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segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

A Inquisição - Michael Baigent e Richard Leigh

A INQUISIÇÃO
Michael Baigent e Richard Leigh

No verão de 1206 um monge espanhol chamado Dominic de Guzmán passou pelo
Sul da França. A seita Catar, que enfatizava a superioridade da
experiência directa do divino sobre a autoridade e rituais da Igreja era
excessiva. A partir desta justa indignação ele estabeleceu uma rede de
mosteiros com o propósito de reunir informações sobre seita e seus
seguidores.
Com a sua morte em 1221 e rápida canonização, Dominic fundou uma
organização que se transformou na base da Inquisição, formalmente
inaugurada pelo Papa Gregório 9 uma década após a morte do santo. Uma
das mais infames instituições criadas pela assim chamada civilização
Ocidental, a Inquisição foi responsável pela tortura e morte de
centenas de milhares de pessoas a maioria inteiramente inocentes das
acusações formuladas contra elas. Tendo alcançado seu apogeu no século
15 na Espanha sob Torquemada, a Inquisição estendeu seu braço
sanguinário para o Novo Mundo e, além, até que finalmente perdeu o seu
nome em 1908.
No arrebatador balanço sobre as origens e história da Inquisição,
Michael Baigent e Richard Leigh demonstram as atitudes perniciosas que
colocaram gradualmente a Igreja contra outras organizações.
Tomando a controvérsia sobre os Manuscritos do Mar Morto como casoteste
recente, os autores demonstram como a Igreja nunca deixou de tentar
controlar e manipular a informação ou as ideias que impingiram sobre a
actividade e agressivamente exigiu obediência de seus bispos e outros
membros, utilizando uma variedade de ferramentas desde a excomunhão até
um catálogo de livros proibidos.
Poucos poderiam contestar que a Igreja Católica poderia oferecer e
ofereceu consolo, suporte e uma caminho a ser percorrido por milhões
de pessoas. Hoje a Inquisição representa o lado violento e negro da
Igreja, e, como demonstra este livro, ainda carrega os elementos
fundamentais desse movimento.

Agradecimentos
Como sempre, gostaríamos de agradecer a Ann Evans e Jonathan Clowes não
apenas por serem nossos agentes, mas também consultores,
administradores, advogados, intercessores, defensores, cistercianos
pagãos e amigos, graças aos quais o poder de Sainte Quittière lança
sobre nós a sua proteção.
Pela ajuda e apoio numa variada gama de formas, também gostaríamos de
agradecer a Sacha Abercorn,John Ashby, Jane Baigent, Brie Burkeman, Bela
Cunha, Helen Fraser, Margaret Hill, Tony Lacey, Alan McClymont, Andrew
Nurnberg, Peter Ostacchini, David Peabody, John Saul, Yuri Stoyanov e
Lisa Whadcock.
Mais uma vez, também, nossa dívida com as bibliotecas éimensa.
Gostaríamos de agradecer às equipes da Biblioteca Britânica, em St.
Pancras, da Biblioteca da Grande Loja Unida da Inglaterra, em Covent
Garden, e da Biblioteca Bodleian, em Oxford.
par un coup de dés et l'orme detachera le roi des aulnes. Une cité rosat
abritera les tetes abattues et le suaire gêne la lumiére.
A contrejour sachant la cellule, la clarté entrera la gareflfle. Les
belles éclaircies du vent
poussent le chat à herriser ses poils.
lis se refugient dans le bruissernents de la haieine de Méluisine.
JEHAN L 'AS CUIZ

Introdução

Quando o século 15 dava lugar ao 16,Jesus voltou. Reapareceu na
Espanha, nas ruas de Sevilha. Nenhuma fanfarra saudou seu advento, nem
coros de anjos, nem espectáculos sobrenaturais, nem extravagantes
fenómenos meteorológicos. Ao contrário, ele chegou "de mansinho" e "sem
ser visto". No entanto, vários passantes o reconheceram, sentiram uma
irresistível atracção para ele, cercaram-no, amontoaram-se à sua volta,
seguiram-no. Jesus andou com toda modéstia entre eles, um suave sorriso
de inefável misericórdia" nos lábios, estendeu-lhes as mãos,
concedeu-lhes sua bênção; e um velho na multidão, cego de infância,
milagrosamente recuperou o dom da visão. A multidão chorou e beijou o
chão a seus pés, enquanto crianças jogavam flores à sua frente, cantavam
e erguiam as vozes em hosanas.
Nos degraus da catedral, um préstito em prantos conduzia para dentro um
caixãozinho aberto. Em seu interior, quase escondida pelas flores, jazia uma criança de sete anos, filha única de um cidadão importante.
Exortada pela multidão, a mãe enlutada voltou-se para o recém-chegado e
implorou-lhe que trouxesse de
11
volta à vida a menina morta. O cortejo fúnebre parou, e o caixão foi
deposto aos pés dele nos degraus da catedral.
- Levanta-te, donzela! ele ordenou em voz baixa, e a menina logo se
pôs sentada, olhando em volta e sorrindo, os olhos arregalados de
espanto, ainda a segurar o buquê de rosas brancas que fora colocado em
suas mãos.
Esse milagre foi testemunhado pelo cardeal e Grande Inquisidor da
cidade, quando passava com seu séquito de guarda-costas "um velho, de
quase noventa anos, alto e empertigado de estatura, com uma cara
enrugada e olhos muito fundos, nos quais, no entanto, ardia ainda um
brilho de luz. Tal era o terror que ele inspirava que a multidão,
apesar das circunstâncias extraordinárias, caiu em deferente silêncio e
abriu-se para dar-lhe passagem. Tampouco alguém ousou interferir
quando, por ordem do velho prelado, o recém-chegado foi sumariamente
preso pelos guarda-costas e levado para a prisão.
Esta é a abertura da Parábola do Grande Inquisidor, de Feodor
Dostoiévski, uma narrativa mais ou menos independente, de vinte e
cinco páginas, embutida nas oitocentas e tantas de Os Irmãos
Karamazov, romance publicado pela primeira vez em fascículos numa
revista de Moscou em 1879 e 1880. O verdadeiro significado da parábola
está no que vem depois do dramático prelúdio. Pois o leitor espera,
claro, que o Grande Inquisidor fique devidamente horrorizado ao saber
da verdadeira identidade do seu prisioneiro. Não é isso, porém, que
acontece.
Quando ele visita Jesus na cela, está claro que sabe muitíssimo bem quem
é o prisioneiro; mas esse conhecimento não o detém. Durante o prolongado
debate filosófico que se segue, o velho permanece inflexível em sua
posição. Nas escrituras, Jesus é tentado pelo demónio no deserto com a
perspectiva de poder, autoridade
12
Desde que Os Irmãos Karamazov foi publicado e traduzido, o Grande
Inquisidor de Dostoiévski gravou-se em nossa consciência como a imagem e
a encarnação definitivas da Inquisição. Podemos compreender o agónico
dilema do velho prelado. Podemos admirar a complexidade de seu
carácter. Podemos até mesmo respeitá-lo pelo martírio pessoal que está
disposto a aceitar, sua autocondenação à perdição, em nome de uma
instituição que considera maior que ele próprio. Também podemos
respeitar seu realismo secular e a compreensão brutalmente cínica por
trás dele, a sabedoria mundana que reconhece o mecanismo e a dinâmica
do poder mundano. Alguns de nós bem podem se perguntar se - estando na
posição dele e com suas responsabilidades não seriam impelidos a agir
como ele. Mas apesar de toda tolerância, da compreensão, talvez da
simpatia e perdão que consigamos angariar para esse homem, não podemos
escapar à consciência de que ele é, por qualquer padrão moral honesto,
intrinsecamente mal e que a instituição que representa é culpada de
uma monstruosa hipocrisia.
Até onde é exacto, representativo, o retrato pintado por Dostoiévski? Em
que medida a figura na parábola reflecte com justeza a instituição
histórica real? E se a Inquisição, personificada pelo velho prelado de
Dostoiévski, pode de fato ser equiparada ao demónio, em que medida pode
essa equiparação ser estendida à Igreja como um todo?
Para a maioria das pessoas hoje, qualquer menção à Inquisição sugere a
Inquisição da Espanha. Ao buscar uma instituição que reflectisse a Igreja
Católica como um todo, também Dostoiévski invocou a Inquisição na
Espanha. Mas a Inquisição, como existiu na Espanha e em Portugal, foi
única desses países e tinha de prestar contas, na verdade, pelo menos
tanto à Coroa quanto à Igreja.
14
Isso não pretende sugerir que a Inquisição não existiu e actuou em outras
partes. Existiu e actuou, sim. Mas a Inquisição papal ou romana como
foi conhecida a princípio informalmente, depois oficialmente diferiu
daquela da Península Ibérica. Ao contrário de suas correspondentes
ibéricas, a papal ou romana não tinha de prestar contas a nenhum
potentado secular. Actuando por toda a maior parte do resto da Europa, só
tinha aliança com a Igreja. Criada no início do século treze, predatou
a Inquisição espanhola em cerca de 250 anos. Também durou mais que as
correspondentes ibéricas. Enquanto a Inquisição na Espanha e Portugal se
achava extinta na terceira década do século dezanove, a papal ou romana
sobreviveu. Existe e continua activamente em função até mesmo hoje. Mas o
faz sob um nome novo, menos emotivo e estigmatizado. Com seu actual
título desinfectado de Congregação para a Doutrina da Fé, ainda
desempenha um papel de destaque na vida de milhões de católicos por
todo o globo.
Seria um erro, porém, identificar a Inquisição com a Igreja como um
todo. Não são a mesma instituição. Por mais importante que a Inquisição
tenha sido, e continue a ser, no mundo do catolicismo romano,
permanece apenas como um aspecto da Igreja. Houve e ainda há muitos
outros aspectos, que nem todos merecem o mesmo opróbrio. Este livro é
sobre a Inquisição em suas várias formas, como existiu no passado e
existe hoje. Se ela surge sob uma luz dúbia, essa luz não precisa
necessariamente estender-se à Igreja em geral.
Em sua origem, a Inquisição foi produto de um mundo brutal, insensível e
ignorante. Assim, o que não surpreende, foi ela própria brutal,
insensível e ignorante. E não o foi mais do que inúmeras outras
instituições da época, espirituais e temporais. Tanto quanto essas
outras instituições, faz parte de nossa herança colectiva. Não
15
podemos, portanto, simplesmente repudiá-la e descartá-la. Devemos
enfrentá-la, reconhecê-la, tentar compreendê-la em todos os seus
excessos e preconceitos, e depois integrá-la numa nova totalidade.
Meramente lavar as mãos em relação a ela equivale a negar
alguma coisa em nós mesmos, em nossa evolução e desenvolvimento como
civilização uma forma, na verdade, de automutilação. Não podemos ter
a presunção de emitir julgamento sobre o passado segundo critérios do
que é politicamente correcto em nosso tempo. Se tentarmos fazer isso,
descobriremos que todo o passado é culpado. Então ficaremos apenas com
o presente como base para nossas hierarquias de valor; e quaisquer que
sejam os valores que abracemos, poucos de nós serão tolos o bastante
para louvar o presente como algum tipo de ideal último. Muitos dos
piores excessos do passado foram causados por indivíduos que agiam com o
que, segundo o conhecimento e moral da época, julgavam as melhores e
mais dignas das intenções. Seria precipitado imaginar como infalíveis
nossas próprias intenções dignas. Seria precipitado imaginar essas
intenções incapazes de produzir consequências desastrosas como aquelas
pelas quais condenamos nossos antecessores.
A Inquisição às vezes cínica e venal, às vezes maniacamente fanática
em suas intenções supostamente louváveis na verdade pode ter sido tão
brutal quanto a época que a gerou. Deve-se repetir, no entanto, que
não pode ser equiparada à Igreja como um todo. E mesmo durante seus
períodos de mais raivosa ferocidade, a Inquisição foi obrigada a lutar
com outras faces, mais humanas, da Igreja com as ordens monásticas
mais esclarecidas, com ordens de frades como a dos franciscanos, com
milhares de padres, abades, bispos e prelados individuais de categoria
superior, que tentavam sinceramente praticar as virtudes
tradicionalmente associadas ao cristianismo. E não se deve esquecer a
energia criativa que a Igreja inspirou na música, pintura, escultura e
arquitectura que
16
representa um contraponto para as fogueiras e câmaras de tortura
da Inquisição.
No último terço do século dezanove, a Igreja foi obrigada a abrir mão
dos últimos vestígios de seu antigo poder secular e político. Para
compensar essa perda, buscou consolidar seu poder espiritual e
psicológico, exercer um controle mais rigoroso sobre os corações e
mentes dos fiéis. Em consequência disso, o papado se tornou cada vez
mais centralizado; e a Inquisição se tornou cada vez mais a voz
definitiva do papado. É nessa condição que "rerotulada de Congregação
para a Doutrina da Fé funciona hoje. Mas mesmo agora, a Inquisição
não impõe de todo a sua vontade. Na verdade, sua posição é cada vez
mais assediada, à medida que católicos em todo o mundo adquirem o
conhecimento, a sofisticação e a coragem de questionar a autoridade de
seus pronunciamentos inflexíveis.
Certamente que houve e, pode-se bem dizer, ainda há Inquisidores dos
quais a parábola de Dostoiévski oferece um retrato preciso. Em alguns
lugares e épocas, esses indivíduos podem de fato ter sido
representantes da Inquisição como instituição. Isso, porém, não faz
deles necessariamente uma acusação à doutrina cristã que em seu zelo
buscaram propagar. Quanto à própria Inquisição, os leitores deste livro
bem podem constatar que foi uma instituição ao mesmo tempo melhor e pior
que a descrita na parábola de Dostoiévski.


Um Zelo Ardente pela Fé

Inspirado na grande habilidade de vendedor de São Paulo,
o cristianismo sempre ofereceu caminhos mais curtos para o Paraíso.
Assim, já recrutava adeptos mesmo antes de seu surgimento como religião
reconhecível. Por meio do martírio, da automortificação, da meditação
e contemplação, da solidão, do ritual, da penitência, da comunhão, dos
sacramentos por todas essas vias, dizia-se que o Reino dos Céus se
abria para os crentes. Algumas dessas rotas de acesso podiam incorporar
elementos de patologia, mas eram na maior parte pacíficas. E mesmo
quando os cristãos do primeiro milénio combateram como, por exemplo,
sob Carlos Martel e depois Carlos Magno o fizeram basicamente em
defesa própria.
Em 1095, porém, abriu-se oficialmente uma nova rota para o domínio de
Deus. Na terça-feira, 27 de novembro daquele ano, o Papa Urbano 2 subiu
numa plataforma erguida num campo além do portão leste da cidade
francesa de Clermont. Daquela eminência, pregou uma cruzada, uma guerra
feita em nome da Cruz. Nessa guerra, segundo o Papa, podia-se obter o
favor de Deus, e um assento ao lado do Seu trono, matando.
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Não, claro, que o Papa fosse indiscriminado. Ao contrário, exortou os
cristãos a desistirem da prática deplorável, embora havia muito
estabelecida, de se matar uns aos outros. Exortou-os a dirigir suas
energias assassinas para os infiéis islâmicos, que ocupavam a cidade
santa de Jerusalém e o Santo Sepulcro, suposto local do enterro
de Jesus. Afim de recuperar para o cristianismo a cidade e a tumba, os
guerreiros europeus eram estimulados a embarcar numa guerra justa sob a
orientação directa de Deus.
Mas matar era apenas um dos componentes de um pacote atraente. Além da
permissão para matar, os bons cristãos obteriam remissão de qualquer
pena que já houvessem sido condenados a cumprir no Purgatório, e de
penitências a serem pagas ainda na terra. Se o cristão morresse nesse
esforço, prometiam-lhe automática absolvição de todos os seus pecados.
Se sobrevivesse, seria protegido de castigo temporal por quaisquer
pecados que cometesse. Como o monge ou o padre, o cruzado tornava-se
independente da justiça secular e sujeito apenas à jurisdição espiritual.
Se fosse julgado culpado de qualquer crime, simplesmente lhe retirariam
ou confiscariam a cruz vermelha de cruzado, e ele seria então "punido
com a mesma tolerância que os eclesiásticos. Nos anos seguintes, os
mesmos benefícios seriam concedidos em escala mais ampla. Para ter
direito a eles, não se precisava nem embarcar pessoalmente numa cruzada.
Bastava dar dinheiro a um cruzado.
Além dos benefícios espirituais e morais, o cruzado gozava de muitas
outras protecções em sua jornada por este mundo, antes mesmo de passar
pelos portões celestes. Podia tomar bens, terras, mulheres e títulos no
território que conquistasse. Podia amealhar tanto butim e saque quanto
desejasse. Qualquer que fosse seu status em seu país filho caçula sem
terra, por exemplo podia estabelecer-se como um augusto potentado
secular, com corte, harém e uma substancial propriedade territorial.
Esse era o butim a ser
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colhido simplesmente por meter-se numa cruzada. Era um pacote cujo vulto
e valor de mercado bem poderiam ser invejados pelo vendedor de seguros
de hoje.
Assim, vieram as cruzadas. Em 1099, a Primeira estabeleceu o Reino
Franco de Jerusalém o primeiro caso na história do que seria visto
séculos depois como imperialismo e colonialismo ocidentais. A Segunda
Cruzada ocorreu em 1147, a Terceira em 1189, a Quarta em 1202. No todo,
foram sete. Nos intervalos, campanhas em escala total organizadas e
financiadas na Europa, períodos de luta entre cristãos e muçulmanos
alternados com pausas de paz instável, durante as quais o comércio
tanto de ideias quanto de bens prosperava.
O Ou tremer, o além- mar como era conhecido, passou a compreender um
principado autónomo no coração do Oriente Médio islâmico, mantido e
apoiado pelas armas e homens de quase todo reino europeu. A própria
cidade de Jerusalém seria recapturada pelos sarracenos em 1187. Como
posto avançado do cristianismo ocidental, porém, o Ou tremer
sobreviveria por mais um século. Só em maio de 1291 Acre, a única
fortaleza restante, foi tomada, a última torre desabando numa cascata de
pedras, entulho e chamas que sepultou atacantes e defensores.
Se os vendedores de seguros da época puderam honrar as garantias
espirituais de propriedades no céu e um assento ao lado de Deus não
sabemos, claro. O cumprimento de promessas temporais é mais fácil de
acompanhar. Como muitos pacotes de acordos e esquemas de troca, este se
revelou uma bênção para uns poucos e uma decepção para a maioria. Um
número estonteante de nobres, cavaleiros, homens de armas, comerciantes,
empresários, artesãos e outros, incluindo mulheres e crianças, morreu
sem qualquer propósito, muitas vezes após amargas provações e em
condições horrorizantes, às vezes até devorados pelos companhei-
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ros famintos. Mas muitos prosperaram, e obtiveram terras, títulos,
butim, riqueza e outras recompensas concretas; e estes serviam de
chamarizes para os outros. Quando nada, adquiriam destreza nas armas,
técnicas e tecnologias de guerra, combate e matança; e se a Terra Santa
não oferecia recompensa adequada para as recém-adquiridas aptidões de
um homem, ele sempre podia trazê-las de volta para a Europa e
aproveitá-las ali.

Santo Fratricídio

Em 1208, quando as cruzadas na Terra Santa ainda prosseguiam e o Reino
Franco de Jerusalém lutava pela sobrevivência, o Papa Inocêncio 3
lançou uma nova Cruzada. O inimigo desta vez não seria o infiel
islâmico, do outro lado do Mediterrâneo, mas os adeptos de uma heresia
no sul da França. Os hereges em questão eram às vezes chamados de
cátaros, que significava purificados ou aperfeiçoados. Por
outros, incluindo os inimigos, eram chamados de albigensianos ou
albigenses, designação derivada de um primeiro centro de suas
actividades, a cidade sulista francesa de Albi.
Os cátaros acham-se muito em voga hoje, tornados actuais pelo interesse
em misticismo comparativo e a febre geral do milénio. Passaram a ser
recobertos com o manto de romantismo, poesia e simpatia muitas vezes
associados a causas tragicamente perdidas. Mas embora não justifiquem as
mais extravagantes idealizações que lhes fizeram nos últimos tempos,
ainda assim devem figurar entre as vítimas mais pungentes da história, e
merecem ser reconhecidos entre os primeiros alvos de um genocídio
organizado e sistemático na evolução da civilização ocidental.
Embora possam, num sentido geral, ser chamados de cristãos
(eles atribuíam um significado teológico a Jesus), os cátaros
opunham-se inflexivelmente a Roma e à Igreja Romana. Como iriam
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fazer religiões protestantes posteriores, viam em Roma a encarnação do
mal, a bíblica "Prostituta da Babilónia". Entre as congregações cristãs
estabelecidas da época, achavam-se mais próximos em suas doutrinas da
Igreja Bizantina ou Ortodoxa Grega. Em alguns aspectos na crença na
reencarnação, por exemplo tinham elementos em comum com tradições
ainda mais ao leste, como o hinduísmo e o budismo.
Em última análise, porém, e apesar da simpatia a eles concedida por
comentaristas recentes, os cátaros defendiam vários princípios que
pouca gente no Ocidente hoje acharia inteiramente aceitável e que
não poucos julgariam morbidamente insanos. Em essência, eram dualistas.
Em outras palavras, encaravam toda criação material como
intrinsecamente má, obra de uma divindade menor e inferior. Toda carne,
toda matéria, toda substância deviam em última análise ser repudiadas e
transcendidas em favor de uma realidade puramente espiritual; e só no
reino do espírito residia a verdadeira divindade.
Nessa medida, os cátaros representavam uma extensão posterior de uma
tradição havia muito estabelecida nos perímetros do Ocidente
cristianizado. Tinham muito em comum com os hereges bogomilos dos
Bálcãs, dos quais derivavam várias de suas crenças. Ecoavam a heresia
mais antiga do maniqueísmo, do terceiro século, promulgada pelo mestre
Mani na Pérsia. E incorporavam muitos elementos do dualismo gnóstico
que florescera em Alexandria e outras partes nos dois primeiros séculos
da era cristã, e que provavelmente se originara no antigo pensamento
zoroastriano.
Como os bogomilos, os maniqueus e os dualistas gnósticos, os cátaros
enfatizavam a importância do contacto directo com o divino, e o seu
conhecimento. Esse conhecimento era julgado como gnose, que significa
conhecimento de um tipo especificamente sagrado. E ao insistirem numa
tal experiência directa e em
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primeira mão, os cátaros, como seus antecessores, efectivamente excluíam
a necessidade de um sacerdócio, de uma hierarquia eclesiástica. Se a
maior virtude era a apreensão espiritual e experiencial de cada
indivíduo, o sacerdote tornava-se supérfluo como guardião e intérprete
da espiritualidade; e o dogma teológico tornava-se irrelevante, uma
mera invenção intelectual que brotava da arrogante mente humana, não de
qualquer fonte superior ou sobrenatural. Uma tal posição implicava um
flagrante desafio não só às doutrinas, mas à própria estrutura da Igreja
Romana.
Em última análise, claro, o próprio cristianismo é implicitamente
dualista, exaltando o espírito, repudiando a carne e toda a
natureza irredimida". Os cátaros pregavam o que poderia ser visto como
uma forma extrema de teologia cristã ou uma tentativa de levar a
teologia cristã às suas conclusões lógicas. Eles próprios viam suas
doutrinas como mais próximas do que se dizia que Jesus e os apóstolos
haviam ensinado. Certamente estavam mais próximas que o que promulgava
Roma. E em sua simplicidade e repúdio ao luxo mundano, os cátaros
achavam-se mais próximos que os sacerdotes romanos do estilo de vida
adoptado por Jesus e seus seguidores nos Evangelhos.
Na prática, claro, os cátaros viviam no mundo físico e tinham por força
de se valer dos recursos do mundo. Assim, por exemplo, eram proibidos de
praticar violência física e de buscar pelo suicídio um atalho para
deixar a matéria. Como seitas dualistas anteriores também eles
procriavam e se propagavam, cuidavam do solo, praticavam o artesanato
e o comércio, e apesar do pacifismo nominal
quando necessário recorriam às armas. Seus rituais e formação, porém,
ensinavam-lhes a encarar tal actividade como um campo de prova, uma
arena em que podiam lançar-se contra o desafio do mal e, se
bem-sucedidos, vencê-lo. É óbvio que tinha de haver, necessariamente,
cátaros bons e maus, como sempre houve adeptos
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rigorosos e relaxados de qualquer credo. Mas no todo, e independente de
suas crenças, os cátaros eram em geral vistos pelos contemporâneos como
conspicuamente virtuosos. Em muitos aspectos, eram encarados como o
seriam depois os quacres. Suas qualidades valeram-lhes considerável
respeito e, em comparação, tornaram tanto menos atraentes os sacerdotes
romanos. Segundo um depoimento hoje na biblioteca do Vaticano, um homem
conta que, quando jovem, dois colegas o procuraram e disseram:
Os bons cristãos chegaram a esta terra; eles seguem o caminho de São
Pedro, São Paulo e dos outros Apóstolos; seguem o Senhor; não mentem;
não fazem aos outros o que não gostariam que os outros fizessem a
eles.
A mesma testemunha também declara haverem-lhe dito que os
cátaros
são os únicos que seguem os caminhos da justiça e da verdade que os
Apóstolos seguiram. Eles não mentem. Não tomam o que pertence aos
outros. Mesmo que encontrem ouro e prata caídos em seu caminho, não o
pegam, a não ser que alguém lhes faça presente deles. Consegue-se
melhor a salvação na fé desses homens chamados hereges do que em
qualquer outra fé.2
No início do século treze, o catarismojá começara a suplantar
o catolicismo no sul da França, e pregadores cátaros itinerantes,
viajando a pé pelo campo, geravam constantemente novos convertidos.
Esses pregadores não intimidavam, extorquiam nem traficavam com culpa
e chantagem emocional, não tiranizavam nem aterrorizavam com terríveis
ameaças de danação, não exigiam pagamento nem subornos a cada
oportunidade. Eram conhecidos, como os quacres depois, pela "suave
persuasão.
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É duvidoso que todos os convertidos professos do catarismo se hajam
tornado crentes praticantes. Muitos, desconfia-se, não levaram mais a
sério sua nova fé do que outros cristãos da época levavam o
catolicismo. Mas o catarismo sem dúvida alguma exercia uma atitude. Para
cavaleiros, nobres, comerciantes, mercadores e camponeses do sul da
França, parecia oferecer uma alternativa simpática a Roma uma
flexibilidade, uma tolerância, uma generosidade, uma honestidade
realmente não encontradas na hierarquia eclesiástica estabelecida. De
uma maneira mais prática, oferecia uma fuga do ubíquo clero de Roma, da
arrogância clerical e dos abusos de uma Igreja corrupta, cujas
extorsões se tornavam cada vez mais insuportáveis.
Não se discute que a Igreja na época era desavergonhadamente corrupta.
No início do século treze, o Papa descrevia seus próprios sacerdotes
como "piores que animais refocilando-se em seu próprio excremento.3
Segundo o maior poeta lírico alemão da Idade Média, Walther von der
Vogelweide (c. 11701230):
Por quanto tempo em sono jazereis, ó Senhor?... Vosso tesoureiro furta a
riqueza que haveis armazenado. Vosso ministro rouba aqui e assassina
ali, E de vossos cordeiros como pastor cuida um lobo.4
Os bispos da época eram descritos por um contemporâneo como "pescadores
de dinheiro e não de almas, com mil fraudes para esvaziar os bolsos dos
pobres.5 O legado papal na Alemanha queixava-se de que o clero em
sua jurisdição se refestelava no luxo e na gulodice, não observava
jejuns, caçava, jogava e fazia transações comerciais. As oportunidades
de corrupção eram imensas, e poucos padres faziam qualquer tentativa
séria de resistir à tentação. Muitos exigiam pagamento até pela
realização de seus deveres oficiais. Casamentos e funerais não se
faziam sem que se pa-
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gasse adiantado. A comunhão era recusada até que se recebesse uma
doação. Mesmo os últimos sacramentos se recusavam aos agonizantes
enquanto não se extorquisse uma soma em dinheiro. O poder de conceder
indulgências, remissão de penitências em expiação por pecados, levantava
imensa renda extra.
No sul da França, essa corrupção grassava em particular. Havia igrejas,
por exemplo, em que não se dizia missa havia mais de trinta anos. Muitos
padres ignoravam os paroquianos e dedicavam-se ao comércio ou mantinham
grandes propriedades. O Arcebispo de Tours, um homossexual notório que
fora amante do antecessor, exigiu que o bispado vagado de Orléans fosse
concedido ao seu amante. O Arcebispo de Narbonne jamais sequer visitou a
cidade ou sua diocese. Muitos outros eclesiásticos banqueteavam-se,
tomavam amantes, viajavam em carruagens opulentas, empregavam enormes
séquitos de criados e mantinham estilos de vida dignos da mais alta
nobreza, enquanto as almas confiadas aos seus cuidados eram
tiranizadas e espremidas numa esqualidez e pobreza cada vez maiores.
Dificilmente surpreende, portanto, que uma parcela substancial da
população da região, inteiramente à parte de qualquer questão de
bem-estar espiritual, desse as costas a Roma e abraçasse o catarismo.
Tampouco surpreende que Roma, diante de tais deserções e uma notável
queda nas rendas, começasse a sentir-se cada vez mais ameaçada. Essa
ansiedade não era injustificada. Havia uma perspectiva concreta de o
catarismo deslocar o catolicismo como religião predominante no sul da
França e dali poderia facilmente espalhar-se para outras partes.
Em novembro de 1207, O Papa Inocêncio 3 escreveu ao Rei da França e a
vários nobres do alto escalão francês, exortando-os a suprimir os
hereges em seus domínios pela força militar. Em troca, receberiam
recompensas de propriedades confiscadas e as mesmas
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indulgências concedidas aos cruzados na Terra Santa. Esses incentivos
não parecem ter oferecido muito estímulo a alguma acção, sobretudo no
sul. O Conde de Toulouse, por exemplo, prometeu exterminar todos os
hereges de seu feudo, mas nada fez para pôr em prática a sua promessa.
Julgando não muito entusiástica a sede de sangue do conde, o legado
papal, Pierre de Castelnau, exigiu um encontro com ele. A reunião
degenerou rapidamente numa briga furiosa, com Pierre acusando o conde de
apoiar os cátaros e excomungando-o sumariamente. O conde, que talvez
fosse ele mesmo um cátaro, reagiu previsivelmente com ameaças próprias.
Na manhã de 14 de janeiro de 1208, quando Pierre se preparava para
atravessar o rio Ródano, um cavaleiro a serviço do conde aproximou-se e
matou-o a facadas. O Papa ficou furioso e imediatamente emitiu uma
Bula a todos os nobres do sul da França, acusando o conde de instigar o
assassinato e renovando sua excomunhão. O pontífice exigia ainda que o
conde fosse publicamente condenado em todas as igrejas e autorizou
qualquer católico a caçá-lo, além de ocupar e confiscar suas terras.
E não foi tudo. O Papa também escreveu ao Rei da França, exigindo que
se fizesse uma "guerra santa" para exterminar os hereges cátaros,
descritos como piores que o infiel muçulmano. Todos os que
participassem dessa campanha seriam imediatamente postos sob a protecção
do papado. Seriam liberados de pagamento de todo juro sobre suas
dívidas e isentos da jurisdição dos tribunais seculares. Receberiam
plena absolvição de seus pecados e vícios, contanto que servissem um
mínimo de quarenta dias.
Assim, o Papa Inocêncio III pregou a realização da posteriormente
conhecida como a Cruzada Albigense. Foi a primeira lançada num país
cristão, contra outros cristãos (por mais hereges que fossem). Além de
todas as vantagens explícitas, oferecia, claro, permissão implícita
para saquear, pilhar, roubar e expropriar proprie-
28
dades. E ainda outros benefícios. O cruzado que pegasse em armas contra
os cátaros não tinha, por exemplo, de cruzar o mar. Poupavam-lhe as
complicações e despesas de transporte. Também lhe poupavam a tensão de
fazer campanha no deserto e no clima opressivo do Oriente Médio. Se as
coisas não saíssem bem, ele não seria deixado isolado num ambiente
estranho e hostil. Ao contrário, podia voltar para a segurança com
bastante facilidade, ou mesmo desaparecer no meio da populaça local.
Em fins de junho de 1209, um exército de entre quinze mil e vinte mil
nobres, cavaleiros, homens de armas, servidores, aventureiros e
vivandeirosjá se reunira à margem do Ródano. Um barão francês menor,
Simon de Montfort, ia surgir como seu comandante militar. O chefe
espiritual era o legado papal Arnald Amaury
um fanático, cisterciano e, na época, Abade de Citeaux.
A 22 de julho, o exército chegara à estratégica cidade de Béziers, cuja
população incluía um considerável número de cátaros. No saque e pilhagem
da cidade que se seguiram, perguntaram a ArnaldAmaury como distinguir
os hereges dos católicos leais e devotos. O legado papal respondeu com
uma das mais infames declarações de toda a história da Igreja:
Matai todos eles. Deus reconhecerá os Seus.6
No massacre, morreram cerca de 15 mil homens, mulheres e crianças. Com o
triunfalismo que beirava a alegria exática, Arnald Amaury escreveu ao
Papa que não se poupara idade, sexo ou status.7
O saque de Béziers aterrorizou todo o sul da França. Quando os cruzados
ainda tentavam reagrupar-se em meio às ruínas fumegantes,já chegava uma
delegação de Narbonne, oferecendo entregar todos os cátaros e judeus
(que a essa altura também se haviam tornado, "alvos legítimos) da
cidade, além de abastecer o exército de alimentos e dinheiro. Os
habitantes de outras cidades e aldeias
29
abandonaram suas casas e fugiram para as montanhas e florestas. Mas os
cruzados não estavam decididos apenas a restaurar a supremacia de Roma.
Também queriam o completo extermínio de todos os hereges, além de tudo
que pudessem saquear. Em consequência, a campanha arrastou-se.
A 15 de agosto, após um curto sítio, Carcassonne se rendeu e Simon de
Montfort tornouse Visconde de Carcassonne. Em todo o sul, hereges eram
queimados às dezenas, e quem tentasse opor-se acabava na forca. Mesmo
assim, os cátaros apoiados por muitos nobres sulistas, que procuravam
resistir às depredações de que eram vítimas retaliaram, e muitas
cidades e castelos trocaram de mãos repetidas vezes. O rancor e a escala
do massacre aumentaram. Em 1213, o Rei de Aragão tentou intervir em
favor dos cátaros e nobres do sul; mas seu exército foi derrotado na
Batalha de Muret, e ele próprio morto. No outono de 1217, os cruzados
caíram sobre Toulouse, e seguiu-se um sítio de nove meses. A 25 de
junho de 1218, o próprio Simon de Montfort morria nas muralhas da
cidade, atingido por um pedaço de alvenaria lançado com uma catapulta
por uma das mulheres entre os defensores.
Com a morte de Simon, o exército dos cruzados começou a desfazer-se, e
uma paz nervosa desceu sobre a região devastada. Não durou muito. Em
1224, lançava-se nova cruzada contra o sul, tendo o Rei Luís 8 como
comandante militar e o veterano fanático ArnaldAmaury ainda presidindo
como chefe eclesiástico. Apesar da morte do rei francês em 1226, a
campanha continuou até quando, em 1229, todo o Languedoc já fora
efectivamente anexado pela coroa francesa. Outras revoltas cátaras contra
essa nova autoridade ocorreram em 1240 e 1242. A 16 de março de 1244,
Montségur, o mais importante bastião cátaro remanescente, caiu após um
demorado sítio, e mais de 200 hereges foram imolados numa pira no pé da
montanha em que ficava o castelo.
30
Quéribus, a última fortaleza cátara, caiu onze anos depois, em 1255. Só
então cessou por fim a resistência organizada cátara. àquela altura,
grandes números de hereges sobreviventes haviam fugido para a Catalunha
e a Lombardia, onde estabeleceram novas comunidades. Mesmo no sul da
França, porém, o catarismo não morreu de todo. Muitos hereges
simplesmente se fundiram na população local e continuaram a abraçar seu
credo e praticar seus rituais na clandestinidade. Permaneceram activos na
região por pelo menos mais meio século, e durante as primeiras duas
décadas do século 14 houve um ressurgimento cátaro em torno da aldeia de
Montaillou, nos Pirenéus franceses. A essa altura, porém, já se
estabelecera uma instituição mais sinistra que qualquer exército cruzado
para cuidar dos hereges.
31

Origens da Inquisição
*/* (vou a ler)
Enquanto prosseguiam as campanhas militares contra as fortalezas e
cidades cátaras de grandes populações católicas, estava em progresso
outro fato. Embora menos obviamente espectacular, menos dramático, iria
ter importância ainda maior para a história do cristianismo,
transcendendo em muito o contexto imediato do sul da França no século
13. Sua influência ia irradiar-se por todo o mundo cristão, moldar
aspectos substanciais da história e cultura ocidentais, e durar até
hoje.
No verão de 1206, um ano e meio antes de ser pregada a Cruzada
Albigense, o Bispo de Osma, no norte da Espanha, passava pelo sul da
França na volta de uma visita a Roma. Era acompanhado na viagem por um
certo Dominic de Guzmán, subprior dos monges da catedral de Osma. Filho
de um nobre menor castelhano, Dominic tinha uns trinta e seis anos na
época. Estudara durante dez na Universidade de Palencia e era conhecido
por seus dons retóricos, capacidade nos debates e disputas. Três anos
antes, em 1203, fizera sua primeira viagem à França, e a ameaça
representada pela heresia cátara ali lhe causara virtuosa indignação.
32
ORIGENS DA INQUISIÇÃO
A indignação se intensificou em sua segunda visita. Em Montpellier, ele
e seu bispo se encontraram com os legados papais locais, que se
queixaram multo da heresia que "contaminava" a região. Para combater o
contágio, Dominic e o bispo conceberam um plano ambicioso. O bispo,
porém, morreria dentro de um ano, e o plano seria posto em prática por
Dominic sozinho. Se "crédito" é a palavra adequada, iria caber a ele.
Os cátaros recrutavam suas congregações em grande parte por meio de
pregadores itinerantes, que impunham respeito pela cultura, eloquência
e conhecimento teológico. Mas também pela conduta as óbvias pobreza
e simplicidade, integridade e probidade, e rigorosa adesão ao tipo de
austeridade tradicionalmente ligada ao próprio Jesus e seus discípulos.
A Igreja não podia concorrer nessas reconhecidas virtudes cristãs. Os
altos escalões da hierarquia eclesiástica viviam vidas cuja opulência,
luxo, relaxamento sibarita e desavergonhada extravagância dificilmente
condiziam com qualquer precedente cristão estabelecido. Os padres
locais, por outro lado, embora muito pobres, eram também pavorosamente
ignorantes e mal-educados, capazes de pouco mais que dizer a missa, e
sem dúvida não preparados para um debate teológico. Os monges
permaneciam restritos a seus mosteiros, onde se dedicavam basicamente a
trabalho braçal, ofícios religiosos ou meditação. Os poucos que
possuíam alguma aptidão intelectual não tinham oportunidade de
transmiti-la ao mundo além de seus claustros.
Dominic decidiu rectificar essa situação e, como concebeu, vencer os
cátaros em seu próprio jogo. Passou a estabelecer uma rede proliferante
de monges itinerantes, de frades homens não isolados em abadia ou
mosteiro, mas que percorriam as estradas e aldeias do campo. Em
contraste com os dignitários da Igreja, os frades de Dominic iam
viajar descalços e viver simples e frugalmente, assim exemplificando a
austeridade e ascetismo atribuídos aos pri
33
meiros cristãos e aos originais padres da Igreja. E o que era mais, os
homens de Dominic seriam educados, capazes de debate erudito, de
enfrentar os pregadores cátaros ou quaisquer outros em "torneios
teológicos. Podiam vestir roupas simples e andar descalços, mas
levavam livros consigo. Antes, outras figuras do clero haviam
defendido a cultura por si mesma, ou a manutenção do monopólio do
conhecimento por Roma. Dominic tornou-se o primeiro indivíduo na
história da Igreja a defender a cultura como ajuda e instrumento
integrais da pregação.
Durante o processo de canonização que se seguiu à sua morte, tomaram-se
e compilaram-se depoimentos dos que o haviam conhecido pessoalmente, ou
visto em acção. Disso surge mais ou menos um retrato. Dominic é descrito
como um homem magro, que rezava quase sem cessar durante a noite, muitas
vezes chorando ao fazê-lo. De dia, organizava cerimónias públicas que
lhe possibilitavam pregar contra os cátaros, e era frequente explodir em
lágrimas durante um sermão. Lançava-se com ardor na vida ascética e na
automortificação. Quando rezava, muitas vezes se flagelava com uma
corrente de ferro, que usava em torno das pernas. Dia e noite vivia com
os mesmos trajes, uma grossa e áspera camisa de pê-los muito remendada.
Jamais dormia numa cama, só no chão ou numa tábua.
Ao mesmo tempo, não deixava de ter sua espécie única de vaidade. Parece
ter tido uma aguda consciência de sua imagem como asceta, e não estava
acima de reforçá-la com algumas prevaricações e engodos demasiado
humanos, embora nada santos. Ao aproximar-se de uma estalagem ou
hospedaria nocturna de beira de estrada onde se propunha passar a noite,
por exemplo, parava primeiro numa fonte ou rio próximos e bebia à
vontade escondido. Uma vez dentro da casa, aumentava sua reputação de
frugalidade e austeridade não bebendo quase nada.
34
ORIGENS DA INQUISIÇÃO
Já em 1206 durante a viagem pela França com o Bispo de Osma, e dois
anos antes de pregar-se a primeira Cruzada Albigense
Dominic fundara um abrigo em Prouille. Entre os legados
papais que veio a conhecer estava Pierre de Castelnau, cujo assassinato em 1208 iria precipitar a cruzada. Um discurso em Prouille
atribuído a Dominic pouco antes da eclosão das hostilidades oferece uma
indicação de sua mentalidade:
Por muitos anos já, tenho-vos entoado palavras de doçura, pregando,
implorando, chorando. Mas como diz a gente de minha terra, onde a bênção
não adianta, a vara prevalecerá. Agora convocaremos contra vós chefes
e prelados que, ai de mim, se reunirão contra esta terra... e farão com
que muita gente pereça pela espada, arruinarão vossas torres,
derrubarão e destruirão vossas muralhas, e vos reduzirão a todos à
servidão.., a força da vara prevalecerá onde a doçura e as bênçãos não
conseguirão realizar nada.1
Há poucos detalhes específicos sobre as actividades pessoais de Dominic
durante a campanha contra os cátaros. Parece claro, no entanto, que ele
acompanhou a ponta de lança do exército dos cruzados, actuando com um
mandado do igualmente fanático legado papal Arnald Amaury Abade de
Citeaux, que ordenou o extermínio de toda a população de Béziers com
base em que "Deus há de reconhecer os Seus. Mesmo os mais simpáticos
dos biógrafos de Dominic admitem que ele foi muitas vezes chamado
ajulgar suspeitos de catarismo, para convertê-los à Igreja ou se a
tentativa falhasse mandá-los para as chamas. Ele assistiu à queima de
inúmeros hereges, e parece ter acomodado muito facilmente sua
consciência com essas mortes.
Não surpreende que se tornasse íntimo amigo pessoal, confidente e conselheiro do implacável comandante militar da cruzada,
Simon de Montfort, e o acompanhasse em sua trilha de carnificina
35
e destruição. Durante parte de 1213, quando Simon morava em Carcassonne,
Dominic actuou como auxiliar do bispo da cidade. Acredita-se, também, que
acompanhou o exército na Batalha de Moret, onde sua pregação ajudou a
inspirar os soldados de Simon para derrotarem o Rei de Aragão. Em 1214,
o amigo concedeu-lhe a renda de pelo menos uma cidade
recém-conquistada. Dominic também baptizou a filha de Simon e oficiou o
casamento do filho mais velho dele com uma neta do Rei da França.
Nessa altura, suas actividades e sua ligação com Simon haviam-no tornado
uma espécie de celebridade entre os cruzados. Assim, em 1214, ricos
cidadãos católicos de Toulouse doaram três casas (uma das quais ainda
de pé) a ele e à sua embriónica ordem de frades. Um ano depois, Dominic
abandonou a intenção original de estabelecer sua ordem em Carcassonne,
ao que parece devido a demasiadas críticas contrárias, até mesmo
francamente hostis. Em vez disso mudou-se para Toulouse; e foi nas casas
que lhe doaram que fundou a Ordem dos Dominicanos, embora apenas não
oficialmente por enquanto.
Mais tarde, em 1215, Dominic viajou para Roma e assistiu ao Quarto
Concílio de Latrão. Ali, o Papa Inocêncio 3 deu eco à sua insistência
na importância do estudo teológico em qualquer pregação da fé. Também
endossou o estabelecimento oficial da Ordem dos Dominicanos, mas morreu
antes que isso pudesse ser posto em prática. Em dezembro de 1216, os
dominicanos foram formalmente estabelecidos pelo novo pontífice,
Honório 3.
Em 1217, os dominicanos originais de Toulouse já haviam provocado tanta
animosidade que se viram obrigados a dispersar-se. Ao fazerem isso,
foram instalar-se em cidades tão distantes quanto Paris, Bolonha e
várias localidades da Espanha. Agora se recrutavam activamente
professores para Ordem, e emitiam-se regulamentos sobre o estudo e o
cuidado com os livros. Toda casa
36
dominicana tinha seu próprio professor, a cujas aulas a presença era
obrigatória. Ao mesmo tempo, os dominicanos continuaram com as
actividades que tanto os haviam afastado dos cidadãos de Carcassonne e
depois de Toulouse espionagem, denúncias e colecta geral de
informações. Em tais actividades, demonstraram seu valor para a Igreja.
Redes de frades itinerantes, vagando pelas estradas do campo, eram
colectores únicos de informação.
Em 1221, Dominic morreu de uma febre em Bolonha. Tinha pouco mais de
cinquenta anos, e parece haver-se consumido por puro gasto de energia
fanática. A obra que inaugurara, porém, continuava em marcha. Na época
de sua morte, já havia cerca de vinte casas dominicanas na França e na
Espanha. Os membros da Ordem eram conhecidos não só por pregar, mas
pelo activo e agressivo estudo de teologia. Em 1224, pelo menos 120
dominicanos estudavam teologia em Paris. Em 1227, o Papa começava a
chamá-los para ajudá-lo no "comércio da fé". Por ordem específica do
pontífice, empenharam-se cada vez mais em localizar e caçar hereges, e
seu zelo nessa actividade os tornou mais indispensáveis à Igreja.
Em 1234, com o que pareceu uma pressa indecorosa, Dominic foi
oficialmente canonizado. Poucos santos podem ter tido
tanto sangue nas mãos. Quando ele "foi para a sua recompensa,
1 o que quer que tenha sido isso, sua ordem tinha quase cem casas. Os
dominicanos actuavam com uma insistência na disciplina e obediência que
se poderia associar a algumas seitas e eu1tos hoje, e com efeitos
semelhantes sobre as famílias. Uma vez que um indivíduo entrava na
Ordem, estava daí por diante perdido para os parentes e o mundo. Numa
ocasião, segundo histórias hagiográficas, uma família nobre romana
tentou recuperar o filho das garras da Ordem. O jovem foi despachado para
outra casa dominicana, longe de Roma. A família foi atrás; e ele aca-
37
bara de cruzar um rio quando os parentes apareceram na margem oposta.
Nesse ponto, o rio milagrosamente teve uma súbita enchente,
Avolumando-se e tornando-se intransponível. O jovem continuou sendo
dominicano.

A Destruição da Heresia

Em 1233, um dos amigos de Dominic ascendera ao trono de São Pedro como
Papa Gregório IX. Foi ele quem iniciou o processo que culminou um ano
depois na canonização do amigo. Ao mesmo tempo, a20 de abril de 1233,
novo pontífice emitiu uma Bula que conferia aos dominicanos a tarefa
específica de erradicar a heresia. Dirigindo-se aos bispos, o Papa
escreveu:
Nós, vendo-vos absorvidos no redemoinho de cuidados e mal podendo
respirar na pressão de esmagadoras ansiedades, julgamos por bem dividir
vossos fardos, para que mais facilmente possam ser suportados.
Determinamos portanto enviar frades pregadores contra os hereges de
França e das províncias adjacentes, e vos pedimos, advertimos e
exortamos, vos ordenamos... que tenhais a bondade de recebê-los, e
tratá-los bem, dando-lhes nisso... ajuda, para que possam cumprir seu
ofício.2
Dois dias depois, o Papa dirigiu uma segunda Bula directamente aos
dominicanos:
Portanto vós.., estais autorizados.., a privar clérigos de seus
benefícios para sempre, e agir contra eles e todos os outros, sem
apelação, chamando a ajuda do braço secular, se necessário.3
O Papa prosseguia anunciando o estabelecimento de um tribunal
permanente, a ser composto por irmãos dominicanos. Assim foi a
Inquisição oficialmente inaugurada. Tornou-se activa um ano
38
ORIGENS DA INQUISIÇÃO
depois, em 1234, em Toulouse, onde foram nomeados dois Inquisidores
oficiais. E interessante observar que as actividades deles, segundo a
Bula papal, deviam originalmente dirigir-se aos clérigos, ou ao
clero uma indicação de quantos eclesiásticos romanos simpatizavam de
fato com os cátaros.
Em virtude do édito do Papa, Inquisidores dominicanos receberam
autoridade papal para prender suspeitos de heresia sem qualquer
possibilidade de apelação e assim, com efeito, pronunciar sumárias
sentenças de morte. A queima de hereges não era, claro, novidade. Simon
de Montfort e seu exército haviam-se empenhado alegremente nessa
prática desde o início da Cruzada Albigense, em 1209. Suas acções, porém,
haviam sido as de um implacável comandante militar agindo por
iniciativa própria, impondo sua versão da lei marcial em territórios
conquistados e tratando os inimigos como melhor achasse. Agora, com a
bênção do Papa, estabelecia-se a maquinaria de extermínio em massa numa
base legal, oficial, com uma sanção e mandado formais derivados
directamente da mais alta autoridade da cristandade.
Inevitavelmente, em vista da natureza e escala do aparato administrativo
envolvido, houve problemas. Muitos clérigos ressentiram-se dos
dominicanos por seu novo papel e demonstraram certo grau de simpatia
pelos cátaros, ao menos em bases mais humanitárias que teológicas. Não
surpreende, também, que houvesse uma confusão de autoridade entre os
inquisidores e bispos locais. O Papa dissera estar aliviando o fardo dos
bispos. Na prática, estava implicitamente desinvestindo-os de parte de
sua jurisdição eclesiástica, e seguiram-se graus variados de atrito, e
mesmo ressentimento. Alguns bispos insistiram em que sua concordância
era necessária para que os hereges fossem ser presos. Alguns
reivindicaram- li

A INQUISIÇÃO
o direito de modificar sentenças. Alguns exigiram poderes
inquisitoriais próprios.
No correr do século 13, os ciúmes e antagonismos entre Inquisidores e
bispos eram às vezes agudos. Em teoria, os tribunais da Inquisição
deviam ser apenas um acréscimo ao tribunal dos bispos. Na prática,
porém, o poder episcopal foi aos poucos sendo erosado. Em 1248, um
concílio ia ameaçar os bispos de ficarem trancados fora de suas
próprias igrejas se não obedecessem sentenças passadas pela Inquisição.
Em 1257,o Papa Alexandre IV tornou a Inquisição independente, removendo
a necessidade de consulta aos bispos. Finalmente, em 1273,o Papa
Gregório X pôde ordenar que os Inquisidores actuassem em conjunto com os
bispos locais, dividindo autoridade e jurisdição; e essa iria aos
poucos tornar-se a norma daí por diante.
Para a primeira geração de Inquisidores, a vida nem sempre foi fácil. Ás
vezes oferecia ampla oportunidade de exaltar-se num senso de tribulação,
e de glorificar-se de acordo. Guillaume Pelhisson, por exemplo, foi um
nativo de Toulouse que entrou para os dominicanos por volta de 1230 e
tornou-se Inquisidor em 1234, apesar de sua relactiva juventude. Antes de
morrer, em 1268, compôs um manuscrito contando as actividades da
Inquisição em Toulouse entre 1230 e 1238. Cerca de três quartos de
século depois, Bernard Gui um dos mais destacados e infames de todos
os Inquisidores, que figura silenciosamente no romance O Nome da Rosa,
de Umberto Eco ia encontrar o manuscrito de Guillaume e julgá-lo
digno de copiar. Sua cópia sobreviveu nos arquivos de Avignon, e oferece
uma valiosa intuição das vicissitudes dos primeiros Inquisidores.
Guillaume escreve com a declarada intenção de que gerações posteriores
de dominicanos, além de outros católicos pios, possam
40
ORIGENS DA INQUISIÇÃO
saber quantos e quais sofrimentos ocorreram a seus antecessores pela fé
e o nome de Cristo... tomar coragem contra os hereges e todos os outros
descrentes, e assim possam manter-se firmes para fazer ou melhor,
suportar tanto ou mais, se necessário
4 for... Pois após as numerosas, as incontáveis provações suportadas
pacientemente, devotamente, e com bons resultados pelo
Abençoado Dominic e os frades que estavam com ele naquela terra,
verdadeiros filhos de um tal pai não faltarão.
Para demonstrar as dificuldades que enfrentavam os Inquisidores
em Albi em 1234, escreveu Guillaume:
O senhor legado... fez Arnold Catalan, que então pertencia ao convento
de Toulouse, inquisidor contra os hereges da diocese de Albi, onde
varonil e destemidamente ele pregou e buscou fazer a inquisição o
melhor que pôde. Contudo, os crentes nos hereges não quiseram dizer
praticamente nada naquela época, e
t ao contrário se uniram em negativas; mas ele sentenciou dois amantes
hereges... e os dois foram queimados... Condenou algumas outras pessoas
mortas e elas foram arrastadas e queimadas. Perturbado por isso, o povo
de Albi tentou jogá-lo no rio Tarn, mas por insistência de alguns,
libertaram-no, surrado, as roupas reduzidas a frangalhos, o rosto
ensanguentado... Muitos infortúnios se abateram sobre essas pessoas mais
tarde, no tempo do Frade Ferier, que pegou e prendeu vários deles, e
também mandou queimar alguns, sendo assim levado a efeito o justo
julgamento de Deus.5
Da própria Toulouse, Guillaume queixa-se de que
naquele tempo, os católicos eram perseguidos e em vários locais os que
caçavam hereges eram assassinados.., os homens principais da região,
junto com os maiores nobres, os burgueses e outros, protegiam e
escondiam os hereges. Espancavam, feriam e matavam os que os
perseguiam.., muitas coisas perversas eram feitas na terra à Igreja e
às pessoas fiéis.6
41
A INQUISIÇÃO
Guiliaume declara, de uma maneira quase casual, impensada:
Os... frades fizeram inquisição também em Moissac e sentenciaram o vivo
João de Lagarde, que, fugindo para Moritségur, tornou-se um perfeito herege e depois foi queimado ali com outros 210
hereges.7
Em 1234o ano em que, nas palavras de Guillaume, "foi proclamada a
canonização do Abençoado Dominic, nosso pai os dominicanos de
Toulouse arrumaram a celebração de uma missa pela festa do seu
fundador. Antes da refeição, os participantes se lavavam, quando, pela
providência divina, veio a notícia de que uma mulher próxima, morrendo
de febre, acabara de receber o Consolamenttim o1111110 equivalente cátaro dos
últimos sacramentos de alguns hereges. Abandonando suas abluções,
vários dominicanos, acompanhados pelo Bispo de Toulouse, correram à
casa da doente e irromperam em seu quarto.
O bispo... sentando-se ao lado da inválida, começou a falar-lhe
demoradamente sobre o desprezo pelo mundo e pelas coisas terrestres...
O senhor bispo, com muito cuidado, extraiu-lhe o que ela acreditava em
muitos pontos, e era tudo o que os hereges acreditam... Então disse o
bispo: "Portanto és uma herege! Pois o que confessaste é a fé dos
hereges, e deves saber com certeza que as heresias são manifestas e
condenadas. Renuncia a todas elas! Aceita o que acredita a Igreja
Católica. O bispo fez essas e muitas outras observações na presença
de todos, mas nada conseguiu no que se referia a ela; ao contrário, ela
perseverou mais ainda na herética teimosia. Sem demora, o bispo, que
logo chamou o vigário e muitas outras pessoas, em virtude de Jesus
Cristo condenou-a como herege. Além disso, o vigário mandou carregá-la
na cama em que jazia ao prado do conde e queimou-a imediatamente .
42
ORIGENS DA INQUISIÇAO
Assim, os dominiicanos de Toulouse coroaram sua comemoração da festa do
recémsantificado Dominic com um sacrifício humano.
Em 1235, informa Guillaume, a hostilidade aos dominicanos
em Toulouse intensificava-se. Ele parece ao mesmo tempo perplexo e
indignado com essa atitude, mas altivamente desafiador:
Naquela época, os corpos de algumas pessoas mortas que haviam sido
declaradas heréticas... eram arrastadas pelas ruas e queimadas. Toda a
cidade se excitou e levantou contra os frades por causa da inquisição e
apelou ao conde, que foi aos inquisidores pedir-lhes, por consideração
a ele, que parassem por algum tempo, acrescentando seus triviais
motivos. Eles recusaram-se a fazer isso.
Em novembro de 1235, todos os dominicanos, e a Inquisição com eles, já
tinham sido expulsos à força de Toulouse pelos cônsules da cidade. Os
cônsules foram devidamente excomungados pela Inquisição. Pouco depois,
o Papa exigiu que se desse permissão para o retorno dos Inquisidores.
Uma vez restabelecidos, eles mergulharam numa orgia de pavorosa
violência:
Naquela época, muitas heretizações de homens de destaque e outros, já
mortos... (foram reveladas e eles).., condenados por sentenças, exumados
e ignominiosamente jogados fora dos cemitérios da cidade pelos frades,
em presença do vigário e sua gente. Os ossos e restos fedorentos foram
arrastados pela cidade: os nomes proclamados .pelas ruas pelo arauto,
gritando: "Quem assim se comporta, assim perece, e eles foram
finalmente queimados no prado do conde, para honra de Deus e da
Abençoada Virgem, Sua Mãe, e do Abençoado Dominic, Seu servo (que)...
com a máxima felicidade causou essa obra do Senhor
43

