Sidney Sheldon
Figurando entre os melhores romancistas contemporâneos - e
também entre os mais lidos em todo o mundo - o escritor Sidney
Sheldon, cujas personagens famosas e infames de O Outro Lado
da Meia-Noite, A Herdeira, A Ira dos Anjos e O Reverso da
Medalha encantaram e às vezes chocaram seus milhões de
leitores, apresenta-nos agora a mais atraente de suas
heroinas.
A adorável e idealista Tracy Whitney não consegue livrar-se de
uma acusação falsa e é condenada a 15 anos de prisão, pena que
vai cumprir numa penitenciária da qual é impossível fugir.
Ela, porém, não se abate e luta para destruir os intocáveis
senhores do crime que a mandaram para lá.
Suas únicas armas são a inteligência e uma estonteante beleza,
e com elas Tracy se lança numa sucessão de aventuras ousadas
contra os golpes inescritipulosos que lhe aplicam - e desafiam
tanto a Interpol como as polícias de meia dúzia de países. A
acção incessante da história se movimenta de Nova Orleans a
Londres, Paris, Biarritz, Madri e Amsterdam, e numa
confrontação explosiva a heroina de Se Houver Amanhã encontra
seu igual no irresistível Jeff Stevens, de passado tão
pitoresco quanto o dela. E sempre ao fundo, vigiando e
esperando, está o génio maligno Daniel Cooper, que precisa
destruir Tracy, a fim de garantir sua própria salvação.
LIVRO UM
1
Nova Orleans
QUINTA-FEIRA, 20 DE FEVEREIRO - 23 HORAS
Ela despiu-se devagar, em devaneio; quando estava nua,
escolheu um negligê vermelho vivo para usar, a fim de que o
sangue não aparecesse. Doris Whitney olhou ao redor pela
última vez, a fim de certificar-se de que o quarto agradável,
que tanto passara a amar ao longo dos últimos 30 anos, se
encontrava arrumado e impecável.
Abriu a gaveta da mesinha-de-cabeceira e tirou a arma, com
todo cuidado. Colocou-a ao lado do telefone e discou para a
filha em Filadélfia.
- Tracy... senti vontade de repente de ouvir o som de sua
voz, querida.
- Que surpresa boa, mamãe.
- Espero não tê-la acordado.
- E não acordou. Eu estava lendo. Aprontando-me para dormir.
Charles e eu íamos sair para jantar fora, mas o tempo está
horrível. Neva muito por aqui. Como está aí?
"Santo Deus, estamos falando sobre o tempo", pensou Doris
Whitney, "quando há tanta coisa que quero lhe dizer. E não
posso".
- Mamãe? Você ainda está aí?
Doris Whitney olhou pela janela.
- Está chovendo.
E ela pensou: Como é melodramaticamente apropriado. Parece
até um filme de Alfred Hitchcock.
- Que barulho é esse, mamãe?
Trovoada. Tão absorta em seus pensamentos, Doris Whitney
percebera. Nova Orleans sofria uma tempestade. Chuva contínua
dissera o homem da previsão do tempo. Dezanove graus em Nova
Orleans. Ao cair da noite haverá chuvas torrenciais,
acompanhadas de trovoadas. Não se esqueçam de sair com o
guarda-chuva. Ela não precisaria de um guarda-chuva.
- É uma trovoada, Tracy. - Ela forçou um tom de jovialidade
na voz. - Conte-me o que está acontecendo aí em Filadélfia.
- Eu me sinto como uma princesa num conto de fadas mamãe.
Nunca imaginei que alguém pudesse ser tão feliz. E amanhã de
noite conhecerei os pais de Charles.
Ela engrossou a voz, como se estivesse fazendo uma
proclamação oficial, ao dizer:
- Os Stanhopes, de Chestnut Hill. - Tracy soltou uma risada.
- Eles são uma instituição. Estou no maior nervosismo.
- Não se preocupe. Tenho certeza de que eles vão adorá-la
querida.
- Charles diz que não tem a menor importância. Ele me ama. E
eu o adoro . Mal posso esperar o momento em que você o
conhecerá. Ele é fantástico.
- Tenho certeza que é mesmo. - Ela jamais conheceria Charles.
Nem teria um neto no colo. Não! Não devo pensar sobre isso. -
Ele sabe como é afortunado por tê-la, meu bem?
- É o que estou sempre lhe dizendo. - Tracy sorriu. - Mas já
chega de falar a meu respeito. Conte-me o que está acontecendo
por aí. Como se sente?
Você goza de perfeita saúde, Doris, foram as palavras do Dr.
Rush. Viverá até os cem anos. Uma das pequenas ironias da
vida.
- Eu me sinto maravilhosa. Falando com você.
- Já tem um namorado? - indagou Tracy, meio zombeteira,
Desde que o pai de Tracy morrera, cinco anos antes, Doris
Whitney jamais sequer considerara a possibilidade de sair com
outro homem, apesar das exortações de Tracy.
- Nada de namorados. - Ela mudou de assunto. - Como está o seu
trabalho? Ainda gostando?
- Adorando. Charles não se incomoda que eu continue a
trabalhar depois de casarmos.
- Isso é maravilhoso, meu bem. Ele parece ser um homem muito
compreensivo.
- E é mesmo. Vai confirmar pessoalmente.
Houve uma trovoada mais alta, como uma deixa oportuna dos
bastidores. Estava na hora. Não havia mais nada a dizer,
excepto uma despedida final.
- Adeus, minha querida.
Doris manteve a voz cuidadosamente firme.
- Eu a verei no casamento, mamãe. Telefonarei assim que
Charles e eu marcarmos a data.
- Está certo. - Havia uma última coisa a dizer, no final das
contas. - Eu a amo muito, Tracy. Mas muito mesmo.
Lentamente, Doris Whitney repôs o telefone no gancho
Ela pegou a arma. Só havia uma maneira de fazê-lo. Depressa.
Ela levantou a arma para a têmpora e puxou o gatilho.
2
Filadélfia
SEXTA-FEIRA, 21 DE FEVEREIRO 8 HORAS
Tracy Whitney saiu do saguão do seu prédio de apartamentos
para uma chuva implacável, misturada com neve, que caía
imparcialmente sobre as polidas limusines que desciam pela
Market Street, conduzidos por motoristas uniformizados, e
sobre as casas abandonadas e, fechadas com tábuas dos cortiços
do norte de Filadélfia. A chuva lavava as limusines,
deixando-as ainda mais limpas, ao mesmo tempo em que convertia
numa confusão molhada o lixo acumulado na frente das fileiras
de casas negligenciadas. Tracy Whitney estava a caminho do
trabalho. Seu ritmo era animado enquanto seguia para leste,
pela Chestnut Street, na direcção do banco. Tinha de fazer um
esforço para não se pôr a cantar em voz alta. Usava capa e
botas amarelas, um chapéu de chuva também amarelo, que mal
conseguia conter uma massa de cabelos castanhos lustrosos.
Tinha vinte e poucos anos, um rosto exuberante e inteligente,
a boca cheia e sensual, olhos faiscantes, que podiam mudar de
um suave verde-musgo para um jade escuro de um momento para
outro, um corpo esbelto e atlético. A pele passava por toda a
gama de branco translúcido a um rosa profundo, dependendo se
estava irada, cansada ou excitada. A mãe lhe dissera certa
ocasião:
- Sinceramente, criança, há ocasiões em que não a reconheço.
Você muda de um instante para outro.
Agora, enquanto Tracy descia pela rua, as pessoas se viravam
para sorrir, invejando a felicidade que brilhava em seu rosto.
Ela retribuía aos sorrisos.
É indecente para qualquer pessoa ser tão feliz, pensou Tracy
Whitney. Estou casando com o homem que amo e terei o seu
filho. O que mais alguém poderia pedir?
Ao se aproximar do banco, Tracy olhou para o relógio. Oito e
vinte. As portas do Philadelphia Trust and Fidelity Bank não
se abririam para os empregados por outros dez minutos, mas
Clarence Desmond, o vice-presidente sénior, no comando do
departamento internacional, já estava desligando o alarme
externo e abrindo a porta. Tracy gostava de assistir ao ritual
matutino. Ficou parada na chuva, esperando, enquanto Desmond
entrava no banco e trancava a porta.
Os bancos do mundo inteiro possuem misteriosos processos de
segurança e o Philadelphia Trust and Fidelity Bank não era
excepção. A rotina jamais variava, a não ser pelo CÓDIGO de
segurança, que era mudado todas as semanas. O CÓDIGO daquela
semana era uma persiana parcialmente abaixada, indicando aos
empregados esperando lá fora que se realizava uma revista, a
fim de verificar se não havia intrusos escondidos nas
instalações, aguardando a entrada deles para convertê-los em
reféns. Clarence Desmond estava efectuando uma busca pelos
banheiros, depósito, caixa-forte e área dos cofres
particulares, Somente depois de estar plenamente convencido de
que se encontrava sozinho no interior do banco é que
levantaria a persiana, como um sinal de que estava tudo bem.
O contador sénior sempre era o primeiro empregado a ser
admitido. Ele ocuparia o seu lugar ao lado do alarme de
emergência, até que todos os outros empregados entrassem,
depois trancaria a porta.
Pontualmente às oito e meia Tracy Whitney entrou no saguão
ornado com seus colegas de trabalho, tirou a capa, o chapéu e
as botas, escutou com um divertimento secreto os outros se,
queixarem do tempo chuvoso.
- O maldito vento arrancou-me o guarda-chuva - lamentou um
caixa. - Estou encharcado.
- Passei por dois patos nadando na Market Strect - comentou
jovialmente o chefe dos caixas.
- A previsão do tempo é de que podemos esperar por mais uma
semana assim. Eu gostaria de estar na Flórida.
Tracy sorriu e começou a trabalhar. Era encarregada do
departamento de transferências por cabo. Até recentemente,
transferência de dinheiro de um banco para outro, de um país
para outro, era um processo lento e trabalhoso, exigindo o
preenchimento de muitos formulários e dependendo dos serviços
postais nacionais e internacionais. Com o advento dos
computadores, a situação mudara drasticamente. Quantias
enormes podiam ser transferidas instantaneamente. A função de
Tracy era extrair do computador as transferências, processadas
durante a noite e, processa as transferências por computador
para outros bancos. Todas as transacções eram em CÓDIGO,
mudado regularmente para impedir o acesso não-autorizado. A
cada dia, milhões de dólares electrónicos passavam pelas mãos
de Tracy. Era um trabalho fascinante, o sangue vital que
alimentava as artérias dos negócios por todo o globo. Até que
Charles Stanhope III entrara em sua vida, a actividade
bancária era a coisa mais emocionante do mundo para Tracy. O
Philadelphia Trust and Fidelity Bank tinha uma grande divisão
internacional e durante o almoço Tracy e os colegas discutiam
tudo o que acontecera pela manhã. Era uma conversa inebriante.
Deborah, uma contadora, anunciou:
- Acabamos de fechar o empréstimo associado de cem milhões de
dólares para a Turquia.
Mae Trenton, secretária do vice-presidente do banco, disse:
- Foi decidido na reunião de directoria desta manhã a
participação na nova linha de crédito para o Peru . A taxa
inicial é acima de cinco milhões de dólares...
Jon Creighton, o fanático do banco, acrescentou:
- Soube que vamos entrar no pacote de socorro ao México com
cinquenta milhões. Eles não merecem um único centavo.
- Isso é muito interessante - comentou Tracy. - Os países que
atacam a América por ser muito obcecada por dinheiro são
sempre os primeiros a nos suplicarem empréstimos.
Fora o assunto pelo qual ela e Charles haviam travado a sua
primeira discussão.
Tracy conhecera Charles Stanhope III num simpósio financeiro.
Charles era o orador convidado. Ele dirigia a empresa de
investimentos fundada por seu bisavô e fazia muitas operações
com o banco para o qual Tracy trabalhava. Depois da
conferência de Charles, Tracy se aproximara para discordar de
sua análise da capacidade das nações do Terceiro Mundo de
pagarem as quantias assombrosas que haviam tomado emprestado
dos bancos do mundo inteiro e dos governos ocidentais. Charles
a princípio se mostrara divertido e depois atraído pelos
argumentos veementes da linda moça à sua frente. A discussão
se prolongara pelo jantar no velho restaurante Bookbinder's.
No começo, Tracy não se impressionara com Charles Stanhope
III, mesmo sabendo que ele era considerado o grande prémio de
Filadélfia. Charles tinha 35 anos, era rico e vitorioso,
pertencia a uma das famílias mais tradicionais de Filadélfia.
Com 1,78 metros de altura, cabelos cor de areia ficando ralos,
olhos castanhos e uma atitude confiante, até mesmo um pouco
pedante, ele era um dos ricos maçantes, na opinião de Tracy.
Como se lesse os seus pensamentos, Charles se inclinara sobre
a mesa e dissera:
- Meu pai está convencido de que lhe deram o bebé errado no
hospital.
- Como?
- Sou um retrocesso. Acontece que não penso que o dinheiro é o
fim de tudo e a coisa mais importante na vida. Mas, por favor,
jamais conte a meu pai que eu lhe disse isso.
Havia nele uma despretensão tão encantadora que Tracy se
descobrira a apreciá-lo. Imagino como seria estar casada com
alguém assim... um homem da alta sociedade.
O pai de Tracy levara a maior parte de sua vida para
construir um negócio que os Stanhopes desdenhariam como
insignificante. Os Stanhopes e os Whitneys jamais se
misturariam, pensara ela. Óleo e água. E os Stanhopes são o
óleo. E por que estou reagindo como uma idiota? É ego demais.
Um homem me convida para jantar e já estou decidindo se quero
ou não casar com ele. Provavelmente nunca mais tornaremos a
nos encontrar...
Charles estava dizendo nesse instante:
- Por acaso está livre para jantarmos de novo amanhã?
Filadélfia era uma cornucópia espectacular de coisas para ver
e fazer. Nas noites de sábado, Tracy e Charles iam ao balé ou
assistiam Riccardo Muti conduzir a Sinfónica de Filadélfia.
Durante a semana, exploravam New Market e o singular amontoado
de lojas de Society Hill, vagueavam pelo Museu de Arte de
Filadélfia e o Museu Rodin.
Tracy parara um dia diante da estátua de O Pensador. Olhara
para Charles e sorrira.
- É você!
Charles não se interessava por exercício, mas Tracy adorava
Assim, nas manhãs de domingo, ela corria pelo West River Drive
ou pelo passeio que acompanhava o Rio Schuylkifl. Na tarde de
sábado frequentava uma aula de t'ai chi ch'uan. Depois de uma
hora de exercício, exausta mas exultante, ia se encontrar com
Charles, no apartamento dele. Ele era um cozinheiro gourmet e
gostava de preparar pratos esotéricos como bistilla
marroquins, guo bu li, os bolinhos de massa e carne do norte
da China, e tahine de poulet au citron.
Charles era a pessoa mais meticulosa que Tracy já conhecera.
Ela chegara um dia atrasada 15 minutos para o jantar e o
desprazer de Charles lhe estragara o resto da noite. Depois
disso, ela jurara que seria sempre pontual com ele.
Tracy tinha muito pouca experiência sexual, mas parecera-lhe
que Charles fazia amor da mesma maneira como levava a sua
vida; meticulosamente, sempre da maneira conveniente. Houvera
uma ocasião em que Tracy decidira ser ousada e
anticonvencional na cama. Deixara Charles tão chocado que
secretamente se perguntou, se ela não seria alguma espécie de
maníaca sexual.
A gravidez fora inesperada; quando acontecera, Tracy se
descobrira dominada pela incerteza. Charles não levantara a
questão do casamento e ela não queria que ele se sentisse na
obrigação de casar por causa do bebé. Não tinha certeza se
poderia enfrentar um aborto, mas a alternativa era uma opção
igualmente angustiosa. Poderia criar uma criança sem a ajuda
do pai? Isso seria justo com a criança?
Uma noite, depois do jantar, Tracy resolvera dar a notícia a
Charles. Preparara um cassoulet para ele, em seu próprio
apartamento, acabara deixando-o queimar, de tanto nervosismo.
Ao pôr a carne chamuscada na mesa, ela esquecera o discurso
cuidadosamente ensaiado e balbuciara desordenadamente:
- Sinto muito, Charles. Eu... estou grávida.
Houvera um silêncio insuportavelmente prolongado. Quando Tracy
já estava prestes a rompê-lo, Charles dissera:
- Vamos casar, é claro.
Tracy experimentara uma sensação de enorme alívio.
- Não quero que você pense que eu... Não precisa casar comigo
por causa disso.
Ele levantara a mão para impedi-la de continuar.
- Quero casar com você, Tracy. Tenho certeza que dará uma
esposa maravilhosa. - E um instante depois ele acrescentara,
falando bem devagar: - É claro que meu pai e minha mãe ficarão
um tanto surpresos.
Charles sorrira e a beijara. Tracy indagara, suavemente:
- Por que eles ficarão surpresos?
Charles suspirara.
- Querida, creio que você não compreende em que está se
metendo. Os Stanhopes sempre casam... e saiba que estou usando
aspas... "com sua própria espécie". Nas famílias tradicionais
de Filadélfia.
- E já lhe escolheram uma esposa - adivinhara Tracy.
Charles a tomara nos braços.
- Isso não tem a menor importância. O que conta é quem eu
escolhi. Jantaremos com mamãe e papai na próxima sexta-feira.
Já é tempo de você conhecê-los.
Quando faltavam cinco minutos para as nove horas, Tracy
percebeu uma diferença no nível de ruido no banco. Os
empregados passavam a falar um pouco mais depressa, a se
movimentarem um pouco mais rapidamente. As portas do banco
seriam abertas dentro de cinco minutos e tudo tinha de estar
pronto. Pela janela da frente, Tracy podia divisar os clientes
em fila na calçada lá fora, esperando sob a chuva fria.
Tracy observou enquanto o guarda do banco terminava de
distribuir fichas de depósito e retirada pelas bandejas de
metal nas seis mesas no corredor central. Os clientes
regulares recebem fichas de depósito com um CÓDIGO magnetizado
pessoal no fundo; assim, a cada vez que se efectuava um
depósito, o computador creditava-o automaticamente na conta
apropriada. Mas, frequentemente, os clientes apareciam sem
suas fichas de depósito e preenchiam as comuns.
O guarda levantou os olhos para o relógio na parede. Enquanto
o ponteiro das horas se aproximava do nove, ele encaminhou-se
para a porta e cerimoniosamente destrancou-a.
O dia bancário começara.
Durante as horas subsequentes, Tracy se manteve ocupada demais
no computador para pensar em qualquer outra coisa. Cada
transferência tinha de ser conferida, a fim de certificar-se
de que exibia o CÓDIGO correcto. Quando havia um débito, ela
registrava o número da conta, a quantia e o banco para o qual
o dinheiro estava sendo transferido. Cada banco possuía o seu
próprio número de CÓDIGO; havia um catálogo confidencial que
continha os CÓDIGOs de todos os principais bancos do mundo.
A manhã passou voando. Tracy planejava aproveitar a hora do
almoço para arranjar o cabelo e tinha uma hora marcada com
Larry Stefla Botte. Ele cobrava caro, mas valia a pena, pois
ela queria que os pais de Charles a conhecessem em sua melhor
aparência. Tenho de fazer com que eles gostem de mim. Não me
importo com quem escolheram para Charles, pensou Tracy.
Ninguém pode fazer Charles tão feliz quanto eu farei.
à uma hora da tarde, quando Tracy pegava sua capa, Clarence
Desmond convocou-a para seu gabinete. Desmond era a própria
imagem de um executivo importante. Se o banco fizesse
comerciais de televisão, ele seria o porta-voz perfeito.
Vestia-se conservadoramente, com um ar de autoridade sólida e
antiquada, parecia uma pessoa em quem se podia confiar.
- Sente-se, Tracy. - Ele se orgulhava de conhecer o primeiro
nome de cada empregado. - Um tempo horrível, não é, mesmo?
- É, sim.
- Mas as pessoas ainda precisam cuidar dos seus problemas
bancários. - Desmond esgotara todo o seu estoque de conversa
amena. Inclinou-se agora sobre a mesa e acrescentou: - Soube
que você e Charles Stanhope estão noivos.
Tracy ficou surpresa.
- Ainda não anunciamos. Como...
Desmond sorriu.
- Qualquer coisa que os Stanhopes fazem é notícia. Estou
muito feliz por você. Presumo que voltará a trabalhar
connosco. Depois da lua-de-mel, é claro. Não gostariamos de
perdê-la. Você é uma das nossas funcionárias mais valiosas.
- Charles e eu conversamos a esse respeito e concordamos que
eu seria mais feliz se continuasse a trabalhar aqui.
Desmond sorriu, satisfeito. Stanhope & Sons era uma das casas
de investimentos mais importantes na comunidade financeira e
seria maravilhoso se obtivesse a sua conta exclusiva para a
sucursal que dirigia. Ele recostou-se na cadeira.
- Quando voltar da lua-de-mel, Tracy, haverá uma boa promoção
à sua espera, assim como um aumento substancial.
- Puxa, obrigada Isso é sensacional
Ela sabia que merecia e experimentou um sentimento de
orgulho. Ficou ansiosa em contar a Charles. Parecia a Tracy
que os deuses conspiravam para fazer tudo o que podiam para
inundá-la de felicidade.
Os pais de Charles Stanhope III viviam numa mansão antiga e
imponente, na Rittenhouse Square. Era um marco na cidade pelo
qual Tracy passara muitas vezes. E agora, pensou ela, vai se
tornar uma parte da minha vida.
Ela estava nervosa. Seu fino penteado sucumbira à umidade no
ar. Trocara de vestido quatro vezes. Deveria se apresentar com
simplicidade? Formalmente? Tinha um Yves Saint-Laurent que
economizara para comprar na Wanamaker's. Se eu o usar, eles
pensarão que sou uma esbanjadora. Por outro lado, se puser
algum dos meus vestidos de liquidação da Pôst Hom, elas
pensarão que o filho está casando com alguém abaixo de sua
classe. Ora essa, eles pensarão assim de qualquer maneira,
concluiu Tracy. Ela escolheu finalmente uma saia de lã cinza
bem simples e uma blusa branca de seda, pondo no pescoço a
corrente fina de ouro que a mãe lhe mandara de presente de
Natal.
A porta da mansão foi aberta por um mordomo de libré.
- Boa noite, Senhorita Whitney-
O mordomo conhece meu nome, pensou Tracy. Isso é um bom sinal?
Um mau sinal?
- Posso ajudá-la a tirar o casaco?
Ela estava pingando água no lindo tapete persa. O mordomo
conduziu-a por um vestibulo de mármore que parecia duas vezes
maior do que todo o banco. Tracy pensou, em pânico: Oh, Deus,
estou vestida completamente errada! Deveria ter usado o Yves
Laurent. Ao entrar na biblioteca, ela sentiu um fio correr no
tornozelo da meia-calça, mas estava frente a frente com os
pais de Charles.
Charles Stanhope, pai, era um homem de aparência austera, com
sessenta e poucos anos. Parecia de fato um homem bem-sucedido;
era uma projecção do que Charles seria dentro de 30 anos.
Tinha olhos castanhos, como os de Charles, queixo firme, uma
orla de cabelos brancos. Tracy gostou dele instantaneamente.
Era o perfeito avô para seu filho.
A mãe de Charles tinha uma aparência impressiva. Era um tanto
baixa e corpulenta, mas apesar disso irradiava uma impressão
sumptuosa. Ela parece fina e digna de confiança, pensou Tracy.
Dará uma avó maravilhosa. A Sra. Stanhope estendeu a mão.
- Minha cara, foi muita gentileza sua vir nos visitar.
Pedimos a Charles que nos concedesse uns poucos minutos a sós
com você. Não se importa?
- Claro que ela não se importa - declarou o pai de Charles. -
Sente-se... Tracy, não é mesmo?
- Isso mesmo, senhor.
Os dois sentaram-se num sofá, diante dela. Por que me sinto
como se estivesse prestes a sofrer um interrogatório? Tracy
podia ouvir a voz da mãe: Meu bem, Deus jamais lhe impingirá
qualquer coisa que não possa manipular. Basta apenas que dê um
passo de cada vez.
O primeiro passo de Tracy foi um sorriso que saiu
completamente errado, porque naquele instante podia sentir o
fio corrido na meia-calça subir para o joelho. Tentou
escondê-lo com as mãos.
- Pois muito bem! - A voz do Sr. Stanhope era vigorosa. -
Você e Charles querem casar.
A palavra querem perturbou Tracy. Certamente Charles lhes
dissera que iam casar.
- Isso mesmo - murmurou Tracy.
- Você e Charles não se conhecem há muito tempo, não é? -
perguntou a Sra. Stanhope.
Tracy fez um esforço para reprimir o ressentimento. Eu estava
certa. Será um interrogatório.
- Tempo suficiente para saber que nos amamos, Sra. Stanhope.
- Amor? - disse o Sr. Stanhope.
A Sra. Stanhope interveio:
- Para ser franca, Senhorita Whitney, a notícia de Charles
foi um choque para seu pai e para mim. - Ela sorriu
indulgentemente. - Charles lhe falou sobre Charlotte, não é
mesmo?
Ela percebeu a expressão no rosto de Tracy e se apressou em
acrescentar:
- Entendo. O fato é que ele e Charlotte cresceram juntos.
Sempre foram muito ligados e... francamente, todos esperavam
que, anunciassem seu noivado este ano.
Não havia necessidade de uma descrição de Charlotte. Tracy
podia perfeitamente imaginá-la. Morava na casa ao lado. Rica,
do mesmo meio social de Charles. Todas as melhores escolas.
Adorava cavalos e ganhara taças.
- Fale-nos a esse respeito de sua família - sugeriu o Sr.
Stanhope.
Por Deus, esta é uma cena do filme da madrugada na televisão,
pensou Tracy, irritada. Sou a personagem de Rita Hayworth,
encontrando-me pela primeira vez com os pais de Cary Grant.
Preciso de um drinque. Nos filmes antigos, o mordomo, sempre
aparece em socorro com uma bandeja de drinques.
- Onde nasceu, minha cara? - perguntou a Sra. Stanhope.
- Na Louisiana. Meu pai era um mecânico.
Não havia necessidade de acrescentar isso, mas Tracy fora
incapaz de resistir. Que eles fossem para o inferno. Ela tinha
o maior orgulho do pai.
- Um mecânico?
- Isso mesmo. Ele abriu uma pequena fábrica em Nova Orleans e
desenvolveu-a numa das grandes companhias em seu sector.
Quando papai morreu, há cinco anos, minha mãe assumiu o
comando da empresa.
- O que essa... hen... companhia produz?
- Canos de descarga e outras peças de automóveis.
Sr. e Sra. Stanhope trocaram um olhar e murmuraram em
uníssono:
- Hen...
O tom deles deixou Tracy tensa. Quanto tempo precisarei para
amá-los?, perguntou a si mesma. Olhou para os dois rostos
impassíveis à sua frente e, para seu horror, começou a
balbuciar meio contrafeita:
- Tenho certeza de que gostarão muito de minha mãe. Ela é
bonita, inteligente, simpática. Uma mulher do Sul. Bem
pequena, é claro, mais ou menos de sua altura, Sra.
Stanhope...
As palavras de Tracy ficaram pairando no ar, sufocadas pelo
silêncio opressivo. Ela soltou uma risadinha tola, que se
desvaneceu sob o olhar severo da Sra. Stanhope. Foi o Sr.
Stanhope quem rompeu o silêncio, dizendo sem qualquer
expressão:
- Charles nos disse que você está grávida.
Ah, como Tracy gostaria que ele não tivesse revelado isso! A
atitude dos seus pais era de franca desaprovação. Era como se
o filho nada tivesse a ver com o que acontecera. Eles a faziam
sentir como se fosse um estigma. Sei agora o que deveria ter
usado, pensou Tracy. Uma letra escarlate.
- Não compreendo como actualmente e...
A Sra. Stanhope não pôde continuar a falar porque nesse
momento Charles entrou na sala. Tracy nunca se sentira tão
contente por ver alguém, em toda a sua vida.
- E então? - disse Charles, radiante. - Como se estão dando?
Tracy levantou-se e correu para os seus braços.
- Muito bem, querido.
Ela se aconchegou a ele, pensando: Graças a Deus que Charle,
não é como os pais. Nunca poderia ser como eles. São pessoas
de mentalidade tacanha, senobes e frias.
Houve uma tosse discreta por trás deles e o mordomo se
adiantou com uma bandeja de drinques. Tudo acabará bem, disse
Tracy a si mesma. Este filme terá um final feliz.
O jantar foi excelente, mas Tracy estava nervosa demais para
comer. Discutiram negócios bancários e política, a situação
aflitiva do mundo, uma conversa sempre impessoal e polida.
Ninguém chegou a dizer em voz alta: "Você preparou uma
armadilha para levar nosso filho ao casamento." Para ser
justa, pensou Tracy, devo admitir que eles têm todo o direito
de estar preocupados com a mulher com quem o filho vai casar.
Charles possuirá a firma um dia e é importante que ele tenha a
esposa certa. Tracy prometeu a si mesma: E ele terá.
Gentilmente, Charles pegou-lhe a mão, que torcia o guardanapo
por baixo da mesa, sorriu e piscou-lhe um olho. O coração de
Tracy se reanimou.
- Tracy e eu preferimos um casamento pequeno - disse Charles.
- E depois...
- Não diga bobagem - interrompeu-o a Sra. Stanhope. - Nossa
família não tem casamentos pequenos, Charles. Haverá dezenas
de amigos que desejarão vê-lo casar.
Ela fez uma pausa, olhando para Tracy, como a avaliar sua
figura.
- Talvez devêssemos providenciar para que os convites do
casamento sejam expedidos imediatamente. - Uma pausa e, com
uma reflexão posterior, ela acrescentou: - Isto é, se for
aceitável para você.
- Claro que é.
Haveria mesmo um casamento. Por que cheguei a duvidar disso? A
Sra. Stanhope disse:
- Alguns dos convidados virão do exterior. Tomarei as
providências para que fiquem hospedados na casa.
O Sr. Stanhope indagou:
- Já decidiram onde passarão a lua-de-mel?
Charles sorriu.
- Essa é uma informação confidencial, papai.
Ele apertou a mão de Tracy, enquanto a Sra. Stanhope
perguntava:
- Qual o prazo da lua-de-mel que estão planeando?
- Cerca de cinquenta anos - respondeu Charles.
Tracy adorou-o por isso. Depois do jantar, eles foram tomar
conhaque na biblioteca. Tracy correu os olhos pela sala antiga
e adorável, com painéis de carvalho, as prateleiras com livros
encadernados em couro, dois Corots, um pequeno Copley e uma
Reynolds. Não faria a menor diferença para ela se Charles não
tivesse qualquer dinheiro, mas admitiu para si mesma que seria
uma vida bastante agradável.
Já passava da meia-noite quando Charles levou-a de volta a
seu pequeno apartamento, ao lado do Fairmont Park.
- Espero que a noite não tenha sido muito difícil para você,
Tracy. Mamãe e papai podem ser às vezes um pouco irredutíveis.
- Oh, não... eles foram maravilhosos - mentiu Tracy.
Ela estava exausta da tensão da noite, mas mesmo assim
indagou, quando chegaram à porta de seu apartamento:
- Não vai entrar, Charles?
Ela precisava aconchegar-se em seus braços. Tinha vontade de
lhe dizer: "Eu o amo, querido. E ninguém neste mundo jamais
poderá nos separar".
- Esta noite não será possível - disse ele. - Terei uma manhã
sobrecarregada.
Tracy ocultou seu desapontamento.
- Eu compreendo, querido.
- Falarei com você amanhã.
Ele deu-lhe um beijo rápido e Tracy observou-o se afastar pelo
corredor.
O apartamento estava em chamas e o som insistente das sirenes
dos bombeiros romperam abruptamente o silêncio da noite. Tracy
soergueu-se abruptamente na cama, tonta de sono, farejando a
fumaça no quarto às escuras. A campainha continuou e
lentamente ela percebeu que era o telefone. O relógio na
mesinha-de-cabeceira informava que eram duas e meia da
madrugada. Seu primeiro pensamento de pânico foi que alguma
coisa acontecera com Charles. Ela pegou o telfone bruscamente.
- Alô?
Uma voz de homem distante indagou:
Tracy Whitney?
Ela hesitou. Se era um telefonema obsceno...
- Quem está falando?
- Aqui é o Tenente Miller, do Departamento de Polícia de Nova
Orleans. Estou falando com Tracy Whitney?
- Ela mesma.
O coração de Tracy começou a disparar.
- Infelizmente, tenho uma má notícia a lhe dar.
A mão de Tracy apertou o telefone com toda a força.
- É sobre sua mãe.
- Ela... mamãe sofreu algum acidente?
- Ela está morta, Senhorita Whitney.
- Não!
Foi um grito. Era de facto um trote. Algum maluco tentando
assustá-la Não havia nada de errado com sua mãe. Ela estava
viva. Eu a amo muito, Tracy. Mas muito mesmo.
- Detesto ter de lhe dar a notícia desse jeito, Senhorita
Whitney.
Era real. Era um pesadelo, mas estava acontecendo. Ela não
podia falar. A mente e a língua ficaram paralisadas. A voz do
tenente acrescentou:
- Alô? Está me ouvindo, Senhorita Whitney? Alô?
- Pegarei o primeiro avião.
Tracy sentou na pequena cozinha do apartamento, pensando na
mãe. Era impossível que ela estivesse morta. Sempre fora uma
mulher vibrante, cheia de vida. Haviam desfrutado um
relacionamento intimo, repleto de amor. Desde que era
garotinha que Tracy podia levar seus problemas à mãe, falar
sobre a escola e os garotos, posteriormente sobre os homens.
Quando o pai de Tracy morrera, haviam sido apresentadas muitas
propostas por pessoas que queriam comprar a empresa.
Ofereceram a Doris Whitney dinheiro suficiente para ela viver
confortavelmente pelo resto de sua vida. Mas a mãe se recusara
obstinadamente a vender.
- Seu pai fez esta empresa. Não posso agora jogar fora todo o
trabalho árduo.
E ela mantivera a empresa em plena prosperidade. Oh, mamãe. eu
a amo tanto!, pensou Tracy. Agora, você nunca conhecerá
Charles, nunca verá o seu neto. Ela se pôs a chorar.
Tracy fez um café e deixou esfriar, enquanto continuava
sentada, no escuro. Queria desesperadamente telefonar para
Charles e contar-lhe o que acontecera, tê-lo a seu lado. Olhou
para o relógio da cozinha. Eram três e meia da madrugada. Não
o acordaria; ligaria para ele de Nova Orleans. Especulou se
aquilo afectaria os planos de casamento e no mesmo instante
sentiu-se culpada pelo pensamento. Como podia pensar em si
mesma num momento como aquele? O Tenente Miller dissera:
- Quando chegar aqui, pegue um táxi e venha directo para a
chefatura da polícia.
Porquê a chefatura da policia? O que acontecera?
Parada no apinhado aeroporto de Nova Orleans, esperando por
sua mala, cercada por viajantes impacientes, a se empurrarem,
Tracy sentia-se sufocada. Tentou chegar mais perto do
carrossel de bagagem, mas ninguém lhe dava passagem. Estava
ficando cada vez mais nervosa, receando o que teria de
enfrentar dali a pouco. Empenhava-se em dizer a si mesma que
tudo não passava de um equívoco, mas as palavras ressoavam em
sua cabeça: Infelizmente tenho uma má noticia a lhe dar.. Ela
está morta, Senhorita Whitney... Detesto ter de lhe dar a
notícia assim...
Depois que finalmente pegou a mala, Tracy embarcou num táxi e
repetiu o endereço que o tenente lhe fornecera:
- South Broad Street, sete-um-cinco, por favor.
O motorista sorriu-lhe pelo espelho retrovisor.
- Uma encrenca, hem?
Nada de conversa. Não agora. A mente de Tracy estava dominada
demais pelo turbilhão. O táxi seguiu para leste, pela Lake
Ponchartrain Causeway. O motorista puxou conversa:
- Veio aqui para a grande festa, moça?
Tracy não tinha a menor idéia do que ele estava falando, mas
pensou: Não. Vim aqui para a morte. Ela estava consciente do
zumbido da voz do motorista, mas não escutava as palavras.
Sentada muito rigída, alheia ao ambiente famíliar por que
passava. Foi somente quando se aproximaram do Bairro Francês
que Tracy tornou-se cônsciente do crescente barulho. Era o som
de uma multidão enlouquecida, amotinados berrando alguma
antiga litania frenética.
- Só dá para trazê-la até aqui - informou o motorista.
Foi nesse instante que Tracy levantou os olhos e viu. Era uma
visão incrível. Havia centenas de milhares de pessoas
gritando, usando máscaras, fantasiadas de dragões e
crocodilos, de deuses pagãos, povoando as ruas e calçadas à
frente, com uma cacofonia de som desvairada. Era uma explosão
insana de corpos, música e dança.
- É melhor saltar antes que eles virem o meu táxi - advertiu o
motorista. - Esse maldito Mardi Gras...
Mas é claro! Era fevereiro, o momento em que toda a cidade
celebrava o início da Quaresma, fazendo o seu carnaval. Tracy
saltou do táxi e parou por um instante junto ao meio-fio, com
a mala na mão. E no momento seguinte foi envolvida pela
multidão a gritar
dançar. Era obsceno, um sabá de feiticeiras, um milhão de
Fúrias comemorando a morte de sua mãe. A mala foi arrancada da
mão de Tracy e desapareceu. Ela foi agarrada e beijada por um
homem gordo, com uma máscara de demónio. Um cervo apertou-lhe
os seios e um panda gigante agarrou-a por trás e levantou-a.
Tracy tentou se desvencilhar e fugir dali, mas era impossível.
Estava cercada, acuada, uma parte da celebração de canto e
dança. Foi se deslocando com a multidão frenética, as lágrimas
escorrendo pelas faces. Não havia escapatória. Encontrava-se à
beira da histeria quando finalmente conseguiu se livrar e
fugir para uma rua mais sossegada. Ficou parada por um longo
tempo, encostada num lampião, respirando fundo, lentamente
recuperando o controle de si mesma. E, depois, encaminhou-se
para a chefatura de polícia.
O Tenente Miller era um homem de meia-idade, de expressão
mortificada, o rosto enrugado, parecendo genuinamente
contrafeito no papel que tinha de desempenhar.
- Lamento não poder recebê-la no aeroporto, mas a cidade
inteira enlouqueceu - disse ele . - Examinamos as coisas de
sua mãe e você foi a única que pudemos encontrar para chamar.
- Por favor, tenente, conte-me o que... o que aconteceu com
minha mãe.
- Ela cometeu suicídio.
Tracy sentiu um calafrio percorrer-lhe o corpo.
- Mas... mas isso é impossível! Por que ela haveria de se
matar? Ela tinha tudo para viver!
A voz de Tracy era trémula.
- Ela deixou um bilhete para você
O necrotério era frio, indiferente e aterrador. Tracy foi
conduzida por um corredor comprido e branco até uma sala
grande, asséptica e vazia. E subitamente compreendeu que a
sala não se achava vazia.
Estava povoada pelos mortos. Pela sua morta.
Um atendente de jaleco branco aproximou-se de uma parede,
estendeu a mão para uma alça e puxou uma gaveta enorme.
- Quer dar uma olhada?
Não! Não quero ver o corpo vazio e sem vida estendido nessa
caixa. Ela queria sair dali. Queria voltar algumas horas no
tempo, quando o alarme de incêndio soava. E que seja um
incêndio de verdade, não o telefone, não minha mãe morta.
Tracy adiantou-se, lentamente, cada passo um grito interior. E
depois estava olhando para o corpo inanimado que a gerara,
alimentara, rira com ela e a amara. Ela inclinou-se e beijou o
rosto da mãe . O rosto estava frio e flexível.
- Oh, mamãe! - sussurrou Tracy. - Por quê? Por que fez isso?
- Temos de efectuar uma autópsia - disse o atendente. É a lei
estadual nos casos de suicídio.
O bilhete que Doris Whitney deixara não oferecia qualquer
resposta:
Minha querida Tracy:
Perdoe-me, por favor. Fracassei e não podia suportar ser um
fardo para você. Esta é a melhor solução. Eu a amo muito.
Mamãe
O bilhete era tão inanimado e desprovido de sentido quanto o
corpo que se achava na gaveta.
Tracy tomou as providências para o enterro naquela tarde,
depois pegou um táxi para a casa da família. à distância,
podia ouvir o rugido dos foliões do Mardi Gras, como alguma
celebração estranha e lúgubre
A residência dos Witneys era uma casa vitoriana no Garden
District, na área residencial conhecida como Uptown. Como a
maioria das residências de Nova Orleans, era construida em
madeira e não tinha porão, pois o lugar situava-se abaixo do
nível do mar .
Tracy crescera naquela casa, que estava povoada por
recordações agradáveis e afetuosas. Ela não estivera em casa
no ano anterior. Quando o táxi diminuiu, a fim de parar diante
do prédio ela ficou chocada com o cartaz grande que avistou no
gramado: à VENDA - COMPANHIA IMOBILIáRIA DE NOVA ORLEANS. Era
impossível. Nunca venderei esta casa, a mãe dissera muitas
vezes. Fomos muito felizes aqui.
Dominada por um medo insólito e irracional, Tracy passou por
uma enorme magnólia, encaminhando-se para a porta da frente.
Ganhara a chave de casa quando estava na sétima série e a
carregava desde então como um talismã, uma lembrança do
refúgio que sempre estaria ali, à sua espera.
Ela abriu a porta e entrou. Parou prontamente, aturdida. Os
cómodos estavam inteiramente vazios, desprovidos de móveis.
Todas as peças antigas e bonitas haviam desaparecido. A casa
era como uma casca vazia, abandonada pelas pessoas que outrora
a ocupavam. Tracy correu de um cómodo para outro, com uma
incredulidade crescente. Era como se tivesse ocorrido um
desastre repentino. Subiu apressadamente e parou na porta do
quarto que ocupara durante a maior parte de sua vida. O quarto
a fitava, frio e vazio. Oh, Deus, que pode ter acontecido?
Tracy ouviu a campainha da porta da frente e desceu a escada
para atender, como se estivesse em transe.
Otto Schmidt estava parado na porta. O capataz da Whitney
Automotive Parts Company era um homem idoso, o rosto todo
enrugado, um corpo muito magro, em que se destacava a barriga
de cerveja. Uma tonsura de cabelos brancos emoldurava o
crânio.
- Acabei de receber a notícia, Tracy - disse ele, com um
forte sotaque alemão - Eu... eu não sei como lhe dizer o
quanto lamento.
Tracy segurou-lhe as mãos.
- Oh, Otto, não sabe como estou feliz em vê-lo! Mas entre. -
Ela levou-o para a vazia sala de estar. - Lamento que não haja
lugar para sentar. Importa-se de se sentar no chão?
- Claro que não.
Sentaram-se de frente um para o outro, os olhos aturdidos
pela dor. Otto Schmidt fora empregado da companhia por tanto
tempo quanto Tracy podia se lembrar. Ela sabia o quanto o pai
dependia dele. Quando a mãe herdara a companhia, Schmidt
continuara para dirigi-la.
- Não entendo o que está acontecendo, Otto. A polícia diz que
mamãe cometeu suicídio. Mas você sabe muito bem que não havia
motivo para ela se matar. - Um pensamento súbito ocorreu-lhe.
- Ela não estava doente, não é mesmo? Ela não tinha alguma
doença terrível. . .
- Não. Não foi isso.
Ele desviou os olhos, contrafeito, alguma coisa em suspense
nas suas palavras. Tracy disse, lentamente:
- Você sabe o que foi.
Ele fitou-a com os olhos azuis remelentos.
- Sua mãe não lhe contou o que vinha acontecendo ultimamente.
Não queria preocupá-la.
Tracy franziu o rosto.
- Não queria me preocupar com o quê? Continue ... por favor.
As mãos calejadas de Otto Schmidt se abriram e fecharam.
- Já ouviu falar de um homem chamado Joe Romano?
- Joe Romano? Não. Por quê?
Otto Schmidt piscou os olhos.
- Romano procurou sua mãe há seis meses e disse que queria
comprar a companhia. Ela respondeu que não estava interessada
em vender. Mas ele ofereceu dez vezes mais do que a companhia
valia e ela não pôde recusar. Ficou muito animada. Investiria
todo o dinheiro em aplicações seguras, que proporcionariam uma
receita de que vocês duas poderiam viver, confortavelmente,
pelo resto de suas vidas. Tencionava fazer-lhe uma surpresa.
Fiquei muito satisfeito por ela. Há três anos que eu estava
querendo me aposentar, mas não podia deixar a Sra. Doris
sozinha, não é mesmo? Esse Romano... - Otto pronunciou a
palavra com uma fúria evidente. - Esse Romano deu a ela uma
pequena entrada. O dinheiro grande,... o pagamento do saldo...
deveria entrar no mês passado.
Tracy disse, impaciente:
- Continue, Otto. O que aconteceu?
- Assim que assumiu, Romano despediu todo mundo e trouxe o
seu próprio pessoal. E começou a depredar a companhia. Vendeu
todos os bens e encomendou uma porção de equipamentos,
vendendo tudo, mas não pagando. Os fornecedores não se
preocuparam
com o atraso no pagamento, porque pensavam que ainda estavam
tratando com sua mãe. Quando finalmente começaram a pressionar
sua mãe pelo pagamento, ela procurou Romano e exigiu que ele
explicasse o que estava acontecendo. Ele disse que desistira
da transação e estava lhe devolvendo a companhia. A esta
altura, porém, a companhia já não valia mais nada e ainda por
cima sua mãe devia meio milhão de dólares, que não tinha
condições de pagar. quase me matou e à minha mulher, Tracy.
Acompanhamos a luta de sua mãe para salvar a companhia. Mas
não havia jeito. Eles a forçaram à falência. Tomaram-lhe tudo.
. a companhia, esta casa, até mesmo seu carro.
- Oh, Deus!
- Há mais. O promotor distrital comunicou à sua mãe que ia
pedir uni indiciamento por fraude, que ela se arriscava a uma
sentença de prisão. Acho que foi nesse dia em que ela
realmente morreu.
Tracy fervilhava com uma onda de raiva impotente.
- Mas tudo o que ela tinha de fazer era contar a verdade...
explicar o que aquele homem lhe fez.
O velho capataz sacudiu a cabeça.
- Joe Romano trabalha para um homem chamado Anthony Orsatti.
E Orsatti manda em Nova Orleans- Descobri tarde demais que
Romano já tinha feito a mesma coisa com outras companhias.
Mesmo que sua mãe o levasse aos tribunais, muitos anos se
passariam antes que tudo ficasse esclarecido. E ela não tinha
dinheiro para lutar contra ele.
- Por que ela não me disse nada?
Era um brado de angústia, um brado pela angústia da mãe.
- Sua mãe era uma mulher orgulhosa. E o que você podia fazer?
Não há nada que alguém possa fazer.
Você está enganado, pensou Tracy, furiosa.
- Quero falar com Joe Romano. Onde posso encontrá-lo?
Schmidt disse, incisivamente:
- Esqueça-o. Não faz idéia de como ele é poderoso.
- Onde ele mora, Otto?
Ele tem uma casa perto de Jackson Square. Mas não adiantará
ir até lá, Tracy.
Tracy não respondeu. Estava dominada por uma emoção que lhe
era totalmente desconhecida: o ódio. Joe Romano pagará pela
morte de minha mãe, jurou Tracy para si mesma.
3
Ela precisava de tempo. Tempo para pensar, tempo para planejar
o seu próximo movimento. Não suportava voltar para a casa
despojada e por isso foi hospedar-se num pequeno hotel na
Magazine Street, longe do Bairro Francês, onde o carnaval
desvairado ainda continuava. Não tinha bagagem e o desconfiado
recepcionista disse:
- Terá de pagar adiantado. São quarenta dólares pela noite.
Tracy telefonou do quarto para Charles Desmond, a fim de
comunicar-lhe que não poderia trabalhar por alguns dias. Ele
disfarçou a irritação pela inconveniência e disse a Tracy:
- Não se preocupe. Arrumarei alguém para ficar no seu lugar
até voltar.
Desmond esperava que ela se lembrasse de contar a Charles
Stanhope como ele fora compreensivo e prestativo. O telefonema
seguinte de Tracy foi para Charles.
- Charles, querido....
- Onde diabo você está, Tracy? Mamãe tentou encontrá-la
durante toda a manhã. Ela queria almoçar hoje com você. As
duas têm muitas coisas para combinar.
- Desculpe, querido. Estou em Nova Orleans.
- Você está onde? O que foi fazer em Nova Orleans?
- Minha mãe... morreu.
A palavra quase ficou presa na garganta de Tracy.
- Oh... - O tom de voz de Charles mudou no mesmo instante. -
Sinto muito, Tracy. Deve ter sido muito súbito. Ela não era
bastante jovem?
Ela era muito jovem, pensou Tracy, desesperada. Em voz alta,
ela disse:
- Era, sim.
- O que aconteceu? Você está bem?
Por algum motivo, Tracy não podia contar a Charles que fora
suicídio. Queria ansiosamente contar toda a história terrível
do que haviam feito com sua mãe, mas se conteve. O problema é
meu, pensou ela. Não posso descarregar meu fardo em Charles.
- Não se preocupe, querido. Estou bem.
- Quer que eu vá até aí, Tracy?
- Não, obrigada. Posso cuidar de tudo. Enterrarei mamãe
amanhã. E estarei de volta a Filadélfia na segunda-feira.
Depois de desligar, ela estendeu-se na cama do hotel, os
pensamentos à deriva. Pôs-se a contar as placas acústicas no
teto. Um... dois... três... Romano... quatro... cinco... Joe
Romano... seis... sete... ele pagaria. Ela não tinha qualquer
plano. Sabia apenas que não permitiria que Joe Romano
escapasse impune ao que fizera, que encontraria algum meio de
fazê-lo pagar.
Tracy deixou o hotel ao final da tarde e seguiu a pé pela
Canal Strect, até encontrar uma loja de penhores. Um homem de
aspecto cansado, usando uma antiquada pala verde, estava
sentado num guichê, por trás do balcão.
- O que deseja?
- Eu... quero comprar um revólver
- De que tipo?
- Sabe como é... apenas um revólver...
- Quer um 32, um 45, um...
Tracy nunca empunhara uma arma de fogo.
- Um... um 32 servirá.
- Tenho aqui um excelente Smith & Wesson calibre 32 por 229
dólares. Tenho também um Charter Arms 32 por 159...
Tracy não trouxera muito dinheiro na viagem.
- Não tem alguma coisa mais barata?
Ele deu de ombros.
- O mais barato é um bodoque, dona. Mas podemos fazer uma
coisa. Eu lhe venderei o 32 por 150 dólares e ofereço de
brinde uma caixa de balas.
- Está bem.
Tracy observou enquanto o homem se deslocava para um arsenal
sobre uma mesa mais atrás e seleccionava um revólver. Ele
levou-o para o balcão.
- Sabe como usá-lo?
- Sei... basta puxar o gatilho.
O homem soltou um grunhido.
- Quer que eu lhe ensine a carregar?
Ela já ia dizer que não precisava, que não tencionava usar o
revólver, que queria apenas assustar alguém. Mas compreendeu
como isso pareceria absurdo.
- Quero, sim, por favor.
Tracy observou enquanto ele inseria as balas no tambor.
- Obrigada.
Ela abriu a bolsa e contou o dinheiro.
- Precisarei de seu nome e endereço para o registro policial.
Era uma coisa que não ocorrera a Tracy. Ameaçar Joe Romano com
um revólver era um ato criminoso. Mas ele é o criminoso e não
eu. A pala verde dava aos olhos do homem uma impressão lúgubre
enquanto observavam Tracy.
- Nome?
- Smith... Joan Smith.
Ele fez uma anotação num cartão.
- Endereço?
- Dowman Road... Dowman Road, 32.
Sem levantar os olhos, ele comentou:
- Não existe Dowman Road, 32. Seria no meio do rio. Vamos
passar para 25.
Ele estendeu o recibo para Tracy. Ela assinou JOAN SWMITH.
- Isso é tudo?
- É, sim.
Cuidadosamente, ele empurrou o revólver pelo guichê. Tracy
fitou-o imóvel por um instante, depois pegou-o e guardou na
bolsa, virou-se e deixou a loja apressadamente.
- Ei, dona! - gritou o homem, enquanto ela se afastava. - Não
esqueça que a arma está carregada!
A Jackson Square fica no coração do Bairro Francês, com a bela
Catedral de St- Louis dominando-a como uma bênção. As casas
antigas e aprazíveis da praça ficam ao abrigo do tráfego
intenso por sebes altas e graciosas magnólias. Joe Romano
vivia numa daquelas casas.
Tracy esperou até o anoitecer para partir. O carnaval
deslocara-se para a Chartres Strect; à distância, ela podia
ouvir o som do pandemónio em que fora engolfada anteriormente.
Tracy parou nas sombras, observando a casa, consciente do
peso do revólver em sua bolsa. O plano que elaborara era
simples. Tentaria argumentar com Joe Romano, pediria que
limpasse o nome da mãe. Se ele recusasse, iria ameaçá-lo com o
revólver, obrigá-lo a escrever uma confissão. E a levaria para
o Tenente Miller, que prenderia Romano, resguardando assim o
nome da mãe. Desejava desesperadamente que Charles estivesse
ali, a seu lado, mas sabia que era melhor cuidar de tudo
sozinha. Tinha de deixar Charles de fora daquilo. Contaria a
ele depois que tudo terminasse, com Joe Romano atrás das
grades, que era o lugar a que ele pertencia. Um pedestre se
aproximava. Tracy esperou até que ele se afastasse e a rua
ficasse completamente deserta.
Ela subiu os degraus da casa e tocou a campainha. Ninguém
atendeu. Ele está provavelmente num dos bailes particulares
oferecidos durante o Mardi Gras. Mas posso esperar, pensou
Tracy. Posso esperar até que ele volte para casa. Subitamente,
a luz da varanda foi acesa, a porta se abriu e um homem
apareceu. Sua aparência foi uma surpresa para Tracy. Ela
imaginara um gangster de aspecto sinistro, o mal estampado no
rosto. Em vez disso, deparava-se com um homem atraente e
simpático, que poderia facilmente ser tomado por um professor
universitário. Sua voz era baixa e amistosa:
- Olá. Em que posso ajudá-la?
- Você é Joseph Romano?
A voz de Tracy estava trémula.
- O próprio. O que deseja?
Ele tinha um comportamento insinuante e agradável. Não é de
admirar que minha mãe se tenha deixado enganar por esse homem
pensou Tracy.
- Eu... eu gostaria de lhe falar, Sr. Romano.
Ele contemplou-a por um momento, de alto a baixo.
- Claro. Entre, por favor.
Tracy acompanhou-o a uma sala de estar cheia de móveis
antigos, bonitos e lustrosos. Joseph Romano vivia muito bem. à
custa do dinheiro de minha mãe, pensou Tracy, amargurada.
- Eu ia me servir de um drinque. O que deseja tomar?
- Nada.
Ele fitou-a com uma expressão curiosa.
- Sobre o que deseja me falar, Senhorita ...
- Tracy Whitney. Sou a filha de Doris Whitney.
Romano fitou-a impassível por um momento e depois uma
expressão de reconhecimento aflorou em seu rosto.
- Ah, sim... Soube o que aconteceu com sua mãe. Uma coisa
lamentável.
Uma coisa lamentável! Ele causara a morte de sua mãe e esse
era o único comentário que tinha a fazer.
- Sr. Romano, o promotor distrital acha que minha mãe foi
culpada de fraude. Mas sabe que isso não é verdade. E quero
que me ajude a limpar o nome dela.
Ele soltou uma risada.
- Nunca falo de negócios durante o Mardi Gras. É contra a
minha religião. - Romano foi até o bar e começou a servir dois
drinques. - Creio que se sentirá melhor depois que tomar um
drinque.
Ele não lhe deixava opção. Tracy abriu a bolsa e tirou o
revólver. Apontou para ele.
- Eu lhe direi o que fará com que eu me sinta melhor, Sr.
Romano: obrigá-lo a confessar o que exactamente fez à minha
mãe. - Joseph Romano virou-se e viu a arma.
- É melhor guardar isso, Senhorita Whitney. Pode disparar.
- E vai mesmo disparar, se não fizer exactamente o que eu
mandar. Escreverá como saqueou a companhia, levando-a à
falência e causando o suicídio de minha mãe.
Ele a observava atentamente agora, uma expressão cautelosa nos
olhos escuros.
- E se eu recusar?
- Então eu vou matá-lo.
Tracy podia sentir o revólver tremendo em sua mão.
- Não me parece uma assassina, Senhorita Whitney. - Ele se
aproximava dela agora, com um copo na mão. A voz era suave e
sincera. - Nada tive a ver com a morte de sua mãe e pode estar
certa de que eu...
Ele jogou o drinque no rosto de Tracy. Ela sentiu a ardência
do álcool em seus olhos e um instante depois a arma foi
derrubada de sua mão.
- Sua velha me escondeu uma coisa - disse Joe Romano. - Ela
não me contou que tinha uma filha tão gostosa.
Ele a segurava, imobilizando-lhe os braços. Tracy não podia
ver nada e sentia-se apavorada. Tentou se desenvencilhar, mas
ele a encostou numa parede, comprimindo-se contra o seu corpo.
- Tem coragem, boneca. Gosto disso. E me deixa com o maior
tesão.
A voz dele soava rouca. Tracy podia sentir o seu corpo
ardente contra o dela. Tentava novamente se desenvencilhar,
mas estava impotente em seu aperto.
- Veio aqui por um pouco de excitamento, hem? Pois é o Joe
vai lhe dar.
Ela tentou gritar, mas a voz saiu sufocada:
- Largue-me!
Ele rasgou-lhe a blusa, sussurrando:
- Ei, olhe só para esses peitos! - Ele começou a apertar-lhe
os mamilos. - Lute comigo, boneca. Gosto disso.
- Largue-me!
Romano apertou-a com mais força ainda, machucando-a. Tracy
sentiu que estava sendo forçada para o chão.
- Aposto que você nunca foi comida por um homem de verdade.
Ele se achava agora montado por cima dela, o corpo pesado a
comprimi-la, as mãos subindo por suas coxas. Tracy tacteou às
cegas, os dedos encontraram o revólver. Agarrou-o e houve uma
explosão súbita, estrondosa.
- Oh, Deus! - exclamou Romano.
A pressão dele relaxou de repente. Através de uma névoa
vermelha, Tracy observou horrorizada, enquanto ele saia de
cima dela, arriando no chão, as mãos comprimindo o lado.
- Você atirou em mim... sua puta... atirou em mim...
Tracy estava paralisada, incapaz de se mexer. Sentiu que ia
vomitar, os olhos se achavam cegos pela dor intensa. Conseguiu
se levantar, virou-se e cambaleou para uma porta no outro lado
da sala. Abriu-a. Era um banheiro. Ela foi até a pia, encheu-a
de água fria, molhou os olhos, até que a dor começou a se
desvanecer e a visão clareou. Contemplou-se no espelho por
cima da pia. Os olhos estavam injectados, com um aspecto
horrível. Santo Deus, acabei de matar um homem! Ela voltou
correndo à sala. Joe Romano estava caído no chão, o sangue se
espalhando sobre o tapete branco. Tracy parou ao lado, o rosto
muito pálido.
- Sinto muito - murmurou ela, atordoada. - Eu não tinha
intenção...
- Ambulância...
A respiração de Romano era entrecortada. Tracy correu para o
telefone na mesa e discou para a telefonista. A voz saiu
estrangulada quando tentou falar:
- Telefonista, providencie uma ambulância imediatamente. O
endereço é Jackson Square, 421. Um homem foi baleado.
Ela repôs o telfone no gancho e olhou para Joe Romano. Oh,
Deus, rezou ela, não deixe que ele morra, por favor. Sabe que
eu não tencionava matá-lo. Ela ajoelhou-se ao lado do corpo no
chão, a fim de verificar se ele ainda estava vivo. Os olhos se
achavam fechados, mas Romano ainda respirava.
- Uma ambulância está a caminho - murmurou Tracy.
E ela fugiu.
Fez um esforço para não correr, com medo de atrair a atenção.
Fechou o casaco, a fim de esconder a blusa rasgada. A quatro
quarteirões da casa, tentou parar um táxi. Meia dúzia passaram
directo em alta velocidade, cheios de passageiros risonhos e
felizes. à distância, Tracy ouviu uma sirene se aproximando.
Pouco depois, uma ambulância passou por ela em disparada,
seguindo na direcção da casa de Joe Romano. Tenho de sair
daqui, pensou Tracy. Um táxi parou à sua frente e descarregou
os passageiros. Tracy correu, com medo de perdê-lo.
- Está livre?
- Depende. Para onde vai?
- Para o aeroporto.
Ela prendeu a respiração.
- Entre.
A caminho do aeroporto, Tracy pensou na ambulância. E se
chegassem tarde demais e encontrassem Joe Romano já morto? Ela
seria uma assassina. Deixara o revólver na casa, suas
impressões digitais lá estavam. Poderia dizer à polícia que
Romano tentara estuprá-la e a arma disparara acidentalmente.
Mas nunca acreditariam nela. Comprara a arma que estava no
chão, ao lado de Joe Romano. Quanto tempo passara? Meia hora?
Uma hora? Tinha de sair de Nova Orleans o mais depressa
possível.
- Gostou do carnaval? - perguntou o motorista.
Tracy engoliu em seco.
- Ahn... gostei.
Ela tirou o espelhinho da bolsa e fez o que era possível para
se tornar apresentável. Fora estúpida ao tentar obrigar Joe
Romano a confessar. Tudo saira errado. Como posso dizer a
Charles o que aconteceu? Sabia como ele ficaria chocado; mas,
depois que explicasse, ele compreenderia. Charles saberia o
que fazer.
Quando o táxi chegou ao Aeroporto Internacional de Nova
Orleans, Tracy pensou: Foi somente esta manhã que passei por
aqui? Tudo aconteceu num dia apenas? O suicídio da mãe... o
horror de ser engolfada pelo carnaval... o homem gritando...
"Você atirou em mim... sua puta..."
Quando entrou no terminal, Tracy teve a impressão de que todos
a fitavam acusadoramente. É isso o que a consciência culpada
faz, pensou ela. Gostaria que houvesse algum meio de saber
qual era o estado de Joe Romano, mas não tinha a menor idéia
do hospital para onde ele fora levado ou para quem poderia
telefonar. Ele vai ficar bom. Charles e eu voltaremos a Nova
Orleans para o enterro de mamãe e Joe Romano se salvará. Ela
tentou afastar da mente a visão do homem caído sobre o tapete
branco, o sangue manchando-o de vermelho. Tinha de voltar
correndo para casa, para Charles...
Tracy foi até o balcão da Delta Airlines.
- Quero uma passagem de ida para Filadélfia no próximo voo,
por favor. Classe turista.
O funcionário consultou o computador.
- Será o vôo três-zero-quatro. Está com sorte. Ainda resta um
lugar.
- A que horas o avião parte?
- Dentro de vinte minutos. Está em cima da hora para
embarcar.
Ao abrir a bolsa, Tracy sentiu mais do que viu dois guardas
uniformizados se postarem nos seus lados. Um deles disse:
- Tracy Whitney?
O coração dela parou de bater por um instante. Seria
estupidez negar minha identidade.
- Sou eu.
- Está presa.
E Tracy sentiu o aço frio das algemas estalarem em seus
pulsos.
Tudo estava acontecendo em câmara lenta com outra pessoa.
Tracy observou-se sendo levada pelo aeroporto, algemada a um
dos guardas, as pessoas se virando para olhar. Foi empurrada
para o banco traseiro de uma radiopatrulha preta e branca, com
uma grade de aço a separá-la do banco da frente. O carro
partiu abruptamente, a luz vermelha piscando, a sirene
gemendo. Ela se encolheu no banco, tentando tornar-se
invisível. Era uma assassina. Joseph Romano morrera. Mas fora
um acidente. Ela explicaria como acontecera. Tinham de
acreditar nela. Tinham de acreditar... A delegacia de polícia
para onde Tracy foi levada ficava no distrito de Algiers, na
zona oeste de Nova Orleans, um prédio sombrio e agourento, com
uma aparência de desolação. A sala da frente estava apinhada
de pessoas de aspecto deprimente... prostitutas, cafetões,
assaltantes e suas vitimas . Tracy foi conduzido à mesa do
sargento de plantão. Um dos guardas disse:
A mulher Whitney, sargento. Nós a pegamos no aeroporto,
tentando escapar.
- Eu não estava...
- Tirem as algemas.
As algemas foram removidas. Tracy recuperou a voz.
- Foi um acidente. Eu não tinha a menor intenção de matá-lo.
Ele tentou me estuprar e...
- Você é mesmo Tracy Whitney?
- Sou, sim. Eu...
- Levem-na para a cela.
- Não! Espere um instante! - suplicou Tracy. - Preciso
telefonar para alguém. Eu... eu tenho o direito de dar um
telefonema.
O sargento soltou um grunhido irónico.
- Conhece a rotina, hem? Quantas vezes já esteve em cana, meu
bem?
- Nenhuma. Esta é...
- Pode dar um telefonema. Três minutos. Que número você quer?
Tracy estava tão nervosa que não conseguia lembrar o telefone
de Charles. Não conseguia sequer recordar o CÓDIGO de área
para Filadélfia. Seria dois-cinco-um? Não. O número era outro.
Ela agora tremia.
- Vamos logo. Não posso ficar esperando a noite inteira.
Dois-um-cinco. Era isso!
- Dois-um-cinco-cinco-cinco-cinco-nove-três-zero-um.
O sargento discou o número e entregou o telfone para Tracy.
Ela podia ouvir a campainha tocando. E tocando. Ninguém
atendia.Charles tinha de estar em casa. O sargento disse:
- Seu tempo acabou.
Ele estendeu a mão para arrancar o telfone de Tracy.
- Espere, por favor! - gritou ela.
Mas, subitamente, lembrou-se que Charles desligava seu
telefone à noite, a fim de não ser incomodado. Ela escutou a
campainha por mais um instante e compreendeu que não havia a
menor possibilidade de entrar em contacto com Charles. O
sargento indagou:
- Já acabou?
Tracy fitou-o apaticamente e murmurou:
- Já, sim.
Um guarda em mangas de camisa levou Tracy para uma sala, onde
ela foi fichada e lhe tiraram as impressões digitais. Depois,
foi conduzida por um corredor e trancada numa cela, sozinha.
- Terá uma audiência pela manhã - informou o guarda
afastando-se e deixando-a sozinha.
Nada disso está acontecendo, pensou Tracy. Tudo não passa de
um terrível pesadelo. Oh, Deus, por favor, não permita que
nada disso seja real!
Mas o catre fétido na cela era real, o vaso sanitário sem
tampa no canto era real, as barras eram reais.
As horas da noite se arrastaram interminavelmente. Se ao menos
eu conseguisse entrar em contacto com Charles! Precisava dele
agora mais do que já precisara de qualquer outra pessoa, em
toda a sua vida. Eu deveria ter-lhe contado, em primeiro
lugar. Se o fizesse, nada disso teria acontecido.
às seis horas da manhã, um guarda entediado trouxe para Tracy
um café morno e um mingau de aveia frio. Ela não foi capaz de
tocar. O estômago se achava completamente contraído. Uma
inspectora veio buscá-la às nove horas.
- Está na hora, queridinha.
A mulher destrancou a porta da cela,
- Preciso dar um telefonema - disse Tracy. - É muito..
- Mais tarde. Não vai querer deixar o juiz esperando. Ele é um
filho da puta mesquinho.
Ela acompanhou Tracy por um corredor e através de uma porta
que dava para um tribunal. Um juiz idoso presidia o tribunal.
A cabeça e as mãos se mantinham em constante movimento,
arrancos pequenos e rápidos. à sua frente se encontrava o
promotor distrital, Ed Topper, um homem franzino, na casa dos
40 anos, cabelos grisalhos ondulados, olhos pretos e frios.
Tracy foi levada a uma cadeira e um momento depois o meirinho
anunciou:
- O povo contra Tracy Whitney.
Tracy descobriu-se a avançar. O juiz examinava um papel à sua
frente, a cabeça balançando para cima e para baixo. Agora.
Agora. Agora era o momento de Tracy explicar a alguém com
autoridade o que realmente acontecera. Ela comprimiu as mãos,
a fim de evitar que tremessem.
- Meritissimo, não foi homicídio. Atirei nele, é verdade, mas
foi um acidente. Eu só pretendia assustá-lo. Ele tentou me
violentar e...
O promotor distrital interrompeu-a:
- Meritissimo, não vejo sentido em desperdiçar o tempo deste
tribunal. Esta mulher arrombou a casa do Sr. Romano, armada
com um revólver de calibre 32, roubou um quadro de Renoir no
valor de meio milhão de dólares. Quando o Sr. Romano
surpreendeu-a em flagrante, ela alvejou-o a sangue-frio e
deixou-o como morto.
Tracy sentiu que o sangue se esvaía de seu rosto.
- Mas... mas do que está falando?
Nada daquilo fazia qualquer sentido. O promotor acrescentou
bruscamente:
- Temos a arma com que o Sr. Romano foi ferido. As impressões
digitais da mulher estão na arma.
Ferido! Então Joseph Romano estava vivo! Ela não matara
ninguém.
- Ela fugiu com o quadro, Meritissimo. Provavelmente se
encontra nas mãos de algum receptador, a esta altura. Por esse
motivo, o Estado solicita que Tracy Whitney seja julgada por
tentativa de homicídio e assalto à mão armada, com a fiança
fixada em meio milhão de dólares.
O juiz virou-se para Tracy, que se encontrava imóvel, em
estado de choque.
- Está representada neste tribunal?
Ela não ouviu. O juiz alteou a voz:
- Tem um advogado?
Tracy sacudiu a cabeça.
- Não. Eu... o que... o que esse homem disse não é verdade.
Eu nunca...
- Tem dinheiro para contratar um advogado?
Havia o fundo dos empregados no banco. E havia Charles.
- Eu... não, Meritissimo. Mas não compreendo...
- O tribunal designará um advogado para você . Será mantida
sob custódia, com uma fiança de quinhentos mil dólares.
Próximo caso.
- Espere! Isso tudo é um equívoco! Eu não...
Ela não se lembrou depois de ter sido retirada do tribunal.
O nome do advogado designado pelo tribunal era Perry Pope. Ele
se aproximava dos 40 anos, possuía um rosto rude e
inteligente, olhos azuis simpáticos. Tracy gostou dele
imediatamente. Ele entrou na cela, sentou-se no catre e disse:
- Você criou uma sensação e tanto para uma mulher que se
encontra na cidade há apenas 24 horas. - Ele sorriu. - Mas tem
sorte. É uma péssima atiradora. O ferimento foi superficial .
Romano sobreviverá.
Ele tirou um cachimbo do bolso e acrescentou:
- Importa-se que eu fume?
- Não.
Ele encheu o cachimbo de fumo, acendeu-o, estudou atentamente
o rosto de Tracy.
- Não parece a criminosa comum desesperada, Senhorita
Whitney.
- E não sou. Juro que não sou.
- Pois então me convença. Conte o que aconteceu. Desde o
início. Leve o tempo que julgar necessário.
E Tracy contou. Tudo. Perry Pope escutou a história em
silêncio, não falando até que Tracy terminou. Recostou-se
então na parede da cela, uma expressão sombria no rosto. E
disse, baixinho:
- Aquele filho da puta...
- Não entendo do que eles estavam falando. - Havia confusão
nos olhos de Tracy. - Não sei de nada sobre um quadro.
- É realmente muito simples. Joe Romano usou-a como bode
expiatório, da mesma forma como fez com sua mãe . Você caiu
direitinha numa armadilha.
- Ainda não compreendo.
- Pois então vou explicar. Romano reclamará o seguro de meio
milhão de dólares pelo quadro de Renoir que escondeu em algum
lugar e receberá. A seguradora ficará atrás de você e não
dele. Quando as coisas esfriarem, Romano venderá o quadro a
algum coleccionador particular e ganhará mais meio milhão de
dólares, graças à sua ingenuidade. Não sabia que uma confissão
obtida sob a mira de uma arma não tem valor?
- Eu... eu acho que sabia. Pensei apenas que, se conseguisse
lhe arrancar a verdade, alguém poderia iniciar uma
investigação.
O cachimbo se apagara. Ele tornou a acendê-lo.
- Como entrou na casa?
- Toquei à campainha da frente e o Sr. Romano abriu a porta.
- Não é a história que ele conta. Há uma janela arrombada nos
fundos da casa e Romano garante que foi por lá que você
entrou. Ele disse à polícia que a surpreendeu a pegar o
Renoir; quando tentou impedi-la, você atirou nele e fugiu.
- Mas isso é uma mentira! Eu...
- Mas é a mentira dele, assim como a sua casa... enquanto a
arma pertence a você. Tem alguma idéia das pessoas que está
enfrentando?
Tracy sacudiu a cabeça, em silêncio.
- Pois então lhe contarei os factos da vida, Senhorita
Whitney. Esta cidade é controlada pela Família Orsatti. Nada
acontece por aqui sem a aprovação de Anthony Orsatti. Se quer
uma permissão para construir um prédio, pavimentar uma rua,
explorar as muralhas, a lotaria dos números ou os tóxicos, tem
de falar com Orsatti. Joe Romano começou como um pistoleiro
dele. Agora, é o homem principal na organização de Orsatti.
Ele fez uma pausa, fitando-a com admiração, antes de
acrescentar:
- E você entrou na casa de Romano e apontou-lhe um revólver!
Tracy continuou sentada, atordoada e exausta. Finalmente
perguntou:
- Acredita na minha história?
O advogado sorriu.
- Você está absolutamente certa. É tanta estupidez que só
pode ser verdade.
- Pode me ajudar?
Ele respondeu bem devagar:
- Vou tentar. Eu daria qualquer coisa para pôr todos eles por
trás das grades. São os donos desta cidade e da maioria dos
nossos juizes. Se você for a julgamento, eles a enterrarão tão
fundo que nunca mais tornará a ver a luz do dia.
Tracy fitou-o, perplexa.
- Se eu for a julgamento?
Pope levantou-se e começou a andar de um lado para outro da
cela, enquanto dizia:
- Não quero levá-la à presença de um júri porque será o júri
dele. Pode estar certa disso. Há somente um juiz que Orsatti
nunca foi capaz de comprar. O nome dele é Henry Lawrence. Se
eu puder dar um jeito para que ele assuma o caso, tenho
certeza de que arrumarei um acordo para você. Não é
rigorosamente ético, mas conversarei com ele particularmente.
Lawrence odeia Orsatti e Romano tanto quanto eu. Agora, tudo o
que temos de fazer é atrair o Juiz Lawrence.
Perry Pope providenciou um telefonema de Tracy para Charles
Tracy ouviu a voz famíliar da secretária de Charles:
- Escritório do Sr. Stanhope.
- Harriet, aqui é Tracy Whitney. Eu...
- Oh, Senhorita Whitney, ele vem tentando lhe falar há
bastante tempo, mas não tínhamos o seu telefone. A Sra.
Stanhope está ansiosa em acertar todas as providências para o
casamento. Se puder procure-a o mais depressa possível...
- Harriet, posso falar com o Sr. Stanhope, por favor?
- Lamento muito, Senhorita Whitney, mas não será possível.
Ele está a caminho de Houston. para uma reunião. Se me der seu
número tenho certeza de que ele lhe telefonará assim que
puder.
- Eu...
Ela não podia deixar que Charles lhe telefonasse para cadeia.
Não antes de primeiro ter a oportunidade de lhe explicar tudo
o que acontecera.
- Eu... eu telefonarei de novo para o Sr. Stanhope.
Ela desligou. Amanhã, pensou Tracy, cansada. Explicarei tudo
a Charles amanhã.
Tracy foi transferida naquela tarde para uma cela maior.
Foi-lhe servido um jantar delicioso no Cyalatoire's e pouco
depois chegaram flores frescas com um bilhete. Ela abriu o
envelope e tirou o cartão: âNIMO, VAMOS DERROTAR OS
MISERÁVEIS. PERRY POPE.
Ele veio visitar Tracy na manhã seguinte. Ela compreendeu que
havia boas notícias no instante em que viu o sorriso em seu
rosto.
- Estamos com sorte - declarou ele . - Acabei de conversar
com o Juiz Lawrence e com Topper, o promotor distrital. Toppe
protestou furiosamente, mas chegamos a um acordo.
- Um acordo?
- Eu contei a sua história ao Juiz Lawrence. Ele concordou em
aceitar um reconhecimento de culpa de sua parte.
Tracy ficou chocada.
- Um reconhecimento de culpa? Mas eu não...
- Preste atenção. Declarando-se culpada, você poupa ao Estado
a despesa de um julgamento. Persuadi o juiz que você não
roubou o quadro. Ele conhece Joe Romano e acreditou em mim.
- Mas... se eu me declarar culpada, o que eles farão comigo?
- O Juiz Lawrence a condenará a três meses de prisão, com...
- Prisão!
- Espere um instante. Ele suspenderá a sentença e você poderá
cumpri-la em liberdade condicional, fora do Estado.
- Mas neste caso eu.- eu terei uma ficha policial.
Perry Pope suspirou.
- Se a levarem a julgamento por assalto à mão armada e
tentativa de homicídio, durante o ato, você pode ser condenada
a dez anos.
Dez anos de cadeia! Perry Pope observava pacientemente e
acrescentou:
- Só posso lhe oferecer o meu melhor conselho. Já é um milagre
o que eu consegui. Eles querem uma resposta agora. Você não
precisa aceitar o acordo. Pode arrumar outro advogado e...
- Não.
Tracy sabia que aquele homem era honesto. Nas circunstâncias,
considerando o seu comportamento insano, ele fizera tudo o que
era possível por ela. Se ao menos pudesse falar com Charles...
Mas eles precisavam de uma resposta agora. Ela provavelmente
tinha sorte de escapar com uma sentença de três meses em
suspensão.
- Eu... eu aceitarei o acordo.
Tracy teve de fazer muita força para que as palavras saíssem.
O advogado assentiu.
Está sendo esperta.
Tracy não teve permissão de dar qualquer telefonema antes de
voltar ao tribunal. Ed Topper postou-se num lado dela e Perry
Pope no outro. Sentado no assento do juiz estava um homem de
aparência distinta, na casa dos 50 anos, o rosto liso, sem
rugas, cabelos abundantes e impecáveis. O Juiz Lawrence disse
a Tracy:
- O tribunal foi informado que a ré deseja mudar sua alegação
de inocente para culpada. Isso é correcto?
- É, sim, Meritissimo.
- Todas as partes estão de acordo?
Perry Pope assentiu.
- Estão, Meritissimo.
- O Estado concorda, Meritissimo - acrescentou o promotor.
O Juiz Lawrence permaneceu em silêncio por um longo momento.
Depois, inclinou-se para a frente e fitou Tracy nos olhos.
- Um dos motivos para que este nosso grande país se encontre
em situação tão lamentável é que as ruas fervilham de vermes
que pensam que podem escapar impunes de qualquer coisa.
Pessoas que zombam da lei. Alguns sistemas judiciais neste
país tratam bem os criminosos. Pois não agimos assim na
Louisiana. Quando alguém, ao cometer um assalto, tenta matar
uma pessoa a sangue-frio, achamos que a culpada deve ser
punida de maneira exemplar.
Tracy começou a experimentar as primeiras pontadas de pânico.
Virou o rosto para Perry Pope. Os olhos do advogado fixavam-se
no juiz.
- A ré admitiu que tentou assassinar um dos cidadãos eminentes
desta comunidade... um homem notório por sua filantropia e
boas acções. A ré alvejou-o no ato de roubar um objecto de
arte no valor de meio milhão de dólares. - A voz do juiz
tornou-se mais áspera. - Pois este tribunal vai providenciar
para que não possa desfrutar esse dinheiro... não durante os
próximos 13 anos. É que durante os próximos 15 anos você
estará encarcerada na Penitenciária Meridional da Louisiana
Para Mulheres.
Tracy sentiu que algum gracejo horrível lhe haviam impingido.
O juiz era um actor seleccionado para o papel, mas estava
lendo as linhas erradas. Não deveria dizer nenhuma daquelas
coisas. Ela virou-se para explicar isso a Perry Pope, mas ele
desviou os olhos. Ele arrumava papéis em sua pasta e pela
primeira vez Tracy notou que suas unhas eram roídas até o
sabugo. O Juiz Lawrence se levantara e começava a recolher os
seus papéis. Tracy ficou parada ali, atordoada, incapaz de
compreender o que estava-lhe acontecendo. Um guarda
aproximou-se e segurou-a pelo braço.
- Vamos embora.
- Não! - gritou Tracy. - Não, por favor!
Ela levantou os olhos para o juiz e acrescentou:
- Houve um engano terrível, Meritissimo. Eu...
Enquanto sentia a mão do guarda lhe apertar o braço, Tracy
compreendeu que não houvera qualquer erro. Fora enganada. Eles
iam destrui-la.
Assim como haviam destruido sua mãe.
4
A notícia dos crimes e da condenação de Tracy Whitney apareceu
na primeira página do New Orleans Courier, acompanhada por uma
fotografia sua, tirada pela polícia. Os principais serviços
noticiosos transmitiram a história para jornais de todo o
país. Quando foi retirada do tribunal, a fim de aguardar a
transferência para a penitenciária estadual, Tracy foi
confrontada por uma turma de repórteres de televisão. Escondeu
o rosto em humilhação, mas não havia como escapar das câmaras.
Joe Romano era uma notícia importante, e um atentado contra a
sua vida por uma linda assaltante era notícia ainda mais
sensacional. Tracy tinha a sensação de que se encontrava
cercada por inimigos. Charles me tirará daqui, ela insistia em
dizer a si mesma. Oh, por favor, Deus, permita que Charles me
tire daqui. Nosso filho não pode nascer na prisão.
Foi somente na tarde seguinte que o sargento de plantão
permitiu que Tracy usasse o telefone. Harriet atendeu:
- Escritório do Sr. Stanhope.
- Harriet, aqui é Tracy Whitney. Eu gostaria de falar com o
Sr. Stanhope.
- Um momento, por favor, Senhorita Whitney. - Ela percebeu a
hesitação na voz da secretária. Eu... vou verificar se o Sr.
Stanhope está.
Depois de uma espera prolongada e angustiante, Tracy ouvia
finalmente a voz de Charles. Quase chorou de alívio.
- Charles...
- Tracy? É você, Tracy?
- Sou eu mesma, querido. Oh, Charles, eu tentei falar com
você...
- Eu estava enlouquecendo, Tracy. Os jornais daqui estão
repletos de histórias terríveis a seu respeito. Não posso
acreditar no que eles dizem.
- Nada é verdade, querido. Absolutamente nada. Eu...
- Onde você está agora?
- Estou... estou numa cadeia em Nova Orleans. Eles vão me
mandar para a prisão por algo que não fiz, Charles.
Para horror de Charles, Tracy começou a chorar.
- Fique calma. E preste atenção. Os jornais dizem que você
atirou num homem. Isso não é verdade, não é mesmo?
- Atirei nele, mas...
- Então é verdade!
- Não é como parece, querido. A história foi totalmente
diferente. Posso explicar tudo. Eu...
- Tracy, você se declarou culpada de tentativa de homicídio e
de roubar um quadro?
- É verdade, Charles. Mas só fiz isso porque...
- Se precisava de dinheiro tão desesperadamente deveria ter
falado comigo ... E tentar matar alguém... Não posso acreditar
nisso. Nem meus pais. Você é a manchete do Daily News de
Filadélfia desta manhã. É a primeira vez em que um sopro de
escândalo atinge a família Stanhope.
Foi o amargo autocontrole na voz de Charles que fez Tracy
compreender os sentimentos profundos dele. Ela contara
desesperadamente com Charles e agora descobria que seu noivo
estava do lado deles. Fez um esforço para não gritar.
- Preciso de você, querido. Por favor, venha até aqui. Pode
endireitar tudo.
Houve um silêncio prolongado.
- Parece que não há muita coisa para endireitar. Não se você
confessou ter feito todas essas coisas. A família não pode se
envolver em algo assim. E tenho certeza de que pode
compreender isso. Foi um choque terrível para nós. Obviamente,
eu nunca a conheci de verdade.
Cada palavra era um tremendo golpe. O mundo desmoronava sobre
Tracy. Ela sentia-se mais sozinha do que em qualquer outra
ocasião anterior de sua vida. Não havia agora ninguém a quem
pudesse recorrer, absolutamente ninguém.
- E... e o bebé?
- Terá de fazer o que julgar melhor com seu filho - disse
Charles. - Lamento muito, Tracy.
E a ligação foi cortada. Tracy ficou imóvel, segurando o
telfone mudo. Outro preso, por trás dela, disse:
- Se já acabou com o telefone, meu bem, eu gostaria de chamar
meu advogado.
Quando Tracy voltou à cola, a guarda tinha instruções a lhe
transmitir:
Esteja pronta para partir amanhã de manhã. Virão buscá-la às
seis horas .
Ela recebeu um visitante. Otto Schmidt parecia ter envelhecido
muitos anos durante as poucas horas transcorridas desde que
Tracy o vira pela última vez. Ele dava a impressão de estar
doente.
- Só vim lhe dizer o quanto minha mulher e eu lamentamos tudo
isso. Sabemos que não foi culpa sua o que aconteceu.
Se ao menos Charles tivesse dito isso...
- Minha mulher e eu estaremos no enterro da Sra. Doris
amanhã,
- Obrigada, Otto,
Eles enterrarão nós duas amanhã, pensou Tracy.
Ela passou a noite acordada, deitada em seu estreito catre na
prisão, olhando fixamente para o teto. Reconstituiu
mentalmente, por muitas vezes, a conversa com Charles. Ele
nunca lhe dera a oportunidade de explicar.
Ela tinha de pensar no filho. Lera sobre mulheres que tinham
filhos na prisão, mas as histórias eram tão distantes de sua
própria vida que era como se estivesse tomando conhecimento de
relatos sobre pessoas de outro planeta. Agora, porém, estava
acontecendo com ela. Terá de fazer o que julgar melhor para
seu filho, dissera Charles. Ela queria ter o filho. Mas eles
não me deixarão mantê-lo, pensou Tracy. Vão tirá-lo de mim
porque passarei os próximos 15 anos na prisão. É melhor que
ele nunca saiba quem é a mãe.
E Tracy chorou.
às seis horas da manhã, um guarda entrou na cela de Tracy,
acompanhado pela matrona que, cuidava da prisão.
- Tracy Whitney?
- Sou eu.
Ela ficou surpresa ao perceber como sua voz soava estranha -
Por ordem do Tribunal de Justiça Criminal do Estado da
Louisiana, Condado de Orleans, você será transferida
imediatamente para a Penitenciária Meridional da Louisiana
Para Mulheres. Vamos embora, garota.
Ela foi conduzida por um corredor comprido, passando por celas
cheias de reclusos. Houve uma porção de assobios.
- Tenha uma boa viagem, querida...
- Diga-me onde aquele quadro está escondido, Tracy querida, e
repartirei o dinheiro com você...
- Se está indo para a casa grande, procure a Ernestine
Littlechap. Ela cuidará direitinho de você...
Tracy passou pelo telefone do qual ligara para Charles.
Adeus, Charles.
Ela estava do lado de fora, num pátio. Um ónibus da prisão,
amarelo, as janelas gradeadas, esperava ali, o motor ligado.
Meia dúzia de mulheres já se encontravam sentadas no ónibus,
vigiadas por dois guardas armados. Tracy olhou para os rostos
de suas companheiras de viagem. Uma delas mantinha uma atitude
de desafio, outra se mostrava entediada, as demais exibiam
expressões de desespero. As vidas que levaram até então
estavam prestes a terminar. Eram párias, sendo conduzidos a
jaulas em que seriam trancafiadas como animais. Tracy se
perguntou que crimes teriam cometido e se alguma era tão
inocente quanto ela... e também se perguntou o que as outras
viam em seu rosto.
A viagem no ónibus da prisão foi interminável, o ónibus
quente e malcheiroso. Mas Tracy nem percebeu. Retraíra-se para
dentro de si mesma, não estava mais consciente dos campos
verdes viçosos pelos quais o ónibus passava. Encontrava-se em
outro tempo, em outro lugar.
Era uma garotinha na praia, com a mãe e o pai. O pai levava-a
para o mar nos ombros e disse quando ela gritou: Não seja como
um bebé, Tracy. E ele largou-a na água fria. Quando a água se
fechou por cima de sua cabeça, ela entrou em pânico e começou
a sufocar. O pai levantou-a e depois tornou a mergulhá-la.
Desse momento em diante ela tivera pavor da água...
O auditório universitário se apresentava lotado de
estudantes, seus pais e parentes. Ela era a oradora da turma.
Falou por 15 minutos e seu discurso estava impregnado de um
idealismo elevado, com referências engenhosas ao passado e
sonhos fulgurantes para o futuro. O reitor a presenteara com
uma chave de Phi Beta Kappa. Quero que você fique com isto,
Tracy dissera à mãe . E o orgulho no rosto da mãe fora
maravilhoso...
Vou para Filadélfia, mamãe. Tenho um emprego num banco lá.
Annie Mahier, sua melhor amiga, estava telefonando. Você vai
adorar Filadélfia, Tracy. Tem todas as coisas culturais. Além
disso, é também uma linda cidade e tem escassez de mulheres.
Ou seja, os homens daqui são realmente famintos! E posso lhe
arrumar um emprego no banco em que trabalho...
Charles estava lhe fazendo amor. Ela observou as sombras em
movimento no teto e pensou: Quantas mulheres gostariam de
estar no meu lugar? Charles era um grande prémio. E no mesmo
instante ela sentiu-se envergonhada do pensamento. Amava
Charles. Podia senti-lo dentro de si, arremetendo com mais
força, cada vez mais depressa, prestes a explodir. E ele
balbuciou: Você está pronta? E ela mentiu, dizendo que sim.
Foi maravilhoso para você? Foi, sim, Charles. E ela pensou:
Isso é tudo o que existe? E novamente o sentimento de culpa...
- Você! estou falando com você. Por acaso é surda? Vamos logo.
Tracy levantou os olhos e se descobriu no ónibus amarelo da
prisão. Parara num pátio cercado por uma pilha sombria de
alvenaria. Uma sucessão de nove cercas, encimadas com arame
farpado, cercava os 500 acres de pastagens e bosques que
constituiam a Penitenciária Meridional da Louisiana Para
Mulheres.
- Saia - ordenou o guarda. - Estamos aqui.
Aqui era o inferno.
5
Uma mulher corpulenta, de rosto impassível, cabelos pintados
de castanho, falava para as recém-chegadas:
- Algumas de vocês passarão uma longa temporada aqui. Só há
uma maneira de aguentarem e é a de esquecerem tudo sobre o
mundo exterior. Podem fazer com que seu tempo aqui seja fácil
ou difícil. Temos regulamentos aqui e vocês obedecerão a esses
regulamentos. Nós lhes diremos quando se levantarem, quando
trabalharem, quando irem ao banheiro. Violem qualquer um dos
regulamentos e desejarão estar mortas. Gostamos de manter as
coisas pacíficas por aqui e sabemos como lidar com as
encrenqueiras.
A mulher fez uma pausa, os olhos se fixando em Tracy.
- Serão levadas agora para os exames físicos. Depois, passarão
pelos chuveiros e irão para suas celas. Pela manhã, receberão
as suas tarefas. Isso é tudo.
Ela começou a se virar. Uma jovem pálida, ao lado de Tracy,
disse:
- Com licença, por favor, mas eu...
A mulher tornou a se virar, bruscamente, o rosto dominado
pela fúria.
- Cale a porra de sua boca. Só pode falar quando lhe
dirigirem a palavra. Entendido? Isso se aplica a todas vocês.
O tom, assim como as palavras, fora um choque para Tracy. A
mulher fez um sinal para as duas guardas armadas no fundo da
sala.
- Tirem essas sacanas impestáveis daqui.
Tracy descobriu-se sendo retirada da sala junto com as
outras, levada por um corredor comprido. As prisioneiras
entraram numa sala grande, de ladrilhos brancos, onde um homem
gordo, de meia-idade, numa bata suja, estava parado ao lado de
uma mesa de exame. Uma das guardas ordenou:
- Entrem em fila.
As mulheres formaram uma fila comprida. O homem anunciou:
- Sou o Dr. Glasco. Tirem as roupas.
As mulheres se entreolharam, indecisas. Uma delas disse:
- Até onde precisamos...
- Não sabem o que significa tirem as roupas? Dispam-se...
tirem todas as roupas!
Lentamente, as mulheres começaram a se despir. Algumas se
mostraram inibidas, algumas indignadas, algumas indiferentes.
à esquerda de Tracy estava uma mulher quase chegando aos 50
anos, tremendo violentamente; à sua direita, havia uma garota
pateticamente magra, que parecia não ter mais do que 17 anos.
Sua pele se achava coberta de espinhas. O médico gesticulou
para a primeira mulher na fila.
- Deite na mesa e ponha os pés nos estribos.
A mulher hesitou.
- Vamos logo. Está atrasando a fila.
Ela obedeceu. O médico inseriu um espéculo em sua vagina.
Enquanto sondava, ele perguntou:
- Tem alguma doença venérea?
- Não.
- Pois descobriremos em breve.
A mulher seguinte subiu na mesa. Quando o médico fez menção de
inserir-lhe o espéculo, Tracy gritou:
- Espere um pouco!
O médico parou, levantando os olhos, surpreso.
- Como?
Todos olhavam fixamente para Tracy. Ela disse:
- Eu... o senhor não esterilizou o instrumento.
O Dr. Glasco presenteou Tracy com um sorriso lento e frio.
- Ora, ora, temos uma ginecologista na casa! Está preocupada
com os germes, hem? Pois passe para o fim da fila.
- Como?
- Não entende inglês? Vá para o fim da fila.
Sem compreender o motivo, Tracy deslocou-se para o último
lugar na fila.
- E agora, se não se importam - disse o médico - vamos
continuar.
Ele inseriu o espéculo na mulher que se encontrava na mesa e
Tracy compreendeu subitamente o motivo pelo qual se tornara a
última. Ele examinaria a todas com o mesmo espéculo
não-esterilizado e ela seria a última em quem o usaria. Tracy
sentiu a raiva fervendo dentro de si. O médico poderia
examiná-las em separado, em vez de privá-las deliberadamente
de sua dignidade. estavam deixando que ele escapasse impune
com uma coisa assim. Se todas protestassem... Chegou a sua
vez.
- Na mesa, Madame Doutora.
Tracy ainda hesitou, mas não tinha opção. Subiu na mesa e
fechou os olhos. Pôde senti-lo a abrir suas pernas, depois o
espéculo frio a penetrá-la, sondando, pressionando,
machucando. Deliberadamente machucando. Ela rangeu os dentes.
- Tem sifilis ou gonorreia? - indagou o médico.
- Não.
Ela não lhe falaria do filho. Não àquele monstro. Falaria a
esse respeito com a directora. Sentiu o espéculo sendo
retirado bruscamente. O Dr. Glasco pôs um par de luvas de
borracha.
- Muito bem - disse ele. - Entrem em fila e inclinem-se.
Vamos examinar as suas lindas bundinhas.
Antes que Tracy pudesse se conter, as palavras saíram:
- Por que está fazendo isso?
O Dr. Glasco lançou-lhe um olhar irado.
- Vou explicar porquê, Doutora. Porque os rabos são grandes
esconderijos. Tenho uma colecção grande de marijuana e cocaína
que tirei de mulheres como você. E agora trate de se inclinar.
Enquanto ele percorria a fila, enfiando os dedos num ânus
depois de outro, Tracy sentiu-se enjoada. Podia sentir a bilis
quente subir pela garganta e começou a ter ânsias de vómitos.
- Vomite aqui e esfregarei a sua cara na sujeira. - O médico
virou-se para as guardas. - Podem levá-las para os chuveiros.
Elas fedem.
Carregando as roupas, as presas nuas foram conduzidas por
outro corredor, até uma sala grande de concreto, com uma dúzia
de boxes de chuveiro abertos.
- Deixem as roupas no canto - ordenou uma das guardas. - E
entrem nos chuveiros. Usem o sabão desinfectante. Lavem todas
as partes do corpo, da cabeça aos pés. E ensaboem bem os
cabelos.
Tracy passou do chão de cimento áspero para o chuveiro. O
jacto de água era frio. Ela esfregou-se com toda a força,
pensando: Nunca mais voltarei a ser limpa. Que espécie de
pessoas são estas? Como podem tratar outros seres humanos
assim? Não posso suportar 15 anos disso. Uma guarda
gritou-lhe:
- Ei, você! O tempo já acabou. Saia logo.
Tracy saiu do chuveiro e outra presa tomou o seu lugar. Tracy
recebeu uma toalha fina e usada, enxugou mais ou menos o
corpo.
Depois que a última reclusa deixou o chuveiro, elas foram
levadas a uma sala de suprimentos grande, onde havia
prateleiras com roupas, aos cuidados de uma reclusa latina,
que calculou o tamanho de cada uma e distribuiu os uniformes
cinzas. Tracy e as outras receberam dois uniformes, duas
calcinhas, dois soutiens, dois pares de sapatos, duas
camisolas, um cinto sanitário, uma escova de cabelos e um saco
para a roupa suja. As guardas ficaram observando enquanto as
prisioneiras se vestiam. Depois que terminaram, elas foram
levadas a uma sala em que uma presa de confiança operava uma
câmara fotográfica grande, montada num tripé.
- Fiquem paradas ali naquela parede.
Tracy foi para a parede.
- Cara de frente.
Ela olhou para a câmara. Clique.
- Vire a cabeça para a direita.
- Ela obedeceu. Clique.
- Para a esquerda. - Clique. - Vá para a mesa.
A mesa continha o equipamento para tirar impressões digitais.
Os dedos de Tracy foram rolados por uma almofada com tinta,
depois comprimidos contra um cartão branco.
- Mão esquerda. Mão direita. Limpe as mãos com aquele pano.
Você está acabada.
Ela tem razão, pensou Tracy atordoada. Estou acabada. Sou um
número. Sem nome, sem rosto. Uma guarda apontou para Tracy.
- Whitney? O director quer falar com você. Acompanhe-me.
O coração de Tracy disparou, animado. Charles fizera alguma
coisa, no final das contas! E claro que ele não a abandonara,
assim como ela também nunca poderia abandoná-lo. Fora o súbito
choque que o levara a se comportar daquela maneira estranha.
Ele já tivera tempo de pensar em tudo e compreender que a
amava. Falara com o director e explicara o erro terrível que
fora cometido. Ela seria libertada.
Tracy foi levada por um corredor diferente, passando por duas
portas de barras grossas, vigiadas por guardas dos dois sexos.
Ao ser admitida pela segunda porta, ela foi quase derrubada
por uma presa. Era uma gigante, a maior mulher que Tracy já
vira... chegando a 1,90 metros de altura, pesando em torno de
130 quilos. Tinha um rosto achatado, bexiguento, os olhos de
um amarelo-claro. Ela agarrou o braço de Tracy para firmá-la,
comprimiu seu próprio braço contra os seios de Tracy.
- Ei! - disse a mulher à guarda - Temos franga nova. Por que
não põe esta comigo?
Ela tinha um forte sotaque sueco.
- Sinto muito, Bertha, mas esta já foi designada.
A amazona afagou o rosto de Tracy, que se afastou
bruscamente. A gigante soltou uma risada.
