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quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Eu, Christiane F. 13 anos, drogada, prostituida

EU, CHRISTIANE F., TREZE ANOS,
DROGADA, PROSTITUÍDA...
Kai Hermann e Horst Rieck


Prefácio
Este livro nos fala de uma desgraça que nossa
sociedade recalca em sua consciência. Pelo que revela,
ele me parece mais importante que numerosas
análises sociológicas ou trabalhos de especialistas.
Este documento sui generis mostrará, enfim, ao
grande público pelo menos é isso que esperamos
que a toxicomania e o alcoolismo juvenil, em
constante expansão, e a atração dos jovens por seitas
não são fenômenos importados, mas gerados por
nossa própria sociedade. É em nossas famílias, em
nossas escolas, nas discotecas onde qualquer um
pode entrar que nasce esse flagelo, geralmente
considerado uma doença exótica. O documento que a
jovem Christiane nos fornece (com a ajuda de Kai
Hermann e Horst Rieck) nos ensina ainda outra coisa:
o caminho que leva à droga não é traçado pelas
excentricidades de uma categoria particular de crianças
e adolescentes essencialmente marginais, mas por
todo um conjunto de problemas estreitamente
relacionados condições de habitação subumanas,
impossibilidade de expandir-se por meio de jogos,
crises entre os pais, um sentimento generalizado de
alienação e de isolamento no seio da família, na
escola, etc. Ao término da leitura deste livro muitos
leitores se perguntarão, e com razão, quem é o mais
"humano": a infeliz Christiane, drogada e delinqüente,
ou as pessoas do seu meio que representam a
sociedade dita "normal" as "pessoas respeitáveis".
Desde que a revolta dos jovens contra a autoridade
perdeu sua intensidade, há uma tendência em
acreditar que tudo entrou novamente em seu lugar e
que, com exceção dos terroristas e seus seguidores, a
juventude de hoje vive uma integração social sem
conflitos. Essa idéia é fruto de um trabalho obstinado
de recalcamento. Como nos anos 70 assistimos à
quase extinção da contestação ativista e de suas
penosas provocações quase cotidianas, tendemos a
minimizar, a negligenciar porque são menos
ruidosas e menos espetaculares as novas formas de
contestação. Estas são as novas formas de protesto de
uma parcela considerável da nova geração.
Felizes por ver cessar o conflito permanente nas
famílias, nas escolas, nas universidades e ver as ruas
desimpedidas das eternas manifestações, preferimos
não tomar conhecimento de que, sob a fachada de
adaptação, aparecem sintomas inquietantes em um
número crescente de jovens: uma estranha apatia,
uma tendência a se fechar em si mesmos. A grande
massa dos adultos, pessoas bem integradas na
sociedade, adotou uma atitude resignada, essencialmente
defensiva: "Fiquem aí com as suas
'contraculturas', suas maneiras excêntricas de viver,
desde que não perturbem a 'nossa vidinha'. Vocês
acabarão compreendendo que, para sobreviver na
nossa sociedade hiperorganizada e impiedosa, somos
forçados a com ela cerrar fileiras!" A indiferença, as
manifestações de rejeição de tantas crianças e
adolescentes, nós as interpretamos como "deixe-me
em paz", "deixe-me com meus companheiros". Na
verdade, essa interpretação é apenas uma projeção
dos desejos dos adultos, uma cegueira voluntária. Na
realidade, Christiane e centenas de milhares de
crianças e adolescentes afastaram-se do nosso mundo
somente por decepção, porque os adultos não
souberam dar-lhes a imagem de uma comunidade
humana onde eles tivessem seu lugar, à qual gostariam
de se integrar, onde encontrassem compreensão,
segurança e calor. Christiane, como todos os seus
amigos da turma dos drogados e de prostitutas, tem
pais que passam por grandes dificuldades e que,
inconscientemente, transmitiram aos filhos seu
desespero, sua solidão física e moral , seu
amargor e seu ressentimento.
Na maioria das vezes são crianças como
Christiane, particularmente sensíveis, vulneráveis e
cheias de dignidade, que, em conseqüência do
fracasso da geração dos seus pais, refugiam-se na
marginalidade. Isso para escapar às pressões da
adaptação, da "normalidade", para se proteger da
despersonalização em que vivem seus pais. É triste
ver esses seres pequenos e frágeis se reunirem em
bandos para tentar criar, clandestinamente, um
mundo irreal que responda às suas necessidades mais
profundas. E essas tentativas estão,
irremediavelmente, destinadas ao fracasso. O que
busca Christiane no interior do bando? Um pouco de
verdadeira solidariedade, de paz, longe da agitação do
seu meio. Ela procura ser aceita, sem se submeter a
opressões de todos os gêneros. "Eu não acho que
entre jovens que não se drogam possa existir uma
amizade como essa que nos une, a nós do bando."
Para ela, o bando é um refúgio contra essas próprias
instituições que, teoricamente, deveriam responder às
suas aspirações e isso ela exprime, com intenso
desespero, na sua crítica amarga à escola: "O que
quer dizer essa de 'proteção do meio ambiente'? Pra
começar, é ensinar as pessoas a viverem juntas. É isso
aí que a gente devia aprender nesta escola fodida, a
se interessarem uns pelos outros, em vez de cada um
querer ser mais que o outro, ser mais forte que o cara
ao lado e passar o tempo a fazer malandragens para
ter uma nota melhor".
No caso de o leitor tentar convencer-se de que as
revelações contidas neste livro se referem somente às
grandes cidades e que, além disso, trata-se de um
fenômeno marginal, nós lhe asseguramos: o vício
precoce da heroína, o alcoolismo juvenil e seus efeitos
secundários prostituição infantil, delinqüência ligada
à droga são amplamente disseminados. Mas por
que são tão pouco conhecidos? A confissão de
Christiane nos fornece algumas explicações: raros,
dentre aqueles que sabem instituições oficiais tais
como a polícia, escolas, entidades médicas e sociais,
clínicas , são os que vão até o fundo do problema ou
que dão o grito de alerta. As coisas acontecem como
se houvesse uma conspiração de silêncio, como se
tivesse sido decidido resolver o problema somente
com medidas de rotina. Contentam-se em observar,
registrar e eventualmente isolar em algum estabelecimento.
O sofrimento, o desespero, o universo
dessas crianças, nada transpira para o exterior. Tentase
apresentar o problema da droga unicamente como
conseqüência da atividade criminosa de traficantes e
revendedores. De certa forma, a luta acaba sendo uma
espécie de "operação limpeza".
As instituições responsáveis desenvolveriam
certamente mais terapia e prevenção se fossem
encorajadas por um maior apoio político, mas este
continua a não existir. E a ação política, por sua vez, é
pressionada pela opinião pública, que se caracteriza
por uma tendência generalizada a recalcar, a não
querer pensar. Essa tendência é cuidadosamente estimulada
por certas forças políticas que, preocupadas
em não deixar nenhuma sombra, por menor que seja,
sobre a ordem estabelecida, imputam,
sistematicamente, o fracasso ou a inadaptação ao
próprio inadaptado ou ao corruptor anônimo.
Não se trata pura e simplesmente de aumentar a
informação sobre o problema da droga, mas de uma
mudança de atitude da grande maioria dos adultos:
nós precisamos ter a coragem de tomar consciência de
uma situação deplorável e da nossa responsabilidade
em relação a ela. De certa forma, o problema da droga
é apenas um sintoma chocante da incapacidade dos
adultos falo de maneira geral de convencer a
geração jovem de que ela tem oportunidade de
encontrar, na sociedade da qual nós somos a imagem,
um verdadeiro desenvolvimento humano. Na
realidade, se as crianças se entregam à droga ou aos
braços de seitas duvidosas, não é por puro capricho,
surgido do nada; é porque os pais, involuntária e
inconscientemente, lhes recusam ajuda, possibilidade
de crescer na sua relação com os outros. É isso que
eles vão buscar nessas subculturas. Escutar os filhos,
ter consciência de seus problemas, eis uma coisa que
não se faz mais. Ao contrário, são os pais que
transferem para os filhos seus próprios problemas,
encarregando-os, muitas vezes, de resolvê-los. O
problema de Christiane ilustra perfeitamente este
mecanismo psicológico: pode-se analisar a maneira
como esta criança assume inconscientemente os
ressentimentos e as insatisfações de seus pais. Ela
fracassa nessa difícil tarefa. Um fracasso que se
expressa de forma diferente do de seus pais.
De qualquer forma, é um erro fundamental
pensar que o início do isolamento irremediável dos
jovens foi seu mergulho na marginalidade. Esse
isolamento era anterior. Não podemos, portanto,
atribuí-lo à má vontade ou à recusa das crianças em
se comunicarem. O motivo é a privação de uma
relação sólida e confiante com aqueles que têm por
missão dar a eles amor e apoio. Seria muito simplista
acusar este pai ou aquela mãe. Outros fatores interrelacionados
exercem uma influência nociva.
Christiane descreve, com rara perspicácia, os dados de
um urbanismo que contribui para a deterioração da
comunicação entre as pessoas. Os desertos de
concreto de muitas das "zonas de saneamento"
modernas encerram as pessoas em um ambiente
totalmente artificial, frio, mecânico, que agrava em
proporções catastróficas todos os conflitos que as
famílias já tinham antes de nele se instalarem. O
conjunto residencial Gropius é apenas um exemplo: há
muitos desses grandes conjuntos residenciais construídos
unicamente dentro de uma perspectiva
funcional, técnica, esquecidas as necessidades afetivas
dos seres humanos. Transformam-se em um excelente
meio para o desenvolvimento de problemas
psicológicos. Não é por acaso que os casos mais
graves de alcoolismo e toxicomania juvenil aí estão
implantados. Além disso, as escolas são semelhantes a
grandes fábricas, onde reina o anonimato, a solidão
moral e uma concorrência desenfreada e brutal.
Nessas condições, crianças cheias de vida, incapazes
de se submeter, de se curvar ao nivelamento de rigor,
refugiam-se secretamente em um mundo paralelo,
adornado pelos seus sonhos. E só participam
exteriormente dos rituais familiares e escolares, e disso
dificilmente nos damos conta. A maneira pela qual
Christiane pôde levar durante tanto tempo uma vida
dupla, sem que sua família percebesse, e através de
uma aparente adaptação enganar aqueles que
poderiam, talvez, dando-lhe um firme apoio, impedir
sua queda e degradação total, é bem característica.
Esta é a primeira lição deste documento
impressionante: a decadência é quase sempre longa e
lenta. Ela pode ser constatada por certos indícios que
permitem aos pais e professores intervirem e darem
assistência aos jovens em perigo. Em todo caso, é
preciso tomar consciência e atentar se uma criança
parece não estar "presente", quando participa superficial
e automaticamente da vida familiar. É preciso
tentar compreender o que acontece com a criança
quando, pouco a pouco, ela se torna um corpo
estranho às pessoas que a cercam. E depois? Tudo
depende, certamente, daquilo que desejam os pais,
professores e educadores: ou reconhecer como sinal
de perigo essa maneira de a criança se fechar em si
mesma ou ver nisso, sobretudo, a vantagem de não se
ser incomodado por suas exigências.
Segunda lição: seria preciso poder dispor de
possibilidades de intervenções terapêuticas precoces
o mais precoce possível , rápidas e profundas.
Quando se pode conseguir um trabalho de equipe,
uma boa colaboração dos pais, se possível também de
professores, com o terapeuta, um tratamento do tipo
terapia familiar pode ter boa chance de sucesso se
iniciada a tempo, antes que a dependência física se
consolide.
Naturalmente, a terapia é ainda mais necessária
quando o jovem já está consumindo drogas pesadas,
mas neste caso ela é muito mais difícil. É realmente
uma irresponsabilidade negligenciar o apoio aos meios
terapêuticos já existentes e a não criação de novos
centros. Contentar-se em encarcerar os drogados,
método preconizado por certos segmentos políticos e
atualmente amplamente utilizado, é simplesmente
abandonar de vez, com cinismo, os jovens à sua
própria sorte.
Uma sociedade que quer ser humana tem como
única escolha a mobilização de todas as formas
possíveis de ajuda, por menos que elas pareçam
eficazes, para o tratamento da toxicomania. Nós
temos conhecimentos suficientes no que diz respeito à
maneira de reforçar a motivação dos interessados e,
uma vez motivados, ajudá-los a sair do fundo do
abismo graças a essas terapias de longa duração,
desenvolvidas em alguns centros ou comunidades
terapêuticas. Trata-se, muitas vezes, de apoiar e
acompanhar um jovem na longa caminhada que vai de
uma total desagregação interior a uma verdadeira
reconstrução do seu ser. Um empreendimento
extremamente custoso e uma tarefa difícil de realizar
num mundo onde reina o egoísmo e a indiferença. Um
mundo que, por exemplo, procura vítimas muito
jovens para colocar no mercado institucionalizado da
prostituição infantil.
É lógico que a solução do problema não está só
na multiplicação do número de terapeutas e no
aumento de subvenções aos centros de tratamento.
Enquanto coisas como o Baby-Tapin se beneficiarem,
como Christiane mostra claramente, da tolerância
geral, a terapia estará em oposição aos interesses
aberta ou secretamente reconhecidos àqueles que
reclamam, em nome de sua liberdade, o direito de
"consumir sexualmente" jovens drogados. No caso de
crianças como Christiane, são os próprios cidadãos, os
do "outro lado", os "bem-adaptados" da sociedade,
que querem medicá-las na qualidade de seres
humanos, de utilizá-las e considerá-las mercadoria.
Essa contradição é uma característica geral de nossa
situação sócio-cultural. A jovem Christiane nos impõe
a imagem das profundezas de sua desgraça. Ela nos
permite avaliar melhor a decadência dessa sociedade
que "os outros" exaltam, sem cessar, a pleno vigor. O
testemunho de Christiane é bem mais eficaz que o
silêncio dos reputados institutos de pesquisas. É a
razão profunda pela qual este livro extraordinário é, e
deveria ser, quase insuportável.
Horst-Eberhard Richter
A acusação
Resumo da peça de acusação do procurador no
Tribunal de Instância Superior de Berlim, em 27 de
julho de 1977.
Christiane Vera F., colegial, menor nãoresponsável,
acusada de ter comprado em Berlim, a
partir do dia 20 de maio de 1976 e de maneira
contínua, substâncias e misturas proibidas pela lei
sobre estupefacientes, sem autorização do Ministério
da Saúde.
A acusada é consumidora de heroína desde o mês
de fevereiro de 1976. Ela tem tomado injeções no
início de maneira esporádica e, em seguida,
diariamente de aproximadamente um quarto de
grama por dia. Ela é penalmente responsável desde 20
de maio de 1976.
A acusada foi interrogada e passou por um
controle de identidade em duas oportunidades, nos
dias 1°. e 13 de março de 1977, no hall da Estação do
Zoo e na estação de metrô Kurfürstendamm. Na
primeira vez ela estava com 18 mg e na segunda, com
140,7 mg de uma substância contendo heroína.
No dia 12 de maio de 1977, foi encontrado, nos
bens pessoais da acusada, um saco de folha de
estanho com 62,4 mg de uma substância contendo
heroína. Foram encontrados com ela instrumentos que
servem para injetar a droga. Exames de laboratório
mostraram que esses instrumentos apresentavam
vestígios de heroína.
A análise da urina revelou a presença de morfina.
No dia 12 de maio de 1977, a mãe da acusada, a Sra.
F., encontrou nas coisas pessoais de sua filha 62,4 mg
de uma substância contendo heroína. Ela a entregou à
polícia judiciária.
Ao ser ouvida, a acusada declarou consumir
heroína desde o mês de fevereiro de 1976. Por outro
lado, durante o inverno de 1976 ela se entregou à
prostituição para juntar o dinheiro necessário para
comprar heroína. Concluímos que a acusada não parou
de consumir droga.
O julgamento
Resumo do julgamento feito pelo Tribunal de
Instância de Neumünster, em 14 de junho de 1978,
em nome do povo.
No caso Christiane Vera F., colegial, inculpada por
infração à lei sobre estupefacientes.
A acusada é culpada pela aquisição contínua de
estupefacientes e cumplicidade de dissimulação fiscal.
A Corte adia a decisão de pronunciar uma condenação
penal para menores.
Motivos: O desenvolvimento da acusada foi
normal até os treze anos. Sua inteligência é superior à
média e estava plenamente consciente de que a
compra de heroína constituía um ato passível de
sanção. Entretanto, temos indícios suficientes para
pensar que a acusada se encontrava antes de 20 de
maio de 1976 (data de sua maioridade penal) em
estado de dependência para com a droga. Isso,
entretanto, não excluía nem sua responsabilidade
penal nem sua capacidade de ter consciência de sua
culpabilidade. Nesse meio tempo, a acusada deu-se
conta de sua situação e se esforçou, por sua própria
conta, para se desintoxicar. Ela estava, portanto, em
perfeitas condições de compreender o caráter
repreensível de seu comportamento e agir
corretamente.
Para o futuro, o prognóstico é, ao menos
atualmente, favorável, apesar de não podermos
excluir a eventualidade de uma recaída. A evolução da
acusada deverá ser seguida com atenção ao menos
durante o próximo período.
***
Era uma excitação louca. Minha mãe passava os
seus dias a empacotar, a encher caixotes e malas. Eu
percebia que íamos começar uma vida nova.
Acabava de completar seis anos, e depois da
mudança entraria para a escola primária. Enquanto
minha mãe, cada vez mais nervosa, se dava ao
trabalho de empacotar tudo, eu ficava quase o dia
inteiro na casa de Võlkel, o fazendeiro. Esperava as
vacas voltarem para o estábulo para serem
ordenhadas, dava comida aos porcos e às galinhas,
rolava no feno com meus amigos e passeava com os
gatinhos no colo. Um verão maravilhoso, o primeiro do
qual tive plena consciência.
Sabia que logo iríamos partir para muito longe,
para viver em uma grande cidade chamada Berlim.
Minha mãe partiu antes de nós para arrumar o
apartamento. Algumas semanas depois, minha
irmãzinha, meu pai e eu fomos de avião ao seu
encontro. Para nós, as crianças, foi o primeiro vôo.
Tudo era apaixonante.
Meus pais nos tinham contado histórias
maravilhosas. Nós iríamos morar em um imenso
apartamento de seis cômodos. Eles ganhariam muito
dinheiro. Minha mãe disse que teríamos um quarto só
para nós. Iríamos comprar móveis sensacionais. Ela
descrevera com detalhes a decoração de nosso quarto.
Eu me lembro porque, durante toda a minha infância,
nunca deixei de pensar neles. E, mais os anos
passavam, mais minha imaginação os embelezava.
E também não me esqueci de como era o
apartamento, quando lá chegamos. Deve ser porque,
de cara, me provocou um verdadeiro sentimento de
horror.
Era tão grande e tão vazio que eu tinha medo de
me perder. Quando se falava um pouco mais alto, as
vozes ressoavam de maneira inquietante.
Apenas três cômodos estavam mobiliados. No
quarto das crianças, duas camas e um velho armário
de cozinha onde minha mãe guardava nossos
brinquedos. No outro quarto, a cama de meus pais. No
terceiro cômodo, o maior, um velho divã e algumas
cadeiras. Assim era nosso apartamento no bairro de
Kreuzberg, na marginal Paul Lincke.
Alguns dias depois, peguei minha bicicleta e me
aventurei sozinha pela rua. Já tinha visto brincando ali
crianças um pouco mais velhas do que eu, e lá no
nosso vilarejo as mais velhas brincavam com as
menores e até tomavam conta delas. As crianças de
Berlim gritaram: "Qual é a dela?", e se apoderaram da
minha bicicleta. Quando a recuperei, estava com um
pneu furado e um pára-lama amassado. Meu pai me
deu um tapa, porque minha bicicleta estava arreada.
Daí em diante eu só a usava nos seis cômodos.
Três desses cômodos estavam reservados para
servir de escritório. Meus pais queriam abrir uma
agência matrimonial, mas as escrivaninhas e as
poltronas anunciadas por eles nunca chegaram. E o
velho armário de cozinha ficou no quarto das crianças.
Um dia, o divã, as camas, o armário foram
colocados em um caminhão que os transportou até um
prédio do conjunto residencial Gropius. Ali nos
instalamos em um apartamento de dois cômodos e
meio, no décimo primeiro andar. O meio cômodo era o
quarto das crianças. Todas as coisas bonitas de que
minha mãe nos falara jamais caberiam ali.
O conjunto Gropius abriga, em suas torres,
quarenta e cinco mil pessoas. Entre os prédios,
gramados e centros comerciais. De longe, tudo isso
tem um ar de novo, tudo parece muito bem-cuidado,
mas, quando se está dentro, entre os prédios, fede a
xixi e a cocô. É por causa de todos os cachorros e
crianças que vivem nesse conjunto. E no vão da
escada, fede ainda mais.
Meus pais ficavam furiosos, diziam que era culpa
dos filhos dos proletários, que eram eles que sujavam
as escadas. Mas não era culpa dos filhos dos
proletários. Aprendi isso na primeira vez quando,
brincando lá fora, tive, de repente, vontade de ir ao
banheiro. O tempo de esperar o elevador e de chegar
ao décimo primeiro andar já me tinha feito mijar nas
calças. Meu pai me bateu. Depois de três ou quatro
experiências do mesmo gênero não subir a tempo e
receber uma bofetada , fiz como os outros: procurei
um cantinho discreto para me agachar. Mas, como dos
prédios se enxerga praticamente tudo, o lugar mais
seguro ainda era a escada.
As crianças do conjunto me consideravam uma
pequena retardada: não tinha os mesmos brinquedos
que elas, nem a mesma pistola de água. Eu me vestia
e falava de outra forma e não conhecia as suas
brincadeiras. Eu também não gostava delas.
No meu vilarejo íamos sempre de bicicleta ao
bosque, até um riacho que passava sob uma pequena
ponte. Aí se construíam castelos e barragens de água.
. . Todos juntos ou cada um por si. E quando
demolíamos nossas obras, era com acordo geral. Era
bem divertido. Além disso, ninguém era dono da lei.
Cada um podia sugerir brincar disso ou daquilo.
Depois, conversávamos. Algumas vezes os mais velhos
concordavam com os mais jovens, e ninguém
reclamava. Era uma verdadeira democracia infantil.
No conjunto Gropius tínhamos um chefe. Era o
menino mais forte e o que tinha a pistola de água mais
bonita. Brincávamos sempre de bandido. O chefe dos
bandidos, naturalmente, era ele. E a principal regra do
jogo consistia em obedecer-lhe cegamente.
Na maior parte do tempo não se brincava junto,
mas uns contra os outros. Na verdade, tratava-se,
sobretudo, de um maltratar o outro. Por exemplo,
pegar seu brinquedo novo e quebrá-lo. A brincadeira
toda consistia em humilhar o outro e obter alguma
vantagem para si mesmo. A de conquistar o poder e
exibi-lo.
Os mais fracos apanhavam mais. Minha irmãzinha
não era muito forte, era um pouco medrosa. Eles
faziam o diabo com ela, e eu não podia socorrê-la.
Chegou o início das aulas. Eu estava me sentindo
felicíssima por ir à escola. Meus pais tinham dito que
era preciso ser sempre comportada e obediente ao
professor. Eu achava isso muito natural. No vilarejo as
crianças respeitavam os adultos. E eu, creio, pensava
que os outros também seriam obrigados a obedecer ao
professor.
Mas não foi assim. Passados alguns dias, os
alunos zanzavam e brigavam dentro da sala de aula. A
professora, totalmente desarvorada, não parava de
gritar: "Sentem-se!" Com isso só conseguia fazer uns
rirem e outros bagunçarem ainda mais.
Desde pequenina eu já gostava muito de animais.
Na nossa família, todo mundo gostava. Uma
verdadeira paixão. Eu me orgulhava disso: nenhuma
outra família, que eu saiba, gostava tanto de animais.
Eu sentia pena das crianças cujos pais não queriam
animais em casa.
Nosso apartamento de dois cômodos tornou-se,
pouco a pouco, um verdadeiro zoológico. Tinha quatro
ratinhos, dois gatos, dois coelhos, um canário, além de
Ajax, nosso cachorro pardo, que trouxemos da roça.
Ajax ficava sempre ao lado de minha cama.
Quando eu dormia, deixava um braço para fora das
cobertas para me assegurar de sua presença.
Conheci crianças que também tinham cachorros.
Com essas eu me dava muito bem. Descobri que em
Rudow, não muito longe da cidade, ainda restava um
pouco de natureza pura. Desde então, era para lá que
íamos com nossos cães. Brincávamos em antigos
depósitos de lixo, agora recobertos com terra. Nossos
cães brincavam sempre com a gente. Nossa
brincadeira preferida era a de ''caçador": um se
escondia enquanto os outros seguravam seu cachorro.
Aí o animal devia encontrar seu dono. Era o meu Ajax
que tinha o melhor faro.
Meus outros bichinhos, eu os levava ao monte de
areia ou mesmo à escola. A professora usava-os como
material de observação para o curso de biologia. Às
vezes eles me deixavam até ficar com o Ajax na sala
de aula. Ele ficava deitado aos meus pés, imóvel, sem
perturbar, até que a campainha anunciasse o recreio.
Graças aos meus bichos, eu seria bastante feliz se
as coisas não andassem de mal a pior com meu pai.
Minha mãe trabalhava. Ele ficava em casa. O projeto
da agência de matrimônios foi por água abaixo. Meu
pai esperava que alguém lhe propusesse um trabalho
à sua altura. E suas explosões de raiva eram cada vez
mais freqüentes.
À noite, quando voltava do seu trabalho, minha
mãe me ajudava a fazer os deveres da escola. Durante
certo tempo, tive dificuldades em distinguir a letra H
da letra K. Minha mãe me explicava com uma santa
paciência, mas eu mal conseguia ouvi-la, pois sentia
que a raiva de meu pai aumentava. Já sabia o que iria
acontecer: ele iria até a cozinha, pegaria uma
vassoura e me bateria. Depois era preciso que eu lhe
dissesse a diferença entre H e K. É claro que eu ficava
confusa, misturava tudo, conquistava o direito a uma
bofetada suplementar e, em seguida, me mandavam
para a cama.
Essa era a sua maneira de me ajudar a fazer os
deveres escolares. Ele queria que eu fosse boa aluna,
que fosse "alguma coisa na vida". Afinal de contas,
seu pai tinha muito dinheiro e, entre outras coisas, era
proprietário de uma gráfica e de um jornal. Após a
guerra fora expropriado pela
RDA (República Democrática Alemã). Por tudo
isso, meu pai ficava furioso quando percebia que na
escola as coisas não estavam indo bem.
Até hoje eu me lembro de certas noites nos seus
mínimos detalhes. Certa vez, a lição era desenhar
umas casinhas no caderno de cálculo: seis quadrinhos
de largura e quatro de altura. Eu já tinha feito uma e
sabia muito bem como me virar. De repente, meu pai
sentou-se ao meu lado. Aí ele me perguntou o
tamanho da próxima casinha. Tinha tanto medo que
nem contei os quadrinhos e respondi sem pensar. Errei
e recebi uma bofetada. Em seguida, chorando, era
incapaz de responder a uma pergunta. Ele se levantou
para buscar o chicote de borracha. Sabia o que isso
significava. Ele segurou o cabo de madeira e pimba na
minha bunda, até que fiquei em carne viva.
Começava a tremer quando ele se sentava à
mesa: se eu fazia qualquer sujeira, era um drama; se
derrubava qualquer coisa, cuidado com a bunda. Eu
mal conseguia engolir um copo de leite. Em quase
todas as refeições tinha muito medo de que me
acontecesse alguma desgraça...
Todas as noites perguntava, com muito jeito, ao
meu pai se ele iria sair. Ele saía sempre, e nós, as três
mulheres, respirávamos aliviadas. Essas noites eram
maravilhosamente tranqüilas. É verdade que, quando
ele voltava, aconteciam coisas que estragavam tudo.
Na maioria das vezes, ele voltava bêbado. Qualquer
pretexto, brinquedos ou roupa fora do lugar, motivava
uma explosão. Uma das expressões favoritas de meu
pai era que o importante na vida é ter ordem. E se,
voltando bem no meio da noite, ele pusesse na cabeça
que as minhas coisas estavam em desordem, tiravame
da cama e me dava uma surra. E depois era a vez
de minha irmãzinha. Em seguida, jogava tudo no chão
e nos dava cinco minutos para arrumar tudo de forma
impecável. Em geral não conseguíamos fazê-lo a
tempo, e chovia nova pancadaria.
Na maior parte das vezes minha mãe assistia à
cena de pé, na entrada do quarto, chorando. Era raro
ela tomar nossa defesa, pois ele batia nela também.
Só Ajax, meu cão, intervinha, às vezes. Começava a
gemer, com um olhar cheio de tristeza. Era ele que
melhor sabia colocar meu pai na linha porque, como
todos nós, gostava muito de cachorro. Podia acontecer
de ele dar uma bronca em Ajax, mas nunca bateu
nele.
Apesar de tudo isso, amo e respeito meu pai. Eu o
acho muito superior aos outros. Tenho medo dele,
mas, somando tudo, seu comportamento parece
normal. As outras crianças do conjunto Gropius não
tinham melhor sorte... Elas tinham cada pai e mãe
canalhas! Encontrávamos alguns pais caídos bêbados
no meio da rua ou no terreno em que brincávamos.
Meu pai nunca bebia até este ponto. Às vezes
assistíamos ao espetáculo de móveis voando pela
janela e espatifando-se na rua, as mulheres gritando
por socorro e alguém chamando a polícia. No nosso
bairro, isso não era assim tão grave.
Meu pai estava sempre dando broncas em minha
mãe por ela gastar muito, quando, na verdade, era ela
que nos sustentava. Às vezes ela respondia; dizia-lhe
que nas bebedeiras, nas farras com as mulheres e nos
gastos que ele tinha com o carro é que ia a maior
parte do dinheiro. E vinha nova pancadaria.
O carro, um Porsche, era a coisa que meu pai
mais amava no mundo. Ele lhe dava brilho todos os
dias. Acho que era o único Porsche do conjunto
Gropius. Em todo caso, eu não via nenhum
desempregado passeando em um Porsche.
Naquela época, naturalmente, eu não
compreendia nada do que acontecia com meu pai, a
razão de suas repetidas crises. Somente mais tarde,
quando comecei a conversar mais com minha mãe,
comecei a sacar um pouco do que se passava.
Simplesmente ele não tinha uma vida que correspondesse
ao seu nível! A ambição o devorava, e ele
sempre fracassava. Seu pai o desprezava por causa
disso. Vovô, antes do casamento, havia feito uma
advertência a mamãe por causa disso. Para ele, seu
filho não passava de um malandro. Na verdade, meu
avô depositava em meu pai grandes esperanças: meu
pai deveria restaurar o antigo resplendor familiar de
antes da expropriação.
Se ele não tivesse encontrado minha mãe, talvez
fosse hoje um fazendeiro (quando se conheceram ele
estava se preparando para isso) e teria tido uma
verdadeira criação de dogue alemão. Mas minha mãe
ficou grávida, e ele, então, parou de estudar e casouse
com ela. Depois disso pôs na cabeça que minha
mãe e eu, que estava no ventre de mamãe quando se
casaram, éramos as responsáveis pelo seu
fracasso. Dos seus sonhos, tudo o que restou foi o
Porsche e alguns amigos muito faroleiros.
Não somente odiava a família como ainda, pura e
simplesmente, a rejeitava. Isso chegava a tal ponto
que nenhum dos seus amigos deveria saber que ele
era casado e pai de família. Quando os encontrávamos
ou quando algum deles vinha buscá-lo em casa,
devíamos chamá-lo de "Tio Richard". Eu, de tanto
apanhar, aprendi muito bem e nunca errava: na
presença de estranhos, ele era meu tio.
Com minha mãe era a mesma coisa. Ela era
proibida de dizer aos amigos de seu marido que era
sua mulher e, sobretudo, comportar-se como tal. Eu
creio que ele dizia que era sua irmã.
Os amigos de meu pai eram mais jovens que ele.
Tinham ainda um futuro pela frente ou, pelo menos,
acreditavam ter. Meu pai queria ser como eles, e não
um homem com responsabilidade de família e incapaz
de suprir suas necessidades materiais.
Naturalmente, nessa época, tendo entre seis e
oito anos, eu não entendia nada de tudo isso. O
comportamento de meu pai era a simples confirmação
da regra de vida que aprendera na rua e na escola:
bater ou apanhar. Minha mãe, que, em sua existência,
já havia recebido sua dose de pancada, chegara à
mesma conclusão. Ela não cansava de me dizer: "Não
comece nunca, mas devolva golpe por golpe e bata o
mais e tão forte quanto possa". Mas ela já não podia
mais devolver os golpes que recebia.
Pouco a pouco eu aprendia a lição. Na escola,
comecei agredindo os professores mais frágeis.
Sistematicamente, eu bancava a palhaça nas aulas, e
os outros riam. Quando comecei a perturbar as aulas
dos professores mais temidos, fui objeto de admiração
por parte dos meus colegas.
Esses meus primeiros sucessos me encorajaram a
tentar utilizar também a força física. Na realidade, eu
sou do tipo frágil, mas a raiva redobra minhas forças.
Em pouco tempo não temia me envolver com os mais
fortes, ficava quase contente quando alguém se
aventurava a me provocar e eu o encontrava na saída
da escola. Na maioria das vezes, não precisava nem
mesmo brigar, tal o respeito que impunha.
Tinha então oito anos. Meu maior desejo era crescer
logo, ser adulta, adulta como meu pai. Exercer
poder sobre as pessoas. Enquanto isso, ficava
avaliando o que tinha.
Meu pai conseguiu um trabalho. Não encontrava
nenhum prazer, mas ganhava dinheiro para manter o
Porsche e seus hábitos de jovem. Após as aulas, eu
ficava sozinha em casa com minha irmã menor, que
tem um ano menos que eu. Sentia-me também
orgulhosa por ter arranjado uma amiga dois anos mais
velha. Em sua companhia me sentia mais forte.
Quase todos os dias brincávamos com minha
irmãzinha as brincadeiras que aprendêramos. No
caminho de volta da escola para nossas casas
remexíamos em todos os cinzeiros e latas de lixo para
catar as guimbas de cigarro. Dávamos um jeito nelas e
fumávamos. Quando minha irmã pedia uma tragada,
nós lhe dávamos um tapa nas mãos. Nós lhe dávamos
ordens: lavar a louça, tirar o pó, enfim, fazer todo o
serviço doméstico de que nossos pais nos haviam
encarregado. Depois disso, pegávamos nossas
bonecas, trancávamos minha irmãzinha no
apartamento e íamos passear. Nós só a deixávamos
livre quando ela terminava todo o trabalho.
Foi nessa época (eu tinha então oito ou nove
anos) que se instalou em Rudow um poney club. A
princípio ficamos furiosos ao ver o último pedacinho
reservado de natureza das redondezas, o lugar onde
nos refugiávamos com nossos cachorros, cercado por
barreiras. Mas logo simpatizei com os empregados,
fazia pequenos serviços para eles, ajudava-os a
escovar os cavalos e a limpar as cocheiras. Em troca,
tinha direito a montar por uns bons quartos de hora
sem pagar. Achava isso fantástico.
Adorava os cavalos e sentia uma imensa ternura
por um burrico que também pertencia ao clube. Mas
uma outra coisa me fascinava: montar, para mim, era
uma demonstração de força e de poder. Meu cavalo
era mais forte que eu, mas ele se curvava à minha
vontade. Quando caía, remontava imediatamente, até
que o cavalo me obedecesse.
Um dia me "despediram". Dali em diante, se eu
quisesse montar, era preciso que pagasse. E nem
sempre recebia algum dinheiro para gastar. Então
cometia pequenos atos desonestos: às escondidas
embolsava os cupons da cooperativa ou os depósitos
das garrafas de cerveja.
Antes mesmo de completar dez anos comecei
também a roubar. Eu roubava pequenas coisas em
supermercados. Coisas que não tínhamos em casa,
sobretudo docinhos, chocolates. Todas as outras
crianças podiam comer essas coisas, e nós não. Meu
pai dizia que eram ruins para os dentes.
No conjunto Gropius aprendia-se, por assim dizer,
automaticamente, a desobedecer às proibições. Aliás,
tudo ou quase tudo era proibido, principalmente
brincar com aquilo que era divertido. O conjunto era
pontilhado de placas. Os pretensos parques que
separavam os prédios eram verdadeiras florestas de
placas e quase todas essas placas proibiam qualquer
coisa às crianças (alguns anos mais tarde eu copiei
todos os "proibidos" em meu diário).
Na porta de entrada do nosso prédio se erguia a
primeira placa. Lendo-a, tinha-se a impressão de que
as crianças deviam andar somente nas pontas dos
pés, tanto nas escadas como nos corredores dos
prédios. Era proibido brincar, correr, andar de bicicleta
ou de patins. Em qualquer lugar onde houvesse um
pouco de grama havia também placas: É PROIBIDO PISAR
NA GRAMA. Não tínhamos nem mesmo o direito de ali
nos sentarmos com nossas bonecas. Em um simples
montinho de rosas, a inscrição: ESPAÇO VERDE
PROTEGIDO, seguida de uma lista de ameaças a quem
tentasse se aproximar das flores.
Éramos relegados ao espaço reservado aos jogos.
Havia um para cada grupo de edifícios. O espaço para
jogos se resumia a um tanque de areia cheirando a
mijo, algumas barras de ginástica, escorregadores e
outros brinquedos quebrados e, evidentemente, uma
gigantesca placa. Uma placa protegida por sólidas
grades de ferro para que nós não pudéssemos demolila:
REGULAMENTO PARA O ESPAÇO RESERVADO AOS JOGOS. Lá
podíamos ler: ESPAÇO RESERVADO PARA AS CRIANÇAS, PARA
SUA ALEGRIA E DIVERTIMENTO. Só que era impossível se
divertir quando a gente queria porque "o acesso está
autorizado das oito às treze horas e das quinze às
dezenove horas". Em outras palavras, impossível ir
brincar na hora da saída da escola, às treze horas.
Na verdade, minha irmã e eu nunca deveríamos ir
brincar ali, pois, sempre de acordo com a placa,
"pode-se utilizar o espaço de jogos somente com o
consentimento e vigiados por uma pessoa encarregada
da educação daquele que brinca". E ainda mais com a
condição de não fazer barulho, pois "deve-se respeitar
o repouso dos locatários". Tinha-se apenas o direito de
jogar uma bola bem direitinho. Mas os "jogos de bola
organizados como esporte são proibidos". Nada de
queimada, nada de futebol. Para os meninos era muito
difícil, pois, não tendo outra saída, descarregavam sua
energia nas instalações e, é claro, nas placas. Devia
custar uma grana trocar tudo com tanta freqüência.
Os zeladores dos prédios eram encarregados de
fazer respeitar o regulamento. O nosso há muito
tempo não ia com a nossa cara. Desde que chegamos,
achei chatíssimo o espaço para os jogos, seu chão
cimentado, seu tanque de areia e seu minúsculo
escorregador. Havia coisas muito mais interessantes:
as bocas-de-lobo instaladas no calçamento para fazer
escoar as águas das chuvas. Nessa época elas eram
recobertas por uma grade removível. A gente se
divertia levantando a grade e jogando no buraco tudo
o que fosse possível. Certa vez, o zelador viu e nos
levou à força ao escritório do gerente, onde fomos
obrigadas a dar nossos nomes e endereços. Isso, da
maneira como éramos capazes de fazê-lo aos cinco ou
seis anos. Eles avisaram meus pais, e aí meu pai teve
uma boa razão para nos dar uma surra. Não
compreendi muito bem por que fora tão grave ter
entupido aquele bueiro. Na nossa cidadezinha, quando
a gente brincava à beira do riacho, fazíamos muito
mais do que isso e nunca ninguém nos disse nada. O
que eu mais ou menos aprendi é que no conjunto
Gropius as únicas brincadeiras autorizadas eram
aquelas previstas pelos adultos. Quer dizer, brincar na
areia e escorregar no tobogã. Ter idéias próprias era
perigoso.
Meu novo encontro com o zelador foi pior ainda.
Olha só o meu azar. Estava passeando com Ajax e tive
a idéia de colher algumas flores para minha mãe. Na
cidadezinha do interior eu lhe trazia flores de quase
todos os meus passeios. Entre os prédios só cresciam
umas rosinhas. Recolhi umas três ou quatro,
machucando meus dedos com os espinhos. Eu ainda
não sabia ler o que dizia a placa que proibia aquilo ou
então não tinha entendido bem o que estava escrito.
Compreendi tudo imediatamente quando vi o
zelador correr em minha direção, gritando, balançando
os braços e atravessando o gramado. Apavorada,
gritei: "Atenção, Ajax!"
Ajax levantou as orelhas, ficou atento, os pêlos de
sua nuca se eriçaram e observou o zelador com um ar
perverso. Ele saiu correndo, apavorado, pisando uma
vez mais na famosa grama. Ficou mudo até chegar à
entrada do prédio, onde recomeçou a gritar. Ficara
contente com tudo isso, mas escondi as flores, pois
percebi que, mais uma vez, fizera algo proibido.
Quando cheguei a casa, o gerente já havia
telefonado: segundo ele, eu havia atiçado meu
cachorro contra o zelador.
Pelas flores não recebi o beijo maternal, mas uma
boa surra de meu pai.
No conjunto Gropius o calor de verão era às vezes
insuportável; não havia sombras, pois só tínhamos
árvores raquíticas. Os edifícios, muito altos, cortavam
o vento. Não havia piscina, nem um laguinho onde as
criancinhas pudessem brincar. Apenas um chafariz no
centro da praça. Às vezes brincávamos nele, de jogar
água uns nos outros. É lógico que isso era proibido, e
fomos obrigados a nos mandar.
Certa época, tínhamos uma verdadeira paixão
pelas bolas de gude. Onde jogar no conjunto Gropius?
No cimento, no asfalto ou na grama proibida?
Impossível. No tanque de areia também não dava. Era
preciso um chão mais ou menos duro onde se
pudessem fazer uns buraquinhos.
Encontramos um terreno quase ideal: embaixo
dos aceráceos. Para que eles respirassem, deixavam
em volta de seus troncos uma abertura circular no
asfalto. Uma rodela magnífica de terra, limpa, sem
folhas. Um sonho para quem gosta de jogar bolinhas
de gude.
Mas, mal a gente começou, o zelador e o
jardineiro já estavam em cima de nós para nos
expulsar, fazendo terríveis ameaças. Um belo dia eles
tiveram uma idéia: em vez de passarem o ancinho,
revolviam a terra com uma pá. Adeus aos jogos de
bolinhas de gude.
Quando chovia, o hall de entrada dos prédios se
transformava em fantástica pista de patins. Se ao
menos fosse. . . Como no andar térreo não havia
apartamentos, não incomodaríamos ninguém se
fizéssemos barulho. E foi assim das primeiras vezes.
Ninguém reclamou. Um belo dia a zeladora decretou
que arranhávamos o chão. Adeus patins. E eu ganhei
uma surra magistral.
Quando chovia era uma loucura, e a gente ficava
de saco cheio no conjunto Gropius. Ninguém tinha
direito de levar amigos para casa. Aliás, os quartos
das crianças eram pequenos demais, e a maioria das
crianças dormia em meio cômodo, como eu. Eu ficava
sentada à janela me lembrando de tudo o que a gente
fazia quando morava no interior. Brincávamos com
madeira. Éramos bem-organizados: nos dias de sol
trazíamos da mata um grande pedaço de casca de
carvalho, e nos dias de chuva nela talhávamos
barquinhos. Se a chuva continuava, vestíamos nossos
impermeáveis e íamos ao riacho testar os barquinhos.
Construíamos portos e fazíamos verdadeiras
competições com nossos brinquedos de casca.
Ficar andando pra lá e pra cá entre os prédios
enquanto chovia não tinha graça nenhuma. Era preciso
ter uma idéia: alguma coisa absolutamente proibida,
por exemplo, brincar com os elevadores.
A primeira coisa a fazer, evidentemente, era
amolar uma outra criança. Pegávamos uma delas,
metíamo-la à força dentro do elevador e apertávamos
todos os botões, enquanto impedíamos o outro
elevador de funcionar. Parando em cada andar, o
prisioneiro era obrigado a ir até o último. Comigo
faziam muito isso. Era sempre assim quando eu ia
levar meu cachorro para fazer xixi e voltava apressada
para não me atrasar para o jantar. Isto durava um
tempão e, com isso, Ajax ficava supernervoso.
Essa brincadeira ficava nojenta quando alguém
aplicava o "golpe do elevador" a uma criança que
estivesse com vontade de ir ao banheiro. Geralmente
ela não conseguia segurar. O pior mesmo era tirar das
criancinhas a pazinha de brincar na areia. A pazinha
era para elas um acessório indispensável, pois com
seu cabo comprido elas alcançavam os botões do
elevador. Sem ela, ficavam na pior, pois tinham que
subir oito, nove ou onze andares a pé.
Muitas vezes os elevadores quebravam, e nem
sempre nós éramos inocentes: fazíamos corridas de
elevadores. Eles tinham sempre a mesma velocidade,
mas havia uns truques com que se ganhavam alguns
segundos, por exemplo: fechar a porta exterior
depressa, mas com delicadeza, pois se a fechássemos
com um gesto brusco, ela se abria novamente; a porta
interior fechava-se automaticamente, mas a gente podia
apressar o movimento empurrando-a (às vezes
isso quebrava o elevador). Eu era muito boa nas
corridas de elevadores.
Como o zelador estava sempre no nosso pé, a
gente logo tinha que deixar de brincar nos treze
andares do nosso prédio. Nos outros prédios a entrada
de crianças era absolutamente proibida. Nos edifícios
havia sempre uma outra porta especial para a
passagem de móveis e outras coisas grandes. Ela era
fechada por uma grade. Eu achei um jeito de passar
pelas grades: primeiro a cabeça, virando com jeitinho,
depois o corpo, me espremendo bem. Não se podia ser
gordo, é claro. Assim, tivemos acesso a um verdadeiro
paraíso para o jogo dos elevadores: um prédio de
trinta e dois andares com elevadores extremamente
sofisticados. A gente ainda não tinha imaginado tudo o
que se podia fazer com um elevador. Um dos nossos
jogos favoritos era o "salto": quando estava em
movimento, todo mundo começava a pular ao mesmo
tempo. O elevador parava e a porta de segurança se
abria. Era genial. Um outro negócio genial: quando se
vira o puxador de freio de segurança para o lado em
vez de abaixá-lo, sabe o que acontece? A porta de
segurança fica aberta mesmo quando o elevador está
andando. Com isso a gente podia ver a velocidade
louca deste troço! A gente via passar, numa
movimentação louca, as lajes de cimento e as portas.
O cúmulo da temeridade, a grande demonstração
de coragem, era tocar o botão que fazia soar o alarme.
Aquele barulhão estridente, e depois a voz do zelador
que falava ao microfone. Depois disso, o negócio era
se mandar. Um prédio de trinta e dois andares nos
permitia um monte de alternativas: fugir, se esconder,
etc. O zelador nos procurava por toda parte, mas
raramente conseguia pegar alguém.
A brincadeira mais legal, quando chovia, era a da
''cave". Claro que era absolutamente proibida. A gente
encontrou um jeito de entrar no subsolo do prédio.
Cada locatário tinha um boxe fechado por uma grade
que não chegava até o teto. Dava para passar por
cima dela. Podíamos brincar de esconde-esconde. Era
uma delícia o pavor de se encontrar escondido no
escuro no meio de todas aquelas coisas ali guardadas.
Além disso, tínhamos medo de ser surpreendidos por
algum locatário. Sabíamos muito bem que essa
brincadeira era, pelo menos, duplamente proibida. Aí a
gente se divertia remexendo nos boxes à procura de
coisas engraçadas: brinquedos, roupas velhas para
nos fantasiarmos. Depois, como não sabíamos mais de
onde havíamos tirado as coisas, jogávamos por cima
da primeira grade que estivesse na frente. Quando
encontrávamos algo muito interessante, não
devolvíamos. Logo começavam a circular rumores de
que o subsolo fora visitado por ladrões. Nunca
pegaram ninguém.
Assim, no conjunto Gropius aprendia-se,
automaticamente, que tudo o que era permitido era
incrivelmente chato e tudo o que era proibido,
divertido.
O centro comercial ao lado do nosso prédio era o
quarteirão mais ou menos proibido. O zelador, uma
espécie de fera, nos expulsava sem a menor
delicadeza. O que o deixava completamente pirado era
quando eu aparecia com o meu cachorro. Ele dizia que
o centro comercial ficava sujo por causa da gente. As
lojas eram cada uma mais moderna, esnobe, elegante
do que a outra. Nos corredores, as lixeiras estavam
sempre cheias e cheirando mal. Nas calçadas a gente
andava pisando em restos de sorvete derretido, merda
de cachorro e tropeçando em caixas de cerveja ou de
Coca-Cola.
O zelador devia limpar tudo isso à noite. Não era
de se espantar que ele passasse o dia a vigiar os que
sujavam. Acontece que ele não podia dizer nada aos
comerciantes que jogavam o lixo fora das latas. Ele
não ousava também enfrentar os bêbados que
jogavam as garrafas para todos os cantos. Quanto às
velhinhas que levavam seus cachorros para passear,
elas simplesmente o mandavam pro inferno. Para
passar sua raiva, ele só tinha que descarregar em nós.
Os comerciantes também não gostavam de
crianças. Quando um de nós arranjava de uma
maneira ou de outra um pouco de dinheiro, ia à "Loja
do Café" para comprar docinhos. Como se tratava de
um verdadeiro acontecimento, os outros o
acompanhavam. Quando os vendedores viam meia
dúzia de moleques que discutiam durante quinze minutos
antes de comprar algumas balinhas, ficavam
furiosos. Pouco a pouco nós também começamos a ter
raiva dos comerciantes. E achávamos legal enganálos.
No centro comercial havia também uma agência
de viagens. Encostávamos o nariz na vitrina até que
eles nos expulsassem. Havia na agência cartazes
maravilhosos, além da maquete de um avião, praias,
palmeiras, negros, animais selvagens quanto
esplendor! Nós nos imaginávamos a bordo do avião a
caminho daquela praia para depois subir naquelas
palmeiras de onde olharíamos os leões e rinocerontes.
Ao lado da agência de viagens estava o Banco
Comércio e Indústria. Nessa época eu ainda me
perguntava o que fazia um banco para comércio e
indústria no conjunto Gropius, onde viviam pessoas
que não tinham outra relação com o comércio e a
indústria que a de serem eventualmente assalariados!
Nós gostávamos desse banco. Os senhores que andavam
bem na estica eram sempre delicados com a
gente. Era porque as vendedoras trabalhavam mais
que eles. . . Eu ia ao banco e trocava uma moeda que
afanara da latinha de minha mãe por dez Pfennige. Na
"Loja do Café" davam bronca quando não pagávamos
com trocados. Além do mais, quando a gente pedia
delicadamente, esses senhores nos davam cofrinhos.
Eles deviam pensar que a gente fazia muita economia,
de tanto que pedíamos. Na verdade, usávamos esses
porquinhos e elefantinhos para brincar de jardim zoológico
no tanque de areia.
Quando viram que fazíamos cada vez mais
besteiras, resolveram construir um parque infantil,
para as nossas aventuras. Eu não sei o que significa
"aventura" para essa gente que constrói esses
negócios. Acho que eles dão esse nome para que os
adultos pensem que seus filhos poderão ter
experiências extraordinárias e não para que as
crianças possam fazer coisas divertidas. Isso deve ter
custado um dinheirão. Pelo menos eles levaram um
tempão para construí-lo. Autorizados a freqüentá-lo,
fomos recebidos por amáveis educadores: "Do que
vocês querem brincar?"
A aventura ali consistia em se estar sob constante
vigilância. Havia ferramentas de verdade, pedaços de
madeira e pregos. Tinha-se, portanto, direito a fazer
construções. Um educador vigiava para que ninguém
martelasse o dedo. Depois que se pregava um prego,
impossível mudar! E se você pensava em mudar de
idéia no meio da brincadeira...
Um dia eu contei ao educador como lá no interior
as crianças construíam verdadeiras cabanas sem
martelos e pregos. Somente com galhos e pedaços de
madeira que se catava pelo chão. E cada vez que se
voltava à "construção", desfazia-se e mudava-se tudo.
E isso é que era divertido. O educador compreendeu.
Mas ele tinha compromissos e regulamentos a
cumprir, não é?
No início, tínhamos algumas idéias próprias. Por
exemplo, propusemos brincar de "crianças da idade da
pedra" e cozinhar uma sopa de verdade no fogo. O
educador achou a idéia genial. Infelizmente, disse ele,
não tínhamos o direito de acender uma fogueira e
fazer a sopa! Por que, em vez disso, não construíamos
uma cabana? Com martelo e pregos! A idade da
pedra!. . .
Pouco tempo depois, nosso parque novinho foi
fechado. Disseram que construiriam um outro para
brincarmos quando chovesse. Vimos, então, chegar
um carregamento de estruturas metálicas, caminhões
de concreto e um grupo de pedreiros. Construíram um
abrigo de concreto! Não era uma caixa ou uma casinha
de madeira ou coisa parecida, era um fortim mesmo.
Os vidros logo estavam quebrados. Não sei se os
meninos quebraram as janelas porque esse treco de
cimento os deixou agressivos. .. Ou talvez porque o
abrigo fora construído para o conjunto Gropius, onde
tudo o que não fosse de ferro ou cimento era destruído
em dois minutos. A sala de jogos ocupava uma grande
parte do parque de aventuras. Em seguida,
construíram, ao lado, uma escola com seu próprio
espaço para jogos, equipado de escorrega-dor,
balanços e umas tábuas de madeira boas para mijar
em cima. Esse escondido parque de jogos ocupava um
outro pedaço do nosso "parque de aventuras" e era
cercado por uma grade. O jeito era a gente tirar um
lencinho do bolso e enxugar as lágrimas!
O pedaço do "parque de aventuras" que nos
deixaram pouco a pouco foi-se tornando um ponto de
encontro de um bando de "grandes" que chamávamos
de rockers. Eles chegavam depois do almoço, já
bêbados, aterrorizando as crianças e quebrando tudo.
Sua única ocupação era o vandalismo. Os educadores
não tinham nenhum contato com eles. Enfim, o
"parque de aventuras" estava fechado a maior parte
do tempo. Ainda bem que nós, as crianças, tivemos
direito a um verdadeiro presente. Uma pista de trenó
foi montada no conjunto Gropius. O primeiro inverno
foi sensacional. Podíamos escolher livremente as
pistas: a pista simples ou o "anel da morte". Os
rockers eram perigosos: faziam corrente com seus
trenós e tentavam o tempo todo nos atropelar, mas
aprendemos depressa a nos defender. Esses dias de
neve foram a melhor lembrança do conjunto Gropius.
Durante a primavera continuamos a nos divertir
nas pistas de trenó. Ali saltávamos com os nossos
cachorros, rolávamos nas descidas. Melhor ainda:
descíamos de bicicleta! Uma loucura! Mas é menos
perigoso do que parece: a grama amortiza a queda.
A proibição não demorou. Disseram que as pistas
de trenó não eram lugar para cambalhotas, nem
velódromo. E que era preciso deixar crescer a grama,
etc., etc. Agora já tínhamos idade para não nos
impressionar com os "proibidos" e não dávamos a
menor bola. . .
Um belo dia apareceu uma equipe do Serviço de
Jardinagem: eles simplesmente cercaram o barranco
que servia de pista com uma cerca de arame farpado.
Nós nos demos por vencidos. . . por alguns dias.
Depois alguém arranjou uma tesoura dessas
grandes e fizemos uma brecha. . . Era o suficiente
para a passagem de cachorros e bicicletas. Todas as
vezes que consertavam, voltávamos a cortar o arame
farpado.
Algumas semanas mais tarde, lá estavam outra
vez os pedreiros. Eles começaram a erguer um muro,
a cimentar e a asfaltar. O nosso "anel da morte" se
transformou em uma escada. A plataforma de saída foi
recoberta com placas de cimento. Ainda bem que
deixaram um pedacinho de grama.
No verão, o lugar não tinha nada de interessante.
No inverno, era muito perigoso. O pior era chegar lá
em cima: era preciso subir escadas que passavam por
patamares de concreto. Quando havia uma camada de
gelo fino, e isso acontecia sempre, não dava para
contar os ferimentos e os galos na cabeça. Algumas
crianças caíam feio e tinham até comoção cerebral.
O conjunto Gropius pouco a pouco chegava à
perfeição. Na maneira de pensar dos urbanistas, ele
devia ser o conjunto residencial modelo, uma
magnífica realização. Quando ali chegamos, não
estava terminado. Os arredores dos prédios não
estavam terminados, ainda não estava como eles
queriam. . . Andando alguns minutos (até mesmo as
crianças pequenas podiam ir sozinhas), chegava-se a
verdadeiros pedacinhos do paraíso. O nosso pedaço
preferido estava ao lado do Muro (O Muro de Berlim.
(N. da T.)) (o conjunto Gropius fica perto); nós o chamávamos
de No Man's Land ou Pequeno Bosque. Era
um pedaço de terra de apenas vinte metros de
largura, mas pelo menos cem metros de comprimento.
Um emaranhado de mato alto (do tamanho da gente),
de árvores, de arbustos, permeado de poças d'água e
de velhas madeiras.
Subíamos nas árvores, brincávamos de escondeesconde,
éramos exploradores descobrindo, a cada
dia, um novo pedaço até então desconhecido de uma
misteriosa floresta virgem. Podiam-se fazer fogueiras,
enviar sinais de fumaça e assar batatas nas cinzas. Até
o dia em que perceberam que as crianças do conjunto
Gropius tinham descoberto esse lugar e aí estavam se
divertindo. Era preciso reinstalar a ordem. As placas
pareciam espinhos no nosso pedaço. Não se tinha
direito a mais nada. Proibição de andar de bicicleta, de
subir nas árvores, de deixar os cachorros livres. A
polícia que, por causa do Muro, andava sempre por
esses lados, vigiava nossa boa conduta. Oficialmente,
nosso No Man's Land tornou-se "zona de proteção dos
passarinhos". Algum tempo depois o lugar era um
depósito de lixo. Sobrava o antigo depósito recoberto
de terra e de areia, onde íamos brincar com nossos
cachorros, mas logo foi proibida a entrada, primeiro
com um arame farpado, depois com uma paliçada. Ali
eles construíram um restaurante panorâmico. . .
Gostávamos também de ir ao campo. Havia
alguns perto dali, sem cultivo. . . mas o Estado
comprou os terrenos para "instalar" neles o lazer.
Nesses terrenos nascia ainda trigo e também
escovinhas, urtigas e um mato tão alto que a gente
desaparecia dentro dele. Eles o fecharam, pedaço por
pedaço, um após outro. Foi aí que instalaram um
picadeiro de poney e depois, no pedaço que sobrou,
quadras de tênis. Já não tínhamos mais nenhum lugar
aonde ir, aonde nos evadir do conjunto Gropius.
Minha irmã e eu éramos privilegiadas: pelo menos
íamos trabalhar no clube e andávamos a cavalo. A
princípio podia-se passear por toda parte. Depois
construíram uma pista de cavalos. Todo o resto, ruas e
caminhos, foi proibido. Uma linda pista de cavalos,
com areia e tudo, como manda o figurino.
Deve ter custado uma nota! Acontece que era
paralela à estrada de ferro, a dois passos dos trilhos.
Que eu saiba, nenhum cavalo suporta a passagem de
um trem e seu ruído de trovão, a alguns metros, sem
reagir. Eles se descontrolavam e tudo o que nós
podíamos fazer era rezar para que eles não se
jogassem contra o trem.
Eu tinha mais sorte que as outras crianças: tinha
meus bichos. Às vezes levava meus três ratinhos
hamster ao tanque de areia. Pelo menos os
regulamentos não diziam: "Proibido ratinhos". Nós
construímos túneis para eles correrem dentro. Uma
tarde um dos ratinhos fugiu pela grama. Não o
encontrei mais. Fiquei um pouco triste, mas me
consolei ao pensar que ele estava mais feliz que na
gaiola.
Bem, justo nessa noite meu pai veio até nosso
quarto, olhou a gaiola dos ratinhos e gritou: "Mas
como! Só dois? Não eram três?" Eu não consegui
pensar, a pergunta me parecia engraçada. Ele nunca
gostou dos ratinhos e sempre estava dizendo para a
gente dar um fim neles. Expliquei que o ratinho fugira
lá na grama. Meu pai me olhava com um ar de louco.
Compreendi em trinta segundos que ele não iria se
controlar mais. Ele começou a gritar e a bater. Estava
na cama. Sem saída. Impossível fugir. E ele bateu.
Nunca batera tão forte, pensei que ia me matar.
Quando ele se virou para ir contra minha irmã, eu
saltei em direção à janela. Acho que teria pulado do
décimo primeiro andar... Mas meu pai me agarrou e
me jogou na cama. Minha mãe, como sempre, de pé,
em lágrimas, na soleira da porta. Eu mal a vi quando
ela se jogou entre meu pai e mim. Ela começou a dar
uns socos nele. Meu pai perdeu as estribeiras.
Arrastou minha mãe para o corredor sem parar de dar
porrada. De repente, tive mais medo por ela do que
por mim. Ela tentou escapar e se fechar no banheiro.
Mas ele a puxou pelos cabelos. Como todas as noites,
a roupa suja estava de molho na banheira, não
tínhamos ainda dinheiro para comprar uma máquina.
Meu pai mergulhou a cabeça de minha mãe na banheira
cheia d'água. Não sei como ela conseguiu sair,
se foi meu pai que a soltou ou se foi ela mesma que se
libertou.
Meu pai, pálido, foi para a sala. Minha mãe abriu
o armário, pegou seu casaco e foi embora. Sem dizer
uma palavra sequer.
Um dos momentos mais terríveis da minha
existência é ainda este minuto, quando vi minha mãe
sair, sem uma palavra, e nos deixar sozinhas. Durante
algum tempo a única coisa em que eu pensava era:
ele vai começar outra vez, ele vai recomeçar a bater. .
. Mas nem um ruído na sala. O único som era o da TV.
Chamei minha irmã para minha cama. A gente se
apertou uma contra a outra. Minha irmã tinha vontade
de fazer xixi. Ela não tinha coragem de ir ao banheiro,
mas tinha também medo de molhar a cama porque
receberia uma outra surra. Ela tremia. Finalmente, de
mãos dadas, fomos juntas ao banheiro. Da sala, a voz
de meu pai: "Boa noite".
No dia seguinte, pela manhã, ninguém veio nos
acordar. Não fomos à escola. Lá pelas onze horas
minha mãe voltou. Sem dizer quase nada, ela
empacotou algumas coisas, pôs o gato numa sacola e
me pediu para pôr a coleira em Ajax. E saímos para
tomar o metrô. Passamos uns dias na casa de uma
colega de trabalho dela. Mamãe nos disse que queria
se divorciar.
O apartamento de sua colega era pequeno. Muito
pequeno para acolher minha mãe, minha irmã, o gato,
o cachorro e eu. Em todo caso. .. No fim de alguns
dias, sua colega estava razoavelmente nervosa. Minha
mãe arrumou as bagagens, nós pegamos nossos
bichos e voltamos ao conjunto Gropius.
Meu pai entrou justamente no momento em que
minha irmã e eu estávamos tomando banho. Ele se
aproximou, e, com uma voz normal, como se nada
tivesse acontecido, disse: "Então.. . por que vocês
partiram assim? Vocês não têm motivo para ir dormir
na casa de desconhecidos. A gente poderia levar uma
vida gostosa, nós três..." Minha irmã e eu nos
entreolhamos de queixo caído. Nessa noite meu pai se
comportou como se minha mãe não existisse. Depois
ele fez o mesmo conosco. Não nos falava nem nos via.
Isso era pior que as pancadas.
Meu pai nunca mais levantou a mão contra mim,
mas o seu jeito de se comportar, como se ele não
tivesse nada mais a ver com a gente, teve para mim
um efeito horrível. Foi somente então que senti que
ele era mesmo meu pai. No fundo eu nunca o odiei,
tinha apenas medo. E eu sempre tive orgulho dele
porque ele gostava dos meus bichinhos, porque tinha
um carro possante, seu Porsche 1962. E, de repente,
eis que, de certa forma, ele não era mais nosso pai,
mesmo morando sob o mesmo teto no minúsculo
apartamento.
Ainda por cima me aconteceu uma pior: Ajax teve
uma perfuração abdominal e morreu. Não havia
ninguém para me consolar. Minha mãe só pensava nos
seus próprios problemas e em seu divórcio. Chorava
sempre e nunca mais riu. Eu me sentia muito só.
Uma noite, bateram à porta. Fui abrir. Era Klaus,
um amigo de meu pai, que viera buscá-lo para ir ao
boteco, mas meu pai já havia saído.
Minha mãe convidou-o a entrar. Ele era bem mais
moço que meu pai. Devia ter vinte e dois ou vinte e
três anos. De repente ele perguntou a minha mãe se
ela queria jantar com ele. Ela logo respondeu: "Sim,
por que não?" Foi depressa mudar de roupa, saiu com
o cara e nos deixou sozinhas.
Outras crianças talvez sentissem certa tristeza. Eu
também, por uns momentos. Mas logo, logo, comecei
a pensar que estava contente por ela, de verdade. Ela
tinha um ar feliz ao sair, mesmo que não
demonstrasse muito. Minha irmã tinha a mesma
opinião. "Mamãe está bem contente", ela dizia. Desse
dia em diante, Klaus vinha sempre quando meu pai
estava ausente. Um domingo eu me lembro com
detalhes , minha mãe me mandou levar o lixo lá
fora. Ao voltar, eu não fiz nenhum barulho. Talvez de
propósito. Quando entrei na sala, vi Klaus beijando
minha mãe.
Foi uma sensação estranha. Fui direto para meu
quarto. Eles não me viram, e não contei a ninguém o
que havia visto. Nem mesmo a minha irmã, para
quem nunca tive segredos.
Agora o homem estava metido todo o tempo em
nossa casa. Eu o achava antipático, mas era delicado
com a gente. E com minha mãe, mais ainda. Ela não
chorava mais e se escutava seu riso. Recomeçou
também a sonhar. Falava do quarto que teríamos,
minha irmã e eu, no novo apartamento, quando
fôssemos morar com Klaus. E meu pai ainda não
mudara. E nem mudou quando, enfim, o divórcio foi
homologado. Meus pais se odiavam, mas dormiam na
cama de casal. E nós continuávamos a não ter
dinheiro.
Enfim nos instalamos em um outro apartamento
em Rudow, uma estação além do conjunto Gropius,
mas nem por isso tudo ficou um mar de rosas. Klaus
sempre metido em casa, e isso me amolava. Ele
continuava delicado, mas era um obstáculo entre
minha mãe e mim. No meu íntimo, eu não o aceitava.
Não queria obedecer a esse jovem senhor! Passei a
ficar cada vez mais agressiva com ele.
Acabamos por discutir. Por coisinhas. Às vezes
era eu quem o provocava. A maioria das vezes, por
causa dos discos. Minha mãe me deu um toca-discos
quando fiz onze anos.
À noite eu punha discos numa altura de estourar
os tímpanos. Uma noite, Klaus apareceu no meu
quarto e me disse para abaixar o som. Eu não fiz
nada. Ele voltou e tirou o disco. Eu voltei a colocá-lo e
fiquei plantada diante do toca-discos. Klaus me
empurrou. Eu não suportava que esse homem me
tocasse e comecei a berrar.
Minha mãe, de modo geral, ficava sempre,
prudentemente, do meu lado. Era ruim isso: a história
sempre terminava numa discussão entre Klaus e ela. E
eu aí me sentia culpada. Tinha alguém sobrando
naquele apartamento.
Na verdade, havia coisas piores que essas
briguinhas ocasionais. Eram as noites tranqüilas em
casa: todos reunidos na sala, Klaus folheando uma
revista ou mexendo nos botões da TV, minha mãe
tentando estimular a conversa, ora com a gente, ora
com seu amigo. Mas ninguém falava, e todos os seus
esforços caíam por terra.
Dava pena, realmente. Minha irmã e eu nos
sentíamos demais na sala. Quando dizíamos que íamos
dar uma volta, ninguém protestava. Klaus, pelo
menos, parecia contente de nos ver sair. Por isso
saíamos cada vez mais freqüentemente e ficávamos lá
fora, tanto tempo quanto fosse possível.
Atualmente penso que Klaus não merecia nenhuma
crítica. Ele só tinha vinte anos. Não sabia o que era
uma família. Não tinha consciência do quanto minha
mãe gostava da gente e nós dela. Que nós tínhamos
necessidade de a ter todinha para nós durante o pouco
tempo que passávamos com ela, à noite e nos fins de
semana. Talvez ele tivesse ciúmes de nós. E tínhamos,
certamente, ciúmes dele. Minha mãe queria estar
disponível para nós e ao mesmo tempo para seu
amigo. Mais uma vez eu reagia a essa situação me
mostrando cada vez mais barulhenta e agressiva.
Minha irmã ficando cada vez mais silenciosa. Ela
sofria, mas sem saber exata mente por quê. Falava
em ir morar com meu pai. Do meu ponto de vista era
uma loucura, depois de tudo o que ele nos havia feito.
E eis que ele nos propôs voltar a viver com ele. Já não
era o mesmo homem. Tinha uma amiga jovem, e cada
vez que o encontrávamos, ele estava de bom humor.
Mostrava-se muito gentil. Deu-me uma cadelinha.
Eu já tinha doze anos, os primeiros sinais de seios
e comecei a me interessar pelos garotos e pelos
homens. Eles me pareciam extravagantes. Todos uns
brutos. Tanto os garotos da rua como meu pai e
mesmo Klaus, a seu modo. Tinha medo deles, mas
também me fascinavam. Eram fortes, detinham o
poder. Tinha inveja deles. Em todo caso, sua força e
sua potência me atraíam.
Às vezes usava o secador de cabelos de minha
mãe. Cortei uma franja e me penteava bem. Cuidava
bem do meu cabelo porque me diziam que era muito
bonito assim comprido. Não queria mais usar calças
xadrez como as de criança. Parecia fraco. Queria
jeans. Compraram-me uns jeans. Fiz questão absoluta
de um sapato de salto alto. Minha mãe deu-me um
dos dela.
Com meus jeans e de salto, andava pela rua
todas as noites, até as dez horas. Tinha a impressão
de que não me queriam em casa, mas, por outro lado,
achava legal ter tanta liberdade.
Encontrava certo sabor nas minhas brigas com
Klaus. Discutir com um adulto dava-me uma espécie
de sentimento de poder.
Minha irmã não suportava esse tipo de coisa. Ela
cometeu um ato para mim incompreensível: foi para a
casa de meu pai. Deixou minha mãe e, o pior, me
deixou. Eis-me ainda mais só. Mas para minha mãe o
golpe foi terrível. Ela recomeçou a chorar. Dividida
entre seu amigo e suas filhas, mais uma vez ela
estava cheia de problemas. . .
Acreditava que minha irmã não tardaria a voltar,
mas ela ficou muito bem na casa de meu pai. Ele lhe
dava mesada, pagava aulas de equitação e lhe
ofereceu um verdadeiro culote. Era difícil para mim
engolir tudo isso. Tinha recomeçado a trabalhar no
poney-club, onde, em troca, me deixavam montar a
cavalo. Mas não era regular. Logo, logo, minha irmã,
com aquele culote legal, tornou-se melhor amazona
que eu.
Mas finalmente tive uma compensação. Meu pai
me ofereceu uma viagem à Espanha. Eu consegui um
excelente boletim escolar e estava apta a seguir o
segundo ciclo. Inscreveram-me na Escola Polivalente
Integrada, do conjunto Gropius. E assim, no limiar de
uma nova etapa de minha vida uma etapa que
logicamente deveria me conduzir até o bacharelado ,
voei para Torremolinos em companhia de meu pai e
sua amiga. Férias geniais. Meu pai mostrou-se
formidável e constatei que, à sua maneira, ele me
amava. Tratava-me como adulta. E às vezes até me
levava junto com ele quando saía com sua amiga.
Tornara-se um homem razoável. Tinha amigos de
sua idade e não lhes escondia que tinha sido casado.
Não o chamava mais de tio Richard. Era sua filha. Ele
parecia orgulhar-se de mim. No quadro, uma sombra:
ele e isso era bem próprio dele escolhera a data
das férias em função do que era melhor para ele e
seus amigos; ao final de minhas férias. De maneira
que cheguei a minha nova escola com duas semanas
de atraso.
Fiquei desorientada. Na minha classe, os colegas
já tinham suas amizades, os grupos já estavam
formados, mas o pior foi que, durante essas duas
semanas em que eu estivera na Espanha, explicaram
como funcionava a escola. Era um sistema muito
complicado para quem vinha da escola primária. Era
preciso que a gente mesmo escolhesse as orientações
e se inscrevesse em alguns cursos. Os outros alunos
foram aconselhados, eles foram orientados em sua
escolha. Eu tive que me virar sozinha. Fiquei perdida
nessa escola. Não havia mais, como na escola
primária, um professor que se encarregasse dos
alunos individualmente. Cada professor dava aula para
várias centenas de alunos. Se quiséssemos alcançar o
bacharelado, era preciso que cada um se responsabilizasse
por si mesmo. Decidir que queria mesmo
estudar. Fazer o necessário para ser admitido no
grupo de nível mais elevado. Ou ter pais que
dissessem "faça isso, faça aquilo" e que nos
estimulassem. Quanto a mim, estava perdida.
Não me sentia "alguém" dentro dessa escola. Os
outros tinham duas semanas a mais. Era muito numa
escola nova. Comecei a testar minha receita do curso
primário: falava baixo, interrompia e contestava os
professores. Às vezes porque em minha opinião eles
erravam, às vezes por princípio. Parti para a guerra.
Contra os professores e contra a escola. Queria ser
alguém. Existir. O chefe do bando, em nossa classe,
era uma menina. Chamava-se Kessi, já tinha seios de
verdade. Parecia ter dois anos mais que os outros. Era
também mais madura. Todo mundo a respeitava. Eu a
admirava. Meu maior desejo era tornar-me sua amiga.
Kessi também tinha um namorado, que era um
cara ''gênio". Ele estudava numa classe paralela à
nossa, mas já era bem mais velho. Chamava-se Milan.
Tinha, pelo menos, um metro e setenta de altura,
cabelos compridos e encara-colados que lhe caíam até
os ombros. Calçava sempre botas chiquérrimas e
usava jeans apertadíssimos. Todas as garotas ficavam
na paquera de Milan. O prestígio de Kessi não se devia
somente ao tamanho de seus seios e ao seu jeito de
adulta, mas sobretudo ao fato de ser amiga íntima de
Milan.
Naquela época, nós, garotas, tínhamos uma
imagem precisa do cara que nos agradava. Não devia
nunca andar com calças de boca larga, mas sim vestir
jeans apertadíssimos. Rapazes que usassem tênis,
achávamos simplesmente super caretas. Deveriam ter
sempre sapatos na última moda e, se usassem botas
desenhadas, então, era o máximo. Desprezávamos os
garotos que atiravam bolinhas de papel ou sobras de
maçã na sala de aulas. Eram os mesmos que, nos
intervalos, bebiam leite e corriam atrás de uma bola
de futebol. Considerávamos bacanas aqueles que, nos
intervalos, desapareciam num canto para fumar
escondido. Tinham, também, que saber beber cerveja.
Ainda me lembro de como fiquei impressionada no dia
em que Kessi me contou que Milan havia tomado um
pileque daqueles.
Eu me perguntava o que devia fazer para que um
cara como Milan se interessasse por mim ou então (e
no fundo era a mesma coisa) para que Kessi me
considerasse sua amiga. Só seu apelido, Kessi, já era
"classe". Eu sonhava ter também um apelido bacana.
Dizia a mim mesma: você não tem nada que fazer
com professores que só vê uma hora de vez em
quando. Qual é essa de se cansar para lhes agradar? O
importante é ser aceita por gente com quem você
passa o dia inteiro. E passei a modificar todo o meu
comportamento na sala de aula. Não tinha nenhuma
relação pessoal com os professores. Aliás, a maioria
deles estava pouco ligando, não tinham mesmo autoridade
e a única coisa que faziam era berrar.
Aprontei mil e uma. Em pouco tempo, fui capaz de,
sozinha, acabar com uma aula. Naturalmente, por
isso, passei a ser bem considerada por todos os meus
colegas.