O Legado de Sacrifício Humano

A tortura e execução de hereges não eram nada de novo na história
cristã. Ao contrário, tais práticas tinham amplos precedentes, que se
estendiam para trás até o quarto século, pelo menos. Por volta de 385
A.D., Preciliano, Bispo de Ávila (38 15), já incorporara em suas
doutrinas um pouco de material apócrifo do Oriente Médio, e
possivelmente elementos de dualismo gnóstico. Acusado de bruxaria e
heresia, foi levado perante Máximo, o imperador romano da época, em
Trves, onde o submeteram a continuada tortura. Condenado pelas
acusações contra ele, foi decapitado, junto com dois outros clérigos, uma
discípula rica e um conhecido poeta ligado a ele. Tribunos foram
despachados para a Espanha, para efectuar maior investigação, que
resultou na execução de mais dois hereges e no exílio de cinco. O Papa
Siríaco, que ocupou o trono de São Pedro, protestou não pelas
execuções, mas pelo fato de que os julgamentos tinham sido feitos num
tribunal secular, e não num eclesiástico. O corpo de Preciliano foi
levado de volta para ser enterrado na Espanha, onde um santuário logo
surgiu em homenagem a ele no local em que hoje se acredita estar
Santiago de Compostela. 12 Diz-se que a rota de peregrinação original
para Santiago de Compostela derivou do itinerário ao longo do qual o
corpo de Preciliano foi transportado a seu lugar final de repouso
ibérico.
Nos 900 anos entre a morte de Preciliano e a criação da Inquisição,
houve outras execuções de hereges. Não reflectiram, porém, qualquer
política papal centralmente organizada, mas ocorreram em intensos
espasmos isolados de violência, praticados por eclesiásticos locais ou
potentados seculares de vigorosa religiosidade. Assim, por exemplo, em
1022,0 Rei da França mandou queimar na
44
ORIGENS DA INQUISIÇÃO r.
estaca vários monges supostamente heréticos de Orléans. Em 1126, um
solitário herege foi queimado em St. Gilles. Agora, porém, sob a
Inquisição, estabelecia-se uma maquinaria formal, mais ou menos
azeitada, para todo o processo de investigação, imdiciamento,
julgamento, tortura e execução.
Embora pouca documentação exista em apoio, parece ter havido uma
tradição, datando pelo menos do século X, de que os funcionários da
Igreja eram proibidos de derramar sangue. Fazê-lo, por lança, espada
ou adaga, era aparentemente considerado não cristão. Assim, na Chanson
de Roland, por exemplo, o eclesiástico Turoldus, mesmo em campanha
militar, se abstém de carregar armas pontudas. Em vez disso, brande uma
maça. Podia ser inaceitável esfaquear uma pessoa, mas se o sangue
fluísse "incidentalmente" de um crânio esmagado, parece que era uma
questão diferente e teologicamente sancionável.
Talvez em deferência a alguma tradição dessa, as técnicas da Inquisição
pareciam destinadas, pelo menos em teoria, a manter o derramamento de
sangue no mínimo. Os Inquisidores tinham pouca compunção ou escrúpulos,
claro, sobre o infligimento de dor física em nome do bem-estar
espiritual. Para acomodar tal permissão, o Papa Alexandre IV (125461)
autorizou os Inquisidores a absolver uns aos outros por quaisquer
chamadas irregularidades
a morte prematura de uma vítima, por exemplo. Mas a maioria das formas
de tortura instrumentos preferidos como o ecúleo, o sacaunhas, o
strappado e a tortura da água evitavam o deliberado derramamento de
sangue. Aparelhos desse tipo parece terem sido idealizados para causar o
máximo de dor e o mínimo de sujeira.
Quaisquer que tenham sido as outras engenhocas perversamente concebidas
para infligir dor, o instrumento supremo da Inquisição era o fogo. Este
derivava seus precedente e sanção legais da lei da Roma Imperial, que
foi revivida no século XLI e se tornou
45
A INQUISIÇÃO
a base dos sistemas judiciais da Europa. Segundo o código legal romano,
a morte pelo fogo era o castigo padronizado para parricídio,
sacrilégio, incêndio criminoso, bruxaria e traição. Aí residia o
precedente para tratar dos hereges. Em 1224, o Sacro Imperador Romano
Frederico 2já aprovara uma lei na Lombardia que autorizava a queima
de hereges reincidentes. Em 1231, essa autorização foi incorporada na
lei siciliana. Durante 1238 e 1239, três declarações legais tornavam o
código judicial siciliano aplicável em todo o Sacro Império Romano.
O Imperador Frederico 2 dificilmente era ele próprio um cristão
modelo. Mergulhou em doutrinas visivelmente heterodoxas. Cultivava um
extenso conhecimento do pensamento islâmico e judaico. Era adepto
praticante de alquimia, astrologia e outros aspectos do que hoje se
chamaria esoterismo. Não morria de amores nem pela Igreja Católica nem
pelo Papa, que repetidas vezes o acusou de heresia e duas vezes o
excomungou.
Mas se a Igreja estava constantemente em choque com Frederico, não
tinha compunção em valer-se de seus códigos legais, e abraçou o fogo com
o furioso zelo da piromania institucionalizada. Um dos primeiros actos
da Inquisição dominicana foi exumar corpos de hereges executados em
Albi e queimá-los. Como se viu no depoimento de Guillaume Pelhisson
anteriormente, a exumação e imolação dos mortos revelaram-se tão
impopulares quanto a tortura e imolação dos vivos, e tais práticas
muitas vezes produziam uma reacção hostil da população local, sobretudo
no Languedoc. Muitos Inquisidores precisavam de guardas armados para
escoltá-los quando andavam pelo campo. Vários foram assassinados. Tais
infortúnios, porém, não detiveram seu incendiário entusiasmo. O
Inquisidor Robert le Petit, por exemplo, abriu seu caminho a fogo por
todo o norte da França. Numa ocasião, em 1239, ele
46
ORIGENS DA INQUISIÇÃO
presidiu a morte simultânea pelo fogo de 180 vítimas. Seus excessos só
foram contidos dois anos depois, em 1241.
Sob os auspícios de homens como esses, a antiga prática pagã de
sacrifício humano ritual foi efectivamente ressuscitada, disfarçada de
piedade cristã. A queima de um herege tornou-se ocasião de comemoração
um acontecimento alegre. A natureza desses acontecimentos era tornada
visível pela designação posteriormente associada a eles na Espanha.
Traduzido literalmente, o notório auto da fé julgamento público do qual
a morte pelo fogo era o clímax significa auto de fé.
As Técnicas da Inquisição
A Inquisição logo criou uma metodologia de intimidação e controle de
impressionante eficiência tanto que se pode ver nela uma precursora da
polícia secreta de Stalin, da SS e da Gestapo nazistas. As vezes, um
Inquisidor e seu séquito baixavam sem aviso numa cidade, aldeia,
universidade, ou, como em O Nome da Rosa, numa abadia. O mais comum era
que sua chegada fosse prodigamente preparada de antemão. Era proclamada
em ofícios nas igrejas, anunciada em elaboradas proclamações nas
portas das igrejas e quadros de avisos públicos; e os que sabiam ler
logo informavam aos que não sabiam. Quando o Inquisidor chegava, era em
solene procissão, acompanhado por sua equipe de escrivães, secretários,
consultores, auxiliares, médicos e criados além, muitas vezes, de uma
escolta armada. Depois de assim orquestrar seu aparecimento, ele
convocava todos os moradores e eclesiásticos locais , aos quais pregava
um solene sermão sobre sua missão e o objectivo de sua visita. Convidava
então como se fizesse magnânimos convites para um banquete todas as
pessoas que quisessem confessar-se culpadas de heresia a apresentar-se.
47
A INQUISIÇÃO
Os suspeitos de heresia recebiam um tempo de graça em geral de
quinze a trinta dias para denunciar-se. Se o fizessem dentro desse
período, eram geralmente aceitos de volta no seio da Igreja sem pena
mais severa que uma penitência. Mas também eram obrigados a nomear e
fornecer informação detalhada sobre todos os outros hereges que
conheciam. O interesse último da Inquisição era pela quantidade. Estava
disposta a ser branda com um transgressor, ainda que culpado, desde que
pudesse colher uma dúzia ou mais de outros, ainda que inocentes. Como
resultado dessa mentalidade, a população como um todo, e não apenas os
culpados, era mantida num estado de constante pavor, que conduzia à
manipulação e ao controle. E todos, com relutância ou não, se
transformavam em espiões.
Mesmo o mais brando dos castigos, a penitência, às vezes era severo. A
mais leve penalidade imposta àqueles que voluntariamente se
apresentavam durante o período de graça e confessavam era a
chamada disciplina. Até onde permitia a decência (e o clima), o herege
confesso era obrigado todo domingo a despir-se e aparecer na igreja
carregando uma vara. Num determinado ponto da missa, o padre o açoitava
com entusiasmo perante toda a congregação reunida "um interlúdio
adequado, observa com secura um historiador, "nos mistérios do serviço
divino. O castigo não terminava aí, porém. No primeiro domingo de
cada mês, o penitente era obrigado a visitar toda casa em que se
encontrara com outros hereges e, em cada uma, era de novo açoitado.
Nos dias santos, além disso, exigia-se que o penitente acompanhasse toda
procissão solene pela cidade e sofresse mais açoites. Essas provações
eram infligidas à vítima pelo resto da vida, a menos que o Inquisidor,
que há muito haveria partido, voltasse, se lembrasse dele e o liberasse
da sentença.
48
ORIGENS DA INQUISIÇÃO
Outra forma de penitência, julgada igualmente leve e misericordiosa, era
a peregrinação. Tinha de ser feita a pé, e muitas vezes durava vários
anos, durante os quais a família do homem bem podia morrer de fome.
Havia duas formas de peregrinação. A menor implicava uma caminhada
até dezanove santuários espalhados por toda a França, em cada um dos
quais o penitente era açoitado. A peregrinação maior envolvia uma
longa viagem do Languedoc a Santiago de Compostela, a Roma, a Colónia,
a Cantuária. No século 13, penitentes eram às vezes enviados em peregrinação à Terra Santa como cruzados, por alguma coisa entre dois e oito
anos. Se sobrevivessem, exigia-se que trouxessem consigo na volta uma
carta do Patriarca d Jerusalém ou Acre, atestando seu serviço. A certa
altura, tantos hereges eram despachados em cruzada que o Papa proibiu
a prática, temendo que toda a Terra Santa se contaminasse com o
pensamento deles.
Os hereges confessos podiam ser também obrigados a usar, pelo resto da
vida, por dentro e por fora, uma grande cruz açafrão costurada no peito
e nas costas de seus trajes. O penitente era assim exposto a constante
humilhação, ridículo e escárnio sociais, além de ocasional violência. As
pessoas estigmatizadas com tais cruzes eram ostracizadas pelas outras,
que relutavam em fazer qualquer tipo de negócio com elas. As moças
achavam impossível conseguir maridos.
Finalmente, a penitencia podia tomar a forma de uma multa. Tais multas
logo se tornaram motivo de escândalo, uma vez que os Inquisidores muitas
vezes extorquiam grandes somas para si mesmos. Não tardou para que
campeassem o suborno e a corrupção. Em 1251, até mesmo o Papa reclamou e
proibiu a imposição de multas. A proibição não durou muito, porém, e os
Inquisidores mais uma vez conquistaram o direito de infligir
penitências pecuniárias ao seu critério.
49
A INQUISIÇÃO
A morte não concedia libertação da penitência. Se um homem morria antes
de completar a penitência a ele imposta, isso era interpretado como
condenação divina uma indicação de que sua sentença não fora
suficientemente severa aos olhos de Deus. Nesses casos, os ossos
do defunto eram exumados e queimados em público. Sua propriedade podia
ser legalmente confiscada, e a família sobrevivente responsabilizada
pela penitência, da mesma forma como o seria pelas suas dívidas.
Tais eram os castigos mais brandos, impostos por misericórdia àqueles
que confessavam voluntariamente seus pecados e delatavam outros. A
informação obtida de delatores era anotada em abrangentes detalhes.
Estabelecia-se um imenso banco de dados ao qual interrogatórios
posteriores acrescentavam mais documentação; e todo esse material era
eficientemente arquivado e catalogado para fácil recuperação. Os
suspeitos podiam assim ser confrontados com transgressões ou crimes
cometidos, ou supostamente cometidos, trinta ou quarenta anos antes.
Em 1316, por exemplo, mostrou-se que uma mulher fora presa pela primeira
vez por heresia em 1268. Ali estava uma planta para o tipo de
procedimentos com os quais o estado moderno controla seus cidadãos. Ali
estava um protótipo do tipo de registros computadorizados mantidos
pelas forças policiais modernas, pelos quais uma transgressão de
juventude fumar maconha, por exemplo, ou participar de uma
manifestação pode ser invocada anos depois para desacreditar um
político ou outra figura pública.
Ao chegar a uma determinada localidade, os Inquisidores se instalavam
num ou noutro quartel-general temporário, e ali começavam a ouvir
confissões e denúncias. O sistema oferecia uma oportunidade muitas
vezes irresistível para acertos de contas, soluções de velhas brigas,
lançar inimigos em apuros. As esposas eram frequentemente estimuladas a
denunciar os maridos, os filhos a
50
ORIGENS DA INQUISIÇÃO
denunciar os pais. Testemunhas eram convocadas para apoiar testemunhos
e depoimentos iniciais. Se um indivíduo era implicado por duas outras
pessoas, um funcionário se apresentava a ele com uma intimação para
comparecer perante o tribunal da Inquisição. Essa intimação era
acompanhada por uma declaração por escrito da acusação contra ele. Os
nomes dos acusadores e das testemunhas, porém, jamais eram citados.
Se o acusado tentasse fugir, a intimação era anunciada durante :1 três
domingos seguidos. Se ainda assim ele não aparecesse, era formalmente
excomungado e declarado marginal. Sob pena de severa excomunhão, as
outras pessoas eram proibidas de dar-lhe comida, abrigo ou couto.
Se, por outro lado, o acusado respondesse à intimação da Inquisição, a
prova contra ele era formalmente avaliada. Julgada suficiente, a pessoa
era presa e permanecia, daí em diante, nas mãos da Inquisição. Como
nenhum Inquisidor gostava de ser visto como tendo cometido um erro,
usava-se todo subterfúgio possível para extrair ou extorquir uma
confissão. Muitas vezes prolongavam-se os interrogatórios. Segundo um
funcionário, não é preciso pressa... pois as dores e privações da
prisão muitas vezes provocam uma mudança de ideia nos suspeitos
eram muitas vezes simplesmente mantidos em estrito isolamento até
confessarem. As vezes deixavam-no passar fome. Não raro eram
blandiciosamente bajulados. Não raro, também, torturados.
Pela lei civil, os médicos, soldados, cavaleiros e nobres não estavam
sujeitos a tortura e gozavam de imunidade. A Inquisição decidiu
democratizar a dor e pô-la facilmente à disposição de todos,
independente de idade, sexo e posição social. Os Inquisidores eram a
princípio proibidos de ministrar eles mesmos tortura física; só podiam
actuar como supervisores, instruindo funcionários civis ou seculares
sobre o que fazer, e observando e tomando notas
51
A INQUISIÇÃO
de qualquer coisa que o acusado dissesse sob coacção. Então, em 1252, uma
Bula emitida pelo Papa Inocêncio IV autorizou-os formalmente a
ministrar eles mesmos a tortura com a restrição de que tal compulsão
não envolvia ferimento a membro nem perigo de morte.'5 Os Inquisidores
logo encontraram meios de contornar essa restrição. Também se
queixaram tanto dela que em 1260 o novo Papa, Alexandre IV, lhes
permitiu conceder dispensas uns aos outros por quaisquer
irregularidades que ocorressem.
O tradicional escrúpulo eclesiástico sobre derramamento de sangue
permaneceu em vigor. Em consequência, instrumentos de ponta e de lâmina
continuaram a ser evitados em favor do ecúleo, sacaunhas e outros
aparelhos que só faziam correr sangue, por assim dizer,
incidentalmente. As tenazes e outros brinquedos como estes eram
sombrios. Rasgar a carne com tenazes era bastante sangrento. Se
estivessem em brasa, porém, o metal aquecido cauterizava imediatamente
o ferimento e estancava o fluxo de sangue. Sofismas desse tipo eram
aplicados à duração e frequência da tortura. A princípio, o acusado só
podia ser torturado uma vez, e por não mais de trinta minutos. Os
Inquisidores logo começaram a contornar essa restrição afirmando que só
havia de fato uma aplicação de tortura, e que cada um dos trinta
minutos posteriores era apenas uma continuação da primeira.
Alternativamente, um suspeito podia ser torturado pela resposta a um
único ponto específico, e as respostas a um segundo ou terceiro
pontos justificavam as sessões de tortura a mais. Há copiosos registros
de indivíduos torturados duas vezes por dia durante uma semana ou
mais.
Na prática, o acusado era torturado até se dispor a confessar o que,
mais cedo ou mais tarde, quase inevitavelmente fazia. Nesse ponto,
carregavam-no para um aposento adjacente, onde se ouvia e transcrevia a
sua confissão. Liam-lhe então a confissão e perguntavam-lhe formalmente
se era verdade. Se ele respondesse na afir-
52
mativa, registrava-se que sua confissão fora "livre e espontânea,
sem influência de força ou medo. Seguia-se a sentença.
Em geral, a sentença de morte era o último recurso. A maioria
dos Inquisidores preferia manter uma alma salva num corpo mais ou
menos intacto, que, por penitências ou uma peregrinação, atestasse a
misericórdia e grandeza da fé. Além disso, como observou um
historiador, "um convertido que traísse os amigos era mais útil que um
cadáver assado.16
Os Inquisidores também reconheciam que alguns hereges podiam ser zelosos
em seu anseio por um martírio tão rápido quanto possível "e não fazia
parte do prazer do Inquisidor satisfazê--los. Nesses casos,
empregavam-se tempo e considerável dor para afastar a paixão pelo
martírio. As vítimas recalcitrantes eram em consequência submetidas a
provações mais prolongadas e atenuadas. Recomendava-se oficialmente que
fossem mantidos numa masmorra, em confinamento solitário, por pelo menos
seis meses, muitas vezes por um ano ou mais. De vez em quando, podia-se
conceder à esposa ou aos filhos do acusado direitos de visita, a fim de
induzir uma mudança de opinião. Também se podia permitir a visita de
teólogos, para bajular ou persuadir por meio de argumentação e exortação
lógicas.
Qualquer que fosse a relutância a impor uma sentença de morte, fazia-se
isso com bastante frequência. Aqui, voltava a exibir-se a hipocrisia
eclesiástica. Os Inquisidores não podiam eles próprios realizar
execuções, o que poderia fazê-los parecer não cristãos. Em vez disso,
eram obrigados a encenar um ritual pelo qual o acusado era entregue às
autoridades civis ou seculares que o presidiam, em geral com uma fórmula
estabelecida: "Eu vos dispenso de nosso fórum eclesiástico e
abandono-vos ao braço secular. Mas imploramos vigorosamente ao
tribunal secular que mitigue sua sentença, de modo a evitar
derramamento de sangue ou
53 A INQUISIÇAO
risco de morte."18 Por consentimento e reconhecimento gerais, tratava-se
de uma recitação deliberadamente vazia, que apenas possibilitava ao
Inquisidor, como Pilatos, lavar as mãos do assunto. Ninguém tinha a
ilusão e que as palavras significavam outra coisa que não a estaca.
Para assegurar o número máximo de espectadores, as execuções, sempre
que possível, realizavam-se em feriados públicos. O acusado era amarrado
a um poste acima de uma pira de lenha seca, alto o bastante para ser
visto pela multidão reunida. Mais tarde, na Espanha, as vítimas eram às
vezes estranguladas antes de acenderem a pira, sendo assim
misericordiosamente poupadas da agonia das chamas. A Inquisição inicial
não exibia tal magnanimidade, embora a sufocação pela fumaça de vez em
quando se adiantasse ao fogo e causasse uma liberação um pouco mais
rápida. Quando o ritual acabava,
seguia-se o revoltante requisito do processo, de destruir inteiramente
o corpo meio queimado separando-o em pedaços, quebrando os ossos
e jogando os fragmentos e as vísceras numa nova fogueira de troncos.19
Esse tipo de pavoroso desfecho era julgado especialmente importante no
caso de um herege importante, para assegurar que não restassem
relíquias a ser recolhidas por seguidores clandestinos.
Os Inquisidores eram assíduos contabilistas. Para a queima de quatro
hereges a 24 de abril de 1323, as contas de um Inquisidor de
Carcassonne mostram a seguinte discriminação:
Para lenha grande: 55 sois 6 cieniers Para galhos: 21 sois 3 deniers
Para palha: 2 sois 6 deniers Para quatro postes: 10 sois 9 deniers
54
ORIGENS DA INQUISIÇÂO
Para cordas para amarrar os condenados: 4 sois 7 deniers Para os
carrascos, cada, 20 sois: 80 sois
Há talvez uma macabrajustiça poética nessas cifras. O valor de um
carrasco parece ter sido avaliado em mais ou menos o mesmo que oito
estacas de madeira, e ligeiramente menos que um monte de galhos.
Como a maioria das instituições, iníquas ou não, a Inquisição gerou suas
próprias celebridades. Uma das primeiras foi o notório Conrad de
Marburg, que encarava a tortura mental e física como um rápido caminho
para a salvação. No início de sua carreira, fora conselheiro espiritual
de uma princesa alemã, a posteriormente canonizada Elizabete da
Turíngia. Seguindo as sádicas instruções dele, ela morreu de
autoimposta inanição aos vinte e quatro anos, época em que Conrad já
começara a caçar hereges com autoridade episcopal. Depois, em 1227, o
Papa mandou-o presidir a Inquisição na Alemanha, com poderes
praticamente ilimitados. Esses poderes lhe subiram à cabeça e
levaram-no, precipitadamente, a acusar vários nobres de alto escalão.
Eles revelaram ter espírito mais independente que seus equivalentes
franceses. Muitos deviam aliança ao Sacro Imperador Romano Frederico
2, que já fora excomungado mesmo. Quando Conrad tentou pregar uma
cruzada contra eles, acabou sendo assaltado e assassinado perto de
Marburg.
Um ano antes de Conrad encontrar a morte em 1233, outro Inquisidor,
Conrad Tors, também embarcou numa campanha, indo em tropel de cidade em
cidade, condenando e queimando em grosso e no varejo. "Eu queimaria cem
inocentes, declarou, "se houvesse um culpado entre eles."21 Quando
Conrad de Marburg foi assassinado, o Papa ordenou que Conrad Tors
prosseguisse. Ele não precisava de estímulos para fazê-lo, e continuou
com prazer as suas actividades. Mas também deixou que o entusiasmo lhe
toldasse
55
A INQUISIÇÃO
o julgamento. Ao ser convocado perante ele sob acusação de heresia, um
nobre rebelde adiantou-se a qualquer veredicto desfavorável despachando
prontamente seu Inquisidor.
Entre os mais famosos ou infames dos primeiros Inquisidores estava
Bernard Gui. Nascido por volta de 1261, em Limousin, ele se tornou
dominicano em 1280 e foi encarregado da Inquisição em Toulouse em
1307. Em 1317, o Papa confiou-lhe a missão de "pacificar" o norte da
Itália, que sofria na época de uma séria "contaminação" de heresia. Gui
continuou sendo um Inquisidor activo e dedicado até 1324, e morreu em
1331.
Sobrevive um registro das sentenças proferidas por Bernard durante seu
regime como Inquisidor de Toulouse. Entre 1308 e 1322, condenou 636
indivíduos por heresia uma média de um por semana. Quarenta de suas
vítimas foram queimadas na estaca. Uns 300 foram presos. Trinta e seis
parecem ter escapado de suas garras.
A notoriedade de Bernard deriva em grande parte do manual de instruções
que ele produziu para os colegas, A Prática da Inquisição, concluído por
volta de 1324. Nesse texto, dos quais sobrevivem várias cópias do
século XIM ele examina as crenças dos vários hereges que o consciencioso
Inquisidor poderia enfrentar hereges aos quais rotula de "maniqueístas
dos tempos modernos e pseudoapóstolos. Resume os argumentos que eles
podem reunir em sua defesa. Oferece uma metodologia para o
interrogatório e alguns espécimes de amostra de como se deve conduzir o
exame de um suspeito. Sua fama de implacabilidade é reforçada pelo óbvio
prazer em infligir tortura cuja utilidade exalta para extrair a
"verdade" não só das pessoas acusadas, mas também das testemunhas.
Quando o Papa, respondendo ao clamor público, tentou restringir o uso
da tortura, Bernard de pronto se queixou, dizendo que a eficiência da
Inquisição seria seriamente prejudicada.
56
ORIGENS DA INQUISIÇÃO
Ele conclui seu livro oferecendo uma orientação geral sobre a atitude
pública apropriada ao Inquisidor bem-educado. As demonstrações
excessivas de presunção e entusiasmo são implicitamente deploradas. O
Inquisidor deve
portar-se de tal modo, ao emitir sentença de castigo corporal, que seu
rosto demonstre compaixão, enquanto seu propósito interior continua
inabalado, e assim evitará a aparência de indignação e ira que leva à
acusação de crueldade.23
Mesmo os Inquisidores se preocupavam com relações públicas. Também
naquele tempo a imagem era um problema para os indivíduos de destaque.
57
43
Os Inimigos dos Frades Negros
Durante o século 12, a maioria da Europa passara por um ressurgimento
da lei romana, que constituía a base do sistema legal predominante.
Essa lei herdada do antigo império nominalmente cristianizado por
Constantino no início do século IV continha cerca de sessenta
preceitos contra heresia. Existia portanto contexto e sanção judiciais
efectivos para a acção punitiva e, em consequência, contexto e sanção
judiciais efectivos para a actuação da Inquisição.
Na França, tradicionalmente encarada como "a mais antiga filha da
Igreja , a heresia cátara ofereceu uma oportunidade para a Inquisição
estabelecer e consolidar sua autoridade. Não existem registros
abrangentes dos primeiros vinte anos da Cruzada Albigense; mas como
resultado da campanha de 1229, mais de cinco mil vítimas foram
queimadas, e inúmeras outras submetidas a prisão, exílio ou outros
castigos. No fim do século 13, a Inquisição na Itália dispunha de um
poder em escala comparável.
Mais tarde, claro, a Inquisição ia adquirir um poder ainda maior, e
maior notoriedade, na Espanha. Durante o século 13, porém, grande
parte da Espanha e da Península Ibérica ainda estava
58
OS INIMIGOS DOS FRADES NEGROS
em mãos islâmicas; e a simples escala do conflito entre cristãos e
muçulmanos deixava pouco âmbito para a Inquisição fazer seu trabalho.
Na Alemanha, como atesta o destino de Conrad de Marburg e Conrad Tors,
a Inquisição subsistia numa base muitas vezes ténue. Foi na Alemanha,
claro, que o domínio do velho Império Romano gradualmente definhou, e
os códigos legais romanos tinham raízes menos firmes lá que em outras
partes. Embora governada em teoria pelo Sacro Império Romano, a
Alemanha, na prática, não estava sujeita a qualquer autoridade
centralizada efectiva. Os nobres e potentados locais tendiam a ser
rebeldes, independentes e desafiadores, frequentemente recorrendo à
violência para resistir a qualquer invasão de suas prerrogativas. Em
consequência, a actividade da Inquisição na Alemanha foi mais
espasmódica que constante, só sendo exercida de forma intermitente, e
só em determinadas regiões. Durante mais ou menos uma década, os
Inquisidores podiam impor seu reinado de terror numa ou noutra cidade,
num ou noutro principado. Provocavam então uma reacção e eram expulsos.
Na Inglaterra, como na Escandinávia, os Inquisidores jamais actuaram,
porque os códigos legais predominantes não derivavam da lei romana. A
Inglaterra tinha seu próprio sistema legal, que, pelo menos
nominalmente, assegurava os direitos de todos os homens livres no reino.
A culpa era determinada pelo sistema de júri, o processo judicial não
previa aceitação da tortura. Dentro dessa estrutura, não havia nem a
tradição nem a maquinaria legal e eclesiástica preparadas para manter as
actividades da Inquisição.
A Inquisição no Sul
Nos anos imediatamente após a sua criação, a Inquisição se manteve
bastante ocupada. No sul e em outras partes da França, a resis-
59
tência cátara organizada já cessara em meados do século 13; mas muitas
comunidades cátaras haviam sobrevivido, integrando-se nas regiões
vizinhas. E também muitos cátaros individuais continuavam a observar
clandestinamente sua fé e seus rituais. Embora tais indivíduos e
pequenas comunidades houvessem deixado de pregar e não representassem
ameaça de contaminação para os vizinhos, a Igreja estava decidida a
extirpá-los e exterminá-los. Eles constituíam presa fácil para o
Inquisidor hiperactivo.
Um desses foi Jacques Fournier, Bispo de Pamiers entre 1317 e 1325. Em
l326,Jacques tornou-se Bispo de Mirepoix, e em 1327 cardeal. Em 1334,
acabou eleito Papa, como Benedito 12. Por este motivo, pelo menos
parte de seus documentos foi preservada e posteriormente descoberta nos
arquivos do Vaticano. Em 1978, os papéis foram organizados e
publicados, acompanhados de um comentário, no famoso livro Montaillou,
do famoso historiador francês Emmanuel Le Roy Ladurie.
Por volta de 1300, quase um século depois que cessara a resistência
citara organizada no sul da França, Montaillou, uma pequena aldeia
montanhesa no sopé dos Pirenéus, tornou-se um centro de modesto
ressurgimento cátaro. Em 1308, o Inquisidor de Carcassonne prendeu toda
a população, com excepção de algumas crianças muito pequenas.
QuandoJacques Fournier se tornou Bispo de Paniiers em 1317,
autorizaram-no a estabelecer seu próprio escritório inquisitorial; e
era bastante natural que Montaillou dentro de sua jurisdição, se
tornasse o foco de suas atenções.
Os documentos deJacques atestam como os hereges cátaros se assimilaram
fácil e completamente na população local. Atestam as relações bastante
cordiais entre cátaros e católicos, e também o grau de compreensão,
compaixão e mesmo simpatia da parte do futuro Papa, uma disposição a
encarar os cátaros como seres humanos irmãos. Ao contrário de Dominic,
Jacques Fournier não era
60
OS INIMIGOS DOS FRADES NEGROS
nenhum fanático raivoso. Isso, porém, não o impediu de investigar,
entre 1318 e 1325, noventa e oito casos de heresia, envolvendo mais de
cem pessoas, noventa e quatro das quais compareceram perante seu
tribunal. Demonstrando uma tolerância e caridade 4
cristãs não-típicas dos Inquisidores da época,Jacques mandou apenas
cinco delas para a estaca.
Não eram só os cátaros que mantinham a Inquisição ocupada. A Europa na
época estava decididamente enxameada de modos de pensamentos
inortodoxos, qualquer um dos quais constituía alvo maduro para a
Inquisição. Havia, por exemplo, os bogomilos, outra seita dualista que
datava do século X, no antigo Império Búlgaro, que naquela época se
estendia da Ucrânia ao Adriático. Dessa região, o pensamento se
espalhara para a Grécia e os Bálcãs ocidentais, e depois mais para
oeste ainda; e no século 12 já começara a exercer influência sobre o
catarismo, com o qual muito tinha em comum. Os bogomilos diziam ser "a
verdadeira e oculta Igreja Cristã, a Igreja de Belém e Cafarnaum.
Segundo Yuri Stoyanoxç provavelmente a autoridade moderna definitiva em
doutrina bogomila, a heresia "precipitou o surgimento do catarismo, e
era tradicionalmente reconhecida por eclesiásticos e inquisidores como
a 'tradição oculta' por trás do catarismo"i' Na verdade, os cátaros eram
muitas vezes chamados de búlgaros, ou bugres. Não surpreende que
os bogomilos logo fossem incorrer numa atenção tão frequente da
Inquisição quanto os hereges franceses.
Partilhando muitos princípios com os cátaros e bogomilos, havia os
chamados paterenos ou "paterini", que haviam surgido no sul da Itália
no século 12. A essa altura, a Igreja usava o nome paterini de
maneira quase intercambiável com cátaro ou albigense. No primeiro
terço do século 13, os paterinos estabeleceram-se na parte do reino
da Hungria que compreende a moderna Bósnia; e em 1235, pregou-se uma
cruzada contra eles, ali, seme-
61
lhante à pregada na França contra os cátaros. A cruzada contra os
paterinos revelou-se conspicuamente malsucedida na extirpaçao da
heresia. Em 1325, o Papa João 202 queixava-se de que muitos cátaros
fugiam para a Bósnia, que começava a ser encarada como a "Terra
Prometida" das seitas dualistas.2 Em 1373, as igrejas dualistas na
Bósnia eram tão poderosas que os católicos bósnios se viam obrigados a
fazer seus cultos em segredo. Os paterinos consolidaram sua posição
estabelecendo uma íntima ligação com potentados regionais; e no século
15 iam colaborar com os conquistadores do Império Otomano. Mas a Bósnia
não era o único bastião paterino. Facto ainda mais assustador para a
Igreja de Roma, a heresia seguiu espalhando-se por toda a península
italiana. No início do século 14, grassava na Lombardia e tornava-se
cada vez mais militante. Para enfrentar especificamente essa ameaça,
despachou-se o notório Bernard Gui em missão para pacificar a região.
As seitas dualistas cátaros, bogomilos e paterinos repudiavam Roma
basicamente por motivos teológicos, e a condenação que faziam à sua
riqueza, extravagância e corrupção derivava em última análise de
princípios teológicos, de uma compreensão da natureza da espiritualidade
radicalmente diferente. Outras heresias não tinham nenhuma disputa
particular com a teologia de Roma, mas rejeitavam publicamente a
riqueza, a extravagância e a corrupção da Igreja e da hierarquia
eclesiástica. Embora não sejulgassem como tais, assemelhavam-se mais
aos reformadores sociais e revolucionários de épocas posteriores.
Conspícua entre essas heresias, aparecia a dos waldensianos ou
waldenses, fundada em fins do século 12 por Pierre Valdes, um rico
negociante de Lyons. Depois de assegurar o sustento da esposa e da
família, Pierre doou sua propriedade aos pobres e iniciou uma vida de
pregador itinerante, exaltando a pobreza, a simplicidade e outras
virtudes cristãs tradicionais. Logo adquiriu um círculo de
62
discípulos, que o acompanhavam pelo campo. Alguns partiram para
estabelecer seus próprios grupos de seguidores e disseminar suas
doutrinas mais adiante. Em muitos aspectos, os waldenses bem poderiam
ser aceitos por um homem como Dominic uma vez que também condenavam o
dualismo dos cátaros. Mas também atacavam a "mundanidade" da Igreja; e
desafiavam a hierarquia, ousando produzir cópias de textos das
Escrituras em línguas e dialetos regionais. Isso bastou para fazê-los
ser estigmatizados como uma heresia. Quando se estabeleceu a
Inquisição, o próprio Pierre Valdesjá morrera; mas seus seguidores e
discípulos logo se tornaram tão sujeitos à perseguição quanto os
cátaros, e muitos deles, nos anos posteriores, foram mandados para a
estaca.
Entre as mais tenazes heresias a chamar a atenção da Inquisição,
Achava-se a dos Irmãos do Livre Espírito. Parecem ter-se originado no
início do século 12, na região da Suíça e do alto Reno. Em 1212, pelo
menos oitenta deles foram jogados numa vala fora das muralhas da cidade
de Estrasburgo e queimados vivos. Isso não os impediu de tornarse
activos em meados do século na Suábia, de onde se espalharam pelo resto
da Alemanha e acabaram alcançando os Países Baixos. No século 15,
acredita-se que entre os seus membros incluíase o pintor Hieronymus
Bosch.
Como os waldenses, os Irmãos do Livre Espírito produziam livros
religiosos em língua vernácula. Ao contrário dos waldenses, porém, sua
orientação era em essência mística, e até mesmo mcipientemente
hermética. "Deus é tudo que é", proclamavam. "Tudo dele emana e a ele
retorna."3 Em consequência, mesmo as pragas os ratos, por exemplo
eram consideradas tão divinas quanto os seres humanos. Também Satanás
era encarado como uma emanação e manifestação de Deus. Os Irmãos do
Livre Espírito repudiavam com desprezo o ritual e os sacramentos da
Igreja. Como a alma assim reverte a Deus após a morte, não há nem
Pur-
63
gatório nem inferno, e todo culto externo é inútil. Em vez disso, os
Irmãos falavam da luz divina interior, pela qual inventaram o termo
iluminismo.5 Não surpreende, talvez, que fossem amplamente acusados
de culto do demônio e práticas satânicas. Também foram acusados de
licenciosidade e descontrole sexual do que gerações posteriores
viriam a chamar de amor livre. A perseguição da Inquisição a eles foi
particularmente feroz.
Entre os inúmeros outros a sofrerem nas mãos da Inquisição, vale
notarJan Hus, na Boêmia. Ele era professor da Universidade de Praga e, a
partir de 1401, Deão de Filosofia. Nessa época, a Igreja era dona de 50
por cento de toda a terra no Reino da Boêmia. Como Wycliffe na
Inglaterra, Hus exigiu uma redistribuição da propriedade da Igreja, e
insistiu também em outras reformas eclesiásticas. Opôs-se ainda,
furiosa e vociferantemente, à venda de indulgências a prática que, um
século depois, ia provocar tanta indignação de Martinho Lutero. No
Concílio de Constança, em 1415, Hus foi condenado por heresia, devido à
sua franqueza, e queimado na estaca.

