a certeza de que não havia
esperança de que o parto se processasse normalmente.
Teria de fazer uma cesariana. A perspectiva não o
preocupava muito. Já fizera outras, à luz de vela ou de
candeeiro, sobre mesas de cozinha e bancos de tábuas.
Desde que houvesse água a ferver e anestesia para os
corpos robustos das mulheres montanhesas, todas as
probabilidades eram a favor da paciente.
Contava com protestos. Aquela gente era obtusa
que nem mulas e duas vezes mais susceptível de entrar em pânico - mas não esperava uma explosão. Foi a
mãe da rapariga quem lhe deu início - uma mulher
conflituosa, de grande corpulência e musculatura, cabelo escorrido, desdentada e com olhos negros e viperinos. Pôs-se à frente dele, gritando em dialecto denso:
- Não quero facas na barriga da minha filha. Quero netos vivos, não mortos! Vocês, os médicos são
sempre os mesmos. Quando não conseguem curar as
pessoas, cortam-nas e enterram-nas. Com a minha filha, não! Dê-lhe tempo que ela atira com este cá para
fora como uma ervilha. Já tive uma dúzia deles. Tenho
obrigação de saber. Nem todos foram fáceis, mas tive-os. E também não precisei de um carniceiro de cavalos para os tirar cá para fora!
Os gemidos da rapariga foram abafados pela revoada de risos estridentes. Aldo Meyer continuou a observá-la, ignorando as mulheres. Limitou-se a dizer:
- Se não a operar, morrerá por volta da meia-noite.
Houvera ocasiões em que dera resultado - a declaração arrojada e profissional, o desprezo pela sua
ignorância - mas daquela vez falhou completamente.
As mulheres riram-se-lhe na cara.
- Desta vez não, judeu! Sabe porquê?
A mulher enfiou a mão dentro do vestido e mostrou
um pequeno objecto envolvido em seda vermelha desbotada. Tinha os dedos cerrados em torno dele e meteu-lho debaixo do nariz.
- Sabe o que é? - inquiriu. - Não sabe, evidentemente, já que não passa de um infiel matador de Cristo. Agora temos um santo mesmo nosso. Um a sério!
Andam a tratar de canonizá-lo em Roma, está para
breve. Isto é um bocado da sua camisa. Uma autêntica
relíquia viva, manchada com o seu sangue. Também
ele fez milagres. Verdadeiros. Estão todos assentes.
Têm sido mandados para o papa. Acha que é capaz
de fazer mais do que ele? Acha? Quem é que nós escolhemos, gente? O nosso santo Giacomo Nerone ou este tipo?
A rapariga que jazia no leito gritou numa agonia súbita e as mulheres calaram-se, ao mesmo tempo que a
mãe se inclinava sobre a cama emitindo pequenos ruídos tranquilizadores e Lhe esfregava repetidamente a
relíquia imunda em redor do ventre inchado, por baixo
do cobertor. Aldo Meyer aguardou um momento, procurando as palavras certas. Então, depois de a rapariga acalmar, disse-lhes simplesmente:
- Até mesmo um infiel sabe que contar com milagres sem tentarmos ajudar-nos a nós próprios é pecado. Não se pode pôr a medicina de lado e esperar que os santos
nos curem. Além disso, Giacomo Nerone ainda não é santo. Ainda faltará muito tempo para eles começarem mesmo a discutir este caso em Roma.
Rezem por ele se quiserem, mas peçam-lhe que me dê
uma mão firme e à rapariga um coração forte. Agora
acabem com essa parvoíce e tragam-me água a ferver e
lençóis lavados. Já não tenho muito tempo.
Ninguém se mexeu. A mãe da rapariga barrou-lhe o
caminho para a cama. As mulheres ergueram-se, formando um semicírculo cerrado, empurrando-o em direcção à porta, donde Pietro Rossi, pálido, observava
o drama. Meyer deu meia volta e enfrentou-o.
- Você, Pietro! Quer um filho? Quer a sua mulher?
Então, por amor de Deus, escute o que lhe digo. Se eu
não operar imediatamente, a sua mulher morre e o filho morre com ela. Conhece as minhas capacidades,
tem uma vintena de pessoas na aldeia que Lhe poderão
falar delas. Mas não conhece aquilo que Giacomo Nerone é capaz de fazer, mesmo que seja santo... do que
duvido seriamente.
Pietro Rossi abanou teimosamente a cabeça.
- Tirar assim uma criança como se fosse da barriga
de uma ovelha não é natural. Além disso, ele não é
um santo qualquer. É nosso. Pertence a nós. Ele velará por nós. É melhor ir-se embora, doutor.
- Se o fizer, a sua mulher não chegará ao dia de
amanhã com vida.
O rosto moreno do camponês estava branco como a
parede. Meyer olhou em redor, fitando aquela gente
escura e sombria do Sul, e pensou, desesperado, quão
mal os conhecia, quão diminuto era o poder que exercia sobre eles. Esboçou um gesto de resignação, pegou
na maleta e encaminhou-se para a porta. Ao chegar ao
limiar, voltou-se para os encarar.
- É melhor chamarem o padre Anselmo. Já Lhe resta pouco tempo.
A mãe cuspiu no chão em sinal de desprezo, depois
voltou a inclinar-se para esfregar o pequeno feixe de
seda no ventre sofredor da filha, murmurando orações
em dialecto. As outras mulheres fitaram-no, de rosto
severo e em silêncio. Ao descer pela rua de pedras redondas, sentiu os olhos dos homens cravados nas suas
costas como punhais. Fora nessa altura que decidira embriagar-se.
Para Aldo Meyer, o velho liberal, o homem que
acreditava no homem, era o derradeiro gesto de derrota. Não havia esperança para aquela gente. Eram rapaces como falcões. Não hesitariam em Lhe comer o
coração, deixando-o depois a apodrecer numa valeta.
Ele sofrera por eles, lutara por eles, vivera com eles e
tentara educá-los, mas tinham ouvido tudo e não tinham aprendido nada. Troçavam dos conhecimentos
mais elementares, no entanto idolatravam lendas e superstições com a mesma avidez de crianças.
Somente a Igreja era capaz de os controlar, embora
não pudesse melhorá-los. Atormentava-os com demónios, obcecava-os com santos, adulava-os com madonnas chorosas e bambini de traseiros rechonchudos. Era
capaz de Lhes extorquir até à última moeda para um
candelabro novo, mas não podia - ou não estava para
aí virada - mandá-los a uma clínica para tomarem
injecções contra a febre tifóide. As mães andavam definhadas com tuberculose e os filhos exibiam ventres inchados devido à malária recorrente. Contudo, mais depressa
poriam o demónio na boca do que um comprimido de Atabrina - mesmo apesar de ser o próprio médico a pagar o medicamento.
Viviam em casebres onde um agricultor consciencioso não albergaria o seu gado. Comiam azeitonas, pasta, pão embebido em azeite e carne de cabra nos dias de festa,
se a conseguissem arranjar. As suas colinas
estavam despidas de árvores e os seus terraços tinham
um solo avaro donde as primeiras chuvas faziam escorrer as culturas, que se perdiam nas encostas pedregosas. O seu vinho era fraco e o milho pouco cheio e movimentavam-se
com a lentidão das pessoas que comem de menos e trabalham de mais.
Os proprietários rurais para quem trabalhavam exploravam-nos, no entanto mantinham-se agarrados às
abas dos seus casacos como crianças. Os seus padres
resvalavam frequentemente para a bebida e concubinagem, no entanto tiravam da própria pobreza para os
sustentar, tratando-os com um desprezo tolerante. Se
o Verão era tardio ou o Inverno rigoroso, a geada
queimava as azeitonas e a fome grassava nas colinas.
Não dispunham de escolas para os filhos, e o que o Estado não Lhes fornecia eles não providenciavam por si
próprios. Nunca sacrificariam as suas horas de lazer a
construir uma escola. Não podiam pagar a um professor, mas esgravatariam até ao fundo das suas minúsculas economias para encontrar liras que financiassem a canonização
de um novo santo para um calendário já a rebentar pelas costuras.
Aldo Meyer olhou fixamente para as borras escuras
da sua grappa para nelas ler futilidade, desencanto e
desespero. Ergueu a taça e emborcou os resíduos de
uma vez só. Eram amargosos como absinto e não proporcionaram nenhum calor.
Chegara àquela terra na qualidade de exilado, numa
altura em que os fascistas tinham reunido os semitas
os intelectuais de esquerda e os liberais demasiado faladores, apresentando-lhes a alternativa limitada de se
contentarem com uma vida rústica na Calábria ou trabalhos forçados em Lipari. Tinham-lhe atribuído a designação irónica de médico oficial, mas nenhum salário,
medicamentos e anestésicos. Chegara com as roupas que
trazia no corpo, um saco de instrumentos, um frasco de
aspirinas e um compêndio de medicina. Durante seis
anos combatera e intrigara, adulara e chantageara para
implantar um serviço médico rudimentar numa área
sujeita a uma má nutrição constante, à malária endémica e à tifóide epidémica.
Viveu numa casa de quinta arruinada, que restaurou
com as próprias mãos. Lavrou dois acres de terra pedregosa com a ajuda de um camponês idiota. O seu
hospital limitava-se a um quarto em sua casa. Era na
cozinha que dava as consultas. Os camponeses pagavam-lhe em espécie, quando o faziam, e foi a custo
que conseguiu arrancar às autoridades locais uma contribuição em remédios, instrumentos cirúrgicos e protecção contra um governo hostil. Fora uma subserviência amarga,
mas vivera momentos de triunfo, dias em que Lhe parecera ter finalmente penetrado no círculo fechado da vida montanhesa primitiva.
Quando os Aliados atravessaram o estreito de Messina e iniciaram o lento progresso sangrento pela península acima, ele fugira, juntara-se aos guerrilheiros
e, depois do armistício, passara algum tempo em Roma. Mas ausentara-se durante um período demasiado
extenso. Os velhos amigos tinham morrido. Fazer
novos era difícil, e os pequenos triunfos dos anos de
privações tinham-no desafiado para outros maiores.
No Sul, um homem que dispusesse de boa vontade,
desejo de introduzir melhorias, liberdade e dinheiro
podia fazer milagres.
De modo que regressara - à velha casa, à velha aldeia, levando consigo um sonho novo e uma sensação
de juventude renovada. Tornar-se-ia tanto professor
como médico.
Lançaria as bases de um protótipo de organização
para uma tentativa de cooperativismo, uma organização que atraísse dinheiro de Roma para fins de desenvolvimento e dinheiro de apoio de fundações estrangeiras. Ensinar-lhes-ia
higiene e a conservação do solo e da água. Treinaria rapazes para levarem a sua mensagem a distritos distantes. Seria um missionário do progresso numa terra onde
o progresso parara três séculos antes.
Doze anos atrás fora um sonho belo e renovador.
Sabia agora que não passara de uma triste ilusão. Caíra no erro de todos os liberais: a crença de que o homem está preparado para se mudar a si próprio, que a
boa vontade atrai a boa vontade, que a verdade possui
a virtude de fermentar por si só. Os seus planos tinham ido por água abaixo diante da venalidade das entidades oficiais, do conservadorismo de uma Igreja feudal,
da capacidade e desconfiança de um povo primitivo e ignorante.
A névoa densa do álcool não o impedia de ver com
toda a clareza. Tinham-no vencido. Ele vencera-se a si
próprio. E agora era demasiado tarde para remediar as coisas.
Do crepúsculo que reinava no exterior chegou um
lamento prolongado de vozes femininas. A rapariga e
o padrone entreolharam-se e benzeram-se. O médico
levantou-se e caminhou, a passo incerto, para a porta,
onde se deteve a olhar para a penumbra fresca da Primavera .
- Ela morreu - disse o padrone com a sua voz
grossa e roufenha.
- Digam-no ao santo - declarou Aldo Meyer. - Eu
vou para a cama.
Quando o médico se afastou, vacilante, pela estrada,
a rapariga deitou-lhe a língua de fora e benzeu-se contra o mau-olhado.
O grito fúnebre subiu e desceu de tom, lamuriento
como o vento pela montanha adormecida. Acompanhou-o pela estrada de pedras até entrar em casa. Bateu-lhe na porta, agitou-lhe as persianas e perseguiu-o
pela noite fora, no sono agitado e aflito.
No entardecer dessa Primavera, o cardeal Eugenio
Marotta passeava no jardim da sua villa, em Parioli.
Bem abaixo dele, a cidade começava a despertar do
torpor da tarde, retomando a azáfama comercial, com
buzinas ruidosas, motoretas trovejantes e comerciantes
a regatear. Os turistas arrastavam-se, contrariados,
para fora de São Pedro, de São João de Latrão e do
Coliseu. As vendedeiras de flores aspergiam os seus
ramalhetes para o derradeiro assalto dos amantes das
Escadas de Espanha. O sol-poente espraiava-se sobre
as colinas e telhados das casas, mas a névoa do crepúsculo pairava densamente mais abaixo, nas ruas estreitas, e as paredes dos edifícios tinham uma aparência acinzentada
e gasta.
No entanto, ao cimo, no Parioli, o ar mostrava-se
límpido e as avenidas silenciosas, enquanto Sua Eminência caminhava sob palmeiras pendentes, no meio
do odor perfumado dos jasmins em flor. à sua volta
erguiam-se muralhas altas e portões de grades que protegiam a sua intimidade, os brasões de bronze sobre os
lintéis lembravam aos visitantes a categoria e os títulos
do cardeal Eugenio Marotta, arcebispo de Acropolis,
titular de São Clemente, prefeito da Sagrada Congregação dos Ritos, subprefeito do Supremo Tribunal da
Assinatura Apostólica, comissário para a interpretação
da lei canónica, protector dos Filhos de S. José e das
Filhas de Maria Imaculada e de vinte outras organizações religiosas de maior ou menor dimensão e importância no seio da Santa Igreja Católica.
Os títulos eram amplos, o poder que se erguia por
trás deles também; mas Sua Eminência ostentava-os
com um bom humor e uma afabilidade que ocultavam
uma inteligência subtil e uma vontade dominadora.
Era um homem baixo e rotundo, de mãos e pés pequenos, rosto com papadas e a cabeça em forma de redoma e careca como um ovo sob o solidéu. Os olhos
cinzentos piscavam com benevolência, a boca era pequena e vermelha como a de uma mulher, contrastando com o moreno esverdeado da pele. Tinha sessenta
e três anos, o que é uma idade jovem para um homem
alcançar o chapéu encarnado. Trabalhava muito, embora sem esforço aparente, e ainda Lhe restavam energias para as diplomacias tortuosas e as manipulações
de poder que reinavam no interior da fechada cidade do Vaticano.
Havia aqueles que encaravam com bons olhos a sua
eleição ao papado mas havia outros, mais numerosos,
que defendiam a ideia de que o pontífice seguinte deveria ser um homem mais devotado às santidades,
menos preocupado com a diplomacia do que com a reforma da moral no seio tanto do clero como dos leigos. Eugenio Marotta contentava-se em aguardar o
desfecho, sabendo que mais valia não contar com altos
voos. Além disso, o sumo pontífice podia estar velho,
mas ainda Lhe faltava muito para morrer, para além de
encarar com pouca simpatia aqueles que Lhe cobiçavam o lugar.
Assim caminhava Sua Eminência pelo jardim da sua
villa, vendo o Sol a declinar sobre as colinas de Alba e
reflectindo sobre as questões do dia com a atitude descontraída do homem que sabe que no fim acabará por
resolvê-las todas.
Podia dar-se ao luxo de se descontrair. A sua ascensão
ao cume fora firme e progressiva, e dali nem a malevolência nem o desfavor o podiam retirar. Permaneceria
cardeal até ao dia da sua morte, príncipe pelo protocolo, bispo por uma consagração irrevogável, cidadão do
estado mais pequeno e menos vulnerável do mundo.
Era mais do que um homem nos seus vigorosos sessenta anos poderia aspirar. Era muito mais porque não estava limitado por uma esposa, não tinha filhos e filhas
para Lhe darem cabo da cabeça, e os paroxismos da
paixão não tinham para ele nenhum significado. Chegara tão longe quanto o talento e a ambição o poderiam levar.
O passo seguinte seria a cadeira de Pedro; mas o salto era grande, quase do meio do mundo para o vestíbulo da divindade. O homem que usava o anel do Pescador e a
tiara tripla também carregava os pecados do mundo aos ombros como um manto de chumbo. Erguia-se sobre um pináculo açoitado pelos ventos, sozinho, com o tapete das
nações aberto a seus pés e por
cima o rosto nu do Todo-Poderoso. Só um louco poderia invejar-lhe o poder, a glória e o terror de semelhante principado. E o cardeal Eugenio Marotta de
louco não tinha absolutamente nada.
Naquela hora de crepúsculo e jasmim, tinha problemas que Lhe chegavam.
Dois dias antes, tinham-lhe posto sobre a secretária
uma carta do bispo de Valenta, uma pequena diocese
situada numa zona desfavorecida da Calábria. O bispo
era-lhe vagamente conhecido como sendo um reformador rígido com tendência para a política. Causara certa
agitação uns anos atrás ao expulsar da ordem dois
padres de província por concubinagem e ao reformar
alguns dos seus pastores mais velhos por falta de
competência. As estatísticas eleitorais da sua diocese
tinham mostrado um desvio acentuado para os democratas-cristãos, o que lhe valera uma carta de cumprimentos do pontífice. Somente os observadores mais
argutos como Marotta é que se tinham dado conta de
que o ligeiro aumento viera do partido monárquico,
e não dos comunistas, que também tinham registado
uma subida ligeira. A carta do bispo era simples e
explícita - demasiado simples para ser sincera e demasiado explícita para não despertar suspeitas a um
veterano experimentado como o cardeal Eugenio Marotta.
Começava com saudações floreadas e deferências de
um bispo humilde a um membro ilustre da Igreja.
Prosseguia informando que o pároco e os fiéis das aldeias de Gemelli dei Monti tinham enviado uma petição com vista à candidatura do servo de Deus Giacomo Nerone
à beatificação.
Esse tal Giacomo Nerone fora morto pelos guerrilheiros comunistas em circunstâncias que bem podiam
ser consideradas de martírio. Depois da sua morte,
as aldeias e suas cercanias tinham começado a venerá-lo espontaneamente e várias curas de natureza miraculosa eram atribuídas à sua influência. Investigações
preliminares tinham confirmado a fama de santidade e
a natureza aparentemente milagrosa das curas, e o bispo estava disposto a autorizar a petição e a submeter
o caso a um inquérito. Antes de o fazer, porém, procurava conselho junto de Sua Eminência, como prefeito da Congregação dos Ritos, assim como a sua ajuda na nomeação,
da parte da própria Roma, de dois homens sábios e piedosos - um como postulante da causa, para organizar a investigação e levá-la por diante, o outro como promotor
da fé, ou advogado do Diabo,
para submeter as provas e as testemunhas a escrutínio
severo, de acordo com o que vinha estipulado na lei canónica .
Havia mais, muito mais, mas era ali que residia o
cerne do problema. O bispo poderia ter um santo no
seu território - um santo conveniente, também,
martirizado pelos comunistas. A única forma que tinha de provar a sua santidade era através de uma investigação judicial, primeiro na sua própria diocese e
depois em Roma, sob a autoridade da Congregação
dos Ritos. Mas os primeiros inquéritos deveriam ser
conduzidos debaixo da sua própria vigilância e autoridade, com oficiais nomeados por si mesmo. Os bispos
locais eram normalmente muito ciosos da sua autonomia. Então a que se devera aquele apelo referente a Roma?
O cardeal Eugenio Marotta caminhou pelos relvados
aparados do jardim da sua villa e ponderou sobre a proposta.
Os Gemelli dei Monti situavam-se bem ao fundo do
Sul da Itália, região onde os cultos proliferam e desaparecem com a mesma prontidão, onde a fé tem a cobri-la uma camada espessa de superstição, onde os camponeses
fazem o sinal da Cruz com a mesma mão com que esconjuram o mau-olhado, onde a imagem do Menino Jesus está pendurada à cabeceira da cama e
os cornos pagãos pregados ao cimo da porta do estábulo. O bispo era um homem precavido que queria um santo para o bem da sua diocese, mas recusava pôr a sua própria
reputação à prova ao lado da do servo de Deus.
Se a investigação corresse bem, ele não só teria
um beato mas também um bastão para dar nos comunistas. Se se lograsse, os homens sábios e piedosos
de Roma sempre poderiam partilhar de alguma culpa.
Sua Eminência soltou uma risada perante a subtileza
da manobra. Procurem bem num homem do Sul e
encontrarão uma raposa que farejou as armadilhas
ao longe e Lhes deu a volta para chegar à capoeira das galinhas.
Mas havia algo mais em jogo do que a reputação de
um bispo de província. Havia a política envolvida no
assunto e as eleições italianas estavam apenas a um ano
de distância. A opinião pública era sensível à influência
do Vaticano nas questões civis. Os anticlericais acolheriam com prazer qualquer oportunidade para denegrir
a Igreja e já dispunham de armas suficientes para que
Lhes pusessem mais uma nas mãos.
Havia outras questões mais profundas, questões
menos relevantes para o tempo do que para a eternidade. Designar um homem como bem-aventurado era
declará-lo um servo heróico de Deus, apresentá-lo
como um exemplo e um intercessor a favor dos fiéis.
Aceitar os seus milagres era admitir, para além de
qualquer dúvida, que o poder divino actuava através
dele para suspender ou alterar as leis da Natureza.
Errar em semelhante questão era inimaginável. Toda
a máquina maciça da Congregação dos Ritos fora
criada para o evitar. Mas uma acção prematura, uma
investigação mal feita, poderiam originar um escândalo grave e enfraquecer a fé de milhões numa Igreja
infalível que clamava a orientação directa do Espírito Santo.
Sua Eminência estremeceu ante o cair da primeira
penumbra fria sobre Parioli. Era um homem endurecido pelo poder e céptico relativamente à devoção, mas
também ele carregava sobre os ombros o fardo da
crença e no coração o medo do demónio do meio-dia.
Podia permitir-se, menos que os outros, o luxo do
erro. Muito mais coisas dependiam dele. O castigo
pelo fracasso seria, assim, mais rigoroso. Apesar da
pompa do seu título e da dignidade secular que Lhe
era inerente, a sua missão primeira era de ordem espiritual. Estava relacionada com as almas - sua salvação e condenação. O fardo pesado da maldição tanto podia
cair sobre um cardeal em erro como numa cura sem fé. De modo que caminhou e reflectiu seriamente enquanto o som harmonioso dos sinos Lhe chegava da cidade e os grilos
no jardim iniciavam o seu coro agudo.
Concederia ao bispo de Valenta o seu pequeno
triunfo. Descobrir-lhe-ia os homens - um postulante
para reunir os factores ligados ao caso e apresentá-lo,
e um advogado do Diabo para o destruir, se pudesse.
Dos dois, o advogado do Diabo era o mais importante.
O seu título oficial descrevia-o com precisão: promotor
da fé. O homem que mantinha esta fé pura, fosse qual
fosse o seu custo em vidas arruinadas e corações destroçados. Devia ser culto, meticuloso, desprovido de
paixões. Devia ser frio no julgamento, impiedoso na
condenação. Podia não dispor de caridade ou piedade,
mas a precisão não Lhe podia faltar. Semelhantes homens eram raros, e os que havia já se encontravam
ocupados com outras causas.
De repente lembrou-se de Blaise Meredith, o indivíduo reservado e sóbrio sobre o qual pairava a escuridão da morte. Ele possuía essas qualidades. Era inglês, o que
afastaria a mácula do envolvimento político. Mas, se ele dispunha de vontade ou de tempo suficiente para levar a iniciativa a cabo, isso era outra questão. Se o
veredicto médico fosse desfavorável, ele poderia não se sentir na disposição de aceitar uma tarefa tão pesada.
Ainda assim, continuava a ser o princípio de uma
resposta. Sua Eminência não se sentia insatisfeito.
Deu por findo o circuito de lazer pelo jardim mergulhado na penumbra e regressou à villa para rezar as
vésperas com o pessoal da sua casa.

CAPÍTULO II

Dois dias mais tarde, o cardeal Eugenio Marotta encontrava-se no seu gabinete de trabalho, sentado à sua
enorme secretária de madeira trabalhada, a conversar
com Monsenhor Blaise Meredith. Sua Eminência dormira bem e tomara um pequeno-almoço leve, e o seu
rosto, redondo e afável, mostrava-se fresco e reluzente
da barba recentemente feita. Na sala magnífica de tectos abobadados e com os seus tapetes de Aubussom e
os seus quadros de molduras douradas, ele revestia-se,
inconscientemente, da dignidade que Lhe conferia a
propriedade dos bens materiais.
Formando contraste, o inglês parecia pequeno, cinzento e encarquilhado. A sotaina pendia-lhe, larga, do
corpo franzino, e o debruado escarlate só servia para
lhe acentuar a tonalidade doentia do rosto. Tinha os
olhos velados de fadiga e aos cantos da boca viam-se-lhe rugas profundas causadas pela dor. Nem mesmo a
língua italiana, com a sua vivacidade e romantismo,
Lhe alterava a voz seca e inexpressiva.
- É como lhe digo, Eminência. Tenho, na melhor
das hipóteses, um ano. Talvez metade desse tempo,
em termos de actividade profissional.
O cardeal aguardou alguns momentos, observando-o
com uma piedade impessoal. Depois observou suavemente:
- Lamento por si, meu amigo. Pode acontecer a
qualquer de nós, claro; mas é sempre um choque.
- No entanto, nós, mais do que todas as pessoas,
devíamos estar preparados para tal. - A boca, de
cantos descaídos, retorceu-se para cima, num sorriso
cheio de amargura.
- Não! - As pequenas mãos de Marotta agitaram-se em discordância. - Não devemos exigir demasiado
de nós próprios. Somos homens como os outros. Tornámo-nos padres por opção e vocação. Praticamos o
celibato por legislação canónica. É uma carreira, uma
profissão. Os poderes que exercemos, a graça que dispensamos, são independentes do nosso próprio mérito
pessoal. Para nós é melhor que sejamos santos do que
pecadores, mas, tal como os nossos irmãos no exterior
do ministério, somos geralmente algo que se situa no meio.
- Fraca consolação, Eminência, quando se está
prestes a enfrentar o julgamento final.
- Ainda assim é a verdade - recordou-lhe o cardeal friamente. - Estou na Igreja há muito tempo,
meu amigo. Quanto mais alto se chega, mais se vê, e
com maior clareza. Dizer que o sacerdócio santifica
o homem ou que o celibato o enobrece não passa de
pura fantasia. Se um padre é capaz de manter as mãos
afastadas dos bolsos e as pernas fora da cama de uma
mulher até chegar aos quarenta e cinco, tem muito
boas possibilidades de o conseguir fazer até morrer.
Também há muitos solteiros profissionais no mundo.
Mas não deixamos de estar sujeitos ao orgulho, à ambição, à indolência, à negligência, à avareza. Muitas
vezes é mais difícil salvarmos as nossas almas do que
as dos outros. Um homem que tem família deve fazer
sacrifícios, impor uma disciplina aos seus desejos, praticar amor e paciência. Talvez pequemos menos, mas
no final de contas temos menos mérito por tal.
- Estou muito vazio - declarou Blaise Meredith.
- Não há mal de que me arrependa nem bem com
que conte. Não tenho cle lutar contra nada. Nem sequer disponho de cicatrizes para mostrar.
O cardeal recostou-se na sua cadeira, brincando com
a enorme pedra amarela do seu anel episcopal. O único som audível na sala era o tiquetaque suave de um relógio de ouropel sobre a cornija de mármore da lareira.
Passados instantes disse pensativamente:
- Se quiser, desobrigo-o imediatamente das suas
funções, posso providenciar-lhe uma pensão dos fundos da Congregação. Viveria tranquilamente...
Blaise Meredith abanou a cabeça.
- É muita bondade sua, Eminência, mas não sou
dotado para a contemplação. Preferia continuar a trabalhar.
- Algum dia terá de parar. E depois?
- Irei para o hospital. Sei que sofrerei bastante.
Nessa altura... - esboçou um gesto de derrota com as
mãos. - Finita la commedia. Se não fosse pedir demasiado, gostaria de ser enterrado na igreja de Vossa Eminência.
Marotta sentiu-se, contra vontade, tocado pela coragem gélida daquele homem, que, cansado e enfermo,
tinha ainda a parte pior do seu calvário por enfrentar;
no entanto, percorria-o com uma dignidade desolada
que era tipicamente inglesa. Antes de o cardeal ter
tempo para replicar, Meredith continuou:
- Tudo isto partindo do princípio, evidentemente,
de que Vossa Eminência deseja utilizar os meus serviços. Eu... eu tenho receio de não poder garantir o melhor.
- Sempre fez melhor do que Lhe cabia, meu amigo - disse Marotta suavemente. - Sempre deu mais
do que prometeu. Além disso, tenho entre mãos um
assunto no qual me poderá prestar uma grande ajuda,
e, quem sabe... - fez uma pausa, como subitamente
acometido por um pensamento curioso - quem sabe,
também ajudar-se a si próprio.
Falou-lhe então, sem esperar pela resposta, do pedido que o bispo de Valenta Lhe dirigira, da sua necessidade de um advogado do Diabo na causa de Giacomo Nerone.
Meredith escutou, atento como um advogado perante os pormenores de um novo processo. Pareceu ficar
tomado de uma vida nova. Os olhos brilharam-lhe, endireitou-se na cadeira e as faces emaciadas adquiriram
um pequeno rubor. Eugenio Marotta reparou na mudança, mas não fez comentários. Depois de finalizar o
seu resumo da situação, perguntou:
- Bem, que pensa da questão?
- É uma imprudência - disse Meredith, com voz
firme. - Trata-se de uma manobra política, o que não
me agrada nada.
- Tudo na Igreja é político - lembrou-lhe Marotta
calmamente. - O homem é um animal político com
uma alma imortal. O meu amigo não pode dividi-lo,
do mesmo modo que não pode dividir a Igreja em funções separadas e independentes umas das outras. Tudo
o que a Igreja faz destina-se a proporcionar um carácter espiritual a uma evolução material. Nomeamos um
santo como patrono da televisão. Que significa isso?
Um símbolo novo de uma verdade antiga: que toda a
actividade legal pode conduzir ao bem ou ser pervertida
para o mal.
- Símbolos em excesso podem ensombrar a face da
realidade - disse Blaise Meredith secamente. - Santos em excesso podem desacreditar a santidade. Sempre achei que essa era a nossa função na Congregação
dos Ritos: não colocá-los no calendário, mas sim mantê-los afastados dele.
O cardeal anuiu sobriamente.
- Em certo sentido, é verdade. Mas, tanto neste caso
como em todos os outros, a iniciativa não parte de nós.
O bispo inicia-o na sua própria diocese. Só depois é que
os documentos nos são entregues. Não temos autoridade
para proibir directamente a investigação.
- Podem pronunciar-nos contra ela.
- Em que bases?
- Discrição. A altura não é propícia. Estamos na
véspera de eleições. Giacomo Nerone foi assassinado pelos guerrilheiros comunistas no último ano da guerra. Qual é a nossa intenção? Utilizá-lo para ganhar
um mandato regional, ou como exemplo da caridade heróica?
Os lábios vermelhos do cardeal distenderam-se num
pequeno sorriso irónico.
- Imagino que o nosso irmão bispo gostasse de satisfazer os dois aspectos ao mesmo tempo. E até certo
ponto é capaz de o conseguir. Tem-se falado em milagres. No meio do povo surgiu um culto aparentemente espontâneo. Ambos têm de ser judicialmente investigados. Já
se conduziu um inquérito preliminar e o veredicto tende para a aprovação. A fase seguinte processa-se quase automaticamente... a apresentação do pedido de beatificação
no tribunal do próprio
bispo.
- Assim que tal tiver lugar, todos os jornais na
Itália publicarão a história. As agências de viagens
começarão a organizar excursões particulares. Os comerciantes locais iniciarão as suas manobras de venda.
Não se pode evitar.
- Mas talvez possamos exercer algum controlo. Foi
por isso que decidi aceder ao pedido de Sua Senhoria.
É por isso que gostaria que o meu amigo fosse o advogado do Diabo.
Blaise Meredith franziu os lábios finos e pálidos, reflectindo sobre a proposta. Depois, passados alguns
instantes, abanou a cabeça.
- Sou um homem doente, Eminência. Não conseguiria prestar-lhe um bom serviço.
- Deve deixar esse julgamento para mim - reprovou-o Marotta friamente. - Além disso, como referi,
a causa também poderá ajudá-lo - acrescentou.
- Não entendo.
O cardeal empurrou a cadeira alta e trabalhada para
trás e levantou-se. Atravessou a sala em direcção à janela, afastando os cortinados para deixar que o sol da
manhã inundasse a divisão, iluminando o escarlate e o dourado, fazendo que os desenhos coloridos do tapete
ressaltassem com a vivacidade de flores. Blaise Meredith pestanejou diante do brilho intenso e protegeu os
olhos com a mão. O cardeal ficou a olhar para o jardim. Meredith não Lhe via o rosto, mas, quando falou,
na sua voz notava-se uma compaixão rara.
- O que tenho para Lhe dizer, monsenhor, é provavelmente uma presunção. Não sou o seu confessor.
Não posso olhar para dentro da sua consciência; mas
estou certo de que atingiu um ponto de crise. O meu
amigo, tal como muitos de nós em Roma, é um sacerdote profissional, um homem que seguiu a carreira da
Igreja. Não existe qualquer estigma nessa situação. Ser
bom profissional já é muito. Muitos são os que não
chegam sequer perto desta perfeição limitada. De repente descobriu que não é suficiente. Está confuso,
receoso. No entanto, não sabe o que fazer para reparar essa lacuna. Parte do problema reside no facto de
o senhor, eu e outros como nós andarmos há demasiado tempo afastados dos deveres pastorais. Perdemos o contacto com as pessoas que nos mantêm em ligação com Deus.
Reduzimos a fé a um conceito intelectual, a um consentimento árido da vontade, porque não a vimos actuar nas vidas das pessoas vulgares. Perdemos em piedade, medo
e amor. Somos os guardiães
de mistérios, mas estes deixaram de exercer o seu fascínio sobre nós. Trabalhamos regendo-nos pela legislação canónica, não pela caridade. Tal como todos os administradores,
achamos que o mundo tropeçará no caos se não formos nós a valer-lhe, que até a Igreja de Deus carregamos às nossas costas. Não é verdade, mas alguns de nós acreditam
nisso até ao dia da morte. Tem sorte por ter sido tocado pela insatisfação, apesar
da hora tardia... sim, até mesmo pela dúvida, porque
acredito que se encontra agora no deserto da tentação... É por isso que acredito que a investigação o pode ajudar. Tirá-lo-á para fora de Roma, levá-lo-á até uma
das zonas mais degradadas da Itália. Reconstituirá a vida de um homem falecido a partir dos dados fornecidos por aqueles que com ele viveram: os pobres, os ignorantes,
os que nada possuem. Quer ele seja pecador ou santo, no final das contas não fará diferença.
O senhor viverá e falará com pessoas simples. Entre
elas talvez encontre a cura para o seu próprio mal de espírito.
- Qual é o meu mal, Eminência?
A fadiga patética da voz, a estranheza desolada da
pergunta, despertaram piedade no coração do velho
homem da Igreja. Virou as costas à janela e viu Meredith encolhido na cadeira, com o rosto entre as mãos.
Aguardou um momento, estudando a resposta que Lhe
iria dar; depois deu-a, gravemente.
- Na sua vida não existe paixão, meu filho. Nunca amou uma mulher, ou odiou um homem, ou teve
pena de uma criança. Retirou-se para dentro de si
durante demasiado tempo e tornou-se um estranho
na família humana. Nada pediu e nada deu. Nunca
conheceu a dignidade inerente à necessidade nem a
gratidão por um sofrimento partilhado. Esse é o seu
mal. Essa a cruz que criou para carregar nos próprios
ombros. É aí que as suas dúvidas principiam e também
os seus receios, porque um homem que não consegue
amar o seu semelhante também não consegue amar a Deus.
- Como é que se começa a amar?
- A partir da necessidade - retorquiu Marotta firmemente. - A partir da necessidade da carne e da necessidade do espírito. Um homem anseia pelo seu primeiro beijo,
e a sua primeira oração autêntica é feita
quando ele anseia pelo Paraíso perdido.
- Sinto-me tão cansado - disse Blaise Meredith.
- Vá para casa e repouse - disse o cardeal jovialmente. - De manhã poderá partir para a Calábria.
Apresente as suas credenciais ao bispo de Valenta e
lance mãos ao trabalho.
- O senhor é um homem duro, Eminência.
- Todos os dias morrem homens - observou Eugenio Marotta bruscamente. - Alguns são condenados, outros alcançam a salvação; mas o trabalho da Igreja
continua. Vá, meu filho, em paz e em nome de Deus!
às onze da manhã do dia seguinte, Blaise Meredith
partia de Roma para a Calábria. A sua bagagem consistia numa pequena mala com roupas, uma pasta contendo o seu breviário, o seu livro de apontamentos e uma carta
do prefeito da Congregação dos Ritos para Sua Eminência o Bispo de Valenta. Tinha uma viagem de dez dias à sua frente e o rápido estava quente, empoeirado e apinhado
de calabreses que regressavam de
uma peregrinação organizada à Cidade Santa.
Os mais pobres iam empilhados como gado nas carruagens da segunda classe, enquanto os mais abonados se espalhavam pela primeira, ocupando com os seus pertences os
lugares vagos e os porta-bagagens. Meredith deu consigo firmemente ancorado entre uma matrona corpulenta de vestido de seda e um padre de rosto queimado que mastigava
ruidosamente os rebuçados de hortelã-pimenta de um pacote. O lugar da frente estava
ocupado por um camponês, sua mulher e quatro filhos,
que guinchavam como cigarras e tropeçavam nos pés
de todos. As janelas iam completamente fechadas e o
ar era desagradável e abafado.
Tirou o seu breviário para fora e muniu-se de toda a
sua capacidade de concentração para ler o seu ofício.
Dez minutos depois de saírem de Roma desistiu, desconsolado. O ar viciado provocava-lhe náuseas e a cabeça latejava-lhe com o ruído monótono do comboio e o som estridente
das vozes das crianças. Tentou dormitar, mas a mulher corpulenta agitava-se, pouco à vontade dentro do seu vestido de seda, e a mastigação ruidosa do padre enervava-o
a ponto de ter vontade de gritar.
Derrotado e agoniado, levantou-se com esforço e foi
para o corredor, onde se deixou ficar, de pé, encostado
à parede de painéis, olhando para a paisagem.
Naquela altura imperava o verde, com os primeiros
esplendores da Primavera. As cicatrizes da erosão e da
lavoura tinham-se revestido de erva nova, o estuque da
frontaria das casas fora lavado pelas chuvadas e branqueado pelo sol, e até mesmo as ruínas dos aquedutos
e das velhas povoações romanas se mostravam salpicadas de musgo fresco e de ervas daninhas que irrompiam por entre as pedras gastas pela acção do tempo.
O milagre cíclico da renovação era mais vivido ali do
que em qualquer outro país no mundo. Ali estava uma
terra cansada, ruinosamente devastada ao longo dos
séculos, as colinas desgastadas, as árvores dizimadas,
os rios secos, o solo reduzido a pó; no entanto, todos
os anos arranjava maneira de fazer a sua exibição breve e arrojada de folhas, ervas e flores. Mesmo nas
montanhas, nas íngremes vertentes cobertas de tufo
calcário, demasiado pobres mesmo para o pasto de cabras, ainda se vislumbravam finas camadas de verde
com que recordar um passado de fertilidade.
Se fosse possível deixar as terras em pousio, reflectiu Meredith, esvaziá-las das suas tribos proliferantes
durante meio século, poderiam voltar a ganhar a sua
prosperidade anterior. Mas tal nunca aconteceria. Eles
continuariam a reproduzir-se, ao mesmo tempo que a
terra morria sob os seus pés, lentamente, de facto, porém demasiado depressa para que os técnicos e os agrónomos tivessem possibilidade de restaurá-la.
A paisagem iluminada pelo sol, que passava rapidamente, cansou-lhe a vista, e Meredith passeou os olhos
pelo corredor, observando aqueles que o fumo dos cigarros, o cheiro a chouriço rançoso e alho e corpos
suados haviam posto fora dos respectivos compartimentos. Havia um homem de negócios napolitano de calças afuniladas, casaco curto e um zircão flamejante num dos
dedos rechonchudos, um turista alemão com sapatos grossos e uma cara máquina fotográfica dmarca Leica, um par de francesas de peito chato, um estudante americano
de cabelo à escovinha e faces sardentas e um casal de provincianos a namorar, de mãos
dadas, ao pé dos lavabos.
Quem chamou a atenção de Meredith foram os namorados. O homem era um camponês de ar tosco do
Sul, escuro como um árabe, olhos faiscantes e mãos
volúveis. As calças de algodão fino moldavam-lhe as
ancas e a camisa suada colava-se-lhe ao peito, de tal
maneira que toda aquela masculinidade acentuada ressaltava sugestivamente nele. A rapariga era baixa e
com a mesma tez morena que o companheiro, de cintura e tornozelos largos, mas de seios cheios e firmes,
que Lhe esticavam o corpete curto do vestido.
Iam em frente um do outro, no corredor estreito, as
mãos dadas como formando uma barreira a qualquer
intrusão, os olhos cegos para tudo que não fosse os
dois, os corpos descontraídos balançando ao ritmo do
comboio. A paixão de que estavam possuídos era nítida, mas não dava mostras de urgência. O rapaz exibia
a vaidade de um galarote, ainda confiante na sua posse. A rapariga ia contente com ele e consigo própria,
na pequena eternidade secreta de um amor novo.
Ao olhá-los, Meredith sentiu-se atingido por uma
vaga nostalgia ligada a um passado que nunca fora seu.
Que sabia ele do amor para além de uma definição
técnica e uma culpa murmurada no confessionário?
Que significado tinha o seu conselho diante daquela
comunhão franca, erótica, que por determinação divina representava o começo da vida e a garantia da perpetuação do homem? Em breve, possivelmente naquela mesma noite,
aqueles dois deitar-se-iam juntos na
pequena morte da qual nasceria uma nova vida - um
novo corpo, uma nova alma. Mas Blaise Meredith dormiria sozinho, com todos os mistérios do universo reduzidos a um silogismo escolástico no interior da sua
caixa craniana. Quem estava certo - ele ou eles?
Quem se aproximava mais da perfeição do desígnio divino? A resposta era só uma. Eugenio Marotta tinha
razão. Ele retirara-se para dentro de si, afastando-se da família humana. Aqueles dois jovens seguiam em
frente para a renovarem e perpetuarem.
Começou a sentir os pés a doer. As costas latejavam-lhe. Na boca do estômago, a pequena dor insidiosa começara de novo a fazer-se sentir. Teria de se sentar a repousar
um pouco. Ao abrir caminho de volta ao seu lugar, reparou que o sacerdote calabrês estava completamente lançado num sermão:
-... Um homem maravilhoso, o Santo Padre. Um
santo como não há outro. Estive muito perto dele, em
São Pedro. Bastar-me-ia estender a mão para Lhe tocar.
Uma pessoa sente o poder que dele emana. Maravilhoso... maravilhoso...! Não devemos deixar passar um único dia das nossas vidas sem que agradeçamos a Deus o
privilégio de termos usufruído desta peregrinação.
O compartimento estava impregnado do cheiro a
hortelã-pimenta. Blaise Meredith cerrou as pálpebras
e rezou por uma trégua, mas a grossa voz calabresa
continuou a zunir, interminavelmente.
-... Que outra experiência se pode comparar com
esta de termos ido a Roma, seguido as pegadas dos
mártires e ajoelhado no túmulo de Pedro? É ali que se
vê a Igreja tal como ela verdadeiramente é: um exército de padres, monges e freiras a preparar-se para conquistar o mundo de Cristo...
"Se essa é a maneira como o conquistam", pensou
Blaise Meredith, irritado, "Deus ajude o mundo. Este
tipo de palhaçada nunca fez bem a ninguém. O tipo fala como um vendedor ambulante. Se ao menos se calasse e reflectisse um pouco!"
Mas o calabrês já ia lançado e a presença de um irmão eclesiástico só o impelia a maiores esforços.
- Eles têm razão quando chamam a Roma a Cidade Santa. O espírito do sumo pontífice vela por ela
noite e dia. Reparem, nem todos os santos da Igreja
estão em Roma. Oh, não! Até mesmo na nossa pequena província temos um santo: ainda não foi oficializado, mas é real. Ah, sem dúvida! Muito real!
Blaise Meredith ficou imediatamente alerta. A sua
irritação desapareceu e aguardou atentamente o que se ia seguir.
- O processo de beatificação já foi iniciado. Giacomo Nerone. Se calhar já ouviram falar dele. Não?
Uma história estranha e maravilhosa. Ninguém sabe
donde ele veio, mas o certo é que um dia apareceu na
aldeia, como um homem enviado por Deus. Construiu
um pequeno ermitério com as próprias mãos e entregou-se à oração e às boas acções. Quando os comunistas entraram na aldeia para tomar conta dela, depois
da guerra, mataram-no. Morreu como um mártir em
defesa da fé. E depois da sua morte têm-se verificado
milagres sem conta no seu túmulo. Os doentes têm-se
curado; os pecadores arrependem-se: sinais indiscutíveis do favor do Todo-Poderoso.
Blaise Meredith descerrou as pálpebras e perguntou inocentemente:
- Conheceu-o, padre?
O calabrês varou-o com um olhar fugidio e desconfiado.
- Se o conheci? Bem, não, não pessoalmente. Embora, evidentemente, saiba muito acerca dele. Eu próprio sou de Consenza. A paróquia ao lado.
- Obrigado - agradeceu Blaise Meredith delicadamente, voltando a fechar os olhos.
O calabrês agitou-se, incomodado, no seu lugar, até
que se levantou para se ir aliviar aos lavabos. Meredith
aproveitou a vantagem da sua ausência para esticar as
pernas e aliviar a cabeça dolorida de encontro ao recosto estofado. Não se sentia arrependido pelo que fizera. Agora, mais do que nunca, aquele tipo de ladainha
era-lhe detestável. Era uma espécie de calão eclesiástico
uma retórica adulterada que nada explicava, mas fazia
alarde de uma verdade incontestável. Convidava a todas as perguntas, mas não respondia a nenhuma. A estrutura maciça da razão e da revelação sobre que a Igreja se
fundamentava ficava reduzida a um ritual falso, amorfo, ineficaz e essencialmente falso. Piedade de hortelã-pimenta. Só enganava o homem que a pregava. Só satisfazia
as velhas senhoras e as moças anémicas; contudo, florescia mais viçosamente onde a Igreja
se mostrava mais firmemente implantada na ordem estabelecida. Era o sinal da acomodação, do compromisso, da cedência, no seio do clero, que achava mais fácil
pregar devoção do que enfrentar os problemas morais
e sociais do seu tempo. Disfarçava fatuidade e falta de
educação. Deixava as pessoas nuas e desarmadas em
face de mistérios aterrorizadores: dor, paixão, morte,
o grande "talvez" do Além.
O calabrês de tez morena regressou ao seu lugar,
abotoando atabalhoadamente os botões da batina, resolvido a retomar a prelecção perante o seu auditório
e o monsenhor de rosto cavado. Sentou-se, assoou-se
ruidosamente e em seguida bateu discretamente no
joelho de Meredith.
- O monsenhor é de Roma?
- De Roma, sim.
Ficara sem saber como reagir àquela intrusão no seu
repouso, e o seu tom de voz foi áspero; mas o calabrês
era um homem obstinado, disposto a transpor todos os obstáculos.
- Mas não é italiano, pois não?
- Não. Sou inglês.
- Ah, uma visita do Vaticano? Um peregrino?
- Trabalho lá - retorquiu Meredith friamente.
O calabrês agraciou-o com um sorriso fraternal que
exibiu uma boca cheia de dentes cariados.
- Tem muita sorte, monsenhor. Dispõe de oportunidades que são negadas a nós, pobres provincianos.
Nós trabalhamos as terras pedregosas, enquanto os senhores lavram as pastagens abundantes da Cidade dos Santos...
- Eu não lavro nada - disse-lhe Meredith sem mais
delongas. - Pertenço aos quadros da Congregação
dos Ritos, e Roma não é mais cidade de santos do que Paris ou Berlim. É um lugar mantido numa ordem razoável, porque o papa faz questão em fazer valer os direitos
que lhe assistem segundo a Concordata, de preservar o seu carácter sagrado como centro do cristianismo. É tudo.
O calabrês tinha tanto de manhoso como de chato.
Ignorou a reprimenda e agarrou rapidamente no novo
tópico que se Lhe apresentava.
- O senhor desperta-me grande interesse, monsenhor. Vive, com toda a certeza, num mundo muito mais vasto do que o meu. Tem muito maior experiência das questões.
Mas eu sempre disse que a vida simples do campo facilita muito mais o caminho da santidade do que a azáfama mundana de uma grande
cidade. Trabalha na Congregação dos Ritos. Possivelmente lida com os processos dos santos e beati. Não é verdade?
Caíra na armadilha e tinha consciência do facto.
Acabaria por ter de se prestar à conversa. Submeter-se
imediatamente poupar-lhe-ia tempo e energias - e depois tentaria mudar de lugar em Formio ou Nápoles.
Respondeu secamente:
- Toda a minha experiência me diz que os santos
podem ser encontrados nos lugares mais variados e nas
alturas menos propícias.
- Exactamente! Aí tem o aspecto que tanto me
vem a interessar relativamente ao nosso servo de Deus
Giacomo Nerone. Conhece o sítio onde ele viveu, Gemelli dei Monti?
- Nunca lá estive.
- Mas sabe o que o nome significa?
- Imagino que queira dizer... montanhas gémeas.
- Precisamente. Aldeias gémeas localizadas nos
dois cimos de uma colina, numa das regiões mais desoladas da Calábria. Gemello Minore é a aldeia pequena. Gemello Maggiore, a maior. Encontram-se a cerca de sessenta
quilómetros de Valenta e a estrada é um pesadelo. Os aldeões são tão pobres e tristes como em qualquer das nossas outras províncias. Pelo menos, assim acontecia
até a fama do servo de Deus se espalhar.
- E depois? - Meredith começou a sentir, contrariado, o seu interesse a crescer.
- Ah, depois! - A mão grossa e peluda do sacerdote agitou-se num gesto de pregador. - Depois aconteceu uma coisa estranha. Giacomo Nerone vivera e trabalhara em
Gemello Minore. Foi nessa aldeia que o traíram e assassinaram. O seu corpo foi secretamente levado para uma gruta próxima de Gemello Maggiore e ali enterrado. A
partir dessa altura Gemello Minore começou a afundar-se cada vez mais, ao mesmo tempo que Gemello Maggiore cada dia ficava mais próspera.
Tem uma igreja nova, um hospital, uma estalagem para turistas e peregrinos. É como se Deus tivesse vindo
vingar-se dos traidores, compensando aqueles que deram abrigo ao Seu servo. Não concorda?
- É uma suposição duvidosa - respondeu-lhe Meredith, com ironia. - Nem sempre a prosperidade representa um sinal de deferência divina. Poderia ser resultado de
alguma promoção arguta por parte do prefeito e dos cidadãos, até mesmo do padre da paróquia. Este tipo de factos já ocorreu anteriormente.
O calabrês corou violentamente perante a imputação
e desatou numa refutação acalorada.
- O monsenhor presume demasiado. Este assunto
já foi analisado por homens sábios e devotos, homens
que entendem o nosso povo. Pretende opor-se à sua opinião?
- Não pretendo opor-me a ninguém - disse Meredith calmamente. - Simplesmente desaprovo os julgamentos apressados e as doutrinas duvidosas. Os santos
não são feitos por veredicto popular, mas sim por decisão canónica. Essa a razão por que me desloco à Calábria nesta altura, para actuar como promotor da fé no
processo de Giacomo Nerone. Se tiver alguma prova a
apresentar em primeira mão, terei muito gosto em recebê-la, na devida forma.
O padre ficou a olhá-lo de boca aberta durante um
momento; depois a sua confiança desfez-se em desculpas humildes, misericordiosamente interrompidas pela
chegada a Formio.
Tinham de esperar vinte minutos pelo comboio que
seguia para o Norte, o que proporcionou a Blaise
Meredith a oportunidade de desentorpecer as pernas
- e a graça de se envergonhar.
Que ganhara ele com aquela vitória barata, dialéctica, sobre um padre provinciano? O calabrês era um
chato - e, pior, um chato piedoso - mas Blaise Meredith era um dispéptico intelectual desprovido de
qualquer espírito de caridade. Nada ganhara e nada
dera - e perdera a sua primeira oportunidade de ficar
a saber um pouco acerca do homem cuja vida estava
encarregado de investigar.
Ao passear-se pela plataforma iluminada pelo sol,
observando os viajantes camponeses a movimentarem-se em redor do vendedor de refrigerantes, interrogou-se
pela centésima vez sobre o que seria que lhe faltava que
o impedia de comunicar livremente com os seus semelhantes. Outros padres, sabia, tinham um prazer intenso na troca de impressões com os camponeses no seu dialecto
rude e malicioso. Enriqueciam-se com preciosidades de sabedoria e experiência à mesa de um proprietário rural ou diante de uma tigela de vinho na cozinha de um operário.
Era com a mesma familiaridade que falavam com as prostitutas de língua atrevida do Trastevere e com os requintados signori de Parioli. Divertiam-se
tanto com o humor obsceno do mercado do peixe como
com o espírito da mesa de um cardeal. Não deixavam
também de ser bons padres e faziam muito pelo seu povo, obtendo uma singular satisfação pessoal no facto.
Qual era a diferença existente entre a sua pessoa e
eles? Paixão, dissera-lhe Marotta. A capacidade de
amar e desejar, de sentir com a dor dos outros, de partilhar da alegria dos outros. Cristo comera e bebera vinho na companhia de proxenetas e taberneiros, mas Monsenhor
Meredith, seu seguidor profissional, vivera sozinho no meio dos volumes pocirentos da biblioteca do Palácio das Congregações. E agora, naquele seu último ano de
vida, continuava sozinho, com a morte a crescer-lhe no ventre sob a forma de uma pequena
mancha escura - e sem ninguém no mundo que lhe fizesse companhia.
O guarda fez soar o seu apito e Meredith subiu novamente para o comboio, sabendo que o esperava uma
viagem longa e suada - Nápoles, Nocera, Salerno,
Eboli, Cassano, Cosenza e, noite alta, Valenta, onde o
bispo estaria à sua espera para lhe dar as boas-vindas.
Aurelio, bispo de Valenta, foi uma surpresa em mais
de um aspecto. Era um homem alto, franzino, ainda
no vigor dos seus quarenta.
O cabelo era cinzento-chumbo, meticulosamente penteado, e as suas belas feições aquilinas brilhavam de inteligência e humor. Era um Trentino, o que, à primeira
vista, pareceria uma escolha estranha para uma diocese
do Sul, e antes da sua transferência fora assistente no
Patriarcado de Veneza. Encontrava-se na estação à espera com o seu carro particular e, em vez de seguir para a cidade, levou Meredith uma dúzia de quilómetros para
o interior do campo, até uma bela villa erguida no meio de laranjeiras e oliveiras e sobranceira a um vale onde um riacho brilhava levemente sob o luar.
- Uma experiência - explicou em inglês nítido e
metálico. - Uma experiência em educação prática. Esta
gente imagina que o clero nasceu de batina e que o seu
único talento reside em dizer padre-nossos e ave-marias
e balançar turíbulos na catedral. Eu nasci no Norte.
A minha família trabalhava a terra nas montanhas, da
boa. Comprei este terreno a um proprietário rural que
estava mergulhado em dívidas até aos olhos e ando a
cultivá-lo com meia dúzia de rapazes a quem tento ensinar os rudimentos da agricultura moderna. É uma
batalha, mas conto ganhá-la. Também fixei aqui a minha residência oficial. A anterior era irremediavelmente antiquada... mesmo no meio da cidade, ao lado da
catedral. Entreguei-a ao meu vigário-geral. É da velha
escola, adora-a!
Meredith soltou uma pequena risada, influenciado
pela boa disposição contagiosa do colega. O bispo lançou-lhe uma mirada breve e penetrante.
- Está surpreendido, monsenhor?
- Agradavelmente - retorquiu Blaise Meredith. -
Esperava algo completamente diferente.
- Conservadorismo barroco? Veludos, brocados e
querubins dourados com a tinta a sair-lhes dos traseiros?
- Sim, algo do género.
O bispo deteve o automóvel diante do pórtico trabalhado da villa e deixou-se ficar alguns instantes
sentado ao volante, observando a encosta, onde o luar
arrancava reflexos prateados à copa das árvores. Disse calmamente:
- Aqui no Sul, vai encontrar muito mais disso do que
o suficiente... Formalismo, feudalismo, reaccionarismo,
homens seguindo hábitos velhos, porque Lhes parecem
mais seguros e não estão preparados para os novos.
Encaram a pobreza e a ignorância como cruzes que
têm de ser carregadas, e não como injustiças a serem
remediadas. Acreditam que, quanto maior número de
padres, monges e freiras houver, melhor será o mundo. Quanto a mim, gostaria de ver menos e melhores.
Preferia ter menos igrejas e mais gente a entrar nelas.
- Menos santos também? - perguntou Meredith brandamente.
O bispo ergueu os olhos bruscamente e depois começou a rir com vontade.
- Que os Ingleses sejam louvados! Neste momento
um pouco de cepticismo estrangeiro só nos faria bem a
todos. Admira-se de que um homem como eu possa
estar a defender a causa de Giacomo Nerone, não é?
- Francamente, é.
- Deixemos o assunto para ser tratado durante a
fruta e o queijo - disse Sua Eminência, sem malícia.
Um criado fardado de branco abriu a porta do carro
e acompanhou-os até dentro de casa.
- O jantar é daqui a meia hora - comunicou Sua
Eminência. - Espero que ache o seu quarto confortável. Pela manhã poderá ver o vale mesmo à sua frente
e aperceber-se do que fizemos.
Afastou-se e o criado conduziu Meredith ao andar
de cima, até um vasto quarto de hóspedes cujas portas
francesas davam para uma varanda estreita. Meredith
ficou encantado com as linhas precisas e modernas da
mobília, a força ascética do crucifixo de madeira que
pendia por cima do oratório que se via a um canto da
divisão. Havia uma estante com livros recentes em
francês, italiano e inglês, assim como um exemplar da
Imitação de Cristo sobre a mesinha-de-cabeceira. Uma
porta estabelecia a ligação entre o quarto e uma sala
de banho de azulejos recentes, com uma zona reservada à sanita e ao chuveiro. Sua Eminência possuía o instinto de um construtor civil e o bom gosto de um artista.
Também dispunha de sentido de humor, virtude muitíssimo rara no seio da Igreja italiana.
Ao tomar banho e mudar de roupa, Meredith sentiu
o cansaço e a frustração da viagem libertarem-no como
quem muda de pele. Até a dor importuna provocada
pela sua enfermidade parecia atenuada, apercebendo-se então de que aguardava com prazer e curiosidade o
jantar com Sua Eminência. Foi uma refeição simples
- antipasto, zuppa di verdura, galinha assada, fruta
local e um queijo picante da região - mas tudo cozinhado com distinção e meticulosamente servido; o vinho
era um Barolo bem encorpado das vinhas do Norte.
A conversa que a acompanhou foi muito mais subtil;
uma disputa de argumentos entre peritos, com o bispo
a iniciar as primeiras estocadas experimentais.
- Até o senhor chegar, meu caro Meredith, começava a sentir que cometera um erro.
- Um erro?
- Em pedir ajuda a Roma. Envolvia uma concessão, sabe, um certo sacrifício da minha autonomia.
- Custou assim tanto a Vossa Eminência?
O bispo anuiu gravemente.
- Poderia ter acontecido, de facto. Os modernizadores e os reformadores são sempre alvo de suspeita,
especialmente aqui no Sul. Se são bem sucedidos, recebem a desaprovação dos colegas mais conservadores.
Se falham, tornam-se um exemplo. Eles tentaram fazer demasiadas coisas e demasiado depressa. Portanto,
sempre achei mais prudente seguir o meu próprio caminho e guardar as minhas questões para mim próprio
e deixar os críticos jogar a primeira cartada.
- São muitos os que o criticam?
- Uns quantos, sim. Os proprietários rurais não
gostam de mim. E dispõem de vozes poderosas em
Roma. O clero acha-me demasiado rígido em questões
de moral e excessivamente indiferente aos rituais e tradições locais. O meu arcebispo é monárquico. Eu sou
socialista moderado. Os políticos não confiam em
mim, porque prego que o partido é menos importante
que o indivíduo que o representa. Fazem promessas.
Gosto de me certificar de que são cumpridas. Quando
tal não acontece, protesto.
- Tem apoio em Roma?
A boca fina de Sua Eminência distendeu-se num sorriso.
- O senhor conhece Roma melhor do que eu, meu
amigo. Eles esperam pelos resultados, e os resultados
de uma política como a minha numa área como esta
podem não ser visíveis durante dez anos. Se eu for
bem sucedido, tudo óptimo. Se falhar, ou cometer o
erro mau no momento mau, eles acenarão sabiamente
as cabeças e dirão que estavam à espera do acontecido
há anos. Portanto, prefiro mantê-los na dúvida. Quanto menos souberem, de mais liberdade disporei.
- Então porque escreveu ao cardeal Marotta? Porque pediu a vinda de sacerdotes de Roma, um como
postulante e outro como promotor da fé?
Sua Eminência brincou com o copo de vinho, fazendo rodar o pé entre os dedos longos e sensíveis e observando a luz a refractar-se através do líquido vermelho
sobre a toalha de mesa nívea. Disse cautelosamente:
- Porque se trata de um campo novo para mim.
Compreendo a bondade, mas não estou familiarizado
com a santidade. Acredito no misticismo, mas não tenho
nenhuma experiência de mística. Sou um nortenho
pragmático por natureza e educação. Acredito em milagres, mas nunca esperei vê-los acontecer mesmo à
entrada da minha própria porta. Aí tem a razão que me
levou a apelar à Congregação dos Ritos. - Sorriu afavelmente. - Vocês é que são os peritos nesta matéria.
- Foi a única razão?
- Fala como inquisidor - observou Sua Eminência, curiosamente bem-humorado. - Que outra razão
poderia haver?
- Política - retorquiu Meredith, sem rodeios. -
Eleições políticas.
Para sua surpresa, o bispo atirou a cabeça para trás
e riu às gargalhadas.
- Então é isso. Admirei-me de Sua Eminência se
mostrar tão cooperante. Interroguei-me sobre os motivos que o teriam levado a enviar um inglês em vez de
um italiano, e um padre secular em vez de um harFanita com cara de poucos amigos. Muito inteligente da
parte dele! Mas receio que se engane.
O riso morreu-lhe subitamente nos lábios e retomou
a seriedade. Pousou o copo de vinho e abriu as mãos
num eloquente gesto explicativo.
- Ele está completamente enganado, Meredith -
continuou. - Isso é o que acontece em Roma. Os estúpidos ficam ainda mais estúpidos e os espertos como
Marotta tornam-se demasiado espertos para que alguém possa ganhar com o facto. São duas as razões
que me levam a estar interessado neste caso. A primeira é simples e oficial. Trata-se de um culto não autorizado. Tenho de o investigar, para que seja aprovado
ou condenado. A segunda já não é assim tão simples,
e as entidades oficiais não o entenderiam.
- Talvez Marotta entendesse - disse Meredith calmamente. - E eu também.
- Porque haveriam os dois de ser diferentes?
- Porque Marotta é um velho humanista cheio de
ponderação... e porque eu devo morrer de carcinoma
daqui a um ano.
Aurelio, bispo de Valenta, recostou-se na sua cadeira e analisou o rosto pálido e esvaído do seu visitante.
Passado um longo instante disse brandamente:
- Tenho estado a reflectir sobre si. Agora começo a
compreender. Muito bem, tentarei explicar. Um homem à beira da morte deverá estar acima de qualquer
escândalo, mesmo que este venha de um bispo. Acho
que a Igreja está a precisar de uma reforma drástica neste país. Sou de opinião de que temos demasiados santos
e santidade a menos, demasiados cultos e catequismo a
menos, demasiadas medalhas e assistência médica a menos, demasiadas igrejas e escolas a menos. Temos três
milhões de desempregados e três milhões de mulheres
a viver da prostituição. Controlamos o Estado através
do Partido Democrata-Cristão e do Banco do Vaticano; no entanto, incentivamos uma dicotomia que proporciona a prosperidade a metade do país e deixamos a outra metade
apodrecer na penúria. Os nossos clérigos não dispõem de educação adequada e são inseguros, mas erguemo-nos contra os anticlericais e os comunistas. Uma árvore conhece-se
pelos seus frutos, e eu acredito que mais vale proclamar uma reforma na justiça social do que um novo atributo da Virgem Maria. O primeiro é a aplicação necessária
de um princípio moral, o segundo uma simples definição de uma crença tradicional. Nós, os membros do clero, somos mais ciosos dos direitos que nos assistem sob a
Concordata do que com os direitos do nosso povo sob a lei natural e divina... Estou a chocá-lo, monsenhor?
- Está a encorajar-me - retorquiu Blaise Meredith. - Mas porque deseja um novo santo?
- Não sou eu - disse o bispo, com uma ênfase surpreendente. - Estou ligado ao caso, mas espero, com
toda a sinceridade, que ele não vá a bom termo.
O prefeito de Gemello Maggiore recolheu quinze milhões de liras para avançar com o processo, mas não
sou capaz de Lhe arrancar um milhar delas para construir um orfanato diocesano. Se Giacomo Nerone for
beatificado, todos eles quererão uma nova igreja para
o albergar, e eu quero freiras que sejam enfermeiras,
um consultor em questões agrícolas e vinte mil dólares
de fruto da Califórnia.
- Então porque pediu ajuda a Sua Eminência?
- É um princípio que vigora em Roma, meu caro
Meredith. Recebe-se sempre o contrário do que se pede.
Blaise Meredith não sorriu. Na sua mente formava-se uma ideia nova e perturbante. Fez uma pequena
pausa, tentando encontrar as palavras que melhor a expressassem.
- Mas imagine que o processo vai a bom termo.
Que Giacomo Nerone é realmente um santo e um milagreiro?
- Sou um pragmático, como já Lhe referi - disse
Sua Eminência, olhando-o de esguelha com bom humor. - Esperarei pelos factos. Quando é que gostaria
de começar a trabalhar?
- Imediatamente - respondeu Meredith. - Estou
a viver à custa de tempo emprestado. Gostaria de
passar alguns dias a estudar os documentos. Depois
irei até Gemelli dei Monti para começar a ouvir depoimentos.
- De manhã mandarei pôr a documentação no seu
quarto. Espero que considere esta casa como sua e eu
próprio como seu amigo.
- Estou grato a Vossa Eminência, mais grato do
que me é possível exprimir.
- Não há nada que agradecer. - O bispo sorriu
despreocupadamente. - Terei muito gosto na sua
companhia. Sinto que temos muita coisa em comum.
Oh... devo dar-lhe um pequeno conselho.
- Sim?
- Na minha opinião pessoal, não encontrará a verdade acerca de Giacomo Nerone em Gemello Maggiore.
Ele é venerado nessa aldeia. Lucram à custa da sua memória. Em Gemello Minore a história é completamente
diferente, desde que os convença a contarem-lha. Até
aqui nenhum dos meus enviados o conseguiu.
- Há alguma razão?
- É melhor indagar as razões por si só, meu amigo.
Como vê, sou deveras preconceituoso. - Arrastou a
cadeira para trás e levantou-se. - É tarde e deve estar
fatigado. Sugiro-lhe que fique até tarde na cama amanhã. Levar-lhe-ão o pequeno-almoço ao quarto.
Blaise Meredith sentiu-se tocado pela delicadeza nobre do homem que tinha na sua frente. Era avesso a
confidências, cioso da sua intimidade, mas disse muito humildemente:
- Sou um homem doente, Eminência. De repente
vejo-me tremendamente só. Fez-me sentir em casa. Obrigado.
- Somos irmãos de uma família vasta - disse o bispo suavemente. - Mas o celibato torna-nos egoístas e
esquisitos. Ainda bem que posso ser útil. Boa noite
e sonhos dourados.
Sozinho no enorme quarto de hóspedes, o luar jorrando pelos caixilhos abertos das janelas, Blaise Meredith preparou-se para mais uma noite. O seu decurso
já se Lhe tornara familiar, o que o não tornava menos
assustador. Ficaria acordado até cerca da meia-noite,
depois o sono chegaria, superficial e agitado. Antes de
os galos anunciarem a falsa madrugada com a sua cantoria, já ele teria acordado sobressaltado, o ventre a
contorcer-se-lhe de dor, a boca a saber amargamente
a bílis e sangue. Arrastar-se-ia penosamente até à casa
de banho, fraco e aos vómitos, depois encher-se-ia de
suporíferos e voltaria para a cama. Pouco antes de o
Sol nascer adormeceria novamente, uma hora, duas no máximo, não o suficiente para Lhe retemperar as forças, mas possibilitando-lhe manter o fluxo da vida, cada vez
mais débil, a correr-lhe pelas artérias.
Era um estranho misto de terrores: o medo da morte, a vergonha da dissolução lenta, a solidão lúgubre
do crente na presença de um Deus sem rosto a quem
reconhecia sem ver, mas que em breve defrontaria sem
véus e glorioso no seu julgamento. Não era capaz de
Lhes escapar através do sono nem exorcizá-los pela oração, já que esta se tornara um acto árido da vontade
que não podia nem tirar-lhe as dores nem atenuá-las.
De modo que, naquela noite, em vez da fadiga que
sentia, tentou retardar o Purgatório. Despiu-se, envergou o pijama, os chinelos de quarto e o robe e saiu para a varanda.
A Lua erguia-se, alta, sobre o vale - uma caravela
de prata antiga a vogar tranquilamente num mar luminoso. Os laranjais luziam friamente e as folhas das
oliveiras brilhavam como pontas de adaga retiradas
de uma massa contorcida de sombras. Abaixo delas,
a água corria plana e repleta de estrelas, por trás de
uma barricada de toros e areia empilhada, enquanto os
braços das montanhas rodeavam tudo como uma fortificação, deixando do lado de fora o caos dos séculos.
Blaise Meredith olhou para a paisagem que tinha à
sua frente e considerou-a boa. Boa em si, boa no homem que por ela era responsável. O homem não vivia
só de pão - mas não podia viver sem ele. Os monges
antigos tinham tido a mesma ideia. Plantaram a Cruz
no meio do deserto - e depois plantaram milho e árvores de fruto, para que do símbolo estéril florescesse
uma realidade verde. Eles sabiam, melhor que ninguém,
que o homem era uma criatura de carne e espírito;
quando o corpo adoecia, a responsabilidade moral ficava reduzida. O homem era um junco pensante, mas
o junco devia ser firmemente ancorado em terra negra, regado nas raízes, aquecido pelo sol.
Aurelio, bispo de Valenta, era um pragmático, mas um pragmático cristão. Ele era o herdeiro da tradição
mais antiga e mais ortodoxa da Igreja: a de que terra,
erva, árvore e animal eram resultado do mesmo acto
criativo que produziu o homem. Todos eram bons em
si, perfeitos na sua natureza e segundo as leis que governavam o seu crescimento e decadência. Somente a
sua má utilização por parte do homem poderia reduzi-los a instrumentos do mal. Plantar uma árvore era,
consequentemente, um acto santificado. Fazer florir a
terra estéril era tomar parte no acto da criação. Ensinar
estas questões a outros homens era fazê-los, também,
participar num plano divino... No entanto, Aurelio,
bispo de Valenta, não merecia a confiança de muitos
dos seus colegas.
Era ali que residia o mistério da Igreja: que mantivesse em unidade orgânica humanistas como Marotta,
formalistas como Blaise Meredith e loucos como o padre calabrês, reformadores, rebeldes e conformistas
puritanos, papas políticos, freiras que praticavam enfermagem, padres mundanos e anticlericais devotos.
Tornava necessária uma adesão inabalável à defesa da
doutrina e permitia uma extraordinária divergência de disciplina.
Impunha a pobreza aos seus religiosos, no entanto
jogava na bolsa de valores internacional através do
Banco do Vaticano. Pregava o afastamento das coisas
do mundo, mas acumulava propriedades como qualquer companhia pública. Perdoava os adúlteros e excomungava os heréticos. Era rígida com os seus próprios reformadores,
mas assinava concordatas com aqueles que queriam destruí-la. Era a mais dura comunidade, no mundo, para nela se viver - mas todos os seus membros desejavam morrer
no seu seio, o papa, cardeal ou lavadeira, todos aceitariam gratamente o seu
viático do padre mais humilde da província.
Era um mistério e um paradoxo; não obstante Blaise
Meredith estava mais longe de o compreender, mais
longe de o aceitar do que Lhe acontecera em vinte anos. Era isso que o perturbava. Nos seus tempos de
saúde, a sua mente aceitara naturalmente a ideia da intervenção divina nas questões humanas. Agora, que a
vida se Lhe esvaía lentamente, dava consigo desesperadamente apegado à manifestação mais simples de continuidade física - uma árvore, uma flor, água de um
lago tranquila sob um luar eterno.
Uma brisa ligeira correu pelo vale, agitando as folhas estaladiças, encrespando as estrelas na água. Meredith estremeceu, subitamente acometido de frio,
pelo que se retirou para dentro, fechando a porta da
varanda atrás de si. Ajoelhou-se no oratório por cima
do qual se via a figura de Cristo, de madeira, e começou a rezar...
- Pater Noster qui es in Caelis...
Mas o céu, se é que o havia, apresentava-se completamente fechado para ele, e não houve resposta do Pai
sem rosto ao filho moribundo.