Catava moedas no fundo das gavetas para poder
comprar cigarros e ir para o canto dos fumantes. Kessi
ia sempre em todos os recreios. Quando comecei a ir
com mais freqüência, senti que ela se interessou por
mim.
Nós nos encontrávamos à saída da escola. Afinal,
um dia, ela me convidou para ir a sua casa. Bebemos
cerveja: senti uma coisa gozada na cabeça e falamos
de nossas famílias. Ela teve as mesmas merdas de
problemas que eu. Até pior. . .
Kessi era filha natural. Sua mãe mudava
constantemente de amigo, e esses homens,
naturalmente, não gostavam muito dela. Ela acabava
de passar por um período bem difícil. O último cara
também distribuía pancada. Um dia quebrou toda a
mobília e para terminar jogou a televisão pela janela.
Mas a mãe de Kessi não era como a minha. Era mais
severa: a não ser excepcionalmente, Kessi devia estar
em casa todas as noites às oito horas.
As coisas melhoraram também na escola. Quero
dizer, consegui ser respeitada pelos meus colegas. Foi
um combate difícil, permanente, que não me deixava
tempo para estudar. Meu dia de glória foi aquele em
que Kessi me autorizou, finalmente, a sentar-me ao
seu lado. Ela me ensinou a cabular aula. Quando não
sentia vontade de ir à aula ela simplesmente se
mandava e ia encontrar-se com Milan ou fazer outra
coisa que lhe desse na cabeça. Nas primeiras vezes
tive um medo daqueles. Mas logo reparei que se
podiam cabular uma ou duas aulas por dia, com
segurança absoluta, que ninguém notava. A chamada
era feita só na primeira aula. Depois os professores
não tinham mais condições, por causa do grande
número de alunos, de ver quem estava lá ou não.
Aliás, muitos deles estavam pouco ligando.
Kessi, já naquela época, deixava que os rapazes a
acariciassem e a beijassem. E também já freqüentava
o Centro de Jovens. Era um lugar em que os jovens se
reuniam sob a orientação da Igreja protestante. No
subsolo havia uma espécie de discoteca, "o clube". A
entrada só era permitida aos maiores de catorze anos,
mas ninguém notava que Kessi acabara de completar
treze anos.
Supliquei por tanto tempo à minha mãe, que ela
acabou por me comprar um sutiã. Na verdade,
naquela época eu não precisava dele ainda, mas eles
aumentavam os meus seios. Também comecei a me
maquilar. Consegui, assim, que Kessi me levasse com
ela ao clube, que abria sempre às cinco da tarde.
A primeira pessoa que vi foi um menino da nossa
escola. Estava na oitava série e, para mim, era o cara
mais genial de todos. Melhor ainda que Milan. E mais
bonito. Além do mais, ele tinha um jeito de estar
sempre super seguro. . . Andava pelo Centro de
Jovens com a naturalidade de um artista. Via-se que
era superior aos demais. Chamava-se Piet. Ele e seus
amigos ficavam sempre à parte. Tinha-se a impressão
de que eles não faziam parte do mesmo universo que
os outros jovens que a gente encontrava no clube.
Toda a turma tinha um ar de superioridade. Todos
tinham aquela "classe": usavam jeans bem justos,
botas de salto alto, coletes, jeans bordados ou então
camisas estampadas, de um tecido que parecia tapete.
Kessi conhecia esses caras e me apresentou a
eles. Isso me emocionou e achei genial poder me
aproximar deles, graças a Kessi. No Centro de Jovens
todo mundo os respeitava. E nós tínhamos até mesmo
o direito de nos sentar perto deles.
Na tarde seguinte, a turma trouxe um enorme
cachimbo. Eu não sabia mesmo para quê. . . Kessi me
explicou que eles fumavam maconha. Eu não sabia
muito bem o que era aquilo. Somente que era uma
droga, e absolutamente proibida.
Eles acenderam a coisa e a fizeram circular.
Cada um deu uma tragada. Até Kessi. Quando
chegou a minha vez, recusei. Eu não tinha intenção de
recusar. Tinha tanta vontade de fazer parte da turma!
Mas era uma droga! Eu não podia ainda! Isso me
causava realmente muito medo.
Não me sentia muito à vontade. Queria
desaparecer em algum buraco. Mas não podia sair
daquela mesa: daria a impressão de estar me
separando da turma porque eles fumavam maconha.
Declarei: "Tenho vontade de tomar uma cerveja".
Recolhi as garrafas vazias esparramadas pelos quatro
cantos. Trocavam quatro garrafas vazias por uma
cheia. Eu me embebedei, pela primeira vez na vida,
enquanto os outros continuavam a chupar longa e
delicadamente o cachimbo. Conversavam sobre
música. Eu não conhecia quase nada e não podia
participar da conversa. Gostei de estar bebum, isso
me tirou um terrível sentimento de inferioridade. Logo
compreendi o gênero de música de que eles gostavam
e comecei a imitá-los: David Bowie, etc. Esses caras
para mim também eram ídolos! Pelas costas todos se
pareciam com David Bowie, embora só tivessem
dezesseis anos.
O pessoal da turma era superior e sua maneira
me desconcertava. Eles não gritavam, não brigavam,
não aterrorizavam ninguém. Eram bastante
silenciosos. Sua superioridade parecia emanar deles
próprios.
Entre eles também eram tranqüilos. Nunca havia
brigas. Ao chegar, todo mundo se beijava: um beijinho
na boca. Eram os meninos que mandavam, mas as
meninas eram bem aceitas. Pelo menos entre meninos
e meninas nunca havia brigas idiotas.
Kessi e eu mais uma vez cabulamos aula. As duas
últimas aulas. Kessi tinha um encontro com Milan no
metrô Wutzkyallee. Como ele ainda não chegara,
andamos à toa em volta da estação, sempre com
medo de encontrar algum professor. Àquela hora, era
realmente arriscado.
Kessi acendia um cigarro quando vi Piet com seu
amigo Charly. Eis chegado o momento que eu tanto
esperava. Há tempos que tinha vontade de encontrar,
durante o dia, Piet ou um outro, para convidá-los a ir a
minha casa. Não queria nada dos rapazes. Ainda não
me interessava pelo sexo oposto. Só tinha doze anos e
não havia tido sequer uma menstruação; o que eu
queria era poder contar a todos que Piet estivera em
minha casa. Assim os outros pensariam que nós
havíamos saído juntos ou, pelo menos, que eu fazia
parte da turma.
Não havia ninguém na minha casa. Minha mãe e o
seu companheiro haviam saído para trabalhar. Disse a
Kessi: "Vamos lá falar com os meninos". Meu coração
batia forte. Apesar disso, foi com uma voz bem segura
que alguns minutos depois eu perguntei a Piet: "Que
tal irmos até minha casa? Não há ninguém lá, e o
companheiro de minha mãe tem alguns discos legais,
como Led Zeppelin, David Bowie, Ten Years After,
Deep Purple e o álbum do festival de Woodstock".
Eu já havia evoluído muito. Familiarizara-me não
somente com a música de que eles gostavam, mas
também com o seu linguajar diferente e tudo o mais.
Tratei de aprender aquele vocabulário tão novo para
mim. E isto me parecia mais importante que a
matemática e os verbos ingleses.
Piet e Charly aceitaram na hora. Fiquei louca de
alegria, cheia de orgulho. Em casa, grito: "Merda, não
há nada para beber". Fizemos uma vaquinha e fui com
Charly ao supermercado. A cerveja era muito cara, e
era preciso beber muito para ficar um pouco de fogo.
Compramos por dois marcos um litro de vinho tinto,
daqueles que mancham. Esvaziamos a garrafa
enquanto transávamos um papo.
A conversa girou em torno dos tiras. Piet disse
que devíamos desconfiar muito deles por causa do
dope (é uma palavra que vem do inglês e que eles
utilizavam para designar maconha). Falaram muito
mal dos tiras e afirmaram que vivíamos em um Estado
policial.
Tudo aquilo era novidade para mim. Até então, os
únicos representantes da autoridade que eu conhecera
e que mereciam ser odiados eram os zeladores:
pessoas que caem em cima de nós quando estamos
nos divertindo. Os policiais encarnavam um mundo
ainda fora do meu alcance. No entanto, aprendi que no
conjunto Gropius vivíamos num universo de policiais,
que os tiras eram muito mais perigosos que os
zeladores. E se Piet e Charly diziam, não podia ser
nada mais que a estrita verdade.
Uma vez terminada a garrafa, Piet disse que tinha
ainda um pouco de dope em sua casa. Os dois outros
estavam maravilhados. Piet saiu pela varanda (era o
que eu fazia geralmente vivíamos no andar térreo e
isso era genial depois de ter vivido no décimo primeiro
andar) e voltou com uma placa do tamanho de uma
mão, dividida em pedaços de um grama cada um, uma
dezena de marcos. Ele trouxe também um shilom
(Pipa especial para fumar maconha. (N. da T.)), que é
uma espécie de cano de madeira com uns vinte
centímetros de comprimento. Primeiro colocou fumo
para que não fumássemos até a madeira e depois
encheu com uma mistura de fumo e maconha. Fumamos
colocando a cabeça para trás e segurando o cano
tão vertical quanto possível, para não deixar cair as
cinzas.
Olhei atentamente como eles faziam. Sabia que
não podia mais recusar, agora que Piet e Charly
tinham vindo à minha casa. Falei com um ar muito
tranqüilo: "Fumarei um pouco de dope hoje", como se
já tivesse fumado aos montes.
Baixamos as cortinas. A luz que atravessava pelos
vãos revelava espessas nuvens de fumaça. Coloquei
um disco de David Bowie. Eu aspirei e conservei o
fumo nos meus pulmões até ter um acesso de tosse.
Ninguém falava nada. Ouvimos música, olhando para
o vazio.
Esperei que se passasse algo de extraordinário
comigo. Pensei: agora que estou drogada, algo
diferente deve acontecer. Mas nada. Senti somente
um pouco de sono, que devia ser mais efeito do vinho.
Não sabia ainda que na maioria dos casos a maconha
não provoca nada ao menos conscientemente na
primeira vez. É preciso tentar algumas vezes para
sentir o seu efeito. O álcool vai muito mais rápido.
Piet e Kessi, sentados no sofá, se aproximaram
um do outro. Piet fazia carícias no braço de minha
amiga. Pouco depois os dois se levantaram e foram se
trancar no meu quarto.
Fiquei sozinha com Charly. Ele se sentou no braço
do meu sofá e pôs seu braço nos meus ombros. Acho
que ele era melhor que Piet. Sentia-me feliz por ele se
interessar por mim. Sempre tive medo de que os
meninos percebessem que tinha doze anos e me
rejeitassem, me considerando um bebê.
Charly começou a me bolinar. Não sei mais se
continuava contente. Senti um calor terrível. De medo,
creio. Estava petrificada. Tentei murmurar alguma
coisa a respeito do disco que estava tocando. Quando
Charly começou a me amassar os seios, ou seja, o que
no futuro seriam meus seios, dei um salto e fui até a
vitrola para fazer de conta que estava arrumando não
sei o quê.
Piet e Kessi saíram de meu quarto. Eles tinham
um ar estranho, perturbado, um pouco triste. Não
trocavam olhares. Estavam em silêncio. Kessi tinha a
cara avermelhada. Dava a impressão de que vivera
uma má experiência. De qualquer maneira, isso não
lhe acrescentou nada. Deve ter sido horrível para os
dois.
Finalmente, Piet me perguntou se iria ao Centro
de Jovens. Isto me devolveu a confiança. Ganhei.
Tudo se passou como tinha pensado: convidei pessoas
do bando para ir à minha casa e agora fazia parte do
bando para sempre.
Piet e Kessi partiram pela varanda. Charly
demorou. O pânico me invadiu. Não podia ficar só com
ele. Falei claramente que devia arrumar o
apartamento e estudar. De repente, eu não ligava
mais ao que ele iria pensar. Ele foi embora. Joguei-me
na minha cama e, olhando para o teto, tentei pensar
sobre o que se passara.
Charly tinha bastante charme, mas não sei bem
por que ele não me agradava mais. Uma hora, uma
hora e meia depois, tocou a campainha. Olhei pelo
olho mágico. Era Charly. Não abri e voltei para meu
quarto na ponta dos pés. Tinha medo de ficar a sós
com ele. Agora ele me repugnava. Além disso, sentia
um pouco de vergonha. Por causa da droga ou de
Charly, não sabia muito bem.
Sentia-me triste. Finalmente fora admitida no
bando, mas no fundo aquele não era meu lugar. Era
muito jovem para essas histórias de rapazes, e agora
eu me dava conta disso. Quanto ao que eles me
disseram a respeito da polícia, do Estado, etc., isso
não me interessava.
Apesar de tudo, cheguei ao Centro de Jovens no
momento em que ele abria. Não fomos ao clube, mas
sim ao cinema. Tentei sentar entre Kessi e um rapaz
que não conhecia, mas Charly ficou ao meu lado.
Durante o filme ele recomeçou a passar a mão em
mim. Ele pôs sua mão entre minhas coxas. Eu não me
defendi. Estava paralisada. Tinha um medo terrível.
Tive vontade de sair correndo, mas pensei:
"Christiane, é o preço da tua admissão no bando". Não
me mexi nem disse nada. Além disso, aquele tipo me
impressionava terrivelmente. Quando ele me pediu
que eu o acariciasse e tentou guiar minha mão, não
deixei. Cruzei minhas mãos sobre meus joelhos.
Fiquei felicíssima quando o filme acabou. Afasteime
o mais rápido que pude de Charly e me dirigi a
Kessi. Contei-lhe tudo o que havia se passado e disselhe
que nunca mais queria rever Charly. Kessi deve ter
contado tudo a ele, pois, pouco tempo depois, todo
mundo já sabia que ela estava vidrada em Charly.
Então, no clube, ela sempre ficava pelos cantos
chorando, pois Charly já não mais a tratava como fazia
com as outras meninas. Mais tarde, ela mesma me
confessou que estava realmente apaixonada por
Charly e que não conseguia controlar o choro quando
ele estava por perto.
Apesar do ocorrido com Charly, eu fazia parte do
bando. É claro que me apelidaram de "a pequena".
Mas o que era importante é que fora aceita. Nenhum
rapaz tentou me tocar. Sabiam e admitiam que eu era
muito jovem para essas coisas. Também nesse ponto
nosso bando se diferenciava dos bêbados. Estes eram
os jovens que se dedicavam à cerveja, à cachaça. Eles
eram muito rigorosos com as meninas que são "cheias
das coisas". Riam delas, insultavam-nas e cometiam
violências contra elas. Entre nós, tudo isso não existia,
e nunca houve violência. Nos aceitávamos
mutuamente tal qual éramos. Aliás, de certa forma
éramos todos parecidos ou ao menos estávamos no
mesmo barco. Não havia necessidade de grandes
discursos para nos entendermos. Entre nós ninguém
gritava, ninguém falava coisas obscenas. As lamúrias
dos outros não nos diziam respeito. Estávamos por
cima de tudo isso.
Afora Piet, Kessi e eu, todos tinham um emprego.
Para todos era a mesma coisa: fedia em casa e fedia
no trabalho.
Enquanto os bêbados carregavam seu stress ao
Centro e descarregavam sua agressividade, os caras
de nosso grupo eram capazes de se desligar.
Terminada a jornada de trabalho, eles faziam coisas
que lhes agradavam: se drogavam, escutavam música
agradável... Era a paz. Esquecíamos todas as merdas
da jornada.
Não me sentia ainda perfeitamente bem com os
outros. Creio que por ser muito jovem, mas eles eram
o meu modelo. Queria ser como eles e aprendi com
eles a viver tranqüila, não dando bola aos idiotas e a
esta merda toda. De qualquer forma, nem pais nem
professores tinham nenhuma influência sobre mim. A
única coisa que contava, além dos meus animais, era
o bando.
Se as coisas chegaram àquele ponto, foi porque a
vida lá em casa estava insuportável. O pior era que
Klaus, o companheiro de minha mãe, detestava
animais. Pelo menos essa era a minha opinião na
época.
De início, ele se contentava apenas em reclamar
sem parar, dizendo que o apartamento era muito
pequeno para tudo isso. Depois ele proibiu a entrada,
na sala, do cachorro que eu havia ganho de meu pai.
Tive uma explosão. Nossos cães sempre fizeram
parte da família. E eis que aquele cara pretendia
expulsar a minha cadela da sala de estar! Mas isso não
era tudo: ele me proibiu de deixá-la dormir ao lado da
minha cama. Ele queria, sem gozação, que eu
construísse uma casinha de cachorro em meu quarto,
que já era minúsculo. Naturalmente, não fiz nada.
Depois disso, Klaus me acenou com o golpe fatal.
"É preciso se desfazer dos animais", disse ele. Minha
mãe se colocou do seu lado, dizendo que eu não
cuidava mais deles. Era o cúmulo! É verdade que,
voltando muitas vezes tarde da noite, eles eram
obrigados a levar o cão para passear, mas, apesar
disso, sempre dediquei todo o meu tempo livre aos
meus animais.
Mesmo tendo chorado e feito um escândalo, o
cachorro foi embora. Deram-no a uma senhora, muito
simpática e de quem eu gostava muito. Mas ela ficou
doente, um câncer, e não pôde mais ficar com ele.
Ouvi dizer que ele acabou em um boteco. Era um
animal extremamente sensível, que não suportava
ouvir gritos. Em um lugar como esse, ele não
sobreviveria, sabia disso. Responsabilizo Klaus e
minha mãe pela minha saída de casa. Não queria mais
saber de gente que não gostava de animais.
Tudo isso se passou quando comecei a freqüentar
o Centro de Jovens e a fumar maconha. Restavam-me
apenas os dois gatos. À noite eles dormiam na minha
cama. Durante o dia não tinham necessidade de mim.
Sem meu cachorro, não havia mais nenhum motivo
para eu permanecer em casa. Não sentia vontade de
passear sozinha. Esperava, impacientemente, pelas
cinco horas, a hora em que abria o Centro de Jovens.
Às vezes encontrava-me com Kessi e com alguns amigos
do bando no início da tarde.
Fumava todas as tardes. Na turma, os que tinham
dinheiro emprestavam para os que não tinham. Eu não
me preocupava mais em esconder que fumava
maconha. No Centro de Jovens isso não era mais
segredo. Periodicamente, os assistentes sociais nos
faziam sermões. Mas a maioria deles reconhecia que
também já fumara. Eles vinham das universidades, do
movimento estudantil, e aí era perfeitamente normal
que se fumasse maconha. A única coisa que nos
diziam era para não exagerar, não usá-la como um
meio de fugir da realidade, etc. Principalmente, não
passar às drogas pesadas.
Seus conselhos entravam por um ouvido e saíam
por outro. O que esses caras tinham a ver com isso?
Eles mesmos fumavam, não é mesmo? Um dos nossos
disse claramente a um assistente social: Para
vocês, quando um estudante se droga, tudo bem. Ele
sabe o que faz. Mas se é um aprendiz ou um operário
é perigoso, não pode. Qual é? Suas histórias não
colam. O cara não soube o que responder. Isto lhe
deu um peso na consciência.
Fumar somente já não bastava. Quando não tinha
droga, bebia vinho, cerveja. Começava desde que saía
da escola ou mesmo pela manhã, nos dias em que
cabulava as aulas. Tinha necessidade de estar um
pouco embalada, um pouco voando. Eu tinha essa
vontade para escapar de toda aquela merda, merda na
escola e merda em casa. Da escola, de todas as
maneiras, eu me desliguei completamente. Minhas
notas decaíam a olhos vistos.
Até fisicamente eu mudei bastante. Emagreci
muito, pois quase não comia. Já dançava dentro das
calças. Meu rosto afinou. Ficava horas diante do
espelho, admirando minha nova aparência. Eu me
assemelhava cada vez mais ao resto da turma.
Finalmente perdi meu ar inocente, meu ar de criança.
Fiquei obcecada pelo meu físico. Obrigava minha
mãe a comprar calças colantes como uma segunda
pele e sapatos de salto alto. Penteava meus cabelos
repartidos ao meio.
Eles cobriam minha cara. Desejava ter um ar
misterioso, ninguém devia me desvendar, ninguém
devia duvidar de que eu estava numa boa, como
tentava demonstrar.
Uma noite Piet me perguntou se já havia viajado.
Claro, meu velho respondi. Ouvira falar do LSD,
que eles chamam de "uma viagem". Piet sorriu.
Percebi que ele não acreditou. Como ouvira muitas
vezes pessoas me contarem suas últimas viagens,
tentei, com trechos que lembrava, fabricar minha
própria história. Piet ainda não acreditava. Não era tão
fácil enganá-lo. Tive vergonha.
Se você quiser provar, terei LSD, dos bons, no
sábado. Eu te darei um pouco.
Impacientemente esperei pelo fim de semana.
Quando já tivesse tomado LSD, seria igualzinha aos
outros. Quando cheguei ao Centro de Jovens, Kessi já
havia começado a sua viagem. Piet me disse: Se
você está decidida, eu te dou metade. É o suficiente
para a primeira vez. Ele me deu então um papel de
cigarro enroladinho. Lá dentro havia um comprimido.
Não podia tomar assim, diante de todos. Estava
excitadíssima. Além disso, tinha medo de ser
apanhada em flagrante delito. Eu gostaria, além do
mais, de dar ao acontecimento certo ar solene.
Finalmente, fui me trancar no banheiro e tomei o dito
cujo.
Quando voltei, Piet afirmou que eu havia jogado o
comprimido no banheiro. Esperei impacientemente que
aquilo fizesse efeito para que os outros vissem que o
havia tomado de fato.
Até as dez horas, hora em que o Centro fechava,
eu ainda não sentia nenhum efeito. Acompanhei Piet
até o metrô. Lá encontramos Frank e Pauli, dois
amigos de Piet. Eles tinham um ar tranqüilo, uma
calma extraordinária. Gostava deles. Eles se
dedicam à heroína falou Piet. Não prestei, naquele
momento, nenhuma atenção. Tinha que pensar em
mim mesma. O comprimido começava a fazer efeito.
Tomamos o metrô e, aí sim, a coisa começou a
funcionar. Uma verdadeira loucura! Tive a sensação
exata de estar dentro de uma lata de conserva e que
alguém remexia lá dentro com uma colher gigante. O
barulho do metrô, quando no túnel, era de
enlouquecer. Insuportável mesmo. Pensei que não
fosse agüentar. As pessoas, no metrô, tinham umas
caras pavorosas. Aliás, para dizer a verdade, esses
burgueses têm sempre a mesma cara. Só que naquele
momento pude ver seus rostos melhor e constatei
como eram nojentos. Comecei a imaginar que aqueles
gordos burgueses deviam estar saindo de uma merda
de um botequim qualquer ou de uma merda de
trabalho. Agora deveriam, esses porcos, ir para suas
casas dormir e, na manhã seguinte, retornar ao
trabalho, e então começaram a se distanciar da minha
vista. Pensei: "Você deve se sentir muito feliz por ser
diferente. Você tem uma turma bacana. Você está
agora sob o efeito da droga e pode constatar que
merda de burgueses andam no metrô". Foi isso, mais
ou menos, que pensei naquele momento e também
nas "viagens" futuras. De repente, senti medo
daquelas caretas. Olhei para Piet. Ele tinha uma aparência
bem pior do que de costume. Seu rosto ficara
muito pequeno, exatamente ao contrário dos outros.
Mas ainda possuía algo de normal.
Chegamos finalmente a Rudow. Estava feliz por
pular fora do vagão. Agora sim a coisa era completa.
Todas as luzes tinham uma incrível intensidade. Nunca
o sol me pareceu tão brilhante quanto aquela lâmpada
acima de nossas cabeças. No metrô eu tinha frio,
agora sentia um calor fortíssimo. Eu me imaginava na
Espanha e não mais em Berlim. As ruas se
transformaram em praia, as árvores eram palmeiras
como nos belos cartazes da agência de viagem do
conjunto Gropius. A luz era deslumbrante. Não disse a
Piet que voava. Minha viagem fantástica, queria
aproveitá-la sozinha.
Piet, que também voava, propôs que a gente
fosse à casa de sua amiga. Uma menina que ele
curtia. Talvez seus pais não estivessem em casa.
Fomos primeiro ao estacionamento, no subsolo do
edifício, ver se o carro deles estava lá. Tive uma crise
de angústia. O teto da garagem era baixo e descia
cada vez mais. O teto era uma abóbada. Os pilares
oscilavam.
O carro dos pais da menina estava lá.
Piet gritou: Meu Deus, como fede esta
garagem! Depois, pensando que era só ele que
viajava, perguntou-me: Onde você jogou o
comprimido aquela hora? Ele me olhou e depois
exclamou: Merda, minha filhinha, eu não disse
nada. Você tem as pupilas dilatadas pra burro.
Fora, o mundo era novamente belo. Sentei na
grama. Uma casa da vizinhança tinha um muro cor de
laranja, berrante. Dir-se-ia que o sol nascente ali se
refletia. As sombras dançavam como se elas
quisessem se apagar diante da luz. O muro se
quebrava e parecia que de repente ardia em chamas.
Fomos até a casa de Piet. Ele possuía um
surpreendente talento de pintor. Um de seus quadros,
pendurado em seu quarto, representava um esqueleto
armado de uma foice sobre um cavalo enorme. Olhei
para o quadro. Não era a primeira vez que o via, e
sempre pensava que ele representava a morte. Agora
ele não me dava medo de maneira nenhuma.
Ocorriam-me pensamentos inocentes. Pensava que
esse esqueleto era incapaz de dominar um cavalo tão
vigoroso. Falamos do quadro, longamente. Ao ir
embora, Piet me emprestou alguns discos e me disse:
Eles são formidáveis para aterrissar. Fui embora.
Minha mãe me esperava, a bronca habitual. No
estado em que estava. . . "Isso não pode continuar
assim", etc., etc. Achava-a ridícula, gorda, cheia de
banha em sua camisola branca, cara totalmente torta
de raiva. Como as pessoas do metrô.
Não abri a boca. Já não falava mesmo mais com
ela. Somente o indispensável e algumas pequenas
frases sem importância. Não queria que ela me
tocasse mais. Não queria seus beijos. Acreditava, ao
menos algumas vezes, que não tinha mais
necessidade de mãe ou de uma família.
Vivíamos agora em dois mundos totalmente
diferentes. Minha mãe e seu companheiro de um lado
e eu de outro. Eles não tinham a menor idéia do que
eu fazia. Pensavam que era uma menina
perfeitamente normal em período de puberdade. O
que poderia eu contar-lhes?
De todas as maneiras, eles não compreenderiam
mesmo. A única coisa que fariam era me bombardear
com proibições. Pelo menos, era o que eu pensava. O
único sentimento que sentia por minha mãe era
piedade. Tinha pena quando a via voltar do trabalho,
cansada, nervosa, liquidada e fazer os trabalhos
domésticos. . . Dizia a mim mesma: "Que culpa têm os
velhos se levam esta vida de idiotas?"
A mãe de Christiane
Como pude não perceber o que estava
acontecendo com Christiane? Por diversas vezes fiz
esta pergunta a mim mesma. A resposta é simples,
mas tive que conversar com vários pais para suportála:
eu não queria reconhecer que minha filha tinha se
tornado uma viciada. É simples. Enquanto pude, fechei
os olhos para não enxergar.
Meu companheiro o homem com quem vivo
desde o meu divórcio suspeitava há muito tempo.
Eu vivia lhe dizendo: "Você está inventando coisas, ela
não passa de uma criança". O erro mais grave é
imaginar que nossos filhos "ainda não chegaram a tal
ponto". Eu deveria ter começado a pensar nessas
coisas desde o momento em que Christiane se isolou,
desde que senti que ela evitava, cada vez mais, o
contato com a gente e saía todos os fins de semana
com os amigos em vez de fazer alguma coisa com a
família. Eu deveria ao menos me interrogar por que
ela agia assim. Não procurei saber nada disso.
Não há dúvida de que quando trabalhamos não
podemos dar a atenção necessária ao que fazem
nossos filhos. Temos vontade de viver em paz e nos
contentamos em vê-los seguir seu próprio caminho. É
claro que Christiane voltava algumas vezes tarde para
casa. Mas ela tinha sempre uma boa desculpa, e eu
estava pronta para acreditar. Sua rebeldia constante
me parecia problema de sua idade e pensava: isso vai
passar.
Eu não queria pressionar Christiane. Eu mesma
tinha sofrido muito com isso. Tive um pai
extremamente severo. No vilarejo de Hesse, onde
cresci, ele era um cidadão respeitável, proprietário de
uma pedreira. Sua maneira de educar consistia em
estabelecer proibições. Se fizesse a besteira de falar
de meninos só falar , recebia umas boas palmadas.
Nunca esqueci um certo domingo à tarde.
Passeava com uma amiga. Dois jovens nos seguiam a
uma distância aproximada de cem metros. Eis que, por
acaso, meu pai nos vê. Ele pára, me dá uma bofetada
ali mesmo, no meio da rua, me empurra para dentro
do carro e me leva para casa. Tudo isso porque dois
meninos estavam andando atrás da gente. Isso me
revoltou. Eu tinha dezesseis anos na época e nunca
mais parei de pensar: como fugir?
Minha mãe tinha um coração de ouro, mas ela
não era ouvida para nada. Não me deixaram nem
mesmo escolher minha profissão. Eu sonhava ser
parteira, mas meu pai me forçou a ingressar em uma
escola técnica de comércio. Depois deveria cuidar da
sua contabilidade. Foi nessa época que encontrei
Richard, que seria meu futuro marido. Ele tinha um
ano mais do que eu e cursava uma escola
especializada em economia agrícola. Obedecendo a
seus pais, também deveria administrar as
propriedades da família. No início éramos somente
amigos. É claro que meu pai quis me impedir de vê-lo.
E quanto mais ele insistia, mais eu teimava. Por fim
encontrei a solução para conquistar a minha liberdade:
ficar grávida e ser obrigada a casar.
Eu tinha dezoito anos quando isso aconteceu.
Richard imediatamente parou de estudar, e em
seguida fomos morar no norte, no vilarejo onde
moravam meus pais. Nosso casamento foi um fracasso
total. Desde o início. Eu nunca pude contar com meu
marido para nada, nem mesmo durante minha
gravidez ele me fazia companhia à noite. Ele só
pensava no seu Porsche e em seus grandes projetos.
Nenhum trabalho era digno dele. Ele queria, a todo
preço, ser alguém importante. Repetia o tempo todo
que sua família, antes da guerra, era rica e poderosa:
seus avós eram proprietários de um jornal, de uma
joalheria, de um açougue e donos de muitas terras.
Ele queria, única e exclusivamente, ter a sua
própria empresa. Queria montar um negócio de
transportes, vender carros ou, em associação com um
amigo, estabelecer uma casa de sementes de
horticultura. Na realidade, ele nunca passou dos
contatos preliminares. Em casa ele descontava nas
crianças. Ainda que eu interferisse, as bofetadas choviam.
Eu ganhava a maior parte do dinheiro necessário
para vivermos. Christiane tinha mais ou menos quatro
anos quando encontrei um bom trabalho numa agência
matrimonial. Eu era obrigada, às vezes, a trabalhar
nos fins de semana para fazer os contratos, e aí
Richard me ajudava. Durante dois anos as coisas
andaram relativamente bem. Quando Richard brigou
com meu patrão, perdi o meu emprego. Richard
decidiu abrir sua própria agência matrimonial, um
projeto grandioso. Com sede social em Berlim.
Mudamo-nos em 1968. Eu esperava que essa
mudança de ares desse um novo alento ao casal. Mas,
em vez do belo apartamento com suntuosos
escritórios, caímos num apartamento com duas peças
e meia do conjunto Gropius, quase no subúrbio.
Richard não conseguiu fundos necessários para
iniciarmos o negócio. Voltávamos ao que éramos
antes. Ele descarregou sua raiva sobre mim e sobre as
crianças. Uma vez, em um dos seus bons períodos,
trabalhou durante certo tempo no comércio. No fundo
ele era incapaz de se resignar a ser como todos os
outros habitantes do conjunto Gropius, a fazer parte
daquela gentinha.
Diversas vezes pensei em me divorciar, mas não
tinha coragem de ir até o fim. O pouco de confiança
em mim mesma, que meu pai me havia conseguido
infundir, foi totalmente destruído por meu marido.
Felizmente encontrei rapidamente um trabalho
em Berlim: esteno-datilógrafa num escritório, mil
marcos por mês, líquido. O sentimento de ser
considerada, de fazer algo, novamente me deu certa
força. Parei de aceitar tudo o que meu marido queria.
Comecei a achar a sua megalomania bastante ridícula.
Nossas brigas se tornaram cada vez mis freqüentes,
cada vez mais violentas. Tínhamos feito várias
tentativas de separação... Eu estava ainda muito
ligada a ele talvez pelo fato de ele ter sido o
primeiro. E também por causa das crianças. Eu não
tinha encontrado um lugar no jardim de infância para
as crianças, e mesmo que tivesse encontrado não
poderia pagar. Dessa forma, me tranqüilizava saber
que Richard estava às vezes em casa. E assim sempre
adiei minha decisão. Em 1973, finalmente, me senti
bastante forte para reparar o meu erro. Fui consultar
um advogado e pedi o divórcio.
Eu queria preservar Christiane de tudo aquilo que
eu tinha vivido. Tinha feito um juramento, no
momento do seu nascimento: "É preciso que ela não
se case com o primeiro que aparecer, somente para
fugir de casa. Ela deve se expandir livremente, sem
repressões". Gostaria de ser uma mãe moderna. Foi
por isso que mais tarde me revelei muito permissiva.
Uma vez realizado o divórcio, tive que procurar
um apartamento para morar, pois Richard se recusava
a mudar. Encontrei um por seiscentos marcos por mês
(a garagem estava incluída no preço, apesar de eu não
ter necessidade, pois não tinha carro). Era muito caro
para mim, mas eu não tinha escolha. Queria
finalmente deixar meu marido e queria, a todo preço,
que começasse uma vida nova para mim e minhas
filhas.
Richard não tinha como pagar pensão alimentar.
Eu disse a mim mesma: "Há uma só coisa a fazer:
confiar nas próprias forças, fazer horas extras se for
necessário, mas é preciso que as crianças tenham uma
vida decente". Elas tinham então dez e onze anos, e
durante toda a sua infância tinham vivido em um
apartamento mobiliado com o estritamente necessário
e mais nada. Não tínhamos sequer um sofá
decente. Meu coração sofria pelo fato de não
poder dar às crianças um lar confortável.
Agora que estava divorciada, eu gostaria que isso
mudasse. Finalmente, gostaria de ter um apartamento
bonitinho onde nós três nos sentíssemos bem. Eu
trabalhava para realizar esse sonho, para poder
comprar um presente para as crianças, comprar
roupas bonitas e sair alguns fins de semana sem me
preocupar com as despesas.
Esse objetivo, eu o persegui com entusiasmo e
muita garra. Ganharam um belo quarto com o papel
de parede escolhido por elas e móveis ao gosto delas.
Em 1975 pude dar um aparelho de som a Christiane.
Tudo isso me enchia de alegria; estava tão alegre de
poder, finalmente, dar-lhes um pouco de bem-estar!
À tarde, ao voltar do trabalho, eu lhes trazia
presentinhos. Pequenas coisas. Comprava umas coisas
em algumas dessas grandes lojas... Geralmente era
algo em liquidação, como um apontador de lápis
engraçado, um brinde qualquer, alguma coisa para
comer, etc. Elas pulavam no meu pescoço. Sentia a
sensação de que todos os dias era Natal.
Hoje, é claro, sei que era um meio de aliviar
minha consciência, uma compensação pelo fato de eu
não cuidar suficientemente delas. Eu não deveria terme
preocupado tanto com o dinheiro, mas sim com
cuidar mais de minhas filhas, em vez de trabalhar
tanto. Hoje não entendo muito bem o porquê da
minha atitude: por que as deixei tão sós? Os presentes
não substituem o resto. Como as meninas tinham
necessidade de mim, teria sido melhor que eu tivesse
vivido do auxílio-família. Mas isso, para mim, seria
uma derrota: meus pais me ensinaram que isso não se
faz, não se deve ser um parasita do Estado. Talvez eu
devesse ter exigido do meu ex-marido uma pensão
alimentar. Não sei. De tanto me esforçar para ter um
lar arrumadinho, perdi completamente de vista as
verdadeiras prioridades das coisas. Por mais que eu
pense e repense sobre o assunto, no final das contas
sempre chego à conclusão de que deixei as crianças
por conta delas mesmas. Christiane tinha necessidade
de ser orientada, receber um sólido apoio. Era mais
instável, mais sensível que sua irmãzinha. Nunca me
ocorreu a idéia de que ela pudesse cair no mau
caminho, apesar de saber o que se passava no
conjunto Gropius. Havia brigas todos os dias. Bebia-se
tanto que era freqüente ver um homem ou uma
mulher ou até um adolescente bêbado de cair pelos
cantos. Pensava que, se déssemos um bom exemplo,
se não nos perdêssemos, as crianças nos tomariam
por modelo e tudo iria bem.
Eu acreditava, verdadeiramente, que estávamos
no bom caminho. De manhã as meninas iam à escola,
ao voltar preparavam o almoço, e à tarde iam
freqüentemente ao poney-club. As duas têm uma
verdadeira paixão pelos animais.
Durante certo tempo tudo caminhava bem apesar
de algumas cenas de ciúme entre as crianças e Klaus,
meu amigo, que morava conosco. Eu queria estar um
pouco disponível para ele, além do meu trabalho, da
casa e das crianças. De certa maneira ele era meu
porto de tranqüilidade. Neste caso, também, cometi
um erro grave: para me dedicar melhor a ele, permiti
à irmã de Christiane retornar à casa de seu pai.
Richard, que se sentia só, a atraía, prometendo-lhe
um monte de coisas.
Christiane voltava sozinha da escola. Começou a
andar em más companhias. Eu não percebia nada. Ela
passava freqüentemente as tardes com sua amiga
Kessi, que me parecia bastante razoável para a sua
idade. A mãe de Kessi de vez em quando dava uma
olhadinha nas duas. Éramos vizinhas, e às vezes
Christiane ia à casa da amiga e em outros dias era ela
que vinha para nossa casa.
Ela tinha doze ou treze anos, idade em que
começamos a querer descobrir tudo, queremos fazer
experiências. Não encontrei motivo para censurá-la
quando passaram a freqüentar à noite o Centro de
Jovens organizado pela Igreja protestante. Eu estava
convencida de que, estando lá, Christiane estava em
boas mãos. Mesmo nos meus piores pesadelos eu não
poderia imaginar que lá se fumava maconha.
Tranqüilizava-me ver Christiane, tão triste depois
da partida da irmã, tornar-se uma alegre adolescente.
Desde que se tornou amiga de Kessi, ela recomeçou a
rir. Às vezes ela dizia besteiras com tanto entusiasmo
que eu não podia deixar de rir. Como poderia
adivinhar que sua alegria, seus sorrisos loucos eram
efeitos de haxixe ou de outra droga qualquer?
***
Minha família era a turma. Nela eu encontrava
amizade, ternura e algo parecido com amor. Só o
beijinho na chegada já me parecia uma coisa
fantástica. Todos davam e todos recebiam um pouco
de ternura e amizade. Meu pai nunca me beijou assim.
Na turma não havia problemas, não falávamos nunca
de problemas, ninguém amolava os outros com suas
merdas pessoais. Quando estávamos juntos, essa porcaria
de mundo exterior não existia mais. Falávamos
de música e drogas, algumas vezes de roupas e outras
também de gente que, de um jeito ou de outro, deu
um pontapé na bunda dessa sociedade policialesca.
Achávamos legal quando alguém roubava um carro,
assaltava um banco ou um apartamento.
Depois da minha viagem sentia-me igualzinha aos
outros. Foi uma viagem maravilhosa, e tive sorte, pois
para a maioria das pessoas a primeira viagem é ruim,
é aquele pânico. Eu fiquei numa boa. Tive a impressão
de ter passado num exame com sucesso. A partir daí,
quando me ofereciam um comprimido de LSD, eu
aceitava. Passei a ver as coisas e as pessoas de uma
maneira totalmente diferente. Reencontrei a natureza.
Antes eu tinha contato com a natureza graças ao meu
cachorro, quando eu ia passear com ele. Agora era
uma nova experiência. Quando não tinha ácido,
fumava um baseado antes do passeio. E fui
descobrindo uma natureza desconhecida. Tudo se
dissolvia em cores, formas e sons, refletindo o meu
humor do momento. Achava realmente bacana a vida
que levava. Durante vários meses senti-me quase
contente comigo mesma.
Algum tempo depois as coisas começaram a se
modificar com a nossa turma. Todos se sentiam
agitados. O fumo e as viagens não nos estimulavam
mais. Acostumamo-nos com isso. Estar baratinado era
mais ou menos nosso estado normal. Não havia mais
nada de extraordinário. . .
Uma tarde, um cara da turma chegou ao Centro
anunciando: Olha, gente, tenho um negócio novo, é
Efedrina. Um negócio terrível. Tomei dois
comprimidos de Efedrina (é um estimulante), sem
saber ao certo o que engolira. Tomei com cerveja,
porque os outros faziam assim também... Sempre tive
horror a cerveja, talvez porque tivesse horror das
pessoas que se embriagam com cerveja.
De repente, o Centro foi invadido por pílulas de
todos os tipos. Naquela mesma tarde tomei um
Mandrix, que é um sonífero fortíssimo. Nessa tarde o
mundo me pareceu realmente maravilhoso e o pessoal
da turma, terrivelmente simpático.
Nas semanas que se seguiram arrasamos com os
estoques das farmácias.
Na escola as coisas iam de mal a pior. Deixei, de
uma vez por todas, de fazer meus deveres. Pela
manhã nunca estava desperta. Apesar disso, passei de
ano. Estudava algumas matérias como letras ou
instrução cívica, quando encontrava um tema de
interesse.
Mas foi precisamente nas matérias que não
abandonei que encontrei cada vez maiores
dificuldades. Com os professores e com os alunos. A
maneira como nos tratavam e o relacionamento entre
eles me pareciam abomináveis. Lembro-me de como
discuti com um professor que nos queria falar de
proteção ao meio ambiente. A classe toda estava
completamente apática, ninguém se interessava.
Porque não era preciso anotar nada, nem estudar. O
blá-blá-blá do professor me exasperava. Estava certa
de que ele deixava de lado tudo o que era
verdadeiramente importante. Então explodi e gritei:
O que significa mesmo proteção ao ambiente? Primeiro
é ensinar as pessoas a viverem com os outros, a se
interessarem uns pelos outros. Em vez disso, cada um
tenta gritar mais alto, ser mais forte que o vizinho e
passar o tempo todo a fazer sujeira para ter melhor
nota que o outro. E os professores deveriam aprender
a ver o que acontece e a julgar com eqüidade os
alunos. E assim prossegui. Era um professor de
quem eu gostava muito; aliás, foi por isso que fiquei
com raiva, eu sabia que valia a pena discutir com ele.
Estava realmente de saco cheio dessa escola. Não
tínhamos nenhum contato, nenhuma relação pessoal
com os professores. E os laços entre os alunos eram
cada vez mais fracos, porque assistíamos a diferentes
aulas. O objetivo era o de superar o vizinho. Ninguém
dava uma mãozinha, cada um queria ser o melhor. Os
professores massacravam os alunos; eles tinham o
poder, eram eles que davam as notas. E se, ao
contrário, fosse encontrado um bom professor que não
soubesse se impor, eram os alunos que, em grupo,
testavam o seu poder sobre o dos professores.
Eu percebia tudo, mas isso não me impedia de
continuar a perturbar o curso cada vez que sentia
vontade. A maior parte dos meus colegas só me
compreendia nos momentos em que interrompia o
professor soltando uma bobagem qualquer. Mas eles
não sacavam quando eu falava seriamente, quando
tentava dizer que a escola era uma merda.
No fundo não me importava muito; porque o
importante para mim, dali para a frente, era ser
reconhecida pelos caras da minha turma. E nela, toda
essa merda, competição, stress, etc., não existia mais.
Mas, mesmo assim, eu acabava ficando cada vez mais
isolada, participando cada vez menos das discussões.
O papo era sempre o mesmo: a maconha, a
música, a última "viagem", o preço da maconha, do
LSD e dos diversos comprimidos, que iam ficando
sempre mais caros. Sentia-me tão deprimida que não
tinha mais vontade de falar e só queria ficar sozinha
no meu canto.
Entretanto, passei a ter um novo objetivo: o
Sound era uma discoteca. A cidade inteira estava
coberta de cartazes que diziam: SOUND, A DISCOTECA
MAIS MODERNA DA EUROPA. O pessoal da turma ia sempre
lá, mas só era permitida a entrada a partir dos
dezesseis anos. E eu acabara de fazer treze. Falsifiquei
a data de nascimento na minha carteira de estudante,
mas mesmo assim tive medo de que não me
deixassem entrar.
Eu sabia que no Sound havia uma "cena" (Lugar
de encontro dos viciados e passadores. (N. do E.)). Ali
se vendia de tudo, desde a maconha até a heroína,
incluído o Mandrix e o Valium. Pensei que devia estar
lotado de caras realmente descontraídos. Era um lugar
fabuloso para a menina que eu era, que de Berlim só
conhecia o trajeto entre Rudow e o conjunto Gropius.
O Sound, eu imaginava como um verdadeiro palácio,
brilhando por todos os lados, um louco efeito de
iluminação e uma música genial. E sobretudo os caras,
o que de mais descontraído podia haver!
Já tentara ir lá com amigos várias vezes, mas não
dera certo. Aí, eu e Kessi preparamos um golpe, como
um verdadeiro plano de guerra. Um sábado, disse a
minha mãe que iria dormir na casa de Kessi, que
contou à sua que iria dormir na minha. As duas
"engoliram" nossa história. Uma amiga de Kessi,
chamada Peggy, era um pouco mais velha que eu e
devia vir com a gente. Nós nos encontramos em sua
casa e aí esperamos por seu namorado, Micha. Kessi,
com um ar muito importante, contou-me que Micha se
picava, quer dizer, injetava heroína. Fiquei fascinada,
louca para conhecê-lo. Porque seria a primeira vez que
ia encontrar alguém que usava droga pesada.
Micha chegou. Fiquei impressionada. Eu o achei
ainda mais descontraído que os caras do meu bando.
Mas, logo depois, meu complexo de inferioridade
começou a agir, Micha nos tratava com muita
condescendência. Pensei mais uma vez que tinha
apenas treze anos e que este junk (Indivíduo que
utiliza drogas pesadas. (N. do E.)) estava muito longe
de mim, já era adulto. Senti-me diminuída.
Aliás, Micha morreria alguns meses mais tarde.
Pegamos o metrô e fomos até a
Kurfürstenstrasse. Naquela época, achei o trajeto
bastante longo. Sentia-me muito longe da minha casa.
A Kurfürstenstrasse, no cruzamento com a
Potsdamerstrasse, pareceu-me um lugar deplorável.
As meninas andavam pelas ruas à toa. Eu não sabia
ainda, naquela ocasião, que o que elas faziam era
trottoir. Observamos, também, que alguns caras
passavam pra lá e pra cá. Peggy então me contou que
eram os passadores. Se naquela época alguém me
tivesse dito que eu também iria andar por ali, quase
todos os dias, certamente o chamaria de maluco.
Chegamos ao Sound. Quando lá dentro, por pouco
não caio de costas. Não tinha nenhuma relação com o
que eu imaginava. "A discoteca mais moderna da
Europa" era um porão, com o teto bem baixo, sujo e
barulhento. As pessoas, cada uma por si, pulavam na
pista de dança. Uma multidão sem nenhum contato
entre si. Cheirava mal. O ventilador de vez em quando
misturava os cheiros...
Sentei-me em um banco e não ousei sair do
lugar. Tinha a impressão de que me olhavam, que
todo mundo via que não tinha nada para fazer ali.
Kessi imediatamente entrou na onda. Corria de um
lado para outro à procura de caras. Ela disse que
nunca vira tantos caras assim de uma só vez. Eu
estava petrificada. Os outros já se haviam abastecido
com comprimidos de não sei o quê e bebiam cerveja.
Não quis tomar nada. Passei a noite toda diante de
dois copos de suco de frutas. Se eu me desse ouvidos,
voltaria para casa, mas eu não podia! Minha mãe
acreditava que eu dormia na casa de Kessi. Esperei
até as cinco horas, até a hora de fechar. Houve um
momento em que desejei que minha mãe tivesse
descoberto tudo e que viesse me buscar. Se eu pudesse
tê-la de repente ao meu lado. . . E adormeci.
Os outros me acordaram às cinco horas. Kessi
disse que ia embora com Peggy. Sentia dor de barriga.
Ninguém me ajudou. Sozinha, às cinco horas da
manhã, eu subia a Kurfürstenstrasse até a estação do
metrô. O metrô estava cheio de bêbados. Tive vontade
de vomitar.
Fazia muito tempo que eu não ficava tão feliz, ao
abrir a porta do apartamento e ver minha mãe sair do
seu quarto.
Eu lhe disse que Kessi se levantara muito cedo e
que eu viera para casa para dormir até tarde, para
dormir numa boa. Levei meus dois gatos para minha
cama e me enfiei debaixo das cobertas. Um pouco
antes de dormir disse a mim mesma: "Christiane,
estas coisas não são para você. Você está no mau
caminho".
Acordei ao meio-dia ainda me sentindo mal.
Sentia necessidade de falar com alguém sobre o que
acontecera comigo. Sabia que ninguém da turma iria
me compreender. Achei que só podia falar sobre isso
com minha mãe.
Mas não sabia como começar. Disse-lhe:
Escute, mamãe, ontem à noite fomos ao Sound.
Minha mãe fez uma expressão de horror. Eu continuei:
Afinal, não é tão ruim. Essa discoteca é enorme.
Tem até um cinema.
Minha mãe recomeçou com suas broncas de
sempre. Eu esperei que ela me interrogasse, mas ela
não perguntou nada. Estava cansada, como sempre,
naquela tarde de domingo: faxina, almoço, problemas
com seu companheiro. E não tinha vontade de ficar
mais nervosa ainda discutindo comigo. Talvez ela não
tivesse mesmo vontade de saber.
Eu não tive coragem de falar. Aliás, eu nem sei se
sentia vontade de falar. Naquela época eu não tinha
consciência de nada. Eu vivia controlando meu humor,
não pensava no futuro, não tinha projetos. Que
projetos poderia eu ter tido? Não falávamos nunca do
futuro.
No fim de semana seguinte, Kessi veio dormir em
minha casa como tinha sido combinado entre nossas
mães. Arrastei-a até em casa. Ela estava
completamente dopada. Eu também já havia tomado
alguma coisa, mas ainda me equilibrava. Kessi ficou
plantada no meio da rua, em êxtase, vendo dois faróis
indo para cima dela. Fui obrigada a puxá-la até a
calçada para que não fosse esmagada. Eu a empurrei
até meu quarto, mas minha mãe apareceu. Kessi e eu
tivemos a mesma alucinação: minha mãe era muito
gorda para entrar no quarto, e ficou presa no batente
da porta. Isso nos fez rir tanto que não conseguíamos
mais parar. Vi minha mãe transformada em dragão
um enorme dragão inofensivo com um osso bem
decorativo pregado no meio dos cabelos. Nos
dobrávamos de tanto rir e minha mãe sorriu
alegremente com a gente. Acho que ela pensou: "Eis
aí duas adolescentes louquinhas!"
Daí em diante, Kessi passou a me levar quase
todos os sábados ao Sound. No início, eu a
acompanhava simplesmente porque, se não fosse, não
saberia o que fazer sábado à noite. E, pouco a pouco,
eu me habituei ao Sound. Contei à minha mãe que a
gente ia ao Sound. Ela me autorizou com uma
condição: que eu voltasse para casa no último metrô.
Ia correndo tudo bem até um sábado do verão de
1975. Tínhamos decidido passar a noite no Sound. Aí,
como sempre, dissemos que dormiríamos uma na casa
da outra. Dava sempre certo essa história, porque não
tínhamos telefone. As duas mães não nos podiam
controlar. Primeiro fomos ao Centro de Jovens, onde
esvaziamos duas garrafas de vinho. Depois
preparamos um daqueles cigarros de maconha. Kessi,
além disso, ainda engolira uns comprimidos de
Efedrina, que às vezes provocavam crises de
consciência.
Quando notei que Kessi tinha desaparecido,
pensei: "Merda, e agora?'' Ocorreu-me uma idéia do
lugar onde ela poderia estar e fui direto para o metrô.
Ela lá estava! Dormia, deitada num banco. No chão,
perto de sua mão, um saquinho de batatas fritas.
Antes que eu conseguisse acordá-la, chegou um
metrô, e dele desceu a mãe de Kessi. Ela trabalhava
em uma sauna e voltava do trabalho às dez da noite.
Quando encontrou sua filha, que na verdade deveria
estar em minha casa, deu-lhe duas bofetadas, uma à
direita, outra à esquerda. Deu para escutar o estalo.
Kessi acordou vomitando. Sua mãe agarrou-a pelo
braço, como faz a polícia, e levou-a embora.
Esse par de bofetadas na estação de metrô
provavelmente evitou muita coisa. Sem ele, Kessi
teria, sem dúvida, e antes ainda que eu, aterrissado
na "cena" e na prostituição de crianças. E não estaria
em condições de fazer o exame para sua formatura.
Kessi ficou proibida de me ver e não mais podia
sair de noite. Durante certo tempo, eu me senti muito
só. A turma já não me oferecia grande coisa.
Continuávamos a nos encontrar no Centro de Jovens,
mas eu não podia suportar a idéia de não ir ao Sound
aos sábados. Cada vez mais gostava dos caras
"quentes" que o freqüentavam. Eles eram os meus
ídolos. . . Eram mesmo muito mais sensacionais que
os carinhas da turma, que nunca punham o nariz pra
fora do conjunto Gropius. O único problema era que eu
andava sempre "dura". Kessi recebia cem marcos de
mesada, dava para a maconha e para os comprimidos.
Dali em diante era preciso que eu descolasse a grana
sozinha, se preciso, até roubando. Não tinha ninguém
para me acompanhar ao Sound, então ia sozinha. Na
sexta-feira seguinte ao par de bofetadas, fui à
farmácia comprar uma caixa de Efedrina (isso se
vende sem receita).
Já não tomava dois comprimidos, mas quatro ou
cinco. Ia ao Centro de Jovens para pedir dinheiro para
um baseado e em seguida corria para o metrô. Não
pensava em Kessi. Aliás, não pensava em nada. Vivia
num mundo estranho e fantástico, o dos maconheiros.
Em cada estação eu me divertia procurando entre
as pessoas que subiam aqueles que iam ao Sound.
Via-se logo: um jeito especial, cabelos longos, botas
com salto de dez centímetros. Meus ídolos, os ídolos
do Sound! Já não tinha medo de ir sozinha. Na escada
esbarrei em um rapaz. Ele me olhou e murmurou
alguma coisa. Eu o achei terrivelmente descontraído.
Era alto, magro, com cabelos loiros, compridos, e um
ar extraordinariamente calmo. Ainda na escada
começamos a conversar. Eu me sentia bem mesmo.
Nós nos entendíamos, e cada frase nos aproximava
mais; gostávamos do mesmo tipo de música, fazíamos
o mesmo gênero de "viagem". Ele se chamava Atze.
Foi o primeiro rapaz que achei realmente sensacional.
Pensei ser amor à primeira vista. Pela primeira vez na
vida ficava gamada por um cara.
Atze me apresentou aos seus amigos. Uma turma
bem descontraída. Logo entrei na deles. Falava-se de
drogas e dos melhores métodos para "voar". E sobre
isso eu já sabia tanto quanto eles. Falaram também da
heroína. Estavam todos de acordo "que é uma sujeira,
que é melhor dar um tiro na cabeça do que se meter
com heroína". Dei minha opinião: É preciso ser
completamente débil para se picar. Depois falamos
de roupas: como ajustar os jeans. Sobre isso também
podia dar a minha opinião: emagrecia tão depressa
que necessitava fazê-lo quase a cada semana. Os
jeans super-justos eram, aliás, uma espécie de marca
de fábrica para os freqüentadores do Sound. Eu lhes
ofereci o único trabalho de costura que sabia fazer:
ajustar calças.
Não precisei batalhar para ser aceita pela turma.
Sentia-me tão calma, com tanta confiança em mim,
que até me espantei.
Havia um outro rapaz que logo achei muito simpático.
Chamava-se Detlef. Era bastante diferente de Atze,
muito delicado, com um rosto muito meigo, bonito,
ainda com traços infantis. Tinha dezesseis anos. Era
com ele que conversava com mais liberdade. Detlef
tinha uma namorada muito engraçada, Astrid. Ela
tinha classe. Dizia cada uma que a gente rolava de
tanto rir. Tinha sempre a palavra exata. Era o que eu
mais admirava nela.
Havia somente um cara, na turma, de quem era
preciso desconfiar: Blacky. Se falássemos qualquer
bobagem, ele dizia coisas que machucavam a gente.
Uma vez contei que, depois de fumar, brinquei no
metrô com um bebê que era um verdadeiro anjo;
Blacky, imediatamente, fez um comentário estúpido.
Era preciso prestar muita atenção para falar quando
ele estivesse por perto. Havia um outro rapaz de quem
eu não gostava: era um garanhão. Depois de minha
aventura com Charly eu não suportava mais esse tipo
de cara, mas ele não ficava todo o tempo com a
turma. . .
Passamos a noite conversando, saindo de vez em
quando para puxar um fumo. Depois que o Sound
fechou, fomos ainda dar uma volta em
Kurfürstendamm. No metrô, no caminho de volta, eu
estava invadida pela felicidade! Fui "aterrissando''
devagarinho, sentindo uma agradável moleza, pois,
pela primeira vez na vida, estava apaixonada.
Dali em diante vivia esperando pelos fins de
semana.
Atze era terno, cheio de cuidados. Na terceira vez
em que nos encontramos no Sound, ele me beijou e
eu retribuí seu beijo. Foi um beijo bem inocente, não
queria ir mais longe do que isso. Atze sentiu e
compreendeu, sem que fosse necessário tocar no
assunto. É a grande diferença entre os drogados e os
alcoólatras. A maioria dos drogados é sensível aos
sentimentos dos outros, pelo menos quando se trata
de um dos membros da turma. Os alcoólatras, quando
estão bêbados, dão porrada nas meninas. Sempre
querem trepar. Nós não, nós tínhamos uma outra idéia
das coisas importantes.
Atze e eu éramos como irmãos. Ele era o meu
irmão mais velho. Andávamos sempre de braços
dados, o que me dava a sensação de estar protegida.
Atze tinha dezesseis anos, era aprendiz de vidraceiro,
e seu trabalho era, para ele, uma verdadeira merda.
Ele tinha uma idéia bem clara sobre aquilo que deve
ser uma moça "legal". Para lhe agradar mudei de
penteado e comprei numa loja de roupas usadas um
casaco (ele adorava casacos). Era um máxi, com uma
abertura que ia até a bunda. Não imaginava mais a
vida sem Atze.
Também já não voltava para casa às cinco da
manhã. Quando o Sound fechava, permanecia com a
turma. Aterrissávamos juntos e passávamos toda a
manhã a badalar pela cidade. Íamos a exposições, ao
Zoo, ou ao Kurfürstendamm.
Às vezes ficávamos juntos o domingo inteiro.
Contei à minha mãe a história de Kessi, mas inventei
novas amigas na casa de quem ela acreditava que eu
dormia. Tive sempre uma enorme imaginação quando
se tratava de contar à minha mãe onde e como
passava os meus fins de semana.
Durante a semana continuava a me encontrar
com a antiga turma do Centro de Jovens, mas ficava
sempre de lado, com ares misteriosos. Algumas vezes
contava minhas aventuras no Sound. Eu acho que eles
me admiravam. Que eu já dera mais um passo para
dentro da merda total, ainda não sabia. E muito
menos ainda que, dentro de muito pouco tempo, a
maior parte deles também me seguiria.
No Sound havia todo tipo de drogas, e eu tomava
de tudo, menos heroína: Valium, Efedrina,
"Mandrakes", etc. E ainda, é claro, fumava maconha
paca. Pelo menos duas vezes por semana, tirávamos o
maior barato. Engolíamos estimulantes e barbitúricos
aos montes: tudo isso devia provocar uma guerra no
organismo, e assim tínhamos sensações incríveis.
Podia-se escolher o estado de espírito: bastava tomar
maior ou menor quantidade de estimulante ou de
tranqüilizante. Quando queria fazer uma verdadeira
festa no Sound, quando queria mesmo desafogar,
carregava na Efedrina. Se queria ficar tranqüila, assim
na minha, ou ver um filme no cinema do Sound, me
enchia de Valium e "Mandrake". Durante algumas
semanas fiquei nas nuvens, feliz. . . Mas isso durou
até aquele sábado horroroso. Estava chegando ao
Sound quando encontrei Uwe, um cara da turma, na
escada. Ele me disse: "Você sabe que Atze deixou seu
trabalho?" Silêncio. E disse ainda: "Agora ele vem aqui
todas as noites". Percebi que Uwe tinha uma maneira
esquisita, e saquei imediatamente: devia haver outra
menina na história.
Perguntei: "O que está acontecendo?" E Uwe
respondeu: "Ele tem uma noiva, Moni".
Que choque! Ainda tinha uma esperança! Podia
não ser verdade. Desci até a discoteca. Atze lá estava,
sozinho. Nada havia mudado, ele me beijou, e depois
foi guardar minhas coisas junto com as dele, na
portaria. No Sound era preciso sempre guardar bem as
coisas, senão nos roubavam. Moni chegou um pouco
mais tarde. Eu nunca tinha prestado muita atenção
nela. Sentou-se, naturalmente, com a gente, pois fazia
parte da turma. Fiquei um pouco de lado e a observála.
Ela era muito diferente de mim, baixinha, gordinha,
sempre sorrindo. Com Atze era assim, maternal...
Comecei a pensar: "Não vai me chutar por causa
dessa gorda idiota". Mas fui obrigada a reconhecer que
ela tinha um rosto muito bonito e lindos cabelos loiros
e compridos. Falei comigo mesma: "Talvez ele tenha
necessidade de uma menina assim maternal e sempre
de bom humor". Uma outra suspeita: "Atze tem
necessidade de alguém que queira dormir com ele.
Esta Moni... é bem seu gênero".
Estava bem lúcida. Aliás, nessa noite eu não havia
tomado nada. Quando não suportei mais vê-los juntos,
fui para a pista de dança para aliviar o sufoco. Quando
voltei eles tinham desaparecido. Procurei-os por toda
parte correndo como uma louca. Encontrei-os no
cinema abraçados... Não sei como consegui ir procurar
os outros amigos da turma. Alguém entendeu
imediatamente o que estava acontecendo comigo:
Detlef. Ele me abraçou. Eu não queria chorar. Sempre
achei terrivelmente idiota chorar na frente do bando.
"Por que idiota?" Não sei. . . Mas, quando senti que
não podia mais conter as lágrimas, corri para fora.
Atravessei a rua e fui me esconder no jardim em
frente ao Sound. Chorei como Madalena. De repente,
Detlef estava ao meu lado. Estava muito ocupada
comigo mesma para atinar com o significado de sua
presença. Só mais tarde avaliei como foi bonito, da
parte dele, ter saído à minha procura. Não queria mais
rever Atze, olhá-lo, depois de ter chorado na frente de
todo mundo por causa dele. Mas Detlef me levou de
volta ao Sound. Precisava voltar de qualquer jeito,
pois era Atze quem guardava as minhas coisas. Voltei
a mim, e decidi ir até o cinema reencontrá-lo. Mas não
tive coragem. Detlef, que não me largara, se
encarregou de fazê-lo.
Eram quase duas horas. Havia perdido o último
metrô. Plantada na porta do Sound, não sabia para
onde ir. Morria de vontade de me drogar. Tinha
necessidade, mas não tinha um puto tostão. Aí passou
um cara do bando do Centro de Jovens, Pantera. Sabia
que Pantera vendia LSD e que tinha sempre boa
mercadoria. Pedi-lhe que me desse o suficiente para
uma "viagem". Ele me passou um comprimido de
excelente qualidade, sem mesmo me perguntar por
que eu tinha tanta necessidade numa hora daquelas.
Engoli a coisa e desci outra vez para dançar.
Dancei durante pelo menos uma hora, me
descabelando como uma louca. Mas não senti nenhum
barato. Achei que Pantera havia me enrolado.
Felizmente naquela noite alguns do Centro de Jovens
estavam também no Sound. Falei com Piet da minha
história com Atze. Ele também havia tomado LSD e,
naquele momento, pensava em outra coisa.
Contentou-se em me dizer: Esquece isso, minha
filha, não esquenta e outras fórmulas do gênero.
Enquanto comia um pudim de baunilha, dizia comigo
mesma: "A gente está sempre só. A vida é uma
bosta". Fui levar o potinho do pudim para recuperar o
depósito no Sound pagava-se depósito por qualquer
recipiente, para evitar roubo , e de repente é isso aí,
é como um raio, eu caí levando comigo o banco.
Levantei e voltei a dançar até a hora de fechar. Lá fora
encontrei o bando incluindo Atze e Moni. E nem me
toquei com isso. Atze levou Moni para sua casa. Nós
fomos em direção ao Zoo. Alguém sugeriu ir ao
Europacenter, onde acabamos indo à pista de
patinação. A noite estava fresca, chovera e havia
muita água em cima do gelo. Eu escorreguei nessa
água imaginando andar sobre o mar. Escutei um barulho
de vidro quebrado: os meninos tinham atacado a
vidraça do caixa. Um deles passou pelo vidro
quebrado, abriu a gaveta e nos jogou pacotes de
moedas. Antes que me tivesse dado conta, todo
mundo começou a correr. Os meus saltos altos me
atrapalharam. Caí simplesmente deitada sobre o gelo.
Fiquei toda molhada. Detlef me esperou e me deu a
mão. Quando chegamos diante do Café Kranzler,
dividimos a grana. Cada um tinha direito a uma parte.
Achei genial. Ganhei dois pacotinhos de moedas de
cinco marcos. Todo mundo estava louco de alegria.
Não tanto pelo dinheiro, mas porque dribláramos os
dois guardas particulares que vigiavam o Europacenter
à noite. Havia muito tempo que eles estavam de olho
na gente. As moedinhas de dez Pfennige a gente não
dividiu. Jogamos todas pro ar. Caiu uma chuva de
moedas de dez Pfennige na frente do Café Kranzler.
Fomos para a Estação Zoo, onde ainda havia um
boteco aberto. Tive má impressão. Era a primeira vez
que punha os pés na Estação Zoo. Era nojento ver
crianças deitadas no vômito, bêbados por todos os
cantos. Eu não imaginava que dentro de alguns meses
também fosse passar todas as minhas tardes nesse
lugar.
Lá pelas seis horas decidi voltar para casa. Já na
cama quase tive um freak out (Em inglês no original:
"alucinação". (N. do E.)), pela primeira vez na minha
vida. Na parede eu tinha um pôster representando
uma negra fumando um baseado. No canto inferior
direito havia uma pequena mancha azul, que ia se
transformando numa más cara deformada, num
verdadeiro Frankenstein. Consegui, com muito
esforço, já assim numa pior, concentrar meu
pensamento noutra coisa.
Acordei ao meio-dia, toda dura, insensível, como
morta. Tudo no que conseguia pensar era: "Como
você deve ser feia, para o seu primeiro namorado
largá-la assim tão depressa". Fui ao espelho, e quando
me vi odiei-me. Ainda no dia anterior achava meu
rosto tão legal, tão misterioso, exatamente o rosto de
uma menina super descontraída. E agora estava com a
cara abatida, as olheiras negras fundas sob meus
olhos, estava cheia de espinhas. Aí pensei:
"Christiane, o Sound acabou. Você não pode mais
aparecer para Atze e seu bando". Nos dias seguintes
me esforcei para matar em mim todos os sentimentos
pelos outros. Não tomei mais comprimidos, nem LSD.
Fumava baseados o tempo todo e ainda tomava chá
com maconha o dia inteiro. Depois de alguns dias
estava legal outra vez. Conseguia não amar mais
ninguém a não ser a mim mesma. Tive a impressão de
que dominava meus sentimentos. Não queria mais
retornar ao Sound.
O sábado seguinte àquele foi, talvez, o mais longo
de toda a minha existência. Fiquei em casa. Era a
primeira noite de sábado que passava em casa havia
muito. Não fui ao Sound. Não conseguia assistir à
televisão, tampouco dormir. E não tinha droga
suficiente para me dopar. Percebi que já não sabia
mais viver sem o Sound e sem as pessoas que o
freqüentavam. Sem elas minha vida tornara-se
completamente sem sentido.
Foi então que comecei a ficar feliz só em pensar
na sexta-feira que se aproximava, sem me dar conta
de que, na realidade, o que eu queria mesmo era
retornar ao Sound. Passei a semana bolando
penteados diferentes, até que decidi não mais me
pentear. Achava que passando a andar descabelada
isso me daria um ar mais misterioso.
Na sexta, tudo recomeçou. Engoli alguns
comprimidos de Valium com cerveja e ainda mandei
uns "Mandrakes" para dentro. Tudo isso antes de
retornar ao Sound. Cheguei à conclusão de que assim
não temeria um reencontro com Atze, muito menos
com a turma. Agora nada mais fazia diferença. Peguei
emprestado um grande chapéu jeans, sentei-me à
mesa, apoiei a cabeça sob o chapéu e cochilei durante
quase toda a noite.
Quando acordei Detlef havia levantado o chapéu e
acariciava meus cabelos. Ele me perguntou o que eu
tinha.
Respondi: Nada. Mostrei-me distante, mas
achei lindo que ele se preocupasse assim comigo. No
fim de semana seguinte ficamos todo o tempo juntos.
Agora tinha um outro motivo para ir ao Sound: Detlef.
Não era aquela paixão como foi com Atze. No princípio
só ficávamos juntos no Sound. Batíamos longos papos.
Nos entendíamos às mil maravilhas, mas era muito
diferente do que vivi com Atze. Nenhum de nós dois
era superior, nem procurava impor seu ponto de vista
ao outro. Com Detlef eu podia falar de tudo sem medo
que ele viesse a se utilizar das minhas fraquezas.
Aliás, eu o achei simpático desde o nosso primeiro
encontro, mas não era um tipão como Atze. Detlef era
muito bonitinho, muito bebê. Entretanto, percebi,
pouco a pouco, que minha amizade com ele me dava
muito mais tranqüilidade do que minhas relações com
Atze. Defendia-me, pois não queria nunca mais ficar
dependendo de um rapaz. Mas, a cada semana que
passava, amava-o mais. E um dia fui obrigada a
reconhecer que estava apaixonada pra valer.
Tornei-me mais calma. Isso deveu-se também ao
fato de não tomar, quase nunca, estimulantes, mas
cada vez mais tranqüilizantes. Perdi toda a minha
vivacidade. Já quase não dançava. Só ficava um pouco
agitada quando não conseguia Valium para tomar.
Em casa, as coisas também começavam a
melhorar. O relacionamento com minha mãe e seu
companheiro tornara-se mais agradável. Não discutia
com eles, não lhes dava respostas malcriadas; enfim,
desistira de brigar. Havia chegado à conclusão de que
nada iria mudar mesmo; então, para que esquentar?
Com isso percebi que as coisas ficavam muito mais
fáceis.
No Natal de 1975, com treze anos de idade,
pensei ter, graças à minha resignação, conseguido
estabelecer com minha mãe relações suficientemente
descontraídas para que ela pudesse engolir pelo
menos parte da verdade. Contei-lhe, então, que nem
sempre dormia na casa de Kessi. E que, quando perdia
o último metrô, passava a noite toda no Sound. É claro
que sua reação foi muito violenta. Deu-me a maior
bronca, aos berros. E eu então lhe disse que era
melhor passar a noite, de vez em quando, numa
discoteca e voltar em seguida numa boa para casa, do
que fugir de casa e andar por aí, como tantas meninas
do conjunto Gropius. E também lhe disse que era
melhor ela saber onde eu estava do que escutar
muitas mentiras. Ela engoliu minha história.
Na verdade, não tinha mais vontade de contar
minha vida para minha mãe, mas era um saco ter de
mentir o tempo todo e, além disso, tinha cada vez
mais dificuldades para inventar histórias plausíveis. Foi
exatamente por causa disso, por não ter encontrado
nenhum pretexto para passar o Natal e o Ano-Novo no
Sound, que parti para uma "confissão" a minha mãe.
Ela permitiu que eu saísse todas as noites no período
das festas de fim de ano. Fiquei até surpresa. É
verdade que lhe falei que o Sound era um lugar
bastante conveniente, que um adolescente não corria
nenhum perigo e, além disso, que todos os meus
amigos estariam lá, etc., etc., etc. Além do mais, eu a
fiz compreender que seria bom para ela me deixar
desabafar uma vez por semana, porque assim ficava
mais tranqüila em casa.
Entretanto, no Sound, a barra começava a ficar
cada vez mais pesada. A heroína chegou como uma
bomba. Também na nossa turma era comum o papo
sobre a H, só se falava nisso. No fundo, todos eram
contra, pois já haviam presenciado muita gente
destruída pela heroína. Mas, pouco a pouco, cada um
ia experimentando a sua primeira picada, e a maioria
ficou na da H. A verdade é que a heroína destruiu a
nossa turma. Aqueles que a utilizavam passaram,
imediatamente, para uma outra.
A mim, a heroína inspirava um verdadeiro horror.
Quando se falava nessa coisa, eu me conscientizava
dos meus treze anos. Por outro lado, tinha cada vez
maior admiração pela turma que se picava. Eles
passaram a ser os "seres superiores" para mim. O pior
é que eles olhavam para nós, viciados em maconha e
tranqüilizantes, com o maior desprezo. Haxixe, para
eles, era droga para bebês. Isso, de uma certa forma,
me deprimia, pois acreditava que jamais entraria na
"cena". Não haveria, portanto, mais degraus a subir;
eu sabia perfeitamente bem que a heroína era o fim, o
fundo do abismo, e tinha verdadeiro pavor dessa
droga.
Para mim dava no mesmo o bando se desfazer;
eu tinha Detlef. Entre ele e mim as coisas estavam
cada vez melhores. Um domingo, no início de 1976,
levei-o a minha casa. Sabia que minha mãe e seu
companheiro estavam ausentes. Cozinhei para Detlef,
preparei-lhe um almoço de verdade. Sentamo-nos à
mesa e comemos nosso almoço dominical como um
verdadeiro casal. Eu achei isso um treco genial.
Depois disso só pensava em Detlef durante toda a
semana. Esperava impaciente pela sexta-feira e pelo
momento de revê-lo no Sound, para onde ia, toda
feliz, sem ter tomado nada. Certa vez, Detlef estava
com uma garota que era um lixo. Sentei-me ao lado
deles, mas Detlef mal me olhava. Estava ligado em
outra coisa. Durante um segundo pensei que tudo
fosse recomeçar: o mesmo que com Atze. Mas era
uma idiotice, seria o máximo ele me deixar por causa
daquela loura disforme.
Aliás, eles não se falavam, apenas trocavam
algumas frases desencontradas, que me pareciam sem
nenhum sentido. A única coisa que entendia é que se
tratava de heroína. E, de repente, saquei: Detlef
queria heroína ou então era a garota que estava
tentando passá-la. Entrei em pânico. Gritei, gritei
mesmo, literalmente: Merda, meu caro, você está
completamente louco! Você tem dezesseis anos! Não
vai se picar!
Ele parecia não escutar. Continuei: Engula o
suficiente para três viagens de uma só vez, eu procuro
pra você, mas não seja cretino, eu te suplico. E eu
lhe supliquei pra valer. Ele nem por isso reagiu. E foi
então que cometi um erro monumental. Depois pensei
muito nisso. Fiquei completamente descontrolada e
recomecei a gritar: Se você tomar H vai ser o fim
entre nós dois. Você pode se mandar. Não quero mais
te ver. E aí me levantei e fui dançar.
Agi como uma idiota. Não deveria nunca ter feito
esse escândalo. Deveria ter esperado, quando
estivéssemos sozinhos, para falar com calma. Eu tinha
influência sobre ele. E o pior foi tê-lo deixado só,
porque ele já estava fora de si.
Duas ou três horas mais tarde, alguém me contou
que Detlef e Bernd, seu melhor amigo, tinham se
picado. Eles nem ao menos cheiraram primeiro, se
picaram diretamente.
Reencontrei Detlef no meio da noite. Ele me
sorriu, um sorriso que parecia vir de muito longe.
Parecia feliz. Não sentia necessidade de falar comigo.