- Está tudo bem, Littbam. Big Bertha a verá depois. Temos
bastante tempo. Você não vai sair daqui tão cedo.
Chegaram ao gabinete do director. Tracy estava trémula de
expectativa. Charles estaria ali? Ou teria enviado seu
advogado? A secretária do director acenou com a cabeça para a
guarda.
- Ele está esperando você. Fique aqui.
O director George Brannigan estava sentado a uma escrivaninha
escalavrada, estudando alguns documentos à sua frente. Era um
homem de quarenta e poucos anos, magro, de aparência ansiosa
com um rosto sensível, olhos fundos, castanhos-claros.
Brannigan se achava no comando da Penitenciária Meridional da
Louisiana Para Mulheres há cinco anos. Ali chegara com o
preparo de um penologista moderno e o empenho de um idealista,
determinado a efectuar profundas reformas na prisão. Mas o
sistema vigente o derrotara, como já o fizera com muitos
outros antes.
A prisão fora originalmente construida para alojar duas
prisioneiras em cada cela, mas agora havia quatro ou até mesmo
seis. Ele sabia que a mesma situação se encontrava por toda a
parte. As prisões do país sofriam de excesso de lotação e uma
deficiência de funcionários. Milhares de criminosos eram
sentenciados dia e noite, nada tinham para fazer, além de
acalentar seu ódio e tramar sua vingança. Era um sistema
estúpido e brutal, mas era tudo o que existia. Ele chamou a
secretária.
- Muito bem, pode mandá-la entrar
A guarda abriu a porta para sua sala e Tracy entrou. O
director Brannigan levantou os olhos para a mulher parada à
sua frente. Vestida no tosco uniforme da prisão, rosto marcado
pela fadiga, Tracy Whitney ainda parecia bonita. Tinha um
rosto adorável e franco, e Brannigan se perguntou por quanto
tempo mais permaneceria assim. Ficou particularmente
interessado naquela prisioneira porque lera a respeito de seu
caso nos jornais e estudara a sua ficha. Ela era primária, não
matara ninguém e 15 anos era uma sentença excessivamente
rigorosa. O fato de Joseph Romano ser o acusador fazia com que
a sua condenação se tornasse ainda mais suspeita. Mas o
director era simplesmente o guardião dos corpos. Não podia
investir contra o sistema. Ele era o sistema.
- Sente-se, por favor.
Tracy ficou contente pela oportunidade de se sentar. Sentia
os joelhos fracos. Ele ia falar-lhe agora sobre Charles,
informá-la que seria libertada em breve.
- Estive verificando a sua ficha - começou o director.
Charles teria lhe pedido para fazer isso.
- Vejo que passará uma longa temporada connosco. Sua sentença
é de 15 anos.
Tracy levou um momento para absorver as palavras. Alguma
coisa estava terrívelmente errada.
- Não... fa-falou com... Char-Charles?
Em seu nervosismo, ela estava gaguejando. O director fitou-a
com uma expressão impassível.
- Charles?
E Tracy compreendeu tudo. Teve a sensação de que o estômago
se dissolvia em água.
- Por favor... tem de me escutar, por favor. Sou inocente. Não
pertenço a este lugar.
Quantas vezes ele já ouvira isso? Cem? Mil? Sou inocente. O
director disse:
- O tribunal considerou-a culpada. O melhor conselho que posso
dar é o de tentar fazer com que tudo lhe seja mais fácil aqui.
A partir do momento em que aceitar os termos de sua prisão,
tudo se tornará mais fácil. Não há relógios na prisão, apenas
calendários.
Não posso ficar trancafiada aqui por 15 anos, pensou Tracy,
desesperada. Quero morrer. Por favor, Deus, deixe-me morrer.
Mas não posso morrer, não é mesmo? Eu mataria meu filho. É seu
filho também, Charles. Por que não está aqui me ajudando? Foi
nesse momento que ela começou a odiá-lo.
- Se tiver problemas especiais - disse Brannigan - se eu puder
ajudá-la de alguma forma, quero que venha me procurar.
Mesmo enquanto falava, ele sabia como suas palavras eram
inúteis. Ela era jovem, bonita e viçosa. As homossexuais da
prisão cairiam em cima dela como animais. Nem mesmo havia uma
cela segura para a qual pudesse encaminhá-la. Quase todas as
celas eram controladas por uma homossexual. O director
Brannigan ouvira rumores de estupros nos chuveiros, nos
toaletes e nos corredores à noite. Mas eram apenas rumores,
porque as vitimas sempre se mantinham em silêncio depois. Ou
morriam. Brannigan acrescentou, gentilmente:
- Com bom comportamento, você pode ser libertada em doze ou...
- Não!
Era um brado de, profundo desespero. Tracy sentia as paredes
da sala se comprimindo sobre ela. Estava de pé, gritando. A
guarda entrou correndo e agarrou-lhe os braços.
- Calma, calma... - murmurou o director Brannigan.
Ele ficou sentado ali. impotente, observando Tracy ser levada
de sua sala.
Ela foi conduzida por uma série de corredores, passando por
celas cheias de detidas de todos os tipos . Havia pretas,
brancas, mulatas e amarelas. Olhavam fixamente para Tracy,
enquanto ela passava, gritando-lhe em uma dúzia de sotaques.
Os gritos não faziam o menor sentido para Tracy.
- Carta forte...
- Carro fino...
- Canto fresco...
- Carne fraca...
Foi somente quando chegou a seu bloco que Tracy compreendeu o
que as mulheres estavam entoando:
Carne fresca.
6
avia 60 mulheres no Bloco C, quatro em cada cela. Rostos
espiavam de trás das barras, enquanto Tracy era conduzida pelo
corredor comprido e malcheiroso. As expressões variavam da
indiferença ao desejo e ao ódio. Tracy tinha a sensação de que
andava por baixo d'água, em alguma terra estranha e
desconhecida, uma forasteira num sonho que se desenrolava
lentamente. A chamada ao gabinete do director fora a sua
última ténue esperança. Agora, nada mais restava. Nada além da
perspectiva atordoante de ficar encarcerada naquele purgatório
pelos próximos 15 anos. A guarda abriu a porta de uma cela.
- Entre!
Tracy piscou, olhou ao redor. Havia três mulheres na cela,
observando-a em silêncio.
- Vamos logo - insistiu a guarda.
Tracy hesitou por mais um instante, depois entrou na cela.
Ouviu a porta bater nas suas costas.
Estava em casa.
Na cela apertada mal cabia os quatro catres, uma mesinha com
um espelho quebrado por cima, quatro armários pequenos, um
vaso sem tampa no canto. As companheiras de cela fitavam-na
fixamente. A mulher porto-riquenha rompeu o silêncio:
- Parece que temos uma nova colega de cela.
Sua voz era profunda e gutural. Seria bonita se não fosse por
uma cicatriz lívida de faca, que se estendia da têmpora à
garganta. Parecia não ter mais que 14 anos, até que se fitava
seus olhos. Uma mexicana atarracada, de meia-idade, disse:
- Que surte verte! Prazer em vê-la. Por que a mandaram para
cá, querida?
Tracy estava paralisada demais para responder.
A terceira mulher era preta. Tinha mais de 1,80 metros de
altura, olhos estreitos e vigilantes, um rosto frio e duro,
mais parecendo uma máscara. A cabeça era rapada e o crânio
tinha um brilho preto-azulado na débil claridade.
- Seu catre é ali no canto.
Tracy aproximou-se do catre. O colchão era imundo, manchado
com os excrementos que só Deus sabia de quantas ocupantes
anteriores. Ela não foi capaz de tocá-lo. E,
involuntariamente, manifestou sua repulsa:
- Eu... eu não posso dormir neste colchão...
A gorda mexicana sorriu.
- Nem precisa, meu bem. Hay tiempo. Pode dormir no meu.
Tracy percebeu subitamente as tendências ocultas na cela,
atingindo-a como uma força física. As três mulheres
observavam-na, atentamente, fazendo-a sentir-se nua. Carne
fresca. Ela sentiu-se subitamente aterrorizada. Estou
enganada, pensou Tracy. Oh, por favor, permita que eu esteja
enganada. Ela recuperou a voz:
- Quem... com quem eu posso falar para conseguir um colchão
limpo?
- Com Deus - grunhiu a preta, - Mas ele não tem aparecido por
aqui ultimamente.
Tracy virou-se para olhar novamente o colchão. Diversas
baratas pretas e grandes rastejavam por cima. Não posso ficar
neste lugar, pensou Tracy. Acabarei louca. Como se lesse os
seus pensamentos, a preta comentou nesse momento:
- Siga com a correnteza, meu bem.
O melhor conselho que posso dar é o de tentar fazer com que
tudo lhe seja mais fácil aqui... A voz do director soava
nitidamente nos ouvidos de Tracy. A preta continuou a falar:
- Sou Ernestine Littlechap. - Ela acenou com a cabeça para a
mulher da cicatriz. - Aquela é Lola. É de Porto Rico. E a
gorda aqui é Paulita, do México. Quem é você?
- Eu... eu sou Tracy Whitney.
Ela quase dissera "Eu era Tracy Whitney" . Tinha a sensação de
pesadelo de estar perdendo a identidade. Um espasmo de náusea
percorreu-lhe o corpo e segurou-se na beira do catre para se
firmar.
- De onde você vem, meu bem? - indagou a gorda.
- Desculpe, mas... mas não estou com vontade de conversar.
Tracy sentia-se subitamente fraca demais para ficar de pé.
Arriou na beira do catre imundo, enxugou as gotas de suor frio
no rosto com a saia. Meu filho, pensou ela. Eu deveria ter
falado com o director que vou ter um filho. Ele me transferirá
para uma cela limpa. Talvez até me deixem ficar numa cela
sozinha.
Ela ouviu passos se aproximando pelo corredor. Uma guarda
passava pela cela. Tracy adiantou-se rapidamente até à porta.
- Com licença, mas preciso falar com o director. Eu estou...
- Mandarei chamá-lo imediatamente - disse a guarda, virando a
cabeça para trás, enquanto continuava a seguir adiante.
- Você não compreende. Eu estou...
Mas a guarda já estava longe.
Tracy comprimiu o punho contra a boca, com toda a força, para
não chorar.
- Está doente ou algo parecido, meu bem? - perguntou a
porto-riquenha.
Tracy sacudiu a cabeça, incapaz de falar. Voltou para o
catre, contemplou-o por um momento, depois se deitou,
lentamente. Era um acto de desesperança, um acto de rendição.
Ela fechou os olhos.
O décimo aniversário fora o mais emocionante de sua vida.
Vamos jantar no Antoine's, anunciou o pai.
Antoine's! Era um nome que evocava outro mundo, um mundo de
beleza, encanto e riqueza. Tracy sabia que o pai não tinha
muito dinheiro: Poderemos sair em férias no próximo ano, era
um refrão constante na casa. E agora eles iam jantar no
Antoine's! A mãe de Tracy vestiu-a com o casaco verde novo.
É maravilhoso olhar para vocês duas, o pai se gabou. Estou
com as duas mais lindas mulheres de Nova Orleans. Todos
ficarão com inveja de mim.
O Antoine's era tudo o que Tracy sonhara que seria e ainda
mais. Muito mais. Era um palácio encantado, elegante e
decorado com bom gosto, a toalha de mesa branca, pratos com
monograma, em prateado e dourado. É um autêntico palácio,
pensou Tracy. Aposto que reis e rainhas vêm aqui. Ela estava
excitada demais para comer, muito absorvida a contemplar todos
os homens e mulheres tão bem vestidos. Quando eu crescer,
Tracy prometeu o mesmo: virei ao Antoine's todas as noites e
trarei papai e mamãe comigo.
Você não está comendo, Tracy, disse a mãe.
E, para agradá-la, Tracy forçou-se a comer um pouco. Havia um
bolo para ela, com dez velas, os garçons cantaram os Parabéns
Pra Você, os outros fregueses se viraram e aplaudiram, Tracy
sentiu-se como uma princesa. Podia ouvir lá fora o barulho de
um bonde passando.
A campainha do bonde era alta e insistente.
- Hora do jantar - anunciou Ernestine Littlechap.
Tracy abriu os olhos. Portas de celas se abriam
estrepitosamente por todo o bloco. Tracy permaneceu deitada no
catre, tentando desesperadamente se apegar ao passado.
- Ei, hora do grude! - gritou a jovem porto-riquenha.
A simples idéia de comida deixava-a enjoada.
- Não estou com fome.
Paulita, a gorda mexicana, falou:
- Es Ilano. É simples. Não querem saber se você está ou não
com fome. Todo mundo tem de ir para o refeitório.
As presas estavam entrando em fila no corredor lá fora.
- É melhor você ir ou cairão em cima - advertiu Ernestine,
Não posso me mexer, pensou Tracy. Ficarei aqui.
As companheiras de cela saíram e entraram na fila dupla. Uma
guarda baixa e atarracada, de cabelos oxigenados, viu Tracy
deitada no catre e gritou:
- Você! Não ouviu a campainha? Saia logo daí!
Tracy respondeu:
- Obrigada, mas não estou com fome. Gostaria que me
dispensasse.
Os olhos da guarda se arregalaram em incredulidade. Ela
entrou furiosa na cela e se aproximou do catre de Tracy.
- Que merda você pensa que é? Está esperando pelo serviço de
quarto? Entre logo na porra da fila. Eu poderia inclui-la no
relatório por causa disso. Se acontecer novamente, você vai se
dar mal. Entendido?
Tracy não entendia. Não era capaz de entender coisa alguma do
que estava lhe acontecendo . Ela deixou o catre quase se
arrastando e foi para a fila. Ficou parada ao lado da preta.
- Por que eu...
- Cale a boca! - Ernestine Littlechap resmungou pelo canto da
boca. - Não fale na fila.
As mulheres foram levadas por um corredor estreito e sem
qualquer ventilação, passando por duas portas gradeadas e
entrando num enorme refeitório, cheio de mesas grandes de
madeira e muitas cadeiras. Havia um balcão de serviço
comprido, com compartimentos fumegantes, pelo qual as presas
passavam para pegar a comida. O cardápio do dia consistia de
um ensopado de atum aguado, vagens murchas, um creme pálido e
a opção entre um café fraco ou um suco de fruta artificial.
Conchas da comida de aspecto repulsivo eram despejadas nos
pratos de metal das presas, enquanto elas avançavam pela fila.
As reclusas que serviam por trás do balcão gritavam
incessantemente:
- Todas andando na fila... A próxima... Mantenham a fila em
movimento... A próxima...
Depois que foi servida, Tracy ficou parada por um momento,
indecisa, sem saber para onde ir. Ela olhou ao redor, à
procura de Ernestine Littlechap, mas a preta desaparecera.
Tracy encaminhou-se para o lugar em que estava sentada
Paulita, a gorda mexicana. Havia 20 mulheres à mesa, devorando
vorazmente a comida. Tracy olhou o que havia em seu prato,
depois empurrou-o para o lado, enquanto a bílis subia e
aflorava em sua garganta. Paulita se inclinou e pegou o prato
de Tracy.
- Se não vai comer, então eu fico com isto.
Lola disse:
- Ei, é melhor você comer ou não durará muito aqui.
Eu não quero durar, pensou Tracy, desesperada. Quero morrer.
Como essas mulheres suportam viver assim? Há quanto tempo
estarão aqui? Meses? Anos? Ela pensou na cela fétida, no
colchão imundo, sentiu vontade de gritar. Comprimiu as
mandíbulas com tanta força que nenhum som podia escapar. A
mexicana estava dizendo:
- Se a pegarem sem comer, vão mandá-la para a geladeira. -
Ela viu a expressão de perplexidade no rosto de Tracy e
explicou: -
O buraco ... a solitária. Você não gostaria.
Lola fez uma pausa, inclinando-se para a frente, antes de
acrescentar:
- É a sua primeira vez aqui, hem? Pois vou lhe dar um aviso,
querida. Ernestine Littlechap, manda neste lugar. Seja
boazinha com ela e estará feita.
Trinta minutos depois que as mulheres entraram no refeitório,
soou uma campainha alta e todas se levantaram. Paulita
arrebatou uma vagem solitária de um prato a seu lado. Tracy
juntou-se a ela na fila dupla e as mulheres começaram a
marchar de volta às celas. O jantar terminara. Eram quatro
horas da tarde... cinco longas horas suportar antes que as
luzes se apagassem.
Quando Tracy voltou à cela, Ernestine Littlechap já estava
lá. Tracy se perguntou, sem qualquer curiosidade, onde ela
estivera durante o jantar. Ela olhou para o vaso no canto.
Precisava desesperadamente usá-lo, mas não podia fazê-lo na
frente das outras. Esperaria até que as luzes se apagassem.
Sentou na beira do catre.
Ernestine Littlechap disse:
- Soube que você não comeu nada do seu jantar. Isso é uma
estupidez.
Como ela poderia ter descoberto? E por que se Importaria?
- Como posso falar com o director?
- Apresente um pedido por escrito. As guardas usam para
limpar a bunda. Acham que qualquer mulher que quer falar com o
director é uma encrenqueira. - Ernestine aproximou-se de
Tracy. - Há uma porção de coisas que podem criar problemas
para você aqui. O que precisa é de uma amiga que possa manter
você fora de encrencas.
Ela sorriu, mostrando um dente, da frente de ouro, antes de
acrescentar, suavemente:
- Alguém que conheça os caminhos do jardim zoológico.
Tracy levantou os olhos para o rosto sorridente da preta.
Parecia estar flutuando em algum lugar perto do teto.
Era a coisa mais alta que ela já vira.
Isto é uma girafa, disse o pai.
Estavam no jardim zoológico, no Audubon Park. Tracy adorava o
parque. Sempre iam lá aos domingos, a fim de escutar os
concertos da banda. Depois, a mãe e o pai levavam-na ao
aquário ou ao zoológico, Circulavam devagar, contemplando os
animais em suas jaulas.
Eles não detestam ficar trancados, papai?
O pai riu. Não, Tracy. Eles têm uma vida maravilhosa. São bem
cuidados e alimentados, seus inimigos não podem pegá-los.
Os bichos pareciam infelizes a Tracy. Ela sentiu vontade de
abrir as jaulas e deixá-los escapar. Jamais vou querer ficar
trancafiada assim, pensou.
A campainha de aviso soou por toda a prisão às 8 e 45 da
noite. As companheiras de cela de Tracy começaram a se despir.
Tracy não se mexeu. Lola disse:
- Você tem quinze minutos para se aprontar para dormir.
As mulheres puseram as camisolas. A guarda loura oxigenada
passou pela cela. Parou ao ver Tracy estendida no catre.
- Dispa-se. - Ela olhou para Ernestine e perguntou: - Não
disse a ela?
- Claro. Já falamos com ela.
A guarda tornou a se virar para Tracy, advertindo:
- Temos um jeito todo especial de lidar com as encrenqueiras.
Faça o que lhe for mandado ou vai se dar mal.
A guarda afastou-se pelo corredor. Paulita avisou.
- É melhor fazer o que ela diz, meu bem. A velha Calcinha de
Ferro é uma sacana muito escruta.
Lentamente, Tracy levantou-se e começou a tirar as roupas,
mantendo-se de costas para as outras. Tirou todas as roupas à
excepção das calcinhas e vestiu a camisola áspera pela cabeça.
Sentia os olhos das outras a observarem-na.
- Você tem um corpo muito bonito - comentou Paulita.
- Isso mesmo, muito bonito - murmurou Lola.
Tracy sentiu um calafrio percorrer-lhe. Ernestine
aproximou-se.
- Somos suas amigas. Cuidaremos direitinho de você.
Sua voz estava rouca de excitamento. Tracy virou-se
bruscamente.
- Deixem-me em paz! Todas vocês. Eu... eu não sou desse tipo.
A preta soltou uma risada.
- Você será qualquer coisa que a gente quiser, meu bem.
- Hay tiempo. Há bastante tempo.
As luzes se apagaram.
A escuridão era inimiga de Tracy. Ela sentou na beira do
catre, o corpo tenso. Podia sentir as outras esperando para
agarrá-la. Ou era sua imaginação? Estava tão nervosa que tudo
lhe parecia uma ameaça: Elas haviam-na ameaçado? Não
realmente. Provavelmente tentavam apenas ser amistosas e ela
interpretara implicações sinistras em tudo o que diziam.
Ouvira falar de actividade homossexual nas prisões, mas isso
tinha de ser a excepção e não a regra. Uma prisão não
permitiria esse tipo de comportamento.
Mesmo assim, persistia uma dúvida inquietante. Ela decidiu
que passaria a noite inteira acordada. Se uma delas fizesse
qualquer movimento, ela gritaria por socorro. Era
responsabilidade das guardas providenciar para que nada
acontecesse às reclusas. Tracy
garantiu a si mesma que não havia motivo para se preocupar.
Precisaria apenas se manter alerta.
Tracy continuou sentada na beira do catre, no escuro, atenta
a cada som. Uma a uma, ouviu as três mulheres irem ao vaso,
usá-lo, voltar a seus catres. Quando não conseguia mais
aguentar, Tracy também foi ao vaso. Tentou a descarga, mas não
funcionava. O fedor era quase insuportável. Ela voltou
apressadamente ao catre e tornou a sentar-se na beira. Estará
clareando em breve, pensou ela. E pela manhã pedirei para
falar com o director. Contarei a ele que espero um filho. Ele
me transferirá para outra cela.
O corpo de Tracy estava tenso, cheio de cãibras. Estendeu-se
no catre e segundos depois sentiu uma coisa rastejar por seu
pescoço. Sufocou um grito. Tenho de ficar acordada até de
manhã. Depressa será manhã, pensou Tracy. Um minuto de cada
vez.
Ás três horas da madrugada ela não pôde mais manter os olhos
abertos. E mergulhou no sono.
Foi despertada com uma mão a lhe tapar a boca e outras duas
lhe apertando os seios. Tentou sentar e gritar, sentiu que lhe
arrancavam a camisola e a calcinha. Mãos se insinuaram entre
suas coxas abrindo-lhe as pernas. Tracy lutou selvagemente,
fazendo o maior esforço para se levantar.
- Fique calma e não sairá machucada -sussurrou uma voz na
escuridão.
Tracy golpeou com os pés na direcção da voz. Acertou em carne
sólida.
- Carajo! - balbuciou a voz. - Vamos dar uma lição na sacana.
Ponham ela no chão.
Um punho duro acertou o rosto de Tracy, outro atingiu-a na
barriga. Alguém estava por cima dela, imobilizando-a,
sufocando-a, enquanto mãos obscenas a violavam.
Tracy desenvencilhou-se por um instante, mas uma das mulheres
tornou a agarrá-la, bateu com a sua cabeça contra as grades.
Ela sentiu o sangue esguichar de seu nariz. Foi derrubada
outra vez no chão de concreto, imobilizaram suas mãos e
pernas. Tracy lutou como uma louca, mas não era uma adversária
para as três. Sentiu mãos frias e línguas quentes acariciando
seu corpo. Suas pernas estavam abertas e um objecto duro e
frio foi empurrado para dentro dela. Debateu-se impotente,
tentando com desespero gritar. Um braço passou diante de sua
boca e Tracy cravou-lhe os dentes, mordendo com toda a sua
força. Houve um grito abafado:
- Sua puta!
Punhos lhe socaram o rosto... Ela mergulhou no pavor, cada
vez mais fundo, até que finalmente não sentia mais nada.
Foi o clangor metálico da campainha que a despertou. Estava
deitada no chão frio de cimento da cela, nua. As três
companheiras de cela se achavam em seus catres. No corredor,
Calcinha de Ferro gritava:
- Hora de levantar!
Ao passar pela cela, a guarda viu Tracy estendida no chão, no
meio de uma pequena poça de sangue, o rosto todo machucado, um
olho fechado, de tão inchado.
- Que diabo está acontecendo por aqui?
Ela destrancou a porta e entrou na cela. Ernestine Littlechap
sugeriu:
- Ela deve ter caído de seu catre.
A guarda aproximou-se de Tracy e cutucou-a com o pé.
- Levante-se!
Tracy ouviu a voz de uma longa distância. Isso mesmo, pensou
ela, tenho de me levantar. Tenho de sair daqui. Mas ela foi
incapaz de se mexer. O corpo vibrava de dor.
A guarda agarrou os cotovelos de Tracy e puxou-a para uma
posição sentada. Tracy quase desmaiou da agonia.
- O que aconteceu?
Através de um olho, Tracy divisou os contornos meio
indefinidos de suas companheiras de cela, esperando
silenciosamente por sua resposta.
- Eu... eu... - Tracy tentou falar, mas as palavras não
saíam. Ela tentou de novo e algum instinto atávico,
profundamente arraigado, levou-a a balbuciar: - Caí do meu
catre...
A guarda disse rispidamente:
- Detesto as espertinhas. Vamos metê-la na geladeira até você
aprender algum respeito.
Era uma forma de esquecimento, um retorno ao útero. Ela estava
sozinha no escuro. Não havia móveis na sala de porão apertada,
apenas um colchão fino e velho, sobre o chão frio de cimento.
Um buraco fétido no chão servia como vaso. Tracy ficou deitada
no escuro, cantarolando para si mesma cantigas folclóricas que
o pai lhe ensinara há muitos e muitos anos. Não tinha noção de
quão perto se encontrava da beira da insanidade.
Não sabia direito onde se achava, mas isso não tinha
importância. Somente o sofrimento de seu corpo viciado
importava. Devo ter caído e me machucado, mas mamãe cuidará
disso. Ela gritou em voz trémula.
- Mamãe...
Como não houvesse resposta, tornou a resvalar para o sono.
Dormiu por 48 horas e a agonia finalmente desvaneceu para a
dor, a dor foi diminuindo. Tracy abriu os olhos. Estava
cercada pelo nada. Era tão escuro que não podia sequer divisar
os contornos da cela. Recordações afloraram. Haviam-na levado
ao médico. Podia ouvir a voz dele:
- ... uma costela quebrada e um pulso fracturado. Faremos uma
atadura... Os cortes e equimoses estão bem ruins, mas vão
sarar. Ela perdeu o filho...
Tracy balbuciou:
- Oh, meu filho... assassinaram meu filho...
E ela chorou. Chorou pela perda do filho. Chorou por si
mesma. Chorou por todo o mundo doente.
Tracy continuou deitada no colchão fino, na escuridão fria.
Foi dominada por um ódio tão intenso que literalmente
sacudiu-lhe o corpo. Os pensamentos ardiam e flamejavam, até
que a mente se esvaziou de toda a emoção, a não ser uma única:
vingança. Não era uma vingança dirigida contra as suas
companheiras de cela. As três eram tão vitimas quanto ela.
Nada disso. Ela queria vingança contra os homens que haviam
destruído a sua vida.
Joe Romano: "Sua velha me enganou. Não disse que tinha uma
filha tão gostosa."
Anthony Orsatti: "Joe Romano trabalha para um homem chamado
Anthony Orsatti, Orsatti manda em Nova Orleans."
Perry Pope: "Declarando-se culpada, você poupa ao Estado a
despesa de um julgamento..."
Juiz Henry Lawrence: "Pelos próximos quinze anos você estará
encarcerada na Penitenciária Meridional da Louisiana Para
Mulheres."
Esses eram os seus inimigos. E havia ainda Charles, que não a
escutara: "Se precisava de dinheiro tão desesperadamente
deveria ter falado comigo... Obviamente, eu nunca a conheci de
verdade... Terá de fazer o que julgar melhor com seu filho..."
Ela faria com que todos pagassem. Até o último. Não tinha
idéia como. Mas sabia que o faria. Amanhã, pensou ela. Se
houver amanhã.
7
O tempo perdeu todo o significado. Nunca havia luz na cela e
assim não havia qualquer diferença entre dia e noite. Ela não
tinha a menor idéia do tempo a que estava no confinamento
solitário. De vez em quando lhe empurravam refeições frias por
uma abertura na base da porta. Tracy não sentia apetite, mas
forçava-se a comer cada porção. Tem de comer ou não vai durar
muito aqui. Ela compreendia isso agora; sabia que precisaria
de todas as suas energias para o que planejava fazer.
Encontrava-se numa situação que qualquer outra pessoa
consideraria desesperadora: condenada a 15 anos de prisão, sem
dinheiro, sem amigos, sem recursos de qualquer tipo. Mas havia
uma fonte profunda de força dentro dela. Eu sobreviverei,
pensou Tracy. Enfrento meus inimigos nua e minha coragem é meu
escudo. Sobreviveria como seus ancestrais haviam sobrevivido.
Nela se misturava o sangue do inglês, irlandês e escocês,
herdara o melhor de suas qualidades, a inteligência, a coragem
e a determinação. Meus ancestrais sobreviveram à fome, pragas
e inundações. Eu sobreviverei, a isto. Estavam com ela agora
naquela cela do inferno, os pastores e caçadores, os
camponeses e mercadores, os médicos e professores. Os
fantasmas do passado e todos eram uma parte dela. Não os
desapontarei, sussurrou Tracy para a escuridão.
Ela começou a planejar sua fuga.
Tracy sabia que a primeira coisa que precisava fazer era
recuperar a força física. A cela era apertada demais para
exercícios amplos, mas suficientemente grande para o t'ai chi
ch'uan, a arte marcial milenar que era ensinada aos guerreiros
que se preparavam para o combate. Os exercícios exigiam pouco
espaço e accionavam todos os músculos do corpo. Tracy
levantou-se e executou os movimentos iniciais. Cada movimento
possuía um nome e um significado. Ela começou pelo agressivo
Socando os Demónios, passou para o Acumulando Luz, mais suave.
Os movimentos eram fluidos e graciosos, executados bem
devagar. Cada gesto provinha do tan tien, o centro psíquico;
todos os movimentos eram circulares. Tracy podia ouvir a voz
de seu mestre: Desperte a sua chi, a sua energia vital. Começa
pesada como uma montanha e se torna leve como a pena de um
pássaro. Tracy podia sentir a chi fluindo por seus dedos.
Concentrou-se até que todo o seu ser se focalizava em seu
corpo se movimentando através de padrões eternos.
Agarre a cauda da ave, torne-se a cegonha branca, repila o
macaco, enfrente o tigre, deixe as mãos se tornarem nuvens e
circule a água da vida. Deixe a serpente branca rastejar e
monte no tigre. Abata o tigre, reuna a sua chi e volte ao tan
tien, o centro.
O ciclo completo levou uma hora; quando acabou, Tracy estava
exausta. Efectuava o ritual pela manhã e à tarde, até que o
corpo começou a reagir, foi se tornando forte.
Quando não estava exercitando o corpo, Tracy exercitava a
mente. Deitada no escuro, Efectuava complexas equações
matemáticas, operava mentalmente o computador do banco,
recitava poesia, recordava as falas de peças em que
participara na escola. Era um perfeccionista. Quando obtinha
um papel numa peça em que exigia usar sotaques diferentes,
estudava esses sotaques por semanas, antes que a peça fosse
apresentada. Um caçador de talentos a abordara certa vez,
oferecendo-lhe um teste para o cinema em Hollywood.
- Não, obrigada - respondera Tracy. - Não quero a fama. É uma
coisa que não me serve.
A voz de Charles: Você é a manchete no Dady News desta manhã.
Tracy afastou a recordação. Havia portas em sua mente que
tinham de permanecer fechadas por enquanto.
Ela lançou-se ao jogo do ensino: Indique três coisas
absolutamente impossíveis de ensinar.
Ensinar a uma formiga a diferença entre católicos e
protestantes.
Fazer uma abelha compreender que é a terra que viaja em torno
do sol.
Explicar a um gato a diferença entre comunismo e democracia.
Mas ela se concentrava principalmente na maneira como
destruiria seus inimigos, um de cada vez. Lembrou-se de um
jogo que fazia quando era pequena. Levantando uma das mãos
para o céu, era possível bloquear o sol, apagá-lo por
completo. Era o que haviam feito com ela. Levantaram a mão e
apagaram a sua vida.
Tracy não tinha idéia de quantas prisioneiras haviam sido
quebradas pelo confinamento, na solitária e isso também não
faria diferença para ela. No sétimo dia, quando a porta da
cela foi aberta, Tracy ficou ofuscada pela súbita luz que
inundou a cela. Um guarda estava parado do lado de fora.
- Levante-se. Você vai subir agora.
Ele se inclinou para ajudar Tracy. Contudo, para sua
surpresa, ela se levantou facilmente e saiu da cela sem
qualquer ajuda. As outras prisioneiras que tirara da solitária
saíam abaladas ou com uma atitude de desafio, mas aquela não
exibia qualquer das duas reacções. Havia nela uma aura de
dignidade, uma confiança que não condizia com aquele lugar.
Tracy parou na claridade, deixando que os olhos gradativamente
se acostumassem. É uma mulher e tanto, pensou o guarda . Com
uma boa limpeza, dá para se levá-la a qualquer lugar. E aposto
que ela faria qualquer coisa por uns poucos de favores. Em voz
alta, ele disse:
- Uma garota bonita como você não deveria passar por esse
tipo de coisa. Se nós fôssemos, amigos, eu cuidaria para que,
isso nunca mais acontecesse.
Tracy virou-se para fitá-lo; quando o guarda viu a expressão
em seus olhos, decidiu prontamente não insistir.
Ele acompanhou Tracy até lá em cima e entregou-a a uma
inspectora, que farejou por um instante e murmurou:
- Deus do céu, como você fede! Vá tomar uma chuveirada. E
queimaremos estas roupas.
A água fria estava maravilhosa. Tracy ensaboou os cabelos,
esfregou-se vigorosamente da cabeça aos pés com o sabão
áspero. Enxugou-se e vestiu-se. A inspectora estava à sua
espera:
- O director quer falar com você.
Na última vez em que ouvira essas palavras, Tracy pensara que
significassem a liberdade. Nunca mais seria tão ingénua.
O director Brannigan estava de pé junto a uma janela quando
Tracy entrou em sua sala. Ele virou-se e disse:
- Sente-se, por favor. - Tracy ocupou uma cadeira. - Estive em
Washington numa conferência. Voltei esta manhã e encontrei um
relatório sobre o que aconteceu. Você não deveria ter sido
confinada na solitária.
Ela o observava atentamente, o rosto impassível não traindo
coisa alguma. O director olhou para um papel em sua mesa.
- Segundo este relatório, você foi agredida por companheiras
de cela.
- Não, senhor.
Brannigan acenou com a cabeça, uma expressão de compreensão.
- Entendo o seu medo, mas não posso permitir que as reclusas
comandem esta prisão. Quero punir quem fez isso com você, mas
preciso do seu testemunho. Providenciarei para que seja
devidamente protegida. Quero agora que me conte o que
aconteceu exactamente e quem foram as responsáveis.
Tracy fitou-o nos olhos.
- Fui eu. Cai do catre.
O director estudou-a por um longo tempo e ela percebeu o
desapontamento em seu rosto.
- Tem certeza?
- Tenho, sim, senhor.
- Não vai mudar de idéia?
- Não, senhor.
Brannigan suspirou.
- Está bem. Se é essa a sua decisão, mandarei transferi-la
para outra cela...
- Não quero ser transferida.
Ele ficou surpreso.
- Está querendo dizer que pretende voltar à mesma cela?
- Isso mesmo, senhor.
O director ficou perplexo. Talvez houvesse se enganado em
relação a ela; talvez ela tivesse atraído o que lhe
acontecera. Só Deus sabia o que aquelas malditas presas
estavam pensando ou fazendo. Ele gostaria de ser transferido
para alguma penitenciária de homens, boa e sã. Mas a esposa e
Amy, a filha pequena, gostavam dali. Residiam num chalé
encantador, havia um terreno aprazível em torno da prisão.
Para elas, era como viver no campo; mas ele, no entanto, tinha
de lidar com aquelas mulheres doidas 24 horas por dia. O
director olhou a mulher à sua frente e murmurou, contrafeito:
- Muito bem. Mas trate de se manter longe de encrencas no
futuro.
- Está certo, senhor.
Voltar à cela foi a coisa mais difícil que Tracy já fizera.
Foi dominada pelo horror do que acontecera ali no momento em
que entrou. As companheiras de cela estavam ausentes, no
trabalho. Tracy deitou no catre e ficou olhando para o teto,
planeando. Finalmente se inclinou para baixo do catre e
arrancou um pedaço de metal solto no lado. Escondeu-o por
debaixo do colchão. Quando soou a campainha do almoço, às 11
horas, Tracy foi a primeira à entrada na fila do corredor.
No refeitório, Paulita e Lola sentaram-se a uma mesa perto da
entrada. Não havia qualquer sinal de Ernestine Littlechap.
Tracy escolheu uma mesa ocupada por estranhas, sentou e comeu
toda a refeição insípida. Passou o início da tarde sozinha na
cela. As três companheiras de cela 2:45. Paulita sorriu de
surpresa quando viu Tracy.
- Então voltou para nós, coisinha bonita. Gostou do que lhe
fizemos, hem?
- Isso é óptimo - disse Lola. - Temos mais para você,
Tracy não deu qualquer indicação de que ouvira as zombarias.
Estava se concentrando na preta. Ernestine Littlechap era o
motivo para Tracy voltar àquela cela. Tracy não confiava
absolutamente em Ernestine. Mas precisava dela.
- Vou lhe dar um aviso, querida. Ernestine Littlechap manda
naquele lugar...
Naquela noite, quando a campainha assinalou o prazo de 15
minutos antes das luzes apagarem, Tracy levantou-se do catre o
começou a despir-se. Não houve agora falso recato. Tirou todas
as roupas. A mexicana deixou escapar um assobio longo e baixo
ao contemplar os seios cheios e firmes de Tracy, as pernas
compridas e bem torneadas, as coxas roliças. Lola respirava
fundo. Tracy pôs uma camisola e deitou-se de costas no catre.
As luzes se apagaram. A cela mergulhou na escuridão.
Trinta minutos se passaram. Tracy permaneceu imóvel,
escutando a respiração das outras. Do outro lado da cela,
Paulita sussurrou:
- Mamãe vai lhe dar um amor de verdade esta noite, meu bem.
Tire a camisola
- Vamos ensinar você a chupar uma cona e terá de fazer até
aprender direito - murmurou Lola, soltando uma risadinha.
Ainda não havia qualquer palavra da preta. Tracy sentiu o
movimento quando Lola e Paulita se aproximaram. Mas estava
pronta para elas. Levantou o pedaço de metal que escondera e
golpeou com toda a força, atingindo uma das mulheres no rosto.
Houve um grito de dor. Tracy desferiu um chute no outro vulto,
que caiu no chão.
- Cheguem perto de mim outra vez e eu as matarei - disse
Tracy.
- Sua puta!
Tracy ouviu-as avançarem de novo em sua direcção e levantou o
pedaço de metal. A voz de Ernestine soou abruptamente na
escuridão:
- Já chega, Deixem a garota em paz.
- Estou sangrando, Ernie. Vou dar um jeito nela...
- Pare de merda e faça o que estou mandando.
Houve um longo silêncio. Tracy ouviu as duas mulheres
voltaram a seus catres, a respiração ofegante. Ela continuou
deitada, tensa, pronta para o próximo movimento delas.
Ernestine Littlechap disse:
- Você tom coragem, menina.
Tracy ficou em silêncio.
- Não contou nada ao director. - Ernestine riu baixinho na
escuridão. - Se tivesse falado, seria carne morta.
Tracy acreditava nela.
- Por que não deixou que o director a transferisse para outra
cela.
Então ela sabia até disso.
- Eu queria voltar para cá.
- É mesmo? Por quê?
Havia um tom de perplexidade na voz de Ernestine Littlechap.
Aquele era o momento que Tracy estava esperando.
- Porque você vai me ajudar a fugir daqui.
8
Uma inspectora aproximou-se de Tracy e anunciou:
- Um visitante, Whitney.
Tracy fitou-a com uma expressão de surpresa.
- Um visitante?
Quem poderia ser? E subitamente ela compreendeu. Charles. Ele
viera procurá-la, no final das contas. Mas chegara atrasado
demais. Não estava ali quando precisava dele desesperadamente.
Pois nunca mais precisarei dele. Nem de qualquer outra pessoa.
Tracy acompanhou a inspectora pelo corredor até a sala das
visitas.
Tracy entrou.
Um homem totalmente estranho estava sentado a uma pequena
mesa de madeira. Era um dos homens mais desprovidos de
atractivos que Tracy já conhecera. Era baixo, o corpo inchado,
andrógino, um nariz saliente, a boca pequena, com uma
expressão amargurada. Tinha a testa alta e projectada para a
frente, olhos castanhos profundos, ampliados pelas lentes
grossas dos óculos. Ele não se levantou.
- Meu nome é Daniel Cooper, O director me concedeu permissão
para falar com você.
- Sobre o quê? - indagou Tracy, desconfiada.
- Sou um investigador da AIPS... Associação Internacional de
Protecção do Seguro, Um de meus clientes segurou o Renoir que
você roubou do Sr. Joseph Romano.
Tracy respirou fundo.
- Não posso ajudá-lo, pois não roubei o quadro,.
Ela encaminhou-se para a porta, mas parou ao ouvir as palavras
seguintes de Cooper:
- Sei disso.
Tracy tornou a virar-se e fitou-o, todos os sentidos alerta,
cautelosa.
- Ninguém roubou o quadro. Foi vítima de uma armadilha,
Senhorita Whitney.
Lentamente, Tracy se arriou numa cadeira.
O envolvimento de Daniel Cooper com o caso começou três
semanas antes, quando fora chamado à sala de seu superior, J.
J. Reynolds, na sede da AIPS, em Manhattan.
- Tenho um trabalho para você, Dan.
Daniel Cooper etestava ser chamado de Dan.
- Serei breve.
Reynolds tencionava ser o mais breve possível porque Cooper o
pusera nervoso. Na verdade, Cooper o deixava nervoso. Na
verdade, Cooper deixava a todos nervosos na organização. Era
um homem estranho - esquisito, como muitos o descreviam.
Daniel Cooper se mantinha totalmente isolado. Ninguém sabia
onde ele morara, se era casado ou tinha filhos. Não
confraternizava com ninguém, jamais comparecia às festas do
escritório ou mesmo às reuniões. Era um solitário. Reynolds só
o tolerava porque o homem era um verdadeiro génio. Era,
excepcionalmente, tendo um computador como cérebro. Daniel
Cooper era responsável sozinho por recuperar mais mercadorias
roubadas e denunciar mais fraudes de seguros do que todos os
outros investigadores da organização reunidos. Mas Reynolds
bem que gostaria de saber quem era Cooper afinal. Sentia-se
inquieto só de ter o homem sentado à sua frente, com aqueles
olhos castanhos profundos a fitá-lo. Reynolds disse:
- Um dos nossos clientes segurou um quadro por meio milhão de
dólares e...
- O Renoir Nova Orleans, Joe Romano, Uma mulher chamada Tracy
Whitney foi condenada a quinze anos. O quadro não foi
recuperado.
Filho da puta!, - pensou Reynolds. Se fosse qualquer outro, eu
pensaria que estava se exibindo.
- Isso mesmo - confirmou Reynolds, relutantemente. - A mulher
Whitney escondeu o quadro em algum lugar e o queremos de
volta. Cuide do caso.
Cooper deixou a sala sem dizer mais nada. Observando-o se
retirar, J. J. pensou, não pela primeira vez: Algum dia
descobrirei o que faz esse desgraçado se mexer.
Cooper passou pelo escritório, onde 50 funcionários
trabalhavam lado a lado, programando computadores,
dactilografando relatórios, atendendo a telefonemas. Era um
tumulto total. Quando Cooper passou por uma mesa, um colega
comentou:
- Soube que pegou o caso de Romano. Sorte sua. Nova Orleans
é...
Cooper seguiu adiante sem responder. Por que não podiam
deixá-lo em paz, era tudo o que pedia aos outros, mas estavam
sempre atormentando-o com suas aberturas intrometidas.
Tornara-se um jogo no escritório. Todos estavam determinados
a romper sua misteriosa reserva e descobrir quem ele era
realmente
- O que vai fazer na noite de sexta-feira, Dan...?
- Se não é casado, Sarah e eu conhecemos uma garota
sensacional, Dan...
Será que não podiam compreender que não precisava de nenhum
deles... e não queria nenhum deles?
- Vamos tomar um drinque, Dan...
Mas Daniel Cooper sabia ao que isso podia levar. Um drinque
inocente podia levar a um jantar, um jantar podia iniciar
amizades, amizades podia levar a confidências. Era perigoso
demais.
Daniel Cooper vivia no terror mortal de que um dia alguém
pudesse descobrir o seu passado. Deixem que os mortos enterrem
seus mortos, era uma mentira. Os mortos nunca permaneciam
enterrados. A cada dois ou três anos, uma das publicações
sensacionalistas desencabava o velho escândalo e Daniel Cooper
desaparecia por vários dias. Eram as únicas ocasiões em que
ele se embriagava.
Daniel Cooper poderia manter-se ocupado em tempo integral,
seria capaz de expor suas emoções. Mas nunca seria capaz de
falar do passado a ninguém. A única peça de evidência física
que conservava daquele dia terrível, há tanto tempo, era um
recorte de jornal, desbotado e amarelo, trancado seguramente
em seu quarto, onde ninguém podia encontrá-lo. Ele o olhava de
vez em quando, como uma punição, mas cada palavra da notícia
se achava gravada a fogo em sua mente.
Ele tomava um banho de chuveiro pelo menos três vezes por dia,
mas nunca se sentia limpo. Acreditava firmemente no inferno e
no inferno, sabia que a sua única Salvação neste mundo era a
expiação. Tentara ingressar na força polícial de Nova York,
mas fora reprovado no exame físico, por estar dez centímetros
abaixo da altura mínima. Tornara-se então um investigador
particular. Pensava em si mesmo como um caçador, perseguindo
aqueles que violavam a lei. Era a vingança de Deus, o
instrumento que lançava a ira de Deus sobre as cabeças dos
malfeitores. Era a única maneira pela qual podia expiar o
passado e preparar-se para a eternidade.
E ele especulou se haveria tempo de tomar um banho de
chuveiro antes de pegar o avião.
A primeira parada de Daniel Cooper foi em Nova Orleans. Passou
cinco dias na cidade. Antes de terminar, já sabia de tudo o
que precisava saber a esse respeito de Joe Romano, Anthony
Orsatti, Perry Pope e o Juiz Henry Lawrence. Cooper leu as
transcrições da audiência inicial de Tracy Whitney e da pena a
que ela foi condenada. Conversou com o Tenente Miller e soube
do suicídio da mãe de Tracy Whitney. Procurou Otto Schinidt e
descobriu como a companhia das Whitneys fora roubada.. Daniel
Cooper não tomou qualquer anotação em todas as conversas, mas
poderia repetir cada uma literalmente. Tinha 99 por cento de
certeza que Tracy Whitney era uma vítima inocente. Mas, para
Daniel essa era uma precentagem inaceitável. Ele voou para
Filadélfia e conversou com Clarence Desmond, o vice-presidente
do banco em que Tracy Whitney trabalhara. Charles Stanhope III
recusou-se a recebê-lo.
Agora, olhando para a mulher sentada à sua frente, Cooper
estava cem por cento convencido de que ela nada tinha a ver
com o roubo do quadro. Estava pronto para escrever seu
relatório.
- Romano a incriminou falsamente, Senhorita Whitney. Mais cedo
ou mais tarde ele alegaria o roubo do quadro e reclamaria o
seguro. Você simplesmente apareceu por acaso no momento
oportuno e facilitou-lhe tudo.
Tracy podia sentir seu coração disparar. Aquele homem sabia
que ela era inocente. Provavelmente dispunha de suficientes
motivos contra Joe Romano para inocentá-la. Falaria com o
governador, haveria de tirá-la daquele pesadelo, Descobriu
subitamente que tinha dificuldade para respirar.
- Então vai me ajudar?
Daniel Cooper ficou perplexo.
- Ajudá-la?
- Isso mesmo. Obter um perdão ou.
- Não.
A palavra foi como uma bofetada.
- Não? Mas por quê? Se sabe que sou inocente...
Como as pessoas podiam ser tão estúpidas?
- Meu trabalho está encerrado - murmurou Daniel Cooper,
indiferente.
Quando voltou a seu quarto no hotel, a primeira providência de
Cooper foi despir-se e entrar debaixo do chuveiro. Esfregou-se
da cabeça aos pés, deixando que a água quente enxaguasse o
corpo por quase meia hora. Depois de se enxugar e vestir,
sentou e escreveu seu relatório.
PARA: J. J. Reynolds Relatório N? Y-72-830-412
DE: Daniel Cooper
ASSUNTO: Deux Femmes dans le Café Rouge, Renoir - óleo sobre
Tela
É minha conclusão que Tracy Whitney não está absolutamente
envolvida no roubo do quadro acima. Creio que Joe Romano fez o
seguro com a intenção de simular um roubo, cobrar a apólice e
vender o quadro a um coleccionador particular. A esta altura,
o quadro provavelmente já se encontra fora do país. Como a
obra é bastante conhecida, eu esperaria que aparecesse na
Suíça, onde existe uma lei de protecção à compra de boa fé. Se
um coleccionador declarar que comprou uma obra de arte em boa
fé, o governo suíço permite que a mantenha, mesmo sendo
roubada.
Recomendação: Como não há prova concreta da culpa de Romano,
nosso cliente terá de pagar. Além disso, seria inútil procurar
Tracy Whitney para recuperação do quadro ou a cobrança de
indemnização, já que ela não tem conhecimento do quadro nem
quaisquer bens para cobrir os prejuízos, ao que eu pudesse
descobrir. Acresce que ela estará encarcerada na Penitenciária
Meridional de Louisiana Para Mulheres pelos próximos 15 anos.
Daniel Cooper fez uma pausa, pensando em Tracy Whitney.
Calculou que outros homens poderiam considerá-la bonita. E
especulou, sem qualquer interesse real, o que 15 anos na
prisão lhe fariam. Mas não era relevante.
Daniel Cooper assinou o relatório e debateu se havia tempo
para tomar outro banho de chuveiro.
9
Calcinha de Ferro providenciou para que Tracy Whitney fosse
destacada para a lavanderia. Entre os 35 trabalhos disponíveis
para as prisioneiras, a lavanderia era o pior. A sala enorme e
quente estava cheia de máquinas de lavar roupa e tábuas de
passar, as cargas de roupa suja eram intermináveis. Encher e
esvaziar as máquinas de lavar e carregar os cestos pesados
para a secção de passar era um trabalho brutal e exaustivo.
O trabalho começava às seis horas da manhã e as prisioneiras
tinham um descanso de dez minutos a cada duas horas. Ao final
do dia de nove horas, a maioria das mulheres estava prestes a
cair de exaustão. Tracy cumpria seu trabalho mecanicamente,
sem falar com ninguém, encasulada em seus pensamentos. Ao
saber do trabalho para o qual Tracy fora designada, Ernestine
Littlechap comentou.
- Calcinha de Ferro está mesmo a fim de arrancar o seu couro.
Ao que Tracy respondeu:
- Ela não me incomoda.
Ernestine Littlechap estava espantada. Aquela era uma mulher
completamente diferente da mocinha apavorada que chegara à
prisão três semanas antes. Alguma coisa a mudara e Ernestine
Littlechap estava curiosa em descobrir o que fora.
No oitavo dia de trabalho de Tracy na lavanderia um guarda foi
procurá-la, no inicio da tarde.
- Tenho aqui a sua transferência. Você foi destacada para a
cozinha.
O trabalho mais cobiçado na prisão. Havia dois padrões de
alimentação: as prisioneiras comiam picadinho,
cachorro-quente, feijão ou guisados incomíveis, enquanto as
refeições para as guardas e as autoridades da penitenciária
eram preparadas por cozinheiros profissionais, incluindo
bifes, peixe fresco, costeletas, galinha, legumes e trutas
frescas, sobremesas apetitosas. As condenadas que trabalhavam
na cozinha tinham acesso a essas refeições e se aproveitavam
ao máximo. Quando se apresentou na cozinha, Tracy não ficou
surpresa ao deparar com Ernestine Littlechap ali. Aproximou-se
dela e disse:
- Obrigada.
Com alguma dificuldade, ela forçou um tom amistoso à voz.
Ernestine soltou um grunhido, não disse nada.
- Como conseguiu me livrar de Calcinha de Ferro?
- Ela não está mais com a gente.
- O que lhe aconteceu?
- Temos um pequeno sistema. Se uma guarda é sacana e começa a
nos criar muitos problemas, a gente se livra dela.
- Está querendo dizer que o director...
- Por que pensa que o director tem alguma coisa a ver com
isso?
- Então como conseguem...
- É fácil. Quando a guarda de quem a gente quer se livrar está
de serviço, começam a surgir problemas. Vêm as reclamações.
Uma presa informa que Calcinha de Ferro agarrou-a pela xoxota.
E no dia seguinte outra presa a acusa de brutalidade. E depois
alguém reclama que ela tirou alguma coisa de sua cela... um
rádio, por exemplo... e com toda a certeza vai aparecer no
quarto de Calcinha de Ferro . E foi assim que acabamos tirando
Calcinha de Ferro daqui. Não são os guardas que mandam nesta
prisão, mas nós.
- Por que você está aqui? - perguntou Tracy.
Ela não tinha o menor interesse na resposta. O importante era
estabelecer um relacionamento amistoso com aquela mulher.
- É melhor acreditar que não foi por culpa de Ernestine
Littlechap. Eu tinha todo um bando de garotas trabalhando para
mim.
Tracy fitou-a nos olhos.
- Está querendo dizer como...
Ela hesitou.
- Como vigaristas? - Ernestine riu. - Não. Elas trabalhavam
como criadas em casas ricas. Abri uma agência de empregos.
Tinha pelo menos 20 garotas. A gente rica tem a maior
dificuldade para arrumar criadas. Pus uma porção de anúncios
bonitos nos melhores jornais e mandava as minhas garotas
quando telefonavam. As garotas estudavam as casas, e quando os
patrões estavam trabalhando ou viajando pegavam toda a
pratearia, jóias, peles e todo o resto que valesse alguma
coisa, desaparecendo em seguida.
Ernestine fez uma pausa, suspirando.
- Não acreditaria se eu lhe dissesse quanto dinheiro livre de
impostos estávamos ganhando assim.
- E como você foi apanhada?
- Foi o dedo caprichoso do destino, meu bem. Uma das minhas
criadas estava servindo um banquete na casa do prefeito. Uma
das convidadas era uma velha para a qual ela trabalhara e
limpara. Quando a polícia encheu-a de porrada, minha garota se
pôs a falar e cantou a ópera inteira. E aqui está a pobre
Ernestine.
Elas estavam paradas ao lado de um fogão, afastadas das
outras.
- Não posso ficar aqui -sussurrou Tracy. -Tenho de cuidar de
alguém lá fora. Vai me ajudar a fugir? Eu...
- É melhor começar a cortar as cebolas. Teremos guisado
irlandês esta noite.
E Ernestine Littlechap se afastou.
O serviço de informações da prisão era incrível. As
prisioneiras sabiam de tudo o que estava para acontecer muito
antes que ocorresse. Reclusas conhecidas como ratazanas de
lixo recolhiam os memorandos descartados, escutavam os
telefonemas, liam a correspondência do director. Todas as
informações eram cuidadosamente digeridas e transmitidas às
presas importantes. Ernestine Littlechap figurava no alto da
lista. Tracy percebeu como os guardas e as outras reclusas
tratavam Ernestine com toda deferência. Como as outras
concluíram que Ernestine se tornara a protectora de Tracy, ela
foi deixada em paz. Tracy esperou cautelosamente que Ernestine
lhe fizesse avanços, mas a preta enorme se manteve à
distância. Por quê?, perguntou-se Tracy.
A regra número 7, no folheto oficial de dez páginas entregue
às prisioneiras novas, dizia: "Qualquer forma de sexo é
rigorosamente proibida. Não haverá mais que quatro reclusas em
cada cela. Não mais que uma prisioneira terá permissão para
ocupar uma cama de cada vez."
A realidade era tão incrívelmente diferente que as
prisioneiras se referiam ao folheto como o livro de piadas da
prisão. à medida que as semanas foram passando, Tracy observou
as novas prisioneiras chegarem à prisão todos os dias. O
padrão era sempre o mesmo. As criminosas primárias que eram
sexualmente normais nunca tinham a menor chance. Entravam
tímidas e assustadas, as homossexuais lá estavam, esperando. O
drama se desenrolava em actos planejados. Num mundo aterrador
e hostil, a sapatão se mostrava amistosa e simpática.
Convidava a vitima ao salão de lazer, onde assistiam TV
juntas; quando a outra lhe segurava a mão, a nova prisioneira
deixava, com receio de ofender sua única amiga. A prisioneira
nova percebia rapidamente que as outras reclusas deixavam-na
em paz; à medida que aumentava a sua dependência da sapatão,
também se aprofundavam as intimidades, até que finalmente
estava disposta a fazer qualquer coisa para manter sua única
amiga.
As que se recusavam a ceder eram violentadas. Noventa por
cento das mulheres que entravam na prisão eram forçadas a
actividades homossexuais - voluntária ou involuntariamente -
nos primeiros 30 dias. Tracy estava horrorizada.
- Como as autoridades podem permitir que isso aconteça? - ela
perguntou a Ernestine.
- É o sistema. Acontece a mesma coisa em todas as prisões,
meu bem. Não há qualquer possibilidade de se separar mil e
duzentas mulheres de seus homens e esperar que não fodam com
alguém. E não violentamos apenas por sexo. É também por poder,
para mostrar quem é que manda. As garotas novas que entram
aqui são alvos para todas que querem fodê-las. A única
protecção delas é se tornarem a esposa de uma sapatão. Só
assim ninguém mais se mete com elas.
Tracy tinha motivos para saber que estava ouvindo a análise
de uma profunda conhecedora.
- E não são apenas as presas - continuou Ernestine. - As
guardas são igualmente terríveis. Aparece uma carne fresca e
está na pior. Não se aguenta, precisa desesperadamente de uma
dose. Está suando e tremendo, caindo aos pedaços. A guarda
arruma uma dose de heroina para ela, mas em troca quer um
favor. Entende? A carne fresca topa e a inspectora a mantém
satisfeita. Os guardas machos são ainda piores. Eles têm
chaves de todas as celas e, tudo o que precisam fazer é
aparecer à noite e se servir de xoxota de graça. Podem
engravidar uma garota, mas também podem arrumar uma porção de
seus favores. Você quer uma barra de chocolate ou uma visita
de seu namorado, pois basta dar para o guarda. É o que se
chama de permuta e acontece em todas as prisões do país.
- É horrível!
- É sobrevivência. - A luz no teto da cela brilhava sobre a
cabeça rapada de Ernestine. - Sabe por que não permitem goma
de mascar neste lugar?
- Não.
- Porque as garotas usam para prender as fechaduras e impedir
de trancarem, saindo à noite para se visitarem. Aceitamos as
regras que queremos. As garotas que as fazem por aqui podem
ser estúpidas, mas são estúpidas espertas.
As relações amorosas dentro dos muros da prisão floresciam. O
protocolo entre amantes era respeitado ainda mais
rigorosamente do que no mundo exterior. Num mundo antinatural,
os papéis artificiais de maridos e mulheres eram criados e
devidamente representados. As sapatões assumiam um papel de
homem num mundo em que não havia homens. Mudavam seus nomes.
Ernestine era chamada Ernie; Tessie era Tex; Barbara se
tornava Bob; Katherine era Keuy. Cortavam os cabelos bem
curtos ou raspavam a cabeça, não cuidavam dos chamados
afazeres domésticos. A mary femme, a esposa, tinha de fazer a
limpeza, costurar as roupas, passá-las para seu marido. Lola e
Paulita competiam ferozmente pelas atenções de Ernestine, uma
lutando para superar a outra.
O ciúme era intenso e frequentemente levava à violência; se a
esposa era surpreendida a olhar para outra sapatão ou a
conversar no pátio da prisão, os ânimos se exaltavam. Cartas
de amor circulavam constantemente pela prisão, levadas pelas
ratazanas de lixo.
As cartas eram dobradas em pequenos formatos triangulares,
conhecidos como pipas, podendo assim ser facilmente escondidas
num soutien ou sapato. Tracy observava pipas sendo trocadas
pelas mulheres, ao passarem umas pelas outras na entrada do
refeitório ou a caminho do trabalho.
Tracy observou muitas vezes as reclusas se apaixonarem pelos
guardas. Era um amor nascido do desespero, desamparo e
submissão. As prisioneiras eram dependentes dos guardas em
tudo: na comida, no bem-estar e às vezes nas próprias vidas.
Mas Tracy não se permitia sentir emoção por ninguém.
O sexo acontecia noite e dia. Ocorria nos chuveiros, nos
banheiros, nas celas e à noite havia sexo oral através das
grades. As mary femmes que pertenciam aos guardas dos dois
sexos ficavam fora das celas à noite para irem aos alojamentos
deles.
Depois que as luzes se apagavam, Tracy ficava deitada em seu
catre e tapava os ouvidos com as mãos, num esforço para não
escutar os sons.
Houve uma noite em que Ernestine tirou uma caixa de sucrilhos
de arroz de sob seu catre e se pôs a espalhá-los pelo corredor
fora da cela. Tracy ouviu reclusas em outras celas fazendo a
mesma coisa.
- O que está acontecendo? - perguntou ela.
Ernestine virou-se para Tracy e disse asperamente:
- Não é da sua conta. Trate de ficar na sua cama.
Simplesmente fique na porra da sua cama.
Poucos minutos depois houve um grito aterrorizado numa cela
próxima.
- Oh, Deus, não! Não! Por favor, deixem-me em paz!
Tracy compreendeu então o que estava acontecendo e sentiu uma
náusea profunda. Os gritos continuaram por um longo tempo, até
que finalmente se desvaneceram para soluços desamparados.
Tracy apertou os olhos com toda a força, dominada por uma
raiva ardente. Como mulheres podiam fazer uma coisa assim a
outras? Ela pensara que a prisão a deixara calejada, mas
quando despertou pela manhã tinha o rosto manchado por
lágrimas ressequidas. Ela estava determinada a não deixar
transparecer seus sentimentos para Ernestine e perguntou-lhe
casualmente:
- Para quê os sucrilhos?
- É o nosso sistema de aviso. Se os guardas tentam nos
surpreender podemos ouvir se aproximando.
Tracy logo aprendeu por que as reclusas se referiam a uma pena
na penitenciária como "ir ao colégio". A prisão era uma
experiência educacional, mas o que as prisioneiras aprendiam
era heterodoxo.
A prisão se achava repleta de especialistas em todos os tipos
concebíveis de crimes. Elas trocavam métodos de vigarices,
roubos em lojas, suadouros em bêbados. Espalhavam informações
sobre alcaguetes e agentes policiais disfarçados.
Uma manhã, no pátio de recreação, Tracy ouviu uma reclusa
mais velha dar uma conferência sobre punga para um grupo jovem
fascinado.
- Os grandes profissionais vêm da Colômbia. Há uma escola em
Bogotá que é conhecida como a escola dos dez sinos. Paga-se
duzentos e cinquenta dólares para se aprender a ser punguista.
Eles penduram um boneco do teto, vestindo um terno com dez
bolsos, cheios de dinheiro e jóias.
- E qual é o truque?
- O truque é que cada bolso tem um sino. Ninguém se forma até
conseguir esvaziar todos os bolsos sem tocar um sino sequer.
Lola suspirou.
- Eu costumava sair com um cara que circulava pelas multidões
num sobretudo, com as duas mãos à vista, enquanto pungueava as
pessoas como um louco.
- E como diabo ele conseguia fazer isso?
- A mão direita era falsa. Ele estendia a mão verdadeira por
uma abertura no sobretudo, fazia a festa com bolsos, carteiras
e bolsas.
A educação continuava na sala de lazer.
- Gosto muito do golpe da chave - disse uma veterana. - A
gente fica por uma estação ferroviária até aparecer uma
velhinha tentando meter uma mala ou um pacote grande num
desses armários de aluguel. A gente ajuda e lhe entrega a
chave. Só que a chave é de um armário vazio. Depois que ela
vai embora, a gente esvazia seu armário e some.
No pátio, em outra tarde, duas reclusas condenadas por
prostituição e, posse de cocaína conversavam com uma
recém-chegada, uma garota bonita, que parecia não ter mais do
que 17 anos.
- Não é de admirar que você tenha sido encanada, meu bem -
disse uma das mulheres mais velhas. - Antes de falar em preço
com um cara, você tem de apalpá-lo para se certificar de que
ele não ia carregar uma arma. E nunca diga a ele o que você
vai fazer. Em vez disso, faça ele dizer o que quer. E se
depois descobrir que ele é um tira, a coisa vira uma
armadilha, entende?
A outra profissional acrescentou:
- É isso mesmo. E sempre examine as mãos. Se um cara diz que é
operário, veja se suas mãos são calosas. Muitos tiras à
paisana usam roupas de operários, mas esquecem que suas mãos
são lisas.
O tempo não passava devagar nem depressa. Era simplesmente o
tempo. Tracy pensava no aforismo de Santo Agostinho: "O que é
o tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei, Mas se tenho de
explicar não sei."
A rotina da prisão jamais variava:
4 e 40: Campainha de aviso
4 e 45: Levantar e vestir
5: Café da manhã
5 e 30: Volta à cela
5 e 55: Campainha de aviso
6: Fila para o trabalho
10: Pátio para exercício
10 e 30: Almoço
11: Fila para o trabalho
15 e 30: Jantar
16: Volta à cela
17: Salão de recreação
18: Volta à cela
20 e 45: Campainha de aviso
21: Luzes apagadas
As regras eram inflexíveis. Todas as presas tinham de
comparecer às refeições e não se permitiam conversas na fila.
Não se podia guardar mais de cinco itens cosméticos nos
pequenos armários antes do café da manhã e assim mantidas
durante o dia inteiro.
A penitenciária tinha a sua própria música: o retinir da
campainha, o arrastar de pés pelo cimento, o bater de portas
de ferro, os sussurros de dia e os gritos de noite... o
crepitar rouco dos wakie-talkies dos guardas, o estrépito das
bandejas nas refeições. E sempre havia o arame farpado, os
muros altos, a solidão e o isolamento, a aura penetrante de
ódio.
Tracy tornou-se uma prisioneira exemplar. Seu corpo, reagia
automaticamente aos sons da rotina da prisão: a barra
deslizando através da cela na hora de deitar e na hora de
acordar; a campainha para se apresentar ao trabalho, a sirene
quando o trabalho acabava.
O corpo de Tracy era prisioneiro naquele lugar, mas a mente
estava livre para planear a fuga.
As presas não podiam dar telefonemas para fora, mas tinham
permissão de receber dois telefonemas de cinco minutos por
mês. Tracy recebeu um telefonema de Otto Schmidt.
- Achei que você gostaria de saber - disse ele. - Foi um
enterro muito bonito. E eu paguei todas as contas, Tracy.
- Obrigada, Otto. Eu... obrigada,
Não havia mais nada que qualquer dos dois pudesse dizer. E
não houve mais telefonemas para ela.
- Garota, é melhor você esquecer o mundo exterior - advertiu-a
Ernestine. - Não tem ninguém lá fora para você.
Está enganada, pensou Tracy.
Joe Romano.
Perry Pope.
Juiz Henry Lawrence.
Anthony Orsatti.
Charles Stanhope III.
Foi no pátio de exercício que Tracy tornou a encontrar Big
Bertha. O pátio era um rectângulo grande, descoberto, limitado
num lado pelo alto muro externo e no outro pelo muro interno.
As reclusas tinham permissão de ficar no pátio por 30 minutos
todas as manhãs. Era um dos poucos lugares em que se permitia
conversar e grupos de prisioneiras se reuniam para trocar as
últimas notícias e rumores, antes do almoço. Quando entrou no
pátio pela primeira vez, Tracy experimentou uma súbita
sensação de liberdade. Compreendeu que isso acontecia porque
se encontrava ao ar livre. Podia ver o sol lá no alto, assim
como as nuvens; ouviu em algum lugar no céu azul distante o
zumbido de um avião, voando livre.
- Você! - disse uma voz. - Eu estava à sua procura.
Tracy virou-se para deparar com a enorme sueca que roçara
nela em seu primeiro dia na prisão.
- Soube que arrumou uma sapatão negra.
Tracy tentou se afastar, mas Big Bertha agarrou-a pelo braço,
com uma pressão implacável.
- Ninguém se afasta de mim assim - sussurrou ela. - Seja
boazinha, littbarn.
Ela empurrava Tracy para o muro, comprimindo-se contra o seu
corpo.
- Largue-me!
- O que você está precisando é de uma boa chupada. Sabe do
que estou falando? Pois é o que vou dar a você. Vai ser toda
minha, alskade.
Uma voz famíliar soou irritada por trás de Tracy:
- Tire as porras das suas mãos de cima dela, sua idiota.
Ernestine Littlechap estava parada ali, as enormes mãos
cerradas, os olhos faiscando, o sol se reflectindo em seu
crânio rapado.
- Você não é homem bastante para ela, Ernie.
- Sou homem bastante para você - explodiu a preta. - Torne a
chateá-la e comerei seu rabo no café da manhã. Frito.
O ar estava subitamente carregado. As duas amazonas se fitavam
com um ódio intenso. Elas estão prestes a se matar por minha
causa, pensou Tracy. E depois ela compreendeu que tinha muito
pouco a ver com aquilo. Lembrou-se de uma coisa que Ernestine
lhe dissera:
- Neste lugar, você tem de lutar, foder ou pular a cerca. Ou
você finca pé ou está morta.
Foi Big Bertha quem recuou. Ela lançou um olhar desdenhoso
para Ernestine.
- Não tenho pressa. - Contemplando Tracy com um olhar
lúgubre, ela acrescentou: - Ficará por aqui durante muito
tempo, meu bem. E eu também. Ainda tornaremos a nos encontrar.
Ela virou-se e afastou-se . Ernestine observou-a por um
momento e comentou:
- Ela é uma terrível mãe. Lembra daquela enfermeira em Chicago
que matou todos os seus pacientes? Encheu-os de cianureto e
ficou assistindo eles morrerem? Pois é esse anjo de
misericórdia que está agora cheio de tesão por você, Whitney.
Merda! Você está mesmo precisando de uma porra de uma guardiã.
Ela não vai deixar você em paz.
- Vai me ajudar a escapar?
Uma campainha soou.
- Está na hora da bóia - disse Ernestine Littlechap.
Naquela noite, deitada em seu catre, Tracy ficou pensando em
Ernestine. Apesar de Ernestine nunca mais tentar tocá-la,
Tracy ainda não confiava nela. Nunca poderia esquecer o que
Ernestine e as outras companheiras de cela lhe haviam feito.
Mas precisava dela.
Todas as tardes, depois do jantar, as reclusas tinham
permissão para passar uma hora na sala de recreação, onde
podiam assistir televisão, conversar ou ler as últimas
revistas e jornais. Tracy folheava uma revista quando uma
fotografia atraiu sua atenção. Era uma foto de casamento de
Charles Stanhope III, saindo da capela de braço dado com a
esposa, rindo. Atingiu Tracy como um golpe físico.
Contemplando a foto, o sorriso feliz no rosto de Charles, ela
foi invadida por uma angústia, que logo se transformou em
fúria fria. Planeara outrora partilhar sua vida com aquele
homem, mas ele lhe virara as costas, deixara que a
destruíssem, deixara que o filho dos dois morresse. Mas isso
acontecera em outro lugar, outro tempo. Aquilo era fantasia.
Isto é a realidade.
Tracy fechou a revista bruscamente.
Nos dias de visita era fácil saber quais as reclusas que
tinham amigos ou parentes que vinham vê-las. Elas tomavam um
banho de chuveiro, punham roupas limpas, maquilavam-se.
Ernestine geralmente voltava da sala de visitas sorridente e
jovial.
- Meu amor sempre vem me visitar - ela disse a Tracy. -
Estará esperando quando eu sair. E sabe por quê? Porque dou a
ele o que nenhuma outra mulher pode dar.
Tracy não pôde esconder a sua confusão.
- Está querendo dizer... sexualmente?
- Pode apostar que sim. O que acontece dentro destes muros
não tem nada a ver com o mundo lá fora. Aqui, a gente precisa
às vezes de um corpo quente para abraçar... alguém para nos
acariciar e dizer que nos ama. Temos de sentir que há alguém
que se importa com a gente. Não importa que não seja real ou
que não dure muito. É tudo o que temos. Mas quando estou lá
fora... - Ernestine se desmanchou num sorriso largo - ...
então me transformo numa sacana de uma ninfomaníaca, entende?
Havia uma coisa que deixava Tracy aturdida. Ela resolveu
levantar o assunto agora.
- Ernie, você está sempre me protegendo. Por quê?
Ernestine encolheu os ombros.
- Sei lá.
- Eu gostaria realmente de saber. - Tracy escolheu
cuidadosamente as palavras. - Todas as outras que são... suas
amigas pertencem a você. Elas fazem tudo o que você manda.
- Se não quiserem se estripar, é isso mesmo.
- Mas não eu. Por quê?
- Está se queixando?
- Não. Estou apenas curiosa.
Ernestine pensou a esse respeito por um momento.
- Muito bem. Você tem uma coisa que eu quero. - Ela viu a
expressão no rosto de Tracy. - Não é isso. Já tenho tudo o que
quero, meu bem. Você tem classe. E estou falando de classe de
verdade. Como aquelas donas frias que a gente vê em Vogue e
Town and Country, todas muito bem vestidas e servindo chá em
bules de prata. É o lugar a que você pertence. Este não é o
seu mundo. Não sei como você se envolveu com toda aquela merda
lá fora, mas meu palpite é que foi enganada por alguém.
Ela fez uma pausa, fitou Tracy nos olhos e acrescentou, quase
timidamente:
- Não encontrei muitas coisas decentes na minha vida. Você é
uma delas. - Ernestine virou-se e suas palavras seguintes
soaram quase inaudíveis. - E lamento muito sobre o seu garoto.
Lamento de verdade.
Naquela noite, depois que as luzes se apagaram, Tracy
sussurrou no escuro:
- Ernestine, tenho de fugir. Ajude-me. Por favor.
- Estou tentando dormir, pelo amor de Deus Cale essa boca,
está bem?
Ernestine iniciou Tracy na linguagem misteriosa da prisão.
Grupos de mulheres no pátio estavam falando:
- A sapatão largou o cinto em cima da garotinha e depois
disso tinha de se dar comida a ela com uma colher de cabo bem
comprido...
Ela estava curta, mas a pegaram numa tempestade de neve e um
tira de pedra entregou-a ao carniceiro. Isso acabou com a sua
estrutura. Adeus, Ruby-do...
Para Tracy, era como escutar uma conversa de marcianos. E ela
perguntou:
- Sobre o que estão falando?
Ernestine explodiu numa gargalhada.
- Não sabe falar inglês, garota? Quando a lésbica "largou o
cinto", significa que passou de machona para mary femme.
Envolveu-se com uma "garotinha"... uma dona como você. Não
merecia confiança, o que significava que você se manteve à
distância. Ela estava "curta", significando que se aproximava
o fim de sua sentença de prisão. Mas foi apanhada tomando
heroina por um tira de pedra... isto é, alguém que vive pelos
regulamentos e não dá para comprar.. e despachada para o
"carniceiro", o médico da prisão.
- O que é "Ruby-do" e "estrutura"?
- Ainda não aprendeu nada? "Ruby-do" é livramento
condicional. E "estrutura" é o dia da libertação.
Tracy sabia que não poderia esperar por nenhuma das duas
coisas.
A explosão entre Ernestine Littlechap e Big Bertha aconteceu
no pátio no dia seguinte. As prisioneiras jogavam softball,
uma variação mais suave do beisebol, sob a supervisão dos
guardas. Big Bertha, com o bastão, acertou uma bola com toda a
força e correu para a primeira base, que Tracy estava
cobrindo. Big Bertha golpeou Tracy, derrubando-a, depois
montou em cima dela. Suas mãos se insinuaram entre as pernas
de Tracy, enquanto ela murmurava:
- Ninguém me diz não, sua puta. Vou agarrá-la esta noite,
littbam, vou foder você até não aguentar mais.
Tracy lutou freneticamente para se desenvencilhar.
Subitamente, sentiu que Big Bertha era arrancada de cima dela.
Ernestine segurava a imensa sueca pelo pescoço e a sufocava.
- Sua puta escrota! - Ernestine estava gritando. - Eu avisei!
Ela meteu as unhas no rosto de Big Bertha, atingindo os
olhos.
- Estou cega! - berrou Big Bertha. - Estou cega!
Ela agarrou os seios de Ernestine e começou a puxá-los. As
duas mulheres estavam se esmurrando e se dilacerando quando
quatro guardas se aproximaram correndo. Os guardas precisaram
de cinco minutos para separá-las. As duas foram levadas para a
enfermaria. Já era noite quando Ernestine voltou à cela. Lola
e Paulita foram para sua cama, a fim de consolá-la.
- Você está bem? - sussurrou Tracy.
- Claro que estou - respondeu Ernestine. A voz soava abafada
e Tracy se perguntou até que ponto ela ficara gravemente
ferida. - Recebi meu Ruby-do ontem e vou sair daqui. Você está
com um problema. Aquela mulher não vai deixá-la em paz. De
jeito nenhum. E quando acabar de fodê-la, vai matar você.
Elas ficaram deitadas em silêncio na escuridão. Finalmente,
Ernestine acrescentou:
- Talvez esteja na hora da gente conversar sobre a maneira de
tirá-la daqui.
10
- Vai perder a sua governanta amanhã - anunciou o director
Brannigan à esposa.
Sue Ellen Brannigan levantou os olhos, com uma expressão de
surpresa.
- Por quê? Judy é muito boa com Amy.
- Sei disso. Mas acontece que a sentença dela acabou. Será
solta pela manhã.
Os dois tomavam o café da manhã no confortável chalé que era
um dos privilégios do cargo de Brannigan. Outros benefícios
incluíam uma cozinheira, uma arrumadeira, um motorista e uma
governanta para a filha Amy, que tinha quase cinco anos. Todas
as criadas eram presas de confiança. Quando Sue Ellen
Brannigan ali chegara, cinco anos antes, estava nervosa com a
perspectiva de viver na área de uma penitenciária e ainda mais
apreensiva por ter a casa cheia de criadas que eram criminosas
condenadas.
- Como sabe que elas não nos roubarão e não nos cortarão a
garganta no meio da noite? - perguntara Sue Ellen.
- Se fizerem isso - prometera Brannigan - serão devidamente
punidas
Ele persuadira a esposa, sem chegar a convencê-la plenamente.
Mas ficara constatado que os temores de Sue Ellen eram
infundados. As presas de confiança estavam ansiosas em causar
uma boa impressão e reduzir sua pena ao máximo possível, por
isso se mostravam conscienciosas.
- Logo agora que eu começava a me sentir tranquila com a
idéia de deixar Amy aos cuidados de Judy - queixou-se a Sra.
Brannigan.
Ela gostava de Judy e lhe queria bem, mas não desejava que
ela fosse embora. Quem podia saber que tipo de mulher seria a
próxima governanta de Amy? Havia tantas histórias de horror
sobre as coisas terríveis que estranhas faziam com crianças.
- Já tem em mente alguém em particular para substituir Judy,
George?
O director pensara bastante a esse respeito. Havia uma dúzia
de presas de confiança em condições de assumir o encargo de
cuidar de sua filha. Mas ele não conseguia tirar Tracy Whitney
do pensamento. Havia alguma coisa no caso dela que ele achava
profundamente perturbador. Era um criminologista profissional
há 15 anos e se orgulhava de incluir entre suas qualidades a
capacidade de avaliar prisioneiras. Algumas das condenadas aos
seus cuidados eram criminosas empedernidas, outras se achavam
na prisão por terem cometido crimes de paixão ou sucumbido a
uma tentação momentânea. Mas Brannigan tinha a impressão de
que Tracy Whitney não pertencia a qualquer categoria. Ele não
fora influenciado por seus protestos de inocência, pois esse
era o procedimento normal de todas as condenadas. O que o
perturbava era o conhecimento das pessoas e haviam conspirado
para enviar Tracy Whitney à prisão. O director fora designado
por uma comissão cívica de Nova Orleans, liderada pelo
governador do Estado. Embora ele se recusasse firmemente a
qualquer envolvimento em política, sabia quem eram todos os
participantes do caso. Joe Romano era da Máfia, um subordinado
de Anthony Orsatti. Perry Pope, o advogado que defendera Tracy
Whitney, estava na folha de pagamento da Máfia, o mesmo
acontecendo com o Juiz Henry Lawrence. Não podia haver a menor
dúvida de que havia algo estranho na condenação de Tracy
Whitney. E agora, Brannigan tomou finalmente uma decisão,
declarando à esposa:
- Tenho, sim... estou pensando numa certa pessoa.
Havia uma alcova na cozinha da prisão, com uma pequena mesa de
tampo de fórmica e quatro cadeiras, o único lugar em que era
possível se ter um mínimo de privacidade. Ernestine Littlechap
e Tracy estavam sentadas ali, tomando café, durante o
intervalo de descanso de dez minutos.
- Acho que está na hora de você me contar por que toda a
pressa de sair daqui - sugeriu Ernestine.
Tracy hesitou por um instante. Podia confiar em Ernestine?
Mas não tinha opção.
- Há... há algumas pessoas que fizeram coisas à minha família
e a mim. Tenho de sair daqui para fazê-las pagar.
- É mesmo? E o que essas pessoas fizeram?
As palavras de Tracy saíram lentamente, cada palavra uma
pontada de angústia:
- Eles mataram minha mãe.
- Quem são eles?
- Não creio que os nomes signifiquem alguma coisa para você.
Joe Romano, Perry Pope, um juiz chamado Henry Lawrence,
Anthony Orsatti...
Ernestine fitava-a fixamente, com a boca escancarada.
- Santo Deus! Está querendo me gozar, garota?
Tracy ficou surpresa.
- Já ouviu falar deles?
- Se já ouvi? Mas quem não ouviu falar deles? Nada acontece
em Nova Orleans se Orsatti ou Romano não permitirem. Não pode
se meter com eles. Vão explodir você como fumaça, apagá-la por
completo.
Tracy disse, sem qualquer inflexão na voz:
- Já me apagaram.
Ernestine olhou ao redor, a fim de certificar-se que ninguém
podia ouvi-las.
- Você está louca ou então é a mulher mais estúpida que
conheci. Como pode falar assim sobre os intocáveis? - Ela
sacudiu a cabeça. - Esqueça esses homens. E depressa!
- Não posso. Tenho de sair daqui. Isso é possível?
Ernestine manteve-se em silêncio por um longo tempo. E
finalmente murmurou:
- Conversaremos no pátio
Elas estavam no pátio, num canto, isoladas.
- Já houve doze fugas daqui - disse Ernestine. - Duas das
prisioneiras foram baleadas e mortas. As outras dez foram
apanhadas e trazidas de volta.
Tracy não fez qualquer comentário e Ernestine continuou:
- A torre é guarnecida vinte e quatro horas por dia por
guardas armados de metralhadoras. Eles são uns filhos da puta.
Se alguém escapa, isso lhes custa o emprego. Por isso, não
pensam duas vezes no momento de matá-la. Há arame farpado em
torno de toda a prisão. Se você conseguir passar pelo arame
farpado e pelas metralhadoras, eles ainda têm cachorros que
podem farejar o peido de um mosquito. Há um quartel da Guarda
Nacional a poucos quilómetros daqui. Quando uma prisioneira
escapa, eles mandam helicópteros, armados e com holofotes.
Ninguém se importa se a trazem de volta viva ou morta, garota.
Acham que morta é melhor. Desencoraja qualquer outra que
esteja com planos.
- Mas as pessoas ainda tentam - insistiu Tracy,
obstinadamente.
- As que conseguiram escapar tiveram ajuda do exterior...
amigos que contrabandearam armas, dinheiro e roupas. Tinham
carros de fuga à sua espera. - Ernestine fez uma pausa, a fim
de aumentar o efeito. - E ainda assim elas foram recapturadas.
- Não vão me recapturar - garantiu, Tracy.
Uma inspectora se aproximava. E gritou para Tracy.
- O director Brannigan quer falar com você. Depressa!
- Precisamos de alguém para cuidar de nossa filha pequena -
disse Brannigan. - É um trabalho voluntário. Você não precisa
aceitar, se não quiser.
Alguém para cuidar de nossa filha pequena. A mente de Tracy
estava em disparada. Isso poderia facilitar a sua fuga.
Trabalhando na casa do director, poderia provavelmente
aprender muito mais sobre a organização da prisão.
- Eu gostaria de ficar com o trabalho - murmurou Tracy.
O director Brannigan ficou satisfeito. Tinha o sentimento
estranho e irracional de que devia alguma coisa àquela mulher.
- Óptimo. O salário é de sessenta cêntimos por hora. O
dinheiro será depositado numa conta em seu nome no final de
cada mês.
As prisioneiras não tinham permissão de manipular dinheiro, e
tudo o que ganhavam lhes era entregue no momento em que saíam
da prisão.
Não estarei aqui no final do mês, pensou Tracy. Mas, em voz
alta, ela disse:
- Será óptimo.
- Pode começar pela manhã. A inspectora-chefe lhe dará
instruções detalhadas.
- Obrigada, senhor director.
George Brannigan fitou Tracy e sentiu-se tentado a
acrescentar mais alguma coisa. Não tinha muita certeza do que
era. Mas limitou-se a murmurar:
- Isso é tudo.
Quando Tracy lhe transmitiu a notícia, Ernestine comentou,
pensativa:
- Isso significa que vão convertê-la numa presa de confiança.
Saberá como a prisão funciona. E isso pode tornar a fuga um
pouco mais fácil.
- Como posso fazer?. - perguntou Tracy.
- Tem três opções e todas são arriscadas. A primeira é uma
fuga furtiva. Usa goma de mascar uma noite para prender as
trancas de sua cela e das portas do corredor. Sai para o
pátio, joga um cobertor sobre o arame farpado, pula para o
lado de fora e começa a correr.
Com cachorros e helicópteros em seu encalço. Tracy podia
sentir as balas das armas, dos guardas a lhe dilacerarem a
carne. Ela estremeceu.
- Quais são os outros meios?
- A segunda opção é uma fuga na marra. Você usa uma arma e
leva um refém. Se a pegarem, vai levar um duque para quina. -
Ela viu a expressão de perplexidade no rosto de Tracy e
explicou. - É o aumento de sua sentença em dois a cinco anos.
- E qual é o terceiro meio?
- Um passeio. É para as presas de confiança em serviços
especiais. Assim que você se descobre fora dos muros, garota.
começa a andar e não pára mais.
Tracy pensou a esse respeito. Sem dinheiro, sem um carro e
sem um lugar para se esconder, não teria muita chance.
- Eles descobririam a fuga na primeira chamada e partiriam à
minha procura.
Ernestine suspirou.
- Não há plano de fuga perfeito, garota. É por isso que
ninguém jamais conseguiu escapar para sempre deste lugar.
Pois eu escaparei, jurou Tracy. Eu escaparei.
A manhã em que Tracy foi levada para a casa do director
Brannigan assinalou o seu quinto mês como prisioneira. Ela
estava nervosa com a perspectiva de encontrar a esposa e a
filha do director, pois queria o cargo desesperadamente. Seria
a sua chave para a liberdade.
Tracy entrou na cozinha grande e agradável e sentou-se. Pôde
sentir a gota de suor aflorar na axila e escorrer. Uma mulher
num chambre rosa-claro apareceu na porta, dizendo:
- Bom dia.
- Bom dia.
A mulher fez menção de se sentar, mudou de idéia e continuou
de pé. Sue Ellen Brannigan era uma loura de rosto simpático,
trinta e poucos anos, um comportamento vago e distraído. Era
esguia e nervosa, nunca sabia direito como tratar as presas
que a serviam como criadas. Deveria se mostrar amistosa ou
tratá-las friamente como prisioneiras? Sue Ellen ainda não se
acostumara à idéia de viver no meio de viciadas em drogas,
sequestradoras e assassinas.
- Sou a Sra. Brannigan Amy tem quase cinco anos e você sabe
como as crianças são activas nesta idade. Infelizmente, ela
precisa ser vigiada durante todo o tempo.
Ela fez uma pausa, olhando para a mão esquerda de Tracy. Não
havia aliança ali, mas também isso nada significava
actualmente. Particularmente com as classes inferiores, pensou
Sue Ellen perguntou, delicadamente:
- Você tem filhos?
Tracy pensou no filho que não chegara a nascer.
- Não.
- Entendo... - Sue Ellen sentia-se confusa com aquela mulher.
Não era absolutamente o que imaginara. Havia algo nela quase
elegante. - Vou buscar Amy.
Ela deixou apressadamente a cozinha. Tracy olhou ao redor.
Era um chalé relativamente grande, bem arrumado e
atraentemente decorado. Pareceu-lhe que já se haviam passado
muitos anos desde que entrara pela última vez na casa de
alguma pessoa. Isso tudo era parte do outro mundo... o mundo
exterior. Sue Ellen voltou, puxando uma garotinha pela mão.
- Amy, esta é... - Devia chamar uma prisioneira pelo primeiro
nome ou pelo sobrenome? Ela ficou num meio termo. Esta é Tracy
Whitney.
- Oi - disse Amy.
Ela era esguia como a mãe, tinha os mesmos olhos
castanhos-claros, fundos e inteligentes. Não era uma criança
bonita, mas irradiava uma cordialidade tão franca que chegava
a ser comovente.
Não deixarei que ela me comova, jurou Tracy.
- Você vai ser minha nova babá?
- Ajudarei sua mãe a cuidar de você.
- Sabia que Judy saiu sob livramento condicional? Você também
vai embora sob livramento condicional?
Não, pensou Tracy.
- Ficarei aqui por um longo tempo, Amy.
- Isso é óptimo, - disse Sue Ellen, jovialmente. Ela ficou
ruborizada em constrangimento, mordeu o lábio. - Isto é...
Pôs-se a andar nervosamente pela cozinha, explicando os
deveres de Tracy:
- Fará as refeições com Amy. Pode preparar o café da manhã
para ela e passar a manhã a brincar. A cozinheira fará o
almoço aqui. Depois de comer, Amy sempre tira um cochilo. à
tarde, ela gosta de passear pelo terreno da fazenda. Não acha
que é bom para uma criança ver as coisas crescendo?
- Acho, sim.
A fazenda ficava no outro lado do conjunto principal da
prisão, tinha legumes e árvores frutíferas, cultivados por
reclusas de confiança. Havia um enorme lago artificial usado
para a irrigação, cercado por um muro de pedra.
Os cinco dias subsequentes foram quase que uma vida nova para
Tracy. Em circunstâncias diferentes, ela teria desfrutado o
fato de se afastar dos muros sombrios da prisão, poder andar
livremente pela fazenda, respirar o ar puro dos campos. Mas
tudo o que podia pensar agora era em sua fuga. Quando não
estava trabalhando com Amy, ela tinha de retornar à prisão. à
noite, era sempre trancafiada, em sua cela; mas, durante o
dia, tinha a ilusão de liberdade. Depois do café da manhã na
cozinha da prisão, ela ia para o chalé do director e preparava
a primeira refeição de Amy. Tracy aprendera com Charles muita
coisa sobre cozinhar e sentia-se tentada pela variedade de
alimentos na despensa do director. Mas Amy preferia uma
refeição simples, de mingau de aveia ou cereais com frutas.
Depois, Tracy brincava com a menina ou lia para ela. Sem
pensar, Tracy pôs-se a ensinar a Amy as brincadeiras que
aprendera com a mãe.
Amy adorava marionetes. Tracy tentou lhe fazer uma cópia do
cordeiro de Shari Lewis com uma meia velha do director, mas
acabou saindo uma coisa intermediária entre uma raposa e um
pato.
- Acho que está muito bonito - comentou Amy, lealmente.
Tracy fazia a marionete falar com sotaques diferentes:
francês, italiano, alemão e o que Amy mais adorava, a cadência
mexicana de Paulita. Tracy contemplava o prazer no rosto da
criança e pensava: Não me deixarei envolver. Ela é apenas um
meio para eu sair daqui.
Depois do cochilo de Amy à tarde, as duas faziam longos
passeios. Tracy sempre dava um jeito para que percorressem
áreas da prisão que ainda não conhecia. Observava
cuidadosamente cada entrada e saída e como as torres de guarda
eram guarnecidas, registrava as mudanças de turno. Logo ficou
patente que nenhum dos planos de fuga que discutira com
Ernestine poderia dar certo.
- Alguém já tentou escapar escondendo-se num dos camiões de
entrega que trazem coisas para a prisão? Já vi camiões de
leite e de alimentos
- Esqueça - disse Ernestine, taxativamente. - Cada veículo
que entra e sai do portão é revistado.
Uma manhã, quando fazia a sua primeira refeição, Amy disse:
- Eu amo você, Tracy. Quer ser minha mãe?
As palavras provocaram uma pontada de angústia em Tracy.
- Uma mãe já é suficiente. Não precisa de duas.
- Preciso, sim. O pai de minha amiga Sally Ann casou de novo e
ela tem agora duas mães.
- Você não é Sally Ann - disse Tracy, bruscamente. - Acabe
logo de comer.
Amy fitava-a com uma expressão magoada.
- Não estou mais com fome.
- Está bem. Vou ler para você.
Quando começou a ler, Tracy sentiu a mãozinha de Amy na sua.
- Posso sentar no seu colo?
- Não.
Dê toda a sua atenção à sua própria família, pensou Tracy.
Você não pertence a mim. Nada pertence a mim.
Os dias tranquilos, longe da rotina da prisão, de certa forma
tornavam as noites piores. Tracy detestava voltar à cela,
detestava ser enjaulada como um animal. Ainda era incapaz de
se acostumar aos gritos que partiam das celas próximas, na
escuridão indiferente.
Rangia os dentes até que as mandíbulas doíam. Uma noite de
cada vez, ela prometia a si mesma. Posso suportar uma noite de
cada vez.
Ela dormia pouco, pois sua mente estava ocupada em planear. O
primeiro passo era fugir. O segundo era cuidar de Joe Romano,
Perry Pope, Juiz Henry Lawrence e Anthony Orsatti. O terceiro
era Charles. Mas esse era angustiante demais até para pensar a
esse respeito: Cuidarei disso quando chegar o momento, ela
dizia a si mesma.
Começava a se tornar impossível ficar longe do caminho de Big
Bertha. Tracy tinha certeza de que a enorme sueca a espionava.
Se Tracy ia para o salão de recreação, Big Bertha aparecia
poucos minutos depois; quando Tracy saia para o pátio, Big
Bertha lá se mostrava um momento mais tarde. Houve um dia em
que Big Bertha se aproximou de Tracy e disse:
- Está linda hoje, littbam. Mal posso esperar o momento em
que estaremos juntas.
- Fique longe de mim - advertiu Tracy.
A amazona sorriu.
- Ou o quê? Sua negra está saindo. E eu estou dando um jeito
para que você seja transferida para a minha cela.
Tracy fitou-a nos olhos. Big Bertha assentiu.
- Posso fazer isso, meu bem. Acredite em mim.
O tempo de Tracy estava se esgotando . Ela tinha de fugir
antes que Ernestine fosse solta.
O passeio predilecto de Amy era através da campina, onde havia
um arco-íris de flores silvestres. O vasto lago artificial
ficava próximo, cercado por um muro baixo de concreto, caindo
por uma boa distância para a água profunda.
- Vamos nadar - suplicou Amy. - Por favor, Tracy, podemos
nadar?
- Não é para nadar - disse Tracy - Usam a água para
irrigação.
A visão do lago frio, de aparência assustadora, fazia Tracy
sentir calafrios. O pai carregando-a para o mar nos ombros;
quando ela gritava, o pai dizia: Não seja criança, Tracy,
largando-a na água fria; e quando a água se fechava sobre a
sua cabeça, ela entrava em pânico e começava a sufocar...
Foi um choque quando a notícia chegou, embora Tracy já a
esperasse.
- Sairei daqui dentro de uma semana, a contar do sábado -
informou Ernestine.
As palavras provocaram um calafrio em Tracy. Não falaria a
Ernestine sobre a conversa com Big Bertha. Ernestine não
estaria ali para ajudá-la, Big Bertha provavelmente teria
influência suficiente para que Tracy fosse transferida para a
sua cela. O único jeito de Tracy evitar era falar com o
director; mas ela sabia que, se fizesse isso, poderia se
considerar morta. Cada presa se viraria contra ela. Você tem
de lutar, poder ou pular o muro. Pois ela pularia o muro.
Tracy e Ernestine repassaram as possibilidades de fuga.
Nenhuma delas era satisfatória.
- Você não tem carro e não tem ninguém lá fora para ajudá-la.
Certamente será apanhada e ficará então numa situação ainda
pior. É melhor esfriar e terminar sua sentença.
Mas Tracy sabia que não haveria tempo para isso. Não com Big
Bertha atrás dela. O simples pensamento do que a gigante sueca
tencionava fazer com ela deixava-a fisicamente doente.
Foi na manhã de sábado, sete dias antes da soltura de
Ernestine. Sue Ellen Brannigan levara Amy para passar o fim de
semana em Nova Orleans e Tracy trabalhava na cozinha da
prisão.
- Como vai o trabalho de babá? - perguntou Ernestine.
- Muito bem .
- Já vi a garotinha. Ela parece sensacional.
- É, sim .
O tom de Tracy era de indiferença.
- Terei o maior prazer em sair daqui. E vou lhe dizer uma
coisa: nunca mais voltarei para este lugar. Se houver alguma
coisa que Al ou eu pudermos fazer por você lá fora...
- Olha a passagem! - gritou uma voz de homem.
Tracy virou-se. Um homem empurrava um imenso carrinho de mão,
empilhado até o alto com uniformes e outras roupas sujas.
Tracy observou, perplexa, enquanto ele se encaminhava para a
saída .
- O que eu estava dizendo é que se Al e eu pudermos fazer
alguma coisa por você... sabe como é mandar coisas para você
ou...
- Ernie, o que um camião de lavanderia está fazendo aqui? A
prisão dispõe de sua própria lavanderia.
- É para os guardas. - Ernestine soltou uma risada. - Eles
costumavam mandar os uniformes para a lavanderia da prisão,
mas todos os botões acabavam arrancados, as mangas se
despregavam, bilhetes obscenos eram costurados por dentro,
camisas encolhiam, tudo se rasgava misteriosamente. Não é uma
pena? Agora, os guardas mandam as suas coisas para uma
lavanderia de fora.
Ernestine tornou a rir, na sua imitação de Butterfly McQueen.
Mas Tracy não prestava mais atenção.
11
- George, não tenho certeza se devemos manter Tracy.
O director Brannigan levantou os olhos de seu jornal.
- Por quê? Qual é o problema?
- Não sei direito. Mas tenho a impressão de que Tracy não
gosta de Amy. Talvez ela simplesmente não goste de crianças.
- Ela não tem sido má com Amy, não é mesmo? Não tem lhe batido
nem gritado?
- Não.
- Então o que é?
- Ontem Amy correu para ela e abraçou-a, mas Tracy afastou-a.
Isso me incomodou, porque Amy é louca por ela. Para dizer a
verdade, acho que estou com um pouco de ciúme. Isso é
possível?
Brannigan riu.
- Pode explicar muita coisa, Sue Ellen. Creio que Tracy
Whitney é a pessoa certa para o trabalho. Mas se ela lhe
causar algum problema de verdade, trate de me comunicar
imediatamente e tomarei uma providência.
- Está bem, querido.
Mas Sue Ellen ainda não se sentia satisfeita. Ela pegou a
agulha de tricô e pôs-se a trabalhar. O assunto ainda não
estava encerrado.