CAPÍTULO III

O Dr. Aldo Meyer deixou-se ficar à soleira de sua
casa a ver a aldeia acordar preguiçosamente para um
novo dia.
Primeiro foi a velha Nonna Patucci a abrir a porta;
espreitou a rua empedrada, para cima e para baixo,
atravessou tropegamente a estrada e esvaziou o bacio
por cima do muro, sobre a vinha que se estendia mais
abaixo, do outro lado. Depois voltou a entrar em casa,
furtiva como uma bruxa, fechando a porta com um baque sonoro. Como obedecendo a um sinal, Felici, o sapateiro, saiu, de camisola interior, calças e socas de madeira,
e postou-se, bocejando e coçando os sovacos, a ver o sol a iluminar o telhado do novo hospital em Gemello Maggiore, cerca de três quilómetros ao fundo do vale. Depois
de um minuto de contemplação, escarrou ruidosamente, cuspiu para o chão e foi abrir os postigos.
Depois foi a vez de a porta da casa do padre se abrir
e de Rosa Benzoni caminhar desajeitadamente cá para
fora, gorda e disforme num vestido preto, para ir tirar
água à cisterna. Mal ela se afastou, a janela do andar
de cima abriu-se e a cabeça grisalha e desgrenhada do
padre Anselmo apareceu, hesitante como uma tartaruga a fazer a sua primeira exploração cautelosa do dia.
A seguir surgiu Martino, o ferreiro, atarracado, de
ventre bojudo, moreno como uma castanha, para abrir a porta da sua oficina e pôr os foles a funcionar. Quando as suas primeiras marteladas começaram a soar na
bigorna, toda a aldeia se agitava - mulheres a fazer os
despejos da noite, raparigas de pernas nuas a caminho
da cisterna, transportando enormes garrafões verdes à
cabeça, crianças meio despidas urinando contra o muro da estrada, os primeiros trabalhadores do campo a
rumarem para os terraços e as faixas cultivadas, com
os casacos rotos aos ombros e o pão com azeitonas
embrulhado em lenços de algodão.
Aldo Meyer observou tudo sem curiosidade, sem ressentimentos, apesar de passarem por ele de cabeças viradas para o lado ou fazerem o sinal contra o mau-olhado
em direcção à sua porta. A amplitude do seu desencantamento via-se pela indiferença com que encarava aquela
hostilidade, embora se apegasse como um animal às imagens e sons familiares: o ressoar rítmico do martelo, o
matraquear de uma carroça de burro sobre as pedras,
o choro estridente das crianças, o mulherio a ralhar
entre si; as vinhas e os olivais a estenderem-se pela encosta em direcção aos campos do vale, as casas em
mau estado que se espalhavam, esparsas, estrada acima, em direcção à grande villa que coroava o topo da
colina, o brilho do sol sobre a próspera aldeia da colina mais afastada, onde o santo fazia milagres para os
turistas, enquanto Maria Rossi morria de parto com a
sua relíquia sobre o ventre inchado.
Todos os dias prometia a si mesmo fazer as malas e
partir - para um lugar e um futuro novos - e abandonar aquela malfadada tribo ao seu desvario. Mas todas
as noites a decisão se Lhe esvaía e ele sentava-se a beber
até ir para a cama. A verdade insofismável era que ele
não tinha sítio para onde ir e nenhum futuro para construir. O seu melhor estava ali - fé, esperança e caridade
praticadas até à exaustão, sugadas e desperdiçadas em
terra estéril, calcadas por gente ingrata e ignorante.
Do fundo do vale chegou-lhe o fragor diluído de
uma motocicleta e, ao virar-se na sua direcção, avistou uma pequena Vespa, com o passageiro do assento de trás
a pular estrada acima no meio de uma nuvem de poeira
cinzenta. O espectáculo não tinha nada de extraordinário, mas divertiu vagamente Aldo Meyer. A Vespa e
o automóvel da condessa eram os únicos veículos motorizados existentes em Gemello Minore. A Vespa provocara um pequeno tumulto e um imenso pasmo que durara semanas.
O seu motorista também era fora do comum - um pintor inglês, hóspede da condessa que vivia na villa situada no topo da colina e a quem pertencia metade do terreno
arável e também a maior
parte de Gemello Minore. O pintor chamava-se Nicholas Black, o passageiro que trazia à boleia era um jovem da localidade, Paolo Sanduzzi, que se ligara a
Black fazendo de guia, animal de carga e instrutor do
dialecto e dos costumes locais.
Para os aldeões, o inglês era matto - um tipo maluco que cirandava de um lado para o outro com um bloco de desenho ou que ficava horas sentado ao sol a pintar oliveiras,
rochas caídas a esmo e ângulos de edifícios em ruinas. As suas vestimentas eram tão loucas como os seus costumes: camisa vermelho-vivo, calças de ganga desbotadas,
sandálias de corda e um chapéu de palha que já conhecera melhores dias, debaixo de cuja aba um rosto sorria perversamente para o mundo
que o rodeava. Nem sequer dispunha da desculpa da
juventude - já passara dos trinta - e, quando as raparigas deixaram de suspirar por ele, os mais velhos
começaram a tecer conjecturas grosseiras acerca da
sua ligação com a condessa, que vivia em esplendor solitário por trás dos portões gradeados da villa.
Os boatos tinham chegado aos ouvidos de Aldo
Meyer, que Lhes dera desconto. Sabia demasiado acerca
da condessa e nos seus tempos em Roma lidara com demasiados artistas, muitos deles ingleses, como Nicholas
Black. Paolo Sanduzzi despertava-lhe mais curiosidade,
com o seu corpo esguio de árabe e o rosto macio, os
olhos brilhantes e argutos e a sua tirania sobre o mestre excêntrico. A sua curiosidade era tanto maior pelo
facto de ter sido ele próprio a trazer o rapaz ao mundo
e saber que seu pai fora Giacomo Nerone, a quem o
povo começara a chamar de santo...
A Vespa deteve-se ao fundo da aldeia, o jovem apeou-se e Meyer viu-o descer a vertente da colina com dificuldade, em direcção à casa da mãe, uma construção tosca
de pedra situada no meio de uma pequena área cultivada, ao abrigo de um maciço de azevinhos. A Vespa
foi de novo posta a trabalhar com estrépito e alguns
momentos mais tarde detinha-se em frente da casa de
Meyer. O pintor apeou-se agilmente do seu assento e
abriu os braços num cumprimento teatral:
- Comevá, dottore? Como é que as coisas vão esta
manhã? Gostaria de uma chávena de café, se tiver algum.
- Há sempre café - retorquiu Meyer, com um sorriso. - De que outra maneira conseguiria eu fazer
face ao nascer do Sol?
- Ressaca? - inquiriu o pintor, com inocência maliciosa.
Meyer encolheu os ombros com ar cansado e entrou
em casa, seguido pelo seu visitante, atravessando-a para
desembocar num pequeno jardim murado, onde uma velha figueira acinzentada formava um dossel que protegia
do sol. Via-se uma mesa tosca coberta com uma toalha
aos quadrados e com a louça de barro típica da Calábria.
Uma mulher servia-a de pão fresco, um pedaço de queijo branco e uma malga com fruta da terra.
Tinha as pernas e os pés nus, à maneira dos camponeses, e envergava um vestido de pano preto e um lenço da
mesma cor, ambos meticulosamente limpos. Tinha as
costas direitas, os seios salientes e firmes e as feições
de um grego puro, como se algum antigo colono da
costa tivesse deambulado até às montanhas para ali
acasalar com uma mulher das tribos, iniciando a sua
nova prole híbrida. Teria à volta de uns trinta e seis
anos de idade. Já tivera um filho, mas não engordara como as mulheres da montanha, e a boca e os olhos
eram curiosamente serenos. Ao avistar o visitante,
esboçou um pequeno gesto de surpresa e fitou Meyer
inquiridoramente. Este nada disse, mas fez-lhe discretamente sinal para que se retirasse. Observando a
mulher enquanto ela se encaminhava para dentro de
casa, os olhos do pintor seguiam-na e ele sorriu com ar conhecedor.
- O senhor surpreende-me, doutor. Onde é que a
achou? Nunca a vi antes.
- É de cá - disse Meyer friamente. - Tem uma
casa que é dela e é muito reservada. Vem cá todos os
dias fazer a limpeza e cozinhar para mim.
- Gostaria de a pintar.
- Não o aconselho a fazê-lo - disse-lhe Meyer secamente.
- Porque não?
- É a mãe de Paolo Sanduzzi.
- Oh!
Black corou e mudou de assunto. Sentaram-se à mesa e Meyer serviu o café. Durante alguns instantes reinou o silêncio; depois Black começou a falar, volúvel e
dramaticamente.
- Grandes notícias de Valenta, dottore! Estive lá
ontem para arranjar umas telas e tintas. Ninguém fala
de outra coisa.
- Que coisa?
- Desse vosso santo, Giacomo Nerone. Vão beatificá-lo, ao que parece.
Meyer esboçou um gesto de indiferença e tomou um
gole de café.
- Não é novidade nenhuma. Já se fala nisso há coisa de um ano.
- Ah, mas agora é a sério! - O astuto rosto de
fauno mostrava-se iluminado por um divertimento sardónico. - Deixaram-se de conversas e iniciaram um processo oficial. Neste momento estão a fazer circular
os avisos, a colocá-los em todas as igrejas, apelando às pessoas que estiverem de posse de provas. O bispo
tem um hóspede em casa, um monsenhor de Roma
que foi nomeado para tratar do caso. Daqui a uns dias estará aqui.
- Estará uma ova! - Meyer pousou violentamente
a sua chávena. - Tem a certeza do que afirma?
- Absoluta. Correu a aldeia toda. Eu próprio vi o
tipo a guiar o carro de Sua Eminência, grisalho e com
ar de rato do Vaticano. Parece que é inglês, portanto
faço tenções de Lhe oferecer um convite da parte da condessa para o alojar. - Soltou uma risada e serviu-se de
nova chávena de café. - Esta terra vai tornar-se famosa, dottore. O senhor também ficará famoso.
- É disso que tenho receio - observou Meyer sombriamente.
- Receio? - Os olhos do pintor brilharam de interesse. - Porque haveria de ter receio? Nem sequer é
católico. Não tem nada a ver consigo.
- O senhor não compreende - retorquiu Meyer,
irritado. - Não compreende nada.
- Pelo contrário, meu caro! - As mãos compridas
do artista agitaram-se enfaticamente. - Pelo contrário,
compreendo até muito bem. Compreendo o que tentou
fazer aqui e não conseguiu. Sei o que a Igreja está a
tentar fazer e porque será bem sucedida, pelo menos
durante algum tempo. O que não sei, e estou morto
por ver, é o que acontecerá quando eles começarem a
desenterrar a verdade autêntica relativa a Giacomo
Nerone. Tencionava partir na próxima semana, mas
agora creio que ficarei. Irá ser uma perfeita comédia.
- Antes de mais nada, porque veio até cá?
Notava-se uma ponta de ira na voz de Meyer e Nicholas Black notou-a imediatamente. Sorriu e agitou
uma mão volúvel.
- É muito simples. Fiz uma exposição em Londres,
com bastante sucesso, de facto, apesar de já ter sido
no final da temporada. A condessa foi uma das minhas
clientes. Comprou três quadros. Depois convidou-me a vir para aqui pintar durante algum tempo. Conto que
me financie outra exposição daqui a uns tempos. Como vê, é simples.
- Nunca nada é assim tão simples - declarou o
médico suavemente. - E a condessa não é uma pessoa simples. O senhor também não. Aquilo que encara
como uma comédia provinciana poderá muito bem redundar numa grande tragédia. Aconselho-o a não se
envolver nela.
O inglês atirou a cabeça para trás a rir.
- Mas eu estou envolvido, meu caro doutor. Sou
um artista, um observador, e cabe-me registar a beleza
e a loucura da humanidade. Imagine o que Goya poderia ter feito numa situação como esta. Felizmente
morreu há muito tempo, de modo que agora é a minha
vez. Aqui há toda uma galeria de quadros, e o título já
está pronto: Beatificação, por Nicholas Black! O espectáculo de um homem só sobre um único tema. Um
aldeão santo, os aldeões pecadores e todo o clero,
mesmo até o próprio bispo. Que acha?
Aldo Meyer baixou o olhar para as costas das mãos,
analisando as manchas escuras de fígado e a pele áspera e frouxa que o esclarecia mais do que as palavras
sobre os muitos anos com que estava a ficar. Sem erguer os olhos, disse calmamente:
- Acho que você é um homem muito infeliz, Nicholas Black. Anda à procura de algo que nunca encontrará. Acho que devia ir-se embora imediatamente. Deixe a condessa.
Deixe Paolo Sanduzzi. Deixe-nos a todos para tratarmos dos nossos problemas à nossa própria maneira. O senhor não pertence aqui. Fala a nossa língua, mas não nos
compreende.
- Mas olhe que compreendo, doutor! - O rosto
agradável e andrigino iluminou-se de malícia. - De
verdade que sim. Sei que todos têm escondido algo,
vai para quinze anos, algo que agora irá ser revelado.
A Igreja quer um santo e o doutor quer manter um segredo que o desacredita. É verdade, não é?
- É meia verdade, o que sempre é mais do que
mera mentira.
- Conhecia Giacomo Nerone, não conhecia?
- Sim, conhecia-o.
- Ele era um santo?
- De santos não percebo nada - retorquiu Aldo
Meyer gravemente. - Só de homens.
- E Nerone...?
-... era um homem.
- E quanto aos seus milagres?
- Nunca vi nenhum milagre.
- Acredita neles?
- Não.
Os olhos brilhantes e sardónicos fixaram-se no rosto
esvaído do médico.
- Então por que motivo, meu caro doutor, tem receio desta investigação?
Aldo Meyer empurrou a cadeira para trás e pôs-se
de pé. A sombra da figueira caiu-lhe sobre o rosto,
aprofundando-lhe as olheiras das faces, ocultando-lhe
a dor repentina nos olhos. Passado um momento, respondeu:
- Já alguma vez sentiu vergonha de si mesmo, meu amigo?
- Nunca - retorquiu o pintor alegremente. -
Nunca na minha vida.
- E o que eu quero dizer - observou o médico brandamente. - Nunca compreenderá. Mas volto a dar-lhe
um conselho: devia partir, e partir rapidamente.
A única resposta que obteve foi o sorriso de pesar
zombeteiro esboçado por Black, que se levantou para
sair. Não apertaram as mãos e Meyer não fez nenhuma
tentativa para o acompanhar até fora do jardim.
Quando ia a meio da casa, o pintor deteve-se e voltou para trás.
- Quase me esquecia. A condessa manda-lhe um
recado. Gostaria que fosse jantar com ela amanhã à noite.
- Os meus agradecimentos à condessa - disse
Meyer secamente. - Terei muito gosto em aceitar.
Bom dia, meu amigo.
- Ci vedremo - disse Nicholas Black, com indiferença. - Voltaremos a ver-nos, muito em breve.
Em seguida retirou-se, uma figura esguia, vagamente apalhaçada, demasiado airosa para os anos que começavam a notar-se no rosto inteligente e infeliz. Aldo
Meyer sentou-se novamente à mesa e olhou, sem ver,
para as côdeas de pão que tinham caído e as borras escuras e cremosas que restavam nas chávenas de café.
Passado um bocado a mulher saiu da casa e ficou a
fitá-lo com uma expressão de ternura e piedade nos
olhos tranquilos. O médico, ao reparar na sua presença, limitou-se a dizer:
- Podes levantar a mesa, Nina.
Ela não esboçou nenhum movimento para Lhe obedecer, mas perguntou:
- Que queria ele, o homem que faz lembrar um bode?
- Trouxe-me notícias - disse Meyer, falando em
dialecto, tal como a mulher. - Andam a iniciar novas
investigações acerca da vida de Giacomo Nerone. Veio
um padre de Roma para participar no tribunal do bispo. Não tardará a aparecer por aí.
- Fará perguntas como os outros?
- Mais do que os outros, Nina.
- Então obterá a mesma resposta: nada!
Meyer abanou a cabeça lentamente.
- Desta vez não, Nina. A coisa foi demasiado longe. Roma está interessada. A imprensa estará interessada. Mais vale que agora obtenham a verdade.
A mulher fitou-o com surpresa e choque.
- E é o senhor a dizê-lo? O senhor!
Meyer encolheu os ombros com ar derrotado e citou
um provérbio antigo da região.
- Quem pode combater o vento? Quem pode calar
os gritos que eles soltam do outro lado do vale? Até em Roma os ouviram, e este é o resultado. Digamos-Lhe o que desejam ouvir e que o assunto fique arrumado. Talvez
então nos deixem em paz.
- Mas porque o querem? - Agora havia raiva nos
seus olhos e na sua voz. - Que diferença é que faz?
Chamaram-lhe toda a espécie de nomes em tempo de
vida, agora querem fazê-lo beato. Não passa de mais
um nome. Não altera o que ele foi: um bom homem, o meu homem.
- Eles não querem um homem, Nina - observou
Meyer, com ar fatigado. - Eles querem um santo de
gesso com uma auréola dourada na cabeça. A Igreja
quere-o, porque isso dá-lhes mais uma maneira de
controlar o povo: um novo culto, uma nova promessa
de milagres que os faça esquecer as dores de barriga.
O povo quere-o, porque assim podem pôr-se de joelhos a implorar favores em vez de arregaçarem as mangas para trabalharem por eles, ou lutar por eles. É assim que
a Igreja funciona: deita açúcar no vinho velho e azedo.
- Então porque quer que eu os ajude?
- Porque, se Lhes contarmos a verdade, desistirão
do caso. Não terão outro remédio. Giacomo foi um
homem notável, mas tinha tanto de santo como eu.
- É o que pensa?
- E tu não, Nina?
A resposta dela chocou-o como uma agressão no rosto.
- Eu sei que ele era um santo - disse-lhe ela suavemente. - Sei que fez milagres, porque os vi.
Meyer fitou-a, embasbacado; depois gritou-lhe:
- Santo Deus, mulher! Até mesmo tu? Ele dormiu
na tua cama. Deu-te um filho bastardo, mas nunca casou contigo. E tu tens a coragem de estar aí a dizer-me
que ele era um santo que fazia milagres. Porque não o
contaste aos padres da primeira vez? Porque não te
Juntaste aos que por aí andaram a gritar pela sua beatificação?
- Porque ele nunca o teria desejado - retorquiu
Nina Sanduzzi calmamente. - Porque foi a única coisa que ele me pediu: que eu nunca contasse nada acerca dele.
Meyer fora vencido e tinha consciência do facto, no
entanto restava-lhe mais uma arma, que desferiu maldosamente.
- Que responderás tu, Nina, quando apontarem
para o teu filho e disserem: "Ali vai o filho de um santo, que faz de faminella para o inglês"?
Não se vislumbrava qualquer sinal de vergonha no
rosto calmo e clássico quando ela respondeu:
- Que é que digo quando apontam para mim na
rua e sussurram: "Ali vai a que foi a puta de um santo"? Nada, absolutamente nada! Sabe porquê, dottore?
Porque, antes de morrer, Giacomo me fez uma promessa em troca da minha. "Aconteça o que acontecer,
cara, velarei por ti e pelo rapaz. Eles podem matar-me, mas não podem impedir-me de tomar conta de ti
por toda a eternidade!" Eu acreditei nele na altura e
acredito nele agora. O rapaz é tolo, mas ainda não
está perdido.
- Então não tardará a estar - disse Meyer brutalmente. - Agora vai para casa, por amor de Deus, e deixa-me em paz.
Mas, mesmo depois de Nina partir, não sentiu paz;
e sabia que nunca mais a teria até os inquisidores chegarem e arrastarem a verdade para a luz do dia.
Nenhuma sombra da manhã penetrava ainda no
quarto barroco de altas paredes da villa onde a condessa Anne Louise de Sanctis dormia, atrás de cortinados
de veludo. Não havia premonição de problemas que
pudesse penetrar a névoa de barbitúricos sob a qual a
condessa sonhava.
Mais tarde, muito mais tarde, uma criada entraria e
afastaria as cortinas, para deixar o sol espraiar-se sobre o tapete gasto, o veludo desbotado e a pátina baça da madeira de nogueira trabalhada. Não chegaria à cama,
o que era uma gentileza, porque a condessa de manhã não era espectáculo agradável de se ver.
Mais tarde ainda, ela despertaria, a boca seca, empalidecida, olhos inchados e descontente perante a chegada
de um novo dia exactamente igual ao anterior. Acordaria, dormitaria, depois voltaria de novo a acordar e
enfiaria o primeiro cigarro do dia nos lábios sem cor
e descaídos. Terminado o cigarro, puxaria o cordão
para chamar a criada, que regressaria, sorrindo com um
bom humor cheio de ansiedade, trazendo o tabuleiro
com o pequeno-almoço. Como a condessa nunca gostava
de tomar as refeições sozinha, a criada ficaria no quarto,
dobrando as roupas espalhadas, substituindo-as por outras lavadas, atarefando-se dentro e fora do quarto de
banho, enquanto a sua senhora não parava de comentar azedamente o pessoal doméstico e os seus defeitos.
Terminado o pequeno-almoço, a criada levaria o tabuleiro, a condessa fumaria mais um cigarro antes de
iniciar o pequeno ritual íntimo que era a sua toilette.
Era a única cerimónia importante do seu dia sem importância, e ela executava-a no maior dos secretismos.
Depois de esmagar a ponta do cigarro no cinzeiro de
prata, levantou-se da cama, caminhou até à porta e
fechou-se à chave. A seguir deu a volta ao quarto, detendo-se em frente de cada uma das janelas para espreitar para o terraço e os jardins a fim de se certificar
de que não havia ali ninguém. Certa vez um jardineiro
curioso atrevera-se a olhar pelas persianas e aquela sua
intrusão sacrílega nos mistérios valera-lhe o despedimento imediato.
Finalmente, segura da sua intimidade, a condessa foi
para a sala de banho, despiu-se e entrou na enorme
banheira de mármore com as suas torneiras douradas e
a sua variedade de sabonetes, esponjas e frascos de
sais de banho. Não havia prazer comparável àquela
primeira imersão na água fumegante, que lhe diluía as
efusões de um sono drogado e trazia de volta a ilusão de juventude a um corpo que começava a envelhecer.
Ao contrário dos outros prazeres, aquele podia ser renovado sempre que fosse desejado e prolongado até à
saciedade. Não requeria a presença de um parceiro,
não envolvia dependência nem entrega; e a condessa
apegava-se a ele com a paixão de uma devota.
Deitada na banheira de água a fumegar, examinava-se
a si própria: a linha das ancas, ainda esguias e jovens,
o ventre liso e sem marcas de maternidade, a cintura
um tanto grossa, sem ser em excesso, os seios, a que
massagens ajudavam a manter a firmeza, pequenos
mas redondos e ainda jovens. Se já tinha rugas no pescoço, ela ainda não as notara em nenhum espelho, e os
vincos na boca e nos olhos ainda podiam ser massajados
até desaparecerem. A juventude ainda não a abandonara e a idade podia ser contida ao largo durante um
pouco mais de tempo, com a ajuda de uma bateria de
cosméticos que Lhe chegava, semanalmente, de um discreto instituto de beleza da Via Veneto.
Mas o banho era apenas o princípio. Havia depois a
secagem com toalhas felpudas e aquecidas, a fricção
com outras mais ásperas, o perfumar com uma loção
tonificante e adstringente, o pó-de-arroz aplicado ao
de leve, a primeira escovadela do cabelo - a fita para
o prender atrás, afastado das maçãs do rosto esfregadas e brilhantes. Finalmente estava pronta para o clímace a que o ritual conduzia.
Nua e resplandecente com a nova ilusão, caminhava
de volta ao quarto, em direcção a uma das gavetas da
cómoda, donde tirava a fotografia de um homem em
uniforme de coronel alpino e colocava-a de maneira a
ficar virada para o interior do quarto. Depois, com os
cuidados de um manequim, começava a vestir-se em
frente do retrato, calma e garrida, como a atraí-lo de
dentro da moldura para os seus braços expectantes.
Depois de completamente vestida, voltava a guardar
a fotografia na gaveta, fechava-a à chave e depois, com
toda a tranquilidade, sentava-se em frente do espelho
e dava início à maquilhagem do rosto. Vinte minutos mais tarde, envergando um elegante vestido de Verão, saía do quarto e descia as escadas que conduziam ao jardim
delicioso, onde Nicholas Black, nu da cintura para cima, trabalhava numa tela nova.
Ao ouvir-lhe os passos voltou-se e aproximou-se
para a saudar com efusão teatral, beijando-lhe as mãos
e depois fazendo-a rodar sobre si para Lhe ver o vestido, ao mesmo tempo que tagarelava como um papagaio contente:
- Magnífico, cara! Não sei como consegues! Todas
as manhãs são como uma nova revelação. Em Roma
eras bela, mas deveras intimidante. Aqui estás transformada numa beldade campestre reservada para a minha
apreciação privada. Não posso deixar de te pintar com
esse vestido. Anda, senta-te e deixa-me admirar-te.
A condessa empertigou-se, deleitada diante dos elogios, e deixou que ele a conduzisse até junto de um
pequeno banco de pedra à sombra de uma amendoeira
em flor. O pintor ajeitou-a aparatosamente a seu gosto, espalhando-lhe a saia do vestido por cima do banco, inclinando-lhe a cabeça em direcção às flores e colocando-lhe
as mãos no regaço. Depois agarrou num
bloco de desenho e começou, com gestos rápidos e exibicionistas, a trabalhar, não parando nunca de falar.
- Esta manhã tomei café com o nosso amigo doutor. Ele estava com a ressaca do costume, mas animou
quando Lhe falei do teu convite para jantar. Tenho cá a
ideia de que ele está mais que ligeiramente apaixonado
por ti... Não, não! Não fales, estragas a pose. Não me
parece que o pobre diabo possa evitá-lo. Viveu tanto
tempo com os camponeses que Lhe deves parecer uma
princesa de contos de fadas aqui no alto do teu castelo... Oh, e outra coisa: o bispo de Valenta vai iniciar
uma investigação completa à vida e virtudes de Giacomo Nerone. Mandou vir um monsenhor inglês de Roma para actuar como advogado do Diabo. Daqui a uns
dias estará aqui em cima. Tomei a liberdade de dizer a Sua Eminência que terias muito gosto em tê-lo como
convidado.
- Não!
Era um grito de pânico. Toda a compostura da condessa se ia por água abaixo e o pintor fitou-a, zangado e receoso.
- Mas, cara! - Arrependeu-se imediatamente.
Pousou o bloco de desenho e acercou-se dela, as mãos
e voz solícitas. - Pensei que era o que gostarias que
eu fizesse. Não pude consultar-te, mas sabia que estavas de boas relações com o bispo, assim como sabia
que não haveria por aqui nenhum outro alojamento
apropriado para o homem. Não podia dormir com os
camponeses, pois não? Ou debaixo de algum balcão de
tasca, não é? Além disso, é conterrâneo teu. E meu.
Achei que te daria prazer. Se te ofendi, nunca me perdoarei.
Ajoelhou-se ao lado dela e enterrou-lhe o rosto no
colo, como uma criança arrependida.
Era um truque velho como o mundo para levar à
certa as mulheres carenciadas e mais uma vez funcionou. A condessa passou-lhe carinhosamente os dedos
pelo cabelo e disse com meiguice:
- Claro que não me ofendeste, Nicki. Foi simplesmente uma surpresa. Eu... agora não me sinto preparada para elas como antigamente. Claro que fizeste bem.
Terei muito gosto em receber esse tal monsenhor.
- Sabia que terias! - Ficou instantaneamente jovial. - Sua Eminência mostrou-se agradecido, e não
me parece que o nosso visitante seja muito aborrecido.
Além disso... - Nos olhos voltou a brilhar-lhe um pequeno sorriso de malícia. - Assim, poderemos acompanhar as investigações de perto, não é verdade?
- Imagino que sim. - O rosto ensombrou-se-lhe
de novo e começou a mexer nervosamente nas dobras
do vestido. - Mas que fará ele aqui?
Nicholas Black esboçou um gesto vago.
- O que eles todos fazem. Perguntas, anotações, exame de testemunhas. Já que penso nisso, provavelmente tu própria serás uma delas. Conheceste Nerone, não é?
A condessa agitou-se pouco à vontade e recusou-se
a fitá-lo nos olhos.
- Só ligeiramente... Não poderei contar nada que
valha a pena.
- Então porque te preocupas, cara? Terás um camarote reservado numa comédia de aldeia. E também
conhecerás alguns dos mexericos de Roma. Vá, volta a
compor-te e deixa-me terminar este esboço.
Mas, por muito que se esforçasse, não foi capaz de a
descontrair novamente e, quando chegou a altura de
Lhe desenhar o rosto, cada risco foi uma mentira. Mas
todas as mulheres são umas loucas. Só vêem o que
querem ver - e Nicholas Black andara a melhor parte
da vida a tirar proveito das suas loucuras.
Terminado o desenho, entregou-o à condessa com
um floreado e sorriu interiormente perante a sua expressão de alívio e prazer. Depois, com indiferença
calculada, beijou-lhe a mão e mandou-a embora.
- Estás a perturbar-me, minha querida. És um estorvo adorável. Vai colher umas flores para o quarto e
deixa-me terminar o meu quadro.
Ao vê-la caminhar com passo incerto pelo relvado,
riu-se para com os seus botões. Ela fora simpática para
com ele, ele não Lhe tinha nenhuma aversão pessoal.
Mas também ele possuía os seus prazeres secretos, e o
mais subtil de todos era amesquinhar através da intriga
o que nunca poderia subjugar pela posse - a carne
ávida, odiosa, da mulher.
Para Anne Louise de Sanctis o momento tinha um
significado bastante diverso. Não era estúpida nem viciosa, embora se permitisse igualmente às loucuras da
meia-idade e aos vícios que um corpo ainda vigoroso Lhe
impunha. Ao submeter-se às pequenas tiranias do pintor, fazia-o porque estas lhe estimulavam a vaidade e
porque sabia que ainda dispunha do poder a seu favor.
Ele queria que ela Lhe finânciasse uma nova exposição
em Roma. Podia fazer-lhe a vontade - ou podia mandá-lo embalar as suas coisas no dia seguinte, remetendo-o para a vida mísera de um artista medíocre e para a sedução
de mulheres carenciadas e complacentes.
Agradava-lhe ver que também ele estava a envelhecer
e que cada nova conquista se Lhe tornava ligeiramente
mais difícil. A sua malícia assemelhava-se à de uma
criança, ocasionalmente perniciosa, mas que pressupunha sempre uma necessidade inconfessada em relação a ela. E fazia muito tempo que ninguém precisava dela. Também
ela tinha as suas próprias necessidades, mas ele, apesar de as perceber e tornar alvo de brincadeira, sentia-se impotente para as utilizar contra ela. Desfrutava
dos seus medos e da sua solidão, mas o
verdadeiro terror ainda ele não descobrira.
Era esse terror que a acompanhava agora pelo jardim
salpicado de cores no topo da colina, onde a riqueza e a
mão-de-obra barata tinham plantado um oásis no solo
infecundo e ressequido da Calábria. A terra destinada
aos relvados e canteiros fora trazida até ao cimo da colina em baldes transportados às costas das mulheres da
aldeia. As pedras foram arrancadas à encosta por pedreiros locais, as oliveiras, os pinheiros e os laranjais
plantados por lavradores arrendatários como tributo
pago à família que os mantivera ao seu serviço durante
séculos. Artistas napolitanos pintaram as paredes e os
tectos abobadados e uma dezena de conhecedores
trouxera os quadros, as esculturas e as porcelanas exigidas pelo conde Gabriele de Sanctis para a sua esposa inglesa.
O muro circular fora erguido, assim como os portões
de ferro forjado, para Lhe garantir a intimidade. O pessoal fora escolhido pessoalmente pelo conde, para a
servir solicitamente. A casa, as terras e tudo o que se
encontrava no interior de ambas constituíram o seu presente de noivado: um retiro campestre depois da temporada febril de Roma, onde Gabriele de Sanctis ia ganhando
notoriedade ao serviço do duque. Para a filha
de um diplomata londrino sem importância fora como
uma das mil e uma noites encantadas, mas o terror
chegara com ela aos portões e não mais a abandonara desde então.
Gabriele de Sanctis dera-lhe origem, mas já morrera
há muito - um suicídio duvidoso no deserto da Líbia.
Uma dezena de outros homens tinha chegado e partido nos anos seguintes, mas nenhum deles fora capaz
de a tirar daquele lugar.
Fora então que Giacomo Nerone aparecera. No
mesmo jardim, numa manhã como aquela, ela humilhara-se, implorando-lhe que a exorcizasse, mas ele recusara. Mas ela acabara por se vingar; a vingança trouxera, porém,
novas fúrias a atormentá-la - pesadelos na enorme cama barroca, fantasmas assombrando os olivais e rindo escarninhos como sátiros no meio das laranjeiras em flor.
Ultimamente incomodavam-na menos. Havia drogas para a ajudar a dormir e Nicholas Black para a entreter durante o dia.
Mas agora ia chegar um homem: um clérigo de rosto
sombrio, vindo de Roma, encarregado de fazer perguntas sobre o passado, cobrar dívidas antigas e registar
culpas enterradas, fosse qual fosse a dor que pudesse
seguir-se à revelação. Alojar-se-ia na sua casa e comeria à sua mesa. Espiaria e vasculharia e nem mesmo a porta trancada do seu quarto de dormir guardaria segredos
para ele.
De repente, a vida que se lhe insuflara no banho
matinal pareceu esvair-se do seu corpo, deixando-a
mole e vazia. Encaminhou-se, com passos lentos e arrastados, até um pequeno caramanchão escondido na
orla do olival, onde havia uma pequena estátua de um
fauno dancante sobre um pedestal de pedra gasto pelas
intempéries. Em frente do fauno via-se um banco rústico sobre o qual pendiam madressilvas, languidas e
abundantes. A condessa sentou-se, acendeu um cigarro e inalou avidamente, inundando os pulmões de fumo e sentindo a tensão começar a diminuir lentamente. Agora compreendia.
Andava a fugir há demasiado tempo. Não havia possibilidade de escapar ao medo que trazia consigo como um hóspede no seu próprio
corpo. Devia haver uma maneira de Lhe pôr termo; se
assim não fosse, acabaria por resvalar para o negrume
da loucura que ameaça todas as mulheres que atingem
a menopausa infelizes e sem estarem preparadas. Mas
como pôr-lhe fim? Abrir todas as portas, humilhar-se
perante os inquisidores, submeter-se à penitência da
confissão? Já o tentara anteriormente e o fracasso fora total.
Havia uma alternativa, desoladora talvez, mas segura: o pequeno frasco das cápsulas gelatinosas que Lhe
traziam o sono todas as noites. Uma quantidade um
pouco maior - apenas ligeiramente maior - e estaria
terminado, de uma vez por todas. De certa maneira
seria o corolário da sua vingança contra Giacomo Nerone e também uma vingança para o corpo que a traíra
com ele, e a ele com ela.
Mas ainda não. Ainda restava um pouco de tempo.
O padre que viesse, e se ele não a pressionasse excessivamente, seria um presságio favorável - uma promessa
de outras soluções. Se o fizesse... ora, então seria simples, irónico e derradeiro; e, quando a encontrassem,
ela ainda estaria bela como ficava todas as manhãs
quando saía do banho perfumado.

CAPÍTULO IV

Para Blaise Meredith os dias passados em casa do
bispo foram os mais felizes da sua vida. Homem frio
por natureza, começara a entender o significado da camaradagem. Reservado e auto-suficiente, entendera,
pela primeira vez, a dignidade da dependência, o privilégio de uma confidência partilhada. Aurelio, bispo de
Valenta, era um homem dotado da faculdade da compreensão e de um talento raro para a amizade. A solidão e a coragem desencantada do seu hóspede tinham-no tocado
profundamente, de modo que lançou mãos, com tacto e simpatia, ao estabelecimento de uma situação de intimidade entre ambos.
Logo na primeira manhã, bem cedo, entrou no
quarto de Meredith levando consigo o volumoso livro
de registos contendo as primeiras investigações efectuadas sobre Giacomo Nerone. Encontrou o padre,
pálido e fatigado, sentado na cama com o tabuleiro do
pequeno-almoço nos joelhos. Pousou o livro sobre a
mesa e aproximou-se solicitamente, sentando-se na
beira da cama.
- A noite foi má, meu amigo?
Meredith assentiu debilmente.
- Um pouco pior do que o habitual. Talvez tenha
sido da viagem e da excitação. Peço que me desculpe.
Devia ter participado na missa de Vossa Eminência.
O bispo abanou a cabeça, sorrindo.
- Não, monsenhor. Agora encontra-se sob a minha
jurisdição. Só tem autorização para a missa de domingo.
Dormirá até tarde e retirar-se-á cedo, e, se o apanho a
trabalhar demasiado duramente, poderei retirá-lo do
caso. Agora está no campo. Desfrute de um pouco de
tempo para si. Cheire a terra e as flores de laranjeira.
Liberte os pulmões do pó das bibliotecas.
- Vossa Eminência é bondoso - observou Meredith
gravemente. - Mas o tempo que resta já é pouco.
- Razão ainda mais forte para que o gaste mais consigo - retorquiu-lhe o bispo. - E também um pouco
comigo. Não se esqueça de que também sou um estranho aqui. Os meus colegas são boa gente, na sua maioria, mas uma companhia muito entediante. Há coisas
que gostaria de Lhe mostrar, conversas que apreciaria
ter consigo. Quanto a isto - apontou para o grosso
volume encadernado a couro - pode lê-lo no jardim.
Metade não passa de repetições e retórica. O resto poderá assimilar em poucos dias. As pessoas que deseja
ver estão apenas a uma hora de distância de carro... e
o meu está à sua disposição em qualquer altura, com
um motorista para tomar conta de si!
O rosto pálido de Meredith abriu-se lentamente
num sorriso intrigado.
- A sua bondade para comigo parece-me estranha.
A que se deve?
O rosto do bispo iluminou-se com um sorriso juvenil.
- O meu amigo viveu demasiado tempo em Roma.
Esqueceu que a Igreja é uma família de fiéis, não simplesmente uma burocracia de crentes. É um sinal dos
tempos, um dos sinais menos prometedores. Estamos
no século da máquina e a Igreja já pactuou demasiadamente com ela. Agora no Vaticano há relógios, máquinas de calcular e papéis informativos para controlo das
acções do mercado.
Meredith, apesar do seu cansaço, desatou a rir, divertido. O bispo anuiu aprovadoramente.
- Assim está melhor. Um pouco de riso honesto só nos fazia bem a todos. Precisamos de um satírico ou dois para
nos restituir o sentido das proporções.
- Provavelmente acusá-los-íamos de calúnia - observou
Meredith com uma careta - ou processávamo-los por heresia.
- "Inter faeces et urinam nassimur"! - citou calmamente o bispo. - Quem o disse foi um santo, e tanto se aplica a papas e padres como às prostitutas de Reggio di
Calabria. Um pouco mais de gargalhadas perante o nosso cómico estado, algumas lágrimas honestas por comiseração relativamente às coisas, e seríamos todos cristãos
bem melhores. Agora termine o pequeno-almoço e vá dar uma volta pelo jardim. Gastei muito
tempo nele; detestaria que um inglês não Lhe ligasse
importância!
Uma hora depois, banhado, barbeado e revigorado, Meredith
foi até ao jardim, levando consigo o livro de depoimentos sobre Giacomo Nerone. Chovera durante a noite e o céu mostrava-se límpido, ao mesmo tempo que se sentia
o ar impregnado do cheiro a terra molhada, folhas lavadas e florescências recém-abertas. As abelhas zumbiam no meio das flores das laranjeiras e dos hibiscos escarlates,
e os cravos e goivos erguiam-se, erectos, de cores berrantes, em redor das bermas de pedra dos carreiros. Mais uma vez Meredith sentiu nascer no seu íntimo uma ância
de permanecer naquela terra impetuosa, cuja beleza via pela primeira vez. Se ao menos pudesse ficar junto dela mais tempo, enraizar-se como uma árvore, sentir as
intempéries e o vento sobre si, mas, ainda assim, sobreviver para a chuva e o sol e a renovação da Primavera. Mas não. Vivera demasiado tempo no meio do pó das bibliotecas,
e, quando chegasse a altura, enterrá-lo-iam no meio dele. Não Lhe cresceriam flores pela boca como aos homens mais humildes, nem raízes se enroscariam nos restos
do seu coração e dos seus rins. Enfiá-lo-iam num caixão de chumbo e levá-lo-iam para uma cripta funerária na
igreja do cardeal, onde ficaria a desfazer-se, estéril como vivera, até ao dia do Juízo.
à volta dos troncos da oliveira, a erva era verde e o ar
quente e tranquilo. Tirou a batina e o colarinho e abriu
a camisa para que o calor Lhe inundasse o peito magro;
depois sentou-se, apoiando as costas ao tronco de uma
árvore, abriu o enorme volume encadernado a couro e
começou a ler:
Depoimentos preliminares sobre a vida, virtudes
e alegados milagres do servo de Deus Giacomo
Nerone. Recolhidos a pedido e sob a autoridade
de Sua Eminência o Bispo Aurelio, titular de Valenta, província da Calábria, por Geronimo Battista e Luigi Saltarello, padres da mesma diocese.
A seguir vinha a cautelosa delimitação de responsabilidades:
Os depoimentos e informações que se seguem
não possuem carácter judicial, pois até à data nenhum tribunal os julgou e nenhuma autorização foi promulgada no sentido de se examinar oficialmente a causa do servo
de Deus. Embora tenham sido empreendidos todos os esforços para
se chegar à verdade, as testemunhas não prestaram juramento nem foram colocadas debaixo da alçada canónica para revelarem quaisquer matérias do seu conhecimento.
Também nenhum dos
processos de um tribunal diocesano foi observado no que se refere ao secretismo e ao método
de registo. As testemunhas foram advertidas, no
entanto, de que podem ser chamadas a prestar
testemunho sob juramento no referido tribunal,
quando e se constituído.
Blaise Meredith abanou afirmativamente a cabeça e
franziu os lábios com satisfação. Até ali estava tudo muito bem. Era a burocracia da Igreja em acção -
a legalidade de Roma aplicada às matérias do espírito.
Os cépticos poderiam escarnecer dela, os crentes poderiam rir dos seus excessos, mas, na sua essência, era
sólida. Tratava-se do mesmo génio que dera ao Ocidente o código de civilização sob o qual, pelo menos
em parte, ainda se regia. Virou a página e continuou a ler:
De non cultu (decreto de Urbano VIII, 1634)
Em vistas de os relatórios referentes às visitas
de peregrinos e à veneração prestada por determinados membros da comunidade dos fiéis no local de repouso do servo de Deus, consideramos nosso dever firme inquirir
se os decretos do pontífice Urbano VIII proibindo o culto público foram
observados. Verificámos que muitos dos fiéis, tanto pessoas de fora como da localidade, visitam o
túmulo de Giacomo Nerone e aí rezam. Alguns
deles imploram benemerências espirituais e temporais mediante a sua intercessão. As autoridades civis, em particular o prefeito de Gemello Maggiore, têm feito alguma
publicidade nos órgãos de comunicação e melhorado as condições
de transporte para encorajarem o fluxo de visitantes. Embora o facto possa ser uma indiscrição, não infringe, porém, os canones. Nenhum culto público é permitido
em termos canónicos.
O servo de Deus não é invocado em cerimónias
litúrgicas. Não se expõem fotografias ou imagens
para veneração pública e, com excepção dos relatos deturpados de parte da imprensa, até ao momento ainda não circularam quaisquer livros ou panfletos contendo relatos
de milagres. Certas relíquias do servo de Deus circulam privadamente entre os fiéis, mas não se permitiu que lhes fosse prestada nenhuma veneração pública. Assim,
somos de opinião de que os canones que proíbem o culto público têm sido observados...
Blaise Meredith dormitou ligeiramente ao chegar ao
fraseado mais formal. Tratava-se de terreno já muito conhecido para ele - familiar mas reconfortante. A Igreja
tinha por função não só impor a crença mas também
limitá-la, encorajar a piedade mas desencorajar os que
eram excessivamente piedosos. As leis existiam, por
muito retrógradas que fossem, devido à ignorância, e a
sua razão fria representava uma contenção aos exageros dos devotos e às exigências desmedidas dos puritanos. Mas ele ainda se encontrava muito longe do cerne
do problema - a vida, as virtudes e os alegados milagres de Giacomo Nerone. O parágrafo seguinte aproximou-o um pouco mais. Intitulava-se:
De scriptis
Não foram encontrados escritos de nenhum
género atribuíveis ao servo de Deus. Determinadas referências, posteriormente notadas nos depoimentos, apontam para a possível existência de um manuscrito que se
perdeu, ou foi destruído ou deliberadamente oculto por pessoas interessadas. Até se iniciar o processo judicial e ser possível exercer pressão moral sobre as testemunhas,
é improvável que obtenhamos mais informações acerca deste aspecto importante.
Blaise Meredith franziu o sobrolho, pouco satisfeito.
Não havia escritos. Uma pena. Do ponto de vista jurídico, as coisas que um homem escrevia constituíam o único indício seguro das suas crenças e intenções e, na lógica
rigorosa de Roma, estas eram ainda mais importantes do que as suas acções. Um homem poderia assassinar a mulher ou seduzir a filha e continuar a ser membro da Igreja;
mas ele que rejeitasse uma letra que fosse de uma verdade estabelecida e seria imediatamente proscrito. Poderia passar toda uma vida a fazer actos de caridade que
no final desta nenhum mérito
Lhe seria atribuído. O valor moral de um acto dependia
da intenção com que era realizado. Mas, quando um
homem morria quem poderia adivinhar os segredos do
seu coração?
Era um começo desanimador e o que se Lhe seguia
ainda o era mais:

RESUMO BIOGRÁFICO

Nome: Giacomo Nerone.
Há uma razão - mais tarde referida nos depoimentos - que leva a crer tratar-se de um pseudónimo.
Data de nassimento: desconhecida.
Descrições físicas prestadas por testemunhas
variam consideravelmente, mas tudo aponta para
que tivesse entre trinta e trinta e cinco anos de idade.
Local de nassimento: desconhecido.
Nacionalidade: desconhecida.
Existem indícios de que Giacomo Nerone foi,
inicialmente, considerado italiano, mas que, mais
tarde, surgiram dúvidas quanto à sua identidade.
Foi descrito como alto e moreno. Falava italiano
fluente e correctamente, embora com sotaque nortenho. A princípio não adoptou o dialecto, mas
mais tarde aprendeu-o e passou a falá-lo constantemente. Durante o período abrangido pela sua
vida em Gemelli dei Monti, unidades dos Exércitos alemão, americano, inglês e canadiano estiveram em operações na província da Calábria. Têm-se feito várias suposições
quanto à sua nacionalidade, mas os dados que foram apontados
são, no nosso parecer, inconclusivos. Somos de opinião, contudo, que, por razões ainda não esclarecidas, ele fez um esforço considerável para esconder a sua verdadeira
identidade. Também achamos que certas pessoas estavam a par da mesma, mas ainda se esforçam por ocultá-la.
Data de chegada a Gemelli dei Monti: desconhece-se ao certo a data exacta, mas a opinião
geral aponta para que terá sido em finais de
Agosto de 1943. Esta data coincide mais ou menos com a da conquista da Sicília por parte dos
Aliados e com as operações do 8º Exército inglês na província da Calábria.
Período de residência em Gemelli dei Monti:
de Agosto de 1943 a 30 de Junho de 1944. Todos
os testemunhos se referem a este período, que
não chegou a um ano, e quaisquer declarações
de santidade e heroísmo devem ser julgadas tendo como base os registos existentes sobre este período de tempo singularmente curto.
Data da morte: 30 de Junho de 1944, às 15 horas.
Giacomo Nerone foi executado por um pelotão
de guerrilheiros sob o comando de um homem conhecido por "Il Lupo" ["o Lobo"]. Tanto a data como a hora são específicas e confirmadas por testemunhas oculares. As
circunstâncias também foram confirmadas por testemunho unânime.
Enterro: o corpo de Giacomo Nerone foi removido do local da execução por seis pessoas e enterrado no local conhecido por Grotta del Fauno, onde presentemente se
encontra. Tanto a
identificação do corpo como as circunstâncias do
enterro são confirmadas pelo testemunho unânime daqueles que tomaram parte na inumação.
Blaise Meredith cerrou o espesso volume e pousou-o
na relva, a seu lado. Apoiou a cabeça contra o tronco rugoso da oliveira e reflectiu sobre o que acabara de
ler. Certo era apenas o começo, mas, do ponto de vista do advogado do Diabo, este era duvidoso.
Havia demasiados pontos por esclarecer e a imputação de um secretismo deliberado era perturbadora.
Havia apenas um período de onze meses conhecido e
garantido por testemunhas, no meio de toda uma vida
que durara trinta a trinta e cinco anos. Não havia escritos através dos quais fosse possível fazer um escrutínio. Nenhum daqueles factos excluía a santidade, que
era o tema da investigação de Meredith e do processo judicial do tribunal do bispo.
Acontecia sempre, em casos como aquele, ser-se
obrigado a voltar à lógica fria dos teólogos.
Começava pela premissa de um Deus pessoal que
se autopreservava, era auto-suficiente e omnipotente.
O homem era o resultado de um acto criativo da sua
vontade divina. A relação entre o Criador e a Sua criatura era definida, antes de mais nada, pela lei natural,
cujos meandros eram visíveis e apreensíveis pela razão humana, depois por uma série de relações divinas que terminavam na encarnação, ensinamentos, mortes e ressurreição
do Deus tornado homem, Jesus Cristo.
A perfeição do homem e a sua união última com o
Criador dependiam de aquele aceitar a relação entre
os dois, a sua salvação dependia do seu estado de
conformação no momento da morte. O homem era
ajudado, nesta conformidade, por um apoio divino a
que se dava o nome de graça, a qual Lhe era sempre
permitida na medida suficiente para garantir a salvação, desde que ele cooperasse com ela de livre vontade. A salvação implicava perfeição, mas uma perfeição limitada.
Mas a santidade, a santidade heróica, implicava um
apelo especial a uma perfeição maior, através da utilização de graças especiais - nenhuma das quais podia
ser atingida pelo homem pelo seu poder próprio. Todas as eras tinham produzido a sua safra própria de
santos, nem todos eles conhecidos, assim como nem
todos oficialmente proclamados.
A proclamação oficial envolvia algo diferente: o pressuposto de que a divindade desejava tornar as virtudes
do santo conhecidas, chamando a atenção sobre elas
através de milagres - actos além do poder humano -
alterações divinas da lei da Natureza.
Esta implicação é que perturbava Meredith no início
do estudo do caso de Giacomo Nerone. Todo o teólogo acreditava no simples axioma segundo o qual um
ser omnipotente não podia, por sua própria natureza,
prestar-se a trivialidades ou a secretismos simplistas.
O nascimento de um homem não tinha nada de trivial, já que envolvia a projecção de uma nova alma
nas dimensões da carne. A progressão da vida nada tinha de trivial, já que todos os actos a condicionavam
para o seu último momento. E a sua morte era o momento em que o espírito era arrancado ao corpo na irrevogável atitude de conformidade ou rejeição.
De modo que, fossem quais fossem as lacunas na
história pessoal de Giacomo Nerone, estas deviam ser
preenchidas. Se se ocultassem factos, Blaise Meredith
teria de os extrair à força, pois também ele não tardaria em ser chamado a julgamento.
Mas o que um homem deve fazer e o que a sua força
Lhe permite são, muitas vezes, duas coisas diferentes.
O ar estava cálido, o zunido dos insectos enganadoramente repousante, e a noite mal dormida dominou-o
insidiosamente. Blaise Meredith deixou-se vencer por
este conjunto de factores e dormiu, sobre a relva macia, até à hora do almoço.
Sua Eminência riu agradavelmente quando Meredith
Lhe confessou com pesar a sua fraqueza matinal.
- óptimo! óptimo! Ainda fazemos de si um homem do campo. Teve bons sonhos?
- Não sonhei - disse Meredith, com bom humor e ironia. - O que foi uma bênção tão grande como a do sono
Mas pouco trabalho adiantei. Dei uma olhada a alguns dos
testemunhos pouco antes de vir almoçar mas receio achá-los
deveras insatisfatórios.
- Em que aspecto?
- É difícil de definir. Em termos formais estão correctos. São obviamente resultado de uma investigação apurada. Mas, como hei-de dizer, nem sequer fornecem uma
imagem clara de Giacomo Nerone, ou das testemunhas em si. E ambos são importantes aos nossos propósitos. Cláro que a imagem poderá enriquecer à medida que eu for
avançando, mas para já não há contornos definidos.
O bispo manifestou a sua concordância.
- Também foi a impressão que eu próprio tive. É uma das
razões que me levam a ter tantas dúvidas em relação ao
assunto. Os depoimentos são todos parecidos. Não se notam
elementos contraditórios ou controversos. E normalmente os
santos são pessoas muito controversas.
- Mas existem elementos de secretismo - observou-lhe
Meredith suavemente.
- Precisamente. - O bispo tomou um gole de vinho,
reflectindo sobre a questão. - É quase como se uma parte da
população se houvesse convencido de que este homem é um
santo e quisesse prová-lo a todo o custo.
- E a outra parte?
- Estaria decidida a não ter nada a dizer, nem a favor nem contra.
- Para mim, ainda é muito cedo para estar a julgar essa
possibilidade - disse Meredith cautelosamente. - Ainda não li
nem estudei o suficiente. Mas o tom que se nota nos
depoimentos que já examinei até agora é formal e estranhamente
irreal, como se as testemunhas falassem uma língua nova.
- Aí tem! - exclamou o bispo, com grande interesse. - Nem mesmo de propósito, o meu amigo pôs o dedo num problema que tem merecido a minha reflexão há muito tempo:
a dificuldade de uma comunicação exacta entre o clero e os leigos. É uma dificuldade que cada vez se torna maior em vez de ser ao contrário, e que inibe até mesmo
uma intimidade saudável no confessionário. A raiz desse mal está, segundo me parece, no seguinte: a Igreja é uma teocracia, governada por
uma casta sacerdotal, de que o senhor e eu somos membros. Temos uma linguagem que nos é própria, uma
linguagem hierática, se preferir, formal, estilizada, admiravelmente adaptada a uma definição legal e teológica.
Malogradamente também temos uma retórica muito
própria, a qual, à semelhança da de um político, diz
muito e explica pouco. Mas nós não somos políticos.
Somos professores, professores de uma verdade que
afiançamos ser essencial à salvação do homem. No entanto, como é que a pregamos? Falamos severamente
da fé e da esperança como se fizéssemos uma feitiçaria. Que é a fé? Um salto às cegas nas mãos de Deus.
Um acto de vontade inspirado que é a única resposta
de que dispomos para o mistério terrível que é sabermos
donde viemos e para onde vamos. Que é a esperança?
A confiança de uma criança na mão que a conduzirá
para longe dos terrores que a ameaçam na escuridão.
Pregamos o amor e a fidelidade como se fossem histórias para a hora do chá - e não corpos a contorcer-se
numa cama, palavras ardentes murmuradas em locais
escuros e almas atormentadas pela solidão e atraídas
para a comunhão efémera de um beijo. Pregamos a caridade e a compaixão, mas raramente dizemos o que
significam - mãos que se conspurcam em imundícies
de enfermarias, limpando o pus de chagas siflíticas.
Todos os domingos falamos ao povo, mas as nossas
palavras não o alcançam, porque nos esquecemos da
nossa língua-mãe. Nem sempre foi assim. Os sermões
de S. Bernardino de Siena são quase impublicáveis hoje em dia, mas eles tocaram os corações, porque a verdade que continham era afiada como uma espada, e igualmente
dolorosa...
Suspendeu-se e sorriu, como em depreciação do seu
próprio fervor. Depois, passado um momento, disse suavemente:
- Eis o problema com as nossas testemunhas, monsenhor. Não as entendemos, porque não falam da maneira como nós falamos com elas. E isso significa muito pouco para
qualquer dos lados.
- Então como poderei eu, de entre todas as pessoas, aproximar-me delas? - perguntou Meredith,
com humildade e amargura.
- Através da língua materna - respondeu Aurelio,
bispo de Valenta. - O meu amigo nasceu, tal como
eles, inter faeces et urinam, e eles ficarão surpreendidos ao saber que não o esqueceu, suficientemente surpreendidos, quem sabe, para Lhe contarem a verdade.
Mais ao fim dessa tarde, quando o sol brilhava, fora
das persianas corridas, e os habitantes ajuizados do Sul
dormiam a sesta para fugir ao calor, Blaise Meredith,
deitado na sua cama, ponderava sobre as palavras do
bispo. Elas eram verdadeiras e ele tinha consciência
do facto. Mas o hábito de anos exercia maior domínio
sobre si; o eufemismo cauteloso, a afectação sacerdotal, como se a sua língua devesse envergonhar-se da
menção do corpo que o gerara e do acto sublime que
Lhe dera o ser.
E, no entanto, o próprio Cristo se expressara na
mesma linguagem comum. Ele falara na língua vulgar
dos símbolos vulgares: uma mulher a gritar nas dores
de parto, os eunucos gordos a bambolearem-se pelos
bazares, a mulher a quem muitos maridos não conseguiam satisfazer e se virava para um homem que não
Lhe pertencia legalmente. Não invocara nenhuma convenção que o abrigasse dos homens que Ele próprio criara. Comera na companhia de trapaceiros, bêbedos e mulheres
da vida e não se inibira de tocar em mãos suadas que tinham acariciado os corpos de homens na paixão de um milhar de noites.
E Giacomo Nerone? Se fosse um santo, assemelhar-se-ia ao seu Mestre. Se não fosse, continuaria a ser
um homem e a verdade acerca da sua pessoa seria contada na linguagem simples do quarto de dormir e da tasca.
à medida que a tarde se escoava e a primeira friagem da noite se infiltrava no quarto, Blaise Meredith
começava a entender, lentamente, a tarefa que tinha
diante de si.
O seu primeiro problema era de carácter táctico.
Embora os avisos tivessem sido publicados e os dois
agentes inquisidores nomeados, o tribunal em si ainda
não fora constituído. Como todos os testemunhos
prestados nesse tribunal seriam jurados e secretos - e
como não havia razão para perder tempo com pessoas
frívolas e não cooperantes - tornava-se necessário
examiná-las primeiro em entrevistas privadas e informais, da mesma maneira que um advogado civil interroga as suas testemunhas antes de as apresentar.
Já tinham sido entrevistadas uma vez, anteriormente, por Battista e Saltarello, cujos registos tinha entre
mãos. Mas eles eram sacerdotes locais e supostamente
imparciais - se não realmente a favor do candidato.
A posição que ele próprio defendia era imensamente
diferente. Ele era um estrangeiro, um agente do Vaticano, o promotor da coroa. Era suspeito pela própria
natureza do seu cargo e, se estivessem envolvidos interesses mundanos - como indubitavelmente acontecia - poderia contar com uma oposição activa e poderosa.
Aqueles que defendiam a causa do santo teriam o cuidado de o manter afastado de qualquer informação menos abonatória. Se tivessem prestado depoimento a favor
de Giacomo Nerone, não o alterariam perante o advogado do Diabo - embora pudessem submeter-se, se
este fosse capaz de descobrir razões para os pôr em
causa. Era irracional, evidentemente, tecer intrigas
acerca do Todo-Poderoso, mas no seio da Igreja havia tanta irracionalidade e intriga como fora dela. A Igreja era uma
família formada por homens e mulheres, nenhum deles com
garantias de irrepreensibilidade, nem mesmo com a ajuda do
Espírito Santo.
As melhores hipóteses de que dispunha pareciam agora
residir naqueles que se tinham recusado a prestar quaisquer
declarações. Poderia não ser fácil descobrir por que razão
algumas pessoas não acreditavam em santos e consideravam
os cultos prestados a estes como superstições perniciosas. Era
possível que estivessem dispostos a revelar algo que
denunciasse os pés de barro num ídolo popular. Havia gente
que acreditava em santos mas que não desejava ter nada a ver
com eles. Consideravam-nos companhia desagradável e as
suas virtudes como uma reprovação permanente. Não havia
ninguém tão teimoso como um católico em conflito com a sua
consciência. Finalmente haveria aqueles que hesitariam em
revelar factos imputáveis ao candidato, porque eles próprios
ficariam desacreditados.
O problema a enfrentar a seguir seria onde encontrar essas pessoas. Segundo os registos de Battista e Saltarello, todas as informações positivas vieram de Gemello
Maggiore, a aldeia próspera, e todas as de carácter negativo tiveram origem na aldeia gémea menos favorecida, do outro lado do vale. A diferença era demasiado óbvia
para ser ignorada e
excessivamente artificial para ser aceite sem indagação.
Meredith decidiu discuti-la com o bispo na refeição que
tomassem juntos a seguir.
Sua Eminência abordou o assunto com maior precaução do
que a habitual.
- Também para mim essa tem sido uma das particularidades
mais intrigantes da situação. Permita-me que Lha explique mais
detalhadamente. Temos duas aldeias, gémeas de nome e por
natureza, empoXeiradas nos cumes da mesma montanha. Antes
da guerra. que eram? Típicas aldeolas calabresas, lugares de
pequena dimensão e muita pobreza, habitados por trabalhadores agrícolas contratados por proprietários rurais ausentes. Não havia qualquer diferença perceptível tanto
no seu aspecto exterior como nos respectivos padrões
de vida, exceptuando o facto de em Gemello Minore
haver uma padrona residente, a condessa de Sanctis...
- O bispo fez um parêntese irónico. - Mulher interessante, a condessa. Terei curiosidade em saber o que
pensa dela. Hospedar-se-á em sua casa quando for para Gemello Minore. Não obstante, a sua presença, na
altura como agora, não produziu nenhuma alteração
no estado em que a população local vivia... Depois
veio a guerra. Os homens jovens foram levados pelo
Exército, os mais velhos e as mulheres ficaram a cuidar das terras. É uma terra muitíssimo pobre, como terá ocasião de verificar, e ainda mais pobre foi ficando
à medida que os anos passaram. Havia um imposto sobre as colheitas, e, depois de os agrários retirarem a
sua parte, pouco restava para os camponeses, e era
frequente grassarem grandes fomes nas montanhas.
Agora... - As mãos compridas e sensíveis de Sua
Eminência esboçaram um gesto enfático. - É no meio
desta situação que surge um homem, um desconhecido
que se diz chamar Giacomo Nerone. Que sabemos nós
acerca dele?
- Muito pouco - retorquiu Blaise Meredith. - Chega não se sabe donde, com a roupa de camponês em
farrapos. Encontra-se ferido e atacado pela malária.
Afirma ser um desertor das batalhas que se travam no
Sul. Os aldeões aceitam-no e não discutem a sua pretensa identidade. Eles próprios têm filhos seus longe.
Não nutrem simpatia por uma causa perdida. Uma jovem viúva chamada Nina Sanduzzi recebe-o na sua casa e cuida dele. Inicia então uma ligação com a mulher
que mais tarde é interrompida... mesmo a meio da
gravidez desta.
- E depois? - incita-o o bispo argutamente.
Blaise Meredith esboça um gesto de quem se sente intrigado.
- A partir dessa altura deixo de perceber. Os dados
registados são imprecisos. As testemunhas mostram-se
vagas. Fala-se numa conversão, numa viragem para
Deus. Giacomo Nerone sai de casa de Nina Sanduzzi e
constrói uma pequena cabana para si próprio no canto
mais desolado do vale. Planta um jardim. Passa horas
mergulhado na solidão e em contemplação. Aparece
na igreja aos domingos e recebe os sacramentos. Ao
mesmo tempo, repare, dá mostras de ter assumido a liderança das aldeias.
- De que maneira é que ele as lidera e com que finalidade? Estou a interrogá-lo, Meredith, porque quero ver o que o meu amigo, recém-chegado, concluiu
desta história. Eu próprio a conheço de cor e salteado,
mas continuo intrigado com ela.
- Segundo leio nos dados registados - disse Meredith cautelosamente - ele começou por ir de casa em
casa a oferecer os seus serviços para quem deles necessitasse: algum velho que já não se sentia capaz de cultivar as suas terras, uma avó debilitada e só, um camponês
doente que quisesse alguém que Lhe cuidasse da plantação de tomate. Daqueles que tinham posses ele pedia um pagamento em espécie: leite de cabra, azeitonas, vinho,
queijo, produtos que depois passava para as mãos daqueles a quem faziam falta. Mais tarde,
quando o Inverno chegou, organizou uma distribuição
de trabalho e recursos e fê-la respeitar com rigor, por
vezes violentamente.
- Um procedimento muito pouco próprio de santo,
não acha? - comentou o bispo com um sorriso subtil.
- Também foi a impressão que tive - admitiu Meredith.
- Mas até mesmo Cristo açoitou os vendilhões do
templo, não foi? E, quando conhecer melhor os nossos
calabreses, concordará que têm as cabeças mais duras
e os punhos mais rijos da Itália.
Meredith viu-se obrigado a sorrir diante da armadilha que o bispo Lhe armara.
Admitiu a possibilidade, sorrindo:
- Marquemos então um ponto a favor de Giacomo Nerone.
O que vem a seguir também é a seu favor. Ele trata dos doentes
e parece ter proporcionado uma espécie de assistência médica
rudimentar em colaboração com certo médico, Aldo Meyer, um
exilado político, que se recusou, curiosamente, a prestar
quaisquer declarações sobre o assunto.

- Também esse aspecto tem merecido grande reflexão da
minha parte - observou-lhe o bispo. - E o mais interessante é
que, antes e depois da guerra, Meyer foi o primeiro a tentar
organizar esta gente para seu próprio benefício, mas falhou
redondamente. É um homem de uma humanidade singular, mas
pouco bem sucedido, pelo facto de ser um judeu num país de
católicos, também talvez por mais alguns outros factores. Devia tentar conhecê-lo. Poderá ficar surpreendido... Continue, por favor.
- A seguir detectamos indícios de mais actividade religiosa. Nerone reza com os doentes, conforta os moribundos.
Empreende viagens no meio da neve para trazer o padre com os
últimos sacramentos. Quando não há padre, ele próprio os
ministra. Agora há um aspecto estranho... - Meredith faz uma
pausa de dúvida. - Duas das testemunhas dizem: "Quando o
padre Anselmo se recusou a vir..." Que quererá isto dizer?
- O que diz, imagino - observou Sua Eminência friamente.
- Têm-se gerado situações de grande escândalo em redor
desse homem. Já pensei muitas vezes em afastá-lo, mas até aqui
ainda não me decidi.
- Vossa Eminência tem fama de ser muito rígido em matéria de disciplina. Já afastou outros. Porque não este?
- É um homem de idade - disse o bispo suavemente. - Velho e, suponho, mesmo à beira do desespero; não gostaria nada de me imaginar o responsável de alguma desgraça.
- Peço-lhe que me desculpe - disse Meredith imediatamente.
- Não tem qualquer importância. Somos amigos.
Tem o direito de perguntar. Mas eu sou bispo, não burocrata. Trago comigo o cajado do pastor e também as
ovelhas tresmalhadas me pertencem. Continue. Fale-me um pouco mais acerca de Giacomo Nerone.
Meredith passou a mão pelo cabelo, cada vez mais ralo.
- Por volta de Março de 1944 chegaram os alemães,
inicialmente um pequeno destacamento, depois um
bem maior, reforço de tropas para os que combatiam
contra o 8º Exército inglês, o qual atravessara o estreito de Medina e ia abrindo arduamente caminho até
à ponta da Calábria. Giacomo Nerone é quem negoceia com eles, ao que parece com sucesso. Os camponeses fornecerão um mínimo de carne fresca em troca de medicamentos
e agasalhos de Inverno. O comandante da guarnição disciplinará os seus soldados e protegerá as mulheres cujos maridos e irmãos estão longe. O trato é razoavelmente
mantido e Nerone ganha fama de mediador respeitável. Esta associação com os
alemães foi mais tarde apresentada como a razão que
levou à sua execução pelos guerrilheiros. Quando os
Aliados chegaram e começaram a avançar em direcção a Nápoles, passaram pelas aldeias e incumbiram
os guerrilheiros locais da tarefa de tratar das forças
alemãs desbaratadas e em retirada. Giacomo Nerone
deixou-se ficar...
O bispo interrompeu-o, erguendo a mão esguia.
- Detenha-se aí por um momento. Que Lhe parece,
até aqui?
- Ignotus! - declarou Meredith tranquilamente. -
O desconhecido. O homem de nenhures. O perdido,
que de repente se transforma no santificado. Possui
um sentido de gratidão, um toque de compaixão, um
talento e talvez gosto pela liderança. Mas quem é ele?
Donde vem e porque actua daquela maneira?
- Vê algum santo na pessoa dele?
Meredith abanou a cabeça.
- Por enquanto não. Piedade talvez, mas não santidade. Ainda não examinei os dados que dizem respeito aos alegados milagres, portanto não me debruçarei
sobre este ponto. Mas ressalto um outro: na santidade
há um padrão que se reflecte numa grande racionalidade. Até agora não vi nenhuma racionalidade aqui.
Unicamente secretismo e mistério.
- Talvez não haja mistério, apenas ignorância e
confusão. Diga-me, meu amigo, que sabe das condições existentes aqui no Sul nessa altura?
- Muito pouco - admitiu Meredith, com franqueza. - Estive fechado no interior da Cidade Santa durante toda a guerra. Só sabia do que ouvia e lia, o que,
Deus sabe, já me chegava deveras adulterado.
- Então deixe-me explicar-lhas.
Sua Eminência levantou-se e acercou-se da janela,
detendo-se a olhar para o jardim, onde o vento soprava levemente por entre os arbustos e onde as sombras
eram profundas, porque a Lua ainda não fizera o seu
aparecimento sobre o topo das colinas. Quando falou,
na sua voz notava-se uma tristeza que já vinha de há muito.
- Sou italiano e compreendo esta história melhor
do que a maioria, apesar de ainda não compreender as
pessoas nela envolvidas. Primeiro deve dar-se conta de
que um povo derrotado não tem lealdades. Ficou desiludido com os seus líderes. Os seus filhos morreram
por uma causa perdida. Não acredita em ninguém,
nem sequer nele próprio. Quando os nossos conquistadores chegaram, gritando democracia e liberdade, tão-pouco acreditámos neles. Só olhávamos para o pão
que traziam nas mãos, calculando exactamente o preço
que nos pediriam por ele. As pessoas esfomeadas nem
sequer acreditam no pão até o terem engolido e poderem senti-lo dolorosamente nos estômagos desabituados. Era assim que as coisas se passavam aqui, no Sul. O povo
estava derrotado, sem chefe, esfomeado. Pior do que isso, fora esquecido; e tinha consciência do facto.
- Mas Nerone não os esquecera - objectou Meredith. - Continuava junto deles. Ainda era um líder.
- Já deixara de o ser. Havia agora novos barões nas
terras. Homens com armas novas, cartucheiras cheias,
e a quem os conquistadores tinham passado a ordem
rude de limpar as montanhas e mantê-las em ordem até
se formar um governo novo e responsável. Os seus nomes e rostos eram familiares - Michele, Gabriele, Luigi, Beppi. Tinham pão com que regatear, assim como
carne enlatada e tablettes de chocolate, e também velhas contas a ajustar: políticas e pessoais. Saudavam
com o punho cerrado da camaradagem e com o mesmo
punho agrediam os rostos de quem se atrevesse a expressar opiniões diferentes. Eram muitos e poderosos,
porque o vosso Churchill dissera que faria negócio
com quem pudesse ajudá-lo a restabelecer a ordem na
Itália e a deixá-lo prosseguir a invasão da França. Que
podia Giacomo Nerone fazer contra eles, o seu ignotus de nenhures?
- Que foi que ele tentou fazer? Isso é que me interessa. Porque foi que alguns se mantiveram do lado
dele como se fosse um santo e outros o rejeitaram e
traíram, entregando-o aos carrascos? Porque, antes de
mais nada, estavam os guerrilheiros contra ele?
- Consta nos registos - disse Sua Eminência, com
um sorriso fatigado.
- Chamaram-lhe colaboracionista. Acusaram-no de
manter um comércio lucrativo com os alemães.
Meredith rejeitou a sugestão enfaticamente.
- Não basta! Não basta para explicar o ódio, a violência, a divisão, o porquê de uma aldeia prosperar e a
outra decair cada vez mais. Também para nós não basta. O povo clama um martírio, a morte em defesa da
fé e dos princípios morais. Tudo quanto me tendes
mostrado aponta apenas para uma execução política, injusta e cruel talvez, mas, ainda assim, não ultrapassando esses limites. Não estamos preocupados com a política,
mas sim com a santidade, a relação directa de um homem com o Deus que o criou.
- Talvez não passe disso, um homem bom apanhado na teia da política.
- Vossa Eminência acredita nessa possibilidade?
- Aquilo em que acredito importa, monsenhor?
O rosto patrício e astuto erguera-se para ele. Os lábios finos sorriam ironicamente.
Então, muito subitamente, a verdade atingiu-o como um balde de água fria no rosto. Também aquele homem tinha uma cruz a carregar. Poderia ser um bispo,
mas isso não evitava que as dúvidas o atormentassem e
os medos o acossassem aos extremos da tentação.
O coração árido de Meredith sentiu-se invadido de
uma compaixão rara; respondeu brandamente:
- Se importa? Penso que importa muito.
- Porquê, monsenhor?
Os olhos profundos, inteligentes, desafiavam-no.
- Porque penso que Vossa Eminência, como eu,
tem medo do dedo de Deus.

