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segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

A Ilha Misteriosa - Júlio Verne

A ILHA MISTERIOSA
JÚLIO VERNE

ÍNDICE


Primeira parte
Os Náufragos do ar
Capítulo I 7
Capítulo II 16
Capítulo III 23
Capítulo IV 27
Capítulo V 33
Capítulo VI 40
Capítulo VII 45
Capítulo VIII 51
Capítulo IX 56
Capítulo X 61
Capítulo XI 68

Segunda parte
Os abandonados
Capítulo I 73
Capítulo II 83
Capítulo III 92
Capítulo IV 96
Capítulo V 101
Capítulo VI 105
Capítulo VII 112
Capítulo VIII 125

Terceira parte
O segredo da ilha
Capítulo I 133
Capítulo II 138
Capítulo III 148
Capítulo IV 157
Capítulo V 161
Capítulo VI 166
Capítulo VII 171
Capítulo VIII 178
Capítulo IX 185
Capítulo X 193



CAPÍTULO I


- Estamos a subir?
- Não, não, pelo contrário. Descemos!
- Pior que isso, senhor Cyrus! Estamos a cair!
- Deus nos acuda! Atirem mais lastro pela borda fora!
- Lá vai o último saco!
- E agora? O balão sobe?
- Nada!
- Estou a ouvir o bater das ondas...
- Temos o mar aqui mesmo debaixo da barquinha!
- Nem deve estar a duzentos metros!
Um comando soou, gritado em voz possante:
- Tudo o que pesar deita-se fora! Tudo! E seja o que Deus
quiser!
Foram estas as palavras que atroaram os ares e ribombaram
sobre o vasto deserto do oceano Pacífico, cerca das quatro
horas da tarde do dia 23 de Março de 1865.
Com efeito, um balão estava a ser arrastado por uma tromba a
quase cento e setenta quilómetros à hora, qual frágil bola de
sabão, girando ao mesmo tempo sobre si mesmo, como que
apanhado por um redemoinho de ar. Presa ao balão, oscilava
uma barquinha levando a bordo cinco passageiros. Estes mal se
distinguiam, envoltos na cortina de vapores espessos e água
pulverizada que arrastava a extremidade pela superfície do
mar.
Donde viria aquele aeróstato, autêntico joguete da
terrível tempestade? Em que parte do mundo teria levantado voo?
Certamente não teria partido durante o furacão... Ora este já
durava há cinco dias. Sendo assim, e fazendo contas a pelo
menos três mil quilómetros por dia, era de crer que o balão
vinha de muito longe. Em todo o caso, os passageiros não
podiam
saber onde se encontravam, rodeados apenas pelo denso
nevoeiro e sem quaisquer pontos de referência... Nem, tão pouco,
saberiam dizer se era noite ou dia.
Entretanto, o balão, aliviado da carga mais pesada - armas,
munições e mantimentos -, voltara a subir a uma altitude
superior a mil metros. A noite chegou e passou-se em mil e uma
inquietações, que poderiam ser mortais, não fossem os passageiros
pessoas tão corajosas.
Outro dia nasceu, o dia 24 de Março, e com a aurora o
furacão deu mostras de acalmar. As nuvens subiram e, algumas
horas depois, a tromba adelgaçou e acabou por rebentar. Pelas
onze horas, a atmosfera limpou e o furacão, extinto com o
rebentamento da tromba, parecia ter-se transformado em ondas
eléctricas, como sucede às vezes com os tufões do oceano
Índico.
Foi então que o balão voltou a descer lentamente até às
camadas inferiores da atmosfera, parecendo mesmo que se
esvaziava e que passava da forma esférica à ovóide! Ao meio-dia,
o balão planava apenas a uns seiscentos metros acima do
nível das águas. Os passageiros trataram de deitar ao mar as
últimas coisas que ainda podiam fazer peso na barquinha,
alguns víveres e até pequenos utensílios que tinham nos
bolsos. Depois, um deles içou-se às redes que os prendiam ao
balão e tentou
reforçar as cordas. Era evidente que não podiam fazer mais
nada para impedir a descida... O balão perdia gás. Estavam
perdidos! Com efeito, não sobrevoavam continente ou ilha onde
poisar, não havia uma única superfície sólida onde prender as
âncoras
do balão. Apenas o imenso oceano e as vagas arremessadas
umas contra as outras com uma violência incomparável!
Tornava-se imperioso suster a descida do balão antes que ele
fosse engolido pelas ondas. Todavia, apesar dos esforços dos
passageiros, a barquinha descia sempre, ao mesmo tempo que era
arrastada pelo vento a uma enorme velocidade, de nordeste para
sudoeste.
Às duas horas da tarde, o aeróstato estava apenas a cento e
poucos metros acima do mar. Por essa hora, a voz de um
homem, cujo coração não conhecia o medo, fez-se ouvir:
- Deitámos tudo fora?
- Ainda temos dez mil francos em ouro.
O pesado saco foi imediatamente borda fora.
- E o balão? Sobe?
- Um pouco, mas não tardará a descer.
- Há mais alguma coisa para deitar fora?
- Mais nada!
- Há, sim! A barquinha!
- Agarremo-nos à rede... e barquinha ao mar!
Era, na verdade, a única e a última coisa a fazer para
aliviar o peso do balão. As cordas que prendiam a barquinha
foram

metros, com os cinco passageiros agarrados às cordas sobre o
abismo. Mas o gás continuava a escapar-se pelo rasgão, impos

Os passageiros tinham feito tudo o que era humanamente
possível e, agora, só lhes restava esperar a ajuda de Deus. Às
quatro da tarde, apenas cento e cinquenta metros os separavam
do mar. Ouviu-se, então, o ladrar sonoro do cão que acompanhava
os passageiros, bem preso às cordas junto ao dono.
- O Top viu qualquer coisa!
- Terra! Terra à vista! - gritou alguém.
O balão, arrastado para sudoeste pela ventania, já tinha,
por essa altura, percorrido uma distância considerável. Mas
não havia dúvidas! Para sudoeste, lá estava ela, a terra
firme, a
uma hora de distância, se o vento não mudasse. Uma hora
ainda! E se o balão, entretanto, perdesse todo o gás?
Pelas quatro e meia, o aeróstato, cada vez mais vazio e
enrugado, já arrastava os passageiros pela crista das ondas.
De repente, soaram gritos terríveis! Estavam apenas a duzentas
braças (*) da praia, quando um formidável golpe de mar
apanhou o balão, e este, como que liberto de um peso, subiu de
esticão aos quatrocentos e cinquenta metros. Aí, apanhado numa
espécie de redemoinho de vento, começou a ser impelido
paralelamente à costa, até que obliquou e acabou por cair na
areia da praia, fora do alcance das vagas.
Os passageiros, ajudando-se uns aos outros, apressaram-se a
libertar-se das malhas da rede. O balão, finalmente livre de
peso, desapareceu no espaço empurrado pelo vento, qual pássaro
ferido que reencontra um último sopro de vida.
Mas a barquinha havia transportado cinco passageiros e um
cão, e as pessoas lançadas à praia eram apenas quatro! O
passageiro que faltava fora certamente levado pelo último
golpe de mar, e esse alijar do peso permitira que o balão
tivesse subido pela derradeira vez e, depois, atingido a
praia!
Logo que os quatro náufragos - assim lhes poderemos
chamar - deram pela falta do companheiro, exclamaram:
- Ele há-de tentar nadar para terra! Salvemo-lo! Salvemo-lo!

Estes náufragos, que o furacão atirara à praia, não eram
aeronautas de profissão, nem sequer amadores. Eram americanos
e prisioneiros de guerra evadidos em circunstâncias absolutamente
extraordinárias.
Nesse mesmo ano de 1865, no mês de Fevereiro, no decurso
da Guerra da Secessão, o general Grant tentara conquistar, sem
êxito, a cidade de Richmond, na Virgínia. Ora aconteceu que,
durante esse ataque falhado, vários dos seus oficiais foram
feitos prisioneiros pelo inimigo. Um dos mais distintos
pertencia ao estado-maior federal e chamava-se Cyrus Smith.
Cyrus Smith, natural do estado do Massachusetts, era um
engenheiro e homem de ciência ilustre, a quem o governador
da União havia confiado, durante a guerra, a direcção dos
caminhos de ferro, de grande importância estratégica.
Verdadeiro americano do Norte, magro e seco de carnes, teria cerca
de quarenta e cinco anos e já lhe começavam a branquear o
cabelo cortado curto, e o bigode farto. Autêntico homem de
acção e,
ao mesmo tempo, homem de ideias, era movido por uma força
anímica e uma persistência tenaz daquelas que desafiam todas
as fatalidades do destino. Muito instruído e dotado de sentido
prático, este temperamento soberbo e senhor de si, fossem
quais fossem as circunstâncias, reunia as três condições
básicas da energia humana: actividade do espírito e do
corpo, impetuosidade do desejo e força de vontade. A
divisa adoptada por
Guilherme de Orange, no século xvii, bem podia ser a sua:
"Não careço da esperança para tentar; nem do êxito para
perseverar." Cyrus Smith era a coragem em pessoa.
Juntamente com Cyrus Smith, outra personagem importante
caía nas mãos dos Sulistas: Gedeão Spilett, o notável
jornalista do New York Herald, enviado com os exércitos do
Norte para relatar as peripécias da guerra.
Spilett pertencia àquela raça de cronistas ingleses e americanos,
que não recua diante de nada para obter uma informação
exacta e para a transmitir ao seu jornal com a brevidade
possível. Homem de grande mérito, enérgico e pronto para tudo,
conhecia praticamente o mundo inteiro, sem nunca olhar a
trabalhos e fadigas, sem temer um perigo! O que contava era a
notícia para o jornal, a informação, a curiosidade pelo
inédito e pelo desconhecido. Por tudo isto, sentia-se pronto a
enfrentar fosse o que fosse e era vê-lo sem um estremecimento
na
primeira fila da batalha, de arma numa mão e bloco na outra,
a tomar notas debaixo da metralha. Gedeão Spilett não teria
mais de quarenta anos; era um homem alto, com o rosto
emoldurado por suíças loiras a puxar para o ruivo e um olhar
vivo e rápido, habituado a captar o mais pequeno pormenor. A
constituição robusta tinha-se-lhe temperado em todos os
climas,
assim como uma barra de aço em água fria.
Cyrus Smith e Gedeão Spilett, que só se conheciam de nome,
haviam sido transportados juntos para Richmond. Simpatizaram
logo um com o outro e, com o tempo, aprenderam a estimar-se.
Não tardou que ambos pensassem apenas na fuga, para se
juntarem de novo ao exército de Grant e combater nas fileiras
da União.
Os dois americanos resolveram, pois, aguardar a primeira
oportunidade. Muito embora pudessem andar em liberdade pela
cidade, Richmond estava tão bem guardada, que qualquer
evasão apresentava-se quase impossível. Entretanto, um criado
de Cyrus Smith conseguira reunir-se ao patrão. De raça negra e
nascido de escravos numa plantação do engenheiro, há muito
que fora alforriado pelo patrão, abolicionista convicto. Este
escravo tornado homem livre não tinha querido deixar o patrão
e por ele daria a própria vida! Era um rapaz de trinta anos,
vigoroso e ágil, inteligente e calmo, por vezes até ingénuo,
mas sempre prestável e bom. Chamava-se Nabucodonosor, mas só
respondia pela abreviatura familiar de Nab. Ora, quando Nab
soube que o patrão tinha sido feito prisioneiro, partiu do
Massachusetts sem hesitar um segundo; chegado diante de
Richmond, só à força de muita astúcia e habilidade, depois
de ter arriscado a vida umas vinte vezes, conseguiu entrar
na cidade cercada. Mas, enquanto Nab conseguira entrar, sair
era muito mais difícil, porque os prisioneiros federais eram
vigiados de perto. Empreender uma fuga bem sucedida, só numa
ocasião
excepcional, que não só não surgia, como era muito difícil
fazer surgir.
Todavia, o cerco continuava, e se havia prisioneiros
federais a querer fugir para se reunirem ao exército de
Grant, não era menos verdade que certos sitiados pretendiam
fazer o mesmo para se juntarem ao exército separatista...
Um deles era Jonathan Forster, sulista ferrenho, impedido de
sair da cidade pelos exércitos do Norte. O governador de.
Richmond,
há muito impedido de contactar com o general Lee, tinha o
maior interesse em fazer-lhe chegar notícias da situação da
cidade e pedir socorro. Foi então que esse tal Jonathan
Forster se ofereceu para subir num balão e tentar, desse
modo, atravessar as tropas sitiantes e alcançar o
acampamento separatista.
O governador autorizou a tentativa e o aeróstato foi fabricado.
Forster e os cinco homens que o deviam acompanhar
receberam armas e víveres para o que desse e viesse.
A partida foi marcada para a noite de 18 de Março. Com
vento médio de noroeste, os aeronautas contavam atingir o
quartel-general de Lee em poucas horas.
O pior é que o tempo mudou e o vento de noroeste não tardou
a transformar-se em furacão! A violência da tempestade era tal
,
que a partida de Forster foi adiada. O balão, esse, lá
estava na maior praça de Richmond, cheio e pronto a largar
mal o vento abrandasse. Mas as condições atmosféricas não
mudavam e a
impaciência crescia. Na manhã do dia 20, o furacão não só
não
amainara, como ainda redobrara de intensidade. Partir estava
fora de questão!
Nesse dia, o engenheiro Cyrus Smith foi abordado numa rua
de Richmond por um desconhecido. Era um marinheiro de nome
Pencroff, entre os trinta e cinco e os quarenta anos, com um
rosto simpático e olhar vivo. O tal Pencroff era um americano
do Norte, que viajara por todos os mares do Globo e a
propósito de quem se podia dizer que não havia aventura que
não lhe
tivesse acontecido. Ousado e empreendedor, pouca coisa seria
capaz de o apanhar de surpresa. Por questões de negócios,
Pencroff chegara a Richmond no princípio do ano, na companhia
de um rapaz de quinze anos, Harbert Brown, natural de
New Jersey, filho do seu capitão, um órfão que ele amava como
se fosse seu. Apanhado pelo cerco da cidade, a única coisa que
queria era fugir de qualquer maneira. Conhecendo a reputação
do engenheiro Smith e sabendo da sua impaciência pelo cativeiro,
não hesitou Pencroff em abordá-lo sem grandes rodeios:
- Senhor Smith, é verdade que pretende fugir?
- Quando? - respondeu prontamente o engenheiro, vendo
num relance a honestidade do homem que tinha à sua frente. E
acrescentou: - Mas quem é você?
Pencroff apresentou-se.
- Muito bem!- respondeu Cyrus Smith. - E como é que
vamos fugir.
- Naquele balão paspalho que está acolá sem préstimo e que
parece mesmo à nossa espera...
O marinheiro nem precisou de acabar a frase. O engenheiro
pegou-lhe no braço e levou-o para casa. Uma vez lá chegados,
Pencroff expôs o seu plano, que não podia ser mais simples. A
única coisa que arriscavam era a vida. O furacão estava no
auge, é verdade, mas um engenheiro hábil e audaz como Cyrus
Smith
saberia, certamente, conduzir o aeróstato...
Smith ouvia o marinheiro sem dizer palavra, de olhos a
brilhar. Ali estava a ocasião tão desejada e ele não era homem
para a deixar escapar. O plano era arriscado, logo exequível.
De noite, iludida a vigilância, aproximar-se-iam do balão,
entrariam na barquinha, cortariam as cordas e... pronto! Mas,
antes de continuarem, esclareceu:
- Não estou sozinho!
- E quantas pessoas quer levar? - perguntou o marinheiro.
- Duas: o meu amigo Spilett e Nab, o meu criado.
- Três, portanto - respondeu Pencroff. - Com o Harbert
e eu, cinco! Ora o balão devia levar seis...
- Não é preciso dizer mais nada. Vamos!
O jornalista, posto ao corrente do plano, aprovou-o sem
reservas.
- Então, até logo à noite! - disse Pencroff. - Para não
levantar suspeitas, ficamos por ali como simples curiosos. Às
dez horas, na praça! E queira Deus que a tempestade
não abrande até lá! - disse Cyrus Smith.
Pencroff despediu-se e foi ter com o jovem Harbert Brown. O
corajoso rapaz conhecia os planos do marinheiro e também
ele esperava, cheio de ansiedade, a resposta do engenheiro
Smith. Está visto que eram cinco homens determinados, aqueles
que se iam lançar na tormenta, em pleno furacão!
Pelas nove e meia, Smith e os companheiros esgueiraram-se
para a praça, mergulhada na mais completa escuridão, dado
que o vendaval apagara os candeeiros de gás. Nem o enorme
aeróstato se via, todo inclinado para o chão! Para além dos
sacos de areia que prendiam as cordas da rede, a barquinha estava
segura por um cabo muito forte que passava por uma argola
presa ao chão. Os cinco prisioneiros reuniram-se junto do balão;
ninguém os vira, nem eles se viam uns aos outros, tal era a
obscuridade.
Cyrus Smith, Gedeão Spilett, Nab e Harbert tomaram lugar
na barquinha, sem uma palavra, enquanto Pencroff se encarregava
de soltar os sacos de lastro, um a um. Pouco depois, o
marinheiro juntava-se aos companheiros.
O balão encontrava-se preso apenas pelo cabo e só faltava
que o engenheiro Smith desse a ordem de partida... Então, nesse
mesmo instante, um cão saltou para dentro da barquinha! Era
Top, o cão do engenheiro, que partira a corrente e correra atrás
do dono. Temendo excesso de peso, Smith ainda quis pôr fora
o animal, mas Pencroff decidiu:
- Ora! Mais um! - e desfez-se de mais dois sacos de lastro.
Seguidamente, soltou o cabo e o balão subiu todo inclinado,
acabando por desaparecer.
Entretanto, o furacão atingira uma fúria assustadora. A noite
passou sem que fosse possível descer em parte alguma, e,
quando o dia rompeu, não trouxe melhoras: a visibilidade era
nula por causa do nevoeiro densíssimo. Só cinco dias mais tarde,
por ocasião de uma ligeira aberta, é que os passageiros souberam
que o aeróstato estava a ser arrastado pelo vendaval sobre
o mar imenso!
Já sabemos o que se passou a seguir e como quatro homens,
dos cinco que tinham partido na noite de 20 de Março, foram
arremessados no dia 24 a uma costa deserta, a mais de doze mil
quilómetros do seu país'! Ora o passageiro que faltava, aquele
que os quatro sobreviventes queriam salvar a todo o custo, era
precisamente o seu chefe natural, o engenheiro Cyrus Smith!





' No dia 5 de Abril, Richmond caia em poder das tropas do general Crant,
depois de reprimida a revolta dos separatistas. O general Lee
bateu em retirada para oeste
e a causa da União Americana triunfou.

@CAPÍTULO II


O engenheiro tinha caído por entre as malhas da rede, levado
pelo golpe de mar. O cão também desaparecera; o fiel animal
jogara-se ao mar em socorro do dono.
- Em frente! - gritou o repórter do New York Herald.
E todos quatro, esquecendo o cansaço, começaram as buscas. O
pobre Nab chorava de raiva e desespero, crendo ter perdido
quem mais amava no mundo.
- Havemos de o encontrar, Nab! - disse Spilett.
- Vivo?
- Vivo, sim!
- E ele sabe nadar? - perguntou Pencroff.
- Sabe - respondeu Nab. - E, além do mais, o Top está
com ele...
Entretanto, começara a anoitecer e levantara-se neblina. Os
náufragos caminhavam para norte, ao longo da costa daquela
terra desconhecida, de cuja localização geográfica nem faziam
a menor ideia. O solo de areia e pedras era completamente
desprovido de vegetação. A todo o instante topavam com covas e
pedregulhos, espantando a cada passo bandos de aves ruidosas.
Alcatrazes e gaivotas, conforme alvitrou o marinheiro,
reconhecendo-lhes o piar agudo em despique com o rugido do
mar.
De tempos a tempos, os náufragos interrompiam a marcha
e chamavam em altos gritos, esperando ouvir alguma voz do
lado do mar. Mas nada! Então, o grupo retomava a caminhada,
inspeccionando os mais pequenos recantos da praia.
Vinte minutos mais tarde, estacaram à beira de uma escarpa
onde as ondas vinham bater com furor.
- É um promontório! - disse Pencroff. - Temos de voltar
para trás e seguir pela direita.
Chamaram novamente, os quatro em uníssono, mas ninguém
respondeu. A marcha recomeçou
de todos eles, quando, após terem percorrido mais
quatro quilómetros, toparam com a mesma escarpa de rochedos
escorregadios que avançava pelo mar dentro.
- Ora esta! Estamos numa ilhota! - exclamou Pencroff.
- E acontece que já lhe demos a volta completa.
O marinheiro estava certo. Os náufragos tinham sido arremessados
para uma pequena ilha com pouco mais de quatro
quilómetros de perímetro! Dar-se-ia o caso de aquele ilhéu
árido, apenas habitado por aves marinhas, fazer parte de um
arquipélago de alguma importância? Os olhos do marinheiro
,
habituados a perscrutar as sombras, julgavam distinguir a
oeste umas massas confusas, que podiam corresponder a outra
terra próxima... Porém, a escuridão não permitia qualquer
certeza. A única coisa a fazer era esperar pelo dia seguinte
e continuar a procurar o engenheiro.
As horas passaram lentamente. Os náufragos, enregelados
pelo frio intenso e cheios de inquietação, não conseguiam
descansar. Andavam de um lado para o outro, regressando a
todo o instante à ponta norte, ao local onde se desenrolara
a tragédia. Chamavam e voltavam a chamar e, a certa altura, um
grito de Nab pareceu produzir um eco. Harbert comentou o
facto com Pencroff e acrescentou:
- O eco pode significar que existe uma costa bastante
próxima, para oeste.
O marinheiro acenou afirmativamente. De resto, os seus
olhos nunca o enganavam: ali havia terra de certeza!
Perto da meia-noite, o céu começou a limpar, tornando
visíveis algumas estrelas. E, caso estivesse ali com os companheiros,
o engenheiro verificaria de imediato que aquelas estrelas e
constelações não eram as do hemisfério norte. Às
primeiras horas do dia 25 de Março, a neblina que se levantava
do mar não permitia enxergar para lá dos vinte metros, mas com
o avançar da manhã o nevoeiro dissipou-se e os primeiros raios
de sol iluminaram a superfície do ilhéu.
E era verdade! Havia terra à vista! A oeste, erguia-se uma
costa alta e abrupta, separada da ilhota por um canal de
corrente muito forte, com cerca de novecentos metros de
largura.
Sem pedir conselho a ninguém, a não ser ao seu coração, Nab
atirou-se à água, disposto a atravessar o canal a nado.
Pencroff bem o chamou, mas sem resultado, e Spilett já se
dispunha a segui-lo, quando o marinheiro o deteve:
- Espere aí e escute! Se encontrar o patrão, Nab chegará
para o socorrer. É que se nos metermos todos neste canal,
arriscamo-nos a ser arrastados para o largo pela corrente!
Ora, se não me engano, a maré está a baixar... Então, tenhamos
paciência, que pela baixa-mar talvez passemos a vau!
Entretanto, Nab lutava contra a corrente forte que o
obrigava a nadar num sentido oblíquo ao ponto de partida. Meia
hora
levou ele a atravessar o canal e a chegar à margem oposta. A
costa formava nesse ponto uma ampla baía, cortada a sul por um
promontório de rochas graníticas, árido e selvagem; para
norte, ao contrário, a baía como que arredondava no sentido
sudoeste-nordeste, terminando num cabo estreito. À direita,
verdejava um maciço de vegetação e ao fundo, no sentido
noroeste, para lá do planalto que corria ao longo da costa, um
cume coberto de neve resplandecia ao sol. Porém, seria impossível
dizer, ainda, se aquela terra era uma ilha ou um
continente, embora um geólogo pudesse detectar sem dificuldade
a sua
origem vulcânica.
Na ilhota, Gedeão Spilett, Pencroff e Harbert tinham seguido
as braçadas vigorosas do companheiro e observavam agora
atentamente a terra que se erguia diante deles, onde,
provavelmente, iriam viver por muitos anos, talvez até
morrer, caso ficasse afastada da rota dos navios.
Ao cabo de mais três horas de espera, por volta das dez da
manhã, a maré vazia deixava finalmente a descoberto bancos de
areia e braços de água pouco profunda. A travessia já não
apresentava, pois, qualquer dificuldade, e Spilett e os
companheiros, depois de se despirem e colocarem as trouxas
da roupa à cabeça, atingiram facilmente o outro lado. Depois
de se
haverem secado ao sol e vestido, trataram de decidir o que
iriam fazer. Spilett tomaria a direcção seguida pelo negro,
enquanto Pencroff e o jovem Harbert ficavam ali na praia,
encarregados de preparar o acampamento e de encontrar algum
alimento mais sólido do que miolo de conchinhas.
- Muito bem! - disse o marinheiro ao rapaz, logo que
ficaram sozinhos. - O que é preciso é método! Estamos
cansados e temos frio e fome. Então o que há a fazer é
encontrar um abrigo, lume e comida. Lenha há na floresta e
os ninhos têm ovos, portanto, só nos falta arranjar casa!
- Eu procuro uma gruta nas rochas. Sempre há-de haver
alguma - respondeu Harbert.
- É assim mesmo! Vamos lá!
E os dois puseram-se a caminho praia fora, ao longo da
falésia. Iam para sul, porque Pencroff tinha reparado que
naquela direcção os rochedos faziam uma reentrância, o que
podia ser a foz de algum rio ou ribeiro. Ora não só era
bastante conveniente arranjar abrigo junto de água potável,
como havia a possibilidade de a corrente ter empurrado Cyrus
Smith para aquelas bandas. Um pouco mais adiante, graças aos
conhecimentos
de Harbert em matéria de história natural, fizeram uma
descoberta deveras oportuna! Agarradas às rochas, pendiam
colónias de litodontes, e estes moluscos bivalves, parecidos
com os mexilhões, constituíram um autêntico maná caído do céu.
Saciada a fome, pelo menos em parte, começou a sede a
atormentar os dois amigos, acrescida agora pelo sabor apimentado
dos moluscos...
Precisavam de encontrar água doce... e depressa! A reentrância
da costa distava apenas uns duzentos passos e, para grande
contentamento de Pencroff e Harbert, o pressentimento do
marinheiro confirmava-se; naquele sítio, a muralha de granito
fendia-se, formando uma pequena enseada onde desembocava
um rio de água límpida. Para montante, a cerca de uma centena
de metros, o curso de água doce descrevia uma curva antes de
desaparecer num emaranhado de vegetação.
- Aqui temos água e acolá madeira! Olha, Harbert, agora
só falta a casa! - exclamou Pencroff.
Porém, de grutas nem sinal nas paredes de granito lisas e
verticais. No entanto, mais para cima, junto à foz do rio e já
fora da linha da maré, havia um amontoado de pedregulhos
enormes, obra de alguma derrocada. Pencroff e Harbert
meteram-se por entre os penedos, descobrindo um autêntico
labirinto de corre- dores com o chão de areia e iluminados
pela luz do dia entrando pelos intervalos entre os blocos de
pedra.
- Ora aqui está o que precisávamos! - disse Pencroff.
- E, se acaso voltarmos a ver o senhor Smith ele saberá tirar
bom proveito deste sítio.
- Claro que voltamos a vê-lo, Pencroff! - exclamou
Harbert. - Quando ele voltar, há-de encontrar aqui um belo
abrigo... Para começar, precisamos de uma lareira e o melhor
sítio é o corredor da esquerda, que até tem uma abertura para
o fumo!
- Realmente, chaminés é que não falta - respondeu o
marinheiro.
E logo ali deram o nome de Chaminés à casa provisória.
Depois, Pencroff e Harbert foram em busca de mantimentos e
lenha, subindo ao longo da margem esquerda do rio. Depois da
curva, começava uma densa mata de arbustos odoríferos e
árvores magníficas, que Harbert imediatamente classificou como
sendo da família das coníferas.
- Bem, meu rapaz - disse o marinheiro -, posso não
saber o nome destas árvores, mas para mim pertencem à espécie
de madeira para queimar, que é a única que por ora nos
convém!
Então, toca a fazer provisão! - respondeu Harbert.
Apanharam toda a lenha que puderam e ataram-na em
molhos. E transportar aquela carga toda para as Chaminés?
Pencroff não tardou a arranjar solução! Construíram sem demora
uma jangada, sobre a qual empilharam os lenhos; agora era
só esperar a maré vazante que a corrente do rio se
encarregaria ,
do transporte até à foz. Enquanto isso, os dois amigos
resolveram ocupar o tempo a explorar os locais. Subiram ao
planalto superior, donde se abarcava o vasto oceano e a
extensa praia aonde tinham ido parar.
- Algo me diz que um homem tão forte como o senhor
Cyrus não se afogava assim, sem mais nem menos... Deve ter
conseguido alcançar a praia, não achas, Pencroff?
- Sem dúvida, Harbert, que o nosso engenheiro é homem
para se sair bem... Mas será que estamos numa ilha?murmurou
o marinheiro.
- Em todo o caso, parece ser bastante grande - respondeu o
rapaz.
- Uma ilha, por maior que seja, é sempre uma ilha - disse
Pencroff.
Uma coisa, porém, era certa: ilha ou continente, aquela
terra desconhecida era fértil e agradável.
Já de regresso, Harbert, que saltava pelas rochas à beira do
penhasco, assustou um bando de aves que levantou voo.
- Olha, pombos-bravos... ou pombos-da-rocha, como se
quiser chamar! - exclamou o jovem naturalista.São
excelentes para comer e, sendo assim, os ovos também devem
ser!
- Então, nem lhes vamos dar tempo de chocar!disse
logo o marinheiro.
Depressa encontraram os ninhos nas cavidades das rochas e
Pencroff recolheu várias dúzias de ovos de pombo no lenço que
trazia. Com a ceia assegurada, empreenderam a descida. Pela
uma da tarde, chegaram à curva do rio onde tinham deixado a
jangada amarrada.
A maré começava a descer, mas Pencroff não tinha intenção
de deixar o precioso carregamento ir pela corrente abaixo de
qualquer maneira. Com trepadeiras secas teceu uma corda
comprida e resistente que atou à popa da jangada, segurando a
outra ponta na mão. Pelo seu lado, Harbert, munido de uma
longa vara, mantinha a carga a meio da torrente. O processo
resultou em cheio e, cerca de duas horas depois, chegavam
perto das Chaminés com a carga seca e intacta.


@CAPÍTULO III


Mal descarregaram a lenha da jangada, o primeiro cuidado de
Pencroff foi tornar as Chaminés mais habitáveis e acolhedoras.
Havia que vedar as correntes de ar, e o marinheiro pôs-se
a encher as fendas entre os pedregulhos com areia, pedras,
terra molhada e ramos entrelaçados. As Chaminés ficaram,
assim,
divididas em quatro compartimentos abrigados do vento e da
humidade, com chão de areia fina e seca e altura suficiente
para um homem estar de pé, pelo menos na divisão do meio, que
era a maior.
- Agora os nossos amigos já podem voltar, que a casa está
pronta para os receber! - disse Pencroff, todo satisfeito.
Faltava, porém, tratar da lareira e preparar a refeição. O
primeiro corredor da esquerda foi o escolhido, por ter um bom
escoamento para o fumo. O marinheiro assentou lajes de pedra
no chão, sobre as quais colocou alguns toros de madeira; a
restante provisão de lenha foi depois cuidadosamente arrumada
num dos compartimentos do abrigo. De repente, o jovem
Harbert perguntou a Pencroff se tinha fósforos.
- Pois claro! Felizmente que tenho! - respondeu este.
- Sem fósforos estávamos bem arranjados!
E deitou a mão ao colete, à procura da caixa de fósforos de
que nunca se separava, como fumador que era. Mas da caixinha
nem sinal! Procurou e tornou a procurar em todos os bolsos,
sem qualquer resultado...
- Não a terias deitado fora, Pencroff, quando estávamos
na barquinha? - perguntou o rapaz.
- Isso é que era bom! Nunca... mas com tantos piparotes
que levámos, pode ter caído. Olha, o meu cachimbo também se
foi!
O marinheiro estava desesperado. Ajudado por Harbert, pôs-se
a procurar a pequena caixa de cobre por todo o lado;
esquadrinharam a areia palmo a palmo, viram entre os seixos,
voltaram ao sítio onde haviam atravessado o canal, à curva do
rio, ao planalto... tudo em vão! O desânimo dos dois não podia
ser maior.
Eram umas seis horas e o sol começava a desaparecer,
quando, finalmente, avistaram Nab e Spilett. Regressavam
sozinhos! Conforme contaram, do engenheiro Smith nem um
sinal, nem uma pegada; do cão tão-pouco.
O repórter, esgotado e morto de fome, mal conseguia falar;
quanto a Nab, de olhos vermelhos de tanto chorar, era a
verdadeira imagem do desespero.
Harbert apressou-se a oferecer o único alimento de que
dispunham, isto é, uma mão-cheia de litodontes, que tinha
apanhado para o caso de não poderem acender o lume. Depois,
levou os companheiros exaustos para o interior das Chaminés.
Mais calmo, Spilett estendeu-se no chão. Harbert lembrou-se de
lhe perguntar se não teria fósforos.
- Tinha, pois, mas deitei tudo fora... - respondeu o
jornalista.
- Senhor Spilett, veja lá bem, pode ter ficado algum. A
nós bastava-nos um...
E, de facto, havia um fósforo caído no forro do colete! De
repente, aquele pauzinho de madeira, tão vulgar, adquiria uma
importância vital para os quatro náufragos. Gedeão Spilett
forneceu, ainda, uma folha de papel do seu bloco de apontamentos
e Harbert foi encarregado de acender o fogo. Servindo-se
de uma pedra áspera, riscou o fósforo com mil cautelas. A
chamazinha ateou o papel e logo se propagou aos ramos secos.
Daí a instantes, já um belo lume crepitava, avivado pelo sopro
do marinheiro, espalhando um calorzinho agradável por todo o
compartimento. Entretanto, o fumo saía na perfeição pela
abertura das pedras. Pencroff tomou, então, a seu cargo a
preparação da "ceia", isto é, ovos de pombo-bravo cozidos nas brasas.
E assim se passou o dia 25 de Março. Lá fora, a noite caíra
por completo. Vencido pela fadiga, Spilett adormeceu estendido
a um canto e o jovem Harbert não demorou a seguir-lhe
o exemplo. Quanto ao marinheiro, ficou de vigia à lareira para
que não se apagasse. Só o inconsolável Nab não logrou pregar
olho e passou a noite a rondar lá fora, chamando pelo patrão.
No dia seguinte, os náufragos do ar avaliaram a situação em
que se encontravam, começando pelo inventário do que possuíam;
e era bem pouco, na verdade. Todos os utensílios e
haveres tinham sido atirados ao mar. As únicas coisas que
tinham resumiam-se às roupas que traziam vestidas, ao bloco de
notas e ao relógio de Gedeão Spilett! Nem uma arma, nem uma
simples faca! Quanto ao resto, podiam contar com um abrigo
provisório, lume, água potável, ovos e moluscos.
Depois de outra refeição de ovos cozidos, desta feita temperados
com sal, que Harbert descobriu nuns buracos das rochas,
ficou decidido que Spilett tomasse conta do fogo, enquanto
o marinheiro e o rapaz voltavam à floresta para caçar. Quanto
a Nab, há muito que retomara as buscas ao longo da costa.
Os dois amigos embrenharam-se na vegetação, admirando
uma vez mais o belo porte dos pinheiros, abetos e outras árvores
afins. Pássaros cantavam e esvoaçavam pelas ramagens, porém,
fora do alcance dos caçadores. Estes avançavam a custo por
entre a erva alta, armados de varapaus, até que, ao cabo de uma
hora, desembocaram numa zona pantanosa. Harbert notou a
presença de uma ave de bico comprido e pontiagudo, muito
parecida com o pica-peixe.
- Deve ser um jacamar - disse o rapaz.
- Estava na hora de provar jacamar assado! - exclamou Pencroff.
Mas a pedra, atirada com toda a força pelo rapaz, não
acertou no alvo e a ave desapareceu num abrir e fechar de olhos.
De repente, surgiu um bando de aves de pequeno porte e
bonita plumagem, que Harbert imediatamente reconheceu como
sendo curucuis, aves de sabor delicado e muito fáceis de
apanhar no solo. Foram-se aproximando escondidos na erva e,
quando chegaram perto dos curucuis, bastou saltar-lhes em cima
com os paus, matando logo ali umas dezenas.
- Uma caça de acordo com os caçadores aqui presentes!
- riu-se Pencroff. - Até à mão se apanhavam!
Depois de o marinheiro ter enfiado os curucuis numa vara,
continuaram a exploração. Subitamente, ia a tarde em meio,
ouviram ressoar pela floresta uma espécie de trombeta! Os
autores da estranha fanfarra eram, nada mais, nada menos, que
uns quantos tetrazes, aves galináceas de carne extremamente
saborosa. Contudo, todas as tentativas para lhes chegar perto
foram inúteis.
- Está visto que não temos outro remédio, senão apanhá-los à linha! - exclamou Pencroff.
- Como se fossem peixes? - espantou-se o rapaz.
- Como se fossem peixes - respondeu o marinheiro.
Estava a falar a sério. As lianas forneceram as linhas e os
espinhos dos arbustos os anzóis; alguns vermes serviriam de
isco. Depois destes preparativos concluídos, aproveitando a
fuga assustada dos tetrazes, chegaram-se aos ninhos e dispuseram
os iscos a toda a volta. Escondidos atrás de uma árvore,
Pencroff e Harbert limitaram-se a esperar, com as linhas bem
seguras na mão. Como calculavam, as aves acabaram por
regressar aos ninhos e não demorou muito que três delas
mordessem os anzóis e ficassem presas.
- Viva! - gritou o marinheiro, correndo a apanhar a caça.
Harbert bateu palmas. Era a primeira vez que via apanhar
pássaros à linha, mas o amigo, tomado de modéstia, confessou
que a invenção não era dele.
Entretanto, a tarde começara a declinar e empreenderam o
caminho de regresso a casa guiados pelo curso do rio.