A Destruição dos Cavaleiros Templários

Em 1304, o Papa Benedito XI já morrera. No verão do ano seguinte, o Rei
da França, Filipe IV ou Filipe o Belo, deu um jeito de instalar seu
candidato, Bertrand de Goth, Arcebispo de Bordeaux, no trono de São
Pedro. O novo pontífice tomou o nome de Clemente Ve passou a agir como
uma marionete abjetamente dócil do monarca francês. Isso, porém, não
satisfez a ambição e compulsiva necessidade de controlar de Filipe. Para
consolidar mais ainda sua autoridade, sequestrou todo o Papado em 1309
e transferiuo de Roma para Avignon. Ali ia ficar por quase três quartos
de século, e todos os sete papas que o presidiram durante esses anos
foram
64
OS INIMIGOS DOS FRADES NEGROS
franceses. Quando Gregório XI finalmente retornou a Roma em 1377, os
cardeais franceses elegeram outro papa, posteriormente chamado de
Antipapa, que permaneceu em Avignon. O Grande Cisma de 1378
conflito entre papas rivais, ou entre papas e antipapas só seria
resolvido em 1417.
No início do Cativeiro emAvignon, quando Clemente V foi instalado como
pontífice, a Inquisição enfrentou um novo tipo de desafio. Antes,
dirigira-se à caça de hereges. Agora, ia ver-se lançada contra a mais
poderosa instituição individual da cristandade da época, os Cavaleiros
Templários.
Os Templários haviam-se estabelecido originalmente na Terra Santa, no
início do século 12, pouco depois da tomada de Jerusalém, na Primeira
Cruzada. Em 1300,já haviam passado a constituir uma vasta empresa
internacional uma rede e um império virtual que só vinha atrás em
riqueza e influência do próprio Papado. Se haviam consistido
inicialmente de guerreiros, agora incluíam um número ainda maior de
administradores, burocratas, funcionários e pessoal auxiliar. A Ordem
possuía imensas propriedades por todo o mundo cristão não apenas na
esfera da autoridade espiritual de Roma, mas também na da Igreja
Ortodoxa Grega de Constantinopla. Nessas propriedades, o pessoal da
Ordem produzia madeira, cultivava a terra, criava cavalos, bois e
carneiros. Também possuía navios, que transportavam lã e outros
produtos, além de peregrinos e cruzados para e da Terra Santa.
Os Templários dominavam a mais avançada tecnologia bélica da época. Seus
recursos militares, em especialização, material e homens treinados,
excediam os de qualquer outra instituição europeia. Eram também os
principais banqueiros da Europa, capazes de transferir fundos por toda
a cristandade e de fazer complexas transações financeiras para
monarcas, eclesiásticos, nobres e comerciantes. E eram diplomatas
amplamente respeitados, capazes
65
A INQUISIÇÃO
de agir independentemente das facções em guerra. Suas embaixadas tratavam
não só com potentados católicos, mas também com a Igreja Bizantina, e
com representantes militares, políticos e religiosos do Islã.
Em vista de seu status, dificilmente surpreende que os Templários
inspirassem crescente ciúme e desconfiança; e seu orgulho, sua
presunçosa arrogância e exaltada complacência causavam ainda mais
hostilidade. Mas havia também outros motivos de antipatia, pelo menos no
que se referia à Igreja. Já no início do século 13, no começo da
Cruzada Albigense, o Papa Inocêncio 3 criticara a Ordem, citando
acusações de excessos e mesmo apostasia. Entre outras práticas
suspeitas, os Templários acolhiam em suas fileiras cavaleiros
excomungados que, em consequência, podiam receber o sepultamento em
terreno consagrado, que de outro modo lhes teria sido negado. Os
Templários eram também notórios pelo tratamento desrespeitoso que davam
aos legados papais. Demonstravam uma tolerância não-cristã para com os
muçulmanos e judeus. E durante a Cruzada Albigense, deram refúgio em sua
Ordem a um número substancial de conhecidos cátaros. Na verdade, alguns
de seus Grandes Mestres e Mestres regionais vinham de destacadas
famílias cátaras
No início do século IV o Rei Filipe 1V da França tinha abundantes
motivos para não gostar da Ordem do Templo. Também cobiçava a riqueza
deles, uma vez que suas próprias necessidades fiscais eram agudas. Em
1291, ordenara a prisão de todos os comerciantes e banqueiros italianos
na França, cujas propriedades expropriara. Em 1306, expulsara todos os
judeus de seu reino e confiscara suas propriedades. Na certa era
inevitável que Filipe voltasse suas atenções para os Templários como
nova fonte de renda.
Mas Filipe tinha motivo para temer os Templários, também. Desde a perda
da Terra Santa em 1291, a Ordem perdera efectiva
66
OS INIMIGOS DOS FRADES NEGROS
mente suas posses, não tendo qualquer base ou quartel-general
permanente. Durante algum tempo, haviam-se instalado em Chipre; mas a
ilha revelou-se pequena demais para suas ambições. Eles invejavam os
Cavaleiros Teutónicos, a Ordem irmã, que haviam estabelecido um
principado praticamente independente na Prússia e no Báltico, muito a
nordeste, bem além do alcance de qualquer autoridade papal aplicável. Os
Templários sonhavam em criar um principado semelhante para si, porém
mais próximo do núcleo da actividade europeia. Seus desígnios
concentravam-se no Languedoc, ainda devastado após a Cruzada
Albigense.7 A perspectiva de um estado templário autónomo e
auto-suficiente em seu quintal não deve ter deixado o rei francês dormir
muito tranquilamente.
Assim, Filipe tinha várias desculpas plausíveis, e até mesmo alguns
motivos válidos, para avançar contra os Templários e fazê-lo de um
modo que ao mesmo tempo os neutralizasse como ameaça e lhe permitisse
tomar a riqueza deles. Ajudava, claro, ter o Papa no bolso. E também o
Inquisidor da França, Guillaume de Paris, como confessor pessoal e
amigo íntimo. Havia obviamente amplo espaço para conluio e para Filipe
agir com uma aparência de inimpugnável autoridade.
Algum tempo antes, um de seus ministros andara colectando e juntando
provas contra os Templários, que haviam sido mantidas sob guarda
dominicana, em Corbeil. Por essas provas, tornava-se claro que a
acusação mais conveniente a fazer contra a Ordem seria heresia o que
talvez não fosse inteiramente sem base. A 14 de setembro de 1307,
despacharam-se por conseguinte cartas a autoridades reais em toda a
França, instruindo-as a prender, na sexta-feira 13 de outubro seguinte,
todos os Templários em sua jurisdição. O pessoal da Ordem devia ser
mantido sob severa guarda em confinamento solitário, e depois levado um
por um perante os
67
A INQUISIÇÃO
comissários da Inquisição. Cada um ouviria a leitura formal das
acusações contra ele; e a cada um se prometeria perdão se se
confessasse culpado das acusações e retornasse ao seio da Igreja. Se
um Templário se recusasse a confessar, seria enviado o mais prontamente
possível ao rei. Enquanto isso, toda a propriedade da Ordem seria
sequestrada e compilado um abrangente inventário de todos os bens e
posses. Embora vindas de um monarca, essas instruções foram oficialmente
promulgadas sob a autoridade do Inquisidor. Filipe podia assim dizer
que estava agindo inteiramente a pedido da Inquisição e negar qualquer
interesse pessoal no assunto. Para reforçar a mistificação, o próprio
Inquisidor, Guillaume de Paris, escreveu a seus esbirros em todo o
reino, relacionando os crimes dos quais os Templários eram acusados e
dando instruções para seu interrogatório.
Nos meses seguintes, os Inquisidores em toda a França se mantiveram
conscienciosamente ocupados, interrogando centenas de Templários. Um
grande número de vítimas morreu nesse processo trinta e seis só em
Paris, mais vinte e cinco em Sens. Mas a maioria dos Templários presos
na França era ou muitojovem e inexperiente, ou velha. A maioria dos
combatentes, aparentemente informados por algum aviso prévio, conseguiu
escapar. E do suposto "tesouro" da Ordem, que Filipe esperava
expropriar, nada jamais se encontrou. Ou jamais existira de fato, ou
foi contrabandeado a tempo para local seguro.
Seguiram-se sete anos de interrogatório, tortura e execução, pontilhadas
por julgamentos e retiradas de confissões. Em 1310, quase 600 templários
franceses ameaçaram retirar suas confissões e defender a Ordem junto ao
Papa. Cerca de setenta e cinco deles foram queimados pela Inquisição
como hereges relapsos. Finalmente, a Ordem do Templo foi oficialmente
dissolvida pelo Papa; e a 19 de março de 1314, dois dos seus mais altos
dignitários 68
OS INIMIGOS DOS FRADES NEGROS
Jacques de Molay, o Grande Mestre, e Geoffroi de Charnay, seu
subordinado imediato foram assados até a morte em fogo brando numa
ilha do Sena.
Nos anos que precederam esse sangrento desfecho, a acção contra os
Templários era mais frequente em domínios onde a lei da Inquisição tinha
mais eficácia na França, Itália, em algumas partes da Áustria e da
Alemanha. Em outros lugares, a perseguição à Ordem era uma coisa mais
próforma. Na Inglaterra, por exemplo, onde a Inquisição jamais actuara
antes, não havia ninguém para empreender a perseguição. Filipe portanto
escreveu a seu genro, o recém-coroado Eduardo 2, e exortou-o a agir
contra os Templários. O rei inglês ficou chocado com a exortação tão
chocado, na verdade, que escreveu aos monarcas de Portugal, Castela,
Aragão e Sicília, encorajando-os a ignorar a pressão que Filipe fazia
sobre eles. Eduardo pedia a seus colegas governantes que
façam ouvidos moucos às calúnias de homens de má natureza, que não são
movidos, acredito, pelo zelo da rectidão, mas por um espírito de cupidez
e inveja.8
Sujeito à implacável importunação de Filipe, Eduardo acabou cedendo e,
em janeiro de 1308, efectuou o gesto simbólico de prender dez Templários.
Não se fez nenhum esforço sério de mantê-los sob guarda. Ao contrário,
deixaram-nos andar à solta, em trajes seculares, entrando e saindo a seu
belprazer dos castelos onde deviam estar presos.
Filipe, desnecessário dizer, ficou insatisfeito. Em meados de setembro
de 1309, quase dois anos depois das primeiras prisões na França, a
Inquisição pôs pela primeira vez os pés na Inglaterra com o objectivo
específico de processar os Templários. A acolhida que os Inquisidores
receberam não foi muito entusiástica. A diver69
A INQUISIÇÃO
são deles ficou ainda mais estragada quando Eduardo os proibiu de
empregar tortura, o único meio pelo qual poderiam esperar arrancar as
confissões desejadas. Ofendidos, os Inquisidores se queixaram ao rei
francês e o Papa. Sob pressão desses dois lados, Eduardo, em dezembro,
concordou com relutância em sancionar "limitada" tortura; mas os
carcereiros dos Templários não demonstraram nenhum gosto por ela, e a
Inquisição continuou a sentir-se frustrada.
Nessa frustração, os Inquisidores propuseram alternativas. Talvez os
Templários pudessem ser aos poucos privados de comida, até subsistirem
apenas com água. Ou talvez pudessem ser transferidos para a França,
onde a tortura poderia ser adequadamente aplicada por homens com a
especialização e o gosto por ela. Eduardo continuou a obstruir.
Finalmente, em meados de 1310, sob renovada pressão do Papa, autorizou
de má vontade o emprego de pelo menos alguma tortura na intensidade
exigida.
No fim, porém, menos de cem Templários foram presos na Inglaterra, e só
se obtiveram três confissões. Os três réus admitidos não foram
queimados. Em vez disso, foram obrigados a fazer uma confissão pública
de seus pecados, após o que acabaram absolvidos pela Igreja e
mandados para um mosteiro. Nenhuma outra acusação foi julgada provada
contra os Templários na Inglaterra. Quando se dissolveu a Ordem, os que
permaneciam na prisão foram dispersos por vários mosteiros com pensões
para sustentá-los pelo resto de seus dias. A essa altura, os
Templários ingleses, como muitos da França antes, haviam escapado para a
Escócia.9 Esse país na época achava-se sob interdição papal, e seu rei,
Robert the Bruce, fora excomungado. Em consequência, a lei papal não
valia lá; e cavaleiros fugitivos podiam esperar encontrar um refúgio
agradável.
70
OS INIMIGOS DOS FRADES NEGROS
Ataques aos Franciscanos
Quando a Inquisição foi chamada a agir contra os Templários, já
adquirira experiência em brigar com outras instituições oficiais
cristãs. Durante a maior parte do século anterior, empenhara-se numa
disputa, uma virtual guerra constante, com a ordem que constituía a
principal rival dos dominicanos por autoridade e influência. Essa Ordem
era a dos Franciscanos.
O homem depois canonizado como São Francisco nasceu por volta de 1181,
filho de um rico comerciante de tecidos em Assisi. Se Dominic foi um
fanático desde o momento em que surgiu no palco da história, Francisco
seguia um padrão diferente, embora igualmente conhecido. Como Santo
Agostinho, teve uma juventude de libertinagem e dissipação. Mesmo as
versões mais reverentes dizem pudicamente que ele fez tudo que um jovem
da época costumava fazer, e a palavra "dissipado" surge mais de uma
vez.
Até os vinte anos, Francisco trabalhou na empresa da família. Em 1202,
fez-se soldado e combateu numa das campanhas menores que Assisi travava
contra os vizinhos. Foi capturado e passou alguns meses na prisão.
Segundo algumas fontes, sofreu uma séria doença por volta dessa época.
Fragmentos de indícios sugerem que essa doença foi uma espécie de
colapso mental, ou coincidiu com o colapso.
De qualquer modo, Francisco retornou a Assisi desencantado com a vida
mundana anterior. Embarcou numa peregrinação a Roma e descobriu ao
fazê-lo uma exaltação pessoal na pobreza. Ao voltar a Assisi, adotou
uma vida de austeridade e simplicidade, cuidando dos mendigos e
ajudando a restaurar uma igreja que caía aos pedaços. Financiou a
restauração roubando alguns bens do pai e vendendo-os, junto com um
cavalo no qual os carregara. O pai deserdou-o peremptoriamente.
71
Tudo isso foi só um prelúdio para a conversão de Francisco, que ocorreu
numa manhã de 1208, quando ele ouvia um texto bíblico lido numa igreja
perto de Assisi. As palavras parecem ter-lhe soado como um chamado
pessoal. Imediatamente a seguir, tirou os sapatos, vestiu um ascético
manto escuro e iniciou uma peripatética vida de pregação. Quando
começou a ser acompanhado por seguidores, estabeleceu uma regra para
sua embriónica organização. Segundo uma das cláusulas:
Os irmãos não se apropriarão de nada, nem casa, nem lugar... mas viverão
no mundo como estrangeiros e peregrinos, e buscarão confiantemente
esmolas.10
Francisco e Dominic foram quase exatamente contemporâneos. Mas enquanto
Dominic buscava poder, Francisco buscava livrar-se de poder. Enquanto
Dominic buscava adversários externos contra os quais lançar-se,
Francisco de uma maneira muito mais de acordo com a tradicional
doutrina cristã combatia os supostos vício e tentação dentro de si
mesmo. Como alguns dos sectários heréticos, Francisco esforçava-se para
viver de um modo digno do atribuído a Jesus e aos primeiros cristãos.
Se houvesse vivido no sul da França, ou se os dominicanos não
estivessem preocupados na perseguição aos cátaros ali, ele próprio
muito provavelmente teria sido condenado como herege. Francisco e
Dominic juntos refletem dois aspectos conflitantes, diametralmente
opostos e incipientemente esquizofrénicos da Igreja medieval.
Em 1209, quando a Cruzada Albigense ganhava sangrento impulso, o Papa
Inocêncio 3 aprovou a regra que Francisco traçara, e estabeleceu-se a
Ordem Franciscana. Francisco e seus companheiros assumiram a
designação de frades menores. Três anos depois, em 1212, as Clarissas
pobres, uma organização Franciscana para mulheres, era fundada por uma
integrante da nobreza de
Assisi, uma senhora posteriormente canonizada como Santa Clara.
Francisco, enquanto isso, começou a pregar mais longe. Vagou pela Europa
Oriental. Depois embarcou numa cruzada e, em 1219, esteve presente no
Egipto ao sítio e captura do porto de Damietta, no Delta do Nilo.
Tão pobres e esfarrapados eram os primeiros Franciscanos que alguns
Inquisidores dominicanos com excesso de zelo às vezes os tomavam por
cátaros ou waldenses. Em consequência de um mal-entendido desses, por
exemplo, cinco deles foram executados na Espanha. Como os primeiros
dominicanos, os primeiros Franciscanos juravam pobreza e eram
proibidos de ter propriedade, sendo forçados a sobreviver à custa de
esmolas. Ao contrário dos dominicanos, porém, os Franciscanos se
empenhavam no trabalho braçal. Também lhes era negada um pouco da
consolação concedida a seus rivais. A maioria dos Franciscanos, no
início, não tinha instrução, e assim era excluída da emoção e distracção
intelectuais do estudo erudito e teológico. E enquanto os dominicanos
podiam satisfazer quaisquer desejos sádicos e outras perversões que
abrigassem perseguindo hereges, aos Franciscanos também isso se negava.
Não surpreende, assim, que a árdua disciplina Franciscana se revelasse
demasiada para muitos membros da Ordem e muitos postulantes em
perspectiva. Mesmo antes da morte de Francisco em 1226, a instituição
que criara já começara a mudar. Enquanto ele se achava fora na Europa, e
depois no Egipto, seu substituto como Geral da Ordem mostrara-se um
astuto e habilidoso político, ampliando a influência dos Franciscanos e
relaxando a severidade de sua regra. Eles continuaram a fazer trabalho
braçal e pregar, além de manter hospitais e cuidar de leprosos, mas
agora começavam a acumular riqueza. Segundo um historiador:
73
Á medida que a Ordem se espalhava, não estava na natureza
humana recusar a riqueza quejorrava sobre ela de todos os lados,
e recorreu-se a engenhosas dialécticas para conciliar as amplas posses
com a absoluta rejeição de propriedade prescrita pela Regra.'1
Quando Francisco retornou de suas viagens, não fez qualquer tentativa de
recuperar o controle, de retomar sua posição de Geral. Negando todo
interesse em política, organização e hierarquia, continuou a seguir sua
vida simples e desembaraçada; e a Ordem, embora reverenciando-o como
pai, passou a evoluir sob outros auspícios. Em seu primeiro Capítulo
Geral em 1221, cinco anos antes da morte de Francisco, tinha mais de 3
mil irmãos, um cardeal e vários bispos. Em 1256, possuía quarenta e
nove estabelecimentos separados só na Inglaterra, com 1.242 frades. Na
última parte do século 13, um deles era o famoso Roger Bacon.
Meio século depois da morte de Francisco, sua Ordem já se tornara tão
confortável e rica quanto qualquer outra instituição clerical. Também
tinha, à sua maneira, começado a descobrir a emocionante intoxicação do
poder. E, como corolário inevitável, tornara-se cada vez mais inclinada
à corrupção. Em 1257, o homem depois canonizado como São Boaventura
foi eleito Geral da Ordem. Um de seus primeiros actos foi enviar uma
carta circular a todos os chefes provinciais, deplorando a extensão da
desmoralização à qual os interesses mundanos e a ganância haviam
levado os Franciscanos. Queixava-se de que os irmãos haviam caído cada
vez mais na ociosidade, no vício e em vergonhosas extravagâncias,
construído palácios de obscena opulência, extorquido excessivos legados
e taxas de sepultamento. Dez anos depois, nada mudara, e Boaventura
repetia a acusação, desta vez de maneira ainda mais contundente: "E uma
imunda e profana mentira afirmar... abso74 A INQUISIÇÃO
luta pobreza e depois recusar submeter-se à falta de alguma coisa;
mendigar lá fora como miserável e rolar em riqueza em casa."12
Se os Franciscanos, em fins do século 13, haviam sucumbido ao mundo e
à corrupção, também se achavam dilacerados por cismas. Muitos membros
da Ordem Franciscanos místicos "espirituais ou puristas
tentavam permanecer leais aos princípios do fundador. Não surpreende
que essa sua posição inflexível logo os levasse a conflitos com a
Inquisição dirigida pelos dominicanos, e não poucos incorressem na
acusação de heresia. Em 1282 por exemplo, a acusação foi lançada a
PierreJean Ouvi, o chefe dos Franciscanos puristas no Languedoc; e
embora ele fosse posteriormente exonerado, suas obras continuaram
censuradas.
No início do século XIV os Franciscanos puristas achavam-se cada vez
mais em choque com a opinião dominante de sua própria Ordem, com a
Inquisição dominicana e com o Papa. Em 1317, João 202 emitiu um
julgamento definitivo contra os puristas. Sob pena de excomunhão,
ordenou-lhes que se submetessem à sua autoridade e à corrente
principal da Ordem. Muitos se recusaram e tornaram-se cismáticos, sob o
nome de Fraticelli. Em 1318, quatro irmãos Fraticelli foram queimados
pelos Inquisidores como hereges.
Em 1322, um Capítulo Geral de toda a Ordem Franciscana aprovou uma
resolução implicitamente simpática aos Fraticelli. Declarava queJesus e
seus discípulos haviam sido pobres, renunciado a posses pessoais e
repudiado as coisas do mundo e constituíam o modelo ideal de virtude
cristã. Tal afirmação implicava um flagrante desafio à Inquisição, que
ainda recentemente emitira um julgamento tentando justificar a riqueza
eclesiástica. A reacção não iria tardar. Um ano depois, em 1323, o Papa
denunciou a resolução dos Franciscanos como heresia. A Ordem como um
todo ficou indignada, muitos deles acusaram o próprio Papa de heresia, e
75
vários desertaram para os Fraticelli. Com o aumento dos atritos, o
próprio Geral da Ordem juntouse aos cismáticos desertores. Durante os
dois séculos seguintes, as relações entre a Inquisição e os
Franciscanos tanto a corrente principal quanto os cismáticos
- iriam permanecer hostis. Até a década de 1520, Franciscanos de
tendências místicas continuaram a ser julgados e condenados por heresia.
A briga entre Franciscanos e dominicanos às vezes atingia dimensões sem
precedentes de sublime loucura, além de literalismo e dogmatismo
infantis. Assim, por exemplo, em 1351, um dignitário franciscano de
Barcelona falou do sangue derramado de Jesus antes e durante a
Crucificação. Esse sangue, segundo ele, caíra no chão e perdera a
divindade em virtude da separação do corpo de Jesus. Portanto, não
ascendera aos céus quando o próprio Jesus o fizera, mas encharcara a
terra.
A questão, como observou um historiador, era nova e um pouco difícil
de demonstrar.13 Mas as afirmações do franciscano causaram profunda
indignação a Nicholas Roselli, o Inquisidor dominicano de Barcelona,
que de qualquer modo já se ressentia mesmo dos franciscanos, e agora
julgava ter novos motivos de ofensa. Aproveitando a oportunidade para
atacar a Ordem rival, enviou uma versão detalhada da questão para o
Papa.
Também o Papa ficou indignado com as afirmações do franciscano.
Convocou prontamente uma conferência de teólogos para investigar a
questão do sangue derramado de Jesus. A conferência partilhou da
indignação do Padre Roselli e do Papa. Condenaram-se oficialmente as
afirmações do franciscano. Emitiram-se instruções a todos os
Inquisidores qualquer um que continuasse a divulgar tais afirmações
escandalosas devia ser preso. O franciscano que enunciara a tese foi
obrigado a retirá-la publicamente.
76 */* (a corrigir)
O assunto não terminou aí, porém. Sentindo-se atacados, os franciscanos,
embora proibidos de qualquer discussão pública do sangue derramado de
Jesus, continuaram a defender sua posição em particular. Segundo um
comentarista:
Os franciscanos afirmavam, com provocante racionalidade, que bem se
podia acreditar que o sangue de Cristo ficou na terra, uma vez que a
pele do prepúcio cortada na circuncisão se achava preservada na Igreja
de Latrão e era reverenciada como relíquia debaixo dos olhos de papa e
cardeal, e que partes do sangue e da água que haviam fluído na
Crucificação eram expostas aos fiéis em Mântua e Bruges, e em outras
partes.14
Durante a maior parte do século seguinte, a disputa prosseguiu
discretamente. Então, em 1448, quase cem anos depois, um professor
franciscano da Universidade de Paris levou o problema àatenção do
Colégio de Teologia. A renovada discussão resultou na formação de um
conselho de teólogos para investigar mais a fundo o espinhoso assunto.
Os teólogos passaram alguns anos em debate. Finalmente, com grande
solenidade, emitiram sua conclusão. Não era contrário à doutrina da
Igreja, declaravam, acreditar na tese franciscana original de que o
sangue derramado por Jesus em seus últimos dias havia de fato
permanecido na terra.
Exultantes com a vitória em sua Guerra dos Cem Anos, os franciscanos
permitiram-se um certo grau de triunfalismo e tornaram-se mais
audaciosos. Num sermão em Brescia, em 1462, um destacado franciscano
endossou abertamente a posição de seu antecessor. Explodiu de novo a
controvérsia. Contendo a indignação, o Inquisidor dominicano local
escreveu uma carta de polida incredulidade ao franciscano. Declarava,
com discreta irritação, não poder acreditar que tal afirmação houvesse
sido de fato feita. As informações que recebera deviam ter distorcido
tudo. Teria o franciscano a bondade de assegurarlhe que fora isso
mesmo?
77
A INQUISIÇÃO
Quando o franciscano, com igual polidez, repetiu as declarações, foi
convocado a comparecer perante o Inquisidor no dia seguinte.
Assustado com a perspectiva de renovada disputa entre dominicanos e
franciscanos, o bispo local interveio. Deu um jeito de fazer retirar a
intimaçao, mas só com o entendimento de que o assunto seria encaminhado
à atenção pessoal do Papa. Enquanto isso, dominicanos em toda a
cristandade começaram a fulminar de seus púlpitos a heresia
franciscana. Depois de manter-se mais ou menos discreta pela maior parte
de um século, a briga voltou a explodir de modo dramático perante os
olhos da perplexa populaçao.
Não querendo antagonizar nenhuma das Ordens, o Papa apressouse a
convocar mais uma conferência para examinar a questão cada vez mais
pestilencial. Parece ter tido a esperança de que ela seria desarmada
simplesmente com atrasos burocráticos e o andar pesado da maquinaria
administrativa. Para seu vexame, os participantes da conferência
demonstraram maior avidez do que se previa pelo polêmico combate.
Cada lado escolheu três defensores, e durante três dias, em presença do
papa e do sacro colégio, eles discutiram a questão com tão ardente
veemência que, apesar do inclemente clima invernal, ficaram banhados
de suor.15
Nenhuma das facções, porém, conseguiu extrair do Novo Testamento uma
única prova sobre a questão em disputa que continuou, em
consequência, sem solução. Por toda a cristandade, seguiu a
controvérsia entre dominicanos e franciscanos.
Um ano depois, no início de agosto de 1464, levado por impaciência e
exasperação nada pontificiais, o Papa publicou uma Bula. Segundo esse
texto, proibiase em caráter oficial toda discussão do incômodo tema,
até ser definitivamente decidido por um pronun78
OS INIMIGOS DOS FRADES NEGROS
ciamento da Santa Sé. Acontece que a Santa Sé não teve oportunidade de
emitir nenhum pronunciamento, porque o Papa morreu oito dias depois. Os
cardeais que haviam tratado da questão mais uma vez não chegaram a
qualquer acordo. O novo Papa deu um jeito de adiar indefinidamente a
continuação da disputa. Até onde sabem os autores deste livro, a
questão de ter o sangue derramado de Jesus ascendido ou não ao céu
permanece sem solução até hoje, e ainda paira sem resposta sobre o
Papado.
79
A Inquisição Espanhola
E
com a Espanha que mais se costuma associar a Inquisição. Na verdade,
porém, ela só ganhou sua dramática atividade ali
relativamente tarde. Quando o fez, além disso, foi pelo menos em alguns
aspectos uma instituição muito diferente da Inquisição em outras partes.
Mas as imagens populares não estão de todo erradas. Foi certamente na
Espanha que a Inquisição atingiu novas dimensões de intolerância,
perversidade e terror.
Durante o século 13, devese lembrar, a Espanha não era um país
unificado. Grande parte da Península Ibérica ainda se achava sob
controle de potentados muçulmanos. E mesmo a parte cristã da península
era dividida entre vários remos autônomos e nem sempre compatíveis.
Entre os principados cristãos que compreendiam a Península Ibérica, a
Inquisição se instalou primeiro em 1238, mas apenas em Aragão.
Inicialmente, atuou de maneira aleatória, ineficiente e próforma; e no
início do século 14 estava praticamente adormecida. Em outros domínios
em Castela, por exemplo, em Leão e Portugal a Inquisição nem sequer
apareceu até 1376, todo um século e meio após sua origem na França.
80
A INQUISIÇÃO ESPANHOLA
Em 1474, a mulher conhecida na história como Isabel de Castela ascendeu
ao trono de seu reino. Cinco anos depois, seu marido, Fernando,
tornouse rei deAragão. De 1479 em diante, assim, eles presidiram como
governantes conjuntos o que era em efeito um único reino unificado. Nos
anos que se seguiram, embarcaram num programa de âmbito e escala
imensamente ambiciosos. Empreenderam extirpar os últimos enclaves
mouros ou islâmicos de seus domínios iniciativa que culminou com a
tomada de Granada em 1492. E mergulharam num implacável programa de
purificação que antecipava a política nacionalsocialista do século 20
e a prática de "limpeza étnica" aplicada nos Bálcãs na década de 1990.
Sob Fernando e Isabel, a Espanha não ia ser só unida. Ia simultaneamente
ser "expurgada" de islamismo e judaísmo, além de paganismo e heresias
cristãs. Para isso, os monarcas espanhóis estabeleceram sua própria
Inquisição em 1478.
Nos mecanismos e operações "em todos os aspectos de
prisões,julgamento, procedimentos, confiscos, recrutamento de
pessoal a Inquisição espanhola emulou as de outras partes. Ao
contrário destas, porém, a espanhola não era um instrumento do Papado.
Prestava contas diretamente a Fernando e Isabel. Como os domínios dos
monarcas espanhóis compreendiam uma espécie de teocracia, com a Igreja e
o Estado atuando conjugados, a Inquisição espanhola era tanto um
adjunto da Coroa quanto da Igreja. Funcionava como um instrumento não
só de ortodoxia eclesiástica, mas também de política real. Falando aos
novos Inquisidores instalados em Aragão, disselhes Fernando:
Embora vós e os outros desfruteis do título de inquisidor, fomos eu e a
rainha que vos nomeamos, e sem nosso apoio muito pouco podeis fazer.2
81
A INQUISIÇÃO
Torquemada
A 10 de novembro de 1478, uma Bula do Papa Sixto IV autorizava a criação
de uma Inquisição única na Espanha. Dois ou talvez três padres de mais
de quarenta anos seriam nomeados Inquisidores. Confiouse o direito de
nomear e demitir não aos dominicanos nem a qualquer outra instituição
papal, mas aos monarcas espanhóis. A 27 de setembro de 1480, eles
nomearam dois dominicanos como Inquisidores. Estes começaram seu
trabalho no sul, nas vizinhanças do ainda mouro Reino de Granada. O
primeiro auto de fé se realizou a 6 de fevereiro de 1481, e seis
indivíduos foram queimados vivos na estaca. Só em Sevilha, no início de
novembro, as chamas ganharam mais 288 vítimas, enquanto setenta e nove
foram condenadas à prisão perpétua.
Quatro meses depois, em fevereiro de 1482, o Papa autorizou a nomeação
de mais sete dominicanos como Inquisidores. Um deles, prior de um
mosteiro em Segóvia, ia passar para a história como a própria
encarnação da face mais aterrorizante da Inquisição espanhola Tomás de
Torquemada. Nos três anos seguintes à sua nomeação, estabeleceramse
tribunais da Inquisição em outros quatro locais. Em 1492, tribunais
operavam em oito grandes cidades.
A essa altura, também, a Inquisição espanhola já desembestara. As queixas
haviam começado dez anos antes, poucos meses após a nomeação de
Torquemada. Em abril de 1482, respondendo a indignadas cartas de
bispos espanhóis, o Papa emitira uma Bula deplorando o fato de que
muitos autênticos e fiéis cristãos, com base testemunhos de inimigos,
rivais, escravos.., foram sem qualquer prova legítima metidos em prisões
seculares, torturados e condenados.., privados de seus haveres e
propriedades e entregues ao braço secular para ser executados...
causando desgosto a muitos.
82
A INQUISIÇÃO ESPANHOLA
No mesmo documento, o Papa concluía:
A Inquisição há algum tempo é movida não por zelo pela fé e a salvação
das almas, mas pelo desejo de riqueza.4
De acordo com essa conclusão, revogaram-se todos os poderes confiados à
Inquisição, e o Papa exigiu que os Inquisidores fossem postos sob o
controle de bispos locais. Essas medidas eram, claro, um flagrante
desafio à monarquia, e o Rei Fernando ficou indignado, como era de
prever. Fingindo duvidar que a Bula fora de fato composta pelo Papa,
ele enviou uma hipócrita carta ao pontífice. A missiva encerravase com
uma explícita ameaça: "Cuidado para que o assunto não vá mais adiante...
e confiainos o trato desta questão."5
Diante de tal desafio, o Papa capitulou completamente. A 17 de outubro
de 1483, uma nova Bula estabelecia um conselho, o Consejo de La Suprema
y General Inquisición, para funcionar como a autoridade última da
Inquisição. Para presidir esse conselho, La Suprema, criouse o novo
cargo de Inquisidor Geral. Seu primeiro ocupante foi Torquemada. Todos
os tribunais da Inquisição, em toda a Espanha cristã, achavam-se agora
efetivamente concentrados najurisdição de uma administração
centralizada, com Torquemada na chefia.
Nos quinze anos seguintes, até sua morte em 1498, Torquemada teve um
poder e influência que rivalizavam com os dos próprios Fernando e
Isabel. No que se referia à Inquisição, segundo um historiador, "ele
desenvolveu a nascente instituição com incansável aplicação.6 E o fez
de uma maneira cheia de zelo impiedoso, e com "implacável
fanatismo. Sua devoção ao papel levou-o a recusar o oferecido bispado
de Sevilha, e ele jamais abandonou o austero traje de dominicano em
favor do esplendor da moda em roupas. Era também rigorosamente
vegetariano. Mas
83
A INQUISIÇÃO
guardou para si consideráveis somas de riqueza confiscada, morava em
palácios extravagantes e viajava com um séquito calculado para ao mesmo
tempo impressionar e intimidar cinquenta guardas montados e 250
homens armados. Isso não afastava de todo sua paranóia. Quando jantava,
tinha sempre consigo um chifre de unicornio ,que supostamente servia
para protegê-lo de venenos embora não haja indício de como esse
quimérico talismã funcionava nem o que, exatamente, seu dono fazia com
ele. Em outros aspectos, era visivelmente um homem inteligente, um dos
supremos maquiavéis da época, dotado de profunda intuição psicológica e
da aptidão de um insidioso estadista. Em Os Irmãos Karamdzo vi, não se
dá ao Grande Inquisidor qualquer nome pessoal. Pouca dúvida pode haver,
porém, de que Dostoiévski pensou em Torquemada como protótipo. E, na
verdade, a descrição que faz do Grande Inquisidor é na certa um retrato
tão preciso de Torquemada quanto o feito por qualquer historiador ou
biógrafo. Certamente não é difícil imaginar Torquemada mandando
conscientemente Jesus para a estaca a fim de proteger a Inquisição e a
Igrej a.
Sob os inflexíveis auspícios de Torquemada, o trabalho da Inquisição
espanhola prosseguiu com renovada energia. A 25 de fevereiro de 1484,
trinta vítimas foram queimadas vivas ao mesmo tempo em Ciudad Réal.
Entre 1485 e 1501, foram queimadas 250 em Toledo. Em Barcelona, em 1491,
três foram executadas e 220 condenadas à morte in absentia. Em
Valiadolid, em 1492, trinta e duas foram imoladas de uma vez. O
inventário de atrocidades continua, e ocuparia páginas. A certa altura,
os dignitários de Barcelona escreveram ao Rei Fernando: "Estamos todos
arrasados com as notícias que recebemos das execuções e atos que dizem
estar tendo lugar em Castela."7 Em setembro de 1485, o Inquisidor.de
Saragoça foi assassinado quando rezava diante do altar principal na
84
A INQUISIÇÃO ESPANHOLA
catedral, mas isso apenas provocou uma nova onda de execuções em
represálias. A Inquisição não traficava apenas com a morte, porém. Em
1499, um ano depois que Torquemada morreu, o Inquisidor de Córdoba foi
condenado por extorsão e fraude. O sucessor seguiu indiferente os seus
passos, prendendo qualquer rico até membros de famílias pias cristãs
para confiscar e apropriar-se de suas propriedades.
Os Procedimentos da Inquisição
Em sua metodologia e técnicas, a Inquisição espanhola emulou a
Inquisição papal original do século 13. E aplicou sua metodologia e
técnicas de modo ainda mais severo e com mais cinismo ainda. Entre
si, pelo menos, os Inquisidores continham sua hipocrisia e falavam com
uma contundência que pouco combinava com a religião uma contundência
bastante digna da criação ficcional de Dostoiévski. Em 1578, por
exemplo, registrouse que um Inquisidor falou aos colegas, declarando:
Devemos lembrar que o objetivo principal dojulgamento e execução não
é salvar a alma do acusado, mas alcançar o bem público e impor medo aos
outros.
Na busca desse objetivo, a Inquisição espanhola, como sua antecessora
medieval, baixava numa cidadezinha ou aldeia a intervalos regulares
em 1517, por exemplo, a cada quatro meses embora essa frequência aos
poucos decrescesse, à medida que os Inquisidores ficavam preguiçosos,
acomodados, e relutavam em viajar. Ao chegarem a uma localidade, os
Inquisidores apresentavam suas credenciais às autoridades eclesiásticas
e civis locais. Proclamavase então um dia em que todos seriam
obrigados a assistir a uma missa especial, e ali ouvir o "édito" da
Inquisição lido em público. No dia designado, ao fim do sermão, o
Inquisidor erguia um crucifixo. Exigiase que os presentes erguessem a
mão direita,
85
se persignassem e repetissem um juramento de apoio à Inquisição e
seus servos. Após essas preliminares, liase solenemente o édito, que
condenava várias heresias, além do Islã e o judaísmo, e mandava
apresentar-se todos que pudessem ser culpados de contaminação. Se
confessassem dentro de um período de graça estipulado em geral de
trinta a quarenta dias, embqra, por ficar a critério da Inquisição,
muitas vezes fosse menos poderiam ser aceitos de volta na igreja sem
qualquer penitência indevidamente seria. Eram obrigados, porém, a
denunciar quaisquer pessoas culpadas que não se houvessem apresentado.
Na verdade, esse era um requisito crucial para poder escapar sem nada
mais severo que uma penitencia.
Denunciar-se como herege não bastava para beneficiar-se dos termos do
édito. Era também necessário denunciar todos os cúmplices que
partilhavam o erro ou haviam levado a pessoa a ele.9
É fácil ver como funcionava o mecanismo psicológico envolvido nesse
processo. Na Espanha como em outras partes, as pessoas valiam-se do
aparato da Inquisição para acertar velhas contas, tirar vingança
pessoal de vizinhos ou parentes, eliminar rivais nos negócios ou no
comércio. Qualquer um podia denunciar outros, e o ônus dajustificação
ficava com o acusado. As pessoas começaram cada vez mais a temer os
vizinhos, parceiros ou concorrentes profissionais, qualquer um com quem
pudessem ter um atrito, qualquer um que houvessem alienado ou
antagonizado. A fim de adiantar-se a uma denúncia de outros, as pessoas
muitas vezes prestavam falso testemunho contra si mesmas. Não era raro
que partes inteiras de uma comunidade confessassem em massa,
prendendose assim com grilhões de paranóia e medo ao controle da
Inquisição.
86 A INQUISIÇAO
A INQUISIÇÃO ESPANHOLA
Em fins do século 15, quando se leu pela primeira vez o édito da
Inquisição em Mallorca, 337 indivíduos se denunciaram. Em 1486, em
Toledo, 2.400 fizeram o mesmo. Mas as pessoas ainda viviam em terror
dos rivais no comércio, vizinhos, até dos próprios parentes. "As
denúncias mesquinhas eram mais a regra que a exceção."10 Em Castela,
na década de 1480, dizse que mais 1.500 vítimas foram queimadas na
estaca em consequência de falso testemunho, muitas incapazes sequer de
determinar a origem da acusação contra elas. As testemunhas das
investigações da Inquisição eram mantidas no anonimato, e seus
depoimentos arrumados para eliminação de quaisquer pontos que traíssem
sua identidade. A Inquisição, assim, extraía energia e ímpeto da
própria populaça que perseguia. Seu poder vinha de uma gritante
exploração dos mais fracos e venais aspectos da natureza humana.
Em teoria, cada caso devia ser examinado por um conclave de teólogos
os Inquisidores visitantes e pelo menos um assessor local. Só se se
julgasse suficientemente válida a prova deviase prender o acusado. Na
prática, porém, muita gente era presa antes mesmo da avaliação de seus
casos. As prisões da Inquisição viviam abarrotadas de presos, grande
número dos quais ainda não tivera nenhuma acusação feita contra eles.
Podiam ficar encarcerados durante anos, sem ao menos saber a
transgressão de que se dizia que eram culpados.
Enquanto isso, eles e suas famílias eram privados de toda propriedade,
pois a prisão era invariavelmente seguida do imediato confisco de todos
os pertences do acusado tudo, desde a casa até os pratos e panelas. E
enquanto o homem definhava na prisão, ainda sem nenhuma acusação feita,
suas posses eram vendidas para pagar sua manutenção em cativeiro. De
vez em quando, acabava sendo libertado, só para se ver falido ou na
miséria. E houve casos de filhos de prisioneiros ricos morrendo de fome
em consequência do sequestro
87
de sua propriedade. Só em 1561 as regras foram ligeiramente
modificadas, para permitir o sustento de dependentes, pelo menos em
parte, com o produto da venda dos bens confiscados.
Cada tribunal das vinte e uma4sedes provinciais da Inquisição tinha sua
própria prisão, localizada em seu palácio oficial. Em geral,
mantinham-se os presos acorrentados em confinamento solitário, e não
lhes permitiam qualquer contato com o mundo lá fora. Se fossem
libertados, exigiase que "fizessem um juramento de não revelar nadado
que haviam visto ou passado nas celas. Não surpreende que muitas
vítimas enlouquecessem, morressem ou se suicidassem quando podiam. E no
entanto, paradoxalmente, as prisões da Inquisição muitas vezes eram
consideradas preferíveis às das autoridades seculares. Havia casos de
criminosos comuns que confessavam heresia, a fim de fazerse
transferir de uma prisão secular para uma da Inquisição.
Nas sessões de investigação e interrogatório da Inquisição, havia sempre
um escrivão e secretário, junto com os Inquisidores, um representante do
bispo local, um médico e o próprio torturador, em geral o carrasco
secular público. Tudo era anotado meticulosamente as perguntas
feitas, as respostas e reações do acusado. A Inquisição espanhola, como
sua antecessora medieval, usava altissonante retórica e hipocrisia para
mascarar ejustificar a impa- latável realidade da tortura. As
instruções da Inquisição em 1561 estipulavam que se devia aplicar a
tortura de acordo com
a consciência e vontade dos juízes designados, segundo a lei, a razão e
a boa consciencia. Os Jnquisidores devem tomar muito cuidado para que se
justifique e siga precedentes a sentença de tortura.12
Para a Inquisição espanhola, como para sua precursora medieval, uma
confissão extraída nas vascas da tortura não era em si con
A INQUISJÇAO
A INQUISIÇÃO ESPANHOLA
siderada válida. Os Inquisidores reconheciam que o indivíduo submetido a
dor extrema podia ser convencido a dizer qualquer coisa. Em
consequência, o acusado era obrigado a confirmar e ratificar sua
confissão um dia depois, para que ela fosse rotulada de espontânea e
voluntária, apresentada sem coação. Sob a Inquisição espanhola, como
sob sua antecessora medieval, a vítima só devia ser torturada uma vez. E
como seus antecessores em outras partes, os Inquisidores espanhóis
contornavam essa restrição descrevendo o fim de cada sessão de tortura
como simples "suspensão". Assim, podiase dizer que uma vítima só fora
torturada na verdade uma vez, mesmo que essa "única" tortura incluísse
muitas sessões e suspensões que se estendiam por um considerável
período de tempo. E, claro, a vítima era privada da esperança de que o
fim de qualquer sessão assinalasse o fim de sua provação.
Qualquer que fosse a sádica satisfação extraída pelos Inquisidores,
devese acentuar que o objetivo básico deles era menos arrancar uma
confissão de uma vítima individual que obter prova com as quais
consolidar seu controle sobre a populaça como um todo. Esperavase que o
acusado não apenas confessasse suas próprias transgressões, mas também
apresentasse provas, por mais tênues que fossem, com as quais incriminar
outros. Dificilmente surpreende que indivíduos na angústia da tortura
apresentassem qualquer nome que lhes viesse à cabeça o que seus
atormentadores quisessem ouvir.
Em 1518, La Suprema, o conselho governante da Inquisição espanhola,
decidiu que a tortura não devia ser automática nem rotineira. Em teoria
pelo menos, sua aplicação seria determinada em cada caso específico por
um voto do tribunal local. Na prática, isso fez pouca diferença, uma vez
que cada tribunal local podia aprovar a tortura automática e
rotineiramente em cada caso que julgasse. Quando um tribunal votava pela
aplicação da tortura, o
89
A INQUISIÇÃO
acusado era levado a uma câmara de audiência, com a presença de
Inquisidores e representantes eclesiásticos locais. Anunciavamlhe o
resultado da votação e davamlhe mais uma oportunidade de confessar. Se
ele ainda se reçusasse a fazêlo, liase para ele a sentença formal de
tortura.
A sentença recitava que, em vista de suspeitas levantadas contra ele
pelas provas, condenavam-no a ser torturado pela medida de tempo que
julgassem adequada, para que falasse a verdade... protestando que, sena
tortura ele morresse ou sofresse efusão dc sangue ou mutilação, isso não
seria atribuído a eles, mas ele, por não falar a verdade)3
Nessa atenuação no tempo necessário para executá-la o ritual já
consistia uma tortura psicológica em si. Intensificavase isso, em cada
estágio dos procedimentos posteriores, com outras delongas, outros
períodos de espera. A expectativa da agonia às vezes produzia
resultados tão efetivos quanto a própria agonia.
Os Inquisidores na Espanha, como seus antecessores medievais,
esforçavam-se por evitar deliberado derramamento de sangue, e eram
proibidos de realizar eles próprios execuções. Idealizavam-se os
métodos de tortura de modo a adequar-se às restrições prevalecentes. Na
Espanha, favoreciam-se três em particular. Havia a toca, ou tortura
pela água, na qual se forçava água pela goela da vítima abaixo. Havia o
potro, onde a vítima era amarrada num ecúleo com cordas apertadas, que
podiam ser apertadas mais ainda pelo torturador. E havia a garrucha, ou
polia, versão espanhola do strappado italiano. Nesse procedimento,
amarravam-se as mãos da vítima às costas e depois a penduravam pelos
pulsos numa polia no teto, com pesos amarrados nos pés. Levantavam-na
muito devagar, para maximizar a dor, depois baixavam-na alguns pés, com
uma brusquidão e violência que deslocavam os membros. Não sur
A INQUISIÇÃO ESPANHOLA
preende que muitas vítimas ficassem permanentemente aleijadas, ou com a
saúde cronicamente prejudicada. Não era raro, claro, que viesse a morte.
Se vinha, julgavase que fora incidental, mais uma infeliz
concomitante ou subproduto da tortura que uma consequência direta dela.
Mais tarde, na carreira da Inquisição espanhola, entraram em uso outras
técnicas. A vítima podia ser amarrada a um ecúleo, por exemplo, com
cordas que eram progressivamente apertadas até entrarem nos ossos. E
havia inúmeros outros refinamentos, obscenos demais para ser
transcritos. Tudo que as depravadas imaginações dos Inquisidores
idealizavam acabava sendo sancionado. Um regulamento de 1561 declara que
diante da diferença em força corporal e mental entre os homens.., não se
podem estabelecer regras certas, mas deixar ao critério dos juízes,
governados pela lei, razão e consciência.14
Não surpreende que às vezes houvesse grandes problemas para encontrar
indivíduos dispostos a cumprir os caprichos dos Inquisidores e aplicar a
tortura. Sempre que possível, coagiase o carrasco público do município
a fazer o trabalho. Em fins do século X7, pagavamlhe quatro ducados
por cada sessão de tortura o equivalente a meia onça de ouro, valendo
em torno de 90 libras em moeda atual. O trabalho que ele realizava por
essa paga, desnecessário dizer, não ajudava a torná-lo querido dos
vizinhos. Um édito de 1524 proibia o torturador de usar máscara ou
cobrir-se com um lençol. Posteriormente, como concessão, permitiramse
capuz e mudança de trajes. No século X7, disfarces completos, que
incluíam máscaras, foram de novo permitidos ao torturador, se "se
julgasse melhor que ele não fosse reconhecido.
Reservavase a pena de morte basicamente para os hereges não
arrependidos, e para os que haviam recaído após a conversão nomi
A INQUISIÇÃO
nal ao catolicismo. Como logo se verá, reservavam-na com mais frequência
aos judeus os praticantes e os suspeitos de retornarem à sua fé após
terem ostensivamente abraçado a Cruz. Como a precursora medieval, a
Inquisição espanhola entregava o condenado às autoridades seculares,
para execução. Se ele se arrependesse nos últimos momentos na estaca,
era piedosamente estrangulado antes de acenderem a fogueira. Se não,
era queimado vivo.
O Antisemitismo e a Inquisição
Em metodologia, técnicas e procedimentos, a Inquisição espanhola copiou
de perto sua precursora medieval. Diferia por não prestar contas ao
Papado, mas diretamente à Coroa espanhola. E em outros aspectos
importantes também. Os alvos primários da Inquisição medieval na França
e Itália haviam sido hereges cristãos, como os cátaros, waldenses e os
Fraticelli, ou supostos hereges, como os Cavaleiros Templários. O alvo
primário da Inquisição espanhola seria a população judaica da Península
Ibérica. Na virulência e natureza sistemática de suas atividades, a
Inquisição na Espanha ia antecipar a patologia do nazismo do século 20.
No meio do século 14, mais de cem anos antes da criação da Inquisição
espanhola, Castela fora devastada pela guerra civil. As duas facções
haviam procurado um bode expiatório e encontraram-no na comunidade
judaica particularmente numerosa na Espanha, graças à louvável
tolerância dos regimes islâmicos anteriores. Seguiram-se pogroms, e as
chamas foram ainda mais atiçadas por zelosos pregadores cristãos. A
violência foise intensificando até atingir um clímaxem , com o
assassinato de centenas, talvez milhares, de judeus.
Na última década do século 14, muitas famílias judias na Espanha,
intimidadas pela perseguição contra elas dirigida, haviam
92
A INQUISIÇÃO ESPANHOLA
renunciado à sua fé e abraçado o cristianismo. Tornaram-se conhecidos
como conversos. Em muitos casos, porém, a natureza forçada da
conversão era bastante conhecida; e supunhase em geral que eles
continuavam a aderir às ocultas à fé original. Sem
dúvida, muitos o faziam; mas a maioria parece ter-se tornado
simplesmente cristãos mornos, como antes haviam sido judeus mornos. De
qualquer modo, e qualquer que fosse a sinceridade de seu catolicismo,
as famílias de conversos invariavelmente provocavam suspeita e
desconfiança, e continuaram sendo visadas pelos antisemitas.
Reservavase a maior antipatia aos chamados judaizantes conversos
suspeitos de continuarem praticandojudaísmo em segredo, ou, pior ainda,
levando judeus cristianizados de volta ao judaísmo.
Apesar do preconceito que as cercava, muitas famílias de conversos
prosperaram. Nos anos seguintes, várias delas iam galgar posições de
destaque na administração real, na burocracia civil e até mesmo na
Igreja. Em 1390, por exemplo, o rabino de Burgos converteuse ao
catolicismo. Terminou a vida como Bispo de Burgos, legado papal e tutor
de um príncipe de sangue real. Não foi o único. Em algumas das grandes
cidades, a administração era dominada por conversos. Na época mesma
em que se formava a Inquisição, o tesoureiro do Rei Fernando tinha
origens conversas. Em Aragão, os cinco mais altos postos
administrativos no reino eram ocupados por conversos. Em Castela,
havia pelo menos quatro bispos conversos. Três dos secretários da
Rainha Isabel eram conversos, como o era o cronista oficial da corte.
Um dos tios do próprio Torquemada era um converso. Até mesmo Santa
Teresa, tão amada depois por seu patológico catolicismo, não era
imaculada. Em 1485, seu avô fora obrigado a cumprir penitência por
havér mantido práticas judaicas um indício de que a futura santa tinha
ela própria ancestralidade judaica.
93
A INQUISIÇÃO
No todo, os conversos e suas famílias tendiam a estar entre as pessoas
mais instruídas da Espanha. Quando galgavam posições de destaque, também
tendiam a tornar-se algumas das mais ricas. Talvez inevitavelmente,
esse status social e econômico provocava
inveja e ressentimento entre os vizinhos. Ia também exacerbar a
hostilidade da Inquisição.
Desde o momento de sua criação, a Inquisição espanhola lançara olhos
cobiçosos sobre a riqueza judia. Também encarava os próprios judeus com
implacável antipatia, simplesmente porque ficavam fora de suajurisdição
legal oficial. Segundo a crença original, os Inquisidores eram
autorizados a tratar de hereges isto é, cristãos que se haviam
desviado das formulações ortodoxas da fé. Não tinham poder, porém, sobre
os adeptos de religiões inteiramente diferentes, como osjudeus e
muçulmanos. A Espanha tinha grandes comunidadesjudaica e islâmica. Em
consequência, considerável parte da população continuava livre do
controle da Inquisição; e para uma instituição que buscava exercer
total controle, essa situação era julgada intolerável.
O primeiro passo da Inquisição foi agir contra os chamados
judaizantes. O "converso" que retornava aojudaísmo após haver abraçado
o cristianismo podia ser convenientemente rotulado de herege. Por
extensão, também podia qualquer um que o estimulasse na heresia e
essa transgressão podia ser mais ampliada ainda e incluir, por
implicação, todos os judeus. Mas a Inquisição ainda estava em
desvantagem, porque tinha de apresentar ou fabricar provas para cada
caso que buscava processar; e isso nem sempre era fácil.
A Inquisição endossou com entusiasmo o virulento antisemitismo já
promulgado por um notório pregador, Alonso de Espina, que odiava
igualmente judeus e conversos. Mobilizando apoio popular, Alonso
defendera a completa extirpação do judaísmo da
94
A INQUISIÇÃO ESPANHOLA
Espanha por expulsão ou extermínio. Adotando o programa dele, a
Inquisição embarcou em sua própria e constante propaganda antisemita,
usando técnicas que iriam ser adotadas uns quatro e meio séculos
depois por Josef Goebbels. Reiteravam-se e
repetiam-se acusações revoltantes, por exemplo, com o conhecimento de
que acabariam por ser aceitas como válidas. Citando o antisemitismo que
ela própria dera umjeito de provocar na populaçao, a Inquisição dirigiu
petição à Coroa para adotar medidas apropriadas. A proposta de
expulsar todos osjudeus da Espanha veio diretamente da Inquisição. O
texto defendendo a proposta foi descrito por um historiador como um
"feroz documento, que "recende a virulento antisemitismo.
O Rei Fernando reconheceu que a perseguição dos judeus e conversos
teria inevitavelmente repercussões econômicas adversas para o país. Nem
ele nem a Rainha Isabel, porém, puderam resistir à combinada pressão
da Inquisição e do sentimento popular que ela invocara. Numa carta a
seus mais influentes nobres e cortesãos, escreveu o rei:
O Santo Ofício da Inquisição, vendo que alguns cristãos são postos em
perigo pelo contato e comunicação com osjudeus, estipulou que osjudeus
sejam expulsos de todos os nossos remos e territórios, e convenceunos
a dar nosso apoio e concordância a isso... fazemo-lo com grande dano
para nós, buscando e preferindo a salvação de nossas almas acima do
nosso proveito...17
A 10 de janeiro de 1483, os monarcas escreveram para apaziguar a
Inquisição na Andaluzia, anunciando que todos os judeus moradores da
região deviam ser expulsos. A 12 de maio de 1486, todos osjudeus foram
enxotados de grandes partes de Aragão. Mas a expulsão em peso teve de
ser adiada por enquanto, porque se precisava urgentemente de dinheiro
e de outras formas de apoio dos
95
A INQUISIÇÃO
judeus e "conversos para a campanha em andamento contra os muçulmanos,
empurrados para trás em seu cada vez mais reduzido Reino de Granada.
Existem indícios que sugerem um acordo clandestino concluído entre
'Ibrquemada, representando a Inquisição, e a Coroa espanhola.
Torquemada parece ter aceito o adiamento pela Coroa da expulsão de
todos os judeus da Espanha até que o Reino muçulmano de Granada fosse
final e definitivamente conquistado. Em outras palavras, osjudeus não
seriam molestados em algumas áreas enquanto se precisasse de seus
recursos. Nesse meio tempo, a Inquisição passou a preparar o terreno
para o que viria a seguir. Assim surgiu o notório caso da Santa
Criança de La Guardia, uma fabricação mais crassa que qualquer outra
perpetrada em nosso século por Hitler ou Stalin.
A 14 de novembro de 1491, duas semanas antes da queda de Granada, cinco
judeus e seis conversos foram mandados para a estaca em Avila. Haviam
sido condenados por profanarem a hóstia. E também por haverem
crucificado uma criança cristã, cujo coração supostamente arrancaram. O
objetivo desse pavoroso serviço fora, diziase, realizar um ritual
mágico para neutralizar o poder da Inquisição e mandar todos os cristãos
"loucos varridos para a morte. A Inquisição deu constante publicidade
ao caso em toda a cidade de Castela e Aragão, açulando até o auge o
frenesi antisemita.
Uma quinzena depois, Granada capitulou, e o último enclave islâmico na
Espanha deixou de existir. Três meses depois, em março do ano seguinte,
um édito real ordenava que todos osjudeus da Espanha se convertessem ou
fossem expulsos. Os que não fizeram nenhuma dessas coisas tornaramse
presa fácil para a Inquisição. Como disse Carlos Fuentes, a Espanha,
em 1492, baniu a sen
A INQUISIÇÃO ESPANHOLA
sualidade com os mouros, a inteligência com os judeus, e ficou estéril
durante os cinco séculos seguintes.
Mesmo antes da expulsão final, porém, os judeus e conversos já haviam
se tornado presas da Inquisição espanhola em números muito maiores que
os hereges. Após 1492, a perseguição apenas se intensificou, reforçada
por uma nova aparência de legalidade e legitimidade. De todos
osjulgados pela Inquisição em Barcelona, entre 1488 e 1505, ,3 pro
cento eramjudeus ou conversos. Estes representavam ,6 por cento de
todos os casosjulgados pela Inquisição em Valencia entre 1484 e 1530.
Como observa um historiador:
O tribunal, em outras palavras, não se interessava pela heresia em
geral. Interessavase apenas por uma forma de desvio religioso: a
aparentemente prática secreta de ritos judaicos.19
O Fim da Inquisição
Com ferocidade em nada reduzida, a Inquisição espanhola realizou seu
trabalho por mais de 200 anos. Na Inglaterra, o reino de Guilherme e
Maria foi seguido pelo de Ana, depois pelo dos banoverianos. O país
logo seria integrado com a Escócia como Reino Unido da GrãBretanha, e
embarcaria na "alta civilização" da Era Augusta. Na França,já se
chegara a um zênite de realizações culturais sob Luís 14, o Rei Sol,
que, apesar de velho, ainda presidia a corte raffiné de Versalhes. Na
Espanha, o século X7 encerrouse com um holocausto de conversos
A Guerra da Sucessão espanhola 1704-15 confirmou a mudança de
dinastia causada quando, em 1701, o Bourbon Filipe V ascendeu ao trono
antes ocupado pelos Habsburgos. Pareceu haver uma passageira
perspectiva de esclarecimento quando o novo
97
A INQUISIÇÃO
monarca se recusou a assistir a um auto defé realizado em sua honra.
Pouco depois, porém, a Inquisição reafirmou seu domínio na sociedade
espanhola, e retomouse a severidade dos dois séculos anteriores. Uma
nova onda de repressão ocorreu no início da década de 1720.
Para algumas das vítimas visadas pela Inquisição, havia agora pelo menos
uma espécie de refúgio. Em 1704, durante a Guerra da Sucessão espanhola,
uma frota armada britânica sob o Almirante Sir George Rooke lançara uma
das primeiras operações anfíbias dos tempos modernos e tomara o bastião
de Gibraltar. Em 1713, a Espanha cedeu formalmente Rocha" à
GrãBretanha com a condição de "que, em nenhuma hipótese, se permita
quejudeus e muçulmanos vivam ou residam na dita cidade de Gibraltar.
Para frustração da Inquisição, não se fez qualquer tentativa de observar
a condição espanhola. A comunidade judia em Gibraltar cresceu
rapidamente, e, em 1717, possuía sua própria sinagoga.
Após 1730, o poder e a influência da Inquisição espanhola começaram a
diminuir perceptivelmente. Não havia escassez de vítimas em perspectiva,
mas a Espanha não podia permanecer inteiramente isolada da tolerância
que passava a predominar em outras partes da Europa. E os funcionários
da Inquisição, como observou um comentarista, tornavam-se indiferentes
e descuidados, a não ser na questão de retirar seus salários. Entre
1740 e 1794, o tribunal de Toledo julgou apenas um caso por ano em
média.
Durante a Revolução Francesa, a Inquisição espanhola caiu em virtual
inércia, acovardada pelos alarmantes acontecimentos anticlericais pouco
além dos Pireneus. Havia de fato base para apreensão. Em 1808, um
exército francês sob o subordinado de Napoleão, MarechalJoachim Murat,
entrou na Espanha e ocupou o pais. A dinastia Bourbon foi deposta e o
irmão de Napoleão,Joseph, instalado como rei. Segundo o tratado que e
seguiu, a religião católica
98
A INQUISIÇÃO ESPANHOLA
seria tolerada como qualquer outra. Embora insatisfeita, a Inquisição
imaginouse salva; e com base nessa suposição endossou o novo regime.
Alguns Inquisidores, no entanto, revelaram-se incapazes de conter o
zelo de mais de três séculos. Com urna imprudência comovedoramente
ingênua, prenderam o secretário de Murat, um estudioso dos clássicos e
autoproclamado revolucionário ateu. Murat prontamente despachou tropas
para libertar o homem pela força. A 4 de dezembro de 1808, o próprio
Napoleão chegava a Madri. Nesse mesmo dia, emitiu um decreto abolindo a
Inquisição e confiscando todas as suas propriedades.
Em áreas do país distantes da autoridade francesa, tribunais provinciais
continuaram a atuar, desafiando o édito de Napoleão, durante toda a
Guerra Peninsular (180814). O apoio a eles, porém, se esvaía. Sofriam
oposição não apenas do regime napoleônico, mas também do exército
britânico sob o futuro Duque de Wellington, então empenhado em arrancar
a Península Ibérica da França imperial. Até mesmo as forças espanholas
aliadas ao exército de Wellington realistas e católicos espanhóis
decididos a restaurar a monarquia Bourbon eram hostis à Inquisição.
Em 1813, quando a reconquista da Espanha por Wellington se aproximava
da conclusão, os aliados espanhóis ecoaram os adversários franceses ao
decretarem formalmente abolida a Inquisição.
A21 dejulho de 1814,0 Bourbon Fernando 7 foi restaurado ao trono
espanhol. Com ele, restaurouse nominalmente a Inquisição; mas elajá
perdera a maioria de seus arquivos e documentos nos anos anteriores, e
só podia trabalhar da maneira mais próforma. O último processo de um
judeu na Espanha ocorreu em Córdoba em 1818. Embora o antisemitismo
fosse permanecer disseminado no país, não podia ser mais orquestrado
pela Inquisição, que fora efetivamente neutralizada. Em 1820, o povo de
cidades como Barcelona e Valencia saqueou as instalações da Inquisição e
99
roubou seus arquivos cujos papéis foram entregues a fabricantes de
fogos de artifício e acabaram como componentes de foguetes. Finalmente,
a 15 dejulho de 1834, um decreto de supressão formal final levou a
Inquisição ao seujim. Durara três séculos e meio, e deixara a Espanha
num estado do qual só agora começa a se recuperar.
100 A INQUISIÇAO
5 Salvando o Novo Mundo
O
ndeos exploradores, conquistadores, soldados e colonos espanhóis
puseram o pé, logo os seguiram missionários
espanhóis. Onde os missionários puseram o pé e plantaram suas cruzes,
logo os seguiu a Inquisição. Além de seus quatorze grandes tribunais na
Península Ibérica, havia um em cada uma das possessões espanholas no
exterior nas Ilhas Canárias, em Mallorca, na Sardenha e na Sicília,
que na época eram governadas por vicereis espanhóis. Em 1492, ano em
que os muçulmanos ejudeus foram definitivamente expulsos da Espanha,
Cristóvão Colombo desembarcava nas Índias Ocidentais. Começou então a
conquista das Américas; e a Inquisição se apressou a aproveitar-se das
oportunidades oferecidas pelo Novo Mundo.
Como na Espanha, a missão oficial da Inquisição era caçar e punir a
heresia, para assegurar a "pureza" da fé católica. Os índios encontrados
no Novo Mundo nada sabiam, claro, do cristianismo. Não podiam ser
acusados de heresia de desviar-se da fé porque nada tinham da fé de
que desviarse. Em consequência, foram declarados imunes à ação da
Inquisição a menos que houvessem sido convertidos ao cristianismo e
retornado depois às suas crenças
101
A INQUISIÇÃO
e práticas anteriores. Logo ficou claro, no entanto, que punir índios
que se convertiam e depois recaíam, na verdade dissuadia outros de se
converterem. Essa situação ameaçou pôr a Inquisição contra os
missionários, para quem a salvação de almas gentias era o principal.
A Inquisição foi obrigada a ceder. Fez isso mais ou menos
voluntariamente, uma vez que a perseguição aos índios produzia pouco
ganho em bens e propriedades confiscados, por exemplo, ou em
denúncias. Todos os índios foram portanto postos fora da alçada e
jurisdição da Inquisição.
Em vista da relativa escassez dejudeus, muçulmanos e hereges
classificáveis no Novo Mundo, a Inquisição às vezes se via pressionada
a encontrar uma razão d'être para si. Encontrou uma solução parcial
para esse problema na burocracia e papelada que proliferava. Os
Inquisidores escreviam despachos para a Espanha numa base quase diária,
resumindo acontecimentos e atividades, informando as minúcias da vida
em redor, atuando na verdade como diaristas, cronistas e operadores de
uma complicada rede de vigilância digna de uma polícia secreta ou
agência de espionagem modernas. O acúmulo de papel foi imensoiSó os
arquivos em Madri hoje têm mais de 1 mil manuscritos e 4 mil maços de
páginas soltas, todos sistematicamente organizados. Os documentos dos
tribunais chegam a mais ou menos uma centena de volumes, cada um de mil
páginas.
Isso não quer dizer que a Inquisição no Novo Mundo não podia encontrar
indivíduos para perseguir, levar a julgamento e, muitas vezes, queimar.
Mas aproximadamente 60 por cento dos julgamentos feitos na América do
Sul e Central foram por ofensas menores, como uma ou outra blasfêmia,
transgressão sexual ou manifestação de superstição. A maioria dos
restantes foi de supostos judaizantes, além de cristãos suspeitos de
fazer experiências com rituais índios ou praticar alquimia, astrologia,
cabala e outras
102
SALVANDO O NOVO MUNDO
formas de pensamento heterodoxo ou esotérico. E os Inquisidores no Novo
Mundo também podiam assar em suas fogueiras uma forma de petisco não
facilmente acessível a seus colegas na Espanha
isto é, os protestantes. Estes, claro, eram encarados como os mais
perniciosos e perigosos de todos os hereges. Não eram uma espécie
desconhecida na Espanha. Nos oceanos e águas costeiras das Américas,
porém, podiam ser encontrados com crescente frequência, muitas vezes na
forma de piratas e corsários ingleses ou holandeses. Suas atividades
nessas ocupações tornavam-nos tanto mais desejáveis como candidatos à
estaca.
O Tribunal do México
Os primeiros missionários foram enviados para as Índias Ocidentais em
1500, oito anos depois do desembarque de Colombo. O primeiro bispo
chegou por volta de 1519 ou 1520, exatamente quando Hernán Cortés
iniciava a conquista do México. Em 1519, também dois Inquisidores foram
nomeados. Um deles morreu antes de seu navio partir. O substituto só
foi nomeado em 1524. O novo Inquisidor seguiu para o México, a essa
altura inteiramente dominado. Ali, encontrou um herege para queimar e
voltou logo para a Espanha. Três anos depois, em 1527, foram nomeados
os primeiros bispos do México, com autorização para atuar eles próprios
como Inquisidores.
A Inquisição só estabeleceu seu próprio tribunal no México em 1570.
Fê-lo na Cidade do México e imediatamente tomou dos bispos locais toda
jurisdição sobre heresia. O primeiro auto defé realizouse a 28 de
fevereiro de 1574. Duas semanas antes, o fato foi anunciado por uma
elaborada fanfarra de trombetas e tambores. O caso foi elevado ao
status de grande espetáculo, com assentos em estilo estádio erguidos
para as autoridades e suas famílias, e dignitá103
A INQUISIÇÃO
rios provinciais convidados à cidade para a ocasião. Os setenta e quatro
prisioneiros levados a julgamento eram em grande parte protestantes.
Trinta e seis deles, ingleses remanescentes da tripulação de SirJohn
Hawkins, capturada seis anos antes. Na conclusão dosjulgamentos, foram
queimados na estaca quatro protestantes, dois ingleses, um irlandês e
um francês.
O ponto alto da Inquisição no México veio com o Grande Auto de 11 de
abril de 1649. Visou especificamente aos cristãos novos termo
hispanoamericano para convertidos judeus, ou conversos que
dominavam o comércio entre a Espanha e suas colônias quase ao ponto do
monopólio. As provas contra esses indivíduos eram bastante tênues. Mas
a Inquisição cobiçava o dinheiro e a propriedade deles; e tinha ainda
mais latitude para processos espúrios no Novo Mundo que na Espanha.
O "Grande Auto" de 1649 foi um espetáculo ainda maior que o anterior, de
1574. Como este, foi anunciado de antemão por desfiles solenes de
trombetas e tambores por todo o México. As multidões começaram a
chegar à Cidade do México duas semanas antes do acontecimento, alguns de
quase mil quilômetros de distância. Na tarde anterior aos julgamentos,
organizouse um extraordinário desfile. Linhas duplas de opulentas
carruagens atravessaram as ruas da capital, conduzindo nobres e
notáveis. Em destaque, à testa da parada, ia o estandarte da
Inquisição. Ao chegarem à praça onde se realizaria o auto de fé, muitos
espectadores permaneceram em suas carruagens a noite toda, para não
perder os lugares ou a visão dos acontecimentos.
No todo, iam serjulgados 109 prisioneiros representando, diziase, "a
maior parte do comércio do México. Todos tiveram suas propriedades e
outros bens confiscados, e nada foi devolvido, nem mesmo aos depois
reconciliados com a Igreja após as penitências exigidas. Vinte
indivíduos foram queimados em efígie, pois
104
SALVANDO O NOVO MUNDO
alguns haviam escapado da prisão, outros morrido sob tortura e dois se
suicidado. Dos prisioneiros presentes em pessoa, treze foram
sentenciados à estaca; mas após arrependerem-se no último instante e
reconciliarem-se com a Igreja, concedeuse a doze a misericórdia de ser
garroteados antes que as chamas os alcançassem. Só um homem, um certo
Tomás Trevifio, foi de fato queimado vivo. Negara antes a acusação de
que erajudeu clandestino. Na noite anterior à execução, porém, soubera
da condenação e proclamara abertamente seu judaísmo, declarando a
intenção de morrer na verdadeira fé.
Para silenciar o que era qualificado de suas blasfêmias, levaram-no
para o auto amordaçado, a despeito do que, ele fez audível afirmação de
sua fé e de seu desprezo pelo cristianismo.1
Na estaca, continuou desafiador.
Impávido até o fim, puxava os tições em brasa para si com os pés e suas
últimas palavras audíveis foram: Ponham mais lenha; o quanto me custa o
meu dinheiro.2
O Grande Auto de 1649 reflete a Inquisição no México em seu auge. No
todo, porém, as imolações em qualquer coisa mesmo próxima dessa escala
foram raras. Na maior parte, a Inquisição no México ocupouse em
amealhar riqueza, administrar e lucrar com os bens e propriedades que
confiscou. Não raro, fabricava acusações contra indivíduos com o único
objetivo de obter seus bens e propriedades quejamais eram devolvidos,
mesmo sendo o acusado inocentado. Nos anos imediatamente antes do
Grande Auto de 1649, confiscouse o equivalente a 270 mil pesos de
recursos. Os confiscos do próprio Grande Auto trouxeram um total de 3
milhões de pesos. Em dinheiro de hoje, essa soma era o equivalente
105
A INQUISIÇÃO
a uns 30 milhões de libras esterlinas, e seu poder de compra, na época,
significativamente maior. No século 18, a moedajá fora dramaticamente
desvalorizada. Mesmo então, no entanto, custou 12 mil 600 pesos a
reconstrução do palácio da Inquisição em Carta i
gena, após sua destruição por canhões britânicos. Na época do
Grande Auto, portanto, 3 milhões de pesos teriam bastado para
construir mais de 238 grandes prédios municipais. Entre 1646 e 1649, a
Inquisição obteve renda suficiente com seus confiscos para se manter
por 327 anos. E a renda não incluía um estipêndio anual de 10 mil pesos
recebidos da Coroa espanhola.
Após o "Grande Auto" de 1649, a Inquisição no México tornouse cada vez
mais acomodada, satisfeita em repousar sobre sua riqueza. Àquela altura,
recebia uma renda imensa, pela qual muito pouco tinha de fazer. Entre
seus principais problemas, estava o dos padres considerados culpados de
transgressões scxuais, como seduzir mulheres no confessionário. Os
réus desse tipo raras vezes eram queimados, no entanto, sendo
sentenciados a penitências de variada severidade. Em 1702, quando os
Bourbons sucederam os Habsburgos no trono espanhol, a Inquisição já
caíra em decadência. Naqúele ano, não presidiu mais de quatro casos
três contra bígamos e um contra um jesuíta que gostava de despir
penitentes mulheres e açoitálas.
Por volta de fins do século 18, a Guerra de Independência americana e
depois a Revolução Francesa iam fornecer à Inquisição no México uma nova
raison d'être. Os chamados livre pensadores eram encarados como
hereges. Qualquer coisa relativa aos recémformulados "Direitos do
Homem, qualquer coisa que ecoasse os pensamentos de Tom Payne ou
escritores franceses como Voltaire, Diderot e Rousseau, era julgada
maculada pelo "livre pensamento". E também sediciosa - como inimiga do
Estado e da Igreja. A Inquisição, portanto, começou a funcionar não
apenas como ins106
SALVANDO O NOVO MUNDO
trumento de ortodoxia católica, mas também como polícia secreta do
governo. Seus alvos agora tornavam-se quem comprava, vendia, imprimia,
circulava, disseminava ou mesmo possuía material que expunha idéias
inflamatórias, além de quem promulgasse tais idéias de forma oral.
Livros e panfletos revolucionários, importados da França, GrãBretanha
ou das excolônias britânicas nas Américas, tornaram-se contrabandos
perigosos. Qualquer um que traficasse com tal contrabando se tornava
sujeito a processo.
Como descobriram os governos do século 20, é bastante difícil sufocar o
contrabando de álcool, tabaco, drogas e pornografia. Suprimir a
circulação de idéias é em última análise impossível. Em 1810, além
disso, a Inquisição no México fora cortada de sua mãe na Espanha, uma
vez que esta se achava então sob o jugo napoleônico e a Inquisição lá
fora dissolvida. Quando a insurreição irrompeu no México, as
autoridades não tiveram recursos para reprimila, e não mais podiam
esperar apoio da mãe pátria. E de fato, as facções realistas no México
haviam-se tornado tão hostis à Inquisição quanto as forças
revolucionárias.
Em 1813, a supressão da Inquisição na Espanha por Napoleão foi
reafirmada pela restaurada monarquia Bourbon. Essa medida aplicavase
por extensão às colônias espanholas no exterior, incluindo o México
então nas vascas de uma luta pela independência. Quando a revolução se
espalhou pela América Latina, o governo no México se apropriou de todas
as propriedades da Inquisição. Nenhum prisioneiro foi encontrado em seus
cárceres. O palácio dos Inquisidores foi escancarado à população, que
deu rédeas a seu desprezo.3
Em janeiro de 1815, a Inquisição no México foi temporariamente
restaurada, quando forças realistas no país obtiveram uma pequena
ascendência sobre os oponentes revolucionários. As propriedades do
tribunal foram devolvidas, mas só restavam 773 pesos
107
A INQUISIÇÃO
da antiga riqueza, e nenhum dos móveis. Em 1817, houve um último
processo de um homem acusado de ler livros proibidos. Então, em 1820,
quando o México arrancou à força sua independência da Espanha, a
Inquisição foi final e definitivamente suprimida.
Lima
Estabelecida em 1571, a Inquisição no México exercerajurisdição sobre a
América Central, as possessões espanholas na América do Norte e o
domínio espanhol das Filipinas, do outro lado do Pacífico. Dois anos
antes, em 1569, um Inquisidor chegara ao Peru, e estabeleceuse um
tribunal separado em Lima em 1570. Suajurisdição estendiase ao Chile
e à Argentina, no sul, e pelo menos por algum tempo à Colômbia, à
Venezuela e às ilhas do Caribe, no norte.
As atividades da Inquisição no Peru corriam em estreito
paralelo com as da instituição afim no México. Como no México
a heresia inicialmente ficara sob a jurisdição dos bispos locais.
Quando a Inquisição foi oficialmente estabelecida em 1570, havia
mais de cem casos pendentes em Lima e Cuzco. Como no México,
a autoridade sobre todos esses casos foi transferida dos bispos para
o tribunal oficial da Inquisição, que inaugurou seu regime queimando um
protestante francês em 1573.
Também em Lima, os índios foram isentados da jurisdição da Inquisição.
Mas representantes do tribunal instalaram-se em cada localidade ocupada
por colonos espanhóis. Os casos de Buenos Aires, cerca de 3 mil
quilômetros distante, assim como de Santiago do Chile, eram
rotineiramente transferidos para Lima. Também aqui, a Inquisição no
Peru extraía o grosso de sua sempre florescente renda da perseguição a
ricos comerciantes. Muitos destes, a
108
SALVANDO O NOVO MUNDO
maioria de ascendência portuguesa, foram presos em 1634; acusados de
serem judeus clandestinos, tiveram suas propriedades automaticamente
confiscadas. Em 1639, realizouse um Grande Auto, semelhante aos do
México, e outros milhões de pesos foram embolsados pela Inquisição. A
renda, segundo um dos historiadores, praticamente desapareceu, sem
ninguém saber para onde foi.4 Quando Filipe IV da Espanha soube da
escala dos confiscos, exigiu sua parte. A Inquisição reconheceu a soma
que adquirira, mas alegou que quase nada restava após o pagamento aos
credores
poucos dos quais de fato existiam.
Como aconteceu com a correspondente mexicana, a Inquisição no Peru teve
seu quinhão de casos incômodos, sobretudo a sedução de mulheres por
padres no confessionário. Entre 1578 e 1585, houve quinze desses. Em
1595, vinte e quatro padres achavam-se na prisão, acusados do mesmo
crime. Um deles exibira suficiente atividade priápica para ser
denunciado por quarenta e três mulheres. Em geral, as sentenças
proferidas contra padres sexualmente delinquentes eram risíveis. A
maioria simplesmente ficava proibida de ouvir confissões durante algum
tempo, ou trancada por mais ou menos um ano num claustro. Um deles
que seduzira vinte e oito mulheres e estuprara outra na igreja foi
expulso.
Como no México, os protestantes eram presa fácil e menos vexaminosos
que os padres lascivos. Entre os ingleses no auto de 30 de novembro de
1587, achavaseJohn Drake, primo de Sir Francis. Depois de contornar o
Cabo Horn, o navio de Drake naufragara no Pacífico, ao largo da costa do
que é hoje o Chile. Ele e um companheiro haviam subido as montanhas e
depois descido de canoa até Buenos Aires. Ali, foram capturados e
mandados de volta pelas montanhas a Lima. Em seujulgamento, Drake
capitulou, converteuse ao catolicismo e foi condenado a três anos num
mosteiro.
109
A INQUISIÇÃO
Seu companheiro, mais obstinado, foi torturado e sentenciado a quatro
anos nas galés, seguidos de prisão perpétua.
Prisioneiros ingleses voltaram a aparecer num auto de abril de 1592, e
três foram condenados à morte. Então, em 1593, Richard Hawkins, filho de
SirJohn, organizou uma louca expedição contra instalações espanholas no
Pacífico e entrou pelo interior. No verão do ano seguinte, após uma
batalha perto de Quito, no Equador, foi obrigado a renderse,junto com
outros setenta e quatro. Sessenta e dois destes foram imediatamente
mandados para as galés. Os restantes, incluindo o próprio Hawkins,
foram levados a Lima e entregues à Inquisição. Oito deles, juntamente
com sete outros prisioneiros ingleses capturados em outra parte, foram
julgados num auto de 17 de dezembro de 1595. Todos se converteram ao
catolicismo e com isso escaparam da estaca, embora outras quatro vítimas
de diferentes nacionalidades fossem queimadas. Hawkins estava doente
demais para comparecer a julgamento. Seu nome, porém, e o respeito que
ele inspirava nos captores espanhóis, valeramlhe uma dispensa
especial. Ele acabou conseguindo retornar àInglaterra, onde foi feito
cavaleiro.
Na última parte do século X7, a Inquisição no Peru, como sua
contraparte mexicana, foi ficando cada vez mais relaxada, decadente e
corrupta. Os Inquisidores comportavam-se como nobres e entregavamse
livremente a prazeres seculares. Um deles, por exemplo, adquiriu
notoriedade por manter como amantes duas irmãs.
Como no México, a Inquisição no Peru ganhou novo ímpeto com a Revolução
Francesa e a ascensão de Napoleão. Também os Inquisidores peruanos
tornaram-se zelosos na busca de material politicamente sedicioso, e na
perseguição aos livres pensadores, maçons, supostos ou verdadeiros
revolucionários, e todos os outros vistos como adversários do regime.
Em 1813, porém, a Inqui110
SALVANDO O NOVO MUNDO
sição no Peru foi suprimida pela restaurada monarquia espanhola.
Restabelecida em 1814, nada do dinheiro que perdera foi devolvido. Em
1820, foi final e definitivamente suprimida.
Nova Granada
Embora as primeiras colônias espanholas se instalassem na Índias
Ocidentais e nas ilhas do Caribe, ficavam sob autoridade peruana. Só em
1719 criouse um novo vicereinado, o terceiro, de Nova Granada, com
capital em Cartagena, no que é hoje a Colômbia. A subdivisão de
jurisdição na América Latina ocorreu sob a Igreja antes de ocorrer sob
a Coroa. Em 1532, criouse a Sé episcopal de Cartagena, e estabeleceuse
um bispo residente. Em 1547, Bogotá tornouse uma capital provincial.
Seis anos depois, foi elevada ao status de arcebispado. Colômbia,
Venezuela e as ilhas do Caribe ficaram politicamente sob a autoridade do
ViceRei do Peru, mas tinham sua própria autoridade eclesiástica. O
Arcebispado de Bogotá tinha poderes iguais aos de seus correspondentes
em Lima e na Cidade do México. Estes incluíam, pelo menos de início,
poderes inquisitoriais. Assim, em 1556, o arcebispo ordenou que não se
podia vender nem mesmo ter livros em sua diocese se não fossem antes
examinados e aprovados pela Igreja. Comojá se observou, a Inquisição
estabeleceu seu próprio tribunal autônomo em Lima em 1570, com
autoridade sobre todas as possessões espanholas na América Latina ao
sul do Panamá. Em 1577,0 tribunal de Lima enviou um Inquisidora Bogotá.
O indivíduo em questão logo se tornou notório. Brigou violentamente com
o arcebispo. Mantinha regularmente mulheres em seus aposentos e não
raro as maltratava com violência. As freiras locais proibiram-lhe o
acesso às suas instalações, por causa das conversas licenciosas do
homem. Um de seus sucessores criou escândalo
111

maior ainda, tornandose infame por "adultérios e incestos com donzelas,
esposas e viúvas, mães, filhas e irmãs.5
Em 1608, a Inquisição na Espanha estabeleceu um novo tribunal,
separado, em Cartagena, eom poderes comparáveis aos de Lima e da Cidade
do México. Sua jurisdição estendiase do Panamá às Guianas e Indias
Ocidentais, passando por Colômbia e Venezuela. O novo tribunal logo se
tornou ainda mais corrupto que os de Lima e da Cidade do México.
Durante mais de um século, não houve ViceRei por perto para contêlo. E
quando finalmente se estabeleceu o vicereinado de Nova Granada em
1719, a Inquisição de Cartagena já se achava bastante entrincheirada
para permitir muita interferência.
O primeiro auto defé realizouse em fevereiro de 1614. Trinta vítimas
foram exibidas em desfile pela cidade ejulgadas por vários crimes
triviais. Desejando competir com a pompa e espetaculosidade que
caracterizavam tais acontecimentos em Lima e na Cidade do México, os
Inquisidores de Cartagena levaram a questão muito a sério mesmo, e "tal
foi a verbosidade que as cerimônias duraram das nove e meia da manhã até
depois do por do sol.6
No século X7, as Índias Ocidentais e a costa caribenha da América
Latina continham uma mistura cultural e racial mais vasta e diversa que
os outros domínios coloniais da Espanha. Além de colonos espanhóis e
portugueses, havia os índios, de um número diverso de filiações tribais;
e devido à acessibilidade marítima da região, mais europeus que o
México ou o Peru italianos, ingleses, franceses, holandeses. Na época
da conquista inicial, Carlos V reinava não só sobre a Espanha, mas
também sobre o Sacro Império Romano, e muitos dos primeiros
conquistadores eram portanto de extração germânica e austríaca. Em
1600, seus descendentes compreendiam uma considerável comunidade
germânica.
112
SALVANDO O NOVO MUNDO
Finalmente, havia uma florescente população de escravos negros
da Africa.
Nas Índias Ocidentais e ao longo da costa do Caribe, em cidades como
Cartagena, Maracaibo e Caracas, povos de diversas culturas, raças e
origens étnicas acotovelavam-se em íntima, e muitas vezes incestuosa,
proximidade. Indivíduos de sangue misto formavam uma parte cada vez
mais importante da população. E a entrecruzada fertilização
fisiológica foi inevitavelmente acompanhada por uma entrecruzada
fertilização de idéias e crenças religiosas, das quais surgiu o vudu,
em seus vários disfarces e manifestações. Surgiram também amálgamas às
vezes bizarros de cristianismo e antigas tradições índias. Importado de
partes nãocatólicas da Europa, o pensamento esotérico Rosacruz, por
exemplo encontrou na região um solo fértil para florescer. O resultado
foi uma hibridização muito mais complexa que a relativa "pureza" do
México e Peru.
Em teoria ao menos, essa situação devia ter fornecido à Inquisição em
Cartagena abundante oportunidade para desembestar. Na prática, porém,
ela ficou relativamente inerte, refocilando indolente nos frutos de sua
corrupção. Só a intervalos esporádicos se mexia. Assim, por exemplo, na
primeira metade do século 17, a bruxaria tornouse uma cause célêbre
temporária sobretudo, diziase, entre escravos negros empregados nas
minas. Num auto de março de 1634, vinte e um supostos bruxos foram
julgados. A maioria, porém, escapou com açoites e multas. Um foi
torturado por cerca de noventa minutos e morreu. Dois foram sentenciados
àestaca, mas La Suprema na Espanha recusouse a ratificar as sentenças
e até libertou os acusados.
Em março de 1622, queimouse um inglês por protestantismo. Segundo
relatos contemporâneos, ele não foi acorrentado à
estaca da maneira costumeira, mas "sentouse calmamente numa
113
A INQUISIÇÃO
fogueira e permaneceu imóvel até que a vida se extinguiu".7 Em 1636 e de
novo em 1638, a Inquisição de Cartagena, como as correspondentes em
Lima e na Cidade do México, voltou suas atenções para ricos
comerciantes portugueses que, segundo a já padronizada acusação, eram
acusados de judaização. O confisco resultante dos julgamentos trouxe
rendas imensas. Satisfeita com elas, a Inquisição caiu em profunda e
prolongada letargia. Entre 1656 e 1818, nem sequer se deu ao trabalho de
publicar o "Édito de Fé" anual.
Essa letargia foi rudementc interrompida em 1697, quando corsários
franceses tomaram Cartagena e saquearam a cidade. Uma de suas primeiras
ações foi invadir o palácio da Inquisição, pegar os paramentos oficiais
do tribunal e imolá-los num zombeteiro auto de fé. Desmoralizada por
esse trauma, a Inquisição em Cartagena jamais se recuperou
inteiramente. Quarenta e quatro anos depois, sofreu outro golpe
debilitante. Em 1741, a Guerra da Orelha de Jenkin, o mais bizarro e
surreal dos conflitos, escalava para a Guerra de Sucessão austríaca. No
início de março, um esquadrão da Marinha Real britânica, sob o comando
do Almirante Vernon, bloqueou Cartagena. Depois de tentar um tíbio
desembarque e ser repelido, o almirante britânico satisfezse em
submeter a cidade a um mês de bombardeio naval, que deixou uma
duradoura lembrança na mente da população. Assim o fato figura no
pequeno romance de Gabriel García Márquez, Do Amor e Outros Demônios,
que oferece uma reveladora intuição da corrupção e atividade sexual da
Inquisição em Cartagena no último terço do século 18. Durante o
bombardeio naval britânico de Cartagena, o palácio da Inquisição foi
totalmente demolido. Só seria recons
* Um marinheiro inglês foi captura por um navio de guerra espanhol,
acusado dc roubo e punido com a decepaçâo dc uma orelha. A GrãBretanha
prontamente declarou guerra, mas além do bombardeio de Cartagena, o
conflito não foi além de esporádicas trocas de tiros de canhões navais.
114
SALVANDO O NOVO MUNDO
truído vinte e cinco anos depois. A essa altura, a revoluçãojá assomava
no horizonte e, com ela, a morte da Inquisição.
Mas a Inquisição de Cartagena revelouse morosa até mesmo na oposição à
revolução que ameaçava extinguila. Em 1789, publicouse uma tradução
espanhola da Declaração dos Direitos do Homem, francesa. De maneira nem
um pouco surpreendente, o texto foi logo proibido, sendo visto como
inimigo da estável ordem da sociedade e conducente à mais insidiosa
forma de subversão, a tolerância. Em 1794, quando o Reino do Terror
varria a França, os ViceReis de Nova Granada e Peru escreveram às suas
respectivas Inquisições, exigindo que todos os exemplares da criminosa
obra fossem caçados e destruídos. Após o que pretendeu ser uma extensa e
diligente busca, a Inquisição de Cartagena disse não ter encontrado um
único exemplar.
Dificilmente importa se essa futilidade derivou de torpor ou disfarçada
simpatia revolucionária. A Inquisição em Cartagena logo iria incorrer na
mesma sorte de suas correspondentes no México e no Peru. Em 1810,
ocorreu o primeiro levante popular, e a instituição, desprezada como era
por praticamente toda a cidade, tornouse um alvo básico. Após ser por
um breve tempo restaurada, foi de novo suprimida em 1820, junto com
suas correspondentes em outras partes. Em 1821, as forças
revolucionárias saíram vitoriosas, e o vicepresidente dos
recémestabelecidos Estados Unidos da Colômbia declarou oficialmente
abolida a Inquisição. Pouco depois, o Congresso do incipiente país a
declarou extinta para sempre e jamais a ser restabelecida.8
115
6 Cruzada Contra a Bruxaria
E nquanto a fumaça das fogueiras da Inquisição espanhola lançava um
malcheiroso manto da Península Ibérica ao Novo
Mundo, a original, papal, mantinhase produtivamente ocupada em outras
partes na Europa. Encontrara um novo alvo, que acossava com novo
Ímpeto. Seu entusiasmo ao fazer isso durante os séculos seguintes ia
reclamar mais vidas que a Cruzada Albigense.
Ao contrário do que dizem a história convencional, as crenças populares
e a tradição, a Igrejajamais estabeleceu uma autoridade tão completa
quanto desejava sobre os povos da Europa Ocidental. É certo que sua lei
vigia em toda parte. Podia chamar qualquer um, camponês ou monarca, à
responsabilidade. Podia dividir o continente em dioceses e bispados,
intimidar indivíduos para que comprassem indulgências, extorquir
dízimas. Podia punir qualquer um que contestasse suas doutrinas, ou a
quem preferisse acusar disso. Podia obrigar comunidades inteiras a
assistir à missa e observar seus outros ritos e rituais estatutários,
dias santos, de festa e festivais. E podia, na verdade, impor um certo
grau de aliança voluntária em troca do alívio e consolo que oferecia.
Mas no que hoje se chama de batalha pelos corações e mentes, não teve
êxito irrestrito.
CRUZADA CONTRA A BRUXARIA
Embora muitos corações e mentes levassem a sério a Virgem e os
santos, para muitos outros a Virgem e os santos eram simplesmente novas
máscaras, novos disfarces, novas manifestações de princípios ou
divindades muito mais antigas. E muitos outros corações e mentes
permaneceram ao menos em parte dedicada e impudentemente pagãos.
Já no século 12, a Igreja pregava cruzadas contra as tribos pagãs da
Prússia e da costa báltica o território que posteriormente
compreendeu a Pomerânia, Lituânia, Letônia e Estônia. Dentro de sua
própria esfera de influência, porém, só realizou, na melhor das
hipóteses, uma sequência de ações repressoras contra o que via como
forças das trevas as energias mórbidas, sinistras, malévolas,
aparentemente à espreita nas escuras florestas que ainda cobriam grande
parte da terra. Para os cristãos pias, essas florestas e a escuridão a
elas associada ocultavam inúmeras formas do mal, e ofereciam um refúgio
inexpugnável ao demoníaco. Cercadas por elas, aldeias e cidades, para
não falar de abadias e mosteiros isolados, eram como postos avançados
ou fortes espirituais, encalhados no ermo de um campo hostil e muitas
vezes assediados ou sitiados.
Na verdade, as forças escondidas nas florestas eram simplesmente as da
natureza e do mundo natural irredimidos, aos olhos da Igreja. É um
lugarcomum a afirmação de que os deuses de qualquer religião tendem a
tornar-se os demônios da religião que a suplanta. Antes do advento do
cristianismo, os domínios do Império Romano haviam reconhecido o deus
Pã como a divindade suprema que presidia sobre o mundo natural. Era a
figura com chifres, cauda e cascos de bode, que reinava sobre a
vigorosa, tenaz, implacável e ostensivamente caótica vida do mundo. Pã
gozava de prerrogativas particulares em questões de sexualidade e
fertilidade. Sob a autoridade da Igreja, foi oficialmente demonizado e
caracterizado como satânico. Havia amplo precedente para esse procedi
117
A INQUISIÇÃO
mento. Séculos antes, para citar apenas um caso, a deusa mãe fenícia
Astarte fora sujeita a uma forçada mudança de sexo e transformada no
demônio Ashtaroth.
Com o colapso do Império Romano, a maioria dos camponeses europeus
continuou a reconhecer Pã, ou às vezes seus equivalentes regionais mais
antigos, numa forma ou noutra como o Caçador Herne, por exemplo, como
o deus chifrudo Cernunnos, como o Homem Verde, Robin da Mata Verde ou
Robin Bom Sujeito, que depois se conjugou com Robin Hood. E não era só
Pã quem recebia tais homenagens. Ao longo das fronteiras das modernas
França e Bélgica, a deusa romana da caça, Diana, era conhecida como
Diana das Nove Fogueiras, e fundida com sua antecessora Arduína, da qual
as Ardenas derivam seu nome. Essas divindades mantiveram-se em
circulação apesar do advento do cristianismo. Os camponeses europeus
podiam ir à igreja aos domingos, ouvir a missa e assimilar num certo
nível os ritos e doutrinas de Roma. Ao mesmo tempo, porém, ainda
deixavam leite em pires e faziam inúmeros outros tipos de oferendas para
aplacar as antigas forças à espreita na floresta em volta. E
esgueiravam-se nas datas certas do ano para a Walpurgisnacht, ou Sabá
das Bruxas, para a observância pagã de solstícios e equinócios, ritos
de fertilidade, festas e carnavais em que os deuses da velha religião
figuravam com destaque, embora de forma disfarçada e cristianizada. Em
quase todas as comunidades, além disso, havia invariavelmente pelo
menos uma velha reverenciada pela sabedoria, a capacidade de ler a sorte
ou ver o futuro, o conhecimento de ervas e meteorologia, a habilidade
de parteira. Muitas vezes confiavam mais nela e a consultavam,
sobretudo as outras mulheres que no padre local. O padre representava
poderes que talvez determinassem a sorte e o destino futuro das
pessoas. Mas em muitas questões esses poderes frequentemente pareciam
juízes majestáticos, intimidantes, severos, abstratos ou distantes
demais para ser incomodados. A típica velha da aldeia,
118
CRUZADA CONTRA A BRUXARIA
por outro lado, oferecia um canal para poderes mais imediatos e
prontamente acessíveis. Era a ela, mais que ao padre, que consultavam
em questões como o clima e as colheitas, a saúde do gado, a saúde
pessoal e a higiene, sexualidade, fertilidade e parto.
Desde sua introdução na Europa, a Igreja teve de enfrentar resíduos e
vestígios pagãos, de duendes, gnomos, trolls e fadas até o próprio e
augusto deus de chifres. Com o tempo, precisou demonizá-los e
expulsálos. Um documento do século 9, por exemplo, fala do "demônio a
quem os camponeses chamam Diana, e afirma: "Algumas mulheres más,
revertendo a Satanás.., professam que cavalgam certos animais à noite
COfll Diana."1 Com mais frequência, a Igreja chegou a uma incômoda
acomodação com seus antecedentes pagãos e procurou sequestrá-los quando
possível. Por exemplo, a deusa irlandesa Brígida, padroeira do fogo, foi
efetivamente incluída e absorvida numa suposta santa do mesmo nome.
Assim, igrejas e santuários cristãos eram habitualmente erguidos em
locais antes sagrados para crentes pagãos. Em 601
o Papa Gregório 1 estabeleceu essa prática quase como política oficial.
Numa carta a um abade, escreveu que havia
chegado à conclusão de que os templos dos ídolos entre esse povo não
devem em hipótese alguma ser destruídos. Os ídolos devem ser destruídos,
mas os próprios templos devem ser aspergidos com água benta, e neles
instalados altares e depositadas relíquias. Pois se esses templos são
bem construídos, devem ser purificados do culto aos demônios e
dedicados ao serviço do verdadeiro Deus. Dessa maneira, esperamos que o
povo, vendo que seus templos não são destruídos, abandone seu erro e,
acorrendo mais rapidamente a seus locais de costume, venha a conhecer e
adorar o verdadeiro Deus. E como têm o costume de sacrificar muitos bois
ao demônio, que alguma outra solenidade substitua essa, como um dia de
Dedicação ou a Festa dos Santos Mártires cujas relíquias estejam ali
guardadas.


A Inquisição possibilitou à Igreja adotar uma política mais agressiva,
tomar a ofensiva contra os vestígios de paganismo. Em consequência, a
antiga tolerância relutante ia ser oficialmente abolida, dando lugar à
perseguição. Duendes, gnomos, trolls e fadas seriam condenados e
castigaos como demônios ou poderes demoníacos. O deus chifrudo da
natureza o Homem Verde em suas várias manifestações se transformaria
em Satanás. Rotularseia de bruxaria ou feitiçaria a participação nos
antigos rituais. E a crença em bruxaria ou feitiçaria seria formalmente
classificada como heresia, com todas as punições cabíveis. Segundo o
historiador Keith Thomas:
A bruxaria tornouse uma heresia cristã, o maior de todos os pecados,
porque envolvia a renúncia a Deus e deliberada adesão ao seu maior
inimigo.
Pelo que o historiador Hugh TrevorRoper. chama de "artifício de
ampliada definição de heresia, os alicerces pagãos da civilização
européia foram postos sob ajurisdição da Inquisição.
Por implicação, essajurisdição ia estender-se até às catástrofes
naturais. Fome, seca, inundação, peste e outros fenômenos semelhantes
da natureza não mais deviam ser atribuídos a causas naturais, mas à
ação de poderes infernais. Não apenas a loucura, mas ate as explosões de
raiva ou histeria seriam atribuídas a possessão demoníaca. Os sonhos
eróticos deveriam ser atribuídos a visitas de íncubos ou súcubos. As
parteiras e as tradicionais sábias das aldeias
conhecedoras de ervas e capazes de dar conselhos seriam tachadas de
bruxas. O medo e a paranóia deviam ser promulgados até prenderem toda a
Europa num controle tipo torno. E nessa atmosfera de disseminado
terror, dezenas de milhares, talvez mesmo centenas de milhares, iam
tornar-se vítimas de assassinato oficial eclesiástico.
120
CRUZADA CONTRA A BRUXARIA
O Martelo das Bruxas
Durante séculos, a Igreja foi profundamente confusa em sua atitude
quanto à bruxaria. A maioria dos padres, sobretudo nas áreas
rurais, era pouco instruída e raras vezes deixava a população local na
qual eles próprios tinham raízes. Em consequência, partilhavam a
incontestada crença do povo na realidade da bruxaria na capacidade
de a bruxa da aldeia, por exemplo, exercer poderes ocultos, prejudicar
uma colheita, produzir doenças no gado, causar mortes misteriosas. Quer
observassem ou não o voto de celibato, dificilmente teriam grande
conhecimento de questões ginecológicas; e muitos deles sem dúvida
ficavam nauseados pelo que devia parecer as complexidades impuras do
encanamento feminino. Em sua aptidão para lidar com essas coisas, na
confiança que inspirava a outras mulheres, a bruxa da aldeia quase
diariamente mostrava ao padre prova empírica e dmonstrável da
incompetência e inferioridade dele. Para esses padres, a bruxaria era
uma realidade inimpugnável, que promovia um senso de rivalidade e
ressentimento.
Até final do século 15 porém, o dogma oficial da Igreja negava a
realidade da bruxaria. A colheita prejudicada, o gado doente, a morte
inexplicável podiam ser atribuídos à obra do demônio ou a causas
naturais, mas não à bruxa da aldeia. No que dizia respeito à Igreja, a
bruxaria era uma ilusão disseminada pelo diabo. O pecado, portanto, não
era a própria bruxaria, mas a crença na bruxaria, e as práticas que a
acompanhavam. Por causa da crença na bruxaria,
a bruxa abandonou o cristianismo, renunciou ao seu batismo, adorou
Satanás como seu Deus, entregouse a ele, corpo e alma, e existe apenas
para ser seu instrumento e fazer o mal... que ele não pode realizar sem
um agente humano.
121
A INQUISIÇÃO
Já no século 9, as histórias de bruxas que iam voando para seus Sabás
haviam sido declaradas fantasia pela Igreja masjulgavase que quem
apoiasse tal fantasia perdera a fé, e assim se mostrara "infiel e
pagão. Essa posição iaser posteriormente consagrada como um artigo da
Lei Canônica.Os que acreditavam em bruxaria supostamente haviam
perdido a fé e escorregado para uma ilusão. Como resultava da perda de
fé, tinhase que essa ilusão constituía heresia.
Por volta de meados do século 15 a posição da Igreja começou a mudar. Em
1458, um Inquisidor, um certo Nicholas Jaquerius, afirmou que "a
existente seita de bruxas era inteiramente diferente dos hereges
citados nas partes relevantes da Lei Canônica. Em outras palavras,
insistia o Inquisidor, o poder exercido pelas bruxas era bastante real
e não devia ser descartado como fantasia. Em 1484, a Igreja deu urna
completa e dramática meia volta. Urna Bula papal daquele ano inverteu
por completo a antiga posição e reconheceu oficialmente a suposta
realidade da bruxaria. Nessa Bula, o Papa declarava:
Chegou de fato a iiossos ouvidos ultimamente.., que cm algumas partes
do Norte da Alemanha, assim como nas províncias... dc Mainz, Colônia,
Trêves, Salzburgo e Bremen, muitas pessoas.., abandonaram-se aos
demônios, íncubos e súcubos, e por fórmulas, feitiços, conjuras e outros
encantos e artes malditos, enormidades e horrendos crimes, mataram
bebês ainda no ventre da mãe, como também os rebentos do gado,
destruíram a produção da terra, as uvas da vinha, os frutos das
árvores.
Sete anos depois, em 1491, a Universidade de Colônia emitiu urna
advertência de que qualquer argumento contra a realidade da bruxaria
iria incorrer na culpa de impedir a Inquisição. Por obra de vistoso
raciocínio circular, a posição foi tornada inatacável pouco depois pelo
Inquisidor de Como, que declarou que
122
CRUZADA CONTRA A BRUXARIA
numerosas pessoas foram queimadas por assistirem ao Sabá, o que não
poderia ter sido feito sem o consentimento do Papa, e isso foi prova
suficiente de que a heresia era real, pois a Igreja só pune crimes
manifestos.