E eu não queria ir ao seu encontro. Foi ainda pior do
que na noite em que perdi Atze. Detlef partira, partira
para um mundo que não era o meu. Num golpe só,
por causa de um dedo de líquido numa seringa, não
havia mais nada em comum entre nós.
Continuei a freqüentar o Sound. Detlef logo
arranjou uma outra namorada. Ela se chamava Angie,
era horrorosa e sem coração. Constatei que
simplesmente eles não tinham nenhum contato. Nunca
vi Detlef conversar com ela. Algumas vezes ele vinha
me ver, mas se comportava como um estranho. Em
geral, vinha somente quando precisava de cinco ou
dez marcos para pagar uma picada. Quando tinha, eu
lhe dava.
As manhãs de domingo tornaram-se insípidas.
Completamente arrasada, arrastava-me até o metrô e
pensava: "Tudo isso é mesmo uma grande merda".
Sentia-me totalmente perdida. Não sabia por que ia ao
Sound, não sabia por que me drogava, não sabia o
que fazer da vida; enfim, eu não sabia de mais nada.
A maconha, também, já não me satisfazia mais.
Quando me afastava da droga, sentia-me cada vez
mais isolada, incapaz mesmo de me comunicar com
quem quer que fosse. Mas era preciso conversar com
alguém, e, como não tinha mais Detlef, cada vez eu
tomava maior quantidade de comprimidos.
Num sábado, como tinha grana, fui longe demais.
Como estivesse com o moral completamente a zero,
engoli dois Captagon, três Efedrina e alguns
comprimidos de cafeína. Para ajudar a descer tudo
isso, mandei cerveja junto. Cheguei na "alta", mas
ainda não me sentia legal. Então enfiei pela garganta
adentro Mandrix e uma boa quantidade de Valium.
Não sei bem como consegui chegar a casa. Em
todo caso, sei que caí em qualquer ponto entre o
metrô e o lugar onde moro. Vi uma escada na porta de
uma loja, me arrastei até lá e ali me encolhi. Depois
de pouco tempo, consegui me levantar e andar de um
ponto de apoio ao outro. De um poste a uma árvore,
de uma árvore ao próximo poste e assim por diante. O
trajeto parecia interminável, mas era preciso que eu
fosse até o fim. Do contrário acabaria morrendo ali na
rua. O pior era a dor no peito. Tive a impressão de que
alguém me enterrava um punhal no coração. Na manhã
do dia seguinte, portanto segunda-feira, minha
mãe não conseguiu me acordar. E, à tarde, quando
voltou do trabalho, eu ainda estava deitada, imóvel.
Várias vezes ela me forçou a tomar umas colheres de
mel. Foi só na terça-feira, depois do almoço, que
consegui me levantar. Disse à minha mãe que tinha
apanhado uma gripe e que estava com a pressão
baixa. Na verdade isso acontecia sempre comigo. E
ainda expliquei que vários alunos do colégio estavam
com o mesmo problema, talvez pela puberdade e pelo
crescimento rápido. Queria evitar a qualquer preço que
ela chamasse o médico, pois temia que ele percebesse
o que acontecia comigo. Ela realmente não o chamou,
parecia sempre satisfeita com as minhas explicações.
Estava de saco cheio desses comprimidos. Não
tomei mais nada até o outro sábado. Sentia-me um
trapo.
Sábado, no Sound, decidi oferecer-me uma
"viagem". Foi um completo horror. Pela primeira vez
tive um verdadeiro freak out. A máscara de
Frankenstein, que saía do ponto azul, retornava.
Depois tive a impressão de estar perdendo todo o meu
sangue. Essa sensação durou horas. Não podia mais
andar, nem falar. Cheguei sem saber como à sala de
cinema do Sound. Fiquei cinco horas numa poltrona,
sentindo que estava perdendo todo o sangue.
Já não tinha nada: nem comprimidos nem LSD. E
fazia algum tempo que não tinha mais vontade de
fumar maconha. A não ser um Valium, me mantive
limpa durante quase três semanas. Foi uma época de
completa merda. Mudamo-nos para Kreuzberg, bem
perto do Muro. O bairro era feio, mas o aluguel ali era
mais barato. Levava meia hora de metrô para chegar à
escola no conjunto Gropius. Em compensação, estava
bem perto do Sound.
O Sound sem droga era triste. Não acontecia
absolutamente nada. Mas uma manhã, quando ia
pegar o metrô, vi que estavam colocando por todos os
lados posters lindamente pop. Podia-se ler: "David
Bowie vem a Berlim". Eu não podia crer: David Bowie
era o nosso super ídolo, o mais legal de todos, sua
música era a melhor. Todos os rapazes queriam ser
iguais a ele. E eis que David Bowie vinha a Berlim.
Minha mãe conseguiu, através do seu trabalho,
duas entradas grátis para o concerto. Foi engraçado
como imediatamente eu soube a quem oferecer a
segunda: Frank. Por que ele? Naquela época eu nem
pensei nessa questão. Frank fazia parte da velha
turma do Sound, e era o próprio David Bowie. Ele até
pintou os cabelos de ruivo. Talvez tenha sido por isso
que eu o escolhi.
Mas Frank foi também o primeiro a se picar. O
primeiro a ter dependência física da H. Antes, nós o
chamávamos "Pintinho". Aí passamos a chamá-lo de
"Macbeth" porque parecia um cadáver ambulante.
Como quase todos os rapazes da turma, ele tinha uns
dezesseis anos, mas era extraordinariamente
perspicaz para a sua idade. Frank estava acima de
tudo, por isso não precisava nunca mostrar ares
superiores, mesmo que fosse com uma menina maconheira
como eu.
Portanto, escolhi para me acompanhar ao show
de David Bowie, uma noite que considerava um dos
grandes acontecimentos da minha vida, justamente
um toxicômano, um tipo drogado até os ossos. Na
verdade, eu não avaliava bem a importância disso
quando propus tão espontaneamente essa entrada a
Frank. Vivia mudando inconscientemente. Acho que,
sem perceber, mudei minha atitude em relação à H no
decorrer dessas semanas, quando os comprimidos, a
maconha e o LSD não me traziam mais nada. Em todo
caso, as barreiras que me separavam dos
toxicômanos, aparentemente, haviam sido destruídas.
No dia do concerto marquei um encontro com
Frank na Hermannplatz. Nunca tinha reparado como
era comprido e magro. Ele me explicou que não
pesava mais do que sessenta e três quilos. Acabara de
se pesar no Centro de Transfusão de Sangue. Frank
ganhava parte do dinheiro de que necessitava para
comprar droga vendendo seu sangue. E eles
compravam, apesar de ele ter uma aparência
macabra, de seus braços estarem crivados de picadas:
é que os toxicômanos freqüentemente têm icterícia.
Quando já estávamos no metrô, lembrei-me de
que havia esquecido meu Valium. Disse a Frank:
Droga! Tinha que tê-lo trazido, para alguma
eventualidade durante o concerto... Na verdade, eu
já havia engolido uma boa quantidade de Valium em
casa. Não para ficar dopada, mas o suficiente para
curtir o show numa boa.
Frank ficou alucinado com o que lhe disse e queria
de todas as formas que retornássemos.
Perguntei-lhe: Por quê? Você também é viciado
no Valium? Mas ele não parava de repetir que
queria ir buscar. Olhei-o com mais atenção, e então,
entendi. Suas mãos tremiam, ele estava cold turkey.
"Turkey" é uma palavra inglesa que significa peru.
Quando o peru fica nervoso ele bate as asas. Por isso
usa-se o termo "peru gelado" para designar as
manifestações de crise de privação nos viciados
quando o efeito de uma picada se dissipa.
Expliquei a Frank que não podíamos voltar para
casa porque chegaríamos atrasados ao concerto. Ele
disse que não tinha droga, nem dinheiro, que por
causa do show não tivera tempo de se reabastecer.
Seria uma merda ficar em crise durante o show de
David Bowie sem ter, pelo menos, Valium. Frank,
àquela altura, já não me parecia mais tão superior. Eu
já tinha visto uns e outros em crise de privação, mas
nunca tinha presenciado tudo isso tão de perto.
No local do show, a Deutschlandhalle, o clima era
genial. O público, gente bem descontraída, era
composto de apaixonados por Bowie. Ao nosso lado,
soldados americanos fumavam um cachimbo de
maconha. Bastou a gente dar uma olhada e eles nos
emprestaram. Frank tragava como um louco. Isso não
impedia que ele ficasse cada vez pior.
Quando David Bowie começou, foi sensacional.
Exatamente do jeito que imaginei. Fantástico. Mas nos
primeiros acordes de It is too late me inquietei. Aí
fiquei, de repente, na pior. Já nas últimas semanas
sem saber como, nem por quê esta música me dava
uma imensa tristeza. Acho que ela descrevia
exatamente a minha situação. Bem que eu estava
precisando de Valium...
No fim do concerto, Frank mal se mantinha em
pé. Ele estava completamente cold turkey.
Encontramos Bernd, o amigo de Detlef. Ele próprio,
antes do concerto, havia se picado, e nos disse que
precisávamos fazer alguma coisa por Frank. Ele
também curtiria outra picada.
Bernd possuía, ainda, duas "viagens".
Conseguimos vendê-las rapidamente por doze marcos.
O que faltava eu deveria esmolar. Eu era mestra nisso.
No Sound, grande parte do dinheiro que precisava
para a droga, esmolava-o. E agora precisávamos, no
mínimo, de vinte marcos. Por menos do que isso não
dava para se comprar nada na "cena". Na frente da
Deutschlandhalle foi facílimo. Entre as pessoas que
saíam do show muitas tinham dinheiro e ainda não
estavam cheias de serem perturbadas pelos viciados.
Eu lhes dirigia o meu blá-blá-blá habitual: Não
tenho dinheiro para o metrô. E as moedas caíam
cada vez mais no meu saco de plástico. Em pouco
tempo consegui o suficiente para duas picadas, pois na
época ainda era relativamente barato. Bernd foi
comprá-las.
De repente, ocorreu-me um pensamento: "Você
que recolheu o dinheiro deveria pelo menos provar.
Ver se esse negócio é realmente tão bom a ponto de
os viciados terem às vezes um ar tão feliz depois da
picada". Não pensava em mais nada além disso. Não
percebia que nesses últimos meses eu me preparava,
inconscientemente, para passar à heroína. Não
percebi, naquele momento, que estava deprimida. Que
a música It is too late tinha me abalado. Como as
outras drogas não me satisfaziam mais, a
conseqüência inevitável era a H. Eu só pensava que
não tinha vontade de ver Frank e Bernd se mandarem
numa boa e eu ficar sozinha na pior. Eu lhes disse que
também queria provar. Frank não tinha forças nem
para falar, mas ficou furioso. Ele disse: Você não vai
fazer isso. Você não tem nenhuma idéia do que seja
isso. Se o fizer, em pouco tempo vai ficar como eu
estou agora. Você vai ficar Macbeth. Ele sabia muito
bem que o apelidáramos de Macbeth.
Portanto, eu não tinha nada da menininha
pervertida por um drogado ou por um revendedor
sacana. É o gênero de história que a gente lê nos
jornais, mas eu não conheço ninguém que se
enquadre nela, ninguém "drogado apesar de não
querer". A maioria dos jovens passam sozinhos para a
heroína quando estão maduros para isso. E eu estava.
. .
A bronca escandalosa de Frank só reforçou minha
decisão. Ele estava em plena crise de privação, não
era mais o cara legal e superior. Era uma pobre
criatura que tinha necessidade de mim, e eu não ia
aceitar, portanto, que me desse ordens. Então lhe
respondi: Em primeiro lugar, esta droga é minha,
quer dizer, quase toda. Fui eu que recolhi o dinheiro.
Em segundo lugar, pare de dizer besteiras: eu não vou
ficar como você, sei me controlar. Vou só experimentar
para ver como é, depois não toco mais nela.
Não sabia até que ponto a crise de privação
deixava as pessoas enfraquecidas. Frank parecia muito
impressionado pelo meu discurso, não abriu mais a
boca. Bernd balbuciou ainda alguma coisa, mas nem
ouvi. Disse-lhes bem claro que se eles não me
deixassem experimentar, o que teriam a fazer era me
dar o que me pertencia. Fomos nos esconder na
entrada de um prédio, e Bernd dividiu a H em três
partes iguais. Aí, nesse momento, tive uma vontade
terrível dessa "coisa". Sem nenhuma hesitação, sem
má consciência, só tive uma idéia: experimentar
imediatamente para me libertar de uma vez por todas.
Já fazia um bom tempo que isso não acontecia
comigo, mas tive medo da picada. Disse: "Eu não vou
me picar, vou cheirar". Bernd explicou o que era
preciso fazer, mas nem foi preciso, de tanto ouvir falar
eu já sabia de cor.
Peguei minha dose e usei! Era amargo e irritante.
No início foi tudo o que senti. Procurei não vomitar. E
depois a coisa começou bem depressa. Sentia os
membros pesados e ao mesmo tempo terrivelmente
leves. Fiquei muito cansada, e foi aquele prazer. Todos
os meus problemas desapareceram. It is too late não
significava mais nada. Nunca me sentira tão bem.
Estávamos no dia 18 de abril de 1976, faltava um mês
para os meus catorze anos. Nunca esquecerei essa
data.
Frank e Bernd foram se picar no carro de um
drogado. Eu cheguei antes deles ao Sound; já não era
problema estar sozinha. Ao contrário, achava isso
bem legal. Sentia-me forte. Sentei-me num
banquinho. Astrid, que na época era minha melhor
amiga, chegou, me olhou e disse gritando:
Dig, você tomou H? Que pergunta idiota!
Explodi:
Desapareça! Ande logo, de-sa-pa-re-ça! Não
sei por que fiquei assim, nesse estado de fúria. Frank
e Bernd chegaram. Frank voltou a ser o cara super
legal. Detlef não estava no Sound. Tinha sede, fui
buscar um suco de frutas, só bebia isso durante a
noite. O álcool me era insuportável.
Às cinco horas da manhã Bernd propôs uma ida a
sua casa para um chá. Fomos. Agarrei o braço de
Frank, toda feliz. O suco de frutas revirava
terrivelmente na minha barriga, tive vontade de
vomitar. Vomitei enquanto caminhava, mas não liguei,
nada me importava. E os outros? Eles pareciam nem
perceber.
Tive a impressão de ter encontrado uma nova
família, assim, a mais bonita possível. Não disse uma
palavra. Senti que com esses dois amigos poderia
conversar, falar de tudo. A heroína nos transformara
em irmãos. Éramos iguais, poderia lhes contar os
meus pensamentos mais secretos. Depois daquelas
semanas de desespero, achei que jamais fora tão feliz.
Dormi com Bernd na sua cama. Ele não me tocou.
Éramos irmão e irmã, irmão e irmã na heroína. Frank
dormiu no chão, a cabeça encostada na poltrona. Ficou
assim até as duas da tarde, depois se levantou. Estava
em nova crise de privação.
Tive coceiras no corpo todo. Fiquei nua e me cocei
com a escova de cabelos. Cocei até sangrar,
principalmente as pernas. Isso não era surpresa para
mim. Eu sabia que os toxicômanos se coçam. Era por
aí que eu os reconhecia no Sound. As pernas de Frank
estavam em carne viva, nem um pedacinho de pele
sã. Ele não usava a escova de cabelo, usava seu
canivete.
Antes de sair ele me disse: O que você me deu
eu devolvo amanhã. Portanto, era evidente para ele
que eu me tornara uma viciada. Eu entendi sua
indireta e respondi na maior calma: Não, deixe.
Daqui a um mês estará bem.
Tornei a dormir calma e feliz. Voltei para casa à
noite. De vez em quando um pensamento aflorava:
"Merda, você só tem treze anos e já está nessa de H".
Mas cortava-o imediatamente, sentia-me muito bem
para pensar nisso. No início nunca há crise de
privação. Fiquei muito legal durante toda a semana.
Em casa, nem uma discussão. Na escola levava tudo
com muita calma, estudava um pouco e conseguia
boas notas. Nas semanas seguintes até a minha média
aumentou. Senti que me reconciliava com a vida, com
as pessoas, com as coisas.
Durante a semana fui ao Centro de Jovens.
Quatro amigos também haviam passado ao uso da H,
como eu. Sentia-me do lado deles, éramos cinco,
agora, a nos afastar rapidamente dos outros. Era cada
vez maior o número de viciados no Centro de Jovens.
A heroína caiu como uma bomba em cima do conjunto
Gropius.
Jürgen Quandt, pastor responsável pelo
centro sócio-cultural Centro de Jovens
O Centro de Jovens foi, durante anos, o principal
ponto de encontro dos jovens do conjunto Gropius e
do quarteirão Neukõlln. Recebia toda noite perto de
quinhentos adolescentes, até o mês de dezembro de
1976, quando o fechamos. O consumo de heroína fazia
estragos, e nós esperávamos que o fechamento do
Centro chamasse a atenção dos serviços públicos
sobre essa situação catastrófica.
Nós, os educadores, fomos surpreendidos pela
rapidez com que o uso de drogas pesadas se expandiu
no conjunto Gropius. Na época do movimento
estudantil, discutimos muito sobre drogas leves, sobre
seu papel limitativo na tomada de consciência do meio
ambiente. Mas eis que, em alguns meses, trinta ou
quarenta jovens do nosso Centro se meteram com
drogas pesadas. A coisa aconteceu como se as nossas
tentativas de alerta, nosso esforço para persuadir os
jovens do perigo, argumentando no lugar de recorrer a
medidas disciplinares, tivessem sido vistos como um
convite a ir mais longe e como o reconhecimento da
nossa impotência na luta contra a droga.
Nosso trabalho no Centro de Jovens nos levou
rapidamente a constatar, mesmo que as autoridades
se neguem a admitir, que a epidemia de drogas não
está regredindo. Ao contrário, o problema atinge,
quantitativa e qualitativamente, dimensões
comparáveis àquelas dos Estados Unidos. Os mais
ameaçados hoje em dia são os jovens trabalhadores
sem formação e os jovens desempregados. Nós, os
educadores, a única coisa que podemos fazer é
protestar contra a política de avestruz das
autoridades. O fechamento do Centro pôs às claras
aquilo que muitos teriam preferido deixar nas
sombras. Efetivamente, os serviços públicos de Berlim
tomaram consciência do problema da droga e
começam a se ocupar mais ativamente.
Reabrimos após termos obtido certas concessões:
eram as condições impostas para a reabertura. Um
consultório especializado subvencionado pelo governo
foi criado em Neukõlln e, no conjunto Gropius, um
centro preventivo. Estamos mais bem equipados em
termos de terapia. Mas, dois anos mais tarde, os
problemas da droga não perderam a intensidade,
mesmo considerando que agora lidamos com uma
nova geração de adolescentes. Entre aqueles que
passaram à heroína há dois anos, muitos já estão
mortos.
As condições de vida dos jovens do conjunto
residencial Gropius não melhoraram. Novos problemas
se somaram aos velhos. É cada vez mais comum os
jovens estarem armados e não hesitarem, em caso de
necessidade, em usar as armas. Constata-se também,
freqüentemente, um nacionalismo agressivo
acompanhado de uma propensão a se deixar
influenciar pelo pensamento fascista.
A maioria dos jovens com quem trabalhamos no
Centro pertence a famílias de trabalhadores. Apesar da
melhoria aparente do nível de vida, suas condições de
vida não cessaram de se deteriorar: a escola os
conduz a um stress cada vez maior, uma competição
cada vez mais dura, em salas de aula cada vez mais
superlotadas. Fora da escola, eles conhecem o
desemprego e os conflitos familiares.
Há uma circunstância agravante: nos grandes
conjuntos residenciais, como no Gropius, onde
habitam quarenta e cinco mil pessoas, todos os
problemas se colocam em termos de massa (massa de
jovens, desempregados, fracasso escolar ou conflito
familiar). Além disso, o meio ambiente "natural" não
comporta mais nada de natureza e não oferece,
portanto, as mínimas possibilidades de lazer e
distração. Os mais fracos, crianças, adolescentes e
velhos, ficam mais expostos, sofrendo mais com esse
estado de coisas. No conjunto residencial Gropius,
uma vez terminados os trabalhos de construção, o que
significa que todo o espaço possível de construção foi
utilizado, faltam campo de jogos para crianças,
instalações para o lazer. Não há parques, nem
gramados, nem bosques: nenhum lugar onde as
crianças possam ficar em liberdade e os adultos,
passear.
Esses conjuntos são construídos unicamente em
função da rentabilidade do capital e não das
necessidades dos seres humanos. Assim, foi imposto
aos habitantes daqui um modo de vida cujas supostas
conseqüências tornam-se cada vez mais evidentes.
As dificuldades materiais estão sempre na origem
de muitos conflitos e problemas. Os altos aluguéis, os
preços dos produtos de primeira necessidade, obrigam
homens e mulheres a investir sempre mais energia e
forças vitais no trabalho cotidiano. E nem por isso são
mais felizes ou ficam mais ricos.
A droga é, desde sempre, um dos mais terríveis
meios utilizados para impedir os homens de tomarem
consciência de que são vítimas da evolução da
sociedade. Esta é exatamente a função exercida, há
muito tempo, pelo álcool nas classes trabalhadoras.
Nos últimos decênios outras drogas apareceram:
os psicotrópicos, cujo comércio é legal e um dos mais
rendosos, e os produtos ilegais, como a heroína e a
cocaína. Com efeito, o mais espantoso não é o número
de toxicômanos, mas o número daqueles que, apesar
das enormes dificuldades, recorrem à droga. E isso é
válido talvez sobretudo para os jovens. A sua situação
é tal que o aumento da toxicomania, da delinqüência,
da violência, e a propagação das idéias fascistóides
entre os trabalhadores não tem nada de surpreendente.
***
No primeiro fim de semana após ter tomado
heroína, encontrei Detlef no Sound. Ele caiu em cima
de mim: Você faz cada uma! Você pirou de vez.
Astrid tinha lhe contado.
Respondi: Acalme-se, meu velho. Você é
dependente, mas eu não cairei nessa.
Detlef não conseguia replicar. Ele não estava
legal, estava de bode. Ele ainda não chegara ao
estágio de dependência física, mas tinha grande
necessidade de uma picada. Acabou confessando que
gostaria de comprar um pouco de droga, mas não
tinha dinheiro.
Eu disse: Está vendo, meu caro, proponho que
a gente saia pedindo dinheiro juntos. Ele concordou,
apesar de saber o que eu seria obrigada a fazer. Em
vinte minutos juntava vinte marcos. Detlef conseguiu
um pouco menos, mas era o suficiente para nós dois,
pois ainda tínhamos necessidade de pequenas doses
para nos baratinar. Não nos preocupamos com a
divisão, ela se fez naturalmente. Nessa tarde Detlef se
picou e eu aspirei. Lá se foi minha bela resolução de
não tocar em heroína antes de um mês.
Detlef e eu estávamos juntos novamente. Como
se nunca tivéssemos nos separado e como se estas
semanas em que nos cruzamos no Sound, como dois
estranhos, não tivessem existido. Nem ele nem eu
falávamos disso. O mundo voltou a ser tão belo como
naquele domingo em que cozinhei para ele e
almoçamos juntos.
No fundo, estava feliz que as coisas tivessem
tomado esse caminho. Se eu não tivesse
experimentado heroína, não teria reencontrado Detlef.
Achava que seria uma "viciada de fim de semana".
A gente sempre pensa assim quando começa,
mas nunca vimos alguém que conseguisse cumprir
essa intenção. Ainda ;maginava que pudesse salvar
Detlef, impedi-lo de se tornar um verdadeiro drogado.
Mas eu me satisfazia com essas ilusões.
Ilusões que o meu inconsciente não aprovava.
Não queria ouvir falar de heroína e, se alguém
tentasse fazê-lo, ficava furiosa e aos gritos dizia:
Cai fora. Exatamente como quando dei minha
primeira cheiradinha e Astrid quis me fazer perguntas.
Comecei a odiar todas as meninas de minha idade que
me pareciam estar na mesma que eu. Sentia o cheiro
delas tanto no metrô quanto no Sound: eram garotas
de doze, treze anos, que usavam maconha e comprimidos
e tentavam se vestir como meninas liberadas.
Pensava: "Esta coisinha vai acabar se picando".
Normalmente não sou chata, mas estas meninas me
deixavam realmente agressiva. Eu as odiava. Na época
não percebi que odiava a mim mesma.
Depois de ter aspirado alguns fins de semana
seguidos, parei de fato durante quinze dias. Não sentia
absolutamente nada, imaginava eu. Fisicamente me
sentia como antes. Mas no resto a merda voltou.
Estava novamente na fossa. Não gostava de nada,
recomecei minhas brigas com minha mãe. Isso
aconteceu pouco antes das férias da Páscoa de 1976.
No primeiro sábado daquelas férias estava no
Sound, sentada num banco ao lado da escada. Uma
vez mais eu me perguntava o que estava fazendo ali.
Duas meninas desciam pela escada. Elas tinham uns
doze anos, mas com o sutiã e a maquilagem tentavam
aparentar uns dezesseis. Eu também dizia a todo
mundo, exceto aos meus amigos íntimos, que tinha
dezesseis anos, e também me maquilava para parecer
mais velha. Antipatizei imediatamente com essas duas
garotas, mas, ao mesmo tempo, elas me despertaram
interesse. E não tirava os olhos de cima delas.
Percebi imediatamente que elas procuravam
estabelecer contato, tentavam ser aceitas numa
turma. E a turma de maior prestígio era, para elas, o
bando H, pensei. Elas conheciam Richie, o leão-dechácara
do Sound, o único empregado mais velho,
tinha uns quarenta anos. Ele era vidrado em
menininhas da nossa idade. As duas conversaram com
Richie. Perceberam que eu as observava, e olhavam o
tempo todo para mim. Olhavam porque eu era da
mesma idade delas. Uma delas se aproximou, tinha
uma verdadeira cara de anjo que respirava inocência.
Ela se apresentou: Babsi , e me perguntou se
podia oferecer-lhe uma "viagem".
Uma droga? O que você vai fazer com isso?
Deixe pra lá, esses troços são terríveis. Saboreei
minha superioridade. Era preciso que ela aprendesse a
não se dirigir com essa desenvoltura a alguém que já
experimentara heroína. Ela devia me achar tão
impressionante e tão tranqüila quanto eu achava, há
alguns meses, os caras que estavam mais adiantados
que eu, no caminho da droga. Babsi queria me pagar
um suco de frutas. Foi buscá-lo e disse que voltaria
em seguida.
Nem bem ela tinha saído, a outra se aproximou.
Chamava-se Stella. Queria saber o que Babsi queria
de mim. Respondi: Uma "viagem".
Ela lhe deu dinheiro? Faltam-me cinco marcos
e estou segura de que esta menina os pegou. Isso
era típico de Stella. Passaria a ouvir coisas do gênero
repetidas vezes. Babsi e Stella passariam a ser as
minhas melhores amigas. Até o dia em que Babsi seria
manchete nos jornais: "Morreu de overdose, a mais
jovem vítima da heroína conhecida até então em
Berlim".
Babsi voltou com o suco de frutas. Ela me
perturbava, mas eu gostava dela, com seu ar de anjo
e suas maneiras inocentes. Conversamos. Babsi e
Stella foram expulsas da escola porque matavam
muitas aulas. Elas cabulavam porque tinham entrado
para uma turma onde se cheirava como louco. Agora
tinham acabado de sair de casa e procuravam novas
experiências. Babsi tinha doze anos e Stella, treze.
Convidei Babsi para ir a minha casa na manhã
seguinte. Como ela não tinha nada para vestir, eu lhe
dei duas camisetas e uma calcinha. Ela tirou uma
soneca na minha cama enquanto eu preparava algo
pra comer. Achei-a até simpática. No dia seguinte,
criava um laço de amizade também com Stella. Há
bem pouco tempo, eu era como essas duas meninas.
Sentia-me bem melhor na companhia delas do que na
dos drogados. Elas fumavam erva e tomavam LSD, e
isso as diferenciava um pouco das pessoas que só
pensavam em heroína e só falavam disso. Eu me
contentava com minha cheiradinha de todos os
sábados. Os outros me gozavam por andar com
crianças, mas não dava bola.
Nós três tínhamos muita coisa para conversar.
Tínhamos a mesma espécie de problemas em casa. O
pai de Babsi se suicidara quando ela era ainda uma
criancinha. Sua mãe era modelo, depois de ter sido
dançarina. Seu padrasto era um grande pianista.
Mundialmente conhecido, explicava ela. Ela tinha um
grande orgulho disso. Não se continha de alegria
quando íamos a uma loja de discos e via vários deles
com o nome e a foto de seu padrasto na capa. Mas
esse grande artista parecia não cuidar nem um pouco
dela. Babsi vivia na casa de seus avós, que a haviam
adotado. Eles lhe davam uma vida de princesa. Depois
fui à casa dela: vi seu quarto fantástico, com móveis
estupendos. Ela tinha um toca-discos último modelo e
discos aos montes. Roupas à vontade, quantas
quisesse. Mas não se entendia com sua avó, que era
uma verdadeira megera. Ela bem que gostaria de
voltar à casa da mãe. Foi por isso que fugiu de seu
quarto maravilhoso, estava de saco cheio!
A mãe de Stella também era muito bonita. Stella
gostava muito dela, mas tinha pouco tempo para
cuidar de sua filha. Bebia porque tinha muitas
dificuldades para se virar sozinha. O pai de Stella
morrera havia três anos, em um incêndio. Isso
aconteceu quando Stella tinha dez anos. Stella tinha
uma verdadeira paixão: Muhammad Ali. Ela admirava
sua força. Eu achava que, em suas fantasias, ele era
para ela, ao mesmo tempo, pai e amante.
Nós três estávamos no mesmo barco. Sabia desde
a primeira noite que essas duas meninas terminariam
se picando, o que não me impediu de ficar
sinceramente chocada no dia em que Stella me
solicitou heroína. Tive uma vez mais uma explosão e
comecei a lhe dar broncas: Não toque nesta merda!
Ninguém vai te dar. Eu também vou parar. Isso não
leva a nada.
Pedi aos outros para não darem heroína a Stella.
Mas alguns dias mais tarde ela acabou convencendo
Blacky, um cara da turma do Sound que se tornou sua
transa. Ela começou a cheirar, e é claro que Babsi a
imitou.
Mas elas seriam logo obrigadas a parar: foram
apanhadas numa batida e entregues às suas famílias.
Não as vi durante várias semanas.
Com a chegada da primavera, os dias eram cada
vez mais agradáveis. Estava sempre feliz nos
primeiros belos dias do ano. Isso desde a minha
infância. Andar descalça, tirar a roupa, brincar na
água, ver o jardim florir. Mas nessa primavera de
1976 esperei, em vão, meu habitual sentimento de
felicidade. Pensei: é impossível que a vida não se
transforme em uma coisa mais bela quando o sol se
torna cada vez mais quente. Mas carregava o tempo
todo um monte de problemas sem mesmo saber quais
eram. Quando cheirava, os problemas desapareciam,
mas havia muito tempo que isso não me satisfazia por
uma semana.
No mês de maio festejei meu aniversário. Minha
mãe me deu um beijo e uma nota de cinqüenta
marcos. Este dinheiro ela tirou das economias da casa.
Ela disse que devia comprar algo que me desse
verdadeiramente prazer.
À noite fui à Kurfürstenstrasse e comprei
quarenta marcos de heroína. Nunca tivera tanto de
uma só vez. Depois comprei seis marcos de cigarro
(tornei-me uma fumante inveterada, capaz de acabar
com um maço em duas ou três horas). Sobraram-me
quatro marcos para o Sound.
No Sound encontrei Detlef, que me beijou
carinhosamente e me desejou feliz aniversário. Dei-lhe
também parabéns, pois seu aniversário fora dois dias
antes do meu. Ele estava um pouco triste porque seus
pais não lhe haviam desejado feliz aniversário.
Somente sua avó. Com toda a certeza ele era mais
infeliz que eu. Tentei consolá-lo: Não ligue não,
meu caro. Mas tinha um presente genial para ele:
algo para se drogar. Tinha heroína suficiente para uma
baratinada monstro a dois.
Após nossa pequena festa de aniversário (uma
enorme cheirada para mim e uma boa picada para
Detlef), estávamos verdadeiramente juntos. Até então
Detlef passava muito tempo com seus amigos, e eu
com Babsi e Stella. Dali para a frente, nos
encontrávamos sempre que tínhamos um tempinho
livre. Detlef quase nunca estava ocupado e tinha acabado
de deixar seu trabalho de aprendiz de encanador.
Quando tínhamos dinheiro suficiente, nos
baratinávamos.
Chegaram as férias de verão.
No primeiro dia de férias fomos à praia do lago
Wann com alguns amigos. Uma vez mais estávamos
completamente duros. Aprendi rapidamente como
encontrar mercadorias que poderiam ser
transformadas em grana. Instalamo-nos no bosque, o
canto preferido pelos velhos, pois eles não suportavam
muito o sol.
No início nos contentávamos com coisas para
satisfazer nossas necessidades imediatas:
observávamos as pessoas que iam se banhar,
deixando um cobertor ou uma geladeirinha sem
vigilância. Eu me aproximava e falava alto: Minha
avó não está! Pegava algumas latas de Coca na
geladeirinha. Na outra vez, pegava uma toalha e uma
esteira de praia. À tardinha já havíamos juntado
alguns utensílios e um transistor. Detlef roubou um
relógio.
Pelo transistor consegui cinqüenta marcos, no
Sound. Que jornada! Excitada, disse a Detlef: Puxa
vida, estou cansada de cheirar, vou é me picar.
Detlef protestou sem muita convicção. Cheirar ou
se picar não fazia grande diferença. A única diferença
era que enquanto cheirávamos, não éramos
considerados verdadeiros viciados.
Na Kurfürstenstrasse, nosso vendedor habitual
nos reconheceu de longe. Ele foi a uma rua mais
distante, até um canto tranqüilo. Comprei quarenta
marcos. Estava decidida a tomar minha primeira
picada. Quando apenas cheiramos, partimos
lentamente; mas quando nos picamos, a partida é
como um foguete. Já ouvira alguém da turma comparar
essa diferença com um orgasmo, e eu também
queria prová-la. Sem parar para pensar que mais me
atolaria na merda, decidi experimentar.
Fomos a um banheiro público do lado da
Potsdamerstrasse. Um lugar imundo. Em frente ao
banheiro encontram-se montes de mendigos. Os
bêbados costumam dormir ali. Distribuímos um maço
de cigarro. Eles já sabiam e nos observavam.
Uma menina do Sound, Tina, nos acompanhou.
Detlef tirou seus objetos de um saco plástico: seringa,
colher, limão. Pôs a heroína na colher, juntou um
pouco de água e de suco de limão. Assim, a coisa, que
não era completamente pura, dissolvia melhor. Ele
esquentou a heroína com um isqueiro e encheu a
seringa. Era uma velha seringa descartável. Uma
sujeira repugnante com uma agulha completamente
rombuda. Detlef se picou primeiro e depois foi a vez
de Tina. Depois a agulha ficou completamente
entupida, inutilizável. Ao menos foi o que os dois
disseram. Talvez para me impedir de me picar, mas
minha vontade aumentou.
Um outro viciado também veio se picar no
banheiro. Um cara na pior, no último estágio da
decadência. Pedi-lhe que me emprestasse seus
utensílios. Ele topou. Mas, bruscamente, me repugnou
terrivelmente a idéia de enfiar a agulha na veia. Eu
simplesmente não conseguia enfiá-la, embora
soubesse como, pois já tinha visto os outros o
fazerem, muitas vezes. Detlef e Tina não se
importavam comigo. Fui obrigada a pedir ao cara que
me ajudasse. Claro que ele compreendeu
imediatamente que era minha primeira picada. Sentime
consideravelmente idiota diante daquele viciado
experimentado.
Ele me disse que era nojento, mas pegou a
seringa. Como minhas veias estavam pouco à vista,
teve dificuldade em encontrar uma. Ele tentou três
vezes antes de conseguir puxar um pouco de sangue.
Reclamando, uma vez mais, que achava isso nojento,
me injetou toda a dose.
Parti como um foguete, mas não era assim que eu
imaginava o orgasmo. E logo via um nevoeiro, mal
percebia o que se passava à minha volta e não
pensava em nada. Fui ao Sound, sentei-me em um
canto e bebi um suco de frutas.
Detlef e eu estávamos agora em igualdade.
Estávamos juntos para sempre, como um casal.
Exceto que não dormíamos juntos. Não tínhamos
nenhum contato sexual. Ainda não me sentia bastante
madura para isso, e Detlef aceitou sem muitos
discursos. Também por isso eu o achei formidável. Era
um tipo muito legal.
Um dia, sabia muito bem, dormiria com ele,
estava feliz de nunca ter feito nada com outro rapaz.
Estava segura de que íamos ficar juntos. Saindo do
Sound, Detlef me acompanhou a pé, até minha casa.
Eram duas horas de caminhada. Depois geralmente ele
pegava uma carona para voltar para sua casa. Ele
vivia com o pai.
Conversamos um montão de coisas
completamente loucas. Perdi todo o senso da
realidade. Para mim a realidade era irreal. Não tinha
projetos, mas sonhos.
Minha conversa preferida era imaginar o que
faríamos, Detlef e eu, se tivéssemos bastante dinheiro.
Compraríamos uma casa grande, um carrão, móveis,
tudo de muita classe. Sonhávamos com um monte de
coisas, menos com heroína.
Detlef acabava de ter uma idéia de como se
tornar rico. Ele me disse que um revendedor estava
pronto a lhe dar cem marcos de heroína a crédito:
faríamos pacotinhos que venderíamos a vinte marcos
cada um e teríamos então, imediatamente, cem
marcos de lucro. Com esse dinheiro compraríamos
novamente heroína e dobraríamos nosso capital, e
assim por diante. Achei a idéia genial. Na época,
tínhamos muitas ilusões sobre o tráfico de drogas.
Detlef conseguiu realmente cem marcos de
heroína a crédito. Era uma época em que os pequenos
revendedores estavam em aperto. Não nos
arriscávamos a ir vender na "cena": vendíamos
somente no Sound. Detlef, com seu coração de ouro,
acabava encontrando sempre gente completamente
dura e em crise. Então ele lhes vendia a crédito, e,
naturalmente, não lhe pagavam. Uma parte da heroína
foi embora assim e a outra parte nós mesmos a
consumimos. Logo após não tínhamos mais heroína
nem dinheiro.
O cara que passou a heroína para Detlef ficou
furioso, mas se contentou em dar uns bons gritos.
Sem dúvida nenhuma ele só queria testar a
capacidade de revenda de Detlef. O teste foi
perfeitamente claro: ele não servia.
Durante as três semanas de férias Detlef e eu nos
encontramos todas as tardes. E geralmente partíamos
à caça de dinheiro. Fazia coisas que nunca teria
conseguido fazer antes: roubava adoidada nas grandes
lojas, principalmente objetos fáceis de serem vendidos
no Sound. Dificilmente conseguíamos o dinheiro
suficiente para pagar duas picadas por dia, mas ainda
não tínhamos chegado a esse ponto. Não tínhamos
ainda dependência física, e um dia sem não nos
atemorizava.
Estava programado que passaria a segunda
metade das férias na casa de minha avó, que morava
em um vilarejo de Hesse. Podia parecer estranho, mas
estava louca de alegria, tanto pela idéia de rever
minha avó, como pela idéia de ir ao campo. Por um
lado, não conseguia imaginar passar duas ou três
semanas sem Detlef, alguns dias sem o Sound ou as
luzes da cidade. Mas, por outro lado, estava feliz de
rever jovens que nem sabiam o que era droga, andar
a cavalo, nadar, etc. Com efeito, não sabia mais quem
era eu.
Sem me dar conta, eu me dividi em duas. Duas
pessoas absolutamente diferentes. Escrevia cartas a
mim mesma. Mais precisamente, Christiane escrevia
para Vera. Vera é o meu segundo nome. Christiane
era a menina de treze anos que queria ir à casa da
avó. A menina comportada; Vera, a drogada.
Tão logo minha mãe me pôs no trem, não era
nada mais que Christiane. E uma vez na cozinha de
minha avó, sentia-me completamente em casa, como
se nunca tivesse posto os pés em Berlim. Só de ver
minha avó sentada naquela cozinha, com seu ar
tranqüilo e confortante, me aquecia o coração. Eu
amava minha avó, e gostava de sua cozinha. Era uma
verdadeira cozinha camponesa, fogo na lareira, tachos
e panelas imensas... sempre um bom prato cozinhando,
como num livro de gravuras. Eu me sentia
bem.
Imediatamente restabeleci o contato com meus
primos e outras crianças de minha idade. Eram
realmente crianças ainda. Como eu. Voltei
deliciosamente aos meus tempos de infância. Não
sabia há quanto tempo isso não acontecia comigo.
Joguei num canto as botas de salto alto. Emprestaram-
me sandálias e, quando chovia, botas de
borracha. Não toquei nos meus produtos de
maquilagem. Aqui não tinha nada a provar, não tinha
necessidade de me impor a quem quer que fosse.
Andei muito a cavalo. Organizamos um monte de
corridas pedestres ou eqüestres. Mas nosso lugar
preferido para brincar era o riacho. Crescemos, e as
barreiras que agora construíamos assumiam
proporções gigantescas. Fazíamos verdadeiros lagos
artificiais. E, à tardinha, fazíamos uma brecha no
dique e uma cascata de pelo menos três metros caía
no riacho.
Os outros, é claro, me faziam perguntas sobre
Berlim, sobre o que eu fazia. Mas não lhes contava
muitas coisas. Não tinha nenhuma vontade de pensar
em Berlim. Incrível, mas não pensava nem mesmo em
Detlef. Tinha decidido escrever todos os dias, mas não
lhe escrevi uma única vez. Às vezes, à tarde, tentava
pensar nele, mas mal conseguia me lembrar dos seus
traços. Tinha a impressão que ele pertencia a um
outro mundo, cujas mensagens eu não compreendia
mais.
Depois comecei a ter crises de angústia quando
me encontrava sozinha à tarde em minha cama. Via
dançar diante de meus olhos as caras dos
freqüentadores do Sound, e pensava que dentro em
breve teria que voltar a Berlim. Sentia um medo
terrível de Berlim. Pensava que poderia pedir à minha
avó para me deixar ficar com ela, mas como dizer-lhe
o motivo, e o que diria à minha mãe? Seria preciso
confessar tudo, mas eu não me decidi a fazer isso.
Minha avó cairia dura, morta, se eu lhe contasse que
sua netinha se picava com heroína. Era preciso,
portanto, voltar a Berlim.
O ruído, as luzes, a animação, tudo o que antes
me agradava tanto, agora me exasperava. À noite, a
confusão me impedia de dormir. Quando fui ao
Kurfürstendamm, o trânsito e a multidão me causaram
pânico.
No início não tentei sequer me readaptar ao clima
de Berlim. Sabia que, uma semana depois da volta às
aulas, minha classe partiria por muitos dias à Floresta
Negra.
Em nenhum momento tentei comprar droga e, no
entanto, tinha cinqüenta marcos que minha madrinha
me dera de presente. Não tentei me reencontrar com
Detlef. Disseram-me que ele não ia mais ao Sound.
Permaneci totalmente limpa até o dia da viagem com a
escola.
Estava feliz com essa viagem, mas em poucos
dias voltei a ficar deprimida. Tinha dores de barriga
depois das refeições, as excursões acabavam comigo.
No ônibus que nos levava para a visita à fábrica de
chocolate Suchard, Kessi, que estava sentada a meu
lado, me disse bruscamente: Puxa vida, você está
amarela como um marmelo. Você está com icterícia.
Era isso. Sabia muito bem que todos os viciados
acabavam pegando, por causa das agulhas e seringas
sujas que passavam de um a outro. Pela primeira vez,
depois de muito tempo, pensava na heroína. E pensei
imediatamente na agulha nojenta da minha primeira
picada. Mas depois me dei conta de que Kessi não
falara seriamente, e lembrei que havia muitas
semanas que eu não me picava. Não podia ser
icterícia.
Na porta da Suchard, peguei uma colher de
plástico e entrei. No Palácio do Chocolate enfiava
minha colher nos tachos, desde que parecessem um
pouco gostosos. Quando era realmente bom, desviava
a atenção do guia, fazendo-lhe um monte de
perguntas, e pedia mais. Além disso, fiz um nó no meu
avental para transformá-lo em bolsa, e na saída ela
estava cheinha de chocolate.
Tão logo o ônibus partiu, jurei que nunca mais
tocaria em chocolate. Chegando ao alojamento, me
torcia de dor.
Vomitei quilos daquela massa cremosa e cheia de
amendoins. Meu fígado se rendeu.
O professor, por sua vez, reparou na minha cor
amarelada. Chamou um médico e, em seguida, uma
ambulância me levou à Clínica da Universidade de
Friburgo.
O quarto de isolamento do Serviço de Pediatria
era pequenino, de um branco imaculado. Nenhum
quadro, nenhuma gravura na parede. Enfermeiras me
traziam medicamentos e minhas refeições,
praticamente sem me dizer uma palavra. Um médico
vinha, às vezes, me perguntar como estava.
Passaram-se três semanas. Não podia sair do quarto
nem para mijar. Ninguém vinha me ver, ninguém
vinha falar comigo. Não tinha nada de interessante
para ler. Não tinha rádio. Várias vezes pensei que iria
enlouquecer.
A única coisa que me dava força eram as cartas
de minha mãe. Eu também escrevia para ela. Escrevia
principalmente para os meus gatos, os únicos animais
que me restavam. Eram cartinhas minúsculas, postas
em envelopes que eu mesma fabricava.
Às vezes pensava em minha avó, nos meninos do
vilarejo, no riacho, nos cavalos. Também pensava, às
vezes, em Berlim, no Sound, em Detlef e na heroína.
Não sabia quem eu era. Quando me sentia
verdadeiramente na fossa, pensava: você é uma
drogada que tem sua primeira hepatite e pronto.
Quando pensava que estava brincando com meus dois
gatos, prometia a mim mesma estudar e passar todas
as minhas férias na casa de minha avó. Tudo isso se
misturava na minha cabeça. Mas passava também
muitas horas a olhar para o teto sem pensar em nada
ou, então, se não seria melhor se estivesse morta.
Além disso, sempre tinha medo de que os
médicos descobrissem a origem da minha icterícia.
Mas os traços de picada haviam desaparecido e não
tinha mais cicatrizes nem securas de trombose no
braço. E quem iria procurar uma drogada no Serviço
de Pediatria de Friburgo?
Depois de três semanas recomecei a andar. Em
seguida me deram autorização para voltar a Berlim de
avião. Foi a Previdência Social que pagou tudo. Em
casa, ainda tive que permanecer de repouso. Estava
feliz de reencontrar minha mãe e meus dois gatos, e
me desliguei das outras coisas.
Minha mãe me contou que Detlef viera diversas
vezes saber de mim. Ele tinha um ar muito triste pela
minha ausência prolongada, disse ela. Então voltei a
pensar em Detlef, me lembrei dos seus cabelos
encaracolados, seu lindo rosto, tão doce. Estava feliz
pelo fato de alguém se interessar por mim, de alguém
me amar verdadeiramente. E era Detlef. Fiquei com a
consciência pesada por tê-lo quase esquecido: dele e
do nosso amor, durante muitas semanas.
Alguns dias depois da minha volta, Detlef me
visitou. Quando o vi ao pé do meu leito, tive um
choque, fiquei incapaz de pronunciar uma só palavra.
Ele estava que era só pele e osso, seus braços
estavam tão finos que poderia abarcá-los com a mão.
O seu rosto estava pálido, tinha o ar abatido. Mas ele
continuava tão bonito quanto antes. Seus olhos
pareciam maiores, mas estavam mais tristes. De
repente voltou todo o meu amor. Pouco importava que
ele tivesse se tornado esquelético. Não queria pensar
nisso.
Durante algum tempo não sabíamos sobre o que
falar. Ele queria saber quais eram as minhas
novidades, mas não tinha nada de interessante a lhe
contar. Não me ocorreu contar-lhe as férias que
passara na casa da minha avó. Acabei perguntando
por que ele não ia mais ao Sound. Ele disse que estava
uma merda. Mas, então, aonde você vai? Ele
acabou soltando: À Estação Zoo do metrô.
Fazer o quê?
Eu me viro.
No momento nem me choquei. Sabia que alguns
viciados o faziam ocasionalmente. Não tinha idéia
muito precisa do que significava isso. Aliás, não tinha
muita vontade de saber. Tudo o que sabia era que isso
consistia em satisfazer bichas, sem que ele mesmo
sentisse prazer, e que isso dava muita grana. Não pedi
explicações. Entreguei-me totalmente à felicidade de
ver Detlef, de amá-lo e de ser amada.
No domingo seguinte, Detlef veio me buscar para
a primeira saída. Fomos a um café da
Lietzenburgerstrasse. Estava cheio de bichas e todas
conheciam Detlef. Foram muito gentis comigo,
cumprimentaram-me calorosamente, felicitaram Detlef
por ter uma amiga tão bonita. Constatei que Detlef
estava orgulhoso de mim; e era por isso que ele me
levara ao café onde todo mundo o conhecia.
Gostei daquelas bichas. Elas eram gentis comigo,
conversavam sem querer me paquerar como os outros
homens. Achavam-me legal, e gostavam de mim sem
nada exigir. Toda essa atenção me envaidecia. Fui
conferir no espelho do banheiro, e vi que elas tinham
razão. Esses dois meses sem droga me haviam
restabelecido. Tinha uma ótima aparência. Acho que
nunca estivera tão bem.
Detlef me disse que precisava dar um pulinho à
Estação Zoo. Ele tinha um encontro com Bernd, seu
melhor amigo. Bernd tinha se virado para arranjar
dinheiro para eles dois. Não seria por minha culpa que
Detlef não iria à Estação Zoo. Logo, isso não se
discutia, e eu o acompanhei. Além do mais, estava
contente por rever Bernd.
Bernd acabara de sair com um "cliente".
Esperamos. Naquela noite o lugar não me parecia tão
sinistro quanto na minha lembrança. Na verdade só
via Detlef. Quando ele me deixava sozinha para
conversar com um amigo, horríveis imigrantes me
abordavam. Escutava "sessenta marcos" ou qualquer
coisa parecida. Eu me agarrava ao braço de Detlef, e
me sentia segura. Convenci-o a vir comigo ao Sound.
Em seguida pedi-lhe que me arrumasse algo para
cheirar. É claro que ele recusou. Mas insisti:
Somente por esta noite. Somente para festejar minha
volta. Tenho vontade de me embalar um pouco, como
você. Ou então você também não toma nada. Aí ele
me deu.
Ele me disse que não me daria mais. Respondi-lhe
que não seria necessário. Acabara de demonstrar,
durante dois meses, que podia dispensar a heroína.
Lembrei, inclusive, que isto me fizera bem.
Um argumento de peso. Detlef me disse:
Escute aqui, menina, eu também vou parar. Você vai
ver. Aí ele se picou, e eu dei uma cheirada. Estávamos
extraordinariamente felizes e falávamos de nossa
felicidade futura, sem heroína.
Na tarde do dia seguinte, fui reencontrar Detlef na
Estação Zoo. Ganhei uma nova cheiradinha. Passei a
me encontrar com Detlef quase todas as tardes, após
as aulas, na estação. Recomecei a me picar. Era como
se eu nunca tivesse deixado Berlim, como se os dois
meses e meio sem heroína não tivessem existido.
Falávamos quase todos os dias da nossa decisão de
parar, e eu expliquei a Detlef que isso era realmente
fácil.
Freqüentemente ia diretamente da escola à
Estação Zoo. Na minha sacola havia utensílios de
drogada e uma pacotão de sanduíches. Minha mãe
devia se espantar de me ver emagrecer a olhos vistos,
apesar de levar todas as manhãs tal estoque de
sanduíches. Sabia que Detlef e seus amigos esperavam
que lhes levasse lanche.
No início Detlef ficava irritado quando me via
chegar. Ele não queria que eu o visse se virar.
Marquemos um encontro em qualquer lugar, mas não
venha aqui.
Não lhe dei ouvidos. Queria estar com ele em
qualquer lugar. E pouco a pouco eu me habituei ao
ambiente. Não sentia mais o cheiro de mijo e dos
desinfetantes. Os clientes, as putas, imigrantes sujos,
os tiras, os mendigos, os bêbados, faziam parte do
meu meio cotidiano. Meu lugar era ali, pois Detlef
estava ali.
A maneira como as outras meninas me olhavam,
me medindo da cabeça aos pés, me dava nos nervos.
Elas pareciam mais agressivas que os clientes. Em
seguida, percebi que aquelas meninas que iam ali para
se prostituir tinham medo de mim, medo de que eu
lhes roubasse seus melhores clientes. Era mercadoria
fresca e gostosa. Tinha melhor apresentação, um ar de
menina bem-tratada, e lavava meus cabelos quase
todos os dias. Ao me ver, ninguém imaginava que era
uma drogada. Sabia que era superior às outras meninas,
e esse era um sentimento muito agradável.
Efetivamente, os clientes ficavam ao meu redor. Mas
não tinha necessidade de me virar, pois Detlef o fazia
por mim. Os que nos observavam deviam dizer: "Que
sortuda, ela tem a heroína sem necessidade de
batalhar".
No começo, os clientes me inspiravam medo.
Principalmente os estrangeiros imundos com seus
repetitivos: "Você meter? Você ir hotel?" Alguns
ofereciam vinte marcos. Mas logo, logo, passei a me
divertir, mandando-os pastar. Dizia: Ora, meu
velho, você está louco? De mim ninguém consegue
nada por menos de quinhentos marcos. Ou então
encarava-os com um ar tranqüilo e dizia: Você se
enganou de endereço, meu velho. Saia de campo.
Sentia um imenso prazer em ver, depois disso,
aqueles nojentos se mandarem de rabo entre as
pernas. Era superior também aos clientes. Se por
acaso um deles se mostrava insolente ou agressivo,
Detlef aparecia logo. Quando ele saía com um cliente,
falava com seus amigos para cuidarem de mim. Para
mim, eles eram como irmãos. O cara que me
desrespeitasse deveria tomar cuidado!
Agora não ia mais ao Sound, e meus únicos
amigos eram os do bandinho do Zoo. Éramos Detlef,
Bernd, Axel e eu. Bernd e Axel tinham a mesma idade:
dezesseis anos. Os três moravam na casa de Axel.
Contrariamente aos outros dois, Axel era muito feio.
Seu rosto não tinha nenhuma harmonia, suas pernas e
seus braços pareciam ter sido feitos para um outro
corpo. Não tinha por que atrair uma bicha. No entanto,
ele tinha seus clientes, alguns até mesmo regulares.
Detlef, quando estava de saco cheio, insultava e
berrava com os clientes. Axel, com seu físico, era
obrigado a se controlar todo o tempo, ser amável.
Além do mais, na cama ele devia ter alguma coisa
especial que agradava muito às bichas. Sem isso ele
não agüentaria a concorrência que havia na Estação
Zoo do metrô.
Ele se vingava como podia. Quando pegava um
cliente meio por fora, o extorquia. Axel era um tipo de
personalidade forte, era difícil ofendê-lo ou humilhá-lo.
Ele se dominava e nunca demonstrava seus
sentimentos. Além do mais, era incrivelmente gentil e
seguro, o que era raro entre os viciados. Realmente
não existia pessoa igual a ele. Agia como se não
vivesse mais nesse mundo podre. Aliás, ele só teve
mais um ano de vida.
A história de Axel parecia-se com a nossa. Seus
pais eram divorciados. Viveu com sua mãe até o dia
em que ela partiu para viver com um amigo. Mas a
mãe foi generosa deixando-lhe um apartamento de
duas peças, alguns móveis e até mesmo um televisor.
Ela o visitava uma vez por semana e lhe dava um
pouco de dinheiro. Sabia que ele se picava, e pediulhe
muitas vezes que parasse. Achava que fazia muito
por ele, mais que muitos outros pais faziam por seus
filhos; afinal, tinha lhe dado um apartamento com
televisão, não? Eu passava os fins de semana na casa
de Axel. Dizia a minha mãe que ia para a casa de uma
amiga.
O apartamento de Axel era um verdadeiro cortiço
de drogados. O fedor me embrulhava o estômago
desde a entrada do apartamento. Latas de sardinhas,
guimbas de cigarros que flutuavam no óleo ou no
molho de tomates. Em cima da pia, um monte de
copos e xícaras sujos. Lá dentro, um copo de água,
cinzas, fumo, papel de cigarros. Quando coloquei
iogurtes sobre a única mesa, derrubei duas latas de
sardinhas e o molho caiu no tapete. Ninguém deu
bola.
De qualquer forma, o tapete fedia de maneira
pavorosa. Compreendi: era porque Axel se picava. Ele
retirava a seringa de seu braço, enchia-a de água e
jogava o líquido cor-de-rosa (a seringa continha ainda
algumas gotas de sangue) no tapete. Era a sua
maneira de limpar os seus utensílios. E o cheiro meio
doce de sangue seco misturado com o molho de peixe
provocava aquele fedor pavoroso. Até as cortinas
estavam amarelas e cheiravam mal.
No meio de toda aquela confusão, no entanto,
havia uma cama com lençóis de uma brancura
impressionante. Imediatamente me refugiei nela.
Enfiei minha cara nos travesseiros, que tinham bom
cheiro de sabão. Acho que nunca dormi numa cama
tão limpa.
Axel me disse: Pus estes lençóis para você.
Todos os sábados encontrava uma cama bem
arrumadinha. Nunca dormi duas vezes seguidas nos
mesmos lençóis, enquanto os rapazes nunca trocavam
os seus.
Eles faziam tudo o que podiam para me agradar.
Tinha tudo o que queria para comer e beber.
Compravam-me heroína de primeira qualidade.
Sempre tinha problemas de fígado e, se me picasse
com algo adulterado, caía doente. Os três ficavam
preocupadíssimos quando eu ficava doente. Por isso
eles me compravam heroína da boa, sem se importarem
se era caro ou não. Os três estavam sempre
presentes quando eu tinha necessidade deles. No
fundo, eles contavam somente comigo. E eu tinha
Detlef, em primeiro lugar, depois Axel e Bernd.
Ninguém mais.
Estava feliz de fato. Feliz como poucas vezes o
tinha sido. Sentia-me protegida. Tinha uma casa, a
Estação Zoo às tardes e o apartamento fedorento de
Axel nos fins de semana.
Detlef era o elemento mais forte do grupo, e eu a
mais fraca. Eu me sentia inferior aos rapazes, física e
moralmente. Principalmente porque era uma menina.
Mas pela primeira vez gostava da minha fraqueza.
Saboreava a proteção de Detlef. Achava uma delícia
saber que Detlef, Axel e Bernd estavam sempre
presentes quando eu tinha necessidade de alguém.
Meu companheiro fazia o que nenhum viciado faz:
dividia a heroína comigo, fazendo o pior trabalho que
existia. Para pagar a minha droga, ele devia atender a
um ou dois clientes a mais por dia. Nós não éramos
como os outros, fazíamos exatamente o inverso: o
homem se prostituía por sua mulher. Talvez fôssemos
o único casal no mundo a fazer isso.
Até o outono de 1976 nunca me ocorreu a idéia
de me prostituir. Pelo menos, nunca tinha pensado
nisso até aquele momento. Talvez, por alguns
segundos, a idéia me tivesse passado pela cabeça,
principalmente nos dias em que sentia um peso na
consciência ao ver Detlef sair com um cara que fosse
particularmente nojento. Mas sabia perfeitamente bem
que Detlef me passaria um belo sabão, se eu falasse
sobre tal possibilidade.
Aliás, não sabia nessa época em que consistia
exatamente tudo isso. Ou não queria nem pensar ou
imaginar.
Detlef não falava disso. Ouvindo os papos dos três
rapazes, tinha a impressão de que se tratava de
chupar bichas.
Para mim, isso não tinha nada a ver com nós
dois. Detlef e Christiane. Era uma obrigação de Detlef,
então não me enojava. Que ele se desse a essas
bichas não era assim tão terrível, pois era seu
trabalho. O trabalho nojento que nos permitia comprar
heroína. A única coisa que não queria era que eles se
amarrassem em Detlef. Ele era meu, só meu.
No início, achava até alguns desses clientes
simpáticos. Os rapazes diziam às vezes que fulano ou
sicrano era um tipo razoável, que era preciso
conservá-lo. E era principalmente isso que importava.
Havia os que eram gentis de fato comigo, quando me
encontravam na Estação Zoo com Detlef. Podia-se
dizer que eles gostavam de mim. Às vezes um deles
me trazia dinheiro de um desses clientes que me
achava muito bonita. Detlef não me contava que
alguns desses caras o pressionavam para fazer coisas
comigo.
Observava as outras meninas. Eram quase todas
tão jovens quanto eu. Percebi que eram muito
infelizes, principalmente as viciadonas mesmo, que
eram obrigadas a se prostituir para poder se picar. Lia
o desgosto estampado em suas faces a cada vez que
um desses clientes as tocava, mas elas se esforçavam
para sorrir. Odeio esses caras que ficam no meio da
multidão procurando carne fresca com o rabo do olho.
Idiotas ou pervertidos, certamente. Que prazer podem
eles sentir ao ir para a cama com uma jovem totalmente
desconhecida que visivelmente não suporta
tudo isso e de quem é impossível ignorar a desgraça?
Finalmente passei também a detestar as bichas.
Pouco a pouco, fui tomando consciência dos
sofrimentos que transformaram Detlef numa criatura
dura. Muitas vezes ele quase não conseguia dominar a
repugnância que sentia, esforçando-se para ir
trabalhar. Se ele não estivesse drogado, não conseguiria.
Quando ele estava no pior bode, e era justamente
quando tinha necessidade de dinheiro, se mandava
quando via um cliente. Então Axel ou Bernd iam ao
sacrifício em seu lugar, esforçando-se para vencer sua
repugnância. Eles também tinham necessidade de
estar drogados para conseguirem fazer isso tudo.
Exasperava-me ver as bichas correndo atrás de Detlef.
Balbuciavam palavras amorosas totalmente ridículas,
enquanto lhe entregavam cartas de amor. E tudo na
minha presença. Que solidão deve ser a desses caras!
Mas era incapaz de sentir piedade deles. Tinha
vontade de gritar: Escute, cara, tente compreender
que Detlef é meu e de mais ninguém, muito menos de
um porco pederasta. Mas tínhamos necessidade
desses porcos, que se deixavam esfolar, pois eles
pagavam bem.
Pouco a pouco, também percebi que entre esses
homens havia alguns que conheciam Detlef
intimamente, muito mais intimamente que eu. Tive
motivos para dar bronca. Um dia, ouvindo uma
conversa dos três rapazes, ouvi-os dizer que alguns
clientes só pagavam se o parceiro também tivesse um
orgasmo. Pensei em morrer de desgosto.
A cada dia via menos Detlef, porque ele saía o
tempo todo com essas bichas nojentas. Tinha medo
por ele. Alguém me disse que os rapazes que se
prostituíam, às vezes, acabavam também virando
bichas. Mas não podia falar nada com Detlef, pois
estávamos cada vez mais dependentes. E a metade do
que ele ganhava era para a minha droga. Desde que
entrei na sua turma decidi, ao menos
inconscientemente, ser como eles, uma verdadeira
drogada. Eu me picava todos os dias. E tomava
sempre o cuidado de deixar de lado heroína suficiente
para me picar no dia seguinte.
No entanto, ainda não atingíramos, nem ele nem
eu, a dependência física completa. Ela demora
bastante para se implantar entre os iniciantes que não
se picam todos os dias. Ainda conseguíamos ficar um
ou dois dias sem heroína: tomávamos outra coisa para
voar um pouco e não sofríamos muito. Por isso víamos
que não éramos como os outros, como os drogados
que já estavam lá embaixo. Podíamos parar quando
quiséssemos.
Ainda tinha momentos de felicidade. Todos os
sábados, na casa de Axel, Detlef me encontrava na
bela cama limpinha, me desejava boa noite com um
doce beijo na boca e dormíamos. Dormíamos um de
costas para o outro, bunda com bunda. Quando
acordava, Detlef me dava o beijo de bom-dia.
Estávamos juntos havia seis meses e não
tínhamos qualquer relação. Quando conheci Detlef já
tinha aprendido a desconfiar da brutalidade dos
rapazes, então lhe disse imediatamente: Eu sou
virgem, sabe? Ê gostaria de esperar um pouco mais.
Eu acho que sou muito jovem.
Ele compreendeu imediatamente e nunca
inventou coisas. Para ele eu não era somente uma
amiga com quem ele se entendia bem: ele percebera
que eu, com meus catorze anos, era ainda uma
menina. E tinha uma sensibilidade extraordinária, e
sentia o que eu desejava, o que podia fazer ou não.
Durante o mês de outubro pedi a minha mãe que me
providenciasse pílulas. Ela me conseguiu uma receita.
Ficou sabendo por mim e por Detlef que não havia
nada entre nós. Ela era muito desconfiada para essas
coisas.
Tomei as pílulas sem dizer nada a Detlef. Ainda
tinha medo. Num sábado do fim do mês de outubro,
chegando à casa de Axel, vi que ele havia posto
lençóis brancos na sua própria cama, mais larga do
que aquela em que sempre dormíamos. Axel explicou
que era besteira nós dois sofrermos em uma caminha,
enquanto ele se esbanjava em uma imensa cama. Ele
nos ofereceu sua cama.
Naquele dia todo mundo estava de bom humor. E
de repente, Detlef disse que deveríamos limpar um
pouco a casa. Imediatamente concordamos. Comecei
abrindo todas as janelas. As primeiras baforadas de ar
fresco me fizeram tomar consciência da fedentina em
que vivíamos. Nenhum indivíduo normal suportaria
mais de um minuto aquela podridão. Mistura de cheiro
de sangue seco, cinzas e conservas de peixe mofado.
Nas duas horas seguintes fizemos uma revolução no
apartamento, varremos, colocamos um monte de lixo
em sacos plásticos. Passei o aspirador, limpei a gaiola
do canário, que estava irrequieto com toda aquela
agitação. A mãe de Axel o havia deixado para ele, pois
seu amigo não gostava de pássaros. Axel também
detestava esse infeliz animalzinho. Quando não
agüentava mais a solidão, ele se metia a cantar, e
Axel, então, dava murros na gaiola. O pobre pássaro
se debatia como doido dentro das grades. Nenhum dos
rapazes cuidava dele, mas a mãe de Axel trazia
regularmente uma provisão de alpiste. E eu, no
sábado, lhe dava comida por uma semana. Compreilhe
também um pequeno recipiente de vidro que lhe
permitia beber água limpa durante seis dias.
Quando fomos dormir nessa noite, as coisas não
se passaram como sempre, Detlef não me deu o beijo
de boa-noite e não ficou de costas. Começou a falar, a
me dizer coisas muito ternas, senti suas mãos, que me
acariciavam com muita ternura. Não tive nenhum
medo. Eu também o acariciei muito tempo sem falar,
foi maravilhoso.
Depois de mais de uma hora, Detlef rompeu o
silêncio: Você gostaria de fazer amor no sábado que
vem?
Respondi: OK. Vivia, há tempo, temendo
essa proposta. Estava feliz de que Detlef a tivesse
feito. Depois eu disse: Certo, mas com uma
condição: não tomaremos nada, nem eu nem você.
Nada de heroína. Se estivermos dopados, posso não
achar bom. Ou então o acharei bom somente porque
estarei dopada. Quero estar totalmente lúcida. E quero
que você esteja também, para que saiba se me ama.
Detlef disse: Está bem e me desejou boa noite
com um doce beijo. Adormecemos um de costas para
o outro: bunda com bunda.
No sábado seguinte mantivemos a promessa. Não
tomamos nada. O apartamento estava novamente sujo
e fedorento. Mas nossa cama estava com lençóis
maravilhosamente brancos. Tiramos a roupa. Tive
ainda um pouco de medo. Ficamos deitados um ao
lado do outro sem trocar palavra. Pensava no que me
haviam contado minhas amigas na escola, de como é
na primeira vez. O rapaz se joga por cima de você
brutalmente, enfia seu troço e só pára quando goza.
As garotas também me haviam prevenido de que dói
muito da primeira vez.
Falei a Detlef que não queria que fosse bruto
como disseram as minhas amigas na escola.
Ele me respondeu: Está bem, minha pequena.
Acariciamo-nos por muito tempo. Ele me penetrou
um pouco, tão devagarinho que mal percebi. Quando
doía, Detlef sentia sem que eu dissesse nada. Pensei:
"Ele tem o direito de causar uma dorzinha. Há seis
meses ele espera por este momento".
Mas Detlef não queria que eu sentisse dor. Em
determinado momento a coisa estava feita. Estávamos
juntos para sempre. Eu o amava, estava louca de
amor por ele. Sentia-me em êxtase, nas nuvens.
Detlef também estava imóvel. Ele certamente
compreendeu o meu estado: estava paralisada de
angústia e de felicidade.
Detlef tirou e me abraçou. O que senti foi
extraordinário. Eu me perguntava como podia merecer
um rapaz assim, que pensasse somente em mim,
esquecendo-se por completo de si mesmo. Pensei em
Charly, que durante uma sessão de cinema pura e
simplesmente colocara sua mão entre minhas pernas.
Estava feliz por ter esperado por Detlef, por pertencer
somente a ele. Amava tanto esse rapaz que de
repente senti pânico. Tive medo da morte. Repetia o
tempo todo: "Não quero que Detlef morra". Eu lhe
disse enquanto ele me acariciava: Detlef, vamos
parar de nos picar.
Sim respondeu ele. Não quero que você
se torne uma viciada em heroína.
Ele me beijou. Lentamente nos viramos para
dormir. Um de costas para o outro. Bunda com bunda.
As mãos de Detlef no meu corpo me acordaram.
Era muito cedo. Uma luz cinzenta atravessava as
cortinas. Aca-riciamo-nos e aí fizemos amor de
verdade. O que senti ainda estava na cabeça e não lá
embaixo. Mas já sabia que era maravilhoso fazer amor
com Detlef.
Na segunda-feira fui direto da escola à Estação
Zoo. Detlef estava lá. Dei-lhe um sanduíche e uma
maçã. Ele estava com fome, e eu, doida por uma dose
de heroína. Havia três dias que não me picava. Pedi a
Detlef: Você tem uma picada para mim?
Não. Eu não te darei mais. Não quero. Eu te
amo muito. Não quero que você se torne uma junkie.
Tive uma explosão. Comecei a gritar: Puxa
vida, meu caro, você é presunçoso! Você está
completamente drogado, as suas pupilas estão tão
grandes como a cabeça de uma agulha de tricô. E
ainda vem me fazer sermão? Primeiro, pare você
mesmo, aí então farei o mesmo. Mas não diga
besteiras. Confesse de uma vez que você quer a
heroína só para você.
Fiz um escândalo, e ele teve que escutar. Ele não
podia protestar, pois tinha recomeçado a se picar,
desde domingo à noite. Ele acabou cedendo: Está
bem, minha pequena, vamos lá juntos. Em seguida,
ele saiu com um cliente, para a minha picada.
Desde que tínhamos feito amor, muitas coisas
haviam mudado em minha vida. Não me sentia mais
tão à vontade na Estação Zoo. Sabia o que significava
trepar. O que queriam esses caras que me
abordavam? A mesma coisa que fizemos Detlef e eu:
trepar. É claro que eu não ignorava em que consistia
isso, mas era totalmente abstrato. Porém, tornara-se
a experiência mais maravilhosa e íntima entre mim e
Detlef. Aqueles caras me davam nojo. O que acontecia
ali me pareceu absolutamente incompreensível: como
se podia dormir com um daqueles estrangeiros
repugnantes, um bêbado ou um careca barrigudo
cheirando mal?
Não me divertia mais quando ouvia os clientes me
falarem besteira. Não tinha mais nada a responderlhes.
Eu me mandava apavorada, e às vezes chegava
até a me defender a tapas. Agora eu odiava
enormemente as bichas. Eu poderia matar esses
porcos. Passei meu tempo tentando não imaginar
Detlef sendo obrigado a acariciá-los.
Apesar de tudo, continuava a freqüentar todas as
tardes a estação do metrô quando saía da escola, para
ver Detlef.
Depois que ele saía com um cliente, íamos até a
sacada e ele me oferecia um chocolate. Às vezes os
negócios iam mal e havia dias em que Detlef mal
conseguia juntar o dinheiro suficiente para nós dois.
Pouco a pouco comecei a conhecer os outros
rapazes. Antes Detlef sempre tentava me manter
afastada. Eles estavam bem mais acabados e tinham
muito mais dificuldades do que os meus amigos para
agarrar clientes. Eram junkies, o tipo de caras que
antes eu admirava.
Detlef me disse que eram amigos, mas ao mesmo
tempo me recomendou que desconfiasse deles. Eles
estavam sempre duros e à caça de alguma coisa para
se picar. Nunca deveríamos mostrar que tínhamos
dinheiro ou heroína, senão poderíamos entrar pelo
cano. Eles não roubavam somente os clientes, mas
também roubavam entre si.
Comecei a compreender verdadeiramente o que
era este mundo de drogados que tanto me atraía. Só
que agora estava dentro dele, ou quase dentro.
Às vezes amigos de Detlef me diziam: Saia
dessa, você é muito jovem para isso. É só se separar
de Detlef que você conseguirá. Ele, de qualquer jeito,
nunca conseguirá sair dessa. Não seja idiota, afaste-se
dele.
Mandava-os à merda. Separar-me de Detlef. Nem
em sonhos! Se ele quisesse se matar eu o
acompanharia. Eu nem falava disso e respondia-lhes
simplesmente: Vocês estão enganados, não somos
viciados. Quando quisermos parar, paramos.
Os dias desse mês de novembro eram todos
parecidos. Das duas às oito na Estação Zoo. Em
seguida o Treibhaus, uma discoteca no
Kurfürstendamm que Detlef começou a freqüentar. Era
um ponto de encontro de drogados, pior ainda que o
Sound. Fiquei muitas vezes até meia-noite e vinte,
hora do último ônibus. Na realidade, vivia somente
para as noites dos sábados. No sábado à noite Detlef e
eu fazíamos amor, e tornava-se cada vez mais bonito,
pelo menos quando não estávamos drogados.
Chegou dezembro. Tinha frio. Antes, quase nunca
tinha frio. Percebi que estava mal fisicamente. Percebi
num domingo no início do mês. Acordei no
apartamento de Axel com Detlef dormindo ao meu
lado. Estava gelada.
Olhei para uma lata. De repente o que estava
escrito nela saltou para cima de mim. Era uma escrita
de cores agressivas que me faziam mal aos olhos.
Tinha um vermelho terrível. Quando "viajava", sempre
tinha medo do vermelho, mas a heroína transformava
o vermelho em um tom suave. A heroína cobria todas
as cores com uma espécie de véu.
Mas naquela lata o vermelho me feria os olhos.
Tinha a boca cheia de saliva. Engolia, mas a saliva
voltava. Não entendia bem como ela voltava. Depois
ela desapareceu bruscamente e minha boca ficou seca
e pegajosa. Bebi, mas não passou. Tremia de frio e
logo em seguida sentia um calor horrível e estava toda
suada. Acordei Detlef dizendo: Algo está
acontecendo.
Detlef olhou para mim: Você está com as
pupilas grandes como um pires. Um longo silêncio e
depois ele murmurou: Filhinha, aconteceu. . .
Sacudida por novos arrepios, perguntei-lhe:
Aconteceu o quê?
O cold turkey, você está de bode respondeu
Detlef.
Então, a famosa crise de privação era aquilo?
"Você chegou ao ponto, você é uma viciada", disse a
mim mesma, mas não foi uma coisa tão terrível o tal
de cold turkey. Por que faziam tanto escândalo por
isso? Não me sentia verdadeiramente mal: tinha
tremores, as cores me agrediam, e tinha uma
estranha sensação na boca.
Detlef não falou mais nada. Tirou do bolso do seu
jeans um pacotinho de ácido ascórbico, foi buscar uma
colher, esquentou tudo sobre o fogo de uma vela, e
me deu a seringa toda preparada. Como eu estava
tremendo, foi difícil encontrar a veia, mas, mesmo
assim, consegui com certa rapidez. Tudo voltou ao
normal. As cores voltaram a ser doces, minha boca
voltou ao estado normal, voltei a dormir, agarrada a
Detlef, que aproveitou a ocasião para tomar uma
picada. Acordamos ao meio-dia e perguntei a Detlef se
ele ainda tinha heroína suficiente. Ele me disse: Não
se preocupe. Você terá mais uma picada esta noite,
antes de voltar para casa.