@CAPÍTULO IV

Gedeão Spilett estava sentado na praia, imóvel, olhando o mar. O vento soprava forte e o aspecto do céu só confirmava o vendaval que certamente não tardaria. Pencroff
foi ter com ele:
- Parece que vamos ter uma noite dos diabos, senhor Spilett.
- Estava aqui a pensar, Pencroff, que não deixa de ser muito estranho que
os corpos de Cyrus Smith e do cão não
tenham dado à costa..., caso tenham morrido, claro!
- Pode não ser... O mar estava bravo e, além disso, as
correntes podem tê-los levado para longe - respondeu o marinheiro.
- Com todo o respeito pela sua experiência, Pencroff, acho
que o desaparecimento de Cyrus e do Top, vivos ou mortos, não
tem explicação - volveu o jornalista.
- Quem me dera pensar como o senhor, mas, infelizmente,
estou convencido de que morreram afogados.
E com estas palavras, Pencroff voltou às Chaminés para
preparar o jantar. Depenou dois tetrazes, enfiou-os num pau e
pô-los a assar ao lume.
Pelas oito horas, Nab ainda não tinha voltado e os três
companheiros jantaram em silêncio, presos da maior inquietação.
Que teria acontecido ao jovem negro? Talvez estivesse
abrigado em qualquer sítio, esperando o amanhecer... Com
efeito, lá fora na noite escura, a tempestade atingia
proporções formidáveis.
Seriam umas duas horas da manhã, quando o marinheiro foi
despertado por uma sacudidela vigorosa.
- Escute, Pencroff! Escute! - disse Gedeão Spilett.
- Mas o que é? Que aconteceu? Só ouço o vento!respondeu
o marinheiro.
- Não, não! Ia jurar que era o ladrar de um cão!exclamou
Spilett.
- Um cão? Não é possível!
Puseram-se os dois à escuta e numa acalmia do vento
ouviram-se, de facto, latidos ao longe.
- É verdade, é verdade! - gritou Pencroff.
- É o Top! - gritou, por sua vez, Harbert, que também
acordara.
Tentaram sair para o exterior das Chaminés, mas a ventania
empurrava-os para trás com tanta força, que a única
alternativa foi acenar da entrada com um archote aceso. Os
latidos soavam cada vez mais perto. Subitamente, um cão
precipitou-se para o interior do primeiro corredor do abrigo.
Era o cão do engenheiro Smith, mas infelizmente vinha só. Nem
o dono nem Nab
estavam com ele!
Harbert abraçou-se ao cão, com a esperança renascida.
Havia, contudo, um detalhe que os intrigava: o animal não
apresentava quaisquer sinais de fadiga, nem estava sujo de
areia ou lodo...
- Se o cão apareceu, o dono também há-de aparecer!
- disse o repórter.
- Vamos embora! O Top nos guiará! - exclamou Harbert.
Antes de saírem, Pencroff teve o cuidado de alimentar a
lareira com mais lenha. A tempestade estava no auge e não se
via um palmo diante do nariz. Seguiram, pois, em fila atrás do
cão, confiando apenas no instinto do inteligente animal.
Quando o dia nasceu, pelas seis da manhã, encontravam-se
a cerca de nove quilómetros das Chaminés, caminhando por
uma praia plana orlada de muitos rochedos. Nessa altura, Top
começou a dar mostras de agitação, correndo para trás e para
diante, como que atraindo o marinheiro para o interior, na
direcção de uma zona de dunas eriçadas de cardos. Apressaram-se
a seguir o cão e, cinco minutos mais tarde, Top parou
diante de uma espécie de gruta escavada na areia e desatou a
ladrar. Spilett, Pencroff e Harbert entraram e o que viram
deixou- -os estarrecidos. Nab estava de joelhos, inclinado
sobre um corpo... o corpo do engenheiro Cyrus Smith! O pobre negro
levantou-se pesadamente, desfigurado pelo cansaço e pela dor;
para ele, o patrão estava morto. Spilett ajoelhou-se
rapidamente e encostou o ouvido ao peito do engenheiro.
- Está vivo! - gritou ele, após alguns segundos de atenta escuta.
Harbert saiu a correr, voltando pouco depois com o lenço
encharcado de água de um regato ali próximo. O repórter
humedeceu os lábios de Cyrus Smith, dizendo:
- Vamos salvá-lo!
Em seguida, despiram o corpo inanimado, friccionando-o
com quanta força tinham. O engenheiro, reaquecido pela massagem,
mexeu ligeiramente os braços, enquanto a respiração
retomava um ritmo mais regular.
Com uma alma nova, Nab contou, então, o que lhe acontecera.
No dia anterior, por volta das cinco da tarde,
descobrira pegadas na praia que continuavam na direcção das
dunas; já
seguia as pegadas por umas boas centenas de metros, quando Top
lhe apareceu ao caminho e o conduziu até ao dono. Vendo o
corpo inanimado, o negro julgara-o morto, mas, mesmo assim,
resolvera mandar o cão chamar os companheiros, apontando
para sul e repetindo o nome do Sr. Spilett, por ser mais
familiar. Agora o que os espantava a todos era o facto de
Cyrus Smith não estar ferido, nem sequer apresentar arranhões,
o que seria o mais natural depois de ter sido arremessado pelas
ondas a uma costa tão rochosa como aquela; e como é que viera
parar a esta gruta perdida no meio das dunas, a mais de um
quilómetro da praia?
Mas as explicações podiam esperar. De momento, o mais
urgente era salvar a vida do amigo e, para isso, precisavam de
o transportar tão depressa quanto possível para as Chaminés,
onde teria calor e alimento. Entretanto, Cyrus Smith abrira
os olhos e dava sinal de reconhecer o seu fiel Nab e os
amigos. Fazendo um enorme esforço, conseguiu balbuciar as
seguintes palavras:
- Ilha ou continente?
- Ora, senhor Smith, o que importa é que esteja vivo! Ilha
ou continente? Isso logo se vê! - exclamou o marinheiro.
O engenheiro parecia recuperar da prostração em que o
haviam encontrado e Spilett, vendo-o melhor, fez o relato do
que lhes acontecera desde a queda do balão à descoberta das
Chaminés, sem omitir as buscas e a dedicação de Nab, assim
como o papel determinante do cão, que os fora chamar.
Quer dizer, então, que não me encontraram caído na
praia?- perguntou Cyrus Smith, ainda com a voz enfraquecida.
- Não, Cyrus, você já estava aqui nesta gruta - respondeu
o repórter.
- E este lugar a que distância fica dos recifes?perguntou
Smith.
- A um quilómetro, mais ou menos - informou Pencroff.
- E se o senhor está espantado, olhe que nós não ficámos
menos por tê-lo encontrado tão longe da praia!
- Sim, sim, é muito estranho... - murmurou o engenheiro.
- E agora se nos contasse também o que lhe aconteceu?
- retomou o marinheiro.
Mas Cyrus Smith de pouco se lembrava. Mal caíra ao mar,
apercebera-se da presença do cão junto dele; a costa estava a
uns oitocentos metros e começara a nadar com quanta força
tinha, lutando contra as vagas, quando, de repente, uma
corrente fortíssima os arrastou para norte. Depois de uma meia
hora de esforços sobre-humanos, com Top a agarrá-lo pelas roupas,
sentira-se perder as forças e desfalecer... A seguir, não
conseguia recordar-se de mais nada!
- Mas, pelos vistos, veio dar à costa e foi capaz de chegar
a esta gruta! - exclamou o marinheiro. - Nab viu as suas
pegadas na areia!
- Sim... pode ser... disse o engenheiro, hesitante.E
vocês viram algum sinal de presença humana por estas
paragens?
- Nem um traço! - respondeu Spilett. - De resto, se
alguém o tivesse salvo e trazido até aqui, por que é que
depois o havia de abandonar?
- Sim, você tem razão, meu caro Spilett. Ouve cá, Nab,
as tais pegadas ainda lá estão?
- Sim, patrão, ainda há algumas no outro lado da duna,
num sítio abrigado do vento. As outras, o temporal apagou-as.
- Pencroff, faça-me um favor! - pediu Cyrus Smith.Leve
os meus sapatos e veja se as pegadas coincidem.
Instantes depois, o marinheiro estava de volta. Não havia
qualquer dúvida! Os sapatos do engenheiro correspondiam
exactamente às pegadas marcadas na areia!
- Ah! Então devo ter caminhado como um sonâmbulo, sem
qualquer consciência do que fazia... Foi o Top que me arrancou
à fúria das ondas e que, com o seu instinto, me guiou até
aqui! Anda cá, meu bravo cão!
Chegara o momento de transportar Cyrus Smith para as
Chaminés. Estenderam o amigo, que mal se tinha de pé, numa
padiola improvisada com troncos e ramos e puseram-se a
caminho. Pelas cinco e meia da tarde, chegaram diante do
abrigo. O engenheiro adormecera profundamente, e nem acordou
quando Pencroff e Nab pousaram a padiola no chão.
A cena com que depararam era inquietante! O temporal da
véspera modificara por completo o aspecto do local. O mar
tinha subido muito e a força das ondas arrastara a areia,
deixando muitos rochedos a descoberto e a praia juncada de algas e
limos... Temendo o pior, Pencroff precipitou-se para o
interior das Chaminés. Os seus receios confirmavam-se! A maré
entrara pelos corredores destruindo tudo e, pior ainda,
apagando o fogo!

@CAPÍTULO V

Dos companheiros, apenas Harbert parecia partilhar da
consternação do marinheiro. Nab estava demasiado feliz por
voltar a ver o patrão e Gedeão Spilett, talvez pela mesma
razão, resolveu não dar muita importância aos estragos:
- Ora, meu caro Pencroff, isso é o menos! Se quer saber,
tanto me faz!
- Mas, senhor Spilett, ficámos sem o lume e sem nada para o
tornar a acender!
- E não temos aqui o nosso engenheiro? Deixe que ele há-de
arranjar maneira de fazer fogo.
Cyrus Smith continuava profundamente adormecido. Os
amigos levaram-no para o corredor central e deitaram-no numa
cama de algas e limos quase secos, tapando-o com as jaquetas e
os casacos. É que, com a chegada da noite, o vento virara a
nordeste e a temperatura descera consideravelmente. Para
piorar a situação, a fúria do mar tinha levado a maior parte
do entulho que vedava as aberturas entre os pedregulhos e,
agora, havia correntes de ar por todo o lado.
As Chaminés estavam deveras desconfortáveis e a ceia,
reduzida a litodontes, também não ajudou muito. Pela noite
fora, com o frio a apertar, Pencroff não se cansava de
lamentar a perda da fogueira.
No dia seguinte, 28 de Março, pelas oito da manhã, o
engenheiro Smith acordou com a mesma preocupação da véspera,
a sua ideia fixa:
- Ilha ou continente?
- Quanto a isso nada sabemos, senhor Smith - respondeu
Pencroff.
- Como assim? Ainda não sabem?
- Mas vamos saber, mal o senhor nos possa servir de guia
- acrescentou o marinheiro.
- Julgo já estar em condições para tal! - disse o engenheiro,
pondo-se de pé. - Mais do que outra coisa, era a exaustão
que me ia matando... Se puder comer alguma coisa, fico como
novo. Têm lume, não é verdade?
- Ah! senhor Cyrus, infelizmente não temos..., ou melhor, já
não temos!
E o marinheiro contou como tinham conseguido acender
uma fogueira e como a tempestade do dia anterior a apagara.
- Ora bem - exclamou o engenheiro -, se não há
fósforos, fazemo-los nós!
- Fósforos químicos? - espantou-se Pencroff.
- Exactamente! '
- Como vê, não é assim tão difícil! - comentou o
jornalista, dando uma palmada no ombro do marinheiro.
Saíram das Chaminés. As condições atmosféricas haviam
melhorado e o Sol levantava-se no horizonte. Cyrus Smith
sentou-se numa rocha, observando atentamente o que o rodeava.
Harbert levou-lhe uma mão-cheia de mexilhões e sargaços:
- É o que temos, senhor Cyrus!
- Obrigado, meu rapaz - agradeceu o engenheiro -, por
agora, serve.
Saciada a fome na medida do possível, o engenheiro voltou ao
assunto que, naquele momento, mais o preocupava:
- Bem, meus amigos, amanhã ficaremos a saber se estamos
num continente ou numa ilha. Até lá, não podemos fazer mais
nada!
- Então o lume? - perguntou Pencroff, que também tinha
a sua ideia fixa.
- Lá iremos, lá iremos! - respondeu Cyrus Smith.Ontem,
quando me trouxeram para aqui, pareceu-me avistar a
oeste uma montanha...
- Exactamente! E bastante alta, por sinal - informou
Gedeão Spilett.
- Amanhã, vamos subi-la até ao cume e veremos se esta
terra é ilha ou continente - decidiu o engenheiro.
- Em qualquer dos casos, Cyrus, você faz alguma ideia
onde é que fica este sítio? - quis saber o jornalista.
- Não posso saber ao certo, mas tudo indica que o furacão
nos atirou para uma costa do oceano Pacífico. Mas se, pelo
contrário, viemos dar a uma ilha deserta de algum arquipélago
da Polinésia, então é melhor que nos preparemos para ficar
aqui o resto das nossas vidas.
- O quê, meu caro Cyrus? Quer dizer, para sempre?inquietou-se
o repórter.
- Se tivermos a pouca sorte de isto ser uma ilha e, ainda
por cima, afastada das rotas dos navios, é o que temos de mais
certo! - corroborou o marinheiro.
- Isso é o que vamos descobrir, quando escalarmos a
montanha até lá acima - concluiu o engenheiro Smith.
Seguidamente, combinaram entre si as tarefas daquele dia. O
engenheiro e o repórter iam ficar nas imediações das Chaminés
a explorar a praia e o planalto, enquanto os outros três
voltavam ao bosque do Jacamar - assim haviam baptizado a
mata - a fim de renovar as provisões de lenha e carne fresca.
Desta vez, contavam com a ajuda de Top na caçada. À partida, o
marinheiro ia resmungando, sempre agarrado à sua ideia:
- Pois sim, pois sim, vamos caçar... E depois? Como é que
vamos assar o que apanharmos? Se houver lume, quando cá
chegarmos, só se foi um raio que o acendeu!
Todavia, ao voltarem ao acampamento, pelas duas da tarde,
carregando um corpulento exemplar de uma espécie de porco
selvagem, tiveram a surpresa de avistar uma coluna de fumo que
se elevava do lado de lá dos rochedos.
- Viva! Viva! Harbert, Nab, estão a ver aquilo ali? - gritou
o marinheiro, fora de si.
Instantes depois, os três caçadores, completamente pasmados,
olhavam ora para o engenheiro e para o repórter, ora para
a fogueira crepitante, sem saber que dizer.
- Então, meu caro, o que é que eu lhe dizia? - exclamou
Spilett. - Ora aqui tem um belo lume para assar esse magnífico
animal que aí trazem!
- Mas quem o acendeu? - perguntou Pencroff.
- O sol!
- Quer dizer que o senhor Cyrus tinha uma lupa, não é
verdade? - perguntou Harbert.
- Não, meu rapaz, não tinha, mas fiz - respondeu aquele.
E explicou como, sobrepondo os vidros do relógio dele e do
de Spilett, conseguira improvisar uma lente capaz de
concentrar os raios solares e de provocar a combustão de um
pedaço de
musgo seco.
O marinheiro ficou sem palavras, abismado com aquilo;
mirava alternadamente o pequeno objecto "mágico" e o seu
autor, cada vez mais convencido de que o engenheiro pertencia
a uma espécie humana superior, próxima dos deuses. Finalmente,
conseguiu articular:
- Senhor Spilett, não se esqueça de tomar nota disto no seu
caderninho!
- Já tomei - respondeu o repórter.
O regresso do bom tempo, a bela fogueira e a ceia de porco-do-mato
assado no espeto, rematada com pinhões e sargaços,
animaram os cinco companheiros, que, nessa noite, dormiram um
sono profundo e descansado.
Na manhã do dia seguinte, 29 de Março, fizeram-se os
preparativos para a expedição. Pencroff avivou a fogueira e
guardou um pouco de trapo queimado para servir de isca, assim
como os restos do porco assado para a refeição daquela noite.
Os relógios de Cyrus Smith e de Gedeão Spilett, novamente
com os respectivos vidros, marcavam sete e meia, quando os
nossos exploradores, munidos de varas à laia de cajados,
deixaram as Chaminés em direcção à montanha.
A travessia da floresta foi o caminho escolhido por ser o
mais directo, e, pelas dez horas, deixavam para trás o denso
arvoredo. A montanha erguia-se diante deles, composta por
dois cones sobrepostos e contrafortes com uma configuração
tão estranha que, desde logo, chamou a atenção do grupo. Com
efeito, a elevação parecia apoiada numa imensa garra com as enormes
unhas cravadas no solo, entre as quais se avistavam vales
verdejantes. No topo do primeiro cone, a uns mil metros de
altitude, assentava um segundo cone, como se fosse uma espécie
de boina caprichosamente colocada à banda... Ora era justamente até ao cimo
do segundo cone que os nossos amigos queriam chegar.
O engenheiro Smith confirmou a origem vulcânica da região
e decidiu que a escalada se fizesse por um dos contrafortes.
Seguiam em fila, com Harbert e Nab na dianteira, logo seguidos
por Smith e Spilett; Pencroff fechava a marcha. Pelo caminho,
notaram a presença de muitas espécies de animais, até que, a
dada altura, toparam com uns, de chifres arqueados para trás,
que o marinheiro se apressou a nomear:
- Olha, olha, carneiros!
Todavia, não se tratava de carneiros comuns, mas sim de
cabras-monteses, uma espécie muito vulgar em zonas montanhosas
e de clima temperado, conforme explicou Harbert.
- Mas têm pernas e costeletas boas para assar? - perguntou
Pencroff.
- Claro que sim! - respondeu o rapaz.
- Pois então, para mim são carneiros! - rematou o
marinheiro, despedindo-se dos animais com um "até à vista!"
tão cómico, que os outros não contiveram o riso.
A subida continuou, cada vez mais penosa, devido à fadiga e
ao terreno, que se ia tornando mais íngreme e agreste. Àquela
altitude, a vegetação já escasseava, constando apenas de
alguns pinheiros dispersos e retorcidos pelos ventos.
Pelas seis da tarde, estavam a uns escassos duzentos metros
do planalto superior do primeiro cone; porém, a noite aproximava-se
e urgia providenciar um acampamento. Escolheram um
local abrigado entre uns penhascos e Pencroff e Nab encarregaram-se
de acender uma fogueira com pederneira e o trapo
queimado a servir de isca. Em breve, ardia um lume de tojos
secos apenas destinado a aquecer o grupo de exploradores, já
que a ceia estava assegurada com os restos do assado da
véspera e uma boa quantidade de pinhões.
Cyrus Smith teve, então, a ideia de ir explorar o planalto
circular onde assentava o cone superior da montanha. Na
verdade, o engenheiro não conseguia descansar, enquanto não
esclarecesse uma dúvida que muito o preocupava, isto é, se
seria possível escalar o segundo cone ou, pelo menos,
contorná-lo
pela base; se nem uma coisa, nem outra fosse praticável, toda
a vista da parte ocidental daquela terra lhes ficaria vedada,
gorando-se assim, pelo menos em parte, a finalidade da expedição.
O jovem Harbert dispôs-se a acompanhá-lo, enquanto o
marinheiro e o negro tratavam das instalações para a dormida e
o repórter tomava nota dos acontecimentos do dia.
Apesar da semi-obscuridade e do cansaço, escalaram rapidamente
os últimos metros que os separavam do topo do
primeiro cone, deparando-se com a enorme cratera de um
vulcão já extinto. A lava solidificada formava saliências caprichosas
no seu interior, assim como uma espécie de escadaria
natural a facilitar a descida e a subida do outro lado.
Sem hesitar, o engenheiro e o rapaz desceram pela cratera e
galgaram os cerca de trezentos metros que os separavam do
topo do cone superior. A escuridão era agora quase completa. Como
seria aquela terra desconhecida? Estaria completamente rodeada
pelo mar ou unida a um continente do Pacífico? Justamente
para o lado oeste, o céu carregado de nuvens adensava ainda
mais as trevas, não deixando vislumbrar se, ali, havia terra
ou mar...
Mas, subitamente, as nuvens abriram-se num rasgão e a Lua,
em quarto crescente, surgiu perto da linha do horizonte,
reflectindo o seu brilho numa superfície... líquida!
Cyrus Smith agarrou com força a mão do rapaz e declarou gravemente:
- É uma ilha!


@CAPÍTULO VI


Meia hora mais tarde, Cyrus Smith e Harbert estavam de
volta ao acampamento. O engenheiro limitou-se a informar os
companheiros de que a terra aonde o acaso os lançara,era uma
ilha. Depois, cada um se acomodou conforme pôde para dormir.
No dia seguinte, 30 de Março, pelas sete da manhã, iniciaram a
subida ao topo do vulcão, para observarem mais atentamente
aquela ilha que, provavelmente, os manteria prisioneiros para
toda a vida. Ninguém mostrava preocupação de maior por esse
facto, confiantes que se sentiam em si próprios e, sobretudo,
nas capacidades do engenheiro Smith. Ele saberia como arrancar
da terra selvagem tudo o que fosse necessário à subsistência de
todos eles.
O tempo estava magnífico e a escalada até ao topo fez-se sem
quaisquer dificuldades. Atingido o cimo do segundo cone,
Smith e os companheiros quedaram-se silenciosos, de olhos
postos no imenso oceano que os rodeava... Spilett quebrou o
silêncio com uma pergunta:
- Qual será o tamanho desta ilha?
- Meus amigos, creio não estar muito enganado se disser
que o perímetro de costa não excede os cento e sessenta
quilómetros - respondeu Cyrus Smith, depois de observar
cuidadosamente a orla marítima, extremamente recortada, sem
esquecer de tomar em consideração a altitude a que se encontravam.
Quanto ao aspecto geral do interior da ilha, havia a região
arborizada a sul, entre a montanha e o litoral, enquanto a
parte norte, pelo contrário, era árida e arenosa. Também se
avistava um lago, situado a uns cem metros acima do nível do
mar, entre o vulcão e a costa leste.
- Será um lago de água doce? - perguntou Pencroff. .
- Certamente que sim! - respondeu o engenheiro. - E
deve ser alimentado pelas águas que escorrem da montanha.
- Estou a ver um riacho que desagua no lago - disse
Harbert.
- É verdade - confirmou Cyrus Smith. - E uma vez que
é esse ribeiro que alimenta o lago, deve haver um escoadouro
do lado do mar para a descarga das águas. Logo veremos isso no
regresso.
Do ponto em que se encontravam, podiam os nossos exploradores
abarcar a ilha em toda a sua diversidade, as verdes
manchas de vegetação, o amarelo das areias e o azul das
águas... Subsistia, porém, uma questão grave que continuava sem
resposta e da qual dependia o futuro dos náufragos: a ilha
era, ou não, habitada?
Mas, por mais que olhassem, não se via em lado algum o
menor sinal de presença humana; nem um aglomerado de casas,
sequer uma simples cabana isolada, nem um barco de pesca no
litoral, nem um penacho de fumo! Tão-pouco se avistava outra
terra nas proximidades. A voz calma e grave do engenheiro
Smith fez-se ouvir:
- Aqui está, meus amigos, o pequeno pedaço de terra onde
vamos viver talvez por longo tempo! Pode ser que nos chegue
algum socorro inesperado, se algum navio passar por estas
bandas... E digo inesperado, porque está visto que esta ilha é
muito pouco importante e sem um único porto natural que sirva
de abrigo ou para trabalhos de reparação das embarcações... O
mais certo é que esteja afastada das rotas habituais, isto é,
demasiado a sul para os navios que demandam os arquipélagos do
Pacífico, e demasiado a norte para os que se dirigem à
Austrália, contornando o cabo Horn... Esta é que é a realidade
e não vale a pena escondê-la!
- E com toda a razão, meu caro Cyrus! - exclamou
vivamente o repórter. - Está a lidar com homens corajosos, que
confiam em si e com os quais pode contar inteiramente. É ou
não é verdade, meus amigos?
- Obedecer-lhe-ei em tudo, senhor Cyrus! - disse Harbert,
apertando a mão do engenheiro.
- Meu patrão, sempre e em qualquer parte! - proclamou Nab.
- Quanto a mim - disse o marinheiro -, que eu perca o
meu nome, se me negar a qualquer trabalho! E se o senhor Smith
quiser, até podemos fazer deste sítio uma América em ponto
pequeno; construiremos cidades e caminhos de ferro, instalaremos
telégrafos e, um belo dia, quando estiver tudo pronto,
vamos oferecer esta terra ao governador da União! Só peço uma coisa...
- O quê? - perguntou Spilett.
- Que não nos consideremos mais como náufragos, mas sim
como colonos.
Cyrus Smith não conseguiu evitar um sorriso e a moção do
marinheiro foi aprovada. Antes de iniciarem a descida, decidiram
atribuir nomes aos diversos pontos da ilha, cabos, baías e
promontórios. O curso de água perto das Chaminés passaria a
chamar-se rio Mercy. Finalmente, a ilha foi baptizada com o
nome do grande cidadão que naquele momento lutava pela
unidade da república americana: Lincoln. Seria, pois, a ilha
Lincoln e a ilhota, onde o balão os lançara, o ilhéu da
Salvação. A solenidade do momento foi coroada com três
"vivas!".
O regresso às Chaminés far-se-ia por um caminho diferente,
dado o interesse de Cyrus Smith em explorar o lago e a zona de
arvoredo que o cercava. Desceram, pois, em direcção ao
contraforte da montanha, onde, segundo tudo indicava, devia
estar situada a nascente do riacho. O engenheiro caminhava sem
dizer palavra, atento à mais pequena coisa; de vez em quando,
guardava nos bolsos pequenas amostras de espécies botânicas
e mineralógicas que ia apanhando aqui e acolá. Como sempre,
Pencroff, Harbert e Nab abriam a marcha, seguidos por Top,
entretido a farejar todos os recantos.
De repente, Harbert voltou para trás precipitadamente.
- O que é que foi, meu rapaz? - perguntou-lhe Gedeão Spilett.
- Fumo! Vimos uma coluna de fumo a subir entre aqueles
rochedos ali adiante!
- É melhor não nos mostrarmos, sem saber do que se trata
- disse Cyrus Smith. - Podem ser indígenas... Onde está o Top?
- Lá à frente - respondeu o jovem.
- E não ladra? - perguntou o engenheiro.
- Não, senhor.
- É estranho... De qualquer forma, é melhor trazê-lo para
aqui.
Instantes depois, já o grupo, incluindo o cão, estava escondido
atrás de uns penhascos de basalto. O fumo era claramente
visível, amarelado e com um cheiro pestilento muito
característico. Tanto bastou ao engenheiro para reconhecer a
existência naquele local de uma fonte natural sulfurosa,
excelente para tratar afecções da garganta.
- Só tenho pena de não estar constipado! - exclamou
Pencroff.
Passaram pela nascente, donde se libertava um intenso odor a
ácido sulfídrico, e continuaram a caminhada.
Ao princípio da tarde, o faro de Top e a perícia de Nab
providenciaram a caça de que tanto precisavam para a refeição
da noite: dois soberbos marás, roedores muito parecidos com as
lebres, mas maiores, de orelhas compridas e pelagem amarela.
Pencroff ficou entusiasmado:
- Hurra! Já temos assado! Toca a voltar para casa!
Os exploradores já tinham chegado, por essa altura, à
margem ocidental do lago. O sítio valia bem a pena ser visto.
A extensão de água doce, muito límpida, cobria uma área de
cerca de duzentos hectares, com margens belamente arborizadas,
povoadas de patos-bravos, pelicanos, galinhas-d'água,
maçaricos e outras aves aquáticas. Spilett não se conteve e
exclamou:
- Mas que lago tão bonito! Não seria mal pensado viver aqui.
- E por que não? - respondeu Cyrus Smith.
A tarde avançava e eram horas de voltar às Chaminés.
Depois do jantar, o engenheiro tirou do bolso as amostras de
minerais que andara a recolher durante o dia, e disse:
- Meus amigos, temos aqui ferro, pirite, argila, cal e
carvão. Eis a contribuição da Natureza para o que precisamos
de fazer! O resto é connosco.

@CAPÍTULO VII


Essa era a situação real! Tudo estava por fazer e os colonos
tinham de começar pelo princípio. Não possuíam, sequer, as
ferramentas necessárias para fabricar outras ferramentas e
utensílios e os recursos naturais existentes na ilha
encontravam-se no seu estado bruto... Todavia, o engenheiro
Smith conhecia bem o zelo, a inteligência e as aptidões dos
companheiros.
Gedeão Spilett contribuiria com os seus conhecimentos de
jornalista culto e talentoso para a colonização da ilha, sem
falar da paixão que nutria pela caça, uma tarefa absolutamente
vital. Harbert, esse rapaz corajoso e tão instruído em
ciências naturais, daria uma ajuda igualmente preciosa. Nab
era a dedicação em
pessoa; infatigável e robusto, com uma saúde de ferro,
percebia alguma coisa do trabalho de forja, o que seria da maior utilidade.
Quanto a Pencroff, havia navegado por todos os oceanos e
trabalhado como carpinteiro nos estaleiros de Brooklyn, além de ter sido
alfaiate, jardineiro e cultivador durante as férias, etc.; enfim, como
bom homem do mar que era, sabia fazer de tudo um pouco.
Na opinião de Cyrus Smith, a primeira tarefa que se impunha
era a construção de um forno, que seria alimentado a lenha e
carvão.
- E o forno servirá para quê? - quis saber Pencroff.
- Para fabricar os utensílios de barro de que precisamos respondeu
o engenheiro.
- E com o que é que vamos fazer o forno?
- Com tijolos de argila. A caminho, meus amigos, e, para não
perdermos tempo a andar para trás e para a frente, ficaremos
instalados no local. O Nab fica encarregado de levar as provisões
e do fogo trataremos lá.
- Ah! se tivéssemos uma arma qualquer para caçar... Um
arco e flechas, pelo menos! - disse o repórter.
- Ou uma faca - lembrou o marinheiro.
- Sim, uma faca, uma lâmina cortante... - murmurou
Smith, como se falasse consigo mesmo.
Repentinamente, o olhar animou-se-lhe:
- Aqui, Top!
O engenheiro segurou na cabeça do cão, tirou-lhe do pescoço
a coleira de fino aço temperado, e partiu-a em duas metades.
- Aqui estão as nossas facas, Pencroff!
Amolaram o rebordo das lâminas de aço numa pedra e,
depois, afiaram o gume em pederneira mais fina, que, por
sinal, abundava na praia. Algum tempo depois, os colonos já
dispunham de duas lâminas cortantes, solidamente amarradas a
cabos improvisados.
Partiram em direcção à margem ocidental do lago, onde, na
véspera, Cyrus Smith havia reparado numa porção de terra
argilosa. Pelo caminho, Harbert descobriu diversas árvores,
das quais os índios da América do Sul usam os ramos para
fabricar arcos. Apenas faltava encontrar uma planta apropriada
para fazer a corda do arco. Serviram-se de uma espécie de
hibisco com fibras tão resistentes, que se podiam comparar a
tendões de um animal. E foi assim que Pencroff conseguiu
arranjar arcos suficientemente fortes e eficazes. Quanto às
setas, o destino se encarregaria de fornecer qualquer coisa
que pudesse substituir o ferro para as pontas.
Chegados ao local indicado pelo engenheiro, os nossos
amigos deitaram mãos à obra. Trataram de retirar com areia a
gordura própria da argila e, depois, moldaram à mão os tijolos
que, depois de secos, passariam por cozedura em fogo de lenha.
Foram dois dias inteiros de intenso trabalho manual, ao cabo
dos quais os colonos tinham prontos e alinhados no chão três mil
tijolos. A cozedura não teria lugar, senão daí a três ou
quatro dias, de modo que o grupo aproveitou a espera para
juntar lenha, sem falar nas caçadas pelas imediações.
Estas expedições eram agora bastante mais proveitosas,
desde que Pencroff resolvera a questão das pontas das flechas.
Foi um porco-espinho apanhado por Top o fornecedor dos picos
aguçados que o marinheiro atou com firmeza às extremidades
de paus fininhos e direitos. Não tardou muito que Gedeão
Spilett e o jovem Harbert se tornassem razoavelmente hábeis no
manejo do arco e das flechas assim improvisadas e, desse modo,
não mais faltaram no acampamento boas peças de caça, quer de
pêlo, quer de penas, como porcos e galos-do-mato, cutias,
pombos-bravos, etc.
Ora durante essas incursões pela floresta, sempre não muito
longe da tijolaria, os caçadores acabaram por notar certos
indícios da presença de animais de grande porte, o que levou o
engenheiro Smith a recomendar-lhes a maior cautela, convencido
que ali poderia haver feras temíveis. E estava certo,
porque, certa vez, o repórter e o rapaz avistaram um animal muito
semelhante ao jaguar, que só por sorte não os atacou.
E assim chegou o dia 6 de Abril, uma quinta-feira. Treze dias tinham decorrido desde que os colonos tinham ido parar àquela costa e era nesse mesmo dia que iam iniciar
a construção do forno, começando pela cozedura dos tijolos de barro.
Empilharam molhos de lenha, rodeando-os depois com camadas sobrepostas de
tijolos até formar uma grande cuba, e puxaram fogo à lenha; o braseiro
ardeu durante quarenta e oito horas, constantemente alimentado pelos colonos. Finalmente, com cal viva conseguida a partir de pedras de carbonato de cálcio, decompostas
pelo calor, e uma espécie de argamassa feita com cal e areia, construíram um forno magnífico, cuja chaminé se elevava a alguns metros de altura.
A clareira à beira do lago lembrava agora uma verdadeira oficina, e Pencroff
estava disposto a jurar que dali podiam sair todos os produtos da indústria
moderna. As primeiras coisas a serem fabricadas no forno a carvão resumiram-se,
porém, aos
mais vulgares recipientes e utensílios domésticos, moldados
com argila misturada com cal e um pouco de quartzo. A cozinha
das Chaminés ficaria equipada de potes, tigelas, pratos,
jarros e outros objectos, tão preciosos como se da mais fina
porcelana se tratasse!
Convém referir que Pencroff, desejoso de experimentar a
qualidade do barro, resolveu fabricar alguns cachimbos,
bastante toscos aliás, mas que ele achou uma perfeição. E o tabaco?
"Ora, o tabaco há-de aparecer como tudo o resto", pensava ele.
No caminho de volta às Chaminés, carregados com a louça recém-fabricada,
o engenheiro fez outra descoberta muito conveniente: uma planta esponjosa
do género das artemísias, que, depois de seca e impregnada de salitre,
se torna bastante inflamável. Para grande satisfação do marinheiro, ficava,
assim, assegurada a isca necessária para acender o fogo.
Dias depois, 17 de Abril, precisamente a segunda-feira a
seguir ao Domingo de Páscoa, Pencroff perguntou ao jornalista,
logo pela manhã:
- Senhor Spilett, o que é que vamos fazer hoje?
- O nosso engenheiro é quem decide - respondeu ele.
Ora ficou resolvido que naquele dia, depois de fabricantes
de tijolos e de louça de barro, os companheiros seriam
operários metalúrgicos! O engenheiro anotara a existência de
jazidas de óxido de ferro e de pirite na região noroeste da
ilha, e tinha esperanças de poder obter, do primeiro, ferro em
estado puro. - Então vamos trabalhar o minério de ferro,
senhor Cyrus?
- perguntou o marinheiro.
- É verdade, meu amigo! - foi a resposta do engenheiro.
- E, à conta disso, vamos começar por uma caçada às focas
no ilhéu da Salvação.
- Caça às focas? - Pencroff voltou-se para Spilett, cheio
de espanto. - Pois serão precisas focas para fabricar ferro?
- Se é o Cyrus quem diz, é porque devem ser - respondeu Spilett.
A maré estava no seu nível mais baixo, quando os cinco
amigos atravessaram o canal que os separava da ilhota. Uma vez
no lado de lá, a primeira coisa que viram foi uma colónia de
pinguins, mas os caçadores, armados de varapaus, não estavam
interessados nestes animais. Passaram ao lado e dirigiram-se à
ponta norte do ilhéu. O sítio tinha sido bem calculado,
porque, efectivamente, lá estavam seis focas deitadas na
praia, ao sol da manhã. Rodearam-nas cautelosamente, e
atacaram de todos os
lados ao mesmo tempo, abatendo duas à paulada. As outras
conseguiram fugir para o mar.
- Ora cá tem as suas focas, senhor Cyrus! - proclamou o marinheiro.
- Muito bem! - disse Cyrus Smith. - As peles hão-de
servir para fazermos os foles da forja.
Nab e Pencroff começaram, imediatamente, a esfolar os
animais, enquanto o engenheiro e o repórter aproveitavam para
uma volta de reconhecimento pela pequena ilha. Seis horas mais
tarde, quando a maré vazou outra vez, voltaram a atravessar o
canal e regressaram às Chaminés.
Três dias depois, as peles de foca, secas e cosidas com
fibras vegetais, tinham-se transformado num fole indispensável a
qualquer trabalho de forja. Estava-se a 20 de Abril e o
repórter anotou esse dia como o primeiro do "período
metalúrgico" da pequena colónia.
As jazidas de minério estavam situadas na base de um dos
contrafortes da montanha, que os colonos haviam baptizado
com o nome de monte Franklin. Dada a distância das Chaminés,
cerca de dez quilómetros, era impensável ir e vir todos os
dias, pelo que ficou assente que acampariam no próprio local dos
trabalhos. Pelas cinco da tarde, depois de terem atravessado a
floresta, atingiram a orla do denso arvoredo. O engenheiro
decidiu que ficariam ali mesmo, com o monte à vista e perto
do ribeiro e das jazidas. As pesquisas geológicas ficariam para
o dia seguinte. Em menos de uma hora, fizeram uma cabana
de troncos e ramos entrelaçados e acenderam uma fogueira. A
seguir ao jantar de carne no espeto, os nossos amigos
acomodaram-se para descansar e, pelas oito, já dormiam
todos a sono solto, excepto aquele que ficara com a incumbência
de vigiar o lume, única maneira de afastar algum animal
perigoso.
Na manhã seguinte, os colonos dirigiram-se aos terrenos
junto à nascente do riacho e começaram a recolher grandes
quantidades de minério de ferro e de carvão. Os blocos de
óxido de ferro eram, depois, partidos em bocados pequenos e
limpos de impurezas. Orientados por Cyrus Smith, dispuseram o
minério e o carvão em camadas sobrepostas e o novo fole de
peles de foca entrou em acção! Com o primeiro bocado de ferro
puro, conseguido por aquele método bastante rudimentar, improvisaram
um martelo e com ele forjaram um segundo numa
bigorna de granito. Ao cabo de quatro dias de muito trabalho e
paciência infinita, os colonos tinham forjado várias barras de
ferro, com as quais fabricaram ferramentas, como pinças,
tenazes, picaretas, etc. Seguidamente, graças aos
conhecimentos de Cyrus Smith, a partir do ferro puro chegaram ao aço,
misturando o primeiro num cadinho de barro com carvão em pó.
Desse modo foi possível fazer machados e machadinhas, pás,
picaretas, martelos e pregos.
Finalmente, a 5 de Maio, os nossos ferreiros regressaram às
Chaminés, prontos para novas tarefas.

@CAPÍTULO VIII


Ora sucede que, no hemisfério sul, o mês de Maio corresponde
a Novembro no hemisfério norte. O tempo refrescava de
dia para dia e o Inverno, sem dúvida rigoroso naquelas paragens, não tardaria a chegar. A necessidade de encontrar uma habitação mais segura e confortável tornou-se,
portanto, uma questão
urgente e motivo de conversa da pequena colónia. Pencroff,
apesar de muito afeiçoado às Chaminés, teve de concordar que
aquele primeiro abrigo não oferecia muita segurança, até
porque nada garantia que não fosse novamente invadido pelo mar.
- Além disso, devemos tomar algumas precauções...acrescentou
Cyrus Smith.
- Mas porquê, se a ilha não é habitada? - perguntou
Gedeão Spilett.
- Talvez não seja, mas é bom lembrar que ainda não a
explorámos completamente - respondeu o engenheiro. - E
mesmo que não haja mais ninguém, o que aqui não faltam são
animais perigosos! A verdade é que precisamos de um abrigo
seguro, que não obrigue um de nós a ficar acordado para atear
o lume. Temos de prever tudo, meus amigos, porque, além do
mais, esta parte do Pacífico é muito frequentada por
piratas... - Pois quê? A tão grande distância de qualquer terra?espantou-se
Harbert.
- É verdade, meu rapaz - disse o engenheiro. - Os piratas
são marinheiros tão excelentes, quanto temíveis malfeitores, e
mais vale estarmos prevenidos.
- Pois bem - disse Pencroff -, abriguemo-nos, então, de
selvagens de duas e de quatro patas! Mas, senhor Cyrus, antes
de resolvermos qualquer coisa, não seria conveniente explorar
um pouco mais a ilha?
A sugestão do marinheiro foi aceite e, no dia seguinte,
esquadrinharam palmo a palmo o planalto rochoso sobranceiro às
Chaminés, na esperança de encontrar uma caverna suficientemente
ampla. Todavia, os penedos de granito, lisos e
direitos, não apresentavam a menor cavidade,
Dirigiram-se, depois, para as margens norte e leste do lago,
que ainda não conheciam. Harbert e Nab seguiam à frente,
enquanto Smith, Spilett e Pencroff caminhavam um pouco atrás,
em passo mais vagaroso. O engenheiro pensava ir encontrar,
finalmente, o escoadouro, ou cascata, por onde se fazia a
descarga das águas do lago para o mar. Mas, depois da volta
completa, de escoadouro nem sinal!
- E, todavia, ele tem de estar em algum lado! - repetia
Cyrus Smith, bastante intrigado. - E se não está à vista, é
porque só pode ser um canal escavado no maciço de granito.
- Diga-me lá, meu caro Cyrus, isso tem assim tanta
importância? - perguntou Gedeão Spilett.
- Tem e bastante! - respondeu o engenheiro. - Se as
águas escavaram uma saída através da penedia, é provável que
haja grutas que nos sirvam de habitação... depois de
desviarmos as águas, está claro!
- E se a água se escoar pelo fundo? Por um canal
subterrâneo? - perguntou Harbert.
- Nesse caso teremos de construir a nossa habitação, visto
que a Natureza não nos fornece nenhuma - rematou o engenheiro.
A tarde avançava e o grupo já se dispunha a regressar às
Chaminés, quando Top, que corria à frente, começou a dar sinais de
grande agitação. O inteligente animal ora corria para a
margem, ora voltava para trás, ladrando furiosamente. O dono
acabou por lhe prestar atenção:
- O que é isso, Top?
O cão correu para o dono, voltou a disparar para a margem e mergulhou.
- Top! Aqui já! - gritou Cyrus Smith.
- Mas o que haverá lá em baixo? - perguntou Pencroff,
observando atentamente a superfície do lago.
- Se calhar, o Top pressentiu algum animal - disse Harbert.
De repente, uma cabeçorra surgiu à superfície.
- É um manatim! - exclamou Harbert.
Mas não era um manatim; as narinas abertas na parte
superior do focinho identificavam um dugongo, uma espécie de
mamífero marinho. O enorme animal lançou-se sobre o cão,
filou-o e mergulhou. Nab fez menção de se atirar ao lago com o
seu pau ferrado, mas o patrão segurou-o pelo braço. Entretanto,
desenrolava-se uma luta desigual e terrível debaixo de
água! Era por demais evidente que Top não conseguiria resistir
em semelhantes condições... Subitamente, porém, perante o
olhar atónito de Cyrus e dos companheiros, o cão reapareceu à
superfície no meio de um círculo de espuma, subiu vários
metros nos ares, voltou a cair e nadou para a margem sem
ferimentos graves. Contudo, mais estranho ainda que o
miraculoso salvamento de Top, era o facto de a luta continuar
lá em baixo! Teria o dugongo sido atacado por outro animal mais forte e,
por causa disso, largado o cão? A luta não durou
muito, porém. De repente, as águas tingiram-se de sangue e o dugongo voltou
a aparecer à tona, acabando por ir dar à margem sul do lago.
Os colonos correram para lá. O dugongo estava morto. O
enorme corpo, com mais de quatro metros de comprimento e
perto dos dois mil quilos de peso, apresentava uma ferida no
pescoço que, pelo aspecto, dir-se-ia ter sido feita por um
objecto cortante. Ora que espécie de animal marinho poderia ter morto o
formidável dugongo daquela maneira? Ninguém fazia a menor
ideia. Cyrus Smith e os companheiros empreenderam o caminho de
regresso às Chaminés, vivamente impressionados com o
incidente que acabavam de presenciar.
Ao outro dia, 7 de Maio, o engenheiro e o repórter voltaram
à pequena praia do lago, onde o dugongo viera morrer. Smith
não só tencionava aproveitar a gordura e a carne do enorme
animal, como não deixava de pensar no misterioso combate
submarino da véspera. Olhava e tornava a olhar a superfície
tranquila do lago, que cintilava sob os primeiros raios de
sol, sem que dali tirasse qualquer conclusão...
- O que é que você acha, Cyrus? Não me parece ver nada
de suspeito nestas águas... - disse o repórter.
- Realmente... - respondeu o engenheiro. - Só não
consigo encontrar uma explicação para o que aconteceu ontem.
- Uma ferida muito estranha, na verdade! E a forma como
o Top foi atirado para fora de água? Parecia, até, ter sido
arremessado por algum braço possante e que o mesmo braço
armado de um punhal matou o dugongo.
- Tem razão - concordou Cyrus Smith, pensativo.Depois,
meu caro Spilett, há outras coisas que também não
consigo entender. Por exemplo, como é que me salvei das ondas
e fui parar àquelas dunas? Eis aqui um mistério que ainda hei-de
desvendar, mas, por enquanto, acho melhor não comentarmos nada
disto com os nossos companheiros.
O engenheiro continuava a fitar a superfície do lago, quando, de súbito,
se deu conta de uma corrente forte a puxar para o lado sul do lago, justamente em direcção ao ponto onde as margens formavam um ângulo. Naquele sítio, era bem visível
que a água
fazia uma espécie de remoinho e uma depressão, como se
estivesse a ser sugada por um orifício qualquer... Cyrus Smith
encaminhou-se rapidamente para lá, baixou-se e tratou de
encostar o ouvido ao chão. Não havia dúvida! Aquele ruído
surdo era o de uma corrente subterrânea.
- É aqui! - exclamou, pondo-se de pé. - É aqui que se
faz a descarga para o mar através do granito! Grutas é que não
faltarão e nós vamos aproveitá-las.
Cortou uma vara comprida, tirou-lhe as folhas e mergulhou-a no local
onde a água fazia o sorvedouro. Imediatamente, o
engenheiro constatou a existência de um grande buraco na
parede de granito, apenas a uns quarenta centímetros da superfície.
Naquele ponto, a força da corrente era tal, que o ramo
se lhe escapou da mão e foi arrastado pelo orifício abaixo.
- Já não tenho dúvida nenhuma! Aqui está o escoadouro
e nós vamos pôr este túnel a descoberto.
- Mas como? - perguntou Gedeão Spilett.
- Fazendo descer o nível das águas. Um metro é quanto
bastará.
- Mas como? - voltou a perguntar o repórter, sem entender.
- Abrindo outra saída para a água, maior do que esta, na
margem mais próxima da costa!
- Essa é de penedos de granito...
- Que faremos explodir! - explicou o engenheiro. - E quando a água se
escoar por aquele lado, esta abertura ficará a descoberto!
- E a água do lago vai desabar em cascata sobre a praia!
- disse Spilett.
- Queda-d'água essa, que também nos há-de ser útil rematou
Cyrus Smith.