- Por que não pode dar certo?
- Já lhe disse, garota. Os guardas revistam todos os camiões
que passam pelo portão.
- Mas um camião levando roupa suja... eles não vão tirar
todas as roupas para verificar.
- Nem precisam. O cesto de roupa suja é levado para uma sala,
onde um guarda observa enquanto é enchido.
Tracy pensou por um momento.
- Ernie... alguém poderia distrair esse guarda por cinco
minutos?
- Mas de que diabo serviria... - Ela parou de falar
subitamente, um sorriso iluminando seu rosto. - Enquanto
alguém distrai o guarda, você se mete no fundo do cesto e se
cobre de roupa suja!
Ernestine balançou a cabeça, acrescentando:
- Quer saber de uma coisa? Acho que o negócio pode
perfeitamente dar certo!
- E vai me ajudar?
Ernestine pensou por um momento. E depois falou suavemente:
- Claro que a ajudarei. É a minha última oportunidade de
sacanear Big Bertha.
O serviço de informações da prisão fervilhou com a notícia da
fuga iminente de Tracy Whitney. Uma fuga era um evento que
afectava todas as prisioneiras. Elas viviam indirectamente
cada tentativa, desejando ter a coragem de executá-la
pessoalmente. Mas havia os guardas, os cães e os helicópteros;
e, ao final, os corpos das prisioneiras que eram trazidos de
volta.
Com a ajuda de Ernestine, o plano de fuga entrou rapidamente
em execução. Ernestine tirou as medidas de Tracy, Lola desviou
o material necessário para um vestido da oficina de costura,
Paulita providenciou uma costureira em outro bloco para
fazê-lo. Um par de sapatos da prisão foi roubado do
almoxarifado e pintado para combinar com o vestido. Apareceram
chapéu, luvas e uma bolsa, como num passe de mágica.
- Agora temos de arrumar alguns documentos de identidade para
você - informou Ernestine a Tracy. - Precisará de uns dois
cartões de crédito e carteira de motorista.
- Mas como eu poderia...
Ernestine sorriu.
- Basta deixar tudo isso aos cuidados da velha Ernie
Littlechap.
Na noite seguinte, Ernestine entregou a Tracy três cartões de
crédito, em nome de Jane Smith.
- Você precisa agora de uma carteira de motorista.
Em algum momento, depois da meia-noite, Tracy ouviu a porta da
cela sendo aberta. Alguém entrara sorrateiramente. Tracy
sentou-se em sua cama, instantaneamente de guarda. Uma voz
sussurrou:
- Whitney? Vamos embora.
Tracy reconheceu a voz de Lillian, uma presa de confiança.
- O que você quer?
A voz de Ernestine soou na escuridão:
- Que tipo de criança idiota sua mãe criou? Cale a boca e não
faça perguntas.
Lillian acrescentou, baixinho:
- Temos de agir depressa. Se formos tirarão o couro. Vamos
logo.
- Para onde estamos indo? - perguntou Tracy, enquanto seguia
Lillian pelo corredor escuro, na direcção de uma escada.
Elas subiram para o patamar superior. Depois de se
certificarem de que não havia guardas por perto, seguiram
apressadamente por um corredor, até a sala em que Tracy fora
fotografada e tirara as impressões digitais. Lillian empurrou
a porta, sussurrando:
- É aqui.
Tracy seguiu-a pelo interior da sala . Outra prisioneira já
estava ali, esperando.
- Encoste na parede.
A reclusa parecia bastante nervosa. Tracy foi se postar junto
à parede, o estômago todo contraído.
- Olhe para a câmara. Tente parecer relaxada.
Muito engraçado, pensou Tracy. Ela nunca se sentira tão
nervosa, em toda a sua vida. A câmara disparou.
- A fotografia será entregue pela manhã - disse a presa. - É
para sua carteira de motorista. E agora saiam daqui...
depressa!
Tracy e Lillian voltaram pelo mesmo caminho. No caminho,
Lillian comentou.
- Ouvi dizer que você vai mudar de cela.
Tracy sentiu um calafrio.
- Como?
- Não sabia? Vai para a cela de Big Bertha.
Ernestine, Lola e Paulita estavam à espera quando Tracy voltou
à cela.
- Como foi?
- Tudo bem.
Não sabia? Vai para a cela de Big Bertha.
- Seu vestido ficará pronto no sábado - informou Paulita.
O dia da soltura de Ernestine. Esse é o meu prazo final,
pensou Tracy. Ernestine sussurrou:
- Temos tudo sob controle. O recolhimento da lavanderia no
sábado é às duas horas da tarde. Você tem de estar na sala de
serviço à uma e meia. Não precisa se preocupar com o guarda.
Lola o manterá ocupado na sala ao lado. Lola e Paulita estarão
lá à sua espera. Paulita levará suas roupas. O documento de
identidade estará na bolsa. Você atravessará os portões da
prisão às duas e quinze.
Tracy sentiu alguma dificuldade em respirar. Só falar sobre a
fuga já a fazia tremer. Ninguém se importa se a trazem de
volta viva ou morta... Acham até que morta é melhor.
Dentro de poucos dias ela estaria tentando a sua fuga para a
liberdade. Não tinha ilusões. Todas as chances eram contra
ela. Acabariam por encontrá-la e trazê-la de volta. Mas tinha
uma coisa que ela jurara resolver primeiro.
O serviço de informações da prisão sabia de tudo sobre a
competição entre Ernestine Littlechap e Big Bertha por causa
de Tracy. Agora que circulara a notícia de que Tracy seria
transferida para a cela de Big Bertha, não era por acaso que
ninguém lhe mencionara o plano de fuga de Tracy. Afinal, Big
Bertha não gostava de ouvir más notícias. Era propensa com
frequência a confundir a notícia com a portadora e tratar a
pessoa de acordo. Big Bertha só teve conhecimento do plano na
própria manhã em que deveria ocorrer a fuga de Tracy. Foi-lhe
revelado pela presa de confiança que, tiraram a fotografia de
Tracy.
Big Bertha recebeu a notícia num silêncio ominoso. Seu corpo
pareceu se tornar ainda maior, enquanto escutava.
- A que horas? - foi tudo o que ela perguntou.
- Esta tarde, às duas horas, Bert. Vão escondê-la no fundo de
um cesto de roupa suja.
Big Bertha pensou a esse respeito por um longo tempo. Depois,
procurou uma inspectora e disse:
- Preciso falar imediatamente com o director Brannigan.
Tracy não dormira durante a noite inteira. Sentia-se nauseada
de tanta tensão. Os meses que passara na prisão pareciam uma
dúzia de eternidades. Imagens do passado afloraram em sua
mente enquanto estava deitada, os olhos perdidos na escuridão.
Eu me sinto como uma princesa num conto de fadas, mamãe. Não
sabia que alguém podia ser tão feliz.
Com que então você e Charles querem casar.
Estão planeando uma lua-de-mel por quanto tempo?
Você me baleou, sua puta estúpida!
Sua mãe cometeu suicídio...
Eu nunca a conheci de verdade...
A fotografia do casamento de Charles sorrindo para a noiva.
Há quantos séculos atrás? A quantos planetas de distância?
A campainha da manhã ressoou pelo corredor como uma onda de
choque. Tracy sentou no catre, inteiramente alerta. Ernestine
observava-a.
- Como está se sentindo, garota?
- Muito bem - mentiu Tracy.
Ela sentia a boca ressequida, o coração batia
descompassadamente.
- Nós duas estaremos saindo daqui hoje.
Tracy encontrou dificuldade para engolir em seco.
- Hum-hum...
- Tem certeza de que pode sair da casa do director por volta
da uma e meia?
- Não há problema. Amy sempre tira um cochilo depois do
almoço.
Paulita disse.
- Não pode se atrasar ou não dará certo.
- Estarei lá.
Ernestine meteu a mão por baixo de seu colchão e tirou um
rolo de notas.
- Precisará de algum dinheiro para circular. São apenas
duzentos dólares, mas darão para você se afastar.
- Ernie, eu não sei o que...
- Ora, garota, basta calar a boca e pegar logo o dinheiro.
Tracy forçou-se a comer alguma coisa ao café da manhã. A
cabeça latejava, cada músculo do corpo doía. Nunca conseguirei
sobreviver até o final do dia, pensou ela. Tenho de conseguir
aguentar firme durante todo o dia.
Havia um silêncio tenso e anormal na cozinha. Tracy
compreendeu subitamente que era a causa para isso. Era o alvo
de olhares furtivos e sussurros nervosos. Uma fuga estava
prestes a acontecer e ela era a heroina do drama. Dentro de
poucas horas estaria livre. Ou morta.
Ela levantou-se do café da manhã inacabado e foi para a casa
do director Warden. Enquanto esperava que um guarda abrisse a
porta do corredor, Tracy deparou com Big Bertha. A enorme
sueca estava lhe sorrindo.
Ela terá uma grande surpresa, pensou Tracy.
Ela será toda minha agora, pensou Big Bertha.
A manhã passou tão devagar que Tracy teve a impressão de que
acabaria perdendo o juízo. Os minutos pareciam se arrastar
interminavelmente. Ela leu para Amy, mas não tinha a menor
idéia do que estava lendo. Percebeu que a Sra. Brannigan
observava da janela.
- Tracy, vamos brincar de esconde-esconde.
Tracy se achava nervosa demais para brincadeiras, mas não se
atrevia a fazer qualquer coisa que pudesse despertar as
suspeitas da Sra. Brannigan.
- Claro. Por que você não se esconde primeiro, Amy?
Estavam no jardim na frente do chalé. à distância, Tracy podia
divisar o prédio em que ficava a sala de serviço. Tinha de
estar ali exactamente à uma e meia. Vestiria as roupas que lhe
haviam sido feitas e 15 minutos depois estaria deitada no
fundo do enorme cesto de roupa suja, coberta por uniformes. às
duas horas o cesto seria posto no camião e levado para fora da
prisão, seguindo para acidadezinha próxima, onde se localizava
a lavanderia.
- O motorista não pode ver o que acontece na traseira lá do
banco da frente. Quando o camião chegar à cidade e parar num
sinal vermelho, basta abrir a porta e saltar, parecendo
absolutamente calma, pegar um ónibus para qualquer lugar que
queira ir.
- Pode me ver? - gritou Amy.
Ela se escondera parcialmente por trás do tronco de uma
magnólia. Levou a mão à boca para reprimir uma risadinha.
Sentirei saudade dela, pensou Tracy. Quando for embora, as
duas pessoas de que eu terei saudade serão, uma sapatão negra
e careca e uma garotinha. Ela se perguntou o que Charles
Stanhope III pensaria disso.
- Já vou procurá-la - disse Tracy.
Sue Ellen observava a brincadeira do interior da casa.
Parecia-lhe que Tracy se comportava de maneira estranha. Ela
passara a manhã inteira olhando a todo instante para o
relógio, como se esperasse alguém; seus pensamentos não
estavam obviamente concentrados em Amy.
Devo falar com George sobre isso quando ele chegar para o
almoço, decidiu Sue Ellen. Insistirei para que ele a
substitua.
No jardim, Tracy e Amy brincaram de amarelinha por algum
tempo, depois Tracy leu para Amy- E finalmente, graças a Deus,
era meio-dia e meia, hora do almoço de Amy. E hora de Tracy
entrar em acção.
Ela levou Amy para a casa.
- Vou embora agora, Sra. Brannigan.
- Como? hen... Ninguém lhe disse, Tracy? Temos hoje uma
delegação de visitantes importantes. Almoçarão aqui e por isso
Amy não tirará seu cochilo. Pode levá-la com você.
Tracy ficou imóvel, fazendo um tremendo esforço para não
gritar.
- Eu... eu não posso fazer isso, Sra. Brannigan.
Sue Ellen Brannigan empertigou-se.
- Que história é essa de que não pode fazer isso?
Tracy percebeu a ira no rosto da mulher e pensou: Não posso
irritá-la. Ela chamará o director e serei levada de volta à
minha cela. Tracy forçou um sorriso.
- Eu estava querendo dizer... Amy não almoçou. Ela sentirá
fome.
- Mandei a cozinheira preparar uma cesta de piquenique para
vocês duas. Podem sair para um passeio pela campina e comer
lá. Amy adora piqueniques... não é mesmo, querida?
- Adoro piqueniques. - Ela olhou para Tracy com uma expressão
suplicante. - Podemos ir, Tracy? Podemos?
Não! Sim. Cuidado. Ainda pode dar certo.
Esteja na sala de serviço à uma e meia. Não se atrase.
Tracy virou-se para a Sra. Brannigan.
- A que horas... quer que eu traga Amy de volta?
- Por volta das três horas. A esta altura, eles já deverão
ter ido embora.
E o camião da lavanderia também! O mundo desmoronava sobre
Tracy.
- Eu...
- Sente-se bem? Parece muito pálida.
Era isso! Ela diria que estava doente. Iria para o hospital.
Mas, nesse caso, haveriam de querer examiná-la e a manteriam
lá. Nunca conseguiria se esquivar a tempo. Tinha de haver
algum outro meio.
A Sra. Brannigan fitava-a fixamente.
- Estou bem.
Há alguma coisa errada com ela, concluiu Sue Ellen Brannigan.
Não dá mais para adiar. Pedirei a George que arrume outra
pessoa. Os olhos de Amy brilhavam de alegria.
- Eu darei a você os sanduíches maiores, Tracy. E vamos nos
divertir muito, não é mesmo?
Tracy não tinha resposta a dar.
Era uma visita de surpresa. O próprio Governador William,
Haber acompanhava o comité de reforma penitenciária. Era uma
coisa que Brannigan tinha de suportar uma vez por ano.
- É algo inevitável ao cargo, George - explicara o
governador. - Basta limpar o lugar, mandar as suas mulheres
sorrirem bonito e teremos outro aumento no orçamento.
O chefe da guarda dera o aviso naquela manhã:
- Livrem-se de todos os tóxicos, facas e consolos.
O Governador Haber e sua comitiva deveriam chegar às 10
horas, inspeccionariam primeiro o interior da penitenciária,
visitariam a fazenda e depois almoçariam no chalé do director.
Big Bertha estava impaciente. Fora informada ao apresentar o
pedido para falar com o director:
- O director estará muito ocupado hoje. Amanhã seria mais
fácil. Ele...
- Foda-se amanhã! - explodira Big Bertha. - Quero falar com
ele agora. É importante.
Havia poucas reclusas que poderiam escapar impunes a uma
reacção assim, mas Big Bertha era uma delas. As autoridades da
prisão estavam perfeitamente a par de seu poder. Haviam
testemunhado Big Bertha desencadear motins e também
suspendê-los. Nenhuma prisão do mundo podia ser controlada sem
a cooperação dos líderes dos reclusos... e Big Bertha era uma
líder.
Ela se encontrava sentada na sala de espera do gabinete do
director há quase uma hora, o corpo imenso transbordando da
cadeira. Ela é uma criatura de aspecto repulsivo, pensou a
secretária do director. E me deixa arrepiada.
- Quanto tempo mais? - indagou Big Bertha.
- Não deve demorar muito mais. Ele está com um grupo
importante esta manhã, muito ocupado.
Big Bertha disse:
- Pois ele vai ficar ainda mais ocupado.
Ela olhou para o relógio. Faltavam 15 minutos para uma hora.
Tempo suficiente.
Era um dia perfeito, sem nuvens e quente, uma brisa amena
espalhava uma mistura de fragrâncias pela campina verdejante.
Tracy estendera uma toalha sobre a relva, perto do lago, Amy
mastigava feliz um sanduíche de salada de ovo. Tracy olhou
para seu relógio. Já era uma hora da tarde. Ela não pôde
acreditar. A manhã se arrastara lentamente, mas a tarde
parecia voar. Tinha de pensar em alguma coisa depressa ou o
tempo a privaria de sua última chance de alcançar a liberdade.
Uma e dez. No gabinete de Brannigan, sua secretária desligou o
telefone e disse a Big Bertha:
- Sinto muito. O director diz que é impossível falar com você
hoje. Marcaremos outra reunião para...
Big Bertha levantou-se abruptamente.
- Mas ele tem de me receber! É...
- Passaremos a reunião para amanhã.
Big Bertha já ia dizer "Amanhã será tarde demais", mas
conteve-se a tempo. Somente o próprio director podia saber o
que ela estava fazendo. As delatoras costumavam sofrer
acidentes fatais. Mas ela não tinha a menor intenção de
desistir. Não havia possibilidade de permitir que Tracy
Whitney lhe escapasse. Ela foi para a biblioteca da prisão,
sentou-se numa das mesas compridas no fundo da sala. Escreveu
um bilhete. Assim que a inspectora se afastou por um corredor,
a fim de ajudar uma reclusa, Big Bertha largou o bilhete em
sua mesa e se retirou.
Quando a inspectora voltou, encontrou o bilhete e abriu-o. Leu
duas vezes:
É MELHOR VERIFICAR O CamiãO DA LAVANDERIA
HOJE
Não havia assinatura. Uma brincadeira? A inspectora não tinha
meio de saber com certeza. Ela pegou o telefone.
- Ligue-me com o superintendente dos guardas...
Uma e doze.
- Você não está comendo - disse Amy. - Quer um pedaço do meu
sanduíche?
- Não! Deixe-me em paz!
Tracy não tivera intenção de falar tão asperamente. Amy parou
de comer.
- Está zangada comigo, Tracy? Por favor, não fique zangada
comigo. Eu a amo muito. E nunca fiquei zangada com você.
Os olhos ternos da menina estavam cheios de mágoa.
- Não estou zangada.
Ela estava no inferno.
- Também não sinto fome, se você não sente. Vamos jogar bola,
Tracy.
Amy tirou a sua bola de borracha do bolso.
Uma e dezasseis. Ela deveria estar a caminho. Levaria pelo
menos 15 minutos para chegar à sala de serviço. Poderia chegar
a tempo, se se apressasse. Mas não podia deixar Amy sozinha.
Tracy olhou ao redor. Avistou à distância um grupo de presas
de confiança, colhendo os produtos da plantação. E no mesmo
instante Tracy compreendeu o que ia fazer.
- Não quer jogar bola, Tracy?
Tracy levantou-se.
- Quero, sim. Vamos fazer um jogo novo. Quem consegue jogar a
bola mais longe. Eu jogarei primeiro e depois será a sua vez.
Tracy pegou a bola de borracha dura e jogou o mais longe que
podia, na direcção das trabalhadoras.
- Puxa, foi sensacional! - comentou Amy, com genuína
admiração. - É um bocado longe.
- Vou buscar a bola - disse Tracy. - Fique esperando aqui.
E no instante seguinte ela estava correndo, correndo por sua
vida, os pés voando pelos campos. Uma e dezoito. Se atrasasse
um pouco, esperariam por ela. Ou não? Tracy correu ainda mais
depressa. Por trás dela, ouviu Amy gritando, mas não deu
atenção. As mulheres que trabalhavam na plantação se
deslocavam agora na outra direcção. Tracy gritou-lhes e elas
pararam. Estava ofegante quando alcançou-as.
- Algum problema? - perguntou uma delas.
- Não... nada. - Tracy ofegava, lutando para respirar. - A
garotinha lá atrás. Uma de vocês cuide dela. Tenho algo
importante para fazer e...
Ela ouviu seu nome ser chamado Á distância e virou-se. Amy
estava em cima do muro de concreto que cercava o lago. E
acenava.
- Olhe para mim, Tracy.
- Não! - gritou Tracy. - Desça daí!
E enquanto Tracy observava, horrorizada, Amy perdeu o
equilíbrio e mergulhou no lago.
- Oh, Deus!
O sangue esvaiu-se do rosto de Tracy. Ela tinha uma opção a
fazer... só que não havia qualquer opção. Não posso ajudá-la.
Não agora. Alguém mais a salvará. Eu tenho de salvar a mim
mesma. Tenho de sair deste lugar ou morrerei. Era uma e vinte.
Tracy virou-se e recomeçou a correr, mais depressa do que
jamais o fizera em toda a sua vida. As outras chamaram-na, mas
ela não lhes deu atenção. Voava pelo ar, sem perceber que
perdera os sapatos, sem se importar que o chão estivesse lhe
cortando os pés. O coração batia forte, os pulmões pareciam
prestes a estourar, mas ela se obrigava a correr cada vez mais
depressa. Alcançou o muro em torno do lago e pulou em cima. Lá
embaixo, podia avistar Amy na água profunda e aterradora,
debatendo-se para permanecer à tona. Sem um segundo de
hesitação, Tracy pulou atrás dela. E, no instante em que bateu
na água, Tracy pensou: Oh, meu Deus! Não sei nadar...
LIVRO DOIS
12
Nova Orleans
SEXTA-FEIRA, 25 DE AGOSTO - 10 HORAS
Lester Torrance, um caixa do First Mercharits Bank de Nova
Orleans, orgulhava-se de duas coisas: suas proezas sexuais com
as mulheres e sua capacidade de avaliar os clientes. Lester
era um homem que se aproximava dos 50 anos, magro, rosto
pálido, um bigode de Tom Selleck, suiças compridas. Já fora
preterido duas vezes numa promoção; em represália, Lester
usava o banco como um serviço de encontros pessoa is. Podia
reconhecer vigaristas a um quilómetro de distância e gostava
de tentar persuadi-las a lhe conceder seus favores de graça.
As viúvas solitárias eram presas especialmente fáceis.
Apresentavam-se em todos os formatos, idades e estados de
desespero, mais cedo ou mais tarde surgiam no guinche de
Lester. Se estavam temporariamente a descoberto, Lester se
mostrava compreensivo e retardava os cheques que chegavam pela
compensação. Em troca, não poderiam talvez ter um tranquilo
jantar a sós? Muitas de suas clientes lhe solicitavam ajuda e
confidenciavam segredos deliciosos: Precisavam de um
empréstimo sem o conhecimento do marido... Queriam manter
confidenciais determinados cheques que haviam emitido...
Estavam cogitando de um divórcio; Lester não poderia ajudar a
encerrar imediatamente a conta conjunta?... Lester mostrava-se
sempre ansioso em agradar. E em ser agradado.
Lester compreendeu que tirara a sorte grande naquela manhã de
sexta-feira em particular. Viu a mulher no momento em que ela
passou pela porta do banco. Era absolutamente espectacular.
Tinha cabelos pretos lustrosos caindo pelos ombros, usava uma
saia e uma suéter justas que delineavam um corpo que faria
inveja a uma corista de Las Vegas.
Havia quatro caixas no banco e os olhos da jovem se
deslocaram de um guinche para outro, como se procurasse ajuda.
Quando ela olhou para Lester, ele acenou com a cabeça
ansiosamente e presenteou-a com um sorriso encorajador. Ela se
aproximou de seu guinche, como Lester sabia que aconteceria.
- Bom dia - disse Lester, efusivamente. - Em que posso
servi-la?
Ele podia ver os mamilos se comprimindo contra a suéter de
cashmere e pensou: Meu bem, quanta coisa eu gostaria de fazer
por você!
- Receio estar com um problema - disse a mulher, suavemente.
Ela possuía o mais delicioso sotaque sulista que Lester já
ouvira.
- É para isso que estou aqui - disse ele, exuberante. - Para
resolver problemas.
- Espero que sim. Infelizmente, fiz uma coisa horrível.
Lester ofereceu-lhe o seu melhor sorriso paternal, o sorriso
pode-contar-comigo.
- Não consigo acreditar que alguém tão adorável como você
tenha feito alguma coisa horrível.
- Mas eu fiz! - Os olhos castanhos suaves estavam arregalados
pelo pânico. - Sou a secretária de Joseph Romano. Ele me
mandou providenciar um novo talão de cheques de sua conta há
uma semana e eu simplesmente esqueci. Os cheques agora
acabaram e não sei o que ele fará comigo quando descobrir que
não providenciei outro talão.
A explicação saiu num ímpeto suave, aveludado. Lester
conhecia muito bem o nome de Joseph Romano. Era um importante
cliente do banco, embora mantivesse quantias relativamente
reduzidas em sua conta. Todos sabiam que o seu verdadeiro
dinheiro era "lavado" em outros lugares.
Ele certamente tem um excelente gosto em matéria de
secretárias, pensou Lester, tornando a sorrir.
- Ora, isso não é tão sério assim, Sra....
- Senhorita Hartford... Lureen Hartford.
Senhorita Era o seu dia de sorte. Lester pressentiu que tudo
correria de maneira esplêndida.
- Pedirei imediatamente um novo talão de cheques. Deverá o
receber dentro de duas ou três semanas e...
Ela deixou escapar um pequeno gemido, um som que pareceu a
Lester conter uma promessa infinita.
- Oh, mas isso já seria tarde demais e o Sr. Romano anda muito
zangado comigo! Não consigo manter meus pensamentos
concentrados no trabalho, entende?
Ela inclinou-se para a frente, os seios tocando o guinche, e
acrescentou, num sussurro:
- Se pudesse dar um jeito de apressar o talão, eu pagaria um
preço extra.
Lester disse, pesaroso:
- Infelizmente, Lureen, seria impossível...
Ele parou de falar percebendo que ela estava à beira das
lágrimas.
- Para dizer a verdade, isso pode custar meu emprego. Por
favor... farei qualquer coisa.
As palavras soaram como música nos ouvidos de Lester.
- Darei um jeito, Lureen. Pedirei um prazo especial e poderá
receber na segunda-feira. Está bom assim?
- Oh, você é maravilhoso!
A voz dela transbordava de gratidão.
- Mandarei para o escritório e...
- Seria melhor se eu viesse buscar pessoalmente. Não quero
que o Sr. Romano saiba como fui estúpida.
Lester sorriu, indulgentemente.
- Não tem nada de estúpida, Lureen. Todos esquecemos às vezes
de algumas coisas.
Ela murmurou:
- Nunca o esquecerei. Até segunda-feira.
- Estarei à sua espera.
Seria preciso estar com as duas pernas quebradas para que ele
ficasse em casa. Ela presenteou-o com um sorriso deslumbrante
e saiu do banco, andando devagar, oferecendo um espectáculo
inesquecível. Lester sorria ao se inclinar sobre um arquivo,
verificando o número da conta de Joseph Romano e telefonando
para pedir outro talão de cheques.
O hotel na Carmen Street não se distinguia de uma centena de
outros hotéis em Nova Orleans e fora justamente por isso que
Tracy o escolhera. Ela ocupava um quarto pequeno, com uma
decoração ordinária, há uma semana. Em comparação com a cela
na penitenciária, era um palácio para ela.
Ao voltar do encontro com Lester, ela tirou a peruca preta,
passou os dedos por seus próprios cabelos abundantes, removeu
as lentes de contacto e limpou com creme a maquilhagem escura.
Sentou na única cadeira no quarto e respirou fundo. Tudo
estava correndo bem. Fora fácil descobrir onde Joe Romano
tinha a sua conta bancária. Tracy verificara o cheque
cancelado do espólio de sua mãe, emitido por Joe Romano.
Joe Romano? Você não pode tocar nele, dissera Ernestine.
Pois Ernestine estava enganada. Joe Romano era apenas o
primeiro. Os outros se seguiriam. Um a um.
Ela fechou os olhos e reconstituiu o milagre que a levara até
ali...
Ela sentiu as águas frias e escuras fechando-se sobre a sua
cabeça. Estava se afogando, dominada pelo terror. Mergulhou e
suas mãos encontraram a criança, agarrando-a e puxando-a para
a superfície. Amy debateu-se em pânico cego para se
desenvencilhar, tornando a arrastar as duas para o fundo,
sacudindo braços e pernas freneticamente. Os pulmões de Tracy
pareciam prestes a estourar. Ela lutou para emergir daquele
túmulo de água, agarrando a menina firmemente. Sentiu que suas
forças se desvaneciam. Não vamos conseguir, pensou ela.
Estamos perdidas. Vozes chamavam e ela sentiu o corpo de Amy
escapar de seus braços. E gritou:
- Oh, Deus, não!
Mãos fortes seguravam a cintura de Tracy e uma voz disse:
- Está tudo bem agora. Fique calma. Já acabou.
Tracy olhou ao redor, desesperada, à procura de Amy.
Descobriu a menina sã e salva nos braços de um homem. E
momentos depois as duas foram retiradas da água profunda e
cruel...
O incidente não teria merecido mais que um parágrafo numa
página interna dos jornais da manhã se não fosse pelo fato de
uma prisioneira que não sabia nadar ter arriscado a vida para
salvar a filha do director. Da noite para o dia, os jornais e
as emissoras de televisão transformaram Tracy numa heroina. O
próprio Governador Haber foi ao hospital da prisão junto com o
director Brannigan para visitar Tracy.
- Foi um ato de extrema coragem de sua parte - disse o
director. - A Sra. Brannigan e eu queremos que saiba que,
somos profundamente gratos.
A voz dele estava embargada de emoção. Tracy ainda se sentia
fraca e abalada da emoção.
- Como está Amy?
- Ela ficará boa.
Tracy fechou os olhos. Eu não poderia suportar se alguma
coisa acontecesse com a menina, pensou ela. Lembrou-se de sua
frieza, quando tudo o que a menina queria era amor. E
sentiu-se envergonhada. O incidente lhe custara a chance de
escapar, mas Tracy sabia que, nas mesmas circunstâncias, faria
tudo de novo.
Houve um inquérito sumário sobre o acidente.
- A culpa foi minha - disse Amy ao pai. - Estávamos jogando
bola. Tracy correu atrás da bola e me disse para esperar. Mas
eu subi no muro para poder ver Tracy melhor, acabei caindo na
água. Mas Tracy me salvou, papai.
Mantiveram Tracy em observação no hospital naquela noite. Ela
foi conduzida ao gabinete do director Brannigan na manhã
seguinte. Os meios de comunicação a aguardavam. Sabiam
reconhecer uma história de interesse humano quando a
encontravam e lá estavam correspondentes da UPI e Associated
Press. A emissora de televisão local mandara uma equipe.
A notícia do heroísmo de Tracy se espalhou naquela tarde. O
relato do seu ato de salvação foi divulgado pela televisão
nacional e transformou-se numa autêntica bola de neve. Time,
Newsweek, People e centenas de jornais de todo o país
publicaram a história. à medida que a cobertura da imprensa
continuava, cartas e telegramas se despejaram sobre a
penitenciária, exigindo o perdão de Tracy Whitney.
O Governador Haber discutiu o assunto com o director
Brannigan.
- Tracy Whitney está aqui por crimes graves - comentou o
director.
O governador ficou pensativo.
- Mas ela não tinha antecedentes, não é mesmo, George?
- Não, senhor, não tinha.
- Não me importo de lhe contar: estou sofrendo uma tremenda
pressão para fazer alguma coisa por ela.
- Eu também, governador.
- É claro que não podemos deixar o público nos dizer como
devemos dirigir nossas prisões, não é mesmo?
- Claro que não.
- Por outro lado, a garota Whitney certamente demonstrou uma
coragem extraordinária. E se tornou uma heroina.
- Não resta a menor dúvida.
O governador fez uma pausa para acender um charuto.
- Qual é a sua opinião, George?
George Brannigan escolheu suas palavras com todo cuidado.
- Deve saber, governador, que tenho um interesse muito
especial neste caso. Mas, mesmo pondo isso de lado, não creio
que Tracy Whitney seja do tipo criminoso. Não posso acreditar
que ela constituísse uma ameaça à sociedade, se estivesse
solta no mundo. Minha recomendação é que lhe conceda o perdão.
O governador, que estava prestes a anunciar sua candidatura a
um novo mandato, sabia reconhecer uma boa idéia quando a
ouvia.
- Vamos esperar mais um pouco.
Em política, a escolha do momento certo era tudo.
Depois de conversar sobre o assunto com o marido, Sue Ellen
disse a Tracy:
- O director Brannigan e eu gostaríamos muito que viesse
morar no chalé. Temos um quarto vago nos fundos. Você pode
tomar conta de Amy a tempo integral.
- Obrigada - disse Tracy, sinceramente agradecida. - Nada
poderia me dar mais prazer.
Tudo corria à perfeição. Não apenas Tracy não precisava mais
passar a noite trancafiada numa cela, mas também o seu
relacionamento com Amy mudou completamente. Amy adorava Tracy
e Tracy retribuía. Gostava da companhia daquela garota
inteligente e amorosa. Divertiam-se com brincadeiras antigas,
assistiam a filmes de Disney pela televisão, liam juntas. Era
quase como ser parte da família.
Mas sempre que tinha de fazer alguma coisa nas celas, Tracy
invariavelmente esbarrava em Big Bertha.
- Você é uma sacana de sorte - resmungava Big Bertha. - Mas
um dia, muito em breve, voltará para cá, junto das presas
comuns. Estou trabalhando para isso, littbam.
Três semanas depois da salvação de Amy, Tracy brincava com a
menina no jardim da frente quando Sue Ellen Brannigan saiu
apressadamente da casa. Parou por um momento, observando-as,
antes de dizer:
- Tracy, o director acaba de telefonar. Gostaria de lhe falar
imediatamente em seu gabinete.
Tracy foi invadida por um medo repentino. Aquilo significava
que seria transferida de volta à prisão? Big Bertha usara a
sua influência para conseguir isso? Ou a Sra. Brannigan
chegara à conclusão de que Amy e Tracy estavam se tornando
chegadas demais?
- Está bem, Sra. Brannigan.
O director esperava na porta de sua sala quando Tracy chegou,
devidamente escoltada.
- É melhor você sentar - disse ele.
Tracy tentou descobrir uma indicação do seu destino pelo tom
de voz de Brannigan.
- Tenho notícias para você. - Ele fez uma pausa, dominado por
uma emoção que Tracy não podia compreender. - Acabei de
receber uma ordem do governador da Louisiana, concedendo-lhe o
perdão, a entrar em vigor imediatamente.
Santo Deus, ele disse mesmo o que julgo ter ouvido? Tracy
ficou com medo de falar.
- Quero que saiba que isso não está sendo feito porque foi a
minha filha que você salvou - continuou o director. - Você
agiu instintivamente, como qualquer cidadão decente teria
feito. Não há a menor possibilidade de eu acreditar que você
seria uma ameaça à sociedade.
Ele fez uma pausa, sorrindo, antes de, acrescentar:
- Amy sentirá muita saudade de você. E nós também.
Tracy não tinha palavras. Se o director soubesse a verdade...
que seus homens a estariam caçando como uma fugitiva, se o
acidente não tivesse ocorrido...
- Será libertada depois de amanhã.
Tracy ainda não era capaz de absorver.
- Eu... eu não sei o que dizer...
- Não precisa dizer nada. Todos aqui sentem muito orgulho de
você. A Sra. Brannigan e eu esperamos que faça grandes coisas
lá fora.
Então era verdade: Ela estava livre. Tracy sentia-se tão
fraca que teve de se apoiar na mesa do director. Mas sua voz
era segura quando finalmente falou:
- Há muitas coisas que eu quero fazer, director Brannigan.
No seu último dia na prisão, Tracy foi procurada por uma
companheira do seu antigo bloco.
- Então você vai sair.
- É verdade.
A mulher, Betty Franciscus, tinha quarenta e poucos anos,
ainda era atraente, com uma aura de orgulho.
- Se precisar de ajuda lá fora, há um homem em Nova York que
deve procurar. O nome dele é Conrad Morgan. - Ela entregou um
papel a Tracy. - Ele se empenha na reforma criminal. E gosta
de ajudar as pessoas que já passaram pela prisão.
- Obrigada, mas acho que não precisarei...
- Nunca se sabe. Guarde o endereço.
Duas horas depois Tracy passava andando pelos portões da
penitenciária, diante das câmaras de televisão. Ela não
falaria com os repórteres. Mas quando Amy se desenvencilhou da
mãe e correu para se jogar nos braços de Tracy, as câmaras
enlouqueceram. Foi a imagem que apareceu em todos os serviços
noticiosos daquela noite.
A liberdade para Tracy não era mais simplesmente uma palavra
abstracta. Era uma coisa concreta, uma condição física a ser
desfrutada e saboreada. Significava respirar ar fresco,
privacidade, não entrar em fila para comer, não ouvir
campainhas. Significava banhos quentes e sabonetes perfumados,
lingerie macia, bonitos vestidos, sapatos de saltos altos.
Significava ter um nome ao invés de um número. Liberdade
significava escapar de Big Bertha e bandos de estupradoras, da
terrível monotonia da rotina da prisão.
A liberdade recém-descoberta de Tracy exigiu que ela se
habituasse aos poucos. Andando por uma rua, ela tomava cuidado
para não esbarrar em ninguém. Na penitenciária, esbarrar em
outra presa podia ser a faísca que desencadearia um incêndio.
O mais difícil para Tracy era se ajustar à ausência de ameaça
constante. Ninguém a ameaçava.
Ela estava livre para executar seus planos.
Em Filadélfia, Charles Stanhope III viu Tracy pela televisão,
saindo da penitenciária. Ela ainda é linda, pensou ele.
Observando-a, pareceu-lhe impossível que ela tivesse cometido
os crimes pelos quais fora condenada. Ele olhou para sua
esposa exemplar, sentada placidamente no outro lado da sala,
tricotando. Será que cometi um erro?
Daniel Cooper viu Tracy no serviço noticioso da televisão em
seu apartamento em Nova York. Manteve-se totalmente
indiferente ao facto dela sair da prisão. Desligou o aparelho
e voltou a se concentrar no arquivo em que trabalhava.
Joe Romano soltou uma risada quando assistiu à notícia da
televisão. A garota Whitney tinha muita sorte. Aposto que a
prisão foi uma boa coisa para ela. Deve estar com o maior
tesão a esta altura. Talvez um dia desses tornemos a nos
encontrar.
Romano estava muito satisfeito consigo mesmo. Já entregara a
um receptador o Renoir, que fora comprado por um coleccionador
particular de Zurique. Meio milhão de dólares da seguradora,
outros 250 mil do receptador. Naturalmente, Romano dividira o
dinheiro com Anthony Orsatti. Era muito meticuloso em suas
transacções com Orsatti, pois já testemunhara o que acontecia
com as pessoas que não eram correctas em seus negócios com o
chefão de Nova Orleans.
Na segunda-feira, ao meio-dia, apresentando-se como Lureen
Hartford, Tracy voltou ao First Merchants Bank de Nova
Orleans, àquela hora, apinhado de clientes. Diversas pessoas
formavam uma fila diante do guinche de Lester Torrance. Tracy
entrou na fila. Quando a viu, Lester ficou radiante e acenou
com a cabeça. Ela era ainda mais fina do que ele se lembrara.
E quando Tracy chegou finalmente ao guinche, Lester disse,
exultante:
- Não foi fácil, Lureen, mas fiz isso por você.
Um sorriso ardente iluminou o rosto de Lureen.
- Você é maravilhoso.
- Está aqui mesmo. - Lester abriu uma gaveta, retirou o talão
de cheques que guardara cuidadosamente e entregou a ela. -
Aqui estão. São quatrocentos cheques. Será suficiente?
- Oh, mais do que suficiente, a menos que o Sr. Romano resolva
fazer uma orgia de preenchimento de cheques. - Ela fitou
Lester nos olhos e suspirou. - Salvou-me a vida.
Lester sentiu uma agradável comichão na virilha.
- Acredito que as pessoas devem ser prestativas com as
outras. Não concorda, Lureen?
- Tem toda a razão, Lester.
- Você também deveria abrir uma conta aqui, Lureen. Eu
cuidaria bem de você. Muito bem mesmo.
- Sei que cuidaria - respondeu Tracy, suavemente.
- Por que nós dois não conversamos a esse respeito durante um
jantar sossegado em algum lugar?
- Eu adoraria.
- Onde posso encontrá-la, Lureen?
- Eu telefonarei para si, Lester.
Ela se afastou.
- Espere um...
O cliente seguinte já se adiantara, entregando ao frustrado
Lester um saco com moedas.
No meio do banco havia quatro mesas, em que se encontravam
fichas de depósitos em branco. Todas as mesas se achavam
ocupadas por pessoas empenhadas em preencher as fichas. Tracy
afastou-se para um ponto em que Lester não poderia vê-la.
Assim que um cliente abriu vaga numa mesa, Tracy ocupou o seu
lugar. Lester lhe entregara oito talões de cheques. Mas não
era nos cheques que Tracy estava interessada e sim nas fichas
de depósitos, no fundo dos talões.
Ele separou cuidadosamente as fichas de depósitos dos cheques;
em menos de três minutos tinha 80 fichas de depósitos na mão.
Certificando-se de que não era observada, Tracy colocou 20
fichas de depósitos na estante de metal sobre a mesa.
Deslocando-se para a mesa seguinte, ela deixou ali outras 20
fichas de depósitos. Em poucos minutos distribuíra todas pelas
diversas mesas. As fichas de depósitos estavam em branco, mas
cada uma continha um código magnetizado na base; o computador
creditaria automaticamente cada depósito na conta de Joe
Romano. Pela sua experiência trabalhando num banco, Tracy
sabia que em dois dias todas as fichas de depósitos
magnetizadas teriam sido usadas e que transcorreriam pelo
menos cinco dias antes que a confusão fosse descoberta. Isso
lhe proporcionaria tempo mais do que suficiente para o que
planeava fazer.
Voltando para o hotel, Tracy largou os cheques em branco numa
cesta de lixo. O Sr. Joe Romano não precisaria deles.
A próxima parada de Tracy foi na Agência de Viagens Holiday
de Nova Orleans. A moça por trás do balcão perguntou-lhe:
- O que deseja?
- Sou a secretária de Joseph Romano. O Sr. Romano quer fazer
uma reserva para o Rio de Janeiro. Tenciona viajar nesta
sexta-feira.
- Só uma passagem?
- Isso mesmo. Primeira classe. Uma poltrona no corredor. E na
secção de fumantes, por favor.
- Passagem de ida e volta?
- Só de ida.
A moça virou-se para o terminal de computador. E informou
alguns segundos depois:
- Está tudo acertado. Uma poltrona em primeira classe no Voo
728 da Pan American, partindo às 6 e 35 da tarde de
sexta-feira, com uma rápida escala em Miami.
- Ele ficará muito satisfeito - assegurou Tracy.
- São 1.929 dólares. Pagamento à vista ou facturado?
- O Sr. Romano sempre paga à vista. Na entrega. Pode fazer o
favor de enviar a passagem a seu escritório na quinta-feira?
- Podemos entregar amanhã, se quiser.
- O Sr. Romano não estará no escritório amanhã. Pode deixar
para as onze horas de quinta-feira?
- Claro. Qual é o endereço?
- Sr. Joseph Romano, Poydras Street, 217, Suíte 408.
A mulher anotou.
- Está certo. Providenciarei para que a passagem seja
entregue na manhã de quinta-feira.
- às onze horas em ponto - disse Tracy. - Obrigada.
A meio quarteirão de distância ficava a Loja de Malas Acme.
Tracy observou a vitrine antes de entrar. Um vendedor
aproximou-se.
- Bom dia. Em que posso servi-la?
- Quero comprar uma mala para meu marido.
- Pois veio ao lugar certo. Estamos fazendo uma liquidação.
Temos algumas malas óptimas e baratas...
- Não, obrigada.
Tracy encaminhou-se para um mostruário de malas Vuitton,
encostado numa parede.
- Isto é mais o que estou procurando. Vamos fazer uma viagem.
- Estou certo que ele ficará satisfeito com uma destas. Temos
três tamanhos diferentes. Qual deles...
- Levarei uma mala de cada tamanho.
- Ahn... Óptimo. Pagamento à vista ou a prazo?
- Contra entrega. O nome é Joseph Romano. Poderia entregar no
escritório de meu marido na manhã de quinta-feira?
- Claro, Sra. Romano.
- às onze horas?
- Providenciarei tudo pessoalmente.
Como só agora se lembrasse disso, Tracy acrescentou:
- Ah, sim.... poderia pôr as iniciais de meu marido nas
malas... em ouro? J. R.
- Claro. Será um prazer, Sra. Romano.
Tracy sorriu e deu o endereço do escritório.
Numa agência próxima da Westem Union, Tracy mandou um
telegrama para o Rio Othon. Palace, na Praia de Copacabana, no
Rio de Janeiro:
QUERO RESERVAR SUÍTE, MAIS CARA A PARTIR DESTA
SEXTA-FEIRA POR DOIS MESES. CONFIRMEM POR FAVOR
EM TELEGRAMA A COBRAR. JOSEPH ROMANO, POYDRAS
STREET, 217, SUÍTE, 408, NOVA ORLEANS, LOUISIANA,
EUA.
Tracy telefonou para o banco três dias depois e pediu para
falar com Lester Torrance. Ao ouvir a voz dele, ela disse
suavemente:
- Provavelmente não se lembra de mim, Lester, mas aqui é
Lureen Hartford, a secretária do Sr. Romano...
Não se lembrava dela? A voz de Lester soou extremamente
ansiosa:
- Mas é claro que me lembro de você, Lureen! Eu...
- Lembra mesmo? Ora, eu me sinto lisonjeada. Deve conhecer
uma porção de pessoas.
- Mas não como você. Não esqueceu o nosso compromisso para o
jantar, não é mesmo?
- Não pode imaginar como estou ansiosa por essa oportunidade.
Poderia ser na próxima terça-feira, Lester?
- Claro!
- Então está combinado. Oh, mas que idiota que eu sou! Você me
deixou tão excitada que quase esquecia o motivo para o
telefonema. O Sr. Romano pediu-me para conferir seu saldo.
Podia me dizer a cifra?
- Não há problema.
Normalmente, Lester Torrance teria pedido a data de
nascimento ou alguma forma de identificação da interlocutora.
Mas, naquele caso, isso não era necessário. De jeito nenhum.
- Espere um instante, Lureen.
Ele foi até o arquivo e puxou a ficha de Joseph Romano. Teve
uma surpresa. Houvera diversos depósitos na conta de Romano
durante os últimos dias. Romano nunca mantivera tanto dinheiro
em sua conta antes. Lester Torrance se perguntou o que estaria
acontecendo. Obviamente, alguma transação em larga escala.
Arrancaria toda a história quando jantasse com Lureen
Hartford. Uma pequena informação confidencial nunca fazia mal.
Ele voltou ao telefone.
- Seu patrão vem nos mantendo bastante ocupados. Ele tem
pouco mais de trezentos mil dólares em sua conta.
- Isso é óptimo. Confere com os meus cálculos.
- Ele não gostaria que transferíssemos uma parte para uma
conta de investimentos? Não haverá juros como está e eu
poderia...
- Não. Ele quer deixar o dinheiro assim mesmo.
- Muito bem.
- Obrigada, Lester. Você é maravilhoso.
- Ei, espere um momento! Devo telefonar para o seu escritório
a fim de acertar o jantar na terça-feira?
- Eu telefonarei para você.
A ligação foi cortada.
O moderno prédio do escritório pertencente a Anthony Orsatti
ficava na Poydras Street entre a beira do rio e o gigantesco
Louisiana Superdome. Os escritórios da Pacific Import-Export
Company situavam-se no quarto andar. Numa extremidade ficava a
sala de Orsatti e na outra a de Joe Romano. O espaço entre as
duas era ocupado por quatro jovens recepcionistas, sempre
disponíveis à noite para divertir os amigos e os associados de
negócios de Anthony Orsatti. Na frente da suíte de Orsatti
sentavam-se dois homens enormes, cujas vidas eram devotadas a
guardar o chefe. Também serviam como motoristas, massagistas e
mensageiros do capo.
Orsatti estava em sua sala naquela manhã de quinta-feira,
conferindo as receitas do dia anterior do jogo dos números,
apostas em cavalos, prostituição e uma dúzia de outras
actividades lucrativas controladas pela Pacific Import-Export
Company.
Anthony Orsatti se achava próximo dos 70 anos. Era um homem de
estranha constituição, com um tronco enorme e largo, pernas
curtas e finas, que pareciam ter sido projectadas para um
homem menor. De pé, ele parecia um sapo sentado. Tinha o rosto
coberto por uma teia irregular de cicatrizes que poderia ter
sido feita por uma aranha embriagada, uma boca descomunal,
olhos pretos e empapuçados. Era totalmente calvo desde a idade
de 15 anos, depois de um ataque de alopecia, usava uma peruca
preta desde então. Não se ajustava a ele, ficava inteiramente
deslocado, mas durante todos aqueles anos ninguém se atrevera
a fazer qualquer comentário, na sua frente. Os olhos frios de
Orsatti eram os de um jogador, nada deixando transparecer; o
rosto, a não ser quando em companhia das cinco filhas, às
quais adorava, era inexpressivo. A única pista para as emoções
de Orsatti estava na voz. Tinha a voz rouca e dissonante,
resultado de um fio que fora apertado em seu pescoço quando
contava 21 anos e o deram por morto. Os dois homens que
cometeram esse erro apareceram no necrotério na semana
seguinte, Quando Orsatti ficava realmente furioso, sua voz
baixava para um sussurro estrangulado que mal podia ser
ouvido.
Anthony Orsatti era um rei que comandava seus domínios com
subornos, armas de fogo e chantagem. Controlava Nova Orleans e
a cidade lhe prestava homenagem sob a forma de riquezas
incalculáveis. Os capos das outras famílias do país
respeitavam-no e constantemente, solicitavam os seus
conselhos.
No momento, Anthony Orsatti achava-se num Animo benevolente.
tomara o café da manhã com sua amante, a quem mantinha num
prédio de apartamentos que possuía em Lake Vista. Visitava-a
três vezes por semana e a visita daquela manhã fora
particularmente satisfatória. Ela fazia-lhe coisas na cama que
nenhuma outra mulher jamais sonhara. Orsatti acreditava
sinceramente que isso acontecia porque ela o amava muito. Sua
organização funcionava com perfeição. Não havia qualquer
problema, porque Anthony Orsatti sabia como resolver as
dificuldades antes que se transformassem em problemas. Ele
explicara um dia sua filosofia a Joe Romano:
- Nunca permita que um pequeno problema se transforme num
grande problema, Joe, ou crescerá como a porra de uma bola de
neve descendo a ladeira. Tem um capitão de delegacia que acha
que deve receber uma grana maior... pois acabe com ele,
entende? Nada de bola de neve. Tem algum cara de Chicago que
pede permissão para abrir uma pequena operação sua aqui em
Nova Orleans? Sabe que muito em breve essa "pequena" operação
vai se tornar uma grande operação e começar a reduzir seus
lucros. Pois diga que sim e quando ele chegar aqui acabe com o
filho da puta. Nada de bola de neve. Entende a coisa?
Joe Romano entendia.
Anthony Orsatti amava Romano. Era como um filho para ele.
Orsatti o recolhera quando Romano era um delinquente juvenil,
roubando bêbados nos becos. Treinara Romano pessoalmente e
agora o garoto podia se igualar aos melhores. Era rápido,
esperto e honesto. Em dez anos Romano subira ao posto de
lugar-tenente de Anthony Orsatti. Supervisionava todas as
operações da Família e se reportava somente a Orsatti
Lucy, a secretária particular de Orsatti, bateu na porta e
entrou na sala. Ela tinha 24 anos, diploma universitário, com
um rosto e um corpo que haviam ganhado concursos de beleza
locais. Orsatti gostava de ter finas mulheres ao seu redor.
Ele olhou para o relógio em sua mesa. Eram 10 e 45. Dissera a
Lucy que não queria interrupções antes do meio-dia. Orsatti
franziu o rosto.
- O que é?
- Desculpe incomodá-lo, Sr. Orsatti. Uma tal de Senhorita
Gigi Dupres está ao telefone. Ela parece histérica, mas não
quer me dizer o que deseja. Insiste em lhe falar pessoalmente.
Achei que poderia ser importante.
Orsatti ficou imóvel por um momento, passando o nome pelo
computador em seu cérebro. Gigi Dupres? Não podia se lembrar e
orgulhava-se de possuir uma mente que não esquecia coisa
alguma. Por curiosidade, Orsatti pegou o telefone e acenou com
a mão, dispensando Lucy.
- Quem está falando?
- É o Sr. Anthony Orsatti?
Ela tinha um sotaque francês.
- E daí?
- Oh, graças a Deus que consegui lhe falar, Sr. Orsatti!
Lucy tinha razão. A mulher era histérica. Anthony Orsatti
perdeu o interesse pela mulher. Ele já ia desligar quando a
voz acrescentou:
- Tem de impedi-lo, por favor!
- Dona, não tenho a menor idéia de quem você está falando e
estou ocupado...
- Meu Joe,... Joe Romano. Ele prometeu que me levaria junto,
comprenez-vous?
- Se tem alguma coisa a acertar com Joe, fale com ele
directamente. Não sou babá de Joe.
- Ele mentiu para mim! Acabei de descobrir que Joe vai viajar
sozinho para o Brasil. E metade daqueles trezentos mil dólares
me pertence.
Anthony Orsatti descobriu subitamente que, no final das
contas, o caso interessava.
- Que dólares são esses de que está falando?
- O dinheiro que Joe está escondendo em sua conta no banco. O
dinheiro que ele... como é mesmo que se diz?... desviou.
Anthony Orsatti estava muito interessado.
- Por favor, diga a Joe que deve me levar também para o
Brasil. Por favor! Pode fazer isso para mim?
- Claro - prometeu Anthony Orsatti. - Pode deixar que cuidarei
de tudo.
A sala de Joe Romano era moderna, toda branca e cromada, feita
por um dos decoradores mais em voga em Nova Orleans. Os únicos
toques de cores eram os três quadros valiosos de
impressionistas franceses nas paredes. Romano orgulhava-se de
seu bom gosto. Lutara muito para subir dos cortiços de Nova
Orleans, e no processo se instruíra. Possuía bom olho para
quadros e um óptimo ouvido para música. Quando jantava num
restaurante, sustentava conversas longas e conhecedoras com o
sommelier sobre vinhos. Isso mesmo, Joe Romano tinha todos os
motivos para sentir-se orgulhoso. Enquanto seus contemporâneos
sobreviveram pelo uso dos punhos, ele usara o cérebro. Se era
verdade que Anthony Orsatti possuía Nova Orleans, também era
verdade que Joe Romano controlava a cidade para ele. Sua
secretária entrou na sala.
- Sr. Romano, há um mensageiro aqui com sua passagem de avião
para o Rio de Janeiro. Devo fazer um cheque. É pagamento
contra entrega.
- Rio de Janeiro? - Romano sacudiu a cabeça. - Diga a ele que
houve algum engano.
O mensageiro uniformizado estava na porta.
- Mandaram entregar a Joseph Romano, neste endereço.
- Pois então mandaram errado. Que história é, hen? Uma idéia
de promoção de alguma nova empresa de aviação?
- Não, senhor. Eu...
- Deixe-me ver isso. - Romano arrancou a passagem da mão do
mensageiro e deu uma olhada. - Sexta-feira... Por que eu
haveria de viajar para o Rio na sexta-feira?
É uma boa pergunta - disse Anthony Orsatti, parado por trás
do mensageiro. - Por que faria isso, Joe?
- É algum erro estúpido, Tony. - Romano devolveu a passagem
ao mensageiro. - Leve isso de volta ao lugar de onde veio e...
- Não tão depressa. - Anthony Orsatti pegou a passagem e
examinou-a. - Aqui diz que é primeira classe, poltrona no
corredor, secção de fumantes, para o Rio de Janeiro, na
sexta-feira. Passagem só de ida.
Joe Romano soltou uma risada.
- Alguém cometeu um engano. - Ele virou-se para sua
secretária. - Madge, telefone para a agência de viagens e diga
que deram uma mancada. Algum idiota vai perder a sua passagem
de avião.
Joleen, a outra secretária, entrou na sala.
- Com licença, Sr. Romano. As malas acabaram de chegar. Quer
que eu assine o recibo?
Joe Romano fitou-a aturdido.
- Que malas? Não encomendei mala nenhuma.
- Mande trazê-las para cá - ordenou Anthony Orsatti.
- Santo Deus! - exclamou Joe Romano. - Será que todo mundo
enlouqueceu?
Um mensageiro entrou na sala com as três malas Vuitton.
- Mas o que é isso? Não encomendei essas malas.
O mensageiro conferiu a factura de entrega.
- Diz aqui Sr. Joseph Romano, Poydras Street, 217. Esta não é
a Suíte 408?
Joe Romano começava a perder o controle.
- Não me interessa a porra que diz aí. Não encomendei coisa
nenhuma. E agora leve essas malas daqui.
Anthony Orsatti agora examinava as malas.
- Elas têm as suas iniciais, Joe.
- Como? Ei, espere, um instante! Provavelmente são um
presente de alguém.
- É seu aniversário?
- Não. Mas sabe como são as mulheres, Tony. Estão sempre dando
presentes.
- Tem alguma coisa acontecendo no Brasil? - perguntou Anthony
Orsatti.
- Brasil? - Joe Romano riu. - Deve ser a idéia de brincadeira
de alguém, Tony.
Orsatti sorriu gentilmente, depois virou-se para as
secretárias e os dois mensageiros.
- Saiam.
Depois que eles saíram e a porta foi fechada, Anthony Orsatti
acrescentou para Romano:
- Quanto dinheiro tem na sua conta bancária, Joe?
Joe Romano ficou perplexo.
- Acho que mil e quinhentos dólares, talvez dois mil, Tony.
Por quê?
- Apenas por curiosidade, por que não liga para o seu banco e
confere?
- Para quê? Eu...
- Verifique, Joe.
- Está certo, se isso o deixará feliz. - Romano chamou a
secretária pelo intertelfone. - Ligue-me para a tesoureira no
First Mercharits.
Um minuto depois ela estava na linha.
- Olá, meu bem. Aqui é Joseph Romano. Poderia me dar o saldo
actual da minha conta? Minha data de nascimento é catorze de
outubro.
Anthony Orsatti pegou a extensão do telefone. A tesoureira
voltou à linha um momento depois.
- Desculpe mantê-lo à espera, Sr. Romano. Nesta manhã, o saldo
em sua conta é de 310.905 dólares e 35 cents,
Romano pôde sentir o sangue se esvair de seu rosto.
- Quanto?
- O saldo é de 310.905 dólares e...
- Sua puta estúpida! - berrou Romano. - Não tenho todo esse
dinheiro na minha conta. Está cometendo um erro. Quero falar
com...
Ele sentiu o telefone ser retirado de sua mão. Anthony
Orsatti repôs o telfone, no gancho.
- De onde saiu esse dinheiro, Joe?
O rosto de Joe Romano tornou-se muito pálido.
- Juro por Deus, Tony, que não sei de nada a respeito desse
dinheiro.
- Não?
- Ei, você tem de acreditar em mim! Sabe o que está
acontecendo? Alguém quer me meter numa encrenca!
- Pois então deve ser alguém que gosta muito de você. E lhe
dá um presente de 310 mil dólares.
Orsatti arriou pesadamente na poltrona Scalamander forrada
com seda e ficou olhando para Joe Romano por um longo tempo,
antes de acrescentar, suavemente:
- Tudo foi planeado, hem? Uma passagem só de ida para o Rio,
malas novas... Parece até que você estava preparando para si
mesmo toda uma vida nova.
- Não! - Havia pânico na voz de Joe Romano. - Por Deus, Tony,
você me conhece. Sempre fui honesto com você. É como um pai
para mim.
Ele estava suando agora. Houve uma batida na porta e Madge
meteu a cabeça. Tinha um envelope na mão.
- Desculpe, interromper, Sr. Romano. Acaba de chegar um
telegrama, mas o senhor tem de assinar o recibo.
Com o instinto de um animal acuado, Joe Romano respondeu:
- Não agora. Estou ocupado.
- Pode deixar que eu recebo - disse Anthony Orsatti.
Ele se levantou antes que a secretária tivesse tempo de fechar
a porta. Levou algum tempo a ler o telegrama e depois olhou
atentamente para Joe Romano. E numa voz tão baixa que Romano
mal conseguiu ouvir, Anthony Orsatti disse:
- Lerei o telegrama para você, Joe. "Confirmo sua reserva para
nossa suíte presidencial por dois meses a partir desta
sexta-feira, primeiro de setembro. S. Montalband, gerente, Rio
Othon Palace, Praia de Copacabana, Rio de Janeiro." É sua
reserva, Joe. Mas não vai precisar, não é mesmo?
13
André Gillian estava na cozinha, preparando o spaghetti alla
carbonara, uma grande salada italiana e uma torta de pêra,
quando ouviu um estalo alto e ominoso; um momento depois, o
confortável zumbido do ar-condicionado central silenciou.
André bateu com o pé no chão e disse.
- Merde! Não na noite do jogo!
Ele foi apressadamente para a caixa de controle eléctrico e
puxou os disjuntores, um a um. Nada aconteceu.
O Sr. Pope ficaria furioso. Simplesmente furioso! André sabia
o quanto seu patrão apreciava o jogo de pôquer semanal, na
noite de sexta-feira. Era uma tradição que se mantinha há anos
e sempre com o mesmo grupo de elite. Sem ar-condicionado, a
casa ficaria insuportável. Simplesmente insuportável! Nova
Orleans em setembro era apenas para os bárbaros. Mesmo depois
do pôr-do-sol, não havia qualquer alívio do calor e da
humidade.
André voltou à cozinha e olhou para o relógio na parede.
Quatro horas. Os convidados chegariam às oito horas. André
pensou em telefonar para o Sr. Pope e comunicar-lhe o
problema. Mas, depois, lembrou-se que o advogado dissera que
estaria ocupado no tribunal durante o dia inteiro. O pobre
coitado vivia sempre tão ocupado... Precisava de sua
distracção. E agora acontecia isto!
André tirou de uma gaveta da cozinha um pequeno caderninho
preto de endereços, procurou um número e discou. Depois de
três toques de campainha, uma voz metálica entoou:
- Aqui é o Serviço de Ar-Condicionado Esquimó. Nossos técnicos
não estão disponíveis neste momento. Se deixar seu nome e
telefone, assim como uma breve mensagem, entraremos em
contacto o mais depressa que for possível. Por favor, espere
pelo bip.
Foutre! Somente na América é que se era obrigado a conversar
com uma máquina. Um bip estridente e irritante soou no ouvido
de André. Ele disse pelo telefone:
- Aqui é a residência de Monsieur Perry Pope, Charles Street,
42. Nosso ar-condicionado parou de funcionar. Devem mandar
alguém aqui o mais depressa possível. Vite!
Ele bateu com o telfone. É claro que não havia ninguém
disponível. O ar-condicionado provavelmente estava pifando por
toda aquela horrível cidade. Era impossível aos aparelhos de
ar-condicionado acabar com o maldito calor e humidade. Pois
era melhor que alguém viesse logo. O Sr. Pope era um homem que
se irritava com facilidade.
Nos três anos em que trabalhava como cozinheiro para o
advogado, André Gillian aprendera como seu patrão era
influente. Era simplesmente espantoso. Toda aquela importância
em alguém tão jovem. Perry Pope simplesmente conhecia todo
mundo. Quando ele estalava os dedos, as pessoas pulavam.
André Gillian, teve a sensação de que a casa já estava mais
quente. Ça va chier dur. Se alguma coisa não for feita
depressa, a merda vai bater no ventilador.
Voltando a cortar em fatias finas como papel o salame e o
queijo provolone, André não pôde se desenvencilhar do terrível
pressentimento de que a noite estava condenada a ser um
desastre.
Quando a campainha da porta tocou, meia hora depois, as roupas
de André se achavam encharcadas de suor e a cozinha parecia um
forno. Gillian foi apressadamente abrir a porta dos fundos.
Dois operários de macacão achavam-se parados ali, carregando
caixas de ferramentas. Um deles era um negro alto. Seu
companheiro era branco, vários centímetros mais baixo, com uma
expressão sonolenta e entediada no rosto. Um furgão estava
parado lá atrás.
- Algum problema com o ar-condicionado? - perguntou o negro.
- Sim! Graças a Deus que vocês estão aqui. Precisam pôr a
coisa para funcionar imediatamente. Os convidados não demoram
a chegar.
O preto passou pelo fogão, farejou a torta no forno e
comentou:
- O cheiro é gostoso.
- Por favor! - exortou Gillian. - Façam alguma coisa!
- Vamos dar uma olhada no aparelho - disse o homem baixo. -
Onde fica?
- Por aqui.
André levou-os por um corredor até a sala em que estava a
unidade de ar-condicionado.
- Esta é uma boa unidade, Ralph - disse o preto a seu
companheiro.
- Tem razão, Al. Não fazem mais com essa qualidade.
- Mas então por que não está funcionando, pelo amor de Deus?
- perguntou Gillian.
Os dois se viraram para fitá-lo.
- Acabamos de chegar - comentou Ralph, em tom de censura.
Ele ajoelhou-se e abriu uma portinhola na base da unidade,
pegou uma lanterna, deitou-se de barriga e espiou o interior.
Levantou-se depois de um momento.
- O problema não é aqui.
- Onde é então? - indagou André.
- Deve ter havido um curto em alguma saída. E provavelmente
parou todo o sistema. Quantas são as saídas do
ar-condicionado?
- Cada cómodo tem uma. Deixe-me ver... Deve haver pelo menos
nove.
- Provavelmente, é esse o problema. Excesso de carga. Vamos
dar uma olhada.
Os três voltaram pelo corredor. Ao passarem pela sala de
estar, Al disse:
- É um bonito lugar o que o Sr. Pope tem aqui.
A sala de estar era decorada com requinte, com muitas
antiguidades autenticadas que valiam uma fortuna. O assoalho
era coberto por tapetes persas de cores suaves. à esquerda
ficava uma ala de jantar, grande e formal, à direita outra
sala, com uma mesa de jogo grande no centro. Num canto dessa
sala havia uma mesa redonda, já posta para o jantar. Os dois
técnicos entraram ali. Al iluminou com a lanterna a saída do
ar-condicionado no alto da parede.
- Hum...- Ele olhou para o teto, por cima da mesa de jogo. -
O que tem acima desta sala?
- O sótão.
- Vamos dar uma olhada.
Os técnicos seguiram André para o sótão comprido, de teto
baixo, empoeirado e com muitas teias de aranha. Al
encaminhou-se para uma caixa eléctrica na parede, examinou o
emaranhado de fios.
- Ah!
- Descobriu alguma coisa? - indagou André, ansiosamente.
- Problema de condensador. É a humidade. Devemos ter recebido
uma centena de chamadas esta semana. Entrou em curto. Teremos
de substituir o condensador.
- Oh, Deus! Vai demorar muito?
- Não. Temos um condensador novo no carro.
- Por favor, apressem-se - suplicou André. - O Sr. Pope
estará em casa daqui a pouco.
- Deixe tudo com a gente - disse Al.
De volta à cozinha André confidenciou:
- Preciso terminar de preparar o molho da salada. Podem
encontrar sozinhos o caminho de volta ao sótão?
Al levantou a mão.
- Não se preocupe, companheiro. Cuide do seu trabalho e nós
cuidaremos do nosso.
- Obrigado... muito obrigado
André observou os homens saírem para o furgão e voltarem um
instante depois com duas bolsas grandes de lona.
- Se precisarem de alguma coisa - disse ele, - basta me
chamarem.
- Está certo.
Os técnicos subiram a escada e André voltou à cozinha.
Chegando ao sótão, Ralph e Al abriram as bolsas de lona e
removeram uma pequena cadeira dobrável de acampamento, uma
perfuradora com broca de aço, uma bandeja com sanduíches, duas
latas de cerveja, um binóculo Zeiss 12 por 40 para observar
objectos distantes com pouca claridade e dois hamsters vivos,
que haviam sido injectados com três quartos de miligrama de,
promazine acetifica.
Os dois homens se puseram a trabalhar.
- A velha Ernestine ficará orgulhosa de mim - comentou Al, com
uma risadinha.
A princípio, Al resistira obstinadamente à idéia.
- Deve ter perdido o juízo, mulher. Não vou me meter com
Perry Pope. O cara vai me dar uma porrada tão forte que nunca
mais verei a luz do dia.
- Não precisa se preocupar com ele. O cara nunca mais tornará
a sacanear ninguém.
Os dois se encontravam nus, na cama de água, no apartamento
de Ernestine.
- Afinal, meu bem, o que está ganhando com esse negócio? -
perguntou Al.
- Ele é um filho da puta.
- Ora, querida, o mundo está cheio de filhos da puta, mas
você não passa a vida cortando os colhões deles.
- Tem razão. Estou fazendo isso por uma amiga .
- Tracy?
- Exactamente.
Al gostava de Tracy. Haviam jantado juntos no dia em que ela
saíra da prisão.
- Ela é uma dona de classe - admitiu Al. - Mas por que
estamos arriscando nossos pescoços por ela?
- Porque se não a ajudarmos, ela terá de arrumar alguém que
não é tão bom quanto você nem de longe, e se a apanharem será
despachada de volta à prisão.
Al sentou na cama e olhou para Ernestine, curioso.
- Isso significa tanto para você?
- Significa, sim, querido.
Ela nunca poderia fazê-lo compreender, mas a verdade pura e
simples era que Ernestine não podia suportar a idéia de Tracy
voltar à prisão e ficar à mercê de Big Bertha. E não era
apenas com Tracy que Ernestine se preocupava, mas também
consigo mesma. Assumira o papel de protectora de Tracy e se
Big Bertha pusesse as mãos nela seria uma derrota para a
própria Ernestine. E, por isso, ela acrescentou:
- E significa muito. Fará isso por mim?
- Não dá para fazer sozinho - resmungou Al.
E Ernestine compreendeu que vencera. Ela começou a mordiscar
seu caminho pelo corpo comprido e esguio de Al, murmurando:
- O velho Ralph não deverá ser libertado dentro de poucos
dias?
Eram seis e meia quando os dois homens voltaram à cozinha de
André, cobertos de suor e poeira.
- Está consertado? - indagou André, ansiosamente.
- Não foi fácil - informou Al. - O que tem aqui é um
condensador com um dispositivo AC/DC que...
Não se preocupe com isso - interrompeu-o André,
impacientemente. - Deram um jeito?
- Claro. Está tudo consertado. Em cinco minutos voltará a
funcionar, como se estivesse novo.
- Formidável! Se deixarem a conta na mesa da cozinha...
Ralph sacudiu a cabeça.
- Não se preocupe com isso. A companhia mandará a conta
depois.
- Abençoados sejam vocês dois. Au revoir.
André observou os dois homens saírem pela porta dos fundos,
carregando as bolsas de lona. Fora de vista, eles contornaram
o pátio e foram abrir a caixa que alojava o condensador
externo da unidade de ar-condicionado. Ralph segurou a
lanterna, enquanto Al religava os fios que soltara duas horas
antes. A unidade de ar-condicionado voltou a funcionar
imediatamente.
Al anotou o número do telefone na etiqueta presa no
condensador. Pouco depois, fez a ligação; ao ouvir a mensagem
gravada do Serviço de Ar-Condicionado Esquimó, Al disse:
- Aqui é da residência de Perry Pope, na Charles Street, 42.
Nosso ar-condicionado está funcionando direito agora. Não
precisam mais mandar alguém. Obrigado.
O jogo de pôquer semanal, na noite de sexta-feira, na casa de
Perry Pope, era um evento aguardado ansiosamente por todos os
jogadores. Era sempre o mesmo grupo selecto: Anthony Orsatti,
Joe Romano, Juiz Henry Lawrence, um vereador, um senador
estadual e o anfitrião. As apostas eram altas, a comida
sensacional e a companhia representava o poder.
Perry Pope se achava em seu quarto, vestindo uma calça branca
de seda e uma camisa que combinava. Cantarolava feliz,
pensando na noite pela frente. Estava numa maré vencedora
ultimamente. Na verdade, toda a minha vida é uma grande maré
vencedora, pensou ele.
Se alguém precisava de um favor judicial em Nova Orleans,
Perry Pope era o advogado que devia procurar. Seu poder
derivava das Ligações com a Família Orsatti. Era conhecido
como O Arrumador e podia dar um jeito em qualquer coisa, de
uma multa de trânsito a uma acusação de tráfico de tóxicos ou
de homicídio. A vida era boa.
Anthony Orsatti chegou com um convidado e anunciou:
- Joe Romano não estará mais jogando connosco. Todos vocês
conhecem o Inspector Newhouse.
Os homens trocaram apertos de mão.
- Os drinques estão no aparador - informou Perry Pope. - E
teremos uma ceia mais tarde. Por que não entramos logo em
acção?
Os homens ocuparam seus lugares habituais em torno da mesa de
feltro verde. Orsatti apontou para a cadeira vazia de Joe
Romano e disse ao Inspector Newhouse:
- Aquele será o seu lugar daqui por diante, Mel.
Enquanto um dos homens abria os baralhos novos, Pope começou
a distribuir as fichas. Ele explicou ao Inspector Newhouse:
- As fichas pretas valem cinco dólares, as vermelhas dez, as
azuis cinquenta e as brancas cem. Cada homem começa comprando
quinhentos dólares de fichas. Jogamos o pôquer à escolha de
quem dá as cartas, com três aumentos.
- Está óptimo para mim - comentou o Inspector.
Anthony Orsatti parecia de mau humor.
- Vamos começar logo de uma vez.
Sua voz era um sussurro estrangulado, o que não constituía um
bom sinal. Perry Pope daria muito para saber o que acontecera
com Joe Romano, mas a experiência lhe dizia que era melhor não
levantar o assunto. Orsatti falaria com ele a esse respeito
quando achasse que o momento era oportuno.
Os pensamentos de Orsatti eram sombrios: Fui como um pai para
Joe Romano. Confiei nele, promovi-o a meu lugar-tenente. E o
filho da puta me apunhalou pelas costas. E se aquela francesa
maluca não tivesse me telefonado, ele poderia escapar impune.
Mas agora nunca mais escapará de coisa alguma. Não onde está.
Se ele é tão esperto, que trate de poder com os peixes lá
embaixo.
- Tony, você entra ou passa?
Anthony Orsatti tornou a concentrar sua atenção no jogo.
Enormes quantias haviam sido ganhas e perdidas naquela mesa.
Anthony Orsatti sempre ficava aborrecido ao perder, embora
isso nada tivesse a ver com o dinheiro. Ele não podia suportar
estar no lado perdedor de qualquer coisa. Pensava em si mesmo
como um vencedor natural. Somente os vencedores ascendiam à
sua posição na vida. Nas últimas seis semanas Perry Pope
estava numa maré vencedora e naquela noite Anthony Orsatti
queria rompê-la de qualquer maneira.
Como a variedade de pôquer era determinada por quem dava as
cartas, cada um escolhia aquela em que se considerava mais
forte. Jogavam o pôquer fechado comum, o stick, o canadense de
cinco e sete cartas... naquela noite, porém, não importava o
jogo escolhido, pois Anthony Orsatti se descobria sempre no
lado perdedor. Ele passou a aumentar as apostas, jogando
temerariamente, tentando recuperar os prejuízos. Por volta da
meia-noite, quando pararam para comer a refeição que André
preparara, Orsatti já estava a perder 50 mil dólares e Perry
Pope era o grande vencedor.
A comida estava deliciosa. Geralmente Anthony Orsatti gostava
da refeição prática à meia-noite. Naquele dia, no entanto, ele
ansiava em voltar à mesa.
- Não está comendo, Tony - comentou Perry Pope.
- Não sinto fome.
Orsatti pegou o bule de prata com café ao seu lado, encheu
uma xícara de porcelana Herend e sentou à mesa de pôquer.
Ficou observando os outros comerem, desejando que se
apressassem. Estava impaciente em recuperar seu dinheiro.
Quando começou a mexer o café, uma pequena partícula caiu na
xícara. Com repugnância, Orsatti removeu a partícula com a
colher e examinou-a. Parecia um pedaço de reboco. Ele levantou
os olhos para o teto e nesse instante alguma coisa bateu em
sua testa. E percebeu subitamente um ruído de correria por
cima.
- Que diabo está acontecendo lá em cima? - indagou Anthony
Orsatti.
Perry Pope estava no meio de uma piada que contava ao
Inspector Newhouse.
- Desculpe, mas o que foi mesmo que disse, Tony?
O barulho de correria era mais perceptível agora. Fragmentos
de reboco se despejavam sobre o feltro verde.
- A impressão é de que são camundongos - disse o senador.
- Não nesta casa - protestou Perry Pope, indignado.
- Mas com toda a certeza tem alguma coisa - resmungou
Orsatti.
Um pedaço maior de reboco caiu sobre o feltro verde da mesa.
- Terei de mandar André cuidar disso - declarou Pope. - Se
todos já terminaram de comer, por que não voltamos ao jogo?
Anthony Orsatti olhava fixamente para um pequeno buraco no
teto, bem por cima de sua cabeça.
- Espere um pouco. Vamos primeiro dar uma olhada lá em cima.
- Para quê, Tony? André pode...
Orsatti já se levantara e se encaminhava para a escada. Os
outros se entreolharam por um instante e depois partiram atrás
dele.
- Provavelmente um esquilo entrou no sótão - sugeriu Perry
Pope. - Eles estão por toda a parte nesta época do ano.
Provavelmente escondendo as suas nozes para o inverno.
Ele riu de sua piada. Quando chegaram ao sótão, Anthony
Orsatti abriu a porta bruscamente. Perry Pope acendeu a luz.
Vislumbraram dois hamsters brancos correndo freneticamente de
um lado para outro.
- Santo Deus! - exclamou Perry Pope. - Tenho ratos no meu
sótão!
Anthony Orsatti não estava prestando atenção. Olhava
fixamente para o meio do sótão. Havia ali uma cadeira dobrável
de acampamento, com uma bandeja de sanduíches por cima e duas
latas de cerveja. Havia um binóculo no chão, ao lado.
Orsatti adiantou-se, pegou os objectos, um a um,
examinando-os cuidadosamente. Depois ficou de joelhos no chão
empoeirado, removeu o pequeno cilindro de madeira que escondia
um buraco perfurado no teto. Encostou o olho nesse buraco. A
mesa de jogo era claramente visível por baixo. Perry Pope
estava parado no meio do sótão, atordoado.
- Quem trouxe todas estas porcarias aqui para cima? André vai
se ver comigo por causa disso.
Orsatti levantou-se lentamente, limpou a poeira das calças.
Perry Pope baixou os olhos para o chão.
- Olhem só! - exclamou ele. - Deixaram um buraco no chão. Os
operários atuais não valem mais merda nenhuma.
Ele agachou-se e deu uma espiada pelo buraco. O rosto
empalideceu de repente. Levantou-se e olhou ao redor,
desesperado, encontrando todos os homens a fitá-lo fixamente.
- Ei! - disse Perry Pope. - Vocês não podem estar pensando
que eu... Ora, pessoal, sou eu. Não sei de nada a respeito
disso. Eu não enganaria vocês. Por Deus, somos amigos!
Sua mão voou para a boca e ele se pôs a roer furiosamente as
cutículas. Orsatti apalpou-lhe o braço.
- Não se preocupe com isso.
Sua voz era quase inaudível. Perry Pope continuou a roer
desesperadamente a carne do polegar direito.
14
- Agora já são dois, Tracy - disse Ernestine Littlechap,
soltando uma risadinha. - A notícia pelas ruas é de que seu
amigo advogado Perry Pope não poderá mais exercer a sua
profissão. Ele sofreu um terrível acidente.
As duas tomavam café au tait com beignets num pequeno café
com mesinhas na calçada, perto da Royal Street. Ernestine
soltou outra risada e acrescentou:
- Você tem cabeça, garota. Não gostaria de entrar no negócio
comigo?
- Obrigada, Ernestine, mas tenho outros planos.
Ernestine indagou, ansiosamente:
- Quem é o próximo?
- Juiz Henry Lawrence.
Henry Lawrence iniciara sua carreira como um advogado de
cidade pequena, em Leesville, Louisiana. Não tinha muita
aptidão para a advocacia, mas possuía dois atributos muito
importantes: era fisicamente impressivo e moralmente flexível.
Sua filosofia era de que a lei não passava de uma vara frágil,
destinada a ser entortada de acordo com as necessidades de
seus clientes. Com essa orientação, não era de surpreender
que, pouco depois de se transferir para Nova Orleans, o
escritório de advocacia de Henry Lawrence começasse a
prosperar, com um grupo especial de clientes. Ele passou de
contravenções e acidentes de trânsito para crimes mais graves.
Ao subir para os altos escalões, já era um especialista em
comprar jurados, desacreditar testemunhas e subornar qualquer
um que pudesse ajudar em seus casos. Em suma, era o tipo de
advogado que Anthony Orsatti queria. Assim, era inevitável que
os caminhos dos dois se cruzassem. Foi um casamento efectuado
no paraíso da Máfia. Lawrence tornou-se o porta-voz da Família
Orsatti. E quando chegou o momento oportuno, Orsatti
providenciou a sua promoção a juiz.
- Não sei como você poderá pegar o juiz - comentou Ernestine -
Ele é rico, poderoso e intocável.
- Ele é rico e poderoso, mas não é intocável - corrigiu-a
Tracy.
Tracy já elaborara seu plano, mas quando telefonou para o
gabinete do Juiz Lawrence compreendeu imediatamente que teria
de mudá-lo.
- Eu gostaria de falar com o Juiz Lawrence, por favor.
A secretária respondeu:
- Lamento, mas o juiz não está.
- Quando poderei encontrá-lo?
- Não sei dizer.
- É muito importante. Ele estará aí amanhã?
- Não. O Juiz Lawrence está viajando.
- E eu não poderia localizá-lo em algum lugar?
- Infelizmente, não será possível. O juiz está fora do país.
Tracy tomou o cuidado de impedir que o desapontamento
transparecesse em sua voz.
- Posso saber onde ele se encontra?
- O juiz está na Europa, participando de um simpósio
judiciário internacional.
- Mas que pena!
- Quem está falando, por favor?
A mente de Tracy estava em disparada.
- Aqui é Elizabeth Rowane Dastin, presidente da divisão sul
da Associação Americana de Advogados Criminais. Vamos promover
o nosso banquete anual de reconhecimentos em Nova Orleans, no
dia 20 deste mês, e escolhemos o Juiz Henry Lawrence para ser
o nosso homem do ano.
- Isso é maravilhoso! - exclamou a secretária. - Mas,
infelizmente, o juiz não estará de volta antes disso.
- É uma pena. Aguardávamos com ansiedade a oportunidade de
ouvir um dos seus famosos discursos. O Juiz Lawrence foi a
escolha unânime de nosso comité de selecção.
- Tenho certeza que ele ficará desapontado por perder essa
oportunidade.
- Estou certa que você compreende como isso é uma grande
honra. Alguns dos juizes mais proeminentes do país já foram
eleitos no passado. E, espere um pouco! Tenho uma idéia. O
juiz não poderia gravar um pequeno discurso de aceitação para
nós... umas poucas palavras de agradecimentos?
- Bom... não posso responder por ele. O juiz anda muito
ocupado...
- Haverá uma grande cobertura nacional de jornais e emissoras
de televisão.
Houve um momento de silêncio. A secretária do Juiz Lawrence
sabia o quanto o Meritíssimo apreciava a cobertura dos meios
de comunicação. Na verdade, até onde ela podia saber, a viagem
que ele fazia parecia ter justamente esse propósito.
- Talvez ele encontre tempo para gravar algumas palavras.
Posso perguntar a ele.
- Mas isso seria sensacional - declarou Tracy, entusiasmada.
- O grande momento da noite!
- Gostaria que o juiz fizesse os seus comentários sobre
alguma coisa específica?
- Claro que sim. Gostaríamos que ele falasse sobre... - Tracy
hesitou. - Receio que seja um pouco complicado. Seria melhor
se eu pudesse explicar a ele directamente.
Houve outro silêncio momentâneo. A secretária enfrentava um
dilema. Tinha ordens para não revelar o itinerário de seu
chefe. Por outro lado, seria típico do juiz culpá-la se
deixasse de receber uma distinção tão importante.
- Eu não deveria dar qualquer informação, mas tenho certeza de
que o juiz gostaria que se abrisse uma excepção para algo tão
prestigioso. Poderá encontrá-lo em Moscovo, no Hotel Rossia.
Ele estará lá durante os próximos cinco dias e depois disso.
- Isso é óptimo! Entrarei em contacto com ele imediatamente.
Muito obrigada.
- Eu é que lhe agradeço, Senhorita Dastin.
Os telegramas eram endereçados ao Juiz Henry Lawrence, Hotel
Rossia, Moscovo. O primeiro dizia: CONSELHO JUDICIÁRIO PRÓXIMO
ENCONTRO PODE AGORA SER ACERTADO. CONFIRME DATA CONVENIENTE
COMO ESPAÇO A SER SOLICITADO BORIS.
O segundo telegrama, que chegou no dia seguinte, dizia:
ACONSELHE SOBRE PROBLEMAS PLANOS VIAGEM. AVIÃO IR. CHEGOU
ATRASADO MAS POUSOU SEGURANÇA. PERDEU PASSAPORTE E DINHEIRO.
ELA VAI SER COLOCADA HOTEL PRIMEIRA CLASSE Suíça. MAIS TARDE
ACERTAREMOS CONTAs. BORIS.
O último telegrama dizia: SUA IRMÃ VAI TENTAR EMBAIXADA
AMERICANA PARA OBTER PASSAPORTE TEMPORÁRIO. SEM INFORMAÇÕES
Disponíveis SOBRE O NOVO VISTO. SUÍÇO FAZ RUSSO PARECER SANTO.
DE NAVIO ELA PARTIRá MAIS DEPRESSA POSSÍVEL. BORIS.
Os homens do NKVD ficaram aguardando a chegada de novos
telegramas. Como não houvesse mais nenhum, eles prenderam o
Juiz Lawrence.
O interrogatório durou dez dias e noites.
- Para quem enviou as informações?
- Que informações? Não sei do que estão falando.
- Estamos falando sobre os planos. Quem lhe deu os planos?
- Que planos?
- Os planos do novo submarino atómico soviético.
- Vocês devem estar loucos. O que pensam que eu sei sobre
submarinos soviéticos?
- É o que tencionamos descobrir. Com quem foi o seu encontro
secreto?
- Que encontro secreto? Não tenho nada de secreto.
- Óptimo. Pode então nos dizer quem é Boris.
- Que Boris?
- O homem que depositou o dinheiro em sua conta na Suíça
- Que conta na Suíça?
Eles estavam furiosos.
- Você é um idiota obstinado. Vamos fazer um exemplo de você
e de todos os outros espiões americanos que tentam solapar a
nossa grande pátria.
Quando o embaixador americano teve permissão para visitá-lo,
o Juiz Henry Lawrence já perdera sete quilos. Não podia se
lembrar da última vez em que seus algozes lhe haviam permitido
dormir, transformara-se num trémulo farrapo humano.
- Por que estão fazendo isso comigo? - lamuriou-se o juiz. -
Sou um cidadão americano. E um juiz. Pelo amor de Deus,
tire-me daqui!
- Estou fazendo tudo o que posso.
O embaixador ficou chocado com a aparência de Lawrence.
Recepcionara o Juiz Lawrence e os outros membros do Comité
Judiciário ao chegarem, duas semanas antes. O homem que o
embaixador conhecera então não tinha qualquer semelhança com a
criatura trémula e apavorada que agora rastejava à sua frente.
Que diabo os russos estão querendo desta vez?, especulou o
embaixador. O juiz não é mais espião do que eu. Uma pausa e
ele pensou, ironicamente: Eu poderia ter escolhido um exemplo
melhor.
O embaixador exigiu uma audiência com o presidente do
Politburo. O pedido foi recusado e ele se contentou com um dos
ministros.
- Devo apresentar um protesto formal - declarou o embaixador,
furioso. - O comportamento de seu país no tratamento
dispensado ao Juiz Henry Lawrence é indesculpável. Classificar
um homem de sua estatura de espião é um absurdo.
- Se já acabou de falar - disse o ministro, friamente - eu
gostaria que desse uma olhada nisto.
Ele entregou cópias dos telegramas ao embaixador. Depois de
ler, o embaixador levantou os olhos, perplexo.
- O que há de errado com estes telegramas? São perfeitamente
inocentes.
- Acha mesmo? Talvez seja melhor lê-los de novo. Devidamente
decifrados.
Ele entregou ao embaixador outras cópias dos telegramas.
Cada quarta palavra estava sublinhada.
CONSELHO JUDICIÁRIO PRÓXIMO ENCONTRO PODE AGORA SER ACERTADO,
CONFIRME DATA CONVENIENTE COMO ESPAÇO A SER SOLICITADO.
BORIS
ACONSELHE SOBRE PROBLEMAS PLANOS VIAGEM. AVIÃO IRMA CHEGOU
ATRASADO MAS POUSOU SEGURANÇA. PERDEU PASSAPORTE E DINHEIRO.
ELA VAI SER COLOCADA HOTEL PRIMEIRA CLASSE SUÍÇA. MAIS TARDE
ACERTAREMOS CONTAs.
BORIS
SUA IRMÃ VAI TENTAR EMBAIXADA AMERICANA PARA OBTER PASSAPORTE
TEMPORÁRIO. SEM INFORMAÇÕES DISPONÍVEIS SOBRE O NOVO VISTO.
SUÍÇO FAZ RUSSO PARECER SANTO. DE NAVIO ELA PARTIRá MAIS
DEPRESSA POSSÍVEL.
BORIS
Mas que filho da puta!, pensou o embaixador.
A imprensa e o público não tiveram acesso ao julgamento. O
prisioneiro permaneceu obstinado até o fim, continuando a
negar que estivesse na União Soviética em missão de
espionagem. A promotoria prometeu clemência se ele revelasse
quem eram os seus superiores. O Juiz Lawrence daria a própria
alma para poder fazer isso, mas infelizmente não era possível.
No dia seguinte ao julgamento saiu uma pequena notícia no
Pravda, informando que o notório espião americano Juiz Henry
Lawrence fora considerado culpado de espionagem e condenado a
14 anos de trabalhos forçados na Sibéria.
A comunidade de informações americana estava espantada com o
Caso Lawrence. Os rumores fervilhavam na CIA, FBI, Serviço
Secreto e Departamento do Tesouro.
- Ele não é um dos nossos - garantiu a CIA. - Provavelmente
pertence ao Tesouro.
O Departamento do Tesouro negou qualquer conhecimento do
caso:
- Nada disso. Não temos nada a ver com Lawrence. Provavelmente
é a porra do FBI se intrometendo mais uma vez em nosso
território.
Mas o FBI afirmou:
- Nunca ouvimos falar do homem. Provavelmente ele era
controlado pelo Departamento de Estado ou pela Agência de
Informações do Departamento de Defesa.
A Agência de Informações do Departamento de Defesa estava tão
no escuro quanto as outras organizações, mas limitou-se a
declarar, astutamente:
- Sem comentários
Cada serviço estava absolutamente convencido de que o Juiz
Henry Lawrence fora enviado ao exterior por um dos outros.
- Não podemos deixar de reconhecer a sua coragem - comentou o
director da CIA. - Ele é dos mais duros. Não confessou e não
revelou o nome de ninguém. Para dizer a verdade, eu bem que
gostaria de ter muitos agentes como ele.
As coisas não corriam bem para Anthony Orsatti e o capo era
incapaz de compreender o motivo . Pela primeira vez em sua
vida, a sorte lhe era adversa. Começara com a deserção de Joe
Romano, depois viera a traição de Perry Pope e agora era o
juiz que se envolvia em alguma história maluca de espionagem.
Todos eram partes intrínsecas da máquina de Orsatti, homens em
quem se apoiava.
Joe Romano era a alavanca na organização da Família e Orsatti
não encontrara ninguém para substitui-lo. Os negócios estavam
agora descuidados, começavam a se acumular queixas de pessoas
que nunca antes haviam se atrevido a reclamar. Espalhara-se a
notícia de que Tony Orsatti estava ficando velho, não era mais
capaz de manter os seus homens na linha, sua organização
começava a desmoronar.
A gota d'água final foi um telefonema de Nova Jersey.
- Soubemos que está com um pequeno problema por aí, Tony.
Gostaríamos de ajudar.
- Não tenho problema nenhum - respondeu Orsatti, bruscamente.
- É verdade que tivemos duas dificuldades recentemente, mas já
foi tudo resolvido.
- Não é o que soubemos, Tony. A informação é de que sua
cidade se encontra à deriva. Não há ninguém para controlá-la.
- Eu estou controlando.
- Talvez tenha se tornado demais para você. Quem sabe você não
tem trabalhado excessivamente? Talvez precise de um pequeno
descanso.
- Esta é a minha cidade. Ninguém vai tirá-la de mim.
- Ora, Tony, quem falou em tirá-la de você? Só queremos
ajudar. As Famílias aqui no leste se reuniram e decidiram
mandar alguns dos nossos homens para lhe dar uma mãozinha. Não
há nada de errado numa colaboração entre velhos amigos, não é
mesmo?
Anthony Orsatti sentiu um calafrio subir-lhe pela espinha. Só
havia uma coisinha errada com aquilo: a mãozinha se
transformaria numa enorme mão, viraria uma bola de neve
.
Ernestine fizera camarão corri quiabo para o jantar e estava
fervendo no fogão em fogo brando, enquanto elas esperavam pela
chegada de Al. A onda de calor de setembro já afectara
profundamente os nervos de todo mundo. Quando Al finalmente
entrou no pequeno apartamento, Ernestine gritou:
- Onde diabo você se meteu? A porra do jantar está queimando e
eu também!
Mas Al se achava eufórico demais para se incomodar com a
rispidez de Ernestine.
- Eu estava ocupado a saber das notícias, mulher, E espere só
até ouvir o que descobri. - Ele virou-se para Tracy. - A Máfia
agarrou Tony Orsatti pelo colarinho. A Família de Nova Jersey
vem assumir tudo aqui.
Al fez uma pausa, o rosto se desmanchando num largo sorriso.
- Você liquidou mesmo o filho da puta! - Ele fitou Tracy nos
olhos e o sorriso se desvaneceu. - Não está feliz, Tracy?
Que estranha palavra, pensou Tracy. Feliz. Ela esquecera o que
isso significava. E se perguntou se algum dia poderia ser
feliz outra vez, se algum dia tornaria a sentir quaisquer
emoções normais. Há muito tempo que todo seu pensamento em
vigília se concentrava em vingar o que haviam feito à sua mãe
e a si mesma. Agora que, estava quase acabado, restava apenas
um vazio interior.
Tracy foi a um florista na manhã seguinte.
- Quero mandar flores para Anthony Orsatti. Uma coroa fúnebre,
de cravos brancos, montada numa estante, com uma fita larga. E
quero que na fita esteja escrito "DESCANSE EM PAZ".
Ela pegou um pequeno cartão em branco e escreveu, para
acompanhar a coroa: "DA FILHA DE DORIS WHITNEY."
LIVRO TRÊS
15
Filadélfia
TERÇA-FEIRA, 7 DE OUTUBRO - 16 HORAS
Chegara a hora de cuidar de Charles Stanhope III. Os outros
eram estranhos. Charles fora seu amante, o pai de seu filho
que não nascera... e ele virara as costas a ambos.
Ernestine e Al foram ao aeroporto de Nova Orleans para se
despedirem de Tracy.
- Sentirei sua falta - dissera Ernestine - Você pôs esta
cidade de pernas pro ar. Deveriam elegê-la prefeita do povo.
- O que vai fazer em Filadélfia? - perguntara Al.
Ela respondera a metade da verdade:
- Voltarei a meu antigo emprego no banco.
Ernestine e Al trocaram um olhar.
- Eles... ahn... sabem que você está voltando?
- Não. Mas o vice-presidente gosta de mim. Não haverá
qualquer problema. É difícil encontrar pessoas qualificadas,
para operar nos computadores.
- Boa sorte. Mantenha-se em contacto, está bem? E não se meta
em encrencas, garota.
Meia hora depois Tracy seguia de avião rumo a Filadélfia.
Ela hospedou-se no Hilton Hotel e lavou a vapor o seu único
vestido bom, por cima da banheira cheia de água quente. às 11
horas da manhã seguinte foi para o banco e procurou a
secretária de Clarence Desmond.
- Olá, Mae.
Ela olhou aturdida para Tracy, como se estivesse vendo um
fantasma.
- Tracy! - A moça ficou visivelmente embaraçada. - Eu... Como
vai?
- Muito bem. O Sr. Desmond está?
- Eu... eu não sei. Deixe-me verificar. Com licença.
Ela se levantou, afogueada, entrou apressadamente na sala do
vice-presidente. Voltou um momento depois.
- Pode entrar.
Mae ficou de lado quando Tracy se encaminhou para a porta. O
que há com ela?, pensou Tracy.
Clarence Desmond estava de pé, ao lado de sua mesa.
- Olá, Sr. Desmond - disse Tracy, jovialmente. - Eu voltei.
- Para quê?
O tom era inamistoso. Decididamente hostil. Pegou Tracy de
surpresa. Ela insistiu:
- Disse que eu era a melhor operadora de computador que já
conheceu e pensei...
- Pensou que eu lhe devolveria o seu antigo emprego?
- Isso mesmo, senhor. Não esqueci nada do que sabia. Ainda
posso...
- Lamento muito, Senhorita Whitney. - Não era mais Tracy. - O
que está me pedindo é inteiramente impossível. Tenho certeza
de que pode compreender que nossos clientes não ficariam
satisfeitos em lidar com uma pessoa que cumpriu pena numa
penitenciária por assalto à mão armada e tentativa de
homicídio. Isso não estaria de acordo com a nossa imagem
ética. E acho improvável que, tendo em vista os seus
antecedentes, qualquer banco possa contratá-la. Sugiro que
tente encontrar emprego mais condizente com as suas
circunstâncias. E espero que compreenda que não há nada de
pessoal nesta decisão.
Tracy escutou as palavras primeiro com choque e depois com
uma raiva crescente. Ele a fazia parecer uma pária, uma
leprosa. Não gostaríamos de perdê-la. É uma de nossas
funcionárias mais valiosas.
- Deseja mais alguma coisa, Senhorita Whitney?
Era uma maneira de encerrar a entrevista. Havia uma centena
de coisas que Tracy sentia vontade de dizer, mas sabia que de
nada adiantariam.
- Não. Acho que você já disse tudo.
Tracy virou-se e deixou a sala, o rosto ardendo. Todos os
funcionários do banco pareciam observá-la. Mae espalhara a
notícia: A condenada voltara. Tracy encaminhou-se para a
saída, a cabeça erguida, morrendo por dentro. Não posso
permitir que façam isso comigo. O orgulho é tudo o que me
resta e ninguém vai tirá-lo de mim.
Tracy passou o dia inteiro no quarto, angustiada. Como pudera
ser tão ingénua para acreditar que a receberiam de braços
abertos? Era agora uma pessoa notória.
- Você é a manchete no Daily News de Filadélfia.
Pois Filadélfia que se dane, pensou Tracy. Tinha um negócio
inacabado ali, mas iria embora depois que o concluísse.
Seguiria para Nova York, onde seria anónima. A decisão fê-la
sentir-se melhor.
Tracy presenteou-se naquela noite com um jantar no Café Royal,
um dos melhores restaurantes de Filadélfia. Depois do sórdido
encontro com Clarence Desmond naquela manhã, ela precisava do
clima tranquilizador de luzes suaves, ambiente elegante e
música de fundo. Pediu um martíni de vodca. Quando o garçom o
trouxe, Tracy levantou os olhos e sentiu que o coração
subitamente parava. Sentados num reservado, no outro lado da
sala, estavam Charles e sua esposa. Ainda não a tinham visto.
O primeiro impulso de Tracy foi se levantar e ir embora. Ainda
não se sentia preparada para enfrentar Charles, enquanto não
tivesse uma oportunidade de pôr seu plano em execução.
- Gostaria de pedir o jantar agora? - o garçon estava
perguntando.
- Eu... eu esperarei mais um pouco. Obrigada.