Mas tenho necessidade de alguma coisa para
amanhã de manhã.
Então não tenho o suficiente. E não tenho vontade
de ir à Estação Zoo hoje. De qualquer jeito, hoje
é domingo e não tem ninguém. . .
Entrei em pânico: Você não compreende? Se
não me picar amanhã, terei uma crise e não poderei ir
à escola.
Aí Detlef disse: Eu tinha lhe falado, minha filha.
Você está perdida.
Um pouco mais tarde fomos à Estação Zoo. Tive
tempo para pensar. Minha primeira crise, e eu ali,
esperando, dependente da heroína de Detlef. O que
mais me apavorava era depender de Detlef. Que amor
era aquele em que um dependia do outro? O que
aconteceria se no futuro eu fosse obrigada a suplicar a
Detlef que me desse heroína? Já vi viciados em crise
mendigando, se rebaixando, prontos para sofrer as
maiores humilhações. Eu nunca soube pedir. Não iria
começar justo com Detlef. Com ele, não. Se ele me
deixasse suplicar tudo estaria terminado para nós dois.
Detlef encontrou um cliente. Esperei a volta dele.
Demorou muito. . . Era preciso que eu me habituasse
a esperar para ter minha dose da manhã do dia
seguinte.
Estava deprimida. Conversava comigo mesma,
murmurando: "Então, Christiane, você tem o que
queria. Era o que você pensava? É claro que não, mas
você quis. Você admirava esses viciados 'barra
pesada'. Agora você é um deles. Nada mais a choca. .
. Quando lhe falarem de crise, você não precisa mais
arregalar os olhos, você já sabe o que é. É a sua vez
de impressionar os outros".
Não conseguia ficar numa boa. Pensava na
maneira como tratara os junkies quando estavam de
bode. Eu não entendia o que estava acontecendo com
eles. A única coisa que tinha percebido era que eles
estavam sensíveis, muito sensíveis. Um viciado em
crise fica totalmente a zero, nem sequer ousa
protestar. Às vezes, cheguei mesmo a satisfazer meus
apetites de poder em cima deles. Quando dominamos
a situação, podemos destruí-los completamente. Basta
tocar no ponto certo, tocar no ponto fraco, que eles se
desmancham.
Quando estamos na pior, estamos bastante
lúcidos para nos darmos conta de que somos uma
pessoa perdida. Perdemos a fachada de autocontrole e
não nos julgamos mais por cima de todos e de tudo.
Pensava: "Agora é você que vai penar quando
estiver em tal situação. Eles vão perceber que você é
chata e ridícula. Mas você já sabia, não? É gozado que
você não tenha pensado em tudo isso antes".
Os sermões que fazia a mim mesma não me
levavam a nada. Eu tinha necessidade de falar com
alguém. É claro que eu poderia procurar um dos
amigos de Detlef que andavam por ali. Em vez disso
eu me encolhi num canto ao lado do correio. Sabia
muito bem o que me diriam: "Não fique assim, minha
cara. Isto vai se arrumar. Você poderá se curar com
uma desintoxicação. O Valeron existe para isso".
Detlef também contava coisas assim.
Só restava minha mãe com quem conversar. Mas
pensava: "É impossível, não pode fazer isso com ela.
Ela te ama e você também a ama, à sua maneira, é
claro. Se você lhe contar o que está acontecendo, ela
vai entrar numa pior. E de qualquer forma, ela não
pode te ajudar. Ela talvez te interne. De que servirá
isso? A força não coloca ninguém no caminho certo,
principalmente você. Você fugirá. E isso será pior".
Conversava comigo mesma: "Pare, pura e
simplesmente! No início você sofrerá um pouco pela
falta, mas você tomará algumas coisas para conseguir
atravessar a pior fase. Quando Detlef voltar, você lhe
dirá: não quero heroína. Paro. E se você não fizer o
mesmo, nós nos separamos. Você tem dois troços no
bolso? Tudo bem, meu caro, nos picamos pela última
vez e amanhã acabou". Eu me dei conta de que ao
mesmo tempo em que me ligava a essas idéias, tinha
uma vontade louca de tomar uma picada. E eu murmurava,
com se estivesse revelando um segredo a
mim mesma: "De qualquer forma Detlef não vai
querer. E você sabe muito bem que não vai deixá-lo.
Pare de sonhar, você chegou ao fim da linha.
Exatamente, ao fim da linha. Você não recebeu grande
coisa da vida, mas foi você que quis assim".
Detlef voltou. Sem trocar nenhuma palavra fomos
ao Kurfürstendamm em busca de nosso revendedor
habitual. Coloquei minha dose no bolso, voltei para
minha casa e me refugiei em meu quarto.
Dois domingos mais tarde Detlef e eu estávamos
no apartamento de Axel completamente aniquilados.
Na véspera não havíamos encontrado nosso
revendedor habitual, e um outro nos enganou. A
heroína que nos tinha vendido era tão impura que no
domingo pela manhã tivemos que tomar uma dose
dupla para agüentar a barra. No fim da tarde, não
tínhamos mais nada, e Detlef começou a transpirar.
Percebi que o turkey não estava longe.
Reviramos todo o apartamento na esperança de
encontrar alguma coisa que pudesse ser vendida,
mesmo sabendo de antemão que não havia mais
nada. Desde a cafeteira elétrica até o rádio, tudo tinha
sido vendido para conseguir algumas picadinhas. A
única coisa que sobrou foi o aspirador, mas ele era tão
velho que não conseguiríamos mais que cinco marcos.
Detlef disse: Filhinha, precisamos de dinheiro,
e rapidinho. Dentro de duas horas, no máximo,
estaremos na pior e então estaremos perdidos. Hoje é
domingo e já é noite. Não conseguirei sozinho. Você
precisa me ajudar. É melhor você ir pedir dinheiro no
Sound. Trate de conseguir quarenta marcos. Se eu
conseguir, por meu lado, um cliente de quarenta ou
cinqüenta marcos, teremos até um pouco de heroína
para amanhã de manhã. Você vai conseguir?
É claro que conseguirei. Pedir dinheiro é a
minha especialidade. Encontrar-nos-íamos em duas
horas. Pedia dinheiro no Sound freqüentemente. Às
vezes o fazia somente para testar. E sempre dava
certo. Mas nessa noite, não. Estava com pressa, e
conseguir uns trocados tomava tempo: era preciso
escolher as pessoas que iríamos atacar, saber como
fazer a abordagem, às vezes conversar um pouco com
elas e, principalmente, estar numa boa. Pedir dinheiro
deve, antes de tudo, divertir.
Como estava numa de horror, o que fazia acabava
refletindo meu estado. Depois de meia hora só tinha
sete marcos. Eu me disse: "Você nunca conseguirá".
Pensei em Detlef, que estava procurando um cliente
na Estação Zoo, um lugar que no domingo à noite era
freqüentado por famílias (papai, mamãe, filhinhos).
Além do mais, ele estava também como eu, na pior.
Fiquei em pânico.
Saí para a rua, sem um plano muito definido.
Esperava, de uma maneira muito vaga, que pedindo
dinheiro fora tivesse mais sorte. Um Mercedes parou.
Costumava ver carros luxuosos diminuírem a marcha e
pararem diante do Sound. As meninas que não tinham
os dois marcos para comprar o bilhete de entrada se
vendiam por ele e algumas garrafas de Coca-Cola.
O cara do Mercedes me fez sinal. Eu o reconheci.
Ele andava muito por ali, e não era a primeira vez que
me abordava. Sua fórmula habitual: Você quer
ganhar uma nota de cem? Uma vez eu lhe perguntei
o que ele queria em troca. Ele respondeu: Nada em
particular. Eu lhe dei uma violenta gozada.
Não sabia exatamente o que se passava pela
minha cabeça. Talvez qualquer coisa como: "Vá ao
encontro desse cara e tente descobrir exatamente o
que ele quer. Talvez você consiga tirar uma ou duas
notas dele". A verdade é que, de repente, estava ao
lado do Mercedes. Ele me disse para entrar, pois não
podia estacionar ali. Obedeci.
Na realidade, sabia muito bem o que iria
acontecer. Não se tratava mais de pedir uns
trocadinhos. Os clientes não eram mais, para mim,
criaturas do outro mundo. Vi muitos na Estação Zoo,
ouvi muitas descrições dos rapa2es, o suficiente para
conhecer a seqüência do filme que acabava de
começar. Sabia também que não era o cliente quem
devia ditar as condições. Tentei me conservar numa
superboa. Não tremia, mas aspirava muito forte e mal
conseguia terminar minhas frases sem que a minha
voz desafinasse.
Eu: E então?
Ele: Então, o quê? Cem marcos, de acordo?
Eu: Eu não trepo. Nada disso. Ele perguntou
por quê, e, na minha emoção, não encontrei nada a
dizer a não ser a verdade: Tenho um companheiro.
Não durmo com mais ninguém. E não quero fazê-lo.
Ele: Está bem. Então você me chupa.
Eu: Não, isso também não. Tenho vontade de
vomitar. Estava realmente muito calma.
Nada conseguia irritá-lo. Ele respondeu: Está
bem, você me bate uma punheta.
Eu: De acordo. Por cem marcos. Na hora
aquilo não me chocou, mas, pensando bem, aquele
cara devia estar gamado por mim: cem marcos por
uma punheta, enquanto na Kurfürstenstrasse, na
"putaria de crianças", as meninas não custavam nem
um centavo. Ele gamou pelo medo que eu não
conseguia dissimular totalmente. Estava encolhida
junto à porta, com a mão direita na maçaneta. Ele
sabia muito bem que eu não estava fazendo fita.
Ele partiu. Entrei em pânico. Pensava: "Ele não
vai se contentar apenas com isso. Vai me bater. Ou
então não me dará dinheiro".
Ele parou. Estávamos num parque não muito
longe do Sound; aquele parque, eu o atravessava com
freqüência. Era um verdadeiro puteiro, cheio de
preservativos e lenços de papel por todos os cantos.
Estava tremendo, sentindo um pouco de náusea.
O cara conservava um ar muito calmo. Fiz um apelo a
toda a minha coragem e lhe disse, conforme as regras
do jogo: O dinheiro primeiro. Ele me deu.
Continuei com medo. Nada me garantia que ele não
fosse, em seguida, forçar-me a lhe devolver o
dinheiro. Ouvi muitas histórias desse tipo. Mas sabia o
que era preciso fazer. Nos últimos tempos, os rapazes
da turma quase não falavam de outra coisa além de
suas aventuras com clientes. De todo jeito, eles não
tinham grandes coisas para conversar.
Esperei que ele desabotoasse suas calças. Ele
estava muito ocupado consigo mesmo para me vigiar,
e aproveitei para esconder as notas na minha bota.
Bem, ele estava pronto. Continuei na ponta do banco
do Mercedes, grudada na porta. Imóvel, sem olhá-lo,
estiquei o braço esquerdo. Mas o braço não era
suficientemente comprido, por isso fui obrigada a me
aproximar do cara. Fui obrigada a dar uma olhadinha
no seu troço antes de conseguir agarrá-lo.
Tinha vontade de vomitar, e muito medo.
Continuei com os olhos fixos no pára-brisa, tentando
pensar em outra coisa. Tentei me concentrar em um
anúncio luminoso que acendia e apagava, ou nos
faróis dos carros que via brilhar através dos arbustos.
Ele acabou logo. Tirou a carteira. Segurou a carteira
de tal forma que desse para eu ver que estava
cheia de notas graúdas. Naturalmente, queria me
impressionar, e me deu vinte marcos a mais, de
gorjeta.
Uma vez fora do carro, me senti muito calma e fiz
uma espécie de balanço: "Eis aí. Você tem catorze
anos. Há um mês você ainda era virgem. Agora você
se vende".
Depois, não pensei mais nem no cara nem no que
fiz. Estava mais contente do que triste. Por causa do
dinheiro. Nunca tivera tanto de uma só vez. Não me
preocupava com Detlef e nem me perguntava o que
ele iria dizer. A crise começou e pensei apenas numa
coisa: minha picada. Tive sorte, encontrei
imediatamente nosso revendedor habitual. Vendo
aquele monte de dinheiro, ele me perguntou: Onde
você pegou isto? Você se prostituiu? Eu, com ar
superior, respondi: Você está sonhando. Eu, fazer
isso? Prefiro parar de me picar. Foi meu pai que me
deu. Ele, de repente, se lembrou de que tem uma
filha.
Comprei dois quartos por oitenta marcos. Os
quartos eram uma novidade no mercado. Era mais ou
menos um quarto de grama. Antes, um quarto era
suficiente para três, mas agora mal dava para Detlef e
para mim.
Fui ao banheiro público da Kurfürstenstrasse e me
piquei. Era heroína da boa. Pus o resto da heroína e do
dinheiro dentro da minha carteira de passe escolar.
A operação toda não demorou mais que quinze
minutos. Como deixara Detlef havia quarenta e cinco
minutos, estava segura de reencontrá-lo no metrô
Zoo. Ele estava lá.
Em verdadeiro estado de miséria. Nenhum cliente
no horizonte daquele domingo e, é claro, estava de
bode. Eu lhe disse: Venha, eu tenho.
Ele não quis saber como, não me fez perguntas.
Tinha pressa somente de uma coisa: voltar para sua
casa. Fomos diretamente ao banheiro. Tirei minha
carteira de passe escolar do meu bolso e dei-lhe o
saquinho. Enquanto o negócio esquentava na colher,
Detlef olhou para a carteira e viu o outro saquinho e
as notas. Onde você conseguiu o dinheiro?
perguntou.
Pedir não deu certo. Não havia outro jeito.
Tinha um cara cheio da grana. Bati-lhe uma punheta.
Nada mais além disso, te asseguro. Não teria podido.
Fiz isso por você.
Antes mesmo de ter acabado de falar vi Detlef
empalidecer. Ele estava louco, furioso. Gritou: Você
está mentindo. Ninguém dá cem marcos por isso.
Primeiro, o que quer dizer com punheta e nada mais?
Ele não se agüentava mais, estava em plena crise,
tremia inteirinho, sua camisa estava molhada e tinha
cãibras nas pernas.
Pôs o garrote no braço. Eu estava sentada na
beira da banheira e chorava, pensando que ele tinha
razão de estar com raiva. Chorava e esperava que a
picada de Detlef surtisse efeito. Quando acontecesse,
ele me daria um par de bofetadas, é claro. Eu não me
defenderia.
Detlef retirou a seringa, saiu do banheiro sem
falar nada. Saí atrás dele. Finalmente, ele abriu a
boca: Eu te levo ao ponto de ônibus. Abri o
saquinho e lhe dei uma parte. Ele pôs a dose no bolso
da calça. Fomos ao ponto de ônibus. Detlef não me
disse nada. Gostaria que gritasse, me batesse,
dissesse ao menos alguma coisa. Mas, nada, nem uma
palavra.
O ônibus chegou. Não subi. Depois que o ônibus
partiu, disse a Detlef: O que eu te disse é a pura
verdade. Eu bati uma punheta para aquele cara, isso
foi tudo. E foi terrível. É preciso que você acredite em
mim. Ou não confia mais em mim?
Detlef: Está bem, eu acredito.
Eu: No duro, foi por você que fiz aquilo.
A voz de Detlef endureceu um pouco: Não diga
besteiras. Você fez por você mesma. Você estava em
crise e se virou. Perfeito. De qualquer maneira teria
feito, mesmo que eu não existisse. Tente
compreender. Agora você é uma viciada. É
dependente fisicamente. Tudo o que fizer fará por
você mesma.
Respondi-lhe: Você tem razão, mas escute-me
um pouco, não pode conseguir sozinho a quantidade
de que necessitamos. Eu não quero que você faça todo
o trabalho. Agora é minha vez. Estou segura de que
ganharei um monte de dinheiro. E sem trepar.
Prometo nunca dormir com um cliente.
Detlef não falou nada. Colocou seu braço sobre
meus ombros. Começara a chover, e não sabia se as
gotas que brilhavam no meu rosto eram da chuva ou
lágrimas. Um outro ônibus parou. Falei: Estamos
fodidos. Você se lembra de quando ainda estávamos
na maconha e nos pequenos comprimidos? Éramos
absolutamente livres, não tínhamos necessidade de
nada e nem de ninguém. E agora... agora estamos
totalmente possuídos.
Deixamos passar três ou quatro ônibus.
Murmurávamos coisas tristes. Chorei, pendurada nos
seus braços. Ele falou: Vamos sair dessa. Vamos
nos desintoxicar. Nós dois sairemos dessa. Vou
procurar Valeron. Eu me encarrego, a partir de
amanhã cedo, de suprimir a droga. Nós dois juntos.
Chegou um outro ônibus. Detlef me fez subir.
Em casa, agi mecanicamente, como em todas as
noites. Peguei o iogurte na geladeira e o tomei na
cama. Na verdade, era um pretexto para levar a colher
para o quarto. Serviria, na manhã seguinte, para
preparar minha dose. Depois fui pegar um copo de
água no banheiro para a limpeza da seringa.
Na manhã do dia seguinte, tudo se passou como
sempre. Minha mãe me acordou às quinze para as
sete. Fiquei na cama fingindo não ouvi-la. Ela voltava
a cada cinco minutos. Acabei falando: Está bem,
está bem, me levanto já, já. Ela voltou para me
pressionar. Contava os minutos até as sete e quinze.
Era a hora em que ela devia partir se não quisesse
perder o metrô. Ela nunca o perdia. Aliás, eu também
deveria partir às sete e quinze para chegar a tempo na
escola.
Quando a ouvi fechar a porta do apartamento,
meus gestos automáticos começaram a funcionar. Tirei
o envelopinho de papel da minha calça que estava no
pé da cama. No saco plástico, que estava ao lado,
meus produtos de beleza, um pacote de cigarros
Rothhandle, um frasquinho de ácido cítrico, a seringa
embrulhada em papel higiênico. Ela estava entupida,
como sempre, por causa do tabaco do cigarro, que se
espalhara por todo canto. Mergulhei a seringa no copo
d'água, coloquei o pó na colher, algumas gotas de
ácido cítrico, esquentei tudo, pus o garrote no braço,
etc.
Fazia tudo automaticamente, como outras
pessoas que acendem o seu primeiro cigarro do dia.
Muitas vezes voltava a dormir e chegava à escola para
a segunda ou terceira aula. Sempre chegava atrasada
quando me picava em casa.
Às vezes minha mãe conseguia me tirar da cama
e me fazia tomar o metrô com ela. Nesse caso, era
obrigada a me picar num banheiro da estação
Moritzplatz do metrô. Era bastante desagradável os
banheiros eram particularmente sombrios e
fedorentos. Além disso, os muros eram esburacados e
havia sempre uns caras de butuca para ver as meninas
mijarem. Sempre tive medo de que um deles
fosse chamar a polícia ao descobrir que ia ali somente
para me picar.
Levava quase sempre meus utensílios à escola.
Em caso de necessidade... Se nos segurassem, por
alguma razão qualquer, numa atividade extra, por
exemplo, ou se eu não pudesse voltar para casa, eu
me picava lá mesmo. Nos banheiros da escola não
havia mais porta que pudesse ser fechada. Nesse
caso, minha amiga Renate segurava a porta. Ela
estava por dentro. Acredito que a maior parte dos
meus colegas também, mas não estavam nem aí. No
conjunto Gropius um drogado não era nada fora do
comum.
Durante as aulas, as poucas a que ainda assistia,
cochilava. Às vezes dormia mesmo, de olhos fechados
e a cabeça apoiada na carteira. Quanto maior a dose
matinal, maior seria a minha dificuldade em falar. Os
professores deviam ter percebido o que se passava.
Mas apenas um professor um dia me falou da droga, e
chegou a me perguntar se eu tinha problemas. Os
outros se satisfaziam em me chamar de preguiçosa e
me encher de zeros. De qualquer forma, tínhamos
tantos professores que a maior parte deles se
contentava quando conseguia guardar os nossos
nomes. Não tínhamos nunca contatos pessoais.
Eles pararam logo de se interessar pelas minhas
lições: não fazia mais nenhuma tarefa. Eles se
limitavam a fazer anotações no caderno de notas,
enquanto eu, desde que era anunciado o trabalho a
ser feito, escrevia "não sei" e lhes entregava. Passava
o resto da aula rabiscando. Tinha a impressão de que
a maioria dos professores tinha o mesmo "interesse"
que eu pela escola. Eles desistiam de tudo e ficavam
contentes quando terminavam suas aulas sem ser
incomodados.
Depois daquele famoso domingo à noite em que
"trabalhei" pela primeira vez, tudo pareceu continuar
como antes. Isso durante certo tempo. . .
Todos os dias tentava convencer Detlef de que o
que ganhava pedindo dinheiro não era nada e que não
podia deixar que ele subvencionasse todas as nossas
necessidades. Detlef tinha verdadeiras crises de
ciúmes. Mas chegou à conclusão de que aquilo não
poderia continuar, e um dia ele propôs que
trabalhássemos juntos.
Era experiente, e sabia que existiam clientes
bissexuais. E também bichas que gostariam de fazer
"aquilo" uma vez, pelo menos, com uma menina,
desde que um rapaz estivesse por perto. Detlef disse
que escolheria os meus clientes: caras que não tinham
vontade de trepar e não tocariam em mim. Caras que
queriam que lhes fizéssemos "coisas". Aliás, eram
esses que Detlef preferia. Ele achava que nós dois
juntos poderíamos ganhar cem marcos e até mais.
Nosso primeiro cliente comum foi Max, o gago.
Nós o apelidamos assim. Era um cliente habitual de
Detlef, e eu o conhecia. Detlef me explicou que tudo o
que ele iria pedir era para ser surrado. Eu deveria
apenas ficar nua da cintura para cima. Concordei.
Pensava que bater me daria um certo alívio, pois
sempre desejei agredir os clientes de Detlef. Max, por
sua vez, estava entusiasmado com a idéia de que eu
iria com eles. Pelo dobro do preço habitual, é claro.
Marcamos um encontro para segunda-feira, às quinze
horas, na Estação Zoo.
É claro que cheguei atrasada. Max já havia
chegado. Detlef ainda não. Como todos os viciados,
ele era incapaz de chegar na hora. Presumi que
tivesse encontrado um outro cliente, um cara que
pagasse bem e com quem ele seria obrigado a ficar
um pouco mais de tempo. Eu e Max esperamos quase
meia hora. Detlef não chegou. Senti um medo terrível.
Mas Max sentia, visivelmente, mais medo do que eu.
Ele não parava de me explicar que havia pelo menos
dez anos não fazia nada com uma menina. Mas tremia
a cada palavra. Gaguejava muito, eu mal entendia o
que falava.
A situação tornara-se insuportável. Precisava
encontrar uma solução. Além disso, não tinha mais
heroína, e tinha medo de entrar em crise antes de
acabar essa história com Max. Quanto mais eu sentia
que ele se angustiava, mais eu me sentia segura.
Acabei falando, muito tranqüila: Va- mos, meu
caro, Detlef nos deixou um pepino. Eu vou me ocupar
de você, e você vai ficar contente. Mas continuamos
com o preço acertado: cento e cinqüenta marcos.
Ele gaguejou um "sim" e começou a caminhar.
Tinha um ar de quem não estava mais com a mínima
vontade. Segurei o seu braço e o guiei, literalmente.
Detlef me contou a triste história de Max. Ele é
um trabalhador braçal, tem uns quarenta anos e veio
de Hamburgo. Sua mãe era puta. Quando menino,
apanhava violentamente. Apanhou da mãe e de seus
gigolôs e também nas instituições em que foi
internado. Apanhou tanto, a ponto de não conseguir
falar direito, e agora tem necessidade de levar uma
surra para conseguir satisfação sexual.
Fomos à casa dele. Pedi imediatamente o
dinheiro, apesar de ele ser um habitué com quem não
era necessário tomar tais precauções. Ele me deu
cento e cinqüenta marcos, e senti-me orgulhosa de lhe
tomar tanto dinheiro de maneira tão fácil.
Tirei minha blusa e ele me deu um chicote.
Pareceu-me que estávamos num filme. Tive a
impressão de que deixava de ser eu mesma. No início
não batia muito forte, mas ele pediu que eu batesse
mais forte. Eu mandei brasa. Ele gritava: "Mamãe!" e
coisas assim. Eu ignorava, e tentava não olhá-lo.
Apesar disso, via as marcas no seu corpo, algumas
partes inchavam e em outras, a pele arrebentara. Era
repugnante, e isso durou quase uma hora.
Quando terminou, vesti minha blusa e fugi
correndo. Desci a escada correndo. Mal cheguei lá
fora, meu estômago não agüentou mais e vomitei em
frente à casa. Depois, tudo acabado. Não chorei e não
tive piedade de mim mesma. Sabia muito bem que
estava na merda e não podia contar com ninguém, a
não ser comigo mesma. Fui à Estação Zoo. Detlef
estava lá. Não lhe contei grandes coisas, apenas que
saíra sozinha com Max, e mostrei-lhe os cento e
cinqüenta marcos. Ele tirou uma outra nota de cem do
bolso de sua calça. Partimos de braços dados para
comprar um monte de heroína de boa qualidade. Uma
jornada extraordinária.
Desde então eu mesma conseguia o dinheiro para
minha heroína. Fazia um sucesso terrível, podia
escolher meus clientes e ditar minhas próprias
condições. Nada de estrangeiros sujos. Para todas as
meninas do metrô Zoo os estrangeiros são o que há de
pior: eles tentam dar calote dizendo que não têm
dinheiro, e além disso eles querem mesmo é meter
sem preservativo.
Nunca trepei com nenhum deles. Isso em
consideração a Detlef e ao nosso último resto de vida
privada. Fazia tudo com as mãos e depois "à
francesa". Não era tão horrível quando eu fazia as
coisas no cara e não ele comigo. Não queria que eles
me tocassem. Se eles tentassem, dava o fora.
Tratava de acertar as condições logo de cara. Não
havia nem conversa com quem não me agradasse.
Perdia muito com este último resto de amor-próprio.
Encontrar um cliente conveniente que aceitasse todas
as minhas exigências acabava me tomando a tarde
toda. E raramente tínhamos tanta grana quanto no dia
em que saí pela primeira vez com Max, o gago.
Max era nosso cliente habitual. Íamos à casa dele
juntos ou sozinhos. No fundo era um cara legal, que
gostava de nós dois. É claro que com seu salário de
trabalhador braçal ele não poderia continuar a nos
pagar cento e cinqüenta marcos. Ele sempre se virava
para nos pagar quarenta marcos, que era o preço de
uma picada. Uma vez ele chegou até mesmo a quebrar
seu cofrinho, que, junto com algumas moedas que
estavam numa tigela, completou com muito esforço
meus quarenta marcos. Quando estava necessitada,
podia dar um pulo à casa dele e pedir-lhe uns vinte
marcos adiantados. Se ele tivesse, me dava.
Max sempre esperava por nós: para mim, suco de
pêssego, minha bebida preferida, e para Detlef, pudim
de sêmola, que ele adora. Era o próprio Max quem o
fazia, e o tinha sempre na geladeira. E como ele sabia
que eu gostava de comer qualquer coisa depois do
trampo, sempre comprava iogurtes e chocolates. O
flagelo tornou-se para mim uma coisa rotineira. Uma
vez terminada esta formalidade, eu comia, bebia e
conversava com Max.
O pobre emagrecia a olhos vistos. Tirávamos toda
a sua grana, e ele não tinha dinheiro nem para comer.
Ele se habituou de tal forma a nós, e estava tão feliz
com a gente, que quase não gaguejava quando
estávamos juntos. A primeira coisa que ele fazia de
manhã era comprar os jornais, só para saber se a lista
dos mortos por overdose não havia aumentado. Um
dia cheguei à casa dele para conseguir vinte marcos e
o encontrei pálido, gaguejando mais do que nunca. Ele
tinha lido que certo Detlef W. era a centésima vítima
da heroína naquele ano. Quase chorou de alegria
quando lhe disse que tinha acabado de deixar meu
Detlef mais vivo do que nunca. Ele me repreendeu, e
pela centésima vez: deveríamos deixar a heroína, que
iria acabar nos matando.
Respondi-lhe com ar glacial que se parássemos
não voltaríamos mais à sua casa. Ele não disse mais
nada.
Nossas relações com Max eram estranhas.
Odiávamos todos os clientes. Logo, odiávamos Max.
Nós achávamos que ele era um cara legal talvez pelo
fato de nunca ter inventado histórias quando tínhamos
necessidade de quarenta marcos. Além do mais,
sentíamos por ele algo como uma certa piedade. Eis
um cliente que, no fundo, era ainda mais miserável do
que nós. Ele era só, absolutamente só. Tinha somente
a nós. Arrebentava-se por nós, mas nem pensávamos
nisso. Nos meses seguintes iríamos arrebentar outros
clientes.
Às vezes passávamos a noite na casa de Max, e
tranqüilamente víamos televisão juntos antes de
dormir. Ele nos dava sua cama para dormirmos, e
dormia no chão. Uma noite em que estávamos todos
drogados, Max pôs uns discos loucos, colocou uma
peruca de cabelos longos, cobriu-se com um lindo
manto de pele e se pôs a dançar como um alucinado.
Quase morremos de rir enquanto assistíamos. De repente,
ele perdeu o equilíbrio e caiu batendo a cabeça
na máquina de costura. Ficou desmaiado por alguns
minutos. Ficamos apavorados. Chamamos o médico:
Max teve uma concussão cerebral. Devia ficar, mais ou
menos, duas semanas na cama.
Pouco tempo depois ele perdeu o emprego. Nunca
se drogou, nem mesmo para experimentar, e ei-lo
completamente fodido. Destruído por nós, drogados.
Ele nos pedia para ir vê-lo, somente para fazer
uma visita. Mas era preciso não pedir tal coisa a um
viciado, pois não se ajusta ao seu gênero. Primeiro, o
viciado é incapaz de tal gesto para com outrem. E,
além disso, talvez principalmente por isso, tenha de
camelar o dia inteiro pelo dinheiro de que tinha
necessidade para comprar sua droga. Detlef explicou
tudo isso a Max, que jurou que nos daria um montão
de dinheiro quando o tivesse. Um drogado disselhe
secamente Detlef é como um homem de
negócios. Ele deve cuidar para que suas coisas
estejam equilibradas. Ele não pode dar crédito sob
pretexto de simpatia ou amizade.
Pouco tempo depois de me ter iniciado como
puta, senti a alegria dos reencontros. Um dia, no
metrô, esperava um cliente e vi Babsi, a menininha
que há alguns meses me abordara no Sound para
pedir LSD. Babsi, a fujona que tinha tido oportunidade
de algumas cheiradas de heroína, antes de ser pega e
levada à casa de seus avós.
Nós nos olhamos, compreendemos imediatamente
qual era a nossa e nos jogamos nos braços uma da
outra. Estávamos muito felizes de nos revermos. Babsi
estava frágil, não tinha mais bunda nem peito. Mas ela
estava quase mais bonita que antes. Seus cabelos
caíam sobre os ombros, penteados impecavelmente, e
ela estava toda graciosa. Imediatamente vi que estava
encharcada de heroína. Mas estava certa de que quem
não a conhecesse nunca desconfiaria de que essa
maravilhosa adolescente era uma viciada.
Babsi estava muito calma. Nem um pouco agitada
como nós, que passávamos o dia todo caçando
dinheiro. Ela me explicou que não tinha necessidade
de se prostituir, e me ofereceu com que me picar e
alguma coisa para comer.
Subimos ao terraço. Era inútil contarmos o que
fazíamos, mas Babsi não me disse imediatamente
onde ela conseguia todo esse dinheiro e a heroína.
Somente me contou que, desde a sua fuga, sua família
era muito severa com ela. Ela devia voltar para casa
entre sete e oito horas e nada de cabular aula. Sua
avó a vigiava constantemente.
Foda-se, mas eu lhe perguntei o que fazia. Eu
tenho um cara. Um cara de certa idade, mas muito
legal. Vou à casa dele de táxi. Grana ele não dá, só
heroína. Três quartos por dia. Ele tem outras meninas
que vão vê-lo, e é a mesma coisa: ele lhes dá heroína.
Agora ele está gamado por mim. Vou por uma hora. É
claro que não trepo. Nada disso. Ele me pede para
ficar pelada, conversar, às vezes tirar uma fotografia
ou então lhe dar uma chupada.
O cara se chamava Heinz. Ele tinha uma
papelaria. Já tinha ouvido falar dele, um cliente muito
legal, que dava heroína diretamente para as garotas, o
que poupava andar-se à cata de heroína para cima e
para baixo. Tive inveja de Babsi, que voltava para
casa no máximo às oito horas e podia dormir quanto
quisesse pela manhã e levava uma vida muito mais
tranqüila do que a nossa.
Babsi tinha tudo, até muitas seringas. Não
usávamos seringas descartáveis, difíceis de serem
encontradas. A agulha da minha estava tão rombuda
que era obrigada a apontá-la na parte áspera da caixa
de fósforos. Babsi me prometeu três êmbolos e três
agulhas.
Alguns dias depois reencontrei Stella também na
Estação Zoo. Stella, a amiga de Babsi. Grandes
abraços. Stella também se drogava, é claro. Ela não
teve tanta sorte como Babsi. Seu pai morrera há dois
anos num incêndio, e sua mãe abrira um bar com um
amigo italiano e começara a beber. Stella sempre
roubou grana do caixa, mas um dia ela pegou
cinqüenta marcos da carteira do amigo de sua mãe e
ele percebeu. Depois disso ela não tinha coragem de
voltar para casa. Retornou à "cena".
Imediatamente começamos a falar dos clientes.
Stella fez um relato sobre Babsi, sua melhor amiga.
Era a degradação total. O tal Heinz era um cara
imundo, um velho gordo e suado. E Babsi dormia com
ele. Para mim será o fim de tudo disse Stella.
Dormir com um cara assim! Aliás, com qualquer
cliente. Ela deve ser do tipo que topa, logo de cara,
trepar com os estrangeiros sujos! Bem, chupar de vez
em quando, tudo bem. Mas trepar!
Estava transtornada, mas não entendia bem por
que Stella me contava tudo isso. Babsi me diria algum
tempo depois que Heinz fora cliente habitual de Stella.
Eis por que ela sabia bem o que ele exigia. Mais tarde,
eu mesma faria a experiência.
Stella trabalhava com motoristas, na "putaria de
crianças" da Kurfürstenstrasse, onde quase todas as
meninas de treze, catorze anos, eram viciadas. Fiquei
apavorada: subir num carro sem saber com quem iria,
por vinte marcos. Dois clientes por uma picada eu não
faria nunca!
Discutimos durante uma hora sobre a questão de
saber se era mais degradante se prostituir no Zoo ou
na Kurfürstenstrasse. Logo chegamos a um ponto
comum: Babsi era certamente a pior de todas, se
dormia com aquele cara.
Nos meses que se seguiram, eu, Babsi e Stella
discutíamos quase diariamente sobre a questão da
nossa honra de prostitutas. Cada uma tentava
demonstrar a si mesma e às outras que ainda não
descera ao ponto mais baixo da escala. E quando nos
encontrávamos somente em duas, falávamos mal da
terceira.
O ideal, evidentemente, era não ser obrigada a se
prostituir. No dia de nosso reencontro, Stella e eu nos
persuadimos de que isso era possível: conseguiríamos
dinheiro pedindo e roubando. Stella tinha mais do que
o suficiente para uma rodada.
Tinha uma idéia genial e faríamos imediatamente
a experiência num grande magazine, o Kadewe. No
banheiro era preciso esperar que as velhinhas se
fechassem na privada. Geralmente elas penduravam a
sacola na fechadura da porta. Uma vez que elas
tivessem vencido a batalha contra as roupas e
estivessem sentadas no vaso, de fora, com um soco
forte, faríamos descer a fechadura. A sacola cairia no
chão e seria fácil pegá-la passando a mão por sob a
porta. Evidentemente, as velhinhas não ousariam nos
perseguir com o traseiro à mostra e, até que elas se
vestissem, estaríamos longe.
Stella e eu nos colocávamos em posições
estratégicas no banheiro de senhoras do Kadewe. Mas,
a cada vez que Stella anunciava que chegara a hora,
tinha cólicas. Ela não queria trabalhar sozinha, e, além
do mais, seriam necessárias quatro mãos para pegar
rapidamente todas as sacolas. Fracassou a operação
"toalete para senhoras". Para roubar era preciso
nervos sólidos, o que nunca foi o meu forte e o seria
cada vez menos...
Após alguns insucessos desse tipo, Stella e eu
decidimos nos prostituir juntas. No metrô Zoo, como
eu havia insistido, fazíamos, então, clientes a duas.
Era muito mais vantajoso. Uma das vantagens era que
nós nos vigiávamos mutuamente, e cada uma sabia
até que ponto a outra aceitava o que fazer, mas não
conversávamos sobre isso, tudo estava subentendido.
Em duas nos sentíamos mais seguras, era mais difícil
nos darem cano e podíamos nos defender melhor se
um cliente não quisesse respeitar as condições. Além
do mais, a coisa ia mais rápido: uma se ocupava da
parte de cima e a outra, da parte de baixo, e o
assunto estava encerrado em dois tempos.
Por outro lado, encontrar clientes que aceitassem
pagar a duas meninas não era fácil. Havia os que
tinham medo: os caras experientes sabiam que
enquanto uma distraía a atenção, a outra podia muito
bem esvaziar-lhe a carteira. De nós três era Stella a
que mais queria trabalhar em dupla: como ela não
tinha mais o ar de criança, encontrava mais
dificuldades que eu e Babsi para conseguir clientes.
A que tinha maior facilidade era Babsi. Na
verdade, como Heinz preenchia as suas necessidades,
ela trabalhava somente para nós. Com seus treze
anos, sua cara de menininha inocente sem
maquilagem, sua silhueta esguia, na "prostituição de
crianças" ela era exatamente o que os caras vinham
buscar. Uma vez ela fez cinco clientes e ganhou
duzentos marcos em uma hora.
A introdução das duas meninas acabou criando
problemas nas minhas relações com Detlef. Nós nos
amávamos tanto quanto antes, mas brigávamos cada
vez mais. Detlef estava muito suscetível. Eu ficava
muito com Babsi e Stella, e isso não lhe agradava
muito. O que principalmente lhe desagradava, e ele
era obrigado a engolir, era que ele não escolhia mais
os meus clientes. Eu mesma os escolhia, ou então com
Babsi e Stella. Detlef me acusava de dormir com
clientes. Ele estava com um ciúme danado.
As minhas relações com Detlef não eram mais o
centro do universo. Eu o amava e o amaria sempre,
mas não dependia mais dele. Não tinha mais
necessidade de sua constante proteção nem da sua
droga. No fundo éramos agora como esses casais
modernos, que tanto sonham os jovens: duas pessoas
totalmente independentes. Algumas vezes na nossa
turma as meninas trocavam drogas entre si, assim
como os rapazes.
Nossa amizade não passava de uma amizade de
drogados. Todos nos tornávamos cada vez mais
agressivos. A heroína, a agitação em que vivíamos, a
batalha cotidiana pela heroína e pela grana, o stress
em casa (era preciso esconder o tempo todo, inventar
novas mentiras) colocavam nossos nervos a zero.
Acumulávamos tanta agressividade que não
conseguíamos mais nos dominar, mesmo entre nós.
Era com Babsi que eu mais me entendia; em
outras palavras, era a mais calma de todos nós. Íamos
freqüentemente para o "trabalho" juntas. Compramos
as mesmas saias negras justas com abertura até a
bunda. Por baixo, ligas pretas. Isso enlouquecia os
clientes: ligas pretas sobre nossos corpos
adolescentes. E ainda mais com as nossas carinhas de
crianças. . .
Pouco antes do Natal de 1976 meu pai saiu de
férias e me permitiu ficar em seu apartamento, onde
minha irmã estava sozinha. Pude levar Babsi. Já na
primeira noite, uma bruta briga. Babsi e eu brigamos
como feirantes, usando uma linguagem tão baixa que
minha irmãzinha, que tem um ano menos que eu,
começou a chorar. Ela não tinha dúvidas a respeito da
nossa vida dupla. Nós, quando brigávamos, utilizávamos
a linguagem de putas.
Na manhã seguinte, Babsi e eu éramos
novamente as melhores amigas do mundo. Era
sempre assim: quando dormíamos bem, a volta à
realidade se processava sem violência, ficávamos
bem-humoradas. Babsi e eu decidimos não nos picar
imediatamente. Iríamos esperar o máximo de tempo
possível. Uma experiência que faríamos
periodicamente. . . um verdadeiro esporte. Apenas
comentamos sobre a picada formidável com uma
heroína extraordinária que nos esperava.
Como duas crianças saboreando, por antecipação,
seus presentes de Natal.
Minha irmã acabou forçosamente compreendendo
que não estávamos em nosso estado normal. Ela não
sabia que nós fumávamos, pensava que estávamos
tentando algo novo. Ela jurou guardar segredo.
Babsi foi buscar o aromatizador de ricota. Ela
havia escolhido o sabor morango. Vivia quase
unicamente de ricota aromatizada. Minha alimentação
não diferia muito disso: queijo branco, iogurte, pudins
e uma espécie de bolinho frito que vendem no metrô
Kurfürstendamm. Meu estômago não suportava nada
mais além disso. Então Babsi preparou sua mistura.
Era como a celebração de um rito religioso: estávamos
as três na cozinha, Babsi preparava a mistura, e
minha irmã e eu contemplávamos com fervor.
Estávamos felizes por provar, logo após, um
gigantesco lanche de queijo branco. Depois do que,
evidentemente, Babsi e eu nos picaríamos.
Babsi acabou de bater a ricota, que se tornou
uma apetitosa massa cremosa, mas não pudemos
mais esperar. Falamos para minha irmã que pusesse a
mesa muito bonitinha e corremos a nos fechar no
banheiro. Aí começou o drama porque nós já
estávamos quase de bode.
Só nos restava uma seringa utilizável. Eu disse
que seria a primeira.
Babsi deu uma bruta bronca: Por que sempre
você? Hoje sou eu que começo. Além do mais, a
heroína é minha.
Aquilo me deixou furiosa. Concordava em que ela
tinha freqüentemente mais do que a gente e nos dava
um pouco, mas eu não suportava vê-la tirando
vantagem disso. Eu lhe disse: Escute aqui, minha
velha, você está me gozando. Você leva um tempão
para fazer isso. Era verdade, ela tinha necessidade
de, pelo menos, meia hora para se picar. Suas veias
não eram visíveis. E se não conseguia na primeira vez,
ela perdia as estribeiras, enfiava a agulha de qualquer
maneira, ficando cada vez mais nervosa. Seria uma
tremenda sorte se ela acabasse encontrando o lugar
certo.
Na época eu não tinha problemas com isso. Ou
Detlef me picava (um privilégio que lhe era reservado)
ou então eu me picava sempre no mesmo lugar, na
veia do braço esquerdo. Deu certo durante algum
tempo, até que ocorreu uma trombose e minha pele
ficou meio grossa. Então fiquei sem saber onde me
picar.
De qualquer maneira, naquela manhã obtive uma
vitória. Peguei a seringa e injetei exatamente como
deveria ser feito. A operação demorou apenas dois
minutos. Foi uma picada terrível. Meu sangue
borbulhava. Tinha calor. . . que calor! Joguei água no
rosto e depois disso me senti melhor e comecei a me
agitar.
Babsi, sentada na porta do banheiro, pôs o troço
no seu braço e começou seu teatro. Gritava: Merda,
estamos nos sufocando neste galinheiro! Abra esta
porcaria de janela.
Eu já tinha a minha dose... tudo bem... ela que se
danasse. Respondi-lhe: Não me encha. Se você está
num sufoco, o problema é seu.
Babsi deixava cair pingos de sangue por todos os
cantos, mas não encontrava sua veia. Ela perdia cada
vez mais a calma e gritava: Por que não há luz
nestes banheiros fodidos? Vá providenciar luz. Vá
procurar uma lanterna no quarto.
Tive a calma de ir e procurar a lanterna. Babsi
não parava com seu espetáculo... tive medo de que
minha irmã percebesse alguma coisa... mas acabei
trazendo. Nesse meio tempo, Babsi acertou a picada.
Ela se acalmou imediatamente, limpou
cuidadosamente a seringa, enxugou as manchas de
sangue da banheira e do assoalho. Não deu mais um
pio.
Voltamos à cozinha, e eu me aprontei para
saborear a ricota. Babsi pegou a tigela e começou a
esvaziá-la. Ela fez um esforço terrível, mas comeu
tudo o que havia dentro. Mal teve tempo de me falar:
Você sabe por quê.
Estávamos, as duas, contentes de passar alguns
dias no apartamento do meu pai. Logo na primeira
manhã tivemos a maior briga do século. Por nada. É
que os viciados, com o tempo, se transformam. A
droga destrói as relações entre as pessoas. Mesmo na
nossa turma, onde, talvez pelo fato de sermos muito
jovens, havia apoio mútuo.
As brigas com Detlef tornavam-se cada vez mais
maçantes. Estávamos bastante deteriorados
fisicamente. Eu não pesava mais que quarenta e três
quilos, tendo um metro e sessenta e nove, e Detlef,
cinqüenta e quatro quilos e um metro e setenta e seis.
Quando nos sentíamos fora de forma, e isso era
freqüente, tudo nos enervava e brigávamos um com o
outro. Tentávamos nos machucar de fato, cada um
atacando bruscamente o ponto mais vulnerável do
outro. Isto é, para nós o ponto fraco era a prostituição
(no entanto, quando não brigávamos, fazíamos de
conta que considerávamos a questão um negócio
secundário, rotineiro).
Exemplo: "Você acha que tenho vontade de
dormir com uma garota que trepa com os caras mais
nojentos?"
E eu: "Um cara que dá a bunda me enoja". Etc.,
etc.
Sempre acabava chorando. Às vezes a coisa
variava: Detlef ficava completamente nocauteado ou
então nós dois chorávamos juntos. Quando um de nós
estava em crise, o outro não precisava esforçar-se
muito para ficar completamente arrasado. Era difícil a
gente voltar a se abraçar apertado, um contra o outro,
como duas crianças. É que cada um via no outro a
imagem de sua própria degradação. Era horrível,
porque se um estava numa pior, então, encontrava o
outro, que também estava na mesma.
Ê claro que essa agressividade era, também,
descarregada sobre pessoas estranhas. Bastava a
imagem das vovós com suas sacolas cheias de
mantimentos, para que eu ficasse irritada. Então, a
primeira coisa que fazia era entrar na cabine de um
vagão de não-fumantes com um cigarro aceso. Se elas
ousassem me dar qualquer bronca, simplesmente dizia:
Os incomodados que se mudem. O meu
maior prazer consistia em fazer uma daquelas velhotas
se mandar para eu poder sentar. O cigarro que eu
costumava fumar fazia uma fedentina danada dentro
do vagão, e às vezes até eu mesma era expulsa
violentamente. Eu mesma me enervava com o meu
comportamento, e mais ainda quando via Stella e
Babsi fazerem a mesma coisa. Mas como eu não
queria papo com aquela gente, não via outra saída.
Era-me totalmente indiferente o que os outros
pensavam de mim. Quando começavam aquelas
terríveis coceiras, que afetam todas as partes do corpo
e até mesmo sob a maquilagem, não me preocupava
com quem quer que estivesse do meu lado.
Simplesmente tirava as minhas botas, levantava a saia
até o umbigo, e me coçava pra valer. Para mim
somente importava a opinião que a turma tinha a meu
respeito.
Entre os viciados chega um momento que já nada
mais importa, em que já não pertencemos mais a
nenhuma turma. Eu conhecia alguns dos viciados mais
antigos, aqueles que já se picavam há mais de cinco
anos e ainda sobreviviam. Com relação a esses,
tínhamos uma espécie de admiração especial, pois
tinham uma personalidade muito forte. Dava-nos,
também, um certo orgulho poder contar aos outros na
"cena" que os conhecíamos. Paradoxalmente eu os
desprezava, pois eram a total degradação humana.
Por outro lado, nós, os jovens, tínhamos muito medo
deles. Não lhes restava mais nada, nem moral, nem
consciência, e muito menos piedade. Quando se
encontravam em estado de crise total, eram capazes
até mesmo de matar para obter heroína. O mais
agressivo de todos chamava-se Manu, o Vilão. Todos o
chamavam assim, e ele honrava o seu apelido.
Quando os revendedores o avistavam, corriam mais
depressa do que diante de uma batida policial, pois
caso ele conseguisse segurar um, simplesmente lhe
roubava todo o estoque. Ninguém da turma ousava
ficar contra ele. E com os viciados iniciantes, nem
falar. . .
Uma vez eu o vi em ação. Eu havia acabado de
me fechar em um banheiro para me picar e, de
repente, vi um cara saltar por cima do muro de
separação e cair em cima de mim. Era o próprio!
Tinham-me contado que esse era seu modo de agir:
esconder-se nos banheiros de senhoras e esperar que
uma menina viesse se picar.
Sabendo que ele não hesitaria em me bater, deilhe
imediatamente minha dose e a seringa. Ele saiu,
ficou diante do espelho e se picou no pescoço. Esse
cara não tinha mais medo de nada, e aquele era o
único lugar de seu corpo em que podia enfiar uma
agulha. Ele sangrava como um porco. Acho que ele se
picou na artéria. Ele não dava bola. Disse apenas
"obrigado" e desapareceu.
Eu, pelo menos, nunca chegarei a esse ponto.
Estou certa disso, pois, para sobreviver tanto tempo
quanto Manu, o Vilão, é preciso ser muito forte. E esse
não é o meu caso.
Na nossa turma tudo girava, cada vez mais, em
torno da "viração" e dos clientes. Os rapazes tinham
os mesmos problemas que nós. Nós nos
interessávamos uns pelos outros e nos auxiliávamos
mutuamente. Nós, as meninas, trocávamos nossas
experiências. Com o tempo o círculo de clientes se
restringiu, e o novo, para mim, possivelmente já era
conhecido por Babsi ou Stella. Era muito útil conhecer
o terreno antecipadamente.
Havia uns caras mais recomendáveis e outros,
menos. Havia aqueles que seria melhor evitar. Uma
classificação onde interessava a profissão do cliente, a
situação da família, etc. Aliás, nós nunca falávamos
das confidencias que eles nos faziam sobre suas vidas
privadas. A única coisa que nos importava era saber se
ele era ou não um "bom cliente".
O "bom cliente" era, por exemplo, aquele que
tinha um medo pavoroso de doenças venéreas e usava
preservativo. Infelizmente era raro. A maior parte das
meninas que se prostituíam de uma forma não
profissional acabavam pegando alguma coisa, mas não
iam ao médico, de medo que ele percebesse que elas
se drogavam.
O "bom cliente" era também o cara que pedia, ele
mesmo, que o chupássemos e não queria nada mais.
Isso evitava a perda de tempo na discussão das
condições. Mas dávamos, também, um crédito ao cara
relativamente jovem e não muito gordo. Havia ainda
aquele que não nos tratava como mercadoria e se
mostrava mais ou menos amável e que chegava até a
nos convidar para jantar, de vez em quando.
Mas o principal critério era, evidentemente, a
relação qualidade-preço; o que o cara estava disposto
a pagar em troca do serviço prestado. A evitar: os
caras que não respeitavam as condições e, uma vez no
hotel, tentavam nos roubar, com ameaças ou com
palavras bonitas, "algumas coisas mais"... Trocávamos
principalmente informações sobre os piores, traçando
o perfil mais preciso possível: os caras que depois
queriam recuperar o dinheiro usando até a força, se
fosse necessário, dizendo que não se tinham satisfeito.
É verdade que esse tipo de coisa acontecia mais
freqüentemente com os rapazes.
Chegamos ao ano de 1977. Não vi o tempo
passar. Mal percebia se era inverno ou verão, Natal ou
Ano-Novo, para mim todos os dias eram quase iguais.
Ganhei dinheiro como presente de Natal, o que me
permitiu fazer um ou dois clientes a menos. De todo
jeito, nesse período de festa quase não havia clientes.
Passei algumas semanas totalmente pirada. Não
pensava em nada, não percebia mais nada. Estava
totalmente fechada em mim mesma, mas não sabia
quem era eu. Às vezes não sabia nem mesmo se
estava viva.
Alguns acontecimentos dessa época mal ficaram
gravados em minha memória. Aliás, nenhum deles
valia a pena ser guardado em minha massa cinzenta.
Isso até certo domingo de janeiro. Voltei para casa de
madrugada, e no fundo até me sentia bem. Deitada
em minha cama, me imaginava uma menina de volta
do baile. Ela conheceu um garoto muito bonito e se
apaixonou. Agora só me sentia mais ou menos feliz
quando me imaginava uma outra pessoa. Meu sonho
preferido era me imaginar uma adolescente feliz, tão
feliz quanto aquela que faz publicidade da Coca-Cola.
Ao meio-dia minha mãe me acordou e me trouxe
o almoço na cama. Ela sempre fazia isso quando
estava em casa, no domingo. Fiz esforço para engolir
algumas colheradas. Foi difícil: além do iogurte, do
queijo branco e do manjar, nada mais me descia.
Depois peguei minha sacola de plástico, que estava
em estado pavoroso: não tinha mais alça e estava
toda arrebentada porque punha ali minha roupa, além
da seringa e dos cigarros.
Como estava completamente indiferente, não me
ocorreu a idéia de trocá-la. Além disso, nem me
ocorreu a idéia de evitar passar diante de minha mãe
com o saco plástico embaixo do braço, a caminho do
banheiro. Eu me fechei no banheiro. Em casa ninguém
fazia isto. Como todos os dias, me olhei no espelho. Vi
um rosto estranho, estragado. Havia muito tempo que
não me reconhecia mais naquela imagem do espelho.
Aquele rosto não me pertencia, nem aquele corpo
esquelético. O corpo, aliás, eu nem sequer o sentia.
Nem mesmo quando estava doente se manifestava. A
heroína o tornara insensível à fome, à dor e até
mesmo à febre. Ele só despertava quando estava em
crise.
De pé, diante do espelho, preparei a picada. Tinha
um pouco da especial, a "cinzenta". Chamamo-la
assim, por oposição à branca, de cor branca ou
acinzentada, que geralmente encontramos no
mercado. A "cinzenta" é um pó cinzento salpicado de
verde, heroína particularmente impura, mas que
provoca um flash louco. Age sobre o coração, e é
preciso fazer a dosagem com muito cuidado: se
injetamos muito, morremos. Mas tinha tanta vontade
desse super flash...
Enfiei a agulha na veia, inspirei, e o sangue subiu
logo depois. Havia filtrado muitas vezes minha
"cinzenta", mas ela ainda tinha um monte de sujeira.
Pronto: a agulha entupiu. O que poderia acontecer a
seguir era mais ou menos isso: a agulha entupiria no
momento preciso, pois, se o sangue se coagulasse na
seringa, não havia mais nada a fazer, era preciso jogar
fora a dose.
Apertei com todas as minhas forças para fazer
passar a sujeira pela agulha. Tive sorte, funcionou.
Acionei, mais uma vez, a seringa para injetar até a
última gota. A agulha voltou a entupir. Fiquei furiosa.
Faltavam de oito a dez segundos para eu atingir o
flash. Apertei com todas as minhas forças. A agulha se
soltou, e o sangue espirrou no chão.
O flash foi uma coisa louca. Uma cãibra pavorosa
na região do coração. Um milhão de agulhas me
atravessaram a pele do crânio. Segurei minha cabeça
com as duas mãos, para impedi-la de estourar com as
marteladas. Parecia que alguém estava me dando
socos. E de repente meu braço esquerdo estava
paralisado.
Quando consegui me mexer, peguei o lenço de
papel para limpar as manchas de sangue. Felizmente a
parede do banheiro era azulejada e foi fácil limpá-la.
Enquanto estava limpando, minha mãe batia na porta.
Ela já começava a dar bronca: Abra. Deixe-me
entrar. Por que você fechou a porta? Mais uma mania.
Eu: Cale a boca. Acabo logo. Ela me irritava
pressionando justamente naquele momento. Esfreguei
como uma louca. Na minha pressa, esqueci algumas
manchas e deixei o lenço sujo de sangue na banheira.
Abri a porta, e minha mãe entrou de supetão. Não
desconfiou de nada, acho que ela estava com vontade
de mijar. Carreguei minha sacola de plástico para meu
quarto, me deitei e acendi um cigarro.
Mal tinha dado minha primeira tragada, minha
mãe entrou correndo em meu quarto. Gritava: Você
se droga!
Eu: Que idéia. O que te faz falar assim?
Ela se jogou para cima de mim e me forçou a
abrir os braços. Não me defendi. Minha mãe viu
imediatamente a marca fresca da picada. Ela pegou o
saco plástico e o esvaziou na cama. A seringa caiu, um
pouco de fumo e um monte de pedaços de papel de
alumínio. Eles serviam para embrulhar a heroína e eu
os guardava quando estava em crise e na
impossibilidade de encontrar droga, raspava-os com
minha lima de unha e preparava uma picada com o pó
da heroína recolhida.
Minha mãe não tinha necessidade de outras
provas. Aliás, ela tinha compreendido tudo, vendo o
banheiro: além do lenço e das manchas de sangue, ela
havia descoberto traços de queimado na colher em
que esquentei minha droga. Ela havia lido alguns
artigos sobre a heroína... o suficiente para deduzir.
Não procurei negar. Fiquei arrasada, apesar da
terrível picada que acabava de tomar. Chorei, incapaz
de pronunciar uma palavra. Minha mãe também não
falou mais nada. Ela tremia. Isso lhe provocou um
tremendo choque. Saí do meu quarto e a ouvi
conversando com seu companheiro Klaus. Tinha um ar
mais calmo e me perguntou: Você não pode fazer
nada contra isso? Você não quer parar?
Respondi-lhe: Mamãe, é o meu maior desejo.
Sinceramente. Você pode acreditar em mim. Quero
sair de fato desta merda.
Ela falou: Bem, então vamos enfrentar isso
juntas. Vou tirar umas férias para poder estar todo o
tempo com você, durante a privação da droga. E
começamos hoje.
Eu: Magnífico. Mas há outra coisa. Eu não fico
sem Detlef. Tenho necessidade dele, e ele de mim. Ele
também quer se desintoxicar. Conversamos muitas
vezes sobre isso.
Minha mãe estava estupefata. O quê? Detlef
também? Ela sempre o achara genial e estava
muito contente de que eu tivesse um amigo tão gentil.
Respondi: Detlef também, naturalmente. Você acha
que eu teria feito isso sozinha? Detlef não teria
permitido. Mas ele não quer que eu me desintoxique
sem ele.
Sentia-me muito bem. De repente estava toda
feliz com a idéia de que Detlef e eu iríamos nos
desintoxicar juntos. Aliás, era um projeto que
tínhamos há muito tempo. Mas minha mãe estava
numa pior. Pensei que de um momento para outro ela
iria ter uma crise de nervos. A história de Detlef lhe
dera outro golpe. Era um choque enorme para ela
saber que não vira e nem pressentira nada durante
dois anos. Agora ela começava a desconfiar de outras
coisas: queria saber como me virava para arranjar
dinheiro. E logo em seguida ela disse: E a
prostituição e tudo o mais?. . .
Mas não podia, não tinha forças para lhe dizer a
verdade. Menti: Ah, pedimos dinheiro. Sempre
encontro pessoas que me dão alguns marcos. Às
vezes, trabalho como faxineira.
Minha mãe não insistiu. Como sempre, ela ficava
com um ar muito feliz quando eu aquietava os seus
medos. De qualquer jeito, ela soubera o suficiente.
Estava a nocaute. Ela me dava pena, fiquei com a
consciência pesada de vê-la daquele jeito.
Partimos sem perda de tempo em busca de
Detlef. Ele não estava na Estação Zoo, nem na casa de
Axel e Bernd.
À noite, fomos ver seu pai. Os pais de Detlef
também eram divorciados. Seu pai era funcionário
público. Havia muito tempo que ele sabia de Detlef.
Minha mãe o condenou por não lhe ter dito nada. Ele
começou a chorar. Era muito duro, para ele, ter um
filho que se picava e se prostituía. Estava feliz de ver
minha mãe tomar pulso da situação. Repetia sem
parar: Sim, é preciso fazer qualquer coisa.
O pai de Detlef guardava em um armário toda
uma coleção de soníferos e de tranqüilizantes. Ele me
deu alguns, pois lhe disse que não tínhamos Valium, e
sem ele uma privação de drogas seria atroz. Peguei
quatro ou cinco Mandrix, um tubo de Gemetrin e
cinqüenta Valium-10. No caminho de volta, no metrô,
tomei um monte de comprimidos, pois sentia que a
crise ia chegar. Aquilo funcionou, e passei uma noite
agradável.
Na manhã seguinte Detlef tocou a campainha.
Estava em plena crise de privação. Era legal paca, de
sua parte, ter vindo assim sem se picar antes. Sabia
muito bem que não tinha mais heroína. Falou:
Quero estar no mesmo ponto em que você para
começar o tratamento de privação de drogas. Que
cara formidável!
Como eu, Detlef queria sinceramente se
desintoxicar. E ele estava muito contente com o que
acontecera. O único senão era que nós dois
ignorávamos, e nossos pais também, que é uma
loucura fazer desintoxicação a dois, pois sempre chega
o momento em que um tem uma recaída e arrasta o
outro junto. É claro que tínhamos ouvido falar, mas
ainda tínhamos ilusões a respeito. Estávamos
convencidos de que não éramos iguais aos outros
toxicômanos. Além de tudo, parecia-nos
absolutamente fora de propósito um de nós fazer
qualquer coisa de importante sem o outro.
Graças às pílulas do pai de Detlef, não houve
problemas pela manhã. Falávamos do que seria nossa
vida "depois" (víamos tudo cor-de-rosa) e nos
prometíamos agüentar a barra corajosamente nos
próximos dias. Estávamos felizes, apesar da dor que
começava.
À tarde, todos os diabos se libertaram. Tomamos
pílulas aos montes, acompanhadas de copos cheios de
vinho. Mas não serviu para nada. Senti um peso
enorme atrás do joelho. Deitei esticando as pernas,
tentei me distender e contrair alternadamente meus
músculos. Mas perdi o controle. Apoiei minhas pernas
no armário. Elas grudaram no armário e não havia
maneira de soltá-las. Rolei no chão, mas meus pés
ficaram, não sabia muito bem como, colados no
armário.
Estava molhada, com um suor gelado que me caía
nos olhos. Tinha frio, tremia, e aquele odor de suor
fedia horrivelmente. Devia ser o veneno que saía por
todos os meus poros. Tinha a verdadeira impressão de
estar em pleno exorcismo.
Para Detlef foi pior ainda. Estava péssimo. Tremia
de frio e tirou a blusa. Sentou-se no meu lugar
favorito, no canto, ao lado da janela, mas parecia que
estava correndo: suas pernas magras como palitos de
fósforos não paravam de ir e vir, agitadas por
sobressaltos terríveis. Não era nem um terremoto, era
um verdadeiro sismo. Ele limpava sem parar o suor
que lhe inundava o rosto, dobrava-se em dois,
contorcia-se, gritando de cãibras no estômago.
Detlef fedia mais que eu. A sala estava toda
infestada. Eu me lembrei de ter ouvido alguém dizer
que a amizade entre viciados nunca resiste a um
tratamento de desintoxicação bem-sucedido. Mas eu
ainda amava Detlef, mesmo fedendo.
Detlef se levantou, se arrastou até meu quarto e
ficou diante do espelho dizendo: Não agüento mais.
Não encontrei nenhuma resposta para lhe dar. Não
tinha forças para dizer palavras de encorajamento.
Tentei não pensar como ele. Tentei me concentrar em
um romance de terror comprado a preço de banana.
Dei uma folheada numa revista, mas, como estava
nervosa, acabei rasgando-a.
Tinha a boca e a garganta terrivelmente secas. No
entanto, minha boca estava cheia de saliva. Não
conseguia engoli-la, e comecei a tossir. Quanto mais
me esforçava para engolir a saliva, mais tossia. Tive
um acesso de tosse que não acabava mais. Vomitei
sobre o tapete. Era uma espécie de espuma branca
(meu cachorro vomitava assim quando engolia erva).
Tossia e vomitava, tossia e vomitava.
Minha mãe ficava quase todo o tempo na sala de
estar. Quando vinha nos ver, tinha um ar perdido. Não
parava de correr ao centro comercial para comprar uns
troços que éramos incapazes de engolir. Por fim, ela
me trouxe bombons de malte, o que funcionou. Minha
tosse acabou. Minha mãe limpou o tapete. Ela foi
adorável, e eu não podia nem mesmo lhe dizer
"obrigada".
Os comprimidos e o vinho depois começaram a
agir. Engoli cinco Valium-10, dois Mandrix, e quase
esvaziei uma garrafa de vinho. O suficiente para
abater um cara normal por muitos dias. Mas meu
organismo mal reagiu, tal era o grau de intoxicação.
Ao menos isso me acalmou. Deitei na cama. Pusemos
uma caminha ao lado, e Detlef veio se deitar. Nós não
nos tocávamos. Cada um estava absorvido consigo
mesmo. Caí numa espécie de sonolência. Dormia, mas
não percebia meu sono, pois tinha plena consciência
daquelas dores de merda. Tudo de uma só vez. Tinha
a impressão de que todos, principalmente minha mãe,
podiam ler meus pensamentos imundos, ver que eu
não passava de um monte de merda. Tive horror de
meu corpo. Se ele pudesse morrer e se separar de
mim...
À noite, voltei a tomar alguns comprimidos. Um
indivíduo normal morreria. Para mim, isto me permitia
ao menos dormir algumas horas. Um sonho me
despertou: eu era um cão que sempre fora bem
tratado pelos homens, até o dia em que o prenderam
em um canil e o torturaram até a morte.
Detlef agitava os braços para todos os lados e me
batia involuntariamente. A luz estava acesa. Ao lado
da minha cama uma bacia cheia d''água e uma
esponja. Foi minha mãe que as trouxe. Limpei meu
rosto cheio de suor.
Parecia que Detlef dormia profundamente, mas
seu corpo se agitava, suas pernas pedalavam e seus
braços pareciam molinetes.
Agora eu já me sentia um pouco melhor. Tinha
forças para limpar o rosto de Detlef com a esponja. Ele
não se dava conta de nada. Estava certa de que o
amava apaixonadamente. Um pouco mais tarde, em
meu meio sono (adormeci de novo), sentia que Detlef
passava a mão nos meus cabelos.
Na manhã do dia seguinte estávamos bem
melhor. A velha regra segundo a qual o segundo dia
do tratamento é o mais terrível não se aplicava a nós.
A verdade é que o nosso primeiro tratamento foi bem
mais fácil que os outros que se seguiram. Ao meio-dia
recomeçamos até a conversar. Primeiro coisas sem
importância e, em seguida, sobre nosso futuro.
Juramos nunca mais tomar heroína, LSD OU
comprimidos. Queríamos ter uma vida calma, cercada
de pessoas tranqüilas. Fumaríamos maconha como
antes (para nós, eram os "bons tempos"), porque
queríamos ter amigos fumantes, pois, em geral, são
pessoas muito calmas. Evitaríamos os alcoólatras, que
são tipos muito agressivos.
Detlef iria trabalhar. Vou procurar meu expatrão
e lhe direi que fiz besteiras, mas que agora
compreendi... voltei a ser um cara que pensa. No
fundo, meu patrão sempre se mostrou compreensivo.
Recomeçarei meu aprendizado... desde o início...
Eu serei uma aluna aplicada, conseguirei o meu
diploma e talvez até chegue a fazer o exame
vestibular.
Aí minha mãe entrou, com uma surpresa genial:
ela estivera com o médico, que lhe dera uma receita
para Valeron. Detlef e eu tomamos, cada um, vinte
gotas, como prescreveu o médico. O Valeron deu
certo. Tomamos cuidado para não abusar, pois o
frasco deveria durar a semana toda. Minha mãe nos
preparou alguns pratinhos, pois tínhamos um apetite
fora do comum. Ela nos comprou sorvetes e tudo o
que queríamos. Um monte de coisas para ler. Histórias
em quadrinhos. Antes eu achava história em
quadrinhos uma chatice. Agora não me contentava
mais em dar uma olhadinha. Detlef e eu, juntos,
olhávamos cada desenho e achávamos alguns tão
gozados que nos dobrávamos de rir.
No terceiro dia, estávamos em forma. É claro que
seguíamos encharcados de medicamentos: Valeron,
Valium, vinho. Às vezes nosso organismo ainda se
defendia contra o tratamento, mas em geral nos
sentíamos muito bem. Na noite do terceiro dia fizemos
amor pela primeira vez, depois de muito tempo, pois a
heroína nos tirava a vontade. E, pela primeira vez
desde que tinha sido desvirginada, fizemos amor sem
estar drogados. Foi fantástico. Havia muito tempo que
não nos amávamos assim tão intensamente. Ficávamos
horas na cama, nos acariciávamos e seguíamos
transpirando.
Na verdade, poderíamos estar de pé desde o
quarto dia, mas passamos três dias mais, deitados,
nos amando, sendo badalados por minha mãe e a
engolir Valium e vinho. Nós comentávamos que o
tratamento não era tão terrível e que seria formidável
desligar-nos da heroína.
No sétimo dia estávamos de pé. Mamãe estava
toda contente. Ela nos beijou. A semana que
acabávamos de viver transformara minhas relações
com ela. Senti por ela qualquer coisa semelhante a
amizade e gratidão. E estava também loucamente feliz
de ter Detlef... reencontrei a felicidade. Pensei: "Um
rapaz assim, não há dois no mundo". E se entre os
outros viciados o tratamento mata o amor, para nós
foi o contrário... nós nos amávamos ainda mais. Foi
formidável.
Falamos a minha mãe que tínhamos vontade de
tomar ar fresco, pois acabávamos de passar a semana
toda fechados em um quarto minúsculo. Ela aprovou:
Para onde vamos? perguntou Detlef. Não tinha
nada a lhe propor. Percebemos, naquele momento,
que não tínhamos mais para onde ir. Todos os nossos
amigos eram viciados. E todos os lugares que
conhecíamos e onde nos sentíamos bem eram lugares
em que nos picávamos. Encontrar os fumadores de
maconha? Não tínhamos mais contato com eles.
De repente comecei a me sentir mal. Não
tínhamos mais Valeron, e, por isso, estávamos
nervosos e tivemos vontade de sair. O fato de não
sabermos onde ir nos punha nervosos. Eu me senti de
repente limpa, vazia... a heroína acabara, e não
sabíamos para onde ir.
Fomos em direção ao metrô. Automaticamente,
mesmo sem ter decidido. Sem ter consciência,
estávamos como que presos por um fio invisível.
Estávamos novamente na Estação Zoo. Detlef, quieto
desde a nossa saída, finalmente abriu a boca: É
preciso ao menos irmos cumprimentar Axel e Bernd.
Eles devem pensar que estamos presos ou no cemitério.
Eu, bruscamente aliviada, falei: É claro.
Precisamos contar-lhes do nosso tratamento. Talvez
possamos convencê-los a fazer o mesmo.
Encontramos quase em seguida Axel e Bernd.
Eles estavam cheios de droga, a jornada tinha sido
boa. Detlef contou tudo. Eles acharam formidável o
que fizemos. E, depois de nos terem felicitado,
disseram que voltariam para casa, para se picar.
Detlef e eu trocamos olhares. Nossos olhares se
cruzaram e sorrimos. Ocorreu-me um pensamento: o
primeiro dia seria uma loucura. Detlef disse: Sabe
que poderíamos tomar uma picadinha aqui ou acolá? É
extraordinário, pois não somos dependentes. Tudo o
que é preciso fazer é tomar muito cuidado para não
recair em dependência, pois nem me imagino
passando por outro tratamento.
Eu: É claro, uma picadinha de vez em quando é
muito legal. Aliás, agora estamos prevenidos, e nós
sabemos muito bem que é preciso desconfiar da
dependência. Perdi toda a razão. Só tinha um
pensamento: me picar.
Deflet disse a Axel: Você pode nos dar um
pouco? Prometo que lhe devolveremos. Axel e
Bernd acharam que seria melhor pensar bem na coisa
e nos disseram que na semana seguinte fariam como
nós. Era só encontrar Valeron. Seria legal paca voltar
ao trabalho e comprar heroína de vez em quando.
Duas horas depois de termos deixado o
apartamento de minha mãe, Detlef e eu estávamos
novamente drogados. Foi bom demais. Caminhávamos
de braços dados na Kurfürstens-trasse. Era formidável
estar drogado e passear assim, sem pressa, sem ter
que se preocupar com a maneira de ganhar dinheiro
para a heroína da manhã seguinte. Detlef me disse
todo feliz: É isso aí, amanhã de manhã faremos um
pouco de ginástica e tocaremos para a frente uma
jornada sem heroína.
Ele parecia duro como ferro. Nossa primeira ilusão
foi ter imaginado que a semana que passamos na casa
de mamãe, sofrendo e vomitando, tinha sido uma
verdadeira desintoxicação. O veneno, pelo menos,
saíra. Conseguimos eliminar de nossos corpos a
heroína. Mas, por outro lado, nos entupíamos cada vez
mais com Valeron, Valium, etc. E nem pensávamos o
que fazer depois da desintoxicação física. Minha mãe
também era ingênua. Ela tinha esperanças de que
tivéssemos saído daquela. Como, aliás, podia ela saber
que não era bem assim?
Nós, na verdade, deveríamos saber. Tínhamos
muitos exemplos à vista. Mas não queríamos olhar as
coisas de frente. Além disso, não passávamos de duas
crianças, e muito ingênuas. Com muita experiência, é
bem verdade, mas isso não mudava nada.
Agüentamos firme durante quase um mês.
Conseguimos fazer o que nos propuséramos fazer:
nada de prostituição, a picada somente quando
tivéssemos um pouco de dinheiro ou quando nos
dessem uma dose de heroína. Mas, mesmo que a
gente não quisesse admitir, estávamos cada vez mais
à caça dos meios para encontrar dinheiro ou de uma
alma caridosa que nos desse a heroína.
Foi um período sensacional. Não ia à aula, pois
minha mãe queria que as primeiras semanas sem
heroína fossem particularmente agradáveis para mim.
E permitiu que Detlef continuasse a morar em casa.
Detlef me revelava novos aspectos de sua
personalidade, e eu o amava ainda mais, se é que isso
é possível. Ele estava despreocupado, alegre, cheio de
novas idéias. Éramos dois adolescentes de bom humor
e cheios de entusiasmo. Ao menos assim parecia. . .
Fizemos grandes passeios pela floresta. Às vezes
levávamos meus dois gatos e os deixávamos subir nas
árvores. Fazíamos amor quase todas as noites. Tudo
era maravilhosamente legal. Às vezes, passávamos
três dias sem nos picar. Quando encontrávamos
heroína, nos mandávamos o mais rápido possível
desse lugar imundo que é a Estação Zoo. Nosso lugar
favorito era a Kurfürstendamm: passeávamos
misturando-nos com a multidão de burgueses. No
fundo, gostaríamos de ser como eles (um pouquinho
diferentes). Em todo caso, queríamos nos mostrar,
mostrar ao mundo inteiro que, mesmo que nos
picássemos, não éramos viciados.
Fomos, completamente drogados, à discoteca dos
"bem-comportados". Olhamos os outros, jovens e
burgueses "como era preciso ser", pensando que
éramos quase como eles, os não-drogados. Às vezes
passávamos o dia inteiro em casa, olhando pela janela
e contando histórias, tratando de colher folhas de
ervas daninhas que cresciam nas árvores diante do
prédio.
Eu me pendurava na janela, Detlef me segurava
pelas pernas e conseguia pegar algumas folhas. Nos
beijávamos, imitando doidos, ríamos. E a maior parte
do tempo nos comportávamos como infelizes imbecis.
Nunca falávamos seriamente do nosso futuro. Às
vezes, muito raramente, me sentia mal quando
aparecia um problema. Por exemplo, quando Detlef e
eu brigávamos por uma besteira qualquer. Não
conseguia sair daquela, ficava me remoendo e tinha
medo de perder o controle por uma coisinha tão boba.
Quando isso acontecia, tinha vontade de me picar,
porque resolveria o assunto de uma só vez.
Mas havia um problema. Klaus, o companheiro de
minha mãe, criou um caso por causa de Detlef. Disse
que o apartamento era muito pequeno para mais um.
Minha mãe não ousava enfrentá-lo, e eu, mais uma
vez, estava totalmente desamparada. Mais ou menos
como no dia em que Klaus deu ordem para me separar
de meu cão. De uma só vez tudo desmoronou. Era o
fim da vida tranqüila. Era preciso que eu voltasse à
escola, e Detlef não tinha mais o direito de passar a
noite comigo.