@CAPÍTULO IX


Duas semanas tinham passado, desde que Smith e Spilett
haviam localizado o escoadouro das águas excedentes do lago.
Foram dias de trabalho intenso para a pequena colónia, empenhada
em levar por diante o plano de fazer ir pelos ares parte
da parede de granito que sustinha as águas do lago. Para
tanto, precisavam de obter uma substância explosiva, que foi
conseguida a partir das pirites xistosas que existiam em
abundância na jazida de hulha. Após diversas manipulações e
morosos processos químicos sob orientação de Cyrus Smith, o
sulfureto de ferro extraído das pirites foi transformado em
sulfato, do qual se obteve ácido sulfúrico; seguidamente, por combinação deste com salitre, resultou ácido azótico. Por fim, o ácido foi
posto em contacto com a glicerina extraída da gordura do
dugongo, fornecendo diversas camadas de um líquido oleoso e amarelado.
Desta última operação se ocupou Cyrus Smith, sozinho e
longe das Chaminés, dado que envolvia sério risco de explosão.
Quando voltou para junto dos companheiros, trazendo na mão
um recipiente com o tal líquido, limitou-se a dizer-lhes:
"Nitroglicerina!"
- E é com esse licor que vamos fazer explodir os rochedos? perguntou
Pencroff, incrédulo.
- Exactamente! - retorquiu o engenheiro. - E quanto
mais resistência a rocha oferecer- e nós sabemos que o granito
é duríssimo - tanto maior será o efeito da nitroglicerina.
No dia seguinte, 21 de Maio, logo de manhã cedo, o grupo
de mineiros improvisados dirigiu-se à penedia de granito, que
funcionava como uma espécie de dique a conter as águas do
lago. Era ali que o engenheiro tencionava abrir uma brecha por
onde a água poderia sair, pondo a descoberto o orifício do
escoadouro subterrâneo.
Pencroff e Nab, munidos de picaretas, lançaram-se ao trabalho com
tanta destreza e ardor que, pelas quatro da tarde, o buraco estava pronto
para receber a carga de nitroglicerina.
Na falta de fulminantes, Cyrus Smith preparou uma mecha de
fibra vegetal embebida em enxofre, acendeu-a e correu a abrigar-se
junto dos companheiros. Uns vinte e cinco minutos depois, o tempo que
a fibra levou a arder, retumbou uma explosão tão
violenta, que toda a ilha parecia estar a ser sacudida por um
terramoto! Os nossos colonos, apesar de estarem bem a uns três
quilómetros de distância, foram parar ao chão. Refeitos
do abalo, subiram a correr ao planalto, direitos ao sítio da
explosão.
Do peito de cada um saiu, então, um formidável "hurra!". O
dique de granito abrira uma fenda considerável, e dessa fenda
escapava-se agora uma torrente de água, que se despenhava do
planalto e caía na praia de uma altura de quase cem metros!
Os colonos foram às Chaminés buscar picaretas, paus ferrados, cordas de fibra, isca e pederneira, e regressaram ao lago, dirigindo-se imediatamente à margem sul.
Uma olhada foi suficiente para verificar que o plano do engenheiro resultara em cheio!
Efectivamente, o abaixamento do nível das águas pusera a
descoberto a abertura do escoadouro, a qual lembrava uma
dessas sarjetas que se vêem à beira dos passeios. Cyrus Smith
aproximou-se e verificou que o túnel escavado pela força das
águas era apenas ligeiramente inclinado, tornando-se assim
praticável a descida. Era sua convicção que, em alguma parte,
haveria uma cavidade suficientemente ampla para ser aproveitada
como habitação.
- Então, senhor Cyrus, o que nos detém agora? - perguntou
o marinheiro, desejoso de se aventurar pelo estreito
corredor. - Olhem como o Top já lá vai à frente!
- Está bem! - disse o engenheiro. - Vamos lá, mas às
escuras é que não... Nab, corta aí uns ramos resinosos.

Acesos os archotes, os colonos enfiaram pela abertura do
túnel e começaram a descer, atados uns aos outros com cordas.
O chão, de rocha molhada e escorregadia, recomendava toda a
prudência. Avançavam, pois, muito lentamente e sem trocar
uma palavra, emocionados por se aventurarem pelo interior do
maciço de granito, tão velho como a própria ilha... Teriam
descido cerca de trinta metros, quando lhes chegaram aos
ouvidos sons vindos lá do fundo.
- É o Top a ladrar! - exclamou Harbert.
- É mesmo! - disse Pencroff. - E parece que está
zangado.
- Em frente, meus amigos! Não larguem os paus ferrados!
- comandou Cyrus Smith.
Os latidos do cão, cada vez mais nítidos, exprimiam uma
estranha raiva. Dominados pela curiosidade e sem cuidar nos
perigos que podiam correr, os cinco homens deixavam-se
praticamente escorregar pelo túnel, até que, de repente, a
passagem alargou e desembocaram todos numa vasta caverna.
Ali estava o Top a correr de um lado para o outro e a ladrar
furiosamente. Nab e Pencroff agitaram os archotes bem alto e
em todas as direcções, enquanto Cyrus Smith, Gedeão Spilett
e o jovem Harbert se mantinham atentos, empunhando os
varapaus e prontos para qualquer eventualidade. Mas a enorme
caverna estava vazia! Não havia sinais de outro ser vivo para
além dos colonos e do cão, que, entretanto, continuava na
maior agitação.
- É forçoso que haja por aqui uma saída qualquer das águas
para o mar... - murmurou o engenheiro.
- Realmente - acrescentou o marinheiro -, e todo o
cuidado é pouco, não caiamos nós nalgum buraco!
- Anda, Top! Busca! - gritou Cyrus Smith.
O cão, excitado com a voz do dono, correu para o extremo
da caverna e pôs-se a ladrar ainda com mais força. Seguiram-no
os colonos e foi então que, à luz dos archotes, descobriram a boca de um poço. Sem demora, Smith arrancou um galho aceso de um dos archotes e lançou-o no abismo.
Minutos depois,
a chama extinguiu-se lá no fundo com um leve crepitar, indicando que o
galho atingira uma camada de água, isto é, o nível do mar. Calculando o
tempo gasto na queda, o engenheiro concluiu que o mar se encontrava a
cerca de trinta metros abaixo do nível da caverna e observou:
- Já temos casa!
Os desejos dos colonos estavam, assim, em grande parte
realizados, graças ao acaso e à sagacidade do chefe. A partir
de agora, dispunham de um abrigo seguro e suficientemente
amplo para ser dividido, com paredes de tijolo, em diversos
compartimentos. As águas do lago, que dantes atravessavam a
caverna, não mais voltariam... O lugar estava livre!
Contudo, duas questões importantes ficavam por resolver: a
primeira era a iluminação natural da futura morada; a segunda
prendia-se com a dificuldade de acesso pelo túnel do lago.
Ora, durante a descida, o engenheiro notara que a parede
anterior do escoadouro não era tão espessa quanto as outras, o
que o levava a encarar a possibilidade de se abrirem ali uma
porta e janelas, bem como de se instalar uma escada exterior.
Destas ideias se apressou a dar conta aos companheiros.
- Mãos à obra, senhor Cyrus! - respondeu logo Pencroff.
- A picareta já aqui está! Por onde começamos?
E, cheio de entusiasmo, atacou o granito no local indicado
pelo engenheiro. Durante duas horas, o penedo faiscou aos
golpes do picão empunhado pelo marinheiro, que, de tempos a
tempos, era rendido por Nab e pelo repórter. E tão bem
trabalharam os nossos amigos, que ao cabo desse tempo a
parede cedeu e a picareta, com o impulso, caiu para o
exterior! - Viva! Viva! e mais "vivas"! - gritou Pencroff.
Cyrus Smith espreitou pela abertura. Lá em baixo, a uns
vinte ou trinta metros, ficava a praia e, logo adiante, o
ilhéu; depois, era o mar imenso a perder de vista... A luz do
dia entrava
agora, produzindo um efeito tão mágico no interior da caverna,
que os colonos não contiveram uma exclamação de admiração!
Com efeito, dir-se-ia que estavam no interior de uma catedral,
verdadeira obra-prima da Natureza, com paredes altíssimas
rematadas em abóbada, sustentada por pilares de granito e
meias colunas laterais.
- Ah! meus amigos - exclamou Cyrus Smith -, quando
iluminarmos convenientemente este sítio e tivermos quartos,
despensas e armazéns, esta parte central será destinada a
museu e sala de estudo... Será o nosso salão!
- E que nome vamos pôr à nossa nova casa? - perguntou Harbert.
- Casa de Granito - respondeu o engenheiro.
E a denominação foi recebida com uma estrondosa salva de palmas.

@CAPÍTULO X


As obras de apropriação e arranjo da nova morada começaram
logo no dia seguinte, 22 de Maio. Na verdade, os colonos
não viam a hora de trocar as Chaminés por aquela vasta e
cómoda guarida, embora fosse intenção do engenheiro Smith
não abandonar totalmente o local que lhes servira de primeiro
abrigo na ilha, aproveitando-o para aí instalar uma oficina de
trabalhos mais pesados.
Antes de tudo, porém, o primeiro cuidado dos colonos foi
o reconhecimento da fachada exterior da caverna. Caminhando
praia fora, chegaram ao local onde caíra a picareta. Na
perpendicular, a meio do penhasco de granito, lá estava o
orifício aberto na véspera, a menos de trinta metros do solo. Era
justamente naquela parede virada a leste, que Cyrus Smith
contava abrir a porta e as janelas com vista para o mar. Tal
empreendimento não se apresentava tarefa fácil, caso contassem
apenas com as picaretas e a força dos braços. Felizmente,
porém, o nosso engenheiro era homem de grandes recursos e
tratou de usar os restos da nitroglicerina, que,
cuidadosamente aplicados, rebentaram o granito nos sítios
escolhidos. Feito isto, desbastaram-se e alisaram-se os
buracos a golpe de picareta e alvião, ficando a Casa de
Granito dotada de uma porta, frestas e óculos, para além de
cinco janelas em ogiva. A luz do dia
entrava a rodos pela nova morada, iluminando-a até aos
recantos mais escondidos!
De acordo com o plano traçado por Cyrus Smith, o espaço
da caverna, ou melhor dizendo, da Casa de Granito, ficaria
dividido em cinco quartos virados a nascente e separados por
um corredor de vários compartimentos destinados a armazenar as
reservas de alimentos e de lenha, os utensílios e as ferramentas.
Do lado direito da entrada, seria instalada a cozinha e,
logo a seguir, a sala de jantar e um "quarto de hóspedes",
paredes- -meias com o salão principal. Lugar é que não faltava para
acomodar tudo e todos!
Adoptado este plano, restava dar-lhe execução, a começar
pela escada exterior. Com efeito, a entrada pelo escoadouro do
lago obrigava os nossos colonos a uma grande volta e, consequentemente,
a fadigas e perdas de tempo desnecessárias. Assim
se fez, e alguns dias depois, a escada da Casa de Granito
estava pronta, tão sólida e resistente como o mais forte cabo. Na
verdade, não era uma única escada, mas sim duas, porque, a fim
de tornar a subida mais fácil, o engenheiro resolvera fazer
uma espécie de patamar numa saliência natural situada a meia
altura da fachada rochosa. Desse modo, havia uma escada da
porta ao patamar e outra dali até à praia. Os montantes, ou
seja, os
suportes laterais, foram cuidadosamente confeccionados com
fibras de uma espécie botânica da família dos juncos, solidamente
atadas e entrelaçadas com a ajuda de um sarilho,
enquanto os degraus, habilmente aparelhados por Pencroff,
eram de madeira de cedro vermelho, muito leve e resistente.
Aproveitando as fibras vegetais teceram-se mais cordas para
instalar um guindaste que, embora grosseiro, permitia içar os
tijolos e outros materiais até ao nível da entrada, situada a
uns vinte e cinco metros acima do solo. De resto, a ideia do
engenheiro Smith era montar, mais tarde, um elevador hidráulico.
Os nossos homens habituaram-se rapidamente a utilizar as
escadas de corda, mas tal exercício apresentava sérias
dificuldades para um cão. Foi Pencroff que, com infinita
paciência, ensinou Top a conseguir a proeza, digna dos seus
congéneres do circo!
Enfim, a 28 de Maio, o acesso exterior estava definitivamente
instalado, dando-se início ao arranjo interior da Casa de
Granito. E em boa hora, diga-se de passagem, que a estação
invernosa já se fazia sentir!
As obras interiores ocuparam todo o mês que se seguiu. A
pequena colónia trabalhou dias a fio com entusiasmo e afinco,
e também, porque não dizê-lo, alegria, graças ao sempre
presente e contagiante bom-humor de Pencroff. O projecto do
engenheiro Smith foi seguido à risca e, nos finais de Junho, a
Casa de Granito estava dividida em quartos com janelas para o
mar, cozinha, salas de jantar e de estudo, despensas, arrecadação
e oficina.
Mal os trabalhos de pedreiro ficaram concluídos, Cyrus
Smith decidiu que, por questões de segurança, se tapasse
definitivamente o orifício do antigo escoadouro do lago. A
entrada do túnel foi, então, oculta com pedregulhos depois
cobertos com ervas e ramagens. Antes, porém, e a pensar no
abastecimento de água potável à Casa de Granito, abriram uma
pequena abertura na parede do escoadouro abaixo da superfície
do lago, o que garantiu o caudal suficiente para as
necessidades do dia-a-dia.
Com as obras principais terminadas e o aparecimento das
primeiras tempestades de Inverno, os colonos puderam apreciar
devidamente os confortos e as vantagens da nova morada, em
contraste com as precárias condições das Chaminés. Mas nem
tudo estava pronto! Apesar das chuvadas e do frio cada vez
mais intenso, havia ainda outras tarefas a cumprir, de
importância vital para todos. Grandes carregamentos de lenha e
de carvão foram içados para a Casa de Granito e acomodados na
arrecadação; ao mesmo tempo, Gedeão Spilett e Harbert, que nunca
tinham deixado de trazer diariamente a carne fresca destinada
às refeições dos colonos, passavam agora a maior parte do
tempo em excursões de caça e pesca pelos arredores, encarregando-se
Nab de salgar ou de pôr ao fumeiro essas provisões
de carne e peixe para o Inverno.
Um dia, numa dessas saídas, em vez da habitual caça aos
javalis e porcos-do-mato na floresta à beira do rio, o repórter
e o rapaz resolveram dirigir-se para as bandas da margem
sudoeste do lago. Era uma zona praticamente desconhecida e foi
com grande satisfação que os nossos caçadores descobriram um
prado fértil e verdejante, que, para além de inúmeras tocas de
coelhos, oferecia uma grande variedade de ervas aromáticas e
medicinais. O jovem Harbert, sempre interessado pelas coisas
da Natureza e conhecedor das propriedades terapêuticas de
algumas dessas plantas, tratou imediatamente de colher uma
quantidade apreciável de manjericão, tomilho, erva-cidreira,
serpão e rosmaninho. Ao fim da tarde, já em casa, Pencroff
quis saber para que serviam todas aquelas ervas.
- Para nos tratarmos, quando estivermos doentes - respondeu
o rapaz.
- Ora essa! E porque havíamos de adoecer, se não há
médicos na ilha?
Já se vê que este comentário do marinheiro ficou sem
resposta. Entretanto, as condições atmosféricas agravavam-se,
com aguaceiros e fortes vendavais quase todos os dias. Apesar
do tempo incerto, os colonos ainda empreenderam uma expedição
ao ilhéu da Salvação, com a finalidade de obter a
matéria--prima necessária ao fabrico de velas. Fora Pencroff quem
levantara o problema da iluminação nocturna da Casa de
Granito e Cyrus Smith, como de costume, tivera resposta
pronta:
- Nada mais fácil de resolver!
- Como assim?
- Vamos caçar focas e com a gordura fabricaremos as
nossas velas! Bastará para tanto misturá-la com cal e ácido sulfúrico.
De modo que, para haver luz que alumiasse a casa durante as
longas noites da estação fria, foram sacrificadas seis focas.
Além das gorduras, os colonos aproveitaram também as peles,
que serviriam para fazer sapatos. No tocante ao vestuário,
porém, é que ninguém tinha ideia, nem mesmo o engenheiro,
de como substituir as roupas que traziam no corpo e que, à
força de serem lavadas, acabariam inevitavelmente por se estragar.
Do fabrico das velas, passou-se ao dos móveis de primeira
necessidade. Aí, Pencroff orientava os trabalhos como
verdadeiro mestre de marcenaria e carpintaria e, em breve,
os compartimentos estavam guarnecidos de mesas, bancos,
armários e cabeceiras para as camas de colchão de junça; nas prateleiras
da cozinha, alinhavam-se as louças e utensílios de barro, ao
lado do magnífico forno de tijolos e da pedra de lavar. Enfim,
pode dizer-se que a ilha Lincoln, embora longe de
completamente explorada, provia já a quase todas as
necessidades da colónia. Mas de uma coisa sentiam os colonos
grande falta: pão.
Certo dia - chovia torrencialmente lá fora - estavam todos
reunidos na sala grande, quando, de repente, Harbert exclamou:
- Olha, olha, um grão de trigo!
- Um grão de trigo? - perguntou vivamente o engenheiro.
- Sim, sim, mas só um! Estava aqui na costura do meu
casaco...
E o rapaz explicou que, em Richmond, costumava andar com
trigo nas algibeiras para dar de comer aos pombos.
- Olha que grande descoberta, meu rapaz! - comentou
Pencroff. - Para o que é que nos servirá um único grão de
trigo? - Para fazer pão - foi a resposta breve de Cyrus Smith.
- E porque não, também, tartes e bolos? - volveu o
marinheiro, incrédulo.
O engenheiro pegou no grão e examinou-o atentamente.
Verificando que estava em bom estado, voltou-se para o marinheiro:
- Pencroff, você tem alguma ideia de quantas espigas de
trigo pode dar um só grão?
- Uma, suponho eu.
- Dez, meu amigo! E sabe quantos grãos tem uma espiga?
Oitenta, pelo menos. Ora bem, se semearmos este grãozinho, e
ele medrar, colheremos oitocentos grãos que, por sua vez,
produzirão seiscentos e quarenta mil e por aí fora... A
proporção é esta!
Os companheiros, pasmados, nem queriam acreditar. E, no
entanto, as contas de Cyrus Smith eram exactas.
- Sendo assim, temos de semear este grão! - disse Harbert.
A altura do ano não podia ser mais propícia. Subiram ao
planalto e escolheram um sítio adequado, abrigado dos ventos e
exposto ao sol. Depois, com a terra limpa de insectos e de
vermes, procedeu-se, com alguma solenidade, à sementeira do
pequeno grão, promessa de avultadas colheitas! A partir daí,
não se passou um só dia, sem que Pencroff subisse ao planalto
a inspeccionar a sua "seara de trigo", como fazia questão de
dizer. Nestas tarefas e cuidados foram decorrendo as primeiras
semanas de Julho, que no hemisfério sul corresponde ao mês de
Janeiro. Após chuvas intermináveis, a temperatura desceu bruscamente
para valores abaixo de zero, fazendo gelar a
superfície do lago.
Ora num desses dias de tempo frio mas bastante seco, os
nossos colonos resolveram fazer uma excursão até uma zona da
ilha aonde nunca tinham ido. Agasalhando-se o melhor que
podiam, desceram da Casa de Granito às primeiras horas da
manhã, decididos a explorar a costa sudeste, para lá do rio
Mercy. Depois de atravessarem o curso de água, praticamente
gelado, dobraram uma ponta e foram dar a uma extensa praia.
Seriam oito da manhã e o Sol nascia no horizonte, sobre um
oceano tão azul e tranquilo como qualquer golfo do Mediterrâneo;
não soprava a mais leve brisa e o céu estava limpo. Lá
ao fundo, a umas centenas de metros para sul, perfilava-se um
cabo recurvado em forma de garra, enquanto que para a direita
se estendia uma vasta região pantanosa, que terminava a oeste
numa imensa mancha de floresta. Decerto, não faltaria naqueles
paúis grande variedade de aves aquáticas a prometer uma boa caçada!
Os exploradores sentaram-se para o almoço de carnes frias e
chá de ervas, que Nab tivera o cuidado de trazer. Enquanto
comiam, observavam a grande baía invadida por blocos de gelo,
tão desolada como uma praia da região antárctica e tão
diferente da costa da ilha Lincoln onde se tinham instalado...
Gedeão Spilett quebrou o silêncio, exprimindo o que ia na
cabeça de todos:
- Se o furacão nos tivesse atirado para estas bandas, mas
que péssima impressão não teríamos da nossa futura terra!
- Estou convencido de que nem chegaríamos à praia respondeu
o engenheiro. - O mar aqui é muito fundo, sem
rochas nem bancos de areia... Não, aqui não havia salvação
possível!
Finda a refeição, os colonos prosseguiram a exploração e
dali a pouco chegavam aos pântanos cobertos de limos, juncos e
erva espessa. Era de recear que, pelo tempo quente, aquele
local fosse bastante insalubre, carregado dos miasmas que
provocam o paludismo.
Como se previa, o imenso paul era habitado por muitas aves
aquáticas que sobrevoavam a erva alta. Eram tantos os patos-bravos,
as narcejas e as galinholas, e em bandos tão
cerrados, que bastaram umas flechadas para abater uma dúzia de
patos- -tadornos, que Top corria a recolher. Sem dúvida que os
colonos tinham ali uma abundante reserva de caça!
Pelas cinco da tarde, Cyrus Smith e os companheiros
empreenderam o caminho de regresso, atravessando o pântano
dos Tadornos, como passaram a chamar-lhe.


@CAPÍTULO XI


Os grandes frios continuavam, mas nem por isso Spilett,
Pencroff e Harbert deixavam de sair, para caçar nas imediações
da Casa de Granito. De repente, tinha-lhes ocorrido montar
armadilhas no planalto e na orla da floresta, e iam
diariamente verificar se algum animal caíra nas covas tapadas
com troncos e ramagens. Por este processo, apanharam não só umas
quantas raposas, impróprias para comer, como também, e para grande
contentamento do marinheiro, vários porcos-do-mato ou, mais
concretamente, pecaris.
Subitamente, a 15 de Agosto, o tempo mudou. Primeiro,
levantou-se uma forte ventania de noroeste e, logo a seguir,
começou a nevar sem parar! Ao fim de uns dias, toda a ilha
ficou coberta de um manto branco com cerca de sessenta centímetros de altura.
De 20 a 25 de Agosto, a tempestade recrudesceu de tal modo, que
ninguém conseguiu pôr um pé fora da Casa de Granito. Lá no alto, ouvindo
os rugidos do mar e as ondas a
embater nos recifes, os nossos colonos não se cansavam de dar
graças por aquele abrigo, tão seguro como inexpugnável! Ali,
encontravam-se a salvo de todos os temporais, por mais violentos
que fossem. Esses dias de reclusão forçada, aproveitaram-nos
os colonos na construção de mais peças de mobiliário,
porque reservas de madeira é que não faltavam.
Finalmente, na última semana de Agosto, as condições
atmosféricas melhoraram e os nossos amigos apressaram-se a
descer à praia; daí, subiram ao planalto e depararam com a
vista impressionante da ilha completamente branca. A neve não
tardaria, contudo, a derreter, porque, pouco depois, a
temperatura subiu e começou a chover. Os colonos aproveitaram a
melhoria do tempo para renovar não apenas as provisões de
alimentos, como pinhões e raízes de dragoeiro, coelhos bravos
e cutias, mas também as de lenha e carvão. E andaram bem a
tratar das reservas, porque, de repente, o vento virou a
sueste e o frio tornou-se penetrantíssimo! A neve voltou e, se
acaso tivessem um termómetro, pelos cálculos do engenheiro ele
marcaria seguramente uns vinte graus negativos.
Em semelhantes condições, a pequena colónia não teve
alternativa senão ficar novamente enclausurada na Casa de
Granito. Ia o mês de Setembro a meio e já todos começavam
a ressentir-se da situação, se bem que procurassem manter-se
sempre ocupados com pequenos trabalhos de arranjo dos interiores
e outras tarefas úteis. Por outro lado, passavam longas
horas em torno das chamas da lareira, ouvindo atentamente o
engenheiro que não perdia uma oportunidade para instruir os
companheiros acerca dos mais variados assuntos.
Mas convém referir que, depois de Pencroff, quem mais
sofria com o encerramento forçado era o cão. Top dava sinais
do seu aborrecimento, andando agitadamente de um lado para o
outro, a vasculhar todos os recantos. Com o passar dos dias,
Cyrus Smith, embora sem estar especialmente atento ao comportamento
do animal, acabou por reparar que Top começava
a rosnar, sempre que entrava na arrecadação e se aproximava
da boca do poço que ia dar ao mar; por vezes, punha-se a andar
à volta do buraco, agora tapado, tentando mesmo retirar a
tampa de madeira com as patas. Este singular comportamento não
podia deixar de intrigar o engenheiro Smith. Que haveria
naquele abismo para impressionar a tal ponto o cão? As
hipóteses podiam ser várias, contudo, certezas não havia
nenhuma. Talvez por isso, resolveu guardar para si tais
reflexões.
Nos últimos dias de Setembro, cessaram por fim os
grandes frios, e os gelos e a neve acabaram por derreter. A praia,
o planalto, a margem do Mercy e a floresta voltaram a estar
praticáveis e os moradores da Casa de Granito celebraram
festivamente a chegada da Primavera!
A primeira coisa que Pencroff fez, foi passar revista às
armadilhas. Numa delas, encontrou um pecari fêmea com duas
crias. Encantado com a caçada, carregou os bichos para casa,
proclamando bem ao seu jeito:
- Ora vejam lá isto! Hoje é que vamos ter um jantar de
categoria, senhor Cyrus! Nada mais, nada menos que leitão assado.
O jantar foi servido às seis, na sala de jantar da Casa de
Granito. Depois de um caldo de aves, excelente, seguiram-se os
famosos "leitões", isto é, as crias de pecari, que o
marinheiro fez questão de trinchar e servir.
A carne era verdadeiramente saborosa e Pencroff quase
devorava o seu quinhão com um apetite assinalável, quando, de
súbito, soltou uma praga.
- O que é isso, Pencroff? - perguntou Cyrus Smith.
- Irra! Três vezes "irra"! Acho que parti um dente!respondeu
o marinheiro.
- Ora essa! Não me diga que os seus belos pecaris têm
pedras? - gracejou Gedeão Spilett.
- Até parece que sim... - retorquiu Pencroff, retirando da
boca um pequeno objecto duro.
Mas não era pedra nenhuma... Era um grão de chumbo!


@SEGUNDA PARTE

O ABANDONADO


@CAPÍTULO I


Havia sete meses bem contados que o balão atirara os cinco
passageiros às praias da ilha Lincoln, sem que, durante todo
esse tempo, os colonos tivessem detectado o mais pequeno sinal
de presença humana. De repente, todas as suas deduções e
convicções eram postas em causa por um simples grão de chumbo
encontrado no corpo de um pecari!
E motivos havia para o espanto, e alguma apreensão também,
que naquele momento cada um dos colonos não deixaria
de sentir. É que o chumbo só podia ter saído de uma arma de
fogo disparada por um ser humano!
Cyrus Smith pegou no chumbinho, virou-o e tornou a virá-lo
entre os dedos e perguntou de chofre a Pencroff:
- Tem a certeza de que o pecari não tinha mais de três
meses?
- Absoluta, senhor Cyrus! Pois se, quando o encontrei na
cova, ainda estava a mamar na teta da mãe!
- Sendo assim, fica provado que nos últimos três meses
alguém disparou um tiro de espingarda na ilha Lincoln. Daqui
podemos concluir como certo que, das duas, uma: ou a ilha já
era habitada quando cá chegámos, ou alguém desembarcou
nestas costas nestes últimos tempos... Claro que também pode
ser um náufrago, ou náufragos. - E o engenheiro continuou:
- O que não podemos adivinhar é se se trata de um ou mais
homens, se são amigos ou inimigos, americanos, europeus ou
indígenas...
- Não, isso não pode ser! Mil vezes não! - exaltou-se o
marinheiro. - Não há mais ninguém nesta ilha além de nós
cinco! Que diabo, se tivesse habitantes, já os teríamos visto.
- O Pencroff tem razão e o contrário é que seria de admirar concordou
Harbert.
- O que seria de admirar é que este animalzito tivesse
nascido com um chumbo no corpo! - comentou Gedeão Spilett.
O engenheiro Smith retomou a palavra:
- A pessoa, ou pessoas que desembarcaram na ilha, ou
estiveram de passagem, ou ainda cá estão. E é isto, meus
amigos, que temos de averiguar, porque receio bastante que
sejam piratas!
- Senhor Cyrus, não acha que devíamos construir uma
embarcação para subir o rio Mercy e talvez, quem sabe, navegar
à volta da ilha?
- Excelente ideia, Pencroff, e o melhor é começarmos já,
porque a construção de um barco não leva menos de um mês!
- Um barco a sério talvez - volveu o marinheiro -, mas
nós só precisamos de uma espécie de canoa, de um bote que seja
capaz de navegar rio acima! Isso faço eu em cinco dias!
- Pois então esperemos cinco dias e, até lá, todo o cuidado
é pouco! Quanto a caçadas, só aqui perto da Casa de Granito
- rematou Cyrus Smith.
Logo na manhã seguinte, Pencroff saiu à procura das árvores
mais adequadas para fazer o bote. Depois de encontrar o que
pretendia, tratou de retirar as placas de casca necessárias,
tarefa complicada dada a falta de ferramenta apropriada.
Porém, com a ajuda de Cyrus Smith e das ferramentas
rudimentares de que dispunham, juntamente com muita
habilidade, lá se conseguiu a madeira e a construção da barca começou.
Num desses dias em que Pencroff e o engenheiro se dedicaram
por inteiro às artes de carpintaria naval, Harbert e
Nab, andando a passear pela praia a uns dois quilómetros da
Casa de Granito, avistaram uma tartaruga enorme que se
escapulia para o mar.
- Anda daí, Nab, vem ajudar-me! Um manjar daqueles não
se pode perder!
A ideia do rapaz era virar a tartaruga de barriga para o ar,
para que não pudesse fugir enquanto iam buscar a carroça para
a transportar até casa. Meteram os paus debaixo do animal e,
conjugando as forças, deram-lhe a volta. A tartaruga, um
magnífico exemplar da ordem dos quelónios, devia pesar quase
duzentos quilos!
- Quem vai ficar todo contente é o Pencroff! - exclamou
o jovem negro.
Para maior segurança, ainda colocaram uns quantos pedregulhos
a toda a volta do réptil e correram a buscar a carroça
construída por Pencroff, cujo único "defeito" era o de ter
de ser puxada à força de braços, à falta de animais de tiro. Porém,
quando voltaram, só acharam o sítio! A tartaruga desaparecera
sem deixar rasto!
- Esta agora! Então, afinal, estes bicharocos conseguem
voltar-se sozinhos? - espantou-se Nab.
- Pelos vistos... - respondeu Harbert.
O rapaz mirava os pedregulhos, perplexo, sem compreender o
que se passara.
Regressaram, pois, com a carroça vazia, e Harbert foi sem
demora contar ao engenheiro o sucedido. Cyrus Smith estava a
ajudar Pencroff no estaleiro improvisado. Depois de ouvir o
relato dos acontecimentos com toda a atenção, perguntou a que
distância do mar tinham deixado a tartaruga e, ainda, se a
maré estava vazia, concluindo, pelas respostas de Harbert,
que, provavelmente, com a subida da maré o animal conseguira
voltar-se, coisa realmente impossível na areia seca.
No entanto, e apesar da explicação sugerida, estaria Smith
realmente convencido?
O bote ficou pronto a 29 de Outubro, precisamente no prazo
prometido pelo marinheiro. Era uma espécie de canoa larga e de
fundo chato, com três metros e meio de comprimento e três
bancos, um à ré, outro ao meio e um terceiro à proa, além das
forquilhas para os remos. Pencroff também não esquecera um
terceiro remo de pá larga, destinado a governar a embarcação
à popa.
Sem perda de tempo, trataram de experimentar o bote,
pondo-o a flutuar nas águas do canal. Pencroff subiu para o
barquinho e, depois de se certificar de que não metia água,
concluiu que estava em perfeitas condições para navegar.
- Hurra! - gritou ele, entusiasmado. - Com isto até se
dava a volta...
- Ao mundo? - perguntou o repórter, na brincadeira.
- Não, à ilha! E se o senhor Smith nos arranjasse uma vela,
punha-se aqui um mastro e íamos longe! Vá, subam todos, que
diabo! Sempre quero ver se o nosso bote pode com os cinco.
E, na verdade, convinha fazer essa experiência. Depois de
embarcarem, Pencroff manobrou o barco para fora do canal, e,
com Nab e Harbert nos outros remos, dirigiram-se para a foz do
Mercy. Ultrapassada esta, contornaram a ponta que separava a
praia da Casa de Granito da grande baía do pântano dos
Tadornos. O mar estava calmo e o barquinho navegava na
perfeição, sempre junto à costa.
O repórter ia desenhando a traços largos os pormenores do
litoral; Nab, Pencroff e Harbert conversavam animadamente
disto e daquilo, e Cyrus Smith olhava a praia sem dizer uma
palavra. Subitamente, Harbert pôs-se de pé e apontou um ponto
escuro no areal.
- Que será aquilo acolá na praia?
Pencroff apurou a vista e declarou sem hesitar:
- Barricas! São barricas que vieram dar à costa. Se calhar,
estão cheias!
- Toca a remar para terra! - comandou Smith.
O marinheiro não se enganara. Eram mesmo duas barricas,
quase enterradas na areia, amarradas a um grande caixote, que,
desse modo, viera a boiar para terra. O caixote era de
excelente qualidade, todo forrado a couro e com pregos de
cobre; por outro lado, as cordas que o prendiam às barricas estavam
solidamente amarradas com "nós de marinheiro", conforme
notou logo Pencroff, que ardia de impaciência e curiosidade.
Por ele, rebentavam já ali o caixote à pedrada, mas o
engenheiro observou que seria mais conveniente rebocar tudo
até à praia da Casa de Granito, onde facilmente abririam o
caixote sem o danificar. Concordaram todos, e, após terem
atado solidamente as barricas ao bote, remaram para casa. Pelo
caminho, os
colonos foram tecendo conjecturas acerca da recente
descoberta. O mais provável é que o caixote pertencesse a um navio
naufragado... E ter-se-ia salvo alguém nesse naufrágio? Talvez
o dono do caixote... Quem sabe, até, se este incidente não
estaria ligado ao grão de chumbo?
- O que temos a fazer é abrir a caixa e fazer o inventário
completo do que contém - disse Cyrus Smith. - Depois, há
que procurar possíveis sobreviventes desse naufrágio, se é que
houve algum. Se encontrarmos alguém, entregamos as coisas;
se não encontrarmos...
- Ficamos nós com elas! - atalhou Pencroff.
E assim conversando chegaram à praia da Casa de Granito.
Desembarcaram e puxaram as barricas e o caixote para a areia
seca, enquanto Nab subia lá acima a buscar as ferramentas.
Desataram as barricas, muito aproveitáveis, e logo a seguir
fizeram saltar as fechaduras do caixote. O interior era
forrado com chapa de zinco que, depois de cortada, foi
afastada para os lados, revelando aos olhares extasiados dos
colonos os mais variados objectos. À medida que as coisas iam
sendo tiradas lá de dentro e alinhadas na areia, Pencroff dava
"vivas!", Harbert batia palmas e Nab, então, não parava de saltar!
Quando o último objecto foi retirado, os colonos tinham
razões de sobra para estar contentes. Havia ali de tudo um
pouco, armas, roupas, instrumentos... e até livros! Segue-se a
lista completa, anotada por Gedeão Spilett no seu caderninho:
Ferramentas:
3 navalhas
2 machados de cortar lenha
2 machados de carpinteiro
3 plainas
2 enxós
1 enxó de dois gumes
6 tenazes
2 limas
3 martelos
3 verrumas
2 brocas
10 sacos de pregos e parafusos
3 serras de diferentes tamanhos
2 caixas de agulhas

Armas:
2 espingardas de pederneira
2 espingardas de cápsula
2 carabinas
5 facas de mato
4 sabres de abordagem
2 barris de pólvora
12 caixas de cápsulas fulminantes

Instrumentos:
1 sextante
1 binóculo
1 óculo de longo alcance
1 estojo com compasso
1 bússola
1 termómetro
1 barómetro
1 caixa com máquina fotográfica, película e material de
revelação

Vestuário:
2 dúzias de camisas (de um tecido especial, semelhante à lã)
2 dúzias de meias do mesmo fio

Utensílios:
1 caldeirão de ferro
6 caçarolas de cobre
3 pratos de ferro
2 chaleiras
1 fogão portátil
6 facas de cozinha
10 talheres de alumínio

Livros: ¨
1 Bíblia
1 atlas
1 dicionário das línguas faladas nos arquipélagos do Pacífico
1 enciclopédia de ciências naturais (seis volumes)
3 resmas de papel de escrever
2 cadernos (com as folhas em branco)

Findo o inventário, o repórter não se conteve:
- Está visto que o dono de tudo isto era homem prático e
muito previdente! Parece mesmo que estava à espera de naufragar
e que já tinha este caixote preparado para semelhante
eventualidade!
- É justamente isso que me intriga... Realmente, não falta
aqui nada! - comentou o engenheiro com ar pensativo.
- E se procurássemos nestas coisas alguma marca, um
nome, uma morada, que nos esclarecesse quanto à identidade
do proprietário ou, pelo menos, a sua proveniência? - propôs
Gedeão Spilett.
A ideia era oportuna e cada um dos objectos foi minuciosamente
revistado, com especial atenção para as armas e
livros. Contudo - e contrariamente ao que seria normal - não
encontraram um nome, ou sequer iniciais, nem marca dos
fabricantes, nem referência a tipografias... Nada! Outro facto
estranho era o aspecto absolutamente novo das ferramentas,
utensílios, instrumentos e tudo o mais, como se nada daquilo
tivesse sido usado alguma vez.
O resto do dia foi dedicado ao transporte do conteúdo do
caixote para a sala grande da Casa de Granito, onde tudo ficou
devidamente arrumado.
No dia seguinte, 30 de Outubro, estava tudo a postos para a
expedição. Na verdade, os últimos incidentes - a descoberta do
grão de chumbo e do caixote - tornavam urgente uma
viagem de exploração da ilha. O plano do engenheiro consistia
em subir o Mercy até onde fosse navegável, de modo a avançar
no sentido oeste com o mínimo de esforço e de fadigas.
Às seis horas da manhã, os nossos colonos empurraram o
bote para a água e embarcaram. A bordo, levavam reservas de
carne para três dias e o fogãozinho portátil que vinha no
caixote, bem como dois machados de lenhador, caso fosse preciso
desbravar mato, as espingardas de pederneira, uma carabina, as
facas de mato, o óculo de longo alcance e a bússola. Estavam,
portanto, graças ao caixote providencial, devidamente equipados
para se aventurarem na floresta desconhecida.
Chegados à foz do Mercy, após meia hora de espera pela
maré favorável, iniciaram a subida do rio aproveitando a
corrente da enchente. Pelas dez da manhã, atingiram a segunda
curva, uns oito quilómetros a montante, e Cyrus Smith decidiu
que acostassem para almoçar. As florestas das margens estendiam-se
a perder de vista, mas, até ali e tanto quanto puderam
observar, não havia o menor indício da presença de homens por
aquelas paragens. O engenheiro tinha pressa de chegar à costa
ocidental da ilha Lincoln - a cerca de dez quilómetros de
distância, segundo calculava - e, assim, não demoraram a
embarcar de novo.
À medida que navegavam rio acima, a profundidade do curso de
água ia diminuindo, assim como a força da corrente, que a dada
altura cessou por completo. Nab e Harbert pegaram nos remos e
a subida prosseguiu. Pencroff manobrava à popa,
enquanto Smith e Spilett seguiam atentos às margens. A
paisagem, entretanto, também se modificara e à floresta quase
impenetrável sucediam-se agora árvores cada vez mais dispersas
e vastas clareiras. Harbert reconheceu imediatamente algumas
dessas árvores como sendo eucaliptos, o que confirmava a
teoria do engenheiro Smith de que a ilha Lincoln estaria à
mesma latitude da Austrália e da Nova Zelândia.
A meio da tarde, avançava-se a custo. O leito do rio
estreitava por entre penedias e o caudal, cada vez mais baixo,
estava juncado de rochas e plantas aquáticas. Era evidente que
se aproximavam da nascente do Mercy e, por conseguinte, dos
contrafortes do monte Franklin...
- Não tarda muito vamos ser obrigados a parar, senhor
Cyrus! - observou o marinheiro.
- Paremos, então! São horas de pensar no acampamento respondeu
Cyrus Smith.
Naquele local, o rio já não teria mais de três metros de
largo e o bote quase roçava no leito pedregoso... Mais uma
curva e tocou no fundo. Os colonos desembarcaram na margem
direita e amarraram a barca a um tronco. Eram cinco da tarde e
a noite não tardaria. Acenderam uma fogueira e cearam com um
apetite devorador. Depois, os nossos exploradores
acomodaram-se o
melhor que podiam por entre os ramos de um maciço de lódãos
e adormeceram profundamente.