CAPÍTULO V

Nicholas Black, o pintor, trabalhava num novo quadro.
Era uma composição simples mas estranhamente
dramática: um amontoado de rochas nuas, corroídas
e desgastadas pelas intempéries, manchadas de fungos
e sarapintadas de líquenes como a pele da muda de
uma serpente; no meio delas crescia uma oliveira solitária, morta e despida de folhagem, cujos braços nus
se projectavam como uma cruz no azul límpido do céu.
Trabalhava nele já ia para uma hora, na solidão bem
iluminada de um pequeno planalto que ficava para trás
da colina, com o vale, a que os campos cultivados conferiam o aspecto de tabuleiro de xadrez, estendido a
seus pés e por cima o vulto da montanha verde, regada
pelo sol do meio-dia.
O sol incidia, quente, no seu dorso bronzeado mas
pouco musculoso, o ar era lânguido e seco mas barulhento com o canto das cigarras, e Paolo Sanduzzi dormitava a uns passos dos seus pés, estendido como um lagarto
numa rocha cinzenta.
Nicholas Black era alheio à emoção do contentamento e raramente a plena satisfação o tocava; mas
naquele lugar e hora tranquilos, na companhia do rapaz adormecidos o quadro tomando forma vigorosa
sob a sua mão, nunca se sentira mais próximo daquele
estado de espírito. Pintava calmamente, com satisfação, exteriorizando os pensamentos na tela e na árvore cinzenta e retorcida, que fazia lembrar um patíbulo sobre
um pequeno
Gólgota. Havia nela uma força que o atraía - uma
energia na madeira, músculo e osso sob a casca áspera
e cinzenta, como se um dia ela pudesse fender-se e
deixar emergir um homem, resplandecente e novo, numa espécie de ressurreição na madrugada.
Ele admirava a força - tanto mais por possuí-la em
tão pouca quantidade - embora raramente fosse capaz de transmiti-la nos seus trabalhos. Há muito que
os críticos Lhe tinham notado a falha. Admiravam o
encanto dos seus quadros, o arrojo, o brilhantismo
dramático, mas deploravam o osso mole e o sangue
pálido sob a fina pele. Mais tarde tinham-no classificado de ratél - o homem que nunca atingiria o ponto
máximo, devido a alguma debilidade fundamental na
sua própria personalidade. Depois disso, evidentemente,
tinham-se mostrado simpáticos para com ele, no estilo
condescendente que reservavam para as mediocridades
simpáticas e para os audaciosos que nunca desistiam.
Noticiavam sempre as suas exposições. Elogiavam-no
o suficiente para que as mulheres solitárias e carenciadas continuassem a comprar-lhe quadros e os pequenos comerciantes se mantivessem medianamente interessados.
Mas nunca o levaram a sério.
De vez em quando aparecia algum crítico jovem numa exposição de Nicholas Black que resolvia não estar
com contemplações; fora um destes que escrevera o
brutal epitáfio que pusera Londres a rir durante uma
semana e empurrara Black pelo canal, para Roma e
para Louise de Sanctis.
"Um dos eunucos da profissão", dissera o inteligente jovem crítico. "Para sempre condenado a viver
na contemplação da beleza, mas sem nunca, nunca,
possuí-la. " No Bag o'Nails, no Stag e no B. B. C. Club riram à volta das suas cervejas. Nas salas de estar jorgianas de Knightsbridge soltaram risadas durante
os cocktails.
Sob os tectos das mansardas de Chelsea fizeram versos
obscenos acerca do assunto; e aquele que partilhava
do seu apartamento e de mais de metade do seu amor
atirou-lho à cara no fim de uma noite de discussão.
Foi o momento mais amargo da sua vida e, mesmo
naquela altura, a três mil quilómetros e seis meses de
distância do acontecido, a recordação mantinha-se lívida e vergonhosa. Era um terror especial aquele; um
inferno muito particular reservado aos pobres diabos
que, por negligência ou ironia do Criador, vinham ao
mundo defeituosos nos atributos que definem um homem. Os seus companheiros mais normais desdenhavam-nos, como os poetastros desdenham uma sátira que saliente as
pomposidades do seu próprio trabalho,
como as esposas virtuosas desdenham a prostituta que
vende por dinheiro o que elas recusam por amor. Assim, formam um reino no seio de si próprios, um meio
mundo de amantes perdidos, de encontros furtivos e
casamentos bizarros. No meio mundo existe lealdade,
mas não a suficiente para proteger contra os intriguistas internos e os que zombam do lado de lá de barreiras inconsistentes. E, quando um homem como Nicholas Black
o abandona, torna-se o peregrino solitário de
um culto secreto, cujos símbolos são os desenhos nas
paredes dos urinóis, o sinal fálico e os toques furtivos
numa assembleia de estranhos.
Mas agora chegara a um oásis na sua rota de peregrino. Estava a pintar uma árvore forte e viva como
um homem. E um jovem bronzeado e lânguido dormia
ao sol, a seus pés. Traçou uma última pincelada cuidadosa e depois pousou o pincel e a paleta, ficando a
olhar para Paolo Sanduzzi.
Este jazia de costas, um dos joelhos levantados e um
dos braços metido debaixo da cabeça, enquanto o outro se estendia negligentemente ao comprido, sobre a rocha quente e cinzenta. A única roupa que envergava eram
uns calções manchados e calçava umas sandálias de couro
gastas. No ar seco e quente, a pele brilhava-Lhe como madeira
oleada e o macio rosto juvenil tinha, em repouso, uma
expressão de curiosa inocência.
Há muito que Nicholas Black não tinha nada a ver com a
inocência. Aderira demasiadas vezes à sua zombaria e sedução.
Mas ainda conseguia distingui-la, ainda era capaz de lamentar a sua perda.
Sentou-se na rocha aquecida, a poucos passos do rapaz e
fumou pensativamente um cigarro, perdido num momento raro
de satisfação entre o passado acusador e o futuro duvidoso.
De repente, o rapaz sentou-se e fitou-o com olhos atentos e interrogativos.
- Porque está sempre a olhar para mim dessa maneira?
Black sorriu calmamente e respondeu:
- És belo, Paolo. Tal qual o jovem David que Miguel Ângelo esculpiu num pedaço de mármore. Eu sou um artista... um
amante da beleza. Portanto, gosto de olhar para ti.
- Quero mijar - disse o rapaz, sorrindo.
Pôs-se lestamente de pé e caminhou até à beira do planalto, onde se postou de pernas abertas, aliviando-se à vista de Nicholas Black, que percebeu a zombaria, mas
não protestou. O jovem voltou novamente para trás, com ar ocioso,
acocorando-se ao lado de Nicholas. Continuava a sorrir, mas
notava-se-lhe uma expressão dúbia e calculista nos olhos
escuros. Perguntou sem rodeios:
- Quando for para Roma leva-me consigo?
Black encolheu os ombros à maneira do Sul.
- Quem sabe? Roma fica muito longe e é cara. Posso arranjar muitos criados aqui? mas um amigo, isso, já pode ser diferente.
- Mas o senhor disse-me que eu era seu amigo!
A ansiedade era tão nítida e ingénua que poderia tê-lo
enganado, mas a verdade era visível nos olhos do rapaz
escuros como ónix.
- Um amigo deve provar que o é - observou o
pintor. com indiferença calculada. - Ainda temos
tempo. Veremos.
- Mas eu sou um bom amigo. Um amigo verdadeiro - queixou-se Paolo, em tom lamuriento e infantil. - Olhe, vou mostrar-lhe!
Atirou os braços à volta do pescoço de Black, beijou-o rapidamente e depois deu um salto para trás, tímido como um animal fora de alcance. O pintor limpou a boca
com as costas da mão e depois levantou-se sem pressas, sentindo o gosto da desilusão na língua. Não olhou para o rapaz, que se mantinha de pé, mãos nos quadris,
na beira da rocha, a três metros de si. Acercou-se do cavalete, pegou no pincel e na paleta e
disse por cima do ombro:
- Tira as roupas!
O rapaz fitou-o, admirado.
Black gritou-lhe asperamente.
- Vá! Despe-te. Quero que me sirvas de modelo.
É para isso que te pago, entre outras coisas.
Depois de um momento de hesitação atabalhoado, o
jovem obedeceu e Black sorriu com satisfação irónica
ao reparar como a ousadia e o desafio Lhe desapareciam juntamente com a roupa esfarrapada Agora não
passava de uma criança - assustada, insegura, na presença de um patrão temperamental.
- Estica os braços. Assim.
O rapaz ergueu lentamente os braços ao nível dos ombros.
- Agora mantém-nos aí.
Nicholas Black com pinceladas rápidas e seguras,
começou a pintar a figura crucificada na imagem retorcida da oliveira: não era nenhum Cristo atormentado,
mas sim um jovem em plena puberdade. com o rosto e o corpo de Paolo Sanduzzi, pregado à casca da árvore
pelas mãos e pelos pés, com o lanho vermelho aberto
no peito pela espada, mas sorrindo mesmo, apesar de
a vida se Lhe esvair, sangrenta.
O rapaz cansou-se muito antes de ele terminar mas Black obrigou-o a manter a mesma posição, amaldiçoando-o sempre que o via deixar cair os braços. Depois de
acabar disse-lhe que se aproximasse e mostrou-lhe a pintura. O efeito foi espantoso. O rosto do jovem contorceu-se numa máscara de terror, abriu muito a boca e
começou a tremer e a gaguejar, apontando para a tela.
- Que se passa? Que estás a tentar dizer-me?
A voz de Black era alta e áspera, mas não exerceu
nenhuma impressão sobre Paolo Sanduzzi. Este fazia
lembrar uma pessoa à beira de um ataque de epilepsia.
Black acercou-se dele e esbofeteou-o fortemente em ambaS as faces. O jovem gritou de dor e depois começou a chorar acocorando-se no chão e cobrindo o rosto com as
mãos, enquanto Black se ajoelhava a seu lado a tentar acalmá-lo. Instantes depois voltou a perguntar-lhe:
- Que se passa? Que foi que te assustou?
A voz do rapaz era quase um sussurro.
- O quadro!
- Que tem ele?
- É a árvore do meu pai!
O pintor fitou-o, surpreso.
- Que queres dizer?
- Foi assim que mataram o meu pai. Nessa mesma
árvore. Esticaram-no nela assim, como se fosse uma cruz, amarraram-no... e depois fuzilaram-no.
- Santo Deus! - praguejou Nicholas Black, em voz baixa. - Anjos celestiais, mas que história! Mas que história agradável!
Passado um momento começou a rir e o rapaz afastou-se assustado, de cabeça baixa, e levando os calções e as sandálias na mão.
Essa mesma tarde proporcionou a reintegração temporária do Dr. Aldo Meyer em Gemello Minore.
Martino, o ferreiro, sofrera um acidente quando trabalhava na bigorna. Caíra sobre a forja e ficara gravemente queimado no peito e no rosto. Tinham-no levado
para a casa de Meyer e naquele momento o médico tratava dele, auxiliado por Nina Sanduzzi, enquanto a mulher de Martino observava nervosamente de um canto do quarto
e os aldeões aglomerados do exterior tagarelavam como estorninhos acerca do drama ocorrido.
O corpo forte e rotundo do ferreiro fora envolvido
em cobertores e jazia em cima da mesa de tábua da
cozinha de Meyer. Tinha um dos lados completamente
paralisado - a perna e o braço tinham ficado sem
acção, o rosto mostrava-se contraído para o lado
num ricto de surpresa e medo. Tinha os olhos fechados e a respiração rápida e ruidosa. Quando Meyer Lhe
tocou nas chagas das faces, limpando-as, um grito entrecortado escapou-se-lhe da boca contorcida. Depois
de terminar o tratamento do rosto, Meyer desenrolou
os cobertores e, ao ver a extensão e profundidade das
queimaduras do corpo, soltou um assobio baixo e significativo. Nina Sanduzzi manteve-se impassível como
uma estátua, segurando na bacia de água quente e nos
pensos. Ao ver a mulher de Martino precipitar-se para
junto do marido, pousou a bacia com toda a calma e
conduziu-a de volta ao canto, acalmando-a e repreendendo-a com voz baixa e amiga. Depois voltou para
junto de Meyer, atenta como qualquer enfermeira
ajudando-o a retirar o carvão das queimaduras, a limpá-las e a passar-lhe genciana violeta por cima, juntamente com o que restava da última pequena porção de mertiolato.
Terminado o curativo, Meyer procedeu a nova auscultação e contagem de pulsações, voltou a envolver o
doente nos cobertores e voltou-se para a mulher que
chorava ao canto, dizendo-lhe suavemente:
- Fará melhor em deixá-lo aqui durante algumas
horas. Depois farei que Lho levem a casa.
A mulher perguntou-lhe em tom suplicante, lamuriando-se como um animal:
- Ele não vai morrer, pois não, doutor? Não o deixará morrer, não?
- É forte como um boi - respondeu-lhe Meyer calmamente
- Não morrerá.
A mulher agarrou-lhe nas mãos, beijando-as e rogando aos
santos que abençoassem o bom doutor. Meyer soltou-se bruscamente.
- Agora volte para casa e dê de comer aos seus filhos. Seprecisar de si, mandá-la-ei chamar. E mais tarde terá o seu
marido em casa.
Nina Sanduzzi pegou-lhe no braço e acompanhou-a até ao
exterior da divisão e Meyer, quando voltou para junto do seu
paciente, ouviu-a à porta a gritar com os mirones, mandando-os
cuidar da sua vida. Ao voltar perguntou-lhe sem rodeios:
- Foi sincero no que Lhe disse? Ele viverá?
- Sim, viverá - respondeu-lhe Meyer, com um gesto de
indiferença. - Mas nunca mais servirá para nada de nada.
- Ele tem seis filhos.
- Demasiados - observou Meyer, com um humor subtil.
- Mas tem-nos - insistiu Nina teimosamente. - Quem é que
os irá alimentar, agora que ele não pode trabalhar
Meyer encolheu os ombros.
- Têm a assistência social. Não morrerão de fome.
- Assistência social! - retorquiu-lhe ela em tom de
escárnio. - Uma dezena de entrevistas e uma centena de
impressos para um quilo de massa! Que espécie de solução é essa?
- É a única que conheço nos tempos que vão
correndo - disse-lhe Meyer, com frieza e amargura. - Já tive
muitas outras, mas ninguém ligou nenhuma. Quiseram
continuar à maneira antiga. Agora olhem... esta é a maneira
antiga!
Nina Sanduzzi fitou-o fixamente. Nos seus olhos escuros e
inteligentes lia-se comiseração e desprezo.
- Sabe o que Giacomo Nerone teria feito, não sabe? Teria
ido ele mesmo para a forja trabalhar. Teria batido a todas as portas, não largando as pessoasaté estas
ajudarem. Teria ido lá acima à villa falar com acondessa a
pedir-lhe dinheiro ou trabalho para a mulher de Martino. Teria
arrebanhado parte das moedas da caixa das esmolas do padre
Anselmo. Ele compreendia este tipo de situações. Sabia como
as pessoas ficam assustadas. Nunca foi capaz de ouvir uma
criança chorar...
- Era um homem notável, esse seu Giacomo - disse Meyer,
com brevidade. - Foi por isso que o mataram. Martino, se bem
me recordo, foi um dos que dispararam a salva.
- E o doutor assinou um documento a dizer que ele foi
legalmente executado depois de um julgamento justo. - Não se
lhe notava raiva na voz, era apenas o recordar tranquilo de
factos conhecidos. - Mas nunca nenhum de vocês falou
alguma vez do verdadeiro motivo por que ele foi morto.
- E qual era, então? - desafiou-a o médico asperamente.
- Não havia apenas um motivo. Era uma dúzia deles. Houve
o de Martino, o da condessa, o do padre Anselmo, o de
Battista, o de Lupo e o seu também, dottore mio. Mas não
foram capazes de os admitir, nem sequer entre vocês; portanto,
descobriram um que vos servisse a todos: Giacomo era um
colaboracionista, um adorador dos fascistas e dos alemães!
Vocês eram todos libertadores, os amigos da liberdade, os
irmãozinhos de toda a gente. Trouxeram-nos a democracia.
Tudo quanto Giacomo nos conseguiu foi uma côdea de pão,
uma malga de sopa e um par de mãos para trabalhar, quando o
homem de alguma casa estava doente.
As acusações, proferidas com voz calma, aguilhoaram-no,
fazendo-o retorquir, exaltado:
- É o que este malfadado país tem de pior. É pOr isso que ainda estamos com cinquenta anos de atraso em relação ao
resto da Europa. Não nos organizamos, não nos organizamos a nós próprios. Não cooperamos.
Não é possível construir um mundo melhor a partir de
uma tigela de massa e de uma pia de água benta.
- Também não o pode construir a partir de balas,
dottore. Conseguiu o que queria. Matou Giacomo. Agora, de que vai valer? Martino nunca mais poderá voltar
a trabalhar. Quem é que Lhe alimentará a mulher e os seis filhos?
Não havia resposta possível para aquela lógica brutal
e ele voltou as costas a Nina, envergonhado e impotente, encaminhando-se para a porta que deitava para
o jardim quente e bem iluminado. Passado um momento, Nina Sanduzzi foi atrás dele e pousou-lhe uma
mão hesitante na manga.
- O senhor pensa que eu o odeio, dottore. Está enganado. Giacomo também não o odiava. Antes de morrer veio ver-me. Sabia o que iria acontecer. Sabia
que o senhor estava ligado ao assunto. Mas sabe o que
ele me disse? "Tens aí um homem bom, Nina. Ele esforçou-se por fazer demasiado, mas sente-se infeliz, porque nunca realmente soube o que é amar e ser amado. Ele
deseja organizar e reformar, mas não vê que tudo isso não tem valor se não for feito com amor. Eu tenho sorte, porque no princípio tive-te a ti para me ensinares.
Ele está sozinho há demasiado tempo.
Quando eu morrer, vai ter com ele, sê boa para ele.
Se algum dia achares que precisas novamente de um
homem, este será aquele que te tratará bem e ao rapaz." Ele escreveu uma carta para si que juntou aos
seus papéis. Eu devia tê-la entregue depois da sua morte.
Meyer deu meia volta e encarou-a.
- Uma carta! Onde está ela, mulher? Onde, por
amor de Deus?
Nina Sanduzzi abriu as mãos num gesto de desespero.
- Eu tinha todos os seus papéis no meu armário.
Quando Paolo era pequeno, um dia deitou-lhes a mão
e misturou-os todos. Rasgou alguns, outros amachucou, e, quando voltei a reuni-los, não fui capaz de os distinguir uns dos outros... - Corou como que diante de
uma revelação vergonhosa. - Eu... eu nunca aprendi a ler!
Meyer agarrou-a rudemente pelos ombros.
- Tenho de ver os papéis, Nina. Tenho de vê-los.
Não sabes até que ponto é importante.
- Seis filhos são importantes - disse Nina Sanduzzi
calmamente. - E uma mulher cujo homem não pode
voltar a trabalhar.
- Se eu os ajudar? mostras-me os papéis?
Ela abanou a cabeça num gesto de recusa inabalável.
- Giacomo disse outra coisa: "Uma pessoa nunca
deve negociar com os corpos das pessoas." Se as quiser
ajudar, que o faça sem pedir nada em paga. Mais tarde
poderemos falar acerca dos papéis.
Meyer fora vencido e sabia-o. Aquela mulher iletrada possuía uma força de granito, uma reserva de sabedoria inviolável, que ele, que toda a vida estudara, não
era capaz de igualar. O que o intrigava era o facto de
não existirem raízes que o justificassem nas suas orígens camponesas, e a ele custava-lhe admitir que ela o
adquirira de Giacomo Nerone. No entanto, Nina tal
como Nerone, estava na posse da chave que dava acesso
ao mistério que durante vinte anos escapara à decifração
de Aldo Meyer: a razão por que certos homens cheios
de talento, boa vontade e compaixão nunca conseguem
um contacto pleno com a espécie humana e só despertam o desprezo e o ridículo no seio daqueles que
tentam ajudar; e por que razão outros, sem esforço
aparente, conquistam imediatamente o coração dos
homens e são recordados com amor muito tempo depois de morrerem.
Talvez nos papéis de Nerone lesse a resposta que
não tinha coragem de pedir a Nina Sanduzzi. Mas não
podia obtê-los nas condições dela. Portanto, esboçou
um gesto de resignação e disse-lhe:
- Esta noite janto com a condessa. Falar-lhe-ei de
Martino e verei o que podemos fazer.
O rosto calmo e clássico iluminou-se num sorriso. Num gesto impulsivo, Nina agarrou-lhe na mão e beiJ ou-a.
- O senhor é um homem bom, dottore. Falarei à
mulher de Martino. Ninguém deve ser deixado com
medo por muito tempo.
- Tu também me podes dizer uma coisa, Nina.
- O quê, dottore?
- Que dirias se eu te pedisse para casares comigo?
Os olhos escuros e profundos não deram mostras de
surpresa nem de prazer.
- Dir-lhe-ia o que Lhe disse da primeira vez, dottore. Mais valia não pedir.
Depois afastou-se rapidamente e Aldo Meyer regressou ao seu paciente, sentindo-lhe a pulsação fraca e irregular, e auscultou-lhe o resistente coração de camponês,
que lutava pela vida por trás do peito em chaga.
Paolo Sanduzzi encontrava-se à beira do rio, atirando pequenas pedras sobre a água e vendo-as saltar para os arbustos da outra margem. O rio tinha
um nome e três rostos. O seu nome era Torrente del
Fauno - a torrente do fauno - porque nos tempos
antigos, muito antes de Cristo vir de Roma até ali com
S. Pedro, os faunos utilizavam aquele local - sátiros
endiabrados, constantemente em perseguição das três
raparigas a que chamavam dríades. Após a construção
da igreja, todos tinham desaparecido; o que era realmente uma pena, porque sem eles o vale perdera a
graça. Mas o nome ficara e por vezes os rapazes e as
raparigas da aldeia encontravam-se ali secretamente
para se entregarem aos velhos jogos pagãos.
A face do rio mudava com as estações. No Inverno
era escuro, frio e sinistro, ocasionalmente com franjas
de geada ou neve amontoada. Na Primavera era castanho e tumultuoso, rugindo tão alto com a água do degelo que na aldeia, mais acima, todos podiam ouvir.
No Verão ficava reduzido a um carrego estreito e límpido que
corria suavemente sobre as pedras, quedando-se sob as
ramagens que pendiam sobre ele das margens em poças
tranquilas. Antes de o Outono chegar voltava a secar - um
leito ressequido cheio de pedras alvas. Naquela altura
apresentava o seu aspecto agradável e Paolo sanduzzi ele
próprio fazendo lembrar um fauno, sentia-se feliz por estar
longe da árvore morta que parecia um cadafalso e do inglês
cujo riso era como água a borbulhar num pote negro.
Nunca se sentira tão assustado em toda a sua vida; e ainda não Lhe passara. Era como se o pintor estivesse em poder da chave que dava acesso ao domínio sobre a sua
vida: ao
passado que o envergonhava e ao futuro que só vislumbrava
fracamente como uma visão de Roma! com as suas igrejas e
palácios, as suas ruas repletas de automóveis reluzentes e os
seus pavimentos apinhados de raparigas vestidas como princesas.
A visão exercia um feitiço sobre si, meio agradável e meio sinistro, como as poções que a velha Nonna Patucci dava às raparigas para atraírem os seus amores. Sentia-o
activo naquele momento, uma comichão sob a pele, uma imagem opressiva por trás dos globos oculares. Mais cedo ou mais tarde, ela acabaria por arrastá-lo de novo
para junto do inglês, cujo sorriso zombeteiro umas vezes o fazia sentir-se desajeitado como uma criança e outras despertava nele paixões estranhas e
perturbadoras, mesmo sem uma palávra nem o toque de uma mão.
Atirou uma última pedra, negligente, para a água, enfiou as mãos nos bolsos e começou a seguir corrente abaixo. Ao dar a volta a uma curva da margem, foi detido
por uma voz estridente.
- Ei, Paoluccio!
Ergueu o olhar e avistou Rosetta, a filha de Martinos o
ferrador, sentada numa rocha com as pernas a balouçar na
água. Era uma jovem franzina com ar de duente, um ano mais
nova do que ele próprio, de cabelo fino, um rosto pequeno e atrevido e seios a crescer-lhe debaixo de uma camisa coçada de algodão que usava à laia de vestido. Na
aldeia ele ignorava-a ostensivamente, mas naquele momento sentia-se satisfeito
por vê-la. Acenou-lhe com mão indiferente
- Viva, Rosetta!
Depois foi sentar-se junto da moça, sobre a rocha.
- Tenho o meu pai doente. Caiu com um ataque
que Lhe deu e queimou-se na forja. Está em casa do médico.
- Vai morrer?
- Não. O médico diz que viverá. A mãe farta-se de
chorar. Deu-nos pão com queijo a todos e mandou-nos
cá para fora brincar. Queres um bocado?
Mostrou-lhe um pedaço de pão duro e uma fatia de
queijo de cabra.
- Estou esfomeado - disse Paolo.
A jovem partiu cuidadosamente o pão e o queijo em
partes iguais e entregou-lhe a parte dele. Ficaram sentados a mastigar, em silêncio, ao sol, refrescando os
pés na água. Passado um bocado, ela perguntou-lhe:
- Onde tens andado, Paoluccio?
- Com o inglês.
- A fazer o quê?
Ele encolheu os ombros com indiferença, como é
costume um homem fazer perante uma mulher bisbilhoteira.
- A trabalhar.
- Que espécie de trabalho?
- Levo-lhe as coisas. Quando ele pinta, fico a ver.
às vezes pede-me que Lhe sirva de modelo.
- Modelo de quê?
- Limito-me a ficar no mesmo sítio e ele pinta-me.
- Teresina diz que em Nápoles há raparigas que se
despem para homens as pintarem.
- Eu sei - anuiu ele, com ar sabedor.
- Tu também te despes?
A pergunta apanhou-o desprevenido e ele respondeu-lhe rudemente.
- Não é da tua conta.
- Mas despes-te, não despes? Quero dizer, se és modelo?
- É um segredo, Rosetta - disse-lhe ele, com gravidade. - Não contes a ninguém; as pessoas não entenderiam.
- Não conto, prometo.
A jovem rodeou-lhe o pescoço com o braço esguio e
encostou a cabeça ao ombro nu. O gesto embaraçou-o,
mas também Lhe agradou. Não a repeliu e, por se sentir satisfeito, disse:
- O inglês diz que eu sou bonito, como uma estátua esculpida por Miguel Ângelo no mármore.
- Que disparate! Só as mulheres é que são bonitas. Os rapazes ou são simpáticos ou antipáticos. Não bonitos.
- De qualquer maneira, foi o que ele disse - retorquiu Paolo, na defensiva. - Disse que eu era bonito e que ele gostava da beleza, portanto gostava de
olhar para mim!
A jovem mostrou-se aborrecida com aquele seu estranho jeito de duende. Retirou o braço e voltou-se de
modo a encará-lo.
- Agora tenho a certeza de que estás a inventar tudo isso. Os homens não dizem coisas como essa. Só as mulheres!
Rodeou-lhe o pescoço com os braços e premiu os lábios nos dele e, quando ele tentou resistir, apertou-o
com mais força; e, quando ele Lhe sentiu os seios contra o peito através da camisa, concluiu que, afinal, Lhe
estava a saber bem. E começou também a beijá-la.
Mais tarde a jovem pegou-lhe no rosto com as mãos
pequenas e disse gravemente:
- Amo-te, Paoluccio. Amo-te de verdade. Não como se fosses uma estátua.
- E eu também te amo, Rosetta!
- Ainda bem. - Pôs-se de pé com um salto e estendeu-lhe a mão. - Agora leva-me a dar um passeio!
- Porquê?
- Porque nos amamos, tolo, e é o que os apaixonados fazem. Além disso, tenho um segredo.
- Que segredo?
- Leva-me a passear e eu mostro-te.
Contrariado, estendeu-lhe a mão. Ela segurou-a e
ajudou-o a pôr-se de pé, seguindo depois corrente acima, através da água límpida e sob os arbustos verdes,
para partilharem os segredos antigos que as dríades
contavam aos faunos dançantes.
Do alto do planalto etéreo que se erguia por trás do
pico da montanha, Nicholas Black espraiava o olhar
sobre os caminhos dispersos do seu passado. Pela primeira vez na sua vida, os seus contornos tornavam-se-Lhe nítidos - tal como o futuro que se Lhe adivinhava, inevitável
e idêntico como os rebentos novos de uma árvore.
Desde o princípio que o enganavam: o início fetal
escondido, altura em que elementos determinantes
eram atribuídos pelo poder que porventura o decidia,
a partir de uma ligação cega de marido e mulher, donde nasceria uma imitação burlesca de homem.
Nascera gémeo - idêntico no rosto e na forma ao
irmão que o precedera uma hora à saída do útero.
Nascera católico. numa das velhas famílias Fenland
que tinham mantido a fé intacta desde a época da primeira Isabel à do último Jorge. Fora baptizado juntamente com o irmão e recebera a mesma benção, na capela da
mansão, a partir de cujos degraus os prados se estendiam, vastos e verdejantes, até à beira dos juncos e do pântano sombrio.
Mas era aí que a sua identidade terminava e a lenta
divisão principiava. O que nascera primeiro cresceu
trigueiro e forte. o segundo pálido e enfezado. Faziam
lembrar Esaú e Jacob - mas Esaú desfrutava dos privilégios de primogénito: os campos de desporto, a pesca,
as longas cavalgadas no Verão colorido, enquanto Jacob se apegava ao abrigo de sua casa e ao porto seguro que
era a sala de costura e a biblioteca. Na escola ficou para trás, estava um ano atrasado em Oxford; e, enquanto o seu irmão gémeo partiu em comissão na artilharia
do Exército ao deserto Ocidental, ele ficou confinado a uma cama de hospital, com um ataque de febre reumática. Toda a força se concentrava num, toda a debilidade
no outro. Toda a virilidade pertencia ao que nascera primeiro, e em Nicholas Black havia apenas uma beleza imprecisa, a suave subtileza de uma mente demasiado tempo
voltada para si mesma.
Enquanto o irmão viveu, teve a esperança de poder colher
nele força e encontrar dignidade no afecto. Depois, quando
chegaram notícias dizendo "Desaparecido, crê-se que morto",
a última esperança morreu também e a amargura oculta
começou a ganhar volume. Ele fora enganado: por Deus, pela
vida, pelo irmão gémeo morto, pelo pai, que depois de um
escândalo abafado em Londres o pusera fora de casa e Lhe
concedera uma pequena pensão anual? para o manter longe.
Tornara-se, desde então, um solitário. A sua crença
naufragara diante do mais difícil mistério de todos: o de um
Deus justo poder criar monstros e continuar a contar que eles
vivam como homens. O coração ficara-lhe empedernido pelos
amores breves do submundo. E agora, de repente, o poder
era-lhe colocado nas mãos - poder para fazer de outro o que ele não conseguira fazer de si próprio: um homem nobre na
natureza, no talento e na acção. Quem sabe, nessa construção
talvez pudesse reconstituir a sua própria vida - para a
dignidade, para a compreensão, para um amor mais puro do que
qualquer dos que já experimentara.
Estava a ficar velho. A paixão despertava agora mais
lentamente e era mais fácil de controlar, excepto quando era
espicaçada pela vaidade e pela concorrência. Com o rapaz à sua
guarda, alcançara uma espécie de paternidade, que
proporcionaria à sua própria vida a disciplina e o sentido que
sempre Lhe faltara.
Era um momento de deslumbramento, de sublimidade divina.
Aquele jovem era filho de um santo famoso, gerado
no corpo de uma prostituta de aldeia. A vida que teria
era tão previsível como a de um milhão de outros nas
aldeias sem trabalho da zona sul da Itália. Cresceria na
indolência, casaria demasiado jovem, procriaria demasiadas vezes e viveria sem sentido e na maior das misérias. Qualquer talento que porventura possuísse ficaria
perdido no meio da luta selvagem pela sobrevivência. A Igreja censurá-lo-ia enquanto vivesse e absolvê-lo-ia quando morresse. O Estado ficaria sobrecarregado com
uma dezena de reproduções suas, fecundas e esfomeadas como coelhos, devorando as últimas ervas de uma terra empobrecida.
Mas, se o levassem para fora da aldeia e Lhe concedessem uma oportunidade e uma educação, talvez ele
atingisse a grandeza ao crescer, justificando a sua própria existência e a do seu professor. Onde seu pai e a
Igreja tinham falhado era bem possível que Nicholas
Black ainda fosse bem sucedido - e o seu sucesso traduzir-se-ia na negação gloriosa dos valores que de há
muito rejeitara.
Para os críticos, Nicholas Black era um medíocre. Se
moldasse um homem perfeito a partir daquele barro
camponês, seria o seu triunfo para além dos sofismas,
uma obra-prima fora do alcance da malícia.
Era uma ambição estranha e, no entanto, na sua linguagem própria, não mais estranha do que os triunfos
e vinganças que outros homens sonhavam para si mesmos - impérios financeiros suficientemente poderosos
para esmagarem qualquer oposição, poder na imprensa para elevar homens ou enterrá-los no esquecimento,
sonhos de mulheres, sonhos de ópio e o sonho de um
dia ouvir os inimigos dizerem: "... Sua Excelência o
Primeiro-Ministro... "
Todo o homem tem a sua própria perdição, e homens mais nobres tinham sonhado mais miseramente nos seus pijamas do que Nicholas Black no seu planalto da
Calábria iluminado pelo sol.
Era tarde e ainda não metera um alimento à boca, no entanto sentia-se embriagado pelo vinho capitoso da esperança. de modo que não se importou. Os aldeões deviam
estar a iniciar a sua sesta. A condessa estaria fechada no seu quarto barroco e ele poderia levar o quadro para a villa sem chamar demasiado
a atenção.
Depunha grandes esperanças naquela tela. Sentia
curiosidade em relação ao modo como Louise de Sanctis
reagiria diante dela - assim como Aldo Meyer e o clérigo
sombrio que vinha investigar o passado de Giacomo Nerone.
Sorriu ao imaginá-los a olharem, embasbacados, pela primeira
vez, com os seus segredos a exteriorizarem-se nos olhos e nos rostos.
Procurou um título e encontrou-o quase imediatamente: O
Sinal da Contradição. Fazia-lhe lembrar um velho desenho no
qual um asno crucificado representava Cristo - uma brincadeira
de mau gosto de um humorista grosseiro. Mas para Nicholas
Black, o símbolo possuía um significado novo: a juventude
pregada à cruz pela ignorância, a superstição e a pobreza, já
semimorta e condenada, mas ainda a sorrir, vítima entorpecida e extática do tempo e das suas tiranias.

CAPÍTULO VI

Monsenhor Blaise Meredith e Aurelio, bispo de Valenta, preocupavam-se com outra contradição: os milagres atribuídos a Giacomo Nerone.
Encontravam-se no enorme terraço coberto de lajes
da villa a admirar o vale que se estendia mais abaixo,
onde os trabalhadores agrícolas se movimentavam lentamente de um lado para o outro na plantação, pulverizando as jovens árvores com o produto dos novos recipientes
de transportar às costas de fabrico americano. Outros instalavam na parede de uma pequena barragem novas comportas destinadas a controlar o
caudal da água para quintas situadas no exterior do
domínio do bispo. Do outro lado do vazadouro, numa
ladeira cinzenta e não cultivada, mulheres de cestos às
costas transportavam pedras para construir novos terraços para vinha, assim como terra para os encher.
Faziam lembrar formigas, pequenas e atarefadas, e
Meredith foi levado a reflectir ironicamente que aquele milagre era tão espantoso como qualquer dos que
constavam no seu livro forrado a couro: terra estéril a
produzir de novo frutos pela vontade criativa de um
homem. Exprimiu o pensamento ao bispo, cujo rosto
esguio e inteligente se abriu num sorriso.
- É má teologia, meu amigo, mas um elogio agradável de ouvir. Para esta gente é uma espécie de milagre. De repente vêem-se com trabalho e pão na mesa, com uma lira
extra para azeite para a panela. Não são capazes de
entender como foi que aconteceu e, mesmo agora, desconfiam,
lá no fundo, que algures os espera uma armadilha. Aqueles
pulverizadores, por exemplo... - Apontou para as figuras
corcundas que iam passando pelo meio das laranjeiras. - Tive
de os comprar com o meu próprio dinheiro, mas eles valeram
bem o que custaram. Ainda há um ano ou dois atrás esta gente
banhava as suas árvores com o conteúdo de um balde de
escarros, um recipiente com água que colocavam no meio do
chão e para dentro do qual os homens da casa iam cuspindo
enquanto fumavam ou mascavam tabaco. Alguns dos mais
velhos recusavam-se a admitir que o meu método é mais eficaz do que o deles. O único argumento que consegue convencê-los é eu apresentar-lhes três laranjas e eles
apenas uma e vendê-las pelo dobro do preço por serem muito sumarentas. Mas com o tempo acabarão por lá chegar.
- O meu amigo confunde-me - observou Meredith, com
toda a franqueza.
- Porquê?
- Que têm as laranjas a ver com a alma humana?
- Tudo - retorquiu o bispo sem hesitar. - Não se pode
cortar um homem ao meio e embelezar-lhe a alma ao mesmo
tempo que se deita o seu corpo para o monte do lixo. Se o
Todo-Poderoso o tivesse criado para essa finalidade, tê-lo-ia
feito bípede e carregando a alma num saco atado ao pescoço.
Se a razão e a revelação têm algum significado, esse significado é sem dúvida o de que o homem trabalha a sua salvação no corpo através da utilização dos bens materiais.
Uma árvore negligenciada, um fruto de má qualidade, são defeitos no esquema divino das coisas. A miséria desnecessária é um defeito ainda maior, porque representa
um impedimento à
salvação. Quando não se sabe donde virá a refeição seguinte,
como é que se pode pensar ou ter preocupações com o estado
da alma? A fome não tem problemas de moral, meu amigo.
Meredith aquiesceu pensativamente.
- Sempre me interroguei por que razão os missionários são geralmente melhores padres do que os seus
irmãos nos centros de cristandade.
Sua Eminência encolheu os ombros e agitou expressivamente as mãos.
- Paulo era fabricante de tendas e trabalhava no seu
ofício para não ser um fardo para o seu povo. O próprio
Cristo foi carpinteiro na Galileia dos gentios - imagino
que bem eficiente. Quando eu morrer, gostaria de ser
recordado como um bom padre e um bom fazendeiro.
- É quanto basta - observou Meredith gravemente. - E quanto basta para si, é quanto basta para mim. Imagino que o próprio Altíssimo dificilmente discordaria. Mas
será quanto basta para todos?
- Que quer dizer?
- Os milagres rodeiam-nos por todo o lado: o milagre de uma laranjeira, o milagre do engenho que mantém as rodas oscilantes do universo a rodarem nos seus
eixos. Mas, ainda assim, as pessoas continuam a desejar um sinal: um sinal novo. Se o não obtêm do Todo-Poderoso, viram-se para quiromantes, astrólogos e
espiritistas. Que significa tudo isto... - deu uma pancadinha no volume que continha os depoimentos - senão que as pessoas desejam maravilhas no Céu e milagres na
Terra?
- E às vezes conseguem-nos - recordou-lhe o bispo, com ironia.
- E às vezes improvisam-nos eles mesmos - disse Blaise Meredith.
- Não está satisfeito com os milagres de Giacomo Nerone?
- Sou o advogado do Diabo. A minha tarefa é não
estar satisfeito. - Sorriu melancolicamente. - Tarefa
curiosa, quando se reflecte sobre ela. Testar pela razão
os alegados actos da omnipotência, aplicar o código da
lei canónica àquele que rege o universo.
Sua Eminência esboçou um sinal de grave assentimento e observou calmamente:
- Pensar acerca de Giacomo Nerone poderá ser
menos perturbador.
Blaise Meredith assumiu de novo os seus modos
afectados, pedantes.
- É o problema de todas as causas novas: aplicar
os alegados milagres aos métodos médico-legais do
século xx. No caso de Lurdes, por exemplo, é razoavelmente fácil. Criou-se um departamento médico e
providenciou-se uma série de testes conformes tanto
à ciência médica como às exigências rigorosas da
Igreja. Aparece um sofredor com uma história clínica
completa. O departamento examina o paciente segundo os métodos convencionais: raios X, testes clínicos e
patológicos. Todas as maleitas de origem neurológica
ou histérica são descontadas como provas de milagre.
Somente se aceitam as desordens orgânicas profundamente enraizadas, cujos prognósticos são familiares.
Se se reivindica uma cura, o departamento volta a examinar o paciente e passa-lhe um certificado provisório
de cura. Mas só dois anos depois é que esse certificado
se torna definitivo, e nunca antes de novos exames médicos.
- Até aqui, parece ser um método seguro. Permite-nos dizer que, no actual nível da ciência médica, a referida cura teve lugar contra ou devido a uma suspensão das
leis da Natureza conhecidas. Agora... no caso
de um novo taumaturgol, noutro local, estes testes não
podem ser aplicados. No melhor dos casos dispomos
de relatos de testemunhas oculares, de uma história
médica adulterada acompanhada talvez por um certificado passado por um médico local. Pode realmente
tratar-se de um milagre. Mas em termos legais, segundo as exigências da lei canónica, constatamos que é
muito difícil de provar. Poderemos aceitá-lo tendo por
base o simples peso de provas apresentadas por leigos?
mas geralmente não o fazemos.
- E quanto às provas no caso de Giacomo Nerone?
- Dos quarenta e três depoimentos que já li, somente três mostram alguma conformidade com as exigências canónicas. Um diz respeito à cura de uma mulher de idade
declarada como sofrendo de esclerose múltipla, o segundo é o prefeito de Gemello Maggiore, que afirma ter ficado são de um ferimento na espinha ocorrido durante
a guerra, e o terceiro é o de uma
criança no último estádio de meningite, que recuperou
depois da aplicação da relíquia de Giacomo Nerone.
Mas mesmo estes...
Fez uma pausa, antes de prosseguir no seu tom enfático de advogado:
- Mesmo estes necessitarão de um exame muito mais
rigoroso, antes de pensarmos sequer em aceitá-los.
Para sua surpresa, o bispo sorriu, como se se lembrasse de algo engraçado. Meredith ficou confundido.
- Disse alguma coisa que divertisse Vossa Eminência?
- Perguntava a mim mesmo o que terá acontecido
nos velhos tempos em que a ciência médica era limitada e as leis que regulamentam as provas eram menos rígidas. Não será possível que muitos dos milagres então aceites
não tivessem nada a ver com tal?
- Eu diria que muito provavelmente.
- E que certos santos venerados possuam um registo de tal maneira obscuro que haja que duvidar da sua
própria existência?
- É verdade. Mas não percebo aonde é que Vossa
Eminência quer chegar.
- Ultimamente tenho lido - disse Sua Eminência
friamente - que determinados teólogos voltam a defender a opinião de que a canonização de um santo
constitui uma declaração infalível de um papa à qual
ficam obrigados todos os fiéis. Na minha opinião, trata-se de uma proposta dúbia. Geralmente, a canonização baseia-se na biografia e no registo histórico de milagres.
Ambos são passíveis de erro, e o papa só é infalível na interpretação do depositório da fé. Não o pode alterar. E cada novo santo representa uma nova adição ao calendário.
- Concordo com Vossa Eminência - disse Meredith,
franzindo o sobrolho, intrigado. - Mas não vejo que uma
opinião teológica minoritária tenha grande importância.
- Não é a opinião que me preocupa meredith. É a tendência: a tendência para complicar de tal maneira a questão com comentários, glossários e hipóteses que a simplicidade
rígida da fé essencial fica obscurecida, não só para os fiéis como para os que a inquirem honestamente do lado de fora. Deploro esta realidade. Deploro-a imensamente,
porque considero que ergue barreiras entre o pastor e as almas que ele tenta alcançar.
- Acredita em santos, Eminência?
- Acredito em santos do mesmo modo que acredito na
santidade. Acredito em milagres como acredito em Deus, que
pode suspender as leis da Sua própria criação. Mas também
acredito que a mão de Deus escreve de maneira directa e
simples para que todos os homens de boa vontade O
entendam. Duvido da Sua presença na confusão e nas vozes
que semeiam o conflito.
- Tal como eu duvido dos milagres de Giacomo Nerone'?
O bispo não Lhe respondeu imediatamente, afastando-se e
ficando a olhar para a vastidão tranquila do vale com as suas
oliveiras cinzentas, laranjeiras verdes e a água de superfície
plana no local onde os homens andavam a arranjar os
vazadouros, de torso nu sob a luz do Sol. No rosto pesava-lhe
uma expressão sombria, como se estivesse absorto numa luta
íntima. Meredith observou-o com espanto e ansiedade, receoso
de o ter ofendido. Passado um bocado, o bispo voltou a
aproximar-se dele. O seu rosto continuava ensombrado, mas
trazia os olhos repletos de uma suavidade solene. Disse lentamente:
- Nestes últimos dias tenho reflectido muito, Meredith.
Também tenho rezado. O senhor entrou na minha vida num
momento de crise. Sou um bispo da Igreja, no entanto sinto-me
discordante em relação a muito do que tem estado a ser dito e
feito pelos meus colegas em Roma, não em relação a matérias
correntes de fé, mas na disciplina, na política, nas atitudes.
Creio que estou certo, mas sei que corro o perigo de, ao seguir o meu próprio caminho, tropeçar no orgulho e deitar a perder tudo o que me proponho fazer. Tinha
razão quando me disse que eu tenho medo do dedo de Deus. Sou... sento-me num
pináculo muito elevado. Só estou sujeito ao pontífice. Sinto-me sozinho e frequentemente confundido... como me acontece relativamente a este caso de Giacomo Nerone.
Disse-lhe que não desejo um santo. Mas... e se Deus o quer? Este é apenas um dos aspectos. Existem muitos outros. Agora, o monsenhor chegou, um homem à beira da
morte. Também vejo que está confuso e receoso do dedo de Deus. Encontro em si um irmão, a quem passei a amar e a confiar de todo o coração. Ambos andamos neste momento
à procura de um sinal... uma luz na escuridão, que nos guie.
- De noite fico acordado - disse Meredith. - Sinto a vida a esvair-se de mim. Quando a dor chega, grito, mas não com a oração, unicamente com o medo. Ajoelho-me
e recito o meu
ofício e o terço, mas as palavras são vazias, cabaças secas a
chocalhar no silêncio. A escuridão é terrível e sinto-me muito
só. Não vejo sinais, mas sim os símbolos da contradição. Tento
predispor-me para a fé, a esperança e a caridade, mas a minha
vontade é um arbusto açoitado pelos ventos do desespero...
Ainda bem que Vossa Eminência reza por mim.
- Rezo por ambos - disse Aurelio, bispo de Valenta. - E foi através da oração que cheguei a uma conclusão. Devemos pedir um sinal.
- Que sinal?
O bispo fez uma pausa e depois, muito solenemente, esclareceu-o.
- Façamos esta oração, nós os dois: "Se é Tua vontade, Senhor, mostrar as virtudes do teu servo Giacomo Nerone, mostra-as no corpo de Blaise Meredith.
Restitui-lhe a saúde e mantém-no afastado das mãos
da morte durante mais tempo, através de Jesus Cristo,
Nosso Senhor!"
- Não! - exclamou Meredith quase com um grito. - Não posso fazê-lo! Não me atrevo!
- Se não por si, ao menos por mim
- Não! Não! Não!
O desespero do homem era comovedor, o bispo, porém, pressionou-o brutalmente.
- Porque não? Nega a omnipotência?
- Acredito nela!
- E na misericórdia?
- Também!
- Mas não em relação a si?
- Nada fiz para a merecer.
- A misericórdia é oferecida, não ganha! Concedida aos que a pedem, não comprada com a virtude!
- Não me atrevo a pedi-la. - A voz subiu-lhe de
tom, tal o receio. - Não me atrevo!
- Pedirá por ela - disse-lhe o bispo brandamente. - Não para si, mas para mim e para todos os pobres diabos como eu. Dirá as palavras, mesmo que nada signifiquem,
porque eu, seu amigo, Lho peço.
- E se elas falharem... - Meredith ergueu o rosto,
de expressão desvairada. - Se elas falharem, caio
numa escuridão ainda maior, sem saber se presumi demasiado ou acreditei de menos. Vossa Eminência coloca-me mais uma cruz às costas.
- São umas costas fortes, meu amigo, mais fortes
do que imagina. E ainda fica capaz de carregar com
Cristo até ao outro lado do rio.
Mas Meredith fazia lembrar uma estátua, de olhos
fitos na terra ensolarada; passados instantes, o bispo deixou-o sozinho. a fim de ir falar com os jardineiros
que pulverizavam as laranjeiras.
Era o momento que ele de há muito temia, mas
nunca compreendera completamente: o momento em
que as consequências severas da crença se tornavam finalmente claras.
O homem nascido na Igreja obtém um conforto singular na lógica fortemente entretecida da fé. Os seus
axiomas são de aceitação fácil. Os seus silogismos dispõem-se uns em cima dos outros, firmes como tijolos
na parede bem construída de uma casa. A sua disciplina é rígida, mas os seus aderentes movimentam-se livremente no seu seio, como é comum fazer-se dentro
das famílias bem-nascidas. As suas promessas são reconfortantes: segundo elas, se uma pessoa se submeter
à lógica e à disciplina, segue naturalmente pelo caminho da salvação. A relação complexa e aterrorizante
do Criador e criatura fica reduzida a uma fórmula de
fé e a um código de comportamento.
Para padres, monges e freiras a lógica é mais meticulosa, a disciplina mais rígida, mas a segurança de
corpo e espírito é incomensuravelmente maior. Portanto, se um homem é capaz de se submeter totalmente à
vontade do Criador, como é expresso pela vontade da
Igreja, ele pode viver e morrer em paz - quer como
um qualquer vegetal, quer como um santo!
Blaise Meredith era, por temperamento, um conformista. Toda a vida respeitara as regras, todas as
regras - excepto uma, a de que mais cedo ou mais
tarde teria de se sobrepor às formalidades e às convenções e entrar numa relação directa, pessoal, com
os seus semelhantes e o seu Deus. Uma relação de caridade - que é uma palavra latina imprecisa para definir o amor. E o amor, em todas as suas formas e graus,
é um submeter de corpos na pequena morte da cama,
a submissão do espírito na grande morte que ocorre no
momento da união entre Deus e homem.
Nunca na sua vida Blaise Meredith se submetera a alguém. Não pedira favores a ninguém - porque pedir um favor é submeter o orgulho e a independência de uma pessoa.
Naquela altura, independentemente da designação que Lhe pusesse, não conseguia pedir um favor ao Altíssimo, a quem ele professava crença, a quem, segundo a mesma
crença, ele encarava como numa relação entre filho e pai.
E essa era a razão de todo aquele terror. Se não lograsse submeter-se, permaneceria para sempre o que
naquele momento era: solitário, estéril, sem amigos.
até à eternidade.
Aurelio, o bispo, encontrava-se no seu gabinete de
trabalho, frio e austero, a escrever umas cartas. Era
uma actividade muito pouco do seu agrado, mesmo
quando a tal era obrigado pelo seu cargo. Nascera
agricultor e preferia ver uma árvore crescer a escrever
um tratado sobre o facto. Fora treinado para a diplomacia e sabia que uma coisa, uma vez escrita, deixava
de poder ser retratada. Mais de um colega seu medíocre tinha sido condenado por heresia, simplesmente
por ser fraco em gramática ou na discrição.
De modo que, quando escrevia em termos oficiais
com o carimbo do seu bispado, limitava-se a uma linguagem convencional com os seus clérigos, em mensagens moderadas finamente enfeitadas com a retórica
do Sul; para Roma, uma circunlocução estudada, uma
qualificação cuidada, um estilo ligeiramente floreado.
Aqueles que o conheciam riam-se discretamente da
sua argúcia. Aqueles que o conheciam mal - mesmo
indivíduos perspicazes, como Marotta - tendiam a
formar opiniões menos correctas acerca dele. Consideravam-no um provinciano algo antiquado que poderia
ser muito eficiente para as gentes locais, mas que em
Roma só serviria para incomodar. O que ia precisamente
ao encontro dos desejos do bispo. Eram demasiados os
homens da sua condição que tinham sido abruptamente
transferidos para Roma na altura exacta em que começavam a realizar acções concretas nas suas dioceses. Era
o processo que o Vaticano adoptara para Lhes acelerar
a subida de maneira pouco agradável: um bispo no seu
bispado é um poder instituído; na cidade dos papas
não passa de uma personagem de pouca importância.
Mas nessa tarde as cartas eram particulares, e Sua
Eminência compô-las com maior cuidado do que o habitual. A Anne Louise de Sanctis escreveu:
agradeço-lhe profundamente o seu convite
para receber Monsenhor Meredith em sua casa
durante a sua permanência em Gemello Minore.
Nós, clérigos, somos frequentemente um fardo
para o nosso rebanho - e por vezes um estorvo;
no entanto, estou certo de que encontrará em
Monsenhor Meredith um compatriota agradável e
inteligente. E um homem doente, que espera, infelizmente, uma morte prematura; e tudo quanto
puder fazer por ele será por mim encarado como
um favor pessoal.
Tenho pensado muito em si nestes últimos dias.
Não sou indiferente à solidão que a atlige na sua
qualidade de castelã de uma comunidade pobre e
primitiva. Tenho esperança de que encontre em
Monsenhor Meredith um confidente para os seus
problemas e um conselheiro nas questões da sua consciência.
Queira receber, cara condessa, os meus melhores cumprimentos em Jesus Cristo.

Aurelio t
Bispo de Valenta

Assinou o nome com um floreado e deixou-se ficar,
por momentos, a examinar a carta, interrogando-se sobre se deveria ter dito menos ou mais - e se haveria
palavras capazes de tocar o coração de mulheres como aquela.
As mulheres constituíam o problema permanente
para o clero. Eram mais as mulheres que os homens
que se ajoelhavam às janelas dos confessionários. Os
pecados referidos eram mais sinceros e mais perturbadores para o celibatário que se sentava do outro lado.
Muitas vezes tentavam utilizá-los em substituição de um
marido indiferente e o que não se atreviam a sussurrar
na cama conjugal diziam livremente, muitas vezes em
termos rudes, na pequena construção de madeira encostada a uma das paredes da igreja. Os homens podiam
ser alcançados através das mulheres - as crianças
também. Mas muitas vezes o velho Adão que dormia
debaixo da batina era perigosamente despertado pelas
confidências murmuradas por alguma rapariga adolescente ou matrona frustrada.
Aurelio, bispo de Valenta, era muito homem e não
tardou a aperceber-se da paixão que o espicaçava por
trás da gentileza requintada da condessa de Sanctis.
Também ela fazia parte das suas ovelhas, no entanto a
discrição colocava-a fora do alcance do cajado do seu
pastor, e ele perguntava a si mesmo se Blaise Meredith, o homem frio e sofredor, teria poder de se aproximar mais dela.
Ao Dr. Aldo Meyer escreveu uma missiva de termos
completamente diferentes:
[...] Monsenhor Blaise Meredith é um homem
sens'ível e liberal que passei a estimar como a um irmão.
A tarefa de investigar a vida de Giacomo Nerone, que Lhe foi atribuída, é muito complicada e tenho esperança de que o senhor esteja disposto a colocar à sua disposição
os conhecimentos locais consideráveis que possui. O senhor poderá achar, no entanto, que, como não católico, prefere não
se envolver neste assunto delicado. Permita-me
que Lhe assegure que nem Monsenhor Meredith
nem eu desejamos embaraçá-lo com perguntas. Tenho, porém, um pedido a fazer-lhe. Monsenhor Meredith é um homem muito doente. Sofre de carcinoma do estômago e, de
acordo com a
evolução normal da situação, morrerá muito em
breve. É pessoa reservada, como é habitual entre
os Ingleses, mas possui uma coragem considerável, e eu tenho receio de que trabalhe em excesso e padeça de mais sofrimento do que o necessário.
Apreciaria, pois, profundamente, que durante o
seu tempo de estada em Gemello Minore o doutor
actuasse como seu médico e Lhe prestasse a melhor
assistência possível. Providenciarei para que Lhe
façam chegar todos os medicamentos que julgar
necessários e responsabilizar-me-ei pessoalmente
por todas as despesas de consulta e tratamento.
Recomendo-o encarecidamente ao seu espírito de
caridade e aos seus cuidados profissionais.

"Basta!", pensou Sua Eminência. "Basta. Não se
fazem homilias aos Sefarditas'. Eles compreendem-nos tão bem como nós a eles. São teocratas, tal como
nós - absolutistas, como nós. Conhecem o significado
da caridade e da fraternidade; e muitas vezes praticam-nas bem melhor do que nós. Foram perseguidos, tal como nós. Tiveram os seus fariseus, assim como nós - Deus
nos ajude - temos os nossos, mesmo nos lugares mais altos. Meu irmão Meredith ficará em boas mãos. "
A terceira carta era a mais difícil de todas e Sua
Eminência reflectiu sobre ela durante muito tempo
antes de escrever, com letra bonita e cuidada, o endereço.

Ao Reverendo Padre Anselmo Benincasa,
pastor da Igreja de Nossa Senhora das Sete Dores,
Gemello Minore, diocese de Valenta
Estimado reverendo,
Escrevemos para informá-lo da chegada à sua
paróquia do Reverendo Monsenhor Blaise Meredith, auditor da Sagrada Congregação dos Ritos, que foi nomeado promotor da fé na causa da beatificação do servo de Deus
Giacomo Nerone. Solicitamos-lhe que Lhe conceda uma hospitalidade fraterna e Lhe proporcione toda a assistência necessária para que ele leve a bom termo a sua missão
canónica.
Estamos conssientes da sua pobreza e da exiguidade das suas acomodações, pelo que aceitámos um convite feito pela condessa de Sanetis para o alojar durante a sua
permanência nessa paróquia. Sabemos, contudo, que o reverendo não se absterá de dispensar, pelo seu lado, todas as cortesias devidas a um sacerdote irmão, que também
é membro do tribunal diocesano.
De há muito que temos conhecimento, reverendo padre, através de relatórios chegados até nós, do estado precário em que se encontram as questões espirituais da sua
paróquia e de determinados escândalos relativos à sua vida privada. Um destes, não o menor, diz respeito à sua prolongada
ligação com a viúva Rosa Benzoni, que trabalha
como sua governanta.
Em situação normal, semelhante ligação ter-nos-ia levado já a instituir um processo canónico contra o senhor, no entanto preferimos abster-nos desta medida drástica
na esperança de que Deus Lhe conceda a graça de reconhecer o seu erro e emendá-lo, de maneira que os últimos anos do
seu serviço na paróquia possam ser passados em penitência e dignidade e servindo devidamente o seu rebanho.
Seja bem possível - Deus assim permita! - que,
devido ao número avançado de anos, essa ligação
tenha perdido o seu carácter carnal e possamos
permitir que continue a manter essa mulher ao
seu serviço, apesar das dívidas que contraiu em
seu benefício. Mas uma tal indulgência da nossa
parte não o dispensará do dever moral de reparar o escândalo e de se dedicar, com vigor renovado,
aos interesses dos seus fiéis.
Calculamos que a presença de um padre de
visita à sua paróquia possa proporcionar-lhe a
oportunidade de se aconselhar junto dele e pôr
a sua conssiência em ordem sem demasiado embaraço para a sua pessoa. A nossa paciência tem sido longa e nutrimos
grande estima por si como nosso filho em Cristo,
mas não podemos ignorar o estado lamentável em
que se encontram as altas a seu cargo. Não se
pode desafiar Deus durante demasiado tempo. Os
anos já são muitos e o tempo escasseia perigosamente.
Recordamo-lo diariamente nas nossas orações
e recomendamo-lo a Nossa Senhora das Dores,
a patrona da sua igreja.
Os meus sinceros cumprimentos em Cristo.

Aurelio t
Bispo de Valenta

Pousou a caneta e ficou a olhar fixamente, durante
muito tempo, para o espesso papel timbrado e a escrita que fluía através dele em linhas apressadas e disciplinadas.
O caso do padre Anselmo simbolizava todos os males da Igreja mediterrânica. Não se tratava de um caso
isolado. Era suficientemente comum para se ter tornado habitual na área degradada do Sul - e também
não era muito raro no Norte. No seu contexto local,
representava um pequeno escândalo - a Igreja fundamentava-se na ideia do pecado e a sua máxima mais
antiga era a de que o hábito não faz o monge, nem a
tonsura o religioso. Mas no contexto de uma Igreja nacional, num país onde o catolicismo era a influência dominante, o facto era indiciador de fraquezas graves e
de uma necessidade singular de reforma.
Um homem como Anselmo Benincasa era o produto
de um seminário mal dirigido e que dispensava um sistema educativo antiquado. Chegavam à ordenação
com uma educação incompleta, uma disciplina imperfeita e com a vocação totalmente por comprovar. Aparecia mais um padre num país onde havia padres a mais e sacerdócio
a menos - e tornava-se imediatamente uma carga suplementar para uma comunidade em dificuldades. O salário que recebia da diocese era puramente nominal. A inflação
acelerada da moeda levava a que nem um pão pudesse comprar com ele. E a
hierarquia continuava a apegar-se à ficção cómoda de
que aqueles que pregavam o Evangelho deviam viver
pelo Evangelho - sem se dar ao trabalho de definir
muito claramente de que maneira deveriam fazê-lo.
Não dispunha de pensão nem havia qualquer instituição que o recebesse quando a senilidade Lhe batesse à
porta: atenazava-o, assim, o medo constante da velhice
e a tentação constante da avareza.
Quando o padre Anselmo chegara à aldeia de Gemello Minore, representara mais uma boca para alimentar. E, se a abrisse demasiado, o mais provável era
que passasse fome. Portanto, era obrigado a acomodar-se: a submeter-se ao domínio do senhor rural da
localidade ou a estabelecer um compromisso miserável
com o rebanho carenciado. Em muitas comunidades
calabresas havia falta de homens. A emigração anterior
à guerra e os recrutamentos da própria guerra tinham-nos levado e as mulheres passavam anos separadas dos maridos, enquanto as raparigas solteiras eram obrigadas
a arranjar amantes temporários ou maridos muito mais velhos. Mas o padre estava lá. O padre era pobre e dependia dos pobres para ter a sua roupa lavada, a comida
cozinhada, a casa limpa e o prato das esmolas suficientemente cheio para que pudesse comprar
a massa para a semana seguinte.
Não admirava, pois, que resvalasse frequentemente
para o pecado e que o seu bispo preferisse deplorar a
sua fraqueza de fornicação em vez de o levar a tribunal
por escândalo canónico de concubinagem pública.
O sistema devia ser censurado tanto quanto o homem, e reformadores como Aurelio, bispo de Valenta, tinham grande dificuldade em alterá-lo, limitados como
estavam pelos pecados históricos de uma Igreja feudal.
A resposta residia na limitação do número de padres e
numa melhor qualidade destes, em dinheiro para Lhes
providenciar pelo menos uma sobrevivência básica, independente das contribuições dos fiéis, pensões para
os idosos e doentes, melhor treino seminarial, um escrutínio mais rigoroso nos aspirantes às ordens sagradas. Mas o dinheiro escasseava e os preconceitos pesavam?
homens como Anselmo Benincasa levavam muito tempo a morrer e os jovens que cresciam nas aldeias ficavam sem educação e aptidão.
Os bispados como Valenta eram pobres e obscuros.
Roma era rica, longínqua e atarefada - e os pedidos
de fundos especiais para efectuar reformas tendenciosas eram recebidos friamente pelos cardeais a quem
cabia o papel de administradores do património de Pedro.
De modo que Anselmo Benincasa continuava em
Gemello Minore e Sua Eminência o bispo de Valenta
ficava com o problema do que fazer com ele e de como, pelo menos, salvaguardar-lhe a alma imortal.
Dobrou as cartas, enfiou-as em sobrescritos, selou-os com o lacre vermelho e o sinete das armas do seu
bispado, depois tocou a campainha a pedir um mensageiro que a levasse imediatamente, de motoreta, a Gemello Minore. Não tinha ilusões quanto à importância que Lhes
seria concedida. Entrara para o sacerdócio fazia muito tempo e sabia que a verdade podia permanecer estéril durante uma centena de anos até ganhar raiz no coração
de um homem.
Na véspera da sua partida para Gemello Minore,
Blaise Meredith sentiu-se mais só do que em toda a
sua vida.
A breve comunhão fraterna que se estabelecera entre
si e o bispo estava prestes a ser interrompida. Devia
partir para junto de estranhos, cumprindo o seu papel
de inquiridor diligente na reconstituição de factos impopulares. Teria de suportar sozinho os seus terrores
nocturnos. Nunca mais poderia fazer confidências, teria de as extrair ele dos outros. Tinha de trocar a intimidade cómoda do domínio do bispo pela pobreza e
depressão de uma aldeia de montanha, onde pouca intimidade havia, até mesmo para o nascimento, morte e acto de amor.
Seria hóspede em casa de uma mulher - e ele, ao
contrário de muitos dos seus colegas, pouco talento
possuía para lidar com o sexo oposto. Era celibatário
por profissão e solteiro por disposição; e não Lhe agradava nada o esforço que teria de fazer para participar
nas conversas superficiais que acompanhavam os cafés.
Sentia a energia esvair-se-lhe rapidamente e não se
podia dar ao luxo de a desperdiçar em trivialidades domésticas.
Então, enquanto os trabalhadores agrícolas dormiam a
sesta debaixo das árvores e Sua Eminência escrevia no
seu gabinete de trabalho, permitiu-se o prazer derradeiro
de um passeio pelas plantações. Despiu a batina e o
colarinho, arregaçou as mangas e deixou que o sol Lhe
brilhasse nos braços finos e pálidos, descendo depois o
carreiro estreito que conduzia à barragem e aos limites
da propriedade.
Debaixo das árvores, o ar estava fresco e o carreiro
estendia-se através de zonas de sombra e luz, mas,
quando desembocou no vale, onde a barragem se erguia, entre as vertentes cinzentas da colina, o calor
atingiu-o como a baforada violenta de um forno. Ao
olhar à sua volta, reparou que ele se evolava, em ondas tremulantes, da rocha coberta de turfa. Hesitou
por um momento, lamentando não dispor ali do abrigo
das plantações, mas depois, envergonhado com a sua
fraqueza, caminhou firmemente e deu a volta à borda
da barragem, em direcção à parede de sustentação.
Os trabalhadores dormiam na encosta que ficava
ao cimo do carreiro, as cabeças apoiadas nos casacos,
à sombra dos rochedos proeminentes. Os corpos entroncados, que o sol bronzeara, assumiam posições
desconjuntadas fazendo lembrar bonecos de trapos, e
Meredith, que há muito não sabia o que era dormir
bem, sentiu inveja da boa sorte que os assistia.
Eram pobres, mas não tão pobres como muitos outros. Trabalhavam para um senhor benevolente. Tinham as roupas manchadas e cheias de poeira e não
usavam sapatos, mas sim socas de madeira, no entanto
eram capazes de dormir tranquilamente e voltar para
casa com dignidade, porque tinham trabalho, assim
como massa para a mesa e vinho e azeite para a acompanhar. Numa terra pobre com três milhões de desempregados era possuir muito.
No extremo do vazadouro, o carreiro bifurcava-se
em dois caminhos de cabras, um levando ao leito da
corrente, o outro subindo em direcção à depressão no
meio da colina. Meredith escolheu o caminho ascendente na esperança vaga de, ao cimo, conseguir uma
vista panorâmica da região em volta. O caminho era
tortuoso e coberto de pedras cheias de arestas, mas ele
seguiu por ele com triste determinação, como a desafiar a debilidade do seu corpo devastado e a afirmar
que ainda era um homem.
A meio da subida deparou com um pequeno planalto, oculto de quem olhava do vale, onde as paredes rochosas se tinham recolhido, formando uma reentrância baixa semelhante
a uma caverna. Aí havia sombra, de modo que se sentou a repousar uns bem apetecidos momentos. à medida que os olhos se Lhe habituavam à penumbra, viu, junto à base
de uma das paredes, algumas bancadas em pedra toscamente trabalhada, reticulada à velha maneira romana, e, por cima destas, a
marca de ferramentas nas paredes, no sítio onde outras bancadas tinham estado presas. Levantou-se a fim
de as examinar mais de perto e seguiu as linhas traçadas que conduziam ao fundo da caverna.
Nesse local as sombras eram mais densas e só passado
um bocado é que se deu conta de um pequeno nicho
escavado na rocha, sobre o qual se viam malmequeres
e folhas de vinha seca. Por trás das oferendas havia
um pedaço de mármore, tão velho, gasto e manchado
que não foi capaz de perceber do que se tratava. Depois viu que fazia parte da base de uma estátua antiga,
de formato vagamente cúbico, donde se projectava a
forma grosseira de um falo.
Em tempos idos, na altura em que as colinas se encontravam cobertas de florestas, antes de as tribos
esfaimadas as desnudarem para obter combustível e
materiais de construção, aquela caverna devia ter sido
o santuário de um deus de madeira. Agora só lhe restava aquele símbolo da fertilidade; mas as flores eram
do século xx - as primeiras oferendas da Primavera a
um velho deus desacreditado.
Meredith ouvira falar muitas vezes das superstições
que ainda persistiam no seio dos povos que habitavam
as montanhas - de talismãs, feitiços, filtros de amor e
velhos ritos - mas era a primeira vez que via provas
de tal com os próprios olhos. O bloco de mármore estava manchado e descolorido, mas o falo apresentava-se
branco e polido, como se o tocassem frequentemente.
Viriam as mulheres ali, como nos velhos tempos, em
busca de uma certeza contra a esterilidade? Continuariam os homens a adorar o símbolo do seu domínio?
Ainda haveria naqueles montanheses alguma esperança
semiconsciente de que Pã pudesse fazer o que o novo deus não fizera: tornar a terra violada de novo virgem
e frutificante com erva e árvores?
O culto do macho encontrava-se profundamente enraizado no seio daquela gente. Os rapazes pavoneavam-se
arrogantes como galarotes, enquanto as raparigas faziam
alarde de uma virgindade por vezes fictícia, a fim de que
as olhassem e admirassem. Eles, quando casavam, faziam as mulheres parir até à exaustão, estimulando os
filhos para uma puberdade precoce, ao mesmo tempo
que espancavam as filhas para as obrigarem a manter a
castidade. Eles eram, numa terra estéril, os símbolos
derradeiros da fecundidade e os primeiros símbolos de
alegria para uma mulher cujo fim seria uma servidão
desprovida de alegria nalguma barraca em ruínas nas colinas.
Talvez fosse por isso que o símbalo correlativo do
cristianismo não era o de Cristo a agonizar na cruz,
mas sim o da fecunda Madonna com o Bambino a sugar-lhe o seio de camponesa.
Blaise Meredith deu consigo curiosamente fascinado
pelo grosseiro símbolo de pedra e a sua sobrevivência
activa a menos de quilómetro e meio da casa do bispo.
Talvez a explicação de muitas das anomalias apresentadas pela Igreja mediterrânica residisse ali: a crença
poderosa no sobrenatural, a forte influência da superstição, o zelo feroz dos santos latinos e a rejeição,
iguallmente feroz, dos comunistas e dos anticlericais.
Talvez aquela fosse a razão por que os liberais desapaixonados e os urbanos cépticos produziam tão pouco
impacto sobre aquela gente; a razão de um misticismo
exaltado ser a única resposta ao frenesim báquico que
Lhes despertava nos corpos morenos e subnutridos.
Seria aquela a verdadeira explicação da morte de
Giacomo Nerone a de que fora calcado pelos cascos
do deus-bode?
E como poderia Blaise Meredith, o legista de Roma.
penetrar na mente daquele povo secreto que já era velho na altura em que Roma era jovem e que outrora estabelecera aliança com o deus negro e feroz da Cartago de
Aníbal?
Apesar do calor, sentiu um frio súbito. Voltou as costas à pequena imagem obscena e saiu da caverna, para o meio da luz
do Sol.
Uma mulher idosa, quase dobrada ao meio sob o peso de um
feixe de ramos secos e madeira à deriva colhida no rio, vinha a subir penosamente o caminho, em direcção à depressão entre
as colinas. Quando se aproximou dele, Blaise ergueu uma das
mãos e cumprimentou-a no seu italiano preciso de Roma. Ela
virou a cabeça e fitou-o com olhos inexpressivos e
lacrimejantes, antes de seguir o seu caminho sem proferir uma palavra.
Blaise Meredith ficou a olhá-la durante um momento, depois voltou o rosto para o vale. Sentiu-se velho, cansado e
estranhamente receoso de ter de ir a Gemello Minore.

