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quarta-feira, 1 de junho de 2011

Tempo de matar, já foi filme...

JOHN GRISHAM
TEMPO DE MATAR

Oxford, Mississipi 30 de Janeiro, 1992

Billy Ray Cobb era o mais jovem e mais baixo dos dois homens brancos. Com
vinte e três anos era veterano de Parchman, a penitenciária estadual, tendo cumprido
uma pena de três anos. Posse, com intenção de venda. Era um vagabundo magro e rijo
que tinha sobrevivido à prisão graças a um bom estoque de drogas que ele vendia e às
vezes dava aos negros e aos guardas, em troca de proteção. No ano seguinte à sua
saída da cadeia, Billy Ray Cobb prosperou e o seu pequeno negócio de tráfico de drogas
elevou-o à posição de um dos mais ricos caciques brancos de Ford County. Era um
homem de negócios com empregados, obrigações, contratos e tudo, menos impostos. Na
revendedora Ford de Clanton, ele era conhecido como o último homem na história recente
a pagar em dinheiro vivo por uma pick-up. Dezesseis mil dólares na ficha por uma pick-up
Ford de luxo, feita sob encomenda, tração nas quatro rodas, amarelo-canário. As rodas
cromadas e os pneus faziam parte do acordo de compra. A bandeira rebelde, no vidro
traseiro fora roubada por Cobb de um rapaz bêbado durante uma partida de futebol em
Ole Miss.
A pick-up era o objeto mais valioso de Billy Ray. Sentado na traseira da
caminhonete, bebendo cerveja e fumando um cigarro, Billy observava o amigo Willard na
sua vez de se divertir com a garotinha negra.
Willard era quatro anos mais velho e dez anos mais burro. De um modo geral era
inofensivo, nunca se tinha metido em problemas sérios nem em um emprego fixo. Talvez
uma noite na cadeia por causa de uma briga ocasional, mas nada de importante. Dizia-se
lenhador, cortava madeira para a fábrica de papel até ao dia em que um problema na
coluna o afastou das florestas. Sofrera um acidente quando trabalhava numa plataforma
marítima, no Golfo, e recebera uma boa indenização da companhia de petróleo. O
dinheiro desapareceu quando a ex-mulher o deixou completamente liso. A principal
ocupação dele era trabalhar meio período para Billy Ray Cobb, que não pagava muito
mas era um mãos aberta com as drogas. Pela primeira vez em muitos anos, Willard podia
ter sempre alguma coisa. E ele estava sempre precisando delas. Isso desde o acidente
que lhe tinha afetado a coluna.
A menina tinha dez anos e era baixa para a idade. Estava deitada sobre os
cotovelos amarrados atrás das costas com uma corda amarela de nylon. Tinha as pernas
grotescamente abertas, o pé direito amarrado a um pequeno carvalho e o outro à estaca
tombada de uma velha cerca. A corda cortava-lhe os tornozelos e o sangue escorria-lhe
pelas pernas abaixo. O rosto estava ensangüentado e inchado, com um dos olhos
fechado, com o outro via o homem branco sentado na caminhonete. Não olhava para o
homem em cima dela. Ele arquejava, suava e praguejava e a estava machucando.
Quando terminou, ele esbofeteou a menina e riu, o outro homem riu também.
Depois, às gargalhadas, os dois rolaram na erva ao lado do carro como dois loucos,
gritando e rindo. Ela virou o rosto e chorou em silêncio. Eles a tinham espancado
anteriormente porque ela gritava e chorava. Tinham dito que a matariam se não ficasse
quieta.
Cansados de rir, os homens saltaram para a parte de trás aberta da pick-up e
Willard limpou-se com a camiseta da menina negra, agora encharcada de sangue e de
suor. Cobb estendeu-lhe uma lata de cerveja gelada, da caixa de isopor, e fez um
comentário qualquer acerca da umidade do tempo. Observaram a menina que, depois de
emitir alguns sons estranhos e baixos ficou imóvel. A lata de cerveja de Cobb estava
quase vazia e quente, e ele atirou-a, acertando no estômago da criança. A espuma
branca espalhou-se por todo o lado e a lata rolou para o chão, ao lado de outras latas
vazias saídas da mesma caixa de isopor. Já tinham atirado duas dúzias de latas de
cerveja ao mesmo alvo, rindo de cada vez que lhe acertavam. Willard não tinha boa
pontaria, mas Cobb tinha. Não costumavam atirar cerveja fora, mas as latas mais
pesadas acertavam com maior precisão e era divertido ver a espuma a subir e a espalhar-
se.
A cerveja quente misturada com o sangue escuro escorria pelo rosto e pelo
pescoço da menina, formando uma poça debaixo da cabeça dela. Ela não se mexeu.
Willard perguntou a Cobb se achava que ela estava morta.
Abrindo outra lata, Cobb explicou que não estava porque, normalmente, não era
possível matar um crioulo com pontapés, pancadas ou estupro. Era preciso muito mais
para se acabar com eles, uma faca, um revólver ou uma corda. Embora nunca tivesse
tomado parte nesse tipo de assassinato, na prisão havia muitos negros e Cobb sabia tudo
sobre deles. Passavam a vida a matar-se uns aos outros e usavam sempre uma arma. Os
que eram só espancados e violentados nunca morriam. Alguns brancos, espancados e
violentados, morriam. Mas não os negros. As cabeças deles eram mais duras. Willard
ficou satisfeito com a explicação.
Willard perguntou-lhe o que pretendia fazer, agora que já tinham acabado de se
divertir com ela. Cobb deu uma tragada no cigarro, bebeu um gole de cerveja e disse que
não tinha terminado ainda. Saltou do carro e cambaleou para a pequena clareira onde a
menina estava amarrada. Gritou e praguejou a fim de acordá-la, depois lhe atirou cerveja
gelada à cara, rindo como um louco.
Ela o viu dar a volta à árvore à sua direita e depois olhar para o meio das suas
pernas abertas. Quando Cobb baixou as calças, ela virou o rosto para a esquerda e
fechou os olhos. Ele estava machucando-a de novo. A menina olhou para as árvores e viu
o vulto de um homem correndo desesperadamente por entre as trepadeiras e o mato alto.
Era o pai, aos gritos, apontando e correndo para salvá-la. A menina gritou por ele e ele
desapareceu. Ela voltou a adormecer.
. Quando acordou, um dos homens estava deitado debaixo da carroceria e o outro
debaixo de uma árvore. Os dois dormiam. Os braços e pernas dela estavam dormentes.
O sangue, a cerveja e a urina misturados com a terra formavam uma pasta pegajosa que
se colava ao corpo e estalava a cada pequeno movimento. Fugir, pensou ela, mas o
esforço maior só lhe permitiu um pequeno movimento para a direita. Os pés amarrados
estavam tão altos que as suas nádegas mal tocavam no chão. Os braços e as pernas
dormentes não se moviam.
Procurou o pai entre as árvores e chamou-o baixinho. Esperou e tornou a
adormecer. Quando acordou outra vez, eles estavam de pé, movendo-se ao lado do
carro. O mais alto cambaleou para ela com um canivete na mão. Segurou no tornozelo
esquerdo da menina e serrou furiosamente a corda. Depois, soltou a perna direita e ela
enrolou-se na posição fetal, de costas para eles.
Cobb passou o pedaço de corda de nylon por um galho de árvore e fez um nó
corrediço na ponta. Segurou a menina, passou o laço pela cabeça dela e caminhou para o
outro lado da clareira, com a outra ponta da corda na mão. Sentou-se na porta da
caminhonete, onde Willard fumava um cigarro e ria para Cobb, percebendo
antecipadamente o que ele ia fazer. Cobb esticou a corda e deu um puxão forte. O corpo
pequenino saltou no chão e foi arrastado para debaixo do ramo da árvore. Ela engasgou-
se e tossiu, e ele gentilmente afrouxou um pouco a corda para a poupar durante mais
alguns minutos. Amarrou a corda no pára-choques do carro e abriu mais uma cerveja.
Ficaram ambos sentados na porta da caminhonete, bebendo, fumando e olhando
para ela. Tinham passado quase o dia todo no lago, onde o amigo de Cobb tinha um
barco e algumas garotas supostamente fáceis, mas que na verdade eram intocáveis.
Cobb fora generoso com as drogas e a cerveja, mas as garotas não corresponderam.
Frustrados, deixaram o lago e seguiram pela estrada, sem destino, até que avistaram a
menina. Ela caminhava pela estrada de cascalho com um saco de compras, quando
Willard lhe acertou na nuca com uma lata de cerveja.
- Vai fazer isso? - perguntou Willard, com os olhos vermelhos e vidrados.
Cobb hesitou.
- Não, deixo para você. A idéia foi tua.
Willard deu uma tragada no cigarro, cuspiu e disse:
- A idéia não foi minha. Você é que és especialista em matar crioulos. Faça isso.
Cobb desamarrou a corda do pára-choques e esticou-a outra vez. Pedaços da
casca do galho, arrancados pela corda de nylon, caíram sobre a menina, que agora os
observava atentamente. Tossiu.
De repente, ela ouviu um ruído - como o de um carro com o tubo de escape
aberto. Os dois homens voltaram-se rapidamente e olharam para a estrada alcatroada ao
longe. Praguejando, agiram rapidamente, um fechando a porta de trás do carro, e o outro
correndo para ela. Tropeçou e caiu perto da menina. Por entre uma troca de palavrões,
agarraram-na, tiraram-lhe a corda do pescoço, a arrastaram até o carro e a atiraram para
dentro da parte de trás, aberta. Cobb esbofeteou-a, ameaçando matá-la se não ficasse
deitada no fundo do carro e quieta. Disse-lhe que a levaria para casa se obedecesse,
caso contrário, a matariam. Fecharam as portas e enfiaram rapidamente pela estrada de
terra. Ela ia voltar para casa. Desmaiou.
Cobb e Willard acenaram para o Firebird conversível, quando cruzaram com ele na
estrada estreita de terra. Willard virou-se para trás para verificar se a menina estava
deitada. Cobb entrou na estrada de asfalto e seguiu em frente.
- E agora? - perguntou Willard, nervoso.
- Não sei - respondeu Cobb, também nervoso. - Mas temos de fazer alguma coisa
depressa, antes que ela suje de sangue o carro todo. Olha para trás, há sangue por toda
a parte.
Willard pensou um minuto, enquanto acabava de beber a cerveja.
- Vamos atirá-la de uma ponte - disse, orgulhoso.
- Grande idéia. É mesmo uma puta de uma bela idéia. - Cobb parou de repente. ­
Me dê uma cerveja - ordenou. Willard saiu do carro e pegou as cervejas na parte de trás. -
Ela sujou de sangue até a caixa de isopor - informou ele, e o carro voltou a partir a toda a
velocidade pela estrada.

Gwen Hailey teve um pressentimento horrível. Normalmente ela teria mandado um
dos rapazes ao armazém, mas estavam de castigo, tratando do jardim, por ordem do pai.
Tonya já tinha ido sozinha ao armazém - a dois quilômetros de casa - sem qualquer
problema. Porém, ao fim de duas horas, Gwen mandou as crianças procurarem a irmã.
Pensaram que ela devia estar na casa dos Pounder, brincando com as crianças, ou talvez
se tivesse aventurado para além do armazém para visitar a sua melhor amiga, Bessie
Pierson.
O Sr. Bates do armazém disse que ela tinha saído há uma hora. Jarvis, o irmão do
meio, encontrou o saco com os mantimentos ao pé da estrada.
Gwen telefonou para o marido na fábrica de papel, a seguir meteu Carl Lee Jr. no
carro e começou a percorrer as estradas de terra em volta do armazém. Foi até um
conjunto de casas velhas no Lugar Graham, para ver se ela estaria na casa de uma das
tias. Parou na loja Broadway a dois quilômetros do armazém e um grupo de negros
velhos garantiu-lhe que não a tinham visto. Gwen percorreu uma vasta área de estradas
de terra em volta da sua casa.
Cobb não conseguia encontrar uma ponte que não estivesse cheia de crioulos
com varas de pesca. Em cada uma delas havia quatro ou cinco pescando, com grandes
chapéus de palha, e mais alguns debaixo da ponte, sentados em baldes, também com
chapéus de palha e caniços de pesca, imóveis, a não ser por um ocasional movimento
para espantar os mosquitos.
Estava assustado. Willard, completamente bêbado, estava dormindo e não podia
ajudar em nada. Cobb tinha de se desfazer da menina de modo que ela nunca pudesse
contar o que tinha acontecido. Willard roncava enquanto ele percorria freneticamente as
estradas de terra e de asfalto à procura de uma ponte ou de uma rampa ao lado do rio,
onde pudesse parar e atirá-la à água sem ser visto por uma dezena de crioulos com
chapéus de palha. Olhou pelo retrovisor e viu que ela tentava ficar de pé. Freou
bruscamente e a menina caiu no fundo do carro, por baixo da janela. Willard ricocheteou
no painel e escorregou para o chão, onde continuou roncando. Cobb insultou-os a ambos.
O lago Chatulla não passava de um enorme buraco lamacento feito pelo homem,
com uma represa coberta de mato de um quilômetro e meio de extensão numa das suas
extremidades. Ficava no extremo sudoeste de Ford County, e entrava ainda por alguns
hectares de Van Buren County. Na Primavera, o lago era elevado à posição de maior
massa de água do Mississipi. Mas no fim do Verão, terminadas as chuvas, o sol
evaporava a água, secando quase por completo o lago. As linhas das margens, antes
ambiciosas, retraíam-se agora, juntando-se praticamente no centro, criando uma bacia
profunda cheia de água castanho-avermelhada. Vários regatos, pântanos e riachos
alimentavam-no, vindos de todas as direções além de duas correntes que podiam ser
consideradas como rios. A existência de todos esses afluentes era a causa da construção
de várias pontes em volta do lago.
E era sobre essas pontes que a pick-up amarela voava, num esforço frenético para
encontrar um lugar onde pudesse despejar a passageira indesejável. Cobb estava
desesperado. Conhecia mais uma ponte, estreita e de madeira, sobre o Foggy Creek. Ao
chegar lá, avistou mais crioulos e mais varas. Seguiu por outra estrada de terra e parou.
Abriu a porta de trás da caminhonete, arrastou a menina para fora e atirou-a numa
pequena ravina cercada de mato seco.

Carl Lee Hailey não se apressou em voltar para casa. Gwen assustava-se com
facilidade e telefonava para a fábrica sempre que imaginava que uma das crianças fora
raptada. Ele marcou o ponto à hora habitual e, como sempre, fez em trinta minutos o
percurso da fábrica até a casa. Ficou preocupado quando viu o carro da policial parado na
frente da varanda. Os carros da família de Gwen estavam espalhados na frente da casa e
no jardim e estava lá um que ele não conhecia. Tinha varas de pesca saindo pelas janelas
e pelo menos sete chapéus de palha lá dentro.
Onde estavam Tonya e os rapazes?
Quando abriu a porta, ouviu o choro de Gwen. À sua direita, na pequena sala de
estar, viu um grupo de pessoas em volta de alguém deitado no sofá. A criança estava
coberta com toalhas e rodeada pelos parentes que choravam. Quando Carl Lee chegou
perto do sofá, o choro parou e todos recuaram. Só Gwen ficou, acariciando o cabelo da
filha. Ele ajoelhou-se ao lado do sofá e tocou no ombro da menina. Falou com Tonya e ela
tentou sorrir. O seu rosto era uma massa informe e sangrenta, cheia de equimoses e de
golpes. Os dois olhos estavam fechados e sangravam. Os olhos dele encheram-se de
lágrimas ao olhar para o corpo pequenino enrolado em toalhas e sangrando desde os
tornozelos até à testa.
Carl Lee perguntou a Gwen o que tinha acontecido. Ela começou tremendo e
chorando alto e o irmão levou-a para a cozinha. Carl Lee levantou-se e perguntou aos
parentes o que tinha acontecido. Silêncio.
Ele perguntou pela terceira vez. O policial, Willie Hastings, primo de Gwen,
adiantou-se e explicou-lhe que uns homens estavam pescando no Foggy Creek e tinham
avistado Tonya deitada no meio da estrada. Ela dissera o nome do pai e eles tinham-na
trazido para casa. Hastings calou-se e baixou a cabeça.
Carl Lee olhou para ele e ficou à espera, enquanto todos na sala continham a
respiração e olhavam para o chão.
- O que aconteceu, Willie? - gritou Carl Lee, olhando para o policial.
Hastings falou devagar e, olhando pela janela, repetiu o que Tonya tinha contado à
mãe sobre dois homens brancos e da pick-up, da corda e das árvores e de como a tinham
machucado quando a tinham violado. Parou de falar ao ouvir a sirene da ambulância.
Todos saíram, para a varanda, e olharam gravemente para os homens que
retiraram a maca da ambulância e se dirigiram até à casa.
Os paramédicos pararam no jardim quando a porta se abriu e Carl Lee apareceu
com a filha nos braços. Sussurrava-lhe palavras carinhosas e as lágrimas caíam-lhe
queixo abaixo. Foi até à ambulância e entrou. Os paramédicos fecharam a porta
cuidadosamente e tiraram-na dos braços do pai.

DOIS

Ozzie Walls era o único xerife negro em todo o Mississipi. Houve outros na história
recente do estado, mas, nesse momento, era o único. Orgulhava-se muito do fato, uma
vez que a população de Ford County era formada por setenta e quatro por cento de
brancos e os outros xerifes negros tinham sido eleitos em cidades onde a população
negra era muito maior. Desde a Restauração nenhum outro xerife negro fora eleito num
condado branco do Mississipi.
Ozzie fora criado em Ford County e era parente da maioria dos negros e de alguns
brancos. Terminada a segregação, no final dos anos 60, fizera parte da primeira turma
mista formada no liceu de Clanton. Ozzie queria jogar futebol em Ole Miss, mas já havia
dois negros na equipe. Entrou para o Alcom State, onde sobressaiu, e jogava na defesa
dos Rams quando teve um problema num dos joelhos e voltou para Clanton. Sentia falta
do futebol, mas gostava de ser xerife, especialmente na época das eleições quando
recebia mais votos do que os seus oponentes brancos. Os garotos brancos idolatravam-
no porque ele era um herói, uma estrela do futebol que aparecia na TV e a sua fotografia
saía nas revistas. Os pais respeitavam-no e votavam nele porque era um policial duro que
não fazia distinção entre vagabundos negros e vagabundos brancos. Os políticos brancos
apoiavam-no porque, desde que se tornara xerife, o Departamento de Justiça deixara de
interferir nos assuntos de Ford County. Os negros adoravam-no simplesmente por ele ser
Ozzie, um deles.
Ozzie não jantou e permaneceu no seu escritório, no prédio da cadeia, esperando
Hastings para ouvir o relatório que o policial faria quando voltasse da casa dos Hailey. O
xerife tinha um suspeito. Billy Ray Cobb não lhe era desconhecido. Ozzie sabia que ele
vendia drogas - só que não conseguia prendê-lo. Sabia também que Cobb era cruel.
O operador de rádio chamou os policiais e Ozzie deu-lhes instruções para
localizarem, mas não prenderem, Billy Ray Cobb. Eram doze policiais ao todo - nove
brancos e três negros. Espalharam-se pela região à procura da pick-up Ford especial,
amarelo-canário, com uma bandeira rebelde no vidro traseiro.
Quando Hastings chegou, Ozzie seguiu com ele para o hospital. Como sempre,
Hastings dirigia e Ozzie dava instruções pelo rádio. Encontraram o clã dos Hailey na sala
de espera do segundo andar. Tias, tios, avós, amigos e estranhos amontoavam-se no
pequeno espaço e outros no corredor estreito. Ouviam-se murmúrios e viam-se lágrimas
silenciosas. Tonya estava na sala de cirurgia.
Carl Lee estava sentado com Gwen a seu lado e os rapazinhos ao lado dela. Com
os olhos fixos no chão, parecia não ver ninguém. Recostada no ombro dele, Gwen
chorava baixinho. Os filhos, muito rígidos, com as mãos nos joelhos, uma vez por outra
olhavam para o pai, como que à espera de uma palavra tranqüilizadora.
Ozzie atravessou a salinha, dando apertos de mão, palmadas nas costas e
dizendo em voz baixa que ia apanhar os culpados. Ajoelhou-se em frente de Carl Lee e
de Gwen.
- Como está ela? - perguntou.
Carl Lee não o viu. Gwen chorou mais alto e os filhos fungaram e enxugaram as
lágrimas. Ozzie bateu de leve no joelho de Gwen e levantou-se. Um dos irmãos dela
levou-o para o corredor, para longe da família. Apertou a mão de Ozzie e agradeceu a
sua presença.
- Como está ela? - perguntou Ozzie.
- Não muito bem. Está na cirurgia e ao que parece vai demorar. Tem ossos
partidos e um traumatismo grave. Foi muito espancada. Tem também marcas de uma
corda no pescoço, como se tivessem tentado enforcá-la.
- Foi violada? - perguntou Ozzie, apesar de saber a resposta.
- Foi. Contou à mãe que eles se revezaram e a machucaram muito. Os médicos
confirmaram.
- Como estão Carl Lee e Gwen?
- Muito abalados. Acho que estão em estado de choque. Carl Lee ainda não disse
uma palavra desde que chegou.
Ozzie garantiu que ia encontrar os dois homens, que isso não ia demorar e que
quando os encontrasse ia trancá-los muito bem em lugar seguro. O irmão sugeriu-lhe que
os prendesse em outra cadeia, para própria segurança de ambos.

A cinco quilômetros de Clanton, Ozzie apontou para a entrada de terra de uma
casa.
- Pare ali - disse a Hastings, que saiu do asfalto e parou em frente de um trailer
velho. Era quase noite. Ozzie bateu à porta com o cassetete. - Abra a porta, Bumpous!
O trailer estremeceu e Bumpous correu para o banheiro para atirar o cigarro de
maconha no vaso.
- Abra, Bumpous! - Ozzie bateu de novo, com violência. - Sei que está aí. Se não
abrir, arrombo a porta com um pontapé. Bumpous abriu a porta rapidamente e Ozzie
entrou.
- Sabe uma coisa, Bumpous, todas as vez que lhe faço uma visita, sinto um cheiro
esquisito e ouço a descarga do banheiro. Vista-se, tenho um trabalho para você.
- O-o quê?
- Explico-lhe lá fora, onde consigo respirar. Trate de se vestir depressa.
- E se eu não quiser?
- Não há problema. Amanhã, arranjo uma maneira de acabar com a sua liberdade
condicional.
- Saio já.
Ozzie sorriu e dirigiu-se para o carro. Bobby Bumpous era um dos seus favoritos.
Desde que obtivera a liberdade condicional, dois anos antes, levava uma vida
razoavelmente limpa, sucumbindo uma vez ou outra à compra fácil da droga a troco de
uns tostões. Ozzie vigiava-o como um gavião e sabia dessas transações e Bumpous
sabia que Ozzie sabia. Por isso, Bumpous estava sempre mais do que disposto a ajudar o
seu amigo, o xerife Ozzie Walls. O plano de Ozzie era usar Bumpous para incriminar Billy
Ray Cobb por tráfico de drogas, mas isso tinha de ficar para mais tarde. Minutos depois
Bumpous saiu, metendo a camisa para dentro e puxando o fecho das calças.
- De quem é que anda à procura? - perguntou. - De Billy Ray Cobb.
- Ora, não precisa de mim para encontrar Billy Ray.
- Cale a boca e ouça. Achamos que Cobb está envolvido num caso de estupro que
aconteceu esta tarde. Uma menina negra foi violada por dois homens brancos e eu acho
que Cobb está metido nisso.
- Cobb não é violador, xerife. O negócio dele é droga, lembra-se?
- Cale a boca e ouça. Você encontra Cobb, passa algum tempo com ele. Há cinco
minutos, a pick-up dele foi vista em frente do Huey's. Pague-lhe uma cerveja. Jogue
bilhar, dados, qualquer coisa. Descubra o que fez ele hoje. Com quem esteve. Onde foi.
Você sabe como ele gosta de falar, certo?
- Certo.
- Quando o encontrar, telefone para o meu escritório. Eles me avisam. Vou estar
por ali. Compreendeu?
- Claro, xerife, tudo bem.
- Alguma pergunta?
- Sim. Estou duro. Quem vai pagar tudo isto?
Ozzie deu-lhe vinte dólares e seguiu com Hastings na direção do Huey's, na
margem do lago.
- Tem certeza de que pode confiar nele? - perguntou Hastings.
- Em quem?
- Neste tal Bumpous.
- Claro que confio. Ele já provou que é digno de confiança desde a liberdade
condicional. É um bom rapaz que tenta andar direito, a maior parte do tempo. Ele apóia o
xerife local e faz qualquer coisa que eu lhe peça.
- Porquê?
- Porque eu o apanhei com 300 gramas de droga há um ano. O Bumpous tinha
saído da cadeia há um ano quando eu apanhei o irmão dele com 30 gramas e o avisei de
que estava candidatando-se a trinta anos de prisão. Ele desatou chorando e chorou e
lamentou-se a noite inteira na cela. De manhã estava pronto falando. Disse que o
fornecedor era o irmão dele, Bobby. Nessa altura, soltei-o e fui falar com Bobby. Bati à
porta e ouvi a descarga do banheiro. Ele não veio abrir a porta e eu abri-a com um
pontapé. O Bumpous estava só de cuecas, no banheiro, tentando desentupir o vaso.
Havia droga por toda a parte. Não sei quanto ele já tinha conseguido jogar fora, mas a
maior parte estava vindo ao de cima no vaso entupido. O susto foi tão grande que ele
urinou nas cuecas.
- Está brincando!
- Sério. O rapaz mijou-se todo. Um espetáculo! Ele ali de pé com as cuecas
molhadas, o desentupidor numa das mãos, a droga na outra e o banheiro inundado com a
água do vaso.
- E o que é que você fez?
- Disse-lhe que o matava.
- E ele?
- Começou chorando. Chorou como uma criança. Chorou por causa da mãe, da
prisão, disto e daquilo. Prometeu que nunca mais ia sair da linha.
- Prendeu-o?
- Não, não tive coragem. Gritei com ele e ameacei-o mais um pedaço. Declarei
que estava em liberdade provisória, ali mesmo, no banheiro inundada. Desde esse dia
que tem sido divertido trabalhar com ele.
Passaram pelo Huey's e viram a caminhonete de Cobb no estacionamento de
cascalho, no meio de mais uma dúzia de outras, todas com tração nas quatro rodas.
Estacionaram atrás da igreja de negros numa colina de onde avistavam o pequeno
inferno, ou taberna, como chamavam ao Huey's, carinhosamente, os seus
freqüentadores. Outro carro da policial estava escondido atrás de umas árvores, na outra
extremidade da estrada. Logo a seguir, Bumpous passou por eles à desfilada e entrou no
estacionamento. Parou de repente, espalhando cascalho e pó e entrou, de ré, no lugar
livre, ao lado do carro de Cobb. Olhou em volta e calmamente entrou no Huey's. Trinta
minutos depois, o rádio da policial avisou que o informante avistara um elemento, um
homem branco, no Huey's, um estabelecimento na auto-estrada 305, perto do lago. Logo
em seguida, duas outras viaturas chegaram e esconderam-se perto do Huey's. Puseram-
se à espera.
- Por que tem tanta certeza de que foi Cobb? - perguntou Hastings.
- Não tenho certeza. É só uma intuição. A menina disse que era uma pick-up com
rodas brilhantes e pneus grandes.
- Isso descreve mais ou menos duas mil caminhonetes.
- Ela disse também que era amarela, parecia nova e tinha uma bandeira grande
dependurada no vidro traseiro.
- Agora, já só são duzentas.
- Talvez menos. Quantos desses homens são tão cruéis quanto Billy Ray Cobb?
- E se não foi ele?
- Mas foi.
- Se não for...
- Depressa ficaremos sabendo. Billy Ray fala demais, especialmente quando bebe.
Esperaram duas horas, vendo as pick-ups que entravam e saíam do
estacionamento. Caminhoneiros, lenhadores da fábrica de papel, operários de fábrica e
agricultores estacionavam as suas pick-ups e os seus jipes no cascalho e entravam para
beber, jogar bilhar, ouvir o grupo musical, mas especialmente para encontrar mulheres.
Alguns saíam e iam até à casa vizinha, o Ann's, onde ficavam durante alguns minutos e
depois voltavam para o Huey's. O Ann's era mais escuro tanto por dentro quanto por fora
e não tinha anúncios coloridos de cerveja nem música ao vivo, o que fazia do Huey's o
preferido lá do lugar. O Ann's era conhecido pelo tráfico de drogas, ao passo que o Huey's
tinha de tudo, música, mulheres, flipers, máquinas de pôquer, jogo de dados, dança e
muita pancadaria. Uma delas estourou porta fora para o meio do estacionamento, com um
grupo de brancos chutando-se, empurrando-se e agarrando-se uns aos outros, até que,
vencidos pelo cansaço, voltaram para os dados.
- Espero que não tenha sido o Bumpous - disse o xerife. Os banheiros no Huey's
eram pequenos e imundos e a maior parte dos freqüentadores preferia fazer as
necessidades entre as pick-ups estacionadas do lado de fora. Isso acontecia
especialmente às segundas-feiras, dia de promoção da cerveja a cinqüenta centavos, que
atraía os agricultores brancos de quatro condados; cada um dos carros recebia pelo
menos três regadelas. Mais ou menos uma vez por semana, algum viajante de passagem
ficava chocado com alguma coisa que via no estacionamento e Ozzie era obrigado a
efetuar uma prisão. Fora disso, não interferia.
Os dois pequenos infernos violavam uma porção de leis. Havia jogo, drogas,
uísque de contrabando, menores, nunca fechavam à hora determinada, etc. Logo depois
de eleito pela primeira vez, Ozzie cometeu o erro, devido em parte a uma precipitada
promessa de campanha, de fechar todos os pequenos infernos da zona. Foi um erro
terrível. O índice de criminalidade subiu alarmantemente. A cadeia ficou cheia. Os
julgamentos multiplicaram-se. Os agricultores brancos uniram-se, foram em caravana até
Clanton e estacionaram em volta do tribunal de justiça, na praça. Às centenas. Todas as
noites invadiam a praça, bebendo, lutando, tocando música no volume mais elevado e
gritando obscenidades para a população da cidade. Todas as manhãs a praça parecia um
depósito de lixo, com latas e garrafas por toda parte. Ozzie fechou também os bares dos
negros. Arrombamentos, assaltos e lutas à facada triplicaram num mês. Houve dois
assassinatos numa semana.
Finalmente, com a cidade sitiada, um grupo de religiosos locais reuniu-se
secretamente com Ozzie e pediu-lhe que fosse menos rigoroso com os inferninhos.
Delicadamente, ele lembrou-lhes que, durante a sua campanha, tinham sido eles a insistir
no encerramento daqueles locais. Admitiram que tinham errado e pediram para suspender
a ordem. Sim, eles o apoiariam nas eleições. Ozzie cedeu e a vida voltou ao normal em
Ford County.
Não agradava a Ozzie que aqueles estabelecimentos prosperassem no seu
distrito, mas estava mais do que convencido de que seus eleitores, cumpridores da lei,
estariam muito mais seguros com os inferninhos abertos.
Às dez e meia o rádio da policial preveniu que o informante estava ao telefone e
queria ver o xerife. Ozzie disse onde estava e, um minuto depois, viram Bumpous sair e
cambalear para o carro. Fazendo chiar os pneus e levantando cascalho, saiu disparado
em direção à igreja.
- Está bêbado - disse Hastings.
Bumpous entrou no estacionamento da igreja e parou com uma travagem brusca a
poucos metros do carro-patrulha.
- Como vai, xerife? - gritou ele. Ozzie foi até à pick-up.
- Por que demorou tanto?
- O xerife disse que eu tinha a noite toda.
- Você encontrou-o há duas horas.
- Isso é verdade, xerife, mas alguma vez tentou gastar vinte dólares em cerveja
que custa cinqüenta centavos a lata?
- Está bêbado?
- Nem pouco mais ou menos, só me diverti um pedaço. Não me quer dar mais
vinte?
- O que descobriu?
- Sobre quê?
- Cobb!
- Ah, está lá dentro, sim.
- Eu sei que ele está lá dentro. E que mais?
O sorriso desapareceu e Bumpous olhou para o Huey's ao longe.
- Ele está gozando com a história toda, xerife. Rindo às gargalhadas. Diz que
finalmente encontrou uma crioula virgem. Alguém perguntou que idade ela tinha e Cobb
respondeu oito ou nove. Todos acharam graça.
Hastings fechou os olhos e baixou a cabeça. Ozzie rangeu os dentes e olhou para
longe.
- Que mais ele disse?
- Cobb está muito bêbado. Não se vai lembrar de nada amanhã. Chegou mesmo
dizendo que até era uma crioulinha jeitosinha.
- Quem estava com ele?
- Pete Willard.
- Também está lá?
- Claro, estão ambos rindo que nem uns perdidos.
- Onde estão eles?
- Do lado esquerdo, perto da slot-machine. - Ozzie sorriu.
- Tudo bem, Bumpous. Trabalhou bem. Desapareça.
Hastings comunicou os dois nomes pelo rádio. A mensagem foi transmitida para o
policial Looney que estava parado na rua, em frente da casa do juiz do condado, Percy
Bullard. Looney tocou à campainha e entregou ao juiz duas declarações ajuramentadas e
dois mandatos de prisão. Bullard preencheu os mandatos e devolveu-os a Looney, que
agradeceu ao meritíssimo e foi embora. Vinte minutos depois, Looney entregou os
mandatos a Ozzie, atrás da igreja. Às onze horas em ponto, o grupo musical parou no
meio de uma música, os dados desapareceram, os dançarinos ficaram imóveis, as bolas
de bilhar pararam de rolar e alguém acendeu as luzes. Todos os olhos acompanharam o
xerife e os seus homens que atravessaram devagar a pista de dança na direção da mesa
ao lado da slot-machine. Cobb, Willard e dois outros homens estavam sentados em uma
mesa cheia de latas de cerveja vazias. Ozzie aproximou-se com um largo sorriso.
- Desculpe-me, senhor, mas não permitimos pretos aqui - disse Cobb e os quatro
desataram às gargalhadas.
Ozzie continuou sorrindo. Quando eles pararam de rir, disse:
- Está se divertindo bastante, Billy Ray?
- Estávamos.
- É o que parece. Detesto ser desmancha-prazeres, mas o senhor e o Sr. Willard
têm de vir comigo.
- Aonde é que vamos? - perguntou Willard.
- Dar um passeio.
- Não saio daqui - afirmou Cobb. Os outros dois homens levantaram-se e
juntaram-se aos espectadores.
- Eu estou dando voz de prisão a ambos - disse Ozzie.
- Tem os mandatos? - perguntou Cobb.
Hastings estendeu os mandatos e Ozzie atirou-os para cima da mesa.
- Sim, temos os mandatos. Agora, levantem-se.
Willard olhou desesperado para Cobb, que bebeu um gole de cerveja e disse:
- Eu não vou para a cadeia.
Looney entregou a Ozzie o mais comprido e negro cassetete já usado em Ford
County. Willard entrou em pânico. Ozzie bateu com o cassetete no meio da mesa,
atirando as garrafas e as latas para todos os lados. Willard levantou-se de um salto e
estendeu os pulsos para Looney que esperava com as algemas. Foi levado para fora e
empurrado para dentro de um carro da policial.
Ozzie bateu com o cassetete na palma da mão e sorriu para Cobb.
- Tem o direito de permanecer em silêncio. Qualquer coisa que diga pode ser
usada contra si no tribunal. Tem direito a um advogado. Se não puder pagar, o estado
arranja-lhe um. Alguma pergunta?
- Sim, que horas são?
- Hora de ir para a cadeia, grande homem.
- Vá para o inferno, crioulo.
Ozzie segurou-o pelos cabelos e ergueu-o do banco, depois esfregou-lhe a cara
no chão. Pôs um joelho nas costas de Cobb, o cassetete sob o queixo e puxou para cima,
apertando o joelho para baixo. Cobb gritou até o cassetete começar a sufocá-lo. As
algemas fecharam-se nos pulsos dele e Ozzie arrastou-o pelos cabelos através da pista
de dança, porta fora, pelo chão de cascalho. Atirou-o para o banco de trás do carro da
policial, para junto de Willard.
A notícia do estupro espalhou-se rapidamente. Mais amigos e parentes
amontoaram-se na sala de espera e nos corredores do hospital. Tonya saiu da sala de
cirurgia e o estado dela foi considerado crítico. Ozzie falou com o irmão de Gwen e
contou-lhe a prisão dos dois homens. Sim, tinham sido eles, tinha certeza.

Jake Brigance rolou na cama por cima da mulher e caminhou para a pequeno
banheiro a poucos metros da cama. A tatear no escuro, procurou o terrível despertador.
Encontrou-o onde o tinha deixado na noite anterior e acabou-lhe com a gritaria com um
poderoso safanão. Eram 5:30 da manhã de quarta-feira, 15 de Maio.
Jake parou um momento, com falta de ar, apavorado, com o coração aos saltos,
olhando para os números fluorescentes do relógio, daquele relógio que ele odiava. O grito
estridente podia ouvir-se na rua. Todas as manhãs, àquela hora, enfrentava o risco de
uma parada cardíaca, quando aquela coisa entrava em erupção. Umas duas vezes por
ano ele conseguia empurrar Carla para fora da cama e ela desligava o despertador, antes
de voltar para debaixo dos cobertores. Porém, a maior parte das vezes ela não
cooperava. Carla achava que o marido era louco por se levantar àquela hora.
O relógio ficava no peitoril da janela para obrigá-lo a dar alguns passos a fim de
silenciá-lo. Uma vez de pé, Jake não se permitia voltar para o aconchego dos cobertores.
Era uma das suas normas. Houve um tempo em que o despertador ficava na mesa-de-
cabeceira, com o volume reduzido. Carla estendia o braço e desligava-o, antes que Jake
o tivesse ouvido. Nessas alturas, dormia até às sete ou oito horas, o que lhe dava cabo do
dia todo. Não podia chegar ao escritório às sete horas, o que era outra das suas normas.
O despertador foi para o banheiro, onde servia perfeitamente o seu objetivo.
Jake lavou o rosto e molhou a cabeça com água fria. Acendeu a luz e, com uma
exclamação de horror, olhou para a imagem refletida no espelho. O cabelo castanho liso,
despenteado, espetava-se para todos os lados e a linha no alto da testa tinha-se
afastado, pelo menos cinco centímetros, durante a noite. Ou talvez a testa tivesse
crescido. A remela acumulava-se nos cantos dos olhos inchados e sem brilho. Uma linha
vermelha, desenhada por uma dobra do cobertor, marcava-lhe o lado esquerdo da cara,
como uma cicatriz. Jake tocou-lhe e esfregou-a, temendo que nunca mais desaparecesse.
Empurrou o cabelo para trás com a mão direita e examinou a linha da testa. Aos trinta e
dois anos, não tinha nenhum cabelo branco. Mas o problema não eram os cabelos
brancos. O problema era a calvície, herdada dos dois lados da família. Jake sonhava com
uma linha do cabelo que começasse logo acima das sobrancelhas. Carla afirmava que ele
ainda tinha muito cabelo. Mas à velocidade com que desaparecia, aquilo não ia durar
muito. Ela garantia também que Jake continuava belo como sempre, e ele acreditava.
Carla explicara que a calvície incipiente dava um ar de maturidade, essencial para um
jovem advogado. Jake também acreditava nisso.
Mas, que dizer dos advogados velhos e carecas, ou até mesmo dos advogados
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maduros, de meia-idade e carecas? Por que não podia voltar o cabelo quando ele tivesse
rugas e cabelos brancos, o que o fazia parecer muito amadurecido?
Jake pensava nisso debaixo do chuveiro. Depois do banho rápido, fez a barba e
vestiu-se depressa. Tinha de estar no Coffee Shop as 6 horas - outra norma. Acendeu a
luz do quarto e abriu e fechou as gavetas ruidosamente, tentando acordar Carla. Esse era
o ritual das manhãs de Verão, durante as férias da escola onde ela lecionava. Jake tinha
explicado, várias vezes, que Carla tinha o dia todo para recuperar o sono perdido e que
deviam passar juntos aqueles primeiros momentos da manhã. Ela gemeu e afundou-se
mais debaixo dos cobertores. Já vestido, Jake saltou para cima da cama e apoiado nas
mãos e nos joelhos, beijou a orelha de Carla, o pescoço, o rosto, até ela se virar para ele.
Puxou, então, os cobertores e riu quando Carla se encolheu, tremendo de frio e pedindo
os cobertores. Jake admirou as pernas bronzeadas, magras e quase perfeitas. A camiseta
de dormir só chegava até a cintura e pensamentos deliciosos dançaram-lhe na cabeça.
Mais ou menos uma vez por mês esse ritual ultrapassava os limites. Carla não protestava
e os cobertores eram afastados de comum acordo. Nessas manhãs, Jake despia-se, mais
do que rapidamente, e violava pelo menos três das suas normas. Fora assim que tinham
concebido Hanna.
Mas não nessa manhã. Ele cobriu a mulher, beijou-a gentilmente e apagou a luz.
Carla respirou aliviada e voltou a adormecer.
No corredor, abriu silenciosamente a porta do quarto de Hanna e ajoelhou-se ao
lado da cama. Hanna tinha quatro anos, era filha única e não iam ter mais nenhum filho.
Ela dormia no meio das bonecas e bichinhos de pelúcia. Jake beijou-a de leve, na face.
Hanna era tão bela quanto a mãe e eram ambas idênticas em tudo. Tinham olhos
grandes, cinza-azulados, que podiam se encher de lágrimas num instante, quando
necessário. Usavam o mesmo penteado - o cabelo escuro cortado pela mesma pessoa,
no mesmo dia. Até a roupa que usavam era igual.
Jake adorava as duas mulheres da sua vida. Despediu-se da segunda com um
beijo e foi até à cozinha fazer café para Carla. Abriu a porta dos fundos para Max, o cão.
Enquanto fazia o café, Max latia para o gato da vizinha, a Sra. Pickle.
Poucas pessoas enfrentavam a manhã como Jake Brigance. Foi rapidamente até
o portão e pegou os jornais para Carla. Estava escuro, o céu limpo e o ar frio, mas com a
promessa do Verão que se aproximava.
Jake olhou para os dois lados da rua escura e depois, voltando-se, admirou a sua
casa. Apenas duas residências em Ford County faziam parte do Patrimônio Histórico e
Jake Brigance era dono de uma delas. A pesada hipoteca não lhe diminuía o orgulho. Era
uma casa de estilo vitoriano, do século XIX, construída por um ferroviário aposentado que
morrera na primeira noite de Natal que passou na nova casa. A fachada era um enorme
frontão central com telhado esconso sobre um largo alpendre interno. Sob o frontão, uma
pequena coluna coberta com a trave da empena apoiava-se suavemente no alpendre. Os
cinco pilares de sustentação eram redondos e pintados de branco e cinzento-azulado.
Cada coluna exibia um entalhe florido feito à mão, cada qual com uma flor diferente:
narcisos, íris e girassóis. A balaustrada entre os pilares mostrava um profuso rendilhado.
No alto, três janelas salientes abriam-se para uma pequena varanda, e à esquerda da
varanda uma torre octogonal com janelas de vitrais projetava-se acima do frontão,
terminando num remate de ferro. Por baixo da torre e à esquerda do alpendre, estendia-
se uma passagem coberta, larga e graciosa, com grades ornamentais, que servia de
abrigo para carros. As paredes da frente eram uma colagem de rosquinhas de gengibre,
telhas de cedro, festões, escamas de peixe, pequenos frontões rebuscados e fusos em
miniatura.
Carla encontrara um consultor de pintura em Nova Orleans e a bicha tinha
escolhido seis cores originais - a maior parte tonalidades de azul, cinzento, pêssego e
branco. A pintura levou dois meses, sem contar as horas intermináveis que ele e Carla
passaram no alto de escadas raspando paredes. Embora Jake não gostasse muito de
algumas cores, jamais ousou sugerir uma nova pintura.
Como todas as casas vitorianas, aquela era gloriosamente única. O seu ar alegre,
ingênuo, quase infantil, tornava-a picante, provocadora, simpática. Carla cobiçara-a muito
antes do casamento e, quando o proprietário morreu, em Memphis, e a casa foi fechada,
compraram-na bastante barata porque ninguém mais a queria. Estava abandonada há
vinte anos. Fizeram dois grandes empréstimos em dois dos três bancos de Clanton e
passaram os três anos seguintes trabalhando muito e valorizando a sua propriedade.
Agora, muita gente parava para ver a casa e tirar fotografias.
O terceiro banco local tinha a hipoteca do carro de Jake, o único Saab de Ford
County. E ainda por cima, vermelho. Jake limpou o orvalho do pára-brisa e abriu a porta.
Max continuava a latir, acordando o exército de azulões que morava no grande bordo do
jardim da Sra. Pickle. Os pássaros cantaram uma despedida e Jake sorriu, respondendo
com um assobio. Saiu em marcha ré para a rua Adams. Seguiu para leste e dois
quarteirões adiante virou para sul, na Jefferson, que, dois quarteirões adiante, terminava
na rua Washington. Jake interrogava-se sempre sobre o motivo que levava todas as
cidades pequenas do sul dos Estados Unidos a ter uma rua Adams, uma Jefferson e uma
Washington, mas nenhuma Lincoln ou Grant. A rua Washington ficava a norte da praça de
Clanton, no sentido leste-oeste.
Clanton, como sede do condado, tinha uma praça e, no centro da praça, o tribunal
de justiça. O general Clanton fizera a planta da cidade com muito cuidado e a praça era
comprida e larga e, no gramado do tribunal, enfileiravam-se a intervalos regulares
carvalhos altos e maciços. O tribunal de justiça de Ford County fora construído há quase
dois séculos, depois dos ianques terem incendiado o primeiro. Era voltado para o sul,
oferecendo desafiadoramente as costas aos nortistas. Era antigo e imponente, com
colunas brancas em frente e persianas negras nas dezenas de janelas. O tijolo vermelho
original há muito tempo que fora pintado de branco e, de quatro em quatro anos, os
escoteiros acrescentavam uma espessa camada de verniz brilhante, para o seu
tradicional projeto de Verão. Várias emissões de títulos garantiam, através dos anos,
adições e renovações. O jardim em volta do prédio era limpo e bem cuidado. Um grupo de
prisioneiros tratava dele duas vezes por semana.
Clanton tinha três restaurantes - dois para os brancos e um para os negros, os três
na praça. Não era ilegal nem fora do habitual, para os brancos, freqüentar o Claude's, o
restaurante dos negros, no lado oeste. E os negros podiam comer no Tea Shoppe, no
lado sul, ou no Coffee Shop, na rua Washington. Mas não o faziam, porque lhes tinham
dito que podiam retroceder para os anos 70. Como a maioria dos liberais de Clanton, Jake
comia churrasco no Claude's, todas as sextas-feiras. Mas seis vezes por semana tomava
café no Coffee Shop.
Estacionou o Saab em frente do seu escritório, na rua Washington e caminhou até
ao Coffee Shop, três portas adiante. O restaurante estava aberto há uma hora e já havia
bastante movimento. As empregadas serviam o café da manhã e conversavam o tempo
todo com os pequenos fazendeiros, mecânicos e policiais que eram fregueses habituais.
Não era um restaurante de colarinho branco. Os colarinhos brancos reuniam-se mais
tarde, no outro lado da praça, no Tea Shoppe, para discutir política nacional, tênis, golfe e
o movimento da Bolsa. No Coffee Shop falava-se de política local, futebol e pescarias.
Jake era um dos poucos colarinhos brancos que podia freqüentar tranqüilamente o Coffee
Shop. Os homens simples do campo gostavam dele aceitavam-no e procuravam-no para
lhes resolver problemas legais, como divórcios, transações financeiras, uma defesa no
tribunal ou outro qualquer. As brincadeiras e as piadas de advogados não o perturbavam.
Pediam explicação para as determinações do Supremo Tribunal e outros assuntos legais
e Jake dava muitas consultas de graça no Coffee Shop. Uma das suas características era
dispensar rodeios e ir direito ao assunto. Era disso que eles gostavam. Nem sempre
concordavam com ele, mas obtinham sempre respostas honestas. Às vezes discutiam,
mas sem ressentimentos.
Jake entrou no restaurante às seis horas e levou cinco minutos cumprimentando
todas as pessoas, trocando apertos de mãos, batendo nas costas de uns e de outros e
dizendo piropos às empregadas. Assim que se sentou, a sua favorita, Dell, serviu-lhe o
café da manhã de sempre, café, torradas, compota e flocos de aveia. Dell bateu de leve
na mão dele, chamando-lhe, como sempre, querido e meu amor e dispensando-lhe uma
atenção especial. Ela discutia e resmungava com os outros, mas com Jake era diferente.
Nessa manhã os companheiros de mesa de Jake eram Tim Nunley, mecânico da
Chevrolet, e dois irmãos, Bill e Bert West, que trabalhavam na fábrica de calçado a norte
da cidade. Pôs três gotas de Tabasco nos flocos de aveia e misturou tudo com um pouco
de manteiga. Passou na torrada uma camada espessa de compota de amora de
fabricação caseira. Tudo preparado, tomou um gole de café e começou a comer. Os
quatro comiam tranqüilamente e falavam sobre pesca.
Três policiais comiam e conversavam na mesa perto da janela, entre duas
divisórias baixas, a poucos metros da mesa de Jake. O policial mais alto, Prather, voltou-
se e perguntou em voz alta:
- Ouça, Jake, não foi você que defendeu Billy Ray Cobb há alguns anos?
Fez-se silêncio de repente e todos olharam para o advogado. Admirado, não com
a pergunta, mas com a reação, Jake engoliu uma colherada de aveia e tentou lembrar-se.
- Billy Ray Cobb - disse, em voz alta. - Que tipo de caso foi?
- Droga - disse Prather. - Foi preso por vender droga há uns quatro anos. Cumpriu
pena na Parchman e saiu no ano passado.
Jake lembrou-se.
- Não, não fui eu que o defendi. Acho que foi um advogado de Memphis.
Prather ficou satisfeito e voltou às suas panquecas. Jake esperou e finalmente
perguntou:
- Porquê? Que fez ele desta vez?
- Nós o prendemos na noite passada por estupro.
- Estupro!
- Isso mesmo, ele e Pete Willard.
- Quem eles violentaram?
- Lembra-se daquele negro, Hailey, que você livrou da acusação de assassinato
há alguns anos?
- Lester Hailey. É claro que me lembro.
- Conhece o irmão dele, Carl Lee?
- Claro. Conheço-o muito bem. Conheço todos os Hailey. Já defendi muitos deles.
- Muito bem, foi a filha dele.
- Está brincando!
- É sério.
- Que idade tem ela?
- Dez.
O apetite de Jake desapareceu e o restaurante voltou ao normal. Sem comer, Jake
ouviu a conversa passar da pesca para carros japoneses e para a pesca novamente.
Quando os irmãos West saíram, Jack passou para a mesa dos policiais.
- Como ela está? - perguntou.
- Quem?
- A filha do Hailey.
- Muito mal - disse Prather. - Está no hospital.
- Que aconteceu,
- Não sabemos de tudo. Ela não conseguiu falar muito. A mãe mandou-a ao
armazém. Eles moram na Craft Road, por trás do armazém do Bates.
- Eu sei onde eles moram.
- Eles meteram-na na pick-up de Cobb, foram para o bosque e violaram-na.
- Os dois?
- Os dois. Várias vezes. E deram-lhe pontapés e espancaram-na com violência.
Ela ficou em tal estado que alguns parentes nem a reconheceram.
Jake abanou a cabeça.
- Isso é coisa de tarados.
- Claro que é. A pior história que eu já vi. Tentaram matar a menina. Pensaram
que ela estivesse morta.
- Quem a encontrou?
- Um grupo de negros que estava pescando em Foggy Creek. Viram a menina
caída no meio da estrada com as mãos amarradas atrás das costas. Ela conseguiu falar
um pouquinho... disse o nome do pai e eles a levaram para casa.
- Como sabem que foi o Billy Cobb?
- Ela disse à mãe que era uma pick-up amarela com uma bandeira rebelde no
vidro traseiro. Ozzie não precisou de mais nada. Quando ela chegou ao hospital, Ozzie já
tinha certeza.
Prather teve o cuidado de não falar demais. Gostava de Jake, mas ele era
advogado e atuava como defensor em muitos casos criminais.
- Quem é esse Pete Willard?
- Um amigo de Cobb.
- Onde é que os encontraram?
- No Huey's.
- Tinha que ser. - Jake bebeu o café e pensou em Hanna.
- Coisa nojenta, um nojo, coisa de gente doente - resmungou Looney.
- Como está Carl Lee?
Prather limpou a compota do bigode.
- Eu não o conheço pessoalmente, mas nunca ouvi nada de mau a respeito dele.
Ainda estão no hospital. Acho que o Ozzie conhece essa gente toda muito bem. Hastings
é parente da criança.
- Quando vai ser a audiência preliminar?
- Bullard marcou-a para a uma hora da tarde, hoje. Não foi, Looney?
Looney assentiu com um gesto.
- Alguma fiança?
- Ainda não foi determinada. Bullard vai esperar pela audiência preliminar. Se ela
morrer, a acusação será de homicídio, não é?
Jake fez que sim com a cabeça.
- Não podem determinar fiança para homicídios, não é Jake?
- Podem, mas nunca vi. Sei que Bullard não vai determinar fiança neste caso e, se
tentasse, não ia conseguir.
- Se ela não morrer, quanto tempo é que eles apanham? - perguntou Nesbit, o
terceiro policial. Jake explicou aos três homens atentos:
- Podem apanhar prisão perpétua pelo estupro. Suponho que serão acusados
também de seqüestro e agressão física qualificada.
- Já foram.
- Então, podem apanhar vinte anos pelo rapto e vinte anos pela agressão.
- Sim, mas quanto tempo irão cumprir? - perguntou Looney. Jake pensou por um
segundo.
- Podem conseguir liberdade condicional ao fim de treze anos. Sete pelo estupro,
três pelo rapto e três pela agressão. Isso, supondo que sejam condenados por todas as
acusações e à pena máxima.
- E Cobb? Ele tem antecedentes criminais.
- Sim, tem, mas só é considerado reincidente se tiver duas condenações
anteriores.
-Treze anos - disse Looney, abanando a cabeça.
Jake olhou pela janela. A praça começava a acordar. Caminhonetes cheias de
fruta e de verduras chegavam e paravam no passeio em volta do tribunal de justiça. Os
agricultores, com macacões desbotados, arrumavam cuidadosamente os cestinhos com
tomates, pepinos e abóboras-menina em cima das portas traseiras dos carros. As
melancias da Florida eram arrumadas ao lado dos pneus empoeirados e os homens
seguiam até ao monumento ao Vietnã, sentavam-se nos bancos para mascar tabaco,
aparar pedaços de madeira e comentar as novidades. Provavelmente estão falando sobre
o estupro, pensou Jake. Já era dia, hora de ir para o escritório. Os policiais acabaram de
comer e Jake levantou-se. Abraçou Dell, pagou a conta e, durante um segundo, pensou
em ir até casa para ver Hanna.
Faltavam três minutos para as sete quando Jake girou a chave na fechadura da
porta do escritório e acendeu as luzes.

Carl Lee não conseguia dormir no sofá da sala de espera. O estado de Tonya era
grave, mas estável. Tinham-na visto à meia-noite, depois do médico ter prevenido que o
estado da criança não era bom. Não era. Gwen beijou a carinha envolta em ligaduras e
Carl Lee ficou parado ao pé da cama, calado, imóvel, abatido, olhando para a filha
pequenina rodeada de máquinas, tubos e enfermeiras.
Mais tarde Gwen tomou um sedativo e foi levada para casa da mãe, em Clanton.
Os filhos ficaram em casa, com o irmão de Gwen. Mais ou menos à uma hora da manhã,
os visitantes saíram, deixando Carl Lee sozinho no sofá. Às duas horas, Ozzie levou-lhe
café e rosquinhas e disse-lhe tudo o que sabia sobre Cobb e Willard.

O escritório de Jake ficava num prédio de dois andares, num quarteirão de outros
da mesma altura, de frente para o tribunal, no lado norte da praça, logo a seguir ao Coffee
Shop. O prédio fora construído pela família Wilbanks na década de 1890, quando eram
donos de Ford County. Os Wilbanks tinham tido os seus escritórios de advocacia no
prédio, desde a construção até 1979, o ano da interdição. No prédio vizinho, a leste,
ficava o escritório de um corretor de seguros que Jake tinha processado por prejudicar
uma reivindicação de Tim Nunley, o mecânico da Chevrolet. A oeste ficava o banco que
tinha a hipoteca do Saab. Todos os prédios, em volta da praça, eram de tijolo vermelho,
exceto os bancos. O que era vizinho de Jake fora também construído pelos Wilbanks e
tinha só dois andares, mas o da esquina a sudeste da praça tinha três e o mais novo, na
esquina a sudoeste, tinha quatro.
Jake trabalhava sozinho desde 1979, o ano da interdição. Preferia assim,
especialmente porque não havia mais nenhum advogado em Clanton com competência
para trabalhar com ele. Havia alguns bons advogados na cidade, mas a maioria
trabalhava na firma Sullivan de advocacia, no prédio do banco de quatro andares. Jake
detestava a firma Sullivan. Todos os advogados a detestavam, exceto os que trabalhavam
para ela. Eram oito, os oito imbecis.

Queria ser advogado criminal, e a clientela da antiga firma era toda constituída por
empresas. Ele queria estupros, assassinatos, crianças maltratadas, os casos escabrosos
que ninguém queria. A ambição dele era ser defensor dos direitos civis e sustentar as
liberdades civis. Mas, acima de tudo, Lucien desejava ser um advogado radical,
inflamado, defendendo casos e causas impopulares e, com isso, atrair sobre si as
atenções.
Deixou crescer a barba, divorciou-se, renunciou à sua igreja, vendeu o título do
country club, entrou para a Associação Nacional para o Progresso dos Homens de Cor e
para a União Americana das Liberdades Civis, pediu demissão da direção do banco e de
um modo geral tornou-se o flagelo de Clanton. Processava escolas por segregação, o
governador por causa das condições carcerárias, a cidade porque não calçava as ruas no
bairro negro, o banco porque não tinha funcionários negros, o estado por causa da pena
capital e as fábricas porque não reconheciam os sindicatos. Batalhou e venceu muitos
casos de homicídio e não apenas em Ford County. A fama dele cresceu e tinha inúmeros
seguidores entre os negros, brancos pobres e os poucos sindicatos ao norte do Mississipi.
Defendeu alguns casos lucrativos que envolviam danos pessoais e reparação por morte
com dor. Fez também alguns acordos interessantes. A firma, ele e Ethel, estava mais
lucrativa do que nunca. Lucien não precisava de dinheiro. Tinha nascido rico e nunca se
preocupava com essa parte, Ethel encarregava-se da contabilidade.
A advocacia era a sua vida. Sem família, ele era o típico workaholic. Quinze horas
por dia, sete dias por semana, Lucien praticava a advocacia apaixonadamente. Não tinha
outros interesses, exceto a bebida. No fim dos anos 60 descobriu uma grande afinidade
com o Jack Daniel's... No começo da década de 70 era um bêbado e quando contratou
Jake, em 1978, era um alcoólico inveterado. Porém, nunca deixou que a bebida
interferisse com o seu trabalho. Aprendeu a beber e trabalhar ao mesmo tempo. Lucien
estava sempre meio bêbado e, nessas condições, era um advogado perigoso. Ousado e
agressivo por natureza, era assustador quando bebia. No tribunal, embaraçava os
advogados opositores, insultava o juiz, maltratava as testemunhas e, por fim, pedia
desculpas ao júri. Não respeitava ninguém e não podia ser intimidado. Era temido por ser
capaz de fazer e dizer qualquer coisa. Todos andavam nas pontas dos pés junto dele.
Lucien sabia disso e gostava. Tornou-se cada vez mais excêntrico. Quanto mais
bebia, mais estranhamente agia, e as pessoas falavam a seu respeito e ele bebia mais
ainda.
De 1966 a 1978, Lucien contratou e despediu onze assistentes. Contratou negros,
judeus, hispânicos, mulheres e nenhum deles correspondeu às suas expectativas. No
escritório era um tirano, sempre praguejando e gritando com os jovens advogados. Alguns
demitiam-se logo no primeiro mês. Um agüentou dois anos. Era difícil aceitar as loucuras
de Lucien. Tinha dinheiro bastante para ser excêntrico - os jovens advogados é que não
tinham.
Jake foi contratado por Lucien em 1978, logo que se formou. Jake era de Karaway,
uma cidadezinha com dois mil e quinhentos habitantes, trinta quilômetros a oeste de
Clanton. Jake tinha boa apresentação, era conservador, presbiteriano devoto, com uma
bela mulher que queria ter filhos: Lucien contratou-o para ver se conseguia corrompê-lo.
Jake aceitou o emprego com muita hesitação, pois não tinha nada mais em vista perto de
onde morava.
Um ano depois, Lucien foi expulso da ordem dos advogados. Foi uma tragédia
para as poucas pessoas que gostavam dele. O pequeno sindicato da fábrica de calçado,
a norte da cidade decretou uma greve. Era um sindicato organizado e representado por
Lucien. A fábrica começou a contratar novos empregados para substituir os grevistas, o
que deu origem à violência. Lucien apareceu na linha de piquetes para estimular a sua
gente. Estava mais bêbado do que o normal. Um grupo de fura-greves tentou atravessar a
linha e começou a briga. Lucien comandou o ataque e foi preso. O tribunal da cidade
condenou-o por agressão e espancamento e perturbação da ordem. Apelou e perdeu, e
voltou a apelar e voltou a perder.
A Ordem dos Advogados do Estado estava farta dos problemas de Lucien.
Nenhum outro advogado do estado fora alvo de tantas queixas como Lucien Wilbanks.
Admoestações particulares, admoestações públicas, suspensões, tudo foi tentado
inutilmente. O Comitê Disciplinar agiu rapidamente. Lucien foi expulso por conduta
ultrajante, imprópria de um membro da Ordem dos Advogados. Mais uma vez, apelou e
perdeu, voltou a apelar e voltou a perder.
Lucien ficou arrasado. Jake estava no escritório de Lucien, a sala grande do
segundo andar, quando chegou de Jackson a notícia de que o Supremo Tribunal tinha
mantido a exoneração. Lucien desligou o telefone e foi até às portas de vidro que davam
para a praça. Jake observava-o atentamente, à espera da explosão. Mas Lucien não
disse nada. Desceu a escada vagarosamente, parou e olhou para Ethel, que chorava, e
depois para Jake. Abriu a porta e disse:
- Tome conta disto. Falo com você depois.
Ambos se precipitaram para a janela da frente e viram-no sair da praça no Porsche
velho e amassado. Durante vários meses não tiveram notícias dele. Jake trabalhava
diligentemente nos casos deixados por Lucien, enquanto Ethel mantinha o escritório a
salvo do caos. Alguns dos casos foram resolvidos com acordos, alguns passaram para
outros advogados, outros foram a julgamento. Seis meses depois, ao voltar para o
escritório depois de um longo dia no tribunal, Jake encontrou Lucien dormindo deitado no
tapete persa, no escritório do segundo andar.
- Lucien! Sente-se mal? - perguntou.
Ele levantou-se de um salto e sentou-se na grande poltrona de couro atrás da sua
mesa. Estava sóbrio, bronzeado de sol, descansado.
- Jake, meu rapaz, como vai isso? - perguntou, calorosamente.
- Bem, muito bem. Onde esteve?
- Nas Ilhas Caiman.
- fazendo o quê?
- Bebendo rum, descansando na praia, correndo atrás das nativas.
- Parece ter sido divertido. Por que voltou?
- Tornou-se monótono.
Jake sentou-se em frente da mesa.
- Estou contente por vê-lo, Lucien.
- Também estou, Jake. Como vão as coisas, por aqui?
- Agitadas. Mas tudo bem, penso eu.
- Chegou a um acordo com Medley?
- Sim, pagaram oito mil.
- Isso é bom. Ele ficou satisfeito?
- Sim, pelo menos parece que ficou.
- Cruger foi a julgamento?
Jake desviou os olhos.
- Não, ele contratou Fredrix. Acho que o julgamento está marcado para o próximo
mês.
- Eu devia ter falado com ele antes de ir viajar.
- Ele é culpado, não é?
- Sim, e muito. Não importa quem o represente. De um modo geral, quase todos
os acusados são culpados. Lembre-se disso. - Lucien foi até às portas de vidro e olhou
para o prédio do tribunal. - Quais são os seus planos, Jake?
- Eu gostaria de ficar aqui. E os seus?
- Você é boa pessoa, Jake, e quero que fique. Quanto a mim, não sei. Pensei em
morar nas Caraíbas, mas desisti. É muito bom para se visitar, mas uma pessoa acaba por
ficar farta. Na verdade, não tenho planos. Talvez viajar. Gastar alguma grana... Eu valho
uma tonelada, você sabe.
Jake concordou. Lucien voltou-se e estendeu os braços para a sala.
- Quero que fique com tudo isto, Jake. Quero que fique aqui e mantenha a
aparência de uma firma em funcionamento. Mude para esta sala, use a mesa que o meu
avô trouxe da Virgínia, depois da Guerra Civil. Fique com os arquivos, os casos, os
clientes, os livros, tudo.
- É muita generosidade sua, Lucien.
- A maior parte dos clientes vai desaparecer. Não tem nada vendo com você - um
dia, Jake será um grande advogado. Mas a maioria dos meus clientes está comigo há
anos.
Jake não queria os clientes de Lucien.
- E o aluguel?
- Pague o que puder. O dinheiro vai ser curto no princípio, mas vai conseguir. Eu
não preciso de dinheiro, mas você precisa.
- É muita amabilidade.
- O fato é que eu sou um cara muito bacana.
Riram ambos, um tanto constrangidos.
- E Ethel? - perguntou Jake, novamente sério.
- Isso Jake resolverá. Ela é uma boa secretária, que já esqueceu mais do que Jake
poderá aprender sobre Direito. Sei que não gosta dela, mas não vai ser fácil encontrar
quem a substitua. Despeça-a, se quiser. Eu não me importo.
Lucien encaminhou-se para a porta.
- Se precisar é só telefonar. Vou ficar por aqui. Quero que trabalhe neste escritório.
Foi do meu pai e do meu avô. Ponha as minhas coisas numa caixa que eu venho buscá-
las depois.

Cobb e Willard acordaram com os gritos de Ozzie, com uma tremenda dor de
cabeça e os olhos inchados e vermelhos. Estavam só os dois numa cela pequena. À
direita, separada pelas grades, ficava a cela dos prisioneiros do estado, que estavam à
espera de ser enviados para Parchman. Uns dez negros, encostados às grades,
observavam, carrancudos, os dois brancos que esfregavam os olhos, atordoados. À
esquerda, havia uma cela menor também cheia de negros. Acordem, gritou Ozzie, e
fiquem quietos, do contrário vamos pô-los todos juntos.

O período de calma de Jake ia das sete até à chegada de Ethel às oito e meia. Ele
aproveitava ciosamente esse tempo. Trancava a porta da frente, ignorava o telefone, não
marcava nenhum compromisso. Planejava meticulosamente o seu dia. Às oito e meia, já
tinha ditado o suficiente para manter Ethel ocupada e quieta até ao meio-dia. Às nove
horas, estava no tribunal conversando com os clientes. Não atendia ao telefone até às
onze, quando metodicamente respondia a todas as chamadas e mensagens da manhã - a
todas. Nunca deixava para depois - outra norma. Jake trabalhava sistemática e
eficientemente sem perder tempo. Esses hábitos não tinha aprendido com Lucien.
Às oito e meia Ethel fez sua entrada habitual e espalhafatosa. Fez café fresco e
abriu a correspondência, como fazia há quarenta e um anos. Tinha sessenta e quatro
anos e aparentava cinqüenta. Era cheia de corpo, mas não gorda, bem-cuidada, mas não
atraente. Enquanto lia a correspondência de Jake, mastigava uma salsicha engordurada e
um biscoito trazidos de casa.
Jake ouviu vozes. A de Ethel e de outra mulher. Verificou a agenda: nada até às
dez.
- Bom dia, Dr. Brigance - disse Ethel pelo interfone.
- Bom dia, Ethel. - Ela preferia que a tratassem por Sra. Twitty. Lucien e todas as
pessoas a tratavam assim. Mas Jake tratava-a por Ethel desde que a despedira, logo
depois da expulsão de Lucien.
- Uma senhora quer falar com o Senhor Doutor.
- Ela não tem hora marcada.
- Não, Senhor Doutor, eu sei.
- Marque para amanhã, depois das dez e meia. Agora estou ocupado.
- Sim, Senhor Doutor, mas ela diz que é urgente.
- Quem é? - perguntou Jake, irritado.
Era sempre urgente quando apareciam sem hora marcada, como se o seu
escritório fosse uma lavanderia ou uma agência funerária. Provavelmente, alguma
pergunta sobre o testamento do tio Luke ou o julgamento marcado para daí a três meses.
- Sra. Willard - disse Ethel. - Primeiro nome?
- Earnestine Willard. O Senhor Doutor não a conhece, mas o filho dela está preso.
Jake atendia sempre os clientes à hora marcada, mas os que apareciam
inesperadamente eram outra conversa. Ethel mandava-os embora sumariamente ou
marcava hora para um ou dois dias depois. O Dr. Brigance estava muito ocupado,
explicava ela, mas podia atender daí a dois dias. Isso impressionava bem
- Diga que não estou interessado.
- Mas ela precisa de um advogado. O filho vai ao tribunal esta tarde.
- Diga-lhe que procure Drew Jack Tyndale, o defensor público.
Ethel transmitiu ocre oposição.
- Mas, Dr. Brigance, ela quer contratar o senhor doutor. Alguém disse que é o
melhor advogado criminal da cidade.
A ironia era evidente na voz de Ethel.
- Diga-lhe que é verdade, mas que não estou interessado.

Ozzie algemou Willard e conduziu-o pelo corredor até ao seu escritório na parte da
frente do prédio da cadeia de Ford County. Tirou-lhe as algemas e mandou-o sentar-se
numa cadeira no centro da pequena sala. Sentou-se na cadeira grande atrás da sua mesa
e olhou para o acusado.
- Sr. Willard, este é o tenente Griffin da Patrulha Rodoviária do Mississipi. Aquele é
o investigador Rady, do meu departamento, e estes são os policiais Looney e Prather,
que conheceu ontem à noite mas acho que não se deve lembrar. Eu sou o xerife Walls.
Willard virava a cabeça, assustado, a cada apresentação. Estava encurralado. A
porta fechada. Viu dois gravadores sobre a mesa do xerife.
- Gostaríamos de lhe fazer algumas perguntas, está bem?
- Eu não sei.
- Antes de começar, quero ter certeza de que conhece os seus direitos. Primeiro,
tem o direito de ficar calado. Compreendeu?
- Umm, umm.
- Não precisa falar se não quiser, mas se falar, qualquer coisa que diga pode e
será usada contra você no tribunal. Compreendeu?
- Umm, umm.
- Sabe ler e escrever?
- Sei.
- Ótimo, então leia e assine isto. Diz aí que foi informado dos seus direitos.
Willard assinou. Ozzie apertou o botão vermelho de um dos gravadores.
- Percebe que o gravador está ligado?
Nenhuma resposta.
- Tenente Griffin, diga ao Sr. Willard como os brancos são tratados na Parchman.
Griffin sentou-se na ponta da mesa de Ozzie, olhando para Willard.
- Há uns cinco anos, mais ou menos, um garoto branco de Helena County, no
delta, violou uma menina negra de doze anos. Quando chegou à Parchman, eles estavam
à espera dele. Sabiam que ele ia chegar. Na primeira noite, uns trinta negros ataram-no a
um barril e sodomizaram-no. Os guardas assistiram, rindo à gargalhada. Eles apanharam-
no todas as noites durante três meses e depois mataram-no. Foi encontrado castrado e
enfiado no barril.
Willard encolheu-se na cadeira, depois inclinou a cabeça para trás e respirou
fundo, deixando sair o ar dos pulmões para o teto.
- Escute, Pete - disse Ozzie -, não é atrás de você que estamos. Queremos Cobb.
Estou atrás desse homem desde que ele saiu da Parchman. Cobb é quem eu quero e
quero muito. Você nos ajuda a apanhar Cobb e eu ajudo-o na medida do possível. Não
estou prometendo nada, mas eu e o promotor trabalhamos juntos. Você me ajuda a
apanhar Cobb e eu ajudo-o com o promotor. Limite-se contando o que aconteceu.
- Quero um advogado - disse Willard. Ozzie baixou a cabeça e gemeu.
- O que é que um advogado vai fazer, Pete? Vai tirar os negros de cima de você?
Estou tentando ajudá-lo e você está querendo bancar o esperto.
- Deve dar ouvidos ao xerife, homem. Ele está tentando salvar-lhe a pele - disse
Griffin.
- Você tem chance de pegar só alguns anos nesta cadeia - disse Rady.
- É muito mais segura do que a de Parchman - explicou Prather.
- A escolha é sua, Pete - disse Ozzie. - Pode morrer na Parchman ou ficar aqui.
Posso até resolver atenuar a sua prisão, se você se comportar.
Willard baixou a cabeça e passou as mãos pelas têmporas.
- Está bem.
Ozzie apertou o botão vermelho.
- Onde encontraram a menina?
- Numa estrada de cascalho.
- Umm, umm.
- Hoje é quarta-feira, 15 de Maio, oito e quarenta e três horas da manhã.
- Se o senhor está dizendo...
- Como é o seu nome completo?
- James Louis Willard.
- Como é que o tratam?
- Por Pete. Pete Willard.
- Endereço?
- Via 6, apartamento 14, Lake Village, Mississipi.
- Em que rua?
- Bethel Road.
- Com quem vive?
- Com a minha mãe, Earnestine Willard. Sou divorciado.
- Conhece Billy Ray Cobb?
Willard hesitou e olhou para os pés. Os sapatos tinham ficado na cela. As meias
brancas, sujas, não escondiam os dedos grandes. Essa pergunta é segura, pensou ele.
- É, conheço, sim.
- Esteve com ele ontem?
- Umm, umm.
- Onde estiveram?
- No lago.
- A que horas saíram?
- Mais ou menos às três.
- Que tipo de carro conduzia?
- Eu não estava guiando.
- Que transporte é que usaram?
Willard hesitou. Olhou para os pés.
- Acho que não quero dizer mais nada.
Ozzie desligou o gravador e respirou fundo. - Já esteve na Parchman?
Willard abanou a cabeça.
- Sabe quantos negros há na Parchman?
Willard voltou a abanar a cabeça negativamente.
- Mais ou menos cinco mil. Sabe quantos brancos?
- Não.
- Cerca de mil.
Willard apoiou o queixo no peito. Ozzie deixou que ele pensasse durante um
minuto e piscou o olho ao tenente Griffin.
- Tem idéia do que aqueles negros vão fazer a um homem que violou uma criança
negra?
- Em que estrada?
- Não sei. Eu estava bêbado.
- Para onde a levaram?
- Não sei.
- Só você e Cobb?
- Isso mesmo.
- Quem a violou?
- Nós dois. Billy Ray primeiro.
- Quantas vezes?
- Não me lembro. Eu estava fumando maconha e bebendo.
- Vocês dois violentaram-na?
- Isso mesmo.
- Onde a deixaram?
- Não me lembro. Juro que não me lembro.
Ozzie desligou o gravador.
- Vamos mandar datilografar isto e você assina.
Willard abanou a cabeça.
- Não diga a Billy Ray.
- Não vamos dizer - prometeu o xerife.


QUATRO

Percy Bullard remexeu-se nervoso na cadeira de couro, atrás da enorme mesa de
carvalho, no gabinete do juiz, atrás da sala do tribunal, onde uma multidão já estava à
espera. Na pequena sala ao lado, os advogados, em volta da máquina de café,
conversavam sobre o estupro. A pequena toga negra de Bullard estava pendurada ao
lado da janela que dava para a parte norte da rua Washington. Calçava tênis nos pés
pequenos que mal tocavam no chão. Era um homenzinho nervoso que se preocupava
muito com audiências preliminares ou com qualquer outra audiência de rotina. Ao fim de
treze anos como juiz não aprendera ainda a descontrair-se. Felizmente não precisava
julgar casos importantes, que iam para o juiz da tribunal distrital. Bullard era apenas um
juiz de condado, e tinha chegado ao topo da sua carreira.
O Sr. Pate, velho policial do tribunal, bateu à porta.
- Entre! - ordenou Bullard.
- Boa tarde, Senhor Doutor Juiz.
- Quantos negros estão lá fora? - perguntou Bullard, bruscamente.
- Metade da sala do tribunal.
- Isso quer dizer uma centena! Nunca aparecem tantos para um bom julgamento
de assassinato. Que querem eles?
O Sr. Pate abanou a cabeça.
- Acho que pensam que os dois homens vão ser julgados hoje.
- Eu acho que eles só estão preocupados - disse o Sr. Pate, em voz baixa.
- Preocupados com quê? Não vou soltar nenhum deles. É só uma audiência
preliminar. - E acalmando-se, olhou pela janela. - A família está lá?
- Acho que sim. Reconheci alguns deles, mas não conheço os pais da criança.
- E a segurança?
- O xerife pôs todos os policiais e até os de reserva perto do tribunal. Revistamos
todas as pessoas à entrada.
- Encontraram alguma coisa?
- Não, senhor.
- Onde estão os homens?
- Com o xerife. Devem chegar dentro de um minuto.
O juiz ficou satisfeito. O Sr. Pate pôs um papel escrito à mão sobre a mesa.
- O que é isso?
O Sr. Pate respirou fundo.
- Uma solicitação de um canal de TV de Memphis para filmar a audiência.
- O quê? - Bullard ficou rubro e abanou-se furiosamente na cadeira giratória. -
Câmaras - gritou. - No tribunal! - Rasgou o papel e atirou os pedaços na direção do cesto.
- Onde estão?
- Na antecâmara.
- Ponha-os fora do tribunal.
O Sr. Pate saiu rapidamente.

Carl Lee Hailey estava sentado na penúltima fila, rodeado por dezenas de
parentes e amigos que ocupavam as filas de bancos no lado direito do recinto do tribunal.
Os bancos da esquerda estavam vazios. Os policiais, armados e apreensivos, vigiavam
nervosamente o grupo de negros e especialmente Carl Lee que, curvado para frente, com
os cotovelos nos joelhos, olhava para o chão.
Jake, da sua janela, olhou para a parte de trás do tribunal. Era uma hora da tarde.
Como sempre, tinha dispensado o almoço e não tinha nada para fazer na rua, mas
precisava de um pouco de ar fresco. Passara a manhã toda no escritório e embora não
estivesse interessado nos detalhes do estupro, detestava a idéia de perder uma
audiência. O tribunal devia estar cheio porque não se via nenhum lugar vago disponível
na praça. Um punhado de repórteres e fotógrafos esperava ansiosamente ao lado da
porta dos fundos do tribunal, por onde Cobb e Willard deveriam entrar.
A cadeia ficava a dois quarteirões, ao sul da praça. Ozzie dirigia o carro com Cobb
e Willard no banco de trás. Com um carro de policial em frente e outro atrás, a procissão
deixou a rua Washington e entrou no curto caminho de acesso à varanda do tribunal. Seis
policiais, que escoltavam os acusados, passaram pelos repórteres, entraram no prédio e
subiram a escada que levava à salinha de espera, ao lado do recinto do tribunal.
Jake pegou o casaco, ignorou Ethel e atravessou a rua correndo. Subiu a escada
dos fundos, passou pelo pequeno corredor e entrou na sala do tribunal por uma porta
lateral, no momento em que o Sr. Pate de pé para o tribunal chegou próximo à mesa.
Todos se levantaram. Bullard adiantou-se e sentou-se.
- Sentem-se - gritou ele. - Onde estão os acusados? Onde? Tragam os acusados!
Cobb e Willard foram conduzidos, algemados, da salinha de espera para a sala do
tribunal. Estavam com a barba por fazer, sujos e pareciam confusos. Willard olhou para o
grande grupo de negros, mas Cobb virou-lhes as costas. Looney retirou-lhes as algemas
e os fez sentar ao lado de Drew Jack Tyndale, o defensor público, atrás da longa mesa da
defesa. Ao lado estava a mesa, longa também, do promotor Rocky Childers, que tomava
notas com ar de importância.
Willard olhou para trás, para os negros. Na primeira fila, logo atrás dele, estavam
sua mãe e a mãe de Cobb, cada uma protegida por um policial. Willard sentiu-se seguro
com todos aqueles policiais. Cobb nem uma só vez olhou para trás. Na penúltima fila, a
vinte e cinco metros de distância, Carl Lee levantou a cabeça e olhou para as costas dos
dois homens que tinham violentado a sua filha. Eram dois estranhos abatidos, com a
barba por fazer e sujos. Tapou o rosto com as mãos e curvou o corpo para frente. Os
policiais estavam de pé atrás dele, encostados à parede, observavam qualquer
movimento.
- Agora, ouçam - começou Bullard, em voz bem alta. - Isto é só uma audiência
preliminar, não um julgamento. O objetivo da preliminar é determinar se existe prova
suficiente de que um crime foi cometido para enviar os acusados ao grande júri. Os
acusados podem abrir mão desta audiência se quiserem.
Tyndale levantou-se.
- Não, senhor, Meritíssimo, queremos prosseguir com a audiência.
- Muito bem. Tenho aqui cópias das declarações juramentadas do xerife Walls,
acusando os dois homens de estupro de uma menina com menos de doze anos, rapto e
danos corporais qualificados. Sr. Childers, pode chamar a sua primeira testemunha.
- Meritíssimo, o estado chama para depor o xerife Ozzie Walls.
Jake estava na bancada dos jurados com vários outros advogados, todos fingindo
que liam algum material importante. Ozzie prestou juramento e sentou-se no banco das
testemunhas, à esquerda de Bullard, a poucos metros da bancada dos jurados.
- Queira dizer o seu nome.
- Xerife Ozzie Walls.
- O senhor é o xerife de Ford County?
- Sim.
- Eu sei quem ele é - resmungou Bullard, examinando rapidamente os papéis na
pasta sobre a sua mesa.
- Xerife, ontem à tarde, o seu departamento recebeu um telefonema sobre uma
criança desaparecida?
- Sim, mais ou menos às quatro e meia.
- O que fez o senhor?
- Enviei o policial Willie Hastings à residência de Gwen e Carl Lee Hailey, os pais
da criança.
- Onde fica isso?
- Na Craft Road, atrás do armazém Bates.
- O que foi que ele encontrou?
- Encontrou a mãe da criança, que tinha telefonado. Saiu de carro à procura da
menina.
- Encontrou-a?
- Não. Quando voltou à casa, a menina estava lá. Tinha sido encontrada por uns
homens que estavam pescando e que a levaram para casa.
- Como estava a menina?
- Tinha sido violada e espancada.
- Estava consciente?
- Sim. Podia falar, ou murmurar, um pouco.
- O que disse ela?
Tyndale levantou-se de um salto.
- Meritíssimo, por favor, eu sei que é admissível o testemunho auricular numa
audiência preliminar, mas isto é testemunho auricular em terceira mão.
- Objeção negada. Cale-se. Sente-se. Prossiga, Sr. Childers.
- O que disse? Disse à mãe que tinham sido dois homens brancos numa pick-up
amarela com uma bandeira rebelde no vidro traseiro. Só isso. Não conseguiu dizer mais
nada. Tinha os dois maxilares partidos e o rosto cheio de marcas de pontapés.
- Que aconteceu depois?
- O policial chamou uma ambulância e ela foi levada para o hospital.
- Como está ela agora?
- Dizem que o estado é crítico.
- Que aconteceu a seguir?
- Baseado no que sabíamos na ocasião, pensei num suspeito.
- Então, o que fez?
- Localizei um informante, um informante de confiança, e mandei-o a um bar perto
do lago.
Childers não era homem de perder tempo com detalhes, especialmente em frente
de Bullard. Jake sabia isso, e Tyndale também. Bullard enviava todos os casos para o júri
de instrução. Fosse qual fosse o caso, os fatos, as provas, independentemente fosse do
que fosse, Bullard mandava o acusado para o júri de instrução. Se as provas fossem
insuficientes, o júri de instrução que os libertasse, não Bullard. Ele precisava ser reeleito,
o júri de instrução, não. Os eleitores ficavam descontentes quando os criminosos eram
soltos. A maioria dos advogados de defesa do condado desistia das preliminares no
tribunal de Bullard. Não Jake. Para ele, essas audiências eram o meio melhor e mais
rápido de se conhecer as razões da acusação. Tyndale raramente desistia de uma
preliminar.
- A que bar?
- Ao Huey's.
- E que descobriu?
- Disse que Cobb e Willard, os dois acusados, estavam se gabando de terem
violentado uma menina negra.
Cobb e Willard entreolharam-se. Quem seria o informante? Lembravam-se de
pouca coisa no Huey's.
- Que encontrou o senhor, no Huey's?
- Efetuamos a prisão de Cobb e Willard, depois revistamos a pick-up registrada em
nome de Billy Ray Cobb.
- E que encontraram?
- Nós a rebocamos e a revistamos esta manhã. Muitas manchas de sangue.
- Que mais?
- Encontramos uma camiseta pequena coberta de sangue.
- De quem era a camiseta?
- Pertencia a Tonya Hailey, a menina violada. O pai dela, Carl Lee Hailey,
identificou a camiseta esta manhã.
Ao ouvir seu nome, Carl Lee endireitou o corpo na cadeira. Ozzie olhou
diretamente para ele. Jake voltou-se e viu Carl Lee pela primeira vez.
- Descreva a caminhonete.
- Uma pick-up Ford nova, amarela, de meia tonelada. Rodas grandes cromadas e
pneus antiderrapantes. Bandeira rebelde no vidro traseiro.
- Propriedade de quem?
Ozzie apontou para os acusados.
- Billy Ray Cobb.
- Combina com a descrição feita pela menina?
- Sim.
Childers fez uma pausa e consultou as suas notas.
- Agora, xerife, quais são as outras provas que tem contra esses acusados?
- Falamos com Pete Willard esta manhã, na cadeia. Ele assinou uma confissão.
- O que é que você fez?! - exclamou Cobb.
Willard encolheu-se e olhou em volta à procura de ajuda.
- Ordem! Ordem! - gritou Bullard, batendo com o martelo. Tyndale separou os seus
clientes.
- Informou o Sr. Willard dos seus direitos?
- Sim.
- Ele compreendeu?
- Sim.
- Ele assinou uma declaração a esse respeito?
- Sim.
- Quem estava presente quando o Sr. Willard deu esse depoimento?
- Eu, mais dois policiais, o meu investigador, Rady e o tenente Griffin da Patrulha
Rodoviária.
- O senhor tem a confissão?
- Tenho.
- Por favor, leia-a.
O tribunal ouviu imóvel e em silêncio a leitura do breve depoimento. Carl Lee
olhava inexpressivamente para os dois acusados. Cobb olhou furioso para Willard, que
limpou a terra dos sapatos.
- Muito obrigado, xerife - disse Childers, quando Ozzie terminou. - O Sr. Willard
assinou a confissão?
- Sim, perante três testemunhas.
- O estado não tem mais perguntas, Meritíssimo.
Bullard berrou:
- A testemunha é sua, Sr. Tyndale.
- Não tenho perguntas, no momento, Meritíssimo.
Boa jogada, pensou Jake. Um recuo estratégico era o melhor que a defesa tinha
fazendo, ficar calada, tomar notas, deixar que o testemunho fosse registrado pelo
estenógrafo do tribunal para que constasse dos autos. O júri de instrução ia estudar o
caso, de qualquer modo, portanto, para que é que ele se iria dar ao trabalho? E nunca
permitir que o acusado testemunhe. O testemunho dele não serve para nada e pode
prejudicá-lo no julgamento. Jake sabia que eles não iam testemunhar porque conhecia
Tyndale.
- Chame a sua próxima testemunha - ordenou o juiz.
- Não temos outra testemunha, Meritíssimo.
- Muito bem. Pode sentar-se. Sr. Tyndale, tem alguma testemunha?
- Não, Meritíssimo.
- Ótimo. Este tribunal considera que existem provas suficientes de que um crime
foi cometido por esses acusados e determina que o Sr. Cobb e o Sr. Willard fiquem à
disposição do júri de instrução de Ford County, cuja sessão está marcada para o dia 27
de Maio, segunda-feira. Alguma pergunta?
Tyndale levantou-se devagar.
- Sim, Meritíssimo, gostaríamos de pedir ao tribunal o estabelecimento de uma
fiança razoável para estes ac...
- Nem pense nisso - interrompeu Bullard secamente. - A partir deste momento está
negada a fiança. Estou informado de que o estado da menina é crítico. Se ela morrer,
haverá outras acusações.
- Bem, Meritíssimo, nesse caso, eu gostaria de pedir uma audiência para
determinação da fiança, daqui a alguns dias, na esperança de que ela melhore.
Bullard olhou atentamente para Tyndale. Boa idéia, pensou.
- Concedido. Está marcada uma audiência para fiança na próxima segunda-feira,
dia 20 de Maio, neste tribunal. Até então, os acusados permanecerão sob a custódia do
xerife de Ford County. Esta audiência está encerrada.
Bullard bateu com o martelo e desapareceu. Os policiais rodearam os acusados,
algemaram a ambos e saíram da sala, entraram na salinha de espera, desceram a
escada dos fundos, passaram pelos repórteres e entraram no carro da polícia.
Fora uma audiência típica de Bullard - menos de vinte minutos. A justiça podia ser
rápida naquele tribunal.
Jake conversou com os outros advogados enquanto a multidão atravessava em
silêncio as enormes portas do tribunal. Carl Lee não se apressou e fez sinal a Jake para
que fosse ter com ele. Encontraram-se na antecâmara. Carl Lee despediu-se dos amigos
e parentes e prometeu encontrá-los no hospital. Ele e Jake desceram para o primeiro
andar.
- Eu lamento profundamente, Carl Lee - disse Jake.
- É, eu também.
- Como está ela?
- Vai conseguir.
- Como está Gwen?
- Bem, acho eu.
- E você?
Seguiram vagarosamente pelo corredor, na direção dos fundos do prédio.
- Ainda não consigo acreditar. Quero dizer, há vinte e quatro horas, tudo estava
bem. Agora, olhe para nós. A minha filha está no hospital cheia de tubos. A minha mulher

quase louca e os meus filhos mortos de medo, e a única coisa em que consigo pensar, é
em pôr as mãos naqueles desgraçados.
- Eu gostaria de poder fazer alguma coisa, Carl Lee.
- Tudo o que pode fazer é rezar por ela. Rezar por nós.
- Sei que é doloroso.
- Tem uma filha pequena, não tem, Jake?
- Tenho.
Caminharam em silêncio durante algum tempo. Jake mudou de assunto.
- Onde está o Lester?
- Em Chicago.
- Que ele está fazendo lá?
- Trabalhando numa siderurgia. Um bom emprego. Casou.
- Está brincando! Lester, casado?
- Isso mesmo, casou com uma garota branca.
- Branca! Que tem Lester que ver com uma garota branca?
- Bom, você conhece o Lester. Sempre foi um negro tolo. Está a caminho. Deve
chegar esta noite.
- Para quê?
Pararam na porta dos fundos. Jake perguntou:
- Para que Lester vem para cá?
- Negócios de família.
- Está planejando alguma coisa?
- Nada. Ele só quer ver a sobrinha.
- Vejam se vão com calma.
- É fácil para você dizer isso, Jake.
- Eu sei.
- No meu caso, o que faria, Jake?
- De que é que está falando?
- Tem uma filha, Jake! Suponha que ela está no hospital, espancada e violada. O
que é que faria?
Jake olhou para a pequena janela da porta e não respondeu. Carl Lee esperou.
- Não faça nenhum disparate, Carl Lee.
- Responda à minha pergunta. O que é que faria?
- Não sei. Não sei o que faria.
- Então deixe-me perguntar-lhe de outra maneira. Se fosse a sua filha e se fossem
dois negros, e você pudesse pôr as mãos neles, o que é que faria?
- Matava a ambos.
Carl Lee sorriu.
- É claro que matava, Jake, é claro. Depois, contratava um advogado muito bom
para dizer que você é doido, como fez no julgamento do Lester.
- Não dissemos que Lester é doido. Só dissemos que Bowie precisava ser morto.
- Você livrou o Lester, não livrou?
- Claro.
Carl Lee foi até à escada e olhou para cima.
- É por aqui que eles sobem para o tribunal? - perguntou, sem olhar para Jake.
- Quem?
- Aqueles dois.
- É. Geralmente, são levados por essa escada. É mais rápido e mais seguro.
Podem parar o carro bem em frente da porta e levá-los rapidamente lá para cima.
Carl Lee foi até à porta dos fundos e olhou para a varanda.
- Quantos casos de homicídio já defendeu, Jake?
- Três. O do Lester e mais dois outros.
- Quantos eram negros?
- Todos três.
- Quantos ganhou?
- Os três.
- Você é bom de verdade com negros assassinos, não é?
- Acho que sou.
- Está pronto para outro?
- Não faça uma coisa dessas, Carl Lee. Não vale a pena. E se for condenado à
câmara de gás? O que vai ser dos seus filhos? Quem vai criá-los? Esses vagabundos não
valem isso.
- Você acabou de dizer que era o que faria.
Jake aproximou-se dele, em frente da porta.
- Comigo é diferente. Eu teria maior probabilidade de sair livre.
- Como?
- Eu sou branco e esta cidade é branca. Com um pouco de sorte, eu podia
conseguir um júri só de brancos, que evidentemente estaria do meu lado. Não estamos
em Nova Iorque, nem na Califórnia. O homem deve proteger a sua família. O júri iria
achar que eu tinha procedido corretamente.
- E eu?
- Como acabei de dizer, isto não é Nova Iorque, nem a Califórnia. Alguns brancos
poderiam louvar o que você fez, mas a maioria iria querer que fosse condenado. Seria
muito mais difícil conseguir um veredicto de inocente.
- Mas você podia fazer isso, não podia, Jake?
- Não faça isso, Carl Lee.
- Não tenho alternativa, Jake. Nunca mais vou dormir sossegado sabendo que
aqueles dois estão vivos. Devo isso à minha filha. Devo-o a mim mesmo e devo-o à minha
gente. Vai ser feito.
Abriram as portas, saíram para a varanda coberta e seguiram na direção da rua
Washington, no outro lado do prédio da cadeia. Despediram-se com um aperto de mão e
Jake prometeu passar pelo hospital no dia seguinte para ver Gwen e a família.
- Mais uma coisa, Jake. Vai me visitar na cadeia quando eles me prenderem?
Sem pensar, Jake fez que sim com a cabeça. Carl Lee sorriu e continuou pelo
passeio, na direção da sua caminhonete.
CINCO

Lester Hailey casou com uma sueca do Wisconsin e, embora ela garantisse que
ainda o amava, Lester tinha a impressão de que o poder de atração e novidade que a sua
cor exercia, começava a perder o encanto. Ela tinha pavor do Mississipi e recusou
terminantemente acompanhá-lo na viagem a Ford County, por mais que ele lhe garantisse
que não havia perigo. Ela não conhecia a família dele. Não que os parentes estivessem
ansiosos por conhecê-la - não estavam. Não eram raros os casos de negros que se
mudavam para o norte e casavam com brancas, mas nenhum Hailey tinha anteriormente
feito isso. Havia muitos Hailey em Chicago, quase todos parentes e casados com negros.
A família não estava impressionada com a mulher loura de Lester. Ele partiu para Clanton
sozinho, no seu Cadillac.
Chegou ao hospital na quarta-feira, noite alta, e encontrou alguns primos lendo
revistas na sala de espera do segundo andar. Abraçou Carl Lee. Não se viam desde o
Natal, quando metade dos negros de Chicago regressava ao Mississipi e ao Alabama.
Foram depois para o corredor, para longe dos familiares.
- Como ela está? - perguntou Lester.
- Melhor. Muito melhor. Acho que vai para casa no fim da semana.
Lester ficou aliviado. Quando saíra de Chicago, onze horas antes, ela estava à
morte, segundo o primo que lhe tinha telefonado e o tinha feito saltar da cama apavorado.
Acendeu um cigarro bem debaixo do aviso de NÃO FUMAR e olhou atentamente para o
irmão mais velho.
- Como é que você está?
Carl Lee fez um gesto afirmativo e olhou para o fim do corredor.
- Como está a Gwen?
- Mais louca do que nunca. Está na casa da mãe. Veio sozinho?
- Isso mesmo - disse Lester, na defensiva.
- Ótimo.
- Não banque o engraçadinho. Não guiei este tempo todo para ouvir gracinhas
sobre a minha mulher.
- Pronto, pronto. Ainda sofre de gases?
Lester riu. Desde o casamento que vivia atormentado por gases estomacais. A
sueca fazia pratos cujo nome ele nem sabia pronunciar e o organismo reagia
violentamente. Ele queria comer couve, ervilhas, quiabo, galinha frita, churrasco de porco
e torresmos.
Chegaram a uma pequena sala de espera no terceiro andar, com cadeiras
dobráveis e uma mesa de jogo. Lester pegou em dois copos de café velho e forte de uma
máquina e mexeu o creme em pó com o dedo. Ouviu atentamente a descrição do estupro,
das prisões e da audiência. Depois agarrou alguns guardanapos de papel e desenhou um
diagrama do interior do tribunal e da cadeia. O seu julgamento fora há quatro anos e ele
teve alguma dificuldade em lembrar-se de tudo. Passara apenas uma semana na cadeia
antes do pagamento da fiança e não a voltara visitá-la desde o julgamento. Na verdade,
fora para Chicago logo a seguir. A vítima tinha parentes. Fizeram planos e mais planos,
até bem depois da meia-noite.
Na quinta-feira, ao meio-dia, Tonya saiu da unidade de tratamento intensivo para
um quarto particular. O quadro clínico era de estabilidade. Os médicos ficaram mais
calmos e a família levou-lhe doces, brinquedos e flores. Com os dois maxilares quebrados
e fios de arame na boca, Tonya só conseguia olhar para os doces. Os irmãos comeram
quase todos. Eles ficavam junto da cama, pegando-lhe nas mãos, como para a
protegerem e tranqüilizarem. O quarto encheu-se de amigos e de estranhos, todos
fazendo-lhe festas delicadamente, dizendo que ela era um amor, tratando-a como uma
pessoa especial, que acabava de passar por uma dura experiência. Os grupos
revezavam-se, do corredor para o quarto e de volta ao corredor, sob a vigilância atenta
das enfermeiras.
Tonya tinha dores e chorava de vez em quando. De hora em hora, as enfermeiras
xxy
abriam caminho por entre as visitas para aplicarem um analgésico na paciente. Naquela
noite, todos ficaram em silencio no quarto quando a estação de Memphis comentou o
estupro. A televisão mostrou retratos dos dois homens brancos, mas Tonya não
conseguia ver muito bem.
O tribunal de justiça de Ford County abria às 8 horas e fechava às 5 da tarde,
todos os dias, exceto à sexta-feira, em que fechava às quatro e meia. Às quatro e meia de
sexta-feira, Carl Lee estava escondido num banheiro do primeiro andar quando o tribunal
foi fechado. Sentado na tampa de um vaso, ficou imóvel, atentamente à escuta, durante
uma hora. Nenhum empregado da limpeza. Ninguém. Silêncio. Saiu para o corredor largo
e quase às escuras e espreitou pela janela. Ninguém à vista. Pôs-se de novo à escuta. O
prédio do tribunal estava deserto. Voltou-se e olhou para a outra ponta do corredor, para a
antecâmara e para as portas da frente, a sessenta metros de onde estava.
Carl Lee examinou o prédio. As duas portas duplas dos fundos abriam para dentro,
para uma área de entrada grande e retangular. Na extremidade direita havia duas
escadas, e à esquerda outra igual. A área aberta estreitava-se e terminava no corredor.
Carl Lee fez de conta que estava sendo levado para julgamento. Pôs as duas
mãos nas costas e encostou-se a uma das portas. Andou dez metros para a direita até a
escada, subiu dez degraus, chegou ao pequeno patamar, uma volta de noventa graus
para a esquerda, exatamente como Lester tinha dito. Depois, mais dez degraus até à
salinha de espera, pequena, quatro metros por quatro, com uma janela e duas portas.
Carl Lee abriu uma delas e entrou na enorme sala do tribunal, em frente das cadeiras dos
espectadores. Foi até à passagem central e sentou-se na primeira fila. Examinando a
sala, viu na sua frente a balaustrada, ou cerca, como dizia Lester, que separava o público
do recinto onde ficavam o juiz, o júri, as testemunhas, os advogados, os réus e
funcionários do tribunal.
Carl Lee seguiu pela passagem central até às portas grandes de madeira e
examinou minuciosamente a sala do tribunal. Parecia muito diferente do que tinha visto na
quarta-feira. Voltou pela passagem para a salinha de espera e abriu a outra porta que
dava para a parte do tribunal onde se processava o julgamento. Sentou-se em frente da
mesa comprida onde Lester, Cobb e Willard tinham sentado. À direita estava a outra
mesa grande onde ficava o promotor. Atrás das mesas havia uma fila de cadeiras, depois
a balaustrada com portas de vaivém nas duas extremidades. O juiz sentava-se
regiamente na cadeira no alto do estrado, de costas para a parede de onde pendia o
retrato desbotado de Jefferson Davis, olhando carrancudo para toda a sala. A bancada
dos jurados estava à sua direita e à esquerda do juiz, encostada na parede, sob os
retratos amarelados dos heróis confederados. O banco das testemunhas era perto do
estrado do juiz, mais baixo, evidentemente, e de frente para o júri. À sua esquerda, de
frente para a bancada do júri, estava uma mesa comprida com enormes livros vermelhos
de registro. Funcionários e advogados reuniam-se, geralmente, em volta dessa mesa,
durante os julgamentos. Atrás, do outro lado da parede, ficava a salinha de espera dos
réus.
Carl Lee levantou-se e, ainda como se estivesse algemado, passou
vagarosamente pela porta de vaivém da balaustrada e depois pela porta da salinha de
espera. Desceu os dez degraus da escada estreita e escura e parou. Do patamar, no
meio da escada, podia ver as portas do fundo do tribunal e grande parte da área de
entrada entre as portas e o corredor. Aos pés da escada, à direita, abriu a porta do
armário do zelador, atulhado e em desordem. Fechou a porta e examinou o pequeno
espaço que fazia uma curva e acabava debaixo da escada. Era escuro, empoeirado,
cheio de vassouras e baldes raramente usados. Abriu a porta e olhou para cima, para a
escada.
Carl Lee andou pelo edifício durante mais uma hora. A outra escada dos fundos
dava para outra salinha de espera, por trás da bancada do júri, e continuava até ao
terceiro andar, onde ficava a biblioteca de Direito e duas salas para jurados, exatamente
como Lester dissera.
Descendo, subindo e tornando a descer, estudou os movimentos dos homens que
tinham violentado a sua filha. Sentou-se na cadeira do juiz e olhou para os seus domínios.
Sentou-se no banco dos jurados e soprou no microfone. Finalmente, às sete horas, já
noite, Carl Lee levantou a janela do banheiro ao lado do armário do zelador e saiu
silenciosamente para o meio dos arbustos e para a noite.
- A quem tenciona comunicar isso? - perguntou Carla, fechando a caixa da pizza
de 30 centímetros e servindo mais limonada.
Jake balançou suavemente o balanço duplo da varanda, ao mesmo tempo em que
olhava para Hanna que saltava à corda no passeio.
- Está aí? - perguntou Carla.
- Não.
- A quem você pretende contar?
- Não pretendo comunicar a ninguém - disse ele.
- Eu acho que devia.
- E eu acho que não devo.
- Porquê?
Jake balançou-se mais depressa e bebeu um gole de limonada. Depois falou
devagar.
- Para começar, não tenho certeza de que um crime esteja sendo planejado. Ele
disse o que qualquer pai diria e sei que está pensando como qualquer pai pensaria. Mas,
quanto a planejar um crime, não acredito. Depois, o que ele disse foi dito em confidência,
como se fosse meu cliente. Na verdade, ele provavelmente pensa que sou advogado
dele.
- Mas mesmo como seu advogado, se soubesse que ele está planejando um
crime, devia comunicar, não devia?
- Sim. Se eu tivesse certeza dos planos dele. Mas não tenho.
Carla não desistiu.
- Eu acho que você deve comunicar.
Jake não respondeu. Não tinha importância. Comeu o seu último pedaço de pizza
tentando ignorá-la.
- Quer que Carl Lee faça isso, não quer?
- Quero que ele faça o quê?
- Que mate aqueles dois homens.
- Não, não quero. - Jake não parecia muito convincente. - Mas se ele o fizer, não
vou culpá-lo, porque eu faria a mesma coisa.
- Não comece com isso outra vez.
- Sabe perfeitamente que estou falando sério. Eu os mataria.
- Jake, você não é capaz de matar um homem.
-Tudo bem. Seja lá o que for. Não quero discutir. Já falamos disto.
Carla gritou a Hanna que saísse do meio da rua. Sentou-se ao lado dele no
balanço, sacudindo os cubos de gelo no copo.
- Você os defenderia?
- Espero que sim.
- Acha que o júri o condenaria?
- E você, condenava?
- Não sei.
- Muito bem, pense na Hanna. Olhe para aquela criança doce e inocente saltando
à corda. Você é mãe. Agora, pensa na filhinha do Hailey, espancada, ensangüentada,
chamando pela mãe e pelo pai...
- Pare com isso, Jake!
Ele sorriu.
- Responda, está no júri. Votaria a favor da condenação do pai?
Carla pôs o copo no parapeito da janela e de repente ficou muito interessada nas
próprias unhas. Jake farejou a vitória.
- Vamos. Você faz parte do júri. Culpado ou inocente?
- Eu faço sempre parte do júri por aqui. Ou sou do júri, ou estou sendo interrogada.
- Culpado ou inocente?
Carla olhou para ele zangada.
- Seria difícil dizer culpado.
Com um largo sorriso, a defesa encerrou o caso.
- Mas não sei como ele vai matá-los, estando eles na cadeia.
- Fácil. Nem sempre estão na cadeia. Vão ao tribunal e são levados de um lado
para outro. Lembra-se de Lee Oswald e de Jack Ruby. Além disso, se conseguirem
fiança, podem sair da cadeia.
- Quando?
- A fiança vai ser determinada na segunda-feira. Se puderem pagar, estão livres.
- E se não puderem?
- Ficam na cadeia até ao julgamento.
- Quando será o julgamento?
- Provavelmente no fim do Verão.
- Eu acho que você devia comunicar isso.
Jake levantou-se do balanço e foi brincar com Hanna.


SEIS

K. T. Bruster, ou Cat Bruster, como era conhecido, era, pelo que sabia, o único
milionário negro e zarolho de Memphis. Era dono de uma rede de night-clubs, todas
funcionando legalmente. Era proprietário de quarteirões de casas para alugar, que ele
dirigia legalmente, tinha duas igrejas no sul de Memphis, que também funcionavam
legalmente. Ajudava financeiramente várias causas dos negros, era amigo dos políticos e
um herói para seu povo.
Para Cat era importante ser popular na comunidade porque ele seria indiciado
outra vez e julgado outra vez e quase certamente inocentado outra vez, por um júri cuja
metade era formada por negros. As autoridades não conseguiam condenar Cat por matar
gente e vender coisas como mulheres, cocaína, mercadorias roubadas, cartões de
crédito, senhas de refeição, bebidas de contrabando, armas e artilharia leve.
Cat tinha um olho só. O outro ficara em algum arrozal do Vietnã. Perdera-o em
1971, no mesmo dia em que o seu amigo, Carl Lee Hailey, fora ferido na perna e carregou
com ele às costas, durante duas horas, até serem socorridos. Depois da guerra, Cat
voltou para Memphis com um quilo de maconha. Com o dinheiro da venda, comprou um
pequeno bar na South Main, e pouco faltou para morrer de fome até que ganhou uma
prostituta num jogo de pôquer. Cat prometeu-lhe que não precisaria mais ser prostituta se
tirasse a roupa para dançar entre as mesas do seu bar. Da noite para o dia Cat conseguiu
mais fregueses do que podia atender, tendo comprado depois outro bar e arranjado mais
bailarinas. Encontrou o seu lugar no mercado e, em dois anos, era um homem muito rico.
O escritório dele ficava em cima de um dos clubes, na South Main, entre Vance e Beale,
no bairro mais perigoso de Memphis. O letreiro luminoso na porta anunciava Budweiser e
bustos, mas muitas outras coisas eram vendidas por detrás daquelas janelas escuras.
Carl Lee e Lester encontraram o bar - Brown Sugar - por volta do meio-dia de sábado.
Sentaram-se ao balcão, pediram cerveja e olharam para os bustos.
- Cat está? - perguntou Carl Lee ao barman quando ele passou por eles, atrás do
balcão. O homem resmungou e voltou a lavar as canecas de cerveja. Carl Lee ficou de
cara fechada, enquanto bebia uns goles de cerveja e apreciava a dança.
- Outra cerveja! - disse Lester, em voz alta sem tirar os olhos das bailarinas.
- Cat Bruster está cá? - perguntou Carl Lee, com firmeza, quando o homem serviu
a cerveja.
- Quem pergunta?
- Eu.
- E então?
- Então, eu e Cat somos grandes amigos. Lutamos juntos no Vietnã.
- Nome?
- Hailey. Carl Lee Hailey. Do Mississipi.
O barman saiu e um minuto depois apareceu entre dois espelhos no meio das
garrafas de bebidas. Fez um sinal para os Hailey, que o seguiram por uma porta pequena,
passaram pelos banheiros, por outra porta, fechada à chave, e subiram uma escada. O
escritório era escuro e espalhafatoso. A alcatifa era dourada no chão, vermelha nas
paredes e verde no teto. Um teto de tapete espesso verde. Barras de aço finas protegiam
as janelas com vidros escuros e, por segurança, cortinas pesadas e poeirentas, cor de
vinho, pendiam do teto até o chão para apanhar e estrangular qualquer raio de sol mais
ousado que conseguisse penetrar através dos vidros pintados. Um lustre pequeno de
metal cromado, com placas espelhadas, girava lentamente pouco acima das suas
cabeças.
Dois guarda-costas enormes com ternos completos pretos e idênticos mandaram
embora o barman, convidaram Carl Lee e Lester a sentarem-se e ficaram de pé atrás
deles.
Os Hailey admiraram a decoração.
- Bonito, não é? - disse Lester.
B. B. King cantava os seus lamentos num estéreo fora das vistas. De repente, Cat
entrou por uma porta secreta entre a parede e a mesa de mármore e vidro. Praticamente,
atirou-se a Carl Lee.
- Meu amigo! Meu amigo! Carl Lee Hailey! - gritou, abraçando Carl Lee. - Que
prazer em vê-lo, Carl Lee. Que grande prazer!
Carl Lee retribuiu o abraço.
- Como está, companheiro? - perguntou Cat.
- Muito bem, Cat, muito bem. E você?
- Otimamente! Otimamente. Quem é este? - Estendeu a mão a Lester que a
apertou e abanou violentamente.
- Este, é o meu irmão Lester - disse Carl Lee. - Ele é de Chicago.
- É um prazer conhecê-lo, Lester. Eu e o grande homem aqui somos muito amigos.
-Muito amigos.
- Ele me falou de você - disse Lester.
Cat olhou outra vez para Carl Lee, com admiração.
- Ora, ora, Carl Lee. Você está ótimo. Como vai a perna?
- Vai bem, Cat. Incomoda-me um pouco quando chove, mas de resto vai bem.
- Somos muito amigos, não somos?
Carl Lee fez que sim com a cabeça e sorriu. Cat largou-o.
- Aceitam um copo?
- Não, obrigado - disse Carl Lee.
- Aceito uma cerveja - disse Lester.
Cat fez estalar os dedos e um dos guarda-costas saiu da sala. Carl Lee sentou-se
na cadeira e Cat na ponta da mesa, balançando os pés como um garoto num cais. Sorriu
para Carl Lee que se remexeu na cadeira, envergonhado com tanta admiração.
- Porque não vem para Memphis trabalhar para mim? - perguntou Cat.
Carl Lee já esperava isso. Há dez anos que Cat lhe oferecia empregos.
- Não, obrigado, Cat. Estou satisfeito.
- Pois fico satisfeito por você. Então, qual é o problema?
Carl Lee abriu a boca, hesitou, cruzou as pernas e franziu a testa. Inclinou
levemente a cabeça e disse.
- Preciso de um favor, Cat. Um pequeno favor.
Cat abriu os braços.
- Qualquer coisa, grande homem, seja o que for.
- Lembras-se daquelas M-16 que usamos no Vietnã? Preciso de uma. O mais
depressa possível.
Cat cruzou os braços sobre o peito. Olhou para o amigo por um momento.
- É uma arma perigosa. De que espécie de esquilo que anda caçando?
- Não é para esquilos.
Cat olhou atentamente para os dois. Sabia o suficiente para não perguntar para
que era a arma. Era coisa séria, de contrário Carl Lee não estaria ali.
- Semi-automática?
- Não. A verdadeira.
- É muita massa.
- Quanto?
- É ilegal, sabia?
- Se eu pudesse comprar na Sears, não estaria aqui.
Cat perguntou-lhe com um largo sorriso:
- Para quando é que precisa dela?
- Para hoje.
A cerveja de Lester chegou e foi servida. Cat sentou-se na sua cadeira de capitão,
de vinil cor-de-laranja, atrás da mesa.
- Mil dólares.
- Eu tenho.
Cat não demonstrou a surpresa que sentiu. Aonde é que aquele negro humilde, de
uma cidadezinha do Mississipi, teria arranjado mil dólares? Talvez emprestados pelo
irmão.
- Mil para qualquer outra pessoa, mas não para você, companheiro.
- Quanto?
- Nada, Carl Lee, nada. Estou lhe devendo muito mais do que dinheiro.
- Terei prazer em pagar.
- Nada disso. Não se fala mais no assunto. A arma é sua.
- É um grande favor que me faz, Cat.
- Eu lhe daria cinqüenta se você quisesse.
- Só preciso de uma. Quando?
- Deixe-me verificar. - Cat fez um telefonema e resmungou qualquer coisa em voz
baixa. Dadas as ordens, desligou e disse que ia demorar mais ou menos uma hora.
- Podemos esperar - disse Carl Lee.
Cat tirou a venda do olho esquerdo e passou um lenço pela órbita vazia.
- Tenho uma idéia melhor. - Voltou-se para os guarda-costas. - Tragam o meu
carro. Vamos buscar a arma.
Seguiram Cat por uma porta secreta e depois por um corredor.
- Eu vivo aqui, sabe - apontou. - Por trás dessa porta, fica o meu apartamento.
Geralmente tenho algumas mulheres nuas lá dentro.
- Gostava de ver - disse Lester.
- Tudo bem - disse Carl Lee.
Mais adiante, Cat apontou para uma porta larga, preta e brilhante, no fim de um
corredor curto.
- É aí que eu guardo o dinheiro. Tem um guarda a postos dia e noite.
- Quanto? - perguntou Lester, enquanto bebericava a cerveja.
Cat olhou carrancudo para ele. Carl Lee franziu a testa ao irmão e abanou a
cabeça. No fim do corredor subiram uma escada estreita até ao quarto andar, que era
mais escuro. Na escuridão, Cat encontrou um botão na parede. Os três esperaram em
silêncio, durante alguns segundos e então a parede abriu-se, revelando um elevador
iluminado, com alcatifa vermelha e o aviso de NÃO FUMAR. Cat carregou noutro botão.
- Tem de subir para descer no elevador - disse ele, sorrindo. - Questão de
segurança.
Ambos menearam a cabeça aprovando e com admiração. As portas abriram-se no
subsolo. Um dos guarda-costas esperava ao lado da porta aberta de uma limusine
enorme e branca e Cat convidou os dois para um passeio. À saída da garagem, passaram
lentamente por uma fila de Fleetwoods, de outras limusines, de um Rolls-Royce e de uma
série de carros de luxo europeus.
- São todos meus - disse Cat, com orgulho.
O motorista buzinou e uma porta pesada enrolou-se para cima, revelando uma rua
lateral.
- Vá devagar. - gritou Cat ao chofer e ao guarda-costas, no banco da frente. -
Quero mostrar-lhes esta parte da cidade.
xxxyyy

Carl Lee já tinha dado esse passeio anteriormente, na sua última visita. Viram filas
e filas de barracas velhas e sem pintura a que o grande homem chamava propriedades
arrendadas. Havia antigos armazéns de tijolo vermelho com janelas pintadas de preto ou
fechadas com tábuas, sem a menor indicação do que havia lá dentro. Viram uma igreja,
com aparência próspera e, logo adiante, mais outra. Ele era dono dos pastores também,
disse Cat. Havia dezenas de bares nas esquinas, com as portas abertas e grupos de
jovens negros sentados nos bancos, no passeio, bebendo cerveja na garrafa. Cat apontou
com orgulho para um prédio incendiado perto da rua Beale e contou com entusiasmo a
história de um concorrente que tinha tentado disputar um lugar no ramo dos shows de
topless. Disse que não tinha concorrentes. Depois, havia também os clubes, com nomes
como Angels e Cat's House e Black Paradise, onde um homem podia encontrar boas
bebidas, boa comida, boa música, mulheres nuas e possivelmente mais coisas, disse ele.
Os clubes tinham feito dele um homem muito rico. Eram oito ao todo.
Os Hailey viram os oito. Além do que parecia ser a maior parte dos prédios do sul
de Memphis. No fim de uma rua sem nome e sem saída, perto do rio, o motorista enfiou
por entre dois armazéns e seguiu por uma passagem estreita até um portão aberto, à
direita. Passado o portão, abriu-se uma porta, ao lado de um cais, e a limusine entrou no
prédio. O carro parou e o guarda-costas desceu.
- Fiquem sentados - disse Cat.
A mala foi aberta e fechada. Em menos de um minuto, a limusine percorria outra
vez as ruas de Memphis.
- Que tal almoçarmos? - perguntou Cat e, antes que eles pudessem responder,
gritou para o motorista. - Para o Black Paradise. Avise que vou almoçar. Tenho a melhor
carne de Memphis, aqui mesmo nos meus clubes. É claro que não vão ler nada sobre
eles, no jornal de domingo. Tenho sido ignorado pelos críticos. Dá para acreditar?
- A mim, parece discriminação - disse Lester.
- Isso mesmo. Tenho certeza de que é. Mas eu não faço uso disso, a menos que
seja indiciado.
- Não temos lido muito sobre você, ultimamente, Cat - disse Carl Lee.
- O meu último julgamento foi há três anos. Sonegação de impostos. A polícia
federal passou três semanas reunindo provas e o júri demorou vinte e sete minutos e
voltou com a palavra mais preciosa da língua afro-inglesa: "inocente".
- Eu já a ouvi uma vez - disse Lester.
O porteiro estava à espera deles sob a marquise do clube e uma equipe de
guarda-costas - não os mesmos do escritório - escoltou o grande homem e os seus
convidados para um gabinete reservado, distante da pista de dança. Bebida e comida
foram servidas por um batalhão de empregados. Lester passou para scotch e já estava
bêbado quando chegou o prato principal. Carl Lee tomou chá gelado e reviveu velhas
histórias com Cat. Quando terminaram, um guarda-costas murmurou qualquer coisa ao
ouvido de Cat. Com um largo sorriso, este olhou para Carl Lee.
- O Eldorado vermelho com placa de Illinois é teu?
- É. Mas nós o deixamos no outro estacionamento.
- Está aí fora... na mala.
- O quê? - exclamou Lester. - Como...
Com uma gargalhada, Cat bateu-lhe nas costas.
- Não pergunte, homem, não pergunte. Tudo foi providenciado, homem. Cat é
capaz de fazer seja o que for.