@CAPÍTULO II


Pelas seis da manhã, os colonos já estavam a postos para
prosseguir a pé a expedição em direcção a oeste. Antes de
partirem, verificaram a amarração do bote e, depois de
decidido o melhor caminho a seguir, Cyrus Smith recomendou
expressamente
que não se fizesse uso das armas de fogo quando se
aproximassem do litoral. Esta precaução desagradou bastante a
Pencroff, que, de boa vontade, mandaria umas cargas de
chumbo aos javalis e cutias que, pelos vistos, abundavam por
aqueles sítios!
Três horas depois, os colonos viram o caminho barrado por um
curso de água desconhecido, com poucos metros de largo
e uma corrente fortíssima. O leito rochoso e irregular apresentava uma
série de declives e rápidos, tornando a navegação impraticável.
- E agora, senhor Cyrus? Estamos cortados? - perguntou
Pencroff.
- Não passa de uma ribeira! Podemos atravessar a nado sugeriu
Harbert.
- Não vale a pena - atalhou Cyrus Smith. - É evidente
que este ribeiro corre para o mar, portanto, se seguirmos pela
margem, vamos dar à costa. A caminho!
O terreno não apresentava dificuldades ou obstáculos de
maior, pelo que a marcha decorria com rapidez; também por ali
não era visível qualquer pegada ou outro indício da passagem
de seres humanos. Finalmente, por volta das dez e meia,
Harbert, que seguia na dianteira, parou de repente, soltando
uma exclamação:
- Olha o mar!
Não restavam dúvidas! Sem qualquer zona de transição, o
arvoredo terminava abruptamente mesmo à beira do oceano,
enquanto o regato se despenhava de um último declive. Que
contraste entre aquela costa e a outra onde o destino os
lançara! Ali não havia muralha de granito, rochas ou escolhos
pelo mar fora, sequer uma praia! Perante aquela orla florestal
admirável, onde, porém, seria impossível qualquer acostagem, o plano
inicial foi alterado. Os colonos tinham deixado a Casa de
Granito com a intenção de explorar a costa ocidental, após o
que regressariam pelo mesmo caminho, isto é, descendo o Mercy
no bote. Agora, parecia-lhes mais proveitoso prosseguirem a
exploração para sul, contornando a costa meridional até casa.
O almoço foi rápido e os colonos retomaram a marcha
seguindo a orla da floresta junto ao mar. Pelas seis da tarde,
mortos de cansaço, atingiram o promontório sul em forma de
cauda de réptil, pormenor que lhes chamara a atenção lá do
alto do monte Franklin. A partir dali, a floresta recuava
novamente para o interior e o litoral apresentava o aspecto
habitual, de rochedos e praia de areia. Mas escurecia e
impunha-se encontrar abrigo para a noite.
Aquela parte da costa, bastante batida pelo mar, era pródiga
em reentrâncias e cavidades nas rochas, pelo que Harbert e o
marinheiro não demoraram muito a encontrar uma gruta que
lhes pareceu adequada. Dispunham-se a entrar para inspeccionar
melhor o local, quando ouviram um rugido medonho que vinha lá
do fundo!
- Para trás! - gritou Pencroff. - Os grãos de chumbo das
nossas espingardas numa fera com um rugir destes fazem o
mesmo efeito que grãos de sal.
E os dois amigos correram a esconder-se atrás de um penedo.
À entrada da gruta, perfilava-se um jaguar com cerca de um
metro e sessenta da cabeça ao começo da cauda! O animal
avançou e pôs-se a olhar em redor, com o pêlo todo eriçado...
Nesse preciso momento, Gedeão Spilett surgiu no campo de
visão dos dois companheiros entrincheirados; de carabina apoiada
no ombro, avançava lentamente para a fera. A dez passos de
distância, parou e fez pontaria. Harbert e Pencroff sustinham
a respiração... Nisto, o jaguar encolheu-se todo e saltou!
Mais rápido, o repórter fez fogo e o animal caiu morto com uma
bala entre os olhos.
Smith e Nab acorreram ao ouvir o disparo. Nesse momento, já
Pencroff estava a admirar o jaguar e a imaginar como a respectiva pele ficaria bem numa das paredes do salão da Casa de Granito!
- Ah! Senhor Spilett, se o senhor soubesse como eu admiro a
sua calma e a sua pontaria! - exclamou Harbert, entusiasmado.
- Ora, meu rapaz, terias feito a mesma coisa! - respondeu o
repórter. - E agora, companheiros, por que esperamos para
entrar no abrigo?
- Alto lá, que podem aparecer outros! - alarmou-se o
marinheiro.
- Se fizermos um bom lume à entrada, não há um que se
atreva a entrar - garantiu Spilett.
E vai daí começaram a amontoar grande quantidade de lenha
diante da gruta, enquanto Nab tratava de esfolar o jaguar.
Cyrus Smith encaminhou-se para uma pequena mata de bambus, que
avistara ali perto, e cortou umas quantas canas que misturou
na pilha de lenha. Assim que acenderam a fogueira, começaram a
soar estampidos que nem petardos e fogo-de-artifício! Eram as
canas de bambu a estalar com o lume e só a barulheira que
faziam chegava e sobejava para assustar as feras mais afoitas!
Este engenhoso processo de afastar animais indesejáveis não
foi, porém, invenção do engenheiro. Conforme explicou aos
amigos, já Marco Polo o referia nos relatos das suas viagens,
como sendo muito utilizado pelos Tártaros nos acampamentos da
Ásia Central. Bem, o certo é que os nossos exploradores
puderam comer e dormir em paz naquela gruta de chão de areia macia.
Ao raiar da aurora, o grupo pôs-se a caminho. Diante dos
colonos, estendiam-se quilómetros de uma costa ainda desconhecida,
e que, segundo os cálculos do engenheiro, devia
terminar no cabo em forma de garra que, por sua vez, limitava
a sul a grande baía dos pântanos onde aparecera o caixote
misterioso. Os nossos amigos caminhavam pela beira-mar,
enquanto Top corria ao longo da floresta, farejando e buscando
como era seu hábito, quando o marinheiro, sempre atento aos
pormenores do mar, observou:
- Se algum navio arribasse a esta praia, era certo e sabido
que se perdia! Olhem os bancos de areia e acolá os recifes...
Que raio de sítio!
- Mas sempre ficariam destroços! - alvitrou o repórter.
- Qual quê! Só se nas rochas, que estas areias engolem tudo
num abrir e fechar de olhos! Até o casco de um navio respondeu
Pencroff.
Mas, apesar de procurarem por entre todas as rochas e
recifes com que topavam, não acharam um único vestígio de
naufrágio.
A meio da tarde, já relativamente perto do cabo da Garra,
chegaram os colonos a um recorte pronunciado da costa, uma
espécie de estreita enseada que formava, por assim dizer, um
pequeno porto natural. A enseada, invisível do lado do mar,
era rodeada por frondosa mata de pinheiros marítimos que subia
suavemente em direcção ao planalto. Gedeão Spilett propôs que
se fizesse ali uma paragem e todos concordaram de bom grado. A
caminhada aguçara-lhes o apetite e, minutos depois, devoravam
as provisões que Nab tirara da sacola. Depois do lanche,
Cyrus Smith pegou no óculo e pôs-se a esquadrinhar atentamente,
não só a linha do horizonte, como a parte do litoral que
lhes faltava percorrer. Porém, não avistou coisa alguma... Nem
sombra de navio no mar, nem um único destroço ou objecto
suspeito em terra.
- Bem, pelos vistos resta-nos a consolação de ficarmos com a
ilha Lincoln só para nós! - comentou Gedeão Spilett.
Mal esta frase fora dita, surgiu Top a correr, vindo da
mata, com um pedaço de tecido preso na boca! Nab apressou-se a
tirar-lhe o farrapo dos dentes e o cão desatou a ladrar,
correndo para trás e para a frente como a pedir que o
seguissem.
- Pode ser que esteja acolá a explicação para o meu grão
de chumbo!- disse Pencroff.
- Pode ser um náufrago! - sugeriu Harbert.
- E talvez esteja ferido! - acrescentou Nab.
- Ou morto! - rematou o repórter.
E lançaram-se todos atrás do cão. Ao cabo de cinco minutos
de corrida precipitada através do pinhal, Top estacou diante
de um pinheiro gigantesco. À primeira vista, não havia ali
nada de suspeito, e, todavia, o cão não parava de ladrar.
- Então, Top, o que é isso? - perguntou Cyrus Smith.
De repente, a resposta veio de Pencroff:
- Ah! e esta agora? Quem havia de dizer que os destroços
que tanto procurámos em terra e no mar, afinal estavam no ar!
E o marinheiro apontava para o topo da árvore, donde pendia
uma espécie de enorme farrapo esbranquiçado!
- Ora ali está, meus amigos, o que resta do nosso balão!
E que porção de pano, e do melhor, para fazermos camisas,
lenços e o resto...! Então, senhor Spilett, o que é que tem a
dizer de uma ilha onde as camisas nascem nas árvores como fruta?
Era, na verdade, uma circunstância afortunada para os
colonos, aquela de o balão ter caído na ilha e de ter sido
encontrado e, como é bom de ver, a alegria de Pencroff foi
efusivamente partilhada. Contudo, urgia tirar o invólucro do
balão lá de cima, tarefa tão arriscada, quanto trabalhosa.
Nab, Harbert e o marinheiro treparam ao pinheiro e só ao cabo
de quase duas horas é que conseguiram desprender não só o
tecido, como também as molas, as guarnições de cobre, as redes e a
âncora do aeróstato, que julgavam perdido no mar. Em suma,
caíra-lhes do céu uma autêntica fortuna!
- Este tecido que aqui temos, senhor Cyrus, chega e sobeja
para as velas de um bom barco de vinte toneladas e ainda sobra
para nos vestirmos! - exclamou o marinheiro.
- Veremos, veremos! - respondeu o engenheiro.
- Mas até lá, convinha guardar tudo em lugar seguro lembrou
o jovem negro.
Nab tinha razão. Era impensável carregar aquele material tão
pesado até à Casa de Granito e, enquanto não houvesse caminho
para trazer a carroça, o importante achado devia ficar
escondido. Assim sendo, arrastaram a tela e os restos do balão
até à enseada e puseram tudo a bom recato numa espécie de
gruta dissimulada entre os penhascos.
Nestes trabalhos foi a tarde passando, de modo que já
escurecia, quando os colonos contornaram o cabo da Garra para
a baía dos pântanos. Daí a nada, chegavam ao local onde, uns
dias antes, haviam recolhido o caixote e, nesse momento,
realizaram que toda a expedição à costa ocidental e litoral
sul da ilha Lincoln não só não lhes fornecera a mais pequena
explicação para tão misterioso achado, como em nada esclarecera
a questão do grão de chumbo encontrado no pecari!
Estava escrito que aquele dia, 1 de Novembro, não acabaria
sem que ocorresse outro acontecimento inesperado... e providencial!
Preparava-se Pencroff para cortar uns quantos troncos
e improvisar uma jangada que lhes permitisse atravessar o
Mercy e chegar a casa, quando, subitamente, o jovem Harbert,
que passeava ao longo da margem do rio, gritou, apontando para
montante:
- O que é aquilo que ali vem rio abaixo?
- Mas é o nosso bote, macacos me mordam! Pelos vistos,
partiu-se a amarra... Ora não podia aparecer em melhor altura!
Era, efectivamente, o bote dos colonos que voltava sozinho da
nascente do Mercy, arrastado pela corrente da vazante. Nab e o
marinheiro, munidos de varapaus, correram a suster a
embarcação e puxaram-na para a margem. Cyrus Smith foi o
primeiro a embarcar, verificando que a ponta da corda estava
gasta como se tivesse roçado constantemente contra uma superfície
áspera.
Gedeão Spilett, que subira a seguir, disse baixinho:
- Mas que coisa tão....
- Estranha! - concluiu o engenheiro, também a meia voz.
Estranha, ou não, fora uma coincidência feliz. Tivesse a
barca passado a outra hora, que não naquele preciso momento, e
seria arrastada para o mar. Os outros embarcaram e umas
quantas remadas bastaram para os pôr do outro lado, junto à
foz. Puxaram o bote para a areia e encaminharam-se para as
escadas... Nesse momento, Top começou a ladrar furiosamente e
Nab, que tinha ido à frente e procurava no escuro a extremidade
da escada de corda, soltou um grito. A escada desaparecera!

Cyrus Smith ficou paralisado, sem articular palavra. O que
poderia ter acontecido? Os outros começaram a procurar às
apalpadelas ao longo da muralha de granito, não fosse o caso
de a escada se ter desprendido e caído na praia... Mas não!
Quanto a saber se algum golpe de vento levantara a escada,
deixando-a presa nalgum ponto da falésia, só de manhã isso
seria possível.
- Se é uma brincadeira, é de muito mau gosto! - vociferava
Pencroff. - Isto de uma pessoa chegar a casa e não poder
entrar, não tem graça nenhuma! Mais a mais, estafados como
estamos.
- Não tem estado vento... - murmurou Harbert.
- Ouçam, amigos, com esta escuridão não podemos fazer
nada. Vamos esperar pelo romper do dia e logo se verá...
decidiu o engenheiro Smith. - Dormimos nas Chaminés que
sempre é melhor do que ficar ao relento.
Mal clareou a madrugada, o grupo de colonos aproximou-se
cautelosamente da Casa de Granito, de armas preparadas para
qualquer eventualidade. Mal olharam lá para cima, soou uma
exclamação unânime: a porta estava escancarada! Não havia
dúvida de que alguém entrara em casa, na ausência dos colonos.
A primeira escada, da porta ao patamar de rocha, estava no
lugar, mas a parte inferior fora puxada para cima. Pencroff
chamou em voz alta, mas não houve resposta.
- Que grandes patifes! Instalados como se a casa fosse
deles... Ah! os piratas, com trinta mil diabos!
O sol subia no horizonte iluminando plenamente a fachada da
Casa de Granito, mas o aspecto era da maior calmaria e não se
via vivalma... Até era caso para duvidar que a casa estivesse
ocupada, se não fosse a porta aberta e a escada recolhida!
A única coisa que podiam tentar era apanhar a ponta da
escada, içada até ao patamar a meio da muralha, e puxá-la; por
sorte, tinham um arco, flechas e cordas nas Chaminés, e
Harbert foi escolhido para levar a cabo a proeza. Amarrou uma
corda à seta, fez pontaria e disparou. A seta cortou os ares e
foi prender-se na escada! Ia o rapaz puxar pela ponta da corda
para desprender a escada, quando um braço apareceu à porta e
içou
as escadas para dentro de casa! Ao mesmo tempo, surgiam às
janelas umas criaturas peludas e de tamanho considerável a
fazer acenos e caretas na direcção dos colonos...
- O quê? Não querem lá ver! Os invasores são macacos.
Esperem aí, que eu já lhes digo! - berrou Pencroff, disparando
um tiro para uma das janelas.
Uma das criaturas caiu redonda na praia. Era um animal
corpulento, do tamanho de um homem. Depois de um breve
exame, Harbert virou-se para o marinheiro:
- Olha, Pencroff, não são exactamente macacos... São
orangotangos, da ordem dos antropomorfos e, para além do seu
aspecto quase humano, são espertíssimos!
- Pois sim, pois sim... Macacos ou orangotangos tanto me
faz! Só queria saber é como vamos entrar em casa! arrepelava-
-se o marinheiro. - De parvos é que não têm nada!
Vejam lá se eles aparecem outra vez à janela! Ai os estragos lá em
casa... e a razia na despensa!
Os colonos esperaram mais umas boas duas horas, mas nem
um único orangotango se deixou ver. Cyrus Smith achou melhor
esconderem-se todos, para ver a reacção dos intrusos. Nesse
meio tempo, Nab e Pencroff foram à capoeira do planalto buscar
uns pombos-da-rocha para o almoço. O tempo foi passando e
a situação mantinha-se. Era desesperante!
- Ah! se eu apanho essa macacaria toda cá em baixo! Quantos
serão? - perguntou Pencroff, feito uma autêntica fúria.
- Que situação mais ridícula, realmente! - desabafava o
repórter. - E o pior é que não vejo maneira de lhe pôr fim...
- Há uma maneira... - disse, de repente, o engenheiro.A
entrada pelo escoadouro do lago!
- Com mil diabos! E eu que não me lembrei disso!exclamou
Pencroff.
A abertura do escoadouro, agora tapada com pedregulhos,
teria de ser novamente destapada, mas não havia outra solução.
Os colonos correram às Chaminés a buscar as picaretas e já
subiam a caminho do lago, quando começaram a ouvir uma
chinfrineira medonha! Os orangotangos guinchavam e Top
ladrava ao desafio...
- Toca a correr! Vamos ver o que é - disse o repórter.

Na Casa de Granito, a situação alterara-se radicalmente!
Tomados de tão súbito quanto inexplicável terror, os
quadrúmanos saltavam de janela em janela, até que atiraram a
escada e desataram a descer empurrando-se uns aos outros... Na
precipitação da fuga, alguns nem esperaram vez e lançaram-se
para a praia, caindo estatelados. Dali a nada, havia uma boa
dezena de orangotangos mortos na areia e outros tantos a fugir
em direcção ao bosque do Jacamar.
- Hurra! Hurra! - gritava o marinheiro, que foi o primeiro a
subir a escada.
A Casa de Granito estava um verdadeiro caos, mas depois
de uma inspecção meticulosa, os colonos verificaram que a
desarrumação era maior que o estrago propriamente dito. O
resto do dia foi dedicado às tarefas de limpeza e arrumação,
mas Cyrus Smith, por mais que pensasse no assunto, não atinava
no motivo da súbita e aterrada fuga dos orangotangos... Mais
outro acontecimento que ficava por explicar.

@CAPÍTULO III


No dia seguinte, a pequena colónia deu início a um dos
projectos mais antigos do engenheiro Smith: a construção de
uma ponte sobre o rio Mercy. Com efeito, urgia estabelecer uma
comunicação mais fácil entre a Casa de Granito e a parte sul
da ilha. De manhã cedo, os colonos, munidos de machados,
serras, martelos e pregos, partiram para a margem do rio e
deitaram mãos ao trabalho, começando pelo derrube das árvores
que forneceriam a madeira.
Os trabalhos prosseguiram com tal entusiasmo que ao cabo de
três semanas, a 20 de Novembro, a ponte estava terminada.
Ficou localizada na primeira curva do rio, a cerca de um
quilómetro da foz, e para maior segurança dos colonos tinha a
particularidade de ser uma ponte basculante, isto é, fixa numa
das margens, neste caso a esquerda, podendo daí ser levantada
ou descida consoante fosse necessário.
Durante todo o mês de Dezembro, particularmente quente,
decorreram outros trabalhos, agora no planalto. Apesar do
calor intenso, a terra foi preparada para a segunda sementeira
de trigo e outras culturas que os colonos tencionavam experimentar
naquele pedaço de terra fértil. Outro projecto urgente tinha a
ver com a instalação de uma capoeira, também no planalto e perto
da margem sudeste do lago. O recinto escolhido, com cerca de
mil metros quadrados, foi vedado por uma paliçada e no seu
interior os colonos construíram abrigos para os futuros
ocupantes. Os primeiros "hóspedes" da capoeira foram dois
tinamus, aves muito semelhantes às perdizes. O casal não
tardou a dar uma bela ninhada e à família de tinamus
juntaram-se, em breve, seis patos, um casal de aléctores e
muitas galinhas-d'água... O certo é que toda aquela sociedade,
depois de muitas brigas e discórdias, acabou por se entender,
reproduzindo-se normalmente. Para completar a obra, Cyrus
Smith fez questão que se construísse também um pombal a um
canto da capoeira, onde
foram metidos doze pombos-da-rocha, os quais, sendo mais
domesticáveis que os pombos-bravos comuns, depressa se
habituaram ao novo poiso.
Era finalmente chegado o momento de tirar proveito do
tecido do balão para fazer roupa branca. Ora tudo dependia do
transporte do invólucro até à Casa de Granito, que só poderia
ser efectuado na carroça. Mas... e puxá-la!? Um dia, 23 de
Dezembro, os colonos, ocupados com trabalhos de forja nas
Chaminés, ouviram Nab a gritar no planalto, ao mesmo tempo
que Top ladrava... Acorreram imediatamente, receando algum
incidente grave. Mas que viram eles? Dois soberbos animais,
parecidos com burros grandes e listrados de branco na cabeça,
pescoço e tronco. O casal de quadrúpedes avançava
tranquilamente, sem o menor sinal de inquietação.
- São onagros! - exclamou Harbert. - São desses
quadrúpedes meio-zebras, meio-cavalos selvagens da África Austral!
- Pois para mim são burros e vêm mesmo a calhar!declarou
Pencroff.
Os colonos decidiram deixar o casal de onagros passear em
liberdade durante alguns dias e o engenheiro fez imediatamente
construir junto da capoeira uma espécie de cavalariça, onde os
onagros pudessem ter boa cama e abrigo para a noite. A
preocupação de todos é que os animais não se assustassem e se
fossem familiarizando com a proximidade de seres humanos.
Enquanto isso, não só foram fabricados arreios e tirantes
com fibras vegetais, como foi aberta uma estrada a ligar a
margem direita do Mercy ao pequeno porto da costa meridional, onde
o balão ficara escondido. A estrada seguia quase a direito
pelo interior, tendo à esquerda o pântano dos Tadornos e à
direita a orla das grandes florestas que se estendiam até à
parte ocidental da ilha Lincoln. Desse modo, o trajecto até ao
porto do Balão - assim baptizado pelos colonos - não chegava a cinco quilómetros.
Finalmente, em fins de Dezembro, Pencroff, que ganhara a
confiança dos onagros, atrelou-os pela primeira vez à carroça.
Logo que se sentiram presos, os animais trataram de se
empinar, estrebuchando de tal maneira, que foi um trabalhão para os
segurar. Porém, dali a pouco, acalmaram e desempenharam a
contento o serviço que lhes era exigido! Os colonos subiram
todos para o carro e, apesar dos saltos e solavancos, chegaram
ao destino sem maior obstáculo. Pelas oito da noite, estavam
de volta à ponte do Mercy, trazendo o invólucro e as peças
restantes do balão.
A primeira semana de Janeiro foi, então, dedicada à confecção
da roupa branca de que tanto careciam e as agulhas
encontradas no caixote não pararam, empunhadas por mãos
hábeis e vigorosas. A linha utilizada na costura foi a mesma
que servira para coser o balão, descosida ponto por ponto pelo
repórter com uma paciência infinita. Também, por essa altura,
se fizeram os tais sapatos de pele de foca, que ficaram
deveras confortáveis.
Assim começava o ano de 1866, com continuação de
temperaturas altas. Nos últimos dias de Janeiro, Cyrus Smith
decidiu que se começassem os trabalhos de construção de um
curral na parte central da ilha, junto aos contrafortes do
monte Franklin. Era sua intenção alojar aí um número de cabras-monteses
e carneiros bravos, que haviam de fornecer lã para
as roupas de Inverno. O primeiro passo foi a abertura de uma
segunda estrada com uns oito quilómetros, a estrada do curral,
que conduzia ao local escolhido, um prado de erva alta e
fresca, com um regatinho ali perto. Traçado o perímetro do curral,
começaram os colonos por levantar uma paliçada alta e resistente
e, a seguir, os alpendres para abrigar os animais. Na parte
da frente da cerca, fizeram um portão de dois batentes e
tranca. Enfim, tudo concluído, recolheram, não sem bastantes
canseiras, umas quantas dezenas de cabras e carneiros e
instalaram-nas na sua nova casa.
Nessas noites de Verão, os colonos tinham por hábito sentar-se
à beira do planalto, num banco rodeado de plantas
trepadeiras, assim uma espécie de varanda sobranceira ao
oceano, que Nab caprichara em arranjar. Conversavam então longamente,
fazendo planos e rindo com o bom-humor do marinheiro,
gozando a brisa fresca do mar e o seu pequeno mundo, onde
a mais perfeita harmonia nunca deixara de reinar.

@CAPÍTULO IV


Nos princípios de Março, o calor continuava excessivo.
Sentia-se a atmosfera carregada de electricidade e era claro
que se avizinhavam grandes trovoadas. Efectivamente, no dia 2,
o vento rodou a leste e rebentou uma tempestade medonha! Aos
relâmpagos que cruzavam os céus, sucedia-se o fragor surdo dos
trovões e assim foi durante uma semana inteira. Os colonos
resolveram aproveitar o mau tempo para trabalhar em casa,
reparando e melhorando os interiores. Harbert, que havia crescido
bastante no último ano, dedicou esses dias de reclusão à
leitura e ao estudo, aproveitando a pequena biblioteca do
caixote. O engenheiro via com satisfação o genuíno interesse
do jovem pelos mais variados assuntos e registava as suas
capacidades e qualidades morais. "Quando eu morrer",
pensava, "ele é que há-de substituir-me".
A 9 de Março, as trovoadas passaram mas o céu permaneceu
coberto de nuvens até ao final do mês, o último do Verão. Num
desses dias, Pencroff, conversando com o engenheiro, lembrou-lhe
uma promessa antiga:
- Senhor Cyrus, lembra-se de ter falado num aparelho para
substituir as escadas de corda? Quando é que tratamos disso?
- Ah! uma espécie de elevador, não é verdade?
- Se é esse o nome... O que importa é que nos suba até à
Casa de Granito!
- Nada mais fácil... - respondeu Cyrus Smith. - Mas faz
assim tanta falta?
- Certamente, senhor Cyrus! Depois do essencial, devemos
pensar no nosso conforto. Já não falo por nós, mas pelas
coisas que temos de carregar às costas pelas escadas acima!
O engenheiro concordou e procedeu sem demora aos trabalhos
de montagem de um elevador hidráulico, aproveitando para
tal a energia de uma queda-d'água provocada para o efeito a
partir do lago e que, passando pelo interior da Casa de
Granito, ao fundo do corredor, se precipitava para o exterior.
O sistema era simples: sob a cascata, foi instalado um
cilindro de palhetas, por sua vez preso a uma grande roda
exterior destinada a enrolar um cabo forte; finalmente, do
cabo pendia uma cesta a servir de elevador propriamente dito.
A inauguração do elevador teve lugar a 19 de Março, para
satisfação geral. Dali em diante, toda a espécie de fardos,
lenha, carvão e mantimentos, e os próprios colonos, foram
içados daquela maneira até casa. O cão Top foi quem mais
satisfeito se mostrou com este melhoramento.
Assim, tudo corria de feição quer na Casa de Granito, quer
nas plantações do planalto, bem como na capoeira e no curral,
onde a fêmea do onagro, as cabras e as ovelhas davam
quotidianamente o leite necessário para a colónia... Na
verdade, agora que se completava um ano de permanência na ilha - e
apesar de longe da pátria - os colonos não tinham razões para
se queixar!
Num desses últimos dias de Março, ao entardecer, estavam
os colonos reunidos na varanda do planalto a olhar o mar e a
beber uma infusão de bagas de sabugueiro, com que substituíam
o café, quando, de repente, Spilett perguntou ao engenheiro:
- Meu caro Cyrus, você já se lembrou de rectificar a
localização desta ilha, agora que temos um sextante?
- E para quê? A ilha está muito bem onde está! - disse
logo Pencroff.
- Sem dúvida! Mas quem sabe se não estamos mais perto
de terra habitada do que nós julgamos? - insistiu o repórter.
- Tratarei disso amanhã - respondeu o engenheiro.Confesso
que, com tantas ocupações, me tinha esquecido do sextante.
No dia seguinte, feitas as observações e medições necessárias,
Smith concluiu que a ilha Lincoln se encontrava exactamente a
150 graus 30 minutos de longitude oeste e a 34 graus 57 minutos de
latitude sul. - E agora, já que temos também um atlas, se víssemos onde
é que ela fica exactamente? - sugeriu Spilett.
Harbert foi buscar o atlas e desdobrou o mapa do oceano
Pacífico. De compasso na mão, o engenheiro não demorou a
situar as coordenadas geográficas da ilha. De repente, exclamou:
- Mas já existe aqui uma ilha nesta parte do Pacífico!
- Deve ser a nossa! - disse Gedeão Spilett.
- Não é, não! Esta aqui encontra-se a 153" de longitude por
37" de latitude, isto é, a quase três graus para oeste e
outros três para sul da ilha Lincoln.
- E que ilha é essa, senhor Smith? - perguntou Harbert.
- Chama-se ilha Tabor e é muito pequena... Apenas mais
uma ilhota perdida no Pacífico, onde talvez nunca ninguém
tenha desembarcado!
- Pois vamos nós até lá! - disse Pencroff.
- Nós? - perguntou o engenheiro.
- Sim, senhor Cyrus. Constrói-se um barco de coberta, que eu
me encarrego de o dirigir!
E assim ficou decidida a construção de um barco apropriado
para navegação ao largo, de modo a demandarem a ilha Tabor
lá para Outubro, quando voltasse a estação do bom tempo. O
plano do marinheiro, apoiado pelo engenheiro, era o seguinte:
o barco devia medir uns doze metros de quilha e quatro de
bojo, levar coberta e escotilhas, e, finalmente, vela armada em
chalupa, muito fácil de manobrar. A madeira escolhida foi a de
abeto e logo se procedeu ao abate das árvores, depois serradas
em tabuões e pranchas. Oito dias depois, já mestre Pencroff,
ex- -carpinteiro naval de Brooklyn, trabalhava com afinco num
estaleiro montado entre as Chaminés e a muralha de granito.
Enquanto isso, Spilett e Harbert prosseguiam com as suas
expedições de caça. Um dia em que se tinham aventurado
bastante para o interior das florestas ocidentais, fizeram uma
descoberta preciosa. O repórter, que seguia um pouco à frente,
foi atraído pelo cheiro de uma planta de caule direito e
ramoso, com flores dispostas em cachos e pequenas sementes.
Arrancou dois dos ditos caules e voltou para junto do rapaz:
- Vê lá o que será isto, Harbert.
- Onde encontrou esta planta, senhor Spilett?
- Ali adiante, numa clareira... E há lá muitas.
- Pois desde já lhe digo que o Pencroff vai ficar radiante!
Isto é tabaco!
O repórter e o companheiro fizeram uma boa provisão de
folhas e voltaram para casa, combinando nada dizer ao marinheiro.
A preparação do tabaco ia levar quase dois meses e,
nessa altura, surpreenderiam o companheiro com um cachimbo bem cheio!
- E, nesse dia, o nosso estimado amigo já não terá mais
nada a desejar neste mundo! - concluiu o repórter.
Os meses de Abril e Maio decorreram sem outros acontecimentos
dignos de nota a não ser o de ter dado à costa uma
baleia enorme, que não devia pesar menos do que setenta
toneladas! O monstruoso mamífero fora morto por um arpão, que se
encontrava ainda cravado no flanco direito. Imagine-se agora a
emoção de Pencroff, quando, tendo arrancado o arpão, leu nele
a seguinte inscrição:

Maria-Stella
Vineyard'

- Um navio de Vineyard! Um navio da minha terra!exclamou
ele. - O Maria-Stella! Um belo baleeiro, digo-vos eu
que o conheço bem... Ah! meus amigos, um baleeiro de
Vineyard!
E o marinheiro brandia no ar o arpão, sem cessar de repetir
o nome da sua terra natal!
' Vineyard: cidnde portuciria do estado de Nova Yorque
(Estados Unidos).
- Então haverá baleeiros por estas paragens? - perguntou
Spilett.
- Oh! isto não quer dizer nada, senhor Spilett! Já se viu
muitas baleias arpoadas no Atlântico Norte fazerem milhares e
milhares de milhas, e acabarem por vir morrer ao Pacífico
Sul... As emoções de Pencroff não iam ficar por ali; a 31 de
Maio, no fim do jantar, quando o marinheiro se dispunha a
levantar- -se da mesa, Gedeão Spilett pôs-lhe a mão no ombro e
obrigou- -o a sentar-se outra vez:
- Espere aí, mestre Pencroff, não se levante já! Falta a
sobremesa.
- Obrigado, senhor Spilett, mas tenho de voltar ao trabalho.
- E uma chávena de café?
- Também não...
- E que tal uma cachimbada?
Pencroff deu um salto da cadeira e empalideceu ao ver que o
repórter lhe estendia um cachimbo bem cheio de tabaco!
Harbert, por seu lado, estendia-lhe uma brasa. O marinheiro
não conseguia articular palavra; pegou no cachimbo, levou-o à
boca, acendeu-o e puxou umas seis fumaças de seguida...
Tabaco! Era tabaco de verdade!
- Ó Divina Providência! Ó Criador de todas as coisas!
Agora já não falta mais nada na nossa ilha. E quem fez esta
descoberta? - perguntou, finalmente. - Foste tu, Harbert?
- Não, Pencroff, foi o senhor Spilett.
O marinheiro correu para o repórter e abraçou-o com tal
veemência, que este cuidou ficar sem respiração!

@CAPÍTULO V


O mês de Junho trouxe o Inverno, como sucede no hemisfério sul, e a
colónia preparou-se para os rigores da estação,
confeccionando roupas e cobertores quentes com a lã dos
carneiros selvagens. Os grandes frios, porém, só começaram
verdadeiramente depois do dia 20, e Pencroff foi forçado a
interromper a construção do barco. Seguidamente, veio a neve,
não sem antes os colonos terem tido o cuidado de aprovisionar
devidamente o curral. Mesmo assim, ficou combinado que lá
iriam uma vez por semana, pelo menos.
Por essa altura, fizeram os colonos uma primeira tentativa
de comunicação com os seus semelhantes. Foi Spilett quem teve
a ideia de aproveitar um albatroz, que Harbert tinha ferido
ligeiramente numa pata, como pombo-correio. Sabe-se que os
albatrozes têm uma grande envergadura de asas e são muitíssimo
resistentes, o que faz deles autênticos vagabundos dos
mares capazes de atravessar oceanos... Harbert curou o
ferimento da ave e o repórter redigiu uma mensagem sucinta,
pedindo a quem a encontrasse que a fizesse chegar à redacção do seu
jornal, o New York Herald; em seguida, o papel foi fechado num
saquinho de lona e pendurado ao pescoço do albatroz, que foi
posto em liberdade.
- Aonde irá ele? - perguntou Pencroff.
- Para a Nova Zelândia - respondeu Harbert.
- Então boa viagem! - gritou o marinheiro, sem dar
grande crédito àquela forma de correspondência.
Com o regresso dos frios do Inverno, os colonos recolheram-se
em casa uma vez mais, consagrando o tempo a pequenas
tarefas. E que conforto e bem-estar não sentiriam eles,
quando, instalados no salão bem iluminado e aquecido a carvão
a fumar um bom cachimbo, depois de um jantar reconfortante e
do café de bagas de sabugueiro, ouviam a tempestade rugir lá
fora!
No dia 3 de Agosto, porém, aproveitando o céu limpo,
resolveram fazer uma expedição ao pântano dos Tadornos.
Efectivamente, naquela época do ano as aves aquáticas abundavam
nos pauis e convinha renovar as provisões de patos-bravos,
narcejas e galinholas.
Cyrus Smith, invocando um trabalho urgente, acompanhou
os amigos só até à margem do rio Mercy; depois que eles
atravessaram, levantou a ponte e regressou a casa. Na
realidade, o trabalho urgente era um projecto antigo que o
engenheiro pretendia pôr em prática, logo que surgisse uma
oportunidade de ficar só. Tratava-se de explorar o poço por
onde, dantes, as águas do lago se escoavam para o mar.
Por que razão se mostrava Top tão inquieto, sempre que se
aproximava da boca do poço? Porque ladrava o cão de uma
maneira tão estranha? Teria o poço mais aberturas laterais?
Ramificar-se-ia ele até outras partes da ilha? - Eis o que
Cyrus Smith pretendia descobrir sem alertar os companheiros.
Descer pelo poço não apresentava dificuldade de maior, uma
vez que dispunha da longa escada de corda, agora inútil desde
a instalação do elevador... Cyrus foi buscá-la e amarrou-a
solidamente cá em cima; depois, armado de revólver e faca de
mato, empreendeu a descida, segurando na mão um lampião
aceso com que ia alumiando as paredes do poço. O granito era
compacto e em parte alguma era visível a abertura de um túnel,
sequer um simples buraco! Assim chegou ao nível da água, sem
ter descoberto nada de suspeito. O engenheiro subiu pela
escada de corda, puxou-a, tapou a boca do poço e voltou
pensativo ao salão da Casa de Granito. "Não vi rigorosamente
nada, e, no entanto, há ali qualquer coisa!", pensava ele.
Nos dias que se seguiram, Pencroff, ajudado por Harbert,
aprontou as velas do futuro barco, aproveitando ainda o resistente
tecido de algodão do balão. Com o mês de Setembro, o
Inverno chegou ao fim e os trabalhos no exterior puderam ser
retomados, com especial entusiasmo no tocante à construção do
veleiro. E tão bem se trabalhou que, a 15 desse mês, o forro
interno e a coberta estavam terminados. Para calafetar as
pranchas do casco, fez-se estopa com palha de junça, coberta
depois com alcatrão a ferver. Enfim, os restantes trabalhos de
lastração, colocação do mastro e construção da cabina com dois
compartimentos, levaram mais umas semanas, até que, finalmente,
o barco ficou pronto.
A 10 de Outubro foi o lançamento ao mar. O barco flutuava em
perfeito equilíbrio nas suas linhas de água e tudo indicava
que navegaria nas melhores condições. O "capitão" Pencroff assim
nomeado pelos companheiros - não cabia em si de
contentamento e de orgulho! Agora só faltava baptizar o
pequeno veleiro. Foram apreciadas várias propostas, mas a
escolha acabou por recair, por unanimidade, no nome Boaventura
que era, nada mais nada menos, o nome de baptismo de
Pencroff.
O tempo estava soberbo, com mar calmo e uma ligeira brisa de
noroeste. Assim sendo, o marinheiro decidiu que se fizesse o
passeio de inauguração.
- Vá, toca a embarcar! - gritava ele, entusiasmado.
Pelas dez e meia, estavam todos a bordo, incluindo o cão e
uma sacola bem provida de comida, pois tencionavam almoçar
no mar.
Os passageiros do Boaventura estavam encantados com a
navegação e com a perspectiva da sua ilha vista do mar!
Pencroff manobrava habilmente o veleiro em direcção ao sul,
sempre perto da costa, e, diante dos olhos dos colonos, iam-se
desenrolando as belas paisagens da ilha Lincoln: os areais do
litoral, a mata verdejante das florestas e o imponente monte
Franklin, a dominar tudo com os seus cumes coroados de neve...
- Como é bonita a nossa ilha! - não se conteve Harbert.
Nisto, o rapaz exclamou:
- Vira a proa, Pencroff! Vira!
- Que há? Um rochedo? - perguntou o marinheiro.
- Não... espera! - disse Harbert. - Não consigo ver bem...
Chega um pouco mais...
E dizendo isto o jovem inclinou-se todo borda fora, esticou
o braço e apanhou um objecto que flutuava à tona da água.
- Olha, é uma garrafa!
Cyrus Smith pegou-lhe imediatamente, tirou-lhe a rolha e
puxou um pedaço de papel, onde se lia: "Náufrago. Ilha Tabor.
153 graus longitude oeste; 37 graus e 11 minutos latitude sul."