CAPÍTULO VII

Anne Louise de Sanctis despertava da sua sesta terrivelmente deprimida. Ao lembrar-se de que Aldo
Meyer viria jantar, ficou ainda mais maldisposta; e,
quando a carta de Sua Eminência Lhe foi entregue, em
mãos, pelo mensageiro, a raiva que a assolava atingiu
as raias do insuportável. Era mais do que conseguia
aguentar. Não podia tolerar semelhantes intromissões
na sua intimidade. Até mesmo o tédio era preferível
ao esforço a que teria de se prestar para ser agradável.
Quando nessa tarde se encontraram ao chá, Nicholas Black não tardou a reparar na má disposição da sua
anfitriã, tendo subtileza bastante para Lhe sugerir um
remédio imediato.
- Estás fatigada, cara - disse-lhe solicitamente. -
É o calor, a febre da Primavera. Porque não me deixas
aliviar-te com um sortilégio?
- Quem me dera que pudesses, Nicki.
- Permites-me?
- Como? Ainda tenho de aturar Meyer. E amanhã
chega o padre. - Adoptou uma entoação de criança
petulante. - Gostaria que me deixassem em paz.
- Tens-me a mim, cara - disse ele meigamente. -
Eu me encarregarei de os entreter devidamente. Não
permitirei que te incomodem. Agora vejamos, porque
não me deixas dar-te uma massagem facial e preparar-te o cabelo para o jantar?
A condessa animou-se imediatamente.
- Adoraria, Nicki. É aquilo que maior falta me faz
aqui. Sinto que estou a tornar-me uma bruxa velha.
- Nem pensar, cara! Mas um chapéu novo e um
penteado diferente são a melhor das curas para enxaquecas. Onde é que procedemos à operação?
A condessa hesitou por um momento, depois respondeu com indiferença afectada:
- Penso que o quarto é o local mais indicado. Tenho lá tudo o que é preciso.
- Então, anda daí! Lancemos mãos à obra. Dá-me
uma hora e eu tornar-te-ei tão deslumbrante como
qualquer beldade de Roma.
Pegou-lhe na mão com galanteria teatral e conduziu-a
ao andar de cima, ao quarto barroco, rindo interiormente perante a facilidade da vitória alcançada. Se havia
segredos a conhecer acerca da condessa, era ali que ele
os encontraria com tempo, paciência e a perícia sedutora das suas mãos macias.
Depois de a porta se fechar atrás deles, Black procedeu a uma pequena cerimónia desprovida de sentido
sexual, ajudando-a a despir a roupa, envolvendo-a no
négligé e sentando-a no cadeirão forrado a brocado que
se encontrava em frente do toucador, onde se viam filas
de produtos de toilette em recipientes de cristal. A condessa submeteu-se obedientemente, fazendo observações maliciosas tendentes a salientar a intimidade da
ocasião. O pintor sorria e fazia floreados com as suas
toalhas, deixando-a tagarelar à vontade. Possuía um
talento versátil para se adaptar a qualquer situação,
mesmo que os seus pensamentos e planos se inclinassem para uma área diametralmente oposta. Naquele
momento fazia de parrucchiere - o confidente da senhora, a testemunha de pormenores negados até
mesmo a amantes, o contador de pequenas histórias
escabrosas perante as quais a senhora não era obrigada
a corar, pois os lacaios são indiferentes às virtudes
mais bem dissimuladas.
Inclinou-lhe a cabeça para trás, limpou-lhe a maquilhagem do rosto, passou-lhe cuidadosamente creme e depois começou a massajá-lo com dedos suaves mas firmes, em
movimentos que subiam do pescoço flácido e dos cantos da boca entediada. A princípio a condessa mostrou-se tensa e desconfiada em relação a ele, mas não tardou a
render-se aos movimentos rítmicos e hipnóticos; pouco depois o pintor começou a sentir a sensualidade a despertar lentamente nela. O facto proporcionou-lhe uma satisfação
especial, tanto mais que ele continuava perfeitamente inalterado; e, enquanto trabalhava, começou a utilizar a linguagem fútil dos salões de beleza:
- Tens uma pele linda, cara; elástica como a de
uma rapariga. Há mulheres que a perdem rapidamente. És uma das afortunadas... tal como Ninon de l'Enclos, que conservou o segredo da juventude eterna... É uma história
estranha. Quando ainda era o furor de Paris. aos sessenta anos, o filho veio cortejá-la sem saber quem ela era. Apaixonou-se por ela e suicidou-se ao descobrir a
verdade... - Soltou uma pequena risada. - Ainda bem que não tiveste filhos!
Ela soltou um pequeno suspiro complacente.
- Sempre quis ter filhos, Nicki. Mas... talvez tenha
sido melhor não ter concretizado o meu desejo.
- Ainda podias tê-los, não é verdade?
Ela riu agarotadamente.
- Precisaria de algum ajudante não achas?
- Sempre tive curiosidade em saber por que razão
nunca voltaste a casar, por que motivo uma mulher bonita como tu preferiu enterrar-se na lonjura selvagem
da Calábria. Não és pobre. Podias viver onde muito
bem te aprouvesse: Londres, Roma, Paris.
- Já lá estive, Nicki. Continuo a ir regularmente a
Roma, como sabes. Mas o meu lar é aqui. Regresso sempre.
- Não respondeste à minha pergunta, cara.
As mãos, destras, disfarçaram a malícia da pergunta. Ao massajar-lhe as maçãs do rosto e a fina rede de rugas em redor dos olhos, sentia a tensão a crescer nela,
enquanto procurava ansiosamente uma resposta.
- Já fui casada, Nicki. Estive apaixonada. Também
tive aventuras e propostas. Nenhuma delas me satisfez
verdadeiramente. Como vês, é simples.
Mas não era simples e ele sabia; ela era mais complexa do que qualquer mulher que ele tivesse conhecido - e era suficientemente perspicaz para virar a jogada contra
ele.
- Tu também nunca casaste, querido. Porquê?
- Nunca senti a falta do casamento - respondeu-Lhe ele com ligeireza. - Consigo sempre o que desejo
fora dele.
- Vocês, os solteirões!
- Se não houvesse solteirões, cara, não haveria viúvas alegres, apenas viúvas carentes e frustradas.
- Alguma vez te sentes frustrado, Nicki?
Ele sorriu intimamente ao notar o novo queixume que
Lhe aparecera na voz. Estranho, pensou, como a palavra
os evocava constantemente; como utilizavam o termo da
gíria freudiana como se ele fosse a resposta para o derradeiro enigma do universo. Nunca se desgastavam. Nunca
ardiam de paixão por um homem que não pudessem
possuir. Nunca tinham receio de ficar demasiado velhas
para as derrubarem sobre o feno. "São umas frustradas.
Eu também o sou, de facto, mas diabos me levem se
alguma vez deixar percebê-lo."
- Contigo, cara, como pode um homem ficar frustrado?
Como num gesto de gratidão pelo cumprimento,
a condessa pegou-lhe na mão, ainda gordurosa do creme, e premiu os lábios nela. Nessa altura, sem aviso,
puxou-a para baixo e pousou-a sobre a curva do seio
nU, sob o négligé. Black foi apanhado desprevenido,
reagiu violentamente:
- Não faças isso!
Depois, surpreendentemente, a condessa desatou a rir.
- Pobre Nicki! Achavas que eu não sabia?
- Não sei do que estás a falar!
A voz dele elevara-se, tal era a irritação, mas Anne Louise de Sanctis continuava a rir.
- Falo de seres diferente, querido. De as mulheres não te interessarem realmente para nada. De que te precipitaste e
perdeste a cabeça por Paolo Sanduzzi. É ou não é verdade?
Black quase chorava de raiva, de pé, com a talha nas mãos e a olhar, por cima da cabeça da condessa, para os amorini de
gesso do tecto. Ela agarrou-lhe novamente a mão e manteve-a
entre as suas. Parou de rir e falou com voz baixa, quase
acariciadora.
- Não é preciso zangares-te, Nicki! Não tens de guardar
segredos para mim!
O pintor soltou-se, cheio de ferocidade.
- Não há segredo nenhum, Anne. Gosto do rapaz. Almejo
grandes feitos para ele. Gostaria de o tirar da aldeia, mandá-lo educar e dar-lhe um começo de vida digno. Não tenho grandes posses, Deus é testemunha, mas estaria
disposto a gastar até à última moeda nesse projecto.
- E que pedirias em troca?
A voz da condessa ainda conservava a suavidade, mas
notava-se-lhe um timbre de ironia.
A resposta foi dada num tom de uma dignidade
estranhamente patética.
- Nada. Absolutamente nada. Mas não conto que acredites nisso.
Ela fitou-o por um momento prolongado, os olhos vivos e
analisadores. Depois disse-lhe:
- Acredito em ti, Nicki. E acho que posso ajudar-te em
relação a ele.
Black, sem saber que pensar, ergueu a cabeça e fitou-a,
tentando, em vão, decifrar os pensamentos que se ocultavam
por trás daqueles lábios subtis e sorridentes.
- Tenho as minhas próprias razões, Nicki. Mas estou a ser sincera. Tu ajudas-me a tratar deste padre e
eu ajudo-te em relação a Paolo Sanduzzi. Combinado?
Ele inclinou-se e beijou-lhe a mão num sinal de gratidão abjecta e ela despenteou-lhe o cabelo no gesto
meio materno e meio desdenhoso que Lhe era habitual
para com ele.
Era uma aliança de interesses e ambos o sabiam.
Mas até mesmo os inimigos sorriem um para o outro à
mesa das negociações. Portanto, quando o Dr. Aldo
Meyer chegou para jantar, a condessa mostrava-se radiante e Nicholas Black comportou-se com a deferência de um pagem ao serviço de uma senhora muito estimada.
Meyer sentia-se fatigado e maldisposto para convívios
sociais. Passara a tarde inteira com Martino, o ferreiro,
à espera de um segundo ataque, este possivelmente fatal e muito provável após o primeiro. Era quase escuro
quando achou seguro mudar o paciente para sua própria casa, sendo depois forçado a ouvir as lamentações
da mulher, que acabara de ter consciência das condições precárias em que a família se encontrava. Vira-se
obrigado a dar certezas que não sabia se poderia cumprir: que a doença não duraria demasiado tempo, que
alguém - a condessa talvez - providenciaria a alimentação da família, que ele próprio trataria de arranjar
assistência por parte da comuna, que tentaria encontrar alguém que mantivesse a forja a trabalhar sem cobrar em excesso.
Quando conseguiu escapulir-se, empenhara a sua alma
e a sua reputação uma vintena de vezes e estava mais
convencido do que nunca da esperança de reforma entre o povo ignorante, habituado a séculos de feudalismo, capaz de beijar a mão do barão mais perverso, desde que
ela Lhe apresentasse um pão e Lhe oferecesse uma ilusão de segurança contra actos de Deus e dos políticos.
Ao chegar a sua casa, encontrou a carta do bispo à sua espera, nova acha a juntar à fogueira do descontentamento que Lhe preenchera aquele dia. Sua Eminência pedia
apenas a prestação de um serviço médico, mais bem pago que aqueles que normalmente realizava, mas sugeria muito mais: uma cortesia que poderia crescer até assumir
as proporções de um compromisso pesado. Aldo Meyer, o judeu liberal, nutria uma desconfiança saudável em relação aos homens absolutistas
da Igreja, cujos predecessores tinham perseguido o seu
povo até o expulsar de Espanha, dando-lhe depois um
refúgio inseguro nos guetos de Trastevere. Mas, quer o
desejasse ou não, o inglês iria chegar e Meyer ver-se-ia, devido ao juramento da sua profissão, obrigado a
tratá-lo. Esperava perversamente que não contassem
com a sua amizade.
Não havia amizade nas relações dele com Anne
Louise de Sanctis. Escolhera-o para seu médico à falta
de outro melhor. Ele era seu convidado por não dispor
de outra companhia mais educada que a distraísse à
mesa de jantar. Ocasionalmente actuava como porta-voz dos aldeões nos apelos que dirigiam à sua padrona. Mas, por trás destas definições limitadas, havia uma área
de desconfiança latente e uma animosidade disfarçada.
Ambos tinham conhecido Giacomo Nerone. Cada
um por razões opostas, estivera envolvido na sua morte. Meyer conhecia perfeitamente a natureza da doença da sua paciente, embora nunca se houvesse referido verbalmente
ao diagnóstico. Anne Louise de Sanetis estava a par das fraquezas do seu médico e aguilhoava-o com elas, porque ele sabia demasiado acerca das dela mesma. Mas, por
raramente se verem, coexistiam
com delicadeza razoável e estavam gratos um ao outro
de uma maneira peculiar - Meyer pelo bom vinho e
uma refeição bem cozinhada, a condessa pela oportunidade de se vestir e jantar com um homem que não
era nem um ignorante nem um padre.
Mas naquela noite sentia-se algo mais no vento.
A presença de Nicholas Black e a vinda do emissário de Roma
transmitiam um carácter novo e vagamente sinistro à ocasião.
Enquanto se barbeava e vestia à luz amarela de um candeeiro a
petróleo, preparou-se para uma noite desagradável.
Inicialmente os seus receios pareceram infundados. A
condessa mostrava-se encantadora na aparência, descontraída
e cheia de gentilezas. O sorriso do pintor apresentava-se liberto de subtilezas sardónicas e conversava animada e
amigavelmente sobre qualquer assunto que se abordasse.
Com o apéritif falaram do tempo, dos costumes locais e do
declínio da escola de pintores napolitana. Por altura da sopa
estavam em Roma, e Black relatou os divertidos escândalos da
Via Margutta e o preço que os críticos cobravam por uma
notícia favorável. Quando o peixe foi servido, estavam no
Vaticano e vasculhavam os políticos, discutindo as
perspectivas das eleições seguintes. O vinho soltara a língua
do médico, que se lançara numa dissertação animada:
-... da última vez os democratas-cristãos ganharam graças ao confessionário e à ajuda do dólar americano. A Igreja ameaçou todo o católico que votasse nos comunistas
com a danação eterna, e Washington acenou com um maço de notas
de dólar para ajudar. As pessoas queriam paz e pão, fosse a que preço fosse, e o Vaticano ainda era a única instituição italiana COm eStabilidade e credibilidade
moral. Portanto, conseguiram os votos entre os dois. Mas ainda possuímos o partido comunista mais poderoso fora da Rússia, assim como uma singular falta de unidade
de objectivo, mesmo entre aqueles que votaram sob o estandarte do Vaticano. Que irá acontecer desta vez? Os democratas aguentarão firme, como é evidente, mas perderão
votos numa viragem repentina para a esquerda. Os
monárquicos ganharão mais alguns no Sul e os comunistas
manter-se-ão onde estão: um núcleo firme de descontentamento.
- O que irá provocar uma descida nos democratas-cristãos? - perguntou Nicholas Black, com grande interesse.
Meyer encolheu expressivamente os ombros.
- Primeiro, as estatísticas. Não se vêem reformas
espectaculares, nenhuma diminuição perceptível no índice de desemprego. Há um equilíbrio na indústria,
mantido por uma entrada de dinheiro americano e ajuda
do Banco do Vaticano. Nota-se uma subida no rendimento nacional, o que mal se reflecte no nível de vida
da grande maioria da população. Mas é quanto basta
para manter os financeiros razoavelmente satisfeitos e
os votos estabilizados por mais outro mandato. A segunda razão reside no facto de o próprio Vaticano ter
perdido crédito através da sua identificação com um
partido. É o problema de ter um papa político. Ele
sempre quis ter as duas coisas: o reino dos Céus e a
maioria parlamentar na Terra. Na Itália pode consegui-la, a um preço, e o preço é o anticlericalismo no
seio do seu próprio rebanho.
- Esse ponto interessa-me - declarou Black, reportando-se à última parte do que ouvira. - Por toda
a Itália se vêem mulheres que comungam diariamente
e homens que usam as insígnias de meia dezena de
confrarias e que ainda citam a velha frase: Tutti i pretti
sono falsi. Todos os padres são falsos. É divertido, mas
danadamente ilógico.
Meyer riu e abriu as mãos num gesto de desespero
zombeteiro.
- Meu caro, é o que de mais lógico pode haver no
mundo. Quanto mais padres se tem, mais se notam os
seus defeitos. Um governo clerical é um governo fantoche, mau para ambos os lados. Não acredito que todos os padres sejam mentirosos. Conheci alguns deveras competentes
ao longo da minha vida. Mas isso não me impede de ser anticlerical. O latino é extremamente racional. Está preparado para admitir que o Espírito Santo orienta o
papa em questões de fé e moral; mas ri-se diante da hipótese de também Lhe permitirem fixar as taxas cambiais.
- Por falar de padres - disse Anne Louise de
Sanctis - tenho curiosidade em saber como será
Monsenhor Meredith.
Foi uma observação macia como manteiga, mas Aldo Meyer apreendeu-lhe a malícia. Tinham-no empurrado como a uma ovelha de um assunto para o outro
- e agora, que ficara encurralado, observavam-no,
sorrindo subtilmente de troça, a verem o que faria para escapar. Nesse caso, eles que fossem para o diabo.
Não Lhes daria essa satisfação. Contornou a pergunta
com ligeireza.
- Refere-se ao nosso inquisidor de Roma'? Não tem
nada a ver comigo. Chega e parte. É tudo. De momento tenho problemas próprios de sobra, que gostaria de discutir com a padrona.
- Que tipo de problemas? - perguntou a condessa,
franzindo o sobrolho ao ver que ele dera pelo truque.
- Martino, o ferreiro, teve um ataque hoje. Ficou
paralisado e incapacitado. A família vai precisar de
ajuda. Quem sabe, a senhora poderia dispor de algum
dinheiro e também aceitar duas das raparigas para servirem aqui. Teresina e Rosetta já têm idade suficiente
para começarem a trabalhar.
Para sua surpresa, a condessa acedeu com naturalidade.
- Com certeza. É o mínimo que posso fazer. Ultimamente tenho pensado muito na gente jovem. Aqui
não encontram nenhuma ocupação. E, mesmo que
tentem imigrar, acabam nas ruas de Reggio ou Nápoles. Achei que devíamos recomeçar a dar vida a alguns dos seus planos, doutor, e criar trabalho para eles aqui.
- Uma boa ideia - disse Meyer cautelosamente.
Onde queria ela chegar?, reflectiu. As palavras que a
condessa proferiu a seguir esclareceram-no claramente.
- Paolo Sanduzzi, por exemplo. Nicki disse-me que o rapaz é inteligente e muito interessado. Parece-me
uma pena deixá-lo andar por aí ao deus-dará. Trá-lo-ei
para aqui e pô-lo-ei a trabalhar com os jardineiros. Tenho a certeza de que o dinheiro extra fará jeito à mãe.
Agora é que ficara realmente preso na armadilha.
Aceitara um favor e devia aguentar a poção amarga
que o acompanhava. Ficaram ali sentados, sorrindo-Lhe por cima das bordas dos seus copos, desafiando-o
a protestar e a fazer figura de tolo. Em vez disso, ele
anuiu e disse com indiferença:
- Se pode utilizar os serviços dele, porque não? Mas
tem de falar do assunto com a mãe, evidentemente.
- Porquê? - quis saber Nicholas Black.
- Porque ele é menor - retorquiu Meyer, sem mais
delongas. - A mãe continua a ser a sua tutora legal.
O pintor corou e enfiou o nariz no copo, ao mesmo
tempo que Louise se permitia um pequeno sorriso discreto ao reparar na falta de à-vontade que o acometera. Limitou-se a dizer:
- Agradecia que pedisse a Nina Sanduzzi para vir
falar comigo amanhã, doutor.
- Com certeza que o farei. Mas ela poderá não
querer vir.
- Para camponeses de pé descalço não há dúvida
que são danadamente pretensiosos! - comentou Black azedamente.
- Somos um povo estranho - retorquiu-lhe Meyer
calmamente. - Compreender-nos leva o seu tempo.
Anne Louise nada disse, mas fez sinal ao criado para que deitasse mais vinho e servisse o assado. Dissera
o que tinha a dizer. Meyer dera-lhe ouvidos - e, se
Nicki desejava dar-se ao trabalho de terçar armas com
o judeu. talvez fosse divertido assistir, mas não se envolveria. As palavras que Meyer proferiu a seguir levaram-na de volta ao que dissera.
- Hoje recebi uma carta do bispo. Pede-me que sirva de médico assistente de Monsenhor Meredith. Parece que ele está a morrer de cancro.
- Santo Deus! - exclamou Nicholas Black, em voz
baixa. - Mas que aborrecimento dos diabos.
- Tu é que o convidaste, Nicki - disse a condessa,
irritada. - Não percebo porque agora te queixas.
- Estava a pensar em ti, cara. Um homem doente
numa casa é um fardo pesado.
- Na minha casa há um quarto - disse Meyer amavelmente. - Não é muito confortável, mas servirá.
- Não quero nem ouvir falar nisso! - reagiu a condessa vivamente. - Ele ficará aqui. Tenho criados para cuidarem dele e o doutor pode vir cá visitá-lo sempre que
for necessário.
- Já estava à espera de que o dissesse - observou
Meyer calmamente e sem ponta de ironia nos olhos.
O assado foi servido e o vinho vertido; comeram em
silêncio durante algum tempo, cada um contando os
pontos marcados naquela batalha de interesses travada
sob o véu de delicadeza da conversa. Pouco depois a
condessa pousou o garfo e disse:
- Tenho estado a pensar que, num gesto de cortesia para com Sua Eminência, devíamos preparar as
boas-vindas a este homem.
Nicholas Black engasgou-se subitamente com a galinha.
- Que espécie de boas-vindas, cara? Uma procissão
com a Confraria dos Mortos, as Filhas de Maria e a
Congregação do Santo Nome? Bandeiras, velas, acólitos e o padre Anselmo a trote na frente, de sobrepeliz imunda?
- Nada que se pareça, Nicki! - O tom de voz da
condessa era áspero e peremptório. - Um jantar tranquilo, amanhã à noite, connosco, o doutor e o padre
Anselmo. Nada de complicado, apenas uma ocasião
simples para que ele conheça as pessoas que mais o
poderão ajudar na aldeia.
Aldo Meyer manteve os olhos deliberadamente fixos
no prato. Como era possível ir contra uma mulher como aquela? Um jantar simples! - com a padrona a fazer de dama graciosa perante um médico de província e um padre
rústico que se veria aflito no manuseamento dos talheres, entornaria o vinho e provavelmente adormeceria sobre o prato da fruta, enquanto o monsenhor de Roma observava
tudo com bom humor tolerante. E, quando ele fosse recolher os dados, em que se apoiaria senão naquela graciosa senhora que tão
cortesmente Lhe providenciava albergue? Um jantar
simples - que simplicidade tão grande!
- Então, doutor, que acha?
Ele ergueu os olhos, com uma expressão severa e séria no rosto.
- É o seu hóspede, o seu convidado.
- Mas virá?
- Certamente.
Aldo Meyer viu-a relaxar, captando-lhe o ar de triunfo furtivo no olhar. Ao fitar Nicholas Black, reparou que também este sorria, o que o fez sentir-se subitamente
desnudo diante das adagas daquele par de intrigantes estranhamente compatíveis.
- Como será ele? - disse Black, sem dirigir a pergunta a
ninguém em particular.
- Quem? - inquiriu a condessa.
- O nosso monsenhor de Roma. Quando o vi em Valenta,
pareceu-me atormentado, lúgubre e fazendo lembrar uma
toupeira.
- Está a morrer - disse Meyer asperamente. - Isso tende a estragar a pele de um homem.
O pintor riu.
- Mas não o seu temperamento, espero. Detesto gente
maldisposta à mesa. É inglês, evidentemente, o que deve
torná-lo diferente. Provavelmente seco, brilhante e insalubre na conversa, como água estagnada. Se calhar, até é antiquado.
Alguns dos membros do clero de Roma são bastante liberais.
Outros gostariam de ver a Criação reformulada, de modo a
haver uma autogénese universal. Estou ansioso por ver que
conclusões é que este tira do caso amoroso de Giacomo
Nerone.
Aldo Meyer virou abruptamente o rosto para o pintor.
- Que sabe acerca do assunto?
O sorriso do pintor era um insulto disfarçado.
- Talvez não tanto quanto o senhor. Mas tenho o filho dele ao meu serviço, e o senhor a amante a fazer-lhe
a limpeza da casa. Claro que também isso poderá ter a
sua utilidade. As listas recentes estão repletas de virgens,
confessores e rapazes imberbes acabados de sair do
noviciado. Grande jeito Lhes faria disporem de bons
penitentes, como Agostinho ou Margarida de Cortona.
Ajuda-os a compensar os pecadores. Sabe como é...
"Há sempre uma maneira de voltar para Deus!" Uns
grandes oportunistas, esses padres. Não concorda, doutor?
- Sou judeu - declarou Meyer em tom friamente
definitivo. - Não tenho grande gosto pelo catolicismo, mas ainda menos pela blasfémia. Gostaria de mudar de assunto.
A condessa acrescentou uma advertência sua, abruptamente dita:
- Estás a beber demasiado, Nicki!
O pintor corou de fúria, empurrou a cadeira para
trás e saiu da sala. A um sinal da condessa, os criados
também saíram, e Anne Louise de Sanctis ficou a sós
com o seu médico assistente.
Pegou num cigarro, empurrou a caixa para o outro
lado da mesa, até junto de Meyer, e aguardou que
este acendesse os de ambos. Depois inclinou-se para a
frente e soprou-lhe uma baforada de fumo em cheio
no rosto.
- E agora, dottore mio, deixe-se de fitas e diga-me
o que tem a dizer.
Meyer abanou a cabeça.
- Não me agradeceria, Anne. E não acreditaria em mim.
- Ponha-me à prova. Esta noite estou receptiva. -
Riu suavemente e estendeu-lhe a mão sobre a mesa.
- Você é um tipo obstinado, Aldo anio, e, quando me olha de cima desse seu maldito nariz de judeu, também me torna obstinada. Vá, diga-me, e diga-me com
jeitinho: qual é o meu mal e que receita é que me dá?
Meyer deixou-se ficar sentado em silêncio durante um
momento, de olhos fitos no rosto outrora belo - a bela
ossatura, os músculos flácidos, os pés de galinha em redor dos olhos, as rugas cavadas de descontentamento,
a pele fatigada debaixo da maquilhagem cuidada. Depois respondeu-lhe com frieza profissional.
- Primeiro dou-lhe a receita. Deixe de se enfrascar
com barbitúricos. Pare de coleccionar criaturas bizarras como Black, que Lhe enchem a cabeça de histórias
sujas e no fim acabam por não Lhe proporcionar qualquer prazer. Venda esta casa, ou ponha alguém a tomar conta dela, e arranje um apartamento em Roma. Depois case-se
com um homem que a satisfaça na cama e a mantenha feliz depois disso.
- O doutor tem uma mente sórdida - disse-lhe
ela, com um sorriso.
Aldo Meyer prosseguiu, sério:
- Ainda vai ficar mais sórdida. A condessa não experimentou os prazeres do matrimónio, porque era demasiado jovem e o seu marido demasiado descuidado para se preocupar
com tal. Nunca mais o gozou desde
então, porque, sempre que tentou fazê-lo, defraudou-se a si própria e ao homem. É perfeitamente vulgar e
perfeitamente ultrapassável, desde que encare de frente o que deseja e o que Lhe faz falta para se preparar
para o obter. Mas nunca o fez. Retirou-se para a intimidade do seu pequeno mundo e encheu-o com uma
espécie de pornografia mental que a deixa louca de desejo e insatisfeita. Não tem a idade indicada para o fazer, minha querida. É perigoso. Acaba com gigolos e
indivíduos como Nicholas Black e, no final de tudo,
uma sobredose de suporíferos. Ainda está a tempo de
ser uma amante. Mas poderá dar em alcoviteira, como
está a proceder em relação a Paolo Sanduzzi.
A condessa fez de conta que não ouviu a última tirada e perguntou ao médico, sorrindo:
- E como é que arranjo marido para mim, doutor?
Compro um?
- Poderia fazer pior - disse Aldo Meyer gravemente. - Dados os factos, provavelmente sair-se-á melhor
com uma combinação honesta do que com um amor
desonesto. É por isso que gosta de tiranizar o seu pintor, porque se encontra, por sua vez, debaixo da tirania de um corpo insatisfeito.
- Mais alguma coisa, doutor?
- Só mais uma - disse Meyer calmamente. - Tire
Giacomo Nerone da cabeça. Deixe de tentar atingi-lo
através de Nina e do rapaz. Não é a primeira mulher
a destruir um homem por ele a ter rejeitado. Mas, se
não for capaz de encarar a situação, acabará por se destruir a si mesma.
- Esqueceu o mais importante, doutor.
Meyer fitou-a com interesse e argúcia.
- O quê?
- Sempre quis um filho, senti a falta de um filho mais
do que possa imaginar. Meu marido não pôde dar-me
nenhum. Giacomo Nerone repudiou-me e gerou um filho numa camponesa miserável. Odiei-o por isso. Mas
esse ódio já morreu. Se o doutor não se interpuser entre
mim e a mãe dele, poderei fazer algo pelo rapaz...
dar-lhe um bom começo de vida, salvá-lo da mesma
pobreza que espera os outros moços da aldeia.
- Que faria com ele, Anne? - perguntou Meyer
friamente. - Entregava-o ao pintor?
A condessa, sem proferir palavra, pegou no copo semicheio de vinho e atirou o seu conteúdo para o rosto
do médico. Depois pousou a cabeça nos braços e começou a chorar convulsivamente. Aldo Meyer limpou
o vinho do rosto magro, levantou-se da mesa e tocou
a chamar um criado para o acompanhar até à saída.
Ao chegar a casa ficou surpreendido por encontrar o
candeeiro aceso e Nina Sanduzzi sentada à mesa com
uma pilha de roupa na frente, que remendava. A presença da mulher àquela hora era suficientemente desusada para o levar a interrogá-la. A explicação que recebeu
foi deveras simples.
- Passei a noite com a mulher de Martino. Ela é tola mas boa pessoa, e já começou a dar conta do sarilho
em que está metida. Depois de Lhe deitar a família e
ajeitar Martino. achei que podia esperar aqui para saber as notícias que o doutor traria da condessa.
Por um momento, Aldo Meyer sentiu-se tentado a
desabafar, falando-lhe desabridamente, mas depois
lembrou-se de que ela não tinha capacidade para entender a ironia e ficaria perturbada. De modo que Lhe
respondeu simplesmente:
- São boas novas para Martino. A condessa fará
uma doação em dinheiro e também tomará Teresina
e Rosetta a seu serviço. Com os salários das duas e o
pouco que venha da assistência social, não ficarão mal
de todo.
- Que bom! - Ela concedeu-lhe um dos seus sorrisos raros e tranquilos. - É um começo. Mais tarde,
quem sabe, poderemos melhorar a situação. Quer um
pouco de café?
- Sim, por favor.
Meyer deixou-se cair pesadamente numa cadeira e
começou a desapertar os sapatos. No mesmo instante
ela estava a seus pés, a ajudá-lo. Também aquele gesto
era novo; nunca antes assumira as funções de criada.
Meyer nada disse, ficando, no entanto, a observá-la
pensativamente, enquanto Nina ia até ao outro lado da
divisão acender a pequena lamparina, sobre a qual estava a cafeteira do café. Disse em tom indiferente:
- A condessa também gostaria de falar contigo amanhã.
- Para que quererá ela falar comigo?
- Quer oferecer a Paolo um emprego de ajudante
dos jardineiros.
- É o único motivo? - perguntou Nina, ainda inclinada sobre a lamparina.
- No que te diz respeito, sim. Quanto a Paolo, pode haver outros motivos!
Ela virou-se lentamente para ele, fitando-o do outro
lado da divisão, mergulhada na sombra. Perguntou:
- Que espécie de motivos?
- O pintor inglês gosta muito dele. A condessa deseja servir-se dele para algo que ainda não está muito
claro. Também me parece que deseja que o rapaz lá
esteja quando chegar o padre que vem de Valenta para
investigar acerca de Giacomo.
- Parecem cães a esgravatar num monte de esterco - disse Nina Sanduzzi brandamente. - Não põem
amor em nada do que fazem. Eu não irei. O rapaz
também não.
Meyer acenou a cabeça em sinal de concordância.
- Prometi unicamente que te daria o recado. Quanto ao resto, penso que estás a ser sensata. Naquela casa reina uma certa loucura.
- Eles praticam em nós como se fôssemos animais. - Agitou os braços num gesto de fúria. - O meu
filho é uma criança, um rapaz que está agora à beira
de se tornar um homem, e eles querem servir-se dele
mesmo assim.
- Eu avisei-te - lembrou-lhe o médico discretamente.
- Eu sei.
Nina começou a encher as chávenas de café que colocara na mesa, falando ao mesmo tempo.
- E essa é mais uma das razões que me fez vir aqui
esta noite. Paolo disse-me que andou a passear pela
Torrente del Fauno com a jovem Rosetta. Fiquei contente. São ambos jovens e é uma boa altura para o
amor começar, desde que comece da maneira certa.
Penso que Paolo também estava satisfeito. Sei que tinha vontade de falar, mas não sabia que palavras utilizar. Queria ajudar, mas... o doutor compreende como
é com um rapaz. Ele nunca acreditaria que a sua mãe
pudesse também saber as palavras. Quando não há um homem na casa, as coisas complicam-se, de modo que
me lembrei da possibilidade de... de o doutor poder
dar uma pequena ajuda.
A cafeteira do café começou a ferver e Nina apressou-se a ir buscá-la, dando assim tempo a Meyer para
reflectir na resposta. Ele transmitiu-lha suave e hesitantemente.
- Um rapaz, quando desperta para a vida, é como
um país desconhecido, Nina. Não há mapas, sinalizações. Até a língua é diferente. Eu poderia cometer erros e prejudicá-lo. Não sei quais são os sentimentos
dele para com o inglês. Desconheço o que poderá ter
acontecido entre eles. Mas, seja o que for, será sempre
uma vergonha para o rapaz; da mesma maneira que o
seu primeiro desejo por uma rapariga o envergonha.
É o que o torna furtivo como uma raposa, tímido como uma ave. Compreendes?
- Claro que compreendo. Mas também compreendo a necessidade dele. Para ele trata-se de um mundo
desconhecido. O pai era alguém a quem chamavam de
santo. A mãe, alguém a quem chamam de prostituta.
Não me justificarei, ou ao pai, perante ele. Mas como
poderei explicar-lhe o que de maravilhoso sucedeu
entre nós? E como também devia ser maravilhoso para ele?
- Como poderei eu explicá-lo... - Meyer sorriu
amargamente - quando eu próprio não o entendo?
A pergunta que Nina Lhe dirigiu a seguir chocou-o profundamente.
- Odeia o rapaz?
- Deus Santíssimo, não! Porque perguntas semelhante coisa?
- Ele poderia ter sido seu filho, antes da chegada de Giacomo.
O rosto de Meyer ensombrou-se com recordações antigas.
- É verdade. Mas nunca odiei a criança.
- E a mim, odeia-me?
- Não. Houve uma altura em que odiei Giacomo e, quando
ele morreu, senti-me satisfeito, mas só durante algum tempo.
Agora lamento o facto.
- O suficiente para ajudar o filho dele?
- E a ti também, se estiver nas minhas mãos. Manda-o ter
comigo que eu tentarei falar com ele.
- Sempre soube que o doutor era um homem bom.
E na altura aquele foi o seu único agradecimento. Foi ao
fogão, pegou na cafeteira do café e trouxe-o para a mesa. Serviu uma chávena ao médico e outra a si própria, ficando a
observá-lo a beberricar o líquido escaldante e amargo, com
medo. Engoliu o conteúdo da sua chávena de uma golada só,
depois foi até um canto da cozinha buscar as suas socas de
madeira e o cesto maltratado onde guardara as compras do dia:
um saco de carvão, massa e alguns vegetais.
Depois voltou para junto da mesa e entregou-lhe um masso
espesso de papéis envolvidos num pedaço de pano e atados
com uma fita descolorida.
- Tome - disse-lhe com firmeza. - Já não os quero.
- De que se trata? - perguntou o médico perscrutando-lhe o rosto calmo.
- Os papéis de Giacomo. Aí no meio tem uma carta para si. Talvez o ajudem a compreendê-lo a ele e a mim. Talvez o ajudem a auxiliar o rapaz.
Admirado, pegou no embrulho sujo e segurou-o entre as
mãos, como uma vez segurara na cabeça pendente e sem vida
de Giacomo Nerone. De novo sentiu as recordações
invadirem-no, vívidas e opressivas - medos antigos, ódios
velhos, amores idos, pequenos triunfos e falhanços
monstruosos. Os olhos humedeceram-se-lhe e sentiu um nó no
estômago e um pequeno nervo começar a repuxar-lhe o canto
da boca.
Quando, finalmente, ergueu os olhos, viu que Nina Sanduzzi partira e que ele ficara à luz do candeeiro, com a alma de um homem morto segura entre os dedos trémulos.
Nina Sanduzzi caminhava de regresso a casa na tranquilidade do luar primaveril. Sob as estrelas os contornos agrestes das colinas tinham-se suavizado; a aldeia
em ruínas já não era um monte de escombros, mas,
banhada de prata, transformara-se numa beleza antiga;
e, ao fundo do vale, a torrente corria, fita de luz cinzenta, pelas sombras. O ar estava revigorante e límpido e as socas de madeira estalavam agudas nas pedras,
sobre o canto intermitente dos grilos e o longínquo
som abafado da água.
Mas Nina Sanduzzi ia cega à beleza e surda à música
da noite. Era uma camponesa, enraizada na terra como uma árvore, dura, persistente, alheia às ilusões,
que, quando muito, constituem uma diversão sentimental para os literatos. O panorama nada mais era
do que o lugar onde ela vivia.
Só as figuras neles existentes é que importavam. A beleza que via - e via-a em grande quantidade - estava
nos rostos, mãos, olhos, lágrimas e risos das crianças e
nas recordações ciosamente guardadas como água numa
cisterna. A Primavera era uma sensação no seu próprio corpo vigoroso. O Verão era o calor que sentia na
pele e a poeira na sola dos pés descalços e o Inverno
uma hibernação fria e um poupar cauteloso de ramos
secos e carvão.
Não sabia ler nem escrever, mas compreendia o que
era a paz, porque conhecera o conflito, e era receptiva
à harmonia, porque ela se acumulava lenta mas perceptivelmente, a partir das dissonâncias da vida em seu
redor.
Naquela noite sentia-se em paz. Podia ver o início
do cumprimento da promessa de Giacomo Nerone de
que, mesmo depois da sua morte, cuidariam dela própria e do rapaz. Eram pobres, mas a pobreza era o seu
estado natural, e Giacomo nunca os deixara desejar
demasiado ou durante demasiado tempo. Agora, que
viviam a sua necessidade maior, ali estava Aldo Meyer,
pronto a pagar, tirando da sua própria necessidade,
uma dívida para com um homem morto.
Também havia harmonia na sua vida - uma concordância
lentamente alicerçada entre ela e os aldeões. Precisavam dela.
Estavam gratos, tal como a mulher de Martino, pela ajuda que
ela prestava em tempos de aflição; e, quando Lhe chamavam
nomes grosseiros - "a prostituta", "a mulher que dormiu com
um santo" - estes já não soavam cheios de malícia; eram
apenas uma memória vaga de invejas antigas. Era um povo rude
que usava palavras rudes, porque poucas outras conhecia. Os
seus símbolos eram vulgares, porque a sua vida era
embrutecida - e a fome do ventre não pode ser apaziguada com sonhos
Assim, naquela noite ela voltava a casa, à pequena cabana
que se erguia no meio dos azevinhos, sentindo-se grata, e toda
a sua gratidão se centrava em Giacomo Nerone, morto há muito
tempo e enterrado na Gruta do Fauno, onde o povo entrava
para rezar e saía curado das suas enfermidades de corpo e
espírito.
Tudo o mais que constituíra a sua vida ficara bloqueado pela recordação daquele homem: seus pais, que tinham morrido de malária, tinha ela dezasseis anos, deixando-lhe
a cabana, alguns paus a fazerem de mobília e uma pequena arca de dote; o
marido, um rapaz moreno e turbulento que casara com ela pela
igreja, dormira com ela um mês para depois ser levado pelo
Exército e morrer na primeira campanha na Líbia. Depois da sua
morte, Nina ficara a viver, como tantas outras mulheres, sozinha na sua cabana, arranjando ocasionalmente trabalho no campo ou a dias, quando alguma das criadas
da condessa adoecia.
Fora então que Giacomo Nerone aparecera...
Era uma noite de Verão, quente e sufocante, anunciando
trovoada. Ela estava deitada, nua, na enorme cama de ferro,
agitando-se sem cessar com o calor e os mosquitos e a urgência
que frequentemente Lhe despertava no corpo forte dos braços
de um homem e de senti-lo a seu lado na cama. Passara há muito
da meia-noite, e nem mesmo o dia desgastante passado nas vinhas ajudava o sono a chegar.
Ouviu então bater à porta, trancada por uma barra,
fraca e furtivamente. Sentou-se, subitamente tomada
de terror, cobrindo os seios com a roupa da cama. As
batidas voltaram a soar e ela perguntou com voz forte:
- Quem é?
Uma voz masculina respondeu-lhe em italiano.
- Um amigo. Estou doente. Por amor de Deus,
deixe-me entrar!
A aflição e debilidade da voz tocaram-na. Levantou-se da cama, enfiou o vestido e foi à porta. Correu a
barra e abriu-a cautelosamente e nessa altura ele cambaleou para a frente - um homem corpulento, moreno, com sangue no rosto e uma mancha peganhenta a
ensopar-lhe um dos ombros da camisa rasgada. Trazia
as mãos arranhadas pelos arbustos e as botas rotas e
com boqueiras e, ao tentar levantar-se, deu dois passos
vacilantes e caiu ao comprido, sobre o rosto.
Nina precisou de recorrer a toda a sua força de camponesa para o arrastar e puxar para cima da cama.
Embora ainda estivesse inconsciente, ela lavou-lhe os
cortes do rosto, cortou-lhe a camisa no sítio do ferimento e também o lavou. A seguir descalçou-lhe as
botas, tapou-o com os lençóis e deixou-o dormir até os
primeiros alvores da manhã iluminarem o céu a oriente. O homem despertou com o pânico súbito dos perseguidos, olhando à sua volta, os olhos esbugalhados de medo;
mas, ao vê-la, sorriu e voltou a descontrair-se, fazendo uma careta de dor por causa do ombro ferido.
Nina trouxe-lhe vinho e pão escuro com queijo e
maravilhou-se com a sofreguidão com que o viu engolir tudo. Bebeu três taças de vinho, mas não aceitou
mais comida, porque, disse, o povo passava fome e ele
só tinha direito a uma parte de viajante. Sorriu novamente ao falar, um sorriso rasgado e juvenil que afastou os últimos receios de Nina e a levou a sentar-se na
beira da cama, perguntando-lhe quem ele era, o que o trouxera a Gemello Minore e como é que arranjara aquela ferida no ombro.
O sotaque do homem era estranho, e ele tinha dificuldade em perceber-lhe o denso dialecto calabrês, mas as linhas da história que contou eram suficientemente claras.
Era soldado, contou, de uma guarnição de artilharia estacionada em Reggio, na ponta da bota da Itália. Os Aliados tinham tomado a Sicília e o Exército inglês atravessara
o estreito de Messina e ia abrindo caminho península acima. Reggio caíra. A sua unidade fora desmantelada e ele pusera-se em fuga. Se se
juntasse ao seu próprio exército, tratavam-lhe do ferimento e recambiavam-no de novo para a linha da frente.
Se fosse apanhado pelos ingleses, faziam dele prisioneiro
de guerra. De modo que estava a tentar regressar para
junto da família que tinha em Roma. Escondera-se durante o dia e viajara de noite, vivendo daquilo a que
conseguia deitar a mão. Na última noite fora detectado
por uma patrulha inglesa que disparara sobre ele. Ainda tinha a bala alojada no ombro. Teria de ser extraída, caso contrário morreria.
Por ser uma camponesa simples, aceitou a história
tal qomo Lhe foi relatada. Por gostar dele e por se sentir
solitária e sem homem, mostrou-se disposta a escondê-lo e a cuidar dele até a ferida sarar. A cabana ficava
afastada da aldeia e nunca ninguém ali ia. Foi o começo: simples e sem importância, como uma centena de
outras histórias de viúvas solitárias e soldados em fuga
em tempo de guerra. Mas a riqueza que dali se ia expandir e a tragédia que Lhe poria fim, assim como a
paz que se lhe seguiu, eram o espanto que a acompanhava todos os dias e as lembranças que não a largavam todas as noites...
Ao chegar a casa encontrou o candeeiro a brilhar
frouxamente e Paolo enrolado, aparentemente adormecido, no tosco leito, no lado oposto do quarto, frente ao enorme letto matrimonio de ferro onde fora concebido
e nascera. Paolo dormira com a mãe até ao despontar
da puberdade, como era costume no Sul, onde famílias
inteiras dormiam numa única cama de grandes dimensões: marido, esposa, bebés, rapazes e raparigas na
adolescência. Mas não ficava bem quando se tratava de uma mulher sozinha com o filho; portanto, ela comprou outra cama e cada um dormia na sua.
Nina fechou a porta, colocou-lhe a barra que a trancava, depois pousou o cesto e atirou as socas para o lado. Na cama, o rapaz observava tudo por entre as pálpebras
semicerradas, fingindo que dormia. Não havia pormenor do ritual que se seguia que não Lhe fosse familiar, apesar de, já fazia muito tempo, ele se recusar a participar
nele.
Nina Sanduzzi atravessou o quarto, aproximando-se
da arca grosseira que tinha à cabeça da cama. De dentro do vestido desprendeu uma pequena chave, que
usava presa com um alfinete fechado, e abriu a arca.
Depois retirou do interior desta um embrulho volumoso envolvido em papel branco. Abriu-o cuidadosamente e tirou uma camisa de homem, velha, rasgada e manchada em
vários sítios como de ferrugem. Apertou-a contra os lábios durante um momento e, depois de a desdobrar, estendeu-a nas costas de uma cadeira de maneira que se notasse
que os rasgões eram de buracos feitos por balas e que as manchas eram de sangue. Depois ajoelhou-se desajeitadamente, enterrou o
rosto nas mãos, apoiadas ao assento da cadeira, e começou a rezar em murmúrios baixos.
Por muito que se tivesse esforçado, o rapaz nunca
fora capaz de perceber as palavras. Nos tempos em
que ele se ajoelhava ao lado da mãe, esta dizia-lhe
simplesmente para rezar padre-nossos e ave-marias, tal
como ele fazia na igreja, porque seu pai era um santo
com grandes poderes junto de Deus - tal como S. José, o padrasto do Bambino. Mas ela nunca o admitira
na intimidade da sua comunhão com o pai, o que, de maneira estranha, Lhe provocara ciúmes. Agora encarava tudo aquilo como uma tolice feminina.
Terminadas as orações, Nina Sanduzzi voltou a fazer
o embrulho e fechou-o à chave na arca. Depois acercou-se da cama do filho, inclinou-se para Lhe depositar
um beijo na testa e afastou-se. Paolo Sanduzzi manteve os olhos cerrados e a respiração lenta, porque, apesar de muitas vezes ter vontade de retribuir o beijo e
de que a mãe o abraçasse como quando era menino,
havia agora uma repulsa nele que não conseguia explicar. Era o mesmo sentimento que o fazia fechar os
olhos e virar o rosto quando ela despia o corpo, que
os anos vinham engrossando, ou se levantava para se
aliviar durante a noite. Sentia vergonha dela e de si próprio.
Deixou-se, pois, ficar imóvel até a mãe apagar a lamparina e subir para a cama de ferro rangente. Depois,
também ele se ajeitou e resvalou lentamente no sono.
Quando dormia, sonhou com Rosetta, de pé, sobre a
rocha à beira da torrente, a chamar por ele. Correu
para ela rápido, aos baldões, vendo-lhe os lábios abertos, os olhos que riam e os braços que se abriam para
o receber. Mas antes de os braços dela se fecharem em
torno dele, mudavam para os de Nicholas Black, e,
em vez do rosto da rapariga, deparava antes com a
face pálida e afilada do pintor.
Paolo Sanduzzi agitou-se e gemeu, abrindo os olhos
no momento meio doce e meio vergonhoso em que a
seiva da juventude é vertida e em que um rapaz não
tem bem a certeza se está a dormir ou acordado.

CAPÍTULO VIII

Era a última noite de Blaise Meredith em Valenta:
a sua última noite na companhia do bispo Aurelio.
Jantaram, como era costume, confortavelmente e bem.
Falaram nostalgicamente de uma variedade de assuntos e, quando a refeição chegou ao fim, Sua Reverendíssima sugeriu que passassem ao seu gabinete de trabalho para
tomarem o café.
Era uma sala grande e arejada, com estantes cheias
de livros que iam do chão ao tecto, mas escassamente
mobilada com uma secretária, um genuflexório, um
conjunto de armários de aço e um conjunto de sofás
de couro frente a um fogão de majólica. No entanto,
o gabinete reflectia com precisão a personalidade do
homem que trabalhava dentro dele: culto, ascético,
prático, com um gosto pelo conforto modesto.
O café foi servido e com ele uma garrafa de aguardente velha. poeirenta da adega, com os lacres ainda
intactos. Sua Reverendíssima fez questão em ser ele
mesmo a abri-la e servi-la.
- Um brinde - disse a Meredith, sorrindo. - A derradeira taça de agape. - Ergueu o copo. - à amizade!
E a si, meu amigo!
- à amizade - secundou Blaise Meredith. - Lamento tê-la conhecido tão tarde.
Beberam como todo o homem conhecedor deve fazer quando se trata de um licor antigo e precioso: lentamente e saboreando.
- Sentirei a sua falta, monsenhor - disse o bispo
brandamente. - Mas o senhor regressará. Se se sentir
pior, mande-me imediatamente avisar, pois tratarei de
o trazer de novo para cá.
- Assim o farei. - Os olhos de Meredith mantinham-se obstinadamente fixos no seu copo para disfarçar a dor que neles se lia. - Espero servir bem Vossa Reverendíssima.
- Tenho um pequeno presente para Lhe dar, meu
amigo - disse o bispo, enfiando a mão no bolso do
peito e retirando de dentro uma pequena caixa de couro florentino trabalhado, que entregou a Meredith.
- Vá, abra-a!
Meredith premiu a mola e a tampa abriu-se imediatamente, revelando, numa base de cetim, uma pequena bulla, uma bola de ouro antigo, mais ou menos do tamanho do seu
polegar, presa a uma linda corrente de ouro. Meredith tirou o objecto do estojo e colocou-o na palma da mão.
- Abra a bulla - pediu Sua Eminência.
Mas os dedos de Meredith tremiam, pelo que o bispo Lhe tirou o objecto de adorno, abriu-o e mostrou-Lho. Meredith soltou uma pequena exclamação, de surpresa e prazer.
Encastoada na curva do ouro estava uma ametista
enorme, esculpida com o símbolo mais antigo da Igreja Cristã, o peixe e os pães no dorso, cujo nome era o
anagrama de Cristo.
- É muito antiga - disse Sua Reverendíssima. -
Provavelmente dos princípios da segunda metade do
século II. Foi encontrada durante as escavações nas catacumbas de São Calisto e foi-me oferecida por ocasião da minha consagração. A bulla era um enfeite muito vulgar
em Roma, como sabe, e esta deve ter pertencido a um dos primeiros cristãos, possivelmente um mártir, não sei. Gostaria que ficasse com ela, em nome da amizade.
Blaise Meredith, o indivíduo frio, sentiu-se comovido como já não Lhe acontecia há vinte anos. Os olhos
inundaram-se-lhe de lágrimas e, ao falar, a voz saiu-lhe trémula.
- Que outra coisa posso dizer senão "Obrigado".
Guardá-la-ei até morrer.
- Receio que haja um preço a pagar por ela. Terá
de escutar um sermão final.
- Será o meu exorcismo contra o tédio - retorquiu-lhe Meredith, com singular bom humor.
O bispo reclinou-se na sua cadeira e bebeu novo gole
de brande. O seu gambito de abertura parecia curiosamente irrelevante.
- Tenho andado a pensar, Meredith, acerca do pequeno santuário fálico. Que acha que se deva fazer em
relação a ele?
- Não sei... Destruí-lo, suponho.
- Porquê?
Meredith encolheu os ombros.
- Bem... representa um elo com o paganismo, um
símbolo de idolatria, e bem obsceno por acaso. Não há
dúvida de que há quem Lhe preste alguma espécie de homenagem.
- Não sei se será bem assim - observou Sua Eminência pensativamente. - Ou se não se tratará de algo muito mais simples.
- Do quê, por exemplo?
- De um bom exemplo de vulgaridade bem-humorada, uma superstição reconfortante como a de atirar
moedas para a fonte de Trevi.
- Dificilmente Lhe teria chamado reconfortante -
observou Meredith. - Obscena talvez. Mesmo sinistra.
- Todos os povos primitivos são obscenos, meu caro Meredith. Vivem numa relação tão estreita com as funções naturais mais grosseiras que o seu humor se
torna de facto muito terra-a-terra. É escutar a tagarelice e as cantorias numa festa de casamento de aldeia
que, se for capaz de traduzir o dialecto e as alusões,
corará até às suas reverendas orelhas. Mas esta gente
também tem as suas modéstias próprias, as quais, mesmo que pareçam menos lógicas, muitas vezes são bem
mais sinceras do que as falsas modéstias de comunidades evoluídas... Quanto a "sinistro", sim, poderia designar-se de sinistro. Aqui existem realmente vestígios
de paganismo. Em Gemello Minore encontrará uma
mulher que vende amuletos e filtros de amor... Mas
que posso eu fazer neste caso? Armar uma grande
confusão? Exorcizar o símbolo e espatifar o mármore?
Eles podem fazer um desenho obsceno em qualquer
parede da cidade, se o desejarem, e provavelmente punham-lhe a minha cara. Compreende?
Meredith riu gostosamente, contra vontade, e o bispo sorriu aprovadoramente.
- O meu sermão está a resultar, Meredith. E também já sabe o que ele lhe aconselha: Piano, Piano!,
caminhe com calma e fale com calma. Não se esqueça
de que é uma entidade oficial e de que eles não confiam
em semelhantes personagens, sobretudo pertencentes
à Igreja. Também está a par do ponto de vista oficial,
o que representa uma desvantagem. Olhe! - Apontou
expressivamente com a mão para as paredes cobertas
de prateleiras com livros. - Todos os padres, desde
Agostinho a Aquino. Todos os grandes historiadores,
todos os grandes comentadores. Todas as encíclicas
dos cinco últimos pontífices. E também uma selecção
dos textos místicos mais importantes. A mente da Igreja
dentro destas quatro paredes. O homem que usou essa
bulla nunca ouvira falar de um deles, no entanto era
tão católico como o senhor ou eu. Tinha a mesma fé,
embora grande parte dela fosse implícita e não explícita, como acontece agora. Esteve próximo dos apóstolos, que ensinavam o que tinham aprendido dos lábios de Cristo
e o que tinham recebido da infusão do Espírito Santo no Pentecostes. A mente da Igreja assemelha-se à mente de um homem, expandindo-se para novas consequências a
partir de crenças antigas, para
novos conhecimentos que florescem a partir de outros
antigos como folhas a despontar numa árvore...
Quem é que no seio do meu rebanho tem capacidade
para assimilar tudo isto? Pode o senhor ou eu? Assim
é a mente da Igreja, complexa e subtil. Mas o seu coração é simples, da mesma maneira que esta gente é
simples. Portanto, quando for ter com eles, deve trabalhar com o coração, e não com a cabeça.
- Eu sei - disse Blaise Meredith, com palavras
que mais pareciam um suspiro. - O problema é que
não sei como trabalhar com esse método. Confesso-o
francamente, só junto de Vossa Reverendíssima é que
consegui sentir algum calor. Falta-me simpatia, imagino. É um facto que lamento, mas que não sei como
emendar. Faltam-me as palavras. Os gestos são desajeitados e teatrais.
- É uma questão de atitude, meu amigo. Se sente
piedade e compaixão, não anda longe do amor. Estes
sentimentos comunicam-se a si próprios até mesmo
através das palavras mais atrapalhadas. O melhor processo de chegar a esta gente é através das suas necessidades e dos seus filhos. Experimente encher os bolsos
das crianças de rebuçados e passear pela rua. Experimente levar um quilo de massa ou uma porção de azeite
de presente quando for a casa de algum pobre. Descubra
onde estão os doentes e visite-os com uma garrafa de
grappa no bolso... E o meu sermão chegou ao fim.
meu amigo!
Inclinou-se para a frente e serviu nova porção de
brande nos copos. Meredith beberricou o licor macio e
perfumado, de olhos fitos na pequena bulla de ouro
sobre a sua base de cetim. O bispo Aurelio era um
bom pastor. Praticava tudo o que pregava. E Blaise
Meredith ainda não acedera ao único pedido que Lhe fora feito em nome da amizade. Confessou o facto
com gravidade:
- Tenho tentado várias vezes rezar por esse milagre, mas não sou capaz. Lamento.
Sua Eminência esboçou um gesto de indiferença, como se o atraso não tivesse importância.
- Acabará por lá chegar. Piano... Piano...! Agora
parece-me que deveria ir para a cama. O dia de amanhã será longo e possivelmente complicado para si.
Levantou-se e Blaise Meredith, obedecendo a um
impulso estranho, ajoelhou-se para beijar o anel episcopal que o bispo tinha no dedo.
Aurelio, bispo de Valenta, ergueu a mão esguia no
gesto ritual.
- Benedicat te Omnipotens Deus... Que Deus o
abençoe, meu filho, e o guarde do demónio do meio-dia e do terror da noite longa... em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
- ámen - disse Blaise Meredith.
Mas a bênção nada pôde contra a dor que o assolou
naquela noite: a pior que já experimentara no decorrer
da sua enfermidade, uma agonia avassaladora que o esvaiu de todas as suas forças, a ponto de quando a manhã
chegou, ele parecer um homem que ia para o seu próprio funeral.
De Valenta a Gemello Minore a distância aproximada é de sessenta quilómetros, mas a estrada é de tal
maneira tortuosa, a sua superfície tão irregular e cheia
de buracos e a subida tão íngreme que são precisas
duas boas horas de automóvel.
Assim que deixaram a vila, Meredith caiu numa modorra irregular, mas depressa os saltos e os arranques
o despertaram, levando-o a prestar uma atenção forçada à paisagem. As colinas não eram tão altas como as
alpinas, no entanto mostravam-se íngremes e escarpadas e tão em cima umas das outras que a estrada parecia inclinar-se perigosamente para as orlas, ora precipitando-se
para cima, ora mergulhando no fundo, desembocando, depois de uma curva fechada, numa ponte periclitante que dava a impressão de mal suportar o peso de uma carroça
de burro.
Os vales eram verdejantes nas zonas onde os camponeses trabalhavam a terra coberta de sedimentos arrastados pelas chuvas, mas as colinas só nalguns pontos
mostravam vegetação, que era esparsa, mal dando para pastagem de gado ovino. Custava a crer que, em
tempos idos, os Romanos tinham cortado ali pinheiros
para construir as suas galeras e arranjar carvão para as
forjas dos ferreiros que Lhes faziam as armas. Tudo
quanto agora restava era uma plantação, aqui e ali, a rodear alguma villa cujo proprietário ou caseiro fosse melhor lavrador que os seus concidadãos.
Algumas das aldeias eram construídas nas depressões
escavadas entre as colinas, aglomerados de casinhotas
agrupados em volta de uma igreja a cair, quem sabe se
erguida por algum velho mercenário angevino que tivesse arrastado a sua lança e o seu título insignificante
por aquele reino turbulento do Sul. Outras não passavam simplesmente de uma fileira de cabanas de camponeses ao fundo dos vales, onde a água ficava mais perto e
o sol era menos esparso. Mas todas elas eram pobres, de aspecto degradado. Os seus habitantes tinham a aparência gasta e esgotada das próprias montanhas. Os filhos
andavam imundos e magros como as
cabras, as galinhas e as vacas de costelas salientes.
Daquela pobreza nunca Meredith vira, nem mesmo
nos becos mais sórdidos de Roma. Era àquilo que o
bispo Aurelio se referira quando chamara a atenção
para a atitude insana que seria ir até ali com um livro
numa mão e a cruz dos missionários na outra. Aquela
gente sabia o que era a Cruz... suportara a sua própria
crucificação durante muito tempo; mas não podiam
alimentar-se de ideias, e o Cristo da Calábria teria de
se fazer anunciar com um novo milagre da multiplicação dos pães e dos peixes, assim como a velha compaixão pelos aleijados e pelos impuros. Viviam em casas que não
eram melhores do que estábulos para vacas. Alguns ainda eram trogloditas, vivendo em cavernas escavadas nas rochas, onde a
viscosidade escorria das paredes. Não dispunham de
gás, electricidade, esgotos, fornecimento de água potável. Os filhos morriam de malária, infecções pulmonares e pneumonia. As mulheres sucumbiam à septicemia e à
febre puerperal. Os homens alquebravam-se com artrite antes de chegarem aos quarenta. A febre podia dizimar uma comunidade inteira num mês. Contudo, conseguiam arranjar
maneira de sobreviver.
Conseguiam arranjar maneira de se apegar a uma
crença em Deus e à vida no outro mundo, à oração e
aos serviços da Igreja - de se apegarem a tal com
uma lógica feroz porque era nessa crença que estavam as raízes da dignidade humana. Sem ela ter-se-iam tornado aquilo que pareciam à maioria das pessoas: animais
na forma e nos hábitos.
à medida que se iam embrenhando nos recessos
montanhosos, o coração de Blaise Meredith encolhia-se. Ficara profundamente deprimido depois da provação daquela noite e antevia-se a si próprio cada vez mais debilitado
no meio daquela gente, implorando que a morte o libertasse da sua companhia. Já que tinha de morrer antes da altura devida, ao menos que o deixassem fazê-lo com
dignidade, no meio de
lençóis lavados, um cheiro a limpo e a luz do Sol a entrar pelas janelas. Era um pensamento infantil, pelo
que se esforçou por afastá-lo, mas a depressão ficou
com ele, até que, de repente, no cimo de uma subida
acentuada, o motorista deteve o carro e apontou para
o vale que se estendia em frente, exclamando:
- Ecco, Monsignore! Olhe! Ali tem, Gemelli dei
Monti, as Montanhas Gémeas.
Meredith apeou-se do automóvel e caminhou até à
beira da estrada para obter uma vista melhor. Mais
abaixo, a estrada descia, muito inclinada, em direcção
a um vale rodeado, de cada lado, por uma montanha que se recortava no céu límpido. Até mais de metade
da sua altura era uma massa sólida; depois dividia-se
em dois picos gémeos, separados por uma fenda vasta,
com cerca de três quilómetros de largura. Em cada um
dos picos erguia-se uma aldeia rodeada por um muro
em ruínas, abaixo do qual começavam os terrenos cultivados, que se espalhavam até à depressão existente
entre ambos. No meio da depressão passava uma corrente de água, precipitando-se pelo flanco sólido da
montanha até ao vale aos pés de Meredith.
O que Lhe chamou mais fortemente a atenção foi a
diferença entre os dois picos. Um deles recebia o sol
em cheio; o outro pairava mergulhado na sombra, ao
lado do seu gémeo. A aldeia ensolarada parecia maior,
menos maltratada; e mesmo no seu centro, debaixo do
campanário da igreja, um edifício grande e branco ressaltava, contrastando profundamente com as telhas
calcinadas dos telhados circundantes. A estrada que se
bifurcava até ela era negra e brilhava, de alcatrão recém-colocado. No seu topo, mesmo em frente dos
muros, fora aberto um grande espaço para estacionamento, onde se via meia dúzia de automóveis, com os
pára-brisas brilhando ao sol.
- Gemello Maggiore - anunciou-lhe o motorista,
por cima do ombro. - Veja o que o santo fez por ela.
O novo edifício é o albergue para peregrinos.
- Ainda não é santo - emendou Meredith friamente.
O motorista abriu as mãos num gesto de enfado e
afastou-se. Não se podia falar com um padre com dores de estômago. Blaise Meredith franziu o sobrolho e
voltou-se para o gémeo mais escuro, Gemello Minore.
Não se viam carros no atalho de cabras poeirento que
conduzia à aldeia, unicamente uma minúscula carroça de
burro com um camponês idoso a caminhar atrás das
rodas. Os muros mostravam brechas em muitos sítios
e, em alguns dos edifícios mais altos, podia ver os alicerces despidos onde as telhas arrancadas nunca mais tinham sido substituídas. A linha dos telhados apresentava
falhas, em contraste com a segurança compacta de Gemello Maggiore. Meredith sabia muito bem o que iria encontrar dentro dos muros - uma rua principal única, uma
piazza minúscula em frente da igreja, um bairro superpovoado de vielas estreitas com cordas
de secar roupa presas entre as paredes, a imundície a
escorrer sobre as pedras da calçada e crianças esfarrapadas a guinchar no meio do lixo. Por um momento
sentiu o coração falhar-lhe e esteve meio inclinado a
dirigir-se a Gemello Maggiore e a montar ali o seu
quartel-general, no albergue novo ou mesmo em casa
do prefeito, que teria muito gosto em receber um oficial do tribunal do bispo. Mas sabia que nunca seria
capaz de enfrentar a vergonha de semelhante rendição;
por isso voltou a entrar no automóvel e ordenou ao motorista:
- Gemello Minore. Subito!
Os camponeses que trabalhavam nos campos mais
baixos foram os primeiros a avistá-los, enquanto o
carro andava às guinadas por cima dos buracos e derrapava nas faixas de cascalho solto. Apoiavam-se às
suas enxadas e ficavam a vê-lo passar e alguns dos
mais novos acenaram trocistamente, mas os mais velhos limitaram-se a passar com a mão pelo suor que
Lhes escorria dos rostos, limpando depois esta ao traseiro e recomeçando a trabalhar. Um automóvel, uma
carruagem puxada a duas parelhas ou um foguetão da
Lua, para eles era tudo igual. Semeava-se uma fila e
começava-se outra. As mulheres empilhavam o joio
para fazer estrume e juntavam os ramos secos para a
lenha. E, depois de amarrado o último feixe de joio,
havia que levar água da corrente para regar avaramente as raízes das plantas. Também havia pedras para
carregar para as brechas que a tempestade abrira nos
terraços e torrões de relva para sachar nos alqueives...
Não se podia fazer pasta com motores a gasolina, nem
arranjar leite da teta de um padre. Portanto, para o diabo com as duas coisas - e toca a pegar outra vez no sacho!
Paolo e Rosetta avistaram-no, agachados debaixo de
um aglomerado de arbustos onde ele jurava ter visto
codornizes e onde nada mais havia além dos dejectos
da lebre que roía as couves e um velho lagarto cinzento dormitando ao sol. Rosetta bateu palmas, gritou e
pôs-se a saltitar - fazendo lembrar um elfo moreno de
veste esfarrapada; mas Paolo não se mexeu, de braços
nas ancas, a olhar para o automóvel. Havia de vir a altura em que aquele tipo quereria falar com ele acerca
de seu pai, mas ele estava decidido a falar com ele
como um homem, não um rapazola ranhoso que primeiro era acarinhado e a seguir levava. Além disso,
a questão era importante para ele e Rosetta, se queria
ser a sua rapariga, tinha de entender. E apesar de recear vagamente o ferrete negro que poderia marcar a
vida da mãe e mesmo a sua, transformando a aldeia
num antro de curiosidade, aquele assunto, no fim de
contas, dizia-lhe respeito e a sua rapariga devia ser a
última a saber. Portanto, depois de o carro passar, pegou-lhe na mão e, apesar dos protestos da moça, levou-a apressadamente através dos arbustos, por um carreiro
abaixo, até um ponto secreto da torrente onde ninguém ia nunca de dia.
Aldo Meyer viu-o quando o automóvel abrandou o
andamento em frente da porta de sua casa e começou
a abrir caminho por entre um bando de crianças aos
gritos. Reparou no rosto cinzento e afilado, nos lábios
contraídos num sorriso doloroso e na mão erguida
num cumprimento pouco entusiasmado às crianças. Ali
ia, se alguma vez Lhe fora dado ver algum, um homem
com o estigma da morte marcado no rosto. Reflectiu
sobre o raciocínio tortuoso que induzira o bispo a aceitar um oficial naquelas condições e a enviá-lo até ali
para ser assolado e atormentado por todos os interesses em conflito no caso de Giacomo Nerone. Reflectiu
sobre o tipo de homem que ele seria e sobre o que o convívio diário com a morte estaria a fazer dele: o que
pensaria da condessa e dos convidados desta para jantar e como reagiria às histórias enredadas que deveria
ouvir. Depois recordou-se de que Lhe caberia a ele colher o derradeiro sopro daquela vida e sentiu-se envergonhado por nem sequer ter cumprimentado o visitante à
sua passagem.
Quando o automóvel chegou à piazza, toda a aldeia
se reunira ali. Até o velho padre Anselmo se via, espreitando furtivamente por entre as suas persianas,
com o convite da condessa na mão, não sabendo muito
bem de que maneira mostrar "cortesias a um padre irmão", como o bispo Lhe pedia. O seu problema mais
urgente, contudo, era o que devia levar vestido à villa;
e, mal o automóvel passou, caminhou desengonçadamente até à cozinha, gritando à velha Rosa Benzoni que Lhe lavasse o colarinho e tirasse as nódoas da melhor sotaina.
Somente Nina Sanduzzi se recusara a aparecer na qualidade de espectadora daquela chegada inauspiciosa.
Encontrava-se sentada no leito do ferreiro Martino, na
casa deste, enfiando colheres de caldo na boca retorcida do homenzarrão, e, quando a chamaram até à
porta para ver não foi. Tinha a sua própria dignidade,
e o padre, se quisesse vê-la, que viesse, que ela saberia
o que Lhe responder.
No que dizia respeito a Blaise Meredith, este via todos, sem, porém, ver ninguém. Era um mar de rostos
indistintos e um clamor de vozes estranhas e um cheiro
penetrante a poeira, a corpos e a lixo a apodrecer ao
sol. Sentiu-se aliviado quando o automóvel saiu da aldeia e subiu ruidosamente a última inclinação pronunciada de terreno que conduzia à villa, onde o porteiro
abriu os enormes portões de ferro para o deixar entrar
e a condessa o aguardava no vasto relvado cuidado,
para o saudar, fresca como uma flor.
- Meu querido Monsenhor Meredith! Que prazer
em conhecê-lo!
O sorriso era afectuoso, os olhos tranquilos e a mão
macia mas firme no cumprimento. Depois do repenicar do dialecto, Meredith sentiu-se confortado com o som de uma voz a falar inglês. O rosto fatigado abriu-se-lhe
num sorriso.
- Minha querida condessa! Obrigado por me receber aqui!
- Fez boa viagem?
- Sofrível. As estradas são más e presentemente não ando muito dado a viagens. Mas cheguei inteiro.
- Pobre homem! Deve estar completamente exausto. Vou pedir a Pietro que o leve até ao seu quarto, depois poderá lavar-se e descansar um pouco antes do almoço.
- Saber-me-ia muito bem - retorquiu Meredith.
E, grato, pensou: "Deus seja louvado pelos Ingleses.
Eles compreendem estas coisas melhor do que ninguém
no mundo! Não armam confusões e sabem que quando
um homem está fatigado, a sua primeira necessidade
vai para a intimidade e água quente!"
A um sinal da condessa, o criado pegou nas malas e
conduziu Meredith até dentro de casa. A condessa ficou na beira do relvado a observar-lhe a passada vacilante, até a sombra da entrada o engolir.
Um momento mais tarde, Nicholas Black saiu de
trás de uma moita de arbustos e juntou-se a ela. O rosto de sátiro sorria abertamente.
- Ora, ora, ora! Com que então é esta a personagem
que teremos de enfrentar! Faz lembrar uma edição
puída de John Henry Newman. Oxford, diria antes.
Magdalen, provavelmente, com um toque de colégio
inglês e um verniz de Vaticano a cobrir... Tu saíste-te
maravilhosamente, cara. Nem muito ao mar nem muito à terra. A castelã encantadora dá as boas-vindas à
Igreja, a inglesa expatriada faz as honras da casa a um
compatriota. És cá uma actriz!
A condessa ignorou-lhe a ironia e observou pensativamente:
- Ele parece muito doente.
- A oração e o jejum também dão aquele aspecto,
querida. Gostaria de saber se ele usa cilício.
- Oh, por amor de Deus, Nicki!
Black encolheu os ombros irritado e perguntou:
- Que esperas que faça? Que beije o traseiro ao
padre e Lhe peça que abençoe as medalhas? Mas, afinal, que está a acontecer contigo? Não me digas que te
andam a apetecer grandes conversas!
A condessa voltou-se para o encarar, dirigindo-lhe
uma invectiva em voz baixa e feroz:
- Escuta, Nicki! És um homenzinho razoavelmente
simpático e um pintor medianamente bom. Estás a
sair-te muito bem comigo e eu ajudo-te a arranjar algumas das coisas que desejas ardentemente. Mas já
tenho problemas que bastem com este padre e não te
admito que armes em engraçadinho só para mostrares
a tua esperteza. Se não estás disposto a portar-te como
deve ser, mais vale fazeres as malas e eu mando Pietro
levar-te a Valenta para apanhares o próximo comboio
para Roma! Espero que tenhas percebido.
O pintor teve vontade de Lhe gritar, de esbofeteá-la
e chamar-lhe todos os nomes feios de que se lembrava;
mas, como sempre, teve medo. Portanto, agarrou-lhe
na mão e beijou-a, dizendo com a sua voz de menino arrependido:
- Estou sempre a fazer disparates, não é, cara?
Desculpa. Não sei o que me dá. Portar-me-ei bem.
Prometo! Por favor, por favor, perdoa-me.
Anne Louise de Sanctis sorriu. Levara a sua avante.
Saboreara, mais uma vez, o sabor amargo da flagelação que Lhe infligira e podia permitir-se ser generosa.
Despenteou-lhe o cabelo fino e deu-lhe uma palmadinha na face, dizendo-lhe:
- Está bem, querido. Desta vez fica esquecido.
Mas de futuro porta-te como um menino bonito.
Depois fê-lo dar-lhe o braço e passeá-la pelo jardim,
tagarelando sobre os últimos escândalos ocorridos em Roma. Mas, apesar de toda a sua sagacidade, a condessa nunca chegou a perceber até que ponto ele a odiava.
Sozinho no quarto, esplêndido, com as persianas
corridas contra o calor do meio-dia, Blaise Meredith
lavou-se, mudou de roupa e estendeu-se no enorme
leito de nogueira.
Mais uma vez, assim parecia, tinha razões para se
sentir grato. As suas acomodações eram confortáveis
a sua anfitriã era encantadora, os criados eram solícitos. Fosse qual fosse a imundície da aldeia, sempre poderia regressar ali e esquecê-la. Fossem quais fossem
os problemas, poderia contar com a boa vontade da
condessa para o ajudar a resolvê-los. Quando estivesse
doente, não ficaria sozinho e, perante um pessoal tão
numeroso, não representaria um fardo excessivo.
Lembrou-se de que deveria escrever ao bispo a contar-lhe a satisfação experimentada pelas providências
por ele tomadas. Depois, descontraído e repousado, pensaria no seu trabalho e na maneira como o levaria à prática.
Primeiro, uma conversa com a condessa, pensou:
uma análise da aldeia e dos seus habitantes, a indicação das fontes de informação mais prováveis no que se
referia a Giacomo Nerone. Ela devia saber bastante.
Devia dispor de uma autoridade considerável. A sua
posição de castelã feudal colocava-a certamente numa
relação de in loco parentis com os camponeses, e uma
palavra sua faria desatar muitas línguas.
Depois visitaria o padre local para Lhe apresentar as
suas credenciais e solicitar-lhe uma cooperação oficial.
Apesar da reputação do pastor, este ainda tinha responsabilidades canónicas na questão. Também vivera,
ao que parecia, uma longa relação litigiosa com Nerone. Nesse ponto havia um problema, evidentemente. Se ele tivesse sido, mesmo que durante pouco tempo, confessor
de Nerone, não podia ser chamado a prestar declarações. Mesmo que o seu penitente o
tivesse libertado do segredo da confissão, o seu depoimento não poderia ser admitido no tribunal. Tratava-se de uma medida de precaução inteligente da lei; mas também
era uma possibilidade de fuga útil a um homem que tivesse algo a esconder. Ele poderia simplesmente recusar-se a indicar sequer as fontes de informação, e os juristas
da lei canónica nada poderiam fazer contra a sua discrição. Tudo indicava que o
padre Anselmo iria ser um problema para o advogado do Diabo.
Quem se seguiria? Talvez o médico, Aldo Meyer, que
era judeu e um liberal frustrado. Também ali haveria
problemas. Devia estar a par de muitos pormenores.
O seu testemunho seria aceite, já que mesmo os infiéis
e os heréticos podiam prestar declarações a favor ou
contra a causa. Mas não poderia ser obrigado a fazê-lo, como aconteceria se se tratasse de um católico, sob a ameaça de sanções morais. Só se podia confiar
na sua boa vontade. No entanto, o Dr. Aldo Meyer
deveria, no mínimo, ser considerado como testemunha incerta.
Depois havia Nina Sanduzzi, que fora a amante de
Giacomo Nerone e Lhe gerara um filho. Segundo os registos de Battista e Saltarello, ela recusara-se a prestar
qualquer depoimento. Parecia improvável que um padre estrangeiro qualquer pudesse alcançar maior sucesso junto dela. Mas, mesmo que tal acontecesse, o interrogatório
prometia ser o mais detestável de todos.
Desencadearia uma sondagem confessional até às intimidades mais profundas da relação havida: as confidências mútuas, as atitudes morais, as razões que tinham levado
à separação de ambos, até mesmo a natureza das suas relações sexuais. E tudo isto entre um padre que só falava italiano de Roma e uma mulher cuja língua era o dialecto
bastardo da Calábria, com os
seus poliglotos de grego, fenício, árabe levantino e
francês angevino...
Blaise Meredith ainda se encontrava às voltas com o
problema quando um criado entrou para anunciar que
o almoço estava servido e que a condessa o aguardava
no andar de baixo.
O almoço começou bem: uma conversa agradável
entre pessoas de bom gosto e educação, que um acaso
bizarro reunira numa terra estranha. A condessa orientou os temas cuidadosamente. Nicholas Black parecia
apreciar o seu papel de cosmopolita polido, e Blaise
Meredith, a quem o repouso descontraíra, falava com
raro encanto e um conhecimento considerável de livros, de música e da política da Europa e da Igreja.
Quando chegaram ao queijo e à fruta, a condessa
começara de novo a sentir-se à vontade. Ali estava um
homem que ela era capaz de compreender. Conhecera
muitos como ele, nos velhos tempos de Londres e Roma. Era bem-educado, discreto e, o que ainda era
mais importante, entendia as alusões e as nuances do
idioma inglês. Com um bocado de jeito, ainda o levaria a apoiar-se nela para interpretar as rudezas provincianas. Desde que Nicki continuasse a comportar-se, não
haveria qualquer problema. Sentia-se suficientemente confiante para dirigir a primeira pergunta indagadora a Meredith.
- Peço-lhe que perdoe a minha ignorância, monsenhor; mas como é que habitualmente começa a trabalhar num caso como este?
Meredith esboçou um pequeno gesto melancólico.
- Receio bem que não haja quaisquer regras.
É uma questão de falar com o máximo de pessoas possível e depois coligir e comparar as informações. Posteriormente, depois de reunido o tribunal do bispo, pode-se
interrogar e examinar detalhadamente os dados obtidos sob juramento, e em segredo, como é evidente.
- E onde é que está a pensar começar agora?
- Estava a contar com a sua ajuda inicial. A condessa vive aqui há muito tempo. É a padrona. O conhecimento que tem das condições locais será uma esplêndida preparação
para mim.
Nicholas Black dirigiu um olhar rápido e irónico à
condessa, mas ela sorria calmamente.
- Tenho muito prazer em fazer o que puder, claro,
mas acho que, se se apoiar em mim, corre um risco.
Sou a padrona, como diz, mas também sou inglesa.
A minha vida situa-se noutro nível. Penso de maneira
diferente dessa gente. A minha interpretação poderá
estar completamente errada. Mas desejo ajudar, em
deferência para consigo e para com o bispo. Ele é um
velho amigo meu, como sabe.
- Com certeza - disse Meredith, abanando afirmativamente a cabeça e sem insistir.
A condessa prosseguiu:
- Depois de Sua Eminência me escrever, achei que
a medida mais útil a tomar seria pô-lo em contacto
com o médico e o padre da paróquia. Ambos sabem
muito mais da aldeia do que eu. Convidei-os para virem cá jantar esta noite. Nessa altura poderemos todos
trocar os nossos pontos de vista. Assim ficarei mais
descansada em como o monsenhor recebe uma opinião
equilibrada. Nicki concorda comigo, não é verdade?
- Claro que sim, cara. Estamos numa terra estranha. Muito diferente de Roma. Tenho a certeza de
que a tua ideia está correcta. Não acha, monsenhor?
- Os peritos são os senhores - disse Meredith, em
tom de desculpa. - Fico muito agradecido pelo incómodo que estão a ter por minha causa.
A condessa levantou-se.
- Normalmente não tomo café ao almoço. Cheguei
à conclusão de que me estraga a sesta. Pietro servirá o
vosso no terraço e, depois disso, Nicki poderá mostrar-Lhe os jardins. Dá-me licença, monsenhor? Compreende, o sono de beleza de uma mulher...
Os dois homens levantaram-se, enquanto a condessa
se afastava da mesa, e, depois de esta se retirar, Nicholas Black mostrou o caminho até ao terraço, onde o serviço de café fora colocado à sombra de um toldo
às riscas. O pintor ofereceu a Meredith um dos cigarros da sua cigarreira de ouro esguia.
- Fuma?
- Não, obrigado. É um luxo de que tive de me abster desde que fiquei doente.
- A condessa disse-me que tem estado com grandes
problemas de saúde.
- Muito grandes - disse Meredith secamente.
Sentia-se confortável e à vontade e não queria que
Lhe recordassem a morte.
O criado veio servir o café e Black fumou alguns
momentos em silêncio, reflectindo na sua jogada seguinte. Apesar de todo o seu encanto, aquele sujeito
era perspicaz e inteligente. Com ele, algum erro que se
cometesse poderia ser irreparável. Pouco depois disse
em tom casual:
- Enquanto aqui estiver, monsenhor, espero que
me deixe pintá-lo. Tem um rosto interessante e umas
mãos expressivas.
Meredith encolheu os ombros com ar de quem não
gostava da ideia.
- Deve dispor de uma vintena de temas mais sugestivos do que eu, Mr. Black.
- Digamos que o monsenhor representa um contraste - disse o pintor, com um sorriso. - O mundano de Roma no meio dos provincianos. Além disso, estou a contar fazer
um registo pictórico de todo o processo de Giacomo Nerone. Poderá ser uma base estupenda para o lançamento de um artista. Pensei em
dar-lhe o nome de Beatificação.
- Poderá nunca chegar a uma beatificação - disse
Meredith cautelosamente. - Mesmo que aconteça,
pode levar anos.
- Isso pouco importa do ponto de vista do artista.
O que conta são as figuras, e temos aqui uma fantástica galeria delas. Estou cheio de curiosidade do que irá
achar delas, monsenhor.
- Eu também - retorquiu-lhe Meredith, com toda a franqueza.
- O que mais me interessa, evidentemente, é o
romance. De facto não sou capaz de compreender
como é possível beatificar um homem que seduz uma
rapariga da aldeia, Lhe dá um filho bastardo e depois
a abandona. Esteve cá tempo suficiente para casar com ela.
Meredith anuiu pensativamente.
- O facto levanta obstáculos, evidentemente, problemas de facto e motivo. Temos o exemplo clássico
de Agostinho de Hipona1, que viveu com muitas mulheres e teve, ele próprio, um filho ilegítimo. Não
obstante, acabou por se tornar um grande servo de Deus.
- Depois de uma vida muito mais longa do que a de Nerone.
- Também é verdade. Admitirei sinceramente
que as circunstâncias são intrigantes. Tenho esperança
de descobrir toda a história enquanto aqui estiver.
Mas, em termos estritamente teológicos, não se pode
ignorar a possibilidade de uma conversão súbita e miraculosa.
- Para quem acredita em milagres, evidentemente -
disse o pintor secamente.
- Quem acredita em Deus acredita necessariamente em milagres.
- Eu não acredito em Deus - declarou Nicholas Black.
- Sem Ele, é um mundo sem sentido - disse Blaise Meredith. - E com Ele já é suficientemente duro.
Mas... não é com palavras que se leva um homem à fé.
Portanto, respeitemos as opiniões um do outro, está bem?
Mas o pintor não concordava em ser arrumado com
tanta facilidade. Sentia-se demasiado ansioso para ver o tipo de homem que se ocultava debaixo da sotaina
preta. Insistiu no argumento.
- Gostaria de acreditar. Mas há tantos rituais sem
sentido. Tantos mistérios.
- Há sempre mistérios, meu caro. Se não os houvesse, não seria necessário ter fé.
- Mas o monsenhor não vai investigar o caso de
Giacomo Nerone em termos de fé - disse Black severamente. - Vai fazê-lo legalmente.
- É uma questão de facto, e não de fé - disse Meredith.
O pintor riu com vontade.
- Mas, ainda assim, encontrará muitos mistérios,
monsenhor. Mais do que aqueles com que conta. E o
maior de todos é o porquê de ninguém desejar falar do
homem em Gemello Minore... nem mesmo a condessa.
- Então ela também o conheceu? - inquiriu Meredith, com um novo interesse a transparecer-lhe na voz.
- Claro que conheceu. Anda a ver se o filho dele
vem para aqui trabalhar para ela. Esteve por aqui durante o tempo de vida dele. Estava cá quando ele morreu. Todos os outros também. Ninguém sofre de amnésia. Mas
isso não impede que não abram a boca por nada deste mundo. Verá, no jantar desta noite.
- E qual é o interesse que o senhor tem no caso?
Notava-se uma ligeira irritação na pergunta.
- Uma comédia de aldeia - redarguiu Black brandamente. - E um artista a tirar proveito dela. É realmente muito simples. De qualquer maneira, o senhor
é que tem a ver com o caso. Eu não. Estou apenas a
dar-lhe um palpite amigável... Se terminou o seu café mostro-lhe o jardim.
- Ficarei aqui sentado, se não se importa. Depois
talvez durma a sesta.
- Como quiser. Sou pintor. Não gosto de desperdiçar luz. Encontramo-nos ao jantar, monsenhor.
Meredith ficou sentado a vê-lo afastar-se, uma figura
alta, esguia, que atravessou o relvado e desapareceu no meio do maciço de arbustos. Já não era a primeira
vez que encontrava homens como aquele, conhecera
mesmo uns quantos, até dentro da ordem. Gostaria de
saber qual seria a fonte do rancor que o pintor nutria
em relação à condessa e por que razão ela continuava
a proporcionar-lhe hospedagem. Gostaria também de
saber porque iludira o pedido de ajuda que ele próprio
Lhe dirigira com a promessa de um jantar com as personalidades do lugarejo.
Sentado na sua cozinha, o Dr. Aldo Meyer observava Nina Sanduzzi a escovar-lhe os sapatos, a passar-lhe
a camisa a ferro e a limpar com uma escova as lapelas
do último fato respeitável que Lhe restava. Também ele
estava preocupado com o jantar da condessa. Depois
da cena da noite anterior, sentira-se tentado a faltar
pura e simplesmente, mas, quanto mais reflectia sobre
o assunto, mais certo ficava de que devia ir. Era como
se estivesse em jogo uma batalha e ele não pudesse
permitir-se ceder uma única vantagem à condessa e ao
seu cavaleiro misterioso, Nicholas Black.
A verdadeira dificuldade estava em ele não saber
claramente contra o que lutava - a não ser que se tratasse dos interesses de Nina e Paolo Sanduzzi. Mas
também aquele objectivo era demasiado limitado para
explicar a ansiedade com que aguardava o encontro
com o padre inglês e o seu envolvimento total na questão de Giacomo Nerone.
Ele procurava a chave do mistério do seu próprio
fracasso e um sinal na vastidão erma que era o seu
futuro. Tinha a impressão curiosa de que Blaise Meredith poderia satisfazer-lhe ambas as necessidades.
Parte da sua resposta encontrava-se nos papéis de
Giacomo Nerone, que continuavam na gaveta da sua
secretária e que, até ali, ainda não tivera coragem de abrir.
Pegara neles várias vezes, mexendo no papel que os
envolvia, mas em todas elas recuara, receoso do sofrimento e da vergonha que poderiam conter para a sua
pessoa. Eram como as cartas de um amante rejeitado,
as quais, depois de abertas, Lhe fariam recordar tempos em que descera abaixo da condição humana. Mais
cedo ou mais tarde teria de encarar a revelação: mas
naquele momento não, ainda não.
Nina Sanduzzi desviou os olhos da operação de passar a ferro e, fitando-o, disse calmamente:
- Tenho andado a pensar sobre Paolo. Cheguei à
conclusão de que, afinal de contas, ele deve ir trabaLhar para a condessa.
Meyer fitou-a de boca aberta.
- Santo Deus, mulher! Porquê?
- Primeiro, porque Rosetta estará lá, e eu acho
que ela é boa para ele. Está quase uma mulher e lutará por aquilo que quer. Também me poderá contar o
que se passa na villa. Mal ela começar a trabalhar.
Paolo não terá mais nada que fazer além de andar por
aí a vadiar pelas colinas, e o pintor arranjará maneira
de Lhe deitar a mão.
- A condessa também estará lá - preveniu-a Meyer
gravemente. - E ela também é mulher, mais velha e
esperta do que Rosetta.
- Pensei nisso - admitiu Nina calmamente. - Mas
também pensei que têm um padre lá em casa. Virá
ver-me, tal como os outros fizeram, e eu contar-lhe-ei
o que por lá se passa. Pedir-lhe-ei que zele por Paolo.
- Poderá não acreditar em ti.
- Se eu Lhe contar todas as outras coisas acerca de
Giacomo, penso que acreditará em mim.
Meyer fitou-a com olhar intrigado, perdido nos seus pensamentos.
- Ontem estavas decidida a nada dizer-lhe. Que foi
que te levou a mudar de ideias? E a promessa que fizeste a Giacomo?
- O rapaz é mais importante do que uma promessa.
E, além disso... - sentia-se-lhe uma estranha convicção
na voz - a noite passada rezei, como é meu costume, a Giacomo. Não o vejo, não o ouço, tenho apenas a camisa que
ele usava quando foi morto com os buracos das balas na zona
do coração. Mas sei o que ele quer, e é isso que farei.
- Nunca pensei que as pessoas mudassem de ideias depois
de morrerem - observou Meyer, com um bom humor
melancólico; porém, o rosto tranquilo de Nina não Lhe retribuiu nenhum sorriso. Ela limitou-se a dizer:
- Não se trata de mudar de ideias. Acontecia apenas que a altura não era a indicada, e agora é. O padre virá ter comigo, quando estiver preparado. Nessa ocasião
contar-lhe-ei.
Meyer encolheu os ombros e abriu os braços num gesto
vagamente desesperado.
- Diga eu o que disser, tu vais fazer como muito bem
entendes. Mas, antes de mandares o rapaz para a villa, diz-lhe
que venha falar comigo.
- Está bem. Já leu os papéis de Giacomo Nerone?
- Ainda não.
- Não devia ter receio - disse-lhe Nina, com singular
delicadeza. - Ele não o odiava, nem mesmo no fim. Porque
haveria de Lhe causar vergonha agora?
- Sou eu que tenho vergonha de mim próprio - disse Aldo
Meyer, em tom conciso.
Depois saiu para o jardim, onde as cigarras cantavam no
calor da tarde e a poeira se pegava às folhas verdes da figueira.