Como sempre fazia, Jake foi trabalhar no sábado, depois do café da manhã no
Coffee Shop. Gostava da tranqüilidade do escritório, nas manhãs de sábado: nada de
telefone, nada de Ethel.
Fechava a porta à chave, ignorava o telefone e evitava os clientes. Organizava
arquivos, lia as decisões recentes do Supremo Tribunal e planejava a estratégia do seu
próximo julgamento. As suas melhores idéias e pensamentos surgiam nessas tranqüilas
manhãs de sábado. Às onze horas telefonou para a cadeia.
- O xerife está? - perguntou.
- Vou ver - respondeu o policial. Passado algum tempo o xerife atendeu. - Xerife
Walls.
- Ozzie, Jake Brigance. Como está?
- Muito bem, Jake. E você?
- Bem. Vai ficar aí mais algum tempo?
- Umas duas horas. O que há?
- Nada de especial. Só quero um minuto. Estarei aí daqui a meia-hora.
- Fico à espera.
Jake e o xerife simpatizavam um com o outro e respeitavam-se. Jake era duro com
ele, às vezes, nos interrogatórios, mas Ozzie sabia que não era nada pessoal. Jake
ajudava nas campanhas de Ozzie e Lucien financiava-as, portanto, o xerife não se
importava com algumas perguntas sarcásticas e agressivas nos julgamentos. E ele
gostava de provocar Jake falando a respeito do jogo. Em 1969, quando Jake era um
defesa principiante da equipe de futebol de Karaway, Ozzie era atacante da equipe
campeã de Clanton. As duas equipes, ambas invictas, defrontaram-se no jogo final em
Clanton, para a decisão do campeonato da liga de futebol. Durante quatro longos tempos
do jogo, Ozzie barbarizou o ataque do Karaway, muito menor e conduzido por um bravo
mas inexperiente capitão. No quarto tempo do jogo, com a sua equipe vencendo por 44-0,
Ozzie partiu a perna de Jake num confronto. Durante anos, ameaçou que lhe partiria a
outra. Continuava dizendo que Jake coxeava e perguntava-lhe como ia a perna.
- Qual é o problema, amigo? - perguntou Ozzie, quando Jake chegou ao seu
escritório.
- Carl Lee. Estou um pouco preocupado com ele.
- Preocupado como?
- Ouça, Ozzie, esta conversa é confidencial. Não quero que ninguém saiba o que
vou dizer.
- Parece coisa séria, Jake.
- É sério. Falei com Carl Lee na quarta-feira, depois da audiência. Ele está
completamente desnorteado e eu compreendo. Eu também estaria. Falou em matar os
dois homens e falou sério. Eu achei que o senhor devia saber.
- Eles estão seguros, Jake. Carl Lee não conseguiria chegar perto deles, nem que
quisesse. Tivemos alguns telefonemas ameaçadores, anônimos, é claro. Os negros estão
muito preocupados. Mas os homens estão seguros, só os dois numa cela, e estamos
tendo todos os cuidados.
- Isso é bom. Não fui contratado por Carl Lee, mas já representei quase todos os
Hailey e tenho certeza de que ele me considera seu advogado, e achei que era minha
obrigação falar com você.
- Eu não estou preocupado, Jake.
- Ótimo. Quero perguntar-lhe uma coisa. Eu tenho uma filha e você tem uma filha,
certo?
- Tenho duas.
- O que é que Carl Lee pensa? Quero dizer, como um pai negro?
- A mesma coisa que você pensaria.
- E o que é?
Ozzie recostou-se na cadeira, cruzou os braços e pensou um momento.
- Está pensando se ela vai ficar bem, fisicamente, quero dizer. Se vai viver e, se
viver, quais serão as seqüelas de tudo isso. Se vai poder ter filhos. Depois, está pensando
se ela está bem mental e emocionalmente e como isso a irá afetar pelo resto da vida.
Terceiro, ele quer matar os desgraçados.
- Você os mataria?
- É fácil dizer que sim, mas a gente nunca sabe se o faria ou não. Acho que os
meus filhos precisam de mim muito mais do que a Parchman. Que pensaria você, Jake?
- Mais ou menos a mesma coisa, acho eu. Não sei o que faria. Talvez ficasse
louco. - Parou de falar e olhou para a mesa de Ozzie. - Mas pensaria seriamente em
matar o culpado. Seria muito difícil dormir de noite, sabendo que ele estava vivo.
- Que faria um júri?
- Depende de quem são os jurados. Se você escolher o júri certo, sai em
liberdade. Se o promotor escolher o júri certo, você vai parar à câmara de gás. Depende
exclusivamente do júri e nesta cidade podemos escolher as pessoas certas. Todos estão
fartos de estupros, de roubos e de assassinatos. Sei que os brancos, pelo menos, estão.
- Todos estão.
- O que eu estou dizendo é que todos veriam com simpatia o pai que resolveu
fazer justiça com as próprias mãos. Ninguém confia no sistema judiciário. Eu acho que
posso, pelo menos, fazer com que o júri fique indeciso. Basta convencer um ou dois
jurados de que o desgraçado merecia morrer.
- Como o Monroe Bowie.
- Exatamente. Como o Monroe Bowie. Ele era um safado de um negro que
merecia morrer e Lester ficou livre. A propósito, Ozzie, porque pensa que Lester veio de
Chicago?
- Os dois irmãos são muito unidos. Estamos vigiando o Lester também.
Mudaram de assunto e finalmente Ozzie perguntou-lhe pela perna. Despediram-se
com um aperto de mãos e Jake saiu. Foi diretamente para casa, onde Carla o esperava
com a lista. Ela não se importava que ele fosse ao escritório no sábado de manhã, desde
que chegasse à hora do almoço e obedecesse a todas as suas ordens até o fim do dia.
No Domingo, à tarde, uma pequena multidão acompanhou a cadeira de rodas de
Tonya Hailey empurrada pelo pai, no corredor do hospital. Saíram para o estacionamento.
Carl Lee, com todo o cuidado, tirou-a da cadeira e a colocou no banco da frente e, com a
filha sentada entre ele e a mãe e os filhos no banco de trás, partiu, acompanhado pela
procissão de amigos, parentes e estranhos. A caravana seguiu devagar, deixando o
centro da cidade. Tonya estava sentada no banco da frente, como uma pessoa crescida.
O pai estava calado, a mãe chorosa, os irmãos silenciosos e rígidos.
Outra multidão estava à espera deles em casa e todos correram para a varanda,
quando o carro parou no amplo jardim. Carl Lee levou-a no colo para dentro, entre os
murmúrios discretos dos presentes, e deitou-a no sofá da sala. Tonya sentia-se feliz por
estar em casa, mas cansada dos espectadores. A mãe segurou-lhe nos pés enquanto
primos, tios, tias, vizinhos e toda a gente a tocavam e sorriam, alguns com lágrimas nos
olhos, sem dizer nada. O pai estava lá fora conversando com tio Lester e os outros
homens. Os irmãos estavam na cozinha, com uma porção de gente, devorando a imensa
quantidade de comida em cima da mesa.

Rocky Childers era promotor em Ford County há mais tempo do que ele gostaria
de se lembrar. Era um emprego que pagava quinze mil dólares por ano e lhe tomava o
tempo todo, além de lhe ter destruído qualquer esperança de possuir um escritório
particular de advocacia. Aos quarenta e dois anos, Childers via o ponto final da sua
carreira como advogado num beco sem saída, com um emprego de tempo integral, sendo
eleito sucessivamente de quatro em quatro anos. Felizmente, a mulher tinha um bom
emprego, podendo assim terem sempre Buicks novos, eram sócios do country club e de
um modo geral correspondiam aos padrões dos brancos educados de Ford County.
Quando era mais novo, Childers tinha ambições políticas, mas os eleitores fizeram-no
desistir, e agora, contra sua vontade, exauria a carreira processando bêbados, ladrões de
meia-tigela, delinqüentes juvenis e agüentando os insultos do juiz Bullard que ele
desprezava. Uma vez ou outra, Childers animava-se, quando gente como Cobb e Willard
fazia alguma coisa realmente sensacional e Rocky, com a sua autoridade legal, era
encarregado da preliminar e de outras audiências, antes do caso ser enviado ao grande
júri, e posteriormente ao tribunal distrital, cujo promotor era o Sr. Rufus Buckley, de Polk
County, o responsável pelo fim das ambições políticas de Childers.
Normalmente, a audiência para estipulação da fiança não significava muito para
Childers, mas esta era um pouco diferente. Desde quarta-feira, que ele recebia dezenas
de telefonemas de negros, todos eleitores, ou pelo menos dizendo que o eram, muito
preocupados com a possibilidade de Cobb e Willard saírem da cadeia. Queriam que
continuassem presos, exatamente como os negros que não podiam pagar a fiança
exigida, antes do julgamento. Childers prometia fazer o melhor possível mas explicava
que as fianças seriam estabelecidas pelo juiz do condado, Percy Bullard cujo número do
telefone também constava da lista. Ele morava na rua Bennington. Todos prometiam estar
no tribunal na segunda-feira para ver o que ele e Bullard iam fazer.
Segunda-feira, ao meio-dia e meia, Childers foi chamado ao gabinete do juiz, onde
Bullard e o xerife o esperavam. O juiz estava tão nervoso que não conseguia permanecer
sentado.
- Qual a fiança que quer? - perguntou Bullard.
- Eu não sei, Sr. Dr. juiz. Não pensei muito no assunto.
- Não acha que está mais do que na hora de começar a pensar? - Bullard andava
de um lado para o outro, da mesa até a janela, da janela até a mesa.
Ozzie observava, divertido e em silêncio.
- Na verdade, não - respondeu Childers, com calma. - A decisão é sua. O senhor é
que é o juiz.
- Obrigado! Obrigado! Obrigado! Quanto pediria?
- Eu peço sempre mais do que espero conseguir - respondeu Childers secamente,
feliz com o nervosismo do juiz.
- E, quanto é isso?
- Não sei. Não pensei muito no assunto.
O pescoço de Bullard ficou rubro e ele olhou furioso para Ozzie.
- O que acha, xerife?
- Bom - disse Ozzie, com voz arrastada - eu sugiro fianças bem altas. Esses
homens precisam ficar na cadeia para sua própria segurança. Os negros estão inquietos
lá fora. Eles vão acabar mal se saírem sob fiança. É melhor fixar uma fiança bastante alta.
- Que dinheiro têm eles?
- Willard está liso. Cobb, não sei. É difícil seguir a pista do dinheiro da droga. Ele
pode arranjar uns vinte, trinta mil. Ouvi dizer que contratou um advogado importante de
Memphis. Deve chegar hoje. Suponho que Cobb tenha algum dinheiro.
- Bolas, por que é que eu nunca sei dessas coisas? Quem é que ele contratou?
- Bernard. Peter K. Bernard - disse Childers. Ele me telefonou esta manhã.
- Nunca ouvi falar - disse Bullard com ar de superioridade, como se tivesse
decorado uma lista de casos judiciais de todos os advogados existentes. Bullard olhou
para as árvores lá fora e o xerife e o promotor trocaram uma piscadela de olho. As fianças
seriam exorbitantes, como sempre. Os agiotas de fianças adoravam Bullard por causa
das suas fianças absurdas. Viam satisfeitos as famílias desesperadas gastar o último
centavo, hipotecar casas e terras para pagar os juros que cobravam. Bullard fixava
quantias elevadas sem se preocupar. Politicamente era seguro manter os criminosos na
cadeia. Os negros iam gostar, o que era importante, apesar da maioria branca da sua
jurisdição. Bullard devia alguns favores aos negros.
- Vamos fixar cem mil para Willard e duzentos mil para Cobb. Isso vai deixar todos
satisfeitos.
- Todos quem? - perguntou Ozzie.
- Bem, ora, o povo, o povo lá fora. Está de acordo?
- Para mim, está bem - disse Childers. - Mas e a audiência? - perguntou com um
largo sorriso.
- Vamos conceder a audiência. Lhe daremos uma audiência justa e, a seguir, eu
determino as fianças em cem e duzentos mil.
- Suponho que devo pedir três mil, para que a sua decisão pareça justa? -
perguntou Childers.
- Pouco me importa quanto vai pedir! - gritou o juiz.
- A mim, parece justo - disse Ozzie, dirigindo-se para a porta. - Vai chamar-me
para testemunhar? - perguntou a Childers.
- Não, não precisamos de você. Acho que o estado não vai chamar ninguém uma
vez que vamos ter uma audiência tão justa...
Saíram da sala e Bullard ficou fulo. Fechou a porta, tirou uma garrafa de vodca da
pasta e, furioso, bebeu um trago. O Sr. Pate estava à espera no corredor. Cinco minutos
depois, Bullard entrou no tribunal completamente cheio, como um touro zangado.
- Todos de pé! - gritou o Sr. Pate.
- Sentem-se! - berrou o juiz, antes que as pessoas tivessem tempo de se pôr de
pé.
- Onde estão os acusados? Onde?
Cobb e Willard foram escoltados da sala de espera para a mesa da defesa. O
novo advogado de Cobb sorriu para o cliente quando as algemas foram retiradas. O
advogado de Willard, Tyndale, defensor público, ignorou-o.
O mesmo grupo de negros da audiência preliminar estava presente, com mais
alguns amigos. Todos observavam atentamente os movimentos dos dois homens
brancos. Lester viu-os pela primeira vez. Carl Lee não estava no tribunal.
Do alto da sua cátedra, Bullard contou os policiais - nove ao todo. Devia ser um
recorde. Então contou os negros, centenas, todos juntos, todos olhando carrancudos para
os violadores que estavam entre os seus dois advogados. A vodca era um alívio. Bebeu
um gole do que parecia ser água gelada, no copo de plástico, e sorriu. A bebida desceu
lentamente como fogo brando e o sangue subiu-lhe ao rosto. O que ele devia fazer era
mandar sair todos os policiais e atirar Cobb e Willard aos negros. Seria divertido e a
justiça teria sido feita. Bullard quase conseguia ver as negras gordas pulando de
contentes, enquanto os homens espetavam os dois homens com facas e machadinhas.
Depois, quando tudo estivesse terminado, eles sairiam em silêncio da sala. Bullard sorriu.
Fez um sinal ao Sr. Pate, que se aproximou.
- Tenho uma garrafa de água gelada na gaveta da minha mesa - murmurou o juiz.
- Sirva um pouco num copo de plástico.
O Sr. Pate fez um gesto afirmativo e saiu da sala.
- Esta é uma audiência para se estipular a fiança - explicou o juiz, em voz alta - e
espero que seja breve. Os acusados estão prontos?
- Sim, senhor - disse Tyndale.
- Sim, Meritíssimo - disse o Sr. Bernard. - O estado está pronto?
- Sim, senhor - respondeu Childers, sem se levantar. - Muito bem. Chame a sua
primeira testemunha.
Childers dirigiu-se ao juiz.
- Meritíssimo, o estado não vai chamar nenhuma testemunha. O Meritíssimo está a
par das acusações contra os dois acusados, uma vez que presidiu à audiência preliminar
na quarta-feira. Fui informado de que a vítima já está em casa. Sendo assim, não
antecipamos novas acusações. Pediremos ao júri de instrução, na segunda-feira, o
indiciamento dos dois acusados por estupro, rapto e lesão corporal qualificada. Devido à
natureza violenta desses crimes, à idade da vítima e por ser o Sr. Cobb um ex-
condenado, o estado pede as fianças máximas, nem um centavo a menos.
Bullard quase engasgou com a água gelada. Que máxima? Não existe nenhuma
fiança máxima.
- O que sugere, Sr. Childers?
- Meio milhão cada um! - disse Childers orgulhosamente, sentando-se.
Meio milhão! De jeito nenhum, pensou Bullard. Bebeu mais água gelada e olhou
furioso para o promotor. Meio milhão! Traído em pleno tribunal! Mandou o Sr. Pate buscar
mais água gelada.
- Tem a palavra a defesa.
O novo advogado de Cobb levantou-se com ar decidido, tirou os óculos
acadêmicos de leitura, com aros de tartaruga pigarreou e , disse:
- Com permissão do tribunal, Meritíssimo, o meu nome é Peter K. Bernard. Sou de
Memphis e fui contratado pelo Sr. Cobb para o representar.
- Tem licença para advogar no Mississipi? ­ interrompeu Bullard.
Bernard foi apanhado de surpresa.
- Bem, eu... não exatamente, Meritíssimo.
- Já percebi. Quando diz "não exatamente", quer dizer alguma coisa diferente de
não?
Alguns advogados na bancada do júri riram divertidos. Bullard era famoso por
essas coisas. Detestava os advogados de Memphis e exigia que trabalhassem com um
advogado local antes de se apresentarem no seu tribunal. Anos antes, quando ele ainda
advogava, um juiz de Memphis expulsara-o do tribunal por não ser licenciado no
Tennessee. Bullard vingava-se desde o dia em que fora eleito juiz.
- Meritíssimo, não sou licenciado no Mississipi, mas sou licenciado no Tennessee.
- Espero que sim... - respondeu o juiz. Mais risos abafados da bancada do júri, -
Conhece os regulamentos de Ford County? - perguntou o Meritíssimo.
- Bem, eu, sim, Senhor Dr. Juiz.
- Tem uma cópia desses regulamentos?
- - Tenho sim, Meritíssimo.
- E a leu atentamente antes de se aventurar no meu tribunal?
- Bem, sim, a maior parte.
- Compreendeu o Regulamento 14 quando o leu? Cobb olhou desconfiado para o
novo advogado.
- Bem, não me lembro desse especificamente - admitiu Bernard.
- Foi o que eu pensei, o Regulamento 14 determina que advogados de outros
estados, sem licença no Mississipi, se associem a um advogado local para aparecerem
no meu tribunal.
- Sim, senhor.
A aparência e os maneirismos de Bernard eram de um advogado experiente. Pelo
menos, era essa a sua fama em Memphis. Entretanto, estava em via de ser totalmente
arrasado e humilhado por um juiz simplório de uma pequena cidade, com uma língua
ferina.
- Sim, senhor o quê? - vociferou Bullard.
- Sim, senhor, acho que ouvi falar desse regulamento.
- Então, onde está o advogado local?
- Não há nenhum, mas eu pretendia...
- Então, o senhor veio de Memphis, leu atentamente os meus regulamentos e
ignorou-os deliberadamente. Correto? Bernard baixou a cabeça e olhou atordoado para o
bloco de papel em branco sobre a mesa. Tyndale levantou-se devagar.
- Meritíssimo, que fique registrado que eu me apresento como advogado
associado do Dr. Bernard, exclusivamente para fins desta audiência e de mais nenhum.
Bullard sorriu. Boa jogada, Tyndale, boa jogada. A água gelada aqueceu-o e
Bullard aquietou-se.
- Muito bem, chame as suas testemunhas.
Bernard empertigou-se outra vez e inclinou a cabeça para o lado.
- Meritíssimo, como testemunha de defesa do Sr. Cobb, eu gostaria de chamar o
irmão, o Sr. Fred Cobb, para depor.
- Seja breve - disse Bullard.
O irmão de Cobb prestou juramento e sentou-se. Bernard assumiu o pódio e
começou um longo e detalhado interrogatório direto. Estava bem preparado. Provou que
Billy Ray Cobb tinha um bom emprego, era proprietário de imóveis em Ford County, tinha
crescido na cidade, onde moravam quase toda a sua família e os seus amigos e que não
tinha motivos para sair de Ford County. Um cidadão sólido, com raízes profundas, teria
muito a perder com uma fuga. Era um homem no qual se podia confiar que compareceria
ao julgamento. Um homem que merecia uma fiança razoável.
Bullard bebeu um gole, bateu com a caneta na mesa e examinou os rostos dos
espectadores.
Childers não tinha nenhuma pergunta. Bernard chamou a mãe de Cobb, Cora, que
repetiu o que o filho Fred dissera sobre o seu filho Billy Ray. Deixou escapar umas duas
lágrimas no momento errado e Bullard meneou a cabeça.
Chegou a vez de Tyndale. Fez o mesmo com a família de Willard.
Fiança de meio milhão de dólares! Qualquer coisa menor seria pouco e os negros
não iam ficar satisfeitos. O juiz tinha motivo para odiar Childers. Mas gostava dos negros
porque o tinham elegido na última eleição. Tivera cinqüenta e um por cento dos votos do
condado, mas todos os votos dos negros.
- Mais alguma coisa? - perguntou, quando Tyndale terminou.
Os três advogados entreolharam-se, depois voltaram-se para o juiz. Meritíssimo,
eu gostaria de resumir a posição do meu cliente em relação a uma fiança razoável...
- Esqueça, meu amigo. Já ouvi o bastante sobre o senhor e o seu cliente. Sente-
se.
Bullard hesitou, e então disse rapidamente:
- O tribunal decide determinar uma fiança de cem mil dólares para Pete Willard e
de duzentos mil dólares para Billy Ray Cobb. Os acusados permanecerão sob a custódia
do xerife até ao pagamento das fianças. Está encerrada a sessão. - Bateu com o martelo
e saiu da sala. No seu gabinete, esvaziou a garrafa de vodca e abriu outra.
Lester ficou satisfeito com as fianças. A dele fora de cinqüenta mil pelo
assassinato de Monroe Bowie. É claro que Bowie era negro e as fianças geralmente eram
mais baixas nesse caso.
O povo começou a caminhar para a porta, mas Lester não se moveu. Observou
atentamente os dois acusados sendo algemados e conduzidos para a sala de espera.
Quando eles desapareceram, Lester apoiou a cabeça nas mãos e recitou uma rápida
oração. Depois, pôs-se à escuta.

Pelo menos dez vezes ao dia, Jake passava pelas portas de vidro e ia até à
varanda para examinar o centro da cidade de Clanton. Às vezes, acendia um charuto
barato e deitava a fumaça lá para fora, por cima da rua Washington. Mesmo no Verão,
deixava abertas as janelas do escritório. Os sons do movimentado centro da cidade
faziam-lhe companhia enquanto ele trabalhava. Às vezes, admirava-se com o volume do
som que subia das ruas em volta do tribunal e, outras vezes, ia até à varanda para ver por
que razão estava tudo tão quieto.
Um pouco antes das duas horas da tarde, na segunda-feira, 20 de Maio, Jake foi
até à varanda e acendeu um charuto. Um silêncio pesado envolvia o centro de Clanton,
Mississipi.

Cobb desceu à frente, com as mãos algemadas nas costas, e atrás dele desceu
Willard e o policial Looney. Dez degraus, o patamar, virar para a direita, mais dez degraus
até ao primeiro andar.
Três policiais esperavam-nos do lado de fora, ao lado dos carros de policial,
fumando e olhando a movimentação dos repórteres. Quando Cobb chegou ao segundo
degrau, de baixo para cima, Willard no terceiro acima dele, e Looney no primeiro degrau
depois do patamar, a porta do pequeno, sujo e desordenado armário do zelador abriu-se
bruscamente e o Sr. Carl Lee Hailey saltou do escuro, empunhando uma M-16. Abriu fogo
à queima-roupa.
Os estampidos rápidos e secos fizeram tremer o prédio do tribunal, explodindo o
silêncio. Os violadores ficaram imóveis, depois gritaram quando foram atingidos - Cobb
primeiro, na barriga e no peito, e a seguir Willard, no rosto e no pescoço. Giraram o corpo
inutilmente na direção do topo da escada, algemados e indefesos, caíram um por cima do
outro, misturando pedaços de pele e sangue, Looney foi atingido na perna, mas
conseguiu subir para a sala de espera, onde ficou agachado, ouvindo os gritos e os
gemidos de Cobb e Willard e o riso louco do negro. As balas ricocheteava entre as
paredes da escada estreita e, quando olhava para baixo, Looney via carne e sangue
espirrando para as paredes e escorrendo pelos degraus.
Com disparos rápidos e curtos, de sete ou oito balas cada um, o som trovejante da
M-16 ecoou pelo prédio durante uma eternidade. Entre os estampidos e o ruído das balas
batendo nas paredes, ouvia-se perfeitamente o riso louco de Carl Lee.
Quando acabou, atirou a espingarda para cima dos dois corpos e desatou a correr.
No banheiro, prendeu o trinco da porta com uma cadeira, saltou pela janela para os
arbustos e saiu para o passeio. Calmamente, dirigiu-se para a sua pick-up e foi para casa.
Lester ficou rígido quando começaram os tiros. Ouvia perfeitamente os estampidos na
sala do tribunal. A mãe de Willard gritou e a mãe de Cobb gritou também e os policiais
precipitaram-se para a sala de espera, mas não desceram a escada. Lester ficou atento
para ver se ouvia tiros de revólveres e como não ouviu nenhum, saiu da sala.
Ao primeiro tiro, Bullard agarrou a garrafa de vodca e enfiou-se debaixo da mesa,
enquanto o Sr. Pate trancava a porta.
Cobb, ou o que dele restava, caiu sobre o corpo de Willard. O sangue misturado
dos dois formava poças nos degraus, e escorria para o seguinte, onde formava outra
poça, antes de pingar para baixo. Em questão de segundos, o chão, no fim da escada
estreita, tornara-se um lago de sangue.
Jake saiu correndo do escritório e atravessou a rua na direção da porta dos fundos
do tribunal. O policial Prather, agachado em frente da porta, de arma na mão, esbravejava
com os repórteres que tentavam aproximar-se. Os outros policiais estavam ajoelhados
prudentemente nos degraus, ao lado dos carros-patrulha. Jake correu para frente do
prédio, onde mais policiais guardavam a porta, ajudando a saída dos funcionários e das
testemunhas. Uma verdadeira multidão corria para a rua. Jake abriu caminho contra a
corrente e encontrou Ozzie no átrio, orientando as pessoas e gritando em todas as
direções. Fez um sinal a Jake e seguiram ambos pelo corredor, a caminho das portas dos
fundos, onde uma meia dúzia de policiais, empunhando as suas armas, olhavam em
silêncio para a escada. Jake sentiu náuseas. Willard tinha quase chegado ao patamar. A
parte da frente da cabeça tinha desaparecido e a massa cinzenta escorria como geléia
cobrindo-lhe a cara. Cobb tinha conseguido virar o corpo e recebera a maior parte das
balas nas costas. A cara dele estava em cima da barriga de Willard e os pés tocavam no
quarto degrau da escada, de baixo para cima. O sangue continuava a escorrer dos corpos
sem vida, cobrindo completamente os últimos degraus da escada. A poça vermelha no
chão avançava rapidamente na direção dos policiais que iam recuando aos poucos. A
arma estava entre as pernas de Cobb, no quinto degrau, também coberta de sangue.
O grupo olhava em silêncio, horrorizado perante os dois corpos que, embora
mortos, continuavam a verter sangue. O cheiro espesso de pólvora pairava no ar e
espalhava-se pelo corredor até ao átrio do tribunal, onde os policiais continuavam a
conduzir as pessoas para a porta da frente.
- Jake, acho melhor você ir embora - disse Ozzie, sem olhar para os corpos.
- Porquê?
- Vá embora.
- Porquê?
- Porque preciso tirar fotografias e reunir provas e você não precisa ficar aqui.
- Está bem. Mas não o interrogue sem a minha presença. Compreendeu?
Ozzie fez que sim com a cabeça.
As fotografias foram tiradas, a escada limpa, as provas reunidas, os corpos
removidos e, duas horas depois, Ozzie saiu do prédio do tribunal acompanhado por cinco
carros-patrulha. Era Hastings quem guiava e seguiu para fora da cidade, na direção do
lago, passaram pelo armazém Bates e entraram na Craft Road. Em frente da casa dos
Hailey estavam apenas o carro de Gwen, a pick-up de Carl Lee e o Cadillac vermelho
com placa do Illinois. Quando os carros pararam enfileirados em frente da casa. Ozzie
não esperava nenhum problema. Os policiais agacharam-se atrás das portas abertas, de
armas em punho, e o xerife dirigiu-se sozinho para a casa. A porta abriu-se lentamente e
apareceu a família Hailey. Carl Lee foi até à beira da varanda com Tonya nos braços.
Olhou para o seu amigo, o xerife, e depois para a fileira de carros e policiais. À sua direita
estava Gwen e à esquerda os três filhos, o menor chorando baixinho, mas os outros dois
bravos e orgulhosos. Atrás deles estava Lester. Os dois grupos estudaram-se
mutuamente, cada um deles à espera que o outro dissesse ou fizesse alguma coisa,
desejando cada um deles evitar o que estava para acontecer. Só se ouvia o choro contido
de Tonya, da mãe e do filho menor.
As crianças tinham tentado compreender. O pai contara o que tinha feito e
explicara as razões. Eles percebiam isso, mas não conseguiam compreender por que o
pai tinha de ir para a prisão. Ozzie deu um pontapé num torrão de terra, olhou para a
família, depois para os seus homens. Por fim, disse:
- É melhor vir comigo.
Carl Lee inclinou levemente a cabeça, mas não se mexeu. Gwen e o menino
choraram mais alto quando Lester tirou Tonya dos braços do pai. Então Carl Lee
ajoelhou-se diante dos filhos e em voz baixa repetiu que tinha que ir mas que voltaria em
breve. Abraçou os três e as crianças agarraram-se a ele, chorando. Carl Lee voltou-se e
beijou a mulher. Depois, desceu os degraus da varanda e foi ter com o xerife.
- Quer me colocar as algemas, Ozzie?
- Não, Carl Lee, entre no carro.


OITO

Moss Junior Tatum, o primeiro subdelegado, e Jake conversavam no escritório de
Ozzie enquanto policiais, tropas de reserva, prisioneiros com regalias por bom
comportamento e outros funcionários da prisão se amontoavam na sala de trabalho,
espaçosa, ao lado do escritório de Ozzie, esperando ansiosamente a chegada do
prisioneiro. Dois policiais espreitavam por entre as lâminas da persiana os repórteres e
câmeras no estacionamento, entre o edifício e a estrada. Os furgões de televisão de
Memphis, Jackson e Tupelo estavam espalhados pelo espaço completamente cheio.
Moss não gostou. Foi até ao passeio e mandou que os jornalistas se limitassem a uma
determinada área e juntassem também os furgões.
- O senhor vai fazer uma declaração? - gritou um repórter.
- Vou, ponham os furgões onde eu mandei.
- Pode dizer alguma coisa sobre os crimes?
- Posso, duas pessoas foram mortas.
- E os pormenores?
- Nada. Eu não estava lá.
- Já têm um suspeito?
- Temos.
- Quem é?
- Eu digo depois de terem mudado os furgões de lugar. A ordem foi obedecida
imediatamente e as câmaras e microfones juntaram-se no passeio. Moss dirigiu o
movimento até ficar satisfeito com o resultado, depois aproximou-se dos repórteres.
Enquanto mastigava calmamente um palito, enfiou os polegares nas alças do cinto,
abaixo da barriga avantajada.
- Quem foi?
- Está preso?
- A família da menina está envolvida?
- Foram ambos mortos?
Moss sorriu e abanou a cabeça.
- Um de cada vez. Sim, temos um suspeito. Está preso e deve chegar a qualquer
momento. Deixem os carros fora do caminho. E é tudo.
Moss voltou para o prédio da cadeia ignorando os repórteres que continuavam
gritando perguntas e entrou na sala onde os outros esperavam.
- Como está Looney? - perguntou.
- Prather está com ele no hospital. Está bem - um ferimento leve na perna.
- Sim, e um leve ataque do coração - sorriu Moss. Os outros riram.
- Aí vêm eles! - gritou um prisioneiro e todos correram para as janelas quando a
fila de luzes azuis entrou no estacionamento.
Ozzie conduzia o primeiro carro com Carl Lee ao seu lado, sem algemas.
Hastings, recostado no banco de trás, acenou para as câmaras quando passaram por
elas e continuaram além dos furgões, deram a volta ao edifício, pararam na porta dos
fundos e entraram os três, calmamente. Carl Lee foi entregue ao carcereiro e Ozzie foi
para o escritório, onde Jake o esperava.
- Pode vê-lo num minuto, Jake - disse o xerife.
- Obrigado. Tem certeza de que foi ele?
- Sim, tenho.
- Ele não confessou, não é?
- Não, ele não falou muito sobre coisa alguma. Acho que Lester o instruiu.
- Ozzie - disse Moss, entrando no escritório - aqueles repórteres querem falar com
você. Eu disse-lhes que iria falar com eles daqui a minutos.
- Obrigado, Moss - suspirou Ozzie.
- Alguém presenciou o crime? - perguntou Jake. Ozzie enxugou a testa com um
grande lenço vermelho.
- Sim. Looney pode identificá-lo. Você conhece o Murphy, o homenzinho aleijado
que varre o chão do tribunal?
- Claro. Gagueja um pedaço.
- Ele viu tudo. Estava sentado na escada do lado leste, bem de frente para o que
aconteceu. Almoçando. Ficou tão assustado que não conseguiu falar durante uma hora. -
Ozzie parou de falar e olhou para Jake. - Porque estou lhe contando tudo isto?
- E qual é a diferença? Eu saberia, mais cedo ou mais tarde. Onde está o meu
homem?
- No fim do corredor, na cadeia. Eles têm de tirar fotografias e tudo o mais. Uns
trinta minutos, mais ou menos.
Ozzie saiu e Jake telefonou para Carla, recomendando-lhe que assistisse e
gravasse os noticiários.
Diante dos microfones e das câmaras, Ozzie disse:
- Não vou responder a nenhuma pergunta. Temos um suspeito sob custódia. O
nome dele é Carl Lee Hailey de Ford County. Detido por dois assassinatos.
- É o pai da criança?
- Sim, é.
- Como sabem que foi ele?
- É que somos muito espertos.
- Alguma testemunha ocular?
- Não que eu saiba.
- Ele confessou?
- Não.
- Onde o encontrou?
- Na casa dele.
- Houve um policial que ficou ferido?
- Houve.
- Como está ele?
- Está bem. Está no hospital, mas está bem.
- Como é que ele se chama?
- Looney. DeWayne Looney.
- Quando vai ser a audiência preliminar?
- Eu não sou juiz.
- Alguma idéia?
- Talvez amanhã, talvez na quarta-feira. Chega de perguntas, por favor. No
momento, não tenho mais nenhuma informação para a imprensa.

O carcereiro pegou a carteira de Carl Lee, dinheiro, relógio, chaveiro e canivete e
procedeu à sua relação, num inventário, que Carl Lee assinou e datou. Numa pequena
sala, ao lado da cadeia, foi fotografado e tiraram-lhe as impressões digitais, exatamente
como Lester dissera que fariam. Ozzie estava à espera no corredor e levou-o para uma
sala onde se faziam os testes de alcoolemia aos bêbados. Jake estava sentado ao lado
da mesa com o aparelho. Ozzie pediu licença e saiu.
Advogado e cliente, com a mesa separando-os, estudaram-se atentamente.
Sorriram, com admiração, mas em silêncio.
A família de Gwen era grande e todos evitavam problemas, mas não eram ricos.
Carl Lee tinha alguns hectares de terra e a casa que tinha hipotecado para ajudar Lester a
pagar a Jake.
Jake tinha cobrado cinco mil dólares pela defesa de Lester no julgamento por
assassinato. Metade foi paga antes do julgamento e o resto em prestações, durante três
anos.
Jake detestava falar sobre honorários. Era a parte mais difícil da sua profissão. Os
clientes queriam saber com antecedência, imediatamente, quanto teriam de pagar e as
reações variavam. Alguns ficavam chocados, outros engoliam em seco, alguns - poucos -
saíam furiosos do seu escritório. Outros ainda negociavam, mas a maioria pagava ou
prometia pagar.
Jake leu a ficha e o contrato, desesperadamente, tentando pensar num preço
justo. Muitos outros advogados estariam dispostos a aceitar aquele caso praticamente de
graça. Só pela publicidade. Jake pensou no terreno da casa de Carl Lee, no emprego na
fábrica de papel e finalmente disse:
- Os meus honorários são dez mil dólares.
Carl Lee não pestanejou.
- Cobrou cinco mil ao Lester.
Jake já estava à espera disso.
- Você tem três acusações. Lester só tinha uma.
- Quantas vezes posso ir para a câmara de gás?
- Boa pergunta. Quanto pode pagar?
- Posso pagar mil agora - disse, com orgulho. - E o resto peço emprestado dando
as minhas terras como aval e dou tudo a você, Jake.
Jake pensou um minuto.
- Tenho uma idéia melhor. Vamos combinar um preço. Você paga mil agora e
assina uma nota promissória pelo resto. Faça o empréstimo e pague mediante
apresentação da promissória.

- Quanto é que quer? - perguntou Carl Lee.
- Dez mil.
- Pago cinco.
- Pode pagar mais do que isso.
- E você pode defender-me por muito menos.
- Certo, posso fazer por nove.
- Nesse caso, posso pagar seis.
- Oito?
- Sete.
- Podemos concordar com sete mil e quinhentos?
- Sim, acho que posso pagar isso. Depende do que irão emprestar pelas minhas
terras. Quer que eu pague mil agora e assine uma promissória de seis mil e quinhentos?
- Isso mesmo.
- Está bem, negócio fechado.
Jake preencheu o formulário do contrato e fez a nota promissória e Carl Lee
assinou os dois documentos.
- Jake, quanto é que pediria para defender um homem com muito dinheiro?
- Cinqüenta mil dólares.
- Cinqüenta mil! Está falando a sério?
- Exatamente.
- Diabo, é muita grana. Já recebeu isso?
- Não, mas não tenho encontrado muitas pessoas julgadas por assassinato com
todo esse dinheiro.
Carl Lee queria saber tudo sobre a fiança, o grande júri, o julgamento, as
testemunhas, quem ia fazer parte do júri, quando iria sair da cadeia, se Jake podia
apressar o julgamento, quando podia contar a sua própria versão e milhares de outras
coisas. Jake disse-lhe que teriam muito tempo para conversar. Prometeu telefonar para
Gwen e para o patrão de Carl Lee, na fábrica de papel.
Jake saiu e Carl Lee foi para a sua cela, ao lado da cela dos prisioneiros do
estado.
O Saab estava bloqueado por um furgão da televisão. Jake perguntou quem era o
dono. A maioria dos repórteres tinha ido embora, mas alguns continuavam por ali, à
espera de alguma novidade. Era quase noite.
- O senhor trabalha no departamento do xerife? - perguntou um repórter.
- Não, sou advogado - respondeu Jake, descontraído, procurando aparentar
indiferença.
- É o advogado do Sr. Hailey .
Jake olhou para o repórter. Os outros estavam atentos.
- Para falar verdade, sou.
- Estaria disposto a responder a algumas perguntas?
- Pode perguntar. Não prometo responder.
- Quer vir até aqui?
Jake caminhou para os microfones e as câmaras, tentando parecer aborrecido
com a inconveniência. Ozzie e os policiais observavam-no de dentro do edifício.
- Jake adora as câmaras - disse ele.
Às onze e quinze o telefone tornou a tocar e Jake recebeu a primeira ameaça de
morte, anônima, é claro. Chamaram-lhe filho da puta, defensor de pretos, e disseram-lhe
que não viveria se o negro fosse solto.


NOVE

Na manhã de terça-feira, depois dos crimes, Dell Perkins serviu mais café e aveia
do que nunca. Todos os freqüentadores habituais e mais alguns se reuniram muito cedo
para ler os jornais e falar sobre os crimes cometidos a menos de 30 metros da porta do
Coffee Shop. Claude's e o Tea Shoppe também ficaram cheios mais cedo que de
costume. A fotografia de Jake apareceu na primeira página do jornal de Tupelo e os
jornais de Memphis e de Jackson estampavam fotografias de Cobb e Willard, antes dos
tiros e depois, quando os corpos foram levados para a ambulância. Nenhuma fotografia
de Carl Lee. Os três jornais descreviam com detalhes os últimos seis dias em Clanton.
Todos tinham certeza de que Carl Lee era o autor dos crimes, mas boatos de
outros atiradores que teriam participado começaram a surgir e aumentaram até se
transformarem, numa das mesas do Tea Shoppe, numa quadrilha de negros selvagens.
No Coffee Shop, policiais, embora falando pouco, acabaram com essa fantasia. O estado
do policial Looney era regular e os médicos estavam preocupados com os ferimentos, que
pareciam mais graves do que tinham suposto. Continuava no hospital e tinha identificado
o atirador como o irmão de Lester Hailey.
Jake chegou às seis horas e sentou-se perto da entrada, com alguns fazendeiros.
Cumprimentou Prather e o outro policial com um aceno de cabeça, mas eles fingiram não
o ter visto. Isto vai passar quando Looney ficar bom, pensou Jake. Houve algumas
observações sobre a sua fotografia na primeira página, mas ninguém lhe fez perguntas
sobre o seu cliente, nem sobre os crimes. Notou uma certa frieza por parte de alguns dos
fregueses habituais. Comeu rapidamente e saiu.
Às nove horas, Ethel chamou-o pelo interfone. O juiz Bullard estava em linha.
- Alô, senhor doutor juiz. Como tem passado?
- Pessimamente. Você representa Carl Lee Hailey?
- Sim, senhor.
- Para quando quer a preliminar?
- Porque pergunta a mim, senhor doutor juiz?
- Tem razão. Ouça, os funerais vão ser amanhã de manhã, não sei a hora e acho
que seria melhor esperar que enterrem aqueles miseráveis, não concorda?
- Sim, senhor doutor juiz, boa idéia.
- Que tal amanhã, às duas da tarde?
- Ótimo.
Bullard hesitou.
- Jake, você consideraria abrir mão da preliminar e deixar que eu envie o caso
diretamente para o grande júri?
- O senhor sabe muito bem que eu nunca desisto de uma preliminar.
- Eu sei. Só pensei em lhe pedir um favor. Não vou presidir a este julgamento e
não quero ter nada vendo com ele. Nos vemos amanhã.
Uma hora depois, a voz esganiçada de Ethel soou outra vez no interfone.
- Dr. Brigance, estão aqui alguns repórteres que querem falar com o senhor
doutor.
Jake ficou encantado.
- De onde?
- Memphis e Jackson, parece-me.
- Mande-os entrar para a sala de conferências. Desço já. Jake endireitou a gravata
e penteou-se. Depois, olhou para a rua para ver se havia algum furgão de televisão.
Resolveu fazê-los esperar e ao fim de uns dois telefonemas sem importância desceu para
o primeiro andar, passou por Ethel sem uma palavra e entrou na sala de conferências.
Pediram-lhe que se sentasse na cabeceira da comprida mesa, por causa da luz. Jake
recusou, dizendo a si mesmo que ia controlar as coisas, e sentou-se a meio da mesa, de
costas para os grossos e caros livros de Direito.
Os microfones foram postos na sua frente, as luzes da câmara ajustadas e então
uma atraente repórter de Memphis com cabelos e pestanas cor-de-laranja pigarreou e
perguntou:
- Dr. Brigance, o senhor representa Carl Lee Hailey?
- Sim, represento.
- E ele foi acusado dos assassinatos de Billy Ray Cobb e Pete Willard?
- Exatamente.
- E Cobb e Willard foram acusados de violentar a filha do Sr. Hailey?
- Sim, isso mesmo.
- O Sr. Hailey nega ter matado Cobb e Willard?
- Ele vai declarar-se inocente dessas acusações.
- Vai ser acusado de ter atirado no policial Looney?
- Sim. Antecipamos uma terceira acusação de agressão qualificada contra o
policial.
- O senhor espera uma defesa baseada em insanidade?
- Não pretendo discutir a defesa neste momento, porque ele não foi indiciado.
- Está querendo dizer que há possibilidade de ele não ser indiciado?
Uma vantagem, com que Jake contava. O júri de instrução podia indiciar ou não e
os jurados só seriam escolhidos quando o tribunal itinerante se reunisse no dia 27 de
Maio, segunda-feira.
Assim sendo, os futuros jurados estavam naquele momento andando nas ruas de
Clanton, tratando das suas lojas, trabalhando nas fábricas, arrumando as casas, lendo os
jornais, vendo TV e discutindo se o acusado devia ou não ser indiciado.
- Sim, penso que há uma possibilidade de não ser indiciado. Depende do júri de
instrução ou dependerá, depois da audiência preliminar.
- Quando vai ser a audiência preliminar?
- Amanhã. Às duas da tarde.
- O senhor supõe que o juiz Bullard vai submetê-lo ao júri de instrução?
- Podemos contar com isso - disse Jake, sabendo que Bullard ia adorar a resposta.
- Quando se reunirá o júri de instrução?
- Um novo júri de instrução vai prestar juramento na segunda-feira de manhã.
Pode estudar o caso na tarde do mesmo dia.
- Quando espera que seja o julgamento?
- Partindo do princípio de que ele é indiciado, o caso pode ser julgado no fim do
Verão ou no começo do Outono.
- Em que tribunal?
- No tribunal itinerante de Ford County.
- Quem será o juiz?
- O meritíssimo juiz Ornar Noose.
- De onde é ele?
- Chester, Mississipi, Van Buren County.
- Quer dizer que o caso vai ser julgado aqui em Clanton?
- Sim, a não ser que o foro seja transferido.
- O senhor vai pedir transferência de foro?
- Boa pergunta, mas não estou preparado para responder neste momento. É um
pouco prematuro falar sobre a estratégia da defesa.
- Por que razão poderia o senhor pedir a transferência do local do julgamento?
Para encontrar um lugar mais simpático aos negros, pensou Jake. Respondeu
pensativamente:
- Os motivos de sempre. Publicidade anterior ao julgamento, etc.
- Quem decide a transferência?
- O juiz Noose. A decisão depende unicamente dele.
- Foi determinada a fiança?
- Não e provavelmente não o será, até que ele seja indiciado. Neste momento, ele
tem direito a uma fiança razoável, mas neste município não é concedida fiança em casos
de assassinato, antes de o réu ser indiciado e acusado formalmente pelo tribunal distrital.
Nessa ocasião a fiança será determinada pelo juiz Noose.
- O que pode o senhor dizer-nos sobre o Sr. Hailey?
Jake pensou calmamente um instante, enquanto as câmaras continuavam a filmar.
Outra boa pergunta, com uma boa oportunidade de plantar algumas sementes para a
defesa.
- Tem trinta e sete anos. É casado há vinte anos com a mesma mulher, tem quatro
filhos: três rapazes e uma garota. Um bom homem, sem ficha criminal. Nunca teve este
tipo de problemas anteriormente. Condecorado no Vietnã. Trabalha cinqüenta horas por
semana na fábrica de papel, em Coleman. Tem os impostos em dia e tem alguns hectares
de terra. Vai à igreja todos os domingos com a família. Trata da vida dele e espera que os
outros o deixem em paz.
- O senhor nos deixaria falar com ele?
- É claro que não.
- O irmão dele não foi julgado por assassinato, há alguns anos?
- Sim, e o veredicto foi inocente.
- O senhor foi o advogado de defesa?
- Fui, sim.
- Já defendeu vários casos de assassinatos em Ford County, certo?
- Três.
- Quantos veredictos de inocente?
- Todos - respondeu Jake, lentamente.
- Não é verdade que o júri tem várias opções no Mississipi?
- Sim, é verdade. Com uma acusação formal de assassinato o júri pode declarar o
réu culpado de homicídio culposo, com pena de vinte anos, ou de crime doloso, com pena
de prisão perpétua ou de morte determinada pelo júri. E o júri pode declarar o acusado
inocente. - Jake sorriu para as câmaras. - Suponho, aqui também, que ele seja indiciado.
- Como está a menina dos Hailey?
- Está em casa. Teve alta no domingo. Ao que parece, está bem.
Os repórteres olharam uns para os outros à procura de mais perguntas. Jake sabia
que aquele era o momento perigoso, quando começavam fazendo perguntas malucas.
Levantou-se e abotoou o casaco.
- Ouçam, agradeço-lhes terem aqui vindo. Estarei sempre à disposição. Basta
avisarem-me com antecedência e terei muito prazer em conversar com vocês. Eles
agradeceram e foram embora.

Às dez horas da manhã de quarta-feira, numa cerimônia simples, na casa
funerária, os brancos enterraram os seus mortos. O pastor, recentemente ordenado na
igreja, lutou desesperadamente para encontrar palavras de consolo para os presentes, ao
lado dos dois caixões fechados. Foi uma cerimônia breve e com poucas lágrimas.
As pick-ups e os Chevrolets sujos acompanharam lentamente o carro funerário
para fora da cidade. Pararam atrás de uma pequena igreja de tijolos vermelhos. Os
corpos foram enterrados um de cada vez, nas extremidades opostas do pequeno
cemitério coberto de mato. Depois de mais algumas orações, as pessoas afastaram-se.
Os pais de Cobb tinham-se divorciado quando ele era pequeno e o pai viera de
Birmingham para o funeral. Depois do enterro, desapareceu. A Sra. Cobb morava numa
casa branca de madeira, pequena e limpa, perto do aglomerado de Lake Village, dez
milhas ao sul de Clanton. Os dois irmãos, primos e amigos do morto reuniram-se debaixo
de um carvalho, no quintal, enquanto as mulheres rodeavam a Sra. Cobb. Os homens
falavam sobre os negros em geral, mascavam tabaco, bebiam uísque e evocavam com
saudade um passado onde os negros conheciam o seu lugar. Agora eram mimados e
protegidos pelo governo e pela justiça. E os brancos não podiam fazer nada. Um dos
primos tinha um amigo ou conhecido que fora membro atuante do Ku Klux Klan e disse
que podia telefonar-lhe. O avô de Cobb tinha pertencido ao Klan, muito antes de morrer,
explicou o primo, e, quando ele e Billy Ray eram pequenos, costumava contar histórias
sobre enforcamentos de negros em Ford County e Tyler County. O que deviam fazer era
o mesmo que o negro tinha feito, mas ninguém se apresentou como voluntário. Talvez o
Klan se interessasse. Tinham uma filial ao sul, perto de Jackson e de Nettles County, e o
primo foi autorizado a entrar em contato com eles.
As mulheres fizeram o almoço. Os homens comeram em silêncio e voltaram ao
uísque debaixo do carvalho. Alguém mencionou a audiência do negro marcada para as
duas horas e todos entraram nos carros e seguiram até Clanton.
Agora havia uma Clanton de antes dos crimes e uma Clanton de depois dos
crimes, e só depois de muitos meses uma começaria a parecer-se com a outra. Uma
tragédia sangrenta, que durara menos de quinze segundos, transformara a tranqüila
cidade sulista de oito mil habitantes numa meca de jornalistas, repórteres, equipes de
filmagem, fotógrafos, alguns das cidades vizinhas, outros das redes nacionais de notícias.
Cameramen e repórteres de TV acotovelavam-se nas calçadas em volta da praça,
perguntando pela centésima vez o que a população pensava do caso Hailey e como
votaria se fizesse parte do júri. Não havia um veredicto definido. Os furgões da televisão
seguiam os pequenos carros importados por toda a praça, à procura de escândalos,
reportagens e entrevistas. No começo, Ozzie era o favorito. Foi entrevistado uma dezena
de vezes no dia seguinte ao crime, depois arranjou outras coisas para fazer e delegou o
encargo das entrevistas em Moss Junior, que se divertia com a imprensa. Moss podia
responder a vinte perguntas sem divulgar um único detalhe novo. Também mentia
bastante e os estranhos, ignorantes, nunca sabiam quando é que mentia ou dizia a
verdade.
- Senhor, existe alguma prova de que havia outros atiradores?
- Sim.
- É verdade? Quem eram?
- Temos provas de que o crime foi autorizado e financiado por um grupo dos Black
Panthers - respondia Moss Junior, muito sério.
- Alguns repórteres, confusos, olhavam para ele sem entender, outros repetiam o
que ele tinha dito e escreviam furiosamente nos seus blocos Bullard não saía do seu
gabinete e nem atendia ao telefone. Ligou para Jake novamente, pedindo-lhe que
desistisse da audiência. Jake recusou. Havia repórteres que aguardavam na sala de
espera de Bullard, no primeiro andar do tribunal, mas ele estava a salvo com a sua vodka,
atrás das portas fechadas à chave.
Houve um pedido para filmar os funerais. Os irmãos de Cobb concordaram,
mediante uma certa quantia, mas a Sra. Willard vetou a proposta. Os repórteres ficaram
no lado de fora da agência funerária e filmaram tudo o que foi possível. Depois, seguiram
a procissão até ao cemitério e filmaram os enterros. Em seguida, acompanharam os
carros até a casa da Sra. Cobb, onde Freddie, o mais velho, os expulsou aos palavrões.
Na quarta-feira reinava silêncio no Coffee Shop. Os fregueses habituais, incluindo
Jake, observavam os estranhos que tinham invadido o seu santuário. Quase todos
usavam barba, falavam com sotaques diferentes e não pediam aveia.
- O senhor não é o advogado do Sr. Hailey? - gritou um deles, do outro lado do
restaurante. - Jake, preparando a sua torrada, não respondeu. - Não é? O senhor aí?
- E se for? - disse Jake.
- Ele vai declarar-se culpado?
- Estou tomando meu café.
- Vai?
- Sem comentários.
- Porquê sem comentários?
- Sem comentários.
- Mas porquê?
- Não faço comentários durante o café da manhã. Sem comentários.
- Posso falar com o senhor mais tarde?
- Pode, marque uma hora. Eu falo a sessenta dólares a hora. Os fregueses
habituais riram alto, mas os estranhos não se abalaram.
Jake consentiu em dar uma entrevista, sem cobrar nada, para um jornal de
Memphis, na quarta-feira; depois, fechado na sala de guerra, preparou-se para a
preliminar. Ao meio-dia, foi visitar o seu famoso cliente na cadeia. Carl Lee estava
tranqüilo e descansado. Da cela, via o movimento dos repórteres no estacionamento.
- Como vai a cadeia? - perguntou Jake.
- Não muito mal. A comida é boa. Eu como com o Ozzie no escritório dele.
- Como é que é?
- É assim. Também jogamos cartas.
- Está brincando, Carl Lee.
- Não estou. Também vejo televisão. Vi você no noticiário ontem à noite. Você
estava ótimo. Vou torná-lo famoso, não vou, Jake?
Jake não disse nada.
- Quando é que apareço na TV? Quero dizer, eu é que matei os homens e você e
o Ozzie é que estão ficando famosos. - O cliente sorria, o advogado não.
- Hoje, daqui a uma hora.
- Sim, ouvi dizer que vamos ao tribunal. Para quê?
- Audiência preliminar. Não é grande coisa, pelo menos não deve ser. Esta será
diferente por causa das câmaras.
- Que devo dizer?
- Nada! Você não diz uma palavra a ninguém. Nem ao juiz, nem ao promotor, nem
aos repórteres, a ninguém. Nós nos limitamos a ouvir. Ouviremos o promotor para
sabermos como vai ser a acusação. Ao que parece, eles têm uma testemunha ocular, que
talvez seja chamada. Ozzie vai testemunhar para falar ao juiz sobre a arma, as
impressões digitais e Looney...
- Como está Looney?
- Não sei. Pior do que pensavam.
- Homem, sinto-me mal quando penso que disparei sobre ele. Eu nem sequer o vi.
- Bem, vai ser acusado de lesão corporal qualificada por ter disparado sobre
Looney. De qualquer modo, a preliminar é só uma formalidade. O objetivo é permitir que o
juiz determine se existem provas suficientes para o enviar ao júri de instrução. Bullard
toma sempre essa decisão, portanto é só uma formalidade.
- Então para que serve a audiência?
- Podemos abrir mão da audiência - disse Jake, pensando nas câmaras que
perderia. - Mas não gosto de desistir. É uma boa oportunidade para saber como será a
acusação.
- Bem, Jake, eu diria que eles têm uma causa e tanto, não acha?
- Acho que sim. Mas vamos nos limitar a ouvir. É essa a estratégia da audiência
preliminar. Certo?
- Está bem. Falou com a Gwen ou com o Lester, hoje?
- Não, só na segunda-feira à noite.
- Eles, ontem, estiveram no escritório do Ozzie. Disseram que vão estar no tribunal
hoje.
- Acho que todas as pessoas vão estar no tribunal, hoje.
No estacionamento Jake passou por alguns repórteres que esperavam a saída de
Carl Lee para o tribunal. Não lhes fez nenhum comentário, nem aos que esperavam à
porta do seu escritório. Estava muito ocupado naquele momento para responder a
perguntas, mas não ignorou as câmaras. A uma e meia seguiu para o tribunal e refugiou-
se na biblioteca do terceiro andar.
Ozzie, Moss Junior e. os outros policiais observaram com desagrado o grupo de
repórteres e câmeras no estacionamento. Faltavam quinze para as duas, hora de
conduzir o prisioneiro para o tribunal.
- Parecem um bando de abutres à espera de que um cão seja atropelado na
estrada - disse Moss Junior, olhando para fora, por entre as tiras da persiana.
- Os tipos mais grosseiros que já vi - observou Prather.
- Não aceitam não como resposta. Esperam que todas as pessoas estejam à sua
disposição.
- E isto é só metade deles, a outra metade está à espera no tribunal.
Ozzie não disse nada. Um jornal tinha criticado a sua atuação, dizendo que a
segurança fora descuidada intencionalmente no tribunal. Estava farto da imprensa. Na
quarta-feira, por duas vezes, expulsara os repórteres do prédio da cadeia.
- Tenho uma idéia - disse ele, por fim.
- O quê? - perguntou Moss Junior. - Curtis Todd ainda está na cadeia?
- Está. Sai na semana que vem.
- Ele é parecido com o Carl Lee, não é?
- O que quer dizer com isso?
- Quero dizer que ele é quase tão negro como o Carl Lee, tem mais ou menos a
mesma altura e o mesmo peso.
- Sim, e daí? - perguntou Prather.
Moss Junior olhou com um sorriso para Ozzie, que continuava olhando para fora.
- Ozzie, não vai fazer isso...
- Fazer o quê? - perguntou Prather.
- Vamos. Vão buscar o Carl Lee e o Curtis Todd - ordenou Ozzie. - Levem o meu
carro para a porta dos fundos e tragam o Todd para algumas instruções.
Dez minutos depois, a porta da frente abriu-se e seis policiais escoltaram o
prisioneiro para o passeio, dois a frente, dois atrás e um de cada lado do homem com
óculos escuros e algemas que não estavam fechadas. Quando se aproximaram dos
repórteres, as câmaras começaram a filmar. As perguntas choviam de todos os lados.
- O senhor vai declarar-se culpado?
- O senhor vai declarar-se inocente?
- Que vai declarar o senhor?
- Sr. Hailey, vai alegar insanidade?
O prisioneiro sorriu e continuou a andar vagarosamente para o carro da policial.
Os policiais, com sorrisos fixos, ignoravam os repórteres. Os fotógrafos agitavam-se,
procurando o melhor ângulo do mais famoso justiceiro do país.
De repente, com toda a nação assistindo, rodeado de policiais, o prisioneiro
desatou a correr. Deu um salto, girou o corpo, atravessou correndo o estacionamento,
saltou uma vala, atravessou a estrada e desapareceu entre as árvores, do outro lado. Os
repórteres gritaram, espalhando-se e alguns até o seguiram, durante um momento.
Curiosamente, os policiais correram para dentro do prédio da cadeia e fecharam a porta,
deixando os abutres correndo em círculos, completamente atarantados. No meio das
árvores, o prisioneiro retirou as algemas e foi para casa. Curtis Todd começou a sua
liberdade condicional uma semana antes do previsto...
Ozzie, Moss Junior e Carl Lee saíram rapidamente pela porta dos fundos e
seguiram por uma rua secundária até ao tribunal, onde outros policiais os esperavam.

- Quantos negros estão lá fora? - gritou Bullard para o Sr. Pate.
- Uma tonelada.
- Maravilha! Uma tonelada de negros. Aposto que está lá também uma tonelada de
rufiões brancos.
- Há bastante.
- O tribunal está cheio?
- Completamente.
- Meu Deus, e é só uma preliminar! - berrou Bullard. Esvaziou a meia garrafa de
vodka e o Sr. Pate pegou outra.
- Acalme-se, Senhor Doutor juiz.
- Maldito Brigance. É tudo culpa dele. Podia desistir desta audiência. Eu pedi que
desistisse. Pedi duas vezes. Ele sabe que vou mandar o caso para o júri de instrução. Ele
sabe muito bem isso. Todos os advogados sabem. Mas agora vou pôr os negros todos
furiosos, porque não mando soltar o acusado, e todos os brancos furiosos, porque não o
mando executar no tribunal. O Brigance vai me pagar. Ele está representando para as
câmeras. Eu tenho de ser reeleito, mas ele não, certo?
- Certo, Senhor Doutor juiz.
- Quantos policiais estão no tribunal?
- Muitos deles. O xerife convocou a tropa de reserva. O senhor está seguro.
- E a imprensa?
- Estão todos sentados nas primeiras filas.
- Nada de câmeras!
- Nada de câmeras.
- Hailey já chegou?
- Sim, senhor. Está na sala do tribunal com o Dr. Brigance. Estão todos prontos, à
sua espera.
O meritíssimo encheu um copo de plástico com vodka pura.
- Está bem, então vamos.
Como nos velhos tempos, antes dos anos 60, a sala do tribunal estava
estritamente segregada, com negros e brancos separados pela passagem central. Os
policiais estavam de pé na passagem e perto das paredes, em volta de toda a sala.
Vigiavam com atenção especial um grupo de brancos levemente embriagados que
ocupavam duas filas de cadeiras. Dois deles foram reconhecidos como irmãos ou primos
do falecido Billy Ray Cobb. Os policiais estavam atentos. Na primeira fila, na frente dos
brancos e na frente dos negros, estavam os jornalistas. Alguns tomavam notas, outros
desenhavam o acusado, o seu advogado e agora, finalmente, o juiz.
- Eles vão fazer desse negro um herói - disse um dos brancos, em voz alta, para
os repórteres. Quando Bullard assumiu o seu posto, os policiais fecharam as portas do
tribunal.
- Chame a sua primeira testemunha - ordenou o juiz para Rocky Childers.
- O estado chama para depor o xerife Ozzie Walls.
O xerife prestou juramento e ocupou o banco das testemunhas. Descontraído,
começou uma longa narrativa, descrevendo a cena do crime, os corpos, os ferimentos, a
arma e as impressões digitais do acusado. Childers apresentou um depoimento assinado
pelo guarda Looney e atestado pelo xerife e por Moss Junior. O documento identificava
Carl Lee como o autor dos disparos. Ozzie autenticou a assinatura de Looney e leu o
depoimento para constar dos autos.
- Xerife, tem conhecimento de outra testemunha ocular? perguntou Childers, sem
grande entusiasmo.
- Sim, Murphy, o zelador.
- Qual é o primeiro nome dele?
- Ninguém sabe. É só Murphy.
- Está bem. O senhor falou com ele?
- Não, mas o meu investigador falou.
- Quem é o seu investigador?
- O guarda Rady.
Rady prestou juramento e sentou-se no banco das testemunhas. O Sr. Pate foi
buscar outro copo com água gelada para o juiz. Jake já tinha páginas e páginas de
anotações. Não ia chamar nenhuma testemunha e resolveu não interrogar o xerife. Uma
vez ou outra as testemunhas da acusações atrapalhavam-se com mentiras na preliminar
e Jake depois interrogava-as para que as discrepâncias constassem dos autos. Mais
tarde, no julgamento, quando começavam a mentir outra vez, Jake apresentava o
testemunho da preliminar para confundir os mentirosos. Mas não naquele dia.
- O senhor teve ocasião de falar com Murphy? - perguntou Childers.
- Qual Murphy?
- Eu não sei, apenas Murphy, o zelador.
- Ah, ele. Sim, senhor.
- Muito bem. O que foi que ele disse?
- Sobre quê?
Childers baixou a cabeça. Rady era novo e não tinha testemunhado muitas vezes.
Ozzie achou que seria um bom treino para ele.
- Sobre os tiros! Diga-nos o que contou ele sobre os tiros.
Jake levantou-se.
- Meritíssimo. Eu tenho uma objeção. Sei que o testemunho indireto é admissível
na preliminar, mas o tal Murphy pode testemunhar. Ele trabalha aqui no tribunal. Porque
não chamá-lo?
- Porque ele gagueja - respondeu Bullard.
- O quê?
- Ele gagueja. E não estou disposto a ouvi-lo gaguejar pelos próximos trinta
minutos. Objeção negada. Continue, Sr. Childers.
Jake sentou-se, sem poder acreditar. Bullard deu uma risadinha para o Sr. Pate
que saiu para ir buscar mais água gelada.
- Muito bem. Sr. Rady, que disse Murphy acerca dos tiros?
- Bem, foi difícil entender porque ele estava nervoso e quando está nervoso
gagueja de verdade. Quero dizer, ele gagueja sempre, mas...
- Diga apenas o que ele disse! - gritou Bullard.
- Está bem. Ele disse que viu um homem negro disparar sobre os dois homens
brancos e sobre o policial.
- Muito obrigado - disse Childers. - Agora, onde estava ele, quando isso
aconteceu?
- Quem?
- Murphy!
- Sentado na escada, de frente para a escada onde eles foram atingidos.
- E viu tudo?
- Ele disse que tinha visto tudo.
- Ele identificou o homem que disparou?
- Sim, mostramo-lhe fotografias de dez homens negros e ele identificou o acusado
que está sentado ali.
- Muito bem. Obrigado. Meritíssimo, sem mais perguntas.
- Alguma pergunta, Dr. Brigance? - perguntou o juiz.
- Não, Meritíssimo - respondeu Jake, levantando-se.
- Alguma testemunha?
- Não, senhor.
- Alguma petição, moção, qualquer coisa?
- Não, senhor.
Jake não ia fazer a tolice de pedir fiança. Em primeiro lugar, não iria adiantar.
Bullard não ia estabelecer fiança para um crime de morte. Depois, isso iria embaraçar o
juiz.
- Muito obrigado, Dr. Brigance. Este tribunal considera que existem provas
suficientes para enviar este acusado ao júri de instrução de Ford County. O Sr. Hailey
ficará sob custódia do xerife, sem fiança. A sessão está suspensa.
Carl Lee foi algemado rapidamente e escoltado para fora da sala. A área em volta
da porta dos fundos estava isolada e guardada. As câmeras, no lado de fora,
conseguiram captar uma rápida imagem do acusado entre a porta e o carro de policial
que o esperava. Carl Lee estava de novo na cela antes de toda a gente ter saído do
recinto do tribunal.
Os policiais orientaram a saída dos brancos, de um lado, em primeiro lugar,
depois, dos negros.
Os repórteres pediram para falar com Jake e ele disse que estaria na antecâmara
dentro de alguns minutos. Fê-los esperar, indo primeiro ao gabinete do juiz cumprimentar
Bullard. Depois, foi ao terceiro andar consultar um livro. Quando o tribunal ficou vazio e os
repórteres já tinham esperado bastante, Jake entrou na ante-sala, de frente para as
câmeras.
Um microfone com letras vermelhas foi-lhe quase encostado à cara.
- Porque não pediu fiança, senhor doutor? - quis saber um repórter.
- Isso fica para depois.
- O Sr. Hailey vai alegar insanidade em sua defesa?
- Como eu já disse, é muito cedo para responder a essa pergunta. Agora,
precisamos esperar pelo júri de instrução. O acusado pode ser ou não indiciado. Se for,
começaremos a planejar a defesa.
- O promotor, o Dr. Buckley, declarou que espera uma condenação fácil. Algum
comentário?
- Infelizmente, o Dr. Buckley fala sempre quando não deve. É idiotice da parte dele
fazer qualquer comentário antes do caso ser estudado pelo júri de instrução.
- Ele disse também que se vai opor vigorosamente a qualquer pedido de
transferência do foro do julgamento.
- Esse pedido ainda não foi feito. Na verdade, para ele não importa onde seja feito.
O Dr. Buckley julgaria este caso até no deserto, desde que a imprensa estivesse
presente.
- Podemos supor que existe alguma hostilidade entre o senhor doutor e o
promotor?
- Mais ou menos. Ele é um bom promotor e um adversário válido. Só que fala
quando não deve.
Jake respondeu a mais algumas perguntas variadas e deu por encerrada a
entrevista. Na quarta-feira, tarde na noite, os médicos amputaram a perna de Looney logo
abaixo do joelho. Telefonaram para Ozzie e o xerife contou a Carl Lee.


DEZ

Rufus Buckley examinou os jornais da manhã e leu com grande interesse as
descrições da audiência preliminar em Ford County. Com prazer, viu o seu nome
mencionado pelos repórteres e pelo Dr. Brigance. As críticas eram altamente
compensadas pelo fato de ver o nome impresso. Buckley não gostava de Brigance, mas
ficou satisfeito por ele ter mencionado o nome dele, frente às câmeras. Desde há dois
dias que toda a atenção estava voltada para Brigance e para o acusado e já era tempo de
começarem a mencionar o promotor. Brigance não devia criticar ninguém por procurar
publicidade. Lucien Wilbanks era mestre em manipular a imprensa, antes e durante os
julgamentos, Jake aprendera muito bem com ele. Mas Buckley não guardava
ressentimentos. Estava satisfeito. Gostava da idéia de um julgamento longo e disputado,
com a sua primeira oportunidade de aparecer realmente. Mal podia esperar pela segunda-
feira, o primeiro dia das sessões de Maio do tribunal em Ford County.
Buckley tinha quarenta e um anos, e nove anos antes, quando fora eleito pela
primeira vez, era o mais jovem promotor do Mississipi. Agora, concluía o primeiro ano do
seu terceiro mandato e começava a pensar nas suas ambições. Estava na hora de se
candidatar a outro cargo público, como, por exemplo, procurador do Estado, ou talvez
governador. Depois, o Congresso. Tinha tudo planejado mas não era muito conhecido
fora da Vigésima Segunda Circunscrição Judiciária (condados de Ford, Tyles, Polk, Van
Buren e Milburn.) Precisava ser visto e ouvido. Precisava de publicidade. O que Rufus
precisava, acima de tudo, era de um julgamento criminal com veredicto de culpa, de
grandes proporções, controverso, disputado e com muita publicidade.
Ford County ficava diretamente a norte de Smithfield, a sede distrital de Polk
County, onde Rufus morava. Ele era de Tyler County, perto da fronteira com o
Tennessee, a norte de Ford County. Tinha uma boa base política. Era um bom promotor.
Nas suas campanhas, afirmava ter uma média de noventa por cento de condenações e
gabava-se de ter mandado mais criminosos para o corredor da morte do que qualquer
outro promotor do estado. Era espalhafatoso, mordaz, com ares de virtuoso. O seu cliente
era a população do Mississipi, por Deus, e ele levava a sério essa obrigação. A população
odiava o crime e ele odiava o crime, e juntos haveriam de erradicá-lo.
Buckley sabia dirigir-se a um júri, oh, e de que maneira! Podia pregar, rezar,
influenciar, implorar, pedir. Podia inflamar o júri, a ponto de os jurados não verem a hora
de voltar para a sala do júri, fazer uma oração em conjunto e votar pela condenação do
acusado. Ele sabia falar com os negros e sabia falar com os brancos e isso era suficiente
para satisfazer a maioria dos jurados da Vigésima Segunda. E os júris sempre se
mostraram bons para com ele em Ford County. Buckley gostava de Clanton.
Quando chegou ao escritório, no prédio do tribunal de Polk County, Rufus viu, com
satisfação, uma equipe de repórteres e uma câmera à sua espera. Explicou-lhes que
estava muito ocupado, consultou o relógio e disse que podia lhes dispensar um minuto
para algumas perguntas. Levou os repórteres para a sua sala e sentou-se
esplendidamente na cadeira giratória de couro, atrás da sua mesa de trabalho. O repórter
era de Jackson.
- Dr. Buckley, o senhor tem alguma simpatia pelo Sr. Hailey? Buckley sorriu
enigmaticamente, com ar de quem está pensando no assunto.
- Sim, tenho. Tenho simpatia por qualquer pai ou mãe cuja filha tenha sido
violentada, é claro que tenho. Mas o que não posso admitir e o que o nosso sistema não
pode tolerar é que se faça justiça pelas próprias mãos.
- O senhor tem filhos?
- Tenho. Um filho pequeno e duas filhas, uma da idade da pequena Hailey, e
ficaria extremamente furioso se uma delas fosse violada. Mas esperaria que o nosso
sistema judiciário agisse adequadamente contra o violador. Tenho muita confiança no
nosso sistema.
- Nesse caso, o senhor espera uma condenação.
- Certamente. Em geral, eu consigo uma condenação quando luto por ela e
pretendo consegui-la neste caso.
- O senhor vai pedir a pena de morte?
- Sim, parece um caso evidente de assassinato premeditado. Acho que a
penalidade deve ser a câmara de gás.
- O senhor prevê um veredicto de pena de morte?
- É claro. Os jurados de Ford County sempre se mostraram dispostos a
recomendar a pena de morte quando eu a peço e quando ela se aplica. Tenho tido ótimos
júris em Clanton.
- O Dr. Brigance, advogado do acusado, declarou que o júri de instrução pode não
indiciar o seu cliente.
Buckley riu com ironia.
- Bem, o Dr. Brigance não devia ser tão ingênuo. O caso será apresentado ao júri
na segunda-feira e teremos os indiciamentos na tarde do mesmo dia. Prometo. Na
verdade, o Dr. Brigance sabe isso.
- O senhor acha que o caso vai ser julgado em Ford County?
- Para mim tanto faz, eu vou conseguir a condenação.
- O senhor espera uma defesa baseada na alegação de insanidade?
- Eu espero qualquer coisa. O Dr. Brigance é um advogado de defesa muito capaz.
Não sei que argumentos ele vai usar, mas o estado do Mississipi estará preparado.
- Que acha de um acordo entre o senhor e a defesa?
- Não acredito muito nesse tipo de acordo. O Dr. Brigance também não. Não estou
à espera disso.
- Ele disse que nunca tinha perdido um julgamento de homicídio contra o senhor.
O sorriso desapareceu imediatamente. Buckley inclinou-se para frente, sobre a
mesa, e olhou com ar severo para o repórter.
- É verdade, mas aposto que ele não mencionou um grande número de assaltos à
mão armada e de casos de cheques falsos, não é? Tive a minha parte de vitórias.
Noventa por cento, para ser exato.
A câmara foi desligada e os repórteres agradeceram a atenção do promotor.
- Está bem, disse Buckley. Estou à disposição.

Ethel subiu a escada com o seu andar gingado e parou em frente da mesa de
Jake.
- Dr. Brigance, o meu marido e eu recebemos um telefonema obsceno ontem à
noite e acabo de receber outro, aqui no escritório. Não gosto dessas coisas.
Jake estendeu o braço, convidando-a a sentar-se.
- Sente-se, Ethel. O que foi que lhe disseram?
- Não foram realmente obscenos, mas ameaçadores. Eles me ameaçaram porque
trabalho para o senhor. Disseram que vou me arrepender por trabalhar para um amigo de
pretos. No telefonema para o escritório ameaçaram o senhor e a sua família. Eu estou
com medo.
- Mude o número do seu telefone, Ethel. Eu pago.
- Não quero mudar o meu número. Tenho esse número há muitos anos.
- Muito bem, então não mude. Eu mudei o meu e foi muito simples.
- Pois eu não vou mudá-lo.
- Como queira. Que mais quer?
- Bem, acho que o senhor não devia ter aceitado este caso.
- Pois fique sabendo que não estou interessado no que acha! Não é paga para
pensar nos meus casos. Quando eu quiser a sua opinião, peço-a. Até lá, fique caladinha.
Ethel bufou, zangada, e saiu da sala. Jake telefonou outra vez para Ozzie. Uma
hora depois, Ethel disse, pelo interfone.
- Lucien telefonou esta manhã. Pediu cópias de alguns casos recentes e quer que
o senhor os leve esta tarde. Disse que o senhor não vai visitá-lo, há cinco semanas.
- Quatro. Tire cópia dos casos que eu os levo.
Lucien passava pelo escritório, ou telefonava uma vez por mês. Lia casos e estava
sempre informado sobre os mais recentes assuntos legais. Não tinha muito que fazer,
exceto beber Jack Daniel's e investir na Bolsa, duas coisas que ele fazia temerariamente.
Era um bêbado inveterado e passava a maior parte do tempo na varanda da frente da sua
casa enorme, na colina, a oito quarteirões da praça, de onde se avistava quase toda
Clanton, bebendo uísque puro e lendo casos.
Tinha envelhecido bastante desde a expulsão. Tinha uma empregada de tempo
integral que era também enfermeira e que servia as bebidas na varanda, desde o meio-
dia até à meia-noite. Lucien raramente comia ou dormia. Passava as horas na cadeira de
balanço Jake geralmente visitava-o uma vez por mês, como obrigação. Lucien era um
homem velho, doente, amargurado, que vivia amaldiçoando juizes, advogados e
especialmente a Ordem dos Advogados. Jake era o seu único amigo, a única audiência
que ele conseguia prender por algum tempo para os seus sermões. A par da pregação,
dava conselhos não solicitados sobre os casos de Jake, um hábito extremamente irritante.
Jake não compreendia como Lucien podia saber tanto sobre os casos dele. Raramente
era visto em Clanton, a não ser uma vez ou outra quando comprava bebidas no bairro
negro.
Jake estacionou o Saab atrás do Porsche amassado e sujo e entregou as cópias
dos casos a Lucien. Não se cumprimentaram, não disseram uma palavra. Jake estendeu
apenas as pastas e Lucien pegou-as. Sentaram-se nas cadeiras de balanço de vime na
ampla varanda, olhando para Clanton. O último andar do edifício do tribunal erguia-se
acima dos outros edifícios, das casas e das árvores da praça.
Finalmente, Lucien ofereceu-lhe uísque, vinho, cerveja. Jake não aceitou. Carla
era contra qualquer bebida alcoólica e Lucien sabia isso.
- Os meus parabéns.
- Porquê? - perguntou Jake.
- Pelo caso Hailey.
- Porque me dá os parabéns?
- Eu nunca tive um caso tão grande, e tive alguns bem grandes.
- Grande em que sentido?
- Publicidade. Tornar-se conhecido. Para os advogados, esse é o nome do jogo,
Jake. Se você é desconhecido, morre de fome. Quando alguém tem problemas, chama
um advogado e chama sempre um de que já ouviu falar. Um advogado das ruas precisa
vender a própria imagem para o público. É claro que é diferente se trabalhar para uma
grande firma ou companhia de seguros, sentado no traseiro e ganhando cem dólares por
hora, dez horas por dia, explorando os pequenos e...
- Lucien - interrompeu Jake, calmamente -, já falamos sobre isso uma porção de
vezes. Vamos falar sobre o caso Hailey.
- Pronto, pronto. Aposto que o Noose vai recusar o pedido de transferência de
foro.
- E quem lhe disse a si que eu vou pedi-lo?
- É muito burro se não pedir.
- Porquê?
- Simples estatística! Este condado é vinte e seis por cento negro. Todos os outros
da Vigésima Segunda têm pelo menos trinta por cento de negros. Van Buren County tem
quarenta por cento. Isso significa um potencial maior de jurados negros. Se conseguir a
transferência as suas chances de negros no júri vão aumentar. Se ele for julgado aqui,
corre o risco de ter um júri cem por cento branco e, acredite, já vi muitos júris brancos
neste condado. Tudo o que você precisa é de um negro para criar o impasse e conseguir
a anulação do julgamento.
- Mas, depois, vai haver novo julgamento.
- E você cria a mesma situação. Eles desistem depois do terceiro. Um júri indeciso
é o mesmo que um ponto perdido no placar de Buckley. Ele vai desistir depois do terceiro
julgamento.
- Então, digo simplesmente ao Noose que quero o julgamento num distrito com
maior número de negros para ter um júri negro.
- Pode dizer, se quiser, mas eu não faria isso. Eu usaria as bobeiras de sempre,
como publicidade antes do julgamento, uma comunidade tendenciosa e assim por
diante...
- E acha que Noose vai acreditar.
- Não. Este caso é muito grande e vai tornar-se ainda maior. A imprensa já
começou o julgamento. Todo mundo ouviu falar do caso e não só em Ford County. Não
vai encontrar ninguém neste estado sem uma idéia preconcebida sobre o veredicto de
culpado ou inocente.
- Então, por que devo eu pedir a transferência?
- Porque quando o pobre homem for condenado, terá bases para argumentar no
recurso. Pode dizer que não teve um julgamento justo porque foi negada a transferência
de foro.
- Obrigado pelo encorajamento. Quais são as chances de conseguir a
transferência, digamos, para algum lugar do delta?
- Nem pense nisso. Pode pedir a transferência, mas não pode determinar para
onde.
Jake não sabia isso. Geralmente aprendia alguma coisa naquelas visitas. Abanou
a cabeça, confiante, e olhou para o velho com a barba comprida, branca e suja. Nunca
vira Lucien hesitar sobre algum ponto da legislação criminal.
- Sallie! - gritou Lucien, atirando com os cubos de gelo para o meio dos arbustos.
- Quem é Sallie?
- A minha empregada - disse Lucien, quando uma negra alta e bonita abriu a porta
de tela e sorriu para Jake.
- Sim, Lucien? - disse ela.
- O meu copo está vazio.
Com passos elegantes, ela atravessou a varanda e pegou o copo. Tinha menos de
trinta anos, corpo bem-feito, cara bonita e era muito escura. Jake pediu chá gelado.
- Onde a arranjou? - perguntou Jake.
Lucien olhou para o edifício do tribunal.
- Onde a arranjou?
- Não sei.
- Que idade ela tem? Lucien não respondeu. - Vive aqui? Silêncio.
- Quanto é que lhe paga?
- Não é da sua conta, não acha? Mais do que você paga a Ethel. Ela é enfermeira
também, sabia?
É claro, pensou Jake, com um largo sorriso.
- Aposto que ela faz uma porção de coisas.
- Não se preocupe com isso.
- Pelo que vejo, não está muito entusiasmado com as minhas possibilidades de
vencer este caso.
Lucien pensou um momento. A criada/enfermeira voltou com o uísque e o chá.
- Na verdade, não. Vai ser difícil.
- Porquê?
- Ao que parece, foi crime premeditado. Muito bem premeditado, pelo que ouvi.
Certo?
- Sim.
- Decerto que vai alegar insanidade.
- Não sei.
- Deve alegar insanidade - disse Lucien, em tom severo e professoral. - Não existe
outra defesa possível. Não pode dizer que foi acidente. Não pode alegar que ele disparou
sobre os dois homens, algemados e desarmados, com uma metralhadora, em legítima
defesa, não é?
- Não.
- Não vai inventar um álibi e dizer que ele estava em casa, com a família.
- É claro que não.
- Então, que outra defesa é que tem? Vai ter de dizer que ele estava louco.
- Mas, Lucien, ele não estava louco, e nunca conseguirei encontrar um psiquiatra
de terceira categoria para afirmar que estava. Ele planejou tudo meticulosamente, até o
último detalhe.
Lucien sorriu e bebeu um gole de uísque.
- Por isso está metido num grande enrosco, menino.
Jake pôs o copo com chá na mesa e balançou lentamente a cadeira. Lucien
saboreou o momento.
- Por isso está num grande problema, Jake - repetiu.
- E o júri? Você sabe que os jurados vão olhar para ele com simpatia.
- Exatamente, é por isso que deve alegar insanidade. Deve dar uma saída ao júri.
Deve mostrar-lhes um modo de o declarem inocente, se for o que eles quiserem. Se
simpatizam com o acusado, se querem dar o veredicto de inocente, você tem de fazer
uma defesa que eles possam usar para esse fim. Não faz diferença se acreditam ou não
na história da loucura. Na sala dos jurados, isso não tem importância. O importante é que
o júri tenha uma base legal para o veredicto de inocente, supondo que é isso que eles
querem.
- Acha que é o que eles vão querer?
- Alguns sim, mas o Buckley vai alegar crime premeditado. Ele é bom. Vai
neutralizar toda a simpatia do júri pelo acusado. Hailey será apenas mais um negro
julgado por matar um homem branco, quando o Buckley acabar com ele.
Lucien atirou fora os cubos de gelo e olhou para o copo.
- E o policial? Agredir com intenção de matar um guarda civil implica prisão
perpétua, sem condicional. Veja se consegue livrar-se dessa.
- Não houve intenção.
- Ótimo. Isso vai ser muito convincente quando o infeliz for coxeando para o banco
das testemunhas e mostrar ao júri o coto de perna.
- Coto?
- Isso mesmo. Coto. Amputaram-lhe a perna, ontem à noite.
- Looney!
- Sim, o policial atingido por Hailey.
- Eu pensei que ele estivesse bem.
- Oh, ele está bem. Só que com uma perna a menos.
- Como é que soube?
- Tenho as minhas fontes.
Jake foi até à beira da varanda e encostou-se a uma coluna, sentindo-se fraco.
Toda a confiança o abandonou, levada mais uma vez por Lucien. Ele era mestre em cavar
buracos em todos os casos de Jake. Para Lucien não passava de um esporte e
geralmente tinha razão.
- Ouça, Jake, não quero desanimá-lo. Pode ganhar este caso. Não vai ser fácil,
mas pode ganhar. Pode libertar Hailey e tem de acreditar nisso. Mas não fique muito
convencido. Já falou demais com a imprensa. Recue agora e comece a trabalhar. Lucien
foi até à beira da varanda e cuspiu para os arbustos.
- Não esqueça nunca de que o Sr. Hailey é culpado, culpado mesmo. A maioria
dos réus é culpada, mas ele especialmente. Hailey fez justiça com as próprias mãos e
matou duas pessoas. Planejou tudo cuidadosamente. O nosso sistema legal não admite
esse tipo de justiça. Agora, você pode ganhar o caso e então a justiça terá prevalecido.
Mas se perder, a justiça prevalece também. Um caso estranho, suponho. Só queria que
ele fosse meu.
- Está falando sério?
- Claro! É o sonho de qualquer advogado. Ganhe o caso e ficará famoso. O melhor
advogado do estado. Pode fazer de você um homem rico.
- Vou precisar da sua ajuda.
- Já a tem. Ando mesmo precisando de alguma coisa para fazer.

Depois do jantar, quando Hanna já estava dormindo, Jake contou a Carla os
telefonemas para o escritório. Já tinham recebido um telefonema estranho quando Jake
estivera em outro julgamento de homicídio, mas sem ameaças, apenas alguém gemendo
e arquejando ao telefone. Mas estes eram diferentes. Citavam Jake e a família e
prometiam vingança se Carl Lee fosse ilibado.
- Estás preocupado? - perguntou Carla.
- Francamente, não. Provavelmente é coisa de garotos, ou de alguns amigos de
Cobb. E você, está com medo?
- Preferia que não telefonassem.
- Todos estão recebendo telefonemas. O Ozzie já teve centenas, Bullard, Childers,
todos. Não estou preocupado.
- E se a coisa se tornar ainda mais séria?
- Carla, eu nunca arriscaria a segurança da minha família. Não vale a pena. Retiro-
me do caso se tiver certeza de que as ameaças são autênticas. Prometo.
Carla não ficou convencida.
Lester contou nove notas de cem dólares e depositou-as majestosamente em cima
da mesa de Jake.
- Aí só estão novecentos - disse Jake. - O nosso acordo foram mil dólares.
- A Gwen precisou comprar mantimentos.
- Tem certeza de que Lester não precisou comprar uísque?
- Ora, Jake, deixe disso, sabe que eu não ia roubar o meu irmão.
- Pronto, pronto. Quando é que a Gwen vai ao banco pedir o empréstimo?
- Eu vou agora falar com o banqueiro. Atcavage?
- Sim. Stan Atcavage, aqui ao lado, no Security Bank. Muito meu amigo. Foi ele
quem fez o empréstimo para pagar o seu julgamento. Tem a escritura?
- No meu bolso. Quanto é que acha que ele vai emprestar?
- Não faço idéia. Por que não vai tentar saber?
Lester saiu e, dez minutos depois, Atcavage telefonou.
- Jake, não posso emprestar o dinheiro a essa gente. E se ele for condenado, sem
querer ofender, eu sei que é um bom advogado... o meu divórcio, lembra-se?... mas como
é que ele vai pagar se estiver no corredor da morte?
- Muito obrigado, Stan; se ele não pagar, você fica com as terras dele, certo?
- Certo, com uma barraca no meio. Alguns hectares de árvores e erva daninha
mais uma casa velha. Exatamente o que a minha nova mulher deseja. Francamente,
Jake.
- É uma boa casa e quase paga.
- É uma barraca, uma barraca limpa. Mas não vale nada, Jake.
- Tem de valer alguma coisa.
- Jake, eu não quero. O banco não quer.
- Você emprestou da outra vez.
- E ele não estava preso, quem estava era o irmão, lembra-se? Ele estava
trabalhando na fábrica de papel. Um bom emprego. Agora, está a caminho da Parchman.
- Muito obrigado, Stan, pelo voto de confiança.
- Deixe disso, Jake, eu confio na sua habilidade, mas não posso investir nela. Se
alguém pode libertar esse homem, esse alguém é você. E eu espero que consiga. Mas
não posso conceder este empréstimo. Os auditores iam ficar loucos.
Lester tentou o Peoples Bank e o Ford National com o mesmo resultado. Eles
esperavam que o irmão dele fosse ilibado, mas e se não fosse?
Que maravilha, pensou Jake. Novecentos dólares por um caso de homicídio.


ONZE

Claude nunca tinha achado necessário mandar imprimir menus para o seu
restaurante. Anos atrás, quando inaugurara o café, não podia pagar e agora que podia,
não precisava, porque a maioria dos fregueses sabia o que ia ser servido. Para o café da
manhã ele fazia tudo, menos arroz e torradas, e os preços variavam. Às sextas-feiras, o
almoço era churrasco de lombo e costeletas de porco e todos sabiam. Claude tinha
poucos fregueses brancos durante a semana, mas às sextas-feiras o seu pequeno café
ficava quase inteiramente cheio de brancos. Há já algum tempo que sabia que os brancos
gostavam tanto de churrasco como os negros, só que não o sabiam fazer.
Jake e Atcavage sentaram-se numa mesa pequena, perto da cozinha. O próprio
Claude serviu dois pratos com costeletas e salada de repolho. Inclinou-se para Jake e
disse:
- Boa sorte para você. Espero que o liberte.
- Obrigado, Claude. Espero que você seja um dos jurados.
Claude riu e disse, em voz mais alta:
- Posso apresentar-me como voluntário?
Jake atacou as costeletas e censurou Atcavage por não fazer o empréstimo. O
banqueiro manteve-se firme mas ofereceu um empréstimo de cinco mil se Jake fosse
fiador. Isso seria antiético, disse Jake.
No passeio, os que esperavam na fila olhavam para dentro através do vidro das
janelas com as letras pintadas. Claude estava em toda a parte, anotando pedidos, dando
ordens, cozinhando, contando dinheiro, gritando, praguejando, cumprimentando
fregueses e pedindo-lhes que fossem embora. À sexta-feira, os fregueses tinham direito a
vinte minutos a partir do momento em que eram servidos. Depois disso, Claude exigia que
pagassem e fossem embora para que ele pudesse vender mais churrasco.
- Deixe de falar e coma! - gritava ele.
- Ainda tenho dez minutos, Claude.
- Sete.
Às quartas-feiras, servia peixe frito e concedia trinta minutos, por causa das
espinhas. Os brancos evitavam o Claude's nesse dia e ele sabia porquê. Era a gordura,
uma receita secreta herdada da sua avó, dizia ele. Era pesada e pegajosa e fazia
misérias nos intestinos dos brancos. Não afetava os negros, que às quartas-feiras
enchiam o restaurante.
Dois estranhos, sentados perto da caixa registradora, olhavam cheios de medo
para Claude. Provavelmente repórteres, pensou Jake. Sempre que Claude se aproximava
e olhava carrancudo para eles, os dois obedientemente espetavam uma costeleta e
começavam a mastigar. Nunca tinham comido costeletas e não havia dúvida de que eram
do Norte. Tinham pedido saladas mistas, mas Claude, praguejando, mandou-os comer
churrasco ou desocupar a mesa. Depois disso, disse a todas as pessoas que aqueles
idiotas queriam salada mista.
- Aqui está o seu almoço, Tratem de comê-lo depressa - disse-lhes, quando os
serviu.
- Não tem faca de carne? - perguntou um deles, atrevidamente.
Claude revirou os olhos e afastou-se resmungando. Um deles viu Jake e depois de
o olhar fixamente, durante alguns minutos, foi até a mesa dele e baixou-se, apoiado num
joelho, ao seu lado.
- O senhor não é o Dr. Brigance, advogado do Sr. Hailey?
- Sim, sou. Quem é o senhor?
- O meu nome é Roger McKittrick, do New York Times.
- Muito prazer - disse Jake, com um sorriso e uma atitude mais simpática.
- Estou fazendo a cobertura do caso Hailey e gostaria de falar com o senhor,
quando puder. O mais breve possível, para ser franco.
- Certo. Não estou ocupado esta tarde. Hoje é sexta-feira.
- Podemos então conversar mais tarde.
- Que tal às quatro horas?
- Ótimo - disse McKittrick, vendo Claude sair da cozinha.
- Nos encontramos às quatro, então.
- Ora bem, meu amigo - berrou Claude para McKittrick. O seu tempo acabou.
Pague a sua conta e vá embora.
Jake e Atcavage terminaram em quinze minutos e ficaram à espera dos ataques
verbais de Claude. Lamberam as pontas dos dedos, passaram os guardanapos pela cara
e fizeram notar como as costeletas eram tenras.
- Vai ficar famoso com este caso, não vai, Jake? - perguntou Atcavage.
- Espero que sim. Evidentemente não vai me tornar rico.
- Falando sério, Jake, não vai ajudar a sua carreira?
- Se eu ganhar, terei mais clientes do que os que conseguirei atender. É claro que
vai ajudar. Vou poder escolher os casos, escolher os clientes.
- Financeiramente, quais serão as vantagens?
- Não faço idéia. Não posso prever. É claro que a escolha dos casos será maior e
isso pode significar mais dinheiro. Vou deixar de me preocupar com as despesas
obrigatórias.
- Não acredito que você se preocupe com as despesas.
- Ouça, Stan, nem todos os advogados são podres de ricos. O diploma de Direito
não vale o que valia antes, somos muitos, hoje em dia. Catorze só nesta pequena cidade.
A concorrência é feroz, mesmo em Clanton: poucos casos bons e muitos bons
advogados. Nas grandes cidades é pior e cada ano é maior o número dos que se formam
em Direito e grande parte não consegue emprego. Num ano, cerca de dez recém-
formados batem à minha porta à procura de trabalho. Uma firma grande de Memphis
dispensou alguns advogados alguns meses atrás. Dá para acreditar? Como se fosse uma
fábrica, despediu-os simplesmente. Imagino que tenham ido todos para as filas das
agências de emprego, ao lado dos mecânicos. Advogados, não secretárias ou
caminhoneiros, mas advogados.
- Desculpe a pergunta.
- É claro que me preocupo com as despesas do escritório. São quatro mil por mês
e eu trabalho sozinho. Significa cinqüenta mil por ano sem que eu possa retirar um
centavo. Alguns meses são bons, outros não. Sempre imprevisíveis. Eu não seria capaz
de fazer uma estimativa sobre o que vai ser o meu rendimento bruto no próximo mês. Por
isso este caso é tão importante. Nunca mais vou ter outro igual. Este é o maior. Posso
trabalhar o resto da vida sem nunca mais ter de ser procurado por um repórter do New
York Times num restaurante, para uma entrevista. Se eu ganhar, serei o melhor advogado
desta região. Posso então esquecer as despesas.
- E se perder?
Jake pensou um instante, olhando em volta à procura de Claude.
- A publicidade será enorme, qualquer que seja o resultado. Quer perca quer
ganhe, este caso vai ajudar-me.
- Mas uma derrota será dolorosa. Todos os advogados do país secretamente
estão desejando que eu perca. Querem que ele seja condenado. Eles têm inveja, têm
medo de que eu cresça demais e lhes roube os clientes. Os advogados são
extremamente invejosos.
- Você também?
- Claro. Veja a firma Sullivan. Tenho um profundo desprezo por todos os
advogados da firma, mas de certo modo invejo-os. Eu gostaria de ter alguns dos clientes
deles, um pouco da segurança deles. Eles sabem que todos os meses vão receber um
belo cheque, é praticamente certo, e no Natal recebem uma maravilhosa bonificação. Eles
representam dinheiro garantido, dinheiro antigo. Seria agradável, para variar. Eu
represento bêbados, desordeiros, maridos que batem nas mulheres, mulheres que batem
nos maridos, vítimas de agressões, a maior parte com pouco dinheiro. E nunca sei, de um
mês para o outro, quantos desses clientes vão aparecer no meu escritório.
- Ouça, Jake - interrompeu Atcavage. - Eu gostaria de continuar esta conversa,
mas Claude acaba de olhar para o relógio e para nós. Acho que nossos vinte minutos
terminaram. A conta de Jake tinha setenta e um centavos a mais do que a de Atcavage e
uma vez que tinham comido a mesma coisa, ele reclamou.
- Pronto, disse Claude. Jake obteve mais uma costeleta.
McKittrick era bem apessoado e preciso, minucioso e agressivo. Estava em
Clanton desde quarta-feira, para investigar e escrever sobre o que era considerado o
crime mais famoso do país, naquele momento. Falou com Ozzie e Moss Junior e eles
sugeriram que procurasse Jake. Falou com Bullard, do outro lado da porta fechada, e o
juiz sugeriu que ele falasse com Jake. Entrevistou Lester e Gwen, mas não permitiram
que visse a menina. Conversou com os fregueses habituais do Coffee Shop e do Tea
Shoppe e com os freqüentadores do Huey's e do Ann's. Falou com a ex-mulher de Willard
e com a mãe dele, mas a Sra. Cobb estava farta de repórteres. Um dos irmãos de Cobb
concordou em ser entrevistado mediante uma certa quantia. McKittrick não aceitou. Foi à
fábrica de papel e conversou com os companheiros de trabalho de Carl Lee e foi a
Smithfield para entrevistar o promotor. Ia ficar na cidade mais alguns dias, depois voltaria
para o julgamento.
McKittrick era do Texas e, quando convinha, usava a fala arrastada do sul, o que
impressionava as pessoas e as fazia falar com maior liberdade. Ocasionalmente até
usava expressões bastante típicas, o que o diferenciava da maioria dos repórteres que
faziam questão da pronúncia moderna, seca e precisa.
- O que é isso? - perguntou McKittrick, apontando para o centro da mesa de Jake.
- Isso é um gravador - respondeu Jake. McKittrick pôs o seu gravador sobre a
mesa e disse:
- Posso perguntar porquê?
- Pode. Este é o meu escritório, e esta a minha entrevista. Logo, posso gravar, se
quiser.
- Espera problemas?
- Estou tentando evitar problemas. Não gosto de ser citado erroneamente.
- Não tenho fama de fazer isso.
- Ótimo. Então, não se importará que nós dois gravemos a entrevista.
- Não confia em mim, Dr. Brigance?
- Claro que não. E meu nome é Jake.
- Porque não confia em mim?
- Porque é um repórter, é de Nova Iorque, está à procura de uma história
sensacionalista e, se for igual aos outros, vai escrever um lixo cheio de imprecisões e
moralista, vai descrever-nos como um bando de caipiras brancos, racistas e ignorantes.
- Está enganado. Para começar, sou do Texas.
- O seu jornal é de Nova Iorque.
- Mas eu me considero sulista.
- Há quanto tempo deixou o Sul?
- Uns vinte anos.
Jake sorriu e abanou a cabeça, como que dizendo que era muito tempo.
- E não trabalho para um jornal sensacionalista.
- Veremos. O julgamento será dentro de alguns meses. Até lá teremos tempo de
ler as suas reportagens.
- Acho justo.
Jake ligou o seu gravador e McKittrick ligou o dele.
- Carl Lee Hailey pode ter um julgamento justo em Ford County?
- Porque não?
- Bem, ele é negro. Matou dois homens brancos e vai ser julgado por um júri de
brancos.
- Quer dizer que vai ser julgado por um bando de racistas brancos.
- Não, não foi o que eu disse, nem o que insinuei. Porque supõe automaticamente
que eu considero que todas as pessoas daqui são racistas?
- Porque é a verdade. Somos estereotipados e você sabe disso.
McKittrick encolheu os ombros e escreveu no bloco de notas.
- Quer responder à pergunta?
- Sim. Ele pode ter um julgamento justo em Ford County, se for julgado aqui.
- Quer que ele seja julgado aqui?
- Estou certo de que tentaremos transferir o local.
- Para onde?
- Não vamos sugerir o local. É atribuição do juiz.
- Onde é que ele conseguiu a M-16?
Jake riu e olhou para o gravador.
- Não sei.
- Ele seria indiciado se fosse branco?
- Ele é negro e não foi indiciado ainda.
- Mas se fosse branco, seria indiciado?
- Na minha opinião, seria.
- Seria condenado?
- Aceita um charuto? - Jake tirou um Roi-Tan da gaveta da mesa. Desembrulhou o
charuto e acendeu-o com um isqueiro a gás.
- Não, obrigado.
- Não, se fosse branco não seria condenado. Na minha opinião. Não no Mississipi,
não no Texas, não no Wyoming. Não tenho certeza quanto a Nova Iorque.
- Porquê?
- Tem uma filha?
- Não.
- Então, não ia compreender.
- Acho que compreendo. O Sr. Hailey vai ser condenado?
- Provavelmente.
- Então, o sistema não funciona com a mesma justiça para os negros.
- Conversou com Raymond Hughes?
- Não. Quem é ele?
- Na última eleição, foi candidato a xerife e teve a infelicidade de ter por adversário
Ozzie Walls. Hughes é branco. Ozzie evidentemente não é. Se não estou enganado, ele
conseguiu trinta e um por cento dos votos. Num distrito com setenta e quatro por cento de
brancos. Por que não pergunta ao Sr. Hughes se o sistema trata os negros com justiça?
- Eu me referia ao sistema judiciário.
- É o mesmo sistema. Por quem é que acha que o júri é formado? Os mesmos
eleitores registrados que elegeram Ozzie Walls.
- Bem, se um homem branco não seria condenado e o Sr. Hailey provavelmente
será, explique-me como é que o sistema trata os dois com justiça.
- Não trata.
- Acho que não entendi.
- O sistema reflete a sociedade. Nem sempre é justo, mas é tão justo como o
sistema de Nova Iorque, Massachusetts ou Califórnia. É tão justo quanto o faz a
emotividade e o preconceito dos seres humanos.
- Então acha que o Sr. Hailey será tratado com justiça aqui, exatamente como
seria em Nova Iorque?
- Estou querendo dizer que há tanto racismo em Nova Iorque como no Mississipi.
Veja as escolas públicas, tão sem segregação como quaisquer outras.
- Por ordem judicial.
- Certo. Mas e os tribunais de Nova Iorque? Durante anos vocês, imbuídos de uma
hipocrisia piedosa, apontaram o dedo e o nariz para nós, exigindo o fim da segregação.
Aconteceu aqui e não foi o fim do mundo. Mas vocês, muito convenientemente, ignoraram
as suas escolas e os seus bairros residenciais, as suas irregularidades em relação ao
voto, os seus júris e conselhos municipais formados só por brancos. Nós estávamos
errados e pagamos caro o nosso erro. Mas aprendemos e embora a mudança tenha sido
lenta, pelo menos estamos tentando. Vocês continuam a apontar o dedo acusador.
- Eu não pretendia repetir a batalha de Gettysburg.
- Desculpe. Qual a defesa que vamos usar? No momento ainda não sei.
Francamente, é muito cedo. Ele nem foi indiciado.
- Mas, evidentemente, será.
- É claro que ainda não sabemos. É mais do que provável. Quando é que esta
entrevista vai ser publicada?
- Talvez no domingo.
- Não faz diferença. Ninguém aqui lê o seu jornal. Sim, ele vai ser indiciado.
McKittrick consultou o relógio e Jake desligou o gravador.
- Ouça, eu não sou o "mau da fita" - disse McKittrick. - Vamos beber uma cerveja
um dia destes e acabar com isto.
- Confidencialmente, eu não bebo. Mas aceito o convite.

A Primeira Igreja Presbiteriana de Clanton ficava do outro lado da rua, de frente
para a Primeira Igreja Metodista Unida de Clanton e as duas podiam ser vistas da
Primeira Igreja Batista. Os batistas tinham maior número de adeptos e mais dinheiro, mas
os presbiterianos e metodistas reuniam-se mais cedo aos domingos e chegavam antes
dos batistas aos restaurantes. Os batistas chegavam ao meio-dia e meia e ficavam na fila
de espera, enquanto os presbiterianos e metodistas comiam calmamente e lhes diziam
adeus.
Jake estava satisfeito por não ser batista. Eram um pedaço rígidos e rigorosos
demais, e estavam sempre pregando sobre o ofício noturno aos domingos, com o qual
Jake não concordava. A família de Carla era batista, a de Jake metodista e durante o
namoro chegaram a um acordo e tornaram-se presbiterianos. Estavam satisfeitos com a
sua igreja e com as suas atividades às quais raramente faltavam.
Nesse domingo, sentados no lugar de sempre, com Hanna dormindo entre ambos,
ignoravam completamente o sermão. Jake fazia isso ao mesmo tempo em que olhava
para o pregador e ia imaginando o seu confronto com Buckley, no tribunal, perante doze
cidadãos bons e cumpridores da lei, enquanto a nação assistia e esperava, e Carla
ignorava o sermão, olhando para o pregador e redecorando mentalmente a sala de jantar.
Jake percebeu alguns olhares curiosos durante a cerimônia e imaginou que alguns dos
fiéis estavam deslumbrados e cheios de respeito por ter uma celebridade na sua igreja.
Havia algumas caras desconhecidas e podiam ser pecadores arrependidos ou repórteres.
Jake só teve certeza quando um deles insistiu em olhar fixamente para ele - nesse
momento, não teve dúvidas de que eram todos repórteres.
- Gostei muito do seu sermão, reverendo - mentiu Jake, apertando a mão do
pastor nos degraus em frente da igreja.
- É um prazer vê-lo, Jake - respondeu o reverendo. ­ Nós o vimos a semana toda
na televisão. Os meus filhos ficam entusiasmados cada vez que aparece.
- Obrigado. Reze por nós.
Jake, Carla e Hanna foram almoçar com os pais dele em Karaway. Gene e Eva
Brigance moravam na antiga residência da família, uma espaçosa casa de fazenda com
dois hectares arborizados, no centro da cidade de Karaway, a três quarteirões da rua
principal e a dois da escola onde Jake e a irmã tinham estudado durante doze anos. Eram
ambos aposentados, mas eram ainda bastante jovens e, durante o Verão, viajavam por
todo o continente numa caravana. Na segunda-feira iam partir para o Canadá e só
voltariam depois do Dia do Trabalhador. Jake era o único rapaz. A filha, mais velha,
morava em Nova Orleans.
O almoço na mesa de Eva era um típico banquete sulista com carnes fritas,
legumes frescos da horta, cozidos, em purê, assados e crus, rosquinhas e biscoitos feitos
em casa, molhos, melancia, melão, tortas de pêssego, de limão e de morango. Pouca
coisa era consumida no almoço e o que sobrava Carla e Eva acondicionavam
cuidadosamente e ia tudo para Clanton, onde durava uma semana.
- Como estão os seus pais, Carla? - perguntou o Dr. Brigance, passando as
rosquinhas.
- Estão bem. Falei com minha mãe ontem.
- Estão em Knoxville?
- Não, senhor. Já foram para Wilmington para passar o Verão.
- Vocês tencionam ir visitá-los? - perguntou Eva, servindo o chá no bule de
cerâmica de três litros.
Carla olhou para Jake, que estava servindo Hanna de feijão-manteiga. Jake não
queria falar sobre Carl Lee Hailey. Todas as noites, desde segunda-feira, era só o que
discutiam ao jantar, e Jake não estava disposto a responder às mesmas perguntas.
- Sim, senhora. Pretendemos. Depende de Jake. Ele vai ter muito que fazer este
Verão.
- Foi o que calculamos - disse Eva secamente, falando devagar, como que
lembrando ao filho que ele não telefonava desde o dia do crime.
- Há algum problema com o seu telefone, filho? - perguntou o Dr. Brigance.
- Sim. Mandamos mudar o número.
Os quatro adultos comiam devagar, preocupados, e Hanna olhava para a torta de
morangos.
- Sim, eu sei. Foi o que a telefonista nos disse. Para um número que não consta
da lista.
- Desculpe. Tenho tido muito que fazer. O tempo todo.
- Foi o que lemos nos jornais - disse o pai.
Eva parou de comer e disse.
- Jake, acha que consegue libertá-lo?
- Estou preocupado com a sua família - disse o pai. - Pode ser um caso muito
perigoso.
- Ele os matou a sangue-frio - observou Eva.
- Mãe, eles violaram a filha dele. O que é que vocês fariam se alguém violentasse
a Hanna?
- O que é violentar? - perguntou Hanna.
- Não importa, minha querida - disse Carla. - Será que podemos mudar de
assunto? - Olhou para os três Brigances e eles recomeçaram a comer. A nora tinha
falado, como sempre com sabedoria. Jake sorriu para a mãe, sem olhar para o Dr.
Brigance.
- Eu, pura e simplesmente, não quero falar sobre o caso, mãe. Estou farto desse
assunto.
- Acho que temos de ler os jornais - disse o Dr. Brigance. Puseram-se a falar sobre
o Canadá.