@CAPÍTULO VI


- Um náufrago! - exclamou Pencroff. - Abandonado na
ilha Tabor, apenas a cento e tal milhas de nós! Ah, senhor
Smith, temos de ir lá!
- Amanhã mesmo - decidiu o engenheiro.
Cyrus Smith, que examinava atentamente o papel, continuou:
- Meus amigos, só pela maneira como esta mensagem está
redigida, pela exactidão da longitude e da latitude, já
podemos concluir que o náufrago da ilha Tabor é um homem bastante
entendido em assuntos de marinha... Depois, deve ser inglês ou
americano, visto que a nota foi escrita em língua inglesa.
- Quem quer que seja teve muita sorte! - comentou o
repórter. - Olhem se o Pencroff não tivesse tido a ideia de
construir um barco e se não tivesse sido hoje a estreia! A
garrafa havia de partir-se contra as rochas e nunca
chegaríamos a saber deste vizinho.
- É verdade! Mas que coincidência o Boaventura passar
aqui precisamente agora! - disse Harbert.
Entretanto, o marinheiro continuava a manobrar o seu
querido veleiro novinho-em-folha, que nesse momento contornava
o cabo da Garra. Não havia reparos a fazer: o barco
navegava em excelentes condições, donde a travessia até à ilha
do náufrago era um empreendimento absolutamente viável.

Pelas quatro da tarde, lançavam ferro defronte da Casa de
Granito e, logo a seguir ao jantar, trataram dos detalhes da
viagem. O engenheiro Smith calculava que cinco dias bastariam
para chegar a Tabor, procurar o abandonado e regressar à ilha.
Efectivamente, o percurso de cento e cinquenta milhas far-se-ia
à vontade em quarenta e oito horas, caso não surgissem
contratempos de ordem atmosférica.
Faltava decidir quem tomaria parte da expedição. Desde
logo, o "capitão" Pencroff e o jovem Harbert, já muito hábil
nas artes de marear; na opinião de Cyrus Smith não era
necessário ir mais ninguém, mas Gedeão Spilett, como bom repórter que
era, não queria perder pitada do acontecimento e teimou em
acompanhá-los.
Assim, na madrugada seguinte, embarcaram os três depois
de uma despedida um tanto comovida. Afinal de contas, sempre
era a primeira vez que se separavam desde o desastre do balão!
Cyrus Smith e Nab ficaram a acenar da praia, enquanto o
Boaventura se fazia ao mar, rumo ao sul da ilha. Aí, virariam
a proa a sudoeste.
A viagem decorreu sem incidentes e na manhã do dia 13 os
nossos navegadores tinham terra à vista. Conforme puderam
observar ainda ao largo, a ilha Tabor era completamente
diferente da ilha Lincoln: bastante mais pequena, de litoral
plano e pouco recortado e praticamente sem relevo, à excepção
de uma pequena colina. À medida que se aproximavam da costa,
um facto que lhes causou estranheza foi a total ausência de
sinais de fumo. Spilett pegou no binóculo e pôs-se a observar
a ilhota, mas em lado algum conseguiu descortinar indícios de
que aquelas paragens fossem habitadas. Todavia, a mensagem era
bem clara: havia um náufrago na ilha Tabor que tinha pedido
socorro! Então não seria mais natural que estivesse vigilante
a qualquer embarcação?
Ao meio-dia, Pencroff, Spilett e Harbert desembarcaram
numa praia de areia. A primeira coisa a fazer, concordaram
eles, era subir a colina para obterem uma visão de conjunto da
terra desconhecida, o que facilitaria em muito as buscas. Atingido o
cimo num instante, os viajantes confirmaram a impressão
anterior, isto é, de que o ilhéu não teria mais que dez
quilómetros a toda a volta e que a faixa costeira era
praticamente direita, sem cabos nem baías, promontórios ou
enseadas. Quanto ao
interior, apresentava-se uniformemente coberto por uma mancha
de vegetação, cortada acolá pela fita prateada de um
ribeiro. - Como esta ilha é pequena! Para nós não chegava!comentou
Pencroff.
-Além disso, reparem que parece completamente desabitada
- acrescentou o repórter.
Um tanto perplexos, os nossos amigos resolveram prosseguir
as buscas ao longo de toda a orla marítima, mas ao cabo de
quatro horas de marcha - quanto bastou para dar a volta
completa à ilhota - continuavam sem encontrar o mais leve
sinal do náufrago, nem sequer uma simples pegada na areia!
Sem conseguirem atinar numa explicação para tão intrigante
facto, voltaram ao Boaventura para descansar e comer qualquer
coisa. A ideia agora era esquadrinhar o bosque de ponta a
ponta e com isso ficaria concluída toda a exploração da ilha Tabor.
Mal tinham andado umas dezenas de metros por entre o
arvoredo, viram cabras e porcos a fugir assustados. Porcos
ali? As surpresas não tinham acabado; um pouco mais à frente,
deparou-se-lhes uma clareira transformada em horta! Com
aspecto bastante abandonado, sem dúvida, mas uma autêntica
horta. Harbert ficou encantado por identificar, no meio das
ervas que entretanto tinham invadido o terreno, batatas,
cenouras, nabos, couves e chicória. Claro está que não iriam
embora sem levar sementes de tudo, decidiu o rapaz
imediatamente.
Ora a existência na ilha Tabor de animais e plantas de
origem europeia, era prova evidente de que o local era, ou
pelo menos tinha sido, habitado... Mas onde estaria agora a
pessoa que tinha plantado aquela horta?
- É quase noite! - lembrou Pencroff. - Acho melhor
voltarmos para bordo!
Nesse momento, Harbert exclamou:
- Olhem para ali! Parece uma casinha...
Era de facto uma cabana meio escondida pelo arvoredo,
construída com tábuas de madeira e coberta com uma lona
encerada. Pencroff empurrou a porta entreaberta e entraram
todos. A cabana estava vazia! Chamaram e tornaram a chamar em
voz alta, mas ninguém apareceu. A luz do crepúsculo
permitia apenas divisar um compartimento sujo e em desordem,
com uma chaminé a um canto. O marinheiro apressou-se a
acender a lareira com os ramos e gravetos que lá se
encontravam e desse modo puderam ver melhor o que os rodeava.
A cena era, aliás, pouco animadora: uma cama tosca com
lençóis desfeitos e amarelecidos pelo tempo, uma chaleira e
uma marmita enferrujadas, trajes da marinha apodrecidos, uma
Bíblia cheia de bolor... Num dos cantos, descobriram alguns
utensílios de carpintaria e de lavoura, duas espingardas
caçadeiras, um barril de pólvora e outro de chumbo. Uma coisa era
evidente: nada daquilo era usado há muito tempo!
- Ora bem, se o náufrago morreu, como tudo indica, não
se enterrou a ele mesmo - concluiu Pencroff. - Amanhã
havemos de encontrar o que resta do corpo.
Como entretanto anoitecera, decidiram passar a noite na
cabana abandonada. Ao nascer do dia, os três companheiros
passaram de imediato ao reconhecimento do local. O casinhoto
tinha sido feito com tábuas tiradas do casco de um navio,
conforme reparou logo o marinheiro, e a confirmar esta opinião
viram um nome escrito numa delas. Faltavam três letras e as
restantes estavam meio apagadas pelo tempo, mas os colonos não
tiveram dificuldade em decifrar o nome do navio naufragado:
Britannia. Isso, porém, pouco interessava para o caso, visto
que o objectivo da viagem era recolher o náufrago e desse,
vivo ou morto, nem rasto!
Os colonos sentiam-se bastante desanimados com a situação,
mas não havia mais nada que pudessem fazer; pelo menos,
regressariam à ilha Lincoln de consciência tranquila. E como
também eram homens práticos, resolveram tirar proveito de
tanta coisa boa ao abandono. Spilett e Pencroff encarregaram-se
de levar os barris de chumbo e de pólvora para o
Boaventura, assim como um ou dois casais de porcos para
criação, enquanto Harbert ia à horta apanhar o maior número de sementes
possível.
Estavam os dois "caçadores de porcos" em plena actividade,
quando dos lados da clareira soou um grito agudo. Era Harbert!
O jovem jazia por terra, derrubado por uma criatura selvagem
que à primeira vista lembrava um macaco de tamanho considerável!
Pencroff e Spilett, ambos cheios de força, agarraram o
monstro, obrigando-o a soltar Harbert e depois amarraram-no
solidamente.
- Ai se esse macacão te tivesse feito mal, eu nem sei... Mas
eu acabo com ele! - exclamou Pencroff, todo exaltado.
- Mas, Pencroff, não é um macaco! - respondeu o rapaz,
que se pusera de pé.
Só então os dois atentaram na criatura que tinham preso com
cordas. Era uma criatura humana! Um homem! Mas que
homem, santo Deus! Cabeleira longa e hirsuta, barba pelo
peito, o corpo praticamente nu, a pele enegrecida por muitos
sóis e sujidade, um olhar fugidio de irracional, enfim... um
autêntico selvagem!
- Eis aqui o nosso náufrago! - disse, por fim, o repórter. E
a que estado chegou, o infeliz... Mas quem quer que seja, ou
que tenha sido, é nosso dever levá-lo para a ilha Lincoln. Claro
que sim! - respondeu Harbert. - E quem sabe
se com os nossos cuidados não despertaremos nele qualquer
sombra de inteligência...?
Desataram os pés do prisioneiro e obrigaram-no a andar até à
praia. A estranha criatura não opôs resistência, nem tão-pouco
fez menção de fugir. Limitava-se a caminhar ao lado dos
colonos, deitando-lhes olhadelas furtivas e emitindo um
assobio contínuo por entre os dentes. O náufrago subiu para bordo e
os colonos meteram-no numa das cabicias; Pencroff ficou de
guarda. Gedeão Spilett e Harbert voltaram ao interior do
ilhéu, para terminar as tarefas interrompidas, e duas horas mais tarde
estavam de volta com tudo o que fora combinado levar para a
ilha Lincoln.
O prisioneiro, se assim se lhe podia chamar, estava calmo e
parecia ser surdo-mudo. Para espanto dos colonos, chegada a
hora do jantar, recusou-se a tocar na carne cozinhada que
Pencroff lhe estendeu, mas não se fez rogado com um pato-bravo
que Harbert acabara de matar... Com enorme bestialidade,
devorou a carne crua num abrir e fechar de olhos!
- Santo nome de Deus! - exclamou o marinheiro, sinceramente
penalizado. - Ao que este desgraçado chegou!
Na manhã seguinte, dia 15 de Outubro, o Boaventura
levantou ferro e rumou a nordeste. O primeiro dia da travessia
decorreu normalmente, com ventos de feição. O mar alto e a
ondulação pareciam ter um efeito benéfico no prisioneiro, que
se mantinha tranquilo na cabina da frente. Como antigo marinheiro,
quem sabe se o facto de se encontrar a bordo não
despertaria nele qualquer memória do passado?
No dia 16, porém, o vento rodou para norte e começou a
bater de proa, dificultando extraordinariamente o avanço do
Boaventura. Com efeito, no dia seguinte de manhã, quando
previam atingir as proximidades da ilha Lincoln, não havia
sinal de terra no horizonte. Outro dia passou e a situação
mantinha-se: nortada forte, mar encapelado e da ilha nem
sinal! O
marinheiro começou a ficar preocupado. Onde estaria a ilha,
que diabo? Para piorar as coisas, as vagas abanavam a chalupa
por todos os lados. A dada altura, uma onda maior passou por
cima da amurada e varreu o convés. Nisto, o prisioneiro saltou
para fora da cabina e com uma alavanca abriu uma fenda na
amurada para que a água se escoasse; feito isto, enfiou-se
outra vez no seu canto sem uma palavra. Os outros,
estupefactos, deixaram- -no agir. Fora, certamente, o velho
instinto de homem do mar a dar sinal de si.
Na noite de 19 para 20, as condições atmosféricas acalmaram
um pouco. Apesar do frio intenso, o vento amainou e o
Boaventura, agora menos sacudido, aumentou de velocidade.
Porém, o grande receio de Pencroff é que se tivessem afastado
demasiado da rota certa e que, por conseguinte, se tivessem
perdido no vasto oceano. Pelas duas da manhã, o marinheiro que
ia agarrado ao leme e de olhos pregados na escuridão, gritou:
- Uma fogueira! Uma fogueira!
Um clarão salvador reluzia sobre a ilha Lincoln, a vinte
milhas para nordeste!
"Abençoado senhor Smith, que se lembrou de acender uma
fogueira!", pensou o marinheiro. De seguida, rectificou o
rumo e manobrou o Boaventura em direcção àquele farol que
brilhava na noite como uma estrela de primeira grandeza.


@CAPÍTULO VII


Às sete horas da manhã, após quatro dias de aflição, o
Boaventura lançava ferro junto à foz do Mercy. Imagine-se a
alegria de Cyrus Smith e de Nab, que já estavam
preocupadíssimos com a demora dos amigos...
- E o náufrago? Trouxeram-no? Quem é ele? - As
perguntas sucediam-se em catadupa.
- É um homem... ou melhor, era um homem. Bem, nem sei
como explicar! - disse Gedeão Spilett.
À vista do náufrago, Cyrus não conseguiu disfarçar a pena
que sentia. Nab, então, ficou boquiaberto de espanto. O desgraçado, mal pôs um pé em terra, esboçou um gesto de fuga, mas o engenheiro, pondo-lhe a mão no ombro,
fitou-o com olhar tão
firme e bondoso, que o homem baixou os olhos e inclinou a
fronte numa submissão imediata.
- Pobre abandonado - murmurou Smith.
O desconhecido - como, a partir de então, os colonos
passaram a chamá-lo - foi levado para um dos quartos da Casa
de Granito, de onde, aliás, não tinha possibilidade de se
escapar. Durante a refeição, que Nab se apressara a
preparar, o
engenheiro foi posto ao corrente de todas as peripécias
ocorridas na ilha Tabor e a conversa centrou-se, naturalmente,
no estranho hóspede da Casa de Granito.
- Senhor Cyrus - perguntou Harbert, a dado momento -,
será que ele perdeu de todo a razão? Não poderá recuperar?
- Tenho a certeza que sim - respondeu Smith. - Repara
que ainda há alguns meses ele era um homem como nós.
Portanto, é de crer que o embrutecimento a que a solidão o
conduziu, embora profundo, é recente e a sua consciência de
homem, de ser inteligente, há-de voltar ao de cima.
- Mas porque é que diz que esta acentuada degradação data
apenas de alguns meses? - insistiu o rapaz.
- Ora, Harbert, porque a mensagem que nos chegou não
pode ter sido, escrita há muito mais tempo! - explicou Cyrus
Smith. - E só o náufrago a podia ter escrito.
- É assim mesmo! - atalhou Pencroff. - Já conheço o
suficiente destas correntes e marés, para saber que a garrafa
nunca poderia andar a boiar por aí durante muito tempo. Mesmo
que não se partisse de encontro às rochas, a humidade do mar
estragava o papel...
Harbert recordou, então, a espécie de "ressurreição"
passageira no espírito do prisioneiro, quando, em plena
tempestade, resolveu o problema da inundação do convés.
- Aí está! - opinou Cyrus Smith. - Mais uma razão para
acreditarmos que esse desgraçado não é incurável. Foi o
desespero que o pôs neste estado, mas na nossa companhia vai
ficar bom.
- O senhor Cyrus disse, está dito! - rematou Pencroff. Agora
é tempo de voltarmos ao trabalho. Para já, toca a
descarregar o Boaventura. Depois, com sua licença, senhor
Cyrus, vou levar o barco para o porto do Balão onde ficará bem
abrigado, melhor do que na foz do rio. O Harbert vem comigo.
Nos dias seguintes, o desconhecido, habituado à liberdade sem
limites da sua vida selvagem, evidenciou alguns acessos de
furor surdo, a ponto de os colonos temerem que se atirasse da
janela. No entanto, foi acalmando aos poucos, graças, sobretudo,
à influência que o engenheiro Smith sobre ele exercia, com
a sua atitude firme e paternal. Outro sintoma animador foi o
abandono da horrível preferência por carne crua; por outro
lado, deixou que Nab lhe cortasse o cabelo e a barba e lhe aparasse
as unhas. Recuperara, assim, o aspecto humano e até parecia
que o olhar se adoçara, embora marcado por uma tristeza sem
fim... O engenheiro tinha o cuidado de passar várias horas
por dia junto dele. Punha-se a trabalhar em diversas coisas,
tentando fixar-lhe a atenção, sempre atento a uma reacção ou gesto que
revelasse o despertar daquele cérebro entorpecido. Outra coisa
que ele fazia era falar em voz alta, mas, embora às vezes lhe
vislumbrasse alguma atenção, nunca lhe conseguia arrancar uma
palavra. Os outros colonos acarinhavam os esforços do engenheiro
e com ele partilhavam a esperança e a fé.
Certo dia, Cyrus Smith resolveu tentar uma nova experiência.
Foi buscar o desconhecido que, como de costume, estava
acocorado perto da janela a olhar o céu.
- Venha, meu amigo! - disse-lhe.
O pobre levantou-se imediatamente e seguiu o engenheiro
até à beira-mar. Deu alguns passos pela espuma das ondas e os
olhos brilharam-lhe com uma animação que os colonos ainda
não lhe tinham visto. Em seguida, e sem esboçar qualquer
movimento de fuga, acompanhou Cyrus Smith à embocadura do
Mercy e ao planalto. Uma vez lá chegados, o desconhecido
estacou, encheu o peito de ar e aspirou inebriado os cheiros
doces da floresta próxima... Grossas lágrimas escorreram-lhe,
então, pelas faces torturadas.
Cyrus, olhando-o de frente, com as mãos pousadas nos seus
ombros, disse emocionado:
- Meu amigo, se é capaz de chorar, é porque é novamente
um homem!
O certo é que, desde esse dia, o desconhecido começou a dar
mostras de querer partilhar das tarefas da pequena colónia.
Passava a maior parte do tempo no planalto, a trabalhar nas
culturas sem um instante de repouso. Os outros, por recomendação
do engenheiro, abstinham-se de o incomodar e deixavam-no
à vontade. Era agora evidente para todos que o homem
ouvia e compreendia tudo perfeitamente, mantendo apenas a
obstinação de não falar.
Alguns dias mais tarde, seria já Novembro, estava ele a cavar
no planalto, deixou cair a enxada; Cyrus, que estava ali
perto, viu que lhe corriam de novo lágrimas pela cara abaixo...
Aproximou-se e tocou-lhe levemente num braço. O desconhecido
estremeceu e pretendeu recuar.
- Meu amigo! - disse o engenheiro com autoridade.Olhe
para mim! Quero que olhe para mim!
O infeliz levantou os olhos e a expressão
transformou-se-lhe. Já não podia conter-se mais! Com uma voz
muito funda e rouca, finalmente falou:
- Quem são os senhores? - perguntou ele.
- Náufragos também. Somos seus iguais... Aqui, está entre
amigos! - respondeu Cyrus Smith.
- Amigos! Eu? - O desconhecido tapava a cara com as
mãos. - Eu não tenho amigos, não posso ter!
E afastou-se a correr. O engenheiro foi logo dar notícia
destes progressos, observando Gedeão Spilett:
- Há um mistério qualquer na vida deste homem! E estou
convencido de que só pela via do remorso voltará à sua
condição humana.
- Deve ter um segredo terrível no passado, é o que é comentou
Pencroff.
- Que nós respeitaremos! - disse Smith, com firmeza.Se
cometeu algum crime, já o expiou... e cruelmente. Aos
nossos olhos, está absolvido.
Passaram algumas semanas sobre este acontecimento, durante
as quais o homem não voltou a pronunciar palavra. Um dia,
aproximou-se de Harbert e perguntou ansiosamente:
- Que mês? Que ano?
- Novembro de 1866 - esclareceu Harbert.
- Onze anos! Onze anos! - gritou o desconhecido, antes
de desatar a correr.
Cyrus Smith meditou na informação do rapaz e concluiu:
- Onze anos de isolamento! Ah!, como não há-de ter a
razão alterada, este infeliz!

- Sou levado a crer que o homem não naufragou na ilha
Tabor... - observou Pencroff. - O que deve ter acontecido é
que ele foi lá abandonado na sequência de algum crime.
De qualquer modo, a revelação do tempo de degredo na ilha
Tabor recolocou uma questão que, aliás, nunca ficara de todo
resolvida: a da data do lançamento da mensagem ao mar. De
facto, custava muito a crer que, após onze anos de absoluta
solidão, só há coisa de poucos meses o homem tivesse atingido
o estado de selvajaria em que o haviam encontrado... Era óbvio
que o desgraçado estava assim há muito mais tempo, assim
como também era óbvio, pelo estado do papel e pelo brilho da
tinta, que a mensagem era recente... Então, quem poderia ter
escrito a mensagem?
- Ora aqui temos nós um verdadeiro mistério! - disse o
engenheiro, com uma serenidade que contrastava com a perturbação
dos companheiros. - Mas na vida tudo tem uma
explicação lógica... Em tempo devido o saberemos.
Spilett percebeu que o amigo já tinha qualquer ideia sobre o
assunto, mas evitou fazer comentários. Cyrus prosseguiu:
- Agora temos muito mais com que nos ocuparmos. E peço-lhes
que não insistam com o nosso novo companheiro para ele
falar... Quando ele quiser, nós cá estamos para o ouvir.
Nos dias que se seguiram, o desconhecido não voltou a
pronunciar palavra e manteve-se afastado, entregue ao seu
trabalho na horta do planalto. De resto, era ali que comia e
dormia, apesar de os colonos insistirem para que ficasse na
Casa de Granito.
Estes quase que esqueciam a existência da misteriosa criatura,
porque coisas para fazer é que não faltavam. A colheita
de trigo era uma delas! Com efeito a "seara" de Pencroff aquele
primeiro grão lançado à terra, conforme os leitores
estarão lembrados - germinara e multiplicara-se, produzindo
quatro mil alqueires logo na segunda colheita! Agora, dezoito
meses depois, a seara de trigo ocupava um talhão considerável
do planalto e a colónia podia considerar satisfeitas as suas
necessidades de cereal para o fabrico de pão.
A última quinzena de Novembro foi inteiramente dedicada
à moagem do trigo, para se obter farinha. Para tanto, impunha-se
a construção de um moinho e, entre um hidráulico e um de
vento, os colonos optaram por este último por ser o mais
fácil. Na verdade, os ventos do planalto dariam uma força motriz
inesgotável. As mós foram arranjadas com a excelente pedra de
grés que abundava na parte norte do lago, enquanto as velas
saíram do tecido do balão que, pelos vistos, dava para tudo!
Faltava agora erguer o moinho propriamente dito, e a essa
tarefa se dedicaram de corpo e alma o marinheiro e o jovem
negro, tornados carpinteiros de primeiríssima classe.
Foi assim que, no primeiro dia do mês de Dezembro,
Pencroff, remirando-se na obra, só pedia uma coisa:
- Vá, agora que venha vento e do bom, para que se veja
como é que se mói trigo!
- Bom vento, está bem, Pencroff, mas que não seja de
mais... - dizia o engenheiro, a sorrir.
Os elementos ouviram as preces do marinheiro e mandaram
um vento tão favorável que, em pouco tempo, o trigo armazenado
estava todo moído. Procedeu-se, então, ao amassar da
farinha e à cozedura do pão que, pela primeira vez,
acompanhou a refeição dos colonos, deliciados com mais este
"requinte" fruto do trabalho colectivo.
Certo dia desse mês de Dezembro, Harbert foi pescar para
o lago. Ia desarmado, porque para aquelas bandas nunca se
tinha visto um único animal perigoso. Pencroff e Nab estavam
ocupados na capoeira, enquanto, nas Chaminés, Cyrus e o
repórter produziam soda, pois a provisão de sabão estava no
fim. Subitamente, ouviram-se gritos de aflição...
- Socorro! Acudam-me!
Era Harbert quem assim gritava. Precipitaram-se todos em
louca correria, mas quem chegou primeiro ao lago foi o
desconhecido. Harbert tinha pela frente um formidável jaguar
já a preparar o salto! Rápido como um raio, apenas armado de
uma faca de mato, o desconhecido saltou sobre a fera. A luta
foi breve. Segurando o jaguar pela garganta com a mão
esquerda, poderosa como uma garra, desferiu com a direita um
golpe mortal no coração do felino, que caiu morto. Quando os
colonos chegaram, esbaforidos e assustados, o homem fez
menção de fugir, mas Harbert segurou-o.
- Meu amigo - pronunciou Cyrus Smith, com a voz embargada
-, acabamos de contrair uma dívida de gratidão para
consigo! Salvou o nosso rapaz, arriscando a sua própria vida.
- A minha vida... - murmurou o desconhecido. - A
minha vida não vale nada!
Harbert pretendeu apertar a mão do seu salvador, mas este
evitou o gesto cruzando os braços sobre o peito poderoso.
Depois, perguntou bruscamente:
- Quem são vocês? O que estão aqui a fazer nesta ilha? O
que é que pretendem ser para mim?
Era a história dos colonos que, pela primeira vez, ele
queria conhecer... Quem sabe se a seguir não contaria a sua?
Cyrus Smith narrou-lhe toda a odisseia vivida desde a fuga de
Richmond; o homem escutava atentamente. Por fim, o engenheiro rematou:
- Agora que nos conhece, continua a recusar-se a apertar a nossa mão?
- Vocês são homens bons, são gente honesta - respondeu.
- Eu não posso tocar numa mão honrada, eu não posso, porque eu...
O desconhecido passou a mão pelos olhos molhados de
lágrimas; todo ele tremia. Por fim, voltou a falar:
- Senhor Cyrus, apesar de não ser merecedor, queria pedir-lhe
um favor! Os animais do curral precisam de ser tratados
todos os dias... Deixe-me ir viver para lá.
O engenheiro fitou o infeliz com profunda comiseração: - No curral só
há estábulos. Não há condições para uma pessoa viver...
- Chega para mim.
- Está bem! - condescendeu Cyrus Smith. - Mas nós
arranjaremos as coisas para que fique devidamente instalado.
Nesse mesmo dia, os colonos dirigiram-se ao curral, munidos
de tudo o que era preciso, e, ainda a semana não se escoara, já
uma cabana estava pronta e mobilada com o mínimo necessário. O
desconhecido não os acompanhava. Preferira compensá-los do esforço que por
ele faziam, empenhando-se ainda mais nos trabalhos agrícolas, de modo
que, quando as obras no curral acabaram, as terras do planalto estavam
prontas para as sementeiras!
Estava-se a 20 de Dezembro. Nessa noite - a primeira que o
desconhecido passaria no curral - os colonos conversavam na
sala grande, quando bateram levemente na porta. O desconhecido
entrou, pálido e emocionado.
- Senhores, antes que me vá embora, quero que ouçam a
minha história... É assim:
"Num dia de Dezembro de 1854, um iate a vapor pertencente a
um fidalgo escocês fundeou na costa oriental da Austrália,
perto do cabo Howe, a quase 37 graus de latitude sul. O iate tinha
a bordo, além do proprietário, Lorde Glenarvan, a mulher deste, um major
do exército inglês, um geógrafo francês, um
rapaz e uma rapariga. Os dois jovens eram os filhos do capitão Grant,
cujo navio - o Britannia - se afundara há um ano atrás junto
do litoral australiano, segundo constava.
"A tripulação do Duncan - era este o nome do iate - era
composta pelo comandante, capitão John Mangles, e uma
equipagem de quinze homens. O que fazia um barco de recreio
europeu naquelas paragens remotas? Pois bem: acontece que,
seis meses antes, o pessoal do Duncan tinha recolhido no mar
da Irlanda uma garrafa com uma mensagem escrita em inglês,
francês e alemão, na qual se dava conhecimento da existência
de três sobreviventes do naufrágio do Britannia, sendo um
deles o próprio capitão Grant! Os sobreviventes, segundo a
mensagem, estavam numa terra, cujo nome não era indicado, situada a
37 graus 11 minutos de latitude sul, mas cuja longitude, infelizmente,
fora apagada pela água do mar.
"Como a Marinha inglesa hesitasse em empreender uma
busca tão incerta, Lorde Glenarvan pôs-se em contacto com
Mary e Robert Grant, filhos do capitão desaparecido, e
resolveu chamar a si a missão de o encontrar. Aparelhado e
equipado para longo curso, o Duncan levantou ferro do porto de
Glasgow e rumou ao Atlântico Sul. Aí, a navegação prosseguiu
contornando a América do Sul e, passado o estreito de Magalhães,
entraram no oceano Pacífico. Convicto de que os sobreviventes
estariam por paragens australianas, Lorde Glenarvan fez seguir
o iate até à Austrália, onde chegou, como já se disse, em
finais de Dezembro de 1854.
"A intenção de Lorde Glenarvan era explorar a região
meridional do continente, a província de Vitória, por ser esta
a que mais se aproximava da latitude indicada na mensagem.
Desembarcaram os passageiros e fizeram diligências no sentido
de obter quaisquer informações sobre o naufrágio e possíveis
sobreviventes. Entretanto, tinham-se hospedado numa fazenda de
colonos irlandeses, cujo proprietário nada sabia a respeito do
Britannia. Sucedeu, então, que um dos trabalhadores recentemente
contratados pelo irlandês, se apresentou diante de
Glenarvan com grandes manifestações de júbilo por saber que
o capitão Grant estava vivo, já que ele, também um
sobrevivente do Britannia, onde servia como contramestre, julgava
todos os companheiros mortos. E terminou, dizendo que, se o
capitão Grant estava vivo, só poderia estar prisioneiro dos
aborígenes. Aquele homem, de nome Ayrton, falava com franqueza na voz
e firmeza no olhar, para além de ter em seu poder papéis que
confirmavam ter sido contramestre do navio naufragado, pelo
que Lorde Glenarvan não viu motivos para duvidar das suas
palavras e logo deu início aos preparativos da expedição ao
interior do território. Nas buscas, tomariam parte todos os
passageiros do Duncan, mais o capitão Mangles e alguns
marinheiros. Ayrton foi admitido no grupo como guia da
expedição, enquanto o imediato Tom Austin recebia a incumbência
de conduzir o Duncan até à cidade portuária de Melbourne, onde
ficaria a aguardar ordens. No dia 23 de Dezembro, o
grupo pôs-se a caminho.
"Cabe agora revelar que Ayrton era um homem sem escrúpulos,
um traidor! Tinha sido, de facto, contramestre do
Britannia, mas na sequência de uma tentativa de revolta a
bordo, por ele empreendida com a finalidade de tomar conta do
navio, o capitão Grant desembarcara-o, a 8 de Abril de 1852, nas costas
da Austrália. A partir desse dia, Ayrton nada mais soubera do
seu antigo navio, muito menos que tinha naufragado! O miserável
passara, então, a usar o nome de Ben Joyce e tornara-se
o chefe de um bando de criminosos evadidos. Fugido a um
ajuste de contas, resolvera refugiar-se por uns tempos naquela
fazenda dos irlandeses, sendo graças a este acaso que ouviu o
relato do fidalgo escocês. Ayrton arquitectou imediatamente um
plano criminoso para se apoderar do Duncan, visto que o seu
maior desejo era voltar ao mar e dedicar-se à pirataria.
Assim, conduziria Glenarvan e os companheiros para uma região
suficientemente inóspita e desprovida de recursos e ele, na
primeira oportunidade, fugiria para Melbourne onde, com a
ajuda dos cúmplices oportunamente avisados, trataria de tomar
de assalto o iate. Se bem planeou, melhor o fez! Chegados ao
porto, os bandidos, depois de ludibriar sem dificuldade de
maior o imediato Austin e de expulsar de bordo a reduzida
tripulação, ganharam o alto mar. Em fins de Fevereiro, andava
o Duncan nas suas actividades criminosas ao largo da costa
leste da Nova Zelândia, quando foi abordado por um brigue tão
bem equipado e armado, que o bando, pouco numeroso e não dispondo de
canhões a bordo, não teve outra saída que não render-se.
Imagine-se o espanto de Ben Joyce, aliás, Ayrton, quando se
viu diante de Lorde Glenarvan!
"Eis o que sucedera: Glenarvan, a mulher e os amigos,
depois de trabalhos e perigos sem conta, tinham conseguido
chegar a Melbourne, onde o desesperado Tom Austin os pôs ao
corrente da traição de Ayrton e da captura do iate pela força.
Homem de grande fortuna e não menor coragem, o lorde
escocês não se deu por vencido. Imediatamente, fretou um navio
mercante bem armado e tripulado por gente destemida, e foi no
encalço do Duncan, acabando por recuperá-lo como se viu.
uOs cúmplices de Ayrton, todos eles cadastrados evadidos,
foram imediatamente entregues às autoridades inglesas e recambiados
para a ilha Norfolk, a colónia penal mais severa da
época. Ayrton só escapou a igual sorte, porque, à última hora,
conseguiu negociar um acordo com Lorde Glenarvan: em troca das
informações sobre o naufrágio do Britannia, seria desembarcado
numa das ilhas do Pacífico. Recomeçaram, então, as buscas
ao longo do paralelo 37", desta feita em pleno oceano. Ora
sucedeu que Ayrton, tomado talvez por alguma sombra de
arrependimento, acabou por revelar o seu passado, confessando
nada saber a respeito do Britannia, desde o dia em que o capitão Grant
o expulsara do navio, abandonando-o na costa australiana.
"Apesar desta confissão, Lorde Glenarvan manteve a palavra
dada de não entregar Ayrton às autoridades inglesas, e o
Duncan prosseguiu a busca mantendo a rota no paralelo 37". Foi
assim que chegaram à ilha Tabor, a terra referenciada na
mensagem dos náufragos! Estes foram recolhidos a bordo, enquanto o
traidor recebia ordem de desembarque. Aquela seria a ilha do
desterro. Antes, porém, Ayrton foi chamado à presença de
Lorde Glenarvan, que lhe disse o seguinte:
"- Você fica aqui neste ilhéu, onde a partir de agora
viverá longe dos seus semelhantes, apenas observado por Deus e
pela sua consciência! Todavia, ao contrário do capitão Grant e
dos companheiros, não fica ignorado ou perdido... Por mais
indigno que seja da lembrança dos homens, alguns lembrar-se-ão
de si. Eu sei onde você está, Ayrton, e saberei onde o
encontrar... um dia! Nunca me esquecerei disso!
"Dito isto, o Duncan levantou ferro e em breve desaparecia
no horizonte. Era o dia 8 de Março de 1855. Ayrton estava só e
isolado do mundo, mas não lhe faltavam armas, munições e
sementes. Tinha, igualmente, a cabana do capitão Grant à sua
disposição... Nada mais lhe restava senão sobreviver e expiar
os crimes cometidos. Mas, a pouco e pouco, o abandonado foi
caindo no embrutecimento total, acabando por se transformar
num verdadeiro selvagem... aquele mesmo que os colonos da
ilha Lincoln recolheram!" - E o abandonado terminou:
- Escusado será dizer-vos, senhores, que Ayrton ou Ben
Joyce e eu somos uma única e a mesma pessoa!
Cyrus Smith e os companheiros tinham-se posto de pé. É
difícil descrever a emoção que sentiam, tanta era a miséria, o
desespero e a dor que lhes fora dado conhecer... O engenheiro
encaminhou-se para o ex-celerado.
- Ayrton - disse -, o seu passado criminoso já foi,
certamente, expiado aos olhos de Deus. A prova é que Ele o
trouxe até aqui. Por nós, também está perdoado. Quer ser agora
um dos nossos?
Ayrton recuou um passo, tomado de perturbação. Cyrus
retomou a palavra:
- Aqui tem a minha mão!
O homem precipitou-se para estreitar aquela mão estendida.
Um a um, os outros aproximaram-se e abraçaram o novo amigo
e companheiro.
- Não prefere ficar a viver connosco? - perguntou ainda
Cyrus Smith.
- Senhor Smith, peço-lhe que me deixe ficar no curral por
algum tempo...
- Como queira.
Ayrton fez menção de se retirar, mas o engenheiro Smith
reteve-o com um gesto:
- Ah!, diga-me uma coisa, meu amigo: se preferia ficar
isolado, por que razão atirou ao mar a mensagem que nos fez
ir buscá-lo?
- A mensagem? - espantou-se Ayrton.
- Sim, a mensagem dentro da garrafa com a localização
exacta da ilha Tabor...
- Nunca deitei nenhuma mensagem ao mar, senhor Smith!
- respondeu Ayrton.
E, inclinando levemente a cabeça, saiu da sala.


@TERCEIRA PARTE


O SEGREDO DA ILHA

@CAPÍTULO I


Não cabia a menor dúvida: era um navio! Iria passar ao largo
ou aportaria à ilha? Dentro de poucas horas, certamente, os
nossos amigos ficariam a saber com o que podiam contar...
Cyrus Smith e Harbert chamaram de imediato Gedeão
Spilett, Pencroff e Nab ao salão da Casa de Granito. O
marinheiro, empunhando o óculo de longo alcance, deteve-se
sobre o ponto indicado, correspondente à pequeníssima mancha
na película fotográfica.
- Com mil diabos, é mesmo um navio! - exclamou, em
tom alarmado. - Mas, por enquanto, é cedo para dizer que
rumo leva... Só se vêem os mastros.
Os colonos mantiveram-se em silêncio, entregues a todos os
temores, mas também a todas as esperanças, que lhes suscitava
aquele inesperado acontecimento, o mais grave e importante
desde a sua chegada. Era certo que a ilha Lincoln, dominada
pelo monte Franklin, não escaparia à atenção dos vigias do
navio desconhecido... Mas dar-se-iam ao trabalho de fundear
ali? E para quê? Seria lógico atribuir a simples acaso a
presença do navio naquelas paragens? Ora os mapas não mencionavam
qualquer porção de terra naquela zona do Pacífico, à excepção
da pequena ilha Tabor, e mesmo esta fora das rotas habituais
das embarcações de longo curso em demanda dos ilhéus
polinésios, da Nova Zelândia ou da costa americana.
Harbert cortou o silêncio:
- Não será o Duncan?

Ora o Duncan - como os nossos leitores estarão lembrados
- era o iate de Lorde Glenarvan, o escocês que ordenara o
degredo de Ayrton na ilha Tabor.
- É preciso chamar Ayrton - recomendou Spilett.Apenas
ele nos poderá dizer se é, ou não, o Duncan.
Dito isto, o repórter dirigiu-se ao aparelho telegráfico que
estabelecia a ligação entre a Casa de Granito e o curral, e
tratou de expedir a mensagem.
- Se for mesmo o Duncan, Ayrton há-de reconhecê-lo!murmurou
Harbert.
- Certamente que sim - atalhou Cyrus Smith. - E queira
Deus que aquele barco seja o iate de Lorde Glenarvan, porque
outro qualquer será suspeito nestes mares infestados de pirataria...
- Se a nossa ilha for atacada por malfeitores, nós a
defenderemos! - proclamou o jovem, todo inflamado.
Quando Ayrton chegou, cerca de uma hora depois, Cyrus
Smith conduziu-o até à janela.
- Meu amigo, pegue neste óculo e observe bem. É possível
que aquele navio seja o Duncan...
O condenado, subitamente pálido, focou a direcção indicada
e perscrutou o horizonte durante vários minutos. Por fim,
afirmou categórico:
- Não é o Duncan! O Duncan é um iate a vapor e deste
não vejo qualquer sinal de fumo!