CAPÍTULO IX

Quando, nessa noite, Meredith desceu para jantar,
encontrou a condessa e os seus convidados já reunidos, a tomarem bebidas no salão.
O contraste entre elas era flagrante. A condessa
arranJara-se como se fosse passar uma noite em Roma,
e Nicholas Black apresentava-se impecável num smoking preto. Meyer envergava um fato normal, de ar gasto, muitas vezes limpo e lustroso de tanto uso. A camisa estava
limpa e passada de fresco, mas o colarinho e os punhos começavam a esfiapar, a gravata estava desbotada e era antiquada. No entanto, comportava-se com dignidade
e o rosto cansado e inteligente mostrava-se calmo. Meredith sentiu-se imediatamente atraído
para ele e o cumprimento que Lhe dirigiu foi menos reservado do que era costume.
- Fico satisfeito por conhecer o meu médico assistente. Ficarei em boas mãos.
- Mais vale reservar o seu julgamento, monsenhor - disse Meyer, com um bom humor desprendido. - Tenho má fama.
E a conversa ficou por ali, pois a condessa arrastara
o padre Anselmo do seu canto para o apresentar ao
seu colega de Roma.
Era um indivíduo baixo, bem marcado pelos seus
sessenta anos. Tinha o rosto sulcado e gasto como o
de um camponês e o cabelo fino, grisalho e comprido, a roçar-lhe o colarinho. Via-se-lhe caspa nos ombros
da sotaina e na parte da frente nódoas antigas de vinho e molho. Tinha as mãos cheias de artrite e enlaçava-as e desenlaçava-as continuamente, enquanto ia falando.
Quando saudou Meredith, o seu italiano tinha o
sotaque denso e áspero da província.
- Fico contente em vê-lo, monsenhor. É muito raro recebermos a visita de romanos por estas bandas.
Demasiado longe e desconfortável para eles, suponho
Meredith sorriu pouco à vontade e murmurou uma
observação banal, mas o velho era tagarela e não havia
quem o calasse.
- É o problema que temos nesta parte do mundo.
O Vaticano nem sequer sabe do que se passa. Têm
mais dinheiro do que aquele que podem contar, mas
nós nunca recebemos uma pitada dele. Lembro-me
que, quando estive em Roma...
Teria continuado a falar durante uma hora se a condessa não tivesse feito sinal a um criado que Lhe colocou
um copo de xerez nas mãos e o afastou suavemente de
junto do visitante. Meredith sentiu-se embaraçado. Os
padres senis sempre o tinham incomodado, mesmo em
contactos breves, mas a perspectiva de uma associação
mais prolongada com aquele parecia-lhe extremamente
assustadora. Depois lembrou-se de Aurelio, bispo de
Valenta, e dos cuidados manifestados para com aquele
elemento perdido do seu rebanho e envergonhou-se
imediatamente consigo próprio. Ignorando o criado
que afastava o padre, aproximou-se do velho e disse-lhe em tom amigável:
- Sua Reverendíssima envia-lhe cumprimentos e
espera que eu não represente demasiado incómodo para si. Mas receio ter de me apoiar bastante no seu julgamento.
O padre Anselmo bebeu um grande gole de xerez e fixou nele o olhar remelento. Abanou a cabeça e disse queixosamente:
- Sua Reverendíssima envia cumprimentos! Que
simpático! Sou uma mosca no seu ouvido e bem que
ele gostava de se livrar de mim. Mas não pode fazê-lo
sem levar o caso a tribunal. Assim é que são as coisas.
Mais vale que nos entendamos um ao outro.
à semelhança da maioria das pessoas educadas, Meredith não possuía defesas contra a grosseria dos outros. Era-lhe doloroso, mas faltava-lhe a brutalidade para administrar
uma resposta franca à altura. Disse com desenvoltura suficiente:
- Estou de visita, não me interessa a política local
Não vejo razão para que não nos entendamos.
Depois afastou-se e foi falar de trivialidades com
Anne Louise de Sanctis.
Aldo Meyer reparara imediatamente na breve e brusca troca de palavras e considerara-as como um ponto a
favor de Blaise Meredith. O homem tinha boa educação e era discreto. Havia esperança de que, mais tarde, também pudesse revelar um coração.
Nicholas Black também reparara e sorrira manhosamente para a condessa, cujas sobrancelhas erguidas
Lhe responderam com maior clareza do que palavras:
"Isto vai como planeei, complicado e animado." E, como o seu interesse era comum ao dela naquele momento, estava preparado para colaborar e esquecer o ódio que Lhe
tinha. Enquanto Meredith falava com a sua anfitriã e o padre Anselmo se mantinha um pouco afastado, com um olho no xerez e um ouvido na conversa, chamou Meyer à
parte e disse-lhe, sorrindo:
- Então, dottore mio, que acha do nosso advogado do Diabo?
- Tenho pena dele. Traz o estigma da morte. Já deve estar a sofrer bastante.
O pintor estremeceu involuntariamente, como se Lhe
tivessem lançado um mau-olhado. Respondeu melancolicamente:
- Não tenhamos a morte à mesa de jantar, meu caro. Estava a pensar noutra coisa. Como é que acha
que ele funcionará? Agradavelmente ou...?
Deixou a pergunta no ar, um acorde de ironia em
suspenso, que Meyer não se esforçou por completar.
- Porque haveríamos de nos importar, o senhor e eu?
- Ora francamente - exclamou Nicholas Black
acerbamente, desistindo de aprofundar o assunto.
Meyer beberricou o seu xerez e observou o rosto de
Meredith, enquanto ele conversava com a condessa e o
padre Anselmo. Reparou na magreza que o marcava,
na transparência doentia da pele, nas rugas de dor profundamente escavadas em redor da boca, nos olhos injectados e fatigados que dormiam muito pouco e tinham visto
demasiado sofrimento. Os homens reagiam de maneira variada à dor e ao medo. Aquele parecia suportar ambos com coragem, mas era demasiado cedo para ver que mais Lhe
estaria reservado.
Momentos mais tarde, o jantar foi anunciado e todos se dirigiram para a sala de jantar. A condessa sentou-se à cabeceira da mesa, com Meredith à sua direita, Meyer
à esquerda e Nicholas Black e o padre
Anselmo nos lugares mais afastados. Antes de se sentarem, voltou-se para Meredith.
- Importa-se de dizer a oração, monsenhor?
De pé, de cabeça baixa durante a breve oração em
latim, o pintor riu de si para si. Que actriz que aquela
mulher era! Nem um só pormenor esquecido! Estava
tão absorto na sua troça que, sem querer, fez o sinal
da Cruz depois da oração, passando cinco desconfortáveis minutos na dúvida, sem saber se Meredith teria
reparado no gesto. Sendo um ateu confirmado, o padre deixá-lo-ia à mercê de Deus; mas, se o imaginasse
um católico em crise de fé, viria à procura da sua alma, o que poderia complicar-lhe os planos que tinha
em relação a Paolo Sanduzzi.
Como obedecendo a um sinal, a condessa repetiu o
nome em que ele pensara a Aldo Meyer.
- Que me conta do jovem Paolo, doutor? Sempre
vem trabalhar para mim?
- Penso que sim - retorquiu Meyer cautelosamente. - A mãe virá provavelmente falar consigo amanhã.
- Ainda bem. - Inclinou-se para Meredith a explicar. - Este assunto talvez Lhe interesse, monsenhor.
O jovem Paolo Sanduzzi não é outro, evidentemente
senão o filho de Giacomo Nerone. Foi baptizado com
o apelido da mãe. É bastante arisco, mas nós, isto é,
o Dr. Meyer e eu, pensámos que Lhe faria bem trabalhar. Oferecemos-lhe um emprego como ajudante de jardineiro.
- Parece uma ideia bondosa - disse Meredith, em
tom indiferente. - A mãe vive de quê?
- Trabalha para mim - informou-o Meyer.
- Ah.
- Era uma bela mulher - comentou o padre Anselmo, com a boca cheia de peixe. - Agora engrossou
um bocado, claro. Lembro-me dela quando fez a primeira comunhão. Linda criança!
Engoliu o peixe com uma golada de vinho e limpou
os lábios ao guardanapo amarrotado. Depois, ao ver
que ninguém Lhe ligava nenhuma, voltou a inclinar-se
para o seu prato. Meredith voltou-se para Meyer.
- Conheceu Giacomo Nerone, não é verdade,
doutor?
- Sim, conheci-o - respondeu Meyer, com franqueza e à vontade. - Fui a primeira pessoa a vê-lo depois de Nina Sanduzzi. Ela chamou-me para Lhe extrair uma bala
do ombro.
- Ela devia confiar em si, doutor - comentou Nicholas Black suavemente.
Meyer fez de conta que não reparou na ironia.
- Não havia razão para não o fazer. Eu era um exilado político. Sabia-se que as minhas simpatias não
iam a favor do Governo.
O pintor sorriu e esperou pela pergunta seguinte.
O rosto ensombrou-se-lhe de desapontamento ao ouvir
Meredith dizer simplesmente:
- Provavelmente tem conhecimento, doutor, de
que mesmo os não católicos podem prestar declarações
num caso de beatificação, desde que estejam dispostos a tal. Gostaria de falar consigo acerca do assunto,
quando Lhe der mais jeito.
- Quando quiser, monsenhor.
E pensou, grato: "Ele é muito superior ao que eu
imaginava. Não o levarão à certa com demasiada facilidade. "
Anne Louise de Sanctis interrompeu rapidamente o
breve silêncio que se seguiu.
- O padre Anselmo também poderá ajudá-lo bastante, monsenhor. Tem tido uma convivência muito
chegada com toda a nossa gente. Também conheceu
Nerone, não é verdade, padre?
Anselmo pousou ruidosamente o garfo e bebeu nova
golada de vinho. A voz começara a empastelar-se-lhe
perceptivelmente e o sotaque estava mais acentuado
do que nunca.
- Nunca tive grande opinião acerca do homem. Interferia demasiado. Qualquer pessoa seria levada a
pensar que era mesmo padre. Costumava vir bater-me
à porta, mal alguém tinha uma dor de barriga. Queria
que fosse a correr com os sacramentos. Certa noite,
quase fez que os alemães disparassem sobre mim. Depois disso não voltei a sair depois do recolher.
- Já me esquecia - disse Meredith, com à vontade. - Tiveram os alemães aqui, evidentemente. Deve
ter sido uma provação.
- Tomaram conta da villa - disse a condessa rapidamente. - Colocaram-me em regime de residência
vigiada durante a maior parte do tempo. Foi terrível.
Nunca tive tanto medo em toda a minha vida.
Nicholas Black passou o guardanapo pelos lábios finos e sorriu disfarçadamente. Imaginava-a a percorrer
os campos na companhia dos conquistadores, exibindo
as suas vaidades de braço dado com algum capitão louro deitando-se com ele no enorme leito barroco rodeado de cortinados de veludo, enquanto o povinho
passava fome do lado de lá dos portões de ferro e do
muro de pedra.
Regime de residência fixa? Deveria haver nomes
que melhor descrevessem a situação. Um pouco de paciência e ficaria a par de toda a história de Anne Louise de Sanctis.
Blaise Meredith não deu mostras de perceber a ironia e continuou:.
- Os primeiros dados pareceram indicar que Giacomo Nerone actuou como uma espécie de mediador entre os camponeses e as tropas ocupantes. Qual é a sua
opinião, condessa?
- Penso que provavelmente é um exagero. Grande
parte da mediação, senão toda, era feita por mim mesma. Quando as relações na aldeia se tornavam tensas, os criados informavam-me e eu falava com o comandante...
Numa base perfeitamente oficial, evidentemente. Normalmente mostrava-se cooperante. Creio que talvez Nerone tenha exagerado a sua influência para aumentar o seu
prestígio junto do povo.
Nessa altura, os criados começaram a movimentar-se
em redor da mesa, recolhendo os pratos e preparando
tudo para o que se seguia. Meredith parecia não ter
pressa em aprofundar a questão. Nicholas Black aproveitou a acalmia para apresentar a sua própria indagação, a que emprestou um carácter mordaz:
- Já alguém determinou a verdadeira identidade
desse homem e o sítio donde veio?
Anne Louise de Sanctis estava atarefada a dar indicações ao criado que servia à mesa. Meyer manteve-se
zombeteiramente silencioso. O padre Anselmo estava
entretido com mais um copo de vinho, e, após uma pequena pausa de indecisão, foi Meredith quem Lhe respondeu:
- Nunca foi determinado com clareza. A princípio
acreditava-se que era italiano. Mais tarde, parece, pensou-se que talvez fosse membro das unidades de Aliados que combatiam no Sul: inglês, talvez, ou canadiano.
- Interessante - comentou o pintor secamente. -
No palco de operações italiano havia uns quantos milhares de desertores.
- Também é uma possibilidade - disse Meredith. - Trata-se de algo que conto descobrir mais definitivamente.
- Se fosse um desertor, não poderia ser um santo,
pois não?
- Porque não? - perguntou Meredith, com interesse súbito.
O pintor abriu as mãos num gesto de humildade
zombeteira.
- Não sou nenhum teólogo, evidentemente; mas
todos os soldados prestam um juramento. Quebrar semelhante elo seria um pecado, não seria? E um desertor viveria em estado de pecado permanente.
- Para pessoa que não é crente, o senhor possui
uma lógica muito cristã - observou Meredith, com serenidade e bom humor.
Uma pequena risada percorreu toda a mesa e o pintor corou atrapalhado.
- Parece uma hipótese lógica.
- Perfeitamente lógica - disse Meredith. - Mas
talvez existam outros factos. Um homem não pode ligar-se por Juramento para cometer um pecado. Se se
torna necessário que o cometa quando está sob juramento de serviço, é obrigado a recusá-lo.
- Como é que determina o facto, monsenhor? E o motivo?
- Temos de nos basear no testemunho jurado daqueles que o conheceram intimamente. Depois, o tribunal examinará o valor do testemunho. - Sorriu afavelmente. - É
uma tarefa de longa duração.
- O problema que vocês, romanos, têm - disse o
padre Anselmo de repente - é não compreenderem
as coisas mais simples que existem, mesmo que Lhas espetem debaixo do nariz...
A voz saía-lhe tão empastelada e incerta que os convidados se entreolharam profundamente incomodados,
fitando em seguida a condessa, que se sentava, rigidamente, à cabeceira da mesa. O velho continuou atabalhoadamente.
- Toda a gente fala como se não soubesse de nada.
Todos nós sabíamos quem ele era. Eu sabia. O doutor
sabia. A...
- Está embriagado - interrompeu a condessa,
com voz alta e irritada. - Peço desculpa por esta exibição, monsenhor, mas ele devia voltar imediatamente para casa.
- Está velho - observou Meyer calmamente. -
Tem o fígado muito gasto e fica arrumado com muito
pouco. Eu levo-o a casa.
O velho olhava apaticamente à sua volta, esforçando-se por encontrar o fio à meada dos seus pensamentos. A cabeça grisalha cabeceava-lhe e dos lábios descaídos escorreu-lhe
um pequeno fio de vinho.
- Pietro pode ir consigo - ofereceu a condessa,
em tom seco.
- Irei eu - disse Nicholas Black.
Meredith empurrou a cadeira para trás e levantou-se. Notava-se uma nova entoação na voz impassível e
precisa.
- É um padre irmão. Eu o acompanharei a casa,
mais o doutor.
- Levem o meu carro - propôs Anne Louise de Sanctis.
- Andar far-lhe-á melhor - retorquiu-lhe Aldo
Meyer calmamente. - O ar pô-lo-á mais sóbrio. Não
é longe. Dê-me uma ajuda, monsenhor.
Juntos, tiraram o homem da cadeira e ajudaram-no
a passar pelos criados até chegarem à porta, por onde
saíram para o carreiro coberto de cascalho.
Nicholas Black e a condessa deixaram-se ficar à mesa, a olhar um para o outro. Pouco depois o pintor disse suavemente:
- Foi por pouco, cara, foi por muito pouco, não achas?
- Vai para o diabo! - exclamou a condessa, deixando-o sozinho a sorrir como um sátiro diante dos
restos do jantar oferecido pela dona da casa.
Enquanto seguiam pela estrada pedregosa abaixo,
em direcção à aldeia, com o padre Anselmo apoiado
nos ombros de ambos e os pés a trotarem atabalhoadamente ao ritmo das passadas, Meredith ficou surpreendido ao reparar-lhe na leveza. No salão e à mesa de
jantar parecera intumescido e gordo; naquele momento não passava de um velho frágil, de ventre rotundo e
cabeça oscilante e ensebada, que murmurava e se babava, segurando-se a eles como uma criança doente.
Meredith, que raras vezes se aproximara de uma pessoa embriagada e nunca vira um padre bêbedo, sentiu-se
inicialmente revoltado, para logo ficar tocado de uma
compaixão profunda. Aquilo era o que acontecia a alguns homens quando o terror da vida os dominava.
Aquilo era o que acontecia quando os anos enfraqueciam as faculdades e a decadência se infiltrava por entre os tecidos e a vontade cedia sob o fardo do tempo
e da memória. Quem poderia amar aquele farrapo humano? Quem é que agora se importaria de que ele vivesse ou morresse e que a sua alma fosse condenada
para toda a eternidade - se é que realmente restava
alguma alma depois do longo desgaste dos anos?
Meyer importava-se - pelo menos o suficiente para o
livrar rapidamente de mais indignidades, para o desculpar dignamente, para Lhe oferecer um ombro e levá-lo
para casa pelos seus próprios pés. Meyer importava-se: o
semita pobre e de reputação duvidosa que compreendia
o que acontece quando o fígado de um homem fica sobrecarregado, a próstata Lhe falha e ele não consegue
pegar na colher como deve ser, porque a artrite Lhe tolhe as articulações. E Blaise Meredith? Seria que também ele se importava? Ou andava tão preocupado com
as suas próprias dores de barriga que não conseguia
ver que havia maneiras mais miseraveis de morrer e
tormentos mais penosos do que o seu?
Ainda ruminava estes pensamentos desagradáveis
quando chegaram à porta da casa do padre. Tiraram-no dos ombros e apoiaram-no contra a parede, enquanto Meyer batia ruidosamente à porta da frente.
Pouco depois ouviram o ruído arrastado de passos no
interior e a seguir apareceu uma mulher velha e gorda
envergando uma camisa de dormir preta e disforme e
um barrete de dormir imundo e à banda, no cabelo
emaranhado. Examinou-os ensonadamente.
- Então? Que se passa? Já não se pode dormir sossegada? Se querem um padre, ele não está cá, foi
- Está embriagado - disse Meyer delicadamente.
- Trouxemo-lo a casa. É melhor levá-lo para a cama,
Rosa. !
A mulher encarou-o irada.
- Eu já sabia que ia acontecer. Avisei-o. Porque
não o deixam em paz? Ele não foi feito para tomar copos com gente fina. Não passa de um velho e de um
bebé grande que não sabe tomar conta de si mesmo. - Pegou na mão de Anselmo e tentou levá-lo para dentro de casa. - Anda, maluco. A Rosa leva-te para a cama
e toma conta de ti
Mas o velho vacilou e tropeçou e teria caído se Meyer
não o segurasse. Este limitou-se a dizer a Meredith:
- Dê uma ajuda, monsenhor. É melhor levá-lo para
a cama. A mulher tem quase a idade dele.
Pegaram-lhe pelos ombros e pelos pés e carregaram-no para dentro de casa, subindo pelas escadas pouco
seguras, com Rosa Benzoni à frente a iluminar o caminho com uma vela de sebo. A casa cheirava a mofo e a
bolor como uma toca de rato e, ao entrarem no quarto, Meredith viu que este tinha uma enorme cama de
casal, coberta de mantas sebentas, e que um dos lados
já fora utilizado. Levaram o velho para cima dela e
deitaram-no. Meyer começou a desapertar-lhe o colarinho e os sapatos.
A velha afastou-o, barafustando.
- Deixe-o! Por amor de Deus, deixe-o! Já causaram estragos suficientes para uma noite. Eu posso tomar conta dele. Já o faço há muito tempo.
Depois de um momento de hesitação, Meyer encolheu os ombros e saiu do quarto. Meredith foi atrás
dele, tacteando o caminho e descendo as escadas, que
estalaram sob o peso; atravessou a atmosfera sufocante
e saiu para a frescura deliciosa da noite de luar.
Meyer meteu um cigarro entre os lábios finos, acendeu-o e inalou profundamente. Depois concedeu a
Meredith um olhar demorado e especulativo, inquirindo friamente:
- Está chocado, monsenhor?
- Tenho pena dele - respondeu Meredith, em voz
baixa. - Muita pena.
Meyer encolheu os ombros.
- Metade da culpa cabe à Igreja, meu amigo. Enviam um pobre diabo como Anselmo para um lugar
como este, sem uma educação completa, um salário ou
qualquer espécie de segurança, e esperam que ele respeite o celibato durante quarenta anos. Não passa de
um camponês e nem sequer muito inteligente. Teve
uma sorte dos diabos em encontrar uma mulher como
Rosa Benzoni para o estimular e manter-lhe as meias limpas.
- Eu sei - observou Meredith, com ar ausente. -
Foi o que mais me comoveu. Ela foi como uma esposa
para ele. Ela... ela ama-o.
- O facto surpreende-o, monsenhor?
- Envergonha-me... - Sacudiu a cabeça como para
afastar um pesadelo obcecante. - Gastei toda a minha
vida no sacerdócio... Creio que foi um desperdício.
- Então aconteceu a nós os dois - disse Aldo
Meyer brandamente. - Venha até minha casa, ofereço-lhe uma chávena de café.
Na sala térrea e fracamente iluminada da casa de
Meyer, com a sua mobília camponesa e as suas fileiras
de utensílios de cobre polidos pelas mãos cuidadosas
de Nina Sanduzzi, Meredith sentiu a mesma descontracção e intimidade que experimentara em casa do
bispo Aurelio. Sentiu-se grato pelo facto, tal como Lhe acontecera na outra ocasião, mas daquela vez ambientou-se com maior rapidez e menor consciência. Sabia o
quanto necessitava de amizade e estava preparado para percorrer mais de metade do caminho para a encontrar. Enquanto Meyer se movimentava pela divisão a
preparar as chávenas, a medir o café e a cortar o pão
que restava para acompanhar o queijo, Meredith perguntou-lhe abertamente:
- Qual foi o significado do jantar desta noite? Tudo
parecia obedecer a um objectivo, mas eu não fui capaz
de descortinar qual.
- É uma longa história - replicou Meyer. - Colocá-la em ordem para que a compreendesse levaria um
certo tempo. O jantar foi ideia da condessa. Ela quis
mostrar-lhe o tipo de pessoas com que o monsenhor
irá lidar e como será muito melhor apoiar-se nela, e não
em pategos de província como Anselmo e eu.
- Pareceu-me que ela está com medo do que poderá ser dito.
- Também é verdade - concordou Meyer. - Todos temos tido medo, há algum tempo.
- De mim? - Meredith fitou-o, surpreso.
- De nós mesmos - disse Meyer, com um sorriso
maldoso. - Todos os que estiveram presentes esta
noite andaram envolvidos, de uma maneira ou outra,
na vida e morte de Giacomo Nerone. Nenhum de nós
saiu da questão muito honrosamente.
- O inglês também está abrangido, o pintor?
- Ele participou mais tarde. É um indivíduo bizarro, ganhou um fraquinho por Paolo Sanduzzi. Recorreu à ajuda da condessa para o seduzir.
Meredith mostrou-se chocado.
- Mas isso é monstruoso!
- É humano - replicou-lhe Meyer calmamente. -
Soa melhor quando se trata de uma rapariga, e não de
um rapaz. Mas a ideia é a mesma.
- Mas a condessa disse que o doutor tinha concordado com a ida do rapaz para a villa para lá trabalhar.
- Estava a mentir. É uma mentirosa cheia de subtilezas. O que torna complicado ajudá-la.
Trouxe a cafeteira do café para a mesa e deitou o
conteúdo fumegante nas chávenas de barro. Depois
sentou-se em frente de Meredith, que o fitou com os
olhos intrigados.
- O doutor está a ser muito franco, porquê?
- Aprendi algo muito tarde na vida - disse Meyer
firmemente. - Nunca se enterra a verdade tão fundo
que ela não possa vir a ser desenterrada. Temos tentado enterrar a verdade relativa a Giacomo Nerone e
agora ela empesta-nos o chão onde quer que pisemos.
Mais cedo ou mais tade ficará a par dela, e eu acho
que mais vale que a saiba agora. Depois pode voltar
para Roma e deixar-nos em paz.
- Quer dizer que o doutor também está preparado
para prestar testemunho?
- Exacto.
- E este é o único motivo que o move, a verdade?
Meyer pousou rapidamente os olhos nele e viu, pela
primeira vez, o inquisidor que vivia sob a pele de Blaise Meredith. Disse cautelosamente:
- O meu motivo tem alguma importância, monsenhor?
- Ajuda a compreender - retorquiu Meredith. -
Poderá obscurecer a verdade, o que é a verdade na alma de um homem.
Meyer acenou gravemente com a cabeça. Compreendia o ponto de vista. Respeitava o homem que o apresentava. Depois de uma pausa respondeu:
- Tanto quanto um homem pode ser honesto em
relação aos seus motivos, aqui vai o meu. Dei cabo da
minha vida. Não sei muito bem porquê. Também desempenhei um papel na morte de Giacomo Nerone. Foi um erro da minha parte. Mas não creio que errasse em relação às
outras suposições que fiz acerca dele. Quero contar tudo, ganhar um novo respeito por mim. Caso contrário acabarei como o velho Anselmo, com uma cirrose hepática,
por não ser capaz de enfrentar os
meus pesadelos... Foi por essa razão que tive receio de
si, tal como os outros. Se não fosse capaz de confiar
em si, seria incapaz de Lhe contar o sucedido.
Nos olhos de Meredith surgiu um brilho divertido.
Perguntou ironicamente:
- Que é que o leva a pensar que pode confiar em
mim, doutor?
- O facto de ter a faculdade de se envergonhar de
si mesmo - retorquiu Meyer arrojadamente. - O que
é deveras raro tanto dentro da Igreja como fora dela...
Agora beba o seu café para conversarmos um pouco
antes de eu o mandar para a cama!
Mas nessa noite não houve mais conversas com Meredith. A primeira golada de café engasgou-o; a dor que
sentiu no estômago foi de tal ordem que Meyer teve de
o ajudar a sair para o jardim a fim de vomitar a bílis e o
sangue que o sufocavam. Depois de passado o espasmo,
o médico deitou-o na sua própria cama e procedeu à
palpação do ventre ressequido, premindo a massa dura
e mortífera que crescia no seu interior.
- Os ataques como estes são frequentes, monsenhor?
- Cada vez mais - respondeu-lhe Meredith dolorosamente. - O pior são as noites.
- Quanto tempo Lhe deram?
- Doze meses, possivelmente menos.
- Reduza a metade! - disse-lhe Meyer, sem rodeios. - Volte a reduzir a metade e ficará mais perto da verdade.
- Assim tão cedo?
Meyer anuiu.
- Neste momento, o monsenhor devia estar no hospital.
- Quero movimentar-me sobre os meus pés o máximo de tempo que puder.
- Tentarei mantê-lo neles - disse Meyer, com
admiração irreprimível. - Mas, se estes ataques se repetem muitas vezes, será preciso um milagre!
- Era o que o bispo queria que eu pedisse: um
milagre.
Disse-o bem-humoradamente, para disfarçar o novo
acesso de dor que o acometia. Mas Meyer captou a
frase com interesse.
- Repita novamente!
- O bispo queria que eu pedisse um sinal, uma prova palpável da santidade de Giacomo Nerone. Algumas das curas referidas poderiam ser milagres, mas duvido de que
parte delas seja provada judicialmente... Portanto, eu poderia sê-lo.
- E o monsenhor? Que foi que respondeu?
- Não tive coragem de concordar.
- Prefere antes suportar a dor que neste momento
está a ter e as que ainda estão para vir?
Meredith anuiu.
- Tem assim tanto medo do seu Deus, meu amigo?
- Não estou bem certo do que tenho medo... É... é
como se me pedissem para saltar através de um arco
de papel do outro lado do qual está o negrume ou uma
revelação devastadora. A única maneira de descobrir é
saltar. E eu... não tenho coragem para o fazer. Parece-lhe estranho, doutor?
- Estranho, e nem tanto, porém - disse Meyer
pensativamente. - Estranho vindo de um homem como o monsenhor; mas, para mim, perfeitamente fácil de entender.
Pensava nos papéis de Giacomo Nerone, que ainda
continuavam por examinar na sua secretária, e pensava
no medo que o assaltava todas as vezes que tentava abri-los.
Mas Meredith não pediu explicações. Fechou os olhos
e recostou-se, pálido e exausto, na almofada. Meyer
deixou-o dormitar até à meia-noite e, depois de o
acordar, acompanhou-o até à villa e pediu ao porteiro
que o levasse até ao seu quarto.
à meia-noite, também Nicholas Black estava acordado. Sentado na cama, fumava um cigarro e contemplava
com profunda satisfação o quadro de Paolo Sanduzzi,
que colocara num cavalete em frente das cortinas corridas. Escolhera a posição com um certo cuidado, de maneira que a luz incidisse no ângulo correcto, e a figura
branca do rapaz parecia ressaltar de dentro da madeira escura da árvore em forma de cadafalso. Os lábios escarlates sorriam para o homem que os pintara e os olhos
contemplavam, brilhantes, o futuro velado e ilusório.
Narciso no seu lago não se veria mais belo do que
Nicholas Black na contemplação solitária da sua própria criação. No entanto, nem mesmo aquele prazer
podia atenuar nele a constatação da sua triste situação:
a de que aquela situação era o que de mais próximo
ele poderia almejar em relação ao que outros homens
possuíam por direito natural - filhos seus para amar,
acarinhar e acompanhar até à maturidade da idade
adulta. Seria que aquela perseguição, o pânico avassalador, o amargo sabor da derrota, nunca conheceriam um fim?
Um dia, alguém deveria aparecer para pôr fim àquela situação. Outros devassos tinham desposado as suas
virgens, das quais tinham tido filhos e as pantufas
aquecidas, arrependendo-se ao chegar ao seu Verão indiano. Breve, breve, ele teria de alcançar o seu próprio porto de abrigo, antes que o Inverno começasse a
soprar e as folhas mortas a estalar pelos carreiros do jardim.
Depois recordou-se da conversa do jantar e a esperança começou de novo a despertar nele. No dia seguinte, dissera Meyer, o rapaz viria. Sua mãe falaria
com Anne Louise de Sanctis e ele receberia a incumbência de trabalhar com os jardineiros. Estaria ali de
manhã e de tarde - um camponês rude a atrair para a
polidez, um servo a atrair para uma situação de filho.
Requereria tacto e delicadeza, firmeza também, de
quando em quando, para que a natureza da relação ficasse logo determinada desde o princípio. Nicholas Black tinha perfeita consciência da atracção que sentia
pelo rapaz, estava igualmente ciente da capacidade
que o rapaz possuía de o atrair, para sua ruína mútua.
O rapaz devia ser levado a ver que todas as suas esperanças se centravam numa associação disciplinada e
que qualquer tentativa de explorar o seu patrão as destruiria completamente. Contudo, dispondo de tempo e
com a intimidade que a villa casualmente proporcionasse, sentia-se confiante em consegui-lo.
O que ainda o perturbava mais era não ser capaz de
descobrir mais do que parte do motivo que levava a
condessa a ajudá-lo na sua conquista. A parte que via
nada tinha de extraordinário. Ela desejava a sua cooperação para manobrar o padre. Desejava um aliado
compreensivo que a encorajasse. Mas as razões por
que ela ainda se retraía constituíam fonte de muito
maior preocupação para ele.
O mundo dos amantes perdidos é uma selva onde a
estação do cio é uma constante. Não existe qualquer
trégua na fuga desesperada e permanente da solidão.
A corrida é ganha pelo mais veloz, a posse pertence
ao mais forte. O acasalamento é um ímpeto avassalador e as cores do esquecimento os gestos mais civilizados. As palavras mais simples assumem uma coloração de paixão
e intriga.
Nicholas Black vivera muito tempo naquela selva e
já não Lhe restavam ilusões. Se Anne de Sanctis o ajudasse, seria para, no final de contas, atingir os seus
próprios desígnios. E estes quais eram? Paixão, talvez?
Cada temporada trazia a sua leva de mulheres sós e carenciadas que levantavam as saias e namoriscavam descaradamente os rapazes na Primavera mediterrânica.
Elas pagavam e os rapazes desempenhavam o seu papel
na comédia batida com cinismo latino, voltando depois
para casa para casarem com as prometidas à custa dos
lucros ganhos. Mas a condessa era demasiado experiente
para fazer papel de tola na própria aldeia onde vivia.
Capri ficava mesmo ao virar da esquina. Roma era mais
distante e discreta. Ela dispunha de dinheiro para se
aprazer onde muito bem entendesse.
Portanto, tinha de haver outra razão. O receio em relação a Meredith apontava para um envolvimento pessoal com Giacomo Nerone. "A minha generosa senhora transformada
em mulher depravada quando Joseph fugiu dela, deixando-lhe o manto nas mãos - para se ir divertir com uma camponesa de má fama em vez de o fazer com a padrona da
villa."
O ciúme assumia, por vezes, formas bizarras. Paolo
Sanduzzi, o jovem adolescente, representaria uma censura permanente ao seu fracasso como mulher e amante. Seduzi-lo para o afastar da mãe seria uma vingança
indirecta contra o pai... e um insulto consumado a Nicholas Black.
Sentiu crescer dentro de si uma raiva surda; recostou-se nas almofadas a olhar para o quadro de Paolo
Sanduzzi, odiando a mulher que, a troco da guarida e
da promessa de uma exposição, pensara comprar-lhe
uma escravidão tão brutal.
Anne Louise de Sanctis estirava-se na sua banheira
de mármore, sentindo a água morna deslizar-lhe pela
pele como um símbolo de absolvição. O vapor perfumado evolava-se agradavelmente, enevoando as arestas
ásperas da realidade, harmonizando-se com a neblina
de euforia dos barbitúricos que em breve a mergulhariam no esquecimento.
Aquela divisão estreita, com os seus frascos de cristal e o seu espelho enevoado, representava o útero
donde ela ressurgia, renovada, todas as manhãs, e para onde se recolhia todas as noites, fugindo da confusão vazia da solidão. Suspensa no líquido fetal contido
nas paredes quentes e raiadas do mármore, deixava-se
flutuar, auto-absorver-se, autojustificar-se, aninhar-se
numa ilusão de eternidade.
Mas, a cada noite que passava, a ilusão tornava-se progressivamente mais ténue. O impacto de cada manhã revelava-se mais brutal. Mãos invasoras penetravam-lhe na
intimidade, vozes desafiavam-na a sair da
penumbra para o dia amargo, e ela sabia que não poderia contê-las por muito mais tempo.
Meyer era o seu adversário principal: o médico maltrapilho de rosto frustrado e punhos desfiados, o reformador utópico, o filósofo barato, o homem que nada
sabia e nada fazia, que era inimigo das ilusões, porque
ele próprio não possuía nenhuma. Outrora, ela poderia ter comandado a sua aliança contra Giacomo Nerone, mas naquele momento todos os seus cuidados se
centravam em Nina Sanduzzi, que dera à luz o filho de
Nerone. Este recusara-lhe até mesmo a piedade que
ela Lhe implorara e, com uma frase brutal, pusera-lhe a
nu a auto-ilusão.
Ela desejava um filho. Nesse ponto havia verdade.
Desejava Paolo Sanduzzi. Nisso também havia verdade. Mas desejava-o para si mesma. Ele era filho de
Nerone, carne da sua carne, sangue do seu sangue. Ela
tinha amor para Lhe dar - dinheiro também. Amor
que Nerone Lhe atirara ao rosto. Dinheiro para o resgatar da vida sórdida a que o pai o condenara. Mas
Meyer interpunha-se no seu caminho. Meyer e Nina
Sanduzzi, e até mesmo o padre de tez acinzentada que
viera de Roma.
Vivia há muito tempo na Itália e compreendia as
manobras subtis da Igreja na sua vinha do Sul. Os seus
príncipes manobravam a política com uma perícia maquiavélica, mas eram rígidos na aplicação dos princípios morais, através dos quais governavam um povo apaixonado
e recalcitrante. Não hesitavam em invocar o estatuto civil como sanção a favor dos dez mandamentos. Como aliado, Meredith ajudá-la-ia imensamente; como inimigo,
seria implacável e invencível.
Portanto, tudo se conjugava para que tivesse de recorrer a Nicholas Black. Tinha pouca fé na estabilidade do pintor; mas precisava de um aliado, e aquele já estava
comprado e era de fácil manejo. Nem por um momento acreditava nos seus protestos de pura afeição pelo rapaz. Encarava a manobra como uma calculada jogada de sedução;
e a promessa de ajuda que Lhe fizera era igualmente calculada.
Ela daria ao pintor tempo e oportunidade para exercer a sua influência sobre o rapaz, tentando-o com a
amizade e a promessa de uma vida senhoril em Roma.
O rapaz reagiria prontamente, já tocado pelos descontentamentos da adolescência. O pequeno escândalo da
sua ligação assumiria proporções mais vastas. O controlo
maternal de Nina Sanduzzi seria posto em causa. Depois... depois a condessa entraria em cena, qual padrona
solícita, castelã interessada na defesa dos interesses
das pessoas a seu cargo. Oferecer-se-ia para afastar o
rapaz de uma situação propícia à corrupção, educá-lo,
primeiro em Roma e mais tarde na Inglaterra.
Até mesmo a Igreja veria mérito em semelhante
acção. Se Giacomo Nerone chegasse a subir aos seus
altares, não desejaria ver-lhe o filho perverter-se pelas
aldeias, como acontecia a tantos outros jovens provincianos. Nicholas Black que desempenhasse à sua vontade o papel de intriguista insignificante; no final, os
louros caber-lhe-iam a ela. Passear-se-ia pela Via Veneto
com Paolo Sanduzzi, orgulhosa e realizada, como se
Nerone o tivesse gerado no seu próprio ventre estéril.
Saiu de dentro da banheira, secou-se e perfumou-se,
antes de se vestir para ir para a cama. Depois deixou-se ficar debaixo do enorme dossel de brocado, deslizando para um sono fruto de drogas, sonhando com um jovem
moreno de mão firmemente agarrada à sua. E, quando esse jovem se transformou num homem, de filho passou a amante apaixonado, foi, no fim de contas, a ilusão da noite,
despida de qualquer culpa...

CAPíTULO X

Na manhã seguinte, bem cedo, enquanto Nina Sanduzzi varria e cuidava da sua casa, Aldo Meyer sentava-se debaixo da figueira a conversar com Paolo.
A entrevista começara desajeitadamente. O rapaz
mostrava-se ensimesmado e retraído, e as primeiras
perguntas indecisas de Meyer não contribuíram para
Lhe ganhar a confiança. O jovem manteve os olhos fixos no tampo da mesa, mordiscando nervosamente um
pequeno galho e respondendo em tom murmurante e
baixo, fazendo que Meyer tivesse de se esforçar por
conter a irritação e manter uma entoação devidamente
amigavel na voz.
- A tua mãe já falou contigo acerca da possibilidade de ires trabalhar para a condessa?
- Já.
- Sabes que a jovem Rosetta também vai para a villa?
- Sei.
- Qual é a tua opinião?
- Acho que está bem.
- Queres ir ou não?
- Não me importo.
- O salário não é mau. Poderás ajudar a tua mãe e
ainda ficares com alguma coisa para ti.
- Sim, eu sei.
- Isso quer dizer que estás quase a ser um homem, Paolo.
O rapaz encolheu os ombros e palitou os dentes com
o galho. Meyer bebeu um gole de café e acendeu um
cigarro. A jogada que vinha a seguir era importante.
Esperava não a deitar a perder. Passado um bocado
disse, o mais suavemente de que foi capaz:
- O início da vida de um homem é a sua parte mais
importante. Normalmente compete ao pai lançar o seu
filho no caminho certo. Tu não tens pai; portanto...
gostaria de o substituir nesta ajuda.
Pela primeira vez, o rapaz ergueu os olhos e fitou-o
directamente. Lia-se-lhe um desafio no olhar e uma ligeira hostilidade. A pergunta que desferiu foi clara e
sem vestígio de amizade.
- Porque haveria de se importar?
- Tentarei explicar-te porquê - replicou Meyer no
mesmo tom. - Se não ficares esclarecido, pergunta-me o que quiseres. Em primeiro lugar, não tenho nenhum filho meu. Gostaria de ter tido um. Poderias ter
sido tu, porque houve tempos em que andei apaixonado pela tua mãe. Ainda continuo a gostar muito dela.
Contudo, escolheu o teu pai, e o assunto ficou arrumado. Conheci-o. Fomos amigos durante algum tempo...
depois ficámos inimigos. Tive a ver com a sua morte.
Hoje lamento o acontecido. Se te puder ajudar, estarei
a pagar uma dívida minha para com ele.
- Não preciso da sua ajuda - retorquiu-lhe o rapaz rudemente.
- Todos nós precisamos de ajuda - disse Meyer
calmamente. - Tu precisas dela, porque andas envolvido com o inglês e não sabes muito bem o que fazer
em relação ao problema.
Paolo Sanduzzi manteve-se em silêncio, de olhos
postos no pau mordiscado que tinha entre os dedos.
Meyer prosseguiu:
- Quero explicar-te uma coisa, Paolo. Sabes o que
são homens e mulheres. Sabes como começam a beiJar-se e a acariciar-se, o que acontece quando fazem
amor. Sabes o que sentes quando olhas para uma rapariga cujos seios cresceram e que começa a caminhar
como uma mulher. Mas não compreendes é como podes sentir isso por Rosetta e teres a mesma sensação quando o inglês te toca.
Mais uma vez a cabeça do rapaz se levantou impetuosamente, na defensiva.
- Não há nada entre mim e o inglês. Ele nunca me
tocou!
- óptimo! - exclamou Meyer. - Nesse caso não
tens nada de que te envergonhar. Ainda assim, devias
saber que, quando o coração de um homem desperta e
o seu corpo também, ambos podem inclinar-se para
um lado ou para o outro, tal como o vento inclina uma
erva. Mas depois o arbusto endireita-se e torna-se
duro como uma árvore. Nessa altura não pode voltar a
ser inclinado e cresce, tomando a sua própria forma.
A maneira certa de um homem crescer é na direcção
de uma mulher, não de uma feminella. Aí tens a razão
por que não podes ficar com o pintor. Compreendes,
não é verdade?
- Então porque está a mandar-me trabalhar na villa? Ele estará lá durante todo o tempo. Assusta-me.
Faz-me sentir que não sei o que quero.
- Que é que queres: ele ou Rosetta?
- Quero sair de Gemello! - exclamou o rapaz, em
tom selvático. - Quero ir para outro lado qualquer
onde as pessoas nada saibam acerca de mim, da minha
mãe ou do meu pai. Acha que gosto que me chamem
o bastardo do santo, o filho de uma prostituta? Aí tem
a razão pela qual quero ficar com o inglês. Ele pode
fazer isso por mim. Pode levar-me para Roma, dar-me
um começo novo...
- E em Roma colocarão uma etiqueta ainda mais
suja em ti e nunca mais te livrarás dela, onde quer que
vás! Escuta, rapaz... - implorou-lhe em voz baixa,
veemente. - Tenta ser paciente comigo. Faz um esforço para entender o que te vou dizer. A tua mãe é
uma mulher boa, dez vezes melhor do que aquelas que Lhe chamam nomes. Tudo o que porventura fez foi por
amor, e uma prostituta é aquela que se vende por dinheiro. O teu pai era um homem especialmente dotado... e sou eu que o afirmo, o homem que contribuiu
para a sua morte.
- Então porque não casou ele com a minha mãe e
me deu o seu nome? Tinha vergonha dele? Ou de nós?
- Já fizeste essa pergunta à tua mãe?
- Não. Como poderia fazê-la?
- Então acho que devemos fazer-lha agora - disse
Aldo Meyer. Sem esperar pela resposta, chamou em
voz alta: - Nina! Chega aqui um instante, por favor.
Nina Sanduzzi saiu de casa e o rapaz viu-a aproximar-se com olhos assustados.
- Senta-te, Nina.
A viúva assim fez, no meio dos dois, olhando de um
para o outro com olhar sério e inquiridor. Meyer disse-Lhe com simplicidade:
- O rapaz tem uma pergunta para te fazer, Nina.
Penso que tem direito a uma resposta. És a única pessoa que pode dar-lha. Ele quer saber por que razão o
pai dele não casou contigo.
- Acreditarás em mim se eu te contar, filho?
O jovem ergueu os olhos, perturbado e cheio de
vergonha, assentindo silenciosamente. Nina Sanduzzi
aguardou um momento, reunindo coragem e palavras;
depois, com voz firme, contou-lhe.
Também Blaise Meredith acordou cedo naquela
magnífica manhã de Primavera. Depois do ataque que
sofrera em casa do médico, dormira de maneira menos
repousada do que a habitual e, quando o criado Lhe
viera trazer o café e correr as cortinas para deixar entrar o novo dia, decidira levantar-se e deitar mãos ao trabalho.
Bebeu o café, comeu um pouco de pão fresco com
a manteiga salgada de fabrico caseiro, lavou-se, fez a
barba e desceu ao andar térreo para ler o seu ofício ao sol. Cumprida a sua obrigação litúrgica, ficaria livre
para iniciar as suas entrevistas às testemunhas. Ainda
tinha bem presente na mente o aviso que Meyer Lhe fizera. O seu tempo de vida escoava-se mais rapidamente
do que esperara e não podia dar-se ao luxo de desperdiçar um minuto que fosse. Sentia-se satisfeito por a
condessa e Black ainda estarem deitados, o que o poupava ao ritual dos cumprimentos e da tagarelice do pequeno-almoço.
Terminara as laudas e ia a meio das matinas quando
ouviu o som de passos no carreiro coberto de cascalho
e ergueu os olhos. Uma mulher e um rapaz caminhavam em direcção às traseiras da casa. A mulher estava
vestida à maneira das camponesas, com um vestido
preto e sem feitio, com um lenço enrolado à cabeça.
O rapaz envergava uma camisa às riscas e umas calças
remendadas e tinha os pés enfiados numas velhas sandálias de couro.
Caminhava de maneira indecisa, olhando para todos
os lados, como subjugado pelo esplendor do que o rodeava, depois da nudez grosseira da aldeia. A mulher
tinha um porte orgulhoso, a cabeça erguida, os olhos
fixos em frente, como disposta a cumprir um dever doloroso com dignidade. Meredith sentiu-se fascinado
pela serenidade clássica do seu rosto, de contornos a
arredondarem-se com a meia-idade, mas ainda mostrando uma beleza juvenil.
Devia ser Nina Sanduzzi, pensou. O rapaz seria o
filho de Giacomo Nerone, o qual, segundo Meyer Lhe
contara, era a vítima da sedução que se conspirava entre a condessa e Nicholas Black. Teriam muito que esperar antes de a condessa se levantar e ficar pronta para
recebê-los.
Obedecendo a um impulso inesperado, Meredith
pousou o seu livro e chamou:
- Senhora Sanduzzi!
Mãe e filho detiveram-se imediatamente e voltaram-se para o olhar.
Chamou-os de novo:
- Importam-se de vir aqui um instante, por favor?
Olharam um para o outro, indecisos; em seguida, a
mulher atravessou o relvado com o rapaz no seu encalço um pouco atrás. Meredith levantou-se para a cumprimentar.
- Sou Monsenhor Meredith, de Roma!
- Eu sei - replicou a mulher calmamente. - Chegou ontem. Este é Paolo, o meu filho.
- Tenho muito gosto em te conhecer, Paolo.
Meredith estendeu-lhe a mão e o jovem, depois de
a mãe Lhe dirigir um aceno de cabeça, aceitou-a vacilante.
- Sabe por que razão me encontro aqui, senhora?
- Sim, sei.
- Gostaria de conversar consigo o mais depressa possível.
- Encontrar-me-á em casa do doutor, ou na minha.
- Pensei que talvez pudéssemos falar um pouco agora.
Nina Sanduzzi abanou a cabeça.
- Temos de ver a condessa. Paolo começa hoje a trabalhar.
Meredith sorriu.
- Vai ter muito que esperar. A condessa ainda não
se levantou.
- Estamos habituados a esperar - retorquiu a viúva gravemente. - Além disso, não falarei consigo neste lugar.
- Como desejar.
- Mas, quando Paolo estiver aqui a trabalhar, poderá conversar com ele. Isso será diferente.
- Com certeza. Posso ir vê-la hoje?
- Se quiser. à tarde estou em casa. Agora temos
de ir. Anda, Paolo.
Sem proferir mais nenhuma palavra, a mulher afastou-se. O rapaz foi atrás da mãe e Meredith ficou a vê-los até desaparecerem na esquina da casa.
Apesar da brevidade do encontro, a mulher impressionara-o vivamente. Havia nela um ar... um ar
de serenidade, contenção, sabedoria, talvez. Caminhava e falava como quem sabia para onde ia e como tencionava lá chegar. Não alardeava nem a falsa impudência de
algumas camponesas nem a humildade praticada que séculos de dependência tinham imposto a outras. A língua em que se expressava era o dialecto mais áspero da Itália,
no entanto a sua voz soara com suavidade e estranhamente meiga, mesmo na recusa firme de ainda há pouco. Se fora Giacomo Nerone quem Lhe ensinara a ser assim, então
ele, no seu tempo, devia
ter sido um homem de muito maior dimensão do que a maioria.
Meredith reparou que a concentração lhe fugia das
cadências latinas dos salmos para a reflexão de dois
importantes elementos na vida pouco esclarecida de
Giacomo Nerone.
O primeiro era o elemento de conflito. A Igreja tinha
um axioma segundo o qual um dos primeiros sinais de
santidade era a oposição que esta desencadeava, mesmo no seio de gente boa. O próprio Cristo fora o sinal
da contradição. A sua promessa não era a paz, mas
sim a espada. Não havia santo no calendário que não
tivesse sofrido oposição. Nenhum se livrara de difamadores e caluniadores. A ausência daquele elemento
nos registos de Battista e Saltarello perturbara-o. Agora começava a dar-se conta da sua existência, assim como da sua força e complexidade.
O segundo elemento era igualmente importante:
o bem e o mal que ressaltavam claramente da vida,
obras e maravilhas imputadas ao candidato às honras
de santidade. Também em relação àquele ponto havia
um axioma: o axioma bíblico de que uma árvore se conhece pelos seus frutos. A santidade de um homem
deixa uma marca, semelhante a um selo, no coração
dos outros. Uma boa obra reproduz-se a si própria tal
como a semente de um fruto gera um outro. Um milagre que não produza nenhum benefício num coração humano é um truque indigno de omnipotência.
Se o bem existia em Nina Sanduzzi e se esse bem tivesse surgido da sua ligação com Giacomo Nerone, então o advogado do Diabo tinha de o ter em consideração na sua
investigação meticulosa.
Inclinou-se para o seu breviário, movendo os lábios
ao dizer as estrofes familiares do poeta. Depois de terminar, fechou o livro, enfiou-o num dos bolsos da sua batina e saiu da villa para ir falar com o padre Anselmo.
A velha Rosa Benzoni veio abrir-lhe a porta e, depois
de alguns resmungos, deixou-o entrar em casa, onde encontrou o velho sacerdote em mangas de camisa e suspensórios, a barbear-se desajeitadamente em frente de
um espelho rachado, pendurado na parede da cozinha.
Tinha os olhos mais lacrimejantes do que o costume e as
mãos nodosas tremiam ao rasparem o queixo coberto de
pêlos. Usava uma velha navalha e Meredith admirou-se
por ainda não ter cortado a garganta com ela. A saudação com que o recebeu nada tinha de cordial.
- Ora esta! Que quer?
- Gostaria de falar consigo - retorquiu Meredith suavemente.
- Escutarei. No entanto, não prometo responder.
- Era melhor conversarmos em particular, não
acha? - sugeriu Meredith.
O velho soltou uma risada e depois praguejou ao cortar-se.
- Está com problemas por causa da Rosa? Ela é
meio surda e duvido de que entendesse uma palavra
do que fala, nesse seu romano. Além disso, tem mau
feitio, e eu tenho de viver com ela. Avance, homem, e
diga o que traz para dizer.
Meredith esboçou um sinal de resignação e continuou.
- É acerca de Giacomo Nerone. Os primeiros relatórios deram-me a conhecer que o reverendo se recusou
a prestar quaisquer declarações relativamente a ele.
Foi por ser seu confessor?
- Não. Não gostei dos tipos que vieram para aí.
Trapaceiros e metediços, os dois. Fizeram-me um
grande sermão acerca do Juízo Final e da condenação
eterna. Mandei-os passear sem Lhes dizer nada. Além
disso, quem diabo se importa com o que eu digo? Sou
o escândalo da diocese.
- Não estou interessado em escândalos - observou
Meredith friamente.
O velho pousou a navalha e passou uma toalha suja
pela cara. Disse com rudeza.
- Então é o primeiro que encontro que não está.
Deus, como eles os adoram! É dar-lhes uma história
escabrosa, que chucham nela como cães num osso de
presunto. Recebi uma carta do bispo a dizer que esperava que a minha ligação com Rosa tivesse perdido o seu carácter carnal... - Soltou uma gargalhada ruidosa e
grosseira. - Quanto tempo é que ele pensa que um homem se mantém com essa capacidade? Na minha idade, o melhor que se pode esperar é passar a noite aquecido.
- Na sua idade - sugeriu Meredith brandamente -
a maior parte dos casais dormem em camas separadas.
- Em Roma talvez - disse o padre Anselmo, com
maus modos. - Mas cá em baixo não temos dinheiro
que chegue para comprar uma cama nova, quanto mais
dois pares de cobertores. Olhe... - Atirou com a toalha
para o lado, num gesto de impaciência. - Nós não somos crianças, monsenhor. Não gosto da posição em
que me encontro, mais do que o bispo. Mas, na minha
idade, como é que a altero? Não posso atirar com Rosa
para o meio da rua. Já é velha. Tem sido boa para mim,
quando a muitos dos meus malfadados irmãos na religião não importava que eu vivesse ou morresse. Tenho
muito poucos bens. Mas Deus é testemunha em como
ela tem direito a metade deles. Sua Reverendíssima terá alguma resposta para essa questão?
Meredith sentia-se comovido. O dilema daquele homem, ali posto nu e cru era assustador. Pela primeira vez na sua vida de sacerdote começou a compreender o problema
real do arrependimento, que não é o pecado em si, mas sim as consequências que advêm dele e que proliferam como parasitas numa árvore. Esta não tem outro remédio
senão continuar a ceder a sua vida ao parasita, aproveitando-lhe a beleza, mas não deixando nunca de ir morrendo lentamente por falta de
um jardineiro conhecedor. Era duro saber que um homem podia cair no desespero e na condenação eterna
por não ter dinheiro para comprar um par de cobertores. De repente, o caso de Giacomo Nerone pareceu pequeno e insignificante ao lado do caso do padre Anselmo. Se
Giacomo fosse santo, tivera sorte - terminara a sua longa batalha. Tudo o resto eram palavras, e de pouca importância. Meredith teve uma ideia súbita, mas hesitou
em dar-lhe voz. Passado um momento disse cautelosamente:
- Sua Reverendíssima é um homem surpreendente.
Gostaria de o ajudar. Creio, tenho a certeza, de que,
se o padre Anselmo mudasse Rosa para outra cama e
para outro quarto, ela aceitaria a situação e nunca
mais pensaria nela.
O velho sacudiu a cabeça teimosamente.
- Quem é que paga a cama e as roupas? Parece-me
que não está a compreender. Nós aqui vivemos na miséria. Mal nos dá para comer.
- Vou dizer-lhe uma coisa - declarou Meredith,
com um sorriso fatigado. - Eu pago tudo. Darei a si
e a Rosa o suficiente para comprarem alguma roupa
nova e depositarei mil liras no Banco da Calábria no
seu nome. Assim já ajuda?
O padre Anselmo lançou-lhe um olhar rápido e desconfiado.
- E porque haveria o monsenhor de se dar a tão
grandes cuidados?
Meredith encolheu os ombros.
- Daqui a três meses já estarei morto. Não o posso
levar comigo.
Os olhos lacrimejantes fitaram-no, incrédulos. A voz
de camponês voltou a interrogá-lo.
- Que mais tenho de fazer?
- Nada. Se desejar que o ouça em confissão, terei
muito gosto. Não poderá contar-me muito mais do que
aquilo que já sei; portanto, não lhe será demasiado penoso. Não vale a pena deixar as coisas a meio. Alguma
vez terá de pôr a sua consciência em ordem.
- O bispo falou em reparar o escândalo.
Ainda se lhe notava dúvida na voz, porém, a rudeza
e a teimosia tinham desaparecido.
Meredith concedeu-lhe um dos seus raros sorrisos
bem-humorados.
- O bispo é um homem muito sabedor. Creio que
tem consciência de que a maioria das pessoas faz os
seus próprios escândalos. Os bons cristãos não se manifestam e rezam pelos irmãos com problemas. Não
tardará que toda a aldeia saiba que passaram a dormir
em camas separadas. O resto surgirá a partir do que fizer daí em diante... Então, que me diz?
Anselmo esfregou o queixo mal barbeado com a
mão nodosa. A boca flácida abriu-se-lhe num sorriso.
- Eu... eu suponho que é uma solução. Há muito
que tenho andado preocupado, mas gosto muito da velha, cá à minha maneira, e detestaria magoá-la.
- Não me parece que o amor apresente algum problema. Neste momento, também me fazia jeito dispor
de algum.
A voz parecia pertencer a outro homem, não a Blaise
Meredith, o indivíduo frio da Congregação dos Ritos.
- Está bem! - exclamou o velhote bruscamente. -
Vou pensar no assunto. Falarei com Rosa e explicar-lhe-ei as coisas como são. Não são assuntos que se possam
tratar do pé para a mão. As mulheres são sensíveis e,
quando chegam a velhas, também se tornam estúpidas... - Os olhos brilharam-lhe argutamente. - E quando é
que vemos a cor do seu dinheiro, monsenhor?
Meredith tirou a carteira do bolso e pousou notas no
valor de mil liras em cima da mesa.
- É só para as primeiras impressões. Pode comprar
os cobertores e a cama. Quanto ao resto, terei de tratar do assunto em Valenta. Está bem assim?
- Terá de estar - replicou-lhe o velho, contrafeito
- Gostaríamos de ter tudo resolvido antes de o monsenhor morrer. Assim que os advogados deitarem a
mão aos bens, acabou! Só ficam as migalhas! E agora
que mais é que desejava?
- Giacomo Nerone... Que me pode dizer em relação a ele?
- Que acontece se eu Lhe contar?
- Tomarei notas e depois o senhor será interrogado, sob juramento, no tribunal do bispo.
- Ouça o que Lhe digo, monsenhor. Espere até me
ouvir em confissão. Nessa altura ficará com a história
completa. Assim, serve?
- Um segredo confessional não serve para o registo
do tribunal.
O velho fez descair a cabeça para trás e riu ao seu
jeito rude.
- Era aonde eu queria chegar, amigo! Eles já tiveram escândalos da minha parte que chegassem. Raios
me partam se Lhes vou dar mais algum.
- Como quiser - disse Meredith, em tom cansado. - Daqui a uns dias virei ter consigo.
- E não se esqueça do que tem de fazer em Valenta.
- Esteja descansado.
Levantou-se e dirigiu-se para a porta. Não houve
despedidas, palavras de agradecimento, e, ao caminhar
colina abaixo em direcção ao casebre do médico, Meredith teve a sensação desconfortável de que fizera
figura de tolo.
Meyer cumprimentou-o, bem-disposto, conduziu-o
até ao jardim e serviu-lhe uma tigela de vinho da região que tirou de um jarro de barro a refrescar à
sombra. Meredith apercebeu-se imediatamente da alteração que se notava nele: o médico tinha os olhos límpidos, o rosto vincado apresentava-se descontraído,
e tinha o ar confortável de um homem que acaba de ficar bem consigo mesmo e com a sua situação. Meredith comentou o facto em tom brincalhão.
- Está com melhor aspecto esta manhã, doutor.
Meyer fitou a sua tigela de vinho com um sorriso.
- Tive um bom começo de dia, monsenhor. Falei
com um rapaz de pai para filho e escutei bons conselhos da mãe.
- Nina Sanduzzi?
- Exacto. Aqui entre nós, espero ter feito algo de
positivo pelo rapaz.
- Vi-os na villa, falei com eles durante alguns momentos. Esta tarde vou fazer uma visita a Nina Sanduzzi. Ela está disposta a falar.
- óptimo. - Meyer assentiu com satisfação. - Vou
dar-lhe uma pista, meu amigo. Vá com calma, que
conseguirá muito dela. Agora está disposta a ser sincera. E quer que o monsenhor mantenha o rapaz vigiado
enquanto estiver na villa.
- Farei os possíveis. Ela provocou-me uma impressão profunda.
- E Paolo?
- Assemelha-se a qualquer outro adolescente.
- Não exactamente... - preveniu-o Meyer. - Está
na idade perigosa. Sente-se atraído pelo inglês, mas ao
mesmo tempo tem medo dele. Também está curioso
em relação à mãe e ao pai. Já não tanto desde que eu
e Nina falámos com ele. Mas, quando se é velho, nunca se sabe até onde vai a capacidade de compreensão
de um jovem ou que minhocas tem na cabeça. E agora, monsenhor?
- Gostaria de falar consigo, doutor.
- Acerca de Nerone?
- Sim.
Aldo Meyer tomou uma grande golada de vinho e
depois limpou os lábios finos com as costas da mão.
Observou, com humor melancólico:
- Não é costume pôr uma estola quando ouve confissões?
- Em vez disso descalçarei os sapatos - disse Blaise Meredith.
- É uma longa história, monsenhor. Quando estiver a seco, sirva-se de mais!
O Verão batia em pleno num mundo sem homens. Manhãs quentes e meios-dias abrasadores e
noites em que as nuvens rolavam sobre o vale carregadas de humidade, para depois seguirem o seu caminho
sem soltar a chuva. Os temperamentos excitavam-se
e a vitalidade era baixa, porque os exércitos eram
como gafanhotos, comendo tudo o que a terra produzia, e não havia homens nas camas - excepto os
idosos, que representavam um estorvo, e visitantes
locais como a polizia e os carabinieri, o inspector
agrícola e os oficiais do Exército que vinham proceder às requisições. Também estes eram um estorvo,
porque depois de partirem deixavam querelas nas casas e faces ensanguentadas e peles dilaceradas nos campos.
O vale era como um ninho de gatos, almiscarado
quente e languido para o acasalamento, depois rasgado subitamente por gritos e violência. Meyer vivia nele
porque era judeu e exilado e de dois em dois dias tinha de atravessar o vale até Gemello Maggiore, para
assegurar a quaestura de que não estava doente nem
morto. A eles tanto Lhes fazia, no entanto amaldiçoavam-no quando chegava e ameaçavam-no se faltasse
algum dia - e depois davam-lhe vinho, queijo e cigarros se tinham os filhos doentes ou as filhas grávidas,
ou se eles próprios se iam abaixo com a malária. Troçavam grosseiramente acerca do facto de ele ser judeu
e circuncidado e preveniam-no de que não deveria poluir o sangue puro das mulheres, as quais, como boas
calabresas, eram meio gregas, fenícias, francesas, espanholas, italianas e árabes levantinas - tudo menos judias.
Meyer tudo engoliu e digeriu em segredo, mantendo
os ouvidos atentos aos boatos que circulavam dentro e
fora do vale. Os Aliados estavam na Sicília, havia cabeças-de-ponte noutros locais. Os guerrilheiros começavam a armar-se nos montes, desertores ocultavam-se
em cavernas e em camas amigas. Os alemães enviavam
reforços para o Sul. Mais cedo ou mais tarde acabariam por chegar e ele queria estar vivo para assistir ao acontecimento.
Lavrava os seus acres de terra dura, fazia as suas
rondas pelos enfermos, dormitava nas sestas e à noite
ficava sentado até tarde, às voltas com os seus livros e
a sua garrafa.
Se se mantinha liberto das mulheres da aldeia, era
por ser um homem fastidioso e também porque não
queria encarar o futuro que se avizinhava com uma aldeã belicosa agarrada a si. Esperara muito tempo. Podia permitir-se fazê-lo durante mais algum.
Foi numa dessas noites, tarde, que Nina Sanduzzi
foi ter com ele. Viera descalça, não fosse o som das
suas socas de madeira acordar a aldeia adormecida,
e saltara o muro do jardim do lado do vale, para o
caso de algum bisbilhoteiro, ainda acordado, a ver bater à porta do médico. Quando despertou das suas divagações e a viu, ela encontrava-se mesmo debaixo do
foco de luz do candeeiro. Assustou-se, mostrando-se irado.
- Nina! Que diabo fazes aqui?
A mulher levou um dedo aos lábios para o calar e
depois explicou em voz baixa, num dialecto matraqueado:
- Tenho um homem em minha casa. É desertor e
está ferido. Tem um buraco de bala no ombro, todo
vermelho e inchado. É capaz de o ir ver, por favor?
Trouxe dinheiro.
Retirou de dentro do decote do pescoço um pequeno maço de notas sebentas. Meyer afastou-lhe a mão
impacientemente.
- Guarda isso, por amor de Deus! Mais alguém sabe que ele está lá?
- Ninguém. Chegou a noite passada. Dei-lhe o
pequeno-almoço e ficou dentro de casa todo o dia.
Quando voltei do trabalho, encontrei-o, como Lhe disse.
- Está bem, irei.
Fechou o livro, baixou a luz do candeeiro, foi buscar
a sua maleta de instrumentos e o seu pequeno stock de
anti-sépticos e foi atrás de Nina, saindo pelas traseiras
da casa, passando o muro e descendo em direcção à
pequena cabana escondida no meio dos azevinhos.
Encontrou o doente a delirar na enorme cama de
ferro, um indivíduo alto, moreno, com barba de dias
por fazer, nas faces chupadas, olhos esbugalhados e
uma boca que se babava e de onde saíam palavras entrecortadas e frases que ele reconhecia serem em língua inglesa. Bonito serviço! Acoitar desertores já era
suficientemente mau, mas tratando-se de um soldado
inglês era morte certa. Não fez qualquer comentário
à rapariga, mas inclinou-se sobre a cama e começou a
cortar as ligaduras ensopadas que lhe cobriam o ferimento do ombro.
Ao vê-lo, soltou um pequeno assobio de surpresa.
Apresentava-se polposo e intumescido, tendo já
principiado a deixar escapar lentamente uma supuração amarela. Um trabalho complicado e nada fácil.
Seria extremamente doloroso por não haver anestesia e o homem corria o risco de morrer num espaço de dias.
Meyer voltou-se para Nina.
- Acende o lume. Aquece-me uma panela de água.
Depois terás de segurar bem nele para eu poder trabalhar.
A rapariga mostrou os dentes brancos num sorriso.
- Já lá vai tanto tempo desde a última vez que tive
um homem nos braços, doutor, que será um prazer.
Mas o prazer depressa se desvaneceu, mesmo para
ela. A bala atingira a omoplata e encaixara-se obliquamente no osso; Meyer foi obrigado a procurá-la durante vinte minutos, enquanto o doente gritava desvairadamente,
apesar da mordaça que Lhe tinham colocado na boca, e Nina Sanduzzi teve de recorrer a toda a sua força para o segurar.
Depois de terminado e de a parte mais dolorosa chegar ao fim, colocaram-no na cama e Nina e Meyer sentaram-se a beber vinho e a comer uma côdea.
- Não podes mantê-lo aqui. Sabes isso perfeitamente, Nina. Se alguém descobre, estás arrumada.
Ela fitou-o espantada.
- O doutor quer que eu o ponha daqui para fora,
doente como está?
- Mais tarde - disse Meyer, em tom fatigado. -
Quando estiver melhor.
- Então esperemos por mais tarde - disse Nina
Sanduzzi, com um sorriso.
Olhando-a à luz do candeeiro, no quarto baixo, Meyer
sentiu a primeira tentação que o acometia em anos.
O rosto da jovem era de um grego puro. Tinha o rosto
mais esguio que o das suas conterrâneas camponesas.
Os seios ressaltavam, cheios e firmes, e sentia-se-lhe
uma vitalidade animal sob a pele cor de azeitona. Também era inteligente, e corajosa. Não era dada à inércia
e aos gritos como as outras. Quando havia algo a fazer, deitava mãos à obra, calma e competentemente.
Espantava-o que tivesse passado por ela uma centena
de vezes sem nunca reparar.
Mas ele era uma pessoa cautelosa e acostumada à
continência, pelo que acabou rapidamente de beber
o seu vinho e preparou-se para partir.
- Entende uma coisa, Nina. Ele está muito doente
e poderá morrer. Faz um pouco de sopa e vê se consegues que ele não a vomite. Quando fores para o trabalho, tranca a porta e deixa-lhe vinho e comida. Não
me atrevo a vir aqui durante o dia, mas à noite, depois
de a aldeia sossegar, voltarei cá.
- O doutor é boa pessoa - disse Nina Sanduzzi
suavemente. - Num sítio cheio de porcos, porta-se
como um homem. - Agarrou-lhe na mão e beijou-a
rapidamente. - Agora vá, dottore mio! Não estou habituada a ter homens aqui por casa!
Enquanto subia a ladeira pedregosa, evitando a estrada principal, interrogou-se sobre se a continência
não seria, tal como todos os outros sacrifícios a que se
prestava, um desperdício sem sentido - e se aquela
não seria uma mulher com a qual poderia ser feliz
Tratava-se de algo de que tivera medo durante todo o
seu exílio, algo que os inimigos queriam que ele fizesse - que se tornasse brando, se integrasse com os da terra, se entregasse ao vinho e às prostitutas da região,
que se esquecesse de lavar as camisas e de se servir da
faca e do garfo às refeições. Até ali fora capaz de evitar tudo aquilo. Com Nina Sanduzzi poderia talvez
continuar a evitá-lo... mas corria um certo risco e ouviam-se cornetas soar ao longe, nas colinas. O melhor
era esquecer e ir para casa dormir.
Precisou de mais de uma semana para afastar o
doente de perigo. O ferimento era profundo, surgiram novas infecções e ele viu-se obrigado a drená-lo
continuamente com os meios primitivos à sua disposição. Mais de uma noite ficou sentado ao lado de
Nina a ver a febre subir e baixar, até os primeiros alvores da aurora despontarem a leste e ser tempo de
ele voltar para casa, antes de a aldeia saltar para fora da cama.
Todas as noites ele vinha sentindo a falta dela.
Sempre que partia, sentia uma pontada de ciúme por
deixá-la sozinha com o homem enfermo, que por
aquela altura começara já a comer e a falar um pouco,
entre os acessos de febre e os longos intervalos de sono agitado.
A princípio, o indivíduo mostrou-se cauteloso em
relação a eles; mas, quando compreendeu a posição
de Meyer como exilado político e os riscos que a rapariga corria por causa dele, descontraiu-se um pouco,
recusando-se, porém, a contar-lhes algo mais que
não fosse a história que inicialmente relatara a Nina Sanduzzi.
- Mais vale que não saibam mais nada. Se forem
interrogados, poderão responder com a verdade. Embora espere, por Deus, que tal não aconteça. Chamo-me Giacomo Nerone e sou atirador de Reggio. Estoua tentar chegar
a Roma, onde tenho a família. Quando é que acha que estarei suficientemente forte para viajar, doutor?
Meyer encolheu os ombros.
- Uma quinzena, talvez três semanas, a não ser que
queira mais outra infecção. Mas por onde é que faz tenções de seguir? Dizem que os Aliados acamparam a norte desta zona e estão a avançar de Reggio até à ponta.
Mas este lugar está encravado no meio das colinas. Com
os nossos homens a recuar e os alemães a descer, terá
dificuldade em chegar muito longe. O seu sotaque não
é da Calábria. Mais cedo ou mais tarde, alguém acabará por fazer perguntas... a não ser que volte a esconder-se, e nesse caso onde arranjará que comer?
Nerone sorriu com ar matreiro e ambos repararam
de que maneira o humor o transfigurava, voltando a
mostrar o rapaz que era.
- Que mais esperam que eu faça? Aqui é que não
posso ficar.
- Porque não? - perguntou Nina Sanduzzi. - Tem
aqui uma casa, uma cama e comida. Não é muito, mas
sempre é melhor do que morrer numa vala com outra
bala no corpo.
Os dois homens entreolharam-se. Depois de uma
pausa, Meyer anuiu, inseguro.
- Ela deve ter razão. Além disso... - argumentou
prudentemente - quando as coisas se modificarem
por aqui, sempre poderá dar uma ajuda.
O homem moreno abanou a cabeça.
- Não da maneira que imagina, doutor.
Meyer franziu os sobrolhos e depois disse asperamente:
- Não me está a compreender. Ouvi-o falar durante o sono. Tudo indica que é leal a outras coisas. Estas poderão ser-nos úteis mais tarde.
Foi a vez de Nina não perceber. Perguntou secamente:
- A que se refere quando fala de ele ser leal a outras coisas?
- Sou inglês - disse Nerone. - E agora esqueçam o que eu disse.
- Inglês! - Os olhos de Nina Sanduzzi esbugalharam-se.
- Esquece o que ouviste - ordenou Meyer secamente.
- Está esquecido. - Mas ela sorriu ao mesmo tempo, apresentando-lhes em seguida uma proposta que
os deixou sem palavras. - Se ficar por cá, não há
qualquer razão para que não possa trabalhar para se sustentar... Não fiquem assim tão surpreendidos! Neste preciso momento anda por aí uma meia dúzia de rapazes
a fazer o mesmo. Também eles desistiram da guerra. Dois deles são da terra e os outros vieram Deus sabe donde. Mas temos falta de homens e há
muito trabalho a fazer antes do Inverno, e ninguém
tem vontade de armar confusão com o assunto. Se
aparece alguém suspeito, os rapazes escondem-se, mas
durante a maior parte do tempo trabalham às claras... - Riu alegremente. - E nunca lhes falta uma cama!
Eu podia arranjar-lhe trabalho com o velho Enzo Gozzoli. É o capataz do meu grupo. Perdeu dois filhos na
guerra e tem um ódio de morte aos fascistas. Quando
estiver melhor, falarei com ele... Se quiser, é claro.
- Vou pensar no assunto - disse Giacomo Nerone. - Estou muito grato, mas terei de pensar primeiro.
Recostou-se na almofada, cerrou as pálpebras e alguns momentos depois adormecia.
A rapariga serviu nova tigela de vinho a Meyer, que
a bebeu pensativamente, observando-a enquanto ela se inclinava para a cama, ajeitando a cabeça morena
na almofada, arranjando cuidadosamente as roupas
da cama em redor do ombro ferido e detendo-se um
instante na contemplação silenciosa do hóspede adormecido.
Quando Nina se voltou, o médico levantou-se, tomou-a nos braços e tentou beijá-la. A rapariga empurrou-o suavemente.
- Não, dottore mio. Agora não.
- Quero-te, Nina!
- Na realidade não me quer, caro - disse-lhe ela,
em voz branda. - Caso contrário ter-me-ia tomado há
muito tempo, e eu teria tido muito gosto nisso. É Verão, o doutor está sozinho e passámos algumas noites
juntos. Mas eu não sou para si e o doutor sabe... Mais
tarde viria a odiar-me. Quero um homem, Deus sabe
quanto! Mas quero-o todo para mim.
Meyer afastou-se e pegou na maleta. Fez um gesto
rápido em direcção à cama.
- Talvez fiques com ele! - disse secamente.
- Talvez - retorquiu Nina Sanduzzi.
A seguir caminhou até à porta e abriu-a para deixar
sair o médico, que, ao descer a colina, a ouviu fechá-la - um som seco, agudo, no ar lânguido.
-... E foi assim que tudo começou? - inquiriu
Blaise Meredith.
- Precisamente - retorquiu Meyer, pegando no
jarro de vinho. - Em três semanas ele pôs-se a pé e
saiu de casa, começando a trabalhar para Enzo Gozzoli. à noite voltava para casa de Nina e tornaram-se amantes.
- E, para além do facto de ele ser inglês, ainda não
tinha ideia da sua identidade?
- Não. - Meyer bebeu um gole generoso de vinho
e limpou os lábios com um lenço sujo. - Ele podia ser
uma de três coisas: um prisioneiro evadido, um agente
de espionagem britânico enviado para estabelecer contacto com os primeiros grupos de guerrilheiros, ou um desertor.
- E a si, que lhe parecia ser?
- Analisei uma possibilidade de cada vez e tentei
encaixá-lo no molde. Um prisioneiro evadido? Sim.
Excepto que não mostrava inclinação para fazer o que qualquer homem nessa situação deveria fazer: tentar juntar-se à sua unidade. Um agente de espionagem? Sim, também.
Falava muito bem italiano, não um calão de cozinha e de bordel de soldados. Era um homem educado. Estava a par da política local. Mas, quando Lhe lancei uns palpites
para que se juntasse a mim numa tentativa para contactar com os guerrilheiros, recusou.
- Deu alguma razão?
- Não. Recusou delicada mas deveras firmemente.
- Era então um desertor?
Meyer franziu os lábios pensativamente.
- Parecia a categoria em que melhor se enquadrava. Mas um desertor é um homem que tem medo. Tem um ar de fugitivo. Vive na convicção de que um dia será apanhado.
Nerone não apresentava nenhum desses sintomas. Uma vez restabelecido, passou a comportar-se como um homem livre.
- Era of icial?
- Foi o que me pareceu. Como digo, era um homem educado. Tinha o hábito de tomar decisões, um talento para conduzir à realização das coisas. Mas não
dispunha de qualquer espécie de identificação consigo.
Avisei-o de que, se fosse capturado naquelas condições pelos alemães e pelos italianos, corria o risco de ser fuzilado como espião. Ele limitou-se a rir e a dizer
que
Giacomo Nerone era um bom italiano e não via sentido
na guerra... Mais vinho, monsenhor?
Meredith acenou a cabeça com ar distante e Meyer
encheu-lhe o copo.
- Que opinião tinha acerca do seu carácter neste
primeiro período? - perguntou Meredith.
- Parte dela já eu Lhe dei a conhecer - disse
Meyer. - Coragem, boa disposição, uma capacidade
para levar à realização de coisas. O resto? Não tinha
bem a certeza. Tinha ciúmes dele, sabe.
- Por causa de Nina Sanduzzi?
- Por isso, e por outros motivos. Eu vivera no meio
daquela gente durante anos, servindo-a, também. Nunca
chegara a aproximar-me verdadeiramente dela. Numa
semana, Nerone achou-se como em sua casa. Os homens
confiavam nele. As mulheres adoravam-no. Fazia-as
rir retorcendo os sobrolhos pretos. Contavam-lhe todos os escândalos, ensinavam-lhe o dialecto e repartiam o seu vinho com ele. Eu continuava a ser um forasteiro,
o judeu de Roma.
- Compreendo o que sentia - disse Meredith delicadamente. - Toda a minha vida experimentei essa sensação. Com a excepção de que nunca servi ninguém.
Aldo Meyer lançou-lhe um olhar rápido e avaliador,
mas Meredith fitava o vinho escuro da sua tigela com
ar ausente. Continuou.
- O que nele me irritava era o facto de dar a impressão de considerar tudo garantido e definitivo. Como se a única coisa que importasse fosse o presente.
Para ele, tratava-se de algo perfeitamente natural, suponho. Tivera a sua guerra. Sentia-se satisfeito com a
situação vivida na altura. Eu estivera tanto tempo à espera que ansiava por acção e por mudança.
- Quer dizer que não se davam muito bem um com
o outro, não?
Meyer abanou a cabeça.
- Essa é a parte estranha. Quando não o via, sentia
animosidade para com ele. Mas quando nos encontrávamos de passagem, ou quando, mais tarde, ele se habituou a vir até minha casa ao fim da tarde para conversarmos
ou pedir-me um livro emprestado, eu ficava conquistado. Havia uma calma na sua pessoa, uma bondade. A mesma espécie de característica que o monsenhor encontra agora
em Nina Sanduzzi.
- De que falavam?
- De tudo, excepto de Nerone. Recusava-se a qualquer assunto que pudesse dar-me uma pista acerca da
sua identidade. O que mais o interessava era sobretudo a região em si, as pessoas, a sua história e os seus
costumes, o relacionamento no seio destas. Era como
se tentasse esquecer-se de tudo o que Lhe dizia respeito
e deixar-se absorver pela vida dos montanheses.
- Demonstrava preocupação para com eles?
- A princípio, não. Parecia considerar-se como um
deles. Mas não tinha planos como eu. Nenhum esquema para seu benefício.
- Quais eram as relações dele com Nina Sanduzzi?
Meyer sorriu amargamente e abriu as mãos num
gesto de deprecação.
- Eram felizes juntos. Via-se-lhes bem nos rostos.
Eu nada mais sabia. Era mais do que desejaria saber.
Quanto ao resto, terá de falar com Nina.
Meredith acenou afirmativamente a cabeça.
- Lamento estar a pressioná-lo desta maneira, doutor. Mas compreende o que me compete fazer.
- Compreendo. Não estou com subterfúgios. Tento
dar-lhe dados em primeira mão.
- Por favor, continue.
- A fase seguinte principia em finais de Outubro...
a meio do Outono. Nerone chamou-me para examinar
Nina. Estava grávida de dois meses.
- De que maneira reagiu ele ao facto?
- Ficou satisfeito. Ambos ficaram. Creio que nunca
me senti tão ciumento dele como nesse momento. Viera não se sabia donde e alcançara o que toda a vida me
escapara: aceitação, amor e a promessa de um objectivo e de uma continuidade.
- No entanto, não tomara nenhuma iniciativa para
casar com Nina?
- Não.
- Ela desejava esse casamento?
- Falei do assunto aos dois - disse Meyer prudentemente - não porque estivesse preocupado (num
país onde não há homens, não há qualquer vergonha
em ser filho de pai incógnito), mas porque queria ver
que tipo de homem ele era.
- Qual foi a resposta dele?
- Nenhuma. Foi Nina quem respondeu. Disse:
"Depois de sabermos o que o futuro nos reserva, haverá tempo de sobra para sinos de boda, dottore."
- E Nerone?
Meyer baixou o olhar para as costas das mãos abertas como aranhas sobre a madeira quente da mesa.
Hesitou por um momento, depois disse:
- Lembro-me da parte seguinte com muita clareza.
Precisamente quando acreditava ter percebido o que
Nerone era (um passante da noite que não tardaria em
pôr-se a caminho antes de a madrugada raiar), mais
uma vez ele me surpreendeu.
- Como?
- Disse, muito simplesmente e a propósito de nada:
"Vai ser um Inverno mau, doutor. É melhor começarmos já os dois a preparar-nos para ele!"
.. Em tempos idos, antes de os homens serem levados, antes de a guerra começar a pender para o torto,
quando havia ainda uma autoridade e um objectivo na
terra, o Inverno fora suportável - quando não mesmo
um período feliz.
Havia carvão armazenado, vinho nas pipas e azeite
em grandes garrafões verdes. Os alhos pendiam em
tranças das vigas, as espigas de milho empilhavam-se a
um canto e havia batata enterrada em palha. Havia
queijo para comprar, salame, presunto fumado e lentilhas, e os moinhos tinham farinha para vender para a
pasta. Os alimentos estavam lá, mesmo que houvesse
que esgravatar no fundo dos bolsos para encontrar dinheiro para os comprar. Antes de as neves se cerrarem, as aldeias estabeleciam um comércio de trocas entre si;
e, quando o trabalho nos campos abrandava até parar completamente, a comuna dava um pequeno donativo a quem Lhe mantivesse as estradas limpas e o cascalho espalhado
nas vias cobertas de gelo.
Era uma vida - sem ser muito agradável, é certo -
mas, uma pessoa, quando se apegava a ela durante tempo suficiente, chegava a ouvir a torrente rugir, a cheirar
os primeiros ventos quentes do Sul e a sentir o gelo
derreter nas botas com a chegada da Primavera.
Mas naquela altura não havia homens, as colheitas
eram pobres e as requisições do chefe do quartel levavam a melhor parte. A troca comercial estava reduzida a nada, porque quem levaria a carroça do burro
até ao mercado, sujeitando-se aos ladrões, desertores
e patrulhas que infestavam os caminhos? Mais valia
ficar em casa e viver da própria gordura acumulada o
mais que se pudesse. Além disso, os rapazes começavam a voltar, desorientados, desiludidos e esfomeados - mais bocas para alimentar com as rações já tão parcas.
Já não havia governo. Os funcionários que se tinham mostrado pessoas razoáveis ficavam, na esperança de que os seus pagamentos chegassem ou, caso contrário, esperando
por uma pequena retribuição da sua bondade. Aqueles que tinham tido um comportamento malvado estavam de partida, reunindo-se a unidades ainda em acção ou vendendo-se
a si
mesmos, ou aos conhecimentos que tinham da localidade, aos destacamentos alemães que se deslocavam
para sul a fim de iniciarem o ataque ao 8º Exército
dos Aliados.
E em Gemelli dei Monti cheiravam o vento, sentiam
as primeiras rajadas de chuva, contavam as primeiras
geadas e diziam: "Vai ser um Inverno mau."
Giacomo Nerone também o disse, fria e enfaticamente, mas acrescentou mais algumas observações pessoais.
- O doutor e eu somos as únicas pessoas com alguma inteligência e influência por aqui. Teremos de encabeçar a organização.
Meyer fitou-o, embasbacado.
- Por amor de Deus, homem! Não sabe do que
está a falar! Você anda fugido! Eu sou um exilado político. Mal deitemos os pescoços de fora, eles fazem-nos cair o machado em cima.
- Eles quem, doutor? - perguntou-lhe Nerone, sorrindo.
- As autoridades. A polícia. Os carabinieri. O prefeito de Gemello Maggiore.
Nerone atirou a cabeça para trás e riu a bandeiras despregadas.
- Meu caro doutor! Esses tipos andam tão assustados neste preciso momento que só estão interessados
em salvar a própria pele. Já não vemos nenhum deles
por aqui há semanas. Além disso, é assunto que nos
diz respeito, não a eles. Nós mesmos tratamos disso.
- Tratamos de quê, por amor de Deus?
- Do problema elementar que será a sobrevivência
durante três meses. Temos de nos certificar de que todos arranjam alimentos e combustível suficientes para
se manterem vivos durante o Inverno. Temos de Lhes
arranjar mais medicamentos e tentar obter mais cobertores. Temos de improvisar uma loja central e zelar para
que as rações sejam distribuídas equitativamente...
- Você está louco! - declarou-lhe Meyer, sem
mais delongas. - Não compreende esta gente. Em
tempos normais são grandes sovinas, mas, quando há
fome, fazem lembrar aves de rapina. Preferiam comer
os fígados uns aos outros a deixarem uma côdea de
pão passar de uma casa para outra. A família é a única
coisa que conta. O resto pode apodrecer numa vala.
- Então ensinar-lhes-emos o passo seguinte - disse
Nerone calmamente. - Transformá-los-emos numa tribo.
- Não consegue fazê-lo.
- Já comecei.
- Começou uma ova!
- Tenho dez famílias que concordaram em ceder um
quarto das suas reservas alimentares para um armazenamento comum destinado ao Inverno. Cada uma destas
famílias vai tentar trazer mais uma para esta combinação. Nessa altura, o doutor e eu daremos uma volta e
tentaremos chamar à razão aqueles que ainda estiverem de fora.
- Não entendo como conseguiu fazê-lo.
Giacomo Nerone sorriu e encolheu os ombros.
- Falei com eles. Chamei-lhes a atenção para o facto de ainda irem aparecer mais requisições: italianas,
alemãs, dos Aliados. Quando as coisas piorarem, como
será inevitável no Inverno, passarão busca às casas à
procura de alimentos guardados. Não, enquanto as coisas vão bem é que temos de colaborar uns com os outros
e arranjar um local secreto para fazer de armazém colectivo. Disse-lhes que Nina e eu seríamos os primeiros
a fazer uma contribuição, como prova de boa fé, e que
depois formávamos uma comissão para administrar as
provisões. O doutor, eu e mais três. Dois homens e
uma mulher. Levou um bocado de tempo, mas no fim concordaram.
- Tenho vivido aqui durante todo este tempo - comentou Meyer sombriamente - e nunca fui capaz de
fazer nada que se parecesse com isso.
- Há que pagar um preço por isso, evidentemente.
Meyer fitou-o intrigado.
- Que preço?
- Ainda não sei - retorquiu Nerone pensativamente - mas creio que acabará por ser muito elevado...
-... Ele chegou a explicar o que queria dizer? -
perguntou Blaise Meredith.
- Não.
- O doutor pediu-lhe que explicasse?
- Pedi. - Meyer fez um trejeito melancólico com a
boca. - Mas mais uma vez foi Nina quem respondeu
por ele. Encontrava-se a seu lado na altura, recordo-me, e inclinou-se para lhe beijar o cabelo e depois segurar o rosto entre as mãos. A seguir disse: "Amo este
homem, dottore mio. Não tem medo de nada, e ele paga sempre as suas dívidas!"
- Isso satisfê-lo?
Meyer soltou uma risada e recostou-se à cadeira de
maneira a chegar ao jarro de vinho.
- Não está a perceber, monsenhor. Quando se vê
um homem e uma mulher naqueles termos e quando
nós próprios estamos apaixonados pela mulher, só
existe uma solução. E ela não está ao nosso alcance.
Levantei-me e fui para casa. No dia seguinte, Nerone
e eu voltámos a encontrar-nos e iniciámos os preparativos para o Inverno.
- E foram bem sucedidos?
- Fomos. Antes de as primeiras neves chegarem,
todos os que viviam em Gemello Minore tinham concordado com o plano e já estavam cerca de dez toneladas de mantimentos bem escondidas na Gruta do Fauno.
Recordações saltavam vivamente por trás dos olhos
pensativos de Blaise Meredith.
- A Gruta do Fauno... Foi onde o enterraram,
não foi?
- Foi onde o enterraram - repetiu Aldo Meyer.