Ela precisava de decidir se ia ou não ia ficar. Olhou
novamente para Charles e um fenómeno espantoso ocorreu: Era
como se contemplasse um estranho. Viu um homem pálido, de
meia-idade, aparência cansada, calvo, ombros encurvados, tendo
no rosto uma expressão de inefável tédio. Era impossível
acreditar que ela tivesse pensado outrora que amava aquele
homem, fora para a cama com ele, planeara passar o resto da
vida em sua companhia. Tracy olhou para a esposa. Ela exibia a
mesma expressão entediada de Charles. Davam a impressão de
duas pessoas encurraladas juntas pela eternidade, congeladas
no tempo. Simplesmente se sentavam ali, sem dizerem uma só
palavra um para o outro. Tracy pôde visualizar os anos
tediosos e intermináveis que os dois teriam pela frente. Sem
amor. Sem alegria. Essa é a punição de Charles, pensou ela,
experimentando uma repentina sensação de alívio, uma
libertação das profundas e sinistras correntes emocionais que
antes a agrilhoavam. Tracy fez sinal para o garçon e disse:
- Estou pronta para pedir agora.
Estava acabado. O passado fora finalmente sepultado.
Foi somente quando voltou ao quarto no hotel, naquela noite,
que Tracy se lembrou que tinha dinheiro a receber do fundo dos
funcionários do banco. Sentou-se e calculou a quantia. Dava
exactamente 1.376 dólares e 65 cents.
Ela escreveu uma carta para Clarence Desmond e dois dias
depois recebeu uma resposta de Mae:
Prezada Senhorita Whitney:
Em resposta a seu pedido, o Sr. Desmond pediu-me que lhe
comunicasse que, por causa da política moral do plano
financeiro dos funcionários, sua cota reverteu para o fundo
geral. O Sr. Desmond pede também para lhe assegurar que não
guarda qualquer ressentimento pessoal.
Atenciosamente,
Mae Trenton
Secretária do Vice-Presidente
Sénior.
Tracy não podia acreditar. Estavam roubando o seu dinheiro,
sob o pretexto de resguardar a moral do banco! Ela sentiu-se
indignada. E jurou: Não deixarei que me enganem. Nunca mais
deixarei que qualquer pessoa me engane.
Dois dias depois Tracy se achava parada do lado de fora da
entrada familiar do Trust and Fidelity Bank de Filadélfia.
Usava uma peruca preta comprida, uma maquilhagem morena, uma
cicatriz vermelha no queixo. Se alguma coisa saísse errada,
seria da cicatriz que se lembrariam. Apesar do disfarce, Tracy
tinha a sensação de estar nua, pois trabalhara naquele banco
durante cinco anos e os empregados eram pessoas que haviam-na
conhecido muito bem. Teria de tomar todo cuidado para não se
trair.
Ela entrou claudicando no banco. Havia muitos clientes lá
dentro, pois Tracy escolhera deliberadamente a hora do pique
do movimento. Aproximou-se de uma das mesas de atendimento dos
clientes. O homem sentado por trás concluiu um telefonema e
disse:
- Pois não?
Era Jon Creighton, o fanático do banco. Odiava judeus, pretos
e porto-riquenhos, mas não necessariamente nessa ordem. Sempre
fora um motivo de irritação para Tracy durante os anos em que
ali trabalhara. Agora, não houve qualquer sinal de
reconhecimento no rosto dele.
- Buenos días, senhor. Eu gostaria de abrir uma conta
corrente, agora.
O sotaque de Tracy era mexicano, o mesmo sotaque que ouvira
por tantos meses de Paulita, sua companheira de cela. Havia
uma expressão de desdém no rosto de Creighton.
- Nome?
- Rita Gonzales.
- E quanto gostaria de depositar em sua conta?
- Dez dólares.
A voz de Creighton era escaminha:
- Em cheque ou em dinheiro?
- Acho que em dinheiro.
Ela tirou cuidadosamente da bolsa uma nota de dez dólares,
toda amassada, meio rasgada, entregou a Creighton. Ele
estendeu um formulário em branco para ela.
- Preencha isto.
Tracy não tinha a menor intenção de escrever qualquer coisa
com sua letra. Franziu o rosto.
- Desculpe, senhor. Machuquei minha mão... num acidente.
Importa-se de escrever para mim, se faz favor.
Creighton, bufou. Esses mexicanos analfabetos!
- Disse que seu nome é Rita Gonzales?
- Sim.
- Endereço?
Tracy forneceu o endereço e o telefone do hotel em que estava
hospedada.
- Nome de solteira de sua mãe?
- Gonzales. Minha mãe casou com seu tio.
- E sua data de nascimento?
- 20 de dezembro de 1958.
- Lugar de nascimento?
- Gudad de México.
- Cidade do México. Assine aqui.
- Terei de usar a mão esquerda.
Tracy pegou uma caneta e desajeitadamente escreveu uma
assinatura ilegível. Jon Creighton preencheu uma ficha de
depósito.
- Eu lhe darei um talão de cheques provisório. Seus cheques
impressos serão remetidos pelo correio dentro de três ou
quatro semanas.
- Bom. Muito agradecida, senhor.
- De nada.
Ele observou-a sair do banco. Malditos mexicanos.
Há diversos meios ilegais de se obter acesso a um computador e
Tracy era uma especialista no assunto. Ajudara a montar o
sistema de segurança do banco e agora estava prestes a
contorná-lo.
Seu primeiro passo era encontrar uma loja de computadores,
onde poderia usar um terminal para fazer contacto com o
computador do banco. Encontrou uma a vários quarteirões do
banco, quase vazia. Um vendedor ansioso se aproximou.
- Em que posso servi-la, dona?
- Eso si que no, senhor. Estou apenas dando uma olhada.
Os olhos dele foram atraídos por um adolescente empenhado num
jogo de computador.
- Com licença.
O vendedor afastou-se apressadamente. Tracy virou-se para o
computador à sua frente, um modelo de mesa, ligado a um
telefone. Entrar no sistema seria fácil, mas ela estaria
obstruída sem o código de acesso apropriado. Esse código era
mudado diariamente. Tracy participara da reunião em que fora
decidido o código de autorização original.
- Devemos mudá-lo constantemente - dissera Clarence Desmond -
a fim de que ninguém possa violá-lo. Contudo, queremos que
seja bastante simples para as pessoas que estão autorizadas a
usá-lo.
O código finalmente escolhido usava as quatro estações do ano
e o dia corrente.
Tracy ligou o computador e bateu o código para o Trust and
Fidelity Bank de Filadélfia. Ouviu um zumbido estridente e pôs
o receptor do telefone no módulo do computador. Um aviso
apareceu na pequena tela: SEU CÓDIGO DE AUTORIZAÇÃO, POR
FAVOR?
Era o dia 10.
OUTONO 10, bateu Tracy.
ESTE É UM CÓDIGO DE AUTORIZAÇÃO IMPRÓPRIO. A tela do
computador ficou em branco.
Eles teriam mudado o código? Pelo canto do olho, Tracy
percebeu o vendedor a se aproximar novamente. Ela deslocou-se
para outro computador, lançando-lhe um olhar casual e seguindo
para o corredor. O vendedor diminuiu as passadas. Uma curiosa,
concluiu ele. E adiantou-se apressadamente para cumprimentar
um casal de aparência próspera que entrava na loja. Tracy
voltou ao primeiro computador.
Tentou se situar na mente de Clarence Desmond. Ele era um
homem de hábitos e Tracy tinha certeza de que não teria
variado demais o código. Provavelmente mantivera o conceito
original das estações e dos números. Mas como os mudara? Seria
complicado demais inverter todos os números; portanto, era
provável que ele tivesse apenas trocado as estações.
Tracy tentou de novo.
SEU CÓDIGO DE AUTORIZAÇÃO, POR FAVOR?
INVERNO 10.
ESTE É UM CÓDIGO DE AUTORIZAÇÃO IMPRÓPRIO. A tela tornou a
ficar vazia.
Não vai dar certo, pensou Tracy, desesperada. Farei só mais
uma tentativa.
SEU CÓDIGO DE AUTORIZAÇÃO, POR FAVOR?
PRIMAVERA 10.
A tela ficou vazia por um instante e depois a mensagem
apareceu: CONTINUE, POR FAVOR.
Então Desmond trocara mesmo as estações. Ela bateu
rapidamente: TRANSAÇÃO INTERNA DE DINHEIRO.
No mesmo instante, o cardápio do banco, as categorias de
transacções disponíveis, apareceu na tela:
VOCÊ DESEJA
A) DEPÓSITO DE DINHEIRO
B) TRANSFERENCIA DE DINHEIRO
C) RETIRADA DE DINHEIRO DE CONTA DE POUPANÇA
D) TRANSFERENCIA ENTRE SUCURSAIS
E) RETIRADA DE DINHEIRO DE CONTA CORRENTE
REGISTRE POR FAVOR SUA OPÇÃO
Tracy escolheu o B. A tela tornou a se apagar e logo um novo
cardápio apareceu.
VALOR DA TRANSFERêNCIA?
PARA ONDE?
DE ONDE?
Ela bateu: DO FUNDO DE RESERVA GERAL PARA RITA GONZALES.
Quando chegou o momento de indicar o valor, ela hesitou por um
instante. Tentador, pensou Tracy. Como tinha acesso, não havia
limite para a quantia que o computador agora subserviente
poderia lhe dar. Se quisesse, tomaria milhões. Mas não era uma
ladra. Tudo o que queria era o que lhe pertencia por direito.
Ela bateu 1.375,65 dólares e acrescentou o número da conta de
Rita Gonzales.
A tela comunicou: TRANSAÇÃO CONCLUÍDA, DESEJA EFECTUAR OUTRAS
OPERAÇÕES?
NÃO.
SESSÃO ENCERRADA. OBRIGADO.
O dinheiro seria automaticamente transferido pela Câmara de
Compensação Interbancária que manipulava os 220 bilhões de
dólares deslocados entre os bancos todos os dias
O vendedor se aproximava outra vez de Tracy, o rosto franzido.
Tracy se apressou em apertar uma tecla e a tela do computador
apagou,
- Está interessada em comprar esse aparelho, dona?
- Não, obrigada. Não consigo mesmo entender esses
computadores.
Ela telefonou para o banco de uma drugstore na esquina e
pediu para falar com o chefe dos caixas.
- Olá. Aqui é Rita Gonzales. Eu gostaria que minha conta
corrente fosse transferida para a matriz do First Hanover
Bank, em Nova York, por favor.
- O número de sua conta, Senhorita Gonzales?
Tracy deu a informação.
Uma hora depois, Tracy deixou o Hilton e partiu para a cidade
de Nova York.
Quando o First Hanover Bank de Nova York abriu, às 10 horas da
manhã seguinte, Rita Gonzales ali estava, a fim de retirar
todo o dinheiro de sua conta.
- Quanto tem? perguntou ela.
O caixa verificou.
- Tem 1.385 dólares e 65 cents.
- Sim, está correcto.
- Gostaria de levar um cheque visado nesse valor, Senhorita
Gonzales?
- Não, obrigada. Não confio em bancos. Quero tudo em
dinheiro.
Tracy recebera os 200 dólares habituais ao deixar a
penitenciária estadual e mais a pequena quantia que ganhara
tomando conta de Amy. Contudo, mesmo com o dinheiro do fundo
do banco, ela não tinha segurança financeira. Era
indispensável que conseguisse um emprego o mais depressa
possível.
Ela hospedou-se num hotel barato na Lexington Avenue e
começou a enviar seu currículo aos bancos de Nova York,
solicitando um emprego como técnica em computadores. Logo
descobriu que o computador se tornara subitamente o seu
inimigo. Sua vida não era mais particular. Os bancos de
memória dos computadores continham a história de sua vida e
prontamente a revelavam a qualquer um que apertasse as teclas
certas. E no instante em que a ficha criminal de Tracy
aparecia, seu pedido de emprego era rejeitado.
Acho improvável que, tendo em vista os seus antecedentes,
qualquer banco possa contratá-la. Clarence Desmond estava
certo.
Tracy enviou outros pedidos de empregos a seguradoras e
outras empresas que operavam com computadores. As respostas
eram sempre iguais: negativo.
Muito bem, pensou Tracy, sempre posso fazer outra coisa. Ela
comprou um exemplar de The New York Times e começou a procurar
os anúncios de emprego.
Havia uma vaga de secretária numa firma de exportação. No
momento em que Tracy passou pela porta, o gerente de pessoal
disse:
- Ei, eu a vi na televisão . Você salvou uma garota na
prisão, não é mesmo?
Tracy virou-se e fugiu.
No dia seguinte ela foi contratada como vendedora no
departamento infantil da Saks, na Quinta Avenida. O salário
era muito menor do que ganhava antes, mas pelo menos daria
para se sustentar.
Em seu segundo dia de trabalho, uma freguesa histérica
reconheceu-a e comunicou ao gerente do andar que se recusava a
ser servida por uma assassina que afogara uma criancinha.
Tracy não teve sequer a oportunidade de explicar. Foi
imediatamente despedida.
Parecia a Tracy que os homens contra os quais executara a sua
vingança estavam dando a última palavra, no final de contas,
convertendo-a numa criminosa pública, uma pária. A injustiça
do que estava lhe acontecendo era corrosiva. Não tinha idéia
de como odiaria viver e pela primeira vez começou a
experimentar um sentimento de desespero. Ela vasculhou a bolsa
naquela noite para verificar quanto dinheiro lhe restava. Num
canto da carteira viu o pedaço de papel que Betty Franciscus
lhe dera na prisão. CONRAD MORGAN, JOALHEIRO, QUINTA AVENIDA,
640, CIDADE DE NOVA YORK. Ele se empenha na reforma criminal.
E gosta de ajudar as pessoas que já passaram pela prisão.
Conrad Morgan et Cie Joalheiros era um estabelecimento
elegante, com um porteiro de libré do lado de fora e um guarda
armado dentro. A loja propriamente dita era simples, mas as
jóias eram requintadas e caras. Tracy disse à recepcionista:
- Eu gostaria de falar com o Sr. Conrad Morgan, por favor.
- Tem um encontro marcado?
- Não. Uma... uma amiga comum sugeriu que eu o procurasse.
- Seu nome?
- Tracy Whitney.
- Um momento, por favor.
A recepcionista pegou um telefone e murmurou alguma coisa que
Tracy não pôde entender. Ela repôs o telefone no gancho.
- O Sr. Morgan está muito ocupado neste momento Pergunta se
poderia voltar às seis horas.
- Posso, sim. Obrigada.
Tracy saiu da loja e parou na calçada, indecisa. Vir para
Nova York fora um erro. Provavelmente não havia nada que
Conrad Morgan pudesse fazer por ela. E por que deveria fazer?
Ela era uma estranha total. Ele me fará uma prelecção e me
dará uma esmola. Não preciso de qualquer das duas coisas. Nem
dele nem de qualquer outra pessoa. Sou uma sobrevivente. Darei
um jeito, de alguma forma. Que se dane Conrad Morgan. Não
voltarei a procurá-lo.
Tracy vagueou pelas ruas a esmo, passando pelos salões
reluzentes da Quinta Avenida, os prédios de apartamentos
guardados na Park Avenue, as lojas movimentadas na Lexington e
na Terceira Avenida. Passeava pelas ruas de Nova York sem
pensar, sem ver nada, dominada por uma amarga frustração.
às seis horas descobriu-se de volta à Quinta Avenida, diante
de Conrad Morgan et Cie Joalheiros. O porteiro se fora e a
porta estava trancada. Tracy bateu na porta, num gesto de
desafio, depois virou-se. Mas, para sua surpresa, a porta
abriu-se abruptamente.
Um homem de aparência paternal estava parado ali, a fitá-la.
Era calvo, com tufos de cabelos brancos por cima das orelhas,
um rosto rubicundo e jovial, olhos azuis faiscantes. Parecia
um alegre gnomo.
- É a Senhorita Whitney?
- SOU...
- E eu sou Conrad Morgan. Não quer entrar, por favor?
Tracy entrou na loja deserta.
- Eu estava à sua espera - disse Conrad Morgan. - Vamos para o
meu escritório, onde poderemos conversar mais à vontade.
Ele conduziu-a através da loja até uma porta fechada, que
destrancou com uma chave. O escritório era elegantemente
mobiliado e mais parecia um apartamento que um lugar de
negócios, sem escrivaninhas, apenas sofás, cadeiras e mesas
distribuídas com bom gosto. As paredes estavam cobertas por
quadros de velhos mestres.
- Gostaria de tomar um drinque? - ofereceu Conrad Morgan. -
Uísque, conhaque ou talvez um xerez?
- Não quero nada, obrigada.
Tracy sentia-se subitamente nervosa. Descartara a idéia de que
aquele homem faria alguma coisa para ajudá-la; contudo, ao
mesmo tempo, descobriu-se a torcer desesperadamente para que
ele pudesse fazê-lo.
- Betty Franciscus sugeriu que eu o procurasse, Sr. Morgan.
Ela disse que o senhor... ajudava pessoas que já estiveram...
em dificuldades.
Ela não foi capaz de dizer prisão. Conrad Morgan cruzou as
mãos e Tracy notou que as unhas eram impecavelmente cuidadas.
- Pobre Betty. Uma moça maravilhosa. Mas não teve sorte.
- Não teve sorte?
- Isso mesmo. Foi apanhada.
- Eu... eu não compreendo...
- É realmente muito simples, Senhorita Whitney. Betty
trabalhava para mim. Era bem protegida. Mas a pobre coitada se
apaixonou por um chofer de Nova Orleans, e resolveu operar por
conta própria. E... acabou sendo apanhada.
Tracy estava confusa.
- Ela trabalhou aqui como uma vendedora?
Conrad Morgan recostou-se na cadeira e riu até que os olhos
ficaram mareejados de lágrimas.
- Não, minha cara - disse ele, enxugando as lágrimas. -
Obviamente, Betty não lhe explicou tudo.
Ele tornou a se recostar e uniu as pontas dos dedos, antes de
continuar:
- Tenho um pequeno negócio paralelo muito lucrativo,
Senhorita Whitney. Sinto o maior prazer em partilhar esses
lucros com meus colegas. Sou bem-sucedido em contratar pessoas
como você... se me perdoa dizê-lo ... que já cumpriram uma
pena de prisão.
Tracy estudou o rosto dele, mais perplexa do que nunca.
- Deve compreender que me encontro numa posição singular.
Tenho uma clientela extremamente rica. Meus clientes tornam-se
meus amigos E me fazem suas confidências. - Ele bateu com os
dedos, delicadamente. - Sei quando meus clientes viajam. Bem
poucas pessoas viajam com jóias nestes tempos perigosos.
Assim, suas jóias ficam guardadas em casa. Recomendo as
medidas de segurança que devem adoptar para protegê-las. Sei
exactamente quais as jóias que possuem, pois as compraram de
mim. E os clientes.
Tracy descobriu-se de pé.
- Obrigada por seu tempo, Sr. Morgan.
- Já vai embora?
- Se está dizendo o que eu penso...
- Claro que estou.
Tracy podia sentir as suas faces ardendo.
- Não sou uma criminosa. Vim aqui à procura de um emprego.
- E é justamente o que estou lhe oferecendo, minha cara.
Ocupará uma ou duas horas de seu tempo e posso lhe prometer
vinte e cinco mil dólares. - Ele sorriu maliciosamente. - E
livre de impostos, é claro.
Tracy fazia um grande esforço para controlar sua raiva.
- Não estou interessada. Pode me deixar sair, por favor?
- Pois não, se é isso o que deseja. - Ele levantou-se e
acompanhou-a até à porta. - Deve compreender, Senhorita
Whitney, que se houvesse o menor perigo de alguém ser apanhado
eu não estaria envolvido. Tenho uma reputação a zelar.
- Prometo que não falarei nada a esse respeito - disse Tracy
friamente.
Morgan tornou a sorrir.
- Não há nada que possa dizer, minha cara, não é mesmo?
Afinal, quem acreditaria em você? Eu sou Conrad Morgan.
Ao chegarem à porta da loja, ele acrescentou:
- Não quer me avisar se mudar de idéia? O melhor momento para
me telefonar é depois das seis horas da tarde. Ficarei à
espera de sua ligação.
- Pois não fique - disse Tracy bruscamente.
Ela saiu para a noite que caía. Ainda tremia quando chegou a
seu quarto.
Mandou um empregado do hotel buscar um sanduíche e café. Não
tinha vontade de falar com ninguém. A conversa com Conrad
Morgan deixara-a com a sensação de ter sido contaminada. Ele a
confundira com todas as criminosas tristes, confusas e
derrotadas que a cercavam na Penitenciária Meridional da
Louisiana Para Mulheres. Mas ela não era uma delas. Era Tracy
Whitney, uma perita em computadores, uma cidadã decente, que
respeitava as leis.
A quem ninguém queria contratar.
Tracy passou a noite inteira acordada, pensando em seu
futuro. Não tinha emprego e lhe restava muito pouco dinheiro.
Tomou duas decisões: Pela manhã, iria se mudar para um lugar
mais barato e arrumaria um emprego. Qualquer tipo de emprego.
O lugar mais barato em um horrível apartamento de um só
cómodo, no quarto andar de um prédio sem elevador, no Lower
East Side. De seu quarto, através das paredes finas como
papel, Tracy podia ouvir os vizinhos gritando uns para os
outros, em línguas estrangeiras. As janelas e portas das lojas
que margeavam as ruas eram gradeadas e Tracy podia compreender
por quê. A área parecia povoada por bêbados, prostitutas e
mendigos.
A caminho do supermercado para fazer compras, Tracy foi
abordada três vezes... duas vezes por homens e a outra por uma
mulher.
Não posso suportar isso. Não ficarei aqui por muito tempo,
Tracy garantiu a si mesma.
Ela foi a uma pequena agência de empregos, a poucos
quarteirões de seu apartamento. Era dirigida por uma certa
Sra. Murphy, uma mulher corpulenta, de aparência matronal. Ela
examinou o currículo de Tracy com uma expressão irónica.
- Não sei para que precisa de mim. Deve haver pelo menos uma
dúzia de empresas que brigariam para ter alguém como você.
Tracy respirou fundo.
- Acontece que tenho um problema.
Ela explicou tudo. A Sra. Murphy escutou em silêncio e disse,
quando Tracy terminou:
- Pode esquecer a procura de um emprego em computadores.
- Mas acabou de dizer...
- As companhias andam muito preocupadas actualmente com os
crimes por computador. Não contratarão ninguém que tenha uma
ficha criminal.
- Mas preciso de um emprego. Eu...
- Há outros tipos de emprego. Já pensou em trabalhar como
vendedora?
Tracy lembrou-se de sua experiência na loja de departamentos.
Não podia suportar passar de novo pela mesma situação.
- Há mais alguma coisa?
A mulher hesitou. Tracy Whitney era obviamente alguém muito
acima do emprego que tinha em mente.
- Sei que não é da sua classe, mas há uma vaga de garçonete
no Jackson Hole. É uma lanchonete no Upper East Side.
- Um emprego de garçonete?
- Isso mesmo. Se quiser aceitar, não cobrarei qualquer
comissão. Acabei de ser informada.
Tracy ficou em silêncio por um momento, pensando. Servira a
mesas no refeitório da universidade. Fora então divertido.
Agora, era uma questão de sobrevivência.
- Vou experimentar.
Jackson Hole era um tumulto, com fregueses ruidosos e
impacientes, cozinheiros mortificados e irritados. A comida
era boa e os preços razoáveis, a lanchonete estava sempre
apinhada. As garçonetes trabalhavam num ritmo frenético, sem
tempo para descansar. Ao final do primeiro dia, Tracy
encontrava-se exausta. Mas estava ganhando dinheiro.
No segundo dia, por volta de meio-dia, quando Tracy servia a
uma mesa cheia de vendedores, um dos homens subiu a mão por
baixo de sua saia. Tracy deixou cair um pote de chili em sua
cabeça. Foi o fim do emprego.
Ela voltou à Sra. Murphy e relatou o que acontecera.
- Talvez eu tenha uma boa notícia - disse a Sra. Murphy. - O
Wellington Arnis precisa de uma arrumadeira-assistente.
Mandarei você para lá.
O Wellington Arais, era um hotel pequeno e elegante na Park
Avenue que atendia aos ricos e famosos. Tracy foi entrevistada
pela chefe das arrumadeiras e contratada. O trabalho não era
difícil, as colegas simpáticas e o horário razoável.
Uma semana depois, Tracy foi chamada à sala de sua superior. O
gerente-assistente também estava ali.
- Verificou a Suíte 827 hoje? - perguntou-lhe a sua superior.
A Suíte era ocupada por Jennifer Marlowe, uma actriz de
Hollywood. Parte das funções de Tracy era inspeccionar cada
suíte e verificar se as arrumadeiras tinham feito seu trabalho
direito.
- Verifiquei, sim.
- A que horas?
- às duas. Algum problema?
O gerente-assistente interveio:
- A Senhorita Marlowe voltou às três horas e descobriu que um
valioso anel de diamante desaparecera.
Tracy pôde sentir seu corpo ficar tenso.
- Você entrou no quarto, Tracy?
- Claro. Verifico todos os cómodos.
- Viu alguma jóia quando esteve no quarto?
- Bom... não. Acho que não.
O gerente-assistente insistiu:
- Você acha que não? Não tem certeza?
- Eu não estava procurando por jóias - respondeu Tracy. -
Apenas verificava as camas e as toalhas.
- A Senhorita Marlowe afirma que deixou o anel na penteadeira
quando saiu da suíte.
- Não sei de nada a esse respeito.
- Ninguém mais tem acesso à suíte. E as arrumadeiras já estão
connosco, há muitos anos.
- Não peguei nenhum anel.
O gerente-assistente suspirou.
- Teremos de chamar a polícia para investigar.
- Só pode ter sido outra pessoa - protestou Tracy. - Ou talvez
a Senhorita Marlowe tenha esquecido onde guardou o anel..
- Com a sua ficha...
Lá estava, às claras. Com a sua ficha...
- Terei de pedir-lhe que faça o favor de esperar no
escritório da segurança até a chegada da polícia.
Tracy sentiu o rosto corar.
- Está bem, senhor.
Ela foi acompanhada até à sala por um dos agentes de
segurança, teve a sensação de que estava de volta à prisão.
Lera sobre ex-condenados que eram perseguidos porque tinham
passado pela prisão, mas nunca lhe ocorrera que isso pudesse
acontecer com ela. Haviam-lhe posto um rótulo e esperavam que
ela vivesse de acordo. Ou em desacordo, pensou Tracy,
amargurada.
Meia hora depois o gerente-assistente entrou na sala e disse,
sorrindo:
- A Senhorita Marlowe encontrou seu anel. No final das
contas, ela esquecera onde o guardara. Foi apenas um pequeno
equívoco.
- Maravilhoso - murmurou Tracy.
Ela deixou o hotel e seguiu directamente para Conrad Morgan,
et Cie Joalheiros.
- É ridiculamente simples - Conrad Morgan estava dizendo. -
Uma cliente minha, Lois Bellamy, acaba de viajar para a
Europa. Sua casa é em Sea Cliff, Long Island. Os empregados
tiram folga nos fins de semana e não há ninguém por lá. Uma
patrulha particular efectua uma inspecção a cada quatro horas.
Você pode entrar e sair da casa em poucos minutos.
Eles estavam sentados no escritório de Conrad Morgan.
- Conheço o sistema de alarme e tenho a combinação do cofre.
Tudo o que você tem de fazer, minha cara, é entrar, pegar as
jóias e sair. Traga-me as jóias, eu tiro as pedras dos
engastes, torno a lapidar as maiores e as vendo.
- Se é tão simples assim, por que você não faz tudo
pessoalmente? - indagou Tracy, bruscamente.
Os olhos azuis de Morgan faiscaram.
- Porque estou saindo da cidade a negócios. Sempre que um
desses pequenos incidentes ocorre", eu me encontro
invariavelmente fora da cidade a negócios.
- Entendo...
- Se está com escrúpulos sobre a possibilidade de o roubo
afectar a Sra. Bellamy, pode esquecer. Ela é uma mulher
horrível, que tem casas por todo o mundo, cheias das coisas
mais caras. Além disso, segurou as jóias pelo dobro do valor
real. Naturalmente, eu fiz todas as avaliações.
Tracy olhava fixamente para Conrad Morgan, pensando: Devo ter
ficado louca. Aqui estou a discutir calmamente um roubo de
jóias com este homem.
- Não quero voltar à prisão, Sr. Morgan.
- Não há qualquer perigo. Nenhuma das pessoas que trabalhou
para mim foi apanhada. Pelo menos não enquanto trabalhavam
para mim. E então... o que me diz?
A resposta era óbvia. Ela diria que não. Toda a idéia era
insana.
- Você disse vinte e cinco mil dólares?
- Pagamento contra entrega.
Era uma fortuna, o suficiente para sustentá-la até poder
definir o que fazer com sua vida. Tracy pensou no apartamento
sinistro em que vivia, nos berros dos inquilinos. Lembrou-se
da mulher a gritar:
- Não quero uma assassina me servindo.
E lembrou-se das palavras do gerente-assistente do hotel:
- Teremos de chamar a polícia para investigar.
Mas Tracy ainda não tinha condições de dizer sim.
- Eu sugeriria esta noite de sábado - acrescentou Conrad
Morgan. - Os empregados saem ao meio-dia de sábado.
Providenciarei uma carteira de motorista para você, sob um
nome falso. Alugará um carro aqui em Manhattan e seguirá para
Long Island, lá chegando às onze horas. Pegará as jóias,
voltará a Nova York e devolverá o carro... Sabe guiar, não é
mesmo?
- Sei, sim.
- Excelente. Há um trem partindo para St. Louis às 7 e 45.
Reservarei um compartimento para você. Irei encontrá-la na
estação em St. Louis e você me entregará as jóias. Eu lhe
darei então os vinte e cinco mil dólares.
Ele fazia com que tudo parecesse muito simples.
Aquele era o momento de dizer não, levantar e ir embora... ir
embora para onde?
- Precisarei de uma peruca loura - disse Tracy, falando muito
devagar.
Depois que Tracy se retirou, Conrad Morgan permaneceu sentado
em seu escritório, no escuro, pensando nela. Uma fina mulher.
Muito fina. Era uma pena. Talvez devesse tê-la avisado que não
estava realmente tão familiarizado assim com aquele sistema de
alarme contra ladrões em particular.
16
Com os mil dólares que Conrad Morgan lhe adiantara, Tracy
comprou duas perucas, uma loura e uma preta, com uma
infinidade de pequenas tranças. Comprou uma calça comprida
azul-marinho, um macacão preto e uma valise, imitação de
Gucci, num ambulante que estava na Lexington Avenue. Até
agora, tudo corria perfeitamente. Conforme Morgan prometera,
Tracy recebeu um envelope contendo uma carteira de motorista,
em nome de Ellen Branch, um diagrama do sistema de segurança
da casa da Sra. Bellamy, a combinação do cofre no quarto e uma
passagem da Amtrack para St. Louis, numa cabina particular.
Tracy recolheu seus poucos pertences e partiu. Nunca mais
tornarei a viver num lugar como este, ela prometeu a si mesma.
Alugou um carro e seguiu para Long Island. Estava indo cometer
um roubo.
O que fazia tinha a irrealidade de um sonho e ela sentia-se
apavorada. E se fosse apanhada? O que estava prestes a fazer
valia o risco?
É ridiculamente simples, dissera Conrad Morgan.
Ele não estaria envolvido em qualquer coisa assim se não
tivesse certeza absoluta. Ele tem sua reputação a zelar. Eu
também tenho uma reputação, pensou Tracy, amargurada, só que é
a pior possível. A qualquer momento que uma jóia esteja
desaparecida, eu serei culpada até que se prove a minha
inocência.
Tracy sabia o que estava fazendo. Tentava se pôr num estado de
raiva, tentava se preparar psicologicamente para cometer um
crime. Mas não deu certo. Ao chegar a Sea Cliff, era um
destroço nervoso. Por duas vezes quase saiu com o carro da
estrada. Talvez a polícia me detenha por condução perigosa,
pensou ela, esperançosa. Poderei então dizer ao Sr. Morgan que
tudo saiu errado antes mesmo de começar.
Mas não havia qualquer carro da polícia à vista. Claro, pensou
Tracy, furiosa, eles nunca estão por perto quando se precisa.
Ela foi para o estreito de Long Island, seguindo a orientação
de Conrad Morgan. A casa fica à beira do mar. Tem o nome de
Embers. É uma antiga mansão vitoriana. Não pode errar.
Por favor, Deus, faça-me errar, rezou Tracy.
Mas lá estava a casa, assomando da escuridão, como algum
castelo de ogre num pesadelo. Parecia deserta. Como os criados
se atrevem a tirar folga no sábado!, pensou Tracy, indignada.
Todos deveriam ser despedidos.
Ela levou o carro para trás de um grupo de enormes salgueiros,
onde ficaria escondido . Desligou o motor. Ficou escutando os
ruídos nocturnos dos insectos. Nada mais perturbava o
silêncio. A casa ficava longe da estrada principal e não havia
qualquer tráfego àquela hora.
A propriedade é protegida por árvores, minha cara, o vizinho
mais próximo está a acres de distância. Portanto, não precisa
se preocupar com a possibilidade de ser vista. A patrulha de
segurança efectua a sua inspecção às dez horas da noite e
novamente às duas da madrugada. Você já estará muito longe às
duas da madrugada.
Tracy olhou para o seu relógio. Eram 11 horas. A primeira
inspecção já fora feita. Ela tinha três horas antes que a
patrulha voltasse para a segunda inspecção. Ou três segundos
para fazer a manobra com o carro e voltar a Nova York,
esquecer toda aquela loucura. Mas voltar para o quê? As
imagens afloraram espontâneas em sua mente. O
gerente-assistente no Saks: "Lamento profundamente, Senhorita
Whitney, mas devemos fazer a vontade de nossos fregueses."
"Pode esquecer a idéia de trabalhar com um computador. Eles
não contratarão alguém que tenha uma ficha criminal.. . "São
25 mil dólares, livres de impostos, por uma ou duas horas. Se
tem escrúpulos, saiba que ela é realmente uma mulher
horrível."
O que estou fazendo?, pensou Tracy. Não sou realmente uma
ladra. Não uma ladra genuína. Sou uma estúpida amadora, que
está prestes a sofrer um colapso nervoso.
Se eu tivesse metade de um cérebro, escaparia daqui enquanto
ainda há tempo. Antes que os homens da SWAT me encontrem, haja
um tiroteio e levem meu corpo crivado de balas para o
necrotério. Posso ver a manchete: PERIGOSA CRIMINOSA MORTA
DURANTE TENTATIVA DE ROUBO FRUSTRADA.
Quem haveria de chorar em seu enterro? Ernestine e Amy, Tracy
olhou para o relógio.
- Oh, Deus!
Estava sentada ali, pensando, há 20 minutos. Se vou fazer, é
melhor começar logo.
Ela não podia se mexer. Estava paralisada pelo medo. Não posso
ficar sentada aqui eternamente, disse a si mesma. Por que não
dou uma olhada na casa? Apenas isso, nada mais.
Tracy respirou fundo e saiu do carro. Usava o macacão preto.
Podia sentir os joelhos tremendo. Aproximou-se da casa
lentamente e constatou que se achava completamente às escuras.
Não se esqueça de usar luvas.
Tracy meteu a mão no bolso, tirou um par de luvas, vestiu-as.
Oh, Deus, eu vou fazer!, pensou ela. Vou realmente seguir em
frente e cometer um roubo. Seu coração batia tão alto que não
podia mais ouvir quaisquer outros sons.
O alarme fica à esquerda da porta da frente. Há cinco botões.
A luz vermelha estará acesa, o que significa que o alarme se
acha activado. O código para desligá-lo é
três-dois-quatro-um-um. Quando a luz vermelha se apagar, você
saberá que o alarme está desactivado. Aqui está a chave da
porta da frente. Depois de entrar, não se esqueça de fechar a
porta. Use esta lanterna. Não acenda nenhuma das luzes da
casa, pois sempre é possível que alguém passe de carro. O
quarto principal fica no segundo andar, à esquerda, de frente
para o mar. Encontrará o cofre por trás de um retracto de Lois
Bellamy. É um cofre muito simples. Tudo o que tem a fazer é
seguir esta combinação.
Tracy ficou imóvel, tremendo, pronta para fugir ao menor
ruído. Silêncio. Lentamente, ela se inclinou e apertou a
sequência dos botões do alarme, rezando para que não desse
sinal. A luz vermelha se apagou. O passo seguinte a
comprometeria irremediavelmente. Ela lembrou-se de que os
pilotos de avião tinham uma frase para isso: o ponto do qual
não se podia mais voltar.
Tracy inseriu a chave na fechadura e a porta se abriu. Ela
esperou um minuto inteiro antes de entrar. Todos os nervos de
seu corpo vibravam num ritmo frenético quando parou no
vestíbulo, escutando, com medo de se mexer. Um silêncio de
deserto povoava a casa. Ela pegou a lanterna, acendeu-a, viu a
escada. Adiantou-se e começou a subir. Tudo o que queria agora
era acabar com aquilo o mais depressa possível e fugir.
O vestíbulo superior parecia fantasmagórico ao clarão da
lanterna, o facho bruxuleante fazia com que as paredes
tremessem. Tracy espiou em cada cómodo por que passou. Estavam
todos vazios.
O quarto principal ficava no final do corredor, dando para o
mar, exactamente como Morgan o descrevera. Era aconchegante,
numa tonalidade rosa suave, uma cama de dossel e uma cómoda
adornada com rosas. Havia duas poltronas, uma lareira e uma
mesa pequena de refeição na frente. Eu quase vivi numa casa
assim, com Charles e nosso filho, pensou Tracy.
Ela foi até a janela panorâmica e contemplou os barcos
distantes, ancorados na baía. Diga-me, Deus, o que o levou a
decidir que Lois Bellamy deveria viver nesta linda casa e que
eu deveria estar aqui para roubá-la? Vamos, menina, ela disse
a si mesma, não se torne filosófica. Será uma vez só. Tudo
acabará em poucos minutos, mas não se ficar parada aqui sem
fazer nada.
Tracy virou-se e foi até o retracto que Morgan descrevera.
Lois Bellamy tinha uma expressão dura e arrogante. É verdade.
Ela parece mesmo uma mulher horrível. O quadro virava para
fora, afastando-se da parede, havia um pequeno cofre por trás.
Tracy memorizara a combinação. Três voltas para a direita,
pare em quarenta e dois. Duas voltas para a esquerda, pare em
dez. Uma volta para a direita, pare em trinta. Suas mãos
tremiam tanto que ela teve de começar duas vezes. Ouviu um
clique. A porta do cofre estava aberta.
Em seu interior havia diversos envelopes grossos e documentos,
mas Tracy ignorou-os. Lá no fundo, sobre uma pequena
prateleira, ela viu um saco de jóias de camurça. Tracy
estendeu a mão e levantou-o da prateleira. E foi nesse
instante que o alarme começou a soar, o barulho mais alto que
Tracy já ouvira em toda a sua vida. Parecia reverberar de
todos os cantos da casa, gritando o seu alerta. Ela ficou
imóvel, paralisada pelo choque.
O que saíra errado? Conrad Morgan não sabia do alarme dentro
do cofre, que era accionado quando se removiam as jóias da
prateleira?
Ela tinha de sair dali rapidamente. Meteu a bolsa de camurça
no bolso e começou a correr para a escada. E de repente, acima
do som do alarme, ouviu outro ruído, o barulho de sirenes se
aproximando. Tracy parou no alto da escada, apavorada, o
coração disparado, a boca seca. Correu em direcção a uma
janela, entreabriu uma cortina, espiou. Uma radiopatrulha
preta e branca estava parando diante da casa. Enquanto Tracy
observava, um policial uniformizado correu para os fundos do
prédio, enquanto um segundo se encaminhava para a porta da
frente. Não havia escapatória. O alarme ainda ressoava e
subitamente parecia a terrível campainha nos corredores da
Penitenciária Meridional da Louisiana Para Mulheres.
Não!, pensou Tracy. Não permitirei que me mandem de volta para
lá.
A porta da frente soou estridentemente.
O Tenente Melvin Durkin integrava a força policial de Sea
Cliff há dez anos. Sea Cliff era uma cidadezinha tranquila e a
principal actividade da polícia era reprimir o vandalismo, uns
poucos roubos de carros e ocasionais brigas de bêbados nas
noites de sábado. A activação do alarme Bellamy se enquadrava
numa categoria diferente, Era o tipo de actividade criminosa
pelo qual o Tenente Durkin ingressara na polícia . Ele
conhecia Lois Bellamy e tinha conhecimento da valiosa colecção
de quadros e jóias que ela possuía. E com a Sra Bellamy
viajando, ele fizera questão de inspeccionar a casa
periodicamente, pois constituía um alvo tentador para qualquer
ladrão. E agora, pensou o Tenente Durkin, parece que peguei um
ladrão. Ele se encontrava apenas a dois quarteirões de
distância quando recebera a chamada pelo rádio da companhia de
segurança. Isto ficará sensacional na minha folha,
O Tenente Durkin apertou a campainha da porta da frente.
Queria poder registrar em seu relatório que tocara a campainha
três vezes, antes de forçar a entrada . Seu companheiro cobria
os fundos e assim não havia qualquer possibilidade de o ladrão
escapar. Ele tentaria provavelmente se esconder no interior da
casa, mas teria uma surpresa. Ninguém podia se esconder de
Melvin Durkin.
Quando o tenente estendia a mão para tocar a campainha pela
terceira vez, a porta da frente se abriu subitamente. Ele
ficou aturdido. Parada à sua frente se achava uma mulher, numa
camisola fina, que deixava muito pouco à imaginação. O rosto
se apresentava coberto por um creme escuro, os cabelos metidos
numa touca. Ela perguntou:
- Que diabo está acontecendo?
Tenente Durkin engoliu em seco.
- Eu... quem é você?
- Sou Ellen Branch. Uma hóspede de Lois Bellamy. Ela está na
Europa.
- Sei disso. - O tenente ficou confuso. - Ela não nos disse
que teria uma hóspede.
A mulher na porta balançou a cabeça ironicamente.
- Isso não é típico de Lois? Com licença, mas não posso
suportar este barulho.
Enquanto o Tenente Durkin observava, a hóspede de Lois Bellamy
estendeu a mão para os botões do alarme, apertou uma sequência
de números. O som cessou.
- Assim está melhor. - Ela suspirou. - Não posso lhe dizer o
quanto estou contente em vê-lo.
A mulher fez uma pausa, rindo, trémula.
- Eu estava me aprontando para deitar quando o alarme começou
a tocar. Tinha certeza de que havia ladrões na casa e me
encontro sozinha aqui. Todos os criados saíram de folga ao
meio-dia.
- Não se importa se dermos uma olhada?
- Por favor, eu insisto!
O tenente e seu companheiro levaram apenas poucos minutos
para se certificarem de que não havia ninguém à espreita no
interior da residência.
- Tudo certo - anunciou o Tenente Durkin. - Alarme falso.
Algum defeito deve tê-lo activado. Nem sempre se pode confiar
nesses inventos electrónicos. Eu ligaria para a companhia de
segurança e pediria que verificassem o sistema.
- É exactamente o que vou fazer.
- Acho melhor eu ir. . .
- Obrigada por ter vindo. Eu me sinto muito mais segura agora.
Ela tem mesmo um corpo sensacional, pensou o Tenente Durkin.
Ele se perguntou como a mulher pareceria sem o creme no rosto
e sem a touca.
- Ficará aqui muito tempo, Senhorita Branch?
- Mais uma ou duas semanas, até Lois voltar.
- Se houver algo que eu possa fazer, basta me avisar.
- Obrigada. Não esquecerei.
Tracy ficou observando enquanto o carro da polícia se
afastava pela noite. Sentiu que podia desmaiar de alívio.
Depois que o carro sumira, ela subiu correndo a escada, tirou
do rosto o creme que encontrara no banheiro, arrancou a touca
e a camisola de Lois Bellamy, tornou a vestir o seu macacão
preto e saiu pela porta da frente, tornando cuidadosamente a
ligar o alarme.
Foi somente quando já atingira a metade do caminho de volta a
Manhattan que Tracy absorveu completamente a audácia do que
fizera. Ela soltou uma risadinha, que acabou se transformando
em gargalhadas trémulas e incontroláveis, até que finalmente
parou o carro à beira da estrada. E continuou a rir, as
lágrimas escorrendo pelas faces. Era a primeira vez que ria em
um ano inteiro. E a sensação era maravilhosa.
17
Somente depois que o trem Amtrack partiu da Estação
Pensilvânia é que Tracy começou a relaxar. Esperara a cada
segundo que uma mão pesada pousasse em seu ombro e uma voz
dissesse:
- Você está presa.
Ela observara atentamente os outros passageiros que haviam
embarcado no trem e nada percebera de alarmante . Mesmo assim,
os ombros de Tracy se achavam contraídos em tensão. Ela
insistia em garantir a si mesma que era improvável que alguém
tivesse descoberto o roubo tão cedo; e mesmo que isso
acontecesse, não havia nada que pudesse ligá-la. Conrad Morgan
estaria à sua espera em St. Louis, com 25 mil dólares. Todo
esse dinheiro para fazer o que bem lhe aprouvesse! Teria de
trabalhar um ano inteiro no banco para ganhar tanto dinheiro.
Viajarei para a Europa, pensou Tracy. Paris. Não. Paris, não.
Charles e eu passaríamos lá a nossa lua-de-mel. Irei para
Londres. Ali não serei uma ex-condenada. De certa forma, a
experiência por que passou fazia com que Tracy se sentisse uma
pessoa diferente. Era como se tivesse renascido.
Ela trancou a porta da cabina, pegou a bolsa de camurça e
abriu-a. Uma cascata de cores faiscantes despejou-se em suas
mãos. Havia três enormes anéis de diamantes, um broche de
esmeralda, uma pulseira de safira, três pares de brincos e
dois colares, um de rubis, outro de pérolas.
Estas jóias devem valer mais de um milhão de dólares,
especulou Tracy. Enquanto o trem rolava pelos campos, ela
recostou-se no banco e reconstituiu mentalmente a noite.
Alugando o carro... seguindo para Sea Cliff... o silêncio da
noite... desligando o alarme e entrando na casa... abrindo o
cofre... o choque do alarme disparando, a polícia aparecendo.
Nunca lhes ocorrera que a mulher de creme no rosto, com uma
camisola transparente e uma touca na cabeça, era a ladra que
procuravam.
Agora, sentada na cabina do trem, seguindo para St. Louis,
Tracy permitiu-se um sorriso de satisfação. Gostara de enganar
a polícia. Havia alguma coisa de maravilhosamente inebriante
de se colocar à beira do perigo. Ela sentia-se ousada,
inteligente e invencível. Sentia-se absolutamente sensacional.
Houve uma batida na porta da cabina. Tracy tornou a guardar
as jóias na bolsa de camurça apressadamente e pós a bolsa em
sua mala. Pegou a passagem e destrancou a porta para
entregá-la ao cabineiro.
Dois homens de terno cinza estavam parados no corredor. Um
deles parecia ter trinta e poucos anos, o outro era uns dez
anos mais velho. O mais jovem era atraente, com o corpo de um
atleta. Tinha um queixo forte, bigode pequeno e aparado, usava
óculos de aros de osso, por trás dos quais brilhavam olhos
azuis inteligentes. O mais velho tinha uma vasta cabeleira
preta e era corpulento, os olhos castanhos se mostravam frios.
- Desejam alguma coisa? - perguntou Tracy.
- Desejamos, sim.
O homem mais velho tirou uma carteira do bolso e exibiu uma
identificação:
FBI
DEPARTAMENTO DE JUSTIÇA DOS ESTADOS UNIDOS
- Sou o Agente Especial Dennis, Trevor. E este é o Agente
Especial Thomas Bowers.
Tracy sentiu a boca subitamente ressequida. Forçou um
sorriso.
- Eu... eu receio não estar entendendo. Algum problema?
- Infelizmente, sim, madame - disse o agente mais jovem, com
um suave sotaque sulista. - Este trem cruzou a fronteira de
Nova Jersey há poucos minutos. Transportar mercadoria roubada
por uma fronteira estadual constitui um crime federal.
Tracy teve a sensação de que ia desmaiar. Uma película
vermelha surgiu diante de seus olhos, tornando tudo
indefinido. O homem mais velho, Dennis Trevor, estava dizendo:
- Poderia abrir sua bagagem, por favor?
Não era um pedido, mas sim uma ordem. A única esperança de
Tracy era blefar.
- Claro que não! Como se atreve a entrar em minha cabina
desse jeito? - A voz dela transbordava de indignação. - Isso é
tudo o que vocês têm a fazer... andar por aí incomodando
cidadãos inocentes? Vou chamar o cabineiro.
- Já falamos com o cabineiro - informou Trevor.
O blefe não estava funcionando.
- Vocês... vocês têm um mandato judicial?
O homem mais jovem disse, gentilmente:
- Não precisamos de um mandado judicial, Senhorita Whitney.
Estamos prendendo-a em flagrante.
Eles sabiam até o seu nome. Ela estava acuada. Não havia
saída. Absolutamente nenhuma.
Trevor já se adiantara para a sua mala, começava a abri-la.
Era inútil tentar impedi-lo. Tracy observou enquanto ele
retirava a bolsa de camurça. O agente abriu-a, olhou para o
seu companheiro, acenou com a cabeça. Tracy arriou no banco,
sentindo-se de repente fraca demais para ficar de pé.
Trevor tirou uma lista do bolso, conferiu o conteúdo da
bolsa, guardou-a consigo.
- Está tudo aqui, Tom.
- Como... como descobriram? - indagou Tracy, desesperada.
- Não temos permissão para fornecer qualquer informação -
respondeu Trevor. - Você está presa. Tem o direito de
permanecer em silêncio e chamar um advogado antes de falar
qualquer coisa. E tudo o que disser poderá ser usado como
prova contra você.
A resposta de Tracy foi um sussurro quase inaudível.
- Entendido.
Tom Bowers disse.
- Lamento muito. Sei de seus antecedentes e lamento
sinceramente.
- Pelo amor de Deus - interveio o homem mais velho - isto não
é um encontro social.
- Sei disso. Mesmo assim...
O homem mais velho estendeu um par de algemas para Tracy.
- Dê os pulsos, por favor.
Tracy sentia o coração se contorcendo em agonia. Lembrou-se do
aeroporto em Nova Orleans, quando haviam-na algemado, as
pessoas se virando para olhar.
- Por favor! Tem mesmo... de fazer isso?
- Tenho, sim, madame.
O homem mais jovem interveio.
- Posso lhe falar a sós por um instante, Dennis?
Dennis Trevor encolheu os ombros.
- Está certo.
Os dois homens saíram para o corredor. Tracy continuou
sentada, atordoada, dominada pelo desespero. Podia ouvir
trechos da conversa dos dois.
- Pelo amor de Deus, Dennis, não há necessidade de algemá-la.
Ela não vai fugir...
- Quando você vai parar de se comportar como um escoteiro?
Depois que estiver no FBI há tanto tempo quanto eu...
- Ora, deixe disso. Dê uma chance à moça. Ela já está
bastante constrangida e...
- Ainda não é nada em comparação com o que ela vai...
Ela não pôde ouvir o resto da conversa. Os agentes voltaram à
cabina um momento depois. O mais velho parecia irritado.
- Está bem - disse ele. - Não vamos algemá-la. Você
desembarcará na próxima estação. Pediremos pelo rádio um carro
do FBI. Até lá, não deixará esta cabina. Entendido?
Tracy acenou com a cabeça, angustiada demais para falar. O
homem mais jovem, Tom Bowers, encolheu os ombros com uma
expressão compreensiva, como a dizer: "Bem que gostaria que
houvesse mais alguma coisa que eu pudesse fazer."
Mas não havia nada que alguém pudesse fazer. Não agora. Era
tarde demais. Ela fora apanhada em flagrante . De alguma
forma, a polícia a descobrira e comunicara ao FBI.
Os agentes estavam no corredor, conversando com o cabineiro.
Trevor apontou para Tracy e disse alguma coisa que ela não
pôde ouvir. O cabineiro assentiu. Trevor fechou a porta da
cabina. Para Tracy, foi como bater a porta de uma cela.
Os campos passavam velozmente, parecendo vinhetas emolduradas
brevemente pela janela. Mas Tracy tornou-se indiferente à
paisagem. Achava-se paralisada pelo medo. Havia um troar em
seus ouvidos que nada tinha a ver com os ruídos do trem. Não
existiria uma segunda oportunidade. Era uma criminosa
condenada. Receberia agora a sentença máxima e desta vez não
haveria a filha do director para salvar, não haveria coisa
alguma além dos anos terríveis e intermináveis de prisão pela
frente. E Big Bertha. Como conseguiram agarrá-la? A única
pessoa que sabia do roubo era Conrad Morgan e ele não teria
qualquer motivo possível para entregá-la e às jóias ao FBI.
Possivelmente algum empregado de sua loja tomara conhecimento
do plano e comunicara à polícia. Mas não fazia a menor
diferença como acontecera. Ela fora apanhada. E na próxima
estação desembarcaria e seguiria outra vez para a prisão.
Passaria por uma audiência preliminar, em seguida o julgamento
e depois...
Tracy apertou os olhos com toda força, recusando-se a pensar
mais a esse respeito. Sentiu lágrimas quentes lhe escorrerem
pelas faces.
O trem começou a reduzir a velocidade. Tracy começou a
sufocar. Não conseguia absorver ar em quantidade suficiente.
Os dois agentes do FBI viriam buscá-la a qualquer momento. Uma
estação surgiu à frente e o trem parou poucos segundos depois,
com um solavanco. Estava na hora de partir. Tracy fechou a
mala, levantou-se para vestir o casaco, tornou a se sentar.
Ficou olhando fixamente para a porta fechada da cabina,
esperando que se abrisse. minutos foram passando. Os dois
agentes não apareciam. O que poderiam estar fazendo? Ela
recordou o que lhe haviam dito: "Você desembarcará na próxima
estação. Pediremos pelo rádio um carro do FBI. Até lá, não
deixará esta cabina."
Ela ouviu o chefe do trem gritar:
- Todos a bordo!
Tracy começou a entrar em pânico. Talvez os agentes tivessem
dito que a esperariam na plataforma. Devia ser isso. Se ela
ficasse no trem, seria acusada de tentar fugir, o que,
tornaria sua situação ainda pior. Tracy pegou a mala, abriu a
porta da cabina, e afastou-se apressadamente pelo corredor. O
cabineiro, se aproximou.
- Vai saltar aqui, dona? É melhor se apressar. Deixe-me
ajudá-la. Uma mulher no seu estado não deveria carregar peso.
Ela fitou-o, aturdida.
- No meu estado?
- Não precisa se sentir embaraçada. Seus irmãos me disseram
que está grávida e, me pediram para ficar de olho em você.
- Meus irmãos ... ?
- Óptimos rapazes. Pareciam realmente preocupados com você.
O mundo girava vertiginosamente. O mundo estava virado pelo
avesso.
O cabineiro levou a mala até a extremidade do vagão e ajudou
Tracy a descer os degraus. O trem começou a andar.
- Sabe para onde meus irmãos foram? - gritou Tracy.
- Não, dona. Eles pegaram um táxi assim que o trem parou.
Levando jóias no valor de um milhão de dólares.
Tracy seguiu para o aeroporto. Foi o único lugar em que pôde
pensar. Se os homens pegaram um táxi, isso significava que não
dispunham de transporte próprio e certamente haveriam de
querer deixar a cidade o mais depressa possível. Ela
recostou-se no banco do táxi, dominada por uma raiva intensa
pelo que lhe haviam feito e com vergonha por ter sido enganada
tão facilmente. Mas não podia negar que os dois eram bons.
Realmente bons. Haviam-se mostrado extremamente convincentes.
Tracy corou ao pensar como caíra no golpe antigo do tira mau e
tira bonzinho.
Pelo amor de Deus, Dennis, não há necessidade de algemá-la.
Ela não vai fugir..
Quando você vai parar de se comportar com um escoteiro? Depois
que estiver no FBI há tanto tempo quanto eu...
O FBI? Eles eram provavelmente fugitivos da lei. Mas ela
haveria de recuperar as jóias. Sofrera demais para se deixar
enganar por dois vigaristas. Tinha de chegar ao aeroporto a
tempo. Ela inclinou-se para a frente e disse ao motorista:
- Pode ir mais depressa, por favor?
Eles estavam parados na fila de embarque, no portão de
partida. Tracy não os reconheceu imediatamente. O mais jovem,
que dissera chamar-se Thomas Bowers, não mais usava óculos, os
olhos haviam passado de azuis para cinzas, o bigode
desaparecera. O outro homem, Dennis Trevor, que tinha uma
vasta cabeleira preta, era agora completamente calvo, Mesmo
assim, não havia possibilidade de equívoco. Eles não tiveram
tempo para trocar as roupas. Já estavam quase passando pelo
portão de embarque quando Tracy os alcançou.
- Esqueceram-se uma coisa - disse ela.
Os dois se viraram para fitá-la, surpresos. O mais jovem
franziu o rosto.
- O que faz aqui? Um carro do serviço deveria estar na estação
para recolhê-la.
O sotaque sulista não mais existia.
- Então por que não voltam e verificam se está mesmo lá? -
sugeriu Tracy.
- Não podemos, pois já começamos a trabalhar em outro caso -
explicou Trevor. - Temos de pegar este avião.
- Devolvam-me as jóias antes.
- Lamento, mas não podemos fazer isso - protestou Thomas
Bowers. - É a prova. Nós lhe mandaremos um recibo.
- Não quero um recibo. Quero as jóias.
- Lamento, mas não podemos entregá-las - disse Trevor.
Eles já se achavam no portão. Trevor entregou os passes de
embarque ao atendente. Tracy olhou ao redor, desesperada.
Avistou um guarda do aeroporto parado ali perto. E chamou:
- Guarda! Guarda!
Os dois homens se entreolharam, espantados.
- Que diabo pensa que está fazendo? - sussurrou Trevor. -
Quer que todos nós sejamos presos?
O guarda estava se aproximando.
- Pois não, madame? Algum problema?
- Não há problema nenhum - respondeu Tracy, jovialmente. -
Estes dois cavalheiros maravilhosos encontraram algumas jóias
valiosas que eu havia perdido e estão me devolvendo. Eu já
pensava em procurar o FBI e pedir que as procurassem.
Os dois homens trocaram um olhar frenético.
- Eles sugeriram que seria melhor se um guarda me escoltasse
até um táxi - acrescentou Tracy.
- Certamente. Terei o maior prazer.
Tracy virou-se para os dois homens.
- É seguro me entregarem as jóias agora. Este simpático guarda
tomará conta de mim..
- Não há necessidade - protestou Tom Bowers. - Será melhor se
nós...
- Oh, não, eu insisto! - disse Tracy. - Sei como é importante
para vocês pegarem seu avião.
Os dois homens olharam para o guarda, depois um para o outro,
impotentes. Não havia nada que pudessem fazer. Relutantemente,
Tom Bowers tirou a bolsa de camurça de seu bolso.
- É isso! - Tracy pegou a bolsa, abriu-a, deu uma espiada. -
Graças a Deus! Está tudo aqui.
Tom Bowers ainda fez uma última e desesperada tentativa:
- Por que não ficamos com as jóias, por segurança, até você...
- Isso não será necessário - disse Tracy, jovialmente.
Ela abriu sua bolsa de uso próprio, guardou as jóias, tirou
duas notas de cinco dólares. Entregou uma a cada homem.
- Aqui está um pequeno símbolo da minha gratidão.
Todos os outros passageiros já haviam passado pelo portão. O
atendente disse:
- Esta foi a última chamada. Vocês terão de embarcar agora,
senhores.
- Outra vez obrigada - disse Tracy, radiante, já se afastando
com o guarda. - É tão raro encontrar pessoas honestas
actualmente...
18
Thomas Bowers - nascido Jeff Stevens - sentou-se junto à
janela do avião e ficou olhando para fora, enquanto o aparelho
descolava. Levantou o lenço para os olhos, enquanto seus
ombros subiam e desciam.
Dennis Trevor - também conhecido como Brandon Higgins -
sentado ao seu lado, fitou-o espantado.
- Ei, era apenas dinheiro! - disse ele. - Não há motivo para
chorar.
Jeff Stevens virou-se para ele, as lágrimas escorrendo pelas
faces. Espantado, Higgins, descobriu que Jeff se encontrava
convulsionado pelo riso.
- Que diabo deu em você? - indagou Higgins. - Também não é
motivo para rir.
Para Jeff, em, sim. A maneira como Tracy Whitney os enganara
no aeroporto era o golpe mais engenhoso que ele já
testemunhara. Um golpe por cima de um golpe. Conrad Morgan
lhes dissera que a mulher era uma amadora. Por Deus, pensou
Jeff, como seria se ela fosse uma profissional? Tracy Whitney
era certamente a mulher mais linda que Jeff Stevens já vira. E
esperta. Jeff orgulhava-se de ser o melhor vigarista em acção
e ela conseguira passá-lo para trás. Tio Willie a teria
adorado, pensou Jeff
Foi tio Willie quem educou Jeff. A mãe de Jeff era a herdeira
confiante de uma fortuna em implementos agrícolas, casada com
um homem improvidente, com muitos projectos de enriquecer
depressa que nunca davam certo. O pai de Jeff era encantador,
moreno, bonito, persuasivo. Conseguiu acabar com a herança da
esposa nos primeiros cinco anos de casamento. As recordações
mais antigas de Jeff eram do pai e a mãe brigando por causa de
dinheiro e das ligações extraconjugais do pai. Era um
casamento amargo e o garoto resolvera: Nunca me casarei.
Nunca.
O irmão do pai, tio Willie, possuía um pequeno parque de
diversões ambulante. Sempre que passava perto de Marion, Ohio,
onde os Stevens viviam, ele ia visitá-los. Era o homem mais
jovial que Jeff já conhecera, transbordando de optimismo, e
promessas de um amanhã róseo. Sempre dava um jeito de levar
para o garoto presentes emocionantes. Ensinou a Jeff truques
de mágica maravilhosos. Tio Willie começara como mágico num
parque de diversões e assumira o comando quando a empresa
falira.
Jeff tinha 14 anos quando a mãe morreu num acidente de
automóvel. Dois meses depois, o pai de Jeff casou com uma
garçonete de 19 anos, explicando:
- Não é natural um homem viver sozinho.
Mas o rapaz experimentou um profundo ressentimento,
sentindo-se traído pela insensibilidade do pai.
O pai de Jeff arrumou um emprego de caixeiro-viajante e
passava três dias por semana viajando. Uma noite, quando
somente Jeff e a madrasta se encontravam na casa, ele foi
acordado pelo barulho da porta de seu quarto se abrindo. E
momentos depois ele sentiu um corpo macio e nu se estendendo
ao lado do seu. Jeff sentou-se na cama, alarmado.
- Abrace-me, Jeffie - sussurrou a madrasta. Estou com medo da
trovoada.
- Mas... mas não está trovejando - balbuciou Jeff.
- Pode trovejar. O jornal dizia que ia chover. - Ela
comprimiu o corpo contra o dele. - Faça amor comigo, meu bem.
O garoto entrou em pânico.
- Está bem. Mas podemos fazer na cama de papai?
- Claro. - Ela riu. - Taradinho, hem?
- Irei para lá num instante.
Ela saiu da cama e foi para o outro quarto. Jeff nunca se
vestira tão depressa em sua vida. Saiu pela janela e seguiu
para Cimarron, Kansas, onde o parque de diversões de tio
Willie estava se apresentando. Nunca olhou para trás.
Quando tio Willie perguntou por que ele fugira de casa, Jeff
limitou-se a responder:
- Não me dou bem com minha madrasta.
Tio Willie telefonou para o pai de Jeff. Depois de uma longa
conversa, ficou decidido que o garoto permaneceria no parque
de diversões. Tio Wille prometeu:
- Ele terá aqui uma educação melhor do que qualquer escola
poderia oferecer.
O parque de diversões era um mundo em si mesmo.
- Não promovemos um show de escola de catecismo - explicou
tio Willie a Jeff. - Somos artistas da vigarice. Mas nunca se
esqueça, filho, que não se pode enganar pessoas que não sejam
gananciosas para começar. W.C. Fieids estava certo. Não se
pode passar para trás um homem honesto.
Todos no parque se tornaram amigos de Jeff. Havia os homens
da "fachada", que tinham as concessões, e a turma dos
"bastidores", que comandava os espectáculos, como a mulher
gorda e a dama tatuada, sem falar nos operadores das barracas
em que se promoviam os jogos. O parque tinha a sua cota de
moças núbeis e todas se sentiram atraídas pelo rapaz. Jeff
herdara a sensibilidade da mãe e a beleza morena do pai. As
moças disputaram quem aliviaria Jeff de sua virgindade. Sua
primeira experiência sexual foi com uma linda contorcionista e
durante anos ela foi a nota alta a que todas as outras
mulheres tinham de corresponder.
Tio Willie providenciou para que Jeff trabalhasse em diversas
funções no parque.
- Algum dia tudo isto lhe pertencerá - disse tio Willie ao
rapaz. - A única maneira de você conservar é conhecer mais do
parque que qualquer outra pessoa.
Jeff começou com o golpe dos seis gatos. Os fregueses pagavam
para jogar bolas, tentando derrubar numa rede seis gatos
feitos de lona, com uma base de madeira. O operador dirigindo
a barraca mostrava como era fácil derrubar os gatos. Mas
quando o freguês tentava, um "artilheiro" escondido por trás
da lona da barraca levantava uma vareta para firmar as bases
de madeira. Nem mesmo Sandy Koufax podia afogar aqueles gatos.
- Ei, você acertou muito baixo! - dizia o operador. - Tudo o
que precisa fazer é jogar firme e forte.
Firme e forte em a senha. No momento em que o operador a
dizia, o artilheiro retirava a vareta. Assim, o operador não
tinha a menor dificuldade para derrubar o gato. Ele
acrescentava então:
- Vê como é fácil?
Esse era o sinal para que o artilheiro tornasse a levantar a
vareta. Havia sempre um caipira que queria mostrar à namorada
risonha como tinha o braço forte e certeiro.
Jeff trabalhou também com a barraca dos pinos. Os fregueses
tinham de jogar argolas de borracha sobre pinos numerados,
dispostos em filas; se o total fosse de 29, ele ganharia um
brinquedo caro. Mas o que o otário não sabia era que os pinos
tinham números diferentes nas duas extremidades e que o
operador podia esconder o número que daria a soma de 29,
providenciando assim para que ele jamais ganhasse. E tio
Willie disse um dia a Jeff.
- Você está indo muito bem, garoto. Sinto-me orgulhoso de
você. Está pronto para ser promovido ao skillo.
Os operadores do skillo eram o máximo, convidados por todos os
parques. Ganhavam mais dinheiro que qualquer outro,
hospedavam-se nos melhores hotéis e guiavam carros vistosos. O
jogo de skillo consistia de uma roda horizontal, com uma
flecha equilibrada cuidadosamente em vidro e um pedaço de
papel fino no centro. Cada secção era numerada; o freguês
girava a roda, a agulha apontava para um número ao parar, esse
número era tapado. O freguês pagava para girar outra vez a
roda, outro número ficava tapado. O operador do skillo
explicava que o freguês ganharia uma quantia fabulosa quando
todos os números estivessem tapados. à medida que o freguês se
aproximava da cobertura de todos os números, o operador
encorajava-o a aumentar suas apostas. Ele olhava nervosamente
ao redor e sussurrava:
- Não sou o dono deste jogo e gostaria que você vencesse. Se
isso acontecer, talvez me dê uma pequena comissão.
O operador chegava mesmo a entregar sub-repticiamente ao
freguês uma nota de cinco ou dez dólares, murmurando:
- Aposte isso por mim, está bem? Você não pode perder agora.
O otário sentia que conquistara um cúmplice. Jeff tornou-se
um perito em ordenhar os fregueses. à medida que diminuíram os
espaços abertos no tabuleiro e aumentavam as chances de
ganhar, o excitamento se intensificava.
- Você não pode perder agora! - exclamava Jeff.
Ansiosamente, o jogador empenhava mais dinheiro. Por fim,
quando só restava um espaço a preencher, o excitamento chegava
ao clímax. O otário jogava todo o dinheiro que tinha, muitas
vezes ia apressadamente a casa para buscar mais. O freguês
nunca vencia, no entanto, porque o operador ou seu preposto
dava um empurrão imperceptível na mesa e a flecha passava a
parar invariavelmente no lugar errado.
Jeff aprendeu rapidamente os termos do parque. "Fisgar"
significava arrumar os jogos para que os otários nunca
pudessem ganhar. Os homens que se postavam na frente de uma
barraca, anunciando seu espectáculo, eram conhecidos como
"faladores". O falador ganhava dez por cento por aumentar a
ponta... a "ponta" sendo uma multidão. "Cortiço" era um prémio
dado. O "carteiro" era um tira que precisava ser subornado.
Jeff tomou-se um perito na "explosão". Quando os fregueses
pagavam para assistir a um espectáculo, Jeff jogava a sua
conversa:
- Senhoras e senhores, verão no interior desta barraca tudo
por que pagaram e está anunciado no lado de fora. Mas...
imediatamente depois que a moça na cadeira eléctrica terminar
de ser torturada, o pobre corpo atormentado por 50 mil watts
de electricidade, temos uma atracção extra que não tem
absolutamente nada a ver com o espectáculo e não está
anunciada no lado de fora. Lá dentro vocês verão algo
realmente extraordinário, tão assustador e arrepiante que não
nos atrevemos a mostrar do lado de fora, porque não deve ser
visto por crianças inocentes ou mulheres impressionáveis.
E depois que os otários pagavam um dólar extra, Jeff os
introduzia para verem uma mulher sem a parte do meio do corpo
ou um bebé com duas cabeças... tudo, é claro, um jogo de
espelhos.
Um dos jogos mais lucrativos do parque era a "corrida de
camundongo". Um camundongo vivo era posto no centro de uma
mesa, com uma tigela por cima. Havia dez buracos em torno do
perímetro da mesa e o camundongo podia correr para qualquer
um, quando a tigela fosse levantada. Cada freguês apostava num
buraco numerado. O prémio ficava para quem acertasse o buraco
para o qual o camundongo corria.
- Como fisga uma coisa assim? - perguntou Jeff a tio Willie -
Usa camundongos treinados?
Tio Willie explodiu em gargalhadas.
- Quem tem tempo para treinar camundongos? Nada disso. A
coisa é muito simples. O operador vê qual é o número em que
ninguém apostou, põe um pouco de vinagre na ponta do dedo e
toca na beira do buraco em que quer que o camundongo corra. E
o camundongo seguirá invariavelmente para esse buraco.
Karen, uma jovem e atraente dançarina do ventre, introduziu
Jeff no golpe da "chave".
- Depois de jogar a sua conversa na noite de sábado -
disse-lhe Karen - chame alguns fregueses para um lado, um de
cada vez, venda-lhes uma chave do meu trailer.
As chaves custavam cinco dólares. Por volta da meia-noite,
uma dúzia ou mais de homens circulavam em torno do trailer. A
esta altura, Karen já se achava num hotel na cidade, passando
a noite com Jeff. Quando os otários voltavam ao parque na
manhã seguinte, a fim de se vingarem, as barracas já tinham
sido desmontadas e há muito que o pessoal caíra na estrada.
Jeff aprendeu muita coisa sobre a natureza humana durante os
quatro anos seguintes. Descobriu como era fácil atiçar a
ganância, como as pessoas podiam ser crédulas. Acreditavam em
histórias inacreditáveis porque a ganância as levava a
quererem acreditar. Aos 18 anos, Jeff era excepcionalmente
bonito. Até mesmo a observadora feminina mais casual notava
instantaneamente os seus olhos cinzas, bem espaçados, o corpo
alto e forte, os cabelos pretos crespos. Os homens gostavam de
sua inteligência e de seu bom humor. Até as crianças, como se
falassem a uma criança receptiva nele, concediam-lhe a sua
confiança imediata. As freguesas flertavam abertamente com
Jeff, mas tio Willie não perdia a oportunidade de advertir:
- Fique longe das garotas das cidades, rapaz. Os pais delas
são sempre os xerifes.
Foi a mulher do lançador de facas que levou Jeff a deixar o
parque. Haviam acabado de chegar a Milledgeville, Geórgia, as
barracas estavam sendo armadas. Um novo actor fora contratado,
um atirador de facas siciliano conhecido como Grande Zorbini e
sua atraente esposa loura. Enquanto o Grande Zorbini se
encontrava no parque, preparando seu equipamento, a mulher
convidou Jeff para uma visita a seu quarto no hotel na cidade.
- Zorbini estará ocupado durante o dia inteiro - ela disse a
Jeff. - Vamos nos divertir um pouco.
Parecia bastante promissor.
- Dê-me uma hora e depois suba para o quarto - disse ela.
- Por que esperar uma hora? - indagou Jeff.
Ela sorriu e respondeu:
- É o tempo que precisarei para aprontar tudo.
Jeff esperou, a curiosidade aumentando. Quando finalmente
chegou ao quarto do hotel, ela recebeu-o na porta inteiramente
nua. Jeff agarrou-a, mas ela tirou sua mão e disse:
- Entre aqui.
Ele foi para o banheiro e ficou espantado com o que viu. Ela
enchera a banheira com seis sabores de gelatina, misturada com
água quente.
- O que é isso? - perguntou Jeff.
- É a sobremesa. Dispa-se, meu bem.
Jeff despiu-se.
- E agora entre na banheira.
Ele entrou na banheira e sentou. Foi a sensação mais incrível
que já experimentara. A gelatina macia e escorregadia parecia
preencher todas as fendas de seu corpo, massageando-o por
completo. A loura também entrou na banheira.
- Agora - disse ela - o almoço.
A loura começou pelo peito de Jeff e foi descendo para a
virilha, lambendo a gelatina pelo caminho.
- Hum... Você tem um gosto delicioso. Gosto mais do
morango...
Entre a língua veloz da loura e a fricção da gelatina quente
e viscosa, era uma experiência erótica incrível. No meio da
coisa, porém, a porta do banheiro abriu-se bruscamente e o
Grande Zorbini entrou. O siciliano lançou um olhar para a
esposa e o aturdido Jeff, depois berrou:
- Tu sei una puttana! Vi ammazzo e duel Dove sono i miei
coltelli?
Jeff não reconheceu qualquer das palavras, mas o tom era
familiar. Enquanto o Grande Zorbini saia correndo do banheiro
para buscar suas facas, Jeff pulou da banheira, o corpo
parecendo um arco-íris com a gelatina multicolorida grudada,
pegou suas roupas. Pulou pela janela, nu, desatou a correr
pelo beco. Ouviu um grito atrás dele e sentiu uma faca passar
zunindo perto de sua cabeça. Zing! Outra faca e depois ele se
achava fora do alcance. Vestiu-se num bueiro, pondo a camisa e
a calça por cima da gelatina viscosa. Foi para a estação
rodoviária, onde pegou o primeiro ónibus que saía da cidade.
Seis meses depois estava no Vietname.
Cada soldado luta uma guerra diferente e Jeff saiu da
experiência do Vietname com um profundo desprezo pela
burocracia e um ressentimento permanente contra a autoridade.
Passou dois anos numa guerra que nunca poderia ser vencida,
ficou consternado com o desperdício de dinheiro, material e
vidas, revoltado com a traição e fraude dos generais e
políticos que executavam a sua prestidigitação verbal. Fomos
levados como otários a uma guerra que ninguém quer, pensou
Jeff. É uma vigarice. A maior vigarice do mundo.
Uma semana antes da baixa, Jeff recebeu a notícia da morte de
tio Willie. O parque de diversões se dissolvera. O passado
acabara. Estava na hora de ele começar a desfrutar o futuro.
Os anos subsequentes foram repletos de aventuras. Para Jeff, o
mundo inteiro era um parque de diversões e as pessoas que
continha eram os seus otários. Ele criava os seus próprios
golpes. Colocava anúncios nos jornais oferecendo uma
fotografia a cores do Presidente dos Estados Unidos por um
dólar. Quando recebia o dólar, mandava para a vitima um selo
postal com um retracto do presidente.
Pôs anúncios em revistas avisando ao público que restavam
apenas 60 dias para o envio de cinco dólares; depois disso,
seria tarde demais. O anúncio não especificava o que os cinco
dólares comprariam, mas o dinheiro se despejou.
Por três meses Jeff trabalhou numa sala de caldeira, vendendo
falsas acções de companhias petrolíferas pelo telefone.
Adorava barcos, e, quando um amigo ofereceu-lhe emprego numa
escuna de partida para o Taiti, Jeff assinou um contrato como
marujo.
A escuna era uma beleza, branca, com 165 pés, rebrilhando ao
sol, todas as velas enfunadas. Tinha o de que de teca,
pinheiro do Oregon no casco, um salão de jantar que acomodava
12 pessoas, uma cozinha moderna, com fogões eléctricos. Os
alojamentos da tripulação eram no porão de vante. Além do
comandante, do camareiro e do cozinheiro, havia cinco marujos.
O trabalho de Jeff consistia em ajudar a içar as velas, polir
as vigias de latão, subir pelo enfrechate para mastrear a vela
principal. A escuna estava transportando oito passageiros.
- A pessoa que possui a escuna se chama Hollander - informou o
amigo de Jeff.
Hollander era Louise Hollander, uma beldade loura de 25 anos,
cujo pai possuía metade da América Central. Os outros
passageiros eram seus amigos, aos quais os amigos de Jeff se
referiam desdenhosamente como "jest set", usando o jest
(pilhéria) para alterar a expressão "jest set".
Em seu primeiro dia no mar, Jeff trabalhava ao sol, polindo
os metais no deque, quando Louise Hollander se aproximou e
parou ao seu lado.
- Você é novo a bordo.
Ele levantou os olhos.
- Isso mesmo.
- Tem um nome?
- Jeff Stevens.
- Um nome bonito. - Ele não fez qualquer comentário. - Sabe
quem eu sou?
- Não.
- Louise Hollander. Dona deste barco.
- Ou seja, estou trabalhando para você.
Ela presenteou-o com um sorriso lento.
- Isso mesmo.
- Pois então, se quer que eu mereça o dinheiro que me paga, é
melhor deixar-me continuar a trabalhar.
E Jeff passara para o espeque seguinte.
Em seus alojamentos, à noite, os tripulantes depreciavam os
passageiros e contavam piadas a seu respeito. Mas Jeff admitia
para si mesmo que os invejava - por sua criação, instrução e
vida fácil. Tinham famílias ricas e haviam cursado as melhores
escolas. A sua escola fora tio Willie e o parque de diversões.
Um dos homens do parque fora professor de arqueologia, até ser
expulso da universidade por roubar e vender relíquias
valiosas. Ele e Jeff mantinham longas conversas. O professor
incutira em Jeff um entusiasmo pela arqueologia.
- Pode-se ler todo o futuro da humanidade no passado - dizia
o professor. - Pense nisso, filho. Há milhares de anos
existiam pessoas como você e eu, acalentando sonhos,
inventando histórias, vivendo as suas vidas, gerando os nossos
ancestrais.
Os olhos do ex-professor assumiam uma expressão distante,
enquanto continuava a falar:
- Cartago... é lá que eu gostaria de fazer uma escavação. Era
uma grande cidade, muito antes de Cristo nascer, a Paris da
antiga África. O povo tinha seus jogos, banhos, as corridas de
carros. O Circo Máximo era tão grande quanto cinco campos de
futebol americano.
Os olhos do rapaz se iluminavam de interesse.
- Sabe como Catão, o Velho, terminava seus discursos no
Senado romano? Ele dizia: Delenda est Cartago. Cartago deve
ser destruída. Seu desejo finalmente se consumou. Os romanos
reduziram a cidade a escombros, mas voltaram 25 anos depois
para construir uma grande cidade sobre as cinzas. Eu gostaria
de poder levá-lo algum dia para fazermos uma escavação, meu
rapaz.
O professor morrera de alcoolismo um ano depois, mas Jeff
prometera a si mesmo que um dia se empenharia numa escavação.
Cartago primeiro, pelo professor.
Na última noite, antes da escuna atracar em Taiti, Jeff foi
chamado ao camarote de Louise Hollander. Ela usava um chambre
de seda.
- Queria me falar, madame?
- Você é homossexual, Jeff?
- Não creio que isso seja da sua conta, Senhorita Hofiander,
mas a resposta é não. Apenas sou exigente.
A boca de Louise Hollander se contraiu.
- Que tipo de mulheres você aprecia? Suponho que prostitutas.
- às vezes - disse Jeff, amavelmente. - Deseja mais alguma
coisa, Senhorita Hollander?
- Desejo, sim. Oferecerei um jantar amanhã de noite. Gostaria
de comparecer?
Jeff fitou-a em silêncio por um longo tempo antes de
responder:
- Por que não?
E foi assim que começou.
Louise Hollander já tivera dois maridos antes de completar 21
anos. Seu advogado fez um acordo com o terceiro marido quando
ela conheceu Jeff. Na segunda noite em que estavam ancorados
na enseada de Papeete, enquanto passageiros e tripulantes iam
para a terra, Jeff recebeu outro chamado ao camarote de Louise
Hollander. Quando Jeff ali chegou, ela vestia um páreo de seda
colorido, aberto no lado até a coxa.
- Estou tentando tirar isto, mas estou tendo dificuldade com o
zíper - disse ela.
Jeff adiantou-se e examinou o páreo.
- Não tem nenhum zíper.
Ela virou-se para fitá-lo e sorriu.
- Sei disso. É justamente o meu problema.
Eles fizeram amor no tombadilho, onde o suave ar tropical
lhes acariciava os corpos como um bálsamo. Depois, ficaram de
lado, fitando-se. Jeff soergueu-se, apoiado no cotovelo,
contemplou Louise de alto a baixo.
- Seu pai não é o xerife, não é mesmo?
Ela sentou, surpresa.
- Como?
- Você é a primeira garota de cidade com quem faço amor. Tio
Willie costumava me avisar que os pais delas sempre eram os
xerifes.
Depois disso, eles passavam todas as noites juntos. A
princípio, os amigos de Louise acharam divertido. Ele é outro
dos caprichos de Louise, pensaram. Mas ficaram frenéticos
quando ela informou-os que tencionava casar com Jeff.
- Pelo amor de Deus, Louise, ele é um nada! Ele trabalhou num
parque de diversões. Por Deus, é a mesma coisa que casar com
um cavalariça. Ele é bonito... não se pode deixar de admitir.
E tem um corpo fabuloso. Mas, fora do sexo, vocês não têm
absolutamente nada em comum, querida.
- Louise, Jeff é para o café da manhã, não para um jantar.
- Você tem uma posição social a resguardar.
- Francamente, meu anjo, ele não vai se adaptar, não é mesmo?
Mas nada do que disseram os amigos pôde dissuadir Louise.
Jeff era o homem mais fascinante que ela já conhecera.
Descobrira que os homens extraordinariamente bonitos eram
monumentalmente estúpidos ou insuportavelmente insípidos. Jeff
era inteligente e divertido, o que fazia uma combinação
irresistível.
Quando Louise falou em casamento, Jeff ficou tão surpreso
quanto os amigos dela.
- Para quê casamento? Você já tem meu corpo. Não posso lhe
dar qualquer coisa que já não possua.
- É muito simples, Jeff. Eu o amo. Quero partilhar o resto da
minha vida com você.
O casamento fora uma idéia estranha, mas subitamente deixou
de ser. Sob o verniz mundano e sofisticado de Louise Hollander
havia uma garotinha vulnerável e perdida. Ela precisa de mim,
pensou Jeff. A perspectiva de uma vida doméstica estável e
filhos tornou-se subitamente atraente. Jeff tinha a impressão
de que vivia correndo desde que podia se lembrar. Chegara o
momento de parar.
Eles casaram na prefeitura de Taiti três dias depois.
Quando voltaram a Nova York, Jeff foi convocado ao escritório
de Scott Fogarty, o advogado de Louise Hollander, um homem
pequeno e frio, de lábios comprimidos.
- Tenho um documento aqui para você assinar - anunciou o
advogado
- Que documento?
- É uma declaração. Diz simplesmente que no caso de dissolução
de seu casamento com Louise Hollander...
- Louise Stevens.
- .. . Louise Stevens, você não participará financeiramente de
qualquer...
Jeff sentiu os músculos das mandíbulas se contraindo.
- Onde eu assino?
- Não quer que eu termine de ler?
- Não. Acho que você não entendeu. Não casei com ela pela
porra do dinheiro.
- Por favor, Sr. Stevens! Eu apenas...
- Quer que eu assine ou não?
O advogado estendeu o documento para Jeff. Ele assinou e saiu
furioso do escritório. A limusine e o motorista de Louise
estavam à sua espera lá embaixo. Ao embarcar, Jeff teve de rir
para si mesmo. Por que diabo estou tão furioso? Fui um
vigarista durante toda a minha vida; quando me torno honesto
pela primeira vez e alguém pensa que estou dando um golpe, eu
me comporto como a porra de um professor de catecismo.
Louise levou Jeff ao melhor alfaiate de Manhattan, comentando:
- Você ficará fantástico num smoking.
E foi exactamente o que aconteceu. Antes do segundo mês de
casamento, cinco das melhores amigas de Louise já haviam
tentado seduzir o atraente recém-chegado a seu círculo. Mas
Jeff ignorou-as. Estava determinado a fazer com que seu
casamento desse certo. Budge Hofiander, o irmão de Louise,
apresentou a proposta de Jeff para sócio do exclusivo Pilgrim.
Club, de Nova York. Jeff foi aceite. Budge era corpulento, de
meia-idade, ganhara esse apelido, que significava mover, na
equipe de futebol americano de Harvard, pela reputação de ser
um jogador que os oponentes não podiam deslocar. Possuía uma
empresa de navegação, uma plantação de banana, ranchos de
gado, um frigorifico e inúmeras outras empresas, mais do que
Jeff podia contar. Budge Hofiander não era súbtil em esconder
seu desdém por Jeff Stevens.
- Você é realmente abaixo de nossa classe, não é mesmo, meu
velho? Mas não tem problema enquanto divertir Louise na cama.
Gosto muito de minha irmã.
Jeff teve de recorrer a toda a sua força de vontade para se
controlar. Não estou casado com este idiota. Casei com Louise.
Os outros sócios do Pilgrim Club se mostravam igualmente
ofensivos. Mas achavam Jeff muito engraçado. Almoçavam no
clube todos os dias e pediam a Jeff que lhes contasse
histórias sobre os seus dias no parque de diversões. E Jeff
fazia questão de contar histórias cada vez mais chocantes.
Jeff e Louise viviam numa casa de vinte cómodos, cheia de
criados, no East Side de Manhattan. Louise tinha propriedades
em Long Island e nas Bahamas, uma villa na Sardenha e um
enorme apartamento na Avenue Foch, em Paris. Além do iate, ela
possuía uma Maserati, um RolIs Corniche, um Lamborgbini e um
Daimler.
É fantástico, pensou Jeff.
É sensacional, pensou Jeff.
É tedioso, pensou Jeff. E degradante.
Ele levantou-se uma manhã da cama de dossel do o XVIII, pôs um
chambre Sulka e foi procurar Louise. Encontrou-a na sala do
café da manhã.
- Tenho de arrumar um emprego - declarou Jeff.
- Pelo amor de Deus, querido, por quê? Não precisamos do
dinheiro.
- Não tem nada a ver com dinheiro. Você não pode esperar que
eu passe a vida toda refestelado, com alguém a me dar comida
na boca. Preciso trabalhar.
Louise pensou por um momento.
- Está bem, meu anjo. Falarei com Budge. Ele possui uma firma
de corretagem de valores. Você gostaria de ser um corrector,
querido?
- Quero apenas começar a trabalhar - murmurou Jeff.
Ele foi trabalhar para Budge. Nunca antes tivera um emprego de
horário regular. Vou adorar, pensou Jeff.
Ele detestou. Só continuou porque queria levar seu pagamento
para a esposa.
- Quando vamos ter um filho? - ele perguntou a Louise numa
tarde de domingo, depois de um almoço prolongado.
- Em breve, querido. Estou tentando.
- Pois então vamos para a cama. Tentemos de novo.
Jeff estava sentado à mesa reservada para seu cunhado e meia
dúzia de outros lideres industriais da América, no Pilgrim
Club. Budge anunciou:
- Acabamos de divulgar nosso relatório anual do frigorífico.
- Os lucros aumentaram em 40 por cento.
- Por que não haveriam de aumentar? - disse um dos homens à
mesa, rindo. - Você subornou os inspectores.
Ele virou-se para os outros à mesa e explicou:
- O velho Budge, sempre esperto, compra carne de terceira,
obtém a classificação de carne de primeira e depois vende por
uma fortuna.
Jeff ficou chocado.
- Mas as pessoas comem essa carne, pelo amor de Deus! E dão
para seus filhos! Ele está brincando, não é mesmo, Budge?
Budge sorriu e gritou:
- Olhem só quem está querendo bancar o moralista!
Durante os três meses seguintes Jeff passou a conhecer muito
bem os seus companheiros de mesa. Ed Zeller pagara um milhão
de dólares em subornos para construir uma fábrica na Líbia.
Mike Quincy, o líder de um conglomerado, era um trapaceiro que
adquiria empresas e ilegalmente avisava aos amigos quando
comprar e vender as acções. Alan Thompson, o homem mais rico à
mesa, gabava-se da política de sua companhia:
- Antes de mudarem, a maldita lei, costumávamos despedir os
velhos um ano antes de terem direito a suas pensões. E com
isso poupávamos uma fortuna.
Todos os homens sonegavam impostos, cometiam fraudes de
seguros, falsificações nas contas de representação e punham as
amantes correntes na folha de pagamento, como secretárias ou
assistentes.
Por Deus, pensou Jeff, eles são simplesmente vigaristas bem
vestidos. Todos dão os seus golpes sujos.
As esposas não eram melhores. Agarravam tudo o que podiam com
suas mãos gananciosas e enganavam os maridos abertamente. Elas
estão no jogo da chave, pensava Jeff. Quando tentou explicar a
Louise como se sentia, ela riu.
- Não seja ingénuo, Jeff. Você está gozando a vida, não é
mesmo?
A verdade é que ele não sentia assim. Casara com Louise
porque acreditava que ela precisava dele. Achava que os filhos
mudariam tudo.
- Vamos ter um casal. Está na hora. Afinal, já estamos
casados há um ano.
- Seja paciente, meu anjo. Fui ao médico e ele me disse que
estou bem. Talvez você devesse fazer um checkup para descobrir
se também está certinho.
Foi o que Jeff fez.
- Você não deve ter qualquer problema para gerar filhos
saudáveis - garantiu o médico.
E nada acontecia.
O mundo de Jeff desmoronou na Segunda-Feira Negra. Começou
pela manhã, quando foi ao armarinho de remédios de Louise para
pegar uma aspirina. Encontrou uma prateleira cheia de vidros
de pílulas anticoncepcionais. Um dos vidros estava quase
vazio. Ao lado, inocentemente, havia um frasco com um pó
branco e uma colherzinha de ouro. E isso foi apenas o começo
do dia.
Ao meio-dia, Jeff se encontrava sentado numa poltrona
profunda, no Pilgrim Club, esperando por Budge, quando ouviu
dois homens por trás dele conversando.
- Ela jura que o pau do seu italiano tem mais de vinte e cinco
centímetros de comprimento.
Houve uma risadinha.
- Louise, sempre gostou de pau grande.
Eles estão falando sobre outra Louise, disse Jeff a si mesmo.
- Provavelmente foi por isso que ela casou com aquele sujeito
do parque de diversões. Mas Louise conta as histórias mais
engraçadas a respeito dele. Não vai acreditar no que ele fez
outro dia...
Jeff levantou e saiu do clube às cegas.
Estava dominado por uma raiva como nunca conhecera. Tinha
vontade de matar. Queria matar o italiano desconhecido. Queria
matar Louise. Com quantos outros homens ela se teria deitado
durante o último ano? Riam dele sem parar. Budge, Ed Zeller,
Mike Quiney e Alan Thompson. e suas esposas vinham-se
divertindo enormemente à sua custa. E Louise, a mulher que ele
quisera proteger. A reacção imediata de Jeff era pegar suas
coisas e ir embora. Mas isso não era suficiente. Não tinha a
menor intenção de permitir que os filhos da puta rissem por
último.
Louise não estava quando Jeff chegou em casa naquela tarde.
Pickens, o mordomo, informou:
- Madame saiu de manhã. Creio que tinha diversos
compromissos.
Aposto que tinha mesmo, pensou Jeff. Deve estar fodendo com a
porra do italiano com um pau de vinte e cinco centímetros. Oh,
Deus!
Quando Louise chegou, Jeff já conseguira recuperar um controle
firme e perguntou-lhe:
- Teve um bom dia?
- As coisas tediosas de sempre, querido. Uma hora no salão de
beleza, compras... E como foi o seu dia, meu anjo?
- Foi interessante - respondeu Jeff, com toda a sinceridade.
- Aprendi uma porção de coisas.
- Budge me disse que você está indo muito bem.
- Estou, sim. E muito em breve, estarei ainda melhor.
Louise afagou-lhe a mão.
- Meu marido brilhante. Por que não vamos cedo para a cama?
- Não esta noite - disse Jeff. - Estou com dor de cabeça.
Ele passou a semana seguinte fazendo seus planos. E começou
pelo almoço no clube.
- Algum de vocês sabe qualquer coisa sobre as fraudes de
computador?
- Por quê? - perguntou Ed Zeller. - Está planejando cometer
alguma?
Houve uma explosão de risos.
- Estou falando sério - insistiu Jeff. - É um grande
problema. Muitas pessoas estão interferindo nos computadores e
roubando bilhões de dólares dos bancos, seguradoras e outras
empresas. E a coisa se torna pior a cada dia.
- Parece matéria que você conhece muito bem - murmurou Budge.
- Conheci um homem que afirma ter inventado um computador que
é à prova de interferência.
- E você quer mandar liquidá-lo por causa disso - gracejou
Mike Quincy.
- Para dizer a verdade, estou interessado em levantar um
dinheiro para financiá-lo. E pensei que algum de vocês poderia
conhecer um pouco de computadores.
- Não, não sabemos. - Budge sorriu. - Mas conhecemos tudo
sobre o financiamento a inventores. Não é mesmo, pessoal?
Houve outra explosão de risos.
Dois dias depois, no clube, Jeff passou por sua mesa habitual
e explicou a Budge:
- Desculpe, mas não poderei me juntar a vocês hoje. Tenho um
convidado para o almoço.
Depois que Jeff se afastou para outra mesa, Alan Thompson
comentou, sorrindo:
- Provavelmente ele vai almoçar com a mulher barbada do
circo.
Um homem grisalho e meio encurvado entrou no restaurante e
foi conduzido à mesa de Jeff.
- Ei, aquele não é o Professor Ackerman? - indagou Mike
Quiney.
- E quem é o Professor Ackerman?
- Nunca lê qualquer coisa além dos relatórios financeiros,
Budge? Vernon Ackerman saiu na capa do Time no mês passado. É
o presidente do Conselho Cientifico Nacional que assessora o
nosso presidente. O cientista mais brilhante do país.
- Que diabo ele está fazendo com o meu caro cunhado?
Jeff e o professor se mantiveram absorvidos em profunda
conversa durante todo o almoço. Budge e seus amigos foram
ficando cada vez mais curiosos. Depois que o professor foi
embora, Budge fez sinal para que Jeff viesse até sua mesa.
- Quem era aquele, Jeff?
Jeff assumiu uma expressão culpada.
- Oh... está se referindo a Vernon?
- Isso mesmo. Sobre o que estavam conversando?
- Nós... ahn... - Os outros quase que podiam observar o
processo de pensamento de Jeff, enquanto tentava se esquivar à
pergunta. - Eu... ahn... posso escrever um livro sobre ele. É
uma personalidade muito interessante.
- Eu não sabia que você era escritor.
- Ora, acho que todos temos de começar algum dia.
Três dias depois Jeff teve outro convidado para o almoço.
Desta vez foi Budge quem o reconheceu:
- Ei, aquele é Seymour Jarrett, presidente do Conselho de
Administração da Jarrett Internacional Computer. Que diabo ele
está fazendo aqui com Jeff?
Jeff e seu convidado tiveram uma conversa longa e animada.
Depois que o almoço terminou, Budge foi sondar Jeff:
- Jeffrey, meu rapaz, o que estava fazendo com Seymour
Jarrett?
- Nada - disse Jeff rapidamente. - Apenas conversando.
Ele começou a se afastar, mas Budge deteve-o.
- Não tão depressa, meu velho. Seymour Jarrett é um homem
muito ocupado. Ele não se senta com os outros só para ter uma
conversa fiada.
Jeff disse, ansiosamente:
- Está bem, Budge. A verdade é que Seymour colecciona selos e
eu lhe falei sobre um selo raro que posso lhe arrumar.
A verdade coisa nenhuma, pensou Budge.
Na semana seguinte, Jeff almoçou no clube com Charlie Bardett,
presidente da Bardett & Bardett, um dos maiores grupos de
capital de risco do mundo. Budge, Ed Zeller, Alan Thompson e
Mike Quincy observaram fascinados, enquanto os dois homens
conversavam, muito absortos.
- Seu cunhado tem voado alto ultimamente - comentou Zeller. -
Que tipo de negócio ele está preparando, Budge?
Budge respondeu, irritado:
- Não sei, mas pode ter certeza de que vou descobrir. Se
Jarrett e Bardett estão interessados, deve haver muito
dinheiro envolvido.
Eles observavam quando Bardett se levantou, apertou
efusivamente a mão de Jeff e depois foi embora. Quando Jeff
passava por sua mesa, Budge agarrou-o pelo braço.
- Preciso voltar ao escritório - protestou Jeff. - Eu...
- Você trabalha para mim, está lembrado? Sente-se. - Jeff
obedeceu. - Com quem você almoçou hoje?
Jeff hesitou por um instante.
- Ninguém especial. Um velho amigo.
- Charlie Barflett é um velho amigo?
- De certa forma
- Sobre o que você e seu velho amigo Charlie conversaram,
Jeff?
- Ahn... principalmente sobre carros. O velho Charlie gosta
de carros antigos e eu soube de um Packard 37, quatro portas,
conversível...
- Pare com essa merda! - disse Budge bruscamente. - Você não
colecciona selos, não vende carros antigos e não escreve livro
nenhum. O que está realmente fazendo?
- Nada. Eu...
- Está levantando dinheiro para alguma coisa, não é mesmo,
Jeff? - indagou Ed Zeller.
- Não!
Mas Jeff foi precipitado demais na negativa. Budge passou o
braço enorme em torno de Jeff.
- Ei, companheiro, sou o seu cunhado. Da mesma família,
lembra? - Ele deu um aperto efusivo em Jeff. - É alguma coisa
sobre aquele computador à prova de interferência que você
mencionou na semana passada, não é mesmo?
Todos puderam perceber, pela expressão no rosto de Jeff, que
ele estava acuado.
- Ahn... é, sim...
Era como arrancar dentes para tirar alguma coisa do filho da
puta.
- Por que não nos disse que o Professor Ackerman estava
envolvido?
- Achei que vocês não estavam interessados.
- Pois se enganou. Quando precisa de capital, deve procurar
primeiro os amigos.
- O professor e eu não precisamos de capital - disse Jeff. -
Jarrett e Bartiett...
- Jarrett e Bartiett são autênticos tubarões e vão devorá-lo
vivo! - interveio Alan Thompson.