Segundo um historiador moderno:
Não mais satisfeitos com as acusações de bruxaria, ou mesmo com a
sugestão de que a bruxaria implicava inerentemente magia dcmoníaca, os
juizes agora queriam retratar os mágicos como ligados numa demoníaca
conspiração contra a fé e a sociedade cristãs. O feiticeiro, dedicado
apenas a atos específicos de maldade contra determinados inimigos,
cedia diante do grupo de bruxas empenhadas na destruição da
cristandade.
Antes, era heresia acreditar em bruxaria. Agora, com urna simples
penada, tornavase heresia não acreditar. Estabelecerase um mecanismo
do qual para qualquer um que a Igreja desejassejulgar inimigo não
havia como escapar. Gerouse um clima predominante de paranóia em
grosso. E os bodes expiatórios agora podiam ser responsabilizados até
por desastres naturais, assim exonerando Deus e o demônio. Em vista da
furiosa misoginia dos Inquisidores, quase invariavelmente os bodes
expiatórios seriam mulheres.
Na Bula de 1484, que reconheceu oficialmente a realidade da
bruxaria, o Papa Inocencio 8 citava especificamente, pelo nome, dois
indivíduos:
E embora Nossos queridos filhos Heinrich Kramer e Johann Sprenger...
tenham sido por cartas Apostólicas delegados como Inquisidores... Nós
decretamos... que os acima citados Inquisidores tenham poderes para
proceder à justa correção, prisão e castigo de qualquer pessoa, sem
folga ou embaraço.
123
CRUZADA CONTRA A BRUXARIA
Em detalhes legais, chocantes e muitas vezes pornográficos, o Malleus se
propõe a esboçar supostas manifestações de bruxaria. Pretende ser um
definitivo manual do tipo faça você mesmo nao apenas para os
Inquisidores, mas também parajuízes, magistrados, autoridades seculares
de todo tipo e, por extensão, para todo cidadão de destaque
suficientemente desequilibrado que tenha razão ou sem razão suficiente
para desconfiar da presença de bruxaria àsua volta. Na verdade,
constitui um compêndio de psicopatologia sexual, e é uma esclarecedora
ilustração de fantasia patológica em exuberante desvario. Com uma
obsessão que se trairia de imediato para qualquer psicólogo moderno, o
texto concentrase na verdade, baseia-se em cópula diabólica,
intercursos com íncubos e súcubos, e várias outras formas de experiência
erótica e atividade (ou inatividade) sexual atribuíveis pela imaginação
contaminada a forças demoníacas. Oferece técnicas de diagnóstico e
prognóstico. Esboça procedimentos terapêuticos e supostos castigos
curativos. Fornece fórmulas e receitas de exorcismo. No tratamento do
tema, aspira a um âmbito e escala decididamente enciclopédicos. E
tornouse, de fato, uma espécie de Bíblia substituta para os
Inquisidores, e não só para eles. Como diz Montague Summers
corretamente, neste caso em seu deslocado encômio, o Malleus
estava no banco de todo juiz, na mesa de todo magistrado. Era a
autoridade última, irrefutável, indiscutível. Era implicitamente aceito
não só pela legislatura católica, mas também pela protestante.
O Malleus começa por afirmar explicitamente
a crença em que existem seres como as bruxas é parte tão essencial da
fé católica que manter obstinadamente a opinião oposta tem sabor
manifesto de heresia.
125
A INQUISIÇÃO
Está aí um flagrante eco da Bula Papal de 1484, que reverteu a posição
anterior da Igreja, reconhecendo oficialmente a suposta realidade da
bruxaria.
Depois de expor sua premissa básica, o Malleus continua explicando:
Esta pois é a nossa proposta: os demônios, com sua arte, causam maus
efeitos por meio da bruxaria, mas é verdade que, sem a ajuda de algum
agente, não podem fazer nenhuma forma.., e não afirmamos que podem
infligir danos sem a ajuda de algum agente, mas com um tal agente
doenças, e quaisquer paixões ou males humanos, podem ser causados, e
estes são reais e verdadeiros.
Em outras palavras, as forças infernais são impotentes em si. Só podem
causar o seu mal por meio de alguma agência humana. Em consequência, os
seres humanos devem agora ser culpados por infortúnios antes atribuídos
ao insondável comportamento de Deus, aos processos do mundo natural ou à
demoníaca malevolência além do alcance da Inquisição. Se alguma coisa
desse errado no ordenado funcionamento das coisas, haveria agora a quem
punir por isso.
Segundo a lógica de livre associação doMalleus, as bruxas em seu maior
poder são capazes de causar chuvas de granizo e tempestades. Podem
invocar o raio e fazê-lo atingir homens e animais. Podem causar
impotência e esterilidade em homens e animais. Também podem causar
pragas. Podem assassinar crianças como oferendas a forças demoníacas.
As ocultas, podem fazer crianças cair na água e afogarse. Podem levar
um cavalo a enlouquecer debaixo do cavaleiro. Podem causar ou grande
amor ou grande ódio entre os homens. Podem matar homens ou animais com
um olhar o chamado Mau Olhado. Podem revelar o futuro. Podem viajar
pelo ar, no corpo ou na imaginação.
126
O Malleus reconhece que alguns Inquisidores talvez se revelem tímidos ao
ministrarem castigo, quando nada por medo de ataques ou contraataques
do demônio a eles, ataques ou represálias preventivos do demônio. Por
isso, oferece garantia de que as bruxas
não podem fazer mal aos Inquisidores e outras autoridades, porque eles
ministram justiça pública. Muitos exemplos se pode acrescentar para
provar isso, mas o tempo não o permite.
O tempo obviamente urgia. Os autores do Malleus ainda tinham umas 500
páginas para escrever, desenvolvendo e ampliando sua tese. Portanto,
contentaram-se com apenas um modicum de outras garantias:
Existem três classes dc homens abençoados por Deus, aos quais essa
detestável raça não pode fazer mal com sua bruxaria. E a primeira são
os que ministram justiça pública contra eles, ou os processam em
qualquer condição oficial pública. A segunda são aqueles que, segundo a
tradição e os santos ritos da Igreja, fazem uso legal do poder e
virtude que a Igreja, com seu exorcismo, fornece na aspersão da Água
Benta, na tomada do sal consagrado, no porte de velas bentas... a
terceira classe são aqueles que, de virias e infinitas formas, são
abençoados pelos Santos Anjos.
Em outras palavras, a Igreja possui suas próprias superstições, seus
próprios rituais e práticas mágicos, que são intrinsecamente superiores
apenas porque vêm da Igreja. E nos Santos Anjos, a Igreja tem seus
próprios aliados desencamados ocultos, intrinsecamente mais poderosos
que os aliados desencarnados ocultos da bruxa.
Pois os exorcismos da Igreja são para esse mesmo propósito, e remédios
inteiramente eficazes para preservarnos dos males das bruxas.
127 CRUZADA CONTRA A BRUXARIA
A INQUISIÇÃO
O Malleus é militantemente na verdade, psicopatologicamente
misógino. Por mais intrépidos que sejam no combate aos poderes
invisíveis, os autores do texto sentiam um terror das mulheres que
beirava a demência. Elas são encaradas como fracas e, quase por
definição, decaídas. A mulher "é um animal imperfeito, sempre
engana. É mais rápida em vacilar na fé religiosa. É mentirosa por
natureza. É bonita de se olhar, contamina pelo contato, e é mortal
para se manter. Devese culpála, na verdade, por praticamente tudo:
"Toda bruxaria vem de luxúria carnal, que na mulher é insaciável.
Se as mulheres bonitas eram particularmente suspeitas, também o eram as
parteiras, com seu íntimo conhecimento e experiência do que os
Inquisidores viam como mistérios femininos. Acreditavase
rotineiramente que as crianças natimortas haviam sido assassinadas por
uma parteira como oferenda ao demônio. As deformadas, desfiguradas,
doentias ou mesmo malcomportadas eram igualmente atribuídas à bruxaria
da parteira. Devido à confiança que inspirava em outras mulheres, e a
competição por autoridade que implicava para o padre, a parteira era
um alvo ideal. Sobre ela, o Inquisidor podia praticar, afiar e refinar
com impunidade seus distorcidos talentos.
O Malleus é impiedoso no tratamento às moças seduzidas e depois
abandonadas:
Pois quando as moças são corrompidas, e foram desprezadas por seus
amantes, após terem imodestamente copulado com eles, na esperança e
promessa de casamento com eles, e viram-se desapontadas em todas as
suas esperanças e em toda parte desprezadas, se voltam para a ajuda e
proteção dos demônios.
Mas nenhum estigma se liga ao próprio sedutor que, ao
contrário, sugere o Malleus, provavelmente se torna vítima.
128
O Malleus apressase a interpretar como bruxaria qualquer comportamento
que seus autores clericais não podem explicar comportamento que pode
não implicar nada mais sinistro que os efeitos de drogas, como esporão
de centeio ou cogumelos mágicos, ou a masturbação feminina, ou o
simples e sensual banho de sol:
as próprias bruxas muitas vezes têm sido vistas deitadas de costas nos
campos ou nas matas, fluas até o umbigo, e vêse pela disposição dos
membros que se relacionam ao venéreo e ao orgasmo, como também pela
agitação das pernas e coxas, que, de maneira inteiramente invisível para
os circunstantes, estão copulando com demônios Íncubus.
E o livro oferece, também, uma racionalização que deve ter aliviado o
ferido orgulho de muito marido corneado:
É certo também que aconteceu o seguinte. Maridos viram de fato demônios
Íncubos copulando com suas esposas, embora pudessem pensar que não eram
demônios, mas homens. E quando pegaram uma arma e tentaram
trespassálo, o demônio desapareceu de repente, tornandose invisível.
O Malleus referese também a várias outras manifestações e práticas de
bruxaria. Trata de crianças supostamente assassinadas, cozinhadas e
comidas. Descreve as várias formas como as bruxas se ligam às forças
demoníacas. Discute o espetamento de alfinetes em imagens de cera.
Repetidas vezes, porém, com a obstinada determinaçao de um missil
guiado, retorna as questoes de sexualidade. Não raro, as obsessões
sexuais do livro levantam vôo em febril fantasia. Fala, por exemplo, de
bruxas que... juntam órgãos masculinos em grandes números, até vinte ou
trinta, e os põem num ninho de pássaros, ou os tranferem
BRUXARIA
Imagens como estas são atribuídas a ilusão demoníaca, causada "pela
confusão do órgão da visãocom a transmutação das imagens mentais na
faculdade imaginativa. Mas não se pode deixar de imaginar se os
autores da obra, simplesmente para conceber tais coisas, não partilharam
eles próprios de alguma substância psicotrópica, ou não tinham
imaginações mais torturadas e distorcidas até mesmo que a de Bosch.
O Malleus mostrase particularmente obcecado pela cúpula com entidades
demoníacas desencarnadas íncubos (masculinos) e súcubos (femininos).
Tais relações sexuais com seres incorpóreos muitas vezes podem
implicar nada mais que uma polução noturna. Em consequência, os autores
do livro estão muito mais preocupados com o sêmen. Exploram com
detalhes clínicos a questão de precisamente quantos demônios consumam o
ato sexual. Consideram se é "sempre acompanhado pela injeção de
sêmen.28 Se é, querem saber de onde vem o sêmen se, por exemplo, é
intrinsecamente demoníaco, ou se foi roubado de mortais. A qualidade do
sêmen é então submetida a um minucioso escrutínio. Por quais critérios
os demônios escolhem homens dos quais roubar a semente? Pode o sêmen
ejaculado durante poluções noturnas inocentes ser coletado pelos
demônios e, por assim dizer, reciclado? Nenhuma possibilidade é deixada
sem exame.
Para os autores do Malleus, a cópula com uma entidade desencamada era
uma transgressão especialmente atroz e odiosa. Representava para eles
uma blasfema paródia do Parto Virgem, processo pelo qual o próprio
Jesus foi concebido pelo Espírito Santo. Quatro séculos depois, o
romancistaJorisKarl Huysmans ia especular sobre o misterioso,
supostamente imencionável e em última análise imperdoável "Pecado
contra o Espírito Santo o único
130 A INQUISIÇÃO
cam numa caixa, onde eles se mexem como membros vivos, e comem aveia e
milho.
CRUZADA CONTRA A BRUXARIA
pecado para o qual se diz não haver perdão. Huysmans identificou esse
pecado cuja natureza foi mantida escrupulosamente secreta pela Igreja
como exatamente a blasfema paródia do Parto Virgem sugerido pelas
relações sexuais com uma entidade desencarnada. Bem podia ter razão, e
o portentoso segredo talvez não fosse tão secreto quanto pretendia ser.
No Doutor Fausto, de Marlowe, por exemplo escrito quando o Malleus,
publicado um século antes, ainda se achava em largo uso Fausto
emprega agências demoníacas para invocar a incorpórea alma de Helena de
Tróia. Por definição, a alma de Helena seria classificada como uma
espécie de súcubo. E só depois da união sexual dos dois o destino
final dele é selado, e ele está irrevogável e irrecuperavelmente danado.
Julgamentos de Bruxas
Armada com o Malleus Malefica rum, a Inquisição embarcou num reinado de
terror por toda a Europa. Em suas investigações e interrogatórios, a
regra da prova era simples. Qualquer coisa que duas ou três testemunhas
dissessem sdb juramento era acéita como inteiramente verdade e
definitivamente provada. Muito se usaram as perguntas capciosas
calculadas para encurralar suspeito e testemunha. Podiase perguntar a
alguém, por exemplo,
se ele acredita que existem bruxas, e que... se podem levantar
tempestades e enfeitiçar homens ou animais. Observem que na maioria das
vezes os bruxos negavam isso a princípio.
Se, bruxo ou não, ele negasse a crença em bruxaria, a pergunta segunda
caía como um alçapão fechandose com estrondo: "Então eles são
inocentemente condenados quando queimados? E ele ou ela tem de
responder." Independente do que a vítima responda, ele
131
A INQUISIÇÃO
ou elajá está condenado(a), uma vez que descrer de bruxaria é em si uma
heresia.
Quando uma bruxa era capturada, tomavam-se complicadas precauções para
neutralizar seus poderes. A fim de negarlhe o contato com a terra, e
através dela com as regiões infernais, carregavam-na suspensa, numa
tábua ou cesta. Apresentavam-na ao seu juiz de costas, para impedir
qualquer tentativa de enfeitiçá-lo com o olhar. Qsjuízes e outros
envolvidos nojulgamento "não deviam deixar-se tocar fisicamente pela
bruxa, sobretudo em qualquer contato de seus braços e mãos nus.
Osjuízes eram também aconselhados a usar lacradas em cera
especialmente benta e penduradas de uma correia de couro ou corrente no
pescoço algumas ervas bentas e um pouco de sal consagrado no Domingo
de Ramos. Apesar das reiteradas garantias de imunidade que desfrutavam
os Inquisidores ejuízes, não se devia correr nenhum risco.
O julgamento prosseguia com um entendimento bastante sofisticado de
psicologia. As técnicas empregadas refletem considerável experiência no
processo de extrair e extorquir informação. Os Inquisidores reconheciam
que a mente muitas vezes pode ser sua pior inimiga que o medo pode
gerar-se na solidão e isolamento, e frequentemente produz resultados
tão satisfatórios quanto a brutalidade física. O medo da tortura, para
citar o exemplo mais óbvio, era assim gerado, atiçado e alimentado ao
ponto do pânico, que excluía a necessidade da própria tortura. Se a
acusada não confessasse logo, diziamlhe que viria a seguir o exame pela
tortura. Mas esta não vinha imediatamente. O Malleus aconselha,
que o acusado seja despido, ou, se for mulher, que primeiro seja levada
a celas penais e lá despida por mulheres honestas de boa reputação.
132
CRUZADA CONTRA A BRUXARIA
Osjuízes podiam então interrogá-la de leve, sem derramar sangue, mas
apenas
deixar a acusada em estado de apreensão, e adiando sempre o dia de
exame, e frequentemente usando persuasões verbais.
O Inquisidor é encorajado a utilizar técnicas hoje conhecidas, como a
dos policiais duros e moles:
que ele ordene aos oficiais que a amarrem com cordas, e apliquemlhe
alguma máquina de tortura; e depois que obedeçam logo mas sem prazer,
antes parecendo perturbados por seu serviço. Depois, que ela seja
libertada de novo a pedido de alguém, e lavada a um lado, e que seja de
novo persuadida, e ao persuadila, que lhe digam que pode escapar da
pena de morte.
O Malleus defende flagrante duplicidade. Podese prometer a vida a uma
bruxa, mas a vida será na prisão, a pão e água.
E não se deve dizer a ela, quando lhe prometerem a vida, que será
aprisionada assim; mas levá-la a supor que alguma outra pena, como o
exílio, será imposta.33
E mesmo para obter essa dúbia dispensa, ela deve denunciar e revelar a
identidade de outras bruxas. Tampouco, apressase a explicar o Malleus,
precisa a promessa original de vida ser de fato cumprida. Não há
obrigação de tratar uma bruxa com honra, e muitos Inquisidores
pensam que, depois que ela foi posta na prisão dessejeito, a promessa
de pouparlhe a vida deve ser mantida por algum tempo, mas após um certo
período ela deve ser queimada.
133
A INQUISIÇÃO
Alternativamente,
o Juiz pode em segurança prometer a vida à acusada, mas de tal
modo que renuncie depois ao dever de passarlhe a sentença,
designando outro Juiz em seu lugar.
Quando uma bruxa é devolvida à cela após a sessão de tortura,
o Juiz também deve ter o cuidado de que durante esse intervalo haja
sempre guardas com ela, para que nunca fique só, por medo que o demônio
a faça matarse.
Em outras palavras, um suicídio ou tentativa de suicídio produzido por
agonia e desespero também deve ser interpretado como de inspiração
diabólica, e portanto mais uma prova de culpa. Assim se exculpavam os
Jnquisidores. Quando as mulheres tentavam o suicídio espetando a cabeça
com os grandes alfinetes que prendiam os panos de cabeça, era "para
serem encontradas por nós quando nos levantássemos, como se desejassem
enterrá-los em nossas cabeças. Mesmo tais atos de frenético desespero
eram atribuídos àintenção malévola e distorcidos para servir de prova.
De qualquer modo, os suicídios ou tentativas de suicídio eram obviamente
bastante comuns. O Malleus observa sobre as bruxas que, após haverem
confessado seus crimes sob tortura, elas sempre tentam enforcar-se.
E, "quando os guardas forem negligentes, elas podem ser encontradas
enforcadas com os cadarços dos sapatos ou roupas
Se, apesar da contínua tortura, uma bruxa ainda recusa confessar, o
Malleus aconselha engodos mais barrocos. A bruxa pode ser levada a um
castelo, por exemplo, cujo dono pode
fingir que está saindo numa longa viagem. E depois, que alguém de sua
casa.., a visite e lhe prometa que vão libertá-la inteira
134
CRUZADA CONTRA A BRUXARIA
mente se ela lhes ensinar como realizar certas práticas. E que o Juiz
observe que com esse meio muitas têm confessado e sido condenadas.38
Como último recurso, o Malíeus defende a mais gritante e
desavergonhada traição:
E finalmente, que oJuiz entre e prometa que será piedoso, com a reserva
mental de que quer dizer que será piedoso consigo mesmo ou com o Estado;
pois o que quer que se faça pela segurança do Estado é piedoso.39
A Disseminação da Loucura de Massa
Em nossa era, todos nós sentimos a forma como um ou outro pânico
público pode crescer, como por contágio psicológico, e assumir a
proporção de histeria de massa. Nos Estados Unidos, na década de 1950,
houve a cruzada paranoicamente obsessiva do SenadorJoseph McCarthy para
caçar supostos comunistas. EmAs Bruxas de Saiem, o dramaturgo Arthur
Miller atacou por analogia a campanha de McCarthy, pela metáfora
dosjulgamentos das bruxas de Salem no século 17. Como resultado da
obra de Miller, o termo caça às bruxas tornouse uma expressão
moderna aceita para qualquer tentativa de desencavar supostos inimigos
pela instilação e disseminação de medo coletivo. Mais recentemente,
sentimos outras formas de pânico também. Após o bombardeio da Líbia por
Ronald Reagan, vimos dramáticos números de turistas americanos
alterarem seus planos de viagem e abster-se aterrorizados de vôos
internacionais. Vimos comunidades inteiras na GrãBretanha varridas por
acusações de abusos em crianças para rituais satânicos, fazendo com que
dezenas de pais fossem separados à força de seus filhos. Diante desses
exemplos modernos de pânicos públicos, é
135

fácil entender como o medo da bruxaria pôde assumir proporções de pânico
em escala epidêmica, quando promulgado pela suprema autoridade religiosa
da época pôde, na verdade, tornar-se o equivalente psicológico da
peste. Segundo um historiador,
essa mania das bruxas era essencialmente uma doença da imaginação,
criada e estimulada pela perseguição à bruxaria. Sempre que o Inquisidor
ou magistrado civil passava a destruíla pelo fogo, uma safra de bruxas
brotava em torno de seus próprios pés.40
Ao falar da Igreja, o mesmo historiador observa:
Cada inquisidor que ela incumbia de suprimir a bruxaria era um ativo
missionário que espalhava ainda mais amplamente as sementes da
crença.
A frenética perseguição começou sob os auspícios da Inquisição, quando
a Igreja ainda exercia indisputada suprëmacia sobre a vida religiosa da
Europa. Na verdade, tão obcecada ficou a Inquisição com a bruxaria que
logo iria ser apanhada inteiramente de surpresa pelo advento de uma
ameaça muito mais séria na forma de um monge apóstata chamado
Martinho Lutero. Trinta anos depois da publicação do Malieus
Maleficarum, porém, a mania das bruxas ia espalhar-se para as
incipientes igrejas protestantes.
Em meados do século 16, protestantes e católicos estavam queimando
bruxos não aos dois e três, mas às centenas, e esse frenesi incendiário
continuou por mais de um século, atingindo um clímax durante a
carnificina da Guerra dos Trinta Anos, entre 1618 e 1648. Entre 1587 e
1593, o ArcebispoEleitor de Trves queimou 368 bruxos, o equivalente a
mais de um por semana. Em 1585, duas aldeias alemãs foram tão dizimadas
que só restou uma mulher viva em cada. Durante um período de três meses,
500 supostos bruxos foram queimados pelo Bispo presidente de Genebra.
Entre 1623 e
136
CRUZADA CONTRA A BRUXARIA
1633,o PríncipeBispo de Bamberg queimou mais de 600. No início da
década de 1600, 900 foram queimados pelo PríncipeBispo de Wurzburg,
incluindo dezenove padres, um de seus próprios sobrinhos e várias
crianças acusadas de ter relações sexuais com demônios. Em Savóia, no
mesmo período, mais de 800 foram queimados. Na Inglaterra, durante o
Protetorado, Cromwell tinha seu próprio Caçador de Bruxas Geral, o
notório Matthew Hopkins. No fim do século X7, a histeria espalharase
para as colônias puritanas do outro lado do Atlântico, lá engendrando
os infames julgamentos de Salem que forneceram o pano de fundo para a
peça de Arthur Miller.
Mas nem mesmo as piores depredações do protestantismo puderam se
igualar às de Roma. Neste aspecto, a folha da Inquisição não teve rival.
Ela própria se gabava de que queimara, no mínimo dos mínimos, 30 mil
bruxas durante um período de 150 anos. A Igreja sempre fora mais que um
pouco inclinada à misoginia. A campanha contra a bruxaria forneceulhe
mandado para uma cruzada em escala total contra as mulheres, contra tudo
que era feminino.
137
7 Combatendo a Heresia do Protestantismo
A
cruzada contra a bruxaria possibilitou à Igreja satisfazer sua
propensão à misoginia e impor um controle autoritário sobre as
mulheres que as tornou subordinadas e as manteve no que se julgava seu
lugar apropriado. Em última analise, porém, estava env guardiã dos
mistérios femininos e da antiga religião pagã, era também uma encarnação
da ordem natural, com a qual desfrutava de uma relação muito mais
estreita, muito mais íntima, que o padre. E a ordem natural - a própria
natureza era inerentemente "irredimida. A natureza ainda existia em
estado caído, e ainda tinha de ser redimida, levada a um dócil acordo
com a lei divina ou pelo menos com a lei divina como os intelectos
masculinos da Igreja procuravam interpretála. Só então ela cessaria de
oferecer refúgio, abrigo e um canal para o demoníaco. Infelizmente para
a Igreja, o problema não era bem tão simples assim.
Desde o início dos tempos em que uni pensamento cristão
reconhecível e definível surgira dojudaísmo e do paganismo
os teólogos da Igreja tinham tido problemas para delinear o
138
COMBATENDO A HERESIA DO PROTESTANTISMO

demoníaco. Em períodos de anarquia social, cultural, política ou
intelectual, quando a Igreja constituía um bastião de ordem e
coerência, o demoníaco podia ser identificado com segurança como
qualquer manifestação de desordem. Nesses períodos, o diabo era de fato
o descendente linear do Pã de chifres, pés e rabo de bode, senhor da
natureza irredimida em toda a sua desembestada e aparentemente
caótica energia que, claro, também incluía a sexualidade. Nesses
períodos, a fé era atrelada à racionalidade, e o demoníaco a sua
antítese o frenético, o possesso, o orgiástico, o irracional. Assim,
julgavase que o demoníaco se manifestava na bruxaria e sobretudo na
Walpurgisnacht, ou Sabá das Bruxas. E foi assim na bruxaria, e nos ritos
irracionais, muitas vezes sexuais, da religião pagã, que a Inquisição
buscou identificar o tradicional e arquetípico "adversário" do
cristianismo.
Houve outros casos, porém, em que a própria Igreja traficou sem razão, e
a fé foi atrelada não à racionalidade, mas ao irracional. Se a energia
vulcânica e tempestuosa da Walpurgisnacht pudesse ser canalizada para a
religião para a histeria associada a certas festas cristãs, por
exemplo, ou ao êxtase muitas vezes visível em seitas evangélicas hoje
poderia ser sancionada e endossada. A visitação de um súcubo na forma de
Helena de Tróia podia servir para danar Fausto, mas o mesmo mecanismo
psicológico, se gerasse, em vez disso, uma aparição da Virgem, podia
conferir santidade.
Se a Virgem, em vez de Helena, aparecesse numa visão, demoníaco
tornavase aquilo que questionasse a validade da visão. Por extensão, o
demoníaco tornavase o céptico intelecto que questionava a validade de
qualquer coisa promulgada pela Igreja. Se o diabo podia às vezes tomar a
forma do frenético Pã, também podia tomar a forma do frio, astuto e
sedosamente sedutor e persuasivo Lúcifer, o matreiro lógico e tentador
cuja sutil habilidade em
139

sofisma e casuísmo podia vencer o mais capaz teólogo. Foi nessa forma,
como a serpente do Jardim do Éden, que o diabo supostamente primeiro se
manifestou no Velho Testamento. E segundo os propagandistas cristãos,
fora nassa forma que se supunha que Lúcifer, em consequência de seu
orgulho intelectual, acabara expulso do Céu e de seu assento ao lado de
Deus. Se o diabo às vezes era loucamente irracional, também sabia ser
hiperracional, hiperintelectual. Quando a fé dependia de crença
irracional e inquestionável adesão, o diabo tornavase o princípio que
ousava questionar em outras palavras, qualquer pensamento
desafiadoramente independente. Durante o Renascimento e a Reforma
luterana, segundo a Inquisição, foi nessa forma que o diabo se
manifestou; e foi nessa forma que a Inquisição procurou localizá-lo e
extirpálo.
Isto não quer dizer que cessou a perseguição ao irracional demoníaco. A
caça às bruxas, feiticeiros e outros adeptos da antiga religião pagã
continuou, e até ganhou impulso; e as recémestabelecidas igrejas
protestantes foram tão zelosas em atormentá-los quanto Roma. O próprio
Lutero investiu contra o demônio e contra a bruxaria, e os chefes
religiosos protestantes de todas as denominações logo seguiram atrás.
Para a Inquisição do Renascimento e da Reforma, podiase discernir
Satanás na velha parteira ou sábia de uma ou outra aldeia; mas também
se podia discernilo e mais perigosamente ainda sob o disfarce de
figuras como Martinho Lutero, Galileu Galilei, Giordano Bruno e Tommaso
Campanella.
Que era então o demoníaco? Na prática, qualquer coisa jul gada hostil ou
inimiga da Igreja podia ser assim rotulada, Os poderes do inferno podiam
ser responsabilizados não apenas por manifestações extremas de
racionalidade ou irracionalidade, mas também por livros, filosofias,
movimentos políticos e qualquer outra coisa
140
COMBATENDO A HERESIA DO PROTESTANTISMO
que se entendesse como desobediência à autoridade papal. A própria
cultura logo passaria a ser encarada como demoníaca.
Durante toda a Idade Média, a Igreja representara um bastião de cultura
num mundo de inculto barbarismo. Como ilustra Umberto Eco em O Nome da
Rosa, porém, a Igreja também exercia um monopólio da cultura que
efetivamente garantia que o mundo em volta permanecesse inculto e
bárbaro. Conhecimento, diz o lugarcomum, é poder; e a Igreja brandia o
poder em grande parte por meio do conhecimento que monopolizava,
dominava, controlava e só disponibilizava para a população, por assim
dizer, a contagotas.
Com a Reforma, essa situação ia mudar dramaticamente. A Reforma ia
testemunhar uma verdadeira explosão de conhecimento, que ia brotar de
fontes seculares, das recémestabelecidas heresias protestantes, como
o luteranismo. Ia brotar da recémrevigorada tradição esotérica do
hermetismo. E ia ser disseminada em escala sem precedentes pelo advento
da imprensa e a circulação de material impresso. A tradução da Bíblia
para o vernáculo por Lutero, e outras que se seguiram, como a Bíblia de
Genebra e versão inglesa do Rei James, pela primeira vez iam tornar as
Escrituras disponíveis para os leigos que poderiam lêlas por si
mesmos sem a máquina de interpretação e filtragem do sacerdócio. Toda
essa cultura ia ser estigmatizada pela Igreja como demoníaca, e
portanto atrair a atenção da Inquisição.
Antes, havia apenas uns poucos homens cultos fora da Igreja, e menos
ainda aqueles que podiam esperar ter uma audiência sem incorrer em
consequências terríveis, e mesmo fatais. Agora, erguiase todo um
imponente edifício de cultura que arrogantemente ignorava, e às vezes
flagrantemente contestava, a autoridade de Roma. Se o diabo estava
manifesto na orgiástica irracionalidade da bruxaria, agora tornase do
mesmo modo manifesto na elo
141
A INQUISIÇÃO

quência da palavra escrita e na audácia da mente inquiridora, curiosa
e independente, que se precipitava com ousadia por caminhos que anjos,
tolos, eclesiásticos e mesmo santos antes temiam

A ContraReforma
Para Roma, a nova situação impunha novas exigências. Sem ceder mais
terreno do que se via obrigada a ceder, a Igreja buscou adaptar-se e
adaptar consigo a Inquisição. No século 13, durante a Cruzada
Albigense, os dominicanos haviam constituído uma grande inovação por
serem cultos por serem formados em teologia, e assim capazes de
discutir com cátaros e outros hereges nos termos deles. Nos três séculos
posteriores, porém, os dominicanos, como as Ordens rivais, haviam-se
tornado cada vez mais ociosos, relaxados, repousando sobre seus
louros, aferrandose ao poder e privilégios que possuíam, pouco esforço
fazendo para enfrentar os novos desafios que haviam surgido. A posição
deles em relação à proliferante heresia protestante era defensiva, na
melhor das hipóteses. Na maioria das vezes, eram simplesmente passivos,
esperando que aquilo passasse. Perseguir infelizes mulheres por
bruxaria exigia pouco esforço, pouca disciplina, pouca organização.
Conter a influência de heresiarcas cultos e que sabiam se expressar,
como Lutero, Calvino e Zwingli, era um tanto mais problemático.
Para enfrentar os protestantes, a Igreja precisava de um equivalente do
século 16 ao que os dominicanos haviam sido 300 anos antes um quadro
de indivíduos altamente treinados e dedicados que pudessem de fato
discutir com os adversários na base de igual cultura e inteligência,
igual sutileza, igual sofisticação psicológica. E se o protestantismo
ia de fato como parecia cada vez mais pro142
COMBATENDO A HERESIA DO PROTESTANTISMO
vável resistir a todas as tentativas de extirpação, a Igreja tinha
pelo menos de estabelecer algum tipo de superioridade quantitativa ou
numérica, no tamanho de sua congregação e no território sobre o qual
exercia domínio espiritual. Entre outras coisas, tinha de consolidar sua
posição em partes do mundo que apenas começavam a ser exploradas,
converter regiões e continentes inteiros de gentios antes que o
protestantismo os alcançasse. Em outras palavras, a Igreja precisava de
uma instituição ou organização de missionários altamente talentosos,
inteligentes, treinados e motivados novos soldados de Cristo, ou
Milícia de Cristo, que, com disciplina e fortitude militares,
pudessem fazer uma cruzada na esfera do intelecto como os Templários e
Hospitalários haviam feito nos campos de batalha da Terra Santa. A
instituição que surgiu para esse desafio foi a Sociedade de Jesus, ou
Jesuítas.
A Sociedade de Jesus foi criada por um espanhol, Inácio de Loyola (e.
14911556), cuja ambição original era conquistar glória militar. Durante
um sítio à fortaleza de Pamplona em 1521, Loyola foi seriamente ferido.
Quando convalescia, foise tornando cada vez mais estudioso e
introspectivo. Fez uma peregrinaçâo a Montserrat, pendurou suas armas
naquele santuário e retirouse para uma gruta por um ano, como ermitão.
Nessa reclusão, escreveu seu manual, Os Exercícios Espirituais, que
esboçava um novo e rigoroso programa de meditação cristã. Em 1523, fez
uma segunda peregrinação, desta vez a Jerusalém. Quando voltou à
Espanha, passou a estudar na Universidade de Alcalá.
Em 1526, Loyolajá começara a pregar em público e a incorrer em
suspeitas de heresia da Inquisição espanhola, que o prendeu e manteve
acorrentado por cerca de três semanas, enquanto se examinava e
investigava Os Exercícios Espirituais. Ele foi devidamente inocentado
das acusações e libertado, mas recebeu ordens de cessar todas as
discussões públicas de teologia durante quatro anos. Para
143

escapar dessa proibição, Loyola mudouse para Paris em 1528. Ali, formou
um pequeno círculo de seguidores devotos, que iam se tornar os jesuítas
originais. Em 1534, todos eles fizeram votos de aliança numa igreja de
Montmartre.
A27 de setembro de 1540, o Papa Paulo 3 estabeleceu oficialmente os
jesuítas sob o nome original de Companhia de Jesus. Embora não
portassem armas, o treinamento, disciplina e nomenclatura deles
seguiam padrões essencialmente militares. Foi mesmo sugerido, e não sem
certa verossimilhança, que Loyola modelou a hierarquia e organização
dosjesuítas nas dos Cavaleiros Templários.
No século e meio seguinte, osjesuítas iam tornar-se a ponta de lança da
ContraReforma, o metódico esforço da Igreja para estabelecer novas
esferas de influência, além de reconquistar pelo menos parte do terreno
perdido para o protestantismo. Como planejadores militares, os jesuítas
organizavam suas campanhas de acordo com um pensamento estratégico. A
fim de estabelecerem aceitação e confiança, dispuseram-se inteiramente a
entrar na perseguição geral à bruxaria. Segundo Hugh TrevorRoper,
se os dominicanos haviam sido os evangelistas da ContraReforma
medieval, os jesuítas foram os evangelistas da ContraReforma do Século
16, e se os evangelistas protestantes levaram a mania aos países que
conquistaram para a Reforma, esses evangelistas católicos a levaram
igualmente aos países que reconquistaram para Roma. Alguns dos mais
famosos missionários jesuítas distinguiram-se na propagação da mania
das bruxas.'
Em última análise, porém, a bruxaria era de importância secundária para
os jesuítas. Seus interesses básicos estavam em outra parte. A Boêmia e
a Polônia, por exemplo, logo seriam retomadas para a Igreja. E dentro
de poucos anos a rede de missões jesuítas, como os velhos preceptórios
dos templários e hospitalá144
COMBATENDO A HERESIA DO PROTESTANTISMO
rios, abrangia o mundo conhecido. Eles se estenderam para oeste até as
Arnéricas, do outro lado do Atlântico, e para leste até o subcontinente
indiano, China, Japão e as ilhas do Pacífico. Mais perto de casa, foram
fundamentais na reforma, reembalagem, rerotulagem e relançamento da
Inquisição.
Em 1540, quando o PapaJoão 3 estabeleceu oficialmente os jesuítas, já
acabara o Cativeiro Babilônico de Avignon, e o Grande Cisma" que
rasgara a Igreja por mais de um século finalmente se resolvera. Dentro
de cinco anos, o Concílio de Trento ia formular uma planta que
determinaria o status, a máquina administrativa, a orientação e
hierarquia de prioridades do Papado para os próximos três séculos e um
quarto. E para a recémunificada Igreja, a preocupação dominante era,
necessariamente, a cruzada contra a heresia do protestantismo.
Como um prelúdio ao Concílio de Trento, o Papa Paulo iniciou uma
reforma radical do governo e administração do Papado. Criaram-se vários
escritórios ou departamentos separados para presidir as várias
subdivisões dos assuntos da Igreja. Todos funcionando sob o controle
papal direto, eram designados congregações e concílios. A
Inquisição ia agora tornar-se uma dessas congregações. Havendo sofrido
pessoalmente nas mãos dela, Loyola não devia morrer de amores pela
Inquisição espanhola, mas admirava sua disciplina, eficiência e sua
maquinaria, que funcionava muito bem azeitada. Instigada em grande
parte pelosjesuítas, reconstituiuse a velha Inquisição papal ou
romana, modelada especificamente na sua correspondente espanhola. Assim
como a Inquisição espanhola atuara como um instrumento da política real
da Espanha, a papal ou romana ia tornar-se um instrumento da política
da Igreja. Em outras palavras, sua principal prioridade não seria mais a
suposta pureza da fé, mas a estabilidade e bemestar do Papado e da
Igreja. Seu título oficial era Sacra Congregação e
145
A INQUISIÇÃO
Inquisição Universal, ou Santo Ofício. Em 1908, o nome iria ser mudado
de novo para Congregação do Santo Ofício. Para a maioria dos
comentaristas, bastaria depois uma forma mais abreviada simplesmente
Santo Ofício. Raras vezes um título tão inócuo, e
até ostensivamente louvável, conseguiu adquirir associações tão
sinistras. Num esforço para expurgá-las e higienizar mais a
instituição, a Inquisição foi mais uma vez rebatizada em 1965 como
Congregação para a Doutrina da Fé. Atua hoje sob essa denominação,
descendente linear direta da Inquisição original criada em 1234 e
reconstituída em 1542.
Loyola e osjesuítas foram uma grande influência na criação de uma
Inquisição recauchutada, ou Santo Ofício. De importância comparável foi
um ambicioso e fanático dominicano, Giovanni Caraffa. Entre 1515 e
1522, Caraffa atuara como Núncio Papal na Espanha, onde, como Loyola,
ficara impressionado com a eficiência da Inquisição espanhola. Ao
voltar para a Itália, tornouse chefe de um círculo pio de altos
eclesiásticos dedicados a restaurar a pureza e integridade moral da
Igreja.
Uma das maneiras de fazer isso, para Caraffa, e de chamar a atenção para
si mesmo ao fazêlo, foi lançar uma campanha contra a pintura do
ÚltimoJulgamento, de Miguel Ângelo, na Capela Sistina. Quando a obra
foi desvelada em 1541, Caraffa e seu círculo transformaram-na num
escândalo. Ficaram indignados com o simbolismo abertamente fálico do
artista, a descrição de um homem sendo arrastado pelos órgãos genitais
e outros beijandose, e condenaram em altos brados a obra como
indecente. A indignação deles logo seria ecoada por colegas de
mentalidade idêntica, e a crítica continuou a rugir pelos próximos
vinte e quatro anos. Em 1551, por exemplo, um destacado dominicano
escreveu que Miguel Ângelo "é admirável ao pintar corpos nus de homens
e suas partes pudendas, e queixouse de que "é muitíssimo indecente
146
ver todas essas nudezes por toda parte, nos altares e nas capelas de
Deus. O Concílio de Trento acabou por determinar que se fizessem
correções na pintura. Em 1565, um pintor foi especialmente contratado
para esse fim e pudicamente envolveu todas as ofensivas protuberâncias
em tangas e mantos. O recibo que deu pelo seu trabalho ainda existe,
detalhando a soma de 60 scudi due... em pagamento pela obra feita por
ele em 1565, cobrindo as partes pudendas das figuras na Capela do Papa
Sisto.3
A essa altura, o próprio Caraffajá morrera. Mas seus ataques originais à
pintura em 1541 haviam atraído o simpático interesse do Papa Paulo 3,
que o elevou e a outros cinco membros de seu círculo ao status de
cardeais. Em 1555,o próprio Caraffa acabou por tornar-se Papa, adotando
o nome de Paulo 4 e ocupando o trono de São Pedro até sua morte em
1559.
Apoiado por Loyola e o Cardeal dominicano Arcebispo de Burgos, Caraffa,
ao conquistar o favor de Paulo 3, defendeu o estabelecimento de um
tribunal permanente da Inquisição, modelado no da espanhola. Assim foi
que se criou o Santo Ofício em 1542. Caraffa foi nomeado o primeiro
Inquisidor Geral da reconstituída instituição. O Papa reservou para si
o direito de perdão. Fora isso, a nova Inquisição papal, ou Santo
Ofício, recebeu poderes praticamente irrestritos, incluindo o direito de
delegar autoridade a outros eclesiásticos e invocar a ajuda do braço
secular, se necessário. Imediatamente ao receber sua nomeação, Caraffa
tomou uma substancial casa em Roma e equipoua com celas de prisão.
Depois emitiu quatro regras de procedimento a ser aplicadas por toda
Inquisição. Eram punir mesmo por suspeita. Não deviam ter
consideração pelos grandes. Deviam ser severos com qualquer um que se
abrigasse por trás dos poderosos. E não deviam mostrar nenhuma
brandura, menos que todos com os calvinistas. Dessas ordens, Caraffa,
em conversas particulares, acentuava so
PROTESTANTISMO

bretudo a necessidade de golpear homens em altos postos, "pois... da
punição deles depende a salvação das classes abaixo deles. O que não
precisava dizer, claro, era que um tal ataque aos poderosos
neutralizava efetivamente quaisquer rivais ou contestadores
em perspectiva de sua autoridade.
Seguiuse um expurgo do tipo que antecipava os perpetrados em nosso
século por Hitler, Stalin e outros tiranos menores da mesma raça.
Segundo um historiador, toda a Itália foi paralisada. O chefe da
ordem dos capuchinhos fugiu para Genebra. Outras figuras destacadas,
seculares e eclesiásticas, buscaram refúgio em outras partes. Em 1546,
toda a Universidade de Modena debandou. Mas Caraffa ainda zombava da
disposição de perdoar de Paulo e da medida em que isso viciava a
capacidade de aterrorizar do Santo Ofício.
Só depois que se tornou Papa, em 1555, Caraffa finalmente teve a
liberdade que tanto buscara. Para explorá-la plenamente, delegou o seu
braço direito, o dominicano Michele Ghislieri. Em 1557, este foi
nomeado cardeal e, um ano depois, Grande Inquisidor. Posteriormente, em
1566, Ghislieri se tornaria Papa por sua vez, tomando o nome de Pio 5
Assim que Caraffa ascendeu ao trono de São Pedro, teve início a sério o
reino do terror. Em 1556, doze judeus convertidos foram queimados em
Ancona, sendo a conversão deles supostamentejulgada não muito
completa. Em 1557, um cardeal foi preso. No mesmo ano, vários venezianos
foram condenados por heresia entregues a Roma e mandados para a estaca.
Quando Caraffa morreu em 1559, era tão detestado pelos romanos que eles
atacaram as instalações do Santo Ofício, demoliram os prédios, saquearam
e queimaram todos os documentos. Impávido, porém, o Santo Ofício
continuou com o seu trabalho. Em 1562, cerca de 2 mil waldenses foram
brutalmente massacrados no sul da Itália. Em 1567
148
COMBATENDO A HERESIA DO PROTESTANTISMO

um destacado humanista florentino foi decapitado. Em 1570, um professor
de retórica foi garroteado em Siena. Em 1573, o Santo Ofício decidiu
investigar a pintura de Veronese, O Banquete na Casa de Levi, e o
próprio artista foi convocado a comparecer perante o tribunal para ser
interrogado. Escapou do castigo, mas ordenaramlhe que alterasse a
pintura às suas custas.
Enquanto isso, a Igreja passara por uma importante transformação. Já em
1523, a rápida disseminação do protestantismo tornara dolorosamente
visível a necessidade de reforma. Sugeriuse que essa reforma seria
mais bem efetuada por um Concílio geral da Igreja. O Papado e a Cúria a
princípio se assustaram com a proposta, temendo que algum Concílio se
proclamasse maior que o Papa. De fato, tão logo se tornou pública a
perspectiva de um Concílio, caiu dramaticamente o preço das posições
eclesiásticas vendáveis em Roma. Em 1545, porém, o Papa Paulo 3
acabou por convocar o Concílio de Trento.
O de Trento foi um dos Concílios de importância suprema na história
católica, e desempenhou um papel crucial na Igreja e no Papado, como nos
chegaram até hoje. Pontilhado por interrupções e esporádicos
adiamentos, estendeuse por um total de dezoito anos, de 1545 a 1563.
Durou mais que Paulo e Caraffa em sua identidade papal de Paulo 4
O conclave foi aberto com uma tentativa reconhecidamente tíbia nos
setores mais influentes de conciliar e acomodar o protestantismo. Logo
se tornou visível, porém, que qualquer tentativa nesse sentido estava
condenada. Daí em diante, os eclesiásticos reunidos trataram dos meios
de brigar com os protestantes e, a fim de melhor fazêlo, adaptar sua
própria Igreja para a luta. O Concílio proclamou, por exemplo, "a igual
autoridade da escritura e da tradição.5 Em outras palavras,
decretouse que a Igreja, como encarnação da tradição, possuía uma
autoridade igual à da
149
A INQUISIÇÃO
própria escritura. Isso, claro, era intrinsecamente hostil aos
protestantes, que só reconheciam a autoridade da Bíblia. O rompimento
com o protestantismo foi tornado ainda mais definitivo por outras
medidas as formulações da Doutrina do Pecado Original, por exemplo, e
o repúdio à insistência de Lutero naJustificação pela Fé.
Ao mesmo tempo, o Concílio de Trento decidiu esclarecer a posição do
Papado em relação aos bispos e Concílios da Igreja. Assim, por exemplo,
alguns reformadores tentaram inicialmente "afirmar a superioridade do
Concílio até mesmo sobre o Papa, e declarar sua suprema autoridade.6 No
fim, porém, foi o Papado que emergiu como a autoridade suprema,
exercendo controle tanto sobre os bispos quanto sobre os Concílios da
Igreja. Um milênio antes, a Igreja era em grande parte descentralizada,
e o Papa simplesmente o Bispo de Roma, o proverbial "primeiro entre
iguais. Nos séculos posteriores, seu poder se tornara cada vez mais
centralizado, mas não fora oficialmente ratificado como tal. Após o
Concílio de Trento, a Igreja tornouse o equivalente a uma monarquia
absoluta, com o Papa gozando do status de soberano. Desse ponto em
diante, osjesuítas, o Santo Ofício e todas as outras instituições
católicas romanas se dedicaram menos à suposta pureza da fé que à
estabilidade do Papado e da Igreja.
Essa estabilidadejá sofrera com a proliferação da cultura herética e
secular. Nas regiões dominadas pelos protestantes, pouco se podia fazer
para reparar o dano. Em outras partes, contudo, a Igreja tentou
reconquistar e estabelecer alguma coisa de seu antigo monopolio do
conhecimento. Para isso, introduziuse uma nova forma de censura.
Assumiu a forma do notório Index de Livros Proibidos do Santo Ofício.
Já em 1554, tribunais locais do Santo Ofício em Veneza e
Milão, por exemplo já haviam feito suas listas de obras proibidas. Em
1559, na condição de Papa Paulo 4 Caraffa publicou seu
150
COMBATENDO A HERESIA DO PROTESTANTISMO
Index Librorum Prohibitorum, definitivamente oficial. Incluía não apenas
textos heréticos, mas também os que o Santo Ofíciojulgava imorais. Entre
eles, achavam-se obras de herméticos, como Heinrich Cornelius Agrippa
von Nettesheim, e de humanistas, como Erasmo de Roterdã. Todas as obras
de Martinho Lutero foram banidas, como também as deJan Hus. Livros
sobre magia, alquimia e astrologia eram condenados. E também uma
compilação de textos tidos como compostos pelo Rei Arthur e uma
coletânea de profecias atribuídas a Merlin. Proibiuse o
Talmudejudaico,junto com trinta traduções da Bíblia em sua totalidade e
onze do Novo Testamento. Havia também uma lista de sessenta e dois
impressores a serem evitados, a maioria deles na Basiléia protestante.
Em 1564, o Index de Caraffa foi oficialmente aprovado pelo Concílio de
Trento e relançado com vários acréscimos. Em 1571, Michele Ghislieri
exlugartenente e Grande Inquisidor de Caraffa, agora instalado como
Papa Pio 5 criou, sob os auspícios do Santo Ofício, uma "Congregação
do Index especial, cuja única tarefa era supervisionar, manter e
atualizar a lista de obras proibidas. Essa instituição continuou
existindo até 1917, quando seus deveres foram de novo postos sob o
controle direto do Santo Ofício. Durante quatro séculos, o Index era
lançado em forma atualizada a intervalos esporádicos. Impressa no
Vaticano, a ultima edição completa foi publicada em 1948. Entre os
autores e textos condenados, achavam-se (em ordem alfabética) Johann
ValentinAndreae, Balzac, o Livro de Preces Comuns da Igreja Anglicana,
Giordano Bruno, Descartes, Dumas (pêre eJils), Fenelon, Flaubert, Robert
Fludd, Frederico o Grande da Prússia, Victor Hugo, James 1 da
Inglaterra, John Locke, Michel Maier, John Stuart Mill, Montaigne,
Henry More, Ernest Renan, Rousseau, Spinoza, Stendhal, Laurence Steme,
Swedenborg, Voltaire, Zola, todas as histórias da maçonaria e da
própria Inquisição. Na década de 1950, vários outros autores foram
acrescentados como
151
A INQUISIÇÃO
reconsiderações Sartre, Alberto Moravia, Gide, Kazantzakis, Unamuno e
Simone de Beauvoir.
Uma tal lista impunha problemas desencoraj adores para os historiadores
e eruditos literários católicos. Um dos autores deste 4
livro lembra seu primeiro ano como aluno da Universidade de Chicago,
onde um curso básico exigido pelo programa de graduação incluía uma
leitura obrigatória de Stendhal. Na classe, na época, havia um punhado
de seminaristas e duas ou três freiras. A fim de obter permissão para
ler O Vermelho e o Negro, eles foram obrigados a fazer uma petição ao
Santo Ofício, por intermédio do arcebispo local, e receber dispensa
especial por escrito.
Àquela altura, porém, as comportas da represa já se haviam aberto.
Ulisses, O Amante de Lady Chatterley, Lolita e outras grandes obras
antes proibidas pelas autoridades seculares já se achavam àdisposição.
Logo também estariam várias obras menores mas ainda importantes de
William Burroughs, por exemplo, Henry Miller e Hubert Selby.
Brincadeiras de mau gosto levavam bibliotecas de conventos e seminários
a comprar múltiplos exemplares de Nossa Senhora das Flores, de Genet,
também maldosamente recomendado a freiras ingênuas. Para as sentinelas
morais e teológicas do Santo Ofício, o simples processo de manterse
atualizadas com os textos supostamente depravados, quanto mais
proibilos, deve ter parecido uma tarefa para um verdadeiro esquadrão
de Sísifos. Por fim, em 1966, o Index foi oficialmente abolido um ato,
seria de imaginar, de capitulação e desespero.
Perseguição aos Magos do Renascimento
A Igreja emergiu do Concílio de Trento com uma nova consolidação da
autoridade pontificial e duas instituições os jesuítas e a Inquisição
em seu disfarce modernizado como o Santo Ofício

que seriam as pontas de lança da ContraReforma. Ao reclamar territórios
como a Boêmia e a Polônia para Roma, e espalhar a mensagem da Igreja no
alémmar, essas instituições demonstraram uma energia, recursos e zelo
muitas vezes de proporções épicas. Em última análise, porém, a guerra
já estava perdida, e com apenas ocasionais exceções, as batalhas
travadas foram defensivas
ações de contenção, para manter um domínio cada vez menor. No começo,
por exemplo, o protestantismo significava apenas luteranismo, o credo
promulgado por Martinho Lutero na Alemanha. Mas a nova heresia do
protestantismo logo revelara uma cabeça de hidra, e outras seitas
protestantes haviam surgido com assustadora rapidez. Lutero fora
seguido por Calvino em Genebra, Zwingli em Zurique,John Knox na Escócia.
Embora seus motivos para fazer isso dificilmente fossem teológicos,
Henrique oitavo criara a Igreja Anglicana e cortara a ligação com Roma.
Também houvera o ressurgimento de antigas heresias em novas formas, e
vários movimentos e erupções messiânicos ou milenares os
autodenominados anabatistas, por exemplo, que haviam surgido na Holanda
protestante e depois passado a tomar a cidade alemã de Munster em 1534,
proclamando seu próprio Reino de Sion e inaugurando um regime de
anárquica liberdade e orgiástico frenesi. Mesmo eruditos católicos
haviam-se contaminado cada vez mais com o pensamento heterodoxo.
Quando o Concílio de Trento terminou em 1563, o mundojá
cultura secular e o protestantismo haviam-se tornado fatos
estabelecidos, que a Igreja não podia nem aceitar nem extirpar. Em
menos de meio século, a hegemonia anterior de Roma sobre a vida
espiritual da Europa fora efetivamente despedaçada, e o domínio católico
reduzido em alguma coisa tipo um terço. A perseguição em massa às
bruxas continuava, tão fanaticamente pelos protestantes

tes quanto pela Igreja. Tirando isso, porém, a obra do Santo Ofício
tornouse mais concentrada, mais especializada, mais precisamente
delineada, intelectualmente disciplinada e cirurgicamente realizada. De
meados do séculQ 16 em diante, a história da rebatizada Inquisição se
tornou menos de terror em grosso e perseguição indiscriminada que de
casos individuais específicos, mas alguns destes envolviam alguns dos
mais famosos nomes na evolução da civilização ocidental.
Entre os principais alvos do Santo Ofício achavam-se as figuras
faustianas que vieram a ser conhecidas como "Magos do Renascimento,
homens cuja sede de conhecimento, espírito audaz e aspirações
visionárias abrangiam as artes, ciências, teologia, filosofia, medicina,
tecnologia e o espectro de disciplinas encaradas como esotéricas,
incluindo astrologia, alquimia e magia. No primeiro terço do século 16,
as mais importantes dessas figuras foram Aureolus Philippus Theophrastus
Bombastus von Hohenheim, posteriormente conhecido simplesmente como
Paracelso, e Heinrich Cornelius Agrippa von Nettesheim, o modelo básico
para o Doutor Fausto de Marlowe e o Fausto de Goethe. Paracelso
eAgrippa tiveram vários choques rancorosos com a Inquisição. Em sua
época, porém, a Inquisição era a antiga, antes de seu relançamento como
Santo Ofício. Em consequência, os dois, embora incorrendo em curtos
períodos esporádicos de censura ou prisão, escaparam em grande parte
ilesos. Agrippa verberou os Inquisidores da época como "abutres
sanguinários, e condenou a estupidez pela qual os hereges "devem ser
convencidos com gravetos e fogo, não com as Escrituras e Argumentos.
Certa ocasião, quando servia como funcionário à Cidade Livre de Metz,
defendeu uma mulher acusada de bruxaria contra o Inquisidor dominicano
local, ao qual enfrentou, dominou e derrotou na discussão em tribunal
aberto.
154
COMBATENDO A HERESIA DO PROTESTANTISMO
Os "Magos que se seguiram a Paracelso e Agrippa, e que se viram postos
contra o modernizado Santo Ofício, não foram tão afortunados. Em 1591,
por exemplo, Tommaso Campanella, um místico dominicano que depois seria
visto com tendências rosacrucianas, publicou um livro defendendo a
validez do empirismo, assim como da fé, no estudo da filosofia. O livro
foi condenado pelo Santo Ofício e ele preso por heresia. Em 1599, pouco
após sua libertação,já se achava de novo em apuros, desta vez por
atividade política subversiva. Foi por conseguinte preso, torturado e
sentenciado à prisão perpétua. Um amigo que o visitou em sua cela
depois informou que
ele tinha as pernas todas feridas e as nádegas quase sem carne,
arrancada pedaço a pedaço para extorquirlhe uma confissão dos crimes de
que fora acusado.
Durante esse encarceramento, Campanella produziu seu mais famoso livro,
La Cittá dei Sole (A Cidade do Sol), uma planta para uma comunidade
utópica ideal do tipo que era louvado na época pelos autores místicos.
Em outra obra, afirmou que toda a natureza era viva e que o mundo
possuía uma alma criada e infundida por Deus.10 Isso provocou a ira
da Inquisição, que reclamou que se a afirmação de Campanella fosse
válida, a alma do mundo imbuiria com suas qualidades as "pragas e outros
objetos indignos.11 Em 1626, após mais de um quarto de século na
prisão, Campanella foi finalmente libertado. Em 1634, achavase de novo
sob ameaça e fugiu para a França.
Caso mais dramático que o de Campanella foi o de Giordano Bruno
( 1548 / 1600 ). Como Paracelso eAgrippa antes, Bruno foi o próprio
arquétipo do Mago do Renascimento. Entre inúmeras outras coisas, foi
poeta, dramaturgo, filósofo, teólogo, cientista, visionário e
autoproclamado mágico. Em alguns aspectos, como na

A INQUISIÇAO
megalomania, bem pode ter sido meio maluco; mas foi também um gênio
inquestionável, uma das mentes mais profundas, brilhantes, originais e
extraordinárias de sua época, cujo pensamento reverberou até nosso
século e injluenciou figuras como James Joyce.
Após treze anos num mosteiro dominicano em Nápoles, Bruno fugiu em 1576
e iniciou uma carreira peripatética, promulgando seu próprio sistema
místico através de pregações, ensino e conferências, e também pela
imprensa. Em 1581 ,já se tornara uma figura eminente em Paris e gozava
do favor da corte. Em 1583, chegou à Inglaterra, onde morou nos
alojamentos do embaixador francês. Meteuse num destacado debate público
em Oxford, expôs a teoria de Copérnico, de que a terra se move em redor
do sol, e produziu visível influência em figuras como o poeta Sir
Philip Sidney. Nos oito anos seguintes, viajou pela Alemanha, Suíça e
Boêmia, e em Praga conheceu o Sacro Imperador Romano Rodolfo 2.
Infelizmente para ele, seu sucesso causoulhe um excesso de
autoconfiança e um deslocado senso de impunidade. Em 1591, a convite de
um nobre veneziano, voltou imprudentemente à Itália. Um ano depois, foi
denunciado ao Santo Ofício, preso, transferido para Roma e encarcerado.
Nos sete anos seguintes, apesar da mais extrema e prolongada tortura,
discutiu tenazmente com a Inquisição. Á exigência dos Inquisidores de
que se retratasse, recusouse obstinada e repetidamente. Por fim, em
1600, foi oficialmente condenado por heresia e sentenciado à morte. A
17 de fevereiro daquele ano, foi para a estaca. Levaram-no amordaçado, a
fim de