CAPíTULO XI

Enquanto Blaise Meredith conversava, debaixo da figueira,
com o Dr. Aldo Meyer, Anne Louise de Sanctis sentava-se no
salão ornamentado da villa a falar com Nina Sanduzzi.
Levantara-se tarde, mas menos maldisposta do que o
habitual, e, quando o criado a informara de que Nina Sanduzzi
estava à sua espera juntamente com o filho, demorara um pouco
mais a tomar o pequeno-almoço e a fazer a ttoilette e a tagarelar dez minutos com Nicholas Black, que saíra depois para o jardim com a sua maleta de pinturas; dera
uma vista de olhos às contas domésticas e ao menu para a refeição da noite; depois instalara-se no salão e mandara um criado buscar Nina
Sanduzzi.
Naquele momento encontravam-se as duas sozinhas,
enquanto Paolo arrastava os pés de um lado para o outro, no
carreiro do lado de fora, entretendo-se a ver os jardineiros a
movimentarem-se acima e abaixo dos canteiros e o voo
preguiçoso de uma borboleta amarela por entre os maciços de flores.
A condessa estava sentada numa cadeira de costas altas,
com uma aparência fresca e cuidada, ligeiramente triunfante, as mãos placidamente pousadas no regaço, observando
atentamente o rosto inexpressivo da camponesa que se
mantinha de pé à sua frente, coberta do pó da estrada, pés nus
nas socas de madeira, mas direita e orgulhosa qual árvore à
espera das rajadas do vento.
- Compreende - disse Anne Louise de Sanctis -
trata-se de uma grande oportunidade para o rapaz. - Utilizou um tom formal e distante para indicar o
fosso profundo que existia entre a castelã e a serva.
- E trabalho - retorquiu Nina Sanduzzi calmamente. - Isso é bom para o rapaz. Se ele trabalhar
bem, também é bom para si.
- Qual é a opinião dele sobre o assunto? Está satisfeito por vir para aqui?
- Quem pode adivinhar o que um rapaz sente? Está aqui. Está pronto para começar a trabalhar.
- Ainda não discutimos o pagamento.
- O dottore disse que a senhora pagaria o que é costume.
Nina Sanduzzi encolheu os ombros com indiferença.
Anne Louise de Sanctis sorriu benevolamente.
- Faremos melhor do que isso. O Sr. Black diz-me
que o seu filho é inteligente e cheio de vontade. Pagar-Lhe-emos o salário de um homem.
- Por um trabalho de homem, óptimo! Desde que
seja trabalho de homem!
A resposta foi mordaz, mas a condessa, por não conhecer bem o dialecto, não Lhe apreendeu o sentido
oculto. Continuou a falar, espirituosa e condescendente.
- Se o rapaz trabalhar bem e mostrar qualidades,
pode ser que venhamos a fazer muito por ele: dar-lhe
uma educação, ajudá-lo a ter uma carreira, enviá-lo
para Roma, talvez.
Nina Sanduzzi anuiu pensativamente, mas os seus
olhos continuavam velados e inexpressivos como os de
um pássaro. Limitou-se a dizer:
- O pai era um homem educado. Costumava dizer
que primeiro há que educar o coração e só depois a cabeça.
- Com certeza - disse a condessa, com vivacidade
forçada. - O pai! Giacomo Nerone foi seu amante,
não é verdade?
- Ele foi o homem que eu amei - disse Nina Sanduzzi. - Ele amava-me e amava o rapaz.
- Estranho que nunca tenha casado consigo.
Não houve qualquer lampejo de emoção nos olhos
impávidos e no rosto calmo. A frase ficou suspensa no
silêncio que se gerou entre ambas. Anne Louise de
Sanctis estava irritada. Sentia ímpetos de atacar a outra mulher e deixar-lhe a marca dos dedos nas faces
cor de azeitona. Mas era uma indulgência a que não
podia permitir-se, obrigada que estava à diplomacia e
a uma aliança de sorrisos e dissimulação. Declarou
com brusquidão:
- O rapaz ficará aqui alojado, evidentemente. Terá
alimentação e será confortavelmente instalado. Pode
tê-lo em casa aos domingos.
- Falei com o monsenhor de Roma - disse Nina
Sanduzzi tranquilamente. - Pedi-lhe que conversasse
com o rapaz e o ajudasse. Ele está a viver anos complicados.
- Não devia ter incomodado Monsenhor Meredith - ripostou-lhe a condessa rispidamente. - É um
homem doente e anda atarefado com muitos assuntos importantes!
- Anda atarefado com o meu Giacomo, senhora.
E que poderia haver de mais importante do que o filho
de Giacomo? Além disso, o monsenhor disse que teria
muito prazer em ajudar.
- Pode retirar-se - disse a condessa. - Deixe o
rapaz aqui, o jardineiro indicar-lhe-á o que deve fazer.
Nina Sanduzzi não esboçou nenhum gesto para se
retirar. Em vez disso, inclinou-se e pegou no cesto de
palha com que andava sempre. Procurou no interior
deste, tirou um pequeno embrulho de papel e entregou-o à condessa.
- Que é isto?
- O meu filho vem trabalhar para a sua casa. Não
deve apresentar-se de mãos vazias. É um presente.
A graça simples do gesto embaraçou a condessa.
Recebeu o pacote e disse desajeitadamente:
- Obrigado. Posso perguntar o que é?
- Nós somos gente pobre - disse Nina Sanduzzi cautelosamente. - Damos do nosso coração, e não da nossa riqueza. Pode ser que algum dia Giacomo venha a ser um beato,
e nessa altura isso será precioso para si. É do que ele usava quando o mataram. Tem o seu sangue. Gostaria que ficasse para si, da parte do seu filho!
Anne Louise de Sanctis nada respondeu, limitando-se a ficar sentada a olhar hipnoticamente para o embrulho, o rosto mortalmente pálido, movendo os lábios
num murmúrio surdo. Quando, passado um longo momento, voltou a erguer os olhos, Nina Sanduzzi já se
retirara e havia apenas a luz do Sol a entrar obliquamente, atravessando partículas de poeira, e a visão de
um pedaço de relvado verde onde um rapaz caminhava
ao lado de um jardineiro - um rapaz que poderia ter
sido seu filho.
Aldo Meyer e monsenhor Blaise Meredith tinham-se
levantado da mesa e caminhavam, lado a lado, para
cima e para baixo, ao longo do carreiro coberto de lajes que se estendia a todo o comprimento do jardim.
Passavam alternadamente da luz para a sombra e os
seus sapatos faziam um som seco e sonoro nas pedras.
- Chegados a este ponto - disse Meredith no seu
tom preciso de homem de leis - que temos? Um homem em fuga, um homem apaixonado, um homem que assume a liderança e a responsabilidade pela comunidade que Lhe deu
refúgio. O seu passado é um mistério. O seu futuro uma dúvida na sua própria
mente. O seu presente... o que o doutor me contou.
Não dispomos de indicações quanto à sua crença religiosa ou à sua atitude moral. Aparentemente, está a
viver em pecado. Os seus actos, bons na essência, não
têm valor espiritual. Agora... - Deu um pontapé num
pequeno seixo e ficou a vê-lo precipitar-se em direcção
ao muro rudimentar de pedra. - Agora vejamos, segundo os meus registos, ele chega a uma situação de
crise, na qual, ou em resultado da qual, se afasta da sua mulher e se vira para Deus. Que sabe acerca desse facto?
- Talvez menos do que deveria - disse Meyer deliberadamente. - Certamente muito menos do que Nina, com quem falará esta tarde. Mas sei alguma coisa.
Dou-lho a conhecer sem Lhe acrescentar nada...
.. O Inverno foi mais duro do que alguma vez sonharam ser possível. A neve chegou dos altos picos de
oeste, sob a forma de tempestades cerradas; amontoou-se ao longo das estradas e em tudo o que era
reentrâncias. Cortou os caminhos da montanha, partiu
os ramos às oliveiras e formou montes contra as portas
das casas. Transformou-se em gelo duro e o vento soprou-lhes as partículas mais finas, deixando-lhes saliências de gelo aguçadas que faziam lembrar ondas picadas
num mar branco morto. Depois chegaram novas acalmias, seguidas de novos nevões, que depositaram uma camada macia sobre a geada endurecida que estava por baixo.
A sul, os exércitos envolvidos sustinham armas, esperando pelo degelo. As patrulhas acampadas nas colinas perdiam homens devido ao frio e à gangrena. Os vagabundos
e os desertores batiam às portas durante a noite e se estas não Lhes eram abertas, morriam na neve antes de o dia raiar.
No interior das casas, as famílias apertavam-se nas
enormes camas de ferro, em busca de calor, levantando-se apenas para satisfazer as necessidades, ou ir buscar o comer e fazer café, porque o carvão armazenado
tinha de ser poupado, o chão de terra estava enregelado e o vento procurava a todo o custo esgueirar-se por
entre as frinchas das portas e os caixilhos rudimentares
das janelas atafulhadas de lama e jornais velhos. Os
idosos tossiam e gemiam com o frio que Lhes tolhia as
articulações com reumatismo; os jovens agitavam-se
com as bochechas vermelhas, as gargantas doridas e os
peitos congestionados; e, quando algum deles morria, era carregado para fora de casa e enterrado na neve
até vir o degelo - porque quem faria caixões com
aquele tempo pavoroso, quem cavaria o campo santo
quando o solo se apresentava duro como granito?
Viviam como animais em hibernação, cada habitação transformada numa ilha num mar de neve, aproveitando o calor dos corpos uns dos outros, em contacto estreito com
os odores de cada um, mastigando cegamente a côdea comum, interrogando-se debilmente sobre quanto tempo mais durariam e se mais alguma vez haveria outra Primavera.
Se alguém batia à porta, faziam de conta que não ouviam. Quem senão ladrões, loucos ou esfomeados andaria lá por fora com aquele tempo? Se as batidas eram
persistentes, praguejavam em coro até elas finalmente
pararem e ouvirem as passadas afastar-se ruidosamente pela neve gelada. Havia somente uma pancada que
conheciam e uma voz à qual respondiam - a de Giacomo Nerone.
Não havia dia em que ele não passasse, fazendo a
ronda pelas casas - um gigante de barba negra, sorridente, com as botas envolvidas em sacos e o corpo coberto por camadas de farrapos e, na cabeça, um gorro
improvisado com uma meia de Nina. às costas levava
um velho saco da tropa, cheio de rações, os bolsos a
abarrotar de aspirinas, um frasco de óleo de fígado de
bacalhau e uma miscelânea de medicamentos.
Quando chegava a uma casa, ficava apenas o tempo
que era preciso, nunca mais. Passava-lhes em revista
as provisões de alimentos, examinava os doentes, medicava-os quando podia, cozinhava um caldo para os
que se encontravam incapacitados, limpava as imundícies acumuladas e depois seguia o seu caminho. Mas
antes de partir tinha sempre cinco minutos para transmitir notícias e cumprimentos e alguns minutos para
uma piada que os deixasse a rir, quando saísse de novo
para a desolação que reinava no exterior. Se precisassem de Meyer, ele trá-lo-ia. Se o que lhes fazia faltaera um padre, tentava arranjar um - operação que era bastante
mais complicada, desde que o padre Anselmo envelhecera, perdera o vigor e não tinha vontade de se mexer, além de que o jovem cura de Gemello Maggiore tinha as mãos
demasiado ocupadas com os seus próprios moribundos.
A sua última visita do dia era sempre a Aldo Meyer.
Bebiam um dedal de grappa, trocavam impressões e
depois Nerone mergulhava colina abaixo em direcção
à cabana de Nina.
A princípio mostrou-se entusiasmado e exultante
diante daquele desafio à sua força e vitalidade. Então,
quando Dezembro deu lugar a Janeiro sem que o Inverno abrandasse, começou a andar nervoso e preocupado, nada de mais natural num homem que dormia pouco e pensava
muito. Meyer incentivou-o a descansar, a ficar alguns dias em casa com Nina, mas ele recusou-se terminantemente a fazê-lo, parecendo,
depois disso, dedicar-se à sua missão ainda com maior ímpeto.
Então, certa noite, já era tarde e novo vento começara a soprar para piorar a situação, Giacomo entrou
em casa de Meyer, deixou cair a sua mochila no chão,
bebeu a grappa de um só gole e disse abruptamente:
- Meyer! Quero falar consigo!
- Já é costume - redarguiu Meyer suavemente. -
Que há de diferente esta noite?
Nerone ignorou a ironia e continuou.
- Nunca Lhe contei por que razão vim para cá, pois não?
- São coisas suas. Não era obrigado a dizer-me.
- Pois gostaria de Lho contar agora.
- Porquê?
- Preciso.
- É uma boa razão - disse Meyer, com um sorriso.
- Diga-me... acredita em Deus, Meyer?
- Fui educado na Sua crença - respondeu Meyer,
ficando de sobreaviso. - Os meus amigos fascistas fizeram os possíveis para me convencer do contrário. Digamos que encaro a questão com um espírito aberto. Porque
pergunta?
- Sou capaz de começar a dizer-lhe disparates.
- Um homem tem o direito de dizer disparates
quando sente necessidade de tal.
- Está bem. Tire as conclusões que quiser. Sou inglês, como sabe. Sou oficial, o que não sabia.
- Calculava.
- Também sou desertor.
- Que quer que diga? - perguntou Meyer, com
um bom humor seco. - Até que ponto o desprezo?
- Não diga nada, por amor de Deus. Limite-se
a escutar. Eu estava na guarda avançada do ataque a
Messina. Era o último reduto por conquistar na Sicília.
Para nós não apresentava dificuldade. A vossa gente
estava derrotada. Os alemães começavam a recuar a
toda a pressa. Não passava de uma operação de limpeza. A minha companhia recebeu ordens para passar a
pente fino os oitocentos metros quadrados de barracas
que se estendiam até às docas. Atiradores acoitados,
algum posto de metralhadora... nada. Havia um beco,
com as janelas voltadas para nós e um atirador na de
cima. Manteve-nos parados durante dez minutos, à entrada do beco. Depois achámos que Lhe tínhamos acertado. Avançámos. Quando chegámos à casa, segui a rotina habitual
e gritei uma ordem de rendição. Houve novo tiro, desta vez da janela de baixo. Apanhou um dos meus rapazes. Atirei uma granada pela dita janela, esperei pela explosão
e depois entrei. Encontrei o atirador, um velho pescador com a mulher e uma criança
de berço. Todos mortos. O bebé apanhara a deflagração em cheio...
- Acontece na guerra - disse Meyer friamente. -
É o elemento humano. Não tem nada a ver com Deus.
- Eu sei - retorquiu Giacomo Nerone. - Mas eu
fui o elemento humano. É capaz de entender?
- Sim, entendo. Portanto, achou que chegava para si. Cumprira a missão para que fora pago. A sua guerra chegara ao fim. Correcto?
- Mais ou menos.
- Fugiu. Mas para onde esperava ir?
- Não fazia ideia.
- Porque veio para aqui?
- Também não sei. Chame-lhe uma obra do acaso, se quiser.
- Você acredita em Deus, Nerone?
- Antigamente acreditava. Depois, durante muito
tempo, deixei de o fazer.
- E agora?
- Não me pressione, homem! Deixe-me contar tudo!
Meyer encolheu os ombros e deitou uma quantidade
extravagante de grappa no copo de Nerone. Ao vê-lo
protestar, disse com um humor frio:
- In vino veritas. Beba.
Nerone agarrou no copo com as mãos trémulas e bebeu sofregamente, depois limpou a boca gretada com
as costas da mão. Disse sombriamente:
- Quando conheci Nina, ela representou um refúgio. Quando nos apaixonámos, foi mais... uma espécie
de absolvição. Quando engravidou, senti como se tivesse desfeito o que fizera; voltar a pôr uma nova vida
no lugar daquela que destruíra. Quando começámos a
fazer algo por esta gente, foi a minha maneira de reparar o que fiz ao velho pescador e à mulher... Não foi o
suficiente. Continua a não ser.
- Nunca é - comentou Aldo Meyer. - Mas que
tem Deus a ver com isso?
- Se não tem, não passa tudo de uma brincadeira
monstruosa. A morte nada significa, a reparação ainda
menos. Somos formigas sobre a carcaça do mundo, gerados sem objectivo, movimentando-se atarefadamente
para lado nenhum. Um de nós morre, os outros rastejam-lhe para cima em busca dos restos. Todo este vale
poderia enregelar até morrer que tal nada significaria,
absolutamente nada... Mas se Deus existe... tudo se torna monstruosamente importante... cada vida, cada morte...
- E a reparação?
- Não tem qualquer significado - respondeu Nerone sombriamente - a não ser que uma pessoa se dê a
si própria como parte dela.
- Anda a vogar em águas fundas, meu amigo -
alertou Aldo Meyer suavemente.
- Eu sei - retorquiu-lhe Nerone, em voz desprovida de qualquer inflexão. - Estou prestes a afogar-me nelas.
Meteu a cabeça entre as mãos e começou a passar os
dedos pelo meio do cabelo. Meyer aproximou-se e
sentou-se na beira da mesa, dizendo com bom humor:
- Deixe-me dar-lhe um pequeno conselho, meu
amigo, um conselho médico. Anda a dar cabo de si
com a fadiga e a subalimentação. Nunca teve bem a
certeza de que procedeu bem ou mal em se afastar da
sua guerra; e, por estar fatigado, começa a preocupar-se com o facto. Fez um bom trabalho por todos nós
aqui e ainda continua a fazê-lo. Agora, de repente,
fica preocupado com Deus. Se me dá licença que o
diga, metade do misticismo insignificante do mundo
provém de dificuldades digestivas, excesso de trabalho,
horas de sono insuficientes ou falta de satisfação sexual. Se quer um conselho de médico, fique em casa
e brinque aos recém-casados com Nina durante alguns dias. Arranjem uma raçÃo extra e permitam-se uma festa.
Nerone fitou-o com o rosto escuro e barbudo descontraído num sorriso.
- Sabe, Meyer, é aí que todos vocês, os liberais,
cometem o vosso erro. É por isso que no século xx
já não há lugar para vocês. Só têm duas coisas a fazer
em relação a Deus: reconhecê-Lo como os católicos ou
negá-Lo como os comunistas. Vocês querem reduzi-Lo
a uma dor de barriga ou a um tema de conversa para
durante o café e os charutos. O doutor é judeu. Tinha obrigação de saber que as coisas não são assim tão
simples.
- E que é o senhor? - perguntou Meyer, exasperado.
- Dantes era católico.
- O seu problema é esse - disse Meyer, à laia de
conclusão. - Poderá dar um bom comunista, mas
nunca poderá ser um bom liberal. No fundo não passa
de um absolutista. Tem a religião encravada no espírito e carregará com ela até ao dia em que morrer...
Mas a minha receita mantém-se.
- Pensarei nela, doutor. Tenho de pensar nela,
muito cuidadosamente.
.. Meredith deteve as suas passadas e manteve-se
por um momento à sombra da figueira, desfiando pensativamente uma das folhas grossas e rijas e sentindo a
seiva peganhenta nos dedos. Passado um bocado disse:
- Este é o primeiro vislumbre que obtenho de um
aspecto que se procura sempre em cada história de
uma causa: a entrada de Deus nos cálculos de um homem, o início da aceitação das consequências da crença, o início de uma relação Criador e criatura. Se esta
situação se mantém...
- Ocorre periodicamente - disse Meyer lentamente. - Mas a minha história tem falhas. Terá de as preencher recorrendo a outras testemunhas, como Nina Sanduzzi.
- Se houvesse escritos - observou Meredith pensativamente - constituiriam uma grande ajuda. Poderia
apreciar-se uma atitude pessoal que explicaria as relações exteriores.
- Existem escritos, monsenhor. Estão em meu poder.
Meredith fitou-o, surpreendido.
- São muitos?
- Tenho um embrulho de tamanho considerável.
Ainda não o abri. Foi Nina quem mo entregou.
- Posso vê-los?
- Se não se importa de esperar um bocado - concordou Meyer desajeitadamente. - Eu próprio ainda não os li. Tenho tido receio deles, um receio muito parecido com
aquele que tem em relação ao seu pedido de um milagre. Algures entre eles talvez esteja a resposta a muitas das perguntas que me importunam há
muito tempo. Até agora não tinha bem a certeza se
desejava saber a resposta. Gostaria de os ler esta tarde, enquanto o monsenhor for falar com Nina. Depois
entregar-lhos-ei amanhã, juntamente com o resto das
minhas próprias provas. Está bem assim?
- Certamente. Leve mais tempo, se vê que precisa.
- É quanto basta - retorquiu Meyer, com um sorriso fatigado. - É um bom confessor, Meredith. Ainda bem que falei consigo.
Os olhos de Meredith deixaram transparecer um brilho de prazer circunspecto. Disse:
- Se ao menos soubesse até que ponto me sinto satisfeito por ouvi-lo fazer semelhante observação.
Meyer fitou-o com estranheza.
- Porquê, monsenhor?
- Pela primeira vez na minha vida, suponho, começo
a estar próximo das pessoas. Pensar em todo o tempo
que desperdicei aterroriza-me, e no pouco que me resta.
- Depois - observou Meyer, com ar sombrio - ficará perto de Deus.
- Aí tem o que me aterroriza acima de tudo - disse Blaise Meredith.
No canto mais afastado dos terrenos da villa, Paolo
Sanduzzi trabalhava, serrando uma oliveira caída, para
lenha. O jardineiro-chefe, indivíduo taciturno, ele próprio curtido pelo tempo e escuro como uma árvore,
deixara-o ali com a indicação breve de que devia manter as mãos afastadas dos bolsos e trabalhar, para merecer a sua ração, tendo toda a árvore cortada em madeira
e esta amarrada aos molhos antes do pôr do Sol.
Sentia-se satisfeito por estar sozinho. O lugar era novo e estranho. Era o seu primeiro trabalho de adulto e tinha as mãos desajeitadas e inexperientes. Vê-los a
rir-se
dele teria sido uma agonia, e precisava de tempo para
apanhar o ritmo à ferramenta que estava a utilizar, assim
como o idioma daquela vida entre os signori.
Despira a camisa, porque o sol estava quente, e depois de cortar os galhos com uma machada, lançara-se
à tarefa de serrar os ramos principais. A madeira estava seca e era fácil de cortar, mas ele sentia-se demasiado ansioso e a serra emperrava-se-lhe e vibrava-lhe
nas
mãos; até que, a pouco e pouco, começou a apanhar-Lhe o jeito e os dentes morderam certeiramente a madeira, enquanto a serradura caía sobre as folhas a seus pés.
Gostava do som que fazia e do cheiro, assim como do sabor salgado do suor a escorrer-lhe pelo rosto, até
aos cantos da boca.
Teria sido agradável ter Rosetta ali sentada junto
dele para conversarem e ela admirar a sua perícia, mas
a jovem só viria no dia seguinte e nessa altura ficaria
na cozinha com a cozinheira, ou a limpar o pó e a polir
na villa, em companhia das restantes criadas. Dormiria
nas instalações destinadas às mulheres, partilhando a
cama com uma das moças novas, enquanto a ele lhe
caberia o seu lugar próprio - um cubículo estreito ao
lado da cabana das ferramentas, com um colchão de
palha, uma cadeira e uma caixa com uma vela em cima. Mas teriam as refeições para se encontrar e falar e
os domingos para passear, e quem sabe se na hora da
sesta seria possível passarem algum tempo juntos.
Quando ela ali estivesse, ele sentir-se-ia melhor, menos constrangido e receoso da condessa, que ainda não
encontrara, e do inglês, a quem já encontrara demasiadas vezes.
Agora, que o seu segredo era conhecido e partilhado com o médico, agora, que sabia mais acerca de seu
pai, sentia-se mais seguro, mais senhor de si. O facto
de ser filho bastardo deixara de ser um mistério aterrador, e sentir-se atraído pelo inglês não era, ao que parecia, nada de tão estranho como imaginara. Talvez
até conseguisse arranjar maneira de concretizar o seu desejo mais ardente: sacudir o pó da aldeia das suas sandálias e ir para Roma, onde o papa e o presidente viviam
e as ruas se mostravam cheias de fontes,
todas as pessoas tinham automóvel, as raparigas usavam roupas e sapatos elegantes e todas as casas tinham
água corrente e, por vezes, até mesmo banheira e sanita.
Fora daquelas maravilhas que o pintor Lhe falara muitas vezes, e a sua magia ainda se fazia sentir fortemente nele. Ele dera o primeiro passo. Deixara a aldeia e
penetrara no mundo verde e restrito da villa. Roma estava muito mais próxima, muito mais acessível.
Pensando em Roma, lembrou-se naturalmente de
Nicholas Black, com os seus olhos trocistas e a boca
retorcida num sorriso que podia levar uma pessoa a
sentir-se ou um homem ou uma criança, da mesma
maneira que podia prometer todos os tipos de revelações sem proferir uma palavra. A impressão era
tão vívida que, ao ouvir um galho quebrar-se nas suas
costas, se voltou, sobressaltado, esperando ver o inglês atrás de si.
Mas em vez do inglês era a condessa que ali estava,
esplendorosa como uma borboleta, num novo vestido
primaveril, com um chapéu de abas largas escarlate a
proteger-lhe o rosto do sol.
Sem saber o que fazer ou dizer, o rapaz deixou-se ficar de boca aberta, os braços caídos ao longo do corpo,
sentindo o suor a escorrer-lhe pelo rosto e pelo peito,
não se atrevendo, porém, a mover-se para o limpar.
Nessa altura, ela sorriu-lhe, também com os olhos.
- Assustei-te, Paolo?
- Um pouco - murmurou o rapaz desajeitadamente.
A condessa acercou-se um pouco mais e olhou em
redor, reparando na madeira serrada.
- Tens estado a trabalhar arduamente, pelo que vejo. Isso é óptimo. Se trabalhares bem para mim, Paolo, nunca te arrependerás.
- Farei os possíveis, senhora.
O sorriso dela deu-lhe confiança, e, quando a viu
afastar as saias para se sentar no tronco caído da oliveira, agiu sob um impulso inesperado e estendeu-lhe
a camisa sobre a casca rugosa.
- A árvore está suja, senhora. Ainda estraga o seu vestido.
- Que rapaz encantador! - murmurou Anne Louise de Sanctis. - Esse é um dos tais gestos que o teu
pai teria. Sabias que eu conheci o teu pai?
- O meu pai trabalhou para si, senhora?
- Santo Deus, não! - A condessa soltou uma risada sonora e cristalina. - O teu pai era meu amigo.
Costumava vir até cá de vez em quando para me visitar. Ele era um signore, um grande signore!
Paolo sentiu uma vergonha súbita por estar ali na
qualidade de criado, enquanto seu pai se passeara naquele mesmo sítio como convidado da casa. Antes que
tivesse tempo para responder, a condessa continuou a falar.
- Foi por isso que te trouxe para aqui, em deferência para com o teu pai. Mr. Black diz-me que tu és inteligente e aprendes com facilidade. Se for verdade,
talvez possamos fazer de ti um cavalheiro como o teu pai era.
Paolo reparou que não faziam menção da sua mãe,
e mais uma vez, sentiu vergonha dela, com o seu dialecto rude, as roupas grosseiras e os pés nus e cobertos
de poeira. Respondeu rapidamente:
- Gostaria muito, senhora. Trabalharei bem, prometo.
Depois, estimulado pelo sorriso aprovador da condessa, acrescentou:
- Sei muito poucas coisas acerca do meu pai. Como
é que ele era?
- Era inglês - respondeu a condessa. - Tal como
eu, o Sr. Black e o monsenhor de Roma.
- Inglês! - Parecia não acreditar no som da própria voz. - Isso significa que também sou meio inglês!
- Exacto, Paolo. A tua mãe nunca te contou?
O rapaz abanou negativamente a cabeça.
- Nem sequer te diz até que ponto te pareces com ele?
- às vezes. Mas raramente.
- É mais uma das razões que me levam a querer
que te saias bem aqui. Farei que vás para uma escola
em Valenta, aprendas a ler, a escrever e a falar como
deve ser, a vestir-te bem. Depois, quem sabe, talvez
também te possas tornar meu amigo. Gostarias?
- E poderia ir para Roma?
- Claro! - A condessa sorriu-lhe. - É um grande
desejo teu, não é?
- Muito grande, senhora!
- Poderei pedir ao Sr. Black que te leve até lá de
visita.
A condessa continuava a sorrir, mas nos olhos aparecera-lhe uma advertência estranha. Sem perceber
exactamente porquê, Paolo disse rapidamente:
- Preferia muito mais ir consigo.
Ao abrir os braços no característico gesto de apelo do
Sul, a condessa agarrou-lhe nas mãos e aproximou-o
dela de modo que ficasse meio de joelhos e meio de
cócoras, a seus pés. O perfume dela envolvia-o e ele
podia ver-lhe os seios a elevarem-se e baixarem por
trás do tecido fino do vestido. Ela tomou-lhe o rosto
entre as mãos e inclinando-o para cima, na sua direcção, disse suavemente:
- Antes de o fazer, Paolo, terei de confiar em ti.
Terás de aprender a guardar segredos. Nada de mexericos com as pessoas da aldeia, nem sequer com o monsenhor ou o Sr. Black.
- Guardarei, senhora. Prometo.
- Então iremos pensar no assunto, Paolo. Mas nem
uma palavra, nem sequer à tua mãe.
- Nem uma palavra.
Paolo sentia-lhe as mãos macias e perfumadas no rosto e teve a nítida impressão de que a condessa sentia
vontade de se inclinar para o beijar; mas nesse mesmo instante ouviu-se um som de passadas nas suas costas e a voz suave de Nicholas Black dizer:
- Francamente, cara! Não tens vergonha nenhuma.
O rapaz ainda nem sequer perdeu os dentes de leite e
tu já a tentares seduzi-lo.
- Ninguém melhor do que tu para me falar de sedução, Nicki!
As palavras eram em inglês e Paolo não as entendeu; mas quando ergueu os olhos para o rosto afilado
de sátiro do pintor e para o da condessa, ruborizado
de raiva, sentiu-se encurralado - como um rato a um
canto, entre dois gatos prontos a saltar
Pouco depois do meio-dia, Blaise Meredith regressou à villa para se lavar e descansar antes do almoço.
Não estava insatisfeito com a sua manhã de trabalho.
Meyer era uma boa testemunha e as suas recordações
revelavam-se desapaixonadas mas vívidas, ao ponto
de, desde que aquela missão Lhe fora confiada, Meredith começar a encarar Giacomo Nerone como um homem, e não como uma lenda.
Teria preferido almoçar com Meyer, podendo deste
modo continuar a falar acerca do período crítico que
a vida de Nerone conhecera a seguir. Mas Meyer não
o convidara e Meredith teve a impressão de que o médico necessitava de tempo para se recobrar e de intimidade para iniciar a leitura dos papéis do falecido.
Ao deitar-se a descansar na cama, sentiu a dor familiar na boca do estômago, não sabendo como se comportar durante a refeição com a condessa e Nicholas Black.
Agora, que sabia que a condessa era uma mentirosa e
que ambos não passavam de um par de conspiradores,
a sua posição era-lhe extremamente desagradável. Como hóspede da casa, cabia-lhe mostrar-se discreto e
cortês. Como sacerdote, não podia tornar-se, nem
mesmo pelo silêncio, conivente na corrupção de uma
criança. Como advogado do Diabo, viera até ali em
busca de provas e necessitava da colaboração das suas
testemunhas.
Mais uma vez, como acontecera em casa do padre
Anselmo, o caso de Giacomo Nerone perdeu a importância. Ali havia almas em risco, e, se o sacerdócio significava algo, esse algo era o apoio das almas. Uma
constatação simples, mas um empreendimento complexo. Agitar os mandamentos à laia de cacete sobre a cabeça das pessoas não servia de nada. Não valia a pena ameaçar
de condenação eterna um homem que já estivesse a caminhar para o inferno pelos seus dois pés. Havia que implorar a graça de Deus e depois lançar-se na busca, como
um bom psicólogo, do medo
que pudesse condicioná-lo ao arrependimento ou do
amor que pudesse atraí-lo para aquele. Mesmo nesses
casos, havia que esperar pelo local e momento mais
propícios - e, ainda assim, podia acabar por se falhar.
Quando o nosso próprio corpo e mente se encontram
enfermos, essa dificuldade é a dobrar.
Quando a hora do almoço chegou, Meredith levantou-se, penteou-se, vestiu uma batina de Verão, mais
fresca, e desceu o terraço, dirigindo-se à zona do toldo
de riscas. Nicholas Black já estava sentado, sozinho,
à mesa. Acenou-lhe alegremente e disse:
- A condessa pede desculpa por não vir. Está com
uma enxaqueca. Almoçará no quarto. Espera jantar connosco.
Meredith acenou com a cabeça e sentou-se; um criado abriu-lhe imediatamente o guardanapo e serviu-lhe
os copos que tinha em frente com vinho e água gelada.
- Teve uma boa manhã, monsenhor? - perguntou o pintor.
- Muito boa. Muito informativa. O Dr. Meyer é
uma testemunha excelente.
- Um tipo esperto. Admira-me que não tenha feito
mais por ele próprio.
Meredith não ligou à insinuação. Não tinha vontade
de acompanhar o seu antipasto com uma discussão.
Black concentrou-se no seu prato, beberricou o seu
vinho e ambos comeram em silêncio durante algum
tempo. A certa altura, o pintor perguntou novamente:
- Como vai a sua saúde, monsenhor?
- Na mesma, receio bem. Meyer traçou-me um
prognóstico pior do que aquele com que contava. Três
meses, diz ele.
- Tem muitas dores?
- Bastantes.
- Em três meses - observou o pintor - dificilmente terá tempo para terminar o seu caso.
Meredith sorriu melancolicamente.
- Penso que não. Felizmente, a Igreja não gosta de
se apressar nestas matérias. Mais século, menos século, não importa.
- E, no entanto, tenho a impressão de que o monsenhor está ansioso por avançar com o assunto.
- As testemunhas estão disponíveis - retorquiu-lhe
Meredith friamente. - Algumas mostram-se cooperantes. Quantos mais testemunhos conseguir recolher agora,
melhor para todos. Além disso... - Limpou uma migalha do canto da boca pálida. - Quando os nossos limites ficam determinados, de repente tomamos consciência do pouco
tempo que resta. "Quando o homem deixa de poder trabalhar, a noite chega."
- Tem medo da morte, monsenhor?
- Quem não tem?
- Pelo menos é sincero. Muitos dos seus colegas
não o são, como sabe.
- Muitos deles ainda não tiveram de encarar a realidade - observou Meredith secamente. - E o senhor, já teve?
Black soltou uma risada e bebeu um grande gole de
vinho, recostando-se depois na cadeira, enquanto o
criado mudava os pratos que tinha diante de si. Em
tom de desculpa disse, trocista:
- Estou a brincar consigo, monsenhor. Perdoe-me.
Meredith inclinou-se sobre o seu peixe e não respondeu. Instantes mais tarde viram Paolo Sanduzzi sair do
maciço de arbustos e atravessar o relvado em direcção
à cozinha. O pintor ficou a mirá-lo e Meredith fitou o pintor com olhar discreto e avaliador. Depois de o rapaz desaparecer na esquina da casa, Black concentrou-se
de novo na mesa e disse com ar casual:
- Rapaz encantador. Um David clássico. Pena que
tenha de se perder numa aldeia como esta. Será que a
Igreja não pode fazer alguma coisa por ele? Não se pode
permitir que o filho de um beato ande por aí atrás de
saias e a meter-se em sarilhos com a polícia como qualquer outro rapazola, não é verdade?
O descaramento impudente do homem foi superior
às forças de Meredith. Pousou o garfo e a faca com
ruído e disse, com precisão e frieza:
- Se o rapaz está corrompido, Mr. Black, a responsabilidade deve ser sua. Porque não se vai embora e o
deixa em paz?
Para sua surpresa, o pintor atirou a cabeça para trás e riu.
- Meyer deve ter sido uma testemunha muito colaborante, pelo que vejo, monsenhor. Que mais Lhe disse ele acerca de mim?
- Não basta? - perguntou Meredith calmamente. - Está a cometer um acto detestável. Os seus vícios privados são problema a resolver entre si e o Todo-Poderoso. Mas,
ao lançar-se na corrupção deste rapaz,
está a cometer um crime contranaturo...
Mal acabara de falar quando Black atalhou rapidamente:
- Já me julgou, não é verdade, Meredith? Reuniu
toda a má-língua que anda a circular na aldeia sobre
mim e condenou-me, mesmo antes de ouvir uma palavra em minha defesa.
Meredith ruborizou-se. A acusação aproximava-se
incomodativamente da verdade. Disse calmamente:
- Se o julguei mal, Mr. Black, lamento profundamente. Ficaria imensamente satisfeito se o ouvisse negar estes... estes boatos.
O pintor riu amargamente.
- Quer que me defenda perante si? Raios me partam se o farei, monsenhor. Em vez disso enfrentá-lo-ei no seu
próprio terreno. Partamos do princípio de que sou o que todos
me chamam: um homem anormal, um corruptor da juventude.
Que é que a Igreja tem para me oferecer em termos de fé,
esperança e caridade? - Estendeu um dedo esguio e acusador
ao padre. - Compreendamo-nos, Meredith. O senhor pode fazer
bluff com os seus penitentes e encantar as suas congregações
dominicais, mas não me consegue enganar a mim! Eu próprio
tenho sido católico e conheço toda essa rotina falsa. Sabe
porque abandonei a Igreja? Porque ela responde a todas as
malfadadas perguntas que se fazem habitualmente, excepto
àquela para a qual precisamos de resposta... "Porquê?" O
senhor diz-me que estou a cometer um crime contranaturo,
porque imagina que gosto deste rapaz e pretendo tê-lo para
mim. Analisemos a questão. Se puder dar-me uma resposta,
satisfatória, prometo-lhe uma coisa: faço as malas e parto no
primeiro transporte disponível. Concorda?
- Não posso regatear consigo - disse Meredith
asperamente. - Escutarei e tentarei responder. É tudo.
Nicholas Black riu grosseiramente.
- Já está a ficar nervoso, vê. Mas, ainda assim, a combinação fica feita. Estou a par de toda a vossa argumentação no que se refere ao uso e abuso do corpo. Deus
fê-lo acima de tudo para a procriação dos filhos e depois para o comércio do amor entre o homem e a mulher. E fica por aí. O pecado, segundo a Natureza, é um acto
de excesso do instinto natural... como dormir com uma rapariga antes do casamento ou cobiçar a mulher do próximo. Desejar um rapaz da mesma maneira é um pecado contra
a Natureza... - Sorriu sardonicamente perante o rosto pálido e atento do sacerdote. - Surpreendo-o, Meredith? Também eu me atafulhei das teorias de S. Tomás de Aquino.
Mas há uma falha, e aí é que agradeço que me esclareça. É quanto à minha natureza. Nasci tal como sou. Era
gémeo. Se visse o meu irmão antes da sua morte, encontraria o exemplo do macho perfeito, do macho excessivo, se quiser. Eu?... O que eu era não estava muito claro.
Mas em breve descobri. A minha natureza levava-me a sentir-me mais atraído para os homens do que para as mulheres. Não fui seduzido no vestiário ou chantageado no
bar. Eu sou simplesmente assim. Não posso mudar. Não pedi para nascer. Não pedi para
nascer assim, Deus sabe o quanto já sofri com isso.
Mas quem foi que me fez? Segundo a vossa teoria,
Deus! O que eu quero e o que eu sou está de acordo
com a natureza que Ele me deu...
Levado pela paixão da sua argumentação, a sua atitude passou do insulto sardónico à súplica da compreensão. Ele próprio não estava consciente do facto. Meredith,
porém, não tardou a aperceber-se, sentindo-se mais uma vez envergonhado pela sua própria obtusidade. Ali tinha o lugar e o momento preparados para ele, mas, mais
uma vez, parecia que, por falta de sabedoria e compreensão, não os aproveitara convenientemente. O pintor continuou, as palavras brotaram de
dentro de si, amargas e impetuosas.
-... Repare em si mesmo! O senhor é um padre.
Sabe perfeitamente que, se eu neste momento estivesse
interessado em seduzir uma rapariga em vez do jovem
Paolo, a sua posição seria completamente diferente.
Não aprovaria, sem dúvida! Far-me-ia um sermão sobre a fornicação e tudo o resto. Mas não se sentiria demasiado infeliz. Seria normal... de acordo com a Natureza!
Mas eu não sou feito dessa maneira. Deus fez-me
diferente. Mas precisarei menos de amor? Precisarei
menos de satisfação? Caber-me-á em menor grau o direito de viver feliz porque algures, em determinada altura, o Todo-Poderoso cometeu um erro no seu acto
de criação?... Qual é a resposta que tem para dar a esta
questão, Meredith? Qual é a resposta que tem para
dar a mim? Ato um nó em mim próprio e espero que
façam de mim um anjo no céu, onde já não têm destas necessidades?... Sinto-me só! Preciso de amor como
qualquer outro homem! Do meu tipo de amor! Deverei viver enclausurado até morrer? O senhor é a Igreja
e a Igreja tem todas as respostas! Responda-me a esta!
Calou-se abruptamente e recostou-se, aguardando,
desafiando ainda mais violentamente Meredith com
o seu silêncio do que com o ímpeto da sua invectiva.
Meredith fitou o pequeno caos formado pelas migalhas
no seu prato e escolheu as palavras com que iria dar a
resposta. Tentou fazer uma pequena oração silenciosa
pela alma que tinha ali, nua, à sua frente - mas a oração, tal como o argumento que deu, pareceu estranhamente árida e impotente. Passado um momento, respondeu com
gravidade:
- Diz-me que tem sido católico. Mesmo que o não
fosse, eu entenderia as palavras e o que elas significam. Para o seu problema, e para muitos outros, não
existe nenhuma resposta que não envolva um mistério
e um acto de fé. Não Lhe sei dizer por que razão Deus
o fez como é, do mesmo modo que não sou capaz de
Lhe dizer porque foi que Ele me fez nascer um carcinoma no estômago para que eu morra dolorosamente, enquanto outros homens morrem tranquilamente durante o sono.
Os erros da Criação estão constantemente a aparecer. Bebés nascem com duas cabeças, mães de famílias enlouquecem e correm de facas na mão, homens morrem de pragas,
fome e temporais. Porquê?
Somente Deus pode dar a resposta.
- Se é que Deus existe.
- Aceito o "se" - disse Meredith, com um interesse
sereno. - Se Deus não existe, então o universo é um
caos sem significado. Vive-se nele o mais prolongada e
alegremente que se pode, obtendo-se dele o melhor
que estiver ao alcance. O senhor leva Paolo e usufrui
dele, o que a lei e os costumes sociais permitirem. Não
posso discutir consigo. Mas, se existe um Deus, e eu
acredito que existe, nesse caso...
- Não me diga mais nada, monsenhor - implorou o pintor, com amargura. - Já o sei de cor. Seja qual
for a confusão feita pela Criação, há que aceitá-la e
apreciá-la, porque é uma cruz que Deus põe nas costas
das pessoas. E quem a suportar tempo suficiente é
promovido a santo, como Giacomo Nerone. Isso não
é resposta, Meredith.
- Dispõe de alguma melhor, Mr. Black?
- De facto disponho. O senhor fique com a sua
cruz e o seu cilício, Meredith. Eu ficarei com o que tenho à mão e não quero saber de mais nada!
Empurrou a cadeira para trás, levantou-se da mesa
e, sem proferir mais palavra, entrou em casa. Blaise
Meredith limpou as mãos húmidas ao guardanapo e
bebeu um gole de vinho para humedecer os lábios secos. Ficou surpreendido ao achá-lo subitamente amargo, como vimagre numa esponJa.