Ed Zeller aproveitou a deixa:
- Mas quando lida com amigos, Jeff, não há qualquer risco de
sair machucado.
- Já está tudo acertado - confessou Jeff. - Charlie
Bartlett...
- Assinou alguma coisa?
- Ainda não. Mas dei minha palavra...
- Então nada está acertado. Mas que diabo, Jeff, nos negócios
as pessoas mudam de idéia a cada hora.
- Eu nem deveria estar discutindo o assunto com vocês -
protestou Jeff. - O nome do Professor Ackerman não pode ser
mencionado. Ele tem contrato com uma agência do governo.
- Sabemos disso - interveio Thompson, suavemente. - O
professor acha que a coisa funcionará?
- Ele sabe disso com certeza.
- Se é bom o bastante para Ackerman, então o é também para
nós... não é mesmo, pessoal?
Houve um coro de assentimento.
- Ei, não sou um cientista! - disse Jeff. - Não posso
garantir qualquer coisa. Pelo que sei, a coisa pode não ter o
menor valor.
- Claro, claro... Compreendemos perfeitamente. Mas suponhamos
que tenha um valor, Jeff. Quais poderiam ser as dimensões?
- O mercado para isso é mundial, Budge. Não dá nem para
começar a fixar um valor. Todo mundo poderá usar.
- Qual é o financiamento inicial que você está procurando?
- Dois milhões de dólares. Mas tudo o que precisamos é de 250
mil dólares de entrada. Bardett prometeu...
- Esqueça Bardett. Isso é uma ninharia, companheiro.
Entraremos com essa quantia pessoalmente. E manteremos tudo em
família. Certo, pessoal?
- Certo!
Budge levantou os olhos e estalou os dedos. Um garçon
aproximou-se apressadamente.
- Dominick, traga papel e uma caneta para o Sr. Stevens.
O pedido foi atendido prontamente.
- Podemos fechar o negócio agora mesmo - disse Budge a Jeff. -
Basta escrever uma cessão dos direitos para nós. Todos
assinaremos e pela manhã você terá um cheque visado no valor
de 250 mil dólares. Está bom assim para você?
Jeff mordia o lábio inferior.
- Budge, prometi ao Sr. Bardett...
- Foda-se Bartlett! - rosnou Budge. - Casou-se com a irmã dele
ou com a minha? E agora escreva.
- Não temos uma patente e...
- Escreva logo!
Budge empurrou a caneta para a mão de Jeff. Relutantemente,
Jeff começou a escrever: "Por este documento transfiro todos
os meus direitos, titulo e interesse num computador matemático
chamado SUCABA, aos compradores Donald 'Budge' Hollander, Ed
Zeller, Alan Thompson e Mike Quincy, em troca de um pagamento
de 250 mil dólares na assinatura. O SUCABA foi amplamente
testado, é barato, não apresenta problemas e consome menos
energia do que qualquer outro computador actualmente no
mercado. O SUCABA não precisará de manutenção ou peças por um
período mínimo de dez anos." Todos olhavam por cima do ombro
de Jeff, enquanto ele escrevia.
- Santo Deus! - exclamou Ed Zeller. - Dez anos! Não há um só
computador no mercado que ofereça essa vantagem!
Jeff continuou a escrever: "Os compradores sabem que nem o
Professor Ackerman, nem eu temos uma patente sobre o SUCABA
.."
- Nós cuidaremos disso - interveio Alan Thompson, impaciente.
- Tenho o melhor advogado de patentes.
Jeff continuou a escrever: "Expliquei aos compradores que o
SUCABA pode não ter qualquer valor e que nem o Professor
Vernon Ackerman nem eu assumimos quaisquer responsabilidades
ou garantias sobre o SUCABA, a não ser as que estão
relacionadas acima." Ele assinou e estendeu o documento,
indagando:
- Está bom assim?
- Tem certeza sobre os dez anos? - perguntou Budge.
- Garantia absoluta. Vou escrever uma cópia.
Eles ficaram observando enquanto Jeff escrevia uma cópia do
documento. Ao final, Budge pegou as duas cópias e assinou,
seguido por Zeller, Quincy e Thompson. Budge estava radiante.
- Uma cópia para nós e uma cópia para você. O velho Seymour
Jarrett e Charlie Bartlett ficarão furiosos, hem? Mal posso
esperar para ver a cara dos dois quando souberem que os
passamos para trás neste negócio.
Na manhã seguinte, Budge entregou a Jeff um cheque visado no
valor de 250 mil dólares.
- Onde está o computador? - perguntou Budge.
- Providenciei para que seja entregue no clube ao meio-dia.
Achei que seria apropriado que todos estivéssemos juntos
quando o receberem.
Budge bateu afectuosamente no ombro do cunhado.
- Sabe, Jeff, você é um cara esperto. Até à hora do almoço.
Pontualmente ao meio-dia um mensageiro entrou no restaurante
do Pilgrim Club e foi conduzido à mesa de Budge, que ali
estava com Zeller, Thompson e Quincy. O mensageiro entregou um
pacote.
- Aqui está! - exclamou Budge.- Santo Deus! A coisa é até
portátil!
- Devemos esperar por Jeff? - indagou Thompson.
- Ele que se dane. A coisa agora nos pertence.
Ele rasgou o papel e abriu a caixa. Havia palha lá dentro.
Cuidadosamente, quase com reverência, Budge tirou o objecto
que repousava sobre a palha. Os homens ficaram olhando
fixamente. Era uma estrutura quadrada, com cerca de 30
centímetros de diâmetro, contendo uma série de fios com
contas. Houve um silêncio prolongado.
- O que é isso? - perguntou Quincy finalmente.
Foi Alan Thompson quem respondeu:
- É um ábaco. Uma dessas coisas que os orientais usavam para
fazer contas... - Sua expressão mudou abruptamente. - Ei,
SUCABA é abacus, a palavra em inglês, soletrada ao contrário!
Ele virou-se para Budge, acrescentando:
- Essa é a sua idéia de brincadeira?
Zeller falou atabalhoadamente:
Pouca energia, sem problemas, usa menos força do que qualquer
computador
actualmente no mercado... Cancelem o maldito cheque!
Houve uma corrida colectiva para o telefone.
- O cheque visado? - disse o gerente. - Não precisa se
preocupar. O Sr. Stevens descontou-o esta manhã.
Pickens, o mordomo, lamentava muito, mas o Sr. Stevens fizera
as malas e partira.
- Ele falou alguma coisa sobre uma longa viagem.
Naquela tarde, um frenético Budge conseguiu finalmente entrar
em contacto com o Professor Vernon Ackerman.
- Claro que lembro de Jeff Stevens. Um homem muito simpático.
Ele é seu cunhado?
- Professor, sobre o que conversou com Jeff?
- Acho que não é segredo. Jeff está querendo escrever um
livro a meu respeito. Ele me convenceu de que, o mundo está
interessado no homem por trás do cientista...
Seymour Jarrett mostrou-se reticente:
- Por que quer saber o que conversei com o Sr. Stevens? É um
coleccionador de selos rival?
- Não. Eu...
- Pois não vai adiantar bisbilhotar. Só existe um selo desse
tipo e o Sr. Stevens concordou em vendê-lo a mim assim que o
obtiver.
E ele bateu o telefone.
Budge sabia o que Charlie Bartlett ia dizer antes mesmo de
ouvir as palavras:
- Jeff Stevens? Ah, sim... Colecciono carros antigos. Jeff
sabe onde existe um Packard 37, quatro portas, conversível, em
excelente estado..
Desta vez foi Budge quem desligou.
- Não se preocupem - disse ele a seus companheiros. -
Recuperaremos o nosso dinheiro e ainda meteremos o filho da
puta na cadeia pelo resto da vida. Há leis contra a fraude.
O grupo foi ao escritório de Scott Fogarty.
- Ele nos tomou duzentos e cinquenta mil dólares - explicou
Budge ao advogado. - Quero metê-lo atrás das grades pelo resto
da vida. Providencie um mandato para...
- Está com o contrato, Budge?
- Estou, sim.
Ele entregou a Fogarty o documento que Jeff escrevera. O
advogado examinou-o rapidamente, depois leu mais devagar.
- Ele falsificou as assinaturas de vocês neste documento?
- Claro que não - respondeu Mike Quincy. - Fomos nós mesmos
que assinamos.
- E leram antes?
Ed Zeller disse, irritado:
- Claro que lemos. Acha que somos estúpidos?
- Deixarei que vocês mesmos julguem isso, senhores. Assinaram
um contrato em que foram informados que estavam comprando, com
uma entrada de 250 mil dólares, uma coisa que não tinha
patente e podia ser completamente sem valor. Nos termos legais
de um velho professor meu: "Vocês se foderam" .
Jeff obteve o divórcio em Reno. Foi quando estava lá, fixando
residência como era necessário para a concessão do divórcio
automático, que se encontrou com Conrad Morgan. Morgan
trabalhara outrora para tio Willie.
- Poderia me fazer um pequeno favor, Jeff? - perguntou Conrad
Morgan. - Há uma jovem viajando num trem de Nova York para St.
Louis com algumas jóias...
Agora, Jeff olhou pela janela do avião e pensou em Tracy.
Havia um sorriso em seu rosto.
Quando voltou a Nova York, o primeiro lugar a que Tracy
compareceu foi Conrad Morgan et Cie Joalheiros. Conrad Morgan
levou Tracy para sua sala e fechou a porta. Ele esfregou as
mãos e disse:
- Eu estava começando a ficar preocupado, minha cara. Esperei
por você em St. Louis e...
- Você não estava em St. Louis.
- Como? O que disse?
Os olhos azuis de Morgan pareciam faiscar.
- Disse que não foi a St. Louis. Nunca teve a intenção de se
encontrar comigo.
- Mas claro que tinha! Você está com as jóias e eu...
- Mandou dois homens me tirarem as jóias.
Uma expressão de perplexidade se insinuou no rosto de Morgan.
- Não compreendo...
- A princípio, pensei que houvesse um vazamento em sua
organização. Mas não havia, não é mesmo? Foi você. Disse-me
que comprou pessoalmente a minha passagem de trem. Portanto,
era a única pessoa que sabia o número da cabina. Usei um nome
diferente e um disfarce, mas seus homens sabiam exactamente
onde me encontrar.
A surpresa no rosto de querubim de Morgan era agora total.
- Está tentando me dizer que alguns homens lhe roubaram as
jóias?
Tracy sorriu.
- Estou tentando dizer que eles não roubaram.
E desta vez o espanto no rosto de Morgan era genuíno.
- Você está com as jóias?
- Isso mesmo. Seus amigos ficaram com tanta pressa de pegar um
avião que as deixaram para trás.
Morgan estudou Tracy em silêncio por um momento.
- Com licença.
Ele passou por uma porta particular e Tracy continuou sentada
no sofá, esperando, perfeitamente relaxada.
Conrad Morgan se ausentou por quase 15 minutos. Quando voltou,
havia uma expressão de consternação em seu rosto.
- Receio que um erro tenha sido cometido. Um grande erro. É
uma jovem muito esperta, Senhorita Whitney. Mereceu os seus 25
mil dólares. - Ele sorriu em admiração. - Dê-me as jóias e...
- Agora são cinquenta mil.
- Como?
- Tive de roubar as jóias duas vezes. E por isso o preço agora
é de cinquenta mil, Sr. Morgan.
- Não. - Os olhos dele perderam o brilho. - Não posso lhe dar
tanto .
Tracy levantou-se.
- Não tem problema. Tentarei encontrar alguém em Las Vegas que
ache que as jóias valem isso.
Ela se encaminhou para a porta.
- Cinquenta mil dólares? - murmurou Conrad Morgan.
- Cinquenta mil.
- Onde estão as jóias?
- Num armário que aluguei na Estação de Pensilvânia. Assim que
me der o dinheiro e me puser num táxi, eu lhe entregarei a
chave.
Conrad Morgan deixou escapar um suspiro de derrota.
- Negócio fechado.
- Obrigada - disse Tracy, jovialmente. - Foi um prazer fazer
negócios com você.
19
Daniel Cooper já sabia qual o propósito da reunião daquela
manhã na sala de J. J. Reynolds, pois todos os investigadores
da companhia haviam recebido no dia anterior um memorando
sobre o roubo de Lois Bellamy, que ocorrera uma semana antes.
Daniel Cooper detestava reuniões. Era impaciente demais para
ficar sentado a escutar uma conversa estúpida.
Ele chegou ao gabinete de J. J. Reynolds com 45 minutos de
atraso. Reynolds estava no meio de um discurso.
- Foi muita gentileza sua aparecer - comentou J. J. Reynolds,
sarcasticamente.
Não houve reacção. É uma perda de tempo, concluiu Reynolds.
Cooper não compreendia o sarcasmo... nem qualquer outra coisa,
na opinião de Reynolds. Só sabia como pegar criminosos. É
nisso, ele tinha de admitir, o homem era um verdadeiro génio.
Três dos principais investigadores da organização estavam
sentados na sala: David Swift, Robert Schiffer e Jerry Davis.
- Todos vocês leram o relatório sobre o roubo Bellamy - disse
Reynolds. - Mas uma coisa nova foi acrescentada. Acontece que
Lois Bellamy é prima do comissário de polícia e ele está
furioso.
- E o que a polícia tem feito? - perguntou Davis.
- Tem-se escondido da imprensa. Não posso culpá-lo por isso.
Os agentes que foram investigar se comportaram como Keystone
Kops. Chegaram a falar com a ladra, que surpreenderam na casa,
mas deixaram-na escapar.
- Então devem ter uma boa descrição dela - sugeriu Swift.
- Eles têm uma boa descrição de sua camisola - respondeu
Reynolds, fulminante. - Ficaram tão impressionados com o corpo
da mulher que seus cérebros se derreteram. Nem mesmo sabem a
cor de seus cabelos. Ela usava uma touca e o rosto se achava
coberto por um creme escuro de maquilhagem. A descrição que
forneceram é de uma mulher de vinte e poucos anos, com um
corpo fantástico e peitos maravilhosos. Não há uma única
pista. Não temos qualquer informação em que nos basear.
Absolutamente nada.
Daniel Cooper falou pela primeira vez:
- Isso não é verdade.
Todos se viraram para fitá-lo, com graus variados de aversão.
- Do que está falando? indagou Reynolds.
- Sei quem é ela.
Depois de ler o relatório, na manhã anterior, Cooper resolvera
dar uma olhada na casa Bellamy, como o primeiro passo lógico.
Para Daniel Cooper, a lógica era a ordenação da mente de Deus,
a solução básica para todos os problemas; aplicando-se a
lógica, sempre se começava pelo começo. Cooper seguira de
carro para a propriedade Bellamy, em Long Island, dera uma
olhada e voltara para Manhattan, sem saltar. Descobrira tudo o
que precisava saber. A casa era isolada e não havia meio de
transporte público nas proximidades, o que significava que a
ladra só poderia ter chegado lá de carro particular. E ele
explicou seu raciocínio aos homens na sala de Reynolds:
- Como ela provavelmente relutaria em usar seu próprio carro,
que poderia levar à sua identificação, o veículo tinha de ser
roubado ou alugado. Resolvi verificar primeiro as agências de
aluguel. Presumi que ela teria alugado o carro em Manhattan,
onde lhe seria mais fácil cobrir sua pista.
Jerry Davis não ficou impressionado.
- Você deve estar brincando, Cooper. Milhares de carros são
alugados todos os dias em Manhattan.
Cooper ignorou a interrupção.
- Todas as operações de aluguel de carros são
computadorizadas. Relativamente poucos carros são alugados por
mulheres. Verifiquei todas. A mulher em questão foi à Budget
Rent-a-Car, na Rua 23-Oeste, alugou um Chevy Caprice às oito
horas da noite do roubo, devolveu-o às duas horas da
madrugada.
- E como sabe que foi o carro usado no roubo? - perguntou
Reynolds.
Cooper sentia-se entediado com as perguntas estúpidas.
- Verifiquei a quilometragem. São 51 quilómetros até a casa
de Lois Bellamy e outros 51 quilómetros para voltar. Confere
exactamente com o velocímetro no Caprice. O carro foi alugado
em nome de Ellen Branch.
- Um nome falso - disse David Swift.
- O verdadeiro nome dela é Tracy Whitney.
Todos o fitavam aturdidos e foi Schiffer quem indagou:
- Como sabe disso?
- Ela deu um nome e endereço falsos, mas tinha de assinar o
contrato de aluguel. Levei o original para a polícia e pedi
que verificassem as impressões digitais. Eram as de Tracy
Whitney. Ela cumpriu uma pena na Penitenciária Meridional da
Louisiana Para Mulheres. Se estão lembrados, conversei com ela
há cerca de um ano, a propósito daquele Renoir roubado.
- Claro que me lembro - disse Reynolds. - Falou na ocasião que
ela era inocente.
- E era mesmo... naquela ocasião. Não é mais inocente. Cometeu
o roubo na casa Bellamy.
O filho da puta conseguira novamente! E fizera com que tudo
parecesse muito simples. Reynolds, fez um esforço para não se
mostrar relutante:
- Foi... foi um óptimo trabalho, Cooper. Um trabalho realmente
excelente. Vamos agarrá-la. Entraremos em contacto com a
polícia e...
- Sob que acusação? - perguntou Cooper, suavemente. - Alugar
um carro? A polícia não pode identificá-la e não há qualquer
vestígio de prova contra ela.
- O que devemos fazer então? - indagou Schiffer. - Deixar que
ela escape impune?
- Desta vez, sim - respondeu Cooper. - Mas sei agora quem ela
é. Tentará alguma coisa outra vez. E quando isso acontecer, eu
a pegarei.
A reunião finalmente terminou. Cooper queria desesperadamente
tomar um banho de chuveiro. Tirou do bolso um caderninho preto
e anotou com extremo cuidado: TRACY WHITNEY.
20
Está na hora de começar minha vida nova, decidiu Tracy. Mas
que tipo de vida? Passei de uma vitima inocente e ingénua para
uma... uma o quê? Uma ladra - simplesmente isso. Ela pensou em
Joe Romano, Anthony Orsatti, Perry Pope e o Juiz Lawrence.
Não. Uma vingadora. É isso o que me tornei. E talvez uma
aventureira. Ela fora mais esperta do que a polícia, dois
vigaristas profissionais e um joalheiro traidor. Pensou em
Ernestine e Amy, sentiu uma pontada de saudade. Num súbito
impulso, foi a F.A.O. Schwarz e comprou um teatro de
marionetes, completo, com meia dúzia de tipos. Mandou
despachar para Amy. O cartão dizia: ALGUNS NOVOS AMIGOS, PARA
VOCÊ. SINTO SAUDADE. AMOR TRACY.
Ela foi em seguida a um peleteiro na Madison Avenue, comprou
um boá de raposa azul para Ernestine e remeteu, junto com uma
ordem de pagamento de 200 dólares. O cartão dizia apenas:
OBRIGADA, ERNIE. TRACY.
Todas as minhas dívidas estão pagas agora, pensou Tracy. Era
uma sensação agradável. Estava livre para ir a qualquer lugar
que quisesse, fazer o que bem lhe aprouvesse.
Resolveu comemorar sua independência hospedando-se numa Suíte
da Torre, no Helmsley Palace Hotel. De sua sala de estar, no
quadragésimo séptimo andar, podia ver a Catedral de St.
Patrick e a Ponte George Washington, à distância. Somente a
poucos quilómetros dali, em outra direcção, ficava o terrível
lugar em que vivera recentemente. Nunca mais, jurou Tracy.
Ela abriu a garrafa de champanha que a gerência mandara para a
suíte e sentou para beber, contemplando o sol se pôr sobre os
edifícios de Manhattan. Quando a lua surgiu no céu, Tracy já
tomara uma decisão. Iria para Londres. Estava pronta para
todas as coisas maravilhosas que a vida tinha a oferecer.
Paguei minhas dívidas, pensou Tracy. Mereço um pouco de
Felicidade.
Deitou na cama e ligou a televisão para assistir ao último
serviço noticioso. Dois homens estavam sendo entrevistados.
Boris Melnikov era um russo baixo e corpulento, vestindo um
temo marrom malfeito, Pietr Negulesco era o oposto, alto e
magro, de aparência elegante. Tracy se perguntou o que os dois
homens poderiam ter em comum.
Onde será realizada a partida de xadrez? - perguntou o
locutor,
- Em Sotchi, no lindo Mar Negro - respondeu Melnikov.
- Ambos são grandes mestres internacionais e esta partida tem
despertado o maior interesse, senhores. Em partidas
anteriores, arrebataram o título um do outro. A última partida
foi um empate. Sr. Negulesco, o Sr. Melnikov detém o título
actualmente. Acha que poderá conquistá-lo novamente?
- Claro - respondeu o romeno.
- Ele não tem a menor chance - garantiu o russo.
Tracy nada sabia de xadrez, mas havia uma arrogância nos dois
homens que achou extremamente desagradável. Ela apertou o
botão do controle remoto que desligava o aparelho de televisão
e foi dormir.
Na manhã seguinte, bem cedo, Tracy foi a uma agência de
viagens e reservou uma Suíte no Signal Deck do Queen Elizabeth
II, Estava tão excitada como uma criança com a sua primeira
viagem ao exterior e passou os três dias seguintes comprando
roupas e malas.
Na manhã da partida, Tracy alugou uma limusine para levá-la
ao píer. Quando chegou ao Píer 90, na esquina da Rua 55 com a
décima segunda Avenida, onde o navio estava atracado, deparou
com uma multidão de fotógrafos e repórteres de televisão. Por
um momento, Tracy foi dominada pelo pânico. Mas logo
compreendeu que tinham ido ali para entrevistar os dois homens
posando na base da prancha de embarque - Mehukov e Negulesco,
os dois grandes mestres internacionais. Tracy passou por eles,
mostrou seu passaporte a um oficial do navio e subiu para
bordo. No convés, um camareiro verificou a passagem de Tracy e
conduziu-a a seu camarote. Era uma suíte maravilhosa, com um
terraço particular. Saíra absurdamente cara, mas Tracy
concluiu que valera a pena.
Ela arrumou suas coisas e depois saiu para o corredor. Havia
festas de despedida em quase todos os camarotes, com risos,
champanha e conversas. Ela sentiu uma repentina pontada de
solidão. Não havia ninguém para se despedir dela, ninguém com
quem ela se preocupasse, ninguém para se preocupar com ela.
Isso não é verdade, disse Tracy a si mesma. Big Bertha me
quer. E ela riu alto.
Subiu para o convés superior, sem perceber os olhares de
admiração dos homens e os invejosos das mulheres lançados à
sua passagem. Tracy ouviu o som de um apito rouco de navio e
gritos avisando:
- Vamos zarpar! Todos que não viajarão devem desembarcar!
Ela foi dominada por um intenso excitamento. Partia rumo a um
futuro completamente desconhecido. Sentiu o navio estremecer,
quando os rebocadores começaram a puxá-lo para fora do porto.
Ficou na amurada, junto com incontáveis outros passageiros,
contemplando a Estátua da Liberdade desaparecer lentamente,
depois saiu para explorar o navio.
O Queen Elizabeth II era uma cidade, com quase 300 metros de
comprimento e 13 andares de altura. Tinha quatro restaurantes,
seis bares, dois salões de baile, duas boates e um "Balneário
Dourado ao Mar". Havia dezenas de lojas, quatro piscinas, um
ginásio, um pequeno campo de golfe, uma pista de corrida.
Talvez eu nunca mais queira deixar este navio, pensou Tracy.
Ela reservara uma mesa no Princess Grill, que era menor e mais
elegante do que o restaurante principal. Mal se sentara quando
uma voz familiar disse:
- Ora, ora, você aqui!
Tracy levantou os olhos e lá estava Tom Bowers, o falso agente
do FBI. Oh, não, eu não mereço isso, pensou Tracy.
- Mas que surpresa agradável! Importa-se que eu me sente com
você?
- Claro que me importo.
Ele se instalou numa cadeira diante de Tracy e presenteou-a
com um sorriso cativante.
- Podemos muito bem ser amigos. Afinal, ambos estamos aqui
pelo mesmo motivo, não é mesmo?
Tracy não tinha a menor idéia do que ele estava falando.
- Escute aqui, Sr. Bowers...
- Stevens - disse ele, suavemente. - Jeff Stevens.
- O nome não importa.
Tracy começou a se levantar.
- Espere um momento. Explicarei tudo sobre a última vez em que
nos encontramos.
- Não há nada a explicar. Uma criança idiota poderia ter
calculado tudo... e foi o que aconteceu.
- Eu devia um favor a Conrad Morgan. - Ele sorriu tristemente.
- E receio que ele não tenha ficado muito feliz comigo.
Lá estava o mesmo charme insinuante e infantil que a enganara
completamente antes. Pelo amor de Deus, Dennis, não há
necessidade de algemá-la. Ela não vai fugir. Tracy disse, com
evidente hostilidade:
- Eu também não estou feliz com você. O que faz a bordo deste
navio? Não deveria estar numa barca do Mississipi?
Ele riu.
- Com Maximilian Pierpont a bordo, o navio vira uma barca do
Mississipi.
- Quem?
Ele fitou-a surpreso.
- Ora, deixe disso. Está querendo dizer que realmente não
sabe?
- Não sei o quê?
- Max Pierpont é um dos homens mais ricos do mundo. Seu hobby
é forçar empresas concorrentes a fecharem. Adora cavalos
lentos e mulheres rápidas, possui uma porção de ambos. É o
último dos grandes perdulários.
- E você tenciona aliviá-lo de um pouco desse excesso de
riqueza.
- Mais do que um pouco, para dizer a verdade. - Ele a fitava
com uma expressão especulativa. - Sabe o que você e eu
deveríamos fazer?
- Claro que sei, Sr. Stevens. Deveríamos nos despedir para
sempre.
Ele permaneceu sentado, observando, enquanto Tracy se
levantava e saía do restaurante.
Ela jantou em seu camarote. Enquanto comia, perguntou-se qual
o azar que pusera Jeff Stevens novamente em seu caminho.
Queria esquecer o medo que sentira no trem, quando pensava que
estava presa. Mas vou deixar que ele estrague esta viagem.
Simplesmente o ignorarei.
Tracy subiu para o convés superior depois do jantar. Era uma
noite fantástica, com um dossel mágico de estrelas se
espalhando contra o céu aveludado. Ficou parada ao luar, na
amurada, contemplando a suave fosforescência das ondas e
escutando os sons do vento nocturno, quando ele veio se postar
ao seu lado.
- Não faz idéia de como está linda parada aqui. Acredita em
romances de bordo?
- Claro. O que não acredito é em você.
Tracy começou a se afastar.
- Espere um instante. Tenho notícias para você. Acabei de
descobrir que o Sr. Pierpont não está a bordo, no final das
contas. Cancelou a viagem no último minuto.
- Ora, mas que pena! Desperdiçou a sua passagem.
- Não necessariamente. - Ele tornou a fitá-la com uma
expressão especulativa. - Gostaria de ganhar uma pequena
fortuna nesta viagem?
O homem é incrível.
- A menos que tenha um submarino ou um helicóptero no bolso,
não creio que possa partir impune, se roubar alguém a bordo.
- E quem falou em roubar alguém? Já ouviu falar de Boris
Melnikov ou Pietr Negulesco?
- E se já ouvi?
- Melnikov e Negulesco, estão a caminho da Rússia para uma
disputa do campeonato. Se eu der um jeito para você jogar com
os dois, poderemos ganhar muito dinheiro. É um golpe perfeito.
Tracy estava incrédula.
- Se puder arrumar para eu jogar com os dois? É esse o seu
golpe perfeito?
- Exactamente. O que acha?
- Eu adoraria. Só há um pequeno problema.
- Qual é?
- Não sei jogar xadrez.
Ele sorriu afavelmente.
- Não tem importância. Eu lhe ensinarei.
- Você é louco. Se quer um conselho, procure imediatamente um
bom psiquiatra. Boa noite.
Na manhã seguinte, Tracy esbarrou literalmente em Boris
Melnikov. Ele corria pelo tombadilho quando Tracy virou um
canto, esbarrou nela e derrubou-a.
- Olhe para onde vai! - resmungou Melnikov, continuando a
correr.
Tracy ficou sentada no chão, olhando para ele. Um camareiro
aproximou-se.
- Está machucada, madame? Eu o vi...
- Não se preocupe. Estou bem, obrigada.
Ninguém estragaria aquela viagem.
Quando voltou a seu camarote, Tracy encontrou seis recados
para procurar o Sr. Jeff Stevens. Ignorou-os. Nadou à tarde,
leu, fez uma massagem. Ao entrar no bar, ao cair da noite, a
fim de tomar um coquetel antes do jantar, sentia-se
maravilhosa. Mas a euforia foi de curta duração. Pietr
Negulesco, o romeno, estava sentado no bar. Quando viu Tracy,
ele levantou-se e disse:
- Posso lhe oferecer um drinque, linda dama?
Tracy hesitou, depois sorriu.
- Aceito, obrigada.
- O que gostaria de tomar?
- Uma vodca com tónica, por favor.
Negulesco fez o pedido ao barman e tornou a virar-se para
Tracy.
- Sou Pietr Negulesco.
- Sei disso.
- Claro. Todo mundo me conhece. Sou o maior jogador de xadrez
do mundo. E sou um herói nacional no meu país. - Ele
inclinou-se para Tracy, pôs a mão em seu joelho - E sou também
uma grande foda.
Tracy achou que entendera mal.
- Como?
- Sou uma grande foda.
A primeira reacção de Tracy foi jogar o drinque na cara dele,
mas controlou-se. Tinha uma ideia melhor.
- Com licença - disse ela. - Tenho de me encontrar com um
amigo.
Ela foi procurar Jeff Stevens. Encontrou-o no Princess Grill.
Mas quando se adiantou para a sua mesa, percebeu que ele
jantava com uma loura atraente. Eu deveria ter imaginado,
pensou Tracy, Ela virou-se e afastou-se pelo corredor. Jeff
estava a seu lado um momento depois.
- Tracy... você queria me falar?
- Não quero afastá-lo do seu... jantar.
- Ela é a sobremesa - disse Jeff, jovialmente - O que posso
fazer por você?
- Falava sério sobre Melnikov e Negulesco?
- Absolutamente sério. Por quê?
- Acho que ambos precisam de uma lição de boas maneiras.
- Eu também acho. E ganharemos dinheiro enquanto lhes damos a
lição.
- Óptimo. Qual é o seu plano?
- Você vencerá os dois no xadrez.
- Estou falando sério.
- Eu também.
- Já lhe disse que não sei jogar xadrez. Não sei distinguir um
peão de um rei. Eu...
- Não se preocupe - prometeu Jeff. - Basta um par de lições
minhas e massa os dois.
- Os dois?
- Não lhe falei ainda? Jogará com os dois simultaneamente.
Jeff estava sentado ao lado de Boris Melnikov no Double Down
Piano Bar.
- A mulher é uma enxadrista fantástica - confidenciou Jeff a
Melnikov. - Viaja incógnita.
O russo soltou um grunhido.
- As mulheres nada sabem de xadrez. Não são capazes de pensar.
- Pois esta pode, E ela diz que pode vencê-lo facilmente.
Boris Melnikov soltou uma gargalhada.
- Ninguém pode me vencer... facilmente ou não.
- Ela está disposta a apostar dez mil dólares que pode jogar
com você e Pietr Negulesco ao mesmo tempo e conseguir um
empate, pelo menos com um dos dois.
Boris Melnikov engasgou-se com seu drinque.
- O quê? Isso... isso é absurdo! Jogar com os dois ao mesmo
tempo? Esta... esta mulher amadora?
- Isso mesmo, Por dez mil dólares cada.
- Eu deveria aceitar só para dar uma lição à idiota estúpida.
- Se você ganhar, o dinheiro será depositado em qualquer país
que escolher.
Uma expressão gananciosa se insinuou no rosto do russo.
- Nunca sequer ouvi falar dessa mulher. E jogar com nós dois
simultaneamente! Ela deve ser louca.
- Ela tem vinte mil dólares em dinheiro.
- E qual é a nacionalidade dela?
- Americana.
- Olá, isso explica tudo. Todos os americanos ricos são
doidos, especialmente as mulheres.
Jeff começou a se levantar.
- Bem, acho que ela terá de jogar somente com Pietr Negulesco.
- Negulesco jogará com ela?
- Isso mesmo. Não lhe contei? Ela queria jogar com os dois,
mas se você está com medo...
- Com medo? Boris Melnikov com medo? - A voz do russo era um
rugido. - Eu a destruirei! Quando essa partida ridícula
ocorrerá?
- Ela pensou que poderia ser na sexta-feira. A última noite
da viagem.
Boris Melnikov pensava rapidamente.
- Melhor de três?
- Não. Apenas uma partida.
- Por dez mil dólares?
- Correcto.
O russo suspirou.
- Não tenho tanto dinheiro comigo.
- Não há problema - garantiu Jeff - Tudo o que a Senhorita
Whitney realmente quer é a glória de jogar contra o grande
Boris Melnikov. Se você perder, dá a ela um retracto
autografado. Se ganhar, leva dez mil dólares.
- Quem fica com as apostas?
Havia um tom de suspeita na voz do russo.
- O comissário de bordo.
- Muito bem - decidiu Melnikov. - Sexta-feira à noite.
Começaremos às dez horas, pontualmente.
- Ela ficará satisfeita.
Na manhã seguinte, Jeff conversou com Pietr Negulesco no
ginásio, onde ambos se exercitavam.
- Ela é americana, hem? - disse Pietr Negulesco. - Eu devia
ter imaginado que Todos os americanos são doidos.
- Ela é uma grande enxadrista.
Pietr Negulesco fez um gesto desdenhoso.
- Grande não é o suficiente. Melhor é o que conta. E eu sou o
melhor.
- É por isso que ela está tão ansiosa em jogar contra você.
Se você perder, dá a ela um retracto autografado. Se vencer,
recebe dez mil dólares em dinheiro...
- Negulesco não joga com amadoras.
- depositados em qualquer pais que quiser.
- Não há a menor possibilidade.
- Nesse caso, acho que ela terá de jogar somente contra Boris
Melnikov.
- Como? Está dizendo que Melnikov concordou em jogar contra
essa mulher?
- Exactamente. Mas ela tinha a esperança de jogar contra os
dois simultaneamente.
- Nunca ouvi falar de nada tão... tão... - Negulesco -
titubeou, a palavra lhe faltando. - A arrogância! Quem é essa
mulher que pensa que pode derrotar os dois maiores enxadristas
do mundo? Ela deve ter escapado de algum hospício.
- Ela é um pouco excêntrica - reconheceu Jeff - mas seu
dinheiro é bom.
- Você disse dez mil dólares para derrotá-la?
- Isso mesmo.
- E Boris Melnikov recebe a mesma quantia?
- Se ele a vencer.
Pietr Negulesco sorriu.
- Ora, ele vai vencê-la. E eu também.
- Aqui entre nós, eu não ficaria absolutamente surpreso com
isso.
- Quem ficará com as apostas?
- O comissário de bordo.
Por que Melnikov deveria ser o único a tirar o dinheiro
daquela mulher?, pensou Pietr Negulesco.
- Negócio fechado, meu amigo. Onde e quando?
- Na noite de sexta-feira. às dez horas. Na Sala da Rainha.
- Pietr Negulesco sorriu gananciosamente.
- Estarei lá.
- Está querendo dizer que eles concordaram? - murmurou Tracy.
- Exactamente.
- Acho que vou vomitar.
- Pegarei uma toalha molhada.
Jeff correu para o banheiro da suíte de Tracy, molhou uma
--toalha e levou para ela. Tracy estava deitada na
espreguiçadeira. Ele pós a toalha em sua testa.
- Como se sente?
- Horrível. Acho que terei uma enxaqueca.
- Já teve enxaqueca antes?
- Nunca.
- Então não terá uma agora. É perfeitamente natural ficar
nervosa antes de uma coisa assim, Tracy.
Ela levantou-se de um pulo, jogou a toalha no chão.
- Alguma coisa assim? Nunca houve nada assim. Jogarei com
dois mestres internacionais do xadrez depois de receber uma
única lição do jogo de você e...
- Duas - corrigiu-a Jeff. - Você possui um talento natural
para o xadrez.
- Oh, Deus, por que deixei que você me metesse nisso?
- Porque vamos ganhar muito dinheiro.
- Não quero ganhar muito dinheiro - lamuriou-se Tracy. -
Quero que este navio afunde! Por que não podemos estar no
Titanic?
- Basta ficar calma - disse Jeff, suavemente. - Vai ser...
- Vai ser um desastre! Todos neste navio estarão observando.
- Não é isso exactamente o que estamos querendo? - comentou
Jeff, radiante.
Jeff combinara tudo com o comissário de bordo. Entregara-lhe
as apostas - 20 mil dólares em traveler's checks - e pedira
que reservasse as duas mesas de xadrez para a noite de
sexta-feira. A notícia espalhou-se rapidamente pelo navio. Os
passageiros começaram a abordar Jeff para indagar se as
partidas ocorreriam mesmo.
- Claro - assegurou Jeff a todos que perguntaram. - É uma
coisa inacreditável. A pobre Senhorita Whitney acredita mesmo
que pode vencer. E está até apostando nisso.
- Será que eu poderia fazer uma pequena aposta? - indagou um
passageiro.
- Claro. Tanto dinheiro quanto quiser. A Senhorita Whitney
pede apenas uma vantagem de dez para um.
Uma proporção de um milhão para um teria feito mais sentido.
Desde o momento em que a primeira aposta foi aceite, as
comportas se abriram. Parece que todos a bordo, inclusive os
homens da casa de máquinas e os oficiais do navio, queriam
apostar nas partidas. As quantias variavam de cinco a cinco
mil dólares e todas as apostas eram no russo e no romeno.
O desconfiado comissário de bordo resolveu alertar o
comandante.
- Nunca vi nada parecido, senhor. Parece um estouro da
boiada. Quase todos os passageiros apostaram. Devo estar
guardando no mínimo duzentos mil dólares em apostas.
O comandante fitou-o em silêncio por um momento, com uma
expressão pensativa.
- Diz que a Senhorita Whitney vai jogar com Melnikov e
Negulesco ao mesmo tempo?
- Exactamente, comandante.
- Já confirmou que os dois homens são mesmo Pietr Negulesco e
Boris Melnikov?
- Claro, senhor.
- E não há qualquer possibilidade de eles perderem as
partidas deliberadamente?
- Não com seus egos, senhor. Acho que eles prefeririam
morrer. E se perderem para essa mulher, é provavelmente o que
acontecerá quando voltarem para suas terras.
O comandante passou os dedos pelos cabelos, o rosto franzido
em perplexidade.
- Sabe alguma coisa sobre a Senhorita Whitney ou esse Sr.
Stevens?
- Absolutamente nada, senhor. Até onde posso determinar, eles
viajam separadamente.
O comandante tomou a sua decisão.
- Parece alguma espécie de vigarice e normalmente eu não
permitiria que continuasse. Contudo, acontece que também gosto
de xadrez. E se há uma coisa em que eu apostaria a minha vida
é no facto de que não há possibilidade de trapacear no xadrez.
Vamos deixá-los jogar. - Ele foi até sua mesa e pegou uma
carteira preta de couro. - Aposto cinquenta libras para mim.
Nos mestres.
às nove horas da noite de sexta-feira, a Sala da Rainha se
encontrava apinhada de passageiros da primeira classe, os que
haviam se esgueirado da segunda e terceira classe, os oficiais
do navio e tripulantes que se achavam de folga. A pedido de
Jeff Stevens, dois lugares haviam sido reservados para o
torneio. Uma mesa de xadrez fora armada no centro da Sala da
Rainha e a outra no salão adjacente. Havia cortinas arriadas
para separar os dois lugares.
- É para que os jogadores não sejam distraídos um pelo outro
- explicou Jeff Stevens. - E gostaríamos também que os
espectadores não saíssem da sala que escolhessem.
Cordas de veludo foram estendidas em torno das duas mesas, a
fim de conter as multidões. Os espectadores estavam prestes a
testemunhar algo que certamente nunca mais tornariam a ver.
Nada sabiam a respeito da linda e jovem americana, a não ser
que seria impossível para ela - ou para qualquer outra pessoa
- jogar contra os grandes Negulesco e Melnikov simultaneamente
e obter sequer um empate com qualquer dos dois.
Jeff apresentou Tracy aos dois grandes mestres pouco antes
das partidas começarem. Tracy parecia uma pintura grega, num
vestido Galanos de chiffon verde suave, que deixava um ombro a
descoberto. Seus olhos pareciam enormes no rosto pálido. Pietr
Negulesco contemplou-a atentamente e perguntou:
- Venceu todos os torneios nacionais de que participou?
- Venci - respondeu Tracy, com absoluta sinceridade.
O romeno encolheu os ombros.
- Nunca ouvi falar a seu respeito.
Boris Melnikov mostrou-se igualmente rude:
- Vocês, americanos, não sabem o que fazer com seu dinheiro.
Eu gostaria de agradecer-lhe antecipadamente. O ganho deixará
minha família muito feliz.
Os olhos de Tracy eram de um verde vivo.
- Ainda não venceu, Sr. Melnikov.
O riso de Melnikov ressoou pela sala.
- Minha cara, não sei quem você é, mas sei quem eu sou... e eu
sou o grande Boris Melnikov.
Eram 10 horas. Jeff olhou ao redor e constatou que os dois
salões se apresentavam repletos de espectadores.
- Está na hora de as partidas começarem.
Tracy sentou-se à mesa, diante de Melnikov, perguntou-se pela
centésima vez como se metera naquilo.
- Não há problema nenhum - garantira Jeff. - Confie em mim.
E ela, como uma idiota, confiara. Devo ter perdido o juízo,
pensou Tracy. Ela estava jogando contra os dois maiores
enxadristas do mundo e nada sabia do jogo, excepto o que
aprendera com Jeff em quatro horas de aulas.
O grande momento chegara. Tracy sentia as pernas tremendo.
Melnikov virou-se para a multidão em intensa expectativa e
sorriu. Fez sinal para um camareiro.
- Traga-me um conhaque. Napoléon.
Jeff dissera a Melnikov:
- A fim de ser justo com todos, sugiro que você jogue com as
brancas e comece. E na partida com o Sr. Negulesco, será a vez
da Senhorita Whitney jogar com as brancas e começar.
Os dois grandes mestres haviam concordado.
Enquanto a audiência permanecia em silêncio, Boris Melnikov
inclinou-se sobre o tabuleiro e fez a abertura do gambito da
rainha, avançando por duas casas o peão da rainha. Não vou
simplesmente vencer esta mulher. Vou arrasá-la.
Ele olhou para Tracy. Ela estudou o tabuleiro, acenou com a
cabeça e levantou-se, sem mover qualquer peça. Um camareiro
abriu caminho através da multidão para que Tracy se dirigisse
ao segundo salão, onde Pietr Negulesco se encontrava sentado a
uma mesa, esperando-a. Havia pelo menos cem pessoas no salão
quando Tracy sentou-se diante de Negulesco.
- Ah, minha pombinha! Já derrotou Boris?
Pietr Negulesco riu ruidosamente de seu gracejo.
- Estou trabalhando nisso, Sr. Negulesco - disse Tracy,
calmamente.
Ela se inclinou para a frente, e deslocou por duas casas o
peão da rainha. Negulesco levantou os olhos e sorriu. Marcara
uma massagem para dentro de uma hora, mas planejava terminar
aquela partida antes. Ele inclinou-se e deslocou por duas
casas o peão de sua rainha preta. Tracy estudou o tabuleiro
por um momento, depois levantou-se. O camareiro escoltou-a de
volta a Boris Melnikov.
Tracy sentou-se à mesa e deslocou o peão de sua rainha preta
por duas casas. Ao fundo, percebeu o aceno de aprovação quase
imperceptível de Jeff.
Sem hesitação, Boris Melnikov deslocou por duas casas o peão
do bispo da rainha branca.
Dois minutos depois, à mesa de Negulesco, Tracy deslocou por
duas casas o seu peão do bispo da rainha.
Negulesco accionou por uma casa o seu peão do rei.
Tracy levantou-se e voltou ao salão em que Boris Melnikov
esperava. Avançou uma casa o seu peão do rei.
Com que então ela não é uma total amadora!, pensou Melnikov,
surpreso. Mas vejamos o que ela faz com isto. Ele jogou o
cavalo da rainha para a casa 3 do bispo da rainha.
Tracy estudou o movimento, acenou com a cabeça, voltou a
Negulesco, repetiu o movimento de Melnikov.
Com crescente espanto, os dois grandes mestres compreenderam
que enfrentavam uma brilhante oponente. Não importava quão
espertos fossem os seus movimentos, aquela amadora conseguia
neutralizá-los.
Como estavam separados, Boris Melnikov e Pietr Negulesco não
tinham a menor idéia de que, na realidade, jogavam um contra o
outro. Cada movimento que Melnikov fazia contra Tracy, ela
repetia contra Negulesco. E quando Negulesco contra-atacava
com esse movimento, Tracy usava-o contra Melnikov.
No meio da partida os grandes mestres não estavam mais
presunçosos. Agora lutavam por suas reputações. Andavam de um
lado para outro enquanto planejavam seus movimentos, fumando
furiosamente. Tracy parecia ser a única calma.
No começo, a fim de tentar terminar a partida rapidamente,
Melnikov tentara um sacrifício de cavalo, a fim de permitir
que seu bispo branco exercesse pressão sobre o lado do rei
preto. Tracy levara o movimento para Negulesco. O romeno
examinara o movimento cuidadosamente, depois recusara o
sacrifício com a cobertura do lado exposto. Quando Negulesco
ofereceu um bispo, a fim de avançar uma torre pela defesa
branca, Melnikov se recusou a aceitar, antes que a torre preta
pudesse abalar a sua estrutura de peões.
Não havia como deter Tracy. A partida vinha sendo travada há
quatro horas e nenhuma pessoa em qualquer das audiências se
mexia.
Cada grande mestre tem na cabeça centenas de partidas jogadas
por outros grandes mestres. Foi quando aquela partida em
particular se aproximava do final que tanto Melnikov como
Negulesco, reconheceram a marca registrada do outro.
A sacana, pensou Melnikov. Ela estudou com Negulesco. Ele lhe
ensinou tudo.
E Negulesco pensou: Ela é protegida de Melnikov. O filho da
puta ensinou-a a jogar.
Quanto mais eles lutavam contra Tracy, mais chegavam à
conclusão de que não havia como derrotá-la. A partida se
aproximava do empate.
Na sexta hora de jogo, às quatro da madrugada, as peças em
cada tabuleiro estavam reduzidas a três peões, uma torre e um
rei. Não havia como qualquer dos lados vencer. Melnikov
estudou o tabuleiro por um longo tempo, depois respirou fundo,
meio sufocado, e murmurou:
- Ofereço o empate.
Por cima do burburinho, Tracy respondeu:
- Eu aceito.
A multidão delirou.
Tracy levantou-se e atravessou a multidão para o salão ao
lado. Quando se sentava, Negulesco disse, a voz meio
estrangulada:
- Ofereço o empate.
E a comoção do outro salão se repetiu. A multidão não podia
acreditar no que acabara de testemunhar. Uma mulher surgira do
nada e obtivera um empate simultaneamente com os dois maiores
enxadristas do mundo. Jeff apareceu ao lado de Tracy e disse,
sorrindo:
- Vamos embora. Ambos precisamos de um drinque.
Quando eles saíram, Boris Melnikov e Pietr Negulesco ainda
estavam arriados em suas cadeiras, olhando apaticamente para
seus tabuleiros.
Tracy e Jeff sentaram-se a uma mesa para dois no bar do convés
superior.
- Você esteve maravilhosa. - Jeff riu. - Notou a expressão de
Melnikov? Pensei que ele ia ter um enfarte.
- Pensei que eu fosse ter um enfarte - murmurou Tracy. -
Quanto ganhamos?
- Cerca de duzentos mil dólares. Receberemos do comissário de
bordo pela manhã, quando atracarmos em Southampton.
Encontrarei com você para o café da manhã no restaurante.
- Está bem.
- Acho que vou me recolher agora. Acompanharei você até seu
camarote.
- Ainda não me sinto pronta para deitar, Jeff. Estou excitada
demais. Vá na frente.
- Você foi uma autêntica campeã. - Jeff inclinou-se e
beijou-a de leve na face. - Boa noite, Tracy.
- Boa noite, Jeff.
Ela observou-o se afastar. Ir dormir? Impossível! Fora uma
das noites mais fantásticas de sua vida. O russo e o romeno
haviam-se mostrado muito confiantes, terrivelmente arrogantes.
Jeff dissera: "Confie em mim"... e ela confiara. Não tinha
ilusões sobre o que ele era. Um vigarista. Inteligente,
divertido e esperto, uma companhia agradável. Mas é claro que
ela nunca poderia se interessar a sério por ele.
Jeff estava a caminho de seu camarote quando encontrou um dos
oficiais do navio.
- Um grande espectáculo, Sr. Stevens. A notícia sobre a
partida já foi transmitida pelo telégrafo. Prevejo que a
imprensa estará à espera de vocês em Southampton. É o agente
da Senhorita Whitney?
- Não. Somos apenas conhecidos de bordo - respondeu Jeff,
afavelmente.
Mas sua mente funcionava com rapidez. Se o ligassem a Tracy,
poderia parecer um golpe . Talvez até houvesse uma
investigação. Ele resolveu recolher o dinheiro antes que
houvesse uma investigação.
Escreveu um bilhete para Tracy: PEGUEI O DINHEIRO E ESTAREI à
SUA ESPERA PARA UM CAFÉ DA MANHÃ DE COMEMORAÇÃO NO SAVOY
HOTEL. VOCÊ ESTEVE MAGNíFICA. JEFF. Ele pôs o bilhete num
envelope fechado e entregou a um camareiro.
- Por favor, entregue isto à Senhorita Whitney pela manhã, o
mais cedo possível.
- Pois não, senhor.
Jeff foi para a sala do comissário de bordo.
- Lamento incomodá-lo, mas atracaremos dentro de poucas horas
e sei como estará ocupado então. Sendo assim, importa-se de me
pagar agora?
- Claro que não. - O comissário sorriu. - A moça é realmente
extraordinária, não é mesmo?
- É sim.
- Se não se importa que eu pergunte, Sr. Stevens, onde ela
aprendeu a jogar xadrez assim?
- Soube que ela estudou com Bobby Fischer.
O comissário tirou do cofre dois envelopes pardos grandes.
- É muito dinheiro para se andar por aí. Não preferia que eu
lhe desse um cheque pela quantia?
- Não precisa se incomodar. Posso perfeitamente ficar com o
dinheiro. Será que se importaria de me fazer um favor? O barco
de correspondência vem ao encontro do navio antes de
atracarmos, não é mesmo?
- Exactamente. Estamos esperando-o às seis horas da manhã.
- Eu agradeceria se pudesse providenciar para que eu partisse
no barco de correspondência. Minha mãe está gravemente doente
e eu gostaria de encontrá-la antes... - Ele fez uma pausa e
baixou a voz para acrescentar - ...antes que seja tarde
demais.
- Oh, lamento profundamente, Sr. Stevens. E é claro que posso
dar um jeito. Falarei com o pessoal da alfândega.
Eram 6:15 da manhã quando Jeff Stevens, os dois envelopes
pardos cuidadosamente guardados em sua mala, desceu a escada
do navio para o barco de correspondência. Ele virou-se para
lançar uma última olhada aos contornos do enorme navio,
pairando acima. Os passageiros do transatlântico ainda dormiam
profundamente. Jeff estaria no cais muito antes que o Queen
Elizabeth II atracasse.
- Foi uma bela viagem - comentou Jeff para um dos tripulantes
do barco de correspondência.
- Foi mesmo - concordou uma voz.
Jeff virou-se, Tracy estava sentada num rolo de corda, os
cabelos flutuando suavemente em torno de seu rosto.
- Tracy! O que está fazendo aqui?
- O que acha que estou fazendo?
Ele percebeu a expressão no rosto dela.
- Ei, espere um pouco! Não pensou que eu fosse fugir de você,
não é mesmo?
- Por que eu pensaria assim?
O tom dela era irónico.
- Deixei um bilhete para você, Tracy. Ia encontrá-la no Savoy
e...
- Claro que ia - disse ela, incisivamente. - Você nunca
desiste, não é mesmo?
Ele fitou-a e nada mais tinha a dizer.
Em sua suíte, no Savoy, Tracy observava atentamente, enquanto
Jeff contava o dinheiro.
- Sua parte dá cento e um mil dólares.
- Obrigada.
O tom dela era gelado.
- Está enganada a meu respeito, Tracy. E gostaria que me,
desse uma chance de explicar. Quer jantar comigo esta noite?
Ela hesitou por um instante depois assentiu.
- Está bem.
- óptimo. Virei buscá-la às oito horas.
Quando Jeff Stevens chegou ao hotel naquela noite e pediu para
falar com Tracy, o recepcionista informou:
- Lamento muito, senhor. A Senhorita Whitney deixou o hotel
esta tarde. E não deixou seu novo endereço.
21
Foi o convite, manuscrito, Tracy concluiu mais tarde, que
mudou sua vida,
Depois que, Jeff Stevens lhe entregou a sua parte do
dinheiro, Tracy deixou, o Savoy e foi para Park Street, 47, um
hotel sossegado, semi-residencial, com quartos grandes e
agradáveis, um serviço impecável.
No seu segundo dia em Londres, o convite foi entregue em sua
Suíte pelo porteiro. Estava escrito numa letra pomposa: "Um
amigo comum sugeriu que poderia ser proveitoso para nós dois
se nos conhecêssemos. Não gostaria de tomar chá comigo esta
tarde, no Ritz, às quatro horas? Se me perdoar o cliché,
estarei usando um cravo vermelho." A assinatura era "'Gunther
Hartog".
Tracy nunca ouvira falar dele. Sua primeira inclinação foi
ignorar o bilhete, mas a curiosidade acabou prevalecendo. às
16:45 estava na entrada do elegante restaurante do Ritz Hotel.
Notou-o imediatamente. Era um homem na casa dos 60 anos,
calculou Tracy, de aparência atraente, um rosto fino,
intelectual. A pele era lisa e clara, quase translúcida.
Vestia um terno cinza de corte perfeito, com um cravo vermelho
na lapela. Quando Tracy se aproximou da mesa, ele levantou-se
e se inclinou ligeiramente.
Obrigado por ter aceito meu convite.
Ele sentou-a com um galanteio antiquado que Tracy achou muito
atraente. Parecia pertencer a outro mundo. Tracy não podia
imaginar o que um homem assim haveria de querer com ela.
- Só vim porque estava curiosa - confessou Tracy. - Mas tem
certeza de que não me confundiu com outra Tracy Whitney?
Gunther Hartog sorriu.
- Pelo que ouvi dizer, só pode existir uma única Tracy
Whitney.
- O que exactamente ouviu?
- Não é melhor conversarmos sobre isso enquanto tomamos o
chá?
O chá consistia de pequenos sanduíches, com ovo picado,
salmão, pepino, agrião e galinha. Havia bolinhos quentes, com
manteiga ou geléia, doces frescos, tudo acompanhado por chá
Twinings. Eles conversaram enquanto comiam.
- Seu bilhete mencionava um amigo comum - comentou Tracy.
- Conrad Morgan. Tive negócios ocasionais com ele.
Fiz negócios com ele uma vez, pensou Tracy, sombriamente . E
ele tentou me passar para trás.
- Ele é um grande admirador seu - acrescentou Gunther Hartog.
Tracy observou mais atentamente o seu anfitrião. Tinha o
porte de um aristocrata e a aparência de riqueza. O que ele
quer comigo?, especulou Tracy novamente. Ela resolveu deixá-lo
continuar, mas não houve menção adicional a Conrad Morgan ou a
qualquer possível beneficio mútuo que pudesse decorrer de uma
ligação entre Gunther Hartog e Tracy Whitney.
Tracy achou o encontro extremamente agradável e absorvente.
Gunther lhe falou a respeito de suas origens.
- Nasci em Munique. Meu pai era um banqueiro, um homem rico.
Infelizmente, cresci um tanto mimado, cercado por belos
quadros e antiguidades. Minha mãe era judia. Quando Hitler
subiu ao poder, meu pai recusou-se a abandoná-la. Por isso,
foi despojado de tudo o que possuía. Ambos morreram nos
bombardeios. Amigos me mandaram às escondidas da Alemanha para
a Suíça. Depois que a guerra terminou, resolvi não voltar à
Alemanha. Vim para Londres e abri uma pequena loja de
antiguidades na Motint Street. Espero que a visite um dia.
Então isso é tudo, pensou Tracy, surpresa. Ele quer me vender
alguma coisa.
Mas ela descobriu que estava enganada.
Enquanto pagava a conta, Gunther Hartog disse, casualmente:
- Tenho uma pequena casa de campo em Hampshire. Receberei
alguns amigos para o fim de semana e ficaria deliciado se
quisesse se juntar a nós.
Tracy hesitou. O homem era um completo estranho e não tinha a
menor idéia do que ele queria dela. Mas acabou chegando à
conclusão que nada tinha a perder.
O fim de semana foi fascinante. A "pequena casa de campo" de
Gunther Hartog era um findo solar do o XVII, numa propriedade
de 30 acres. Gunther era viúvo e vivia sozinho, excepto pelos
criados. Levou Tracy para uma excursão pela propriedade. Havia
um estábulo com meia dúzia de cavalos, uma área em que ele
criava galinhas e porcos.
- Assim, nunca passaremos fome - disse ele, solenemente. -
Mas vou lhe mostrar agora o meu verdadeiro hobby.
Ele conduziu Tracy a um galpão cheio de pombos.
- Estes são pombos-correio. - A voz de Gunther transbordava de
orgulho. - Veja só que belezas! Está vendo aquela cinzenta
ali? É Margo.
Ele pegou a pomba, afagou-a.
- Sabia que você é uma garota terrível? Ela implica com os
outros. Mas é a mais inteligente.
Hartog alisou as penas por cima da cabeça pequena e largou-a
com todo cuidado. As cores dos pombos eram espectaculares.
Havia uma ampla variedade de azul-preto, azul-cinza com
diversos padrões, prateado.
- Mas não há brancos - comentou Tracy.
- Os pombos-correio nunca são brancos - explicou Gunther. -
As penas brancas se soltam facilmente, e quando os pombos
voltam para casa voam a uma velocidade média de 65 quilómetros
horários.
Tracy observou enquanto Gunther alimentava as aves com uma
ração especial de corrida, contendo vitaminas extras.
- Os pombos-correio constituem uma espécie espantosa - disse
Gunther. - Sabia que são capazes de encontrar seu pombal a uma
distância superior a 800 quilómetros?
- Isso é fascinante...
Os outros convidados eram igualmente fascinantes. Havia um
ministro de Estado, com sua esposa; um conde; um general e sua
amante; a Maharani de Morvi, uma jovem muito atraente e
simpática.
- Por favor, chame-me de V. J. - disse ela, numa voz quase
sem sotaque.
Ela usava um sari vermelho, com fios de ouro, as jóias mais
lindas que Tracy já vira.
- Guardo a maioria das minhas jóias num cofre-forte -
explicou V. J. - Há tantos roubos actualmente...
Na tarde de domingo, pouco antes do momento em que Tracy
deveria voltar a Londres, Gunther convidou-a para seu estúdio.
Sentaram-se com uma bandeja de chá entre os dois. Enquanto
servia o chá nas delicadas xícaras Belleek, Tracy disse:
- Não sei por que me convidou para vir aqui, Gunther, mas
qualquer que seja o motivo tive um fim de semana maravilhoso.
- Fico satisfeito por isso, Tracy. - Depois de um momento,
ele acrescentou: - Estive observando-a.
- Entendo...
- Tem planos para o futuro?
Ela hesitou.
- Não. Ainda não decidi o que vou fazer.
- Creio que poderíamos trabalhar muito bem juntos.
- Na loja de antiguidades?
Gunther riu.
- Não, minha cara. Seria uma pena desperdiçar os seus
talentos. Sei de sua aventura com Conrad Morgan. E devo dizer
que controlou tudo de maneira brilhante.
- Gunther... tudo isso pertence ao passado.
- Mas o que tem pela frente? Disse que não fez planos. Deve
pensar em seu futuro. Não importa quanto dinheiro possua
agora, certamente acabará um dia. Estou sugerindo uma
sociedade, Eu frequento círculos influentes, internacionais.
Compareço a bailes de caridade, caçadas e passeios de iate.
Conheço as idas e vindas dos ricos.
- Ainda não entendi o que isso tem a ver comigo...
- Posso introduzi-la nesse círculo dourado. E dourado, Tracy,
no caso, é mesmo por causa do ouro. Posso fornecer informações
sobre jóias fabulosas e quadros extraordinários, como
consegui-los com absoluta segurança. Posso vendê-los
particularmente. Você estaria equilibrando um pouco a situação
de pessoas que enriqueceram demais à custa de outras. Tudo
seria dividido igualmente entre nós. O que me diz?
- Digo que não.
Ele estudou-a com um ar pensativo.
- Entendo. Poderia me procurar, se por acaso mudar de idéia?
- Não mudarei de idéia, Gunther.
Tracy retornou a Londres ao final daquela tarde.
Tracy adorou Londres. Jantou em Le Gavroche, Bill Bentley's e
Coin du Feu, foi ao Drones depois do teatro para comer
autênticos hambúrgueres americanos e chili apimentado. Foi ao
National Theatre e Royal Opera House, compareceu a leilões no
Christie's e Sotheby's. Fez compras na Harrods, Fonnum e
Mason's, folheou livros na Hatchards e Foyles. Alugou um carro
com motorista e passou um fim de semana memorável no Chewton
Glen Hotel, em Hampshire, à beira da New Forest, onde o
cenário era espectacular e o serviço impecável.
Mas todas essas coisas eram caras. Não importa quanto
dinheiro possua agora, certamente acabará um dia. Gunther
Hartog estava certo. Seu dinheiro não duraria para sempre e
Tracy compreendeu que precisaria fazer planos para o futuro.
Ela foi convidada para outros fins de semana na casa de campo
de Gunther, apreciando intensamente cada visita e a companhia
dele.
Um domingo, ao jantar, um membro do Parlamento virou-se para
Tracy e disse:
- Nunca conheci um verdadeiro texano, Senhorita Whitney. Como
eles são?
Tracy se lançou a uma imitação maliciosa de uma matrona
nova-rica do Texas, arrancando risos efusivos de todos. Mais
tarde, quando ficou a sós com ela, Gunther indagou:
- Não gostaria de ganhar uma pequena fortuna fazendo essa
imitação?
- Não sou uma actriz, Gunther.
- Está se subestimando. Há uma joalheria em Londres... Parker
& Parker.., que sentem a maior delícia... como dizem os
americanos... em explorar seus clientes. Você me deu uma idéia
sobre a maneira de fazê-los pagar por sua desonestidade.
Ele expôs a idéia a Tracy, que respondeu no final:
- Não.
Quanto mais pensou a respeito, no entanto, mais se sentiu
atraída. Lembrou-se da emoção de ser mais esperta do que a
polícia em Long Island, de Boris Melnikov, Pietr Negulesco e
Jeff Stevens. Fora uma emoção indescritível. Mesmo assim, isso
era parte do passado.
- Não, Gunther - insistiu ela.
Mas desta vez não havia tanta certeza em sua voz.
Londres estava excepcionalmente quente para outubro e ingleses
e turistas aproveitavam igualmente o sol forte. O tráfego de
meio-dia era intenso, com paralisações em Trafalgar Square,
Charing Cross e Piccadilly Circus. Um Daimler branco saiu da
Oxford Street e entrou na New Bond Street, avançando pelo
tráfego, passando por Roland Cartier, Geigers e Royal Bank of
Scotland. Poucas portas além da Hermes o Daimler parou diante
de uma joalheria. Uma discreta placa polida no lado da porta
anunciava: PARKER & PARKER. Um motorista de libré saltou da
limusine e deu a volta apressadamente para abrir a porta da
passageira. Uma jovem loura, com um excesso de maquilhagem e
um vestido italiano de tricô muito justo, sob o casaco de
zibelina, totalmente impróprio para o tempo, saltou do carro.
- Onde fica a espelunca, júnior? - perguntou ela, em voz
muito alta, com um desagradável sotaque texano.
O motorista indicou a entrada.
- Ali, madame.
- OK, meu bem. Fique esperando. A coisa não vai demorar
muito.
- Talvez eu tenha de dar uma volta pelo quarteirão, madame.
Não me permitirão ficar estacionado aqui.
A mulher deu-lhe um tapinha nas costas.
- Faça o que tiver de fazer, cara.
Cara! O motorista estremeceu. Era sua punição por estar
reduzido a guiar carros de aluguel. Ele detestava todos os
americanos, particularmente os texanos. Eram selvagens... mas
selvagens com dinheiro. Ele ficaria espantado se soubesse que
sua passageira nunca estivera no Texas, o Estado da Estrela
Solitária.
Tracy verificou seu reflexo na vitrine, armou um sorriso e
avançou para a porta, que foi aberta por um empregado
uniformizado.
- Boa tarde, madame.
- Boa tarde, cara. Vende alguma coisa nesta espelunca além de
jóias de fantasia?
Ela riu de sua piada. O porteiro empalideceu. Tracy entrou
pela loja, deixando em sua esteira uma fragância irresistível
de ChIoé. Arthur Chilton, um vendedor de fraque, adiantou-se.
- Posso ajudá-la, madame?
- Talvez sim, talvez não. O velho P. J. disse para eu comprar
um presentinho de aniversário para mim mesma. E aqui estou. O
que tem para me mostrar?
- Madame está interessada em alguma coisa em particular?
- Ei, parceiro, vocês ingleses não perdem tempo, hem? - Ela
riu escandalosamente e bateu em seu ombro. Chilton precisou de
fazer um grande esforço para permanecer impassível. - Talvez
alguma coisa de esmeraldas. O velho P. J. adora quando eu
compro esmeraldas.
- Se quiser me acompanhar, por favor...
Chilton conduziu-a a um mostruário em que havia diversas
bandejas com esmeraldas. A loura oxigenada lançou um olhar
desdenhoso para as pedras.
- Estas são as bebés. Onde estão os papais e mamães?
Chilton, disse, tensamente:
- Estas peças têm um preço que vão até trinta mil dólares.
- Ora, isso eu dou de gorjeta ao meu cabeleireiro. - A mulher
soltou uma risada. - O velho P. J. ficaria insultado se eu
voltasse com uma dessas pedrinhas.
Chilton visualizou o velho P. J. Gordo e barrigudo, tão
escandaloso e repulsivo quanto aquela mulher. Eles bem que se
mereciam. Por que o dinheiro sempre corre para quem não o
merece?
- Em que nível de preço madame está interessada?
- Por que não começamos logo por alguma coisa em torno dos
cem bagarotes?
Ele permaneceu impassível.
- Cem bagarotes?
- Ora essa, pensei que todos vocês falassem a língua do rei.
Cem mil dólares.
Chilton engoliu em seco.
- Nesse caso, talvez seja melhor falar com o nosso
director-executivo.
O director-executivo, Gregory Halston, insistia em cuidar
pessoalmente de todas as vendas grandes. Como os empregados da
Parker & Parker não recebiam comissão, não fazia a menor
diferença para eles. Com uma cliente tão desagradável quanto
aquela, Chilton sentia-se aliviado em passá-la para Halston.
Ele apertou um botão por baixo do balcão e um momento depois
um homem pálido e magro saiu de uma sala nos fundos. Olhou
para a loura vestida tão afrontosamente e rezou para que
nenhum de seus clientes regulares aparecesse até que a mulher
fosse embora. Chilton disse:
- Sr. Halston, esta é a Sra.... ahn...
Ele virou-se para a mulher.
- Benecke, meu bem. Mary Lou Benecke. A esposa do velho P. J.
Benecke. Aposto que todos já ouviram falar de P. J. Benecke.
- Claro.
Gregory Halston concedeu à mulher um sorriso que mal tocava
seus lábios.
- A Sra. Benecke está interessada em comprar uma esmeralda,
Sr. Halston.
Gregory Halston indicou as bandejas de esmeraldas.
- Temos aqui algumas esmeraldas excelentes que...
- Ela queria alguma coisa em torno aproximadamente de cem mil
dólares.
Desta vez o sorriso que iluminou o rosto de Gregory Halston
era genuíno. Uma óptima maneira de começar o dia.
- É o meu aniversário e o velho P. J. quer que eu compre
alguma coisa bem bonita.
- Pois não - disse Halston. - Quer me acompanhar, por favor?
- Ora, seu pequeno patife, o que está pensando em fazer
comigo?
A loura soltou uma risadinha. Halston e Chilton trocaram um
olhar angustiado. Malditos americanos!
Halston conduziu a mulher a uma porta trancada, tirou uma
chave do bolso e abriu-a. Entraram numa sala pequena,
intensamente iluminada. Halston tornou a trancar a porta,
cuidadosamente, explicando:
- É aqui que guardamos as nossas mercadorias para os clientes
mais importantes.
Havia no centro da sala um mostruário com uma colecção
espectacular de diamantes, rubis e esmeraldas, faiscando.
- Assim está melhor. O velho P. J. ficaria doido aqui dentro.
- Madame vê alguma coisa que lhe agrade?
- Vamos ver o que tem aqui . - Ela foi até a caixa contendo
as esmeraldas. - Deixe-me dar uma olhada nestas coisas.
Halston tirou outra chave do bolso, destrancou o mostruário e
tirou uma bandeja com esmeraldas, colocando em cima da mesa.
Havia dez esmeraldas na bandeja de veludo. Halston observava,
enquanto a mulher pegava a maior, um broche requintado,
engastado em platina.
- Como diria o velho P. J., esta aqui tem o meu nome escrito
nela.
- Madame tem excelente gosto. Esta é uma colombiana de dez
quilates, impecável e...
- As esmeraldas nunca são impecáveis.
Halston ficou aturdido por um momento.
- Madame está correcta, é claro. O que eu quis dizer foi...
Pela primeira vez, ele notou que os olhos da mulher eram tão
verdes quanto a pedra que ela virava nas mãos, estudando as
suas facetas.
- Temos uma colecção maior se...
- Não se afobe, queridinho. Ficarei com esta aqui.
A venda levara menos de três minutos.
- Esplêndido! - Uma pausa e Halston acrescentou: - Em
dólares, dá cem mil. Como madame vai pagar?
- Não se preocupe, Halston, doçura. Tenho uma conta em
dólares num banco aqui de Londres. Farei um chequinho pessoal.
P. J. pode me pagar depois.
- Excelente. Mandarei limpar a pedra e depois entregar em seu
hotel.
A pedra não precisava de limpeza, mas Halston não tinha a
menor intenção de entregá-la antes que o cheque fosse
devidamente descontado, pois eram muitos os joalheiros que
haviam sido enganados por vigaristas espertos. Halston
orgulhava-se de jamais ter sido trapaceado em uma libra
sequer.
- Onde devo entregar a esmeralda?
- Estamos na Suíte Oliver Messel, no Dorch.
Halston escreveu uma anotação.
- O Dorchester.
- Eu chamo de Suíte Oliver Bagunça. - Ela riu. - Uma porção
de gente não gosta mais do hotel porque vive cheio de árabes.
Mas o velho P. J. faz uma porção de negócios com eles. "O
petróleo é o seu próprio país", como ele sempre diz. P. J.
Benecke é um cara muito esperto.
- Tenho certeza que sim - respondeu Halston, afavelmente.
Ele observou-a pegar um cheque e começar a preencher. Notou
que era do Barclays Bank. óptimo. Tinha um amigo ali que
poderia verificar a conta dos Beneckes. Halston, pegou o
cheque.
- Mandarei entregar-lhe a esmeralda pessoalmente amanhã de
manhã.
- O velho P. J. vai adorar - comentou a mulher, radiante.
- Não tenho a menor dúvida - comentou Halston, polidamente.
Ele acompanhou-a até à porta da loja.
- Halston...
Ele quase corrigiu-a, mas depois se decidiu contra. Por que
se incomodar? Nunca mais tornaria a ver aquela mulher, graças
a Deus!
- Pois não, madame?
- Tem de aparecer para tomar um chá com a gente um dia
desses. Vai adorar o velho P. J.
- Tenho certeza que sim, madame. Mas, infelizmente, trabalho
durante a tarde.
- É uma pena.
Ele observou a cliente sair para a calçada. Um Daimler branco
parou um momento depois, um motorista saltou e abriu a porta.
A loura fez um sinal com o polegar para cima na direcção de
Halston, enquanto o carro se afastava.
Halston voltou à sua sala, pegou o telefone e ligou para seu
amigo no Barclays:
- Peter, meu caro, tenho aqui um cheque de cem mil dólares de
uma certa Sra. Mary Lou Benecke. É bom?
- Espere um instante, meu velho.
Halston esperou. Contava que o cheque fosse bom, pois os
negócios andavam meio parados ultimamente. Os sovinas irmãos
Parker, que possuíam a loja, viviam constantemente reclamando,
como se fosse ele o responsável e não a recessão. É claro que
os lucros não haviam caído tanto quanto poderiam, pois Parker
& Parker tinha um departamento que se especializava na limpeza
de jóias; a intervalos frequentes, a jóia devolvida ao cliente
era inferior à que fora recebida. Já houvera queixas, mas nada
fora provado. Peter voltou ao telefone:
- Não há problema, Gregory. Tem dinheiro mais do que
suficiente na conta para cobrir o cheque.
Halston sentiu um tremor de alívio.
- Obrigado, Peter.
- Não há de quê.
- Vamos almoçar juntos na próxima semana... por minha conta.
O cheque foi compensado sem problemas na manhã seguinte, e a
esmeralda colombiana foi entregue por um mensageiro de
confiança à Sra. P. J. Benecke, no Dorchester Hotel.
Naquela tarde, pouco antes da hora de fechar, a secretária de
Gregory Halston informou-o:
- Uma certa Sra. Benecke está aqui e deseja lhe falar, Sr.
Halston.
Ele sentiu um aperto no coração. Ela viera devolver o broche
e ele não podia se recusar a aceitá-la. Malditas sejam as
mulheres, todos os americanos e todos os texanos! Halston
afixou um sorriso e saiu para cumprimentá-la.
- Boa tarde, Sra. Benecke. Presumo que seu marido não gostou
do broche.
Ela sorriu.
- Pois presumiu errado, meu chapa. O velho P. J. ficou
louquinho pela pedra.
O coração de Halston se encheu de alegria.
- É mesmo?
- Para dizer a verdade, ele gostou tanto que quer que eu
arrume outra esmeralda igual, para fazer um par de brincos.
Arrume uma pedra gémea da que me vendeu.
Um pequeno franzido apareceu no rosto de Gregory Halston.
- Infelizmente, Sra. Benecke, talvez haja um pequeno problema.
- Que tipo de problema, doçura?
- A sua pedra é única. Não há outra Igual. Mas tenho um jogo
maravilhoso, num estilo diferente, que poderia...
- Não quero um estilo diferente. Quero uma pedra igualzinha à
que comprei.
- Para ser absolutamente franco, Sra. Benecke, não há muitas
pedras colombianas de dez quilates impecáveis.. . - Ele
percebeu a expressão no rosto da mulher. - ... quase
impecáveis disponíveis.
- Ora, cara, deixe disso. Tem de haver outra pedra em algum
lugar.
- Com toda honestidade, só encontrei bem poucas pedras dessa
qualidade e tentar duplicá-la exactamente, no formato e na
cor, seria quase impossível.
- Temos um ditado no Texas de que o impossível só demora um
pouco mais. Sábado é meu aniversário e P. J. me quer ver com
os brincos. E o que P. J. quer, P. J. consegue.
- Creio que não é possível...
- Quanto paguei pelo broche... cem mil? Sei que o velho P. J.
está disposto a pagar duzentos mil ou até trezentos mil pela
outra pedra.
Gregory Halston pensava depressa. Tinha de haver uma
duplicação daquela pedra em algum lugar. Se P. J. Benecke
estava disposto a pagar 200 mil dólares extras, isso
representaria um lucro apreciável. Na verdade, pensou Halston,
posso dar um jeito para que represente um lucro apreciável
para mim. Em voz alta, ele disse:
- Farei algumas indagações, Sra. Benecke. Tenho certeza de
que nenhum outro joalheiro de Londres possui uma esmeralda
idêntica, mas sempre há colecções sendo leiloadas. Veremos se
obtemos resultados.
- Tem até o fim da semana para conseguir - advertiu a loura. -
E aqui entre nós e o lampião, o velho P. J. provavelmente
estará disposto a pagar até trezentos e cinquenta mil.
E a Sra. Benecke se foi, o casaco de zibelina esvoaçando em
sua esteira.
Gregory Halston ficou sentado em sua sala, imerso em devaneio.
O destino jogara em suas mãos um homem tão apaixonado por sua
sirigaita loura que se mostrava disposto a pagar 350 mil
dólares por uma esmeralda que valia cem mil. O que daria um
lucro liquido de 250 mil dólares. Gregory Halston não via
necessidade de sobrecarregar os irmãos Parker com os detalhes
da transação. Seria muito simples registrar a venda da segunda
esmeralda por cem mil dólares e embolsar o resto. Os 250 mil
dólares extras seriam uma garantia pelo resto de sua vida.
Tudo o que tinha de fazer agora era descobrir uma esmeralda
igual à que vendera à Sra. P. J. Benecke.
Só que isso se tornou muito mais difícil do que Halston
previra. Nenhum dos joalheiros para os quais telefonou tinha
em estoque uma pedra que sequer parecesse com a que precisava.
Ele pôs anúncios no Times de Londres e no Financial Times,
entrou em contacto com a Christie's e Sotheby's, com uma dúzia
de outros leiloeiros. Nos dias subsequentes ofereceram a
Halston incontáveis esmeraldas inferiores, boas esmeraldas e
umas poucas esmeraldas de primeira qualidade, mas nenhuma se
aproximava da que estava procurando. A Sra. Benecke
telefonou-lhe na quarta-feira e avisou:
- O velho P. J. está ficando impaciente. Ainda não descobriu a
pedra?
- Ainda não, Sra. Benecke. Mas não se preocupe. Acabaremos
encontrando.
Ela tornou a telefonar na sexta-feira:
- Amanhã é o meu aniversário.
- Sei disso, Sra. Benecke. Se me desse mais alguns dias,
tenho certeza que poderia...
- Não se preocupe com isso, doçura. Se não tiver a outra
esmeralda até amanhã de manhã, devolverei a que comprei. O
velho P. J. ... abençoado seja o seu coração... diz que vai me
comprar em vez disso uma velha propriedade rural. Já ouviu
falar de um lugar chamado Sussex?
Halston começou a suar.
- Detestaria viver em Sussex, Sra. Benecke. Detestaria uma
dessas velhas mansões rurais. Quase todas se encontram em
estado deplorável. Não possuem aquecimento central e...
Ela interrompeu-o:
- Aqui entre nós, eu preferia ficar com os brincos. O velho
P. J. até mencionou alguma coisa sobre pagar quatrocentos mil
dólares por uma gémea daquela esmeralda. Não faz idéia de como
o velho P. J. pode ser teimoso.
Quatrocentos mil dólares! Halston podia sentir o dinheiro
escapulindo entre seus dedos.
- Pode estar certa de que estou fazendo tudo o que é possível
- suplicou ele. - Dê-me um pouco mais de tempo.
- Isso não compete a mim, doçura. O problema é com P. J.
E a linha ficou muda.
Halston continuou sentado, amaldiçoando o destino. Onde
poderia encontrar uma esmeralda de dez quilates idêntica? Ele
estava tão absorvido em seus pensamentos amargurados que não
ouviu a campainha do interfone até o terceiro toque. Apertou o
botão e disse bruscamente:
- O que é?
- Há uma certa Condessa Marissa no telefone, Sr. Halston. Quer
falar sobre o nosso anúncio da esmeralda.
Mais uma! Ele já recebera pelo menos dez telefonemas naquela
manhã e todos haviam sido uma perda de tempo. Ele pegou o
telefone e disse rudemente:
- Pois não?
Uma voz feminina suave disse, com um sotaque italiano:
- Buon giorno, signore. Li que está interessado em comprar uma
esmeralda. E verdade?
- Se corresponde às minhas exigências, é, sim.
Ele não podia esconder a impaciência de sua voz.
- Tenho uma esmeralda que pertence à minha família há muitos
anos. É um peccato... uma pena... mas me encontro agora numa
situação em que sou obrigada a vendê-la.
Ele já ouvira aquela história antes. Devo tentar o Christie's
novamente, pensou Halston. Ou o Sotheby's. Talvez alguma coisa
tenha aparecido no último momento ou...
- Signore? Está procurando por uma esmeralda de dez quilates,
si?
- Exactamente.
- Tenho uma verde de dez quilates... colombiana.
Quando começou a falar, Halston descobriu que sua voz estava
estrangulada:
- Pode... pode dizer isso de novo, por favor?
- Si. Tenho uma verde colombiana de dez quilates. Estaria
interessado?
- Posso estar - disse Halston, cuidadosamente. - Poderia
passar por aqui para eu dar uma olhada na pedra?
- Não, scusi, mas infelizmente me encontro muito ocupada
neste momento. Estamos preparando uma festa na embaixada para
meu marido. Talvez na próxima semana eu poderia...
Não! Na próxima semana seria tarde demais.
- Posso então ir procurá-la? - Halston tentou eliminar a
ansiedade de sua voz. - Posso ir agora mesmo.
- Ma, no. Sono occupata stamani. Planejei sair para fazer
algumas compras e...
- Onde está hospedada, condessa?
- No Savoy.
- Posso estar aí dentro de quinze minutos. Dez.
A voz de Halston era quase desesperada
- Molto bene. E seu nome é...
- Halston... Gregory Halston.
- Suíte ventisei... vinte e seis.
A corrida de táxi foi interminável. Halston passou das
culminâncias do paraíso para as profundezas do inferno e
tornou a voltar. Se a esmeralda fosse realmente similar à
outra, ele seria rico além de seus sonhos mais desvairados.
Ele pagará 400 mil dólares! Um lucro de 300 mil. Compraria uma
propriedade na Riviera, talvez um iate. Com uma villa e seu
próprio barco, poderia a tantos rapazes bonitos quanto
quisesse...
Gregory Halston era ateu, mas ao seguir pelo corredor do
Savoy Hotel para a Suíte 26 descobriu-se a rezar: Faça com que
a pedra seja bastante parecida para satisfazer o velho P. J.
Benecke.
Ele parou diante da porta da condessa, respirando fundo,
lutando para se controlar. Bateu na porta. Não houve resposta.
Oh, Deus, pensou Halston, ela não esperou por mim. Saiu para
fazer compras e...
A porta se abriu e Halston descobriu-se na frente de uma
mulher elegante, na casa dos 50 anos, olhos escuros, um rosto
vincado, cabelos pretos com muitos fios brancos. Quando ela
falou, a voz era suave, com o familiar sotaque italiano
melodioso:
- Si?
- Sou Gre-gregory Halston. Re-recebi seu telefonema.
Em seu nervosismo, ele estava gaguejando.
- Ah, si. Sou a Condessa Marissa. Entre, signore, per favore.
- Obrigado.
Halston entrou na Suíte, comprimindo os joelhos juntos, para
impedir que tremessem. Quase que disse impulsivamente: "Onde
está a esmeralda?" Mas sabia que devia se controlar. Não era
conveniente que parecesse muito ansioso. Se a pedra fosse
satisfatória, teria a vantagem na negociação. Afinal, ele era
o perito, enquanto a mulher não passava de uma amadora.
- Sente-se, por favor - disse a condessa.
Ele ocupou uma cadeira.
- Scusi. Non parlo molto bene inglese. Não falo muito bem o
inglês.
- Não, não. É encantador, encantador...
- Grazie. Aceita um café? Chá?
- Não, obrigado, condessa.
Halston podia sentir o estômago se contraindo. Seria cedo
demais para falar da esmeralda? Mas não podia esperar por mais
um segundo sequer.
- A esmeralda...
- Ah, si... A esmeralda me foi dada por minha avó. Eu gostaria
de dá-la à minha filha quando completasse vinte e cinco anos,
mas meu marido está iniciando um novo negócio em Milão e...
A mente de Halston estava em outras coisas. Não se
interessava pela tediosa história da vida da estranha sentada
à sua frente. Sentia-se ansioso em ver a esmeralda. O suspense
era mais do que podia suportar.
- Credo che sia importante ajudar meu marido a iniciar seu
novo negócio. - Ela sorriu tristemente. - Talvez eu esteja
cometendo um erro...
- Não, não - Halston apressou-se em dizer. - Absolutamente,
condessa. O dever de uma esposa é ficar ao lado de seu marido.
Onde se encontra a esmeralda?
- Está aqui.
Ela meteu a mão no bolso e tirou uma jóia, envolta em papel
de seda, estendendo para Halston. Ele contemplou-a e seu
coração se reanimou. Olhava agora para a mais perfeita
esmeralda colombiana de dez quilates que já vira. Era tão
próxima, na aparência, tamanho e cor, da que vendera à Sra.
Benecke que era quase impossível distinguir uma da outra. Não
é exactamente a mesma coisa, disse Halston a si mesmo, mas
somente um perito poderia reconhecer a diferença.
Ele virou a pedra, deixando a luz incidir sobre as facetas,
depois disse em tom de quase desinteresse:
- É uma pedra bastante bonita.
- Spiendente, si. Eu a tenho amado muito por todos estes
anos. Detestarei me separar dela.
- Está fazendo a coisa certa - assegurou-lhe Halston. - Assim
que o empreendimento de seu marido começar a dar bons
resultados, poderá comprar tantas pedras assim quantas
desejar.
A condessa suspirou.
- É exactamente o que eu penso. Você é molto simpático.
- Estou prestando um pequeno serviço a um amigo, contessa.
Temos pedras muito melhores do que esta em nossa loja, mas meu
amigo quer uma que combine exactamente com a esmeralda que
comprou para a esposa. Calculo que ele estaria disposto a
pagar até sessenta mil dólares por esta pedra.
- Minha avó me amaldiçoaria da sepultura se eu vendesse sua
esmeralda por sessenta mil dólares.
Halston contraiu os lábios. Tinha margem para subir o preço.
Ele sorriu.
- Vamos fazer uma coisa... acho que posso persuadir meu amigo
a subir até cem mil dólares. É muito dinheiro, mas ele está
ansioso em obter a pedra.
- Parece um bom preço.
O coração de Gregory Halston inflou dentro do peito.
- Bem! Eu trouxe o talão de cheques. Assim, farei um cheque
agora mesmo...
- Ma, no... Infelizmente, isso não resolverá o problema.
A voz da condessa era triste. Halston ficou aturdido.
- O problema?
- Si. Como expliquei, meu marido vai se lançar em um novo
negócio e precisa de trezentos e cinquenta mil dólares. Eu
tenho cem mil dólares do meu dinheiro para lhe dar, mas
preciso de mais duzentos e cinquenta mil. Esperava
conseguirxxxxx isso com a esmeralda.
Ele sacudiu a cabeça.
- Minha cara condessa, nenhuma esmeralda no mundo vale tanto
dinheiro. Acredite em mim, cem mil dólares é mais do que uma
oferta justa.
- Tenho certeza disso, Sr. Halston. Mas não poderei ajudar
meu marido, não é mesmo? - A condessa levantou-se . -
Guardarei a esmeralda para a nossa filha.
Ela estendeu a mão esguia e delicada.
- Grazie, signore. Obrigada por ter vindo.
Halston entrou em pânico.
- Espere um momento. - Sua ganância duelava com o bom senso,
mas ele sabia que não devia perder aquela esmeralda agora. -
Sente-se, por favor, condessa. Tenho certeza de que podemos
chegar a um acordo justo . Se eu puder persuadir meu cliente a
pagar cento e cinquenta mil...
- Eu só venderia por duzentos e cinquenta mil...
- Que tal duzentos mil?
- Só duzentos e cinquenta mil dólares.
Não havia como demovê-la. Halston tomou sua decisão. Um lucro
de 150 mil dólares era melhor do que nada. Significaria uma
villa e um barco menores, mas ainda era uma fortuna. E seria
bem feito para os irmãos Parker pela maneira mesquinha como o
haviam tratado. Esperaria um dia ou dois e depois lhes daria o
aviso prévio. E na próxima semana estaria na Côte d'Azur.
- Negócio fechado - disse ele finalmente.
- Meraviglioso! Sono contenta!
Deve mesmo estar contente, sua cadela, pensou Halston. Mas ele
nada tinha do que se queixar. Estava com a vida feita. Lançou
um último olhar para a esmeralda e depois guardou-a no bolso.
- Eu lhe darei um cheque da conta da loja.
- Bene, signore...
Halston, preencheu o cheque e entregou-o. Faria a Sra. P. J.
Benecke pagar 400 mil dólares pela esmeralda. Peter
descontaria o cheque para ele, cobriria o cheque dos irmãos
Parker que dera à condessa e embolsaria a diferença.
Combinaria com Peter para que o cheque de 250 mil dólares não
constasse do extracto mensal dos irmãos Parker. Eram 150 mil
dólares!
Ele já podia sentir o quente sol francês em seu rosto.
A viagem de táxi de volta à loja pareceu demorar apenas uns
poucos segundos. Halston imaginou a felicidade da Sra. Benecke
quando lhe transmitisse a boa notícia. Não apenas encontrara a
jóia que ela queria, mas também lhe poupara a experiência
dolorosa de viver numa casa de campo desmantelada e cheia de
correntes de ar. Assim que Halston entrou na loja, Chilton
aproximou-se e disse:
- Senhor, um cliente aqui está interessado em...
Halston dispensou-o com um aceno jovial.
- Mais tarde.
Ele não tinha tempo para os clientes agora. Nem agora nem
nunca mais. Dali por diante, as pessoas teriam de servir a
ele. Faria compras na Hermes, Gueci e Lanvin.
Halston foi para a sua sala, fechou a porta, pôs a esmeralda
em cima da mesa e discou um número. A telefonista atendeu:
- Dorchester Hotel.
- Suíte Oliver Messel, por favor.
- Com quem deseja falar?
- Sra P. J. Benecke.
- Um momento, por favor.
Halston ficou assobiando baixinho enquanto esperava. A
telefonista voltou à linha:
- Lamento, mas a Sra. Benecke já deixou a suíte.
- Pois então ligue-me para a Suíte em que ela está agora.
- A Sra. Benecke deixou o hotel.
- Mas isso é impossível. Ela...
- Vou ligá-lo com a recepção.
Uma voz de homem disse:
- Recepção. Em que posso servi-lo?
- Qual é a suíte em que está a Sra. Benecke?
- A Sra. Benecke deixou o hotel esta manhã.
Tinha de haver alguma explicação. Alguma emergência
inesperada.
- Pode me informar o endereço que ela deixou, por favor? Aqui
é...
- Lamento, mas ela não deixou qualquer endereço.
- Mas é claro que ela deixou!
- Fiz pessoalmente o registro de saída da Sra. Benecke. Ela
não deixou qualquer endereço.
Foi um murro na boca do estômago. Lentamente, Halston repôs o
telefone no gancho e ficou imóvel na cadeira, atordoado. Tinha
de encontrar um meio de entrar em contacto com a mulher,
informá-la que conseguira finalmente localizar a esmeralda.
Enquanto isso, tinha de recuperar o cheque de 250 mil dólares
que entregara à Condessa Marissa. Ele discou prontamente para
o Savoy Hotel.
- Suíte 26.
- Com quem deseja falar, por favor?
- Condessa Marissa.
- Um momento, por favor.
Mas, antes mesmo que a telefonista voltasse à linha, alguma
terrível premonição revelou a Gregory Halston, a notícia
desastrosa que estava prestes a ouvir.
- Lamento muito, mas a Condessa Marissa. já saiu do hotel.
Ele desligou. Os dedos tremiam tanto que mal conseguiu discar
o número do banco.
- Dê-me o chefe dos caixas... depressa! Eu gostaria de
suspender o pagamento de um cheque.
Mas é claro que ele estava atrasado demais. Vendera uma
esmeralda por cem mil dólares e comprara de volta a mesma
esmeralda por 250 mil dólares. Gregory Halston continuou
sentado, arriado na cadeira, imaginando como iria explicar aos
irmãos Parker.
22
Foi o início de uma vida nova para Tracy. Ela comprou uma
linda casa georgiana, na Eaton Square, 45, esplêndida e
alegre, perfeita para receber. Tinha um Queen Anne - o jargão
britânico para designar um jardim na frente - e um Mary Anne -
um jardim nos fundos - magníficos quando chegava a primavera.
Gunther ajudou Tracy a decorar a casa e antes que os dois
acabassem já era um dos lugares de destaque de Londres.
Gunther apresentava Tracy como uma jovem viúva rica, cujo
marido ganhara sua fortuna em operações de importaçào e
exportação. Ela foi um sucesso instantâneo: bonita,
inteligente e charmosa, logo se viu inundada de convites.
A intervalos, Tracy realizava pequenas viagens à Suíça,
Bélgica, Itália e França, a cada vez obtendo novos lucros para
ela e Gunther Hartog.
Sob a orientação de Gunther, Tracy estudou o Almanach de
Gotha e o Debrett's Peerage and Baronetage, os livros mais
autorizados com informações detalhadas sobre a realeza e
títulos da Europa. Tracy tornou-se como um camaleão, uma
perita em maquilhagem, disfarces e sotaques. Adquiriu meia
dúzia de passaportes. Em vários países, era uma duquesa
britânica, uma aeromoça francesa e uma herdeira sul-americana.
Em um ano, acumulara mais dinheiro do que jamais precisaria.
Instituiu um fundo, que fazia contribuições vultosas e
anónimas a organizações empenhadas em ajudar as mulheres que
haviam passado pela prisão. Providenciou uma pensão generosa a
ser enviada todos os meses a Otto Schmidt. Não mais sequer
acalentava o pensamento de deixar aquela vida. Adorava o
desafio de sobrepujar pessoas espertas e bem-sucedidas. A
emoção de cada aventura ousada agia como um tóxico. Tracy
descobriu que constantemente precisava de novos e maiores
desafios. Havia um credo pelo qual vivia: sempre tomava o
cuidado de não prejudicar os inocentes. As pessoas que caíam
em seus golpes eram gananciosas ou imorais, se não as duas
coisas. Ninguém jamais cometerá suicídio por causa de um ato
meu, prometeu Tracy a si mesma.
Os jornais começaram a publicar notícias sobre os golpes
audaciosos que ocorriam por toda a Europa. Como Tracy usava
disfarces diferentes, a polícia ficara convencido de que uma
erupção de golpes e assaltos engenhosos estava sendo promovida
por uma quadrilha de mulheres. A Interpol começou a se
interessar.
Em Manhattan, na sede da Associação Internacional de Protecção
do Seguro, J. J. Reynolds mandou chamar Daniel Cooper.
- Temos um problema - disse Reynolds. - Muitos dos nossos
clientes europeus estão sendo gravemente atingidos...
aparentemente por uma quadrilha de mulheres. Todos estão
furiosos. Querem que a quadrilha seja desbaratada. A Interpol
já concordou em cooperar connosco. A missão é sua, Dan. Você
parte rumo a Paris pela manhà.
Tracy estava jantando com Gunther no Scott's, na Mount Street.
- Já ouviu falar de Maximilian Pierpont, Tracy?
O nome parecia familiar. Onde ela o ouvira antes? Lembrou de
repente. Jeff Stevens, a bordo do Queen Elizabeth II, dissera:
"Estamos aqui pelo mesmo motivo. Maximilian Pierpont."
Ela disse:
- Ele é muito rico, não é mesmo?
- E absolutamente implacável. Especializa-se em comprar
companhias e saqueá-las.
Quando Joe Romano assumiu a companhia, despediu todo mundo e
trouxe o seu próprio pessoal. E começaram a saquear a
companhia. Tiraram tudo - a companhia, esta casa, o carro de
sua màe...
Gunther observava com estranheza:
- Você está bem, Tracy?
- Estou, sim. - A vida pode às vezes ser injusta e compete a
nós endireitar as coisas - pensou ela. - Fale-me mais a
respeito de Maximilian Pierpont.
- A terceira esposa divorciou-se e ele está sozinho agora.
Acho que poderia ser proveitoso se você o conhecesse. Ele tem
uma reserva no Expresso do Oriente de sexta-feira, partindo de
Londres para Istambul.
Tracy sorriu.
- Nunca viajei no Expresso do Oriente. Acho que vou gostar.
Gunther sorriu também.
- Óptimo. Maximilian Pierpont possui a única colecção de ovos
Fabergé importante fora do Museu Hermitage, de Leningrado. Um
cálculo moderado lhe atribui o valor de vinte milhões de
dólares.
- Se eu conseguisse lhe arrumar alguns desses ovos, Gunther,
o que faria com eles? - indagou Tracy, curiosa. - Não são
conhecidos demais para vendê-los?
- Coleccionadores particulares, minha cara Tracy. Traga os
ovinhos para mim e conseguirei encontrar-lhes um ninho.
- Verei o que posso fazer.
- Maximilian Pierpont não é um homem fácil de abordar.
Contudo, há dois outros alvos que também viajarão no Expresso
do Oriente, a caminho do festival de cinema em Veneza. Creio
que estão maduros para serem depenados. Já ouviu falar de
Silvana Luadi?
- A actriz de cinema italiana? Claro.
- Ela é casada com Alberto Fornati, que produz aqueles
horríveis filmes épicos. Fornati é infame por contratar
actores e directores por pouco dinheiro, mas prometendo
participação nos lucros. Contudo ele sempre dá um jeito de
açambarcar todos os lucros. E ganha o suficiente para comprar
as jóias mais caras para a esposa. Quanto mais lhe é infiel,
mais jóias para ela Fornati compra. A esta altura, Silvana já
deve estar em condições de abrir uma joalheria. Tenho certeza
de que os achará uma companhia muito interessante.
- Estou ansiosa em conhecê-los.
O Expresso do Oriente Veneza Simplon parte da Victoria
Station, em Londres, toda manhà de sexta-feira, às 11 e 44,
seguindo de Londres para Istambul, com escalas em Boulogne,
Paris, Lausanne, Milão e Veneza. Meia hora antes da partida,
uma roleta portátil é armada à entrada da plataforma de
embarque no terminal, dois corpulentos homens uniformizados
estendem um tapete vermelho, empurrando para o lado os outros
passageiros à espera.
Os novos proprietários do Expresso do Oriente tentaram
reconstituir a época áurea da viagem ferroviária, conforme
ocorria ao final do século XIX. O trem era uma réplica do
original, com um vagão Puliman britânico, vagões-restaurantes,
um bar e os vagões-dormitórios.
Um atendente com um uniforme azul-marinho da década de 20,
com alamares dourados, levou as duas malas de Tracy e a sua
frasqueira para a cabina, que era desapontadoramente pequena.
Havia uma única poltrona, estofada em mohair, num padrão
florido. O tapete, assim como a escada para se subir ao
beliche, era coberto por pelúcia verde. Era como estar numa
caixa de bombons.
Tracy leu o cartão que acompanhava a garrafa de champanha num
balde de prata: OLIVER AUBERT, GERENTE DO TREM.
Guardarei o champanha até ter alguma coisa para comemorar,
decidiu Tracy. Maximilian Pierpont. Jeff Stevens fracassara.
Seria maravilhoso superar o Sr. Stevens. Tracy sorriu ao
pensar nisso.
Ela desfez as malas no espaço apertado, pendurou as roupas
que precisaria. Preferia um jacto da Pan American ao trem, mas
aquela viagem prometia ser das mais emocionantes.