- Pode ser que estejam a poupar carvão e a navegar à vela,
pois o vento é de feição - observou Pencroff. - De qualquer
modo, temos de esperar que o casco seja visível para sabermos.
Ayrton permaneceu cabisbaixo e silencioso, enquanto os
colonos discutiam sobre qual a atitude a tomar. Acabaram por
decidir atear uma fogueira que assinalasse a presença de
gente na ilha, embora estivessem conscientes dos riscos que
corriam... Mas iriam perder aquela oportunidade de regressar
à civilização? Quem garantia que, se o navio se afastasse
durante a noite, algum outro voltaria a surgir nas águas da
desconhecida ilha Lincoln?
De repente, o misterioso veleiro mudou de rumo e apontou à
ilha, acelerando a velocidade! Ayrton assestou novamente o
óculo e, muito embora aquele barco também tivesse dois
mastros, tal como sucedia com o Duncan, concluiu com toda
a segurança:
- O Duncan não é! Eu bem sabia que não podia ser.
Pencroff pegou, por sua vez, no óculo e examinou atentamente
o brigue.
Marinheiro experimentado, não teve dificuldade em perceber
que era um barco de trezentas a quatrocentas toneladas, esguio
e sabiamente mastreado, enfim, um autêntico corredor dos
mares. Mais difícil era averiguar a sua nacionalidade, dado
que a noite caía e o pavilhão, com o abrandamento da brisa
marítima, se enrolara nos cabos.
- Americano não é, nem inglês, que aí se via facilmente o
vermelho... - ia dizendo Pencroff. - Também não é francês,
nem alemão... Tão-pouco é a bandeira branca da Rússia ou a
amarela de Espanha. Dir-se-ia que é de uma cor uniforme...
Vejamos: nestes mares, o que seria mais natural encontrar? O
pavilhão do Chile? Mas esse é tricolor... O brasileiro? É
verde. Só se...
A frase ficou em meio. Uma aragem repentina fizera drapejar
a bandeira desconhecida e o marinheiro anunciou em voz rouca:
- O pavilhão negro!
- Meus amigos - exclamou, emocionado, o engenheiro
-, se esses miseráveis quiserem conquistar a nossa ilha, nós
defendê-la-emos, não é verdade?
- Com as nossas próprias vidas, se for preciso! - respondeu
Gedeão Spilett.
A noite caíra, uma noite de breu, noite de lua nova,
envolvendo em escuridão cerrada a ilha e o mar. Do navio,
ainda sem luzes, nada se descortinava e nem sequer era
possível saber- se a localização exacta.
- Quem sabe se o maldito barco não deu meia volta...
sugeriu Pencroff.
Como que em resposta à observação do marinheiro, um
clarão vivo relampejou ao largo e um tiro de canhão atroou os
ares, cortando violentamente o silêncio da noite. O brigue
estava ali, a menos de duas milhas 1 da costa! Pouco depois, os
colonos ouviram distintamente o guinchar característico das
correntes a descer pelos escovéns 2. O navio acabava de lançar
ferro à vista da Casa de Granito!


1 Milha marítima = 1852 metros. (N. da T.)
2 Escovém: abertura no costado de um navio para passagem da
amarra. (N. da T.)

@CAPÍTULO II


Estava consumado! Os piratas tinham fundeado a curta
distância da ilha, e era evidente que no dia seguinte viriam a
terra nos escaleres. Cyrus Smith e os companheiros estavam
prontos a agir mas, por maior determinação que os animasse,
impunha-se-lhes a maior prudência. Talvez pudessem, ainda,
dissimular a sua presença... Quem sabe se os intrusos não
pretendiam apenas abastecer-se de água doce? Nesse caso, não
seria previsível que descortinassem a ponte sobre o Mercy, a
mais de um quilómetro da foz, e ainda menos as obras de
melhoria das Chaminés.
- De qualquer modo - fez notar Smith -, aqui estamos
razoavelmente defendidos. Os piratas não vão conseguir descobrir
a abertura do escoadouro do lago, que está muito bem
camuflada, e nunca serão capazes de entrar na Casa de Granito.
- Mas as nossas plantações? - exclamou Pencroff, em
desespero. - A nossa capoeira, o curral, enfim, tudo o que
construímos? Eles podem destruir tudo em poucas horas!

- Tudo, é verdade. E nós não temos meios de o impedir..:
concordou o engenheiro.
Nesse momento, Ayrton, que até então parecera alheado,
aproximou-se de Cyrus Smith e disse-lhe com firmeza:
- Senhor Smith, peço-lhe autorização para ir ao navio ver
quantos homens são e o que pretendem.

- Vai arriscar a vida e, além disso, não tem nenhuma
obrigação... - respondeu Cyrus, hesitante.
O engenheiro Smith percebia que o condenado, tornado
homem honesto, procurava mais aquela provação, como se
ainda não tivesse expiado todos os seus crimes.
- Devo cumprir muito mais do que a minha obrigação!obstinou-se
Ayrton. - Irei a nado, visto que é a melhor
maneira de passar despercebido.
- Eu vou consigo! - decidiu Pencroff. - Mas só até ao
ilhéu. Depois fico ali à sua espera, para o que der e vier...
Pode acontecer que um dos bandidos tenha desembarcado lá e dois
homens não serão de mais para o impedir de dar o alarme. Assim
decidido, desceram à praia e atravessaram para o ilhéu da Salvação. Ayrton
despiu-se e espalhou gordura no corpo para suportar o frio, já que podia
ter de permanecer várias horas dentro de água. Depois, sem hesitar,
atirou-se ao mar e nadou silenciosamente até ao brigue, cuja localização
era indicada por umas quantas lanternas acesas. Quanto a Pencroff,
ficou escondido numa reentrância das rochas. Passada uma meia hora, sem
ter sido visto nem ouvido, Ayrton chegava ao pé do navio e, segurando-se
ao cabo da âncora, tratou de descansar um pouco. Seguidamente, com
uma agilidade felina, içou-se até à amurada da proa, onde secavam roupas
de marinheiro. Vestiu umas calças e, acocorado atrás de uma barrica,
pôs-se à escuta.
Os piratas bebiam, cantavam, riam e discutiam. Eis algumas
das frases que Ayrton conseguiu apanhar e que muito o perturbaram:
- Excelente presa, este brigue!
- Navega que é uma maravilha e é veloz como um raio!
Bem merece o nome de Speedy!
- Toda a marinha de Norfolk podia correr atrás dele, que
nunca o caçava!
- Viva o nosso capitão! Viva Bob Harvey!
Para se compreender o que Ayrton sentiu ao escutar este
nome, é necessário saber que Bob Harvey tinha sido seu
companheiro, na Austrália. Marinheiro audaz, mas homem sem
escrúpulos, levara por diante os projectos criminosos
congeminados pelo próprio Ayrton! Bob Harvey e o seu bando
de facínoras, ex-presidiários, cruzavam agora o Pacífico,
assaltando e destruindo navios, e massacrando tripulações.
Os homens do Speedy eram todos condenados ingleses de tal
modo perigosos, que haviam sido degredados para a ilha
Norfolk, de onde se evadiram.
A gritaria e as conversas boçais continuavam, a par de
grande ingestão de rum, ficando Ayrton a saber que só por mero
acaso o brigue chegara ao largo da ilha Lincoln. Bob Harvey
estava decidido a explorar aquela terra desconhecida, que não
constava em nenhuma carta de navegação. Depois, se houvesse
condições para tal, tencionava fazer dela porto de abrigo e
base para os ataques. Quanto ao tiro de canhão à chegada, não
fora mais do que pura fanfarronada dos piratas, a exemplo da
praxe dos navios de guerra à vista de um porto!
As notícias não podiam ser piores para a pequena colónia da
ilha! A água potável, a pequena enseada bem abrigada e a
fartura de provisões não deixariam de despertar a cobiça dos
bandidos. Depois, porque desconhecida, a ilha garantia-lhes
toda a impunidade e segurança! E outra coisa era certa: Harvey
e os seus cúmplices não poupariam os colonos, que seriam
massacrados sem qualquer hesitação. Posto isto, era necessário
combater até ao fim e acabar com aqueles miseráveis, indignos
de piedade e contra os quais todos os meios seriam
justificados. Uma hora passou e a berraria dos malfeitores
ia cessando; daí a pouco já todos dormiam e as lanternas do tombadilho
acabaram por se extinguir. Encoberto pela escuridão, Ayrton
deslizou cautelosamente por entre os corpos prostrados e, pelo
tacto, pôde verificar que o Speedy dispunha de quatro canhões
de carregar pela culatra, peças modernas, portanto, com efeitos devastadores. Quanto ao número de homens, não eram mais de
dez os que dormiam no tombadilho e na ponte da popa, mas,
pelo que escutara, a tripulação andava pelos cinquenta...
Muitos, na verdade, para os seis colonos da ilha Lincoln!
Não restava mais a Ayrton do que regressar e contar aos
companheiros o que soubera. Tinha cumprido o seu dever.
Porém, este homem estava determinado a ir além do dever.
Ocorreu-lhe, então, uma ideia heróica: sacrificaria a vida
para salvar a ilha e os colonos, a quem devia a dignidade
recuperada. Como? Fazendo explodir o brigue! Ele próprio morreria, mas, juntamente com ele, todos os piratas! Não hesitou mais e
procurou o paiol, por certo bem aprovisionado de pólvora. Um
lampião de chama baixa alumiava a base do mastro grande,
junto ao qual os piratas guardavam as armas. Ayrton escolheu
um revólver; tanto lhe bastava para fazer fogo e provocar a
explosão! Pé ante pé, aproximou-se do castelo da popa, sob o
qual devia estar o paiol. A porta, infelizmente, estava
trancada! No entanto, o cadeado não tardou a saltar,
pressionado pelo cano do revólver. Mas, no preciso momento em
que abria o paiol,
Ayrton sentiu-se violentamente agarrado pelo ombro.
- Que estás aqui a fazer?
Era a voz de Bob Harvey! Sem responder, empurrou com toda a força o
chefe dos bandidos e tentou entrar no paiol. Um tiro de revólver no meio
daquelas toneladas de pólvora... e tudo estaria terminado!
- A mim, companheiros! - berrou Harvey.
Três piratas, acordados pelos gritos, lançaram-se sobre
Ayrton, mas este logrou repeli-los, disparando rapidamente por
duas vezes. Dois celerados tombaram, enquanto o terceiro o
atingia de raspão com uma facada no ombro.
Perante esta situação, e dado que outros piratas acorriam
já, o ex-degredado da ilha Tabor compreendeu que o seu plano
não podia ser executado; o mais importante, agora, era fugir
dali e lutar ao lado de Cyrus Smith e dos seus amigos.
Disparando as balas que lhe restavam, Ayrton correu para a
ponte, galgou a amurada e mergulhou. Ainda não dera seis
braçadas e já as balas crepitavam à sua volta, qual granizo!
Imagine-se a angústia de Pencroff, no ilhéu, e dos outros
companheiros, na Casa de Granito, ao ouvirem o tiroteio!

Finalmente, pela meia-noite, o bote arribou à praia,
trazendo Pencroff ileso e Ayrton ligeiramente ferido. Os
amigos aguardavam-nos nas Chaminés e todos se abraçaram, vivamente
emocionados. Ali mesmo, Ayrton fez o relato de tudo quanto
se tinha passado, sem omitir o plano frustrado de fazer
explodir o brigue. No final, ninguém tentou disfarçar o
respeito e a admiração que o ex-condenado confirmara merecer. Este não se
cansava de salientar a gravidade da situação: os piratas, em
grande número e bem armados, sabiam agora que a ilha era
habitada e de semelhantes facínoras não se poderia esperar a
menor clemência.
- Pois bem, nós saberemos morrer! - exclamou o repórter.
- Para já, vamos ficar vigilantes - disse o engenheiro.
A noite passou-se sem incidentes e, quando a aurora começou a raiar,
os colonos avistaram logo por entre as brumas da
manhã a massa escura do Speedy.
- Meus amigos, antes que a neblina desapareça de todo,
quero dar-lhes conta das disposições que me parecem mais
convenientes - disse, então, o engenheiro. - Primeiro que
tudo, temos de fazer crer aos bandidos que somos muitos mais
do que seis e, por conseguinte, capazes de os enfrentar. Para
tanto, proponho que nos dividamos em três grupos: um fica aqui
mesmo nas Chaminés; outro, na foz do Mercy e, a propósito,
escusado será dizer que a ponte vai ser imediatamente levantada!
O terceiro grupo vai para o ilhéu, para impedir ou, pelo
menos, retardar qualquer tentativa de desembarque. Quanto a
armas de fogo, temos que chegue para todos: quatro espingardas
e duas carabinas. E munições também não faltam!
As carabinas foram distribuídas a Gedeão Spilett e Ayrton,
ambos exímios atiradores, e os grupos organizados como segue:
Cyrus Smith e Harbert ficariam escondidos nas Chaminés,
dominando, assim, uma grande extensão de praia e as imediações
da Casa de Granito; Spilett e Nab iriam colocar-se entre
as rochas da foz do Mercy, por forma a impedir a passagem de
qualquer escaler ou tentativas de desembarque na margem
oposta; finalmente, Pencroff e Ayrton ocupariam postos separados
na ilhota. Desta maneira, o tiroteio disparado de quatro
pontos diferentes, levaria os piratas a pensar que a ilha,
suficientemente povoada, seria também eficazmente defendida.
Instantes volvidos, Cyrus e Harbert para um lado, e o
repórter e Nab para outro, tinham desaparecido atrás das
rochas; cinco minutos mais tarde, Ayrton e Pencroff, após
atravessarem o canal sem problemas, desembarcavam na ilhota e
ocultavam-se nas reentrâncias do lado oriental.
Nenhum deles podia ter sido visto. De resto, eles próprios
dificilmente descortinavam o Speedy, ainda envolto em nevoeiro.
Pelas seis e meia da manhã, a cerração começou a
dissipar-se e os defensores da ilha puderam avaliar, então,
o navio pirata em toda a sua imponência! O brigue, com o
sinistro pavilhão negro hasteado, estava de proa virada a norte, voltando, por
conseguinte, o costado de bombordo para a ilha. Os canhões
assestados eram prova mais que evidente que tudo estava a
postos para abrir fogo ao primeiro sinal!
Mas, por ora, o Speedy mantinha-se mudo e quedo. Podia
ver-se uma trintena de homens sobre a ponte, mais uns tantos
nos mastros e dois deles, munidos de óculos de longo alcance,
observavam a ilha. Cerca das oito horas, começou a movimentação.
Os piratas lançaram um escaler ao mar e sete embarcaram, armados de espingardas: um tomou conta do leme, quatro
empunharam os remos e os outros dois acocoraram-se à proa,
prontos a disparar. O objectivo parecia ser um primeiro reconhecimento, porque, se pretendessem desembarcar, empregariam uma força mais numerosa.
O escaler avançava com extrema precaução. A dada altura,
um dos homens da proa pegou numa linha de sonda e pôs-se
a medir a profundidade das águas. Era claro que Bob Harvey
tencionava aproximar o navio da costa no máximo que fosse possível. Entretanto, o escaler deteve-se muito perto do ilhéu. O homem do leme, de pé, procurava o melhor
ponto de acostagem. De repente, dois tiros quase simultâneos chicotearam o ar e dois penachos de fumaça pairaram, por breves instantes, sobre os rochedos do ilhéu.
O do leme e
o seu companheiro da sonda tombaram no fundo do escaler. Pencroff e
Ayrton não tinham falhado!
A resposta não tardou e o flanco do brigue cuspiu fogo! A
crista dos rochedos voou em estilhaços, mas os dois atiradores não
foram atingidos. Do escaler soaram imprecações e gritos de cólera; um
dos piratas tomou conta do leme, enquanto os outros quatro remavam com
toda a força ao longo da margem,
procurando voltar pelo lado sul, a fim de se colocarem fora do alcance
das balas.
A intenção dos piratas era entrar no canal e surpreender
pelas costas os atiradores do ilhéu, que ficariam, assim,
entre o fogo cruzado das suas espingardas e da artilharia do
Speedy. Porém, já nas águas do canal e mais ou menos na
direcção do rio,
sucedeu que a maré a subir com a força do costume começou
a arrastar o escaler dos malfeitores para a foz do Mercy, onde
foram saudados com mais dois disparos. Outros dois piratas
tombaram. Agora, fora a vez de Nab e Spilett mostrarem
pontaria afinada!
Imediatamente, o Speedy atirou segunda bombarda, de
novo sem outro resultado que não o de esfacelar algumas rochas.
No escaler, os três sobreviventes, remando furiosamente,
lograram sair da corrente e, ladeando a ilhota pelo norte,
acostaram ao brigue. Os mortos foram içados para bordo, no
meio de exaltada gritaria, e logo a seguir doze dos celerados
saltaram para a embarcação; um segundo escaler foi, então,
arreado, rumando à foz do Mercy com mais oito homens lá
dentro, enquanto o primeiro apontava à ilhota.
A situação de Pencroff e Ayrton tornava-se insustentável!
No entanto, os nossos amigos esperaram que o barco chegasse ao
alcance de tiro e, com mais duas balas bem dirigidas,
provocaram a confusão entre os facínoras! Perseguidos por
autêntica fuzilaria, fugiram depois a toda a velocidade, meteram-se
no bote, atravessaram o canal e correram para as
Chaminés.
Apenas se tinham reunido a Cyrus Smith e Harbert e já a
ilhota era invadida pelos piratas. Quase no mesmo instante,
ouviram-se novas detonações do local defendido por Nab e
Gedeão Spilett. Dois dos ocupantes do segundo escaler acabavam
de ser mortalmente atingidos e o barco, desgovernado, foi
atirado contra os escolhos, desmantelando-se na embocadura do
rio! Os seis sobreviventes conseguiram atingir a margem
direita ,
de onde desataram a correr em direcção à ponta da baía dos
pântanos.
Posto isto, a situação apresentava-se da seguinte maneira:
no ilhéu da Salvação, estavam doze piratas com um escaler à
disposição, não se sabendo, porém, se entre eles haveria
feridos ou mortos; na ilha andavam seis, mas sem embarcação e, para
já, impedidos de atingir a Casa de Granito, dado que tinham
fugido pela margem oposta do rio, cuja ponte fora levantada.
- Isto vai, isto vai! - exclamava Pencroff, todo entusiasmado. - O que
é que lhe parece, senhor Cyrus?
- O que me parece é que o combate ainda está longe do fim... -
respondeu, calmamente, o engenheiro. - Acho que não podemos facilitar,
porque estes bandidos não são estúpidos, nem vão desistir facilmente.
- Mas o canal é que eles não atravessam - opinou o marinheiro -, que
as carabinas do Ayrton e do senhor Spilett aqui estão para o impedir!
- Isso é verdade - disse o jovem Harbert -, mas o que podem duas carabinas
contra quatro canhões?
- Eh! Calma aí! O brigue nunca entrará no canal... Eles não
hão-de arriscar-se a encalhar e a perder o navio! Não, isso
não é possível... - insistiu Pencroff, como sempre optimista.
- É possível, é! - contestou Ayrton. - Basta aproveitar a maré-cheia.
Então, sob o fogo dos canhões, é que nós ficamos sem possibilidade... -
Por todos os diabos do inferno! - vociferou Pencroff.
- Parece que os patifes se preparam para levantar ferro!
- Senhor Smith, talvez sejamos obrigados a procurar
refúgio na Casa de Granito - disse Harbert.
- Vamos esperar para ver, meu rapaz!
- E o senhor Spilett? E o Nab? - inquietou-se o marinheiro
- Eles hão-de juntar-se a nós no momento oportuno garantiu
Cyrus. - Quanto a si, Ayrton, é melhor ir preparando
a carabina!
O Speedy virara a proa e aproximava-se agora do ilhéu.
Quanto à possibilidade de entrar no canal, Pencroff continuava
a teimar que o dito Bob Harvey não se atreveria a tal manobra.
Entretanto, os piratas que tinham desembarcado no ilhéu,
concentraram-se na margem fronteira à ilha, julgando-se a
salvo. Evidentemente, ignoravam que os colonos dispunham de
carabinas de longo alcance e esse descuido custou-lhes caro.
Spilett e Ayrton, cada um no seu posto, fizeram fogo e
abateram mais dois inimigos. Foi a debandada geral! Os outros
precipitaram-se para o escaler e remaram apressadamente para o veleiro.
- Oito a menos! - congratulou-se Pencroff.
- Atenção, que as coisas vão piorar! - avisou Ayrton,
recarregando a carabina. - O brigue vem aí!
Os defensores da ilha dificilmente dominavam a ansiedade.
Seria terrível se ficassem expostos aos canhões do navio a tão
curta distância, e sem capacidade de resposta eficaz! E como
poderiam impedir um desembarque?
Cyrus Smith avaliava perfeitamente a gravidade da situação e
interrogava-se sobre o que fazer. A decisão - e tinha de ser
rápida - cabia-lhe a ele. Mas qual? Refugiarem-se na Casa de
Granito e suportar um cerco de semanas, ou de meses, até que
os víveres se esgotassem? Os piratas não deixariam de tomar
posse da ilha, que haviam de devastar a seu bel-prazer, e, no
fim, acabariam sempre por lhes deitar a mão...
Entretanto, o Speedy aproximava-se da ponta inferior do
ilhéu da Salvação. O comandante dos piratas aproveitara as
anteriores surtidas dos escaleres para saber qual a melhor
maneira de manobrar até ao canal. O plano de Bob Harvey era
simples: fundear frente às Chaminés e daí flagelar com espingardas e
canhões aqueles que já lhe tinham morto oito elementos da tripulação.
Com o vento a favor, não tardou muito que o
brigue atingisse a foz do Mercy, mas, nessa altura, já o
repórter e Nab se tinham reunido aos companheiros.
O engenheiro Smith decidiu-se:
- Vamos para a Casa de Granito antes que os bandidos nos
vejam! Depois, faremos o que as circunstâncias nos ditarem!
Não havia um instante a perder. Os colonos esgueiraram-se para
fora das Chaminés e, a coberto dos rochedos, precipitaram- -se
para o elevador, subindo para casa, onde o cão Top ficara
fechado desde a véspera.
Ora também depressa se frustrou a esperança de que, graças
às obras de dissimulação, a Casa de Granito não fosse
detectada pelos piratas... Uma bala apontada à porta acabava
de fazer ricochete na parede do corredor!
- Maldição! Fomos descobertos! - gritou Pencroff.
A situação dos colonos não podia ser mais desesperada!
Nisto, soou um fragor surdo, acompanhado de gritos de
horror... Cyrus Smith e os companheiros precipitaram-se para uma das
janelas. O brigue elevou-se acima das águas, levantado
por uma espécie de tromba líquida, partiu-se ao meio e, em
menos de dez segundos, afundava-se com a sua criminosa tripulação! !

@CAPÍTULO III


- Foram ao fundo! - exclamou Harbert, correndo para o
elevador seguido por Nab e Pencroff.
- Mas... mas o que é que aconteceu? - perguntava Gedeão
Spilett, verdadeiramente estupefacto.
- Ah! Desta vez, sim! É desta que vamos ficar a saber...
- murmurava o engenheiro, de olhos brilhantes e voz embargada
pela emoção, como se falasse consigo mesmo.
- A saber o quê? - interessou-se Spilett.
- Mais tarde falamos. Venha daí, Spilett! O importante é
que esses piratas foram exterminados!
Cyrus Smith, Spilett e Ayrton juntaram-se aos outros, na
praia. Do brigue nem sinal, sequer da mastreação! Depois de
levantado pelo inexplicável turbilhão, virara-se de lado e
nessa posição fora ao fundo. Todavia, dada a pouca
profundidade do canal, era de esperar que na baixa-mar o
costado ficasse à vista e acessível. Alguns salvados flutuavam
já na corrente - mastros, vergas, caixotes e barricas - não se descortinando,
porém, fragmentos da estrutura do navio, bocados do casco ou do
convés, por exemplo... Tal facto adensava ainda mais o
mistério da explosão.
- E os seis bandidos que fugiram pela margem direita do
Mercy? - lembrou, de repente, Gedeão Spilett.
- Pensaremos neles mais tarde! - respondeu Smith.Ainda
são perigosos porque estão armados, mas, enfim, são seis
contra seis... Agora as forças estão equiparadas. Neste momento, vamos
ao que importa!
Com efeito, urgia impedir que os salvados à deriva fossem
puxados para o largo. Ayrton e Pencroff correram para o bote e
trataram de recolher mastros, vergas e velas que, depois de
amarrados, rebocavam para a praia. Alguns cadáveres começavam também a
ser arrastados para o mar alto pela vazante, e
tão rapidamente que nem puderam ser recolhidos para posterior
sepultura. Entre os corpos levados pela maré, Ayrton reconheceu Bob Harvey,
seu ex-companheiro.
- Veja lá você, Pencroff, aquele criminoso! - comentou.
- E pensar que eu também já fui assim...
- Mas já não é, meu amigo! - retorquiu o marinheiro com veemência.
Ao cabo de duas horas, os colonos tinham recuperado uma
enorme quantidade de material, agora amontoado em terra.
Todos se sentiam exaustos e a morrer de fome, pelo que
comeram ali mesmo, nas Chaminés, um almoço ligeiro preparado por Nab.
Como não podia deixar de ser, o tema da conversa foi o misterioso
acontecimento que lhes salvara miraculosamente as vidas. Cerca de
duas horas depois, já com as forças mais retemperadas, meteram-se no bote
e remaram até ao local onde o Speedy se afundara.
Com a vazante, o brigue já estava meio fora de água,
apresentando-se quase de quilha para cima. Governando o bote à
volta do casco, puseram-se os colonos a examiná-lo atentamente,
tentando perceber o que realmente se passara. À frente, de ambos os lados
da quilha e perto da roda da proa, o costado apresentava-se despedaçado
num comprimento de, pelo menos, seis metros! Mais: o revestimento de
cobre e o forro interior do navio tinham-se praticamente pulverizado! Até
à ré, as cintas que não tinham desaparecido estavam desconjuntadas e
retorcidas e a sobrequilha fora arrancada...; até a própria quilha estava
completamente solta em diversos pontos.

- Com mil diabos! - exclamou Pencroff, com ironia.Ora
aqui está um navio difícil de recuperar!
- De qualquer maneira - atalhou Spilett -, a explosão
produziu efeitos singulares. Destruiu completamente o navio
por baixo e por dentro, sem fazer saltar o convés e o equipamento
superior! Estes enormes rombos sugerem mais um
choque contra escolhos do que um rebentamento no paiol...
- Ora essa! Não há escolhos no canal! - contrapôs o
marinheiro. - Aceito o que quiserem, menos um embate contra as rochas!

- Precisamos ir lá dentro - propôs o engenheiro. - Talvez
aí seja possível descobrir o que aconteceu.
Era, de facto, o melhor a fazer, até porque convinha
inventariar todos os valores que pudessem ser retirados de bordo. De resto, a maré continuava a baixar, facilitando o acesso ao bojo do brigue. Cada rombo era uma
porta escancarada!
Cyrus Smith e os companheiros avançaram, munidos de machados, ao longo do
convés destroçado e atravancado de caixotes, cujo conteúdo, conforme
esperavam, devia estar ainda aproveitável. Ayrton e Pencroff improvisaram
uma espécie de guindaste no rombo maior e começaram a içar todos os
volumes, barris e caixas que, posteriormente, eram transportados no bote
até à praia. Depois se veria o que continham.

Resumindo, para grande satisfação dos colonos, não restavam
dúvidas de que o brigue carregava carga muito variada e da
maior utilidade.
Chegados ao lado da ré, ao local onde antes se erguia o
castelo da popa e, por conseguinte, onde ficava o paiol,
verificaram - conforme era já convicção do engenheiro - que
a explosão do navio não tivera ali a sua origem. Aliás, a zona
do paiol fora precisamente a menos atingida. O marinheiro teve
de admitir, contrariado:
- Bem, sou obrigado a reconhecer que tinham razão! Mas
quanto a um choque numa rocha, aí eu mantenho que não as
há no canal!
Pelo menos, puderam recuperar uma grande quantidade de
munições e uma vintena de barris de pólvora, que removeram
com todas as precauções.

A maré, entretanto, começara a encher e as buscas ficaram
por ali. De resto, podiam voltar à carcaça do navio sempre que
quisessem, encalhada como estava nas areias do fundo.
Eram perto das cinco da tarde e o dia havia sido muito duro
para todos. Apesar disso, e depois de terem jantado com
apetite, não resistiram à curiosidade e foram examinar a carga que
tinham salvo. Calcule-se a satisfação da pequena colónia,
quando descobriu grande quantidade de roupas e calçado! Era,
de facto, material de primeira necessidade.
- Agora é que estamos ricos! - exclamou alegremente o
marinheiro.
A cada momento crescia o entusiasmo, conforme se abriam
barricas de tabaco, caixas de armas de fogo, caixotes de
algodão, ferramentas, utensílios de lavoura... Ah! como tudo
aquilo teria sido útil, dois anos atrás, quando foram
obrigados a improvisar todo o equipamento a partir do nada!
Mas, enfim, mesmo agora, nada seria desaproveitado.
O dia acabou, sem que houvesse tempo de arrumar tudo na
Casa de Granito. A vigilância não podia esmorecer, tanto mais
que andavam seis piratas do Speedy à solta pela ilha, agora
por certo ainda mais sedentos de vingança.
Os três dias que se seguiram, 19, 20 e 21 de Outubro, foram
destinados à recolha de tudo o que houvesse de valor ou
utilidade no navio afundado. Na baixa-mar, esvaziavam o porão,
e na praia-mar transportavam os salvados para terra. Levaram
tudo: os revestimentos de cobre, as correntes, as âncoras, os
lastros de ferro e até os canhões, que conseguiram pôr a
flutuar amarrados a barricas vazias. Pencroff, sempre cheio de
ideias entusiastas, falava já em montar os quatro canhões em
bateria, a dominar o canal e a foz do rio... Desse modo, não
haveria esquadra "por mais poderosa que fosse", como ele
dizia, que se aventurasse nas águas da ilha Lincoln!
Quando do brigue nada mais restava do que a carcaça inútil,
veio o mau tempo que acabou por a destruir. As despensas,
armazéns e arrecadações da Casa de Granito, essas, estavam a
abarrotar!
Contudo, o mistério da destruição do Speedy continuaria por
esclarecer, não fosse Nab, cerca de duas semanas depois, ter
encontrado na praia um pesado cilindro de ferro todo torto e
com sinais de ter sido submetido a uma substância explosiva.
Cyrus Smith, após ter examinado atentamente o achado,
voltou-se para Pencroff e perguntou-lhe com alguma ironia:
- Então, amigo, você continua a pensar que o Speedy não
foi vítima de um choque?
- Pois claro! - respondeu logo o marinheiro. - O senhor
Cyrus sabe tão bem como eu que o canal não tem escolhos!
- E se o choque se tivesse dado contra isto? - insistiu o
engenheiro, apontando para o cilindro encontrado por Nab.
- O quê? Esse canudo? - disse Pencroff, incrédulo.
- Meus amigos - esclareceu Smith -, lembrar-se-ão, por
certo, que o brigue, antes de ir ao fundo, foi levantado por
uma tromba de água... Pois bem, tudo isso foi obra de um
torpedo e este cilindro é o que resta dele.
- Mas como é que ele foi lá parar? - perguntou Pencroff,
desconfiado como de costume.
- Isso ainda não sei, mas o certo é que todos pudemos
testemunhar os seus efeitos!
Enfim, tudo se explicava... ou melhor, quase tudo. O engenheiro
que, durante a Guerra de Secessão, tivera oportunidade
de se familiarizar com esses terríveis engenhos, não podia
enganar-se. Fora aquele cilindro carregado de explosivos que
rebentara com o brigue! O Speedy não pudera resistir a tamanha
capacidade de destruição, aliás suficiente para afundar um
cruzador como se de um barquinho de pesca se tratasse.
Sim, quase tudo se explicava. Faltava, porém, saber quem
lançara o torpedo. Cyrus Smith já intuíra a verdade. Agora,
era chegado o momento de falar novamente com os amigos e
partilhar com eles as suspeitas que tinha e que se iam
tornando certezas. É que todos aqueles acontecimentos
estranhos e
inexplicáveis dos últimos dois anos haviam sido sempre, mas
sempre, favoráveis aos colonos!
O engenheiro falou durante longo tempo, perante o silêncio
de concordância dos companheiros, tão lógica foi a sua demonstração
da presença de um misterioso desconhecido na ilha,
talvez um náufrago como eles, mas dotado de poderes prodigiosos. Em suma,
um benfeitor generoso e desinteressado, de cuja existência Cyrus fora
recolhendo sucessivas provas, a começar pelo seu próprio salvamento do
mar tempestuoso, quando caiu do balão! Mas havia mais: Top que escapara
ileso do dugongo e este morto com um golpe no pescoço; o grão de chumbo
encontrado no corpo do pecari; o caixote repleto de tudo o que
eles careciam, aparecido, como por milagre, na baía dos pântanos; a
mensagem dentro da garrafa, a dar-lhes conhecimento da existência de
Ayrton na ilha Tabor; a fogueira no topo da ilha a servir-lhes de
farol... Resumindo, tudo isso fora obra desse protector, que
estranhamente não se mostrava, tudo isso culminava agora com a
destruição do navio dos piratas, salvando-os uma vez mais e preservando a
ilha Lincoln da sanha devastadora dos facínoras.
O engenheiro Smith tinha, igualmente, uma interpretação
para o facto de o benfeitor desconhecido ter sempre conhecimento
oportuno dos problemas, intenções e movimentações da
colónia. Estava ele convencido de que, graças às fantásticas
condições acústicas da caverna, o misterioso personagem os
ouvia através do poço na arrecadação da Casa de Granito, junto
do qual Top tinha por hábito rosnar.
Portanto, para Cyrus, homem culto e com um arreigado
espírito científico que recusava o sobrenatural, tudo tinha
uma explicação. Para ele era claro que o homem desconhecido era
detentor de um poder extraordinário e de conhecimentos técnicos
e científicos muito avançados para a época. Já Pencroff,
de alma simples e com poucos estudos, custava a acreditar em
tudo aquilo e, por várias vezes, quis interromper o
engenheiro... Do que não restavam dúvidas era de que todos
eles, colonos da ilha Lincoln, mantinham uma pesada dívida de
gratidão para com o benfeitor desconhecido. Cyrus Smith
colocou abertamente a questão:
- Há algo que temos de decidir e já! Devemos respeitar o
desejo de anonimato do nosso salvador, ou devemos procurá-lo para lhe
agradecer e nos colocarmos ao seu serviço para tudo o que entenda
necessário?
Todos se mostraram favoráveis à segunda hipótese, especialmente Ayrton,
que falou comovidamente: - Devemos fazer tudo para o encontrar! A minha
dívida para com ele é, talvez, ainda maior do que a vossa. De facto,
só ele podia saber da minha desgraçada existência na ilha
Tabor, comunicando-lhes que havia lá um miserável a salvar! É,
portanto, a ele em primeiro lugar que devo a recuperação da
minha dignidade de ser humano!
- Então, está decidido! - rematou Cyrus Smith. - Vamos
explorar minuciosamente toda a ilha, e que o nosso amigo
entenda a nossa intenção e nos perdoe...
A época do ano era excelente para a expedição projectada.
Decorria o mês de Novembro, correspondente a Maio no
hemisfério norte, com dias grandes e tempo primaveril. Só não
partiram imediatamente, porque se levantavam alguns problemas de ordem
prática. Um dos onagros estava ferido numa perna e eram precisos alguns
dias para ele recuperar; é que o engenheiro tencionava levar a carroça
com mantimentos e tudo o que fosse necessário para acampar. Por outro
lado, os animais do curral estavam há vários dias sem os cuidados de
Ayrton... Convinha que este passasse lá dois dias, para deixar tudo em
condições. Enquanto isso, Spilett, Pencroff e Harbert iriam patrulhar a margem direita do Mercy e a ponta meridional da ilha, à procura de vestígios dos seis piratas
foragidos.
Este problema deu, aliás, origem a aceso debate entre os colonos. Cyrus
Smith perfilhava a tese humanista de que os homens podiam ser
regenerados, não só por terem assistido ao fim dramático dos
companheiros, mas também porque estariam em situação de fraqueza,
isolados e entregues a eles mesmos. Todos concordaram que valia a pena
tentar, à excepção de Pencroff, que, muito casmurro, nem queria saber
do exemplo do arrependimento de Ayrton. Teve, contudo, de aceitar a
vontade da maioria, mas não deixou de dizer:
- Seja como quiserem! Por mim, abatia cada um daqueles
malandros como se fosse um animal selvagem! Só peço a Deus
que ninguém se arrependa da decisão.
Dentro em breve, se saberia quem tinha razão. A orientação
era de não se abrir fogo, a não ser que fossem atacados.
Na madrugada seguinte, dia 9 de Novembro, Ayrton partiu
para o curral, com a recomendação de enviar uma mensagem
telegráfica a informar da situação para aqueles lados. Caso
tudo corresse normalmente, estaria de volta a 11, para a
expedição. A seguir foi a vez da pequena patrulha se pôr em marcha para sul. Nab acompanhou Spilett, Pencroff e Harbert até à margem do Mercy, a fim de voltar
a levantar a ponte, depois de eles passarem. Ficou combinado que, no regresso, disparariam um tiro de aviso e o jovem negro viria recolocar a ponte.
Assim que chegaram à margem direita do rio, os três amigos
tomaram a estrada que ia directamente ao porto do Balão,
observando atentamente quer a orla do pântano dos Tadornos, à
esquerda, quer a orla da floresta, à direita. Em lado algum se
aperceberam de qualquer sinal da passagem dos piratas, que
deviam estar escondidos mais para o interior da ilha. À conta
das buscas, demoraram duas horas a percorrer os quase cinco
quilómetros do trajecto, mas, à chegada, o marinheiro teve a
alegria de avistar o Boaventura tranquilamente fundeado no
porto da pequena enseada.
- Vá lá, que aqueles patifes não chegaram aqui!
Mas a alegria foi sol de pouca dura. Quando se aproximaram
da amarração, Pencroff detectou imediatamente que alguém
estivera ali a mexer no barco ou mesmo a utilizá-lo...
- Não tenho dúvida nenhuma! Os nós do cabo da âncora
são diferentes! Os que eu tinha feito são de duas laçadas e
estes são nós direitos!
Teriam sido os piratas? O marinheiro estava fora de si. O
mais certo era que os piratas tivessem pensado fugir, voltando
atrás na decisão ao considerar que o pequeno veleiro não os
levaria longe... quando muito até à pequena ilha Tabor.
Perturbados com este incidente, voltaram à Casa de Granito,
onde os aguardavam novos motivos de ansiedade. Com efeito,
Cyrus Smith, preocupado com o silêncio do telégrafo, tentara
entrar em contacto com Ayrton, mas sem qualquer resultado.
Algo de grave devia ter acontecido com o amigo, a menos que se
tratasse de uma avaria na instalação, ou - pior ainda - de um
acto de sabotagem na linha!
A 11 de Novembro, dia marcado para o regresso de Ayrton, a
situação mantinha-se. Do curral, apenas o silêncio respondia
às sucessivas chamadas. Cyrus Smith decidiu não esperar mais
tempo. Nab ficaria na Casa de Granito vigiando o exterior e
atento ao sinal do aparelho, enquanto todos os outros, bem
armados, iriam ao curral seguindo sempre pelo fio do
telégrafo. Após dois quilómetros percorridos, ainda não tinham notado
nada de anormal: os postes mantinham-se erectos, os isoladores
intactos e o fio bem esticado. De repente, Harbert, que caminhava
mais adiante, exclamou:
- O fio está cortado!
A autoria da sabotagem, óbvia, cabia aos piratas fugitivos!
Foi de coração oprimido, que os nossos quatro amigos fizeram o
resto do caminho até ao curral. Por fim, avistaram a paliçada.
À primeira vista, não havia sinais de destruição e o portão
estava fechado. Contudo, o silêncio profundo era mais um
motivo de alerta! O engenheiro avançou direito ao portão e
preparava-se para levantar um dos batentes, quando Top começou
a ladrar... Nesse preciso momento, ouviu-se um tiro e Harbert caiu no
chão com um grito de dor!