COMBATENDO A HERESIA DO PROTESTANTISMO
Galilei ( 1564 / 1642), hoje um nome familiar a todo colegial. Tendo sido o
telescópio inventado pouco antes, Galileu construiu em 1609 a sua
própria versão do instrumento, mais potente, e começou a usálo, pela
primeira vez, para estudar o firmamento. Suas observações astronômicas
possibilitaramlhe demonstrar empiricamente que a teoria de Copérnico
era correta que a terra e os outros planetas do sistema solar giravam
de fato em torno do sol, e que a terra, portanto, não era o centro do
universo. Isso era contrário à doutrina da Igreja, que se apoiava na
versão bíblica da criação, no Gênese, com todas as implicações que a
acompanham. Em consequência, Galileu foi preso pelo Santo Ofício e
passou os últimos oito anos de sua vida na prisão, condenado por
heresia. Como urna reconsideração um tanto tardia, foi absolvido de
seus pecados pelo Vaticano em 1992, três séculos e meio após a sua
morte.
157
8 O Medo dos Místicos
E m Os Irmjos Karamázovi, o Grande Inquisidor de Dostoiévski está
implacavelmente disposto a mandar o próprio Jesus para a estaca, a fim
de preservar a estabilidade e eficiência da Igreja. Para entender essa
mentalidade quer dizer, entender o papel da Inquisição na história e
cultura européias, assim como suas prioridades devese encarar a
distinção entre religião e espiritualidade. Ou, para pôr a questão em
termos ligeiramente diferentes, devese encarar a distinção entre "uma
religião e a experiência religiosa. Essa distinção é crucial, na
verdade essencial, para qualquer compreensão dos problemas religiosos.
Mas é quase invariavelmente passada por cima, borrada ou confundida de
propósito. Para a maioria das pessoas, as palavras religião e
espiritualidade significam a mesma coisa e são usadas uma pela outra,
indiscriminadamente.
Podese ilustrar o caso em questão com uma analogia simples,
e até mesmo ostensivamente frívola. Imaginemos um indivíduo
quejamais houvesse visto a eletricidade como a conhecemos hoje
uma força regulada, domada e sujeita ao controle humano, ativada ou
desativada pelo virar de um interruptor. Esse indivíduo
158
O MEDO DOS MÍSTICOS
hipotético poderia ser de uma chamada sociedade primitiva, como as de
algumas ilhas do Pacífico durante a Segunda Guerra Mundial adeptos de
um culto do cargueiro, por exemplo, que encaravam os soldados aliados
como verdadeiros deuses baixados dos céus em grandes pássaros metálicos,
e que houvessem continuado a cultuá-los muito depois de cessadas as
hostilidades, em altares construídos de peças velhas de aviões, jipes
abandonados, pneus ou até mesmo latas de sopa Campbell.
Alternativamente, nosso indivíduo hipotético podia ser do passado um
índio americano antes da chegada do branco, ou mesmo um de nossos
ancestrais medievais teleportado, como num cenário de ficção
científica, para o presente
Um indivíduo desses ficaria deslumbrado, e mesmo aterrorizado, pelo
ambiente em que se veria de repente. Mas com todas as espetaculares
maravilhas à sua frente, na certa não ficaria impressionado com os
fios serpentinos que ligam nossas lâmpadas, geladeiras, televisores e
outros aparelhos a tomadas elétricas nas paredes. Se lhe dissessem que
essas tomadas eram uma fonte de imenso poder, nosso hipotético indivíduo
ficaria céptico. Se, no entanto, enfiasse o dedo numa dessas tomadas,
passaria por uma espécie de revelação. Em vernáculo contemporâneo,
ficaria ligadão. Aconteceria alguma coisa dramática, e mesmo
traumática, de um imediatismo e intensidade que não comportaria
qualquer questionamento, ato de crença ou descrença. Supondose que não
fosse sumariamente eletrocutado, nosso hipotético indivíduo sofreria
por alguns segundos uma alteração da consciência. Ficaria de cabelos
em pé. Suas faculdades se embolariam. Ele não poderia ter qualquer
pensamento consciente, e menos ainda fala coerente. Sem qualquer
consentimento voluntário de sua parte, um berro ou grito partiria de
seus lábios. Ele seria rasgado de si mesmo, de seus
159
A INQUISIÇÃO
costumeiros hábitos mentais, e projetado numa outra dimensão de
experiência.
Para um curioso ou circunstante, a provação de nosso indivíduo
hipotético sem dúvida sçria bastante real, "objetivamente" real. Esse
observador não haveria apenas imaginado o que acontecia, não haveria
tido uma alucinação. Estaria envolvido um mecanismo ou dinâmica
conhecidos, não apenas em termos fisiológicos, mas também
psicológicos. Porém seria de todo explicável em termos racionais. Para
nosso indivíduo hipotético, no entanto, sua experiência teria sido de
uma ordem inteiramente diferente. A realidade que enfrentaria dentro
de sua psique seria bastante diferente da do curioso ou circunstante.
Essa realidade usurparia todas as outras realidades, encheria e
transbordaria sua consciência, excluindo tudo mais. Podia mesmo
eclipsar toda a sua consciência.
Supondose que sobrevivesse a essa experiência, nosso indivíduo
hipotético sem dúvida sairia dela em estado de profunda desorientação.
Quando recuperasse o domínio de suas faculdades, iria querer saber o
que lhe acontecera, o que produzira aquele extraordinário momento de
alteridade. Não poderia contestar a experiência, discutila ou
negála, mas seria incapaz de explicar o que significava, o que queria
dizer. Nesse ponto, surgiria o problema que acompanha qualquer
experiência religiosa, qualquer tentativa de compreendêla, de
estabelecer sua importância para a existência diária e para a sociedade
como um todo o problema da interpretação.
Como ele próprio não teria um esquema ou contexto para explicar o que
passara, poderíamos oferecer a nosso hipotético indivíduo uma
interpretação que ele na certa estaria inclinado a aceitar, por falta
de qualquer alternativa. Poderíamos dizerlhe que ele acabara de fazer
um contato direto e imediato com o Grande Deus Eletricidade. Expor com
grande eloquência os poderes dessa divindade. Explicar como essa
divindade nos dava uma inesgotável
160
O MEDO DOS MÍSTICOS
fonte de energia divina que iluminava nossas casas e cidades, e nos
possibilitava transformar a noite em dia, que nos permitia receber sons
mágicos do ar em nossos rádios e mágicas imagens em movimento em nossas
televisões, que governava o funcionamento de nossos carros, geladeiras,
telefones, máquinas de lavar e todos os outros aparelhos e atavios da
civilização moderna. Poderíamos então idealizar e enevoar uma complexa
teologia baseada no Grande Deus Eletricidade. Descrever como o deus
deveria ser propiciado e docilizado. Explicar e demonstrar como o deus
poderia ser convencido a nos servir. E depois mandar nosso hipotético
homem de volta ao seu próprio meio, equipado com, digamos, um gerador
portátil e os outros aparelhos necessários para introduzir o deus em sua
sociedade.
Em seu meio, nosso hipotético indivíduo poderia estabelecer um culto sem
demasiada dificuldade e instalar-se como sumo sacerdote. Com seu kit
portátil, iniciaria os que o cercavam talvez muitos, talvez uns
poucos eleitos em seus mistérios. Para a maioria, bastaria
simplesmente ver um amigo, vizinho ou parente ser ligadão pelo novo
deus. Aceitariam prontamente então o novo deus como um ato de fé, sem
terem de passar eles próprios pela experiência.
Graças ao poder que demonstrara e controlara, nosso hipotético
indivíduo imporia sua própria teologia e com ela sua cosmologia, seu
dogma, código de ética, mandamentos, catálogo de sanções e proibições.
Na falta de qualquer outra, sua interpretação seria encarada como
definitiva, e sua autoridade, absoluta. Até que um dia, vagando na
floresta numa tempestade, ou empinando uma pipa como supostamente fez
Benjamin Franklin, algum outro indivíduo estabelecesse seu próprio
contato único com o Grande Deus Eletricidade, independentemente da
teologia e dogma predominantes. Descobriria que a
161
A INQUISIÇÃO
experiência em si não passava daquilo uma experiência vivida em
primeira mão, para a qual eram irrelevantes toda a bagagem intelectual,
todas as interpretações a posterlon.
Desconfiança dos Místicos Cristãos
Essa analogia bem pode parecer frívola. Serve no entanto para ilustrar
a distinção entre experiência religiosa, de um lado, e de outro a
combinação de fé e interpretação intelectual que envolve a religião. A
experiência religiosa que pode na verdade ser equiparada a
espiritualidade é acima de tudo uma experiência. Não exige nem
envolve crença nem fé. Implica o que o indivíduo que a sente no
momento só pode apreender como uma forma de conhecimento direto e que se
confirma por si mesmo; e conhecimento exclui qualquer necessidade de
acreditar. Se pomos as mãos num fogão quente ou numa chama, não
precisamos acreditar na dor. A dor é experimentada, imediata e
diretamente, com uma intensidade que usurpa o primeiro plano da
consciência, antecipandose à crença e às interpretações intelectuais,
tornandoas irrelevantes, secundárias e posteriores à apreensão ou
conhecimento diretos. Nos primeiros um ou dois séculos da era cristã,
essa apreensão direta era chamada de gnose, que significa
simplesmente conhecimento, Os que buscaram ou experimentaram a
gnose eram chamados, ou chamavam-se, gnósticos. Hoje poderíamos
chamá-los místicos, e atribuir sua experiência a uma dinâmica
psicológica ou alteração da consciência. Mas qualquer que seja a
terminologia, permanece a própria experiência bruta e nãodiluída,
dissociada de todas as interpretações racionais apostas após o fato.
A religião, em contraste, baseiase não na guose, mas numa teologia,
que é a interpretação intelectual atribuída após o fato à
162
O MEDO DOS MISTICOS
apreensão direta da gnose. Uma teologia tenta explicar a experiência
religiosa, determinar o que ela significa embora possa não
significar absolutamente nada, pelo menos em termos intelectuais. As
teologias envolvem dogmas, proibições e sanções, ritos e rituais. Quanto
mais complexas e elaboradas se tornam essas coisas, mais divorciadas e
dissociadas se tornam da experiência original que as inspirou no
início. A teologia acaba perdendo contato com a experiência original e
tornase um edifício intelectual por si mesma, que se autojustifica e
se basta. A religião baseada numa teologia dessas nada mais tem a ver
com espiritualidade. Transformouse em nada mais que um instrumento
de condicionamento e controle. E então apenas uma instituição social,
cultural e política, responsável por legislar a moralidade e manter
ou em alguns casos contestar - a ordem civil. E para a estrutura de
poder hierárquico que preside essa instituição, a gnose constitui uma
ameaça, porque torna supérflua a estrutura de poder. Para proteger a
estrutura de poder, seus guardiães devem transformar-se no Grande
Inquisidor de Dostoiévski.
A teologia e a religião organizada nela baseada são representadas pelo
sacerdote. A experiência religiosa é representada pelo místico. O
sacerdote promulga a fé e comercia com dogma intelectual, no ramo de
interpretação e codificação. Em suma, lida com a dimensão exotérica do
que em geral se chama o espiritual; e com demasiada frequência essa
dimensão deixa de ser espiritual nesse processo, tornando-se em vez
disso uma questão de dócil crença, aceita em segunda mão, ou de
racionalidade e intelectualidade. Em contraste, os místicos se vêem
diante do esotérico, a dimensão privada, pessoal ou "oculta" do
espiritual. Ele avive como experiência e a apreende como uma forma
de conhecimento direto, com uma intensidade e um imediatismo que se
antecipam a interpretação e crença.
163
A INQUISIÇÃO
Em vista dessas distinções, dificilmente surpreende que a maioria das
religiões estabelecidas e organizadas tenda a ficar nervosa em relação a
suas tradições místicas, aos místicos em suas congregações. O místico
sempre permanece como um desgarrado poten cial, um potencial renegado
ou apóstata, um potencial herege e
por conseguinte, um potencial candidato a perseguição. Devido àsua
insistência na experiência direta, ele não exige e nem mesmo precisa
necessariamente de um sacerdote como intérprete. Na verdade, o místico
torna supérfluos o sacerdote e toda a hierarquia eclesiástica.. E os
místicos das várias religiões do mundo em geral terão muito mais em
comum uns com os outros do que qualquer um deles com seus próprios
sacerdotes oficiais. A experiência esotérica do místico envolve um
denominador comum, uma comum dinâmica psicológica. A teologia exotérica
de uma classe sacerdotal invariavelmente diferirá de sua correspondente
nas outras, rivais
e a diferença muitas vezes culminará em violência. Por toda a história
humana, crentes têm feito guerra uns com os outros. Os gnósticos ou
místicos, não. As pessoas estão demasiado dispostas a matar-se em nome
de uma teologia ou uma fé. Estão menos dispostas a fazê-lo em nome do
conhecimento. Os dispostos a matar pela fé terão portanto interesse no
abafamento da voz do conhecimento.
Era assim inevitável que os místicos cristãos, mesmo aqueles dentro do
seio da Igreja, se vissem encarados como suspeitos. E era inevitável, em
consequência, que pelo menos alguns deles os que deram testemunho
público conspícuo de suas experiências se vissem sujeitos a
importunação e perseguições. Essa foi a sorte que coube à figura que
muitos podem encarar como o maior místico da Idade Média, Johannes
Eckhart.
Eckhart hoje geralmente conhecido como Meister Eckhart
nasceu na Alemanha por volta de 1260. Havendo entrado na

O MEDO DOS MÍSTICOS
Ordem dominicana, obteve um mestrado da Universidade de Paris em 1302 e
foi nomeado primeiro Prior da Saxônia dois anos depois. Em 1307,
fizeram-no chefe de todas as casas dominicanas na Boêmia. Em 1311,
estava ensinando teologia na Universidade de Paris. Voltou à Alemanha em
1313 e lá permaneceu como professor até sua morte em 1327.
A visão de Eckhart era tipicamente mística. Embora ensinasse teologia,
suas experiências místicas haviam-no convencido de que nada, em última
análise, era separado de Deus. Deus abrangia, incluía e impregnava toda
a criação, incluindo a humanidade. Em outras palavras, não havia
distinção entre Deus e o homem. Para transmitir esse senso da
onipresença do divino, Eckhart cunhou o famoso termo Istigkeit, que
pode ser melhor traduzido como serismo. Ao exaltar a supremacia dessa
imanência pessoalmente experimentada, rejeitou explicitamente todo
"culto externo".
Para os Inquisidores entre seus colegas dominicanos, assim como para o
Arcebispo de Colônia que os presidia, as declarações de Fckhart
pareceram perigosamente próximas de uma forma de panteísmo, que era
julgado herético. Na verdade, desconfiouse que ele estivesse ligado a
certas seitas heréticas condenadas exatamente por panteísmo. Em 1326,
fizeram-se queixas ao Papa de que Eckhart pregava uma doutrina errônea,
e nomeouse um Inquisidor especial para investigar as acusações.
Acontece que o próprio Inquisidor revelou ter tendências místicas e
simpatia pela visão do acusado. Irrompeu uma prolongada polêmica entre
os críticos e os defensores de Eckhart, e seu caso se arrastou por
quase um ano, até 1327. Antes que se pudesse resolvêlo, ele próprio
morreu, mas os procedimentos continuaram por dois anos após a sua
morte. Finalmente, em 1329,julgouse que suas doutrinas continham
dezessete exemplos de heresia e onze de suspeita de heresia. Somente
165
A INQUISIÇÂO
por meio de uma complicada batalha legal ele foi poupado da indignidade
pública de ter seus restos exumados e queimados.
Na Inglaterra, a Inquisição não atuou e não teve tribunais permanentes.
Durante ojulgamejito dos Templários, que coincidiu com a carreira de
Meister Eckhart, tevese de trazer Inquisidores do exterior, apenas
para serem recebidos com uma gélida acolhida e, na melhor das hipóteses,
relutante cooperação. Em consequência, pôde florescer uma tradição
mística inglesa, e não se molestaram místicos como Madre Juliana (ou
Julião) de Norwich. Mas mesmo na Inglaterra os místicos reconheceram a
mentalidade inimiga da Inquisição. Entre os mais importantes textos
místicos ingleses estáA Nuvem do Desconhecimento, de um autor anônimo do
século 14 que contém afirmações muitas vezes intercambiáveis com as de
Meister Eckhart. Com este, A Nuvem do Desconhecimento exorta ao leitor
que, "sim, tu e Deus são tão um só que tu... podes num certo sentido
ser chamado de divino.i E mais:
A humildade engendrada por esse conhecimento experiencial da bondade e
amor de Deus, eu chamo perfeita... Pois às vezes pessoas bem adiantadas
na vida contemplativa recebem tal graça de Deus que são repentina e
completamente arrancadas de si mesmas e nem se lembram nem se importam
se são santos ou pecadores. 2
Mas da segurança de uma Inglaterra livre da Inquisição,A Nuvem do
Desconhecimento podia ser explícito na condenação dos Inquisidores,
chegando até a censurá-los como agentes do infernal:
Também neste caso, o demônio enganará algumas pessoas com outra
insidiosa trama. Ele as atiçará com o zelo para manter a lei de Deus
desenterrando o pecado do coração dos outros.., as incitará a assumir o
papel do zeloso prelado supervisionando cada aspecto da vida cristã..,
afirmará que o impelem o amor de
166
O MEDO DOS MÍSTICOS
Deus e o fogo da caridade fraterna. Mas na verdade mente, pois é o fogo
do inferno em seu cérebro e imaginação que o incitam.3
Se os místicos ingleses escaparam ilesos da perseguição, os da Espanha
atraíram uma atenção particularniente constante da Inquisição ali.
Apesar disso, porém, a Espanha parece ter produzido misticismo numa
escala sem igual em outras partes da Europa Ocidental . Na verdade,
durante os séculos 16 e 17 ocorreu ali uma verdadeira epidemia de
misticismo. Os que supostamente sucumbiram à contaminação eram
conhecidos coletivamente como Alumbrados, que se traduz como
Iluminados.
É importante reconhecer que os Altnnbrados espanhóis eram bastante
diferentes dos posteriores Iluminados da Baviera no século 18.
Diversamente de seus homônimos alemães, os espanhóis não eram uma
sociedade secreta organizada e estruturada em hierarquia, dedicada à
revolução política ou social. Ao contrário, eram apenas um certo número
de indivíduos díspares, a maioria dos quais não tinha contato formal uns
com os outros nem programa ou agenda. Alguns deles haviam
inquestionavelmente passado pela mçafl
a ecxistência mística. Outros, sem ter passado por ela,
simplesmente acreditavam na supremacia da experiência mística sobre o
ato de fé convencional
e com isso faziam o seu próprio ato de fé, um tanto menos
convencional. De qualquer modo, e qualquer que fosse sua experiência
em primeira mão ou ausência dela, osAlumbrados falavam
caracteristicamente de uma luz interior, da unidade de toda criação, da
unidade do homem com Deus, da necessidade de abandonar-se a todos os
impulsos tidos como de origem divina. Em muitos aspectos, suas
afirmações ecoam as de uma heresia muito mais antiga e organizada, os
Irmãos do Livre Espírito, que predominara na Alemanha, Flandres e
Holanda desde a Idade Média. A Holanda, claro, foi ocupada e devastada
por tropas espanholas. Não é impos
167
A INQUISIÇÃO
sível que princípios originados com os Irmãos do Livre Espírito tenham
chegado à Espanha com a soldadesca que voltava.
A Inquisição espanhola foi particularmente severa com os Alumbrados.
Todos os textos deles foram postos no Index. Em 1578, a Inquisição
modificou sua declaração de fé oficial a fim de rotular como heresia e
erro teológico várias afirmações dos Alumbrados. Daí em diante, a
perseguição aos místicos espanhóis adquiriu novo impulso e ferocidade.
As penas mais leves e multas, penitências, mesmo a tortura começaram
cada vez mais a levar à estaca.
Provavelmente a mais festejada dos místicos espanhóis da época é Teresa
Sánchez de Cepeda y Ahumada, mais conhecida como Santa Teresa de Jesus,
ou Santa Teresa d'Ávila (15 1582). Nascida numa família nobre, Teresa
recebeu um mínimo de educação formal, que lhe possibilitou passar
grande parte da meninice imersa em romances de cavalaria aqueles que
Cervantes iria satirizar em Dom Quixote três quartos de século depois.
Esses livros logo seriam substittiídos em sua dieta literária por obras
religiosas. Durante toda a vida, Teresa foi atormentada por várias
doenças nervosas que a afetaram física e psicologicamente, e que podem
ter incluído uma forma de epilepsia. Na Espanha da época, sua saúde
instável a teria desqualificado para uma existência secular de
casamento e filhos. De qualquer modo, ela sentiu a vocação religiosa e
em 1535, aos vinte anos, entrou num convento carmelita em Avila. Vinte
anos depois, quando rezava numa capela, teve sua primeira experiência
mística. Daí em diante, a experiência mística ou visionária o que ela
própria chamou de arrebatamento seria um traço regular e recorrente
de sua vida.
A conselho dos confessores, compôs uma autobiografia que descrevia suas
experiências. A Inquisição proibiu a publicação durante a vida de
Teresa, talvez temendo que se formasse um culto à sua volta, como o que
surgira em torno de São Francisco dois
168
O MEDO DOS MISTICOS
séculos e meio antes. Em vez disso, permitiramlhe seguir seu desejo de
um estilo de vida mais simples e austero fundando um convento próprio.
Ela chamou essa irmandade de Carmelitas Descalças. De dentro de seu
claustro, continuou a escrever. Concluiu a autobiografia, descrevendo
como mansões os sucessivos estágios pelos quais se atingia a união
com Deus. Escreveu uma história da fundação de seu convento, que logo
iria ter umas dezessete casas irmãs. Produziu um guia espiritual para as
freiras de sua Ordem e um manual de exercícios espirituais. Também
produziu um impressionante conjunto de poesia. De sua copiosa
correspondência, sobrevivem mais de 400 cartas.
Comentaristas posteriores muito exploraram a natureza erotica das
experiências místicas de Teresa. Com uma imagística sexual de
impressionante explicitude, ela se descreve sendo arrebatada por um
amante divino, ou divino amor; e seu êxtase às vezes dá a impressão de
um orgasmo espiritual ou espiritualizado. Há sem dúvida um elemento
patológico no misticismo de Teresa, que um freudiano atribuiria à
sublimação da sexualidade reprimida. Seria um erro, no entanto, reduzir
o misticismo dela a apenas isso. A experiência mística e a experiência
erótica sempre estiveram estreitamente relacionadas em sua dinâmica
psicológica, e muitas vezes uma se expressa com as imagens da outra.
Por trás da imagística sexual de Teresa, permanece uma experiência que
místicos de todas as épocas, todas as tradições religiosas, vêm
consistentemente se esforçando por expressar, mesmo os mais bem
ajustados em termos sexuais. Assim, por exemplo, Teresa descreve como,
durante o estado de arrebatamento, a alma se dissolve em Deus, a um
ponto em que se erradica toda distinção. A alma, dizlhe Deus,
"dissolvese absolutamente... para repousar mais e mais em Mim. Não é
mais ela própria que vive; sou Eu.
169
A INQUISIÇÃO
Como fazem tradicionalmente os místicos, Teresa reconhece a futilidade
última de tentar uma comunicação: "A glória que senti dentro de mim não
pode ser expressa por escrito, e nem mesmo em palavras; é inconcebível
para quajquer um que não a tenha experimentado. E confessa:
Uma coisa eu ignorava a princípio. Não sabia realmente que Deus está
presente em tudo, e quando Ele me pareceu tão perto, pensei que aquilo
era impossíveL.
Qualquer tentativa de descartá-la como simples neurastênica ou histérica
seria negada por sua autobiografia e suas cartas, que
mostram uma surpreendente astúcia secular, admiráveis pragmatismo e
sensatez, um saudável senso de humor. Também demonstram uma aguda
consciência dos perigos representados pela Inquisição. Teresa fica
visivelmente nervosa com a possibilidade de seu testemunho ser condenado
como herético. Escreve ao confessor que ele só deve aceitar sua obra
desde que minha história seja consistente com as verdades de nossa santa
Igreja Católica. Se não, Vossa Reverência deve queimá-la imediatamente,
e eu concordo com sua destruição. Escreverei minha experiência para
que, se estiver de acordo com a crença cristã, seja de alguma
utilidade.
Na autobiografia, ela declara que alguns clérigos não quiseram ouvir
suas confissões. Alguns dos que ouviram, diz, declararam-na possuída por
demônios e precisando de exorcismo. Informa que um deles concluiu
definitivamente que estava sendo enganada pelo diabo. E fala, também, de
amigos que foram avisá-la de "que alguma acusação pode ser levantada
contra mim, e que eu posso ter de comparecer perante os Jnquisidores.
170
Havia, claro, motivos para tal preocupação O misticismo radical de
Teresa era intrinsecamente inimigo da estrutura hierárquica da Igreja,
desafiando, de maneira implícita, a importância da classe sacerdotal
estabelecida. Ela aborda diretamente a distinção feita no início deste
capítulo entre a experiência mística e qualquer interpretação a
posteriori dessa experiência. Reconhece que, em questões espirituais,
muitas vezes tentamos interpretar tudo à nossa maneira, como se fossem
coisas deste mundo, e assim distorcemos a verdade. Afirma ousadamente
que "o uso do hábito não basta para fazer de um homem um frade, nem
implica aquele estado de grande perfeição que é próprio de um frade. E
depois, de repente cautelosa, acrescenta: Nada mais direi sobre este
assunto.
Não menos polêmica é a afirmação de Teresa de que a simples adesão a
formas de ritual, por mais constante e prolongada que seja, não torna a
graça de Deus isto é, a experiência mística nem um pouco mais
certa: vezes damos uma patética importância a coisas que fazemos
para o Senhor que não poderiam ser de fato consideradas importantes,
mesmo que as fizéssemos com muita frequência. E:
Achamos que podemos medir nosso avanço pelo número de anos durante os
quais vimos praticando a prece. Pensamos mesmo que podemos descobrir uma
medida para Aquele que nos concede imensuráveis dádivas segundo o Seu
prazer, e que pode dar mais a uma pessoa em seis meses que a outra em
muitos anos.
E mais uma vez:
é perigoso ficar contando os anos em que vimos praticando a prece. Pois
embora se possa fazê-lo com humildade, isso sempre parece capaz de
deixarnos a sensação de que conquistamos algum mérito com o nosso
serviço.., qualquer pessoa espiritual


que acredite que, pelo simples número de anos em que praticou a prece,
conquistou essas consolações espirituais, não alcançará, estou certa, o
pico da espiritualidade.
Mais perigosamente ainda, Tresa se opunha de maneira militante à
manutenção de posses, não apenas pelos monges, mas também por outros
eclesiásticos:
Alguém certa vez me pediu para perguntar a Deus se O estaria servindo ao
aceitar um bispado. Após a comunhão, disseme o Senhor: "Dizlhe que
quando real e claramente entender que o verdadeiro domínio consiste em
não possuir nada, pode aceitálo." Mas com isso queria dizer que
qualquer um que vai assumir autoridade deve estar muito longe de
desejar fazêlo. Pelo menos, não deve nunca se esforçar para obter um
cargo. '
Teresa foi sem dúvida afortunada pelo fato de que, ao conquistar
proeminência, Torquemada havia muito morrera. Além de ser proibida de
publicar em vida, escapou de ser molestada pela Inquisição o que
provavelmente se deve qualificar mais como um milagre do que qualquer
outra coisa em sua vida. Em 1622, quarenta anos após sua morte, foi
canonizada.
Mas se Teresa escapou das garras da Inquisição, muitos outros místicos
alguns conhecidos pessoais dela não escaparam. O principal entre eles
foi um dos mais importantes poetas da época, Juan de Yepes y Alvárez,
que adotou o nome de Juan de la Cruz (João da Cruz). De origens
humildes, nasceu mais de uma geração depois de Teresa, em 1542. Em
1563, aos vinte e um anos, entrou na reformada Ordem das Carmelitas
Descalças de Teresa e tornouse diretor espiritual de seu convento em
Ávila em 1572. Nos grande poemas místicos que constituem seu legado à
posteridade, tratou tanto da experiência espiritual quanto da "negra
noite da alma" que a antecede.
172
Maçonaria e Inquisição
Na Europa do início do século 17 uma Europa não mais sujeita à
hegemonia da Igreja proliferavam heresias, misticismo e filosofias de
orientação mística. Fizeram-se várias tentativas afinal fúteis de
institucionalizar a experiência mística e estabelecêla como uma nova
religião mundial, que tudo abrangia diluída e distorcida, inevitável
e paradoxalmente, pelos dogmas que a acompanhavam. Também se tentou
adaptar o misticismo à política, e estabelecer um estado utópico ideal,
apoiado em fundações místicas. Assim, por exemplo, foi a voga do
chamado pensamento rosacruciano, que começou a aparecer por volta de
1614, saudado por seus expoentes como o arauto de uma nova Idade de
Ouro. Embora o rosacrucianismo tivesse uma visão mais gnóstica, mais
abrangente e tolerante, mais psicologicamente sofisticada e
espiritualmente honesta que o catolicismo ou o protestantismo, também
envolvia uma interpretação intelectual da experiência empírica; e quanto
mais complexa se tornava a interpretação, mais a própria experiência
recuava para o fundo, sendo suplantada por mais uma teologia.
A Igreja sem sombra de dúvida se sentiu ameaçada pelo rosacrucianismo,
e o Santo Ofício acrescentou devidamente os suspeios
174
de ser seus adeptos à lista de transviados. Como as bruxas, os
rosacrucianos deviam ser caçados, denunciados e vigorosamente
processados. Mas o principal réu aos olhos de Roma continuou sendo o
protestantismo, com o qual os primeiros tinham ligações meio tênues.
Afinal, fora o protestantismo que criara as circunstâncias e o clima
espiritual em que o rosacrucianismo, junto com outras formas de
pensamento heterodoxo, pudera vicejar. E assim o protestantismo
continuou sendo o alvo básico da ContraReforma. Se os jesuítas e o
rebatizado Santo Ofício representavam esta na esfera do pensamento,
ensinamento e doutrina a correspondente ofensiva social, política e
militar foi realizada pelo menos inicial e ostensivamente pelos
exércitos católicos da Espanha e do Sacro Império Romano, ambos sob os
Habsburgos.
A ofensiva ocorreu na forma da Guerra dos Trinta Anos ( 1618 a 1648) um
conflito semelhante a uma guerra mundial no sentido moderno, e o mais
apavorante, custoso e catastrófico travado em solo europeu antes do
século 20. Nessa guerra, a Igreja não acabou apenas frustrada, mas, a
seus olhos, escandalosamente traída. Quando cessaram as hostilidades, a
autoridade de Roma viase ainda mais fragmentada que antes. Depois de
empenhar-se em sua própria guerra civil, a Inglaterra, sob o Protetorado
de Cromwell, achavase ainda mais firmemente protestante que nunca. O
protestantismo da Escandinávia e dos estados do norte da Alemanha era
igualmente inatacável, e a Holanda protestante emergira como grande
potência mundial, pelo menos no mar e no exterior. As potências navais
protestantes Inglaterra e Holanda agora lutavam uma contra a outra pelo
controle dos mares e das colônias, antes dominados exclusivamente por
Espanha e Portugal.
Pior que tudo para a Igreja, a França suplantara a Espanha
como potência militar suprema no continente europeu; e fizera
isso alinhandose com o inimigo confesso. A política francesa
175 MAÇONARIA E INQUISIÇÃO
A INQUISIÇÃO
durante a Guerra dos Trinta Anos fora orquestrada não pelo apático
Luís 13

, mas pelo seu primeiroministro, o Cardeal Richelieu. E este, um
cardeal católico que aplicava a política de um país
predominantemente católico, passou a usar tropas católicas em
favor da causa protestante. Embora outros países, sobretudo a Suécia,
houvessem repetidas vezes frustrado o poder militar da Igreja, no fim
foi a França católica que despedaçou a supremacia marcial da católica
Espanha. A Guerra dos Trinta Anos começara como um conflito
predominantemente religioso, com exércitos católicos tentando extirpar
o protestantismo na Boêmia e Alemanha. Quando a guerra terminou,já se
transformara num conflito de interesses, travado pelo equilíbrio de
poder; e a religião se tornara incidental e subordinada a interesses
seculares. A França, antes encarada como "a mais antiga filha da
Igreja, agora dominava a Europa; mas suas prioridades haviam passado a
girar menos em torno do trono de São Pedro que do trono do "Rei Sol,
Luís 14, e sua corte em Versalhes. O regime protegeu ciosamente sua
independência do controle papal. Tinha até mesmo o direito de nomear
seus proprios bispos.
Essa eraa situação depois da Guerra dos Trinta Anos e durante a última
metade do século 17. Em 1725, a autoridade da Igreja no continente se
tornara ainda mais erosada, sua posição ainda mais precária. Em 1688,
James 2 da Inglaterra se convertera ao catolicismo, e o Papado pôde
por um breve instante antever-se reinstalado como o poder religioso
oficial das Ilhas Britânicas. Mas a GrãBretanha continuou inflexível em
sua oposição ao papismo e James foi repudiado pelos súditos, que
ofereceram a coroa a seu genro, Guilherme de Orange. Seguiram-se o sítio
de Londonderry e, em 1690 e 1691 respectivamente, as duas batalhas
decisivas de Boyne e Aughrim. Como resultado, James foi deposto e o
Parlamento aprovou a legislação que impedia um católico de algum dia
176
MAÇONARIA E INQUISIÇÃO
sentar-se no trono britânico. Os agora católicos Stuarts fugiram para o
exílio, de onde repetidas vezes tentaram fomentar a rebelião na Escócia,
culminando com a campanha de Charles Edward Stuart, o Bonnie Prince
Charlie, em 1745 . Nada ia resultar desses esfrços. Mesmo que a
campanha de 1745 fosse vitoriosa, é duvidoso que os seguidores
presbiterianos de Bonnie Prince Charlie aceitassem um monarca católico;
e se fosse obrigado a escolher entre a Igreja e o trono britânico, o
príncipe quase certamente teria escolhido o último.
No continente, a Espanha, antes o supremo executor militar e naval da
Igreja, fora reduzida a um estado secundário; e em 1704, as outras
grandes potências da Europa, inteiramente indiferentes a Roma, lutavam
para decidir se o cada vez mais decrépito Império espanhol seria
governado por um Bourbon ou um Habsburgo. A Áustria permaneceu
nominalmente católica e conseguiu repelir uma grande arrancada islâmica
rumo ao ocidente. Em meados do século 18, porém, sua influência na
Europa Central era contestada e neutralizada pelo advento de uma nova
e poderosa potência protestante no norte, o novato Reino da Prússia,
criado em 1701. Durante as guerras da época, também a Rússia fez seu
début no tabuleiro de xadrez da política européia, levando mais uma
ameaça a Roma, na forma da Igreja Ortodoxa.
Das potências católicas que haviam sido antes as executivas da Igreja
nas esferas seculares, só restava a França. Contudo, a França mantinha
ferozmente sua independência em relação a Roma. E embora ainda
nominalmente católica, agora começava a representar a maior ameaça de
todas uma ameaça no mundo das idéias e valores, e portanto mais
difícil de combater que qualquer edifício militar ou político. Sob a
influência do racionalismo cartesiano, a França, em medos do século
18, assumira a vanguarda do sentimento anticlerical e tornarase um
verdadeiro viveiro de
177
A INQUISIÇÃO
hostilidade em relação à religião organizada em geral e ao
catolicismo em particular. Nos textos dos philosopheshomens como
Montesquieu, Diderot e, supremamente, Voltaire a outrora augusta e
inatacável Igreja era não só repudiada, mas aberta, escan
dalosa e bLasfemamente ridicularizada. Para mortificação da hierarquia
eclesiástica, Roma tornouse uma espécie de piada permanente, objeto de
impiedosa zombaria. Pondo os autores dessa zombaria no Index, o Santo
Ofício só conseguiu parecer mais pueril, mais humilhantemente
impotente.
Se o racionalismo cartesiano e os textos de lespliilosophes
representavam grandes desafios à Igreja, um outro, de magnitude
comparável, era apresentado pela disseminação da maçonaria. A
instituição conhecida com esse nome se formara, pelo menos em alguma
coisa semelhante à sua forma moderna, na Escócia e Inglaterra, no
início do século 17. No fim do Protetorado de CromweLl e restauração
dos Stuarts no trono britânico em 1660, a maçonaria pareciajá estar
espalhada pelas Ilhas Britânicas, cada vez mais partidária da dinastia
reinante. Se se houvesse confinado à GrãBretanha, uma causajá perdida
mesmo aos olhos de Roma, a Oficina, como era conhecida, poderia ter
sido ignorada. Mas quando os Stuarts foram expulsos para o exílio,
levaram a maçonaria consigo; e nos anos seguintes ela passou a
proliferar rapidamente por todo o continente.
Segundo a documentação hoje existente, a primeira Loja fora das Ilhas
Britânicas foi fundada em Paris, em 1726, por Charles Radclyffe, depois
Duque de Derwentwater, neto ilegítimo de Carlos 2. Em 1746, Radclyffe
seria executado em Londres por seu papel no lance de Bonnie Prince
Charlie pelo trono britânico. Antes de morrer, no entanto, elejá
fundara outras Lojas da França, e a maçonaria ganhara um irresistível
impulso próprio. A primeira Loja do Império austríaco foi estabelecida
em Praga em 1726,


pouco depois da de Radclyffe em Paris. Em 1736, depois de iniciado como
maçom cinco anos antes, Francisco, Duque de Lorena, casouse com Maria
Teresa vou Habsburg, tornandose assim governante conjunto do Império
austríaco. Ele fundou uma Loja em Viena e estendeu sua proteção à
maçonaria em todos os domínios dos Habsburgos.
A primeira Loja na Itália foi fundada em 1733, na Holanda em 1734, na
Suécia em 1735, na Suíça em 1736. A primeira Loja alemã foi estabelecida
em Hamburgo, em 1737. Um ano depois, o futuro Frederico o Grande da
Prússia foi iniciado e em seguida fundou sua própria Loja em seu castelo
de Rheinsberg. Em 1740, fundouse uma Loja em Berlim. Nessa época, o
número de Lojas na Holanda e Suéciajá se tornara suficientemente grande
para permitir a criação de uma Grande Loja nacional. Em 1769, só em
Genebra havia dez Lojas. Nas fuças mesmas da Inquisição, também se
estabeleceram Lojas na Espanha e Portugal.
Em meados do século 18, a maçonaria chegara a todo canto da Europa
Ocidental. Já se espalhara para as Américas, do outro lado do Atlântico.
Logo se estenderia para a Rússia no leste, assim como para as colônias
européias na Ásia, o subcontinente indiano e o Pacífico. Além de
Frederico o Grande e o Sacro Imperador Romano Francisco de Lorena, as
fileiras da maçonaria incluíam cabeças coroadas como Estanislau 2 da
Polônia, Adolfo Frederico da Suécia, e, segundo informações não
confirmadas, Luís 15 da França. Também incluíam muitos patriarcas dos
futuros Estados Unidos, como Benjamin Franklin e George Washington. E
destacadas figuras literárias como Montesquieu, Diderot, Voltaire e,
no fim do século 18, Goethe e Schiller. Na GrãBretanha, membros de
destaque da dinastia hanoveriana reinante eram maçons, como o eram
Pope, Swift, Boswell e Hogarth.


A ameaça representada pela maçonaria para a Igreja era múltipla. Em
primeiro lugar, muitas, senão a maioria das Lojas na época, defendiam
pelo menos um certo grau de racionalismo cartesiano, e assim serviam
como conduto pira modos de pensamento inimigos do catolicismo. A
maçonaria jamais pretendeu ser uma religião rival ou alternativa; mas
suscitava questões espirituais, e com isso apresentava desafios à fé
dogmática, dócil e obsequiosa exigida por Roma. Enquanto esta se apegava
obstinadamente ao dogma que não mudara em séculos, a maçonaria abraçava
o mundo em rápida mutação do século 18, com seu progresso comercial,
industrial e científico. Esse mundo também incluía significativa
mudança social, com uma ênfase sem precedentes no igualitarismo e nos
direitos humanos. Enquanto a Igreja olhava para trás, a maçonaria
olhava para a frente; e quando Roma contemplava o futuro, esse futuro
parecia ter mais probabilidade de ser influenciado pela Loja que pelo
púlpito.
Havia outros motivos de preocupação. Até a Reforma, a Igreja, mesmo que
apenas em teoria, representara o supremo árbitro da cristandade
ocidental. Na verdade, atuava, ou supunhase que atuava, como um fórum
internacional o equivalente da época à Liga das Nações, ou às Nações
Unidas. Mesmo que apenas em teoria, disputas seculares entre potentados
rivais, por exemplo, eram submetidas a arbitragem e julgamento pela
Igreja. Esta tinha autoridade e mandato para agir conio negociadora,
pacificadora e facilitadora de reconciliação.
Esse papel foi dramaticamente restringido pela Reforma. As igrejas
protestantes dificilmente estavam dispostas a aceitar a autoridade
católica em questões espirituais ou temporais. Mas o catolicismo ainda
retinha bastante trânsito no continente na França, Espanha e Portugal
para oferecer pelo menos um terreno comum no qual se pudesse
estabelecer um rapprochement. Era


exatamente nessa área que a maçonaria ameaçava invadir as funções
tradicionais da Igreja, talvez até usurpálas.
Diversamente da Igreja, a rede de Lojas transcendia as denominações,
possibilitando a católicos e protestantes conversarem uns com os outros
sem os grilhões de doutrina e dogma. A proliferante rede de Lojas
permitia ao mesmo tempo um canal para a transmissão de mensagens e um
fórum para contatos intergovernamentais e internacionais de alto nível,
para discussões nãooficiais de tratados, delicadas negociações
diplomáticas. Assim, por exemplo, a Prússia protestante, sob Frederico o
Grande, e a Austria católica, sob Maria Teresa e Francisco de Lorena,

podiam estar em guerra como de fato estiveram em duas ocasiões
distintas, entre 1742 e 1763. Mas Frederico e Francisco eram maçons,
como o eram muitos de seus ministros e comandantes militares. Por
intermédio das Lojas, podiase mandar batedores da paz e estabelecer
terrenos comuns de uma maneira não mais possível através da Igreja. Por
meio das Lojas, podiam formar-se novas alianças, novos alinhamentos e
configurações para manter em equilíbrio a balança de poder. Isso sem
dúvida complementou a fluidez da política da era, e assim se pôde
instigar fatos como a famosa Revolução Diplomática. Durante a Guerra
da Sucessão austríaca ( 1742 ), a Austria se alinhou com a GrãBretanha
contra a Prússia e a França. Em consequência da Revolução
Diplomática, os antagonistas trocaram deparceiros. Durante a Guerra
dos Sete Anos ( 1756 1763), a Áustria se alinhou com a França contra a
Prússia e a GrãBretanha.
Desnecessário dizer, claro, que as potencialidades oferecidas pelas
Lojas não eram sempre atualizadas, e com a mesma frequência permaneciam
ou não puramente teóricas. Mas a capacidade de arbitragem da Igreja
também raras vezes fora mais que teórica; e as Lojas tinham pelo menos
tanto êxito quanto ela no transformar teoria em prática. Mesmo que não
se pudesse evitar a guerra,
181

podiase fazer com que se aceitassem, até onde possível, regras
escrupulosamente observadas e certas premissas do Iluminismo promulgadas
pelas Lojas. E na verdade, as guerras do século 18, ao contrário das
do século 17, foram feitas de modo tão civilizado, cavalheiresco e
fidalgo quanto qualquer guerra poderia ser feita, em rigorosa
aderência a princípios e padrões de comportamento internacionalmente
acertados e aceitos. Em parte, isso refletia a repulsa aos excessos de
conflitos como a Guerra dos Trinta Anos, mas também provinha da
ausência de ódio e fanatismo religiosos, e o reconhecimento de alguns
códigos cada vez mais respeitados. Estes códigos possuiam mais do que
um pouco das idéias, atitudes e valores disseminados pelas Lojas.
Ataques a Maçonaria
Assustada com a vigorosa disseminação da maçonaria e as ameaças
representadas pela instituição, a Igreja passou à ação. A 25 dejulho de
1737, convocouse uma conferência secreta do Santo Ofício em Florença,
provavelmente sob os auspícios do próprio Papa Clemente 12.
Assistiram-na três cardeais, os chefes das Congregações papais básicas
e o Inquisidor Geral. O único tópico de discussão foi a maçonaria.1
Os vazamentos de informaçao de alto nível naquela época eram quase tão
comuns quanto hoje, e informações sobre o conclave secreto logo foram
publicadas num jornal de Berlim. Segundo essas informações, os
eclesiásticos reunidos estavam convencidos de que a maçonaria era
apenas a fachada de uma heresia
muito mais vasta, abrangente e clandestina, de um tipo inteiramente
novo. É difícil imaginar o que os clérigos acreditavam que implicasse
uma tal heresia, para gerar tão extrema ansiedade. De qualquer modo,
informou o jornal de Berlim, maçonsjá começa


vam a ser presos. Mais tarde, no mesmo ano, motins antimaçons instigados
por mãos invisíveis explodiram em várias cidadezinhas. Tornavase cada
vez mais claro que poderosos interesses nos bastidores começavam a
mobilizar-se contra a maçonaria.
Nove meses após a conferência em Florença, a 28 de abril de
1738, o Papa Clemente emitiu a primeira do que ia se tornar uma
sequência cada vez mais beligerante de Bulas sobre o assunto.
A Bula, In erninenti, começava:
Condenação da Sociedade, Lojas... (de) maçons, sob pena de excomunhão a
ser incorrida psoIacto, e a absolvição sendo reservada ao Sumo
Pontífice.
No texto que se seguia, o Papa declarava que
é nossa vontade e encargo que além de Bispos ou prelados mais elevados,
e outros Ordinários locais, como os delegados Inquisidores de
Depravação Herética em outras partes, empreendam ação e façam
inquisição contra transgressores, de qualquer status, grau, condição,
ordem, dignidade ou eminência, e inflijam a eles punição condigna, como
fortemente suspeitos de heresia, e exerçam constante contenção sobre
eles.
A contenção em questão prisão e correspondente punição devia, se
necessário, ser aplicada e efetuada com a ajuda do ramo secular.
Relutando em antagonizar a Igreja, vários dos regimes europeus agiram
de imediato. Já no verão anterior, a polícia da França começara a
prender membros de Lojas e confiscar sua literatura da qual deriva
grande parte do nosso conhecimento da maçonaria francesa da época. Na
Polônia, a maçonaria foi proibida em todo o reino. Na Suécia, a
participação em rituais maçônicos foi declarada punível com a morte.
Encorajada por essa resposta, a Igreja endu

receu sua posição. A 14 dejaneiro de 1739, o CardealJoseph Firrao,
Secretário de Estado do Vaticano, publicou um novo édito. Todos os
maçons, em toda parte, eram ameaçados de confisco de suas posses,
excomunhão e morte.
Em fevereiro de 1739, um texto maçônico escrito em francês mas
publicado em Dublin foi condenado, posto no Index e oficialmente
queimado na Piazza Santa Maria Minerva em Roma. Pouco depois, vários
maçons em Florença foram presos, encarcerados e torturados. Um deles
conseguiu obter a liberdade quando algumas Lojas inglesas fizeram uma
doação financeira isto é, pagaram uma multa ao Santo Ofício.
Outros foram libertados graças à intervenção de Francisco de Lorena,
cujos títulos incluíam o de Grão Duque da Toscana.
Em 1751, o sucessor do Papa Clemente 12, Benedito 14 emitiu uma
segunda Bula contra a maçonaria, repetindo as condenações da primeira,
mas acrescentando penalidades ainda mais severas. Apesar de tais
medidas, porém, e para profunda consternação do Santo Ofício, católicos
em números substanciais continuaram a entrar em Lojas. Mais
preocupante ainda, as Lojas começavam a atrair não apenas católicos
leigos, mas também padres, e vários membros do alto clero. Uma Loja em
Mainz, por exemplo, era quase inteiramente composta de clérigos. Outra,
em Munster, incluía os auxiliares do próprio bispo. Em Erfurt, o futuro
bispo fundou ele próprio uma Loja, que se reunia nos aposentos do abade
de um mosteiro importante. Uma Loja em Viena incluía dois capelães
reais, o reitor do colégio teológico e mais dois padres. Outra Loja
vienense contava com não menos que treze padres entre seus membros. No
fim do século 18, a lista de maçons católicos de alto bordo foi
aumentada por numerosos abades e bispos, um capelão imperial e pelo
menos cinco arcebispos. A maçonaria tornavase rapidamente uma hidra
de tantas cabeças, tão irre

primível, quando o protestantismo duzentos e tantos anos antes. E a
Igreja, cada vez mais privada de exércitos seculares para impor sua
autoridade, viase significativamente mais impotente que na época da
Reforma.
Onde a lei do Santo Ofício ainda se aplicava, porém, os maçons eram
presa fácil, e perseguidos com tanta constância quanto as bruxas antes.
Isso se aplicava em particular à Espanha e Portugal, onde ainda atuava
uma Inquisição nacional, que prestava contas à Coroa. Pouco depois do
primeiro pronunciamento papal contra a maçonaria em 1738, a Inquisição
espanhola invadiu uma Loja em Madri e prendeu seus membros, oito dos
quais foram condenados às galés. Em 1748, a Inquisição completou uma
investigação de quatro anos sobre a maçonaria. Concluiu que todos os
maçons estavam sujeitos a excomunhão automática, como "réprobos
perversos que agem contra a pureza da Santa fé e a segurança pública
do reino. Três anos depois, em 1751, a Inquisição conseguiu um decreto
da Coroa que sancionava a pena de morte automática para os maçons e
negavalhes até mesmo o direito de julgamento.
Nesse mesmo ano, um Inquisidor, Padre José Torrubia, entrou numa Loja a
fim de espionar, colher informação e denunciar os membros. Segundo seus
relatórios, havia noventa e sete Lojas na Espanha na época.7 Apesar das
medidas draconianas contra eles instigadas, o seu número ia aumentar e
sua luta contra a perseguição da Inquisição continuar por mais três
quartos de século. No fim, sairiam vitoriosos. Após as Guerras
Napoleônicas e a restauração da monarquia espanhola, a Inquisição é que
foi desmantelada. As Lojas sobreviveram e prosperaram na Espanha e nas
colônias espanholas da América Latina.
História semelhante ocorreu em Portugal. Em algumas de
suas obras, o romancista José Saramago, vencedor do Prêmio
Nobel de Literatura em 1998, descreve a onipresença da Inquisição


portuguesa já bem adentrado o século 18. Como sua correspondente na
Espanha, ela precisava de um bode expiatório para justificar a
continuação de sua existência, e a maçonaria era uma candidata óbvia
para o papel. Uqi caso particularmente notório foi o deJohn Coustos, um
lapidador de diamantes nascido na Suíça e morador em Londres desde a
infância, naturalizado e devidamente iniciado como maçom.
Em 1736, Coustos estabelecera uma Loja própria em Paris. Em 1741, levado
pela descoberta de diamantes no Brasil, mudouse para Lisboa e ali
fundou uma Loja. Não incluía membros portugueses, apenas outros
estrangeiros lapidadores de diamantes, comerciantes, negociantes,
ourives e um capitão de navio. Mesnio assim, foi denunciada à
Inquisição portuguesa, que, em março de 1743, passou à ação. O primeiro
membro da Loja a ser preso foi um joalheiro francês. A pretexto de
negócios, agentes da Inquisição visitaram-no ao meiodia, quando ele
fechava a Loja para a sesta. O homem foi sumariamente preso, revistado
em busca de armas e proibido de falar. Depois jogaram-no numa pequena
carruagem fechada e levaram-no para uma masmorra no Palácio da
Inquisição, sem darlhe permissão para fazer contato com ninguém. Para
explicar seu desaparecimento, a Inquisição espalhou o boato de que ele
fugira com uma quantidade de diamantes.
Quatro dias depois, a 5 de março de 1743, o próprio Coustos foi preso.
As dez da noite, saía de um café onde estivera conversando com dois
amigos. Do lado de fora, nove agentes da Inqtiisição esperavam com a
costumeira carruagenzinha fechada. Depois de lhe tomarem a espada,
algemaram-no e levaram-no rapidamente para o palácio da Inquisição,
onde também foi metido na masmorra. Deixaram-no ali em solidão durante
dois dias, sem receber visitas, ouvindo apenas gemidos e gritos das
celas e corredores vizinhos. Por fim, iniciouse uma prolongada
sequência de


ram-no sangrar de quatro lacerações. Quando ele desmaiou, foi devolvido
à cela para recuperarse.
Um mês e meio depois, a 25 de abril de 1744, Coustos foi submetido a
uma segunda sessão de4tortura. Os documentos da Inquisição descrevem a
meticulosidade com que se observavam as sutilezas legais. Assim,
o Doutor e Cirurgião e os outros Ministros da Tortura aproximaram-se do
Banco, onde prestaram o juramento dos Santos Evangelhos, nos quais
puseram as mãos, e prometeram fiel e verdadeiramente cumprir seus
deveres, e então se ordenou que a tortura prescrita para o acusado fosse
executada, e despido das roupas que pudessem impedir a execução
apropriada da tortura, ele foi colocado no ecúleo e começaram a
prendêlo, e ele foi informado por mim, o escrivão, de que se morresse
durante a operação, ou se se quebrasse uni membro, ou se ele perdesse
algum dos sentidos, a culpa seria dele, e não dos Senhores
Inquisidores.li
Nessa ocasião, os braços de Coustos foram esticados para trás sobre uma
estrutura de madeira, deslocando os ombros e fazendo o sangue escorrer
da boca. Repetiuse três vezes o processo, após o que o devolveram à
sua cela. Ali, um médico e um cirurgião consertaram seus ossos,
causando-lhe grande dor ao fazêlo.
Uns dois meses depois, Coustos foi submetido à terceira sessão de
tortura. Passaram-lhe uma grossa corrente em torno da barriga e
amarraram cada braço a uma corda, que foi sendo progressivamente
apertada por meio de um sarilho. A barriga foi seriamente ferida, os
ombros deslocados de novo e os pulsos também. Depois que um cirurgião
repôs os ossos no lugar, repetiuse todo o processo. Durante algumas
semanas depois, ele não pôde levar a mão àboca.

A 21 de junho de 1744, realizouse o julgamento público de Coustos.Junto
com outras vítimas, fizeram-no desfilar até a Igreja de São Domingos,
onde aguardavam o rei, os príncipes reais, membros da nobreza e uma
substancial multidão. Coustos foi acusado de
não confessar o herético, perturbador e escandaloso propósito pelo qual
pretendia introduzir uma nova doutrina no Reino Católico, nem fez
declaração verdadeira em relação a assuntos para os quais se exige tão
inviolável segredo.
Condenaram-no a quatro anos nas galés, mas ele logo ficou tão doente que
foi obrigado a passar dois meses numa enfermaria. Ali, voltaram a
visitá-lo monges irlandeses, que lhe prometeram libertação em troca de
sua conversão à Igreja. Mais uma vez, Coustos recusouse; mas da
enfermaria conseguiu contrabandear uma carta para seu cunhado, que
trabalhava na casa de um importante maçom, o Duque de Harrington. O
duque falou com um secretário de estado na época, o Duque de Newcastle,
que instruiu o embaixador britânico em Lisboa a conseguir a sua
libertação. Isso ocorreu finalmente em outubro. Não havia navio
britânico nas vizinhanças; mas uma pequena frota holandesa achavase
ancorada no porto, e o almirante no comando concedeu passagem a Coustos
num dos navios. A Inquisição ainda farejava em volta, procurando uma
desculpa para tornar a prendêlo. Por conseguinte, permitiramlhe
embarque imediato. Durante as três semanas seguintes, Coustos permaneceu
ali, enquanto agentes da Inquisição remavam repetidas vezes em torno
da frota, tentando localizar o navio no qual ele encontrara refúgio. Com
a saúde seriamente abalada, Coustos chegou a Londres a 15 de dezembro
de 1744. Sobre sua provação, escreveu:


Eu tenho simplesmente motivos demais para recear que sentirei
os tristes Efeitos dessa crueldade enquanto viver; sendo tomado de
tempos em tempos por Dores excruciantes, com as quais jamais fui
afligido até ter o infortúnio de cair nas impiedosas e sanguinárias Mãos
dos Inquisidores.
Morreria dois anos depois. Antes disso, escreveu uma história de sua
experiência, Os Sofrimentos de John Coustos pela Maçonaria, publicada
no fim de dezembro de 1745, quando ainda progredia a rebelião jacobita
instigada por Bonnie Prince Charlie. Não surpreende que o livro tenha
sido aproveitado para fins de propaganda anticatólica, e
portantojacobita. Continuou a exercer influência muito depois,
estabelecendo um indelével retrato da Inquisição na mente dos leitores
e do público de língua inglesa. Podese discernir traços dessa
influência em parte da ficção gótica de fins do século 18 e inícios
do 19, como no romance O Monge, de Matthew Lewis.
Cagliostro e Casanova
Apoiadas pelas autoridades judiciais, civis e militares de suas
respectivas coroas, as Inquisições espanhola e portuguesa continuaram
a atuar com vigor por todo o século 18, não apenas internamente,
mas também nas colônias no exterior. As duas foram desmanteladas
durante a ocupação napoleônica da Península Ibérica e a campanha de
reconquista que se seguiu sob o futuro Duque de Wellington; e a
maçonaria no exército britânico, assim como no francês, demonstrou pouca
simpatia pela instituição que antes a perseguira. Lá pelo fim da Guerra
Peninsular, a Inquisição foi restabelecida pelas monarquias restauradas
e restabelecidas na Espanha e Portugal. Seu restabelecimento, porém,
teria vida curta. No fim do primeiro quartel do século 19, as
Inquisições de Espanha e


Portugal estavam mortas; e nas excolônias da América Latina
fundaram-se repúblicas em grande parte dominadas por maçons.
Em outras partes na Europa católica, o Santo Ofício, sem o apoio secular
de suas correspondentes espanhola e portuguesa, funcionava de maneira
mais próforma. Embora sua posição estivesse ficando tênue, continuou a
vergastar a maçonaria; e na Itália, sobretudo, os maçons continuaram a
sofrer com isso. Entre as vítimas mais importantes estavaJoseph
Balsamo, mais conhecido como Conde Cagliostro. Nascido em Palermo em
1743, Cagliostro viajou muito e foi iniciado na maçonaria em Londres,
em 1777. Posteriormente, idealizou seu próprio tipo, ou rito, de
maçonaria, que então tentou disseminar por toda a Europa. Em 1789,
chegou a Roma em busca de audiência com o Papa Pio 6, que imaginava se
mostraria simpático a seu rito maçônico e o aceitaria em benefício da
Igreja. Pode parecer que era ingenuidade, mas CagLiostro na verdade
encontrou o clero romano extremamente receptivo a seu evangelismo, e fez
amizade com figuras de alto escalão em várias instituições católicas,
incluindo os Cavaleiros de Malta. Encorajado por esse sucesso,
estabeleceu sua Loja na Cidade Eterna, que supostamente se reunia no
palácio dos Cavaleiros de Malta. Dizse que os membros incluíam não
apenas cavaleiros e nobres, mas também autoridades clericais,
eclesiásticos e pelo menos um cardeal.
O Papa, porém, já passara arquivos sobre ele ao Santo Ofício. No fim de
dezembro de 1789, uns sete meses após sua chegada a Roma, Cagliostro foi
preso junto com oito membros da Loja, um deles americano. No ano e meio
seguinte, foi submetido a "exame" no Castel Sant'Angelo. A 21 de março
de 1791,o Santo Ofício condenouo à morte por heresia sentença
comutada pelo Papa para prisão perpétua. A 4 de maio de 1791. o Papa
ordenou que todos os documentos e manuscritos, paramentos e apetrechos
maçônicos de Cagliostro fossem queimados na Piazza Santa Maria Minerva
pelo carrasco público. Um dossiê, contendo papéis desgarrados,


anotações pessoais e cartas, aparentemente escapou das chamas. No início
da década de 1970, um escritor italiano, Roberto Gervaso, solicitou
permissão para examinar esse material, mas o diretor do Santo Ofício
lhe negou acesso a dei O próprio Cagliostro, ainda encarcerado, morreu
em 1795.
Outro conhecido maçom a chocar-se com o Santo Ofício na Itália foi
Giacomo Girolamo Casanova di Seingalt ( 1725 a 98), contemporâneo de
Cagliostro. Após ser expulso do seminário por suposta conduta ofensiva,
Casanova, como Cagliostro, viajou muito e foi iniciado na maçonaria em
1750. Escreveria depois que a entrada numa Loja era um passo
obrigatório na educação, desenvolvimento e carreira de qualquer rapaz
inteligente e bemeducado que desejava deixar uma marca no mundo.
Quando voltou à sua Veneza natal, o Santo Ofício caiu em cima dele,
acusandoo de impiedade e práticas mágicas. Após primeiro ser coagido a
espionar os maçons e outras atividades suspeitas, foi preso. Acabou, em
circunstâncias dignas de um thriller de capa e espada de Dumas,
conseguindo escapar, e iniciou uma carreira pela qual se tornou
posteriormente famoso.
As memórias de Casanova, publicadas postumamente, estabeleceram sua
reputação como aventureiro, ladrão, vigarista, sedutor e amante em
escala digna de DonJuan. Mas foi também um mestre da autopromoção, com
um ego que lançava uma sombra do tamanho de um dirigível; e suas
memórias sem dúvida alguma contêm muito exagero, muita hipérbole, muita
licença poética. Inteiramente à parte da pródiga autopromoção, porém,
oferecem um panorama profundamente intuitivo e revelador dos usos e
costumes da época. Mais ainda, Casanova foi um escritor de talento.
Produziu obras históricas em italiano e um romance fantasmagórico de
algum mérito literário em francês. Em 1788, publicou uma história
detalhada de seu encarceramento pelo Santo Ofício e sua
fuga, Histoire de mafuite desprisons de Ven ice, que constitui uma
das mais valiosas fontes existentes sobre o funcionamento do Santo
Ofício na última parte do século 18.
Paranóia Papal
É extraordinário refletir que ainda no fim da década de 1790 após a
Guerra de Independência americana, durante a Revolução Francesa, quando
a Europa Ocidental entrara na "Era Moderna o Santo Ofício continuava
tendo o poder de prender pessoas, e mesmo impor a pena de morte. Esse
poder, contudo, logo seria contido e abolido. A Revolução Francesa, os
movimentos revolucionários que se seguiram na Itália e a invasão
napoleônica da península deixaram a Igreja, o Papado e o Santo Ofício
seriamente abalados. O mesmo, também, fez o saque dos arquivos do
Vaticano, grande parte dos quais permanece até hoje em Paris, na
Biblioteca do Arsenal. Em várias cidades italianas, os maçons buscaram
vingar-se de seus experseguidores, e não poucos Inquisidores foram
obrigados a fugir de multidões de linchadores.
Com a queda de Napoleão, a Igreja, instigada pelo Santo Ofício, retomou
sua autoproclamada vendetta contra os maçons, uma campanha que ia se
tornar cada vez mais furiosa e paranóica com o desenrolar do século
19. Em 1814, após a primeira abdicação de Napoleão, promulgouse uma
nova Bula contra a maçonaria. Seguirseiam outras denúncias, dos Papas
Pio 7 ( 1800 1823), Leão 7 ( 1823 ), Pio 8 ( 1829 30) e Gregório 16
( 1831 1846). O Papa Pio 9, que iria depois proclamar-se infalível,
emitiu uma encíclica condenando a maçonaria em 1846, seu primeiro ano no
cargo, e seguiua com outras condenações em não menos que sete ocasiões
distintas. A maçonaria foi denunciada como a sinagoga de Satanás e
"uma seita danada de depravação.


O sucessor de Pio 9, Leão 13, ascendeu ao trono papal em 1878 e
ocupouo até 1903. Em 1884, publicou uma encíclica que constituiu a mais
virulenta denúncia da maçonaria a ser emitida pela Igreja. Lida diante
de toda porta de igreja por ordens explícitas do Papa, a encíclica
começa:
A raça humana dividese em dois grupos diferentes e opostos... Um é o
Reino de Deus na terra isto é, a Igreja deJcsus Cristo; o outro é o
reino de Satanás.
O texto concentrase então na maçonaria:
Em nossos dias... os que seguem o daninho parecem conspirar e
lutarjuntos sob a orientação e com a ajuda daquela sociedade de homens
espalhados por toda parte, e solidamente estabelecidos, que chamam de
maçons.
O Papa prossegue enunciando explicitamente a origem da paranóia da
Igreja o medo de um suposto rival. Os maçons
dizem abertamente o que já haviam em segredo idealizado há muito
tempo... que se deve tirar o poder espiritual do próprio
Papa, e a instituição divina do Pontificado romano deve desaparecer do
mundo.
Papa, e a instituição divina do Pontificado romano deve desaparecer do
mundo.
Em sua narrativa Les Caves du Vatican, de 1914 (publicada na
GrãBretanha como Os Porões do aticano e nos Estados Unidos
comoAventuras de Lafcadio), André Gide dramatizou em forma
fiecionalizada um episódio que se diz baseado em fato histórico. Em
fins do século 19, durante o pontificado de Leão 13, dois engenhosos
vigaristas são vistos vagando pelas províncias do sul da França. Vestem
trajes sacerdotais e levam consigo uma lista cuidadosamente preparada e
detalhada de católicos ricos que moram nas

vizinhanças. Apresentam-se às portas dessas vítimas, conseguem admissão
e contam no que pretende ser o mais urgente e portentoso segredo
uma história horrorizante.
A figura vista a intervalos na sacada de São Pedro não é, dizem, o Papa.
É na verdade um duplo, um sósia, um impostor instalado por meio de uma
perniciosa conspiração maçônica. O verdadeiro Santo Pontífice foi
sequestrado por maçons. Está sendo mantido como refém sob severa guarda
num lugar desconhecido. A menos que se levante a tempo um resgate
estipulado, ele será executado, e todo o Papado será tomado pela
maçonaria. Em consequência, católicos leais e devotos estão sendo
procurados discretamente a fim de fazer doações para o resgate do Papa.
Não surpreendentemente, os dois vigaristas amealham uma bela fortuna.
Tais histórias não eram incomuns na época. Não há como saber em qual das
várias Gide pensou, ou o quanto de liberdade artística tomou com os
fatos reais da trapaça. Mas sua narrativa dá um eloquente testemunho da
trepidação sobre a maçonaria promovida pelo Santo Ofício da época, e a
ilusão paranóica a que a Igreja e seus adeptos se inclinavam. Essa
paranóia continuou até hoje. Ainda no início da década de 1990, folhetos
de quatro páginas prodigamente impressos, de uma organização linhadura
católica, foram enfiados em caixas de correspondência em Belgravia,
Londres, mais uma vez alegando sinistra conspiração maçônica destinada
à dominação do mundo e citando erroneamente como maçons homens como o
Duque Mountbatten de Burma, que jamais foram maçons de forma alguma.

ÃO A Conquista dos Estados Papais
No último terço do séculoXlX, a Igreja, e o Santo Ofício com ela,
achavam-se desconfortavelmente assediados. Desde o romance de Diderot, A
Religiosa, publicado mais de um século antes, em 1760, padres, monges,
abades, bispos, cardeais e sobretudo Jnquisidores eram mostrados com
crescente frequência como arquivilões, figurando em "romances góticos
como O Monge, de Matthew Lewis, e na literatura mais séria de escritores
como Stendhal. E em 1879 1780, o Grande Inquisidor dc Dostoiévski, em
Os Irmãos Karamázovi , gravou a fogo na consciência russa e ocidental
uma imagem indelével e definitiva de um patriarca cinicamente
implacável, disposto a mandar o próprio Jesus para a estaca, a fim de
preservar os interesses da Igreja e sua hierarquia.
E não era mais apenas por meio da "alta cultura" que Roma vinha
recebendo uma publicidade claramente negativa. A Igreja sempre inspirara
hostilidade em substanciais segmentos da população. Agora, com a
crescente liberdade de expressão, a disseminação da educação e a
proliferação de jornais, periódicos e literatura
para expressarse; e recebia reforço extra das atitudes e valores que


se decantavam dos picos culturais. Em países de maioria protestante
como a GrãBretanha e a Alemanha, a antipatia pelo aumento de poder da
Igreja era um fato aceito. Nos Estados Unidos, apesar do influxo de
imigrantes católicos da Itália e Irlanda, o preconceito anticatólico
predominava.
A Igreja viuse sujeita também a outras ameaças. Em 1859, Charles Darwin
publicou A Origem das Espécies, seguido em 1871 por A Descendência do
Homem, obra ainda mais teologicamente explosiva, que questionava a
versão da Criação das Escrituras. Durante quase três séculos, a balança
dos valores ocidentais vinha oscilando em precário equilíbrio entre a
ciência e a religião organizada. Agora, ao que parecia de um único
golpe, pendia decididamente em favor da ciência, e a civilização
ocidental assumia uma dimensão secular que teria parecido inconcebível
apenas pouco tempo antes. No passado, qualquer desvio da ortodoxia
religiosa, para não falar em ateísmo, era uma ofensa criminal e
punível. Ainda no fim do século 18, na Inglaterra protestante,
Shelley fora expulso de Cambridge por ateísmo; e as penalidades onde a
Igreja exercia influência eram consideravelmente mais severas. Agora, no
entanto, uns poucos sessenta e tantos anos depois, o ateísmo e o
agnosticismo promulgado por Thomas Huxiey e Herbert Spencer haviamse
tornado não só respeitáveis, mas eminentemente na moda. O mesmo
acontecera, em setores mais vociferantes, com o materialismo
dialético de Karl Marx, com seu repúdio à religião organizada como "o
ópio do povo embora o próprio marxismo no fim acabasse por revelarse
não menos ópio. Á medida que tais idéias inimigas se difundiam por
toda a cristandade, a Igreja, privada do poder de suprimilas, só podia
olhar com furiosa impotência. Os Inquisidores do Santo Ofício, que
antes causavam estragos como cães de caça, achavam-se agora na correia e
no canil.


Uma outra ameaça era representada pelo desenvolvimento dos estudos
históricos e arqueológicos alemães, e a metodologia que empregavam. Até
meados do século 19, a metodologia e os processos da investigação
histórica e arqueológica, que hoje temos mais ou menos como coisas
naturais, simplesmente não existiam. Não havia padrões de aceitação
geral, nem premissas para estabelecer uma disciplina e formação
coerentes. Não havia verdadeira consciência de que essa pesquisa podia
constituir uma forma de ciencia ou exigir o rigor, a objetividade, a
precisão sistemática que exige qualquer ciencia.
Sob os auspícios dos estudos alemães, esse estado de coisas alterouse
de maneira sensacional. A mudança foi conspicuamente ilustrada por
Heinrich Schliemann ( 1822 1890), nascido naAlemanha e naturalizado
cidadão americano em 1850. Desde a infância Schliemann fora cativado
pelos épicos homéricos da Guerra de Tróia, a Ilíada e a Odisséia.
Tornouse cada vez mais convencido de que tais poemas não eram meras
fábulas fictícias, mas história mitologizada crônicas elevadas ao
status de lenda, mas baseadas em fatos, pessoas e lugares que de fato
haviam existido um dia. O Sítio de Tróia, insistia Schliemann, fora uma
ocorrência histórica autêntica. Tróia não era apenas produto da
imaginação de um poeta. Ao contrário, fora um dia uma cidade concreta.
Schliemann partiu da suposição de que os poemas de Homero podiam ser
usados como um mapa, como qual se poderia reconhecer certos acidentes
geográficos e topográficos identificáveis. Podiase calcular as
velocidades aproximadas das viagens na época e com isso avaliar as
distâncias entre um ponto e outro citados nos textos gregos. Com essas
técnicas, insistia Schliemann, podiase refazer o itinerário da frota
grega na luada , e localizar o lugar real de Tróia. Depois de fazer os
cálculos necessários, convenceuse de que encontrara "o X que
assinalava o local.