Mais ou menos à hora em que os Brigances acabavam de almoçar, o santuário da
Capela Mount Zion estremecia e ondulava com o frenesi dos fiéis conduzidos pelo
reverendo Ollie Agee. Diáconos dançavam. Presbíteros cantavam. Mulheres
desmaiavam. Homens adultos gritavam e erguiam os braços para o céu, e as crianças
olhavam para cima, apavoradas. Os membros do coro cambaleavam e investiam para
frente, cantando depois com voz esganiçada estrofes diferentes do mesmo hino. O
pianista tocava uma música, o organista tocava outra e o coro cantava a combinação das
duas coisas. O reverendo pulava em volta do púlpito com a longa veste branca debruada
de vermelho, gritando, rezando, berrando para Deus e suando.
O tumulto crescia e diminuía, aumentando a cada desmaio e decrescendo com o
cansaço. Anos de experiência tinham ensinado a Agee qual o momento exato em que a
fúria atingia o auge, em que o delírio dava lugar ao cansaço e quando o seu rebanho
precisava de uma pausa. Nesse preciso momento, ele foi dançando até ao púlpito e bateu
com a mão na madeira com toda a força de Deus Todo-poderoso. Imediatamente a
música parou, as convulsões cessaram, as desmaiadas acordaram, as crianças pararam
de chorar e a multidão voltou obedientemente para os bancos. Estava na hora do sermão.
Quando o reverendo ia começar, as portas abriram-se e os Hailey entraram. A pequena
Tonya vinha à frente, coxeando, segurando na mão da mãe. Os irmãos marchavam atrás,
seguidos pelo tio Lester. Caminharam lentamente pela passagem central e sentaram-se
numa das primeiras filas. A um sinal do reverendo, o organista começou a tocar
suavemente e o coro começou a ondular, murmurando baixinho. Os diáconos levantaram-
se balançando com o coro. Para não ficar atrás, os presbíteros também se puseram de pé
e começaram a cantar. Então, sem que ninguém esperasse, a irmã Crystal desmaiou
violenta e contagiosamente. As outras irmãs começaram a cair como moscas. Os
presbíteros cantavam mais alto do que o coro, e o coro tentou superá-los. Não
conseguiam ouvir o organista, por isso este aumentou o volume. O pianista fez o mesmo,
martelando vigorosamente um hino diferente. O organista aceitou o desafio. O reverendo
Agee desceu fluidamente do pódio e dançou na direção dos Hailey. Todos foram atrás
dele - o coro, os diáconos, os presbíteros, as mulheres, as crianças, chorando -, todos
seguiram o reverendo para cumprimentar a pequena Hailey.

A cadeia não perturbava Carl Lee. Era mais agradável estar em casa, mas, dadas
as circunstâncias, era tolerável. A cadeia era nova, fora construída com recursos do
governo federal por ordem de um processo sobre os direitos dos prisioneiros. A comida
era preparada por duas negras enormes que sabiam cozinhar e falsificar cheques.
Estavam qualificadas para serem soltas, mas Ozzie não se dera ao trabalho de informá-
las disso. A comida para os quarenta detidos era servida pelos prisioneiros com regalias.
Treze prisioneiros pertenciam à Parchman que, naquele momento, estava superlotada.
Assim, ali estavam à espera, sem saberem quando seria o dia temido da viagem para a
grande penitenciária, uma fazenda, no delta, onde a comida não era tão boa, as camas
não eram tão macias, não havia ar condicionado, os mosquitos eram enormes,
abundantes e ferozes e onde os vasos eram escassos e entupidos.
A cela de Carl Lee ficava ao lado da cela dois, onde os prisioneiros do estado
esperavam a transferência. Salvo duas exceções, eram todos negros. Sem exceção,
eram todos violentos. Mas todos tinham medo de Carl Lee. Ele estava na cela um com
dois vigaristas que, mais do que medo, tinham verdadeiro pavor do famoso companheiro
de cela. Todas as noites Carl Lee era escoltado até ao gabinete do xerife, onde ambos
jantavam e viam o noticiário da televisão. Carl Lee era uma celebridade e gostava disso
quase tanto como o seu advogado e o promotor. Carl Lee queria explicar tudo aos
repórteres, falar-lhes sobre a filha e dizer-lhes por que não devia estar preso, mas o seu
advogado não o permitia.
Naquele domingo, depois da visita de Gwen e Lester, no fim da tarde, Ozzie, Moss
Junior e Carl Lee saíram furtivamente pela porta dos fundos da cadeia e foram ao
hospital. A idéia fora de Carl Lee, e Ozzie não viu qualquer inconveniente. Quando
entraram no quarto particular, Looney estava sozinho. Carl Lee olhou para a perna do
policial. Trocaram um aperto de mão. Com lágrimas nos olhos e a voz trêmula, Carl Lee
disse que lamentava muito, que não tinha tido intenção de acertar em ninguém além dos
dois homens, que gostaria de poder desfazer o que tinha feito a Looney. Looney aceitou
as desculpas sem hesitar.
Quando entraram sorrateiramente no edifício da cadeia, Jake estava no escritório
do xerife. Ozzie e Moss Junior deixaram o acusado sozinho com o advogado.
- Onde é que foi? - perguntou Jake.
- Fui ao hospital ver Looney.
- Foi onde? - Há problema? - Eu gostaria que me consultasse antes de fazer
outras visitas.
- Qual é problema por ter ido visitar Looney?
- Looney vai ser a testemunha principal da acusação quando eles tentarem
mandá-lo para a câmara de gás. É só isso. Ele não está do nosso lado, Carl Lee, e
qualquer conversa que você tenha com Looney deve ser na presença do seu advogado.
Compreendeu?
- Para ser franco, não.
- Eu não acredito que Ozzie tenha feito uma coisa destas. - resmungou Jake.
- A idéia foi minha - admitiu Carl Lee.
- Está bem. Se tiver outras idéias, por favor informe-me. Está bem?
- Está bem.
- Tem falado com Lester ultimamente?
- Tenho. Ele e a Gwen estiveram aqui hoje. Trouxeram alguns petiscos. Falaram
sobre os empréstimos negados.
Jake estava disposto a não ceder na questão dos honorários. De modo nenhum
iria aceitar a defesa de Carl Lee por novecentos dólares. O caso iria tomar-lhe o tempo
todo, durante os três meses seguintes, pelo menos, e novecentos dólares seriam menos
do que o salário mínimo. Não seria justo para ele nem para a sua família trabalhar de
graça. Carl Lee teria de arranjar o dinheiro. Tinha muitos parentes. A família de Gwen era
grande. Teriam de fazer sacrifícios, talvez vender alguns automóveis, algumas terras, mas
Jake teria o seu dinheiro. De contrário, Carl Lee teria de procurar outro advogado.
- Eu lhe dou a escritura da minha casa e do terreno - ofereceu Carl Lee.
Jake ficou comovido.
- Eu não quero a sua casa, Carl Lee. Quero dinheiro. Seis mil e quinhentos
dólares.
- Então, me diga onde é que eu vou buscá-los... Você é o advogado, pense numa
maneira. Estou com você.
Jake tinha de admitir que fora vencido.
- Carl Lee, não posso fazer isto por novecentos dólares. Não posso permitir que
este caso me leve à falência. Sou advogado. É disso que eu vivo.
- Jake, eu vou pagar. Prometo. Pode levar muito tempo, mas eu vou pagar. Confie
em mim.
Não se estiver no corredor da morte, pensou Jake. Mudou de assunto.
- Sabe que o júri de instrução se vai reunir amanhã para estudar o seu caso?
- Então eu vou ao tribunal?
- Não, isso quer dizer que será formalmente acusado amanhã. O tribunal vai estar
à cunha com espectadores e repórteres. O juiz Noose estará presente para a abertura
dos trabalhos forenses no tribunal. Buckley vai andar correndo de um lado para o outro, à
procura das câmeras para promover-se. Vai ser um grande dia. O juiz Noose começa o
julgamento de um assalto à mão armada, na parte da tarde. Se você for indiciado
amanhã, estaremos no tribunal na quarta ou na quinta para a leitura do libelo na presença
do acusado.
- Para a leitura do quê?
- Do libelo. Num caso de homicídio, a lei exige que o juiz leia a acusação em
tribunal aberto, na presença do acusado, de Deus e de todas as pessoas. Vão fazer um
grande espetáculo disso. Nós daremos entrada na declaração de inocente e o juiz Noose
determina a data do julgamento. Pediremos uma fiança razoável e ele vai negá-la.
Quando eu mencionar a fiança, Buckley vai se pôr aos berros e aos pulos. Quanto mais
penso nele, mais o odeio. É só para irritá-lo.
- Porque não vou ter fiança?
- O juiz não precisa determinar fiança em casos de homicídio. Ele pode, se quiser,
mas a maioria não quer. Mesmo que o juiz Noose determine uma fiança, você não vai
poder pagar, portanto, não se preocupe com isso. Vai ficar preso até ao julgamento.
- Perdi o emprego, já sabia?
- Quando?
- A Gwen foi à fábrica na sexta-feira receber o meu pagamento. E nessa altura,
disseram-lhe. É simpático, não acha? Trabalhei para eles onze anos, faltei cinco dias e
eles me despedem. Acho que pensam que não vou voltar.
- Lamento muito, Carl Lee. Tenho mesmo muita pena.


DOZE

Sua Excelência, o juiz Omar Noose, nem sempre fora tão excelente. Antes de se
tornar o juiz itinerante da Vigésima Segunda Circunscrição Judiciária, era um advogado
de escasso talento e poucos clientes, mas um político extremamente habilidoso. Cinco
mandatos no Legislativo do Mississipi tinham-no corrompido e ensinado a arte da
manipulação e da fraude política. O senador Noose prosperou magnificamente como
presidente do Comitê de Finanças do Estado e poucas pessoas em Van Buren
questionavam o fato de ele e a família levarem uma vida de tanto luxo com o seu
ordenado legislativo de sete mil dólares por ano.
Como a maioria dos membros do Legislativo do Mississipi, cometeu o erro de se
candidatar uma vez a mais e, no Verão de 1971, sofreu a humilhação de ser vencido por
um oponente desconhecido. Um ano mais tarde, o juiz Loopus, seu predecessor na
magistratura, morreu e Noose convenceu os amigos a apoiarem a sua indicação para o
final do mandato ainda não terminado. Foi assim que o ex-senador Noose se tornou o juiz
itinerante Noose. Foi eleito em 1975 e reeleito em 1979 e em 1983.
Arrependido, regenerado e muito humilde dada a sua rápida descida na escalada
do poder, o juiz Noose dedicou-se ao estudo das leis e depois de um começo difícil ficou
à altura do novo cargo. Ganhava sessenta mil dólares por ano e assim podia ser honesto.
Com sessenta e três anos, era um juiz velho e sábio, respeitado pela maioria dos
advogados e pelo Supremo Tribunal do estado, que raramente anulava uma decisão sua.
Era discreto mas encantador, paciente mas rigoroso e tinha um nariz monumental, muito
comprido e pontiagudo, que servia de trono para os óculos de leitura, de lentes
hexagonais cor-de-laranja e aros negros, que trazia sempre com ele, mas eram raramente
usados. O nariz, aliado ao corpo alto e desajeitado, mais o cabelo branco, rebelde e
abundante, e a voz esganiçada deram origem ao apelido secreto, murmurado entre os
advogados, de Ichabod. Ichabod Noose. O Meritíssimo Ichabod Noose.
O juiz Noose ocupou o seu lugar e o tribunal completamente cheio levantou-se
quando Ozzie murmurou incoerentemente um parágrafo de lei, leitura obrigatória para a
abertura oficial do período de Maio do Tribunal Itinerante de Ford County. Uma oração,
longa e rebuscada, foi recitada pelo pastor local e todos se sentaram. Os possíveis
jurados enfileiravam-se de um dos lados do recinto. Criminosos e outros litigantes, as
famílias e amigos, a imprensa e os curiosos, enchiam o outro lado. Noose exigia a
presença de todos os advogados do distrito na abertura do período forense e eles
ocupavam a bancada dos jurados, todos de beca e com ares de importância. Buckley e o
seu assistente, D. R. Musgrove, sentados frente à mesa da promotoria, representavam
esplendidamente o estado. Jake estava numa cadeira, em frente da balaustrada. Os
funcionários e escriturários estavam atrás dos grandes livros vermelhos dos autos, e
todos observaram com atenção quando Ichabod se sentou, ajeitou a toga, pôs os
horríveis óculos e olhou por cima deles para os presentes.
- Bom dia - disse ele, com a sua voz estridente. Ajeitou o microfone e pigarreou. -
É sempre um prazer estar em Ford County para o meu período forense do mês de Maio.
Vejo que a maior parte dos advogados arranjou tempo para comparecer à abertura do
tribunal e, como sempre, pedirei à senhora escrituraria que anote os nomes dos ausentes,
para que eu possa entrar pessoalmente em contato com eles. Vejo um grande número de
jurados em potencial e agradeço a cada um a sua presença. Sei que não tiveram escolha,
mas a sua presença é vital para o nosso processo judiciário. Selecionaremos um júri
provisório e depois escolheremos vários júris para servirem nesta semana e na próxima.
Espero que todos os advogados tenham uma cópia da agenda para este período e já
devem ter notado que está bastante carregada. O meu calendário marca pelo menos dois
julgamentos por dia, nas duas semanas, mas fui informado de que a maioria dos casos de
foro criminal, marcados para julgamento, serão resolvidos por meio de negociação das
declarações dos acusados. Mesmo assim, temos vários casos para serem julgados e eu
peço a cooperação diligente dos advogados. Uma vez escolhido e instalado o júri de
instrução, e à medida que forem aparecendo os indiciamentos, eu marcarei a ordem das
leituras das acusações formais e o protocolo de comparecimentos. Vamos chamar os
casos protocolados rapidamente, primeiro os criminais, depois os civis. Nessa altura, os
advogados poderão retirar-se, enquanto escolhemos os jurados.
"O estado contra Warren Moke. Assalto à mão armada, julgamento marcado para
esta tarde."
Buckley levantou-se com ar decidido.
- O estado do Mississipi está pronto para o julgamento, Meritíssimo - anunciou
gloriosamente aos espectadores.
- A defesa também está pronta - disse Tyndale, o advogado indicado pelo tribunal.
- Quanto tempo calculam que vai durar este julgamento? - perguntou o juiz.
- Um dia e meio - respondeu Buckley. Tyndale concordou, inclinando a cabeça.
- Muito bem. Selecionaremos o júri para o julgamento esta manhã e começaremos
o julgamento à uma hora da tarde de hoje. O estado contra William Daal, falsificação, seis
acusações, marcado para amanhã.
- Meritíssimo - respondeu D. R. Musgrove - haverá negociação da declaração do
acusado neste caso.
- Muito bem. O estado contra Roger Hornton, cheques sem cobertura, duas
acusações, marcado para amanhã.
Noose continuou a enumerar os casos da agenda. Cada um deles recebia a
mesma resposta. Buckley levantava-se e declarava que o estado estava pronto para o
julgamento, ou Musgrave informava rapidamente o tribunal que a declaração fora
negociada. Os advogados da defesa levantavam-se e concordavam com uma inclinação
da cabeça. Jake não tinha nenhum caso no período forense de Maio e embora fizesse o
possível por parecer aborrecido, gostava daquela chamada porque ficava sabendo a
natureza dos casos e o que os seus concorrentes andavam fazendo. Era também uma
oportunidade para aparecer perante a população da cidade. Metade dos membros da
firma Sullivan estavam presentes e também pareciam enfadados, arrogantes, todos juntos
na primeira fila da bancada do júri. Os sócios mais antigos da firma não se dignavam a
comparecer à chamada do calendário e depois mentiam ao juiz Noose, dizendo que
tinham estado num julgamento do Tribunal Federal, em Oxford, ou talvez do Supremo
Tribunal, em Jackson. A dignidade impedia-os de se misturarem com os outros
advogados comuns, por isso os jovens representantes da firma compareciam para
satisfazer Noose e pedir a continuação, adiamento, deferimento ou arquivamento dos
casos civis, ou conseguir que fossem legislados de modo a que a firma pudesse continuar
a arrastá-los indefinidamente e continuar cobrando do cliente cada hora de trabalho. Os
clientes eram companhias de seguros, que geralmente preferiam não ir a julgamento e
pagavam por hora as manobras legais, cujo único objetivo era manter os casos longe dos
jurados. Saía mais barato e mais justo pagar um acordo razoável e evitar o litígio e as
firmas parasitas de defesa como a Sullivan & O'Hare, mas as companhias de seguros e
os seus assistentes administrativos eram idiotas e avarentos demais, de modo que os
advogados de rua, como Jake Brigance, ganhavam a vida processando essas
companhias e obrigando-as a pagar mais do que pagariam se tivessem agido
corretamente, desde o início.
Jake detestava companhias de seguros, detestava os advogados de defesa
dessas companhias e detestava especialmente os jovens membros da firma Sullivan,
todos da sua idade e todos dispostos a cortar alegremente a garganta, a garganta dos
seus companheiros contratados, dos sócios, a garganta de qualquer um, para chegar a
sócio da firma, ganhar duzentos mil dólares por ano e não comparecer à chamada do
calendário do tribunal distrital. Jake detestava especialmente Lotterhouse, ou L. Winston
Lotterhouse, como anunciava o seu papel timbrado, um caixa-de-óculos insignificante,
com diploma de Harvard e um caso agudo de megalomania, o primeiro da fila para ser
sócio da firma, e que, por isso, usara de pouca discriminação no seu corte de gargantas,
no ano anterior. Estava sentado com o seu ar arrogante entre dois outros contratados da
Sullivan, com sete pastas na sua frente, cada uma delas pagando cem dólares por hora
para que ele respondesse à chamada do tribunal.
Noose começou a chamada dos casos civis.
- Collins contra a Companhia Real de Títulos e Seguros Mútuos Gerais.
Lotterhouse levantou-se vagarosamente. Segundos significavam minutos. Minutos
significavam horas. Horas significavam honorários, bonificações, sociedades.
- Meritíssimo, esse caso está marcado para a quarta-feira da próxima semana.
- Eu sei - disse Noose.
- Sim, senhor. Bem, senhor doutor juiz, infelizmente vejo-me obrigado a pedir uma
prorrogação. Há uma incompatibilidade no meu calendário jurídico de quarta-feira pois
tenho uma conferência para saneamento do processo no Tribunal Federal, em Memphis,
que o juiz se recusa a adiar. Lamento muito. Esta manhã dei entrada num recurso
pedindo a prorrogação do caso.
Gardner, o advogado do queixoso, ficou furioso.
- Meritíssimo, este caso já foi marcado várias vezes. O julgamento foi marcado
para Fevereiro e o Sr. Lotterhouse teve um caso de morte na família da sua esposa. Foi
marcado para julgamento em Novembro último e um tio dele morreu. Foi marcado para
Agosto e houve outro enterro. Acho que devemos ficar agradecidos por ninguém ter
morrido desta vez.
Ouviram-se risos discretos e Lotterhouse corou.
- Tudo tem um limite, Meritíssimo - continuou Gardner. - O Sr. Lotterhouse gostaria
de adiar este julgamento para sempre. O caso está pronto para ser julgado e o meu
cliente tem direito a um julgamento. Nós nos opomos rigorosamente à moção de
adiamento.
Lotterhouse sorriu para o juiz e tirou os óculos.
- Meritíssimo, se me permite responder...
- Não, não permito, Sr. Lotterhouse - interrompeu Noose. - Chega de adiamentos.
O julgamento do caso está marcado para quarta-feira da próxima semana. Não vai haver
mais nenhuma prorrogação.
Aleluia, pensou Jake. Geralmente Noose era benevolente com a firma Sullivan.
Jake sorriu para Lotterhouse.
Dois dos casos civis de Jake foram prorrogados para Agosto. Quando Noose
terminou a chamada dos casos civis, dispensou os advogados e voltou a atenção para o
grupo de possíveis jurados.
Explicou o papel do júri de instrução, a sua importância e procedimento.
Descreveu a diferença entre o júri de instrução e os júris ordinários, igualmente
importantes, mas que não exigiam tanto tempo. Começou fazendo perguntas, dezenas
delas, a maioria exigidas por lei, todas relacionadas com a capacidade de cada um para
servir como jurado, integridade física e moral, isenção e idade. Algumas perguntas não
tinham utilidade, mas eram exigidas por algum estatuto legal muito antigo: "São jogadores
ou alcoólicos compulsivos?"
Ouviram-se risos, mas ninguém se apresentou como voluntário. Os que tinham
mais de sessenta e cinco anos estavam automaticamente dispensados, ao critério de
cada um. Noose concedeu a isenção habitual por doença, emergências e outras
dificuldades reais, mas poucos foram dispensados por razões de ordem econômica. Era
interessante ver os que se levantavam, um de cada vez, e humildemente explicavam que
alguns dias servindo como jurados significaria um prejuízo irreparável para a fazenda, ou
para a oficina, ou para o corte da madeira na fábrica. Noose agiu com severidade e fez
várias preleções sobre responsabilidade cívica.
Do exame de mais ou menos noventa pessoas convocadas, dezoito seriam
escolhidas para o júri de instrução e o resto permaneceria à disposição para a formação
dos júris ordinários. Quando Noose completou o interrogatório, a escrituraria retirou
dezoito nomes de uma caixa e colocou-os sobre a mesa, diante do juiz, que começou a
chamada. Os jurados, um a um, levantavam-se e caminhavam até à frente do recinto,
passavam pelo portão da balaustrada e tomavam os seus lugares nas cadeiras estofadas
e giratórias do banco dos jurados. Havia catorze lugares na bancada, doze para os
jurados, dois para os suplentes. Quando a bancada estava completa, Noose chamou mais
quatro, que se sentaram em cadeiras, frente à bancada.
- Levantem-se e prestem juramento - disse Noose e a funcionária do tribunal ficou
de pé diante deles e começou a ler o livro que continha todos os juramentos.
- Levantem a mão direita - disse ela. - Juram solenemente ou afirmam que
desempenharão fielmente os seus deveres de jurados, que ouvirão e decidirão com
justiça todos os assuntos e questões que lhes forem apresentados, em nome de Deus?
Depois do coro de "eu juro", o júri voltou a sentar-se. Dos cinco negros, duas eram
mulheres. Dos treze brancos, oito eram mulheres e a maioria era de trabalhadores do
campo. Jake reconheceu sete dos dezoito.
- Minhas senhoras e meus senhores - Noose começou o discurso de praxe -,
foram escolhidos e prestaram juramento como jurados para Ford County e servirão nessa
qualidade até ser escolhido outro júri em Agosto. Quero acentuar que este dever não
tomará todo o seu tempo. Deverão reunir-se todos os dias, durante esta semana, depois
algumas horas todos os meses, até Setembro. A sua responsabilidade será estudar casos
criminais, ouvir o testemunho de policiais e das vítimas e determinar se existem ou não
provas razoáveis de que o acusado cometeu o crime. Se a resposta for positiva, devem
determinar o indiciamento, que consiste numa acusação formal contra o acusado. Os
senhores são dezoito ao todo e quando pelo menos doze concordarem que uma pessoa
deve ser indiciada, o indiciamento é promulgado. Os senhores têm um poder
considerável. Por lei, podem investigar qualquer ato criminoso, qualquer cidadão suspeito
de ato ilícito, qualquer funcionário público, na verdade qualquer pessoa ou qualquer coisa
digna de suspeita. Podem reunir-se quando quiserem, mas normalmente sempre que o
promotor público, o Dr. Buckley, os convocar. Têm o poder de intimar uma testemunha a
depor na sua frente e podem também intimar a apresentação de todos os atos
processuais referentes a ela. As suas deliberações são feitas em extrema privacidade,
admitindo apenas a presença do promotor público e das testemunhas. Não é permitido ao
acusado apresentar-se perante os senhores. São expressamente proibidos de discutir
qualquer coisa dita ou que transpire na sala do júri.
- Dr. Buckley, quer ter a bondade de se levantar? Obrigado. Este é o Dr. Buckley,
o promotor público. Ele é de Smithfield, Polk County. Ele vai agir como um supervisor das
suas deliberações. Muito obrigado, Dr. Buckley. Dr. Musgrove, quer ter a bondade de se
levantar? Este é D, R. Musgrove, assistente do promotor, também de Smithfield. Ele
assistirá o Dr. Buckley, quando o júri estiver em sessão. Muito obrigado, Dr. Musgrove.
Muito bem, estes cavalheiros representam o estado do Mississipi e apresentarão os casos
ao júri de instrução.
- Agora, para concluir. O último júri de instrução de Ford County foi escolhido em
Fevereiro e o primeiro jurado foi um homem branco. sendo assim, de acordo com a
tradição e seguindo os desejos do Departamento de Justiça, vou nomear uma mulher
negra como primeiro jurado deste júri de instrução. Vejamos. Laverne Gossett. Onde está,
Sra. Gossett? Ah, está aí, Ótimo. A senhora é professora, correto? Muito bem. Estou certo
de que poderá desempenhar a contento os seus novos deveres. Chegou a hora de
começarem a trabalhar. Ao que sei, há mais de cinqüenta casos à sua espera. Peço que
acompanhem o Dr. Buckley à pequena sala que reservamos para os jurados. Muito
obrigado e boa sorte.
Buckley, orgulhosamente, conduziu o seu novo júri de instrução para fora da sala.
Acenou aos repórteres e não fez nenhum comentário, por hora... Na pequena sala do
tribunal os jurados sentaram-se em volta de duas mesas compridas. Uma secretária
entrou com um carrinho cheio de pastas. Um policial muito velho, meio aleijado, meio
surdo, há muito tempo aposentado, com um uniforme desbotado, postou-se junto à porta.
A sala estava segura. Buckley pensou melhor e saiu para o corredor, para falar com os
repórteres. Sim, disse ele, o caso Hailey seria apresentado naquela mesma tarde. Na
verdade ele ia convocar a imprensa para uma entrevista coletiva, às 4 horas, na escadaria
do tribunal e nessa altura já teria os indiciamentos.
Depois do almoço o chefe do Departamento de Policial de Karaway, sentado a
uma das mesas compridas, procurou nervosamente alguma coisa entre as várias pastas.
Evitou olhar para o júri de instrução, que esperava ansiosamente o seu primeiro caso.
- Declare o seu nome! - berrou o promotor.
- Chefe Nolan Earnhart, Departamento de Policial da cidade de Karaway.
- Quantos casos tem o senhor, chefe?
- Temos cinco de Karaway.
- Vamos ouvir o primeiro.
- Muito bem, vejamos, sim - murmurou o chefe e gaguejou, sempre mexendo nos
papéis. - Muito bem, o primeiro caso é o de Fedison Bulow, homem negro, idade vinte e
cinco anos, apanhado em flagrante nos fundos do supermercado Griffin, de Karaway, às
duas horas da manhã, no dia 12 de abril. O alarme soou e nós o apanhamos dentro do
mercado. A caixa registradora estava arrombada e faltavam algumas sacas de fertilizante.
Encontramos o dinheiro e a mercadoria num carro registrado no nome dele, estacionado
atrás do mercado. Na cadeia, fez uma confissão de três páginas, cuja cópia tenho aqui
comigo.
Buckley andava ao acaso pela sala, sorrindo para todos.
- E o senhor quer que este júri faça duas acusações formais contra Fedison Bulow,
arrombamento e invasão de um estabelecimento comercial e furto qualificado.
- Sim, senhor, exatamente.
- Muito bem, os membros do júri têm direito a fazer perguntas. Esta é a sua
audiência. Alguma pergunta?
- Sim, ele tem ficha na policial? - perguntou Mack Loyd Crowell, um caminhoneiro
desempregado.
- Não - respondeu o chefe. - Este é o primeiro delito.
- Boa pergunta, perguntem sempre isso, porque se eles tiverem antecedentes
criminais, talvez tenhamos de indiciá-los como reincidentes - ensinou Buckley. - Mais
perguntas? Nenhuma? Muito bem. Bem, neste ponto, alguém precisa apresentar ao júri o
pedido de pronúncia ou reconhecimento da veracidade da denúncia contra Fedison
Bulow.
Silêncio. Os dezoito jurados olharam para a mesa e esperaram que alguém fizesse
a moção. Buckley esperou. Silêncio. Isto é Ótimo, pensou ele. Um júri com bom coração.
Um bando de almas tímidas, com medo de falar. Liberais. Porque não poderia ele ter um
júri sedento de sangue, ávido por recomendar o indiciamento de todas as pessoas por
qualquer coisa?
- Sra. Gossett, não quer fazer a primeira moção, uma vez que a senhora é primeiro
jurado?
- Proponho a moção - disse ela.
- Muito obrigado - disse Buckley. - Agora vamos votar. Quantos votam a favor de
indiciar Fedison Bulow por arrombamento e invasão de um estabelecimento comercial e
furto qualificado? Levantem as mãos.
Dezoito mãos ergueram-se e Buckley ficou aliviado. O chefe apresentou os outros
quatro casos de Karaway. Todos tratavam de acusados tão culpados como Bulow e foram
unanimemente pronunciados. Buckley, pouco a pouco, foi ensinando o grande júri a
funcionar sozinho. Fê-los sentirem-se importantes, poderosos e sob a pesada carga da
justiça. Começaram a fazer perguntas.
- Tem antecedentes?
- Qual a pena para esse caso?
- Quando é que sairá da prisão?
- Quantas acusações podemos fazer?
- Quando será julgado?
- Ele está em liberdade neste momento?
Com cinco indiciamentos resolvidos, cinco pronunciamentos sem nenhuma
oposição, com o grande júri ansiando pelo caso seguinte, fosse qual fosse, Buckley
resolveu que o estado de espírito ideal estava garantido. Abriu a porta e fez sinal a Ozzie
para entrar. Ozzie estava no corredor, conversando em voz baixa com um policial e
observando os repórteres.
- Apresente o Hailey primeiro - murmurou Buckley, quando se encontraram na
soleira da porta.
- Meus senhores e minhas senhoras, este é o xerife Walls. Tenho certeza de que
quase todos o conhecem. Ele tem vários casos para apresentar. Qual é o primeiro, xerife?
Ozzie procurou nos seus papéis, perdeu-se no meio do que estava à procura e finalmente
disse:
- Carl Lee Hailey.
Os jurados emudeceram novamente. Buckley observou-os atentamente, para
avaliar a reação. Muitos voltaram a olhar para a mesa. Ninguém disse nada, enquanto
Ozzie examinava as suas pastas e depois pediu licença para pegar outra. Não estava
preparado para apresentar o caso Hailey em primeiro lugar. Buckley orgulhava-se da sua
habilidade para ler os pensamentos dos jurados, enquanto observava as suas
expressões. Olhava atentamente para o júri diversas vezes durante um julgamento,
procurando prever o que cada jurado estava pensando. Interrogava as testemunhas sem
tirar os olhos do júri. Às vezes, interrogava-as voltado para os jurados, observando a
reação às respostas. Ao fim de centenas de julgamentos, Buckley tornara-se muito bom
nisso e percebeu imediatamente que ia ter problema com o caso Hailey. Os cinco jurados
negros ficaram tensos, com uma expressão arrogante, como quem espera ansiosamente
a inevitável discussão sobre o caso. O primeiro jurado, a Sra. Gossett, especialmente,
adotou uma atitude de concentrado respeito, enquanto Ozzie resmungava baixinho,
remexendo nos papéis. A maioria dos brancos manteve-se neutra, mas Mack Loyd
Crowell, um homem do campo, de meia idade e com ar decidido, adotou a mesma atitude
arrogante dos negros. Empurrou a cadeira, levantou-se e foi até à janela que dava para o
lado norte do pátio interno. Buckley não conseguia lhe ver o rosto, mas sabia que Crowell
ia criar problemas.
- Xerife, quantas testemunhas tem o senhor para o caso Hailey? - perguntou
Buckley, um pouco nervoso.
Ozzie parou de mexer nos papéis e disse:
- Bem, ah... só eu. Podemos arranjar mais uma, se for preciso.
- Bem, bem... - disse Buckley. - Fale-nos então sobre o caso.
Ozzie recostou-se na cadeira, cruzou as pernas e disse:
- Faça as perguntas, Rufus, todas as pessoas sabem o que aconteceu. O caso
está há uma semana na televisão.
- Cite apenas a evidência.
- A evidência. Está bem. Há uma semana, Carl Lee Hailey, negro, trinta e sete
anos, matou a tiros um certo Billy Ray Cobb e um certo Pete Willard e atingiu com um tiro
um policial, DeWayne Looney, que ainda está no hospital com a perna amputada. A arma
foi uma metralhadora M-16, ilegal, que está em nosso poder e que tem as impressões
digitais do Sr. Hailey. Tenho um depoimento juramentado assinado pelo policial Looney,
onde ele declara que o homem que atirou foi Carl Lee Hailey. Houve uma testemunha
ocular, Murphy, o aleijadinho que faz a limpeza do tribunal e que é muito gago. Posso
chamá-lo, se quiser.
- Alguma pergunta? - disse Buckley.
O promotor observou nervosamente os jurados que observavam nervosamente o
xerife. Crowell continuava de pé, de costas para os outros, olhando pela janela.
- Alguma pergunta? - repetiu Buckley.
- Sim - disse Crowell, voltando-se e olhando para o promotor e em seguida para
Ozzie. - Aqueles dois homens sobre quem ele disparou, violentaram-lhe a filha, não foi,
xerife?
- Temos certeza que sim - respondeu Ozzie.
- Bem, um deles confessou, não confessou?
- Sim.
Crowell, ousado e arrogante, deu alguns passos pela sala e parou além das duas
mesas. Olhou então para Ozzie.
- O senhor tem filhos, xerife?
- Tenho.
- Tem uma filha pequena?
- Tenho.
- Suponha que ela seja violentada e que o senhor consiga pôr as mãos no homem
que fez isso. O que o senhor faria?
Ozzie olhou ansiosamente para o promotor. O pescoço de Buckley estava
vermelho.
- Não preciso responder a essa pergunta - disse Ozzie.
- Não precisa? O senhor apresentou-se a este júri de instrução para testemunhar,
ou não? É uma testemunha, não é? Responda à pergunta.
- Eu não sei o que faria.
- Ora, vamos, xerife. Queremos uma resposta clara. Diga a verdade. Que faria o
senhor?
Ozzie ficou embaraçado, confuso e furioso com aquele estranho. Queria dizer a
verdade, explicar que teria grande prazer em castrar e mutilar e matar qualquer pessoa
que tocasse na sua filha. Mas não podia. O júri podia concordar e recusar-se a indiciar
Carl Lee. Não que Ozzie quisesse que ele fosse indiciado, mas sabia que a acusação
formal era necessária. Olhou timidamente para Buckley, que estava sentado e suava
profusamente. Crowell assestou as baterias no xerife com o entusiasmo e o fervor de um
advogado que acaba de apanhar a testemunha numa mentira patente.
- Deixe disso, xerife - provocou ele. - Somos todos ouvidos. Diga a verdade. Que
faria o senhor ao violador? Diga lá, vamos...
Buckley estava quase em pânico. Estava prestes a perder o maior caso da sua
maravilhosa carreira, não num julgamento, mas na sala do júri de instrução, no primeiro
assalto da luta, derrotado por um caminhoneiro desempregado. Ficou de pé, à procura
das palavras.
- A testemunha não precisa responder.
Crowell voltou-se e gritou para o promotor:
- Sente-se e cale a boca! Não aceitamos ordens suas. Podemos indiciá-lo, se
quisermos, não podemos?
Buckley sentou-se e olhou para Ozzie. Crowell era um concorrente. Esperto
demais para fazer parte do júri de instrução. Devia ter sido pago por alguém. Ele sabia
demais. Sim, o júri podia indiciar qualquer um. Crowell recuou e voltou à janela. Todos o
observaram e esperaram até terem certeza de que ele não ia dizer mais nada.
- Tem certeza absoluta de que ele atirou nos dois homens, Ozzie? - perguntou
Lemoyne Frady, um primo afastado e ilegítimo de Gwen Hailey.
- Sim, temos certeza - respondeu Ozzie, falando devagar ao mesmo tempo em
que falava para Crowell.
- E quer que ele seja formalmente acusado do quê? - perguntou Frady.
A admiração que ele sentia pelo xerife era mais do que evidente.
- Duas acusações de crime de morte e uma acusação de agressão a um policial.
- Está falando de quanto tempo de prisão? - perguntou Barney Flaggs, outro
negro.
- A pena para crime de morte é a câmara de gás. Para agressão a um policial é
prisão perpétua, sem condicional.
- E é isso que você quer, Ozzie? - perguntou Flaggs.
- Sim, Barney, eu acho que este júri deve indiciar o Sr. Hailey. É o que eu acho.
- Mais alguma pergunta? - interrompeu Buckley.
- Não tenha tanta pressa - disse Crowell, voltando-se da janela. - Acho que está
tentando enfiar-nos este caso pela garganta abaixo, Dr. Buckley, e não vou admitir isso.
Quero falar um pouco sobre o assunto. Fique sentado. Se precisarmos do senhor, nós o
chamamos.
Buckley, furioso, apontou o dedo para ele.
- Eu não tenho de ficar sentado, nem de ficar quieto! - gritou.
- Tem, sim - respondeu Crowell friamente, com um sorriso sarcástico. - Porque se
não ficar, podemos obrigá-lo a sair, não podemos, Dr. Buckley? Podemos pedir que saia
desta sala e, se o senhor recusar, vamos falar com o juiz e ele o fará sair, não é assim,
Dr. Buckley?
Rufus ficou imóvel, mudo e estupefato. O estômago revolvia-se e os joelhos
pareciam feitos de esponja, mas manteve-se firme onde estava.
- Portanto, se quiser ouvir o resto da nossa deliberação, trate de se sentar e de
ficar calado.
Buckley sentou-se ao lado do meirinho, que agora estava acordado.
- Muito obrigado - disse Crowell. - Eu quero perguntar uma coisa a todos os
jurados. Quantos dos senhores fariam ou teriam desejo de fazer o que o Sr. Hailey fez se
alguém tivesse violentado uma filha sua, ou talvez a sua mulher, ou até mesmo a sua
mãe? Quantos? Levantem as mãos.
Sete ou oito mãos ergueram-se e Buckley baixou a cabeça. Com um sorriso,
Crowell continuou:
- Eu o admiro pelo que fez. Precisou de coragem. Eu só queria ter a coragem de
fazer o mesmo, porque, Deus sabe, era o que eu ia querer fazer. Às vezes, um homem
tem de fazer o que é preciso. Esse homem merece um prêmio, não um indiciamento.
Crowell caminhou lentamente entre as duas mesas, saboreando a atenção de
todos.
- Antes de votarem, quero que façam uma coisa. Quero que pensem naquela
pobre menina. Acho que ela tem dez anos. Procurem imaginar a menina deitada no chão,
com as mãos amarradas nas costas, chorando e chamando pelo pai. E pensem naqueles
dois bandidos, bêbados, drogados, revezando-se para a violentar, a espancar e dar
pontapés na criança. Que diabo, eles até tentaram matá-la! Pensem nas suas filhas.
Imaginem as suas filhas no lugar daquela pequenina Hailey. Ora bem, não diriam que
eles tiveram exatamente o que mereciam? Devemos estar gratos por estarem mortos.
Sinto-me mais seguro por saber que aqueles dois desgraçados não estão aqui para
violentar e matar outras crianças. O Sr. Hailey prestou-nos um grande serviço. Não vamos
indiciá-lo. Vamos mandá-lo para casa, para a sua família, que é o seu lugar. Ele é um
bom homem que fez uma boa coisa.
Crowell terminou e voltou para a janela. Buckley olhou para ele, amedrontado, e
quando teve certeza de que o homem tinha terminado, pôs-se de pé.
- O senhor acabou?
Nenhuma resposta.
- Muito bem. Senhoras e senhores do júri de instrução. Eu gostaria de explicar
algumas coisas. Um júri de instrução não julga os casos. Para isso temos os júris
ordinários. O Sr. Hailey terá um julgamento justo perante doze jurados justos e imparciais
e, se for inocente, será libertado. Mas a sua culpa ou a sua inocência não deve ser
determinada pelo júri de instrução. Os senhores devem decidir, depois de ouvir a versão
do caso apresentada pelo estado, se há uma forte possibilidade de ter sido cometido um
crime. Muito bem, eu espero que concordem que um crime foi cometido por Carl Lee
Hailey. Três crimes na verdade. Ele matou dois homens e feriu outro. Temos testemunhas
oculares.
Buckley começou a adquirir mais confiança enquanto andava por entre as mesas.
- O dever deste júri de instrução é pronunciá-lo, e se ele tiver uma justificação
válida, terá oportunidade de apresentá-la no julgamento. Se ele tiver um motivo legal para
fazer o que fez, pode prová-lo no julgamento. É para isso que servem os julgamentos. O
estado acusa-o de um crime e o estado deve provar, no julgamento, que ele cometeu o
crime. Se ele tiver uma justificativa e se conseguir convencer o tribunal do júri, será solto,
garanto-lhes. Ótimo para ele. Mas não cabe a este júri de instrução decidir hoje que o Sr.
Hailey deve ser solto. Haverá outro dia para isso, certo, xerife?
Ozzie fez que sim com a cabeça e disse:
- Certo. O júri de instrução deve indiciar baseado na prova apresentada. O tribunal
do júri não o condenará se o estado não puder provar as suas alegações, ou se ele
apresentar uma boa defesa. Mas o júri de instrução não se preocupa com essas coisas.
- Mais alguma coisa de parte do júri de instrução? - perguntou Buckley, ansioso. -
Muito bem, precisamos de uma moção.
- Eu apresento uma moção para que ele não seja indiciado por coisa alguma -
gritou Crowell.
- Apoiado - resmungou Bamey Flaggs.
Os joelhos de Buckley tremeram. Tentou falar e não conseguiu. Ozzie reprimiu o
seu contentamento.
- Temos uma moção e uma manifestação de apoio - anunciou a Sra. Gossett. -
Todos os que são a favor levantem as mãos. Cinco mãos negras ergueram-se, junto com
a de Crowell. Seis votos. A moção não foi aprovada.
- O que fazemos agora? - perguntou a Sra. Gossett. Buckley disse rapidamente:
- Alguém apresenta uma moção para indiciar o Sr. Hailey por duas acusações de
homicídio e uma acusação de agressão a um agente da autoridade.
- Feita a moção - disse um dos brancos.
- Apoiado - disse outro.
- Todos os que estão a favor levantem as mãos - disse a Sra. Gossett. - Eu conto
doze mãos. Todos os que estão contra, conto cinco, mais a minha, seis. Doze a seis. O
que é que isso significa?
- Significa que ele foi indiciado - respondeu Buckley, com orgulho. Respirava
normalmente e a cor voltou-lhe ao rosto. Sussurrou alguma coisa a uma secretária,
depois dirigiu-se aos jurados:
- Vamos fazer uma pausa de dez minutos. Temos cerca de mais quarenta casos
para resolver, portanto, por favor, não demorem. Eu gostaria de lembrar uma coisa que o
juiz Noose disse esta manhã. Essas deliberações são estritamente confidenciais. Não
devem discutir o seu trabalho fora desta sala...
- O que ele está querendo dizer - interrompeu Crowell - é que não podemos dizer a
ninguém que ele quase não conseguia os indiciamentos. Não é verdade, Dr. Buckley?
O promotor saiu da sala em silêncio e bateu a porta.

Rodeado por dezenas de câmeras e repórteres, Buckley, de pé nos degraus da
frente do edifício do tribunal, acenou com as cópias dos indiciamentos. Ele pregou,
discursou, moralizou, elogiou o júri de instrução, fez um sermão contra o crime e a justiça
pela próprias mãos e condenou Carl Lee Hailey. Que venha o julgamento. Que os jurados
ocupem os seus lugares. Ele garantia a condenação. Ele garantia a pena de morte. Ele foi
antipático, arrogante, agressivo, fanfarrão. Foi ele mesmo. O legítimo Buckley. Alguns
repórteres afastaram-se, mas ele continuou. Exaltou as suas próprias habilidades no
tribunal e os seus noventa, não, noventa e cinco por cento de condenações. Mais
repórteres foram embora. Outras câmeras foram desligadas. Ele elogiou a sabedoria e o
espírito de justiça do juiz Noose. Aclamou a inteligência e o discernimento dos jurados de
Ford County.
Foi o último a sair. Os repórteres tinham se cansado dele e tinham ido embora.
TREZE

Stump Sisson, o mago soberano do Klan do Mississipi, convocou uma reunião na
pequena cabana dentro da floresta de pinheiros, em Nettles County, trezentos e setenta
quilômetros a sul de Ford County. Não houve mantos, rituais nem discursos. O pequeno
grupo de membros do Klan local discutiu os acontecimentos de Ford County com o Sr.
Freddie Cobb, irmão de Billy Ray Cobb, falecido. Freddie tinha telefonado para um amigo,
que telefonou para Stump, que providenciou a reunião.
O negro já tinha sido indiciado? Cobb não tinha certeza, mas pelo que se dizia, o
julgamento ia ser no final do Verão ou no começo do Outono. O que o preocupava agora
era toda aquela conversa sobre o negro alegar insanidade para ser libertado. Não havia
direito. O negro tinha matado o seu irmão a sangue-frio, planejado o crime. Tinha se
escondido num armário e esperado que o irmão aparecesse. Era assassinato a sangue-
frio e agora dizia-se que o negro ia ser libertado. Que podia Man fazer a esse respeito?
Hoje em dia, os negros tinham muita proteção - a Associação Nacional para o Progresso
dos Homens de Cor, a União Americana das Liberdades Civis, milhares de outros grupos
de direitos civis, além dos tribunais e do governo. Que diabo! os brancos não podem fazer
nada, a não ser recorrendo ao Klan.
Quem mais é que está disposto a levantar-se em defesa dos brancos? Todas as
leis favorecem os negros e os políticos liberais, amigos dos negros, continuam fazendo
mais leis contra os brancos. Alguém tem de defender os brancos. Por isso ele recorreu ao
Klan. O negro está na cadeia? Sim, é tratado como um rei. A população tem um xerife
negro, Walls, e ele gosta desse negro. Concede-lhe privilégios especiais e proteção extra.
O xerife é outra história. Dizem que Hailey pode sair da cadeia esta semana, pagando a
fiança. É só um boato. Eles queriam mesmo que ele saísse.
E o seu irmão? Violentou a menina? Não temos certeza, provavelmente não.
Willard, o outro cara, confessou o estupro, mas Billy Ray não confessou nada. Billy Ray
tinha muitas mulheres. Porque iria violentar uma criança negra? E se violentou, o que tem
isso?
Quem é o advogado do negro? Brigance, de Clanton. Rapaz novo ainda, mas
muito bom. Lida com processos criminais e tem boa reputação. Defendeu e ganhou várias
causas de homicídio. Ele disse a alguns repórteres que o negro vai alegar insanidade e
sair livre.
Quem é o juiz? Não sabemos ainda. Bullard é o juiz de Ford County, mas diz-se
que não vai ser o juiz do julgamento. Falam em levar o caso para outro distrito, por isso
ninguém sabe quem vai ser o juiz.
Sisson e os homens do Klan ouviram atentamente o palerma. Gostaram da parte
sobre as associações de proteção aos negros, o governo e os políticos, mas eles também
liam jornais e viam televisão e sabiam que com o irmão dele tinham feito justiça. Mas
pelas mãos de um negro. Isto era inadmissível!
O caso tinha futuro. Com o julgamento marcado para vários meses depois, teriam
tempo para armar um protesto. Poderiam marchar durante o dia em volta do tribunal de
justiça com seus mantos brancos e capuzes fechados e pontiagudos. Poderiam discursar
para uma audiência atenta e desfilar frente às câmeras. A imprensa iria adorar - odeia o
Klan, mas gosta de discussões e de polêmica... E à noite, poderiam intimidar as pessoas
através das cruzes de fogo e de telefonemas ameaçadores. Os alvos eram fáceis e
desprevenidos. A violência era inevitável. Eles sabiam como provocá-la. Sabiam
perfeitamente o efeito que a marcha dos homens com mantos brancos e capuzes
pontiagudos produzia nos negros.
Ford County poderia servir de parque de diversões para um jogo, de caça à
raposa, poderiam atacar e fugir. Teriam tempo para se organizar e chamar os
companheiros de outros estados. Que membro do Ku Klux Klan iria querer perder aquela
oportunidade de ouro? E os novos recrutas? Ora, aquele caso iria alimentar a chama do
racismo, tirar do meio do mato e trazer para as ruas todos aqueles que odiavam os
negros. Hailey seria o seu novo grito de guerra, o ponto de união.
- Sr. Cobb, pode arranjar-nos os nomes e endereços do negro, da sua família, do
seu advogado, do juiz e dos jurados? - perguntou Sisson.
Cobb avaliou as dificuldades da tarefa.
- Todos, menos dos jurados. Ainda não foram escolhidos.
- Quando é que vai ficar sabendo quem são?
- Sei lá. Acho que no julgamento. O que pretendem fazer?
- Não temos certeza, mas o Klan pode vir a envolver-se neste caso. Precisamos
exercitar um pedaço os nossos músculos e esta pode ser uma boa oportunidade.
- Posso ajudar? - perguntou Cobb, avidamente.
- Claro, mas precisa entrar para o Klan.
- Não há Klan em Ford County. Acabou há muito tempo. O meu avô pertencia ao
Klan.
- Está dizendo que o avô da vítima foi um membro da Ku Klux Klan?
- Isso mesmo - disse Cobb, com orgulho.
- Muito bem. Nesse caso, temos obrigação de nos envolvermos. - Os membros do
Klan menearam a cabeça incrédulos e juraram vingança. Disseram a Cobb que, se ele
pudesse arranjar cinco ou seis amigos com a mesma motivação e o mesmo modo de
pensar, dispostos a entrar para o Klan, realizariam uma grande cerimônia secreta no meio
da floresta, em Ford County, com uma enorme cruz em chamas e todos os rituais da
praxe. Eles seriam aceitos como membros, membros verdadeiros do Ku Klux Klan,
responsáveis pelo Klan de Ford County. E todos juntos fariam um espetáculo do
julgamento de Carl Lee Hailey. Iriam perturbar tanto Ford County naquele Verão que
nenhum jurado sequer iria sonhar inocentar o negro. Trate de recrutar uma meia dúzia,
que nós faremos de você o líder do Klan de Ford County.
Cobb disse que tinha o número suficiente de primos para começar a organizar um
Klan. Saiu da reunião embriagado de entusiasmo com a expectativa de ser membro do
Klan, como o seu avô.

Buckley tinha calculado mal. A sua entrevista das 4 da tarde não apareceu no
noticiário das seis. Jake procurou em todos os canais da pequena televisão a preto-e-
branco do escritório e riu alto quando os noticiários de Memphis, depois Jackson e
Tupelo, terminaram sem nenhuma notícia sobre o indiciamento. Ele podia imaginar a
família de Buckley, colada à televisão, mudando de estação para estação, procurando
desesperadamente o seu herói enquanto este gritava, mandando se calar todas as
pessoas. Nessa altura, às sete horas, depois da previsão meteorológica, na estação de
Tupelo, a última previsão do dia, todos sairiam da sala deixando-o sozinho, na sua
cadeira reclinável. Talvez às dez, ele deve ter dito.
Às dez, Jake e Carla estavam no sofá, com as pernas cruzadas e muito juntos, à
espera do noticiário. Finalmente, lá estava ele na frente do tribunal, sacudindo papéis e
gritando como um pregador bíblico, enquanto o repórter, no local da entrevista, explicava
que aquele era Rufus Buckley, o promotor encarregado da acusação no julgamento de
Carl Lee Hailey, agora que o acusado fora indiciado. Depois de uma imagem rápida de
Buckley, a câmara percorreu a praça para a vista maravilhosa do centro da cidade de
Clanton e finalmente voltou ao repórter que disse duas frases acerca do julgamento no
final do Verão.
- Ele está na ofensiva - disse Carla. - Para quê convocar uma coletiva para dizer
que o acusado foi indiciado?
- Buckley é o promotor. Nós os advogados de defesa, odiamos a imprensa.
- Sim, já percebi isso. O meu álbum de recortes está quase cheio...
- Não se esqueça de fazer fotocópias das fotografias para a minha mãe.
- Vai autografá-las?
- Só se ela pagar. A sua, posso autografar de graça.
- Esplêndido. E se perder, mando a conta dos cantos e da cola.
- Devo lembrá-la, minha querida, de que nunca perdi um caso de homicídio. Três a
zero, para ser mais preciso. Carla apertou um botão do controle remoto, deixando só o
homem da previsão do tempo, sem som.
- Sabe o que eu mais detesto nos julgamentos de homicídio? - Ela afastou as
almofadas com as pernas esguias, bronzeadas e quase perfeitas.
- O sangue, a carnificina, as descrições escabrosas?
- Não. - Ela soltou o cabelo que ia até os ombros, espalhando-o no braço do sofá.
- A perda de vidas, por mais insignificantes que sejam?
- Não. - Carla vestia uma camisa social de Jake, velha, engomada, tamanho
médio, e começou a brincar com os botões muito pequenos.
- A visão horrível de um homem inocente ameaçado de ir para a câmara de gás?
- Não. - Carla começou a desabotoar a camisa. A luz azul-acinzentada da
televisão iluminava a sala escura como um estroboscópio e o apresentador sorriu e disse
boa-noite só com o movimento dos lábios.
- O medo de uma família jovem quando o pai entra no tribunal para enfrentar o júri
formado pelos seus pares?
- Não. - A camisa estava desabotoada e uma faixa de seda fina e transparente
brilhou contrastando com a pele bronzeada.
- A injustiça latente do nosso sistema judiciário?
- Não. - Ela ergueu vagarosamente uma perna bronzeada, fina e quase perfeita,
mais para cima, mais para cima e finalmente apoiou-a nas costas do sofá.
- As táticas antiéticas e sem escrúpulos empregadas pelos policiais e promotores
para condenarem homens inocentes?
- Não. - Carla abriu a faixa de seda entre os seios quase perfeitos.
- O fervor, a fúria, a intensidade, as emoções descontroladas, os embates da alma
humana, a paixão irrefreável?
- Está esquentando - disse ela.
Camisas e outras peças de roupa fizeram ricochete nos abajures e nas mesas de
centro e os corpos fundiram-se sob as almofadas. O velho sofá, presente dos pais dela,
vibrou e rangeu sobre o soalho antigo de madeira de lei. Era resistente e acostumado
àqueles balanços e rangidos. Max, o cão, instintivamente correu pelo corredor afora e foi
montar guarda ao lado da porta de Hanna.


CATORZE

Harry Rex Vonner era um advogado grandalhão e atrapalhado, especialista em
divórcios litigiosos, que punha sempre algum infeliz atrás das grades por não pagar a
pensão obrigatória para sustento dos filhos. Era vil e perverso e muito solicitado para
questões de divórcio em Ford County. Conseguia os filhos, a casa, a fazenda, o vídeo, o
micro-ondas, tudo! Um fazendeiro rico mantinha-o sob contrato para que a atual mulher
não pudesse contratá-lo para o seu futuro divórcio. Harry Rex enviava os seus casos de
homicídio a Jake e Jake mandava-lhe os seus divórcios litigiosos. Eram ambos amigos e
não gostavam dos outros advogados, especialmente os da firma Sullivan.
Na terça-feira, pela manhã, ele apareceu no escritório e resmungou para Ethel.
- Jake `tá aí? - Subiu a escada, olhando carrancudo para ela, desafiando-a a dizer
alguma coisa. Ethel apenas inclinou a cabeça, dizendo que sim, sem cair na tolice de
perguntar se ele tinha hora marcada. Rex já a tinha gozado antes. Na verdade, ele já
tinha gozado todas as pessoas.
A escada estremeceu com o peso dele e Rex resfolegava ao chegar ao escritório
de Jake.
- Bom dia, Harry Rex. Ainda está vivo?
- Porque não põe o escritório no primeiro andar? - perguntou Rex, ofegante.
- Está precisando de exercício. Se não fossem essas escadas, pesava com
certeza mais de cento e cinqüenta quilos.
- Obrigado. Ouça, acabo de vir do tribunal. Noose quer vê-lo no gabinete dele às
dez e meia, se for possível. Quer falar com você e com Buckley acerca do Hailey. Acertar
denúncia, data de julgamento, toda essa trapalhada. Pediu-me que o avisasse.
- OK.! Estarei lá.
- Suponho que teve notícias do júri de instrução.
- Claro! Tenho uma cópia do indiciamento aqui.
Harry Rex sorriu.
- Não, não. Estou falando da votação sobre o indiciamento.
Jake olhou intrigado para ele. Harry Rex movia-se em círculos escuros e
silenciosos, como uma nuvem. Era uma fonte inesgotável de mexericos e boatos e
orgulhava-se de espalhar somente verdade - a maior parte do tempo. Era sempre o
primeiro a saber de quase tudo. A lenda de Harry Rex começara vinte anos antes, com o
seu primeiro aparecimento no tribunal. A via férrea que ele processava em milhões de
dólares recusou-se a pagar um centavo que fosse e, ao fim de três dias de julgamento, o
júri finalmente retirou-se para deliberar. Os advogados da companhia, que esperavam um
rápido veredicto a seu favor, começaram a ficar preocupados quando o júri demorou a
voltar. No segundo dia de espera ofereceram a Rex vinte e cinco mil dólares por um
acordo. Com nervos de aço, mandou-os para o inferno. O cliente dele queria o dinheiro.
Ele mandou o cliente para o inferno. Horas depois, um júri exausto reapareceu com um
veredicto favorável a cento e cinqüenta mil. Harry Rex riu dos advogados da companhia,
ignorou os clientes e foi para o bar no Best Western. Pagou bebidas a todas as pessoas e
durante a longa noite contou que tinha posto escutas na sala do júri e sabia exatamente o
que os jurados estavam fazendo. A história espalhou-se e Murphy encontrou uma porção
de fios que passavam pelos canos do aquecimento da sala do júri. A Ordem dos
Advogados do estado fez algumas investigações mas não encontrou nada. Nos últimos
vinte anos, os juizes mandavam os funcionários do tribunal verificar a sala do júri sempre
que se deliberava um caso de Harry Rex.
- Como é que sabe do voto? - perguntou Jake, desconfiado. - Tenho as minhas
fontes.
- Muito bem, como foi a votação?
- Doze a seis. Menos um e não estaria com essa cópia na mão...
- Doze a seis... - repetiu Jake.
- Buckley por pouco morria. Um cara chamado Crowell, branco, tomou conta do
espetáculo e ia convencendo um número suficiente de jurados a negar o indiciamento do
seu homem.
- Você conhece esse Crowell?
- Eu lhe fiz o divórcio, há dois anos. Ele vivia em Jackson, até a mulher ser
violentada por um negro. Ela enlouqueceu e eles divorciaram-se. A mulher cortou os
pulsos com um facão de cozinha. Depois, ele veio para Clanton e casou com uma garota
insignificante. Durou mais ou menos um ano. Ele arrumou o Buckley! Mandou-o sentar-se
e calar a boca! Eu pagaria para ter assistido...
- Está falando como se tivesse visto.
- Não. É que eu tenho uma boa fonte.
- Quem?
- Ora, Jake, não insista.
- Está colocando escutas nas salas outra vez?
- Não é nada disso. Eu me limito a ouvir... É um bom sinal, não acha?
- O quê?
- O voto apertado. Seis dos dezoito votaram contra o indiciamento. Cinco negros e
Crowell. É um bom sinal. Consiga uns dois negros no júri e pronto. Certo?
- Não é assim tão fácil. Se ele for julgado aqui, é bem possível que tenhamos um
júri branco. São muitos em Ford County e, como sabe, ainda são constitucionalistas. Além
disso, esse cara, esse Crowell, parece que veio do nada.
- Foi exatamente o que Buckley pensou. Devia ter visto o cretino. Está no tribunal,
desfilando de um lado para o outro, pronto para assinar autógrafos por causa do seu
grande sucesso na TV ontem à noite. Como ninguém quer falar no assunto, ele procura
intrometer-se em todas as conversas. Parece um garoto pequeno implorando atenção.
- Tenha calma. Ele pode ser o seu próximo governador.
- Não se ele perder o caso Hailey. E vai perder, Jake. Nós vamos arranjar um bom
júri, doze bons e fiéis cidadãos, e depois compramos todos.
- Nem pensar.
- Funciona sempre.

Alguns minutos depois das dez e meia Jake entrou no gabinete do juiz, atrás do
tribunal, e apertou friamente as mãos de Buckley, Musgrove e Ichabod. Estavam à espera
dele. Noose indicou-lhe uma cadeira e sentou-se atrás da mesa.
- Jake, isto não vai tomar-lhe mais do que alguns minutos - olhou por cima do
narigão. - Eu gostaria de ler a acusação formal de Carl Lee Hailey às nove horas da
manhã. Algum problema?
- Não. Está bem - disse Jake..
- Teremos outras acusações formais da parte da manhã, depois daremos início a
um caso de furto às dez horas. Certo, Rufus?
- Sim, senhor.
- Muito bem. Agora vamos falar sobre a data do julgamento do Sr. Hailey. Como
sabe, o próximo período do tribunal aqui será no final de Agosto, na terceira segunda-feira
do mês, e estou certo de que o calendário vai estar repleto nessa época. Devido à
natureza deste caso e, francamente, devido à publicidade, acho que seria melhor
fazermos o julgamento o mais depressa possível.
- Quanto antes melhor - disse Buckley. - Jake, de quanto tempo precisa para se
preparar para o julgamento?
- Sessenta dias?
- Sessenta dias! - exclamou Buckley, incrédulo. - Porquê tanto tempo?
Jake ignorou-o e olhou para o juiz, que pôs os óculos e consultou o calendário.
- Seria possível antecipar um pedido de transferência de foro? - perguntou ele.
- Sim.
- Isso não vai fazer diferença nenhuma - disse Buckley. - Vamos conseguir a
condenação em qualquer lugar.
- Guarde isso para as câmeras, Rufus - disse Jake, com voz calma.
- Se fosse você não diria isso... - refilou Buckley. - Ao que parece gosta muito
delas.
- Senhores, por favor - disse Noose. - Que outras moções prévias podemos
antecipar da parte da defesa?
Jake pensou um momento:
- Haverá outras.
- Posso saber quais são as outras? - perguntou Noose, um pouco irritado.
- Senhor Doutor Juiz, francamente, não quero discutir a minha defesa, por
enquanto. Acabamos de receber o indiciamento e ainda não conversei com o meu cliente.
Não há dúvida de que temos muito que fazer.
- De quanto tempo precisa?
- Sessenta dias.
- Está brincando! - exclamou Buckley. - É uma piada nova? O estado pode fazer
esse julgamento amanhã, Senhor Juiz. Sessenta dias é ridículo!
Jake começou a ferver mas ficou calado. Buckley foi até à janela, resmungando,
incrédulo. Noose estudou o calendário.
- Porquê sessenta dias?
- Pode ser um caso complicado.
Buckley riu e continuou a abanar a cabeça.
- Então, podemos esperar alegação de privação momentânea de sentidos? -
perguntou o juiz.
- Sim, senhor. E vai demorar algum tempo o exame de um psiquiatra. E depois, o
estado vai querer que ele seja examinado pelos seus próprios médicos.
- Compreendo.
- E somos capazes de ter outras questões preliminares. É um caso grande e quero
ter tempo suficiente para prepará-lo.
- Dr. Buckley - disse o juiz.
- Seja! Não faz nenhuma diferença para o estado. Estaremos prontos. Podemos
julgar amanhã.
Noose escreveu no calendário e ajustou os óculos de leitura, que ele usava na
ponta do nariz, ancorado numa verruga. Devido ao tamanho do nariz e à forma estranha
da sua cabeça, o meritíssimo tinha de mandar fazer óculos especiais com hastes muito
compridas. Noose nunca os usava para ler ou para qualquer outra coisa que não fosse o
esforço inútil de distrair a atenção do tamanho e da forma do nariz. Jake sempre
suspeitara disso mas não tinha coragem para informar o meritíssimo que os óculos
ridículos, com lentes hexagonais cor laranja, dirigiam toda a atenção diretamente para o
nariz.
- Quanto tempo calcula que vai durar o julgamento, Jake? - perguntou Noose.
- Três ou quatro dias. Mas podemos levar três dias para escolher os jurados.
- Dr. Buckley?
- Sim, acho que está certo. Mas não compreendo por que são necessários
sessenta dias de preparação para um julgamento de três dias. Acho que devia ser antes.
- Acalme-se, Rufus - disse Jake. - As câmeras estarão aqui dentro de sessenta
dias, ou de noventa, se fosse o caso. Não se vão esquecer de você. Pode dar entrevistas,
conferências de imprensa, fazer sermões, tudo. O espetáculo completo. Mas não se
preocupe muito. Vai ter a sua oportunidade.
Buckley semicerrou os olhos e ficou vermelho. Deu três passos na direção de
Jake.
- Se não me engano, Dr. Brigance, deu mais entrevistas e viu mais câmeras do
que eu, nesta última semana.
- Eu sei, e está com inveja, não está?
- Não, não estou com inveja! Não me importo com as câmeras...
- Desde quando?
- Senhores, por favor - interrompeu Noose. - Este caso promete ser longo e repleto
de emoções. Espero que os meus advogados se comportem como profissionais. Agora, o
meu calendário está mais do que cheio. A única vaga que tenho é na semana de 22 de
Julho. Há algum problema?
- Podemos fazer o julgamento nessa semana - disse Musgrove.
Jake sorriu para Buckley e folheou a sua agenda de bolso.
- Para mim está bem.
- Ainda bem. Todas as moções devem ser apresentadas e todas as questões
preliminares resolvidas até ao dia 8 de Julho, segunda-feira. A leitura da acusação está
marcada para amanhã, às nove da manhã. Alguma pergunta?
Jake levantou-se, apertou as mãos de Noose e Musgrove e saiu.
Após o almoço, foi visitar seu famoso cliente no escritório de Ozzie, na cadeia.
Carl Lee tinha recebido na cela uma cópia do indiciamento. Ele tinha algumas perguntas a
fazer ao seu advogado.
- O que é homicídio doloso?
- O pior tipo de crime.
- Quantos tipos existem?
- Basicamente três. Homicídio culposo, homicídio qualificado e homicídio doloso.
- O que é homicídio culposo?
- Vinte anos.
- O que é homicídio qualificado?
- De vinte a perpétua.
- O que é homicídio doloso?
- Câmara de gás.
- O que é agressão qualificada a um policial?
- Perpétua. Sem condicional.
Carl Lee estudou o indiciamento atentamente.
- Quer dizer que eu tenho duas câmeras de gás e uma perpétua.
- Ainda não. Tem direito a julgamento primeiro. Por falar nisso, foi marcado para o
dia 22 de Julho.
- Daqui a dois meses! Porquê tanto tempo?
- Precisamos de tempo. É o tempo que preciso para encontrar um psiquiatra que
ateste que você estava louco. Nessa altura, Buckley o mandará para Smithfield, para ser
examinado pelos médicos do estado e eles todos vão dizer que você não estava louco
quando cometeu os crimes. Nós entramos com moções. Buckley apresenta moções e
temos algumas audiências. Tudo isso leva tempo.
- Não há como ser antes?
- Não queremos que seja antes.
- E se eu quiser? - perguntou Carl Lee, irritado.
Jake estudou atentamente o seu cliente.
- Qual é o problema, grande homem?
- Tenho de sair daqui e bem depressa.
- Pensei que não achasse a cadeia tão desagradável.
- Não é, mas preciso ir para casa. A Gwen está sem dinheiro, não consegue
arranjar um emprego. O Lester está com problemas com a mulher. Ela passa a vida a
telefonar, por isso eu sei que ele não vai ficar muito tempo por aqui. Eu detesto ter de
pedir ajuda aos meus parentes.
- Mas eles vão ajudar, não vão?
- Um pouco. Todos têm os seus problemas. Tem de me tirar daqui, Jake.
- Ouça, você vai ser denunciado amanhã, às nove horas. O julgamento é no dia 22
de Julho e esta data não vai ser mudada, portanto, esqueça. Eu já lhe expliquei o que é a
denúncia?
Carl Lee abanou negativamente a cabeça.
- Não leva mais de vinte minutos. Nós comparecemos perante o juiz Noose, no
grande tribunal. Ele faz algumas perguntas a você, depois faz algumas perguntas a mim.
Lê o indiciamento para você, em sessão pública, e pergunta-lhe se recebeu uma cópia.
Depois pergunta-lhe como se declara, culpado ou inocente. Quando responder "inocente",
ele marcará a data do julgamento. Você se senta, e eu e Buckley começamos uma
grande batalha em torno da sua fiança. Noose recusará estabelecer uma fiança e aí você
volta para a cadeia, onde ficará até ao dia do julgamento.
- E depois do julgamento? Jake sorriu.
- Não, você, não ficará na cadeia depois do julgamento.
- Promete?
- Não. Nada de promessas. Alguma pergunta sobre amanhã?
- Não. Diga, Jake, humm, quanto é que eu já lhe paguei?
Jake hesitou, prevendo problemas.
- Porque pergunta?
- Estava só pensando.
- Novecentos e uma promissória.
Gwen tinha menos de cem dólares. As contas estavam vencidas e a comida
acabando. No domingo, quando o tinha visitado, chorara durante uma hora. O pânico
fazia parte da sua vida, da sua constituição, da sua estrutura. Mas ele sabia que não
tinham um tostão e ela estava com medo. A família de Gwen pouco podia ajudar, talvez
alguns legumes da horta e algum dinheiro para leite e ovos. Quando se tratava de
enterros e contas de hospital, eles nunca faltavam com a ajuda. Eram generosos e
cediam grande parte do seu tempo para chorar e lamentar, dando um verdadeiro show.
Mas quando se tratava de dinheiro vivo, fugiam como galinhas assustadas. Carl Lee não
gostava da família dela e a sua não era muito melhor.
Ele queria pedir cem dólares a Jake, mas resolveu esperar até que Gwen
estivesse completamente sem dinheiro. Seria mais fácil. Jake folheou o bloco de notas, à
espera de que Carl Lee pedisse dinheiro. Os clientes das ações penais, especialmente os
negros, pediam sempre de volta uma parte dos honorários depois de pagos. Jake
duvidava da possibilidade de receber mais do que novecentos dólares e não tinha
intenção de restituir coisa alguma. Além disso, os negros cuidavam sempre dos seus. As
famílias iriam cooperar e as igrejas também. Ninguém morreria de fome.
Esperou e guardou o bloco e o dossiê na pasta.
- Mais alguma pergunta, Carl Lee?
- Sim. O que é que eu posso dizer amanhã?
- Que quer dizer com isso?
- Quero dizer ao juiz por que disparei sobre aqueles homens. Eles violaram a
minha filha. Eles tinham de morrer.
- E quer explicar isso ao juiz amanhã?
- Quero.
- E pensa que ele vai soltá-lo depois de ter explicado tudo?
Carl Lee não disse nada.
- Ouça, Carl Lee, você me contratou como seu advogado. E me contratou porque
tem confiança em mim, certo? E se eu quiser que diga alguma coisa amanhã, eu o
previno. Se eu não disser nada, fica quietinho. Quando for a julgamento, em Julho, terá
oportunidade de contar a sua história. Mas, por enquanto, sou só eu que falo.
- Tem razão.
Lester e Gwen amontoaram os meninos e Tonya no Cadillac vermelho e foram
para o consultório do médico, ao lado do hospital. A violação fora duas semanas antes.
Tonya ainda coxeava um pouco e queria correr e subir escadas com os irmãos. Mas a
mãe não largava a mão dela. O ferimento nas pernas e nas nádegas tinha quase
desaparecido, as ligaduras nos pulsos e nos tornozelos tinham sido retiradas pelo médico
na semana anterior e os cortes estavam cicatrizando muito bem. A gaze com algodão
entre as pernas continuava lá. Numa salinha, despiu-se e sentou-se ao lado da mãe numa
mesa acolchoada. Gwen abraçou-a para aquecê-la. O médico examinou-lhe a boca e o
maxilar. Depois, os pulsos e os tornozelos. Ele a fez deitar na mesa e apalpou-a entre as
pernas. Tonya gritou e agarrou-se à mãe, que se debruçou sobre ela. Estava doendo
outra vez.


QUINZE

Na quarta-feira, às cinco da manhã, Jake bebeu um gole de café no escritório e
olhou através das portas de vidro para a praça escura. Depois de algumas horas de sono
intermitente tinha deixado o calor da cama numa tentativa alucinada de localizar um
processo sem nome, julgado na Geórgia, que, segundo se lembrava das aulas da
faculdade, pedia ao juiz que concedesse fiança num caso de crime de morte desde que o
acusado não tivesse antecedentes criminais, possuísse bens no condado, tivesse um
emprego fixo e vários parentes nas vizinhanças. Não conseguiu encontrá-lo. Encontrou
uma pilha de processos recentes, lógicos, claros e sem ambigüidades, julgados no
Mississipi, que concediam ao juiz a faculdade de negar fiança a tais acusados. Era essa a
lei e Jake, agora, conhecia-a bem, mas precisava de alguma coisa para tentar convencer
Ichabod. Temia pedir fiança para Carl Lee. Buckley iria gritar e citar todos aqueles casos
maravilhosos e Noose ia ouvir com um sorriso, para em seguida negar a fiança. Jake ia
ser derrotado na primeira escaramuça.
- Chegou cedo, hoje, meu querido - disse Dell para o seu freguês favorito
enquanto servia o café.
- Pelo menos estou aqui.
Desde a amputação da perna de Looney que Jake não aparecia no Coffee Shop.
Looney era popular e havia um certo ressentimento entre os fregueses do restaurante e
em toda a cidade contra o advogado de Hailey. Jake sabia disso e tentava ignorar. Muitos
se ressentiam do fato de um advogado estar disposto a defender um negro culpado da
morte de dois homens brancos.
- Tem um minuto? - perguntou Jake.
- É claro - disse Dell, olhando em volta.
Às cinco e quinze, o local não estava cheio ainda. Sentou-se de frente para Jake e
serviu-lhe o café.
- De que é que as pessoas andam falando por aqui? - perguntou.
- Da mesma coisa de sempre. Política, pescaria, lavoura. Sempre a mesma
coisa... Trabalho aqui há vinte e um anos, servindo as mesmas coisas, às mesmas
pessoas, e todos continuam falando das mesmas coisas.
- Nada de novo?
- Hailey. Falam muito disso. Exceto quando temos estranhos. Aí as conversas
voltam ao de sempre.
- Porquê?
- Porque se você der a impressão de que sabe alguma coisa sobre o caso, um
repórter vai sair atrás de você com uma porção de perguntas.
- Uma chatice, não é?
- Não. É formidável. Nunca tivemos tanto movimento.
Jake sorriu, pôs manteiga na aveia, depois acrescentou Tabasco.
- O que acha do caso?
Dell coçou a ponta do nariz com as unhas postiças, longas e vermelhas e soprou o
café na xícara. Ela era famosa por dizer o que pensava e Jake esperava uma resposta
sincera.
- Ele é culpado. Matou os dois homens. Não há nenhuma dúvida. Mas tinha a
melhor desculpa que já vi. Há alguma simpatia por ele.
- Suponhamos que você faria parte do júri. Culpado ou inocente?
Dell olhou para a porta e acenou para um freguês.
- Bem, o meu instinto me diz que perdoe qualquer pessoa que mate um violador.
Especialmente um pai. Por outro lado, não podemos permitir que as pessoas arranjem
armas e andem por aí fazendo justiça pelas próprias mãos. Você pode provar que ele
estava louco quando cometeu o crime?
- Vamos supor que posso.
- Nesse caso, votaria inocente, mesmo sabendo que ele não estava louco.
Jake pôs geléia de morango na torrada e concordou com uma inclinação de
cabeça.
- Mas, e Looney? - perguntou ela. - Ele é meu amigo.
- Foi um acidente.
- Isso basta para a defesa?
- Não, não basta. A arma não disparou por acidente. Looney foi atingido
acidentalmente, mas duvido que seja uma defesa válida. Você o condenaria por ter
disparado sobre Looney?
- Talvez - disse ela, devagar. - Ele perdeu uma perna... Como é que Hailey podia
estar louco quando matou o Cobb e o Willard e não quando disparou sobre o Looney,
pensou Jake, mas não perguntou. Mudou de assunto.
- Que andam dizendo a meu respeito?
- Mais ou menos a mesma coisa. Um dia destes alguém perguntou por onde
andava e disse que agora já não tem tempo para nós porque é famoso. Ouvi qualquer
coisa sobre você e o negro, mas tudo muito discreto. Eles não o criticam em voz alta. Eu
não permitiria.
- Você é um amor.
- Não sou nada, sou uma megera e você sabe isso.
- Não. Só tenta ser.
- Será? Pois então, veja!
Dell levantou-se de um salto e gritou uma meia dúzia de palavrões para alguns
fazendeiros que tinham pedido mais café. Jake terminou de comer sozinho e voltou para o
escritório.
Quando Ethel chegou, às oito e meia, dois repórteres estavam à espera no
passeio, ao lado da porta fechada. Entraram com Ethel e disseram-lhe que queriam falar
com o Dr. Brigance. Ela recusou e mandou-os sair. Eles recusaram e insistiram no
pedido. Jake ouviu a discussão e fechou a porta à chave. Ethel que se entendesse com
eles.
Do escritório Jake viu a equipe de filmagem instalar-se na porta dos fundos do
tribunal. Sorriu, sentindo uma forte descarga de adrenalina. Podia ver a sua imagem no
noticiário das seis, atravessando a rua com passo decidido, muito sério, muito
concentrado, seguido pelos repórteres que procuravam o diálogo mas não conseguiam
nem uma palavra. E aquilo era apenas a denúncia! Imagine o julgamento! Câmeras por
toda a parte, repórteres fazendo perguntas aos gritos, artigos nas primeiras páginas dos
jornais, talvez nas capas das revistas. Um jornal de Atlanta dizia que o caso Hailey era o
crime mais sensacional ocorrido no Sul, nos últimos vinte anos. Jake teria aceitado o caso
de graça, ou quase.
Alguns minutos depois, interrompeu a discussão no andar de baixo e foi
calorosamente recebido pelos repórteres. Ethel desapareceu na sala de conferências.
- Pode responder a algumas perguntas? - perguntou um deles.
- Não - disse Jake, delicadamente. - Tenho um encontro com o juiz Noose.
- Só algumas perguntas?
- Não. Mas haverá uma conferência de imprensa, às três horas - Jake abriu a porta
e os repórteres seguiram-no até ao passeio.
- Onde será a conferência de imprensa?
- No meu escritório.
- Para quê?
- Para falar sobre o caso.
Jake atravessou a rua com passos lentos e seguiu na direção do tribunal,
respondendo às perguntas.
- O Sr. Hailey vai estar presente na conferência de imprensa?
- Sim, com a família.
- A menina também?
- Sim, ela também.
- O Sr. Hailey vai responder a perguntas?
- Talvez. Não resolvi ainda.
Jake despediu-se e entrou no tribunal e os repórteres ficaram comentando como
seria a entrevista.

Buckley entrou no tribunal pelas enormes portas de madeira da frente, mas não
havia fanfarra. A esperança dele em ver uma ou duas câmeras acabou quando soube que
os repórteres estavam todos na porta dos fundos, à espera do réu. No futuro, ele entraria
pela porta dos fundos.
O juiz Noose estacionou na frente do correio, perto de uma boca de incêndio,
atravessou a praça a passos largos e entrou no tribunal. Ele também não atraiu nenhuma
atenção, a não ser alguns olhares curiosos.
Ozzie espreitou pela janela da frente do edifício da cadeia e viu a multidão à
espera de Carl Lee, no estacionamento. Pensou em outro plano para evitar a imprensa,
mas desistiu. O seu escritório tinha recebido duas dúzias de ameaças de morte a Carl Lee
e algumas delas foram levadas a sério por Ozzie. Eram específicas, com datas e locais.
Porém, a maior parte era de ameaças vagas e comuns. E tudo aquilo para a leitura da
denúncia. Ozzie pensou no julgamento e resmungou alguma coisa para Moss Junior. Os
policiais fardados cercaram Carl Lee e saíram para a rua, passaram pela imprensa e
entraram em um furgão alugado. Seis policiais e o motorista. Escoltado pelos três carros-
patrulha mais novos, o furgão se dirigiu rapidamente para o edifício do tribunal.
Noose tinha marcado uma dúzia de leituras formais de acusação para as nove
horas da manhã e quando se sentou na sua cadeira, no tribunal, procurou o dossiê do
caso Hailey. Viu na primeira fila um grupo de tipos suspeitos, todos recentemente
indiciados. Na extremidade da fila, Jake Brigance falava em voz baixa com um réu
algemado e ladeado por dois policiais. Devia ser Hailey. Noose pegou um dossiê
vermelho que continha os autos e ajustou os óculos de modo a não atrapalhar a leitura.
- O estado contra Carl Lee Hailey, processo número 3889. Queira aproximar-se,
Sr. Hailey.
As algemas foram retiradas e Carl Lee e o seu advogado aproximaram-se da
mesa do juiz que, em silêncio e nervoso, examinou as acusações escritas. O silêncio era
completo. Buckley levantou-se e parou a alguns passos do acusado. Os artistas, perto da
grade, desenhavam a cena.
Jake olhou carrancudo. para Buckley, que não tinha nenhum motivo para estar na
frente do juiz durante a leitura. O promotor estava com o seu melhor terno de poliéster e
com cada fio de cabelo meticulosamente penteado. Parecia um pastor evangélico da TV.
Jake aproximou-se dele e disse, em voz baixa:
- Belo terno, Rufus.
- Obrigado - respondeu ele, apanhado de surpresa.
- Ele brilha no escuro? - perguntou Jake e voltou para o lado do seu cliente.
- O senhor é Carl Lee Hailey? - perguntou o juiz.
- Sim.
- O Dr. Brigance é o seu advogado?
- Sim.
- Tenho aqui uma cópia de um indiciamento proferido contra o senhor, pelo júri de
instrução. Recebeu uma cópia?
- Sim.
- Leu-a?
- Sim.
- Falou sobre ela com o seu advogado?
- Sim.
- O senhor compreendeu?
- Sim.
- Muito bem. A lei determina que eu a leia em sessão pública do tribunal - Noose
pigarreou. - "Os membros do júri de instrução do estado do Mississipi, oriundos do
conjunto de cidadãos probos e cumpridores da lei de Ford County, devidamente eleitos,
sorteados ajuramentados e incumbidos de investigar no e para o dito condado e o estado
supramencionado, em nome e sob a autoridade do estado do Mississipi, sob juramento
denunciam que Carl Lee Hailey, do condado e do estado acima citados, dentro da
jurisdição deste tribunal, de maneira ilegal, deliberada, perversa e intencional e com
premeditada intenção criminosa abateu e assassinou Bill Ray Cobb, um ser humano, e
Pete Willard, um ser humano, e alvejou e tentou matar DeWayne Looney, um agente da
autoridade, em direta violação do código do Mississipi, e contra a paz e a dignidade do
estado do Mississipi. Este é o veredicto do júri. Assinado, Laverne Gossett, primeiro
jurado do júri de instrução."
Noose tomou fôlego.
- Compreende as acusações que lhe são feitas?
- Sim.
- Compreende que se for condenado pode ser executado na câmara de gás na
penitenciária estadual de Parchman?
- Sim.
- Deseja declarar-se culpado ou inocente?
- Inocente.
Noose examinou outra vez o calendário, enquanto todos observavam com
atenção. Os repórteres tomavam notas. Os artistas concentravam-se nas figuras
principais, inclusive Buckley, que conseguira entrar no quadro e ficar de lado, para uma
pose de perfil. Estava ansioso por dizer alguma coisa. Olhou carrancudo e desdenhoso
para a nuca de Carl Lee Hailey como se não pudesse esperar para dar cabo daquele
assassino. Caminhou até à mesa onde estava Musgrove e ambos conversaram em voz
baixa, com ar de importância. Atravessou a sala e conversou, também em voz baixa, com
um dos funcionários do tribunal. Depois voltou para frente do juiz, onde o acusado
permanecia imóvel, ao lado de Jake, que percebia e tentava a todo custo ignorar o teatro
de Buckley.
- Sr. Hailey - disse Noose com sua voz esganiçada -, o seu julgamento está
marcado para segunda-feira, 22 de Julho. Todas as moções e questões preliminares do
julgamento devem estar protocoladas até 24 de Junho e resolvidas até 8 de Julho.
Carl,Lee e Jake inclinaram a cabeça afirmativamente. - Mais alguma coisa?
- Sim, Meritíssimo - trovejou Buckley com sonoridade suficiente para ser ouvido
pelos repórteres na antecâmara. - O estado opõe-se a qualquer pedido de fiança para
este acusado.
Jake fechou as mãos com força e teve vontade de gritar.
- Meritíssimo, o acusado ainda não pediu fiança. O Dr. Buckley, como sempre,
está confuso quanto aos procedimentos. Ele não pode recusar um pedido que não foi
feito. Devia ter aprendido isso na faculdade de Direito.
Embora atingido em cheio, Buckley continuou.
- Meritíssimo, o Dr. Brigance costuma sempre pedir fiança e tenho certeza de que
vai fazê-lo hoje. O estado se oporá a qualquer pedido.
- Muito bem, porque não espera que o pedido seja feito? - perguntou Noose, com
uma ponta de irritação.
- Está bem - respondeu Buckley. Vermelho de raiva, olhou para Jake.
- O senhor planeja pedir fiança? - perguntou Noose.
- Eu tinha planejado fazê-lo no momento oportuno, mas antes que eu tivesse uma
oportunidade, o dr. Buckley interveio com sua atitude teatral...
- Deixe lá o Dr. Buckley - interrompeu Noose.
- Eu sei, Sr. Dr. Juiz, ele está apenas confuso.
- Fiança, Dr. Brigance?
- Sim, eu tinha planejado solicitá-la.
- Foi o que pensei e já considerei a conveniência ou não de conceder a fiança
neste caso. Como deve saber, a decisão depende exclusivamente de mim e eu nunca
concedo fiança num caso de homicídio doloso. Não acho que uma exceção se aplique a
este caso.
- Quer dizer que decidiu negar a fiança?
- Sim.
Jake encolheu os ombros e pôs um dossiê em cima da mesa.
- Está bem.
- Mais alguma coisa? - perguntou Noose.
- Não, Meritíssimo - disse Jake. Buckley abanou a cabeça, sem dizer nada.
- Muito bem. Sr. Hailey, este tribunal ordena que o senhor permaneça sob a
custódia do xerife de Ford County até ao julgamento. Está dispensado.
Carl Lee voltou para a primeira fila, onde o policial o esperava com as algemas.
Jake abriu a pasta e estava guardando os papéis quando Buckley lhe segurou no braço.
- Foi um golpe baixo, Brigance - disse ele, com os dentes cerrados.
- Você estava pedindo... - respondeu Jake. ­ E tire a mão de cima de mim.
Buckley largou-o.
- Eu não gostei daquilo.
- É uma pena, Excelência. Não devia falar tanto. Os tagarelas acabam por se
queimar.
Buckley era uns oito centímetros mais alto e pesava uns vinte e cinco quilos mais
do que Jake, e a sua irritação ia crescendo. A conversa atraiu a atenção de um policial
que se colocou entre ambos. Com uma piscadela de olho a Buckley, Jake saiu da sala.
Às duas horas, o clã dos Hailey, conduzido por Lester, entrou no escritório de Jake
pela porta dos fundos. Jake recebeu-os numa sala pequena, ao lado da sala de
conferências, no primeiro andar.
Falaram sobre a entrevista à imprensa. Vinte minutos depois, Ozzie e Carl Lee
entraram calmamente pela porta dos fundos e Jake levou-os para o escritório onde estava
a família de Carl Lee. Jake e Ozzie saíram da sala.
A entrevista à imprensa foi cuidadosamente orquestrada por Jake, que ficou
admirado com a própria habilidade para manipular a imprensa e com a disposição da
imprensa de se deixar manipular.
Jake sentou-se a um lado da mesa de conferências com os três filhos de Hailey de
pé atrás dele. Gwen sentou-se à sua esquerda, Carl Lee à direita, com Tonya no colo.
As normas legais proibiam a divulgação da identidade de uma criança vítima de
estupro, mas Tonya era diferente. O seu nome, o seu rosto e a sua idade eram muito
conhecidos por causa do pai. Ela já fora mostrada ao mundo e Jake queria que fosse
vista e fotografada com o seu vestido dos domingos, sentada nos joelhos do pai. Os
jurados, fossem eles quem fossem, ou onde vivessem, estariam vendo.
Os repórteres enchiam a sala, o corredor e a recepção, onde Ethel secamente os
mandou sentar e deixarem-na em paz. Um policial guardava a porta da frente e dois
outros estavam sentados nos degraus dos fundos. O xerife Walls e Lester, um pouco
constrangidos, estavam de pé, atrás dos Hailey e do seu advogado. Os microfones foram
amontoados em cima da mesa, em frente de Jake, e as câmeras clicavam, sob as luzes
quentes da televisão.
- Quero fazer algumas observações preliminares - começou Jake. - Em primeiro
lugar, sou eu quem responde a todas as perguntas. Nenhuma pergunta deve ser dirigida
ao Sr. Hailey ou à sua família. Se lhe fizerem alguma pergunta, lhe direi que não
responda. Segundo, quero apresentar-lhes a sua família. À minha esquerda está sua
mulher, Gwen Hailey. De pé, atrás de nós, estão os filhos Carl Lee Jr., Jarvis e Robert.
Atrás deles está o irmão do Sr. Hailey, Lester Hailey.
Depois de ter feito uma pausa, Jake sorriu para Tonya.
- Sentada no colo do pai, está Tonya Hailey. Agora, estou pronto para responder
às perguntas.
- Que aconteceu no tribunal, esta manhã?
- O Sr. Hailey foi formalmente acusado, declarou-se inocente e o julgamento foi
marcado para o dia 22 de Julho.
- Houve uma altercação entre o senhor e o promotor?
- Sim. Depois da leitura da acusação, o Dr. Buckley aproximou-se, segurou-me no
braço e parecia querer me agredir, quando um policial interferiu.
- O que provocou essa atitude?
- O Dr. Buckley tem tendência para se descontrolar quando está sob pressão.
- O senhor e o Dr. Buckley são amigos?
- Não.
- O julgamento vai ser em Clanton?
- A defesa vai apresentar uma moção para transferência de foro. O local do
julgamento será determinado pelo juiz Noose. Não tenho nenhuma previsão de qual será
ele.
- Pode descrever o efeito de tudo isso na família Hailey? Jake pensou um instante,
enquanto as câmeras rodavam. Olhou rapidamente para Carl Lee e Tonya.
- Estão vendo uma família simples. Até há duas semanas, a vida era boa e
simples. Tinha um bom emprego na fábrica de papel, algum dinheiro no banco,
segurança, estabilidade, igreja todos os domingos, uma família unida. Então, por motivos
só conhecidos de Deus, dois vagabundos bêbados e drogados cometeram um terrível ato
de violência contra esta menina. Nós todos ficamos chocados e enojados. Arruinaram a
vida dela e as vidas dos pais e dos familiares. Foi demais para o pai dela. Descontrolou-
se. Perdeu a razão. Agora, está na cadeia à espera do julgamento e da possibilidade da
câmara de gás. O emprego deixou de existir. O dinheiro acabou. A inocência foi perdida.
As crianças enfrentam a possibilidade de crescer sem o pai. A mãe precisa encontrar um
emprego para sustentar os filhos e pedir emprestado aos amigos e familiares para
sobreviver. Enfim, para responder à sua pergunta, senhor, a família foi devastada e
destruída.
Gwen começou a chorar em silêncio e Jake deu-lhe um lenço.
- O senhor está sugerindo uma defesa baseada em insanidade?
- Sim.
- Vai ser feita realmente a alegação de insanidade?
- Sim.
- O senhor pode provar essa alegação?
- Isso ficará a cargo do júri. Vamos apresentar especialistas no campo da
psiquiatria.
- Já consultou algum desses especialistas?
- Sim - mentiu Jake.
- Pode dizer-nos os nomes deles?
- Não, não seria apropriado neste momento.
- Ouvimos falar de ameaças de morte contra o Sr. Hailey, O senhor pode confirmar
isso?
- As ameaças continuam contra o Sr. Hailey, a família dele, a minha família, o
xerife, o juiz, quase todos ligados ao caso. Eu não sei até que ponto devemos dar-lhes
crédito.
Carl Lee bateu de leve na perna de Tonya e olhou para a mesa. Ele parecia
assustado, infeliz, precisando de apoio. Os meninos também estavam assustados, mas
de acordo com as ordens rigorosas recebidas, continuavam de pé, com medo de fazer um
movimento. Carl Lee Jr., o mais velho, com quinze anos, estava atrás de Jake. Jarvis, o
do meio, atrás do pai. E Robert, onze anos, atrás da mãe. Estavam os três de terno azul-
marinho, camisa branca e laço vermelho. O terno de Robert fora de Carl Lee Jr. e depois
de Jarvis e parecia um pouco mais usado do que os outros dois. Mas estava limpo, bem
passado e com os punhos perfeitos. Os meninos pareciam inteligentes. Como é que um
jurado podia votar a favor de privá-los do pai?
A conferência de imprensa foi um sucesso. Fragmentos da entrevista apareceram
nas redes nacionais e nas estações locais, tanto no primeiro, quanto no último noticiário.
Na quinta-feira, os Hailey e o seu advogado apareceram nas primeiras páginas dos
jornais.


DEZESSEIS

A sueca telefonara inúmeras vezes durante as duas semanas em que o marido
esteve no Mississipi. Ela não confiava nele, naquela cidade. Lester já tinha confessado
vários casos amorosos antes do casamento. Cada vez que ela telefonava, Lester não
estava em casa e Gwen explicava que ele tinha ido pescar ou estava corta madeira para
a fábrica de papel, para poder comprar mantimentos. Gwen estava cansada de mentir e
Lester cansado das escapadelas, cada um deles estava farto do outro. Quando o telefone
tocou, na madrugada de sexta-feira, Lester atendeu. Era a sueca.
Duas horas depois, o Cadillac vermelho parou em frente da cadeia. Moss Junior
levou Lester até à cela de Carl Lee. Os irmãos conversaram em voz baixa para não
acordar os outros prisioneiros.
- Tenho de ir para casa - disse Lester, meio envergonhado, meio tímido.
- Porquê? - perguntou Carl Lee, como se já esperasse aquilo.
- A minha mulher telefonou esta manhã. Se eu não voltar para o trabalho amanhã,
vão me despedir. Carl Lee meneou a cabeça afirmativamente.
- Lamento muito, Bubba. Não fico nada satisfeito com isso, mas tenho de ir.
- Compreendo. Quando volta?
- Quando quer que eu volte?
- Para o julgamento. Vai ser duro para a Gwen e as crianças. Pode voltar?
- Sabe que vou estar presente. Tenho alguns dias de férias e mais o resto. Estarei
aqui.
Sentaram-se na beira da cama de Carl Lee, olhando para os outros prisioneiros,
em silêncio. A cela estava escura e sossegada. Os dois beliches em frente da cama de
Carl Lee estavam vazios.
- Com a breca, eu já tinha esquecido de como este lugar é horrível - disse Lester.
- Só espero não ter de ficar aqui muito tempo. Puseram-se de pé e, depois de um
abraço, Lester chamou Moss Junior para abrir a porta.
- Tenho orgulho em você, Bubba - disse Lester ao irmão mais velho e voltou para
Chicago.
A segunda visita daquela manhã foi o advogado de Carl Lee, no escritório de
Ozzie. Jake estava irritado e com os olhos vermelhos.
- Carl Lee, falei com dois psiquiatras de Memphis, ontem. Sabe qual é o mínimo
que cobram para uma avaliação para fins legais? Sabe?
- Tenho obrigação de saber? - perguntou Carl Lee.
- Mil dólares - exclamou Jake. - Mil dólares. Onde é que você vai arranjar mil
dólares?
- Dei a você todo o dinheiro que tinha. Até ofereci...
- Não quero a escritura das suas terras. Para quê? Ninguém quer comprá-las e, se
você não puder vender, não adianta nada. Precisamos de dinheiro, Carl Lee. Não para
mim, mas para os psiquiatras.
- Porquê?
- Porquê!? - disse Jake, incrédulo. - Porquê? Porque eu quero evitar que você vá
para a câmara de gás e ela fica apenas a cento e sessenta quilômetros daqui. Não é
longe. E para fazer isso, preciso convencer o júri de que você estava louco quando matou
aqueles homens. Não posso dizer que você estava louco. Você não pode dizer que
estava louco. Quem tem de o dizer é um psiquiatra. Um especialista. Um médico. E eles
não trabalham de graça. Compreendeu?
Carl Lee acocorou-se para olhar para uma aranha no tapete empoeirado. Ao fim
de doze dias na cadeia e de duas apresentações no tribunal, estava farto do sistema
judiciário. Lembrou-se das horas e dos minutos antes do crime. Quais eram os seus
pensamentos? É claro que os homens tinham de morrer. Carl Lee nem pensou em
remorso. Mas, teria pensado em prisão, pobreza, advogados ou psiquiatras? Talvez, mas
só por breves instantes. Essas coisas desagradáveis eram subprodutos que deviam ser
enfrentados e suportados durante algum tempo, até à sua libertação. Depois do crime, o
sistema ia processá-lo, justificar o seu ato e mandá-lo de volta para junto da família. Ia ser
fácil, exatamente como o caso de Lester que tinha sido praticamente sem problemas.
Mas o sistema não estava funcionando agora. Estava conspirando para mantê-lo
na prisão, para lhe quebrar o ânimo, e lhe deixar os filhos órfãos. Parecia resolvido a puni-
lo por um ato que ele considerava inevitável. E agora, o seu único aliado fazia-lhe
exigências que ele não podia atender. O seu advogado pedia-lhe o impossível. O seu
amigo Jake estava zangado e aos gritos.
- Arranje o dinheiro - gritou Jake, encaminhando-se para a porta. - Arranje-o com
seus irmãos e irmãs, a família da Gwen, seus amigos, sua igreja. Mas arranje o dinheiro.
E o mais rápido possível.
Jake bateu com a porta e saiu do edifício.
O terceiro visitante daquela manhã chegou antes do meio-dia numa limusine negra
com motorista e placas do Tennessee. Depois de manobrar no pequeno estacionamento,
parou ocupando três vagas. Um enorme guarda-costas negro saiu do carro e abriu a porta
ao patrão. Seguiram ambos pelo passeio e entraram no edifício da cadeia.
A secretária parou de escrever à máquina e sorriu, desconfiada.
- Bom dia.
- Bom dia - disse o mais baixo deles, o homem com a pala no olho. - Chamo-me
Cat Bruster e gostaria de falar com o xerife Walls.
- Posso perguntar qual é o assunto?
- Pode sim, minha senhora. É a respeito do Sr. Hailey, um morador do seu belo
estabelecimento.
O xerife ouviu o seu nome e apareceu à porta para cumprimentar o infame
visitante.
- Sr. Bruster, sou Ozzie Walls. - Estendeu a mão, que Cat apertou. O guarda-
costas não se mexeu.
- É um prazer conhecê-lo, xerife. Eu sou Cat Bruster, de Memphis.
- Sim, eu sei quem o senhor é. Tenho-o visto nos noticiários. O que o traz a Ford
County?
- Bem, tenho um amigo com um grande problema. Carl Lee Hailey. Estou aqui
para ajudá-lo.
- Muito bem. E quem é ele? - perguntou Ozzie, olhando para o guarda-costas.
Ozzie media cerca de um metro e noventa e cinco e era pelo menos dez centímetros mais
baixo do que homem.
O guarda-costas devia pesar no mínimo cento e cinqüenta quilos, a maior parte
nos braços.
- Este aqui é Tiny Tom - explicou Cat. - Chamamos-lhe Tiny para abreviar.
- Entendi.
- É como se fosse um guarda-costas.
- Ele não está armado, ou está?
- Ora, xerife, ele não precisa de arma.
- É claro. Por que é que o senhor e Tiny não entram no meu escritório?
No escritório, Tiny fechou a porta e ficou de pé em frente dela. Cat sentou-se na
cadeira, diante da mesa do xerife.
- Ele pode sentar, se quiser - disse Ozzie a Cat.
- Não, xerife, ele fica sempre de pé junto da porta. Foi treinado assim.
- Como se fosse um cão policial?
- Exatamente.
- Ótimo. Quer falar sobre quê?
Cat cruzou as pernas e apoiou no joelho a mão cheia de anéis de brilhantes.
- Bem, xerife, eu e Carl Lee nos conhecemos há muito tempo. Lutamos juntos no
Vietnã. Fomos encurralados perto de Da Nang, no verão de 71. Eu fui ferido na cabeça e,
bam! dois segundos depois ele foi ferido na perna. O nosso esquadrão desapareceu e os
amarelos praticavam tiro ao alvo em nós. Carl Lee arrastou-se até onde eu estava, pôs-
me no ombro e correu no meio do tiroteio para uma vala perto de um caminho. Comigo
pendurado às costas, arrastou-se ao longo de quase cinco quilômetros. Salvou a minha
vida. Ganhou uma medalha por ter feito isso. Sabia?
- Não.
- É verdade. Ficamos juntos no hospital em Saigon durante dois meses, depois
regressamos ambos do Vietnã. E não pretendo voltar lá.
Ozzie ouvia atentamente.
- E agora que aquele meu camarada está metido numa embrulhada, eu gostaria
de ajudá-lo.
- Foi a você que ele foi pedir a M-16? Tiny rosnou e Cat sorriu.
- É claro que não.
- Gostaria de vê-lo?
- É claro! É assim tão fácil?
- É. Se puder tirar Tiny da frente da porta, eu vou buscá-lo.
Tiny afastou-se para o lado e dois minutos depois Ozzie voltou com o prisioneiro.
Cat gritou de alegria, abraçou Carl Lee e cumprimentaram-se ambos, aos murros, como
lutadores de boxe.
Carl Lee olhou embaraçado para Ozzie, que percebeu a deixa e saiu da sala. Tiny
fechou a porta e ficou de guarda. Carl Lee juntou duas cadeiras para que ficassem um na
frente do outro e bem próximos. Cat foi o primeiro a falar.
- Estou orgulhoso do que fez, bela figura. Porque não me disse que era para isso
que queria a arma?
- Achei melhor não dizer.
- Como foi?
- Igualzinho ao Vietnã, só que eles não podiam atirar em mim.
- É essa a melhor maneira.
- É, acho que sim. Eu só queria que nada disto tivesse acontecido.
- Não está arrependido, não é?
Carl Lee balançou-se na cadeira e olhou para o teto.
- Eu faria tudo outra vez, portanto não sinto remorsos. Eu só queria que eles não
tivessem maltratado a minha filha. Eu queria que ela estivesse como antes. Queria que
nada daquilo tivesse acontecido.
- Claro, claro... Deve ser difícil para você estar aqui preso.
- Não estou preocupado comigo. O que me atormenta é a minha família.
- Claro, claro, como vai a sua mulher?
- Está bem. Vai aguentar.
- Vi no jornal que o julgamento vai ser em Julho. Ultimamente, você tem aparecido
nos jornais mais do que eu.
- Pois é, Cat, mas você sempre escapa. Eu não tenho tanta certeza disso.
- Você tem um bom advogado, não tem?
- É. Ele é bom.
Cat levantou-se e deu alguns passos pela sala, admirando os troféus e certificados
de Ozzie.
- Foi especialmente por isso que eu vim te ver, meu...
- Por isso o quê? - perguntou Carl Lee, sem saber o que o amigo pretendia, mas
certo de que a visita tinha um objetivo.
- Carl Lee, sabe quantas vezes já fui julgado?
- Tenho a impressão de que passa o tempo todo no tribunal.
- Cinco! Cinco vezes eles me levaram a julgamento. Os federais. Os estaduais. Os
municipais. Drogas, jogo, suborno, contrabando de armas, prostituição. Por tudo quanto
possa imaginar, eles já me julgaram! E quer saber o melhor, Carl Lee? Eu era sempre
culpado. Todas as vezes que fui ao tribunal eu era culpado como o diabo. Sabe quantas
vezes fui condenado?
- Não.
- Nenhuma! Não me apanharam uma única vez. Cinco julgamentos, cinco vezes
inocente!
Carl Lee sorriu com admiração.
- Sabe por que é que eles não conseguem me condenar?
Carl Lee tinha uma idéia, mas abanou a cabeça.
- Porque, Carl Lee, eu tenho o mais esperto, o mais danado, o mais desonesto
advogado criminal desta região. Ele mente, ele faz jogo sujo e os policiais o odeiam. Mas
estou sentado aqui e não numa prisão. Ele faz qualquer coisa para ganhar uma causa.
- Quem é ele? - perguntou Carl Lee, com curiosidade.
- Já o viu na televisão entrando e saindo do tribunal. Está sempre nos jornais.
Sempre que algum velhaco importante se mete em problemas, lá está ele... Ele defende
os traficantes de drogas, os políticos, eu, todos os assassinos importantes.
- Como é que ele se chama?
- Ele só pega em causas criminais, especialmente drogas, suborno, extorsão,
coisas assim. Mas quer saber de que é que ele gosta mais?
- De quê?
- Homicídio. Ele adora casos de homicídio. Nunca perdeu um. Agarra todos os
grandes, em Memphis. Lembra-se de quando eles apanharam aqueles dois negros em
flagrante, atirando um cara da ponte, no Mississipi? Apanharam os caras em flagrante. Há
uns cinco anos, mais ou menos.
- Sim, me lembro.
- Foi um grande julgamento que durou duas semanas e eles saíram livres. Foi
esse advogado. Tirou os dois de lá. Julgados inocentes.
- Acho que me lembro de ter visto esse advogado na televisão.
- É claro que viu. É um sujeito mau, Carl Lee. Estou dizendo, o homem não perde
nunca.
- Qual é o nome dele?
Cat sentou-se e olhou solenemente para Carl Lee.
- Bo Marsharfsky - disse ele.
Carl Lee olhou para o teto como se se lembrasse do nome.
- E daí?
Cat pôs cinco dedos com oito quilates no joelho de Carl.
- Daí, que ele quer te ajudar, meu !
- Eu já tenho um advogado a quem não posso pagar. Como é que vou pagar a
outro?
- Não precisa pagar, Carl Lee. É aí que eu entro. Ele está às minhas ordens. É
propriedade minha. Paguei ao cara quase cem mil dólares, no ano passado, só para me
manter fora de chatices. Você não pagará nada.
De repente Carl Lee ficou muito interessado em Bo Marsharfsky.
- Como é que ele sabe de mim?
- Porque lê os jornais e vê televisão. Sabe como são os advogados. Eu estive no
escritório dele, ontem, e ele estava lendo um jornal com a sua fotografia na primeira
página. Falei-lhe de nós. Ficou doido! Disse que tem de pegar o seu caso. Eu disse-lhe
que podia ajudar.
- E é por isso que está aqui?
- Claro! Ele disse que conhece as pessoas certas para te livrar.
- Quem, por exemplo?
- Médicos, psiquiatras, gente desse tipo. Ele conhece todos.
- Eles custam dinheiro.
- Eu pago, Carl Lee! Ouça o que estou dizendo! Eu pago tudo. Terá o melhor
advogado e os melhores médicos que o dinheiro pode comprar, e o seu velho amigo Cat
paga a conta. Não te preocupe com o dinheiro.
- Mas eu tenho um bom advogado.
- Que idade tem ele?
- Acho que uns trinta.
Cat revirou os olhos, atônito!
- É uma criança, Carl Lee. Não foi há muito tempo que saiu da escola! Marsharfsky
tem cinqüenta anos e já defendeu mais assassinos do que o seu garoto jamais vai ver. É
a tua vida, Carl Lee. Não a deixe nas mãos de um principiante.
De repente, Jake tornou-se muito jovem. Mas, no julgamento de Lester, ele era
ainda mais novo.
- Ouça, Carl Lee, estive em muitos julgamentos e aquelas coisas todas são
complicadas e muito técnicas. Um erro e está feito. Se esse rapaz cometer um engano,
isso pode ser a diferença entre vida e morte. Você não pode se arriscar a ter nenhum
garoto na sua defesa e esperar que ele não cometa nenhum erro. Um engano - Cat fez
estalar os dedos para efeito especial - e você está na câmara de gás. Marsharfsky não
comete erros.
Carl Lee estava num beco sem saída.
- Acha que ele trabalharia com o meu advogado? - perguntou, à procura de um
acordo.
- Não! De maneira nenhuma. Ele não trabalha com ninguém. Ele não precisa de
nenhuma ajuda. O seu advogado sai! Carl Lee apoiou os cotovelos nos joelhos e olhou
para os pés. Era impossível arranjar mil dólares para o médico. Ele não compreendia a
necessidade disso, uma vez que não estava louco quando fizera aquilo, mas
evidentemente ia precisar de um médico. Todas as pessoas achava que era necessário.
Mil dólares para um médico barato. Cat estava oferecendo-lhe o melhor que o dinheiro
podia comprar.
- Detesto fazer isso com o meu advogado - murmurou ele.
- Não seja burro, homem - disse Cat. - Acho melhor que comece a pensar em Carl
Lee e para o diabo com esse rapaz. Não é o momento de se preocupar com
sentimentalismos. Ele é um advogado. Vai sobreviver.
- Mas eu já paguei...
- Quanto? - quis saber Cat, fazendo estalar os dedos para Tiny.
- Novecentos.
Tiny tirou do bolso um maço de notas, Cat separou nove notas de cem e colocou-
as no bolso da camisa de Carl Lee.
- Aqui está alguma coisa para as crianças - disse ele, separando uma nota de mil e
juntando-a às outras, no bolso da camisa.
As pulsações de Carl Lee aceleraram-se, quando pensou no dinheiro sobre o seu
coração. Sentiu o dinheiro entrar no bolso e comprimir-lhe de leve o peito. Queria olhar
para a nota de mil e segurá-la firme entre os dedos. Comida, pensou, comida para as
crianças.
- Negócio fechado? - perguntou Cat com um sorriso.
- Quer que eu despeça o meu advogado e contrate o seu? - quis saber Carl Lee,
cauteloso.
- Isso mesmo.
- E você vai pagar tudo?
- Claro, claro.
- E este dinheiro?
- É seu. Avise se precisar de mais.
- Você é um grande amigo, Cat.
- Eu sou um homem muito bom. Estou ajudando dois amigos. Um salvou a minha
vida há muitos anos e o outro salva a minha pele de dois em dois anos.
- Porque ele quer tanto o meu caso?
- Publicidade. Sabe como são os advogados. Repare na quantidade de
publicidade que o outro já conseguiu graças a você. É o sonho de qualquer advogado.
Estamos combinados?
- Sim, estamos combinados.
Cat bateu afetuosamente com o punho fechado no ombro de Carl Lee e dirigiu-se
ao telefone, na mesa de Ozzie. Marcou o número.
- A cobrar ao 901-566-9800. De Cat Bruster para Bo Marsharfsky.

No vigésimo andar de um edifício de escritórios, no centro da cidade, Bo
Marsharfsky desligou o telefone e perguntou à secretária se estava pronto o material para
a imprensa. Ela entregou-lhe o papel e o advogado leu-o atentamente.
- Parece-me bem - disse ele. - Mande para os dois jornais imediatamente. Diga-
lhes que usem a fotografia do arquivo, a nova. Fale com Frank Fields, no Post. Diga-lhe
que quero isto na primeira página, amanhã de manhã. Ele está me devendo um favor.
- Sim, senhor. E as estações de televisão? - perguntou ela.
- Mande uma cópia. Não posso falar agora, mas darei uma conferência de
imprensa em Clanton, na semana que vem.

Lucien telefonou no sábado, às seis e meia da manhã. Carla estava aninhada
entre os cobertores e não atendeu. Jake rolou para o lado da parede e tropeçou no
candeeiro até que finalmente conseguiu encontrar o telefone.
- Alô - disse com voz sonolenta.
- O que é que você está fazendo? - perguntou Lucien.
- Estava dormindo até o telefone tocar.
- Viu o jornal?
- Que horas são?
- Vá buscar o jornal e depois me telefone.
Lucien desligou. Jake olhou para o telefone e depois desligou também. Sentou-se
na beira da cama, esfregou os olhos e tentou lembrar-se da última vez que Lucien tinha
telefonado para sua casa. Devia ser importante.
Jake fez café, abriu a porta para o cão e caminhou rapidamente com os seus
shorts de ginástica e a camiseta até o portão onde estavam os três jornais da manhã, um
muito perto do outro. Tirou os elásticos e abriu os jornais ao lado da xícara de café, na
mesa da cozinha. Nada no jornal de Jackson. Nada no de Tupelo. The Memphis Post
tinha uma manchete sobre morte no Médio Oriente, e aí ele encontrou. Na parte inferior
da primeira página estava a sua fotografia e debaixo dela a frase "Sai Jake Brigance". Ao
lado, estava uma foto de Carl Lee e junto dela uma magnífica fotografia de uma cara que
ele já vira antes, com a legenda "Entra Bo Marsharfsky". O título anunciava que o famoso
advogado criminal de Memphis fora contratado para representar o "justiceiro assassino".
Jake ficou atônito, trêmulo e confuso. Devia ser um engano. Tinha falado com Carl
Lee na véspera. Leu a notícia devagar. Não tinha muitos detalhes, apenas uma relação
dos maiores veredictos de Marsharfsky. O advogado prometia uma conferência de
imprensa, em Clanton. Dizia que o caso representava novos desafios, etc. E que confiava
nos jurados de Ford County.
Jake trocou os shorts por calças cáqui engomadas e vestiu uma camisa social.
Carla dormia ainda, sob os cobertores. Ele lhe diria depois. Não seria prudente ir ao
Coffee Shop. Na mesa de Ethel, Jake leu o jornal novamente e olhou para sua fotografia
na primeira página.
Lucien não foi muito encorajador. Ele conhecia Marsharfsky, ou "O Tubarão", como
era conhecido. Era um vigarista com muita elegância e finesse. Lucien admirava-o.
Moss Junior conduziu Carl Lee ao escritório de Ozzie, onde Jake o esperava com
o jornal na mão. O policial saiu e fechou a porta. Carl Lee sentou-se no pequeno sofá de
couro preto. Jake atirou-lhe o jornal.
- Já viu isto? - perguntou.
Carl Lee olhou-o com ferocidade e ignorou o jornal.
- Porquê, Carl Lee?
- Não tenho de lhe dar explicações, Jake.
- Tem, sim. Não teve coragem de me telefonar como um homem e dar a notícia de
homem para homem. Deixou que eu soubesse pelo jornal. Eu exijo uma explicação.
- Você queria dinheiro demais, Jake. Está sempre falando em dinheiro. Aqui estou
eu, na cadeia, e você a atormentar-me com coisas que não posso fazer.
- Dinheiro! Você não me pode pagar. Como é que pode pagar a Marsharfsky?
- Não vou pagar.
-O quê?!
- Ouviu o que eu disse. Não vou pagar.
- Suponho que ele trabalha de graça.
- Não. Alguém vai pagar.
- Quem? - gritou Jake.
- Não lhe vou dizer. Não é da sua conta, Jake.
- Você contratou o maior advogado criminal de Memphis e é outra pessoa quem
lhe vai pagar?
- É isso mesmo.
A Associação Nacional para o Progresso dos Homens de Cor, pensou Jake. Não,
eles não contratariam Marsharfsky. A associação tem os seus próprios advogados. Além
disso, ele era caro demais para eles. Quem mais?
Carl Lee apanhou o jornal e dobrou-o cuidadosamente. Estava envergonhado e
não se sentia bem, mas a decisão tinha sido tomada. Tinha pedido a Ozzie que
telefonasse a Jake e lhe desse a notícia, mas o xerife não quisera meter-se nisso. Carl
Lee devia ter telefonado, mas não ia pedir desculpa. Olhou para o retrato na primeira
página. Gostou do "justiceiro".
- E não me vai dizer quem? - perguntou Jake, mais calmo.
- Não, Jake, não vou dizer.
- Falou com Lester sobre isto?
A raiva voltou a aparecer nos olhos dele.
- Não. Não é o Lester que vai ser julgado, e não é da conta dele.
- Onde está ele?
- Em Chicago. Foi embora ontem. E não adianta telefonar-lhe. Eu tomei a minha
decisão, Jake.
Veremos, pensou Jake. Em breve, Lester iria ficar sabendo. Jake abriu a porta.
- Então é isso. Estou despedido. Desta maneira.
Carl Lee olhou para a sua fotografia no jornal e não disse nada.
Carla tomava café e estava à espera. Um repórter de Jackson tinha telefonado
para falar com Jake e contara-lhe a respeito de Marsharfsky.
Não houve palavras, só movimentos. Jake colocou café numa xícara e foi para a
varanda dos fundos. Enquanto bebia o café quente, olhou para as cercas-vivas mal
cuidadas que marcavam os limites do seu quintal estreito e comprido. Um sol forte
aquecia o verde-escuro dos pés de cebola e secava o orvalho, formando uma névoa
pegajosa que subia do chão e lhe colava a camisa no corpo, Os arbustos das cercas e o
gramado esperavam a poda semanal. Jake atirou para o lado os moçassem - estava sem
meias - e caminhou sobre a relva molhada para examinar um pequeno chafariz quebrado
onde os passarinhos se banhavam, perto de um enfezado pé de pervinca, a única árvore
que merecia esse nome no jardim.
Carla seguiu-lhe as pegadas na relva e pôs-se atrás dele. Jake pegou-lhe na mão
e sorriu.
- Está bem? - perguntou Carla.
- Sim, estou bem.
- Falou com ele?
- Falei.
- Que foi que ele disse?
Jake abanou a cabeça, sem dizer nada.
- Tenho muita pena, Jake.
Ele inclinou a cabeça afirmativamente e olhou para o chafariz.
- Haverá outros casos - disse Carla, sem muita convicção.
- Eu sei. - Jake pensou em Buckley e ouviu a gargalhada dele. Pensou nos
fregueses do Coffee Shop e jurou que não voltaria lá. Pensou nas câmeras e nos
repórteres e uma dor surda apertou-lhe o estômago. Pensou em Lester, a sua única
esperança de recuperar o caso.
- Quer comer alguma coisa? - perguntou Carla.
- Não. Não estou com fome. Obrigado.
- Procure ver o lado positivo - disse ela. - Já não precisamos ter medo de atender
ao telefone.
- Acho que vou cortar a relva - disse Jake.