@CAPÍTULO IV

Spilett e Smith precipitaram-se para o jovem, cujo corpo
inerte Pencroff abraçava já, cheio de desespero:
- Mataram-no! Mataram o meu menino! - gritava o
marinheiro, as faces sulcadas de lágrimas.
O repórter encostou o ouvido ao peito de Harbert.
- Está vivo, mas é preciso levá-lo daqui... - disse. - Para
o curral, já!
Cyrus, entretanto, corria ao longo da paliçada, contornando-a pelo lado
esquerdo. Viera dali o tiro. De repente, viu-se frente a frente com um
bandido que, de rosto contraído pela cólera, lhe atravessou o chapéu com
uma bala. Não teve tempo de disparar segunda vez, porque o engenheiro,
mais rápido, o abateu com uma facada em pleno coração.
Nessa altura, já o infeliz Harbert jazia na cama de Ayrton, na cabana do
curral. Enquanto Pencroff se entregava à sua dor, Gedeão Spilett fazia
tudo o que estava ao seu alcance para salvar o rapaz. O repórter,
habituado aos incidentes mais diversos próprios da sua profissão, tinha
alguns conhecimentos de primeiros-socorros e de medicina corrente. O
estado de Harbert, contudo, parecia ser muito grave! Ajudado por Smith,
pôs a descoberto o ferimento no lado direito do peito, entre a
terceira e a quarta costela. A bala não ficara alojada no corpo e o
ferimento das costas era ainda maior. Spilett interrogava-se
sobre os danos que o projéctil podia ter provocado nos órgãos
atingidos... De qualquer modo, era urgente parar a hemorragia
sem fechar nem comprimir demasiado as feridas pois, sendo
certo que havia lesões internas, importava que a supuração não
se acumulasse. Assim, o improvisado cirurgião optou apenas
por lavar os ferimentos e aplicar compressas de água fria,
completando o tratamento com tisanas refrescantes, que
Pencroff ia preparando com as ervas que o próprio Harbert
colhera junto do lago, e de que havia boa provisão na cabana do curral.
O certo é que, na manhã seguinte, a febre do doente baixara sensivelmente
e os colonos recuperaram a esperança. Harbert,
que ia retomando consciência a pouco e pouco, reconheceu Smith, Spilett e
Pencroff, que manifestou esfusiante alegria.
Gedeão Spilett, esse, não escondeu a euforia:
- Está salvo! Graças a Deus! O ferimento é grave e até é
bem possível que a bala tenha atravessado o pulmão, mas isso
não é mortal...
Como é fácil de compreender, desde que estavam no curral,
quase há vinte e quatro horas, os colonos apenas se tinham
preocupado com o estado do jovem, esquecendo mesmo os
perigos que os ameaçavam, caso os criminosos voltassem.
Agora, já mais descansados, Cyrus e o repórter lançaram mãos
à obra, enquanto Pencroff permanecia gostosamente à cabeceira
do ferido.
Os dois homens começaram por percorrer toda a cerca do
curral e explorar as imediações. Todavia, não encontraram
qualquer sinal ou rasto de Ayrton; conhecendo a bravura do amigo,
concluíram que este, ao ser surpreendido, não
capitulara sem luta. O que lhes parecia mais credível era
que os bandidos, ao sentirem a aproximação dos colonos,
tinham debandado, à excepção daquele que se atrasara e que ferira
Harbert. Mas esse, pelo menos, estava morto. Quanto aos outros, deviam
ter levado Ayrton, mas não era provável que o tivessem
abatido, pois não se dariam ao trabalho de carregar o corpo.
- É preciso bater toda a floresta - decidiu Cyrus Smith -, e
desembaraçar a ilha desses miseráveis! Afinal, Pencroff tinha razão...
Devíamos tê-los tratado como animais selvagens e isso ter-nos-ia evitado
as provações por que estamos a passar... Bem,
pelo menos ficamos moralmente autorizados a abdicar de toda a piedade!
Entretanto, outro problema se punha: Nab, sem notícias
durante todo aquele tempo, podia meter-se a caminho,
desguarnecendo a Casa de Granito e incorrendo no perigo de
cair, também ele, nas mãos dos piratas! Mas como comunicar
com ele sem o telégrafo? O engenheiro meditava nesta questão
quando, ocasionalmente, pousou os olhos no fiel Top... Era
isso mesmo! O cão seria o seu correio! Meia hora lhe bastaria
para percorrer o caminho entre o curral e a Casa de Granito,
que conhecia bem, para além de poder passar despercebido.
O repórter arrancou uma folha do inseparável caderninho e
escreveu rapidamente: "Harbert foi ferido. Estamos no curral.
Mantém-te alerta e não saias daí. Diz se os piratas já apareceram
nas imediações. Manda resposta por Top."
Cyrus prendeu o bilhete à nova coleira de fibras vegetais
que o cão trazia ao pescoço e limitou-se a apontar o caminho de
casa, repetindo em tom imperativo:
- Casa! Nab! Nab! Casa! Vai, Top... Vai!
O inteligente animal desapareceu imediatamente entre a
folhagem. Os colonos, barricados na cabana, esperaram com
ansiedade o regresso de Top. Cyrus postara-se atrás da porta
de carabina aperrada, pronto a abri-la ao primeiro latido.
Cerca do meio-dia, ouviu-se uma detonação logo seguida de intenso
tiroteio. O engenheiro foi entreabrir o portão; assim que avistou uma
espiral de fumo a pairar junto de uma árvore, fez fogo nessa direcção.
Quase imediatamente, Top entrou de rompante no curral. Smith, depois de
trancar novamente o portão, sacou do papel que ele trazia ao pescoço e
leu em voz alta:
"Nada de piratas por aqui. Mantenho-me alerta. Melhoras
para o Sr. Harbert."
A lacónica nota de Nab era animadora. Contudo, por outro
lado, estavam cercados pelos bandidos, agora cinco, mas bem
armados e com intenções que não deixavam margem para dúvidas.
- Esperar, eis o que temos a fazer - disse Cyrus Smith.
- Assim que Harbert esteja curado, organizaremos uma batida
exaustiva por toda a ilha e daremos a esses miseráveis o que
merecem... Se Deus quiser, salvaremos Ayrton e ao mesmo tempo...
- Ao mesmo tempo - interrompeu Spilett -, procuraremos o nosso misterioso
protector, que desta vez não veio em nosso auxílio.
- Quem sabe? - disse o engenheiro, pensativo. - As
nossas penas ainda não acabaram e é possível que a sua
intervenção poderosa se faça sentir de novo. Mas, por ora, o
que importa é a recuperação de Harbert!
Era esta, realmente, a maior preocupação dos colonos trancados
no curral. Porém, o jovem melhorava a olhos vistos: as
feridas iam cicatrizando e a febre quase desaparecera. Para
isso muito contribuiu a água fria, levemente sulfurosa, com que
Spilett continuava a embeber as compressas, improvisadas com a
roupa branca que havia na cabana.
Ao fim de dez dias, a 22 de Novembro, Harbert começou a
manifestar fome, sintoma de acentuadas melhoras, e a cor
voltou-lhe às faces. Sorria aos "enfermeiros" e estes
viram-se obrigados a proibir-lhe conversas, para que não se
fatigasse. Quando, finalmente, o rapaz perguntou por Ayrton,
estranhando não o ver ali, o bom do Pencroff teve de arranjar
uma desculpa: - Como nós ficámos aqui, ele foi juntar-se ao
Nab para melhor defesa da Casa de Granito!
Já quando Harbert quis saber dos piratas, Pencroff exaltou-se
e respondeu todo arrebatado:
- Ah! Esses! Pois aí estão uns cavalheiros que terei o maior
prazer em cumprimentar com umas cargas de chumbo! Andam
por aí escondidos, mas havemos de os encontrar... E quando
estiveres curado, meu filho, vamos ver se esses cobardes, tão prontos a
atacar pelas costas, serão capazes de nos enfrentar cara a cara!

@CAPÍTULO V


A convalescença do jovem processava-se normalmente, o
que bastante animava os companheiros, ansiosos por voltar para
casa. Na verdade, por muito bem provida de mantimentos e
munições que estivesse a cabana do curral, não se comparava
ao conforto e segurança da Casa de Granito.
A falta de notícias de Nab não os preocupava por aí além,
já que o corajoso criado de Smith, bem entrincheirado, não se
deixaria surpreender... Todavia, ao engenheiro não agradava
saber as suas forças divididas. Com Ayrton desaparecido e
Harbert incapacitado, eram quatro contra cinco e as possibilidades de
iniciativa estavam do lado do inimigo.
Spilett estimava em oito dias o período necessário a que
Harbert ganhasse forças suficientes para suportar o caminho
sem perigo. Oito dias! Isso remetia o regresso a casa só lá
para os princípios de Dezembro... Por essa altura, naquela
latitude, começava o calor e era, portanto, tempo das
colheitas. Logo que regressassem ao planalto, teriam de se
abalançar aos trabalhos agrícolas, adiando a projectada
expedição por toda a ilha.
A permanência obrigatória no curral minava o ânimo dos
colonos, principalmente de Pencroff que se tornara um agricultor
convicto, entusiasticamente votado ao ciclo da terra e
muito intransigente no que tocava a tempos de semear e colher.
Mas o mais perturbado e impaciente de todos era o próprio

Harbert; doía-lhe ser o causador da retenção dos amigos e um
empecilho à segurança dos companheiros e à defesa da ilha!
Gedeão Spilett, esse, decidiu aliviar a ansiedade
patrulhando as imediações acompanhado por Top; a carabina e a
vigilância
do cão bastavam-lhe para se sentir seguro. Havia penetrado uns
duzentos metros na floresta, quando Top deu sinal de
pressentir qualquer coisa; avançou para um tufo de arbustos,
estacou e pôs-se a ganir baixinho com a cauda esticada. Pessoa
não seria, senão o comportamento do animal era diferente... O
repórter, sabendo disso, avançou e afastou os arbustos,
descobrindo um farrapo de pano sujo que não teve dificuldade
em reconhecer: era feltro de lã tecido na Casa de Granito. Um
pedaço da camisa de Ayrton, não havia dúvida!
Na cabana, o achado foi favoravelmente interpretado. Ayrton
estava vivo. Prisioneiro, era óbvio, mas vivo! Os piratas
pretendiam, certamente, sacar-lhe informações acerca do número e
dispositivo dos defensores da ilha, mas os colonos tinham como
seguro que o ex-desterrado de Tabor não abriria a boca para os
trair e que tudo tentaria para se evadir. Se o conseguisse,
ignorante de que os companheiros se encontravam no curral,
acorreria à Casa de Granito.
As patrulhas do repórter, cada vez mais longe do curral, não
voltaram a fornecer mais pistas da presença dos piratas
naquela zona. Por onde andariam e que novas malfeitorias
estariam a preparar? A resposta não tardou! Top, que apanhara a porta
aberta e se escapulira pela madrugada - estava-se a 29 de
Novembro -, regressou a meio da manhã dando mostras de
grande agitação. Como esfregasse com insistência o focinho nas
pernas do dono, este, ao afagar-lhe a cabeça, descobriu um
papel dobrado e preso na coleira improvisada. Era um bilhete
de Nab! Cyrus leu-o com voz trémula: "Sexta feira, seis
horas. Os piratas estão a invadir o planalto."
Ora a presença dos bandidos só podia significar devastação
e pilhagem! Harbert soergueu-se no leito e afirmou categórico:
- Meus amigos, eu quero partir! Sei que posso suportar a
viagem. Vamos embora!
O onagro foi rapidamente atrelado à carroça, no fundo da
qual estenderam Harbert em cima de um colchão, bem apoiado
nos taipais. Estava um dia luminoso, cheio de sol, e a carroça
avançava lentamente, com Top a correr e a farejar na
dianteira. Pencroff segurava nas rédeas, com a carabina ao
lado, e o engenheiro e Spilett, de armas aperradas e prontas a disparar,
protegiam os flancos. Iam a uns dois quilómetros do destino,
quando, ao fazer uma curva, Pencroff susteve o onagro e soltou
um grito de fúria:
- Ah! Os miseráveis!!
Uma espessa coluna de fumo subia do planalto, no local onde
tinham construído a capoeira, a cavalariça e tudo o resto...
Subitamente, Nab apareceu-lhes pela frente, a correr esbaforido!
Ainda ofegante, contou que os facínoras tinham partido
há uma meia hora e que ele, como não sabia que vinham a
caminho, ia ao curral dar-lhes conta da situação... Por fim, o
valente negro perguntou pelo estado de Harbert; foi só então
que repararam que o ferido tinha perdido os sentidos.
De repente, a destruição do planalto, a ameaça à Casa de
Granito, a presença dos bandidos na ilha, tudo, enfim, foi
relegado para segundo plano. No espírito dos colonos só pesava
uma preocupação: o estado de Harbert! Teria algum solavanco
reaberto as feridas? Teria ocorrido outra lesão interna?
Gedeão Spilett, como "médico de serviço", estava desesperado. Deixaram a carroça à guarda de Nab, que também ficou incumbido de dar uma primeira vista ao planalto,
e transportaram o
ferido até casa numa padiola improvisada com o colchão e alguns
troncos. Aí, Harbert recobrou a consciência e sorriu para os
amigos, mas a debilidade era tanta que não conseguiu articular palavra.
Spilett examinou os ferimentos e, embora animado por
verificar que cicatrizavam normalmente, não ficou sossegado.
Por que razão havia o jovem piorado daquela maneira?
Entretanto, os piratas continuavam afastados da Casa de
Granito e das Chaminés, porque provavelmente julgavam aqueles locais bem
protegidos e não arriscavam... Ah! Se eles
soubessem que os defensores eram apenas quatro! "Valente Ayrton!",
pensava o engenheiro a caminho do planalto. Uma
vez lá chegado, ficou estarrecido: os campos tinham sido positivamente
devastados e as searas meticulosamente espezinhadas; a horta fora
igualmente arrasada e as instalações consumidas pelo fogo! Os poucos
animais, que tinham sobrevivido à matança, erravam em pânico pelo
planalto. Muito pálido e controlando a ira com dificuldade, Cyrus Smith
voltou para casa.
Harbert estava pior e as tisanas já não produziam qualquer
efeito. O infeliz rapaz ora delirava, ora caía numa prostração
profunda. Spilett, que não abandonava a cabeceira do doente,
acabou por perceber a razão daquele agravamento. Com efeito, a alternância entre os delírios e as convulsões da febre e as
fases de letargia só podia significar uma coisa: Harbert sofria de uma
crise de malária, doença que certamente contraíra numa das idas aos
pântanos mas que só agora se revelara, dado o enfraquecimento
generalizado do organismo do rapaz por causa dos ferimentos.

Era urgente combater o mal, evitando novo febrão que poderia ser mortal! Como não tinham quinino - o remédio mais indicado contra a malária ou paludismo - ainda
tentaram chás de casca de salgueiro, mas sem resultados...
Na noite de 7 de Dezembro, Harbert teve um novo ataque e tão violento,
que Gedeão Spilett acreditou que o jovem amigo se despedia da vida. Era
terrível verificar que o doente já não reconhecia ninguém, ora
contorcendo-se delirante, ora quedando- -se inanimado!
De repente, Top, possuído de estranha agitação, começou a rosnar, sendo
logo acalmado pelo dono, em respeito pela agonia do moribundo.
Pelas cinco da manhã, mal despontava a aurora, Pencroff, que não
conseguia ficar quieto de tanta aflição, andando de quarto em quarto
entrou no salão... O grito de surpresa que soltou fez acorrer os outros.
O marinheiro apontava para uma caixinha em cima da mesa. Spilett
pegou-lhe e leu na etiqueta: "Sulfato de quinino"! O repórter abriu a
caixa e levou aos lábios
um pouco daquela substância branca... Não restavam dúvidas: era, de
facto, quinino, o antipalúdico por excelência! De imediato, Nab recebeu
ordem de ir fazer café a que o repórter juntou um pouco de medicamento,
forçando Harbert a beber uma chávena inteira da mistura. O efeito foi,
quase podia dizer-se, milagroso! Após dez dias de tratamento os ataques
tinham sido debelados e o jovem, embora naturalmente debilitado, estava
fora de perigo! Nenhum dos colonos tinha dúvidas de que o aparecimento do
remédio fora obra do misterioso benfeitor.


@CAPÍTULO VI


Durante todo esse tempo, os piratas não deram um único
sinal de vida, facto animador não fosse a grande preocupação
dos colonos pela sorte de Ayrton. Todavia, a prudência mandava
que Harbert tivesse mais um mês, pelo menos, de convalescença,
antes de se lançarem em perseguição dos malfeitores.
Em fins de Janeiro, Harbert podia considerar-se totalmente
restabelecido dos ferimentos e da grave crise de malária. Os
passeios pelo planalto e pela praia e, acima de tudo, os
banhos de mar na companhia de Pencroff e Nab muito contribuíram para a
sua recuperação não só física como psicológica.
Finalmente, na primeira semana de Fevereiro, o engenheiro
Smith decidiu que se realizasse sem mais demora a expedição
por toda a ilha. A Casa de Granito ficaria vazia e, uma vez
desmontado e escondido o elevador, seria como um castelo
completamente inacessível.
Assim, no dia 15 de Fevereiro, retiraram o elevador e a
escada de corda e enterraram tudo na areia, no interior das
Chaminés. O tempo estava magnífico para a tripla missão que
os colonos tinham assumido: dar caça aos bandidos, libertar
Ayrton e procurar o benfeitor desconhecido, verdadeiro senhor
da ilha.
Cyrus deu ordem de marcha e colocou-se à cabeça da coluna,
logo seguido por Spilett e Pencroff; atrás, Nab segurava as
rédeas dos onagros que puxavam a carroça carregada de víveres,
armas e munições, e onde também seguia Harbert, poupando
esforços escusados. O cão Top corria alegremente entre todos.
Chegados à ponte do Mercy, passaram para a margem direita e,
deixando a estrada do porto do Balão à esquerda, embrenharam-se
pela mata das florestas ocidentais. As árvores, por
enquanto dispersas, e o piso firme permitiam o avanço fácil da
carroça, embora de tempos a tempos fosse necessário abrir
caminho com os machados e as facas de mato. Ao princípio da tarde, encontraram vestígios da passagem de um pequeno grupo:
alguns ramos quebrados, o chão revolvido e cinzas de uma
fogueira. Quando a noite chegou, estavam a cerca de quinze
quilómetros da Casa de Granito e resolveram acampar junto a um
riacho, afluente do Mercy. A vigilância foi organizada com
todo o rigor, ficando Harbert dispensado dessa tarefa, apesar
dos seus veementes protestos.
No dia seguinte, a marcha prosseguiu com maior lentidão,
porque a vegetação, cada vez mais densa, obrigava a sucessivas
paragens para se desbravar o caminho. Nesse segundo dia, os
colonos avançaram apenas nove quilómetros, mas voltaram a
encontrar sinais dos piratas. Desta feita, as pegadas eram bem
visíveis e correspondiam a cinco homens, obviamente os cinco
malfeitores. Bastante dolorosamente, concluíram que Ayrton
não estava com os bandidos e que, portanto, estes já o tinham morto!
Patrulhada a parte restante da floresta que, como é sabido, terminava à
beira do oceano, na costa ocidental da ilha
Lincoln, não foram detectados mais vestígios dos piratas, o
que levou Cyrus Smith a comentar:
- Isso não me espanta nada! Quando nadaram para a praia
e se puseram em fuga, os celerados atravessaram o pântano dos
Tadornos e meteram-se pela floresta adentro... Devem ter feito
o mesmo percurso que nós fizemos, a julgar pelos sinais que
encontrámos, e esbarraram neste litoral! Depois, perceberam
que este não era o local ideal para se esconderem e seguiram
para nordeste até que descobriram o curral...
- E quem nos diz que não voltaram para lá? - exclamou! Pencroff. -
Partamos imediatamente, senhor Smith Acho, até,
que andámos a perder tempo...
- Não, meu amigo - interrompeu o engenheiro. - É bom
não esquecer que esta exploração de toda a floresta ocidental
tinha, também, a finalidade de saber se este denso arvoredo
não esconderia uma habitação... Então, Pencroff, já não se
lembra
que procuramos igualmente o nosso benfeitor?
- Ah! senhor Cyrus, tem toda a razão! - volveu o
marinheiro. - Mas quer saber o que eu penso? Só encontraremos
esse cavalheiro se ele quiser!
Essa era, no fundo, a opinião de todos eles. A morada do
homem desconhecido só podia ser tão misteriosa quanto ele
próprio o era!
A 19 de Fevereiro, o pequeno grupo abandonou o litoral e
rumou aos contrafortes do vulcão. O plano do engenheiro era o
seguinte: aproximar-se do curral e, caso este estivesse ocupado,
tomá-lo pela força, de modo a estabelecer aí a base das
operações de busca a desenvolver, posteriormente, na área do
monte Franklin. O terreno tornava-se cada vez mais acidentado
à medida que se aproximavam do sopé da montanha, o que não
só o tornava propício a emboscadas, como dificultava bastante
a circulação da carroça. Assim sendo, o avanço foi lento e
rodeado das maiores precauções. Finalmente, pelas cinco da
tarde, avistaram a paliçada do curral. Gedeão Spilett e
Pencroff pretenderam atacar imediatamente, mas Cyrus Smith
deteve-os: - Não, meus amigos! Vamos esperar pela noite. Não
permitirei que nenhum de nós se exponha inutilmente.
O engenheiro tinha razão. O curral erguia-se numa clareira e
até à cerca era terra absolutamente a descoberto, uma
autêntica "terra de ninguém". Assim, deixaram passar três
horas. A noite tombou e o vento amainou. O silêncio, de tão
profundo, era quase assustador; até o cão estava deitado e quieto, sem
qualquer sinal de inquietação. Spilett e Pencroff
prepararam-se para avançar e Cyrus deu as últimas instruções:
- Não quero imprudências! Lembrem-se que não se trata
ainda de assaltar o curral, mas apenas verificar se está, ou
não, ocupado!
Os dois intrépidos colonos avançaram silenciosamente até ao
portão da paliçada, que estava fechado. Do interior, não
chegava um único ruído..., nem sequer um rumor das cabras e dos carneiros perturbava a quietude da noite. O repórter ainda
pensou em escalar a vedação, mas lembrou-se da recomendação
de Cyrus e desistiu. Voltaram, pois, para junto dos amigos,
dando-lhes conta da situação.
- Pois bem, tenho agora a certeza de que os piratas não
estão no curral! - disse o engenheiro Smith.
- Por mim, só o poderemos saber depois de entrar na
cabana - disse Pencroff.
- Vamos lá então! - comandou Cyrus.
- E a carroça? Fica aqui na floresta? - perguntou Nab.
- De maneira nenhuma! Este carro é o nosso "paiol
ambulante" e, além disso, pode servir-nos de abrigo se
rebentar tiroteio.
Sem hesitar, os colonos avançaram a coberto da escuridão;
o espesso tapete de erva abafava o ruído das rodas do carro.
Chegados à paliçada, Nab ficou a segurar os onagros, enquanto
os outros se precipitaram para o portão. Um dos batentes
estava aberto!
- Com mil trovões! - praguejou, estupefacto, o marinheiro.
- Ainda agora estava fechado e bem fechado!
Logo a seguir, Harbert exclamou, alarmado:
- Há uma luz lá dentro!
Com efeito, um ténue clarão escapava-se da janelinha da
cabana. Cyrus susteve o ímpeto dos amigos, que já estavam
prontos para arrombar a porta, e espreitou. Sobre a mesa, uma
candeia acesa; na cama, um homem deitado. O engenheiro não
queria acreditar...
- Ayrton! É o Ayrton!
Entraram todos de rompante! Ayrton, surpreso e assustado, virou-se no
leito, tentando levantar-se... Os olhos macerados, e
o rosto ferido e inchado mostravam que tinha sido torturado;
por outro lado, os pulsos e os tornozelos vincados e com
marcas sangrentas indicavam que tinha permanecido amarrado
durante longo tempo. Cyrus Smith abraçou o amigo, fortemente
emocionado, tal como todos os outros.
- Vocês? Mas... são vocês?! Cuidado, eles não tardam aí!
- exclamou o infeliz, quase sem forças. - Defendam-se!
Defendam-se!
Cyrus Smith, tomando conta da situação, deu as ordens necessárias:
- Spilett, você vai buscar Nab. Metam os dois a carroça
dentro da cerca e barriquem o portão! Harbert vem comigo e
o Pencroff toma já posição de tiro à janela!
O engenheiro e o jovem saíram da cabana, ao mesmo tempo
que a carroça entrava e o portão era trancado. Nisto, Top, que
correra para o fundo da cerca, do lado direito da cabana,
desatou a ladrar furiosamente. Acudiram os colonos, à espera
do pior... Mas que viram eles? Cinco corpos estendidos na
relva... os cadáveres dos piratas! Os cinco sobreviventes do
grupo, que há quatro meses desembarcara na ilha Lincoln,
estavam mortos.

@CAPÍTULO VII


Os colonos, uma vez mais, não duvidaram: a execução dos
cadastrados devia-se ao protector desconhecido. Mas como?
Que meios extraordinários possuía aquele homem para actuar
tão rapidamente e em tão absoluto silêncio?
Guardaram para a luz do dia o exame aos cadáveres,
esperando obter com isso alguma resposta, e voltaram para junto
do companheiro, que desfalecera. Pela madrugada, Ayrton, já
mais recomposto, pôde finalmente relatar a odisseia que vivera
nos últimos três meses.
Mal tinha chegado ao curral, em Novembro passado, fora
logo surpreendido pelos bandidos que, escalando a paliçada, o
amarraram e amordaçaram. Em seguida, levaram-no para uma
caverna na base do vulcão, onde tinham montado o esconderijo.
A sua morte já havia sido decidida, quando um dos facínoras
o reconheceu como antigo companheiro de crimes, tratando-o
mesmo por Ben Joyce, nome pelo qual era conhecido na
Austrália. Aí, os piratas, que se dispunham a massacrar o
honesto colono, resolveram poupar o degredado!
Não se tratava, porém, de um acto de solidariedade desinteressada;
apenas pretendiam servir-se dele, Ayrton, para
enganar os colonos e lhes franquear o acesso à Casa de
Granito! Uma vez lá, eliminariam os defensores e tomariam
posse da ilha. Mas ele recusara colaborar naquele plano,
preferindo a morte a trair os amigos. Começaram, então, as
torturas e os espancamentos, sempre amarrado naquele antro escuro.
Os facínoras nunca julgaram prudente ocupar o curral,
apenas dele se servindo para aprovisionamento; era o que lá
tinham ido fazer dois deles, quando os colonos apareceram,
naquele dia em que Harbert foi ferido e Cyrus Smith abateu um
deles. Raivosos e cada vez mais impacientes, os piratas intensificaram
os maus tratos a Ayrton. Este esperava a morte a
cada instante, até que, chegado ao limite das forças, caiu numa
prostração profunda... A partir daí, perdera a noção do tempo
e a memória das coisas era muito pouco clara...
De repente, tomado de súbita angústia, Ayrton perguntou:
- Mas, senhor Smith, como é que se explica que eu, estando
prisioneiro naquela caverna, tenha vindo parar aqui... à minha
cama? E desamarrado?
- E como é que se explica, meu bom Ayrton, que os
bandidos estejam mortos aqui dentro da cerca? - respondeu o
engenheiro.
- Mortos? Mortos, esses miseráveis?
A excitação de Ayrton sobrepôs-se à fraqueza e levantou-se,
ajudado pelos amigos. Lá fora, o dia nascera. Sem demora,
encaminharam-se todos para o sítio onde Top tinha encontrado
os corpos. O pobre prisioneiro estava atónito! A um sinal do
engenheiro, Nab e Pencroff examinaram os cadáveres, mas,
estranhamente, não encontraram ferimentos evidentes de bala ou
provocados por qualquer outra arma conhecida... Só após
uma observação mais minuciosa, é que foram detectados uns
pequenos pontos avermelhados, na testa de um, no peito de
outro, nas costas deste, no ombro daquele...
- Que arma fulminante poderá ter feito isto? - surpreendeu-se Spilett.
Estavam todos tão espantados quanto o repórter; Smith
quebrou o silêncio:
- Foi o justiceiro da ilha! O mesmo que o trouxe para aqui,
Ayrton! O benfeitor que faz por nós aquilo que nós não
podemos fazer!
- Procuremo-lo, então! - exclamou o marinheiro.
- Sim, havemos de esquadrinhar os contrafortes do monte
Franklin sem deixar uma só cova, um só buraco! Ah, companheiros!
Se alguma vez a um repórter se deparou caso verdadeiramente
emocionante e intrigante, pois foi agora... e a
mim! - rematou Gedeão Spilett.
Mas, antes do mais, havia que tratar de Ayrton. Levaram-no
para a cabana e o engenheiro Smith fez-lhe o relato dos
acontecimentos e provações por eles vividos. Por fim, ficou
decidido que não voltariam à Casa de Granito sem antes levar a
cabo a exploração da montanha. O curral estava mais próximo e,
além disso, tinham ali mantimentos e tudo o mais que
precisassem. Subitamente, Pencroff observou:
- Há ainda outra coisa a fazer... uma travessia!
- Uma viagem? Aonde? - indagou Spilett.
- Sim, temos de ir à ilha Tabor! - respondeu o marinheiro. Temos
de ir lá deixar uma mensagem a dizer onde estamos,
para o caso do tal iate escocês ir lá buscar o Ayrton... Deus
queira que não seja tarde de mais!
- Mas, Pencroff, como é que você pensa fazer essa
travessia? - perguntou Ayrton.
- Ora essa! No Boaventura, está visto que...
- Mas, meu amigo - interrompeu Ayrton. - O Boaventura
já não existe! Agora me recordo de ter ouvido, num destes
últimos dias, os piratas a comentar que tinham espatifado o
barco de encontro aos rochedos...
- Ai o meu Boaventura! Ah, os canalhas, que o inferno os
trague! Os miseráveis... - O marinheiro estava consternado e
Harbert bem tentou consolá-lo, mas em vão.
A destruição do pequeno veleiro era, na verdade, uma perda
lamentável para os colonos. No entanto, impunha-se calma e
bom senso, ficando decidido que outro barco se faria logo que
possível, aproveitando-se o material e equipamento do brigue
afundado. Em seguida, ultimados os preparativos para as buscas,
puseram-se em marcha.
A base da montanha, ramificada em múltiplos contrafortes,
formava como que um intrincado labirinto de vales cortados por
linhas de água. Era justamente ali, no fundo daquelas
estreitas gargantas, que o engenheiro Smith pensava que deviam
intensificar as explorações. Assim, começaram pelo vale que
se abria para sul e por onde corria o ribeiro que se
despenhava no litoral oeste. Foi lá, junto à nascente do curso
de água, que Ayrton lhes mostrou a caverna onde estivera
prisioneiro. Mas não era esta a única, conforme verificaram!
Muitas mais havia, com galerias maiores ou menores, mas todas
soturnas e assustadoras... Os colonos não deixaram uma só por
revistar, de archotes de resina em punho, mas em lado algum
viram sinais de presença
humana. Por fim, entraram numa que avançava mais pelo
interior da montanha e foram surpreendidos por um ruído surdo,
acompanhado de uma ligeira vibração da rocha que pisavam.
- Afinal, parece que o vulcão não está totalmente extinto...
- observou Spilett, que ia na frente com Cyrus.
- É bem possível que posteriormente à nossa visita à cratera
tenha havido uma alteração nas camadas inferiores - admitiu
o engenheiro. - Um vulcão, por mais extinto que pareça, pode
sempre reentrar em actividade.
- Mas uma erupção do monte Franklin não acarretaria um
sério perigo para a nossa ilha? - inquietou-se Spilett.
- Não me parece - respondeu, calmamente, Cyrus. - A cratera funciona como
uma válvula de segurança e escoaria o excesso de vapores e de lava... e
esta escorreria pelos sítios habituais. - A não ser que a lava abrisse
novos caminhos em direcção à parte fértil da ilha! - insistiu o repórter.
- Ora, meu amigo, e por que não utilizaria as vias já naturalmente
traçadas? - objectou o engenheiro. Spilett mantinha o cepticismo: - Os
vulcões são caprichosos... - Repare, Spilett, como a inclinação do monte
favorece a expansão das matérias incandescentes para os vales que agora
exploramos. Para que isso se invertesse, seria necessário que um
fortíssimo tremor de terra mudasse o centro de gravidade da montanha...
De resto, ainda não vimos nenhum sinal de fumo a sair da cratera e a
indicar uma erupção próxima! Porém, é de admitir que, ao longo dos
tempos, se tenham acumulado rochas de lava e de cinzas arrefecidas que
podem obstruir a tal válvula de que há pouco falei... Mas acredite, meu
caro Spilett, ao primeiro abalo sério essa tampa rebentaria e nem a ilha,
que é a caldeira, nem o vulcão, que é a chaminé, hão-de explodir com a
pressão dos gases... Bom, de qualquer modo, o melhor é que não ocorra
nenhuma erupção! Os dias seguintes, até 25 de Fevereiro, foram
consagrados à exploração da região setentrional da ilha. Os colonos
inspeccionaram todas as rochas e fendas que encontraram pelo caminho e
voltaram a subir aos cumes sobrepostos do monte Franklin. Embora no fundo
da cratera os mesmos rugidos surdos fossem perfeitamente audíveis, não
havia o menor escoamento de fumos ou vapores, nem tão-pouco aquecimento
anormal das paredes de rocha. A verdade é que, nem ali, nem em parte
alguma, encontraram qualquer rasto daquele que tão ansiosamente
procuravam! Todos comungavam da mesma frustração ao perceber que se
impunha o regresso. Era evidente que a misteriosa criatura não se
acoitava na ilha! Smith, Spilett e o jovem Harbert, homens cultos e de
espírito científico treinado, viam-se obrigados a apelar a todas as
reservas de lucidez; Ayrton, Pencroff e Nab, menos rigorosos, tendiam
para interpretações fantasiosas e sobrenaturais. Foi assim, neste estado
de espírito, que os nossos amigos voltaram para a Casa de Granito, e
precisamente um mês depois, a 25 de Março, celebravam o terceiro
aniversário da sua chegada à ilha Lincoln! Três anos tinham passado, três
anos de penosos trabalhos, de sofrimentos e perigos partilhados e
enfrentados. Os colonos tinham razões para sentir orgulho por tudo o que
haviam superado e conseguido e que, no fim, os fortalecera de corpo e de
espírito. Todavia, a recordação da pátria era constante e, por vezes,
não conseguiam impedir momentos de nostalgia e abatimento. Agora,
perdido o Boaventura, precisavam de dar início à construção do barco que
os havia de levar à ilha Tabor; seriam, pelo menos, outros seis meses de
trabalho, donde a travessia só seria empreendida na Primavera seguinte,
isto é, em Setembro ou Outubro. Dispunham, desta vez, de bom material e
equipamento de navegação perfeitamente aproveitável, recuperados do
navio dos piratas, para além da belíssima madeira da floresta ocidental.
Por outro lado, infelizmente também tinham de admitir que o iate escocês
já tivesse arribado à ilhota e, sem encontrar Ayrton, tivesse partido
para não mais voltar... Na mente de Cyrus Smith germinava um plano
ousado: e porque não construir, em vez de um veleiro pequeno destinado a
viagens curtas, um barco maior, entre duzentas e trezentas toneladas?
Porque não ir mais além? Talvez até alguma ilha da Polinésia ou mesmo à
Nova Zelândia? Esta ideia encheu de entusiasmo os companheiros! - Trate
o senhor do projecto, que gente para trabalhar não falta! - afirmou o
sempre disponível Pencroff, exibindo os braços musculosos. Estavam todos
conscientes de que seria uma tarefa gigantesca, mas a confiança que
tinham neles próprios e nos outros era ilimitada. Deitaram, pois, mãos à
obra. O engenheiro traçava os planos da embarcação; os restantes
procediam ao abate das árvores, que eram transportadas na carroça até
junto das Chaminés, onde novamente foi montado o estaleiro. Enfim, o
trabalho da colónia foi tão rigorosamente organizado e tão grande o
empenhamento de cada um, que nem as sementeiras de Abril deixaram de se
fazer e, inclusivamente, até a capoeira foi reconstruída! O curral também
não foi abandonado; todos os dias, lá se deslocava um dos colonos a
tratar dos animais, trazendo leite na volta e aproveitando para caçar. As
idas ao curral foram igualmente aproveitadas para reparação do fio do
telégrafo, restabelecendo a ligação com a Casa de Granito. Em meados de
Abril, já a quilha do novo barco se alongava no estaleiro, fixada em cada
uma das extremidades às rodas da proa e da popa, igualmente prontas. Por
essa altura, as condições atmosféricas pioraram. Os homens martelavam e
serravam ensopados até aos ossos, batidos pela forte ventania que soprava
de leste com violência ciclónica. A meio de Junho, a chuva parou e veio
um frio intenso que endureceu as fibras da madeira a ponto de esta
parecer ferro! A obra teve de ser interrompida. Os três meses de
invernia - Junho, Julho e Agosto - foram rigorosos como sempre, com uma
temperatura média de 13 graus abaixo de zero. Contudo, a colónia da ilha
Lincoln atingira o seu ponto mais alto de prosperidade, fruto dos três
anos de árduo labor, acrescida pelas riquezas do caixote que dera à costa
e do brigue afundado. As despensas e arrecadações estavam repletas, não
faltava roupa quente e não era necessário poupar lenha, pelo que as
lareiras dos vários compartimentos crepitavam permanentemente. Nos
momentos de lazer, agora mais frequentes, Cyrus Smith não podia deixar de
pensar no poderoso "senhor da ilha", o benfeitor que não tinham logrado
encontrar. Ficaria este enigma sem solução?