Pontualmente no horário, o Expresso do Oriente começou a
deixar a estação. Tracy sentou-se e ficou observando a
passagem dos subúrbios meridionais de Londres.
A 1 e 15 da tarde o trem chegou ao porto de Folkestone, onde
os passageiros foram transferidos para a barca Sealink, que os
levaria através do Canal da Mancha até Boulogne, onde
embarcariam em outro Expresso do Oriente, seguindo para o sul.
Tracy aproximou-se de um dos camareiros:
- Soube que Maximilian Pierpont está viajando connosco.
Poderia apontá-lo para mim?
O camareiro sacudiu a cabeça.
- Eu bem que gostaria, madame. Ele reservou uma cabina e
pagou, mas nunca apareceu. Pelo que me disseram, trata-se de
um cavalheiro bastante imprevisível.
Assim, restavam Silvana Luadi e seu marido, o produtor de
esquecíveis.
Em Boulogne, os passageiros foram conduzidos ao Expresso do
Oriente continental. Infelizmente, a cabina de Tracy no
segundo trem era idêntica à outra que acabara de deixar, o
leito irregular da estrada tornando a viagem ainda mais
desconfortável. Ela permaneceu na cabina durante o dia
inteiro, fazendo planos. às oito horas da noite começou a se
vestir.
A etiqueta do Expresso do Oriente recomendava traje a rigor.
Tracy escolheu um deslumbrante vestido cinza-claro de chiffon,
com sapatos de cetim da mesma cor. A única jóia era uma
magnífica fieira de pérolas iguais. Ela parou diante do
espelho antes de deixar a cabina, contemplando a sua imagem
por um longo tempo. Os olhos verdes tinham uma expressão de
inocência, o rosto parecia ingénuo e vulnerável. O espelho
está mentindo, pensou Tracy. Não sou mais essa mulher. Vivo
uma fantasia. Só que das mais emocionantes.
No instante em que Tracy deixou a cabina, a bolsa escorregou
de sua mão. Ela ajoelhou-se para recuperá-la e aproveitou para
examinar rapidamente as fechaduras pelo lado de fora da porta.
Havia duas, uma vale e uma Universal. Não serão problemas.
Tracy levantou-se e seguiu para os vagões-restaurantes.
Havia três. Os assentos eram forrados de pelúcia, as paredes
envernizadas, luzes suaves brilhando em candelabros de latão,
com anteparos Lalique. Tracy entrou no primeiro restaurante e
notou que, havia diversas mesas vazias. O garçon
cumprimentou-a.
- Uma mesa só para uma pessoa, mademoiselle?
Tracy olhou ao redor.
- Vou me encontrar com alguns amigos. Mas obrigada.
Ela continuou para o vagão-restaurante seguinte. Este estava
mais cheio, mas ainda havia diversas mesas vazias.
- Boa noite - disse o garçon. - Vai jantar sozinha?
- Não. Vou encontrar com alguém. Obrigada.
Tracy deslocou-se para o terceiro vagão-restaurante. Ali,
todas as mesas se achavam ocupadas. O garçon deteve-a na
porta.
- Infelizmente, terá de esperar por uma mesa, madame. Mas há
algumas disponíveis nos outros carros.
Tracy correu os olhos pelo vagão e avistou o que procurava
numa mesa no outro canto.
- Não se preocupe - disse ela. - Estou vendo alguns amigos.
Ela passou pelo garçon e se encaminhou para o objectivo.
- Com licença. Todas as mesas estão ocupadas. Importam-se que
eu me sente aqui?
O homem levantou-se no mesmo instante, lançou um olhar
apreciativo para Tracy e exclamou:
- Prego! Com piacere! Sou Alberto Fornati e esta é minha
esposa, Silvana Luadi.
- Tracy Whitney.
Ela estava usando o seu próprio passaporte.
- Olá, é americana! Falo um excelente inglês.
Alberto Fornati era baixo, calvo e gordo. Por que motivo
Silvana Luadi casara com ele era um tema de animadas conversas
em Roma durante os 12 anos em que viviam juntos. Silvana Luadi
era uma beleza clássica, com um corpo sensacional e um talento
natural e irresistível. Ganhara um Oscar e uma Palma de Prata,
constantemente era solicitada para novos filmes. Tracy
reconheceu que ela vestia um Valentino, que valia pelo menos
cinco mil dólares. As jóias que ostentava deviam valer quase
um milhão. Tracy lembrou-se das palavras de Gunther Hartog:
Quanto mais lhe é infiel, mais Fornati compra jóias para ela.
A esta altura, Silvana já deve estar em condições de abrir uma
joalharia.
- Esta é a sua primeira viagem no Expresso do Oriente,
signorina? - perguntou Fornati, puxando conversa, depois que,
Tracy sentou.
- É, sim.
- Trata-se de um trem muito romântico, cheio de histórias. -
Os olhos de Fornati estavam úmidos. - E histórias muito
interessantes. Sir Basil Zaharoff, o magnata das armas, por
exemplo, costumava viajar no velho Expresso do Oriente...
sempre na sétima cabina. Uma noite ouviu um grito e uma batida
em sua porta. E uma linda duquesa espanhola jogou-se em cima
dele.
Ele fez uma pausa, passando manteiga num pãozinho e comendo.
- O marido estava tentando assassiná-la. O casamento fora
promovido pelos pais e só então a pobre moça descobria que o
marido era insano. Zaharoff conteve o marido, acalmou a jovem
histórica. Assim começou um romance que durou quarenta anos.
- Emocionante! - murmurou Tracy, os olhos arregalados de
interesse.
- Sim. Depois disso, eles se encontravam no Expresso do
Oriente, Zaharoff na cabina sete, ela na oito. Quando o marido
morreu, a duquesa casou com Zaharoff. Como símbolo de seu amor
e um presente de casamento, Zaharoff comprou para ela o casino
de Monte Carlo.
- Uma linda história, Sr. Fornati.
Silvana Luadi se mantinha num silêncio impassível.
- Mangia - recomendou Fornati a Tracy. - Coma.
O cardápio consistia de seis pratos. Tracy notou que Alberto
Fornati comia cada um e ainda terminava o que a esposa deixava
no prato. Entre os bocados, ele falava sem parar.
- Por acaso é actriz? - ele perguntou a Tracy.
Ela riu.
- Oh, não! Sou apenas uma turista.
Ele contemplou-a com uma expressão radiante.
- Pois é bastante bonita para ser uma actriz.
- Ela já disse que não é uma actriz - interveio Silvana,
bruscamente.
Alberto Fornati ignorou-a e disse a Tracy:
- Sou produtor de filmes. E tenho certeza que os conhece. Os
Selvagens, Os Titàs Contra a Supermulher...
- Quase não vou ao cinema - desculpou-se Tracy, sentindo a
perna gorda de Fornati a comprimir-se contra a sua.
- Talvez eu possa dar um jeito para lhe mostrar alguns dos
meus filmes.
Silvana ficou pálida de raiva.
- Já esteve alguma vez em Roma, minha cara? - indagou
Fornati, subindo e descendo a perna pela de Tracy.
- Para dizer a verdade, eu planeava ir a Roma depois de
Veneza.
- Esplêndido! Benissimo! Vamos nos encontrar todos para
jantar. Não é mesmo, cara mia? - Ele lançou um olhar rápido
para Silvana, antes de continuar: - Temos uma residência
espectacular na Via Apia. Dez acres de...
- Ele fez um gesto amplo com a mão, derrubando uma tigela de
molho no colo da esposa. Tracy não pôde determinar se fora ou
não um acidente. Silvana Luadi levantou-se, olhando para a
mancha a se espalhar em seu vestido.
- Sei un mascalzone! - gritou ela. - Tieni le tue puttane
lontano da me!
Ela saiu furiosa do vagão-restaurante, acompanhada por todos
os olhos.
- Mas que pena! - murmurou Tracy. - É um vestido tão
bonito...
Ela tinha vontade de esbofetear o homem por aviltar a esposa
daquela maneira. Ela merece cada quilate de jóia que ganha,
pensou Tracy. E muito mais. Fornati suspirou.
- Fornati comprará outro vestido para ela. E não dê
importância a suas maneiras. Ela tem muito ciúme de Fornati.
- Tenho certeza que ela tem bom motivo para isso.
Tracy disfarçou a ironia com um pequeno sorriso. Fornati
sentiu-se envaidecido.
- Tem razão. As mulheres acham Fornati muito atraente.
Tracy teve de fazer um grande esforço para não desatar a rir
do pomposo homenzinho.
- O que posso perfeitamente compreender.
Ele inclinou-se por cima da mesa e pegou-lhe a mão.
- Fornati gosta de você. Fornati gosta muito de você. O que
faz para ganhar a vida?
- Sou uma secretária-executiva. E poupei todo o meu dinheiro
para esta viagem. Espero conseguir um bom emprego na Europa.
Os olhos esbugalhados de Fornati percorreram o corpo de
Tracy.
- Fornati lhe promete que não terá qualquer problema. Ele
trata muito bem as pessoas que o tratam bem.
- É um homem muito generoso - disse Tracy, timidamente.
Ele baixou a voz para acrescentar:
- Talvez pudéssemos conversar a esse respeito mais tarde, em
sua cabina.
- Isso poderia ser embaraçoso.
- Perche? Por quê?
- É um homem muito famoso. E todos no trem sabem
provavelmente quem é.
- Mas é claro!
- Se o virem entrar em minha cabina... algumas pessoas podem
interpretar de maneira errada. Mas se sua cabina for perto da
minha... Qual é o número de sua cabina?
- setenta.
Ele fitou-a com uma expressão esperançosa. Tracy suspirou.
- Estou em outro vagão. Por que não nos encontramos em Veneza?
Fornati ficou radiante.
- Bene! Minha esposa passa a maior parte do tempo no quarto.
Não suporta o sol em seu rosto. Já esteve alguma vez em
Veneza?
- Não.
- Pois iremos a Torcello, uma linda ilhota, com um
restaurante maravilhoso, o Locanda Cipriani. É também um
pequeno hotel. - Os olhos dele brilharam. - Molto privato.
Tracy presenteou-o com um sorriso lento e compreensivo.
- Parece excitante...
Ela baixou os olhos, triunfante demais para acrescentar
qualquer outra coisa. Fornati inclinou-se para a frente,
apertou a mão de Tracy e sussurrou:
- Ainda não sabe o que é excitamento, cara mia.
Meia hora depois Tracy estava de volta à sua cabina.
O Expresso do Oriente avançava velozmente pela noite
solitária, passando por Paris, Dijon e Vallarbe, enquanto os
passageiros dormiam. Todos haviam entregue seus passaportes na
noite anterior e as formalidades na fronteira seriam tratadas
pelos cabineiros.
às três e meia da madrugada Tracy deixou discretamente sua
cabina. Era o momento crítico. O trem chegaria a Lausanne e
atravessaria a fronteira Suíça às 5 e 21, e deveria chegar em
Milão, na Itália, às 9 e 15.
De pijama e chambre, levando uma bolsa, Tracy seguiu pelo
corredor, todos os sentidos alerta, a emoção familiar fazendo
seu pulso disparar. Não havia banheiros nas cabinas, apenas um
na extremidade de cada vagão. Se alguém a detivesse, Tracy
diria que estava à procura de um banheiro de mulheres, mas não
encontrara nenhum. Os cabineiros aproveitavam as horas
sossegadas da madrugada para recuperar o sono atrasado.
Tracy chegou à Cabina 70 sem qualquer incidente. Experimentou
a maçaneta. A porta se achava trancada. Tracy abriu a bolsa,
tirou um objecto metálico e um pequeno vidro com uma seringa,
começou a trabalhar.
Dez minutos depois retornava à sua cabina e meia hora mais
tarde dormia profundamente, com o vestígio de um sorriso no
rosto recentemente lavado.
às sete da manhà, duas horas antes de o Expresso do Oriente
chegar a Milão, houve uma sucessão de gritos penetrantes.
Partiam da Cabina 70 e despertaram todo o vagão. Passageiros
abriram as portas de suas cabinas para descobrir o que estava
acontecendo. Um cabineiro, aproximou-se correndo e entrou na
70. Silvana Luadi estava histérica.
- Aiuto! Socorro! Todas as minhas jóias sumiram! Este trem
miserável está cheio de ladrões!
- Acalme-se, por favor, madame - suplicou o cabineiro. - Os
outros...
- Acalmar-me? - A voz de Silvana, Luadi ergueu-se uma oitava.
- Como se atreve a me mandar acalmar, stupido maiale?
Alguém roubou minhas jóias que valem mais de um milhão de
dólares!
- Como isso pode ter acontecido? - indagou Alberto Fornati. -
A porta estava trancada... e Fornati tem o sono leve. Se
alguém tivesse entrado, eu acordaria imediatamente.
O cabineiro suspirou. Sabia muito bem como acontecera, porque
já ocorrera antes. Durante a noite, alguém se esgueirara pelo
corredor e lançara uma seringa com éter pelo buraco da
fechadura. As trancas seriam brincadeira de criança para quem
soubesse o que estava fazendo. O ladrão fecharia a porta,
saquearia a cabina, pegando o que bem quisesse, voltando a seu
lugar, enquanto as vitimas continuavam inconscientes. Mas
havia uma coisa naquele roubo que o tornava diferente dos
outros. No passado, os furtos só haviam sido descobertos
depois que o trem chegara a seu destino. Com isso, os ladrões
tiveram chance de escapar. Mas aquela situação era diferente.
Ninguém desembarcara desde o roubo, o que significava que as
jóias ainda se encontravam a bordo.
- Não se preocupem - prometeu o cabineiro a Fornati. - Terão
suas jóias de volta. O ladrão ainda está no trem.
E ele afastou-se apressadamente, a fim de se comunicar com a
polícia de Milão.
Quando o Expresso do Oriente entrou no terminal de Milão,
vinte guardas de uniforme e detectives à paisana esperavam na
plataforma da estação, com ordens para não deixar quaisquer
passageiros ou bagagens saírem do trem.
Luigi Ricci, o Inspector encarregado do caso, foi levado
directamente à cabina dos Fornatis. A histeria de Silvana
Luadi aumentara.
- Todas as jóias que eu possuía estavam nesta caixa! - gritou
ela. - E nenhuma se achava segurada!
O Inspector examinou a caixa de jóias vazia.
- Tem certeza de que pôs as jóias aqui na noite passada,
signora?
- Mas claro que tenho certeza! Guardo-as todas as noites!
Seus olhos luminosos, que haviam emocionado milhões de fàs
apaixonados, exibiam lágrimas. O Inspector Ricci estava
disposto a enfrentar dragões por ela.
Ele foi até a porta da cabina, abaixou-se, farejou o buraco
da fechadura. Percebeu o odor persistente de éter. Houvera um
roubo e ele tencionava agarrar o bandido insensível. O
Inspector Ricci empertigou-se e disse:
- Não se preocupe, signora. Não há qualquer possibilidade de
as jóias serem retiradas deste trem. Pegaremos o ladrão e suas
jóias serão devolvidas.
O Inspector Ricci tinha todos os motivos para estar confiante.
A armadilha estava hermeticamente fechada e não havia qualquer
possibilidade de o culpado escapar.
Um a um, os detectives levaram os passageiros a uma sala de
espera da estação que fora cercada, revistando-os
meticulosamente. Muitos passageiros eram proeminentes e
ficaram indignados.
- Lamento profundamente - explicava o Inspector Ricci a cada
um - mas um roubo de um milhão de dólares é uma coisa muito
grave.
à medida que cada passageiro deixava o trem, os detectives
reviravam suas cabinas pelo avesso. Cada centímetro de espaço
era examinado. Aquela constituía uma oportunidade esplêndida
para o Inspector Ricci e ele tencionava tirar o máximo
proveito. A recuperação das jóias roubadas significaria uma
promoção e um aumento. Sua imaginação entrou em delírio.
Silvana Luadi ficaria tão grata que provavelmente o convidaria
para... Ele deu ordens com um vigor renovado.
Houve uma batida na porta da cabina de Tracy e um detective
entrou no instante seguinte.
- Com licença, signorina. Houve um roubo. É necessário
revistar todos os passageiros. Se fizer o favor de me
acompanhar..
- Um roubo? - A voz de Tracy era chocada. - Neste trem?
- Receio que sim, signorina.
Quando Tracy saiu da cabina, dois detectives entraram,
abriram suas malas, começaram a verificar cuidadosamente o
conteúdo.
No final de quatro horas de busca, a polícia encontrara
vários maços de marijuana, cinco onças de cocaína, uma faca e
um revólver ilegal. Mas não havia qualquer sinal das jóias
desaparecidas. O Inspector Ricci não podia acreditar.
- Revistaram todo o trem? - ele perguntou a seu lugar-tenente.
- Inspector, revistamos cada palmo do trem. Examinamos a
locomotiva, os vagões-restaurantes, o bar, os banheiros, as
cabinas. Revistamos os passageiros e os tripulantes,
examinamos a bagagem inteira. Posso jurar que as jóias não se
encontram no trem. Talvez a mulher tenha simplesmente
imaginado o roubo.
Mas o Inspector Ricci sabia que isso não acontecera.
Conversara com os garçons, que confirmaram que Silvana Luadi
realmente usara jóias espectaculares ao jantar, na noite
anterior. Um representante do Expresso do Oriente chegara de
avião a Milão.
- Não pode reter o trem por mais tempo - insistiu ele. - Já
estamos muito atrasados.
O Inspector Ricci sentiu-se derrotado. Não tinha desculpa
para segurar o trem por mais tempo. Não havia mais nada que
pudesse fazer. A única explicação que podia pensar era a de
que o ladrão, de alguma forma, jogara as jóias do trem para um
cúmplice à espera perto da linha, durante a noite. Mas poderia
ter acontecido assim? O cálculo do tempo seria impossível. O
ladrão não poderia saber de antemão quando o corredor estaria
livre, quando um cabineiro ou passageiro poderia surgir, em
que momento o trem passaria por um local deserto determinado.
Era um mistério para o Inspector resolver.
- O trem pode continuar - ordenou ele.
O Inspector Ricci observava desolado quando o Expresso do
Oriente deixou a estação. Lá se ia sua promoção, o aumento e
uma orgia feliz com Silvana Luadi.
O único tópico de todas as conversas, ao café da manhà no
trem, foi o roubo.
- É a coisa mais emocionante que me aconteceu em muitos anos
- confessou uma empertigada professora de uma escola feminina.
Ela pôs a mão num colar de ouro, com uma lasca mínima de
diamante. - Estou com sorte de não terem levado o meu colar.
- Muita sorte - concordou Tracy, solenemente.
Ao entrar no vagão-restaurante, Alberto Fornati avistou Tracy
e aproximou-se dela rapidamente.
- Já sabe o que aconteceu, é claro. Mas sabia que foi a
esposa de Fornati que roubaram?
- Oh, não!
- Exactamente! Minha esposa corre grande perigo. Uma
quadrilha entrou em minha cabina e deixou-me desacordado com
Clorofórmio. Fornati poderia ter sido assassinado enquanto
dormia.
- Que coisa terrível!
- É uma bella fregatura! Terei agora de substituir todas as
jóias de Silvana. O que me custará uma fortuna.
- A polícia não encontrou as jóias?
- Não. Mas Fornati sabe como os ladrões se livraram das
jóias.
É mesmo? E como foi?
Ele olhou ao redor e baixou a voz para dizer:
- Um cúmplice esperava numa das estações por que passamos
durante a noite. O ladrão jogou as jóias do trem e... tudo
estava acabado.
Tracy disse, com evidente admiração:
- Como foi esperto ao calcular isso!
- Sim. - Ele alteou as sobrancelhas, sugestivamente. - Não
esquecerá o nosso pequeno encontro secreto em Veneza, não é
mesmo?
- Como poderia esquecer? - respondeu Tracy, sorrindo.
Ele apertou-lhe o braço com força.
- Fornati está ansioso pelo encontro. E agora tenho de ir
consolar Silvana. Ela está rica.
Quando o Expresso do Oriente chegou à estação de Santa Lucia,
em Veneza, Tracy estava entre os primeiros passageiros a
desembarcarem. Foi com a bagagem directamente para o aeroporto
e embarcou no primeiro avião para Londres, levando as jóias de
Silvana Luadi.
Gunther Hartog ficaria bastante satisfeito.
23
O prédio de sete andares que é a sede da Interpol, a
Organização Internacional de Polícia Criminal, fica na Rue
Armengaud, 26, nas colinas de St.Cloud, cerca de dez
quilómetros a oeste de Paris, discretamente oculto por trás de
uma sebe alta e de um muro branco de pedra. O portão que dá
para a rua permanece trancado 24 horas por dia, os visitantes
só são admitidos depois de meticulosamente examinados através
de um circuito fechado de televisão.
A segurança extraordinária é indispensável, pois dentro do
prédio são guardados os mais completos dossiês do mundo, com
fichas de dois milhões e meio de criminosos. A Interpol
funciona como uma câmara de compensação de informações para
126 forças policiais em 78 países, coordena as actividades
internacionais de forças policiais que lidam com vigaristas,
falsários, traficantes de tóxicos, assaltantes e assassinos.
Divulga informações actualizadas através de um boletim
conhecido como circulação, transmitido por rádio,
fototelegrafia e satélite. O quartel-general de Paris é
operado por ex-detectives da Súreté Nationale ou da Préfecture
de Paris.
Numa manhà de maio, bem cedo, houve uma reunião no gabinete do
Inspector André Trignant, no comando do quartel-general da
Interpol. O gabinete era pequeno e, mobiliado com
simplicidade, mas a vista era espectacular. à distância, a
leste assomava a Torre Eiffel; em outra direcção, o domo
branco do Sacrè-Cocur, em Montmartre, era claramente visível.
O inspector era um homem de quarenta e poucos anos, uma
presença atraente e de autoridade, com um rosto inteligente,
cabelos escuros, olhos castanhos penetrantes, por trás de
óculos de aros de osso. Sentados com ele no escritório estavam
detectives da Inglaterra, Bélgica, França e Itália.
- Senhores - disse o Inspector Trignant - recebi pedidos
urgentes de seus países de informações sobre a onda de crimes
que eclodiu recentemente por toda a Europa. Meia dúzia de
países foram atingidos por uma epidemia de trapaças e roubos
em que há vária similaridades. As vitimas são geralmente de
reputação duvidosa, nunca há violência envolvida e a
responsável é sempre uma mulher. Chegamos à conclusão de que
estamos enfrentando uma quadrilha internacional de mulheres.
Temos retratos falados, baseados nas descrições das vitrinas e
de testemunhas casuais. Como poderão verificar, não há duas
mulheres com retratos parecidos. Algumas são louras, outras
morenas. As nacionalidades informadas são as mais diversas,
inglesa, francesa, espanhola, italiana, americana... ou
texana.
O Inspector Trignant apertou um botão e uma série de retratos
surgiu na tela na parede.
- Aqui está o retrato falado de uma morena de cabelos curtos.
Ele tornou a apertar o botão. - E aqui está uma loura também
de cabelos curtos... outra loura com uma ondulação
permanente... uma morena com um corte de pajem... uma mulher
mais velha, tipicamente francesa... uma jovem com reflexos
louros... uma mulher velha com um coup sauvage.
O Inspector desligou o projector.
- Não temos idéia de quem lidera a quadrilha ou onde fica a
base de operações. Elas nunca deixam quaisquer pistas e
desaparecem como fumaça. Mais cedo ou mais tarde, porém,
pegaremos uma... e quando isso acontecer, todas cairão em
nossas mãos. Enquanto isso, senhores, até que um de vocês
possa nos fornecer reformas específicas, receio que nos
encontremos num beco sem saída...
Quando seu avião pousou em Paris, Daniel Cooper foi recebido
no Aeroporto Charles de Gaulle por um dos assistentes do
Inspector Trignant. Foi levado ao Prince de Galles, que fica
ao lado do hotel-irmão mais ilustre, o George V.
- Está tudo acertado para o seu encontro com o Inspector
Trignant amanhã - informou o assistente a Cooper. - Virei
buscá-lo às oito e quinze.
Daniel Cooper não se sentia satisfeito com a viagem à Europa.
Tencionava concluir a sua missão o mais depressa possível e
voltar para casa. Conhecia a vida regalada de Paris e não
tinha a menor intenção de se deixar envolver.
Ele entrou no quarto e se dirigiu directamente ao banheiro.
Para sua surpresa, a banheira era satisfatória. Na verdade,
admitiu para si mesmo, era muito maior do que a que tinha em
casa. Ele abriu a água e foi para o quarto desfazer as malas.
Perto do fundo da mala estava a pequena caixa trancada, segura
entre seu terno extra e as cuecas. Ele pegou a caixa,
contemplou-a por um momento; parecia vibrar com uma vida
própria. Levou-a para o banheiro e colocou-a em cima da pia.
Com a chave pequena pendurada em seu chaveiro, destrancou a
caixa e abriu-a. As palavras lhe saltaram do recorte de jornal
amarelado:
GAROTO TESTEMUNHA UM JULGAMENTO DE HOMICÍDIO
Daniel Cooper, de 12 anos, testemunhou hoje no julgamento de
Fred Zimmer, acusado de violentar e assassinar a mãe do
garoto. Segundo o seu depoimento, ele voltava da escola e viu
Zimmer, o vizinho da casa ao lado, deixar a residência de sua
família, com sangue nas mãos e no rosto. Quando entrou em
casa, o garoto encontrou o corpo de sua mãe na banheira. Ela
fora brutalmente esfaqueado até à morte. Zimmer confessou que
era amante da Sra. Cooper, mas negou que a tivesse matado.
O garoto foi entregue aos cuidados de uma tia.
As mãos trémulas de Daniel Cooper tornaram a largar o recorte
na caixa. Ele trancou-a. Olhou ao redor, freneticamente. As
paredes e o teto do banheiro do hotel estavam salpicados de
sangue. Viu o corpo nu da mãe flutuando na água vermelha.
Sentiu uma onda de vertigem e agarrou-se na pia. Os gritos
dentro dele tornaram-se gemidos guturais. Arrancou as roupas
desesperadamente e afundou no banho quente de sangue.
- Devo informá-lo, Sr. Cooper - disse o Inspector Trignant -
que sua posição aqui é excepcional. Não é membro de qualquer
força policial e sua presença é extra-oficial. Contudo, fomos
solicitados pelos departamentos de polícia de diversos países
europeus a lhe oferecer a nossa cooperação.
Daniel Cooper não disse nada.
- Fui informado de que é um investigador da Associação
Internacional de Protecção do Seguro, um consórcio formado
pelas seguradoras.
- Alguns de nossos clientes europeus sofreram grandes
prejuízos ultimamente. E, pelo que sei, não há pistas.
O Inspector Trignant suspirou.
- Infelizmente, é isso mesmo. Sabemos que estamos lidando com
uma quadrilha de mulheres muito espertas. Mas, além disso...
- Não há informações de alcaguetes?
- Não. Absolutamente nada.
- Não acha isso estranho?
- Como assim, monsieur?
Parecia tão óbvio a Cooper que ele não se deu ao trabalho de
disfarçar a sua impaciência.
- Quando uma quadrilha está envolvida, há sempre alguém que
fala demais, bebe demais, gasta demais. É impossível para um
grupo grande de pessoas manter um segredo, Importa-se de me
dar as suas fichas sobre essa quadrilha?
O Inspector pensou em recusar. Achava Daniel Cooper um dos
homens mais desgraciosos fisicamente que já conhecera. E
certamente o mais arrogante. Ele seria um chierie, "um pé no
saco"; mas haviam pedido ao Inspector que cooperasse
plenamente. Com relutância, ele disse:
- Providenciarei cópias para você.
Ele falou pelo interfone e deu a ordem. Para puxar conversa,
o Inspector Trignant disse:
- Acabo de receber um relatório interessante. Algumas jóias
valiosas foram roubadas de bordo do Expresso do Oriente,
enquanto estava...
- Leu a notícia. O ladrão fez de tolos os polícias italianos.
- Ninguém pôde ainda imaginar como o roubo foi consumado.
- É óbvio - disse Daniel Cooper, rudemente. - Uma questão de
simples lógica.
O Inspector Trignant olhou por cima dos óculos. Mon Dieu, ele
tem o comportamento de um porco. O Inspector declarou,
friamente;
- Neste caso, a lógica não existe. Cada palmo do trem
revistado, os empregados, os passageiros, toda a bagagem.
- Não foi, não - contestou Daniel Cooper.
Este homem é louco, concluiu o Inspector Trignant.
- Não? Como assim?
- Eles não revistaram toda a bagagem.
- Claro que revistaram - insistiu o Inspector Trignant. - Li
o relatório da polícia
- A mulher a quem roubaram as jóias... Silvana Luadi...
- O que tem ela?
- Ela não guardou as jóias numa valise, de onde foram
roubadas?
- Correcto.
- A polícia revistou a bagagem de Silvana Luadi?
- Somente a valise. Ela foi a vitima. Por que deveriam
revistar sua bagagem?
- Porque é logicamente o único lugar em que o ladrão poderia
ter escondido as jóias... no fundo de uma de suas malas.
Provavelmente ele tinha uma mala igual. Quando toda a bagagem
foi empilhada na plataforma da estação em Veneza, ele só
precisou trocar as malas e desaparecer em seguida, - Daniel
Cooper levantou-se. - Se as cópias já estão prontas, eu vou
embora agora.
Meia hora depois, o Inspector Trignant falava pelo telefone
com Alberto Fornati, em Veneza.
- Monsieur - disse o Inspector - eu gostaria de saber se houve
algum problema com a bagagem de sua esposa, quando chegaram em
Veneza.
- Sim, sim - queixou-se Fornati. - O idiota do carregador
trocou uma das malas. Quando minha esposa abriu-a, no hotel,
descobriu que só continha uma porção de revistas velhas.
Comuniquei ao escritório do Expresso do Oriente. Já
localizaram a mala de minha esposa?
- Não, monsieur.
O Inspector acrescentou para si mesmo, silenciosamente: E eu
não esperaria que isso acontecesse, se estivesse no seu lugar.
Depois de encerrar a ligação, ele recostou-se em sua cadeira,
pensando: Esse Daniel Cooper é trés formidable. Realmente
formidável.
24
A casa de Tracy, na Eaton Square, era um refúgio. Ficava numa
das áreas mais bonitas de Londres, com velhas casas
georgianas, viradas para parques particulares com muitas
árvores. Babás em uniformes engomados empurravam carrinhos de
bebés por caminhos cobertos de cascalho, crianças brincavam.
Sinto saudade de Amy, pensava Tracy.
Ela andava pelas ruas antigas, fazia compras em quitandas e na
farmácia da Elizabeth Street. Admirava a variedade de flores
de cores brilhantes vendidas fora das pequenas lojas.
Gunther Hartog cuidava para que Tracy contribuísse para as
caridades certas e conhecesse as pessoas certas. Saía com
duques ricos e condes empobrecidos, recebia numerosos pedidos
de casamento. Era jovem, bela e rica, parecia extremamente
vulnerável.
- Todos pensam que você é um alvo perfeito - comentava
Gunther, rindo. - Tem se saído de maneira esplêndida, Tracy.
Está feita agora. Possui tudo o que jamais precisará.
Era verdade. Ela tinha dinheiro em cofres em bancos por toda a
Europa, a casa em Londres e um chalé em St. Moritz. Tudo o que
jamais poderia precisar. Excepto alguém com quem partilhar.
Tracy pensava muito na vida que quase tivera, com um marido e
um filho. Isso algum dia seria possível para ela novamente?
Nunca poderia revelar a qualquer homem quem era realmente,
também não podia viver uma mentira ao esconder o passado.
Desempenhara vários papéis, não mais tinha certeza de quem
realmente era. Mas sabia que nunca poderia retornar à vida que
outrora levara. Está tudo bem, pensava Tracy, assumindo uma
atitude de desafio. Muitas pessoas são solitárias. Gunther
está certo. Eu tenho tudo.
Ela ofereceu um coquetel na primeira noite depois de sua volta
de Veneza.
- Estou aguardando ansiosamente - dissera-lhe Gunther. - Suas
festas são as mais quentes de Londres.
Tracy comentara, afectuosamente:
- Com o meu patrocinador, não poderia ser de outra forma.
- Quem estará presente?
- Todo mundo.
Todo mundo incluía um convidado a mais que Tracy não previra.
Ela convidara a Baronesa Lithgow, uma jovem e atraente
herdeira. Quando viu a baronesa chegar, Tracy adiantou-se para
cumprimentá-la. Mas a saudação morreu em seus lábios. A
baronesa se apresentou acompanhada por Jeff Stevens.
- Tracy, querida, creio que não conhece o Sr. Stevens. Jeff,
esta é a Sra. Whitney, sua anfitriã.
Tracy disse, rigidamente:
- Como vai, Sr. Stevens?
Jeff pegou a mão de Tracy, segurando-a por uma fracção de
tempo a mais do que o necessário.
- Sra. Tracy Whitney? - disse ele. - Mas é claro! Fui amigo
de seu marido. Estivemos juntos na Índia.
- Mas que coisa emocionante! - exclamou a Baronesa Lithgow.
- É estranho - disse Tracy, friamente. - Ele nunca o
mencionou.
- É mesmo? Isso me deixa surpreso. Um sujeito muito
interessante. Uma pena que tenha acabado daquela maneira.
- O que aconteceu? - indagou a Baronesa Lithgow, muito
excitada.
Tracy lançou um olhar furioso para Jeff.
- Não foi nada.
- Nada? - repetiu Jeff, num tom de censura. - Se me lembro
correctamente, ele foi enforcado na Índia.
- Paquistão - disse Tracy, tensamente. - E creio que me
lembro agora de meu marido se referir a você. Como vai sua
esposa?
A Baronesa Lithgow olhou para Jeff.
- Nunca me disse que era casado, Jeff.
- Cecily e eu estamos divorciados.
Tracy sorriu docemente.
- Eu estava me referindo a Rose.
- Ah, sim.. essa esposa.
A Baronesa Lithgow estava espantada.
- Foi casado duas vezes?
- Uma só - respondeu ele, jovialmente - Rose e eu obtivemos
uma anulação. Éramos muito jovens.
Ele começou a se afastar, mas Tracy perguntou:
- Mas não houve gémeos?
A Baronesa Lithgow estava mais aturdida do que nunca.
- Gémeos?
- Eles vivem com a mãe. - Jeff olhou para Tracy. - Não tenho
palavras para exprimir como foi agradável lhe falar, Sra.
Whitney. Mas não devemos monopolizá-la.
Ele pegou a mão da baronesa e os dois se afastaram. No dia
seguinte, Tracy deparou com Jeff num elevador na Harrods. A
loja estava apinhada. Tracy saltou no segundo andar. Ao deixar
o elevador, virou-se para Jeff e disse, a voz alta e clara:
- Por falar nisso, Sr. Stevens, como conseguiu se livrar
daquele processo de atentado ao pudor?
A porta fechou e Jeff ficou encurralado dentro do elevador
com um bando de estranhos indignados. Naquela noite, Tracy
ficou deitada na cama pensando em Jeff. Não pôde deixar de
rir. Ele era realmente encantador. Um patife, mas cativante.
Ela se perguntou qual seria o relacionamento dele com a
Baronesa Lithgow. Mas sabia muito bem qual era. Jeff e eu
somos da mesma espécie, pensou Tracy. Nenhum dos dois jamais
assentaria. A vida que levavam era muito excitante,
estimulante e gratificante.
Ela concentrou os pensamentos em seu próximo trabalho. Seria
no sul da França, um grande desafio. Gunther lhe dissera que a
polícia estava à procura de uma quadrilha. Ela adormeceu com
um sorriso nos lábios.
No seu quarto de hotel, em Paris, Daniel Cooper estava lendo
os relatórios que o Inspector Trignant lhe entregara. Eram
quatro horas da madrugada e Cooper vinha estudando os papéis
há horas, analisando a mistura imaginativa de roubos e
fraudes, Cooper se familiarizara com alguns dos golpes, mas
outros lhe eram inteiramente novos. Como o Inspector Trignant
ressaltara, todas as vitimas tinham reputações duvidosas. Esta
quadrilha aparentemente pensa que é formada por Robin Hoods,
reflectiu Cooper.
Ele estava quase terminando. Restavam apenas três relatórios.
O de cima tinha o cabeçalho de BRUXELAS. Cooper abriu-o e leu.
Jóias no valor de dois milhões de dólares haviam sido roubadas
do cofre na parede de um certo Sr. Van Ruysen, um corrector de
valores belga.
Os donos se encontravam ausentes em férias e a casa se achava
vazia, a não ser... Cooper descobriu alguma coisa na página
que fez seu coração se acelerar. Ele voltou à primeira página,
pôs-se a reler o relatório, concentrando-se totalmente em cada
palavra. Aquele trabalho se diferenciava dos outros num
aspecto significativo. O assaltante accionara um alarme.
Quando a polícia chegara, fora recebida na porta por uma
mulher com um negligê transparente. Ela tinha os cabelos
metidos numa touca e o rosto coberto por um creme de beleza.
Alegara ser hóspede dos Van Ruysens. A polícia aceitara a
história; quando conferiu com os proprietários ausentes, a
mulher e as jóias já haviam desaparecido.
Cooper largou o relatório. Lógica, lógica. Ele olhou para seu
relógio. Eram 10 horas da manhã em Nova York. Cooper fez uma
ligação para J. J. Reynolds.
- Quero que verifique uma coisa - pediu Cooper. - Pergunte
aos polícias de Long Island que entrevistaram a mulher no
roubo de Lois Bellamy se têm certeza de que ela era americana.
Reynolds ligou-lhe uma hora depois.
- Eles confirmaram. Mas porquê...
Cooper já desligara.
O Inspector Trignant estava perdendo a paciência.
- Estou lhe garantindo que é impossível para uma só mulher
ser responsável por todos esses crimes.
- Há uma maneira de verificar - disse Daniel Cooper.
- Que maneira?
- Eu gostaria de passar por um computador as datas e locações
dos últimos roubos e fraudes que se enquadram nesta categoria.
- Isto é bastante simples. Mas...
- Em seguida, eu gostaria de obter um relatório da imigração
local sobre cada turista americana que esteve naquelas cidades
nas ocasiões em que os crimes foram cometidos. É possível que
ela use passaportes falsos algumas vezes, mas as
probabilidades são de que também se apresente com sua
verdadeira identidade.
O Inspector Trignant estava pensativo.
- Percebo a sua linha de raciocínio, monsieur.
Ele estudou o homenzinho à sua frente e descobriu-se meio
confuso esperando que Cooper estivesse enganado. O americano
era presunçoso demais.
- Está bem. Accionarei tudo.
O primeiro roubo da série fora cometido em Estocolmo. O
relatório da Interpol Sektionen Riskpolis Styrelsen, a secção
sueca da Interpol, relacionou as turistas americanas em
Estocolmo naquela semana. Os nomes das mulheres foram
fornecidos a um computador. A próxima cidade verificada foi
Milão. Quando os nomes das turistas americanas em Milão por
ocasião do roubo foram conferidos com a lista de Estocolmo,
ficaram 52 nomes. Essa lista foi conferida com as americanas
que se encontravam na Irlanda por ocasião de um golpe de
mestre ali executado. A lista ficou reduzida a 15 nomes. O
Inspector Trignant entregou o resultado a Daniel Cooper.
- Começarei a conferir esses nomes com as americanas que
estavam em Berlim durante o golpe ali realizado e...
Daniel Cooper levantou os olhos.
- Não precisa se incomodar.
O primeiro nome, na lista era Tracy Whitney.
Dispondo finalmente de alguma coisa concreta em que se basear,
a Interpol entrou em acção. Circulações vermelhas, que
significavam alta prioridade, foram enviadas a todas as
nações-membros, aconselhando-as a procurarem por Tracy
Whitney.
- Também estamos teletipando avisos verdes - disse o
Inspector Trignant a Cooper.
- Avisos verdes?
- Usamos um sistema de código de cores. Uma circulação
vermelha é alta prioridade, azul é um pedido de informação
sobre um suspeito, um aviso verde põe em alerta os
departamentos de polícia para a presença de um indivíduo
suspeito que deve ser vigiado, preto é uma indagação sobre
corpos não-identificados. X-D informa que uma mensagem é muito
urgente, enquanto D é urgente. Não importa qual seja o país
para onde a Senhorita Whitney vá, estará sob vigilância a
partir do momento em que passar pela alfândega.
No dia seguinte, telefotos de Tracy Whitney na Penitenciária
Meridional da Louisiana Para Mulheres estavam nas mãos da
Interpol.
Daniel Cooper telefonou para a cana de J. J. Reynolds. A
campainha tocou uma dúzia de vezes, antes de ser atendida a
ligação.
- Alô...
- Preciso de algumas informações.
- É você, Cooper? Pelo amor de Deus, são quatro horas da
madrugada aqui! Eu estava profundamente...
- Quero que me mande tudo o que puder descobrir sobre Tracy
Whitney. Recortes de imprensa, videoteipes... tudo, enfim.
- Mas o que está acontecendo por...
Cooper já desligara.
Um dia ainda matarei o filho da puta, jurou Reynolds.
Antes, Daniel Cooper só estava casualmente interessado em
Tracy Whitney. Agora, ela era a sua missão. Ele pôs as suas
fotografias nas paredes do seu pequeno quarto de hotel em
Paris, leu todas as notícias dos jornais a seu respeito.
Alugou um aparelho de videocassete e passou várias vezes os
trechos dos serviços noticiosos de televisão em que Tracy
aparecera, depois de ser condenada e até sair da prisão.
Cooper permanecia sentado no seu quarto às escuras hora após
hora, olhando para os filmes. O vislumbre inicial de suspeita
acabou se transformando em certeza.
- Você é a quadrilha de mulheres, Senhorita Whitney - disse
Daniel Cooper, em voz alta.
E depois, ele apertou um botão no aparelho de videocassete
voltando a fita ao começo mais uma vez.
25
Todos os anos, no primeiro sábado de junho, o Conde de Matigny
promovia um baile de caridade em benefício do Hospital
Infantil de Paris. Cada ingresso custava mil dólares e a elite
da sociedade voava do mundo inteiro para comparecer.
O Château de Matigny, em Cap d'Antibes, era um dos lugares
mais espectaculares da França. Os jardins cuidadosamente
tratados eram magníficos, o castelo propriamente dito datava
do século XV. Na noite da festa, o grande salão de baile e o
pequeno salão ficavam repletos de convidados elegantemente
vestidos e criados de libré servindo copos de champanha
intermináveis. Imensas mesas de bufé eram armadas, exibindo
uma variedade espantosa de hors d'oeuvres, em travessas de
prata georgiana.
Tracy, deslumbrante num vestido branco de renda, os cabelos
armados e presos por uma tiara de diamantes, estava dançando
com o anfitrião, o Conde de Matigny, um viúvo de sessenta e
poucos anos, baixo e magro, com um rosto pálido e delicado. O
baile de caridade que o conde oferece todos os anos em
benefício do Hospital Infantil é uma fraude, dissera Gunther
Hartog a Tracy. Dez por cento do dinheiro vão para as
crianças... e noventa por cento ficam em seu bolso.
- Você é uma excelente dançarina - comentou o conde.
Tracy sorriu.
- É por causa do meu parceiro.
- Como é possível que não nos tenhamos encontrado antes?
- Tenho vivido na América do Sul - explicou Tracy. - E na
selva, infelizmente.
- Mas por quê?
- Meu marido possui algumas minas no Brasil.
- Ah.... E seu marido se encontra aqui esta noite?
- Não. Infelizmente, ele teve de ficar no Brasil para cuidar
dos negócios.
- Azar para ele, sorte para mim. - O braço do conde comprimiu
mais firmemente a cintura de Tracy. - Estou ansioso pela
oportunidade de nos tornarmos amigos mais íntimos.
- E eu também - murmurou Tracy.
Por cima do ombro do conde, Tracy avistou subitamente Jeff
Stevens bronzeado e parecendo absurdamente em perfeita forma
física. Ele dançava com uma morena bonita e esguia, num
vestido de tafetá vermelha. Ela o agarrava possessivamente.
Jeff divisou Tracy no mesmo momento e sorriu.
O filho da puta tem todos os motivos para sorrir, pensou
Tracy, sombriamente. Durante as duas semanas anteriores, Tracy
planejara meticulosamente dois roubos. Entrara na primeira
casa e abrira o cofre, só para encontrá-lo vazio. Jeff Stevens
estivera ali primeiro. Na segunda ocasião, Tracy avançava
pelos jardins para a casa visada quando ouviu de repente um
carro acelerar. Virou-se e vislumbrou Jeff a se afastar
rapidamente. Ele tornara a batê-la. Era irritante. E agora ele
está aqui, na casa que planeio assaltar em seguida, pensou
Tracy. Jeff e sua parceira se aproximaram, sempre dançando.
Ele sorriu e disse:
- Boa noite, conde.
Conde de Matigny retribuiu ao sorriso.
- Ah, Jeffrey... Boa noite. Fico satisfeito que tenha podido
vir.
- Eu não faltaria de jeito nenhum. - Jeff indicou a mulher de
aparência sensual em seus braços. - Esta é a Senhorita
Wallace. O Conde de Matigny.
- Enchanté! - O conde indicou Tracy. - Duquesa, posso
apresentar-lhe a Senhorita Wallace e o Sr. Jeffrey Stevens? A
Duquesa de Larosa.
As sobrancelhas de Jeff se altearam, inquisitivas.
- Perdão, mas não entendi direito o nome.
- De Larosa - disse Tracy, calmamente.
- De Larosa... De Larosa. - Jeff observava Tracy atentamente.
- O nome me parece familiar.... Mas é claro! Conheço seu
marido. Ele também está aqui?
- Ele ficou no Brasil.
Tracy descobriu que estava rangendo os dentes. Jeff sorriu.
- Ah, uma pena... Costumávamos caçar juntos. Antes de ele
sofrer o acidente, é claro.
- Acidente? - repetiu o conde.
- Isso mesmo. - O tom de Jeff era pesaroso. - A arma disparou
e a bala atingiu-o numa área muito sensível. Uma dessas coisas
estúpidas que acontecem...
Ele virou-se para Tracy e acrescentou:
- Há alguma esperança de que ele volte a ser normal?
Tracy disse, sem qualquer inflexão na voz:
- Tenho certeza de que algum dia ele será tão normal como
você, Sr. Stevens.
- Isso é óptimo. Pode lhe transmitir meus respeitos quando
falar com ele, duquesa?
A música parou. O Conde de Matigny pediu desculpas a Tracy.
- Se me dá licença, minha cara, tenho alguns deveres de
anfitrião a cumprir. - Ele apertou-lhe a mão. - Não se esqueça
de que está sentada à minha mesa.
Enquanto o conde se afastava, Jeff disse à sua companheira:
- Anjo, você não trouxe alguma aspirina em sua bolsa? Poderia
ir buscar para mim? Estou com uma terrível dor de cabeça.
- Oh, meu pobre querido! - Havia uma expressão de adoração
nos olhos da mulher. - Já vou buscar, amor.
Tracy observou-a deslizar pelo salão.
- Não tem medo de que ela o deixe diabético?
- Ela é um doce, não é mesmo? E como tem passado ultimamente,
duquesa?
Tracy sorriu, em benefício dos que se encontravam ao redor.
- Isso não é da sua conta, não é mesmo?
- Mas claro que é. Na verdade, é da minha conta oferecer-lhe
um conselho amigável. Não tente roubar este castelo.
- Por quê? Você está planeando fazê-lo primeiro?
Jeff pegou Tracy pelo braço e levou-a para um lugar deserto,
perto do piano, onde um rapaz de olhos escuros estava
comoventemente massacrando melodias americanas. Somente Tracy
podia ouvir a voz do Jeff por cima da música.
- Para ser franco, eu estava mesmo planeando fazer uma
coisinha. Mas tornou-se perigoso demais.
- É mesmo?
Tracy estava começando a gostar da conversa. Era um alívio
ser ela própria, parar de representar. Os gregos tinham a
palavra certa para isso, pensou Tracy. Hipócrita era da
palavra grega para "actor".
- Preste atenção, Tracy. - O tom de Jeff era sério. - Não
tente nada. Em primeiro lugar, você não conseguiria escapar
com vida da propriedade. Há um cão de guarda assassino à solta
esta noite.
Subitamente, Tracy escutava com toda atenção. Jeff estava
mesmo planeando roubar o castelo.
- Todas as janelas e portas estão armadas. O alarme se liga
directamente à delegacia de polícia. E mesmo que você
conseguisse entrar, todo o lugar se encontra cruzado por raios
infravermelhos invisíveis.
- Sei de tudo isso.
Tracy ainda se achava um pouco presunçosa.
- Então deve saber também que os raios infravermelhos não
soam o alarme quando entra, mas sim quando sai. Sente a
mudança de calor. Não há qualquer possibilidade de
atravessá-los sem desencadear o alarme.
Ela não sabia disso. Como Jeff descobrira?
- Por que está me contando tudo isso?
Ele sorriu e Tracy pensou que Jeff nunca parecera tão
atraente.
- Para ser franco, duquesa, não quero que seja apanhada. Gosto
de tê-la por perto. Você e eu poderíamos nos tornar bons
amigos, Tracy.
- Está enganado. - Ela avistou a companheira de Jeff se
aproximar apressadamente. - Lá vem a Senhorita Diabetes.
Divirta-se.
Enquanto se afastava, Tracy ouviu a companheira de Jeff dizer:
- Trouxe também um copo de champanha para você poder tomar a
aspirina, meu pobre querido.
O jantar foi suntuoso. Cada prato era acompanhado pelo vinho
apropriado, impecavelmente servido por lacaios de luvas
brancas. O primeiro prato foi espargos naturais, seguindo-se
um consome com delicados cogumelos. Depois, veio um lombo de
ovelha com legumes frescos da horta do conde. Uma salada de
endiva foi o prato seguinte.A sobremesa foi sorvete num
epergne de prata, acompanhado por petits fours. Café e
conhaque vieram por último. Charutos foram oferecidos aos
homens, enquanto as mulheres recebiam perfume Joy num frasco
de cristal Baccarat. Depois do jantar, o Conde de Matigny
virou-se para Tracy e disse:
- Comentou que estava interessada em ver alguns dos meus
quadros. Não quer dar uma olhada agora?
- Eu adoraria.
A galeria de quadros em um autêntico museu, com mestres
italianos, impressionistas franceses e Picassos. O salão
comprido resplandecia com as cores e formas fascinantes
pintadas por imortais. Havia Monets e Renoirs, Canalettos,
Guardis e Hobbemas. Havia uni refinado Menfing e um Rubens,
além de um Ticiano. Uma parede estava quase que completamente
coberta por Cézannes. Não havia a menor possibilidade de
calcular o valor daquela colecção. Tracy ficou contemplando os
quadros por um longo tempo, saboreando sua beleza.
- Espero que estes quadros estejam bem guardados.
O conde sorriu.
- Ladrões tentaram se apossar de meus tesouros em três
ocasiões. Um foi morto por meu cachorro, o segundo ficou
mutilado e o terceiro está cumprindo uma pena de prisão
perpétua, O castelo é uma fortaleza invulnerável, duquesa.
- Fico aliviada em saber disso, conde.
Houve um súbito clarão lá fora.
- Os fogos de artifício estão começando - disse o conde. -
Acho que você vai gostar.
Ele pegou a mão macia de Tracy em sua mão ressequida e áspera,
saindo da galeria.
- Partirei para Deauville pela manhã. Tenho ali uma villa à
beira do mar e convidei alguns amigos para o fim de semana.
Creio que iria gostar.
- Tenho certeza de que gostaria - declarou Tracy, pesarosa. -
Mas, infelizmente, meu marido começa a ficar impaciente.
Insiste que eu volte o mais depressa possível.
Os fogos de artifício se prolongaram por quase uma hora.
Tracy aproveitou a distracção para fazer um reconhecimento da
casa. Era verdade o que Jeff dissera. As chances contra um
roubo bem-sucedido eram formidáveis, mas justamente por esse
motivo Tracy achou que o desafio era irresistível. Sabia que
lá em cima, no quarto do conde, havia jóias no valor de dois
milhões de dólares, além de meia dúzia de obras-primas,
incluindo um Leonardo.
O castelo é um autêntica casa de tesouros, dissera-lhe Gunther
Hartog Mas também é guardado como tal. Não faça nada, se não
tiver um plano infalível.
Pois tenho um plano, pensou Tracy. Se é ou não infalível só
saberei amanhã.
A noite seguinte estava fria e nublada, os muros altos em
torno do castelo pareciam sombrios e ameaçadores quando Tracy
parou nas sombras, vestindo um macacão preto, sapatos de sola
de borracha e luvas pretas e flexíveis de pelica, carregando
uma bolsa no ombro. Por um momento descuidado, a mente de
Tracy foi dominada pela recordação dos muros da penitenciária.
Um tremor involuntário, percorreu-lhe o corpo.
Ela encostara o furgão alugado no muro de pedra, nos fundos
da propriedade. Do outro lado do muro veio um rosnado baixo e
furioso, que se desenvolveu em latidos frenéticos, enquanto o
cão saltava pelo ar, tentando atacar. Tracy visualizou o corpo
pesado e poderoso do doberman, seus dentes mortíferos. Ela
disse baixinho para alguém no furgão:
- Agora.
Um homem franzino, de meia-idade, com uma mochila nas costas,
saiu do furgão, puxando uma fêmea doberman. A cadela estava no
cio e o tom dos latidos no outro lado do muro mudou
subitamente para um ganido excitado.
Tracy ajudou a levantar a cadela para o alto do furgão, que
tinha quase a mesma altura do muro.
- Um... dois... três! - sussurrou ela.
Os dois empurraram a cadela por cima do muro para o interior
da propriedade. Houve dois latidos bruscos, o barulho de um
cachorro a farejar, depois o som dos animais correndo para
longe. Houve silêncio em seguida. Tracy virou-se para o seu
cúmplice.
- Vamos embora.
O homem, Jean-Louis, acenou com a cabeça. Tracy o encontrara
em Antibes. Era um ladrão que passara a maior parte de sua
vida na prisão. Jean-Louis não era muito inteligente, mas se
destacava como um génio em fechaduras e alarmes, perfeito para
aquele trabalho.
Tracy passou do teto do furgão para o alto do muro.
Desenrolou uma escada de corda e prendeu-a na beira do muro.
Os dois desceram para a relva lá embaixo. A propriedade estava
muito diferente de sua aparência na noite anterior, quando se
achava intensamente iluminada e povoada por convidados
risonhos. Agora, tudo era escuridão e desolação.
Jean-Louis foi seguindo atrás de Tracy, apreensivo, atento à
aproximação dos dobermans.
O castelo estava coberto por uma hera de muitos séculos,
subindo do chão ao telhado. Tracy experimentara discretamente
a hera na noite anterior. Agora, a hera aguentou o peso de seu
corpo. Ela começou a subir, sempre esquadrinhando a
propriedade por baixo. Não havia o menor sinal dos cachorros.
Espero que eles fiquem ocupados por muito tempo, pensou Tracy.
Quando chegou ao telhado, Tracy fez sinal para Jean-Louis e
ficou esperando enquanto ele subia. à luz da lanterna de facho
mínimo que Tracy acendeu, eles viram uma clarabóia de vidro,
trancada seguramente por dentro. Enquanto Tracy observava,
Jean-Louis meteu a mão na mochila em suas costas e tirou um
pequeno cortador de vidro. Levou menos de cinco minutos para
remover um pedaço do vidro. Tracy baixou os olhos e constatou
que o caminho se achava bloqueado por uma teia de arame de
fios de alarme.
- Pode dar um jeito nisso, Jean? - sussurrou ela.
- Je peux Jaire ça. Não há problema.
Ele meteu a mão no bolso e tirou um fio com 30 centímetros de
comprimento, um grampo em cada ponta. Deslocando-o lentamente,
determinou o início do fio do alarme. Desencapou-o e prendeu
um grampo ali. Depois, pegou um alicate e cortou o fio com
todo cuidado. Tracy ficou tensa, esperando pelo som do alarme.
Mas o silêncio persistiu. Jean-Louis levantou os olhos para
ela e sorriu.
- Voilà. Fini.
Errado, pensou Tracy. Está apenas começando.
Eles usaram uma segunda escada de corda para descer pela bóia.
Até ali, tudo bem. Haviam alcançado o sótão em segurança. Mas
quando Tracy pensou no que haveria pela frente, seu coração
começou a bater mais forte. Ela tirou de sua bolsa dois óculos
de protecção de lentes vermelhas, entregando um par a
Jean-Louis.
- Ponha isto.
Ela imaginara uma maneira de distrair o doberman, mas os
alarmes infravermelhos haviam se mostrado um problema mais
difícil de resolver. Jeff estava correcto: A casa em
entrecruzada por fachos invisíveis. Tracy respirou fundo por
várias vezes. Concentre sua energia, sua chi. Relaxe. Ela
forçou a mente a uma lucidez total. Quando, uma pessoa entra
num facho, nada acontece; mas no instante em que sai do facho,
o sensor detecta a diferença na temperatura e o ataras é
desencadeado. Foi armado para soar antes do ladrão abrir o
cofre, não lhe dando tempo para fazer qualquer coisa antes da
chegada da polícia.
E nisso, concluíra Tracy, estava a fraqueza do sistema. Ela
precisava encontrar um meio para manter o alarme silencioso
depois do cofre ser aberto. Encontrara a solução às seis e
meia da manhã e sentira o excitamento familiar invadi-la.
Agora, ela pôs os óculos infravermelhos e no mesmo instante
todo o sótão adquiriu um clarão vermelho fantasmagórico. Tracy
avistou na frente da porta do sótão um facho de luz, que seria
invisível sem os óculos.
- Passe por baixo - ela avisou a Jean-Louis. - E tome todo o
cuidado.
Eles rastejaram por sob o facho. Foram para um corredor às
escuras, que levava ao quarto do Conde de Matigny. Tracy
acendeu a lanterna e seguiu na frente. Através dos óculos
infravermelhos, ela divisou outro facho, este muito próximo ao
chão, no limiar da porta do quarto. Cautelosamente, pulou por
cima. Jean-Louis se encontrava logo atrás dela.
Tracy passou a lanterna pelas paredes. Lá estavam os quadros,
impressivos, espantosos.
Prometa que me trará o Leonardo, dissera Gunther. E também as
jóias, é claro.
Tracy tirou o quadro da parede, virou-o e pós no chão. Removeu
cuidadosamente a tela da moldura, enrolou-a e guardou na
bolsa. Agora, só restava o cofre, que ficava numa alcova com
cortina, na outra extremidade do quarto.
Tracy abriu a cortina. Quatro fachos infravermelhos
atravessavam a alcova, cruzando-se. Era impossível alcançar o
cofre sem passar por um dos fachos. Jean-Louis olhou para os
fachos, consternado.
- Bon Dieu de merde! Não podemos passar por isso. Os fachos
são muito rentes ao chão para se rastejar por baixo ou muito
altos para se pular por cima.
- Quero que faça exactamente o que eu mandar, Jean-Louis. -
Tracy se postou atrás dele e passou os braços por sua cintura.
- E agora ande comigo. Primeiro o pé esquerdo.
Juntos, eles deram um passo na direcção dos fachos, depois
outro. Jean-Louis balbuciou:
- Alors! Vamos entrar neles!
- Isso mesmo.
Eles avançaram directamente para o centro dos fachos, ao ponto
em que convergiam. Tracy parou.
- E agora, Jean-Louis, quero que você preste toda atenção. Vá
até o cofre.
- Mas os fachos...
- Não se preocupe. Não haverá qualquer problema.
Tracy torcia fervorosamente para estar certa. Hesitante,
Jean-Louis afastou-se dos fachos infravermelhos. O silêncio
não foi rompido. Ele virou a cabeça e fitou Tracy, os olhos
enormes e assustados. Ela se colocou no meio dos fachos, o
calor de seu corpo impedindo que os sensores soassem o alarme.
Jean-Louis adiantou-se apressadamente para o cofre. Tracy
permaneceu completamente imóvel, sabendo que o alarme soaria
no instante em que se mexesse. Pelo canto dos olhos, ela podia
ver Jean-Louis, retirando algumas ferramentas da mochila nas
costas e começando a trabalhar imediatamente no cofre. Tracy
continuou imóvel, respirando fundo, bem devagar. O tempo
parou. Jean-Louis parecia estar demorando uma eternidade. A
panturrilha da perna direita de Tracy começou a doer, depois
entrou em espasmo. Ela rangeu os dentes. Não se atrevia a
fazer qualquer movimento.
- Quanto tempo? - sussurrou ela.
- Mais uns dez ou quinze minutos.
Parecia a Tracy que estava parada ali por toda a sua vida. Os
músculos da perna esquerda começavam a ter cãibras. Achava-se
imobilizada pelos fachos, congelada, Ouviu um estalido. O
cofre estava aberto.
- Magnifique! Est ta banquei! Quer tudo? - indagou Jean-Louis.
- Nada de documentos. Somente as jóias. E todo o dinheiro que
tiver aí será seu.
- Merci.
Tracy ouviu Jean-Louis vasculhar o cofre e poucos momentos
depois ele se aproximava dela.
- Formidable! - disse ele. - Mas como sairemos daqui sem
romper os fachos?
- Não o faremos.
Ele ficou aturdido.
- Como?
- Fique na minha frente
- Mas...
- Faça o que estou mandando.
Em pânico, Jean-Louis avançou pelo facho. Tracy prendeu a
respiração, Nada aconteceu.
- Muito bem. Agora, bem devagar, vamos recuar para fora da
alcova.
- E depois?
Os olhos de Jean-Louis pareciam enormes por trás dos óculos
infravermelhos.
- E depois, meu amigo, sairemos correndo.
Lentamente, eles recuaram pelos fachos, na direcção da
cortina, onde começavam. Ao chegarem ali, Tracy respirou
fundo.
- Óptimo. Quando eu disser agora, saímos pelo mesmo caminho
por que entramos.
Jean-Louis engoliu em seco e assentiu. Tracy podia sentir o
corpo pequeno dele a tremer.
- Agora!
Tracy virou-se e, correu para a porta, Jean-Louis em seu
encalço. No instante em que se afastaram dos fachos, o alarme
soou. O barulho era ensurdecedor, assustador.
Tracy disparou para o sótão, subiu pela escada de corda, com
Jean-Louis logo atrás. Correram pelo telhado, desceram pela
hera, atravessaram os jardins para o ponto no muro em que a
segunda escada de corda esperava. Momentos depois estavam em
cima do furgão, no lado de fora da propriedade. Tracy
sentou-se ao volante, com Jean-Louis a seu lado.
Enquanto o furgão descia por uma estradinha de terra
secundária, Tracy avistou um sedã escuro estacionado sob
algumas árvores. Por um instante, os faróis do furgão
iluminaram o interior do carro. Jeff Stevens estava sentado ao
volante. A seu lado, um enorme doberman. Tracy riu alto e
soprou-lhe um beijo, o furgão logo se afastando a toda a
velocidade.
à distância, soava o gemido das sirenes de carros da polícia
se aproximando.
26
Biarritz, na costa sudoeste da França, perdera muito do
encanto que possuía na passagem do século. O outrora famoso
Casino Bellevue está fechado para reparos muito necessários,
enquanto o Casino Municipal, na Rue Mazagran, é agora um
prédio desmantelado, alojando pequenas lojas e uma escola de
dança. As antigas villas nos morros assumiram uma aparência de
nobreza maltrapilha.
Mesmo assim, durante a temporada, de julho a setembro, os
ricos e titulados da Europa continuam a ir para Biarritz, a
fim de desfrutar o jogo, o sol e suas recordações. Os que não
possuem residências próprias ficam hospedados no luxuoso Hôtel
du Palais, na Avenue Impératrice. A antiga residência de verão
de Napoleão III está situada num promontório sobre o Oceano
Atlântico, num dos mais espectaculares cenários da natureza:
um farol num lado, flanqueado por imensos rochedos pontiagudos
assomando do mar cinzento como monstros pré-históricos, e a
calçada de madeira no outro.
Numa tarde, no final de agosto, a baronesa francesa
Marguerite de Chantilly entrou no saguão do Hôtel du Palais.
Era uma mulher elegante, de cabelos louros lustrosos. Usava um
Givenchy de seda verde e branco, que delineava um corpo que
fazia as mulheres se virarem e olharem com inveja, deixava os
homens embasbacados. A baronesa encaminhou-se para a recepção
e disse:
- Ma clé, s'il vous plaít.
Tinha um encantador sotaque francês.
- Pois não, baronesa.
O recepcionista entregou a Tracy a chave e diversos recados
telefónicos. Quando ela se encaminhou para o elevador, um
homem de óculos, aparência amarfanhada, virou-se abruptamente
da vitrine que expunha echarpes Hermès e esbarrou nela,
derrubando a bolsa de sua mão.
- Oh, minha cara, lamento profundamente! - Ele pegou a bolsa e
entregou a Tracy. - Por favor, perdoe-me.
Ele falava com um sotaque da Europa Central. A Baronesa
Marguerite de Chantilly deu-lhe um aceno de cabeça arrogante e
seguiu em frente.
O ascensorista abriu a porta do elevador e deixou-a no
terceiro andar. Tracy escolhera a Suíte 312, tendo aprendido
que muitas vezes a selecção das acomodações no hotel era tão
importante quanto o próprio hotel. Em Capri, era o Bangaló
522, no Quisisana. Em Majorca, era a Suíte Real do Son Vida,
dando para as montanhas e a baía distante. Em Nova York, era a
Suíte da Torre 4717, no Hehnsley Palace Hotel. Em Amsterdam,
era o Quarto 325, no Amstel, onde o hóspede era embalado ao
sono pelo marulhar suave das águas no canal.
A Suíte 312 do Hôtel du Palais oferecia uma vista panorâmica
tanto do mar como da cidade. Tracy podia observar, de todas as
janelas, as ondas se lançando contra os rochedos eternos,
projectando-se do mar como vultos afogados. Directamente
abaixo de sua janela ficava uma piscina enorme, em formato de
rim, a água de um azul brilhante contrastando com o cinzento
do oceano, tendo ao lado um terraço amplo, com guarda-sóis
para proteger do sol do verão. As paredes da Suíte eram
forradas em damasco azul e branco, os rodapés eram de mármore,
os tapetes e cortinas da cor de rosa desbotada. A madeira das
portas e janelas era manchada com a suave patina do tempo.
Depois de trancar a porta, Tracy tirou a peruca loura muito
justa e massageou o couro cabeludo. A personagem da baronesa
era uma de suas melhores. Havia centenas de títulos a escolher
em Debrett's Peerage and Baronetage e no Almanach de Gotha,
duquesas, princesas, baronesas e condessas às dezenas, de duas
dúzias de países. Os livros eram valiosos para Tracy, pois
forneciam histórias de família remontando por séculos, com os
nomes de pais, mães e filhos, escolas e casas, endereços de
residências. Era uma questão simples escolher uma família
preeminente e tornar-se uma prima distante - particularmente
uma prima distante rica. As pessoas sempre se impressionavam
por títulos e dinheiro.
Tracy pensou no estranho que esbarrara nela no saguão do hotel
e sorriu.
àss oito horas daquela noite, a Baronesa Marguerite de
Chantilly estava sentada no bar do hotel quando o homem com
quem colidira no saguão aproximou-se de sua mesa.
- Com licença - disse ele, timidamente - mas quero pedir
desculpas outra vez por minha falta de jeito indesculpável.
esta tarde.
Tracy presenteou-o com um sorriso gracioso.
- Não foi nada. Apenas um acidente.
- É muito gentil. - O homem hesitou. - Eu me sentiria muito
melhor se me permitisse lhe oferecer um drinque.
- Oui... se faz questão.
Ele ocupou uma cadeira à frente de Tracy.
- Permita que eu me apresente. Sou o Professor Adolf
Zuckerman.
- Marguerite de Chantilly.
Zuckerman fez sinal para o garçon e depois perguntou a Tracy:
- O que gostaria de tomar?
- Champanha. Isto é, se...
Ele levantou a mão, num gesto tranquilizador.
- Tenho condições. E, para dizer a verdade, estou prestes a
ter condições de oferecer qualquer coisa no mundo.
- É mesmo? - Tracy sorriu - Isso é óptimo para você.
- Tem toda a razão.
Zuckerman pediu uma garrafa de Bolfinger, depois tornou a
virar-se para Tracy.
- Aconteceu-me a coisa mais extraordinária. Eu não deveria
estar discutindo isso com uma estranha, mas é excitante demais
para me manter calado. - Ele inclinou-se para a frente e
baixou a voz. - Para ser franco, sou um simples professor...
ou era, até recentemente. Ensino história. É bastante
agradável, mas não muito emocionante.
Tracy escutava com uma expressão de interesse polido no rosto.
- Ou melhor, não era emocionante até há poucos meses atrás.
- Posso perguntar o que aconteceu há poucos meses, Professor
Zuckerman?
- Eu fazia pesquisas sobre a Armada Espanhola, procurando
informações que pudessem tornar o assunto mais interessante
para meus alunos. Nos arquivos do museu local, encontrei um
velho documento que de alguma forma se misturara com outros
papéis. Continha detalhes sobre uma expedição secreta que o
Príncipe Philip despachou em 1588. Um dos navios, carregado de
barras de ouro, supostamente naufragou numa tempestade,
desaparecendo sem deixar qualquer vestígio.
Tracy fitou-o com uma expressão pensativa.
- Supostamente naufragou?
- Exactamente. Mas, de acordo com esse documento que descobri,
o comandante e a tripulação deliberadamente afundaram o navio
numa enseada deserta, planeando voltar depois para recolher o
tesouro. Mas foram atacados e mortos por piratas, antes que
pudessem voltar. O documento só sobreviveu, porque nenhum dos
piratas sabia ler ou escrever E, assim, ignoravam o que tinham
em mãos.
A voz do professor tremia agora de excitamento.
- Agora... - Ele, olhou ao redor, certificando-se de que era
seguro continuar, baixou ainda mais a voz para acrescentar:
-... eu tenho o documento, com instruções detalhadas sobre a
maneira de chegar ao tesouro.
- Uma descoberta afortunada, professor.
Havia um tom de admiração na voz de Tracy.
- O ouro vale provavelmente cinquenta milhões de dólares hoje
- disse Zuckerman. -Tudo o que tenho de fazer é tirá-lo lá do
fundo.
- O que o está impedindo?
Ele encolheu os ombros, embaraçado.
- Dinheiro, Preciso equipar um navio para trazer o ouro à
superfície.
- Entendo... Quanto isso custa?
- Cem mil dólares. Devo confessar que fiz uma tremenda tolice.
Peguei vinte mil dólares... as economias de minha vida... e
vim para Biarritz jogar no cassino, esperando ganhar o
suficiente para...
A voz dele sumiu.
- E perdeu tudo.
O professor assentiu. Tracy percebeu o brilho de lágrimas por
trás dos óculos.
O champanha chegou, o garçon tirou a rolha, despejou o
líquido dourado nos copos.
- Bonne chance - brindou Tracy.
- Obrigado.
Eles tomaram um gole do champanha, num silêncio pensativo.
- Por favor, perdoe-me por entediá-la com a minha história -
disse Zuckerman. - Eu não deveria estar expondo os meus
problemas a uma linda dama.
- Achei a sua história fascinante, professor. Tem certeza de
que o ouro está mesmo lá?
- Sem a menor sombra de dúvida. Tenho as ordens de embarque
originais e um mapa desenhado pelo próprio comandante. Conheço
a localização exacta do tesouro.
Tracy observava-o com uma expressão cada vez mais pensativa.
- Mas precisa de cem mil dólares, não é mesmo?
Zuckerman riu, tristemente.
- Exactamente. Para obter um tesouro que vale cinquenta
milhões de dólares.
Ele tomou outro gole de champanha.
- É possível...
Tracy não acrescentou mais nada.
- O quê?
- Já pensou em arrumar um sócio?
Ele ficou surpreso.
- Um sócio? Não. Planeei fazer tudo sozinho. Mas é claro que
agora que perdi meu dinheiro...
Sua voz tornou a sumir.
- E se eu lhe desse os cem mil dólares, Professor Zuckerman?
Ele sacudiu a cabeça.
- Absolutamente não, baronesa. Eu não permitiria. Pode perder
seu dinheiro.
- Mas se tem certeza de que o tesouro se encontra lá...
- Quanto a isso, tenho certeza absoluta. Mas mil coisas podem
sair erradas. Não há garantias.
- Há poucas garantias na vida. Seu problema é muito
interessante. Se eu o ajudasse a resolver, poderia ser
lucrativo para nós dois.
- Não. Eu jamais me perdoaria se, por algum acaso remoto,
perdesse o seu dinheiro.
- Posso arcar com o prejuízo. E poderia obter um grande lucro
com meu investimento, não é?
- Claro que tem esse lado. - Zuckerman ficou em silêncio por
um longo tempo, obviamente dilacerado pelas dúvidas. - Se é o
que deseja, será uma sociedade meio a meio.
Ela sorriu, satisfeita.
- D'accord. Eu aceito.
O professor apressou-se em acrescentar:
- Descontadas as despesas, é claro.
- Naturalmente. Quando podemos começar?
- Imediatamente. - O professor exibia uma repentina
vitalidade. - Já encontrei o barco que quero usar. Possui um
equipamento moderno de dragagem e quatro tripulantes. É claro
que teremos de dar a eles uma pequena parecela do que
encontrarmos.
- Bien sur.
- Devemos começar o mais depressa possível ou poderemos perder
o barco.
- Posso ter o dinheiro disponível em cinco dias.
- Maravilhoso! - exclamou Zuckerman. - Isso me dará tempo
suficiente para todos os preparativos. Ah, que encontro
fortuito para nós dois, não é mesmo?
- Sim, sem dúvida.
- à nossa aventura.
O professor ergueu seu copo. Tracy também ergueu o seu e
brindou:
- Que seja tão lucrativa quanto eu pressinto que será.
Os copos retiniram. Tracy olhou através do bar e ficou
paralisada. Jeff Stevens se encontrava a uma mesa no canto,
observando-a com um sorriso divertido. Tinha em sua companhia
uma mulher atraente, carregada de jóias.
Jeff acenou com a cabeça para Tracy e ela sorriu, recordando
como o vira pela última vez, no lado de fora da propriedade do
Conde de Matigny, acompanhado por um enorme cão. Aquela foi
uma vitória minha, pensou Tracy, feliz.
- Com licença, mas é melhor eu me retirar agora - Zuckerman
estava dizendo. -Tenho muito o que fazer. Ficarei em contacto.
Tracy estendeu a mão, graciosamente, ele beijou-a e partiu.
- Vi que seu amigo a abandonou e não posso imaginar o motivo.
Você está absolutamente sensacional como uma loura.
Tracy levantou os olhos. Jeff estava de pé ao lado de sua
mesa. Ele sentou na cadeira que Adolf Zuckerman desocupara
poucos minutos antes.
- Meus parabéns - acrescentou Jeff. - O golpe do Conde de
Matigny foi muito engenhoso. Impecável.
- Partindo de você, Jeff, é um grande elogio.
- Está-me custando muito dinheiro, Tracy.
- Acabará se acostumando.
Ele ficou brincando com o copo à sua frente.
- O que o Professor Zuckerman queria?
- Você o conhece?
- Pode-se dizer que sim.
- Ele... ahn... apenas queria tomar um drinque.
- E lhe falou sobre o tesouro afundado?
Tracy tornou-se subitamente cautelosa.
- Como sabe disso?
Jeff fitou-a com uma expressão surpresa.
- Não me diga que caiu! É a mais antiga vigarice do mundo.
- Não desta vez.
- Está querendo dizer que acreditou nele?
Tracy disse, rigidamente:
- Não estou em liberdade para discutir o assunto, mas
acontece que o professor dispõe de informações confidenciais.
Jeff sacudiu a cabeça, incrédulo.
- Ele está tentando passá-la para trás, Tracy. Quanto lhe
pediu para investir em seu tesouro afundado?
- Não interessa - respondeu Tracy, bruscamente. - É meu
dinheiro.
Jeff encolheu os ombros.
- Certo. Mas depois não diga que o velho Jeff não tentou
avisá-la.
- Isso não significa que você está Interessado no ouro, pois
não?
Ele levantou as mãos, num gesto irónico de desespero.
- Por que está sempre tão desconfiada de mim?
- É muito simples. Não confio em você. Quem era aquela mulher
que lhe fazia companhia?
Tracy desejou no mesmo instante poder retirar a pergunta.
- Suzanne? Uma amiga.
- Rica, é claro.
Jeff exibiu um sorriso prolongado.
- Para ser franco, acho que ela tem algum dinheiro. Se quiser
nos acompanhar no almoço amanhã, o chef de Suzanne, em seu
iate de duzentos e cinquenta pés ancorado no porto, faz um...
- Obrigada, mas por nada neste mundo eu poderia atrapalhar o
seu almoço. O que está vendendo a ela?
- Isso é pessoal.
- Tenho certeza de que é mesmo.
As palavras saíram mais ásperas do que Tracy tencionara. Ela
estudou-o por cima da borda de seu copo. Ele tinha feições
firmes, lindos olhos cinzentos, pestanas compridas e o coração
de uma cascavel. Uma cascavel muito inteligente.
- Já pensou alguma vez em se meter num negócio legitimo? -
perguntou Tracy. - Provavelmente seria muito bem sucedido.
Jeff ficou chocado.
- E renunciar a tudo isto? Você só pode estar gracejando!
- Sempre foi um vigarista?
- Vigarista? Sou um entrepreneur.
- E como se tornou um... um entrepreneur?
- Fugi de casa quando tinha catorze anos e me juntei a um
parque de diversões ambulante.
- Aos catorze anos?
Era o primeiro vislumbre que Tracy tinha do que havia por
trás do verniz sofisticado e charmoso.
- Foi bom para mim... aprendi a enfrentar as coisas. Quando
surgiu essa maravilhosa guerra do Vietname, ingressei nos
Boinas Verdes e fiz um curso de pós-graduação. Creio que a
coisa principal que aprendi foi que a guerra era a maior das
vigarices. Em comparação com aquilo, você e eu não passamos de
amadores. - Ele mudou de assunto abruptamente. - Gosta de
pelota?
- Se está vendendo, não, obrigada.
- É um jogo, uma variação do jai alai. Tenho dois ingressos
para esta noite, mas Suzanne não poderá ir. Gostaria de ir?
Tracy descobriu-se a dizer que sim.
Eles jantaram num pequeno restaurante na praça municipal,
tomando um vinho local e comendo confit de canard d'aile -
pato assado em seus próprios sumos, com batatas e alho. Estava
delicioso.
- A especialidade da casa - informou Jeff a Tracy.
Conversaram sobre política, livros e viagens. Tracy descobriu
que Jeff era surpreendentemente bem informado.
- Quando se está entregue à própria sorte aos catorze anos -
explicou Jeff - é preciso aprender as coisas depressa.
Primeiro, aprende-se o que motiva a gente, depois o que motiva
as outras pessoas. Uma vigarice é igual ao jiu-jitsu. No
jiu-jitsu, usa-se a força do oponente para vencer. Numa
vigarice, usa-se a sua ganância. Você só faz o primeiro
movimento. Ele cuida de todo o resto por você.
Tracy sorriu, especulando se Jeff tinha alguma idéia do quanto
os dois eram parecidos. Ela gostava de sua companhia, mas
tinha certeza de que, havendo a oportunidade, Jeff não
hesitaria em traí-la. Era um homem com quem se tinha de tomar
todo cuidado e ela não tencionava facilitar.
A pelota era jogada numa grande arena ao ar livre, do tamanho
de um campo de futebol, no alto das colinas de Biarritz. As
enormes tabelas verdes de concreto nos dois lados da quadra,
com uma área de jogar no centro, quatro fileiras de
arquibancadas de pedra nos lados. Os reactores foram acesos ao
anoitecer. Quando Jeff e Tracy chegaram, as arquibancadas
estavam quase lotadas de fãs. As duas equipes entraram em
acção.
Membros de cada equipe se revezavam em arremessar a bola no
muro de concreto e apanhá-la no rebote em suas cestas,
compridas e estreitas, presas nos braços. A pelota era um jogo
rápido e perigoso. Quando um dos jogadores errava, a multidão
se punha a gritar.
- Eles realmente levam esse jogo muito a sério - comentou
Tracy.
- Muito dinheiro é apostado nas partidas. Os bascos formam
uma raça de jogadores.
Enquanto os espectadores continuavam a chegar, as
arquibancadas foram ficando cada vez mais cheias. Tracy se
descobriu comprimida contra Jeff. Se ele estava consciente do
calor do corpo dela junto ao seu, não deixou transparecer.
O ritmo e ferocidade do jogo pareciam se intensificar à
medida que os minutos passavam. Os gritos dos torcedores
ressoavam pela noite.
- É mesmo tão perigoso quanto parece? - perguntou Tracy.
- Baronesa, aquela bola viaja pelo ar a uma velocidade
superior a cento e cinquenta quilómetros horários. Se bater em
sua cabeça, está morta. Mas é raro um jogador errar.
Jeff afagou-lhe a mão distraidamente, os olhos concentrados
no jogo. Os jogadores eram extraordinários, movendo-se
graciosamente, em perfeito controle. Mas, no meio da partida,
inesperadamente, um dos jogadores arremessou a bola contra a
tabela num ângulo errado. A bola mortífera avançou para o
banco em que Jeff e Tracy estavam sentados. Os espectadores
tentaram se proteger. Jeff agarrou Tracy e empurrou-a para o
chão, seu corpo cobrindo o dela. Ouviram a bola passar
directamente por cima de suas cabeças e bater na parede. Tracy
ficou deitada no chão, sentindo a dureza do corpo de Jeff. O
rosto dele estava muito próximo do seu.
Ele segurou-a por um momento, depois levantou-se e ajudou-a a
se erguer também. Havia um súbito constrangimento entre os
dois.
- Eu... eu acho que já tive emoção suficiente por uma noite -
murmurou Tracy. - Gostaria de voltar ao hotel, por favor.
Despediram-se no saguão.
- Gostei muito da noite - disse Tracy a Jeff, falando com
absoluta sinceridade.
- Tracy, pretende mesmo levar adiante a história maluca do
tesouro afundado de
- Claro.
Ele estudou-a, por um longo momento.
- Ainda pensa que estou atrás daquele ouro, não é mesmo?
Tracy fitou-o nos olhos.
- E não está?
A expressão de Jeff se endureceu.
- Boa sorte.
- Boa noite, Jeff.
Tracy observou-o virar-se e deixar o hotel. Calculou que ele
ia ao encontro de Suzanne. Pobre mulher. Quando ela foi pegar
a chave, o recepcionista disse:
- Boa noite, baronesa. Há um recado à sua espera.
Era do Professor Zuckerman.
Adolf Zuckerman tinha um problema. Um problema muito grande.
Estava sentado no escritório de Armand Grangier e ficara tão
apavorado pelo que estava acontecendo que urinara nas calças.
Grangier era o proprietário de um cassino particular ilegal,
localizado numa elegante viria, na Rue Frias, 123. Não fazia a
menor diferença para Grangier se o Casino Municipal estava
fechado ou não, pois o clube da Rue Frias sempre ficava
repleto de clientes ricos. Ao contrário dos cassinos
supervisionados pelo governo, as apostas ali eram ilimitadas.
Aquele era o lugar em que os grandes apostadores iam jogar
roleta, chemin de fer e dados. Os clientes de Grangier
incluíam príncipes árabes, a nobreza inglesa, homens de
negócios orientais, chefes de Estado africanos. Jovens
escassamente vestidas circulavam pela sala, recebendo pedidos
para mais champanha e uísque. Arrnand Grangier aprendera há
muito tempo que os ricos, mais do que qualquer outra classe,
apreciavam obter alguma coisa de graça. Grangier podia se dar
ao luxo de oferecer bebidas de graça, pois suas roletas eram
viciadas e os jogos de cartas combinados.
O clube geralmente vivia repleto, com finas jovens escoltadas
por homens mais velhos e endinheirados. Mais cedo ou mais
tarde, as mulheres eram atraídas para Grangier. Ele era uma
miniatura de homem, com feições perfeitas, olhos castanhos
profundos, uma boca suave e sensual. Tinha 1,60 metros de
altura e a combinação de beleza e pequena estatura atraia as
mulheres como um íman. Grangier tratava a todos com uma
admiração simulada.
- Eu a acho irresistível, chérie, mas infelizmente para nós
dois estou loucamente apaixonado por outra mulher.
E era verdade. É claro que a outra mulher mudava de semana
para semana pois em Biarritz havia um suprimento interminável
de finas jovens e Armand Grangier concedia a cada uma o seu
breve lugar ao sol.
As ligações de Grangier com o submundo e a polícia eram
bastante poderosas para que pudesse manter seu cassino.
Empenhara-se arduamente para subir pela escada do crime,
começando como mensageiro no tráfico de tóxicos, até
finalmente conquistar seu feudo em Biarritz. Os que se opunham
a ele sempre descobriam, tarde demais, como o homenzinho podia
ser mortífero.
Agora, Adolf Zuckerman estava sendo interrogado por Armand
Grangier.
- Fale-me mais a respeito dessa baronesa com quem você falou
sobre o golpe de tesouro afundado.
Pelo tom furioso de sua voz, Zuckerman compreendeu que alguma
coisa estava errada, terrivelmente errada. Ele engoliu em seco
e disse:
- Ela é viúva. O marido deixou-lhe muito dinheiro. Disse que
vai entrar com cem mil dólares. - O som de sua própria voz
deu-lhe confiança para continuar: - Depois que recebermos o
dinheiro, é claro, diremos a ela que o navio de salvamento
sofreu um acidente e precisamos de mais cinquenta mil. E
depois haverá outros cem mil... e assim por diante.
Ele percebeu a expressão desdenhosa no rosto de Armand
Grangier e balbuciou:
- Qual... qual é o problema, chefe?
- O problema é que acabei de receber um telefonena de um dos
meus homens em Paris. Ele falsificou um passaporte para a sua
baronesa. Ela se chama Tracy Whitney e é americana. Zuckerman
sentiu a boca subitamente ressequida. Passou a língua pelos
lábios.
- Ela... ela parecia realmente interessante, chefe.
- Balle! Conneau! Ela é uma vigarista. Você tentou dar um
golpe numa golpista!
- Então... então por que ela aceitou? Por que simplesmente
não me repeliu?
A voz de Armand Grangier era gelada:
- Não sei, professor, mas tenciono descobrir. E quando o
fizer, mandarei a mulher dar um mergulho na baía. Ninguém pode
fazer Armand Grangier de idiota. Agora, pegue o telefone. Diga
a ela que um amigo seu propôs entrar com a metade do dinheiro
e que eu estou indo falar-lhe. Acha que pode fazer isso?
Zuckerman disse ansiosamente:
- Claro, chefe. Não se preocupe.
- Eu me preocupo - disse Armand Grangier, falando bem devagar.
- Eu me preocupo muito com você.
Armand Grangier não gostava de mistérios. O golpe do tesouro
afundado vinha dando certo há séculos, mas era necessário que
as vitimas fossem crédulas. Não havia a menor possibilidade de
uma vigarista cair num golpe assim. Era esse o mistério que
perturbava Grangier. Ele tencionava esclarecê-lo; e depois que
o fizesse, a mulher seria entregue a Bruno Vicente. Vicente
gostava de se divertir com suas vitrinas, antes de
liquidá-las.
Armand Grangier saltou da limusine diante do Hôtel du Palais,
entrou no saguão e aproximou-se de Jules Bergerac, o basco de
cabeça branca que trabalhava no hotel desde os 13 anos de
idade.
- Qual é o número da Suíte da Baronesa Marguerite de
Chantilly?
Havia uma regra rigorosa que vedava aos recepcionistas
informarem os números dos quartos dos hóspedes. Mas as regras
não se aplicavam a Armand Grangier.
- Suíte 312, Monsieur Grangier.
- Merci.
- E Quarto 311.
Grangier parou.
- Como?
- A baronesa também tem um quarto ao lado de sua Suíte.
- É mesmo? E quem o ocupa?
- Ninguém.
- Ninguém? Tem certeza?
- Oui, monsieur. Ela mantém esse quarto sempre trancado. As
criadas foram avisadas para não entrarem ali.
Grangier franziu o rosto, numa expressão de perplexidade.
- Tem uma chave mestra?
- Claro.
Sem a menor hesitação, o recepcionista meteu a mão por baixo
do balcão, pegou a chave mestra e entregou-a a Armand
Grangier. Jules observou Armand Grangier se encaminhar para o
elevador. Nunca se discutia com um homem como Grangier.
Ao chegar à porta da Suíte da baronesa, Armand Grangier
encontrou-a entreaberta. Empurrou-a e entrou. A sala de estar
se encontrava vazia.
- Olá? Tem alguém aqui?
Uma voz feminina respondeu do outro cómodo:
- Estou no banho. Espere só um momento. Sirva-se de um
drinque, por favor.
Grangier vagueou pela suíte. Conhecia tudo ali, pois ao longo
dos anos instalara no hotel muitas de suas amigas. Entrou no
quarto. Jóias caras estavam negligentemente espalhadas sobre a
penteadeira.
- Não vou demorar - gritou a voz feminina do banheiro.
- Não há pressa, baronesa.
Baronesa mon cul!, pensou ele, furioso. Qualquer que seja o
seu golpe, chérie, vai malograr. Ele foi até a porta que dava
para o quarto adjacente. Estava trancada. Grangier tirou a
chave mestra do bolso e abriu a porta. O quarto em que entrou
tinha um cheiro estranho, bolorento. O recepcionista dissera
que ninguém o ocupava. Então por que ela precisava... A
atenção de Grangier foi atraída para uma coisa estranhamente
deslocada. Um fio eléctrico, preto e grosso, preso a uma
tomada na parede, estendia-se pelo assoalho e desaparecia num
armário. A porta do armário se achava aberta para dar passagem
ao fio. Curioso, Grangier adiantou-se e abriu a porta.
Uma fileira de notas de cem dólares úmidas, presas por
pregadores a um arame, estendia-se de um lado a outro do
armário grande. Havia um objecto coberto por um pano numa
mesinha de máquina de escrever. Ele levantou o pano,
descobrindo uma pequena impressora, com uma nota de cem
dólares ainda molhada. Ao lado da impressora havia folhas de
papel em branco, do tamanho da nota americana, assim como um
cortador de papel. Várias notas de cem dólares, cortadas de
maneira errada, estavam espalhadas pelo chão. Uma voz furiosa,
por trás de Grangier, perguntou:
- O que faz aqui?
Grangier virou-se. Tracy Whitney, os cabelos molhados do
banho e envolta numa toalha, entrara no quarto. Armand
Grangier disse, suavemente:
- Dinheiro falso! Você ia nos pagar com dinheiro falso!
Ele observou a reacção da mulher. Negativa, indignação e
depois desafio.
- Está bem - admitiu Tracy. - Mas não faria a menor
diferença. Ninguém pode distinguir estas notas das
verdadeiras.
- Isso é demais!
Seria um prazer destruir aquela mulher.
- Estas notas são tão boas quanto ouro.
- É mesmo?
Havia desdém na voz de Grangier. Ele pegou uma das notas
úmidas e examinou-a. Olhou um lado, depois o outro, examinou
mais atentamente. Era uma falsificação excelente.
- Quem fez as matrizes?
- Que importância isso tem? Posso ter os cem mil dólares
prontos até sexta-feira.
Grangier fitou-a, aturdido. E quando compreendeu o que ela
estava pensando, não pôde conter uma risada.
- Essa não! Você é mesmo estúpida. Não existe nenhum navio.
Tracy mostrou-se desconcertada.
- Como assim? Não existe nenhum navio? Mas o Professor
Zuckerman me garantiu...
- E acreditou nele? Mas que pena, baronesa. - Ele tornou a
estudar a nota em sua mão. - Levarei isto.
Tracy encolheu os ombros.
- Pode levar quantas quiser. É apenas papel.
Grangier pegou um punhado das notas úmidas de cem dólares.
- Como pode saber que uma das criadas não entrará aqui?
- Eu pago para elas ficarem longe - E tranco o armário quando
saio.
Ela é fria, pensou Armand Grangier. Mas isso não será
suficiente para mantê-la viva.
- Não deixe o hotel - ordenou ele. - Tenho um amigo que quero
que você conheça.
Armand Grangier tencionava entregar a mulher a Bruno Vicente
imediatamente, mas algum instinto o conteve. tornou a examinar
uma das notas. Já manipulara muito dinheiro falsificado, mas
nada tão bom quanto aquele. Quem quer que fizera as matrizes
era um génio. O papel parecia autêntico, as unhas eram
perfeitas e limpas. As cores permaneciam definidas, mesmo com
a nota úmida. A imagem de Benjamin Franklin era perfeita. A
mulher estava certa. Era difícil dizer a diferença entre o que
ele tinha na mão e a coisa verdadeira. Grangier especulou se
seria possível passá-la como dinheiro genuíno. Era uma idéia
tentadora.
Ele decidiu manter Bruno Vicente à espera por mais algum
tempo. Na manhã seguinte, bem cedo, Armand Grangier mandou
chamar Adolf Zuckerman e entregou-lhe uma das notas de cem
dólares.
- Vá ao banco e troque isto por francos.
- Certo, chefe.
Grangier observou-o deixar apressadamente o escritório. Aquela
era a punição de Zuckerman por sua estupidez. Se ele fosse
preso, nunca diria de onde saíra a nota falsa... não se
quisesse viver. Mas se ele conseguisse passar a nota sem
problemas... Vamos esperar para ver o que acontece, pensou
Grangier.
Zuckerman voltou ao escritório 15 minutos depois. Contou um
bolo de francos franceses, no valor de cem dólares.
- Mais alguma coisa, chefe?
Grangier ficou olhando para os francos.
- Teve algum problema?
- Problema? Não. Por quê?
- Quero que volte ao mesmo banco e diga o seguinte...
Adolf Zuckerman entrou no saguão do Banque de France e
aproximou-se da mesa do gerente. Desta vez, Zuckerman, tinha
consciência do perigo que corria, mas preferia enfrentá-lo a
ficar exposto à ira de Grangier.
- O que deseja? - perguntou o gerente.
Zuckerman fez um esforço para disfarçar seu nervosismo.
- O problema é que me meti num jogo de pôquer ontem à noite,
com alguns americanos que conheci num bar.
Ele parou de falar. O gerente do banco acenou com a cabeça
vigorosamente.
- E perdeu todo o seu dinheiro, está precisando agora de um
pequeno empréstimo?
- Não é isso. Para dizer a verdade, eu ganhei. O problema é
que os homens não pareciam muito honestos. - Zuckerman tirou
do bolso duas notas de cem dólares - Pagaram-me com este
dinheiro e receio... receio que talvez seja falso.
Zuckerman prendeu a respiração, enquanto o gerente se
inclinava para a frente e pegava as notas com suas mãos
rechonchudas. Examinou-as meticulosamente, primeiro uma,
depois a outra, suspendeu-as contra a luz. finalmente, ele
olhou para Zuckerman e sorriu.
- Teve sorte, monsieur. Estas notas são genuínas.
Zuckerman permitiu-se deixar o ar escapar dos pulmões. Graças
a Deus! Tudo daria certo.
- Não há qualquer problema, chefe. Ele disse que as notas são
genuínas.
Era quase bom demais para ser verdade. Armand Grangier pôs-se
a pensar, um plano já parcialmente formulado em sua mente.
- Vá buscar a baronesa.
Tracy estava sentada no escritório de Armand Grangier,
fitando-o através da mesa.
- Nós vamos ser sócios - informou-a Grangier.
Tracy começou a se levantar.
- Não preciso de um sócio e...
- Sente-se.
Ela fitou Grangier nos olhos e sentou-se.
- Biarritz é minha cidade. Tente passar uma só dessas notas e
será presa tão depressa que nem saberá o que lhe aconteceu.
Comprenez vous? Coisas terríveis acontecem com as mulheres
bonitas em nossas prisões. Não poderá fazer qualquer coisa por
aqui sem a minha permissão.
Ela estudou-o.
- Então o que estou comprando de você é protecção?
- Errado. O que está comprando de mim é a sua vida.
Tracy acreditou.
- E agora me diga onde arrumou suas matrizes.
Tracy hesitou e Grangier gostou de vê-la se contorcer e
acabar por se render. Ela disse, relutante:
- Comprei de um americano que vive na Suíça. Ele foi gravador
da Casa da Moeda dos Estados Unidos por vinte e cinco anos.
Quando o aposentaram, houve algum problema técnico e nunca lhe
pagaram a pensão. Ele sentiu-se trapaceado e resolveu se
vingar. Tirou dos Estados Unidos algumas chapas de notas de
cem dólares que deveriam ter sido destruídas, usou os seus
contactos para obter o papel com que o Departamento de Tesouro
imprime seu dinheiro.
Isso explica tudo, pensou Grangier, triunfante. É por isso que
as notas parecem tão boas. Seu excitamento era cada vez maior.
- Quanto dinheiro a impressora pode produzir em um dia?
- Somente uma nota por hora. Cada lado do papel tem de ser
processado e...
Grangier interrompeu-a:
- Não há uma impressora maior?
- Há, sim. Ele tem uma que produz cinquenta notas a cada oito
horas, mas só venderia por meio milhão de dólares.
- Compre-a - ordenou Grangier.
- Acontece que não tenho quinhentos mil dólares.
- Mas eu tenho. Quando poderá ter uma impressora maior?
Tracy respondeu, relutante:
- Acho que imediatamente. Mas eu não...
Grangier pegou o telefone e disse:
- Louis, quero quinhentos mil dólares em francos franceses.
Tire o que temos no cofre e pegue o resto com os bancos. Traga
ao meu escritório. Vite!
Tracy levantou-se, bastante nervosa.
- É melhor eu ir e...
- Você não vai a lugar nenhum.
- Mas eu preciso...
- Fique sentada ai e mantenha-se calada. Estou pensando.
Ele tinha associados nos negócios que esperariam ser
incluídos numa operação como aquela. Mas o que eles sabem lhes
fará mal, decidiu Grangier. Compraria a impressora maior para
si mesmo e substituiria o dinheiro que tomara emprestado da
conta do cassino nos bancos pelos dólares que imprimiria.
Depois disso, mandaria Bruno Vicente cuidar da mulher. Ela não
gostava de sócios.
Armand Grangier também não.
O dinheiro chegou duas horas depois, numa sacola grande.
Grangier disse a Tracy:
- Você sairá do Palais. Tenho uma casa nas colinas que é
muito particular. Ficará lá até iniciarmos a operação. - Ele
empurrou o telefone na direcção de Tracy. - Agora, ligue para
o seu amigo na Suíça e diga a ele que vamos comprar a
impressora grande.
- Tenho o telefone dele no hotel. Ligarei de lá. Dê-me o
endereço de sua casa. Avisarei a ele para enviar a impressora
para lá e...
- Não! - gritou Grangier, rispidamente. - Não quero deixar
qualquer pista. Mandarei buscá-la no aeroporto. Conversaremos
a esse respeito esta noite, durante o jantar. Eu a verei às
oito horas.
Era uma dispensa. Tracy levantou-se. Grangier acenou com a
cabeça para a sacola que continha o dinheiro.
- Tome cuidado com o dinheiro. Eu não gostaria que nada
acontecesse com o dinheiro... nem com você.
- Nada acontecerá.
Ele sorriu sugestivamente.
- Sei disso. O Professor Zuckerman a acompanhará de volta ao
hotel.
Os dois seguiram em silêncio na limusine, a sacola com o
dinheiro entre eles, cada um absorto em seus pensamentos.