DEZESSETE

O Conselho de Ministros era um grupo de pregadores negros criado para
coordenar as atividades políticas nas comunidades negras de Ford County. Reunia-se
raramente, a não ser nos anos de eleições, quando realizava reuniões semanais nas
tardes de domingo para entrevistar candidatos, discutir problemas e especialmente
determinar a benevolência de cada um dos candidatos a um cargo público. Acordos eram
feitos, estratégias planejadas, dinheiro pago e recebido. O conselho já tinha provado que
podia garantir o voto dos negros. Donativos e ofertas às igrejas negras cresciam
significativamente na época das eleições.
O reverendo Ollie Agee convocou uma reunião extraordinária do conselho na tarde
de domingo na sua igreja. Fez o seu sermão mais cedo e, às 4 horas da tarde, os fiéis já
tinham saído quando os Cadillacs e Lincolns chegaram ao seu estacionamento. As
reuniões eram secretas e só os membros do conselho eram convidados. Havia vinte e
três igrejas negras em Ford County e vinte e dois membros do conselho estavam
presentes quando o reverendo Agee deu início à reunião. Seria uma reunião breve, uma
vez que alguns pastores, especialmente os da Igreja de Cristo, deviam oficiar os cultos da
noite.
O objetivo da reunião, explicou ele, era organizar o apoio moral, político e
financeiro a Carl Lee Hailey, um membro proeminente da sua igreja. Deviam estabelecer
um fundo para sua defesa, a fim de lhe garantirem a melhor representação legal. Outro
fundo seria estabelecido para ajudar o sustento da família de Hailey. Ele, o reverendo
Agee, seria o presidente do movimento de recolha de fundos e cada ministro seria
responsável pela sua congregação, como sempre. Uma coleta especial seria feita durante
as cerimônias matinais e noturnas, a partir do domingo seguinte. Agee se encarregaria de
entregar o dinheiro à família. Metade do que fosse arrecadado iria para os fundos de
defesa. O tempo era importante. O julgamento estava marcado para o mês seguinte.
Precisavam arranjar dinheiro rapidamente, enquanto o assunto estava quente e a
população disposta a colaborar.
A aprovação do conselho foi unânime. O reverendo Agee continuou. A Associação
Nacional para o Progresso dos Homens de Cor devia tomar parte ativa no caso Hailey.
Ele não seria levado a julgamento se fosse branco. Não em Ford County. Ia a julgamento
só porque era negro, e isso devia ser questionado pela associação. O diretor nacional fora
contatado. As sedes locais de Memphis e Jackson tinham prometido ajudar. Realizariam
conferências de imprensa. Manifestações e passeatas eram importantes. Talvez o boicote
a firmas de brancos - era uma tática popular naquele momento e funcionava com
resultados espantosos.
Tudo isso devia ser feito imediatamente enquanto a população estava disposta a
ajudar. Os ministros religiosos concordaram unanimemente e saíram para os seus cultos
noturnos.

Em parte devido ao cansaço e em parte devido ao constrangimento, Jake dormiu
até mais tarde e não foram à igreja. Carla preparou panquecas e eles fizeram um longo
café da manhã com Hanna no pátio. Jake pôs de lado os jornais do domingo depois de ter
encontrado, na primeira página do segundo caderno do The Memphis Post, uma
reportagem de página inteira sobre Marsharfsky e seu famoso novo cliente. A história era
completa, com fotos e declarações do grande advogado. O caso Hailey representava o
seu maior desafio, dizia ele. Assuntos importantes de ordem legal e social irão ser
discutidos. A sua defesa iria ser completamente nova, prometia ele. Gabava-se de não ter
perdido nenhuma causa nos últimos doze anos. Seria difícil, mas ele confiava na
sabedoria e na justiça dos jurados do Mississipi.
Jake leu o artigo sem fazer comentários e atirou o jornal para o caixote do lixo.
Carla sugeriu um piquenique e, embora precisasse trabalhar, Jake não disse nada.
Puseram a comida e os brinquedos no Saab e foram para o lago. As águas escuras e
lamacentas do lago Chatulla estavam na sua altura máxima e, dentro de alguns dias,
começariam a sua retirada para o centro. A enchente atraiu uma flotilha de barcos com
esquiadores, barcos de pesca, catamarãs e caiaques.
Carla estendeu duas mantas pesadas debaixo de um carvalho na encosta de uma
colina enquanto Jake descarregava a comida e a casa de bonecas. Hanna arrumou a sua
grande família, com animais de estimação e automóveis, numa das mantas e começou a
dar ordens enquanto armava a casa. Os pais ouviam, sorrindo. O nascimento de Hanna
fora um pesadelo doloroso e muito sofrido, dois meses antes do tempo, assombrado por
sintomas e prognósticos divergentes. Durante onze dias, Jake, sentado ao lado da
incubadora na UTI, viu aquele corpo pequenino, arroxeado, lindo, com um quilo e meio,
lutar pela vida enquanto um exército de médicos e enfermeiras observavam os monitores,
ajustavam tubos e agulhas e abanavam a cabeça. Quando ficava sozinho, Jake tocava na
incubadora e enxugava as lágrimas. Rezou como nunca tinha rezado. Dormia numa
cadeira de balanço, ao lado da filha, sonhando com uma bela menina de olhos azuis e
cabelos negros brincando com bonecas e dormindo no seu ombro. Conseguia até ouvir a
voz dela.
Passado um mês, as enfermeiras começaram a sorrir e os médicos ficaram mais
calmos. Os tubos foram removidos, um todos os dias, durante uma semana. O peso de
Hanna subiu para dois quilos e vinte e cinco gramas e os pais muito felizes levaram-na
para casa. O médico sugeriu que não tivessem mais filhos, a não ser que fossem
adotados.
Hanna estava perfeita agora e o som da sua voz podia ainda encher de lágrimas
os olhos de Jake. Comeram e riram ao ouvirem Hanna ensinar as normas de higiene às
bonecas.
- É a primeira vez que descansa, em duas semanas - disse Carla, quando estavam
deitados em cima da manta.
Catamarãs de cores vivas cruzavam o lago, lá em baixo, desviando-se dos barcos
a motor que puxavam esquiadores meio-bêbados.
- Fomos à igreja no domingo passado - disse ele.
- E você pensou o tempo todo no julgamento.
- Ainda estou pensando.
- Acabou, não acabou?
- Não sei.
- Será que ele vai mudar de idéia?
- É possível, se Lester falar com ele. É difícil dizer. Os negros são imprevisíveis,
especialmente quando estão metidos em problemas. Ele fez um bom negócio. Conseguiu
o melhor advogado criminal de Memphis e está livre.
- Quem é que paga?
- Um velho amigo de Memphis, um cara chamado Cat Bruster.
- Quem é ele?
- Um bandido. Traficante de drogas, assassino, ladrão. Marsharfsky é advogado
dele. Dois canalhas.
- Carl Lee te contou isso?
- Não. Ele não quis me dizer, por isso perguntei ao Ozzie.
- Lester sabe?
- Ainda não.
- Que quer dizer? Não vai lhe telefonar?
- Bem, sim, estava pensando nisso.
- Não acha que é ir longe demais?
- Acho que não. O Lester tem direito de saber, e...
- Então o Carl Lee que lhe diga.
- Sim, devia, mas não vai dizer. Cometeu um erro e ainda não percebeu.
- O problema é dele, não seu. Pelo menos, deixou de ser.
- Carl Lee não tem coragem de contar ao Lester. Sabe que Lester vai ficar furioso
e lhe dizer que cometeu outro erro.
- Por isso cabe a você interferir nas questões da família...
- Não. Mas eu acho que Lester devia saber.
- Tenho certeza de que vai ler isso nos jornais.
- Talvez não - disse Jake, sem muita convicção. - Acho que Hanna quer mais suco
de laranja.
- E eu acho que você quer mudar de assunto.
- O assunto não me incomoda. Eu quero a causa, e pretendo reavê-la. O Lester é
a única pessoa que pode fazer isso.
Jake sentiu o olhar de censura de Carla. Olhou para um barco de pesca que
derivava para um banco de lama na margem.
- Jake, sabe muito bem que isso é antiético. - A voz era calma, mas firme. As
palavras saíam lentas e acusadoras.
- Não é verdade, Carla. Eu sou um advogado muito ético.
- Você sempre pregou a ética, mas neste momento está planejando solicitar a
causa. Isso é imoral, Jake.
- Recuperar, não solicitar.
- Qual é a diferença?
- Solicitar é antiético. Nunca vi nenhuma proibição contra recuperar.
- Não é correto, Jake. Carl Lee contratou outro advogado e está na hora de você
esquecer o caso.
- E suponho que você acha que Marsharfsky se importa com opiniões sobre ética.
Como é que julga que ele conseguiu o caso? Foi contratado por um homem que nunca
ouviu falar dele. Ele foi ao encalço e conseguiu.
- E isso faz com que seja correto que seja você, agora, a ir ao encalço?
- Recuperar, não é correr atrás dele.
Hanna pediu biscoitos e Carla procurou no cesto de piquenique. Apoiado num
cotovelo, Jake ignorou ambas. Pensou em Lucien. Que faria ele naquela situação?
Provavelmente alugaria um avião, iria a Chicago e depois de dar algum dinheiro a Lester,
o traria para Ford County, para intimidar Carl Lee e fazê-lo desistir do novo advogado.
Diria ao Lester que Marsharfsky não pode advogar no Mississipi e, como ele é um
estranho, os brancos do júri não iriam acreditar nele. Lucien telefonaria para Marsharfsky
acusando-o de oportunismo e ameaçando-o com uma queixa formal contra seu
comportamento antiético, assim que ele pusesse os pés no Mississipi. Mandaria os seus
amigos negros falar com a Gwen e Ozzie e convencê-los de que o único advogado com
alguma chance de ganhar a causa era Lucien Wilbanks. Finalmente, Carl Lee seria
vencido e contrataria Lucien. Era isso exatamente o que Lucien faria. E estamos falando
de ética.
- Porque você está sorrindo? - perguntou Carla.
- Estava pensando como é bom estar aqui com você e com a Hanna. Não fazemos
isso muitas vezes.
- Ficou desiludido, não ficou?
- Claro! Não vai aparecer mais nenhum caso como este. Ganhando-o, sou o maior
advogado destas bandas. Não precisaríamos nos preocupar com dinheiro nunca mais.
- E se perdesse?
- Mesmo assim seria um trunfo. Mas não posso perder o que não tenho.
- Constrangido?
- Um pedaço. Não é fácil aceitar uma coisa destas. Todos os advogados de Ford
County devem estar me gozando, exceto talvez Harry Rex. Mas vou conseguir superar
tudo isso.
- Que faço com o álbum de recortes?
- Guarde-o. Talvez consiga completá-lo.

A cruz era pequena, dois metros e setenta e cinco centímetros de comprimento
por um metro e vinte de largura, feita para caber deitada numa pick-up sem chamar a
atenção. Cruzes muito maiores eram usadas para os rituais, mas as pequenas
funcionavam melhor nas investidas noturnas aos bairros residenciais. Não eram usadas
com frequência, ou pelo menos não com a frequência desejada pelos homens que as
armavam. Na verdade, há muitos anos não eram usadas em Ford County. A última fora
erguida no quintal de um negro acusado de violentar uma mulher branca.
Algumas horas antes do amanhecer, na segunda-feira, a cruz foi retirada rápida e
silenciosamente da pick-up e plantada em um buraco com 25 centímetros de
profundidade, recém-cavado no jardim da elegante casa vitoriana da rua Adams. Uma
pequena tocha foi atirada ao pé da cruz e em segundos ela estava em chamas. A pick-up
desapareceu na noite e parou num telefone público na periferia da cidade, onde uma
chamada foi feita para a central de polícia.
Momentos depois, o subdelegado Marshall Prather entrou na rua Adams e viu
imediatamente a cruz em chamas no jardim da casa de Jake. Ele enveredou pela entrada
de automóvel e parou atrás do Saab. Tocou à campainha e ficou na varanda, olhando
para as chamas. Eram quase três e trinta. Tocou outra vez. A rua estaria escura e
silenciosa não fossem o clarão da cruz e o crepitar da madeira ardendo a quinze metros
de distância. Finalmente, Jake passou aos tropeções pela porta da frente e parou
bruscamente, apavorado, junto do subdelegado. Ambos estavam lado a lado na varanda,
embasbacados não só pela cruz em chamas mas também pela intenção que havia
naquilo.
- Bom dia, Jake - disse Prather, por fim, sem tirar os olhos do fogo.
- Quem fez uma coisa destas? - perguntou Jake com voz rouca.
- Não sei. Não disseram o nome. Só telefonaram avisando.
- Quando é que telefonaram?
- Há quinze minutos.
Jake passou os dedos pelo cabelo tentando evitar que ficasse inteiramente
revoltado na aragem suave.
- Vai arder durante quanto tempo? - perguntou, certo de que Prather sabia tanto
como ele, ou ainda menos, sobre cruzes em chamas.
- Não faço a mínima idéia. Provavelmente está encharcada em querosene. É a
isso que cheira, em todo o caso. Pode arder durante umas duas horas. Quer que eu
chame os bombeiros?
Jake olhou para um lado e depois para o outro da rua. Todas as casas estavam
silenciosas e escuras.
- Não. Não precisa acordar todas as pessoas. Deixe arder. Não vai danificar nada,
não é?
- O jardim é seu.
Prather não se moveu. Ficou ali parado, com as mãos nos bolsos, a barriga caída
sobre o cinturão.
- Há muito tempo não tínhamos uma destas por aqui. A última de que me lembro
foi em Karaway, em mil novecentos e sessenta...
- Sessenta e sete.
- Lembra-se?
- Sim. Eu estava no Liceu. Fomos de carro vê-la arder.
- Como era o nome do negro?
- Robinson, não sei quê Robinson. Disseram que ele atacou Velma Thayer.
- Tinha sido ele mesmo? - perguntou Prather.
- O júri achou que sim. Ele está em Parchman colhendo algodão até o fim da vida.
Prather pareceu satisfeito.
- Vou chamar a Carla - disse Jake, entrando. Voltou com Carla atrás de si.
- Meu Deus, Jake. Quem é que fez isto?
- Sei lá...
- É o KKK? - perguntou ela.
- Deve ser - respondeu o subdelegado. - Não conheço mais ninguém que queime
cruzes, você conhece, Jake?
Jake abanou a cabeça.
- Pensei que eles tinham ido embora de Ford County há muitos anos - disse
Prather.
- Pois parece que voltaram - observou Jake.
Carla ficou imóvel, cobrindo a boca com a mão, apavorada. O brilho do fogo
avermelhava-lhe o rosto.
- Faça alguma coisa, Jake. Apague aquilo.
Jake olhou para o fogo e outra vez para os dois lados da rua. Os estalidos e o
crepitar estavam cada vez mais altos e as chamas alaranjadas subiam na noite. Durante
um momento ele esperou que se apagasse logo, sem ser visto por mais ninguém a não
ser por eles três, e que simplesmente se extinguisse e fosse esquecido e que ninguém
em Clanton viesse alguma vez a saber. Depois sorriu da própria ingenuidade. Prather
resmungou e era evidente que estava cansado de ficar de pé na varanda.
- Ouça, Jake, ah, eu não queria tocar no assunto, mas pelo que li nos jornais eles
vieram incomodar o advogado errado. É ou não é verdade?
- Acho que não sabem ler - murmurou Jake.
- Provavelmente não sabem.
- Diga-me uma coisa, Prather, sabe da existência de algum membro do Klan em
Ford County?
- Nenhum. Temos alguns no sul do estado, mas não por aqui. Não que eu saiba. O
FBI disse-nos que o Klan era coisa do passado.
- Isso não é muito reconfortante.
- Porquê?
- Porque esses caras, se são membros do Klan, não são daqui. Visitantes vindos
não sabemos de onde. Significa que não estão brincando, não acha, Prather?
- Não sei. Ficaria mais preocupado se fosse gente daqui trabalhando com o Klan.
Podia significar que o Klan está de volta.
- O que é que isso significa, a cruz? - perguntou Carla ao policial.
- É um aviso. Quer dizer, pare com o que anda fazendo, ou da próxima vez vamos
queimar mais do que um pedaço de madeira. Usaram essas coisas durante anos para
intimidar os brancos que simpatizavam com negros e com toda aquela coisa dos direitos
civis. Se os brancos não deixavam de proteger os negros, começava a violência. Bombas,
dinamite, espancamentos, até assassinatos. Mas isso foi há muito tempo, julgo eu. No
seu caso, este é o modo que eles têm de dizer a Jake que fique longe do Hailey. Mas
como ele deixou de ser o advogado do Hailey, não sei o que significa.
- Vá ver a Hanna - disse Jake a Carla e ela entrou.
- Se tiver uma mangueira, eu me encarrego de apagar o fogo - ofereceu Prather.
- Boa idéia - disse Jake. - Eu não gostaria que os vizinhos vissem.
Jake e Carla, de roupão, ficaram na varanda vendo o subdelegado borrifar a cruz
em chamas. A madeira chiou e deitou fumo quando a água cobriu a cruz e apagou o fogo.
Prather ensopou-a durante quinze minutos, depois enrolou cuidadosamente a mangueira
e colocou-a atrás dos arbustos, no canteiro, perto dos degraus da frente da casa.
- Obrigado, Marshall. Vamos manter isso entre nós, está bem?
Prather enxugou as mãos nas calças e ajeitou o chapéu.
- Claro. Tranque bem tudo. Se ouvir qualquer coisa, telefone para a central.
Estaremos de olho aberto durante os próximos dias. Saiu em marcha ré e desceu
lentamente a rua Adams em direção à praça. Jake e Carla sentaram-se no balanço da
varanda e ficaram olhando para a cruz fumegante.
- Sinto-me como se estivesse olhando para um número antigo da revista Life - disse Jake.
- Ou um capítulo de um manual de história do Mississipi. Talvez lhes devêssemos
dizer que foi despedido.
- Obrigado.
- Obrigado?
- - Por ser tão direta.
- Desculpe. Devia ter dito dispensado, ou exonerado,
- Diga apenas que ele arranjou outro advogado. Está mesmo assustada, não está?
- Sabe perfeitamente que estou. Estou apavorada. Se eles podem queimar uma
cruz no nosso jardim, o que é que os impede de incendiar a nossa casa? Não vale a
pena, Jake. Eu quero que você seja feliz, que tenha sucesso e todas essas coisas
maravilhosas, mas não à custa da nossa segurança. Nenhuma causa vale isso.
- Estás satisfeita por eu ter sido despedido?
- Estou satisfeita por ele ter arranjado outro advogado. Talvez nos deixem em paz
agora.
Jake enlaçou-a com o braço e puxou-a para o seu colo. O balanço oscilou
suavemente. Ela estava linda, às três e trinta da manhã, no seu roupão.
- Eles não vão voltar, não é? - perguntou ela.
- Não. Não têm mais nada a ver conosco. Vão descobrir que estou fora do caso e
vão telefonar, pedindo desculpas.
- Não tem graça nenhuma, Jake.
- Eu sei.
- Acha que as pessoas vão saber?
- Não durante uma hora... Quando o Coffee Shop abrir, às cinco, Dell Perkins
ficará sabendo todos os detalhes antes de servir a primeira xícara de café.
- O que é que vai fazer com ela? - perguntou Carla indicando com um movimento
de cabeça a cruz agora quase invisível sob a meia-lua.
- Tive uma idéia. Vamos pôr a cruz no carro, levá-la para Memphis e queimá-la no
jardim do Marsharfsky.
- Eu vou para a cama.
Às nove horas, Jake tinha terminado de ditar a sua moção para retirar o nome dos
autos como advogado de Hailey. Ethel datilografava com satisfação o documento quando
interrompeu Jake:
- Dr. Brigance, tem um Dr. Marsharfsky ao telefone. Eu disse-lhe que o senhor
estava em reunião e ele disse que esperava.
- Eu falo com ele - Jake pegou no auscultador. - Alô?
- Dr. Brigance, Bo Marsharfsky, de Memphis. Como está?
- Muito bem.
- Ainda bem. Estou certo de que leu o jornal da manhã no sábado e no domingo.
Vocês recebem jornais em Clanton?
- Recebemos e temos telefone e correio.
- Então viu as reportagens sobre o Sr. Hailey?
- Vi. O senhor escreve artigos muito bons.
- Vou ignorar isso. Se tiver um minuto, eu gostaria de conversar sobre o caso
Hailey.
- Seria um prazer.
- De acordo com as normas de procedimento do Mississipi, o advogado de outro
estado deve associar-se a um advogado local para fins de julgamento.
- Quer dizer que não tem licença para advogar no Mississipi? - perguntou Jake,
incrédulo.
- Bem, não, não tenho.
- Não mencionou isso nos seus artigos.
- Vou ignorar isso também. Os juizes exigem a presença de advogados locais em
todos os casos?
- Alguns exigem, outros não.
- Compreendo. E o juiz Noose?
- Às vezes.
- Obrigado. Bem, eu, geralmente, associo-me a um advogado local quando atuo
em processos pelo país fora. O pessoal do lugar sente-se melhor quando vê um dos seus
sentado ao meu lado.
- Ainda bem.
- Não creio que esteja interessado em...
- Deve estar brincando! - gritou Jake. - Acabo de ser despedido e agora o senhor
me quer para lhe carregar a pasta! Está maluco! Eu não associaria nunca o meu nome ao
seu.
- Espere um pouco, seu provinciano...
- Espere o senhor, doutor. Pode ser uma surpresa para você, mas neste estado
temos um código de ética e leis contra o aliciamento de causas e clientes. Custear
processos alheios visando proveito pessoal é crime no Mississipi, bem como na maioria
dos estados, não sabia? Temos princípios éticos que proíbem que se corra atrás de
ambulâncias e se aliciem pacientes. Ética, Sr. Tubarão, já ouviu falar nisso?
- Eu não corro atrás de causas, meu filho. Elas é que me procuram.
- Como Carl Lee Hailey. Quer que eu acredite que ele encontrou o seu nome nas
páginas amarelas. Tenho certeza de que seu anúncio ocupa uma página inteira, ao lado
das clínicas de aborto.
- Ele me foi recomendado.
- Sim, pelo seu patrão. Sei exatamente como conseguiu o caso. Aliciamento puro e
simples. Eu talvez apresente queixa à Ordem dos Advogados. Melhor ainda, poderia fazer
com que o júri de instrução examinasse os seus métodos.
- Sim, sei que o senhor e o promotor são muito amigos. Bom dia, doutor.
Marsharfsky ficou com a última palavra. Jake ferveu de raiva durante uma hora,
antes de conseguir se concentrar no parecer que estava escrevendo. Lucien teria ficado
orgulhoso dele. Um pouco antes do almoço, Jake recebeu um telefonema de Walter
Sullivan, da firma Sullivan.
- Jake, meu amigo, como está?
- Muito bem.
- Ainda bem. Ouça, Jake, Bo Marsharfsky é um velho amigo meu. Defendemos há
alguns anos dois funcionários de bancos acusados de fraude. Ganhamos a causa. É um
advogado de alto lá com ele! Vou me associar a ele como advogado local no caso de Carl
Lee Hailey. Eu só queria saber...
Jake desligou o telefone e saiu do escritório. Passou a tarde na varanda da casa
de Lucien.


DEZOITO

Gwen não tinha o número do telefone de Lester. Nem Ozzie, nem ninguém. A
telefonista disse que havia duas páginas de Hailey na lista de Chicago, pelo menos uns
doze Lester Hailey e vários L. S. Hailey. Jake pediu os números dos cinco primeiros
Lester Hailey e telefonou para todos. Eram todos brancos. Ligou para Tank Scales, dono
de um dos mais seguros e sofisticados bares de negros do condado. Tank's, como era
chamado. Lester era freqüentador assíduo. Tank era um cliente e muitas vezes dava a
Jake informações valiosas e confidenciais sobre vários negros, o que faziam e onde
estavam. Tank parou no escritório de Jake, na terça de manhã, a caminho do banco.
- Viu o Lester Hailey nas duas últimas semanas? - perguntou-lhe Jake.
- Claro. Passou vários dias no bar jogando bilhar e bebendo cerveja. Voltou para
Chicago neste último fim de semana, disseram-me. Deve ter voltado, porque não voltei a
vê-lo.
- Com quem andava ele?
- Quase sempre sozinho.
- E Iris?
- Pois, ele levou Iris umas duas vezes quando Henry estava fora da cidade. Eu fico
nervoso quando ele lá vai com ela. Henry é uma praga. Ele é capaz de fazer os dois em
pedaços se souber que os dois andam se encontrando.
- Há dez anos que eles se encontram, Tank!
- Pois é... e ela tem dois filhos do Lester. Todos sabem disso, menos o Henry.
Pobre e velho Henry. Um dia destes descobre e você terá outro caso de homicídio.
- Ouça, Tank, pode falar com a Iris?
- Ela não aparece muito.
- Não foi isso que perguntei. Preciso do telefone do Lester, em Chicago. Pensei
que a Iris devia ter.
-Tenho certeza que tem. Acho que Lester lhe manda dinheiro
- Pode pedir-lhe para mim? Preciso falar com o Lester.
- Claro, Jake. Se ela o tiver, eu o arranjo.
Na quarta-feira, o escritório de Jake voltou ao normal. Os clientes começaram a
aparecer. Ethel procurava ser agradável, tanto quanto uma velha rabugenta pode sê-lo.
Jake continuou na sua rotina, mas visivelmente abatido. Deixou de ir ao Coffee Shop e
evitava o tribunal, encarregando Ethel de entregar documentos, verificar o andamento dos
processos, ou qualquer outra coisa que exigisse a sua presença no edifício do outro lado
da praça. Jake estava desiludido, humilhado e preocupado, e com dificuldade em
concentrar-se em outros casos. Pensou em tirar umas longas férias, mas naquele
momento não podia fazê-lo. O dinheiro era escasso e não se sentia motivado para o
trabalho. Passava a maior parte do tempo no escritório, fazendo muito pouco, olhando
para o edifício do tribunal e para a praça abaixo.
Pensava em Carl Lee, na cela, a poucos metros do seu escritório, e pela milésima
vez perguntava a si mesmo por que fora traído. Insistira muito para que Carl Lee
arranjasse dinheiro, esquecendo-se de que havia muitos advogados dispostos a aceitar o
caso de graça. Odiava Marsharfsky. Lembrava-se das vezes em que tinha visto
Marsharfsky entrando e saindo dos tribunais, em Memphis, proclamando a inocência dos
seus pobres clientes e denunciando maus-tratos sofridos por eles. Traficantes,
"protetores", políticos corruptos e nojentos, assassinos de aluguel. Todos culpados, todos
merecedores de longas sentenças, até mesmo de morte. Marsharfsky era ianque, com
uma pronúncia anasalada de algum lugar no centro-oeste, capaz de irritar qualquer
pessoa ao sul de Memphis. Um ator consumado, olhava diretamente para a câmara e
choramingava, "O meu cliente foi horrivelmente maltratado pela policial de Memphis".
Jake tinha visto isso uma dúzia de vezes. "O meu cliente é completa, total e
absolutamente inocente. Não devia estar sendo julgado. O meu cliente é um cidadão
exemplar, paga todos os impostos exigidos por lei." E o que me diz das quatro
condenações anteriores por extorsão? "Foi uma armadilha do FBI. Armada pelo governo.
Além disso, ele pagou a dívida. Desta vez, é inocente." Jake odiava-o e, por aquilo de que
conseguia se lembrar, Marsharfsky tinha perdido tantas causas quantas tinha ganhado.
Na tarde de quarta-feira, Marsharfsky ainda não tinha aparecido em Clanton. Ozzie
prometeu informar Jake se ele aparecesse na cadeia.
O Tribunal Itinerante estaria em sessão na sexta-feira, e seria de boa educação
fazer uma breve visita ao juiz Noose e explicar as circunstâncias do seu afastamento do
caso. O meritíssimo presidia ao julgamento de uma questão cível e havia uma boa chance
de Buckley estar ausente. Tinha de estar. Jake não podia ser visto nem ouvido.
Noose, geralmente, fazia um intervalo de dez minutos, por volta das três horas, e,
exatamente, a essa hora, Jake entrou no gabinete do juiz pela porta lateral. Não foi visto
por ninguém. Sentou-se pacientemente ao lado da janela, esperando que Ichabod
descesse do seu estrado e entrasse no gabinete. Cinco minutos depois a porta abriu-se e
o meritíssimo entrou.
- Jake, como tem passado? - perguntou.
- Bem, Sr. Dr. Juiz. Pode conceder-me um minuto? - perguntou Jake, quando o
juiz fechou a porta.
- É claro que sim, sente-se. De que se trata? - Noose tirou a toga, atirou-a para
cima de uma cadeira e estendeu-se na mesa, fazendo cair livros, dossiês e o telefone.
Ficou imóvel, cruzou as mãos sobre a barriga, fechou os olhos e respirou fundo. - São as
minhas costas, Jake. O médico mandou-me deitar numa superfície dura sempre que
possível.
- Ah, é claro, Sr. Dr. Juiz. Quer que eu saia?
- Não, não. De que se trata?
- Do caso Hailey.
- Foi o que eu pensei. Eu vi a sua moção. Ele arranjou outro advogado, não foi?
- Sim, senhor. Eu não fazia a mínima idéia. Esperava que o caso fosse julgado em
Julho.
- Não precisa se desculpar, Jake. A moção para se retirar do caso será deferida. A
culpa não é sua. Acontece muitas vezes. Quem é esse Marsharfsky?
- Sim, senhor. De Memphis.
- Com um nome desses, deve fazer sucesso em Ford County...
- Sim, senhor.
- Quase tão ruim quanto Noose, pensou Jake.
- Ele não tem licença para advogar no Mississipi.
- Isso é interessante. Ele está a par das nossas normas de procedimento?
- Não sei se ele já atuou alguma vez no Mississipi, disse-me que, normalmente, se
associa a um advogado local quando anda pelo país.
- Pelo país?
- Foi o que ele disse.
- Bem, é melhor que se associe se pretende entrar no meu tribunal. Tenho tido
péssimas experiências com advogados de outros estados, especialmente de Memphis.
- Sim, senhor.
Noose respirava com mais força e Jake resolveu ir embora.
- Sr. Dr. Juiz, tenho de ir indo... Se não o vir em Julho, o verei em Agosto. Tome
cuidado com as suas costas.
- Obrigado, Jake. Cuide-se, também.
Jake estava quase na porta dos fundos do pequeno gabinete quando a porta da
frente se abriu e o ilustre L. Winston Lotterhouse e outro ferrabrás da firma Sullivan
entraram no gabinete.
- Olá, Jake - disse Lotterhouse. - Conhece K. Peter Otter, o nosso novo
contratado?
- Prazer em conhecê-lo, K. Peter - disse Jake.
- Interrompemos alguma coisa?
- Não, eu ia mesmo saindo. O juiz Noose está descansando as costas e eu ia
embora.
- Sentem-se, meus senhores - disse o juiz. Lotterhouse farejou sangue.
- Ouça, Jake, estou certo de que Walter Sullivan o informou de que a nossa firma
será a representante local na defesa de Carl Lee Hailey.
- Foi o que me disseram.
- Lamento muito que aconteceu com você.
- Os seus sentimentos me comovem.
- É um caso interessante para a nossa firma. Como sabe, não temos muitas
causas criminais.
- Sim, eu sei - disse Jake, à procura de um buraco para se esconder. - Preciso ir
embora. Foi muito agradável falar consigo, L. Winston. Foi um prazer conhecê-lo, K.
Peter. Os meus cumprimentos ao J. Walter e ao R Robert e à rapaziada toda.
Jake saiu pela porta dos fundos do tribunal e amaldiçoou a si mesmo por mostrar a
cara onde podia ser esbofeteado. Correu para o escritório.
- Tank Scales telefonou? - perguntou a Ethel já na escada. - Não. Mas o Sr.
Buckley está à sua espera.
Jake parou no primeiro degrau.
- À espera onde? - perguntou sem mexer os maxilares.
- Lá em cima, no seu gabinete.
Jake caminhou vagarosamente até à mesa de Ethel e inclinou-se de modo a ficar
a algumas polegadas do rosto dela. Ethel pecara e sabia. Jake olhou para ela ferozmente.
- Eu não sabia que ele tinha hora marcada.
Novamente os maxilares não se mexeram.
- Não tinha - respondeu ela, com os olhos pregados na mesa.
- Não sabia que ele era dono deste prédio.
Ethel não se mexeu, nem respondeu.
- Não sabia que ele tinha uma chave do meu escritório.
Ela não se mexeu nem disse uma só palavra. Jake aproximou-se mais.
- Eu devia despedi-la por causa disto.
O lábio dela tremeu. Parecia completamente indefesa.
- Estou farto de você, Ethel. Farto da sua atitude, da sua voz, da sua
insubordinação. Farto do modo como trata as pessoas, farto de tudo em você.
Os olhos dela encheram-se de lágrimas.
- Lamento muito.
- Não, não lamenta. Sabe, e sabe há anos que ninguém, ninguém neste mundo,
nem mesmo a minha mulher, sobe esta escada e entra no meu escritório se eu não
estiver aqui.
- Ele insistiu...
- Ele é um cretino. É pago para intimidar. Mas não neste escritório.
- Psiu. Ele pode ouvir.
- Pouco me importa. Ele sabe que é um cretino.
Jake aproximou-se mais, até os narizes quase se tocarem.
- Quer continuar neste emprego, Ethel?
Ela fez que sim com a cabeça, incapaz de dizer uma palavra.
- Pois então faça exatamente o que vou lhe dizer. Vá ao meu gabinete, pegue o
Sr. Buckley e leve-o para a sala de conferências. Eu vou falar com ele lá. E nunca mais
faça isto!
Ethel enxugou as lágrimas e subiu a escada correndo. Momentos depois, o
promotor público estava sentado na sala de conferências com a porta fechada. À espera...
Jake estava perto, na cozinha, bebendo suco de laranja e avaliando Buckley. Bebia
devagar. Passado um quarto de hora, abriu a porta e entrou na sala. Buckley estava
sentado numa ponta da comprida mesa de conferências. Jake sentou-se na outra ponta,
bem longe dele.
- Olá, Rufus. Que quer?
- Belo lugar este. Os antigos escritórios de Lucien, se não estou enganado.
- Está certo. O que o traz aqui?
- Queria apenas fazer uma visita.
- Tenho muito que fazer.
- E queria conversar sobre o caso Hailey.
- Procure o Marsharfsky.
- Eu estava ansioso para começar a luta, especialmente com você do outro lado.
Você é um adversário de valor, Jake.
- Muito honrado...
- Não me interprete mal. Não gosto de você, e não gosto há muito tempo.
- Desde Lester Hailey.
- Sim, acho que tem razão. Você ganhou, mas fez barulho demais.
- Ganhei, e isso é que importa. E não fiz barulho. Você foi apanhado com as
calças na mão.
- Você trapaceou e o juiz Noose permitiu.
- Pode dizer o que quiser. Eu também não gosto de você.
- Ótimo. Isso faz com que me sinta melhor. O que é que sabe sobre Marsharfsky?
- É por isso que está aqui?
- Talvez.
- Não o conheço pessoalmente, mas se ele fosse meu pai, eu não diria nada a
você. Que mais você quer?
- Tenho certeza de que você falou com ele.
- Trocamos algumas palavras ao telefone. Não vá me dizer que está preocupado
com ele.
- Não. Apenas curioso. Ele tem uma boa reputação.
- Sim, tem. Não veio até aqui para falar comigo sobre a reputação dele.
- Não, realmente. Eu queria falar sobre o caso.
- O quê, por exemplo?
- As chances de absolvição, as possíveis defesas, estaria ele realmente insano?
Essas coisas.
- Pensei que você tinha garantido uma condenação. Em frente das câmeras,
lembra-se? Logo a seguir ao indiciamento. Numa das suas conferências de imprensa.
- Já está sentindo falta das câmeras, Jake?
- Fique tranqüilo, Rufus. Eu estou fora do jogo. As câmeras são todas suas, pelo
menos suas, do Marsharfsky e do Walter Sullivan. Vá ao encontro delas, campeão. Se
roubei um bocadinho do seu foco de luz, peço mil desculpas. Sei quanto isso foi doloroso.
- Desculpas aceitas. Marsharfsky esteve na cidade?
- Não sei.
- Ele prometeu uma conferência de imprensa para esta semana.
- E você veio aqui falar sobre essa conferência, certo?
- Não. Eu queria falar sobre Hailey, mas é claro que você tem mais que fazer.
- Tem razão. Além disso, não tenho nada para conversar com você, senhor
governador.
- Isso é ofensivo.
- Porquê? Sabe que é verdade. Você acusaria a própria mãe em troca de umas
poucas manchetes nos jornais.
Buckley levantou-se e começou a andar de um lado para o outro atrás da cadeira.
- Eu queria que ainda estivesse no caso, Brigance - disse, elevando a voz.
- Eu também.
- Eu iria lhe ensinar algumas coisas sobre acusação de assassinos. Eu queria
mesmo era arrasá-lo.
- Não foi muito bem-sucedido no passado.
- Por isso é que eu queria você neste caso, Brigance. Queria muito. - A cara dele
voltou ao vermelho vivo que Jake conhecia tão bem.
- Haverá outros, governador.
- Não me chame assim - gritou ele.
- É verdade, não é, governador? É por isso que persegue as câmeras com tanta
insistência. Todas as pessoas sabem disso. Lá vai o velho Rufus, à caça das câmeras, na
corrida para governador. É claro que é verdade.
- Faço o meu trabalho. Acuso facínoras.
- Carl Lee Hailey não é nenhum facínora.
- Você vai me ver dando cabo dele.
- Não vai ser assim tão fácil...
- Espere e verá!
- São necessários doze votos de doze jurados.
- Não há problema.
- Como o seu júri de instrução?
Buckley interrompeu os passos. Semicerrou os olhos e franziu a testa. Três
imensas rugas apareceram na testa enorme.
- O que sabe você sobre o júri de instrução?
- Tanto quanto você. Um voto a menos e faria figura de idiota.
- Não é verdade!
- Deixe disso, governador. Não está falando com um repórter. Sei exatamente o
que aconteceu. Fiquei sabendo algumas horas depois.
- Vou dizer isso a Noose.
- E eu digo aos jornais. Será uma beleza antes do julgamento.
- Não teria coragem de fazer isso!
- Agora não. Não tenho motivo para isso. Fui despedido, lembra-se? É por isso
que está aqui, não é, Rufus? Para me lembrar que eu deixei de estar no caso, mas que
você está. Para esfregar um pouco de sal na ferida. Muito bem, já o fez. Agora, quero
saia. Vá tratar do seu júri de instrução. Ou talvez um repórter esteja à sua espera no
tribunal. Vá embora.
- Com prazer. Lamento se o incomodei.
- Eu também.
Buckley abriu a porta que dava para o corredor e parou.
- Eu menti, Jake. Estou satisfeitíssimo por você não estar neste caso.
- Eu sei que mentiu. Mas não fique tão certo de que estou fora.

O júri de instrução de Ford County tinha andado atarefado e, na quinta-feira da
segunda semana de sessões, Jake foi contratado por dois acusados recém-indiciados.
Um era um negro que tinha esfaqueado outro negro na taberna Massey's, em Abril. Jake
apreciava os esfaqueamentos porque as absolvições eram possíveis; bastava conseguir
um júri de brancos que tinham mais que fazer do que se importarem com os negros que
se esfaqueavam mutuamente. Eles estavam divertindo-se na taberna, as coisas
aqueceram, um foi esfaqueado, mas não morreu. Se não há lesão, não há condenação.
Era semelhante à estratégia que Jake utilizara com Lester Hailey. O novo cliente
prometeu mil e quinhentos dólares, mas antes tinha de pagar a fiança.
O outro novo indiciado era um garoto branco apanhado dirigindo uma pick-up
roubada. Era a terceira vez que o apanhavam em um carro roubado e não era possível
evitar que passasse sete anos em Parchman. Ambos estavam presos e isso dava a Jake
a oportunidade, e o dever, de visitá-los e de consultar Ozzie; no fim da tarde de quinta-
feira, encontrou o xerife no escritório.
- Está ocupado? - perguntou Jake. Uns cinqüenta quilos de papel estavam
espalhados na mesa e no chão.
- O que é que isso quer dizer?
- Até à próxima, Rufus.
- Não, só papelada. Mais alguma cruz em chamas?
- Não, graças a Deus. Uma chega.
- Ainda não vi o seu amigo de Memphis.
- É estranho - disse Jake. - Imaginei que ele já estivesse aqui. Tem falado com o
Carl Lee?
-Todos os dias. Ele está ficando nervoso. O advogado nem sequer telefonou,
Jake.
- Ótimo. Deixe-o suar um pouco. Não tenho pena dele.
- Acha que ele cometeu um erro?
- Eu sei que sim. Conheço esses caras, Ozzie, e sei como agem quando fazem
parte de um júri. Não vão ficar impressionados com um estranho de fala mansa. Você não
concorda?
- Não sei. O advogado é você. Não duvido do que diz, Jake. Eu já o vi trabalhando.
- Ele nem licença tem para advogar no Mississipi. O juiz Noose está à caça. Ele
detesta advogados de fora do estado.
- Está brincando?
- Não. Falei com ele ontem.
Ozzie pareceu perturbado e olhou atentamente para Jake.
- Quer falar com ele?
- Falar com quem?
- Com o Carl Lee.
- Não! Não tenho nenhum motivo para vê-lo. - Jake passou os olhos pelo interior
da sua pasta. - Preciso ver Leroy Glass, agressão qualificada.
- Ficou com o Leroy?
- Sim. A família dele procurou-me esta manhã.
- Venha comigo.
Jake esperou na sala do teste de alcoolismo enquanto um preso com regalias foi
buscar o novo cliente. Leroy usava o uniforme da cadeia de Ford County, macacão laranja
que brilhava no escuro. Estava com a cabeça cheia de rolos de cabelo de esponja cor de
rosa e duas tranças ensebadas coladas na nuca. Os pés negros, grossos e secos como
couro eram protegidos do chão sujo por chinelos verde-limão de veludo frisado. Sem
meias. Uma cicatriz antiga e feia começava perto da orelha direita, passava pelo alto do
rosto e ia parar na narina direita. Era uma prova, além de qualquer dúvida razoável, de
que Leroy não era estranho a punhaladas e golpes. Ostentava a cicatriz como uma
medalha. Fumava Kools.
- Leroy, sou Jake Brigance. - Jake apresentou-se, apontando para uma cadeira de
lona ao lado da máquina da Pepsi. - A sua mãe e o seu irmão contrataram-me esta
manhã.
- É um prazer conhecê-lo, Dr. Jake.
Um preso com regalias esperava no corredor, ao lado da porta, enquanto Jake
falava com o cliente. Jake encheu três páginas do seu bloco de notas sobre Leroy Glass.
Naquele momento, o dinheiro tinha prioridade. De quanto dispunha o cliente e onde podia
arranjar mais. Falariam das facadas depois. Tias, tios, irmãos, irmãs, amigos, qualquer
pessoa com um bom emprego que pudesse fazer um empréstimo. Jake anotou os
números dos telefones.
- Quem me recomendou? - perguntou Jake.
- Eu vi o senhor na TV, Dr. Jake. O senhor e Carl Lee Hailey.
Jake ficou orgulhoso, mas não sorriu. A televisão era apenas uma parte do seu
trabalho.
- Conhece Carl Lee?
-Isso mesmo, e Lester também. O senhor foi advogado do Lester, não foi?
- Fui.
- Eu e Carl Lee estamos na mesma cela. Puseram-me lá, na noite passada.
- Ah, sim?
- Ele não fala muito. Disse que o senhor é um advogado muito bom e tudo, mas
que ele encontrou outro, de Memphis.
- Exatamente. Que é que ele acha do novo advogado?
- Não sei, Dr. Jake. Hoje de manhã ele estava danado da vida porque o novo
advogado ainda não apareceu. Disse que o senhor vinha sempre conversar com ele
sobre o processo, mas que o novo advogado, com um nome complicado, nem sequer
ainda o conhece.
Jake ficou muito sério para disfarçar a satisfação, o que não foi fácil.
- Vou lhe dizer uma coisa, se você prometer não contar a Carl Lee.
- Diga.
- O novo advogado não pode vir falar com ele.
- Não? Porquê?
- Porque não tem licença para advogar no Mississipi. É do Tennessee. Se entrar
sozinho no tribunal, vai ser expulso. Acho que Carl Lee cometeu um grande erro.
- Porque não lhe diz isso?
- Porque ele já me despediu. Já não posso aconselhá-lo...
- Alguém devia dizer-lhe.
- Você prometeu que não ia dizer nada, certo?
- Está bem, não digo.
- Promete?
- Juro!
- Muito bem. Agora, tenho de ir andando. Vou me encontrar com o fiador de
manhã, e talvez você saia dentro de um dia ou dois. Nem uma palavra ao Carl Lee, certo?
- Certo.
Tank Scales estava encostado ao Saab, no estacionamento, quando Jake saiu da
cadeia. Esmagou com o pé uma ponta de cigarro e tirou um papel do bolso da camisa.
- Dois números. O de cima é da casa, o de baixo, do trabalho. Mas só telefone
para o trabalho em último caso.
- Bom trabalho, Tank. Foi a Iris?
- Foi. Não queria... Passou pelo bar, ontem à noite, e eu enfrasquei-a.
- Fico em dívida com você.
- Você vai me pagar, mais cedo ou mais tarde.

Estava escuro, eram quase oito horas. O jantar estava frio, mas isso era habitual.
Por isso Jake comprara um micro-ondas. Carla estava habituada ao horário e ao jantar
requentado e não se queixava. Jantavam quando ele chegava em casa, fosse às seis da
tarde ou às dez da noite.
Jake seguiu da cadeia para o escritório. Não queria telefonar para Lester da sua
casa, não com Carla por perto. Sentou-se à sua mesa e olhou para os números que Tank
tinha conseguido. Carl Lee tinha dito para ele não telefonar. Por que não devia telefonar?
Seria suplicar? Seria antiético? Seria antiético telefonar para Lester e contar que Carl Lee
o despedira e contratara outro advogado? Não. Deveria responder às perguntas de Lester
sobre o novo advogado? Não. E dizer que estava preocupado? Não. E criticar o novo
advogado? Provavelmente não. Seria antiético convencer Lester a falar com o irmão?
Não. E convencer Carl Lee a despedir Marsharfsky? Provavelmente sim. E contratar Jake
outra vez? Sim, sem dúvida alguma. Isso seria completamente antiético. E se telefonasse
para Lester só para falar sobre Carl Lee e deixar que a conversa seguisse o próprio
curso?
- Alô?
- É de casa de Lester Hailey?
- É. Quem fala? - perguntou a sueca com o sotaque dela. - Jake Brigance, do
Mississipi.
- Um momento.
Jake consultou o relógio. Oito e meia. Era a mesma hora em Chicago, não era?
- Jake!
- Lester, como tem passado?
- Bem, Jake. Cansado, mas bem. E você?
- Muito bem. Ouça, falou com o Carl Lee, esta semana?
- Não. Saí daí na sexta-feira e tenho trabalhado dois turnos desde domingo. Não
tenho tempo para nada.
- Tem lido os jornais?
- Não. Aconteceu alguma coisa?
- Não vai acreditar, Lester.
- O que foi, Jake?
- Carl Lee me despediu e contratou um advogado importante de Memphis.
- O quê? Está falando sério? Quando?
- Na sexta-feira. Acho que logo a seguir a você ter ido embora. Ele nem se deu ao
trabalho de me dizer. Soube pelo jornal de Memphis, no sábado de manhã.
- Ele está louco. Porque é que ele fez uma coisa dessas, Jake? Quem é que ele
contratou?
- Conhece um cara chamado Cat Bruster, de Memphis?
- Claro.
- É o advogado desse cara. Cat é que paga. Veio de Memphis na sexta-feira e
falou com Carl Lee na cadeia. Na manhã seguinte, vi o meu retrato no jornal e fiquei
sabendo que tinha sido despedido.
- Quem é o advogado?
- Bo Marsharfsky.
- É bom?
- É um safado. Defende todos os mafiosos e traficantes de Memphis.
- Parece um nome polaco.
- E é. Acho que é de Chicago.
- Tem razão, há montes de polacos por aqui. Ele fala como eles?
- Como se tivesse a boca cheia de favas. Vai fazer sucesso em Ford County.
- Burro, burro, burro. Carl Lee nunca foi muito inteligente. Tive sempre de pensar
por ele. Burro, burro.
- Sim, ele cometeu um erro, Lester. Você sabe o que é um julgamento por
homicídio porque já esteve em um deles. Sabe a importância do júri quando ele deixa o
tribunal e vai para a sala deliberar. A sua vida está nas mãos deles. Doze residentes da
região brigando e discutindo sobre o seu caso, a sua vida. O papel do júri é a coisa mais
importante em um julgamento. Por isso, a gente precisa saber falar com o júri.
- Tem razão, Jake. Eu nem quero acreditar que ele tenha feito uma coisa dessas.
Está outra vez metido numa embrulhada.
- Exatamente, Lester, e eu estou preocupado.
- Já falou com ele?
- No sábado, depois de ver o jornal, fui diretamente falar com ele. Perguntei-lhe
porquê e ele não me respondeu. Estava embaraçado. Não voltei a falar com ele. O
Marsharfsky também não. Ainda não encontrou Clanton no mapa e, segundo me
disseram, Carl Lee está furioso. Tanto quanto eu sei, não foi feito nada pelo caso esta
semana.
- Ozzie falou com ele?
- Falou. Mas você conhece o Ozzie. Não fala muito. Sabe que o Bruster é um
canalha e que o Marsharfsky é outro canalha, mas não vai pressionar Carl Lee.
- Meu Deus, nem quero acreditar... Ele é estúpido se pensa que aqueles
camponeses vão ouvir um palhaço de Memphis. Que diabo, Jake, eles não confiam nem
nos advogados de Tyler County que é logo ao lado... Caramba!
Jake sorriu. Até agora, nada contra a ética.
- Que devo fazer, Jake?
- Não sei, Lester. Ele precisa de ajuda e você é o único que ele ouve. Sabe como
Carl Lee é teimoso.
- Acho melhor eu ligar para ele.
Não, pensou Jake. Seria mais fácil para Carl Lee dizer não pelo telefone. Era
preciso que os irmãos falassem pessoalmente. O fato de Lester pegar o carro e ir de
Chicago a Ford County ia causar um impacto.
- Acho que não consiga grande coisa pelo telefone. Carl Lee já resolveu. Só você
pode fazer com que ele mude de idéia e não pode fazer isso pelo telefone.
Lester ficou calado por alguns segundos e Jake esperou, ansioso.
- Que dia é hoje?
- Terça-feira, 6 de Junho.
- Deixe me ver - resmungou Lester. - Estou a dez horas de Clanton. Amanhã e
depois, no domingo, trabalho no turno das quatro à meia-noite. Posso sair daqui à meia-
noite de amanhã e estarei em Clanton às dez da manhã de sábado. Depois, posso sair
sábado cedo e estar no trabalho às quatro. Vou dirigir muitas horas, mas agüento.
- É muito importante, Lester. Acho que vale a viagem.
- Onde é que você estará, no sábado, Jake?
- Aqui, no escritório.
- Certo. Eu vou até à cadeia e se precisar de você telefono para o seu escritório.
- Está certo. Mais uma coisa, Lester. Carl Lee me disse para não lhe telefonar.
Não fale sobre o meu telefonema.
- Que é que lhe digo?
- Diga que telefonou a Iris e ela lhe contou a história.
- Que Iris?
- Ora, vamos, Lester. Todas as pessoas daqui sabem dessa história há anos!
Todas as pessoas, menos o marido e um dia destes também ele irá descobrir...
- Espero que não. Se ele descobrir, vamos ter outro assassinato. E você, outro
cliente.
- Por favor, não. Mal posso conservar os que tenho. Telefone-me no sábado.
Ele jantou às dez e meia a comida aquecida no micro-ondas. Hanna estava
dormindo. O assunto foi Leroy Glass, o rapaz branco que tinha roubado a pick-up, Carl
Lee, mas não Lester. Ela estava mais calma agora, sentindo-se mais segura sem o
problema de Carl Lee Hailey. Tinham acabado os telefonemas. Ninguém ia queimar mais
cruzes. Acabados os olhares na igreja. Haveria mais causas, tinha certeza disso. Ele falou
pouco. Apenas comeu e sorriu.


DEZENOVE

Um pouco antes de o tribunal fechar na sexta-feira, Jake telefonou para saber se
estava acontecendo algum julgamento. Não, disse a secretária. Noose, Buckley,
Musgrove e os outros todos já tinham saído. Não havia ninguém no tribunal. Jake
atravessou a rua, entrou pela porta dos fundos do prédio e seguiu pelo corredor até à sala
dos funcionários. Brincou com as secretárias e datilógrafas, enquanto procurava o dossiê
de Carl Lee Hailey. Examinou os autos do processo, ansiosamente. Muito bem!
Exatamente aquilo que estava à espera... Nada fora acrescentado naquela semana, à
exceção da sua moção para se retirar do caso. Marsharfsky e o seu associado local não
tinham tocado no processo. Nada tinha sido feito. Despediu-se e voltou para o escritório.
Leroy Glass ainda estava na cadeia. A fiança era de dez mil dólares e a família
não conseguira levantar o dinheiro para pagar a um fiador. Assim, continuava na cela com
Carl Lee. Jake tinha um amigo que era fiador dos seus clientes. Se um cliente precisava
sair da cadeia, e havia pouco perigo de que desaparecesse ao se ver livre, a fiança era
concedida. As condições eram acessíveis aos clientes de Jake. Por exemplo, cinco por
cento de entrada e um tanto por mês. Se Jake quisesse Leroy fora da cadeia, a fiança
podia ser paga a qualquer momento. Mas Jake precisava dele lá dentro.
- Ouça, Leroy, sinto muito. Estou conversando com o fiador - explicou Jake ao
cliente, na sala dos testes de alcoolismo.
- Mas o senhor disse que eu já estaria livre.
- A sua família não tem dinheiro, Leroy. E eu não tenho condições de pagar.
Vamos tirá-lo daqui, mas vai levar alguns dias. Quero que você saia para poder trabalhar
e ganhar algum dinheiro para me pagar.
Leroy ficou satisfeito com a explicação.
- De acordo, Dr. Jake, faça o que puder.
- A comida é boa aqui, não é? - perguntou Jake com um sorriso.
- Não é má. A de casa é melhor.
- Vamos soltá-lo - prometeu Jake.
- Como está o negro que eu feri?
- Não sei bem.
- Ozzie disse que ele está no hospital. Moss Tatum diz que já teve alta. Quem é
que sabe? Acho que o ferimento não foi muito grave.
- Quem era a mulher? - perguntou Jake, que não se lembrava dos pormenores.
- Era a mulher do Willie.
- Que Willie?
- Willie Hoyt.
Jake pensou um segundo, tentando lembrar-se dos termos da acusação.
- Não foi ele que você feriu.
- Não, foi Curtis Sprawling.
- Quer dizer que vocês lutaram por causa da mulher de outro homem?
- Isso mesmo.
- Onde estava Willie?
- Ele também andou aos murros.
- Com quem?
- Com outro cara qualquer.
- Então, vocês quatro brigaram por causa da mulher do Willie?
- Foi isso, agora já entendeu.
- Qual o motivo da luta?
- O marido dela estava fora da cidade.
- Ela é casada?
- É.
- Como é que se chama o marido?
- Johnny Sands. Quando ele está fora da cidade, há sempre pancadaria.
- Porquê?
- Porque ela não tem filhos, não pode ter e gosta de companhia. Entende o que
quero dizer? Quando ele vai viajar, todas as pessoas ficam sabendo. Se ela aparece num
bar, pode estar certo de que vai haver porrada.
"Que julgamento!", pensou Jake.
- Mas não me disse que ela estava com esse tal Willie Hoyt?
- Disse. Mas não quer dizer nada, porque todos no bar dão em cima dela, pagando
bebidas, e querendo dançar. Não se pode fazer nada.
- Uma mulher dos diabos, certo?
- Oh, Dr. Jake, ela é uma coisa!... O senhor precisava ver.
- Hei de ver. No banco das testemunhas.
Leroy olhou sonhadoramente para a parede, sorrindo e desejando a mulher de
Johnny Sands. Não importava o fato de ter esfaqueado um homem, sujeito a apanhar
vinte anos. Tinha provado a sua coragem no combate, de homem para homem.
- Ouça, Leroy, não falou com Carl Lee, não é?
- Claro que sim. Ainda estou na cela dele. A gente passa o tempo conversando.
Não há muita coisa para fazer.
- Contou-lhe a nossa conversa de ontem?
- Oh, isso não. Eu disse-lhe que não ia contar.
- Muito bem.
- Mas vou dizer uma coisa, Dr. Jake, ele está preocupado. Ainda não teve notícias
do advogado. Está muito aborrecido. Tive de morder a língua para não dizer nada, mas
não disse. Disse-lhe que o senhor é o meu advogado.
- Está bem.
- Ele disse que o senhor é bom, que vem aqui conversar com a gente. Disse-me
que eu tinha contratado um bom advogado.
- Mas não suficientemente bom para ele.
- Eu acho que o Carl Lee está confuso. Não sabe em quem confiar, só isso. É um
bom cara.
- Muito bem, não lhe conte a nossa conversa, certo? É confidencial.
- Certo. Mas alguém tem de falar com ele.
- Ele não consultou ninguém para me despedir e contratar esse novo advogado. É
um homem adulto. Tomou uma decisão. Problema dele. - Jake aproximou-se mais de
Leroy e disse em voz baixa: - Vou lhe dizer outra coisa que também não lhe pode contar.
Verifiquei o processo dele há meia hora. O novo advogado não fez nada a semana inteira.
Nada foi acrescentado ao processo. Nada.
Leroy franziu a testa e abanou a cabeça.
- Credo, que coisa.
O seu advogado continuou:
- Esses caras importantes trabalham assim. Falam um pedaço, fazem um grande
estardalhaço, fazem muito barulho. Aceitam mais causas do que podem e acabam por
perder mais vezes do que ganham. Conheço essa gente. Vejo esse tipo a toda hora no
tribunal. A maior parte é só fachada.
- Por isso ele ainda não veio ver o Carl Lee?
- Claro. Tem muito trabalho. Além disso, tem muitas outras causas grandes. Ele
não liga a mínima importância a Carl Lee.
- Isso é mau. O Carl Lee merece coisa melhor.
- A escolha foi dele. Agora é aguentar e cara alegre!...
- Acha que ele vai ser condenado, Dr. Jake?
- Tenho certeza. Está a um passo da câmara de gás. Contratou essa porcaria de
advogado importante que não tem tempo para trabalhar no processo dele, nem tempo
para ver o cliente na cadeia.
- Quer dizer que o senhor pode libertar o Carl Lee? Jake cruzou as pernas e
recostou-se na cadeira.
- Não, nunca prometi isso e não prometo no caso dele. É estupidez um advogado
prometer uma coisa dessas. Muita coisa pode correr mal num julgamento.
- O Carl Lee disse que o advogado dele prometeu um veredicto de inocente no
jornal.
- Ele é uma besta!

- Onde é que você foi? - perguntou Carl Lee ao companheiro de cela quando o
carcereiro trancou a porta.
- Fui conversar com o meu advogado.
- Jake?
- Não tenho outro...
Leroy sentou-se no beliche, de frente para Carl Lee, que relia o jornal. Carl Lee
dobrou o jornal e o colocou em cima do seu beliche.
- Você parece preocupado - disse ele. - Más notícias sobre o seu caso?
- Não. Só que não consigo pagar a minha fiança. Jake diz que vai demorar alguns
dias.
- Jake falou de mim?
- Não, não muito.
- Não muito? O que é que ele disse?
- Só perguntou como estava.
- Só isso?
- Só.
- Ele não está zangado comigo?
- Não. Pode estar preocupado contigo, mas não me pareceu que estivesse
zangado.
- Preocupado comigo por quê?
- Não sei - disse Leroy, deitando-se no beliche com as mãos cruzadas sob a
cabeça.
- Ora, vamos, Leroy. você sabe alguma coisa que não quer contar. O que foi que
Jake disse?
- Jake me disse que não posso dizer o que ele me disse. Diz que é confidencial.
Também não ia querer que o seu advogado repetisse as suas conversas com ele, não é?
- Ainda não vi meu advogado.
- Tinha um bom advogado até o ter despedido.
- Tenho um bom advogado agora.
- Como é que sabe? Ainda nem o viu. Ele tem trabalho demais para vir falar com
você e se está muito ocupado, não tem tempo para trabalhar no seu caso.
- Como é que você sabe?
- Perguntei ao Jake.
- É? E o que foi que ele disse? Leroy ficou calado.
- Quero saber o que foi que ele disse - exigiu Carl Lee, sentando-se na beira do
beliche de Leroy. Olhou furioso para o companheiro de cela, menor e mais fraco.
Leroy reconheceu que estava com medo e agora tinha uma boa desculpa para
contar tudo. Ou contava ou apanhava...
- Ele é um velhaco - disse Leroy. - Um velhaco importante que te vai entregar de
bandeja! Não se importa nada com o seu caso. Só quer publicidade. Não tocou no seu
processo a semana inteira. Jake sabe, ele verificou o processo no tribunal, esta tarde.
Nem sinal de Sua Excelência! Ele tem muitos outros clientes delinqüentes em Memphis,
incluindo o seu amigo, o Sr. Bruster.
- Você enlouqueceu, Leroy?!
- Enlouqueci. Espere para ver quem vai alegar insanidade. Espere para ver o que
ele vai fazer com o seu caso.
- Como é que de repente ficou tão sabido?
- Você perguntou, eu estou respondendo.
Carl Lee foi até a porta e segurou as grades, apertando-as com força com as mãos
enormes. A cela tinha encolhido naquelas três semanas e quanto menor ela se tornava,
mais difícil era para Carl Lee pensar em qualquer coisa, raciocinar, planejar, reagir. Não
conseguia concentrar-se na cadeia. Sabia só o que lhe diziam e não podia confiar em
ninguém. Gwen era irracional, Ozzie neutro, Lester estava em Chicago. Não confiava em
ninguém, a não ser em Jake e, por qualquer motivo, tinha contratado outro advogado.
Dinheiro, era esse o motivo. Mil e novecentos em dinheiro, pagos pelo maior
mafioso e traficante de Memphis, cujo advogado era especialista em defender bandidos e
traficantes, qualquer tipo de assassino e delinqüentes. Será que Marsharfsky defendia
também gente decente? O que iria pensar o júri quando visse Carl Lee sentado à mesa
da defesa junto de Marsharfsky? Sim, ele era culpado. De contrário, porque iria ele
contratar um famoso filho da mãe da cidade grande, como Marsharfsky?
- Sabe o que é que aqueles caras brancos do júri vão dizer quando virem
Marsharfsky? - perguntou Leroy.
- O quê?
- Vão pensar: esse pobre negro é culpado e vendeu a alma para contratar o maior
sacana de Memphis para nos dizer que não é culpado...
Carl Lee resmungou, em voz baixa.
- Eles vão te lixar, Carl Lee!

No sábado, Moss Junior Tatum estava de serviço às seis e meia da manhã
quando o telefone tocou no escritório de Ozzie. Era o xerife.
- O que está fazendo acordado? - perguntou Moss.
- Não tenho certeza se estou acordado - respondeu o xerife. - Ouça, Moss,
lembras-se de um velho pregador negro chamado Street, reverendo Isaiah Street?
- Para dizer a verdade, não.
- Lembra-se sim. Ele pregou durante cinqüenta anos na Igreja de Springfield, ao
norte da cidade. Primeiro membro da Associação Nacional para o Progresso dos Homens
de Cor em Ford County. Ele ensinou os negros daqui a fazer manifestações e greves, nos
anos sessenta.
- Sim, agora já me lembro. O Klan, não o apanhou, uma vez?
- Apanhou. Espancaram-no e incendiaram-lhe a casa, mas nada de grave. No
Verão de 65.
- Pensei que tivesse morrido há anos...
- Nada disso, há dez anos que está semimorto, mas ainda mexe. Telefonou-me às
cinco e meia e falou durante uma hora. Obrigou-me a recordar todos os favores políticos
que lhe devo.
- Que quer ele?
- Vai estar aqui às sete horas para falar com Carl Lee. Porquê, não sei. Mas veja
se trata bem o homem. Leve-o ao meu escritório e deixe-os conversar à vontade. Mais
tarde, eu irei.
- Certo, xerife.
No seu apogeu, na década de sessenta, o reverendo Isaiah Street fora a força
propulsora das atividades a favor dos direitos civis em Ford County. Marchou ao lado de
Martin Luther King em Memphis e em Montgomery. Organizou manifestações e protestos
em Clanton e Karaway e em outras cidades do Mississipi. No Verão de 64 recebeu
estudantes do Norte e coordenou os esforços dele para registrar eleitores negros. Alguns
viveram na casa dele naquele Verão memorável e ainda o visitavam de tempos em
tempos. Não era um radical. Era calmo, compassivo, inteligente e tinha conquistado o
respeito de negros e brancos. Era uma voz com alma e sensatez no meio do ódio e da
controvérsia. Dirigiu, não oficialmente, o grande movimento de não-segregação das
escolas públicas em 1969 e poucos foram os problemas em Ford County.
Em 1975, um derrame paralisou-lhe o lado direito do corpo mas o cérebro
continuou perfeito. Agora, com setenta e oito anos, andava sozinho, devagar, apoiado
numa bengala. Orgulhoso, cheio de dignidade, tão ereto quanto possível. Foi conduzido
ao escritório do xerife e sentou-se. Recusou o café e Moss Junior foi buscar o acusado.
- Está acordado, Carl Lee? - murmurou Moss, para não acordar os outros
prisioneiros, que iam começar a pedir aos gritos o café, remédios, advogados, fiadores e
namoradas. Carl Lee sentou-se imediatamente no beliche.
- Estou. Não dormi muito.
- Tem uma visita. Venha. - Moss abriu a cela silenciosamente.
Carl Lee conhecera o reverendo anos antes, quando ele fizera uma palestra para
os alunos do liceu East High, a escola dos negros. Depois veio a não-segregação e a
East High passou a ter curso secundário. Carl Lee não via o reverendo desde o derrame.
- Carl Lee, conhece o reverendo Isaiah Street? - perguntou Moss, formalmente.
- Sim, conhecemo-nos há uns anos.
- Muito bem. Vou fechar a porta para que possam conversar.
- Como tem passado, senhor? - perguntou Carl Lee.
Sentaram-se lado a lado no sofá.
- Muito bem, meu filho, e você?
- Tão bem quanto possível.
- Eu também estive preso, sabe. Há muitos anos. É um lugar horrível mas acho
que é necessário. Tem sido bem tratado?
- Muito bem, muito bem. Ozzie me deixa fazer tudo que eu quiser.
- Sim, o Ozzie. Temos muito orgulho dele, não é verdade
- Sim, senhor. É um bom homem. - Carl Lee olhou para homem frágil com a
bengala. O corpo estava fraco e cansado, uma mente alerta, a voz forte.
- Nós também nos orgulhamos de você, Carl Lee. Não sou favor da violência, mas
às vezes é necessária também. Praticou uma boa ação, meu filho.
- Sim, senhor - disse Carl Lee sem saber qual era a resposta certa.
- Imagino que se interrogue por que razão estou aqui. Carl Lee fez que sim com a
cabeça. O reverendo bateu com bengala no chão.
- Estou preocupado com o seu julgamento. A comunidade negra está preocupada.
Se você fosse branco, o mais provável seria, que fosse a julgamento e inocentado. O
estupro de uma criança é um crime horrível e quem pode culpar um pai por retificar o erro
Um pai branco, quero dizer. Um pai negro gera a mesma simpatia entre os negros, mas
há um problema. O júri vai ser branco. Desse modo, um pai negro e um pai branco não
têm chances iguais com o júri. Está compreendendo?
- Acho que sim.
- O júri é essencialmente importante. Culpado ou inocente Liberdade ou prisão.
Vida ou morte. Tudo sendo decidido pelo júri. É um sistema frágil este que confia vidas a
doze pessoas vulgares que não conhecem a lei e que ficam intimidadas com todo o
processo.
- Sim, senhor.
- O seu veredicto de inocente, dado por um júri, pelo assassinato de dois homens
brancos vai fazer mais pelos negros do Mississipi do que qualquer outra coisa, desde que
integramos as escolas. E não só no Mississipi, mas pelos negros de toda a parte. Seu
caso é famoso e está sendo observado com atenção por muita gente.
- Só fiz o que tinha que fazer.
- Exatamente. Fez o que achou que era correto. Foi correto. Embora brutal e
terrível, foi correto. E a maioria das pessoas, negras e brancas, pensa da mesma
maneira. Mas será que vai ser tratado como se fosse branco? A questão é essa.
- E se eu for condenado?
- A sua condenação será outra bofetada no nosso povo, um símbolo do racismo
profundamente enraizado, dos antigos preconceitos, dos velhos ódios. Será um desastre.
Você não pode ser condenado.
- Estou fazendo tudo o que posso.
- Acha que sim? Vamos falar do seu advogado, se me permite.
Carl Lee inclinou a cabeça afirmativamente.
- Conhece-o?
- Não - Carl Lee baixou a cabeça e esfregou os olhos. - E o senhor?
- Conheço.
- Conhece? Quando é que o conheceu?
- Em Memphis, 1968. Eu estava com o Dr. King. Marsharfsky era um dos
advogados que representavam os homens do lixo em greve contra a administração do
condado. Ele pediu ao Dr. King que saísse de Memphis, alegando que ele estava
agitando os brancos e incitando os negros, e impedindo as negociações. Foi arrogante e
mal-educado. Insultou verbalmente o Dr. King, em particular, é claro. Pensamos que ele
tinha vendido os trabalhadores e recebido dinheiro do governo para fazer aquilo. Parece
que tínhamos razão.
Carl Lee respirou fundo e esfregou as têmporas.
- Tenho acompanhado a carreira dele - continuou o reverendo. - Conseguiu fama
defendendo bandidos, ladrões e assassinos. Consegue livrar alguns, mas são todos os
culpados. Se é cliente dele, é culpado... É isso o que mais me preocupa agora. Tenho
medo de que seja considerado culpado por ser cliente dele.
Carl Lee afundou-se no sofá, com os cotovelos apoiados nos joelhos.
- Quem mandou o senhor falar comigo? - Perguntou em voz baixa.
- Tive uma conversa com um velho amigo.
- Quem?
- Só um velho amigo, meu filho. Ele também está preocupado com você. Estamos
todos.
- Ele é o melhor advogado de Memphis.
- Aqui não é Memphis, não é?
- Ele é especialista em Direito Penal.
- Talvez por ser um criminoso...
Carl Lee levantou-se de um salto e começou a andar pela sala, virando as costas
ao reverendo.
- Ele faz isto de graça. Não me custa um centavo.
- Os honorários dele não vão parecer importantes quando você estiver no corredor
da morte., meu filho.
Ficaram em silêncio durante algum tempo. Finalmente, o reverendo pôs-se de pé
com dificuldade, apoiado na bengala.
- Já falei o suficiente. Vou embora. Boa sorte, Carl Lee.
Carl Lee apertou-lhe a mão:
- Agradeço a sua preocupação e a sua visita.
- O que eu queria dizer é muito simples, meu filho. Vai ser difícil ganhar a sua
causa. Não a torne mais difícil com um pulha como Marsharfsky.
Lester saiu de Chicago na sexta-feira, um pouco antes da meia-noite e seguiu para
o Sul, sozinho, como de costume. Um pouco antes, sua mulher tinha partido para o Norte,
para passar o fim de semana com a família em Green Bay. Lester não gostava tanto de
Green Bay como do Mississipi e não tinha nenhuma vontade de visitar a família dela.
Eram boas pessoas, os suecos, e certamente o tratariam como da família se ele lhes
desse oportunidade. Mas eram diferentes e não só pelo fato de serem brancos. Lester
tinha crescido com brancos, no Sul, e conhecia-os bem. Não gostava deles e não gostava
do que a maioria sentia por ele, mas pelo menos conhecia-os... Porém, os brancos do
Norte, especialmente os suecos, eram diferentes. Os costumes, a maneira de falar, a
comida, quase tudo era estranho para ele e Lester nunca se sentia à vontade com eles.
Provavelmente, dali a um ano, estariam divorciados. Ele era negro, e um primo
mais velho da mulher casara com uma negra no começo dos anos 70, e o casamento
tinha sido muito comentado. Lester tinha sido um capricho, e a mulher já estava farta dele.
Ainda bem que não tinham filhos. Ele desconfiava que a mulher tinha outro. Mas Lester
também tinha outra e Iris tinha prometido casar com ele e ir viver em Chicago assim que
pusesse Henry para correr...
Os dois lados da Interestadual 57 pareciam iguais depois da meia-noite: luzes
esparsas das pequenas e bem-tratadas propriedades e ocasionalmente uma cidade
maior, como Champaign ou Effingham. O Norte era onde ele vivia e trabalhava, mas não
era o seu lar. O lar era onde estava a sua mãe, no Mississipi, embora ele nunca mais
fosse viver lá. Muita ignorância e pobreza. Lester não se importava com o racismo. Não
era tão intenso como anteriormente e ele já estava habituado. Sempre existiria, mas
pouco a pouco tornava-se menos evidente. Os brancos eram ainda os donos e, os
controladores de tudo, e isso não era insuportável. Não ia mudar. O que Lester achava
insuportável era a ignorância e a pobreza absoluta da maioria dos negros. As casas
podres e velhas, o alto índice de mortalidade infantil, os desempregados crônicos, as
mães solteiras e seus bebês subnutridos. Era deprimente a ponto de ser intolerável e
intolerável a ponto de fazer com que ele fugisse do Mississipi como milhares de outros,
emigrando para o Norte, à procura de um emprego, de qualquer emprego que pagasse
decentemente, para aliviar a dor da pobreza.
Voltar para o Mississipi era deprimente e agradável ao mesmo tempo. Agradável
porque ia ver a família. Deprimente porque ia ver a pobreza em que viviam. Havia certas
coisas boas. Carl Lee tinha um emprego decente, uma casa limpa e filhos bem vestidos.
Ele era uma exceção e agora tudo isso corria perigo por causa de dois montes de lixo
brancos e bêbados. Os negros tinham uma desculpa para serem imprestáveis, mas os
brancos, num mundo de brancos, não tinham nenhuma. Graças a Deus, estavam mortos
e Lester orgulhava-se do irmão mais velho.
Quando estava a seis horas de Chicago, cruzando o rio Cairo, o sol apareceu.
Duas horas depois, Lester atravessou o rio outra vez em Memphis. Seguiu para Sudeste,
para o Mississipi, e uma hora depois deu a volta ao edifício do tribunal de Clanton. Estava
acordado há vinte horas.
- Carl Lee, você tem uma visita - disse Ozzie, do outro lado da porta de grades.
- Não me surpreende. Quem é?
- Venha comigo. Acho melhor usar meu escritório. Pode ser demorado.

Jake estava no escritório à espera do telefonema de Lester. Dez horas. Se veio de
fato, pensou, Lester deve estar na cidade. Onze. Jake consultou o arquivo e escreveu
algumas notas para Ethel. Meio-dia. Telefonou para Carla e mentiu dizendo que se ia
encontrar com um novo cliente à uma hora, portanto que não esperasse por ele para
almoçar. Mais tarde, trabalharia no jardim. Uma hora. Encontrou um processo antigo do
Wyoming no qual fora julgado inocente um homem que tinha perseguido e encontrado o
homem que violentara a sua mulher. Em 1893. Copiou o processo, depois atirou-o para o
lixo. Duas horas. Lester estaria na cidade? Podia visitar Leroy e dar uma espiadela na
cadeia. Não, não era correto. Passou pelas brasas no sofá.
Às duas e um quarto, o telefone tocou. Jake levantou-se imediatamente com o
coração batendo apressado.
- Alô!
- Jake aqui é Ozzie.
- Sim, Ozzie, o que há?
- A sua presença é requisitada aqui na cadeia.
- O quê? - perguntou Jake, fingindo inocência.
- Precisam de você aqui.
- Quem?
- Carl Lee quer falar com você.
- Lester está aí?
- Está. E também quer vê-lo.
- Estarei aí num minuto.
- Eles estão lá dentro há quatro horas - disse Ozzie, apontando para a porta do
escritório.
- Fazendo o quê? - perguntou Jake.
- Falando, praguejando, aos gritos. Há trinta minutos mais ou menos a coisa
acalmou-se. Carl Lee saiu e me pediu para chamá-lo.
- Obrigado. Vamos entrar.
- Nem pense nisso! Eu não entro aí. Eles não me chamaram. Você vai sozinho.
Jake bateu à porta.
- Entre!
Abriu devagar, entrou e tornou a fechar a porta. Carl Lee estava sentado na
cadeira de Ozzie, Lester deitado no sofá. Este levantou-se e apertou a mão a Jake.
- Prazer em vê-lo, Jake.
- Prazer em vê-lo, Lester. O que o traz aqui?
- Negócios de família.
Jake olhou para Carl Lee, foi até à mesa e apertou-lhe a mão. O acusado estava
visivelmente irritado.
- Mandaram me chamar?
- Mandamos, Jake, sente-se. Precisamos conversar - disse Lester. - Carl Lee quer
dizer-lhe uma coisa.
- Diga você - resmungou Carl Lee.
Lester suspirou e esfregou os olhos. Estava cansado e frustrado.
- Não vou dizer nem mais uma palavra. Isto é entre você e o Jake. - Lester fechou
os olhos e tornou a deitar-se no sofá.
Jake sentou-se numa cadeira estofada que encostou à parede, de frente para o
sofá. Observou Lester atentamente, mas não olhou para Carl Lee, que se balançava
levemente na cadeira de Ozzie.
Carl Lee ficou calado. Lester ficou calado. Passados três minutos de silêncio, Jake
se aborreceu.
- Quem é que mandou me chamar? - perguntou.
- Fui eu - respondeu Carl Lee.
- Muito bem, o que quer?
- Quero que se encarregue outra vez da minha defesa.
- E porque pensa que eu quero?
- O quê? - exclamou Lester, olhando para Jake.
- Não é um presente que você dá e tira quando quer. É um acordo entre você e
seu advogado. Não pense que me está fazendo um grande favor. - A voz de Jake subia
cada vez mais. Estava visivelmente irritado.
- Quer ou não quer me defender? - perguntou Carl Lee.
- Está querendo contratar-me novamente, Carl Lee?
- Exatamente.
- Porque quer me contratar de novo?
- Porque o Lester quer.
- Muito bem, então não quero. - Jake levantou-se e dirigiu-se para a porta. - Se
Lester quer que eu fique com a sua defesa e você quer o Marsharfsky, fique com o
Marsharfsky. Se não é capaz de pensar pela sua cabeça, então precisa do Marsharfsky.
- Espere, Jake. Acalme-se, homem - disse Lester, indo até à porta. - Sente-se,
sente-se. Não o culpo por estar zangado com Carl Lee. Ele cometeu um erro quando o
despediu. Certo, Carl Lee?
Carl Lee examinou as unhas.
- Sente-se, Jake, sente-se e vamos conversar - pediu Lester, levando-o de volta
para a cadeira. - Ótimo. Agora, vamos discutir a situação. Carl Lee, quer que Jake seja
seu advogado?
Carl Lee fez que sim com a cabeça.
- É isso mesmo...
- Muito bem. Agora, Jake...
- Explique-me porquê - disse Jake dirigindo-se a Carl Lee.
- O quê?
- Explique-me por que quer que eu fique com a sua defesa. Explique-me por que
razão está despedindo Marsharfsky.
- Não tenho de dar explicações.
- Tem sim. Deve-me pelo menos uma explicação. Há oito dias, me despediu e nem
teve coragem de me telefonar. Soube pelos jornais. Depois, li coisas acerca do seu
advogado de luxo que evidentemente ainda não descobriu o caminho para Clanton.
Agora, manda me chamar e espera que eu largue tudo o que estou fazendo porque
mudou de idéia outra vez. Explique-me, por favor...
- Explique-lhe, Carl Lee. Fale com ele - disse Lester. Carl Lee inclinou-se para
frente e apoiou os cotovelos na mesa. Cobriu o rosto com as mãos e falou entre os dedos.
- Estou confuso. Este lugar está me deixando doido. Tenho os nervos em
frangalhos. Estou preocupado com a minha filha. Preocupado com a minha família.
Preocupado com a minha pele. Cada um me diz para fazer uma coisa diferente. Eu nunca
estive numa situação destas e não sei o que devo fazer. Tudo o que posso fazer é confiar
nas pessoas. Confio em Lester e confio em você, Jake. É tudo o que eu posso fazer.
- Confia nos meus conselhos? - perguntou Jake.
- Sempre confiei.
- E confia em mim para defender o seu caso?
- Sim, Jake, quero que fique com ele.
- Está bem.
Jake descontraiu-se e Lester recostou-se no sofá.
- Vai ter de notificar o Marsharfsky. Enquanto não fizer isso, não posso trabalhar
no seu caso.
- Vamos fazer isso esta tarde - disse Lester.
- Ótimo. Depois de falar com ele, ligue para mim. Há muita coisa a ser feita e o
tempo é curto.
- E o dinheiro? - perguntou Lester.
- A mesma coisa. O que combinamos. Acha satisfatório?
- Para mim está bem - disse Carl Lee. - Vou pagar como puder.
- Falamos sobre isso depois.
- E os médicos? - perguntou Carl Lee.
- Havemos de arranjar uma maneira. Não sei. Vou conseguir.
O acusado sorriu. Lester ressonava alto e Carl Lee riu.
- Eu pensei que tivesse lhe telefonado, mas Lester jura que não. Jake sorriu
amarelo e não disse nada. Lester era um mentiroso de primeira, um talento que tinha sido
extremamente valioso no seu julgamento.
- Desculpe, Jake. Procedi mal.
- Nada de desculpas. Temos trabalho demais para perdermos tempo com
desculpas.
Ao lado do estacionamento, um repórter, à sombra de uma árvore, esperava que
alguma coisa acontecesse.
- Com licença, senhor. Não é o Dr. Brigance?
- Quem pergunta?
- O meu nome é Richard Fly e sou do Jackson Daily. O senhor é Jake Brigance.
- Sim.
- O ex-advogado do Sr. Hailey.
- Não. O advogado do Sr. Hailey.
- Pensei que ele tivesse contratado Bo Marsharfsky. Na verdade, é por isso que
estou aqui. Ouvi dizer que Marsharfsky estaria em Clanton esta tarde.
- Se o vir, diga-lhe que chegou atrasado.
Lester dormiu profundamente no sofá do escritório de Ozzie. O policial de plantão
acordou-o às 4 da manhã de domingo e depois de beber um copo de café puro, partiu
para Chicago. No sábado à noite, ele e Carl Lee tinham telefonado para o escritório de
Cat, por cima do clube, e informaram-no da nova decisão de Carl Lee. Cat estava muito
ocupado e aparentemente não se importou. Disse que ia telefonar para Marsharfsky.
Ninguém falou em dinheiro.


VINTE

Logo a seguir à partida de Lester para Chicago, Jake saiu de casa, de roupão,
para ir buscar os jornais. Clanton ficava a uma hora de distância a Sudoeste de Memphis,
três horas a Norte de Jackson e a quarenta e cinco minutos de Tupelo. As três cidades
tinham volumosas edições de domingo que podiam ser compradas em Clanton. Jake ficou
satisfeito por ser há muito tempo assinante dos três. Agora Carla teria muito material para
o álbum de recortes. Abriu os jornais e começou a procurar.
Nada no jornal de Jackson. Jake esperava que Richard Fly tivesse informado
alguma coisa. Devia ter dado mais atenção ao repórter, na véspera. Nada no de
Memphis. Nada no de Tupelo. Não foi surpresa para Jake. Apenas esperava que alguém
tivesse descoberto. Mas tinha acontecido muito tarde, no sábado. Talvez na segunda-
feira. Jake estava farto de se esconder, cansado de se sentir constrangido. Enquanto não
aparecesse nos jornais e fosse lido pelos fregueses do Coffee Shop, pelos fiéis da igreja e
pelos outros advogados, incluindo Buckley e Sullivan e Lotterhouse, até que todas as
pessoas soubesse que o caso era seu outra vez, ia ficar quieto e escondido. Como devia
dar a notícia a Sullivan? Carl Lee ia telefonar para Marsharfsky, ou para o mafioso,
provavelmente para o mafioso, que então daria a notícia a Marsharfsky. O que iria
Marsharfsky dizer à imprensa? Depois, o grande advogado ia telefonar para Walter
Sullivan com a maravilhosa notícia. Tudo isso devia acontecer na segunda-feira de
manhã, se não antes. A notícia ia se espalhar rapidamente na firma Sullivan e os sócios,
antigos e novos, e os pequenos assistentes iriam reunir-se na ampla sala com lambris de
mogno e amaldiçoar Brigance, a sua falta de ética, o seu golpe baixo. Os assistentes
tentariam impressionar os patrões, citando regulamentos e os artigos do código de ética
provavelmente violados por Brigance. Jake odiava-os, a todos. Enviaria uma carta curta e
seca a Sullivan e uma cópia a Lotterhouse.
Não ia telefonar nem escrever a Buckley, que ia ficar em estado de choque depois
de ler a notícia no jornal. Uma carta ao juiz Noose com uma cópia para Buckley seria
suficiente. Não daria a Buckley a honra de receber notificação pessoal.
Jake teve uma idéia, depois hesitou, depois ligou para Lucien. Passavam alguns
minutos das sete. A enfermeira/criada e bartender atendeu.
- Sallie?
- Sim.
- É o Jake. O Lucien está acordado?
- Um momento. - Ela virou-se na cama e entregou o telefone a Lucien.
- Alô?
- Lucien, é Jake.
- Sim, que quer?
- Boas notícias. O Carl Lee Hailey contratou-me outra vez, ontem. O caso é meu
outra vez.
- Que caso?
- O caso Hailey!
- Ah, o justiceiro. Ele é seu?
- Desde ontem. Temos muito trabalho pela frente.
- Quando é o julgamento? Em Julho, certo?
- Vinte e dois.
- Está bem próximo. Quais são as prioridades?
- Um psiquiatra. Um psiquiatra barato que esteja disposto a dizer qualquer coisa.
- Eu conheço um - disse Lucien.
- Isso é Ótimo. Comece a trabalhar. Eu telefono daqui a dois dias.
Carla acordou a horas decentes e encontrou o marido na cozinha com os jornais
espalhados por cima e por baixo da mesa. Fez café e, sem uma palavra, sentou-se de
frente para ele. Jake sorriu-lhe e continuou lendo.
- A que horas se levantou? - perguntou Carla.
- Cinco e meia.
- Porquê tão cedo? Hoje é domingo.
- Não consegui dormir.
- Entusiasmado? Jake baixou o jornal.
- Para falar a verdade, estou. Muito mesmo. Pena que o entusiasmo não seja
compartilhado.
- Lamento no que se refere a ontem à noite.
- Não precisa pedir desculpa. Sei o que sente. O seu problema é que só está
vendo o lado negativo, não o positivo. Não imagina o que este caso pode fazer por nós.
- Jake, este caso me assusta. Os telefonemas, as ameaças, a cruz de fogo. Se o
caso significa um milhão de dólares, será que vale a pena se alguma coisa nos
acontecer?
- Não vai acontecer nada. Mais algumas ameaças e olhares de esguelha na igreja
e na rua, mas nada de grave.
- Mas você não tem certeza.
- Já falamos sobre isso ontem à noite e não quero voltar a repetir tudo outra vez.
Mas tenho uma idéia.
- Mal posso esperar...
- Você e a Hanna apanham um avião para a Carolina do Norte e ficam com os
seus pais até ao fim do julgamento. Eles vão adorar a visita e deixamos de nos preocupar
com o Klan ou com qualquer pessoa que goste de queimar cruzes.
- Mas o julgamento é daqui a seis semanas! Você quer que a gente fique seis
semanas em Wilmington?
- Quero, sim.
- Eu adoro os meus pais, mas isso é ridículo.
- Você quase não os vê e eles quase não têm oportunidade de ver a Hanna.
- E nós quase não vemos a você! Não vou ficar fora seis semanas...
- Tenho de preparar muita coisa. Vou comer e dormir este processo até terminar o
julgamento. Vou trabalhar à noite, nos fins de semana.
- E isso é alguma novidade?
- Vou ignorar vocês duas e só vou pensar neste caso.
- Já estamos habituadas.
Jake sorriu.
- Está querendo dizer que consegue aguentar?
- Consigo aguentar a você! O que me assusta é aquela gente doida, lá fora.
- Quando os doidos começarem a falar sério, eu desisto. Eu largo este caso se
minha família estiver em perigo.
- Promete?
- É claro que prometo. Vamos mandar a Hanna.
- Se não há perigo, para que havemos de mandar a Hanna?
- Por segurança. Ela vai adorar passar o Verão com os avós. Eles também.
- A Hanna não agüenta uma semana longe de mim.
- E você não agüenta uma semana longe dela.
- É verdade. Está fora de questão. Não me preocupo com ela desde que possa
abraçá-la e apertá-la. O café estava pronto e Carla colocou-o nas xícaras. - Alguma coisa
nos jornais?
- Não. Pensei que o jornal de Jackson pudesse trazer alguma coisa, mas
aconteceu tarde demais, eu acho.
- Talvez a sua maneira de calcular o tempo está um pouco enferrujada depois
desses dias de descanso.
- Espera por amanhã de manhã.
- Como é que sabe?
- Prometo.
Carla abanou a cabeça e procurou o suplemento de modas e de cozinha.
- Vai à igreja?
- Não.
- Porque não? Já tem o caso. É uma estrela novamente.
- Sim, mas ninguém sabe.
- Compreendo. No próximo domingo.
- É evidente.

Em Mount Hebron, Mount Zion, Mount Pleasant e na Brown's Chapel, na Green's
Chapel e Norris Road, Secção Line Road, Bethel Road e no God's Temple, no Christ's
Temple e Saint's Temple, os cestinhos e baldes e bandejas passaram e voltaram a passar
e foram deixados nos altares e nas portas da frente para a recolha de fundos para Carl
Lee Hailey e sua família. Os recipientes, tamanho-família, da Kentucky Fried Chicken
foram usados em várias igrejas. Quanto maior o recipiente, fosse balde ou cesto, menores
as oferendas pessoais pareciam, ao cair no fundo, dando ensejo a que o pastor
mandasse passar novamente entre os fiéis. Era uma oferenda especial, separada da
oferenda comum, e em quase todas as igrejas foi precedida por um relato emocionante do
que tinha acontecido à preciosa menina dos Hailey e o que aconteceria ao pai dela e à
família se os recipientes não ficassem cheios. Em vários casos foi evocado o nome
sagrado da Associação para o Progresso dos Homens de Cor e o efeito era a generosa
abertura das carteiras e das bolsas.
Deu resultado. Os baldes e cestos foram esvaziados, o dinheiro contado e o ritual
repetido nos serviços noturnos. As oferendas da noite de domingo foram acrescentadas
às da manhã e da tarde e contadas por cada um dos pastores, que depois entregaria uma
grande percentagem do total ao reverendo Agee, na segunda-feira de manhã. Ele
guardaria o dinheiro num local qualquer da sua igreja e uma grande parte seria gasta em
benefício dos Hailey.

Todos os domingos, das duas às cinco da tarde, os prisioneiros da cadeia de Ford
County eram levados para um grande pátio cercado, do outro lado da pequena passagem
atrás do edifício da prisão. Um máximo de três amigos e/ou parentes de cada um dos
prisioneiros tinha ordem para ficar no pátio, durante uma hora. Havia duas árvores de
sombra, algumas mesas partidas de piquenique e um cesto de basquete em bom estado.
Policiais e cães vigiavam do outro lado do muro.
Foi estabelecida uma rotina. Gwen e os filhos saíam da igreja depois da bênção,
mais ou menos às três horas, e seguiam de carro até a prisão. Ozzie permitia que Carl
Lee fosse mais cedo para o pátio para ficar com a melhor mesa de piquenique, a única
que tinha quatro pernas e ficava debaixo de uma das árvores. Carl Lee sentava-se
sozinho, sem falar com ninguém, assistindo à competição no cesto de basquete, até a sua
família chegar. Não era bem basquete, mas uma mistura de rúgbi, luta livre, judô e
basquete. Ninguém tinha coragem de ser o juiz. Não havia sangue, nem marcação de
faltas. E, surpreendentemente, não havia lutas. Uma luta significava a solitária e
suspensão do recreio durante um mês.
Os visitantes eram poucos, algumas namoradas e mulheres que se sentavam com
os seus homens na relva, ao lado do muro, assistindo em silêncio à algazarra debaixo da
rede de basquete. Um casal perguntou a Carl Lee se podiam usar a mesa para almoçar.
Ele disse que não com a cabeça e o casal almoçou sentado na relva. Gwen e os filhos
chegaram antes das três. O policial Hastings, primo dela, abriu o portão e as crianças
correram para o pai. Gwen arrumou a comida. Carl Lee percebeu os olhares dos menos
afortunados e saboreou a inveja deles. Se ele fosse branco, ou mais baixo e mais fraco,
ou talvez acusado de um crime mais leve, certamente pediriam para partilhar da sua
comida. Mas ele era Carl Lee Hailey e ninguém ficou olhando por muito tempo. O jogo
voltou à sua fúria e violência e a família pôde comer em paz. Tonya sentava-se sempre ao
lado do pai.
- Esta manhã eles começaram um peditório a nosso favor - disse Gwen, depois do
almoço.
- Eles quem?
- A igreja. O reverendo Agee disse que todas as igrejas de negros vão pedir
dinheiro, todos os domingos, para nós e para pagar o advogado.
- Quanto?
- Não sei. Ele disse que vão passar o balde todos os domingos, até ao julgamento.
- É simpático da parte deles. O que é que ele disse de mim?
- Só falou sobre o seu caso e o resto.... Disse que vai ser muito caro e que
precisamos da colaboração das igrejas. Falou sobre a generosidade cristã e essas coisas.
Disse que você eras um verdadeiro herói para o nosso povo.
Que surpresa agradável, pensou Carl Lee. Ele esperava alguma ajuda da sua
igreja, mas não financeira.
- Quantas igrejas?
- Todas as igrejas de negros do condado.
- Quando é que recebo o dinheiro?
- Ele não disse.
Depois de tirar a parte dele, pensou Carl Lee.
- Meninos, levem a sua irmã e vão brincar ali, perto do muro. Eu e a mãe
precisamos conversar. Tomem cuidado. Carl Lee Jr. e Robert seguraram cada um deles
uma das mãos de Tonya e obedeceram.
- O que diz o médico? - perguntou Carl Lee, olhando para as crianças.
- Que ela está melhor. Os maxilares sarando. Pode ser que tire os arames dentro
de um mês. Ela não pode correr, saltar nem brincar ainda, mas em breve poderá fazê-lo.
Um pouco dolorida ainda.
- E quanto ao... ao resto?
Gwen baixou a cabeça, tapou os olhos com a mão e começou a chorar e a
enxugar as lágrimas. Falou com voz entrecortada.
- Ela nunca poderá ter filhos. Ele me disse... - Parou, enxugou os olhos e tentou
continuar. Começou a soluçar alto e escondeu a cara com um guardanapo de papel.
Carl Lee sentiu-se mal. Apoiou a testa nas palmas das mãos, cerrou os dentes
com força e os olhos encheram-se de lágrimas.
- O que foi que ele disse?
Gwen ergueu a cabeça e disse com a voz tremendo, lutando para conter as
lágrimas:
- Na terça-feira, ele disse que a lesão foi muito grave. - Gwen enxugou a cara com
a mão. - Mas quer mandar Tonya a um especialista em Memphis.
- Ele não tem certeza? Ela meneou a cabeça.
- Noventa por cento. Mas acha que ela deve ser examinada por outro médico, em
Memphis. Temos de levá-la daqui a um mês.
Gwen tirou outro guardanapo de papel do rolo e enxugou a cara. Deu um ao
marido que o passou rapidamente pelos olhos. Junto ao muro, Tonya ouvia a discussão
dos irmãos sobre qual ia ser o policial e qual ia ser o prisioneiro. Viu os pais conversando,
abanando a cabeça e chorando. Sabia que se passava qualquer coisa com ela que não
estava bem. Esfregou os olhos e começou a chorar também.
- Os pesadelos são cada vez piores - disse Gwen, quebrando o silêncio. - Tenho
de dormir com ela todas as noites. Ela sonha com homens correndo atrás dela, homens
escondidos no armário, sonha que está sendo perseguida no bosque. Acorda aos gritos e
suando. O médico diz que ela precisa consultar um psiquiatra. Diz que vai ficar pior antes
de melhorar.
- Quanto é que isso vai custar?
- Não sei. Ainda não telefonei para saber.
- É melhor telefonar. Onde é esse psiquiatra?
- Em Memphis.
- Tinha de ser. Como é que os rapazes a têm tratado?
- Eles têm sido Ótimos. Tratam a irmã de modo especial. Mas ficam assustados
com os pesadelos. Quando ela acorda aos gritos, acorda todos eles. Os rapazes correm
para a cama dela e tentam ajudar, mas ficam assustados. A noite passada, ela só voltou a
adormecer depois que eles se deitaram no chão, ao lado da cama dela. Ficamos ali
deitados, acordados, com as luzes acesas...
- Os rapazes não são problema.
- Sentem a falta do pai. Carl Lee forçou um sorriso.
- Já não vai demorar muito.
- Acha que não?
- Já não sei em que pensar. Mas não pretendo passar o resto da vida na cadeia.
Contratei o Jake outra vez.
- Quando?
- Ontem. Aquele advogado de Memphis não apareceu, nem telefonou. Eu o
despedi e contratei o Jake outra vez.
- Mas você tinha dito que o Jake era muito novo.
- Eu não tinha razão. Ele é novo mas é bom. Pergunte ao Lester.
- É o seu julgamento!
Carl Lee pôs-se a andar devagar pelo pátio, sempre ao lado do muro. Pensou nos
dois homens, mortos e enterrados em qualquer parte, com a carne apodrecendo, as
almas a arderem no inferno. Antes de morrer, eles tinham conhecido a sua filha, por um
breve instante e no espaço de duas horas tinham-lhe destruído o pequeno corpo e
arruinado o cérebro. A agressão fora tão brutal que ela nunca poderia vir a ter filhos. Tão
violenta a agressão que ela os via agora escondidos a fim de a apanharem, à espera
dentro dos armários. Será que, um dia, ela ia conseguir esquecer, bloquear a memória,
apagar aquilo da cabeça para poder ter uma vida normal? Talvez um psiquiatra pudesse
fazer isso. As outras crianças iriam permitir que ela fosse normal?
Tonya não passava de uma menina negra, era o que todas as pessoas deviam
pensar. Uma pretinha filha de alguém. Na certa ilegítima, como todos eram. Para ela,
estupro não era nenhuma novidade.
Carl Lee recordou os outros dois no tribunal. Um orgulhoso, o outro com medo.
Lembrou-se dos dois descendo a escada enquanto ele os esperava para executá-los.
Depois, a expressão de horror, quando ele apareceu com a M-16. O som dos tiros, os
gritos de socorro, os gritos quando caíram juntos para trás, um em cima do outro,
algemados, aos berros e contorcendo-se, sem conseguir fugir. Lembrou-se de ter sorrido,
de ter rido alto, enquanto via ambos estrebuchando com as metades das cabeças
despedaçadas e de quando os corpos ficaram imóveis e ele fugiu. Carl Lee sorriu outra
vez. Estava orgulhoso. O primeiro amarelo que ele matara no Vietnã o tinha deixado
muito mais preocupado...

A carta para Walter Sullivan era objetiva:
Caro J. Walter,
Estou certo de que nesta altura o Sr. Marsharfsky já o informou de que a
contratação dele por Carl Lee Hailey terminou. Os seus serviços como advogado local
deixaram evidentemente de ser necessários. Desejo-lhe muito bom dia.
Jake Brigance

Enviou uma cópia a L. Winston Lotterhouse. A carta para Noose foi também
sucinta.

Caro Juiz Noose,
Quero informá-lo de que fui contratado por Carl Lee Hailey. Estamos nos
preparando para o julgamento no dia 22 de Julho. Por favor, faça constar nos autos o meu
nome como advogado de defesa. Com os melhores cumprimentos,
Jake Brigance

Uma cópia foi enviada a Buckley.
Marsharfsky telefonou na segunda-feira, às nove e meia. Jake deixou piscar o
botão de espera, durante dois minutos, antes de atender.
- Alô?
- Como é que fez isso?
- Quem fala?
- A sua secretária não lhe disse? É Bo Marsharfsky e eu quero saber como é que
fez isso.
- Como é que fiz o quê?
- Roubou-me o caso.
Tenha calma, pensou Jake. O homem é um provocador.
- Se bem me lembro, o caso me foi roubado antes - respondeu.
- Eu não conhecia o réu quando ele me contratou.
- Nem precisava. O senhor mandou o seu mafioso, lembra-se?
- Está me acusando de correr atrás de causas?
- Estou.
Marsharfsky fez uma pausa e Jake preparou-se para os insultos.
- Quer saber uma coisa, Dr. Brigance, o senhor tem razão. Eu corro atrás de
causas todos os dias. Sou um mestre em conseguir causas. É assim que ganho tanto
dinheiro. Se aparece um grande caso, quero-o para mim. E uso todos os métodos que
achar necessários.
- Engraçado, isso não foi mencionado no jornal.
- E se eu quiser o caso Hailey, eu o conseguirei.
- Pois então, tente! - Jake desligou e riu durante dez minutos. Acendeu um charuto
barato e começou a trabalhar na moção para a transferência de foro.
Dois dias depois, Lucien telefonou e pediu a Ethel que dissesse a Jake que fosse
vê-lo. Era importante. Lucien tinha uma visita que Jake tinha de conhecer.
O visitante era o Dr. W. T. Bass, um psiquiatra aposentado, de Jackson. Ele
conhecia Lucien há anos e tinham colaborado em dois processos de criminosos insanos.
Os dois criminosos estavam ainda na Parchman. A sua aposentadoria, concedida um ano
depois da expulsão de Lucien, foi precipitada pelas mesmas razões que muito tinham
contribuído para a expulsão do advogado, ou seja, uma forte afeição pelo uísque Jack
Daniel's... Vez por outra, visitava Lucien em Clanton e Lucien visitava-o com maior
frequência em Jackson, e os dois apreciavam essas visitas porque gostavam de se
embriagar juntos. Sentaram-se na grande varanda à espera de Jake.
- Diga apenas que ele estava louco - aconselhou Lucien.
- E estava? - perguntou o médico.
- Isso não é importante.
- O que é importante?
- O importante é dar ao júri uma desculpa para inocentar o homem. Não vão
querer saber se ele estava louco ou não. Mas precisam de um motivo para dizer que é
inocente.
- Seria interessante examiná-lo.
- Pode examiná-lo. Pode falar com ele à vontade. Ele está na cadeia à espera de
alguém com quem possa conversar.
- Vou precisar falar com ele muitas vezes.
- - Eu sei.
- E se eu achar que ele não estava louco no momento do crime?
- Então, não irá testemunhar no julgamento e não terá o nome e a fotografia nos
jornais e não será entrevistado na TV. Lucien parou o tempo suficiente para um longo
trago. - Faça o que lhe estou dizendo. Entreviste o homem, tome uma porção de notas.
Faça perguntas estúpidas. Sabe perfeitamente o que tem que fazer. Depois, diga que ele
estava louco.
- Eu não estou tão certo disso. Não funcionou muito bem no passado.
- Ouça, o senhor é médico, não é? Pois então seja orgulhoso, vaidoso, arrogante.
Aja como um médico deve agir. Dê o seu parecer e desafie qualquer pessoa a fazer-lhe
perguntas.
- Não sei... Não funcionou muito bem no passado...
- Faça o que lhe estou dizendo.
- Eu já fiz isso uma vez e ambos estão na Parchman.
- Eram casos perdidos. O de Hailey é diferente.
- Ele tem alguma chance?
- Muito remota.
- Pensei que fosse diferente.
- Ele é um homem decente com uma boa razão para matar.
- Então por que são remotas as chances?
- A lei diz que o motivo dele não é suficiente.
- Um ponto a favor da lei.
- Além disso, ele é negro e esta é uma cidade branca. Eu não confio nesses
intolerantes daqui.
- E se ele fosse branco?
- Se fosse branco e matasse dois negros que lhe tivessem violentado a filha, o júri
dava-lhe o edifício do tribunal de presente.
Bass terminou a sua bebida e serviu-se de outra. Uma garrafa de scotch e um
balde com gelo estavam sobre a mesa de vime entre os dois.
- E o advogado dele? - perguntou o médico.
- Daqui a pouco deve chegar.
- Ele trabalhou para você?
- Trabalhou. Mas acho que o senhor não chegou a conhecê-lo. Ele estava na firma
há dois anos quando eu saí. É jovem, trinta e poucos anos, honesto, agressivo,
trabalhador.
- E trabalhou para você?
- Foi isso que eu disse. Tem bastante experiência de tribunal para a idade. Este
não é o primeiro caso de homicídio dele, mas, se não me engano, é o primeiro com
alegação de insanidade.
- É bom saber disso. Não quero que ninguém comece a fazer uma porção de
perguntas.
- Gosto da sua confiança. Espere até conhecer o promotor.
- Não estou gostando nada disto. Tentamos duas vezes, e não deu certo.
Lucien abanou a cabeça, surpreendido.
- O senhor deve ser o médico mais modesto que já conheci.
- E o mais pobre.
- Tem de ser pomposo e arrogante. O especialista é o senhor. Aja como se fosse.
Quem é que vai questionar o seu parecer em Clanton, Mississipi?
- O estado terá especialistas.
- Vai haver um psiquiatra de Whitfield. Irá examinar o acusado durante algumas
horas, depois aparece no julgamento e diz que o réu é o homem mais são que já viu. Ele
nunca viu um réu legalmente insano. Para ele, ninguém é louco. Todas as pessoas foram
abençoadas com perfeita saúde mental. Whitfield está cheia de gente mentalmente sã, a
não ser quando entra com pedido de aposentadoria do governo, então, metade do estado
é louco. Ele seria despedido se começasse a dizer que os acusados são legalmente
insanos. É isso que o senhor vai ter de enfrentar.
- E o júri vai acreditar em mim automaticamente?
- Até parece que nunca esteve num julgamento desse tipo.
- Duas vezes, lembra-se? Um violador e um assassino. Nenhum dos dois estava
louco, apesar do que eu disse. Os dois estão trancados onde devem estar.
Lucien tomou um longo gole e estudou atentamente o líquido castanho-claro onde
nadavam os cubos de gelo.
- O doutor disse que ia ajudar. Deus é testemunha de que me deve um favor.
Quantos divórcios lhe fiz?
- Três. E fiquei completamente liso as três vezes.
- Era o que merecia, nas três. A escolha era dar tudo ou ir a julgamento e ter os
seus hábitos discutidos em pleno tribunal.
- Eu me lembro.
- Quantos clientes, ou pacientes, é que eu mandei a você, durante muitos anos?
- Não o suficiente para pagar a pensão da minha ex-mulher.
- Lembra-se do processo de prática ilegal movido por uma senhora cujo tratamento
consistia especialmente em sessões semanais no seu sofá-cama? A firma que defendia
os processos de prática ilegal da medicina recusou aceitar a defesa dela e então senhor
chamou o seu querido amigo Lucien que, por pouco dinheiro, conseguiu um acordo para
evitar que o caso fosse a tribunal.
- Não havia testemunhas.
- Apenas a cliente. E os autos provavam que qualquer das suas ex-mulheres tinha
pedido o divórcio por adultério.
- Nunca conseguiram provar.
- Não tiveram oportunidade. Nós não deixamos, lembra-se?
- Pronto! Chega, chega... Eu disse que vou ajudar. E que fazemos com minhas
referências?
- Será que me apareceu um destes pessimistas compulsivos...
- Não, é que fico nervoso só de pensar em tribunais.
- A sua papelada está em ordem. Foi qualificado como perito para efeito de
testemunho. Não fique tão preocupado.
- E quanto a isto? - ergueu o copo.
- Não devia beber tanto - disse Lucien, virtuosamente.
O médico baixou o copo e deu uma sonora gargalhada. Levantou-se pesadamente
da cadeira e foi até à beira da varanda, rindo ao mesmo tempo em que segurava a
barriga.
- O senhor está bêbado - disse Lucien, entrando em casa para ir buscar outra
garrafa.

Quando Jake chegou, uma hora depois, Lucien estava balançando-se suavemente
na enorme cadeira de vime. O médico dormia no balanço de dois lugares, na outra
extremidade da varanda. Estava descalço, com os pés enfiados nos arbustos. Jake subiu
os degraus e Lucien voltou-se sobressaltado.
- Jake, meu rapaz, como está? - perguntou com voz pastosa.
- Bem, muito obrigado, Lucien. Vejo que está ótimo. - Olhou para a garrafa vazia e
a outra pela metade.
- Queria que você conhecesse aquele homem - disse Lucien, fazendo um esforço
para endireitar o corpo na cadeira.
- Quem é?
- O nosso psiquiatra. Dr. W T. Bass, de Jackson. Um grande amigo meu. Ele vai
nos ajudar no caso Hailey.
- Ele é bom?
- O melhor. Trabalhamos juntos em vários casos de insanidade.
Jake deu alguns passos na direção do balanço e parou. O médico estava deitado
de costas com a camisa desabotoada e a boca escancarada. Roncava alto. Um moscardo
quase do tamanho de um pardal voava em volta do nariz dele e era atirado ao ar cada vez
que ele respirava. Um cheiro rançoso saía da boca do médico e pairava como uma névoa
invisível no ar.
- Ele é médico?-perguntou Jake, sentado ao lado de Lucien.
- Psiquiatra - disse Lucien, com orgulho.
- Ele o ajudou nisso? - apontou para as garrafas.
- Eu é que o ajudei. Ele bebe como uma esponja, mas está sempre sóbrio no
tribunal.
- É um alívio saber disso...
- Vai gostar dele. É barato. Está me devendo um favor. Não vai custar nada.
- Já estou gostando dele...
A cara de Lucien estava tão vermelha como os olhos.
- Quer um copo?
- Não. São três e meia da tarde.
- São? Que dia é hoje?
- 12 de Junho, quarta-feira. Há quanto tempo é que estão bebendo?
- Uns trinta anos. - Lucien riu e fez tilintar os cubos de gelo no copo.
- Quero dizer, hoje.
- Tomamos o café da manhã. Que importância é que isso tem?
- Ele trabalha?
- Não, está aposentado.
- Aposentadoria voluntária?
- Quer dizer, se foi expulso, ou coisa assim?
- Ou coisa assim.
- Não. Ainda tem a licença e as referências são impecáveis.
- Ele parece impecável.
- A bebida apoderou-se dele há alguns anos. A bebida e as pensões alimentares.
Fui eu quem tratou dos três divórcios dele. Chegou a um ponto em que tudo quanto
ganhava ia para as pensões e sustento dos filhos, por isso parou de trabalhar.
- De que é que ele vive?
- Nós, bem, quero dizer, ele tinha algum dinheiro guardado. Conseguiu escondê-lo
das mulheres e dos seus ávidos advogados. Na verdade, ele governa-se muito bem.
- Sim, parece que sim.
- Além disso, vende um pouco de droga, mas só para uma clientela rica. Não
realmente drogas, mas narcóticos que ele pode receitar legalmente. Na verdade, não é
ilegal, apenas um pouco contra a ética.
- Que faz ele, aqui?
- Vem visitar-me uma vez por outra. Vive em Jackson, mas detesta a cidade. Eu
telefonei no domingo à noite, depois de ter falado com você. Ele quer ver o Hailey o mais
depressa possível, amanhã, se puder.
O médico rosnou e virou-se de lado, fazendo oscilar bruscamente o balanço.
Esticou a perna direita e o pé foi encostar-se num galho grosso do arbusto. O balanço
virou-se de lado e atirou o bom doutor ao chão. A cabeça bateu no soalho de madeira e o
pé direito ficou preso na ponta do balanço. O médico fez uma careta, tossiu e continuou
dormindo. Jake instintivamente adiantou-se para ele, mas parou quando percebeu que
não tinha se machucado e dormia calmamente.
- Deixe o homem em paz! - ordenou Lucien, com uma gargalhada.
Lucien atirou um cubo de gelo, fazendo-o deslizar pelo soalho na direção do
médico e quase lhe acertou na cabeça. O segundo cubo acertou-lhe a ponta do nariz.
- Pontaria perfeita! - disse Lucien, com uma gargalhada. - Acorde, seu bêbado!
Jake desceu os degraus da varanda e encaminhou-se para o carro, ao som das
gargalhadas e das imprecações do seu antigo patrão, que continuava a atirar cubos de
gelo no Dr. W T. Bass, psiquiatra, testemunha da defesa.
O policial DeWayne Looney saiu do hospital de muletas e foi de carro com a
mulher e os três filhos para o edifício da cadeia, onde o xerife, os sub delegados, os
reservas e alguns amigos esperavam com um bolo e presentes. Looney ia ser operador
de rádio, com direito ao distintivo, uniforme e salário integral.