Graças a suas atividades comerciais, Schliemann ficara muito rico. Com
os vastos recursos financeiros de que dispunha, embarcou no que pareceu
aos contemporâneos uma empresa quixotesca
fazer uma escavação em grande escala do X,, que localizara. Em 1868,
partindo da Grécia e usando como guia um poema de dois milênios e meio,
pôsse a refazer a rota atribuída por Homero àfrota grega. No que
concluiu ser o local importante na Turquia, começou a escavar. E para
pasma admiração do mundo, ali encontrou Tróia ou, de qualquer modo,
uma cidade que combinava com a Tróia da história de Homero. Na verdade,
encontrou várias cidades. Durante quatro campanhas de escavação, exumou
não menos que nove, cada uma superposta sobre a antecessora.
Schliemann provou em triunfo que a arqueologia podia fazer mais que
apenas confirmar ou desmentir a validade histórica por trás de lendas
arcaicas. Também demonstrou que ela podia acrescentar carne e
substância às crônicas esqueléticas e muitas vezes simplistas do
passado. Podia oferecer um contexto humano e social abrangente, um
esquema de vida e práticas diárias que revelava a mentalidade e o
ambiente que as haviam engendrado. Mais ainda, demonstrou a
aplicabilidade à arqueologia de rigorosos métodos científicos, como a
cuidadosa observação e documentação de dados. Ao exumar as nove cidades
de Tróia superpostas, Schliemann utilizou o mesmo método que apenas
recentemente entrara em favor nos estudos geológicos. Isso o levou ao
reconhecimento do que a mente moderna podiajulgar evidente por si mesmo
que se pode distinguir um estrato de depósitos de outro com base na
premissa de que o mais abaixo de todos é o primeiro. Foi assim o
pioneiro na disciplina arqueológica hoje conhecida como
estratigrafia. Praticamente sozinho, revolucionou toda a esfera do
pensamento e da metodologia arqueológicos.


Logo se compreendeu que se podia empregar produtivamente a orientação
científica de Schliemann no campo da arqueologia bíblica. Dentro de
poucos anos, pesquisadores britânicos achavam-se vigorosamente em açãQ
no Egito e na Palestina, cavando, entre outros Sítios, embaixo do Templo
de Jerusalém. Sir Charles Wilson, então capitão dos Engenheiros Reais,
ali encontrou o que se acreditava terem sido os estábulos de Salomão.
A metodologia científica que se revelara tão sensacionalmente eficaz na
arqueologia foi também aplicada à história. As descobertas de
Schliemann, afinal, haviam derivado em grande parte de seu meticuloso
escrutínio dos poemas épicos de Homero, sua rigorosa insistência
científica em separar fato de ficção, sua aplicação de uma disciplina
sistemática o suficiente para estudos geológicos. Era inevitável que
outros aplicassem o mesmo tipo de implacável e inflexível escrutínio à
escritura.
O maior responsável por esse processo foi o historiador e teólogo
francês Ernest Renan. Nascido em 1823, ele originalmente se imaginava
destinado ao sacerdócio, e matriculouse no seminário de Saint Sulpice.
Em 1845, porém, abandonou a suposta vocação, depois de levado pelos
estudos bíblicos alemães a questionar a verdade literal da doutrina
cristã. Em 1860, fez uma viagem arqueológica à Palestina e à Síria. Em
1863, publicou o altamente polêmico La Vie deJésus, traduzido para o
inglês um ano depois. O livro de Renan tentava desmistificar o
cristianismo. Descrevia Jesus como um homem incomparável, mas nada mais
que um homem uma personagem inteiramente mortal e não divina e
esboçava uma hierarquia de valores que poderia ser facilmente aceita
pelo humanismo secular de hoje.
O livro de Renan foi quase imediatamente posto no Index. Nos anos
seguintes, nada menos que dezenove de suas obras seriam proibidas pelo
Santo Ofício. Mas ele não era nenhum aca
200
A CONQUISTA DOS ESTADOS PAPAIS

dêmico obscuro. Tampouco um escriba sensacionalista. Ao contrário, era
uma das figuras intelectuais mais profundamente respeitadas e
prestigiosas da época. Em consequência,A Vida deJesus provocou um dos
maiores traumas no curso do pensamento no século 19. Tornouse um dos
mais de meia dúzia de livros mais vendidos de todo o século, e jamais
saiu de circulação. Para as classes educadas da época, Renan era um
nome tão familiar quanto Marx, Freud ouJung o seriam para nosso século;
e em vista da ausência de cinema e televisão, provavelmente foi muito
mais lido. De um só golpe,A Vida de Jesus revolucionou as atitudes em
relação aos estudos bíblicos numa medida que teria sido inconcebível
pouco antes. E durante os trinta anos seguintes, Renan ia continuar
sendo uma autonomeada varejeira para a Igreja, publicando polêmicos
exames dos Apóstolos, de Paulo e do cristianismo inicial no contexto da
cultura imperial romana. Na verdade, soltou da antiga lâmpada lacrada
um gênio que o cristianismojamais desde então conseguiu recapturar ou
domar.
Gari baldi e a Unficação da Itália

Com Darwin e seus seguidores, a ciência apresentou uma ameaça cada vez
mais séria à Igreja. Outra ameaça era a representada pelos
recém aplicados rigor e metodologia científicos da arqueologia e
estudos bíblicos. Também filósofos influentes e muito lidos
Schopenhauer, por exemplo, e Nietzsche, proclamando a morte de Deus
contestavam, e mesmo atacavam hlasfemamente, as crenças éticas e
teológicas cristãs. Sob a doutrina da lartpour lart", arte pela
arte, do escritor francês Théophile Gautier, as artes tornavam-se uma
religião autosuficiente em si, entrando cada vez mais em território
sagrado do qual a religião organizada parecia ter abdicado. Assim, por
exemplo, o teatro de Wagner em Bayreuth

201

tornouse na verdade o templo de um novo culto; e europeus bemeducados
julgavam inteiramente tão aceitável ser "wagneriano quanto cristão. No
fim do século, o artista teria usurpado o papel do sacerdote,
tornando-se na famosa expressão deJoyce, um ''sacerdote da
imaginação.
E depois, havia a situação política cada vez mais volátil. Entre 1805 e
1808, Napoleão estabelecera seu regime na Itália, dividindo o país em
remos governados por ele próprio e um de seus irmãos, e depois um de
seus marechais,Joachim Murat. Em 1809, Napoleão abolira todas as posses
e o poder temporal do Papado. Ao ser excomungado pelo Papa Pio 7, o
monstro corso respondera mandando jogar o pontífice na prisão. O
Papado jamais iria se refazer inteiramente dessa humilhação.
Na esteira da queda final de Napoleão em 1815, fizeram-se tentativas de
restaurar a velha ordem na Europa, e o continente mergulhou num longo
período de reação conservadora, que prevaleceu na maioria dos países
por cerca de vinte anos. Na Itália, porém, a velha ordem fora
definitivamente rompida. A maior parte da península era governada
direta ou indiretamente pelos Habsburgos austríacos; mas eles próprios
haviam ficado cada vez mais enfraquecidos. O resto do país era dividido
entre ducados dos Habsburgos e Bourbons, os Estados Papais nominalmente
governados pelo Papa, o Reino Bourbon de Nápoles e as Duas Sicílias que
abrangiam o sul e, no noroeste, o novato Reino do Piemonte, governados
de Turim pela Casa de Savóia. A península italiana achavase assim tão
fragmentada quanto antes da Revolução Francesa e as Guerras
Napoleônicas, e ainda menos estável. Dificilmente se podia esperar que
mantivesse qualquer precário equilíbrio que tivesse. O nacionalismo e o
desejo de unificação que varreram a Europa no século 19 logo iriam
irromper também na Itália. Em 1815, já se achavam em movimento os fatos
que iriam

202

levar, uns cinquenta e cinco anos depois, à unificação do país e ao
surgimento de uma nova potência européia.
Um dos fatoreschave nesse processo foi a Carbonaria, rede de sociedades
secretas dedicada à revolução, à expulsão das potências estrangeiras do
solo italiano, à unificação do país e ao estabelecimento de um governo
democrático independente. A Carbonaria era organizada em linhas
maçônicas. Na verdade, muitos comentaristas descreveram-na como uma
instituição em essência maçônica. Sem dúvida, havia muita coisa em
comum entre a Carbonaria e a maçonaria, com destacados membros da
primeira pertencendo também à última. Um desses era Giuseppe Mazzini,
exilado em 1830 na França, onde, dois anos depois, criou urna nova
sociedade secreta, a Jovem Itália. No ano seguinte,juntouse aMazzini
um revolucionário de vinte e seis anos, Giuseppe Garibaldi. A essa
altura, os filiados da Jovem Itália e da Carbonaria chegavam a mais
de 60 mil. No que dizia respeito ao Papado e ao Santo Ofício, eram todos
maçons, e suas atividades julgadas prova de urna suposta conspiração
maçônica. Os pronunciamentos papais contra a maçonaria começaram a
aumentar em frequência e veemência.
Em 1848, praticamente toda a Europa foi varrida pela revolução, e a
Itália não escapou ao contágio. A 9 de janeiro, Palerrno revoltouse, e
o resto da Sicília rapidamente a seguiu. Em março, o território
Habsburgo no norte, a Lombardia e Veneza, declarou sua independência, e
o Piemonte, buscando anexálo, declarou guerra à Áustria. Em maio, a
invasão da Lornbardia fora repelida por tropas austríacas, e tropas
conservadoras de Nápoles haviam embarcado na reconquista da Sicília. Em
novembro, porém, o primeiro ministro papal foi assassinado em Roma, e o
Papa Pio IX foi obrigado a fugir disfarçado. Em fevereiro seguinte,
Mazzini, ajudado por Garibaldi, proclamou uma república romana no lugar
dos antigos Estados Papais.
203 A CONQUISTA DOS ESTADOS PAPAIS
A INQUISIÇÃO
Daí em diante, a turbulência civil e política ia continuar quase
ininterrupta. Durante algum tempo ao menos, as forças da velha ordem
ganharam ascendência. Um segundo ataque piemontês àÁustria foi
derrotado, e a repúbliGa romana de Mazzini e Garibaldi derrubada por
tropas francesas enviadas por Luís Napoleão, posteriorrnente Imperador
Napoleão 3. Na última parte de 1849, porem, um novo rei, o moderado
Victor Emrnanuel 2, subiu ao trono do Piemonte. Um ano depois, levava
para seu gabinete um dinâmico modernizador e progressista, Camillo di
Cavour. Pelo resto da vida, Cavour ia dedicar-se à criação de uma Itália
unida. Em 1857,já estabelecera um partido político monarquista e
unionista. Garibaldi tornarase seu vicepresidente.
Em 1859, o Piernonte foi mais uma vez à guerra com a Austria pelo
controle do norte da Itália. Desta vez, porém, graças a maquinações
clandestinas de Cavour, as ineficientes forças piemontesas foram
reforçadas por todo um exército francês sob o comando de Napoleão 3 em
pessoa. Seguiram-se duas grandes batalhas, em Magenta e Solferino, e os
derrotados lIabsburgos foram expulsos da Lornbardia. Em janeiro do ano
seguinte, Garibaldi, discretamente apoiado por Cavour, partiu de um
porto perto de Gênova com uma força de voluntários conhecida como "Os
Mil". Em maio, desembarcou na Sicília e rapidamente tomou a ilha toda.
Em agosto, capturou Nápoles. A 26 de outubro de 1860, Victor Emmanuel
encontrouse com Garibaldi no que fora antes território napolitano, e
Garibaldi proclamou o monarca piemontês Rei da Itália. O Reino da
Itália foi oficialmente proclamado a 17 de março de 1861, na capital do
Piernonte, Turim. Com exceção dos Estados Papais, toda a Itália
achavase agora unida.
Emjulho de 1862, Garibaldi enviou uma carta circular a todas as Lojas
maçônicas na Sicília, exortando que
204
A CONQUISTA DOS ESTADOS PAPAIS
Os Irmãos, como cidadãos e corno maçons, devem cooperar para que Roma
seja uma cidade italiana, e capital de uma grande e poderosa Nação. E é
dever deles não apenas ajudar a empresa patriótica com todos os meios à
sua disposição, mas também convencer os nãoiniciados de que sem Roma o
destino da Itália será sempre incerto, e com Roma cessarão todos os
sofrimentos.1
Defender a conquista de Roma e dos Estados Papais era urna coisa;
traduzir essa aspiração na prática, inteiramente outra. O Papado ainda
era protegido pelo exército francês, na época considerado invencível.
E Napoleão 3 não tinha desejo algum de ver o equilíbrio de poder na
Europa perturbado por uma Itália unida e potencialmente perigosa.
Quando Garibaldi tentou anexar os Estados Papais pela força em 1867,
foi frustrado por tropas francesas.
Outra oportunidade logo ia apresentarse, porém. A 19 de julho de 1870,
Napoleão 3 atrozmente superestimando seus recursos militares foi
atraído à guerra com a Prússia. A medida que um desastre francês se
seguia ao outro em catastrófica sucessão, as tropas que protegiam o
Papado foram chamadas. A transferência delas para ofront fez
pouquíssima diferença. Em menos de três meses, a Guerra FrancoPrussiana
de fato acabara. A 10 de setembro de 1870, a sequência de reveses
franceses culminou na débâcle de Sédan. O exército francês rendeuse,
Napoleão 3 abdicou e o Segundo Império francês desabou. Três semanas
depois, a 20 de setembro, soldados italianos entraram triunfantes em
Roma, tirando da frente a resistência em grande parte simbólica do
exército em miniatura do Papa. Recusandose a aceitar a derrota, o
Papa retirouse carrancudo para o Vaticano. O Reino da Itália agora
abrangia toda a península, e sua capital logo passaria de Turim para
Roma.
As ameaças representadas para a Igreja pela ciência, a arqueologia e os
estudos bíblicos, pelo culto das artes exemplificado por
205
A INQUISIÇÃO
Bayreuth, eram todas bastante concretas. A unificação da Itália, porém,
foi uma questão completamente diferente, um verdadeiro e definitivo coup
degrãce para a Igreja de séculos anteriores. O Papado achavase agora
inteiramente desprovido de poder temporal, incapaz de impor autoridade
pela força física, privado da capacidade de infligir castigo aos que
professavam desafio. Apesar de toda sua riqueza, majestade, ponlpa,
circunstância e tradição, a Igreja Católica Romana era agora tão
impotente no mundo secular quanto o fora nos dias lendários dos
primeiros cristãos.
Quem Detém o Poder na Igreja?
Além da série de pressões externas, a Igreja era agora ameaçada pela
dissensão interna. Como tantas vezes antes, essa dissensão provinha em
grande parte da França. E quando não vinha de fato de lá, era
condicionada por fatos lá.
A França fora tradicionalmente encarada como a filha mais antiga da
Igreja, mas muitas vezes se mostrara uma filha recalcitrante e
rebelde. No início do século 19 Filipe IV sequestrara o Papa,
estabelecera o Papado em Avignon, e efetivamente transformarao num
instrumento de sua própria política. O cisma resultante durara
108
anos, e comprometera definitivamente a autoridade papal. No século
17, dois cardeais franceses, Richelieu e Mazarin, haviam
implacavelmente subordinado os interesses da Igreja aos da Coroa
francesa. No fim do século 18, a Revolução Francesa exterminara cerca
de 17 mil padres e duas vezes esse número de freiras, destruíra ou
confiscara prédios e terras da Igreja, saqueara seus tesouros e, enibora
apenas brevemente, instalara um regime que não respeitava Roma nem da
boca para fora. Pouco depois, Napoleão tratara os Estados Papais como
apenas mais um território conquistado, aprisionara o Papa, levara os
206
A CONQUISTA DOS ESTADOS PAPAIS
tesouros da Santa Sé e os arquivos secretos do Vaticano, desmontara o
Sacro Império Romano que representava o domínio temporal da Igreja,
expulsara os Cavaleiros de SãoJoão de sua morada em Malta e rompera
definitivamente na França a relação entre Igreja e Estado.
Durante o Segundo Império, de Napoleão 3, a Igreja na França, embora
não mais ligada ao governo, conseguira reconquistar um certo grau de
equilíbrio. Em 1870, o Segundo Império e a estabilidade que
proporcionara achavam-se em estado de colapso; e esse colapso estaria
completo no fim do ano. Ninguém, claro, podia prever a exata sequência
de fatos que se seguiria o avanço prussiano e o sítio de Paris, os
dias fratricidas da Comuna, o hesitante surgimento da Terceira
República, a triunfante criação do Império alemão. Mas mesmo em meados
de 1870, estava claro que a Igreja, acontecesse o que acontecesse, ia
sofrer. Quatro anos antes, afinal, a máquina de guerra prussiana quase
brincando esmagara a Austria dos Habsburgos, a única potência
importante restante no continente, num mero mês e meio. Era duvidoso
que o Segundo Império pudesse resistir a um ataque semelhante, mas mesmo
que pudesse, a posição da Igreja ficaria severamente abalada. E no que
dizia respeito ao poderio militar, logo haveria apenas uma
superpotência" na Europa, um monolítico estado marcial no norte, onde
Roma não tinha qualquer trânsito oficial e a odiada Igreja luterana
era de fato um adjunto do Departamento de Guerra.
Contra esse pano de fundo, os eclesiásticos franceses haviam começado a
se agitar dentro da própria Igreja. Desde a Idade Média, houvera
incessante disputa sobre onde residia a autoridade última da Igreja.
Era no Papado e na personagem individual do Papa? Ou nos espalhados
bispos da cristandade, expressando sua voz coletiva por meio de
concílios da Igreja. Era o Papa, em última análise, subordinado aos
concílios dos bispos? Ou eram os concí207
A INQUISIÇÃO
lios dos bispos subordinados ao Papa? Que aconteceria, por exemplo, se
o trono de São Pedro fosse ocupado por um pontífice herético? Quem
teria o poder de removêlo? Roma, desnecessário dizer, insistia na
supremacia do Papado. Os bispos da França, apoiados por muitos na
Alemanha, defendiam a supremacia de seus concílios.
A contingência de um Papa herege tinha sido enfrentada e tratada por
advogados da Igreja desde o século 13. Para proteger a Igreja de uma
tal possibilidade, os advogados haviam afirmado que a suprema
autoridade residia em ultima análise no Concílio Geral.
Apersuasividade do argumento deles foi reforçada durante o chamado
Cativeiro de Avignon, quando dois ou mesmo tres Papas e Antipapas rivais
se enfrentaram, condenaram e excomungaram uns aos outros. Em 1378, John
Wycliffe observara da Inglaterra: "Eu sempre soube que o Papa tinha os
pés fendidos. Agora ele tem a cabeça fendida.
Finalmente, em 1414, reuniuse o Concílio de Constança um Concílio
Geral do tipo defendido pelos advogados da Igreja para resolver a
intratável e embaraçosa situação. A 6 de abril de 1415, os
eclesiásticos reunidos resolveram por decreto que "o concílio está
acima do Papa.3 Todos os cristãos, incluindo o Papa, foram declarados
sujeitos às decisões de um Concílio Geral, que sejulgava derivasse sua
autoridade diretamente de Deus:
Este Santo Sínodo de Constança, que forma um concílio ecumênico...
declara o seguinte:
Primeiro, este sínodo, legitimamente reunido no Espírito Santo, que
forma um concílio ecumênico e representa a Igreja Católica em disputa,
recebe sua autoridade diretamente de Cristo; todos, dc qualquer
condição ou dignidade, mesmo que esta seja papal, têm de obedecer a ele
em questões relativas à fé.
208
Segundo o moderno teólogo Hans Kung: "A autoridade na Igreja não
está no monarca, mas na própria Igreja, da qual o Papa é o servo, não o
senhor. Como ele explica, "a legitimidade de... todos os Papas
posteriores até hoje depende da legitimidade do Concílio de Constança.
E acrescenta que
não se pode fugir ao caráter obrigatório fundamental dos decretos de
Constança. Nenhum Papajamais ousou repelir o decreto.., ou declarar que
não é geralmente obrigatório.7
Os decretos de Constança, que estabeleceram a supremacia de um Concílio
Geral sobre o próprio Papa, foram aceitos com particular entusiasmo
pela Igreja na França. Em 1682, um concílio de bispos e outros clérigos
franceses enunciou sua posição depois conhecida como galicanismo
em quatro pontos centrais, os chamados Artigos Galicanos. Afirmavam
que o Papa não tinha autoridade sobre questões temporais e que os reis
não estavam sujeitos às suas decisões. Endossavam-se os decretos do
Concílio de Constança, e declaravase que os Concílios Gerais tinham
maior autoridade que o Papa. Reafirmavase a tradicional independência
da Igreja na França, e declaravase que algumas de suas prerrogativas
o direito de nomear seus próprios bispos, por exemplo
estavam fora do poder de rescisão do Papado. E finalmente, os Artigos
Galicanos afirmavam que nenhuma decisão papal era irrevogavelmente fixa
enquanto um Concílio Geral não concordasse.
Durante todas as vicissitudes seguintes da história francesa, o
galicanismo, com sua adesão à autoridade conciliar, ia caracterizar
a Igreja na França. Pela própria natureza, era potencialmente inimigo
do Papado. Levado à sua consequência lógica, o galicanismo
efetivamente rebaixaria o Papa ao que ele originalmente fora apenas o
Bispo de Roma, um entre inúmeros bispos,

209

A CONQUISTA DOS ESTADOS PAPAIS

gozando de algum tipo de chefia nominal ou simbólica, mas sem qualquer
primado ou poder real. Em suma, a Igreja seria descentralizada.
A posição oposta, que advogava a supremacia do Papa sobre os bispos e
concílios, ficou conhecida como ultramontana, porque encarava a
autoridade como estando com o Papado em Roma, "do outro lado das
montanhas em relação à França. Em 1870, os acontecimentos do século
19 haviam levado ao auge o antagonismo de 450 anos entre galicanos e
ultramontanos. Dessa situação emergiria o Papado moderno, o Papado
como hoje o conhecemos.
210
Infalibilidade
E screvendo na década de 1950, um historiador e apologeta católico
descreveu os Estados Papais do período pósnapoleônico imediato como
uma teocracia benévola. Entre 1823 e 1846, cerca de 200 mil pessoas
nessa teocracia benévola foram mandadas para as galés, banidas para o
exílio, sentenciadas à prisão perpétua ou à morte. A tortura, pelos
Inquisidores do Santo Ofício, era rotineiramente praticada. Toda
comunidade, fosse ela uma pequena aldeia rural ou uma grande cidade,
mantinha um patíbulo permanente na praça central. A repressão corria
solta e a vigilância era constante, com espiões papais à espreita em
toda parte. Reuniões de mais de três pessoas eram oficialmente
proibidas. As ferrovias foram proibidas, porque o Papa Gregório 16
acreditava que podiam fazer mal à religião. Também osjornais não
podiam circular. Segundo um decreto do Papa Pio 8, quem possuísse um
livro de um autor herético seria também considerado herege. Quem ouvisse
críticas ao Santo Ofício e não as denunciasse às autoridades era
considerado tão culpado quanto o crítico. Por ler um livro do Index ou
comer carne na sextafeira, podia-se ir para a prisão.
211

Em 1846, o Papa Gregório 16 morreu e ascendeu ao trono de São Pedro um
novo pontífice sob o nome de Pio 9. Era um momento volátil na história
européia. Desde 1815 desde a derrota final de Napoleão em Wterloo e
a ordem imposta no Congresso de Viena a Europa passara por trinta
anos de relativa estabilidade, caracterizada por um extremo
conservadorismo reacionário. Agora, o continente voltava a agitarse.
Entre as diversas forças no vento que soprava, duas eram particularmente
virulentas
a revolução e o nacionalismo.
Muito estranhamente, em vista de sua carreira posterior, Pio IX começou
seu reinado com a reputação de reformador. Era simpático a pelo menos
algunia forma de unificação e nacionalismo italianos. Viase, em sua
condição de pontífice, atuando por ordem divina como um canal e
instrumento para o renascimento da Itália. Sonhava presidir uma
confederação de estados italianos. Arrancou até apelos de apoio de
Mazzini e Garibaldi, que em sua ingenuidade imaginavam poder encontrar
um novo aliado na Igreja.
Quaisquer que tenham sido as ilusões inicialmente promovidas por Pio,
evaporaram-se rapidamente, unto com sua popularidade. Logo ficou claro
que a Itália em que o Papa pensava pouca relação tinha com qualquer
estado constitucional. Em 1848, ele se recusou obstinadamente a dar
apoio à campanha militar rebelde contra a dominação austríaca do norte.
Sua estudada neutralidade foi vista como uma covarde traição; e a
violenta reação resultante obrigouo a fugir de Roma em ignominioso
disfarce, como um padre, na carruagem do embaixador da Baviera. Em
1850, o governo papal foi restaurado pela chegada dc tropas francesas,
e Pio retornou ao trono. Sua posição política, porém, já não fazia mais
concessões de qualquer espécie ao liberalismo ou reforma; e o regime que
estabeleceu em seus domínios tornouse cada vez mais odiado.
212

Como consequência da guerra entre a Austria e a França no norte da
Itália, em 1859, todos os antigos Estados Papais foram anexados pelo
Reino da Itália, com exceção de Roma e o campo imediatamente em volta
da cidade uma região de
180 por 50 quilômetros. Mesmo nesse encolhido
domínio, a posição do Papa era precária e tinha de ser protegida na
verdade, garantida por uma perpétua presença militar francesa. Assim
escudado, Pio aproveitouse do desenvolvimento nos transportes e
comunicações para enfraquecer mais ainda a autoridade dos bispos
católicos e centralizar cada vez mais o controle na sua pessoa. Alois
Hõtzl, por exemplo, um famoso professor franciscano de filosofia e
teologia, foi peremptoriamente intimado de Munique a Roma por haver
defendido um escritor que o Papa e o Santo Ofíciojulgavam impróprio.
Acabou prontamente condenado e sentenciado a um regime de exercícios
espirituais num mosteiro romano. Sua libertação só foi conseguida por
repetidos apelos do embaixador bávaro, agindo por ordens expressas do
Rei Ludwig 2; e mesmo assim, Hõtzl foi obrigado a retratarse
oficialmente.
Em seu próprio domínio, o Papa Pio IX governava como monarca absoluto.
As antigas restrições, como as que proibiam o direito de reunião, ainda
se aplicavam. Não se permitia qualquer jornal independente. Os
despachos dos repórteres e correspondentes que trabalhavam dentro do
Estado Papal eram interceptados pela polícia antes de poderem ser
mandados para fora. Censuravase ou eliminavase qualquer crítica
contrária, e muitas vezes baniam-se os próprios críticos. Negavase
entrada a livros ejornais indesejados. Todos os textos que defendiam a
reforma clerical, ou mesmo a posição galicana, eram automaticamente
postos no Index.
Não se podia, porém, ignorar completamente os valores e atitudes da
época. Assim, por exemplo, o Santo Ofício não mais
213

gozava da prerrogativa de queimar pessoas. Também havia algumas
restrições à tortura. Mas o Santo Ofício, por decreto papal, ainda
mantinha os poderes de "excomunhão, confisco, banimento, prisão
perpétua, assim como execuções secretas em casos odiosos.3 A polícia e
os espias papais continuavam por toda parte e agiam rápido contra
transgressões teológicas. As prisões eram comuns e numerosas. Os crimes
políticos eramjulgados por tribunais especiais, apenas por padres, que
exerciam autoridade incontestada. "Nas melhores tradições da
Inquisição", os acusados jamais podiam encontrar-se com as testemunhas
usadas contra eles pela promotoria, nem ser defendidos por um advogado.
Os médicos eram proibidos de continuar tratando de um paciente que,
após uma terceira visita, não consultasse o seu confessor. Os médicos
judeus simplesmente eram proibidos de praticar; por pressão do Papa,
também estavam banidos do território adjacente da Toscana.
Esse era o regime temporal de Pio IX. Como para cercar-se também de um
exército de agentes celestes, o Papa criou um número sem precedentes de
novos santos. Em 1862, por exemplo, fez vinte e seis de uma vez,
canonizando missionários assassinados no Japão em 1597. Entupiu o
episcopado com bispos de mentalidade igual à sua e estabeleceu mais de
200 novas dioceses. Agindo sob sua autoridade quer dizer, sem o
consentimento de um Concílio Geral supostamente exigido pelo Concílio de
Constança
elevou ao status de dogma a doutrina da Imaculada Conceição. Ao
contrário da apreensão dos nãocatólicos, isso não se referia ao suposto
parto virgem de Jesus. Postulava, antes, que Maria, para servir de vaso
da encarnação de Deus emJesus, tinha ela própria de haver nascido livre
do pecado original. Em virtude da declaração do Papa, sua pureza
tornouse, retroativamente, verdade.
Em 1864, quando a Guerra Civil americana atingia seu sangrento clímax e
a máquina militar prussiana sob Bismarck esma
214
gava a Dinamarca em seis dias, o Papa declarava sua própria guerra ao
progresso, liberalismo e civilização moderna. Essas coisas foram
oficialmente denunciadas numa encíclica emitida a todos os bispos
católicos romanos, em que o pontífice expressava seu sonho de ver todo o
mundo unido sob uma só religião a de Roma.
Apensa à encíclica havia uma Suma de Erros, um catálogo ou inventário
de todas as atitudes e crenças que o Papajulgava perigosas, erradas ou
heréticas. Não surpreendentemente, a "Suma" condenava o racionalismo e
as sociedades secretas e bíblicas. Segundo o Papa, era também erro
acreditar que todo indivíduo é livre para abraçar e professar aquela
religião.., que considere verdadeira. Igualmente errônea, a crença em
que "não é mais aconselhável que a religião católica seja tida como a
única religião de estado, com exclusão de todas as outras formas de
culto. Errava quem acreditava que as pessoas... devem desfrutar do
exercício público de seu próprio culto pessoal.6 O décimooitavo e
último erro condenado pelo Papa era a crença em que ele, o pontífice
romano, pode e deve reconciliar-se e aceitar o progresso, o liberalismo
e a civilização moderna.
A "Suma de Erros era acompanhada de uma breve introdução do Cardeal
Antonelli, Secretário de Estado dos Estados Papais e um dos cardeais que
presidiam o Santo Ofício que agora passara a referir-se a si mesmo
como a Sacra Inquisição Romana e Universal. Antonelli escrevia que o
Papa
quis que se compilasse uma suma dos mesmos erros, a ser enviada aos
Bispos do mundo católico, para que esses Bispos tenham diante dos olhos
todos os erros e doutrinas perniciosas que ele tem reprovado e
condenado.8
Um historiador comentou que "a Suma foi largamente vista como um gesto
de desafio lançado pelo indignado Papa contra o
215
INFALIBILIDADE

século 19. A conclusão é correta. Na verdade, o Papa tentava ir além
do Rei Canuto. Seu desejo último era que Deus abolisse e anulasse todo
o século 19 Como Deus não obedeceu, o Papa tentou tomar e usurpar a
prerrogativa divina, declarandose infalível.
Durante alguns anos antes dessa medida, Pio IX vinha aplicando medidas
que transformariam o Papado. Numa época em que até os regimes seculares
mais autocráticos haviam começado a se arrastar devagarinho rumo à
democracia representativa, a Igreja, sob Pio, andava exatamente na
direção contrária para o absolutismo neofeudal. Era como se o Papa e
a renomeada Inquisição buscassem compensar a crescente perda de poder
temporal arrogandose uma autoridade psicológica e espiritual ainda
maior. Se o Grande Inquisidor não mais podia legalmente mandar gente
para a estaca, agora ia tentar penalizá-las de dentro, trabalhando por
meio de suas consciências com técnicas semelhantes às do vudu. Na
verdade, o espírito do Papado buscava "possuir" os fiéis. Depois de
privada de soberania mundana, a Igreja esforçavase agora por
estabelecer um novo domínio para si basicamente dentro dos vulneráveis
confins da mente católica.
Essa mudança no teatro de operações da Igreja foi inaugurada pelo
Primeiro Concílio Vaticano, que se reuniu sob os auspícios de Pio 9 em
dezembro de 1869. Continuou por uns dez meses e meio, e quando parou, a
20 de outubro de 1870, o Papado se transformara.
O Concílio começou de maneira bastante previsível, com uma condenação
mais ou menos convencional do ateísmo, materia. lismo e panteísmo. Em
breve, porém, ia tornar-se visível sua verdadeira investida resolver
definitivamente a luta secular pela autoridade entre os bispos, que
queriam uma Igreja mais descentralizada, e o Papado, que buscava poder
supremo e autocrático.
216
Quando se concluiu o Concílio, foram as aspirações do Papado que saíram
triunfantes.
O Vaticano 1 não foi um Concílio livre. Ao contrário, caracterizouse
por ameaças, intimidação e coerção. Foi inteiramente dominado pelos
desejos do Papa, e não houve votações secretas para proteger os
dissidentes. Os que se opunham à vontade de Pio não tinham ilusões sobre
o que iriam sofrer. Na melhor das hipóteses, seriam obrigados a
renunciar ou simplesmente seriam removidos de seus postos. Na pior,
podiam esperar ser presos pela polícia papal, que atuava em acordo com a
Inquisição.
A princípio, as coisas não chegaram a nada muito extremo e dramático.
Afinal, muitos bispos dependiam financeiramente do Vaticano, e portanto
da boa vontade do Papa. Mais de 300 deles foram levados a Roma às
custas do pontífice. Havendoos assim deixado em dívida consigo, ele
podia sentir-se confiante sobre sua lealdade em qualquer controvérsia
que surgisse.
Após amontoar as fichas a seu favor, o Papa podia agir rápida,
implacável e decisivamente contra qualquer dissidência. Quando, por
exemplo, um bispo croata ousou afirmar que mesmo os protestantes eram
capazes de amar Jesus, foi silenciado aos berros. Quando ousou, mais
ainda, contestar se era factível decidir questões de dogma por voto
da maioria, a maioria explodiu com a fúria de uma multidão de
linchadores, gritando do outro lado do Concílio: "Lúcifer! Anátema! Um
segundo Lutero! Joguem-no para fora!
O próprio Papa tampouco estava acima de atos de intimidação. Quando o
Patriarca caldeu, por exemplo, teve a presunção de contestar uma
proposta Bula que aumentava o poder do Papado para nomear
eclesiásticos, foi furiosamente convocado a um encontro privado numa das
câmaras do Papa. Assim que entrou, o pontífice, tremendo de raiva,
trancou as portas. Ele devia ou concordar com a
217


Bula por escrito ou renunciar. Se não fizesse uma coisa nem outra,
jamais deixaria a sala. Nessa ocasião, o Patriarca submeteuse. Quando
voltou a contestar o Papa depois no Concílio, foi sumariamente
demitido de seu cargo.'
Nessa atmosfera de intimidação e ameaça, poucos eclesiásticos tinham
coragem suficiente para protestar abertamente. Muitos deles deixaram o
Concílio antes que acabasse. O Papa estimulou essa fuga, satisfeito por
ver-se livre de vozes rebeldes.
Logo ficou claro que o objetivo, o propósito dominante último do
Primeiro Vaticano, era promulgar a doutrina da infalibilidade papal.
Essa questão, porém, não foi anunciada de antemão. Na verdade,
mantiveram-na em rigoroso segredo. O Prefeito dos Arquivos do Vaticano
foi demitido por permitir que alguns amigos vissem as regras do Papa
para o debate; e para que não passasse a chave a um sucessor, a porta
que dava acesso de seus aposentos ao arquivo foi emparedada.12
A Inquisição, em contraste, sabia dos planos do Papa. Foio instrumento
para mantê-los em segredo até o momento adequado, e depois para leválos
de roldão por cima de qualquer oposição que surgisse. Dos cinco homens
que presidiram o Primeiro Concílio Vaticano, três eram cardeais, todos
membros da Inquisição. Das várias comissões que atuavam por trás do
Concílio, a mais importante era a dedicada à teologia e ao dogma. Por
conselho do Cardeal Giuseppe Bizzari, também membro da Inquisição,
estabeleceuse "que o Santo Ofício deve formar o núcleo da comissão
encarregada de questões doutrinárias. Quando um cardeal manifestou
ansiedade sobre a introdução da questão da infalibilidade papal,
mandaram-no parar de preocuparse, deixar tudo com a Inquisição, e que
o Espírito Santo cuidasse do resto.
Na Bula que anunciou a reunião do Concílio, não se fazia qualquer menção
à infalibilidade papal. Não havia tampouco men
218

ção disso em qualquer literatura preparatória ou agenda preliminar.
Essa questão não foi sequer levantada até fevereiro de 1870, quando o
Concílio já estava em sessão havia uns dois meses e as fileiras dos
opositores do Papajá se achavam reduzidas. Quando a questão da
infalibilidade papal foi finalmente introduzida, portanto, colheu de
surpresa e despreparada a maioria dos bispos reunidos. Muitos deles
ficaram profundamente chocados. Não poucos verdadeiramente
horrorizados.
Como em questões de menor importância, os dissidentes foram submetidos a
extrema pressão e intimidação. Alguns foram ameaçados com redução de
apoio financeiro. Quando o abade geral de uma ordem monástica armênia
se manifestou contra a infalibilidade, disseramlhe que seria demitido,
e depois ele foi condenado pelo enfurecido Papa a um regime de
exercícios espirituais obrigatórios num mosteiro local uma forma,
na verdade, de prisão domiciliar. Outro eclesiástico armênio recebeu
uma sentença semelhante. Quando a desafiou, a polícia papal tentou
prendê-lo na rua, e a escaramuça que se seguiu transformouse num motim.
Imediatamente depois, todos os bispos armênios pediram permissão para
deixar o Concílio. Quando se recusou isso, dois deles fugiram.
No todo, 1084 bispos eram elegíveis para assistir e votar no Primeiro
Concílio Vaticano, e uns 700 compareceram de fato. Cerca de cinquenta
eram ardorosos defensores do desejo do Papa de arrogarse
infalibilidade, 130

militantemente contrários, e o resto se mostrou no
início indiferente ou indeciso. Quando se chegou à votação, a tática
brutal do Papado já fizera pender decisivamente a balança. Na primeira
votação, a 13 de julho de 1870, 451 declararam-se a favor e 88 contra.
Quatro dias depois, a 17 de julho, 55 bispos declararam oficialmente
sua oposição, mas disseram que, em deferência ao Papa, se absteriam na
votação marcada
219

para o dia seguinte. Todos eles deixaram então Roma, como já haviam
feito muitos outros. A segunda e final votação ocorreu a 18 de julho. O
número dos que apoiavam a posição do Papa aumentou para 535. Só dois
votaram contra, um deles o Bispo Edward Fitzgerald, de Little Rock,
Arkansas. Dos 1.084 elegíveis para votar na questão da infalibilidade
papal, um total de 535 haviam-na finalmente endossado uma "maioria
de apenas 49 por cento Graças a essa maioria, o Papa, a 18 dejulho
de 1870, foi formalmente declarado infalível por direito próprio, e "não
como resultado do consentimento da Igreja. Como observou um
comentarista isso afastou todas as interpretações conciliaristas do
papel do Papado.
A votação decisiva de 18 de julho ocorreu contra um pano de fundo de
fatos políticos cada vez mais turbulentos. Logo no dia seguinte, 19
dejulho, o Império francês sob Napoleão 3 declarou uma guerra suicida
à Prússia. O caos que se seguiu na França desviou a atenção das
questões religiosas e sem dúvida embotou o que de outro modo poderia
ter sido uma reação rebelde do clero francês, de espírito independente.
Em outras partes, houve reação. O preconceito contra a Igreja parecia
ter adquirido uma novajustificação; e o sentimento anticatólico
explodiu por toda a Europa e América do Norte. Na Holanda, houve
praticamente um cisma. No Império Habsburgo da ÁustriaHungria, uma
concordata previamente concluída com o Papado foi abolida pelo governo.
O Núncio Papal em Viena comunicou ao Secretário de Estado do Vaticano
que "quase todos os bispos da ÁustriaHungria que agora voltaram de Roma
estão furiosos com a definição de infalibilidade, e dois deles
exigiram publicamente que se abrisse um debate para reverter a decisão
do Concílio. Por mais de um ano, os bispos da Hungria recusaram-se a
aceitar a decisão do Concílio.
220

O Bispo de Rottenburg tachou publicamente o Papa de perturbador da
Igreja. Em Braunsberg, um famoso professor publicou um manifesto
chamando o pontífice de herege e devastador da Igreja; e o cardeal e
o bispo locais concordaram tacitamente com essa condenação. Na
Prússia, Bismarck introduziu leis que alteravam de forma radical o
status e a relação da Igreja com o estado. Osjesuítas foram efetivamente
expulsos do reino. Instituíram-se procedimentos legais para a nomeação
do clero. Tornaram-se obrigatórias as cerimônias de casamento civil.
Todas as escolas foram postas sob a supervisão do estado.
Diante de tal reação, o Papado simplesmente se tornou mais agressivo.
Ordenouse a todos os bispos que se submetessem por escrito ao novo
dogma; e os que se recusaram foram penalizados ou afastados de seus
cargos. Também o foram professores e mestres de teologia rebeldes. Os
núncios papais foram instruídos a denunciar como hereges os
eclesiásticos e intelectuais contestadores. Todos os livros e artigos
que contestavam, ou mesmo questionavam, o dogma da infalibilidade papal
foram automaticamente postos no Index. Em pelo menos uma ocasião,
fizeram-se tentativas de suprimir um livro hostil por meio de suborno.
Muitos documentos do próprio Concílio foram confiscados, censurados ou
destruídos. Um adversário do novo dogma, por exemplo, o Arcebispo
Vincenzo Tizzani, Professor de História Eclesiástica da Universidade
Papal de Roma, escreveu uma detalhada história desses fatos.
Imediatamente após a sua morte, o manuscrito foi comprado pelo Vaticano
e é mantido trancado desde então.
Contra a maré da história, porém, a recémadquirida infalibilidade do
Papa mostrouse de pouca importância. No início de setembro, o exército
francês se rendeu em Sédan, Napoleão 3 abdicou e o Segundo Império
desmoronou. Numa desesperançada tentativa tardia de evitar a
catástrofe, chamaram-se as tropas
221

francesas que protegiam o Vaticano. A 20 de setembro, soldados italianos
entraram marchando em triunfo em Roma. As deliberações do Primeiro
Concílio Vaticano foram paralisadas, e o próprio Concílio encerrouse
uma quinzena depois. Em julho de 1871, Roma tornouse capital do
recémunificado e secularizado Reino da Itália. O monarca, Victor
Emmanuel, instalouse no expalácio papal do Quirinal.
Dois meses antes, em maio, o governo italiano instituíra uma Lei de
Garantias. Segundo essa medida, garantiase a segurança do Papa e
davase a ele o status de soberano no Vaticano. A Cidade do Vaticano
um pedaço de terra totalizando cerca de 44 hectares dentro das antigas
muralhas do próprio Vaticano foi declarada principado independente,
não parte do solo italiano.
Inconformado, o Papa entrou num mau humor muitíssimo divulgado.
Recusandose a deixar o Vaticano, queixouse de que era mantido
prisioneiro. Dentro dos limites de seu próprio domínio miniaturizado,
tentou continuar indiferente ao mundo externo; e há alguns indícios de
que a infalibilidade àquela altura lhe havia subido à cabeça. Na versão
de um comentarista da época:
O Papa recentemente teve vontade de experimentar sua infalibilidade.
Quando dava um passeio, disse a um paralítico: Levantate e anda." O
pobre diabo tentou e caiu, o que deixou deprimido o viceregente de
Deus... Eu realmente acredito que ele está louco.
Nos 58 anos seguintes, o Papado insistiu em recusar-se a reconhecer o
estado italiano. Durante todo esse tempo, nenhum Papa visitou Roma nem
se dignou pôr o pé em solo italiano. Finalmente, em fevereiro de 1929,
concluiuse o Tratado de Latrão. A Cidade do Vaticano foi oficialmente
reconhecida e ratificada como estado soberano sob a lei internacional,
e o catolicismo proclamado religião
222

de estado do povo italiano. Em troca, o Papado reconhecia
formalmente o governo italiano o governo de Benito Mussolini.
Àquela altura, o Papa Pio 9 havia muito estava morto. Morrera em 1878.
Fora um dos mais influentes Papas modernos, mas também um dos mais
impopulares. Em 1881, seu corpo foi transferido numa elaborada
procissão fúnebre da Catedral de São Pedro para o outro lado do Tibre,
atravessando Roma. Multidões sejuntaram e berraram insultos: "Viva a
Itália!, Morte ao Papa!, Joguem o porco no rio! Ao longo do
percurso da procissão,j ogaram-se pedras e seis indivíduos foram presos
aparentemente por tentarem tomar o caixão do pontífice morto e
emborcá-lo no Tibre. Foram acusados de perturbar uma função religiosa,
e o Papa reinante, Leão 13, apresentou um protesto formal ao governo
italiano pelo ultraje à dignidade do Papado. Apesar dessa
hostilidade, porém, Pio 9 deixara uma marca indelével na história:
Quando ele morreu, havia efetivamente criado o Papado moderno,
privado.., de seu domínio temporal, mas em compensação armado com uma
autoridade espiritual imensamente aumentada.
223

E nquanto se desenrolava o último terço do século 19, a Igreja
achavase mais privada de poder temporal do que nunca em mais de um
milênio e meio. Tampouco podia fazer muita coisa a respeito. Em alguns
setores, falavase de uma nova Santa Liga, semelhante à do século 16,
que unira as potências católicas da Europa. Depois de 1870, porém,
restavam poucas potências católicas no continente. A mais importante era
a dupla monarquia da AustriaHungria; mas esta, como disse depois
Robert Musil, já gastava o suficiente de seu exército para assegurar
sua posição como segunda mais fraca das grandes potências. A mais fraca
era o recémunificado Reino da Itália, de população ainda em grande
parte católica, mas cujo governo, depois de finalmente arrancar o
controle da Igreja, dificilmente estava disposto a tornar-se o seu
braço armado. Tampouco se podia esperar que o Reino da Itália entrasse
em aliança com o velho inimigo austríaco.
Como a Itália, a França continuava em grande parte católica; mas a
Terceira República francesa preservara rigorosamente a antiga separação
revolucionária de Igreja e Estado. E após as cataclísmicas derrotas na
Guerra FrancoPrussiana, o frágil governo
224

santo ofício francês não se achava em posição de fazer um desafio ao recémcriado
Império alemão, o Segundo Reich, suprema potência militar no
continente. Espanha e Portugal ainda eram oficialmente católicos, mas
não mais se classificavam como grandes potências. Ao mesmo tempo, uma
nova ameaça surgira no leste. Durante séculos, a Igreja Ortodoxa
Oriental ficara atrás de Roma em poder temporal. Agora, como Igreja
oficial da Rússia tsarista, podia reunir maiores recursos temporais que
Roma; e em principados balcânicos como a Bósnia, avançava ativamente
sobre o que fora território católico. Intensificouse o atrito entre as
Igrejas católica e ortodoxa. Em 1914, esse atrito não contribuiu pouco
para os tiros em Sarajevo que precipitaram a Primeira Guerra Mundial.
Se se achava particularmente vulnerável no mundo secular, porém, a
Igreja julgavase recémarmada e equipada em outras esferas. A doutrina
da infalibilidade papal fornecia, quando nada, um baluarte
aparentemente inexpugnável contra os avanços e invasões da ciência. Para
os fiéis pelo menos, a infalibilidade se antecipava e excluía todo
argumento. Embora a Igreja não derrotasse a adversária, era poupada de
ser derrotada ela própria, por ser impedida de ao menos entrar na arena.
Para os católicos devotos, a infalibilidade papal constituía uma nova
rocha contra a qual a maré da ciência, lançada pelo demônio, só podia
quebrar-se em vão.
Contra a ciência, a Igreja podia assim empenhar-se numa contínua série
de ações de contenção. Contra os outros principais adversários no mundo
das idéias isto é, contra as pesquisas dos estudos históricos,
arqueológicos e bíblicos acreditava que podia passar à ofensiva. Essa
convicção ia levar ao vexaminoso embaraço do Movimento Modernista
católico.
O Movimento Modernista surgiu do desejo específico de enfrentar as
depredações causadas na escritura por comentaristas como Renan, e pelos
estudos bíblicos alemães. Com o Modernismo
225

, a nova Igreja Militante uma Igreja Militante na esfera da mente
tentou lançar uma contraofensiva. Os modernistas destinavamse
originalmente a empregar o rigor, a disciplina e precisão da
metodologia alemã não para contestar a escritura, mas para defendêla e
apoiála. Uma eração de estudiosos católicos foi trabalhosamente
formada e preparada para fornecer ao Papado o equivalente a uma força de
ataque acadêmica, um quadro determinadamente formado para fortalecer a
verdade literal da escritura com toda a artilharia pesada das mais
atualizadas técnicas e procedimentos críticos. Como os dominicanos do
século 13 e osjesuítas do século 16, os modernistas foram
mobilizados para lançar uma cruzada que recuperasse território perdido.
Para frustração e humilhação de Roma, porém, o tiro da campanha saiu
pela culatra. Quanto mais a Igreja se esforçava por equipar osjovens
clérigos com os instrumentos necessários ao combate na moderna arena
polêmica, mais esses mesmos clérigos passavam a desertar a causa para a
qual haviam sido recrutados. O meticuloso escrutínio da Bíblia revelou
uma pletora de discrepâncias, inconsistências e repercussões
alarmantemente inimigas do dogma oficial e lançou a doutrina da
infalibilidade papal numa luz cada vez mais dúbia. Antes que qualquer
um compreendesse o que se passava, os próprios modernistasjá haviam
começado, com suas dúvidas e questões, a erosar e subverter as
posições mesmas que deveriam defender. Também passaram a contestar a
centralização de autoridade da Igreja.
Assim, por exemplo, Alfred Loisy, um dos mais famosos e respeitados
modernistas, perguntou publicamente como ainda se podia sustentar certas
doutrinas de Roma na esteira da pesquisa bíblica e arqueológica
contemporânea. Jesus proclamou o adventodo Reino, afirmou Loisy,
ecoando o Grande Inquisidor de Dostoiévski, "mas o que adveio foi a
Igreja. Ele demonstrou que muitos
226
pontos do dogma se haviam cristalizado como reações historicamente
determinadas a acontecimentos específicos, em lugares e épocas
específicos. Não deviam, portanto, ser vistos como verdades fixas e
imutáveis, mas na melhor das hipóteses como símbolos. Segundo Loisy,
premissas básicas da doutrina cristã como o Parto Virgem e a divindade
de Jesus não eram mais sustentáveis como literais.
Em 1893, Loisy foi demitido de seu cargo de professor, mas isso não
resgatou a situação, porque ele continuou vociferante e prolífico. Em
relação a Loisy e a seus colegas modernistas, a Igreja estava no dilema
do incendiário preso no prédio a que ele próprio ateou fogo. O
modernismo não era mais apenas embaraçoso. Demonstrava uma capacidade
de tornar-se verdadeiramente perturbador e destrutivo.
Em 1902, nove meses antes de morrer, o Papa Leão 13 criou a Pontifícia
Comissão Bíblica, para supervisionar e controlar a obra dos estudiosos
católicos da escritura. Oficialmente, a tarefa da Comissão era
lutar.., com todo o cuidado possível para que as palavras de Deus..,
sejam escudadas não apenas de qualquer bafejo de erro, mas até mesmo de
qualquer opinião precipitada.2 Era assegurar que os estudiosos se
esforcem por salvaguardar a autoridade da escritura e promover sua
correta interpretação.
Leão 13 morreu emjulho de 1903, e foi sucedido por Pio 10. O novo Papa
prontamente estabeleceu sua posição fazendo duas nomeações que iriam ter
destacada influência na determinação do caráter da Igreja no século 20.
Um desses foi o Cardeal Rafael Merrydel Val ( 1865 1930 ), uma
personalidade fria e sinistra, nascida em Londres de uma inglesa e um
aristocrático diplomata espanhol. Ele trabalhara no serviço diplomático
do Vaticano, e em 1898 tornarase consultor do departamento encarregado
de manter o Index de livros proibidos. Merry del VaI desempenhara um
papel
227

chave na orquestração da eleição de Pio 10 como pontífice, e exerceu
enorme influência sobre o novo Papa, que o elevou a cardeal e o nomeou
Secretário de Estado do Vaticano uma posição que ele continuou a
ocupar até a morte de Pio em 1914. Sua rigidez pessoal e doutrinária
moldou todo o teor do reinado de Pio. Era veementemente hostil ao
modernismo e dedicouse a destruílo, ajudando mesmo a estabelecer uma
rede de informantes para denunciar clérigos e professores que exibiam
tendências modernistas. Quando Pio morreu, Merry dei Val tornouse
Prefeito do Santo Ofício, ou Grande Inquisidor, posto que manteve até
sua própria morte, em 1930.
O segundo nomeado importante de Pio foi o Cardeal Mariano Rampolla del
Tindaro ( 1843 1913), um rebento da nobreza siciliana. Em 1887, ele fora
feito cardeal e antecessor de Merry del Val como Secretário de Estado
do Vaticano. Sob Pio 10, tornouse Secretário da Santa Inquisição. Também
o fizeram membro, depois presidente, da Pontifícia Comissão Bíblica
que foi então posta sob a autoridade da Inquisição. Juntos, Rampolla
Tindaro e Merry del Vai transformaram a Comissão no que um comentarista
descreveu como "um portavoz militante dos interesses deles
próprios. Em 1905, o órgão declarou que os textos bíblicos deviam ser
encarados como história absoluta e literalmente verdadeira. Também
publicou decretos formais sobre "a maneira correta de ensinar.., a
escritura decretos que, em 1907, o Papa PioXtornou obrigatórios em
toda a Igreja.
Ao ser eleito como pontífice em 1903, Pio 10, apoiado por Rampolla dei
Tindaro e Merry dcl Val, pusera imediatamente as obras modernistas de
Alfred Loisy no Index de livros proibidos. Em 1904, o novo Papa emitiu
duas encíclicas opondose a qualquer estudo que tivesse a presunção de
examinar as origens e a história inicial do cristianismo. Os
seminários e escolas teológicas
228
O SANTO OFÍCIO
começaram a receber visitas de inspeção dos sabujos do Vaticano. Todos
os professores católicos suspeitos de tendências modernistas eram
sumariamente suspensos ou demitidos de seus cargos.
Os modernistas, o enclave mais bemeducado, mais erudito e que melhor se
expressava na Igreja, tiveram pouca hesitação em retaliar. Receberam
eloquente apoio de setores seculares pensadores eminentes, aclamadas
figuras culturais e literárias, como Antonio Fogazzaro na Itália e Roger
Martin du Gard, depois ganhador do Prêmio Nobel de Literatura, na
França. Em 1896, Fogazzaro tornarase senador. Também era reverenciado
como o principal católico leigo de sua época, e, ao menos pelos
contemporâneos, como o maior romancista que a Itália produzira desde
Manzoni. Em O Santo, publicado em 1905, ele escreveu:
A Igreja Católica, que se chama de a fonte da verdade, hoje se opõe à
busca da verdade, quando suas fundações, os livros sagrados, as
fórmulas de seus dogmas, sua suposta infalibilidade se tornam objetos
de pesquisa. Para nós, isso significa que ela não mais tem fé em si
mesma.
A obra de Fogazzaro, desnecessário dizer, foi prontamente posta no
Index. E intensificouse a campanha da Igreja contra o movimento que ela
mesma promovera e alimentara. Em 1907, o Papa lançou uma encíclica que
condenava formalmente o modernismo. No mesmo ano, a Inquisição publicou
um decreto que atacava a presunção modernista de questionar a doutrina
da Igreja, a autoridade papal e a veracidade histórica dos textos
bíblicos. Em setembro de 1907, o modernismo foi declarado heresia e todo
o movimento oficialmente banido. A quantidade de livros no Index
aumentou de repente dramaticamente. Introduziuse uma nova censura,
muito mais severa. Os comissários eclesiásticos acompanhavam o ensino
com uma inflexibilidade doutrinária desconhe
229

cida desde a ContraReforma. Finalmente, em 1910, emitiuse um decreto
que obrigava os católicos envolvidos em pregação ou ensino a fazer um
juramento repudiando todos os erros do modernismo um juramento que
só seria abolido em 1967. Excomungaram-se vários escritores modernistas.
Os alunos dos seminários e colégios teológicos foram proibidos até
mesmo de ler jornais.
Ao endossar e patrocinar originalmente o movimento modernista, a Igreja
tentara entrar no mundo moderno, valendose dos recursos intelectuais e
da metodologia de estudo do mundo moderno. Em vista do resultado da
experiência, éjusto concluir que a Igreja e o mundo moderno são
incompatíveis. Esta, certamente, parece ter sido a conclusão da Igreja.
Roma retirouse para uma casamata própria e lá permaneceu até a década
de 1960.
Com a imagem pública coberta de cicatrizes da batalha com o modernismo,
a Inquisição precisava urgentemente de uma cirurgia plástica. Em 1908,
a palavra Inquisição foi oficialmente retirada de seu título, e ela
se tornou a Sagrada Congregação do Santo Ofício.
A influência do Cardeal Merry dei Val, Prefeito do Santo Ofício ou
Grande Inquisidor, continuou a irradiar-se com o desenrolar do século
20. Quando ele morreu, em 1930, os onze cardeais que compunham o
conselho governante do Santo Ofício eram todos seus protegidos. Um
deles, o Cardeal Eugenio Pacelli, acabou por tornar-se o Papa Pio 12
em 1939. Outro, o Cardeal Donato Sbarrettj, tornouse o novo Prefeito,
e nessa condição presidiu por toda a década de 1930 e início da de 1940.
Entre os consultores do Santo Ofício sob Merry dei Vai estavam as duas
figuras que sucederam
230
A Rede de Inteligência de Monsenhor Benigni
O SANTO OFICIO
Sbarretti e presidiram do início da década de 1940 até 1982. Um dos
consultores sob Sbarretti era Giovanni Battista Montini que se tornou
o Papa Paulo V6 em 1963. Assim, a sombra de Merry dei Val pairou sobre
o Santo Ofício e o Papado durante a maior parte do século 20. Como logo
veremos, ainda não foi exorcizada.
O cardeal e seus discípulos, o que não surpreende. também tentaram
estender sua influência, até onde possível, à política. Nessa arena, um
dos mais sinistros protegidos de Merry del Vai era o Monsenhor Umberto
Benigni ( 1862 1934), descrito por um contemporâneo como uma personagem
estranha e sem escrúpulos. Nativo de Perugia, Benigni foi ordenado
em 1884, e tornouse professor de história eclesiástica num seminário
local. Depois assumiu uma espécie dejornaiismo, fundando uma
publicação católica popular. Em 1901, mudouse para Roma, para
continuar ensinando lá, mas logo abandonou isso a fim de trabalhar na
Cúria, tornandose um dos secretários da Congregação para a Propagação
da Fé. Então, em 1906, entrou no departamento de imprensa do Secretário
de Estado do Vaticano, Merry dei Vai. Nos cinco anos seguintes, Benigni
trabalhou sob os auspícios do futuro Grande Inquisidor. Por fim, em
1911, saiu, e, com a bênção de Merry del Vai, dedicouse inteiramente à
administração da sociedade secreta que fundara dois anos antes,
Sodalitium pianuln ( Sociedade Pia).
Os objetivos originais dessa sociedade eram ajudar a aplicar e impor as
restrições de PioXao modernismo. Em 1907, Pio exortara os bispos a
supervisionar de perto o ensino nos seminíirios e os textos de padres,
e estabelecer em cada diocese comitês de vigilância . De acordo com
essa ordem, Benigni criara sua sociedade secreta como uma rede
internacional de informantes para espionar, coletar e processar
informação sobre suspeitos de simpatia com o modernismo, que então
seriam denunciados e condenados
231

publicamente. Agindo como uma espécie de Inquisição ad hoc e
autonomeada, a Sodalitium pianum empregava códigos, pseudônimos e todos
os outros macetes associados a uma agência de espionagem. Muitas de
suas atividades permanecem desconhecidas até hoje, como permanecem as
ligações clandestinas que forjou com uma gama de instituições
religiosas e políticas. Todos os documentos relativos à
Sodalitiumpianum estão trancados nos arquivos do Vaticano e jamais foram
liberados.
Paralela a seu trabalho clandestino, Benigni produzia uma publicação
regular, Corrispondenza di Roma, que, para refletir sua orientação e
público básicos, depois adotou a versão francesa de seu nome,
Correspondance de Rome. Como a Sodalitium pianum, dedicavase a
denunciar o modernismo e seus simpatizantes, professores, intelectuais
e clérigos que supostamente se haviam desviado da ortodoxia doutrinária.
As duas empresas de Benigni eram abertamente endossadas pelo Papa Pio
10,
e também por Merry dei Vai. Com a morte de Pio, porém, o apoio começou
a minguar. Em 1913, a Correspondance foi fechada. Pouco depois da
eclosão da Primeira Guerra Mundial em 1914, tropas alemãs na Bélgica
capturaram um arquivo de documentos pertencentes àSodalitium pianum. Os
papéis continham provas comprometedoras, e pressionouse o Vaticano
para conter as atividades de Benigni. Finalmente, a Sodalitium pianum
foi liquidada pelo Papa Benedito 15 em 1921.
Em Merry dei Vai, porém, Benigni tinha um protetor poderoso, sob cujos
auspícios passou a empenhar-se em outros empreendimentos dúbios.
Durante séculos, a Igreja sonhara em estabelecer uma base na Rússia e
aos poucos deslocar ou incorporar a ortodoxia russa. Se ocorresse alguma
coisa desse tipo, a Igreja Ortodoxa Grega ficaria cada vez mais
marginalizada, e Roma estaria em posição estratégica para reparar o
cisma com Bizâncio, que
232
dividira a cristandade um milênio e meio antes. Por conseguinte, PioX
criara um "exarcato" do Rito Russo em 1907, e nomeara um Arcebispo
Uniato de Lvov, no que é hoje a Polônia. Imediatamente depois, Benigni
começara a se meter nos assuntos russos. Em 1910, estava em termos
íntimos com diplomatas e políticos paneslávicos russos quer dizer, a
linhadura da direita.
Quaisquer que fossem as tramas que ele estivesse chocando, foram
arquivadas pela eclosão da Primeira Guerra Mundial, e depois
definitivamente frustradas pela Revolução e o sangrento conflito civil
que se seguiu. Quando os bolchevistas saíram vitoriosos, deve ter
ficado visível para Benigni que a Rússia era uma causa perdida, pelo
menos em seu tempo de vida. Por conseguinte, voltou a atenção para
outra parte.
Em 1920, ainda sob a proteção de Merry del Vai, Benigni começou a
produzir um boletim em francês chamado Antisé,nite. Apesar do título, o
cardeal insistia em que não era de fato antisemita. Apenas se opunha
à suposta conspiração internacional judia que dominava os bancos, a
maçonaria e o boichevismo. Se pressionado, sem dúvida teria dito que
alguns de seus melhores amigos eramjudeus. Ou talvez não, uma vez que se
referia ao povo judeu como o Eleito do Anticristo.
Em 1923, dois anos após a eliminação da Sodalitiinpianum de Benigni,
surgiu na França uma nova organização sob o nome de ERDS Entente
romaine de défense sociale. Aiguns comentaristas sugeriram que a ERDS
era na verdade uma ressurreição da Sodalitium pianum sob nova
designação. Para entrar em suas fileiras, era preciso ser cristão,
pertencer a uma nação ariana ou arianizada e abraçar o lema Religião,
Família, Pátria, um lema revivido e promulgado por certa organização
católica hoje. Um dos portavozes básicos da ERDS era um certo Abbé
Boulin, que escrevia de forma beligerante sobre o "ataque" à Europa
pelos bancos

233

judeus internacionais. Em 1924, Boulin foi coanfitrião, em Paris, da
reunião de uma autodenominada Internacional Antijudia. Uma segunda
reunião dessas realizouse no ano seguinte na Austria, e Benigni
compareceu)Q
Pelo que se sabe dela, a ERDS parece ter tido muito em comum com a
Action française, o movimento nacionalista linhadura de direita cujo
culto de sangue e solo era semelhante ao do nacionalsocialismo na
Alemanha. Benigni foi um vigoroso defen sor daActionfrançaise, cujos
membros, acreditase, incluíam alguns dos chefes franceses da veiha
Sodalitium pianutn. Infelizmente para o cardeal, as relações com
aActionfrançaise tendiam a ser nervosas. Em 1926, abriuse uma cisão
entre eles quejamais foi reparada depois.
A 11 de fevereiro de 1929, assinouse o Tratado de Latrão, entre o
Vaticano e Benito Mussolini, primeiroministro italiano desde 1922, pelo
qual se estabelecia a Cidade do Vaticano como estado independente e
soberano, um enciave autosuficiente que não fazia parte do solo
italiano. A Igreja foi indenizada pela perda dos antigos Estados Papais
e o catolicismo adotado como religião oficial da Itália. Em troca, o
Papado dignavase a reconhecer a Itália como um reino e Roma como sua
capital. Pela primeira vez desde 1870, o Papa aventurouse a pôr o pé
na Cidade Eterna.
Monsenhor Benigni ficou satisfeito. Depois iria colaborar estreitamente
com a OVRA, o equivalente italiano da Gcstapo. Podese imaginar o
entusiasmo com que, se houvesse vivido para ver, haveria abraçado o
movimento faiangista de Franco na Espanha.

234

Os traumáticos acontecimentos da primeira metade do século 20 as
duas guerras mundiais, o choque de ideologias, as revoluções e
conflitos civis no México, Rússia, Espanha e outras partes
demonstraram a medida em que a Igreja ficara à margem do curso da
história ocidental. A não ser em casos isolados como a Irlanda, essa
história se tornara cada vez mais secular. E Roma, sempre mais privada
de poder e influência temporais, foi reduzida ao status de uma voz
queixosa em meio a um coro maior. E verdade, claro, que a Igrejajá fora
bastante ineficaz em numerosas ocasiões no passado durante as guerras
napoleônicas, ou antes disso, durante a luta pelo império e dominação
continental no século 18. Antes, porém, o Ocidente ainda era, embora
apenas nominalmente, cristão; e enquanto assim permaneceu, a Igreja
ainda podia reivindicar um papel. Mas à medida que se desenrolava o
século 20, o cristianismo fora se tornando cada vez menos importante; e
em consequência, a Igreja se reduzira a um novo ponto baixo de
impotência. No meio da indecorosa escaramuça de ismos em disputa pela
supremacia, o catolicismo era um dos mais fracos.