Nem sequer me dei conta de que faltei três
semanas às aulas. De qualquer forma, havia muito
tempo que perdera o fio da meada. Mas tinha um novo
problema: o fumo. Quando não estava drogada,
fumava quatro ou cinco maços seguidos, por dia. E,
desde a primeira hora de aula, não agüentava mais,
saía para fumar alguns cigarrinhos no banheiro. E
continuava a fumar toda a manhã, a ponto de vomitar.
Vomitava na cesta de papéis, logo que chegava à sala
de aula.
Pela primeira vez, depois de três semanas, não
veria Detlef durante o dia. No dia seguinte, tive um
pressentimento, e, na saída da escola, fui ao Zoo. Meu
Detlef estava lá. Esperava um cliente.
Não suportei reencontrá-lo naquele lugar imundo,
esperando alguns caras nojentos. Mas ele me explicou
que não tinha nem uma rodada a mais. Não sabia o
que fazer. Voltou a dormir na casa de Axel e Bernd, ia
todos os dias à Estação Zoo e voltara a tomar sua
heroína cotidiana. Se eu quisesse vê-lo, seria preciso
que eu voltasse para lá. Só tinha a ele. Ninguém mais.
Não poderia viver sem ele. Voltei, quase todos os dias,
à Estação Zoo.
A mãe de Christiane
Naquele domingo, quando vi manchas de sangue
no banheiro e vi o braço de Christiane, a verdade me
saltou aos olhos. Foi um duro golpe. Christiane me fez
constatar a falência dessa educação da qual eu tanto
me orgulhava. Naquele dia compreendi que tinha feito
tudo errado. Uma idéia fixa me orientava: não repetir
os erros que meu pai cometera ao nos educar.
Quando Christiane começou a freqüentar o Sound
não gostei nada, nada. Sua amiga Kessi e outras
meninas do Centro de Jovens iam ao Sound. Por que
não deixá-la ir também? Pensava em todos esses
pequenos prazeres que, graças ao meu pai, não pude
ter quando era jovem.
Continuei a ser tolerante quando Christiane me
apresentou seu amigo Detlef. Ela o havia conhecido no
Sound. Ele me deu muito boa impressão: boas
maneiras, aberto e simpático. Um bom menino. Achei
perfeitamente normal que Christiane se enamorasse
dele. Pensava: é a idade do primeiro amor, e o
importante é que seja um bom menino. Percebia que
ele gostava verdadeiramente da minha filhinha.
Se naquela época alguém me houvesse dito que
os dois se picavam, eu o chamaria de louco. Não
percebi nada de especial além dos sentimentos de
Christiane por Detlef.
Antes, Christiane era rebelde e indisciplinada, e
agora parecia mais calma e equilibrada. Parece que
mesmo na escola as coisas iam melhor.
Depois das aulas nos telefonávamos e ela me
dizia o que pretendia fazer: ir à casa de uma amiga,
esperar Detlef na saída do seu trabalho. Nada que
parecesse repreensível. Durante a semana, ela
geralmente voltava para jantar. Se fosse chegar
atrasada, me telefonava. Às vezes saía à noite para ir
ao Centro de Jovens ou encontrar-se com amigos
ao menos era isso que me contava.
Recomeçou a me ajudar nos afazeres domésticos,
e eu, em recompensa, dava-lhe uns presentinhos: um
disco, um marco a mais na mesada. Meu companheiro
Klaus não concordava comigo, pois achava que eu
deveria pensar em mim de vez em quando, em vez de
me deixar explorar. Em certo sentido talvez Klaus
tivesse razão, mas eu me sentia obrigada a fazer
alguma coisa de especial por Christiane, de indenizá-la
por alguma coisa. Na época eu não conseguia ver claro
qual a razão disso.
Meu companheiro achava que eu estava errada
em autorizar Christiane a passar as noites na casa de
amigas. Na verdade, Klaus não acreditava em
Christiane quando ela dizia que ia dormir na casa de
uma amiga. Vigiá-la? Não era meu gênero. Meu pai
me espionou a vida toda e nunca encontrou nada por
que pudesse me repreender.
Um dia Christiane me contou que tinha dormido
com Detlef. "Mamãe, você não faz idéia como ele foi
gentil comigo!" Então compreendi ao menos
pensava a razão pela qual queria dormir nos
sábados à noite na casa de uma amiga.
Aconteceu, e não me parecia uma coisa tão
terrível. Deixei que ela fosse dormir na casa de Detlef
duas ou três vezes.
Como poderia impedi-los de dormir juntos? Aliás,
os psicólogos dizem nos jornais, na televisão, que os
jovens de hoje são suficientemente maduros e que é
preciso não reprimir a sua sexualidade. É também a
minha opinião.
Christiane, pelo menos, tinha uma ligação estável.
Isso me tranqüilizava. Via tantas jovens da vizinhança
trocar de parceiros como se troca de camisa. . .
Para ser sincera, às vezes me sentia um pouco
perturbada, principalmente por causa dos amigos que
ela arrumou no Sound. Ela me havia dito que alguns
deles se drogavam. Nunca me falou de heroína e
alucinógenos. Ela me contou coisas horríveis. Disseme,
em tom confidencial, que Babsi era uma
toxicômana. Pela maneira como ela me contava as
coisas, com um ar de quem acha tudo isso asqueroso,
nunca imaginei que ela também se drogava.
Quando lhe perguntava: Por que você anda
com essas pessoas? Christiane me respondia:
Mamãe, me dá uma pena. Ninguém quer saber deles.
Eles têm necessidade de que os ajudemos e ficam tão
felizes quando alguém conversa com eles.
Christiane sempre teve bom coração. Hoje sei que ela
falava de si mesma.
Uma noite, durante a semana, ela voltou muito
tarde, mais ou menos onze horas, e me disse:
Mamãe, não fique zangada, por favor. Fui a um centro
de recuperação para jovens drogados com uns amigos.
São lugares onde a gente fala com os drogados e
tenta tirá-los dessa. Acrescentou, com um
sorrisinho engraçado: Ora, digo isso por dizer, eu
não tenho problemas. Perguntei: E Detlef? Ela
disse: Nada disso. Era só o que faltava!
Isto foi no fim de 1976. A partir dessa data tive
suspeitas, mas afastei-as todas. E não quis ouvir meu
companheiro. Ele apostava qualquer coisa como
Christiane se drogava. Eu não queria ouvir nada. Não
é tão fácil reconhecer nosso fracasso como mãe. Que
tudo o que fizemos não serviu para nada. E teimava:
"Não, a minha filha, não". Tentava pelo menos
controlá-la nesta cidade? Mesmo que eu fosse uma
perita na arte de perceber dissimulação, nunca a
imaginaria na Estação Zoo. Ficava contente quando ela
me chamava lá pelas nove horas para dizer: Não se
inquiete, mamãe, chego imediatamente. E eu, pura
e simplesmente, não saía mais.
Às vezes ela me obedecia. Cheguei a ouvi-la
quando dizia aos seus amigos pelo interfone, quase
com orgulho: Hoje não saio porque não tenho
autorização. Parecia que não estava aborrecida. É
curiosa esta contradição. Se, por um lado, ela era
indisciplinada, insolente como ninguém e não havia
meio de se falar com ela, por outro, quando se
delimitavam linhas claras de conduta, ela parecia
querer respeitar. Mas já era muito tarde.
A hora da verdade chegou num domingo nos fins
de janeiro de 1977. Foi terrível. Queria ir ao banheiro,
a porta estava trancada, coisa não habitual em nossa
casa. Christiane, lá dentro, não queria abri-la. Naquele
momento tomei consciência de que até então eu não
queria mesmo era saber da verdade. Senão, teria
compreendido imediatamente o que se passava no
banheiro.
Eu batia na porta, mas Christiane não abria.
Comecei a ficar com raiva. Pedi que abrisse e comecei
a gritar. Finalmente ela abriu e saiu correndo. Vi uma
colher chamuscada na banheira, manchas de sangue
na parede. Era a prova, a confirmação. Como nas
descrições de jornais. Meu companheiro disse
simplesmente: Você acredita agora?
Fui atrás dela até o quarto. Disse-lhe:
Christiane, o que fez? Estava completamente
arrasada, meu corpo to-dinho tremia. Não sabia se iria
começar a chorar ou a gritar. Antes de fazer qualquer
coisa, era preciso falar com ela. Chorando muito, não
olhava para mim. Perguntei: Você se picou com
heroína?
Não houve resposta. Seus soluços a impediam de
falar. Estiquei seu braço à força e vi as marcas. Sobre
os dois braços. Não era muito impressionante, pois a
pele não estava azulada. Somente duas ou três
picadas, contando com a última, quase insignificante:
um ponto avermelhado.
Ela confessou, entre lágrimas. Aí pensei: "Vou
morrer". Acho que tinha vontade de morrer. Estava
tão desesperada que era incapaz de pensar. Que
fazer? Não tinha a menor idéia. E agora, que
fazemos? perguntei a Christiane. Eu estava
totalmente desamparada.
Então era esse o choque que queria evitar e
sempre adiei. É preciso dizer que não soubera
reconhecer os sintomas. Christiane não parecia
cansada, a maior parte do tempo estava alegre e cheia
de vida. A única coisa que tinha percebido nas
semanas precedentes é que, às vezes, quando
chegava tarde, ia direto para o seu quarto. Eu atribuía
esse gesto ao seu sentimento de culpa pelo fato de
chegar tarde.
Quando consegui me acalmar um pouco,
pensamos no que poderíamos fazer. Christiane me
confessou que Detlef também se drogava. Era preciso
que eles se desintoxicassem juntos, pois caso
contrário um reconduziria o outro. Isso eu
compreendia. Decidimos começar imediatamente a
supressão da droga, em casa.
Christiane parecia não querer me esconder nada.
Disse-me que Detlef ganhava dinheiro para comprar
heroína se prostituindo com homossexuais. Que
horror! Eu estava estarrecida. Ela não me disse o que
fazia. Não tive nenhuma suspeita: ela amava Detlef,
não é? Ele ganhava sempre o suficiente para comprar
droga, dizia Christiane.
Minha filha não se cansava de dizer: Creia-me,
mamãe, quero deixar este negócio, eu lhe asseguro.
Naquela noite fomos procurar Detlef. Pela primeira
vez, tomei consciência dessas criaturas
descontroladas, miseráveis, que perambulam pela
Estação Zoo. Christiane me disse: Não quero
terminar assim. Olhe esses caras: estão com a saúde
arruinada. Ela estava relativamente em bom
estado. Senti um pouco mais de segurança.
Não encontramos Detlef. Fomos à casa de seu
pai. Ele já sabia de tudo sobre Detlef, mas não sabia
que Christiane também se drogava. Por que não me
disse? protestei. Respondeu-me que tivera
vergonha.
Ele parecia aliviado. Queria dar uma ajuda
financeira.
Até então ele não havia encontrado ninguém que
ajudasse seu filho. Eu deveria parecer-lhe um anjo
enviado do céu. Sentia-me uma mulher forte. Se
soubesse o que me esperava!
No dia seguinte parti à caça de conselhos.
Primeira etapa: Serviço de Ajuda à Criança. Disse:
Minha filha de catorze anos se droga com heroína. Que
devo fazer? Eles não sabiam. Coloque-a numa
instituição. Nada disso, pois ela terá a impressão de
ser rejeitada. Eles não estavam capacitados a me dar
um endereço, e era preciso procurar um. Além do
mais, isso levaria algum tempo, e as vagas em um
bom centro para crianças inadaptadas são raras.
Respondi: Não é nada disso. Ela não é inadaptada,
ela é toxicômana. Olharam-me e sacudiram os
ombros. Finalmente me aconselharam a levar
Christiane a um orientador pedagógico.
Quando o propus a Christiane, ela apenas disse:
Que besteira! Eles estão completamente por fora.
Tenho necessidade de uma terapia. Neste campo,
os diferentes serviços não tinham nada a me propor.
Circulei pelos Centro de Informação sobre Drogas,
Universidade Técnica, Associação Caritas e outras
entidades. Eu não sabia por onde começar a enfrentar
o problema.
A supressão da droga em casa é muito arriscada,
disseram-me. Ê que uma desintoxicação sem terapia
não iria muito longe, mas, considerando a idade de
Christiane, eu poderia tentar. De qualquer forma, não
havia vaga para uma terapia antes de um trimestre.
Deram-me também alguns conselhos dietéticos para
ajudá-la a enfrentar a carência.
Isso foi bom. Criei esperanças. Ao fim de oito
dias, estava segura de que eles tinham superado a
crise, graças a Deus. Christiane recomeçou a ir
regularmente à escola.
Logo retomou sua vidinha. Ela sempre me dizia
onde estava, e quando me telefonava às oito horas da
noite me explicava: Mamãe, fui a esse ou àquele
café. Encontrei Pierre ou Paul. Chego já.
Agora tomava minhas precauções. Controlava seu
braço, e não voltei a encontrar novos traços de picada.
Não deixava que ela dormisse nos fins de semana na
casa de Detlef. Por outro lado, queria demonstrar
minha confiança nela. Deixava que ela voltasse mais
tarde nos sábados à noite. Estava atenta, mas não
sabia o que fazer, que atitude tomar. E quebrava a
cabeça...
***
A idéia de voltar a ser dependente da heroína me
apavorava. Quando Detlef estava drogado e eu não, a
corrente não se ligava e éramos como dois estranhos.
Foi por isso que, quando Detlef voltou a me dar
heroína, aceitei. Com a seringa na mão fazíamos
promessas mútuas de nunca mais voltarmos a ser
dependentes. Convencemo-nos de que nunca
havíamos sido e que éramos perfeitamente capazes de
parar da noite para o dia, ao mesmo tempo em que,
na realidade, começávamos a nos preocupar ansiosamente
com a nossa provisão de droga da manhã
seguinte.
Recomeçou toda a porcaria, de A a Z. Só que não
estávamos conscientes de estar novamente enterrados
a tal ponto. Pensávamos que ainda detínhamos o
controle da situação.
Durante algum tempo Detlef trabalhou para nós
dois. É claro que isso não durou muito tempo, e eu
precisei voltar às ruas. No início tive uma sorte imensa
e trabalhei somente com habitués, o que me pareceu
menos nojento.
Quando percebemos que eu seria obrigada a
voltar à prostituição, Detlef me levou à casa de
Jürgen, um homem bastante conhecido no mundo dos
negócios de Berlim. Ele era cheio da nota e almoçava
com deputados. Já tinha passado dos trinta, mas
mantinha um ar jovem. Utilizava o mesmo vocabulário
que os jovens e compreendia seus problemas. Ele não
tinha uma vida como a dos outros executivos.
Na primeira vez em que fui à casa de Jürgen, vi
uma dezenas de jovens ao redor de uma imensa mesa
de madeira, iluminada por velas em candelabros de
prata e cheia de garrafas de vinho de excelente
qualidade. A conversa girava em torno de
generalidades e era muito descontraída. Percebi que
os caras e as "minas" sentadas à mesa tinham muita
classe. Jürgen parecia ser o líder, e pensei comigo que
ele devia ter, realmente, grana.
Primeiramente me impressionou ver aquele
apartamento suntuoso onde cada coisa devia ter
custado muita grana. Em seguida, achei formidável
que com tudo isso aquele cara tivesse permanecido
tão humano, tão descontraído.
Fomos recebidos como amigos, apesar de sermos
os únicos viciados. Conversamos um pouco, aí um
casal perguntou se podia ir tomar banho. Jürgen falou:
É claro. Os chuveiros são feitos para isso.
Os chuveiros ficavam ao lado da sala de estar. E
eles se foram. Alguns rapazes e algumas meninas os
seguiram. Logo depois eles voltaram, nus, pedindo
toalhas. Pensei: "Que turma legal! Parece que todos se
entendem. Detlef e eu, no futuro, teremos um
apartamento tão luxuoso quanto o dele, e poderemos
convidar amigos legais".
Em seguida, muitas pessoas passeavam nuas ou
com uma toalha amarrada na cintura. E começaram a
trepar. Um casal foi para o quarto onde havia uma
cama imensa. Um grande corredor ligava a sala ao
quarto, e podíamos ver o que se passava. O casal fazia
amor e outras pessoas foram juntar-se a eles naquela
imensa cama. Uns caras trepavam com meninas,
alguns caras trepavam com outros caras. Alguns
trepavam na mesa.
Compreendi, era uma bacanal. Eles queriam que
nós participássemos, Detlef e eu, mas isso não me
atraía, não queria que qualquer um trepasse comigo.
O que eles faziam não me desagradava. Cheguei até a
me excitar ao vê-los se divertirem assim. Era
justamente por isso que queria estar a sós com Detlef.
Detlef e eu fomos para um quarto. Acariciamonos
e acabamos tirando a roupa. De repente, Jürgen
chegou para nos observar. Isso não me
impressionava, como tudo o que se passava no
apartamento. Além disso, afinal de contas, era ele que
nos pagava. A única coisa que esperava era que ele
não nos tocasse.
Ele se contentava em nos olhar e se masturbar,
enquanto fazíamos amor. Um pouco mais tarde
paramos, pois precisava voltar para casa. Jürgen
deixou discretamente uma nota de cem marcos na
mão de Detlef.
Jürgen tornou-se nosso cliente habitual. Ele era
bissexual. A maior parte do tempo íamos à casa dele
juntos: eu me ocupava da parte de cima e Detlef, da
parte de baixo. Ele nos dava sempre cem marcos. Às
vezes um de nós ia sozinho. Por sessenta marcos. É
claro que Jürgen era um cliente quase tão terrível
quanto os outros. Mas era o único cliente pelo qual
sentia qualquer coisa que se assemelhava a amizade.
De qualquer forma, eu o respeitava. Gostava muito de
conversar com ele porque sempre tinha boas idéias e
conseguia enxergar muitas coisas. Ele sabia fazê-lo,
ele se sentia bem naquela sociedade.
Admirava, sobremaneira, a sua facilidade em
administrar o dinheiro. Talvez fosse isso o que mais
me interessava nele, quando me contava como
aplicava o seu dinheiro e quase sempre dava lucro.
Ao mesmo tempo era muito generoso. Não pagava
diretamente aos outros por participarem da bacanal,
mas vi um dia um cara pedir muitos milhares de
marcos para comprar um Morris. Jürgen fez o cheque
e deu-lhe, falando: Eis aqui o teu Mini Cooper.
Era o único cliente a quem ia visitar somente por
visitar, sem que eu ou ele pedíssemos alguma coisa.
Às vezes, passava a noite na casa dele assistindo à
televisão, e com isso acreditava que o mundo não era
assim tão sem graça.
Detlef e eu, nesse meio tempo, também já
retornáramos, com toda a força, ao mundo do vício.
Os tipinhos comuns já não mais nos interessavam.
Quando não podia ir à Estação Zoo do metrô, andava,
sem rumo, pela Estação Kurfürstendamm. Naquela
caminhada encontrávamos centenas de viciados. E era
ali que negociávamos. Em pouco tempo os clientes
vidrados em viciados também começaram a circular
por ali.
Eu andava de turma em turma, batendo papo
com todos os colegas. Sentia-me o máximo quando
me encontrava junto deles. Subia e descia como uma
estrela entre as estrelas. Via as velhotas carregadas
com suas sacolas de compras e observava a maneira
como nos olhavam, cheias de medo, horrorizadas pela
nossa aparência, e eu pensava com os meu botões:
"Nós, viciados, somos superiores". A vida ali não era
fácil, e poderíamos até morrer de uma hora para
outra. Também sabíamos que não iríamos viver por
muito tempo, mas fora aquela a vida que
escolhêramos. Eu, em todo caso, gostava dela e queria
curti-la até o fim.
Pensava em toda a grana que ganhava. Tinha
necessidade de cem marcos por dia, só para a heroína.
Com as despesas gerais, meus gastos subiam a quatro
mil marcos por mês, e era preciso conseguir essa
quantia. Quatro mil marcos por mês era o salário de
um diretor de empresa. Conseguia ganhar isso com
catorze anos.
É claro que me prostituía, e era um trabalho
imundo. Mas, quando estava drogada, não era tão
terrível assim. E no fundo engabelava os clientes. Em
todo caso, eles não conseguiam tudo pelo dinheiro. Eu
sempre ditava as condições. Eu não trepava.
Ali havia maiores vedetes que eu. Segundo se
conta, alguns tinham necessidade de quatro gramas
de heroína por dia. Isso lhes custava entre quinhentos
e oitocentos e cinqüenta marcos por dia. E eles
quase conseguiam.
Ganhavam mais que um diretor de empresa, e
sem serem pegos pela polícia. E com essas vedetes eu
transava, encontrava quando queria, na Estação
Kurfürstendamm do metrô, e conversávamos de igual
para igual.
Portanto, esses eram os meus sentimentos e os
meus pensamentos naqueles meses de fevereiro e
março de 1977. Ao menos quando estava drogada. No
geral, não ia muito bem, mas também não muito mal.
Ainda era capaz de me embalar em um monte de
ilusões. Retomara minha personalidade de viciada e
estava completamente integrada. Eu me achava legal.
Não tinha medo de nada.
Antes tinha medo de tudo. Tinha medo de meu
pai, do companheiro de minha mãe, dessa merda de
escola e dos professores, dos zeladores, dos guardas
de trânsito e dos controladores do metrô. Agora me
sentia invulnerável. Mesmo os policiais civis que
andavam pelo metrô me deixavam indiferente, pois
até então havia escapado a todos.
Naquela época, estava também com certo número
de viciados que me davam a impressão de ter
conservado uma atitude muito legal em relação à
heroína, como, por exemplo, Atze e Lufo.
Atze foi meu primeiro namorado, o primeiro rapaz
pelo qual eu estive gamada, antes de Detlef. Lufo,
como Atze e Detlef, faziam parte da nossa turma de
fumadores de maconha, do tempo do Sound em 1976.
Atze e Lufo começaram a se picar um pouco antes de
mim.
Agora eles viviam num apartamento impecável,
atapetado, sofá, poltronas e uma cama de casal. Lufo
tinha um verdadeiro emprego: era trabalhador braçal
numa empresa de cosméticos. Esses dois me
contaram que nunca foram fisicamente dependentes
da heroína, e que ocorria, às vezes, ficarem um ou
dois meses sem a droga. Acreditei neles, apesar de
estarem completamente drogados a cada vez que os
encontrava.
Tomei Atze e Lufo como modelos. Não queria
voltar ao ponto em que me encontrava antes do
tratamento, completamente arruinada. Imaginava
que, se fizéssemos como Atze e Lufo, Detlef e eu
teríamos também, um dia, um belo apartamento
atapetado com uma grande cama, sofá e poltronas.
Para completar, esses dois caras não eram tão
agressivos quanto os outros toxicômanos. E Atze tinha
uma menina, Simone, que era muito legal e não se
picava. Eles se entendiam bem, e eu achava isso
sensacional. Gostava de ir à casa deles, e quando
brigava com Detlef ia dormir lá, no sofá.
Uma noite, ao voltar para casa com muito bom
humor, minha mãe estava me esperando na sala de
estar. Sem falar nada, ela me deu um jornal. Entendi.
Ela sempre fazia isso quando havia um artigo
anunciando uma morte por overdose. Isto me irritava,
pois não queria ler este tipo de coisas.
Apesar de tudo, peguei o jornal. Li: "O aprendiz
de vidraceiro Andreas W., de dezessete anos, queria
escapar das malhas da droga. Sua amiga, uma jovem
assistente de enfermagem, de dezesseis anos, tentava
ajudá-lo. Seus esforços foram em vão. O jovem tomou
a picada da morte no belo apartamento que seu pai
tinha, a muito custo, arrumado para o jovem casal..."
Não me dei conta imediatamente... não queria
acreditar... Mas não tinha erro: tratava-se de Andreas
Wiczorek, Atze.
Merda. Foi o único pensamento que me ocorreu.
Tinha a garganta seca e me sentia mal. Não era
possível. Atze não. Por que ele teria feito isso? Tão
tranqüilo diante da droga! Eu me esforçava para não
mostrar a minha mãe até que ponto estava
perturbada: ela não sabia que voltara a me picar. Fui
para meu quarto levando o jornal. Eu não tinha visto
Atze ultimamente, e acabei sabendo, pelo jornal, como
fora a coisa. Na última semana ele havia tomado uma
overdose e fora parar no hospital. Aí Simone cortou as
veias. Os dois foram salvos. Na véspera de sua morte,
Atze procurou a polícia e denunciou todos os
revendedores que ele conhecia, inclusive duas
meninas que todo mundo chamava de "gêmeas" e que
sempre tinham heroína da boa. Depois disso, ele
escreveu uma carta de adeus. Ela estava reproduzida
no jornal: "Vou me matar porque um viciado não dá
nada aos seus pais e amigos, a não ser
aborrecimentos, preocupações e nenhuma esperança.
Ele não destrói somente a si mesmo, mas destrói
também aos outros. Obrigado, meus caros pais, minha
querida vovó. Fisicamente não passo de uma ruína.
Ser drogado é o fim de tudo. Mas o que leva a isso
seres jovens e cheios de vida? Gostaria de advertir a
todos aqueles que um dia ou outro se perguntam: 'E
se eu provasse?' Olhem-me, olhem em que me
transformei, pobres cretinos. Adeus, Simone, você
será libertada de suas preocupações".
Deitada em minha cama, pensava: "Eis aí. Atze
foi teu primeiro amigo". Agora ele estava embaixo da
terra. Não chorei. Não tinha lágrimas. Era incapaz de
sentir algo verdadeiro.
Na tarde do dia seguinte fui encontrar os outros.
Ninguém chorou por Atze. Isso não era uso entre os
toxicômanos. Mas havia pessoas que o odiaram de
verdade, porque denunciara revendedores da boa
heroína (já estavam em cana) e porque devia grana a
um monte de pessoas.
O mais incrível em toda essa história foi que, uma
semana depois da morte do pobre Atze, Simone, que
nunca tinha tocado em heroína, começou a se picar.
Algumas semanas mais tarde, ela tinha deixado seu
"bico" de assistente de enfermagem e se prostituía!
Lufo morreu alguns meses mais tarde, em janeiro
de 1978. De uma overdose.
A morte de Atze pôs fim ao período cor-de-rosa.
Acabou-se o estrelato. Todos temiam tornar-se
dependentes. O medo e a desconfiança se
implantaram na nossa turma, onde todos conheciam
Atze. Antes, nos picávamos juntos, e quando não
tínhamos seringas suficientes, cada um queria ser o
primeiro. De repente, brigávamos para ser o segundo.
Ninguém confessava que tinha medo. Nós todos
estávamos terrivelmente amedrontados: e se esse
troço for muito puro, se ele tiver estricnina ou uma
sujeira qualquer? Podíamos morrer não só por uma
overdose, mas também podíamos "bater as botas" por
uma dose muito pura ou muito suja.
Em resumo, era novamente a merda total. As
coisas aconteciam como Atze descrevera em sua carta.
Acabei arrasando também com minha mãe. Recomecei
a voltar para casa quando bem entendia. E minha mãe
me esperava. Depois ela tomava alguns comprimidos
de Valium para poder dormir um pouco. Acho que ela
se mantinha às custas de Valium.
Estava cada vez mais convencida de que acabaria
como Atze. Uma vez ou outra aparecia uma pequena
luz de esperança, à qual me agarrava. Tinha um
professor de quem eu gostava, M. Mücke. Ele nos fazia
representar, como no teatro, as situações que uma
jovem enfrenta na vida, por exemplo, uma entrevista
de emprego. Um de nós era o chefe e o outro, o
candidato ao emprego. Eu não me deixava intimidar
pelo chefe, respondia em pé de igualdade, e o rapaz
que representava o chefe se embaraçava todo.
Pensava na hora: "Talvez você consiga também se
virar na vida".
M. Mücke igualmente nos levou ao Centro de
Orientação Profissional. Paramos no caminho para
assistir a um desfile das tropas aliadas. Os rapazes
estavam muito interessados, apaixonados pelos
tanques, pela técnica e tudo o mais. Eu não dava a
mínima; aquilo só fazia uma bruta bagunça e só servia
para matar as pessoas.
Mas gostei do Centro de Orientação Profissional.
Li tudo o que pude encontrar sobre as profissões que
se ocupam de animais. E, na tarde do dia seguinte,
voltei ao centro com Detlef para pedir fotocópias de
tudo o que eles tinham a respeito. Detlef tinha
também encontrado muitas profissões que poderiam
interessar-lhe. Ele era como eu, gostaria de trabalhar
com animais e até mesmo na agricultura. Começamos
a sonhar com tudo isso. Sonhávamos tanto que quase
nos esquecíamos de que precisávamos de dinheiro
para comprar nossa próxima dose. Um pouco mais
tarde, quando nos reencontramos na Estação Zoo
esperando clientes, tudo isso se tornou irreal, mas, no
entanto, continuei com a documentação do Centro de
Orientação Profissional na minha sacola. E, se eu
continuasse dessa maneira, nem sequer teria o meu
diploma.
Na manhã do dia seguinte comprei a revista
Playboy quando tomava o metrô para ir à escola.
Comprei para Detlef, que gostava muito dessa revista,
mas eu também a lia. Não sabia muito bem por que
Playboy nos interessava tanto; para falar a verdade,
isso me parece hoje incompreensível. Mas, na época,
Playboy era para nós a imagem de um mundo limpo.
Sexo puro. Meninas bonitas, sem problemas. Nada de
bichas, clientes. Os caras fumavam cachimbo, guiavam
automóveis esporte e estavam cheios da grana. E
as meninas dormiam com eles porque isso lhes dava
prazer. Detlef me disse, uma vez, que tudo isso eram
histórias, besteiras, mas não o impediam de ler
Playboy.
Naquela manhã, no metrô, li uma história que me
agradou. Não cheguei a compreender tudo, pois
estava drogada pela picada que havia tomado, mas
gostei muito do enredo. A história se passava em
alguma parte, longe, onde o céu era azul e o sol,
abrasador. Quando cheguei à passagem em que a
linda menina esperava impacientemente o momento
em que seu amiguinho chegava do escritório, comecei
a chorar. Chorei durante todo o resto da história.
Na aula, não parava de sonhar. Gostaria de partir
para bem longe com Detlef. À tarde, quando nos
encontramos na Estação Zoo, falei com ele sobre a
minha vontade. Ele me disse que tinha tios no Canadá.
Eles moravam à beira de um lago imenso, rodeado de
mata e árvores e, é claro, nos hospedariam. Mas era
melhor que eu terminasse meus estudos antes de
partir, disse. Ele iria primeiro, procurar trabalho, pois
no Canadá não havia problema, e, quando eu fosse,
viveríamos em uma bela casa de madeira. Se ele não
pudesse comprar, alugaria uma.
Eu lhe respondi que tinha a intenção de terminar
meus estudos. Aliás, a coisa estava bem melhor nas
aulas. E, dali para a frente, nada de bancar a palhaça,
iria me concentrar nas tarefas, e teria um bom boletim
escolar.
Detlef se foi com um cliente e eu fiquei. O que
você está fazendo aqui? Saquei imediatamente:
eram policiais à paisana. Eu nunca tinha sido pega e
não tinha medo de tiras, e, até então, eles tinham me
deixado em paz. Havia muitos meses que me
prostituía na Estação Zoo como outras meninas de
minha idade, e os tiras davam batidas no local todos
os dias. Mas eles só se interessavam pelos estrangeiros
sujos que carregavam garrafas de Schnaps ou um
pacote de cigarros de Berlim Oriental. Faziam uma
verdadeira caçada àqueles caras.
Muito calma, respondi: Espero meu namorado.
Um dos tiras à paisana: Você está fazendo
trottoir?
Eu: Não, que idéia! Tenho cara de quem faz
isso?
Eles perguntaram minha idade: Catorze anos.
Quiseram ver minha carteira de identidade, embora
soubessem que só nos dão uma verdadeira carteira
aos dezesseis anos. Esclareci-lhes isso também.
O que parecia ser o chefe deles me mandou
entregar a sacola de plástico. A primeira coisa que
tirou foi a colher. Perguntou-me para que servia.
Eu: Para comer iogurte.
Mas depois encontrou a seringa com o resto dos
utensílios, e me levaram para a delegacia. Não tive
medo. Sabia muito bem que eles não podiam levar em
cana uma menina de catorze anos. Mas que safados
aqueles tiras à paisana!
Trancaram-me numa cela ao lado do escritório do
chefe. Nem tentei fazer desaparecer a heroína
escondida no bolsinho da minha calça. Jogar heroína
fora estava acima de minhas forças. Uma polícia
feminina entrou e me mandou ficar completamente
nua, sem calcinha e sutiã, e me examinou por todos
os lados. Finalmente descobriu a dose de heroína na
calça.
Um tira bateu um relatório detalhado e colocou a
cópia num grande arquivo. Estava feito: eu, fichada
como viciada.
No fundo, os tiras foram bonzinhos comigo, mas
todos repetiram a mesma coisa: Enfim, minha
querida, qual é a sua? Você só tem catorze anos. Uma
menina tão jovem, tão bonita e já meio morta. . .
Foi preciso que eu lhes desse o número do
telefone do trabalho de minha mãe. Eles a chamaram.
Minha mãe chegou às cinco e meia, depois do seu
trabalho. Ela estava completamente arrasada.
Começou a conversar com os tiras, que, de qualquer
forma, somente falaram algumas frases feitas: Ah,
esta criança! disse ela.
Não sei o que fazer. Eu tentei ajudá-la com
um tratamento, mas ela não quer parar!
Realmente achei aquilo o fim da picada. Ela
não quer parar! Minha mãe estava, realmente, em
outra. Não compreendia nada e nem podia, pois
jamais lhe passara pela cabeça que eu estava na da H.
Era claro que eu desejava parar. Mas como? Isso é
que ela deveria ter-me ensinado. Quando saímos,
começaram a chover as perguntas. Onde é que eu
andara me metendo? Respondi: Estava na
Estação Zoo, pôxa.
Ela: Mas você não deve freqüentar aquele
lugar.
Disse: Eu estava apenas esperando por Detlef,
se é que pelo menos isso eu ainda posso fazer!
O que ela queria dizer era para que eu não
andasse com esses desempregados anti-sociais.
Também ainda me perguntou: Você faz trottoir?
Aí eu perdi a paciência e gritei: Você está
louca? Repita isso mais uma vez. Por que eu deveria
andar me virando por aí, você pode me explicar isso
melhor? Você realmente acha que eu sou uma puta,
ou o quê?
Ela se calou, mas daí em diante passei a temer
por minha liberdade. Também comecei a ter medo,
devido à indiferença e frieza da minha mãe. Pensei
que ela tivesse desistido e que não fosse mais me
ajudar. Mas logo dizia a mim mesma: "No que é que
ela pode te ajudar com essas observações tipo 'Não
freqüente mais a Estação Zoo', 'pare de se encontrar
com esse desprezível Detlef'" ?
Tive que voltar para casa com minha mãe e já
não tinha nem um grama de H comigo para a manhã.
No dia seguinte ela me tirou da cama, olhou-me nos
olhos e disse:
Meu Deus, você está com uns olhos, minha
filha, que é só tristeza. Eu diria que você é apenas
angústia e desespero.
Quando minha mãe saiu para trabalhar, fui olharme
no espelho. Pela primeira vez vi meus olhos em
crise, numa pior mesmo! Eram só pupilas. Negros e
tristes. Sem nenhuma expressão. Tive calor e fui
molhar o rosto. Senti frio e mergulhei num banho
quentíssimo, de onde não ousava sair, pois fazia muito
frio fora. Acrescentava água quente sem parar.
Precisava fazer passar o tempo até o meio-dia. De
manhã não havia ninguém na Estação Zoo: era impossível
encontrar um cliente ou alguém que nos desse
heroína. De manhã, ninguém tinha, e além do mais,
estava cada vez mais difícil que alguém a passasse.
Axel e Bernd inventavam muitas histórias, eles
tinham cada vez mais dificuldades para encontrar o
bastante para suas próprias necessidades. Mesmo
Detlef tornou-se muito pão-duro. Quanto aos outros,
em vez de darem, preferiam jogar fora.
A crise me fazia sofrer cada vez mais. Eu me
esforçava para sair da banheira, para revistar o resto
do apartamento em busca de um pouco de dinheiro. A
sala de estar estava fechada à chave, graças a um
golpe de Klaus, o companheiro de minha mãe, que
disse que eu arranhava os discos. Mas tinha
aprendido, há muito tempo, a girar a fechadura
servindo-me de um cabide. Nenhum tostão naquela
merda de sala de estar. Eu me lembrei, de repente, de
que minha mãe colecionava moedas novas de cinco
marcos e que ela as empilhava em uma lata de
cerveja que estava em cima do armário.
Minha mãe encontrou uma outra esperança à qual
se apegar. Mandou-me passar um mês de férias, ou
talvez mais, na casa de minha avó e meus primos, no
campo. Estava dividida entre a angústia e a alegria:
como iria suportar a separação de Detlef e o
tratamento? Mas só faria o que me mandassem fazer.
Entretanto, consegui passar a última noite com Detlef.
Essa última noite em Berlim me confortou um
pouco. Depois de termos feito amor, disse a Detlef:
Nós dois fizemos sempre tudo juntos. Gostaria de
aproveitar estas quatro semanas para me desintoxicar
para sempre. É uma ocasião que não se repetirá mais,
e gostaria que você fizesse o mesmo. Quando
voltarmos, ambos estaremos limpos e começaremos
uma vida nova.
Detlef estava de acordo. De qualquer forma, ele
disse, havia tomado a mesma resolução, estava para
me falar. Ele já sabia como achar Valeron. No dia
seguinte ou no outro, pararia de fazer trottoir e iria
procurar trabalho.
No dia seguinte, tomei uma superpicada antes de
partir para a minha nova vida na casa da minha avó.
Chegando lá, ainda não estava verdadeiramente em
crise. Mas me sentia um corpo estranho na idílica
cozinha da fazenda.
Tudo me irritava: meu priminho que queria subir
nos meus joelhos, os banheiros rústicos que achei tão
românticos da última vez em que lá estive. . .
Na manhã do dia seguinte, estava em plena
síndrome de privação. Saí da casa e fui me refugiar na
floresta. O canto dos pássaros me irritava os nervos,
sentia medo ao ver um coelho. Subi num ponto de
observação para fumar um cigarro. Não consegui
terminar. Se eu pudesse morrer ali mesmo! Depois de
certo tempo consegui me arrastar até a casa e fui para
a cama. Disse a minha avó que estava com gripe. Ela
se queixou, mas não chegou a se inquietar de fato por
ver-me naquele estado tão lamentável.
Sobre minha cama havia um cartaz: uma mão de
esqueleto segurando uma seringa e, embaixo, a frase:
"Eis como isto acaba. E começou com uma simples
curiosidade". Minha prima me garantiu que ganhara
aquele cartaz na escola. Eu ignorava que minha mãe
tinha contado a minha avó. Olhei o quadro e só
consegui enxergar a seringa: não vi a mão nem a
inscrição. Imaginei-a cheia de boa heroína. A seringa
se separou do cartaz e avançou sobre mim. Passei
horas olhando aquela merda de cartaz e quase fiquei
louca.
Minha prima vinha ver-me muitas vezes. Ela fazia
de conta que não percebia o meu estado. Cantava-me
as músicas da moda, achando que me distrairia.
Pensando bem, foi emocionante ver a família se
ocupar de mim daquela forma.
Essa primeira jornada de tratamento foi
interminável. Dormi. Sonhei com um cara que vira em
Berlim. Se me concentrasse, poderia ver
perfeitamente seu corpo. Seus pés estavam podres.
Eles estavam negros, quase paralisados, e ele mal
podia caminhar. Ele fedia de tal forma que não podíamos
nos aproximar a menos de dois metros. Quando
lhe disseram para ir tratar-se no hospital, ele sorriu, e
tinha um ar de morto. De fato, ele esperava morrer.
Esse cara me obcecava, e não parei de ver sua
imagem diante dos meus olhos, a não ser quando
estava absorvida pela seringa ou meio sem sentidos
pela dor que sentia. Tudo recomeçava como da
primeira vez: transpirava, fedia e vomitava.
Na manhã do dia seguinte não agüentava mais.
Arrastei-me até a cabine telefônica do vilarejo e
chamei minha mãe. Chorando com todas as minhas
lágrimas, supliquei-lhe que me deixasse voltar a
Berlim.
Minha mãe se mostrou muito fria: "Ah, está
difícil? Mas se você só tomava droga de vez em
quando, a coisa não deve ser tão grave assim".
Eu me rendi. Mas que ao menos ela me mandasse
soníferos pelo correio. Sabia que era possível
encontrar heroína no vilarejo vizinho (tinha ouvido
dizer na última permanência), mas não tinha forças
para ir até lá. Além do mais, não conhecia ninguém.
Fora do seu ambiente familiar, um viciado fica
totalmente isolado e desamparado.
Felizmente meu cold turkey durou só quatro dias.
Depois me sentia completamente vazia, até mesmo
incapaz de apreciar a sensação física de me entregar
ao veneno. Berlim me dava nojo, mas no vilarejo
também não me sentia em casa. Tinha a impressão de
não ter meu lugar em parte alguma. Tentei não pensar
nisso.
Para "voar" um pouco só tinha os soníferos, que
minha mãe mandara muito tarde para que eles
pudessem servir durante o tratamento de privação, e
cidra (minha avó tinha de monte, no porão). Eu me
atirei às grandes comilanças, que eram uma viagem
como outra qualquer. Engolia quatro ou cinco
pãezinhos no café da manhã e à tarde uma boa dúzia
de pãezinhos com geléia. À noite, já que nunca dormia
antes das duas ou três horas da manhã, atacava os
sucos de frutas concentrados (ameixa, pêssego,
morango), com creme de chantilly por cima.
Com esse regime, logo ganhei dez quilos. A
família estava toda feliz de ver minha barriga crescer e
minha bunda arredondar. Meus braços e minhas
pernas permaneciam tão finos como antes. Eu não
dava a mínima bola para tudo aquilo. Tornei-me uma
comilona. Logo não entrava mais dentro das minhas
calças. Minha prima me emprestou umas calças xadrez
estúpidas que não se usavam mais em Berlim desde
que eu tinha doze anos. Não me importei com isso.
Integrei-me pouco a pouco à comunidade infantil do
vilarejo. Mas aquilo me parecia bastante irreal: era
uma viagem, um belo filme, mas a palavra ufim" logo
chegaria.
Não falava nunca de droga e, aliás, parei de
pensar nela. Não queria estragar o belo filme; mas
logo depois do meu tratamento de privação, escrevi a
Detlef pedindo-lhe que me enviasse heroína. Até pus
vinte marcos no envelope. Fiz isso depois de ter dito a
Detlef que se desligasse. Para dizer a verdade, não
mandei a carta, pois pensei que Detlef não me
mandaria heroína e guardaria os vinte marcos para se
picar.
Andava a cavalo quase todos os dias, e visitava,
na companhia de minha prima, os velhos castelos das
proximidades. Íamos também com os outros meninos
brincar na pedreira que tinha pertencido ao meu avô.
Essa pedreira, ele a consumira em bebedeiras antes
de morrer de alcoolismo. Minha mãe não teve uma
infância fácil.
Segundo minha avó, haveria em algum lugar,
nessa pedreira, uma porta de ferro atrás da qual
estavam guardados os papéis velhos, de muitas
gerações da família. Quase todas as noites
procurávamos essa porta. Às vezes, os operários se
esqueciam de retirar a chave do trator e então passeávamos
com ele pela pedreira. Minha prima tem a
mesma idade que eu, e começamos a nos entender
bem. Falei-lhe de Detlef como uma adolescente
normal fala de seu namorado. Confessei-lhe que
dormia com ele, e ela aprovou totalmente.
Ela me contou que um rapaz de Düsseldorf vinha
acampar por perto todos os anos, no verão. Esse
rapaz lhe agradava, mas ele quis fazer coisas com ela,
e ela não cedeu. Teria se comportado como uma
idiota?
Disse-lhe que não, que ela agira certo, e que seria
melhor se preservar para quem ela amasse
verdadeiramente. Minha prima e todos os amigos
vinham me expor seus problemas. Eu me transformei
na Christiane-Conselheira, que lhes dava normas de
conduta e dizia-lhes, principalmente, para não tomar
tudo pelo seu lado trágico. Seus problemas me
pareciam bastante ridículos, mas sabia ouvir, e tinha
sempre um conselho para dar. Era formidável quando
se tratava de problemas dos outros. Apenas para os
meus problemas não encontrava saída.
Uma noite recebi um telefonema de Detlef. Fiquei
louca de alegria. Ele me explicou que estava
telefonando da casa de um cliente, um cara muito
bom, e então podíamos conversar bastante. Contei-lhe
do meu tratamento, de como quase enlouquecera. E
ele? Ele ainda não havia conseguido se desligar e tudo
aquilo era uma merda. Disse-lhe que estava contente
de poder revê-lo em breve. Ele tinha prometido
escrever-me... iria fazê-lo? Detlef não tinha vontade,
mas voltaria a me telefonar na próxima vez em que
estivesse na casa de um cliente.
Depois dessa conversa estava novamente
convencida de que Detlef e eu éramos como marido e
mulher. Estávamos unidos para o melhor e para o
pior. À noite, na minha cama, passava horas a pensar
nele. É somente nele. Era como uma oração, e
contava os dias até o nosso reencontro.
Minha avó me dava regularmente uns
trocadinhos... Fazia incríveis economias. Não sei bem
por quê, fazer economia nunca foi o meu forte. Eu me
dei conta quando cheguei aos quarenta marcos e,
quarenta, para mim, era uma quantia mágica. Era o
preço de uma picada e também a quantia que pedia
aos meus clientes.
Pensei: "Não é possível! Você não está separando
um dinheirinho de lado para a sua primeira picada!"
Corri para comprar uma blusa por vinte marcos, só
para escapar dos malfadados quarenta. "Acima de
tudo, se vim para cá, foi para me desligar
completamente."
Acabou o mês de férias. Minha mãe telefonou:
Você quer ficar mais um pouco? Impulsivamente
respondi: Não. Se ela tivesse perguntado:
Você quer ficar aí o resto da vida? , sem dúvida, eu
pararia para pensar. Desde o começo tinha
considerado toda essa história uma viagem que
começava mal e terminava muito bonita e muito doce.
Mas isso não poderia durar mais que um mês, e eu
sabia muito bem e estava muito preparada. Além
disso, gostaria de voltar para o lado de Detlef, pois
nós dois éramos como marido e mulher.
No dia da minha partida, vovó e minha prima tentaram,
em vão, me persuadir a levar as famosas
calças xadrez que agora estavam exatamente no meu
tamanho. Eu me torci toda para entrar na minha calça
jeans, as costuras arrebentaram, e foi impossível
fechar o zíper. "Foda-se, voltarei para Berlim com a
braguilha aberta". Enfiei meu casaco negro. Pronto,
estava novamente com o meu uniforme de viciada.
Já no dia seguinte ao meu retorno a Berlim fui à
Estação Zoo. Detlef e Bernd estavam lá. Axel, não. Ele
deveria estar com um cliente.
Os dois me deram uma acolhida grandiosa.
Estavam verdadeiramente felizes de me rever.
Principalmente Detlef, é claro. Eu lhe perguntei: O
tratamento está indo bem? Você encontrou um bom
trabalho? Nós três explodimos de rir.
Depois perguntei-lhes: Onde está Axel?
Eles me olharam com um ar estranho. Após certo
tempo, Detlef murmurou: Você não sabe
que Axel morreu?
Que choque! Aquilo me cortou a respiração.
Ora, que brincadeira! Mas eu sabia que era
verdade.
Agora Axel. Axel, que todas as semanas, no seu
antro de drogado, me preparava uma cama com
lençóis limpinhos. Axel, para quem eu levava sempre
atum em lata, um troço completamente idiota, e que
me comprava iogurtes. A única pessoa em quem
pudera confiar quando brigara com Detlef. Meu único
refúgio quando tinha vontade de chorar. Pois ele, ao
menos, nunca era agressivo, ao menos com os amigos
da turma.
Como foi?
Detlef me explicou: Eles o encontraram em um
banheiro público com a agulha plantada no braço.
Os dois rapazes evocaram a morte de Axel como se
fosse uma história antiga. Podia-se dizer que eles não
tinham vontade de falar naquilo.
Não parava de pensar naquelas latas de atum tão
bobas. Pensava que nunca mais voltaria a comprá-las.
De repente, pensava em Detlef: onde ele estaria
dormindo agora?
A mãe de Axel vendeu o apartamento disse
Detlef.
Moro na casa de um cliente.
Eu: Oh, que merda! Aquilo me perturbara
tanto quanto a morte de Axel. Por um momento pensei
que havia perdido Detlef definitivamente.
Ele prosseguiu: É um cara legal. É jovem, com
uns vinte e cinco anos, não é barrigudo. Eu lhe falei de
você. Você poderá dormir na casa dele.
Acompanhei Detlef, que queria heroína.
Encontramos alguns amigos, e repeti para eles: É
nojento o que aconteceu com Axel.
Fomos em seguida a alguns banheiros públicos.
Detlef tinha vontade de se picar imediatamente. Eu o
acompanhei para lhe dar assistência. Esperei que ele
me oferecesse. Ainda estava abatida com a história de
Axel. Quando vi Detlef preparar uma picada, senti uma
bruta vontade. Uma picadinha não poderia fazer-me
mal e me ajudaria a não pensar em Axel e em Detlef,
que dormia na casa de um cliente.
Já? disse Detlef. Eu achava que você
tinha parado. "É claro que me desliguei. Você bem
sabe que é fácil." Você não me disse isso quando
estava no interior?
Meu amigo, depois de tudo o que acabo de
saber, tenho uma bruta necessidade de um pouco de
heroína.
Detlef: "Não é tão difícil se desligar. Posso fazê-
lo quando quiser." (Mas aquilo não me tocava.)
"Mas você, não recomece..."
Conversando, ele tomou sua picada. Deixou-me
um restinho na seringa. Foi o suficiente para me
baratinar um pouco (havia tanto tempo que não
tomava nada...) e me fez quase esquecer Axel.
Recaí bem mais rápido do que na primeira vez.
Minha mãe nem imaginava. Ela estava contente de me
ver gordinha. De fato, conservaria por um bom tempo
meus quilos a mais.
Ia freqüentemente à casa de Rolf, o famoso
cliente de Detlef. Era preciso, pois não tínhamos
nenhum outro lugar para nos encontrarmos na cama.
Rolf me desagradara desde o primeiro minuto. Ele
estava gamado por Detlef, e é claro que tinha ciúmes
de mim. Ficava maravilhado quando eu brigava com
Detlef, e se colocava sempre do lado dele. Isso me
punha furiosa. Detlef se comportava com esse Rolf
como um chefão, mandando-me fazer compras e
mandando-o cozinhar e lavar a louça. Isso me
enfurecia. Gostaria muito de fazer as compras e
cozinhar para Detlef.
Expliquei a Detlef que não era possível continuar
assim. Mas ele me respondeu que não havia outro
lugar para irmos e que Rolf, pensando bem, era uma
boa pessoa e até menos enervante que todos os
outros clientes.
Detlef fazia com Rolf o que queria. Aprontava
cada uma com ele! Gritava: Você tem sorte de eu
querer morar com você! Ele só ia para a cama com
Rolf se tivesse absoluta necessidade de dinheiro.
Detlef e eu dormíamos no mesmo quarto que Rolf.
Quando fazíamos amor, Rolf assistia à televisão ou
simplesmente virava as costas. Ele era uma bicha
louquíssima e não suportava ver Detlef dormir comigo.
Nós três estávamos na pior, no fundo do poço.
E se Detlef também acabasse virando bicha? Essa
idéia me obcecava. Uma noite. . . acho que aconteceu.
. . Como não tinha nem mais um tostão, ele foi
procurar Rolf. Eu estava na outra cama. Detlef apagou
a luz, como sempre o fazia nesses casos. Achei que
estava demorando muito, e pensei até mesmo ter
ouvido Detlef suspirar. Levantei-me e acendi uma
vela. Eles estavam debaixo da coberta se bolinando.
Aquilo estava fora dos meus acordos com Detlef, ele
não devia se deixar bolinar. Fiquei furiosa. Gostaria
de dizer a Detlef que voltasse para minha cama, mas
não fui capaz. Eu lhe disse: Você deve estar
gozando.
Detlef não respondeu. Rolf, puto da vida, apagou
a vela. Detlef passou a noite toda com Rolf. Chorei até
encharcar meu travesseiro, mas como os dois
perceberam a minha tristeza, chorei baixinho. Na
manhã do dia seguinte estava tão triste, tão amarga,
que pensava seriamente em deixar Detlef. A droga
destruía, pouco a pouco, o nosso amor.
Mas eu sabia que enquanto tomássemos heroína
não teria Detlef só para mim. Teria que dividi-lo com
seus clientes e, principalmente, com Rolf. Para mim,
tudo mudou: comecei a me prostituir todos os dias,
pois não havia outra saída e, como estava quase
sempre apressada, não podia mais me mostrar tão
difícil quanto antes na escolha de clientes, nem lhes
impor minhas condições.
Não queria estar todo o tempo na casa de Rolf,
voltei a procurar os outros da turma, principalmente
Babsi e Stella. Mas nós também já não nos
entendíamos tão bem. Cada uma queria falar de si
mesma durante horas, sem se importar em ouvir a
outra, nem mesmo por uns minutos. Babsi, por
exemplo, falava sem parar sobre o significado de um
hífen em uma placa de rua, enquanto Stella estava
louca para contar como levara um golpe dum cara que
nos vendera farinha em vez de heroína. De tanto
gritar "cale a boca!", Stella e eu conseguimos fazer
Babsi calar o bico. Mas, depois, como queríamos falar
as duas ao mesmo tempo, cada uma querendo contar
a história à sua maneira, fomos nós que brigamos. A
maior parte de nossas tentativas de bate-papo
terminava assim, rapidamente, com gritos de "cale a
boca!"... Cada uma de nós tinha uma terrível necessidade
de que alguém nos escutasse. Mas era
precisamente isso que não existia mais na turma.
Antes, nós nos compreendíamos. Agora, tudo havia
terminado. A única maneira de alguém se fazer ouvir
era contando histórias de policiais: estávamos todos
de acordo contra eles, aqueles "pretos". Eu, nesse
campo, tinha mais experiência que os outros, pois no
início do verão de 1977 sofri a terceira prisão.
Foi na Estação Kurfürstendamm. Detlef e eu
voltávamos da casa de um cliente. Muito contentes.
Acabáramos de receber cento e cinqüenta marcos por
pouca coisa: uma pequena exibição. Nosso saquinho
de heroína já estava no bolso e ainda tínhamos um
monte de dinheiro. Percebi a chegada dos policiais à
paisana, no metrô. Uma batida. Um trem apareceu.
Fugi em pânico, com Detlef atrás de mim, e me enfiei
num vagão. Empurrei um velho, que gritou: Puxa
vida, drogada suja! Foi o que ele disse. Os jornais
falavam tanto do que se passava na Estação
Kurfürstendamm, que todo mundo estava a par.
Dois policiais à paisana entraram atrás de nós. É
claro que nosso comportamento chamou a atenção.
Mas eles teriam pego a gente mesmo sem isso: as
pessoas do metrô caíram em cima de nós, grudaram
nas nossas roupas, gritando como histéricos:
Senhores policiais, eles estão aqui pois logo
perceberam que se tratava de uma batida. Tive a
impressão de ser um fora-da-lei, em um banguebangue,
que vai ser enforcado na primeira árvore que
apareça.
Eu me apertei contra Detlef. Um dos policiais
falou: Não precisa representar Romeu e Julieta.
Vamos, vamos.
Puseram-me num microônibus e me levaram para
a delegacia. Os policiais se mostraram muito
agressivos comigo, mas não me fizeram perguntas.
Limitaram-se a me dizer que era a terceira vez que me
pegavam e que eu já tinha um dossiê. Eles nem
sequer avisaram minha mãe. Classificaram-me na
categoria dos casos desesperadores e iriam engrossar
meu dossiê com dois ou três relatórios, esperando o
dia de pôr uma cruz ao lado do meu nome.
Depois de uma hora, já estávamos na rua. Como
eles haviam pego a nossa heroína, precisávamos
comprá-la novamente. Felizmente tínhamos ainda o
dinheiro.
A maioria dos policiais à paisana já me conhecia o
suficiente e procurava não me incomodar muito. Havia
até um jovem que era muito bonito e com um sotaque
do sul da Alemanha. Um dia ele veio silenciosamente
por trás e pôs, bruscamente, sua identificação na
minha cara. Que choque! Mas ele estourou de rir e me
perguntou se estava fazendo trottoir. Dei-lhe minha
resposta habitual: Não, tenho cara disso?
Ele sabia, pois sequer fingiu dar uma olhada em
meu saco plástico. Simplesmente me disse: Não
ande muito por aqui nos próximos dias, senão serei
obrigado a embarcá-la. Talvez não fosse gentileza,
mas se tratasse pura e simplesmente de preguiça;
talvez ele não tivesse vontade de me levar até a
delegacia, e os caras da delegacia não tivessem,
necessariamente, vontade de escrever trinta e seis
vezes o mesmo relatório sobre uma semimorta de catorze
anos.
Depois de nossa prisão na Estação
Kurfürstendamm, Detlef e eu fomos nos abastecer
com um novo revendedor, pois o nosso habitual havia
desaparecido. Fomos nos picar nos banheiros da
Winterfeldplatz. Eles estavam num estado lamentável,
nenhuma torneira funcionava.
Limpei minha seringa na caixa-d'água da imunda
privada. Isto acontecia com freqüência, quando havia
muita gente no lavatório.
A droga do revendedor desconhecido me
enganara. Desmaiei, caí no chão imundo. Levantei-me
em seguida, mas fiquei por um bom momento sem
enxergar nada.
Pela primeira vez, depois de muito tempo, fomos
dar uma volta pelo Sound. Detlef se balançava na
pista de dança, e eu me instalei ao lado da máquina
de suco de laranja. Ela tinha um buraco embaixo. Eu
me apoiei no aparelho, enfiei dois canudinhos juntos
no buraco e bebi suco de laranja de graça, até ter
vontade de vomitar. Fui ao banheiro.
Ao voltar, um dos gerentes caiu em cima de mim,
me tratando de drogada suja, e me mandou segui-lo.
Tive um bruta medo. Ele me pegou pelo braço e me
arrastou até uma sala de depósito de caixas de
bebidas. Tinha também um banquinho de bar.
Conhecia a seqüência. Já haviam me contado a
história. Eles amarravam os viciados e os outros
indesejáveis pelados no banquinho de bar e depois
batiam, às vezes, até com chicote. Ouvi falar de uns
caras que, depois de uma passagem assim pelo
depósito do Sound, ficaram algumas semanas no
hospital, alguns até com fratura de crânio. Os infelizes
tinham tanto medo que nem sequer ousavam dar
queixa à polícia. Aqueles caras da gerência faziam isso
por sadismo e também para afastar os viciados de sua
casa, pois a polícia ameaçava o tempo todo fechar o
Sound. É claro que as drogadas que trepavam com
eles, essas eles deixavam em paz. Esse Sound era
uma casa infame. Se os pais soubessem o que se
passava na "discoteca mais moderna da Europa"! Ali
se incitavam os jovens a se drogar e adolescentes
caíam nas mãos de proxenetas sem que a direção
desse a mínima bola.
Vendo aquele sinistro depósito, o pânico tomou
conta de mim. Juntei minhas forças, escapei das mãos
do cara e corri para a saída. Atingi a rua antes que ele
me pegasse. Ele me empurrou contra um carro. Não
senti o baque. Pensei em Detlef. Tive muito medo por
ele. Eles sabiam que havíamos chegado juntos, e não
vira mais Detlef depois que ele se jogou
completamente drogado na pista de dança.
Corri para uma cabine telefônica e chamei a
polícia. Expliquei que meu amigo estava apanhando no
Sound. Os policiais ficaram contentes com a notícia.
Finalmente poderiam fechar o Sound. Eles chegaram
alguns minutos depois com um carro cheio. Fizeram
uma operação pente-fino na casa e nada de Detlef.
Tive uma idéia: telefonar para Rolf. Detlef já estava
deitado.
Os policiais me disseram para não voltar a fazer
aquele tipo de brincadeira. Voltei para casa convencida
de que a droga estava me deixando louca.
Depois das minhas diversas prisões, fui
convocada para comparecer à Brigada Criminal. Essa
foi a única conseqüência das minhas prisões.
Gothaerstrasse, sala 314. Não esqueci esse número,
pois voltei lá muitas vezes.
Passei em casa ao sair da escola. Queria tomar
uma bela picada antes de ir à polícia, pois se estivesse
drogada não teria medo. Mas não tinha mais limão, e
a heroína não parecia limpa. Naquela época, ela
estava cada vez mais impura: passava de mão em
mão (atacadista, intermediário, pequeno revendedor)
e cada um acrescentava alguma coisa para aumentar
o lucro.
Como dissolver a heroína imunda? Peguei
vinagre, pura e simplesmente. Não é verdade que ele
tem ácido? Coloquei o vinagre diretamente sobre o pó
da colher. Pus demais, mas não queria jogar fora uma
dose de heroína e me piquei com ela. O efeito foi
fulminante. Despertei somente após ter passado uma
boa hora com a agulha enfiada no braço. Tinha uma
dor de cabeça atroz. Impossível ficar em pé. Pronto...
vou morrer. Chorei, deitada no chão. Tinha medo. Não
queria morrer assim... sozinha... Eu me arrastei de
quatro até o telefone. Levei pelo menos dez minutos
para discar o número de mamãe. Não pude lhe dizer
nada além de: Venha, mamãe, por favor, eu vou
morrer.
Quando minha mãe chegou, consegui me
levantar. Tinha a impressão de que minha cabeça iria
estourar, mas eu cerrava os dentes. Disse a mamãe:
É a minha circulação.
Ela notou que eu tinha me picado. Seu rosto
expressou um terrível desespero. Não falou nada e me
olhou. Não suportei seus olhos tristes, desesperados.
Aquilo me fundiu a cuca.
Pouco depois ela me perguntou se eu não tinha
vontade de comer alguma coisa. Sim, morangos.
Ela saiu e me trouxe um cesto cheio.
Achei que dessa vez era o fim. Mas não era uma
over-dose, era só o vinagre. Perdi toda a resistência, e
meu corpo não me obedecia mais. Fora assim que os
outros morreram. Muitas vezes, depois de uma picada,
eles perdiam a consciência. E um dia eles não
acordavam mais. Não sei mais por que tive tanto
medo de morrer. De morrer só. Os drogados morrem
sós. Mas freqüentemente em banheiros fedorentos.
Tive, então, uma verdadeira vontade de morrer. No
fundo não esperava por outra coisa. Não sabia o que
estava fazendo no mundo. Antes, eu também não
sabia muito bem. Mas um viciado vive para quê? Para
se destruir e destruir os outros? Pensei, naquela tarde,
que seria melhor que eu tivesse morrido, mesmo que
fosse só pelo amor a minha mãe. De qualquer forma,
não sabia mais se existia ou não.
Na manhã do dia seguinte estava melhor. Apesar
de tudo, talvez eu ainda agüentasse um pouco mais.
Precisava ir à polícia senão eles viriam me procurar.
Mas não tinha mais forças para ir sozinha. Telefonei
para Stella. Tive sorte de encontrá-la em casa de um
dos nossos clientes comuns. Ela concordou em me
acompanhar. Sua mãe acabara de comunicar seu
desaparecimento, uma vez mais, mas Stella não tinha
medo de nada, ela não dava bola para nada.
Esperamos sentadas e bem comportadinhas, em
um banco de madeira, que nos chamassem à sala 314.
Entrei como uma menininha modelo (um pouco mais,
faria reverência). Uma tal Sra. Schipke me deu a mão,
muito amavelmente, dizendo que tinha uma filha um
pouco mais velha que eu (quinze anos), mas que não
se drogava. Bem, a policial fez seu número maternal.
Ela se inteirou da minha saúde, me ofereceu uma
xícara de chocolate, bolo e maçãs.
Aquela Sra. Schipke, sempre com ares maternais,
me falou de outros toxicômanos e me pediu notícia
deles. Ela me mostrou fotos de viciados e de
revendedores, mas eu não lhe disse nada a não ser:
Sim, eu os conheço de vista. Ela me contou, então,
que certas pessoas do mundo da droga haviam falado
muito mal de mim. Na hora ela me fez falar. Percebi
que fora pega por essa merda, mas falei. E falei muito.
Depois assinei uma declaração cheia de coisas que ela
mais ou menos me fizera falar.
Depois um outro policial veio para me interrogar
sobre o Sound. Aí soltei tudo. Falei das pessoas que
conhecia e que foram levadas a se drogar e também
das brutalidades da turma da gerência. A meu pedido,
chamaram Stella, que confirmou tudo o que contei e
se disse pronta para testemunhar sob juramento
diante de qualquer tribunal.
A Sra. Schipke, que não parava de mexer em
seus papéis, identificou rapidamente Stella e lhe
passou um sabão. Stella a destratou com tal insolência
que pensei: "Ela vai acabar indo em cana". Mas a Sra.
Schipke acabara sua jornada. Convocou Stella para o
dia seguinte e estava claro que ela não iria.
Ao nos dispensar, a Sra. Schipke disse: Estou
segura de que nos veremos em breve. Ela teve a
coragem de me dizer isso ainda num tom adocicado.
Assim ela me anunciara, indiretamente, que eu era um
caso desesperador.
Gerhard Ulber,
chefe do Departamento Antitóxicos da
Polícia de Berlim
Na guerra contra as drogas, nós, da polícia,
tentamos com todas as nossas forças e possibilidades
evitar o tráfico das mesmas, especialmente o da
heroína, ajudando assim as tentativas de terapia dos
órgãos competentes.
Em 1976 confiscamos dois quilos e novecentos
gramas, em 1977, quatro quilos e novecentos e nos
primeiros oito meses de 1978, oito quilos e
quatrocentos de heroína. Isso, evidentemente, não
significa que a nossa apreensão tenha aumentado, se
comparada ao aumento da oferta e consumo.
Pessoalmente, sou bem mais pessimista. As
quantidades de heroína no mercado aumentaram! No
ano passado a prisão de um traficante com cem
gramas de heroína teria sido uma sensação; hoje, é
insignificante.
Reconhecemos que, com grandes lucros, há
também muitos alemães envolvidos no tráfico da
heroína. Os contrabandistas e atacadistas são quase
todos estrangeiros, como o são também aqueles que
têm contato direto com eles. Mas já no nível abaixo,
de traficantes, temos quase só alemães. Estes, por sua
vez, passam até cem gramas aos fornecedores, que as
vendem ao consumidor final, o viciado.
Nossas investigações, feitas com sucesso,
mostraram que os contrabandistas e traficantes
ficaram mais cuidadosos, o que por sua vez exige de
nossa parte mais atenção. Mas quanto mais agimos
em pontos públicos contra os viciados e os seus
passadores, mais eles se escondem. Torna-se quase
impossível descobrir os seus pontos de
comercialização.
Basicamente, a polícia pode fazer de tudo:
vigilância nos lugares públicos, presença constante de
policiais na "cena", etc. Mas o tráfico aumenta, e o
mercado sempre encontra uma saída. Cada vez mais,
o tráfico da heroína está sendo feito em apartamentos,
onde os viciados a compram e se livram da vigilância
policial.
Dos oitenta e quatro mortos vítimas de heroína no
ano de 1977, não tínhamos o menor conhecimento de
vinte e quatro desses viciados, e eles, com certeza,
não morreram em conseqüência de uma primeira
dose. O consumidor assíduo de barbitúricos também
só aparece quando é levado, inconsciente, para um
hospital, onde, com a ajuda dos médicos, é salvo no
último momento.
É perfeitamente possível pessoas se injetarem
heroína durante anos a fio, sem que a polícia as
descubra. Em outras palavras: a polícia não pode
resolver o problema dos tóxicos sozinha. Os
americanos tiveram essa experiência com a Lei Seca
(proibição do álcool) e nós, após 1945, com o mercado
negro. Se existe uma grande procura, há de haver
sempre uma grande oferta.
Eu poderia mobilizar mais vinte policiais para este
serviço, e nós prenderíamos, certamente, alguns
pequenos traficantes. Mas o problema não ficaria
solucionado, estaria apenas transferido para as
prisões, onde já é bastante elevado o tráfico de
drogas. Prisioneiros viciados fazem de tudo para
conseguir o tóxico, e os traficantes internos, por sua
vez, também fazem de tudo para abastecê-los. Temos
que falar claramente: os lucros são muito grandes e
isso facilita a corrupção.
Se não conseguirmos isolar os viciados em drogas
dos presos comuns, acontece como aqui em Berlim
ou o caos nos presídios ou o fim do moderno
sistema penitenciário. Se quisermos evitar que o uso
dos tóxicos aumente dentro das prisões e que outros
se viciem, será necessário proibir saídas, visitas
numerosas, etc. Na prática, é absolutamente
impossível revistar cada um que volta das saídas e,
mais ainda, os que visitam os presos; e isso seria
muito importante. Existem mulheres que transportam
heroína en- volta num preservativo, dentro da vagina,
e homens, no ânus.
Prisões, condenações e penas permanentes de
nada adiantam. O viciado em heroína não reage a
nada disso enquanto tiver a possibilidade de satisfazer
o seu vício. O esclarecimento preventivo seria, na
minha opinião, o único meio de evitar o aumento dos
viciados.
Renate Schipke, trinta e cinco anos,
investigadora do Departamento de Tóxicos
Conheci Christiane quando eu era investigadora
de delitos contra a lei antitóxicos. A primeira vez que
ela foi convocada, após uma denúncia normal, veio
falar comigo acompanhada de sua amiga Stella. Ao
todo, estive com ela umas seis ou sete vezes.
O meu trabalho na época era o de interrogar os
viciados dependentes e conhecidos da polícia, para
obter informações sobre os passadores de drogas.
Existe um número elevadíssimo de denúncias, e o
trabalho tem de ser feito. Assim, torna-se difícil pensar
em cada caso isoladamente. No meu trabalho, sempre
procuro criar uma relação mais pessoal, o que facilita
muito um interrogatório positivo.
No início, Christiane era muito aberta, dando-me
todas as informações, com boa vontade. Chamou-me
a atenção por sua humildade e deu-me a impressão de
ser uma criança bem-educada. Durante a nossa
primeira conversa ela parecia ainda uma menininha.
Christiane sempre falou bem da mãe, e eu tenho a
dizer que esta, ao contrário dos outros pais, sempre
cuidou bem da filha. Muitas vezes tivemos, também,
conversas por telefone.
Com o passar do tempo, e após vários
interrogatórios, Christiane se tornou desaforada e
presunçosa. Tive que falar duramente com ela,
advertindo-a de que apesar das tentativas de deixar o
vício ela sempre permaneceria uma toxicômana. Foi
um diálogo muito pesado. Mas não quero falar
negativamente sobre Christiane. Ela também não era
rancorosa. É simplesmente impossível ajudar os
viciados! Eles se sentem sempre traídos, porque não
entendem a causa do castigo. Em minha opinião,
esses jovens são superficiais demais. Por curiosidade
ou por falta do que fazer, eles começam com as
drogas e depois ficam admirados com as conseqüências.
Acharia bom que Christiane fosse condenada
pelo maior tempo possível, pois o choque de uma
prisão, numa pessoa tão jovem, pode fazer com que
ela melhore. Assim espero.
***
Quando me vi no metrô queria chorar de tanto
ódio. Fui realmente uma estúpida em aceitar o
chocolate e o bolo daquela nojenta policial e deixar
que ela me fizesse cair na armadilha.
Após ter atendido a mais dois clientes na Estação
Zoo e ter comprado heroína na
Kurfürstendammstrasse, fui para casa. Meu gato, na
cozinha, mal conseguia ficar de pé. Aliás, ele já
andava adoentado há alguns dias. Naquele momento
ele estava com um olhar tão triste, soltando uns
miadinhos tão sem força, que pensei que também
fosse morrer logo.
Eu me preocupava mais com o meu gato
moribundo do que comigo mesma. O veterinário me
havia dado extrato de sangue de boi. Mas ele não
comia absolutamente nada. O pires estava sempre
cheio, mas ele nem sequer levantava a cabeça.
Senti, naquele momento, uma enorme vontade de
me aplicar uma picada. Busquei meus utensílios e aí
me ocorreu uma idéia. Puxei um pouco do sangue de
boi na ampola e o injetei na goela do gato. Inerte, ele
me deixou agir. Depois levei algum tempo até limpar
os meus utensílios de forma a poder utilizá-los em
mim mesma.
Piquei-me, mas o resultado não foi lá essas
coisas. O medo que sentia de morrer sozinha me
apavorava. No fundo, eu queria morrer, mas antes de
me picar sentia medo da morte. Talvez a presença do
meu gato fosse a razão da minha angústia. Afinal, que
negócio mais chato; morrer sem ter vivido.
Não via saída. Minha mãe e eu nunca mais
trocamos palavras sensatas desde o dia em que ela
compreendeu que eu havia recaído. Gritava pela casa,
mas ela simplesmente me olhava com um ar
desesperado. A declaração que assinei foi o suficiente
para me levar às bancas do Tribunal de Menores, e
corri o risco de ser condenada. Sabia muito bem que
minha mãe ficaria muito feliz se tivesse podido me
ajudar para que as coisas não chegassem àquele
ponto. Ela não parava de telefonar para todo canto
(Serviço Social, Centro Antidrogas) e parecia cada vez
mais desesperada, pois percebera que ninguém podia
ou queria nos ajudar. Tudo o que ela conseguia fazer
eram ameaças de me enviar para sua família, longe de
Berlim.
Finalmente, num belo dia de maio de 1977, meu
pobre cérebro acabou reconhecendo que só me
restavam duas soluções: overdose a curto prazo ou
uma séria desintoxicação. Deveria decidir-me sozinha.
Não podia mais contar com Detlef e não queria tornálo
responsável pela minha decisão.
Fui ao conjunto Gropius, ao Centro de Jovens,
aquele dirigido por um pastor, onde minha carreira de
viciada começou. O Centro estava fechado: não
conseguindo mais controlar o problema da heroína,
tiveram que fazer do Centro de Jovens um centro
antidrogas. Era necessário um centro antidrogas só
para o conjunto Gropius, tal era o grau de estragos
feitos pela heroína desde que aparecera por ali, há
dois anos. Eles me disseram o que eu já sabia há
muito tempo: a minha única chance era uma boa
terapia. Deram-me o endereço da Drogeninfo e da
Synanon, porque estas conseguiam melhores
resultados.
Eu tinha um certo receio dessas terapias, pois,
segundo diziam na "cena", elas eram bastante
rigorosas. Nos primeiros meses era pior do que uma
prisão. Na Synanon, era preciso até deixar que nos
raspassem o cabelo. Era uma maneira de nos
conscientizar de que queríamos começar vida nova.
Pensei: "Isto eu não vou conseguir, deixar cortar meu
cabelo à la Kojak, nem pensar!" Meus cabelos eram
para mim a coisa mais importante, pois com eles
escondia o meu rosto. Achava que se eles cortassem
os meus cabelos acabaria me suicidando.
A conselheira achava, também, que eu não tinha
a menor chance de entrar na Drogeninfo ou na
Synanon, pois eles já não tinham mais vagas. Uma
nova admissão seria muito difícil, seria pelo menos
necessário estar com alguma saúde e provar-lhes,
através de uma autodisciplina livremente consentida,
que tínhamos força de vontade para nos desligarmos
do vício. Ela também reiterou que eu era muito jovem,
nem ao menos tinha completado quinze anos, portanto,
era ainda uma criança. Seria, para mim, muito
difícil preencher as exigências deles. Aliás, para as
crianças eles ainda não tinham uma terapia
determinada.
Eu me propus ir à Narconon. Narconon era o
centro terapêutico da Igreja Cientológica, uma seita.
Conheci alguns viciados que ali estiveram e disseram
que não era mau. Se pagássemos adiantado, não
faziam exigências para a admissão. Tínhamos direito a
nos vestir como queríamos, levar discos, e aceitavam
até animais.
A conselheira me mandou refletir, pensar na
razão pela qual tantos viciados disseram que na
Narconon a terapia era completamente descontraída, e
continuavam a se picar. Ela não conhecia nenhum
exemplo de terapia bem-sucedida na Narconon.
Mas, o que fazer se não tinha nenhuma chance de
ser admitida em outro lugar? Ela me deu o endereço
da Narconon.