VINTE E UM

O salão de reuniões da igreja Springdale fora lavado e encerado e fora limpo o pó
das mesas e cadeiras de dobrar colocadas em filas perfeitas em volta da sala. Era a
maior igreja negra de Ford County e ficava em Clanton, por isso o reverendo Agee achou
que era o lugar mais indicado. O objetivo da conferência de imprensa era tornar público o
apoio ao cidadão bem sucedido e anunciar a criação do Fundo para a Defesa Legal de
Carl Lee Hailey. O diretor nacional da Associação Nacional para o Progresso dos Homens
de Cor compareceu com um cheque de cinco mil dólares e a promessa de uma soma
ainda maior depois. O diretor-executivo da filial de Memphis pôs cinco mil na mesa, com
um gesto imponente. Sentaram-se com Agee atrás das duas mesas de dobrar na frente
da sala, com todos os membros do conselho sentados atrás deles e duzentos fiéis das
igrejas negras no templo completamente cheio. Gwen sentou-se ao lado de Agee. Alguns
repórteres e algumas câmeras, em número muito menor do que esperavam, no centro da
sala, filmavam a cena.
Agee foi o primeiro a falar e sentiu-se inspirado pelas câmeras. Falou dos Hailey,
da sua bondade e inocência, e de ter batizado Tonya quando ela tinha apenas oito anos.
Falou de uma família arrasada pelo racismo e pelo ódio. Assoaram-se narizes no
auditório. A seguir, tornou-se áspero. Criticou acerbamente o sistema judiciário por
processar um homem bom e decente que não tinha feito nada de mal, um homem que, se
fosse branco, não iria a julgamento, um homem que ia ser julgado porque era negro, e
isso era o que não era justo no processo e na acusação a Carl Lee Hailey. Agee
encontrou o ritmo e os ouvintes acompanharam-no, e a entrevista vibrou com o fervor de
uma cerimônia religiosa. Agee falou durante quarenta e cinco minutos.
Ele era difícil de igualar. Mas o diretor nacional não hesitou. Durante trinta minutos
proferiu uma eloqüente condenação do racismo. Aproveitou a oportunidade e citou as
estatísticas nacionais de crimes, prisões, condenações e população carcerária,
concluindo com a afirmação de que o sistema judiciário penal era controlado por brancos
que perseguiam injustamente os negros. Então, numa desconcertante guinada na
exposição, ele transportou as estatísticas nacionais para Ford County e declarou que o
sistema não tinha competência para julgar Carl Lee Hailey. As luzes das câmeras
mostraram um fio de suor acima das suas sobrancelhas e ele começou a ficar inflamado.
Mais furioso do que o reverendo Agee, batia com as mãos no pódio, fazendo saltar e
estremecer os microfones. Exortou os negros de Ford County e do Mississipi a doar todo
o dinheiro que pudessem. Prometeu manifestações. O julgamento seria um grito de
guerra para negros e oprimidos de toda a parte.
Respondeu a perguntas. Quanto dinheiro pretendiam levantar? Pelo menos
cinqüenta mil, esperavam. A defesa de Carl Lee Hailey ia ser muito dispendiosa, e
cinqüenta mil talvez não bastassem, mas eles conseguiriam tanto quanto fosse
necessário. Porém, o tempo era curto. Para onde iria o dinheiro? Honorários advogados e
custos processuais. Uma bateria de advogados e médicos seria mobilizada. Seriam
usados advogados da associação? Sem dúvida. A equipe jurídica de Washington já
estava trabalhando no caso. A unidade de defesa de processos de pena capital se
encarregaria de todos os aspectos do julgamento. Carl Lee Hailey tornara-se a sua
principal prioridade e todos os recursos disponíveis seriam dirigidos para a defesa dele.
Quando terminou, o reverendo Agee voltou ao pódio e fez com a cabeça um sinal
para o pianista num canto da sala. Começou a música. Todos se puseram de pé, de mãos
dadas, e produziram uma arrebatadora interpretação de "We Shall Overcome".
Jake leu no jornal de terça-feira a reportagem sobre o levantamento de fundos. Já
tinha ouvido alguma coisa sobre o peditório especial que seria administrado pelo
conselho, mas constava que o dinheiro era para ajudar a família. Cinqüenta mil para os
honorários dos advogados! Ficou furioso, mas interessado. Será que ia ser despedido
outra vez? E se Carl Lee recusasse os advogados da associação, o que ia acontecer ao
dinheiro? Faltavam cinco semanas para o julgamento, tempo suficiente para a equipe de
defesa da associação invadir Clanton. Jake lera acerca desses advogados, uma equipe
de seis especialistas em crimes puníveis com pena de morte que percorriam o sul
defendendo negros acusados de crimes hediondos e famigerados. "O esquadrão da
morte", como era conhecido. Eram advogados brilhantes, cheios de talento, muito cultos,
que se dedicavam à tarefa de salvar das câmeras de gás e das cadeiras elétricas, em
todo o Sul, os assassinos negros. Tratavam unicamente de crimes de homicídio e eram
muito bons no que faziam. A sua interferência era conduzida pela associação, que
levantava fundos, organizava os negros da região, gerando publicidade. O racismo era a
sua melhor e, às vezes, única tática de defesa e embora perdessem mais do que
ganhavam, os resultados finais não eram dos piores. Os processos em que trabalhavam
eram todos supostamente causas perdidas. O objetivo era apresentar o réu como vítima
perante os jurados, na esperança de evitar que o júri chegasse a uma decisão.
Agora vinham a Clanton.
Uma semana antes, Buckley dera entrada nos requerimentos pedindo que Carl
Lee fosse examinado pelos médicos do estado. Jake solicitou que os médicos fizessem
os exames em Clanton, de preferência no escritório de Jake. Noose indeferiu e mandou o
xerife conduzir Carl Lee ao Hospital de Alienados do Estado do Mississipi em Whitfield.
Jake requereu que lhe fosse permitido acompanhar o seu cliente e estar presente durante
os exames. Noose indeferiu de novo.
Na quarta-feira, muito cedo, Jake e Ozzie tomavam café no escritório do xerife
enquanto Carl Lee tomava banho e mudava de roupa. Whitfield ficava a três horas de
carro de Clanton e ele devia estar no hospital às nove. Jake queria dar as últimas
instruções ao seu cliente.
- Quanto tempo é que vão lá ficar? - perguntou Jake a Ozzie.
- O senhor é que é o advogado. Quanto tempo vai demorar?
- Três ou quatro dias. Já lá esteve lá, não esteve?
- É claro que sim, tivemos de transportar uma porção de gente maluca. Mas nada
igual a isto. Aonde vai ele ficar?
- Eles têm todo o tipo de celas.
O sub delegado Hastings entrou negligentemente no escritório, com ar de sono e
mastigando uma carcaça da véspera. - Quantos carros levamos?
- Dois - respondeu Ozzie. - Eu conduzo o meu e você o seu. Levo Pirtle e Carl Lee
e você leva Riley e Nesbit.
- Armas?
- Três em cada carro. Muitas munições. Todas as pessoas com colete à prova de
bala, incluindo Carl Lee. Prepare os carros. Quero sair às cinco e meia. Hastings
resmungou qualquer coisa e saiu.
- Está à espera de problemas? - perguntou Jake.
- Recebemos alguns telefonemas. Dois em especial mencionaram a viagem a
Whitfield. Há muito chão daqui até lá.
- Que caminho vão fazer?
- A maioria das pessoas vai pela 22 para a interestadual, não é? Talvez seja mais
seguro escolher estradas secundárias. Provavelmente, seguiremos pela 14 para o Sul até
à 89.
- Ninguém vai pensar nesse caminho.
- Ainda bem. E ainda bem que você aprova.
- Ele é meu cliente, sabe?
- Pelo menos por enquanto.
Carl Lee comeu rapidamente os ovos e biscoitos, enquanto Jake o informava do
que o aguardava na sua estada em Whitfield.
- Eu sei, Jake. Você quer que eu banque o maluco, certo? - disse ele, rindo.
Ozzie também achou graça.
- Isto é sério, Carl Lee! Ouça o que lhe digo.
- Porquê? O senhor mesmo disse que não tem importância o que eu disser ou fizer
lá. Eles não vão dizer que eu estava louco quando matei os dois. Os médicos trabalham
para o estado, certo? O estado é que está me processando, certo? Que diferença faz o
que eu fizer ou disser. Eles já têm uma opinião. Não é isso, Ozzie?
- Eu não tenho nada a ver com isso. Eu trabalho para o estado.
- Você trabalha para o condado - disse Jake.
- Nome, patente e número. Isso é tudo o que eles vão conseguir de mim - disse
Carl Lee, esvaziando um saquinho de papel.
- Muito engraçado - disse Jake.
- Ele está maluco, Jake - disse Ozzie.
Carl Lee enfiou dois canudinhos no nariz e começou a andar pela sala, olhando
para o teto e depois agarrando em qualquer coisa por cima da cabeça. Pegava-lhe e
guardava no saco de papel. Hastings voltou e parou na porta. Com um largo sorriso e
olhos furiosos, Carl Lee apanhou outra coisa imaginária no ar.
- Que diabo ele está fazendo? - perguntou Hastings.
- Caçando borboletas - disse Carl Lee.
Jake pegou a pasta e encaminhou-se para a porta.
- Eu acho que você devia deixá-lo em Whitfield. - Bateu com a porta e saiu.
Noose tinha marcado para segunda-feira, 24 de Junho, em Clanton, a audiência
para determinar o local do julgamento. Seria uma audiência demorada e com muita
publicidade. Jake solicitara a transferência de foro e competia à defesa provar que Carl
Lee não teria um julgamento justo e imparcial em Ford County. Ia precisar de
testemunhas. Pessoas com credibilidade na comunidade, dispostas a testemunhar no
sentido de que não era possível um julgamento justo. Atcavage disse que poderia
testemunhar como um favor pessoal, mas o banco talvez não aprovasse o seu
envolvimento no caso. Harry Rex ofereceu-se como voluntário. O reverendo Agee disse
que teria prazer em testemunhar, mas isso fora antes da associação anunciar que os
seus advogados iriam tratar do caso. Lucien não tinha credibilidade e Jake não pensou
seriamente em lhe pedir.
Buckley, por seu lado, ia apresentar uma dúzia de testemunhas com credibilidade -
pessoas eleitas para cargos públicos, advogados, homens de negócios, talvez outros
xerifes - todas dispostas a declarar que tinham ouvido falar vagamente de Carl Lee Hailey
e garantir que ele podia ter um julgamento justo em Clanton. Pessoalmente, Jake preferia
que o julgamento fosse em Clanton, no seu tribunal do outro lado da rua, em frente de
toda a população. Julgamentos significavam pressão intensa e constante, noites sem
dormir, experiências penosas e difíceis. Seria muito melhor passar por tudo isso numa
arena conhecida, a três minutos do seu prédio. Durante os intervalos, poderia aproveitar o
tempo livre para fazer pesquisas no escritório, preparar testemunhas, ou descansar.
Podia comer no Coffee Shop ou no Claude's, ou ir até casa para um almoço rápido. O seu
cliente podia ficar na cadeia de Ford County, perto da família.
Além disso, é claro, a sua presença na mídia seria mais constante. Os repórteres
iam se reunir em frente do seu escritório, todas as manhãs, e acompanhar o seu passo
lento até o tribunal. Era uma visão que lhe agradava. Teria importância o local onde eles
iam julgar Carl Lee Hailey? Lucien tinha razão. A publicidade alcançara todos os
condados do Mississipi. Então, por que mudar o local? A sua culpa ou a sua inocência já
tinha sido pré-julgada por cada um dos possíveis jurados do estado.
Mas era claro que importava. Alguns desses jurados eram brancos, outros negros.
Pela lógica da estatística, em Ford County os brancos seriam em maior número do que
nos outros condados. Jake adorava jurados negros, especialmente para casos de
homicídio e especialmente quando o acusado era negro. Não tinham ânsia de condenar.
Tinham a mente aberta. Jake também preferia os negros para as ações cíveis.
Identificavam-se sempre com o desprivilegiado, contra as grandes firmas ou companhias
de seguros, e eram mais liberais com o dinheiro dos outros. Via de regra, Jake escolhia o
maior número possível de jurados negros, mas em Ford County eles eram escassos.
Era imperioso que o caso fosse julgado em outro condado, numa cidade mais
negra. Um só negro podia impedir uma decisão por unanimidade. Uma maioria podia
forçar, talvez, uma absolvição. Não era agradável a idéia de passar duas semanas num
motel e num tribunal desconhecido, mas os pequenos desconfortos eram grandemente
superados pela necessidade de contar com rostos negros no júri.
Lucien havia analisado minuciosamente a questão da transferência de local.
Obedecendo, embora com relutância, às instruções, Jake chegou a casa de Lucien
pontualmente às oito horas da manhã. Sallie serviu o café da manhã na varanda. Jake
bebeu suco de laranja e café, Lucien, uísque e água. Durante três horas, estudaram todos
os aspectos da transferência de foro. Lucien tinha cópias de todos os casos do Supremo
Tribunal nos últimos oitenta anos e deu uma verdadeira aula. O aluno tomou notas,
discutiu uma ou duas vezes, mas, durante o resto do tempo, limitou-se a ouvir.
Whitfield ficava a poucos quilômetros de Jackson, na região rural de Rankin
County. Dois guardas esperavam no portão, discutindo com os repórteres. Carl Lee devia
chegar às nove. Era tudo quanto sabiam. Às oito e meia, dois carros-patrulha com a
insígnia de Ford County pararam em frente do portão. Os repórteres e os seus
cameramen correram para o motorista do primeiro carro. O vidro, no lado de Ozzie,
estava descido.
- Onde está Carl Lee Hailey? - gritou um repórter, em pânico.
- Está no outro carro - disse Ozzie, com voz arrastada, piscando o olho a Carl Lee,
sentado no banco de trás.
- Ele está no segundo carro! - gritou alguém e eles correram para o carro de
Hastings.
- Onde está Hailey? - perguntaram.
Pirtle, no banco da frente, apontou para Hastings, que estava ao volante.
- Aí está ele.
- O senhor é Carl Lee Hailey? - gritou um repórter para Hastings.
- Sou eu.
- Porque vem a guiar o carro?
- Porque está de uniforme?
- Porque agora sou um policial - respondeu Hastings, com a cara mais séria do
mundo.
O portão abriu-se e os dois carros entraram. Carl Lee foi identificado no edifício
principal e depois conduzido, com Ozzie e os policiais, para outro edifício onde o puseram
numa cela, ou quarto, como lhe chamavam. Fecharam a porta. Ozzie e os seus homens
foram dispensados e voltaram para Clanton.
A seguir ao almoço, um assistente com uma prancheta e bata branca entrou no
quarto e começou a fazer perguntas. Começando pelo nascimento, fez perguntas acerca
de todos os acontecimentos e de todas as pessoas importantes da sua vida. O
interrogatório durou duas horas. Às quatro da tarde, dois guardas de segurança
algemaram Carl Lee e levaram-no num carrinho de golfe para um edifício moderno, de
tijolos, a seiscentos metros do quarto dele. Foi conduzido ao consultório do Dr. Wilbert
Rodeheaver, chefe da equipe. Os guardas esperaram no corredor, ao lado da porta.


VINTE E DOIS

Billy Ray Cobb e Pete Willard estavam mortos há cinco semanas. Faltavam quatro
semanas para o julgamento. Os três motéis de Clanton estavam com todas as reservas
esgotadas para a semana do julgamento. O Best Westem era o maior e melhor e foi o
preferido pela imprensa de Jackson e de Memphis. O Clanton Court tinha o melhor bar e
restaurante e estava reservado para os repórteres de Atlanta, Washington e Nova York.
No menos elegante East Side Motel o preço das diárias duplicou para o mês de Julho,
mas mesmo assim todos os quartos estavam reservados.
De início, a cidade tratara cordialmente aqueles estranhos, a maioria mal-educada
e com sotaques diferentes. Porém, algumas reportagens sobre Clanton foram pouco
lisonjeiras e os moradores obedeciam agora a um código secreto de silêncio. Um café
barulhento ficava silencioso assim que aparecia um estranho. Os comerciantes da praça
não atendiam de boa vontade os desconhecidos. Os funcionários do tribunal eram surdos
às perguntas, repetidas milhares de vezes, pelos intrusos barulhentos. Até os repórteres
de Jackson e de Memphis tinham dificuldade em sacar alguma informação. A população
da cidade estava farta de ser descrita como atrasada, burra e racista. Todos ignoravam os
estranhos e tratavam da própria vida.
O bar no Clanton Court tornou-se o ponto de reunião dos repórteres. Era o único
lugar na cidade onde podiam encontrar uma cara amiga e uma boa conversa. Sentavam-
se às mesas entre as divisórias baixas sob a grande tela de televisão, e falavam sobre a
cidade e o julgamento. Comparavam notas, reportagens e boatos, e bebiam até se
embriagarem porque não tinham mais nada para fazer em Clanton durante a noite.
Na noite de domingo, 23 de Junho, véspera da audiência para transferência do
local do julgamento, os motéis ficaram cheios. Na segunda-feira de manhã, reuniram-se
no restaurante do Best Westem para tomar café e fazer conjecturas. A audiência era o
primeiro confronto importante e podia ser a única ocorrência no tribunal, antes do
julgamento. Correu o boato de que Noose estava doente, que não queria presidir ao
julgamento e que ia pedir ao Supremo Tribunal a indicação de outro juiz. Apenas um
boato, sem fonte e nada mais definido, disse um repórter de Jackson. Às oito horas,
pegaram as câmeras e os microfones e foram para a praça. Um grupo ficou no lado de
fora da cadeia, outro nos fundos do edifício do tribunal, mas a maioria foi para a sala do
tribunal. Às oito e meia, o recinto estava cheio.
Da varanda do seu escritório, Jake observava a atividade em volta do tribunal.
Tinha o pulso acelerado e sentia um nó no estômago. Jake sorriu. Estava pronto para
Buckley, pronto para as câmeras.
Noose olhou para baixo, para além do nariz avantajado, por cima dos óculos de
leitura, e examinou a sala repleta. Todas as pessoas estava a postos.
- O tribunal tem diante de si - começou ele - o requerimento do acusado com vista
à transferência de foro. O julgamento deste caso está marcado para 22 de Junho,
segunda-feira. Quatro semanas a partir de hoje, pela minha agenda. Estabeleci um prazo
fatal para a apresentação de moções e a solução das mesmas e acredito que sejam os
dois únicos prazos marcados, entre o dia de hoje e o dia do julgamento.
- Exatamente, Meritíssimo - trovejou Buckley, levantando-se a meio da cadeira.
Jake revirou os olhos e abanou a cabeça.
- Muito obrigado, Dr. Buckley - disse Noose secamente. - O acusado comunicou
formalmente que pretende alegar insanidade em sua defesa. Ele foi examinado em
Whitfield?
- Sim, senhor, Meritíssimo, na semana passada - respondeu Jake.
- Ele vai usar o seu psiquiatra particular?
- É claro, Meritíssimo.
- Ele foi examinado pelo seu psiquiatra?
- Sim, Meritíssimo.
- Muito bem. Então, isto está resolvido. Que outras moções espera apresentar?
- Meritíssimo, esperamos apresentar uma moção pedindo ao oficial de justiça para
citar mais do que o número habitual de possíveis jurados...
- O estado fará objeção a essa moção - gritou Buckley, levantando-se de um salto.
- Sente-se, Dr. Buckley! - disse Noose com severidade, arrancando os óculos do
nariz e olhando furioso para o promotor. - Por favor, não volte a gritar comigo... É claro
que se vai opor. O senhor vai objetar contra toda e qualquer moção apresentada pela
defesa. É esse o seu trabalho. Não interrompa outra vez. O senhor terá ampla
oportunidade, depois de suspendermos a sessão, de apresentar a sua performance aos
meios de comunicação.
Buckley sentou-se pesadamente e procurou esconder a cara vermelha. Era a
primeira vez que Noose gritava com ele.
- Continue, Dr. Brigance.
Jake ficou assustado com o mau humor de Ichabod. O juiz parecia cansado e
doente. Talvez fosse a pressão do caso.
- Vamos talvez apresentar por escrito algumas objeções às provas previstas.
- Moções in limine?
- Sim, senhor.
- Ouviremos isso no julgamento. Mais alguma coisa?
- Não, de momento.
- Agora o senhor, Dr. Buckley, o estado vai apresentar alguma moção?
- De momento não me ocorre nenhuma - respondeu Buckley, com mansidão.
- Ótimo. Quero ter certeza de que não haverá surpresas de hoje até o julgamento.
Estarei na cidade uma semana antes do julgamento para ouvir e resolver qualquer
pendência anterior ao julgamento. Espero que qualquer moção seja apresentada
imediatamente, para que possa ser resolvida muito antes do dia 22 de Julho. Noose
examinou os autos e leu a moção apresentada por Jake para transferência de local. Jake
falou em voz baixa com Carl Lee, cuja presença não era exigida para aquela audiência,
mas que insistira em comparecer. Gwen e os três rapazes estavam na primeira fila, atrás
dele. Tonya não estava presente.
- Dr. Brigance, a sua moção parece estar em ordem. Quantas testemunhas?
- Três, Meritíssimo.
- Dr. Buckley, quantas vai chamar?
- Temos vinte e uma - disse Buckley, com orgulho.
- Vinte e uma! - berrou o juiz.
Buckley encolheu-se e olhou para Musgrove.
- M-m-as provavelmente não precisaremos de todas. Na verdade, sei que não
chamaremos todas.
- Escolha as cinco melhores, Dr. Buckley. Não pretendo passar o dia inteiro aqui.
- Sim, Meritíssimo.
- Dr. Brigance, o senhor pediu transferência de foro. A moção é sua. Pode
prosseguir.
Jake caminhou lentamente pela sala, passou por trás de Buckley e foi até ao pódio
de madeira em frente da bancada dos jurados.
- Meritíssimo, o Sr. Hailey submete à aprovação deste tribunal o seu pedido para
que o local do seu julgamento seja transferido de Ford County. A razão é óbvia. A
publicidade neste caso impedirá que seja feito um julgamento justo. O bom povo deste
condado já pré-julgou a culpa ou a inocência de Carl Lee Hailey. Ele é acusado da morte
de dois homens, ambos nascidos e com família nesta cidade. As vidas não foram
famosas, mas as suas mortes foram, sem dúvida... Até agora, o Sr. Hailey era conhecido
por poucas pessoas estranhas a esta comunidade. Agora, todos neste condado sabem
quem ele é, sabem tudo sobre a família dele e sobre a filha e o que lhe aconteceu, e
conhecem a maioria dos detalhes dos crimes alegados. Será impossível encontrar uma
dúzia de pessoas em Ford County que não tenha pré-julgado o caso. Este julgamento
deve ser feito noutro local do estado, onde a população não esteja tão familiarizada com
os fatos.
- O senhor poderia sugerir algum local? - interrompeu o juiz.
- Eu não recomendaria nenhum local específico, mas deveria ser o mais distante
possível. Talvez a Costa do Golfo.
- Porquê?
- Por motivos óbvios, Meritíssimo. Fica a mais de seiscentos quilômetros de Ford
County e tenho certeza de que a população de lá não sabe tanto sobre o caso como a
daqui.
- E o senhor acha que a população do Sul do Mississipi não ouviu nada sobre o
caso?
- Tenho certeza de que ouviu. Mas está muito mais distante.
- Mas eles têm televisão e jornais, não têm, Dr. Brigance?
- Estou certo que sim.
- Acredita que poderá encontrar, em qualquer condado deste estado, doze
pessoas que não tenham conhecimento dos detalhes deste caso?
Jake olhou para o seu bloco de notas. Ouvia os artistas desenhando nos seus
blocos, atrás dele. Com o canto dos olhos viu o sorriso sarcástico de Buckley.
- Seria difícil, Meritíssimo - disse Jake, em voz baixa.
- Chame a sua primeira testemunha.
Harry Rex Vonner prestou juramento e sentou-se. A cadeira giratória de madeira
estalou e rangeu sob seu peso. Ele soprou no microfone e um silvo agudo ecoou no
recinto. Vonner sorriu para Jake e inclinou levemente a cabeça.
- Como se chama?
- Harry Rex Vonner.
- Residência?
- Cedarbush 8493, Clanton, Mississipi.
- Há quanto tempo vive em Clanton?
- Desde que nasci. Quarenta e seis anos.
- Profissão?
- Sou advogado. Licenciado há vinte e dois anos.
- Conhece Carl Lee Hailey?
- Eu o vi uma vez.
- O que sabe a respeito dele?
- Que supostamente matou dois homens, Billy Ray Cobb e Pete Willards e feriu um
policial, DeWayne Looney.
- Conhecia algum desses homens?
- Não pessoalmente. Tinha ouvido falar de Billy Ray Cobb.
- Como soube dos crimes?
- Bem, aconteceu numa segunda-feira, se não me engano. Eu estava no tribunal,
no primeiro andar, verificando o título de propriedade de umas terras na sala do
escriturário, quando ouvi os tiros. Corri para o corredor e a confusão era geral. Perguntei
a um policial o que estava acontecendo e ele me disse que os homens tinham sido mortos
perto da porta dos fundos do edifício do tribunal. Fiquei por ali mais algum tempo e pouco
depois ouvi dizer que o assassino era o pai da menina violentada.
- Qual foi sua primeira reação?
- Fiquei chocado, como a maior parte das pessoas. Mas também fiquei chocado
quando soube do estupro.
- Quando soube que o Sr. Hailey tinha sido preso?
- Naquela mesma noite. Foi noticiado em todas as estações de televisão.
- O que viu o senhor na televisão?
- Bem, procurei ver o máximo possível. Havia noticiários sobre o crime nas
estações locais, em Memphis e Tupelo. Nós temos televisão a cabo, como o senhor sabe,
e eu vi os noticiários de Nova Iorque, Chicago e Atlanta. Quase todos os canais tinham
alguma notícia sobre os crimes e a prisão. Mostravam o tribunal de justiça e a cadeia. Foi
um grande acontecimento. O maior em toda a história de Clanton, Mississipi.
- Qual foi sua reação quando soube que o pai da menina era o suposto assassino
dos dois homens?
- Não foi surpresa para mim. Quero dizer, nós todos, de certa forma, achamos que
devia ter sido ele. Admirei-o. Tenho filhos, e simpatizo com o que ele fez. E continuo a
admirá-lo.
- O que sabe sobre o estupro?
Buckley levantou-se de um salto.
- Protesto! O estupro é irrelevante!
Noose arrancou outra vez os óculos do nariz e olhou furioso para o promotor.
Alguns segundos se passaram e Buckley olhou para a mesa. Passou o peso do corpo de
um pé para outro e sentou-se. Noose, inclinado para frente, continuava olhando para ele.
- Dr. Buckley, não grite comigo! Se fizer isso outra vez, juro por Deus, que mando
prendê-lo por desacato. Talvez tenha razão, o estupro é irrelevante. Mas isto não é um
julgamento, ou será que é? Isto é simplesmente uma audiência, não é? Não temos um
júri, ou temos? Objeção negada e inoportuna. Agora, fique sentado. Sei que é difícil, com
este tipo de audiência, mas eu ordeno que fique sentado a não ser que tenha alguma
coisa importante para dizer. Nesse caso, pode levantar-se e dar a sua opinião,
educadamente e sem gritar.
- Obrigado, Meritíssimo - disse Jake, sorrindo para Buckley. - Agora, Dr. Vonner,
como eu estava dizendo, o que sabia sobre o estupro?
- Só o que ouvi dizer.
- E o que foi que ouviu?
Buckley levantou-se e inclinou o corpo para frente como um japonês lutador de
sumô.
- Se me permite, Meritíssimo - disse suavemente, em voz baixa. - Eu gostaria de
fazer uma objeção, com a autorização do tribunal. A testemunha deve apenas prestar
declarações sobre o que sabe em primeira mão, não sobre o que ouviu a outrem.
Noose respondeu com a mesma suavidade:
- Muito obrigado, Dr. Buckley. A sua objeção foi anotada e indeferida. Por favor,
Dr. Brigance, continue.
- Obrigado, Meritíssimo. O que ouviu sobre o estupro?
- Cob e Willard apanharam a menina Hailey e levaram-na para um lugar qualquer
do bosque. Estavam bêbados. Eles amarraram-na a uma árvore, violentaram-na várias
vezes e tentaram enforcá-la. Até urinaram nela.
- Eles o quê?!!! - perguntou Noose.
- Urinaram nela, Sr. Dr. Juiz.
Um murmúrio percorreu o tribunal. Jake não tinha ouvido falar nisso, Buckley
também não e evidentemente ninguém sabia, a não ser Harry Rex. Noose abanou a
cabeça e bateu, de leve, com o martelo. Jake fez algumas anotações no seu bloco,
admirado com esse conhecimento abstruso do amigo sobre o fato.
- Onde ouviu falar do estupro?
- Em toda a cidade. É público e notório. Na manhã seguinte, os policiais
descreviam os detalhes no Coffee Shop. Todos sabem.
- É de conhecimento público em todo o condado?
- Sim. No último mês, todas as pessoas com quem falei sabiam detalhes do
estupro.
- Conte o que sabe sobre a morte dos dois homens.
- Bem, como eu já disse, foi na tarde de segunda-feira. Os homens estavam no
tribunal para a audiência que decidiria a fiança, se não me engano, e quando saíram do
tribunal, foram algemados e conduzidos pelos policiais pela escada dos fundos. Quando
estavam no fundo da escada, o Sr. Hailey saltou de dentro de um armário com uma M-16.
Os dois foram mortos e DeWayne Looney foi ferido. Uma parte da perna dele teve de ser
amputada.
- Exatamente, onde aconteceu isso?
- Bem mais abaixo de onde nos encontramos agora, na entrada dos fundos do
edifício do tribunal. O Sr. Hailey estava escondido no armário do contínuo e saiu lá de
dentro, de repente, começando a disparar.
- Acredita que isso seja verdade?
- Eu sei que é.
- Onde ficou sabendo todas essas coisas?
- Aqui e ali. Na cidade. Nos jornais. Todas as pessoas sabem.
- Onde ouviu conversas sobre o crime?
- Em toda parte. Nos bares, nas igrejas, no banco, na lavanderia, no Tea Shoppe,
nos cafés, nos bares. Em toda parte.
- Conversou com alguém que acredite que o Sr. Hailey não matou Bill Ray Cobb e
Pete Willard?
- Não. Não vai encontrar uma única pessoa neste condado que acredite nisso.
- A maioria das pessoas da cidade tem opinião formada sobre a culpa ou a
inocência do Sr. Hailey?
- Todos, sem exceção. Ninguém está à margem no que diz respeito a este caso. É
um assunto quente e todos têm opinião formada.
- Na sua opinião, o Sr. Hailey poderia ter um julgamento justo em Ford County?
- Não, senhor. Não há três pessoas neste condado de trinta mil habitantes que não
tenham opinião formada, de uma maneira ou de outra. O Sr. Hailey já foi julgado. Não é
possível formar um júri imparcial.
- Muito obrigado, Dr. Vonner. Não tenho mais perguntas, Meritíssimo.
Buckley ajeitou o penteado, passando as mãos sobre as orelhas para se certificar
de que todos os cabelos estavam no lugar. Caminhou com passos decididos para o pódio.
- Dr. Vonner - disse com voz sonora e imponente -, o senhor já julgou previamente
o Sr. Hailey?
- Com todos os diabos, é claro que sim.
- Modere a linguagem, por favor - advertiu Noose.
- E qual foi seu veredicto?
- Dr. Buckley, deixe-me que lhe diga da seguinte forma. Vou explicar lenta e
cuidadosamente e tenho certeza de que até o senhor vai compreender. Se eu fosse o
xerife, eu não teria efetuado a prisão do Sr. Hailey. Se eu tivesse feito parte do grande
júri, eu não o teria indiciado. Se eu fosse o juiz, eu não o julgaria. Se eu fosse o promotor,
eu não o acusaria. Se eu fizesse parte do tribunal do júri, votaria para que entregassem, a
ele, a chave desta cidade, uma placa para pendurar na parede da casa dele e o mandaria
de volta para a família. E, Dr. Buckley, se a minha filha for violentada algum dia, só espero
ter a coragem de fazer o que ele fez.
- Compreendo. Acha que as pessoas devem possuir armas e resolver as suas
disputas com tiroteios?
- Eu acho que as crianças têm o direito de não serem violentadas e que os pais
têm o direito de protegê-las. Eu acho que filhas pequenas são especiais e se a minha
fosse amarrada a uma árvore e violada por dois viciados, tenho certeza de que ia ficar
louco. Acho que pais bons e decentes deveriam ter o direito assegurado pela Constituição
de executar qualquer pervertido que tocasse nos seus filhos. E acho que o senhor é um
covarde mentiroso quando afirma que não teria vontade de matar o homem que
violentasse a sua filha.
- Dr. Vonner, por favor! - disse Noose. Com esforço Buckley manteve a calma.
- Evidentemente, este caso exerce grande impacto no senhor, não é verdade?
- O senhor é muito observador.
- E o senhor quer ver o acusado absolvido, não é?
- Pagaria para isso se tivesse dinheiro.
- E acha que ele terá melhor oportunidade de ser absolvido em outro condado, não
é assim?
- Acho que ele tem direito a um júri formado por pessoas que não saibam tudo
sobre o caso, antes do começo do julgamento.
- O senhor o absolveria, não é?
- Foi o que eu disse.
- E, sem dúvida, falou com outras pessoas que também pensam assim?
- Falei com muitas.
- Haverá pessoas em Ford County que votassem pela condenação?
- É claro. Muita gente. Ele é negro, não é?
- Em todas as suas conversas neste condado, detectou uma maioria evidente de
um lado ou de outro?
- Na verdade, não.
Buckley fez uma anotação no seu bloco.
- Dr. Vonner, Jake Brigance é seu amigo?
Harry Rex sorriu e revirou os olhos para Noose.
- Dr. Buckley, eu sou advogado. Os meus amigos são poucos e raros. Mas, sim,
ele é um deles. Sim, senhor.
- E ele pediu-lhe para testemunhar?
- Não. Eu entrei por acaso neste recinto há alguns momentos e sentei nesta
cadeira. Nem sequer sabia que ia haver uma audiência esta manhã.
Buckley atirou o bloco de notas para cima da mesa e sentou-se. Harry Rex foi
dispensado.
- Chame a sua próxima testemunha - ordenou Noose.
- Reverendo Ollie Agee - disse Jake.
O reverendo foi levado da sala de espera para o banco das testemunhas. Jake o
tinha procurado na véspera, na igreja, com uma lista de perguntas. Ele queria
testemunhar. Não falaram sobre os advogados da associação. O reverendo era uma
excelente testemunha. A sua voz profunda e áspera não precisava de microfone para
chegar até o fundo da sala. Sim, ele conhecia os detalhes do estupro e da morte dos dois
homens. Os Hailey eram membros da sua igreja. Há anos que os conhecia, eram quase
como parentes e ele tinha segurado nas mãos deles, sofrendo com eles, depois do
estupro. Sim, tinha falado com inúmeras pessoas sobre o ocorrido e todos tinham opinião
formada sobre a culpa ou a inocência de Hailey. Ele e outros vinte e dois pastores
pertenciam ao conselho e todos tinham conversado sobre o caso Hailey. E, não, não
havia ninguém sem opinião formada em Ford County. Na sua opinião, não seria possível
um julgamento justo em Ford County.
Buckley fez uma única pergunta.
- Reverendo Agee, conversou com algum negro que votasse a favor da
condenação de Carl Lee Hailey?
- Não, senhor.
O reverendo foi dispensado e foi sentar-se entre dois dos seus irmãos do
conselho.
- Chame a próxima testemunha - disse Noose.
Jake sorriu para o promotor e disse:
- Xerife Ozzie Walls.
Buckley e Musgrove imediatamente juntaram as cabeças e confabularam. Ozzie
estava do lado deles, do lado da lei e da ordem, o lado da acusação. Não fazia parte do
seu trabalho ajudar a defesa. Isto só prova que não se pode confiar num preto, pensou
Buckley. Eles unem-se todos quando sabem que um deles é culpado.
Jake conduziu o interrogatório de Ozzie para o tema do estupro e o passado de
Cobb e Willard. Foi monótono e repetitivo e Buckley queria objetar. Mas já fora censurado
o suficiente, para um dia. Jake percebeu que Buckley ia ficar calado e tratou o estupro
demoradamente, com todos os detalhes impressionantes. Finalmente, Noose perdeu a
paciência.
- Por favor, Dr. Brigance, o tópico seguinte.
- Sim, Meritíssimo. Xerife Walls, o senhor efetuou a prisão de Carl Lee Hailey?
- Sim.
- Acredita que ele tenha matado Billy Ray Cobb e Pete Willard?
- Acredito.
- Conversou com alguém neste condado que ache que Hailey não os matou?
- Não, senhor.
- A crença geral é de que o Sr. Hailey os matou?
- Sim. Todos acreditam nisso. Pelo menos, todos aqueles com quem falei.
- Xerife, o senhor circula bastante pelo condado?
- Sim, senhor. É meu dever saber o que se passa.
- E fala com muita gente?
- Mais do que posso desejar.
- Encontrou alguém que não tenha ouvido falar do caso Hailey?
Depois de uma pausa, Ozzie respondeu, falando devagar:
- Só um surdo, mudo e cego não sabe do caso de Carl Lee Hailey.
- Encontrou alguém sem opinião formada sobre a sua culpa ou inocência?
- Essa pessoa não existe...
- Ele pode ter um julgamento justo, aqui?
- Não sei dizer. Sei apenas que não vai encontrar doze pessoas que não saibam
tudo sobre o caso.
- Não tenho mais perguntas - disse Jake dirigindo-se a Noose.
- Esta é a sua última testemunha?
- Sim, senhor.
- Vai interrogá-la, Dr. Buckley?
Sem se levantar, Buckley abanou negativamente a cabeça.
- Muito bem - disse o meritíssimo. - Vamos fazer um pequeno intervalo. Eu
gostaria de falar com os advogados no meu gabinete.
O murmúrio de conversas encheu o recinto quando os advogados seguiram o juiz
e o Sr. Pate para o gabinete. Noose fechou a porta e tirou a toga. O Sr. Pate serviu-lhe
uma xícara de café puro.
- Senhores, estou pensando em proibir o acesso da imprensa ao caso, a partir de
hoje, até o fim do julgamento. Estou preocupado com a publicidade e não quero que este
caso seja julgado pela imprensa. Algum comentário?
Buckley empalideceu, profundamente abalado. Abriu a boca mas não conseguiu
dizer nada.
- Boa idéia, Meritíssimo - concordou Jake, engolindo em seco. - Eu tinha pensado
em requerer essa ordem.
- Sim, é claro que pensou. Já notei como o senhor foge da publicidade... O que
acha, Dr. Buckley?
- Bem, a quem se aplicaria a ordem?
- Ao senhor, Dr. Buckley. O senhor e o Dr. Brigance ficariam proibidos de revelar à
imprensa qualquer aspecto do caso ou do julgamento. Seria aplicada a todos, pelo menos
a todos sob o controle deste tribunal. Os advogados, os funcionários de tribunal, o xerife.
- Mas, porquê? - perguntou Buckley.
- Não me agrada a idéia de tê-los, a ambos, julgando este caso através da mídia.
Ambos disputam as luzes das câmeras e já estou imaginando como vai ser o
julgamento... Um circo, é o que vai ser! Não um julgamento, mas um circo com três pistas!
- Noose foi até à janela, resmungando. Parou por um momento, depois continuou a
resmungar. Jake e Buckley trocaram um olhar, depois olharam para o juiz, alto e
desajeitado perto da janela.
- Vou impor a ordem de silêncio, que passa a vigorar imediatamente, até ao fim do
julgamento. A violação da ordem será punida como desobediência ao tribunal. Estão
proibidos de comentarem qualquer aspecto deste caso com a imprensa. Alguma
pergunta?
- Não, senhor - disse Jake, rapidamente.
Buckley olhou para Musgrove e meneou a cabeça.
- Agora, voltando à audiência. Dr. Buckley, disse que tem mais de vinte
testemunhas. De quantas vai precisar, realmente?
- Cinco ou seis.
- Isso é muito melhor. Quem são?
- Floyd Loyd.
- Quem é?
- Supervisor. Primeiro Distrito. Ford County.
- Ele vai testemunhar a respeito de quê?
- Ele vive aqui há cinqüenta anos, e ocupa o cargo de supervisor há uns dez, mais
ou menos. Na opinião dele, é possível um julgamento justo neste condado.
- Devo supor que ele nunca ouviu falar do caso? - perguntou Noose, sarcástico.
- Não tenho certeza...
- Quem mais?
- Nathan Baker. Juiz de Paz. Terceiro Distrito. Ford County.
- O mesmo testemunho?
- Bem, basicamente o mesmo.
- Quem mais?
- Edgar Lee Baldwin, ex-supervisor, Ford County.
- Ele foi indiciado criminalmente há alguns anos, não foi? - perguntou Jake.
Jake nunca tinha visto Buckley tão vermelho. A boca enorme abriu-se e os olhos
brilharam de fúria.
- Não foi condenado - disse Musgrove.
- Eu não disse que foi condenado. Apenas que foi indiciado. O FBI, não foi isso?
- Chega, chega - disse Noose. - Que vai nos dizer o Sr. Baldwin?
- Ele vive aqui desde que nasceu. Conhece a população de Ford County e acha
que o Sr. Hailey pode ter um julgamento justo aqui - respondeu Musgrove.
Buckley continuava mudo, olhando fixamente para Jake.
- Quem mais?
- O Xerife Harry Bryant, Tyler County.
- O Xerife Bryant? O que vai ele dizer? Musgrove falava agora pelo estado.
- Meritíssimo, vamos submeter duas teorias à apreciação do tribunal, em oposição
à moção para transferência de foro. Em primeiro lugar, afirmamos que é possível um
julgamento justo em Ford County. Segundo, se a opinião do tribunal é a de que não é
possível um julgamento justo aqui, o estado contesta, afirmando que a imensa publicidade
sobre o caso já alcançou qualquer jurado em potencial deste estado. Os mesmos
preconceitos e opiniões, contra e a favor, que existem neste condado, existem em todos
os outros condados. Sendo assim, de nada adiantará a transferência do local do
julgamento. Temos testemunhas que apóiam a segunda teoria.
- É um novo conceito, Sr. Musgrove. Acho que nunca ouvi nada parecido!
- Nem eu - disse Jake. - Quem mais?
- Robert Kelly Williams, promoter do Nono Distrito.
- Onde fica isso?
- No extremo sudoeste do estado.
- E ele veio de tão longe, só para testemunhar que todas as pessoas no seu
distrito já julgaram previamente o caso?
- Sim, senhor.
- Quem mais?
- Grady Liston, promotor, Décimo Quarto Distrito.
- O mesmo testemunho?
- Sim, senhor.
- E mais algum?
- Bem, Meritíssimo, temos muitos mais. Mas os depoimentos seriam mais ou
menos semelhantes aos das testemunhas já citadas. - Muito bem, então podemos limitar
as provas a essas seis testemunhas?
- Sim, senhor.
- Vou ouvir as provas deles. Depois, concedo a cada um dos senhores advogados
cinco minutos para concluírem os seus argumentos e dentro de duas semanas darei a
decisão sobre esta moção. Alguma pergunta?
VINTE E TRÊS

Era frustrante ter de dizer não aos repórteres. Eles seguiram Jake quando ele
atravessou a praça Washington. Do outro lado, Jake pediu licença, não fez nenhum
comentário e procurou refúgio no edifício do seu escritório. Um repórter mais ousado, da
Newsweek, entrou atrás dele e pediu para tirar uma fotografia. Queria uma pose com um
ar muito severo tendo como fundo os livros grossos com capa de couro. Jake ajeitou a
gravata e levou o fotógrafo para a sala de conferências, onde posou observando a ordem
de silêncio do tribunal. O fotógrafo agradeceu e saiu.
- Pode conceder-me alguns minutos? - perguntou Ethel delicadamente quando
Jake se dirigia para a escada.
- Evidentemente.
- Porque não se senta? Precisamos conversar. Finalmente, resolveu demitir-se,
pensou Jake, sentando-se ao lado da janela.
- Qual é o problema?
- Dinheiro.
- A senhora é a secretária de escritório de advocacia mais bem paga da cidade.
Teve um aumento há três meses.
- Não se trata do meu dinheiro. Por favor, ouça. O senhor não tem dinheiro
suficiente no banco para pagar as contas do mês. Junho está quase no fim e o nosso
rendimento bruto foi de mil e setecentos dólares. Jake fechou os olhos e passou a mão
pela testa.
- Veja estas contas - disse Ethel, empurrando sobre a mesa uma pilha de faturas. -
Um total de quatro mil dólares! Como vou pagar tudo isto?
- Quanto temos no banco?
- Mil e novecentos dólares, até sexta-feira. Não entrou nada hoje.
- Nada?
- Nem um centavo.
- E o acordo do caso Liford? São três mil de honorários. Ethel abanou a cabeça.
- Dr. Brigance, aquele caso não foi encerrado. O Sr. Liford não assinou a quitação.
O senhor ficou de levá-la a casa dele. Há três semanas, lembra-se?
- Não, não me lembro. E o adiantamento do caso Buck Britt? São mil dólares.
- O cheque dele não tinha cobertura. O banco devolveu-o e está na sua mesa há
duas semanas.
Ethel respirou fundo.
- O senhor deixou de atender os seus clientes. Não responde aos telefonemas
deles e...
- Não me venha com sermões, Ethel!
- E todo o seu trabalho está atrasado um mês!
- Chega.
- Desde que aceitou o caso Hailey. Não pensa noutra coisa. Está obcecado. Esse
caso vai nos levar à falência.
- Vai nos levar! Quantos cheques já deixou de receber, Ethel? Quantas dessas
contas estão vencidas? Quantas?
- Algumas.
- Mas não mais do que de costume, certo?
- Certo, mas e o próximo mês? Faltam quatro semanas para o julgamento.
- Cale-se, Ethel. Cale-se. Se não consegue aguentar a pressão, vá-se embora. Se
não pode ficar calada, então está despedida.
- O senhor gostaria de me despedir, não é?
- A mim, tanto faz...
Ethel era uma mulher forte, sólida. Catorze anos com Lucien tinham-lhe
endurecido a pele e a consciência, mas era mulher e, naquele momento, o lábio tremeu-
lhe e os olhos ficaram cheios de lágrimas. Baixou a cabeça.
- Desculpe - murmurou ela. - É só que estou preocupada.
- Preocupada com quê?
- Comigo e com Bud.
- O que é que aconteceu ao Bud?
- Está muito doente.
- Eu sei.
- Continua com crises de pressão alta. Especialmente depois dos telefonemas. Já
teve três derrames em cinco anos e está prestes a ter outro. Ele está assustado, nós dois
estamos assustados.
-Quantos telefonemas?
-Vários. Ameaçam queimar e explodir a nossa casa. Dizem sempre que sabem
onde moramos, e que se Hailey for libertado vão queimar ou explodir com dinamite a
nossa casa, quando estivermos dormindo... Houve dois que ameaçaram nos matar. Eu
acho que este caso não vale isso.
- Talvez seja melhor você deixar o emprego.
- E morrer de fome? Sabe que Bud não trabalha há dez anos. Onde é que eu
posso trabalhar?
- Ouça, Ethel, eu também tenho recebido ameaças, mas não as levo a sério.
Prometi à Carla que abandonaria o caso se representasse perigo real para a minha
família, e a senhora pode consolar-se com isso. Você e Bud podem ficar tranqüilos. As
ameaças não são sérias. Há uma porção de malucos por aí, à solta.
- É isso que me preocupa. Há por aí gente louca capaz de tudo!
- Não, você preocupa-se demais. Vou pedir ao Ozzie para vigiar a sua casa.
- Vai fazer isso?
- Claro. A minha também está sob vigilância. Acredite em mim, Ethel, não precisa
se preocupar. Provavelmente, são só alguns garotos desordeiros.
Ela enxugou os olhos.
- Desculpe, eu não queria chorar e peço desculpa por andar tão irritada,
ultimamente.
Anda irritada há quarenta anos, pensou Jake.
- Está bem.
- E o que fazemos com isto? - apontou para as faturas.
- Vou arranjar o dinheiro. Não se preocupe.

Willie Hastings terminou o segundo turno às dez horas da noite e marcou o ponto
ao lado do escritório do xerife. Foi diretamente para casa dos Hailey. Era a sua noite de
dormir no sofá.
Todas as noites alguém dormia no sofá da sala de Gwen, um irmão, um primo ou
um amigo. Quarta-feira, era a vez de Hastings.
Era impossível dormir com as luzes acesas. Tonya nem se aproximava da cama
se todas as luzes da casa não estivessem acesas. Aqueles homens podiam estar no
escuro, à sua espera. Tonya os tinha visto muitas vezes, rastejando para a cama dela, à
espreita dentro dos armários. Ouvia as vozes deles do lado de fora da janela e via-lhes os
olhos injetados de sangue, a espreitarem quando ela ia para a cama. Ouvia ruídos no
sótão, como os passos das pesadas botas de cowboy que lhe tinham dado pontapés.
Sabia que estavam lá em cima, à espera de que todos estivessem dormindo, para
descerem e a levarem outra vez para o bosque.
Uma vez por semana, Gwen e o seu irmão mais velho subiam a escada dobrável e
examinavam o sótão com uma lanterna e um revólver.
Nenhuma divisão da casa devia ficar às escuras, quando ela ia para a cama. Certa
noite, quando estava deitada, acordada, ao lado da mãe, a lâmpada do corredor fundiu-
se. Tonya pôs-se a gritar freneticamente até o irmão de Gwen voltar do supermercado
com mais lâmpadas. Tonya dormia com a mãe que a abraçava com força até os
demônios desaparecerem na noite e a menina adormecer finalmente. No começo Gwen
não conseguia dormir com as luzes acesas, mas, passado cinco semanas, passou a
dormir intermitentemente durante a noite. O corpo pequenino a seu lado estremecia e
agitava-se mesmo quando Tonya dormia.
Willie disse boa-noite aos rapazes e beijou Tonya. Mostrou-lhe a sua arma e
prometeu ficar acordado no sofá. Examinou toda a casa e os armários. Só então Tonya se
deitou ao lado da mãe, olhando para o teto e chorando baixinho.
Mais ou menos à meia-noite, Willie tirou as botas e deitou-se no sofá. Tirou o
cinturão com o coldre e a arma e colocou-os no chão, ao seu lado. Estava quase
dormindo quando ouviu o grito. Era o grito horrível e estridente de uma criança sendo
torturada. Pegou a arma e correu para o quarto. Tonya estava sentada na cama, de frente
para a parede, aos gritos e tremendo. Ela os tinha visto na janela, à sua espera. Gwen
abraçou-a com força. Os três rapazes correram para os pés da cama. Carl Lee Jr. foi até
à janela e não viu nada. Naquelas cinco semanas tinham passado várias vezes por aquilo
e sabiam que não podiam fazer nada para a ajudarem.
Gwen a acalmou e a fez deitar no travesseiro.
- Está tudo bem, minha querida, mamãezinha está aqui e o tio Willie também.
Ninguém te vai fazer mal. Está tudo bem, querida.
Tonya queria que tio Willie se sentasse ao lado da janela com a arma e que os
irmãos se deitassem no chão. Eles obedeceram. Tonya gemeu dolorosamente durante
alguns minutos e, a seguir, ficou quieta e imóvel. Willie ficou sentado no chão, ao lado da
janela, até ter certeza de que todos dormiam. Depois, pegou os rapazes, um por um, e
levou-os para as suas camas e cobriu-os carinhosamente. Sentou-se outra vez ao lado da
janela e esperou pelo nascer do dia.

Jake e Atcavage encontraram-se no Claude's, na sexta-feira, para almoçar.
Pediram costeletas e salada de repolho. O restaurante estava cheio como sempre e, pela
primeira vez, em quatro semanas, não havia nenhum rosto estranho. Os fregueses
habituais conversavam e contavam mexericos como sempre. Claude estava em grande
forma - vociferando, metendo-se com os fregueses fiéis e apressando-os. Claude era uma
dessas raras pessoas que podia meter-se com um homem e fazer com que este gostasse
que "entrassem" com ele.
Atcavage tinha assistido à audiência para a transferência de foro e teria
testemunhado se fosse preciso. O banco tinha desaconselhado o seu envolvimento e
Jake não queria criar-lhe problemas. Os banqueiros têm um medo inato de tribunais e
Jake admirou o amigo por conseguir dominar essa paranóia e comparecer à audiência.
Ao fazer isso, Atcavage tornou-se o primeiro banqueiro na história de Ford County a
aparecer voluntariamente em um tribunal, sem ser intimado, durante uma sessão do
tribunal. Jake estava orgulhoso dele.
Claude passou correndo e disse-lhes que tinham dez minutos e que, portanto,
deviam calar a boca e comer. Jake terminou uma costeleta e limpou a boca com o
guardanapo.
- A propósito, Stan, por falar em empréstimos, preciso de cinco mil a noventa dias,
sem garantia.
- Quem falou em empréstimo?
- Você disse qualquer coisa sobre bancos.
- Pensei que estávamos falando mal de Buckley e eu estava achando isso ótimo.
- Não se deve criticar, Stan. É um hábito fácil de adquirir e impossível de se
perder. Rouba o caráter da sua alma.
- Lamento profundamente. Como é que posso perdoar a mim mesmo?
- E o que é que me diz do empréstimo?
- Certo. Para que é que precisa dele?
- - Isso é relevante?
- O que quer dizer com "isso é relevante"?
- Ouça, Stan, você só tem de se preocupar em saber se eu vou pagar ou não ao
fim de noventa dias.
- Está bem. Pode devolver o dinheiro dentro de noventa dias?
- Boa pergunta. É claro que posso.
O banqueiro sorriu.
- O caso Hailey tomou conta de você, certo?
O advogado sorriu.
- Sim - admitiu. - É difícil pensar em outra coisa. O julgamento vai ser daqui a três
semanas e, até lá, não vou poder concentrar-me em mais nada.
- Quanto é que vai ganhar com esse caso?
- Novecentos menos dez mil...
- Novecentos dólares!
- Isso mesmo, ele não conseguiu o empréstimo com a garantia do terreno, lembra-
se?
- Barato demais.
- É claro, se tivesse emprestado o dinheiro a Carl Lee, eu não precisaria deste
empréstimo.
- Prefiro emprestar a você.
- Ótimo. Quando recebo o cheque?
- Parece que está desesperado...
- Eu sei como vocês são demorados, com os seus Comitês de empréstimos,
auditores, vice-presidentes para cá e vice-presidentes para lá, e talvez um vice-presidente
que, por fim, vá assinar o meu empréstimo daqui a um mês ou dois, se o manual disser
que ele pode e se o escritório central estiver de bom humor. Eu sei como vocês
funcionam.
Atcavage viu as horas.
- Às três horas, está bem?
- Acho que sim.
- Sem garantia?
Jake limpou a boca com o guardanapo e inclinou-se para frente. Disse, em voz
baixa:
- A minha casa é um patrimônio histórico, com hipotecas de patrimônio histórico e
você já tem a hipoteca do meu carro, lembra-se? Eu lhe dou a primeira hipoteca sobre a
minha filha, mas se você tentar executá-la, eu mato-o!... Agora, em que garantia é que
está pensando?
- Desculpe ter perguntado.
- Quando é que recebo o cheque?
- Às três da tarde.
Claude apareceu e encheu os copos de ambos com chá gelado. Têm cinco
minutos... - disse ele, em voz alta.
- Oito - disse Jake.
- Ouça lá, seu figurão - disse Claude com um largo sorriso. - Isto aqui não é um
tribunal e a sua fotografia no jornal não vale dois centavos aqui. Eu disse cinco minutos.
- Pronto. A costeleta estava mesmo muito dura.
-É claro, já notei que não deixou nem um osso no prato...
-Pelo preço, a única solução é comer tudo.
- Cobro mais caro de quem reclama.
- Já nos vamos embora - disse Atcavage, levantando-se e deixando três dólares
em cima da mesa.
Na tarde de domingo, os Hailey fizeram seu piquenique debaixo da árvore, longe
da violência, debaixo da rede de basquete. Com a primeira onda de calor, a umidade
pesada e pegajosa, junto ao solo, penetrava na sombra. Gwen espantava as moscas, e
as crianças e o pai comiam galinha frita e suavam. As crianças comeram rapidamente e
correram para um novo balanço instalado por Ozzie.
- O que é que eles te fizeram, em Whitfield? - perguntou Gwen.
- Nada. Fizeram muitas perguntas, alguns testes. Uma monte de besteiras.
- Foi bem tratado?
- Com algemas e paredes acolchoadas.
- Estás brincando... Te puseram num quarto acolchoado? - Gwen achou graça e
um sorriso, raro agora, ergueu-lhe os lábios.
- Claro que puseram. Olhavam para mim como se eu fosse um animal. Disseram
que sou famoso. Os meus guardas disseram que estavam orgulhosos de mim - um era
branco, o outro, negro. Disseram que eu tinha feito o que devia e que esperavam que eu
saísse livre. Foram bons para mim.
- E o que disseram os médicos?
- Não vão dizer nada antes do julgamento e, nesse momento, vão dizer que estou
ótimo.
- Como é que você sabe o que eles vão dizer?
- Jake me disse. Até agora, ele nunca se enganou.
- Ele arranjou um médico?
- Arranjou, um bêbado maluco que ele foi desencantar não sei onde... Diz que é
psiquiatra. Conversamos duas vezes, no escritório de Ozzie.
- Que disse ele?
- Não muito. Jake disse que ele vai dizer tudo o que a gente quiser que ele diga.
- Deve ser um médico muito bom.
- Ele não se devia dar mal com o pessoal internado em Whitfield...
- De onde é que ele é?
- Jackson, me parece. Ele não tem certeza de nada. Parecia julgar que eu iria
matá-lo também! Juro que ele estava bêbado das duas vezes em que conversou comigo!
Fez algumas perguntas que nem eu nem ele entendemos... Tomou notas como se fosse
uma pessoa muito importante. Disse que achava que podia me ajudar. Falei com Jake e
ele disse que não preciso de me preocupar, que ele vai estar sóbrio no julgamento. Mas
eu acho que Jake também está preocupado.
- Então, por que é que vamos usar esse médico?
- Porque é de graça. Deve alguns favores não sei a quem. Um psiquiatra sério
custa mais de mil dólares, só para me examinar e outros mil para testemunhar no
julgamento. Um psiquiatra barato. Não é preciso dizer que não posso pagar.
O sorriso de Gwen desapareceu e ela desviou os olhos.
- Precisamos de dinheiro em casa - disse ela, sem olhar para ele.
- Quanto?
- Uns duzentos para a comida e as contas.
- Quanto você tem?
- Menos de cinqüenta.
- Vou ver o que posso fazer. Gwen olhou para ele.
- O que quer dizer com isso? Pensa que consegue arranjar dinheiro, aqui na
cadeia?
Carl Lee ergueu o sobrolho e apontou para ela. Gwen não devia fazer-lhe
perguntas. Ainda era ele quem usava calças, mesmo estando na cadeia. Era ele quem
mandava.
- Desculpe - murmurou ela.


VINTE E QUATRO

O reverendo Agee espreitou através de uma fresta do vitral enorme da sua igreja
e, com satisfação, viu os Cadillacs e os Lincolns chegando, um pouco antes das cinco da
tarde. Ele tinha convocado uma reunião do conselho para estudar a situação de Hailey e
planejar a estratégia para as últimas três semanas antes do julgamento e se preparar
para a chegada dos advogados da associação. O peditório semanal fora muito bom - mais
de sete mil dólares em todo o condado e quase seis mil tinham sido depositados pelo
reverendo numa conta especial para a defesa legal de Carl Lee Hailey. Não tinham
entregado nada à família. Agee estava à espera de instruções da associação sobre a
maneira de gastar o dinheiro, e achava que a maior parte devia ir para o fundo de defesa.
As irmãs da igreja podiam sustentar a família, se faltasse comida. Precisavam do dinheiro
para outras coisas.
O conselho falou sobre maneiras de se obter mais dinheiro. Não era fácil
conseguir dinheiro entre os pobres, mas o assunto estava na ordem do dia e o momento
era propício e se não conseguissem o dinheiro agora, não teriam outra oportunidade.
Concordaram em se reunir, no dia seguinte, na igreja Springdale, em Clanton. O pessoal
da associação devia chegar de manhã. Nada de imprensa, ia ser uma sessão de trabalho.
Norman Reinfield, aos trinta anos, era um gênio em Direito Penal, com o recorde de ter se
formado na Faculdade de Direito, em Harvard, aos vinte e um anos. Logo a seguir,
recusara a oferta generosa do pai e do avô para trabalhar numa grande firma de
advocacia em Wall Street, preferindo aceitar um emprego na associação e passar o
tempo numa luta ferrenha a fim de evitar que os negros do Sul fossem parar ao corredor
da morte. Ele era muito bom no que fazia, embora, não por sua culpa, não muito bem-
sucedido. A maioria dos negros do Sul ameaçados com a câmara de gás, tal como os
brancos, mereciam-na. Mas Reinfield e sua equipe de especialistas na defesa de crimes
de homicídio conseguiam algumas vitórias e, quando perdiam, conseguiam manter os
condenados com vida por meio de uma infinidade de recursos e prorrogações. Quatro dos
seus clientes tinham sido executados na câmara de gás, na cadeira elétrica ou com
injeção letal, e para Reinfield era demais. Ele os vira morrer e, a cada execução, renovava
os seus votos de violar qualquer lei, qualquer código de ética, desobedecer a qualquer
tribunal, desrespeitar qualquer juiz, ignorar qualquer mandato, ou fazer tudo o que fosse
possível para evitar que um ser humano matasse legalmente outro ser humano. Não se
preocupava muito com o assassinato ilegal de seres humanos, como os que eram cruel e
friamente perpetrados pelos seus clientes. Não competia a ele pensar nesses crimes e,
por isso, não pensava. Descarregava toda a sua raiva justificada e teimosa sobre os
assassinatos legais.
Reinfield raramente dormia mais de três horas por noite. Era difícil dormir com
trinta e um clientes no corredor da morte. Além dos dezessete que esperavam
julgamento. Além dos oito advogados egocêntricos que devia supervisar. Reinfield tinha
trinta anos e aparentava quarenta e cinco. Era velho, cáustico e mal-humorado. No
decurso normal do seu trabalho, estaria muito ocupado para comparecer a uma reunião
de ministros religiosos negros em Clanton, Mississipi. Mas aquele não era um caso
normal. Era o caso Hailey. O do justiceiro. O do pai que se vingou. O processo criminal
mais famoso do país, naquele momento. No Mississipi, onde há anos que os brancos
continuavam a matar negros, com ou sem razão, e ninguém ligava. Onde os brancos
violavam os negros, por esporte. Onde os negros eram enforcados por reagirem a isso. E
agora, um pai negro acabava de matar dois homens brancos que tinham violentado a sua
filha e estava ameaçado de ir para a câmara de gás por uma coisa que trinta anos atrás
teria passado despercebida, se ele fosse branco. Esse era o caso, o seu caso, e Reinfield
queria tratar dele pessoalmente.
Na segunda-feira, o reverendo Agee apresentou-o ao conselho e abriu a reunião
com um longo e detalhado relato das atividades em Ford County. Reinfield foi breve. Ele e
a sua equipe não podiam representar o Sr. Hailey porque não tinham sido contratados
pelo Sr. Hailey, portanto era imperioso que ele pudesse falar com o acusado. De
preferência, naquele mesmo dia. Na manhã seguinte, o mais tardar, porque ele ia
apanhar um avião para Memphis, ao meio-dia. Tinha de comparecer a um julgamento
criminal em um lugar qualquer da Geórgia. O reverendo Agee prometeu um encontro com
o acusado. Ele era amigo do xerife. Muito bem, disse Reinfield, pois faça isso.
- Quanto dinheiro conseguiram? - perguntou Reinfield.
- Quinze mil da nossa gente - respondeu Agee.
- Isso eu sei! Quanto, em termos locais?
- Seis mil - disse Agee, com orgulho.
- Seis mil! - repetiu Reinfield. - Só isso? Eu pensei que vocês fossem organizados.
Onde está todo esse grande apoio local de que falou? Seis mil! Quanto é que conseguem
arranjar mais? Temos só três semanas.
Os membros do conselho ficaram calados. Aquele judeu tinha coragem. O único
branco do grupo e estava em franco ataque.
- De quanto precisamos? - perguntou Agee.
- Isso depende, reverendo, do tipo de defesa que querem para o Sr. Hailey. Eu
tenho só oito advogados na minha equipe. Cinco estão trabalhando em julgamentos,
neste momento. Temos trinta e uma condenações por crime de homicídio sob recurso
judicial. Temos dezessete julgamentos marcados em dez estados, nos próximos cinco
meses. Todas as semanas temos dez pedidos para representar acusados, oito dos quais
recusamos, simplesmente porque não temos pessoal suficiente nem dinheiro. Para o Sr.
Hailey, duas sedes locais e o escritório central contribuíram com mil e quinhentos dólares,
cada um. Agora vêm me dizer que só conseguiram arrecadar seis mil, em termos locais!
Isso dá um total de vinte e um mil. Por esse preço, podem ter a melhor defesa possível.
Dois advogados, um psiquiatra pelo menos, mas nada muito especial. Vinte e um mil
conseguem uma boa defesa, mas não do tipo de defesa que eu estava pensando.
- Em que era exatamente que o senhor estava pensando?
- Numa defesa de primeira classe. Três ou quatro advogados. Uma bateria de
psiquiatras. Meia dúzia de investigadores. Um psicólogo para o júri, só para falar de
alguns. Este não é um caso sem esperanças. Eu quero ganhar. Pensei que os senhores
também quisessem...
- Quanto? - perguntou Agee.
- Cinqüenta mil, no mínimo. Cem mil seria Ótimo.
- Ouça, Dr. Reinfield, o senhor está no Mississipi. A nossa gente é pobre. Até
agora foram todos muito generosos, mas de modo nenhum podemos conseguir mais
trinta mil dólares.
Reinfield endireitou os óculos com aro de tartaruga e coçou a barba grisalha.
- Quanto é que podem conseguir?
- Mais cinco mil, talvez.
- Isso não é muito dinheiro.
- Não para o senhor, mas é muito para os negros de Ford County.
Reinfield olhou para o chão e continuou a passar a mão na barba.
- Quanto foi que a sede de Memphis deu?
- Cinco mil - respondeu alguém de Memphis.
- Atlanta?
- Cinco mil.
- E a sede estadual?
- De que estado?
- Mississipi.
- Nada.
- Nada?
- Nada.
- Porque não?
- Pergunte a ele - disse Agee, apontando para o reverendo Henry Hillman, o diretor
estadual.
- Bem, estamos agora tentando recolher algum dinheiro - disse Hillman,
timidamente. - Mas...
- Quanto é que já conseguiu, até agora? - perguntou Agee.
- Bem, conseguimos...
- Nada, não foi? Não conseguiu nada, não foi, Hillman? - disse Agee, em voz alta.
- Vamos, Hillman, diga quanto - insistiu o reverendo Roosevelt, vice-presidente do
conselho.
Confuso, Hillman não podia falar. Estava sentado calmamente na primeira fila,
tratando da própria vida, quase dormindo e, de repente, eles o atacavam.
- A sede estadual vai contribuir.
- Eu sei, Hillman. Vocês, na sede estadual, estão sempre insistindo com as sedes
locais para contribuírem para esta ou para aquela, e nunca vemos o seu dinheiro. Passam
a vida lamentando-se, dizendo que estão falidos e nós sempre mandando dinheiro... Mas
quando precisamos de ajuda, o estado não faz nada, a não ser aparecer por aqui e falar.
- Não é verdade.
- Não comece a mentir, Hillman.
Reinfield percebeu, embaraçado, que tinha atingido um ponto delicado.
- Senhores, senhores, vamos continuar - disse, diplomaticamente.
- Boa idéia - aprovou Hillman.
- Quando é que podemos falar com o Sr. Hailey? - perguntou Reinfield.
- Vou arranjar o encontro para amanhã cedo - disse Agee.
- Onde?
- Eu penso que o melhor lugar é o escritório do xerife Walls, no edifício da cadeia.
Ele é negro, sabe, o único xerife negro do Mississipi.
- Sim, já ouvi dizer.
- Acho que ele nos deixará falar com Hailey, no escritório dele.
- Muito bem. Quem é o advogado do Sr. Hailey?
- É de Clanton. O Dr. Jake Brigance.
- Não deixe de convidá-lo. Nós lhe pediremos para nos ajudar neste caso. Assim,
não ficará muito ofendido.

A voz irritante, estridente e mal-humorada de Ethel quebrou a tranqüilidade do fim
da tarde e sobressaltou o seu patrão.
- Dr. Brigance, o xerife Walls na linha dois - disse ela, pelo interfone.
- Está bem.
- O senhor doutor ainda vai precisar de mim?
- Não. Até amanhã.
Jake apertou o botão da linha dois.
- Olá, Ozzie. O que houve?
- Ouça, Jake, temos aqui um bando de figurões da associação na cidade.
- Qual é a outra novidade?
- Não, isto é diferente. Eles querem falar com o Carl Lee, amanhã de manhã.
- Porquê?
- Um fulano chamado Reinfield.
- Já ouvi falar dele. É o chefe da equipe de criminologistas. Norman Reinfield.
- Isso, esse mesmo.
- Eu estava à espera disso.
- Muito bem, ele está aqui e quer falar com o Carl Lee.
- E o que tem você vendo com isso?
- O reverendo Agee telefonou-me. Pediu um favor, é claro. Pediu para telefonar a
você.
- A resposta é não. Decididamente não!
Passados alguns segundos de silêncio, Ozzie disse:
- Jake, eles querem que esteja presente.
- Quer dizer que fui convidado?
- Sim. Agee disse que Reinfield insistiu. Ele quer que esteja presente.
- Onde?
- No meu escritório. Às nove horas da manhã.
Jake respirou fundo e respondeu lentamente:
- Está bem, estarei lá. Onde está o Carl Lee?
- Na cela.
- Leve-o para o seu escritório. Estarei aí daqui a cinco minutos.
- Para quê?
- Para rezarmos o terço!

Os reverendos Agee, Roosevelt e Hillman sentaram-se enfileirados nas cadeiras
de armar, de frente para o xerife, o acusado e Jake, que fumava um charuto barato,
decidido a poluir o ar da pequena sala. Jake soltava grandes baforadas, olhando para o
chão, esforçando-se por demonstrar um desprezo absoluto por Reinfield e os reverendos.
Não era fácil vencer a arrogância de Reinfield que nem sequer tentava disfarçar o seu
desprezo por aquele advogado simplório e insignificante. Ele era arrogante e insolente por
natureza. Jake tinha que fazer um esforço para parecer arrogante ou insolente.
- Quem convocou esta reunião? - perguntou Jake, impaciente, depois de um
silêncio longo e embaraçoso.
- Bem, hum, acho que fomos nós - respondeu Agee, olhando para Reinfield.
- Muito bem, então vamos... O que querem?
- Calma Jake - disse Ozzie. - O reverendo Agee pediu para arranjar este encontro
para que Carl Lee pudesse conhecer o Dr. Reinfield.
- Ótimo. Já se conheceram. Agora, que mais, Dr. Reinfield?
- Estou aqui para oferecer ao Sr. Hailey os meus serviços e os serviços da minha
equipe e de toda a associação - disse Reinfield.
- Que tipo de serviço? - perguntou Jake.
- Jurídico, é claro.
- Carl Lee, você pediu ao Dr. Reinfield para vir aqui? - perguntou Jake.
- Eu não.
- Dr. Reinfield, isto parece aliciamento ilegal.
- Pode esquecer o sermão, Dr. Brigance. O senhor sabe o que eu faço e sabe por
que estou aqui.
- Quer dizer que corre atrás de todos os seus casos?
- Nós não corremos atrás de coisa alguma. Somos chamados por membros da
associação e outras entidades de direitos civis. Trabalhamos com casos de homicídio e
somos muito bons.
- Devo supor que o senhor é o único advogado com competência para defender
um caso desta amplitude?
- Já trabalhei em alguns.
- E já perdeu alguns.
- A maioria dos meus casos é praticamente perdida.
- Compreendo. É essa a sua posição neste caso? Espera perder?
Reinfield levou a mão à barba e olhou furioso para Jake.
- Não estou aqui para discutir com você, Dr. Brigance.
- Eu sei. Está aqui para oferecer a sua formidável assistência jurídica a um
acusado que nunca ouviu falar no senhor e que está satisfeito com o seu advogado. Está
aqui para roubar o meu cliente. Eu sei exatamente por que está aqui.
- Estou aqui porque a associação me convidou. Nada mais, nada menos.
- Compreendo. Obtém todos os seus casos junto da associação?
- Eu trabalho para a associação, Dr. Brigance. Sou o chefe da equipe de
criminologistas. Eu vou onde a associação me manda ir.
- Quantos clientes têm?
- Algumas dúzias. Que importância tem isso?
- Todos tinham advogados antes de vocês forçarem a sua participação no caso?
- Alguns tinham, outros não. Procuramos sempre trabalhar com o advogado local.
Jake sorriu.
- Isso é maravilhoso. Está oferecendo-me a chance de transportar a sua pasta e
de ser o seu motorista em Clanton. Posso até ir buscar-lhe uma sanduíche, no intervalo
do almoço... Estou deslumbrado.
Carl Lee estava imóvel, com os braços cruzados, olhando para o chão. Os
reverendos observavam-no atentamente, à espera de que ele dissesse alguma coisa ao
seu advogado, que mandasse se calar, que ele estava despedido e que os advogados da
associação iam defender o caso dele. Observavam e esperavam, mas Carl Lee apenas
ouvia, calmamente.
- Temos muito para oferecer, Sr. Hailey - disse Reinfield. Era melhor ficar calmo,
até o acusado resolver quem ia representá-lo. Uma explosão podia estragar tudo.
- Por exemplo? - perguntou Jake.
- Pessoal, recursos, prática, advogados criminologistas experientes que só
trabalham na defesa de crimes de homicídio. Além disso, temos vários médicos
competentes que usamos nesses casos. Em qualquer coisa que pense, nós temos.
- Quanto dinheiro têm para gastar com este caso?
- Isso não é da sua conta.
- Não é? E será da conta do Sr. Hailey? Afinal, o caso é dele. Talvez o Sr. Hailey
queira saber quanto vão gastar com a defesa dele. O senhor gostaria de saber, Sr.
Hailey?
- Gostaria.
- Muito bem, Dr. Reinfield, quanto têm para gastar?
Reinfield olhou constrangido para os reverendos, que olharam para Carl Lee.
- Aproximadamente vinte mil, até agora - admitiu Reinfield, timidamente.
Jake riu e abanou a cabeça, incrédulo.
- Vinte mil! Os senhores levam esta coisa a sério, não levam? Vinte mil! Eu pensei
que vocês jogassem na equipe dos campeões. Conseguiram cento e cinqüenta mil
dólares para o assassino do policial, em Birmingham, no ano passado. E, a propósito, ele
foi condenado... Gastaram cem mil dólares com a prostituta que matou o cliente, em
Shreveport. E ela também foi condenada, devo acrescentar. E acha que este caso vale só
vinte mil?
- Quanto tem o senhor para gastar? - perguntou Reinfield. - Se conseguir explicar-
me o que tem o senhor a ver com isso, terei muito prazer em discutir o assunto.
Reinfield começou a falar, depois inclinou-se para frente e passou as mãos nas
têmporas.
- Porque não fala com ele, reverendo Agee?
Os reverendos olharam para Carl Lee. Queriam ficar a sós com ele, sem nenhum
branco por perto. Poderiam falar então como se fala com um negro. Poderiam explicar
muitas coisas, dizer-lhe para despedir aquele rapaz branco e contratar advogados de
verdade, advogados da associação. Advogados que sabiam como lutar pelos negros. Mas
não estavam sozinhos com ele e não podiam descarregar a sua fúria. Precisavam
demonstrar respeito pelos brancos presentes. Agee foi o primeiro a falar.
- Ouça lá, Carl Lee, estamos tentando ajudá-lo. Trouxemos o Dr. Reinfield e ele
tem todos os seus advogados e todas as pessoas à sua disposição, para ajudá-lo. Não
temos nada contra o Jake, ele é um jovem advogado muito bom. Mas ele pode trabalhar
com o Dr. Reinfield. Não queremos que você despeça o Jake, só queremos que contrate
o Dr. Reinfield também. Eles podem trabalhar juntos.
- Esqueça isso - disse Jake.
Agee olhou desanimado para Jake.
- Ora, vamos, Jake. Não temos nada contra você. Pode trabalhar com advogados
realmente importantes. Vai ganhar experiência. Nós...
- Reverendo, deixe-me esclarecer as coisas. Se Carl Lee quiser os seus
advogados, tudo bem. Mas não vou ser o ajudante de ninguém! Estou dentro ou fora.
Nada no meio. É meu caso, ou o seu caso. O tribunal não tem espaço suficiente para
mim, o Dr. Reinfield e Rufus Buckley.
Reinfield revirou os olhos para o teto e abanou a cabeça com um sorriso arrogante
e superior.
- Está querendo dizer que depende de Carl Lee? - perguntou o reverendo Agee.
- É claro que depende dele. Ele me contratou. Ele pode me despedir. Já fez isso
uma vez. Não sou eu quem está ameaçado com a câmara de gás.
- Então, que diz, Carl Lee? - perguntou Agee. Carl Lee descruzou os braços e
olhou para Agee. - Esses vinte mil, para que são?
- Na verdade, são trinta mil - disse Reinfield. - A população daqui já prometeu mais
dez mil. O dinheiro vai ser usado para a sua defesa. Nada para os honorários dos
advogados. Vamos precisar de uns dois ou três investigadores. Dois, talvez três
psiquiatras experientes. Geralmente usamos psicólogos de júri para a seleção dos
jurados. A nossa defesa é muito dispendiosa.
- Hum, hum. Quanto conseguiram da população daqui? -perguntou Carl Lee.
- Mais ou menos seis mil dólares - disse Reinfield.
- Quem recolheu esse dinheiro?
Reinfield olhou para Agee.
- As igrejas - respondeu o reverendo.
- Quem recebeu o dinheiro das igrejas? - perguntou Carl Lee.
- Nós - respondeu Agee.
- Quer dizer, o senhor - disse Carl Lee.
- Bem, sim, quero dizer, cada uma das igrejas entregou-me o dinheiro e eu o
depositei numa conta bancária especial.
- Certo, e depositou todo o dinheiro que recebeu?
- É claro que depositei.
- É claro. Deixe-me perguntar uma coisa... Quanto desse dinheiro ofereceu à
minha mulher e aos meus filhos?
Agee empalideceu, tanto quanto possível, e olhou rapidamente para os outros
reverendos que, naquele momento, estavam preocupados com um percevejo mal-
cheiroso de jardim que caminhava no tapete e não podiam ajudá-lo. Ambos sabiam que
Agee tinha tirado a sua parte e sabiam que a família de Carl Lee não tinha recebido nada.
Agee tinha tirado mais proveito do que a família. Eles sabiam e Carl Lee sabia.
- Quanto, reverendo? - repetiu Carl Lee.
- Bem, nós achamos que o dinheiro...
- Quanto, reverendo?
- O dinheiro vai ser usado para os honorários dos advogados e coisas assim.
- Não foi isso que disse aos membros da sua igreja, não é? Disse-lhes que era
para ajudar a minha família. O senhor quase que chorou quando disse que a minha
família podia morrer de fome se eles não dessem o máximo possível. Não é verdade,
reverendo?
- O dinheiro é para você, Carl Lee. Para você e para a sua família. Neste
momento, achamos que será melhor gastá-lo com a sua defesa.
- E se eu não quiser os seus advogados? O que acontece aos vinte mil?
Jake riu discretamente.
- Boa pergunta. O que acontece com o dinheiro se o Sr. Hailey não o contratar, Dr.
Reinfield?
- O dinheiro não é meu - disse Reinfield.
- Reverendo Agee? - perguntou Jake.
A paciência do reverendo esgotou-se. Estava agora desafiador e beligerante.
Apontou para Carl Lee.
- Ouça aqui, Carl Lee. Nós quase nos matamos para conseguir esse dinheiro. Seis
mil dólares dos pobres deste condado, de gente que nada tinha para dar! Trabalhamos
muito para conseguir esse dinheiro e foi dado por gente pobre, pela sua gente, gente que
vive da caridade social, gente que não podia dar nem um centavo! Mas deram por uma
única razão. Acreditam em você e no que fez e querem que saia livre daquele tribunal.
Não venha me dizer que não quer o dinheiro!
- Não me venha com sermões! - replicou Carl Lee, com calma. - Diz que os pobres
daqui doaram seis mil dólares?
- Isso mesmo.
- De onde veio o resto do dinheiro?
- Da associação. Cinco mil de Atlanta, cinco de Memphis e cinco da seção
nacional. Unicamente para pagar a sua defesa.
- Se eu aceitasse o Dr. Reinfield?
- Certo.
- E se eu não aceitar, o dinheiro desaparece?
- Certo.
- E os outros seis mil?
- Boa pergunta. Ainda não resolvemos isso. Pensamos que ia nos agradecer por
angariar o dinheiro e por tentar ajudá-lo. Estamos oferecendo-lhe os melhores advogados
e, ao que parece, você não dá a menor importância!
O silêncio durou uma eternidade. Advogados, reverendos e o xerife esperavam
uma mensagem do acusado. Carl Lee mordeu o lábio inferior e olhou para o chão. Jake
acendeu outro charuto. Já fora despedido uma vez, podia aguentar mais uma.
- Precisam de uma resposta já, imediatamente? - perguntou Carl Lee, por fim.
- Não - disse Agee.
- Sim - disse Reinfield. - Faltam menos de três semanas para o julgamento e já
estamos com dois meses de atraso. A minha equipe é muito valiosa para ficar à sua
disposição, Sr. Hailey. Ou me contrata agora, ou pode esquecer. Tenho de ir apanhar um
avião.
- Bem, vou dizer-lhe uma coisa, Dr. Reinfield. O senhor pode ir apanhar o seu
avião e não precisa se preocupar em voltar a Clanton por minha causa. Vou arriscar aqui
com o meu amigo Jake.


VINTE E CINCO

O Klan de Ford County foi fundado à meia-noite de quinta-feira, em 11 de Junho,
num pequeno pasto ao lado de uma estrada de terra batida, no meio da floresta, num
ponto qualquer a Norte do condado. Os seis novos recrutas, de pé diante da enorme cruz
em chamas, repetiram nervosamente as palavras ditas por um mago. Um dragão e vinte e
quatro membros do Klan, com os seus mantos brancos, assistiam e cantavam nos
momentos oportunos. Um guarda armado vigiava a estrada, observando ocasionalmente
a cerimônia, mas especialmente atento a qualquer convidado indesejável. Não apareceu
nenhum.
À meia-noite em ponto, os seis ajoelharam-se, fecharam os olhos e os capuzes
pontiagudos foram cerimoniosamente postos nas suas cabeças. Agora eram homens do
Klan, aqueles seis, Fred die Cobb, irmão do morto, Jerry Maples, Clifton Cobb, Ed
Wilbum, Morris Lancaster e Terrell Grist. O grande dragão parou em frente de cada um
deles entoando os votos sagrados do Klan. Ás chamas da cruz chamuscavam os rostos
dos novos membros, ajoelhados, sufocados sob os mantos e os capuzes. O suor escorria
das caras muito vermelhas e eles rezavam com fervor para que o dragão acabasse
rapidamente com aquela estupidez e terminasse a cerimônia. Quando cessou a cantoria,
os novos membros levantaram-se e afastaram-se rapidamente da cruz. Foram abraçados
pelos novos irmãos, que os agarravam pelos ombros com força e lhes martelavam
encantamentos primitivos sobre as clavículas cobertas de suor. Os capuzes pesados
foram removidos e os membros do Klan, novos e antigos, caminharam solenemente até
uma cabana rústica, do lado oposto da estrada de terra. O mesmo guarda sentou-se nos
degraus da frente enquanto o uísque era servido e planos eram feitos para o julgamento
de Carl Lee Hailey.
O sub delegado Pirtle chefiava o último turno, das dez da noite às seis da manhã,
e tinha parado para tomar um café com uma fatia de torta no Gurdy's, que ficava aberto a
noite toda, na auto estrada a Norte da cidade, quando o rádio o avisou de que estavam à
sua espera na cadeia. Passavam três minutos da meia-noite, madrugada de sexta-feira.
Pirtle deixou a rua e seguiu para o edifício da prisão, um quilômetro e meio a Sul.
- Que aconteceu? - perguntou ao operador de rádio.
- Recebemos um telefonema, há alguns minutos, anônimo, de alguém que
procurava o xerife. Expliquei que ele não estava de serviço e perguntaram então quem é
que estava. Eu disse que era você. Disseram que era muito importante e que voltariam a
telefonar daí a um quarto de hora.
Pirtle serviu-se de café e sentou-se na cadeira grande de Ozzie. O telefone tocou.
- É para você - gritou o operador.
- Alô? -atendeu Pirtle.
- Quem fala? - perguntaram.
- Sub delegado Joe Pirtle. Quem fala?
- Onde está o xerife?
- Dormindo, creio eu.
- Muito bem, ouça e preste bem atenção porque é importante e não vou voltar a
telefonar. Conhece o negro Hailey?
- Conheço.
- Conhece o advogado dele, Brigance?
- Conheço.
- Então, ouça. A qualquer instante, a partir de agora e até às três horas, vão
explodir a casa dele.
- Quem?
- Brigance.
- Não, estou perguntando quem é que vai explodir a casa dele.
- Não se preocupe com isso, sub delegado, limite-se a ouvir. Isto não é nenhuma
brincadeira, e se pensa que é, fique aí e espere pela explosão. Pode acontecer a
qualquer momento.
A voz calou-se mas não desapareceu. Pirtle ficou à escuta.
- Está ouvindo-me?
- Boa noite, sub delegado. - Ouviu-se o clique do telefone. Pirtle deu um salto da
cadeira e correu para o operador de rádio.
- Ouviu?
- Claro que ouvi.
- Telefone para Ozzie e diga-lhe que venha imediatamente. Estou na casa do
Brigance.
Pirtle escondeu o carro da policial na entrada de automóvel de uma casa da rua
Monroe e atravessou o gramado da frente da casa de Jake. Não viu nada. Eram doze e
cinqüenta e cinco. Caminhou em volta da casa com a lanterna e não notou nada de
estranho. Todas as casas da rua estavam às escuras e adormecidas. Desatarraxou a
lâmpada do terraço da frente e sentou-se numa cadeira de vime. Esperou. O carro
estrangeiro, de aparência esquisita, estava parado ao lado do Oldsmobile debaixo da
varanda. Ele ia esperar e consultar Ozzie para saber se devia avisar Jake.
Faróis dianteiros surgiram no fim da rua. Pirtle baixou-se na cadeira, certo de que
não podia ser visto. Uma pick-up vermelha, um pedaço suspeita, dirigiu-se para casa de
Brigance, mas não parou. Pirtle endireitou-se na cadeira e a viu desaparecer, rua abaixo.
Momentos depois notou dois vultos saírem da praça correndo. Desabotoou o
coldre e tirou a arma. O primeiro vulto era muito maior do que o segundo e parecia correr
com mais facilidade e elegância. Era Ozzie. O outro era Nesbit. Pirtle encontrou-se com
eles na entrada de automóvel e os três refugiaram-se na escuridão do terraço da frente.
Falavam baixinho e observavam a rua.
- O que foi exatamente que ele disse? - perguntou Ozzie. - Disse que alguém ia
explodir a casa de Jake, daqui até às três horas da manhã. Disse que não era nenhuma
brincadeira.
- Só isso?
- Só. Não foi nada amigável.
- Há quanto tempo é que está aqui?
- Vinte minutos.
Ozzie voltou-se para Nesbit.
- Dê-me o seu rádio e vá esconder-se no fundo do quintal. Fique quieto e de olhos
abertos.
Nesbit desatou a correr para a parte de trás da casa e encontrou uma pequena
abertura entre os arbustos da cerca. Gatinhando, desapareceu no meio dos arbustos. Do
seu esconderijo, avistava toda a parte dos fundos da casa.
- Vai avisar o Jake? - perguntou Pirtle.
- Ainda não. Talvez daqui a pouco. Se batermos à porta, eles acenderão as luzes,
e não precisamos disso agora.
- É verdade, mas... e se o Jake ouvir a gente e sair de casa aos tiros? Pode
pensar que somos dois negros tentando assaltar a casa dele.
Ozzie olhou para a rua e não disse nada.
- Ouça, Ozzie, ponha-se no lugar dele. Os policiais cercam a sua casa à uma hora
da manhã, à espera de que alguém atire uma bomba. Então, vai querer ficar na cama ou
prefere saber o que se passa?
Ozzie olhou para as outras casas, ao longe.
- Ouça, xerife, acho melhor acordá-los. E se a gente não conseguir deter quem
está planejando isto e alguém dentro de casa fica ferido?... Nós é que ficamos com a
culpa, certo?
Ozzie levantou-se e tocou à campainha.
- Desatarraxe aquela lâmpada - ordenou ele, apontando para o teto do terraço.
- Já fiz isso.
Ozzie voltou a tocar à campainha. A porta de madeira abriu-se e Jake veio até à
porta de Inverno e fitou o xerife. Usava um camisão de dormir, todo amassado, que ia até
abaixo dos joelhos, e tinha na mão direita um 38 carregado. Devagarinho abriu a porta.
- O que é, Ozzie? - perguntou.
- Posso entrar?
- Claro. Que está acontecendo?
- Fique aqui no terraço - disse Ozzie a Pirtle. - É só um minuto.
Ozzie fechou a porta da frente atrás deles e apagou a luz do vestíbulo. Sentaram-
se na sala de estar às escuras que dava para o terraço e o jardim da frente.
- Fale, homem! - disse Jake.
- Há coisa de meia hora, recebemos um telefonema anônimo de alguém que dizia
que uma pessoa tinha planejado explodir sua casa entre a meia-noite e as três horas da
manhã. Estamos levando a coisa a sério.
- Obrigado.
- Estou com Pirtle no terraço da frente, e Nesbit no fundo do quintal. Há uns dez
minutos, Pirtle viu uma pick-up passar devagar como se alguém estivesse interessado na
casa, mas foi tudo o que vimos.
- Já procuraram em volta da casa?
- Já, nada. Eles ainda não estiveram aqui. Mas qualquer coisa me diz que isto é
sério.
- Porquê?
- É só um palpite.
Jake pôs o 38 a seu lado, no sofá, e passou as mãos pelas têmporas.
- O que é que sugere?
- Sentar e esperar. É tudo que podemos fazer. Tem uma espingarda?
- Tenho armas suficientes para invadir Cuba.
- Porque não agarra essa aí e vai se vestir? Tome posição numa daquelas janelas
pequeninas do segundo andar. Nós vamos nos esconder lá fora e esperar.
- Tem homens suficientes, Ozzie?
- Tenho. Acho que os outros devem ser só um ou dois.
- Quem são eles?
- Não sei. Podem ser do Klan, podem ser mercenários. Quem sabe?
Os dois homens mergulharam nos seus pensamentos, olhando para a rua escura.
Viam o alto da cabeça de Pirtle curvado na cadeira de vime, do lado de fora da janela.
- Jake, lembra-se daqueles três militantes dos direitos civis mortos pelo Klan em
64? Foram encontrados enterrados num dique perto de Filadélfia.
- Claro. Eu era pequeno mas me lembro.
- Aqueles homens nunca teriam sido encontrados se não tivesse havido alguém
que dissesse onde eles estavam. Quem o fez foi um membro do Klan. Um informante.
Parece que isso acontecia sempre, no Klan. Havia sempre um informante no meio deles.
- Acha que é o Klan?
- Pelo menos parece. Se fossem apenas um ou dois mercenários, quem mais
poderia saber? Quanto maior o grupo, maior a possibilidade de alguém nos avisar.
- Faz sentido, mas, por qualquer motivo, isso não me consola.
- É claro que também pode ser uma brincadeira.
- Não acho graça nenhuma.
- Vai contar à sua mulher?
- Vou. Acho melhor.
- Eu, no seu caso, também contaria. Mas não acendam nenhuma luz. Poderia
afugentá-los.
- Mas eu gostaria de afugentá-los.
- E eu quero apanhá-los! Se não os apanharmos agora, vão tentar novamente e
nessa altura podem se esquecer de telefonar com antecedência.
Carla vestiu-se apressadamente, no escuro. Estava apavorada. Jake deitou Hanna
no sofá da sua sala de trabalho. Hanna resmungou e continuou dormindo. Carla, com a
cabeça da filha no colo viu Jake carregar a espingarda.
- Vou ficar lá em cima, no quarto de hóspedes. Não acenda a luz. Os policiais
cercaram a casa, portanto não fique preocupada.
- Não ficar preocupada?! Você está doido?
- Tente não adormecer.
- Adormecer! Jake, você está doido!
Não tiveram de esperar muito. De onde estava, escondido entre os arbustos na
frente da casa, Ozzie foi o primeiro a vê-lo. Um vulto solitário andando devagar, vindo da
direção oposta à praça. Transportava uma caixa ou mala pequena. Duas casas antes da
de Jake, ele saiu do passeio e atravessou os gramados vizinhos. Ozzie empunhou o
revólver e o cassetete e viu o homem caminhar diretamente para ele. Jake tinha o homem
na mira da sua espingarda. Pirtle deslizou como uma cobra pelo chão da varanda e
escondeu-se entre os arbustos, pronto para atacar.
De repente, o homem passou correndo pelo gramado do vizinho e seguiu para um
dos lados da casa de Jake. Depositou a caixa cuidadosamente debaixo da janela do
quarto de Jake. Quando se voltou para fugir, um cassetete enorme e negro bateu-lhe num
dos lados da cabeça, cortando-lhe a orelha em dois lugares, fazendo-a quase em
pedaços. O homem gritou e caiu.
- Apanhei-o! - gritou Ozzie.
Pirtle e Nesbit correram para o lado da casa. Jake desceu a escada calmamente.
- Volto num minuto - disse a Carla.
Ozzie agarrou no homem pelo pescoço e o fez sentar-se perto da casa. Estava
consciente, mas atordoado. A mala estava a poucos centímetros.
- Nome? - perguntou Ozzie.
O homem gemeu, segurou a cabeça com as duas mãos e não disse nada.
- Eu fiz uma pergunta - disse Ozzie, de pé ao lado do homem.
Pirtle e Nesbit estavam a seu lado, com as armas na mão, assustados demais
para falar ou fazer um movimento. Jake olhou para a maleta.
- Não respondo - disse o homem.
Ozzie ergueu o cassetete acima da cabeça e baixou-o com força no tornozelo
direito do homem. O osso partiu-se com um estalo impressionante. Ele gritou e agarrou a
perna. Ozzie deu-lhe um pontapé na cara. O homem caiu para trás e bateu com a cabeça
na parede. Rolou para o lado, gemendo de dor. Jake ajoelhou-se e encostou o ouvido na
maleta. Levantou-se de um salto e recuou.
- Está armada - disse, com voz fraca.
Ozzie inclinou-se para o homem e encostou o cassetete ao nariz dele.
- Tenho outra pergunta, antes de lhe partir todos os ossos do corpo. O que tem
naquela maleta?
Nenhuma resposta. Ozzie ergueu o cassetete e partiu-lhe o outro tornozelo.
- O que tem naquela maleta? - berrou ele.
- Dinamite! - foi a resposta trêmula.
Pirtle deixou cair a arma. A pressão arterial de Nesbit subiu-lhe acima do boné e o
fez se encostar à parede. Jake ficou branco e os joelhos dele começaram a tremer.
Correu para a porta da frente, gritando a Carla:
- Pegue nas chaves do carro! Pegue nas chaves do carro!
- Para quê? - perguntou ela, nervosa.
- Faça o que estou dizendo. Pegue as chaves e meta-se no carro.
Ele ergueu Hanna do sofá, atravessou a cozinha, dirigiu-se ao telheiro dos carros
e deitou-a no banco de trás do Cutlass de Carla. Agarrou no braço de Carla e ajudou-a a
entrar no carro.
- Vá embora daqui e não volte antes de meia hora.
- Jake, o que é que aconteceu? - perguntou ela.
- Eu explico mais tarde. Não temos tempo agora. Vá embora. Dê umas voltas
durante meia hora. Fica longe desta rua.
- Mas, porquê, Jake? O que é que vocês encontraram?
- Dinamite.
Carla engatou marcha ré e saiu para a rua. Quando Jake voltou para o lado da
casa, a mão esquerda do homem estava algemada ao contador de gás, perto da janela.
Ele gemia, resmungava e proferia insultos. Ozzie levantou a maleta cuidadosamente pela
alça e colocou-a entre as pernas quebradas do suspeito. Ozzie deu-lhe um pontapé nas
pernas para ele as afastar. O sujeito gemeu mais alto. Ozzie, os sub delegados e Jake
recuaram lentamente, olhando para ele. O homem começou a gritar.
- Eu não sei desarmar isto - disse, com os dentes cerrados.
- É melhor aprender depressa - disse Jake, com a voz um pouco mais forte.
O suspeito fechou os olhos e baixou a cabeça. Mordeu os lábios, respirando
rápida e ruidosamente. O suor pingava-lhe do queixo e das sobrancelhas. A orelha estava
cortada, pendurada como uma folha prestes a cair.
- Dê-me uma lanterna.
Pirtle estendeu-lhe uma lanterna.
- Preciso das duas mãos - disse o homem.
- Tente só com uma - disse Ozzie.
O homem pousou os dedos ao de leve no fecho e fechou os olhos.
- Vamos sair daqui - disse Ozzie.
Deram a volta correndo à casa e entraram na garagem, o ponto mais afastado
possível.
- Onde está a sua família? - perguntou Ozzie.
- Foi embora. Conhece-o?
- Não - disse Ozzie.
- Nunca vi este cara - disse Nesbit.
Pirtle abanou a cabeça. Ozzie chamou o operador de rádio, que chamou o sub
delegado Riley, o homem que aprendera sozinho a lidar com explosivos.
- E se ele desmaiar e a bomba explodir? - disse Jake.
- Tem seguro, não tem, Jake? - perguntou Nesbit.
- Não tem graça nenhuma.
- Vamos lhe dar alguns minutos, depois Pirtle pode ir verificar o que aconteceu
com o sujeito - disse Ozzie.
- Porquê eu?
- Eu acho que o Jake é que deve ir - disse Nesbit. - A casa é dele.
- Muito engraçado - disse Jake.
Esperaram enquanto conversavam cheios de nervoso. Nesbit fez outra
observação idiota sobre o seguro.
- Quieto! - disse Jake. - Ouvi qualquer coisa.
Ficaram imóveis. Alguns segundos depois o homem gritou outra vez. Eles
atravessaram correndo o gramado e depois viraram muito devagar para o lado da casa. A
maleta vazia tinha sido atirada para um lado. Ao lado do homem, estavam empilhados
doze tubos de dinamite. Entre as pernas dele, estava um relógio grande, redondo, com
uma porção de fios presos com fita adesiva prateada.
- Está desarmada? - perguntou Ozzie, ansioso.
- Está - disse o homem, ofegante.
Ozzie ajoelhou-se diante dele e retirou o relógio e os fios. Não tocou na dinamite.
- Onde estão os seus amigos?
Silêncio. Ele tirou o cassetete da bainha e aproximou-se mais do homem.
- Vou começar a partir costelas, uma de cada vez. Acho melhor começar a falar.
Vamos, onde estão os seus amigos?
- Vá à merda.
Ozzie levantou-se, olhou em volta rapidamente, não para Jake nem para os
policiais, mas para a casa vizinha. Não viu nada e ergueu o cassetete. O braço do homem
estava pendurado no contador de gás e o golpe atingiu-o abaixo da axila esquerda. Ele
gritou e saltou para a esquerda. Jake quase teve pena dele.
- Onde estão? - perguntou Ozzie.
Silêncio. Jake virou a cara quando o xerife desfechou outro golpe nas costelas.
- Onde estão? Silêncio. Ozzie ergueu o cassetete.
- Pare... por favor, pare - pediu o homem.
- Onde estão?
- Daquele lado. A uns dois quarteirões.
- Quantos?
- Um.
- Que carro?
- Uma pick-up vermelha.
- Chame os carros patrulha - disse Ozzie.
Jake esperou impaciente na garagem dos carros a volta de Carla. Às duas e
quinze, ela entrou devagar e estacionou.
- Hanna está dormindo? - perguntou Jake, ao abrir a porta.
- Está.
- Ótimo. Deixa-a onde está. Vamos embora daqui a minutos.
- Para onde?
- Falaremos nisso lá dentro.
Jake serviu o café e procurou ficar calmo. Carla estava assustada, tremendo e
zangada, e era quase impossível, para ele, não perder a calma. Ele falou-lhe da bomba e
do homem e explicou que Ozzie estava, naquele momento, à procura do cúmplice.
- Quero que você e Hanna vão para Wilmington e fiquem com os seus pais até
depois do julgamento - disse ele.
Carla olhou para a xícara de café e não disse nada.
- Já telefonei para o seu pai explicando tudo. Eles também estão assustados e
insistem para que vocês fiquem na casa deles até tudo isto acabar.
- E se eu não quiser ir?
- Por favor, Carla. Como é que consegue discutir num momento destes?
- E você?
- Não há problema... Ozzie vai me arranjar um guarda-costas e a casa vai ser
vigiada dia e noite. Uma vez por outra, durmo no escritório. Estarei seguro, prometo.
Carla não ficou convencida.
- Ouça, Carla. Tenho muitas coisas em que pensar! Tenho um cliente que pode ir
parar à câmara de gás e faltam dez dias para o julgamento. Não posso perder este caso.
Vou trabalhar dia e noite, até ao último momento e, de qualquer modo, você não me ia pôr
a vista em cima enquanto durasse o julgamento. A última coisa que eu quero é ter de me
preocupar contigo e com a Hanna. Por favor, vá.
- Eles iam nos matar, Jake. Eles tentaram nos matar.
Jake não podia dizer que não.
- Você prometeu largar o caso se houvesse qualquer perigo.
- Já não é possível. Noose nunca permitiria que eu deixasse o caso agora.
- Sinto-me como se você tivesse mentido.
- Isso não é justo. Acho que subestimei a coisa toda e agora é tarde demais.
Carla foi para o quarto e começou a fazer as malas.
- O avião sai de Memphis às seis e meia. O seu pai vai esperá-las no aeroporto
Raleigh às nove e meia.
- Sim, senhor.
Quinze minutos depois saíram de Clanton. Jake dirigia e Carla não disse uma
palavra. Às cinco horas, tomaram café no aeroporto de Memphis. Hanna estava com
sono, mas contente com a idéia de ver os avós. Carla falou muito pouco. Tinha muito a
dizer mas nenhum deles discutia na frente da criança. Ela comeu calada e tomou o café
olhando para o marido que lia o jornal como se nada tivesse acontecido.
Jake beijou as duas e prometeu telefonar todos os dias. O avião saiu à hora
prevista. Às sete e meia, estava no escritório de Ozzie.
- Quem é ele? - perguntou Jake.
- Não fazemos idéia. Sem carteira, sem identidade, nada. E não fala.
- Ninguém o reconheceu? Ozzie pensou um momento.
- Bem, Jake, neste momento é um pedaço difícil reconhecer o homem. Está com
uma porção de ligaduras na cara.
Jake sorriu.
- Você quando bate, bate forte e feio, não é grandalhão?
- Só quando é preciso. Não ouvi da sua parte qualquer objeção...
- Não. Eu queria ajudar. E o amigo?
- Nós o encontramos dormindo dentro de uma pick-up vermelha, a um quilômetro
da sua casa. Terrell Grist. É da região. Mora perto de Lake Village. Acho que é amigo da
família Cobb. Jake repetiu o nome várias vezes.
- Nunca ouvi falar. Onde é que ele está?
- No hospital. No mesmo quarto que o outro.
- Meu Deus, Ozzie, também lhe quebrou as pernas?
- Jake, meu amigo, ele resistiu à prisão. Tivemos de lutar com ele. Depois, tivemos
de interrogá-lo. Ele não queria cooperar.
- O que foi que ele disse?
- Nada de especial. Não sabe nada. Tenho certeza de que ele não conhece o
homem da dinamite.
- Quer dizer que eles contrataram um profissional?
- É possível. Riley examinou os explosivos e o relógio e disse que é um trabalho
muito bom. Não ia sobrar nada de você, nem da sua mulher nem da sua filha, talvez nem
sequer da casa... Estava armada para as duas da manhã. Sem o aviso, você estaria
morto, Jake. E a sua família toda.
Aturdido, Jake sentou-se no sofá. A reação lenta atingiu-o como um murro no
estômago. Sentiu-se agoniado e com a sensação de que não ia conseguir controlar os
intestinos.
- Já mandou embora a família?
- Já - disse ele, com voz fraca.
- Vou designar um sub delegado para tomar conta de você em tempo integral. Tem
alguma preferência?
- Não.
- Pode ser o Nesbit?
- Ótimo. Obrigado.
- Outra coisa. Penso que queira manter isto em segredo.
- Se for possível. Alguém sabe?
- Só eu e os sub delegados. Acho que podemos manter isto em segredo até
depois do julgamento, mas não posso garantir nada.
- Compreendo. Faça o possível.
- Vou fazer.
- Eu sei, Ozzie. Agradeço-lhe muito.
Jake foi para o escritório, fez café e deitou-se no sofá. Queria dormir um pouco,
mas não conseguiu. Os olhos ardiam-lhe, mas não conseguia fechá-los. Olhou para o
ventilador do teto.
- Dr. Brigance - chamou Ethel pelo interfone. Jake não respondeu.
- Dr. Brigance!
Em algum recanto do seu inconsciente, Jake percebeu que alguém o chamava.
Levantou-se de um salto.
- Sim! - gritou.
- O juiz Noose ao telefone.
- Está bem, está bem - resmungou Jake, dirigindo-se para a mesa com passos
incertos. Olhou para o relógio. Nove horas da manhã. Tinha conseguido uma hora de
sono.
- Bom dia, Sr. Dr. Juiz - disse, alegremente, tentando parecer alerta e acordado.
- Bom dia, Jake. Como está?
- Bem, obrigado, Sr. Dr. Juiz. Com muito trabalho, preparando o julgamento.
- Foi o que pensei. Jake, como está a sua agenda hoje?
Que dia é hoje, pensou ele. Pegou a agenda de compromissos.
- Só trabalharei no escritório.
- Ótimo. Gostaria que viesse almoçar comigo, a minha casa. Digamos, lá para as
onze e meia.
- Será um prazer, Sr. Dr. Juiz. Qual é a comemoração?
- Quero conversar sobre o caso Hailey.
- Está bem, Sr. Dr. Juiz. Estarei lá às onze e meia.
Os Noose moravam numa majestosa casa construída antes da Guerra Civil, ao
lado da praça central em Chester. A casa pertencia à família da mulher do juiz há mais de
um século e embora precisasse de algumas obras e cuidados, mantinha uma aparência
decente. Era a primeira vez que Jake ia a casa do juiz e não conhecia a Sra. Noose. Mas
sabia que ela era uma esnobe de sangue azul, cuja família tivera muito dinheiro, mas
tinha perdido tudo. Era tão feia como Ichabod, e Jake imaginou como seriam os filhos. A
Sra. Noose recebeu Jake delicadamente, falando sobre banalidades enquanto o conduzia
ao pátio, onde o meritíssimo tomava chá e examinava a correspondência. Uma
empregada arrumava uma mesa pequena, ao lado dele.
- É um prazer vê-lo, Jake - disse Ichabod calorosamente. - Muito obrigado por ter
vindo.
- Eu é que agradeço, Sr. Dr. Juiz. O senhor tem uma bela casa.
Discutiram o caso Hailey enquanto comiam a sopa e as sanduíches de galinha
com alface. Embora não admitisse, Ichabod estava apreensivo com a proximidade do
julgamento. Parecia cansado, como se o caso lhe pesasse demais nos ombros.
Surpreendeu Jake ao dizer que detestava Buckley. Jake disse que também o detestava.
- Jake, estou perplexo com este pedido de transferência de foro - disse ele. -
Estudei as suas razões e as de Buckley e procurei na lei. É uma questão difícil. No último
fim de semana estive numa conferência de juízes, na Costa do Golfo, e bebi alguns copos
com o juiz Denton, do Supremo Tribunal. Estudamos juntos na faculdade e fomos colegas
no Senado. Somos muito amigos. O juiz Denton é de Dupree County, no Sul do
Mississipi, e disse que todos no condado dele comentam o caso. As pessoas, na rua,
perguntam-lhe qual será a decisão dele se o caso for para o Tribunal de apelação. Todos
têm opinião formada e Dupree County fica a mais de seiscentos quilômetros daqui. Desse
modo, se eu concordar com a transferência de foro, para onde iremos? Não podemos sair
do estado e tenho certeza de que todas as pessoas não só ouviram falar no seu cliente,
como também já o pré-julgaram. Não concorda comigo?
- Bem, tem havido muita publicidade - disse Jake, cautelosamente.
- Fale comigo, Jake. Não estamos no tribunal. Por isso o convidei para minha
casa. Quero que pense. Eu sei que tem havido muita publicidade. Se sairmos daqui, para
onde podemos ir?
- Que tal o delta?
Noose sorriu.
- É disso que gostaria, não é?
- Claro. Poderíamos escolher um bom júri no delta. Jurados capazes de
compreender realmente o problema.
- Sim, um júri metade negro.
- Eu não tinha pensado nisso.
- Acredita mesmo que eles não pré-julgaram o acusado? - Suponho que sim.
- Então, para onde vamos?
- O juiz Denton fez alguma sugestão?
- Na verdade, não. Falamos sobre a tradicional recusa dos tribunais à
transferência de foro, a não ser em casos de crimes hediondos. É um problema difícil com
casos notórios que despertam paixões tanto contra como a favor do acusado. Com a
televisão e todos os recursos da mídia hoje em dia, esses crimes tornam-se
imediatamente notícia e todas as pessoas ficam a par dos detalhes muito antes do
julgamento. É este caso mais do que todos... O próprio Denton admitiu que nunca viu um
caso com tanta publicidade e na opinião dele é impossível encontrar um júri justo e
imparcial em todo o Mississipi. Suponha que eu não autorize a transferência e ele seja
condenado aqui em Ford County. Nesse caso, você apela, alegando que o foro devia ter
sido transferido. Denton deu a entender que aprovaria a minha decisão de não fazer a
transferência. Ele acha que terei o apoio de uma maioria do tribunal. É claro, não se pode
garantir, e conversamos sobre o assunto ao longo de muitos copos. Aceita uma bebida?
- Não, obrigado.
- Eu não vejo motivo para mudar o local do julgamento. Estaríamos nos
enganando a nós próprios, se acreditássemos que é possível encontrar doze pessoas
sem opinião formada sobre a inocência ou a culpa de Hailey.
- Parece que já decidiu, Sr. Dr. juiz.
- Sim. Não vamos mudar. O julgamento será em Clanton. Não posso dizer que me
agrade, mas não vejo razão para a transferência. Além disso, eu gosto de Clanton. Fica
perto da minha casa e o ar-condicionado do tribunal funciona muito bem.
Noose pegou uma pasta e retirou um envelope.
- Jake, isto é uma ordem, com data de hoje, negando o pedido de transferência de
foro. Mandei uma cópia a Buckley e uma cópia para você. O original está aqui e eu
gostaria que a mandasse registrar nos autos, em Clanton.
- Com prazer, Sr. Dr. Juiz.
- Só espero estar procedendo corretamente. Já pensei muito no assunto.
- É um trabalho difícil - disse Jake, tentando ser agradável.
Noose chamou a criada e pediu um gin tônica. Insistiu em mostrar o seu jardim de
rosas a Jake e passaram uma hora na parte de trás da casa, admirando as flores do
meritíssimo. Jake pensou em Carla, em Hanna, na sua casa e na dinamite, mas sem
deixar de demonstrar interesse pela jardinagem de Ichabod.