235

13 Os Manuscritos do Mar Morto

Essa, pelo menos, era a situação no que se referia aos corredores do
poder, a maquinaria responsável pelas decisões que determinavam a
política pública e a marcha dos acontecimentos. Entre as infortunadas
multidões à mercê dessa maquinaria, a Igreja retinha uma substancial
congregação mais numerosa, na verdade, que a de que qualquer outra
denominação religiosa no mundo. Se essa congregação não mais podia ser
mobilizada para cruzadas ou guerras santas, ainda podia ser
influenciada no campo da psique e do espírito. Aí, permanecia
vulnerável. E aí a Igreja ainda possuía armas ajogar em campo. Uma
dessas era a secular medida da excomunhão.
Quase um milênio antes, o Papa Gregório 7 ( 1073 1085) transformara a
excomunhão num instrumento de gume afiado. Podia ser explorado até mesmo
na deposição de príncipes, reis, imperadores. Nos séculos que se
seguiram, o excesso de uso rebaixara e desvalorizara o seu valor. No
século 19, por exemplo, jovens eram rotineiramente excomungados pelo
Santo Ofício por não denunciarem pais que comiam carne nas
sextasfeiras, ou por lerem um livro proibido pelo Index.1 Depois da
Segunda Guerra Mundial, o Papa Pio 12 ameaçou excomungar qualquer
membro da Igreja que votasse num candidato conlunista, e não num
católico, numa eleição. Tal extravagância em sua utilização só podia
tornar a excomunhão cada vez mais pueril, cada vez mais esgotada de
poder.
Para a maioria dos católicos, porém, a excomunhão continuou
e na verdade ainda continua sendo um motivo potencial de terror, e
portanto um potente instrumento de intimidação. Ser excomungado quer
dizer, expulso da comunidade da Igreja e da comunhão que ela oferece
é ser transformado num marginal, com todo o senso de isolamento e
solidão que implica tal status. O indivíduo excomungado é proibido de
participar da missa ou de
236
OS MANUSCRITOS DO MAR MORTO

qualquer outro culto público. Não pode receber nenhum sacramento além
dos últimos. Não pode ser casado por um padre ou bispo, gozar de
qualquer benefício da Igreja, continuar no gozo de qualquer privilégio
espiritual antes concedido. Na mais severa das duas formas de
excomunhão, a pessoa deve ser completamente repelida por todos os
outros católicos. Em termos técnicos, a excomunhão só pode excluir o
indivíduo da Igreja, o corpo ou congregação dos fiéis. Não separa nem
pode separar a pessoa de Deus. Para muitos crentes, porém, essa
distinção é vaga, a excomunhão évista como equivalente à danação. O
impacto psicológico resultante muitas vezes é devastador.
A Lei Canônica moderna especifica várias ofensas puníveis com
excomunhão. Entre elas estão aborto, apostasia, heresia, cisma, jogar
fora ou fazer mau uso de uma hóstia consagrada, atacar fisicamente o
Papa e consagrar um bispo sem a permissão do Papa. Também foi usada
para calar dissidência ou oposição dentro da Igreja. Assim, por
exemplo, o modernista Alfred Loisy foi excomungado em 1908; escritores e
comentaristas católicos mais recentes também sofreram. As investigações
e tribunais para possível excomunhão seriam realizadas oficialmente
pelo Santo Ofício. Por sua recomendação, a sentença de excomunhão seria
pronunciada pelo Papa.
A excomunhão era um instrumento por meio do qual a Igreja, agindo
através do Santo Ofício, exercia controle sobre sua congregação. Um
segundo instrumento, pelo menos para a primeira metade do século, era o
Index, que efetivamente negava aos católicos acesso a material que
Romajulgava inimigo incluindo estudos históricos da maçonaria e da
própria Inquisição. Como se viu, o Index foi instituído em 1559 e
permaneceu em vigor nos quatrocentos e tantos anos seguintes. Ainda na
década de 1960, alunos e estudiosos católicos em universidades eram
proibidos de ler não
237

apenas clássicos estabelecidos de escritores como Voltaire e Stendhal,
mas também obras atuais importantes de figuras como Sartre Simone de
Beauvoir e André Gide obras que apareceriam em quase qualquer
currículo da época.
Aquela altura, porém, o Index se tornava cada vez mais insustentável.
Textos antes proibidos por autoridades seculares Ulisses, OAmante de
Lady Chatterley, Lauta , mesmo as obras do Marquês de Sade achavamse
facilmente disponíveis em qualquer livraria urbana de bom estoque, para
não falar nas universidades. A própria literatura tornavase cada vez
mais explícita, e os palavrões, assim como trechos sexuais detalhados ou
blasfemos impublicáveis poucos anos antes, eram agora quase
obrigatórios. EmA Ultima Tentação, Nikos Kazantzakis não apenas
retratou Jesus sob um ângulo altamente heretodoxo, mas também o
descreveu, embora apenas numa sequência de sonho, empenhado em união
sexual com Madalena. Apesar de endossos de luminares tão diversos como
Thomas Mann e Albert Schweitzer, o livro de Kazantzakis foi prontamente
posto no Index. Mas havia demasiadas outras obras muitas vezes de alta
qualidade literária, para que mesmo os mais zelosos Inquisidores se
mantivessem atualizados. Em 1966, o Index foi formalmente abolido pelo
Papa Paulo 6.
Controle dos Manuscritos do Mar Morto
Em certa medida, a abolição do Index foi uma mera formalidade. Durante
algum tempo antes, fora condenado pelas tendências da moderna cultura
secular. Os literatos católicos vinham inevitavelmente incorrendo em
constante contato com material teologicamente inaceitável, independente
da proibição da Igreja. Mas em outras esferas a Igreja ainda continuava
sendo capaz de regular, controlar e restringir o acesso ao conhecimento
e ao fluxo de infor

238

mação, com tanto rigor quanto o tinha feito na Idade Média. Talvez o
mais notório desses casos tenha sido o dos Manuscritos do Mar Morto. No
trato dos Manuscritos, o Santo Ofício, agindo em nome da Igreja através
da Pontifícia Comissão Bíblica, perpetrou o que um estudioso chamou de
o escândalo acadêmico par excellence do século 20.
Na década de 1880, o novato movimento modernista ainda não se tornara
subversivo nem adquirira má fama. Entre osjovens intelectuais
modernistas da era, havia ingênua credulidade e otimismo idealista,
uma crença complacente em que a pesquisa arqueológica disciplinada
confirmaria, em vez de contradizer, a verdade literal da escritura. A
Ecole Biblique et Archéologique Française deJérusalem que acabou
tiranizando e manipulando os Manuscritos do Mar Morto foi criada pela
primeira geração modernista, antes que a Igreja reconhecesse como
chegara perto de solapar a si mesma. A escola teve início em 1882,
quando um monge dominicano francês em peregrinação à Terra Santa
decidiu estabelecer uma casa dominicana em Jerusalém, compreendendo uma
igreja e um mosteiro. Escolheu um local onde as ruínas de uma igreja
anterior haviam sido reveladas por escavações. Nesse ponto, segundo a
tradição, Santo Estêvão, supostamente o primeiro mártir cristão, fora
lapidado.
Roma não apenas endossou a idéia, mas passou a elaborá-la e expandila.
O Papa Leão 13 recomendou que também se criasse uma escola de estudos
bíblicos, que foi devidamente fundada em 1890 pelo Padre Albert
Lagrange, e oficialmente inaugurada em 1892, contendo acomodações para
quinze alunos residentes. A instituição foi um dos muitos
empreendimentos modernistas da época. Dentro dela, estudiosos católicos
seriam equipados com a especialização acadêmica exigida para fortalecer
a fé contra o desafio representado pelo avanço na pesquisa histórica e
arqueológica.
239 OS MANUSCRITOS DO MAR MORTO

Dez anos depois, predominava a desilusão, e o modernismo caíra sob uma
nuvem de opróbrio oficial. Em 1903, o Papa Leão criara a Pontifícia
Comissão Bíblica, instituição idealizada para trabalhar em conjunto
com o Santo Ofício na supervisão e monitoração da obra dos estudos
bíblicos católicos. Nessa época, a simples sugestão dc pesquisa
histórica e arqueológicajá bastava para incorrer em condenação; e o
Padre Lagrange, junto com sua escola bíblica, foi devidamente
investigado pela Comissão. Logo se confirmou, porém, que Lagrange
permanecia leal às doutrina e tradição oficiais, e que no fundo aquele
ainda era o lugar certo no que dizia respeito à Igreja. Na verdade,
grande parte dos textos do padre tentara refutar sistematicamente as
afirmações modernistas. Lagrange foi, em consequência, nomeado membro,
ou consultor, da Pontifícia Comissão Bíblica. Seu jornal, Revue
biblique, tornouse a publicação oficial da Comissão; e esse arranjo
continuou até 1908, quando a Comissão lançou um jornal próprio.
Apesar do endosso que recebera, Lagrange continuou a atrair acusações de
modernismo dos escalões mais baixos da hierarquia clerical. Essas
acusações tanto o desmoralizaram que em 1907 ele abandonou seu trabalho
em estudos do Velho Testamento. Em 19 12, decidiu abandonar inteiramente
os estudos bíblicos e deixou Jerusalém. Mas o Papa correu em seu apoio,
ordenoulhe que voltasse a seu posto e exortouo a retomar o trabalho.
Sob seus obedientes auspícios, a Ecole Biblique, originalmente fundada
como um adjunto do modernismo, tornouse então um baluarte contra ele.
Essa, meio século depois, foi a instituição que conseguiu estabelecer
um virtual monopólio sobre os Manuscritos do Mar Morto.
Em 1947, o primeiro desses três textos antigos documentos que datam do
alvorecer da era católica e antes foi descoberto numa caverna perto de
Qumran, a uma distância de quarenta minutos de carro a leste de
Jerusalém, nas margens do Mar Morto.
240
A Caverna, depois conhecida como Caverna 1, revelou conter mais de um
Manuscrito. Na década seguinte, descobriuse que outras dez cavernas
próximas continham mais material do Manuscrito, às vezes de forma
substancialmente diferente, às vezes em fragmentos que tinham de ser
montados como um jogo de quebracabeça. Estudiosos americanos e
israelenses apressaram-se a publicar suas descobertas, que geraram
imensa excitação no mundo inteiro. Os textos de Qumran eram os
primeiros de tais documentos a vir à luz na Terra Santa. Datavam
claramente de algum tempo em volta do início da era cristã. Davam
testemunho de uma comunidade religiosa messiânica, apocalíptica, que
ocupara o local uns 2 mil anos ou mais antes.
Enquanto só se pôde associar os Manuscritos a uma seitajudaica isolada,
a Igreja e o Santo Ofício permaneceram indiferentes a eles, encarandoos
apenas como material histórico e arqueológico interessante. Em 1950,
porém, um professor da Sorbonne, André DupontSommer, fez uma
conferência pública que causou sensação internacional. Disse que um
dos textos do Mar Morto descrevia "uma Seita da Nova Aliança. O líder
dessa seita ea uma figura messiânica conhecida como o Mestre da
Virtude, que sofreu perseguição e martírio. Seus seguidores
acreditavam que o fim do mundo era iminente. Só se salvariam os que
tivessem fé no Mestre. Para consternação mundial, Dupont Sommer
concluiu que o Mestre da Virtude era em muitos aspectos "o protótipo
exato de Jesus Cristo.
A Igreja entrou imediatamente em pânico. Documentos relativos a uma
isolada seitajudaica eram uma coisa; documentos que podiam lançar uma
luz comprometedora ou equívoca sobre as origens do cristianismo,
inteiramente outra. Haviase oferecido antes a estudiosos católicos
acesso ao material dos Manuscritos, e eles manifestaram pouco
interesse. Agora, porém, era preciso lançar

241 OS MANUSCRITOS DO MAR MORTO


uma operação de limitação de danos e instituir um encobrimento. Tinhase
de estabelecer controle sobre a pesquisa e estudo dos Manuscritos. A
qualquer custo os textos de Qumran tinham de ser apresentados ao
público de uma forma que os distanciasse das origens do cristianismo,
que os tornasse incidentais ou irrelevantes para a tradição,
ensinamento, doutrina e dogma católicos. Embora não possuísse qualquer
qualificação arqueológica, o diretor dominicano da Ecole Biblique,
Padre Roland de Vaux, iniciou uma campanha concertada para arrogarse
autoridade sobre o máximo possível do material dos Manuscritos.
Entre 1951 e 1956, dc Vaux empreendeu suas próprias escavações em
Qumran. O objetivo era encontrar ou se necessário fabricar prova de
que os Manuscritos na verdade não tinham relevância para o início do
cristianismo, que se referiam apenas a uma comunidade do deserto,
isolada e não representativa, divorciada até mesmo dojudaísmo
oficial da época. De fato, a datação dos Manuscritos tinha de ficar de
acordo com essa interpretação. Em consequência, de Vaux teve de
empenhar-se em alguns procedimentos arqueológicos visivelmente dúbios
como, por exemplo, inventar muros onde não existia nenhum pelo
simples expediente de deixar sem escavar trechos de um sítio.4 Por
meio de tais artifícios, ele tentou estabelecer sua própria cronologia
para os Manuscritos, datandoos segura e indiscutivelmente de antes da
era cristã.
Nesse meio tempo, outros Manuscritos e fragmentos de Manuscritos
continuaram a vir à luz às vezes em quantidades substanciais em
alguns lugares. Formavase um quadro que ameaçava tornar-se ainda mais
embaraçoso para a Igreja do que se supunha a princípio. Os manuscritos
de fato davam testemunho de inquietantes paralelos entre o início do
cristianismo e a comunidade de Qumran. Ao mesmo tempo, essa comunidade
surgia não como
242
um remoto enclave no deserto, mas como um centro que figurara com certo
destaque em épocas do Novo Testamento, desempenhando um papel
significativo nos acontecimentos do período. Pior ainda, aparecia não
só como messiânica e apocalíptica, mas também como militante e
revolucionária, decidida a tirar a Terra Santa do jugo do Império
Romano e restaurar a monarquia do Velho Testamento. Em outras palavras,
tinha uma orientação tão política quanto religiosa. Essa orientação era
cada vez mais difícil de conciliar com o manso Salvador cordeirinho da
tradição cristã, que dava a César o que era de César e exortava seus
seguidores a oferecerem a outra face em pacífico martírio. Estabelecer
controle e administração sobre os Manuscritos, e sobre as incômodas
revelações que pudessem conter, tornavase portanto uma questão de
urgência cada vez mais intensa para a Igreja.
Por meio de hábil e maquiavélica politicagem, de Vaux conseguiu
fazer-se nomear chefe de uma equipe internacional de estudiosos
encarregados de reunir, traduzir e publicar os textos encontrados em
Qumran. Também deu umj eito de pôr a equipe internacional, e portanto
todo o trabalho sobre os Manuscritos do Mar Morto, sob os auspícios da
Ecole Biblique uma instituição dominicana, devese lembrar, que só
prestava contas ao Santo Ofício, através da Pontifícia Comissão
Bíblica. Ele consolidou mais ainda sua autoridade publicando o jornal
acadêmico oficial dedicado ao material encontrado em Qumran. E fezse
nomear editorchefe da supostamente definitiva tradução dos textos de
Qumran, Descobertas no Deserto Judeu, lançados sob selo da Oxford
University Press. Por esses meios, pôde exercer controle sobre o que
se publicava e o que não, como era editado e traduzido. Em
consequência, pôde estabelecer uma ortodoxia ostensivamente
inexpugnável de interpretação sobre todos os documentos de Qumran. De
Vaux e seus protegidos tornaram-se assim os especialistas nos

243 OS MANUSCRITOS DO MAR MORTO


Manuscritos do Mar Morto reconhecidos em todo o mundo, e parecia não
haver motivo para o mundo em geral duvidar da integridade deles.
Tais foram as condições em que prosseguiram os estudos sobre os
Manuscritos do Mar Morto durante cerca de quarenta e cinco anos. Numa
publicação anterior, A Fraude dos Manuscritos do Mar Morto (1991), os
autores deste livro fizeram em detalhes a crônica da história. Aqui,
basta observar que até o início da década de 1990 a Fcole Biblique
manteve um monopólio praticamente exclusivo sobre a pesquisa e todas as
novas descobertas relativas aos Manuscritos do Mar Morto. Restringiuse
o acesso aos textos aos estudiosos cujas interpretações não
embaraçassem a Igreja ou seus ensinamentos doutrinários. Quando John
Allegro um membro nãocatólico da equipe a quem se confiou a guarda
dos Manuscritos ousou contestar a interpretação oficial, foi
sistematicamente marginalizado e academicamente desacreditado.
Durante quarenta e cinco anos, os Manuscritos permaneceram na verdade
um feudo privado domínio exclusivo de estudiosos predominantemente
católicos, que só prestavam contas àEcole Biblique, à Pontifícia
Comissão Bíblica e ao Santo Ofício. Essa equipe criou equívocos,
prevaricou e procrastinou. Retardavase sem explicação a liberação de
qualquer material potencialmente embaraçoso para a Igreja. Outros
materiais só eram liberados quando se estabelecia um consenso de
interpretações orquestradas que os lançasse sob o ângulo menos
comprometedor. Promulgavase deliberadamente datação duvidosa, de modo a
distanciar os Manuscritos do cristianismo e impedilos de parecer
relacionar-se de qualquer modo com Jesus, São Paulo, São Tiago ou o
movimento que se formou na Igreja inicial da tradição cristã. Trechos
que chegavam perto demais de uma semelhança textual
244
OS MANUSCRITOS DO MAR MORTO
com o Novo Testamento eram traduzidos erradamente e, pelo menos num caso
dramático, retidos durante décadas.
A 9 de julho de 1958, para citar apenas um exemplo, a equipe de
estudiosos de Roland de Vaux obteve um novo fragmento que continha um
pedaço de texto. Atribuíramlhe um número de identificação, 4Q
246,
significando fragmento da Caverna 4 em Qumran. O texto mostrouse de
fácil e clara tradução. Na verdade, um pesquisador presente na época
disse a um dos autores deste livro que uma tradução básicajá fora
concluída na manhã seguinte
quando todos os membros da equipe de de Vaux o haviam lido ou sabiam o
que dizia. Mas o que dizia era potencialmente explosivo: Ele será
chamado filho de Deus, e o chamarão filho do Altíssimo... Seu reino
será um reino eterno."7
Os paralelos com a escritura cristã são bastante óbvios. Esse esquálido
fragmento de texto podia desfazer todos os esforços da equipe de de Vaux
para distanciar os Manuscritos do Mar Morto do início do cristianismo.
Em consequência, até mesmo sua existência foi mantida como um segredo
fortemente guardado durante quatorze anos. Poderia ter continuado
assim, se um dos membros da equipe de de Vaux não houvesse deixado
escapar uma referência a ele na Universidade de Harvard, em dezembro de
1972. Mesmo então, o indivíduo se recusou a deixar qualquer outro
pesquisador fazer uma cópia para estudo independente. Iam passar-se mais
dezoito anos para que o texto vazasse por fonte anônima para uma
publicação de exploração bíblica, a Revista de Arqueologia Bíblica, que
o publicou em 1990.8
Durante trinta e dois anos após sua primeira tradução, portanto, o
texto em questão era conhecido pela equipe de estudiosos de de Vaux, mas
mantido oculto de todos os demais. Sem sussurrar uma palavra sobre
isso, os comentaristas da Igreja haviam nesse meio tempo tranquilamente
desmontado o material e causado
245

equívocos. Em 1968, por exemplo, Xavier LeonDufour, amigo de de Vaux e
membro da Pontifícia Comissão Bíblica, escreveu matreiramente: "Nenhum
dos textos de Qumran fala em um Filho do Homem. Não disse coisa
alguma sobre uma referência a um Filho de Deus, e prosseguiu afirmando
que o líder da comunidade de Qumran, descrito nos Manuscritos, nada
tinha em comum com a figura de Jesus. Onze anos depois, em 1979, o
CardealJean Danielou, outro dos amigos de de Vaux, publicou uma
tradução inglesa de seu próprio livro, Os Manuscritos do Mar Morto e o
Cristianismo Primitivo. Continuava a repetir o que se tornara a "linha
do partido" oficial. Ignorando a existência do texto do "Filho de
Deus", também afirmava que não existia qualquer ligação entre Jesus e o
líder da comunidade de Qumran.
Só no início da década de 1990 as circunstâncias que governam os estudos
do Manuscrito do Mar Morto começaram por fim a mudar. Essa mudança se
deveu em grande parte à teimosa perseverança do ProfessorJames
Robinson, chefe da equipe que traduzira os chamados "Evangelhos
Gnósticos, encontrados em NagHammadi, no Egito, e do Professor Robert
Eisenman, da Universidade da Califórnia, em Long Beach, que havia muito
era o ponta de lança na campanha pela liberação dos textos de Qumran.
Usando negativos obtidos de uma fonte anônima, Robinson e Eisenman
lançaram um volume duplo de fotografias, Edição Facsímile dos
Manuscritos do Mar Morto. Pela primeira vez, todo o conjunto dos textos
de Qumran era posto à disposição de pesquisadores independentes.
As portas da eclusa haviam sido finalmente abertas. A Huntington
Library na Califórnia, era uma das várias instituições que tinham
fotografias de todos os Manuscritos do Mar Morto para fins de
segurança, caso os originais fossem destruídos num novo conflito no
Oriente Médio. Três meses depois da publicação de
246
OS MANUSCRITOS DO MAR MORTO
Robinson e Einsenman, a Huntington desafiou a Ecole Biblique anunciando
a intenção de pôr sua coleção à disposição de estudiosos. Einsenman foi
o primeiro a obter acesso ao material. Ele e o Professor Michael Wise,
da Universidade de Chicago, logo reuniram duas equipes, uma em cada uma
de suas respectivas universidades, para empreender a tradução dos
cinquenta textos inéditos mais importantes. Foram publicados em 1992
como Os Manuscritos do Mar Morto Revelados.
Hoje a Igreja não mais controla o acesso aos textos encontrados em
Qumran, mas ainda se esforça por controlar a interpretação. Estudiosos
católicos continuam a promulgar a interpretação ortodoxa estabelecida
e ao fazê-lo tentam calar toda oposição no grito. No que diz respeito
à Igreja, os Manuscritos do Mar Morto têm de permanecer distanciados
das origens do cristianismo, para que o cristianismo não surja numa luz
inimiga da doutrina e do dogma oficiais.
247
114
A Congregação para a Doutrina da Fé
E m 1962, o encobrimento envolvendo os Manuscritos do
Mar Morto permanecia intacto e efetivamente desconhecido para o mundo
em geral. A Igreja da época tinha de enfrentar outras questões, mais
imediatas e contemporâneas, e estas eram de interesse mais dramático e
discernível para a hierarquia eclesiástica, para a congregação dos
fiéis, para os meios de comunicação e o público em geral. Sob o Papa
João 23, o mais liberal, lúcido, progressista e dinâmico pontífice do
século 20, a Igreja empreendeu pôr sua casa em ordem e integrarse
construtiva e criativamente na idade moderna. Essa empresa tomou a
forma do Segundo Concílio Vaticano, que se reuniu a 11 de outubro de
1962 e continuou em sessão até o fim de 1965.
João 23 sugerira pela primeira vez a idéia do Concílio a um conclave
de cardeais emjaneiro de 1959. Disse que desejava um Concílio
reformista, que renovasse a Igreja e a pusesse de acordo com o Mundo
pósSegunda Guerra Mundial. Queria inaugurar um processo de cura que
reunisse as diversas igrejas da cristandade. Buscava um novo
rapprochement com o protestantismo. Também desejava reparar a cisão
entre as Igrejas Católica Romana e a Ortodoxa
248 (
Oriental, separadas por mútuos pronunciamentos de excomunhão em 1054.
A Cúria prontamente entrou em choque. Fizeram-se constantes esforços
para impedir a realização do Concílio do Papa ou, se isso falhasse,
pelo menos adiálo. Apesar de tal oposição, porém, o pontífice seguiu
com seus planos, empregando para fins construtivos a autoridade
arrogada por seus antecessores. O objetivo do Concílio que ele previa
devia ser internacional e ecumênico. Passou a deitar as fundações de
acordo com isso, estabelecendo canais de comunicação não apenas com
outras igrejas cristãs, mas também com outras religiões. Pela primeira
vez desde a criação da Igreja da Inglaterra, um pontífice romano
encontrouse pessoalmente com um Arcebispo anglicano de Cantuária.
Contatos semelhantes se estabeleceram com as Igrejas Ortodoxas Grega e
Russa. Pela primeira vez, representantes católicos puderam assistir a
uma reunião do Conselho Mundial de Igrejas. E inaugurouse um diálogo
com ojudaísmo, que ia culminar numa encíclica exonerando os judeus de
qualquer culpa na morte de Jesus.
João 23 também aumentou o Colégio de Cardeais, criando novos membros
de todos os continentes do mundo e tornando a Cúria mais verdadeiramente
internacional do que jamais fora antes. Em 1960, formou um departamento
oficial dentro da Cúria para promover a unificação das Igrejas cristãs.
Em março de 1962, iniciou uma abrangente revisão da Lei Canônica, que
acabou publicando em 1983.
Tais foram os preparativos para o Segundo Concílio Vaticano. Quando se
reuniu em outubro de 1962, fez tudo às claras, não com a paranóica mania
de segredo que havia caracterizado os assuntos da Igreja antes. Na
verdade, observadores de nada menos que dezoito igrejas nãocatólicas
estiveram presentes em condição oficial. Isso provocou alguns membros
da Cúria e do Santo Ofício a
249

queixar-se deque o Papa se comunicava com hereges um crime,
segundo a Lei Canônica.
Durante todo o Concílio, a oposição ao Papa foi liderada, o que não
surpreende, pelo Prefeitoo Santo Ofício na época, o Cardeal Alfredo
Ottaviani. Ele tentou repetidas vezes fazer com que o Concílio fosse
controlado pela Cúria. O carisma do próprio Papa, porém, e os novos
cardeais que ele criara, fizeram pender decisivamente a balança.
Frustrouse a tentativa da Cúria de estabelecer controle sobre o
Concílio. Para os eclesiásticos reunidos, assim como para o mundo em
geral, ficou visível, de maneira chocante, que a Cúria, ao contrário da
crença popular, não mais representava a Igreja como um todo.
Á medida que avançava o Concílio, a beligerante "Velha Guarda" foi
obrigada a bater em retirada em quase todas as medidas, e
introduziram-se reformas novas e radicais. Uma das mais imediatamente
óbvias foi na missa, não mais a ser dita em latim, mas no vernáculo. Ao
mesmo tempo, a notória Suma de Erros, promulgada através do Santo
Ofício por Pio IX, foi descartada como anacrônica e não mais relevante.
Antes que o Concílio terminasse, seria levantada a mútua excomunhão das
Igrejas Romana e Ortodoxa. Numa encíclica publicada na primavera de
1963, o PapaJoão 23 abraçou e endossou explicitamente o progresso que
seus antecessores do século 19 explicitamente haviam condenado. E numa
declaração única de um pontífice romano, a encíclica afirmava o direito
de todo ser humano a adorar a Deus de acordo com os ditames de sua
consciência.'
A3 dejunho de 1963, pouco após a publicação dessa encíclica, morriaJoão
23. A 21 dejunho, Giovanni Battista Montini, consultor do Santo
Ofício, foi eleito para sucedê-lo e adotou o nome de Paulo 6. A essa
altura, o programa de reforma do Concílio já adquirira demasiado impulso
para ser completamente detido.
250

Houve, porém, uma visível desaceleração; e o progresso otimisti camente
previsto pelo mundo em geral, católico e nãocatólico, foi aos poucos
chegando a uma parada. Depois entrou em marcharé.
Em algumas esferas, o espírito progressista do Segundo Concílio
Vaticano permaneceu intacto. A missa, por exemplo, ainda édita
oficialmente no vernáculo. O Index foi abolido, e não se fez qualquer
tentativa séria de revivêlo. Tampouco se fez qualquer esforço para
ressuscitar a Suma de Erros. Mas em muitas questões de relevância
prática imediata para a Igreja, o espírito do Concílio foi de fato
traído. O aborto continua sendo um pecado punível com excomunhão. E
embora perspectivas como a superpopulação e esgotamento dos recursos
naturais pairem como espectros sobre o planeta, a Igreja banca a
avestruz, recusandose obstinadamente a reconhecer a ameaça e mantendo
uma posição intransigente sobre controle de natalidade, que a deixa
desastrosamente fora do passo com a época, afasta muitos católicos e
cria agônicas crises de consciência para muitos outros.
No início do Segundo Concílio Vaticano, o Papa João 23 criou uma
comissão para examinar a questão do controle da natalidade. Era o uso
de anticoncepcional de fato um pecado mortal, punível com obrigatória
condenação ao inferno? Infelizmente, o pontífice morreu antes que a
questão pudesse ser tratada pelo Concílio. Quando foi apresentada ao
debate em outubro de 1964, um número substancial de eclesiásticos era
claramente a favor de uma atitude mais flexível. Quando isso se tornou
visível, o debate foi sumariamente encerrado pelo Cardeal Agagianian,
um destacado membro do Santo Ofício e da Pontifícia Comissão Bíblica. A
questão vexatória, que devia ter sido decidida pelo Concílio, foi em
vez disso encaminhada ao novo Papa, que afirmou sua autoridade e arrogou
a si a decisão.
251

Quando o Concílio se inclinou para as recomendações de maior
flexibilidade da comissão, Paulo VI acrescentou suas próprias emendas,
que efetivamente diluíam qualquer reforma proposta. Essas emendas foram
veementemente combatidas pela maioria dos membros da comissão. O Papa
respondeu publicando a infame encíclica de 25 de julho de 1968, que,
com toda a autoridade de sua infalibilidade, proibia definitivamente a
contracepção artificial. A velha Suma de Erros fora descartada, mas
promulgouse em seu lugar uma coisa não menos antolhada, anacrônica e
reacionária.
Em novembro de 1963, durante um dos debates do Segundo Concílio
Vaticano, o Cardeal Frings, de Colônia, ousou criticar o próprio Santo
Ofício. Disse que os métodos da instituição
estão em desarmonia com os tempos modernos e são causa de escândalo no
mundo... Ninguém deve serjulgado e condenado sem ser ouvido, sem saber
do que é acusado.2
O Cardeal Alfredo Ottaviani, à frente do Santo Ofício na época, estava
decidido a manter o regime de seu antecessor e mentor, o sinistro Merry
del Val. Qualquer ataque ao Santo Ofício, respondeu, era um "insulto
direto ao Papa.3
Na era da televisão e da comunicação de massa, porém, nem mesmo o Santo
Ofício podia permanecer inteiramente indiferente a questões de imagem e
relações públicas. Em 1965, sob os auspícios do Papa Paulo 6, a
instituição despiuse do nome que provocara medo e repulsa durante
séculos. Dirigida por seu novo Prefeito, o Cardeal iugoslavo Franjo
Scper, tornouse menos ameaçadora mas não menos sentenciosamente a
Congregação para a Doutrina da Fé. Sob essa ponderosa apelação, a antiga
Inquisição continuou a atuar desde então, como se um título higienizado
pudesse distanciá-la de seu passado sangrento e incendiário. Em
252
o Santo Ofício pode ter mudado de nome, mas a ideologia que o sustenta
sobreviveu. Certamente não mudou os seus métodos. Ainda aceita acusações
anônimas, raras vezes sequer trata diretamente com a pessoa acusada,
exige retratações e impõe silêncios, e continua a empregar como
assessores teólogos de terceira categoria. Esse órgão não tem lugar na
Igreja contemporânea. E irrcformável, e portanto deve ser abolido.4
O Dr. Collins prossegue observando que os erros da Congregação para a
Doutrina da Fé são essencialmente os de toda a Cúria romana que existe
apenas para escorar o papismo... servir ao poder papal, não ao
ministério da Igreja.5
Segundo um comentarista um pouco menos crítico, a Congregação
é o instrumento através do qual a Santa Sé promove o aprofundamento da
fé e observa vigilante sua pureza. Por conseguinte, éa guardiã mesma da
ortodoxia católica. Não por acaso ocupa o primeiro lugar na lista
oficial das Congregações da Cúria romana.6
A Congregação foi ratificada nessa precedência pelo Papa Paulo 6, que
declarou que ela trata de questões da maior importância na esteira do
Segundo Concílio Vaticano. Não é atualmente uma grande instituição. Não
mais pode enviar esquadrões de agressivos Inquisidores a todo o globo.
Acreditase que tenha talvez uns trinta indivíduos que trabalham para
ela em tempo integral. Embora a declarada raison d'être deles seja
salvaguardar a pureza da fé, seu verdadeiro objetivo é proteger o
poder do Papado e abafar a dissidência. Para isso, tornaram-se hábeis no
que
253
1997, porém, o Dr. Paul Collins, diplomado por Harvard e padre, escreveu
que
A INQUISIÇÃO
seu Prefeito chama de arte de soprassedere a palavra italiana para
adiar decisões a fim de deixar as situações amadurecerem. Em outras
palavras, a Congregação age quando confia em que poderá fazê-lo com
impunidade em seus próprios termospara açaimar, investigar, suprimir
ou mesmo excomungar um teólogo dissidente, por exemplo. Quando não pode
agir impunemente quando, por exemplo, há uma ameaça de reação dos fiéis
a Congregação mantém a mudança e o processo de tomada de decisão
àdistância, e joga para ganhar tempo. Ao fazer isso, armazena e
alimenta rancor, ressentimento e vingança, levando quase amorosamente
suas mágoas a dar frutos. Em meados da década de 1990, uma piada fez a
ronda das autoridades do Vaticano: um bebê recém-nascido é encontrado
nas câmaras da Congregação para a Doutrina da Fé, e o Prefeito da
Congregação se escandaliza, pensando que o responsável é um dos seus
padres. Um monsenhor levao para um lado, porém, e tenta aliviar sua
ansiedade: Certamente não é nosso. Neste departamento, nada se
conclui em nove meses." Outro funcionário concorda e acrescenta: "Uma
criança éuma coisa ótima, fruto de amor. Logo, não é nossa.
De todas as chamadas Congregações, ou departamentos, da Cúria, a
Congregação para a Doutrina da Fé é a mais importante. Domina a Cúria.
Sempre é relacionada primeiro. Na verdade, é o departamento individual
mais poderoso do Vaticano. Seu presidente oficial é o Papa. O principal
executivo, moderna encarnação do Grande Inquisidor, é conhecido como o
Prefeito. Segundo a Enciclopédia Católica, a função primária da
Congregação "sempre foi auxiliar o Papa na tarefa de preservar a
integridade da doutrina de fé e moral da Igreja. Segundo um
comentarista mais independente, o Papado, desde o Primeiro Concílio
Vaticano, de 1870, se não desde antes, "tem estado determinado a pôr a
teologia sob seu controle";'0 e a Congregação é seu instrumento básico
para isso.
254
A Congregação ocupa o que era antes o Palácio da Inquisição, a Casa
Santa, um grande prédio com um impressionante portal situado na Via dcl
Sant'Ufficio, perto da Catedral de São Pedro. As antigas masmorras
foram convertidas em escritórios e arquivos. E a
ção original do século 13.
Em 1967, quando a Congregação para a Doutrina da Fé adotou seu atual
nome, criouse outro órgão para agir em conjunto com ela, a Comissão
Teológica Internacional. O papel da Comissão era atuar numa condição
consultiva da Congregação. Em 1976, a Comissão exortou a Congregação a
empregar métodos menos inquisitoriais e mais conciliatórios. Em seus
procedimentos até hoje, a Congregação pouco deu ouvidos a esse conselho.
Um comentarista resumiu suas atividades recentes:
Além de examinar nomeações de professores e promoções em escolas
eclesiásticas, a Congregação para a Doutrina da Fé também examina os
textos de teólogos levados à sua atenção por bispos, núncios e outros
teólogos. Dáse maior atenção aos teólogos que se tornam populares nos
meios dc comunicação e cujos livros são udos por um vasto público. O
Vaticano também se concentra em teólogos que tratam de certos tópicos:
ética sexual, controle de natalidade, aborto, cclibato clerical,
divórcio e novo casamento, autoridade papal, autoridade episcopal, a
ressurreição e a divindade de Cristo. Os teólogos da libertação na
Arnérica Latina e África receberam atenção por causa de seus textos
sobre a autoridade da Igreja e o conflito de classes. Também se
investigam teólogos asiáticos que escrevem sobre a relação entre o
cristianismo e as religiões asiáticas. O Vaticano preocupase igualmente
com teólogos feministas que escrevem sobre sexualidade, patriarcado na
igreja e sacerdotes mulheres.1i

partir desse quartelgeneral que a Congregação faz seus negócios, muitos
deles tecnicamentejudiciais. O chefe dojudiciário da Congregação e pelo
menos dois de seus juízes auxiliares são sempre dominicanos,
preservando assim o elo tradicional com a Inquisição

A Congregação para a Doutrina da Fé investiga qualquer teólogo,
professor ou eclesiástico cujos pronunciamentos, escritos ou orais,
possam ser vistos como desvios da ortodoxia oficial. As denúncias de
qualquer transgressor desse tpo feitas por outros teólogos,
professores e eclesiásticos também são bemvindas. Assim que a
Congregação começa sua investigação, abrese um arquivo contendo todo o
material relevante declarações do indivíduo em escrutínio, recortes
de jornal, outros materiais dos meios de comunicação, cartas de queixas
de colegas ou paroquianos. Segundo procedimentos estabelecidos em 197
1,o pessoal e os altos funcionários da Congregação se reúnem nos
sábados para estudar o caso em questão. Se decidem que envolve de fato
erro de fé, seguese um inelutável curso de ação sempre com grande
segredo.
A Congregação começa por entrar em contato com o superior imediato do
acusado, por exemplo o bispo local, que o exorta a retratar-se ou
modificar suas afirmações. Se a Congregação decide que se estão
promulgando opiniões falsas ou perigosas por escrito, o autor pode ser
procurado imediatamente. Uma advertência de seu superior ou da própria
Congregação será a primeira indicação que o acusado recebe de que está
sob investigação. Concedemlhe um mês para responder à acusação contra
ele. Também pode ser intimado perfunctoriamente a Roma para explicarse
em pessoa.
Em 1978, pouco depois da eleição de João Paulo 2 como pontífice, a
Congregação investigou e reprimiu um dominicano francês,Jacques Pohier,
e proibiuo de ensinar. Um ano depois, 2ans Kung, um dos mais
prestigiados teólogos católicos modernos, teve revogada sua licença para
ensinar teologia. Imediatamente depois, foi demitido de seu posto de
professor na Universidade de Tubingen. Ao lhe oferecerem outro cargo,
que não exigia licença de Roma, ele comentou:
256

Eu fui condenado por um pontífice que rejeitou minha teologia semjamais
haver lido um de meus livros, e que sempre se recusou a me ver. A
verdade é que Roma não espera diálogo, mas submissão.12
Em 1983, o novo Código de Lei Canônica declarava que se exigia de todos
os professores de matéria teológica em instituições de ensino superior
que tivessem um mandado ou sanção da "autoridade eclesiástica
competente o que significa, no mínimo dos mínimos, o bispo local. Em
outras palavras, segundo um comentarista, "os teólogos são para
servir, não contestar. Pouco depois, mais de 500 teólogos alemães
apuseram sua assinatura a um protesto conhecido como Declaração de
Colônia. O documento anunciava a angústia dos signatários com o
crescente número de indivíduos qualificados aos quais se negava
permissão para ensinar. Segundo a Declaração de Colônia: "Estáse
abusando do poder de negar permissão oficial para ensinar; esse poder
tornouse um instrumento para disciplinar teólogos.14
A Congregação para a Doutrina da Fé permaneceu indiferente a tais
protestos. Em setembro de 1984, um franciscano brasileiro, Frei Leonardo
Boff, foi intimado a Roma onde, tendose apresentado perante a
Congregação, foi condenado a um anode silêncio. Em novembro do mesmo
ano, o eminente escritor espanhol Padre Edward Schillebeeckx, recebeu
uma intimação semelhante
a terceira que recebia desde 1979 e ordenaramlhe que se explicasse
perante a Congregação. Em março de 1986, o Padre Charles Curran, um
teólogo da Universidade Católica de Washington, teve sua licença para
ensinar revogada e foi demitido do cargo um ano depois. Também em 1987,
o Arcebispo Hunthausen, de Seattle, um destacado expoente do espírito
do Segundo Concílio Vaticano, foi submetido a uma investigação hostil.
Em 1988, umjesuíta indiano, Luis Bermejo, foi condenado. Ordenouse a
umjesuíta ameri
257

cano, Padre Terence Sweeney, que cessasse sua pesquisa sobre atitudes
eclesiásticas em relação ao casamento clerical e queimasse todos os seus
papéis. Rebelandose contra essa tentativa de reacender as
tradicionais fogueiras da antiga Inquisição, o Padre Sweeney 4
deixou os jesuítas. Sua indignação com o tratamento recebido foi
igualada pela de um teólogo moral alemão, o Padre Bernard Hàring. Ele
achou o seu exame pela Congregação mais ofensivo que as quatro ocasiões
em que fora obrigado a comparecer perante um tribunal nazista.15
Em 1989, a Congregação exigiu oficialmente que os novos nomeados para
seminários e universidades católicas reitores, presidentes,
professores de teologia e filosofia não apenas fizessem uma
profissão de fé, mas também um juramento de fidelidade. Um juramento
semelhante foi tornado obrigatório para novos sacerdotes. Emendouse a
profissão de fé padrão para incluir uma frase a mais: "Eu abraço
firmemente e mantenho tudo que édefinitivamente proposto pela mesma
Igreja sobre a doutrina de fé ou moral.16 Essas medidas foram
instituídas pela Congregação inteiramente por iniciativa própria. Não se
fizera consulta prévia àcomunidade teológica nem aos participantes de
quaisquer conferências episcopais. Causaram surpresa e choque mesmo a
outros departamentos. Dentro do mundo acadêmico, houve uma reação
imediata de grave e profunda inquietação.17
Em maio de 1990, a Congregação produziu o primeiro rascunho de um
proposto novo Catecismo Universal da Fé Católica. Em suas 354 páginas,
reafirmavase com todo vigor a infalibilidade papal e repudiavase
implicitamente o rapprochement com outras fés inaugurado pelo Segundo
Concílio Vaticano. Segundo o texto da Congregação:
A tarefa de dar uma interpretação autêntica da Palavra de Deus, seja em
sua forma escrita ou na forma da tradição, foi confiada apenas ao
departamento de ensino vivo da Igreja.!8
258
Reiteravase, claro, a condenação ao contfole de natalidade artificial e
ao aborto. Também se condenava a coabitação antes do casamento, assim
como a eutanásia. O divórcio era condenado como imoral e conducente à
desordem social. Condenavase a masturbação como moralmente
repreensível, o homossexualismo como pecaminosamente degradante.
O Catecismo proposto foi enviado com um pedido de comentários a todos
os2. 421 bispos católicos romanos em todo o globo. Inevitavelmente,
vazou para os meios de comunicação e trechos foram publicados
nosjornais. Um número esmagador de pessoas, católicas e nãocatólicas
igualmente, ficou chocado e horrorizado com a natureza obstinadamente
obtusa, psicologicamente ingênua e raivosamente reacionária do
documento. As esperanças de uma Igreja mais progressista, evoluída com
as reformas do Segundo Concílio Vaticano, sofreram uma rude decepção, e
mesmo destruição. A Congregação para a Doutrina da Fé parecia
inflexivelmente disposta a desfazer essas reformas, rodando a história
para trás e dissociando mais ainda a Igreja do mundo contempOrâfleQ à
sua volta.
Pouco depois da circulação do rascunho do novo catecismo, o Cardeal
Ratzinger, Prefeito da Congregação, apressouse a erguer um baluarte
contra possíveis dissidências. Isso tomou a forma de um documento de
vinte e sete páginas, escrito pelo próprio Ratzinger e publicado
oficialmente pela Congregação para a Doutrina da Fé, A Vocação Eclesial
do Teólogo. No texto, o Prefeito condenava não apenas a dissidência
pessoal, mas igualmente "que a oposição pública ao magistério também
seja chamada dissidência.19 O cardeal negava categoricamente que
alguém tivesse o direito de dissidir. Ao contrário, o texto afirmava
de modo explícito que os teólogos católicos não têm direito de
dissidir das doutrinas estabelecidas da Igreja, e que "o teólogo deve
ser mais um instrumento que um analista da fé.20 Na verdade, a própria
dissidência devia ser
259

encarada como um pecado interditável: 'Sucumbir à tentação de dissidir...
(permite) infidelidade ao Espírito Santo."ai A Igreja não pretendia ser
uma democracia. "Os padrões de conduta apropriados à. sociedade civil
ou os mecanismos de uma democracia não podem pura e simplesmente ser
aplicados à Igreja."22 Tampouco pode qualquer relação pessoal que se
tenha com o sagrado. "O apelo àobrigação de seguir a própria consciência
não pode legitimar a dissidência.23 O texto do documento encerravase
com uma advertência:
A liberdade do ato de fé não pode justificar o direito de dissidir. Essa
liberdade não indica liberdade em relação à verdade, mas a livre
determinação da pessoa em conformidade com sua obrigação moral de
aceitar a verdade.24
Em outras palavras, até onde se pode decifrar esse exercício de
obscurecimento e casuística, somos livres para agir de acordo com as
doutrinas da Igreja. Agir de outro modo não é uma manifestação de
liberdade, mas de erro. Liberdade consiste apenas em aceitar a
verdade, e a verdade é monopólio exclusivo do Papado, para
definila como quiser.
Em 1992, por exemplo, um dominicano americano, o Padre Matthew Fox, foi
demitido de seu posto em Chicago por haver fundado uma instituição na
Califórnia destinada a estudos criativos e espirituais, que incluía
entre seus professores uma autoproclamada bruxa. Em 1993, três bispos
alemães foram obrigados pela Congregação a retirar suas afirmações de
que os católicos que tornavam a casar-se sem a aprovação da Igreja ainda
podiam receber a comunhão. Em 1995, o Bispo Jacques Gaillot, de Evreux,
foi demitido de sua posição por apoiar um padre que se casara, endossar
o uso da camisinha como defesa contra a Aids e simplesmente considerar
a possibilidade de abençoar casamentos homossexuais. Quando ele se
recu260

sou a renunciar, o Vaticano expulsouo a força. Mais de 20 mil pessoas
assistiram à sua missa de despedida.
No mesmo ano, uma freira brasileira, Ivone Gebara, foi exilada para um
convento agostiniano na Bélgica para dois anos de chamado "estudo", a
fim de "corrigir" suas "imprecisões teológicas". Durante esse tempo,
proibiram-na de escrever ou fazer qualquer pronunciamento público. Em
1995, também, uma freira americana, Carmel McEnroy, foi demitida de seu
instituto de teologia em Indiana por haver assinado uma declaração que
endossava a ordenação de mulheres. Emjaneiro de 1997, o Padre Tissa
Balasuriya, do Sri Lanka formado pela Universidade Gregoriana em
Roma, fundador e diretor do Centro de Sociedade e Religião em seu país,
e membro fundador da Associação Ecumênica de Teólogos do Terceiro
Mundo foi excomungado por um ensaio, publicado sete anos antes, sobre
a Virgem Maria e os direitos da mulher na Igreja. O Padre Balasuriya
ousara sugerir que as mulheres podiam gozar de um status igual ao dos
homens dentro da comunidade da Igreja.
Essa é uma escolha representativa das atividades da Congregação para a
Doutrina da Fé nos últimos vinte anos. Fala eloquentemente por si mesma.
Como disse Hans Kung: 'O Cardeal Ratzinger está com medo. E como o
Grande Inquisidor de Dostoiévski, seu maior medo é da liberdade."25
O Grande Inquisidor
O CardealJoseph Ratzinger é o Grande Inquisidor de hoje, o atual
Prefeito que preside a Congregação para a Doutrina da Fé. Nasceu
na Baviera em 1927, e se ordenou padre em 1954. Após servir em
Freising, na diocese de Munique, escreveu uma dissertação sobre
Santo Agostinho, depois deu aulas sobre dogma numa gama de
261

universidades alemãs Bonn, Munster, Tubingen e Regensburg. Participou
do Segundo Concílio Vaticano e publicou vários livros. Em 1977, foi
feito cardeal pelo Papa Paulo 6, depois Arcebispo de Munique. Em
janeiro de 1982, o Papa João Paulo 2 nomeouo para o timão da
Congregação.
O Cardeal é amigo pessoal íntimo e confidente do atual Papa. Informase
que os dois se reúnem para discussões toda sextafeira. Graças a seu
relacionamento, assim como à. sua posição profissional como Prefeito
da Congregação, o cardeal é o proverbial braço direito do Papa. A
natureza reacionária do atual Papado, sua tendência de avestruz a
enterrar a cabeça na areia e fazer-se deliberadamente indiferente ao
mundo em volta, tem repetidas vezes espantado os comentaristas, que
fazem observações a respeito. Essas características são em geral, e não
semjustificação, atribuídas aJoão Paulo 2; mas também devem ser
atribuídas pelo menos o mesmo tanto a Ratzinger. Ele é na verdade o
Teólogo Chefe" do Vaticano, e como tal, responsável por grande parte da
política da Igreja.
Como se poderia esperar de um alto prelado e exprofessor de teologia,
Ratzinger é extremamente esperto, embora não particularmente
imaginativo. Expressase bem, muitas vezes chega mesmo a ser
eloquente. Seus argumentos são objetivos, concentrados, lúcidos,
consistentes e dentro de seu próprio esquema circunscrito de
referência ostensivamente convincentes, embora envolvam elementos de
sofisma. Diversamente do Grande Inquisidor de Dostoiévski, não é um
cínico blasé. Raciocínios circulares raramente são promulgados com uma
tal pátina de sofisticação urbana. Ao contrário, não há motivo para
duvidar da sinceridade com que ele emite seus pronunciamentos, para
duvidar de que acredita profunda e ardentemente no que diz e faz. Na
verdade, a sinceridade e a intensidade de sua crença parecem às vezes
beirar o fanatismo. Ese tentando a imaginar o que é melhor num Grande
262
Inquisidor, o fanatismo ou o cinismo maquiavélico. Os dois traços
conduzem igualmente a uma arrogância implacável e à desumanizada
determinação de um míssil de cruzeiro.
Ratzinger está autêntica e profundamente preocupado com os atuais e
futuros assuntos da Igreja. Está ansioso para evitar várias crises de
fé, de confiança no dogma, de moralidade que vê assediando a Igreja
moderna. Acredita que se deve poupar à Igreja esse constrangimento.
Existindo numa elevada e rarefeita esfera própria, a Igreja deve ser
imune e isolada da mácula e controvérsia das instituições meramente
humanas. Para ele, a Igreja é literalmente o corpo místico de Cristo.
Descarta qualquer sugestão de que ela pode ser em última análise criação
humana. Ao contrário, as estruturas fundamentais da Igreja
são produto da vontade do próprio Deus, e portanto invioláveis. Por trás
do exterior humano está o mistério dc uma realidade mais que humana, na
qual reforrnadorcs, soeiólogos, organizadores não têm qualquer
autoridade.26
Tão ardente é a crença de Ratzinger na Igreja que ele parece disposto,
quando necessário, a colocá-la acima da escritura:
Um grupo não pode simplesmente se reunir, ler o Novo Testamento e
dizer: 'Agora somos a Igreja, porque o Senhor está presente sempre que
duas ou três pessoas se reúnern em Seu nonie."27
Para Ratzinger, a fé em si não basta. Deve haver também a organização, a
estrutura, o edifício hierárquico:
A Igreja está de fato presente eni todos os grupos locais de fiéis
legitimamente organizados, que, na medida em que estão unidos a seus
pastores, são... chamados Igrejas.28
263 A CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FE

Desnecessário dizer, claro, que legitimamente organizados nesse
contexto significa criados por Roma e a ela sujeitos. Estarem os fiéis
unidos a seu pastor significa receber a comunhão de um padre da
autorizada e correta sucessão apostólica um padre ordenado pelas mãos
de um bispo em comunhão com a sucessão apostólica supostamente
descendente de São Pedro. Os sacramentos da Igreja são legitimizados
para Ratzinger em virtude de serem passados de mão em mão ao longo da
história. Se essa cadeia de transmissão for quebrada, o sacramento não
mais é válido. O fato de que a cadeia de sucessão foi de fato muitas
vezes quebrada e também muitas vezes distorcida e corrompida não é
importante para ele.
A Igreja não é uma coisa que se pode fazer, mas apenas uma coisa que se
pode receber de onde elajá está e onde realmente está: da comunidade
sacramental do corpo (de Cristo) que avança pela história.29
Em consequência, o conceito da Igreja de Ratzinger não pode acomodar
qualquer experiência pessoal do divino, qualquer experiência mística ou
revelação individual. Na verdade, ele afirma explicitamente: "A
revelação terminou com Jesus Cristo.30 E mais:
A revelação' está fechada, mas a interpretação que a envolve, nao."31
Interpretação, claro, é prerrogativa exclusiva da Igreja. Não se pode
tentar interpretar por si mesmo. Não se deve pensar. Devese
simplesmente aceitar a interpretação apresentada por aqueles
legitimamente sancionados para fazêlo.
Dessa convicção resulta a intolerância de Ratzinger à. crítica ou
dissidência. "Mesmo para alguns teólogos, ele se queixa, indignado e
incrédulo, "a Igreja parece ser uma construção humana."32 Dá umjeito de
esquecer que a Igreja, como existe hoje e existiu por toda a sua
história, é de fato uma construção humana. Dá umj eito
264 de esquecer, por exemplo, que o Concílio de Nicéia, em 325 A. D.,
votou que Jesus era divino por uma maioria de 217 a 3. Dá umjeito de
esquecer que o Papa foi votado infalível em 1870 por apenas 535 dos
1.084 eclesiásticos elegíveis para votar. Serenamente indiferente a
esses fatos, Ratzinger acentua que a autoridade não se baseia na
maioria de votos.33 Deriva apenas da autoridade de Cristo que, ele
próprio, jamais sonhou em estabelecer uma Igreja, quanto mais as
complexidades dogmáticas de Roma. Sem qualquer senso de ironia visível,
Ratzinger afirma que a verdade não pode ser criada por votações.34 A
Igreja não pretende ser uma democracia. "Em questões de fé e moral,
ninguém pode ser atado por decisões de maioria.35 Na verdade,
mesmo concílios ecumênicos só podem decidir sobre questões de fé e moral
em unanimidade moral, uma vez que não se pode estabelecer a verdade por
resolução, mas só reconhecêla e aceitála.36
Com sofisma típico, Ratzinger usa a retórica para borrar distinções
cruciais. Nós pecamos, diz, mas a Igreja... a portadora da fé, não
peca.37 Não esclarece como a Igreja pode permanecer sem pecado quando
aplica as decisões dos pecaminosos indivíduos que a compõem. Tampouco
fica claro se admite que a Igreja, se não pode pecar, pode pelo menos
errar embora recentes reabilitações de indivíduos como Galileu
sugiram uma relutante disposição para reconhecer alguma concessão nesse
sentido. Nesse caso, supõese, as centenas de milhares cujos corpos
foram sacrificados à. força em alegado benefício de suas almas podem vir
a ser encaradas como apenas vítimas de erro, ou deslize.
É evidente por si mesmo e geralmente reconhecido que a Igreja sobreviveu
apenas pela disposição, por mais relutante que fosse, de adaptarse. Só
modificando suas estruturas, políticas, doutrinas e atitudes a cada
nova geração, a cada século sucessivo
265


ela conseguiu durar tanto. Com soberana indiferença a esse fato óbvio e
elementar, Ratzinger declara que o dogma católico, como o herdamos, "é
uma mensagem que nos foi atribuída, e não temos direito de
reconstruíla cono gostarmos ou preferirmos.38 Em consequência, não vê
valor algum no ecumenismo:
Devenios ter cuidado con3 um ecumenismo fácil demais, que pode levar
grupos católicos carismáticos a perder a identidade e, em nome do
"espírito ... associar-se acriticamente a formas de pentecostalismo de
origem nãocatólica.39
Ratzinger continua inflexível na proibição aos católicos de receber
comunhão em qualquer outra igreja cristã:
A confissão católica é que, sem a sucessão apostólica, não há
verdadeiro sacerdócio, e daí não pode haver Eucaristia sacramental no
sentido apropriado.40
Se o cardeal é hostil a outras denominações cristãs, fica decididamente
assustado com a disseminação do interesse por outras religiões e outras
esferas de atividade professadamente espiritual. Ele manifestou esse
medo numa entrevista indignada:
Em visita a uma livraria católica.., notei que... os tratados
espirituais do passado foram substituídos pelos disseminados manuais de
psicanálise.., em muitas casas religiosas (de homens e mulheres), a
cruz à.s vezes deu lugar a símbolos da tradição religiosa asiatica. Em
alguns lugares, as devoções anteriores também desapareceram para dar
lugar a técnicas de ioga ou zcn,4'
Na mesma veia, Ratzinger lamenta "uma exagerada mudança de ênfase para
religiões nãocristãs, que ele descreve como "domínios de medo e falta
de liberdade como se a Igrejajamais houvesse traficado com as duas
coisas.42 Segundo o dogmatismo exces
266

sivamente rígido e medieval do cardeal, não há espaço no Reino terrestre
de Deus para judaísmo, Islã, hinduísmo, budismo ou qualquer outra coisa.
Há apenas a Igreja de Roma, única verdadeira encarnação de Deus. Tudo
mais é ou ignorância a condição do bárbaro infiel de outros credos
ou heresia. Na moderna Lei Canônica, a heresia, ainda tida como um
princípio do mal, é definida como a obstinada negação ou dúvida, após
o batismo, de uma verdade que deve ser acreditada pela fé divina e
católica.43 Nessa medida, todas as formas de protestantismo se
qualificariam como heresia.
Para os católicos hoje, afirma Ratzinger, uma das necessidades mais
prementes é manter o mundo moderno à distância. Em agosto de 1984, ele
declarou a um jornalista:
Estou convencido de que o dano em que incorremos nestes viutes anos se
deve.., ao desencadeamento dentro da Igreja de forças polêmicas e
centrífugas latentes; efora da Igreja, devese a um confronto com uma
revolução cultural no Ocidente.44
E mais:
Entre as mais urgentes tarefas que os cristãos enfrentam, está a de
reconquistar a capacidade de nãoconformismo, i.e., a capacidade de se
opor a muitos fatos da cultura circundante.45
O que é extraordinário é a capacidade do cardeal de oferecer, sem
qualquer senso de ironia visível, uma definição tão nova de
não conformismo. Nesse contexto, a rebelião que levou muitos jovens
nos anos sessenta a afastar-se do cristianismo e buscar a psicologia, o
pensamento oriental e a chamada tradição esotérica seria
presumivelmente classificada como conformismo. Nãon conformismo é
redefinido para significar nada mais que abraçar a Igreja de Roma.
267

Veneração de Maria
O PapaJoão Paulo 2 está ávido por fazer novos santos. Parajustificar
isso, precisa de mais milagres. A fim de acelerar todo o processo, o
Papa mudou as regras. O número de milagres que um indivíduo deve
realizar para qualificar-se para a santidade não émais dois, e sim um.
Todos os candidatos à santidade, pelo menos desde 1940. devem receber um
certificado de pureza espiritual, uma declaração por escrito de que não
existe nada condenável sobre eles nos arquivos do Vaticano. Os
arquivos que contêm toda informação relevante nessas questões são
mantidos pela Congregação para a Doutrina da Fé. Isso dificilmente
surpreende. Onde mais, senão nos registros da antiga Inquisição, se
iriam procurar esqueletos e jóias de família? Numa ocasião, o processo
de canonização foi abruptamente encerrado quando se descobriu que o
candidato era deficiente em qualidades morais geralmente associadas à
santidade. Prova incontrovertível revelou que ele fora um condenado e
irredimido violador de crianças. Em termos estritos, a avaliação dos
candidatos à santidade não é tarefa da Congregação para a Doutrina da
Fé, mas de outro departamento, a Congregação para a Causa dos Santos.
Tampouco a Congregação de Ratzinger em geral cuida da investigação e
autenticação de milagres. Mas as aparições da Virgem Maria, e os
milagres a ela associados, são de especial interesse para o cardeal e
sua Congregação. Na verdade, uma seção da Congregação se dedica a
avaliar a validade, ou falta de validade, de manifestações e milagres
marianos.
Numa de suas poucas convicções genuinamente sãs e psicologicamente
astutas, Ratzinger encara a Virgem como vital para a sobrevivência da
Igreja. A seus olhos, o culto a Maria é crucial. Sem
268

ele, a Igreja está incompleta. Ela é necessária para "o equilíbrio e
completitude da fé católica.46 Oferece a Roma a relação certa, a
necessária integração entre Escritura e tradição. O cardeal explica
esse ponto:
A correta devoção mariana garante à fé a coexistência da indispensável
razão com as igualmente indispensáveis "razões do coração... Para a
Igreja, o homem não é nem mero raciocínio nem mero sentimento, é a
unidade dessas duas dimensões. A cabeça deve refletir com lucidez, mas o
coração deve poder sentir simpatia: a devoção a Maria.., assegura à fé
sua plena dimensão humana.8
Para ele, Maria é também um importante elo de ligação entre o Velho e
Novo Testamentos, velha e nova prescrições:
Em sua própria pessoa, como moçajudia que se tornou mãe do Messias,
Maria junta, de uma maneira viva e indissolúvel, o velho e novo povos de
Deus, Israel e o cristianismo, sinagoga e igrej a.49
E Maria funciona também como uma imagem ou símbolo da própria Igreja:
Em Maria, como figura e arquétipo, a Igreja encontra de novo seu próprio
rosto de Mãe, e não pode degenerar na complexidade de uma parte, uma
organização ou grupo de pressão a serviço de interesses humanos.50
Em seu reconhecimento de Maria, ou do "Princípio Feminino", Ratzinger,
para variar, parece estar de acordo com o mais sofisticado pensamento
psicológico de nossa era. A Virgem pode ser uma imagem idealizada,
desumanizada, boa demais para ser verdade, do Feminino. Mas pelo menos é
feminina; e seu endosso
269


por Ratzinger como um princípio ou canal de integração ecoa cs
pronunciamentos de C.G. Jung, e os de místicos, visionários e artistas
há séculos. O cardeal sem dúvida desaprovaria, por exemplo, o
panteísmo pagão de Goe,the; mas o feminino que ele louva na forma da
Virgem não está tão distante assim do de "EwigWeiblich", o "Eterno
Feminino" de Goethe, que leva a humanidade sempre além".
Infelizmente, porém, o reconhecimento por Ratzinger do feminino em
Maria não se estende a outras mulheres mulheres mortais que habitam o
mundo material e fenomenal. Por decreto infalível do Papa, elas ainda
não se qualificam para o sacerdócio. E como a Inquisição na Idade
Média, a Congregação para a Doutrina da Fé as encara implícita ou
explicitamente com desconfiança.
E impossível fazerjustiça nestas páginas à história da atitude da Igreja
para com as mulheres. As prateleiras de bibliotecas e livrarias estão
apinhadas de volumes inteiros que tratam das maneiras como, no correr
dos séculos, as mulheres têm sofrido nas mãos de Roma. A própria
condição de mulher foi sub-valorizada, o Princípio Feminino denegrido
ou distorcido. Durante substancial parte de sua existência como
instituição, a Igreja não esteve sequer disposta a admitir que as
mulheres tivessem alma. No que se refere àpopulação em geral, as
atitudes e visões vêm mudando aos poucos. Nem mesmo a Igreja conseguiu
isolar-se inteiramente dessa mudança. Assim, por exemplo, o Padre
Tissa Balasuriya declarou que o sacerdócio é uma função espiritual, e
não biológica.51 Em 1990, ele escreveu:
Não há motivo, biológico, psicológico, pastoral, teológico ou
espiritual, para que não possamos ter uma Papisa amarela, morena, negra
ou branca.52
270