@CAPÍTULO VIII


No dia 7 de Setembro - já o Inverno chegara ao fim - o
engenheiro olhou para o cume do monte Franklin e viu sair
fumo da cratera... O monstro tinha acordado! O vulcão
reentrara em actividade!!
Os colonos rodearam o chefe, silenciosos e preocupados.
Cyrus Smith entendeu serená-los, repetindo o que já dissera
uma vez a Gedeão Spilett: mesmo admitindo uma erupção vulcânica,
não era de crer que toda a ilha fosse afectada. O engenheiro
Smith argumentou, novamente, com a disposição do monte e
inclinação da cratera, demonstrando que a lava seria expulsa
para o lado oposto à zona fértil da ilha, aquela de que se
serviam e ocupavam. Desde esse dia, o penacho de fumo manteve-se,
sempre mais alto e mais espesso.
O bom tempo voltara e a construção do barco prosseguia em
ritmo acelerado. Em plena praia, Cyrus Smith, aproveitando a
queda-d'água do elevador, montou uma serra hidráulica que
transformava rapidamente os grossos troncos em tábuas e
barrotes. Pelos fins de Setembro, já o casco do navio se
erguia no estaleiro e o cavername estava praticamente
construído. Era uma escuna' de proa estreita e aligeirada à
ré, apropriada para longas travessias. O assentamento do
convés, forrado no exterior
e no interior, seria operação demorada, mas - felizmente
- contavam com as ferragens, cavilhas e pregos do brigue.
As refeições comiam-nas ali mesmo, no estaleiro, e só
subiam à Casa de Granito quando a noite caía, completamente
exaustos. Apesar do trabalho, os colonos arranjavam sempre um
tempo para conversar, muitas vezes na varanda do planalto. Um
tema dos mais gratos era o regresso à pátria e todos, no seu
íntimo, faziam votos para que a guerra fratricida já tivesse
acabado... Traçavam, então, projectos para o futuro, sendo
ponto assente que voltariam sempre à ilha Lincoln, a colónia
fundada com tanto trabalho e sofrimento e que gostariam de ver

fazer parte da América!
Certa noite, a 15 de Outubro, tinham os seis amigos acabado
de jantar no salão da Casa de Granito, quando retiniu a
campainha do telégrafo.
- O que é isto? - alarmou-se Nab. - Não há ninguém no
curral! Ai que é o diabo que chama!
Cyrus Smith levantara-se e todos olhavam para ele. Harbert arriscou:
- O tempo está um bocado tempestuoso... Não poderá ser
qualquer interferência eléctrica que...
O rapaz não terminou a frase. O engenheiro abanava a
cabeça, em negativa enérgica.
- Vamos esperar um pouco - disse. - Se for um sinal,
quem quer que seja há-de insistir.
Nesse momento, o martelinho voltou a bater no timbre da
campainha eléctrica. Cyrus Smith, aparentando uma calma que
estava longe de sentir, dirigiu-se ao aparelho e codificou a pergunta: "Quem é? Que pretende?" A resposta não tardou. A
agulha moveu-se sobre o quadro alfabético, compondo a seguinte frase: "Venham imediatamente ao curral." Smith quase
gritou de júbilo:
- É ele! Finalmente, vai mostrar-se!
O mistério do protector desconhecido ia desvendar-se! A
importância do acontecimento era tal, que os colonos, presos
da maior excitação, esqueceram a fadiga e puseram-se de imediato
a caminho. Apenas Top ficou na Casa de Granito. A noite estava
cerrada, escura como breu. As nuvens carregadas formavam um
tecto baixo, opressivo; riscos contínuos de relâmpagos cruzavam os ares
sobre a linha do horizonte... Por enquanto, a
tempestade estava longe, mas não tardaria.
A motivação que os animava levava-os, porém, a ignorar
dificuldades e temores. Já iam com mais de metade do percurso feito, quando a tempestade desabou sobre a ilha! O estrondear da trovoada era cada vez mais forte...
De repente, um clarão vivíssimo iluminou a paliçada do curral. Tinham chegado!
Correram todos para a cabana, silenciosa e escura. Porém,
depois de aceso o lampião, foi o desapontamento: a cabana
estava vazia e nada havia sido mexido, conforme afiançou
Ayrton, a quem na véspera coubera a última visita.
Cyrus acercou-se da mesa onde estava instalado o telégrafo e
verificou que o aparelho estava em ordem... Subitamente, exclamou:
- Ah! Uma mensagem!
Pegou num pedaço de papel que estava em cima da mesa e leu em voz alta:
"Sigam o novo fio."
- Vamos embora! - gritou Cyrus, percebendo num relance
que a primeira mensagem não fora emitida do curral, mas sim do
refúgio secreto do benfeitor desconhecido que, com um fio
suplementar, estabelecera uma nova ligação à Casa de Granito.
A tempestade estava agora no auge e os relâmpagos e trovões
sucediam-se quase em simultâneo. Os nossos corajosos colonos
nada temiam, porém, e, alumiando com o lampião, procuraram
o segundo fio telegráfico. O engenheiro dirigiu-se
imediatamente para o primeiro poste, que se erguia fora da
paliçada. Não se enganara: lá estava a ligação recente e o
novo fio, coberto de uma substância isoladora, seguia rente ao
chão para oeste. Não foi fácil aos colonos acompanhá-lo; a ventania apagava constantemente a lanterna e o terreno era muito irregular,
pelo que, amiúde, perdiam o rasto do fio e tinham de o
procurar às apalpadelas por entre a erva alta, para poder
retomar a marcha. Assim andando, em condições dificílimas e
arriscadas, chegaram,
perto das dez da noite, às ravinas da costa oeste. Cyrus
Smith calculou o percurso feito em dois quilómetros e meio. O
vento uivava com furor e o oceano rugia lá em baixo, contra a
muralha de basalto...
A partir dali, o fio descia por um barranco abrupto até à
praia. Sem hesitar um segundo, os colonos meteram-se por ali
abaixo, correndo o risco de escorregar a todo o momento;
continuaram a descer, fazendo rolar pedras e calhaus, até que
atingiram o nível do mar. Outra desilusão os aguardava: o fio
descrevia um ângulo pronunciado e sumia nas águas revoltas da
maré cheia!
- Querem lá ver que temos de mergulhar e procurar um
refúgio subaquático? - desesperou-se Pencroff.
Cyrus Smith reflectiu uns instantes e tomou uma decisão:
- Vamos esperar que a maré desça, meus amigos, e reencontraremos o caminho... O nosso benfeitor não nos teria chamado, se fosse impossível chegar até ele.
Esperar era, portanto, o que restava fazer. Os seis homens
abrigaram-se numa pequena gruta e, em silêncio, deixaram
escoar o tempo. Lá fora, a chuva recruscedia e o eco ampliava
o fragor dos trovões. Pela meia-noite, a maré já baixara um
bom bocado. Cyrus pegou no lampião e foi seguindo o fio até à
boca de uma gruta aberta na muralha de basalto... Mais uma
hora e a abertura, que se adivinhava bastante grande, ficaria
praticável! Para ali se encaminharam e, mal o mar permitiu,
iluminaram a entrada de um imenso túnel abobadado, agora com uns cinco
metros de altura, por onde entrava a água do mar formando
como que um canal que se perdia na escuridão, direito ao
interior da ilha... E, mesmo diante deles, viram uma barcaça
amarrada a uma saliência da rocha!
- Embarquemos! - comandou Cyrus Smith.
Nab e Ayrton tomaram conta dos remos e Pencroff do leme; o
engenheiro seguia à proa com o lampião, cuja luz fraca não
permitia que distinguissem a verdadeira dimensão da caverna.
Os remadores avançavam cautelosamente, tentando não chocar
com as paredes do túnel, ao longo do qual estava preso o fio
telegráfico. O canal subterrâneo dava voltas e mais voltas,
serpenteando em direcção ao centro da ilha, até que, volvidos
uns trinta minutos, a barcaça desembocou numa enorme cripta
escavada nas entranhas da ilha, mas intensamente iluminada,
com uma abóbada altíssima sustentada por dezenas de colunas
basálticas, cuja base se perdia nas águas escuras e tranquilas
de um imenso lago interior!
Perante tamanha grandiosidade e beleza, o deslumbramento dos
colonos foi mais forte que qualquer temor! Era, de facto, uma
visão maravilhosa: a luminosidade arrancava chispas das
arestas da rocha e a reverberação produzia milhares de cintilações ofuscantes! Após esses primeiros momentos de espanto, é que
os colonos atentaram na origem daquela luz potentíssima que
mais parecia um sol. No centro do lago, repousava, meio
submerso, um estranho objecto fusiforme, qual enorme cetáceo
silencioso e imóvel... Era do flanco daquela massa escura, que
teria uns sessenta metros de comprimento por três de altura,
acima da água, que jorrava o potente foco luminoso... O
engenheiro tinha-se posto de pé à proa da barca e dava sinais
de enorme agitação. Agarrando o braço de Spilett, exclamou:
- Mas... é ele! Não pode ser senão ele!
E, sentando-se de novo, murmurou um nome que só Gedeão
Spilett conseguiu ouvir.
- O quê? Mas esse homem é um fora da lei! - exclamou o repórter.
Entretanto, a barcaça acostara àquela nave flutuante e os
colonos apressaram-se a subir à plataforma. Havia ali uma
escotilha aberta e por ela enfiaram começando a descer uma
escada de ferro. A escada terminava num corredor iluminado a
electricidade com uma porta ao fundo, que Cyrus Smith abriu.
Os colonos atravessaram rapidamente uma biblioteca riquíssima
e empurraram outra porta... Agora estavam num salão magnífico
e requintadamente decorado, uma espécie de museu de arte
e de história natural, onde não faltavam, também, modelos dos
mais avançados e sofisticados equipamentos e aparelhos industriais...
Estendido num sofá, viram um homem que parecia não
se dar conta da presença deles. Então, o engenheiro, para
grande espanto dos companheiros, pronunciou as seguintes palavras:
- Capitão Nemo, o senhor chamou-nos e nós aqui estamos!


ra grande palavras: estamos!

@CAPÍTULO IX


Ao ouvir estas palavras, o homem ergueu-se e os colonos
puderam vê-lo perfeitamente: um rosto magnífico, de testa alta
e olhar penetrante, emoldurado por uma barba branca cuidadosamente
aparada, assim como branco era o cabelo abundante
penteado para trás. A sua expressão era calma, mas qualquer
coisa dizia que aquele homem que se apoiava às costas do sofá
estava a ser consumido por uma doença lenta e implacável...
Foi, porém, em voz firme, mas um tanto surpreendida, que respondeu:
- Senhor, eu não tenho nome!
- Eu sei quem o senhor é... - disse Cyrus Smith.
O capitão Nemo olhou insistentemente o engenheiro e
deixou-se cair de novo nas almofadas.
- Ah, que importância tem isso agora? Afinal, vou morrer... - murmurou.
Cyrus aproximou-se, seguido de Spilett, e ambos apertaram a
mão do velho senhor. Este fez sinal para que se sentassem a
seu lado. Ayrton, Pencroff, Harbert e Nab mantiveram-se de pé
um pouco afastados, guardando um silêncio respeitoso. Era
muito forte a emoção que se apoderara de todos diante do
"senhor da ilha", do genial benfeitor a quem tanto deviam! E
como é que o engenheiro sabia o seu nome?
- Então o senhor conhece o nome que usei noutros
tempos... - disse, finalmente.
- Sim - respondeu Cyrus Smith -, assim como também
sei o nome desta maravilhosa nave submarina - o Nautilus!
- E, todavia, vai para trinta anos que não tenho qualquer
contacto com o mundo dos homens... trinta anos vividos nas
profundezas do mar, o único sítio onde encontrei a paz. Mas
diga-me, quem poderá ter traído o meu segredo?
- Um homem que não assumiu qualquer compromisso com
o senhor e que, portanto, não pode ser acusado de traição! respondeu,
vivamente, Smith. - Um homem que contou ao
mundo tudo o que viveu junto de si, que escreveu um livro
sobre a história da sua vida, capitão Nemo, a que deu o título
de Vinte Mil Léguas Submarinas...
- Ah! Aquele professor francês que passou uns meses a
bordo do Nautilus, acompanhado do criado e de um marinheiro
canadiano... - recordou o capitão. - Mas pensava que tinham
morrido! Eles desapareceram nas costas da Noruega, quando
fomos apanhados pelo terrível Maelstrõm 1 e o Nautilus esteve à
beira de soçobrar... Imagino que nesse livro me tenha
retratado como uma espécie de pirata, um malfeitor, não? E o
senhor, que pensa de mim?
A voz do velho capitão revelava amargura. Cyrus Smith respondeu:
- Não me compete a mim julgá-lo, senhor, muito menos no que se refere à
sua vida passada. Ignoro, como toda a gente, os motivos que o levaram a
escolher essa vida tão fora do comum... O que eu sei, o que nós todos
aqui sabemos, é que, desde a nossa chegada à ilha Lincoln, uma mão
benfazeja se estendeu sobre nós e que devemos a vida a um homem bom e
generoso... o senhor, capitão Nemo!
O engenheiro e o repórter puseram-se de pé e os restantes
companheiros aproximaram-se, prontos a agradecer, mas Nemo,
com um gesto, impediu-os de falar.
- Primeiro, meus senhores - disse, sorrindo comovidamente
-, gostaria que ouvissem o que tenho para vos contar!

1 Maelstrõm: remoinho perigosíssimo que, sempre que há
tempestade, se forma junto das ilhas Lofoten (Noruega). (N.
da T.)

Eis um resumo do relato que o capitão Nemo fez aos colonos 1:
"O capitão Nemo era, afinal, um príncipe hindu, de nome
Dakkar, filho do riquíssimo rajá de Bundelkund e sobrinho de
um herói da Índia, o lendário Tippo-Saib, lutador implacável
contra o jugo colonial inglês.
"Apenas com dez anos de idade, fora enviado para Inglaterra, a fim de aí
receber educação e formação que lhe permitissem, mais tarde, combater com
armas iguais os opressores do povo da Índia. Dotado de superior
inteligência e vontade de saber, o jovem Dakkar dedicou os vinte anos
seguintes da sua vida ao estudo de tudo o que era possível
aprender nas ciências, nas artes e nas letras, completando a
aprendizagem com inúmeras viagens por toda a Europa.
Entretanto, ao mesmo tempo que elevava os seus conhecimentos aos níveis
mais altos, nunca deixou enfraquecer os ideais patrióticos nem o ardor
revolucionário. Assim, chegado à idade adulta, Dakkar, sábio,
cientista e artista, mantinha pela Inglaterra o mesmo ódio
arreigado e profundo.
"Ao completar trinta anos, em 1832, regressou a Bundelkund
e casou com uma nobre hindu que partilhava do seu sonho
independentista, e com a qual teve dois filhos. Mas a
felicidade familiar não o desviou do caminho que se impusera e
percorreu a Índia em campanhas de esclarecimento do povo. Anos mais
tarde, rebentou uma revolta popular contra o domínio do
Império Britânico, revolta essa liderada e sustentada pelo príncipe
Dakkar. A rebelião foi afogada em sangue pelos ingleses que, não
conseguindo deitar a mão a Dakkar, chacinaram selvaticamente a sua
família - o pai, a mãe, a mulher e os filhos!
"Com a cabeça a prémio, o príncipe empreendeu a fuga,
acompanhado de vinte dos seus mais fiéis seguidores. O destino
era uma ilha deserta do Pacífico, aonde ninguém o pudesse
seguir e onde fosse possível pôr em prática os seus planos de

1 A história do capitão Nemo consta de outra obra de Júlio
Verne: Vinte Mil Léguas Submarinas, publicada cinco anos
antes da A Ilha Misteriosa. (N. da T.)

vingança. Nessa ilha, graças à imensa fortuna e aos
conhecimentos científicos de que dispunha, Dakkar construiu,
com a ajuda dos companheiros, aquela maravilhosa nave
submarina, obra- -prima da engenharia, a que deu o nome de
Nautilus! A partir desse momento, deixara de ser Dakkar, o
príncipe de Bundelkund, tornando-se o capitão Nemo.
"Os anos seguintes foram dedicados a percorrer todos os
oceanos, estudando os segredos das profundezas e dando caça a
todas as embarcações de guerra com pavilhão inglês. O
Nautilus era ele mesmo um vaso de guerra, o mais temível de
todos, dotado de uma energia nova e poderosíssima, conseguida
a partir do átomo, que, para além de desferir golpes mortais
contra os inimigos, fornecia igualmente a iluminação e o
aquecimento do submarino.
"Mas a quietude das profundezas, o deslumbrante panorama
subaquático e a solidária convivência entre aqueles vinte e um
homens, enfim, tudo isso foi gradualmente apaziguando os
corações e desfazendo os anseios de vingança... Com o passar
dos anos, apenas uma coisa interessava a Nemo: manter-se
afastado do mundo exterior e dos homens. Os seus companheiros foram morrendo, um após outro. Por fim, com sessenta anos
de idade e completamente só, decidiu conduzir o Nautilus a um
dos muitos portos secretos que tinha no oceano Pacífico, justamente
aquele, na ilha Lincoln.
"Havia seis anos que ali estava, saindo raramente, não com
o submarino, mas envergando um escafandro, também concepção
sua, que lhe permitia largas horas de autonomia debaixo de água. Fora
numa dessas saídas que assistira à queda do balão
e pudera salvar Cyrus Smith. A princípio, a presença dos
náufragos desagradara-lhe vivamente, considerando-os, sobretudo, intrusos que vinham perturbar o seu isolamento voluntário... Porém, a pouco e pouco, depois de os
ter observado, e
ouvido - através do poço da Casa de Granito - concluíra que
eram homens íntegros e corajosos, unidos por fraterna amizade,
valor que ele muito prezava. A partir daí, achara-os
merecedores da sua protecção e ajuda..."
Exausto, o capitão chegou ao fim do relato; de repente, o
seu estado de debilidade tornou-se impressionante! Os colonos
reprimiam as lágrimas a custo, presos de profunda emoção.
Cyrus Smith tomou a palavra, sabendo que falava por todos: O
senhor salvou-nos a vida por mais de uma vez e tem,
por isso, a nossa mais sentida gratidão! Agora, pelo que nos
contou, vale-nos, também, a maior admiração... Capitão Nemo,
diga o que pretende de nós, que ficaremos honrados por
obedecer!
- Obrigado, meus amigos... - disse Nemo.
Harbert, sem se conter, aproximou-se e, de joelhos, beijou a
mão do capitão.
- Tens a minha bênção, meu filho! - murmurou este,
tocando-lhe na cabeça.
- Mas de que padece ele? - perguntou Pencroff, em voz
baixa. - E se tentássemos alguma coisa? Por que não levá-lo
daqui para fora, para o ar livre...?
- Não, Pencroff - respondeu o engenheiro -, não há nada
que possamos fazer. De resto, o capitão Nemo nunca consentiria
em sair daqui. Há trinta anos que vive no Nautilus e é no
Nautilus que quer morrer.
Sem dúvida que o doente ouviu estas palavras, porque se
soergueu um pouco e disse, em voz fraca:
- Tem toda a razão, senhor. Quero morrer aqui. Mas, há
pouco, falou numa dívida de gratidão para comigo...
- Daríamos as nossas vidas para prolongar a vossa!afirmou
Cyrus Smith.
- Pois bem - continuou Nemo -, prometam-me, então,
cumprir as minhas últimas vontades e essa vossa dívida ficará saldada.
- Tem a nossa palavra! - respondeu Smith.
- Senhores, amanhã estarei morto... e o meu maior desejo
é que o Nautilus seja o meu túmulo no fundo do mar, onde
repousam todos os meus amigos...
Um silêncio profundo acolheu as palavras de Nemo, que
continuou:

- Escutem com atenção! Amanhã, depois da minha morte,
o senhor Smith e os seus companheiros abandonarão o Nautilus e
deixá-lo-ão tal como está... Todas estas riquezas aqui guardadas
vão desaparecer comigo. Do príncipe Dakkar restar-vos-á
uma única recordação - aquele cofre acolá, que contém uma
fortuna imensa em milhares de diamantes da Índia e pérolas que
recolhi pelos oceanos! Tudo aquilo é vosso, meus amigos, pois
estou certo que nem uma ínfima parte desse tesouro será usada
para fins menos dignos...
Os colonos ouviam religiosamente as palavras do capitão.
Este prosseguiu:
- Mal eu solte o último suspiro, peguem no cofre e saiam
deste salão, fechando a porta. Depois, tranquem a escotilha da
torreta com as respectivas cavilhas de ferro; finalmente,
abram as duas válvulas que se encontram à ré, na linha de
flutuação.
Por aí vai entrar a água que inundará os depósitos do submarino...
O Nautilus afundar-se-á no abismo, porque este lago
tem ligação ao mar. É a sepultura que escolhi, meus amigos, e
que guardará para sempre segredos que ninguém deve conhecer!
Prometem que farão como vos peço?
- Prometemos! - exclamaram os consternados colonos,
em uníssono.
- Senhores - volveu o capitão -, vós sois homens
corajosos, bons e honestos, que se dedicaram sem reservas a
uma causa... a uma obra comum. Tive oportunidade de os
observar muitas vezes e só Deus sabe como vos aprecio e
estimo... Que Ele vos abençoe a todos! Agora, por favor,
preciso de falar uns momentos a sós com o engenheiro Cyrus.
Os colonos retiraram-se para a biblioteca. Porém, a espera
não foi longa; ao cabo de minutos, o engenheiro
reunia-se-lhes, evidenciando uma angústia indisfarçável... Que
lhe teria dito o capitão? Ninguém ousou perguntar. Voltaram ao
salão e rodearam o senhor do Nautilus, que agonizava... As horas iam
passando lentamente, até que, às primeiras horas da madrugada, expirou.
Cyrus Smith inclinou-se e fechou os olhos daquele que fora o príncipe Dakkar e, depois, o capitão Nemo. Harbert e Pencroff choravam sem disfarce; Ayrton limpava
uma lágrima teimosa e Nab, ao lado de Spilett, parecia uma estátua, prostrado de joelhos... A voz de Cyrus quebrou o silêncio:
- Que Deus tenha a sua alma! Rezemos por aquele que acabámos de perder.
Depois da breve oração, os colonos deram cumprimento às
últimas vontades de Nemo; saíram do salão com o cofre,
fecharam a escotilha da plataforma e abriram as válvulas da
ré. Na barcaça, os colonos assistiram vivamente abalados ao
afundamento do submarino, que se processava devagar, à medida
que a água ia enchendo os depósitos. Finalmente, o Nautilus
submergiu! Durante alguns minutos, continuou a ser visível o
clarão do foco de luz através das águas tranquilas do lago interior... Depois, também este desapareceu e voltou a reinar a mais absoluta escuridão. O Nautilus repousava
para sempre no fundo do oceano.
Os colonos conduziram a barcaça para fora da gruta, subiram
a ravina e empreenderam o regresso pelo caminho do curral. A
impressão deixada pelos acontecimentos acabados de viver era
tão forte, que nenhum deles sentia vontade de falar... Assim,
a caminhada decorreu no mais profundo silêncio e, ao fim da
manhã, chegavam à Casa de Granito.
Agora, havia que cuidar sem demora da construção do barco.
Ninguém sabia o que o futuro lhes reservava e aquela embarcação era, na
verdade, a única garantia de que dispunham para tentar uma viagem de
longa duração! Por outro lado, não podiam esquecer a projectada travessia
até à ilha Tabor, que conviria levar a cabo no princípio de Março, antes
dos vendavais do equinócio. Assim, os trabalhos no estaleiro foram
retomados com mais empenho do que nunca, sob a orientação de Cyrus Smith.
Este parecia, de resto, tomado de uma urgência febril,
impondo um ritmo de trabalho por vezes desumano. Gedeão
Spilett, que o conhecia bem, notava-lhe sinais de impaciência
e de irritabilidade que não condiziam com o feitio calmo e
tolerante do amigo... Volta e meia, surpreendia o engenheiro a
observar a fumarola do vulcão, de cenho fechado e expressão
preocupada, mas, por uma questão de respeito, absteve-se de o questionar.
Entretanto, começara o ano de 1869. Ao fim da tarde do dia 3
de Janeiro, Harbert, que se deslocara ao planalto para cavalgar um dos onagros jovens que precisava de ser domesticado,
irrompeu nos estaleiros em grande correria, gritando esbaforido: - O vulcão! O vulcão! Senhor Smith, a cratera do vulcão
está em fogo!


@CAPÍTULO X


Do planalto, aonde todos tinham acorrido, o monte Franklin,
a cerca de seis quilómetros, parecia um archote gigantesco de
labaredas, cinzas e fumaça espessa!
- Já? Tão depressa... - murmurou o engenheiro. - Meus
amigos, é chegada a altura de vos falar de um assunto que
tenho guardado só para mim... Talvez não tivesse esse direito.
Vamos para casa.
Reunidos no salão da Casa de Granito, após um jantar
ligeiro, Cyrus Smith tomou a palavra:
- Meus amigos, eu estava enganado quando lhes disse que
uma erupção vulcânica não ia pôr a nossa ilha em perigo!
Infelizmente, a ilha Lincoln não é daquelas que hão-de durar
enquanto o planeta Terra existir. Esta ilha está condenada à
destruição num futuro mais ou menos próximo, e a causa está
na sua própria natureza e configuração... Contra isso não há
nada que se possa fazer!
Os colonos olhavam para ele, perplexos, sem compreender
o alcance do que ouviam.
- Explique-se, Cyrus - pediu Gedeão Spilett.
- Vou explicar-me transmitindo-lhes as informações que o
capitão Nemo me deu pouco antes de morrer, naquela breve
conversa a sós... Foi o último serviço que nos prestou, meus amigos!
- Mas, afinal, que lhe disse ele? - perguntou o repórter.
- Que a ilha Lincoln, ao contrário das outras ilhas do
Pacífico e devido à sua disposição particular, tenderá, mais
tarde ou mais cedo, para um deslocamento da sua estrutura submarina...
- Um deslocamento? A ilha Lincoln? Essa agora...exclamou
Pencroff, encolhendo os ombros.
- Escute, Pencroff! - retomou Cyrus Smith. - A gruta
do Nautilus prolonga-se sob a ilha até ao monte Franklin...
Por muito que nos custe admitir, o capitão Nemo verificou que
a chaminé central do vulcão se encontra separada da gruta
apenas por uma parede rochosa. Mas não é tudo... O capitão disse-me
que essa parede apresentava já algumas fendas e fissuras que,
por força da actividade interna do vulcão, acabarão por abrir.
Quando essa parede divisória rebentar, a água da gruta subirá
até ao núcleo de fogo e...
- Então está bem! - interrompeu o marinheiro, tentando
gracejar. - O mar invade o vulcão, apaga-o e pronto... Está
tudo acabado!
- Sim, está tudo acabado! - replicou o engenheiro, gravemente. - No dia em que o mar invadir a chaminé atulhada de gases e matérias eruptivas, nesse dia, Pencroff,
a ilha Lincoln explodirá, como explodiria a Sicília, caso o Mediterrâneo entrasse pelo Etna!
Os colonos ficaram mudos. Tinham compreendido o perigo
que os ameaçava, mas, para além dos naturais receios,
doía-lhes profundamente imaginar a destruição daquela terra,
da "sua" fértil e bela ilha! Tantos trabalhos, tantas
canseiras... para nada! Pencroff não conseguiu conter as lágrimas.
A têmpera de Cyrus Smith, porém, sobrepôs-se à emoção do
momento, impondo ordem e método. Não havia tempo a perder!
Importava, mais do que nunca, acelerar a construção do barco e
a ela se entregaram os colonos de alma e coração. No dia 23 de
Janeiro, metade do casco da escuna estava guarnecido e
calafetado. Até esse dia, não se produzira qualquer alteração
no cimo do vulcão. A cratera continuava a expulsar gases,
fumos, chamas e pedras incandescentes.
De repente, nessa noite de 23 para 24 de Janeiro, cerca das
duas horas da manhã, a força das lavas, que entretanto já
tinham atingido a parte superior da chaminé, fez saltar o cone
superior em forma de chapéu!
O estrondo produzido pela queda do bloco de granito com
milhares de toneladas foi medonho! Por sorte, o cone inclinava
para o norte da ilha e foi para lá que tombou. Os colonos
saltaram das camas, crendo que era a própria ilha que
explodia. Agora, a cratera era uma bocarra completamente
aberta, projectando nos céus uma luz tão intensa, que a própria atmosfera
parecia incandescente! Ao mesmo tempo, uma torrente de lava
transbordava do cume do monte Franklin e descia em cascata pelas
encostas, qual serpente de fogo.
- O curral! - gritou Ayrton.
Com efeito, em consequência da nova orientação da cratera,
não só o curral mas também toda a parte fértil da ilha e o
bosque do Jacamar estavam no caminho dos rios de lava!
Os colonos correram a atrelar os onagros à carroça. Urgia
pôr em liberdade os animais encurralados. Pelas três da manhã,
abriam de par em par o portão e as cabras e os carneiros
precipitaram-se para o exterior a berrar e a balir, tomados de
impressionante terror. Uma hora mais tarde, do curral nada
restava! O vulcão, descabeçado, sem o "chapéu" do segundo cone, não
parecia o mesmo: a cratera descaía agora precisamente para o lado oposto
e era mais que evidente que as torrentes de matéria ardente acabariam por
chegar ao planalto e à Casa de Granito!
Os colonos regressaram pela estrada do curral e encontravam-se agora à
beira do lago a olhar para o vulcão, silenciosos. Eram sete horas da
manhã do dia 24 de Janeiro.
Cyrus Smith, habituado a ver-se confrontado com situações
difíceis e ciente que lidava com homens capazes de encarar a
realidade, por mais dura que ela fosse, falou com toda a
clareza:
- Ou o lago é capaz de suster esta torrente de fogo, e uma
parte da ilha será poupada da devastação completa, ou a lava
invadirá tudo e nem uma só árvore, nem uma só planta ficará
de pé nesta terra... De qualquer maneira, com vegetação ou
apenas rochedos escalvados, o nosso destino está traçado! A
explosão da ilha é só uma questão de tempo.
Nesse momento, um dos rios de lava chegava à margem
ocidental do lago, onde, por sinal, o terreno formava uma
elevação, assim uma espécie de aterro.
- Ao trabalho! - gritou o engenheiro.
A ordem foi imediatamente entendida. Tratava-se de reforçar
aquela elevação do lado da floresta, de modo a orientar a
torrente para o lago. Numa corrida, foram ao estaleiro buscar
pás, picaretas e machados, enquanto Nab subia à Casa de
Granito a libertar o cão Top. Dentro de poucas horas, os
colonos conseguiram levantar um dique de terra e árvores
cortadas.
Mesmo a tempo! As matérias liquefeitas atingiam nesse momento
a elevação. O dique resistiu e a torrente de lava,
inflectindo para a esquerda, precipitou-se no lago!
Exaustos, ainda ofegantes do esforço sobre-humano, os seis
colonos assistiam àquele espectáculo de uma beleza sinistra,
aterrador e simultaneamente magnífico: era a luta tremenda
entre os dois elementos... entre o fogo e a água! Esta, em
contacto com a lava a ferver, evaporava-se instantaneamente,
produzindo silvos agudíssimos e enormes nuvens de vapor que
subiam nos ares... A lava, por sua vez, ao cair nas águas
frias do lago, solidificava e formava como que rochedos
fumegantes que se iam amontoando uns sobre os outros. Mas era
uma luta desigual. A água contida no lago acabaria por
desaparecer, sem possibilidade de ser renovada, enquanto as
matérias ardentes provinham de uma fonte inesgotável, as
entranhas do vulcão!
O êxito do desvio da enxurrada abrasadora para o lago, se
bem que precário, concedia aos colonos mais um tempo de
tréguas, talvez alguns dias, já que por enquanto o planalto, a
Casa de Granito e o estaleiro estavam a salvo. Era pois
urgente aproveitar o melhor possível esse pouco tempo que lhes
restava para acabar de calafetar o navio.
Nas semanas que se seguiram, aqueles seis homens trabalharam
por vinte, quase sem descanso. Não iam a casa sequer, e
dormiam à vez numa tenda montada junto à foz do Mercy,
enquanto os outros continuavam a trabalhar no estaleiro à luz
das chamas que saíam da cratera.
Os animais da ilha, ferozes ou não, tinham-se refugiado
todos na margem oposta do rio, para os lados do pântano dos
Tadornos, mas os nossos amigos nem tinham tempo para se
preocupar com a relativa vizinhança de jaguares e outros
bichos que tais... Para eles, a única coisa que importava
agora era o acabamento do costado do barco, para o poderem
lançar à água
o mais breve possível. Cyrus Smith e Gedeão Spilett subiam
diariamente ao planalto para verificar a evolução da situação.
A visão da parte florestada da ilha completamente devastada
era desoladora! Pencroff, esse, nem ia ao planalto,
confessando-se incapaz de presenciar o estado a que chegara a
sua querida ilha. Num desses dias, o repórter fez notar ao amigo:
- Cyrus, você não acha que o vulcão parece acalmar? Se
não me engano, a torrente de lava diminuiu...
- Isso já pouco importa... - respondeu Cyrus Smith. - O
fogo continua a arder no interior da montanha e o mar pode
invadi-la a qualquer momento. A nossa situação é exactamente
a mesma dos passageiros de um navio que esteja a ser devorado
por um incêndio! Venha daí, Spilett, não percamos mais tempo!
Até finais de Fevereiro, a situação manteve-se praticamente
inalterável. A maior preocupação de Smith era que alguma da
matéria vulcânica expelida pela cratera, rochas e pedras
incandescentes, pudesse cair na zona do estaleiro. Foi por
essa altura que os colonos começaram a notar vibrações
estranhas no solo da ilha... E eles que precisavam ainda de
umas três semanas para acabar o casco! Pelo menos o casco, que
o resto podia ser terminado a bordo. Iria a ilha aguentar até lá?
- Havemos de conseguir, senhor Cyrus, havemos de conseguir!
- repetia Pencroff. - E é tempo de largar, que os
ventos do equinócio não tardam aí! Bem, que ao menos
possamos chegar à ilha Tabor para passar lá o Inverno... A
ilha Tabor depois da nossa bela ilha Lincoln! Ai que desgraça,
que desgraça!
- Apressemo-nos - respondia invariavelmente o engenheiro.
Em certa ocasião, Nab perguntou:
- O patrão acha que, se o capitão Nemo fosse vivo, tudo
isto podia acontecer?
- Podia sim, Nab - disse Cyrus Smith.
- Pois eu não acredito em tal! - murmurou o marinheiro
ao ouvido do negro.
- Nem eu! - concordou este.
Na primeira semana de Março, o monte Franklin sofreu outra
alteração... e para pior. A torrente de fogo engrossou
subitamente e, tomando outro percurso, começou a dirigir-se para o
planalto. Em duas horas, a capoeira, a cavalariça e as
culturas tinham desaparecido debaixo da lava.
Outro sinal assustador era a súbita agitação de Top. O cão
uivava sem parar, como que pressentindo a proximidade de uma
catástrofe ainda maior. Perante tudo isto, os colonos
decidiram lançar o barco à água, mesmo inacabado como estava. Pencroff
e Ayrton trataram dos preparativos para o lançamento no dia seguinte e
foram juntar-se aos companheiros, abrigados na tenda.
Num momento de angústia emocionada, abraçaram-se! Sabiam a vida por um
fio e estavam prontos para o desenlace fatal. Nab segurava contra o peito
o cofre oferecido pelo capitão Nemo, de que fizera objecto de culto. O
dedicado rapaz fora sempre dado a superstições, tendência que os outros,
a começar pelo patrão, de há muito tinham desistido de contrariar. Nab
fizera questão de trazer o cofre para aquela barraca do
estaleiro e só o largava para trabalhar no barco. Agora mesmo,
tocando no cofre, evocava o poderoso benfeitor, para ele mais
do que um simples ser humano, cuja memória guardava com autêntica religiosidade.
E foi, de facto, nessa noite fatídica de 8 para 9 de Março,
que se cumpriu a ameaça que sobre eles pesava! Da cratera
começou a jorrar uma gigantesca coluna de vapor que se elevava
a uma altura superior a novecentos metros, ao mesmo tempo
que soavam estampidos medonhos!
Era óbvio que no interior da gruta do capitão Nemo a parede
divisória acabava de ceder à pressão dos gases acumulados,
permitindo a entrada do mar na chaminé central. A cratera,
porém, era insuficiente para escoar os vapores formados pelo
contacto do mar com a lava e o monte Franklin rebentou em
mil pedaços que se espalharam pelo Pacífico! O barulho da
explosão poder-se-ia ouvir num raio de duzentos quilómetros.
Minutos depois, a ilha Lincoln submergia, como que engolida
pelo oceano!
Apenas uma ponta rochosa ficou à superfície! Era a parte da
abóbada do maciço da Casa de Granito, agora um rochedo
insignificante à superfície das águas, com pouco mais de oito
metros de comprimento e quatro de largura...
Aí se encontravam refugiados os seis colonos da ilha Lincoln
e o cão Top, miraculosamente salvos do cataclismo! Tudo se
tinha passado tão rapidamente que nem eles próprios, atordoados
e ensurdecidos, sabiam como tinham ido ali parar...
Aquando da explosão da montanha, os colonos sentiram-se
projectados e arrojados ao chão. Zumbiam estilhaços de rocha
por todo o lado e a ilha inteira era sacudida por
violentíssimo abalo. O engenheiro Cyrus, segurando a coleira
de Top e um braço de Harbert, ainda tivera tempo de gritar:
"Mantenham-se juntos, pelo amor de Deus! Mantenham-se
juntos!"... A seguir, foram levados na crista de uma vaga
gigantesca e arremessados naquele pequeno rochedo, o pedaço
restante da ilha arrasada!
Mão de Deus ou acaso do destino? Quem poderia dizer?
Mas... e a partir de agora? Perdidos num penhasco no meio do
oceano, sujeitos à fome, à sede e ao frio, só um desfecho
dramático era de prever.
Cyrus Smith mantinha-se calmo; Gedeão Spilett, inquieto e
angustiado, fixava teimosamente o horizonte. Pencroff, tomado
de uma raiva surda, não parava quieto... Harbert não tirava os
olhos do engenheiro, como que esperando alguma ideia salvadora.
Quanto a Nab e Ayrton pareciam resignados com a sua sorte, o
primeiro sempre agarrado ao cofre que nem no meio da
hecatombe largara.
- Ah! maldita desgraça, com mil diabos! - lamentava-se
o marinheiro. - Se ao menos tivéssemos uma casca de noz para
chegar à ilha Tabor! Mas nada, nada... Não temos nada!
- O capitão Nemo fez bem em morrer... - murmurou Nab.
Dois dias depois, quis a fortuna que chovesse abundantemente e os colonos
puderam saciar a sede que os atormentava;
também Top bebeu avidamente de uma das poças formadas nas
reentrâncias da rocha. Porém, encharcados e cheios de frio e
de fome, por quanto mais tempo aguentariam?
Mais cinco dias se passaram. O céu voltara a estar limpo e a
borrasca passara. Os homens do rochedo, porém, já nem forças
tinham para se levantar e jaziam numa prostração que se
agravava de hora a hora. Harbert e Nab começaram a dar sinais
de delírio... Enfraquecidos até ao limite, os colonos estavam
agora nas mãos de Deus!
Na manhã do oitavo dia, Top latiu debilmente e empurrou
o corpo do dono com o focinho. Contudo, Cyrus Smith, se é que
se deu conta, não foi capaz da menor reacção... O cão latiu de
novo e Ayrton ouviu-o ao longe, muito ao longe... Com um
esforço supremo, levantou a cabeça e olhou para o mar... Mas o
que era aquilo, aquela mancha confusa no horizonte? Um
navio? O infeliz não delirava... Era realmente um iate a vapor
que se dirigia para o rochedo!
- O Duncan... - murmurou Ayrton, antes de perder os
sentidos.
Os colonos foram recobrando a consciência lentamente.
Cyrus Smith começou por sentir um bafo quente na mão direita e
a língua áspera do cão a lambê-lo... Abriu os olhos e percebeu
que se encontrava no camarote de uma embarcação... os amigos
também. Mas como? De que maneira tinham escapado à morte?
- O Duncan... - murmurou Ayrton, como se lhe tivesse
adivinhado a surpresa.
- O Duncan? Deus seja louvado! - exclamou o engenheiro.
Efectivamente, o iate de Lorde Glenarvan, agora sob as
ordens de Robert Grant, voltara para buscar Ayrton, após doze
anos de expiação na ilha Tabor. Agora estavam todos salvos e a
caminho da América!
Graças aos cuidados do jovem capitão e da tripulação, os
seis amigos depressa se sentiram com forças suficientes para
subir ao convés. Numa bela tarde em que estavam todos reunidos
na coberta, o engenheiro perguntou:
- Diga-me, capitão Robert... Há uma coisa que me intriga:
quando deixou a ilha Tabor, como é que teve a ideia de fazer
aquele desvio de cento e cinquenta milhas para nordeste?
- Como é que eu tive a ideia, senhor Smith? Mas não foi
um acaso! A minha intenção era ir buscar Ayrton, o senhor e
os seus companheiros à ilha Lincoln! - respondeu Robert
Grant, com alguma surpresa na voz.
- À ilha Lincoln?! - exclamaram os colonos em coro,
completamente pasmados.
- E como é que sabia da existência da ilha, uma vez que
nem consta dos mapas? - insistiu Smith.
- Ora, meu amigo, pela mensagem que os senhores deixaram em Tabor!
- Mensagem? Que mensagem? - perguntou Gedeão Spilett,
no auge do espanto.
- Ela aqui está! - respondeu o capitão, exibindo uma folha
de papel com a localização exacta da ilha Lincoln e os
seguintes dizeres: "Residência actual de Ayrton e de cinco colonos americanos."
O engenheiro pegou no papel e, depois de o ter observado uns
momentos, declarou:
- O capitão Nemo! Mais uma vez! Foi ele quem escreveu
a mensagem e a deixou na ilha Tabor.
Cyrus tinha reconhecido a caligrafia da mensagem encontrada no curral.
- Ah! Com mil diabos! - exclamou Pencroff, entusiasmado. - Então foi ele
que utilizou o nosso Boaventura! E doente
como estava navegou até à ilha Tabor... Ai, razão tinha eu
quando dizia que, mesmo depois de morto, o nosso benfeitor
ainda havia de nos ajudar!
- Meus amigos - disse Cyrus Smith, profundamente
comovido-, que Deus guarde a alma do capitão Nemo, o nosso benfeitor!
Era grande a comoção dos seis homens. Nab, esse, caíra de
joelhos chorando convulsivamente.
Mas a cortesia e a lealdade impunham: Robert Grant, que
presenciava abismado aquela cena, sem compreender das razões, foi posto
ao corrente de tudo o que se passara na ilha Lincoln. Do relato, o jovem
comandante do Duncan reteve com especial contentamento o processo de
reabilitação de Ayrton, muito salientado pelos companheiros.
- Capitão - concluiu o engenheiro Smith -, onde o
senhor deixou um homem culpado, encontra agora um homem
de honra de que sinto orgulho em apertar a mão!
Quinze dias depois, o Duncan aportava à América. A
sangrenta guerra civil terminara e a nação estava em paz!

Do tesouro legado pelo capitão Nemo - e que a veneração
de Nab salvara da catástrofe - a mais bela pérola foi enviada
a Lady Glenarvan, em preito de gratidão dos seis homens salvos
pelo seu iate. Depois, uma parte daquela fortuna incalculável
foi aplicada na compra de terras, um vasto domínio no estado
de Iowa a que deram o nome de "New Lincoln". O riacho que
atravessava a propriedade foi baptizado de "Mercy" e o monte
mais elevado passou a ser o "Franklin"...
Sob a direcção de Cyrus Smith, New Lincoln prosperou
rapidamente. Nab lá estava, sempre dedicado e um cozinheiro
cada vez mais excelente; Pencroff, o destemido marinheiro dos
"sete mares", tornou-se agricultor empenhado e entusiasta.
Ayrton ficou junto dos amigos, impressionante na capacidade de
trabalho, na solidariedade, no espírito de sacrifício...
Harbert prosseguiu os estudos orientado pelo engenheiro e não tardaria
a revelar-se uma sumidade no campo das ciências naturais.
Finalmente, Gedeão Spilett, sempre apaixonado pela sua profissão, fundou
um novo jornal, o New Lincoln Herald, de tão
grande rigor e qualidade que a sua influência se espalhou por
todos os Estados Unidos.
Enfim, os nossos amigos eram felizes! Aos serões, reunidos
na grande sala do edifício principal da propriedade, recuavam
no tempo e conversavam longamente sobre os quatro anos na
ilha Lincoln, a bela ilha agora desaparecida, onde tinham
vivido intensamente os valores da amizade e da dedicação à causa
comum, onde tinham aprendido tantas coisas. E sempre presente
em todos eles, com saudade e gratidão, a memória de Dakkar,
o príncipe hindu... o nobre e generoso capitão Nemo!

FIM

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