As tardes de sexta-feira faziam sempre Jake recordar a Faculdade de Direito
quando, dependendo do tempo que fazia, ele e os amigos se reuniam no seu bar favorito,
em Oxford, para beber cerveja e debater as novas teorias sobre Direito ou criticar os
professores de Direito, insolentes, arrogantes, dominadores, ou, quando um dia estava
quente e ensolarado, empilhavam as latas de cerveja no velho conversível de Jake e
seguiam para a praia em Sardis Lake, onde as garotas besuntavam o corpo de óleo e
suavam ao Sol, ignorando os gracejos dos estudantes de Direito embriagados e dos
marmanjos locais. Jake sentia saudades daqueles dias inocentes. Ele detestava a
Faculdade de Direito - todos os alunos com um mínimo de bom senso detestavam - mas
sentia falta dos amigos e dos bons momentos, especialmente das tardes de sexta feira.
Sentia saudades do estilo de vida sem pressões, embora, às vezes a pressão se tornasse
insuportável, especialmente no primeiro ano, quando os professores eram mais
insultuosos do que o normal. Tinha saudades de não ter dinheiro, porque quando não
tinha nada, não devia nada e a maioria dos seus colegas de turma estava na mesma
situação. Agora que tinha rendimentos, estava sempre preocupado com as hipotecas,
com o excesso de despesas, cartões de crédito e tentando realizar o sonho americano de
ter dinheiro suficiente. Não ficar rico, mas ter o suficiente. Tinha saudades do seu
Volkswagen porque fora o seu primeiro carro, presente de fim do liceu e completamente
pago, ao contrário do Saab. Uma vez por outra, tinha saudades do tempo de solteiro,
embora fosse feliz no casamento. E sentia falta da cerveja, fosse ela imperial, de lata ou
de garrafa, tanto fazia. Bebia sempre socialmente, só com amigos, e passava o maior
tempo possível com os amigos. Na Faculdade, não bebia todos os dias e raramente se
embriagava. Mas lembrava-se de algumas ressacas memoráveis e terríveis.
Depois, aparecera Carla. Ele conheceu-a no começo do seu último semestre, e
seis meses depois estavam casados. Ela era muito bonita e foi isso que primeiro lhe
chamou a atenção. Era calma e, no princípio, um pouco esnobe, como a maioria das
meninas ricas da "irmandade" de Ole Miss. Mas Jake descobriu nela grande calor
humano, personalidade forte e pouca auto-confiança. Nunca compreendeu como uma
pessoa tão bonita podia ser tão insegura. Ela estava no Quadro de Honra de Ciências
Humanas, mas pretendia apenas lecionar durante alguns anos. A família era abastada e a
mãe nunca tinha trabalhado. Isso agradou a Jake: o dinheiro da família e a ausência de

ambição para fazer carreira. Ele queria uma mulher que pudesse ficar em casa, sempre
bonita, que quisesse ter filhos e que não tentasse mandar nele. Foi amor à primeira vista.
Mas Carla não aprovava bebidas de qualquer tipo. Guardava lembranças penosas
da infância, quando o pai bebia demais. Assim, Jake passou o último semestre da
faculdade "a seco" e perdeu sete quilos e meio. Estava com ótimo aspecto, sentia-se
ótimo e estava loucamente apaixonado. Mas sentia saudades da cerveja.
Havia um armazém a alguns quilômetros de Chester, com um anúncio de Coors,
na janela. Coors era a sua cerveja favorita, na Faculdade, embora naquele tempo não
fosse vendida a leste do rio. Era algo especial em Ole Miss e o contrabando da Coors no
campus era um negócio muito lucrativo. Agora que podia ser comprada em toda parte,
todas as pessoas preferiam a Budweiser.
Era sexta-feira e estava calor. Carla estava a mais de mil quilômetros de distância.
Jake não queria ir para o escritório e tudo que tinha para fazer podia esperar até ao dia
seguinte. Um doido acabara de tentar matar a sua família e eliminar a casa dele do
Patrimônio Histórico. Faltavam dez dias para o maior julgamento da sua carreira. Ele não
estava pronto e a pressão aumentava. Acabava de perder a sua moção mais importante
antes do julgamento. E estava com sede. Jake parou e comprou uma caixa com seis latas
de Coors.
Levou quase duas horas para percorrer os noventa e seis quilômetros de Chester
a Clanton. Aproveitou com prazer a diversão, a paisagem, a cerveja. Parou duas vezes
para urinar e uma para comprar mais seis latas. Sentia-se maravilhosamente bem.
Naquele estado de espírito, só podia ir para um lugar. Não para casa, nem para o
escritório, certamente que não para o tribunal, para registrar a ordem maldita de Ichabod.
Estacionou o Saab atrás do pequeno e maltratado Porsche e deslizou para a varanda,
com a cerveja gelada na mão. Como sempre, Lucien balançava-se suavemente na
varanda, bebendo e lendo um tratado sobre defesa por privação momentânea de
sentidos. Fechou o livro e, vendo a cerveja, sorriu para o seu antigo contratado. Jake
respondeu com um largo sorriso.
- Qual é a comemoração, Jake?
- Na verdade, nenhuma. Deu-me apenas a sede...
- Ah é... E a sua mulher?
- Ela não manda em mim. Sou um homem independente. Sou o chefe. Se quero
cerveja, bebo cerveja e ela não vai dizer nada. - Jake bebeu um longo gole.
- Ela deve estar fora da cidade.
- Carolina do Norte.
- Quando partiu?
- Às seis da manhã. Partiu de Memphis com a Hanna. Vai ficar com os pais em
Wilmington até ao fim do julgamento. Eles têm uma bela casa de praia onde passam o
Verão.
- Ela partiu esta manhã e você está bêbado no meio da tarde...
- Não estou bêbado - disse Jake - ainda.
- Há quanto tempo é que está bebendo?
- Há umas duas horas. Comprei seis latas quando saí da casa do Noose, mais ou
menos à uma e meia. Há quanto tempo é que está bebendo?
- Normalmente, eu bebo o meu café da manhã. Porque foi a casa dele?
- Falamos sobre o julgamento durante o almoço. Ele negou a transferência de foro.
- O quê?
- Ouviu muito bem. O julgamento vai ser em Clanton. Lucien bebeu um gole e
sacudiu o gelo no copo.
- Sallie! - gritou. - Ele explicou porquê?
- Explicou. Disse que seria impossível encontrar jurados, fosse onde fosse, que
não tivessem ouvido falar do caso.
- Eu bem tinha dito... Essa é uma boa e sensata razão para negar a transferência,
mas legalmente é uma razão muito fraca. o juiz Noose não devia fazer isso.
Sallie apareceu com a bebida e levou a cerveja de Jake para o frigorífico. Lucien
bebeu um bom gole de uísque e fez estalar os lábios. Enxugou a boca com a braço e
bebeu outro gole.
- Sabe o que isso significa, não sabe? - perguntou.
- Claro que sei. Um júri branco.
- Isso e mais a negação do recurso quando ele for condenado.
- Não aposte nisso. o juiz Noose já consultou o Supremo Tribunal. Ele acha que o
Supremo ratificará a decisão se for impugnada. Acha que está em terreno firme.
- Ele é um idiota. Posso mostrar a ele vinte casos que dizem que o local deve ser
mudado. Eu acho é que ele está com medo de transferir.
- Porque iria o juiz Noose ter medo?
- Está sendo pressionado.
- Por quem?
Lucien admirou o líquido dourado no copo e fez girar os cubos de gelo com o
dedo. Sorriu como se soubesse alguma coisa que só revelaria se Jake pedisse.
- Por quem? - perguntou Jake, olhando furioso para o amigo com olhos brilhantes
e vermelhos.
- Buckley - disse Lucien, com ar misterioso.
- Buckley - disse Jake.
- Não compreendo.
- Eu sei que não compreende.
- Pode explicar?
- Acho que sim. Mas não vá contar a ninguém. É estritamente confidencial. As
minhas fontes são muito boas.
- Quem?
- Não posso dizer.
- Quem são as suas fontes? - insistiu Jake.
- Eu disse que não posso dizer. Não quero dizer. Certo?
- Como é que Buckley pode pressionar o juiz Noose?
- Se quiser ouvir, eu digo.
- Buckley não tem influência sobre o juiz Noose. O juiz Noose detesta-o. Ele
mesmo me disse. Hoje. Ao almoço.
- Eu sei.
- Então, como é que pode dizer que o juiz Noose está sendo pressionado por ele?
- Se ficar quieto, eu digo.
Jake terminou uma cerveja e chamou Sallie.
- Você sabe que Buckley é uma puta velha em política e não tem escrúpulos.
Jake fez que sim com a cabeça.
- E também sabe como ele quer ganhar este julgamento. Ele pensa que, se
ganhar, estará lançando a campanha para Secretário de Justiça.
- Governador - disse Jake.
- Seja lá o que for. Ele é ambicioso, certo?
- Certo.
- Muito bem, ele tem pedido aos seus amigos políticos de todo o distrito que
telefonem ao Noose sugerindo que o julgamento se realize em Ford County. Alguns
chegaram a ser grosseiros com o juiz Noose. Tipo: transfira o julgamento e não votamos
em você, nas próximas eleições. Deixe que se realize em Clanton e o ajudaremos a ser
reeleito.
- Não acredito nisso.
- O.K. Mas é verdade.
- Como é que soube?
- Fontes.
- Quem é que lhe telefonou?
- Um exemplo. Lembra-se daquele assassino que era xerife em Van Buren
County? Motley? O FBI apanhou-o, mas já está livre. Ainda é muito popular naquele
distrito.
- Lembro-me, sim.
- Sei, com certeza absoluta, que ele foi a casa do juiz Noose com dois capangas e
sugeriu com muita ênfase que o juiz Noose deixasse o julgamento em Ford County.
Foram mandados pelo Buckley.
- E que disse o juiz Noose?
- Trocaram uma porção de insultos. Motley disse-lhe que ele não conseguiria nem
cinqüenta votos em Van Buren nas próximas eleições. Prometeram encher as urnas de
votos nulos, intimidar os negros, falsificar os votos dos ausentes, tudo o que costumam
fazer nas eleições em Van Buren County. E o juiz Noose sabe que farão isso.
- Porque é que ele se preocupa com isso?
- Não seja idiota, Jake. Ele é um velho que não pode fazer mais nada senão ser
juiz. Consegue imaginar o juiz Noose tentando começar uma carreira de advogado? Ele
ganha sessenta mil por ano e morreria de fome se fosse derrotado. A maioria dos juízes é
assim. Ele precisa assegurar aquele emprego. Buckley sabe isso, e por isso mesmo
conversa com os fanáticos locais dizendo que esse miserável preto pode ser inocentado
se o julgamento for em outra cidade e que eles devem dar um apertão no juiz. Por isso o
juiz Noose está sob pressão.
Beberam em silêncio durante alguns minutos, balançando-se calmamente nas
cadeiras de madeira. A cerveja estava ótima.
- E há mais - disse Lucien.
- Sobre quê?
- Sobre o juiz Noose.
- O que é?
- Ele recebeu algumas ameaças. Não ameaças políticas, mas ameaças de morte.
Ouvi dizer que está morto de medo. Pediu à policial para lhe vigiarem a casa. Agora anda
armado.
- Eu sei como é - murmurou Jake.
- Sim, eu soube.
- Soube o quê?
- Da dinamite. Quem era ele?
Jake ficou atônito. Olhou para Lucien, incapaz de dizer uma palavra.
- Não pergunte. Eu tenho contatos. Quem é ele?
- Ninguém sabe.
- Parece profissional.
- Obrigado.
- Você é bem-vindo se quiser ficar aqui em casa. Tenho cinco quartos de dormir.
O sol tinha desaparecido às oito e quinze, quando Ozzie parou o carro atrás do
Saab, que continuava estacionado atrás do Porsche. Caminhou para os degraus da
varanda. Lucien foi o primeiro a vê-lo.
- Olá, xerife - tentou dizer, com a língua pastosa.
- Boa noite, Lucien. Onde está o Jake?
Lucien inclinou a cabeça na direção da extremidade da varanda. Jake estava
deitado no balanço.
- Está dormindo uma soneca - explicou Lucien, prestimoso. Ozzie aproximou-se do
balanço e parou, olhando para Jake, que roncava discretamente. Tocou de leve as
costelas do advogado. Jake abriu os olhos e lutou valentemente para conseguir sentar-se.
- A Carla telefonou para o meu escritório à sua procura. Está apavorada.
Telefonou durante toda a tarde e não o encontrou. Ninguém o viu hoje. Ela pensa que
você está morto.
Jake esfregou os olhos, sacudindo levemente o balanço.
- Diga-lhe que não estou morto. Diga-lhe que me viu e falou comigo e que está
convencido, sem sombra de dúvida, de que não estou morto. Diga-lhe que telefono
amanhã. Diga-lhe, Ozzie, por favor, diga-lhe.
- De maneira nenhuma, meu amigo. Já está crescidinho. Telefone e diga-lhe... -
Ozzie saiu da varanda. Não estava achando graça nenhuma.
Jake pôs-se em pé e cambaleou para dentro da casa.
- Onde fica o telefone? - gritou para Sallie. Enquanto marcava o número, ouvia a
gargalhada incontrolável de Lucien na varanda.


VINTE E SEIS

A última ressaca fora há seis ou sete anos, na Faculdade, Jake já não se
lembrava. A data, isso... ele não se lembrava da data, mas a cabeça latejante, a secura
na boca, a respiração curta e o ardor nos olhos traziam lembranças vívidas e terríveis de
longas e inesquecíveis sessões com a deliciosa bebida.
Assim que abriu o olho esquerdo, percebeu que tinha problemas. As pálpebras do
olho direito estavam coladas e só podiam ser abertas com a ajuda dos dedos, mas Jake
não tinha coragem de se mexer. Ficou deitado no sofá, no quarto escuro, completamente
vestido, até com os sapatos, ouvindo as marteladas na cabeça e olhando para a
ventoinha que rodava lentamente no teto. Sentia náuseas. O pescoço doía-lhe porque
estava sem travesseiro. Os pés latejavam por causa dos sapatos. O estômago dava
voltas e saltos, ameaçando uma erupção. A morte seria bem-vinda.
Jake tinha problemas com ressacas porque não conseguia dormir até ficar bom.
Assim que abria os olhos e o cérebro acordava e começava a girar outra vez, e
começavam as marteladas nas têmporas, ele não conseguia dormir mais. Os amigos
dele, na Faculdade, dormiam dias seguidos quando estavam de ressaca, mas Jake não.
Nunca conseguia mais do que algumas horas, depois da última lata ou da última garrafa.
Porquê? Essa era a eterna pergunta da manhã seguinte. Porque tinha feito aquilo?
Uma cerveja gelada era repousante. Talvez duas ou três. Mas dez, quinze, talvez vinte?
Tinha perdido a conta. Depois da sexta, a cerveja perde o gosto e a partir daí bebia só
para beber, para se embriagar. Lucien tinha ajudado muito. Antes do anoitecer mandou
Sallie comprar uma caixa de Coors, que ele pagou alegremente, e depois encorajou Jake
a beber. Poucas latas tinham sobrado. A culpa era de Lucien.
Jake levantou as pernas devagar, uma de cada vez, e pôs os pés no chão.
Massageou as têmporas com cuidado, inutilmente. Respirou fundo, mas o coração
começou a bater acelerado, enviando mais sangue para o cérebro, abastecendo os
martelinhos que trabalhavam dentro da sua cabeça. Precisava beber água. Tinha a língua
tão desidratada e tão inchada que era mais fácil ficar com a boca aberta como um cão
com calor. Porquê, oh, porquê?
Jake se pôs em pé, cuidadosamente, muito devagar, e cambaleou até à cozinha. A
luz por cima do fogão era fraca, sob a proteção do globo de plástico, mas mesmo assim
penetrava o escuro, fazendo-lhe doer os olhos Jake esfregou os olhos, tentando limpá-los
com os dedos malcheirosos. Bebeu a água quente devagar e deixou que escorresse da
boca para o chão. Não fazia mal. Sallie limparia. O relógio marcava duas e meia.
Ganhando ânimo, Jake atravessou desajeitada mas silenciosamente a sala de
estar, passou pelo sofá sem travesseiro e saiu para a varanda, cheia de latas e de
garrafas vazias. Porquê?
Quando chegou ao escritório, Jake sentou-se debaixo do chuveiro quente durante
uma hora, incapaz de se mexer. A água quente aliviou-lhe algumas dores, mas não a
violência deflagrada no cérebro. Certa vez, na Faculdade, conseguira arrastar-se da cama
até ao frigorífico para ir buscar uma cerveja. Bebera e sentira-se melhor. Então, bebera
outra e sentira-se ainda melhor. Lembrou-se disso, ali sentado no chuveiro, e ao pensar
em outra cerveja, vomitou.
Deitou-se na mesa de conferências só com a roupa de baixo e fez o possível para
morrer. Tinha um monte de seguros de vida. Ninguém iria ficar com a casa. O novo
advogado podia conseguir um adiamento do julgamento.
Nove dias para o julgamento. O tempo era escasso, precioso, e ele acabava de
desperdiçar um dia inteiro com aquela tremenda ressaca. Aí, pensou em Carla e a cabeça
martelou com mais força. Tentara parecer sóbrio ao telefone. Dissera-lhe que ele e Lucien
tinham passado a tarde toda revendo casos de insanidade e que teria telefonado antes,
mas os telefones não funcionavam, pelo menos os de Lucien não funcionavam. Mas tinha
a língua pesada e a fala arrastada e Carla percebeu que ele estava bêbado. Ficou furiosa
- uma fúria controlada. Sim, a casa ainda estava de pé. Foi a única coisa em que ela
acreditou.
Às seis e meia, Jake telefonou-lhe novamente. Ela ia ficar impressionada por
saber que ele estava no escritório, trabalhando diligentemente. Carla não ficou. Com
grande sofrimento e coragem ele procurou falar alegremente, até demais. Carla não ficou
impressionada.
- Como é que se sente? - insistiu ela.
- Muito bem! - respondeu ele, com os olhos fechados.
- A que horas foi para a cama?
Que cama! pensou Jake.
- Logo a seguir ao telefonema.
Ela não disse nada.
- Cheguei ao escritório às três da manhã - disse ele, com orgulho.
- Três!
- Isso mesmo. Não conseguia dormir.
- Mas você não dormiu, na noite de quinta-feira. - A sugestão de ansiedade na voz
fria animou-o.
- Estou bem. Talvez fique com o Lucien, esta semana e na próxima. Talvez seja
mais seguro.
- E o guarda-costas?
- Sim, o sub delegado Nesbit. Está lá fora, dormindo no carro.
Carla hesitou e Jake sentiu que as linhas telefônicas começavam a descongelar.
- Estou preocupada com você - disse ela, afetuosa.
- Vai correr tudo bem, querida. Eu lhe telefono amanhã. Preciso trabalhar. Jake
desligou, correu para a banheira e vomitou outra vez.
Durante quinze minutos, Jake ignorou a campainha insistente, da porta da frente,
mas fosse quem fosse sabia que ele estava lá e continuava batendo. Foi até à varanda do
segundo andar.
- Quem é? - gritou para a rua.
A mulher saiu do passeio, debaixo da varanda, e encostou-se a um BMW preto
parado perto do Saab. As mãos dela estavam enfiadas nos bolsos dos jeans desbotados
e elegantes. O sol do meio-dia ofuscou-a quando olhou para cima. Iluminou-lhe também o
cabelo louro-avermelhado.
- O senhor é Jake Brigance? - perguntou, protegendo os olhos com um braço.
- Sou. O que é que quer?
- Preciso falar com o senhor.
- Estou muito ocupado.
- É muito importante.
- Não é minha cliente, não é? - perguntou ele ao mesmo tempo em que observava
o corpo esbelto e se certificava de que não podia ser uma cliente.
- Não. Só quero cinco minutos do seu tempo.
Jake abriu a porta. Ela entrou tranqüilamente, como se fosse dona do prédio.
Apertou-lhe a mão com firmeza.
- Eu sou Ellen Roark.
Jack apontou para uma cadeira perto da porta.
- Muito prazer. Sente-se, por favor.
Jake sentou-se na ponta da mesa de Ethel.
- Uma sílaba ou duas?
- Como disse?
O sotaque era típico do nordeste, mas temperado por algum tempo passado no
Sul.
- É Rork ou Row Ark?
- R-o-a-r-k. Isto dá Rork em Boston e Row Ark no Mississipi.
- Posso tratá-la por Ellen?
- Por favor, com duas sílabas. Posso tratá-lo por Jake?
- Sim, claro.
- Bom, eu não tinha pensado em tratá-lo por senhor.
- Boston, hein?
- Sim. Nasci lá. Estudei no Boston College. O meu pai é Sheldon Roark, um
famoso advogado criminologista de Boston.
- Acho que não o conheci. O que a traz ao Mississipi?
- Estou na Faculdade de Direito em Ole Miss.
- Ole Miss! Como veio parar aqui?
- A minha mãe é de Natchez. Ela foi uma amável integrante da irmandade
estudantil de Ole Miss, depois mudou-se para Nova Iorque, onde conheceu o meu pai.
- Eu me casei com uma amável integrante da irmandade estudantil de Ole Miss.
- Eles têm uma grande seleção.
- Aceita um café?
- Não, obrigada.
- Bem, agora que nos conhecemos, o que a traz a Clanton?
- Carl Lee Hailey.
- Não me surpreende.
- Acabo o curso de Direito em Dezembro e não tenho nada para fazer, em Oxford,
durante este Verão. Estou estudando Direito Processual Penal com o Guthrie, e acho
muito chato.
- George Guthrie, o Louco.
- Sim, continua louco.
- Ele me reprovou em Direito Constitucional no primeiro ano.
- Bem, o que acontece é que eu gostaria de ajudá-lo, no julgamento.
Jake sorriu e sentou-se na cadeira rotativa, pesada e resistente de Ethel e olhou
atentamente para Ellen. A camisa pólo preta de algodão era elegantemente desbotada e
muito bem passada. Os contornos externos e as sombras discretas revelavam seios
firmes, sem sutiã. O cabelo ondulado e farto descia perfeito até os ombros.
- Porque pensa que preciso de ajuda?
- Sei que trabalha sozinho e sei que não tem um estagiário de Direito.
- Como sabe tudo isso?
- Newsweek.
- Ah, sim, uma revista maravilhosa. Foi uma boa fotografia, não achou?
- Ficou um pedaço empertigado, mas estava bem. Parece melhor pessoalmente.
- Que credenciais traz com você?
- A inteligência é uma característica da minha família. Concluí summa cum laude
no Boston College e sou a segunda da turma na Faculdade de Direito. No último Verão,
passei três meses com a Liga de Defesa dos Presos do Sul em Birmingham, e fui
assistente em sete julgamentos de homicídio. Vi Elmer Wayne Doss morrer na cadeira
elétrica, na Florida, e Willie Ray Ash levar a injeção letal, no Texas. Nas horas livres, em
Ole Miss, escrevo recensões para a União Americana em prol das Liberdades Civis e
estou trabalhando em dois recursos de pena de morte para um escritório de Spartanburg,
Carolina do Sul. Cresci no escritório do meu pai e era versada em investigação judiciária
antes de saber guiar. Vi-o defender criminosos de delito comum, violadores,
defraudadores, estelionatários, terroristas, assassinos profissionais, molestadores de
crianças, corruptores de menores, assassinos de crianças e crianças que matam os
próprios pais. Trabalhava quarenta horas por semana no escritório dele quando estava no
liceu e cinqüenta quando estava na Faculdade. Ele tem dezoito advogados na firma dele,
todos muito brilhantes, muito cheios de talento. É um grande campo de treino para
criminologistas e eu andei por lá durante catorze anos. Tenho vinte e cinco anos e quando
crescer quero ser uma criminologista radical como o meu pai e viver uma carreira gloriosa
reprimindo a pena de morte.
- Mais nada?
- O meu pai é podre de rico e apesar de sermos irlandeses católicos, sou filha
única. Tenho mais dinheiro do que você e por isso trabalho de graça. Sem encargos. Uma
estagiária não remunerada durante três semanas. Farei todo o trabalho de investigação,
datilografia, ligações telefônicas. Prometo até carregar a sua pasta e fazer-lhe café.
- Eu estava com medo que quisesse ser minha sócia.
- Não. Sou mulher e estou no Sul. Conheço o meu lugar.
- Porque está tão interessada neste caso?
- Quero estar no tribunal. Adoro processos penais, grandes julgamentos onde uma
vida está em jogo e a pressão é tão forte que pode ser vista no ar. Onde a sala do tribunal
fica cheia e a segurança é rígida. Onde metade das pessoas odeia o acusado e a outra
metade reza para que ele seja absolvido. Adoro isso. E este é o julgamento de todos os
julgamentos. Eu não sou Sulista e, de um modo geral, acho esta região incrível, mas
desenvolvi um amor perverso por ela. Nunca fará sentido para mim, mas é fascinante. As
implicações raciais são enormes. O julgamento de um pai negro que matou dois brancos
que lhe violaram a filha... o meu pai disse que aceitaria o caso de graça.
- Diga-lhe que continue em Boston.
- É o sonho de qualquer advogado criminologista. Eu apenas quero estar lá. Não
vou atrapalhar, prometo. Basta me deixar trabalhar nos bastidores e assistir ao
julgamento.
- O juiz Noose odeia advogadas.
- Todos os advogados do Sul também. Além disso, não sou advogada, sou uma
estudante de Direito.
- Eu lhe darei a honra de explicar a ele...
- Então consegui o lugar.
Jake parou de olhar fixamente para ela e respirou fundo. Uma leve onda de
náusea sacudiu-lhe o estômago e os pulmões e cortou-lhe a respiração. As marteladas
tinham voltado com fúria e ele precisava estar perto do banheiro.
- Sim, conseguiu o lugar. Eu sou capaz de usar alguma investigação
independente. Esses casos são complicados, como muito bem sabe.
Ela sorriu com graça e confiança.
- Quando começo?
- Já.
Jake mostrou-lhe todo o escritório rapidamente e instalou-a na sala de guerra, no
andar de cima. Puseram o arquivo de Hailey sobre a mesa de conferências e ela passou
uma hora tirando cópias.
Às duas e meia, Jake acordou de uma soneca no sofá e desceu para a sala de
conferências. Metade dos livros das estantes estava espalhada sobre a mesa com
marcadores que apareciam mais ou menos de cinqüenta em cinqüenta páginas. Ellen
estava concentrada, tomando notas.
- Uma biblioteca razoável - disse ela.
- Alguns desses livros não são usados há vinte anos.
- Percebi pelo pó.
- Está com fome?
- Estou. Faminta.
- Há um pequeno café na esquina cuja especialidade é toucinho e broa de milho.
O meu organismo está precisando de uma injeção de gordura.
- Que delícia!
Rodearam a praça e entraram no Claude's, onde a freguesia era pouca para uma
tarde de sábado. Não havia outros brancos no local, Claude estava fora e o silêncio era
ensurdecedor. Jake pediu um cheeseburger, rodelas de cebola e três envelopes de
analgésico em pó para as dores de cabeça.
- Está com dor de cabeça? - perguntou Ellen.
- Tenho uma dor de cabeça colossal.
- Stress?
- Ressaca.
- Ressaca? Pensei que fosse abstêmio.
- E onde ouviu falar isso?
- Newsweek. O artigo dizia que você era um típico homem de família, workaholic,
presbiteriano devoto, que não bebia e fumava charutos baratos. Não se lembra? Como é
que podia esquecer, certo?
- Acredita em tudo que lê?
- Não.
- Ótimo, porque ontem à noite eu apanhei um porre e passei a manhã inteira
vomitando.
A estagiária achou graça.
- O que é que costuma beber?
- Eu não bebo... lembra-se? Pelo menos não bebia até à noite passada. Esta é a
minha primeira ressaca desde a Faculdade e espero que seja a última. Eu tinha
esquecido de como estas coisas são horríveis.
- Porque os advogados bebem tanto?
- Aprendem na Faculdade. O seu pai bebe?
- Está brincando? Somos católicos. Mas ele é cuidadoso.
- E você bebe?
- Claro, sempre - disse ela com orgulho.
- Então vai ser uma grande advogada.
Jake misturou cuidadosamente o pó dos três envelopes num copo de água gelada
e bebeu de um trago. Fez uma careta e passou o guardanapo pela boca. Ellen observava-
o atentamente com um sorriso divertido.
- O que foi que a sua mulher lhe disse?
- Sobre quê?
- Sobre a ressaca de um homem tão de família e tão devoto.
- Ela não sabe. Ela deixou-me ontem, de manhã cedo.
- Lamento.
- Vai ficar com os pais até terminar o julgamento. Há dois meses que andamos
recebendo telefonemas anônimos e ameaças de morte e, ontem de manhã, puseram
dinamite do lado de fora da janela do nosso quarto. A polícia a encontrou a tempo e
apanhou os homens, provavelmente do Klan. Dinamite suficiente para arrasar a casa e
matar a todos nós. Foi um bom pretexto para apanhar um porre.
- Lamento saber isso.
- O trabalho que acaba de conseguir pode ser muito perigoso. Quero que saiba
isso desde já.
- Já fui ameaçada de outras vezes. No Verão passado, em Dothan, Alabama,
defendemos dois adolescentes negros que tinham sodomizado e estrangulado uma
mulher de oitenta anos. Nenhum advogado do estado quis aceitar o caso. Aí, chamaram a
Liga de Defesa. Entramos na cidade montados em cavalos negros e, assim que
aparecemos, formaram-se grupos de linchamento em todas as esquinas. Nunca me senti
tão odiada em toda a minha vida. Nos escondemos em um motel, em outra cidade, e
achamos que estávamos a salvo, até à noite em que dois homens me cercaram no átrio
do motel e tentaram me seqüestrar.
- Que aconteceu?
- Eu ando sempre com um 38 cano curto na bolsa e os convenci que sabia usá-lo.
- Um 38 cano curto?
- Um presente do meu pai quando fiz quinze anos. Tenho porte de arma.
- Ele deve ser uma destas pessoas...
- Dispararam sobre ele muitas vezes. Ele aceita casos muito controversos, do tipo
que aparece nos jornais, quando o público fica furioso e ofendido e exige que o acusado
seja enforcado sem julgamento e sem advogado. São os casos que o meu pai mais gosta.
Ele tem um guarda-costas permanente.
- Grande coisa! Eu também tenho! O nome dele é sub delegado Nesbit e não é
capaz de acertar na parede de um celeiro com uma espingarda. Ontem, foi destacado
para me proteger.
O almoço chegou. Ellen tirou a cebola e o tomate do seu claudeburger e ofereceu
a Jake as batatas fritas. Partiu a sanduíche ao meio e começou a comer com pequenas
dentadas em volta do pão, como um passarinho. A gordura quente pingou para o prato. A
cada dentada ela limpava a boca cuidadosamente.
O rosto dela era suave e agradável, com um sorriso fácil que desmentia as ligas
feministas, as palavras de ordem do tipo queimem-o-sutiã, eu-posso-ser-mais-agressiva-
do-que-você, que, Jake sabia, estarem à espreita próximo da superfície. Não havia
vestígios de maquiagem em parte alguma do rosto. Não precisava. Ela não era bela, nem
engraçadinha, e evidentemente estava decidida a não ser. Tinha a pele pálida de uma
ruiva, mas saudável, com sete ou oito sardas espalhadas no nariz pequeno e pontiagudo.
A cada sorriso, freqüente, os lábios alargavam-se maravilhosamente, formando simples e
breves covinhas em cada lado do rosto. Os sorrisos eram confiantes, desafiadores e
misteriosos. Os olhos verdes metálicos irradiavam uma fúria mansa e não piscavam
quando ela falava.
Era um rosto inteligente, atraente como o diabo.
Enquanto mastigava o sanduíche, Jake tentava com forçada indiferença ignorar os
olhos dela. A comida pesada aconchegou-lhe o estômago e, pela primeira vez em dez
horas, começou a pensar que iria viver.
- Falando sério, porque escolheu Ole Miss? - perguntou ele.
- É uma boa escola de Direito.
- É a minha escola. Mas normalmente não atraímos os mais brilhantes alunos do
nordeste. É lá que estão as escolas de maior prestígio acadêmico e social. É para lá que
mandamos os nossos melhores alunos.
- O meu pai detesta todos os advogados formados naquelas bandas. Ele era um
pobretão e fez o curso de Direito em uma escola noturna. Agüentou a vida inteira as
afrontas dos advogados ricos, bem-criados e incompetentes. Agora troça deles. Disse que
eu podia estudar Direito em qualquer lugar do país, mas que se eu escolhesse uma
escola famosa do leste, ele não custearia as despesas. Mas há também a minha mãe. Fui
criada ouvindo aquelas deliciosas histórias da vida nas profundezas do Sul e queria ver
isto de perto. Além disso, os estados do Sul pareciam decididos a aplicar a pena de
morte. Portanto acho que acabarei por vir para cá.
- Porque se opõe tanto à pena de morte?
- Você, não?
- Não. Sou totalmente a favor dela.
- Isso é incrível! Vindo da parte de um advogado de defesa.
- Eu gostaria de voltar ao tempo dos enforcamentos públicos no jardim do tribunal.
- Está brincando, não está? Diga que está.
- Não estou.
Ela parou de mastigar e de sorrir. Os olhos faiscaram furiosos, procurando um
sinal de fraqueza nele.
- Está falando sério!...
- Muito sério! O problema com a pena de morte é que não a usamos com muita
frequência.
- Já explicou isso ao Sr. Hailey?
- O Sr. Hailey não merece pena de morte. Mas os dois homens que violaram a
filha dele sem dúvida mereciam.
- Compreendo. Como é que determina quem merece e quem não merece?
- É muito simples. Você olha para o crime e olha para o criminoso. Se é um
traficante que abate a tiros um policial à paisana da seção de narcóticos, merece a
câmara de gás. Se é um vagabundo que viola uma menina de três anos e depois a afoga
segurando-lhe na cabeça dentro da água lamacenta, e depois atira o corpo do alto de
uma ponte, você mesma o mata e dá graças a Deus por ele estar morto. Se é um fugitivo
da prisão que assalta uma propriedade, a altas horas da noite, espanca e tortura um casal
de velhinhos antes de queimá-los juntamente com a casa, amarra-o a uma cadeira,
prende-lhe alguns fios, reza-lhe pela alma e liga a chave. E se são dois drogados que se
revezam no estupro de uma menina de dez anos e lhe dão pontapés no corpo todo com
botas bicudas de cowboy até lhe partirem os maxilares, então você se sente feliz,
contente, agradecida quando os fecha numa câmara de gás e ouve os gritos que eles
dão. É muito simples.
- É coisa de selvagens.
- Os crimes deles foram selvagens. Morrer é bom demais para eles, bom demais.
- E se o Sr. Hailey for condenado à morte?
- Se isso acontecer, tenho certeza de que vou passar os próximos dez anos
entrando com recursos e lutando furiosamente pela vida dele. E se eles o amarrarem na
cadeira, tenho certeza de que estarei do lado de fora da prisão com você, os jesuítas e
mais uma centena de outras almas caridosas protestando, com velas acesas e cantando
hinos. E depois vou ficar de pé, ao lado do túmulo dele, no fundo da igreja dele, com a
viúva e os filhos e desejando nunca tê-lo conhecido.
- Já assistiu a alguma execução?
- Não que eu me lembre.
- Eu já assisti a duas. Se assistir, vai mudar de idéia.
- Ótimo. Não verei nem uma.
- É uma coisa horrível.
- As famílias das vítimas estavam presentes?
- Sim, nos dois casos.
- Ficaram horrorizadas? Mudaram de opinião? É claro que não. Os pesadelos
deles tinham acabado!
- Você me surpreende.
- E gente como você me deixa perplexo. Como pode ser tão fanática e dedicada
ao trabalho de salvar pessoas que pediram a pena de morte e que, de acordo com a lei,
vão tê-la?
- A lei de quem? Não é a lei de Massachusetts.
- Não me diga. O que espera do único estado em que McGovern venceu as
eleições de 1972? Vocês estão sempre muito sintonizados com o resto do país.
Os claude-burgers tinham ficado esquecidos e ambos estavam falando alto
demais. Jake olhou em volta e percebeu alguns olhares intrigados. Ellen sorriu outra vez e
pegou uma rodela de cebola do sanduíche dele.
- O que é que pensa da União Americana pelas Liberdades Civis? - perguntou ela,
mastigando.
- Suponho que tenha um cartão de sócia na carteira...
- Tenho.
- Então está despedida.
- Me associei quando tinha dezesseis anos.
- Porquê tão tarde? Você deve ter sido a última no seu grupo de bandeirantes a
tornar-se sócia.
- Tem algum respeito pela Carta de Direitos?
- Eu adoro a Carta de Direitos. Desprezo os juizes que os interpretam. Coma!
Terminaram os claude-burgers em silêncio, estudando-se um ao outro,
cuidadosamente. Jake pediu café e mais dois envelopes para as dores de cabeça.
- Então, como é que planejamos ganhar este caso? - perguntou ela.
- Nós?
- Ainda tenho o lugar, não tenho?
- Tem. Mas lembre-se de que eu sou o patrão e você a estagiária.
- Certo, patrão. Qual é a sua estratégia?
- Como conduziria as coisas?
- Bem, pelo que sei, o nosso cliente planejou cuidadosamente as mortes e
disparou sobre eles a sangue-frio, seis dias depois do estupro. Tudo indica que ele sabia
exatamente o que estava fazendo.
- Sabia.
- Então não temos defesa e acho que deve declará-lo culpado visando uma
sentença de prisão perpétua e evitando assim a câmara de gás.
- Você esta se saindo uma lutadora de primeira!...
- Estou só brincando. Insanidade é a nossa única defesa. E parece impossível
provar.
- Conhece o Regulamento M'Naghten? - perguntou Jake.
- Sim. Temos um psiquiatra?
- Digamos que sim. Ele dirá tudo quanto nós quisermos que diga; isto é, se estiver
sóbrio no julgamento. Uma das suas tarefas mais difíceis, como minha nova estagiária de
Direito, será garantir que ele esteja sóbrio no julgamento. Não vai ser fácil, acredite.
- Eu vivo para novos desafios no tribunal.
- Ótimo, Row Ark, pegue uma caneta. Aqui está um guardanapo. O seu patrão vai
lhe dar algumas instruções.
Ela começou a tomar notas num guardanapo de papel.
- Quero um apanhado das decisões do Supremo Tribunal do Mississipi sobre o
M'Naghten, nos últimos cinqüenta anos. Deve haver umas cem. Há um caso importante
de 1976, o estado contra Hill, onde o tribunal ficou dividido, cinco a quatro, com os
dissidentes optando por uma definição mais liberal de insanidade. Faça uma coisa curta,
menos de vinte páginas. Sabe escrever à máquina?
- Noventa palavras por minuto.
- Já devia adivinhar... Quero tudo na quarta-feira.
- Você o terá.
- Há alguns pontos comprobatórios que eu quero que sejam investigados. Viu
aquelas fotografias impressionantes dos dois corpos. O juiz Noose geralmente permite
que o júri veja o sangue e a carnificina, mas eu gostaria que essas fotografias não fossem
vistas pelo júri. Veja se há uma maneira.
- Não vai ser fácil.
- O estupro é decisivo para a defesa do réu. Quero que o júri conheça os detalhes.
Isso precisa ser investigado a fundo. Pode começar por dois ou três casos que já separei
e acho que podemos provar ao Noose que o estupro é extremamente relevante.
- Correto. Que mais?
- Não sei. Quando o meu cérebro estiver vivo novamente, pensarei em mais
qualquer coisa, mas isso chega por ora.
- Apresento-me na segunda-feira de manhã?
- Sim, mas não antes das nove. Eu gosto do meu tempo de paz.
- Qual é o código indumentário?
- Parece-me bem assim...
- Jeans e sem meias?
- Tenho outra funcionária, uma secretária chamada Ethel. Tem sessenta e quatro
anos, é forte e graças a Deus usa sutiã. Não seria uma má idéia para você.
- Vou pensar nisso.
- Eu não necessito desse tipo de distração.


VINTE E SETE

Segunda-feira, 15 de Julho. Uma semana para o julgamento. No fim de semana,
espalhou-se a notícia de que o julgamento seria em Clanton e a cidadezinha preparou-se
para o espetáculo. Os telefones dos motéis tocaram sem parar, atendendo os jornalistas
que queriam confirmar as suas reservas. Os cafés fervilhavam de expectativa. Uma
equipe municipal de manutenção cercou o edifício do tribunal a seguir ao café da manhã e
começou a pintá-lo e a retocá-lo. Ozzie mandou os faxineiros da cadeia com os seus
cortadores de relva e erradicadores de ervas daninhas. Os velhos, sob o monumento do
Vietnã, afiavam os seus pedaços de madeira cuidadosamente e observavam toda aquela
atividade. O preso de confiança, que supervisava o trabalho da limpeza, pediu-lhes que
cuspissem o tabaco que mascavam na relva, não no passeio. Eles mandaram-no para o
inferno. A relva das Bermudas, espessa e escura, recebeu uma camada extra de
fertilizante, e uma dúzia de borrifadores de gramado estavam assobiando e salpicando-a,
às nove da manhã.
Às dez horas, a temperatura era de trinta e três graus. Os donos das lojinhas em
volta da praça abriram as portas e ligaram os ventiladores do teto. Telefonaram para
Memphis, Jackson e Chicago para fazerem as suas encomendas para a semana
seguinte.
Noose telefonara a Jean Gillespie, a escrivã do Tribunal Itinerante, na tarde de
sexta-feira, informando-a de que o julgamento seria na sala do tribunal da alçada dela.
Instruiu-a para que convocasse cento e cinqüenta possíveis jurados. A defesa havia
solicitado uma lista ampliada da qual seriam selecionados os doze, e Noose concordara.
Jean e dois auxiliares passaram o sábado esquadrinhando os livros de registro dos
eleitores e escolhendo aleatoriamente os nomes dos jurados potenciais. Seguindo as
instruções específicas de Noose, selecionaram os que tinham mais de sessenta e cinco
anos. Mil nomes foram escolhidos, e cada nome com o respectivo endereço foi escrito
numa pequena ficha e atirado para dentro de uma caixa de papelão. Em seguida, os dois
auxiliares revezaram-se retirando as fichas da caixa, ao acaso. Um auxiliar era branco, o
outro negro. Cada um deles tirava, às cegas, uma ficha da caixa e colocava-a por ordem
sobre uma mesa de dobrar com as outras fichas. Quando a contagem chegou a cento e
cinqüenta, cessou o sorteio e uma lista-mestra foi datilografada. Esses eram os jurados
do estado contra Hailey. Cada passo da seleção fora cuidadosamente ditado pelo
Meritíssimo Ornar Noose, que sabia exatamente o que estava fazendo. Se houvesse um
júri só de brancos, e uma condenação, e uma sentença de morte, cada passo isolado e
elementar do procedimento de seleção do júri seria impugnado na apelação. Ele já tinha
passado por isso, em outras ocasiões, e a sua decisão fora anulada. Mas desta vez não.
Da lista-mestra o nome e o endereço de cada jurado eram datilografados numa
carta separada de convocação do júri. A pilha de convocações foi guardada a sete
chaves, no escritório de Jean, até às oito horas da manhã de segunda-feira quando o
xerife Ozzie Walls chegou. Este tomou café com Jean e recebeu as instruções dela.
- O juiz Noose quer que sejam entregues entre as quatro horas da tarde e a meia-
noite de hoje - disse ela.
- Certo.
- Os jurados devem apresentar-se na sala do tribunal, na próxima segunda-feira,
às nove horas em ponto.
- Certo.
- A convocação não indica o nome nem a natureza do julgamento, e aos jurados
não se deve dizer coisa alguma.
- Eu penso que eles sabem.
- É provável, mas o juiz Noose foi muito claro. Os seus homens não devem dizer
uma palavra sobre o caso quando entregarem as convocações. Os nomes dos jurados
são estritamente confidenciais, pelo menos até quarta-feira. Não pergunte porquê. São
ordens de Noose.
Ozzie examinou a pilha.
- Quantos temos aqui?
- Cento e cinqüenta.
- Cento e cinqüenta! Porquê tantos?
- É um grande caso. Ordens do Noose.
- Vou precisar de todos os meus homens para entregar estes papéis.
- Lamento mas tem que ser.
- Ah, tudo bem. Se é isso que o meritíssimo quer.
Ozzie saiu e, segundos depois, Jake estava de pé junto ao balcão, brincando com
as secretárias e sorrindo para Jean Gillespie. Seguiu-a quando ela se dirigiu para o
escritório dela. Jake fechou a porta. Ela refugiou-se atrás da sua mesa e apontou para
ele. Jake continuou a sorrir.
- Eu sei por que está aqui - disse ela séria - e não vai conseguir.
- Dê-me a lista, Jean.
- Não antes da quarta-feira. Ordens do Noose.
- Quarta-feira? Porquê quarta-feira?
- Não sei. Mas o Ornar foi muito claro.
- Dê-me a lista, Jean.
- Jake, não posso. Quer que eu me meta em problemas?
- Não se vai meter em problemas porque ninguém saberá. Sabe muito bem que eu
sei guardar segredo - Jake estava agora sério. - Jean, dê-me essa maldita lista.
- Jake, não posso.
- Eu preciso dela, e preciso dela já. Não posso esperar até quarta-feira. Tenho
muito que fazer.
- Não seria justo para Buckley - disse ela, com voz fraca.
- Quero que o Buckley se lixe. Você pensa que ele joga limpo? Ele é uma cobra e
você o detesta tanto como eu.
- Talvez até mais...
- Dê-me a lista, Jean.
- Ouça, Jake, nós sempre fomos amigos. Tenho por você mais respeito do que por
qualquer outro advogado que conheço. Quando o meu filho esteve em dificuldades, eu
chamei você, não foi? Confio em você e quero que ganhe este caso. Mas não posso
desobedecer às ordens de um juiz.
- Quem a ajudou a ser eleita da última vez? Eu ou o Buckley?
- Ora, vamos, Jake.
- Quem impediu que o seu filho fosse para a cadeia, eu ou o Buckley?
- Por favor.
- Quem procurou meter o seu filho na cadeia, eu ou o Buckley?
- Isso não é justo, Jake.
- Quem ficou do lado do seu marido quando todas as pessoas, e foram todas as
pessoas mesmo, na igreja, queria despedi-lo quando o balanço não fechava?
- Não é uma questão de lealdade, Jake. Eu gosto de você, da Carla e da Hanna,
mas não posso fazer uma coisa dessas.
Jake bateu com a porta e saiu furioso do escritório. Jean sentou-se à sua mesa e
enxugou as lágrimas que lhe escorriam pela rosto abaixo.

Às dez da manhã, Harry Rex entrou como um furacão no escritório de Jake e
atirou para cima da mesa uma cópia da lista de jurados.
- Não faças perguntas - disse.
Ao lado de cada nome, tinha feito anotações, tais como "Não conheço", ou "Antigo
cliente - odeia negros", ou "Trabalha na fábrica de calçado, poderia ser favorável".
Jake leu cada um dos nomes lentamente, tentando associá-lo a uma cara ou a
uma reputação. Havia somente nomes. Sem endereço, idade, profissão. Nada além dos
nomes. O seu professor da quarta classe em Karaway. Uma das amigas da mãe, no
Clube de Jardinagem. Um antigo cliente, desleixado, pensou. Um nome de uma pessoa
da igreja. Um freqüentador do Coffee Shop. Um fazendeiro importante. A maioria parecia
nome de brancos. Havia um Willie Mae Jones, Leroy Washington, Roosevelt Tucker,
Bessie Lou Bean e outros nomes de negros. Mas a lista parecia terrivelmente incolor.
Jake reconheceu trinta nomes no máximo.
- O que é que acha? - perguntou Harry Rex.
- É difícil dizer. A maioria é branca, mas isso era de se esperar. Onde conseguiu
isto?
- Não pergunte. Fiz anotações em vinte e seis nomes. É o máximo que posso
fazer. O resto, não conheço...
- Você é um grande amigo, Harry Rex.
- Sou um príncipe. Está pronto para o julgamento?
- Ainda não. Mas descobri uma arma secreta.
- O quê?
- Vai conhecê-la mais tarde.
- Ela?
- Isso mesmo. Você tem o que fazer, na quarta-feira à noite?
- Acho que não. Porquê?
- Ótimo. Venha me encontrar aqui, às oito. Lucien também vai estar aqui. Talvez
mais uma ou duas pessoas. Quero ter umas duas horas para conversar a respeito do júri.
Quem é que nós queremos? Faremos o perfil do jurado ideal e partiremos daí. Vamos
examinar cada um dos nomes e, espero, identificar a maior parte deles.
- Parece divertido. Estarei aqui. Como é o seu jurado ideal?
- Não sei ao certo. Penso que o justiceiro agrada aos lavradores brancos. Armas,
violência, proteção das mulheres. Os agricultores adoram isso. Mas o meu cliente é negro
e muitos proprietários brancos gostariam de fritá-lo vivo. Ele matou dois deles.
- Concordo. Eu evitaria escolher mulheres. Elas não têm simpatia pelos violadores,
mas dão mais valor à vida. Pegar uma M-16 e arrebentar a cabeça de alguém é uma
coisa que as mulheres não compreendem. você e eu compreendemos, porque somos
pais. Gostamos da idéia. Violência e sangue não nos impressionam. Nós admiramos o
cara. Tem que contar com alguns admiradores neste júri. Pais jovens com alguma
instrução.
- Isso é interessante. Lucien disse que escolheria mulheres porque são mais
compassivas.
- Eu não acho. Conheço algumas mulheres que te cortariam o pescoço se você as
contrariasse.
- Alguma das suas clientes?
- Sim, e uma delas está nessa lista. Frances Burdeen. Escolhe-a e eu digo-lhe
como deve votar.
- Estás falando sério?
- Estou. Ela faz tudo o que eu mandar.
- Você pode estar no tribunal, na segunda-feira? Quero que veja o júri durante o
processo de seleção, depois quero que me ajude a escolher os doze.
- Não perderia isso, por nada deste mundo.
Jake ouviu vozes no andar de baixo e levou o dedo aos lábios. Escutou, depois fez
sinal a Harry Rex para segui-lo. Foram em pontas de pés até o alto da escada e ficaram
ouvindo a conversa acalorada.
- Você certamente não trabalha aqui - insistia Ethel.
- É claro que trabalho. Fui contratada no sábado pelo Dr. Jake Brigance, que,
creio, é o seu patrão.
- Contratada como quê? - quis saber Ethel.
- Estagiária.
- Bem, ele não me disse nada.
- Conversou comigo e me deu o emprego.
- Quanto é que ele lhe vai pagar?
- Cem dólares à hora.
- Ai, meu Deus! Tenho que falar com ele primeiro.
- Eu já falei com ele, Ethel.
- Sra. Twitty, se faz favor. - Ethel examinou-a dos pés à cabeça. Jeans lavadas
com ácido, tênis baratos, sem meias, uma camisa larga demais de algodão branco,
abotoada à frente, evidentemente sem nada por baixo.
- Você não está vestida apropriadamente para este escritório. Está... está
indecente!
Harry Rex ergueu o sobrolho e sorriu para Jake. Eles continuaram no alto da
escada, à escuta.
- O meu patrão, que acontece ser o seu patrão, disse-me que eu poderia me vestir
assim.
- Mas você se esqueceu de qualquer coisa, não se esqueceu?
- Jake disse que eu podia esquecer... Ele me disse que a senhora tinha passado
vinte anos sem usar sutiã. Disse que a maioria das mulheres de Clanton não usa. Por isso
deixei o meu em casa.
- Ele o quê? - gritou Ethel, cruzando os braços no peito.
- Ele está lá em cima? - perguntou Ellen friamente.
- Está. Vou chamá-lo.
- Não é preciso.
Jake e Harry Rex voltaram para o escritório, à espera da estagiária. Ela entrou
com uma enorme pasta executiva.
- Bom dia, Row Ark - disse Jake. - Quero apresentar-lhe um grande amigo meu,
Harry Rex Vonner.
Harry Rex apertou-lhe a mão e olhou para a blusa dela.
- Muito prazer. Como se chama?
- Ellen.
- Pode tratá-la por Row Ark - disse Jake. - Ela vai ser estagiária aqui até ao fim do
julgamento.
- Isso é Ótimo - disse Harry Rex, sem tirar os olhos da blusa de Ellen.
- Harry Rex é um advogado local, Row Ark, é um dos muitos em quem não pode
confiar.
- Porque contratou uma mulher como estagiária, Jake? - perguntou Harry Rex,
sem rodeios.
- Row Ark é um gênio em Direito Penal, como a maioria dos estudantes do terceiro
ano. E trabalha a troco de um salário muito baixo.
- O senhor tem alguma coisa contra as mulheres? - perguntou Ellen.
- Não, minha senhora, eu adoro mulheres. Já casei com quatro.
- O Harry Rex é o mais hábil advogado em processos de divórcio de Ford County -
explicou Jake. - Na verdade, ele é o mais hábil dos advogados, ponto final. E pensando
bem, é o homem mais hábil que eu conheço.
- Muito obrigado - disse Harry Rex.
- Ele tinha deixado de olhar para ela. Ela olhou para os sapatos enormes, sujos,
gastos, de bico largo, as meias de nylon caneladas que caíam em grossos chumaços em
volta dos tornozelos, as calças cáqui surradas e manchadas, o blazer azul-marinho puído,
a gravata brilhante de lã cor-de-rosa que ficava quinze centímetros acima do cinto, e
disse:
- Acho-o uma delícia.
- Eu bem podia fazer de você a minha mulher número cinco - disse Harry Rex.
- A atração é puramente física - respondeu Ellen.
- Alto lá - disse Jake. - Desde que o Lucien foi embora, nunca houve sexo neste
escritório.
- Muita coisa foi embora com o Lucien - disse Harry Rex.
- Quem é Lucien?
Jake e Harry Rex entreolharam-se.
- Vai conhecê-lo muito em breve - disse Jake.
- A sua secretária é uma graça - disse Ellen.
- Eu já sabia que vocês se iam dar bem. Ela é de fato um amor depois que a gente
a conhece.
- Isso leva quanto tempo?
- Eu a conheço há vinte anos - disse Harry Rex - e ainda estou esperando.
- Como vai a investigação? - perguntou Jake.
- Devagar. Há dezenas de casos M'Naghten e todos muito compridos. Estou mais
ou menos no meio. Estava pensando em trabalhar nisto o dia todo, aqui, isto é, se aquele
touro bravo lá em baixo não me atacar.
- Eu cuido da Ethel - disse Jake. Harry Rex encaminhou-se para a porta. - Foi um
prazer, Row Ark. A gente se vê.
- Obrigado, Harry Rex - disse Jake. - Vemo-nos na quarta, à noite.

O estacionamento de terra e cascalho do Tank's estava cheio quando Jake,
finalmente, conseguiu dar com ele, à noite. Nunca tinha tido motivo, anteriormente, para
visitar o Tank's e não estava exatamente entusiasmado. Ficava bem escondido, afastado
da estrada de terra, a dez quilômetros de Clanton. Jake estacionou longe do prédio de
cimento de cinzas e pensou em deixar o motor ligado para o caso de Tank não estar e ter
de sair a toda depressa. Mas desistiu da idiotice porque gostava do seu carro e a
probabilidade de ser roubado era muito grande naquele lugar. Jake trancou o Saab,
verificou duas vezes as portas e os vidros, quase com certeza de que o carro todo, ou
parte dele, teria desaparecido quando voltasse.
A música do juke-box, no máximo, saía pelas janelas abertas e Jake teve a
impressão de ouvir o barulho de uma garrafa partindo-se no chão, na mesa ou na cabeça
de alguém. Ficou parado perto do carro, pensando em ir embora. Não, era importante.
Encolheu a barriga, respirou fundo e abriu a porta de madeira arranhada. Quarenta pares
de olhos negros fixaram-se imediatamente no pobre homem branco perdido, de terno e
gravata, que tentava habituar a vista à imensa escuridão da taberna. Jake ficou parado,
embaraçado, à procura desesperadamente de um amigo. Não viu nenhum. Michael
Jackson terminou a canção no juke-box e o silêncio durou uma eternidade. Jake ficou
perto da porta, cumprimentando com uma inclinação de cabeça, sorrindo, tentando agir
como se pertencesse ao grupo. Não viu nenhum sorriso.
De repente percebeu um movimento no bar e os joelhos tremeram.
- Jake! Jake! - gritou alguém, as duas palavras mais doces de toda a sua vida. Viu
Tank atrás do bar, tirando o avental e dirigindo-se a ele. Trocaram um caloroso aperto de
mãos.
- O que o traz aqui?
- Preciso falar com você um minuto. Podemos ir lá fora?
- Claro! O que há?
- Só negócios.
Tank baixou um interruptor, ao lado da porta.
- Eh, pessoal, este aqui é o advogado de Carl Lee Hailey, o Dr. Jake Brigance.
Meu amigo. Uma salva de palmas para ele.
A pequena sala explodiu em aplausos e bravos. Vários homens que estavam no
bar apertaram a mão de Jake.
Tank tirou da prateleira do bar uma porção de cartões de visita de Jake e
distribuiu-os como se fossem doces. Jake respirava de novo e a cor voltara-lhe à cara. Lá
fora, encostaram-se ao capo do Cadillac amarelo de Tank. A voz de Lionel Richie soava
através das janelas e tudo voltou ao normal. Jake entregou a Tank uma cópia da lista.
- Leia esses nomes e veja quais é que conhece. Mostre-os aos seus amigos e
descubra tudo o que puder.
Tank aproximou o papel dos olhos. A luz do letreiro luminoso brilhava acima do
seu ombro:
- Quantos são negros?
- Isso é o que você vai me dizer... Esse é um dos motivos por que quero que você
verifique. Faça um círculo em volta dos nomes de negros. Se não tiver certeza, descubra.
Se alguém conhecer algum dos brancos, que faça uma anotação.
- É um prazer ajudá-lo, Jake. Isto não é ilegal, não é?
- Não, mas não diga a ninguém. Quero a resposta na quarta-feira de manhã.
- O doutor manda.
Tank guardou a lista e Jake foi para o escritório. Eram quase dez horas. Ethel
tinha datilografado cópias da lista de Harry Rex, que foram entregues em mãos a amigos
escolhidos e de confiança.
Lucien, Stan Atcavage, Tank, Dell, no Coffee Shop, um advogado de Karaway,
chamado Roland Isom, e mais alguns. Até Ozzie recebeu uma cópia.

A menos de cinco quilômetros da taberna ficava a casa de madeira onde Ethel e
Bud Ttwitty moravam, há quase quarenta anos. Era uma casa agradável com lembranças
agradáveis dos filhos que estavam agora espalhados pelo Norte. O filho caçula, o que se
parecia muito com Lucien, morava em Miami. A casa estava mais sossegada agora. Há
anos que Bud não trabalhava, desde o primeiro derrame em 1975. Depois tivera um
enfarte, seguido de mais dois derrames sérios e de vários outros menores. Tinha os dias
contados e há muito que aceitava o fato de que a qualquer momento poderia sofrer o
derrame final e morrer na varanda da frente, enquanto descascava feijão. Pelo menos era
o que ele esperava.
Na noite de segunda-feira, estava na varanda, debulhando feijão e ouvindo o jogo
dos Cardinals, na rádio. Ethel estava na cozinha. No final do oitavo tempo, com os
Cardinais prestes a fazerem um lançamento e a ganharem por dois pontos, ouviu um
barulho ao lado da casa. Baixou o volume do rádio. Provavelmente um cão. Ouviu
novamente o ruído. Levantou-se e foi até ao fim da varanda. De repente, um vulto
enorme, vestido de preto, com tinta de guerra vermelha, branca e preta, com a cara
tapada, saltou dos arbustos, agarrou Bud e arrastou-o para fora da varanda. O grito
angustiado de Bud não foi ouvido na cozinha. Outro homem apareceu e os dois
arrastaram o pobre velho até os degraus da varanda. Um deles imobilizou-o agarrando-o
pelo pescoço, enquanto o outro lhe esmurrava a barriga flácida e lhe ensangüentava a
cara. Em poucos minutos Bud estava inconsciente.
Ethel ouviu o barulho e correu para a porta da frente. Foi agarrada por um terceiro
membro do bando, que lhe torceu o braço para cima, nas costas, e pôs o braço à volta do
pescoço. Ethel não podia gritar, nem falar, nem mexer-se e ficou ali na varanda,
apavorada, vendo os bandidos revezarem-se no espancamento do marido. No passeio, a
um metro da cena de violência, estavam mais três homens com mantos brancos
debruados de vermelho e capuzes altos e pontiagudos, com máscaras vermelhas e
brancas. Saíram do escuro e observaram a cena como três reis magos ao lado da
manjedoura.
Ao fim de um longo e terrível minuto, o espancamento tornou-se monótono.
- Chega - disse o homem de branco que estava no meio. Os três terroristas
vestidos de negro fugiram. Ethel desceu os degraus e ajoelhou-se ao lado do marido
espancado. Os três homens de branco desapareceram.
Jake saiu do hospital depois da meia-noite. Bud ainda estava vivo, mas os
prognósticos não eram bons. Além das fraturas, tivera outro ataque cardíaco. Ethel fez
uma cena, jogando a culpa para cima dele.
- Disse que não havia perigo! - gritou ela. - Vá dizer isso ao meu marido! A culpa é
toda sua!
Jake ouviu-a gritar e esbravejar, e o embaraço transformou-se em raiva. Olhou em
volta, na pequena sala de espera, para os amigos e parentes. Todos olhavam para ele.
Sim, pareciam dizer, a culpa é toda tua.


VINTE E OITO

Na terça-feira, muito cedo, Gwen telefonou para o escritório de Jake e Ellen Roark,
a nova secretária, atendeu. Lutou com o interfone até estragá-lo e depois foi até à escada
e gritou:
- Jake, a mulher do Sr. Hailey.
Jake fechou com força o livro que estava lendo e pegou o telefone, irritado.
- Sim.
- Jake, está ocupado?
- Muito. Qual é o problema? Ela começou a chorar.
- Jake, precisamos de dinheiro. Estamos sem nenhum e as contas todas vencidas.
Há dois meses que não pago a hipoteca da casa e o banco telefona todos os dias. Não
sei a quem mais é que hei de recorrer.
- E a sua família?
- A minha família é pobre, Jake, o senhor sabe... Eles os dão comida e fazem o
que podem, mas não podem pagar a hipoteca e as contas da casa.
- Falou com Carl Lee?
- Não sobre dinheiro. Não ultimamente. Ele não pode fazer nada, a não ser ficar
preocupado, e Deus sabe que já tem muito com que se preocupar.
- E as igrejas?
- Não vi um centavo.
- De quanto é que precisa?
- Pelo menos de quinhentos dólares, só para pôr as contas em dia. Não sei como
vai ser no mês que vem. Mas só vou pensar nisso quando isso chegar. Novecentos,
menos quinhentos, deixavam para Jake quatrocentos pela defesa de um crime de
homicídio. Devia ser um recorde. Quatrocentos dólares! Então, teve uma idéia.
- Pode vir ao meu escritório às duas horas da tarde, hoje?
- Tenho de levar as crianças.
- Está bem. Venha.
Jake desligou e procurou na lista o número do reverendo Ollie Agee. O reverendo
estava na igreja. Jake inventou uma história dizendo que queria falar com ele sobre o
julgamento de Hailey e sobre o testemunho que ele ia prestar. Disse que o reverendo
seria uma testemunha muito importante. Agee prometeu estar no escritório de Jake às
duas horas.
O clã dos Hailey chegou mais cedo e Jake os fez sentar em volta da mesa de
conferências. Os rapazes lembravam-se da sala, no dia da conferência de imprensa, e
olhavam encantados para a mesa comprida, as cadeiras giratórias, as filas de livros nas
estantes. O reverendo chegou, abraçou Gwen e acariciou as crianças, especialmente
Tonya.
- Serei muito breve, reverendo - disse. - Precisamos conversar sobre certas
coisas. Durante várias semanas, o senhor e os outros religiosos negros têm angariado
dinheiro para os Hailey. E conseguiram uma boa quantia. Mais de seis mil, se não me
engano. Não sei onde está o dinheiro e nem quero saber. Os senhores ofereceram
dinheiro aos advogados da associação para defender Carl Lee, mas, como sabemos,
esses advogados não vão trabalhar neste caso. Eu sou o advogado, o único advogado e,
até agora, nenhuma parte desse dinheiro me foi oferecida. Eu não espero que me
ofereçam. Evidentemente, os senhores não se importam com o tipo de defesa que ele vai
ter, já que não podem escolher o advogado. Está tudo bem. Posso passar por cima disso.
O que me incomoda realmente, reverendo, é o fato de que nenhum, repito, nenhum
dinheiro foi entregue aos Hailey. Certo, Gwen?
O olhar vazio de Gwen foi substituído primeiro por espanto, incredulidade e,
finalmente, fúria contra o reverendo.
- Seis mil dólares - disse ela.
- Mais de seis mil, segundo a última informação - disse Jake. - E o dinheiro está
num banco, parado, enquanto Carl Lee está na cadeia, Gwen sem emprego, as contas
vencidas, a comida dada exclusivamente pelos amigos e a execução da hipoteca da casa
marcada para daqui a poucos dias. Agora diga-nos, reverendo, o que pretende fazer com
o dinheiro?
Agee sorriu e disse com voz melosa:
- Não é da sua conta.
- Mas é da minha conta! - disse Gwen, em voz alta. - Usou o meu nome e o da
minha família para levantar esse dinheiro, não usou, reverendo? Eu mesma o ouvi. Disse
a todos, na igreja, que essa oferenda de amor, como lhe chamou, era para a minha
família. Eu pensei que tinham gasto tudo para pagar aos advogados, ou qualquer coisa
assim. E agora, hoje, venho a saber que o dinheiro está enfiado no banco. Acho que o
senhor pretende ficar com ele.
Agee não se abalou.
- Espere um pouco, Gwen. Achamos que seria melhor gastar o dinheiro com Carl
Lee. Ele recusou o dinheiro quando não quis contratar os advogados da associação.
Então, perguntei ao Dr. Reinfield, o chefe da equipe, o que devia fazer com o dinheiro. Ele
disse-me que o guardasse porque Carl Lee iria precisar dele para entrar com o recurso
em caso de condenação.
Jake inclinou a cabeça para o lado e cerrou os dentes. Ia começar a disparatar
com aquele tolo ignorante, mas compreendeu que Agee não sabia o que dizia. Jake
mordeu os lábios.
- Eu não compreendo - disse Gwen.
- É simples - explicou o reverendo com um sorriso superior. - O Dr. Reinfield disse
que o Carl Lee vai ser condenado porque não o contratou. Então, vamos ter de apelar da
sentença, certo? E depois de Jake perder o julgamento, você e Carl Lee naturalmente vão
procurar outro advogado que possa salvar a vida dele. É quando vão precisar de Reinfield
e é para isso que precisamos do dinheiro. Assim, como está vendo, o dinheiro é para Carl
Lee.
Jake balançou a cabeça e praguejou mentalmente. Amaldiçoou Reinfield mais do
que Agee. Os olhos de Gwen encheram-se de lágrimas e ela fechou os punhos com
força.
- Eu não compreendo nada disso, e não quero compreender. Só sei que estou
farta de pedir comida, farta de depender dos outros e farta de ter medo de perder a casa.
Agee olhou tristemente para ela.
- Eu compreendo, Gwen, mas...
- E se o senhor tem seis mil dólares do nosso dinheiro no banco, faz mal em não
nos entregar esse dinheiro. Somos capazes de usar o dinheiro do modo certo.
Carl Lee Jr. e Jarvis estavam ao lado da mãe, procurando reconfortá-la. Olharam
para Agee.
- Mas é para Carl Lee - disse o reverendo.
- Muito bem - disse Jake. - Já perguntou ao Carl Lee como é que ele quer que
esse dinheiro seja usado?
O sorriso safado desapareceu dos lábios de Agee e este remexeu-se nervoso na
cadeira.
- Carl Lee compreende o que estamos fazendo - disse, sem muita convicção.
- Muito obrigado. Não foi isso que perguntei. Ouça com atenção. Já perguntou ao
Carl Lee como ele quer que esse dinheiro seja usado?
- Acho que já foi discutido com ele - mentiu Agee.
- É o que vamos ver. - Jake levantou-se e foi até à porta da pequena sala de
conferências ao lado do escritório.
O reverendo observava-o nervoso, quase em pânico. Jake abriu a porta e fez um
sinal a alguém. Carl Lee e Ozzie entraram calmamente no escritório. As crianças gritaram
de alegria e correram para o pai. Agee ficou arrasado. Ao fim de alguns minutos de beijos
e abraços, Jake preparou-se para o golpe de misericórdia.
- Vamos, reverendo, porque não pergunta ao Carl Lee como é que ele quer que
sejam usados os seis mil dólares?
- Não lhe pertencem exatamente a ele - disse Agee.
- E não lhe pertencem exatamente a você! - disse Ozzie.
Carl Lee tirou Tonya dos joelhos e aproximou-se da cadeira de Agee. Sentou-se
na ponta da mesa, ficando mais alto do que o reverendo, pronto para o ataque, se fosse
necessário.
- Deixe que eu explique tudo do modo mais simples, reverendo, para que o senhor
possa entender. O senhor levantou aquele dinheiro em meu nome, em benefício da minha
família. Tirou-o dos negros desta cidade, e tirou-o com a promessa de que iam me ajudar
e à minha família. O senhor mentiu. Angariou o dinheiro para impressionar a associação,
não para ajudar a minha família. Mentiu na igreja, mentiu nos jornais, mentiu em toda a
parte.
Agee olhou em volta e viu que todos olhavam para ele, até as crianças, sacudindo
a cabeça para cima e para baixo, concordando com Carl Lee. Carl Lee pôs o pé na
cadeira de Agee e, inclinando-se para frente, ficou muito perto do reverendo.
- Se não nos der esse dinheiro, vou dizer a todos os negros que conheço que o
reverendo é um mentiroso e um ladrão! Vou telefonar para cada um dos membros da sua
igreja, e eu sou um deles, lembre-se, e dizer que não recebemos um centavo e, quando
eu acabar, o senhor não vai conseguir nem dois dólares no peditório de domingo. Vai
perder os seus Cadillacs e os seus ternos de luxo. Pode até perder a sua igreja, porque
vou pedir para todos irem embora.
- Já terminou? - perguntou Agee. - Se terminou, quero apenas dizer que estou
magoado. Muito magoado por você e a Gwen pensarem assim.
- É exatamente o que pensamos e pouco me importa que esteja magoado.
Ozzie adiantou-se.
- Concordo com eles. Reverendo Agee, o senhor não agiu corretamente, e sabe
disso muito bem.
- Isso dói, Ozzie, vindo de você. Dói de verdade.
- Deixe-me dizer-lhe o que vai doer muito mais... No próximo domingo, eu e Carl
Lee estaremos na sua igreja. Vou tirá-lo às escondidas da cadeia, muito cedo, para um
pequeno passeio. Quando for começar o seu sermão, entraremos pela porta da frente,
seguiremos pela passagem central até ao púlpito... Se quiser me impedir, eu o algemo!
Carl Lee vai fazer o sermão. Vai dizer à sua gente que o dinheiro que deram com tanta
generosidade até agora não saiu do seu bolso, que a Gwen e os filhos estão prestes a
perder a casa porque o senhor está bancando o importante com a associação. Vai dizer-
lhes que o senhor mentiu. Carl Lee pode falar durante uma hora, ou mais. E quando ele
terminar, eu acrescentarei algumas palavrinhas. Vou dizer-lhes que o senhor é um preto
mentiroso e salafrário. Vou contar-lhes do Lincoln roubado que o senhor comprou em
Memphis por cem dólares e que por pouco era indiciado por isso. Vou falar-lhes acerca
dos pagamentos que recebe da agência funerária. Vou contar-lhes da acusação de
falsificação de cheques que eu consegui retirar em Jackson, há dois anos. E, reverendo,
vou contar...
- Não faça isso, Ozzie - pediu o reverendo.
- Vou contar um segredinho sujo que só nós dois e uma certa mulher de má
reputação conhecemos...
- Quando é que querem o dinheiro?
- Quando é que pode levantá-lo? - perguntou Carl Lee.
- Rapidamente.
Jake e Ozzie deixaram os Hailey e subiram para o escritório, onde Ellen trabalhava
no meio aos livros de Direito. Jake apresentou Ozzie à sua estagiária e os três sentaram-
se em volta da grande mesa.
- Como vão os meus amigos? - perguntou Jake.
- Os rapazes da dinamite? Estão se recuperando muito bem. Vão ficar no hospital
até ao fim do julgamento. Instalamos uma fechadura na porta e tenho um policial no
corredor. Não vão a parte alguma.
- Quem é o líder?
- Ainda não sabemos. O resultado das impressões digitais não chegou ainda.
Talvez não tenham a ficha das impressões dele. O homem não diz nada.
- O outro é um homem daqui mesmo, não é? ­ perguntou Ellen.
- É. Terrell Grist. Ele quer processar-nos porque foi ferido durante a prisão.
Imagine!
- Nem acredito que o caso ainda seja segredo - disse Jake. - Nem eu. É claro que
Grist e o Sr. X não falam com ninguém. Os meus homens estão calados. Portanto, só o
Jake e a sua assistente é que sabem.
- E o Lucien, mas não soube por mim.
- Era de esperar.
- Quando vão processá-los?
- Depois do julgamento vamos levá-los para a cadeia e começar a dar entrada com
a papelada. Só depende de nós.
- Como está o Bud? - perguntou Jake.
- Passei pelo hospital esta manhã para ver os outros dois e desci para ver a Ethel.
O estado dele continua crítico. Nenhuma alteração.
- Algum suspeito?
- Tem de ser o Klan. Com os mantos brancos e tudo o mais. Tudo combina.
Primeiro a cruz de fogo no seu jardim, depois a dinamite, e agora o Bud. Além das
ameaças de morte. E temos um informante.
- Têm o quê?
- Ouviu bem. Ele diz que se chama Mickey Mouse. Telefonou para minha casa no
domingo e disse que tinha salvado a sua vida. "O advogado do preto", foi como ele lhe
chamou. Disse que o Klan chegou oficialmente a Ford County. Fundaram uma Klavern, ou
o que seja!
- Quem são eles?
- Ele não sabe os pormenores. Prometeu telefonar-me apenas se alguém estiver
para ser atacado.
- Mas que simpático! Podemos confiar nele?
- Ele salvou-lhe a vida.
-Tem razão. É membro do Klan?
- Não disse. Eles programaram um grande desfile para quinta-feira.
- O Klan?
- Sim. A associação vai fazer um comício amanhã, em frente do tribunal. E, a
seguir, vão marchar durante algum tempo. O Klan vai aparecer na quinta-feira para um
desfile pacífico.
- Quantos?
- Mickey Mouse não disse. Como eu já lhe disse ele não entra em detalhes.
- O Klan desfilando em Clanton. Nem quero acreditar!
- Acontecimento de peso - disse Ellen.
- As coisas vão piorar - observou Ozzie. - Pedi ao governador para manter a
patrulha de trânsito em alerta. Pode ser uma semana difícil.
- Dá para acreditar que o juiz Noose está disposto a julgar este caso na sua
cidade? - perguntou Jake.
- É grande demais para tirar daqui, Jake. Em qualquer lugar íamos ter desfiles,
protestos e o Klan.
- Talvez tenha razão. Como vai a sua lista de jurados?
- Amanhã, estará pronta.

Na terça-feira, depois do jantar, Joe Frank Perryman estava sentado na varanda
da frente com o jornal e um pedaço de tabaco Red Man na boca. Mascava e cuspia com
cuidado num buraco feito à mão no chão da varanda. Esse era o seu ritual de todas as
noites. Quando acabava de lavar os pratos, Leia fazia dois copos de chá gelado e ambos,
sentados na varanda, conversavam até tarde sobre a colheita, os netos, a umidade.
Moravam perto da cidade de Karaway, em três hectares de terra cultivada, roubada pelo
pai de Frank durante a depressão. Era um casal pacífico, trabalhador e cristão.
Ao fim de algumas cuspidelas no buraco no chão, uma pick-up diminuiu a marcha
na estrada e entrou na passagem de terra que levava à casa dos Perryman. Parou ao
lado do gramado e apareceu uma cara conhecida. Era Will Tierce, ex-presidente do
Conselho Supervisor de Ford County. Will trabalhara para o seu distrito durante vinte e
quatro anos, seis mandatos consecutivos, mas perdera a última eleição, em 1983, por
sete votos. Os Perryman votavam sempre em Tierce porque este sempre os presenteava,
ora com um carregamento de cascalho, ora com alguns metros de tubos para
canalizações.
- Boa noite, Will - disse Joe Frank, quando o ex-supervisor atravessou o gramado
e se aproximou da varanda.
- Boa noite, Joe Frank. Depois do aperto de mãos, sentaram-se calmamente.
- Dê-me um pouco de tabaco de mascar - disse Tierce.
- Claro. O que o traz aqui?
- Estou apenas de passagem. Pensei no chá gelado de Lela e fiquei com uma
sede danada. Há tempos que os não via. Conversaram, mascaram, cuspiram e beberam
chá gelado até escurecer e chegar a hora dos mosquitos. A estiagem exigia trabalho
constante e Joe Frank falou longamente sobre a pior seca dos últimos anos. Não chovia
nem uma gota desde a terceira semana de Junho. Se não chovesse, podia dizer adeus à
colheita de algodão. O feijão era capaz de resistir, estava preocupado era com o algodão.
- Ouça, Joe Frank, ouvi dizer que você recebeu uma daquelas intimações para ser
jurado do julgamento da semana que vem.
- Sim, infelizmente recebi. Quem lhe disse?
- Não sei. Ouvi dizer.
- Não sabia que era do domínio público.
- Bem, penso que devo ter ouvido em Clanton, hoje. Fui tratar de uns assuntos no
edifício do tribunal. Foi lá que ouvi. É o julgamento daquele negro, sabe.
- Foi o que imaginei.
- O que acha de o negro ter matado os homens daquela maneira?
- Eu não o culpo - disse Leia.
- Pois, mas uma pessoa não pode fazer justiça pelas próprias mãos - explicou Joe
Frank à velhota. - Para isso é que existe o sistema judiciário. Vou lhes dizer o que me
preocupa - disse Tierce. - É essa história de insanidade. Eles vão dizer que o preto estava
louco e vão soltá-lo alegando loucura. Como aquele maluco que atirou no Reagan. É um
modo pouco honesto de se conseguir uma absolvição. Além disso, é uma mentira. Aquele
negro planejou matar os homens e ficou sentado, à espera. Foi assassínio a sangue-frio.
- E se fosse a sua filha, Will? - perguntou Leia.
- Eu entregaria o caso nas mãos da justiça. Quando a gente apanha um violador
por estas bandas, especialmente um negro, em geral, o prendemos. A Parchman está
cheia de violadores que nunca mais vão sair de lá. Isto não é a Califórnia, ou Nova Iorque,
ou outro lugar qualquer de gente doida, onde os criminosos podem andar à solta. Temos
um bom sistema, e o velho juiz Noose dá sentenças bem duras. Você tem de deixar que a
justiça trate do assunto. O nosso sistema não poderá sobreviver se deixarmos que a
população, especialmente os negros, faça justiça pelas próprias mãos. É isso que me
assusta. Suponham que esse negro saia livre do julgamento. Todas as pessoas vão ficar
sabendo e os negros vão ficar doidos. Sempre que alguém irritar um negro, ele vai matar
e depois dizer que estava louco. É esse o perigo deste julgamento.
- A gente tem de manter os negros sob controle - concordou Joe Frank.
- Pode acreditar. E se Hailey se livrar desta, nenhum de nós está seguro. Cada
negro deste distrito vai andar armado e à procura de problemas.
- Eu não tinha pensado nisso - admitiu Joe Frank.
- Espero que faça o que é correto, Joe Frank. Espero que o ponham no júri.
Precisamos de gente com juízo.
- Gostaria de saber por que me escolheram.
- Ouvi dizer que distribuíram cento e vinte intimações. Esperam que compareçam
pelo menos cem.
- Quais são as minhas chances de ser escolhido?
- Uma em cem - disse Leia.
- Já me sinto melhor. Na verdade, eu não tenho tempo para servir no júri, com o
trabalho da fazenda e todo o resto.
- Precisamos de você naquele júri - disse Tierce.
A conversa passou para a policial local, o novo supervisor e o péssimo trabalho
que ele estava fazendo nas estradas. O escuro da noite significava cama para os
Perryman. Tierce disse boa-noite e foi embora. Sentou-se na mesa da cozinha de sua
casa com uma xícara de café e examinou novamente a lista dos jurados. O seu amigo
Rufus iria ficar orgulhoso. Seis nomes da lista de Will estavam dentro de um círculo e ele
já tinha falado com os seis. Marcou um OK na frente de cada um. Seriam bons jurados,
gente com quem Rufus podia contar para manter a lei e a ordem em Ford County. Dois
estavam indecisos, a princípio, mas o seu bom amigo Will Tierce, em quem podiam
confiar, explicara-lhes a justiça e agora estavam prontos a condenar.
Rufus ia ficar orgulhoso. E tinha prometido que o jovem Jason Tierce, seu
sobrinho, não seria julgado por aquelas acusações de posse de drogas...

Jake comia sem vontade as gordas costeletas de porco com feijão branco,
olhando para Ellen, que fazia o mesmo à sua frente. Lucien, na cabeceira da mesa,
ignorava a comida, acariciando com a mão o copo de bebida, enquanto examinava a lista
de jurados, comentando todos os nomes que conhecia. Estava mais bêbado do que
habitualmente. Não conhecia a maior parte, mas comentava do mesmo modo. Ellen,
divertindo-se, piscava o olho uma vez por outra ao patrão. Lucien deixou cair a lista e
deixou cair o garfo no chão.
- Sallie! - gritou. - Sabe quantos ativistas da União Americana para as Liberdades
Civis há em Ford County? - perguntou Lucien a Ellen.
- Pelo menos oitenta por cento da população - respondeu ela
- Um. Eu. Fui o primeiro na história e provavelmente o último. Esta gente daqui é
muito tola, Row Ark. Não aprecia as liberdades civis. São um bando de republicanos
conservadores, de direita, bajuladores e fanáticos, como o nosso amigo Jake, aqui.
- Não é verdade. Eu almoço no Claude's pelo menos uma vez por semana.
- E isso faz de si um progressista? - perguntou Lucien.
- Faz de mim um radical.
- Pois continuo a achar que você é republicano!
- Ouça, Lucien, pode falar da minha mulher, dos meus pais ou dos meus
antepassados, mas não me chame de republicano!
- Parece um republicano - disse Ellen.
- E ele parece um democrata? - perguntou Jake, apontando para Lucien.
- Claro que parece! Assim que o vi, adivinhei que ele era democrata.
- Então eu sou republicano, pronto!
- Está vendo? Está vendo? - gritou Lucien. Fez cair no chão o copo que se partiu. -
Sallie! - Row Ark, adivinhe quem foi o terceiro homem no Mississipi a entrar para a
associação dos negros?
- Rufus Buckley - disse Jake.
- Eu. Lucien Wilbanks. Entrei em 1967. Os brancos pensaram que eu estava louco.
- Imagine! - disse Jake.
- É claro que os negros, ou os homens de cor, como nós lhes chamávamos nesse
tempo, também pensaram que eu estivesse maluco. Ora, que diabo, naquele tempo,
todas as pessoas pensavam que eu era doido.
- Chegou a fazer essa gente toda mudar de idéia? - perguntou Jake.
- Cale-se, seu republicano! Row Ark, por que não vem viver em Clanton e abrimos
uma firma de advocacia só para os processos da União Americana para as Liberdades
Civis? Que diabo, traga o seu velho de Boston e a gente faz dele nosso sócio.
- Porque não vai simplesmente para Boston? ­ perguntou Jake.
- Porque é que simplesmente você não vai para o inferno?
- Que nome daremos à firma? - perguntou Ellen.
- A casa de doidos - disse Jake.
- Wilbanks, Row e Ark, Advogados.
- Nenhum dos quais com licença para advogar... - disse Jake.
As pálpebras de Lucien pareciam pesar uma tonelada cada uma. A cabeça
balançava para frente. Ele deu uma palmada no rabo de Sallie quando ela começou a
varrer os pedaços do copo.
- Foi um golpe baixo, Jake - disse ele, muito sério.
- Row Ark - disse Jake, imitando Lucien. - Adivinhe quem foi o último advogado
expulso da Ordem pela Supremo Tribunal do Mississipi?
Ellen sorriu graciosamente para os dois e não disse nada.
- Row Ark - disse Lucien, em voz alta. - Adivinhe quem vai ser o próximo advogado
deste distrito sendo expulso do seu escritório? - Começou a rir às gargalhadas, aos gritos
e oscilando na cadeira. Jake piscou o olho para Ellen. Quando Lucien se acalmou,
perguntou:
- Para que é a reunião amanhã à noite?
- Quero estudar a lista de jurados com você e com mais algumas pessoas.
- Quem?
- Harry Rex, Stan Atcavage, talvez mais uma pessoa.
- Onde?
- Oito horas. No meu escritório. Nada de álcool!
- O escritório é meu e eu levo uma caixa de uísque, se quiser. O meu avô
construiu o prédio, lembra-se?
- Como é que haveria de esquecer?
- Row Ark, vamos nos embebedar.
- Não, obrigada, Lucien. Gostei muito do jantar e da conversa, mas tenho de voltar
para Oxford.
Jake e Ellen levantaram. Jake declinou o convite habitual para se sentar na
varanda. Ellen saiu e ele foi para seu quarto no segundo andar. Tinha prometido a Carla
que não ia dormir em casa. Telefonou-lhe. Carla e Hanna estavam bem. Preocupada,
mas bem. Jake não mencionou Bud Tvitty.


VINTE E NOVE

Uma caravana de ônibus escolares adaptados, com a pintura original, branco e
vermelho, ou verde e preto, ou uma centena de combinações, cada um deles com o nome
de uma igreja em faixas laterais, debaixo das janelas, entrou lentamente na praça de
Clanton, na quarta-feira depois do almoço. Eram trinta e um ao todo, a abarrotar de
negros idosos que abanavam leques de papel e lenços, tentando inutilmente aliviar o
calor abafado. Depois de rodearem três vezes o edifício do tribunal, o primeiro ônibus
parou em frente dos correios e trinta e uma portas abriram-se. Os passageiros
desembarcaram apressadamente. Foram todos para o coreto no gramado do tribunal,
onde o reverendo Ollie Agee gritava ordens e entregava cartazes azuis e brancos com os
dizeres LIBERTEM CARL LEE.
O trânsito nas ruas que levavam à praça ficou congestionado. Os carros seguiam
devagar e por fim estacionaram. Centenas de negros saíram deles e caminharam
solenemente até à praça. Juntaram-se aos outros no coreto e esperaram pelos seus
cartazes e espalhando-se em seguida por entre os carvalhos e magnólias, à procura de
sombra e cumprimentando amigos. Chegaram mais ônibus das igrejas e não conseguiram
dar a volta à praça por causa do movimento. Desceram perto do Coffee Shop.
Pela primeira vez, naquele ano, a temperatura chegou aos trinta e sete graus e
prometia subir ainda mais. Não havia nenhuma nuvem no céu para proteger do calor, nem
um vento, nem uma brisa para minimizar a força do sol ou absorver a umidade. Ao fim de
um quarto de hora à sombra das árvores, as camisas ficavam molhadas de suor e
colavam-se à pele dos homens, depois de cinco minutos fora da sombra. Os mais velhos
e mais fracos refugiaram-se dentro do edifício do tribunal.
A multidão aumentava cada vez mais. A maioria era de pessoas idosas, mas havia
muitos jovens negros, militantes e decididos que tinham perdido as grandes marchas
pelos Direitos civis dos anos 60 e compreendiam que esta podia ser uma oportunidade
rara para gritar, protestar e cantar "We Shall Overcome", e comemorar de um modo geral
o fato de serem negros e oprimidos num mundo de brancos. Vagueavam pela praça,
esperando que alguém os organizasse. Finalmente, três estudantes marcharam para os
degraus do edifício do tribunal, ergueram os seus cartazes e gritaram "Libertem Carl Lee.
Libertem Carl Lee."
Imediatamente a multidão repetiu o grito de guerra: Libertem Carl Lee!
Libertem Carl Lee! Libertem Carl Lee!
Deixaram a sombra das árvores e o abrigo do edifício do tribunal e aproximaram-
se dos degraus onde tinham improvisado um palanque e um sistema de som. Gritavam
em uníssono para ninguém, para nenhum lugar em particular, apenas gritavam o novo
grito de guerra num coro perfeito.
Libertem Carl Lee! Libertem Carl Lee!
As janelas abriram-se e os funcionários do tribunal olharam boquiabertos para o
movimento. Os gritos podiam ser ouvidos de longe e as lojas e escritórios em volta da
praça ficaram vazios.
Lojistas e fregueses saíram para o passeio e olhavam atônitos. Os manifestantes,
ao verificarem que tinham auditório, intensificaram o canto em ritmo e em volume. Os
abutres que estavam por perto, à espera e a observar, ficaram entusiasmados com o
barulho e desceram para a praça com as câmeras e microfones.
Ozzie e os seus homens orientaram o tráfego até a estrada e as ruas ficarem
completamente engarrafadas. Ficaram na praça, embora, evidentemente, a sua presença
não fosse necessária. Agee e todos os pregadores negros, a tempo integral, em meio
expediente, aposentados e futuros, de três condados, desfilaram entre a massa densa de
rostos negros que gritavam e se dirigiram ao palanque. A presença dos pregadores serviu
de alento à multidão e o canto reverberou na praça, nas ruas próximas, nos sonolentos
bairros residenciais e no campo. Milhares de negros agitavam cartazes e gritavam a
plenos pulmões. Agee balançava com a multidão. Dançava no pequeno palanque. Batia
com a palma da mão nas palmas das mãos dos outros pregadores. Conduzia o barulho
ritmado como um regente de coro. Era um espetáculo.
Libertem Carl Lee! Libertem Carl Lee!
Durante quinze minutos, Agee transformou a multidão esparsa numa massa
frenética e unida. Então, quando o seu ouvido apurado detectou os primeiros sinais de
fadiga, foi até aos microfones e pediu silêncio. Os rostos ofegantes e suados continuaram
o canto, porém mais baixo. Os cantos de liberdade cessaram rapidamente. Agee pediu
para abrirem um espaço, em frente do palanque, para que a imprensa pudesse trabalhar.
Pediu que se acalmassem para erguerem as suas preces ao Senhor. O reverendo
Roosevelt ofereceu uma maratona a Deus, uma festa eloqüente, retórica, que provocou
lágrimas em muitos olhos.
Quando, finalmente, disse "amem", uma negra enorme com peruca vermelha
brilhante aproximou-se do microfone e abriu a sua enorme boca. A primeira estrofe de
"We Shall Overcome" jorrou num rio profundo, rico, melodioso de um glorioso coro de
capela. Os pregadores, atrás dela, deram as mãos e começaram a ondular. A
espontaneidade tomou conta da multidão e duas mil vozes juntaram-se à dela numa
harmonia surpreendente. O hino triste e cheio de promessas ergueu-se acima da
pequena cidade.
Quando terminaram, alguém gritou: "Libertem Carl Lee", acendendo outra rodada
de canto. Agee pediu silêncio outra vez e aproximou-se dos microfones. Tirou uma ficha
do bolso e começou o sermão.

Como era de esperar, Lucien chegou atrasado e meio bêbado. Trazia uma garrafa
e ofereceu um copo a Jake, Atcavage e Harry Rex. Ninguém aceitou.
- Falta quinze para as nove, Lucien - disse Jake. - Estamos à espera há quase
uma hora.
- Por acaso, alguém me paga para fazer isto? ­ perguntou.
- Não. Mas eu lhe pedi que estivesse aqui às oito em ponto.
- E disse-me também para não trazer uma garrafa. E eu informei-o de que este
prédio é meu, construído pelo meu avô, alugado por você, meu inquilino, e onde eu entro
e saio quando quero, com ou sem uma garrafa.
- Esqueça. Você...
- O que estão fazendo aqueles negros do outro lado da rua, às voltas ao tribunal,
às escuras?
- Chama-se vigília - explicou Harry Rex. - Fizeram voto de andar em volta do
tribunal com velas, mantendo a vigília até o homem ser libertado.
- Pode ser uma vigília tremendamente longa. Quero dizer, aquela pobre gente
pode ficar ali andando até morrer. Quero dizer, esta pode ser uma vigília de doze, quinze
anos. Talvez estabeleçam um recorde. Podem encher o rabo com a cera das velas... Boa
noite, Row Ark.
Ellen estava sentada à frente da escrivaninha de tampo corrediço, debaixo do
retrato de William Faulkner, lendo uma cópia da lista de jurados, cheia de sinais e de
anotações. Inclinou a cabeça e sorriu para Lucien.
- Row Ark - disse ele -, tenho o maior respeito do mundo por você Considero-a
como uma igual. Acredito no seu direito de remuneração igual para trabalho igual.
Acredito no seu direito de escolher ter um filho ou abortar. Acredito em todas essas
baboseiras. É mulher e não tem direito a nenhum privilégio por causa do seu sexo! Deve
ser tratada exatamente como um homem - Lucien meteu a mão no bolso e tirou um maço
de notas presas por um clipe de papel. - E uma vez que é estagiária, sem gênero definido
aos meus olhos, acho que é quem deve ir comprar uma caixa de Coors.
- Não, Lucien - disse Jake.
- Cale-se, Jake.
Ellen pôs-se em pé e olhou para Lucien.
- Certo, Lucien. Mas eu pago a cerveja.
Ela saiu do escritório. Jake abanou a cabeça e olhou furioso para Lucien.
- Esta pode ser uma noite longa.
Harry Rex mudou de idéia e serviu-se de uma dose de uísque na xícara de café.
- Por favor, não fiquem bêbados - pediu Jake. - Temos muito trabalho.
- Eu trabalho melhor quando estou bêbado - disse Lucien.
- Eu também - disse Harry Rex.
- Isto pode vir a ser interessante - observou Atcavage. Jake pôs os pés em cima
da mesa e expeliu uma baforada do charuto.
- Muito bem, a primeira coisa que quero fazer é resolver qual é o tipo de jurado
ideal.
- Negro - disse Lucien.
- Negro como o rabo do velho Coaly - disse Harry Rex.
- De acordo - disse Jake. - Mas não vamos ter essa sorte. Buckley vai reservar as
maiores objeções para os negros. Precisamos nos concentrar nos brancos.
- Mulheres - disse Lucien. - Escolha sempre mulheres para homicídio. Elas são
mais compreensivas. Escolha sempre mulheres.
- Não - disse Harry Rex. - Não neste caso. As mulheres não compreendem coisas
como pegar uma arma e arrebentar os miolos de alguém. Você precisa de pais, de pais
jovens que gostariam de fazer o mesmo que Hailey fez. Pais com filhas pequenas.
- Desde quando é que você se tornou um especialista na escolha de jurados? -
perguntou Lucien. - Pensei que fosse só um espalhafatoso advogado de divórcio.
- Sou um espalhafatoso advogado de divórcio, mas sei escolher jurados.
- E escutá-los através das paredes...
- Não me provoque!
Jake ergueu os braços.
- Amigos, por favor. O que me dizem de Victor Onzell? Conhece-o, Stan?
- Conheço. É nosso cliente. À volta dos quarenta, casado, três ou quatro filhos.
Branco. De algures no Norte. Dirige a estação de parada de caminhões, na estrada ao
Norte da cidade. Está aqui há cerca de cinco anos.
- Eu não o escolheria... - disse Lucien. - Se é do Norte, não pensa como nós.
Provavelmente, é a favor do controle de armamento e dessa burrice toda. Os ianques
apavoram-me sempre em casos de homicídio. Considerei sempre que devíamos ter uma
lei no Mississipi proibindo os ianques de serem jurados, independentemente da
quantidade de anos de residência aqui.
- Muito obrigado - disse Jake.
- Eu o escolheria - disse Harry Rex.
- Porquê?
- Tem filhos, provavelmente uma filha. Se é do Norte, não deve ter preconceito. A
mim, ele me parece bom.
- John Tate Aston.
- Morreu - disse Lucien.
- O quê?
- Eu disse que morreu. Morreu há três anos.
- Porque está na lista? - perguntou Atcavage, o único que não era advogado.
- Eles não atualizam a lista dos eleitores - explicou Harry Rex, entre dois goles. -
Alguns morrem, outros mudam de cidade ou de estado e é impossível manter a lista em
dia. Distribuíram cento e cinqüenta intimações e podemos esperar que apareçam uns
cento e vinte. O resto morreu ou mudou-se.
- Caroline Baxter. Ozzie diz que ela é negra - disse Jake, examinando as
anotações. - Trabalha numa fábrica de carburadores em Karaway.
- Fique com ela - disse Lucien.
- Se dependesse só de mim... - disse Jake.
Ellen voltou com a cerveja. Pôs a caixa no colo de Lucien e pegou numa lata.
Abriu-a e voltou para a escrivaninha. Jake não aceitou, mas Atcavage resolveu que
estava com sede. Jake era o único que não estava bebendo.
- Joe Kitt Shepherd.
- Parece ser camponês branco - disse Lucien.
- Porquê? - perguntou Harry Rex.
- Dois nomes - explicou Lucien. - A maioria dos camponeses tem dois nomes.
Como Billy Ray, Johnny Ray, Bobby Lee, Harry Lee, Jesse Earl, Billy Wayne, Jerry
Wayne, Eddie Mack. Até as mulheres têm dois nomes. Bobbie Sue, Betty Pearl, Mary
Belle, Thelma Lou, Sally Faye.
- E que me diz de Harry Rex? - perguntou Harry Rex.
- Não conheço nenhuma mulher chamada Harry Rex. - Estou falando de um
camponês homem.
- Acho que serve. Jake interrompeu.
- Dell Perry disse que este tinha uma loja de iscas, perto do lago. Suponho que
ninguém o conhece...
- Não, mas aposto que é um camponês - disse Lucien. - Por causa do nome. Eu
não o escolheria.
- Vocês não têm endereço, idade, profissão, informações básicas? - perguntou
Atcavage.
- Não, até ao dia do julgamento. Na segunda-feira, cada um dos possíveis jurados
preenche um questionário no tribunal. Mas até lá temos só os nomes.
- De que tipo de jurado é que estamos à procura, Jake? - perguntou Ellen.
- Homens jovens ou de meia-idade, com família. Eu preferia não ter nenhum com
mais de cinqüenta anos.
- Porquê? - perguntou Lucien agressivamente.
- Os brancos jovens são mais tolerantes com os negros.
- Como Cobb e Willard - disse Lucien.
- A maioria das pessoas idosas sempre será contra os negros, mas a nova
geração aceita uma sociedade integrada. De um modo geral, os jovens são menos
intolerantes.
- Concordo - disse Harry Rex - e evitaria mulheres e camponeses brancos.
- É o meu plano.
- Acho que você faz mal - disse Lucien. - As mulheres são mais compreensivas.
Veja Row Ark. Ela simpatiza com todas as pessoas. Não é, Row Ark?
- Certo, Lucien.
- Ela simpatiza com criminosos, corruptores de menores, ateus, imigrantes ilegais,
pederastas. Não é verdade, Row Ark?
- Certo, Lucien.
- Ela e eu temos os únicos cartõezinhos de sócios da união que existem neste
momento em Ford County, Mississipi.
- Isto é intolerável! - disse Atcavage, o banqueiro.
- Clyde Sisco - disse Jake, em voz alta, tentando minimizar a controvérsia.
- Esse pode ser comprado - disse Lucien com ar de quem sabe das coisas.
- Que quer dizer com "esse pode ser comprado"? - quis saber Jake.
- Exatamente o que disse. Pode ser comprado.
- Como sabe? - perguntou Harry Rex.
- Está brincando? Ele é um Sisco. O maior bando de malandros da parte leste do
distrito. Todos eles vivem em torno da comunidade Mays. São ladrões profissionais e
peritos em fraudes de seguros. Queimam as próprias casas de três em três anos. Nunca
ouviu falar neles? - perguntou aos gritos a Harry Rex.
- Não. Como sabe que pode ser comprado?
- Porque já o comprei uma vez!... uma ação cível, há dez anos. Ele estava na lista
de jurados e eu mandei-lhe um recado dizendo que lhe daria dez por cento do veredicto
do júri. Esse é fácil de persuadir.
Jake largou a lista de jurados e esfregou os olhos. Sabia que isso provavelmente
era verdade, mas não queria acreditar.
- E então? - perguntou Harry Rex.
- Ele foi escolhido para o júri e eu consegui o maior veredicto da história de Ford
County. Ainda é o recorde.
- Stubblefield? - perguntou Jake, incrédulo.
- Isso mesmo, rapazinho. Stubblefield contra North Texas Pipeline. Setembro de
1974. Oitocentos mil dólares. Houve apelação e foi confirmado pelo Supremo Tribunal.
- E pagou-lhe?... - perguntou Harry Rex. Lucien bebeu um longo gole e fez estalar
os lábios.
- Oitenta mil em dinheiro vivo, em notas de cem dólares - disse, com orgulho. -
Construiu uma nova casa e depois incendiou-a.
- Qual foi a sua parte? - perguntou Atcavage. - Quarenta por cento, menos oitenta
mil.
No silêncio que se seguiu, todos, menos Lucien, fizeram os cálculos.
- Irra! - murmurou Atcavage.
- Está brincando, não está, Lucien? - perguntou Jake, sem muita convicção.
- Sabe muito bem que estou falando sério, Jake. Sabe que sou um mentiroso
compulsivo, mas nunca sobre coisas como esta... Estou dizendo a verdade e estou
dizendo que esse cara pode ser comprado.
- Quanto? - perguntou Harry Rex.
- Esqueça!-disse Jake.
- Cinco mil em dinheiro, um mero palpite.
- Esqueça!
Fez-se uma pausa e todos olharam para Jake para se certificarem de que ele não
estava interessado em Clyde Sisco, e quando se tornou evidente que não estava, cada
um bebeu um copo e esperou o nome seguinte. por volta das dez e meia, Jake bebeu a
primeira cerveja e uma hora depois a caixa estava vazia e faltavam quarenta nomes.
Lucien cambaleou até à varanda e ficou olhando para os negros com as suas velas nos
passeios próximos em torno do edifício do tribunal.
- Jake, por que há ali um policial sentado no carro em frente do meu escritório? -
perguntou ele.
- É o meu guarda-costas.
- Como é que ele se chama?
- Nesbit.
- Ele está acordado?
- Provavelmente não. Lucien inclinou-se perigosamente para fora.
- Ei, Nesbit! - gritou.
Nesbit abriu a porta do carro de policial.
- Sim, o que é?
- O Jake quer que vá ao armazém comprar mais cerveja. Ele está com muita sede.
Aqui estão vinte dólares. Ele quer uma caixa de Coors.
- Não posso fazer compras quando estou de serviço - protestou Nesbit.
- Desde quando? - riu Lucien.
- Não posso.
- Não é para você, Nesbit. É para o Dr. Brigance, e ele está mesmo muito
necessitado. Ele já telefonou ao xerife e está tudo bem.
- Quem telefonou ao xerife?
- O Dr. Brigance - mentiu Lucien. - O xerife disse que não lhe interessa o que faça,
contanto que você não beba.
Nesbit encolheu os ombros e pareceu satisfeito. Lucien atirou-lhe os vinte dólares.
Passados poucos minutos, Nesbit estava de volta com uma caixa, menos uma lata que
estava aberta sobre o seu controle de radar. Lucien pediu a Atcavage que descesse para
buscar a cerveja e distribuísse o primeiro pacote de seis latas.
Uma hora depois, a lista estava concluída e a reunião encerrada. Nesbit
acomodou Harry Rex, Lucien e Atcavage no seu carro e levou-os para casa. Jake e a
estagiária sentaram-se na varanda, bebericando e vendo o tremeluzir das velas que
desfilavam lentamente em volta do edifício do tribunal. Vários carros estavam
estacionados no lado oeste da praça, e um pequeno grupo de negros sentados por perto,
em cadeiras de dobrar, esperava a sua vez de conduzir as velas.
- Acho que fizemos um bom trabalho - disse Jake, contemplando o desfile. - Dos
cento e cinqüenta só não obtivemos informações sobre vinte.
- E agora, que fazemos?
- Vou tentar descobrir alguma coisa sobre esses vinte, depois faremos uma ficha
para cada jurado. Na segunda-feira, vamos conhecê-los como se fossem da família.
Nesbit voltou à praça e rodeou-a duas vezes , observando os negros. Estacionou
entre o Saab e o BMW.
- O relatório sobre M'Naghten é uma obra-prima. O nosso psiquiatra, o Dr. Bass,
vem aqui amanhã e gostaria que revisse esse relatório com ele. Você precisa preparar
detalhadamente as perguntas que terão de lhe ser feitas no julgamento e estudá-las, uma
por uma, com ele. O Dr. Bass me preocupa. Eu não o conheço e não confio em Lucien.
Veja se consegue o currículo dele e investigue os antecedentes. Faça os telefonemas que
forem necessários. Verifique junto da Associação de Medicina do Mississipi se ele não
tem nenhum problema de ordem disciplinar. Ele é muito importante para o nosso caso e
não quero surpresas desagradáveis...
- Às suas ordens, chefe!
Jake acabou a sua última cerveja.
- Ouça, Row Ark, isto é uma cidade muito pequena. A minha mulher foi embora há
cinco dias e tenho certeza de que todas as pessoas sabem disso. Para esta gente parece
suspeita. As pessoas gostam de falar, portanto, seja discreta. Fique no escritório e faça a
sua investigação e diga a quem lhe perguntar que é a substituta da Ethel.
- É um sutiã grande pra preencher.
- Poderia fazê-lo se quisesse...
- Espero que saiba que não sou nada boazinha como sou obrigada a parecer.
- Já percebi.
Viram os negros revezarem-se e outro grupo empunhar as velas. Nesbit atirou
uma lata de cerveja vazia para o passeio.
- Não vai para casa de carro, não é? - perguntou.
- Não seria boa idéia. Registraria pelo menos 20 pontos na detector...
- Pode dormir no sofá do meu escritório.
- Obrigada. Farei isso.
Jake disse boa-noite, fechou o escritório e falou rapidamente com Nesbit. Depois
colocou-se cuidadosamente atrás do volante do Saab. Nesbit seguiu-o até à sua casa, na
rua Adams. Jake estacionou debaixo do telheiro, perto do carro de Carla, e Nesbit parou
na entrada dos automóveis. Era uma hora da manhã de quinta-feira 18 de Julho.


TRINTA

Eles chegaram em grupos de dois e três, vindos de todas as partes do estado.
Estacionaram os carros, na estrada de cascalho, ao lado da cabana no bosque. Entraram
com a roupa normal de trabalho mas, uma vez lá dentro, envergaram os mantos e os
capuzes brancos, limpos e bem passados. Ao mesmo tempo em que iam admirando os
uniformes, ajudavam-se mutuamente a vesti-los. Grande parte já se conhecia, mas foram
necessárias algumas apresentações. Eram quarenta, uma boa participação.
Stump Sisson estava satisfeito. Bebendo uísque, andava pela sala como um
treinador desportivo tranqüilizando os jogadores antes do jogo. Inspecionava os uniformes
e fazia os ajustas necessários. Tinha orgulho dos seus homens e dizia-lhes isso. Era a
maior reunião em muitos anos, disse Sisson. Admirava-os e compreendia o sacrifício que
estavam fazendo. Sabia que tinham empregos e família, mas isto era importante. Falou
sobre os dias gloriosos quando eram temidos e tinham poder. Esses tempos tinham de
voltar e competia àquele grupo de homens dedicados tomar posição definida em defesa
do homem branco. O desfile podia ser perigoso, advertiu. Os negros têm direito a fazer
desfiles e comícios o dia inteiro, que ninguém se importa. Mas se os brancos resolvem
fazer o mesmo, correm perigo. Tinham autorização formal do condado, e o xerife negro
tinha prometido que haveria ordem, mas quase todas as desfiles do Klan, nos dias de
hoje, eram atacadas por bandos de jovens marginais negros. Portanto, tenham cuidado e
cerrem fileiras. Ele, Stump, se encarregaria dos discursos.
Ouviram atentamente a palavra de incentivo de Stump e, quando este terminou,
entraram nos carros e seguiram-no até à cidade.
Em Clanton, poucas eram as pessoas, talvez nenhuma, que já tivessem visto um
desfile do Ku Klux Klan e, um pouco antes das duas horas, uma onda de excitação
percorreu a praça. Os lojistas e os respectivos fregueses inventavam pretextos para sair
para o passeio. Andavam de um lado para o outro lentamente, olhando para as ruas
transversais. Os abutres, em grande número, reuniram-se perto do coreto, no gramado na
frente do tribunal. Um grupo de jovens negros parou perto, debaixo de um imenso
carvalho. Ozzie farejou problemas. Eles tinham garantido que estavam ali só para ver e
ouvir. Ozzie ameaçou levar todos para a cadeia se começassem qualquer conflito. Os
policiais estavam a postos em volta do edifício.
"Aí vêm eles!" gritou alguém e os espectadores esticaram os pescoços para ver os
homens do Klan que surgiram, marchando imponentemente de uma pequena rua e
entraram na rua Washington, na extremidade Norte da praça. Caminhavam cautelosos,
mas arrogantemente, com as caras escondidas pelas sinistras máscaras brancas e
vermelhas na frente do capuz. As pessoas olhavam boquiabertas para os vultos sem cara
e a procissão seguiu lentamente pela rua Washington, virou para Sul na rua Caffey,
depois para Leste, na rua Jefferson. Stump marchava orgulhoso à frente dos seus
homens. Quando se aproximaram do edifício do tribunal, virou bruscamente para a
esquerda e conduziu os homens para o longo passeio no centro do gramado. Cerraram
fileiras formando um semicírculo em volta do palanque, nos degraus do tribunal.
Os abutres corriam e empurravam-se uns aos outros para acompanharem o
desfile e quando Stump parou com os seus homens no palanque foi imediatamente
assediado por uma dúzia de microfones, com os longos fios estendidos pelo chão até
onde estavam as câmeras e os gravadores. Cresceu o número de negros jovens
agrupados debaixo da árvore e alguns deles adiantaram-se, parando a poucos metros do
semicírculo. Os passeios esvaziaram-se quando os comerciantes, lojistas, fregueses e
outros curiosos correram para o gramado para ouvir o que o líder, o homenzinho baixo e
gordo, iria dizer. Os policiais caminhavam devagar no meio das pessoas, sem prestar
atenção especial ao grupo de negros. Ozzie parou debaixo do carvalho; rodeado pelos
seus agentes.
Jake observava atentamente da janela do escritório de Jean Gillespie, no segundo
andar do edifício do tribunal. Com uma sensação quase de náusea, Jake via os homens
do Klan, com os seus uniformes de gala e os rostos covardemente ocultas sob as
máscaras sinistras. O capuz branco, que durante décadas fora um símbolo de ódio e
violência no Sul, estava de volta. Qual daqueles homens teria posto a cruz de fogo no
jardim dele? Teriam todos eles tomado parte ativa no plano de fazer explodir a sua casa?
Qual deles iria tentar outra coisa? Do segundo andar, via perfeitamente os negros.
- Vocês, negros, não foram convidados para este comício! . berrou Stump pelo
microfone, apontando para os negros. - Esta é uma reunião do Klan, não de um bando de
pretos!
Das ruas transversais e pequenas passagens atrás da fila de prédios de tijolos
vermelhos, um grupo compacto de negros caminhou na direção do tribunal, juntando-se
aos outros. Num segundo, Stump e seus homens estavam suplantados em número, uma
média de dez para um. Ozzie pediu reforços pelo rádio.
- Chamo-me Stump Sisson - disse ele, retirando a máscara. - Tenho orgulho em
dizer que sou o mago soberano do império invisível do Ku Klux Klan do Mississipi. Estou
aqui para dizer que a população cumpridora da lei do Mississipi está cansada de ver
negros roubando, violando e assassinando impunemente. Exigimos justiça e exigimos que
esse negro Hailey seja condenado e mandado para a câmara de gás.
"Libertem Carl Lee!" gritou um negro. "Libertem Carl Lee!" repetiram em uníssono.
"Libertem Carl Lee!"
- Calem a boca, seus negros selvagens! - berrou Stump. - Calem a boca, seus
animais!
Os homens do Klan. estavam imóveis, de frente para ele, de costas voltadas para
a multidão que gritava. Ozzie e seis policiais entraram no meio dos dois grupos.
"Libertem Carl Lee!" "Libertem Carl Lee!"
A cara naturalmente corada de Stump ficou rubra. Os dentes quase tocavam os
microfones.
- Calem a boca, negros selvagens! Tiveram o seu comício ontem e nós não os
perturbamos. Temos direito a reunir-nos em paz, exatamente como vocês. Agora, calem-
se!
O canto ficou mais forte. "Libertem Carl Lee!" "Libertem Carl Lee!"
- Onde está o xerife? O seu dever é manter a lei e a ordem. Xerife, faça o seu
trabalho. Cale esses negros para que possamos nos reunir em paz. Não é capaz de fazer
o seu trabalho, xerife? Não pode controlar a sua própria gente? Estão vendo, amigos, é
isto que acontece quando se elegem negros para cargos públicos.
Os gritos continuaram e Stump afastou-se dos microfones e olhou para os negros.
Os fotógrafos e as equipes de televisão giravam em volta da multidão, tentando gravar
tudo. Ninguém notou uma pequena janela no terceiro andar do edifício do tribunal. Foi
aberta lentamente e do escuro alguém atirou uma bomba de fabricação caseira para o
centro do palanque. A bomba caiu perto dos pés de Stump e explodiu, envolvendo o
mago em chamas.
A desordem começou. Stump gritou e rolou pelos degraus da frente do edifício.
Três dos seus homens tiraram os mantos e as máscaras e cobriram-no com eles,
tentando apagar o fogo. O palanque de madeira e a plataforma incendiaram-se, com o
cheiro forte de gasolina. Os negros avançaram, atacando com paus e facas todos os que
tivessem caras ou mantos brancos. Debaixo de cada manto havia um cassetete e os
homens do Klan demonstraram que estavam preparados para as agressões. Segundos
depois da explosão, o gramado na frente do Tribunal de Justiça de Ford County era um
campo de batalha com homens aos berros, praguejando e gritando de dor no meio da
fumaça espessa e pesada. Pedras e cassetetes subiam no ar e os dois grupos
defrontavam-se num combate corpo-a-corpo.
Começaram a cair corpos na relva verde e viçosa. Ozzie foi o primeiro a cair,
vítima de um golpe na nuca com uma marreta de demolição. Nesbit, Prather, Hastings,
Pirtle, Tatum e outros policiais tentavam inutilmente separar vários manifestantes antes
que se matassem. Ao invés de procurar abrigo, os abutres corriam de um lado para o
outro no meio da fumaça e da violência, tentando corajosamente captar as melhores
cenas da carnificina. Eles eram alvos indefesos. Um cameramen com o olho direito
encostado à câmara foi atingido no olho esquerdo por um pedaço de tijolo.
Ele e a câmara caíram no passeio e imediatamente apareceu outro cameramen
para filmar o companheiro caído. Uma repórter destemida de uma televisão de Memphis
saltou para o meio da luta com o microfone na mão e com o seu cameramen atrás dela.
Desviou-se de um tijolo, depois conseguiu chegar perto de um homenzinho do Klan que
agredia dois negros adolescentes. De repente, com um grito agudo, o homem acertou a
bela cabeça da repórter com o seu cassetete, desatando a chutá-la quando ela caiu, e em
seguida atacou brutalmente o cameramen.
Chegaram os reforços da Policial Municipal de Clanton. No centro da batalha,
Nesbit, Prather e Hastings juntaram-se, costas contra costas, e começaram a atirar para o
ar com os revólveres Magnum e Smith & Wesson. Os tiros acabaram com a desordem.
Os manifestantes ficaram imóveis procurando a origem dos tiros, separando-se
rapidamente, com olhares furiosos. Recuaram devagar para os seus respectivos grupos.
Os oficiais formavam uma linha divisória entre os negros e os homens do Klan, dando
todos graças a Deus pela trégua.
Uma dezena de feridos não conseguiu recuar. Ozzie sentou-se, atordoado,
passando a mão na nuca. A repórter de Memphis estava inconsciente, sangrando
profundamente na cabeça. Alguns homens do Klan, com os mantos brancos sujos e
ensangüentados, estavam caídos perto do passeio. O palanque continuava a arder. As
sirenes aproximaram-se e, finalmente, os carros de bombeiros e as ambulâncias
chegaram ao campo de batalha. Bombeiros e médicos socorreram os feridos. Nenhum
morto. Stump Sisson foi levado primeiro. Ozzie foi meio arrastado e meio puxado para
dentro de um carro-patrulha. Outros policiais chegaram e dispersaram a multidão.