Não é essa, porém, a opinião do Cardeal Ratzinger nem da Congregação da
Doutrina para a Fé. Em 1996, a Congregação decretou oficialmente que a
proibição do Papa à ordenação de mulheres era parte infalível da
doutrina católica e não podia ser contestada ou mudada.53 Um ano
depois, o Padre Balasuriya foi excomungado.
Ratzinger e a Congregação para a Doutrina da Fé não têm grande
entusiasmo pelo feminismo. Estou de fato convencido, afirma o cardeal,
que o que o feminismo promove, em sua forma radical, não é mais o
cristianismo que conhecemos; é outra religião.4 Esse feminismo
anuncia uma liberação que é uma forma de salvação diferente, senão
oposta, à da concepção cristã.55 A simples força dessa linguagem é
interessante. O feminismo é colocado numa relação com a Igreja não
apenas de desvio, mas diretamente antagônica. Nessa medida, Ratzinger
quase parece encará-lo como diabólico. De qualquer modo, ele está
profundamente perturbado com a contaminação feminista dos conventos,
sobretudo na América do Norte. Alguns, queixase, voltaram-se com
grande ímpeto para esses confessores profanos, esses 'especialistas da
alma' que supostamente são os psicólogos e psicanalistas.56
É um lugarcomum dizer que a política faz estranhos parceiros de cama. O
mesmo, também, faz o dogmatismo religioso. A intransigência da Igreja
em sua atitude para com as mulheres levoua a um alinhamento
inacreditável com um dos mais virulentos de seus tradicionais inimigos,
o fundamentalismo islâmico. No passado, cada um encarava o outro como
uma virtual encarnação do demônio. Cada um, porém, está disposto a cear
com seu respectivo demônio para manter as mulheres em seu suposto lugar.
Na hostilidade conjunta às mulheres, o catolicismo e o fundamentalismo
islâmico fizeram assim, paradoxalmente, causa comum. Agindo
271

em concerto, tentaram determinar atitudes e políticas em questões como
controle de natalidade e aborto.
Em setembro de 1994, uma conferência das Nações Unidas a Conferência da
ONU sohre População e Desenvolvimento reuniuse no Cairo. O objetivo
era examinar métodos de estabilizar, senão reduzir, a população
global, e pôla sob algum tipo de controle através de um "planejamento
familiar, sobretudo em países do Terceiro Mundo. A conferência também
tratou do aborto e de medidas para limitar a incidência de Aids e as
assustadoras consequências da superpovoação urbana. Um total de 171
países se fez representar.
Para o Vaticano, é claro, assim como para algumas facções islâmicas,
aborto e planejamento familiar quer dizer, anticoncepção
artificial eram anátema. Nas semanas que antecederam a conferência,
proliferaram rumores de uma aliança clandestina que estaria sendo
forjada entre as facções muçulmanas e Roma. Em agosto, observouse que
houve missões papais em Teerã e Trípoli. Não surgiram provas de um
acordo secreto até depois de começada a conferência. Só então um jornal
italiano conseguiu obter um documento de três páginas em árabe que
atestava um encontro no Vaticano três meses antes, em junho, de
funcionários da Igreja e representantes muçulmanos. Assinarase um
acordo para adotar uma estratégia conjunta destinada a frustrar as
medidas propostas pela ONU para controlar o crescimento da população.57
Na conferência, o Vaticano e seus aliados islâmicos recusaram-se a
mexer na questão do controle da natalidade, e fizeram com que os
trabalhos entrassem num impasse irremediável. Todos os outros
participantes se dispunham a ceder e fazer concessões a declarar com
vigor, por exemplo, que o abortojamais deveria ser defendido como meio
de controle da natalidade. Para a delegação do Vaticano e seus aliados,
isso não bastava. Após vários dias de
272

impasse, o debate se tornara acrimonioso e as paciências começaram a
ferver. A GrãBretanha, os Estados Unidos e a União Européia ficaram
exasperados com Roma. A Baronesa Chalker, chefe da delegação britânica,
descreveu a posição do Vaticano como "um impasse que só desperdiça
tempo.58 Até o editor dojornal católico britânico The Tablet
manifestou frustração. "Se a Santa Sé não estava no Cairo para
negociar, perguntou, por que veio? Concluiu que ela o fizera por
outro motivo. Qual era o programa oculto? O editor respondeu à sua
própria pergunta:
O conflito no Cairo não é simplesmente sobre ética sexual. É sobre
valores ocidentais, especificarnente os valores do Iluminismo europeu.
O cão de guarda deJoão Paulo 2, o Cardeal Ratzinger, foi explícito em
sua crítica ao Iluminismo.59
No final da conferência, o Vaticano havia excedido os limites da
prudência e provocado questões sobre a legitimidade de sua contribuição
ao debate. A delegação da Igreja afinal estivera presente,
tecnicamente, como representante não de uma religião, mas de um estado
soberano. Outros países começaram a queixar-se da indevida e
desproporcional influência da delegação. Segundo The Times, também
começaram a perguntar porque uma religião deve ter status
representativo nessa conferência, enquanto o Islã, o budismo e outras
religiões não têm.60 Implícita por trás dessa pergunta, pairava outra.
Devia o Vaticano continuar gozando do status de estado soberano? Em
última análise, concluía The Times, "o grande perdedor na conferência
foi o Vaticano, que tanto forçou a mão.., que enfureceu a maioria das
delegações do Terceiro Mundo,61 além das do Ocidente desenvolvido.
Em setembro de 1992, publicouse a versão definitiva do novo Catecismo
Universal. A mortificação pública e privada com o rascu273
nho do texto fora tranquilamente ignorada, e não se fizera qualquer
concessão. O novo Catecismo, tão fora de passo com o mundo moderno,
inevitavelmente provocou uma reação contrária.
Bispos de todo o mundo, e sobretudo do Ocidente desenvolvido,
expressaram sua profunda preocupação. Na GrãBretanha, o Observer
comentou que o Papa, assistido pelo Cardeal Ratzinger, "pela primeira
vez relacionou controle de natalidade e ensino sexual com princípios de
doutrina católica.2 Não se permitia que a moral pessoal continuasse
sendo pessoal. Achavase agora inextricavelmente enredada com a
ideologia e atrelada à fé. Transgredir em questões sexuais era pôr em
perigo o próprio status do transgressor como membro comungante da
lgreja Católica Romana.
As declarações posteriores do Papado e da Congregação para a Doutrina da
Fé só se tornaram mais doutrinárias, mais intransigentes, mais
arrogantemente indiferentes às necessidades, exigências e aspirações
humanas. Em 1994, por exemplo, o Papa João Paulo 2 emitiu uma carta
apostólica que proibia definitivamente a ordenação de mulheres como
padres. Depois, a Congregação para a Doutrina da Fé declarou que o
pronunciamento do Papa na questão devia ser encarado como
"infalivelmente ensinado.
No verão de 1998, o Papa cmitiu um novo édito, acompanhado por um
comentário da Congregação para a Doutrina da Fé. O édito exigia completa
e absoluta adesão à posição oficial do Papado em questões como controle
de natalidade, aborto, relações sexuais extramaritais e ordenação de
mulheres como padres. Era absolutamente proibido mexer com a suposta
escolha feita por Cristo" ao aceitar apenas homens no sacerdócio.63 A
discordância das decisões da Igreja, neste ou em qualquer outro assunto
atual, seria considerada oficialmente heresia e passível de excomunhão.
O comentário da Congregação para a Doutrina da Fé acentuava a natureza
definitiva das afirmações do Papa, que tinham forçosa
274
INQUISIÇÃO mente de ser aceitas por todos os católicos sem
questionamento. A infalibilidade papal foi investida de nova e reforçada
autoridade, que proibia qualquer debate sobre problemas morais e
teológicos. Dissensão e heresia eram agora de fato sinonimos.
Segundo o Daily Telegraph:
Acreditase que o Papa, nervoso com o crescimento de movimentos
liberais, quis tapar um buraco na Lei Canônica que permitia aos
professores falar contra as doutrinas morais da Igrejafr
E mais:
Destinase a conter a atividade de movimentos liberais e pôr na linha o
crescente número de católicos que não acreditam que têm de obedecer ao
pé da letra às doutrinas da Igreja.65
O New York Times descreveu o édito do Papa como "um dos mais vívidos
sinais de que, no ocaso de seu papado, João Paulo 2... busca tornar
suas decisões irreversíveis.66 Na verdade, os futuros pontífices
estarão agrilhoados pelo caráter infalível das decisões recentes; e a
reforma da Igreja no século 20I será no mínimo retardada, se não
completamente frustrada.
É irônico que, em seu zelo por impor uma disciplina autoritária à
Igreja, o Papa, o Cardeal Ratzinger e a Congregação para a
Doutrina da Fé se tenham colocado em violação de sua própria Lei
Canônica. Segundo o Cânone 212:
Os fiéis de Cristo... têm o direito, na verdade às vezes o dever... de
manifestar aos sagrados Pastores suas opiniões em assuntos que se
referem ao bem da Igreja. Têm também o direito de tornar suas opiniões
conhecidas de outros fiéis de Cristo.67

VISÕES DE MARIA
Há também uma crescente disposição de chamar os padres a prestar contas
por transgressões seculares, como abuso sexual de menores; e isso pouco
fez para restabelecer confiança. Na Áustria, por exemplo, o Cardeal
Groer, exArcebispo de Viena, foi acusado de crime sexual. Na Irlanda,
entre 1980 e 1998, vinte e três membros do clero católico foram
condenados por crimes envolvendo abuso sexual, e outros quinze casos se
acham em julgamento.2 Assim, dificilmente surpreende que tantos
baluartes da autoridade clerical se tenham tornado cada vez mais
seculares em atitudes, valores e orientação.
Com a disseminação da educação, além disso, um número crescente de
pessoas se dispõe a fazer perguntas; e a proibição católica a isso
passa a parecer cada vez mais presunçosa, tirânica e conducente ao
distanciamento. Assim, por exemplo, surgiu na Áustria o movimento
conhecido como Nós Somos Igreja, que logo assumiu proporções
internacionais e hoje conta com mais de meio milhão de membros, que
ainda se encaram como católicos romanos devotos. Mas, como sugere o
nome do movimento, seus membros afirmam que eles próprios, e milhões de
outros católicos em todo o globo, constituem a verdadeira Igreja, não a
rígida hierarquia baseada em Roma. Insistem em que a Igreja é deles,
não do Papa ou da Cúria. Opõem-se à centralização do Papado e desejam
ver o pontífice como nada mais que o Bispo de Roma, talvez com o status
em grande parte simbólico de monarca constitucional.
Teimosamente indiferentes a esses fatos, o Papa João Paulo 2, o Cardeal
Ratzinger e a Congregação para a Doutrina da Fé permanecem inflexíveis
em suas posições entrincheiradas. Alguns comentaristas sugeriram que a
Igreja cancelou efetivamente o Ocidente como uma causa perdida
sobretudo desde que o colapso do comunismo na Europa deixou Roma sem o
adversário antes lançado no papel de Anticristo. Os mesmos comentaristas
especu277

laram que a Igreja talvez agora esteja tentando estabelecer um centro
de poder inteiramente novo nos países subdesenvolvidos do chamado
Terceiro Mundo África, Ásia e América do Sul. E indubitáveis
indícios sugerem a existência de algum cínico desejo desse tipo. Roma
está patentemente reunindo e concentrando recursos naquelas regiões do
globo onde a pobreza, a privação, os esquálidos padrões de vida e uma
geral falta de educação oferecem fértil solo para a fé.
Comojá se observou, o Papa, o Cardeal Ratzinger e a Congregação para a
Doutrina da Fé dão um status particular e exaltado àVirgem Maria. Na
tentativa de estabelecer a Igreja em regiões além do Ocidente
desenvolvido, as aparições, manifestações ou visões miraculosas da
Virgem têm desempenhado um papel importante. Quando a Ascensão de Maria
foi oficialmente promulgada como dogma em 1950, C.G. Jung observou que
ela fora elevada ao status de deusa.3 É nessa augusta condição que
supostamente tem sido vista com crescente frequência no Egito, em
outras partes da África, no Vietnã, nas Filipinas, no México, nos
fragmentos do que era antes a Iugoslávia, até mesmo na Federação Russa,
onde Roma vem há séculos buscando estabelecer supremacia sobre a Igreja
Ortodoxa, e onde, na desordem geral que se seguiu ao falecimento da
União Soviética, um profundo anseio espiritual criou uma feliz reserva
de caça para proselitistas de toda crença. Em números sempre
crescentes, os crentes hoje fazem peregrinações a santuários de Maria
muitas vezes a novos, assim como aos antigos.
Mas se Maria está ligada à conversão e à consolidação de um novo corpo
de fiéis, também parece a Ratzinger e à Congregação para a Doutrina
da Fé, assim como para o próprio Papa João Paulo 2 ser um arauto de
fatos um tanto mais desconcertantes. Segundo algumas versões, supõese
que as manifestações da Virgem prenunciam o iminente fim do mundo.
Segundo outras fon
278

tes, dizse que tais manifestações pressagiam o fim da Igreja Católica
Romana, ou, no mínimo, do Papado. Esse rumores provêm em grande parte do
mistério associado à portentosa Terceira Profecia de Fátima.
Os Segredos de Fátima
Em maio de 1916, a civilização ocidental parecia empenhada num processo
de autodilaceração. Desde fevereiro, exércitos alemães e franceses se
despedaçavam em Verdun, numa batalha que acabaria custando mais de um
milhão de vidas. No Somme, o exército britânico mobilizavase para um
banho de sangue de proporções ainda mais estonteantes. Portugal, porém,
era um remanso intocado por tão dramáticos acontecimentos. Na aldeia de
Fátima, uma menina pastora, Lúcia dos Santos, brincava com alguns amigos
numa colina remota, quando, como posteriormente atestou, um grupo de
árvores estremeceu ao vento e revelou uma pura luz branca nas
profundezas da folhagem. A luz, ela disse, aglutinouse na forma de um
jovem transparente, que então se aproximou das crianças,
identificandose como o Anjo da Paz, e exortouas àprece.
Durante o verão, Lúcia, desta vez acompanhada por dois primos meninos,
disse ter visto de novo a aparição. No outono, a visão surgiu mais uma
vez, segurando um cálice no qual uma hóstia acima pingava sangue. A
aparição pôs a hóstia a sangrar na língua de Lúcia e, após uma prece,
desapareceu.4
No mesmo lugar, um ano depois, a 13 de maio de 1917, outra visão
apareceu a Lúcia, então com dez anos, e seus dois primos, de nove e sete
respectivamente. Desta vez assumiu a forma, nas palavras de Lúcia, de
"uma senhora toda vestida de branco, que parecia mais brilhante que o
sol, emitindo raios de luz. Erajovem, tal
279

vez dezesseis anos, e segurava um rosário de contas brancas. "Eu venho
do Céu, teria dito a senhora às crianças.5 Quando Lúcia lhe perguntou o
que desejava, ela respondeu com o pedido de que as crianças fossem ao
mesmo topo, de colina no dia treze de cada mês seguinte. Prometeu que,
ao final desse período, se identificaria.
Lúcia e os primos obedeceram às instruções que haviam recebido,
voltando à colina no dia treze dos seis meses seguintes. A visão
aparecia pontualmente, acompanhada por três relâmpagos, e uma vez por
um globo luminoso, depois desaparecia no estalar de um trovão. Não
surpreende que comentaristas recentes se tenham apressado a fazer
paralelos entre a experiência das crianças e o depoimento de testemunhas
de fenômenos ligados aos chamados Objetos Voadores NãoIdentificados.
Na época, muita gente se mostrou céptica quanto às histórias das
crianças, e o bispo local se recusou a levá-las a sério. O povo local,
por outro lado, ficou convencido; e na data programada da última visão,
13 de outubro de 1917, uma multidão de cerca de 70 mil peregrinos
acorrera de todo Portugal.
Na noite do dia 12, desabou uma prodigiosa tempestade. Na hora marcada,
na tarde do dia 13, Lúcia e os primos subiram a costumeira colina.
Segundo a versão dela, as nuvens se abriram e reapareceu a mulher das
visões anteriores. Imediatamente depois, segundo uma versão
independente:
A chuva parou de repente, e por uma fenda, ou buraco, nas nuvens, viuse
o sol parecendo um disco de prata. Ele então pareceu girar, parou e
girou uma segunda e terceira vezes, emitindo raios de várias cores.
Depois pareceu aproximar-se da terra, irradiando uma luz vermelha e um
intenso calor. A multidão entrou em pânico, pensando que o mundo
estava acabando, e depois em tumultuada devoção.6
280
VISÕES DE MARIA
Quando o sol voltou à sua posição de sempre, diminuiu o terror dos
peregrm-nos. O que quer que haja ocorrido, fora testemunhado por cerca de
70 mil pessoas, e houve informações de extraordinário fenômeno solar a
até quarenta quilômetros de distância. Além das três crianças, porém,
ninguém parece ter visto nada incomum no topo da colina.
As versões das crianças de sua visão variaram significativamente. Lúcia
depois disse ter visto a mulher das experiências anteriores aparecer
primeiro como Nossa Senhora das Dores, depois mudar para Nossa
Senhora do Carmelo. Também disse ter visto São José com o menino Jesus
nos braços e, supostamente em algum ponto depois disso, "Nosso Senhor
abençoando a multidão reunida. A mais velha dos dois primos disse ter
visto Jesus criança parado ao lado de SãoJosé. O mais novo dos três, um
menininho, não disse nada na hora. Poucos dias depois, negou ter visto
as duas Virgens e "Nosso Senhor dando uma bênção. Só vira, disse, São
José e o menino Jesus.
O mais novo dos primos de Lúcia morreu em 1919, a mais velha em 1920. A
própria Lúcia, analfabeta na época das visões, entrou num internato em
1921 e adquiriu elementos de aprendizado. Posteriormente tornouse
freira carmelita. Entre 1936 e 1937, tentou descrever sua experiência em
prosa. Disse que a mulher era composta inteiramente de luz, ondas de
luz ondulante caindo umas sobre as outras. Descreveu o véu e o vestido
da mulher como ondas de luz a escorrer, o rosto da mulher como mais de
luz que de carne carnea luz, ou luz de carne.7 A mulher se
identificara como Nossa Senhora do Rosário claramente, para os
católicos romanos, a Virgem Maria. Um tanto prematuramente, declarou
que a guerra havia acabado. Na verdade, na Frente Ocidental, a
sangrenta ofensiva britânica deYpres acabara de começar, e ainda viria
o grande ataque alemão de 1918. Uma semana depois
281

da visão de Lúcia, forças austroalemãs na frente italiana iam lançar
seu ataque em massa a Caporetto, e a revolução explodia na Rússia, a ser
seguida por quatro anos de catastrófica guerra civil.
Entre 1941 e 1942, com o mundo de novo em conflito, Lúcia escreveu uma
segunda versão de sua visão em 1917. Declarou pela primeira vez que a
aparição em Fátima lhe revelara três mensagens secretas ou, para ser
mais preciso, uma mensagem secreta em três partes. Ela ia declarar as
primeiras duas partes da mensagem, declarou, mas não a última.
A primeira parte, aparentemente, consistia de urna visão do inferno
bastante apropriada para a situação eni outubro de 1917, assim como para
o inverno de 19412. De acordo com a segunda parte, viria a paz mundial
se se oferecesse uma comunhão especial no início de cada mês e se a
Rússia fosse consagrada ao Imaculado Coração pelo Papa e todos os
bispos católicos uma consagração que traria a conversão do país. Como
a mensagem supostamente datava do outono de 1917, não ficou claro do
que a Rússia seria convertida da Igreja Ortodoxa ou do comunismo ateu.
A terceira parte da mensagem, Lúcia declarou que era terrível demais
para ser revelada.
O Bispo de Leiria receou que Lúcia morresse antes de revelar o total da
mensagem a ela confiada. Por instigação dele, um padre local convenceua
a escrever a temida terceira parte. A 2 dejaneiro de 1944, ela começou
a escrevêla, e levou toda uma semana para fazêlo.8 Depois colocoua
num envelope e lacrouo com cera. No devido tempo a mensagem foi
mandada ao Bispo de Leiria, que a recebeu a 17 dejunho. Não ousando
lêla, ele a ofereceu ao Santo Ofício, que inexplicavelmente se recusou
a aceitála. O bispo pôs o envelope dentro de outro e deu instruções
para que, após a sua morte, o entregassem ao Cardeal de Lisboa. Por
insistência de

282


Lúcia, prometeu que a mensagem seria divulgada ao mundo em 1960, ou
quando da morte dela, se ocorresse antes.
Em 1957, com Lúcia ainda viva, o Santo Ofício de repente mudou de idéia
e sumariamente requisitou o envelope contendo o texto dela. Não se
revelou quem tomou essa decisão nem porquê. Em março, o envelope foi
entregue ao Núncio Papal em Lisboa, que o mandou para Roma. Erguendo o
envelope contra a luz, o bispo encarregado de levá-lo viu uma pequena
folha de papel. Qualquer que fosse o portentoso segredo, e apesar da
semana que Lúcia precisou para transcrevêlo, consistia em não mais de
vinte e cinco linhas de letra a mão.
A 16 de abril de 1957, o envelope foi recebido pelo Vaticano, onde o
Papa Pio 12 o colocou em seu arquivo pessoal privado, aparentemente sem
ler o que havia dentro. Segundo o Cardeal Ottaviani, Prefeito do Santo
Ofício sob o PapaJoão 23, o envelope continuava lacrado quando João
o abriu em 1959, ano seguinte à sua eleição como pontífice.
Posteriormente, o próprio Ottaviani leu o texto. A 8 de fevereiro de
1960, anunciouse que a revelação pública do "Terceiro Segredo de
Fátima seria adiada indefinidamente.
Até sua morte, em 1963,João 23 guardou o texto de Lúcia numa gaveta
de sua mesa. Imediatamente após sua eleição, o Papa Paulo VI exigiu
vêlo. Leuo, mas recusouse a falar a respeito. A 11 de fevereiro de
1967, o Cardeal Ottaviani reiterou a decisão anterior do Vaticano. Não
se faria a revelação do texto de Lúcia. O segredo continuaria sendo
segredo. A 13 de outubro daquele ano quinquagésimo aniversário da visão
de Lúcia o Papa Paulo 6 visitou Fátima, onde se haviam construído um
santuário e uma basílica no meio século decorrido. Diante de uma platéia
de um milhão de peregrm-nos, o Papa rezou uma missa campal e ofereceu
preces pela paz mundial.
283

A 13 de maio de 1981, sexagésimo aniversário da primeira visão de Lúcia,
o Papa João Paulo 2, numa visita a Portugal, foi ferido pela bala de um
assassino potencial. Depois do trauma, também ele leu o texto de
Lúcia, aparentemente requerendo a ajuda de um tradutor português para
captar algumas nuanças. O Cardeal Ratzinger também o leu. Um ano
depois, a 13 de maio de 1982, o Papa visitou Fátima, para agradecer à
Virgem, "cuja mão guiara miraculosamente a bala.9
Em 1984, umjornalista italiano, Vittorio Messori, obteve uma longa
entrevista com Ratzinger e sondouo insistentemente sobre
o Terceiro Segredo de Fátima. Quando perguntado se lera o texto de
Lúcia, Ratzinger respondeu sucintamente, e sem explicar, que lera. Por
que não o tornavam público? Revelava alguma coisa terrível? Ratzinger
respondeu evasivo:
Se assim fosse.., afinal só confirmaria a parte da mensagem de Fátima já
conhecida. Uma severa advertência foi lançada daquele lugar, dirigida
contra a frivolidadc prcdoniinante, um chamado à seriedade devida, dc
história, dos perigos que ameaçam a humanidade)0
Não haveria, então, insistiu Messori, publicação? Ratzinger desta
vez respondeu um pouco mais explicitamente:
O Santo Padre julga que nada acrescentaria ao que um cristão deve saber
da revelação, e também das aparições marianas, aprovado pela Igreja em
seu conteúdo conhecido, que só reconfirmou a urgência de penitência,
conversão, perdão,jejum. Publicar o "terceiro segredo" significaria
expor a Igreja ao perigo de sensacionalismo, exploração do conteúdo.11
Quando pressionado sobre uma possível dimensão política do
segredo que pudesse, por exemplo, relacionar-se com o que
284

era então a União Soviética Ratzinger respondeu que não estava em
posição de explicar mais nada e recusouse firmemente a discutir outros
detalhes. Em outra parte, porém, declarou que
um dos sinais dc nossos tempos é que os anúncios de aparições marianas
se multiplicam por todo o mundo. Por exemplo, chegam informações da
África e de outros continentes à seção da Congregação que tem
competência para cuidar de tais informações.12
E condescendeu em dar alguma coisa que pretendia ser uma interpretação:
A correta avaliação dc mensagens como as de Fátima pode representar uma
forma de nossa resposta: a Igreja, escutando a mensagem de Cristo,
passada por Maria ao nosso tempo, sente a ameaça a todos e a cada
indivíduo, e responde com uma decisiva conversão e penitência.t3
Em várias de suas declarações, o Papa João Paulo 2 repete
o
pressentimento que impregna as palavras de Ratzinger. Em sua visita ao
local da visão de Lúcia, em 1982, ele declarou que a mensagem de
Maria em Fátima é ainda mais importante do que era há sessenta e cinco
anos. É ainda mais urgente.14 Um ano e meio depois, em dezembro de
1983, o Papa disse: Precisamente ao fim do segundo milênio, acumulamse
no horizonte de toda a humanidade nuvens enormemente ameaçadoras, e as
trevas baixam sobre as almas humanas."15 Em seu livro Cruzando
oLirniarda Esperança, João Paulo escreveu que Maria apareceu as três
crianças de Fátima em Portugal e disselhes palavras que agora, no fim
do século, parecem próximas do seu cumprimento.16 Uma revista católica
citouo advertindo que as aparições de Maria por todo o mundo são: "Um
sinal dos tempos... de tempos terríveis."17
285

Quanto à parte oculta da mensagem de Lúcia, dizse que o Papa se
preocupa com ela diariamente.
Não faltaram especulações sobre o Terceiro Segredo de Fátima. Em
alguns setores mais exremados, sussurrouse que prevê que o diabo, ou
talvez o Anticristo, usurpará o controle do Papado. Outros
comentaristas sugeriram interpretações um pouco menos apocalípticas
uma perda geral de fé, ou especificamente entre o clero católico, ou o
desmantelamento do Papado, ou simplesmente conflito interno na Igreja.
Pouco antes de morrerem 1981,0 Padre Joaquim Alonso, reconhecido
especialista em Fátima que frequentemente se encontrava com Lúcia e
conversava com ela, escreveu:
E assim inteiramente provável que o texto do Terceiro Segredo faça
alusão concreta à crise dc Fé dentro da Igreja e à negligência dos
próprios Pastorcs... conflitos internos no seio da própria Igreja e de
grave negligência pastoral da hierarquia superior... deficiências da
hierarquia superior da Igreja.10
Devido à sua importância para o Cardeal Ratzinger e os Papas recentes, e
ao mistério (e muitas vezes espúria mistificação) a elas associado, as
visões de Fátima gozam de um lugar especial, e mesmo sacrossanto, em
alguns enclaves da Igreja hoje. Mas a Igreja ainda se esforça por passar
uma fachada de estabilidade, por corresponder à imagem de uma arca
enfrentando a maré do tempo; e isso tende a obscurecer o fato de que o
catolicismo está sujeito a suas próprias formas de fundamentalismo
apocalíptico, muitas vezes tão extremas quanto as encontradas em muitas
seitas fundamentalistas independentes. Como essas seitas, facções
dentro da Igreja são presas de temores apocalípticos e da convicção de
viver os Ultimos Tempos, ou Dias Finais. Esse senso de condenação
iminente percorre muita literatura devocional católica da periferia
e também o fazem as aparições da Virgem agindo como arauto.
286 it VISÕES DE MARIA
Na verdade, essa literatura muitas vezes beira a heresia, a criação de
um culto de uma nova deusa. A linha que divide a Rainha do Céu da
completa Deusa Mãe da antiguidade muitas vezes se torna vaga.
E nesse contexto que se devem colocar as aparições da Virgem em Fátima.
As visões de Fátima não foram únicas, nem fenômenos isolados. Ao
contrário, encaixam-se reconhecivelmente num padrão de aparições
marianas que se estendem para trás até pelo menos o século 19. Desde
1830, quase noventa anos antes da experiência de Lúcia em Fátima, a
Virgem vem fazendo pronunciamentos políticos prenhes de terríveis
advertências apocalípticas.
Em Paris, na Rue du Bac, na noite de 18 dejulho de 1830, uma freira
chamada Catherine Labouré foi despertada pela visão de uma criança, de
seus cinco anos, vestida de branco. Segundo ela, a criança levoua até
a capela do convento, onde a informaram de que "a Abençoada Virgem Maria
a espera. Nessa primeira aparição, o conselho da Virgem foi
inteiramente pessoal, destinado apenas a ajudar Catherine em seu
noviciado. Alguns meses depois, porém, a Virgem tornou a aparecer,
dessa vez emitindo das mãos torrentes de luz. Mostrou à freira dois
corações o de Jesus, envolto em espinhos, e o dela própria,
trespassado por uma espada, para representar seu sofrimento e
exortoua a mandar cunhar, para representar a ocasião, uma medalha que,
cunhada, tornouse depois conhecida como a medalha da Imaculada
Conceição.'9 Nessa aparição, a Virgem também fez um comentário sobre a
luta entre a bondade e a maldade que então se travava no mundo em geral.
Os tempos, declarou, eram maus. Infortúnios se abateriam sobre a
França. O trono seria derrubado. O mundo inteiro seria tomado por males
de todos os tipos.
Comentaristas apocalípticos católicos modernos invocam a aparição da Rue
du Bac como um momento de definição. Acreditam que a Virgem veio
advertir ao mundo que daquele ponto em
287


diante o mal se apresentaria à humanidade como bondade e subverteria
a ordem divina com uma trapaça. Segundo um autor,
o mal seria louvado como um bem moderno na forma de muitos
liberalismos e Deus seria subjugado. Poucas sementes do oculto,
esporos de algumas sociedades secretas como os maçons, acabariam
germinando numa grande floresta, alterando a paisagem da política e do
pensamento humanos.20
Uma tal avaliação teria sem dúvida agradado ao Papa Pio IX. Poderia
encontrar favor, também, junto ao Cardeal Ratzinger.
A 19 de setembro de 1846, duas crianças camponesas Mélame Mathieu, de
quatorze anos, e Maximin Giraud, de onze cuidavam do gado num
pedregoso prado no topo de uma colina, que dava para a aldeia de La
Salette, nos Alpes franceses. Numa ravina pouco abaixo, viram um círculo
de luz brilhante, dentro do qual, quando chegaram mais perto,
encontraram uma bela mulher usando uma coroa e chorando. Sobre o
vestido, segundo Mélanie, ela usava um aventalzinho que luzia "mais
brilhante que vários sóis juntos, tecido não de pano, mas de uma
cintilante substância etérea.2' Falando em meio ao pranto, a mulher
disse às crianças que tinha notícias importantes a confiarlhes. A
menos que todos se submetessem à vontade de Deus, disse, o próprio
Cristo poderia abandonálos. E depois:
Todos os governos civis terão um e mesmo plano, que será abolir e acabar
com todo princípio religioso, para dar lugar ao materialismo, ateísmo,
ocultismo e vícios de todas as espécies.22
Imaginase o que duas crianças sem instrução e provavelmente analfabetas
teriam entendido de um pronunciamento tão forte, expresso num
vocabulário tão sofisticado. Aparentemente, porém,
288

a Virgem não lhes deu tempo para refletir, e prosseguiu criticando os
líderes mundiais incluindo, ao que parece, o próprio Papa:
Os chefes, os líderes do povo de Deus, negligenciaram a prece e a
penitência, e o diabo ofuscou a inteligência deles. Tornaram-se estrelas
errantes que o velho diabo arrastará com a cauda para fazêlos
perecer.23
Seguiase então uma previsão apocalíptica:
Deus abandonará a humanidade a si mesma e mandará castigos que se
seguirão um após o outro por mais de trinta e cinco anos. A sociedade
dos homens está às vésperas dos mais terríveis flagelos e dos mais
sérios acontecimentos. A humanidade deve esperar ser governada com um
bastão de ferro e beber do cálice da ira de Deus.24
E o ano de 1864 foi escolhido para um aviso particularmente
inquietante:
No ano de 1864, Lúcifer, junto com grande número de demônios, será
solto do Inferno. Eles porão fim à fé pouco apouco... Livros maus serão
abundantes na terra.25
O Cardeal Fornari, Núncio Papal na França na época, declarouse
aterrorizado com essas previsões. A hierarquia do Vaticano parece ter
partilhado de seus sentimentos, mas oficialmente reconheceu e aceitou a
validade da Virgem de La Salette em 1851. Essas revelações só foram
tornadas públicas, porém, algum tempo depois o que talvez explique
porque, quando o foram, a Virgem parecia estar falando com uma voz
impressionantemente parecida com a de Pio IX. Em 1864, os livros mais
maus haviam-se de fato tornado abundantes. A Origem das Espécies, de
Darwin, fora publi
289

do Index não tinham falta de material para mantêlos
ocupados.
Em outros aspectos, 1864 foi bastante ruim,
testemunhando o clí
max da Guerra Civil americana e o triunfo militar de
Bismarck, em
seis dias, contra a fracota Dinamarca; mas qualquer
outro ano,
pouco antes ou pouco depois, poderia reivindicar de
maneira
igualmente plausível uma intervenção demoníaca. Os
previstos
trinta e cinco anos de castigos terseiam estendido
até 1881.
Nessa época, ocorreram sem dúvida fatos traumáticos. A
França
foi derrotada na Guerra Franco-Prussiana e caiu o
Segundo Impé
rio. A Alemanha e a Itália unificaramse. O Papado foi
privado dos
últimos vestígios de poder secular. Mas o mundo
sobreviveu; e em
t. compensação pela perda de domínio temporal, o Papa adquiriu
infalibilidade.
A 11 de fevereiro de 1858, doze anos depois de La Salettc, a Virgem fez
uma de suas mais festejadas aparições à jovem Bernadette Soubirous,
em Lourdes. Identificouse como a Imaculada Conceição o que era
conveniente, pois Pio IX, apenas quatro anos antes, estabelecera
oficialmente a Imaculada Conceição como dogma, e a aparição em Lourdes
"foi a primeira manifestação de uma declaração de que Maria foi
concebida sem pecado original.26 Em Lourdes, porém, ela parece haverse
abstido de quaisquer pronunciamentos políticos terríveis, limitandose
a louvar a penltência, o viver uma vida pura e o uso do rosário como
barreira às importunações satânicas.
Se as aparições marianas prédatam os acontecimentos em Fátima, também
os pósdatam. Desde 1917, ocorreram visões da Virgem na Itália, Espanha,
Irlanda, Checoslováquia, Lituânia, Hungria, Áustria, Holanda, Índia,
Japão, Filipinas, Vietnã, Ucrânia, Croácia, Egito, Venezuela e México.
Um número significativo dessas aparições foi acompanhado de mensagens
apocalípticas. Uma destas ocorreu a 20 de dezembro de 1953, a uma mulher
290
o desastre está sobre nós como no tempo de Noé. Não pela água, mas pelo
fogo virá a destruição. Uma imensa inundação de fogo destruirá nações
por pecarem perante Deus. Desde o começo do mundo,jamais houve queda
tal como há hoje. Este é o reino de Satanás. Roma está em perigo de ser
destruída, o Papa de ser assassinado.27
A data dessa previsão a torna bastante explicável. Dois anos antes, a
União Soviética testara sua primeira bomba atômica, e o espectro do
holocausto nuclear se estabelecera como uma sombra generalizada sobre
a consciência da época. Jamais foi exorcizada. Ao contrário,juntaramse
a ela desde então outros espectros, igualmente aterrorí zant 'es.
A Guerra Fria, o terrorismo internacional, os chamados estados ou
governos "renegados e o milênio iminente levaram todos, durante o
último meio século, a um senso de condenação apocalíptica. Assim, em
1962, uma mulher na Espanha teve uma aparição da Virgem, que lhe
informou que só haveria dois Papas depois de Paulo 6 o que faria do
atual pontífice o último.
A 25 dejunho de 1981, ocorreu uma visitação em Medjugorje, no que é hoje
a Croácia, que o Vaticano ainda debate se deve autenticar ou não. No
dia seguinte a uma feroz tempestade, duas pastoras adolescentes viram
uma luz misteriosa numa colina próxima. Envolta na luz havia uma mulher
que as meninas logo tomaram pela Virgem. Desde então, dizse que a
aparição se repetiu muitas vezes. Sua mensagem, quando ela transmite
alguma, é frequentemente sinistra: Venho chamar o mundo à conversão
pela última vez. Após este período, não mais aparecerei nesta terra."28
Numa ocasião, ela demonstrou uma louvável tolerância: Não sois
verda
291
perto da aldeia de Dubovytsya, na Ucrânia. Aparecendo durante uma missa,
a Virgem anunciou que

deiros cristãos se não respeitais outras religiões." Infelizmente,
repudiou então qualquer espírito ecumênico desse tipo: "Só há um
mediador entre Deus e o homem, que é Jesus Cristo.29 Na maior parte,
porém, suas mensagens têm si do tipicamente apocalípticas:
"E chegada a hora em que o demônio foi autorizado a agir com toda a sua
força e poder.30 E, mais urgente ainda: Virá o castigo se o mundo não
se converter. Chamai toda a humanidade à conversão. Tudo depende de
vossa conversão.31
A aparição de Medjugorje parecia ciumenta de outras manifestações de si
mesma, investindo contra falsas visões e advertindo que "muitos fingem
ver Jesus e a Mãe de Deus, e entender suas palavras, mas estão, na
verdade, mentindo.32 O problema para o Cardeal Ratzinger e para a
Congregação para a Doutrina da Fé édeterminar quais são de fato as que
devem ser declaradas falsas e quais validadas. Têm mais que o bastante
para mantê-los ocupados. No início da década de 1990, havia mais de
260 aparições recentes da Virgem, e o número cresce constantemente.
O Fim do Papado?
As de Fátima e outras aparições da Virgem não são as únicas de tais
profecias pejadas de condenação que pairam sobre a Igreja. Também se
diz que o Cardeal Ratzinger e o PapaJoão Paulo 2 são obcecados com as
profecias de São Malaquias, um monge irlandês nascido emArmagh, em
1094, e morto em Clairvaux, em 1148, com São Bernardo, seu amigo,
colega e confidente ao lado. Uma versão impressa de suas profecias
apareceu pela primeira vez numa história da Igreja publicada em 1559.
Numa imagística envolta em ambiguidade, as profecias de Malaquias têm
mais que um pouco em comum com as de Nostradamus. Começando com um de
sua própria era, ele relaciona um
292
VISÕES DE MARIA
total de 112 pontífices e oferece uma epígrafe em latim que pretende
resumir e encapsular o caráter do reinado de cada um. O Papa atual,João
Paulo 2, é o 1110 na sequência o penúltimo. O lema a ele associado é
De Labore Solis ("Da obra do sol).23
Como as quadrinhas de Nostradamus, isso pode ser interpretado como
significando o que se quiser. Alguns comentaristas se esforçaram por ver
um paralelo entre as extensas viagens de João Paulo 2 de longe mais
extensas que as de qualquer pontífice na história e o movimento
aparente do sol em torno da terra. Sem muita dificuldade, podese
idealizar outras interpretações de importância (ou desimportância)
comparável. Esta, porém, não é a questão. A questão, independente de
interpretação, é que o atual Papa, segundo Malaquias, é o penúltimo.
Para o 1120 pontífice, o último na sequência, Malaquias apõe o lema
Gloria Olivae glória, ou possivelmente fama, da oliva, ou oliveira,
ou olival, do qual, talvez, se pudesse fazer um cajado episcopal.
Aqui, mais uma vez, há ampla latitude para os candidatos a intérpretes
brincarem. Mas qualquer disposição à brincadeira seria desfeita, pelo
menos para os católicos pios, pelo tom sombrio em que Malaquias conclui:
Na perseguição final à Santa Igreja Romana, reinará o romano Pedro, que
apascentará seu rebanho por entre muitas tribulações; após o quê, a
cidade das sete colinas será destruída e o temível Juiz virájulgar o
povo.35
293
li 16 O Papa como o Problema
D iante do espectro de sua própria extinção em perspectiva e
iminente, a Igreja hoje encolhese de medo. Na obtusidade com que busca
refúgio no gasto dogma, discernese um elemento de desespero um
elemento de pânico incipiente, que às vezes beira a histeria. Mas a
extinção é apenas um dos muitos medos que acossam a Igreja hoje.
A Igreja teme a crescente secularização da sociedade ocidental e a
deserção de sua congregação em antigos bastiões como Irlanda, sul da
Alemanha, Austria e Espanha. Teme a crescente acomodação com outras fés
em sociedades multiculturais como as da GrãBretanha, Europa Ocidental
e Estados Unidos. Teme a crescente tendência das pessoas psicológica e
culturalmente sofisticadas a encontrar uma dimensão de espiritualidade
em outras esferas que não as controladas pelos padres esferas como,
por exemplo, as artes. Teme os embriônicos panteísmo e hermetismo
envoltos nas preocupações ambientais, que acentuam a natureza
interligada da realidade. Continua a temer a usurpação de sua
autoridade pela ciência e a psicologia. A Igreja também teme iniciativas
ecumênicas, como atestam recusas recentemente reiteradas de
reconheci
294

mento da legitimidade anglicana; e todas ordenações anglicanas continuam
a ser encaradas, em consequência, como absolutamente nulas e vazias.
Com o colapso do comunismo e da União Soviética, a Igreja teme um
rapprocbernent entre a cristandade oriental e a ocidental, que pode
implicar perda de sua autoarrogada primazia. Teme até a descoberta de
vida extraterrestre, e a possibilidade de encontros imediatos, ou um
primeiro contato
Podem não ser, necessariamente, fis de Mulder e Scully, mas alguns
clérigos católicos parecem claramente nevosos com a perspectiva da
chegada a nosso planeta de alienígenas sem qualquer conhecimento de
Jesus. O Padre Corrado Balducci membro oficial da casa papal e
reconhecido especialista do Vaticano em exorcismo, demonologia e
Anticristo foi citado como tendo dito que concedia alguma crença às
histórias de abduções alienígenas:
É razoável acreditar e afirmar que existem extraterrestres. A
existência deles não mais pode ser negada, pois há muitos indícios da
existência de extraterrestres e discos voadores.1
Não que essa crença conflite de forma alguma com sua fé oficial.
Invocando a aclamação por São Paulo de Jesus como não apenas "rei do
mundo, mas também "rei do universo, o Padre Balducci explicou: Isto
significa que tudo no universo, incluindo extraterrestres e OVNIs, são
conciliáveis com Deus."2 Abordado sobre o assunto por The Times, um
portavoz do Departamento Católico de Meios de Comunicação foi um tanto
mais cauteloso:
A mensagem fundamental da criação relacionase com os seres humanos aqui
na terra. Se se mostrar que existem alienígenas,
295

isso não lançaria dúvida sobre a veracidade do Evangelho. Mas teríamos
de perguntar se a expiação cristã se aplicaria a eles.3
O Papa João Paulo 2 parece estar cercando suas apostas. Segundo uma
informação na primeira página do Sunday Times de 14 de dezembro de 1997,
o pontífice solicitou a uma equipe de astrônomos que sondasse o cosmos
em busca das impressões digitais de Deus. O Vaticano tem hoje um
projeto especificamente dedicado a investigar as implicações de um
contato com raças extraterrestres. No Monte Graham, no Arizona, o
Vaticano mantém seu próprio observatório, com pessoal jesuíta. Entre as
questões que eles tratam está se a crucificação de Jesus pode ter salvo
raças alienígenas do pecado original. Segundo o Padre Chris Corbally,
subdiretor do projeto: Se se encontrasse civilização em outros
planetas, e fosse exequível a comunicação, mandaríamos missionários para
salválos. O Padre Corbally parece absolutamente inconsciente de sua
estonteante arrogância.
Bispo de Roma
Tão numerosos e generalizados são os medos da Igreja moderna que ela
vive num verdadeiro estado de sítio. Mas um medo em particular, por
trás de todos, dita e condiciona os outros o medo da mudança. E no
entanto se pode argumentar que exatamente pela mudança e só pela
mudança pode a Igrej a esperar garantir um futuro relevante para si.
No passado, ela manteve sua sobrevivência graças à disposição, por mais
relutante que fosse, de adaptar-se às circunstâncias em mutação. Para
continuar a sobreviver, deve demonstrar uma adaptabilidade semelhante.
Por toda a vida das pessoas hoje, a Igreja constituiu um edifício único,
ostensivamente unificado, monolítico uma espécie de
296

autocracia que supostamente preside sua autodefinida esfera de
espiritualidade. Essa, porém, é a imagem que a Igreja desfruta em
nossas psiques individual e coletiva. Mas essa imagem resulta apenas
de hábitos de pensamento, de uma espécie de inércia mental. Por exemplo,
pensamos nos Estados Unidos como uma única entidade monolítica que
parece ter existido desde tempos imemoriais. Tendemos a esquecer que
ainda há 140 anos os Estados Unidos estiveram por um fio da
fragmentação em dois países diferentes e que há um século e dois
quartos eles nem sequer existiam.
Os mesmos princípios, os mesmos processos mentais, governam a maneira
como vemos a Igreja. Segundo a tradição católica, Jesus voltouse para
Pedro e declarou que sobre aquela rocha (Pedro) construiria sua Igreja.
Segundo a mesma tradição, Pedro foi o primeiro Papa; o primeiro numa
sucessão apostólica de líderes espirituais que se estendeu numa
continuidade intacta e ininterrupta desde a aurora da era cristã até o
presente. Na verdade histórica, porém, tais afirmações são bobagens.
Até o século 14, a forma de cristianismo" que encaramos como
catolicismo ortodoxo não era nada disso. Ao contrário, era apenas uma
das numerosas formas de crença cristã, cada uma disputando com a outra
a supremacia teológica, social e política; e só quando um desses
sistemas emergiu como ortodoxia os outros se tornaram, por
definição retroativa, heresia.
Contudo, mesmo depois que a Igreja de Roma saiu vitoriosa sobre as
outras formas de crença cristã, tinha pouquíssima semelhança com a
Igreja que conhecemos hoje. A designação de Papa só passou a existir
no fim do século 4, quando Siríaco 1(384 99) a adotou pela primeira
vez. E até meados do século V a Igreja Romana era a própria antítese do
monolito. Na verdade, era inteiramente descentralizada, e o chamado
Papa não passava de Bispo de Roma, um numa multidão de bispos. Na
melhor das hipóteses,
297

podia ser encarado como o proverbial primeiro entre iguais,
equivalendo grosso modo a um primeiroministro; e os bispos e patriarcas
dejurisdições como Antióquia, Alexandria e Constantinopla exerciam uma
autoridade comparável.
Mesmo mais tarde, quando o Papado surgiu como o centro do poder da
Igreja, seu status como tal era em grau significativo apenas nominal. As
vezes, estava sujeito e subordinado às decisões de Concílios da Igreja.
Até 1870, sua possível subordinação a Concílios da Igreja podia pelo
menos ser discutida, como demonstram as controvérsias da época entre
galicanos e ultramontanos. Só nos anos desde 1870 com a perda de
domínio secular da Igreja e a
simultânea promulgação compensatória da infalibilidade papal
formouse
definitivamente a estrutura monolítica que conhecemos hoje.
Com sua rígida adesão ao dogma e sua deliberada indiferença às
realidades da civilização contemporânea, essa estrutura monolítica não
mais parece adequada a um crescente número de pessoas. Condenar o
controle de natalidade numa época de superpopulação e proliferantes
gravidezes indesejadas começa a ser visto como ridículo, na melhor das
hipóteses, e negligência culpável, na pior. A fulminação dos
anticoncepcionais na época da AIDS é condenada como loucura perigosa,
na melhor das hipóteses, e irresponsabilidade criminosa, na pior.
Essas críticas vêm não apenas de comentaristas hostis ou observadores
distanciados e destinteressados. Vêm dos próprios fiéis da Igreja,
muitos dos quais sofrem aguda aflição e crise de consciência com o
conflitos interiores provocados entre as inevitáveis pressões do mundo
em volta e a Igreja àqual anseiam por continuar leais, mas que parece
indiferente ao seu dilema.
Em muitas esferas, a Igreja parece não apenas fora de contato
com as exigências do mundo moderno, mas num bizarro estado de
298
O PAPA COMO O PROBLEMA
negação psicológica como se seguisse seu próprio programa com a
determinação de um robô, antolhandose deliberadamente, forçosamente,
para as necessidades bastante concretas de sua congregação. São
demasiados os casos em que a Igreja parece haver esquecido que possui
uma congregação de seres humanos, com sentimentos, fraquezas e
necessidades humanas e adere com a mplacável imperturbabilidade de
uma máquina a um programa de salvação ingenuamente idealista, que
poderia ter sido formulado por um computador.
Em casos desses, é com frequência cada vez maior defendida como
alternativa viável, por indivíduos interessados, uma Igreja
descentralizada. Uma Igreja assim poderia ainda ter condições de
acomodar um Bispo de Roma, que, numa redefinida interpretação de Papa,
funcionasse como árbitro, presidente de conselho, o equivalente
religioso a um chefe de estadomaior militar. Nessa condição, ainda
exerceria algum tipo de liderança administrativa, mas seria obrigado a
tomar conhecimento das necessidades de sua congregação e seus bispos em
todo o globo. E essas necessidades diferindo como diferem entre o
Ocidente desenvolvido, África, Ásia, América do Sul e outras partes
receberiam pelo menos a audiência que merecem. A autoridade moral e
espiritual ficaria com bispados e dioceses específicos, que tivessem a
flexibilidade necessária para adaptar-se às exigências de suas
circunstâncias respectivas e muitas vezes únicas. Em suma, a Igreja se
centraria na diocese, e cada diocese refletiria as necessidades
distintas de seu rebanho particular.
Essa sugestão, claro, implica considerável supersimplificação
mais, talvez, que os que a louvam muitas vezes reconhecem. Traduzila
na prática envolveria um processo complexo, perturbador e provavelmente
prolongado. Não é, porém, a única solução possível para a questão da
relevância do futuro da Igreja. Há muitas
299

outras. Mas alguma forma de mudança parece patentemente inevitável se a
Igreja não quiser se tornar um elemento irrelevante da história, como,
digamos, o Sacro Império Romano, que, embora apenas em teoria,
representou outrora seu domínio secular e temporal.
Em sua face pior, a Igreja constitui como muitas vezes no passado
uma tirania tão grande, opressiva, nociva e monstruosa quanto a de
qualquer tirania secular. Na melhor, oferece consolo, refúgio,
conselho, apoio, caridade, compreensão e um dos muitos caminhos nem
todos necessariamente religiosos que conduzem ao senso do sagrado.
Mas reivindicar, qualquer dessas instituições no mundo moderno, o
monopólio definitivo da verdade, e mais ainda da salvação, é uma
arrogância comparável apenas ao pecado de orgulho pelo qual Lúcifer,
segundo a tradição, foi expulso do céu uma arrogância quejustificaria
os hereges cátaros da Idade Média ao verem Roma como criação do
demoníaco Rex Mundi, "Rei do Mundo, expressão última do mal.
Á medida que se aproximava o milênio, a Igreja anunciou sua intenção de
admitir e desculpar-se por alguns dos excessos do passado. Houve até
rumores de que pretende se desculpar pela Inquisição ou, pelo menos,
pelas tendências fanaticamente sádicas e piromaníacas demonstradas pela
Inquisição nos primeiros séculos de sua existência e que algumas de
suas vítimas, como Giordano Bruno, por exemplo, serão, como Galileu,
reabilitadas.
Tais medidas são bemvindas e encorajadoras. Para sobreviver, é
necessário adaptarse. Para amadurecer, no entanto, é necessário mais
que isso. E necessário enfrentar o passado, admitilo e integrálo
numa nova unidade ou totalidade que corrija quaisquer desequilíbrios
anteriores. Não se pode negar, ignorar, repudiar ou relegar brutalmente
o passado ao esquecimento. Ele deve ser tra300

zido a um novo tipo de acomodação com o presente; e os dois devem servir
de fundação na qual se possa criar um novo e mais equilibrado futuro. Em
épocas anteriores, a Igreja raras vezes reconheceu essa necessidade.
Que pareça fazê-lo agora, é de fato louvável, e indica um pouco de
verdadeiro amadurecimento.
Mas a desculpa, como um mero gesto, muitas vezes pouco mais é que um
adjunto da moda, em nossa época, do politicamente correto. Oferecer
fáceis pedidos de desculpas por erros e atrocidades passados tornouse
uma voga em nosso tempo. Mas embora se possa rescrever a história, não
se pode desescrevêla. É bastante fácil pedir desculpas por umfait
acconlpli que não mais pode ser desfeito ou revertido. Há pouco sentido
em pedir desculpa pela morte de cátaros há muito mortos quando não há
ninguém para beneficiar-se das desculpas. E se a própria Igreja aspira
a parecer mais limpa, mais civilizada e mais humana em consequência
disso, deve fazer mais que apenas se desculpar. Deve também
arrepender-se e expiar. Esses arrependimento e expiação devem ter
repercussões que se apliquem não só ao passado, mas também ao presente.
A Inquisição ou, para citá-la pelo seu nome atual, a Congregação para
a Doutrina da Fé não é, claro, toda a Igreja. É apenas um aspecto da
Igreja, um escritório, um departamento. Para muita gente hoje, porém,
incluindo muitos dos fiéis, a Congregação tornouse equivalente à
Igreja. É muitas vezes vista como a única e definitiva voz com a qual a
Igreja fala sobre assuntos doutrinários; e ela nada faz para
desencorajar essa visão. É provável que isso continue a ser um
problema, a menos que se veja que se atribui autoridade comparável a
outros aspectos, escritórios e departamentos da Igreja ou a menos que
a Congregação modifique sua mentalidade rígida e inflexível. É a
Congregação especificamente, tanto quanto a Igreja em geral, que deve
arrepender-se e expiar o pas301

sado. E esses arrependimento e expiação devem trazer algum benefício
para os católicos de hoje.
Desde sua mais antiga cristalização, a religião organizada tentou
tratar de duas esferas dodesconhecido, e explicá-las a que está
dentro da humanidade e a que está além, no mundo natural e no cosmo em
geral. A civilização ocidental evoluiu, o terreno que compreende os dois
desconhecidos tem sido cada vez mais bem mapeado pela ciência e a
psicologia. Esse terreno não é mais tão desconhecido quanto outrora
parecia, e a religião organizada tem recuado dele em consequência disso.
No desconhecido que está além, a religião organizada recuou com
relutância diante do aparentemente inelutávei avanço da ciência. No
desconhecido que está dentro da humanidade, a religião organizada tem
sido cada vez mais contestada e jogada na defensiva pela psicologia. Nas
duas frentes, a religião organizada tentou efetuar uma retirada tão
ordenada quanto possível.
Contudo, apesar das invasões da ciência e da psicologia, apesar da
retirada combatente da religião organizada, vastos tratos de território
continuam desconhecidos, interna e externamente. O desconhecido pode
parecer recuar fugidiamente para longe, mas éimprovável que algum dia
desapareça por completo, que algum dia seja inteira e definitivamente
cartografado. É ingênuo, na melhor das hipóteses, imaginar que um dia
saberemos tudo que se pode saber. Ao contrário, tem de permanecer um
elemento de verdadeiro mistério, em nós mesmos e no cosmo à nossa
volta. Nem quereríamos que fosse diferente.
A religião organizada ainda pode ter um papel a desempenhar em nossas
vidas, em nossa sociedade, em nosso mundo. Para os milhões que se voltam
para ela em busca de alívio, consolo, caridade, compreensão e mesmo
sabedoria, a Igreja não precisa ser reduzida à irrelevância oujogada no
obsoleto lixo da história como
302

o antigo Sacro Império Romano. Se quiser escapar desse destino, porém,
ela e a Congregação para a Doutrina da Fé que codifica sua doutrina têm
de sair de seus bunkers. Devese construir pontes mais novas e mais
fortes para outras denominações cristãs, para o espectro de fés e credos
nãocristãos. Também se deve construir tais pontes para as ciências e a
psicologia para que os dois arquirivais da religião organizada, ao
tentarem cartografar o desconhecido, possam fazê-lo sem invadir os
domínios do genuíno, válido e necessário mistério. E também pontes para
as artes. No passado, as artes ajudaram a religião organizada a dar
testemunho do sagrado. Em meados do século 19, porém, como afirmou
Flaubert, a religião abdicou de toda responsabilidade por dar esse
testemunho; e o artista, como uma questão de política cada vez mais
consciente e deliberada, assumiu o papel abandonado pelo padre. Ao
tentar compreender e transmitir um senso do sagrado, do divino, do
espiritual ou do que se queira chamar, o padre deve hoje aprender com
o artista. O próprio Papa, e a Congregação para a Doutrina da Fé, devem
mostrar uma compreensão da espiritualidade comparável àde Rilke, por
exemplo, Yeats ou PatrickWhite.
São esses os desafios que enfrenta a Igreja como um todo, e a
Congregação para a Doutrina da Fé em particular, às vésperas do milênio.
A medida que a Igreja e a Congregação para a Doutrina da Fé aceitem com
êxito esses desafios determinará o futuro da fé católica no século 202.
303



Notas
NOTA: Os detalhes bibliográficos completos, quando não citados aqui,
encontram-se na Bibliografia.
1: Um Zelo Ardente pela Fé
1. Le Roy Ladurie, Montaillou, p. 78.
2. ibid.,p.81. 3. Lea, A History ofthe Inquisition ofthe Middle Ages, 1,
p. 53.
4. ibid.,pp.545.
5. ibid.,p.20. 6. Sumption, TheAlbigensian Crusade, p. 93.
7. ibid.
2: O4gens da Inquisição
1. Vicaire, Saint Dom inic and His Times, p. 146.
2. Lea, A History ofthe Inquisition oftlw Middle Aá'es, 1, p. 329.
3. ibid., p. 329. 4. Wakefield, Heresy, Crusade and Inquisition in
Southern France 11001250, p. 208.
304 1
NOTAS
5. ibid.,p.211.
6. ibid.,pp.21112. 7. ibid.,p. 214.
8. ibid.,p.215.
9. ibid.,p.216. 10. ibid.,p.217.
11. ibid.,p.224.
12. Chadwick, Priscillian ofAvila, p. 233.
13. Lea, op. cit., p. 464.
14. Maycock, The Inquisition, p. 157.
15. ibid., p. 158.
16. Lea, op. cit., p. 541.
17. ibid.
18. Maycock, op. cit., p. 173.
19. Lea, op. cit., p. 552.
20. ibid., p. 553.
21. ibid., 2, p. 334. 22. ibid., 1, p. 494.
23. ibid., p. 368.
3: Os Inimigos dos Frades Negros
1. Stoyanov, lhe Hidden Tradition in Eu rape, p. xvi.
2. ibid.,p. 193.
3. Lea,A History ai the Inquisition of the MiddleAges, 2, p. 355.
4. ibid.
5. ibid.,p.357.
6. Por exemplo, ~40 Grande Mestre Bertrand de Blanchefort, 115370. Ver
uma discussão desse ponto in Baigent, Leigh and Lincoln, lhe Holy Blood
and the Holy GraU, pp. 445.
7. Ver discussão in ibid., p. 44, referente à obra do abbéM.R. Mazières
p~íicaaoin'"La~enue efie s~Jour iiesNemPiiers iiu~oussUton'a'ia
fim du 13me siêcle et au debut du XlVme dans la vallée du Bézu
305
A INQUISIÇÃO
(Aude)", A4étno ires de la Société des Arts et des Sciences de
Carcassonne, 4~h
ser., vol. 3, Carcassonne, 19579, pp. 22954.
8. Addison, lhe Histoty of the Knights Tetnplars, p. 206.
9. Ver a discussão in Baigent e Leigh, The Tentple and the Lodge, pp.
5673, especialmente pp. 645.
10. Lea, op. cit., 1, p. 260.
11. ibid.,p.295.
12. ibid., p. 296.
13. ibid., 2, p. 171.
14. ibid.
15. ibid., p. 173.
4: A Inquisição Espanhola
1. Kamen, The Spanish Inquisition, p. 139. 2. ibid., p. 137.
3. ibid., p. 49.0 texto completo estáin Lea,A Historyofthelnquisition of
Spain, 1, pp. 58790.
4. Kamen, op. cit., p. 49.
5. ibid., p. 50. O texto completo está in Lea, op. cit., 1, pp. 59092.
6. Lea, op. cit., 1, p. 174.
7. Kamen, op. cit., p. 69.
8. ibid., p. 174.
9. ibid., p. 178.
10. ibid., p. 176. 11. ibid.,p. 186.
12. ibid., p. 188. 13. Lea, op. cit., 3, p. 5.
14. ibid., p. 22.
15. ibid., p. 17.
16. Kamen, op. cit., p. 20.
17. ibid.,p.21.
18. Netanyahu, The Origins of the Inquisition in F!fieenth Century
Spain, p. 1090.
306
NOTAS
19. Kamen, op. cit., p. 57.
20. ibid.,p.301.
5: Salvando o Novo Mundo
1. Lea, lhe Inquisition in the Spanish Dependencies, p. 233. 2.
ibid.,p.233.
3. ibid.,p.286.
4. ibid.,p.347.
5. ibid., p. 455.
6. ibid.,p.461.
7. ibid.,p.466.
8. ibid., p. 510.
6: Cruzada Contra a Bruxaria
1. Lea, A Histoiy aI the Inquisition ai the MiddleAges, 3, pp. 4934.
2. Bede,AHistoryoftheEnglishChUrChatldPeOple, 1,30 (pp. 867). 3.
Thomas, Rei igion and the Decline ofMagic, p. 521. 4. TrevorRoper, lhe
European WitchCraze of the 5 ixteenth and Seventeenth Centuries, p. 32.
5. Lea, A History of the Inquisition of Spain, IV, p. 206. 6. Lea, A
History of the Inquisition ai the Middle Ages, 3, p. 497. 7. Malieus
Maleficarutn, p. 29. 8. Lea,A Histoty oithe Inquisition oithe
MiddleAges, 3, p. 506. 9. ibid.,p.498.
10. Kieckhefer, Magic in the MiddleAges, p. 194.
11. MafleusMaleflcarurn, pp. 3031.
12. ibid., p. 19.
13. ibid.,p.24.
14. ibid., p. 19.
15. ibid.,p.33.
16. ibid.,p.53.
307
A INQUISIÇÃO
17. ibid., p. 203.
18. ibid., pp. 2056.
19. ibid., p. 208.
20. ibid.,p. 117.
21. ibid.,p. 121.
22. ibid., p. 122.
23. ibid.,p.221. 24. ibid.,p.253. 25. ibid. 26. ibid., pp. 2678. 27.
ibid.,p.268. 28. ibid.,p. 111. 29. ibid., p. 445. 30. ibid.,p.470.
31. ibid.
32. ibid.,p.471.
33. ibid.
34. ibid.
35. ibid.
36. ibid., p. 473.
37. ibid., p. 230.
38. ibid.,p. 483.
39. ibid., p. 482.
40. Lea, A History oithe Inquisition of Spain, IX~ p. 206.
41. Lea, A History oithe Inquisition oíthe Middle Ages, 3, p. 539.
7: Combatendo a Heresia do Protestantismo
1. TrevorRoper, lhe European WitchCraze oithe Sixteenth and
Seventeenth Centuri es, p. 66.
2. Chastel, Art 014w Italian Renaissance, p. 202.
3. ibid.
4. Kidd, lhe Counter-Refrrmation, p. 44.
5. ibid., p. 59.
308
NOTAS
6. ibid., p. 57. 7. Index Librorum Prohibitorutn, Cidade do Vaticano,
1948. Depois lançado com os acréscimos seguintes p. 509. 8. Agrippa,
lhe Vanity oiArts and Sciences, p. 328.
9. Thorndike, A History of Magic and Experimental Sciences, 7, p. 292.
10. ibid., p. 293. 11. ibid.
8: O Medo dos Místicos
1. lhe Cloud of Unknowing, capítulo 67, p. 96. 2. ibid., capítulo 13, p.
31.
3. ibid., capítulo 55, p. 81.
4. Teresa, lhe Lífe oiSaint Teresa oiAvila by Herse!f p. 127.
5. ibid., p. 303. Ver também p. 139.
6. ibid., p. 127.
7. ibid., p. 75.
8. ibid.,p.243.
9. ibid., p. 298. 10. ibid., p. 294.
11. ibid.,p.300.
12. ibid., p. 298.
13. ibid., pp. 300301.
14. ibid.,p.311.
15. Lea,AHistoiyofthelnquisition ai Spain, 1V p. 3.
9: Maçonaria e Inquisição
1. Lennhoff, The Freetnasons, p. 283. 2. ibid., p. 284.
3. ibid.,p.286. 4. Thory,Acta LatomorunL 1, p. 43. 5. Lennhoff, op.
cit., pp. 28990.
309
A INQUISIÇÃO
6. Benimeli, Masoneria, Iglesia e Ilustración, 2, p. 234.
7. Gould, The HistoFy oiFreemasonry 3, p. 314.
8. Cousins, The Sufferings oiJohn CoustosforFreernason~y, p. 52. Para
uma tradução dos documei~tos da Inquisição neste caso, incluindo as
"confissões", ver Vatcher, "John Coustos and the Portuguese
Inquisition",Ars Quatuor Coronatorum, 81, 1968, pp. 987.
9. Vatcher, op. cit., p. 66.
10. Coustos, op. cit., pp. 614.
11. Vatcher, op. cit., p. 68.
12. Coustos, op. cit., pp. 645.
13. Vatcher, op. cit., p. 73.
14. Coustos, op. cit., p. 67.
15. Gervaso, Cagliostro, p. 229.
16. Lennhoff~ op. cit., p. 293.
17. ibid., p. 297.
18. ibid.
19. ibid., p. 299. Uma lista dos grandes ataques papais à maçonaria é
fornecida in Read, "The Church ofRome and Freemasonry",Ars Quatuor
Coronatoruni, 104, 1991, pp. 5173.
10: A Conquista dos Estados Papais
1. Stolper, "Garibaldi: Freemason", Ars Quatuor Coronatorum, 102,
l989,pp. 1011.
2. Rosa, I4cars oiChrist, p. 125.
3. Kung, Christianity, p. 466.
4. ibid.,p. 467.
5. ibid., p. 466.
6. ibid., p. 468.
7. ibid.,p.471.
310
NOTAS
11: Infalibilidade
1. HaLes, Pio Nono, p. 164. 2. Hibbert, Gari baldi, p. 24. 3. Rosa,
J/icars of Christ, p. 244.
4. ibid.,p.343.
5. ibid.,p.344. 6. ibid.
7. ibid.
8. Halcs, op. cit., p. 256.
9. ibid.,p. 274.
10. Hasler, How the Pape Became Infallible, p. 81.
11. ibid., pp. 889.
12. ibid., p. 68.
13. ibid., p. 64.
14. ibid., p. 57.
15. ibid.,p.97.
16. ibid., pp. 978.
17. ibid., p. 187.
18. ibid., p. 189.
19. Kelly, The Oxford Dictionary of Papes, p. 310.
20. ibid.
21. HasLer, op. cit., p. 191.
22. ibid., p. 192.
23. ibid.
24. ibid., p. 229.
25. ibid., p. 125.
26. ibid.,pp.2413.
27. Kelly, op. cit., p. 310.
12: O Santo Oficio
1. Hasler, How the Pape Became Infallible, p. 246.
2. New Catholic Encyclopaedia, voL 2, p. 551.
311
A INQUISIÇÃO
3. ibid.
4. Burman, lhe Inquisition, p. 209.
5. New CatholicEncyclopaedia, vol. 2, p. 551.
6. Fogazzaro, lhe Saint, p. 242. 7. Poulat, Catholicisme, Démocratie et
Socialisme, p. 40. Para um resumo de Benigni ver também Hasler, op.
cit., pp. 25053.
8. Encíclica Pascendi, 8 de setembro de 1907. New CatholicEncyclopaedia,
vol. 7, p. 552. 9. Poulat, op. cit., p. 442. 10. ibid., p. 461. 11.
ibid.,p.460. 12. ibid., pp. 4445. 13. New Catholic Encyclopaedia, vol.
2, p. 320, vol. 13, p. 411; ver também Hasler, op. cit., p. 253.
13: Os Manuscritos do Mar Morto
1. Rosa, Vicars of Christ, p. 244.
2. Dr. Geza Veemes in Times Literary Supplement, 3 de maio de 1985, p.
502.
3. Ver Baigent e Leigh, The Dead Sea Scrolls Deception, p. 44
4. Em meados de dezembro de 1991, um forte aguaceiro em Qumran levou um
dos "muros" de de Vaux, revelando uma grande panela
num ressalto.
5. Sobre as maquinações em torno da dúbia datação de Qumran por de Vaux
e outros, ver Baigent e Leigh, op. cit., pp. 15 164.
6. ibid., pp. 199210.
7. Eisenman eWise, TheDead Sea Scrolls Uncovered, p. 70; Garcia
Martinez dá uma tradução idêntica desse texto em seu lhe Dead Sea
Scrolls
Translated, p. 138.
8. BiblicalArcl.zaeologyReview, março/abril de 1990, p. 24.
9. LeonDufour, lhe Gospels and the Jesus of History, p. 70.
312 NOTAS
14: A Congregação para a Doutrina da Fé
1. Rosa, l/icars of Christ, p. 396. 2. Collins, Papal Powei p. 7.
3. ibid.
4. ibid.
5. ibid.
6. Ratzinger e Messori, The Ratzinger Report, p. 10.
7. ibid., p. 69.
8. Reese, Inside the Vatican, p. 161. 9. The New Catholic Encyclopaedia,
vol. 4, p. 944.
10. Collins, op. cit., p. 16.
11. Reese, op. cit., p. 252.
12. Sunday Titnes, 2 de dezembro de 1984, p. 13.
13. Reese, op. cit., p. 250.
14. ibid.,p.252.
15. ibid., p. 255.
16. ibid.,p.259.
17. ibid.
18. Observer~ 27 de maio de 1990, p. 1.
19. Independent, 27 de junho de 1990, p. 10.
20. The Titnes, 27 de junho de 1990, p. 9.
21. Independent, 27 de junho de 1990, p. 10.
22. ibid.
23. ibid.
24. lhe Times, 27 de junho de 1990, p. 9.
25. Reese, op. cit., p. 255.
26. Ratzinger e Messori, op. cit., p. 46.
27. Ratzinger, Church, Ecunienisrn and Politics, p. 10.
28. ibid., pp. 910.
29. ibid., p. 10.
30. Ratzinger e Messori, op. cit., p. 111.
31. Ratzinger, op. cit., p. 80.
32. Ratzinger e Messori, op. cit., p. 45.
33. ibid.,p.49.
313

OBS: No livro ** São trechos a serem conferidos.