Zuckerman não sabia direito o que estava acontecendo, mas
tinha a impressão de que seria óptimo para ele. A mulher era a
chave de tudo. Grangier lhe ordenara que ficasse de olho nela
e era o que Zuckerman tencionava fazer.
Armand Grangier ficou eufórico naquela noite. àquela altura, a
compra da impressora grande já deveria estar acertada. A
mulher Whitney dissera que imprimiria cinco mil dólares por
dia. Mas Grangier tinha um plano melhor. Tencionava operá-la
em turnos, 24 horas por dia. Isso daria 15 mil dólares por
dia, mais de cem mil dólares por semana, um milhão a cada dez
semanas. E isso era apenas o começo. Descobriria quem era o
gravador naquela noite e faria um acordo com ele para obter
mais máquinas. Não havia limite para a fortuna que a operação
lhe traria.
Eram precisamente oito horas quando a limusine de Grangier
parou diante da entrada do Hôtel du Palais. Grangier saltou.
Ao entrar no saguão, notou com satisfação que Zuckerman se
achava sentado perto da entrada, observando atentamente as
portas. Grangier encaminhou-se para a recepção.
- Jules, avise à Baronesa de Chantilly que eu estou aqui.
Mande-a descer para o saguão.
O recepcionista ficou surpreso.
- Mas a baronesa já deixou o hotel, Sr. Grangier.
- Está enganado. Ligue para ela.
Jules Bergerac sentiu-se consternado. Não era saudável
contestar Armand Grangier.
- Eu mesmo fiz o registo de saída.
Impossível!
- Quando?
- Pouco depois que ela voltou ao hotel. Pediu-me para levar a
conta à sua Suíte, a fim de poder pagar em dinheiro...
A mente de Armand Grangier estava em disparada vertiginosa.
- Em dinheiro? Francos franceses?
- Isso mesmo, monsieur.
Grangier perguntou, freneticamente:
- Ela levou alguma coisa de sua Suíte? Qualquer bagagem ou
caixas?
- Não. Ela disse que mandaria buscar a bagagem mais tarde.
Então ela levara o seu dinheiro e fora para a Suíça, a fim de
comprar pessoalmente a impressora maior!
- Leve-me para a sua Suíte. Depressa!
- Oui, Monsieur Grangier.
Jules Bergerac pegou uma chave na parede por trás e seguiu
apressadamente para o elevador, junto com Armand Grangier. Ao
passar por Zuckerman, Grangier sibilou:
- Por que está sentado aí, seu idiota? Ela já foi embora.
Zuckerman fitou-o sem compreender.
- Ela não pode ter ido embora. Não desceu para o saguão.
Fiquei atento a ela.
- Atento a ela! - imitou-o Grangier, brutalmente. - Mas por
acaso esteve atento a uma enfermeira, uma velhinha de cabeça
branca ou uma criada saindo pela porta de serviço?
Zuckerman ficou aturdido.
- Por que eu deveria fazer isso?
- Volte ao cassino - disse Grangier asperamente - Cuidarei de
você mais tarde.
A Suíte parecia exactamente como quando Grangier ali fora
anteriormente. A porta de ligação com o quarto adjacente se
achava aberta. Grangier entrou, foi apressadamente até o
armário, abriu a porta. A impressora ainda estava ali, graças
a Deus! A mulher Whitney tinha tanta pressa em partir que a
deixara. Isso fora um erro. E não é o seu único erro, pensou
Grangier. Ela o trapaceara em 500 mil dólares e ele a faria
pagar com uma vingança. Deixaria a polícia ajudá-lo a
descobrir a mulher e a mandaria para a cadeia, onde seus
homens poderiam alcançá-la. Eles a obrigariam a revelar quem
era o gravador e depois a calariam para sempre.
Armand Grangier discou o número da chefatura de polícia e
pediu para falar com o Inspector Dumont. Disse tudo o que
queria durante três minutos, ansiosamente, depois arrematou:
- Ficarei esperando aqui.
Quinze minutos depois o Inspector, que era seu amigo, chegou à
Suíte, acompanhado por um homem de corpo andrógino e uma das
caras mais feias que Grangier já vira. A testa parecia prestes
a explodir do rosto, os olhos castanhos, quase escondidos por
trás dos óculos de lentes grossas, possuíam a expressão
penetrante de um fanático.
- Este é Monsieur Daniel Cooper - disse o Inspector Dumont. -
Monsieur Grangier. O Sr. Cooper também está interessado na
mulher a respeito de quem me telefonou.
Cooper falou:
- Mencionou ao Inspector Dumont que ela está envolvida numa
operação de falsificação.
- exactament. A mulher está a caminho da Suíça neste momento.
Poderão pegá-la na fronteira. E tenho bem aqui todas as provas
necessárias.
Ele levou-os ao armário. Daniel Cooper e o Inspector Dumont
deram uma olhada no interior.
- Lá está a impressora usada para fazer o dinheiro.
Daniel Cooper examinou a máquina cuidadosamente.
- Ela imprimiu o dinheiro nisto?
- Foi o que acabei de falar - disse Grangier bruscamente. Ele
tirou uma nota do bolso. - Olhem para isto. É uma das notas
falsas de cem dólares que ela me deu.
Cooper foi até a janela e examinou a nota contra a luz.
- Esta nota é genuína.
- É que ela usou as chapas roubadas que comprou de um
gravador que trabalhou para a Casa da Moeda americana, em
Filadélfia. E imprimiu as notas nesta impressora.
Cooper disse rudemente:
- Esta é uma impressora comum. Você é muito estúpido. A única
coisa que se pode imprimir nesta máquina é papel timbrado.
- Papel timbrado?
Grangier tinha a sensação de que o quarto começava a rodar.
- Acreditou realmente na fábula de uma máquina que transforma
papel em notas de cem dólares genuínas?
- Estou lhe dizendo que vi com meus próprios olhos...
Grangier parou de falar abruptamente. O que vira? Algumas
notas molhadas de cem dólares penduradas para secar, papel em
branco e um cortador de papel. Ele começou a perceber a
enormidade do golpe de que fora vitima. Não havia qualquer
operação de falsificação, não havia gravador esperando na
Suíça. Tracy Whitney jamais caíra na história do tesouro
afundado. A desgraçada usara o seu próprio golpe como uma isca
para arrancar-lhe meio milhão de dólares. Se a notícia do
golpe se espalhasse...
Os dois homens observavam-no.
- Deseja apresentar acusação de alguma espécie, Armand? -
perguntou o Inspector Dumont.
Como poderia? O que diria? Que fora enganado ao tentar
financiar uma operação de falsificação? E o que fariam seus
associados com ele quando soubessem que lhes roubara meio
milhão de dólares e perdera tudo? Ele foi dominado por um
temor súbito.
- Não. Eu... eu não desejo apresentar qualquer acusação.
Havia pânico em sua voz. África, Pensou Armand Grangier. Eles
nunca me encontrarão na África.
Daniel Cooper estava pensando: Na próxima vez, Eu apegarei na
próxima vez.
27
Foi Tracy quem sugeriu a Gunther Hartog que se encontrassem em
Majorca. Tracy adorava a ilha. Era um dos lugares realmente
pitorescos do mundo.
- Além do mais - disse ela a Gunther - foi outrora o refúgio
de piratas. Nós nos sentiremos à vontade ali.
- Seria melhor se não fôssemos vistos juntos.
- Pode deixar que providenciarei tudo.
Começara com o telefonema de Gunther de Londres:
- Tenho uma coisa para você que é de facto excepcional, Tracy.
Creio que você achará um grande desafio.
Na manhã seguinte, Tracy voou para Palma, a capital de
Majorca. Por causa da circulação vermelha da Interpol sobre
Tracy, sua partida de Biarritz e a chegada em Majorca foram
comunicadas às autoridades locais. Assim que Tracy se registou
na Suíte Real do Hotel Son Vida, uma equipe de vigilância
entrou em acção, numa base de 24 horas por dia. O chefe de
polícia de Palma, Ernesto Marze, falara com o Inspector
Trignant, da Interpol, que lhe dissera:
- Estou convencido de que Tracy Whitney é uma onda de crime
de uma só mulher.
- Pior para ela. Se cometer um crime em Majorca, descobrirá
que nossa justiça é muito rápida.
O Inspector Trignant acrescentou:
- Monsieur, há outra coisa que devo mencionar.
- Sim?
- Receberá um visitante americano. Seu nome é Daniel Cooper.
Parecia aos detectives que vigiavam Tracy que ela só estava
interessada em passeios turísticos. Seguiram-na em suas
excursões pela ilha, na visita ao claustro de San Francesco,
ao pitoresco Castelo Beliver e, à praia em Illetas. Ela
assistiu a uma tourada em Palma, comeu sobrasadas e camaiot na
Plaza de La Reine. Estava sempre sozinha.
Tracy fez viagens a Formentor, ValIdemosa e La Granja, visitou
as fábricas de pérolas em Manacor.
- Nada - comunicaram os detectives a Ernesto Marze. - Ela
está aqui como uma turista, comandante.
A secretária do comandante entrou na sala e informou:
- Há um americano aqui querendo lhe falar. Senhor Daniel
Cooper.
O Comandante Marze tinha muitos amigos americanos. Gostava dos
americanos e tinha o pressentimento de que, apesar do que o
Inspector Trignant lhe dissera, também gostaria daquele Daniel
Cooper.
Ele estava enganado.
- Vocês são idiotas - disse Daniel Cooper asperamente. -
Todos vocês. É claro que ela não está aqui como turista. Veio
atrás de alguma coisa.
O Comandante Marze teve de fazer um grande esforço para manter
o controle.
- Senhor, acaba de dizer que os alvos da Senhorita Whitney são
sempre espectaculares, que ela gosta do impossível. Verifiquei
meticulosamente, Senhor Cooper. Não há nada em Majorca que
possa atrair os talentos da Senhorita Whitney.
- Ela se encontrou com alguém... conversou com qualquer
pessoa?
O tom insolente do ojete!
- Não. Com ninguém.
- Pois então isso ainda vai acontecer - garantiu Daniel
Cooper, incisivamente.
Finalmente compreendo o que se quer dizer com Ugly American,
o Americano Feio, pensou o Comandante Marze.
Há 200 cavernas conhecidas em Majorca, porém as mais
sensacionais são as Cuevas del Drach, as "Cavernas do Dragão",
perto de Porto Cristo, a uma hora de viagem de Palma. As
cavernas antigas descem pela terra profundamente, enormes
câmaras abobadadas, com estalagmites e estalactites, com um
silêncio tumular, excepto pela passagem ocasional de sinuosos
córregos subterrâneos, a água virando verde, azul ou branco,
cada cor indicando a extensão das tremendas profundezas.
As cavernas constituem uma terra de conto de fadas em
arquitectura de um marfim claro, uma sucessão aparentemente
interminável de labirintos, escassamente iluminados por tochas
estrategicamente colocadas.
Ninguém tem permissão para visitá-las sem um guia. Mas, a
partir do momento em que são abertas ao público, pela manhã,
as cavernas ficam repletas de turistas.
Tracy escolheu o sábado para conhecê-las quando se achavam
mais apinhadas, com centenas de turistas de países do mundo
inteiro. Ela comprou seu ingresso no balcão e desapareceu no
meio da multidão. Daniel Cooper e dois homens do Comandante
Marze vinham logo atrás. Um guia levou os excursionistas por
trilhas rochosas estreitas, escorregadias por causa da água
pingando das estalactites por cima, apontando para baixo como
dedos esqueléticos acusadores.
Havia alcovas em que os visitantes podiam sair das trilhas e
parar, admirando as formações de cálcio que pareciam enormes
aves, estranhos animais e árvores. Havia pontos de escuridão
ao longo das trilhas mal-iluminadas e foi num deles que Tracy
desapareceu.
Daniel Cooper adiantou-se apressadamente, mas ela não se
encontrava mais à vista em parte alguma. A multidão descendo
pelos degraus tornava impossível localizá-la. Ele não tinha
meios de saber se ela estava à sua frente ou atrás. Ela está
planeando alguma coisa aqui, disse Cooper a si mesmo. Mas
como? Onde? O quê?
Numa gruta do tamanho de uma arena, no ponto mais baixo das
cavernas, diante do Grande Lago, há um anfiteatro romano.
Fileiras de bancos de pedra foram construídas para acomodar as
audiências que vêm assistir ao espectáculo, encenado de hora
em hora. Os espectadores ocupam seus lugares no escuro,
esperando pelo início do espectáculo.
Tracy subiu até a décima fila, deslocou-se por 20 lugares. O
homem no vigésimo primeiro virou-se para ela
- Algum problema?
- Nenhum, Gunther.
Ela inclinou-se e beijou-o no rosto. Ele disse alguma coisa e
Tracy teve de se inclinar para ouvi-lo, acima da babel de
vozes ao redor.
- Achei que seria melhor se não fôssemos vistos juntos, no
caso de você estar sendo seguida.
Tracy correu os olhos pela caverna imensa, escura e apinhada.
- Estamos seguros aqui. - Ela tornou a se fixar em Gunther. -
Deve ser importante.
- E é mesmo. - Ele inclinou-se para mais perto dela. - Um
cliente rico está interessado em adquirir um determinado
quadro. É um Goya, chamado Puerto. Ele pagará meio milhão de
dólares em dinheiro a quem conseguir obtê-lo. Além da minha
comissão.
Tracy ficou pensativa.
- A quem conseguir obtê-lo... Há outros tentando?
- Para ser franco, há, sim. E, na minha opinião, as
possibilidades de sucesso são muito limitadas.
- Onde está o quadro?
- No Museu do Prado, em Madri.
- No Prado!
A palavra que aflorou prontamente à cabeça de Tracy foi
impossível. Gunther se inclinava em sua direcção, falando em
seu ouvido, ignorando a multidão ruidosa ao redor, enquanto a
arena se enchia.
- É preciso muita engenhosidade e foi por isso que pensei em
você, minha cara Tracy.
- Sinto-me lisonjeada. Você disse meio milhão de dólares?
- Livres e desimpedidos.
O espectáculo começou e subitamente houve silêncio.
Gradativamente, lâmpadas invisíveis foram se acendendo, a
música espalhou-se pela enorme caverna. O centro do palco era
um lago na frente da audiência sentada. Uma gôndola surgiu de
trás de uma estalagmite, iluminada por reflectores ocultos. Um
organista se encontrava no barco, enchendo o ar com uma
serenata melodiosa, que ecoou pela água. Os espectadores
observavam, extasiados, enquanto luzes coloridas varavam a
escuridão. O barco atravessou lentamente o lago e desapareceu,
a música se desvanecendo suavemente.
- Fantástico - disse Gunther. - Vale a pena viajar para
Majorca só para assistir a isto.
- Adoro viajar - comentou Tracy. - E quer saber qual é a
cidade que eu sempre quis conhecer, Gunther? Madri.
Parado na saída das cavernas, Daniel Cooper observou Tracy
Whitney emergir.
Ela estava sozinha.
28
O Hotel Ritz, na Plaza de Ia Lealtad, em Madri, é considerado
o melhor da Espanha; por mais de um século, tem alojado e
alimentado monarcas de uma dúzia de países europeus.
Presidentes, ditadores e bilionários já dormiram ali. Tracy
ouvira falar tanto sobre o Ritz que a realidade foi um
desapontamento. O saguão era desbotado e de aparência
andrajosa.
O gerente-assistente escoltou-a à Suíte que ela escolheu,
411-412, na ala sul do hotel, na Calle Félipe V.
- Espero que considere a Suíte satisfatória, Senhorita
Whitney.
Tracy foi até a janela e deu uma olhada. Directamente abaixo,
no outro lado da rua, ficava o Museu do Prado.
- É óptima. Obrigada.
A Suíte estava povoada pelos sons estrepitosos do tráfego
intenso nas ruas lá embaixo. Mas tinha o que ela queria: uma
vista ampla para o Prado.
Tracy pediu um jantar leve, servido no quarto, foi deitar-se
cedo. Quando se meteu na cama, concluiu que tentar dormir ali
só podia ser uma forma moderna de tortura medieval.
à meia-noite, um detective postado no saguão do hotel foi
substituído por um colega e informou:
- Ela não saiu do quarto. Creio que já se recolheu para a
noite.
Em Madri, a Dirección General de Seguridad, a chefatura de
polícia, fica na Puerta del Sol e ocupa todo um quarteirão. É
um prédio escuro, de tijolos vermelhos, com uma enorme torre
de relógio por cima. Sobre a entrada principal está hasteada a
bandeira espanhola, vermelha e amarela. Há sempre um guarda na
porta, de uniforme bege e boina marrom-escura, armado com uma
submetralhadora, um cassetete, um revólver e algemas. É ali
que funciona o serviço de ligação com a Interpol.
No dia anterior, um telegrama X-D fora entregue a Santiago
Ramiro, o chefe de polícia de Madri, comunicando a chegada
iminente de Tracy Whitney. Ele lera duas vezes a última frase
do telegrama e depois telefonou para André Trignant, no
quartel-general da Interpol, em Paris.
- Não compreendi a sua mensagem - dissera Ramiro. - Está me
pedindo para conceder plena cooperação de meu departamento a
um americano que nem mesmo é um polícia? Por que motivo?
- Tenho certeza de que descobrirá que o Sr. Cooper é
extremamente útil, comandante. Ele compreende a Senhorita
Whitney.
O que há para compreender? Ela é uma criminosa. Talvez
engenhosa... mas as prisões espanholas estão repletas de
criminosos engenhosos. Essa mulher não escapulirá de nossa
rede.
- Bon. Mas consultará o Sr. Cooper?
O comandante disse, relutante:
- Se diz que ele pode ser útil, então não tenho qualquer
objecção.
- Merci, monsieur.
- De nada, senhor.
O Comandante Ramiro, como seu equivalente em Paris, não
gostava de americanos. Achava-os grosseiros, materialistas e
ingénuos. Este será diferente, pensou ele. Provavelmente
gostarei dele.
O Comandante Ramiro odiou Daniel Cooper à primeira vista.
- Ela já enganou metade das forças policiais da Europa -
garantiu Daniel Cooper, logo depois de entrar na sala do
comandante. - E provavelmente fará a mesma coisa aqui.
O comandante teve de fazer um grande esforço para se
controlar.
- Senhor, não precisamos de ninguém para nos ensinar a
trabalhar. A Senhorita Whitney está sob vigilância desde o
momento em que chegou ao Aeroporto Barajas, esta manhã. Posso
lhe assegurar que ela será prontamente levada para a prisão se
alguém deixar cair um alfinete na rua e a jovem o pegar.
- Ela não está aqui para pegar um alfinete na rua.
- Por que acha que ela veio a Madri?
- Não tenho certeza. Só posso garantir que é por alguma coisa
muito grande.
O Comandante Ramiro declarou, presunçosamente:
- Quanto maior, melhor. Vigiaremos cada movimento da
senhorita Whitney.
Quando Tracy acordou, pela manhã, tonta de uma noite de sono
torturante, na cama projectada por Tomás de Torquemada, pediu
um desjejum ligeiro e café puro e bem quente, depois foi até a
janela que dava para o Museu do Prado. Era uma fortaleza
imponente, de pedras e tijolos vermelhos do solo local,
cercada por relva e árvores. Havia duas entradas laterais, ao
nível da rua. Duas colunas dóricas se erguiam na frente, tendo
nos dois lados escadas gémeas, que subiam para a entrada
principal. Colegiais e turistas de uma dúzia de países estavam
em fila na frente do museu. Pontualmente às 10 horas, as duas
portas principais foram abertas por guardas. Os visitantes
começaram a passar pela porta giratória no centro e pelas duas
passagens laterais, ao nível da rua.
O telefone tocou, surpreendendo Tracy. à excepção de Gunther
Hartog, ninguém sabia que ela se encontrava em Madri. Ela
atendeu.
- Alô?
- Buenos días, senhorita. - Era uma voz familiar. - Estou
ligando da Câmara de Comércio de Madri. Fui instruído a fazer
tudo ao meu alcance para que seja emocionante a sua estada em
nossa cidade.
- Como soube que eu estava em Madri, Jeff?
- Senhorita, a Câmara de Comércio sabe de tudo. É a sua
primeira vez em Madri?
- É, sim.
- Bueno! Neste caso, posso lhe mostrar alguns lugares. Quanto
tempo planea ficar, Tracy?
Era uma pergunta insinuante.
- Não sei ainda - respondeu ela, jovialmente. - Apenas o
suficiente para fazer algumas compras e conhecer a cidade. O
que você está fazendo em Madri?
- A mesma coisa. - O tom de Jeff era de igual jovialidade. -
Fazer compras e conhecer a cidade.
Tracy não acreditava em coincidência. Jeff Stevens estava ali
pelo mesmo motivo que ela: roubar o Puerto.
- Está livre para jantar comigo hoje, Tracy?
Era um desafio.
- Estou.
- Óptimo. Farei uma reserva no Jockey.
Tracy certamente não tinha ilusões sobre Jeff. Mas quando ela
saiu do elevador para o saguão e viu-o parado ali, à sua
espera, sentiu-se irracionalmente satisfeita por encontrá-lo,
Jeff pegou-lhe na mão.
- Fantástico, querida! Você está maravilhosa.
Ela se vestira com esmero. Usava um costume azul-marinho de
Valentino, com uma zibelina russa em torno do pescoço, sapatos
altos de Maud Frizon, uma bolsa também azul-marinho com o H da
Hennès.
Daniel Cooper, sentado a uma mesinha redonda num canto do
saguão, com um copo de água Perrier à sua frente, observou
Tracy, enquanto ela cumprimentava seu acompanhante. Ele sentiu
um imenso poder: A justiça é minha, diz o Senhor, eu sou sua
espada e seu instrumento de vingança. Minha vida é uma
penitência e você me ajudará a pagar. Eu vou puni-la.
Cooper sabia que nenhuma força policial do mundo era bastante
esperta para pegar Tracy Whitney. Mas eu sou, pensou Cooper.
Ela me pertence.
Tracy tornara-se mais do que uma missão para Daniel Cooper:
era agora uma obsessão. Levava suas fotografias e ficha a toda
a parte; à noite, antes de dormir, examinava-as atentamente.
Chegara a Biarritz tarde demais para agarrá-la e ela se
esquivara em Majorca. Mas agora que a Interpol redescobrira a
sua pista, Cooper estava determinado a não perdê-la.
Ele sonhava com Tracy à noite. Ela presa numa jaula enorme,
inteiramente nua, suplicando-lhe que a libertasse. Eu a amo,
dizia ele, mas nunca a libertarei.
O Jockey era um restaurante pequeno e elegante, na Amador de
los Rios.
- A comida é excelente - garantiu Jeff.
Ele estava particularmente bonito, pensou Tracy. Havia nele
um excitamento interior que se comparava com o de Tracy. Ela
sabia porquê: Ambos competiam entre si, num duelo de
inteligência por apostas muito altas. Mas eu vencerei, pensou
Tracy. Encontrarei um meio de roubar o quadro do Prado antes
de Jeff.
- Há um estranho rumor circulando - comentou Jeff.
Ela focalizou sua atenção nele.
- Que rumor?
- Já ouviu falar de Daniel Cooper? Ele é um investigador de
seguros, muito eficiente.
- Não. O que há com ele?
- Tome cuidado. É um homem perigoso. E eu não gostaria que
nada lhe acontecesse.
- Não se preocupe.
- Mas tenho de me preocupar, Tracy.
Ela riu.
- Comigo? Por quê?
Ele pôs a mão sobre a dela e disse jovialmente.
- Você é muito especial. A vida é mais interessante com você
por perto, meu amor.
Ele é terrivelmente convincente, pensou Tracy. Se eu não
soubesse melhor, acreditaria nele.
- Vamos pedir a comida - disse Tracy. - Estou com fome.
Jeff e Tracy exploraram Madri nos dias subsequentes. Nunca
estavam sozinhos. Dois dos homens do Comandante Ramiro
seguiam-nos por toda a parte, acompanhados pelo estranho
americano. Ramiro permitira que Cooper integrasse a equipe de
vigilância somente para afastá-lo de seu gabinete. O americano
era loco, estava convencido de que a mulher Whitney daria um
jeito de roubar algum grande tesouro debaixo de nossos
narizes. Que ridículo!
Tracy e Jeff comeram nos restaurantes clássicos de Madri -
Horcher, o Príncipe de Viana, Casa Botin - mas Jeff também
conhecia lugares que não haviam sido descobertos pelos
turistas: Cases Paco, La Chuletta e El Lacón, onde ele e Tracy
saborearam deliciosos pratos nativos, como cocido madrilenho e
olla podrida. Visitaram um pequeno bar, onde foram servidos
deliciosos tapas.
Onde quer que fossem, Daniel Cooper e os dois detectives
nunca estavam muito atrás.
Observando-os a uma distância cautelosa, Daniel Cooper
sentia-se perplexo pelo papel de Jeff Stevens no drama sendo
encenado. Quem era ele? A próxima vitima de Tracy? Ou os dois
conspiravam juntos alguma coisa? Cooper procurou o Comandante
Ramiro e perguntou:
- Que informações possui sobre Jeff Stevens?
- Nada. Ele não tem ficha criminal e está registado como
turista. creio que é simplesmente um companheiro que a mulher
arrumou aqui.
Os instintos de Cooper lhe diziam que não era bem isso. Mas
também não era Jeff Stevens que ele estava querendo. Tracy,
pensou ele. Eu quero você, Tracy.
Quando Tracy e Jeff voltaram ao Ritz, no final de uma noitada,
Jeff acompanhou-a até sua porta e sugeriu:
- Por que não me convida para entrar e tomar o último drinque
da noite?
Tracy quase foi tentada. Ela inclinou-se para a frente e
beijou-o de leve no rosto.
- Pense em mim como sua irmã, Jeff.
- Qual é a sua opinião sobre incesto?
Mas ela já fechara a porta.
Jeff telefonou poucos minutos depois de seu quarto.
- Não gostaria de passar o dia de amanhã comigo em Segóvia? É
uma velha cidade fascinante, a poucas horas de carro de Madri.
- Parece uma idéia maravilhosa. E obrigada por uma noite
linda. Até amanhã, Jeff.
Tracy permaneceu acordada por muito tempo, a mente povoada
por pensamentos que não tinha o direito de acalentar. Já fazia
muito tempo que estivera emocionalmente envolvida com um
homem. Charles a magoara profundamente e ela não queria que
isso tornasse a acontecer. Jeff Stevens era uma companhia
divertida, mas ela sabia que nunca deveria permitir-lhe se
tornar algo mais. Seria muito fácil se apaixonar por ele. E
uma besteira rematada. Ruinosa. Divertida.
Tracy teve a maior dificuldade para dormir.
A viagem a Segóvia foi perfeita. Jeff alugara um pequeno carro
e saíram de Madri para a mais linda região vinícola da
Espanha. Um Seat sem qualquer identificação seguiu-os durante
o dia inteiro. Só que não era um Seat comum.
O Seat é o único automóvel fabricado na Espanha, o veículo
oficial da polícia espanhola. O modelo padrão tem apenas 100
cavalos, mas os vendidos para a Polícia Nacional e a Guarda
Civil são especiais, com 150 cavalos. Assim, não havia
qualquer perigo de Tracy Whitney e Jeff Stevens se esquivarem
de Daniel Cooper e os dois detectives.
Tracy e Jeff chegaram a Segóvia a tempo para o almoço e foram
comer num restaurante encantador, na praça principal, à sombra
de um aqueduto de dois mil anos, construído pelos romanos.
Depois do almoço, passearam pela cidade medieval, visitaram a
velha Catedral de Santa Maria e o prédio renascentista da
prefeitura. Depois, subiram para Alcázar, a antiga fortaleza
romana empoleirada num rochedo, por cima da cidade. A vista
era espectacular.
- Aposto que, se ficarmos aqui por tempo suficiente,
acabaremos vendo Dom Quixote e Sancho Pança cavalgando pelas
planícies lá embaixo - comentou Jeff.
Ela observou-o atentamente.
- Você gosta de investir contra moinhos de vento, não é mesmo?
- Depende do formato do moinho - disse ele, suavemente,
chegando mais perto dela.
Tracy afastou-se da beira do penhasco.
- Fale-me mais sobre Segóvia.
E o encantamento foi rompido.
Jeff era um guia entusiástico, conhecedor de história,
arqueologia e arquitectura. Tracy tinha de lembrar a si mesma
que ele era também um vigarista. Era o dia mais agradável que
Tracy podia se lembrar.
Um dos detectives espanhóis, José Pereira, resmungou para
Cooper:
- A única coisa que eles estão roubando é o nosso tempo. Será
que não percebe que esses dois não passam de apaixonados? Tem
mesmo certeza de que ela planea alguma coisa?
- Tenho, sim.
Cooper estava desconcertado com suas próprias reacções. Tudo o
que queria era agarrar Tracy Whitney, puni-la como ela
merecia. Ela era apenas outra criminosa, uma missão. Contudo,
a cada vez que o companheiro de Tracy lhe pegava o braço,
Cooper descobria-se dominado pela fúria.
Assim que chegaram de volta a Madri, Jeff disse a Tracy:
- Se não está exausta demais, conheço um lugar muito especial
para jantarmos.
- Maravilhoso.
Tracy não queria que o dia terminasse. Eu me entregarei a este
dia, este único dia, serei como as outras mulheres.
Os madrilenos jantam tarde e poucos restaurantes abrem para o
jantar antes das nove horas da noite. Jeff fez uma reserva
para as 10 horas no Zalacaín, um elegante restaurante, onde a
comida era excepcional e servida com perfeição. Tracy não
pediu sobremesa, mas o garçon trouxe-lhe um delicado
mil-folhas, a coisa mais deliciosa que já provara na vida.
Depois, Tracy recostou-se na cadeira, saciada e feliz.
- Foi um jantar maravilhoso. Obrigada.
- Fico contente que tenha gostado. Este é o lugar para se
trazer as pessoas quando se quer impressioná-las.
Ela estudou-o.
- Está tentando me impressionar, Jeff?
Ele sorriu.
- Pode apostar que sim. Espere só até ver o que teremos em
seguida.
O que tiveram em seguida foi uma bodega despretensiosa,
enfumaçada, repleta de trabalhadores espanhóis em blusões de
couro, bebendo no balcão e numa dúzia de mesas espalhadas pela
sala. Numa extremidade havia um tablado, onde dois homens
dedilhavam guitarras. Tracy e Jeff foram sentados a uma
mesinha perto do palco.
- Sabe alguma coisa sobre o flamengo? - perguntou Jeff,
precisando de alterar a voz por causa do nível de barulho no
bar.
- Somente que é uma dança espanhola.
- Cigana, originalmente. Pode-se ir a boates luxuosas de
Madri e se assistir a imitações de flamengo. Mas esta noite
você verá a coisa de verdade.
Tracy sorriu pelo excitamento na voz de Jeff.
- Verá um clássico cuadro flamengo. É um grupo de cantores,
dançarinos e guitarristas. Primeiro, eles se apresentam
juntos, depois um de cada vez.
Observando Tracy e Jeff de uma mesa no canto, perto da
cozinha, Daniel Cooper se perguntou o que os dois estariam
conversando, tão absorvidos.
- A dança é muito súbtil, porque tudo tem de ser feito
junto... movimento, música, trajes, o desenvolvimento do
ritmo...
- Como sabe tanta coisa a esse respeito?
- Já fui um dançarino do flamengo.
Naturalmente, pensou Tracy.
As luzes na bodega diminuíram e o pequeno palco foi iluminado
por reflectores. E depois a magia começou. O início foi lento.
Um grupo de artistas subiu casualmente à plataforma. As
mulheres usavam saias e blusas coloridas, travessas altas com
flores nos lindos penteados andaluzes. Os homens vestiam as
calças justas tradicionais e coletes, usavam botas curtas de
couro. Os guitarristas dedilharam uma melodia melancólica,
enquanto uma das mulheres sentadas cantava, em espanhol:
Yô queria dejar
A mi amante,
Pero antes de que pudiera
Hacerio eira me abandono
Y destrozó mi corazón.
- Entende o que ela está cantando? - sussurrou Tracy.
- Claro. "Eu queria deixar meu amante, mas antes que pudesse
fazê-lo ele me abandonou e destruiu meu coração."
Uma dançarina se deslocou para o centro do palco. Começou com
um zapateado simples, batendo com os pés, cada vez mais
depressa, impelida pela vibração das guitarras. O ritmo foi se
tornando mais e mais vertiginoso, a dança tornou-se uma forma
de violência sensual, variações dos passos que haviam nascido
em cavernas ciganas um século antes. Enquanto a música
aumentava de intensidade e excitamento, passando pelos
movimentos clássicos de alegrias, fandanguillo, zambra e
segariya, à medida que o ritmo se tornava mais frenético,
soaram gritos de encorajamento dos artistas nos lados do
palco.
Eram gritos de "Olé tu madre" e "Olé tus santos" "Anda,
anda", os tradicionais jaleos e piropos, brados de estímulo,
espicaçando, os dançarinos a ritmos mais desvairados e
frenéticos.
Quando a música e a dança terminaram abruptamente, um
silêncio ressoou pelo bar e depois houve uma explosão de,
aplausos.
- Ela é maravilhosa - exclamou Tracy,
- Espere pelo resto - disse Jeff.
Uma segunda mulher avançou para o centro do palco. Tinha uma
beleza morena castelhana, clássica, parecia profundamente
alienada, completamente inconsciente da audiência. As
guitarras começaram a tocar um bolero, triste e suave, um
canto que parecia oriental. Um dançarino se juntou à mulher.
As castanholas começaram a estalar, num ritmo firme,
compulsivo.
Os artistas sentados acompanharam com o jaléo, as palmas que
marcam o ritmo do flamengo. As palmas aceleravam a dança e a
música, até que a sala começou a vibrar com o zapateado, as
batidas hipnóticas da ponta dos pés e dos calcanhares, da sola
inteira, em variações intermináveis de tom e sensações
rítmicas.
Os corpos se separavam e se encontravam, num frenesi
crescente de desejo, até que os dançarinos faziam um amor
desvairado, violento, animal, sem jamais se tocarem,
encaminhando-se para um clímax ardente, com a audiência a
berrar. As luzes se apagaram e tornaram a se acender, com a
multidão rugindo. Tracy descobriu-se a gritar junto com os
outros. Para seu constrangimento, sentia-se sexualmente
excitada. Tinha medo de enfrentar os olhos de Jeff. O ar entre
eles vibrava de tensão. Tracy baixou os olhos para a mesa,
contemplou as mãos fortes e bronzeadas de Jeff. Podia
senti-las a acariciarem seu corpo, lentamente, rapidamente,
com urgência. Ela se apressou em baixar as mãos para o colo, a
fim de esconder o tremor.
Eles falaram muito pouco durante a viagem de volta ao hotel.
à porta de seu quarto, Tracy virou-se e disse:
- Foi uma...
Os lábios de Jeff se encontraram com os dela, seus braços
envolveram-na, ele apertou-a firmemente.
- Tracy...
A palavra nos lábios de Tracy era sim e ela precisou recorrer
aos últimos resquícios de força de vontade para murmurar:
- Foi um dia comprido, Jeff. E eu estou com muito sono.
- Ahn...
- Acho que amanhã passarei o dia inteiro em meu quarto,
descansando.
A voz de Jeff era calma quando ele respondeu:
- Boa idéia. Provavelmente farei a mesma coisa.
Nenhum dos dois acreditou no outro.
29
às 10 horas da manhã seguinte Tracy estava parada na fila
comprida à entrada do Museu do Prado. As portas se abriram,
com um guarda uniformizado operando uma roleta, que só deixava
passar um visitante de cada vez.
Tracy comprou um ingresso e acompanhou a multidão para a
rotunda grande. Daniel Cooper e o detective Pereira
permaneceram bem atrás dela. Cooper começou a experimentar um
crescente excitamento. Tracy Whitney não estava ali como uma
visitante comum. Qualquer que fosse o seu plano, começava a
ser executado.
Tracy foi de sala em sala, andando devagar, passando pelos
quadros de Rubens, por Ticianos, Tintorettos e Boschs,
contemplando as pinturas de Domenikos Theotokopoulos, que se
tornou famoso como El Greco. Os Goyas estavam em exposição
numa galeria especial por baixo, no andar térreo.
Tracy notou que havia um guarda uniformizado postado à entrada
de cada sala, tendo a seu lado um botão de alarme vermelho.
Ela sabia que, no instante em que o alarme fosse accionado
todas as entradas e saídas do museu seriam fechadas, não
haveria a menor possibilidade de escapar.
Ela sentou no banco no centro da Sala das Musas, repleta de
quadros dos mestres flamengos do século XVIII, deixando o
olhar vaguear pelo chão. Avistou dois artefactos redondos nos
lados da porta. Deviam ser os fachos infravermelhos que eram
ligados à noite. Em outros museus que Tracy visitara, os
guardas se mostravam sonolentos e entediados, não prestando
muita atenção ao fluxo de turistas excitados. Mas Tracy
observou que ali os guardas se mantinham alerta. Obras de arte
vinham sendo desfiguradas por fanáticos em museus do mundo
inteiro e o Prado não ia correr qualquer risco de que isso se
repetisse ali.
Em uma dúzia de salas diferentes, pintores haviam armado seus
cavaletes, que se concentravam em copiar os quadros dos
mestres. O museu permitia isso, mas Tracy notou que os guardas
se mantinham atentos até aos copiadores.
Depois que terminou de percorrer as salas no andar principal,
Tracy desceu para o térreo, ao encontro da exposição de
Francisco de Goya. O detective Pereira disse a Cooper:
- Ela não está fazendo coisa alguma além de olhar. Acho
que...
- Você está enganado.
Cooper começou a descer a escada apressadamente. Tracy teve a
impressão de que a exposição de Goya ainda estava mais
intensamente vigiada do que o resto. E bem merecia. Uma parede
depois de outra se achava coberta por uma exibição incrível de
beleza eterna. Tracy foi de uma tela para outra, fascinada
pelo génio do homem. O Auto-Retrato de Goya, fazendo-o parecer
um Pá de meia-idade... o retracto colorido refinado de a
família de Carlos IV... A Maja Vestida e a famosa Maja
Desnuda.
E lá estava o Puerto, depois de O Sabá das Feiticeiras, Tracy
parou e contemplou-o fixamente, o coração batendo forte. Em
primeiro plano, havia uma dúzia de homens e mulheres muito bem
vestidos, parados na frente de um muro de pedra, enquanto ao
fundo, vistos através de uma névoa luminosa, havia barcos de
pesca numa enseada e um farol distante. No canto inferior
esquerdo do quadro estava a assinatura, de Goya.
Aquele era o alvo. Meio milhão de dólares.
Tracy olhou ao redor. Um guarda se mantinha parado à entrada.
Além dele, através do corredor comprido que levava a outras
salas, Tracy podia avistar mais guardas. Ela ficou ali por um
longo tempo, estudando o Puerto. Quando começou a se afastar,
um grupo de turistas descia a escada. E Jeff Stevens estava no
meio deles. Tracy virou o rosto e saiu apressadamente pela
porta lateral, antes que ele pudesse vê-la.
Será uma corrida, Sr. Stevens. E eu vou vencê-la.
- Ela está planeando roubar um quadro do Prado.
O Comandante Ramiro olhou para Daniel Cooper com uma
expressão de incredulidade.
- Cagajón! Ninguém pode roubar um quadro do Prado.
Cooper disse, obstinado:
- Ela passou a manhã inteira lá.
- Nunca houve um roubo no Prado e nunca haverá. E quer saber
por quê? Porque é impossível.
- Ela não tentará por qualquer dos meios usuais. Deve mandar
proteger os tubos de ventilação do museu, para a eventualidade
de um ataque com gás. Se os guardas tomam café durante o
serviço, descubra de onde vem e se pode ser drogado. Verifique
a água que eles bebem...
Os limites da paciência do Comandante Ramiro estavam
esgotados. Já era bastante terrível que fosse obrigado a
aturar aquele americano grosseiro e desgracioso durante a
última semana, desperdiçando homens valiosos para seguir Tracy
Whitney 24 horas por dia, quando a sua Polícia Nacional
operava com um orçamento de austeridade. Mas agora, diante
daquele pito, o americano lhe dizendo como devia dirigir o seu
departamento de polícia, ele não podia mais suportar.
- Na minha opinião, a mulher se encontra em Madri de férias.
E estou suspendendo a vigilância.
Cooper ficou aturdido.
- Mas não pode fazer isso! Tracy Whitney está...
Comandante Ramiro levantou-se, empertigado.
- Faça o favor de se abster de dizer o que posso ou não
fazer, senhor. E agora, se não tem mais nada a dizer, queira
se retirar, pois sou um homem muito ocupado.
Cooper continuou onde estava, dominado pela frustração
- Neste caso, eu gostaria de continuar sozinho.
O comandante sorriu.
- Para manter o Museu do Prado a salvo da terrível ameaça
dessa mulher? Mas é claro, Senhor Cooper! Agora posso dormir à
noite tranquilamente.
30
As possibilidades de sucesso são bastante limitadas, dissera
Gunther Hartog a Tracy. Será preciso muita engenhosidade.
É a meia verdade do século, pensou Tracy.
Ela olhava pela janela de sua Suíte para a clarabóia do Prado,
revendo mentalmente tudo o que descobrira a respeito do museu.
Ficava aberto das 10 horas da manhã às seis da tarde. Os
alarmes permaneciam desligados durante esse período, mas havia
guardas em cada entrada e em todas as salas.
Mesmo que alguém conseguisse retirar um quadro da parede,
pensou Tracy, não há qualquer meio de sair com ele do museu.
Todos os pacotes eram verificados na saída.
Ela estudou o telhado do Prado e considerou a possibilidade
de uma incursão nocturna. Havia vários inconvenientes. O
primeiro era a estrema visibilidade. Tracy observara os
reflectores se acendendo à noite, iluminando o telhado,
tornando-o visível por quilómetros ao redor. E mesmo que
pudesse entrar no prédio sem ser vista, ainda havia os fachos
infravermelhos no interior e os vigias nocturnos.
O Prado parecia inexpugnável.
O que Jeff estaria planeando? Tracy tinha certeza de que ele
faria uma tentativa de roubar o Goya. Eu daria qualquer coisa
para saber o que ele tem em sua mente astuciosa. De uma coisa
Tracy tinha certeza: Não deixaria que Jeff chegasse lá na sua
frente. Tinha de encontrar um meio.
Ela voltou ao Prado na manhã seguinte.
Nada mudara, excepto os rostos dos visitantes. Tracy procurou
atentamente por Jeff, mas ele não apareceu.
Tracy pensou: Ele já imaginou um meio de roubar o quadro.
Desgraçado! Todo aquele seu charme era apenas para me distrair
e impedir que eu chegasse ao quadro primeiro.
Ela reprimiu a raiva e substituiu-a pela lógica fria e
objectiva.
Foi novamente se postar diante do Puerto, os olhos vaguearam
para as telas próximas, os guardas alerta, os pintores
amadores sentados em bancos diante de seus cavaletes, os
visitantes entrando e saindo da sala. E enquanto Tracy olhava
ao redor, seu coração começou a bater mais depressa.
Sei como poderei fazê-lo!
Ela fez uma ligação de uma cabina telefónica na Gran Via.
Daniel Cooper, parado na entrada de um café, esperando, daria
um ano de salário para saber quem era a pessoa para a qual
Tracy estava telefonando. Ele tinha certeza que era uma
ligação internacional e Tracy telefonava a cobrar; assim, não
haveria qualquer registo. Estava também consciente do vestido
verde de linho que não vira antes e que as pernas de Tracy se
achavam à mostra. A fim de que os homens possam ficar olhando,
pensou ele. Puta!
Ele foi dominado por uma raiva intensa.
Na cabina telefónica, Tracy concluía a conversa:
- Cuide para que ele seja rápido, Gunther. Terá apenas cerca
de dois minutos. Tudo dependerá da rapidez.
PARA: J. J. Reynolds Ficha N? Y-72-830-412
DE: Daniel Cooper CONFIDENCIAL
ASSUNTO: Tracy Whitney
É minha opinião que a mulher em questão se encontra em Madri
para cometer um grande ato criminoso. O alvo provável é o
Museu do Prado. A polícia espanhola não quer cooperar, mas eu
a manterei pessoalmente sob vigilância e a prenderei no
momento oportuno.
Dois dias depois, às nove horas da manhã, Tracy estava sentada
num banco nos jardins do Retiro, o lindo parque que se estende
pelo centro de Madri, dando milho aos pombos. O Retiro, com
seu lago e árvores graciosas, gramados bem cuidados e palcos
em miniatura com espectáculos para crianças, era um verdadeiro
íman para os madrilenos.
Cesar Porretta, um homem idoso, de cabelos grisalhos,
ligeiramente encurvado, aproximou-se pelo caminho. Sentou-se
no banco, ao lado de Tracy, abriu um saco de pão e começou a
jogar migalhas para os pombos.
- Buenos días, senhorita.
- Buenos días. Acha que há algum problema?
- Nenhum, senhorita. Tudo o que preciso agora é do dia e da
hora.
- Ainda não tenho - respondeu Tracy. - Mas será muito em
breve.
Ele sorriu, um sorriso desdentado.
- A polícia ficará maluca. Ninguém jamais tentou fazer algo
antes.
- É por isso que dará certo - comentou Tracy. - Aguarde
notícias minhas.
Ela jogou os últimos grãos de milho para os pombos e
levantou-se. Foi andando, o vestido de seda balançando de
maneira provocante em torno dos joelhos.
Enquanto Tracy se encontrava no parque, conversando com Cesar
Porretta, Daniel Cooper revistava seu quarto no hotel.
Observara do saguão quando Tracy deixou o hotel e se
encaminhara para o parque. Ela não pedira coisa alguma à copa
e Cooper concluíra que saíra para tomar o café da manhã fora
do hotel. Ele esperara meia hora. Entrar na suíte fora uma
questão simples de evitar as camareiras e usar uma gazua.
Sabia o que estava procurando: uma cópia de um quadro. Não
tinha idéia de como Tracy planeava efectuar a substituição,
mas estava absolutamente convencido de que esse era o plano
dela.
Ele revistou a suíte com uma eficiência rápida e silenciosa,
nada lhe escapando e deixando o quarto para o final. Revistou
o armário, verificando cada vestido, depois passou para a
cómoda. Abriu as gavetas, uma a uma. Estavam cheias de
calcinhas, soutiens e meias-calças. Ele pegou uma calcinha
rosa e esfregou contra seu rosto, imaginando o cheiro suave de
carne. A fragrância de Tracy estava subitamente por toda a
parte. Ele tornou a guardar a calcinha e examinou rapidamente
as outras gavetas. Nenhum quadro.
Cooper foi para o banheiro. Havia gotas de água na banheira.
O corpo de Tracy estivera deitado ali, coberto de água tão
quente quanto o útero. Cooper visualizou-a, nua, a água lhe
acariciando os seios, os quadris ondulando, para cima e para
baixo. Sentiu o início de uma erecção. Levantou a toalha úmida
da banheira, levando-a aos lábios. O odor do corpo de Tracy
envolveu-o, enquanto baixava o zíper da calça. Esfregou um
sabonete úmido na toalha e usou-a para se masturbar, diante do
espelho, fitando seus olhos ardentes.
Saiu poucos minutos depois, tão discretamente quanto chegara,
seguiu directo para uma igreja próxima.
Na manhã seguinte, quando Tracy deixou o Ritz, Daniel Cooper
seguiu-a. Havia uma intimidade entre eles que não existira
antes. Ele conhecia o cheiro de Tracy; vira-a no banho,
contemplara seu corpo nu a se mexer na água quente. Ela lhe
pertencia completamente; era sua para destruir. Observou-a a
caminhar pela Gran Via, parando para admirar as mercadorias
oferecidas nas vitrines, seguiu-a pelo interior de uma grande
loja de departamentos, tomando cuidado para permanecer fora de
vista. Viu-a falar com uma vendedora e depois se encaminhar em
direcção ao banheiro das mulheres. Cooper parou perto da
porta, frustrado. Era o único lugar para onde não podia
segui-la.
Se Cooper pudesse entrar, teria visto Tracy falando com uma
mulher muito gorda, de meia-idade.
- Manhana - disse Tracy, enquanto aplicava batom nos lábios,
diante do espelho. - Amanhã de manhã, às onze horas.
A mulher sacudiu a cabeça.
- Não, senhorita. Ele não gostará disso. Não poderia escolher
um dia pior. O Príncipe de Luxemburgo chega amanhã em visita
oficial e os jornais dizem que irá ao Museu do Prado. Haverá
guardas de segurança extras e a polícia estará por todo o
museu.
- Quanto mais, melhor. Amanhã.
Tracy saiu pela porta e, a mulher ficou olhando para ela,
murmurando:
- La cucha es loca...
A comitiva real deveria chegar ao Prado pontualmente às 11
horas. As ruas ao redor do museu haviam sido bloqueadas pela
Guarda Civil. Mas, por causa de um atraso da cerimónia no
palácio presidencial, a comitiva só chegou perto de meio-dia.
Soaram sirenes, enquanto as motocicletas da polícia apareciam,
escoltando meia dúzia de limusines pretas até à escadaria na
frente do Prado.
à entrada, o director do museu, Christian Machada, aguardava
nervosamente a chegada de Sua Alteza.
Machada efectuara uma inspecção cuidadosa naquela manhã para
certificar-se de que tudo se achava em ordem. Os guardas
haviam sido avisados para se manterem especialmente alerta. O
director tinha orgulho de seu museu e queria causar uma boa
impressão no príncipe.
Nunca faz mal ter amigos nos lugares mais altos, pensou
Machada. Quem sabe? Eu posso até ser convidado a jantar com
Sua Alteza esta noite, no palácio presidencial.
O único pesar de Christian Machada era a impossibilidade de
reprimir as hordas de turistas que circulavam pelo museu. Mas
os guarda-costas do príncipe e os seguranças do museu
garantiriam uma protecção adequada. Tudo estava pronto.
A excursão real começou pelo andar superior, o principal. O
director concedeu uma recepção efusiva à Sua Alteza e
escoltou-o, seguido por guardas armados, através das rotundas,
entrando nas salas em que se encontravam em exposição os
pintores espanhóis do século XVI: Juan de Juanes, Pedro
Machuca, Fernando Yánhez.
O príncipe andava devagar, deleitando-se com o banquete
visual que lhe era oferecido. Era um patrono das artes e amava
sinceramente os pintores que podiam fazer o passado adquirir
vida e permanecer eterno. Não tendo pessoalmente qualquer
talento para a pintura, o Príncipe mesmo assim invejava os
pintores que se postavam diante de seus cavaletes, tentando
absorver centelhas do génio dos mestres.
Depois que o grupo oficial visitara os salões superiores,
Christian Machada disse, orgulhosamente:
- E agora, se Sua Alteza me permite, eu o levarei à nossa
exposição de Goya lá embaixo.
Tracy passara uma manhã exasperante. Quando o príncipe não
chegara ao Prado no horário marcado, às 11 horas, ela começara
a entrar em pânico. Todos os seus planos haviam sido
formulados com uma exactidão de segundos, mas precisava do
príncipe para executá-los.
Ela foi de sala em sala, misturando-se com os visitantes,
tentando evitar qualquer atenção. Ele não virá, pensou Tracy,
finalmente. Terei de cancelar a operação. E foi nesse momento
que ela ouviu o barulho das sirenes se aproximando pela rua.
Observando Tracy da sala ao lado, Daniel Cooper também ouviu
as sirenes. A razão lhe dizia que era impossível para qualquer
pessoa roubar um quadro do museu, mas o instinto garantia que
Tracy tentaria... e Cooper confiava em seu instinto. Ele
chegou mais perto dela, escondido pelas multidões. Tencionava
mantê-la sob sua vista durante todo o tempo.
Tracy se achava na sala ao lado daquela em que o Puerto estava
em exposição. Através do portal, ela podia ver o corcunda,
Cesar Porretta, sentado diante de um cavalete, copiando o Maja
Vestida de Goya, pendurado ao lado do Puerto. Um guarda se
encontrava parado a um metro de distância. Na sala com Tracy,
uma pintora se postava diante de seu cavalete, copiando
meticulosamente A Leiteira de Bordeaux, tentando capturar os
marrons e verdes brilhantes da tela de Goya.
Alguns turistas japoneses entraram na sala, falando
rapidamente, como um grupo de aves exóticas. Agora!, disse
Tracy a si mesma. Aquele era o momento pelo qual esperava. Seu
coração batia tão alto que teve medo que o guarda pudesse
ouvir. Ela saiu do caminho dos japoneses que se aproximavam,
recuando na direcção da pintora. Quando um japonês passou por
perto, Tracy caiu para trás, como se tivesse sido empurrada,
esbarrando na mulher e derrubando-a, assim como seu cavalete,
tela e tintas.
- Oh, lamento profundamente - exclamou Tracy. - Deixe-me
ajudá-la!
Enquanto ela se adiantava para ajudar a atordoada pintora,
seus calcanhares pisaram nos tubos espalhados, as tintas
manchando o chão. Daniel Cooper, que a tudo observava,
adiantou-se apressadamente, todos os sentidos alerta. Tinha
certeza de que Tracy Whitney fizera o seu primeiro movimento.
O guarda se aproximou, gritando:
- Qué pasa? Qué pasa?
O acidente atraíra a atenção dos turistas, que se concentraram
em torno da mulher caída, espalhando as tintas dos tubos
pisados em imagens grotescas pelo assoalho de madeira de lei.
Era uma horrível confusão e o príncipe deveria aparecer a
qualquer momento. O guarda entrou em pânico e gritou:
- Sergio! Ven acá! Pronto!
Tracy observou quando o guarda da sala ao lado veio correndo
para ajudar. Cesar Porretta ficou sozinho na sala com o
Puerto.
Tracy se achava bem no meio do tumulto. Os dois guardas
tentavam em vão afastar os turistas da área do assoalho toda
manchada de tinta.
- Vá chamar o director! - berrou Sergio. - En seguida!
O outro guarda afastou-se apressadamente para a escada. Que
birria! Que trapalhada!
Dois minutos depois, Christian Machada estava no local do
desastre. O director lançou um olhar horrorizado para a cena e
prontamente gritou:
- Tragam algumas faxineiras para cá... depressa! Com panos de
chão, água e terebintina! Pronto!
Um jovem assistente correu para cumprir a ordem. Machada
virou-se para Sergio e disse-lhe bruscamente:
- Vá para o seu posto!
- Pois não, senhor.
Tracy observou o guarda abrir caminho pela multidão, a caminho
da sala em que Cesar Porretta trabalhava.
Cooper não desviara os olhos de Tracy por um instante sequer.
Esperava pelo próximo movimento. Mas não houve. Ela não se
aproximara de qualquer quadro, não fizera contacto com nenhum
cúmplice. Apenas derrubara um cavalete e derramara algumas
tintas pelo assoalho. Mas ele tinha certeza que isso fora
feito deliberadamente. Mas com que objectivo? Cooper tinha a
impressão de que o plano, qualquer que fosse, já fora
executado, de alguma forma. Ele correu os olhos pelas paredes
da sala. Nenhum dos quadros estava faltando.
Cooper seguiu apressadamente para a sala ao lado. Não havia
ninguém ali, além do guarda e de um corcunda idoso, sentado
diante de seu cavalete, copiando a Maja Vestida. Todos os
quadros se encontravam em seus lugares. Mas alguma coisa
estava errada. Cooper não tinha a menor dúvida quanto a isso.
Ele se aproximou rapidamente do angustiado director, com quem
já conversara anteriormente, e disse-lhe:
- Tenho motivos para acreditar que um quadro foi roubado daqui
nos últimos minutos.
Christian Machada olhou para o americano de olhos desvairados.
- Mas do que está falando? Se isso tivesse acontecido, os
guardas accionariam o alarme.
- Acho que de alguma maneira um quadro falso substituiu um
verdadeiro.
O director concedeu-lhe um sorriso tolerante.
- Há uma coisinha errada com sua teoria, senhor. O facto não é
conhecido do público em geral, mas há sensores escondidos por
trás de cada quadro. Se alguém tentasse remover um quadro da
parede... o que certamente seria necessário fazer para pôr um
quadro falso no lugar... o alarme soaria instantaneamente.
Daniel Cooper ainda não estava satisfeito.
- Seu alarme não poderia ser desligado?
- Não. Se alguém cortasse o fio eléctrico, isso também
accionaria o alarme. Senhor, é impossível roubar um quadro
deste museu. Nossa segurança é o que os americanos gostam de
chamar de infalível.
Cooper permaneceu onde estava, tremendo de frustração. Tudo o
que o director dissera era convincente. Parecia mesmo
impossível. Mas então por que Tracy Whitney derrubara
deliberada mente aquelas tintas? Cooper não estava disposto a
desistir.
- Poderia fazer o favor de pedir a seus assistentes para
verificarem se não está faltando alguma coisa no museu?
Estarei em meu hotel aguardando uma resposta.
Não havia mais nada que Daniel Cooper pudesse fazer.
Christian Machada telefonou para Cooper às sete horas daquela
noite.
- Efectuei pessoalmente uma inspecção, senhor. Não falta nada
do museu.
Então está acabado. Aparentemente, fora um acidente. Mas
Daniel Cooper, com o instinto de um caçador, sentia que sua
presa tornara a escapar.
Jeff convidara Tracy para jantar no restaurante principal do
Ritz Hotel.
- Você está parecendo especialmente radiante esta noite -
elogiou-a Jeff.
- Obrigada. É que eu me sinto absolutamente maravilhosa.
- É a companhia. Vamos juntos para Barcelona na próxima
semana, Tracy. É uma cidade fascinante. Você adoraria...
- Lamento, Jeff, mas não posso. Estou deixando a Espanha.
- É mesmo? - A voz dele era pesarosa. - Quando?
- Dentro de poucos dias.
- Ahn... Estou desapontado.
E ficará ainda mais desapontado quando souber que eu roubei o
Puerto, pensou Tracy. Ela se perguntou como ele planeara
roubar o quadro. Não que isso tivesse mais qualquer
importância. Fui mais esperta do que Jeff Stevens. Contudo,
por alguma razão inexplicável, Tracy sentia um ténue vestígio
de pesar.
Christian Machada se encontrava sentado em seu escritório,
tomando a sua xícara matutina de café forte e se dando os
parabéns pelo sucesso da visita do príncipe. Excepto pelo
lamentável incidente das tintas derramadas, tudo correra
exactamente de acordo com o planeado. Sentia-se grato pelo
príncipe e sua comitiva terem sido desviados até que a sujeira
fosse limpa. O director sorriu ao pensar no investigador
americano idiota que tentara convencê-lo de que alguém roubara
um quadro do Prado. Não ontem, não hoje, não amanhã, pensou
ele, presunçosamente.
Sua secretária entrou na sala nesse momento.
- Com licença, senhor. Há um homem aqui desejando lhe falar
Pediu-me para lhe entregar isto.
Ela entregou uma carta do director. Era no papel timbrado de
um museu de Genebra.
Meu Estimado Colega:
Esta carta visa a apresentar Monsieur Henri Rendell, nosso
maior perito em arte. Monsieur Rendell está realizando uma
excursão pelos museus do mundo e particularmente ansioso em
ver a sua colecção incomparável. Eu agradeceria todas as
cortesias que pudesse lhe oferecer.
A carta estava assinada pelo director do museu de Genebra.
Mais cedo ou mais tarde, pensou o director do Prado, feliz,
todos vêm a mim.
- Mande-o entrar.
Henri Rendell era um homem alto, calvo, de aparência
distinta, com um forte sotaque suíço. Quando se apertaram as
mãos, Machada notou que o visitante não tinha o indicador da
mão direita. Henri Rendell disse:
- Agradeço a sua gentileza. É a primeira oportunidade que
tenho de visitar Madri e estou ansioso em conhecer as suas
renomeadas obras de arte.
Christian Machada respondeu, modestamente:
- Creio que não ficará desapontado, Monsieur Rendell. Por
favor, acompanhe-me. Eu o escoltarei pessoalmente.
Eles se deslocaram lentamente pela rotunda, com seus mestres
flamengos, Rubens e seus seguidores, visitaram a galeria, com
os mestres espanhóis. Henri Rendell estudou cada quadro
atentamente. Os dois homens falavam como peritos, avaliando o
estilo, perspectiva e senso de cor dos vários artistas.
- E agora - disse o director do Prado - vamos ao orgulho da
Espanha.
Ele conduziu o visitante para baixo, até a galeria repleta de
Goyas.
- É um banquete para os olhos! - exclamou Rendell,
impressionado. - Por favor, deixe-me ficar parado por um
momento, em silêncio, só contemplando!
Christian Machada esperou, feliz com a reverência do homem.
- Nunca vi nada tão espectacular - murmurou Rendell. Ele andou
lentamente pela galeria, estudando um quadro de cada vez. - O
Sabá das Feiticeiras. Brilhante!
Eles seguiram adiante.
- Auto-Retrato de Goya... fantástico!
Christian Machada estava radiante. Rendell parou diante do
Puerto.
- Uma excelente cópia.
Ele começou a se afastar. O director agarrou-o pelo braço.
- Como? O que foi mesmo que disse, senhor?
- Disse que é uma excelente cópia.
- Está completamente enganado.
O director sentia-se profundamente indignado.
- Não creio.
- Claro que está - insistiu Machada, rigidamente. - Posso lhe
garantir que o quadro é genuíno. Tenho a proveniência.
Henri Rendell aproximou-se do quadro e examinou-o mais
atentamente.
- Então a proveniência também foi falsificada. Este quadro
foi feito pelo discípulo de Goya, Eugenio Lucas y Padilla.
Deve saber, é claro, que Lucas pintou centenas de falsos
Goyas.
- Claro que sei disso - respondeu Machada, asperamente. - Mas
este não é um deles.
Rendell encolheu os ombros.
- Eu me curvo a seu julgamento.
Ele fez menção de se afastar.
- Comprei este quadro pessoalmente. Foi submetido ao teste do
espectógrafo, ao teste de pigmentos...
- Não duvido disso. Lucas pintou no mesmo período de Goya e
usou os mesmos materiais. - Henri Rendell inclinou-se para
examinar a assinatura no fundo do quadro. - Pode se certificar
com muita facilidade, se desejar. Leve o quadro para a sua
sala de restauração e teste a assinatura.
Ele riu, divertido, antes de acrescentar:
- O ego de Lucas levava-o a assinar seus próprios quadros, mas
a bolsa forçava-o a falsificar o nome de Goya por cima do seu,
aumentando o preço consideravelmente. - Rendell olhou para seu
relógio. - Peço que me perdoe. Eu não tinha idéia de que era
tão tarde. Infelizmente, já estou atrasado para um
compromisso. Muito obrigado por partilhar comigo os seus
tesouros.
- Não foi nada - disse o director, friamente.
O homem é obviamente um idiota, pensou ele.
- Estou no Villa Magna, se precisar de alguma coisa. E
novamente obrigado, senhor.
Henri Rendell foi embora. Christian Machada ficou
observando-o a se afastar. Como aquele suíço idiota se atrevia
a insinuar que seu Goya era falso? Ele virou-se para observar
o quadro novamente. Era uma obra-prima. O director inclinou-se
para examinar a assinatura de Goya. Absolutamente normal.
Mesmo assim... seria possível? A pequena semente de dúvida
recusava-se a sumir. Todos sabiam que o contemporâneo de Goya,
Eugenio Lucas y Padilla, pintara centenas de falsos Goyas,
construindo uma carreira nessa base. Machada pagara três
milhões e meio de dólares pelo Puerto de Goya. Se ele fora
enganado, seria um descrédito terrível, algo que não suportava
sequer pensar.
Henri Rendell dissera uma coisa que fazia sentido: havia de
facto um meio simples de comprovar a autenticidade. Testaria a
assinatura e depois telefonaria para Rendell, sugerindo
polidamente que talvez ele devesse procurar uma vocação mais
apropriada.
O director chamou seu assistente e ordenou que o Puerto fosse
levado para a sala de restauração.
O teste de uma obra-prima é uma operação extremamente
delicada, pois pode destruir, se houver qualquer negligência,
algo de valor inestimável e insubstituível. Os restauradores
do Prado eram peritos, quase todos pintores malsucedidos que
haviam optado pelo trabalho de restauração a fim de poderem
permanecer próximos de sua amada arte. Começavam como
aprendizes, estudando com os mestres restauradores,
trabalhavam por anos antes de se tornarem assistentes e terem
permissão para manipular obras-primas, sempre sob a supervisão
do restaurador sénior.
Juan Delgado, o homem no comando da restauração de arte no
Prado, colocou o Puerto numa estante de madeira especial,
enquanto Christian Machada observava.
- Quero que teste a assinatura - informou o director.
Delgado disfarçou a sua surpresa.
- Sim, Senhor Director.
Ele despejou álcool isopropilo numa pequena mecha de algodão
e pôs na mesa ao lado do quadro. Despejou numa segunda mecha
petróleo destilado, o agente neutralizador.
- Estou pronto, senhor.
- Pois então pode começar. Mas tome todo cuidado.
Machada descobriu subitamente que lhe era difícil respirar.
Observou Delgado pegar a primeira mecha de algodão e encostar
gentilmente no G da assinatura de Goya. No mesmo instante,
Delgado pegou a segunda mecha e neutralizou a área, a fim de
evitar que o álcool penetrasse mais profundamente. Os dois
homens examinaram a tela. A primeira letra se desbotara um
pouco. Delgado franziu o rosto.
- Lamento, senhor, mas ainda não dá para dizer. Preciso usar
um solvente mais forte.
- Está certo.
Delgado abriu outro vidro. Cuidadosamente despejou
dimentilpentona em outra mecha de algodão e tocou-a novamente
na primeira letra da assinatura, aplicando imediatamente em
seguida a outra mecha. A sala ficou impregnada do odor
penetrante dos agentes químicos. Christian Machada se mantinha
imóvel, olhando fixamente para o quadro, incapaz de acreditar
no que estava vendo. O G no nome de Goya estava-se
desvanecendo, surgindo em seu lugar um L, perfeitamente
visível. Delgado virou-se para o director, o rosto muito
pálido.
- Devo... devo continuar?
- Deve - balbuciou Machada, a voz rouca. - Continue.
Lentamente, letra a letra, a assinatura de Goya se diluiu sob
a aplicação do solvente, dando lugar à assinatura de Lucas.
Cada letra era um golpe violento no estômago de Machada. Ele,
o director de um dos museus mais importantes do mundo, fora
enganado. O conselho curador tomaria conhecimento; o Rei da
Espanha seria informado; o mundo ficaria a par. Ele estava
arruinado.
Christian Machada voltou quase cambaleando a seu escritório
e, telefonou para Henri Rendell.
Os dois homens estavam sentados na sala de Machada.
- Você tinha razão - murmurou o director. - É um Lucas.
Quando a notícia se espalhar, eu me tornarei o alvo dos risos
gerais.
- Lucas já enganou muitos peritos - comentou Rendell,
confortadoramente. - Acontece apenas que suas falsificações
são um hobby meu.
- Paguei três e meio milhões de dólares por aquele quadro.
Rendell encolheu os ombros.
- Pode recuperar seu dinheiro?
O director sacudiu a cabeça, desesperado.
- Comprei-o directamente de uma viúva, que afirmou estar o
quadro na família de seu marido há três gerações. Se eu a
processasse, o caso se arrastaria interminavelmente pelos
tribunais, haveria uma publicidade perniciosa. Tudo neste
museu se tornaria suspeito.
Henri Rendell pensava depressa.
- Não há realmente motivo para qualquer publicidade. Por que
não explica a seus superiores o que aconteceu e se livra
discretamente do Lucas? Pode mandar o quadro para a Sotheby's
ou Christie's, deixar que o vendam em leilão.
Machada tornou a sacudir a cabeça.
- Não. O mundo inteiro saberia assim do que aconteceu.
O rosto de Rendell se iluminou subitamente.
- Talvez você esteja com sorte. Lembro-me agora de um cliente
que poderia comprar o Lucas. Ele os colecciona. E é um homem
discreto.
- Eu teria o maior prazer em me livrar dele. Nunca mais quero
vê-lo. Uma falsificação entre os meus lindos tesouros! - Uma
pausa e o director acrescentou, amargurado. - Eu gostaria até
de dá-lo de presente
- Isso não será necessário. Meu cliente provavelmente estará
disposto a pagar... digamos uns cinquenta mil dólares. Posso
fazer um telefonema?
- É muita gentileza sua, Senhor Rendell. à vontade.
Numa reunião convocada às pressas, os atordoados curadores do
Prado decidiram que era preciso evitar a qualquer custo a
exposição de um dos valiosos quadros do Prado como uma
falsificação. Ficou acertado que a acção mais prudente era se
livrarem discretamente do quadro, o mais depressa possível. Os
homens de ternos escuros saíram da sala em silêncio. Ninguém
falou com Machada, que permaneceu parado a um canto, tremendo
em seu desespero.
Uma transação foi concluída naquela tarde. Henri Rendell foi
ao Banco da Espanha e voltou com um cheque visado no valor de
50 mil dólares. O Eugenio Lucas y Padilla foi-lhe entregue,
embrulhado numa lona discreta.
- O conselho ficaria consternado se o incidente se tornasse
público - disse Machada, delicadamente. - Mas eu garanti que
seu cliente é um homem discreto.
- Pode contar com isso.
Deixando o museu, Henri Rendell pegou um táxi para um bairro
residencial ao norte de Madri, subiu uma escada com a tela,
para um apartamento no terceiro andar. Bateu na porta. Foi
aberta por Tracy. Atrás dela estava Cesar Porretta. Tracy
olhou inquisitiva para Rendeu e ele sorriu.
- Eles estavam ansiosos em se livrarem disto! - informou
Rendel, jovialmente.
Tracy abraçou-o.
- Entre.
Porretta pegou o quadro e colocou-o sobre uma mesa.
- Agora - disse ele - vocês, vão testemunhar um milagre... um
Goya que renasce.
Ele pegou um vidro de álcool e abriu-o. O cheiro pungente
impregnou a sala no mesmo instante. Porretta despejou um pouco
numa mecha de algodão e esfregou gentilmente na assinatura de
Lucas, uma letra de cada vez. Gradativamente, a assinatura de
Lucas foi-se apagando. Por baixo estava a assinatura de Goya.
Rendell observava fixamente e murmurou:
- Brilhante!
- A idéia foi da Senhorita Whitney - admitiu o corcunda. -
Ela perguntou-me se seria possível cobrir a assinatura
original do pintor com uma falsa assinatura e depois cobrir
tudo com o nome original.
- Mas foi ele quem imaginou como isso poderia ser feito -
acrescentou Tracy, sorrindo.
Porretta disse, modestamente:
- Foi ridiculamente simples. Não levou mais do que dois
minutos. O truque estava nas tintas que usei. Primeiro, cobri
a assinatura de Goya com uma camada de verniz branco francês
super-refinado, a fim de protegê-la. Depois, pintei por cima o
nome de Lucas, com uma tinta acrílica que seca depressa. Por
cima, pintei o nome de Goya, com uma tinta-óleo e um verniz
claro. Quando a assinatura de cima foi removida, apareceu o
nome de Lucas. Se eles seguissem adiante, descobririam que a
assinatura original de Goya estava escondida por baixo. Mas é
claro que eles não se lembraram de fazer isso.
Tracy entregou a cada homem um envelope recheado e disse:
- Quero agradecer muito aos dois.
- A qualquer momento que precisar de um perito em arte, estou
às ordens - disse Henri Rendell, piscando um olho.
Porretta perguntou:
- Como planea tirar o quadro do país?
- Um mensageiro virá buscá-lo aqui. Espere por ele.
Tracy apertou as mãos dos dois homens e saiu. Voltando para o
Ritz, ela estava dominada por uma sensação de exultação. Tudo
era uma questão de psicologia, pensou ela. Desde o início ela
compreendera que seria impossível roubar o quadro do Prado.
Portanto, tivera de enganá-los, colocá-los num estado de
espirito em que tornariam a iniciativa de se livrarem do
quadro. Tracy visualizou a cara de Jeff Stevens ao saber que
ela fora mais esperta do que ele e soltou uma risada.
Ela esperou em sua suíte no hotel pelo mensageiro. Assim que
ele chegou, telefonou para Cesar Porretta.
- O mensageiro está aqui comigo - disse-lhe Tracy. - Vou
mandá-lo buscar o quadro agora. Cuide para que ele...
- Como? - gritou Porretta. - Do que está falando? Seu
mensageiro levou o quadro há meia hora!
31
Paris
QUARTA-FEIRA, 9 DE JULHO - MEIO-DIA
Num gabinete particular, na Rue Matignon, Gunther Hartog
disse:
- Compreendo como se sente pelo que aconteceu em Madri, Tracy.
Mas Jeff Stevens chegou lá primeiro.
- Não - corrigiu-o Tracy, amargurada. - Eu é que cheguei
primeiro. Ele só apareceu depois.
- Mas Jeff entregou o quadro. O Puerto já se encontra a
caminho do meu cliente.
Depois de todo o planeamento de Tracy, Jeff Stevens fora mais
esperto do que ela. Ficara sentado de braços cruzados,
deixando que ela trabalhasse e assumisse todos os riscos, no
último momento arrebatara o grande prémio e fora embora
calmamente. Como ele devia ter rido dela durante todo o tempo!
Você é uma mulher muito especial, Tracy. Ela não podia
suportar a humilhação que sufocou quando pensou na noite do
flamengo. Meu Deus, que tola eu banquei!
- Nunca pensei que eu poderia matar alguém - comentou Tracy
para Gunther. - Mas teria a maior satisfação em exterminar
Jeff Stevens.
Gunther disse, afavelmente.
- Ora, minha cara, espero que não nesta sala. Ele está vindo
para cá
- Ele está o quê?
Tracy levantou-se de um pulo.
- Eu disse que tenho uma proposta para você. Precisará de um
parceiro. Na minha opinião, ele é o único que...
- Prefiro morrer de fome! - explodiu Tracy. - Jeff Stevens é
o mais desprezível..
- Ouvi meu nome ser mencionado? - Ele estava parado na porta,
com uma expressão radiante. - Tracy, querida, você está ainda
mais deslumbrante do que o habitual. Gunther, meu amigo, como
tem passado?
Os dois amigos trocaram um aperto de mão, Tracy levantou-se,
dominada por uma fúria fria. Jeff fitou-a e suspirou.
- Você está provavelmente zangada comigo..
- Zangada? Eu...
Ela não pôde encontrar as palavras que queria.
- Se me permite dizê-lo, Tracy, seu plano foi brilhante.
Estou falando sério. Realmente brilhante. Você só cometeu um
pequeno erro. Nunca confie num suíço sem o indicador direito.
Ela respirou fundo, tentando se controlar. Virou-se para
Gunther.
- Falarei com você mais tarde, Gunther.
- Tracy...
- Não. O que quer que seja, não quero participar. Não se ele
está envolvido.
- Quer pelo menos escutar? - insistiu Gunther.
- Não há sentido. Eu...
- Dentro de três dias a De Beers embarcará uma remessa de
diamantes, no valor de quatro milhões de dólares, de Paris
para Amsterdam, num avião cargueiro da Air France. Tenho um
cliente que está ansioso em adquirir essas pedras.
- Por que não as sequestra no caminho para o aeroporto? Nosso
amigo aqui é um especialista em sequestros.
Tracy não podia esconder a amargura que sentia. Por Deus,
pensou Jeff, ela é magnífica quando está furiosa. Gunther
disse:
- Os diamantes estão muito bem guardados. Teremos de.
sequestrá-los durante o voo.
Tracy fitou-o com uma expressão de surpresa.
- Durante o voo? Num avião cargueiro?
- Precisamos de alguém bastante pequeno para se esconder
dentro de um dos containers. Quando o avião estiver no ar,
tudo o que essa pessoa precisará fazer será sair, abrir o
container da De Beers, remover o pacote com os diamantes e
substitui-lo por uma duplicata, devidamente preparada, voltar
ao outro container.
- E eu sou bastante pequena para caber num container.
- É muito mais do que isso, Tracy - disse Gunther. -
Precisamos de alguém que seja inteligente e tenha sangue-frio.
Tracy ficou parada, pensando.
- O plano me agrada, Gunther. O que não gosto é a idéia de
trabalhar com ele. Esse homem é um escroque.
Jeff sorriu.
- Não somos todos, meu coração? Gunther está nos oferecendo
um milhão de dólares para aplicar esse golpe.
Tracy olhou aturdida para Gunther.
- Um milhão de dólares?
Ele assentiu.
- Meio milhão para cada um.
- O plano pode dar certo porque eu tenho um contacto na
secção de embarque no aeroporto - explicou Jeff. - Ele nos
ajudará a armar o golpe. Merece toda a confiança.
- Ao contrário de você - disse Tracy bruscamente. - Adeus,
Gunther.
Ela saiu da sala. Gunther ficou olhando para a porta.
- Ela ficou muito aborrecida com você em Madri, Jeff. E
receio que não concordará de jeito nenhum em participar deste
trabalho.
- Está enganado - assegurou Jeff, jovialmente. - Conheço
Tracy. Ela não será capaz de resistir.
- Os containers são lacrados antes de serem embarcados no
avião - explicou Ramon Vauban.
Ele era francês, ainda jovem, com um rosto velho que nada
tinha a ver com sua idade, olhos pretos e mortiços. Como
despachante na secção de carga da Air France, era a chave para
o sucesso do plano.
Vauban, Tracy, Jeff e Gunther estavam sentados numa mesa
junto à amurada no Bateau Mouche, o barco de turismo que cruza
o Sena, circulando Paris.
- Se o container é lacrado - indagou Tracy, incisivamente -
como poderei entrar?
- Para os embarques de última hora - respondeu Vauban - a
companhia usa o que chamamos de containers moles, caixotes de
madeira grandes com lona num lado, presa por uma corda. Por
motivos de segurança, cargas valiosas como diamantes sempre
chegam no último momento. São as últimas a serem embarcadas e
as primeiras a desembarcar.
- Os diamantes estariam então num container mole? - perguntou
Tracy.
- Exactamente, mademoiselle. Providenciarei para que o
container em que você estará seja colocado ao lado do caixote
com os diamantes. Tudo o que terá de fazer, quando o avião
estiver em voo, será cortar a corda, pegar os diamantes,
deixar uma caixa idêntica no lugar, voltar a seu container e
fechá-lo.
Gunther acrescentou:
- Quando o avião pousar em Amsterdam, os guardas pegarão a
caixa substituta de diamantes e a entregarão aos lapidadores.
Quando descobrirem o que aconteceu, você já terá deixado o
país de avião. Tenha certeza de uma coisa, Tracy: nada pode
sair errado.
Uma frase que provocou um calafrio no coração de Tracy.
- Eu não congelaria até a morte lá no alto?
Vauban sorriu.
- Os aviões de carga são actualmente aquecidos, mademoiselle.
Muitas vezes transportam gado e animais de estimação. Estará
bastante confortável. Talvez um pouco apertada, mas muito bem,
fora isso.
Tracy concordara finalmente em escutar o plano. Meio milhão
de dólares por algumas horas de desconforto. Ela analisara o
plano por todos os ângulos. Pode dar certo, pensou Tracy. Se
ao menos Jeff não estivesse envolvido...
Seus sentimentos em relação a ele eram uma mistura
desconcertante de emoções, deixando-a confusa e furiosa
consigo mesma. Ele dera aquele golpe em Madri pelo puro prazer
de se mostrar mais esperto do que ela. Traíra-a, enganara-a,
agora estava secretamente rindo à sua custa.
Os três homens observavam-na, esperando por sua resposta. O
barco passava sob a Pont Neuf, a mais antiga das pontes de
Paris, mas que os caprichosos franceses insistiam em chamar de
Nova. No outro lado do rio, dois namorados se abraçavam na
margem. Tracy pôde perceber a expressão de felicidade no rosto
da moça. Ela é uma tola, pensou Tracy. E tomou sua decisão.
Fitou Jeff nos olhos ao dizer:
- Muito bem, farei o trabalho.
Tracy sentiu no mesmo instante a tensão na mesa se dissipar.
- Não temos muito tempo - disse Vauban, os olhos mortiços se
virando para Tracy. - Meu irmão trabalha para um agente de
cargas e nos deixará carregar o container com você em seu
armazém. Espero que mademoiselle não tenha claustrofobia.
- Não se preocupe comigo... Quanto tempo levará a viagem?
- Passará uns poucos minutos na área de embarque e uma hora
voando para Amsterdam.
- Qual é o tamanho do container?
- Bastante grande para que possa sentar-se. Haverá outras
coisas para escondê-la... no caso de acontecer algo
inesperado.
Nada pode sair errado, eles haviam prometido. Mas...
- Tenho uma lista de coisas que você precisará - disse-lhe
Jeff. - E já as providenciei.
O filho da puta presunçoso. Ele tinha certeza de que ela
responderia afirmativamente.
- Vauban providenciará para que você tenha os vistos
apropriados de entrada e saída, a fim de poder deixar a
Holanda sem qualquer problema.
O barco iniciou a manobra para atracar.
Podemos repassar os planos finais pela manhã - disse Ramon
Vauban. - Agora, tenho de voltar ao trabalho. Au revoir.
Ele levantou-se e desembarcou no instante em que o barco
atracou. Jeff indagou:
- Por que não jantamos todos juntos para comemorar?
- Lamento, mas já tenho um compromisso anterior - desculpou-se
Gunther.
Jeff virou-se para Tracy.
- Você...
- Não, obrigada - ela se apressou em dizer. - Estou muito
cansada.
Era uma desculpa para evitar a companhia de Jeff. Mas assim
que falou, Tracy percebeu que se encontrava realmente exausta.
Era provavelmente a tensão do excitamento com que vinha
vivendo há tanto tempo. Sentia-se meio tonta. Quando isso
acabar, ela prometeu a si mesma, voltarei a Londres para um
descanso prolongado. Sua cabeça começava a latejar. Preciso
mesmo...
- Comprei-lhe um presentinho - disse Jeff.
Ele entregou a Tracy uma caixa embrulhada em papel de
presente. Era uma delicada echarpe de seda, com as iniciais TW
num canto.
- Obrigada.
Ele pode comprar isto, pensou Tracy, irritada. Comprou com meu
meio milhão de dólares.
- Não vai mudar de idéia sobre o jantar?
- Não.
Em Paris, Tracy hospedava-se no clássico Plaza Athénée, numa
velha Suíte adorável, dando para o restaurante no jardim.
Havia um restaurante elegante no interior do hotel, com música
de piano suave. Mas, naquela noite, Tracy sentia-se cansada
demais para vestir uma roupa mais formal. Foi para o Relais, o
pequeno café do hotel, pediu uma sopa. Empurrou o prato para o
lado, deixando metade da sopa, voltou à sua suíte.
Daniel Cooper, sentado no outro lado do café, anotou a hora.
Daniel Cooper tinha um problema. Ao voltar a Paris, pedira uma
reunião com o Inspector Trignant. O director da Interpol fora
menos do que cordial. Acabara de passar uma hora no telefone,
escutando as queixas do Comandante Ramiro contra o americano.
- Ele é louco! - explodira o espanhol. - Desperdicei homens,
dinheiro e tempo para seguir a tal de Tracy Whitney, que ele
insistia em dizer que assaltaria o Prado. No final,
constatou-se que a mulher não passava de uma turista
inocente... como eu disse desde o início.
A conversa levara o Inspector Trignant a acreditar que Daniel
Cooper podia estar enganado em relação a Tracy desde o começo.
Não havia qualquer prova contra a mulher. O facto de que ela
se encontrava em várias cidades, nas ocasiões em que os crimes
haviam sido cometidos, não chegava a ser uma prova.
Assim, o Inspector estava contrariado quando Daniel Cooper o
fora procurar e dissera:
- Tracy Whitney se encontra em Paris. Eu gostaria que ela
fosse colocada sob uma vigilância de vinte e quatro horas por
dia.
Trignant respondera:
- A menos que você possa me apresentar provas de que a mulher
planea cometer um crime específico, não há nada que eu possa
fazer.
Cooper o contemplara com seus olhos castanhos ardentes e
dissera:
- Você é um idiota.
E ele se descobrira sendo levado bruscamente para fora do
escritório.
Fora por isso que Cooper iniciara a sua vigilância de um homem
só. Seguia Tracy por toda a parte: a lojas e restaurantes,
através das ruas de Paris. Ficava sem dormir e muitas vezes
sem comer. Daniel Cooper não podia permitir que Tracy Whitney
o denotasse. Sua missão não estaria encerrada enquanto não a
metessem na prisão.
Tracy ficou acordada na cama durante aquela noite, revendo o
plano que seria executado no dia seguinte. Gostaria que sua
cabeça estivesse melhor. tomara aspirina, mas a cabeça
continuava a latejar, cada vez pior. Estava suando e o quarto
parecia insuportavelmente quente. Amanhã estará tudo acabado,
Suíça. E o lugar para onde iriam. Para as frias montanhas da
Suíça.
Ela pôs o despertador para tocar às cinco horas da manhã.
Quando a campainha soou, descobriu-se na cela da prisão, com
Calcinha de Ferro berrando:
- Hora de se vestir! Depressa!
O corredor ressoava com o estrépito da campainha. Tracy
acordou. Sentia uma pressão no peito, a claridade fazia os
olhos doerem. Forçou-se a ir ao banheiro. O rosto parecia
inchado e avermelhado no espelho. Não posso ficar doente
agora, pensou Tracy. Não hoje. Há muito o que fazer.
Ela vestiu-se devagar, tentando ignorar o latejar na cabeça.
Pôs o macacão preto de bolsos fundos, os sapatos de solas de
borracha e uma boina basca. O coração parecia bater
irregularmente, mas não tinha certeza se era do excitamento ou
da doença que a invadia. Sentia-se tonta e fraca. A garganta
estava dolorida, dando a impressão de arranhada. à mesa, viu a
echarpe que Jeff lhe dera. Pegou-a, e enrolou no pescoço.
A portaria do Mel Plaza Athénée fica na Avenue Montaigne, mas
a entrada de serviço é na Rue du Boccador, além da esquina. Um
cartaz discreto indica ENTRÉE DE SERVICE. Há um corredor
comprido, margeado de latas de lixo, levando à rua. Daniel
Cooper, que assumira um posto de observação perto da entrada
principal, não viu Tracy sair pela entrada de serviço. Mas,
inexplicavelmente, ele sentiu no momento em que ela se foi.
Cooper saiu apressadamente para a avenida e olhou para um lado
e outro. Tracy não se achava à vista.
O Renault cinza que pegou Tracy na entrada lateral do hotel
seguiu para a Étoile. Havia pouco tráfego naquela hora e o
motorista, um rapaz de rosto cheio de espinhas, que
aparentemente não falava inglês, disparou por uma das 12
avenidas que constituem os raios da Étoile. Eu gostaria que
ele andasse mais devagar, pensou Tracy. O movimento do carro
estava deixando-a enjoada.
Trinta minutos depois o carro parou com um solavanco diante
de uma armazém. A placa por cima da porta dizia BRUCERE ET
CIE. Tracy lembrou-se que era ali que trabalhava o irmão de
Ramon Vauban. O rapaz abriu a porta do carro e murmurou:
- Vite!
Um homem de meia-idade e cabelos louros ondulados apareceu
quando Tracy saia do carro, dizendo:
- Siga-me. Depressa.
Tracy foi atrás dele até os fundos do armazém, onde havia
meia dúzia de containers, quase todos cheios e fechados,
prontos para serem levados ao aeroporto. Havia um container
mole, com um lado de lona, parcialmente ocupado por móveis.
- Entre. Depressa. Não temos tempo a perder.
Tracy sentiu uma vertigem. Olhou para o caixote e pensou: Não
posso ficar aí dentro. Eu morrerei.
O homem fitava-a com uma expressão estranha.
- Avez vous mal?
Agora era o momento de recuar, de pôr um paradeiro naquela
loucura.
- Não. Estou bem.
Tudo acabará em breve. Ela estaria a caminho da Suíça dentro
de poucas horas.
- Bon. Leve isto.
Ele entregou a Tracy uma faca de gume duplo, um rolo de
corda, uma lanterna e uma pequena caixa de jóias azul, com uma
fita vermelha ao redor.
- Esta é a duplicata da caixa de jóias que trocará.
Tracy respirou fundo, entrou no container e sentou-se.
Segundos depois uma lona foi baixada sobre a abertura. Ela
ouviu as cordas sendo amarradas na lona, a fim de mantê-la no
lugar. Mal ouviu a voz do homem através da lona:
- Daqui por diante, nada de falar, nada de se mexer, nada de
fumar.
Tracy tentou dizer "Eu não fumo", mas não encontrou energia
suficiente.
- Bonne chance. Abri alguns buracos no lado da caixa para
você poder respirar. Não se esqueça de respirar.
Ele riu de sua piada e Tracy ouviu os passos se afastando.
Ficou sozinha no escuro.
O caixote era estreito e apertado, um jogo de cadeiras de
mesa de jantar ocupava a maior parte do espaço. Tracy tinha a
sensação de que estava pegando fogo. A pele era muito quente
ao contacto, tinha dificuldade em respirar. Peguei alguma
espécie de vírus, pensou ela, mas isso terá de esperar. Tenho
um trabalho a realizar. Pense em outra coisa.
A voz de Gunther: Não tem com que se preocupar, Tracy. Quando
descarregarem em Amsterdam, seu container será levado para uma
garagem particular, perto do aeroporto. Jeff a encontrará lá.
Entregue-lhe as pedras e volte ao aeroporto. Haverá uma
passagem de avião para Genebra à sua espera no balcão da
Swissair. Saia de Amsterdam o mais depressa possível. Assim
que souber do roubo, a polícia fechará a cidade. Nada sairá
errado. Mas, caso haja alguma emergência, aqui tem o endereço
e a chave de uma casa segura em Amsterdam. Está desocupada.
Ela devia ter cochilado, pois despertou com um sobressalto no
momento em que o container foi levantado. Tracy sentiu que
caía pelo espaço apertado e teve de se segurar nos lados em
busca de apoio. O container assentou em alguma coisa dura.
Houve uma batida de porta de veículo, um motor entrou em
funcionamento ruidosamente e um momento depois o camião se
achava em movimento.
Estavam a caminho do aeroporto.
O plano fora meticulosamente elaborado com toda exactidão. O
container com Tracy dentro deveria chegar ao aeroporto poucos
minutos antes do container da De Beers. O motorista do camião
levando Tracy tinha instruções rigorosas: Mantenha uma
velocidade constante de oitenta quilómetros horários.
O tráfego na estrada para o aeroporto parecia mais intenso do
que o habitual naquela manhã, mas o motorista não estava
preocupado. O container estaria no aeroporto a tempo e ele
ganharia uma gratificação adicional de 50 mil francos, o
suficiente para viajar em férias com a mulher e os dois
filhos. América, pensava ele. Iremos à Disneyworld.
O motorista olhou para o relógio no painel e sorriu para si
mesmo. Nenhum problema. O aeroporto ficava a apenas cinco
quilómetros de distância e dispunha de dez minutos para chegar
lá.
Exactamente no horário, ele chegou ao desvio para o terminal
de carga da Air France. Passou pelo prédio cinzento e baixo em
Roissy - Aeroporto Charles de Gaulle, afastando-se da entrada
de passageiros, onde cercas de arame farpado separavam a
estrada da área de carga. Ao se dirigir para o vasto armazém,
que se estendia por uma área de três blocos e estava repleto
de caixotes, pacotes e containers empilhados, houve um súbito
som explosivo e o volante em suas mãos deu uma guinada brusca.
O camião começou a vibrar. Foutre!, pensou ele. Uma porra de
um pneu furado logo agora!
O gigantesco avião cargueiro 747 da Air France se achava no
processo de ser carregado. Os containers se encontravam numa
plataforma na altura da abertura, prontos para deslizarem por
uma esteira para o porão do avião. Eram 38 containers, 28 no
convés principal e os restantes no porão. Um tubo de
aquecimento exposto corria pelo teto do imenso compartimento,
os fios e cabos que controlavam o aparelho eram visíveis. Não
havia requintes naquele avião.
O processo de carregamento já estava quase concluído. Ramon
Vauban tornou a olhar para seu relógio e praguejou. O camião
estava atrasado. A remessa da De Beers já fora posta em seu
container, o lado de lona preso por cordas cruzadas. Vauban
marcara o lado com tinta vermelha, a fim de que a mulher não
tivesse qualquer dificuldade para identificá-lo. Ele observou
agora, enquanto o Container com os diamantes da De Beers era
levado para o avião e posto em seu lugar. Havia espaço ao lado
para mais um container antes que o avião descolasse. E havia
três outros na plataforma, esperando para serem embarcados.
Onde se metera a mulher? O responsável pela carga gritou do
interior do avião:
- Vamos logo, Ramon! O que está esperando?
- Só um momento - respondeu Vauban.
Ele seguiu apressadamente até à entrada da área de carga.
Nenhum sinal do camião.
- Vauban! Qual é o problema? - Ele virou-se. Um supervisor
sénior se aproximava. - Termine logo de carregar e mande essa
carga para o ar.
- Pois não, senhor. Eu só estava esperando...
Nesse momento o camião da Brucere et Cie entrou rapidamente
na área e parou na frente de Vauban, com um ranger de pneus.
- Aqui está a última carga - disse Vauban.
- Pois embarque logo!
Vauban supervisionou a retirada do container do camião e seu
embarque no avião. Acenou para o responsável dentro do avião.
- É tudo seu!
Momentos depois, os jactos foram accionados e a gigantesca
aeronave começou a taxiar para a pista. Vauban pensou: Agora,
tudo depende da mulher.
Havia uma tempestade violenta. Uma onda enorme atingiu o
navio, que começou a afundar. Estou me afogando, pensou Tracy.
Tenho de sair daqui.
Ela estendeu os braços e bateu em alguma coisa. Era o lado do
escaler, balançando incontrolável. Tracy tentou ficar de pé e
bateu com a cabeça na perna de uma mesa. Num momento de
lucidez, lembrou-se de onde estava. O rosto e os cabelos
pingavam suor. Sentia-se tonta, o corpo ardia. Por quanto
tempo estivera inconsciente? Era apenas uma hora de voo. O
avião estava prestes a aterrar? Não, pensou ela. Corre tudo
bem. Tenho um pesadelo. Estou na cana em Londres, dormindo.
Chamarei um médico. Ela não conseguia respirar. Fez um esforço
para se erguer e pegar o telefone, mas no instante seguinte
tornou a arriar, o corpo pesado como chumbo. O avião entrou
num bolsão de turbulência e Tracy foi lançada contra o lado do
caixote. Ficou imóvel, atordoada, tentando desesperadamente se
concentrar. Quanto tempo eu tenho? Ela oscilava entre um sonho
infernal e a realidade angustiosa. Os diamantes. De alguma
forma, ela tinha de pegar os diamantes. Mas primeiro...
primeiro tinha de sair do container em que estava.
Ela pegou a faca no macacão e descobriu que era um terrível
esforço levantá-la. Não há ar suficiente, pensou Tracy.
Preciso de ar. Ela enfiou a mão pela beira da lona, tacteou à
procura de uma das cordas externas, encontrou-a e cortou-a.
Teve a impressão de levar uma eternidade. A lona se abriu um
pouco. Ela cortou outra corda e agora havia espaço suficiente
para sair do container. O ar era frio do lado de fora. Ela
estava congelando. Todo o seu corpo começou a tremer. Os
constantes solavancos do avião aumentavam-lhe a náusea. Tenho
de me controlar, pensou Tracy. Ela fez um esforço para se
concentrar. O que estou fazendo aqui? Alguma coisa
importante... Ah, sim... Diamantes.
A visão de Tracy estava enevoada, tudo entrava e saía de foco
incessantemente. Não vou conseguir.
O avião caiu abruptamente e Tracy foi lançada ao chão,
arranhando as mãos no metal. Ficou se segurando, enquanto o
avião balançava; quando o movimento cessou, ela forçou-se a
ficar de pé outra vez. O rugido dos jactos se misturava com o
zumbido em sua cabeça. Os diamantes. Preciso encontrar os
diamantes.
Ela cambaleou entre os containers, estreitando os olhos para
observar cada um, à procura do sinal de tinta vermelha. Graças
a Deus! Lá estava o sinal, no terceiro container. Ela ficou
imóvel, tentando se lembrar o que fazer em seguida. Era um
grande esforço se concentrar. Se eu pudesse deitar e dormir
por uns minutos, tudo estará bem. Só preciso de um pouco de
sono. Mas não havia tempo. Podiam aterrar em Amsterdam a
qualquer momento. Tracy pegou a faca e cortou as cordas no
container.
- Um bom corte será suficiente - haviam lhe dito.
Mal tinha força para segurar a faca. Não posso falhar agora,
pensou Tracy. Ela recomeçou a tremer, tão violentamente que
largou a faca. Não vou conseguir. Eles me pegarão e me
mandarão de volta à prisão.
Ela hesitou, indecisa, segurando a corda, querendo
desesperadamente rastejar de volta a seu container, onde
poderia dormir, sã e salva, até que tudo acabasse. Seria tão
fácil... Depois, lentamente, com todo cuidado, enfrentando o
latejar terrível na cabeça, Tracy estendeu a mão para a faca e
pegou-a. Começou a cortar a grossa corda.
E a corda finalmente se rompeu. Tracy puxou a lona e ficou
olhando fixamente para o interior escuro do container. Nada
podia ver. Pegou a lanterna e, nesse momento, sentiu uma
súbita mudança da pressão em seus ouvidos.
O avião estava descendo para o pouso.
Tracy pensou: Tenho de me apressar. Mas seu corpo se recusava
a reagir. Ela permaneceu imóvel, atordoada. Mexa-se, ordenou a
mente.
Ela iluminou o interior do container com a lanterna. Estava
atulhado de pacotes, envelopes e pequenas caixas. E, por cima,
lá estavam as duas caixas azuis com fitas vermelhas. Duas
caixas! Mas só devia haver uma... Ela piscou os olhos e as
duas caixas se fundiram em uma. Tudo parecia estar envolto por
uma aura brilhante.
Tracy pegou a caixa, tirou a duplicata do bolso. Segurando as
duas, uma náusea intensa dominou-a, sacudindo seu corpo.
Cerrou os olhos, lutando contra a náusea. Começou a pôr a
caixa substituta no alto do engradado e subitamente
compreendeu que não mais tinha certeza qual era a genuína.
Olhou atentamente para as caixas idênticas. Era a que estava
na mão esquerda ou a da mão direita?
O avião entrou num ângulo de descida mais íngreme. Mais um
pouco e estaria pousando. Ela tinha de tomar uma decisão.
Largou uma das caixas no container, rezando para que fosse a
certa, afastou-se. Tirou um pedaço de corda do seu macacão. Há
alguma coisa que devo fazer com esta corda. O zumbido em sua
cabeça tornava impossível pensar. Ela lembrou-se: Depois de
cortar a corda, guarde-a no bolso e substitua-a pela corda
nova. Não deixe qualquer coisa que possa levá-los a desconfiar
que há algo errado.
Parecera muito fácil então, sentada ao sol quente no Bateau
Mouche Agora, porém, era impossível. Não lhe restava mais
qualquer força. Os guardas encontrariam a corda cortada,
revistariam toda a carga e a prenderiam. Alguma coisa dentro
dela gritou: Não! Não! Não!
Com um esforço tremendo, Tracy começou a prender a corda que
trouxera no container. Sentiu um solavanco sob os pés no
momento em que o avião tocou no chão, depois outro, foi
arremessada para trás, quando as turbinas entraram em
reversão. A cabeça bateu no chão e ela apagou a lanterna.