Jake, Harry Rex e Ellen comiam uma pizza morna na frente da pequena televisão,
na sala de conferências, ao mesmo tempo em que viam com atenção o noticiário sobre a
ocorrência daquele dia e Clanton, Mississipi. A CBS usou metade do noticiário para
mostrar a batalha campal. Aparentemente o seu repórter tinha escapado incólume e fazia
o relato enquanto mostravam a gravação do desfile, dos gritos, da explosão da bomba e
dos conflitos. "Até ao fim desta tarde", disse ele, "não era conhecido o número exato de
feridos. Os ferimentos mais graves são, sem dúvida, as queimaduras sofridas pelo Sr.
Sisson, que se identificou como um mago imperial da Ku Klux Klan. Está internado no
Hospital de Queimados de Mid South, em Memphis, e o seu estado é grave." A gravação
mostrou um plano aproximado de Stump em chamas e o começo do conflito. O repórter
continuou. "O julgamento de Carl Lee Hailey está marcado para segunda-feira, aqui em
Clanton. Por enquanto não se sabe qual será o efeito desta ocorrência na decisão do
julgamento. Há rumores de que o julgamento vai ser adiado e/ou realizado em outro
condado".
- Isso é novidade para mim - disse Jake.
- Não ouviu falar nada? - perguntou Harry Rex.
- Nem uma palavra. E acredito que eu seria notificado antes da CBS...
O repórter desapareceu e Dan Rather disse que ele voltaria dentro de alguns
minutos.
- O que significa isto? - perguntou Ellen.
- Significa que o juiz Noose é bastante estúpido para não mudar o local do
julgamento.
- Deve ficar satisfeito com isso - disse Harry Rex. - É mais um argumento para a
apelação.
- Obrigado, Harry Rex. Aprecio a sua confiança na minha habilidade de advogado
criminologista.
O telefone tocou. Harry Rex atendeu e disse olá a Carla. Passou o auscultador a
Jake.
- É a sua mulher. Podemos ouvir?
- Não! Vai buscar outra pizza. Olá, querida. - Jake. Estás bem?
- É claro que estou.
- Acabo de ver o noticiário. Foi horrível! Onde é que você estava?
- Vestido com um daqueles mantos brancos.
- Jake, por favor. Não tem graça nenhuma.
- Estava no escritório de Jean Gillespie, no segundo andar. Um lugar maravilhoso.
Vi tudo! Foi muito interessante.
- Quem é aquela gente?
- Os mesmos que puseram queimaram a cruz no nosso jardim e tentaram explodir
nossa casa.
- De onde são eles?
- De toda a parte. Cinco estão no, hospital e as residências deles estão
espalhadas por todo o estado. Um até é daqui! Como está a Hanna?
- Muito bem. Ela quer voltar para casa. O julgamento vai ser adiado?
- Duvido.
- Você não corre perigo?
- Claro que não! Tenho um guarda-costas em tempo integral e ando com um 38 na
minha pasta. Não se preocupe.
- Mas estou preocupada, Jake. Preciso estar em casa com você.
- Não.
- A Hanna pode ficar aqui até tudo acabar, mas eu quero voltar para casa.
- Não, Carla. Eu sei que aí não corres perigo. E em Clanton corre.
- Então, você também corre...
- Estou tão seguro quanto possível... Mas não quero correr riscos com você e com
a Hanna. Não se fala mais nisso. Ponto final. Como estão os seus pais?
- Não te telefonei para falar dos meus pais. Telefonei porque estou com medo e
quero estar ao pé de você.
- E eu quero estar perto de você, mas não agora. Por favor, me entenda. - Ela
hesitou.
- Onde está hospedado?
- Quase sempre na casa do Lucien. Uma vez por outra, vou para casa, com o meu
guarda-costas à entrada.
- Como está a minha casa?
- No mesmo lugar. Suja, mas no mesmo lugar.
- Estou com saudades dela.
- E ela tem saudades de você, pode ter certeza.
- Eu te amo, Jake, e estou assustada.
- E eu também te amo e não estou assustado. Tente se distrair e tome conta da
nossa filha.
- Até logo.
- Até logo.
Jake estendeu o auscultador a Olen para que o desligasse.
- Onde é que ela está?
- Em Wilmington, na Carolina do Norte, onde os pais passam o Verão.
Harry Rex tinha saído para comprar mais uma pizza.
- Tem saudades dela, não tem? - perguntou Ellen.
- Mais do que pode imaginar.
- Oh, eu posso imaginar.

À meia-noite, estavam na cabana bebendo uísque, insultando os negros e
comparando ferimentos. Alguns já tinham regressado do hospital de Memphis, onde
tinham conversado brevemente com Stump Sisson. Ele os mandara continuar de acordo
com o plano. Onze tiveram alta do Hospital de Ford County com vários golpes e
equimoses e os outros contemplavam os ferimentos e cada um deles descrevia com
detalhes a sua luta corajosa contra vários negros, antes de serem feridos, geralmente
pelas costas ou pelo lado. Eles eram os heróis, os homens com ligaduras. A seguir, os
outros contaram as suas histórias e o uísque foi livremente consumido.
Encheram de elogios o maior de todos, quando ele descreveu o seu ataque à bela
repórter da televisão e ao seu cameramen negro. Depois de terem bebido e contado
histórias durante duas horas, a conversa passou para o que tinham de fazer. Os membros
locais apontaram num mapa do condado os pontos exatos dos alvos. Vinte casas
estavam programadas para aquela noite - vinte nomes tirados da lista dos jurados
convocados, fornecidos por alguém. Cinco grupos, de quatro homens cada um, saíram da
cabana nas suas pick-up para continuarem a sua obra de violência. Em cada uma das
pick-up levavam quatro cruzes de madeira de tamanho pequeno, 2,5m X 1,5m,
embebidas em querosene. Passaram ao largo de Clanton e das pequenas cidades,
seguindo pelo campo escuro. Os alvos ficavam em áreas isoladas, longe do tráfego e de
vizinhos, no meio do campo, onde as coisas passam despercebidas e todos vão para a
cama cedo e dormem profundamente.
O plano de ataque era simples. Uma pick-up parava a alguns metros da casa, na
estrada, onde não podia ser vista, com as luzes apagadas, e o motorista ficava à espera,
com o motor ligado, enquanto os outros três transportavam a cruz até o jardim, a
enfiavam no chão e atiravam a tocha acesa. A pick-up ia então ao encontro deles, em
frente da casa, para a fuga silenciosa e a viagem alegre para o próximo alvo.
O plano funcionou sem complicações em dezenove dos vinte alvos. Mas Luther
Picket, o vigésimo, tinha acordado um pouco antes com um ruído estranho e estava
sentado no escuro, na varanda da frente, quando viu uma pick-up entrar na passagem de
cascalho, um pouco além da sua amendoeira. Luther empunhou a espingarda e ouviu a
pick-up dar a volta e parar na estrada. Ouviu vozes e viu, então, os três vultos
transportando um poste ou coisa parecida para o seu jardim, ao lado da estradinha de
cascalho. Agachado atrás de um arbusto, perto da varanda, Luther fez pontaria.
O motorista bebeu um gole de cerveja gelada e olhou pela janela para ver as
chamas da cruz subirem para o céu. Mas em vez disso, ouviu um tiro. Os companheiros
abandonaram a cruz, a tocha e o jardim e saltaram para uma pequena vala, ao lado da
estrada. Outro tiro! O homem dentro da pick-up ouvia os gritos e os palavrões. Tinha de
salvá-los! Atirou para longe com a lata de cerveja e apertou o acelerador.
O velho Luther atirou uma vez mais, saindo da varanda, e mais outra, quando a
pick-up apareceu e parou ao lado da vala rasa. Os três saltaram desesperadamente pelo
meio da lama, tropeçando e escorregando, praguejando e gritando, esforçando-se
furiosamente por treparem para a parte de trás da caminhonete.
- Segurem-se bem! - gritou o homem ao volante, no momento exato em que o
velho Luther atirou de novo, acertando no carro. Com um sorriso, ele viu a pick-up afastar-
se a toda velocidade, espalhando cascalho e derrapando, de vala em vala. Um grupo de
garotos bêbados, pensou ele.
Um homem do Klan entrou numa cabine telefônica, com uma lista de vinte nomes
e vinte números de telefone. Telefonou para todos, simplesmente pedindo que dessem
uma olhadela aos seus jardins.


TRINTA E UM

Na sexta-feira de manhã Jake telefonou para a casa de Noose e a Sra. lchabod
informou que o meritíssimo estava presidindo um julgamento em Polk County. Jake
deixou instruções a Ellen e seguiu de carro para Smithfield, a uma hora de Clanton.
Cumprimentou Sua Excelência com uma inclinação de cabeça ao entrar no tribunal vazio
e sentou-se na primeira fila. A não ser os jurados, não havia nenhum espectador. Noose
estava aborrecido, os jurados estavam aborrecidos, os advogados estavam aborrecidos e,
ao fim de dois minutos, Jake estava morrendo de tédio. Quando a testemunha terminou
de depor, Noose determinou um curto intervalo e Jake foi ao gabinete do juiz.
- Como está, Jake? Que faz por aqui?
- O senhor soube do que aconteceu ontem?
- Vi no noticiário da noite.
- Soube o que aconteceu esta manhã?
- Não.
- É evidente que alguém deu ao Klan uma lista das pessoas que foram
convocadas para o júri. A noite passada, queimaram cruzes nos jardins de vinte desses
possíveis jurados.
Noose ficou chocado.
- Os nossos jurados!
- Sim, senhor.
- Prenderam alguém?
- É claro que não. Estavam ocupados apagando o fogo. Além disso, ninguém
consegue apanhar essa gente.
- Vinte dos nossos jurados - repetiu Noose.
- Sim, senhor.
Noose passou a mão ao de leve pelo cabelo branco e brilhante e começou a andar
lentamente pela salinha, abanando a cabeça e ocasionalmente coçando o sexo.
- Isso me parece intimidação - resmungou ele. Que cérebro brilhante, pensou
Jake. Um verdadeiro gênio.
- Eu diria que é.
- E o que é que eu devo fazer? - perguntou Noose, frustrado.
- Transferir o local do julgamento.
- Para onde?
- Para o Sul do estado.
- Compreendo. Talvez Carey County. Se não me engano, é sessenta por cento
negro. Isso significaria pelo menos um júri indeciso, não acha? Ou talvez você prefira
Brower County. Acho que é ainda mais negro. Provavelmente, lá conseguiria uma
absolvição, não é isso?
- Não me importa para onde vá transferir. Não é justo julgar Hailey em Ford
County. As coisas já estavam suficientemente difíceis antes do que aconteceu ontem.
Agora os brancos estão prontos para o linchamento e o meu cliente é o pescoço mais
acessível no momento. A situação era péssima antes do Klan começar a decorar todo o
condado com árvores de Natal. Quem sabe que mais é que vão fazer antes de segunda-
feira? Não é possível escolher um júri justo e imparcial em Ford County.
- Você quer dizer um júri negro?
- Não, Sr. Dr. Juiz! Quero dizer um júri que não tenha julgado previamente o caso!
Carl Lee Hailey tem direito a doze pessoas que ainda não resolveram se ele é culpado ou
inocente!
Noose dirigiu-se devagar para a cadeira e sentou-se pesadamente. Tirou os
óculos e encostou o dedo à ponta do enorme nariz.
- Podemos prescindir desses vinte - pensou, em voz alta.
- Isso não vai adiantar nada. Todos sabem tudo o que aconteceu ou vão ficar
sabendo dentro de poucas horas. O senhor sabe como as notícias correm. O júri inteiro
vai se sentir ameaçado.
- Nesse caso, podemos prescindir de todos e fazer uma nova lista.
- Isso também não vai dar certo - disse Jake, secamente, frustrado com a teimosia
de Noose. - Todos os jurados serão de Ford County e todos no distrito sabem das
ameaças. E como é que o senhor vai conseguir evitar que o Klan intimide os novos
escolhidos? Não dá certo.
- Porque tem tanta certeza de que o Klan não vai acompanhar o caso se
transferirmos o local? - O sarcasmo soava em cada palavra.
- Acho que vão acompanhar - admitiu Jake. - Mas não temos certeza. O que
sabemos é que o Klan já está em Ford County, bastante atuante agora, e que já intimidou
alguns possíveis jurados. Esta é a questão. A pergunta é: o que é que o senhor vai fazer
a esse respeito?
- Nada - disse Noose, secamente. - Nada. Não vou fazer nada além de dispensar
os tais vinte. Interrogarei cuidadosamente os convocados, na próxima segunda-feira, que
é quando começa o julgamento, em Clanton.
Jake olhou incrédulo para o juiz. Noose tinha uma razão, um motivo, um receio,
alguma coisa que não queria dizer. Lucien estava certo: alguém o estava intimidando.
- Posso perguntar porquê?
- Eu acho que não interessa onde Carl Lee Hailey seja julgado. Acho que não
interessa quem seja escolhido para o júri. Acho que não interessa a cor dos jurados. A
decisão deles está tomada. Todos têm opinião formada, seja quem for, venha de onde
vier. Já decidiram, Jake, e compete a você escolher aqueles para quem o seu cliente é
um herói.
Talvez seja verdade, pensou Jake, mas não ia admiti-lo. Continuou olhando para
as árvores lá fora.
- Porque tem o senhor medo de transferi-lo?
Ichabod olhou furioso para Jake, com os olhos semicerrados.
- Medo? Não tenho medo de nenhuma das minhas decisões. Porque razão você
tem medo de fazer o julgamento em Ford County?
- Penso que acabei de lhe explicar.
- O Sr. Hailey vai ser julgado em Ford County a partir de segunda-feira. Faltam três
dias. E vai ser julgado em Ford County, não porque estou com medo de transferir o foro,
mas porque não adiantaria nada transferi-lo. Já ponderei tudo isso cuidadosamente, Dr.
Brigance, por diversas vezes, e sinto-me perfeitamente à vontade com o julgamento em
Clanton. Não será mudado. Mais alguma coisa?
- Não, Sr. Dr. Juiz.
- Ótimo. Até segunda-feira.
Jake entrou no escritório pela porta dos fundos. Há uma semana que tinha
trancado a porta da frente e havia sempre alguém batendo e gritando por ele. A maior
parte eram repórteres, mas alguns eram amigos à procura de notícias sobre o julgamento.
Clientes eram coisas do passado. O telefone não parava de tocar. Jake nem o pegava e
Ellen atendia quando estava por perto.
Foi encontrá-la na sala de conferências rodeada de livros de Direito. O relatório
M'Naghten era uma obra-prima. Jake pedira-lhe não mais de vinte páginas. Ellen entregou
setenta e cinco, datilografadas com perfeição e redigidas com clareza, explicando que de
modo nenhum era possível resumir em menor número de palavras a versão Mississipi do
M'Naghten original, em Inglaterra, na década de 1800, e fez a cobertura de cento e
cinqüenta anos da lei sobre insanidade do Mississipi. Ignorou os processos insignificantes
ou confusos e explicou com maravilhosa simplicidade os mais importantes e complicados.
O relatório terminava com o resumo da lei atual, e aplicava-a ao caso de Carl Lee Hailey.
Num dossiê menor, de catorze páginas, Ellen chegava à conclusão de que o júri
veria as fotografias de Cobb e Willard com os miolos espalhados pela escada e pela
parede. No Mississipi admitia-se esse tipo de prova sensacionalista, e Ellen não descobriu
nenhum meio de contornar a questão.
Ela datilografara trinta e uma páginas que descreviam as pesquisas sobre a
defesa de homicídio justificável, algo em que Jake pensara, superficialmente, logo a
seguir aos crimes. Ellen chegou à mesma conclusão: não iria dar resultado. Descobrira
um antigo processo, no Mississipi, de um homem que encontrou e matou um preso fugido
que estava armado. O homem tinha sido absolvido, mas as diferenças entre esse caso e
o de Carl Lee Hailey eram muito grandes. Jake não tinha pedido essa pesquisa e ficou
irritado com a perda de tempo. Mas não disse nada, uma vez que Ellen tinha apresentado
tudo o que ele pedira.
A surpresa mais agradável foi o trabalho dela com o Dr. W. T. Bass. Ellen estivera
com ele duas vezes, naquela semana, e ambos tinham estudado minuciosamente o caso
M'Naghten. Preparara vinte e cinco páginas com as perguntas que Jake deveria fazer ao
médico e as respostas que o Dr. Bass deveria dar. Era um diálogo elaborado com
perfeição e Jake admirou o conhecimento que ela revelava. Quando tinha a idade dela,
Jake era um estudante banal, mais preocupado com namoros do que com pesquisas.
Ellen, no terceiro ano da Faculdade de Direito, redigia relatórios que eram verdadeiros
tratados.
- Como foi? - perguntou ela.
- Como era de esperar. Ele não cedeu. O julgamento vai começar aqui, na
segunda-feira, com os mesmos jurados convocados, menos os vinte que foram
ameaçados tão sutilmente.
- Ele é doido.
- O que é que está fazendo?
- Acabando o relatório para reforçar a nossa posição de que os detalhes da
violação devem ser discutidos na frente do júri. Até aqui, parece-me bem.
- Quando pensa ter terminado?
- Há alguma pressa?
- Para domingo, se for possível. Tenho outro trabalho para você, um pouco
diferente.
Ellen afastou o bloco de notas e prestou atenção.
- O psiquiatra do estado vai ser o Dr. Wilbert Rodeheaver, chefe da equipe de
Whitfield. Ele está lá há séculos e já testemunhou em centenas de casos. Gostaria que
procurasse descobrir quantas vezes o nome dele aparece nas decisões do tribunal.
- Já vi o nome dele.
- Muito bem. Como sabe, os únicos processos que lemos do Supremo Tribunal
são aqueles em que o réu foi condenado e apelou. As absolvições não estão registradas.
Estou mais interessado nessas.
- Em que é que está pensando?
- Tenho um palpite de que Rodeheaver não gosta de dizer que um réu estava
legalmente insano. É possível que nunca o tenha dito. Mesmo nos casos em que o réu
era evidentemente louco e não sabia o que estava fazendo. Eu gostaria de perguntar a
Rodeheaver, na reinquirição, alguma coisa sobre os casos em que ele testemunhou estar
tudo bem quando um homem era obviamente doente e o júri o absolveu.
- Não vai ser fácil encontrar esses processos.
- Eu sei, mas você é capaz de fazê-lo. Há uma semana que observo o seu
trabalho e sei que é capaz...
- Sinto-me lisonjeada, chefe.
- Talvez tenha de dar uns telefonemas a certos advogados de todo o estado que
cruzaram com Rodeheaver anteriormente. Será difícil, Row Ark, mas faça-me isso.
- Sim, chefe, tenho certeza de que quer isso para ontem.
- Na verdade, não. Duvido que tenhamos Rodeheaver na próxima semana.
Portanto, disporá de algum tempo.
- Não sei como agir. Quer dizer que isso não é urgente?
- Sim, mas o resumo sobre o estupro é.
- Sim, chefe.
- Já almoçou?
- Não estou com fome.
- Ótimo. Não faça planos para o jantar.
- O que está querendo dizer?
- Quero dizer que tive uma idéia.
- Uma coisa assim como um encontro?
- Não, uma coisa assim como um jantar de negócios com dois profissionais.
Jake arrumou dois dossiês e saiu.
- Estou na casa do Lucien - disse - mas não telefone a não ser em uma
emergência. Não diga a ninguém onde estou.
- Em que está trabalhando?
- No júri.
Lucien estava dormindo, bêbado, no balanço da varanda e Sallie não andava por
ali. Jake subiu para a sala de trabalho espaçosa no segundo andar. Lucien tinha mais
livros de Direito em casa do que a maioria dos advogados tem no escritório. Jake pôs o
conteúdo de um dos dossiês numa cadeira, e em cima da mesa uma lista dos jurados, por
ordem alfabética, uma pilha de fichas de 7,5 cm X 12,5 cm e várias canetas de feltro.
O primeiro nome era Acker, Barry Acker. O último estava escrito com letra de
forma no alto de uma ficha com marcador azul. Azul para os homens, vermelho para
mulheres, negro para os negros, independente do sexo. Sob o nome de Acker fez
algumas anotações a lápis. Idade, mais ou menos quarenta. Casado pela segunda vez,
três filhos, duas filhas. Tem uma pequena loja de ferragens pouco lucrativa na estrada,
em Clanton. A mulher é secretária num banco. Conduz uma pick-up. Gosta de caçar. Usa
botas de cowboy. Um homem bastante agradável. Atcavage fora à loja de ferragens na
quinta-feira para dar uma olhadela em Barry Acker. Disse que o homem tinha boa
aparência, falava como se tivesse alguma instrução. Jake escreveu o número 9 ao lado
do nome de Acker.
Jake estava impressionado com a sua própria pesquisa. Certamente Buckley não
estava sendo tão minucioso.
O nome seguinte era Bill Andrews. Que nome! Havia cinco ou seis na lista
telefônica. Jake conhecia um. Harry Rex conhecia outro e Ozzie conhecia outro, negro,
mas ninguém sabia qual deles fora convocado. Pôs um ponto de interrogação à frente do
nome.
Gerald Ault. Jake sorriu quando escreveu o nome na ficha. Ault tinha passado pelo
seu escritório, alguns anos antes, quando o banco executara a hipoteca da sua casa, em
Clanton. A mulher tivera uma complicação renal e as contas dos médicos levaram-nos à
falência. Ault era um intelectual, estudara em Princeton, onde conhecera a mulher. Ela era
de Ford County, filha única de uma família proeminente que tinha investido todo o dinheiro
em linhas de ferro. Gerald Ault chegara a Ford County justamente no momento em que a
família da mulher tinha ido à falência e a vida fácil com a qual casara transformou-se
numa vida de luta. Ault lecionou durante algum tempo, depois tomou conta da biblioteca,
depois trabalhou como auxiliar de escritório no tribunal. Adquiriu aversão a trabalhos
pesados. Foi então que a mulher ficou doente e eles perderam a modesta casa. Agora,
trabalhava numa loja de louças sanitárias.
Jake sabia uma coisa sobre George Ault que ninguém mais sabia. Quando ele era
pequeno, na Pensilvânia, a família vivia numa casa de quinta, perto da estrada. Uma
noite, quando todos estavam dormindo, a casa incendiou-se. Um motorista que passava
abriu a porta da frente com um pontapé e começou a salvar os Ault. O fogo espalhou-se
rapidamente e quando Gerald e o irmão acordaram, estavam presos, no quarto, no
segundo andar. Correram para a janela e gritaram por socorro. Os pais e irmãos gritavam
também, no jardim, sem poder fazer nada. As chamas saltavam de todas as janelas,
menos do quarto onde eles estavam. De repente, o motorista salvador molhou o corpo
todo com a mangueira do jardim, entrou correndo na casa em chamas, subiu para o
segundo andar e entrou no quarto. Partiu os vidros da janela aos pontapés, agarrou
Gerald e o irmão e saltou para o chão. Miraculosamente, ninguém se feriu. Eles
agradeceram com lágrimas e abraços. Agradeceram comovidos ao estranho, que era
negro. O primeiro negro que as crianças tinham visto na sua vida.
Gerald Ault era um dos poucos brancos de Ford County que realmente gostava de
negros. Jake escreveu o número 10 à frente do nome dele.
Jake trabalhou durante seis horas com a lista dos jurados, anotando nas fichas,
concentrando-se em cada nome, vendo mentalmente cada um dos jurados na bancada do
júri e na sala dos jurados, deliberando, conversando sobre o caso. Jake avaliou-os. Todos
os negros receberam automaticamente a nota 10. Com os brancos não foi tão fácil. Os
homens tiveram notas mais altas do que as mulheres, os jovens mais do que os velhos,
para os que tinham instrução a nota era um pouco mais alta do que para os sem
instrução; os liberais, dos dois tipos, receberam as notas mais altas.
Jake eliminou os vinte que Noose iria excluir. Sabia alguma coisa sobre cento e
onze dos possíveis jurados. Certamente que Buckley não podia saber tanto...

Ellen estava datilografando na máquina de Ethel quando Jake voltou da casa de
Lucien. Desligou a máquina, fechou o livro de Direito e olhou para ele.
- Onde é o jantar? - perguntou com um sorriso malicioso.
- Vamos fazer uma viagem.
- Muito bem. Para onde?
- Já esteve em Robinsonville, Mississipi?
- Não, mas estou pronta. O que é que lá há?
- Nada além de algodão, soja e de um excelente restaurante.
- Qual é o código indumentário?
Jake olhou para ela. Ellen estava vestida como sempre: jeans, engomada e
desbotada, sem meias, uma camisa azul-marinho, grande demais para ela, abotoada na
frente, e enfiada por dentro das calças, delineando-lhe perfeitamente a cintura.
- Parece-me bem - respondeu.
Desligaram a fotocopiadora, apagaram as luzes e saíram de Clanton no Saab.
Jake parou numa loja de bebidas e comprou uma caixa com seis latas de Coors e uma
garrafa de Chablis gelado.
- É preciso levar as bebidas para esse restaurante - explicou, quando saíam da
cidade. O sol estava pondo-se à frente deles, e Jake desceu as palas. Ellen fez o papel
de bartender e abriu duas latas.
- A que distância fica esse lugar? - perguntou ela.
- Uma hora e meia.
- Uma hora e meia! Estou morrendo de fome.
- Pois então encharque-se de cerveja. Acredite, vale a pena.
- Qual é o cardápio?
- Camarão assado, sauté, pernas de rã e peixe grelhado.
Ela bebeu um gole de cerveja.
- Veremos.
Jake apertou o acelerador a fundo e o Saab seguiu velozmente, atravessando as
inúmeras pontes sobre os afluentes do lago Chatulla. Subiram colinas íngremes cobertas
com espessas camadas de mato verde-escuro. Fizeram curvas em alta velocidade e
ultrapassaram caminhões enormes carregados de troncos de madeira, que faziam a sua
última viagem do dia. Jake abriu o teto, baixou os vidros e deixou entrar o vento. Ellen
recostou-se no banco e fechou os olhos. O cabelo farto e brilhante esvoaçava-lhe em
volta da cara.
- Ouça, Row Ark, este jantar é estritamente de negócios.
- Claro, claro...
- Falo sério. Eu sou o patrão, você a secretária e é um jantar de negócios. Nada
mais e nada menos. Portanto, não comece a ter idéias malucas nessa sua cabeça
feminista, de mulher sexualmente emancipada.
- Eu é que estou achando que você é que está com idéias...
- Não é nada disso. Só que eu sei o que está pensando.
- Como sabe o que estou pensando? Porque se considera irresistível e pensa que
estou querendo seduzi-lo?
- Veja se fica quietinha! Sou maravilhosamente feliz no meu casamento e tenho
uma mulher belíssima que é capaz até de matar, se pensar que estou saindo da linha.
- Muito bem, vamos fingir que somos amigos. Apenas dois amigos que saem para
jantar.
- Isso não funciona no Sul. Um homem não pode jantar com uma amiga se for
casado. Pura e simplesmente não funciona por essas bandas...
- Porque não?
- Porque homens não têm amigas. De maneira nenhuma. Não conheço um único
homem em todo o Sul que tenha uma amiga. Acho que isso já vem do tempo da Guerra
Civil.
- Acho que vem é da Idade das Trevas! Porque é que as mulheres Sulistas são tão
ciumentas?
- Porque é assim que nós as treinamos. Aprenderam conosco. Se a minha mulher
almoçar ou jantar com um amigo, eu corto a cabeça dele e peço o divórcio. Ela aprendeu
comigo.
- Isso não faz sentido.
- É claro que não.
- A sua mulher não tem amigos?
- Não que eu saiba. Se souber de um avise-me.
- E você não tem amigas?
- Para que é que eu queria uma amiga? As mulheres não sabem falar de futebol,
xyxy
de caçar patos, de política, de processos legais, de nada do que eu gosto. Falam de
filhos, vestidos, receitas, móveis, de coisas que eu não entendo. Não, eu não tenho
amigas. Não quero.
- É disso que eu gosto no Sul. São todos tão tolerantes...
- Muito obrigado.
- Tem algum amigo judeu?
- Não conheço nenhum em Ford County. Conheci um que era muito meu amigo,
na Faculdade. Ira Tauber, de Nova Jersey. Éramos muito amigos. Adoro judeus. Jesus
era judeu, como sabe. Nunca compreendi o anti-semitismo.
- Meu Deus, é um liberal! E quanto a, ah, homossexuais?
- Tenho pena deles. Não sabem o que perdem. Mas o problema é deles.
- Seria capaz de ter um amigo homossexual?
- Acho que sim, desde que ele não me contasse.
- Não, é republicano!
Agarrou a lata de cerveja vazia de Jake e atirou-a para o banco de trás. Depois,
abriu mais duas. O sol tinha desaparecido e o ar pesado e úmido estava fresco a 145
quilômetros por hora.
- Então não podemos ser amigos? - perguntou ela.
- Não.
- Nem amantes.
- Por favor, estou tentando dirigir.
- Então, o que somos nós?
- Eu sou o advogado, você a estagiária. Eu sou o patrão, você a empregada. Eu
sou o chefe, você é pau para toda obra.
- Você é o homem, eu sou a mulher.
Jake olhou para os jeans e para a camisa larga.
- Não há muita dúvida quanto a isso.
Ellen meneou a cabeça e olhou para as montanhas cobertas de mato verde que
passavam rapidamente por eles. Jake sorriu, aumentou a velocidade e bebeu um gole de
cerveja. Passou por vários cruzamentos nas estradas rurais desertas e, de repente, as
montanhas desapareceram e a terra ficou plana.
- Como se chama o restaurante? - perguntou ela.
- Hollywood.
- O quê?
- Hollywood.
- Porque é que se chama assim?
- Antes, ficava numa pequena cidade do Mississipi, a poucos quilômetros daqui,
chamada Hollywood. Ardeu e eles vieram para Robinsonville e continuaram a chamar-lhe
Hollywood.
- O que é que ele tem de especial?
- Boa comida, boa música, boa atmosfera e fica a cento e sessenta quilômetros de
Clanton e ninguém me verá jantando com uma mulher estranha e bonita!
- Não sou mulher, sou pau para toda obra.
- Um estranho e bonito pau para toda obra...
Ellen sorriu e passou os dedos pelo cabelo. Em outro cruzamento, ele virou à
esquerda e seguiu para o oeste, até chegar a uma pequena povoação perto da estação
de comboio. De um lado da rua, enfileiravam-se construções de madeira vazias e do outro
lado, isolado, estava um velho armazém com uma dúzia de carros parados em volta e
música suave que se espalhava no ar, através das janelas. Jake pegou na garrafa de
Chablis e conduziu a sua assistente para os degraus de entrada, passaram pela varanda
e entraram. Ao lado da porta, ficava um pequeno palco, onde uma bela e velha mulher
negra, Merle, sentada ao piano, cantava "Rainy Night in Georgia". Três compridas filas de
mesas começavam na porta e terminavam ao lado do palco. Metade das mesas estava
ocupada e uma empregada, na parte de trás, que servia uma cerveja de garrafa, fez-lhes
um sinal, chamando-os. Sentaram-se a uma mesa pequena com toalha vermelha de
xadrez.
- Vão querer picles fritos, simpático? - perguntou a Jake.
- Sim! Para dois.
Ellen franziu a testa e olhou para Jake.
- Picles fritos?
- Sim, é claro. Não servem isso em Boston?
- Vocês do Sul fritam tudo?
- Tudo o que vale a pena comer. Se não gostar, pode deixar que eu como.
Um grupo, na mesa do outro lado da passagem, gritou alegremente. Quatro casais
brindaram a alguma coisa ou a alguém, depois começaram a rir alto gritando e a vozearia
eram constantes.
- A coisa boa aqui no Hollywood - explicou Jake - é que se pode fazer o barulho
que se quiser e ficar o tempo que se quiser, que ninguém se incomoda. Quando uma
pessoa consegue uma mesa, é para o resto da noite. Daqui a pouco, vão começar a
cantar e dançar.
Jake pediu camarão sauté e peixe grelhado para ambos.
Ellen dispensou as pernas de rã. A empregada voltou imediatamente com o
Chablis e dois copos frios. Brindaram a Carl Lee Hailey e ao seu cérebro insano.
- O que acha de Bass? - perguntou Jake.
- A testemunha perfeita. Vai dizer o que quisermos que diga.
- Isso a preocupa?
- Me preocuparia se fosse testemunhar sobre o fato. Mas é um especialista e pode
convencer com as próprias opiniões. Quem vai interrogá-lo?
- É possível acreditar nele?
- Se estiver sóbrio. Conversamos duas vezes, esta semana. Na terça-feira, ele
estava lúcido e disposto a ajudar. Na quarta, estava bêbado e indiferente. Acho que vai
ser tão bom como qual quer outro psiquiatra. Ele não nem aí para a verdade e dirá o que
queremos ouvir.
- Ele acha que Carl Lee estava legalmente louco?
- Não. E você?
- Não. Row Ark, cinco dias antes do crime, Carl Lee disse-me o que ia fazer.
Mostrou-me o lugar exato da emboscada, embora, naquele momento, eu não tivesse
compreendido. O nosso cliente sabia exatamente o que estava fazendo.
- Porque não o impediu?
- Porque não acreditei. A filha dele acabara de ser violentada e estava ainda
lutando contra a morte.
- Você o teria impedido, se pudesse, Jake?
- Eu falei com Ozzie. Mas, naquele momento, nenhum de nós imaginou que
pudesse acontecer. Não, eu não o teria impedido se tivesse certeza. Eu teria feito a
mesma coisa.
- Como?
- Exatamente como ele fez. Foi muito fácil.
Ellen espetou os picles fritos e fez girar o garfo, examinando-os desconfiada.
Cortou-os pelo meio, espetou um pedaço e cheirou. Meteu-o na boca e mastigou devagar.
Engoliu e empurrou os picles para o lado de Jake.
- Ianque típica... - disse ele. - Não a compreendo, Row Ark. Não gosta de picles
fritos, é atraente, muito inteligente, podia trabalhar em qualquer das melhores firmas do
país, ganhar mega dólares, mas prefere passar o tempo perdendo o sono por causa de
assassinos que estão no corredor da morte e prestes a receber o que merecem. Qual é a
sua motivação, Row Ark?
- Você perde o sono por causa dessa mesma gente. Agora Carl Lee Hailey. O
próximo vai ser outro assassino odiado por todos, mas você vai perder o sono para o pôr
em liberdade porque ele é seu cliente. Um desses dias, Dr. Brigance, vai ter um cliente no
corredor da morte e vai ficar sabendo como é terrível. Quando eles o prenderem na
cadeira e ele olhar para você pela última vez, o senhor vai ser outro homem. Vai saber
como este sistema é selvagem e vai lembrar-se de Row Ark.
- Nessa altura, deixo crescer a barba e entro para a união.
- Provavelmente, se eles o aceitarem.
O camarão sauté foi servido numa pequena frigideira preta, ainda fervendo na
manteiga e no alho, e no molho de churrasco. Ellen serviu-se generosamente e comeu
como um refugiado. Merle começou a cantar "Dixie" animadamente e todos
acompanharam, batendo palmas. A empregada, sempre correndo, atirou praticamente
com uma travessa de pernas de rãs para cima da mesa. Jake esvaziou o copo de vinho e
serviu-se de algumas. Ellen tentou ignorá-las. Quando terminaram a entrada, foi servido o
peixe. A gordura fervia, sibilando, e eles não tocaram na louça. O peixe grelhado tinha,
dos dois lados, as marcas escuras da grelha. Comeram e beberam devagar,
entreolhando-se e saboreando a comida deliciosa.
À meia-noite a garrafa estava vazia e as luzes estavam quase apagadas.
Despediram-se da empregada e de Merle. Desceram cautelosamente os degraus e foram
para o carro. Jake afivelou o cinto de segurança e disse:
- Estou bêbado demais para dirigir.
- Eu também. Vi um pequeno motel perto daqui na estrada.
- Eu também vi e estava cheio. Boa tentativa, Row Ark. Primeiro embebeda-me e
depois aproveita-se de mim.
- Eu o faria se pudesse, Dr. Brigance.
Os olhos deles encontraram-se por um momento. A cara de Ellen refletia a luz
vermelha lançada pelo letreiro luminoso que fazia cintilar HOLLYWOOD no alto do
restaurante.
O momento prolongou-se e a seguir o letreiro luminoso foi desligado. O
restaurante tinha fechado. Jake ligou o motor do Saab, esperou que ele aquecesse e
avançou para a escuridão.

Mickey Mouse telefonou para a casa de Ozzie, muito cedo, no sábado e prometeu
mais tumulto por parte do Klan. O distúrbio da quinta-feira não tinha sido por culpa deles,
explicou, mas estavam sendo responsabilizados por ele. Tinham chegado em boa paz, e
agora o líder deles estava quase à morte com queimaduras de terceiro grau em setenta
por cento do corpo. Ia haver retaliação, eram ordens vindas de cima. Reforços estavam a
caminho, vindos de outros estados, e ia haver violência. Nenhum detalhe específico por
enquanto, mas telefonaria quando soubesse de mais alguma coisa.
Ozzie, sentado na beira da cama, passou a mão na nuca ainda dolorida e
telefonou para o prefeito. Depois, para Jake. Uma hora depois, encontraram-se os três, no
escritório de Ozzie.
- A situação pode fugir a qualquer controle - disse Ozzie, segurando numa bolsa
de gelo na nuca e fazendo uma careta a cada palavra. - Fui informado, por fonte de
confiança, que o Klan planejava retaliar por causa do que aconteceu na quinta-feira.
Estão trazendo reforços de outros estados.
- Acredita nisso? - perguntou o prefeito.
- Tenho medo de não acreditar.
- O mesmo informante? - perguntou Jake.
- Sim.
- Então eu acredito.
- Alguém disse que se falava em mudar de foro ou adiar o julgamento - disse
Ozzie. - Alguma chance?
- Não. Estive com o juiz Noose, ontem. Não será transferido e começará na
segunda-feira.
- Falou-lhe das cruzes de fogo?
- Contei tudo.
- Ele é doido? - perguntou o prefeito.
- Sim, e muito estúpido. Mas não contem a ninguém que eu disse isto.
- A decisão dele tem base legal sólida? - perguntou Ozzie. Jake negou com a
cabeça.
- Uma base mais de areia movediça.
- Que pretende você fazer? - perguntou o prefeito.
Ozzie trocou de bolsa de gelo, e esfregou cuidadosamente a nuca. Fez uma careta
de dor ao falar:
- Eu gostaria muito de impedir outra desordem. O nosso hospital não tem
capacidade para permitirmos que esta cretinice continue. Precisamos fazer qualquer
coisa. Os negros estão zangados e em pé de guerra, e não é preciso muito para se atiçar
o fogo... Alguns deles estão só à espera de um motivo para começarem a atirar e esses
mantos brancos são bons alvos. Tenho um palpite de que o Klan vai fazer uma estupidez
qualquer, como tentar matar alguém. Estão tendo mais atenção nacional do que tiveram
nos últimos dez anos. O informante disse que, desde quinta-feira, têm recebido
telefonemas de voluntários de todo o país, dispostos a virem a Clanton para entrar na
brincadeira.
Ozzie girou lentamente a cabeça para um lado e para o outro, ergueu e encolheu
os ombros e mudou novamente de bolsa de gelo.
- Detesto ter de dizer isto, Sr. Prefeito, mas acho que deve telefonar para o
governador e pedir a ajuda da guarda nacional. Sei que é uma providência drástica, mas
não quero que ninguém seja morto.
- A guarda nacional! - repetiu o Prefeito, incrédulo.
- Foi isso que eu disse.
- Ocupando Clanton?
- Sim. Protegendo a sua população.
- Patrulhando as ruas?
- Sim. Com armas e o resto...
- Meu Deus, isto é drástico. Não acha que está exagerando um pouco?
- Não. É evidente que não tenho homens suficientes para manter a paz. Não
conseguimos nem mesmo evitar a desordem de outro dia. As cruzes de fogo do Klan
estão por toda a parte e não podemos fazer nada. O que vamos fazer, se os negros
criarem algum problema? Não tenho homens suficientes, Sr. Prefeito. Preciso de ajuda.
Jake achou a idéia maravilhosa. Como escolher um júri justo e imparcial com o
tribunal cercado pela guarda nacional? Pensou nos jurados chegando, na segunda-feira,
e passando pelos soldados armados, pelos jipes, talvez até por um ou dois tanques
parados em frente do edifício. Como podiam ser justos e imparciais? Como é que Noose
podia insistir em fazer o julgamento em Clanton? Como é que o Supremo Tribunal podia
se recusar a revogar a decisão do juiz se, que Deus não permitisse, o acusado fosse
condenado? Era uma grande idéia.
- O que acha, Jake? - perguntou o Prefeito, à procura de ajuda.
- Acho que não tem escolha, Sr. Prefeito. Não podemos ter outra luta nas ruas.
Pode ser politicamente prejudicial para você
- Não estou preocupado com política - disse o Prefeito, zangado, sabendo que
Jake e Ozzie não iam acreditar nisso.
Nas últimas eleições, o Prefeito tinha conseguido a reeleição por menos de
cinqüenta votos e não fazia nada sem antes consultar a direção dos ventos da política.
Ozzie surpreendeu um sorriso de Jake quando o Prefeito se viu às voltas com a idéia de
ter a sua tranqüila cidadezinha ocupada pelo exército.

No sábado, depois do anoitecer, Ozzie e Hastings, escoltando Carl Lee, saíram
pela porta dos fundos da cadeia e entraram no carro de polícia. Conversavam e riam
enquanto Hastings, em marcha lenta, conduzia o carro para fora da cidade. Passaram
pelo armazém de Bates e entraram na Craft Road. O jardim da casa dos Hailey estava
repleto de carros quando eles chegaram, por isso Hastings estacionou na rua. Carl Lee
entrou em casa como um homem livre e foi imediatamente abraçado por uma multidão de
parentes, amigos e pelos filhos. Não sabiam que ele ia aparecer. Carl Lee envolveu os
quatro filhos de uma vez num abraço apertado como se soubesse que não ia poder
abraçá-los durante muito tempo. Todas as pessoas contemplaram, em silêncio, o homem
enorme ajoelhado no chão, com a cabeça enterrada no meio das crianças que choravam.
Quase todos começaram também a chorar.
Havia muita comida na cozinha e o hóspede de honra sentou-se como sempre à
cabeceira da mesa com a mulher e os filhos em volta. O reverendo Agee fez uma breve
prece de agradecimento, de esperança e de boas-vindas. Centenas de amigos serviam a
família. Ozzie e Hastings serviram-se e foram para a varanda onde, espantando os
mosquitos, delinearam a estratégia para o julgamento. Ozzie estava muito preocupado
com a segurança de Carl Lee durante o deslocamento da cadeia para o tribunal e do
tribunal para a cadeia. O próprio Carl Lee havia provado que essas viagens não eram
seguras.
Depois do jantar, os visitantes espalharam-se pelo jardim. As crianças brincavam,
enquanto os adultos permaneciam na varanda, o mais perto possível de Carl Lee. Ele era
um herói, o homem mais famoso que a maioria jamais veria e eles conheciam-no
pessoalmente. Para a sua gente, Carl Lee ia ser julgado por um único motivo. Sim, ele
matou os dois homens, mas não era essa a questão. Se fosse branco, seria premiado e
homenageado. O processariam apenas pro forma e com um júri branco o julgamento
seria uma brincadeira. Carl Lee ia ser julgado porque era negro. E se o condenassem,
seria por ser negro. Nada mais. Todos acreditavam nisso. Ouviam atentamente o que ele
dizia sobre o julgamento. Carl Lee queria as orações e o apoio de todos e queria que
todos estivessem presentes para assistir e proteger a sua família.
Passaram horas sentados no ar úmido da noite. Carl Lee e Gwen no balanço da
varanda, rodeados pelos admiradores que queriam estar perto do grande homem.
Quando começaram a retirar-se, abraçaram o herói e prometeram estar no tribunal na
segunda-feira. Perguntavam a si mesmos se o veriam novamente sentado na varanda de
sua casa.
À meia-noite, Ozzie disse que era hora de partirem. Carl Lee abraçou Gwen e os
filhos pela última vez e entrou no carro de Ozzie.
Bud Twitty morreu durante a noite. O operador de rádio da polícia avisou Nesbit,
que contou a Jake. Jake tomou nota para mandar flores.


TRINTA E DOIS

Domingo. Um dia antes do julgamento. Jake acordou às cinco horas com um nó no
estômago, que atribuiu ao julgamento, e uma dor de cabeça, que atribuiu ao julgamento e
à sessão, na noite de sábado, na varanda de Lucien, com a sua estagiária e o seu ex-
patrão. Ellen resolvera dormir num quarto de hóspedes na casa de Lucien, por isso Jake
passou a noite no sofá do seu escritório.
Deitado no sofá ouviu vozes na rua. Sonolento ainda, foi até a varanda e ficou
atônito com a cena. Dia D! Estavam em guerra! Patton acabava de chegar! As ruas em
volta da praça estavam cheias de caminhões de transporte e jipes, e os soldados corriam
de um lado para outro procurando organizar-se estrategicamente. Os rádios estalavam e
comandantes barrigudos gritavam ordens. Um posto de comando foi instalado perto do
coreto, no gramado. Três esquadrões de soldados pregavam estacas, esticavam cordas e
erguiam três enormes pavilhões de lona de camuflagem. Barricadas foram erguidas nos
quatro cantos da praça e os sentinelas tomaram as suas posições, fumando, encostados
aos postes de luz.
Nesbit, encostado à tampa da mala do seu carro, observava a fortificação do
centro da cidade de Clanton, conversando com alguns dos sentinelas. Jake fez café e
levou uma xícara ao seu guarda-costas. Estava acordado agora, a salvo e em segurança
e Nesbit podia ir para casa e descansar até à noite. Jake voltou para a varanda do
segundo andar e observou a atividade até o nascer do dia. Depois de desembarcar os
homens, os caminhões seguiram para o arsenal da guarda nacional, ao Norte da cidade,
onde os homens iam dormir. Jake calculou uns duzentos homens. Circulavam em volta do
edifício do tribunal e na praça, olhando para as vitrinas, à espera de que o dia nascesse e
ansiosos para entrar em ação.
Noose ia ficar furioso. Como é que tinham ousado chamar a guarda nacional sem
o consultarem? O julgamento pertencia-lhe. O Prefeito tinha mencionado isso e Jake
explicara que a segurança de Clanton era responsabilidade do Prefeito e não do juiz do
julgamento. Ozzie concordou e não telefonaram para Noose.
O xerife e Moss Junior Tatum chegaram e foram falar com o coronel, no coreto.
Andaram em volta do edifício, inspecionando as tropas e os pavilhões. Ozzie apontou em
diversas direções e o coronel aparentemente concordou com o que ele queria. Moss
Junior abriu o edifício do tribunal para que os soldados pudessem beber água e ir ao
banheiro. Passava das nove quando os abutres se deram conta da ocupação do centro
de Clanton. Em menos de uma hora, corriam por toda a parte com câmeras e microfones,
recolhendo palavras importantes de um sargento ou de um cabo.
- Como se chama o senhor?
- Sargento Drumwright.
- De onde é?
- Booneville.
- Onde fica isso?
- A mais de cento e cinqüenta quilômetros daqui.
- Porque está aqui?
- O governador nos chamou.
- Porque ele os chamou?
- Para manter tudo sob controle.
- Esperam problemas?
- Não.
- Quanto tempo pensam ficar?
- Não sei.
- Vão ficar até ao final do julgamento?
- Não sei.
- Quem sabe?
- O governador, penso eu. E assim por diante.
A notícia da invasão espalhou-se rapidamente na tranqüila manhã de domingo e,
depois da ida à igreja, a população acorreu à praça para se certificar de que o exército
tinha de fato ocupado o edifício do tribunal. As sentinelas retiraram as barricadas e
permitiram que os curiosos entrassem com os carros na praça, olhando boquiabertos para
os soldados de verdade com as suas espingardas e jipes. Sentado na varanda do
segundo andar, Jake tomava café e memorizava as fichas dos jurados.
Telefonou para Carla e explicou-lhe que a guarda nacional estava a postos na
praça, mas que ele estava seguro. Na verdade, nunca se sentira mais seguro. Contou que
havia centenas de militares armados no outro lado da rua, prontos a protegê-lo. Sim,
ainda tinha o guarda-costas. Sim, a casa ainda estava de pé. Jake duvidava que a
imprensa já soubesse da morte de Bud Twitty e não disse nada a Carla. Talvez ela não
chegasse a saber. Carla e Hanna iam sair para pescar no barco do pai dela e Hanna
queria que o pai fosse também. Jake despediu-se e mais do que nunca sentiu a falta das
duas mulheres da sua vida.
Ellen Roark abriu a porta dos fundos do escritório e pôs o pacote com
mantimentos na mesa da cozinha. Tirou alguns papéis da pasta e saiu à procura do seu
chefe. Ele estava na varanda, lendo fichas e olhando o movimento em volta do tribunal.
- Boa noite, Row Ark.
- Boa noite, chefe. - Entregou-lhe um relatório com dois centímetros de espessura.
- A pesquisa que pediu sobre a admissibilidade do estupro. É um assunto difícil e um
pouco complicado. Peço desculpas pelo tamanho do relatório.
Era perfeito como todos os outros feitos por ela, completo, com sumário,
bibliografia e páginas numeradas.
- Que diabo, Row Ark. Eu não pedi um livro...
- Eu sei que o senhor se sente intimidado com o trabalho acadêmico, por isso fiz o
possível para usar só palavras com menos de três sílabas.
- Ora, ora, como estamos atrevidos hoje.... Não podia fazer um resumo, digamos,
de trinta páginas, mais ou menos?
- Ouça, é um estudo completo da lei feito por uma estudante de Direito talentosa,
com uma habilidade notável para pensar e escrever claramente. É o trabalho de um
gênio, é todo seu e completamente de graça. Portanto, pare de reclamar.
- Sim, senhora. Está com dor de cabeça?
- Estou. Desde que acordei, esta manhã. Datilografei este trabalho durante dez
horas e preciso de um copo. Tem um liquidificador?
- Um quê?
- Liquidificador. Uma nova invenção que temos lá no Norte. Um aparelho de
utilidade doméstica.
- Há um na prateleira, ao lado do micro-ondas. Ellen desceu para a cozinha.
Era quase noite e o tráfego menos intenso na praça. Estava na hora de terminar o
passeio de domingo e a população, farta de ver os soldados que guardavam o tribunal,
começava a ir embora. Ao fim de doze horas de calor sufocante e de umidade, que era
quase uma névoa no centro de Clanton, os soldados estavam cansados e desejando
voltar para casa. Sentados na sombra das árvores em cadeiras de lona, amaldiçoavam o
governador. Quando começou a escurecer, estenderam fios elétricos do interior do
edifício do tribunal e acenderam holofotes em volta dos pavilhões. Um carro cheio de
negros parou em frente dos correios, munidos de cadeiras e velas, para começar a vigília.
Começaram a andar no passeio da rua Jackson, sob o olhar agora alerta de duzentos
homens fortemente armados. A líder era Rosia Alfie Gatewood, uma viúva de cem quilos,
que tinha criado doze filhos e mandado nove para a universidade. Fora a primeira mulher
negra a beber água na fonte pública da praça e a viver para contar isso. Olhou
carrancuda para os soldados. Estes ficaram calados.
Ellen voltou com duas canecas do Boston College cheias de um líquido verde-
claro. Pôs as canecas na mesa e sentou-se.
- O que é isso?
- Beba. Vai ajudá-lo a relaxar.
- Bebo. Mas gostaria de saber o que é.
- Margaritas.
Jake olhou para a borda da sua caneca. - Onde está o sal?
- Eu não gosto com sal.
- Bem, então, eu também não gosto. Porquê margaritas?
- Porque não?
Jake fechou os olhos e bebeu um longo gole. Depois outro.
- Row Ark, é uma mulher talentosa.
- Um pau para toda obra...
Ele bebeu outro gole.
- Há oito anos que eu não bebia uma margarita.
- É pena. - A caneca de Ellen estava meio-vazia.
- Que tipo de rum?
- A minha vontade era chamar-lhe de idiota, se não fosse meu patrão...
- Muito obrigado.
- Não é rum. É tequila,. com suco de lima e Cointreau. Pensei que qualquer
estudante de Direito soubesse isso...
- Espero que me perdoe. Tenho certeza de que sabia quando fui estudante de
Direito.
Ellen olhou para a praça.
- Isto é incrível! Parece uma praça de guerra.
Jake esvaziou a caneca e passou a língua pelos lábios. Dentro das barracas, os
homens jogavam cartas e riam. Outros estavam dentro do edifício do tribunal para fugir
dos mosquitos. As velas dobraram a esquina e passaram pela rua Washington.
- Sim - disse Jake, com um sorriso. - É maravilhoso, não é? Pense nos nossos
jurados justos e imparciais chegando de manhã e encontrando isto. Vou renovar o pedido
de transferência de foro. Noose vai negar. Vou pedir a anulação do julgamento. O juiz
Noose vai dizer que não. E, nessa altura, faço questão que conste dos autos que o
julgamento está sendo realizado no meio de um circo com três pistas!
- Porque estão eles aqui?
- O xerife e o Prefeito telefonaram para o governador e convenceram-no de que
precisavam da guarda nacional para garantir a paz em Ford County. Disseram-lhe que
nosso hospital não é bastante espaçoso para este julgamento.
- De onde são eles?
- De Booneville e de Columbus. Contei duzentos e vinte na hora do almoço.
- Passaram o dia todo aqui?
- Acordaram-me às cinco da manhã! Segui-lhes os movimentos o dia todo. O
número diminuiu uma ou duas vezes, mas logo a seguir chegaram reforços. Há poucos
minutos encontraram o inimigo, quando a senhora Gatewood e os amigos chegaram com
as suas velas. Ela intimidou-os com um olhar, por isso agora estão jogando cartas.
Ellen terminou a sua bebida e saiu para ir buscar mais. Jake pegou as fichas pela
centésima vez e espalhou-as em cima da mesa. Nome, idade, profissão, pais, raça,
educação: lia e decorava as informações desde o amanhecer. A Segunda Rodada chegou
rápido, e Ellen pegou uma das fichas.
- Correen Hagan - disse ela, enquanto bebia. Jake pensou um segundo.
- Idade, mais ou menos cinqüenta e cinco. Secretária de um corretor de seguros.
Divorciada, dois filhos crescidos. Educação: provavelmente liceu, nada mais. Natural da
Florida, se é que isso tem importância.
- Nota?
- Acho que lhe dei um seis.
- Muito bem. Millard Sills.
- Tem uma plantação de nogueira-pecã perto de Mays. Cerca de setenta anos. O
sobrinho foi morto com um tiro na cabeça, por dois negros, durante um assalto em Little
Rock, há alguns anos. Odeia os negros. Não estará no júri.
- Nota?
- Zero, acho.
- Clay Bailey.
- Idade, por volta dos trinta. Seis filhos. Pentecostal fervoroso. Trabalha na fábrica
de móveis a oeste da cidade.
- Deu-lhe um dez!
- Isso mesmo. Tenho certeza de que ele leu aquela parte da Bíblia que diz olho por
olho, etc. Além disso, dos seus seis filhos, calculo que haja pelo menos duas meninas.
- Conhece-os todos de cor?
Jake fez que sim com a cabeça e bebeu um gole.
- Tenho impressão de conhecer todos, há anos...
- Quantos é capaz de reconhecer?
- Pouquíssimos. Mas sei mais sobre eles do que Buckley.
- Estou impressionada.
- O quê! O que foi que disse? Consegui impressioná-la com o meu intelecto!
- Entre outras coisas.
- Sinto-me muito honrado! Impressionei um gênio do Direito penal! A filha de
Sheldon Roark, seja ele lá quem for. Uma summa cum laude em carne e osso. Vai ver
quando eu disser ao Harry Rex...
- Onde está esse elefante? Tenho saudades dele. Acho-o um amor.
- Vá chamá-lo. Convide-o a juntar-se à nossa festinha na varanda, enquanto
observamos as tropas preparando-se para a Terceira Batalha de Bull Run.
Ellen foi até à mesa de Jake onde estava o telefone.
- E o Lucien?
- Não! Estou farto do Lucien.
Harry Rex chegou com uma garrafa de tequila que encontrou no fundo do seu
armário de bebidas. Ele e a estagiária discutiram acaloradamente acerca dos ingredientes
adequados de uma boa margarita. Jake apoiou a sua estagiária.
Ficaram sentados na varanda, sorteando nomes da coleção de fichas, bebendo
aquela mistura com um gosto forte, gritando para os soldados e cantando músicas de
Jimmy Buffet. À meia-noite, Nesbit levou Ellen para casa de Lucien. Harry Rex voltou a pé
para casa. Jake adormeceu no sofá.


TRINTA E TRÊS

Segunda-feira, 22 de Julho. Pouco depois da última margarita, Jake levantou-se
de um salto e olhou para o relógio da sua mesa. Tinha dormido três horas. Um enxame de
borboletas bravas lutava violentamente dentro do estômago dele. Uma dor nervosa
percorreu-lhe a virilha. Não tinha tempo para uma ressaca.
Nesbit dormia como uma criança atrás do volante. Jake acordou-o e com um salto
enfiou-se no banco de trás. Acenou para os sentinelas que observavam, curiosos, do
outro lado da rua. Nesbit passou dois quarteirões, chegou à rua Adams, deixou o seu
passageiro e esperou na entrada de automóvel, seguindo as instruções. Jake tomou um
banho de chuveiro e fez a barba rapidamente. Escolheu, por segurança, um terno de lã
cinzento-escuro, camisa branca social e uma neutra, discreta e inexpressiva gravata de
seda vinho com riscas azul marinho. As calças pregueadas caíam perfeitamente, a partir
da cintura. Estava formidável, muito mais elegante do que o inimigo...
Nesbit estava outra vez dormindo quando Jake soltou o cão e se sentou no banco
de trás do carro.
- Tudo em ordem lá dentro? - perguntou Nesbit, enxugando a saliva do queixo.
- Não encontrei nenhuma bomba, se é isso que quer saber.
Nesbit deu uma gargalhada, a mesma gargalhada irritante com que reagia a tudo.
Deram a volta à praça e Jake desceu em frente do seu escritório. Trinta minutos depois
de ter saído, acendeu as luzes da frente e fez café. Jake tomou quatro aspirinas e bebeu
quase um litro de suco de laranja. Os olhos ardiam e a cabeça doía por causa da bebida e
do cansaço, e a parte mais cansativa ainda nem sequer tinha começado. Espalhou na
mesa de conferências o dossiê do caso Carl Lee Hailey, organizado e indexado pela sua
estagiária, mas Jake queria modificar a ordem. Se um documento ou um processo não
pode ser encontrado em trinta segundos, não serve para nada. Jake sorriu, ao notar o
talento organizador de Ellen. Tinha títulos e referências para tudo, cada um deles a dez
segundos do seguinte, na ponta dos dedos. Em um caderno de anotações com três
espirais estava o resumo das qualificações do Dr. Bass e um relatório do seu testemunho.
Havia notas sobre possíveis objeções de Buckley e indicações de uma contra-
argumentação a tais objeções. Jake orgulhava-se dos seus preparativos para os
julgamentos, mas era humilhante aprender tanto com uma estudante do terceiro ano de
Direito.
Pôs os papéis outra vez na pasta pesada de couro negro, com as suas iniciais de
ouro, de um dos lados. A natureza chamou-o e, sentado no vaso, examinou outra vez as
fichas dos jurados. Conhecia-os a todos. Estava pronto. Alguns minutos depois das
cinco, Harry Rex bateu à porta. Estava escuro e ele parecia um assaltante.
- O que estás fazendo de pé tão cedo? - perguntou Jake.
- Não consegui dormir. Estou um pouco nervoso. - Estendeu a Jake um saco de
papel com manchas de gordura. - Dell mandou isto. Tudo fresco e quente. Folhados de
salsicha, folhados de bacon e queijo, folhados de frango e queijo, é só escolher. Ela está
preocupada com você.
- Obrigado, Harry Rex, mas não tenho fome. O meu organismo está em plena
revolução.
- Nervoso?
- Como uma prostituta na igreja!
- Parece um pouco abatido.
- Obrigado.
- Mas o terno é bonito.
- - Escolha da Carla.
Harry Rex tirou do saco de papel uma mão-cheia de folhados enrolados em papel
de alumínio, empilhou tudo na mesa e serviu-se de café. Sentado do outro lado da mesa,
Jake examinava rapidamente o relatório de Ellen sobre o caso M'Naghten.
- Ela escreveu isso? - perguntou Harry Rex, mastigando rapidamente, com a boca
cheia.
- Escreveu, é um resumo de setenta e cinco páginas da defesa por insanidade, no
Mississipi. Trabalhou durante três dias.
- Ela parece ser brilhante.
-Tem uma cabeça do outro mundo e redige fluentemente. O intelecto está ali, mas
tem dificuldade em aplicar o que sabe ao mundo real...
- O que você sabe a respeito dela? - Caíram da sua boca algumas migalhas sobre
a mesa. Harry Rex varreu-as para o chão com a manga do casaco.
- Ela é brilhante. Segunda em Ole Miss. Telefonei para Nelson Bates, vice-decano
da Faculdade de Direito, e ele confirmou tudo. Tem boas chances de terminar em primeiro
lugar.
- Eu fiquei em nonagésimo terceiro lugar numa turma de noventa e oito. Poderia
ter sido o nonagésimo segundo mas apanharam-me copiando num exame. Comecei a
protestar, mas acabei por achar que nonagésimo terceiro era muito bom. Que diabo,
pensei, quem é que se vai importar com isso, em Clanton? Todos ficaram felizes porque
voltei para advogar aqui, em vez de ir para Wall Street ou para outro lugar parecido.
Jake sorriu. Já tinha ouvido aquela história umas cem vezes. Harry Rex
desembrulhou um pacote de folhado de frango e queijo.
- Pareces nervoso, homem...
- Estou bem. O primeiro dia é sempre o mais difícil. Está tudo preparado. Estou
pronto. Agora é só esperar.
- A que horas é que Row Ark faz a sua entrada?
- Não sei.
- Meu Deus, estou imaginando o que ela irá vestir...
- Ou não vestir. Só espero que esteja decente. Você sabe como o juiz Noose é
puritano.
- Não vai deixar que ela se sente na mesa da defesa, não é?
- Acho que não. Ela vai ficar em segundo plano, como você. A presença dela pode
ofender algumas das mulheres do júri.
- Isso mesmo, deixe-a estar presente, mas sem ser vista. Harry Rex limpou a boca
com a mão enorme.
- Você está dormindo com ela?
- Não! Não sou louco, Harry Rex!
- É louco se não dormir. Aquela mulher é conquistável.
- Pois então fique com ela. Tenho mais em que pensar!
- Ela me acha um amor, não é?
- É o que ela diz.
- Acho que vou tentar - disse ele, muito sério, depois sorriu, e deu uma
gargalhada, espirrando migalhas nas estantes de livros.
O telefone tocou. Jake meneou a cabeça e Harry Rex atendeu.
- Não está, mas terei muito gosto em dar-lhe o recado - Piscou o olho para Jake. -
Sim senhor, sim senhor, ah ah, sim senhor. Uma coisa horrível, não é? Pode acreditar
que um homem faça uma coisa dessas? Sim, senhor, sim, senhor, concordo cem por
cento. Sim, senhor, e qual é o seu nome, senhor? Senhor? - Harry Rex sorriu e desligou o
telefone.
- Quem era esse?
- Disse que você é uma vergonha para a raça branca por defender um negro, e
que ele não compreende como é que um advogado pode defender um negro como
Hailey. E espera que o Klan se encarregue de você, e se não conseguir, ele espera que a
Ordem dos Advogados tome conhecimento disto e retire a sua licença por ajudar os
negros. Disse que sabia que você não valia nada porque foi treinado pelo Lucien
Wilbanks, que vive com uma mulher negra.
- E você concordou com ele!
- Porque não? O homem estava sendo sincero, não cheio de ódio e agora que
descarregou tudo o que pensa, já se sente melhor. O telefone tocou outra vez. Harry Rex
atendeu rapidamente. - Jake Brigance, advogado, conselheiro, consultor e guru de Direito.
Jake foi para o banheiro.
- Jake, é um repórter! - gritou Harry Rex.
- Estou no banheiro.
- Ele está com diarréia... - disse Harry Rex ao repórter.
Às seis horas - sete em Wilmington - Jake telefonou para Carla. Ela estava
acordada, lendo o jornal e tomando café. Contou-lhe acerca de Bud Twitty, Mickey Mouse
e a promessa de mais violência. Não, ele não tinha medo. Isso não o preocupava. Estava
era com medo do júri, dos doze que iam ser escolhidos, e de como iam reagir a ele e ao
seu cliente. O seu único receio, no momento, era o que o júri ia fazer ao seu cliente. Todo
o resto era irrelevante. Pela primeira vez, Carla não falou em voltar para casa. Jake
prometeu telefonar-lhe à noite.
Quando desligou, ouviu uma balbúrdia no primeiro andar. Ellen tinha chegado e
Harry Rex falava em voz alta. Ela trás uma blusa transparente e mini-saia, pensou Jake,
descendo a escada. Não estava. Harry Rex congratulava-se com ela por estar vestida
como uma Sulista com todos os acessórios. Um vestido de saia e casaco cinzento, o
casaco com decote em V e a saia curta e justa. A blusa de seda era preta e
aparentemente estava com a peça necessária por baixo. O cabelo, penteado para trás,
terminava numa espécie de trança. Por mais incrível que fosse, viam-se traços de rímel,
lápis de olhos e baton. Segundo Harry Rex, ela parecia ao máximo com uma advogada.
- Obrigada, Harry Rex - disse ela. - Gostaria de ter o seu gosto para me vestir.
- Parece bem, Row Ark - disse Jake.
- O senhor também - respondeu ela. Olhou para Harry Rex, mas não disse nada.
- Por favor, perdoe-nos, Row Ark - disse Harry Rex. - Estamos impressionados
porque não imaginávamos que você tivesse esse tipo de roupa. Pedimos desculpas pelos
elogios e sabemos como isso enfurece o seu emancipado coração. Sim, somos porcos
sexistas. Mas como resolveu vir para o Sul... E no Sul, nós, via de regra, começamos a
babar-nos quando vemos mulheres atraentes e bem-vestidas, emancipadas ou não.
- O que tem dentro desse saco? - perguntou ela.
- O café da manhã.
Ela abriu e desembrulhou um folhado de salsicha.
- Não tem bagel? - perguntou.
- O que é isso? - perguntou Harry Rex.
- Deixe pra lá.
Jake esfregou as mãos e tentou parecer entusiasmado.
- Muito bem, agora que estamos aqui os três, três horas antes do julgamento, o
que é que gostariam de fazer?
- Vamos fazer umas margaritas! - disse Harry Rex.
- Não! - disse Jake.
- É bom para acalmar os nervos.
- Para mim, não - disse Ellen. - Isto é sério.
Harry Rex desembrulhou o último pacote de folhados.
- O que acontece primeiro, hoje?
- Depois que o sol se levantar, começamos o julgamento. Às nove, o juiz Noose
dirá algumas palavras aos jurados e iniciamos o processo de seleção.
- Quanto tempo vai levar isso? - perguntou Ellen.
- Dois ou três dias. No Mississipi temos o direito de interrogar cada jurado
individualmente, na sala de audiências. Isso leva tempo.
- Onde é que me sento e o que é que faço?
- Ela parece, indubitavelmente, experiente - observou Harry Rex. - Ela sabe onde
fica o tribunal?
- Você não fica na mesa da defesa - disse Jake. - Só eu e Carl Lee.
Ellen limpou a boca.
- Compreendo. Só você e o acusado, sozinhos, rodeados pelas forças do mal,
enfrentando sozinhos a morte.
- Mais ou menos isso.
- O meu pai usa essa tática de vez em quando. .
- Ainda bem que aprova. Fica sentada atrás de mim, logo depois da grade
divisória. Vou pedir ao Noose que autorize a sua entrada na sala de audiências para as
conversas particulares.
- E quanto a mim? - perguntou Harry Rex.
- O juiz Noose não gosta de você, Harry Rex. Nunca gostou. Vai ter um ataque se
eu pedir para você entrar na sala de audiência. Seria melhor fingir que não nos conhece.
- Obrigado.
- Mas nós agradecemos a sua assistência - disse Ellen.
- Não brinque, menina.
- E pode continuar bebendo conosco - acrescentou ela.
- Não quero nenhuma bebida alcoólica neste escritório - disse Jake.
- Até ao intervalo do meio-dia - acrescentou Harry Rex.
- Quero que fique por trás da mesa da escrivã, para trás e para diante, como
costuma fazer, e tome notas sobre o júri. Procure ligar os rostos aos nomes das fichas.
Provavelmente, vão aparecer cento e vinte.
- Como quiser.
Com o nascer do dia o exército apareceu com toda a sua força. As barricadas
foram erguidas novamente e em cada canto da praça os soldados tomaram posição em
volta dos barris laranja e brancos que bloqueavam as ruas. Todos alerta e ansiosos,
examinando atentamente cada carro, à espera do ataque do inimigo, ávidos de entrarem
em ação. As coisas ficaram mais animadas quando alguns abutres apareceram, às sete e
meia, com os seus furgões e mini-furgões com logotipos nas portas. Os soldados
cercaram os veículos e informaram que não podiam estacionar em volta do edifício do
tribunal durante o julgamento. Os abutres desapareceram numa das ruas transversais
para reaparecerem logo a seguir, a pé, com as câmeras e os outros equipamentos.
Alguns instalaram-se nos degraus em frente do tribunal, outros na porta dos fundos e
outro grupo na antecâmara, na frente da porta da sala do tribunal, no segundo andar.
Murphy, o zelador, a única testemunha ocular da morte de Cobb e Willard,
informou a imprensa, da melhor maneira possível, que a sala do tribunal seria aberta às
oito horas em ponto, nem um minuto antes. Imediatamente se formou uma fila que dava
inúmeras voltas.
Os ônibus das igrejas estacionaram nas ruas que davam para a praça, e os seus
ocupantes foram conduzidos através da rua Jackson pelos pregadores. Levavam cartazes
com o brado de guerra LIBERTEM CARL LEE e cantavam "We Shall Overcome", num
coro perfeito. Quando se aproximaram da praça, os soldados ouviram-nos e os rádios
começaram a estalar. Ozzie e o coronel confabularam rapidamente e os soldados
acalmaram-se. Ozzie conduziu o grupo a uma parte do gramado onde ficaram à espera
sob os olhos vigilantes da guarda nacional do Mississipi.
Às oito horas, foi instalado um detector de metais na porta do edifício e três
policiais fortemente armados começaram a revistar e admitir no edifício os espectadores
que agora enchiam a antecâmara e os corredores. Prather orientava o tráfego no recinto
do tribunal, fazendo os populares sentarem-se num dos lados da sala, reservando o outro
lado para os jurados. A primeira fila era reservada à família e a segunda já estava cheia
de artistas que começaram imediatamente a desenhar a cadeira do juiz e os retratos dos
heróis confederados.
O Klan viu-se obrigado a fazer sentir a sua presença no primeiro dia,
especialmente para os jurados. Duas dúzias de homens do Klan com o uniforme de gala
completo entraram a pé na rua Washington. Foram imediatamente cercados por soldados.
O coronel barrigudo atravessou a praça com o seu passo gingado e, pela primeira vez na
vida, viu-se cara a cara com um membro do Ku Klux Klan de manto branco, capuz e
máscara, e ainda por cima, trinta centímetros mais alto do que ele. Só então reparou nas
câmeras assestadas sobre ambos e toda a sua agressividade desapareceu. A voz
habitualmente autoritária e dominadora foi substituída por um gaguejar estridente,
nervoso e trêmulo que nem ele mesmo podia entender. Ozzie salvou-o com sua chegada.
- Bom dia, rapazes - disse friamente, ao posicionar-se ao lado do combalido
coronel. - Estão cercados e somos mais numerosos. Sabemos também que não podemos
impedi-los de estar aqui.
- Tem razão - disse o líder.
- Se me seguirem e fizerem o que eu disser, não teremos nenhum problema.
Eles seguiram Ozzie e o coronel até uma pequena área no gramado, onde foi
explicado que aquele era o lugar que deviam ocupar durante o julgamento. Fiquem aqui e
fiquem quietos, que o coronel pessoalmente irá manter as suas tropas à distancia. Eles
concordaram.
Como era de esperar, os mantos brancos provocaram uma agitação entre os
negros, agrupados a uns sessenta metros dos homens do Klan. Começaram a gritar:
"Libertem Carl Lee! Libertem Carl Lee! Libertem Carl Lee!"
Os homens do Klan ergueram os punhos fechados e responderam aos gritos de:
"Fritem Carl Lee!" "Fritem Carl Lee!" "Fritem Carl Lee!"
Duas filas de soldados postaram-se no passeio principal que dividia o gramado e
levava aos degraus do edifício. Outra fila estava entre o passeio e os homens do Klan, e
uma terceira, entre o passeio e os negros.
Os jurados começaram a chegar, passando rapidamente entre duas filas de
soldados. Tinham nas mãos as intimações judiciais e ouviam, incrédulos, os gritos dos
dois grupos.
O ilustríssimo Dr. Rufus Buckley chegou a Clanton e educadamente informou os
sentinelas de quem era e o que isso significava, e obteve autorização para estacionar na
vaga marcada com os dizeres RESERVADO PARA O PROMOTOR ao lado do edifício do
tribunal. Os repórteres enlouqueceram. Aquilo devia ser importante, alguém acabava de
passar pela barricada. Buckley ficou sentado no seu velho Cadillac durante um momento,
para dar a oportunidade aos repórteres de o alcançarem. Quando desceu e bateu com a
porta, eles cercaram-no. Buckley sorriu e caminhou lentamente para a porta da frente do
tribunal. O fogo cerrado de perguntas foi demais para ele e Buckley violou o segredo de
justiça pelo menos oito vezes, sorrindo e explicando que não podia responder à pergunta
a que acabava de responder. Musgrove ia atrás dele, transportando a pasta do grande
homem.
Nervoso, Jake andava de um lado para o outro no escritório. A porta estava
fechada à chave. No primeiro andar, Ellen trabalhava em outro relatório. Harry Rex estava
no Coffee Shop comendo outra vez e contando mexericos. As fichas estavam espalhadas
sobre a mesa e Jake estava farto delas. Folheou um relatório, depois foi até às portas de
vidro. Os gritos subiam da praça, entrando pelas janelas abertas. Jake voltou para a mesa
e estudou o resumo do seu comentário inicial para os jurados. A primeira impressão era
importante.
Deitou-se no sofá, fechou os olhos e pensou em milhares de coisas que gostaria
de estar fazendo. De um modo geral, Jake gostava do seu trabalho. Mas havia
momentos, momentos assustadores como aquele, em que desejava ser um corretor de
seguros ou da bolsa. Ou talvez até um cobrador de impostos. Sem dúvida, esses tipos
não sofriam crises regulares de náusea e diarréia nos momentos críticos da sua carreira.
Lucien tinha-lhe ensinado que o medo era bom, o medo era um aliado, todos os
advogados sentiam medo quando se viam diante do júri defendendo a sua causa. Não
havia nada de mal em ter medo; só que não devia demonstrar. Os jurados não seguiam o
advogado mais fluente ou o que usava as palavras mais bonitas. Não seguiam o mais
elegantemente vestido. Não seguiam um palhaço ou um bobo do tribunal. Não seguiam o
advogado que pregava com voz mais forte ou que lutava com mais ardor. Lucien tinha-o
convencido de que os jurados seguiam o advogado que dizia a verdade,
independentemente da sua aparência, das suas palavras, das suas habilidades
superficiais. O advogado tinha de ser ele mesmo no tribunal, e se estivesse com medo,
que assim fosse. Os jurados também estavam.
Trave amizade com o medo, costumava dizer Lucien, porque ele não vai embora e
o destruirá se não for controlado. O medo atacava-lhe o fundo das entranhas, e ele
desceu cautelosamente para o banheiro.
- Como é que se sente, chefe? - perguntou Ellen, quando Jake a foi buscar.
- Pronto, penso eu. Saímos daqui a um minuto.
- Existem repórteres à espera lá fora. Eu lhes disse que tinha se retirado do caso e
deixado a cidade...
- Neste momento gostaria de que isso fosse verdade.
- Já ouviu falar em Wendall Solomon?
- Não que me lembre.
- Ele trabalha para o Fundo de Defesa dos Presidiários Sulistas. Trabalhei com
ele, no Verão passado. Ele defendeu mais de cem casos de crimes de homicídio em todo
o Sul. Fica tão nervoso antes do julgamento que não consegue comer nem dormir. O
médico receita-lhe sedativos, mas mesmo assim, ninguém é capaz de falar com ele, no
primeiro dia de um julgamento. E isso ao fim de mais de cem julgamentos.
- E o seu pai?
- Toma uns dois martinis com um comprimido de Valium. Depois deita-se apoiado
na mesa com a porta fechada e as luzes apagadas até à hora de ir para o tribunal. Fica
com os nervos à flor da pele e mal-humorado. É claro que uma boa parte é natural nele.
- Então você conhece a sensação?
- Conheço-a bem.
- Pareço nervoso?
- Parece cansado. Mas vai se sair bem.
Jake consultou o relógio.
- Vamos.
Os repórteres saltaram sobre a presa.
- Sem comentários - insistiu Jake, andando vagarosamente para o edifício do
tribunal. A barragem continuou.
- É verdade que pretende pedir a anulação do julgamento?
- Não posso fazer isso antes do julgamento começar.
- É verdade que o Klan o ameaçou?
- Sem comentários.
- É verdade que a sua família vai ficar fora da cidade, até o fim do julgamento?
Jake hesitou e olhou para o repórter.
- Sem comentários.
- O que acha da guarda nacional?
- Orgulho-me dela.
- O seu cliente pode ter um julgamento justo em Ford County?
Jake abanou a cabeça e disse:
- Sem comentários.
Um sub delegado montava guarda a poucos metros de onde os corpos tinham
caído.
- Quem é ela, Jake? - perguntou, apontando para Ellen.
- É inofensiva. Está comigo.
Subiram rapidamente a escada dos fundos. Carl Lee estava sozinho à mesa da
defesa, de costas para os espectadores que enchiam o recinto. Jean Gillespie recebia os
jurados e os policiais percorriam as passagens, atentos a qualquer coisa ou pessoa
suspeita. Jake cumprimentou calorosamente o seu cliente, fazendo questão de apertar a
mão dele, com um largo sorriso, e depois apoiou a mão no ombro de Carl Lee. Ellen tirou
os papéis dos dossiês e arrumou as pastas de cartolina sobre a mesa.
Jake conversou em voz baixa com o cliente e olhou em volta. Todos olhavam para
ele. O clã dos Hailey estava sentado comportadamente na primeira fila. Jake sorriu para
eles e cumprimentou Lester com uma inclinação de cabeça. Tonya e os rapazes estavam
com as roupas de domingo, sentados entre Lester e Gwen, como quatro estátuas. Os
jurados estavam em um dos lados da sala, observando minuciosamente o advogado de
Hailey. Jake achou que aquele era um bom momento para todos verem a família e foi até
à balaustrada baixa. Bateu amigavelmente no ombro de Gwen, apertou a mão de Lester,
beliscou a cara de cada um dos rapazes e, finalmente, abraçou Tonya, a pequenina
Hailey, que tinha sido violada pelos dois brancos que tinham recebido o que mereciam.
Os jurados observaram cada um dos movimentos dessa encenação e prestaram atenção
especial à menina.
- O juiz Noose mandou nos chamar ao gabinete dele - murmurou Musgrove a
Jake, quando ele voltou para a mesa da defesa. Ichabod, Buckley e a taquígrafa
conversavam quando Jake e Ellen entraram. Jake apresentou a sua estagiária ao juiz, a
Buckley e Musgrove e a Norma Gallo, a taquígrafa. Explicou que Ellen Roarke era uma
terceiranista de Direito da Ole Miss que estava estagiando no escritório dele e pediu
autorização para ela se sentar perto da mesa da defesa e participar nas reuniões na sala
de audiências. Buckley não tinha objeções. Era uma prática comum, explicou Noose, e
deu-lhe as boas-vindas.
- Questões preliminares, meus senhores? - perguntou Noose.
- Nenhuma - disse o promotor.
- Várias - disse Jake, abrindo uma pasta. - Quero que isto conste dos autos.
Norma Gallo começou a tomar notas.
- Em primeiro lugar, quero renovar a moção para transferência de foro...
- Nós objetamos - interrompeu Buckley.
- Cale-se, governador! - gritou Jake. - Ainda não acabei e não me interrompa mais!
A explosão sobressaltou todos. Tudo por causa daquelas margaritas, pensou
Ellen.
- Peço desculpas, Dr. Brigance - disse Buckley, com calma. - Por favor, não me
trate por governador.
- Deixem-me dizer uma coisa - começou Noose. - Este julgamento será longo e
difícil. Compreendo que estejam todos sob grande pressão. Já estive muitas vezes onde
estão agora e sei o que estão sentindo. Ambos são excelentes advogados e fico satisfeito
por ter dois bons advogados num julgamento desta importância. Noto também uma certa
hostilidade entre os dois. Isso é comum e não vou pedir que apertem as mãos e ajam
como bons amigos. Mas faço questão absoluta de que, no meu tribunal ou no meu
gabinete, não se interrompam um ao outro e que os gritos sejam limitados ao mínimo
possível. Devem tratar-se por Dr. Brigance e Dr. Buckley e Dr. Musgrove. Bem, todos
compreendem o que quero dizer?
- Sim, senhor.
- Sim, senhor.
- Bom. Então continue, Dr. Brigance.
- Obrigado, Meritíssimo, muito agradecido. Como eu estava dizendo, o acusado
renova a moção para transferência de foro. Quero que conste dos autos que, neste
momento, às nove e quinze do dia vinte e dois de Julho, quando nos preparamos neste
gabinete para a escolha do júri, o Tribunal de Justiça de Ford County está cercado pela
guarda nacional do Mississipi. Em frente do edifício um grupo de homens do Ku Klux
Klan, com mantos brancos, neste preciso momento gritam para o grupo de negros que,
naturalmente, lhes gritam em resposta. Os dois grupos estão separados por soldados
armados da guarda nacional. Quando os jurados chegaram ao tribunal, esta manhã, viram
o circo armado na frente do palácio da justiça. Vai ser impossível escolher um júri justo e
imparcial.
Buckley escutou com um sorriso de superioridade e, quando Jake terminou, disse:
- Posso responder, Meritíssimo?
- Não - disse Noose secamente. - A moção é indeferida. O que mais o senhor
tem...
- A defesa requer que todos os jurados convocados sejam dispensados.
- Com que fundamento?
- Com fundamento no fato de o Klan ter ameaçado abertamente esse grupo de
jurados. Sabemos de pelo menos vinte cruzes de fogo.
- Pretendo dispensar esses vinte, se se apresentarem - disse Noose.
- Ótimo - disse Jake com ironia. - E as ameaças das quais não tivemos
conhecimento? E os jurados que ouviram falar das cruzes de fogo?
Noose enxugou os olhos e não disse nada. Buckley tinha um discurso preparado
mas não quis interromper.
- Eu tenho aqui uma lista - disse Jake, abrindo uma pasta - dos vinte jurados que
receberam visitas. Tenho também cópias de relatórios da polícia e depoimentos
juramentados do xerife Walls, onde ele descreve com detalhes os atos de intimidação.
Estou submetendo estes documentos à apreciação do tribunal, como reforço à minha
moção para a dispensa de todos os jurados convocados. Quero que isto conste dos autos
para que o Supremo Tribunal possa vê-lo preto no branco.
- À espera de uma apelação, Dr. Brigance? - perguntou o Dr. Buckley.
Ellen acabava de conhecer Rufus Buckley e já compreendia por que Jake e Harry
Rex o detestavam.
- Não, governador, não estou à espera de uma apelação. Estou tentando garantir
ao meu cliente um julgamento justo por um júri imparcial. O senhor deve compreender
isto.
- Não vou dispensar estes jurados. Isso nos custaria uma semana - disse Noose.
- O que é o tempo quando a vida de um homem está em jogo? Estamos falando
de justiça. O direito a um julgamento justo, lembrem-se, um Direito constitucional dos
mais básicos. O julgamento será uma farsa se não houver a dispensa destes jurados, pois
sabemos que alguns deles foram intimidados por um bando de assassinos vestidos com
mantos brancos que querem ver o meu cliente enforcado.
- Moção indeferida - disse Noose. - Que mais tem o senhor?
- Na verdade, nada mais. Apenas peço que, quando dispensar os vinte, o faça de
modo a que os outros não fiquem sabendo o verdadeiro motivo da dispensa.
- Eu posso tratar disso, Dr. Brigance.
O juiz mandou o Dr. Pate procurar Jean Gillespie e entregou-lhe a lista dos vinte
nomes. Jean voltou para a sala do tribunal e leu a lista. Eles não eram necessários para o
júri e podiam retirar-se. Ela voltou ao gabinete do juiz.
- Quantos jurados temos? - perguntou Noose. - Noventa e quatro.
- Isso é suficiente. Estou certo de que podemos encontrar doze para o nosso júri.
- Não vai encontrar dois - sussurrou Jake ao ouvido de Ellen, em voz bastante alta
para que Noose ouvisse e Norma Gallo registrasse.
Sua Excelência dispensou-os e eles voltaram para a sala do tribunal. Noventa e
quatro nomes escritos em pequenas tiras de papel foram colocados num pequeno cilindro
de madeira. Jean Gillespie girou o cilindro, parou-o e tirou um nome ao acaso. Entregou a
tira de papel a Noose, que estava sentado acima dela, e de todas as pessoas da sala, no
seu trono. Todos observavam em silêncio. Noose semicerrou os olhos e olhou para o
primeiro nome.
- Carlene Malone, jurado número um - gritou ele com sua voz estridente.
A primeira fila estava vazia e a Sra. Malone sentou-se na cadeira, ao lado da
passagem. Cada banco dava para dez pessoas e havia dez bancos, todos para os
jurados. Os dez bancos, do outro lado da passagem, estavam cheios com pessoas da
família, amigos, espectadores, mas especialmente repórteres, que imediatamente
anotaram o nome de Carlene Malone. Jake também anotou. Ela era branca, gorda,
divorciada, de baixos rendimentos. A nota dela, na escala Brigance, era 2. Zero para a
primeira, pensou ele.
Jean girou novamente o cilindro.
- Marcia Dickens, jurado número dois - berrou Noose. Branca, gorda, mais de
sessenta anos, de aparência implacável. Zero para a segunda.
- Jo Beth Mills, número três.
Jake afundou-se um pouco na cadeira. Era branca, cinqüenta anos, e ganhava o
salário mínimo numa fábrica de camisas em Karaway. Graças à ação afirmativa, tinha um
patrão negro que era ignorante e corrupto. Na ficha de Brigance havia um zero na frente
do nome. Zero para a terceira. Jake olhou desesperadamente para Jean quando ela girou
outra vez o cilindro.
- Reba Betts, número quatro.
Jake afundou mais na cadeira, e apertou com força a testa. Zero para a quarta.
- Isto é incrível - resmungou ele, na direção de Ellen. Harry Rex abanou a cabeça.
- Gerald Ault, número cinco.
Jake sorriu quando o seu jurado número um se sentou ao lado de Reba Betts.
Buckley fez uma marca preta ao lado do nome dele.
- Alex Summers, número seis.
Carl Lee sorriu levemente quando o primeiro negro saiu de trás do grupo e se
sentou ao lado de Gerald Ault. Buckley sorriu também ao fazer um círculo em volta do
nome do primeiro negro.
Os quatro jurados seguintes eram mulheres brancas, nenhuma delas com mais de
três pontos na escala de Brigance. Jake olhou preocupado para o primeiro banco, cheio.
A lei permitia-lhe doze impugnações peremptórias, doze dispensas sem precisar explicar
o motivo. O resultado do sorteio iria obrigá-lo a usar pelo menos metade das suas
peremptórias no primeiro banco.
- Walter Godsey, número onze - anunciou Noose, em voz bastante mais baixa.
Godsey era um homem de meia-idade, sem compaixão e sem potencial. Quando
Noose concluiu a segunda fila, esta continha sete mulheres brancas, dois homens negros
e Godsey. Jake pressentiu um desastre. Só sentiu algum alívio na quarta fila, quando
Jean acertou a mão e tirou os nomes de sete homens, quatro deles negros.
Levou quase uma hora a chamada de todo o corpo de jurados. Noose determinou
um intervalo de quinze minutos para que Jean pudesse datilografar uma lista numérica
dos jurados. Jake e Ellen aproveitaram o intervalo para rever as suas anotações e ligar os
nomes às pessoas. Harry Rex, sentado atrás dos livros vermelhos de registro de
processos havia tomado notas febrilmente enquanto Noose proclamava os nomes.
Aproximou-se de Jake e concordou que as coisas não iam bem.
Às onze horas Noose voltou e a sala ficou em silêncio. Alguém sugeriu que usasse
o microfone, e Noose o ajeitou a poucos centímetros do nariz. Começou a falar alto e a
sua voz fraca e desagradável matraqueava violentamente dentro da sala, à medida que
ele fazia uma longa série de perguntas exigidas por lei. Apresentou Carl Lee e perguntou
se algum jurado era parente dele ou o conhecia. Todos o conheciam, e Noose esperava
isso, mas apenas dois admitiram conhecê-lo antes do mês de Maio. Noose apresentou os
advogados, depois explicou em breves palavras a natureza das acusações. Nenhum
jurado admitiu não ter conhecimento do caso Hailey. Noose continuou a falar e,
misericordiosamente, terminou ao meio dia e meio. Determinou um intervalo até às duas
horas.

Dell levou sanduíches quentes e chá gelado à sala de conferências. Jake
agradeceu com um abraço e disse-lhe que lhe mandasse a conta. Sem tocar na comida,
arrumou as fichas sobre a mesa pela ordem em que os jurados estavam sentados. Harry
Rex atacou uma sanduíche de rosbife e queijo.
- Um péssimo sorteio - repetia ele. - Um péssimo sorteio. Quando pôs no lugar a
nonagésima quarta ficha, Jake recuou e examinou-as. Ellen, ao lado dele, mordiscava
uma batata frita. Estudou as fichas.
- Um péssimo sorteio - disse Harry Rex, bebendo um copo de chá.
- Queres calar a boca? - disse Jake.
- Nos primeiros cinqüenta temos oito homens negros, três mulheres negras e trinta
mulheres brancas. Sobram nove brancos e a maior parte pouco atraente. Parece um júri
de mulheres brancas - observou Ellen.
- Mulheres brancas, mulheres brancas - disse Harry Rex. - Os piores jurados do
mundo. Mulheres brancas!
Ellen encarou-o.
- Acho que homens brancos gordos são os piores jurados.
- Não me leve a mal, Row Ark. Adoro mulheres brancas. Casei com quatro delas,
lembre-se. Apenas detesto juradas brancas.
- Eu não votaria pela condenação dele.
- Row Ark, você é uma comunista da União das Liberdades Civis. Não votaria pela
condenação de ninguém por nada deste mundo. Na sua cabecinha insana você acredita
que os corruptores de menores e os terroristas da OLP são pessoas muitíssimo boas que
foram maltratadas pelo sistema e merecem ter uma oportunidade.
- E na sua mente racional, civilizada e compassiva, o que acha que devemos fazer
com eles?
- Dependurá-los pelos dedos dos pés, castrá-los e deixar sangrar até a morte.
Sem julgamento.
- E do modo como compreende a lei, isso seria constitucional?
- Talvez não, mas ia diminuir a incidência de estupros de crianças e de terrorismo.
Jake, vai comer esse sanduíche?
- Não.
Harry Rex desembrulhou o sanduíche de presunto e queijo.
- Mantenha-se afastado da número um, Carlene Malone. É parente dos Malone de
Lake Village. Lixo branco e má como o demônio.
- Eu gostaria de me manter afastado de todos eles - disse Jake, olhando para a
mesa.
- Um péssimo sorteio.
- O que é que acha, Row Ark? - perguntou Jake.
Harry Rex engoliu rapidamente.
- Acho que devíamos declará-lo culpado e sair logo daqui. Fugir como gato
escaldado.
Ellen olhou para as fichas.
- Podia ser pior.
Harry Rex deu uma gargalhada forçada.
- Pior! A única coisa pior seria se os primeiros trinta usassem mantos brancos com
capuzes pontiagudos e pequenas máscaras.
- Harry Rex, quer calar a boca? - disse Jake.
- Só estou tentando ajudar. Quer as suas batatas fritas?
- Não. Porque não as mete na boca e mastiga muito lentamente?
- Acho que não tem razão a respeito de algumas dessas mulheres - disse Ellen. -
Estou inclinada a concordar com Lucien. As mulheres, de um modo geral, terão mais
simpatia pelo acusado. Somos nós que costumamos ser violentadas, lembra-se?
- Não tenho resposta para isso - disse Harry Rex.
- Obrigado - disse Jake.
- Qual destas é a sua antiga cliente que supostamente faz qualquer coisa que lhe
mande?
Ellen riu com desprezo.
- Deve ser a número vinte e nove. Tem um metro e cinqüenta e dois de altura e
pesa duzentos quilos.
Harry Rex limpou a boca com um guardanapo de papel.
- Muito engraçado. Número setenta e quatro. Está muito atrás. Esqueça.

Noose bateu com o martelo, às duas horas, e estabeleceu-se a ordem no tribunal.
- O estado pode examinar o corpo de jurados - disse.
O ilustre promotor levantou-se lentamente e caminhou com imponência para a
balaustrada, onde parou, olhando pensativamente para os jurados e os espectadores.
Parecia estar posando, por um momento, para os desenhistas. Voltou-se para os jurados
com um sorriso sincero e apresentou-se. Explicou que era o advogado do povo, o estado
do Mississipi era o seu cliente. Há nove anos que servia como seu promotor e era uma
honra pela qual estaria eternamente grato ao maravilhoso povo de Ford County. Apontou
para o público e disse-lhes que eles, ali sentados, eram o povo que o elegera para os
representar. Agradeceu e disse que esperava não desapontá-los.
Sim, estava nervoso e assustado. Tinha acusado milhares de criminosos, mas
continuava a ficar assustado a cada novo julgamento. Sim! Estava com medo e não tinha
vergonha de admiti-lo. Com medo por causa da enorme responsabilidade com que o povo
o investira, de mandar para a prisão os criminosos e de proteger as pessoas. Com medo
porque podia não representar devidamente o seu cliente, o povo desse grande estado.
Jake já ouvira aquelas baboseiras muitas vezes. Já as conhecia de cor. Buckley, o
homem bom, o advogado do estado, de mãos dadas com o povo à procura de justiça,
para salvar a sociedade.
Buckley era um orador suave e talentoso que podia, num momento, conversar
mansamente com o júri, como um avô aconselhando os netos. No momento seguinte,
podia começar um discurso inflamado, um sermão que faria inveja a qualquer pregador
negro. Um segundo depois, numa fluida explosão de eloqüência, podia convencer o júri
de que a estabilidade da nossa sociedade, sim, até mesmo o futuro da raça humana,
dependia de um veredicto de culpa. Ele sobressaía nos grandes julgamentos e aquele era
o maior de todos. Buckley falava sem consultar notas e mantinha a sala toda presa às
suas palavras, enquanto se descrevia como um desprivilegiado, o amigo e parceiro do
júri, que, junto com ele, encontraria a verdade e puniria aquele homem pelo seu ato
monstruoso.
Ao fim de dez minutos, Jake estava farto. Levantou-se com ar de frustração.
- Meritíssimo, eu levanto objeção a isto. O Dr. Buckley não está escolhendo um
júri. Não percebo bem o que ele está fazendo, mas não está interrogando os jurados.
- Concedida! - gritou Noose pelo microfone. - Se não tem nenhuma pergunta a
fazer aos jurados, Dr. Buckley, por favor sente-se.
- Peço desculpas, Meritíssimo - disse Buckley, embaraçado, fingindo-se ofendido.
Jake acabava de desferir o primeiro golpe.
Buckley pegou um bloco de notas e fez a primeira de uma lista de mil perguntas.
Perguntou se algum deles ali presente já tinha feito parte de um júri. Várias mãos se
ergueram. Civil ou criminal? Votou pela absolvição ou condenação? Há quanto tempo? O
acusado era negro ou branco? A vítima, negra ou branca? Algum deles já fora vítima de
crime violento? Duas mãos. Quando? Onde? O assaltante foi apanhado? Condenado?
Negro ou branco? Jake, Harry Rex e Ellen enchiam páginas de anotações. Algum
membro da sua família foi vítima de crime violento? Mais algumas mãos. Quando? Onde?
O que aconteceu ao criminoso? Algum membro da sua família já foi acusado de crime?
Indiciado? Julgado? Condenado? Algum amigo ou parente policial? Quem? Onde?
Durante três horas a fio, Buckley explorou e examinou como um cirurgião. Foi
magistral. Era óbvio que estava bem preparado. Fez perguntas que nem sequer tinham
ocorrido a Jake. E perguntou praticamente tudo o que Jake pretendia perguntar.
Delicadamente, conseguia detalhes de sentimentos e opiniões pessoais. E no momento
certo dizia uma coisa engraçada e todos riam, aliviando a tensão. Buckley tinha o tribunal
todo na palma da mão e quando Noose o mandou parar, às cinco horas, ele estava a todo
vapor. Terminaria no dia seguinte, de manhã.
Sua Excelência determinou a suspensão até às nove da manhã seguinte. Jake
conversou com o seu cliente durante alguns momentos enquanto a multidão saía da sala.
Ozzie estava por perto com as algemas. Quando Jake terminou, Carl Lee ajoelhou-se
diante da família, na primeira fila, e abraçou-os a todos. Iria vê-los no dia seguinte, disse.
Ozzie introduziu-o na sala de espera e com ele desceu a escada, onde um enxame de
policiais estava à sua espera para levá-lo de volta à cadeia.


TRINTA E QUATRO

No segundo dia, o sol elevou-se rapidamente a leste e, em poucos segundos,
secou o orvalho da espessa relva das Bermudas em volta do tribunal de justiça de Ford
County. Uma névoa viscosa e invisível subia da relva e colava-se às botas pesadas e às
calças largas dos soldados. O sol queimava-os enquanto eles caminhavam
despreocupadamente pelos passeios do centro de Clanton. Procuravam a sombra das
árvores e os toldos das lojas pequenas. Quando o café foi servido nas grandes barracas,
os soldados estavam sem as túnicas e com as camisas verde-claras encharcadas de
suor.
Os pregadores negros e os seus seguidores dirigiram-se para o seu lugar e
acamparam. Abriram as cadeiras dobráveis sob os carvalhos e puseram os congeladores
em cima das mesas de armar. Cartazes brancos e azuis com as palavras LIBERTEM
CARL LEE, pregados em estacas de tomateiros, foram enfiados no chão como
espantalhos. Agee mandara imprimir alguns cartazes novos, com fotografia ampliada de
Carl Lee no centro e as margens a branco, azul e vermelho. Era um trabalho bonito, feito
por profissional.
Os homens da Klan foram obedientemente para o lugar designado pelo xerife.
Tinham também cartazes - fundo branco com letras enormes vermelhas - gritando
FRITEM CARL LEE, FRITEM CARL LEE. Agitavam os cartazes na direção dos negros,
do outro lado da passagem, e os dois grupos começaram a gritar. Os soldados
enfileiraram-se no passeio, armados, mas fingindo ignorar as obscenidades que voavam
sobre as suas cabeças. Eram oito horas da manhã, do segundo dia.
Os repórteres estavam atordoados com tantas manifestações. Correram para o
gramado da frente quando a gritaria começou. Ozzie e o coronel davam voltas e voltas
em redor do tribunal, vendo tudo e berrando para dentro dos seus rádios.
Às nove horas, Ichabod disse bom dia à multidão que enchia por completo a sala
do tribunal. Buckley levantou-se devagar e com grande animação informou Sua
Excelência que não tinha mais perguntas a fazer aos jurados.
O advogado Brigance levantou-se com as pernas bambas e uma turbulência na
barriga. Foi até à barra e fitou os olhos ansiosos dos noventa e quatro jurados. Todos
ouviram atentamente aquele jovem e atrevido defensor que um dia se gabara de nunca
ter perdido uma causa criminal. Parecia tranqüilo e confiante. A voz dele era forte, mas
calorosa. As palavras eram cultas, mas coloquiais. Apresentou-se outra vez e apresentou
o seu cliente, depois a família deste, deixando Tonya para o fim. Cumprimentou o
promotor pelo exaustivo interrogatório do dia anterior e confessou que a maioria das suas
perguntas já tinham sido feitas. Consultou as suas notas. A primeira pergunta foi uma
bomba.
- Senhoras e senhores, alguém aqui acredita que a defesa não deve, em
circunstância alguma, apoiar-se na alegação de insanidade mental?
Os jurados mexeram-se um pouco nas cadeiras, mas ninguém levantou a mão.
Ele os tinha apanhado desprevenidos. Insanidade! Insanidade! A semente estava
plantada.
- Se provarmos que Carl Lee estava legalmente insano quando atirou em Billy Ray
Cobb e Pete Willard, haverá uma só pessoa neste júri que não possa achar que ele não é
culpado?
A pergunta era um tanto rebuscada, deliberadamente. Ninguém levantou a mão.
Alguns queriam responder, mas não estavam certos da resposta apropriada. Jake
observou-os cuidadosamente, sabendo que a maioria estava confusa, mas sabendo
também que, naquele momento, cada um dos membros do corpo de jurados pensava na
possibilidade de seu cliente estar insano. Era exatamente aí que ele os deixaria.
- Muito obrigado - disse Jake, com todo o charme que tinha conseguido durante
toda a vida. - Não tenho mais nada a declarar, Meritíssimo.
Buckley ficou confuso. Olhou para o juiz que também estava perplexo.
- É tudo? - perguntou Noose, incrédulo. - É tudo, Dr. Brigance?
- Sim, senhor, Meritíssimo, o júri me parece plenamente satisfatório - disse Jake,
com ar confiante, ao contrário de Buckley, que os havia interrogado durante três horas. O
júri estava longe de ser aceitável para Jake, mas não adiantava repetir as mesmas
perguntas que Buckley tinha feito.
- Muito bem. Quero falar com os advogados no meu gabinete.
Buckley, Musgrove, Jake, Ellen e o Sr. Pate seguiram Ichabod e sentaram-se em
volta da mesa no gabinete do juiz. Noose disse:
- Suponho, meus senhores, que desejem inquirir cada um dos jurados
pessoalmente sobre a pena de morte.
- Sim, senhor - disse Jake.
- Exatamente, Meritíssimo - disse Buckley.
- Muito bem. Sr. Meirinho, queira trazer o jurado número um, Carlene Malone.
O Sr. Pate foi até à sala do tribunal e chamou Carlene Malone. Daí a momentos,
ela entrou no gabinete do juiz. Estava apavorada. Os advogados sorriram mas não
disseram nada: instruções de Noose.
- Sente-se, por favor - disse Noose, tirando a toga. - Isto não vai demorar mais de
um minuto, Sra. Malone. A senhora tem alguma opinião formada a favor ou contra a pena
de morte? - perguntou ele.
A mulher abanou a cabeça nervosamente e olhou para Ichabod.
- Ah, não, senhor.
- Compreende que se for escolhida para este júri e o Sr. Hailey for condenado, a
senhora será chamada para sentenciá-lo à morte?
- Sim, senhor.
- Se o estado provar, além de qualquer dúvida razoável, que os crimes foram
premeditados, e se a senhora acreditar que o Sr. Hailey não estava legalmente insano no
momento dos crimes, a senhora considerará a imposição da pena de morte?
- Certamente. Eu acho que ela deve ser sempre usada. É suscetível de pôr um fim
a este tipo de ações. Sou totalmente favorável. Jake continuou a sorrir, meneando a
cabeça afirmativa e educadamente para a jurada número um. Buckley sorriu também e
piscou o olho a Musgrove.
- Muito obrigado, Sra. Malone. Pode voltar para o seu lugar, na sala do tribunal -
disse Noose. - Traga o número dois - ordenou Noose ao Sr. Pate.
Marcia Dickens, uma mulher branca, idosa, de testa franzida, entrou no gabinete.
Sim, senhor, disse ela, era a favor da pena de morte. Não teria problemas em votar a
favor. Jake sorriu. Buckley piscou o olho outra vez. Noose agradeceu e chamou a número
três.
Três e quatro demonstraram a mesma disposição. Estariam prontas a matar se as
provas fossem suficientes. Então o número cinco, Gerald Ault, a arma secreta de Jake,
entrou no gabinete e sentou-se.
- Muito obrigado, Sr. Ault, isso não vai demorar mais de um minuto - repetiu
Noose. - Em primeiro lugar, o senhor tem opinião formada a favor ou contra a pena de
morte?
- Ah, sim, senhor - respondeu Ault, a voz e o rosto irradiando compaixão. - Sou
decididamente contra. É cruel e insólita. Tenho vergonha de viver em uma sociedade que
permite o assassinato legal de um ser humano.
- Compreendo. Poderia o senhor, em quaisquer circunstâncias, se fosse jurado,
votar pela imposição da pena de morte?
- Ah, não, senhor. Em nenhuma circunstância. Independentemente do crime. Não,
senhor.
Buckley pigarreou e anunciou sombriamente:
- Meritíssimo, o estado impugna o Sr. Ault e requer que ele seja dispensado de
acordo com o precedente do estado contra Witherspoon.
- Moção aceita. Sr. Ault, o senhor está dispensado de servir no júri - disse Noose. -
Pode abandonar o tribunal, se quiser. Se preferir permanecer no recinto do tribunal, peço-
lhe que não se sente com os outros jurados.
Confuso, Ault olhou para o seu amigo Jake que, naquele momento, olhava para o
chão com os lábios apertados.
- Posso perguntar porquê? - perguntou Gerald. Noose tirou os óculos,
transformando-se no professor.
- De acordo com a lei, Sr. Ault, o tribunal deve dispensar qualquer jurado em
potencial que admita que não é capaz de considerar, e a palavra-chave é considerar, a
pena de morte. O senhor compreende, goste ou não, a pena de morte é um método
punitivo legal no Mississipi e na maioria dos estados. Sendo assim, não é justo escolher
jurados incapazes de obedecer à lei.
Todas as pessoas ficaram curiosas quando Gerald Ault apareceu atrás da cadeira
do juiz, passou pelo portãozinho da barra e saiu da sala do tribunal. O meirinho chamou o
número seis, Alex Summers, e conduziu-o ao gabinete do juiz. Voltou logo a seguir e
sentou-se na primeira fila. Tinha mentido sobre a pena de morte. Era contra, como a
maioria dos negros, mas dissera a Noose que não tinha objeção. Nenhuma. Mais tarde,
durante o intervalo, procurou outros jurados negros e explicou-lhes como deviam
responder às perguntas, na sala do juiz.
O processo lento continuou até meio da tarde, quando o último jurado saiu do
gabinete do juiz. Onze tinham sido dispensados devido à atitude em relação à pena de
morte. O tribunal entrou em recesso às três e meia e Noose deu aos advogados até às
quatro para reverem as suas notas.
Na biblioteca do terceiro andar, Jake e a sua equipe examinaram as listas e fichas
do júri. Estava na hora da decisão. Ele tinha sonhado com nomes escritos em azul,
vermelho e preto, com números ao lado. Tinha-os observado no tribunal durante dois
dias. Conhecia-os. Ellen queria mulheres. Harry Rex queria homens. Noose examinou a
sua lista-mestra, com os jurados renumerados para refletir as dispensas justificadas, e
olhou para os advogados.
- Meus senhores, estão prontos? Ótimo. Como sabem, este é um caso de
homicídio, portanto cada um dos senhores tem direito a doze impugnações peremptórias.
Dr. Buckley, o senhor deve apresentar à defesa a sua lista de doze jurados. Por favor,
comece com o número do jurado e refira-se a cada um somente pelo número.
- Sim, senhor. Meritíssimo, o estado aceita os jurados número um, dois, três,
quatro, usa a primeira impugnação para o número cinco, aceita os números seis, sete,
oito, nove, usa a segunda impugnação para o número dez, aceita os números onze, doze,
treze, usa a terceira impugnação para o número catorze e aceita o número quinze. Aí
estão doze, suponho.
Jake e Ellen fizeram círculos e anotações nas suas listas. Noose voltou a contar
metodicamente.
- Sim, doze. Dr. Buckley.
Buckley propusera doze mulheres brancas. Dois homens negros e um branco
tinham sido eliminados. Jake estudou a sua lista e riscou nomes.
- A defesa dispensa os jurados número um, dois, três, aceita quatro, seis e sete,
dispensa oito, nove, onze, doze, aceita treze, dispensa quinze. Julgo que usamos oito das
nossas impugnações.
Sua Excelência fez linhas e marcas na sua lista, calculando lentamente.
- Ambos aceitaram os jurados número quatro, seis, sete e treze. Dr. Buckley, é o
senhor novamente. Dê-nos mais oito jurados.
- O estado aceita dezesseis, usa a quarta impugnação para o dezessete, aceita
dezoito, dezenove, vinte, impugna vinte e um, aceita vinte e dois, impugna vinte e três,
aceita vinte e quatro, dispensa vinte e cinco e vinte e seis e aceita vinte e sete e vinte e
oito. Um total de doze com direito a mais quatro impugnações.
Jake estava perplexo. Buckley mais uma vez tinha eliminado todos os negros e
todos os homens. Estava lendo o pensamento de Jake.
- Dr. Brigance, é o senhor agora.
- Posso ter um momento para conferenciar, Meritíssimo?
- Cinco minutos - respondeu Noose.
Jake e a sua assistente passaram para a sala de café, onde Harry Rex esperava.
- Vê isto - disse Jake, pondo a lista na mesa, e inclinaram-se os três sobre ela. -
Chegamos ao vinte e nove. Tenho quatro impugnações e Buckley também. Ele eliminou
todos os negros e todos os homens. No momento, temos um júri só de mulheres brancas.
Os dois seguintes são mulheres brancas, trinta e um é Clyde Sisco e trinta e dois é Barry
Acker.
- Então quatro dos próximos seis são negros - disse Ellen. - Sim, mas Buckley não
vai chegar tão longe. Na verdade, estou surpreendido por ter nos deixado chegar tão
perto da quarta fila.
- Eu sei que você quer o Acker. E o Sisco? - perguntou Harry Rex.
- Tenho medo dele. Lucien diz que é um vigarista que pode ser comprado.
- Legal! Vamos pôr o homem no júri e depois o compramos.
- Muito engraçado. Como é que sabe se Buckley não o comprou antes?
- Eu ficaria com ele.
Jake estudou a lista, contando e voltando a contar. Ellen queria eliminar os dois
homens, Acker e Sisco. Voltaram para a sala do juiz e sentaram-se. A taquígrafa estava a
postos.
- Meritíssimo, queremos eliminar o número vinte e dois e o número vinte e oito,
restam duas impugnações.
- Dr. Buckley, a sua vez. Vinte e nove e trinta.
- O estado aceita os dois. São doze, com direito ainda a quatro impugnações.
- Dr. Brigance.
- Eliminaremos vinte e nove e trinta.
- E não tem mais nenhuma impugnação, certo? - perguntou Noose.
- Certo.
- Muito bem. Dr. Buckley, trinta e um e trinta e dois.
- O estado aceita os dois - disse Buckley rapidamente, olhando para os nomes dos
negros que vinham logo depois de Clyde Sisco.
- Ótimo. Doze. Vamos escolher dois suplentes. Ambos têm duas impugnações
para os suplentes. Dr. Buckley, trinta e três e trinta e quatro.
O jurado trinta e três era um negro. Trinta e quatro era uma mulher branca que
Jake queria. Os dois seguintes eram homens negros.
- Nós eliminamos trinta e três, aceitamos trinta e quatro e trinta e cinco.
- A defesa aceita os dois - disse Jake.
O Sr. Pate restabeleceu a ordem no tribunal quando Noose e os advogados
tomaram os seus lugares. Sua Excelência anunciou os nomes dos doze e eles lenta e
nervosamente dirigiram-se para a bancada do júri, onde se sentaram de acordo com a
orientação de Jean Gillespie. Dez mulheres, dois homens, todos brancos. Os negros
presentes na sala resmungaram e entreolharam-se incrédulos.
- Você escolheu esse júri? - murmurou Carl Lee a Jake.
- Explico depois - disse Jake.
Os dois suplentes foram chamados e sentaram-se perto da bancada do júri.
- Para que é o cara negro? - murmurou Carl Lee, indicando o suplente com um
movimento da cabeça.
- Explico depois - disse Jake.
Noose pigarreou e olhou para o seu novo júri.
- Senhoras e senhores, os senhores foram cuidadosamente selecionados para
jurados deste caso. Juraram julgar com justiça todos os assuntos que lhes forem
apresentados e seguir a lei de acordo com minhas instruções. Agora, de acordo com a lei
do Mississipi, ficarão isolados até ao fim do julgamento. Isso significa que ficarão
hospedados num motel e não podem voltar para casa antes do fim do julgamento. Sei que
é extremamente incômodo, mas é o que exige a lei. Dentro de alguns momentos, vamos
entrar em descanso até amanhã de manhã, e terão oportunidade de telefonar para casa e
pedir as suas roupas, objetos de toalete e tudo o mais que for preciso. Passarão as noites
num motel, cujo nome não será revelado, fora de Clanton. Alguma pergunta?
Os doze pareciam atordoados com a idéia de passar vários dias fora de casa.
Pensavam nas famílias, nos empregos, na roupa para lavar. Porquê eles? De toda aquela
gente que estava no tribunal, porquê eles?
Como ninguém respondeu, Noose bateu com o martelo e a sala começou a
esvaziar-se. Jean Gillespie acompanhou o primeiro jurado até à sala do juiz, onde ela
telefonou e pediu roupas e a escova de dentes.
- Para onde vamos? - perguntou a Jean.
- É confidencial.
- É confidencial - repetiu pelo telefone ao marido.
Às sete horas, as famílias tinham respondido com uma quantidade enorme de
malas e caixas. Os escolhidos saíram pela porta dos fundos do tribunal e embarcaram
num ônibus Greyhound, alugado. Precedido por dois carros-patrulha e um jipe do
exército, e seguido por três soldados da força pública estadual, o ônibus deu a volta à
praça e saiu de Clanton.