Em casa, dei um pouco de extrato de sangue de
boi para o meu gato, na seringa. Quando minha mãe
voltou do escritório, anunciei-lhe: Vou me
desintoxicar totalmente na Narconon. Serão alguns
meses ou talvez um ano. Depois estarei limpa para
sempre.
Minha mãe demonstrou não acreditar em uma só
palavra minha. Nem sequer tentou obter informações
sobre a Narconon.
Mergulhei de cabeça nessa história de terapia.
Tinha a impressão de renascer. Nada de clientes
naquela tarde e não tomei nada. Iria me privar da
droga antes de entrar para a Narconon. Eu não queria
começar pela tortura do quarto de isolamento. Queria
chegar limpa, para estar em igualdade de condições
com os demais internos. Queria provar-lhes
imediatamente que estava decidida a deixar a droga.
Fui dormir bem cedinho. O gato estava cada vez
pior. Eu o instalei a meu lado, no travesseiro. Estava
muito orgulhosa de mim. Faria meu tratamento
sozinha, com minha própria vontade. Que outro
viciado poderia dizer o mesmo? Quando lhe anunciei
minha decisão, minha mãe reagiu com um sorrisinho
incrédulo. Ela não tirou nenhum dia de férias. Para ela,
meus tratamentos quase faziam parte do cotidiano, e
não acreditava mais neles. Eu estava sozinha.
Na manhã do dia seguinte tive uma crise. Talvez
a pior de todas. Mas tinha a certeza de que iria
agüentar a barra. Quando me sentia mal de verdade,
pensava: "É só veneno que sai do seu corpo. Você vai
viver porque nunca mais vai se envenenar". Quando
adormecia, não tinha pesadelos e sonhava com o que
seria minha vida depois da terapia. Maravilhosa.
Quando, já no terceiro dia, as dores tornaram-se
mais suportáveis, só via o paraíso, como num filme,
diante dos meus olhos. Cada vez a coisa tornava-se
mais concreta. Continuava freqüentando as aulas até a
minha formatura. Tinha, também, minha moradia
própria. Um VW conversível diante da porta, que eu
dirigia, quase sempre, com a capota baixada.
O apartamento era no meio do verde. Em Rudow
ou talvez em Grunewald. A construção era antiga, mas
nem de longe se parecia com as construções
burguesas do Kurfürstendamm, com seus tetos altos e
feitos de estuque. Também não era uma casa, onde a
entrada era um salão, coberto por tapetes vermelhos,
muito mármore e cheio de espelhos com nomes
gravados em letras douradas. Não era, portanto, nada
que fedesse a riqueza. A riqueza, assim eu imaginava,
significava hipocrisia, agitação e stress.
Eu queria o meu apartamento num edifício
simples, com duas ou três peças, tetos baixos, janelas
pequenas, com uma escadaria de madeira, onde
houvesse sempre um cheirinho bom de comida, e que
os vizinhos fossem pessoas amáveis ao nos
cumprimentar todos os dias: "Como vai, tudo bem?" A
escada deveria ser estreita o suficiente para que a
gente esbarrasse um no outro ao passar. Todos naquele
edifício trabalhavam muito, mas viviam felizes.
Não havia brigas nem inveja. Todos se ajudavam
mutuamente. Eram, por isso, completamente
diferentes daqueles ricos nojentos que moravam nos
altos edifícios do conjunto Gropius. Ali, todos viviam
tranqüilos.
No meu apartamento a peça principal era o
quarto de dormir. Minha cama, muito larga, coberta
com um tecido escuro, estava encostada na parede do
lado direito. Tinha duas mesas-de-cabeceira (a
segunda era para Detlef) e um vaso com palmeiras.
Além disso, o quarto estava cheio de plantas e flores.
A parede atrás da cama era forrada com um papel que
não estava à venda no comércio: nele havia desenhos
de um deserto, gigantescas dunas de areia e um oásis.
Sob as palmeiras, beduínos vestidos de branco e
bebendo café, sentados em roda e totalmente à
vontade. A paz. O meu lado era o esquerdo da cama,
sob a janela do teto. A cama estava instalada como na
Arábia ou na Índia, cheia de almofadas, tendo ao lado
uma mesa baixa e redonda. Era lá que eu passava
minhas noites na mais completa calma. Longe de toda
agitação, sem angústia nem problemas.
Minha sala de estar era muito parecida com o
quarto. Plantas, tapetes. No meio dela havia uma
grande mesa de madeira rodeada de cadeiras de
palha. À mesa, estavam sempre os meus melhores
amigos. Bebíamos chá, e eu cozinhava para eles. Nas
paredes, prateleiras carregadas de livros. Livros legais,
escritos por pessoas que encontraram a paz e que
conheciam muito bem a natureza e os animais. Essas
prateleiras eu mesma as fabricara, como a maior parte
dos meus móveis, pois não encontrara nas lojas peças
que me agradassem. Não queria coisas para
impressionar, mas apenas móveis que não tivessem
como única função mostrar que custaram uma fortuna.
E não havia portas em meu apartamento. Havia
apenas cortinas, pois as portas batem, fazem ruído e
agitação.
Tinha um cachorro, um rottweiler, e dois gatos.
Desmontei o banco traseiro do meu carro para que o
cachorro ficasse mais à vontade.
À noite preparava o jantar. Tranqüilamente e
devagar, não como minha mãe, que sempre cozinhava
às pressas. Um ruído de chave na fechadura. Era
Detlef que voltava do trabalho. O cachorro pulava em
cima dele. Os gatos se eriçavam e vinham se esfregar
contra as suas pernas. Detlef me beijava e sentava-se
à mesa para jantar.
Isso tudo era o que eu sonhava naquela grave
crise de abstinência da H. Só não sabia que era um
sonho. Aquelas imagens pareciam, para mim, a
realidade de depois de amanhã. Depois da terapia.
Nunca imaginava que pudesse ser de outra forma, a
tal ponto que, na noite do meu terceiro dia de
tratamento, disse a minha mãe que terminada a
terapia mudaria para meu próprio apartamento.
No quarto dia já me sentia tão bem que até
consegui me levantar. Ainda tinha vinte marcos,
guardados no bolso de meus jeans. Esse dinheiro
deixava-me inquieta, porque vinte marcos eram
exatamente a metade dos quarenta. Pensei então: "Se
você ao menos tivesse mais vinte marcos, poderia ir
comprar a sua última dose de heroína, como despedida,
antes de ir amanhã pela manhã para a
Narconon".
Falava com o meu gato doente. Dizia-lhe que não
seria assim tão ruim se eu o deixasse por apenas duas
horas sozinho. Com a minha agulha de injeção dei-lhe
chá de camomila com um pouco de açúcar de uvas
a única coisa que ele ainda segurava no estômago e
disse1. Você não vai morrer.
Eu só queria andar, mais uma vez, pelo Kudamm,
pois sabia que na Narconon não nos deixavam sair
sem acompanhante. Queria sentir a última picada, pois
o Kudamm, sem heroína, era uma merda. Mas me
faltavam os tais vinte marcos. O jeito era fazer mais
uma viração, ou seja, procurar um cliente. Só não
queria era me encontrar com Detlef na Estação Zoo
pois, se eu lhe contasse que fora bem-sucedida na
minha abstinência e que estava apenas procurando um
cliente para me despedir totalmente da droga, ele
certamente me daria a maior gozada da paróquia.
A idéia me ocorreu no metrô: vou me deixar
paquerar por um automobilista. Pensei nisso por causa
dos vinte marcos, que era mais ou menos o preço.
Stella e Babsi faziam isso com freqüência, mas eu
sempre tive horror de fazer isso: primeiro, não
podemos examinar o tipo que se aproxima de nós, e
subimos no carro de qualquer um.
O pior era quando caíamos nas mãos de um
cafetão. Eles freqüentemente se fantasiavam de
cliente. E, uma vez dentro do carro, não havia mais
nada a fazer. Eles não queriam que as viciadas
trabalhassem para eles, pois isso não lhes interessava
(elas gastam muito dinheiro com drogas). O que eles
queriam era expulsá-las da Kurfürstenstrasse, porque
elas baixavam os preços do mercado das profissionais.
Babsi uma vez subiu no carro de um deles. Ele a
seqüestrou por três dias. Torturou-a e depois a
obrigou a trepar com um monte de caras, estrangeiros
sujos, mendigos bêbados e coisas do gênero. E
durante todo esse tempo Babsi estava, é claro, em
crise. Ela viveu um verdadeiro inferno durante esses
três dias, mas mesmo assim voltou à
Kurfürstenstrasse. É que ela era a rainha do lugar,
com o seu rosto de anjo e sua silhueta reta, sem seios
nem nádegas. As prostitutas profissionais eram quase
tão perigosas quanto os cafetões. A Potsdamerstrasse,
o quartel-general das putas da pior espécie, ficava
apenas a duzentos metros da putaria infantil na
Kurfürstenstrasse. Periodicamente, elas faziam uma
verdadeira caça às viciadas. Se pegavam uma, caíam
em cima com estilete na mão e deixavam-na em carne
viva.
Desci na Estação Kurfürstenstrasse. Estava morta
de medo. Pensava nos conselhos de Babsi e Stella
para evitar tipos jovens em carro esporte ou
americano, que podiam ser proxenetas. Os velhos com
gravata e gordinhos eram barra-limpa, principalmente
se estivessem de chapéu. Os melhores eram os caras
que tinham uma cadeira de bebê no banco traseiro:
eram pais de família à procura de uma pequena
aventura, e tinham mais medo do que a gente.
Subi a rua em direção ao Sound, não à beira da
calçada, mas ao lado das casas, com um ar de quem
não queria nada. Logo depois um cara me fez sinal. Eu
o achei estranho, com um ar agressivo. Talvez por
causa de sua barba. Mandei-o passear e continuei meu
caminho.
Não havia outra menina à vista. É que ainda não
era meio-dia. Sabia disso, pois Babsi e Stella me
haviam dito que ficavam furiosos, pois se viravam
como doidos para conseguir meia hora e não
encontravam nenhuma menina. Às vezes, na
Kurfürstenstrasse havia mais clientes do que meninas.
Muitos outros carros pararam. Fingi que não os via.
Olhava as vitrinas de uma loja de móveis. Caí
novamente no sonho do meu apartamento. Pensei:
"Christiane, minha filha, recomponha-se. Os vinte
marcos, é preciso encontrá-los rápido. Concentre-se".
Nesses casos eu precisava me concentrar para me
livrar o mais rápido possível.
Um Comodoro branco parou. Nada de cadeira de
criança no banco traseiro, mas o cara não tinha
aspecto de louco. Subi sem pensar muito. Acertamos
por trinta e cinco marcos.
Fomos à Asknischenplatz, onde havia uma velha
estação desativada. Foi rápido. O cara foi bonzinho e
até esqueci que era um cliente. Ele disse que gostaria
de rever-me, mas que partiria dentro de três dias para
a Noruega, em férias com sua mulher e os dois filhos.
Pedi-lhe para me deixar na Universidade Técnica,
pois era lá que encontrávamos heroína pela manhã.
Ele aceitou na hora.
O dia estava lindo nesse 18 de maio de 1977. Eu
guardei bem a data, pois foi dois dias antes do meu
décimo quinto aniversário. Andava à toa, conversava
com dois caras, acariciava um cão. Era a felicidade.
Achava formidável não estar apressada, poder esperar
para me picar na hora em que eu tivesse vontade de
verdade. Não estava mais em estado de dependência.
Depois de certo tempo passou um cara que
perguntou se eu queria droga. Disse-lhe que sim, e
comprei-a por quarenta marcos, Desci para me picar
no toalete de senhoras da Ernst-Reuter-Platz, que era
bastante limpa. Pus meia dose na colher, pois depois
de um tratamento era preciso ir com moderação.
Piquei-me com certa solenidade, dizendo a mim
mesma que seria a última dose.
Acordei duas horas mais tarde, a bunda no vaso
sanitário, agulha no braço. Minhas coisas no chão. Eu
me sentia relativamente bem. No fundo, havia
escolhido o melhor momento para me curar.
Meu passeio a Kudamm dançou. Comi no
restaurante universitário, por dois marcos e meio,
batatas e salsichão, mas vomitei tudo alguns minutos
mais tarde. Andei à toa na Estação Zoo para dizer
adeus a Detlef, mas não o encontrei. Precisava voltar
para casa, pois meu gato tinha necessidade de mim.
Pobre gato, não tinha se mexido e continuava no
meu travesseiro. Limpei a seringa e lhe dei um pouco
de chá com açúcar de uva. Não era assim que eu
imaginava minha última jornada de viciada. Se eu
pegasse um dia a mais?
Aí minha mãe chegou e me perguntou onde
passara a tarde. Em Kudamm. Ela não estava
contente. Você tinha dito que passaria para se
informar na Narconon.
Louca de raiva, comecei a gritar: Deixe-me em
paz! Eu não tive tempo, entendeu? Ela, por sua vez,
também gritou: Embrulhe suas coisas e se mande
para a Narconon! E fique por lá.
Acabara de preparar uma costeleta com purê.
Levei meu prato para o banheiro, me tranquei e comi
lá dentro. Eis minha última noite na casa de minha
mãe. Gritei porque fiquei arrasada por ela ter
compreendido que eu, mais uma vez, havia tomado
uma picada.
Arrumei algumas coisas no meu grande saco de
dormir. Escondi a seringa, a colher e o resto da
heroína na calcinha. Fomos à Narconon de táxi. Não
me perguntaram nada. Esses caras pegavam qualquer
um. Tinham até intermediários que passeavam na
"cena".
Mas as perguntas foram feitas à minha mãe!
Antes de me admitir na Narconon, eles queriam ver o
dinheiro: mil e quinhentos marcos, pagos adiantado,
para o primeiro mês. É claro que minha mãe não tinha
esse dinheiro. Ela prometeu arrumá-lo até a manhã do
dia seguinte. Arranjaria um financiamento. Suplicoulhes
que ficassem comigo. Eles concordaram.
Pedi autorização para ir ao banheiro. E me deram.
Tomei uma picada rapidamente. Quando voltei
eles perceberam que eu estava drogada, mas não
fizeram nenhuma observação. Eu lhes dei a seringa e
o resto. O cara ficou com um ar espantado e me
felicitou.
Levaram-me para o quarto de isolamento. Éramos
três lá dentro. Um dos outros dois se mandou na
manhã seguinte. Um belo lucro para a Narconon.
Eles me deram livros sobre a doutrina da Igreja
Cientológica. Que seita gozada! Podíamos ou não
acreditar nas suas histórias. Eu tinha necessidade de
acreditar em alguma coisa.
Depois de dois dias me deixaram sair do quarto
de isolamento. Fui dividir um quarto com Christa. Uma
louca. Privaram-na da terapia porque ela não parava
de zombar das terapias e dos terapeutas. Ela revirava
os cantos do nosso quarto dizendo que alguém podia
ter escondido heroína. Levou-me ao sótão: Basta
instalar algumas almofadas, e poderemos fazer aqui
uma dessas farras com vinho, maconha e tudo o mais.
Eu, que tinha vindo à Narconon para me livrar,
para me desintoxicar, e ela não parava de falar de
droga e de colocar a Narconon na merda.
No dia seguinte, telefonema de minha mãe. Ela
me disse que o gato havia morrido, e só depois me
desejou feliz aniversário.
Passei o resto da manhã chorando na minha
cama.
Quando os caras perceberam, disseram que eu
tinha necessidade de uma sessão. Trancaram-me em
uma sala com um cara (um ex-viciado) que me
bombardeou com ordens absurdas. Fui obrigada a
executar.
Ele me disse: Veja esta parede. Aproxime-se
desta parede. Toque a parede. E repetíamos.
Durante horas. Eu tateava os quatro muros da sala.
Em dado momento estava com o saco cheio disso e
falei: Que besteirada. Você é louco ou o quê? Deixeme
em paz, basta. Sem parar de sorrir ele me
convenceu a continuar. Em seguida, ele me fez tocar
diferentes objetos até o momento em que me joguei
no chão, soluçando, completamente esgotada.
Ele sorria. Quando me acalmei, a sessão
recomeçou. Estava abobada. Tocava a parede antes
mesmo de ter recebido ordem. O único pensamento
que ainda conseguia ter era: seria bom se isso
terminasse.
Depois de cinco horas exatas, ele falou: Está
bem, é o suficiente por hoje. Eu me sentia muito
bem. Ele me levou a uma outra sala, onde havia um
aparelho, de fabricação artesanal, uma espécie de
pêndulo entre duas caixas de aço. O cara me mandou
colocar a mão ali e me perguntou: Você se sente
bem?
Sim. Agora eu tenho verdadeira consciência de
tudo o que me cerca.
O cara olhou o pêndulo: Ele não se mexeu,
então você não mentiu. A sessão foi boa.
O treco estranho era um detector de mentiras!
Um dos objetos do culto dessa seita. De qualquer
forma, eu estava contente porque o pêndulo não se
mexera. Para me libertar da heroína, estava pronta a
acreditar em qualquer coisa.
Ali eles faziam toda sorte de coisas
surpreendentes. Por exemplo, nessa mesma noite,
Christa teve febre: eles a fizeram tocar em uma
garrafa e dizer se ela era quente ou fria; depois de
algum tempo, ao que parece, a febre tinha baixado.
Tudo aquilo virou minha cabeça a tal ponto que
na manhã seguinte corri ao escritório para pedir uma
nova sessão. Durante uma semana meti a cara nos
dogmas da seita. Tinha verdadeira fé na terapia. O
programa era rígido: sessões, limpeza, cozinha. Isso ia
até as dez da noite. Não tínhamos tempo para pensar.
A única coisa que me irritava era a comida. Não
conseguia me adaptar a um rango daqueles. Pelo
preço que pagávamos, aquilo poderia ser ao menos
um pouco melhor. Principalmente porque eles não
tinham outros gastos. Os que presidiam as sessões
eram quase sempre ex-viciados. Diziam que este
trabalho fazia parte de suas terapias e recebiam um
pouco de dinheiro para os gastos. Os dirigentes da
Narconon comiam à parte. Um dia eu os vi almoçando,
estavam comendo um verdadeiro banquete!
Um domingo finalmente tive tempo de pensar
seriamente. Primeiro pensei em Detlef, e isso me
deixou triste. Depois me fiz algumas perguntas: o que
fazer depois da terapia? Essas sessões me ajudariam
realmente? Tinha muitas perguntas, mas nenhuma
resposta. Gostaria muito de falar com alguém, mas
não tinha ninguém, e ali era proibido fazer amizades:
era um dos grandes princípios da casa. Se tentássemos
conversar problemas desse tipo com os caras
da Narconon, eles nos metiam imediatamente numa
sessão. Desde que entrara nessa casa não tivera
nenhum papo.
Na segunda-feira pintei no escritório e vomitei
tudo de uma só vez. Em primeiro lugar, a comida.
Depois, tinham me roubado quase todas as calcinhas.
Era impossível entrar na lavanderia, pois a menina que
tinha as chaves passava o tempo todo na cidade, se
picando. Aliás, ela não era a única. Essa espécie de
coisas me perturbava. O ritmo forçado das sessões e o
trabalho de limpeza estavam me esgotando e não
tinha mais a minha cota de sono. Está bem
disse-lhes , suas terapias são muito boas, mas elas
não solucionam os meus problemas. Isso tudo, no
fundo, é domesticação. Vocês tentam nos endireitar,
mas tenho necessidade de alguém com quem falar dos
meus problemas e de tempo para lutar com eles.
Eles me ouviram sem dizer nada, com seus
eternos sorrisos. Depois disso tive direito a uma
sessão suplementar. Ela durou o dia todo, até as dez
horas da noite. Saí novamente em total apatia. Afinal
de contas, será que eles sabem mesmo o que estão
fazendo? Minha mãe me contou, durante uma de suas
visitas, que a Previdência Social lhe reembolsara os
gastos com minha permanência na Narconon. Já que o
Estado gastava dinheiro com isso, era porque acreditava
na coisa.
Outros pensionistas da Narconon tinham mais
problemas do que eu. Gaby, por exemplo: ela havia se
apaixonado por um cara, e queria, a todo custo,
dormir com ele. Ela foi, como uma idiota, contar aos
manda-chuvas. Resultado: uma sessão suplementar.
Mesmo assim ela trepou com o cara. Ficaram sabendo
e os ridicularizaram diante de todos. Gaby
desapareceu naquela noite e nunca mais voltou. O
cara era um ex-viciado que, podia-se dizer, estava
limpo há muitos anos, e se mandou alguns dias mais
tarde. Voltou drogado até o pescoço.
Na verdade as pessoas da Narconon não se
incomodavam muito se trepássemos ou não. Para eles,
o importante era nos impedir de estreitar laços com
alguém. Mas se este cara trabalhava com eles havia
mais de um ano, como poderia suportar tanto tempo
de isolamento?
Tarde da noite, o único tempo livre que nos sobrava,
tínhamos alguns momentos de diversão. Passava-os
sempre com os pensionistas mais jovens. Era a mais
jovem de todos, mas ninguém, naquela turma que
havíamos começado a constituir, chegava a dezessete
anos. Era a primeira leva de drogados muito jovens:
éramos todos crianças quando começamos a nos picar.
E nos tornamos um farrapo em um ou dois anos,
porque durante a puberdade o veneno é ainda mais
devastador que mais tarde. Se nos encontrá vamos ali,
tínhamos todos a mesma razão: não havia terapia em
outro local.
Como eu, a maioria chegou à conclusão de que as
sessões não nos levavam a nada. De qualquer forma,
quando colocavam dois jovens juntos, a coisa se
transformava em palhaçada: como manter a seriedade
por muito tempo quando devíamos xingar uma bola de
futebol ou nos olhar nos olhos durante duas horas?
Renunciaram a nos fazer passar pelo detector de
mentiras. Qual era a sua utilidade se nós dizíamos que
as sessões não serviam para nada? Nós nos
divertíamos e nada mais. Nossos infelizes
coordenadores estavam cada vez mais perdidos.
Logo teríamos um só assunto para conversar: a
heroína. Às vezes, em círculo fechado, falávamos
também da maneira como nos mandar.
Depois de quinze dias de Narconon, tinha meu
plano. Eu e dois rapazes nos disfarçamos de "comando
da grande limpeza" e, graças ao nosso arsenal de
baldes, escovão e panos de limpeza, atravessamos
todas as portas sem problemas. Estávamos, os três,
loucos de alegria. Estávamos tão impacientes para nos
picarmos que por pouco não fizemos xixi nas calças.
Separamo-nos na entrada do metrô. Tomei a direção
da Estação Zoo. Fui encontrar Detlef. Ele não estava;
Stella, sim. Ela me deu uma calorosa acolhida.
Contou-me que eles não tinham visto Detlef
ultimamente. Temi que ele estivesse preso. Quanto
aos clientes, eram muito poucos. Fomos à
Kurfürstenstrasse. Ali também não havia grande coisa.
Finalmente um carro parou. Reconhecemos o carro e
seu condutor. Um cara que já nos seguira tantas
vezes, até no caminho dos banheiros públicos, quando
íamos nos picar. Sempre o consideramos um policial à
paisana, mas não passava de um tarado por pequenas
drogadas.
Ele estava interessado em mim, mas deixou Stella
subir no carro.
Eu lhe declarei: Trinta e cinco marcos por uma
bombada. Não faço nada mais além disso.
Eu te dou cem.
Fiquei perplexa. Nunca tinha acontecido uma
coisa assim. Os caras que andavam de Mercedes
chiavam por cinco marcos. Aquele cara, no seu Volks
enferrujado, me propôs espontaneamente cem. Ele me
explicou que era um espião. Bem, era um
megalomaníaco. Mas estes eram quase sempre os
melhores clientes, não eram avarentos, pois aquela
era mais uma forma de se vangloriar.
Ele me deu realmente os cem marcos. Stella foi
comprar imediatamente a heroína e nos picamos no
carro. Depois fomos para o hotel. Fui com calma com
o cara (Stella me esperava no hall) porque ele fora
generoso e eu estava drogada (havia duas semanas
que não tomava nada). Não tinha nem mesmo
vontade de deixar a estreita cama daquele horrível
quarto de hotel.
Conversei um pouco com o cara. Ele era
interessante de verdade. Acabou me contando que
tinha em sua casa meio grama de heroína, que nos
daria se nos encontrássemos com ele em três horas na
Kurfürstenstrasse. Eu lhe pedi mais trinta marcos,
dizendo que tínhamos necessidade de comer bem, que
tal soma não era nada para um ricaço como ele e que
compreendia muito bem que se ele andava naquele
carro velho era para enganar o inimigo, pois ele era
um espião, etc., etc. Ele, encurralado, me deu o
dinheiro.
Stella e eu voltamos à Estação Zoo. Não
abandonei a esperança de encontrar Detlef. De
repente, um cachorrinho preto e branco com os pêlos
enlameados avançou na minha direção e saltou nos
meus braços. Eu devia lhe lembrar alguém. Esse cão
era genial, podia-se até dizer que era um cão de caça
subdesenvolvido. Apareceu um cara com a roupa
rasgada e me perguntou se eu queria comprá-lo. Ele
queria setenta marcos, pechinchei e ele deixou por
quarenta. Que legal: estava drogada e tinha
novamente um cão. Stella propôs chamá-lo de Lady
Jane. Eu o batizei de Janie.
Comemos em um restaurante na
Kurfürstenstrasse. Janie tinha direito à metade de
nossas costeletas. O "espião" chegou na hora exata ao
encontro e me trouxe, calmamente, meio grama de
heroína. Foi uma loucura. Isso valia cem marcos.
Voltamos à Estação Zoo. Nada de Detlef, mas
encontramos Babsi. Estava muito contente, pois,
apesar de brigarmos muito, era a minha melhor
amiga. Subimos as três ao terraço. Babsi tinha um
mau aspecto: pernas como palitos de fósforo, o peito
desaparecera e não pesava mais de trinta e um quilos.
Mas seu rosto continuava bonito.
Contei-lhes da Narconon, disse-lhes que a casa
era legal. Stella não queria nem ouvir falar: ela
nascera viciada e morreria viciada, disse. Mas Babsi
estava entusiasmada com a idéia de podermos nos
desintoxicar juntas. Seus pais e sua avó tentaram em
vão encontrar uma vaga num centro de terapia. Ela
estava uma vez mais em fuga, mas gostaria de se
desligar. Estava num estado pavoroso.
Batemos um bom papo e nos separamos. Fui com
Janie fazer compras numa loja fabulosamente cara que
ficava aberta à noite, e comprei dois sacos de comida
para cães e um grande estoque de salgadinhos para
mim. Depois telefonei para a Narconon. Eles me
autorizaram a voltar. Disse-lhes que levava uma
amiga, sem precisar que era um cão.
Apesar de não ter pensado muito nisso, eu bem
sabia que iria voltar à Narconon. Para onde poderia ir?
Para casa? Imaginava a cara de minha mãe ao me ver
chegando. Além do mais, minha irmã voltara (ela não
queria mais ficar na casa de meu pai) e ocupava
minha cama e o meu quarto. Vagabundagem? Muito
pouco para mim. Dormir na casa de um cliente
significava ficar totalmente à sua mercê e trepar
automaticamente. Eu nunca passei a noite na casa de
um cliente. E principalmente estava decidida a me
desligar da droga. Rumei para a Narconon, pois de
toda maneira não tinha escolha.
Na casa (chamávamos sempre a Narconon de "a
casa") a acolhida foi bastante fria, mas sem
comentários. Eles nada disseram sobre Janie, pois
havia vinte gatos no pedaço.
Fui procurar velhos cobertores no subsolo e
instalei o leito de Janie ao lado do meu. Na manhã
seguinte ela havia feito cocô por todos os lados. Janie
nunca foi limpa. Ela era meio pirada. Mas eu também
era. Eu a amava. Limpar aquela sujeira, para mim,
não era nada.
Imediatamente tive direito a uma sessão
suplementar. Não dei bola para aquilo. Executei,
automaticamente, as ordens que recebi. A única coisa
que me aborrecia era passar o tempo todo longe de
Janie. Os outros cuidavam dela, mas ficava doente
porque queria que ela fosse só minha. Todo mundo
brincava com ela e ela brincava com todos no
fundo, era uma putinha. Todo mundo lhe dava comida,
e ela engordava a olhos vistos. Eu era a única a lhe
falar. Agora, pelo menos, tinha com quem falar.
Fugi duas vezes. A última fuga durou quatro dias.
Dormi na casa de Stella, pois sua mãe estava
internada para desintoxicação alcoólica. Recomeçou a
vida de merda: cliente, picada, cliente, picada. Além
disso, soube que Detlef e Bernd haviam partido para
Paris.
Então perdi a calma. Como é que um cara que
era, podemos dizer, o meu marido se mandava sem
me avisar! Nós sempre sonhamos em ir a Paris.
Queríamos alugar um quartinho em Montmartre e nos
desintoxicar. Não tínhamos nunca ouvido falar de
droga em Paris, e pensávamos que isso não existia lá.
Em Paris havia somente artistas, caras geniais, que
bebiam café ou um copo de vinho de vez em quando.
E, no entanto, Detlef estava em Paris com Bernd!
Não tinha mais amigo, estava só no mundo. Babsi e
Stella eram minhas amigas, mas sempre acontecia o
mesmo: brigas por qualquer motivo. Só me restara
Janie.
Telefonei para a Narconon. Eles me disseram que
minha mãe havia passado para pegar minhas coisas.
Ela também não ligava para mim. Fiquei furiosa: vou
mostrar a todos. Vou lhes mostrar que saio dessa
sozinha!!!
Voltei à Narconon, e eles me readmitiram.
Entreguei-me à terapia feito uma obcecada. Fiz tudo o
que me mandaram. Tornei-me uma verdadeira aluna
modelo, voltei a ter o direito às honras do detector de
mentiras, e o pêndulo não se mexia quando eu dizia
que a sessão tinha sido extraordinariamente benéfica
para mim. Pensava: "Tudo bem, você vai conseguir".
Não telefonei para minha mãe. As roupas, pedi-as
emprestadas. Vestia cuecas, mas não me importava.
Não queria suplicar à minha mãe para trazer minhas
coisas.
Um dia, recebi um telefonema de meu pai.
Salve, Christiane. Onde você se meteu? Acabei de
saber seu endereço por acaso.
Estou até perturbada de ouvir que você se
interessa por mim, ao menos uma vez.
Diga-me, você quer ficar nessa tribo estranha?
É claro.
Meu pai perdeu o fôlego. Precisava de alguns
minutos para voltar ao normal. Depois me perguntou
se queria ir almoçar com ele e um dos seus amigos.
Aceitei.
Meia hora mais tarde me chamavam ao escritório.
Quem estava lá? Meu caro pai, a quem via pela
primeira vez depois de muitos meses. Ele subiu
comigo ao quarto que dividia com outras quatro
meninas. Suas primeiras palavras: O que é esta
zona? Ele sempre foi um maníaco por ordem. E
nosso quarto, como o resto da casa, era um
verdadeiro depósito de sujeira e roupas por todos os
cantos.
Quando estávamos saindo para ir almoçar, um
dos responsáveis disse a meu pai: É preciso assinar
um papel, o compromisso de trazer Christiane de
volta.
Meu pai, furioso, começou a gritar: ele era o pai,
o único juiz do lugar onde devia viver sua filha. Nunca
mais sua filha voltaria a pôr os pés ali.
Com dificuldade tentei ir à sala de terapia
suplicando: Quero ficar aqui, papai. Não quero
morrer, papai. Deixe-me, por favor.
As pessoas da Narconon, atraídas pelos nossos
gritos, tomaram o meu partido. Meu pai saiu gritando:
Chamo a polícia.
Sabia que ele iria fazer isso. Subi ao telhado. Lá
havia uma espécie de plataforma para os limpadores
de chaminé. Eu me agachei tremendo de frio.
Na verdade, duas flores que não se cheiram se
juntaram. Os policiais e meu pai reviraram a casa de
cima a baixo. O pessoal da Narconon, inquieto, me
chamava. Ninguém subiu ao teto. Os policiais e meu
pai foram embora.
Na manhã seguinte telefonei para minha mãe em
seu escritório. Soluçando, perguntei o que estava
acontecendo.
Sua voz foi glacial: Não me interesso mais pelo
que possa acontecer com você.
Mas você é minha tutora. Não pode me
abandonar dessa forma. Não quero que papai me leve.
Quero ficar, não fugirei mais, eu juro. Eu lhe peço,
faça qualquer coisa. Eu preciso ficar aqui, mamãe,
senão vou morrer. Acredite em mim, mamãe.
Minha mãe, com voz irritada, me disse: Não,
não há nada a fazer. Um clique, e ela desligou.
Fiquei completamente arrasada. Depois tive raiva.
Pensei: "Bem, daqui para a frente você vai encher o
saco deles. Eles nunca se ocuparam de você e agora
que lhes deu na telha, caem-lhe em cima. Esses
idiotas só fizeram besteiras: a mãe de Kessi, pelo
menos, impediu a filha de se afundar na merda. Seus
pais fodidos nunca levantaram um dedinho, e de
repente imaginam saber o que é melhor para você!"
Pedi uma sessão suplementar, a que me
entreguei com uma enorme alegria. Queria ficar na
Narconon, e talvez depois me tornasse membro da
Igreja Cientológica. Em todo caso, não permitiria que
ninguém me tirasse dali. Não queria mais me deixar
destruir pelos meus pais.
Três dias mais tarde, uma nova convocação ao
escritório. Meu pai estava lá, muito calmo. Explicou
que devia levar-me ao escritório da Previdência Social
por causa de um reembolso dos gastos da minha
permanência na Narconon.
Eu: Não. Não quero te acompanhar. Eu te
conheço, papai, você não me deixará voltar. E eu não
quero morrer.
Meu pai mostrou um papel aos responsáveis da
Narconon. Estava assinado por minha mãe e o
autorizava a me levar. O chefe da Narconon me disse
que não poderia fazer nada, pois era impossível me
manter contra a vontade de meu pai.
Ele me aconselhou a não esquecer de fazer os
exercícios. Pensar sempre no confronto. A
confrontação era sua palavra de ordem. Era preciso
confrontar sempre. Que idiotas! Para mim não havia
nada a confrontar: iria morrer. Não agüentaria a
barra. Em quinze dias, no máximo, teria uma nova
recaída. Sozinha não conseguiria nunca. Eis o que
pensava ao sair da Narconon, em um dos raros
momentos em que avaliei lucidamente minha situação.
Só que na minha miséria eu me convenci de que a
Narconon poderia me salvar. Chorei de raiva e de
desespero. Não agüentava mais.
A mãe de Christiane
Depois do fracasso da Narconon, meu ex-marido
decidiu acolher Christiane em sua casa para fazê-la
"voltar à razão", segundo sua expressão. Creio que
não era uma boa solução. Primeiro, ele não poderia
vigiá-la vinte e quatro horas por dia. Além do mais,
considerando as minhas relações com ele, não poderia
aceitar a idéia de confiar-lhe Christiane. Essa minha
idéia era reforçada pelo fato de minha outra filha ter
voltado a viver comigo, porque seu pai era muito duro
com ela.
Como já não tinha mais a quem apelar,
perguntava-me se seus métodos não seriam melhores
que os meus. Talvez não excluo essa possibilidade
quisesse me convencer para me aliviar
provisoriamente da responsabilidade sobre Christiane.
Depois da primeira tentativa de supressão, eu estava
sempre como debaixo de uma ducha escocesa,
passava da esperança ao mais profundo desespero.
Quando pedi a seu pai que interviesse, eu estava física
e moralmente esgotada. Três semanas após a primeira
privação de droga (aquela que Christiane e Detlef
haviam feito em casa), a primeira recaída teve para
mim o efeito de um soco na cabeça. A polícia me
telefonou para me informar da prisão de Christiane e
me pedia para ir buscá-la.
Fiquei sentada em meu escritório, tremendo,
olhando para o relógio a cada dois minutos. Não
ousava pedir permissão para sair mais cedo. Não
podia confiar em ninguém. O que diria minha chefe?
De repente compreendi o pai de Detlef. No início
temos vergonha, uma terrível vergonha.
Na delegacia de polícia encontrei uma Christiane
com os olhos inchados de lágrimas. O policial mostroume
a picada ainda fresca em seu braço e acrescentou
que ela fora presa na Estação Zoo, onde estava em
"uma atitude suspeita".
O que é "uma atitude suspeita"? Não conseguia
imaginar ou talvez eu não quisesse imaginar.
Christiane estava terrivelmente infeliz por ter recaído.
Nova tentativa de privação de droga. Sem Detlef. Ela
não saía de casa, parecia tomar a coisa a sério. Juntei
toda a minha coragem, fui à escola falar com o
professor responsável. Ele ficou chocado, mas
agradeceu minha franqueza, pois os outros pais não
têm o hábito de lhe falar francamente. Acha que há
outros drogados entre os alunos. Bem que gostaria de
ajudar Christiane, mas não sabia como.
É sempre a mesma coisa a quem quer que eu me
dirija: ou se está tão desamparado como eu, ou então
há um desinteresse total por pessoas como Christiane.
Uma experiência por que passaria com freqüência.
Eu percebi, pouco a pouco, como era fácil para
um adolescente encontrar heroína, mesmo no caminho
da escola. Vi vendedores oferecendo-a na
Hermannplatz, em Neukölln (Bairro de Berlim. (N. do
T.)). Não acreditei nos meus ouvidos quando um
desses tipos abordou Christiane em minha presença,
quando fazíamos compras. Alguns são estrangeiros,
mas há também alemães entre esses traficantes.
Christiane me contou como ela os conhecia, quem
vende o quê e assim por diante.
Tudo isso me pareceu uma loucura. Em que
mundo vivemos?
Quis que Christiane mudasse de escola para ao
menos evitar que ela encontrasse esses tipos no
caminho. Como as férias da Páscoa estavam
chegando, eu esperava que em um ambiente diferente
ela corresse menos perigos. Claro que era uma idéia
ingênua. Bem, isso não deu em nada, pois ela não foi
aceita em outro colégio.
Ela ficou muito decepcionada, mas se limitou a
dizer: "Tudo isso não tem nenhum sentido. A única
coisa que pode me ajudar é uma terapia". Onde
encontrar uma vaga? Telefonei a todos os serviços
possíveis e imagináveis. O máximo que consegui foi
que me dessem o endereço de um serviço antidroga.
Até ali se exigia que Christiane se apresentasse
voluntariamente. Cada serviço falava mal do outro,
mas eles estavam todos de acordo sobre um ponto: é
preciso que a decisão parta dela mesma, senão é
impossível curá-la.
Christiane imediatamente ficava irritadíssima
quando eu pedia para ir à consulta antidroga. "Fazer o
quê? Eles não têm vaga para mim. Não vou ficar
bajulando-os durante semanas."
Que fazer? Não podia levá-la à força até aquele
pessoal, pois era contra seus princípios. Hoje
compreendo muito bem essa atitude: nessa época
Christiane não estava efetivamente madura para
submeter-se a uma terapia seriamente. Por outro lado,
acho que garotos toxicômanos como Christiane têm
direito a toda a ajuda possível, mesmo contra sua vontade.
Mais tarde, quando Christiane se sentiu muito
mal, a ponto de querer ir por conta própria fazer
terapia, mesmo que fosse uma terapia severa, nos
disseram: "Está lotado. Seis a oito semanas de
espera". Aquilo me pôs doente e a única coisa que
pude dizer foi: "E se minha filhinha morrer até lá?"
"Bem, é claro que nesse caso ela deve vir fazer umas
entrevistas com nossos conselheiros. Veremos se suas
intenções são sérias." Agora vejo que não devia ficar
furiosa. Eles têm tão poucas vagas que são obrigados
a fazer uma seleção.
Não encontrei nada. Quando Christiane voltou das
férias, tive a impressão de que ela não tinha mais
necessidade de fazer terapia. Estava com um aspecto
maravilhoso. Achei que tinha vencido.
Ela me falava com freqüência de sua amiga Babsi,
que se vendia a homens maduros para comprar
heroína. Ela achava repugnante e jamais faria isso...
"Estou tão feliz por estar finalmente longe de toda
essa sujeira", dizia-me. Parecia sincera. Teria jurado,
sobre qualquer coisa, que ela pensava assim.
Mas isso durou alguns dias. Percebi pelas suas
pupilas. Não suportava mais suas histórias. "Que
bronca é essa? Fumei só um cigarrinho!" Foi o começo
de um terrível período. Começou a contar-me mentiras
enormes mesmo sabendo que eu estava por dentro de
tudo. Christiane não dava a mínima importância
quando eu a proibia de sair. Quase a deixei trancada
no apartamento, mas tive medo de que ela saltasse
pela janela.
Estava com os nervos à flor da pele. Não
suportava mais olhar para as suas minúsculas pupilas.
Tinham se passado três meses desde o dia em que a
surpreendi no banheiro. Ao menos uma vez por
semana os jornais anunciavam uma nova morte por
overdose. Resumindo, as vítimas da heroína tinham se
tornado uma crônica policial tão banal quanto um
acidente de trânsito.
Tinha um medo terrível. Principalmente porque
Christiane não confiava mais em mim. Isso me
enlouquecia. Quando se sentia desmascarada,
tornava-se grosseira e agressiva. Pouco a pouco
mudava de personalidade.
Temia pela sua vida. Sua mesada vinte marcos
por mês eu lhe dava pouco a pouco. Caso lhe desse
os vinte marcos de uma só vez, ela iria comprar uma
dose. E isso poderia ser fatal. O pior não era saber que
ela era toxicômana tinha quase me acostumado
com a idéia , mas o medo constante de que sua
próxima dose fosse a última. Pelo menos, ela voltava
às vezes para casa, ao contrário de sua amiga Babsi. A
mãe de Babsi me telefonava freqüentemente,
chorando, para saber onde poderia estar sua filha.
Vivia apavorada. Cada vez que o telefone tocava
eu me apavorava: talvez seja a polícia, o necrotério ou
coisa parecida. Ainda hoje pulo da cama ao primeiro
som da campainha.
Christiane não queria dialogar. Se tentasse
conversar sobre droga, a resposta era sempre a
mesma: "Deixe-me em paz". Tinha a impressão de
que ela se deixava destruir.
Ela afirmava que não se picava mais e que se
limitava à maconha. Mas eu não tinha nenhuma ilusão.
Regularmente dava uma olhada no seu quarto e
sempre encontrava alguma coisa suspeita. Duas ou
três vezes cheguei a encontrar uma seringa. Esfregava
no seu nariz, mas ela, com um ar ofendido, gritava
dizendo que era de Detlef. Ela tinha confiscado a
seringa do seu amigo.
Um dia, voltando do trabalho, encontrei-os
sentados lado a lado na cama de Christiane, em seu
quarto de criança, esquentando uma colher. Surpresa
por tal afronta, a única coisa que eu soube fazer foi
gritar: Saiam daqui, imediatamente.
Partiram e comecei a chorar. De repente me senti
abandonada por todos, cheia de raiva contra a polícia
e o governo. Nessa manhã o jornal trazia a morte de
um jovem drogado. Mais um. Era o trigésimo do ano.
E ainda estávamos no mês de maio. Não entendia
mais nada: na televisão fala-se de somas fabulosas
gastas na luta contra o terrorismo. Enquanto isso os
revendedores passeiam livremente em Berlim e
vendem heroína em plena rua, como se fosse sorvete.
De repente me saiu em voz alta: "esses nojentos".
Um monte de pensamentos enchia minha cabeça
e eu me perdia. Sentada na sala de estar, olhei um a
um meus móveis. Tinha vontade de quebrar tudo. Eis
por que eu me sacrificava tanto! Recomecei a chorar.
Nessa noite dei uma surra em Christiane. Uma
surra daquelas. Eu tinha esperado por ela sentada na
minha cama. Devorada pela angústia e pelo remorso.
Tinha dado tudo errado. Meu casamento fora um erro
e tinha me absorvido demais na minha vida
profissional. Além do mais, tinha, por covardia,
fechado os olhos durante muito tempo à situação
vivida por Christiane. Naquela noite perdi minhas
últimas ilusões.
Christiane só voltou à meia-noite e meia. Da
minha janela eu a vi descer de um Mercedes, diante
da porta de nosso edifício. Meu Deus, pensei, é o fim
de tudo. Ela perdeu os últimos traços de respeito por
si mesma: é a catástrofe. Eu estava aniquilada.
Peguei-a e dei-lhe uma surra que até a minha mão
ficou doendo. Depois nos jogamos sobre o tapete e
choramos juntas. Christiane estava totalmente
arrasada. Disse na cara dela que era uma puta: É
inútil negar. Ela se limitou a balançar a cabeça e a
soluçar: Não é como você pensa, mamãe.
Não perguntei os detalhes. Mandei-a tomar banho
e ir dormir. O que sentia ninguém pode imaginar.
Christiane se vendia aos homens! Esse golpe foi pior
do que quando soube que ela se picava.
Durante a noite não consegui dormir. No meu
desespero, pensei em interná-la em uma instituição.
Mas isso só agravaria a situação. O Centro Médico-
Psicológico da Ollenhauerstrasse a recolheria, antes de
encontrar um lugar melhor. Mas nesse Centro um
professor me disse que as jovens se incitam
mutuamente à prostituição.
Existia uma só possibilidade: afastar Christiane de
Berlim, definitivamente. Quer ela quisesse ou não.
Tirá-la daquele pântano e enviá-la a um lugar onde
não houvesse heroína.
Minha mãe, que mora em Hesse, aceitou
imediatamente tomar conta dela, e minha irmã, que
vive em Schleswig-Holstein, também aceitou. Quando
falei a Christiane da minha decisão, ela ficou
perturbada. Comecei os preparativos. Aí, Christiane,
com um ar muito triste, me disse que queria fazer
terapia. Chegou a encontrar uma vaga na Narconon.
Que alívio. Temia tanto que Christiane, sem
terapia, não fosse capaz de agüentar a barra e fugisse
da casa de minha mãe ou de minha irmã.
Eu não tinha informações precisas sobre a
Narconon. A única coisa que sabia é que era muito
caro! Dois dias antes do seu décimo quinto
aniversário, eu a levei de táxi a Narconon. Um jovem
nos recebeu para a entrevista de admissão. Felicitounos
por nossa decisão e me assegurou que dali em
diante eu não teria mais por que me inquietar: a
terapia Narconon era geralmente coroada de sucesso.
Eu poderia ir embora tranqüila. Finalmente!
Foi então que ele me deu um papel para assinar.
Uma promissória de cinqüenta e dois marcos por dia,
por quatro semanas, que deveriam ser pagas
adiantadamente. Mais que meu salário mensal. Que
importância tinha aquilo? Além do mais, o jovem disse
que seria reembolsada pela Previdência Social.
No dia seguinte juntei quinhentos marcos e levei
à Narconon. Consegui um empréstimo de mil marcos
no banco. Enviaria o cheque na próxima reunião de
pais.
O coordenador dessas reuniões de pais é,
digamos assim, um ex-drogado. Seu passado parece
não ter deixado nele nenhuma marca. E graças à
Narconon, que fizera dele um homem novo, nos
explicou ele. Isso nos impressionou. Ele me disse que
Christiane fazia grandes progressos.
Na verdade, era uma bela encenação. Esses caras
querem principalmente nosso dinheiro. Soube mais
tarde por meio da imprensa que a Narconon pertence
a uma seita americana bastante duvidosa e que se
enriquece explorando a angústia dos pais.
Mas, como sempre, compreendi muito tarde, uma
vez que o mal já tinha sido feito. E eu que pensava
que Christiane estava em boas mãos. Queria que ela
ali permanecesse o maior tempo possível. Tinha
necessidade de dinheiro.
Comecei a percorrer os serviços públicos. Parece
que nenhum deles era competente. Em nenhuma
parte me falaram a verdade sobre a Narconon. Eu
estava desanimada. Ao saltar de guichê em guichê,
tinha a impressão de estar roubando o tempo dessa
gente. Finalmente alguém me disse: ''Antes de mais
nada é preciso providenciar um atestado do médico,
dado pela Saúde Pública, confirmando a toxicomania
de Christiane". Com esse documento, poderia pedir
que a terapia fosse paga. Acreditei nessa brincadeira.
A angústia de Christiane era clara para quem a
conhecesse um pouco. Mas é assim mesmo no serviço
público. Após duas semanas de esforços, consegui
uma entrevista com o médico indicado, mas Christiane
tinha fugido da Narconon. Sua terceira fuga.
Eu chorava até não agüentar mais. Pensava: vai
recomeçar tudo. Estamos novamente na estaca zero.
Meu companheiro e eu começamos a procurá-la. Pela
manhã fazíamos operação pente-fino nos bairros da
periferia e à noite percorríamos o centro da cidade
(mesmo nos banheiros públicos), discotecas, estações
de trem e de metrô. Todos os lugares freqüentados
pelos drogados. Dia após dia, noite após noite.
Noticiamos seu desaparecimento à polícia. Disseramnos
que a inscreveriam na lista de pessoas
procuradas. Ela acabaria aparecendo em alguma
parte.
Se eu pudesse me enterrar num buraco! Eu era
pura angústia. Medo de uma voz me anunciar pelo
telefone: sua filha está morta. Não passava de um
feixe de nervos. Não tinha mais necessidade de nada.
Nada mais me interessava, e me esforçava para
continuar trabalhando. Não queria tirar licença por
motivo de saúde. Tive problemas de coração e não
podia mexer meu braço esquerdo, que ficava entorpecido
à noite. Meu estômago estava mal, tinha dores
nos rins e minha cabeça ameaçava estourar. Eu não
passava de um monte de misérias.
Fui ver um médico. Ele me deu o golpe mortal.
Após ter-me examinado, achou que tudo tinha origem
nos nervos e me receitou Valium. Quando lhe contei
por que estava em tal estado, ele me disse que alguns
dias antes uma jovem que o consultara confessou que
se drogava. Ela perguntara o que poderia fazer.
E o que você disse?
Vá se enforcar. Não há saída. Foi o que ele lhe
disse.
Uma semana depois Christiane voltou à Narconon.
Não consegui me alegrar com a notícia. Alguma coisa
tinha morrido em mim. Pensava ter feito tudo o que
era humanamente possível. Mas não servira para
nada. Muito pelo contrário.
Na Narconon, Christiane mudou. Não para
melhor. Ela não tinha nada mais de uma menina, ela
tinha se transformado em uma criança vulgar, quase
repugnante.
Eu estava chocada desde as minhas primeiras
visitas à Narconon. De repente ela se tornou uma
estranha para mim. Algo havia se rompido. Até então,
apesar de tudo, ela tinha mantido certa ligação
comigo. Estava tudo terminado, acabado, como após
uma lavagem cerebral.
Foi então que pedi ao meu ex-marido que levasse
Christiane para junto de minha família. Ele preferiu
deixá-la em sua casa. Ia educá-la, mesmo que fosse
pela força.
Não protestei. Minhas forças tinham terminado.
Tinha cometido tantos erros que temia repeti-los
enviando Christiane à casa de minha mãe.
***
Antes de me levar para sua casa, meu pai deu
uma parada no seu boteco favorito perto da Estação
Wutzkyallee. Ele queria me oferecer uma bebida
alcoólica, mas só bebi suco de maçã. Ele me disse que,
se eu não quisesse morrer, devia parar de me drogar.
É exatamente por essa razão que eu queria ficar na
Narconon respondi.
A vitrola automática tocava sem parar uma velha
música. Alguns jovens jogavam flipper e bilhar.
Aqueles são os adolescentes normais falou meu pai.
Aliás, ali encontraria, dentro em breve, novos amigos,
e eu mesma compreenderia o quanto tinha sido
estúpida em me drogar.
Mal escutei. Estava quebrada, amarga e só tinha
uma vontade: estar só. Tinha ódio do mundo inteiro. A
Narconon me parecia novamente a porta do paraíso, e
meu pai acabava de fechá-la no meu nariz. Peguei
Janie, coloquei-a na minha cama e perguntei-lhe:
Janie, você conhece o ser humano? Respondi por
ela: Bem. .. não. Janie abanou o rabo, mas
qualquer um acredita que todos os homens são bons.
Era isso que eu não gostava nela. Preferiria que ela
rugisse, desconfiada de todo mundo.
Quando acordei, percebi que Janie não sujara a
sala. Precisava sair com ela imediatamente. Meu pai já
tinha ido trabalhar. A porta da entrada estava fechada
à chave. Ela não abria. Eu a empurrei e sacudi a
fechadura. Ela não abriu. Eu me esforcei para
conservar a calma. Apesar de tudo, meu pai não podia
ter-me fechado como a uma besta selvagem. Ele sabia
muito bem que eu devia sair com o cachorro.
Corri pelo apartamento à procura de uma chave.
Pensava comigo mesma: ele deve ter deixado em
algum lugar essas malditas chaves. E se o
apartamento pegasse fogo? Olhei debaixo da cama,
em cima dos armários, até mesmo na geladeira. Nada
das chaves. Não tinha mais muito tempo, pois eu
precisava sair com Janie. Ela, a qualquer momento,
iria sujar todos aqueles tapetes. Levei-a então à varanda,
acho que ela entendeu.
Só então é que fui olhar o apartamento. Haviam
sido feitas algumas mudanças desde a minha partida.
O quarto estava vazio, pois minha mãe levara a cama.
Na sala de estar havia um divã que eu não conhecia,
onde meu pai dormia, e uma nova televisão em cores.
O pedaço de cano de borracha e o pedaço de bambu
com os quais meu pai me batia haviam desaparecido.
Havia um baobá em seu lugar.
No quarto das crianças, o velho armário estava lá,
do mesmo jeito: só se podia abrir uma das portas,
senão tudo desabava. A cama, como antes, estalava a
toda hora. Meu pai me prendera para que eu me
tornasse uma jovem normal enquanto ele não era nem
mesmo capaz de arrumar corretamente seu
apartamento.
Janie e eu voltamos à varanda. Ela pôs as patas
na sacada, olhou a rua, onze andares abaixo, e as
torres sinistras que nos cercavam.
Tive necessidade de falar com alguém. Telefonei
para a Narconon. Eles me anunciaram uma surpresa:
Babsi chegara. Ela também queria se desligar para
valer. Ela me contou que lhe haviam dado a minha
cama. Eu estava tremendamente triste de não estar
com ela na Narconon. Conversamos durante muito
tempo.
Quando meu pai voltou, eu não disse uma
palavra.
Ele falou pelos dois. Não perdeu tempo: havia
planejado minha vida. Eu teria um horário rígido para
todos os dias da semana: limpeza, dar comida a seus
pombos-correio, limpar o seu pombal ("não aqui no
conjunto Gropius, mas em Rudow"). E tudo sob
controle telefônico, para ver se o programa estava
sendo seguido. Para o meu lazer, ele arranjou uma
dama de companhia, uma das minhas antigas amigas,
Katharina, uma panaca que só entendia de hit-parade
da televisão.
Meu velho me prometeu também uma
recompensa: me levaria à Tailândia. A Tailândia era a
sua "viagem". Ele ia para lá ao menos uma vez por
ano. Por causa das mulheres, mas também por causa
das roupas que eram baratas. Todo o seu dinheiro ele
reservava para suas viagens à Tailândia. Era a sua
droga.
Ouvi os planos de meu pai e achei que o melhor a
fazer naquela situação era deixar as coisas como
estavam. Também, muito pouco me restava. Pelo
menos assim não seria mais trancada a sete chaves.
No dia seguinte, limpei a casa e fiz as compras.
Depois chegou a panaca da Katharina, para irmos
passear. Corri junto com ela o mais que pude era
jovem , e quando lhe disse que ainda queria
alimentar os pombos em Rudow, ela não tinha mais
forças para me acompanhar.
Fiquei, então, com a tarde só para mim. Como
meu moral continuava a zero, tive vontade de me
atordoar um pouco, sem saber muito bem o que
poderia tomar. Decidi passar uma hora no Parque
Hansenheide, em Neukölln. Ali encontrávamos
maconha em um ambiente legal. Tive vontade de
fumar...
Como estava dura, voltei para casa, pois sabia
onde encontrar algum dinheiro. Meu pai tinha mais de
cem marcos, em moedas, em uma garrafa, sua
poupança para a próxima viagem à Tailândia. Peguei
cinqüenta para ter a mais, achando que, se
economizasse nas compras, rapidamente cobriria o
buraco.
No parque, encontrei com Piet, o rapaz do Centro
de Jovens com quem fumara meu primeiro cigarrinho.
Ele havia passado para a heroína. Perguntei-lhe,
então, onde se podia encontrar heroína por ali.
Ele: Você tem dinheiro?
Eu: Sim.
Ele: Venha comigo. Ele levou-me até um
grupo de estrangeiros sujos, e comprei deles um
saquinho de um quarto. Sobraram-me dez marcos.
Fomos ao banheiro do parque, Piet me emprestou seus
instrumentos em troca da metade da minha dose
(agora ele era um verdadeiro viciado). Nós dois
tomamos uma picadinha.
Senti-me extraordinariamente bem. A "cena" do
Hansenheide era a mais legal de Berlim. Não era um
lugar podre como Kurfürstendamm. Ali consumia-se
sobretudo maconha. Fumantes e viciados coexistiam
pacificamente, enquanto em Kudamm a maconha era
considerada droga de bebê e desprezavam-se os
fumantes.
No Parque Hansenheide ninguém se preocupava
em saber com o que você se drogava. Você podia até
não se drogar, o importante era ter vontade de sentir
aquela felicidade, drogado ou não. Alguns grupos
transavam música, tocavam flauta ou bongô. Era uma
grande comunidade em que todo mundo (inclusive os
estrangeiros sujos) se entendia bem. Em Woodstock
devia ser assim.
Voltei para casa com uma pontualidade britânica.
Meu pai chegou às seis horas e não percebeu que eu
estava drogada. Tive certo sentimento de culpa por
causa dos pombos. Eles haviam jejuado naquele dia,
mas no seguinte lhes daria ração dupla. Decidi não me
picar mais: no Parque Hansenheide não éramos
desconsiderados se fôssemos somente fumadores de
maconha, e isso seria perfeitamente compatível com
minha situação. Não queria voltar à Kurfürstendamm.
Era muito nojento. No Parque Hansenheide conseguiria
desligar-me. Estava convencida.
Voltei ali todas as tardes com Janie. Ela gostava
muito daquele lugar, onde havia muitos cães legais.
Ali, até mesmo os cães eram legais. E todo mundo
gostava de Janie e a acariciava.
Dava comida aos pombos um dia sim, outro não.
Às vezes dava uma ração a cada três dias. Era o
suficiente, pois bastava que a gente deixasse eles se
encherem e em seguida espalhasse um pouco de ração
no pombal.
Fumava erva quando me davam. E havia sempre
alguém para me dar. Era mais uma diferença entre os
fumantes e os viciados: os primeiros dividiam o que
tinham.
Conheci melhor o estrangeiro sujo que me vendeu
a dose de heroína no primeiro dia. Estava ao lado do
cobertor sobre o qual ele estava sentado com alguns
amigos. Ele me convidou para me sentar também e se
apresentou: chamava-se Mustafá, era turco e os
outros eram árabes. Todos eles tinham entre
dezessete e vinte anos. Estavam comendo bolacha,
queijo e melão. Deram um pouco para mim e para
Janie.
Achei Mustafá bastante legal. Ele era um
revendedor, mas a maneira como trabalhava era
muito tranqüila e não tinha nada a ver com a agitação
e a encenação dos traficantes alemães. Mustafá
arrancava tufos de grama e escondia o seu saco de
heroína embaixo. Mesmo que os policiais
aparecessem, não encontrariam nada. Se aparecesse
um cliente, Mustafá, tranqüilo como Batista, procuraria
na grama com seu canivete até encontrar o dito cujo.
Ele não vendia saquinhos prontos como os
revendedores do Kudamm, tinha heroína sem
embalagem, e seu instrumento de medida era a ponta
de sua faca. Suas doses eram sempre corretas. Ele
limpava com o dedo o pó que sobrava na lâmina e me
dava para cheirar.
Mustafá me declarou imediatamente que era
nojento se picar. Se não queríamos cair na
dependência, era preciso contentar-se com cheirar. Ele
e os árabes se contentavam com isso, e nenhum deles
era dependente. Aliás, só cheiravam quando tinham
vontade.
Com medo de que eu recaísse na dependência
física, Mustafá nem sempre me deixava cheirar.
Constatei que esses estrangeiros sujos sabiam servirse
da droga, não como os europeus. Para nós,
europeus, a heroína era mais ou menos o que fora,
outrora, a aguardente para os índios. Cheguei a
pensar que os orientais poderiam exterminar os
europeus e os americanos com isso, como os europeus
exterminaram os índios pelo alcoolismo.
Descobri os estrangeiros sujos. Eles não eram só
o "Você meter?", que sempre representou para mim,
Stella e Babsi o cúmulo do horror. Mustafá e os árabes
eram homens cheios de brio, muito fáceis de serem
ofendidos. Eles me aceitaram porque eu me portava
com dignidade. Compreendi muito rapidamente como
eram as coisas entre eles. Por exemplo, era preciso
nunca solicitar nada. Tinham ainda o senso de
hospitalidade, que era muito importante para eles. Se
queríamos qualquer coisa, nos servíamos, fosse
heroína ou semente de girassol. Mas era preciso não
dar a impressão de que abusávamos. Assim, nunca me
ocorria pedir um pouco de heroína para levar. O que
pegava, cheirava na hora. Eles acabaram aceitandome
completamente, apesar de não terem uma opinião
muito boa sobre meninas alemãs. Aprendi que em
certos pontos os estrangeiros sujos podiam censurar
os alemães.
Achava tudo aquilo maravilhosamente legal e não
sentia mais o peso de ser uma drogada. Até o dia em
que constatei que havia caído na dependência física.
À noite, com meu pai, representava a filha
pródiga. Acompanhava-o freqüentemente ao bar e, de
vez em quando, para lhe agradar, pedia uma cerveja.
A clientela do lugar me perturbava, pois tinha horror a
bêbados, mas queria que ali também me levassem em
consideração. Queria poder afirmar-me na vida que
seria a minha, num futuro em que a droga estaria
ausente.
Jogava flipper e treinava bilhar como uma doida.
Gostaria de aprender a jogar skat (Jogo de cartas. (N.
do T.)). Gostaria de praticar todos os jogos masculinos
melhor que os homens. Se fosse obrigada a viver com
pessoas da espécie dos habitués do Schluckspecht,
queria ao menos ser respeitada. Ser uma vedete. Teria
os meus brios, como os árabes. Nunca pediria nada a
ninguém. Nunca me sentiria em estado de inferioridade.
Mas não aprendi a jogar skat. Tinha novamente
outras preocupações. As primeiras manifestações da
crise se faziam sentir. Precisava ir ao parque todos os
dias, e isso tomava tempo, pois não podia ir ver
Mustafá, tomar a heroína e me mandar. E os pombos
do meu pai não comiam há três dias! Todas as tardes
precisava encontrar uma maneira de deixar Katharina,
minha dama de companhia, e estar em casa na hora
do telefonema de controle de meu pai, com a limpeza
e as compras feitas. Em caso de ausência, só me
restava inventar uma desculpa plausível, e nunca duas
vezes a mesma. Não me sentia nada bem.
Uma tarde, no Parque Hansenheide, duas mãos
pousaram sobre meus olhos. Virei: era Detlef! Nos
abraçamos. Janie comemorou. Detlef tinha um bom
aspecto. Disse-me que estava limpo. Eu me fixei nos
seus olhos: "Bem, meu caro, para quem está limpo. . .
tuas pupilas não estão maiores que um ponto". Detlef
se desligara realmente da droga durante sua
permanência em Paris, mas voltara diretamente à
Estação Zoo para comprar uma picadinha.
Fomos para casa. Tivemos tempo antes da volta
de meu pai. Como minha cama balançava muito,
estendi uma coberta no chão. Fizemos amor felizes
como reis. Depois conversamos de desintoxicação.
Íamos nos dedicar a ela a partir da próxima semana.
Detlef me contou como ele e Bernd conseguiram
dinheiro para irem a Paris: prenderam um cliente na
cozinha, roubaram tranqüilamente seu talão de
cheques e o revenderam por mil marcos a um
receptador. Bernd foi pego, mas ele os policiais não
pegariam nunca, pois o cara ignorava o seu nome.
Voltamos a nos encontrar todos os dias no Parque
Hansenheide. Geralmente, depois eu levava Detlef
para casa. Não falávamos mais em desintoxicação,
pois estávamos muito felizes assim. Mas era cada vez
mais difícil cumprir a minha agenda. Meu pai
multiplicara os controles e me dera um monte de
novas tarefas. Tinha necessidade de dispor de tempo
para a turma de árabes, ainda mais porque eu queria
conseguir um pouco de heroína para Detlef. E queria
ter bastante tempo para me dedicar a ele. Era
novamente o stress.
A única solução que encontrei foi procurar um
cliente na Estação Zoo, na hora do almoço. Não disse
nada a Detlef, mas a felicidade terminou: era
novamente a vida de drogada. E as poucas boas
jornadas que sempre se seguiam a um tratamento,
quando não tínhamos medo do cold turkey e não
éramos forçados a ter heroína o tempo todo,
tornavam-se cada vez mais curtas.
Depois de mais ou menos uma semana da volta
de Detlef, quem fazia sua aparição no Parque
Hansenheide? Rolf, a bicha que alojava Detlef. Tinha o
ar sombrio e pronunciou apenas três palavras: "Eles o
prenderam". Detlef fora pego numa batida e o
enquadraram imediatamente no negócio dos cheques.
O receptador o tinha entregado.
Fui trancar-me num banheiro público para chorar.
Uma vez mais o futuro radiante não era para nós.
Voltamos à realidade, isto é, não havia nenhuma
esperança. E ainda por cima estava apavorada, com
medo da crise. Era impossível ir sentar-me
tranqüilamente ao lado dos árabes para mastigar
sementes de girassol, esperando que me dessem uma
cheirada... Fui à Estação Zoo, encostei numa vitrina e
esperei um cliente. Mas a calma era total: havia um
jogo de futebol na televisão. Nem um estrangeiro sujo
à vista.
Apareceu um cliente que eu conhecia: Heinz,
velho cliente de Babsi e Stella. O cara que sempre
pagava em espécie. Fornecia até a seringa, mas queria
trepar. De qualquer forma, depois que soube que
Detlef estava em cana e por muito tempo, dava tudo
na mesma. Heinz não me reconheceu, mas quando lhe
disse: "Christiane, a amiga de Babsi e Stella", ele teve
um "clique". Ele me propôs acompanhá-lo na hora.
Ofereceu-me dois quartos. Não era mau, pois isso
equivalia a oitenta marcos. Mas discuti o preço e
consegui também um pouco de dinheiro para os
cigarros, Coca-Cola, etc. Fomos lá: Heinz parou no
caminho para comprar heroína, pois seu estoque tinha
terminado. Era gozado ver aquele sujeito com cara de
contador passear no meio dos viciados. Mas ele
conhecia o terreno e tinha o seu fornecedor habitual,
que lhe fornecia sempre mercadoria da boa.
Senti que a crise ia chegar. Se pensasse bem,
tomaria uma picada imediatamente. Mas Heinz não me
deu nenhum grão de heroína.
Ele me levou para visitar sua papelaria. Abriu uma
gaveta e pegou um pacote de fotografias, que ele
mesmo havia tirado. Fotografias pornográficas.
Completamente débil. Pelo menos uma dúzia de
meninas. Às vezes de corpo inteiro, completamente
nuas, às vezes só da barriga pra baixo. Pobre cretino,
pobre velho imundo. Pensava principalmente na
heroína que aquele porco tinha em seu bolso e olhava
as fotografias muito distraidamente. Até o momento
em que vi Stella e Babsi com Heinz, em plena ação.
Disse: "Fotografias geniais! Agora, vamos, pois
tenho necessidade de uma picada". Subimos até o seu
apartamento. Ele me deu uma dose de um quarto e
esquentou uma colher. Desculpou-se: era uma colher
de sopa, ele não tinha mais colherinhas, pois todas
tinham sido afanadas por drogadas. Piquei-me. Ele me
trouxe uma garrafa de cerveja preta e me deixou em
paz por uns quinze minutos. Tinha experiência
suficiente para saber que, depois de uma picada,
tínhamos necessidade de uns quinze minutos de
tranqüilidade.
Babsi e Stella sempre me contaram que Heinz era
um homem de negócios, mas pelo seu apartamento
não parecia. As cortinas da sala de estar estavam
amarelas de sujeira e permaneciam constantemente
fechadas para evitar olhares curiosos. Em um velho
armário misturavam-se porcelanas kitsch, garrafas
cobertas com palha trançada e que outrora continham
vinho italiano e num canto estavam penduradas as
gravatas. Dois velhos divãs estavam encostados na
parede, cobertos com uma velha coberta de franjas
escocesas. Foi ali que nos instalamos.
Aquele Heinz não era um cara tão desagradável.
Infelizmente (não para ele, pois era a sua grande
força), era um chato. De tanto me encher, ele teve o
que queria: trepei com ele, para ficar tranqüila e poder
voltar para casa. Além do mais, ele queria, de
qualquer maneira, que eu sentisse alguma coisa.
Então fingi gozar, pois, apesar de tudo, ele se mostrou
generoso.
Depois de Babsi e Stella, era a minha vez de ser a
menina de Heinz. Era prático, pois ganhava muito
tempo e não tinha mais necessidade de ficar
pendurada horas a fio nas saias dos árabes, por uma
cheirada de nada; não tinha mais necessidade de
esperar o cliente nem correr para comprar a heroína.
Isso me dava a possibilidade de fazer sem muito
esforço as minhas diversas tarefas: a limpeza, as comidas,
os pombos, etc.
Passava quase todas as minhas tardes na casa de
Heinz. Agora estava melhor. Ele me amava à sua
maneira. Repetia-me isso sem parar e queria ouvir-me
dizer que também o amava. Ele era terrivelmente
ciumento. Sempre teve medo de que eu voltasse à
Estação Zoo. No fundo, ele era bonzinho.
Não tinha ninguém mais com quem falar. Detlef
estava em cana, Bernd também. Babsi estava na
Narconon, Stella parecia ter desaparecido da face da
terra e minha mãe não se interessava mais por mim
(ao menos eu achava). Quanto ao meu pai, mentia
para ele o tempo todo. Só me restava Heinz: podia lhe
falar de qualquer assunto, não tinha quase nada para
lhe esconder. A única coisa que não podia falar de
coração aberto era sobre o que sentia por ele.
Às vezes eu me sentia muito bem quando ele me
tomava nos braços. Tinha a impressão de representar
alguma coisa para ele e que ele me respeitava. Quem
mais me respeitava? Fora do seu divã imundo, sentiame
mais sua filha que sua amante. Mas ele estava
cada vez mais possessivo e queria que eu estivesse o
tempo todo com ele para ajudá-lo na loja, para que
ele me apresentasse aos seus supostos amigos.
Verdadeiro amigo, ele não tinha nenhum. De repente,
era novamente a corrida contra o tempo, ainda mais
que meu pai se tornava cada vez mais desconfiado.
Ele revistava o tempo todo as minhas coisas.
Precisava prestar atenção para não deixar nada de
suspeito no apartamento. Por exemplo: Heinz morava
na Waldestrasse e eu desenhei então duas ou três
árvores na minha caderneta. O número da rua e do
telefone eram camuflados como lições de cálculo. O
número 395-4773 tornou-se: 3,95 marcos mais 47
Pfennige mais 73 Pfennige. E fazia conscienciosamente
a soma. Pelo menos, aquilo me obrigava a fazer um
pouco de cálculo.
Um dia Heinz descobriu o mistério do
desaparecimento de Stella: ela estava em cana. Ficou
em choque. Não por Stella, mas porque ela poderia
entregá-lo à polícia. Soube, então, que ele estava, há
muito tempo, sendo ameaçado por uma acusação de
desencaminhar menores. Até então isso o deixara frio,
apesar de já ter uma ficha na polícia. Seu advogado
era o melhor de Berlim, segundo ele. Mas se Stella
contasse que ele pagava as meninas com mercadoria,
isto é, com heroína, isso iria acabar dando problemas
para ele.
Também fiquei chocada. E, como Heinz, não me
apavorei pela pobre Stella, mas por mim mesma. Se
eles a meteram no xadrez, apesar dos seus catorze
anos, eu também não escaparia. Não tinha nenhuma
vontade de ir em cana.
Telefonei para a Narconon para dar a notícia a
Babsi. Eu lhe telefonava quase todos os dias. Até
aquele momento ela estava se dando muito bem lá (é
bem verdade que já fugira duas vezes para comprar
heroína). Mas ela não veio ao telefone: informaramme
que ela estava no hospital, com icterícia.
Babsi e eu éramos iguais: quando tentávamos
seriamente um tratamento, pegávamos icterícia. Babsi
estava em sua enésima tentativa. Na última vez, ela
chegou a ir até Tübingen, acompanhada de um
orientador de um centro antidroga, para seguir uma
terapia. Mas no último momento ela teve medo porque
Tübingen tinha a reputação de ser uma casa muito
severa. Babsi estava no mesmo estágio de
decomposição física que eu. Nós nos servíamos de um
espelho para julgar a extensão dos estragos.
Na manhã seguinte corri para ver Babsi no
Hospital Westend. Janie e eu pegamos o metrô até a
Theodor-Heuss-Platz e depois fizemos o resto do
caminho a pé, quase correndo. Era um bairro bem
legal. Mansões imensas e cheias de árvores. Nem
sabia que existiam lugares semelhantes em Berlim. No
fundo, não conhecia Berlim. Só conhecia o conjunto
Gropius e seus arredores, o bairro de Kreuzberg, onde
morava minha mãe, e os quatro campos de ação da
"cena". Chovia a cântaros. Janie e eu estávamos
encharcadas, mas muito contentes porque corríamos
no verde, e eu também estava contente porque veria
Babsi.
Não quiseram deixar Janie entrar no hospital. Não
tinha pensado nisso, mas um dos porteiros foi
simpático. Aceitou ficar com ela durante a visita. Subi
à enfermaria e procurei Babsi em vão. Finalmente
perguntei ao primeiro médico que encontrei onde ela
estava: Gostaria muito de saber disse-me.
Contou-me que ela havia se mandado. E corria o risco
de empacotar à menor absorção de qualquer droga,
pois ela não havia sarado e seu fígado não iria
agüentar.
Peguei Janie e partimos. No metrô refleti: se o
fígado de Babsi estava estuporado, o meu também
deveria estar. Nós duas éramos sempre iguais. Se eu
pudesse encontrar Babsi! Esqueci todas as nossas
brigas. Achava que tínhamos necessidade uma da
outra. Ela devia estar precisando falar, e eu também
gostaria de convencê-la a voltar ao hospital. Mas voltei
à realidade: sabia que ela não voltaria antes de dois
dias de fuga e de droga. Eu também não o faria. Sabia
também onde procurá-la: ela devia estar no Turf, do
lado da "cena", ou na casa de um cliente. Não tinha
tempo de procurá-la em todos aqueles lugares, pois
meu pai não demoraria a telefonar. Conformei-me com
a moral do viciado: cada um por si. Voltei para casa.
Aliás, não tinha vontade de passar por lá, pois Heinz
me fornecia heroína suficiente para minhas
necessidades.
Na manhã do dia seguinte desci para comprar um
jornal, o Bild Zeitung. Fazia isso todas as manhãs,
desde quando a minha mãe não o mostrava mais a
mim, com as famosas manchetes anunciando: "Mais
uma vítima da droga".
Inconscientemente procurava sempre essas
informações. Os artigos eram cada vez mais curtos,
porque cada vez havia mais mortos encontrados com
uma agulha plantada no braço.
Naquela manhã preparei um pão com geléia
folheando o jornal. A chamada da primeira página:
"Ela tinha só catorze anos". Compreendi
imediatamente Babsi! Pressenti-o, mas não
consegui expressar qualquer reação. Tive a impressão
de ter lido o anúncio da minha própria morte.
Corri para o banheiro para me picar. Depois disso,
finalmente as lágrimas apareceram. Não sabia se
chorava por Babsi ou por mim. Deitei novamente.
Fumei um cigarro para ter a coragem de ler o artigo
inteiro. Estava redigido como um sensacional caso
policial: "A seringa descartável, de plástico brancoleitoso,
ainda estava plantada na mão esquerda:
Babette D. (catorze anos), colegial, morreu. A jovem,
hoje a mais jovem vítima da droga, foi descoberta sem
sentidos em um apartamento da Brotteroderstrasse.
Nadjy R. (trinta anos) declarou à Polícia Judiciária que
ele a tinha pego na Discoteca Sound, da
Genthinerstrasse. Como ela não tinha onde dormir, ele
a recolheu em seu apartamento. Babette é a
quadragésima sexta vítima da droga em Berlim, desde
o começo do ano", etc. ...