CAPíTULO XII

Ao princípio dessa mesma tarde, na pequena cabana
entre os azevinhos, Nina Sanduzzi conversava com o
monsenhor de Roma. Encontravam-se sentados, em
frente um do outro, à mesa rudimentar e muito esfregada que se erguia a meio caminho entre a porta aberta e o enorme leito de ferro onde Giacomo Nerone dormira e
onde o seu filho nascera. Depois do calor sufocante que reinava no exterior, o quarto mostrava-se fresco e sombreado e até mesmo o canto das cigarras se reduzia
a um murmúrio suave e monótono.
O caminho pela colina abaixo fatigara Meredith rapidamente; tinha o rosto acinzentado e os lábios exangues e formara-se-lhe uma pequena dor forte na boca
do estômago. Nina Sanduzzi fitou-o com uma certa
piedade. Tinha pouca experiência de lidar com padres
e os que conhecia, como o padre Anselmo, pouco tinham a abonar em seu favor. Mas aquele era diferente; aquele agiria com compreensão e delicadeza. Não violaria demasiado
rudemente os aspectos privados do seu passado com Giacomo. Ainda assim ficou de sobreaviso e, quando ele começou a interrogá-la, respondeu com brevidade e sem rodeios.
Meredith, por sua
vez, mostrou-se sedutoramente delicado.
- Primeiro quero que compreenda um aspecto: há
perguntas que precisam de resposta. Algumas delas
podem parecer estranhas, mesmo brutais. Formulo-as não porque tenha Giacomo Nerone em má conta, mas
porque temos de tentar saber tudo, do bom e do mau,
acerca desse homem. Entende, senhora?
Nina anuiu calmamente.
- É melhor que me trate pelo meu nome: Nina.
Assim faz o doutor, e o senhor é seu amigo.
- Obrigado. Nina, segundo a informação que tenho, pouco depois da chegada de Giacomo Nerone a Gemello, a senhora e ele começaram a viver juntos.
- Fomos amantes - disse Nina Sanduzzi. - Não é
bem a mesma coisa.
Meredith, o homem das leis, sorriu, quando outrora
teria franzido o sobrolho. Prosseguiu.
- A senhora era católica, Nina. Giacomo também.
Não tinham consciência de que se tratava de um pecado contra Deus?
- Quando se está só, monsenhor, quando ali mesmo
do outro lado da porta existe o medo, o Inverno está a
chegar e no dia seguinte pode já não se estar vivo, uma
pessoa pensa nestas coisas e esquece-se do pecado.
- Nunca se consegue esquecer completamente.
- Pois não. Mas, quando essas coisas acontecem com
tanta facilidade, mesmo a padres, não parecem tão más.
Meredith assentiu. Uma semana atrás poderia ter
compreendido menos e dito mais. Agora sabia que o
coração tinha razões mais profundas que aquelas que
a maioria dos pregadores conheciam. Voltou às perguntas.
- As suas relações com esse homem, as suas relações físicas, eram normais? Alguma vez ele Lhe pediu
algo que não devesse ser feito entre homem e mulher?
Nina fitou-o, momentaneamente estupefacta. Depois ergueu a cabeça orgulhosamente.
- Nós amávamo-nos, monsenhor. Fizemos o que os
amantes fazem e tínhamos prazer um com o outro.
Que mais poderia haver?
- Nada - apressou-se Meredith a responder. -
Mas, já que se amavam tanto, porque não se casaram? Iam ter um filho. Será que não Lhe deviam nada? Que
pensava Giacomo?
Pela primeira vez desde que a conhecera, viu-lhe
despontar um sorriso nos lábios e nos olhos. Era como
um eco da velha Nina - a que desejara um homem
que a apertasse nos braços e que estava pronta a enfrentar o carrasco para o conseguir. Disse-lhe, em dialecto animado e entremeado de calão:
- Vocês fazem todos a mesma pergunta, como se
ela tivesse a importância que não tem. Não compreendem como as coisas se passavam naquele tempo. Só o
dia que corria é que era certo. O que vinha a seguir
podia trazer a polícia, os alemães ou os ingleses. Podíamos todos morrer de tifo ou malária. A aliança no
dedo não queria dizer nada. Eu tinha uma, mas sem
homem a acompanhar.
- Giacomo recusou-se a casar consigo?
- Nunca Lho pedi. Em mais de uma ocasião ele me
disse que me desposaria se eu o desejasse.
- E a Nina não o desejava?
Mais uma vez a velha chama Lhe tremulou nos olhos
e o orgulhoso sorriso grego Lhe repuxou os cantos da boca.
- Continua a não entender, monsenhor. Eu tive um
marido. Quis conservá-lo, mas o Exército levou-mo e
matou-mo. Naquele momento tinha um homem. Se
ele desejasse partir, partiria e não haveria aliança que
o prendesse. Quer fosse a polícia a levá-lo ou os soldados, ficaria perdido para mim na mesma. O casamento
poderia vir mais tarde, se alguma vez fosse suficientemente importante. Além disso, havia outra coisa de
que Giacomo falava muitas vezes...
- De que se tratava?
- Ele tinha a ideia fixa de que um dia algo Lhe
aconteceria. Era desertor e, se os ingleses ganhassem a
guerra, prendiam-no. Os fascistas continuavam em actividade e podiam deitar-lhe a mão. Ou os alemães. Se
assim acontecesse, eu nunca viria a saber se ele estava vivo ou morto. Queria que eu ficasse livre para poder
voltar a casar. Livre para não Lhe criar responsabilidades que me punissem a mim ou à criança.
- Isso tinha importância para si, Nina?
- Para mim, não. Mas para ele, sim. Se essa era a
maneira de ele ficar satisfeito, para mim estava certa. Nada mais importava. O monsenhor nunca se apaixonou?
- Lamento, mas nunca. - Os lábios finos de Meredith franziram-se num sorriso. - Terá de ter paciência
comigo... Diga-me, quando viviam juntos, que tipo de
homem era Giacomo? Era bom para si?
Era quase misterioso ver como as recordações Lhe
afluíam à mente e de que maneira todo o seu corpo
parecia ganhar vida como uma flor sob a chuva. Até
mesmo na voz se Lhe notava uma espécie de esplendor.
- Que tipo de homem?... Como é que espera que
responda a essa pergunta, monsenhor? Tudo o que uma
mulher deseja estava naquele homem. Na cama era forte
e ao mesmo tempo meigo como um bebé. Podia enfurecer-se e fazer-nos tremer com o seu silêncio e, no entanto, nunca levantou uma mão ou ergueu a voz. Quando o
servia, mostrava-se grato e agradecia-me como se eu
fosse uma princesa. Quando eu tinha medo, fazia-me
rir, e, quando ele ria, era como o Sol a nascer de manhã. Não tinha medo de ninguém e de nada, excepto
que me magoassem...
- E, no entanto - disse Meredith com rudeza calculada - abandonou-a em plena gravidez e nunca mais voltou a viver consigo.
A cabeça de Nina ergueu-se, orgulhosa como uma
deusa de mármore ao sol.
- Vivemos com amor e separámo-nos com amor,
e desde aí nunca mais se passou um só dia em que eu
deixasse de o amar...
.. O Inverno arrastou-se numa longa alternância de
tempestades e acalmias enregelantes. Na aldeia e nas montanhas, a doença grassava. Alguns morriam, outros recuperavam - mas lentamente, devido à humidade e à imundície
que reinava no interior dos casebres e porque cada dia os alimentos se tornavam mais escassos.
Em determinada altura houve uma epidemia que fez
aparecer manchas nas pessoas, olhos inflamados e febre. A própria Nina adoeceu com o mal e lembrava-se
de ter visto o médico e Giacomo a conversarem gravemente a um canto acerca de algo chamado rubella. Mas depressa se restabeleceu e nunca mais pensou no assunto.
Até mesmo Giacomo começava a mostrar sinais da
tensão que acompanhava aquele período de tempo
prolongado e frio. Estava extremamente magro, tinha
as faces chupadas, e os olhos encovados ficavam raiados de sangue, sempre que voltava para casa depois de
um dia passado nas colinas.
Nina, com as náuseas constantes e a fadiga que
acompanham algumas mulheres desde o início da gravidez, verificou que a monotonia da comida Lhe causava fastio e, à medida que, lentamente, o corpo Lhe ia
engrossando, começava mesmo a encarar com desagrado o acto do amor que anteriormente tanto prazer Lhe
proporcionara. Ambas as coisas a deixavam perturbada. Um homem era um homem e ele exigia ser consolado e satisfeito, independentemente do que a mulher sentisse.
Mas Giacomo era diferente dos homens do seu próprio povo. Ele tratava-a com meiguice, quando ela estava doente. Preparava, com as próprias mãos, comida que a tentasse.
Se ela não estava disposta a
aceitá-lo, ele não a forçava; e durante as longas noites
de tempestade distraía-a com histórias de lugares e
pessoas estranhas e de cidades empilhadas em blocos
quase até ao céu.
Ela ainda o amava mais pelas suas atenções por saber que ele tinha as suas próprias preocupações: problemas que o mantinham acordado à noite e preocupado de dia.
às vezes desabafava com ela, procurando atabalhoadamente a frase certa em dialecto para explicar o que queria dizer. Também nesse aspecto era diferente dos homens
da sua terra, que se iam aconselhar às tascas em vez de o fazerem junto das esposas, já
que era pressuposto uma mulher nada saber além da
lide doméstica, da sua função conjugal e dos aspectos
mais simples da religião. Mas Giacomo falava sem rodeios, de modo que ela se sentia forte e sabedora junto dele.
- Escuta, Nina mia, sabes que há ocasiões em que
um homem faz uma coisa e a mulher fica a detestá-lo,
porque não entendeu as razões que o levaram a proceder desse modo, não é?
- Eu sei, caro mio, mas eu entendo-te. Portanto,
porque hás-de preocupar-te?
- Faça eu o que fizer, não deixarás de me amar?
- Nunca.
- Então agora ouve, Nina. Não me interrompas,
porque é difícil de dizer. Quando chegar ao fim, indica-me o que não perceberes. Faz já muito tempo que
sou um homem perdido. Tenho sido como o calabrês
que, chegado ao meio de Roma, se põe a perguntar a
todos: "Quem sou eu? Donde vim? Para onde vou?"
Ninguém Lhe responde, evidentemente, porque não o
percebem... E, mesmo quando isso acontece, quem
não perceberia seria ele, porque não entende a língua
que se fala em Roma. Nem sempre foi assim. Houve
uma altura em que eu era como tu. Sabia que vinha de
Deus e no fim voltaria para Ele, que podia falar com
Ele na igreja e tomá-Lo para mim na comunhão. Eu
podia agir mal e, mesmo assim, ser perdoado. Podia
afastar-me ligeiramente do caminho certo e ainda poder regressar a ele... Então, de repente, deixou de haver estrada. Em vez disso era a escuridão e vozes que
me gritavam: "Por aqui! Por ali!" Segui as vozes até
uma escuridão ainda mais profunda e, aí chegado,
encontrei outras vozes. Mas nenhuma estrada: perdera-me. Não havia Deus, Igreja, nenhum lugar para
onde ir no fim. Eu era o vosso calabrês a gritar numa
cidade de desconhecidos... Quando me vi nesta situação em Messina, não consegui comportar-me como
qualquer outro homem e dizer: "Isto é a guerra! Este
é o preço da paz! Esquecerei tudo e continuarei a bater-me por aquilo em que acredito." Eu não acreditava
em nada: na guerra, na paz, absolutamente em nada!
Havia apenas uma criança, uma mulher e um velho
que eu assassinara sem qualquer razão... Então deitei
a correr e de repente, sem saber porquê ou como, vi-me aqui contigo, de novo em casa. Mas nunca mais
nada voltará a ser como era. Estou mudado. Já não está escuro, mas sim enevoado, como o vale aos primeiros alvores da manhã. Vejo-te e sei que te amo, porque estás
perto e também me amas. Mas do lado de fora da porta está a névoa e o desconhecido. Até as pessoas são diferentes. Olham para mim com olhos interrogativos. Para
eles, sem que eu saiba de alguma razão para tal, sou um tipo importante. Dependem de
mim. Sou o seu calabrês que esteve na cidade grande e
viu tudo, que conhece o papa, o presidente e a maneira de resolver os problemas. Sou o seu homem de confiança. Devia sentir-me orgulhoso do facto, mas não
me sinto, porque caminho na neblina, ainda incerto
quanto ao lugar donde venho e para onde vou e o que
deverei fazer... És capaz de me entender, Nina? Ou
estarei a falar como um louco?
- Estás a falar-me com amor, caro mio, e o meu
coração entende.
- Compreenderás o que te vou pedir?
- Quando me abraças assim e posso sentir o teu
amor nas tuas mãos e na tua voz, nada custa a suportar.
- Custa-me ter de te dizer... Quando a Primavera
chegar e a vida for mais fácil, quero deixar-te, afastar-me durante algum tempo.
- Não, caro mio!
- Não do vale. Desta casa.
- Mas porquê, caro mio? Porquê?
- São duas as razões, e a primeira é pessoal. Quero
descobrir um pequeno canto secreto para mim, construí-lo, se for preciso, com as minhas próprias mãos.
Quero viver aí sozinho com Deus, cujo rosto deixei
de poder ver. Quero dizer-Lhe: "Olha, ando perdido.
A culpa é minha, mas ando perdido. Se estás aí, fala
comigo claramente. Mostra-me quem eu sou, donde
venho, para onde vou. Estas Tuas pessoas, que Te conhecem, porque se voltam elas para mim, e não para
Ti, em busca de ajuda? Terei alguma marca na testa
que não seja capaz de ver? Se assim é, diz-me o que significa..." Não posso deixar de o fazer, cara.
- E que vai ser de mim e do teu filho?
- Estarei sempre por perto. Ver-te-ei muitas vezes
e, se Deus me aparecer, falarei a Ele de ti, porque, se
Ele sabe alguma coisa, sabe que te amo.
- E, no entanto, vais-te embora?
- Nisso também há amor, Nina, mais amor do que
possas imaginar. E também uma grande razão. Quando a Primavera chegar, os exércitos voltarão a pôr-se
em marcha. Os alemães chegarão primeiro e haverá
luta a sul daqui. Os guerrilheiros movimentar-se-ão
para acossar os alemães, e os Aliados deverão rechaçá-los numa fase final. Alguns destes, ou mesmo todos,
virão, por sua vez, até Gemello. Atrair-lhes-ei as atenções, porque sou o que sou: Giacomo Nerone, o homem de confiança, o homem importante e obscuro. Se tiver sorte,
aceitar-me-ão e eu poderei ajudar as pessoas. Se não, uns ou outros levar-me-ão e provavelmente matar-me-ão.
- Dio! Não!
- Pode acontecer, Nina. Poderá ser o que fica por
trás da névoa e quem sabe se verei a face de Deus e a
face do carrasco ao mesmo tempo. Não sei. Mas,
aconteça o que acontecer, quando a Primavera chegar,
devemos separar-nos. Não podes continuar ligada a
mim, porque existe a criança. Se me levarem, Meyer tomará conta de ti. Se não, voltarei cá para olhar por
ti. E, se tudo correr bem, casarei contigo e darei o
meu nome ao rapaz. Ambos são meus, amo-vos e não
deixarei que vocês ou as pessoas sofram por minha causa.
- Seja como for, sofrerei quando não estiveres aqui.
- Menos dessa maneira do que da outra, Nina.
Haverá tanto ódio como nunca imaginaste ser possível.
Já assisti a tudo isso anteriormente e é perfeitamente terrível.
- Abraça-me, caro mio! Abraça-me, que tenho medo.
- Fica nos meus braços, carissima, e ouve as batidas do meu coração. Também sou o teu homem de
confiança, podes dormir descansada.
- Agora, talvez, mas quando te fores embora?
- Nunca me ausentarei completamente, Nina mia.
Nunca até à eternidade...
.. A simplicidade bíblica da narrativa de Nina era
mais avassaladora do que qualquer retórica, e Blaise
Meredith, o homem empedernido das Congregações,
deu consigo arrastado por ela, qual galho ao sabor de
uma torrente. O dialecto rude não impedia que o diálogo fluísse como as frases de um poeta na boca de um
amante - de há muito adorado, de há muito lembrado. Por trás deles, o rosto de Giacomo Nerone ganhou forma e volume até parecer real - um rosto magro, moreno, sofredor,
de boca terna e olhos profundos e repletos de bondade. O rosto de um pesquisador - um daqueles em quem repousa o fardo dos mistérios e que alcançam por vezes uma
grande santidade.
Mas aquilo não era suficiente para os advogados
exigentes da Congregação dos Ritos, os inquisidores
do Santo Ofício. Tinham de ver para além daquilo,
e Blaise Meredith devia proporcionar-lhes os dados
necessários. Portanto, mais suavemente, mas não menos persistentemente, voltou a interrogar Nina Sanduzzi:
- Quando foi que ele a deixou?
- Depois do degelo, quando a Primavera começava a despontar.
- E até à altura de se ir embora, dormiu consigo,
fez amor consigo?
- Sim. Porquê?
- Nada. É uma pergunta que tem de ser feita.
Mas o que ele não Lhe disse foi o que tal Lhe demonstrava. Ainda tinha diante de si um homem perdido na escuridão, um pesquisador, talvez, mas que
ainda não encontrara Deus, não realizara ainda o acto
de abandono à Sua vontade. Havia amor nele, mas era
ainda o símbolo desfigurado do amor que representa o
princípio da santidade.
- E que aconteceu quando ele partiu?
- Foi para a depressão do vale onde ficam as cavernas e começou a construir a sua cabana. Até ela ficar
pronta dormiu numa caverna, cozinhou a sua própria
comida e durante o dia fazia o mesmo que durante o
Inverno: andava pelo vale, trabalhava para os que não
podiam fazê-lo, tratava dos doentes, levava alimentos
aos que deles necessitavam.
- Viu-o durante esse tempo?
- Ele veio todos os dias, como prometera.
- Apresentava alguma mudança?
- Para mim? Não. Excepto mostrar-se mais terno e
atencioso para comigo.
- Fez amor consigo?
Mais uma vez Nina sorriu ao padre com uma certa
pena pela ignorância por este demonstrada.
- Eu estava grande por causa da criança, monsenhor. Sentia-me calma e satisfeita... e ele não pedia.
- Ele mudara?
- Sim. Estava mais magro do que alguma vez o vira. Tinha os olhos encovados e a pele esticada sobre os
ossos da cara. Mas sorria sempre e mostrava-se mais
feliz do que quando o conhecera.
- Disse porquê?
- A princípio, não. Depois, um dia pegou-me nas
mãos e disse: "Estou em casa, Nina. Estou novamente
em casa." Fora a Gemello Maggiore confessar-se ao
jovem padre Mario e no domingo disse-me que tencionava comungar. Perguntou-me se eu iria à igreja no
mesmo dia.
- E a Nina foi?
- Não. Os alemães chegaram no sábado e montaram o seu quartel-general na villa...
.. Chegaram de manhã bem cedo, enquanto a aldeia ainda esfregava os olhos de sono. Havia um carro
blindado com um sargento a guiar e um capitão de ar
preocupado sentado atrás. Havia dois camiões cheios
de soldados e um quarto veículo carregado de munições e mantimentos. Subiram a estrada poeirenta com
os motores a trovejar. Pararam um pouco na rua estreita da aldeia, com grande fragor, para inspeccionar
o que os rodeava, e depois continuaram colina acima,
em direcção à villa da condessa de Sanctis.
Nina Sanduzzi ouvira-os chegar, mas pouca atenção
lhes prestara. Ainda mal acabara de acordar, absorta
na contemplação remota da mulher que sente, pela
primeira vez, a vida agitar-se dentro de si. Só despertou completamente quando ouviu uma batida urgente na porta e a voz de Aldo Meyer pedir-lhe que a abrisse.
Quando o deixou entrar, ficou surpreendida por vê-lo vestido para viajar, com botas grossas, um casaco
de pele de carneiro e uma mochila aos ombros. Primeiro pediu-lhe que Lhe desse de comer e, enquanto
Nina se atarefava para lhe satisfazer a vontade, ele falou-lhe em frases rápidas e concisas - meio receosas,
meio exaltadas.
- Quando vires Giacomo diz-lhe que fugi. Os alemães estão aqui e não tarda que saibam que há um judeu no vale. Se me apanharem, serei enviado para os campos de
concentração a norte. Levo os meus instrumentos e alguns remédios, mas deixei uma provisão deles a Giacomo na caixa grande que tenho debaixo da cama.
- Mas aonde vai, dottore?
- Mais para leste, para as colinas, rumo a São Bernardino. Há lá um esconderijo de guerrilheiros e estou
em contacto com eles há algum tempo. O chefe deles é
um homem que se chama Il Lupo. Penso que veio do
Norte especialmente para este trabalho. Tem ar de indivíduo treinado. Tem armas e munições e um bom
sistema de comunicações. Se Giacomo quiser entrar
em contacto comigo, diz-lhe que siga uns dezasseis
quilómetros pela estrada de São Bernardino. Depois
vira para o lugar a que chamam Rochedo de Satanás.
É onde estão as primeiras sentinelas dos guerrilheiros.
Deverá trepar até ao cimo do rochedo, sentar-se e
acender um cigarro, depois tirar o lenço e apertá-lo em
redor do pescoço. Alguém aparecerá para contactar
com ele. Fixaste tudo? É importante. Se te esqueceres,
ele corre o risco de ser fuzilado.
- Não me esquecerei.
Nina colocou-lhe café, pão e queijo na frente e, enquanto ele comia, fez-lhe um embrulho com comida e
enfiou-lho na mochila. Só quando viu a pistola e sentiu
o contorno duro das munições é que entendeu o que
Giacomo Lhe dissera. A guerra estava a chegar a Gemello Minore e também todo o ódio e matança.
Meyer, com a boca cheia de pão e queijo, disse-lhe:
- Tentei convencer Giacomo a vir comigo e a trazer-te também. Os alemães não o tratarão muito melhor do que a mim. Será fuzilado como espião.
- Que foi que Giacomo respondeu a isso?
- Riu apenas e disse-me que conhecia os alemães
melhor do que eu. Espero que esteja certo. A que horas é que o costumas ver?
Nina encolheu os ombros e esboçou um gesto vago
com as mãos.
- Depende. às vezes de manhã bem cedo, outras
vezes de tarde. Mas aparece sempre.
Meyer fitou-a melancolicamente por cima da borda
da sua chávena.
- Sentes-te satisfeita com esse arranjo, Nina?
- Sou feliz desde que tenha Giacomo. Nunca houve
nenhum homem como este.
Meyer sorriu com amargura.
- És capaz de ter razão nesse aspecto. Sabes o que
é que ele faz lá em cima na sua cabana?
- Reza. Pensa. Trabalha no seu jardim... quando
não o está a fazer para outra pessoa qualquer ou nas
colinas. Porque pergunta?
- A noite passada fui lá à procura dele para Lhe falar neste assunto. Chamei por ele, mas não tive resposta,
embora tivesse o candeeiro aceso. Entrei e encontrei-o
ajoelhado no meio do chão com os braços abertos. Tinha os olhos fechados, a cabeça atirada para trás e
movia os lábios. Falei com ele, mas não me ouviu.
Cheguei-me a ele e abanei-o, mas tinha o corpo completamente rígido. Não consegui arrancá-lo dali. Passado um bocado, vim-me embora.
Nos olhos escuros de Nina lia-se surpresa. Anuiu e
disse com acentuada indiferença:
- Ele contou-me que reza muito.
- E também não come muito - disse Meyer, ligeiramente irritado.
- Isso, também. Emagreceu bastante. Mas diz que
a oração Lhe dá todas as forças de que precisa.
- Devia ter mais cuidado consigo mesmo. Agora,
que os alemães estão aqui, as pessoas vão depender
ainda mais dele. Isso da oração não está mal, mas,
quando é de mais, os homens enlouquecem.
- Acha Giacomo louco?
- Não foi o que eu disse. É uma pessoa estranha, simplesmente.
- Talvez porque haja tanta falta de homens bons
por aí. Tínhamo-nos esquecido de como são.
Meyer soltou uma risada e limpou a boca com as
costas da mão.
- Pode ser que tenhas razão, Nina mia. - Levantou-se e ajeitou a mochila nos ombros. - Bem, tenho
de ir. Obrigado pelo pequeno-almoço e pelo resto das
coisas. Diz a Giacomo o que te contei.
- Assim farei.
Pousou-lhe as mãos nos ombros e beijou-a nos lábios.
Ela não se opôs, porque gostava dele e ele era um homem de partida para a sua guerra privada.
- Boa sorte, dottore!
- Boa sorte, Nina mia. Bem a mereces!
Nina deixou-se ficar à porta a vê-lo descer pelo vale.
Achou que nunca ele lhe parecera tão jovem e vivo e
perguntou-se despreocupadamente o que teria acontecido se Giacomo não tivesse vindo para Gemello Minore.
Mas Giacomo estava ali e a sua presença preenchia
toda a sua vida e, quando ele chegou, pouco antes do
almoço, ela apertou-se desesperadamente contra ele,
chorando-lhe no ombro. Ele manteve-a contra si até a
tensão desaparecer; depois desenlaçou-a suavemente
e escutou-a quando Lhe falou acerca de Aldo Meyer e
do recado que este Lhe deixara. Ouviu-a com gravidade e depois disse:
- Tentei dissuadi-lo. Estes alemães não têm qualquer
importância, um destacamento em patrulha, nada mais.
Não causarão grandes incómodos a ninguém. Mas
Meyer já espera há tanto tempo pela sua própria guerra que não consegue ver bem no que está a meter-se.
- Provavelmente será bom para ele, caro mio. Vi-o
partir e ele ia contente como um rapaz que vai à caça.
Nerone abanou a cabeça gravemente e o rosto ensombrou-se-lhe.
- Meyer não é o homem indicado para esta companhia. Tenho ouvido falar de Il Lupo e posso calcular
donde vem. É um profissional e foi treinado na Rússia. Deseja mais do que uma vitória. Quer um Estado
comunista na Itália. Quando os alemães forem escorraçados e os Aliados entrarem, ele tentará obter o
controlo da administração civil. É provável que o consiga, dados os seus antecedentes. Meyer está no barco
errado. Ele pensa que Il Lupo quer mais um guerrilheiro. O que ele quer é um homem que possa utilizar
posteriormente. Não sei o que acontecerá quando
Meyer descobrir. - Encolheu os ombros, sorriu e
pousou as palmas das mãos sobre o tampo da mesa. -
Seja como for, agora já não há nada a fazer. Temos a
nossa própria tarefa a realizar aqui.
Nina trouxe uma enorme tigela de massa para a mesa e ficou a vê-lo comê-la, reparando na frugalidade
com que se servia e no pouco molho condimentado que punha.
- E que vais tu fazer, Giacomo?
- O que agora faço, excepto que sou obrigado a ter
os alemães em consideração. Fui lá acima ver a condessa há uns dias.
Tratava-se de uma informação que ele não Lhe comunicara e Nina sentiu o aguilhão pungente do ciúme.
Era como se o visse voltar a entrar num mundo que
abandonara - um mundo onde ele andara perdido e
onde ela nunca o alcançaria. Mas nada disse, aguardando que ele Lhe contasse o resto.
- Disse-lhe que era inglês. Deixei-a pensar que era
um agente deslocado para esta zona a fim de preparar
o caminho para os Aliados. Ela ficou satisfeita em me
ver. Está numa posição complicada. Sugeri-lhe que
me nomeasse feitor da sua propriedade, de maneira a
eu poder falar com o comandante alemão em igualdade de termos. Ela deu-me um quarto nas dependências destinadas aos criados.
- Vais viver na villa?
- Tenho um quarto lá. Utilizá-lo-ei para dormir,
enquanto for preciso. Mas obterei um passe do comandante e terei liberdade de entrar e sair. Precisarei dele.
Toda a villa foi transformada num campo armado.
- É bem feito para a condessa! - desabafou Nina,
com inesperada maldade. - Assim já poderá ter um
homem para cada noite.
O rosto de Nerone ensombrou-se. Pegou-lhe nas
mãos e atraiu-a suavemente a si.
- Não fales assim, carissima. Ela é uma estrangeira, uma mulher solitária com um fogo no sangue que
ainda nenhum homem conseguiu apagar. É um tormento, não um caso para brincar. Porque haveríamos nós de Lhe desejar mal, quando temos tanto?
- Ela devora os homens, caro mio. E eu não quero
que ela te devore a ti.
- Se o tentar, ficará com uma indigestão - retorquiu-lhe Giacomo, com um sorriso.
Mas, quando ele partiu, o medo ainda ficou com ela
e não foram poucas as vezes em que acordou a meio
da noite a sonhar que Giacomo a abandonara para se
casar com a mulher do topo da colina com o ventre liso e estéril, a boca atormentada e os olhos rapaces...
-... Devo ainda fazer mais uma pergunta - disse
Blaise Meredith, com a sua voz seca. - Durante esse
tempo, Giacomo cumpriu algum dos seus deveres religiosos? Ia à missa e recebia os sacramentos?
Nina Sanduzzi assentiu.
- Sempre que podia, excepto quando havia doentes
nas montanhas ou homens fugidos para esconder dos
alemães. Costumava vir à missa aqui aos domingos e
eu via-o, embora tivéssemos combinado que não nos
sentávamos juntos nem nos cumprimentávamos, porque estavam presentes alguns alemães. Eles vinham, parece, de uma parte da Alemanha onde há muitos católicos. Quando
desejava confessar-se, atravessava o vale e ia ter com o jovem padre Mario.
- Mas não com o padre Anselmo.
Nina abanou a cabeça.
- O padre Anselmo não gostava dele. As vezes
trocavam palavras zangadas entre si, quando o padre Anselmo se recusava a sair para atender os doentes depois da hora do recolher.
- E que dizia Giacomo acerca do padre Anselmo?
- Que era digno de piedade e devíamos rezar por
ele, mas que os homens que o tinham mandado para
aqui teriam de responder seriamente por isso. Costumava dizer que Gesus construíra a Igreja como uma casa para a sua família nela viver, mas que alguns homens, incluindo
mesmo padres, a utilizavam como um mercado e uma taberna. Disse que eles lucravam à custa dela, a enchiam de zangas e gritos e até Lhe sujavam o chão à maneira dos
bêbedos. Que, se não fosse
o amor de Gesus e os cuidados do Espírito Santo, ela não tardaria a cair em ruínas numa geração. Disse que
era disso que todas as casas precisavam: muito amor e
pouca discussão. E tinha razão.
- Também acho - reconheceu Blaise Meredith.
E admirou-se de a sua voz soar com tanta veemência.
- Agora diga-me, que dizia e sentia Giacomo em relação aos alemães?
A pergunta pareceu, pela primeira vez, obrigá-la a
fazer uma pausa para pensar. Passado um longo instante, Nina disse:
- Era um assunto de que ele falava muitas vezes e
havia ocasiões em que eu tinha dificuldade em compreendê-lo. Dizia que os países são como homens e
mulheres e que as pessoas ficam com o carácter do
país onde vivem. Cada país tem o seu pecado e a sua
virtude especiais. Os Ingleses eram um povo sentimental, mas duro e egoísta, porque viviam numa ilha e
queriam guardá-la só para si, como sempre acontecera. Que eram delicados. Que tinham um grande sentido de justiça, mas que o de caridade era pequeno.
Quando lutavam, lutavam teimosamente e com coragem, mas esqueciam que muitas das suas guerras tinham sido provocadas devido ao seu próprio egoísmo e indiferença.
Os Americanos eram diferentes. Sentimentais e duros também, mas mais simples do que os Ingleses, porque eram mais jovens e mais ricos. Gostavam de possuir coisas,
embora muitas vezes não
soubessem como gozá-las. Tinham tendência, como
todos os homens jovens, para a violência. Podiam
ser facilmente enganados por vozes fortes e pela
magnificência. E muitos enganavam-se a si mesmos,
porque gostavam do som das palavras, mesmo que não
Lhes entendessem o significado. Os Alemães já eram
outra coisa completamente diferente. Eram grandes
trabalhadores, amantes da ordem e da eficiência e
muito orgulhosos. Mas havia neles uma rudeza e uma
violência que era despertada pelo álcool, pelos grandes
discursos e pela necessidade de se afirmarem. Giacomo costumava rir e dizer que eles gostavam de sentir Deus a trovejar-lhes na barriga quando ouviam uma música
alta...
- Era tudo?
- Não. Giacomo gostava de falar desta maneira.
Dizia que ou se tirava a gordura da sopa ou ela ficava azeda. Mas voltava sempre ao mesmo: não importava como as pessoas eram, ou os países, pois tinham de viver
em conjunto como uma família. Fora assim que Deus os criara; e, se um irmão apontava uma arma ao seu irmão, acabariam por se destruir um ao outro. Havia alturas
em que os dois tinham de engolir o seu orgulho e desistir, serem delicados, mesmo
que a sua vontade fosse cuspirem nos olhos de alguém. E foi dessa maneira que tentou viver com os alemães aqui.
- Conseguiu?
- Penso que sim. Vivíamos em paz. Não éramos
roubados. Uma rapariga podia ir à cisterna e voltar para casa em segurança. De tempos a tempos, quando os
guerrilheiros encontravam uma patrulha alemã, havia
mortes, mas isso era sempre longe de Gemello. Havia
uma hora de recolher e ficávamos dentro de casa toda
a noite. Se havia disputas, Giacomo falava com o comandante e o problema resolvia-se. Pouco tempo depois, os alemães foram-se embora, descendo para o
Sul, e os guerrilheiros foram atrás deles como lobos na
peugada de ovelhas no Agruzzi.
- E depois?
- Em Maio chegaram-nos notícias de que Roma
caíra nas mãos dos Aliados, e, no princípio de Junho
Paolo nasceu, e nasceu cego...
.. Os primeiros sinais apareceram ao fim de certa
manhã, numa altura em que Giacomo se encontrava
junto dela. Eram ligeiros e irregulares, mas Giacomo
ficou de tal maneira preocupado que insistiu em chamar Carla Carese, a parteira, e também Serafina Gambinelli e Linda Tesoriero. Todas vieram a correr e com
grandes clamores, porque ele as tornara cientes da
grande urgência; mas, quando viram que Nina ainda
estava de pé e sem quaisquer problemas, rodearam-no
de mãos nas ancas a rir-se dele. Nina também se riu e
ficou surpreendida ao ver a nuvem de ira que Lhe ensombrou o rosto. A voz dele também soava zangada,
quando Lhes declarou:
- Vocês são loucas, não escapa nenhuma! Fiquem
com ela e não a deixem. Vou chamar o Dr. Meyer.
Ficaram então a olhar para ele de boca aberta e até
Nina se mostrou espantada, porque aquela questão de
dar uma criança à luz era trabalho de mulher. Os médicos eram para os doentes e elas sabiam que, se tudo
corresse bem, o parto era uma operação simples,
mesmo que barulhenta, à qual se seguia muita alegria. Mas, antes que tivessem tempo para Lhe dizerem
tudo isso, Giacomo saíra, uma figura magra e agoirenta a subir o caminho que levava à estrada de São Bernardino.
Nina ficou preocupada com ele por causa da longa
distância; mas as mulheres depressa a distraíram da
ideia com a brincadeira. A criança chegaria antes de
ele regressar, disseram-lhe; e ele e o médico poderiam
embebedar-se juntos como era costume entre bons amigos, quando um deles era pai de um bambino vigoroso.
Em parte tiveram razão. Uma hora antes de Giacomo chegar, acompanhado de Aldo Meyer, a criança nascera e repousava, lavada e vestida, nos braços de
Nina. Mas eles não agiram como os outros homens perante um nascimento. Giacomo beijou Nina e manteve-a apertada contra si durante muito tempo. Aldo Meyer também
a beijou, ao de leve, como um irmão. Em seguida Giacomo tirou a criança dos braços da mãe e levou-a para cima da mesa, segurando no candeeiro, enquanto Meyer lhe
auscultava o coração, espreitava para os ouvidos, erguia as minúsculas pálpebras e se inclinava para mais perto a fim de melhor examinar os olhos.
A parteira e as mulheres mantinham-se aos pés da
cama, formando um pequeno grupo, e Nina apoiou-se
às almofadas e semiergueu-se para perguntar receosamente:
- Que se passa com ele? De que andam à procura?
- Diga-lhe - pediu Aldo Meyer.
- Ele é cego, cara - declarou Giacomo Nerone
suavemente. - Nasceu com cataratas a taparem-lhe os
olhos. Foi da febre que tiveste, da doença das manchas, que se chama rubella. A mulher que a apanha no
segundo ou terceiro mês pode dar à luz uma criança
cega ou surda.
Passou-se cerca de meio minuto antes de o significado daquelas palavras a alcançar. Depois, Nina começou a berrar como um animal e enterrou o rosto na almofada,
enquanto as mulheres se agitavam à volta dela como galinhas, tagarelando para a confortarem. Pouco depois, Giacomo aproximou-se e, pousando-lhe a criança nos braços,
tentou falar com ela;
no entanto Nina virou-lhe o rosto, porque tinha vergonha de ter dado um filho deficiente ao homem que tanto amava.
Muito tempo depois, tendo as mulheres já partido, Giacomo voltou a aproximar-se de Nina, com Aldo
Meyer a seu lado. Ela já se acalmara mais e Meyer falou-lhe sobriamente:
- É uma coisa triste, Nina, mas acontece e, de momento, não pode ser alterada. Se as coisas fossem diferentes, podia levar-te para um hospital em Valenta e
depois talvez a Nápoles para consultares um especialista e saberes se alguma coisa pode ser feita. Mas a
guerra ainda não acabou. Os combates continuam e as
estradas estão apinhadas de refugiados. Unidades alemãs desbaratadas estão em fuga, de regresso a casa, e
os guerrilheiros andam atrás deles. Nápoles está transformada num lugar de carnificina e tu serias mais uma
camponesa sem ninguém para te proteger. Giacomo é
um homem procurado e eu estou comprometido com
o meu bando das montanhas. Portanto, de momento,
só resta esperar. Quando a paz voltar a reinar, veremos o que se pode fazer.
- Mas o menino está cego! - Era a única coisa que
Lhe ocorria pensar ou dizer.
- Os deficientes precisam de muito amor - disse Aldo Meyer.
Giacomo Nerone não proferiu qualquer palavra,
mas o coração de Nina quase ficou destroçado com o
sofrimento e a pena que se lia no seu olhar. Meyer
continuou a falar-lhe com os seus modos suaves e profissionais, mostrando-lhe as protuberâncias nos olhos
da criança, estabelecendo uma certa razão no terror
inicial. Giacomo serviu vinho a todos e depois começou a preparar uma refeição. Os dois homens comeram-na à mesa, enquanto Nina se serviu de uma tigela que colocara
no regaço e conversava com os dois, da cama. Quando a criança choramingou, deu-lhe o seio e, ao ver o pequeno bebé cego aninhar-se contra si, chorou silenciosamente.
Meyer saiu antes da meia-noite para ir dormir a sua
própria casa, finalmente a salvo da ameaça do campo
de concentração. Quando Giacomo o levou até à porta, Nina dormitava, mas ouviu a voz de Giacomo dizer rudemente:
- Tu és meu amigo, Meyer, e eu compreendo-te,
mesmo que não concorde contigo. Mas conserva Lupo
afastado da aldeia. Ele que se mantenha longe de mim.
E a voz de Meyer na réplica áspera:
- Isto é história, homem! Não a podes parar. Eu
também não! Alguém tem de começar a organizar as coisas...
O resto perdeu-se quando chegaram à porta e saíram para a noite clara. Passados alguns minutos, Giacomo voltou e colocou a tranca atrás de si. Disse calmamente:
- Esta noite não podes estar sozinha, cara. Ficarei contigo.
Então, todo o desapontamento lhe brotou no íntimo
como uma fonte e Nina apertou-se a Giacomo como se
tivesse o coração destroçado, o que se aproximava
muito da verdade.
Depois de Nina acalmar novamente, Giacomo acomodou-a entre as almofadas e baixou a chama do candeeiro e ela viu-o, por entre as pálpebras semicerradas, fazer algo
estranho. Perfeitamente alheio, ajoelhou-se no chão de terra, fechou os olhos e esticou os braços como os de Gesus na cruz, ao mesmo tempo que movia os lábios numa
oração silenciosa. Houve
um momento em que todo o seu corpo pareceu tornar-se rígido, como uma árvore, e, quando ela o chamou,
assustada, não deu sinais de a ter ouvido. Recostou-se
de novo, observando-o até a exaustão a dominar e a
fazer deslizar para o sono.
Quando acordou, o quarto mostrava-se inundado
pela luz do Sol, o bebé berrava vigorosamente e Giacomo pusera a cafeteira do café ao lume para o pequeno-almoço. Aproximou-se de Nina, beijou-a, e, tirando-lhe
a criança dos braços, disse gravemente:
- Desejo dizer-te uma coisa, Nina mia.
- Diz-me.
- Vamos pôr o nome de Paolo ao rapaz.
- Ele é teu filho, Giacomo. Tu é que deves dar o
nome. Mas porquê Paolo?
- Porque Paolo, o apóstolo, era um estranho perante Deus e, tal como eu, encontrou-O na estrada para Damasco. Porque, tal como este rapaz, Paolo era cego, mas voltou
a ver, graças à misericórdia divina.
Nina fitou-o, incrédula.
- Mas o médico disse...
- Quem te diz sou eu, cara. - A voz soava-lhe
forte e profunda como o som de um sino. - O rapaz
verá. As cataratas desaparecerão daqui a três semanas; quando chegar a altura de um bebé começar a ver
a luz, o nosso Paolo também a verá. Segurar-lhe-ás o
candeeiro em frente dos olhos e repararás como ele
pestaneja e começa a segui-lo. É uma promessa que te
faço, em nome de Deus.
- Não me digas isso só para me consolares, caro.
Não poderia suportar alimentar esperanças e no fim
ver que me enganara.
Notava-se-lhe uma agonia na voz, mas Giacomo limitou-se a sorrir-lhe.
- Não é uma esperança, Nina mia. É uma promessa. Acredita.
- Mas como podes saber? Como podes ter a certeza?
Tudo quanto Giacomo disse foi:
- Quando acontecer, Nina, faz de conta que para ti
também é uma novidade. Não contes a ninguém o que
se passou esta manhã. Prometes-me?
Nina anuiu em silêncio, não sabendo como suportar
a espera e esconder a dúvida que sentia.
Precisamente três semanas mais tarde, Nina tirou a
criança do seu berço e acordou-a. Quando o menino
abriu os olhos, estes mostravam-se límpidos e brilhantes como os do pai, e, quando ela colocou diante deles
uma luz, ele pestanejou. Nina protegeu-os com a mão, e os olhos dele aquietaram-se, firmes, voltando a pestanejar quando ela a desviou.
O momento do milagre foi como uma revelação. Nina teve vontade de gritar, cantar e chamar a rua inteira
da aldeia para dizer a todos que a promessa de Giacomo se tornara realidade.
Mas Giacomo já estava morto e enterrado. Os aldeões desviavam-se dela ao passarem, envergonhados.
Até Aldo Meyer partira para Roma e ela imaginava
que ele nunca mais regressaria...
-... Agora devo voltar para casa - disse Monsenhor Blaise Meredith. - É tarde e a Nina deu-me
muito em que pensar.
- Acredita no que Lhe contei, monsenhor?
A voz e os olhos dela desafiavam-no, calmamente.
O padre fitou-a durante um longo momento e depois
disse, com uma determinação curiosa:
- Acredito, Nina. Ainda não sei o significado que
tem. Mas acredito em si.
- Então cuidará do filho de Giacomo e guardá-lo-á do mal?
- Cuidarei dele.
Mas ainda mal proferira as palavras e já a sua
consciência o desafiava: "Como? Em nome de Deus,
como?"

CAPíTULO XIII

Para o Dr. Aldo Meyer, a noite encerrava uma tarde
estranhamente calma.
Logo a seguir ao almoço, sentara-se a ler os papéis
de Giacomo Nerone. Pegara neles hesitante e receoso,
como se o esperasse um momento de crise ou revelação. Mas, quando os abriu e pôs em ordem, começando a ler a caligrafia clara e interligada, foi como ouvir
o próprio Giacomo nos seus velhos argumentos desafiadores.
Passou momentos de vergonha perante os seus próprios fracassos, momentos de recordação pungente, de nostalgia por uma relação que principiara em conflito, aproximara-se
algumas vezes da amizade e não tardara a terminar em tragédia. Mas nos registos não se vislumbrava amargura - da mesma maneira que
nunca houvera amargura na pessoa de Giacomo. Havia passagens de uma simplicidade infantil que tocaram Meyer quase até às lágrimas e frases de exaltação mística que
o deixaram, tal como Giacomo frequentemente fizera, a tentar descobrir a explicação da sua própria falência.
Mas, no fim, a paz, a calma e a convicção contidas
naquelas linhas comunicaram-se ao leitor, mesmo depois dos anos passados. E no último de todos os papéis, a carta a Aldo Meyer, havia uma grande ternura e a graça
singular do perdão. Os restantes estavam escritos em inglês, mas a carta estava em italiano, e também esta era uma delicadeza que dificilmente se esqueceria
Meu caro Aldo,
Estou em casa e é tarde. Nina dorme finalmente e o
menino também adormeceu. Antes de partir, quando for
manhã, deixarei esta nota com ela, entre os meus outros
papéis; depois de tudo terminar e os primeiros
desgostos passarem, talvez chegue às tuas mãos em segurança.
Amanhã iremos encontrar-nos, nós os dois, mas como
desconhecidos, cada qual comprometido com uma
crença e uma prática opostas. Tu sentar-te-ás no meio
dos meus juízes e acompanharás os meus carrascos,
para depois assinares o certificado da minha morte,
quando estiver tudo terminado.
Não te culpo por nada disto. Cada um de nós pode
seguir pelo caminho que Lhe parece o mais certo. Cada
um de nós está sujeito às consequências da sua própria
crença - embora eu ache que um dia virás a mudar de
opinião. Se assim acontecer, detestarás o que foi feito e
poderás ser tentado a odiares-te a ti próprio pela tua
participação no caso, ainda mais porque não haverá
ninguém a quem possas dizer que estás arrependido.
Portanto, quero dizer-te,aneste momento, que não te
odeio. Tens sido meu amigo, assim como de Nina e da
criança. Espero que te preocupes sempre com eles e
cuides do seu bem-estar. Sei que amaste Nina.
Parece-me que esse sentimento ainda se mantém. E esta
será mais uma cruz nas tuas costas, porque nunca terás
a certeza, ao juntares-te à minha condenação, se o
fizeste por convicção ou ciúmes. Mas eu sei e digo-te
agora que morrerei continuando a ter-te na conta de um amigo. Agora gostaria que me prestasses um serviço. Quando
receberes esta carta, irás ter com o padre Anselmo e
com Anne de Sanctis e dir-lhes-ás que não Lhes guardo
rancor pelo que fizeram e que, quando chegar junto de
Deus, como espero vir a fazer, me lembrarei dos dois.
Portanto, dottore mio, aqui o deixo. Já falta pouco
para a aurora nascer e sinto frio e medo. Sei o que tem
de acontecer e a minha carne arrepia-se perante a
ideia. Já não me restam forças e devo rezar um pouco
Foi algo que sempre desejei, a graça de morrer com
dignidade, mas nunca, até agora, compreendi quão
difícil é.
Adeus, meu amigo. Deus nos guarde nas horas de aflição.
Giacomo Nerone

Quando Meyer relera a carta pela terceira vez, sentira-se
comovido até às lágrimas, o que era raro, mas, depois de
caminhar durante algum tempo, reflectir e voltar a lê-la, a
caridade nela contida envolvera-o como uma absolvição. Se
falhara em todas as outras coisas - e as suas falhas preenchiam uma grande página do seu calendário de cinquenta anos - não morreria sem amor e sem perdão. E ali
estava a resposta à pergunta que durante tanto tempo o martirizara: o porquê de grandes homens morrerem e desaparecerem da humanidade sem que ninguém os chorasse,
enquanto a memória de outros ficava a ser acarinhada no íntimo secreto dos humildes.
O pensamento permaneceu vivo na sua mente durante o final
da tarde e ainda continuava a ser fruto de reflexão quando
bateram à porta e ele, ao abri-la, deparou com Blaise Meredith.
A aparência do sacerdote chocou-o. Tinha o rosto exangue,
os lábios sem pinta de sangue e pequenas gotas de suor
cobriam-lhe a testa e o lábio superior. As mãos tremiam-lhe e a voz soava abafada e vacilante.
- Desculpe incomodá-lo, doutor. Será que posso
descansar um pouco junto de si?
- Com certeza, homem! Entre, por amor de Deus!
Que foi que Lhe aconteceu?
Meredith sorriu lividamente.
- Não me aconteceu nada. Estou de regresso da casa
de Nina. Mas é um longo caminho antes de se chegar
à estrada, e foi de mais para mim. Daqui a pouco já
estarei bem!
Meyer conduziu-o até dentro de casa, fê-lo deitar-se
na cama e depois trouxe-lhe uma boa dose de grappa.
- Beba isso. Não tem grande qualidade mas pô-lo-á
bom num instante.
Meredith engasgou-se com o elevado índice de álcool da bebida, mas conseguiu engoli-la e, passados
alguns momentos, começou a sentir o calor a espalhar-se e a força a voltar-lhe aos membros. Meyer mantivera-se a seu lado, a observá-lo com um olhar grave.
- O senhor preocupa-me, Meredith. Esta situação
não pode continuar. Sinto-me inclinado a entrar em contacto com o bispo, para que o mandem para o hospital.
- Dê-me mais alguns dias, doutor. Depois disso, já
não terá grande importância.
- O senhor é um homem muito doente. Para quê
esta situação?
- Passarei muito tempo morto. Mais vale arder do
que apodrecer.
Meyer encolheu os ombros com desespero.
- A vida é sua, monsenhor. Diga-me: que tal correram as coisas com Nina?
- Muito bem. Estou profundamente impressionado
com o que ela me contou. Mas existem algumas questões que gostaria de esclarecer consigo, se não se importa.
- Pergunte o que quiser, meu amigo. Já fui demasiado longe para agora me retrair.
- Obrigado. Aqui vai a primeira. No Inverno de 1943
houve por aqui alguma epidemia de rubéola? E Paolo
Sanduzzi nasceu cego devido a ela?
- Exacto.
- Quanto tempo depois é que a criança voltou a ver?
- Três semanas... não, mais perto de quatro. Sabe,
fui para Roma.
- Quando regressou, o rapaz recuperara a visão?
- Recuperara. As cataratas tinham desaparecido.
- Sob o ponto de vista médico, o facto era estranho?
- Perfeitamente anormal. Nunca soubera de nenhum outro caso.
- Falou com Nina Sanduzzi acerca do assunto?
- Falei. Perguntei-lhe como e quando acontecera.
- Que foi que ela respondeu?
- Limitou-se a fazer um gesto de indiferença e a dizer, à maneira dos camponeses: "... Aconteceu apenas". Nessa altura, o nosso relacionamento não era tão
bom como agora. Não insisti. Mas fiquei intrigado.
Ainda o estou. Porque pergunta, monsenhor?
- Nina contou-me que no dia do nascimento, depois
de o doutor se ir embora, Giacomo passou a noite a rezar e que, chegada a manhã, ele Lhe prometeu que o bebé veria normalmente quando chegasse a altura em que
os outros bebés também viam: três semanas mais tarde.
Segundo Nina, foi precisamente o que aconteceu. As cataratas desapareceram. A criança foi capaz de distinguir
a luz da sombra. E, a partir daí, a sua capacidade de
visão teve o mesmo desenvolvimento que o das outras
crianças. Na sua opinião, que se teria passado?
Mas Meyer não Lhe respondeu imediatamente. Parecia perdido num pensamento novo que Lhe ocorrera.
Ao voltar a falar, foi como se o fizesse com os seus
próprios botões:
- Portanto, era a isso que ela se referia quando
afirmou que Giacomo fizera milagres e que ela os presenciara.
- Quando é que ela fez essa afirmação? - perguntou-lhe Meredith vivamente.
- Quando falávamos da sua chegada e eu tentava
convencê-la a conversar consigo.
- Na sua opinião, ela falava verdade?
- Se ela o disse - retorquiu Meyer, com ar sombrio - era verdade. Ela não mentiria nem para salvar a vida.
- Qual seria a sua opinião como médico?
- Numa primeira análise diria que não era possível.
- Mas foi possível. Hoje o rapaz vê.
Meyer mirou-o com um olhar demorado e indagador; depois sorriu e abanou a cabeça.
- Sei o que quer que eu diga, Meredith, mas não
lhe posso fazer a vontade. Não acredito em milagres,
apenas em factos sem explicação. Posso apenas dizer
que são situações que normalmente não se verificam.
Poderia ir mais longe e dizer que nunca ouvi falar de
um caso semelhante, que não conheço nenhuma explicação médica para ela. Mas não estou preparado para
dar um salto no escuro e dizer-lhe que se trata de um
milagre provocado pela intervenção divina.
- Não lhe estou a pedir que o faça - disse Meredith bem-humoradamente. - Quero apenas que me
diga se o pode explicar em termos médicos.
- Não posso. Talvez a outros seja possível.
- Se outros pudessem, teriam possibilidade de explicar o conhecimento antecipado que Giacomo tinha da cura?
- A clarividência é um fenómeno aceite, se bem
que inexplicado. Mas não pode pedir a ninguém que
julgue um relatório em segunda mão de algo que aconteceu há quinze anos atrás.
- Mas o doutor aceita o relatório como verdadeiro?
- Aceito.
- Considerá-lo-á como inexplicado e, possivelmente,
inexplicável na actual fase do conhecimento médico?
- Do meu conhecimento médico - corrigiu-o Meyer, sorrindo.
- E estaria disposto a testemunhar nestes termos
no tribunal do bispo?
- Estaria.
- É quanto basta - disse Meredith, com uma ironia
suave. - Registarei o facto nos meus apontamentos.
- Qual é a sua opinião pessoal, monsenhor? - perguntou-lhe Meyer, com ar zombeteiro e intencional.
- Tenho um espírito aberto - disse Meredith, sem
vacilar. - Tentarei, do mesmo modo que o meu sucessor, provar, através de todos os meios possíveis, que se
tratou não de um milagre, mas sim de um fenómeno
físico raro. Como se fundamenta numa única testemunha e nas suas declarações posteriores, provavelmente acabaremos por recusar a sua aceitação como milagre, embora
de facto possa ter sido. As nossas opiniões divergem, meu caro doutor, no facto de o senhor rejeitar a possibilidade de milagres e eu a aceitar. O assunto daria
para estarmos aqui a falar muito tempo, mas estou convencido que a minha posição é bastante mais sustentável do que a sua.
- O monsenhor teria dado um bom advogado -
observou Meyer, fugindo ao assunto. - Qual é a pergunta que se segue?
Meredith apresentou-lha sem mais delongas.
- Quem era Il Lupo? E porque Lhe pediu Nerone
que o mantivesse afastado da aldeia?
Meyer fitou-o com surpresa inesperada.
- Quem lhe contou esse facto?
- Nina. Ela estava meio a dormir, mas ouviu-o a
conversar com Nerone à porta.
- Que mais é que ela ouviu?
- O doutor disse: "... Isto é história! Não a podes
parar. Eu também não. Alguém tem de começar a organizar as coisas..."
- Foi tudo?
- Foi. Pensei que poderia dizer-me do que se tratava.
- Tinha muitos significados, monsenhor. Só posso
tentar transmitir-lhe o que significou para mim...
.. Tinham o acampamento montado numa depressão em forma de bacia, bem no alto da cadeia de colinas, a leste. Milénios atrás devia ter sido a cratera de um vulcão.
As bordas eram denteadas como uma serra e as vertentes exteriores áridas e cobertas de entulho; mas no interior havia um pequeno lago para onde a água se escoava
e nas suas margens cresciam arbustos e havia uma faixa de erva rija e fibrosa. As tendas estavam escondidas debaixo dos arbustos e as cabras e a
vaca que tinham obtido dos camponeses da localidade
estavam guardadas em segurança dentro da área ocupada, enquanto as sentinelas vigiavam os terrenos em redor, ao abrigo das protuberâncias denteadas.
Só havia um caminho de acesso - o carreiro de cabras que principiava no Rochedo de Satanás, onde estava colocada a primeira sentinela. O observador postado na borda
da cratera podia vê-lo durante todo o dia
- e, se deixavam entrar algum visitante, este podia
ser observado durante todo o caminho. Quando chegasse à beira da cratera, seria abordado e revistado, e dois homens acompanhá-lo-iam através das moitas,
até à tenda de Il Lupo, que era o chefe.
Meyer recordava-se nitidamente dele - um indivíduo
baixo, louro, com olhos claros, um rosto cheio e uma
boca sorridente, uma voz tranquila no falar, ora no
mais puro toscano, ora no dialecto provinciano mais
rústico. Vestia-se, tal como os seus homens, com roupas grosseiras, mas tinha as mãos e os dentes imaculados, barbeando-se cuidadosamente todos os dias. Falava
pouco acerca do seu passado, mas Meyer soubera que
combatera na Espanha e fora para a Rússia, voltando
depois à Itália antes do início da guerra. Trabalhara
em Milão e Turim e mais tarde em Roma, embora como ou em quê nunca tivesse ficado claro. Admitira pertencer ao Partido e discutia política com autoridade e saber.
No dia em que Giacomo Nerone foi trazido do Rochedo de Satanás, Meyer encontrava-se na tenda de ILupo a combinar uma nova operação de patrulha. Os
guardas transmitiram o seu nome e ao que vinha e IlLupo levantou-se, estendendo-lhe a mão.
- Então você é que é Nerone! Tenho muito gosto em
conhecê-lo. Ouvi falar imenso de si. Gostaria de Lhe falar.
Nerone retribuiu-lhe o cumprimento, mas respondeu com brusquidão:
- Poderíamos deixar isso para mais tarde? A minha mulher
está em trabalho de parto. Gostaria que o doutor a visse o maisrápido possível. O caminho de volta é longo.
- Ela teve rubella - explicou Meyer
apressadamente. - Temos receio de complicações.
Os olhos claros toldaram-se imediatamente de preocupação.
Il Lupo apressou-se a expressar a sua simpatia.
- Uma pena. Uma grande pena. É nesses casos que um
Serviço Nacional de Saúde pode dar uma ajuda. Podem dar-se
vacinas, mal aparecem sinais de epidemia. Você não tem soro,
pois não, Meyer?
- Não. Só nos resta aguardar e ver como é que a criança nasce.
- Tem as parteiras com ela?
Nerone acenou afirmativamente com a cabeça.
- Então, pelo menos assistência está a ter. Dez minutos a mais ou a menos não farão diferença. Tomemos uma chávena de
café e falemos um pouco.
- Descontrai-te, Giacomo - disse Meyer
alegremente. - Nina tem a fortaleza de um boi. Compensaremos
a perda de tempo, quando descermos a colina.
- Muito bem.
Sentaram-se nas cadeiras de lona em mau estado. ILupo
ofereceu cigarros e gritou a pedir café e, depois de alguns
momentos de rodeios delicados, foi direito ao assunto.
- Meyer falou-me de si, Nerone. Consta que é um oficial do Exército inglês.
- É verdade.
- E um desertor.
- Também é verdade.
Il Lupo encolheu os ombros e soprou uma nuvem de
fumo em direcção ao tecto de lona.
- Para nós não tem qualquer importância, evidentemente. Os exércitos capitalistas serviram o seu propósito
ao ganharem a guerra. A nossa tarefa é estabelecer a
paz que desejamos. Portanto, a sua história pessoal
não representa nenhuma desvantagem. Pelo contrário,
poderia até ajudá-lo, connosco.
Nerone nada disse, limitando-se a ficar sentado a
ouvir calmamente.
Il Lupo continuou a falar com a sua voz calma e educada.
- Meyer também me falou do trabalho que tem feito em Gemello. A confiança que despertou no meio do povo. Isso é excelente... como medida temporária.
- Porquê temporária? - inquiriu Nerone suavemente.
- Porque a nossa própria posição é temporária e
ambígua. Porque, quando a guerra terminar, o que será em breve, este país necessitará de um governo forte
e unido para o organizar e dirigir.
- Refere-se a um governo comunista?
- Sim. Somos as únicas pessoas que dispõem de uma
plataforma delineada e a força para a levar à prática.
- Também precisam de um documento especial,
não? Um mandato?
Il Lupo anuiu amigavelmente.
- Já estamos na posse dele. Os ingleses tornaram claro que entrarão no jogo de quem os ajudar a governar o
país. Deram-nos armas e pelo menos um campo de manobra razoável para operações militares. Os americanos
têm outras ideias, mas são politicamente imaturos e
durante algum tempo podemos não Lhes dar importância. Esta é a primeira metade do mandato. Quanto à segunda, temos de a ganhar por nós próprios.
- Como?
- Como é que qualquer partido ganha a confiança?
Mostrando resultados. Estabelecendo a ordem a partir do caos. Livrando-se dos elementos desestabilizadores e construindo a unidade com a força.
- Isso foi o que os fascistas tentaram fazer - disse-Lhe Nerone calmamente.
- O erro deles foi erguerem a sua ditadura baseando-se num único homem. A nossa será a ditadura do
proletariado.
- E gostariam que eu me juntasse a esse projecto?
- Tal como Meyer fez - salientou Il Lupo tranquilamente. - Ele é um liberal por natureza, mas viu a
falência do liberalismo. Não basta proclamar promessas de trabalho, educação e prosperidade como prémios da colaboração. As pessoas não se levam assim. São naturalmente
estúpidas, naturalmente egoístas. Precisam da disciplina da força e do medo. Repare em si próprio, por exemplo. Fez um bom trabalho, mas onde é que ele o conduziu?
Continuará a andar por aí
com um cesto de ovos no braço no papel de Dama do
Bem-Fazer, até ao dia da sua morte... E eles deixá-lo-ão fazê-lo. Que futuro vê nessa situação?
Pela primeira vez desde a sua chegada, Meyer viu
Nerone descontrair-se. O seu rosto magro e moreno
abriu-se num esgar de genuíno divertimento.
- Não tem futuro absolutamente nenhum. Eu sei.
- Então para quê continuar assim?
- O mundo é um lugar triste sem ele - disse Neron
em tom ligeiro.
- Concordo - disse Il Lupo. - Mas no mundo que nós construirmos não haverá necessidade desses actos.
- É disso que tenho medo - declarou Giacomo
Nerone. Pôs-se de pé. - Penso que nos compreendemos um ao outro.
- Eu compreendo-o muito bem - disse Il Lupo,
sem ressentimento. - Não estou bem certo é se me
compreendeu a mim. Vamos entrar nas aldeias, uma a
uma, para nelas instalarmos a nossa própria administração. Gemello é a que vem a seguir na lista. Que tenciona fazer em relação a esse facto?
Nerone sorriu, negando a proposta antes de a transmitir.
- Podia reunir as pessoas e dar-vos luta.
Il Lupo abanou a cabeça.
- É demasiado bom soldado para tal. Nós temos as
armas, as balas e o treino para as utilizarmos. Dávamos cabo de vocês numa tarde. Que proveito traria?
- Nenhum - retorquiu-lhe Nerone calmamente. -
Portanto, passarei palavra pela população para aguardarem as próximas eleições livres sem violência.
Um vislumbre de sorriso retorceu os lábios finos de Il Lupo.
- Nessa altura já eles terão esquecido as armas.
Recordarão apenas o pão, a massa e as tablettes de
chocolate americano.
- E os rapazes que vocês fuzilaram nas valas! -
A voz de Nerone deixou transparecer uma ira súbita.
- Os velhos espancados, as raparigas com as cabeças
rapadas! A nova tirania construída sobre a anterior,
a liberdade mais uma vez escamoteada por uma ilusão
de paz. Eles agora submeter-se-ão, porque perderam e
têm medo. Mais tarde erguer-se-ão para vos julgar
e correr convosco!
- É dar a um homem um bom dia de trabalho,
a barriga cheia e uma mulher à noite na cama, que
ele nunca mais pensará no dia do Juízo Final. - Il
Lupo levantou-se. A sua figura magra pareceu aumentar de estatura, enchendo a tenda. - Mais uma coisa, Nerone...
- Sim?
- Em Gemello não há espaço para nós os dois. Você terá de se retirar.
Surpreendentemente, Nerone projectou a cabeça
para trás e riu com vontade.
- Você quer a carne sem a mostarda. Quer-me desacreditado e posto em fuga como um coelho, enquanto você marcha pela aldeia dentro como o salvador da
Itália. Você é demasiado ambicioso, homem!
- Se ficar - disse Il Lupo, com determinação e
frieza - terei de o matar.
- Eu sei - retorquiu Giacomo Nerone.
- Quer fazer de mártir, não quer?
- Isso seria uma loucura e uma presunção - respondeu-lhe Nerone, com simplicidade. - Como qualquer
outra pessoa, não desejo a morte. Mas não saírei da
terra que lavrei com as minhas próprias mãos, de um
lugar onde encontrei amor, esperança e fé. Recuso-me
a ser expulso dela para lhe dar a si uma vitória fácil.
- Muito bem - disse Il Lupo, sem ressentimento. -
Sabemos as posições um do outro.
- Agora importa-se de que Meyer se venha embora?
- De maneira nenhuma. Se esperar um segundo lá
fora, terminaremos num instante o que estávamos a combinar.
Depois de Nerone sair, Il Lupo disse, sem alarde:
- É um fanático. Terá de ser afastado.
Meyer, pouco à vontade, esboçou um gesto de indiferença.
- É bom tipo. Faz muito bem e nenhum mal. Porque não o deixamos sossegado?
- Você é brando, Meyer - disse Il Lupo, com vivacidade. - Daqui a dez dias tomaremos Gemello.
Tem esse tempo todo para o fazer ganhar juízo.
- Lavo as minhas mãos do assunto - disse Meyer asperamente.
- Essa é da autoria de Pilatos, meu caro doutor. Os
Judeus têm outro dito: "Se necessário, um homem deve morrer pelo seu povo."
Continuava a sorrir quando Meyer deu meia volta e
saiu da tenda para se juntar a Giacomo Nerone...
.. Blaise Meredith estava deitado na cama, descontraído no corpo, mas activo na mente, escutando a
narração crua e objectiva do médico. Quando, a certa
altura Meyer fez uma pausa, perguntou:
- É uma pergunta pessoal, doutor. Juntou-se efectivamente ao Partido Comunista?
- Nunca tive cartão do Partido. Mas isso é irrelevante. Na montanha não se usavam cartões. O importante foi que assumira um compromisso com IlLupo e
com aquilo por que ele lutava: a ditadura do proletariado, a imposição da ordem pela força.
- Posso perguntar porquê?
É muitíssimo simples. - Meyer agitou as mãos
eloquentemente ao explicar. - Eu assistira à queda do
liberalismo. Vira os retrocessos do clericalismo. Fora
vítima da ditadura de um homem. Compreendia a necessidade de igualdade, de ordem e de uma redistribuição do capital. Também vira a estupidez e a teimosia das pessoas
mais desfavorecidas. A solução de Il Lupo parecia-me a única.
- E a ameaça dele a Giacomo Nerone?
- Também tinha a sua lógica.
- Mas discordava dela?
- Não me agradava. Não tinha a minha concordância.
- Falou a Giacomo acerca dela?
- Falei.
- E que foi que ele disse?
- Surpreendentemente, concordou com IlLupo. -
O rosto de Meyer ensombrou-se com a recordação.
- Disse muito claramente: "Não se pode acreditar
de uma maneira e actuar de outra. Il Lupo tem razão.
Se quiserem construir um mecanismo político perfeito,
têm de deitar fora as partes que não funcionam. IlLupo não acredita em Deus. Acredita no homem apenas
como entidade política; portanto, está perfeitamente
dentro da lógica. Tu é que és o ilógico, Meyer. Apetece-te omeleta para o pequeno-almoço, mas não queres partir os ovos."
- Teve alguma resposta para dar?
- Uma não muito boa, receio bem. Estava demasiado próximo da verdade. Mas perguntei-lhe como é
que ele conciliava o seu próprio reconhecimento de
que não havia futuro no trabalho com o facto de ele
estar preparado para morrer por ele.
- Que foi que ele disse?
- Salientou que também ele tinha a sua própria lógica. Acreditava que Deus era perfeito e o homem,
desde a queda, se tornara imperfeito e que no mundo
sempre existiriam a desordem, o mal e a injustiça. Não
era possível criar um sistema que destruísse esses aspectos negativos, porque os homens que o dirigissem também seriam imperfeitos. A única coisa que dignificava
o homem e o mantinha afastado da autodestruição era
a sua filiação com Deus e a sua fraternidade na família
humana. O próprio serviço prestado por Giacomo era
uma expressão dessa relação. Era inevitável que surgisse um conflito entre ele e Il Lupo, porque as crenças que professavam eram opostas e contraditórias.
- E II Lupo, sendo o homem das armas, tinha de o destruir?
- Exactamente.
- Porque não se foi ele embora?
- Também Lhe fiz a pergunta - disse Meyer, fatigado. - Sugeri-lhe que levasse Nina e o menino e se mudassem para outro sítio. Recusou. Disse que nenhum mal aconteceria
a Nina e que ele mesmo há muito deixara de fugir.
- Portanto, permaneceu em Gemello?
- Sim. Eu regressei às montanhas. Na véspera do
dia em que Il Lupo iria avançar e montar a sua administração, voltei à aldeia. Eles iriam utilizar a minha
casa como quartel-general e eu tinha de a preparar.
Também me tinham dito que desse uma última palavra
a Giacomo Nerone para levá-lo a mudar de ideias...
.. A tarde ia no princípio, quente com a Primavera
que se arrastava, ruidosa com as primeiras cigarras. Passearam juntos no jardim, por baixo da figueira, e falaram com a mesma sobriedade com que se desenrolaria
uma conversa entre advogado e cliente, acerca do que aconteceria quando Il Lupo descesse até à aldeia com os seus homens. Não houve qualquer discussão entre ambos.
Nerone recusou-se firmemente a partir e as palavras de Meyer limitaram-se a recitar o inevitável.
- Il Lupo foi muito claro quanto ao que irá ser feito. Primeiro serás desacreditado e depois executado.
- Como é que ele se propõe desacreditar-me?
- A chegada dele está marcada para o nascer do
Sol. Serás preso perto das nove e trazido aqui para um
julgamento sumário.
- Sob que acusações?
- Deserção da causa dos Aliados e colaboração
com os alemães.
Nerone sorriu debilmente.
- Não deverá ter grande dificuldade em provar tudo isso. E depois?
- Serás condenado e imediatamente levado para
execução pública.
- Como?
- Pelo pelotão de execução. Será um tribunal militar. Il Lupo é cuidadoso com as formalidades.
- E Nina e o rapaz?
- Nenhum mal Lhes acontecerá. Il Lupo foi muito
claro em relação a esse aspecto. Não vê benefício em
despertar simpatias punindo uma mulher e uma criança.
- É um homem esperto. Admito-o.
- Pede-me para que te diga que te deixa quase dezoito horas para te ires embora, se o desejares. Trago
dinheiro suficiente para te manter a ti, a Nina e ao bebé durante dois meses. Estou autorizado a dar-to em
troca da certeza que dei que estarás afastado da área antes
do nascer do Sol.
- Fico. Nada alterará a minha posição.
- Então não há mais nada a dizer, pois não?
- Nada, agradeço-te por tentares, Meyer. Temos sido bons amigos. Aprecio a tua atitude.
- Há uma coisa, quase me esquecia.
- Que é?
- Onde estarás às nove da manhã?
- Pouparei o trabalho a Il Lupo. Virei aqui ter.
- Lamento, mas assim não poderá ser. Ele quer
uma detenção pública.
- Não pode ter tudo. às nove da manhã virei aqui
ter pelos meus próprios pés.
- Transmitir-lhe-ei o que disseste.
- Obrigado.
Então, porque estava dito tudo quanto precisava de
ser posto em palavras e porque nenhum dos dois sabia
muito bem como dizer adeus, caminharam de um lado
para o outro pelo carreiro lajeado que se estendia
debaixo da figueira, até que Meyer disse, desajeitadamente:
- Lamento que termine desta maneira. Já não é da
minha conta, mas que é que vais fazer agora?
Nerone respondeu-lhe tranquila e sinceramente:
- Vou lá abaixo ter com o padre Anselmo para me
confessar. Voltarei depois à cabana para ir buscar algumas coisas para entregar a Nina. A seguir irei à villa
pedir à condessa que receba Nina e o menino em sua
casa até tudo terminar. Ela é inglesa de nascimento e
Il Lupo é demasiado esperto para agir impensadamente
com alguém que pertença ao povo que Lhe deu as armas
que tem. Depois... - O rosto moreno e encovado
abriu-se num sorriso. - Depois vou dizer as minhas
orações. Tenho sorte em dispor de tempo para me preparar. Nem todos os homens conhecem a hora e o local da sua morte. - Deteve as passadas e estendeu a mão. - Adeus,
Meyer. Não te culpes demasiado. Lembrar-me-ei de ti na eternidade.
- Adeus, Nerone. Tomarei conta de Nina e do rapaz.
Teve vontade de recorrer à velha fórmula familiar e
dizer: "Deus te guarde." Mas lembrou-se a tempo de
que, no novo mundo de Il Lupo, que era agora o seu,
Deus deixaria de existir. A despedida não fazia, portanto, sentido e ele não a disse...
.. Blaise Meredith perguntou:
- Que aconteceu com o padre Anselmo?
Meyer esboçou um gesto de indiferença.
- Nada de especial. O velho não gostava dele. Tinham discutido muitas vezes, como sabe. Recusou-se a
ouvi-lo em confissão. O assunto chegou-me aos ouvidos mais tarde, na aldeia.
- E a condessa?
- Isto não é em primeira mão. Foi Pietro, um dos
criados, que é meu doente, que me contou. Giacomo
foi lá acima à villa pedir refúgio para Nina e o filho...
Também quis, tanto quanto sei, dormir lá naquela noite, para que I1 Lupo não soubesse onde ele estava e se
visse obrigado a abster-se da importância que uma detenção pública teria. Anne de Sanctis estava disposta a
fazê-lo, parece, mas à custa de um preço.
- Que preço?
- Ela é uma mulher estranha - observou Meyer
evasivamente. - Já a conheço há muito tempo, mas
não poderia afirmar que a percebo completamente.
É uma apaixonada por natureza e tem grande necessidade de um homem, necessidade ainda mais premente agora, que enfrenta o terror da meia-idade. O marido disiludiu-a.
Os outros amantes chegaram e partiram como soldados em tempo de guerra. Foi sempre demasiado orgulhosa para se satisfazer com algum homem
da aldeia. Nerone poderia ter sido seu companheiro,
mas já se apaixonara por Nina Sanduzzi. Desde o princípio que ela sentiu ciúmes dessa relação. De modo
que toda a sua vida emocional tem vindo a tomar os
matizes da perversão. O preço que exigia era que Nina
assinasse uma declaração em como deixava o menino à
sua guarda e que Giacomo Nerone dormisse com ela
nessa noite.
- Um homem na véspera da sua execução? - Meredith sentia-se chocado.
- Já lhe disse - observou Meyer calmamente -
ela tem uma noção muito especial da realidade. É por
isso que o seu amigo pintor tem tanta influência na villa. Ele favoreceu-lhe os desígnios obscuros. Seja como for, como deve calcular, Giacomo recusou. Aparentemente
ela foi suficientemente perspicaz para calcular que ele passaria a noite em casa de Nina. Mandou um homem levar uma mensagem sua a Il Lupo. Giacomo foi preso duas
horas depois do nascer do Sol.
- Então, é por essa razão que ela odeia o filho dele.
- Não me parece que ela odeie o rapaz - disse
Meyer, com bom humor sombrio. - Quando muito,
sente-se provavelmente atraída por ele. Mas continua
a ter ciúmes de Nina e detesta-se a si própria, apesar
de não o saber.
Blaise Meredith tirou os pés de cima da cama com
um impulso e sentou-se, passando os dedos pelo cabelo fraco num gesto de cansaço patético e confusão. Numa voz que era quase um suspiro, observou:
- É tarde. Acho melhor arranjar-me para jantar.
Embora, só Deus sabe, não me sinta com grande disposição para encarar os dois esta noite.
- Porque não jantar aqui? - sugeriu Meyer impulsivamente. - Comerá pior, mas ao menos não se verá forçado a ser delicado. Estou quase a terminar a transmissão do
meu testemunho e mais vale que ouça o resto esta noite. Mandarei um moço à villa apresentar as suas desculpas.
- Pode crer que lhe ficarei muito grato.
- Eu é que lhe estou grato - disse Meyer, com
um sorriso. - E de um judeu para um inquisidor é
um grande cumprimento. [