O 747 aumentava a velocidade agora, taxiando pela pista, na
direcção do terminal. Tracy estava caída no chão do avião, os
cabelos se espalhando sobre o rosto pálido, muito branco. Foi
o silêncio dos motores que finalmente a trouxe de volta à
consciência. Soergueu-se, apoiada num cotovelo, lentamente se
forçou a ficar de joelhos. Levantou-se, cambaleando, teve de
se segurar no container para não cair. A corda nova estava no
lugar. Ela comprimiu a caixa dos diamantes contra o peito,
começou a voltar para seu container. Esgueirou-se pela
abertura na lona e arriou, ofegante, o corpo coberto de suor.
Eu consegui. Mas havia mais uma coisa que precisava fazer.
Algo importante. O quê? Prenda com uma fita adesiva a corda em
seu container.
Ela meteu a mão no bolso do macacão, à procura do rolo de
fita adesiva. Desaparecera. Sua respiração era rasa, aos
arrancos, o som a ensurdecia. Teve a impressão de ouvir vozes
e forçou-se a parar de respirar e escutar. Isso mesmo. Estavam
ali novamente. Alguém riu. A qualquer momento, a porta do
compartimento de carga seria aberta, os homens começariam a
descarregar. Veriam a corda cortada, dariam uma olhada dentro
do container e a descobririam. Tinha de encontrar um meio de
unir a corda. Ficou de joelhos e nesse instante sentiu por
baixo do corpo o rolo de fita adesiva, que caíra do bolso em
algum momento durante a turbulência do voo. Levantou a lona e
tacteou ao redor, encontrou as duas pontas da corda cortada e
uniu-as, enquanto tentava desajeitadamente prendê-las com a
fita adesiva.
Não podia ver. O suor escorria pelo rosto e a cegava. Tirou a
charpe do pescoço e enxugou o rosto. Terminou de prender a
corda e largou a lona de volta no lugar. Não havia mais nada a
fazer agora, a não ser esperar. Ela tornou a apalpar a testa e
pareceu-lhe ainda mais quente do que antes.
Tenho que sair do sol, pensou Tracy. O sol tropical pode ser
perigoso.
Ela estava de férias em algum lugar do Caribe. Jeff aparecera
para lhe entregar alguns diamantes, mas pulara no mar e
sumira. Ela se inclinou para salvá-lo, mas Jeff escapuliu às
suas mãos. A água agora cobria a cabeça dela. Estava
sufocando, afogando.
Ouviu o barulho dos trabalhadores entrando no avião.
- Socorro! - gritou - Por favor, ajudem-me!
Mas o grito foi um sussurro, ninguém ouviu.
Os imensos containers começaram a ser retirados do avião.
Tracy estava desmaiada quando levaram o seu container para um
camião da Brucere et Cie. E no chão do avião cargueiro ficou a
charpe que Jeff lhe dera.
Tracy foi acordada quando uma claridade atingiu o camião, no
momento em que alguém levantou a lona. Lentamente, ela abriu
os olhos. O camião estava dentro de um armazém. Jeff se achava
parado ali, sorrindo-lhe.
- Você conseguiu! - exclamou ele. - É uma maravilha, Tracy.
Dê-me a caixa.
Ela observou, apática, quando Jeff pegou a caixa.
- Até Lisboa. Ele virou-se para sair, mas parou no instante
seguinte e fitou-a. -Tem um aspecto horrível, Tracy. Está-se
sentindo bem?
Ela mal conseguia falar.
- Jeff, eu...
Mas ele já se fora.
Tracy só teve depois uma recordação nebulosa do que aconteceu
em seguida. Havia uma muda de roupas para ela nos fundos do
armazém e uma mulher disse:
- Parece doente, mademoiselle. Deseja que eu chame um médico?
- Nada de médicos - balbuciou Tracy.
Haverá uma passagem de avião para Genebra à sua espera no
balcão da Swissair. Saia de Amsterdam o mais depressa
possível. Assim que souber do roubo, a polícia fecha a cidade.
Nada sairá errado. Mas, caso haja alguma emergência, aqui tem
o endereço e a chave de uma casa segura em Amsterdam. Está
desocupada.
O aeroporto. Ela tinha de chegar ao aeroporto. Tracy murmurou:
- Quero um táxi...
A mulher hesitou por um momento e depois encolheu os ombros.
- Está certo. Vou chamá-lo. Espere aqui.
Tracy flutuava agora cada vez mais alto, chegando perto do
sol.
- Seu táxi está aqui - disse um homem.
Ela gostaria que as pessoas parassem de incomodá-la. Só
queria dormir.
O motorista perguntou:
- Para onde deseja ir, mademoiselle?
Haverá uma passagem de avião para Genebra à sua espera no
balcão da Swissair.
Ela estava doente demais para embarcar num avião. Iriam
impedi-la, chamar um médico. Seria interrogada. Tudo o que
precisava era dormir por alguns minutos e depois tudo estaria
bem. A voz do motorista começava a se tornar impaciente.
- Para onde, por favor?
Ela não tinha para onde ir. E acabou dando ao motorista o
endereço da casa segura.
A polícia interrogavas a respeito dos diamantes. Como ela se
recusasse a responder, eles ficaram furiosos e a trancaram
sozinha numa sala, ligando o aquecimento, até que o calor se
tornou insuportável. Quando isso aconteceu, baixaram a
temperatura, até que pingentes de gelo começaram a se formar
nas paredes.
Tracy emergiu pelo frio e abriu os olhos. Estava numa cama
tremendo incontrolavelmente. Havia um cobertor por baixo de
seu corpo, mas não tinha força para estendê-lo por cima. O
vestido estava encharcado de suor, o rosto e o pescoço se
achavam molhados.
Morrerei aqui. Onde era o aqui?
A casa segura. Estou na casa segura. E a frase pareceu-lhe tão
engraçada que desatou a rir, o riso logo se transformando num
paroxismo de tosse. Tudo saíra errado. Ela não escapara, no
fim de contas. A esta altura, a polícia deveria estar
vasculhando Amsterdam, à sua procura. Mademoiselle Whitney
tinha uma passagem para Genebra e não a usou? Então ela ainda
deve estar em Amsterdam.
Ela se perguntou há quanto tempo estaria naquela cama.
Levantou o pulso para olhar o relógio, mas os números se
mostravam borrados. Via tudo a dobrar. Havia duas camas no
pequeno quarto, duas cómodas e quatro cadeiras. O tremor
cessou, seu corpo ardia novamente. Precisava abrir uma janela,
mas se achava fraca demais para fazer qualquer movimento. O
quarto começou a congelar outra vez.
E ela se encontrava de volta ao avião, trancada no container,
gritando por socorro.
Você conseguiu! É uma maravilha, Tracy. Dé-me a caixa.
Jeff levara os diamantes e provavelmente se achava a caminho
do Brasil, com a sua parte do dinheiro. Estaria se divertindo
com uma de suas mulheres, rindo dela. Ele a vencera mais uma
vez. Ela o odiava. Não, não odiava. Sim, odiava. Ela o
desprezava.
Tracy entrava e saía do delírio. A bola dura da pelota voava
em sua direcção, Jeff a tomava nos braços, empurrava-a para o
chão, os lábios bem perto dos seus. E depois estavam jantando
no Zalacaín. Sabia que você é muito especial, Tracy?
Eu ofereço o empate, disse Boris Melnikov.
Seu corpo tremia novamente, descontrolado, viajava num trem
expresso, atravessando um túnel escuro. Ela sabia que,
morreria no final do túnel. Todos os outros passageiros haviam
desembarcado, excepto Alberto Fornati. Ele estava furioso com
ela, sacudia-a e gritava:
- Pelo amor de Deus! Abra os olhos! Olhe para mim!
Com um esforço sobre-humano, Tracy abriu os olhos e deparou
com Jeff. O rosto dele estava muito pálido e havia fúria em
sua voz. Mas é claro que tudo não passava de parte do seu
sonho.
Há quanto tempo se acha assim?
- Você está no Brasil - balbuciou Tracy.
Depois disso, ela não se lembrou de mais nada.
Quando recebeu a echarpe com as iniciais TW, o Inspector
Trignant contemplou-a em silêncio por um longo tempo. A
echarpe fora encontrada no chão do avião cargueiro da Air
France. Depois, ele murmurou:
- Quero falar com Daniel Cooper.
32
A pitoresca aldeia de Alkmaar, na costa noroeste da Holanda,
virada para o Mar do Norte, é um ponto turístico popular. Mas
há um bairro no sector leste que os turistas raramente
visitam. Jeff Stevens ali estivera em férias várias vezes, com
uma aeromoça da KLM que lhe ensinara a língua. Recordava-se
muito bem da área, um lugar em que os residentes cuidavam de
suas próprias vidas apenas e não se mostravam indevidamente
curiosos em relação aos visitantes. Um lugar perfeito para se
esconder.
O primeiro impulso de Jeff fora levar Tracy correndo para um
hospital. Mas seria perigoso demais. Era também arriscado para
ela permanecer em Amsterdam. por mais um minuto sequer. Ele a
envolvera em cobertores e a levara para o carro, onde ela
permanecera inconsciente durante toda a viagem até Alkmaar.
Sua respiração era ofegante e a pulsação irregular.
Em Alkmaar, Jeff foi para uma pequena estalagem. O
estalajadeiro observou, curioso, quando Jeff carregou Tracy
para o quarto no segundo andar.
- Estamos em lua-de-mel - explicou Jeff. - Minha esposa ficou
doente... um pequeno distúrbio respiratório. Precisa de
repouso.
- Gostaria que eu chamasse um médico?
O próprio Jeff não tinha certeza de qual era a resposta certa.
- Se houver necessidade, eu lhe direi.
A primeira coisa que tinha de fazer era tentar baixar a febre
de Tracy. Levou-a para a cama de casal no quarto e começou a
tirar-lhe as roupas, encharcadas de suor. Suspendeu-a para uma
posição sentada e puxou o vestido pela cabeça. Os sapatos em
seguida, depois a meia-calça. O corpo de Tracy estava muito
quente. Jeff molhou uma toalha com água fria e gentilmente
banhou-a, da cabeça aos pés. Cobriu-a com um cobertor e
sentou-se ao lado da cama, prestando atenção à sua respiração.
Se ela não estiver melhor pela manhã, decidiu Jeff, terei de
chamar um médico.
Pela manhã, as roupas de cama estavam novamente encharcadas.
Tracy ainda se encontrava inconsciente, mas Jeff teve a
impressão de que sua respiração era um pouco mais fácil. Não
queria permitir que a arrumadeira visse Tracy; isso
acarretaria perguntas demais. Em vez disso, pediu uma muda de
roupa de cama e levou para o quarto. tornou a lavar o corpo de
Tracy com uma toalha úmida, mudou a roupa da cama como vira
enfermeiras fazerem em hospitais, sem incomodar a paciente,
tornou a cobri-la.
Pondo um cartaz de FAVOR NÃO INCOMODAR na porta, Jeff saiu à
procura da farmácia mais próxima. Comprou aspirina, um
termómetro, uma esponja e álcool. Quando voltou ao quarto,
constatou que Tracy ainda não despertara. Jeff verificou sua
temperatura: 40 graus. Passou álcool pelo corpo com a esponja
e a febre baixou.
Uma hora depois, a temperatura tornou a subir. Ele teria de
chamar um médico. O problema era que o médico insistiria que
Tracy fosse levada para um hospital. Haveria perguntas. Jeff
não tinha idéia se a polícia os procurava; mas, se isso
acontecesse, os dois seriam detidos. Precisava fazer alguma
coisa. Esmagou quatro aspirinas, e pôs o pó entre os lábios de
Tracy e gentilmente pingou água em sua boca, até que ela
engolisse. tornou a banhá-la. Quando terminou de enxugá-la,
teve a impressão de que o corpo de Tracy já não se mostrava
tão quente como antes. Verificou o pulso. Parecia mais firme.
Encostou a cabeça no peito de Tracy e escutou. A respiração
estaria menos congestionada? Não podia ter certeza. Só tinha
certeza de uma coisa e repetiu-a interminavelmente, até que se
transformou numa litania: "Você ficará boa." E Jeff beijou-a
na testa, gentilmente.
Ele não dormia há 48 horas, sentia-se exausto, os olhos
fundos. Dormirei depois, prometeu a si mesmo. Agora, só
fecharei os olhos por um momento, a fim de descansármos.
E ele dormiu.
Quando abriu os olhos e observou o teto entrar em foco
lentamente, Tracy não tinha a menor idéia do lugar em que se
encontrava. Foram necessários alguns minutos para que a
percepção penetrasse em seu consciente. Sentia o corpo moído e
dolorido, tinha a impressão de que retornara de uma jornada
longa e extenuante. Sonolenta, correu os olhos pelo quarto
desconhecido... e o coração parou subitamente. Jeff se achava
arriado numa poltrona, perto da janela, adormecido. Na última
vez em que o vira, ele pegara os diamantes e fora embora. O
que estaria fazendo ali? E com uma repentina sensação de
desespero, Tracy compreendeu a verdade: entregara-lhe a caixa
errada - a caixa com os falsos diamantes - e Jeff pensava que
o enganara. Devia tê-la apanhado na casa segura e levado para
aquele lugar, ela não sabia onde.
Quando ela se sentou na cama, Jeff se mexeu e abriu os olhos.
Ao deparar com Tracy a fitá-lo, um lento sorriso de felicidade
iluminou seu rosto.
- Seja bem-vinda de volta.
Havia um tom de alívio tão intenso em sua voz que Tracy
sentiu-se confusa.
- Desculpe - disse Tracy, a voz num sussurro rouco. - Eu lhe
dei a caixa errada.
- Como?
- Misturei as caixas.
Jeff aproximou-se da cama e disse gentilmente:
- Não, Tracy. Você me deu os diamantes autênticos, Que estão
agora a caminho de Gunther.
Ela ficou aturdida.
- Então... por que... por que você está aqui?
Jeff sentou-se na beira da cama.
- Quando me entregou os diamantes, você estava com a máscara
da morte. Resolvi que era melhor aguardar no aeroporto, a fim
de me certificar se você pegava mesmo o avião para Genebra.
Como não apareceu, compreendi que se encontrava em alguma
encrenca. Fui à casa segura e encontrei-a.
Uma pausa e ele acrescentou, jovialmente:
- Não podia deixá-la morrer ali. Seria uma pista para a
polícia.
Tracy observava-o atentamente, cada vez mais perplexa.
- Diga qual foi o verdadeiro motivo para voltar à minha
procura.
- É hora de tirar sua temperatura - disse Jeff, bruscamente.
Poucos minutos depois, ele disse a Tracy:
- Não está ruim. Um pouco acima de trinta e oito, Você é uma
paciente maravilhosa.
- Jeff...
- Confie em mim. Tem fome?
- Uma fome enorme.
- Óptimo. Vou buscar alguma comida.
Ele voltou das compras com uma sacola cheia de suco de
laranja, leite, frutas e grandes broodjes holandeses, pães
recheados com diferentes tipos de queijo, carne e peixe.
- Isto parece ser a versão holandesa da canja, mas deve
resolver o problema. Coma devagar.
Ele ajudou-a a se sentar na cama e alimentou-a. Mostrou-se
cuidadoso e terno. Tracy pensou, cautelosa: Ele pretende
alguma coisa. Enquanto ela comia, Jeff disse:
- Ao sair para as compras, aproveitei e telefonei para
Gunther. Ele recebeu os diamantes e depositou a sua parte do
dinheiro em sua conta na Suíça.
Tracy não pôde deixar de perguntar:
- Por que você não ficou com tudo?
Quando Jeff respondeu, seu tom era sério:
- Porque já é tempo de pararmos de passar para trás um ao
outro, Tracy, Certo?
Era outro dos truques de Jeff, com toda a certeza. Mas Tracy
sentia-se cansada demais para se preocupar com isso.
- Certo.
- Se me disser os seus tamanhos, Tracy, eu saírei e lhe
comprarei algumas roupas. Os holandeses são liberais, mas
poderiam ficar chocados se você saísse por aí do jeito como
está.
Tracy levantou as cobertas, descobrindo subitamente a sua
nudez. Tinha uma vaga impressão de Jeff a despi-la e banhá-la.
Ele arriscara a sua própria segurança para cuidar dela. Por
quê? Tracy acreditara que o compreendia. Mas não o compreendo,
pensou Tracy. Não o compreendo absolutamente.
Ela dormiu.
à tarde, Jeff` voltou ao quarto com duas malas, cheias de
chambres, camisolas, roupas de baixo, vestidos e sapatos, um
estojo de maquilhagem, escova e secador de cabelos, escova e
pasta de dentes. Também comprara diversas roupas para si mesmo
e, International Herald Tribune. Havia uma matéria sobre o
roubo dos diamantes na primeira página; a polícia calculara
como fora cometido, mas os ladrões não haviam deixado qualquer
pista, segundo o jornal. Jeff declarou, jovialmente:
- Estamos livres! Agora, tudo o que precisamos fazer é cuidar
para que você se recupere totalmente.
Fora Daniel Cooper quem sugerira que a informação da echarpe
com as iniciais TW fosse oculta da imprensa, explicando ao
Inspector Trignant:
- Sabemos a quem pertence, mas não é prova suficiente para um
indiciamento. Os advogados dela apresentariam todas as
mulheres da Europa com as mesmas iniciais e nos fariam de
tolos.
Na opinião de Cooper, a polícia já bancara a tola. Mas Deus a
entregará a mim.
Ele sentou-se na escuridão da pequena igreja, num banco duro
de madeira, e rezou: Oh, Pai, entregue-a a mim. Faça com que
ela caia em minhas mãos para recebera sua punição, afim de que
eu possa me expurgar dos meus pecados. O mal no espírito
daquela mulher será exorcizado e seu corpo nu será açoitado...
E ele pensou no corpo nu de Tracy sob o seu domínio, sentiu o
começo de uma erecção. Deixou a igreja apressadamente,
aterrorizado que Deus pudesse ver e infligir-lhe uma punição.
Já escurecera quando Tracy acordou. Sentou na cama e acendeu o
abajur na mesinha-de-cabeceira. Descobriu que se encontrava
sozinha. Jeff se fora. Um sentimento de pânico Invadiu-a.
Deixara-se ficar dependente de Jeff, o que fora um erro
estúpido. Bem mereço a lição, pensou Tracy, amargurada.
"Confie em mim", dissera Jeff. E ela confiara. Ele só cuidara
dela para se proteger, não por qualquer outro motivo. Chegara
a acreditar que ele sentia alguma coisa por ela. Quisera
acreditar nele, quisera sentir que significava alguma coisa
para Jeff. Ela recostou-se no travesseiro e fechou os olhos,
pensando: Sentirei saudade de Jeff. Deus me ajude, mas
sentirei saudade dele.
Deus lhe pregara uma peça cósmica. Por que tivera de ser
justamente ele? Mas o motivo não importava. Teria de fazer
planos para sair dali o mais depressa possível, encontrar
algum lugar em que pudesse se recuperar inteiramente, onde
pudesse se sentir segura. Oh, sua maldita idiota!, pensou ela.
Você...
Ela ouviu o barulho da porta se abrindo e a voz de Jeff
chamou:
- Está acordada, Tracy? Trouxe alguns livros e revistas. Achei
que você poderia... - Ele parou de falar abruptamente, ao ver
a expressão no rosto de Tracy. - Ei, houve algum problema?
- Não há mais - murmurou Tracy. - Não há mais.
A febre de Tracy desapareceu por completo na manhã seguinte.
- Eu gostaria de sair - disse ela. - Acha que podemos dar uma
volta, Jeff.
Despertaram curiosidade no saguão. O casal que possuía o
hotel ficou deliciado com a recuperação de Tracy.
- Seu marido foi maravilhoso. Insistiu em fazer tudo
pessoalmente. Estava muito preocupado. Uma mulher tem sorte em
contar com um homem que a ama tanto.
Tracy olhou para Jeff. Poderia jurar que ele corava. Lá fora,
ela disse:
- Eles são óptimos.
- Sentimentais demais - resmungou Jeff.
Jeff providenciou uma cama de lona para dormir, ao lado de
Tracy. Naquela noite, deitada na cama, Tracy lembrou-se
novamente como Jeff a cuidara, atendera a todas as suas
necessidades, banhara seu corpo nu. Sentia-se intensamente
consciente da presença de Jeff. Dava-lhe a sensação de estar
protegida.
E deixava-a nervosa.
Gradativamente, à medida que se tornava mais forte, Tracy e
Jeff passavam mais tempo explorando a exótica cidadezinha. Iam
até o Alkmaarder Meer, percorrendo as ruas sinuosas, calçadas
de pedras, que datavam da Idade Média, passeavam por horas nos
campos de tulipas, nos arredores da cidade. Visitavam o
mercado de queijos e a velha casa de peso, vagueavam pelo
museu municipal. Para surpresa de Tracy, Jeff conversava com
os habitantes em holandês.
- Onde aprendeu a língua?
- Quando namorei uma holandesa.
Tracy se arrependeu de ter perguntado.
Enquanto os dias transcorriam, o corpo jovem e saudável de
Tracy foi-se curando. Quando achou que ela já estava bastante
forte, Jeff alugou bicicletas e visitaram os moinhos de vento
que pontilhavam os campos. Cada dia era um feriado maravilhoso
e Tracy não queria que aquilo acabasse.
Jeff era uma constante surpresa. Tratava-a com uma preocupação
e ternura que dissipavam as defesas dela contra ele, mas ao
mesmo tempo não fazia qualquer avanço sexual. Ele era um
enigma para Tracy. Ela pensava nas lindas mulheres com quem o
vira e tinha certeza de que Jeff poderia ter qualquer delas no
momento em que quisesse. Por que então ficava com ela naquele
cantinho perdido do mundo?
Tracy descobriu-se a falar sobre coisas que pensara que
jamais conversaria com alguém. Contou a Jeff sobre Joe Romano,
Tony Orsatti, Ernestine Littlechap, Big Bertha e a pequena Amy
Brannigan. Jeff se mostrou alternadamente indignado,
consternado e compadecido. Jeff falou sobre a madrasta e tio
Willie, sobre os seus dias no parque de diversões, o casamento
com Louise. Tracy nunca se sentira tão intima de alguém.
E, subitamente, era o momento de ir embora. Jeff anunciou uma
manhã:
- A polícia não está à nossa procura, Tracy. Acho que devemos
partir.
Ela sentiu uma pontada de desapontamento.
- Tem certeza? Quando?
- Amanhã.
Tracy assentiu
- Farei as malas pela manhã.
Tracy ficou acordada naquela noite, incapaz de dormir. A
presença de Jeff parecia povoar o quarto como nunca antes.
Aquele fora um período inesquecível em sua vida e agora
chegava ao fim. Ela olhou para a cama de lona em que Jeff
estava deitado.
- Está dormindo, Jeff?
- Não.
- Em que pensa?
- No dia de amanhã. Em deixar esta cidade. Sentirei saudade.
- E eu sentirei saudade de você, Jeff.
As palavras saíram antes que ela pudesse se controlar. Jeff
sentou-se lentamente e olhou para ela.
- Quanto?
- Muita.
Um momento depois, ele se achava ao lado da cama grande
- Tracy...
- Pshh.. Não fale. Apenas me abrace. E aperte com força.
Começou devagar, um contacto suave, caricia, sensação,
exploração dos sentidos. E foi-se desenvolvendo e aumentando
para um ritmo frenético, até se tornar um bacanal, uma orgia
de prazer, desvairado e selvagem. O membro duro de Jeff
acariciava e arremetia, enchia-a por completo, até que ela
sentia vontade de gritar com a alegria insuportável. Ela se
achava no centro de um arco-íris. Sentia-se arrebatada por um
maremoto que a elevava mais e mais. Houve uma súbita explosão
dentro dela e todo o seu corpo começou a tremer.
Gradativamente, a tempestade se desvaneceu. Tracy fechou os
olhos. Sentiu os lábios de Jeff descerem por seu corpo, até o
próprio centro de seu ser, foi envolvida por outra onda
impetuosa de sensação indescritível.
Ela puxou Jeff contra si, sentindo o coração dele bater contra
o seu. Comprimiu-se contra ele, mas ainda não podia chegar
bastante perto. Desceu para o pé da cama, os lábios roçando
pelo corpo de Jeff, em beijos suaves, ternos, subindo devagar,
até encontrar o membro duro em sua mão. Afagou-o gentilmente,
meteu-o na boca, escutou os gemidos de prazer de Jeff. Depois,
Jeff rolou por cima dela e penetrou-a, tudo recomeçou, mais
excitante do que antes, uma fonte se derramando com um prazer
insuportável. Tracy pensou: Agora eu sei. Pela primeira vez,
eu sei. Mas devo lembrar que é apenas por esta noite, um
maravilhoso presente de despedida.
E durante toda a noite eles fizeram amor, conversaram sobre
tudo e sobre nada. Era como se comportas há muito trancadas se
abrissem para os dois. Ao amanhecer, quando os canais
começavam a cintilar com o dia que raiava, Jeff disse:
- Case comigo, Tracy.
Ela tinha certeza de que entendera errado, mas as palavras
tornaram a soar. Tracy sabia que era loucura e impossível,
nunca poderia dar certo, mas era delirantemente maravilhoso e
é claro que daria certo. E ela sussurrou:
- Está bem.
Tracy começou a chorar, aconchegada na segurança dos braços de
Jeff. Nunca mais me sentirei solitária, pensou Tracy.
Pertencemos um ao outro. Jeff é parte de todos os meus
amanhãs.
O amanhã chegara.
Muito tempo depois, Tracy perguntou:
- Quando você soube, Jeff?
- Quando a vi naquela casa e pensei que fosse morrer. Fiquei
meio louco.
- E eu pensei que você fugira com os diamantes - confessou
Tracy.
Ele tornou a abraçá-la.
- O que fiz em Madri não foi pelo dinheiro, Tracy. Foi pelo
desafio. Não é por isso que nós dois estamos no ofício? Você
recebe um quebra-cabeça que aparentemente não tem solução e
começa a especular se na verdade não haverá algum modo de
resolvê-lo.
Tracy assentiu.
- É isso mesmo. A princípio, era porque eu precisava do
dinheiro. E depois tornou-se outra coisa, o dinheiro já não
tinha importância. Adoro o duelo de esperteza com pessoas que
são vitoriosas, inteligentes e inescrupulosas. Adoro viver na
corda bamba do perigo.
Depois de um silêncio prolongado, Jeff disse:
- Tracy... estaria disposta a renunciar a tudo isso?
Ela ficou perplexa.
- Renunciar? Por quê?
- Estávamos antes por conta própria, cada um por si. Agora,
tudo mudou. Eu não poderia suportar se alguma coisa
acontecesse. Por que correr mais riscos? Temos todo o dinheiro
que jamais precisaremos. Por que não nos consideramos
aposentados?
- O que faríamos, Jeff?
Ele sorriu.
- Pensaremos em alguma coisa.
- Falando sério, querido, como passaríamos a vida?
- Faríamos qualquer coisa que quiséssemos, meu amor.
Viajaríamos, cuidaríamos de hobbies. Sempre fui fascinado pela
arqueologia. Gostaria de realizar uma escavação na Tunísia.
Poderíamos financiar nossas próprias escavações. Conheceríamos
o mundo inteiro.
- Parece excitante.
- E então... o que me diz?
Tracy contemplou-o em silêncio por um longo tempo e depois
disse, suavemente:
- Se é isso o que você quer...
Jeff abraçou-a e começou a rir.
- Não deveríamos fazer um comunicado formal à polícia?
Tracy acompanhou-o no riso.
As igrejas eram mais antigas do que quaisquer outras que já
havia conhecido antes. Algumas datavam dos tempos pagãos e
havia ocasiões em que ele não sabia se estava rezando para o
demónio ou para Deus. Sentava-se com a cabeça inclinada na St.
Bavokerk, Pieterskerk e Nieuwekerk, em Delft, a cada vez sua
oração era a mesma: Permita-me fazê-la sofrer tanto quanto eu
sofro.
O telefonema de Gunther Hartog chegou no dia seguinte, quando
Jeff se achava ausente.
- Como está se sentindo? - perguntou Gunther.
- Maravilhosamente - respondeu Tracy.
Gunther telefonara todos os dias, depois que soubera o que
acontecera com ela. Tracy resolveu não contar a ele, por
enquanto, a sua decisão e de Jeff de casarem, abandonando
tudo. Queria guardar para si mesma por mais algum tempo,
aprofundar a idéia, acariciar a perspectiva.
- Você e Jeff estão se dando bem?
Ela sorriu.
- Estamos nos dando até bem demais.
- Aceitaria trabalharem juntos de novo?
Agora, Tracy tinha de lhe contar.
- Gunther... nós... estamos deixando.
Houve um momento de silêncio.
- Não estou entendendo.
- Jeff e eu vamos... como se dizia nos filmes antigos de James
Cagney... seguir por uma vida honesta.
- Ahn? Mas... por quê?
- Foi idéia de Jeff e eu concordei. Nada mais de fiscos.
- E se eu dissesse que o trabalho que tenho vale dois milhões
de dólares e não envolve riscos?
- Eu riria muito, Gunther.
- Estou falando sério, minha cara. Viajariam para Amsterdam,
que fica a apenas uma hora de carro do lugar em que estão
agora, e...
- Terá de encontrar outra pessoa, Gunther
Ele suspirou.
- Infelizmente, não há mais ninguém que possa cuidar disso.
Pode pelo menos discutir a possibilidade com Jeff?
- Está certo. Mas não vai adiantar.
- Ligarei de novo esta noite.
Quando Jeff voltou, Tracy relatou a conversa.
- Não disse a ele que estamos nos tornando cidadãos
respeitadores das leis?
- Claro, querido. E disse também que ele procurasse outra
pessoa.
- Mas ele não quer.
- Insiste que precisa de nós, Jeff. Disse que não há qualquer
risco e que poderíamos ganhar dois milhões de dólares por um
pequeno esforço.
- O que significa que ele pensa em alguma coisa tão bem
guardada quanto o Forte Knox.
- Ou o Prado - acrescentou Tracy, maliciosamente.
Jeff sorriu.
- Foi um plano sensacional, amor. E quer saber de uma coisa?
Acho que foi então que comecei a me apaixonar por você.
- E acho que comecei a odiá-lo quando você roubou o meu Goya.
- Seja justa - protestou Jeff. - Começou a me odiar muito
antes disso.
- Tem razão. O que diremos a Gunther?
- Você já disse tudo a ele. Não estamos mais nesse ofício.
- Não deveríamos pelo menos ouvir o que ele está pensando?
- Tracy, concordamos que..:
- Vamos de qualquer maneira passar por Amsterdam?
- Vamos, sim. Mas...
- Enquanto estamos lá, querido, por que não ouvimos o que ele
tem a dizer?
Jeff estudou-a com uma expressão desconfiada.
- Você quer fazer o trabalho, não é mesmo?
- Claro que não! Mas não há mal algum em ouvir o que ele tem
a dizer...
Eles foram de carro para Amsterdam no dia seguinte e
hospedaram-se no Amstel Hotel. Gunther Hartog veio de avião de
Londres para encontrá-los.
Conseguiram dar um jeito de sentar juntos, como turistas
casuais, numa lancha Pias Motor, deslizando pelo Rio Amstel.
- Fico muito satisfeito por saber que vocês vão casar -
comentou Gunther. - Meus parabéns.
- Obrigada, Gunther.
Tracy sabia que ele era sincero.
- Respeito o desejo de vocês se aposentarem, mas deparei com
uma situação tão singular que achei que deveria contar-lhes.
Pode ser um canto de cisne dos mais gratificantes.
- Estamos escutando - disse Tracy.
Gunther inclinou-se para a frente e começou a falar, em voz
baixa. No final, ele disse:
- Dois milhões de dólares, se encontrarem um meio de executar
o golpe.
- É impossível - declarou Jeff, taxativamente. - Tracy...
Mas Tracy não escutava, absorvida em imaginar como poderia se
fazer.
A chefatura de polícia de Amsterdam, na esquina da Marnix
Straat e Elandsgracht, é um prédio gracioso de cinco andares,
com um corredor branco comprido no térreo e uma escada de
mármore levando aos andares superiores. A Gemeentepolitie
estava em conferência numa sala de reuniões no andar de cima.
Havia seis detectives holandeses. O único estrangeiro era
Daniel Cooper.
O Inspector Joop van Duren era um gigante, maior do que a
vida, com um rosto carnudo, adornado por um enorme bigode, uma
voz tonitruante. Estava se dirigindo a Toon Willems, o
eficiente comissário, chefe da força policial da cidade.
- Tracy Whitney chegou a Amsterdam. esta manhã, comissário. A
Interpol tem certeza de que ela é a responsável pelo roubo dos
diamantes da De Beers. E o Sr. Cooper aqui acha que ela voltou
à Holanda para cometer outro crime.
O Comissário Willems virou-se para Cooper.
- Tem alguma prova disso, Sr. Cooper?
Daniel Cooper não precisava de prova. Conhecia Tracy Whitney,
de corpo e alma. Claro que ela estava ali para cometer um
crime, algo afrontoso, algo além da imaginação restrita
daqueles homens. Ele forçou-se a permanecer calmo.
- Não há qualquer prova. Por isso é que ela deve ser apanhada
em flagrante.
- E como propõe que façamos isso?
- Não perdendo a mulher de nossa vista por um momento sequer.
O uso do pronome nossa perturbou o comissário. Ele falara com
o Inspector Trignant, em Paris, a respeito de Cooper. Ele é
detestável, mas sabe o que faz. Se o tivéssemos escutado,
teríamos apanhado a mulher Whitney em flagrante. Era o que
Cooper acabara de dizer.
Toon Willems tornou sua decisão, baseada em parte no fracasso
tão amplamente divulgado da polícia francesa em capturar os
ladrões dos diamantes da De Beers. Onde a polícia francesa
falhara, a polícia holandesa seria bem-sucedida.
- Muito bem - disse o comissário. - Se essa mulher veio à
Holanda para testar a eficiência de nossa polícia, vamos
atendê-la.
Ele virou-se para o Inspector Van Duren e acrescentou:
- Tome todas as providências que julgar necessárias.
A cidade de Amsterdam se divide em seis distritos policiais,
cada um responsável por um território específico. Por ordens
do Inspector Joop van Duren, os limites foram ignorados e
detectives de diferentes distritos foram designados para as
equipes de vigilância.
- Quero que ela seja vigiada vinte e quatro horas por dia. Não
a percam de vista por um só instante.
O Inspector Van Duren virou-se para Daniel Cooper.
- Está satisfeito, Sr. Cooper?
- Não, enquanto não a pegarmos.
- Vamos agarrá-la - garantiu o Inspector. - Nós nos orgulhamos
de ter a melhor polícia do mundo, Sr. Cooper.
Amsterdam é um paraíso dos turistas, uma cidade de moinhos de
vento, represas e diques, casas de frontões se inclinando umas
para as outras ao longo de uma rede de canais arborizados,
cheios de barcos-casas enfeitados com vasos de gerânios e
outras plantas, as roupas tremulando à brisa em varais. Os
holandeses eram as pessoas mais cordiais que Tracy já
conhecera.
- Eles parecem muito felizes - comentou ela.
- Não se esqueça de que eles formam o povo da flor original.
O povo das tulipas.
Tracy riu e passou o braço pelo de Jeff. Sentia uma alegria
intensa por estar em sua companhia. Ele é maravilhoso. E Jeff,
contemplando-a, pensou: Sou o homem mais afortunado do mundo.
Tracy e Jeff realizaram todos os passeios que se esperava dos
turistas. Vaguearam pela Albert Cuyp Straat, o mercado ao ar
livre que se estende por sucessivos quarteirões, com barracas
de antiguidades, frutas e hortaliças, flores e roupas. Foram à
Praça da Represa, onde os jovens se reuniam para escutar os
cantores itinerantes e os conjuntos punk. Visitaram Volendam,
a antiga e pitoresca aldeia de pescadores no Zuider Zee, assim
como Madurodam, que é a Holanda em miniatura. Ao passarem pelo
movimentado Aeroporto Schiphol, Jeff comentou:
- Não faz muito tempo e toda esta terra que o aeroporto ocupa
agora pertencia ao Mar do Norte. Schiphol significa "cemitério
de navios".
Tracy aconchegou-se mais perto dele.
- Estou impressionada. É óptimo estar apaixonada por um homem
tão inteligente.
- Ainda não ouviu nada. Saiba que vinte cinco por cento da
Holanda são de terras roubadas ao mar. O país inteiro se
encontra cinco metros abaixo do nível do mar.
- Parece assustador.
- Mas não há motivo para se assustar. Estamos absolutamente
seguros enquanto o garotinho mantiver o dedo no buraco do
dique.
Por toda a parte a que iam, Tracy e Jeff eram seguidos pela
Gemeentepolitie. A cada noite, Daniel Cooper estudava os
relatórios escritos encaminhados ao Inspector Van Duren. Nada
havia de insólito, mas nem por isso as suspeitas de Cooper se
atenuavam. Ela está empenhada em alguma coisa, ele dizia a si
mesmo. Alguma coisa grande. Será que ela sabe que está sendo
seguida? Será que sabe que eu vou destrui-la?
Até onde os detectives podiam calcular, Tracy Whitney e Jeff
Stevens não passavam de meros turistas. O Inspector Van Duren
disse a Cooper:
- Não é possível que tenha se enganado? Eles podem ter vindo
à Holanda só para passearem.
- Não - insistiu Cooper, obstinado. - Eu não estou enganado.
Continuem a vigiá-la.
Ele tinha um pressentimento de que o tempo se esgotava, que a
vigilância policial poderia ser cancelada em breve, se Tracy
Whitney não fizesse alguma coisa logo. Mas a vigilância devia
continuar. E Cooper juntou-se aos detectives que mantinham
Tracy sob observação.
Tracy e Jeff tinham quartos contíguos no Amstel.
- Em nome da respeitabilidade - explicara Jeff a Tracy. - Mas
não deixarei que fique longe de mim.
- Promete?
Todas as noites, Jeff ficava com ela, fazendo amor, até o
amanhecer. Ele era um amante múltiplo, ora terno, ora
impetuoso.
- É a primeira vez que descubro para que serve meu corpo
sussurrou Tracy. - Obrigada, meu amor.
- O prazer é todo meu.
- Só a metade.
Eles vagueavam pela cidade, aparentemente a esmo. Almoçavam
no Excelsior do Hotel de I'Europe e jantavam no Bowedery,
comeram todos os 22 pratos servidos no Bali indonésio. tomaram
a erwtensoep, a famosa sopa de ervilha da Holanda; provaram a
hutspot de batatas, cenouras e cebolas; e comeram o boerenkool
metworst, feito com 13 legumes e salames diferentes. Passearam
pelo walletjes, o distrito da prostituição de Amsterdam, onde
prostitutas gordas se sentavam de quimono em vitrines dando
para a rua, exibindo as suas mercadorias. Todas as noites, o
relatório por escrito apresentado ao Inspector Joop van Duren
terminava com o mesmo registo: Nada de suspeito.
Paciência, dizia Daniel Cooper a si mesmo. Paciência.
Por insistência de Cooper, o Inspector Van Duren procurou o
Comissário Willems, solicitando permissão para colocar
artefactos electrónicos de escuta nos quartos do hotel
ocupados pelos dois suspeitos. A permissão foi negada.
- Quando houver provas mais concretas por trás das suspeitas
declarou o comissário - volte a me falar. Até lá, não posso
permitir que escutem secretamente pessoas que no momento só
são culpadas de visitarem a Holanda como turistas.
Essa conversa ocorreu na sexta-feira. Na manhã de
segunda-feira, Tracy e Jeff foram à Paulus Potter Straat, em
Coster, o centro de diamantes de Amsterdam, a fim de visitarem
a fábrica de lapidação. Daniel Cooper integrava a equipe de
vigilância. A fábrica estava apinhada de turistas. Um guia
falando inglês conduziu-os pela fábrica, explicando cada
operação no processo de lapidação. No fim do passeio, ele
levou o grupo para uma enorme sala de exposição, as paredes
ocupadas por uma ampla variedade de diamantes à venda. É claro
que esse era o motivo maior para oferecer a excursão pelas
instalações. No centro da sala havia uma caixa de vidro,
dramaticamente montada sobre um pedestal alto e preto,
contendo o diamante mais espectacular que Tracy já vira. O
guia anunciou, orgulhosamente:
- Eis aqui, senhoras e senhores, o famoso diamante Lucullan,
sobre o qual todos já leram. Foi outrora adquirido por um
autor de teatro para sua esposa estrela do cinema. Está
avaliado em dez milhões de dólares. É uma pedra perfeita, um
dos melhores diamantes do mundo.
- Deve ser um alvo e tanto para ladrões de jóias - comentou
Jeff, em voz bem alta.
Daniel Cooper adiantou-se para poder ouvir melhor. O guia
sorriu, indulgentemente.
- Nee, mijnheer. - Ele acenou com a cabeça para o guarda
armado parado ali perto. - Esta pedra é mais atentamente
vigiada do que as jóias na Torre de Londres. Não há qualquer
perigo. Se alguém tocar no vidro, soa um alarme... e todas as
janelas e portas nesta sala se fecham automaticamente. à
noite, fachos electrónicos são ligados. Se alguém entra na
sala, soa um alarme na chefatura de polícia.
Jeff olhou para Tracy e disse:
- Acho que ninguém jamais roubará esse diamante.
Cooper trocou um olhar com um dos detectives. Naquela tarde, o
Inspector Van Duren recebeu um relato da conversa.
Tracy e Jeff visitaram o Rijksmuseum no dia seguinte. à
entrada, Jeff comprou uma planta do museu. Ele e Tracy
atravessaram o vestíbulo para a Galeria de Honra, cheia de
quadros Angelicos, Murifios, Rubens, Van Dicks e Tiepolos.
Foram andando devagar, parando diante de cada quadro. A seguir
se dirigiram para a Sala da Vigília Nocturna, onde estava
pendurado o mais famoso quadro de Rembrandt. Ali pararam. A
atraente polícia que os seguia, Fien Hauer, pensou: Oh, Deus,
não!
O titulo oficial do quadro era A Companhia do Capitão Frans
Banning Cocq e do Tenente Willem van Ruytenburch. Com
extraordinária nitidez e composição, mostrava um grupo de
soldados preparando-se para entrar de vigília, sob o comando
do seu capitão pitorescamente uniformizado. A área em torno do
quadro estava cercada por cordas de veludo e um guarda se
postava próximo.
- É difícil acreditar - comentou Jeff para Tracy - mas
Rembrandt sofreu o diabo por causa desse quadro.
- Mas por quê? É um quadro fantástico.
- Seu cliente... o capitão no quadro... não gostou da atenção
que Rembrandt dispensou às outras figuras.
Jeff virou-se para o guarda e acrescentou:
- Espero que o quadro esteja bem protegido.
- Ja, mijnheer. Quem tentasse roubar alguma coisa deste museu
teria de passar por fachos electrónicos, câmaras de segurança
e à noite, dois guardas com cachorros.
Jeff sorriu suavemente.
- Acho que este quadro ficará aqui para sempre.
No fim da tarde, a conversa foi relatada a Van Duren.
- A Vigília Nocturna! - exclamou ele. - Alstublieft.
Impossível.
Daniel Cooper limitou-se a fitá-lo com seus olhos míopes.
No Centro de Convenções de Amsterdam havia uma reunião de
filatelistas. Tracy e Jeff foram dos primeiros a chegar. O
salão estava muito bem vigiado, pois muitos dos selos eram
extremamente valiosos. Cooper e um detective holandês ficaram
observando, enquanto os dois visitantes vagueavam pela
colecção de selos raros. Tracy e Jeff pararam diante do Guiana
Britânica, um selo hexagonal, magenta, sem nada de atraente.
- Que selo horrível! - comentou Tracy.
- Não se deixe impressionar por isso, querida. É o único selo
de seu tipo no mundo.
- Quanto vale?
- Um milhão de dólares.
A atendente balançou a cabeça.
- É verdade, senhor. A maioria das pessoas não imagina ao
olhar para este selo. Mas vejo que ama os selos, senhor, tanto
quanto eu. A história do mundo está neles.
Tracy e Jeff se deslocaram para o mostruário seguinte, que
exibia um Jenny Invertido, com um avião voando de cabeça para
baixo.
- Esse é muito interessante - disse Tracy.
O atendente ao lado do mostruário disse:
- Vale...
Jeff não o deixou completar, informando:
- Em torno de setenta e cinco mil dólares.
- Exactamente senhor.
Eles passaram para um Missionário Havaiano azul de dois cents.
- Este vale um quarto de milhão de dólares - disse Jeff a
Tracy.
Cooper estava agora logo atrás deles, misturando-se com a
multidão. Jeff apontou para outro selo.
- Este é muito raro. O selo postal de um penny de Mauritius.
Em vez de "Postpaid", porte pago, algum gravador distraído
escreveu "post office", agência postal. Vale uma porção de
pence hoje.
- Todos parecem muito pequenos e vulneráveis - comentou Tracy.
- E fáceis de levar.
O guarda ao lado sorriu.
- Um ladrão não iria longe, moça. Todas as caixas estão
protegidas electronicamente e guardas armados patrulham o
centro de convenções dia e noite
- É um grande alívio saber disso - murmurou Jeff. - Nenhum
cuidado é demais hoje em dia, não é mesmo?
Naquela tarde, Daniel Cooper e o Inspector Joop van Duren
foram juntos falar com o Comissário Willems. Van Duren pôs os
relatórios sobre a vigilância na mesa do comissário e depois
esperou.
- Não há nada de definitivo aqui - disse o comissário
finalmente. - Mas admito que os suspeitos andaram farejando
alguns alvos muito lucrativos. Muito bem, Inspector, pode
seguir em frente. Tem permissão para instalar o equipamento de
escuta nos quartos do hotel.
Daniel Cooper ficou exultante. Não haveria mais privacidade
para Tracy Whitney, daquele momento em diante. Ele saberia de
tudo o que ela pensasse, dissesse ou fizesse. Pensou em Tracy
e Jeff juntos na cama, lembrou-se da sensação da calcinha de
Tracy em seu rosto. Tão macia, tão cheirosa...
Ele foi à igreja naquela tarde.
Naquela noite, quando Tracy e Jeff deixaram o hotel para
jantarem, uma equipe de técnicos da polícia entrou em acção,
instalando transmissores sem fios nas suítes, escondidos por
trás de quadros e luminárias, por baixo de mesas.
O Inspector Joop van Duren requisitara a suíte directamente
por cima e ali um técnico instalou um receptor de rádio, com
uma antena e ligado a um gravador.
- É activado pela voz - explicou o técnico. - Ninguém precisa
ficar aqui para controlá-lo. Quando alguém fala, o aparelho
começa a gravar automaticamente.
Mas Daniel Cooper queria estar ali. Tinha de estar ali. Era a
vontade de Deus.
33
Na manhã seguinte, bem cedo, Daniel Cooper, o Inspector Joop
van Duren e seu assistente, detective Witkamp, estavam na
Suíte requisitada, escutando a conversa por baixo.
- Mais café?
A voz de Jeff.
- Não, obrigada, querido. - A voz de Tracy. - Experimente este
queijo que nos mandaram. É uma delícia.
Um curto silêncio.
- Hum... Tem toda razão. O que gostaria de fazer hoje, Tracy?
Poderíamos passear de carro até Rotterdam.
- Por que simplesmente não ficamos aqui e relaxamos?
- Parece uma boa idéia.
Daniel Cooper sabia o que eles estavam querendo dizer com
"relaxar" e rangeu os dentes.
- A rainha vai inaugurar um novo orfanato.
- Isso é óptimo. Acho que os holandeses constituem o povo mais
hospitaleiro e generoso do mundo. Eles são iconoclastas.
Detestam regras e regulamentos.
Uma risada.
- É por isso que nós dois gostamos tanto deles!
Uma conversa matutina corriqueira entre amantes. Eles parecem
se dar maravilhosamente, pensou Cooper. Mas como ela pagará
caro por tudo o que fez!
- Por falar em generoso, adivinhe quem está neste hotel? - A
voz de Jeff. - O esquivo Maximilian Pierpont. Senti a falta
dele no Queen Elizabeth II.
- E eu senti a sua falta no Expresso do Oriente.
- Ele está aqui provavelmente para saquear outra companhia.
Agora que o encontramos, Tracy, acho que deveríamos fazer
alguma coisa em relação a ele. Já que ele se encontra por
perto...
A risada de Tracy.
- Concordo plenamente, querido.
- Soube que o nosso amigo tem o hábito de andar com
artefactos de valor inestimável. Tenho uma idéia que...
Outra voz de mulher.
- Dag, minjheer, dag mevrouw. Gostariam que o quarto fosse
arrumado agora?
Van Duren virou-se para o detective Witkamp.
- Quero uma equipe de vigilância sobre Maximilian Pierpont. E
quero ser informado no momento em que Whitney ou Stevens
fizerem qualquer contacto com ele.
O Inspector Van Duren estava se reportando ao Comissário Toon
Willems:
- Eles podem estar atrás de um entre muitos alvos,
comissário. Demonstram um grande interesse por um rico
americano que se encontra aqui, chamado Maximilian Pierpont,
compareceram a uma convenção filatélica, visitaram o diamante
Lucullan e passaram duas horas diante da Vigília Nocturna...
- Een diefstal van de Nachtwacht? Nee! Impossível!
O comissário recostou-se na cadeira, perguntando-se se não
estaria irresponsavelmente desperdiçando um tempo e homens
valiosos. Havia especulação demais, mas não factos
suficientes.
- Portanto, no momento, você não tem idéia de qual é
exactamente o alvo.
- Não, comissário. E não tenho certeza se eles já decidiram.
Mas no instante em que isso acontecer, eles nos informarão.
Willems franziu o rosto.
- Eles informarão?
- Os microfones - explicou Van Duren. - Eles não sabem que
estamos ouvindo tudo o que conversam.
A brecha para a polícia surgiu às nove horas da manhã
seguinte. Tracy e Jeff terminavam o café da manhã, na suíte de
Tracy. No posto de escuta, por cima, estavam Daniel Cooper, o
Inspector Joop van Duren e o auxiliar Witkamp. Eles ouviram o
som de café sendo despejado.
- Aqui uma notícia interessante, Tracy. Nosso amigo tinha
razão. Escute só: "O Banco Amro está embarcando cinco milhões
de dólares em barras de ouro para as Índias Ocidentais
Holandesas."
Na suíte por cima, o detective Witkamp disse:
- Não há qualquer possibilidade...
- Pshh!
Eles ficaram escutando.
- Quanto será que pesam cinco milhões de dólares em barras de
ouro?
A voz era de Tracy.
- Posso responder com exactidão, querida. Dá exactamente 758
quilos, em torno de 57 barras de ouro. O melhor de tudo é o
facto do ouro ser perfeitamente anónimo. Basta derretê-lo e
pode pertencer a qualquer um. É claro que não seria fácil
tirar as barras da Holanda.
- Mesmo que fosse possível, como poderíamos nos apossar das
barras de ouro em primeiro lugar? Simplesmente entrando no
banco e pegando-as?
- Algo assim.
- Está brincando.
- Nunca brinco com dinheiro nessas proporções. Por que não
fazemos um pequeno passeio ao Banco Amro e aproveitamos para
dar uma olhada?
- O que tem em mente?
- Eu lhe contarei no caminho
Houve o som de uma porta sendo fechada e as vozes terminaram.
O Inspector Van Duren torcia nervosamente o bigode.
- Nee! Não há qualquer possibilidade de eles pegarem aquele
ouro. Eu aprovei pessoalmente os dispositivos de segurança.
Daniel Cooper anunciou, incisivamente:
- Se há alguma falha no sistema de segurança do banco Tracy
Whitney a descobrirá.
O Inspector Van Duren teve de fazer um grande esforço para
controlar seu temperamento explosivo. O americano de aparência
esquisita era uma abominação desde a sua chegada. Era muito
difícil tolerar o seu senso de superioridade divina. Mas o
Inspector Van Duren era um polícia acima de tudo; e recebera a
ordem de cooperar com o homenzinho. Ele virou-se para Witkamp.
- Quero que aumente a equipe de vigilância. Imediatamente.
Quero que todos os contactos sejam fotografados e
interrogados. Entendido?
- Entendido, Inspector.
- E muito discretamente. Eles não podem saber que estão sendo
vigiados.
- Certo, Inspector.
Van Duren olhou para Cooper.
- Pronto. Isso o faz sentir-se melhor?
Cooper não se deu ao trabalho de responder.
Durante os cinco dias seguintes, Tracy e Jeff mantiveram os
homens do Inspector Van Duren bastante ocupados. Daniel Cooper
examinava meticulosamente os relatórios diários. à noite,
depois que os outros detectives deixavam o posto de escuta,
Cooper ficava. Ficava atento aos sons do ato sexual que sabia
estar ocorrendo por baixo. Nada podia ouvir, mas em sua
imaginação Tracy estava gemendo:
- Oh, sim, querido, sim, sim... Oh, Deus, não aguento mais...
é tão maravilhoso... Agora, oh, agora...
E depois o suspiro prolongado e trémulo, o silêncio suave. E
era tudo para ele.
Muito em breve você me pertencerá, pensava Cooper. Ninguém
mais a terá.
Durante o dia, Tracy e Jeff seguiam por caminhos separados,
sempre vigiados por toda a parte. Jeff visitou uma gráfica
perto de Leidseplein, dois detectives observaram atentamente
da rua a sua conversa com o impressor. Quando Jeff saiu, um
dos detectives seguiu-o. O outro entrou na gráfica, mostrou ao
impressor a sua identificação de polícia, com o carimbo
oficial, fotografia e as listas diagonais, vermelha, branca e
azul.
- O que queria o homem que acabou de sair daqui?
- Ele ficou sem cartões de visita. Quer que eu imprima mais
alguns.
- Deixe-me ver o que ele deixou.
O impressor mostrou uma ficha preenchida à mão:
Serviços de Segurança de Amsterdam
Cornelius Wilson, Investigador-Chefe
No dia seguinte, a detective Fien Hauer ficou esperando do
lado de fora quando Tracy entrou numa loja de animais
domésticos, na Leidseplein. Assim que ela saiu, 15 minutos
depois, Fien Hauer entrou na loja e mostrou sua identificação.
- O que queria a mulher que acabou de sair?
- Ela comprou um aquário com peixinhos dourados, dois
periquitos, um canário e um pombo.
Uma estranha combinação.
- Disse um pombo? E era um pombo comum?
- Isso mesmo. Mas nenhuma loja tem pombos em estoque. Eu disse
a ela que teria de providenciar em outro lugar.
- E para onde deverá mandar esses bichos?
- Para o hotel em que ela está, o Amstel.
No outro lado da cidade, Jeff conversava com o
vice-presidente do Banco Amro. Ficaram juntos por meia hora.
Assim que Jeff se retirou, um detective entrou no banco e foi
falar com o vice-presidente:
- Por favor, pode me informar o que desejava o homem que
acabou de sair daqui?
- O Sr. Wilson? Ele é o investigador-chefe da seguradora que
o nosso banco usa. Estão reavaliando os sistemas de segurança.
- E ele lhe pediu para falar sobre os actuais dispositivos de
segurança?
- Exactamente.
- E lhe falou?
- Claro. Mas, naturalmente, tomei primeiro a precaução de
telefonar para conferir suas credenciais.
- Para quem telefonou?
- Para o serviço de segurança... o telefone estava impresso em
sua identificação.
às três horas daquela tarde um camião blindado parou diante do
Banco Amro. Do outro lado da rua, Jeff tirou uma fotografia do
camião, enquanto um detective o fotografava de algumas portas
de distância.
Na chefatura de polícia, em Elandsgracht, o Inspector Van
Duren espalhou as evidências que se acumulavam rapidamente
sobre a mesa do Comissário Toon Willems.
- O que significa tudo isto? - perguntou o comissário, em sua
voz fina e seca.
Daniel Cooper falou:
- Eu lhe direi o que ela está planeando. - Sua voz estava
cheia de convicção. - Ela planea roubar o carregamento de
ouro.
Todos o fitavam fixamente. Foi o Comissário Willems quem
rompeu o silêncio:
- E devo supor que você sabe como ela pretende realizar esse
milagre?
- Claro que sei.
Ele conhecia uma coisa que os outros ignoravam. Conhecia o
coração, a alma e a mente de Tracy Whitney. Pusera-se dentro
dela, podia assim pensar como ela, planear como ela... e
antecipar todos os seus movimentos.
- Usando um falso camião blindado e chegando ao banco antes
do camião verdadeiro, partindo depois com as barras de Ouro.
- Isso parece um tanto exagerado, Sr. Cooper.
O inspector Van Duren interveio:
- Não sei qual é o plano, mas tenho certeza de que eles estão
mesmo planeando alguma coisa, comissário. Temos as suas vozes
gravadas.
Daniel Cooper lembrou-se dos outros sons que imaginara: os
sussurros nocturnos, os gritos, os gemidos. Para onde ele a
mandaria, nenhum homem poderia tocá-la. Nunca mais. O
Inspector estava dizendo:
- Eles descobriram a rotina de segurança do banco. Sabem a
que horas os camiões blindados aparecem...
O comissário estudava o relatório à sua frente.
- Periquitos, um pombo, peixinhos dourados, um canário...
acham que alguma dessas bobagens tem algo a ver com o assalto?
- Não - respondeu Van Duren.
- Sim - respondeu Cooper.
A detective Fien Hauer, vestindo um costume de calça comprida,
de poliéster, seguiu Tracy Whitney pela Prinsengracht e
através da Ponte Magere. Quando Tracy chegou ao outro lado do
canal, Fien Hauer ficou olhando com frustração quando ela
entrou numa cabina telefónica e falou por cinco minutos. Ela
ficaria igualmente frustrada se pudesse ouvir a conversa.
Gunther Hartog, em Londres, disse:
- Podemos contar com Margo, mas ela precisará de tempo... pelo
menos mais duas semanas.
Ele escutou por um momento e depois acrescentou:
- Compreendo. Quando tudo estiver pronto, entrarei em
contacto com você. Tome cuidado. E dê minhas lembranças a
Jeff.
Tracy desligou e saiu da cabina. Acenou afavelmente com a
cabeça para a mulher de costume de calça comprida que esperava
para usar o telefone.
às 11 horas da manhã seguinte, um detective comunicou ao
Inspector Van Duren:
- Estou na Companhia de Aluguel de Camiões Wolters, Inspector.
Jeff Stevens acaba de alugar um camião aqui.
- Que espécie de camião?
- Um camião fechado, senhor.
- Descubra as dimensões. Eu espero.
O detective retornou à linha poucos minutos depois.
- Já tenho tudo, Inspector. É...
O Inspector Van Duren interrompeu-o:
- Um furgão com seis metros de comprimento, dois de largura,
um metro e oitenta de altura, eixo duplo.
Houve uma pausa aturdida.
- Isso mesmo, Inspector. Como descobriu?
- Não tem importância. De que cor é?
- Azul.
- Quem está seguindo Stevens?
- Jacobs.
- Goed. Apresente-se a mim imediatamente.
Joop van Duren repôs o telefone no gancho e virou-se para
Daniel Cooper.
- Você estava certo. Só que o furgão é azul.
- Ele o levará a uma oficina de pintura.
A oficina era em Damrak. Dois homens pintaram o furgão com um
cinza metálico, enquanto Jeff observava. No telhado da
garagem, um detective tirava fotografias, através da
clarabóia.
As fotografias se encontravam na mesa do Inspector Van Duren
uma hora depois. Ele estendeu-as para Daniel Cooper.
- Está sendo pintado numa cor idêntica ao do carro de
segurança genuíno. Podemos prendê-los agora.
- Sob que acusação? Mandar imprimir falsos cartões de visita
e pintar um camião? Só há um meio de incriminá-los
irremediavelmente: agarrá-los no momento em que pegarem as
barras de ouro.
O filho da puta se comporta como se dirigisse o departamento.
- O que acha que ele fará em seguida?
Cooper estudava atentamente as fotografias.
- Este camião não suportará o peso do ouro. Terão de reforçar
o chão.
Era uma garagem pequena, na Muider Straat.
- Goode morgen, mijnheer. Em que posso servi-lo?
- Preciso carregar alguma sucata neste camião - explicou
Jeff. - Não tenho certeza se o chão é bastante forte para
aguentar o peso. E gostaria de reforçá-lo com suportes de
metal. Pode fazer isso?
O mecânico foi examinar o camião.
- Já. Não tem problema.
- Óptimo.
- Posso aprontar até vrijdag... sexta-feira.
- Eu contava ter tudo pronto amanhã.
- Morgen? Nee. Ik...
- Pagarei a dobrar.
- Donderdag... quinta-feira.
- Amanhã. Pagarei o triplo.
O mecânico coçou o queixo, pensativo
- A que horas de amanhã?
- Meio-dia.
- Já. Está bem.
- Dank wel.
- Tot uw dienst.
Momentos depois que Jeff deixou a oficina, um detective estava
interrogando o mecânico.
Na mesma manhã, a equipe de vigilância designada para Tracy
seguiu-a até o Canal Oude Schans, onde ela passou meia hora
conversando com o proprietário de uma barca. Assim que Tracy
foi embora, um detective subiu a bordo. Identificou-se para o
proprietário, que tornava um bessen-jenever, o forte gim de
groselha.
- O que a mulher queria?
- Ela e o marido pensam em fazer uma excursão pelos canais. E
ela alugou minha barca por uma semana.
- A partir de quando?
- Sexta-feira. Um lindo passeio, mijnheer. Se você e sua
esposa estiverem interessados...
O detective se foi.
O pombo encomendado por Tracy foi entregue no hotel dentro de
uma gaiola. Daniel Cooper voltou à loja de bichos e interrogou
o dono.
- Que tipo de pombo mandou para ela?
- Um pombo comum.
- Tem certeza que não era um pombo-correio?
- Claro que não. - O homem soltou uma risada. - E tenho
certeza que não é um pombo-correio porque o peguei ontem à
noite no Vondelpark.
Meia tonelada de ouro e um pombo comum? Por quê?, especulava
Daniel Cooper.
Cinco dias antes da data da transferência das barras de ouro
do Banco Amro, uma enorme pilha de fotografias se acumulara na
mesa do Inspector Joop van Duren.
Cada fotografia é um elo na corrente que vai prendê-la,
pensou Cooper. A polícia de Amsterdam não tinha imaginação,
mas ele não podia deixar de reconhecer que eram meticulosos.
Cada passo levando ao crime iminente fora fotografado e
documentado. Não havia possibilidade de Tracy Whitney escapar
à justiça.
A punição dela será a minha redenção.
No dia em que pegou o veículo que acabara de ser pintado, Jeff
levou-o para uma pequena garagem que alugara perto de Oude
Zijds Kouk, a parte mais antiga de Amsterdam. Seis caixotes de
madeira vazios, com a palavra MAQUINARIA pintada, foram
entregues na garagem. Uma fotografia dos caixotes se achava na
mesa do Inspector Van Duren enquanto ele escutava a última
gravação.
A voz de Jeff:
- Quando guiar o camião do banco para a barca, mantenha-se
dentro do limite de velocidade. Quero saber quanto tempo dura
a viagem exactamente. Aqui está um cronómetro.
- Não vai comigo, querido?
- Não. Estarei ocupado.
- E Monty?
- Ele chegará na noite de quinta-feira.
- Quem é esse Monty? - perguntou o Inspector Van Duren.
- O homem que se apresentará como o segundo guarda - explicou
Cooper. - Eles precisarão de uniformes.
A loja fica na Pieter Corneflez Hooft Straat, num centro
comercial.
- Preciso de dois uniformes para uma festa de fantasia -
explicou Jeff ao vendedor. - Parecido com aquele que está na
vitrine.
Uma hora depois o Inspector Van Duren estava olhando para a
fotografia de um uniforme de guarda.
- Ele pediu dois uniformes. Disse ao vendedor que iria
buscá-los na quinta-feira.
O tamanho do segundo uniforme indicava que o outro homem era
muito maior que Jeff Stevens. O Inspector disse a Daniel
Cooper:
- Nosso amigo Monty deve ter em torno de um metro e noventa e
pesar uns cem quilos. Pediremos à Interpol para passar esses
dados por seus computadores e teremos a sua identificação.
Na garagem particular alugada por Jeff, ele estava em cima do
camião, enquanto Tracy sentava-se ao volante.
- Tudo pronto? - gritou Jeff. - Agora!
Tracy apertou um botão no painel. Pedaços grandes de lona
desceram pelos lados do camião, com as palavras HEINEKEN
HOLLAND BEER.
- Funciona! - exclamou Jeff, exultante.
Cerveja Heineken? Alstublieft!
O Inspector Van Duren correu os olhos pelos detectives
reunidos em sua sala. Diversas fotografias ampliadas e
memorandos estavam pregados nas paredes.
Daniel Cooper estava sentado no fundo da sala, em silêncio.
Em sua opinião, aquela reunião era uma perda de tempo. Há
muito que antecipara cada movimento que Tracy Whitney e seu
amante fariam. Eles haviam caído numa armadilha, que começava
a se fechar inexoravelmente. Enquanto os detectives na sala
ficaram dominados por um crescente excitamento, Cooper
experimentava uma estranha sensação de anticlímax.
- Todas as peças se ajustaram em seus lugares - o Inspector
Van Duren falou. - Os suspeitos sabem a que horas o verdadeiro
camião blindado deve chegar ao banco. Planeiam se apresentar
meia hora antes, posando como guardas de segurança bancária.
Quando o camião verdadeiro chegar, eles já terão desaparecido
há muito tempo.
Apontando para a fotografia de um carro blindado, Van Duren
acrescentou:
- Eles sairão do banco parecendo assim, mas a um quarteirão
do banco, em alguma rua transversal... - Ele apontou para o
camião de cerveja Heineken. -... o carro ficará assim!
Um detective no fundo da sala falou:
- Sabe como eles planeiam sair do país, Inspector?
Van Duren apontou para uma fotografia de Tracy entrando na
barca.
- Primeiro, de barca. A Holanda é cruzada por canais em que
eles poderiam se perder indefinidamente. - Ele indicou uma
fotografia aérea do camião avançando pela beira do canal. -
Calcularam o tempo que se leva para percorrer o caminho do
banco à barca. Teriam bastante tempo para transferir o ouro
para a barca, antes de alguém suspeitar que há algo errado.
Van Duren aproximou-se da última fotografia na parede, uma
foto ampliada de um cargueiro.
- Há dois dias, Jeff Stevens reservou espaço de carga no
Oresta, que zarpa de Rotterdam na próxima semana. A carga foi
indicada como maquinaria, destinada a Hong-Kong,
Ele virou-se para os homens na sala.
- Muito bem, senhores, faremos uma ligeira alteração nos
planos deles. Deixaremos que retirem as barras de ouro do
banco e as ponham no camião. - Ele olhou para Daniel Cooper e
sorriu. - O flagrante. Pegaremos, ladrões espertos em
flagrante.
Um detective seguiu Tracy para o escritório da American
Express, onde ela pegou um pacote de tamanho médio, voltando
ao hotel imediatamente.
- Não há possibilidade de saber o que havia no pacote - disse
o Inspector Van Duren a Daniel Cooper. - Revistamos as suítes
quando eles saíram, mas nada encontramos.
Os computadores da Interpol não foram capazes de fornecer
qualquer informação sobre um Monty de cem quilos.
No Amstel, na noite de quinta-feira, Daniel Cooper, o
Inspector Van Duren e, o detective Witkamp estavam no quarto
por cima do que era ocupado por Tracy, escutando as vozes lá
embaixo. A voz de Jeff:
- Se chegarmos ao banco exactamente trinta minutos antes dos
guardas, isso nos dará tempo suficiente para carregar o ouro e
partir. Quando o camião de verdade chegar, já estaremos
transferindo o ouro para a barca.
A voz de Tracy:
- Mandei o mecânico checar todo o camião e encher o tanque.
Está pronto.
O detective Witkamp comentou:
- Quase que se pode admirá-los. Eles não deixam coisa alguma
ao acaso.
- Todos os criminosos acabam cometendo um erro, mais cedo ou
mais tarde - disse o Inspector Van Duren, bruscamente.
Cooper manteve-se em silêncio, escutando.
- Quando tudo isso terminar, Tracy, você gostaria de efectuar
aquela escavação sobre a qual conversamos?
- Na Tunísia? Parece o paraíso, querido.
- Óptimo, providenciarei tudo. Daqui por diante, não faremos
outra coisa que não relaxar e gozar a vida.
O Inspector Van Duren murmurou:
- Eu diria que seus próximos dez ou quinze anos já estão
muito bem definidos. - Ele se levantou e se espreguiçou. -
Acho que podemos ir para a cama. Tudo está marcado para amanhã
de manhã e creio que bem precisamos de uma boa noite de sono.
Daniel Cooper foi incapaz de dormir. Visualizava Tracy sendo
agarrada e manietada pela polícia, podia ver o terror no rosto
dela. Isso o excitou. Foi ao banheiro e preparou um banho
muito quente. Tirou os óculos, e o pijama, deitou-se na
banheira, dentro da água fumegante. Estava quase acabado e ela
pagaria, como ele obrigara também os outros a pagarem. Outras
prostitutas. A esta altura, no dia seguinte, ele estaria
voltando para seu lar. Não, não o lar, corrigiu-se Daniel
Cooper. Para meu apartamento. O lar era um lugar aconchegante
e seguro, onde sua mãe o amava mais do que jamais amaria
qualquer outra pessoa no mundo.
- Você é meu homenzinho - disse ela. - Não sei o que faria sem
Você.
O pai de Daniel desaparecera quando ele tinha quatro anos. A
princípio, ele se culpara por isso, mas depois a mãe explicara
que fora por causa de outra mulher. Daniel odiava essa outra
mulher, porque ela fazia sua mãe chorar. Nunca a vira, mas
sabia que era uma prostituta, porque ouvira sua mãe chamá-la
assim. Mais tarde, porém, sentiu-se feliz pelo facto da mulher
ter levado seu pai, pois agora tinha a mãe só para si. Os
invernos de Minnesota eram frios e a mãe de Daniel lhe
permitia ficar em sua cama, bem abrigado sob os cobertores
enormes.
- Casarei com você um dia - prometia Daniel.
A mãe ria e lhe afagava os cabelos. Daniel era sempre o
primeiro de sua turma na escola. Queria que a mãe sentisse
orgulho dele.
- Mas que filho inteligente é o seu, Sra. Cooper!
- Sei disso. Ninguém é tão inteligente quanto o meu homenzinho
Quando Daniel tinha sete anos, a mãe começou a convidar o
vizinho enorme e peludo para jantar em sua casa. Daniel ficou
doente. Passou uma semana na cama, com uma febre perigosamente
alta. A mãe prometeu que nunca mais faria isso. Não preciso de
ninguém mais no mundo além de você, Daniel.
Ninguém podia ser tão feliz quanto Daniel. A mãe era a mulher
mais fina do mundo. Quando ela saía de casa, Daniel ia para
seu quarto e abria as gavetas da cómoda. Tirava a lingerie e
esfregava no rosto as peças macias. Ah, como cheiravam
maravilhosamente...
Ele recostou-se na banheira com água quente, no hotel em
Amsterdam, fechou os olhos, recordando o dia terrível do
assassinato da mãe. Era o seu décimo segundo aniversário. Saiu
da escola mais cedo, pois estava com dor de ouvido. Fingiu ser
pior do que na realidade, pois queria voltar para casa, onde a
mãe o cuidaria, poria na cama e acariciaria. Daniel chegou em
casa e foi para o quarto da mãe. Ela se encontrava nua na
cama. Mas não estava sozinha. Fazia coisas indescritíveis com
o homem que vivia na casa ao lado. Daniel observou, enquanto a
mãe se punha a beijar o peito cabeludo e depois a barriga
estufada do homem, descendo para a enorme arma vermelha entre
as pernas dele. Antes de tomá-lo na boca, Daniel ouviu a mãe
balbuciar:
- Ah, como eu o amo...
E isso foi o mais terrível de tudo. Daniel correu para seu
banheiro e vomitou, sujando-se todo. Despiu-se com todo o
cuidado e limpou-se, porque a mãe o ensinara a ser meticuloso
e asseado. A dor de cabeça era agora horrível. Ouviu vozes no
corredor e prestou atenção. A mãe estava dizendo:
- É melhor você ir agora, querido. Tenho de tomar um banho e
me vestir. Daniel chegará da escola a qualquer momento. Farei
uma festa de aniversário para ele. Até amanhã, amor.
Ouviu o barulho da porta da frente fechando e depois o som de
água correndo no banheiro da mãe. Só que ela não era mais sua
mãe. Era uma prostituta que fazia coisas horríveis com homens
na cama, coisas que nunca fizera com ele.
Daniel foi para o banheiro da mãe, nu. Ela estava na
banheira, o rosto de prostituta sorridente. Ela virou a
cabeça, viu-o e disse:
- Daniel, querido! O que você...
Ele tinha na mão uma enorme tesoura de costureira.
- Daniel...
A boca da mãe estava aberta num O de linha rosada, mas não
saiu qualquer som até que a primeira estocada atingiu o peito
da estranha na banheira. Ele acompanhou os gritos da mãe com
os seus:
- Puta! Puta! Puta!
Entoaram juntos um dueto mortal, até que finalmente, só
restava a voz de Daniel:
- Puta... puta...
Ele ficara todo manchado com o sangue da mãe. Entrou debaixo
do chuveiro e esfregou-se, até sentir que a pele se achava em
carne viva.
O homem na casa ao lado matara a sua mãe e teria de pagar por
isso.
Depois, tudo pareceu ocorrer com uma clareza impressionante,
como se fosse em câmara lenta. Daniel limpou as impressões
digitais da tesoura com uma toalha de rosto e largou-a na
banheira. Retiniu ao bater no esmalte. Vestiu-se e telefonou
para a polícia. Dois carros chegaram, com as sirenes gritando,
depois veio mais outro, cheio de detectives. Fizeram uma
porção de perguntas e Daniel contou como saíra mais cedo da
escola e vira o vizinho, Fred Zimmer, saindo pela porta
lateral. Quando interrogaram o homem, ele admitiu que era
amante da mãe de Daniel, mas negou ter cometido o crime. Foi o
depoimento de Daniel no tribunal que condenou Zimmer.
- Quando chegou da escola, viu seu vizinho, Fred Zimmer, sair
correndo pela porta do lado?
- Vi, sim, senhor.
- Pôde vê-lo nitidamente?
- Pude, sim, senhor. Havia sangue em suas mãos.
- O que você fez então, Daniel?
- Eu... eu estava apavorado. Sabia que alguma coisa horrível
acontecera com minha mãe.
- Então entrou em casa?
- Isso mesmo, senhor.
- E o que aconteceu?
- Gritei "Mamãe". Ela não respondeu. Fui para o seu
banheiro...
A esta altura, o garoto teve um acesso de soluços histéricos
e foi retirado do banco das testemunhas.
Fred Zimmer foi executado 13 meses depois.
O jovem Daniel foi mandado para viver com uma parente distante
no Texas, tia Mattie, a quem jamais vira antes. Ela era uma
mulher rigorosa, uma baptista de convicções firmes, certa de
que o fogo do inferno aguardava todos os pecadores. Era uma
casa sem amor, alegria ou compaixão. Daniel cresceu nesse
clima, apavorado pelo conhecimento secreto de sua culpa e a
danação que o aguardava Pouco depois do assassinato da mãe,
Daniel começou a ter dificuldades com a visão. Os médicos
classificaram o problema de psicossomático.
- Ele está bloqueando alguma coisa que não quer ver -
explicaram os médicos.
As lentes de seus óculos foram se tornando cada vez mais
grossas.
Aos 17 anos, Daniel fugiu de tia Mattie e do Texas para
sempre. Seguiu de carona para Nova York, onde foi contratado
como boy pela Associação Internacional de Protecção ao Seguro.
Em três anos, foi promovido a investigador. tornou-se o melhor
de todos. Nunca pediu um aumento de salário ou melhores
condições de trabalho. Era indiferente a essas coisas.
tornou-se o braço direito do Senhor, seu açoite, punindo os
perversos.
Daniel Cooper levantou-se da banheira e preparou-se para
dormir. Amanhã, pensou ele. Amanhã será o dia da retaliação
para a prostituta.
Ele gostaria que a mãe estivesse ali para assistir.
34
Amsterdam
SEXTA-FEIRA, 22 DE AGOSTO - 8 HORAS DA MANHã
Daniel Cooper e os dois detectives de plantão no posto de
escuta ouviam a conversa de Tracy e Jeff ao café da manhã.
- Um pãozinho doce, Jeff? Café?
- Não, obrigado.
Daniel Cooper pensou: É o último café da manhã que eles tomam
pelo resto de suas vidas.
- Sabe o que está me deixando mais excitada? A nossa viagem na
barca.
- Este é o grande dia e você está excitada com uma viagem de
barca? Por quê?
- Porque seremos só nós dois. Acha que sou doida?
- Absolutamente doida. Mas é a minha doida.
- Beije-me.
O som de um beijo.
Ela deveria estar mais nervosa, pensou Cooper. Eu quero que
ela fique nervosa.
- De certa forma, Jeff, lamentarei ir embora daqui.
- Veja a coisa por outro ângulo, querida. Não ficaremos mais
pobres pela experiência.
A risada de Tracy.
- Tem razão.
A conversa continuava às nove horas e Cooper pensou: Eles
devem estar se preparando. Deve estar aprontando os planos de
última hora. E Monty? Onde irão encontrá-lo?
Jeff estava dizendo:
- Querida, você poderia cuidar de tudo na recepção, antes de
sairmos? Estarei muito ocupado.
- Claro. O concierge tem sido maravilhoso. Por que não
existem concierges nos Estados Unidos?
- Acho que é somente uma instituição europeia. Sabe, como
começou?
- Não.
- Na França, em 1637, o Rei Hugo construiu uma prisão em
Paris e pôs um conde para dirigi-la. O rei deu-lhe o título de
comte des cierges ou concierge, significando "conde das
velas". Seu pagamento era de duas libras e as cinzas da
lareira do rei. Posteriormente, qualquer um no comando de uma
prisão ou um castelo passou a ser conhecido como concierge. E,
finalmente, isso incluiu os que trabalham em hotéis.
De que diabo eles estão falando?, perguntou-se Cooper. Já são
nove e meia. Está na hora de partirem.
A voz de Tracy:
- Não me diga onde você aprendeu isso... já namorou uma linda
concierge.
Uma voz estranha de mulher:
- Goede morgen, movrouw, mijnheer.
A voz de Jeff:
- Não existem lindas concierges.
A voz da mulher estranha, perplexa:
- Ik begrijp het niet.
A voz de Tracy:
- Aposto que você as descobriria se existissem.
- Que diabo está acontecendo lá embaixo? - indagou Cooper.
Os detectives estavam aturdidos.
- Não sei. A camareira está no telefone, ligando para a sua
chefe. Entrou para arrumar o quarto, mas diz que não
compreende... ouve vozes, mas não vê ninguém.
- O quê?
Cooper estava de pé, correndo para a porta, descendo
apressadamente a escada. Momentos depois, ele e os detectives,
irromperam na suíte de Tracy. Excepto por uma confusa
camareira, se achava deserta. Um gravador tocava numa mesinha
diante de um sofá. A voz de Jeff.
- Acho que vou mudar de Idéia sobre o café. Ainda está
quente?
A voz de Tracy:
- Está, sim.
Cooper e os detectives se entreolharam com expressões de
incredulidade.
- Eu... eu não compreendo - balbuciou um dos detectives.
Cooper indagou bruscamente:
- Qual é o telefone de emergência da polícia?
- Vinte-dois-vinte-dois-vinte-dois.
Cooper correu para o telefone e discou. A voz de Jeff no
gravador estava dizendo:
- Acho que o café deles é melhor do que o nosso. Como será
que conseguem?
Cooper gritou pelo telefone:
- Aqui é Daniel Cooper. Entre em contacto imediatamente com o
Inspector Van Duren. Diga-lhe que Whitney e Stevens
desapareceram. Avise-o para verificar a garagem e descobrir se
o Camião ainda continua lá. Estou indo para o banco.
Ele bateu com o telefone. A voz de Tracy estava dizendo:
- Já tomou alguma vez café fermentado com cascas de ovo? Fica
uma coisa...
Cooper já passara pela porta.
O Inspector Van Duren disse:
- Está tudo certo. O camião saiu da garagem. Eles se dirigem
para cá.
Van Duren, Cooper e dois detectives se achavam no posto de
comando da polícia, no telhado de um prédio em frente ao Banco
Amro, O Inspector acrescentou:
- Provavelmente eles decidiriam apressar seus planos quando
descobriram microfones nas suítes. Mas relaxe, meu amigo. Dê
uma olhada.
Ele empurrou Cooper para a luneta no telhado. Na rua lá
embaixo, um homem de macacão polia a placa de latão do
banco... um gari varria a rua... um jornaleiro estava parado
na esquina... três electricistas trabalhavam, todos equipados
com walkie-talkie em miniatura. Van Duren falou por seu
walkie-talkie:
- Ponto A?
O homem de macacão disse:
- Estou ouvindo, Inspector.
- Ponto B?
- Tudo bem, senhor - respondeu o gari.
- Ponto C?
O jornaleiro levantou a cabeça e balançou-a.
- Ponto D?
Os electricistas suspenderam o trabalho por um instante e um
deles disse pelo walkie-talkie:
- Tudo pronto aqui, senhor.
O Inspector virou-se para Cooper.
- Não se preocupe. O ouro ainda se encontra em segurança
dentro do banco E eles só poderão levá-lo se vierem buscar. No
momento em que entrarem no banco, os dois lados da rua serão
bloqueados. Não poderão escapar. - Ele consultou o relógio. -
O camião deve aparecer agora a qualquer momento.
Dentro do banco, a tensão era crescente. Os empregados haviam
sido informados e os guardas tinham ordens para ajudarem a
levar as barras de ouro para o camião, quando este chegasse.
Todos deveriam cooperar plenamente.
Os detectives disfarçados fora do banco continuavam a
trabalhar, observando a rua furtivamente, atentos à
aproximação do camião. No telhado, o Inspector Van Duren
perguntou pela décima vez:
- Algum sinal do maldito camião?
- Nee.
O detective Witkamp olhou para seu relógio.
- Eles estão treze minutos atrasados. Se...
O walkie-talkie entrou em funcionamento abruptamente:
- Inspector! O camião acaba de aparecer! Está cruzando a
Rozengracht, a caminho do banco! Deverá vê-lo aí do telhado
dentro de um minuto!
O ar tornou-se subitamente carregado de electricidade. O
Inspector Van Duren falou rapidamente pelo walkie-talkie:
- Atenção, todas as unidades. O peixe está na rede. Vamos
deixá-lo nadar.
Um camião blindado cinzento encaminhou-se para a entrada do
banco e parou. Enquanto Cooper e Van Duren observaram, dois
homens saltaram, usando uniformes de guardas de segurança,
avançaram para a porta do banco.
- Onde ela está? - Indagou Daniel Cooper em voz alta. - Onde
está Tracy Whitney?
- Isso não tem importância - disse o Inspector Van Duren. -
Ela não ficará longe do ouro.
E mesmo que fique, isso não faz diferença, pensou Daniel
Cooper. As gravações vão condená-la.
Nervosos empregados ajudaram os dois homens uniformizados a
levarem as barras de ouro do cofre do banco para o camião
blindado. Cooper e Van Duren observavam os vultos distantes do
telhado no outro lado da rua.
O carregamento demorou oito minutos. Depois que a traseira do
camião fora trancada e os dois homens se encaminhavam para a
boleia, o Inspector Van Duren gritou por seu aparelho:
- Viug! Pas op! Todas as unidades fechem o cerco!
O pandemónio irrompeu. O homem de macacão, o jornaleiro, os
três electricistas e um enxame de outros detectives correram
para o veículo blindado e o cercaram, empunhando armas. A rua
foi isolada, não havendo tráfego em qualquer direcção. O
Inspector Van Duren virou-se para Daniel Cooper e sorriu.
- Vamos descer.
Está tudo acabado finalmente, pensou Cooper.
Eles desceram apressadamente para a rua. Os dois homens
uniformizados foram colocados contra a parede, as mãos
levantadas, cercados por detectives armados. Daniel Cooper e o
Inspector Van Duren se adiantaram. Van Duren disse:
- Podem se virar agora. Estão presos.
Os dois homens, muito pálidos, viraram-se para enfrentar o
grupo. Daniel Cooper e o Inspector Van Duren ficaram chocados.
Eram totalmente estranhos.
- Quem... quem são vocês? - indagou o Inspector Van Duren.
- Nós... nós somos os guardas da agência de segurança -
balbuciou um dos homens. - Não atirem. Por favor, não atirem.
O Inspector Van Duren virou-se para Cooper.
- O plano deles saiu errado. - Havia um tom de histeria se
insinuando em sua voz. - E eles acharam melhor cancelar tudo.
Uma bílis verde surgira no estômago de Daniel Cooper e
lentamente começava a subir pelo peito e garganta. Quando ele
conseguiu finalmente falar, a voz era sufocada:
- Não... nada saiu errado.
- Do que está falando?
- Eles nunca estiveram atrás do ouro. Não passava tudo de uma
armação falsa.
- Mas é impossível O camião, a barca, os uniformes.. temos
fotografias...
- Será que não compreende? Eles sabiam que os estávamos
vigiando durante todo o tempo!
O Inspector Van Duren empalideceu.
- Oh, Deus! Onde eles estão... waar zijnze?
Na Paulus Potter Straat, em Coster, Tracy e Jeff se
aproximavam do centro de lapidação de diamantes. Jeff estava
de barba e bigode, alterara o formato das faces e do nariz com
esponjas de espuma. Vestia uma roupa desportiva e carregava
uma mochila. Tracy estava de peruca preta, uma bata de
maternidade e enchimento na barriga, muita maquilhagem no
rosto e óculos escuros. Carregava uma mala e um embrulho
redondo de papel pardo. Os dois entraram na sala de recepção e
se juntaram aos turistas que haviam chegado num ónibus e
escutavam as palavras de um guia:
-... e agora, se me acompanharem, senhoras e senhores, verão
nossos lapidadores de diamantes em acção. Terão também a
oportunidade de comprarem alguns dos nossos excelentes
diamantes.
Com o guia na frente, a multidão passou pelas portas que
levavam à oficina. Tracy acompanhou-os, enquanto Jeff ficava
para trás. Assim que os outros desapareceram, Jeff virou-se e
desceu apressadamente a escada para o porão. Abriu a mochila e
tirou um macacão manchado de óleo e uma caixa de ferramentas.
Vestiu o macacão, foi até a caixa de fusíveis e olhou para o
relógio.
Lá em cima, Tracy seguia o grupo de uma sala para outra,
enquanto o guia mostrava os diversos processos que convertiam
os diamantes brutos em gemas polidas. Tracy olhava para seu
relógio de vez em quando. A excursão estava com um atraso de
cinco minutos. Ela desejou que o guia se apressasse. Tudo
dependia de uma precisão de fracção de segundos.
O grupo entrou finalmente na sala de exposição. O guia foi
até o pedestal cercado por cordas e anunciou, orgulhoso:
- Nesta caixa de vidro está o diamante Lucullan, um dos mais
valiosos do mundo. Foi outrora comprado por um famoso actor de
teatro para sua esposa, estrela do cinema. É avaliado em dez
milhões de dólares e protegido pelo mais moderno...
As luzes se apagaram. Um alarme soou no mesmo instante,
placas de aço desceram nas portas e janelas, fechando todas as
saídas. Alguns turistas começaram a gritar.
- Por favor! - gritou o guia, acima do barulho. - Não precisam
se preocupar. É uma simples falha eléctrica. Dentro de um
momento o gerador de emergência vai...
As luzes tornaram a se acender.
- Viram? - disse o guia, tranquilizadoramente. - Não há motivo
para preocupação.
Um turista alemão apontou para as placas de aço.
- O que são essas coisas?
- Uma precaução de segurança - explicou o guia.
Ele tirou do bolso uma chave de formato estranho e inseriu-a
numa fenda na parede, virando-a. As placas de aço nas portas e
janelas se retraíram. O telefone na mesa tocou e o guia
atendeu.
- Hendrik falando. Obrigado, capitão. Não, está tudo bem. Foi
um alarme falso. Provavelmente um curto-circuito no sistema
eléctrico. Mandarei verificar imediatamente. Está bem, senhor.
- ele repôs o telefone no gancho e virou-se para o grupo. -
Minhas desculpas, senhoras e senhores. Com algo tão valioso
quanto esta pedra, nunca se é cuidadoso demais. E agora,
aqueles que quiserem comprar alguns dos nossos excelentes
diamantes...
As luzes tornaram a se apagar. O alarme soou, as placas de
aço tornaram a fechar as saídas. Uma mulher na multidão
gritou:
- Vamos sair daqui, Harry!
- Quer calar a boca, Diane? - berrou o marido.
No porão, Jeff estava parado diante da caixa de fusíveis,
escutando os gritos dos turistas lá em cima. Ele esperou um
momento e depois suspendeu a chave eléctrica outra vez. As
luzes lá em cima se acenderam.
- Senhoras e senhores - gritou o guia, por cima do tumulto - é
apenas um problema técnico.
Ele tirou de novo a chave do bolso e inseriu na fenda na
parede. As placas de aço se levantaram. O telefone tocou. O
guia se adiantou apressadamente para atender.
- Hendrik falando. Não, capitão. Está certo. Consertaremos o
mais depressa possível. Obrigado.
Uma porta para a sala se abriu e Jeff entrou, carregando a
caixa de ferramentas, o boné de operário empurrado para trás
da cabeça.
Ele se aproximou do guia.
- Qual é o problema? Alguém informou que houve qualquer coisa
com os circuitos eléctricos.
- As luzes estão apagando e acendendo - explicou o guia. -
Veja se pode consertar bem depressa, por favor.
Ele virou-se para os turistas, com um sorriso forçado nos
lábios, e acrescentou:
- Por que não se adiantam até aqui, onde poderão escolher
alguns excelentes diamantes, a preços bem razoáveis?
Os turistas começaram a se aproximar dos mostruários. Jeff,
sem ser observado no meio da multidão, tirou um objecto
cilíndrico pequeno do bolso do macacão, puxou o pino e jogou o
artefacto por trás do pedestal que guardava o diamante
Lucullan. O artefacto começou a desprender fumaça e faíscas.
Jeff gritou para o guia:
- Ei, ali o seu problema. Há um curto circuito no fio por
baixo do assoalho.
Uma turista gritou:
- Fogo!
- Calma, por favor! - suplicou o guia. - Não há necessidade
de pânico. Mantenham a calma.
Ele virou-se para Jeff e acrescentou, incisivamente:
- Conserte logo isso!
- Não há problema.
Jeff aproximou-se das cordas de veludo que cercavam o
pedestal.
- Nee! - disse o guarda. - Não pode chegar perto daí!
Jeff encolheu os ombros.
- Para mim, não faz diferença. Conserte você.
Ele virou-se para ir embora. A fumaça saía agora depressa. As
pessoas recomeçavam a entrar em pânico.
- Espere! - suplicou o guia. - Só um minuto!
Ele foi apressadamente até o telefone e discou um número.
- Capitão? Hendrik falando. Terei de pedir para desligar o
alarme. Estamos com um pequeno problema. Pois não, senhor. -
Ele olhou para Jeff. - Quanto tempo vai demorar o conserto?
- Cinco minutos.
- Cinco minutos - repetiu o guia pelo telefone. - Dank Uwel.
Ele repôs o telefone no gancho e disse a Jeff:
- O alarme será desligado em dez segundos. Pelo amor de Deus,
apresse-se! Nunca desligamos o alarme antes!
- Só tenho duas mãos.
Jeff esperou dez segundos, depois passou para dentro das
cordas e se aproximou do pedestal. Hendrik fez um sinal para o
guarda armado, que acenou com a cabeça e ficou olhando
fixamente para Jeff.
Jeff trabalhava por trás do pedestal. O frustrado guia
virou-se para o grupo de turistas.
- E agora, senhoras e senhores, como eu estava dizendo, temos
aqui uma selecção de excelentes diamantes, a preços especiais.
Aceitamos cartões de crédito, traveller's checks... - Ele
soltou uma risadinha. -... e até mesmo dinheiro.
Tracy estava parada na frente do balcão e perguntou em voz
alta:
- Também compram diamantes?
O guarda fitou-a.
- Como?
- Meu marido é garimpeiro. Acaba de voltar da África do Sul
quer que eu venda isto.
Enquanto falava, ela abriu a mala. Mas segurava-a ao
contrário e uma cascata de diamantes faiscantes caiu,
espalhando-se pelo chão.
- Meus diamantes! - gritou Tracy. - Ajudem-me!
Houve um momento de paralisia e silêncio, depois começou o
maior tumulto. A multidão polida transformou-se numa turba
incontrolável. Todos se puseram de quatro a catar os
diamantes, empurrando-se e gritando.
- Peguei alguns...
- Leve um punhado, John...
- Largue que este é meu...
O guia e o guarda estavam completamente atordoados. Viram-se
empurrados para o lado por um mar de seres humanos gananciosos
e em luta, enchendo os bolsos e bolsas com diamantes. O guarda
gritou:
- Recuem! Parem com isso!
Ele foi derrubado no chão. Um grupo de turistas italianos
entrou na sala. Quando perceberam o que estava acontecendo, os
italianos juntaram-se à luta frenética.
O guarda tentou se levantar para accionar o alarme, mas a
maré humana tornava isso impossível. Ele era pisoteado pela
multidão. O mundo subitamente enlouquecera. Era um pesadelo
que parecia não ter fim.
Quando o atordoado guarda conseguiu finalmente se levantar,
cambaleando, abriu caminho pela confusão, aproximou-se do
pedestal... e parou ali, olhando fixamente, incrédulo.
O diamante Lucullan desaparecera.
E o mesmo acontecera com a mulher grávida e o electricista.
Tracy removeu seu disfarce num reservado do banheiro público
em Oosterpark, a alguns quarteirões do centro da lapidação.
Levando o embrulho de papel pardo, ela foi para um banco de
parque. Tudo corria com perfeição. Ela pensou na multidão
brigando pelos zircónio sem valor e soltou uma risada. Viu
Jeff se aproximar, usando um terno cinza-escuro, a barba e o
bigode haviam desaparecido. Tracy levantou-se, Jeff chegou ao
banco, sorrindo.
- Eu a amo. - Ele tirou o diamante Lucullan do bolso do
paletó e entregou a Tracy. - Dê isto a seu amigo, querida. Até
mais tarde.
Tracy observou-o se afastar. Seus olhos brilhavam. Eles
pertenciam um ao outro. Pegariam aviões separados e se
encontrariam no Brasil. Depois disso, estariam juntos pelo
resto de suas vidas.
Tracy olhou ao redor, a fim de certificar-se que ninguém
observava. Abriu o embrulho. Lá dentro havia uma pequena
gaiola, com uma pomba cinzenta. Quando chegara ao escritório
da American Express, três dias antes, Tracy a levara para sua
Suíte e soltara o outro pombo pela janela, observando-o a voar
para longe, desajeitadamente. Agora, Tracy tirou da bolsa uma
bolsinha de camurça e nela pós o diamante. Retirou a pomba da
gaiola e segurou-a firme, enquanto amarrava a bolsinha em sua
perna.
- Boa menina, Margo. Leve isso para casa.
Um guarda uniformizado surgiu subitamente.
- Ei, espere um pouco! O que pensa que está fazendo?
O coração de Tracy parou por um instante.
- Como... qual é o problema, senhor guarda?
Os olhos dele se fixavam na gaiola, a expressão era furiosa.
- Você sabe muito bem qual é o problema. Uma coisa é dar
comida aos pombos, mas é proibido agarrá-los e meter em
gaiolas. E agora trate de largar esse pombo antes que eu a
prenda.
Tracy engoliu em seco, respirou fundo.
- Está bem, senhor guarda.
Ela levantou os braços e jogou a pomba para o ar. Um sorriso
lindo iluminou seu rosto, enquanto a pomba se elevava, cada
vez mais alto. Circulou uma vez, depois seguiu na direcção de
Londres, 370 quilómetros a oeste. Um pombo-correio voava a uma
média de 65 quilómetros horários, como Gunther lhe dissera:
portanto, Margo estaria com ele dentro de seis horas.
- Nunca mais tente isso - advertiu o guarda a Tracy.
- Está bem - prometeu Tracy, solenemente. - Nunca mais.
Quatro horas depois, Tracy estava no Aeroporto Schiphol,
encaminhando-se para o portão pelo qual embarcaria num avião,
seguindo para o Brasil. Daniel Cooper estava parado num canto,
observando-a, com uma expressão amargurada nos olhos. Tracy
Whitney roubara o diamante Lucullan. Cooper tivera certeza
disso desde o momento em que tomara conhecimento da notícia.
Era o estilo dela, ousado e imaginativo. Contudo, não havia
nada que se pudesse fazer. O Inspector Van Duren mostrara
fotografias de Tracy e Jeff ao guarda do museu.
- Nee. Nunca vi qualquer dos dois. O ladrão tinha barba e
bigode, as faces e o nariz eram mais gordos. A mulher dos
diamantes tinha cabelos pretos e estava grávida.
Também não havia qualquer pista do diamante. As pessoas e as
bagagens de Jeff e Tracy haviam sido meticulosamente
revistadas.
O diamante ainda está em Amsterdam - garantira o Inspector
Van Duren a Cooper. - Nós o encontraremos.
Não, não encontrarão, pensou Cooper, furioso. Ela trocara os
pombos. O diamante fora levado para fora do país por um
pombo-correio.
Cooper ficou observando, impotente, enquanto Tracy
atravessava o pátio. Ela era a primeira pessoa que conseguira
derrotá-lo. Iria para o inferno por sua causa.
Ao chegar ao portão de embarque, Tracy hesitou por um
momento, depois virou-se e fitou Cooper nos olhos. Percebera
que ele a seguia por toda a Europa, como uma espécie de anjo
vingador. Havia nele alguma coisa bizarra, assustadora e ao
mesmo tempo patética. Inexplicavelmente, Tracy sentiu pena
dele. Deu-lhe um pequeno aceno de despedida, depois virou-se e
embarcou no avião.
Daniel Cooper tocou na carta em que pedia demissão, guardada
em seu bolso.
Era um luxuoso 747 da Pan American e Tracy ocupava a poltrona
4B, no corredor, primeira classe. Sentia-se excitada. Dentro
de poucas horas estaria com Jeff. Casariam no Brasil. Nada
mais de aventuras, pensou ela. Mas não sentirei saudade. A
vida já será bastante emocionante sendo apenas a Sra. Jeff
Stevens.
- Com licença.
Tracy levantou os olhos. Um homem obeso, de meia-idade,
aparência devassa, estava parado ao seu lado. Ele indicou a
poltrona junto à janela.
- Aquele é o meu lugar, doçura.
Tracy virou-se para que o homem pudesse passar. Quando sua
saia levantou um pouco, o homem contemplou-lhe as pernas com
uma expressão apreciativa.
- Grande dia para um voo, hem?
Havia um tom insinuante em sua voz. Tracy acenou com a cabeça
e virou-se. Não tinha interesse em entabular conversa com
outro passageiro. Havia muito em que pensar. Toda uma vida
nova pela frente. Eles se fixariam em algum lugar e se
tornariam cidadãos exemplares. Os ultra-respeitáveis Sr. e
Sra. Jeff Stevens. O companheiro de viagem cutucou-a.
- Já que estaremos juntos neste voo, mocinha, por que não nos
apresentamos? Meu nome é Maximilian Pierpont.
Fim
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