Como todo blablablá habitual sobre a "cena" e os
viciados era tão simples, não era? Depois foi a vez de
as revistas narrarem um monte de besteiras sobre
Babsi: "A mais jovem vítima da droga na Alemanha".
Por volta do meio-dia eu me recompus um pouco.
O que sentia agora era uma raiva doida. Estava
convencida de que um filho da puta devia ter vendido
droga falsificada para Babsi (talvez um troço contendo
estricnina). A heroína com estricnina começava a
invadir Berlim. Não hesitei mais. Fui à polícia, entrei
no escritório da Schnipke e desembuchei. Contei-lhe
tudo o que sabia sobre os fornecedores desonestos, os
proxenetas no comércio da droga, o Sound. Tudo isso
parecia não lhe interessar muito. No final ela me disse
o seu eterno: "Bem, até a próxima vez, Christiane".
Pensava que os policiais pouco se importavam
com a qualidade da droga. Para eles, o importante era
dar baixa em mais um drogado de suas listas. Jurei a
mim mesma que encontraria o assassino de Babsi.
O cara na casa de quem encontraram Babsi
estava fora de suspeita. Eu o conhecia muito bem. Ele
estava cheio da nota e era legal. Gostava da
companhia de jovenzinhas. Ele já havia me levado
para dar uma volta de carro, me convidara para
almoçar e pagara tudo. Ele só queria dormir com
meninas que tivessem vontade de dormir com ele. Por
mim, ele poderia esperar muito tempo. Era um
homem de negócios, mas nunca lhe ocorreu que a
prostituição é apenas um comércio e mais nada.
Fui então me prostituir na Kurfürstenstrasse. Meu
objetivo era ganhar o dinheiro suficiente para poder
testar a heroína de todos os fornecedores suspeitos.
Comprei, efetivamente, heroína de muitos caras e
voltei, logo, a me drogar totalmente. De qualquer
forma, ninguém sabia ou queria saber de quem Babsi
tinha comprado a sua última picada. Sob pretexto de
encontrar o assassino de Babsi, me encharcava de
droga, sem que aquilo me pesasse na consciência.
Fazia discursos como: "Você precisa encontrar esse
crápula mesmo que você se mate". Naquele momento
não mais temia me picar.
Berndt Georg Thamm,
diretor do Centro de Informação e de Ajuda
Psicológica e Social da Associação Caritas, Berlim.
Horst Brömer,
psicólogo, conselheiro do serviço "Droga", da
mesma associação.
Segundo nossas estimativas, a proporção dos
viciados em heroína na faixa de doze a dezesseis anos,
da República Federal e de Berlim Ocidental passou,
nestes três últimos anos, de zero a vinte por cento.
Christiane é uma representante típica desse novo alvo
dos traficantes de droga, como sua amiga Babsi, que
veio fazer uma consulta em 1977 e morreu dois meses
mais tarde de uma overdose. Fomos impotentes para
ajudar essa adolescente de catorze anos. Depois Stella
e outros viciados do bando de Christiane nos
procuraram. Eles apresentam todas as características
dessa nova geração de jovens (muito jovens)
drogados: manifestamente agressivos, eles têm, aliás,
uma necessidade infantil de proteção, de
consideração, de amor e de calor.
Babsi foi trazida em maio de 1977, por pessoas
que tinham em relação a ela responsabilidade
educativa. Seu comportamento era o de uma
menininha triste, ainda grudada nas saias da mãe. Na
realidade ela tinha conhecido todos os altos e baixos
da vida de toxicômana - uma vida que ela levava
havia dois anos.
De um momento para outro, sempre drogados,
tentam libertar-se da escravidão da heroína e de suas
conseqüências: prostituição, delinqüência, decadência
física. Os de mais idade aqueles que se tornaram
dependentes somente entre os dezessete, dezoito ou
dezenove anos , após muitas tentativas infrutíferas
para se libertarem sozinhos da droga, procuram os
serviços especializados.
Os serviços especializados e todos os meios de
que dispõem (aconselhamento, cura, terapia) até
agora têm sido organizados em função dessa
população, isto é, toxicômanos mais ou menos
adultos. O princípio fundamental é que o interessado
deve vir por conta própria. Nosso trabalho consiste em
ajudá-lo a se assumir.
Dispomos, para uma população de perto de cinqüenta
mil drogados, de mais ou menos cento e
oitenta vagas para terapia no setor público e mil e cem
no serviço privado (clínicas, comunidades, etc.). Os
ex-drogados vivem em comunidades e são submetidos
a um programa rigoroso. Não temos dados confiáveis
sobre a taxa de terapias bem-sucedidas. Calcula-se
que a proporção de recaídas seja superior a oitenta
por cento. Depois da desintoxicação essas pessoas
voltam à mesma situação inicial: àquela que as levou
a se drogarem.
Quanto aos grupos, cada vez mais numerosos, de
viciados de doze a dezesseis anos, não dispõem de
tais ajudas. É claro que fazemos consultas com
crianças como Babsi, que vieram sob pressão de um
educador ou de algum serviço social. Mas eles não
aceitam o regulamento severo dos atuais centros de
terapia, e por essa razão não preenchem a condição
obrigatória para serem admitidos: apresentar-se por
sua própria vontade.
Eles ouviram da boca dos viciados que recaíram
as "atrocidades" cometidas nos centros de terapia.
Mesmo Babsi mostrou-se desconfiadíssima conosco e
assim continuou durante toda a nossa entrevista. Não
pudemos desfazer seu medo de ser enviada a alguma
parte contra sua vontade. Efetivamente, é uma
decisão difícil, para qualquer drogado, entrar em um
centro de terapia. É claro que ele sofre pela sua
toxicomania e por tudo o que ela traz consigo, mas é
um sofrimento ao qual se habituou. Em uma
comunidade terapêutica, é preciso renunciar ao
ambiente familiar, às suas relações habituais e, ainda
mais, aceitar ordens sobre o que deve ou não deve
fazer, ferindo suas liberdades individuais. Por exemplo,
para simbolizar sua ruptura com o mundo da droga,
ele deverá cortar os cabelos, mudar a maneira de se
vestir e renunciar à música "da moda", que o estimula.
Para uma criança de catorze anos, o penteado, a
roupa e a música são muito mais importantes do que
para um viciado de vinte anos. Talvez ela tenha
brigado durante dois anos com seus pais para poder
usar os cabelos compridos, calças justas e ouvir seus
discos. E eis que em troca de um bilhete de entrada
em um centro de terapia exige-se dela o sacrifício
desses atributos conseguidos depois de uma longa
luta. Esses atributos garantiam-lhe a consideração dos
seus amigos, das suas relações e da sua turma. Isso
ocorre no momento em que, com angústia, ela se
pergunta o que a espera nesse centro de terapia. Do
nosso ponto de vista é exigir muito dessas crianças.
A afetividade desses meninos toxicômanos é
ainda pouco estruturada. Eles oscilam entre sonhos e
aspirações infantis de um mundo que transmita
segurança e comporta- mento de adulto em situação
de competição. Os conflitos que conhece o ser humano
no período da puberdade são, por assim
dizer,''compensados" pela fixação física e psíquica à
droga. Esses meninos não vivem a experiência do
desligamento progressivo da casa paterna e a
gradativa aquisição da autonomia. Eles aprenderam
somente a fugir da realidade. É o que eles fazem em
cada fase crítica da vida.
Apesar das duras condições de vida que
conhecem esses jovens de doze a dezesseis anos na
selva da droga, apesar de tudo o que aí aprendem,
eles permanecem, no plano afetivo, crianças. E
reagem como crianças teimosas, quando se devem
submeter às terapias atuais, totalmente inadaptadas
às crianças.
Babsi, como muitos outros, não pôde se dobrar às
exigências de uma terapia de longa duração.
Tínhamos, portanto, tentado durante longas e
repetidas entrevistas prepará-la para isso. Após a
privação da droga, efetuada em um estabelecimento
neuropsiquiátrico, nós a levamos à Associação de
Socorro aos Drogados de Tübingen, um dos raros
centros que aceitam, excepcionalmente, jovens de sua
idade. Babsi nos pareceu durante a maior parte da
viagem ao mesmo tempo tensa e em um estado de
feliz excitação. Falamos longamente de Deus e do
mundo. A desintoxicação física tinha lhe dado alegria e
confiança em si. Entretanto, um pouco antes de
chegarmos a Tübingen, ela manifestou inquietação e
nervosismo.
Quando chegamos, Babsi foi recebida por um exdrogado
e conduzida à sala de espera reservada aos
recém-chegados. Mas antes mesmo da entrevista de
admissão, ela disse que queria voltar a Berlim. Ela
sentiu o que era preciso aceitar: ela acabava de sofrer
a revista de praxe (bagagem, roupas, e revista
também no corpo) para evitar a introdução de droga
no estabelecimento. Agora iam cortar seus longos
cabelos. Quando percebeu o barbeiro se aproximando
dela, armado de tesoura, ela não agüentou. Uma
pessoa do centro fez uma nova entrevista, mas não
pôde mudar em nada a sua decisão. Não seria
razoável conservar Babsi em Tübingen nessas
condições: ela recusava a terapia e, por suas
resistências, seria um verdadeiro perigo para os
outros. Além disso, ela tentaria fugir na primeira
ocasião.
Babsi morreu quarenta e quatro dias mais tarde,
de uma overdose de heroína. A mais jovem das
oitenta e quatro vítimas é a cifra oficial que a
heroína matou nesse ano de 1977.
A morte de Babsi reforçou nossa convicção: é
urgente que a rede de ajuda aos toxicômanos se
estenda também aos que têm de doze a dezesseis
anos, adapte-se a essa população, ou então que se
crie uma nova rede.
Sem querer dramatizar, pode-se dizer que o
futuro da luta contra a droga na Alemanha joga-se
aqui. Se as coisas ficam como estão, essa faixa de
idade continuará a escapar do controle. É preciso
desenvolver novas concepções terapêuticas, pensadas
especialmente para as crianças de menor controle
quanto ao problema da autodecisão. Se não chegarmos
a isso, nós nos encontraremos numa situação
igual à dos Estados Unidos: a morte de uma criança
por overdose de heroína não será considerada mais
um caso excepcional.
Entretanto, a solução do problema está tanto nas
mãos de orientadores e terapeutas especializados
quanto nas mãos da polícia. Tanto assim que ele não
se resume em um processo patológico individual,
comparável a uma doença infecciosa ou a uma fratura
moral que baste reduzir ou consolidar.
A melhor das terapias não pode produzir milagres
e não é uma ajuda eficaz, a não ser para uma
quantidade muito pequena de jovens.
A droga, que já se infiltrou nas escolas, nas
discotecas e nos centros de lazer, vai prosseguir,
segundo nos parece, com seus estragos em uma
população cada vez mais jovem. Não é somente uma
minoria de doze a dezoito anos que está ameaçada.
Por exemplo: somente o acaso decide como uma
jovem de treze anos vai ultrapassar a puberdade. Ela
pode atravessá-la sem maiores problemas ou
mergulhando no álcool, na heroína, entrando para
uma seita ou para um grupo anarquista que prega a
violência. Os jovens de hoje são tão acessíveis à droga
quanto os adultos o são face às seduções da indústria
farmacêutica. Quase todo jovem conhece alguém,
amigo ou conhecido, que já tomou droga, toma ou
tem a intenção de tomar. As motivações dos drogados
de hoje são bem diferentes das dos aficionados da
maconha e dos barbitúricos dos anos 60. Não se trata
mais, como os hippies daquela época, de procurar a
ampliação da consciência, mas de sua supressão. O
mesmo ocorre com os consumidores de álcool ou de
drogas leves. É por isso que não se pode hoje
classificar os jovens em perigo de "alcoólatras",
"fumadores de maconha" e "drogados". Passa-se
facilmente de um a outro, e o fim perseguido é o
mesmo.
É preciso constatar que a opinião pública está
insufi- cientemente informada da verdadeira extensão
do problema, tanto no plano qualitativo quanto no
plano quantitativo. A maior parte dos homens públicos
vê sempre o problema como uma onda que teria
atingido seu ponto culminante e que não deve tardar a
diminuir. Os parlamentares também nos falam de
"controlar" o fenômeno da droga como se se tratasse
de fechar uma torneira.
Na verdade, nossa sociedade produz cada vez
mais marginais voluntários. Muitos jovens se refugiam
na droga porque não encontram na escola, no mundo
do trabalho ou nos prazeres a resposta às suas
necessidades.
Paralelamente a esse processo que se desenvolve
em cadência acelerada, as drogas legais, como o
álcool e certos produtos farmacêuticos, tornam-se
uma fonte de lucros de primeira grandeza, com seu
comércio sendo, aparentemente, muito bem
administrado. Se considerarmos que e somos
modestos somente em Berlim Ocidental um grupo
de mais ou menos cinco mil pessoas, o núcleo central
dos consumidores de heroína, recolhe por dia meio
milhão de marcos (pela prostituição, pelo roubo
simples ou à mão armada), imaginem a importância
que isso representa em escala nacional. Os criminosos
que têm tal lucro com a toxicomania não estão
evidentemente prontos para renunciar a isso, e as
polícias locais e regionais não têm fôlego suficiente
para combatê-los. As quantidades de heroína e de
drogas leves que acabam caindo nas mãos da polícia
representam uma fração mínima do consumo.
O tráfico de droga se estende em nossos dias à
República Federal e a Berlim Ocidental, através de um
circuito cerrado de distribuição. De tal maneira que,
como acontece com as drogas leves, podemos
encontrar heroína por todas as partes. Não existem
regiões que não estejam contaminadas;
simplesmente, segundo as regiões, o perigo de
contágio é mais ou menos agudo.
Cada cidade já tem a sua "cena". Nas regiões
rurais, os fornecedores instalaram seus quartéisgenerais
nas discotecas e centros de lazer destinados
aos jovens.
A onipresença da droga é certamente um fator
decisivo para seu consumo crescente: o jovem que
busca um comportamento compensatório acaba
encontrando-o sem maiores dificuldades. Na cidade ou
no campo, muitos jovens sentem um imenso tédio,
sentimento confuso de que sua existência não tem
sentido. Sua única distração é ir uma vez por semana
à discoteca.
Aí, essa minoria sempre crescente de jovens não
encontra nenhuma possibilidade de comunicação
verbal. Depois de se deixar ficar aturdido pela música,
o jovem sai decepcionado: mais uma vez ele não viveu
uma experiência válida.
Essas crianças e jovens insatisfeitos de hoje não
encontram perspectivas encorajadoras no seu futuro e
não podem ir buscar forças no passado. Sua infância,
esse período de espontaneidade e de desenvolvimento
relativamente livre, a salvo das manipulações e
portanto equilibrada, acaba geralmente com a entrada
na escola: a partir desse momento seu universo passa
a ser o da competição e do consumo passivo.
Entre os jovens, frustrados dessa maneira em sua
infância, a imaginação empobrece, a confiança em si
mesmo e as capacidades de autonomia ficam
reduzidas. Eles passam de estímulos em estímulos,
incapazes de criar mecanismos de defesa e de resistir
às múltiplas tentações da sociedade de consumo,
tentações às quais eles foram expostos desde muito
cedo.
Com a seleção escolar tornando-se cada vez mais
rigorosa, os jovens constatam, desde a puberdade,
que, apesar de todos os seus esforços, seus futuros
meios financeiros não lhes permitirão atingir os
encantos prometidos pelas vitrinas e pela publicidade,
nem o mundo que os fascina desde sua tenra infância.
É claro que às vezes eles fingirão desprezo e
declararão em viva voz sua vontade de "viver de
forma diferente". Mas entre muitos prima a
insatisfação de ver-se privado dos benefícios do
consumo.
O dinheiro tem um papel cada vez mais
determinante, mesmo nas relações humanas. Para
conhecer uma jovem, o rapaz deverá gastar dez, vinte
ou trinta marcos em uma discoteca. Sem falar o
quanto lhe custa para se vestir na última moda, ter
discos, assistir aos concertos de música pop, etc. É
pesado para um aprendiz ou um ginasiano. Assim
nascem os grandes problemas (pequenas causas,
grandes efeitos) e os jovens vão buscar satisfação de
seus desejos de uma outra maneira.
Os pais são incapazes de indicar-lhes o caminho,
eles mesmos estão enredados, muitas vezes, em
contradições sem saída. O fruto de seu trabalho,
passado e futuro, não lhes permite ter o que desejam
ou o que lhes ensinaram a desejar. Mas,
contrariamente a seus filhos, eles não abandonam a
corrida, retesam suas forças e redobram seus esforços
em seu trabalho de Sísifo, deixando de lado valores
como a amizade, a solidariedade, a lealdade, a
compreensão da miséria de outrem. O processo de
destruição da vida familiar assume proporções
alarmantes. Em Berlim, já se tomou a decisão de
enviar a inúmeras casas "auxiliares familiares"
(psicólogos, assistentes sociais, estudantes). Eles
constatam uma incrível miséria moral oriunda da
ausência de comunicação e do clima de hostilidade.
Divórcio (os índices aumentam sem cessar), televisão
ligada permanentemente, suicídios, alcoolismo, abusos
de medicamento (verdadeiras "muletas psíquicas"):
eis o ambiente de muitos jovens, cercados por seus
problemas da puberdade. Esse menino ou menina se
encontram então em um labirinto com muitas saídas e
em um labirinto de galerias que se chama família,
lazer, perspectivas de trabalho, competição escolar,
sexualidade e sonhos. A questão é: como vai se sair?
A saída encontrada pode ser uma seita, uma turma de
alcoólatras ou entre viciados. A heroína, a mais
perigosa das drogas, é também a mais eficaz para
"resolver" com uma velocidade recorde todos esses
problemas.
O obstáculo decisivo continua sendo, para muitos
desses jovens em perigo, o preço elevado da droga. É
por isso que as jovens se tornaram o alvo preferido
dos traficantes. Nestes últimos anos, entre os jovens
de doze a dezesseis anos consumidores de heroína, o
número de meninas aumentou muito mais
rapidamente que o dos meninos. Como é para elas
mais fácil arrumar o dinheiro necessário se
prostituindo, elas são as preferidas pelos dealers
(Vendedores de droga. (N. do T.)), que as conduzem
deliberadamente à dependência.
Isso começa muitas vezes na discoteca, segundo
um mecanismo muito simples. Um jovem aparece:
físico privilegiado, roupas de acordo com a última
moda. Ele começa a conversar com as meninas. Elas o
acham sensacional, admiravelmente "numa boa". Logo
ele oferecerá à vítima escolhida as primeiras doses de
heroína gratuitamente. Repete a operação várias
vezes. E então. . . mais uma menina pinçada (Estar
habituada a uma substância, não podendo mais
dispensá-la (N. do T.)), que, por seu lado, vai
eventualmente introduzir a droga em seu círculo de
amigos.
Essa forma de prospecção é característica do
pequeno fornecedor, algumas vezes pago por
comissão. Contrariamente aos intermediários e aos
vendedores por atacado, ele é também um
toxicômano, e seu lucro cobre somente o próprio
sustento. Às vezes chega apenas a cobrir suas
próprias necessidades de heroína. Ele não tem
necessidade de grande talento para vender. Os jovens
gostam de correr riscos, e no seu desejo de viver
experiências pessoais, em um mundo em que eles são
cada vez mais raros, eles se submetem à mão
"segura" do vendedor. E eles conhecerão
efetivamente, nos seus primeiros contatos com a
heroína, um sentimento de felicidade e a impressão de
ficar livres de todas as preocupações.
Eles não renunciarão a essa "maravilha", pois a
realidade é outra. Depois da terceira vez, a
dependência psíquica está consolidada. Em seguida,
mais ou menos rápido, segundo a freqüência de
utilização, será a vez da dependência física. O
toxicômano não poderá mais ficar sem heroína, sob
pena de sofrer dolorosos sintomas da crise de
privação, e tornar-se-á um cliente regular de seu
fornecedor. Para a maior parte dos toxicômanos essa é
a engrenagem. Se um pequeno traficante é preso, ele
é substituído no dia seguinte. Cada toxicômano aspira
a tornar-se ele mesmo um fornecedor, pensando
assim satisfazer às necessidades de maneira mais
agradável do que se dedicando ao roubo com ou
sem arrombamento e à prostituição. Em outras
palavras, o comércio da heroína ganha em todo
comprador não somente um cliente, mas também um
fornecedor em potencial. Em Berlim, já estamos no
estágio de fornecedores de catorze e dezesseis anos.
O problema da droga na zona rural é ainda
largamente subestimado, principalmente porque as
manifestações são menos visíveis que na cidade. Em
curto prazo um grande número de jovens do campo,
contaminados, ganham os grandes centros urbanos na
impossibilidade de encontrar nos vilarejos o dinheiro
necessário, que não é pouco.
A toxicomania leva quase sempre as mulheres e
as jovens à prostituição. Os viciados masculinos se
especializam, em sua maioria, nos delitos contra os
bens: uns no arrombamento de armazéns, de centros
de aprendizagem, e outros a bater carteiras ou
roubando butiques. E cada um tem o seu receptador
titular ou mais ou menos um lugar para levar as
máquinas de calcular, máquinas fotográficas,
aparelhos de som, pequenos eletrodomésticos,
bebidas, etc. E, no final das contas, salvo se tiver
agido sob comando, tudo isso dará ao viciado (e
independentemente do valor do que roubou) somente
o dinheiro necessário para sua ração diária de heroína.
Como essa soma varia de quarenta a duzentos
marcos, a "cena" tem a marca de uma corrida
perpétua pelo dinheiro. Obrigados a batalhar cada dia
pelo dinheiro necessário, os drogados tornam-se
brutais, agressivos, isolando-se uns dos outros. Apesar
do aumento contínuo da dose, o efeito euforizante da
heroína decresce pouco a pouco. Ele chega mesmo a
desaparecer totalmente: pica-se mais para escapar
aos cruéis sofrimentos da crise de privação.
***
Não era muito difícil abusar do meu pai. De
qualquer forma, havia muito tempo que ele
desconfiava de alguma coisa. Acho que ele não
esperava nada mais que a prova decisiva. E ela não
demoraria. Uma noite, percebi que não tinha mais
droga para o dia seguinte. Era impossível sair para
procurar, pois meu pai estava em casa. Chamei Heinz
às escondidas e marcamos um encontro no conjunto
Gropius. Meu pai nos surpreendeu diante do
Schluckspecht. Heinz só teve tempo de se mandar,
mas meu pai encontrou a heroína.
Confessei tudo. A começar pelas minhas relações
com Heinz. Não tinha mais forças para mentir. Meu pai
me mandou marcar um encontro com Heinz no dia
seguinte, no Parque Hansenheide, pedindo-lhe que me
trouxesse mais heroína. Depois ele chamou a polícia e
contou-lhes tudo, exigiu que eles viessem prender
Heinz no parque. Eles lhe responderam que... não se
pode fazer assim. Era preciso organizar uma boa
batida, e essa espécie de operação não se organizava
do dia para a noite. Então eles não tinham nenhuma
vontade de prender Heinz, um "corruptor de menores"?
foi a expressão de meu pai. Era muito
trabalho. Eu, naturalmente, estava feliz por me
pouparem o papel sujo de dedo-duro.
Sempre pensei que, no dia em que ele
descobrisse a verdade, me deixaria meio morta no
chão, de tanto bater. Mas sua reação foi muito
diferente. Ele parecia tomado pelo desespero. Quase
tanto quanto minha mãe. Falava muito delicadamente.
Acabou compreendendo que mesmo que quiséssemos
de fato, não era assim tão simples acabar com a
heroína. Mas ele não abandonou a esperança de
chegar lá.
No dia seguinte ele me fechou novamente no
apartamento. Levou Janie. Eu não voltaria a vê-la.
Tive uma crise horrível. Ao meio-dia não suportava
mais e telefonei a Heinz. Supliquei-lhe que trouxesse
heroína. Como era preciso uma chave para entrar no
edifício, informei-lhe que penduraria uma corda em
minha janela, no décimo primeiro andar.
Acabei convencendo-o, mas em troca ele me
pediu que lhe mandasse, pelo mesmo meio, uma carta
de amor e uma das minhas calcinhas. Ele nunca dava
droga sem nada em troca. Era um homem de
negócios, não é?
Revirei o apartamento em busca de tudo o que
pudesse servir de corda, desde o varal de roupas até o
cinto do pijama. Amarrei tudo. Era preciso fazer um
monte de nós e várias tentativas antes de chegar a um
comprimento suficiente. Deu muito trabalho. Depois,
rabisquei a famosa carta. Em pleno cold turkey.
Heinz chegou na hora. Tirei do armário uma
calcinha bordada (por minhas próprias mãos) e
coloquei-a junto com a carta, na touca do meu
secador de cabelos, e despachei meu pacote aéreo
pela janela do quarto das crianças. Tudo bem. Heinz
pegou sua encomenda e pôs o saquinho de droga na
touca. Muitas pessoas paravam para ver, interessadas
na nossa operação. Mas parece que Heinz não dava
bola para isso. Eu "cagava montes". Só pensava numa
coisa: na heroína.
Finalmente ela chegou. Apressei-me em
esquentá-la. O telefone tocou. Heinz. Houve um malentendido,
ele queria uma calcinha usada. Tinha a
heroína e nada mais me importava. Para que o cara
parasse de me encher o saco, peguei uma calcinha
bem velha, no cesto de roupas sujas, e joguei-a pela
janela. O objeto aterrissou numa planta. Heinz, depois
de fingir que ia embora, partiu à sua procura.
Aquele cara era completamente louco. Soube
depois que no dia da história da corda ele já estava há
três semanas com mandado de prisão decretado. Os
policiais simplesmente não tinham tido ainda tempo de
ir buscá-lo. E seu advogado lhe havia dito que ele se
metera numa grande encrenca. Mas desde que se
tratasse de meninas, Heinz perdia completamente a
cabeça.
Precisei depor como testemunha em seu
processo. Disse a verdade. Por um lado eu pouco me
interessava por ele e pelos outros clientes, mas por
outro, ele me dava pena e não me foi fácil depor
contra ele. Em todo caso, ele não era pior que os
outros clientes, e eles sabiam perfeitamente que os
viciados usavam seu dinheiro para comprar droga.
Eram todos nojentos. Mas Heinz era um infeliz
drogado. Sua droga eram as jovenzinhas. Acho que
seu lugar seria num hospital psiquiátrico e não numa
prisão.
Fiquei presa no apartamento durante muitos dias.
Mas como Heinz havia trazido uma boa provisão de
heroína, não fiquei em jejum. Uma manhã meu pai
partiu sem fechar a porta à chave. Eu me mandei.
Sumi por uma semana toda até que ele me encontrou
e me trouxe de volta para casa. Contra todas as
expectativas, ele não me bateu. Tinha somente um ar
mais desesperado.
Eu lhe disse que não conseguiria sozinha. Era
muito duro quando ficávamos a sós todo o dia. Babsi
morta, Stella na prisão. Eu lhe falei de Stella, Stella
morrendo atrás das grades, com catorze anos. Soube,
através de uma menina que acabava de ser solta e
que fora sua companheira de cela, que Stella só tinha
um pensamento na cabeça: se matar. Seu único apoio
eram as terroristas meninas da Facção do Exército
Vermelho detidas na mesma prisão. Ela encontrou
várias vezes Monica Berberich e estava fascinada por
aquela mulher. Muitos viciados achavam as terroristas
formidáveis. Havia mesmo quem tentasse entrar em
um grupo terrorista antes de se entregar à droga.
Durante o seqüestro de Schleyer eu também fui
detida, mas tinha horror à violência. Nunca poderia
fazer mal a ninguém: só o fato de ver um ato de
violência me punha doente. No entanto, pensava que
as pessoas do grupo Baader talvez tivessem uma visão
clara da situação: não podíamos mudar essa sociedade
podre a não ser pela violência.
A história de Stella tocou profundamente meu pai.
Ele queria tirá-la da prisão e adotá-la. Eu o tinha
convencido de que, se tentássemos juntas, Stella e eu,
conseguiria me livrar da droga. Para ele também era a
última oportunidade de luta. Um raciocínio idiota, mas
como ele poderia saber? Certamente meu pai não foi
feliz em sua tentativa de me reabilitar durante o
tempo em que passei em sua casa, mas fez o que
pôde. Como minha mãe.
Meu pai começou a percorrer os serviços sociais e
conseguiu soltar Stella. Ela estava realmente acabada,
física e psicologicamente. Pior que antes de sua prisão.
Eu tinha prometido a mim mesma que estaria limpa
quando ela chegasse em casa, mas não consegui... E
fiz Stella "mergulhar" desde o primeiro dia. Mas de
qualquer forma ela o teria feito. Durante alguns dias
mais, falamos seriamente em nos desligarmos. Em
seguida» pusemos em prática uma técnica quase
perfeita para enganar meu pai. Para nós duas era fácil,
pois dividíamos todas as tarefas. íamos até mesmo à
"corrida pela grana", uma vez cada uma. Sempre
Kurfürstenstrasse. Pegar alguns automobilistas.
Já estava indiferente a tudo. O que teria de mais
o trottoir? Éramos uma turma de quatro meninas.
Stella, as duas Tinas e eu. O acaso quis que as duas
se chamassem Tina. Uma delas tinha um ano menos
que eu e acabava de fazer catorze anos.
Nós sempre trabalhávamos pelo menos em dupla.
Quando uma saía com um cliente, a outra anotava,
ostensivamente, o número da placa. Isso
desencorajava os caras que estivessem pensando em
nos fazer uma sacanagem. Era igualmente uma
proteção contra os proxenetas. Nós não tínhamos medo
dos policiais. Alguns, quando passavam no carro de
patrulha, nos davam adeusinhos. Até tinha um deles
entre os meus habitués. Um cara muito divertido. Ele
pedia, queria amor o tempo todo, era preciso explicarlhe
constantemente que a prostituição era um trabalho
e não amor. Ele não era o único cliente a quem tinha
que explicar isso. A grande maioria queria bater papo.
Começavam sempre com as mesmas histórias: "Como
uma menina tão bonita como você chegou a isso?
Certamente há uma outra solução", etc., etc. Era o
tipo de conversa fiada que mais me exasperava. Alguns
punham na cabeça que iriam me salvar. Recebia
pedidos de casamento certinhos. Todos aqueles bons
sentimentos não lhes impediam de explorar a
desgraça dos viciados para sua satisfação pessoal,
com conhecimento de causa. Esses caras mentem
escandalosamente. Imaginam poder ajudar-nos
enquanto estão atolados até o pescoço em seus
problemas.
A maior parte deles eram caras que não ousavam
procurar profissionais. De maneira geral, tinham
dificuldades com mulheres e por isso vinham procurar
meninas que se viravam. Eles nos diziam que se
sentiam completamente frustrados por causa de suas
mulheres, de suas famílias, da vida que levavam, onde
nada mudava. Às vezes, pareciam até ter inveja de
nós, pelo menos porque éramos jovens. Eles nos
faziam perguntas sobre a juventude atual, seus gostos,
sua música, sua linguagem, a moda, etc.
Uma vez, um desses tipos, um cara de uns
cinqüenta anos, queria fumar maconha de qualquer
maneira, pois ele achava que todos os jovens o
faziam. Foi aí então que pedi mais dinheiro. E ei-nos
em busca de um fornecedor. Percor- remos metade de
Berlim, e nada. Eu nunca tinha percebido que nesta
cidade encontramos heroína em todos os cantos da
rua e maconha não encontramos em parte alguma.
Levamos quase três horas para encontrar um pouco. O
tipo fumou sua maconha no carro. Ficou todo feliz de
fazer tal coisa.
Encontrávamos cada louco nesse trabalho! Havia
um cara que queria que a gente batesse o tempo todo
sobre uma placa de aço que ele tinha no joelho, desde
um acidente de moto. Um outro levava consigo um
pedaço de papel com um carimbo que tinha o aspecto
de documento oficial: era um documento de
esterilidade, pois não queria usar preservativo. Um
outro, o mais filho da puta de todos, me contou que
trabalhava no cinema e que gostaria que eu fizesse
um ensaio, depois tirou um revólver e me obrigou a
fazer coisas com ele gratuitamente.
Meus clientes preferidos eram os estudantes. Eles
chegavam a pé. De modo geral eram caras bastante
bloqueados, mas eu gostava muito de conversar com
eles. Falávamos dessa sociedade podre. Eram os
únicos a cujos quartos eu concordava em ir. No hotel
era realmente ruim: custava dez marcos a mais ao
cliente, e por aquele preço não tínhamos nem mesmo
direito a utilizar a cama. Eles nos instalavam num
colchão inflável.
Stella e eu nos comunicávamos por código, que
rabiscávamos em uma parede ou numa coluna Morris.
Dessa forma, nós sempre sabíamos, na hora da troca,
o que a outra fazia, o que nos era muito útil no caso
de meu pai inventar uma nova forma de nos vigiar
melhor. Às vezes, quando estava de saco cheio da
Kurfürstenstrasse, passava alguns minutos em uma
loja chamada Teen Challenge. Ali nos davam revistas e
livros contando histórias de pequenos viciados e
putinhas americanas, que graças a eles encontraram o
caminho de Deus. Esses caras vieram instalar-se a
dois passos de onde as adolescentes se prostituíam e
do Sound, para fazer uma pregação. Na Teen
Challenge, bebia chá e comia um bolinho frito e batia
um papo. Mas, quando eles começavam a falar do
bom Deus, eu me mandava. No fundo, eles também
exploravam os viciados, pois quando viam que estávamos
no fim da picada, tentavam nos recrutar para a
sua seita.
Ao lado da Sekten-Keller, na Kurfürstenstrasse,
havia uma sede do grupo comunista. Às vezes lia seus
panfletos na vitrina. Eles queriam mudar a sociedade
completamente.
Isso me agradava. Mas na situação em que
estava, seu discurso não me ajudava mais que o resto.
Olhava também as vitrinas das grandes lojas de
móveis da Kurfürsten e da Genthinerstrasse. Isso me
fazia pensar no nosso velho sonho de um apartamento
para nós dois, para mim e para Detlef. Depois sentiame
ainda mais infeliz.
Desci, mais ou menos, até o último estágio da
carreira de um viciado. Quando os clientes rareavam,
não recuava diante da delinqüência. Bem, isso não iria
muito longe, não havia nascido para tal e não tinha
nervos bastante fortes. No dia em que uma turma de
viciados quis me levar para fazer um roubo, escapuli.
Minha maior façanha foi o roubo do transistor de um
carro, depois de ter quebrado o vidro com um soco
inglês. Tive que tomar três quartos de uma garrafa de
vermute para criar coragem. Geralmente ajudava os
viciados a vender a mercadoria roubada. Fazia
também transporte de mercadorias perigosas,
roubadas por ladrões vagabundos: depositava os
objetos em guarda-volumes automáticos e ia retirálos.
Com isso ganhava, no máximo, vinte marcos e, no
entanto, era mais perigoso que roubar. Eu estava
totalmente na merda.
Em casa, contava mentiras a meu pai e brigava
com Stella. Tínhamos combinado dividir o trabalho e a
heroína, mas uma se achava prejudicada pela outra.
Era um inferno.
Meu pai já sabia de tudo há algum tempo, mas
estava desamparado. Eu também. A única coisa de
que estava segura era de que meus pais não podiam
mais me ajudar.
Não suportava mais a escola, nem mesmo para
marcar presença. Não suportava mais nada nem
ninguém. Os clientes me irritavam, não conseguia
mais passear tranqüilamente como antes, na "cena".
Não suportava mais meu pai.
Eis mais uma viciada no fim do caminho. A
depressão negra. As idéias suicidas. Mas era muito
covarde para tomar um hot shot (Dose mortal).
Sempre buscava uma saída.
Decidi ir ao hospital psiquiátrico. Ao Hospital
Bonhoeffer, chamado "Bonnies Ranch". Para um
viciado, era mais ou menos o que poderia haver de
mais pavoroso. Sempre ouvi dizer que "é melhor viver
quatro anos em cana do que quatro semanas no
Bonnies Ranch". Alguns viciados foram internados ali
ex-officio, depois de terem baqueado em plena rua, e
na saída contaram histórias abomináveis.
Mas eu, ingenuamente, pensava que, se fosse
voluntariamente, ao menos alguém se decidiria a
ocupar-se de mim. No Serviço de Auxílio à Infância ou
em qualquer outra parte, seriam obrigados a perceber
que havia uma menina com necessidade de ajuda.
Minha decisão de ir ao Bonnies Ranch parecia com
essas tentativas de suicídio em que esperamos
secretamente sermos salvos por pessoas que diriam:
"Pobre coitada, não nos ocupamos dela o suficiente.
Nunca mais seremos tão desumanos com ela".
Fui falar com minha mãe para lhe comunicar
minha decisão. Primeiramente ela se mostrou muito
fria. Comecei a chorar imediatamente e depois tentei
lhe contar a minha história, sem deformar muito a
verdade. Ela também começou a chorar, me segurou
nos braços e não me largou mais. Choramos as duas
como Madalenas arrependidas, e foi muito bom. Minha
irmã também estava toda contente de me rever. Nós
duas dormimos na mesma cama.
Logo sentia os primeiros sintomas da crise.
Comecei um novo tratamento. Não sabia mais quantos
havia feito. Provavelmente era a campeã mundial de
tratamento. De qualquer forma, não conhecia ninguém
que os tivesse feito, por sua própria vontade, tanto
quanto eu. E sem nenhuma chance de ser bemsucedida.
A história se repetiu como da primeira vez. Minha
mãe tirou umas férias e me trouxe tudo o que pedi:
Valium, vinho, geléia e frutas. Depois do quarto dia,
ela me levou para o Bonnies Ranch. Fiquei, pois sabia
muito bem que, em caso contrário, recomeçaria a me
picar imediatamente. Fizeram-me ficar nua e me
mandaram para o banheiro. Como uma leprosa. Lá
estavam duas velhas completamente gagás, tomando
banho. Meteram-me no terceiro chuveiro e me
vigiaram enquanto eu me esfregava. Não me
devolveram minhas coisas, mas, em compensação,
tive direito a uma velha camisola dos tempos de
antanho, uma calcinha que ia até os joelhos, que era
obrigada a usar se não quisesse perdê-la. Levaram-me
para o Serviço de Admissões, para as anotações. Era a
única paciente com menos de sessenta anos. E as
outras eram completamente loucas, com uma única
exceção, uma mulher a quem todos chamavam
"Boneca".
Boneca ficava ocupada de manhã à noite. Ela se
tornara muito útil no serviço e dava boa ajuda às
enfermeiras. Boneca era uma pessoa com quem se
podia falar. Ela não parecia louca, só tinha os reflexos
um pouco retardados. Estava lá há quinze anos, desde
que seus irmãos e irmãs a
hospitalizaram no Bonnies Ranch. Aparentemente
não precisava de tratamento. Pura e simplesmente a
deixaram lá, no Serviço de Admissões. Talvez porque
ela fosse realmente útil. Mas, para mim, devia haver
alguma outra coisa errada para alguém ficar durante
quinze anos no Serviço de Admissões, só porque
pensa um pouco lentamente.
Durante aquele primeiro dia, passei pela inspeção
de um pelotão de médicos. Na verdade, a maioria dos
"aventais brancos" eram estudantes, que me comiam
com os olhos, na minha nostálgica camisola. O chefe
deles me fez algumas perguntas, e respondi
ingenuamente que gostaria de seguir um tratamento
durante alguns dias e ir, em seguida, a um pensionato
onde pudesse preparar-me para o vestibular. Ele
falava: "Sim, sim", sem parar, como se estivesse
tratando com uma louca.
Lembrei-me de histórias de loucos. Eu me
perguntei o que fizera para que me tratassem como a
alguém que se crê Napoleão. Tive medo na hora; e se
me guardassem aqui toda a vida, fantasiada com uma
camisola nostálgica e uma calcinha gigante?
Mas dois dias depois, como não apresentava mais
os sintomas da privação da droga, eles me mandaram
para o serviço B, onde me devolveram as roupas e
tinha até o direito de comer com faca e garfo (no
Serviço de Admissões eles só nos davam uma colher
de sobremesa). Ali encontrei três outras viciadas,
meninas que conhecia. Sentamo-nos na mesma mesa,
logo batizada pelas velhinhas de "a mesa das
terroristas".
Uma das meninas, Liane, já passara muito tempo
em cana. Ela também confirmava que Bonnies Ranch
era pior que uma prisão, principalmente porque no
xadrez havia sempre um meio de encontrar heroína,
enquanto ali era muito difícil.
Apesar disso, agora que estávamos em quatro,
nos divertíamos bastante, mas pouco a pouco comecei
a ficar apavorada. Era impossível conseguir uma frase
sensata dos médicos quando eu lhes perguntava
quando iriam enviar-me para a terapia. A resposta era
sempre: "Vamos ver" ou besteiras semelhantes, que
eles falavam aos loucos durante todo o dia.
Havia sido combinado entre minha mãe e o setor de
Ajuda à Infância que eu passaria quatro dias em
Bonnies Ranch o tempo para constatar que eu
estava limpa e depois começaria a terapia. Mas não
existia mais a vaga prometida no Centro de Terapia,
apesar de eu ter feito o tratamento de privação
sozinha e ter chegado quase limpa. E num belo dia
queriam que eu assinasse um papel no qual aceitava,
por minha própria vontade, uma permanência de três
meses no Hospital Bonhoeffer. É claro que recusei e
disse que queria partir imediatamente: se eu vim por
minha própria conta, poderia partir quando me
conviesse. Aí o médico-chefe me disse que, se eu não
assinasse, ele pediria um internamento ex-officio de
seis meses.
Senti que caíra numa cilada. Louca de angústia,
percebi que me entregara indefesa nas mãos desses
médicos idiotas. Eles podiam me dar qualquer
diagnóstico: neurose grave, esquizofrenia ou sei lá o
que mais. Não tínhamos mais nenhum direito quando
éramos internados em um hospital de loucos.
Aconteceria comigo o mesmo que acontecera com
Boneca.
O pior era que nem eu mesma sabia qual era o
meu grau de loucura. Devia admitir que era neurótica.
Minhas entrevistas com os conselheiros do centro
antidroga ao menos me ensinaram que a toxicomania
é uma neurose, um impulso obsessivo. Foi o que pude
concluir quando pensei na coisa. Ter feito tantos
tratamentos para recomeçar em seguida, sabendo
perfeitamente que aquilo acabaria me matando. Tudo
o que fazia minha mãe sofrer, a maneira como me
comportava com os outros, é claro que não era
normal. Devia estar muito destruída. E lá estava eu
imaginando como fazer para impedir que os médicos e
enfermeiras percebessem que estava louca para
sempre.
Essas enfermeiras me tratavam como a uma
idiota, como às outras doidas. Eu me esforçava para
nunca me mostrar agressiva com elas. Quando os
médicos me faziam perguntas, dava-lhes respostas
diferentes das que me ocorriam espontaneamente.
Tentava com todas as minhas forças não ser eu
mesma, mas uma outra pessoa, totalmente normal. E
quando eles me davam as coisas, eu me arrependia
por não ter dito só besteiras. Então, certamente, eles
deviam pensar que estava completamente louca.
Tudo o que me propuseram em matéria de
terapia foi fazer tricô. Mas absolutamente não me
interessava, e achava que aquilo não me ajudaria.
Naturalmente havia grade nas janelas, mas como
Bonnies Ranch não era uma prisão, eram volutas
mais decorativas. Virando a cabeça de certa forma,
podia enfiá-la entre duas curvas, e isso me permitia
ver melhor lá fora.
Passava horas assim com o pescoço enroscado
naquela "coleira de ferro". Veio o outono e as folhas se
tornaram avermelhadas e amareladas. Entre duas
árvores o raio de sol que estava se pondo caía
diretamente sobre a minha janela todos os dias, e isso
durava uma hora.
Às vezes amarrava minha caneca num pedaço de
lã, fazia-a atravessar a janela e me divertia batendo-a
contra o muro, ou então durante uma tarde inteira
tentava, sem sucesso, pegar um ramo com um
cordão, na esperança de colher a folha. À noite
pensava: se você não estava doida ao chegar, acabou
ficando.
Nem mesmo me autorizavam a ir ao jardim, para
andar em círculo como as velhinhas. As terroristas
tinham direito a uma saída ao ar livre todos os dias.
Eu não. Tentaria fugir. Aliás, eles tinham razão.
Encontrei uma velha bola de futebol num armário.
Jogava-a infatigavelmente contra os painéis de vidro
de uma porta enferrujada. Talvez eles acabassem se
quebrando. Não demoraram muito a tirá-la de mim.
Meti a cabeça no vidro. É claro que o vidro era
resistente. Tive a impressão de ser um animal feroz
em uma jaula, uma jaula minúscula. Andava ao longo
das paredes horas e horas. Uma vez tive uma terrível
necessidade de correr. Corria como uma louca, de
ponta a ponta do corredor. Ida e volta, ida e volta, até
que caí de cansaço.
Um dia roubei uma faca. À noite Liane e eu
raspamos a massa de uma janela com ferrolho, mas
sem grades. A vidraça não se mexeu nem um
milímetro. Na noite seguinte, depois de ter
aterrorizado as velhinhas, que não ousavam se mexer
(algumas achavam que éramos terroristas de verdade),
desmontamos uma cama para tentar tirar as
grades de uma janela que ficara aberta. É claro que a
ação estava destinada ao fracasso: fizemos tanto
barulho que a guarda da noite caiu em cima da gente.
Comportando-me assim, percebi que não teria
nenhuma chance de sair um dia da casa de loucos. Por
mais que me esforçasse para não me drogar, a minha
saúde estava cada vez pior. Tinha uma barrigona, meu
rosto estava flácido e inchado, sem cor. Quando olhei
no espelho, percebi que parecia uma pessoa que já
havia passado quinze anos no Bonnies Ranch. Quase
não dormia mais. Aliás, ficávamos acordadas quase
todas as noites por incidente no serviço. E continuava
sempre à espera de uma chance para fugir. Sabendo
que era inútil, me embonecava todas as manhãs,
como se fosse à "cena": penteava calmamente meus
cabelos, maquilava-me e até preparava o meu casaco.
No entanto, um dia recebi a visita de um cara da
Ajuda à Infância. Ele também não achava nada para
me dizer, a não ser: "Vamos ver". Mas ao menos ele
me contou onde estava Detlef. Em seguida lhe escrevi
uma longa carta. Assim que a pus na caixa do correio,
comecei outra. Era bom poder esvaziar meu coração,
mas não totalmente, pois sabia muito bem que
aquelas cartas seriam abertas. Haveria censura,
possivelmente na saída da carta, em Bonnies Ranch,
e, sem dúvida nenhuma, quando chegasse à prisão.
Era, por isso, obrigada a mentir: contava, por
exemplo, que não tinha nenhuma vontade de me
drogar.
Pouco depois recebia notícias de Detlef. Um
monte de cartas de uma só vez. Ele me escreveu que
fizera uma enorme besteira roubando aqueles
cheques, mas ele só tinha uma idéia em mente: voltar
a Paris para se desintoxicar. Ele queria me fazer uma
surpresa, pois nunca conseguiríamos juntos. Detlef me
escreveu que estaria livre dentro em breve e em
seguida iniciaria uma terapia. Disse-lhe que iria
começar a minha logo. Nós nos prometemos, então,
que após a terapia viveríamos juntos em nosso
apartamento. Recomeçávamos e dessa vez por
correspondência a construir castelos no ar, só que
quando não estava escrevendo a Detlef, tinha a
impressão de estar condenada pelo resto da vida ao
Bonnies Ranch.
Tive sorte. Minha micose voltou. Todos os dias
enchia a doutora dizendo "me sinto muito mal",
"precisa me mandar para o hospital". Uma manhã me
levaram com uma boa escolta ao Hospital Rudolf
Virchow, onde me internaram imediatamente, pois,
apesar de tudo, meu estado era bastante grave.
Soube, através da "Rádio-Tóxicos", como se fazia para
fugir de um hospital. Tentei conseguir uma "permissão
de parque", isto é, autorização para ir ao parque do
estabelecimento. É claro que não era dada facilmente
aos viciados, mas eu conhecia um truque: fui falar
com uma das enfermeiras que era uma menina
linda, com olhos rasgadinhos , expliquei-lhe que
gostaria de ajudar aquelas pobres velhas grudadas em
cadeiras de rodas. Será que ela me permitiria levá-las
para passear às vezes no parque? A enfermeira, que
não desconfiava de nada, me felicitou pelo meu bom
coração.
Peguei uma velha e lhe ofereci meus préstimos.
Ela me achou "uma menininha boazinha". Empurrei
um pouco sua cadeira de rodas por uma alameda e lhe
disse "espere-me um minuto, vovó, volto em seguida".
Trinta segundos depois estava na rua.
Enfiei-me imediatamente no metrô, em direção à
Estação Zoo. Nunca tinha tido tal sensação de
liberdade. Fui até o bar da Universidade Técnica.
Depois de ter dado uma voltinha fui sentar-me em um
banco ocupado por três jovens viciados. Contei-lhes
que acabara de fugir do Bonnies Ranch. Eles ficaram
de boca aberta de admiração.
Tinha uma bruta vontade de me picar. Um dos
rapazes era fornecedor. Ele concordou em me dar
crédito se eu lhe mandasse uns clientes. Está certo.
Eu me apressei em picar-me no banheiro do
restaurante universitário.
Piquei-me só com a metade da dose. Aliás, a
heroína não era lá essas coisas. Eu me sentia bem,
mas me conservava lúcida, pois devia dar uma
mãozinha para o cara. Era um rapaz jovem, com seus
dezesseis anos, que eu conhecia um pouco por tê-lo
visto com fumadores de maconha no Parque
Hansenheide. Ele ainda ia à escola. Era um fornecedor
novato, senão não teria me dado a heroína logo de
cara: eu teria que ganhá-la antes de mais nada.
De repente percebi que o pedaço estava cheio de
policiais à paisana. O cara não percebeu nada. Ele não
compreendia os meus sinais de alarme. Precisei ir ao
encontro dele e lhe assoprar ao ouvido: Os tiras
para que ele reagisse. Fui calmamente em direção à
Estação Zoo, e ele me seguiu. Um viciado se
aproximou de mim. Eu lhe disse: Não se mova, meu
velho, há uma batida no restaurante universitário, mas
eu posso te conseguir uma heroína das boas. O
jovenzinho já estava do meu lado e tirava o pacote de
droga do bolso, falando ao cara que era só para ele ter
uma idéia. Não era possível! Havia uma batida a
trezentos metros e o cretino tirava o pacote de heroína
do bolso!
Dois policiais à paisana que andavam por ali
avançaram em nossa direção. Era inútil começar a
correr, pois eles nos pegariam na hora. O fornecedor
jogou os seus saquinhos fora um verdadeiro
turbilhão de papel alumínio rosa-shocking. Ele
acreditava, sem dúvida, poder jogar tudo isso sobre
nossas costas, ou seja, nas do outro viciado e nas
minhas.
Colocaram-nos de braços erguidos para ver se
estávamos armados, quando o mais velho de nós não
tinha nem dezesseis anos. Aquele policial sujo
aproveitou para passar a mão nos meus peitos. Mas
eu estava muito tranqüila. Havia tomado a minha
picada e depois do Bonnies Ranch nada mais me dava
medo. Executei o meu número de menina bemeducada.
De repente, os policiais que verificavam as
nossas identidades se mostraram bastante bonzinhos.
Um deles me disse: Deus! Você não tem quinze
anos... o que está fazendo aqui? Respondi: Estou
passeando e pus um cigarro na boca. Isso o irritou:
Jogue isso fora... é um veneno na sua idade!
Joguei o cigarro.
Levaram-nos ao comissariado da Praça Ernst-
Reuter e nos trancaram numa cela. O aprendiz de
fornecedor perdeu a calma. Gritava sem parar:
Deixe-me sair! Deixe-me sair! Tirei o meu casaco,
enrolei-o para fazer um travesseiro, deitei sobre a
armação da cama e tirei uma soneca. A cana não me
apavorava mais. E certamente eles não sabiam ainda
que eu era uma fugitiva do Bonnies Ranch.
Efetivamente, eles me soltaram depois de duas
horas. Voltei à Universidade Técnica. No caminho
minha consciência começou a me atormentar. Assim,
mais uma vez,*recaíra na primeira oportunidade.
Chorei bastante. E agora, que fazer? Não podia
aparecer em casa de minha mãe com a pupila feito
cabeça de agulha de tricô, tentando agradar: Olá,
mamãe, estou aqui. Eu me mandei, prepare-me um
bom rango.
Fui ao centro antidroga da Universidade Técnica,
que estava instalado no antigo restaurante
universitário. Os caras que trabalhavam lá eram
legais. Eles me levantaram o moral o suficiente para
que eu me decidisse a telefonar para minha mãe. Ela
ficou um pouco tranqüila sabendo onde eu estava.
Chegando a casa dormi, pois estava com quarenta
graus de febre. Comecei a delirar. Minha mãe chamou
o médico de plantão, urgente, e ele queria me dar
uma injeção. Fiquei em pânico: não me importava de
me picar nos braços duas ou três vezes por dia, mas
uma picada na bunda me dava um medo terrível.
A febre caiu logo em seguida. Mas eu já não era
mais que um farrapo Bonnies Ranch havia acabado
comigo, física e psicologicamente. Quando consegui
ficar de pé, depois de três dias de cama, corri ao
centro antidrogas. Para chegar lá, fui obrigada a
atravessar a "cena", o café. Atravessei tudo correndo,
sem olhar nem para a direita nem para a esquerda.
Durante uma semana fui todos os dias ao centro.
Finalmente, encontrara alguém que me ouvia. Pela
primeira vez me deixaram falar. Até então sempre me
haviam feito grandes discursos. Minha mãe, meu pai,
os caras da Narconon. Todo mundo. Ali me pediam
para contar o que estava acontecendo. Ainda corri à
faculdade quando já estava com o rosto amarelo como
limão. Naquela manhã encontrei uns amigos no café.
Eles, literalmente, se mandaram gritando:
Desapareça, você não vê que está com icterícia?
Não, eu não queria ver. Era uma loucura: cada
vez que ficava limpa, depois de certo tempo, com
esperança de enfim me desligar, pegava a doença
profissional dos viciados. Quando minha dor de barriga
se tornou insuportável, pedi à minha mãe que me
acompanhasse à Clínica Steglitz. Eu a havia escolhido
porque ali a comida era razoável. Passei duas horas na
sala de espera, torcendo-me de dores na cadeira.
Qualquer enfermeira era capaz de fazer o diagnóstico:
podia-se ler em minha cara toda amarela. Mas
ninguém fazia nada. A sala estava cheia de gente,
incluindo-se também crianças. Se minha icterícia fosse
contagiosa, o que já havia acontecido comigo, poderia
contaminar todo mundo.
Depois de duas horas decidi que já bastava!
Arrastei-me pelo corredor apoiando-me na parede,
pois estava muito fraca e sofria como uma condenada.
Procurei o serviço de doenças contagiosas. Passou um
médico, falei com ele: Dê-me um leito. Não quero
contaminar todas as pessoas. Tenho icterícia, será que
vocês não perceberam? Ele sentia muito, mas não
podia fazer nada... deveria voltar ao serviço de
recepção.
Finalmente, quando fui recebida por uma médica,
preferi contar-lhe imediatamente que era uma viciada.
A resposta veio glacial: Lamento, neste caso não é
da nossa competência. Quando se tratava de
drogados não era da competência de ninguém. Outro
táxi. Minha mãe estava furiosa depois que aqueles
médicos não quiseram me atender. Na manhã do dia
seguinte ela me levou ao Hospital Rudolf Virchow.
Como havia fugido de lá, fiquei em maus lençóis.
Um jovem estudante colheu meu sangue para os
exames. Expliquei-lhe tudo de uma só vez: Nesta
veia não, ela é dura como um pau. É preciso procurar
uma por baixo. Não pique na vertical, pique em linha
oblíqua, senão a agulha não entrará.
O cara estava todo confuso, mas isso não o
impedia de picar uma veia endurecida. Por mais que
movesse o êmbolo, não conseguia tirar uma gota
sequer de sangue. Para finalizar, a agulha escapou
literalmente do meu braço por causa do vácuo que se
formou na seringa. Depois disso, ele me perguntou
onde deveria enfiá-la.
Dormi durante dois dias seguidos. A minha
icterícia não era contagiosa. No quarto dia, minhas
dosagens hepáticas eram mais ou menos regulares.
Minha urina estava muito menos vermelha e meu
rosto voltava, pouco a pouco, à sua brancura.
Como combinado, telefonava todos os dias ao
centro antidroga. Esperava que eles encontrassem
logo uma vaga na terapia. E num domingo, na hora de
visitas, a surpresa: minha mãe ali estava,
acompanhada de Detlef, que acabava de ser solto.
Juras de amor, beijos e carícias. A felicidade.
Tínhamos vontade de estar a sós, fomos dar uma
voltinha no parque do hospital. Foi como se nunca
tivéssemos nos separado. E, de repente, estávamos no
metrô, em direção à Estação Zoo. Tivemos sorte, o
primeiro cara que encontramos era um amigo,
Wilhelm. Ele era um sortudo: vivia com um pederasta,
médico e escritor muito conhecido. Wilhelm não só era
cheio da grana como também estudava em um colégio
particular.
Wilhelm nos deu uma picada, e eu estava de volta
ao hospital para o jantar. Detlef voltou no dia
seguinte. Dessa vez foi difícil encontrar heroína, e
voltei ao hospital só às dez e meia. Não encontrei meu
pai, que viera se despedir antes de partir para a
Tailândia.
Na visita seguinte minha mãe estava de novo com
seu ar desesperado. Só faltava essa! Além disso, o
cara da Droga-Informações veio ver-me e xingou-me
de irresponsável. Eu lhe jurei que tinha, sinceramente,
de desligar-me. Jurei aos outros e a mim mesma.
Detlef disse que a culpa era toda sua. Ele chorou.
Depois foi, por sua vez, ver as pessoas do centro e, no
domingo, me disse que lhe haviam conseguido uma
vaga na terapia. Ele iria começar no dia seguinte.
Felicitei-o: Agora tudo vai caminhar bem. Eu
também terei um lugar, e nunca mais faremos
besteiras.
Fomos passear no parque. Propus: E se
fôssemos correndo à Estação Zoo? Eu gostaria de
comprar o terceiro volume de Retorno do planeta
Caveira (um romance de terror que estava lendo).
Minha mãe não o encontrou.
Detlef: Parabéns, minha cara, você tem
necessidade de ir até a Estação Zoo para comprar um
romance de terror? Seria melhor dizer logo de cara
que você tem vontade de se picar.
Exasperava-me ver Detlef tomar ares superiores,
representar o virtuoso. Além disso, não tinha nenhuma
segunda intenção. . . só tinha vontade de ler o fim de
Retorno do planeta Caveira. Respondi: Você está
louco, vendo coisas. Aliás, você não é obrigado a me
acompanhar.
É claro que ele me acompanhou. No metrô, fiz
minha brincadeira habitual: provocar as velhas
balofas. Isso sempre irritava Detlef, que se refugiava
na outra extremidade do vagão. E, como sempre, eu
gritava: Ei, meu velho, não finja que não me
conhece! Você não é melhor que eu, e todo mundo
percebe! Então, recomecei a perder sangue pelo
nariz. Isso já estava acontecendo há algumas
semanas, sempre que entrava no metrô. Era horrível,
e eu passava o tempo todo limpando o sangue do
rosto.
Felizmente encontrei imediatamente o tal
romance. Bem-humorada, sugeri a Detlef fazermos um
passeio a pé: Afinal de contas, é o seu último dia de
liberdade. Nossos passos nos conduziram
automaticamente à "cena". Stella estava lá, e também
as duas Tinas. Stella ficou louca de alegria de me
rever, mas as duas Tinas estavam na pior, em pleno
bode. Elas voltaram da Kurfürstenstrasse de mãos
abanando. Tinham esquecido que era domingo. E, no
domingo, os clientes estavam com suas mulheres e
filhos.
Eu me senti muito feliz por ter saído daquela
merda toda. Não tinha mais medo da crise. Não me
prostituía há muitas semanas. Um sentimento de
superioridade e uma alegria exuberante me invadiram.
O legal era que, pela primeira vez, passara pela "cena"
sem ter vontade de me picar.
Estávamos num ponto de ônibus perto do metrô
Kurfürstenstrasse. Ao nosso lado, dois estrangeiros
sujos. Eles me faziam sinal o tempo todo. Apesar da
minha icterícia, era a mais saudável de nós quatro,
estando relativamente limpa há um bom tempo. Além
do mais, não estava com uniforme de viciada: tomara
emprestadas algumas roupas da minha irmã, estilo
"menina-moça", justamente para me distinguir das
drogadas. No hospital, cheguei até a cortar os cabelos
bem curto.
Os estrangeiros sujos não paravam de piscar para
mim. Perguntei às duas Tinas: Vocês querem que os
pegue para vocês? Mesmo que eles só dêem quarenta
marcos, vocês poderão dividir a dose. De qualquer
maneira, no estado em que estavam elas, não ligavam
para nada. Fui muito descontraída em direção aos dois
estrangeiros sujos: Vocês querem as duas
meninas? Eu pedir para vocês cinqüenta marcos.
Capito? E apontei as duas Tinas.
Eles, com sorrisos idiotas: Não, você. Você
meter, você hotel?
Muito tranqüila, sem nenhuma agressividade,
respondi:
Não, nada disso. Mas aquelas meninas legal.
Catorze anos, cinqüenta marcos apenas.
Realmente, a mais jovem das Tinas tinha só catorze
anos.
Os estrangeiros sujos permaneciam impassíveis.
No fundo eu os compreendia. As Tinas, em crise, não
eram nada apetitosas. Voltei para o lado delas para
lhes dizer que nada feito. Depois o Diabo me assoprou
qualquer coisa ao ouvido. Chamei Stella de lado: No
estado em que estão, as Tinas não encontrarão
cliente. Vamos nós duas. Vamos excitá-los, e as Tinas
farão o resto. De qualquer forma, elas trepam com os
clientes. Vamos pedir cem marcos e comprar meio
grama.
Stella não se fez de rogada, mas tanto para ela
como para mim os estrangeiros sujos eram o que
havia de pior. Ao menos nenhuma de nós duas
confessaria à outra ter tido algo com um estrangeiro
sujo.
Voltei para falar com os dois turcos. Minha
proposta foi aceita na hora. Detlef, com nojo, disse:
Tudo bem, você recomeça a se prostituir. Eu:
Não fale bobagem, eu não farei nada. Você bem vê
que somos quatro meninas.
Na verdade, disse-lhe que o faria unicamente
por pena das Tinas. Talvez houvesse um pouco disso,
mas inconscientemente procurava, sem dúvida, um
meio tortuoso de voltar à droga.
Expliquei às outras que precisaríamos ir ao Hotel
Norma, onde eles tinham grandes quartos. Em outro
lugar nunca nos deixariam subir em seis, para um
quarto. Bem, a caminho. De repente, um outro
estrangeiro sujo se juntou a nós. Os outros dois
disseram: Ele amigo. Também hotel.
Na hora não falamos nada: contentamo-nos em
receber nossos cem marcos. Stella partiu com um
deles para comprar heroína. Ela conhecia um
fornecedor que oferecia meio grama bem pesado. O
que havia de melhor no pedaço. Esperamos a volta de
Stella para continuarmos nosso caminho. Os oito: as
quatro meninas e Detlef na frente, de braços dados,
ocupando a calçada toda, e atrás os três estrangeiros
sujos.
Mas o clima estava tenso. As duas Tinas queriam
a heroína imediatamente. Stella recusou com medo de
que as meninas nos deixassem na mão. Por outro
lado, era preciso encontrar um meio de se desfazer do
terceiro estrangeiro sujo, pois ele não estava incluído
em nosso acordo.
Stella virou para trás, apontou com o dedo e disse
num tom categórico: Se este estrangeiro sujo vier,
nós nada fazer. Ela teve a audácia de tratar o turco
de estrangeiro sujo!
Mas os três caras de mãos dadas não se deixaram
impressionar. Stella propôs simplesmente se desfazer
deles. Minha primeira reação foi: Boa idéia! Tinha
saltos baixos e pela primeira vez, depois de uns três
anos, poderia correr. Mas, pensando bem, o negócio
com eles não me parecia tão mal: Eles acabarão
nos encontrando, e nesse dia nem quero saber o que
vai acontecer... Esqueci completamente que, em
princípio, não freqüentava mais a "cena" e não me
virava mais.
Stella não estava contente. Ela ficou para trás e
recomeçou a discussão com os estrangeiros sujos.
Chegamos à passagem subterrânea do Europa Center.
Não ouvindo mais nada atrás de nós, virei-me. Nada
de Stella. . . Ela havia desaparecido da face da Terra
com toda a heroína. Os estrangeiros sujos, que
também perceberam a sua ausência, pareciam bem
agitados.
Isso era bem ao estilo de Stella. Fiquei furiosa.
Achava que ela só podia estar no Europa Center. Corri,
com Detlef atrás de mim. As duas Tinas dormiram no
ponto e os estrangeiros sujos caíram em cima delas.
Dei a volta ao centro comercial correndo como uma
louca. Detlef foi pela esquerda e eu, pela direita.
Nenhum sinal de Stella e, além disso, tinha a
consciência pesada por causa das duas Tinas. Vi os
turcos arrastarem as duas para um hotel. Esperamos
vê-las sair depois do seu trabalho sujo. Isso levou
horas. Agora elas bem mereciam sua picada! Sabia
onde encontrar Stella. As duas meninas e eu fomos à
Estação Kurfürstenstrasse. Estava quase deserto
porque àquela hora a "cena" se transferia para a
Treibhaus, acima da Kurfürstenstrasse, mas, como
procurávamos Stella, descemos diretamente aos
banheiros da estação do metrô. Mal entrei, ouvi sua
voz. Em plena ação, gritando com alguém. Havia um
monte de compartimentos, mas localizei
imediatamente o de Stella. Bati com os dois punhos na
porta e gritei: Stella, abra imediatamente, senão
vou te deixar em pedaços. . .
A porta se abriu. Stella apareceu. A pequena Tina
lhe deu uma bofetada magistral. Stella,
completamente drogada, falou: Peguem... eu lhes
deixo toda a heroína... eu não quero. E se mandou.
Evidentemente, era uma grossa mentira. Ela
havia se picado com mais da metade do meio grama,
só para não dividir. As duas Tinas e eu misturamos o
resto do saquinho e mais a dose que acabávamos de
comprar e a dividimos em três partes iguais.
Para mim, que não tinha tomado nada há tanto
tempo, foi mais que suficiente. Minhas pernas mal
agüentaram. Fomos à Treibhaus. Stella estava lá,
servindo de intermediária a um fornecedor. Caímos em
cima dela: Puxa vida, você ainda nos deve um
quarto. Ela não criou caso. Ainda lhe restava um
pouco de consciência.
Eu lhe disse: Você é uma safada. Não falo mais
com você. Depois fui me picar com a minha parte.
Peguei uma Coca. Sentei a um canto, sozinha. Eram
os meus primeiros minutos de calma desde o início da
tarde. Por um momento aguardei ansiosamente a
chegada de Detlef. E então me pus a pensar.
No começo ainda dava. Fiz um balanço:
''Primeiro, seu melhor amigo a deixa; em seguida, sua
melhor amiga lhe faz uma sacanagem. Escute o que
eu digo: amizade entre viciados não existe. Você está
absolutamente só. Para sempre. Todo o resto é
besteira. E este pesadelo esta tarde, tudo isso por
uma picada!" Mas, no final das contas, não era nada
de extraordinário, pois o pesadelo era coisa de todos
os dias.
Tive um momento de lucidez. Isso às vezes
acontecia, mas sempre quando estava drogada. Em
jejum, fazia tudo, era totalmente irresponsável. Nesse
dia ficou provado.
Mergulhei nas minhas reflexões. Muito calma, pois
tinha heroína suficiente no meu sangue. Não voltaria
ao hospital. Aliás, já passava das onze horas.
De qualquer maneira, eles teriam me posto fora,
e nenhum hospital me aceitaria. O médico advertira
minha mãe: meu fígado estava à beira de uma cirrose.
Se eu continuasse assim, agüentaria, no máximo, dois
anos. A Droga-Informações estava perdida para mim,
e nem valia a pena procurá-los, pois eles tinham
ligação com o hospital. Aliás, se eles não me queriam
mais, nada mais justo: havia muitos drogados em
Berlim que gostariam de fazer terapia, havia poucos
lugares.
O normal era reservarem-nos, aos que ainda
tinham um pouco de coragem, uma chance de se
desligar. Eu, evidentemente, não fazia parte desse tipo
de gente. Provavelmente, havia começado cedo
demais para ter chance de me safar.
Tinha as idéias bem claras. Fazia meu balanço
bebendo minha Coca. Sem esquecer as questões
práticas. Onde passar a noite? Na casa de minha mãe?
Ela certamente me bateria a porta na cara ou, então, a
primeira coisa que faria, na manhã seguinte, seria
procurar a polícia e me mandar para um centro de
reeducação. Eu faria isso em seu lugar. Meu pai estava
na Tailândia. Stella? Nem falar! Detlef? Não sabia onde
ele poderia estar naquela noite. Se ele realmente
havia decidido se desligar da droga, provavelmente
estaria na casa do pai. De qualquer forma, no dia
seguinte de manhã ele iria embora. Não tinha sequer
uma cama. Nem por essa noite nem pelas seguintes.
Na última vez que refleti lucidamente sobre minha
situação, cheguei à conclusão de que, para mim, só
existiam duas saídas: desligar-me totalmente ou
tomar o hot shot, a dose mortal. Infelizmente, a
primeira solução estava excluída. Cinco ou seis
tratamentos malsucedidos eram o suficiente. No final
das contas, eu não era melhor nem pior que os outros
drogados. Então, por que eu deveria estar entre os
poucos que se salvavam?
Fui à Kurfürstenstrasse. Nunca mais tinha
trabalhado à noite. À noite os viciados deixam o lugar
para as profissionais. Mas não tinha medo. Fiz,
rapidamente, dois clientes e voltei à Treibhaus. Tinha
cem marcos no bolso e comprei meio grama.
Não queria ir ao banheiro da Treibhaus nem da
Kurfürstendamm, onde havia muita gente. Então. . .
onde? Fui buscar uma Coca e refleti. Decidi-me então
pelos banheiros da Bundesplatz. À noite eles estavam
desertos.
Fui à Bundesplatz a pé. Sentia-me muito calma.
Os banheiros públicos, desertos à noite, tinham algo
de estranho, angustiante, mas eu tinha um curioso
sentimento de segurança. O lugar era limpo, bem
iluminado. Eram os melhores banheiros de Berlim e
agora, só para mim. Os compartimentos eram imensos
(uma vez entramos seis), com portas até o chão. Não
havia buracos nas divisões. Muitos drogados já haviam
escolhido aqueles banheiros da Bundesplatz para se
suicidar: eles eram tão bons!
Nada de velhotas, nada de tarados olhando pelos
buracos, nada de policiais. Nada me apressava. Fui
com calma. Lavei a cara e passei uma escova no
cabelo. Depois limpei cuidadosamente meu estojo com
a seringa que Tina me emprestara. Meio grama seria o
suficiente, estava segura. Depois dos meus últimos
tratamentos, um quarto de grama me punha a
nocaute. Mas no momento já tinha isso ou talvez mais
no sangue, além do que, estava debilitada pela
icterícia. Preferiria um grama. Atze fez isso com um
grama, mas me sentia incapaz de transar mais dois
clientes.
Escolhi tranqüilamente o banheiro mais limpo.
Estava perfeitamente calma. Verdade. Não tinha
medo. Nunca teria imaginado que um suicídio fosse
tão pouco patético. Não pensava na minha vida
passada, nem em Detlef. Só pensava na picada.
Como de hábito, espalhei minhas coisas em torno
da privada. Pus a heroína na colher, que também fora
emprestada por Tina. Por um momento pensei que
estava fazendo uma sujeira com Tina, Tina, que
esperava sua seringa e sua colher. Então, percebi que
havia esquecido o limão. Mas a heroína era de boa
qualidade, ela se dissolvia mesmo sem ele.
Procurei uma veia no meu braço esquerdo. No
fundo, era uma picada como as outras. A única
diferença: seria a última. Para sempre. Atingi a veia
na segunda tentativa. O sangue subiu pela seringa.
Piquei o meio grama. Não tive tempo de acioná-la pela
segunda vez... senti meu coração estourar, minha
caixa craniana se destacava da minha cabeça.
Quando acordei já era dia. Lá fora, os carros
faziam um barulho infernal. Estava deitada ao lado da
privada. Retirei a seringa do braço. Tentei me
levantar. Senti, então, que minha perna direita estava
paralisada. Podia mexê-la um pouco, mas sentia dores
atrozes nas articulações, principalmente na da coxa.
Andei alguns metros de quatro e depois consegui me
levantar e caminhei apoiando-me na parede, saltando
numa perna.
Na porta do banheiro, dois rapazes, com uns
quinze anos, jeans muito justos, blusão de cetim, duas
bichinhas, olhavam aquele fantasma saltando sobre
um pé. Eles mal tiveram tempo de me agarrar no ar
antes que eu me arrebentasse no chão. Sacaram na
hora o que se passava comigo e um deles disse:
Bem, eis uma confusão. Não os conhecia, mas eles
já me haviam visto na Estação Zoo. Colocaram-me
num banco. Fazia um frio terrível naquela manhã de
outubro. Um dos rapazes me deu um Marlboro.
Pensei: "É gozado... por que essas bichas fumam
sempre Camel ou Marlboro?" No fundo, estava muito
contente de não estar morta.
Contei o que se passara. Stella fizera uma sujeira
comigo, e eu me picara com meio grama. Aqueles dois
jovens foram muito bonzinhos: se eu quisesse ir a
algum lugar, eles me levariam. A coisa me irritou, não
tinha vontade de refletir. Pedi-lhes que me deixassem
no banco, mas eu tremia de frio e era incapaz de
andar. Eles propuseram levar-me a um médico.
Não queria saber de médico. Eles disseram que
conheciam um, um cara muito legal, um pederasta.
Um médico bicha me deu segurança; na situação em
que me encontrava, eu me sentiria mais segura. Eles
foram chamar um táxi e me levaram à casa do amigo
deles. O cara era legal mesmo. Ele me instalou em sua
própria cama e então me examinou. Tentou fazer-me
falar de droga e tudo o mais, mas eu não tinha
vontade de falar com ninguém. Pedi-lhe um sonífero.
Ele me deu um, juntamente com outros remédios.
Comecei a ter febre e a sangrar pelo nariz. Dormi
durante dois dias quase sem parar. No terceiro dia,
quando minha cabeça começou a funcionar mais ou
menos bem, não agüentei mais. Não queria pensar.
Esforcei-me para não refletir. Ruminava duas idéias
sem parar: "O bom Deus não quis que você batesse as
botas desta vez; da próxima, você toma um grama
completo".
Tive vontade de sair, de ir à "cena", de me picar,
de voar e, principalmente, não pensar. Até a hora da
dose mortal bem-sucedida. Ainda andava com
dificuldade. O médico pederasta, atencioso, me deu
uma bengala. Fugi com ela, mas joguei-a fora no meio
do caminho, pois não queria fazer minha reaparição
apoiada em bengala. Cerrando os dentes, podia
dispensá-la.
Cambaleando, cheguei à corrida pelo dinheiro na
Estação Zoo. Fiz muitos clientes. Havia entre eles até
mesmo um estrangeiro sujo. O contrato que Babsi,
Stella e eu fizéramos era gozado. Combináramos
nunca fazer nada com um estrangeiro sujo. De
qualquer forma, agora nada mais me importava. Dava
tudo no mesmo.
Talvez ainda tivesse a esperança de que minha
mãe viesse me buscar. Se ela resolvesse me procurar,
iria à Estação Zoo. Era por isso que eu não ia à
Kurfürstenstrasse. Mas eu sentia que ninguém mais
estava à minha procura. Bons eram os tempos em que
minha mãe esperava pacientemente pela minha volta.
Comprei uma dose, piquei-me e voltei ao
trabalho. Tinha necessidade de dinheiro para o caso de
não encontrar cliente em cuja casa eu pudesse dormir.
Deveria ir então ao hotel.
De repente, encontrei Rolf, antigo cliente de
Detlef. Detlef tinha voltado nos últimos tempos a
dormir em casa dele. Mas Rolf não era mais um
cliente, pois ele se entregara à heroína e agora estava
do outro lado da barreira. Ele tinha dificuldade para
encontrar clientes, pois já tinha vinte e seis anos! Eu
lhe perguntei se tinha notícias de Detlef. Ele se
derreteu em lágrimas. Sim, Detlef estava em terapia.