Na requintada sala de jantar da villa, a condessa e Nicholas Black jantavam à luz das velas, na intimidade retraída dos conspiradores. A condessa mostrava-se irritada
e mordaz. Começava a aperceber-se do quanto a situação lhe escapava já ao controlo - com Nicholas Black a dominá-la e Meredith a colher sabia Deus que informações
de Meyer, de Nina Sanduzzi e do velho Anselmo. Não tardaria, porém, que ele a interpelasse com as suas perguntas secas e pedantes e os seus olhos encovados e perscrutadores.
Quer respondesse ou
mantivesse o silêncio, acabaria desacreditada, enquanto o pintor se livrava airosamente de qualquer embaraço e ficava com o prémio.
Nicholas Black também estava nervoso. Meredith
forçara-o a falar à hora do almoço e tinham-se dito
coisas que nunca deveriam ser recordadas. Agora encontravam-se em oposição declarada e Black, apesar
de toda a sua troça, nutria um respeito considerável
pela influência temporal que a Igreja possuía num país
latino. Se Meredith se lembrasse de invocar a ajuda do
bispo, todo o tipo de influências poderia entrar em acção - influências que alcançariam mesmo a própria
Roma - e o final poderia ser uma convocação discreta
da polícia e a revogação da sua licença de estada. Já
acontecera anteriormente. Os democratas-cristãos estavam no poder e por trás deles tinham o Vaticano,
antigo, subtil e impiedoso.
Portanto, não tardou em se aperceber do medo da
condessa e a explorá-lo para sua própria vantagem.
- Concordo que o padre representa um tremendo
aborrecimento, cara. Sinto que a culpa é minha por tê-lo trazido aqui. Estás metida numa trapalhada. Gostaria de te ajudar a sair dela.
O rosto da condessa iluminou-se imediatamente.
- Se puderes fazê-lo, Nicki...
- Tenho a certeza de que podemos, cara. - Inclinou-se para a frente e deu-lhe uma palmadinha na mão,
à laia de encorajamento. - Agora escuta! O padre está
cá. Estamos presos a ele. Não nos podemos livrar dele
sem cometermos um acto de indelicadeza, e tu não o desejarias.
- Eu sei. - A condessa concordou pesarosamente. - Há o bispo, sabes...
Black interrompeu-a bruscamente:
- Eu também sei que há o bispo, cara. Tens de viver aqui; portanto, és obrigada a mostrar-te amigável.
Meredith deve ficar. Concordámos nesse ponto. Mas
nada te impede de te ires embora.
- Eu... eu não percebo.
- É simples, cara. - Agitou eloquentemente uma
das mãos. - Não te tens sentido nada bem. O próprio
Meredith tem conhecimento de que tens sofrido enxaquecas e sabe Deus que outras maleitas femininas. Precisas de consultar um médico imediatamente. Portanto, vais
a Roma. Arranjas um apartamento por lá. Precisas de pessoal para o dirigir. Levas a tua criada e Pietro e, como um favor especial a Nina Sanduzzi, também te fazes
acompanhar pelo rapaz. Queres comprar-lhe roupas novas. Desejas treiná-lo para se movimentar no meio da sociedade com educação. Talvez até estejas a pensar em mandá-lo
educar pelos Jesuítas... - Riu sardonicamente. - Que mãe recusaria semelhante oportunidade? E se o fizer? O rapaz está obrigado por um contrato de trabalho firmado
contigo. A lei italiana é uma confusão tal que me parece que
não terás dificuldade em levares a tua avante desde
que o rapaz consinta. A mãe é que terá de enfrentar o
problema de ter de explicar por que razão o quer aqui
e que trabalho Lhe poderá arranjar. Também poderias
resolver esse óbice providenciando-lhe uma entrega semanal, através do teu mordomo, de parte do salário do rapaz.
Os olhos da condessa brilharam perante a ideia nova e
encorajadora, mas voltaram a ensombrar-se novamente.
- É uma lembrança formidável, Nicki. Mas, quanto
a ti? Meredith sabe quais são as tuas intenções. Fará
os possíveis por dificultá-las.
- Também pensei nesse aspecto - disse o pintor,
com o seu sorriso satírico. - Eu fico aqui, pelo menos
durante uma semana. Se Meredith te fizer perguntas,
podes dizer francamente que achas que exerço má influência sobre o rapaz. Queres agir como uma boa cristã e afastá-lo de mim. Simples, não é?
- Maravilhoso, Nicki! Maravilhoso! - Os olhos luziam-lhe e ela bateu as palmas entusiasmada. - Amanhã trato de tudo e partiremos no dia a seguir.
- Porque não amanhã mesmo?
- Não podemos, Nicki. O comboio de Valenta parte para Roma de manhã. Não haverá tempo para preparar tudo.
- É pena - disse Black, irritado. - Ainda assim,
é só um dia. Penso que somos capazes de manter o
nosso monsenhor ao largo durante esse espaço de tempo. É melhor seres tu própria a falar com o rapaz. Não
devo dar a impressão de estar envolvido.
- Falarei com ele amanhã de manhã. - Voltou a
encher o seu copo de vinho. - Bebamos, querido!
Depois abriremos outra garrafa e celebraremos. A que
devemos beber?
Black ergueu o seu copo e sorriu à condessa por cima da borda.
- Ao amor, cara!
- Ao amor! - exclamou Anne Louise de Sanctis.
De repente sentiu-se chocada com um pensamento:
"Mas quem é que me ama? E quem é que alguma vez
chegará a amar-me?"
- Serei franco consigo, doutor - disse Meredith,
comendo taciturnamente o resto do seu jantar. - Neste momento sinto-me menos preocupado com Giacomo Nerone do que com o seu filho. Nerone está morto e, esperemos,
entre os bem-aventurados. O seu filho encontra-se a braços com uma grave crise moral, correndo diariamente perigo de sedução. Sinto-me responsável por ele. Mas como
é que me livro dessa
responsabilidade?
- É um problema - concordou Meyer, com preocupação sombria. - O rapaz é praticamente um homem. É livre de fazer o que quer e é moralmente responsável, apesar de
inexperiente. Certamente não ignora a situação em que está envolvido. As crianças que são criadas no leito matrimonial amadurecem cedo. Penso que é um rapaz são;
mas Black é uma pessoa muito persuasiva.
Meredith brincava distraidamente com um pedaço
de côdea, esfarelando-a sobre o prato e formando
montinhos com as partículas acinzentadas.
- Até mesmo num confessionário se torna difícil alcançar um adolescente. Retraem-se como coelhos e
são muito mais complicados do que os adultos. Se eu
pudesse convencer a condessa ou o próprio Black, poderia ter alguma possibilidade.
- Já tentou?
- Com Black, sim. Mas o homem está cheio de
amargura e ressentimento. Não fui capaz de encontrar
um termo de concordância comum. Em relação à condessa, ainda nem sequer experimentei.
Meyer dirigiu-lhe um sorriso frio.
- É possível que encontre ainda maior dificuldade,
monsenhor. As mulheres são criaturas muito pouco lógicas na maior parte dos casos e esta padece de um
mal, do mal da meia-idade e de um velho amor que se
tornou amargo e vergonhoso. Para um há cura, mas
para o outro... - Fez uma pequena pausa, franzindo
interrogativamente os sobrolhos. - De uma coisa estou certo, Meredith. Nenhum padre pode curá-lo.
- Então, qual vai ser o fim dela?
- Drogas, bebida ou suicídio - disse Meyer, sem
rodeios. - Três palavras para o mesmo desfecho.
- E essa é a única resposta?
- Se quer que eu diga que Deus é a resposta, monsenhor, não Lhe posso fazer a vontade. Existe uma outra, mas é uma palavra feia da qual poderá não gostar.
Para surpresa do médico, Meredith ergueu o rosto
lívido e sorriu-lhe bem-humoradamente.
- Sabe, Meyer, esse é o dilema com que os materialistas se debatem. Não admira que tão poucos dêem
por ele. Riscam Deus do dicionário e a única resposta
que têm para decifrar o enigma do universo é uma palavra feia.
- Diabos o levem! - exclamou Meyer, com um
sorriso malicioso. - Diabos o levem por ser um inquisidor tão metediço. Tomemos um pouco de café e falemos de Giacomo Nerone.
.. às oito da manhã prenderam Nerone em casa de
Nina. Não se mostraram demasiado rudes para com
ele, mas ensanguentaram-lhe o rosto e rasgaram-lhe
a camisa para que desse a impressão de que lhes oferecera resistência. Na realidade, esta não fora absolutamente nenhuma; ele limitara-se a ficar imóvel, enquanto
dois lhe prendiam os braços e um terceiro o espancava, ao mesmo tempo que os outros seguravam Nina, que gritava e lutava como um animal selvagem - e que, depois
de o levarem, se deixou cair em cima da cama a gemer. A criança não chorou, permanecendo quieta no seu berço, agarrando nas dobras da almofada com as mãos minúsculas
e rechonchudas.
Depois fizeram-no caminhar colina acima, pela estrada, e para tornarem o espectáculo mais vistoso, prenderam-lhe os braços atrás das costas e inclinaram-no quase
ao meio para atravessar a aldeia. As pessoas mantiveram-se à porta, em silêncio, a olhar, e até as crianças receberam ordem para se calarem enquanto ele passava.
Nenhuma voz se ergueu em protesto, nenhuma mão se estendeu para o ajudar. Il Lupo calculara tudo com exactidão. A fome não tinha lealdades.
Aquela gente vira demasiados conquistadores chegarem e partirem. A sua submissão era para com os fortes, e não os fracos. Era uma terra dura com uma história dura.
Não era herança dos brandos.
Ao chegarem à casa de Meyer, atiraram-no rudemente para o interior e fecharam a porta. As pessoas vieram a correr como formigas para se postarem em frente, mas os
guardas afastaram-nas, exigindo com Imprecações que regressassem a suas casas. I1 Lupo queria um julgamento ordeiro, e não tumultos que o perturbassem.
Dentro da sala, Giacomo Nerone gastou alguns momentos a flectir os braços entorpecidos e a limpar o sangue do rosto. Depois olhou em redor. A divisão fora disposta
de maneira a fazer de tribunal. Il Lupo, Meyer e três outros homens estavam sentados à mesa e por trás destes alinhavam-se guardas homens
morenos de barba por fazer, de casacos de cabedal e
boina na cabeça, com pistolas no cinco e espingardas
automáticas displicentemente seguras. Dois outros
guardas mantinham-se entre Nerone e a porta, e entre
este e a mesa havia um espaço desimpedido, com uma
única cadeira. Todos os rostos se mostravam determinados e sérios, como competia a homens que testemunhavam um acto
histórico. Somente II Lupo sorria, de olhos claros e delicado, qual anfitrião a presidir a um jantar. Disse com
o seu tom de voz frio:
- Lamento termos sido obrigados a tratá-lo com
dureza, Nerone. Não devia ter resistido à prisão.
Nerone não fez qualquer comentário.
- Tem o direito, evidentemente, de conhecer as
acusações que Lhe são feitas. - Pegou na folha de
papel que tinha em cima da mesa e leu num toscano
cuidadoso: "Giacomo Nerone, este tribunal militar
acusa-o de deserção do Exército inglês e de colaboração activa com as unidades alemãs a operarem em Gemelli dei Monti." Voltou a pousar o papel em cima da
mesa e acrescentou:
- Antes de ser julgado por estes crimes, tem a liberdade de dizer o que desejar.
Nerone fitou-o com olhos calmos.
- Assentará as minhas observações no processo?
- Sem dúvida.
- Este tribunal não tem autoridade para tratar da
acusação que diz respeito à deserção. Somente um tribunal marcial inglês poderá julgar-me por tal. O procedimento correcto seria manterem-me sob custódia e
entregarem-me ao comandante inglês mais próximo.
Il Lupo concordou tranquilamente.
- Tomaremos nota da sua objecção, que me parece
bem fundamentada, apesar do facto de você não dispor de provas em como é um militar inglês. A segunda acusação levá-lo-á, no entanto, a tribunal.
- Também não vos reconheço autoridade para tal.
- Com que fundamento?
- Este tribunal não obedece às leis estabelecidas.
Os seus elementos não dispõem de nenhum mandato legal.
- Não concordo consigo - disse Il Lupo calmamente. - Os grupos de guerrilheiros foram formados para apoiar os Aliados. Possuem uma identidade de facto como unidades
militares e uma autoridade sumária em áreas locais de guerra. Esta autoridade deriva, em última instância, do Alto Comando Militar dos
Aliados e da autoridade da ocupação na Itália.
- Nesse caso, não tenho nada a dizer.
Il Lupo anuiu delicadamente.
- óptimo. Estamos ansiosos, evidentemente, para
que se faça justiça. Disporá de algum tempo para preparar a sua defesa. Proponho sairmos da sala. Dar-lhe-ão
café e algo para comer. O Dr. Meyer, que aqui está, encontra-se preparado para actuar como seu advogado de
defesa. Como presidente do tribunal, estou preparado
para ter na máxima consideração qualquer dos aspectos que deseje discutir comigo. Está entendido?
Pela primeira vez desde a sua chegada, Nerone sorriu.
- Perfeitamente entendido. Apreciarei o café.
A um sinal de Il Lupo, os guardas saíram para o jardim e os três homens ficaram sozinhos. Meyer não
proferiu palavra, limitou-se a ir até ao fogão preparar
café. Nerone sentou-se e Il Lupo ofereceu-lhe um cigarro, que Lhe acendeu. Em seguida sentou-se na beira
da mesa e disse com simpatia:
- Foi um louco em ficar, sabe.
- Está feito - retorquiu Nerone, com brevidade. -
Para quê discutir sobre isso?
- Você desperta-me interesse, aí tem porquê. Sinto
uma grande admiração por si. Mas não consigo vê-lo
no papel de mártir.
- Foi-me atribuído por si.
- E você aceitou-o.
- Aceitei.
- Porquê?
- Gosto das deixas - disse-lhe Nerone, com um humor
grave. - Sobretudo da última: "consummtum est."
- Você e a sua obra - disse Il Lupo.
Nerone encolheu os ombros.
- A obra não é o importante. Há um milhão de homens que a podem fazer mais eficientemente. Muito provavelmente você
próprio a fará melhor. A obra morre. Quantos homens Cristo
curou? E quantos deles estão hoje vivos? A obra é uma
expressão do que o homem é, do que ele sente, daquilo em que
acredita. Se perdura, se se desenvolve, não é por causa do
homem que a iniciou, mas porque outros homens pensam,
sentem e acreditam da mesma maneira. O seu próprio partido é
um exemplo dessa realidade. Você também morrerá. E depois?
- A obra continuará - disse Il Lupo. Os olhos claros
iluminaram-se subitamente, como diante de uma grande
revelação. - A obra continuará. O velho sistema perecerá com a
sua própria corrupção e o povo formará aquele que Lhe
interessa. Aconteceu na Rússia. Acontecerá na sia. A
América ficará isolada. A Europa será forçada a alinhar.
Acontecerá. Nerone, posso não estar cá para assistir, mas eu
não tenho importância.
- É a diferença que existe entre nós - disse Giacomo Nerone brandamente. - Você diz que não é importante. Eu digo que sou... O que me acontece é importante em termos
de eternidade, porque estive na mente de Deus durante toda a eternidade... eu! O cego, o fútil, o hesitante, o falhado. Estive, estou e estarei!
- Acredita realmente nisso? - Os olhos de Il Lupo
perscrutavam-no atentamente.
- Acredito.
- Morrerá por isso?
- Assim parece.
Il Lupo apagou o cigarro e levantou-se. Declarou
com convicção inabalável:
- É uma loucura monstruosa.
- Eu sei - retorquiu Giacomo Nerone. - E há
dois mil anos que se mantém. Não sei se a sua se manterá durante tanto tempo.
Il Lupo não respondeu. Consultou o relógio de pulso e depois disse bruscamente:
- Tomaremos café e depois terá o resto da manhã
para descansar. Reuniremos o tribunal à uma da tarde.
Como é que tenciona defender-se?
- Tem alguma importância?
- Realmente, não. Os dados são incontroversos.
A execução está marcada para as três horas.
o rosto de Nerone ensombrou-se momentaneamente. Perguntou:
- Porquê tão tarde? Gostaria de acabar com isto.
- Lamento - retorquiu Il Lupo delicadamente. -
Não é minha intenção ser cruel. Trata-se apenas de
uma questão de política. Haverá menos tempo para tumultos e manifestações. Quando acabarem os comentários e começarem a pensar, será hora de jantarem.
Compreende, não é verdade?
- Perfeitamente - respondeu Giacomo Nerone.
Meyer trouxe o café e os apetrechos do pequeno-almoço e sentaram-se à mesa a comer em silêncio, como
uma família. Ao terminarem, Il Lupo perguntou:
- A propósito, tenciona fazer algum discurso antes da execução?
Nerone abanou negativamente a cabeça.
- Fico satisfeito em saber que não - disse-lhe
Il Lupo alegremente. - Caso contrário ver-me-ia obrigado a sová-lo antes de o tirar daqui. Se há coisa a que
não me posso permitir é a heroísmos.
- Não sou um herói - observou Giacomo Nerone.
Pela primeira vez desde a sua chegada, Meyer falou-Lhe. Sem erguer os olhos do tampo da mesa, disse asperamente:
- Se quiseres ficar algum tempo sozinho, utiliza a
outra sala. Ninguém te perturbará. Quando tudo estiver pronto, irei chamar-te.
Nerone fitou-o com gratidão nos olhos tristes.
- Obrigado, Meyer. Tens sido um bom amigo.
Lembrar-me-ei de ti.
Levantou-se da mesa e dirigiu-se para o quarto ao
lado, fechando a porta. Os dois homens olharam um para o outro. Passado um momento, Il Lupo disse, sem
pressas:
- Meyer, depois da execução dispensá-lo-ei do serviço. Se deseja o meu conselho, vá-se rapidamente
embora e mantenha-se afastado durante algum tempo.
Você não foi feito para este tipo de situações.
- Eu sei - reconheceu Meyer, com voz inexpressiva. - Não acredito suficientemente, nem num lado
nem no outro...
-... Quanto ao resto? - quis saber Blaise Meredith.
As longas mãos de Meyer esboçaram um gesto definitivo.
- Foi muito simples. Nerone foi julgado e declararam-no culpado. Levaram-no para o topo da colina,
amarraram-no à velha oliveira e fuzilaram-no. Todos
estavam presentes, incluindo as crianças.
- E Nina?
- Também. Aproximou-se dele, beijou-o e depois
retrocedeu. Nem mesmo quando dispararam ela proferiu uma palavra: mas, depois de todos se retirarem, ficou no local. Ainda lá estava quando chegou o grupo
que devia proceder ao funeral.
- Quem é que o enterrou?
- Anselmo, a condessa, dois homens da villa, Nina
e eu próprio.
Blaise Meredith franziu o sobrolho, intrigado.
- Não compreendo.
- Não tem nada de especial. Nós os três queríamos
odiá-lo, mas no fim ele envergonhou-nos, levando-nos a amá-lo.
- E no entanto - insistiu Meredith - quando
cheguei, vocês todos tinham medo dele.
- Eu sei - disse Meyer asperamente. - O amor é
o sentimento mais terrível do mundo.
Passava das onze da noite quando Blaise Meredith
saiu de casa do médico para regressar à villa a pé. Antes de ele sair, Meyer mostrou-lhe a última carta de
Nerone e entregou-lhe o embrulho contendo o resto
dos papéis. Deram as boas-noites um ao outro e Meredith começou a caminhar pela rua de pedras gastas,
iluminada pelo luar.
Sentiu-se invadir por uma sensação de estranheza e
isolamento, como se tivesse saído do seu próprio corpo, num local estranho e noutra era. As dúvidas tinham desaparecido, os conflitos, restando apenas uma grande
tranquilidade. A tempestade rodeava-o por todos os lados, rugindo incansavelmente; ele, porém, permanecia sereno no centro do ciclone, num encantamento feito de
silêncio e águas calmas.
Tal como Giacomo Nerone, estava perto do final
da sua pesquisa. Tal como Nerone, via como a sua
morte devia chegar, com uma lufada de violência,
inevitável, mas breve como o ocaso. Tinha medo,
mas não se desviava do caminho que conduzia até ela pelos seus próprios pés, envolto na tranquilidade da decisão final.
Chegou junto dos portões de ferro da villa e ultrapassou-os, começando a subir, com esforço, a última
ladeira íngreme que conduzia ao local da execução de
Nerone - o pequeno planalto onde a oliveira se erguia, fazendo lembrar uma cruz negra contra a lua
branca. Ao chegar junto dela, pousou o embrulho e
encostou-o à árvore, sentindo o coração a pulsar fortemente e o contacto rugoso da casca contra a pele. Ergueu lentamente os braços, de maneira a estes ficarem estendidos
sobre os ramos nodosos e os galhos secos picaram-lhe a pele das mãos.
Giacomo Nerone estivera naquela posição, de pulsos
e tornozelos presos e olhos tapados, no momento da
rendição final. Agora era a sua vez - Blaise Meredith,
o sacerdote frio do Palácio das Congregações. O corpo
tornou-se-lhe hirto e o rosto rígido na agonia da decisão,
enquanto lutava para reunir a sua vontade no acto de
submissão. Pareceu escoar-se uma eternidade antes de
as palavras Lhe saírem, com grande esforço, da boca,
em voz baixa e agonizante:
-... Leva-me, Senhor! Faz de mim o que desejares... uma maravilha ou um objecto de troça. Mas salva-me o rapaz, por amor de seu pai!
Estava terminado - feito, acabado! Um homem vendido ao toque do martelo do seu Criador. Era tempo de voltar para casa. Para a cama, mas não para dormir.
O tempo começava a escassear. Antes de a manhã chegar, havia que ler os papéis de Giacomo Nerone e escrever uma carta a Aurelio, bispo de Valenta.

CAPíTULO XIV

Para Blaise Meredith, o homem das leis - nem
mesmo naquela situação de clímace ele conseguia pôr
de parte o hábito mental de toda uma vida - os escritos de Giacomo Nerone foram, em muitos aspectos,
uma desilusão. Nada acrescentavam, excepto pela dedução, à biografia do seu passado e pouco mais do que
uns pormenores aos detalhes conhecidos da sua vida,
obras e morte em Gemello Minore.
O que Aldo Meyer encontrara neles - recordações
pungentes, um vislumbre da mente de um homem outrora conhecido, outrora odiado, finalmente amado -
apresentava-se sob outro aspecto ao advogado do Diabo.
Blaise Meredith lera os escritos de centenas de santos, e
todas as suas agonias, todas as suas revelações, todas
as suas efusões apaixonadas, tinham para ele a familiaridade de velhos conhecidos.
Fundamentavam-se na mesma crença, num padrão
básico de penitência e devoção, na mesma evolução,
que ia da purificação à iluminação, da iluminação a uma
união directa com o Todo-Poderoso no acto da oração.
Era da conformidade que ele andava à procura, tal como
cada um dos examinadores e assessores a procurariam,
em cada um dos processos que se deveriam seguir à
primeira apresentação de provas no tribunal do bispo.
Para o biógrafo, o dramaturgo, o pregador, a personalidade era importante. Os seus subterfúgios, as suas singularidades e génio individual é que o ligavam ao
comum dos homens e faziam-nos considerá-lo como
um patrono e um exemplo. Mas para a Igreja em si,
para os teólogos e inquisidores que procediam às investigações e a representavam, o importante assentava no seu carácter como cristão - na sua conformidade com o
protótipo que era Cristo.
Assim, nas horas lentas da noite, Blaise Meredith
concentrava-se, fria e analiticamente, no escrutínio.
Mas nem mesmo ele era capaz de escapar ao impacto
pessoal - o homem ressaltava, vivo, das páginas amareladas e da forte caligrafia masculina.
A escrita era desordenada: anotações breves de um
homem atormentado entre a contemplação e a acção,
que ainda sentia a necessidade de clarificar os seus
pensamentos e tornar as suas afirmações entendidas
por si próprio. Meredith imaginou-o a pé até altas horas da noite, no pequeno abrigo de pedra, cheio de frio e com o estômago vazio, no entanto estranhamente contente,
escrevendo uma página ou duas antes de chegar a altura de iniciar a longa vigília de oração que, cada vez mais, lhe substituía as horas de sono.
Contudo, apesar da característica irregular dos escritos, eles revelavam um ritmo e unidade próprios. Iam acompanhando o crescimento do homem que escrevia. Terminavam
quando o homem chegava ao fim, em dignidade, calma e um estranho contentamento.
[...] Escrevo devido à necessidade que todo o homem tem de comunicar o que lhe vai no íntimo, mesmo que seja para uma folha de papel em branco; porque o conhecimento
de mim próprio é um fardo pessoal e não tenho o direito de o colocar todo nos ombros da mulher que amo. Ela é simples e generosa. Suportará
tudo e ainda terá espaço para mais, mas o segredo faz tanto parte do amor como a entrega. O homem deve pagar pelos seus próprios pecados e não pode pedir a absolvição
emprestada a outro.
Nascer no seio da Igreja - e só posso falar da minha
própria Igreja, visto não conhecer nenhuma outra - é
simultaneamente um fardo e um consolo. O fardo faz-se sentir
primeiro. O fardo da ordenação e da abstenção e, mais tarde, da crença. O consolo chega depois, quando se começa a fazer
perguntas e quando se nos depara a chave para todos os
problemas da existência. É realizar o primeiro acto consciente de fé, aceitar a primeira premissa, e toda a lógica vem perfice. Uma pessoa pode pecar, mas ela peca
no seio de um cosmo. É-se levado ao arrependimento pela ordem implacável deste. É-se livre dentro de um sistema e o sistema é seguro e consolador, desde que a vontade
seja determinada no primeiro acto de fé.
Quando católicos se tornam invejosos dos descrentes,
como muitas vezes lhes acontece, é porque o fardo da crença se
torna pesado e a constrição do cosmo principia a desgastar-se.
Começam a sentir-se defraudados, como aconteceu comigo.
Interrogam-se sobre a razão que leva a que um nascimento,
fruto do acaso, torne a fornicação um pecado para uns e um
divertimento de fim-de-semana para outros. Colocados diante
das consequências da crença, começam a lamentar a crença em
si. Alguns acabam por rejeitá-la, como me aconteceu quando saí de Oxford.
Ser católico na Inglaterra é submeter-se a uma submissão
mesquinha em vez de construtiva, embora não menos rígida. Se
se pertence às famílias antigas, como era o meu caso, aos
últimos descendentes de Elizabeth e dos Stuarts, é possível
usar a fé como uma excentricidade histórica - da mesma maneira
que algumas famílias ostentam uma bastardia, um corrompido da
Regência ou uma solteirona dada ao vício do jogo. Mas, no
estrépito das submissões, isto não basta. Mais cedo ou mais
tarde é-se forçado a voltar ao primeiro acto de fé. Se se rejeita este, está-se perdido [...]
[...] Eu andei perdido muito tempo, sem que o soubesse. Sem a fé é-se livre, o que inicialmente representa uma sensação agradável. Não há problemas de consciência,
nem restrições, excepto aquelas que advêm
dos costumes, das convenções e das leis, as quais são
suficientemente flexíveis para muitos propósitos. Só
mais tarde é que chega o terror. É-se livre - mas livre
num caos, num mundo inexplicado e inexplicável. É-se
livre num deserto, donde só é possível voltar retrocedendo, na direcção do amago oco de si próprio. Não
há nada para construir além do pequeno rochedo que
é o nosso próprio orgulho, que nada representa, em
nada se baseia... Penso, portanto, que sou. Mas sou o
quê? Um acidente nascido da desordem, sem rumo certo [...]
[...] Reflecti muito tempo sobre a natureza do meu
acto de deserção. Na altura, ele não teve qualquer significado moral. O juramento militar cessa perante a
invocação da divindade. Mas para mim não existia divindade. Se decidi arriscar liberdade e reputação e sofrer as sanções do Estado, foi porque quis. Se escapei
às sanções tanto melhor. Mas na altura não raciocinava
desta maneira. O meu acto foi instintivo - uma reacção irracional em relação a algo que era uma violência
para a minha natureza. Mas, pelo que nessa altura
acreditava, eu nada tinha que pudesse chamar-se de
natureza. Fui formado numa forma comum, como uma
fagulha saltando de uma fornalha, mas que importância tinha que uma fagulha escapasse, crepitante? Eu já
estava perdido... só me restava mergulhar um pouco
mais no negrume.
Então apareceu Nina. Despertei para ela como
quem desperta para a primeira luz da manhã. O acto
de amor é, tal como o acto de fé, uma entrega; e acredito que um condiciona o outro. No meu caso, pelo
menos, foi o que aconteceu. Não posso arrepender-me
de a ter amado, porque o amor é independente da sua
expressão - e somente a minha expressão dele é que
foi contrária à lei moral. Lamento este aspecto e tenho-o confessado e rezado em busca de perdão. Mas mesmo em pecado, o acto de amor - feito com amor - é protegido
pela divindade. A submissão que implica pode não ser a correcta, mas a sua natureza não se altera, ela é criativa, comunicativa, esplêndida na entrega [...]
[...] Foi no esplendor da minha entrega a Nina e
dela a mim que primeiro compreendi de que maneira
um homem devia entregar-se a Deus - se existisse um
Deus. O momento de amor é um momento de união
- de corpo e espírito - e o acto de fé é mútuo e implícito.
Nina tinha um Deus, mas eu não possuía nenhum. Ela estava em pecado, mas no seio do cosmo. Eu estava para além do pecado, no caos... Mas vi nela tudo quanto rejeitara,
tudo quanto necessitava e que, não obstante, deitara fora. A nossa união foi imperfeita por essa razão e ela poderá um dia vir a aperceber-se e quem sabe a odiar-me.
Como é que uma pessoa volta a acreditar, depois da descrença? Depois do pecado é fácil - um acto de arrependimento. Um filho pródigo que regressa ao pai, porque
o pai está ainda ali, a relação não foi interrompida. Mas na descrença não há pai, nenhuma relação é rompida. Vem-se de nenhures, parte-se para
nenhures. O acto nobre que se comete é desprovido
de significado. Tentei servir as pecssoas. Servi-as verdadeiramente. Mas quem eram as pessoas? Quem era

eu?
Tentei, através do raciocínio, voltar a uma primeira causa e a um primeiro gesto, da mesma maneira
que uma criança enjeitada poderá voltar a recordar a
existência do pai. Ele deve ter vivido, todas as crianças
têm um pai. Mas quem era? Como se chamava? Que
aspecto tinha? Amara-me ou esquecera-me para sempre? o verdadeiro terror centrava-se ali e, ao relembrá-lo agora, da segurança que alcancei, tremo, suo e
rezo desesperadamente. "Abraça-me com força. Nunca mais voltes a deixar-me partir. Nunca escondas o
teu rosto de mim. No escuro é terrível!"
Como é que cheguei a Ele? Só Ele sabe. Procurei-O hesitantemente e não consegui encontrá-Lo. Rezei-Lhe anonimamente e Ele não respondeu. Chorei
de noite pela Sua perda. Lágrimas perdidas e dor escusada. Até que, um dia, Ele voltou a aparecer
Não podia deixar de ter acontecido, eu sabia.
Devia-se ser capaz de dizer: "Foi nesta altura, neste
lugar, desta maneira. Foi a minha conversão religiosa.
Um homem bom falou-me e eu tornei-me bom. Vi a
sua obra no rosto de uma criança e acreditei." Não,
não se passou assim. Ele estava ali. Eu sabia que Ele
estava ali, que fora Ele que me fizera e que continuava
a amar-me. Não existem palavras gravadas, pedras
marcadas por um dedo ígneo, quaisquer trovões em
Tabor. Tinha um Pai, Ele conhecia-me e o mundo era
uma casa que Ele construíra para mim. Nasci católico,
mas nunca compreendera, até então, o significado das
palavras "dom da fé". Depois disso, que mais me restava fazer senão dizer: "Aqui estou, conduz-me, faz de
mim o que quiseres. Mas, por favor, nunca mais me deixes...
Receio por Aldo. A sua honestidade céptica é
muito meritória, mas, quando os outros passarem a
dominá-lo, não sei o que acontecerá. Esta é a diferença que existe entre os dois absolutismos - a Igreja e o
comunismo. A Igreja compreende a dúvida e ensina
que a fé é um dom, um dom que não se adquire pela
razão ou pelo mérito. O comunismo não permite dúvidas e diz que a crença pode ser implantada como um
reflexo condicionado... Até certo ponto tem razão,
mas o reflexo condicionado não responde a nenhumas
perguntas - e as perguntas estão sempre presentes.
Por que motivo? Onde? Porquê?
A questão que diz respeito à reparação preocupa-me imensamente em determinadas alturas. Eu mudei. Mas não posso mudar nenhum dos actos que pratiquei. As dores que
infligi, as injustiças, as mentiras, as fornicações, os amores possuídos e rejeitados.
Todos estes aspectos alteraram e continuam a produzir
alterações nas vidas das outras pessoas. Agora lamento-as, mas lamentar não basta. Tenho obrigação de as
reparar o melhor que puder. Mas como? É Inverno.
Todos os caminhos me estão barrados. Sou um prisioneiro neste pequeno mundo que encontrei. Só me resta dizer: "Quando a estrada estiver desimpedida, farei
o que me for pedido." Mas o caminho nunca fica desimpedido. Só no momento presente é possível viver
com certeza. Porque tenho tanto medo? Porque o arrependimento é apenas o começo. Ainda há uma dívida a pagar. Peço para ser iluminado, rezo pela submissão, mas a
resposta não é clara. Apenas me resta continuar no presente.
Meyer ri-se de mim em relação às boas obras.
Salienta que não têm continuidade. Os doentes morrem
e os esfomeados voltarão a ter fome no dia seguinte.
No entanto, o próprio Meyer faz o mesmo instintivamente. Porquê? Os homens como Meyer duvidam
da existência de Deus e consequentemente duvidam de
tudo quanto não seja uma relação pragmática entre os
homens. No entanto, tenho visto Meyer empenhar-se
mais profundamente do que eu alguma vez fiz. O homem que pratica o bem no meio da dúvida deve ter o mesmo mérito que aquele que o faz na certeza iluminada da crença.
"Outras ovelhas tenho que não deste rebanho..." Um alerta contra a presunção da fé herdada.
Nina diz-me que estou a ficar magro. Não como
nem durmo o suficiente e fico até altas horas da noite
a rezar. Tento explicar como a necessidade de alimento e horas de sono se torna cada vez menor quando se
anda absorvido neste novo encantamento que é Deus.
Ela dá a impressão de entender melhor quando Lhe digo que não tem necessidade de mim, fisicamente, porque a criança Lhe enche o ventre... Pergunto a mim mesmo o
que deve ser feito em relação a este problema do casamento. Neste momento encontramo-nos separados de corpo, mas ligados de coração e espírito. Tenho a sensação
de que me esperam acontecimentos
sobre os quais não tenho nenhum controlo e que, por
essa razão, o casamento poderia ser uma injustiça
maior do que aquelas que já cometi. Estou disposto a
fazer o que parece correcto. Disse a Nina que a decisão Lhe competia em primeiro lugar, mas que achava
mais prudente esperar... Tenho recebido tanto nestes
últimos meses - em amor, felicidade, consolo espiritual. Alguma vez terei de pagar por eles. Desconheço
como o pagamento será pedido. Rezo e tento preparar-me.
O padre Anselmo preocupa-me. Discuti com ele e
estou arrependido. Nada se resolve pela ira. Tenho
de me compenetrar de que um padre é apenas um homem dotado de faculdades sacramentais. As faculdades são independentes do seu valor pessoal. Anselmo carrega agora
a sua própria cruz, o peso de um erro multiplicado pelas suas consequências. Mas
até mesmo no pecado existe um elemento de amor, e
este, eu sei, é um bem que não deve ser desprezado.
O celibato do clero é uma disciplina antiga, mas não
um artigo de fé. Pode ver-se o seu valor, mas não se
deve julgar demasiado duramente quando os homens
tropeçam sob o seu peso. A pobreza é um estado
que alguns homens aceitam para se santificarem. Para
outros pode conduzir à perdição eterna. Se houvesse
maneira de falar com Anselmo como amigo... mas este
é mais um dos problemas que os padres enfrentam.
São treinados para dirigir os fiéis, mas nunca para
aceitarem conselhos vindos da parte deles. É um defeito no sistema.
Hoje encontrei o homem que se autodenomina
Il Lupo. Foi estranho verificar com que rapidez e facilidade nos compreendemos um ao outro. Eu acredito
em Deus. Ele acredita no não-Deus. No entanto, as
consequências de cada uma das crenças são igualmente
rígidas e inescapáveis. Ele é honesto na sua crença. Não espera que eu seja menos honesto na minha própria fé. Ele sabe que entre nós não pode haver coexistência.
Um tem de destruir o outro. Ele é o príncipe deste mundo e dispõe do poder de vida e morte. Que poder possuo eu contra ele? "O meu reino não é deste mundo." Eu podia
agrupar as pessoas. Podia levá-las a
seguirem-me e a resistirem ao bando de Il Lupo. Mas
com que finalidade? O fratricídio não tem nada a ver
com o cristianismo. As balas não geram amor... Il Lupo gostaria que eu discutisse e actuasse. Não devo discutir. Devo simplesmente aceitar. Mas receio por
Meyer. É demasiado brando para andar metido nesta
trapalhada. Tenho de tentar fazê-lo ver que compreendo. Mais tarde, ele terá muito a sofrer. O peso da dúvida custa muito a suportar quando um homem é honesto.
Tenho um filho e o menino é cego. É-me extremamente doloroso assistir ao sofrimento de Nina.
Agora entendo como a fé pode servir de sustentáculo
no mistério da dor. Compreendo como os antigos maniqueus puderam cair com tanta facilidade na sua heresia - já que é difícil perceber o porquê de a dor e
o mal entrarem na obra de que um deus omnipotente
é o único autor. Um período negro para mim. Parece
que retrocedi para o meio da escuridão e rezo desesperadamente, tentando apegar-me ao primeiro acto de
fé, e digo: "Não sou capaz de compreender; mas acredito. Ajuda-me a não fraquejar!"
Se a fé pode mover montanhas, também pode
curar olhos que sejam cegos. Se Deus o permitir. Como é que sei que Ele o permitirá? Fala comigo, ó
Deus, por amor do Teu Filho [...] Ámen.
Havia mais, muito mais, e Blaise Meredith analisou
tudo meticulosamente, como competia a um advogado
competente, mas encontrara o âmago da questão, e
este era são e sólido. A submissão estava ali, a submissão da mente, do coração e da vontade. E a renúncia
através da qual o homem se liberta de todo o apoio
material para se entregar à fé, à esperança e à caridade, nas mãos que o formaram, fora realizada.
Na última página, Giacomo Nerone escrevera o seu
próprio obituário:
..Se, depois da minha morte, alguém ler estas linhas, que saiba o seguinte acerca de mim:
Nasci na fé; perdi-a; voltei ao seu caminho pela mão
de Deus.
As obras que realizei foram inspiradas por Ele. Nelas não existe qualquer mérito meu.
Amei uma mulher, gerei um filho e amo ambos ainda em Deus e por toda a eternidade.
àqueles que ofendi imploro que me perdoem.
Aqueles que me matarem serão por mim recomendados a Deus como irmãos a quem amo.
Aqueles que me esquecerem farão bem. àqueles
que me recordarem imploro que rezem pela alma de
Giacomo Nerone,
que morreu na fé.

Blaise Meredith pousou a folha amarelecida em cima
da colcha, recostou-se de novo nas almofadas e fechou
os olhos. Sabia agora, sem que Lhe restassem dúvidas,
que chegara ao fim da sua investigação. Perscrutara a
vida de um homem e vira-lhe a evolução - um longo
rio a serpentear lentamente, mas com determinação,
rumo ao mar. Olhara para dentro da alma de um homem e vira-a crescer, como uma árvore, da escuridão
da terra para cima, em direcção ao Sol.
Vira o fruto dessa árvore: a sabedoria e o amor de
Nina Sanduzzi, a humanidade em conflito de Aldo
Meyer, o arrependimento relutante do padre Anselmo.
Era um bom fruto e no seu vicejar notava-se a marca
do dedo atento de Deus. Mas nem todos os frutos tinham já atingido a maturação. Alguns poderiam mesmo, graças a um descuido do jardineiro, definhar no ramo, outros
cair ainda verdes e apodrecer no chão.
E ele, Blaise Meredith, era o jardineiro.
Começou a rezar, lenta e desesperadamente, por
Anne de Sanctis, Paolo Sanduzzi e Nicholas Black,
que tinham escolhido o mesmo deserto que Giacomo
Nerone para atravessar. Mas, antes de ter terminado a
oração, o velho mal apossou-se dele, cortante e atroz,
fazendo-o gritar em agonia, até o sangue Lhe subir à
garganta, quente e sufocante.
Muito tempo depois, fraco e atordoado, arrastou-se até à secretária e, com mão trémula, começou a escrever...

Meu Reverendíssimo Bispo,

Estou muito mal e creio que morrerei antes de
ter tempo de regEstar todos os resultados, obtidos
na investigação empreendida aqui. Apesar de todas as previsões médicas, sinto que a vida se me esvai rapidamente, e pensar no pouco tempo que me resta oprime-me.
Quero que Vossa Reverendíssima saiba, contudo, que concretizei a minha
entrega, como me garantiu que aconteceria, e que
aguardo com apaziguamento, senão mesmo coragem, o desfecho.
Permita-me que Lhe fale em primeiro lugar do
que descobri. Acredito firmemente, baseado nas
provas fornecidas por aqueles que o conheceram
e nos escritos a que tive acesso, que Giacomo Nerone foi um homem de Deus, morreu na fé e como um mártir. O que o tribunal decidir é outra questão - uma legalidade
baseada nas regras canónicas da evidência, e irrelevante, segundo me
parece, relativamente aos factos fundamentais.
Creio que o dedo de Deus se revelou neste caso e
que a bondade de que este homem estava impregnado continua a fazer-se sentir nas vidas dos que
com ele privaram.
As testemunhas mais eficientes de que Vossa Reverendissima poderá dispor são o Dr. Aldo Meyer e
Nina Sanduzzi. Esta última apresentou provas de uma
cura que poderá bem ser miraculosa, embora eu duvide
seriamente de que os assessores a deixem passar. Os
escritos de Giacomo Nerone que Lhe envio juntamente
com esta carta são autênticos e os últimos e, no meu
ponto de vista, corroboram solidamente o seu direito à
santidade heróica.
Confesso-lhe, Eminência, que neste momento estou
menos preocupado com o processo de beatificação do
que com o bem-estar de certas almas que vivem aqui em
Gemello Minore. Falei com o padre Anselmo e tomei a
liberdade de Lhe sugerir que, se ele se separar
fisicamente de Rosa Benzoni, mesmo que esta continue
alojada em sua casa, e se fizer uma confissão sincera,
Vossa Reverendíssima aceitará ambas as atitudes como
indícios de emenda. Tenho muita pena dele. Trata-se de
um homem deveras ignorante e a viver em grande
pobreza, a quem os problemas do dinheiro e da
segurança subjugaram. Prometi dar-lhe uma soma
global de cem mil liras dos meus bens, assim como
dinheiro suficiente para comprar outra cama, as
respectivas roupas e tudo o mais que seja necessário
para que passe a dormir separado de Rosa Benzoni.
Neste momento creio que não disporei de tempo para
tratar destas disposições. Posso contar com Vossa
Reverendíssima para que o faça por mim e utilizando
esta carta para fazer valer a minha vontade junto dos
meus testamenteiros? Não cumprir o prometido a
Anselmo seria uma ideia intolerável.
A outra questão diz respeito à condessa de Sanctis, a
Paolo Sanduzzi, que é filho de Giacomo Nerone, e a um
pintor inglês hóspede da villa. A questão é demasiado
sórdida para ser relatada em detalhe nesta carta; e
receio que Vossa Reverendissima pouco possa fazer para resolvê-la. Recomendei-os todos a Deus e pedi-Lhe que aceitasse a minha entrega como o preço pela sua salvação.
Espero poder planear amanhã medidas mais eficazes; mas
sinto-me tão debilitado e doente que não me atrevo a
ter certezas.
Tenho dois favores a solicitar, os quais espero não
sejam considerados por Vossa Reverendíssima como
demasiado enfadonhos. O primeiro é o de que escreva a
Sua Eminência o Cardeal Marotta, a explicar a minha
posição e a apresentar as minhas desculpas pelo que
tomo por um fracasso na minha missão. Transmita-lhe
as minhas saudações e implore-lhe que me lembre na
sua missa. O segundo é permitir-me que seja enterrado
aqui em Gemello Minore. Pedi uma vez para o ser na
igreja de Sua Eminência, mas Roma está muito longe - e
foi aqui, pela primeira vez, que me encontrei a mim
próprio como homem e como padre.
É muito tarde, meu bispo, e estou fatigado. Não
consigo continuar a escrever. Perdoe-me e, na sua
caridade, reze por mim.
O vosso servo obediente em Cristo,

Blaise Meredith

Dobrou a carta, meteu-a dentro de um envelope que selou e
atirou-a para cima da secretária. Depois arrastou-se de novo
para a cama e dormiu até o Sol ir alto sobre os relvados verdes da villa.

Paolo Sanduzzi encontrava-se a trabalhar na área pedregosa que ficava nas traseiras da villa. Os terraços tinham fendido nos lugares onde a argamassa se esboroara
e a terra começara a ceder, espalhando-se. Quando chovesse, o solo perder-se-ia, e, naquela terra rochosa, ele era demasiado precioso para que tal acontecesse. O
velho jardineiro mostrara-lhe como misturar a cal com a areia negra vulcânica do rio e de que maneira trabalhá-la nas fendas com uma espátula, para depois Lhe traçar
os rebordos e alisá-la.
Era uma tarefa nova que aprendia, uma nova habilidade que o fazia sentir-se orgulhoso, de modo que
se ajoelhou no local, com o sol a brilhar-lhe sobre as
costas, assobiando de satisfação. A cal queimava-lhe
os dedos e tornava-lhe as mãos ásperas e rugosas,
mas esse era mais um pequeno aspecto que o orgulhava - as suas mãos começavam a calejar como as de um homem. O jardineiro também estava contente com ele. às vezes
ficava a falar com ele no seu jeito rude e mastigado, dizendo-lhe o nome das plantas e por que razão as lagartas comiam umas e deixavam
as outras.
às horas das refeições, na comprida cozinha coberta
de ladrilhos, o velho protegia-o da algaraviada maliciosa das mulheres, que brincavam com a sua virilidade incipiente e com o que as raparigas lhe faziam quando
o apanhassem a jeito. A única que não se ria dele era Agnese, a cozinheira, uma mulher enorme que lhe dava porções de massa a dobrar e tinha sempre um naco de queijo
ou uma peça de fruta para lhe enfiar no bolso das calças.
Não dispunha de nomes para chamar a tudo aquilo,
no entanto compreendia que era uma maneira de viver
que lhe sabia bem. Tinha um lugar onde ficar, um trabalho e gente amiga à sua volta - e no fim do mês teria umas liras a chocalhar no bolso para levar para casa
e entregar à mãe. Até mesmo Roma começara a recuar para uma distância que a tornava cada vez mais
indistinta. A condessa não voltara a falar-lhe e o pintor deixara-o em paz, excepto uma ou outra palavra
espirituosa, de passagem. O receio que tinha deles começara a abrandar e eram agora personagens que se
diluíam agradavelmente quando sonhava acordado
com fontes, raparigas de sapatos e ruas repletas de automóveis reluzentes.
Naquele momento encontrava-se mergulhado em mais
um dos seus sonhos, ao compasso do seu próprio assobio
e do raspar da espátula na pedra cinzenta, quando, de
repente, o sonho se tornou realidade. A condessa estava atrás de si, dizendo-lhe em voz acariciadora:
- Paolo! Quero falar contigo.
O jovem endireitou-se imediatamente, deixou cair a
espátula e colocou-se na frente da condessa, intensamente consciente do seu torso nu e suado e das mãos suj as.
- Sim, senhora. às suas ordens.
A condessa olhou rapidamente em volta, como
para se certificar de que estavam sozinhos. Depois disse-lhe:
- Amanhã, Paolo, vou para Roma. Não ando muito bem-disposta e tenho de consultar o meu médico.
Levo Zita e Pietro para cuidarem do meu apartamento
e lembrei-me de também tu vires connosco.
Paolo abriu a boca e gaguejou de espanto perante a
ideia maravilhosa e inesperada; a condessa brindou-o
com o seu riso sonoro e cristalino.
- Porque estás tão admirado? Prometi-te, não é
verdade? E tens desempenhado bem as tuas tarefas.
- Mas... mas...
- Mas não acreditaste em mim? Bem, é verdade.
O único problema reside em teres de pedir à tua mãe.
Dir-lhe-ás que tens de estar ausente alguns meses e
que parte do teu salário Lhe será pago aqui mensalmente. Está percebido?
- Sim, senhora! - exclamou Paolo, com grande entusiasmo.
- Dir-lhe-ás que Pietro e Zita também vão e que
ele irá continuar a ensinar-te.
- Sim, senhora. Mas...
- Mas o quê, Paolo?
O jovem não soube como dizê-lo, até que, por fim,
conseguiu fazer jorrar uma torrente impetuosa de palavras.
- A minha... a minha mãe não gosta do inglês, o
Sr. Black. É capaz de não me deixar ir.
Mais uma vez a condessa riu, exorcizando-o de todos os seus medos.
- Dizes à tua mãe, Paolo, que o Sr. Black fica aqui
a trabalhar. E que é por essa razão que eu te levo,
porque é melhor não o veres.
- Quando... quando é que lhe posso dizer?
- Agora, se quiseres. Depois voltas e contas-me o
que ela respondeu.
- Obrigado, senhora. Mil obrigados.
Deitou a mão à camisa, enfiou-a com tanta precipitação que a rasgou e depois deitou a correr pelo carreiro de pedra abaixo, em direcção aos portões de ferro. Anne
Louise de Sanctis ficou a vê-lo ir, sorrindo
ante a ansiedade juvenil do rapaz. Era muito agradável
de ver, algo que fazia gosto ter por perto lá em casa.
Devia ser aquele o sentimento que as outras mulheres
experimentavam em relação aos filhos, no outono do
casamento, quando a seiva da paixão começava a escassear e o marido passava talvez a ser um companheiro, já não um amante fogoso.
De repente, e com toda a clareza, entendeu o que
fizera - a malícia do seu acto, a sua sordidez, a condenação inabalável a que se deixara conduzir pelo braço de Nicholas Black. Sentiu o sangue gelar diante do pensamento.
Estremeceu e afastou-se, regressando a casa; e, ao dar a volta à esquina desta, quase caiu nos braços de Blaise Meredith, que caminhava pelo relvado com uma pasta
de papéis na mão.
Quando ele a cumprimentou, calmamente, a condessa sentiu-se chocada com o aspecto que apresentava.
O rosto parecia ter-se-lhe mirrado durante a noite. Os
olhos faziam lembrar carvões ardentes profundamente
implantados no crânio. A pele tinha a tonalidade dos
pergaminhos antigos e os lábios estavam sem pinta de
sangue. As costas curvavam-se-lhe como sob um fardo
pesado e as mãos longas tremiam-lhe contra o tecido
negro da batina.
A condessa esqueceu, por momentos, os seus próprios pensamentos e exclamou:
- Monsenhor! Está doente!
- Muito doente, receio bem - retorquiu-lhe ele. - Não me parece que tenha muito mais tempo. Importa-se de passear um pouco comigo?
A condessa quis recusar imediatamente, fugir dele e
esconder-se no seu quarto, onde tinha ao seu alcance
o pequeno frasco contendo o esquecimento, porém ele
pegou-lhe no braço com suavidade e ela deu consigo a
acompanhar a passada ao lado do sacerdote, escutando-lhe a voz e respondendo-lhe com uma outra que
parecia não Lhe pertencer.
- Vi o jovem Paolo descer o carreiro a correr. Parecia entusiasmado com alguma coisa.
- Estava... muito entusiasmado. Vou levá-lo para
Roma comigo amanhã, se a mãe o deixar ir.
- Mr. Black também vai?
- Não. Ficará aqui.
- Mas irá ter consigo mais tarde, não é verdade?
- Eu... eu não sei que planos ele tem.
- Sabe, sim.
A voz do sacerdote soava cansada mas suave, logrando prendê-la hipnoticamente.
- Sabe, sim, minha cara condessa, porque foi a
senhora que traçou os planos com ele. Planos terríveis. Terríveis para si e para ele e para o rapaz. Porque o fez?
Os pés da condessa estavam presos ao ritmo monótono das suas passadas. Apesar de contrafeita, as palavras saíram-lhe:
- Eu... eu não sei.
- Continua a querer vingar-se de Giacomo Nerone?
- Então, também está a par desse pormenor?
- Sim, estou.
Agora já não tinha importância. Nada tinha importância. Ele podia perguntar o que desejasse e ela responderia, e, quando chegassem ao fim, ela subiria ao andar de
cima, tomaria um banho e deitar-se-ia para dormir e nunca mais acordar. Aquele era o terror derradeiro. Em breve terminaria.
As palavras que o sacerdote proferiu a seguir chocaram-na, fazendo-a regressar à realidade. Meyer poderia tê-las dito, mas não aquele padre com o estigma da
morte em si. Na boca de Meyer, ter-lhe-ia faltado algo
- uma intimidade, uma suavidade, amor, talvez. Era
difícil dizer.
- Sabe, minha cara condessa, a Itália é um país
mau para uma mulher como a senhora. É um país de
sol, agressivo na sua adoração dos processos da procriação. É primitivo e apaixonado. O símbolo masculino reina acima de tudo. A mulher que não é amada, que não
tem companheiro e não tem filhos representa um símbolo de troça para os outros e de tormento para si. A senhora é uma mulher apaixonada. Tem uma
grande necessidade de amor, necessidade também da
troca sexual que o acompanha. No seu caso, essa necessidade transformou-se num frenesim, e esse frenesim leva-a a cometer o mal, ao mesmo tempo que lhe inibe a própria
satisfação. Tem vergonha dele e comete actos mais graves, porque não sabe que outra coisa fazer... Estou certo?
- Está.
Foi tudo quanto disse, mas teve vontade de acrescentar: "Sei tudo isso, sei-o mais terrivelmente do que
o senhor. Mas saber não basta. Para onde vou? Que
faço? Como é que encontro aquilo de que necessito?"
Meredith prosseguiu, a voz seca a humanizar-se à
medida que ia falando.
- Poderia aconselhá-la a rezar pela resolução deste
problema, o que não seria mau, já que a mão de Deus
alcança mesmo os infernos privados que fazemos dentro de nós mesmos. Poderia dizer-lhe para fazer uma
confissão geral, o que ainda seria melhor, pois dotá-la-ia de uma consciência livre e pô-la-ia em paz com o
seu Deus e consigo própria. Mas não seria a resposta completa. Continuaria a sentir medo, a estar insatisfeita, a andar solitária.
- Então que devo fazer? Diga-me! Por amor de
Deus, diga-me!
Finalmente, a súplica fora arrancada de dentro dela.
Meredith respondeu-lhe calmamente.
- Abandone este lugar durante algum tempo. Parta. Não para Roma, que é uma cidade pequena e pode
ser bem viciosa. Volte para Londres e fique lá a morar
durante algum tempo. Passo-lhe uma recomendação
para um amigo que tenho em Westminster, que a porá
em contacto com um especialista que trata de problemas como o seu, problemas do corpo e do espírito.
Entregue-se ao seu cuidado. Não espere grandes resultados muito depressa. Vá ao cinema, faça novas
amizades, descubra alguma obra de caridade que Lhe
desperte interesse... Talvez, quem sabe, encontre um
homem, não com quem dormir, mas que case consigo
e a ame. Ainda é uma mulher atraente, especialmente
quando sorri.
- Mas se não o encontrar? - Notava-se-lhe uma
nota de pânico na voz.
- Deixe-me dizer-lhe algo muito importante - declarou Meredith pacientemente. - Estar só não é
nada de novo. Acontece a todos mais cedo ou mais
tarde. Amigos morrem, familiares falecem. Amantes
e maridos também. Envelhecemos, adoecemos. E a
derradeira e a maior de todas as solidões é a morte,
que eu estou neste momento a encarar. Não há comprimidos que a curem. Nenhumas fórmulas que a
exorcizem. É uma condição da humanidade à qual
não podemos escapar. Se tentamos recuar diante dela,
acabamos num inferno mais escuro: nós próprios.
Mas, se Lhe fizermos face, se nos lembrarmos de que
há um milhão de outros nas mesmas circunstâncias, se
tentarmos consolá-los a eles, e não a nós mesmos, por
fim chegaremos à conclusão de que, afinal, não estamos sós. Fazemos parte de uma nova família, a família
do homem, cujo Pai é o Todo-Poderoso... Importa-se
que nos sentemos? Estou... estou muito fatigado.
Naquele momento foi a vez de a condessa lhe pegar
no braço e ajudá-lo até chegarem junto do pequeno
banco de pedra debaixo do caramanchão. Meredith
sentou-se, mas a condessa permaneceu de pé, fitando-o com uma admiração que crescia dentro de si e uma comiseração que nunca antes sentira por ninguém que não fosse
a sua própria pessoa. Passado um momento perguntou-lhe:
- Donde é que lhe vem a compreensão de tudo isto? Até hoje nunca ouvi nenhum padre falar desta maneira.
Os lábios exangues do sacerdote retorceram-se num
sorriso exausto.
- As pessoas exigem muito de nós, minha cara condessa. Nós também somos humanos. Alguns de nós
são muito estúpidos, e é preciso toda uma vida para
aprender as lições mais simples.
- O monsenhor é o primeiro homem que encontro
na minha vida a prestar-me ajuda.
- Tem deparado com os homens errados - observou Meredith, com seca ironia.
Então, a condessa sorriu-lhe e ele reparou, como se
fosse pela primeira vez, quão bela aquela mulher devia
ter sido.
- Importava-se... importava-se de me ouvir em
confissão, padre?
Meredith abanou a cabeça.
- Ainda não. Não me parece que já esteja preparada para a fazer.
A condessa fitou-o, franzindo as sobrancelhas, ligeiramente assustada. Meredith continuou, com gravidade:
- A confissão não substitui o divã do psiquiatra,
não é um instrumento para encorajar a auto-revelação,
para promover o bem-estar através de uma purga da
memória. É um sacramento judicial, no qual o perdãoé concedido em troca de uma admissão de culpa e uma
promessa de arrependimento e emenda. Para si, a primeira parte é fácil, já está meio realizada. No que diz
respeito à segunda, tem de se preparar através da oração e da autodisciplina, e começando por reparar o
mal que já causou.
A condessa fitou-o de olhar perturbado.
- Refere-se a Nicki, a Mr. Black?
- Refiro-me a si, condessa, aos seus próprios desejos, aos ciúmes que sente em relação a Nina Sanduzzi
e ao seu filho. Quanto a Mr. Black... - Hesitou um
momento; em seguida os olhos ensombraram-se-lhe e
os lábios desenharam um rito sombrio. - Eu próprio
falarei com ele. Mas tenho receio de que não me dê ouvidos.

CAPíTULO XV

A meio caminho da aldeia, Paolo Sanduzzi, disparado, foi cair nos braços da mãe. Ela estava em frente da
loja do ferreiro a falar com a mulher de Martino. Rosetta estava com elas, vestida com a sua fatiota de domingo, pronta a ser levada para a villa pela primeira vez.
Nina fitou o filho espantada.
- Aonde é que pensas que vais? Devias estar a trabalhar. Para quê a pressa?
As palavras jorraram de dentro do jovem como uma torrente:
- Hoje não tenho de trabalhar. Foi a condessa que
disse. Vou para Roma. Ela falou para eu te vir pedir
e dizer-te que Pietro e Zita vão e que eu continuarei a
receber o ensino...
- Espera um minuto! - A voz de Nina Sanduzzi
soava com aspereza. - Começa do princípio! Quem é
que disse que ias para Roma?
- A condessa. Ela vai lá ver um médico. Vai lá estar uns dois meses.
- E quer levar-te com ela?
- Quer.
- Porquê?
- Precisa de criados, não precisa?
- Tu és jardineiro, filho. Em Roma não há jardins.
O rapaz ficou com um ar aborrecido.
- Seja como for, ela quer que eu vá. Mandou-me
cá abaixo perguntar-te.
As duas mulheres fitaram-se significativamente. Nina Sanduzzi disse, sem rodeios:
- Então voltas direitinho para cima e dizes-lhe que
não vais. Quem te quer em Roma sei eu, e não é a condessa.
- Mas não é nada disso! Ela disse-me para eu te dizer. O inglês vai ficar aqui.
- Durante quanto tempo? - A raiva começou a
crescer-lhe lentamente por trás do rosto de linhas clássicas. - Uma semana, dez dias, talvez! E depois aí o
temos a fazer as malas e a partir para a cidade grande...
e para ti, Paolo mio. Esse truque não enganava nem um
bebé. - Agarrou-o rudemente pelos braços. - Não vais
e ponto final. Sou tua mãe e não o permitirei.
- Então irei de qualquer maneira.
Nina ergueu a mão e assentou um duro tabefe no filho.
- Quando fores um homem e puderes pagar aquilo
que comes e tiveres um trabalho seguro então já poderás falar dessa maneira. Se a condessa me perguntar,
digo-lhe cara a cara. E, se houver encrenca, peço ao
doutor que fale com a polícia em Gemello Maggiore.
Isso vai manter o teu inglês sossegado durante algum
tempo. Agora esquece tudo isso, como um rapaz com juízo!
- Não esqueço nada! Isso é que não! Ela pediu-me
e eu quero ir. Ela é a padrona e tu não és ninguém!
Não passas... não passas da prostituta de um santo!
A seguir libertou-se da mãe e deitou a correr pela rua
abaixo, as abas da camisa a baterem-lhe nas costas. Nina Sanduzzi, esgazeada, olhava para o filho, o rosto
transformado numa máscara de mármore. A mulher
de Martino bateu no chão com o pé nu e disse desajeitadamente:
- Ele não queria dizer o que disse. Não passa de
um rapazinho. Ouvem coisas...
- O pai dele foi um santo - disse Nina Sanduzzi
amargamente. - E o filho quer transformar-se numa feminella.
- Não quer nada - exclamou Rosetta, na sua voz
límpida e sonora. - É apenas um menino. Não sabe o
que quer. Eu trago-to de volta e obrigo-o a pedir-te desculpa.
Antes que a mãe pudesse protestar, a jovem afastou-se a correr, célere, nos seus sapatos domingueiros,
e a última visão que tiveram dela foi um revoltear de
saias e um par de pernas morenas a desaparecer por
cima do muro que separava a rua da corrente de água.
Num recanto do jardim, iluminado pel sol, Nicholas
Black dava os últimos retoques no quadro retratando
Paolo Sanduzzi crucificado na oliveira. Ao som das
passadas de Meredith, ergueu os olhos e cumprimentou o sacerdote com ironia.
- Bom dia, Meredith. Espero que tenha dormido bem.
- Não foi bem assim, receio. Espero não o incomodar.
- De maneira nenhuma. Estou mesmo a terminar.
Gostaria de ver o quadro? Penso que é, até ao momento, o meu melhor trabalho.
- Obrigado.
Meredith deu a volta ao cavalete e olhou para o
quadro. O pintor, ao reparar-lhe na expressão do rosto, sorriu.
- Agrada-lhe, monsenhor?
- É uma blasfémia, Mr. Black! - A
voz do sacerdote soava com frieza.
- Isso depende do ponto de vista, evidentemente.
Para mim é um símbolo. Pus-lhe o nome de O Sinal da
Contradição. Um título adequado, não acha?
- Bastante.
Meredith afastou-se um passo ou dois do quadro e
depois disse:
- Vim dizer-lhe, Mr. Black, que nem a condessa
nem Paolo Sanduzzi irão para Roma. A condessa ficaria muito satisfeita se o senhor abandonasse a villa o
mais depressa possível.
O pintor pôs-se vermelho de raiva.
- Ela devia ter a delicadeza de mo dizer pessoalmente.
- Ofereci-me para o fazer por ela - replicou Meredith calmamente. - É uma mulher infeliz que necessita de muita ajuda.
- Que só a Igreja está bem pronta a dar-lhe. É uma
mulher muito rica, ao que sei.
- A Igreja também gostaria de o ajudar a si,
Mr. Black, e o senhor é decerto pobre.
- Para o diabo com a sua ajuda, Meredith. Não
quero nada de si. Agora importa-se de se retirar? Estou ocupado.
- Trouxe-lhe qualquer coisa que deve interessar-lhe.
- Do que se trata, de um panfleto da Sociedade da
Verdade Católica?
- Não exactamente. São os papéis pessoais de Giacomo Nerone. Gostaria de lhes dar uma olhadela?
Apesar de contrafeito, o pintor estava interessado.
Limpou as mãos a um pano e, sem uma palavra, pegou na pasta que Meredith lhe estendia. Voltou a capa
de papel grosso castanho e examinou algumas páginas
em silêncio. Depois fechou a pasta e perguntou em voz
estranha e tensa:
- Porque me mostra isto?
Meredith ficou intrigado pela estranheza que se notava no pintor, mas limitou-se a responder:
- Constituem um documento muito comovedor: os
registos espirituais de um homem que perdeu a fé, tal
como o senhor, e depois voltou a recuperá-la. Achei
que poderiam interessar-lhe.
Nicholas Black fitou-o durante um momento; depois
os lábios abriram-se-lhe num sorriso que mais parecia
um esgar de agonia.
- Ajude-me! O senhor tem um sentido de humor
magnífico, Meredith. Tem consciência do que fez, não
tem? Fez que me expulsassem da casa. Privou-me da
última esperança de financiamento de uma exposição
que poderia ter reabilitado a minha reputação como
artista. E emporcalhou a única coisa decente que tentei fazer na minha vida.
Meredith fitou-o sem compreender.
- Não o entendo, Mr. Black.
- Então eu explico-lhe, monsenhor - disse o pintor, com a mesma entoação tensa na voz. - Tal como
toda a gente nesta malfadada aldeia, está convencido
de que o único interesse que tenho em Paolo Sanduzzi
é seduzi-lo. É verdade, não é?
Meredith acenou a concordar sem dizer palavra.
O pintor afastou-se um pouco e ficou a olhar para os
prados banhados de sol, estendendo-se até à villa.
Quando, finalmente, falou, foi com uma gentileza estranha e longínqua.
- A ironia está, Meredith, no facto de poder ter falado com razão em qualquer altura destes últimos
quinze anos. Mas agora não. Gosto deste rapaz, sim.
Mas não da maneira como imagina. Tenho visto nele
tudo o que faltou na minha própria maneira de ser.
Queria levá-lo daqui para o educar e fazer dele o que
eu nunca consegui ser: um homem completo, tanto no
corpo como no intelecto e no espírito. Se isso significava abafar todos os meus impulsos para a paixão e todas as necessidades que tenho de amor e afecto, estava
preparado para o fazer. Mas o senhor nunca acreditaria em tal, pois não?
Então Meredith, sem reflectir, fez a observação mais
brutal da sua vida. Disse gravemente:
- Eu poderia acreditar em si, Mr. Black, mas o senhor nunca seria capaz de concretizar esse seu desejo,
não sem uma graça singular de Deus. E de que maneira poderia pedi-la, se não crê?
Nicholas Black não respondeu. Fitava fixamente a
imagem de Paolo Sanduzzi pregado à oliveira sombria.
Instantes depois voltou-se para Meredith e disse, com
uma delicadeza melancólica:
- Importa-se de se retirar, monsenhor? Não há nada que possa fazer por mim.
Blaise Meredith voltou lentamente para casa, sentindo-se muito mal com a consciência do seu próprio fracasso.
O almoço foi uma refeição sombria para si. Sentia a
cabeça à roda, as mãos pegajosas e, sempre que respirava fundo, sentia uma dor aguda nas costelas. Não
sentia o sabor da comida e o vinho amargava-lhe a boca. Mas via-se obrigado a sorrir e a manter conversa
com a condessa, que, agora que deixara de Lhe ter receio, se mostrava muito interessada em trocar impressões com ele.
Nicholas Black não apareceu sequer. Mandou recado pelo criado a apresentar as suas desculpas por não
ir à mesa e a pedir que Lhe enviassem uma refeição ligeira ao quarto. A condessa mostrou-se curiosa em relação ao que se passara entre os dois e Meredith foi
obrigado a iludi-la com a invenção cortês de que tinham
trocado umas palavras mal-humoradas e que Black
possivelmente ficara demasiado embaraçado para se Lhes juntar.
Terminada a refeição, Meredith foi ao andar de cima
para descansar durante as horas mais quentes. A subida
mostrou-lhe mais claramente do que qualquer médico
como estava enfermo. Cada passo foi um esforço. A respiração brotou-lhe do rosto e do corpo e a dor nas costelas era como uma faca a dilacerá-lo sempre que respirava
profundamente. Tinha conhecimentos de medicina suficientes para se dar conta de que era o que acontecia
aos doentes cancerosos. O crescimento das células malignas e as hemorragias enfraqueciam-nos a tal ponto
que apanhavam pneumonias com a maior das facilidades, o que os matava rapidamente. Mas, de acordo com todas as normas, ele ainda se encontrava muito afastado dessa
fase. Ainda estava de pé e assim pretendia permanecer o mais que pudesse.
Ao chegar ao patamar da escadaria não seguiu directamente para o seu quarto, mas virou antes para o corredor, seguindo em direcção ao quarto de Nicholas Black. Ouvia
o pintor movimentar-se no interior; mas, quando bateu à porta não teve resposta e, quando tentou girar o manípulo, viu que estava fechada à chave. Voltou a bater,
aguardou um momento e depois voltou para o seu quarto.
Sozinho no seu quarto elevado, o sol esgueirando-se
pelas gelosias e incidindo obliquamente sobre o quadro de Paolo Sanduzzi, Nicholas Black deixou-se cair
na derradeira apatia do desespero. Não havia loucura
no acto, nenhuma derrocada selvagem da razão sob o
impacto de terrores inexplicáveis. Era uma constatação
simples, final, de que a vida era um enigma sem resposta, um jogo que não valia a pena continuar a jogar.
Os que ganhavam podiam continuar a submeter-se à
ilusão do jogador durante um pouco mais de tempo;
mas os que perdiam, como Lhe acontecera a ele, não
tinham outro recurso senão afastar-se com a maior dignidade possível das cartas dispersas, da bebida entornada e do fumo acre dos últimos charutos.
Ele apostara tudo naquela última jogada - dinheiro, a protecção da condessa, a oportunidade de relançar a sua reputação como artista, a esperança de justificar até
a virilidade adulterada e incompleta com que
a Natureza o dotara. Mas agora sabia que estivera a
jogar, como sempre, contra cartas viciadas, e com todos os baralhos marcados de maneira a desfavorecerem-no. A sua própria natureza, a sociedade, a lei, a
Igreja, todos conspiravam para o manter arredado das
satisfações mais elementares e necessárias da vida. Estava completamente nu - arruinado até na esperança.
Só lhe restava regressar ao submundo que, trocista, já
o expulsara do seu seio.
A Igreja recebê-lo-ia de volta, mas o preço que lhe
exigiria seria brutal: submissão do intelecto e da vontade, arrependimento, e o resto da vida numa negação repleta de amargura. Inquisidores sombrios, como Meredith,
purgá-lo-iam sem descanso, depois tratariam de adulá-lo com o falso chamariz da eternidade. Ele não se sentia capaz de Lhes fazer face e não faria. Nenhum homem
podia ser obrigado a pagar pelas excentricidades e caprichos de um Criador sardónico.
Levantou-se, foi até à secretária, puxou de uma
folha de papel, escrevinhou três linhas apressadas e
assinou. Depois pegou numa espátula de paleta,
aproximou-se do quadro que se encontrava sobre o cavalete e, fria e metodicamente, começou a cortar a tela às tiras.
Nunca na sua vida Meredith se sentira tão envergonhado de si próprio. Fossem quais fossem os pecados
passados de Nicholas Black, as loucuras da sua natureza invertida, ainda assim ele fora vítima de calúnia
e revelara no seu íntimo um impulso, profundo e não
desprovido de nobreza, para o bem. A bondade poderia estimulá-lo, a brandura conseguiria incentivá-lo a
melhores propósitos. No entanto, o único comentário
que ele fizera, a sua única contribuição como sacerdote, fora uma indiscrição rude e brutal. Não havia
perdão possível. Inventar alguma seria uma hipocrisia.
A caridade que ele pensava ter adquirido através de
Giacomo Nerone era uma mistificação monstruosa que
o deixara ficar mal quando mais falta Lhe fizera. Ele
não passava do que sempre fora desde o princípio: um
homem vazio, desprovido de humanidade e piedade.
O pensamento ensombrou-lhe o sono superficial e,
quando acordou, no fim da tarde fresca, ainda continuava com ele. Só havia uma coisa a fazer. Devia pedir desculpa pela sua grosseria e tentar, mais uma vez, estabelecer
um contacto humano com Black, que devia estar a sofrer profundamente.
Levantou-se, lavou-se, arranjou-se e em seguida voltou ao corredor onde ficava o quarto do pintor. Dessa vez encontrou a porta entreaberta, mas, ao bater, não obteve
resposta. Empurrou-a e entrou. O quarto estava
vazio. A cama estava intacta. Mas o quadro de Paolo
Sanduzzi encontrava-se no seu cavalete, junto da janela, reduzido a tiras.
Meredith entrou no quarto e acercou-se para melhor
o examinar. Ao passar em frente da secretária, os
olhos foram-lhe atraídos para a folha de papel que se
via sozinha, em cima do tampo forrado a feltro verde.
No cabeçalho estava o seu próprio nome:

Meu caro Meredith,

Toda a vida suportei as brincadeiras do Todo-Poderoso. A vossa veio fazer transbordar a taça repleta. Tereis possibilidade de repetir o velho sermão sobre mim -
Galileu, que vós finalmente vencestes. Todos os melhores pregadores o usam.
Seu,
Nicholas Black

Os segundos foram-se passando, despercebidos, enquanto Meredith continuava no mesmo sítio, olhando
fixamente para o papel que segurava na mão pálida.
Até que todo o horror se Lhe revelou no íntimo e precipitou-se para fora do quarto, desceu as escadas, a
correr pelo carreiro coberto de cascalho, gritando ao
guarda do portão que o abrisse para o deixar passar.
O velho espreitou por entre as grades, esfregando os
olhos para espantar o sono, e depois deu uns passos
curtos e apressados para o caminho a fim de observar
o louco do monsenhor a subir pesadamente a colina
com a batina a esvoaçar-lhe em redor dos calcanhares.
Só muito tarde deram pela sua falta e só muito mais
tarde os encontraram - Nicholas Black pendurado,
balouçando-se de um ramo de oliveira, e Blaise Meredith estiraçado sobre as suas raízes. à primeira vista
parecia que ambos estavam mortos, mas Aldo Meyer
distinguiu o pulsar ténue do coração de Meredith e mandou chamar o padre Anselmo, enquanto Pietro seguia como um louco no carro da condessa em direcção ao palácio
do bispo, em Valenta.
Aproximava-se agora o momento que Meredith receara mais que tudo. Tentava explicar-se a si próprio
- não a justificar-se, já que sabia que nenhuma justificação era possível, mas sim a explicar simplesmente a
Deus como aquilo acontecera e como ele caíra em falta sem qualquer má intenção.
Mas não havia nenhum Deus, apenas uma névoa e
um silêncio e, neste, o eco da sua própria voz.
-... Estava a dormir, sabe. Não sabia que ele saíra.
Corri para ver se o encontrava e dei com ele já pendurado na árvore. Não fui capaz de o descer; não tive
forças suficientes para tal. Pensei que ele pudesse estar
vivo e tentei rezar com ele. Disse os actos de contrição
e de amor, de fé e caridade, na esperança de que ele
me escutasse e se juntasse a mim neles. Mas ele não
ouviu. Depois disso, não me lembro...
- Mas Deus terá escutado e lembrar-se-á.
A voz chegou até ele, vinda do meio da névoa, familiar mas distante.
- Falhei em relação a ele. Quis ajudá-lo, mas falhei.
- Só o Todo-Poderoso dispõe de poder para julgar as falhas.
- Um homem deve julgar-se a si próprio primeiro.
- E depois submeter-se à misericórdia.
A névoa dissipou-se lentamente e a voz chegou-lhe
mais perto; depois viu o rosto do bispo Aurelio, de
Valenta, inclinado sobre si. Estendeu a mão emaciada
e o bispo estreitou-a entre as suas.
- Estou a morrer, meu senhor.
O bispo Aurelio sorriu-lhe à sua velha maneira fraternalmente irónica.
- Como devia acontecer a todos os homens, meu
filho. Com dignidade e entre amigos.
Olhou além do bispo e viu-os agrupados aos pés da sua cama: Anne de Sanctis, Aldo Meyer, Nina Sanduzzi, o velho Anselmo com a sua batina manchada e a estola dos
sacramentos ao pescoço. Perguntou debilmente:
- Onde está o rapaz?
- Com Rosetta - respondeu Nina em dialecto. -
São amigos.
- Gosto disso - observou Blaise Meredith.
- Não deve falar tanto - aconselhou Meyer.
- É a última oportunidade que tenho de o fazer,
doutor. - Rolou a cabeça na almofada e encarou
o bispo. - Nicholas Black... dar-lhe-á um enterro
cristão?
- Quem sou eu para Lho negar? - disse o bispo Aurelio.
- Eu... eu escrevi uma carta a Vossa Reverendíssima.
- Tenho-a comigo. Tudo se fará como pede.
- Como vão as laranjas?
- A amadurecer depressa.
- Devia... mandar algumas a Sua Eminência. Poderiam ajudá-lo a compreender. Um presente da minha parte.
- Assim farei.
- Vossa Reverendíssima importa-se de confessar-me, por favor? Estou muito fatigado.
O bispo Aurelio tirou a estola ensebada do pescoço
do padre Anselmo e colocou-a nos seus ombros; e, depois de os outros se retirarem do quarto, inclinou-se
para ouvir o relato dos últimos pecados de Monsenhor
Blaise Meredith. Depois de o absolver, chamou os
outros novamente e todos se ajoelharam em volta da
cama, de velas acesas na mão, enquanto o velho Anselmo Lhe administrava a extrema-unção, o único alimento indicado para a viagem mais longa do mundo.
Ao recebê-la, recostou-se, os olhos fechados e as
mãos entrelaçadas, enquanto o quarto se enchia lentamente com o murmurar das velhas orações aos espíritos que partem. Muito tempo depois, tinham já terminado, Meredith
abriu os olhos e disse, muito distintamente:
- Tive medo durante tanto tempo. Agora é tudo
tão fácil.
Um ligeiro tremor agitou-o e a cabeça rolou-lhe
frouxamente sobre a almofada branca.
- Está morto - disse Aldo Meyer.
- Está com Deus - proferiu o bispo Aurelio.
O cardeal Eugenio Marotta encontrava-se sentado
na sua cadeira de costas altas em frente da mesa de
trabalho, onde o seu secretário acabara de colocar os
jornais do dia. A seu lado tinha uma pequena caixa de
madeira polida, dentro da qual estavam seis laranjas
douradas, cada qual aninhada na sua base de algodão.
Nas mãos tinha uma carta de Sua Reverência o Bispo
de Valenta. Lia-a lentamente, pela terceira vez:

[...] Lamento informar Vossa Eminência de que
Monsenhor Blaise Meredith faleceu ontem de manhã, às nove horas, na posse plena das suas faculdades e depois de receber os ritos completos da nossa Santa Madre Igreja.
Lamento a sua partida, como tenho lamentado
a de poucos homens. Sinto-me enlutado pelo irmão que ele se tornara para mim. Era um homem dotado de uma grande coragem, de uma singular honestidade mental e de
uma humanidade de cuja riqueza nunca teve a noção completa.
Sei que será uma grande perda para Vossa Eminência e para a Igreja.
Antes de morrer, encarregou-me de apresentar
as suas desculpas junto de Vossa Eminência pelo
que designou de fracasso da sua missão. Não foi
um fracasso. As suas investigações lançaram uma
luz intensa sobre a vida e carácter do servo de Deus Giacomo Nerone e provaram que este foi um homem, em termos morais, se não mesmo canónicos, de grande santidade.
Continuo a ter dúvidas de que valha a pena avançar com este processo mesmo até ao tribunal ordinário, mas não
me restam quaisquer interrogações acerca do bem
que já foi feito através da influência de Giacomo Nerone e do falecido Monsenhor Meredith. Um
padre errante regressou a Deus, uma criança foi
salva de um grande dano moral e uma mulher infeliz foi suficientemente iluminada para procurar
soluções para a sua situação.
Em termos mundanos, estes factos são pequenos e insignificantes. No verdadeiro sentido da nossa fé, eles assumem uma dimensão muito vasta, e eu, que normalmente
me considero céptico, vi claramente neles a intervenção do dedo de Deus.
As laranjas que Lhe envio constituem um último
presente de Monsenhor Meredith. São da minha
própria plantação - os primeiros frutos de uma
nova cepa importada da Califórnia. No ano que
vem, se Deus quiser, esperamos ter mais destas
árvores para distribuir, numa base de cooperativismo, aos agricultores locais. Monsenhor Meredith mostrava grande interesse neste trabalho; e, tivesse ele vivido,
estou convencido de que teria gostado de tomar parte nele. O pedido de envio destas laranjas foi-me dirigido no seu leito de
morte. Disse, e cito as suas palavras exactas:
"Elas poderão ajudá-lo a compreender." Vossa
Eminência entenderá, sem dúvida, a alusão.
O corpo de Monsenhor Meredith encontra-se neste momento exposto na Igreja da Senhora das Dores, em Gemello Minore, donde seguirá para o cemitério amanhã, para solo
recém-consagrado, próximo do túmulo de Giacomo Nerone. Eu oficiarei pessoalmente a missa e o enterro. Seguir-se-ão as missas habituais, como é evidente,
e eu próprio passarei a fazer uma oração
especial em sua memória nas minhas missas - tal
como Vossa Eminência o desejará também fazer,
sem dúvida, nas suas.
Soube que Monsenhor Meredith pediu certa vez
para ser enterrado na igreja de Vossa Eminência,
em Roma. A razão para esta mudança de vontade
poderá dever-se a algum interesse final. Na última
carta que me escreveu, na véspera da sua morte,
Monsenhor diz: "Roma está muito longe - e
aqui, pela primeira vez, encontrei-me a mim mesmo como homem e como padre."
A humildade domina-me quando penso que
muitos de nós viveram mais tempo e fizeram muito menos.
Fraternamente seu em Jesus Cristo,

Aurelio f
Bispo de Valenta

Sua Eminência pousou a carta sobre o tampo da secretária e reclinou-se na cadeira, reflectindo sobre o
que acabara de ler. Estava a envelhecer, ao que parecia. Ou talvez tivesse vivido demasiado tempo em
Roma. Já não conseguia ler uma carta ou julgar um homem.
O homem que morrera não era o homem que mandara fazer a investigação - um pedante seco com o
coração coberto pela poeira das bibliotecas.
O bispo que escrevera o primeiro pedido de um
advogado do Diabo não era aquele Aurelio, com o
seu espírito cortante e a sua tendência acentuada para a ironia.
Ou, quem sabe, talvez fossem os mesmos homens e
fosse ele apenas que tivesse mudado - mais uma vítima das tentações insidiosas dos príncipes: orgulho, poder, cegueira e frieza no coração. Cristo fizera bispos
e
um papa - mas nunca um cardeal. Até mesmo o nome retinha mais do que o palpite de uma ilusão - cardo, um gonzo - como se fossem os gonzos donde os portões do Céu
estavam suspensos. Gonzos talvez fossem, mas os gonzos eram pedaços de metal sem préstimo se não estivessem firmemente ancorados no tecido
vivo da Igreja, cujas pedras eram os pobres, os humildes, os ignorantes, os pecadores e os que amam, os
esquecidos dos príncipes, mas nunca os esquecidos de Deus.
Era um pensamento perturbador e prometeu a si
próprio voltar a ele quando fosse altura do seu exame
de consciência dessa noite. Era um homem metódico e
nesse momento tinha outros assuntos a tratar. Tirou
um pequeno livro de notas encadernado a couro do
bolso e escreveu, na data do dia seguinte: "Lembrar
na missa... Meredith."
Depois voltou a guardar o livrinho no bolso, lançou
um olhar rápido pela correspondência e tocou a pedir
que Lhe trouxessem o carro à porta. Faltava um quarto
para as onze. Era a segunda sexta-feira do mês, o dia
em que o prefeito da Sagrada Congregação dos Ritos
se reunia com Sua Santidade o Papa para discutir,
entre outras questões, a beatificação e canonização dos
servos de Deus.

***

O Autor e a Obra

Morris West nasceu em Melburne, na Austrália, a 26 de
Abril de 1916, sendo o mais velho de seis irmãos. Aos
catorze anos entrou na Ordem dos Irmãos Cristãos,
onde tomou votos, mas que acabaria por abandonar
em 1941, pouco antes de professar. Alistou-se então
no Exército, tendo trabalhado nos Serviços de Informação durante a Segunda Guerra Mundial. Cumprido o serviço militar, trabalhou na rádio e em publicidade entre
1943 e 1953, antes de se dedicar definitivamente à produção literária.
Os seus maiores êxitos foram O Advogado do Diabo
(1959) e As Sandálias do Pescador (1963), ambos
adaptados ao cinema.
Estão ainda publicadas em português as seguintes
obras do autor: Filha do Silêncio, igualmente adaptada
ao cinema, O Embaixador, Os Palhaços de Deus, Arlequim, Proteu, O Mundo é Feito de Nada, Cassidy, Golpe de Mestre e O Navegante.

FIM

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