Sem ele a vida era uma merda, aliás, a vida não tinha
sentido, ele gostaria de se desligar, ele amava Detlef e
queria suicidar-se. Em resumo, ele me saiu com toda a
ladainha dos viciados. Todas essas besteiras sobre
Detlef irritaram-me. Eu não compreendia por que Rolf,
esta bicha miserável, pensava ter direitos sobre ele.
Detlef deveria deixar sua terapia e voltar. Nada mais
que isso. Ele chegou até a lhe dar uma chave do seu
apartamento. Ouvindo isso, estourei: Você é um
filho da puta, um nojento! Você deixa a chave com
Detlef e assim ele saberá que conta com um ponto de
retorno quando a terapia estiver lhe enchendo o saco.
Se você o amasse verdadeiramente, faria tudo para
que ele se desligasse da droga. Mas você não passa de
um pederasta sujo.
Rolf estava de bode, e não tive nenhuma
dificuldade em deixá-lo furioso. Mas, de repente, me
ocorreu uma idéia: e se eu fosse dormir em sua casa?
Eu me acalmei e lhe propus, em troca de sua
hospitalidade, fazer um cliente e comprar uma dose
para ele. Rolf ficou todo feliz com a idéia de eu dormir
em sua casa. Exceto eu e Detlef, ele não conhecia
ninguém.
Dormimos juntos na cama grande. Na ausência de
Detlef, eu me entendia melhor com ele. Não gostava
dele, mas aquele infeliz era digno de pena.
Eis os dois grandes amores de Detlef na mesma
cama de casal. E todas as noites era o mesmo teatro:
Rolf me repetia que amava Detlef e dava uma boa
chorada antes de dormir. Meus nervos ficavam em
polvorosa, mas calava a boca, pois tinha necessidade
daquele lugar na cama de Rolf. Eu me revoltei quando
ele me disse que, depois da sua desintoxicação, Detlef
iria viver com ele num belo apartamento. Aliás, dava
tudo na mesma. Além do mais, pensava que, de certa
forma, Rolf nos pesava na consciência, minha e de
Detlef: se ele não nos tivesse encontrado, teria continuado
um simples operário pederasta e solitário, que
tomava de vez em quando um fogo para esquecer
suas misérias, e nada mais.
E assim, durante uma semana, a corrida pela
grana e uma picada, a corrida pela grana e uma
picada... e à noite, as lamentações de Rolf. Uma
manhã, acordei com alguém abrindo a porta do
apartamento e se agitando no corredor. Sem dúvida
era Rolf. Gritei: Não faça tanto barulho, tenho sono.
Era Detlef.
Nos beijamos, nos abraçamos. Alegria dos
reencontros. De repente, percebi: Você fugiu!
Ele me explicou. Como a todos os novatos, o
encarregaram, por três semanas, de tocar o
despertador. Exigir a pontualidade de um viciado é,
mais ou menos, pedir-lhe o impossível. Pedir que se
levante todas as manhãs na mesma hora e passe
imediatamente à ação, ou seja, acordar os outros, é
impor-lhe uma terrível prova. Essa era praticamente
uma forma de seleção: reservavam as raras vagas de
que dispunham para os que ainda tinham força de
vontade. Detlef não agüentou a barra, não acordou
três vezes, e eles o mandaram embora.
Detlef me contou que a terapia era legal. Bem, foi
duro, mas da próxima vez ele conseguiria. Enquanto
esperava, ele tentaria permanecer limpo aliás,
começaria a procurar, logo, uma outra vaga para
terapia. Contou também que havia encontrado lá
muitos dos nossos velhos conhecidos. Frank, por
exemplo, que tentava desligar-se depois da morte de
seu amigo Ingo. Aos catorze anos, como Babsi.
Perguntei a Detlef o que ele iria fazer. "Antes de
mais nada, uma picada." Eu lhe pedi que me trouxesse
um excitante. Ele estava de volta duas horas mais
tarde em companhia de um certo Piko, um antigo
cliente. Piko tirou um saco plástico de seu bolso e o
colocou na mesa. Não acreditei no que vi: ele estava
cheio de heroína dez gramas. Nunca tinha visto
aquela quantidade. Depois de ter passado o susto,
disse a Detlef: Você ficou louco de trazer dez
gramas para casa?
A partir de hoje sou fornecedor.
Você pensou nos tiras? Se eles te pegam, você
volta para a prisão, e por muitos anos.
Detlef se irritou: Não tenho tempo de pensar
nos tiras. E pare de me podar.
Ele começou a dividir imediatamente quadrados
de papel de alumínio. Eles me pareciam muito
pequenos e lhe disse: Atenção, meu velho. O que
conta é a aparência.
É preciso fazer pacotes maiores, com a mesma
quantidade de mercadoria; pense no sabão em pó
enormes pacotes com apenas três quartos de
conteúdo.
Você começa a me deixar para trás. Faço
grandes doses. As pessoas perceberão imediatamente.
Logo saberão que comigo são bem servidas.
Então me ocorreu a idéia de perguntar a quem
pertencia toda aquela heroína. A Piko, naturalmente.
Que safado! Antigamente ele roubava os escritórios.
Nem bem saíra da cana ele estava em liberdade
condicional já queria ficar numa boa às custas do
pobre e inexperiente Detlef. Ele comprara a
mercadoria, ao preço de fornecedor, de cafetões da
Potsdamerstrasse, que ele havia conhecido na prisão.
Mas ele mesmo não queria vender. Aliás, não passava
de um bêbado, que faria Detlef trabalhar para ele.
Quando Detlef terminou seus pacotinhos, nós os
contamos. Havia os de um grama, de meio e de um
quarto. Eu nunca fui forte em matemática, mas vi
imediatamente que o total dava só oito gramas, pois
ele havia feito doses muito grandes. Se não
tivéssemos verificado, teríamos que pagar os dois
gramas de nosso próprio bolso. Bem, recomeçamos
tudo. Como sempre, sobrava um pouco de pó colado
no papel e eu o aproveitava para meu uso pessoal.
Detlef decidiu fazer pacotinhos maiores e esticou
sua mercadoria com uma garrafa de cerveja; isso dava
a impressão de que havia mais. Dessa vez, ele só fez
pacotinhos de um quarto; chegamos, finalmente, a um
total de vinte e cinco doses.
Consumimos duas imediatamente. Era preciso
testar a mercadoria. Era heroína de boa qualidade. À
noite levamos nosso estoque para a Treibhaus.
Enterramos a maior parte atrás do estabelecimento,
ao lado do lixo. Nunca ficávamos com mais de três
saquinhos conosco. Assim, em caso de batida, não
seríamos imediatamente fichados como fornecedores.
Tudo começou bem. Desde a primeira noite liquidamos
cinco gramas. Souberam imediatamente que tínhamos
heroína da boa e bem-servida. Apenas uma pessoa
falava mal de nossa mercadoria: Stella, evidentemente
o que não a impediu de nos propor seus serviços de
intermediária. Eu, pobre imbecil, aceitei. Ela teria um
quarto, por cinco vendidos. Conclusão: não nos sobrou
nada. Tinha sido combinado com Piko que, por dez
gramas vendidos, teríamos um e meio. Uma vez pagos
os intermediários, nossa atividade de fornecedores só
nos permitia satisfazer nossas necessidades cotidianas
de heroína.
Piko vinha fazer as contas todas as manhãs. À
noite, nós tínhamos geralmente dois mil marcos em
caixa, e isso representava mil marcos de lucro para
Piko. E para nós, um grama e meio de heroína. Piko
não corria praticamente nenhum risco, a não ser que
nós o denunciássemos.
Ele tomou mais precauções. Imediatamente nos
explicou que, se fôssemos presos e o entregássemos à
polícia, seria bom encomendarmos o caixão, pois seus
amigos da Potsdamerstrasse se encarregariam do
"serviço". Não tínhamos como escapar, pois, mesmo
em cana, tinha seus capangas por todo canto. Ele nos
ameaçou, também, de fazê-los intervir no caso de
saber que tentamos falsificar as contas. Nós
acreditamos no que disse. Ainda mais que eu tinha um
medo louco dos proxenetas, principalmente depois que
eles torturaram Babsi.
Detlef não queria reconhecer que Piko nos
explorava. O que você quer? ele me disse.
Primeiro, e é o essencial, você não faz trottoir. Não
quero mais que você se prostitua. Eu também não
quero mais fazê-lo. Então, temos que passar por isso.
A maior parte dos pequenos fornecedores estava
na mesma situação que nós. Nunca teríamos o
dinheiro suficiente para comprar os dez gramas
diretamente do intermediário. Aliás, não conhecíamos
a hierarquia. Como poderíamos entrar em contato com
os proxenetas da Potsdamerstrasse? Os pequenos
fornecedores de rua, eles próprios viciados, tinham
geralmente necessidade de um vendedor que lhes
pagasse em mercadoria. Mas eram aqueles pobres
drogados que iam em cana. Os tipos como Piko
estavam praticamente fora do alcance dos tiras, e não
tinham dificuldade para substituir um fornecedor que
fosse em cana. Por duas picadas ao dia, quase todos
os viciados estavam dispostos a fazer esse trabalho.
Depois de alguns dias nós não sentíamos mais
segurança nas proximidades da Treibhaus. Estava
cheio de policiais à paisana. Aliás, era muita tensão
para mim. Organizamo-nos de outra maneira: eu
servia de intermediária na Treibhaus e mandava os
clientes para Detlef, que ficava escondido um pouco
mais adiante.
Mais ou menos uma semana mais tarde, num dia
em que Detlef imprudentemente passeava ao lado da
Treibhaus com os bolsos cheios de heroína, um carro
parou ao seu lado. O motorista perguntou-lhe a
direção da Estação Zoo. Detlef entrou em pânico e
saiu correndo, jogando seu estoque no primeiro
arbusto que encontrou.
Detlef me explicou que aquele cara era,
seguramente, um tira. Pois ninguém ignorava onde
era a Estação Zoo.
A coisa ia mal. Víamos um tira em cada
automobilista, em cada transeunte que andava no
Kudamm. Nem sequer ousávamos tentar recuperar
nossa heroína: e se os tiras nos esperassem?
Estávamos na merda. No dia seguinte não
poderíamos acertar as contas com Piko. Dizer-lhe a
verdade? Ele não acreditaria em nós. Tive uma idéia:
contaríamos que fôramos roubados por estrangeiros
sujos... eles pegaram tudo, droga e dinheiro. De
qualquer forma, a coisa vai esquentar, então é melhor
gastar o que temos. Além disso, é nojento, pois este
filho da puta ganha mil marcos por dia nas nossas
costas, e nós nunca temos nada. Eu preciso comprar
roupas, não tenho uma roupa de inverno. Não posso
passar todo o inverno com o que vestia quando fugi do
hospital.
Detlef acabou compreendendo que não faria
grande diferença se déssemos a Piko duzentos marcos
ou nada.
Na manhã do dia seguinte, bem cedinho, fomos à
feira de coisas usadas. Quando via qualquer coisa que
me agradava, Detlef experimentava primeiro e eu, em
seguida. Só queríamos roupas que servissem em nós
dois. Eu me decidi por um velho casaco de pele de
coelho, preto. Ele caía bem em Detlef. Ele ficava muito
bonito com o casaco. Depois compramos perfume,
uma caixa de música e outras miudezas. Mas não
gastamos todo o nosso dinheiro, não éramos capazes
de comprar uma coisa só pelo prazer de comprar.
Escondemos o que sobrou.
Mal chegamos à casa de Rolf, Piko chegou. Detlef
disse que ainda não havia tomado a sua picada, e que
precisava fazê-lo antes de fechar as contas. Claro que
não era verdade, pois já tínhamos nos picado, como
sempre, logo depois de acordar. Mas Detlef tinha
medo do que iria acontecer com Piko...
Piko disse: Está bem e mergulhou em um de
seus romances de terror. Detlef se picou com mais um
quarto e dormiu antes de ter retirado a agulha do
braço.
Pensei: "Bem, não é nada anormal que ele tenha
vontade de dormir depois de duas picadas como essas,
mas é preciso retirar a seringa do braço, senão o
sangue vai se coagular na agulha e será difícil retirála.
Além disso, não temos outra". Limpei a picada do
braço de Detlef com álcool e um pedaço de algodão.
Eu o achei estranho. Ergui o seu braço e ele caiu todo
mole. Sacudi Detlef para acordá-lo e ele escorregou da
poltrona. Sua cara estava toda cinzenta. Seus lábios
estavam azuis. Abri sua camisa para ouvir as batidas
do seu coração. Nada.
Corri para a casa da vizinha, uma aposentada, e
lhe pedi licença para usar o telefone. Era um caso de
urgência. Liguei para o pronto-socorro da polícia.
Meu amigo não respira mais. É uma overdose. Deilhes
o endereço. Aí apareceu Piko gritando: Pare,
ele voltou a si! Falei ao tira: Não, obrigada, não
precisa se incomodar. Alarme falso. E desliguei.
Detlef estava deitado, reabriu os olhos. Piko me
perguntou se eu havia falado de droga aos tiras e se
eu lhes havia dado o endereço. Não, diretamente
não. Acho que eles não pegaram na hora.
Piko me chamou de imbecil histérica. Deu uma
bofetada em Detlef, mandando que se levantasse
imediatamente. Eu lhe disse para deixar Detlef em
paz. Ele gritou: Cale a boca, imbecil! Vá buscar
água. Voltando da cozinha, encontrei Detlef em pé e
Piko lhe passando um sermão. Toda feliz de ver Detlef
em pé, fui beijá-lo, mas ele me empurrou. Piko jogou
água na cara dele e disse: Venha, meu caro, vamos
nos mandar.
Detlef ainda tinha a cara toda cinzenta e mal se
mantinha de pé. Supliquei-lhe que voltasse a se
deitar. Piko começou a gritar: Cale a boca! e
Detlef disse: Não tenho tempo. Eles partiram,
com Piko sustentando Detlef.
Fiquei completamente perdida. Tremia todinha.
Achei, por um momento, que Detlef estava morto.
Joguei-me na cama e tentei me concentrar num
romance de terror. Tocou a campainha. Olhei pelo olho
mágico. Os tiras.
Perdi completamente o controle. Em vez de me
mandar pela janela, abri a porta. Com muita
dificuldade inventei uma explicação: o apartamento
pertencia a um pederasta que estava viajando e o
emprestara a mim. Hoje de manhã dois jovens
apareceram no meu quarto, tomaram uma picada no
braço e um deles se apagou, então chamei a polícia.
Os tiras perguntaram-me o nome dos caras; se
eu poderia descrevê-los, etc. Inventei um monte de
coisas. Eles verificaram minha identidade. O resultado
não demorou: Bem, você vem conosco.
Comunicaram-nos seu desaparecimento.
Eles foram bonzinhos comigo. Deixaram-me
colocar dois livros no meu saco plástico e escrever
uma carta para Detlef: "Caro Detlef, como você deve
ter percebido, me embarcaram. Outras notícias
seguem na primeira oportunidade. Eu te beijo
ternamente. Tua, Christiane". Colei a carta com um
pedaço de durex na porta do apartamento.
Fui levada primeiro à delegacia da
Friedrichstrasse e depois à prisão onde estavam
recolhidos os presos de passagem, onde me meteram
numa cela que me lembrava uma cena de banguebangue:
uma parede toda de grades e, quando a porta
se abria ou fechava, fazia o mesmo barulho que na
prisão do xerife de Dodge City. Eu me grudei na grade,
subindo nas barras. Era muito deprimente. Então
deitei no jirau e, como estava ainda drogada, dormi.
Trouxeram um recipiente para que eu mijasse dentro,
fariam uma análise da urina. Veio, também, um balde,
para aparar o resto da urina. Qualquer pessoa que
passasse por ali poderia me ver mijando. Não me
deram nada para comer nem para beber durante todo
o dia.
No fim da tarde, minha mãe apareceu. Ela passou
diante da grade, dando-me uma olhadinha. Tinha que
acertar alguma coisa com os tiras. Depois abriram a
porta e minha mãe me disse boa-noite e me segurou
pelo braço com muita força. Um carro nos esperava lá
fora. Klaus, o companheiro de minha mãe, estava ao
volante. Minha mãe me enfiou com força no banco
traseiro e sentou-se a meu lado. Ninguém falou nada.
Klaus parecia estar perdido. . . rodamos por Berlim.
Pensei: eles estão é completamente gagás. Estão tão
perdidos que nem acham a estrada para Kreuzberg.
Paramos para pôr gasolina. Disse à minha mãe
que estava com fome e que queria chocolate. Ela me
comprou três. No fim do segundo eu me sentia mal.
Klaus foi obrigado a estacionar, pois eu precisava sair
para vomitar. Estávamos na auto-estrada. Aonde eles
me levavam? Talvez a uma casa de correção. Eu
fugirei. Então vi a placa: "Aeroporto Tegel". Esta era a
maior! Eles queriam me expulsar de Berlim.
Descemos do carro. Minha mãe, sem perder
nenhum segundo sequer, me segurou tão firmemente
quanto antes. Então pronunciei a segunda frase da
noite: Você poderia me soltar, por favor? Falei
lentamente, ressaltando cada palavra. Ela me deixou,
mas ficou vigilante. Klaus parou.
Ele também estava atento. Eu estava indiferente.
Que fizessem o que quisessem, pois de qualquer
maneira eles não tirariam nada de mim. Quando
minha mãe me empurrou para a porta marcada
"Hamburgo", dei uma olhadinha ao redor, para ver se
havia uma maneira de me mandar. Mas estava muito
arrasada para tentar.
Hamburgo! Que azar! Tinha uma avó, uma tia,
um tio e um primo que moravam num vilarejo a
cinqüenta quilômetros de Hamburgo. Nada mais
burguês. A casa deles era mantida tão
impecavelmente que dava vontade de vomitar. Nem
um só grão de pó. Certa vez andara descalça durante
horas, pela casa, e à noite não tive nem necessidade
de lavar os pés...
No avião fingi estar absorvida em um romance de
terror. Aliás, li algumas páginas. Minha mãe seguia
muda como um peixe. Ela nem mesmo disse aonde
iríamos.
Quando a aeromoça falou seu blablablá habitual,
tipo viagem agradável.. . prazer em revê-los em
breve, etc., percebi que minha mãe chorava. E então
ela começou a falar como uma metralhadora. Ela
sempre só quisera o meu bem. Ela sonhara, nestes
últimos dias, que tinham me encontrado morta no
banheiro, com as pernas tortas, com sangue por todo
canto. Assassinada por um fornecedor. E a polícia lhe
pedia para ir identificar-me.
Eu sempre pensei que minha mãe tinha uma forte
intuição. Se uma noite ela me dizia: Não saia, meu
bem, tenho uma estranha impressão , sempre me
acontecia algo: prisão numa batida, roubo, em
resumo, uma história suja. Ouvindo-a contar este
sonho, pensei em Piko, em suas ameaças e em seus
amigos proxenetas. Talvez minha mãe tivesse acabado
de salvar minha vida. Não pensei em nada além disso.
Eu me proibi. Desde que fora mal sucedida na minha
"saída", não queria mais refletir.
Minha tia nos esperava no aeroporto. Almoçamos
com minha mãe, que partia no avião seguinte. Pedi
um Florida-Boy: eles não o tinham naquele
restaurante superluxuoso. Hamburgo era
verdadeiramente um buraco perdido, onde não havia
nem mesmo Florida-Boy. Não bebi nada e, no entanto,
morria de sede.
Minha mãe e minha tia fizeram um discurso. As
duas, em meia hora, traçaram o programa dos meus
próximos anos: iria à escola, faria novos amigos,
aprenderia uma profissão interessante e retornaria a
Berlim com uma qualifica- ção profissional. Como era
simples. Minha mãe chorou ao se despedir. Eu me
recusei a sentir qualquer coisa. Estávamos em 13 de
novembro de 1977.
A mãe de Christiane
A jornada foi dura. Sozinha, sem ter com quem
dividir minha angústia, estava muito tensa. Finalmente
pude chorar durante o vôo de volta. Estava triste e
aliviada ao mesmo tempo: triste pela separação de
Christiane, aliviada por tê-la finalmente arrancado da
heroína.
Dessa vez estava certa de ter tomado a decisão
correta. O fracasso da experiência com a Narconon
deu-me a certeza de que a única solução era levar
Christiane a um lugar onde ela não encontrasse
heroína. Era a sua única chance de sobrevivência.
Quando seu pai a tomou sob sua responsabilidade,
abriu-me a possibilidade de julgar, tomando certa
distância. Cheguei à conclusão de que, se ela ficasse
em Berlim, estaria condenada. Meu ex-marido estava
enganado ao me assegurar que ela tinha se
desintoxicado, e eu não acreditava. Há muito tempo
temia pela vida de Christiane e nunca teria pensado
que isto ainda poderia ser pior. Depois da morte de
Babsi não tive nenhum minuto de tranqüilidade.
Queria enviar Christiane para junto de minha
família, mas seu pai não quis. Como Christiane vivia
sob seu teto, ele tinha obtido sua guarda temporária.
Não consegui convencê-lo. Ele não chegava a
compreender. Talvez porque ele não tivesse minha
experiência ou fosse incapaz de reconhecer seu
fracasso.
Além disso, recebi notificação da condenação de
Christiane por infração à lei sobre estupefacientes. A
Sra. Schipke, da brigada de estupefacientes, me
advertiu por telefone. Segundo ela, não devia me
sentir culpada: O que você quer? Quando alguém
quer se picar, se pica. Ela conhece muitos drogados
de boa família que também foram chamados como
Christiane a comparecer diante do tribunal. É
preciso não se apavorar assegurou-me.
Fiquei chocada, ao ver entre as provas contra
minha filha um saquinho de heroína encontrado em
seu quarto. Fui eu que o achei, e, na afobação,
telefonei à Sra. Schipke. Quando ela me pediu, a
hipócrita, para fazer uma análise do material, eu não
pensava que minha descoberta seria um dia utilizada
contra minha filha. Ela tinha me dito: Não indique o
expedidor, e dessa forma nada poderá ser provado.
Não é justo condenar jovens como Christiane por
toxicomania. Christiane não fez mal a ninguém. Ela se
autodestruiu. Quem pode julgá-la? Além do mais, que
eu saiba, nenhuma prisão curou um toxicômano.
A leitura dessa peça de acusação reforçou ainda
mais a minha decisão. Juntei toda a minha coragem e
fui procurar o Serviço de Tutelas. Expliquei-lhes toda a
situação. Pela primeira vez, desde que freqüento os
escritórios dos serviços públicos, me ouviram
atentamente. O assistente social que me atendeu, Sr.
Tillmann, julgava igualmente preferível afastar
Christiane de Berlim. Esperando que me dessem a
guarda de Christiane poderia demorar certo tempo
ele iria tentar encontrar lugar em um centro de
terapia. Meu ex-marido concordaria mais facilmente
com isso. Ê seguro. Eu sentia que por uma única vez
não se tratava de promessas no ar. O Sr. Tillmann
assumia verdadeiramente o caso de Christiane.
Uma tarde, um pouco depois dessa entrevista,
tocou a campainha. Era Christiane, que estava de
volta da consulta antidroga. Ela estava esgotada, cheia
de heroína, falava de suicídio e de overdose. Eu a
acalmei e a fiz dormir. Em seguida, chamei o Sr.
Tillmann. Ele chegou logo em seguida. E nós três, com
Christiane, traçamos um plano de ação. Primeiro ela
iria passar alguns dias no hospital psiquiátrico, para se
desintoxicar fisicamente. Em seguida, ela iria diretamente
para uma comunidade terapêutica (até lá,
encontraríamos um lugar para Christiane, fosse
através da consulta antidroga, fosse através do Sr.
Tillmann).
Christiane se mostrou cheia de boa vontade. O Sr.
Tillmann se ocupou das formalidades, e tudo caminhou
rapidamente. Conseguimos uma entrevista com o
psiquiatra e com o médico da Previdência Social.
Munido de atestado médico, o Sr. Tillmann foi ver meu
ex-marido e o convenceu a assinar o pedido de
internação voluntária. Eu podia, enfim, levar
Christiane à clínica.
Quinze dias mais tarde ela era transferida para o
Hospital Rudolf-Virchow, para tratamento de sua
micose. Eu estava convencida de que as pessoas do
Bonnies Ranch não deixariam uma menina toxicômana
livre, que a vigiariam durante a viagem e continuariam
a se ocupar dela em Rudolf-Virchow. Mas eles se
limitaram a levá-la. Depois não era mais seu
problema. Ela não teve nenhuma dificuldade em fugir.
Que negligência! Com isso, perdi o último resto de
confiança nas instituições. Eu pensei: "Não posso
contar com ninguém a não ser comigo mesma". O Sr.
Tillmann tentou me levantar o moral.
Felizmente, a fuga de Christiane foi de curta
duração. No outro dia à noite ela veio chorar nos meus
braços. Ela pedia perdão. Ela havia se picado mais
uma vez. Eu não gritei com ela. Antes eu descarregava
minha raiva sobre ela, desesperada pela minha
incapacidade de ajudá-la. Agora minha agressividade
se extinguira. Eu a tomei nos meus braços e
conversamos. Calmamente.
Christiane queria seguir o plano de ação traçado.
Eu lhe disse: De acordo. Mas deixando bem claro
que, na primeira besteira, ela partiria para a casa da
avó. Sem discussão. Ela me deu sua palavra de honra.
Durante muitos dias ela foi regularmente às
consultas antidroga. Ela se tornara persistente, chegou
a esperar pela sua vez horas e horas. Em casa,
sentava-se à mesa, e redigia seu curriculum vitae para
preencher as formalidades de admissão.
Eu enxergava o fim do túnel. Tinha-se encontrado
uma vaga em uma comunidade terapêutica era
praticamente certo. Conversávamos sobre as festas de
Natal: ela não poderia passá-las em casa, pois
estávamos no início de novembro.
Nesse meio tempo, meu ex-marido tinha
compreendido a inutilidade dos seus esforços e
renunciado a se opor aos nossos projetos. Voltávamos
a pisar em terra firme.
Foi então que Christiane teve icterícia pela
segunda vez. Uma noite, bruscamente, ela teve
quarenta e um graus de febre. No dia seguinte eu a
levei à Clínica Steglitz. Ela estava amarela como um
marmelo e não conseguia manter-se de pé. A doutora
que a examinou disse-me: Ela tem o fígado
congestionado por causa da droga. Infelizmente não
poderiam interná-la, pois a clínica não tinha serviço de
isolamento, disseram. Era uma mentira. Depois eu me
informei: a Clínica Steglitz tem um serviço de
isolamento de vinte e cinco leitos. Na realidade, eles
não querem drogados: a clínica é muito "boa" para
isso. Resumindo, a doutora fez um pedido de admissão
ao Hospital Rudolf-Virchow.
O estado de Christiane melhorou em alguns dias,
ela reencontrou seu dinamismo e se preparou para
fazer uma terapia. O conselheiro do Centro Antidroga
da Universidade Técnica veio vê-la. Todos cuidavam
dela. Há muito tempo que não tinha estado tão
otimista.
Até o dia em que sua amiga Stella veio vê-la. Eu
tinha pedido à enfermeira que não deixasse ninguém
entrar durante minha ausência com exceção, é
claro, do conselheiro do Centro Antidroga.
Mas cometi uma falta imperdoável: levei Detlef
comigo para vê-la. Ela tinha muita vontade de vê-lo.
Detlef tinha acabado de ser solto e tinha sido posto em
liberdade vigiada. Tinha sido admitido em um centro
de terapia. Eu não tinha coragem de impedi-los de se
rever: os dois se amam. Pensava que talvez eles se
encorajassem mutuamente. Um ficaria contente com o
fato de saber que o outro também estaria fazendo
terapia. Como pude me mostrar tão ingênua?
Christiane começou por desaparecer durante
algumas horas. Uma noite, após meu trabalho, fui vêla
como habitualmente, e percebi que ela tinha se
picado. Ela tinha voltado alguns minutos antes da
minha chegada. A coisa em si não me parecia grave.
Quando ela se pôs a me contar mentirinhas, dizendo
que ia à cidade comer macarrão, quando recomeçou a
mentir, senti minhas pernas bambas.
Pedi autorização para passar a noite com
Christiane. Pagando, naturalmente. A enfermeira me
explicou que infelizmente isso não era possível. Mas
de agora em diante vigiaremos Christiane. Três dias
mais tarde, a enfermeira veio ao meu encontro na
porta do meu serviço e me disse: Sua filha não está
mais no hospital.
Ah, é? Você pode me dizer onde ela está?
Nós não sabemos. Ela conseguiu autorização
para passear no parque e não voltou mais.
O que senti ouvindo tais palavras não posso
descrever. Voltei para casa e sentei-me ao lado do
telefone. À noite, às onze e vinte, telefonaram do
hospital dizendo: ela voltou. A indiferença da
enfermeira me abalou. Se fugiu, fugiu. O problema
é seu. Os drogados estão acostumados a fugir. Todos
fogem. Eis o que me responderam quando fiz
reclamações à enfermeira.
A doutora parece também não ter-se comovido.
Disse-me pura e simplesmente que ela não podia fazer
nada. Se Christiane cometesse uma nova infração ao
regulamento, eles seriam obrigados a mandá-la
embora por indisciplina. Além do mais, "temos agora o
resultado das análises biológicas: se ela continuar
assim, não passará dos vinte anos. Vamos tentar
conversar racionalmente com ela. Infelizmente é tudo
o que podemos fazer".
Na noite seguinte, novo telefonema do hospital.
Christiane fugira novamente. Passei a noite no sofá, ao
lado do telefone. Christiane não voltou. Ela
desaparecera durante duas semanas inteiras sem dar
notícias.
Nos dois ou três primeiros dias eu e meu
companheiro partimos à procura de Christiane.
Percorremos as discotecas e as estações de metrô. O
hospital me pediu que eu fosse buscar as coisas de
Christiane. Quando cheguei a casa com sua mala, seus
livros, decidi, pela primeira vez, lavar as mãos. Que
ela se danasse.
Pensei: "Bem, se é isso que ela quer, que siga o
caminho para ver aonde vai dar". Cansei de procurála.
Estava ferida, e esta não era mera figura
lingüística. Queria mostrar-lhe que minha paciência
tinha-se esgotado. Agora penso que não sabia quanto
tempo teria sido capaz de perseverar nesta atitude.
Comuniquei seu desaparecimento à polícia e
deixei-lhe sua foto. Eles acabariam pegando-a,
possivelmente por ocasião de uma batida. "Depois
disso, meto-a no primeiro avião e levo-a para longe de
Berlim", pensei.
Ao fim de quinze dias, numa manhã de segundafeira,
recebo o esperado telefonema: Christiane estava
na delegacia da Friedrichstrasse. Meu interlocutor
mostrou-se extraordinariamente compreensivo. Apesar
de Christiane estar aprontando a maior confusão,
pedi-lhe que a mantivesse sob sua guarda até o
começo da tarde, e nós deixaríamos, em seguida, a
cidade de avião.
Fui comprar as passagens. Uma de ida e volta
para mim e outra apenas de ida para Christiane.
Quando pedi as passagens me senti mal, ao
pronunciar: "Uma só de volta". Em seguida, telefonei
para minha família.
Pedi a Klaus que me acompanhasse ao
recolhimento de menores. Eu sabia que nós dois
poderíamos impedir sua fuga.
Christiane não disse nada. Eu também não. Não
me sentia capaz. Enquanto cumpríamos as
formalidades para o embarque, sentia minhas pernas
tremerem e meu coração disparar. Christiane
mantinha-se calada. Nem sequer me olhava. Até a
partida do avião ficou em silêncio, imóvel, no sofá,
roendo as unhas ou lendo um romance que ela tinha
trazido. Não tentou fugir.
Quando o aparelho ganhou altura, ela começou a
olhar pela janela. Caía a noite. Disse à minha filha:
Bem, terminou. O capítulo droga terminou. Você vai
para a casa da sua tia Evelyne. Começar uma vida
nova.
***
Passei meus quatro primeiros dias na casa de
minha avó em crise. Quando consegui ficar em pé, me
vesti de drogada: casaco de pele de coelho e botas de
salto altíssimo. Em seguida, fui passear no bosque
com o cachorro de minha tia.
Todas as manhãs era a mesma coisa: eu me
vestia e me maquilava como se fosse à Estação Zoo e
partia para o passeio na floresta. Meus saltos altos
afundavam na terra, eu caía a cada dez metros e tinha
os joelhos roxos devido aos tombos, mas quando
minha avó queria me dar "sapatos para caminhadas",
recusava horrorizada, pois só o termo "sapato para
caminhadas" me repugnava.
Pouco a pouco me dei conta de que minha tia,
com trinta anos exatos, era uma pessoa com quem se
podia conversar, mesmo que eu não ousasse abordar
com ela meus verdadeiros problemas. Aliás, eu não
queria nem falar nem pensar neles. Meu verdadeiro
problema chamava-se heroína e tudo o que se
relacionava a ela: Detlef, a "cena", o Kudamm, o
embalo, não ser obrigada a pensar, ser livre. Tentei
não pensar muito, mesmo sem droga. Na verdade, eu
só pensava numa coisa: você vai se mandar logo,
logo. Mas, ao contrário das outras vezes, não fiz
planos de fuga. Era só uma idéia: um dia você vai se
mandar. Acho que não tinha muita vontade. Tinha
muito medo do que, nesses dois últimos anos, chamei
liberdade.
Minha tia me cercava com um monte de
proibições. Eu tinha quinze anos e se, por acaso, me
dessem autorização para sair, deveria voltar às nove e
meia em ponto. Não sabia o que era isso desde os
onze anos. Isso me desesperava, mas,
estranhamente, quase sempre obedecia.
Fomos fazer as compras de Natal em Hamburgo.
Partimos de manhã cedinho. E fomos para as grandes
lojas. Horroroso! Horas tentando encontrar caminho
numa multidão de burgueses miseráveis pescando
mercadorias ou mexendo nas suas carteiras
recheadas. Minha avó, minha tia, meu tio e meu primo
experimentavam roupas. Não encontramos presentes
para tia Edwige, para tia Ida, Joaquim e nem para o
Sr. e Sra. Fulano de Tal. Meu tio precisava encontrar
um par de palmilhas para ele e mais um troço para o
carro que era melhor comprar numa grande loja, pois
era mais barato.
Minha avó, tão pequena, fuçava com tanto gosto
que toda hora se perdia no meio da multidão. Depois,
era preciso procurá-la. Às vezes ficava sozinha e,
então, é claro que eu pensava em me mandar. Já
havia descoberto uma "cena" em Hamburgo. Bastava
sair para a rua, conversar com dois ou três tipos com
cara de viciado e tudo continuaria como antes. Mas eu
não me decidia, pois não sabia o que queria
exatamente. É claro que pensava: veja só essas
pessoas, a única coisa que as faz voar é percorrer as
grandes lojas e comprar. Melhor morrer num banheiro
imundo que ficar como eles. E, sinceramente, se um
viciado tivesse me abordado, eu teria partido.
Mas no fundo não queria partir. E por várias vezes
pedi-lhes que me levassem para casa: Não agüento
mais. Voltemos. Vocês voltarão para fazer as compras
sem mim. Mas eles me olhavam como se eu
estivesse ficando louca de repente, pois, para eles,
fazer as compras de Natal era, sem dúvida, o
momento mais excitante do ano.
À noite, não encontramos o carro. Andamos de
estacionamento em estacionamento e nada de carro.
Eu gostava da situação, pois, de repente, nos
tornamos uma comunidade. Todo mundo falava ao
mesmo tempo, cada um tinha uma idéia, mas
tínhamos, no final das contas, um fim comum:
encontrar o maldito carro. Eu achava a história toda
muito engraçada e não parava de rir, enquanto os
outros estavam cada vez mais afobados. O frio
aumentava, todo mundo estava morrendo de frio,
menos eu, pois meu organismo já havia enfrentado
coisas piores.
E, para finalizar, minha tia se plantou sob a
corrente de ar quente na entrada de Karstadt e se
recusava a sair do lugar. Meu tio foi obrigado a puxar
à força aquela gorda balofa. Acabamos encontrando o
carro, e a história terminou com um estouro de riso
geral. Na viagem de volta o ambiente era legal. Eu me
sentia bem. Tinha a impressão de fazer parte de uma
família.
Eu me adaptei um pouco. Ao menos tentava. Era
difícil. Precisava tomar cuidado com a minha
linguagem, com cada frase, com cada palavra. Quando
deixava escapar um "merda", minha avó me
repreendia na hora: Uma palavra tão feia numa
boca tão linda. Como isso me irritava, tinha vontade
de discutir, mas era melhor não... sempre acabava
tendo um acesso de raiva.
Chegou o Natal. Meu primeiro réveillon em
família, sob o pinheiro, depois de dois anos: no ano
passado e no anterior passara a noite de Natal na
"cena". Não sabia se ficava contente ou não. Decidi,
em todo caso, fazer um esforço para parecer contente,
ao menos no momento dos presentes. Na hora, não
precisei me esforçar, pois realmente senti prazer. Era
a primeira vez que ganhava tantos presentes de Natal.
Num certo momento me surpreendi calculando quanto
custara tudo aquilo e quantas doses de heroína representava.
Meu pai veio passar o Natal conosco. Como
sempre, ele não ficava lá. Nos dois feriados de Natal
ele me levou a uma discoteca. Nas duas vezes tomei
seis ou sete cuba-libres e depois dormi no banquinho
do bar. Meu pai estava de uma certa forma feliz de me
ver beber álcool. Eu pensava que iria acabar me
habituando com aquele lugar, com aqueles goiabas e
com a música da discoteca.
No dia seguinte meu pai voltou a Berlim: iria a
um jogo de hóquei no gelo que não queria perder. Era
a sua nova paixão.
Depois das férias de fim de ano, recomecei meus
estudos. Sétima série. Isso me dava medo, pois não
havia feito praticamente nada nos últimos três anos,
e, além disso, no ano anterior faltara muito doença,
desintoxicação ou simplesmente cabulava a aula. Mas,
desde o primeiro dia, minha nova escola me agradou.
Naquela manhã nos mandaram fazer um grande
desenho cobrindo uma parede inteira da sala de aula,
e eles logo permitiram que eu participasse daquele
trabalho coletivo. Desenhamos casas, belas casas antigas.
Exatamente iguais àquelas em que eu gostaria
de morar. Pusemos nas ruas gente sorrindo, e
pusemos um camelo amarrado numa palmeira. Um
desenho genial. E escrevemos embaixo: "Sob a
calçada, a praia".
Depois eu me dei conta: havia um desenho quase
idêntico no Centro de Jovens. Mas lá a legenda dizia:
"Não seja um chorão, não seja um beberrão, pegue a
foice e o martelo". No Centro, os politizados eram os
dominadores.
Logo constatei que os jovens do campo, mesmo
os das cidadezinhas próximas ao nosso vilarejo,
também não eram felizes. Era certo que exteriormente
existiam grandes diferenças com relação a Berlim:
muito menos confusão na escola, a maior parte dos
professores ainda tinha autoridade. Tínhamos até um
outro aspecto: a maioria dos jovens se vestia ainda
como se deve.
Meus conhecimentos deixavam muito a desejar,
mas queria vencer: ao menos, conseguir meu diploma.
Desde a escola primária, era a primeira vez que fazia
os deveres escolares. Depois de três semanas estava
mais ou menos integrada na classe e achava que
estava no bom caminho. Um dia, quando estávamos
tendo aula de cozinha, recebi uma convocação do
diretor. Ele estava sentado no seu escritório e folheava
nervosamente um dossiê. Compreendi: era o meu
dossiê que ele acabava de receber de Berlim. Eu sabia
que meu dossiê não escondia nada das minhas
atividades extra-escolares. A Ajuda à Infância
informou a direção da minha escola.
O diretor tossiu baixo por alguns instantes e
depois me disse que sentia muito, mas não poderia
me deixar no seu estabelecimento. Eu não preenchia
as condições para ser admitida em um colégio de
ensino secundário. Acho que meu dossiê o
traumatizara verdadeiramente, pois ele nem mesmo
esperou o fim das aulas e mandou chamar-me em
plena aula para me expulsar.
Não disse nada. Fui incapaz de falar qualquer
coisa. Não me queriam nem por uma hora mais. Devia
me apresentar no próximo intervalo ao diretor do
curso complementar. Obedeci como um autômato.
Uma vez no escritório do diretor do curso
complementar, tive uma crise de choro. Ele me disse
que tudo aquilo não era tão grave. Quem quer mesmo
estudar pode fazê-lo em qualquer escola: o importante
era ser aplicada e ter o diploma.
Quando saí, tentei refletir havia muito que não
o fazia. Eu não fiquei com pena de mim mesma. Era
preciso pagar meus pecados. Eu me dei conta muito
bem. Percebi, de repente, que todos os meus sonhos
de vida nova, quando estivesse afastada da droga,
eram besteiras. Os outros não me viam tal como eu
me achava então, eles me julgavam pelo meu
passado. Todos os outros: minha mãe, minha tia, o
diretor.
Descobri também que era impossível mudar um
pouco e me tornar uma outra Christiane, de um dia
para outro. Meu corpo e meu espírito não paravam de
me lembrar o meu passado. Meu fígado estuporado
me cobrava pelo que eu o fizera sofrer. E a vida com
minha tia não era tão tranqüila todos os dias. Ficava
nervosa por um sim ou por um não, e brigávamos o
tempo todo. O menor stress me deixava doente e eu
não agüentava nenhuma contrariedade. Nos momentos
de grande depressão, pensava que uma boa
picada resolveria tudo!
Depois da minha expulsão da escola secundária,
perdi toda a confiança no meu sucesso escolar. Nem
ousava tentar mais. Uma vez mais eu me sentia sem
vontade. Fui expulsa sem poder defender-me e, no
entanto, aquele diretor não poderia saber, em três
semanas, se iria acompanhar o curso ou não. Não
fazia projetos para o futuro. Bem, podia voltar a uma
escola polivalente (havia uma por perto, bastava pegar
um ônibus) e então provar a minha inteligência. Mas
tinha muito medo de fraquejar, medo de um novo
fracasso.
Compreendi aos poucos precisava de certo
tempo o que significava a "descida aos cursos
complementares". Naquele lugar havia duas
discotecas, espécie de clube de jovens. Um era
freqüentado quase unicamente por ginasianos e alunos
da escola secundária e o outro, pelos aprendizes e
alunos dos cursos complementares. No princípio eu ia
ao clube dos ginasianos. Depois da minha expulsão,
logo tive a impressão de que me olhavam
atravessado. E então fui ao outro.
Para mim, era uma nova experiência. Em Berlim
esse tipo de segregação não existia. Nem na escola
polivalente nem, com maior razão, entre os viciados.
Ali a coisa começava no pátio de recreio, dividido em
dois por uma grande faixa branca que era proibido
ultrapassar. De um lado os alunos da escola
secundária e do outro os do curso complementar. Se
queria conversar com os meus ex-colegas, devíamos
ficar cada um de um lado da faixa. Separavam-se cuidadosamente
os jovens com futuro promissor dos que
já estavam para trás, nós, do curso complementar.
Essa era então a sociedade à qual me pediam
para me adaptar? "Adaptar-se" era o termo favorito de
minha avó. Isso não a impediu de me aconselhar,
depois da minha expulsão da escola secundária, a
evitar a companhia dos jovens do curso complementar
fora das horas de aula e fazer amigos entre os
ginasianos e alunos do colégio. Eu lhe respondi:
Você precisa encontrar uma razão, sua netinha está no
curso complementar. Eu me adapto e farei amigos no
curso complementar. Isso deu uma briga daquelas!
Minha primeira reação tinha sido a de me
desinteressar completamente pelo trabalho escolar,
mas percebi que o professor orientador era um tipo
muito legal. Ele tinha uma idade avançada e idéias
totalmente atrasadas um verdadeiro fascista. Às
vezes tinha a impressão de que ele não fora
"desnazificado" cem por cento. Mas ele tinha autoridade
e sabia fazer-se respeitar sem gritar. Quando ele
entrava na sala, todo mundo se levantava.
Espontaneamente. Ele era o único por quem fazíamos
isso. Ele nunca tinha aspecto cansado e se ocupava
individualmente de cada um de nós. De mim também.
Muitos de nossos jovens professores eram certamente
superidealistas, só que eles tinham trabalho demais.
Por uma série de motivos eles não eram mais
avançados do que nós, alunos. Às vezes eles não
ligavam e depois, vendo que era uma bagunça total,
davam uma bronca. Principalmente quando eles não
tinham respostas claras aos problemas que nos
preocupavam. Eles apelavam sempre para os "se" e os
"mas" estavam tão desnorteados quanto nós.
Nosso orientador não nos deixava nenhuma ilusão
sobre o futuro reservado aos alunos de um curso
complementar. Ele não escondia que seria muito duro.
Segundo ele, poderíamos, sendo um pouco aplicados,
ser mais fortes que os ginasianos em certo número de
matérias. Por exemplo, em ortografia hoje os
diplomados não conheciam mais a ortografia. O fato
de saber redigir corretamente e sem erros um pedido
de emprego nos daria um trunfo suplementar. Ele
tentava nos ensinar a maneira de nos comportarmos
com pessoas que se achavam superiores. E ele tinha
sempre uma citação a fazer. Geralmente do século
passado. Podíamos rir aliás, a maior parte dos
alunos o fazia , mas eu achava que elas tinham um
pequeno fundo de verdade. Não concordava sempre
com as opiniões dos professores, longe disso. Mas o
que agradava nele era que parecia saber ainda
distinguir o branco do preto.
A grande maioria dos alunos não gostava muito
dele. Achavam-no muito exigente e ficavam irritados
de ouvi-lo o tempo todo fazendo discursos. De
qualquer forma, a maior parte dos meus colegas não
se interessava por nada. Alguns se esforçavam para
ter um bom boletim, na esperança de que isso lhes
permitisse arrumar um trabalho, mesmo saindo de um
curso complementar. Eles faziam os seus deveres
aplicadamente exatamente o que era pedido. Não
lhes ocorria ler um verdadeiro livro, se interessar por
alguma coisa além do programa, isso não lhes passava
pela cabeça.
Quando, por acaso, o orientador ou um dos
jovens professores lançava uma discussão, só
conseguiam gozações estúpidas. O pessoal da minha
sala não tinha mais projetos que eu; aliás, como um
aluno do curso complementar poderia fazer projetos?
Se ele tivesse a chance de encontrar uma vaga de
aprendiz, seria obrigado a pegá-la, quer o trabalho lhe
agradasse ou não.
Muitos, na realidade, estavam pouco ligando para
o que fariam mais tarde. Seu raciocínio era o seguinte:
de qualquer forma, ninguém morre de fome neste
país. Não tínhamos nenhuma chance de vencer na
vida quando saíamos de um curso complementar;
então, por que nos preocuparmos? Alguns daqueles
caras seriam futuros gângsteres percebia-se , e
outros já começavam a beber. Quanto às meninas,
elas não quebrariam a cabeça: um dia ou outro,
encontrariam um cara para satisfazer suas
necessidades e enquanto isso podiam sempre ser
vendedoras, operárias nas fábricas, se necessário,
trabalhando até na linha de produção, ou ainda ficar
em casa à toa.
Nem todos eram assim, mas aquele era o
ambiente geral da escola. Nada de ilusões e,
principalmente, nenhum ideal. Estava desmoralizada:
não era assim que eu imaginava minha vida pósdroga.
Tenho me perguntado por que os jovens estão tão
indispostos consigo mesmos. Nada mais lhes dá
prazer, uma Mobilete aos dezesseis anos, um carro
aos dezoito, vai por si só. E quando não temos,
sentimo-nos miseráveis. Eu também, em todos os
meus sonhos, imagino-me com um apartamento e um
carro, é evidente. Matar-se, como minha mãe, por um
apartamento ou um sofá novo, é coisa de débil. Era
bom para nossos pais, com suas teorias ultrapassadas.
Para mim, e acho que para muitos dos da minha
geração, essas coisas materiais, esse pequeno
conforto é o mínimo vital. Precisamos de algo mais. O
que dá um sentido para a vida. E isto não vemos em
parte alguma; mas certo número de jovens, e eu me
incluo entre eles, está sempre em busca do que
poderá dar sentido à vida.
Quando discutíamos em aula o nacionalsocialismo,
tinha sentimentos muito ambíguos. Por um
lado estava profundamente chocada por todas aquelas
atrocidades. Pensar que seres humanos eram capazes
daquilo! Mas, por outro lado, pensava que outrora
existiam coisas nas quais as pessoas acreditavam. Um
dia eu mesma falei em plena aula:
De certo ponto de vista, eu gostaria de ter
vivido no período nazista. Pelo menos, os jovens
sabiam onde estavam, tinham um ideal. Acho melhor
para um jovem se enganar de ideal do que não ter
nenhum. Não estava falando sério, mas havia um
pouco de verdade nisso.
Mesmo no interior, os jovens se lançavam em
qualquer tipo de viagem por estarem de tal forma
insatisfeitos com a imagem de vida oferecida pelos
adultos. O meu pequeno vilarejo não foi poupado pela
violência: batíamos em vez de amortecer os golpes. O
movimento punk (que chegou a Berlim com dois anos
de atraso) fez alguns adeptos nos dois sexos. Sempre
me escandalizou considerarem o punk uma viagem
sensacional. Não passava de pura brutalidade. Mesmo
a sua música não tinha nenhuma criatividade: não
passava de um bum-bum-bum...
Tenho um amigo que se tornou punk. Era
realmente um cara com quem se podia conversar até
o dia em que começou a andar por aí com um alfinete
espetado no rosto e um cassetete no bolso. Um belo
dia, uma senhora brigou com ele no boteco do
vilarejo: ele quebrou duas cadeiras em sua cabeça e
enfiou-lhe uma garrafa quebrada na barriga. No
hospital, foi salva por um triz.
O pior, para mim, era a dureza das relações entre
os rapazes e moças. Falavam um monte de besteiras
sobre a emancipação e a libertação da mulher. Acho
que nunca os rapazes trataram as meninas com tanta
brutalidade. Podia-se dizer que mostravam toda a sua
grosseria. Sedentos de poder e de sucesso, eles os
iam procurar junto às mulheres, pois não podiam
encontrá-los em outra parte.
A maior parte dos caras que freqüentavam as
discotecas do meu vilarejo me causavam um
verdadeiro terror. Talvez pelo fato de eu ser um pouco
diferente das outras garotas, eles estavam o tempo
todo atrás de mim. Aqueles assobios, aqueles "E
então, minha cara, vamos dar uma volta?" me
irritavam mais do que as manias dos clientes da
Kurfürstenstrasse. Eles, pelo menos, quando faziam
sinais do volante de seus carros, ainda nos davam um
sorriso. Mas esses chefões de vilarejo nem isso faziam.
Acho que a maior parte dos clientes eram melhores e
mesmo mais carinhosos do que esses carinhas com
suas garotas. Eles queriam meter sem falar uma
palavra ou fazer um gesto amável, sem a menor
manifestação de ternura e, é claro, nunca lhes
ocorrera a idéia de pagar por isso.
Isso me enojava de tal forma que não suportava
mais que um rapaz me tocasse. Todas essas histórias
de paquera me pareciam uma nojeira; por que um
rapaz se arrogava, automaticamente, o direito de, no
máximo, na segunda vez que saía com uma menina,
começar a boliná-la? E a menina deixava, mesmo que
não tivesse vontade. Simplesmente, era a regra do
jogo. E ela tinha muito medo que o tipo a deixasse e
contasse aos outros, em caso de recusa: era uma
idiota frígida.
Eu não aceitava. Mesmo quando gostava muito de
um rapaz e tinha vontade de sair com ele, começava
pondo os pingos nos is: Não tente me tocar. Se
deve haver algo entre nós, sou eu quem toma as
iniciativas. Mas havia seis meses, desde que havia
deixado Berlim, que não transava. Quando o rapaz
queria trepar comigo, eu sempre rompia.
Isso também, é claro, fazia parte da fatura a
pagar pelo meu passado. Era difícil considerar a
prostituição um efeito secundário, inevitável, da droga,
não afetando o meu verdadeiro eu, pois isso afetou a
minha relação com os rapazes. Tinha a impressão,
muitas vezes, ao ver o comportamento dos caras, de
que eles queriam explorar-me mais uma vez.
Tentei fazer com que as meninas de minha classe
aproveitassem minha experiência com os homens,
sem poder dizer exatamente como a adquirira. Mas
minha mensagem nunca foi entendida de fato. É certo
que me tornei, na minha sala, uma espécie de "Sra.
Correio Sentimental'', a quem elas vinham contar
todos os seus problemas com os rapazes e pedir
conselhos elas sentiram que eu tinha maior experiência
, mas não pude fazê-las compreender o que
gostaria verdadeiramente de dizer.
A maior parte daquelas meninas vivia somente
para os rapazes e aceitava passivamente a
insensibilidade, a crueldade das suas relações com
eles. Se um tipo deixava sua garota e saía com outra,
elas não criticavam o cara, mas sua nova namorada.
Ela era a puta, a imunda e outras coisas mais.
Freqüentemente, os caras mais brutos eram os mais
admirados.
Tudo isso eu só compreendi durante a viagem de
nossa classe ao Palatinat. Estávamos alojados perto de
uma discoteca, e a maior parte das meninas queria ir
lá desde a primeira noite. Quando voltavam, elas não
paravam de falar de uns caras barulhentos com
máquinas terríveis motoqueiros. Os motoqueiros,
para elas, eram deuses.
Fui dar uma olhadinha na famosa discoteca. A
coisa era simples: os tipos das redondezas chegavam
com suas mobiletes, motos e carros, para paquerar as
meninas em excursão escolar.
Tentei explicar às meninas da minha classe que
aqueles caras só queriam explorá-las. Não valeu a
pena. Ao menos uma hora antes da abertura da
discoteca, eis as meninas em posição diante do
espelho, se maquilando e enrolando os cabelos. Depois
elas não ousavam mais se mexer, de medo de
estragar seu belo penteado.
Diante do espelho elas perdiam toda a
personalidade. Elas não eram nada mais que sua
própria máscara, encarregadas de agradar aos
cavalheiros de muita potência. Ficava louca ao ver
aquilo. Eu também, há bem pouco tempo, me
maquilava e me fantasiava para agradar aos caras:
primeiro aos fumantes de maconha e em seguida, aos
viciados. Eu também estava desprovida de minha
personalidade por não ser mais "a drogada".
Durante a viagem só se falava daqueles
miseráveis paqueradores. No entanto, a maior parte
das meninas tinha namoradinho em casa. Elke, que
dividia o quarto comigo, até passou a primeira noite
escrevendo para o seu. No dia seguinte, ela foi à
discoteca e voltou toda deprimida. Ela me contou que
um cara tinha passado a mão nela. Acho que foi só
para mostrar às outras que um daqueles caras
terríveis tinham se interessado por ela. Atormentada
pelo remorso, ela chorava como uma Madalena
arrependida, mas na verdade acreditava estar
apaixonada pelo motoqueiro seu namoradinho ainda
não tinha moto. Na noite seguinte, ela estava na
fossa, totalmente arrasada, e chorou a noite toda.
Aquele cara havia perguntado a uma outra menina da
classe: Fala pra mim, aquela menina trepa? Para
uma outra menina, Rosie, foi catastrófico. Um
professor a surpreendeu quando estava trepando, num
carro. A infeliz estava completamente bêbada, pois o
cara a tinha feito beber cuba-libre aos montes.
Rosie era virgem. E agora, é claro, estava em
plena depressão. As outras meninas convocaram uma
assembléia geral para decidir que castigo aplicar: a
sua volta para casa foi pedida por unanimidade. Não
pensaram um só instante em censurar o cara que a
tinha feito beber e depois a tinha, mais ou menos,
violentado. Fui a única a votar contra. Tudo o que elas
conseguiram entender foi que, por causa dessa
história, nossos professores nos proibiram de ir à
discoteca.
Aquela falta total de solidariedade entre as
meninas me enojava. Desde que se tratasse de
problemas com rapazes, os laços de amizade eram
esquecidos. Exatamente como entre mim, Babsi e
Stella, quando se tratava de heroína.
Apesar de tudo, estava decidida a me acomodar
com o mundo tal qual ele é. Não pensava mais em me
mandar. Sabia muito bem que isso significaria ir
buscar novamente refúgio na droga. O que, percebia
cada vez mais claramente, não era uma solução.
Pensava que devia haver um meio-termo entre fugir
dessa sociedade podre e me adaptar totalmente.
Encontrei um apoio: um amigo. Ele me trouxe
uma grande serenidade. Com ele podia-se falar. Ele
sempre sabia colocar as coisas no devido lugar. Era
capaz de sonhar, mas também era prático. Ele
também pensava que alguma coisa estava podre.
Achava que batalhando poderíamos um dia recuperar,
por assim dizer, a sociedade. Pretendia trabalhar no
comércio, se encher de dinheiro. Depois, compraria
uma casa de madeira no Canadá, em plena floresta, e
seria lá que viveria. Detlef também sonhava com o
Canadá.
Meu amigo era ginasiano e me passou o seu gosto
pelos estudos. Percebi que mesmo os cursos
complementares poderiam dar-me algumas coisas se
eu trabalhasse por mim mesma e não pelas notas.
Comecei a ler muito. Sem critério. O Werther, de
Goethe; as obras do escritor da Alemanha Oriental,
Plenzdorf; livros de Hermann Hesse e, principalmente,
de Eric Fromm. Seu livro A arte de amar tornara-se a
minha Bíblia. De tanto reler páginas inteiras, acabei
decorando-as. Copiei também passagens para
pendurar sobre a minha cama. Esse Fromm é um cara
legal, um espírito extraordinariamente penetrante. Se
aplicássemos suas idéias, a vida deveria ter um
sentido. Agüentaríamos a barra. Mas era muito difícil
observar estas regras de vida, pois os outros não as
conheciam. Gostaria de perguntar a Erich Fromm
como ele faz para viver segundo os seus princípios em
nosso mundo. Eu, em todo caso, constatei que,
quando queremos nos servir deles para enfrentar a
realidade, nunca funcionam.
Seja lá o que for, esse livro deveria ser leitura
obrigatória em todas as escolas. Eu acho. Mas nem
sequer ousava falar em aula, pois os outros pediriam a
minha cabeça com gozações. Uma vez eu o abri
durante a aula. Pensava encontrar aí uma resposta ao
problema que acabava de ser levantado. O professor
olhou o título do livro e imediatamente o confiscou.
Quando fui reclamá-lo, após as aulas, ele recusou,
dizendo-me: Ah... a senhorita lê obras pornográficas
durante as aulas! ... No duro! O nome
Fromm não lhe sugeria nada, e como esse título, A
arte de amar, não poderia ser outra coisa que
pornografia, forçosamente, a pequena puta drogada
trouxera literatura pornográfica para corromper os
alunos.
No dia seguinte, ele me devolveu o livro,
elogiando-o. No entanto, era melhor não levá-lo à
escola, pois o título se prestava a confusões.
Tive aborrecimentos muito mais graves, com o
diretor. Era uma cara que não tinha confiança em si.
Mais um frustrado. Apesar das suas funções, ele não
tinha nenhuma autoridade. Então, tentava compensar
conduzindo-nos com rigor. Quando tínhamos aula na
primeira hora com ele, o dito cujo nos fazia cantar e
fazer ginástica. Para nos enquadrar. A única maneira
de ter boa nota com ele era repetir exatamente o que
ele dizia.
Ele era também professor de música. Um dia quis
nos agradar e nos falou da música que nos
interessava. Não parava de falar do "jazz de hoje". Eu
realmente não compreendia o que ele queria dizer com
isso. Talvez a música pop? Perguntei: O que quer
dizer com "jazz de hoje"? O pop e o rock são muito
diferentes do jazz. Acho que não percebi o que
tinha feito. Nem imaginava as conseqüências das
minhas palavras. O diretor ficou fulo de raiva e me
expulsou da classe, gritando como um condenado.
Antes mesmo de fechar a porta, tentei me
desculpar: Temo que tenhamos nos compreendido
mal. Então ele me chamou. Mas eu não queria
perder a parada e passei o resto da aula no corredor.
Mas não perdi totalmente o controle sobre mim
mesma: não me mandei.
No final daquela manhã, convocação ao escritório
do diretor. Ele tinha um dossiê na mão. O meu, é
claro. Ele o folheava e fingia ler. Depois ele disse que
ali não era Berlim. Ele me havia concedido
hospitalidade na sua escola e me pedia para que
agisse bem, em consideração à sua boa vontade.
Levando em conta as circunstâncias, ele tinha direito
de me mandar embora de um dia para o outro.
Com essa, perdi completamente o rumo. Não
queria mais voltar à escola. Estava sem forças para
enfrentar a situação. Era muito para mim que coisas
tão pouco graves fossem suficientes para me
desorientar.
Eu me fechei como uma ostra. Antes, em parte
sob influência de meu amigo, tinha prometido a mim
mesma trabalhar bem para tentar, apesar das
dificuldades que tínhamos que enfrentar quando
saíamos de um curso complementar, voltar ao colegial
e preparar meu vestibular. Não o faria mais. Sabia que
não conseguiria nunca. Precisaria passar por exames
psicológicos, obter uma autorização especial do
inspetor da academia, etc. Sabia muito bem que meu
dossiê iria me preceder.
Restava-me meu amigo, aquele rapaz tão
razoável. E depois, pouco a pouco, relacionei-me com
os jovens do vilarejo. Pessoas muito diferentes de
mim, mas muito simpáticas. No geral, eles estavam
melhor consigo mesmos que os jovens do vilarejo
vizinho. Formavam uma verdadeira comunidade.
Tinham até seu próprio clube. Um clube sem
paqueradores. Ali ainda reinava certa ordem à moda
antiga. Bem, às vezes os rapazes bebiam muito. A
maior parte dos rapazes e meninas me aceitaram
apesar de eu ser muito diferente deles.
Acreditei, durante certo tempo, que poderia
tornar-me um deles ou como o meu amigo. Mas isso
não durou muito. Rompi com o cara quando, depois de
muito tempo, ele quis dormir comigo. Não podia. Não
podia dormir com ninguém, a não ser Detlef. Nem
pensava. Ainda o amava. Pensava muito nele, mesmo
que me esforçasse para não fazê-lo. Às vezes eu lhe
escrevia para o endereço de Rolf. Mas era bastante
sensata para nunca enviar a carta.
Soube que ele estava de novo em cana. Stella
também.
Encontrei alguns jovens das redondezas pelos
quais me sentia particularmente atraída. Podia falarlhes
livremente dos meus problemas. Junto a eles eu
me sentia respeitada e não tinha medo de que eles
descobrissem o meu passado. Eles tinham mais ou
menos as mesmas idéias que eu sobre o mundo. Era
inútil representar o papel de "se adaptar": estávamos
na mesma onda. Entretanto, no início tentei guardar
minhas distâncias porque todos, mais ou menos,
mexiam com droga.
Minha mãe, minha tia e eu pensávamos que ali a
droga fosse desconhecida. Pelo menos as drogas
pesadas. Quando a imprensa falava de heroína, isso
era sempre em Berlim e, no máximo, em Frankfurt.
Aliás, eu estava convencida de ser a única ex-viciada
num raio de cem léguas.
Na primeira vez que saí para fazer compras com a
minha tia, me desenganei. Era o início de 1978. Fomos
fazer compras em Norderstedt, uma cidade planejada,
uma espécie de cidade-dormitório no subúrbio de
Hamburgo. Como sempre, primeiro percebi os caras
com um ar desligado. Perguntei a mim mesma: "Eles
fumam, se picam ou são simplesmente estudantes?"
Entramos em um bar. Um grupo de estrangeiros sujos
estava sentado a uma mesa. Dois deles se levantaram
bruscamente e foram sentar-se a outra mesa. Não
entendi por quê, mas senti imediatamente no ar
tráfico de heroína. Disse à minha tia que queria sair
daquele bar sem lhe dar explicações.
Cem metros mais longe, diante de uma butique
de jeans, aterrissamos em plena "cena". Localizei
imediatamente os viciados. Imaginei que eles me
haviam reconhecido. . . eles reconheceram a drogada.
Fiquei apavorada. Peguei minha tia pelo braço e disselhe
que precisávamos sair dali imediatamente. Ela
desconfiou de alguma coisa e tentou me acalmar:
Você não tem nada mais a ver com isso. Eu lhe
disse: Eu ainda não sou capaz de enfrentar isso.
Mal cheguei a casa, troquei de roupa e tirei a
maquilagem. Nunca mais pus minhas botas de salto
alto. Desde então, tentei assemelhar-me, ao menos
fisicamente, às meninas de minha classe.
Mas, no clube, ficava cada vez mais em
companhia de pessoas que fumavam maconha e
voavam. Uma vez fumei maconha e outra encontrei
pretexto para recusar.
Depois, entrei numa turma formidável. Jovens dos
vilarejos vizinhos, quase todos aprendizes, que tinham
muitas coisas na cabeça. Pessoas que pensavam e que
se questionavam. Quando discutia com eles, isso me
trazia alguma coisa e, principalmente, eles não eram
nem brutos nem agressivos. Havia um ambiente muito
tranqüilo naquela turma.
Um dia fiz uma pergunta idiota: Por que
sempre esta necessidade de voar um pouco? Eles
me responderam: É evidente. . . é preciso se
desligar de toda a merda da jornada...
Todos eles eram muito frustrados em seu
trabalho. Com exceção de um: ele era sindicalista e
encarregado em sua empresa dos problemas dos
jovens trabalhadores. Encontrava um sentido no que
fazia em toda a jornada. A maior parte do tempo não
tinha necessidade de maconha para se sentir bem. Ele
se contentava em beber alguns goles de vinho tinto.
Os outros saíam sempre tão frustrados e
agressivos de seu trabalho, que ele lhes parecia
totalmente destituído de sentido. Eles falavam o
tempo todo em deixá-lo. Quando nos encontrávamos,
sempre havia um para contar suas confusões com o
mestre de aprendizado ou um outro problema
qualquer. Os outros então lhes diziam: Não
pensemos mais no trabalho. A noite só começava
de verdade quando o baseado começava a circular.
Por outro lado, tinha mais chance que eles: às
vezes, meu trabalho escolar me agradava. Mas
estávamos no mesmo barco: eu também não sabia
para que aquilo tudo ia servir. Para que serviria todo
aquele stress? Agora eu havia compreendido que não
poderia fazer meu vestibular, nem mesmo conseguiria
meu diploma. Além disso, eu me dei conta de que,
mesmo com um excelente título de conclusão da
escolaridade, uma ex-viciada não tinha nenhuma
chance de encontrar um trabalho interessante.
A propósito, meu certificado de conclusão de
escolaridade era excelente. Mas nada de aprendizado.
Deram-me um emprego temporário em virtude de
uma lei destinada a impedir os jovens desempregados
de andar à toa pelas ruas. Havia quase um ano que
não me picava mais. Sabia, é claro, que era preciso
muitos anos para ficar totalmente desintoxicada. Por
enquanto, aquilo não me causava grandes problemas.
À noite, quando nos encontrávamos, todos os
rapazes e meninas da turma, em volta de um
cachimbo de maconha e de uma garrafa de vinho
tinto, os problemas diários eram esquecidos.
Falávamos dos livros que acabáramos de ler. Nós nos
interessávamos pela magia negra, pela parapsicologia
e pelo budismo. Andávamos em busca de pessoas
ligadas a uma boa viagem na esperança de que elas
nos ensinassem algo, porque nós estivemos em
viagens sem graça. Uma das meninas da turma, uma
aluna de enfermagem, trouxe pílulas. Durante certo
tempo, retornei ao Valium. Não toquei em LSD, pois
tinha muito medo de fazer uma má viagem. Os outros,
no geral, foram bem.
Em nosso vilarejo não víamos pessoas
baratinadas com drogas pesadas. Se alguém quisesse,
que fosse voar em Hamburgo. Também não havia
fornecedor de heroína, o que tornava as coisas mais
difíceis que em Berlim, Hamburgo ou mesmo
Norderstedt.
Mas, se quiséssemos, de fato, não era difícil
achar. Os caras tinham contato. Às vezes fornecedores
passavam pelo pedaço com um bom sortimento.
Bastava pedir qualquer coisa para voar e eles
respondiam: "O que você quer? Valium, Valeron,
maconha, LSD, cocaína, heroína?"
Em nossa turma, todo mundo pensava ser capaz
de se controlar, de não se arriscar a ficar dependente
da droga. Em todo caso, a situação era diferente em
muitos pontos do que era há três ou quatro anos, no
conjunto Gropius.
Se a droga nos dava certa liberdade, ela não era
absolutamente a mesma coisa. Não tínhamos
necessidade do Sound, de música atordoante. As
cintilações dos luminosos da Kurfürstendamm não
tinham nenhum charme para os nossos olhos. Todos
os fins de semana, partíamos para a aventura no
Schleswig-Holstein. Deixávamos o carro em qualquer
lugar e continuávamos a pé até que encontrávamos
um lugar superlegal. Passeávamos constantemente no
pântano, onde estávamos certos de não encontrar
ninguém.
Mas o mais fantástico era a nossa pedreira de
gesso. Um buraco gigantesco no meio da mata. Quase
um quilômetro de comprimento sobre duzentos de
largura e cerca de cem metros de profundidade.
Paredes verticais. Embaixo, no fundo, era agradável,
não havia vento. E nasciam plantas que não víamos
em nenhuma outra parte. Este vale das maravilhas era
cortado por riachos cristalinos, cascatas brotavam da
muralha. A água escura enferrujava as rochas
brancas. O chão estava coberto de pedaços de pedra
branca que pareciam ossos de animais pré-históricos. .
. e olhe lá se não eram verdadeiros ossos de mamute.
Essas escavadoras gigantescas, e os tapetes rolantes
que faziam durante toda a semana uma confusão
geral, pareciam, no domingo, imóveis e silenciosos há
séculos. O gesso os vestira de branco.
Estávamos absolutamente sós. Separados do
mundo exterior por abruptas muralhas brancas.
Nenhum barulho chegava até nós. Não ouvíamos
nenhum barulho a não ser o das cascatas.
Decidimos comprar a pedreira no dia em que ela
não estivesse mais sendo explorada. Nós nos
instalaríamos no fundo. Construiríamos cabanas,
plantaríamos um imenso jardim, criaríamos animais. E
dinamitaríamos o único caminho que leva à superfície.
De qualquer forma, não tínhamos nenhuma
vontade de voltar lá para cima.
* * * (Leia o adendo no final do livro) * * *
O AUTOR E SUA OBRA
Kai Hermann e Horst Rieck, jornalistas alemães,
colaboradores da famosa revista "Stern", realizaram
uma pesquisa séria e corajosa ao entrevistarem
Christiane F. e as pessoas ligadas intimamente à sua
vida, como, por exemplo, sua mãe e o Pastor Jurgen
Quandt, responsável pelo Centro de Jovens, onde
Christiane iniciou sua dramática experiência com
drogas.
Eles resumem seu trabalho de forma incisiva e
simples: "Quando, no início de 1978, encontramos
Christiane F. então com quinze anos , ela
depunha como testemunha num tribunal de Berlim.
Pedimos-lhe uma entrevista que faria parte de uma
pesquisa que realizaríamos sobre os problemas da
juventude.
Tínhamos previsto duas horas para a entrevista, e
elas se transformaram em dois meses. De
entrevistadores passamos a ouvintes apaixonados e
profundamente emocionados.
Este livro nasceu da gravação desse depoimento
de Christiane F. É nossa opinião que esta história
ensina mais do que o mais bem documentado relatório
sobre a situação de grande parte da juventude.
Christiane F. quis que este livro surgisse. Como
quase todos os viciados em drogas, desejava romper o
silêncio opressivo que cerca os problemas dos tóxicos
entre os adolescentes.
Todos os sobreviventes de sua turma, bem como
os pais, apoiaram o nosso projeto e concordaram,
para reforçar a autenticidade deste documento, com a
publicação de seus nomes.
Ao depoimento de Christiane F. juntamos
declarações de sua mãe e de outras pessoas que se
ocuparam dela, assim completando a análise com uma
perspectiva diferente".
Adaptado para o cinema, o relato de Christiane F.
repetiu o mesmo sucesso que o livro havia feito.
Quanto ao mais importante, o destino da própria
Christiane, aconteceu uma grande transformação. Ela
abandonou as drogas e assumiu sua identidade
completa, em meados de 1982, ao revelar o seu
sobrenome: Felscherinow. Trabalhou em livrarias de
Berlim, incursionou pelo jornalismo. Mais
recentemente, decidiu profissionalizar-se como cantora
e gravou um disco com canções punk.
Adendo da Digital izadora
Após 30 anos, Christiane F. ainda
luta contra vício
14 de Janeiro de 2006
Christiane Vera Felscherinow ainda não se livrou
da guerra particular iniciada em 1975 contra as
drogas. Aos 43 anos, a alemã chegou a um estado que
alguns médicos consideram "irreversível": sofre de
hepatite tipo C e de graves problemas circulatórios. A
senhora Felscherinow é, para o mundo, Christiane F.,
drogada e prostituída aos 13 anos. Seu drama de vício
da heroína virou best seller e filme cultuado na década
de 80. Hoje, 27 anos depois do livro, Christiane é um
retrato, ainda vivo, do poder destruidor das drogas.
Apenas em dezembro de 2005, o serviço público de
saúde alemão registrou duas internações da paciente,
que há anos passa por inúmeros tratamentos de
desintoxicação. Todos, invariavelmente, não a livraram
do uso de heroína. A iminência de um "colapso
circulatório com potencial risco às funções vitais" é
descrita em pelo menos um relatório médico.
Christiane tem de passar regularmente por sessões de
hemodiálise. Mas além das agulhas e injeções
hospitalares, ela sempre recorreu ao "pico" da heroína.
Sem emprego fixo, Christiane sobrevive dos royalties
das obras às quais empresta sua história. A vendagem
de livros e a exibição do filme, porém, têm sido cada
vez mais escassos. Sua situação financeira é limítrofe:
vive com dois tios e o filho de 9 anos, Jan-Nicklas,
num apartamento modesto em Berlim. É seu sétimo
endereço em 15 anos. Desde que se tornou famosa ao
ser "descoberta" por dois jornalistas alemães, que
publicaram suas memórias em série na prestigiosa
revista Stern, em 1979, Christiane tentou reconstruir a
vida, sem sucesso. Chegou a anunciar que estava
"limpa", livre das drogas. Anos depois, admitiu que
isso nunca ocorreu, a não ser por um período máximo
de cinco meses. Fez curso de contabilidade, mas
quando começou a trabalhar num escritório acabou
presa por posse de droga, em 1983. Depois, tentou
ser vendedora de livros: durou três semanas na
profissão. Christiane brincou de atriz (interpretou uma
dançarina de boate num filme B) e foi cantora de
banda punk. Nada sério. Convicta, ela sempre diz que
não se considera uma vítima das drogas. Pelo
contrário, garante que faz tudo de forma
absolutamente consciente. Em entrevista ao
semanário holandês De Limburger, em 2005,
Christiane deu um recado às milhares de pessoas que
se chocam (mas que também admiram) com a sua
história. "Eu nunca quis ser exemplo de nada a
ninguém, acho que cada um deve saber o que está
fazendo. Eu, pelo menos, sei o que faço".
O inferno de Christiane Vera Felscherinow
começou em 1973, quando seus pais se divorciaram.
Freqüentadora da discoteca Sound, conheceu Detlef,
que se tornaria seu namorado. Viciado em heroína e
garoto de programa, Detlef introduz Christiane na
"gangue do Zôo", grupo de jovens berlinenses que
usavam drogas numa famosa estação de metrô da
cidade alemã. No local, ela se prostituiu dos 13 aos 15
anos, necessitando de três "picos" (doses da droga)
por dia na reta final. No início, fazia programas para
completar o valor do "pico". Ela dizia que só admitia
sexo oral ou masturbação nos clientes. Dizia ser
"seletiva", repelia os "nojentos", levava uma tarde
inteira pra aceitar um cliente. Depois, mudou, aceitava
o primeiro que aparecia, tinha relações dentro de
carros. Os jornalistas Kai Herman e Horst Rieck, da
revista Stern, notaram a presença da garota durante
uma reportagem e escreveram uma série de
reportagens na publicação. Foi a origem do livro. O exnamorado
Detlef ainda está vivo e mora em Berlim.
Com filho e mulher, ele se diz limpo.
Reportagem extraída do site:
WWW.ARCALITERARIA.ORG - Notícias

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