Stump Sisson morreu na noite de terça-feira no hospital de queimaduras de
Memphis. O corpo pequeno e gordo, mal tratado ao longo de anos, não resistiu às
complicações provocadas pelas queimaduras graves. A sua morte elevou para quatro o
número de vítimas fatais ligadas ao estupro de Tonya Hailey. Cobb, Willard, Bud Witty e
agora Sisson.
A notícia da morte chegou imediatamente à cabana no meio do bosque, onde os
patriotas se reuniam, comiam e bebiam todas as noites depois do julgamento. Juraram
vingança, olho por olho e assim por diante. Havia novos recrutas de Ford County - cinco
ao todo - para fazer um total de onze rapazes locais. Estes estavam impacientes e
ansiosos, e queriam ação. O julgamento estava muito pacato. Era chegada a hora de
movimentar as coisas.

Andando de um lado para o outro diante do sofá, Jake ensaiou pela centésima vez
a sua declaração de abertura. Ellen ouvia atentamente. Durante duas horas ela ouviu,
interrompeu, fez objeções, criticou e argumentou. Agora estava cansada. Jake atingira a
perfeição. As margaritas tinham-no acalmado e dado um banho de prata à sua língua. As
palavras fluíam com desembaraço. Jake tinha o dom da palavra. Especialmente, depois
de um ou dois copos.
Quando ele terminou, sentaram-se ambos na varanda e contemplaram as velas
que se moviam lentamente, no escuro, em volta da praça. As gargalhadas dos soldados
que jogavam pôquer nas barracas ecoavam suavemente na noite. Não havia lua. Ellen
entrou para preparar a última rodada. Voltou com as canecas de cerveja cheias de gelo e
margaritas. Pôs as canecas na mesa e ficou de pé atrás do patrão. Colocou as mãos nos
ombros dele e começou a esfregar-lhe a nuca com os polegares. Jake descontraiu-se e
moveu a cabeça de um lado para o outro. Ela massageou-lhe os ombros e a parte
superior das costas e comprimiu o corpo contra o dele.
- Ellen, são dez e meia e estou com sono. Onde vai passar a noite?
- Onde acha que devo passá-la?
- Acho que no seu apartamento em Ole Miss.
- Estou cansada demais para guiar.
- Nesbit irá levá-la.
- Onde, se me permite perguntar, é que vai dormir?
- Na casa que eu e a minha mulher possuímos, na rua Adams.
Ela parou com a massagem e pegou a caneca. Jake levantou-se, debruçou-se
sobre a grade da varanda e gritou:
- Nesbit! Acorde! Você vai até Oxford!

Carla encontrou a reportagem na segunda página do primeiro caderno. "Júri de
brancos escolhido para Hailey". Jake não tinha telefonado na noite de terça-feira. Carla
leu e até se esqueceu do café. A casa dos pais era isolada, numa parte deserta da praia.
O vizinho mais próximo ficava a duzentos metros. Todo o terreno entre as duas casas
pertencia ao pai e ele não pretendia vendê-lo. Tinha construído a casa há dez anos,
quando vendera a empresa de Knoxville e se aposentara como um homem rico. Carla era
filha única e agora Hanna seria a única neta. A casa - com quatro quartos e quatro
banheiros, construída em três planos - tinha espaço para uma dúzia de netos.
Acabou de ler a reportagem e foi até às janelas da sala de jantar, que dava para a
praia e o mar. A massa brilhante, alaranjada do sol acabava de surgir no horizonte. Carla
preferia o calor da cama até bastante depois do nascer do sol, mas a vida com Jake
trouxera uma nova aventura para as primeiras sete horas do dia. O corpo dela estava
condicionado para acordar, pelo menos, às cinco e meia. Certa vez, Jake dissera que seu
objetivo era sair para o trabalho enquanto estava escuro e voltar do trabalho quando já
estava escuro. Geralmente conseguia... Jake orgulhava-se muito de trabalhar mais horas
por dia do que qualquer outro advogado de Ford County. Ele era diferente, mas Carla
amava-o.
Noventa e três quilômetros a nordeste de Clanton, Temple, a sede do condado de
Milburn, estendia-se tranqüilamente ao lado do rio Tippah. Tinha três mil habitantes e dois
motéis. O Temple Inn estava deserto não havendo nenhuma razão moral para ter algum
hóspede naquela época do ano. Na extremidade de uma das suas alas, oito quartos
estavam ocupados e guardados por soldados e dois homens da força pública estadual. As
dez mulheres estavam se dando muito bem, assim como Barry Acker e Clyde Sisco. O
suplente negro, Ben Lester Newton, ficou sozinho em um quarto, bem como o outro
suplente, Francie Pitts. A televisão fora desligada e nenhum jornal era permitido.
Na terça-feira, o jantar foi servido nos quartos e o café da manhã, na quarta-feira,
chegou pontualmente às sete e meia, enquanto era aquecido o motor do Greyhound,
enchendo de fumaça de óleo diesel todo o estacionamento. Trinta minutos depois, os
catorze embarcaram e seguiram para Clanton.
No ônibus, falaram sobre as suas famílias e os seus empregos. Dois ou três já se
conheciam, os outros eram estranhos. Um tanto embaraçados, evitavam falar no motivo
de estarem juntos e na tarefa que iam executar. O juiz Noose fora muito claro nesse
ponto. Nenhuma conversa sobre o caso. Eles queriam falar sobre muitas coisas, o
estupro, os violadores, Carl Lee, Jake, Buckley, Noose, o Klan, muitas e muitas coisas.
Todos sabiam das cruzes de fogo, mas ninguém falou nesse assunto, pelo menos não no
ônibus. Tinham conversado muito nos quartos do motel.
Os jurados chegaram ao tribunal quando faltavam cinco minutos para as nove e,
através dos vidros escuros, tentavam calcular o número de negros, homens do Klan e
curiosos, separados pelas filas de soldados. O ônibus passou pela barricada e parou na
parte de trás do edifício, onde os policiais estavam a postos para os escoltarem para
cima, o mais rapidamente possível. Subiram para a sala do júri, onde os esperavam café
e donuts. O meirinho informou-os de que eram nove horas e o meritíssimo estava pronto
para começar o julgamento. Conduziu-os para a sala cheia, até à bancada do júri.
- Todos de pé - gritou o Sr. Pate.
- Sentem-se, por favor - disse Noose, sentando-se pesadamente na cadeira de
couro. - Bom dia, senhoras e senhores - disse, com amabilidade, para os jurados. -
Espero que estejam todos bem esta manhã e prontos para recomeçar.
Todos inclinaram a cabeça afirmativamente.
- Muito bem. Vou fazer a pergunta que lhes farei todas as manhãs. Alguém tentou
se comunicar com os senhores, conversar ou influenciá-los de qualquer modo, na noite
passada?
Todos negaram com a cabeça.
- Muito bem. Os senhores discutiram o caso entre vocês? Todos mentiram,
movendo a cabeça de um lado para o outro. - Muito bem. Se alguém tentar entrar em
contato com os senhores e falar sobre o caso ou influenciá-los de qualquer modo, espero
que me informem o mais depressa possível. Compreenderam?
Todos fizeram que sim com a cabeça.
- Agora estamos prontos para dar início ao julgamento. A primeira ordem de
serviço é permitir que os advogados façam as suas declarações iniciais. Quero avisar que
nada do que os advogados disserem é considerado testemunho e não deve ser visto
como prova. Dr. Buckley, deseja fazer uma declaração inicial?
Buckley levantou-se e abotoou o casaco de poliéster brilhante.
- Sim, Meritíssimo.
- Foi o que pensei. Prossiga.
Buckley ergueu o pequeno pódio de madeira e levou-o para frente da bancada do
júri. De pé, atrás dele, respirou fundo e examinou lentamente as suas notas. Buckley
gostava daquele breve momento de silêncio, com todos os olhos pregados nele, todos os
ouvidos ansiosos pelas suas palavras. Começou por agradecer ao júri por estar ali, pelos
seus sacrifícios, pelo seu espírito cívico (como se eles tivessem escolha, pensou Jake).
Disse que se orgulhava deles e se sentia honrado por colaborar com eles naquele caso.
Voltou a dizer que era o advogado do povo. O seu cliente, o estado do Mississipi. Disse
que temia a responsabilidade que eles, o povo, lhe conferiam. Rufus Buckley, um simples
advogado de Smithfield. Falou de você mesmo e sobre o que pensava do julgamento, dos
seus votos e esperanças de poder fazer um bom trabalho ao povo desse estado.
Repetiu mais ou menos o que costumava dizer em todas as suas declarações
iniciais, mas com um desempenho muito melhor. Era refinado e polido, e bastante
questionável. Jake queria desfazer aquele efeito, mas sabia que Ichabod não ia permitir
nenhuma objeção durante a declaração inicial, a não ser que se tratasse de ofensa
evidente, e a retórica de Buckley não estava a esse nível, por enquanto. Toda aquela
sinceridade fingida e sentimentalóide irritava Jake, especialmente porque o júri ouvia e, na
maioria das vezes, se deixava levar por ela. O promotor era sempre o menino que
procurava corrigir uma injustiça e punir o criminoso por algum crime hediondo, encarcerá-
lo para sempre para não pecar nunca mais. Buckley era um mestre na arte de convencer
o júri, já na sua declaração inicial, de que dependia deles, de que Ele e os Doze
Escolhidos iriam procurar diligentemente a verdade, todos juntos, como uma equipe,
unidos contra as forças do mal. O que procuravam era a verdade, nada além da verdade.
Encontrem a verdade e a justiça será vitoriosa. Sigam o promotor, Rufus Buckley, o
advogado do povo, e encontrarão a verdade.
O estupro foi um ato hediondo. Ele também era pai. Na verdade, tinha uma filha da
idade de Tonya Hailey e quando soube do estupro ficou extremamente chocado. Sofreu
por Carl Lee e sua mulher. Sim, pensou nas próprias filhas pequenas e pensou em
vingança.
Jake sorriu para Ellen. Aquilo era interessante. Buckley preferia enfrentar o
assunto do estupro, em vez de ocultá-lo do júri. Jake tinha esperado um confronto difícil
sobre a menção do estupro por qualquer testemunha. A pesquisa feita por Ellen mostrava
claramente que não eram admissíveis os detalhes sensacionalistas, mas não era tão clara
a respeito de poder ou não ser mencionado durante o julgamento. Evidentemente,
Buckley achou que seria melhor reconhecer o estupro do que procurar escondê-lo. Boa
jogada, pensou Jake, uma vez que os doze jurados, tal como todas as pessoas,
conheciam todos os detalhes.
Ellen retribuiu o sorriso. O estupro de Tonya Hailey estava prestes a ser julgado
pela primeira vez. Buckley explicou que era natural a qualquer pai pensar em vingança.
Ele também pensaria, admitiu. Mas, continuou, com a voz mais pesada, existe uma
grande diferença entre desejar vingança e vingar-se.
Buckley começava a aquecer e andava agora de um lado para o outro, ignorando
o pódio, entrando no ritmo. Lançou-se num discurso de vinte minutos sobre o sistema
penal e de como ele era praticado no Mississipi, e sobre o número de violadores que ele,
Rufus Buckley, tinha mandado para a penitenciária Parchman, quase todos condenados a
prisão perpétua. O sistema funcionava porque a população do Mississipi era bastante
sensata para fazer com que funcionasse e entraria em colapso se permitissem que
pessoas como Carl Lee Hailey, ignorando o sistema, fizessem justiça pelas próprias
mãos. Imaginem! Uma sociedade sem lei, onde os justiceiros agiam à vontade. Sem
polícia, sem prisões, sem tribunais de justiça, sem julgamentos, sem júris. Cada um por si.
Não deixava de ser uma ironia, disse ele, aliviando, por um momento, o ardor oratório.
Carl Lee estava agora diante deles, pedindo um processo e um julgamento justo, mas não
acreditava em nada disso. Perguntem às mães de Billy Ray Cobb e Pete Willard.
Perguntem-lhes a elas que tipo de julgamento seus filhos tiveram.
Fez uma pausa para que o júri e todos os presentes pudessem absorver esse
último pensamento e meditar sobre ele. O silêncio caiu pesadamente e todo o júri olhou
para Carl Lee Hailey. Não eram olhares de compaixão. Jake limpou as unhas com um
pequeno canivete, com uma expressão de tédio. Buckley fingiu rever as suas anotações
no pódio, depois olhou para o relógio. Recomeçou a falar, desta vez com um tom de voz
mais confiante e menos declamatório.
O estado ia provar que Carl Lee Hailey planejara cuidadosamente os crimes.
Esperou, durante quase uma hora, no quarto perto da escada pela qual sabia que os
prisioneiros iriam passar a caminho da cadeia. Conseguiu levar, às escondidas, uma M-16
para dentro do edifício do tribunal.
Buckley foi até à mesinha perto da taquígrafa e ergueu a M16. "Esta é a M-16",
anunciou ao júri, sacudindo a arma no ar. Pôs a arma no pódio e explicou como fora
cuidadosamente escolhida por Carl Lee Hailey porque ele tinha usado uma igual em
combate e sabia matar com ela. Carl Lee Hailey fora treinado para usar uma M-16. Uma
arma ilegal. Que não se pode comprar no Western Auto. Ele teve que procurá-la em outro
lugar. Ele planejou tudo.
A prova seria clara: assassinato a sangue-frio, premeditado, cuidadosamente
planejado.
E havia também o sub delegado DeWayne Looney. Um veterano, há catorze anos
no departamento do xerife. Um homem de família, um dos melhores policiais que Buckley
conhecia. Ferido no cumprimento do dever por Carl Lee Hailey. A perna foi parcialmente
amputada. Qual o seu crime? Talvez a defesa diga que foi acidental, que não deve ser
levado em conta. Essa defesa não é válida no Mississipi.
- Senhoras e senhores, não há nenhuma desculpa para toda esta violência. O
veredicto deve ser culpado.
Cada advogado dispunha de uma hora para a sua declaração inicial, e a sedução
dessa abundância de tempo mostrou-se irresistível para o promotor, cujas observações
se tornaram repetitivas.
Perdeu-se duas vezes numa digressão, ao condenar o recurso da alegação de
insanidade mental. Os jurados agora pareciam cansados e procuravam outros pontos de
interesse na sala. Os artistas pararam de desenhar e Noose limpou os óculos sete ou oito
vezes. Todos sabiam que Noose limpava os óculos para se manter acordado e lutar
contra o aborrecimento e geralmente fazia isso durante todo o julgamento. Jake já o vira
limpar as lentes com um lenço, a ponta da gravata ou da camisa, enquanto as
testemunhas perdiam o controle e choravam e os advogados agitavam os braços um para
o outro em acalorada discussão. Noose não perdia uma palavra, uma objeção, um
artifício, apenas estava farto de tudo aquilo, mesmo em um caso dessa amplitude. Ele
não dormia nunca no tribunal, embora às vezes a tentação fosse grande. Em vez disso,
tirava os óculos, erguia-os contra a luz, bafejava as lentes e esfregava-as como se
estivessem cobertas de graxa seca, depois ajeitava os óculos no nariz, imediatamente
acima da verruga. Menos de cinco minutos depois, estavam sujos outra vez. Quanto mais
se estendia a ladainha de Buckley, mais as lentes precisavam ser limpas.
Finalmente, depois de uma longa hora, Buckley calou-se e todo o tribunal suspirou
aliviado.
- Intervalo de dez minutos - anunciou Noose e levantou-se da cadeira, passou pela
porta, pelo gabinete do juiz, e entrou no banheiro.
Jake tinha planejado uma breve exposição e depois da maratona de Buckley
resolveu que seria mais curta ainda. Para começar, a maioria das pessoas não gosta de
advogados, especialmente advogados enfadonhos, prolixos, que acham necessário
repetir duas ou três vezes cada ponto insignificante da sua peroração e que martelam e
explicam os mais importantes com uma repetição constante. Os jurados, em especial,
detestam advogados que desperdiçam tempo, por dois motivos. Primeiro, não podem
mandá-los se calar. São uma audiência cativa. Fora do recinto do tribunal, qualquer um
pode insultar um advogado e mandá-lo ficar quieto, mas na bancada do júri, todos são
obrigados a ouvir e proibidos de falar. Por isso, dormem, ressonam, ficam com os olhos
parados, remexem-se na cadeira, consultam o relógio, qualquer um desses sinais que os
advogados enfadonhos nunca reconhecem. Segundo, os jurados não gostam de
julgamentos longos. Ponha de lado as baboseiras e vamos ao assunto. Dê-nos os fatos
que nós daremos o veredicto. Explicou isso ao seu cliente durante o intervalo.
- Concordo. Seja breve - disse Carl Lee.
Jake obedeceu. Uma exposição de catorze minutos e o júri ouviu cada uma das
palavras. Jake começou por falar de filhas e de como elas são especiais. De como são
diferentes dos meninos e precisam de proteção especial. Falou da sua filha e do
sentimento que existia entre pai e filha, um elo que não pode ser explicado e que não
deve ser violado. Admitiu que admirava o Dr. Buckley e a sua suposta capacidade de
perdoar e sentir compaixão por qualquer pervertido bêbado que violentasse a sua filha.
Sem dúvida, ele era um grande coração. Mas, na verdade, podiam eles, como jurados e
como pais, reagir com tanta indulgência e mansidão se a sua filha fosse violentada, por
dois animais brutais, bêbados e drogados que a amarraram numa árvore e...
- Protesto! - gritou Buckley.
- Deferido! - gritou Noose.
Jake ignorou os gritos e continuou suavemente. Pediu aos jurados para
imaginarem, durante o julgamento, o que sentiriam se fosse a sua filha. Pediu que não
condenassem Carl Lee, mas que o mandassem de volta à sua família. Não mencionou
insanidade. Todos sabiam que ia ser mencionada. Jake terminou em pouco tempo,
apresentando ao júri um contraste marcante entre os dois estilos.
- É tudo? - perguntou Noose, perplexo.
Jake fez um gesto afirmativo e sentou-se ao lado do seu cliente.
- Muito bem, Dr. Buckley, pode chamar a sua primeira testemunha.
- O estado chama Cora Cobb.
O meirinho foi até a sala das testemunhas e voltou com a Sra. Cobb, que depois
de prestar juramento diante de Jean Gillespie, se sentou no banco das testemunhas.
- Fale pelo microfone - disse o meirinho.
- A senhora é Cora Cobb? - perguntou Buckley em voz alta, atrás do pódio que
estava agora ao lado da grade divisória.
- Sim, senhor.
- Onde mora?
- Na Lake Village, Ford County.
- É a mãe do falecido Billy Ray Cobb?
- Sim, senhor - disse ela com lágrimas nos olhos.
Cora era uma mulher do campo, abandonada pelo marido quando os filhos eram
pequenos. Estes tinham se criado sozinhos, enquanto ela trabalhava dois períodos numa
fábrica de móveis, entre Karaway e Lake Village. Muito cedo, perdera o controle sobre os
filhos. Tinha uns cinqüenta anos, procurava aparentar quarenta com o cabelo pintado e a
maquiagem, mas podia facilmente passar por sessenta e poucos.
- Que idade tinha o seu filho quando foi morto?
- Vinte e três.
- Quando o viu com vida pela última vez?
- Alguns segundos antes de ser morto.
- Onde o viu?
- Aqui, neste tribunal.
- Onde foi ele morto?
- No primeiro andar.
- A senhora ouviu os tiros que mataram o seu filho? Ela começou a chorar.
- Sim, senhor.
- Onde o viu pela última vez?
- Na casa funerária.
- Como estava ele?
- Morto.
- Não tenho mais perguntas - disse Buckley. - Deseja interrogar a testemunha, Dr.
Brigance?
Cora era uma testemunha inofensiva, chamada apenas para estabelecer o fato de
que a vítima estava realmente morta e para provocar alguma empatia no júri. Jake não
tinha nada a ganhar com uma reinquirição e normalmente a defesa não fazia perguntas.
Mas Jake viu uma oportunidade que não podia perder. Viu a oportunidade de mudar o
tom do julgamento, de acordar Noose, Buckley e o júri. De despertar a atenção de todos.
O sofrimento de Cora não era real. Grande parte era fingimento. Provavelmente Buckley a
tinha instruído para chorar bastante.
- Apenas umas perguntas - disse Jake passando por trás de Buckley e Musgrove e
chegando ao pódio.
O promotor suspeitou imediatamente de alguma artimanha.
- Sra. Cobb, é verdade que o seu filho foi condenado por vender droga?
- Protesto! - rugiu Buckley, levantando-se de um salto. - O passado criminal da
vítima é inadmissível!
- Deferido!
- Obrigado, Meritíssimo - disse Jake formalmente, como se Noose lhe estivesse
fazendo um favor.
Ela enxugou os olhos e chorou com mais força.
- A senhora disse que o seu filho tinha vinte e três anos quando morreu?
- Sim.
- Nos seus vinte e três anos de vida, quantas outras crianças ele violentou?
- Protesto! Protesto! - berrou Buckley, sacudindo os braços no ar e olhando
desesperado para Noose, que bocejava.
- Deferido! O senhor extrapolou, Dr. Brigance! Extrapolou!
A Sra. Cobb caiu no choro e soluçou incontrolavelmente no meio da gritaria. Teve
o cuidado de manter o microfone junto ao rosto, e os seus lamentos ecoavam pela sala.
- Ele deve ser admoestado, Meritíssimo! - exigiu Buckley, os olhos e o rosto
brilhando de fúria e o pescoço muito vermelho.
- Retiro a pergunta - disse Jake em voz alta, voltando ao seu lugar.
- Golpe baixo, Brigance - resmungou Musgrove.
- Por favor, advirta-o - pediu Buckley - e dê instruções ao júri para não considerar a
pergunta.
- Mais alguma pergunta? ,- indagou Noose.
- Não - respondeu Buckley, correndo para o banco das testemunhas com um lenço
na mão para socorrer a Sra. Cobb, que soluçava e se sacudia violentamente, o rosto
enterrado nas mãos.
- Está dispensada, Sra. Cobb - disse Noose.-- Meirinho, por favor, ajude a
testemunha.
O meirinho segurou-lhe no braço e, ajudado pelo Dr. Buckley, a fez descer do
banco das testemunhas, passar pela frente dos jurados, pela barra do tribunal e caminhar
pela passagem central.
Durante todo o trajeto ela soluçava alto e gemia e o volume foi aumentando, de
modo que quando chegou à porta do tribunal gritava a plenos pulmões. Noose olhou
furioso para Jake até ela sair e a sala ficar silenciosa. Voltou-se então para o júri e disse:
- Por favor, não considerem a última pergunta do Dr. Brigance.
- Para que fez isto? - perguntou Carl Lee.
- Explico depois.
- O estado chama Eamestine Willard - anunciou Buckley, em voz mais baixa e
hesitante.
A Sra. Willard foi conduzida da sala das testemunhas para o recinto do tribunal.
Prestou juramento e sentou-se.
- A senhora é Eamestine Willard? - perguntou Buckley.
- Sim, senhor - respondeu ela, com voz baixa.
A Sra. Willard também fora maltratada pela vida, mas tinha uma certa dignidade
que a tornava mais patética e mais fiável do que a Sra. Cobb. Estava vestida com roupas
baratas, mas limpas e bem passadas. O cabelo tinha a cor natural, sem a tinta preta e
vulgar do cabelo da Sra. Cobb. Não usava maquiagem. Quando começou a chorar,
chorou discretamente.
- E onde mora?
- Perto de Lake Village.
- Pete Willard era seu filho?
- Sim, senhor.
- Quando o viu com vida pela última vez?
- Bem aqui nesta sala, um pouco antes dele ser morto.
- Ouviu os tiros que o mataram?
- Sim, senhor.
- Onde o viu pela última vez?
- Na casa funerária.
- Como estava ele?
- Estava morto - disse ela, enxugando as lágrimas com um lenço de papel.
- Lamento - disse Buckley. - Não tenho mais perguntas - acrescentou, olhando
atentamente para Jake.
- Deseja interrogar a testemunha, Dr. Brigance?
- Apenas duas perguntas - disse Jake.
- Sra. Willard, eu sou Jake Brigance. - De pé, atrás do pódio, olhou para ela sem
compaixão. Ela fez um gesto afirmativo. - Que idade tinha o seu filho quando morreu?
- Vinte e sete.
Buckley empurrou a cadeira e sentou-se na ponta, pronto para o salto. Noose tirou
os óculos e inclinou-se para frente. Carl Lee baixou a cabeça.
- Nos seus vinte e sete anos de vida, quantas outras crianças ele violentou?
Buckley levantou-se de um salto.
- Protesto! Protesto! Protesto!
- Deferido! Deferido! Deferido! A gritaria assustou a Sra. Willard e ela chorou mais
alto.
- Advirta-o, Sr. Dr. Juiz! Ele deve ser admoestado!
- Retiro a pergunta - disse Jake, voltando para seu lugar.
Buckley agitou as mãos no ar.
- Mas isso não basta, Sr. Juiz! Ele deve ser advertido!
- Todos no meu gabinete - ordenou Noose. Dispensou a testemunha e determinou
que a sessão estava suspensa até à uma da tarde. Harry Rex esperava na varanda do
segundo andar no escritório de Jake com sanduíches e uma garrafa de margaritas. Jake
preferiu suco de laranja. Ellen bebeu só uma, pequenina, para acalmar os nervos, disse
ela. Pela terceira vez o almoço fora preparado por Dell, que o entregou pessoalmente no
escritório de Jake. Cortesia do Coffee Shop.
Comeram e descansaram na varanda, observando o carnaval em volta do tribunal.
- Que aconteceu no gabinete do juiz? - quis saber Harry Rex. Jake deu uma
dentada na sanduíche e disse que não queria falar sobre o julgamento.
- Que diabo, que aconteceu no gabinete do juiz?
- Os Cardinais estão à frente com três pontos, sabia, Row Ark?
- Pensei que fossem quatro.
- Que aconteceu no gabinete do juiz?
- Quer mesmo saber?
- Sim, quero!
- Muito bem! Tenho de ir ao banheiro. Eu digo quando voltar.
Jake saiu.
- Row Ark, o que foi que aconteceu no gabinete do juiz?
- Nada de especial. o juiz Noose deu uma bronca no Jake, sem nenhum dano
permanente. Buckley queria sangue, e Jake disse que tinha certeza de que todos iam ver
sangue se o rosto do Buckley ficasse mais vermelho. Buckley gritou e esbravejou,
acusando Jake de inflamar deliberadamente o júri, foram estas as palavras dele. Jake
limitou-se a sorrir e disse que tinha muita pena, governador... Cada vez que ele dizia
governador, o Buckley desatava a gritar para o juiz Noose, "ele está me chamando de
governador, Sr. Dr. juiz, faça alguma coisa", e o juiz Noose dizia, "por favor, meus
senhores, espero que ajam como profissionais", e Jake dizia, "muito obrigado,
Meritíssimo, obrigado, Meritíssimo". Depois, esperava alguns minutos e tratava o Buckley
outra vez por governador.
- Porque fez ele chorar aquelas duas mulheres?
- Foi uma jogada brilhante, Harry Rex. Ele mostrou ao júri, à Noose, ao Buckley, e
a todos, que aquela sala de tribunal é dele e que não tem medo de ninguém ali dentro.
Fez o primeiro ataque dele. Deixou o Buckley tão nervoso que nunca mais ele vai
conseguir se acalmar. O juiz Noose o respeita por ele não se deixar intimidar. O júri ficou
chocado, mas isso os acordou, alertando-os para o fato de que estão numa guerra. Uma
jogada brilhante.
- Sim, também achei.
- Não nos prejudicou. Aquelas mulheres queriam simpatia, mas Jake lembrou ao
júri o que doces filhinhos delas tinham feito antes de morrerem.
- Aqueles estupores!
- Se o júri tiver algum ressentimento, estará esquecido quando a última
testemunha for interrogada.
- Jake é bastante hábil, não é?
- Ele é bom. Muito bom. O melhor que já vi com a idade dele.
- Espere até ouvir a argumentação final. Já ouvi umas duas vezes. Ele é capaz de
fazer chorar um sargento instrutor.
Jake voltou e bebeu uma pequena dose de margarita. Apenas para acalmar os
nervos. Harry Rex bebeu como uma esponja.

Depois do almoço, Ozzie foi a primeira testemunha do estado. Buckley mostrou
plantas grandes e coloridas do primeiro e do segundo andar do prédio do tribunal e os
dois juntos reconstituíram com precisão os últimos movimentos de Cobb e Willard.
Depois, Buckley mostrou uma coleção de fotografias 40 x 60 dos corpos de Cobb
e Willard na escada. Eram horripilantes. Jake já vira muitas fotos de pessoas mortas, e
embora nenhuma fosse especialmente agradável, dada a sua natureza, umas eram piores
do que outras. Num dos seus casos a vítima recebera um tiro de uma 357 no coração e
caíra simplesmente na varanda. Era um homem grande e musculoso e a bala não
atravessou o corpo. Assim, não havia sangue, apenas um pequeno orifício no macacão e
outro, fechado, no peito. Era como se, ao curtir a bebedeira, tivesse escorregado da
cadeira e caído no chão, como acontecia com Lucien. Não era nada espetacular e
Buckley não as mostrara com orgulho. Nem estavam ampliadas. Ele apenas as entregou
ao júri, visivelmente aborrecido com o fato de serem tão limpas.
Mas a maioria das fotos de assassinatos eram feias e impressionantes, com
sangue nas paredes e no teto, e pedaços dos corpos espalhados por toda a parte. Essas,
o promotor mandava sempre ampliar e as apresentava como prova com muita
encenação, depois acenava com elas para os espectadores, enquanto ele e a testemunha
descreviam a cena. Finalmente, com o júri vibrando de curiosidade, Buckley
delicadamente pedia ao juiz autorização para mostrar as fotografias ao júri e o juiz
consentia sempre. Buckley e todas as pessoas na sala observavam, então, a reação do
júri, de choque, horror e até mesmo de náusea. Jake tinha visto dois jurados vomitarem
quando viram a fotografia de um corpo esfaqueado.
Essas fotografias eram extremamente prejudiciais e provocatórias, e também
extremamente admissíveis. "Probatórias", era a palavra usada pelo Supremo Tribunal. De
acordo com noventa anos de decisões do tribunal, podiam ajudar o júri. Era ponto pacífico
no Mississipi que, independentemente do seu impacto, essas fotografias eram sempre
admissíveis no julgamento.
Jake vira as fotografias de Cobb e Willard algumas semanas antes, apresentara a
objeção de praxe e recebera o indeferimento da praxe.
As fotografias apresentadas agora por Buckley foram profissionalmente montadas
como pôsteres, coisa que o promotor nunca tinha feito antes. Passou a primeira à jurada
Reba Betts. Era a fotografia da cabeça e do cérebro de Willard tirada de muito perto.
- Meu Deus! - arquejou ela, mostrando-a a outro jurado, que olhou horrorizado e a
passou adiante. Foram passando de mão em mão e depois aos suplentes. Buckley
recolheu-a e deu outra a Reba. O ritual continuou, durante trinta minutos, até que todas as
fotografias foram devolvidas ao promotor. Em seguida, ele pegou a M-16 e a empurrou na
direção de Ozzie.
- Pode identificar isto?
- Sim, é a arma encontrada na cena do crime.
- Quem a encontrou na cena do crime?
- Fui eu.
- E que fez com ela?
- Embrulhei-a em um saco plástico e guardei-a no cofre da cadeia. Eu a mantive
fechada até a entregar ao Sr. Laird, do laboratório criminal de Jackson.
- Meritíssimo, o estado gostaria de apresentar esta arma como o elemento material
de prova S-13 - disse Buckley, brandindo-a freneticamente.
- Nenhuma objeção - disse Jake.
- Não temos nada mais a perguntar a esta testemunha - disse Buckley.
- Deseja interrogar a testemunha, Dr. Brigance?
Jake consultou as suas anotações, enquanto se aproximava com passos lentos do
pódio. Tinha algumas perguntas para o seu amigo.
- Xerife, o senhor efetuou a prisão de Billy Ray Cobb e Pete Willard?
Buckley empurrou a cadeira para trás e sentou-se na ponta, pronto para saltar e
gritar, se fosse necessário.
- Sim - disse o xerife. - Porquê?
- Pelo estupro de Tonya Hailey - respondeu Ozzie claramente.
- E que idade tinha ela quando foi violada por Cobb e Willard?
- Dez anos.
- É verdade que Pete Willard assinou uma confissão escrita em...
- Protesto! Protesto! Meritíssimo! Isto é inadmissível e o Dr. Brigance o sabe muito
bem.
Ozzie meneou afirmativamente a cabeça durante a objeção.
- Deferido.
Buckley tremia.
- Peço que a pergunta seja riscada do registro e que o júri seja instruído para a
não levá-la em conta.
- Retiro a pergunta - disse Jake a Buckley com um sorriso.
- Por favor, ignorem a última pergunta do Dr. Brigance - ordenou Noose ao júri.
- Não tenho mais perguntas - disse Jake.
- Vai contra-interrogar a testemunha, Dr. Buckley?
- Não, senhor.
- Muito bem, Xerife, pode descer.
A testemunha seguinte de Buckley foi um técnico em impressões digitais, de
Washington, que passou uma hora dizendo aos jurados o que eles sabiam há semanas. A
dramática conclusão final dele ligava de maneira inequívoca as impressões encontradas
na M-16 com as de Carl Lee Hailey. Depois, foi a vez do especialista em balística, do
laboratório criminal do estado, cujo depoimento foi tão cansativo e tão pouco informativo
como o de seu predecessor. Sim, sem dúvida, os fragmentos recolhidos na cena do crime
foram disparados pela M-16 que estava ali em cima da mesa. Essa era a sua opinião
definitiva, e com os gráficos e diagramas, exigiu de Buckley uma hora para transmiti-la ao
júri. Excessos promotoriais, como Jake dizia, uma debilidade de que padeciam todos os
promotores.
A defesa não tinha perguntas a fazer a nenhum dos especialistas e, às cinco e
quinze, Noose despediu-se dos jurados com instruções rigorosas para não discutirem o
caso. Todos inclinaram a cabeça delicadamente enquanto saíam da sala. Depois, Noose
bateu com o martelo e anunciou a interrupção até às nove da manhã.


TRINTA E SEIS

O importante dever cívico de servir no júri deixou rapidamente de ser uma
novidade. Na segunda noite, os telefones foram retirados do Temple Inn - ordens do juiz.
Algumas revistas velhas doadas pela biblioteca de Clanton circularam entre os jurados e
foram postas de lado. Ninguém estava muito interessado nos artigos de The New Yorker,
The Smithsonian e Architectural Digest.
- Não tem nenhuma Penthouse? - perguntou baixinho Clyde Sisco ao meirinho,
quando ele distribuiu as revistas.
O meirinho disse que não, mas ia ver se podia arranjar. Confinados nos quartos,
sem televisão, jornais ou telefones, pouco faziam além de jogar cartas e conversar sobre
o julgamento. Uma ida ao final do corredor para buscar gelo e um refrigerante tornou-se
uma ocasião especial, coisa que os companheiros de quarto planejavam e faziam
rotativamente. O tédio envolvia-os pesadamente.
Em cada extremidade do corredor, dois soldados guardavam o escuro e a solidão,
o silêncio interrompido apenas pelo aparecimento sistemático dos jurados com moedas
para a máquina de refrigerantes. O sono chegava cedo e quando as sentinelas batiam à
porta, às 6 da manhã, todos os jurados estavam acordados, alguns até já vestidos.
Devoraram o café da manhã de quinta-feira, panquecas e salsichas, e
embarcaram rapidamente no ônibus às oito horas, para a viagem de volta a Clanton.
Pelo quarto dia consecutivo, a antecâmara do tribunal estava cheia de gente, às
oito horas. Os espectadores tinham aprendido que às oito e meia todos os lugares
estavam ocupados. Prather abriu a porta e as pessoas entraram em fila, passando pelo
detector de metais e pelos olhares atentos dos policiais, antes de entrar na sala do
tribunal, onde os negros ocupavam o lado esquerdo e os brancos o lado direito. Hastings
tinha reservado, novamente, a primeira fila para Gwen, Lester, as crianças e outros
parentes. Agee e outros membros do conselho estavam na segunda fila com os parentes
que não encontraram lugar na primeira. Agee alternava sua presença na sala do
julgamento com suas atividades fora do edifício, ao lado dos outros pastores.
Pessoalmente, preferia a sala do tribunal, onde estava mais seguro, mas sentia falta das
câmeras e dos repórteres, tão numerosos no gramado lá de fora. À sua direita, no outro
lado da passagem, estavam as famílias e amigos das vítimas. Até então, todos estavam
se portando muito bem.
Alguns minutos antes das nove, Carl Lee foi escoltado para fora da pequena sala
de espera. As algemas foram retiradas. Com um largo sorriso para a família, sentou-se na
sua cadeira. Os advogados tomaram os seus lugares e a sala ficou silenciosa. O meirinho
enfiou a cabeça na porta ao lado da bancada do júri e, satisfeito com o que viu, abriu a
porta e deixou passar os jurados. O Sr. Pate observava todo o movimento da porta que
dava para o gabinete do juiz e, quando tudo estava em ordem, deu um passo em frente e
gritou:
- Todos de pé!
Ichabod, com sua toga favorita, amarrotada e desbotada, subiu ao estrado,
sentou-se na cadeira e mandou que todas as pessoas se sentassem. Cumprimentou o júri
e quis saber o que tinha acontecido ou não tinha acontecido desde a véspera. Olhou para
os advogados.
- Onde está o Dr. Musgrove?
- Vai chegar um pouco atrasado, Meritíssimo. Estamos prontos para prosseguir -
disse Buckley.
- Chame a sua próxima testemunha - ordenou Noose a Buckley.
O patologista do laboratório criminal do estado foi chamado na antecâmara e
entrou na sala. Normalmente, estaria muito ocupado para um simples julgamento e teria
mandado um dos seus assistentes para explicar ao júri exatamente o que tinha provocado
a morte de Cobb e de Willard. Mas este era o caso Hailey e ele achou que devia
comparecer pessoalmente. Na verdade, era o caso mais simples que tinha visto nos
últimos tempos. Os corpos tinham sido encontrados ainda com vida, a arma estava ao
lado dos corpos, e havia perfurações em número suficiente nos dois homens para matá-
los uma dezena de vezes. Todos sabiam como aqueles homens tinham morrido. Mas o
promotor insistiu numa descrição patológica minuciosa, assim, o médico sentou-se no
banco das testemunhas, na quinta-feira de manhã, munido de uma infinidade de
fotografias das autópsias e de gráficos anatômicos coloridos.
Um pouco antes, no gabinete do juiz, Jake propusera que fossem eliminados os
testemunhos sobre as causas das mortes, mas Buckley não concordara. Não, senhor, ele
queria que o júri ouvisse e soubesse como os homens tinham morrido.
- Admitiremos que morreram devido aos ferimentos múltiplos provocados pelas
balas de M-16 - disse Jake.
- Não, senhor. Tenho o direito de provar isso - disse Buckley, teimoso.
- Mas ele está se oferecendo para concordar quanto às causas da morte - disse
Noose, incrédulo.
- Eu tenho o direito de provar - insistiu Buckley.
E assim fez. Num caso clássico de excessos promotoriais, Buckley provou tudo.
Ao longo de três horas, o patologista disse quantas balas tinham atingido Cobb e quantas
tinham atingido Willard e o que cada bala provocara ao penetrar e o terrível dano daí
resultante. Os gráficos anatômicos foram expostos em cavaletes diante do júri, e o perito
pegou numa bolinha de plástico numerada que representava uma bala e movimentou-a,
devagarinho, através do corpo. Catorze bolinhas para Cobb e onze para Willard. Buckley
fazia uma pergunta, obtinha uma resposta e interrompia para se alongar sobre um ponto.
- Meritíssimo, estamos dispostos a concordar quanto às causas da morte -
anunciava Jake, inteiramente frustrado, a cada meia hora que passava.
- Não senhor - respondia Buckley muito sério, e passava para outra bolinha. Jake
afundava-se na cadeira, meneava a cabeça e olhava para os jurados, para aqueles que
estavam acordados.
O médico terminou ao meio-dia e Noose, cansado e morto de tédio, concedeu
duas horas de intervalo para o almoço. Os jurados foram despertados pelo meirinho e
conduzidos à sala do júri onde comeram churrasco especial em pratos de plástico,
jogando cartas depois. Estavam proibidos de sair do edifício do tribunal.
Em qualquer cidadezinha do sul há sempre um garoto que nasceu com vontade de
ganhar dinheiro rapidamente. Era o garoto que, aos cinco anos, montava a primeira
barraca de limonada na sua rua e cobrava vinte e cinco centavos por um copo de água
com sabor artificial de limão. Sabia que o gosto era horrível, mas sabia que os adultos
achavam que o pequeno comerciante era adorável. Ele era o primeiro garoto da rua a
comprar um cortador de grama a prestações, na Western Auto, e a bater às portas em
Fevereiro, a fim de arranjar trabalho de jardinagem para o Verão. Era o primeiro garoto a
pagar a própria bicicleta, que usava de manhã e de tarde para entregar jornais. Vendia
cartões de Natal às velhinhas em Agosto. Vendia bolos de frutas, de porta em porta, em
Novembro. Nas manhãs de sábado, quando os amigos viam desenhos animados na
televisão, ele estava nas feiras vendendo amendoins torrados e cachorros-quentes. Aos
doze anos recebia a sua primeira caderneta bancária. Tinha o seu próprio banqueiro. Aos
quinze, pagava à vista a pick-up, no mesmo dia em que passava no exame de direção.
Comprava um trailer para acoplar na caminhonete e enchia-a de equipamento de
jardinagem. Vendia camisetas nos jogos de futebol do liceu. Era um furão; um futuro
milionário.
Em Clanton, chamava-se Hinky Myrick. Dezesseis anos. Ele aguardou
nervosamente, na antecâmara, até ao intervalo para o almoço. Depois passou pelos
policiais e entrou na sala do tribunal. Os lugares eram tão preciosos que poucos
espectadores saíam para almoçar. Alguns ficavam de pé, olhavam sisudos para os
vizinhos, apontavam para a própria cadeira, informando todos que o lugar era seu e que
só saíam para irem ao banheiro. Mas a maior parte ficava sentada, guardando o seu
espaço precioso durante todo o tempo do intervalo.
Hinky pressentiu uma oportunidade. Ele sabia reconhecer as necessidades das
pessoas. Na quinta-feira, tal como fizera na quarta, entrou na sala do tribunal empurrando
um carrinho com sanduíches variados e refeições em recipientes de plástico. Começou a
gritar anunciando os seus produtos para os que estavam na outra extremidade dos
bancos e o pedido passava de mão em mão. Foi empurrando o carrinho até a parte de
trás da sala. Hinky era um tubarão. Uma sanduíche de atum em pão de forma custava
dois dólares. Para ele saía por um dólar e vinte e cinco. Um refrigerante em lata custava
um dólar e meio. Mas todos estavam dispostos a pagar os preços dele para garantir os
lugares. O carrinho esvaziava-se antes de chegar à quarta fila, a partir da frente, e Hinky
começou a anotar os pedidos. Hinky era o homem providencial.
Com uma mão-cheia de pedidos, saiu correndo do edifício, atravessou o gramado,
abriu caminho por entre o grupo de negros, atravessou a rua Caffey e entrou no Claude's.
Correu para a cozinha, deu vinte dólares ao cozinheiro e os pedidos. Esperou, olhando
para o relógio. O cozinheiro trabalhava muito devagar. Hinky deu-lhe mais vinte dólares.
Claude nunca seria capaz de imaginar a onda de prosperidade provocada pelo
julgamento. O café da manhã e o almoço no seu pequeno restaurante eram agora
verdadeiros happenings, com o número de fregueses sempre maior do que o número de
cadeiras e a fila no passeio à espera de uma mesa sob o sol escaldante. A seguir à
interrupção para almoço, na segunda-feira, Claude percorreu o centro de Clanton e
comprou todas as mesas de jogo e cadeiras que encontrou. À hora do almoço, as
passagens entre as mesas desapareciam e as empregadas eram obrigadas a difíceis
manobras no meio das pessoas, negros na sua grande maioria.
O julgamento era o único tema das conversas. Na quarta-feira, a composição do
júri foi criticada acerbamente. Na quinta-feira, todos falavam da crescente antipatia que
sentiam pelo promotor.
- Ouvi dizer que ele quer ser candidato a governador.
- Ele é democrata ou republicano?
- Democrata.
- Não pode vencer sem o voto dos negros, não neste estado.
- É verdade, e não vai ter muitos depois deste julgamento.
- Espero que seja candidato.
- Ele parece um republicano.
Antes do julgamento, na hora do almoço, em Clanton, começava ao meio-dia
menos dez, quando as secretárias jovens, bronzeadas, bonitinhas e bem vestidas dos
bancos, firmas de advocacia, companhias de seguros e do tribunal deixavam as suas
mesas de trabalho e saíam para a rua. À hora do almoço, elas tratavam de várias coisas
na praça. Iam ao correio. Aos bancos. Faziam compras. A maioria comprava o almoço na
Casa Chinesa e comia nos bancos do parque à sombra das árvores, em volta do edifício
do tribunal. Encontravam amigos e conversavam. Ao meio-dia, o coreto, em frente do
tribunal, atraía mais mulheres bonitas do que um concurso de Miss Mississipi. Era uma
tradição, em Clanton, as garotas chegarem primeiro à praça e só voltarem para o trabalho
à uma hora. Os homens chegavam ao meio-dia e ficavam a contemplá-las.
Mas o julgamento mudou tudo. As sombras das árvores, em volta do tribunal, eram
agora zona de combate. Os cafés, das onze da manhã à uma da tarde, abarrotavam de
soldados e de estranhos, que não encontravam lugar na sala do tribunal. A Casa Chinesa
enchia-se de estranhos. As garotas dos escritórios faziam o que tinham de fazer e
comiam nas suas mesas.
No Tea Shop, os banqueiros e outros profissionais liberais falavam sobre o
julgamento, mais em termos de publicidade e do modo como a cidade estava sendo vista.
Nenhum deles conhecia alguém ligado ao Klan, há muito tempo esquecido no norte do
Mississipi. Mas os abutres adoravam os mantos brancos, e para o mundo lá fora, Clanton,
Mississipi, era o centro do Ku Klux Klan. Detestavam o Klan por este ali estar. Criticavam
a imprensa por mantê-los na cidade.
No almoço das quintas-feiras, o prato especial do dia, na Coffee Shop, era
costeletas de porco fritas, nabiças e batata-doce caramelizada, creme de milho ou quiabo
frito. Dell serviu o prato especial do restaurante à cunha e perfeitamente dividido entre
locais, estranhos e soldados. A lei, não escrita mas estabelecida, de não falar com
ninguém que usasse barba ou que tivesse um sotaque diferente, era observada à risca e,
para aquela gente amigável, era difícil não sorrir e conversar com as pessoas de fora.
Uma arrogância silenciosa substituía agora o acolhimento caloroso dos primeiros dias
depois dos crimes. Vários profissionais da imprensa tinham traído os seus anfitriões, com
palavras ofensivas e injustas, nos artigos sobre a cidade e os seus habitantes. Era
espantoso como eles podiam chegar de todos os cantos do país e, em menos de vinte e
quatro horas, se tornarem especialistas em tudo o que dizia respeito a um lugar do qual
nunca tinham ouvido falar e de uma gente que não conheciam.
As pessoas de Ford County viam-nos correr como idiotas atrás do xerife, do
promotor, do advogado de defesa, ou de qualquer pessoa que pudesse saber qualquer
coisa. Viam-nos nos fundos do edifício do tribunal como lobos famintos, prontos a
lançarem-se sobre o acusado, invariavelmente cercado por policiais e que
invariavelmente ignorava as perguntas ridículas gritadas à sua volta. A população olhava
com desagrado para as câmeras assestadas sobre os homens do Klan e do grupo de
negros, sempre à procura dos elementos mais radicais e depois mostrando-os como
padrões. Observavam-nos e odiavam-nos.
- O que é aquela porcaria cor de laranja na cara dela? - perguntou Tim Nunley,
olhando para a repórter sentada em uma mesa perto da janela.
Jack Jones mastigou o quiabo e estudou a cara cor de laranja.
- Acho que é qualquer coisa que usam para as câmeras. Faz a cara dela parecer
branca na televisão.
- Mas já é branca.
- Eu sei, mas não aparece branco na televisão se não estiver pintado de laranja.
Nunley não ficou convencido.
- Então, o que usam os negros na TV? - perguntou.
Ninguém soube responder.
- Você a viu na TV, a noite passada? - perguntou Jack
- Não. De onde é ela?
- De Memphis. Ontem à noite, entrevistou a mãe de Cobb, e é claro que tanto fez
que a mulher acabou em lágrimas. Tudo quanto mostraram foi o choro dela. Uma chatice!
Na noite anterior, entrevistou um homem do Klan, de Ohio, falando do que nós
precisamos aqui, no Mississipi. Ela é a pior de todas.

A promotoria encerrou o seu caso contra Carl Lee Hailey, na tarde da quinta-feira.
Depois do almoço, Buckley pôs Murphy no banco das testemunhas. Foi um testemunho
irritante e cansativo. O pobre homem gaguejou incontrolavelmente durante uma hora.
- Acalme-se, Sr. Murphy - disse Buckley umas cem vezes. Murphy fazia um gesto
afirmativo e bebia um gole de água. Abanava a cabeça afirmativa ou negativamente,
sempre que era possível, mas a taquígrafa tinha dificuldade em ver os seus movimentos
de cabeça.
- Não entendi - dizia ela, de costas para a testemunha. Murphy tentava responder
e ficava engasgado, geralmente num "p" ou num "t". De repente dizia algumas palavras,
depois gaguejava incoerentemente.
- Não entendi - dizia ela, desanimada, quando ele parava de falar.
Buckley suspirava. Os jurados remexiam-se furiosamente nas cadeiras. Metade
dos espectadores roia as unhas.
- Quer repetir? - dizia Buckley, com toda a paciência de que era capaz.
- Desh-sh-sh-sh-culpe - dizia Murphy constantemente. Era patético. Por fim, ficou
estabelecido que ele estava bebendo uma Coca-Cola na escada dos fundos, de frente
para a escada onde os homens tinham sido mortos. Ele viu um homem negro espreitando
pela porta de um pequeno armário a uns doze metros de onde ele estava. Mas não deu
importância. Então, quando os homens desceram a escada, o homem negro saiu do
armário e abriu fogo, aos berros e a rir. Quando acabou de disparar, atirou a arma para
longe e desapareceu. Sim, era ele, sentado ali. O negro.
Noose fez buracos nas lentes dos óculos de tanto esfregá-los, durante o
depoimento de Murphy. Quando Buckley se sentou, o juiz olhou desesperado para Jake.
- Vai interrogar a testemunha? - perguntou desanimadamente.
Jake ficou de pé com um bloco de notas na mão. A taquígrafa olhou furiosa para
ele. Harry Rex cochichou qualquer coisa. Ellen fechou os olhos. Os jurados torceram as
mãos, olhando atentamente para ele.
- Não faça isso - murmurou Carl Lee, com voz firme.
- Não, Meritíssimo, não temos nenhuma pergunta.
- Muito obrigado, Dr. Brigance - disse Noose, voltando a respirar.
A testemunha seguinte foi o policial Rady, investigador do departamento do xerife.
Informou o júri que tinha encontrado uma lata de Royal Crown Cola no armário perto da
escada, com as impressões digitais de Carl Lee Hailey.
- Estava vazia ou cheia? - perguntou Buckley, dramaticamente.
- Completamente vazia.
Grande coisa, pensou Jake. Tinha sede. Lee Oswald comeu um frango enquanto
esperava a passagem do carro de Kennedy. Não, não tinha nenhuma pergunta.
- Temos só mais uma testemunha, Meritíssimo - disse Buckley com voz decidida,
às quatro horas da tarde. - O policial DeWayne Looney.
Looney entrou na sala coxeando e apoiado numa bengala, e foi para o banco das
testemunhas. Tirou o revólver do coldre e entregou-o ao Sr. Pate. Buckley olhou-o com
orgulho.
- Quer fazer o favor de dizer o seu nome, por favor?
- DeWayne Looney.
- Endereço?
- Rua Bennington 1468, Clanton, Mississipi.
- Quantos anos tem?
- Trinta e nove.
- Onde trabalha?
- No Departamento de Policial de Ford County.
- O que faz o senhor no departamento?
- Sou operador de rádio.
- Onde trabalhava na segunda-feira, 20 de Maio?
- Era um sub delegado.
- Estava de serviço?
- Sim. Fui designado para escoltar dois elementos da cadeia para o tribunal e de
volta para a cadeia.
- Quem eram os dois elementos?
- Billy Ray Cobb e Pete Willard.
- A que horas saiu do tribunal com eles?
- Mais ou menos, à uma e meia, eu acho.
- Quem estava de serviço com o senhor?
- O agente Prather. Ele e eu estávamos encarregados dos dois elementos. Havia
mais alguns sub delegados no tribunal que nos ajudavam e dois ou três do lado de fora à
nossa espera. Mas eu e o Prather estávamos encarregados dos dois.
- O que aconteceu quando terminou a audiência?
- Algemamos imediatamente Cobb e Willard e saímos da sala. Nós os levamos
para a sala e esperamos um ou dois segundos, e Prather desceu a escada.
- Que aconteceu depois?
- Começamos a descer a escada. Cobb na frente, depois Willard e depois eu.
Como eu disse, Prather já tinha descido. Ele estava do lado de fora da porta.
- Sim, senhor. Depois o que é que aconteceu?
- Quando Cobb estava quase no fim da escada começaram os disparos. Eu estava
no patamar, pronto para descer. A princípio, por um segundo, não vi ninguém, e aí vi o Sr.
Hailey disparando com a metralhadora. Cobb foi projetado para trás, em cima de Willard,
e os dois gritaram e caíram um em cima do outro, tentando subir para onde eu estava.
- Sim, senhor. Descreva o que viu.
- Ouvi as balas ricocheteando nas paredes, por todos os lados. A arma mais
barulhenta que já ouvi e tive a impressão de que ele não ia parar de atirar. Os homens
contorciam-se e debatiam-se, sem parar de gritar. Estavam algemados, como o senhor
doutor sabe.
- Sim, senhor. O que aconteceu com o senhor?
- Como eu disse, não cheguei a sair do patamar. Acho que uma das balas
ricocheteou na parede e me acertou na perna. Eu estava tentando subir a escada quando
senti a queimadura na perna.
- E o que aconteceu à sua perna?
- Teve de ser cortada - disse Looney, calmamente, como se uma amputação
fizesse parte da rotina. - Logo abaixo do joelho.
- O senhor viu bem o homem com a arma?
- Vi, sim, senhor.
- Pode identificá-lo para o júri?
- Sim, senhor doutor. É o Sr. Hailey, aquele que está ali sentado.
Seria lógico que com esta resposta se desse por concluído o depoimento de
Looney. O sub delegado foi breve, direto, sincero e positivo na identificação. Até ali o júri
tinha ouvido cada uma das palavras. Mas Buckley e Musgrove foram buscar os diagramas
do edifício do tribunal e puseram-nos na frente do júri para que Looney pudesse coxear
um pouco pela sala. Orientado por Buckley, ele reconstruiu os movimentos exatos de
cada um, antes dos assassinatos.
Jake passou a mão pela testa e apertou o nariz. Noose limpou e tornou a limpar os
óculos. Os jurados ficaram irrequietos.
- Deseja interrogar a testemunha, Dr. Brigance? - perguntou Noose, finalmente.
- Apenas algumas perguntas - disse Jake enquanto Musgrove retirava o entulho da
sala.
- Agente Looney, para quem olhava Carl Lee enquanto disparava?
- Para os homens, pelo que eu pude ver.
- Alguma vez ele olhou para o senhor?
- Bem, para dizer a verdade, eu também não passei muito tempo tentando olhá-lo
nos olhos. Na verdade, eu ia em sentido contrário.
- Então, ele não apontou para o senhor?
- Ah, não, senhor. Ele só apontou para os homens. E acertou.
- Que fazia ele enquanto disparava?
- Ele gritava e ria como um doido. Foi a coisa mais impressionante que já ouvi,
como se ele estivesse louco ou coisa assim. E o senhor sabe? O que eu nunca vou
esquecer é que, com todo aquele barulho, os tiros, as balas assobiando, os homens
gritando, acima de todo aquele barulho eu ouvia o riso dele, aquele riso de louco. A
resposta foi tão perfeita que Jake teve de reprimir um sorriso. Ele e Looney tinham
ensaiado uma centena de vezes e era uma obra de arte. Cada palavra era perfeita. Jake
consultou as suas anotações e lançou um olhar aos jurados. Todos fitavam Looney,
fascinados com a resposta. Jake rabiscou qualquer coisa, nada, só para ganhar mais
alguns segundos antes das perguntas mais importantes do julgamento.
- Agora, agente Looney, Carl Lee Hailey atingiu-o na perna?
- Sim, senhor doutor, atingiu.
- O senhor acha que foi intencional?
- Oh, não, senhor. Foi um acidente.
- O senhor quer que ele seja punido por tê-lo atingido?
- Não, senhor, não tenho nada contra o homem. Ele fez o que eu teria feito.
Buckley deixou cair a caneta e afundou-se na cadeira. Olhou tristemente para a
sua testemunha principal.
- O que quer dizer com isso?
- Quero dizer que não o culpo pelo que fez. Aqueles homens violaram a filhinha
dele. Eu tenho uma filhinha. Se alguém violar a minha filha é um cão morto. Eu acabo
com ele, como Carl Lee fez. Ele merece um prêmio!
- Quer que o júri condene Carl Lee?
Buckley deu um pulo e rugiu.
- Protesto! Protesto! Pergunta inadequada!
- Não! - bradou Looney. - Não quero que seja condenado. Ele é um herói. Ele...
- Não responda, Sr. Looney - disse Noose, em voz alta. - Não responda!
- Protesto! Protesto! - continuava Buckley gritando, em bicos de pés.
- Ele é um herói! Soltem-no! - berrou Looney para Buckley. - Ordem! Ordem! -
Noose bateu com o martelo.
Buckley aquietou-se. Looney aquietou-se.
Jake caminhou para sua cadeira e disse:
- Retiro a pergunta.
- Por favor, desconsiderem a pergunta - instruiu Noose dirigindo-se ao júri.
Looney sorriu para os jurados e saiu coxeando da sala do tribunal.
- Chame a próxima testemunha - disse Noose tirando os óculos.
Buckley levantou-se devagar e, esforçando-se por manter a pose teatral, disse:
- Meritíssimo, o estado dá por encerrada a inquirição de testemunhas.
- Ótimo - disse Noose, olhando para Jake. - Suponho que tenha uma ou duas
moções, Dr. Brigance.
- Tenho, Meritíssimo.
- Muito bem, trataremos disso no meu gabinete.
Noose dispensou o júri com as mesmas instruções dos outros dias e o tribunal
entrou em descanso até às nove horas de sexta-feira.


TRINTA E SETE

Jake acordou no escuro com uma leve ressaca, uma dor de cabeça provocada
pelo cansaço e pela cerveja e com o som distante da campainha tocada com insistência,
como se alguém tivesse esquecido o dedo em cima do botão. Abriu a porta da frente,
metido na sua enorme camisa de dormir, e tentou concentrar-se nos dois vultos parados
na varanda. Ozzie e Nesbit, reconheceu por fim.
- Posso ajudá-los? - perguntou Jake, abrindo a porta. Os dois policiais seguiram-
no até à sua sala de trabalho.
- Eles vão matá-lo hoje - disse Ozzie.
Jake sentou-se no sofá e massageou as têmporas.
- Talvez consigam.
- Jake, isto é sério. Planejam matá-lo.
- Quem?
- O Klan.
- Mickey Mouse?
- Isso mesmo. Telefonou ontem e disse que estavam planejando qualquer coisa.
Telefonou outra vez, há duas horas, e disse que o felizardo é você!... Hoje é o grande dia.
É a hora do barulho. Vão enterrar Stump Sisson hoje de manhã em Loydsville e chegou a
hora do olho por olho, dente por dente.
- Porquê eu? Porque não matam Buckley, o juiz Noose, ou alguém mais
merecedor?
- Não tivemos oportunidade de discutir isso.
- Qual é o método da execução? - perguntou Jake, de repente embaraçado com a
sua grande camisa de dormir.
- Ele não disse.
- Ele sabe?
- Não entrou muito em detalhes. Disse só que tentariam fazer a coisa hoje, em
algum momento.
- E o que é que eu devo fazer? Render-me?
- A que horas vai para o escritório?
- Que horas são?
- Quase cinco.
- Assim que tomar banho e me vestir.
- Nós esperamos.
Às cinco e meia, os dois policiais fizeram-no entrar rapidamente no escritório e
fecharam a porta. Às oito, um pelotão de soldados reuniu-se no passeio, debaixo da
sacada, e esperou pelo alvo.
Harry Rex e Ellen observavam do segundo andar do tribunal. Jake deixou-se
espremer entre Ozzie e Nesbit, e agacharam-se os três no centro de uma formação
cerrada. Dali partiram para o outro lado da rua Washington na direção do tribunal. Os
abutres farejaram alguma coisa e rodearam a comitiva.
O moinho abandonado ficava perto dos trilhos da linha de ferro abandonada, a
meio caminho da colina mais alta de Clanton, dois quarteirões a norte e leste da praça. Ao
lado, havia uma rua esquecida, de asfalto e cascalho, que descia a colina e atravessava a
rua Cedar, tornando-se depois muito mais lisa e mais larga e continuava a descer, até
finalmente desembocar na rua Quincy, o limite leste da praça de Clanton.
Da sua posição no interior do silo abandonado, o atirador, tinha uma visão clara
mas distante dos fundos do edifício do tribunal. Agachado no escuro e fazendo pontaria
através de uma pequena abertura, acreditava que ninguém no mundo poderia vê-lo. O
uísque favorecia a confiança e a pontaria, que ele ajustou mil vezes das sete e meia até
às oito, quando notou movimento em volta do escritório do advogado do preto.
Um companheiro esperava numa pick-up escondida num armazém em ruínas
perto do silo. O motor estava ligado e o motorista acendia um cigarro atrás do outro,
esperando ansiosamente ouvir os estampidos da espingarda de caçar veados.
Quando o grupo armado começou a atravessar a rua Washington, o atirador
entrou em pânico. Pela mira telescópica, mal avistava a cabeça do advogado do negro
quando ela subia e descia no meio de um mar de verde, que era cercado e perseguido
por uma dúzia de repórteres. Vá em frente, disse o uísque, arme alguma confusão.
Calculou o melhor que pôde a duração de cada movimento da cabeça e apertou o gatilho
quando o alvo se aproximou da porta dos fundos do tribunal.
O estampido da espingarda soou claro e inequívoco.
Metade dos soldados atirou-se ao chão, rebolando, e a outra metade agarrou Jake
e atirou-o violentamente para debaixo da varanda. Um soldado gritou de dor. Os
repórteres e o pessoal da televisão agacharam-se e tropeçaram, caindo no chão, mas
valentemente mantiveram as câmeras filmando para registrar a chacina. O soldado levou
a mão à garganta e tornou a gritar. Outro tiro. E depois outro.
- Ele está ferido! - gritou alguém.
Os soldados por terra deslocaram-se até onde estava o soldado caído. Jake
escapuliu pela porta para a segurança do tribunal. Deitou-se no chão da entrada dos
fundos e enterrou a cabeça nas mãos. Ozzie estava ao lado dele, observando os
soldados através da porta.
O atirador saltou do silo, atirou a arma para trás do assento traseiro e desapareceu
com o camarada na zona rural. Tinham de ir a um enterro no sul do Mississipi.
- Ele está ferido na garganta! - gritou alguém, enquanto os seus companheiros
abriam caminho por entre os repórteres. Ergueram-no do chão e puseram-no num jipe.
- Quem foi ferido? - perguntou Jake, sem tirar as mãos dos olhos.
- Um dos soldados - disse Ozzie - Está bem, Jake?
- Acho que sim. - Jake cruzou as mãos na nuca e olhou para o chão. - Onde está a
minha pasta?
- Lá fora, na entrada. Vamos buscá-la num minuto. - Ozzie tirou o rádio do cinto e
deu algumas ordens ao operador, qualquer coisa sobre policiais no tribunal. Quando
parecia que o tiroteio tinha acabado, Ozzie aproximou-se dos soldados, na rua. Nesbit
ficou ao lado de Jake.
- O doutor está bem? - perguntou ele.
O coronel apareceu na esquina, gritando e a esbravejando.
- Que diabo é que aconteceu? - perguntou. - Ouvi uns tiros.
- Mackenvale foi ferido.
- Onde está ele?
- A caminho do hospital - respondeu um sargento, apontando para um jipe que
desaparecia ao longe.
- O ferimento é grave?
- Parece que sim. Acertou na garganta.
- Na garganta! Porque o removeram? Ninguém respondeu.
- Alguém viu alguma coisa? - perguntou o coronel.
- Pelo som, parece ter vindo daquela encosta - disse Ozzie, olhando para além da
rua Cedar. - Porque não manda um jipe investigar?
- Boa idéia.
O coronel deu algumas ordens, pontuadas por muitos palavrões. Os soldados
espalharam-se em todas as direções, empunhando as armas e prontos para combate, à
procura de um assassino que não podiam identificar e que, na verdade, já estava em
outro condado quando a patrulha de infantaria começou a revistar o moinho abandonado.
Ozzie pôs a pasta no chão, ao lado de Jake.
- Você está bem? - perguntou a Nesbit, em voz baixa. Harry Rex e Ellen estavam
na escada onde Cobb e Willard tinham sido mortos.
- Não sei. Há dez minutos que não se mexe - disse Nesbit.
- Jake, como é que se sente? - perguntou o xerife.
- Estou bem - disse Jake, sem abrir os olhos.
O soldado estava encostado ao seu ombro esquerdo. Tinha acabado de dizer a
Jake, "isto é um pouco idiota, não é?", quando a bala lhe atravessara a garganta. Caíra
em cima de Jake, com a mão no pescoço, gorgolejando sangue e gritando. Jake caíra e
fora empurrado para a varanda.
- Ele está morto, não está? - perguntou Jake, em voz baixa.
- Não sabemos ainda - respondeu Ozzie.
- Está no hospital.
- Está morto. Eu sei que está. Ouvi quando o pescoço dele estalou.
Ozzie olhou para Nesbit, depois para Harry Rex. No terno cinza-claro de Jake
havia quatro ou cinco manchas de sangue. Só ele não as tinha visto ainda.
- Jake, o seu terno está manchado de sangue - disse Ozzie, finalmente. - Vamos
voltar ao seu escritório para que possa mudar de roupa.
- Que importância que isso tem? - resmungou Jake, olhando para o chão.
Entreolharam-se.
Dell e os outros do Coffee Shop, de pé no passeio, viram os policiais escoltar Jake
do tribunal para o escritório, ignorando as perguntas absurdas dos repórteres. Harry Rex
fechou a porta da frente à chave, deixando os guarda-costas no passeio. Jake subiu e
tirou o casaco.
- Row Ark, por que não prepara umas margaritas? - disse Harry Rex. - Vou subir e
ficar com ele.
- Sr. Dr. Juiz, tivemos alguns problemas - disse Ozzie, enquanto Noose tirava os
papéis da pasta e depois o casaco.
- O que foi? - indagou Buckley.
- Tentaram matar o Dr. Jake, esta manhã.
- O quê? Quando? - perguntou Buckley.
- Há uma hora, mais ou menos. Alguém disparou sobre o Sr. Jake quando ele ia
entrar no tribunal. Foi uma espingarda de longo alcance. Não sabemos quem foi. Erraram
o alvo e atingiram um soldado. Ele está sendo operado agora.
- Onde está o Jake? - perguntou o meritíssimo. - No escritório dele. Está muito
abalado.
- Eu também estaria - disse Noose.
- Ele pediu para o senhor lhe telefonar quando chegasse.
- Claro.
Ozzie discou o número e estendeu o auscultador ao juiz.
- É o juiz Noose - disse Harry Rex, entregando o auscultador a Jake.
- Alô.
- Você está bem, Jake?
- Na verdade, não. Não tenho como ir ao tribunal hoje.
Noose não sabia o que dizer.
- Vai fazer o quê?
- Eu disse que não vou ao tribunal hoje. Não estou disposto.
- Bem, Jake, e nós, o que vamos fazer, então?
- Não quero nem saber - disse Jake, bebericando a sua segunda margarita.
- Que foi que disse?
- Eu disse que não quero nem saber, Sr. Dr. Juiz. Não quero saber o que o senhor
vai fazer, eu não estarei aí.
Noose abanou a cabeça e olhou para o auscultador.
- Está ferido, Jake? - perguntou, preocupado.
- Alguém já disparou sobre o senhor, Sr. Dr. Juiz?
- Não, Jake.
- Já viu um homem receber um tiro, ouviu o grito dele?
- Não, Jake.
- Já teve o sangue de alguém espirrando sobre o seu terno?
- Não, Jake.
- Não vou estar presente.
Noose fez uma pausa e pensou por um momento.
- Venha aqui, Jake, e vamos conversar sobre isso.
- Não. Não vou sair do meu escritório. É muito perigoso aí fora.
- Que tal suspendermos a sessão até à uma hora. Vai sentir-se melhor nessa
hora?
- À uma hora, vou estar bêbado.
- O quê?!
- Eu disse que, à uma hora, vou estar bêbado.
Harry Rex cobriu os olhos com a mão. Ellen foi para a cozinha.
- Quando é que acha que poderá estar sóbrio? - perguntou Noose, secamente.
Ozzie e Buckley entreolharam-se.
- Na segunda-feira.
- Que tal amanhã?
- Amanhã é sábado.
- Sim, eu sei, e tinha planejado continuar o julgamento amanhã. Temos um júri de
quarentena, lembra-se?
- Muito bem! Estarei pronto amanhã, de manhã.
- É bom ouvir isso. Que digo ao júri? Eles estão na sala dos jurados à nossa
espera. O tribunal está cheio. O seu cliente está sentado sozinho, à sua espera. Que digo
a essa gente?
- Pense em uma coisa qualquer, Sr. Dr. Juiz. Confio em você - Jake desligou.
Noose ficou a ouvir, incrédulo, até não haver dúvidas de que Jake tinha mesmo
desligado na sua cara. Entregou o auscultador a Ozzie. O meritíssimo olhou pela janela e
tirou os óculos.
- Ele disse que não vem ao tribunal hoje. Incaracteristicamente, Buckley ficou em
silêncio. Ozzie mantinha-se na defensiva.
- Ele ficou muito abalado, Sr. Dr. Juiz.
- Ele anda bebendo?
- Não, não o Jake - respondeu Ozzie. - Só ficou abalado com o soldado que levou
o tiro. Ele estava ao lado de Jake e foi atingido pela bala que era destinada a ele. Isso
transtornaria qualquer um, Sr. Dr. Juiz.
- Ele quer que fiquemos em interrupção até amanhã, de manhã - disse Noose a
Buckley, que encolheu os ombros e novamente não disse nada.
Quando a notícia se espalhou, um verdadeiro carnaval instalou-se no passeio em
frente do escritório de Jake. A imprensa acampou perto da porta, espreitando pelas
janelas, na esperança de avistar alguém que pudesse ser notícia. Amigos paravam para
saber de Jake, mas os repórteres informavam que ele estava fechado lá dentro e não
queria sair. Não, ele não estava ferido.
O Dr. Bass estava programado para testemunhar nessa manhã. Ele e Lucien
entraram no escritório pela porta dos fundos, alguns minutos depois das dez, e Harry Rex
saiu para a loja de bebidas.
Com o choro todo, foi difícil a conversa com Carla. Jake telefonou-lhe depois da
terceira bebida e as coisas não correram bem. Jake falou com o pai de Carla, disse que
estava seguro, incólume, e que metade da guarda nacional do Mississipi estava
incumbida de protegê-lo. Tranqüilize-a, disse; mais tarde voltaria a ligar.
Lucien estava furioso. Tinha lutado com Bass para conseguir mantê-lo sóbrio, na
noite de quinta-feira, a fim de que pudesse depor na sexta-feira. Agora que ele iria depor
no sábado, não tinha maneira de mantê-lo sóbrio dois dias seguidos. Pensou em todos os
copos que perdera na quinta-feira e ficou furioso.
Harry Rex voltou com bastante álcool. Ele e Ellen prepararam as bebidas,
discutindo sobre os ingredientes. Ela lavou o bule de café, encheu-o de Bloody Mary e
uma quantidade absurda de vodka sueca. Harry Rex acrescentou uma dose generosa de
Tabasco e serviu as bebidas na sala de conferências, enchendo os copos assim que
estes se esvaziavam.
O Dr. Bass bebeu freneticamente e pediu mais. Lucien e Harry Rex falavam da
provável identidade do atirador. Ellen, em silêncio, observava Jake que, sentado num
canto, olhava fixamente para a estante dos livros. O telefone tocou. Harry Rex atendeu e
ouviu com atenção. Desligou e disse:
- Era Ozzie. O soldado já saiu da sala de cirurgia. A bala está alojada na espinha.
Acham que vai ficar paralítico.
Todos beberam sem dizer nada, esforçando-se por ignorar Jake que passava uma
das mãos pela testa, segurando a bebida com a outra. Ouviram bater de leve na porta dos
fundos.
- Vá ver quem é - ordenou Lucien a Ellen, que saiu para ver quem batia.
- É Lester Hailey - disse ela reaparecendo na sala de conferências.
- Deixe-o entrar - resmungou Jake, quase incoerentemente. Lester foi apresentado
a todos, e convidado a tomar um Bloody Mary. Recusou e pediu alguma coisa com
uísque.
- Boa idéia - disse Lucien. - Estou farto de coisas leves. Vamos beber um Jack
Daniel's.
- Boa idéia - disse Bass, esvaziando a xícara que tinha na mão.
Jake sorriu palidamente para Lester e voltou olhando para a estante. Lucien pôs
uma nota de cem dólares na mesa e Harry Rex saiu para a loja de bebidas.
Quando acordou horas mais tarde, Ellen estava no sofá do escritório de Jake. A
sala estava escura e vazia, com um forte cheiro de álcool no ar. Andando com cuidado,
chegou à sala de guerra, onde o seu chefe ressonava, deitado no chão, com uma parte
do corpo debaixo da mesa. Todas as luzes estavam apagadas, e Ellen desceu a escada
cautelosamente. A sala de conferências estava cheia de garrafas vazias, latas de cerveja,
copos de plástico e caixas de galinha frita. Eram nove e trinta da noite. Tinha dormido
cinco horas.
Ellen podia ficar na casa de Lucien, mas precisava mudar de roupa. O seu amigo
Nesbit podia levá-la a Oxford, mas ela estava sóbria. Além disso, Jake precisava da maior
proteção possível. Fechou a porta da frente e foi para o seu carro. Estava quase em
Oxford quando viu as luzes azuis atrás dela. Como habitualmente, conduzia a cento e
vinte por hora. Estacionou no acostamento, e encaminhou-se para as lanternas traseiras
do seu carro, onde procurou qualquer coisa na bolsa e ficou à espera da policial. Dois
homens à paisana aproximaram-se, vindos das luzes azuis.
- Está embriagada, minha senhora? - perguntou um deles, cuspindo tabaco de
mascar.
- Não, senhor. Estou à procura da minha carteira. Ela inclinou-se em frente das
luzes e tratou de pegar a carteira dentro da bolsa. De repente, foi golpeada e caiu no
chão. Os homens cobriram-na com um cobertor e passaram-lhe uma corda em volta da
cintura e do peito. Ela esperneou e esbracejou, mas não pôde oferecer muita resistência.
O cobertor cobria-lhe a cabeça e prendia-lhe os braços. Os homens puxaram a corda com
força, apertando-a.
- Quieta, sua ordinária. Fique quieta!
Um deles tirou as chaves da ignição e abriu a mala do carro. Atiraram-na dentro e
fecharam a mala. Retiraram as luzes azuis da capota do velho Lincoln e arrancaram a
toda velocidade com os dois carros. Encontraram uma estrada de cascalho e, seguindo
por ela, o Lincoln e o BMW entraram no bosque, que deu lugar a uma estrada de terra
levando a uma pequena pastagem onde uma cruz enorme estava sendo incendiada por
um punhado de homens do Klan.
Os dois assaltantes vestiram rapidamente os mantos brancos e as máscaras e
tiraram Ellen da mala do carro, atiraram-na ao chão e retiraram o cobertor que a cobria.
Amarraram-na, amordaçaram-na, depois arrastaram-na para uma grande estaca a poucos
passos da cruz onde foi amarrada, de costas voltadas para os homens do Klan, o rosto
para a estaca.
Ela viu os mantos brancos e os capuzes pontiagudos e tentou desesperadamente
cuspir o trapo de algodão oleoso enfiado na boca. Conseguiu apenas engasgar-se e
tossir.
A cruz em chamas iluminava a pequena pastagem, libertando uma onda ardente
de calor que começou a assá-la enquanto ela lutava com a estaca e emitia estranhos
ruídos guturais.
Um vulto encapuzado destacou-se dos outros e aproximou-se dela. Ellen ouvia-o
caminhar e respirar.
- Sua ordinária, amiga de pretos - disse ele com o sotaque áspero do meio oeste.
Agarrou na parte de trás da gola e rasgou-lhe a blusa branca até a deixar em tiras em
volta do pescoço e dos ombros. As mãos de Ellen estavam amarradas fortemente à
estaca. O homem sacou do manto uma faca do mato e começou a cortar o que restava da
blusa.
- Sua ordinária, amiga de pretos. Sua ordinária, amiga de pretos.
Ellen insultou o homem, mas as suas palavras eram gemidos abafados. Ele abriu
o zíper do lado direito da saia de linho azul-marinho. Ela tentou defender-se com
pontapés, mas os tornozelos estavam presos com corda à estaca. O homem pôs a ponta
da faca na parte superior do fecho, e cortou até abaixo seguindo a bainha. Segurou a saia
pela cintura e puxou-a, como um mágico. Os homens do Klan deram um passo à frente. O
homem deu uma palmada na nádega dela e disse:
- Bonita, muito bonita. - Recuou para admirar o seu trabalho. Ela grunhia e
contorcia-se, mas não podia resistir. A combinação escorregou para o meio das coxas.
Com grande cerimônia ele cortou as alças, depois retalhou-a cuidadosamente nas costas.
Arrancou-a com um puxão e atirou-a aos pés da cruz em chamas. Cortou as alças do
sutiã e retirou-o. Ela se contraiu e os gemidos tornaram-se mais audíveis. O semicírculo
silencioso avançou um pouco e parou a cerca de três metros.
O fogo estava agora muito quente. O suor gotejava nas costas e nas pernas nuas
de Ellen. O cabelo louro-avermelhado estava encharcado em volta do pescoço e dos
ombros. O homem enfiou a mão sob o manto e puxou por um chicote. Ele o fez estalar
com força perto dela, e ela encolheu-se. Ele recuou alguns passos, medindo
cuidadosamente a distância que o separava da estaca.
Ele ergueu o chicote e visou as costas nuas. O mais alto do grupo adiantou-se, de
costas para ela, e meneou a cabeça. Nada foi dito, mas o chicote desapareceu.
Aproximou-se dela e segurou-lhe a cabeça. Com a faca cortou-lhe o cabelo.
Agarrava as mechas e cortava-as até o couro cabeludo ficar à mostra. O cabelo cortado
empilhava-se a seus pés. Ela gemia e não se mexia.
Os homens dirigiram-se para os seus carros. Esvaziaram um galão de gasolina
dentro do BMW com placas de Massachusetts e alguém atirou um fósforo aceso. Quando
teve certeza de que todos tinham partido, Mickey Mouse saiu do meio das moitas.
Desamarrou Ellen e levou-a para uma pequena clareira, longe da pastagem. Recolheu o
que restava das roupas dela e procurou cobri-la. Quando o carro dela acabou de queimar,
ao lado da estrada de terra, ele a deixou. Pegou o seu próprio carro e, ao chegar a
Oxford, foi até um telefone público e ligou para o xerife de Lafayette County.


TRINTA E OITO

Sessões de tribunal ao sábado eram raras, mas não inauditas, especialmente nos
casos de crime de morte, quando o júri ficava isolado. Os participantes não reclamavam
porque o sábado encurtava um dia o fim do julgamento.
As pessoas da cidade também não se importavam. Ninguém trabalhava no sábado
e para muitos era a única oportunidade de assistir ao julgamento, ou, se não
conseguissem um lugar na sala do tribunal, pelo menos andar pela praça e saber das
notícias em primeira mão. Quem sabe, até podia haver mais tiroteios.
Às sete horas, os cafés do centro da cidade estavam cheios, abarrotados de
estranhos. Para cada freguês que conseguia um lugar, dois eram recusados e tinham de
se contentar em andar pela praça, ou tentar uma vaga na sala do tribunal. Muitos
paravam por alguns instantes na frente do escritório do advogado, esperando ver o
homem que sofrera um atentado. Vários se gabavam de serem clientes daquele homem
famoso.
No segundo andar, o alvo, sentado à mesa de trabalho, tomava a mistura
vermelha que tinha sobrado da noite anterior. Fumou um charuto, tomou analgésicos para
a dor de cabeça e tentou tirar as teias de aranha do cérebro. Esqueça o soldado, repetia
mentalmente, há três horas. Esqueça o Klan, as ameaças, esqueça tudo, menos o
julgamento, e especialmente o Dr. W T. Bass. Resmungou uma breve oração, pedindo
para o Dr. Bass estar sóbrio quando se sentasse no banco das testemunhas. O médico e
Lucien tinham passado a tarde toda bebendo e discutindo, acusando-se um ao outro de
alcoolismo e de terem sido excluídos desonrosamente das respectivas profissões.
Quando estavam de saída, quase se engalfinharam perto da mesa de Ethel. Nesbit
interveio e conduziu-os até ao carro e depois para casa. Os repórteres ferveram de
curiosidade quando os dois homens completamente embriagados saíram do escritório de
Jake e entraram no carro da policial, onde continuaram discutindo e trocando impropérios,
Lucien no banco de trás, Bass ao lado de Nesbit.
Jake releu a obra-prima de Ellen sobre a defesa baseada na alegação de
insanidade mental. Fez pequenas modificações na lista de perguntas que devia fazer ao
Dr. Bass. Estudou o currículo do médico. Nada de importante, mas o suficiente para Ford
County. O psiquiatra mais próximo estava a cento e trinta quilômetros de Clanton.
O juiz Noose viu de relance o promotor e olhou compassivo para Jake, que
sentado perto da porta contemplava o retrato desbotado de algum juiz morto,
dependurado por cima do ombro de Buckley.
- Como se sente hoje, Jake? - perguntou Noose calorosamente.
- Estou Ótimo.
- Como está o soldado? - perguntou Buckley.
- Paralítico.
Noose, Buckley, Musgrove e o Sr. Pate olharam para o mesmo ponto no tapete e
abanaram as cabeças soturnamente em sinal de respeito.
- Onde está a sua estagiária? - perguntou Noose, olhando para o relógio na
parede. Jake consultou o seu relógio de pulso. - Não sei. Achei que já tivesse chegado.
- Está pronto?
- Claro.
- A sala do tribunal está pronta, Sr. Pate?
- Sim, senhor.
- Muito bem. Então vamos.
Noose mandou as pessoas se sentarem e durante dez minutos apresentou aos
jurados uma justificação desconexa pelo adiamento do dia anterior. Eles eram os únicos
catorze moradores do condado que não sabiam o que tinha acontecido na sexta-feira de
manhã, e podia ser prejudicial contar-lhes. Noose alargou-se monotonamente sobre
emergências e em como, às vezes, durante os julgamentos as coisas conspiram para
provocar protelações. Quando conseguiu terminar, os jurados, completamente
atordoados, pediam a Deus para que alguém chamasse uma testemunha.
- Pode chamar a sua primeira testemunha - disse Noose a Jake.
- Dr. W T Bass - anunciou Jake, caminhando para o pódio.
Buckley e Musgrove trocaram olhares e sorrisos idiotas. Bass estava sentado junto
a Lucien na segunda fila, no meio da família. Levantou-se atabalhoadamente e andou na
direção da passagem central, pisando pés e agredindo pessoas com a sua pesada pasta
de couro vazia. Jake ouviu a agitação nas suas costas e continuou a sorrir para o júri.
- Eu juro, eu juro - Bass disse rapidamente quando Jean Gillespie começou a ler o
juramento.
O Sr. Pate conduziu-o ao banco das testemunhas, e deu a ordem habitual de falar
alto e usar o microfone. Embora acanhado e com uma tremenda ressaca, o perito
mantinha uma pose arrogante e sóbria. Estava com seu melhor terno cinzento, de lã
tecida à mão, camisa social branca, muito limpa e engomada, e um laço de lã escocesa
estampado de vermelho que lhe dava um ar muito intelectual. Parecia mesmo um perito.
Apesar das objeções de Jake, calçava botas de cowboy de pele de avestruz cinzenta,
pelas quais tinha pago mais de mil dólares e tinha usado menos de uma dúzia de vezes.
Lucien insistira nas botas onze anos antes, no primeiro processo envolvendo insanidade
mental. Bass usou-as e o réu, perfeitamente são de espírito, foi parar na penitenciária de
Parchman. Usou-as no segundo processo de insanidade, novamente a pedido de Lucien,
novamente, Parchman. Lucien passou a chamá-las o amuleto da sorte de Bass.
Jake não queria saber das malditas botas. Mas o júri podia gostar delas,
argumentou Lucien. Não de botas caras de pele de avestruz, contrapôs Jake. Eles são
muito ignorantes para perceberem a diferença, retrucou Lucien. Jake não ficou
convencido. Os parolos brancos confiam em alguém que usa botas, explicou Lucien. Pois
então, disse Jake, que use um par de botas camufladas de caçar esquilos, com um
pedaço de lama nos calcanhares e nas solas, botas com que pudessem, realmente,
identificar-se. Essas não completavam o terno dele, tinha dito Bass.
Cruzou as pernas, pondo a bota direita sobre o joelho esquerdo para que fosse
vista. Sorriu para ela, depois sorriu para o júri. A avestruz teria ficado orgulhosa. Jake
ergueu os olhos das suas anotações para o pódio e viu a bota, perfeitamente visível
acima da grade do banco das testemunhas. Bass contemplava-a, os jurados
examinavam-na. Jake engasgou-se e voltou às suas anotações.
- Diga o seu nome, por favor.
- Dr. W T. Bass - respondeu ele, desviando os olhos da bota e olhando para Jake,
muito sério.
- Qual é o seu endereço?
- West Canterbury 908, Jackson, Mississipi.
- Qual é sua profissão?
- Sou médico.
- Tem licença para praticar a medicina no Mississipi?
- Tenho.
- Quando tirou a licença?
- A oito de Fevereiro de 1963.
- Tem licença para praticar a medicina em qualquer outro estado?
- Sim.
- Onde?
- No Texas.
- Quando obteve essa licença?
- A três de Novembro de 1962.
- Onde fez a faculdade?
- Recebi o meu diploma de bacharel no Millsaps College em 1956, e o título de
doutor em medicina no Health Science Center da Universidade do Texas, em Dallas, em
1960.
- É uma faculdade de medicina reconhecida?
- Sim.
- Por quem?
- Pelo Conselho de Educação Médica e de Hospitais da Associação Médica
Americana, o órgão regulamentador da nossa profissão, e pelo departamento de
educação do estado do Texas.
Bass descontraiu-se um pouco, descruzou e cruzou de novo as pernas, exibindo a
bota do pé esquerdo. Balançou-se levemente e virou parcialmente para o lado do júri a
confortável cadeira giratória.
- Onde foi interno e por quanto tempo?
- Depois de me formar na faculdade de medicina, passei doze meses como
interno, no Centro Médico de Rocky Mountain, em Denver.
- Qual é a sua especialidade?
- Psiquiatria.
- Explique-nos o que isso significa.
- A psiquiatria é o ramo da medicina que se ocupa do tratamento dos distúrbios da
mente. De um modo geral, mas nem sempre, lida com a disfunção mental, cuja base
orgânica é desconhecida.
Jake respirou pela primeira vez desde que Bass tinha se sentado no banco. O seu
médico estava causando boa impressão.
- Agora, doutor - disse Jake, aproximando-se calmamente do júri -, descreva ao
júri o treino especializado que recebeu no campo da psiquiatria.
- O meu treino especializado em psiquiatria consistiu em dois anos como residente
em psiquiatria do Hospital Psiquiátrico do Estado do Texas, um centro de estudos
reconhecido. Participei de trabalho clínico com pacientes psiconeuróticos e psicóticos.
Estudei psicologia, psicopatologia, psicoterapia e as terapias fisiológicas. Esse treino,
supervisado por competentes professores de psiquiatria, incluía instrução nos aspectos
psiquiátricos da medicina geral, nos aspectos comportamentais de crianças, adolescentes
e adultos.
Era duvidoso que uma só pessoa na sala do tribunal compreendesse uma palavra
do que Bass acabara de dizer, mas ela vinha da boca de um homem que, de repente,
parecia ser um gênio, um perito, pois tinha de ser um homem de grande sabedoria e
inteligência para pronunciar aquelas palavras. Com o laço e o vocabulário, e a despeito
das botas, Bass ganhava credibilidade a cada resposta.
- O senhor é diplomado pelo Conselho Americano de Psiquiatria?
- É claro - respondeu Bass, confiante.
- Em que ramo é diplomado?
- Sou diplomado em psiquiatria.
- E quando obteve o diploma?
- Em Abril de 1967.
- O que é preciso fazer para ser diplomado pelo Conselho Americano de
Psiquiatria?
- O candidato deve passar nos exames oral e prático, bem como num teste escrito
na sede do Conselho.
Jake consultou as suas notas e viu Musgrove piscar um olho a Buckley.
- Doutor, o senhor pertence a algum grupo de profissionais?
- Sim.
- Diga os nomes, por favor.
- Sou membro da Associação Americana de Medicina, da Associação Americana
de Psiquiatria e da Associação de Medicina do Mississipi.
- Há quanto tempo pratica a psiquiatria?
- Vinte e dois anos.
Jake deu três passos na direção do juiz e encarou Noose, que observava com
atenção.
- Meritíssimo, a defesa apresenta o Dr. Bass como perito no campo da psiquiatria.
- Muito bem - respondeu Noose. - Quer interrogar a testemunha, Dr. Buckley?
O promotor levantou-se com seu bloco de notas na mão.
- Sim, Meritíssimo, tenho algumas perguntas.
Surpreendido mas não preocupado, Jake ocupou o seu lugar junto a Carl Lee.
Ellen ainda não estava no tribunal.
- Dr. Bass, em sua opinião o senhor é um perito no campo da psiquiatria? -
perguntou Buckley.
- Sim.
- Já lecionou psiquiatria?
- Não.
- Já publicou algum artigo sobre psiquiatria?
- Não.
- Já publicou algum livro de psiquiatria?
- Não.
- Ora, creio que o senhor afirmou que é membro da Associação Americana de
Medicina, da Associação de Medicina do Mississipi e da Associação Americana de
Psiquiatria.
- Sim.
- Alguma vez ocupou algum posto em qualquer dessas organizações?
- Não.
- Que postos hospitalares ocupa o senhor, atualmente?
- Nenhum.
- A sua experiência em psiquiatria incluiu algum trabalho sob os auspícios do
governo federal ou de qualquer governo estadual?
- Não.
A arrogância começava a desaparecer do rosto de Bass, e a confiança sumia da
sua voz. Lançou um rápido olhar a Jake, que estava mexendo em uma pasta.
- Dr. Bass, o senhor está empenhado, agora, na prática da psiquiatria a tempo
integral?
O perito hesitou e lançou um breve olhar a Lucien, na segunda fila.
- Atendo pacientes regularmente.
- Quantos pacientes e com que regularidade? - retorquiu Buckley com enorme ar
de confiança.
- Atendo entre cinco a dez pacientes por semana.
- Um ou dois por dia?
- Mais ou menos isso.
- E o senhor considera isso tempo integral?
- Estou tão ocupado quanto desejo estar.
Buckley atirou com o seu bloco de notas para cima da mesa e olhou para Noose.
- Meritíssimo, o estado opõe objeção a que este homem deponha como perito em
psiquiatria. É óbvio que ele não está habilitado.
Jake estava de pé, com a boca aberta.
- Indeferida, Dr. Buckley. Pode prosseguir, Dr. Brigance.
Jake pegou as suas anotações e voltou para o pódio, bem consciente da suspeita
que o promotor astutamente acabava de lançar sobre a sua testemunha-chave. Bass
mudou a posição das botas.
- Agora, Dr. Bass, o senhor examinou o acusado, Carl Lee Hailey?
- Sim.
- Quantas vezes?
- Três.
- Quando foi o primeiro exame?
- No dia 10 de Junho.
- Qual o objetivo desse exame?
- Examinei-o para determinar as suas condições mentais atuais, bem como as
suas condições mentais no dia 20 de Maio, quando ele, presumivelmente, atirou no Sr.
Cobb e no Sr. Willard.
- Onde foi feito o exame?
- Na cadeia de Ford County.
- O senhor fez o exame sozinho?
- Sim, só o Sr. Hailey e eu.
- Quanto tempo durou o exame?
- Três horas.
- O senhor examinou o histórico clínico do réu?
- De modo indireto, pode-se dizer. Falamos bastante sobre o passado dele.
- O que foi que o senhor descobriu?
- Nada de especial, exceto o Vietnã.
- O que tem o Vietnã?
Bass cruzou as mãos sobre a barriga ligeiramente protuberante e franziu a testa
com ar inteligente para o advogado de defesa.
- Bem, Dr. Brigance, como muitos veteranos do Vietnã a que atendi, o Sr. Hailey
passou ali por algumas experiências traumatizantes.
A guerra é um inferno, pensou Carl Lee, ouvindo atentamente. Sim, o Vietnã foi
horrível. Ele fora ferido. Perdera amigos. Matara gente, muita gente. Matara crianças,
crianças vietnamitas que empunhavam armas e granadas. Foi horrível. Queria nunca ter
posto os pés lá. Sonhava com ele, ocasionalmente revia cenas, tinha pesadelos. Mas não
se sentia deformado ou insano por causa disso. Não se sentia deformado ou insano por
causa de Cobb e Willard. Na verdade, sentia-se satisfeito por estarem mortos. Como os
do Vietnã. Tinha explicado tudo isso a Bass uma vez na cadeia, e Bass não parecera
impressionado. E tinham conversado apenas duas vezes, e nunca mais de uma hora.
Carl Lee observava o júri e ouvia desconfiado o perito, que falava demoradamente
das terríveis experiências de Carl Lee na guerra. O vocabulário de Bass subia várias
oitavas enquanto ele explicava aos leigos, em termos não-leigos, os efeitos do Vietnã
sobre Carl Lee. A coisa soava bem. Tinha havido pesadelos ao longo dos anos, sonhos
com os quais Carl Lee nunca se tinha preocupado muito, mas ao ouvir Bass explicar tudo,
descobria que eram eventos da máxima importância.
- Ele falou livremente do Vietnã?
- Na verdade, não - respondeu Bass, explicando com muitos detalhes a tremenda
tarefa que tinha sido desentranhar a guerra daquela mente complexa, sobrecarregada,
provavelmente instável. Carl Lee não se lembrava disso daquele modo. Mas ouvia,
obedientemente, com expressão sofrida, perguntando-se pela primeira vez na vida, se
não seria talvez um pouco maluco.
Ao fim de uma hora, a guerra fora revivida e seus efeitos fustigados
completamente. Jake resolveu passar adiante.
- Agora, Dr. Bass - disse Jake, coçando a cabeça. - Além do Vietnã, que outros
eventos importantes o senhor notou a respeito da história mental do réu?
- Nenhum, a não ser o estupro da filha.
- O senhor abordou o estupro com Carl Lee?
- Longamente, durante cada um dos três exames.
- Explique ao júri o que o estupro causou em Carl Lee Hailey.
Bass passou a mão pelo queixo e pareceu perplexo.
- Francamente, Dr. Brigance, eu iria precisar de muito tempo para explicar o que o
estupro causou ao Sr. Hailey.
Jake pensou um momento, e pareceu analisar com cuidado esta última
declaração.
- Bem, o senhor não poderia fazer um resumo para o júri?
Bass assentiu gravemente.
- Tentarei.
Cansado de ouvir Bass, Lucien começou a observar o júri na esperança de pôr os
olhos em Clyde Sisco, que também tinha perdido o interesse e admirava as botas. Lucien
observava atentamente pelo canto do olho, à espera de que Sisco passasse o olhar pela
sala do tribunal. Finalmente, enquanto Bass divagava, Sisco deixou o depoimento e olhou
para Carl Lee, depois para Buckley, depois para um dos repórteres da primeira fila. Então,
o seu campo de visão concentrou-se num velho de barba, de olhar feroz, que certa vez
lhe dera oitenta mil dólares em dinheiro para cumprir o seu dever cívico e proferir um
veredicto justo. Os olhos dos dois encontraram-se e ambos esboçaram um sorriso.
Quanto? perguntava o olhar de Lucien. Sisco regressou ao depoimento, mas segundos
depois estava fitando Lucien. Quanto? perguntou Lucien, movendo os lábios, mas sem
emitir som algum.
Sisco desviou a vista e olhou para Bass, pensando num preço justo. Olhou na
direção de Lucien, coçou a barba e aí, de repente, enquanto fitava Bass, abriu os cinco
dedos sobre a cara e tossiu. Tornou a tossir e examinou o perito.
Quinhentos ou cinco mil? perguntou Lucien a si mesmo. Conhecendo Sisco, eram
cinco mil, talvez cinqüenta mil. Não fazia diferença; Lucien pagaria. Ele valia o seu peso
em ouro. Às dez e meia, Noose já tinha limpado os óculos uma centena de vezes e
consumido umas dez xícaras de café. A bexiga estava a ponto de lhe estourar.
- Está na hora do intervalo da manhã. Recomeçaremos às onze. - Noose bateu
com o martelo e desapareceu.
- Como é que tenho me saído? - perguntou Bass, nervoso, entrando com Jake e
Lucien na biblioteca do terceiro andar.
- Tem se saído bem - disse Jake. - Basta só esconder essas botas.
- As botas são decisivas - protestou Lucien.
- Preciso de um copo - disse Bass, desesperado.
- Nem pense nisso - disse Jake.
- Eu também preciso - disse Lucien. - Vamos até ao seu escritório para um copo
rápido.
- Grande idéia! - aprovou Bass.
- Nem pense - repetiu Jake. - O doutor está sóbrio e está se saindo muito bem.
- Temos trinta minutos - disse Bass, saindo atrás de Lucien e caminhando para a
escada.
- Não! Não faça isso, Lucien! - ordenou Jake.
- Só um - respondeu Lucien, levantando um dedo para Jake. - Um só.
- Vocês nunca bebem um só.
- Venha conosco, Jake. Isto vai lhe acalmar os nervos.
- Só um - gritou Bass, descendo a escada.
Às onze, Bass sentou-se na cadeira da testemunha e olhou para o júri com olhos
vidrados. Sorriu, e por pouco dava uma gargalhadinha. Viu os artistas na primeira fila, e
procurou parecer o mais profissional possível. Os nervos estavam realmente no lugar.
- Dr. Bass, o senhor conhece o teste de responsabilidade criminal relativo ao
precedente M'Naghten? - perguntou Jake.
- Certamente! - respondeu o Dr. Bass com repentino ar de superioridade.
- Pode explicá-lo ao júri?
- É claro. O precedente M'Naghten é o padrão para a responsabilidade criminal no
Mississipi, como em outros quinze estados. Remonta à Inglaterra, no ano de 1843,
quando um homem chamado Daniel M'Naghten tentou assassinar o Primeiro-ministro, Sir
Robert Peel. Ele errou a pontaria e matou com um tiro o secretário do Primeiro-ministro,
Edward Drummond. Durante o seu julgamento, ficou definitivamente provado que
M'Naghten sofria daquilo a que chamaríamos esquizofrenia paranóide. O júri deu um
veredicto de inocente, considerando-o insano. Firmou-se desde então o precedente
M'Naghten. Ainda é seguido na Inglaterra e em dezesseis estados.
- O que significa o precedente M'Naghten?
- O precedente M'Naghten é muito simples. Todo o homem é presumivelmente
são, e para estabelecer uma defesa baseada em insanidade, deve ficar claramente
provado que quando o réu fez o que fez atuava sob o peso de tamanha deficiência da
razão, em virtude de um distúrbio mental, que não tinha noção da natureza e da qualidade
do ato que praticava, ou se sabia o que estava fazendo, não sabia que isso era um erro.
- Poderia simplificar isso?
- Sim. Se um réu não pode distinguir o certo do errado, está legalmente insano.
- Defina a insanidade, por favor.
- Não tem significado algum, do ponto de vista médico. É rigorosamente um
padrão judiciário para o estado ou condição mental de uma pessoa.
Jake respirou fundo e prosseguiu.
- Agora, doutor, baseado no seu exame do acusado, o senhor tem uma opinião
sobre as condições mentais de Carl Lee Hailey, no dia 20 de Maio deste ano, por ocasião
dos disparos?
- Tenho, sim.
- E qual é?
- É minha opinião - Bass falava devagar - que o acusado sofreu uma total ruptura
de relações com a realidade quando a filha foi violada. Quando ele a viu logo depois do
estupro, não a reconheceu, e quando lhe disseram que ela fora violada, espancada e
quase enforcada, alguma coisa se partiu na mente de Carl Lee. É um modo bastante
elementar de dizer, mas foi isso que aconteceu. Alguma coisa se partiu. Ele rompeu com
a realidade. Eles tinham de morrer. Ele me disse, em uma das visitas, que quando os viu
pela primeira vez no tribunal não pôde compreender por que razão os policiais os
protegiam. Ficou à espera de que um dos policiais sacasse de uma arma e lhes
estourassem os miolos. Passaram-se alguns dias e ninguém os matou, ele achou, então,
que era sua obrigação. Quero dizer, ele achava que alguém, dentro do sistema, devia
executar os dois por terem violado a filha dele. O que estou dizendo, Dr. Brigance, é que,
mentalmente, ele nos deixou. Estava em outro mundo. E sofria de delírios. Sucumbiu.
Bass sabia que parecia convincente. Falava para o júri agora, não para o
advogado.
- No dia seguinte ao estupro ele falou com a filha no hospital. Ela mal podia falar,
com os maxilares quebrados e todo o resto, mas disse que o tinha visto no bosque
correndo para salvá-la e perguntou-lhe porque é que ele tinha desaparecido. Muito bem.
Pode imaginar o que isso significaria para um pai? Mais tarde ela lhe contou que tinha
chamado pelo paizinho e que os dois homens riram e disseram que ela não tinha pai.
Jake deixou que essas palavras fossem bem absorvidas. Examinou as anotações
de Ellen e viu só mais duas perguntas.
- Agora, Dr. Bass, baseado nas suas observações de Carl Lee Hailey, e no seu
diagnóstico das condições mentais do acusado, por ocasião dos disparos, o senhor tem
uma opinião, um grau razoável de certeza médica, quanto à possibilidade de Carl Lee
Hailey ser capaz de saber a diferença entre o certo e o errado quando atirou naqueles
homens?
- Tenho.
- E qual é essa opinião?
- Que em virtude de suas condições mentais, ele estava totalmente incapaz de
distinguir o certo do errado.
- Baseado nos mesmos fatores, o senhor tem uma opinião sobre a capacidade de
Carl Lee Hailey em compreender e avaliar a natureza e a qualidade das suas ações?
- Tenho.
- E qual é essa opinião?
- Na minha opinião, como perito no campo da psiquiatria, o Sr. Hailey estava
totalmente incapaz de compreender e avaliar a natureza e a qualidade do que estava
fazendo.
- Muito obrigado, doutor. Não tenho mais perguntas à testemunha.
Jake pegou o seu bloco de notas e caminhou confiante para o seu lugar. Olhou
para Lucien que sorria e aprovava com a cabeça. Olhou para o júri. Os jurados
observavam Bass e pensavam no seu depoimento. Wanda Wormack, uma mulher jovem
de expressão compreensiva, olhou para Jake e sorriu quase imperceptivelmente. Foi o
primeiro sinal positivo que recebeu do júri, desde o início do julgamento.
- Até aqui tudo bem - murmurou Carl Lee.
Jake sorriu para seu cliente.
- Você é um verdadeiro psicótico, homem!
- O promotor deseja interrogar a testemunha? - perguntou Noose a Buckley.
- Só algumas perguntas - disse Buckley, segurando o pódio.
Jake não conseguia imaginar Buckley discutindo psiquiatria com um especialista,
mesmo que fosse W T. Bass. Mas Buckley não tinha nenhuma intenção de discutir
psiquiatria.
- Dr. Bass, como é seu nome completo?
Jake ficou gelado. A pergunta estava carregada de mau agouro. Buckley envolveu-
a em muita desconfiança.
- William Tyler Bass.
- Como é tratado habitualmente?
- W T. Bass.
- Alguma vez foi conhecido como Tyler Bass?
O perito hesitou.
- Não - disse ele humildemente.
Uma enorme sensação de ansiedade atingiu Jake, era como uma lança em brasa
perfurando-lhe seu estômago. A pergunta só podia significar problemas.
- Tem certeza? - perguntou Buckley, erguendo as sobrancelhas, num tom de
extrema incredulidade.
Bass encolheu os ombros.
- Talvez quando era mais novo.
- Compreendo. Agora, se não me engano, o senhor declarou que estudou
medicina no Centro de Ciência da Saúde da Universidade do Texas.
- Certo.
- E onde fica isso?
- Em Dallas.
- E quando estudou lá?
- De 1956 a 1960.
- E com que nome estava registrado?
- William T. Bass.
Jake morria de medo. Buckley estava de posse de alguma coisa, de algum
segredo obscuro do passado, que só ele e Bass conheciam.
- Alguma vez usou o nome de Tyler Bass quando estudava medicina?
- Não.
- Tem certeza?
- Claro que tenho.
- Qual é o seu número de segurança social?
- 410-96-8585.
Buckley marcou qualquer coisa nos seus apontamentos.
- E a sua data de nascimento? - perguntou, cuidadosamente.
- Catorze de Setembro de 1934.
- E qual era o nome de sua mãe?
- Jonnie Elizabeth Bass.
- E o apelido de solteira?
- Skidmore.
Outra marca nas anotações. Bass olhou nervoso para Jake.
- E o local do seu nascimento?
- Carbondale, Illinois.
Outro risco. Uma objeção à pertinência dessas perguntas era cabível e
sustentável, mas os joelhos de Jake pareciam geléia e os seus intestinos eram fluido de
repente. Tinha medo de se sentir embaraçado se levantasse e tentasse falar.
Buckley estudou os riscos feitos nas suas anotações e deixou passar alguns
segundos. Todos na sala esperavam a pergunta seguinte, sabendo que seria brutal. Bass
olhava para o promotor como um prisioneiro olha para o pelotão de fuzilamento,
esperando e rezando para que os fuzis negassem fogo. Finalmente, Buckley sorriu para o
perito.
- Dr. Bass, alguma vez foi condenado por delito grave?
A pergunta ecoou no silêncio e, vinda de todas as direções, Pousou nos ombros
de Tyler Bass. Uma breve olhadela ao seu rosto revelava a resposta. Carl Lee apertou os
olhos e encarou o seu advogado.
- É claro que não! - respondeu Bass em voz alta e em desespero.
Buckley limitou-se a baixar a cabeça e caminhar lentamente para a mesa, onde
Musgrove, com muita cerimônia, lhe entregou alguns documentos que pareciam muito
importantes.
- Tem certeza? - trovejou Buckley.
- É claro que tenho - protestou Bass, olhando para os documentos que pareciam
importantes.
Jake sabia que precisava se levantar e dizer ou fazer alguma coisa para impedir a
carnificina iminente, mas o seu cérebro estava paralisado.
- Tem certeza? - perguntou Buckley.
- Tenho - respondeu Bass com os dentes cerrados. - Nunca foi condenado por
delito grave?
- É claro que não.
- Tem tanta certeza disso como do resto do seu depoimento perante este júri?
Era essa a armadilha, o golpe mortal, a pergunta mais letal de todas, uma
pergunta que Jake tinha usado muitas vezes, e quando a ouviu, compreendeu que Bass
estava liquidado. E com ele Carl Lee.
- É claro - respondeu Bass, com fingida arrogância.
Buckley avançou para o xeque-mate.
- Está dizendo a este júri que, em 17 de Outubro de 1956, em Dallas, Texas, não
foi condenado por delito grave sob o nome de Tyler Bass? - Buckley fez a pergunta,
olhando para o júri e lendo os documentos aparentemente importantes.
- Isso é mentira - disse Bass, em voz baixa e pouco convincente.
- Tem certeza de que é mentira? - perguntou Buckley.
- Uma mentira descarada.
- O senhor sabe distinguir entre uma mentira e a verdade, Dr. Bass?
- Pode estar certo de que sei.
Noose pôs os óculos no nariz e inclinou-se para frente. Os jurados pararam de se
mexer nas cadeiras. Os repórteres pararam de escrever. Os policiais no fundo da sala
ficaram imóveis, escutando. Buckley pegou um dos documentos e examinou-o.
- Está dizendo a este júri que, no dia 17 de Outubro de 1956, não foi condenado
por estupro de menor?
Jake sabia que, em qualquer crise no tribunal, era importante manter o rosto
inexpressivo. Era importante que os jurados, que não perdiam nada, vissem uma
expressão positiva no rosto do advogado de defesa. Jake tinha praticado essa aparência
positiva, de tudo-está-maravilhosamente bem, tudo-sob-controle, em muitos julgamentos
e durante muitas surpresas, mas com o "estupro de menor" a aparência positiva,
confiante e segura foi imediatamente substituída por uma expressão doentia, pálida e
dolorosa, atentamente examinada pelo menos por metade dos jurados. A outra metade
olhava carrancuda para a testemunha.
- O senhor foi condenado por estupro de menor, doutor? - perguntou Buckley,
depois de um longo silêncio.
Nenhuma resposta. Noose, que se tinha encolhido na cadeira, inclinou-se na
direção da testemunha.
- Por favor, responda à pergunta, Dr. Bass.
Bass ignorou o meritíssimo e encarou o promotor; disse:
- O senhor está enganado.
Com um sorriso de desprezo, Buckley foi até à mesa onde Musgrove lhe estendeu
outros documentos que pareciam importantes. Abriu um envelope grande e branco e
retirou o que parecia ser uma fotografia 20 X 25.
- Bem, Dr. Bass, eu tenho algumas fotografias suas tiradas pelo Departamento de
Policial de Dallas, no dia 11 de Setembro de 1956. O senhor gostaria de vê-las?
Nenhuma resposta. Buckley estendeu as fotografias à testemunha.
- Gostaria de ver estas aqui, Dr. Bass? Talvez elas pudessem refrescar-lhe a
memória.
Bass abanou a cabeça devagar, depois baixou-a e olhou para as botas.
- Meritíssimo, o estado deseja juntar ao depoimento estas cópias, autenticadas
conforme as Leis do Congresso, do julgamento final e da ordem de sentença no processo
denominado Estado do Texas contra Tyler Bass, documentos obtidos pelo estado das
autoridades competentes de Dallas, Texas, segundo os quais, em 17 de Outubro de 1956,
um certo Tyler Bass se declarou culpado da acusação de estupro de um menor, um delito
grave de acordo com as leis do Estado do Texas. Podemos provar que Tyler Bass e esta
testemunha, Dr. W T. Bass, são uma só e a mesma pessoa.
Musgrove educadamente entregou a Jake uma cópia de tudo ó que Buckley
agitava no ar.
- Alguma objeção à inclusão disso no depoimento? - perguntou Noose na direção
de Jake.
Um discurso era imprescindível. Uma explicação brilhante e cheia de emoção, que
tocasse os corações do jurados e os fizessem chorar de pena de Bass e do seu paciente.
Mas as normas de procedimento não permitiam isso naquele momento. Obviamente a
prova era admissível. Incapaz de se pôr de pé, Jake meneou negativamente a cabeça.
Nenhuma objeção.
- Não temos mais perguntas - disse Buckley.
- Deseja reinquirir a testemunha, Dr. Brigance? - perguntou Noose.
Naquela fração de segundo de que dispunha, Jake não conseguiu pensar numa
única coisa que pudesse perguntar a Bass para melhorar a situação. O júri tinha ouvido
bastante a respeito do perito da defesa.
- Não - disse Jake calmamente.
- Muito bem, Dr. Bass, o senhor está dispensado.
Bass atravessou rapidamente o portãozinho da barra, enveredou pela passagem
central e saiu da sala do tribunal. Jake observou atentamente a saída de Bass, deixando
perceber todo o seu ódio. Era importante que o júri visse até que ponto o réu e o
advogado estavam chocados. O júri tinha de acreditar que um réu convicto não fora
deliberadamente levado ao banco das testemunhas.
Quando a porta se fechou e Bass desapareceu, Jake olhou em volta, na
esperança de encontrar um rosto encorajador. Não havia nenhum. Lucien cofiava a barba
e olhava para o chão. Lester, com os braços cruzados, estava com um ar enojado. Gwen
chorava.
- Chame a sua próxima testemunha - disse Noose.
Jake continuou à procura. Na terceira fila, entre o reverendo Ollie Agee e o
reverendo Luther Roosevelt, estava Norman Reinfeld. Quando os olhos dele encontraram
os de Jake, ele franziu a testa e abanou a cabeça como se dissesse: "Eu o avisei". Do
outro lado da sala, a maioria dos brancos parecia aliviada e alguns até sorriam para Jake.
- Dr. Brigance, pode chamar sua próxima testemunha. Contra a própria avaliação,
Jake tentou levantar-se. Os joelhos vergaram e ele inclinou-se para frente com as palmas
das mãos espalmadas de encontro à mesa.
- Meritíssimo - disse ele, com voz estridente, descontrolada, derrotada -,
poderíamos suspender a sessão até à uma hora?
- Mas, Dr. Brigance, são só onze e meia.
Uma mentira pareceu oportuna.
- Sim, Meritíssimo, mas a nossa próxima testemunha não está aqui e só chegará à
uma hora.
- Muito bem. A sessão fica suspensa até à uma hora. Quero ver os advogados no
meu gabinete.
Ao lado da sala do juiz, havia uma sala de café onde os advogados se reuniam
para conversar. Perto dela, havia uma pequeno banheiro. Jake fechou-se no banheiro,
tirou o casaco e atirou-o ao chão. Ajoelhou-se ao lado do vaso, esperou um momento,
depois vomitou.
Ozzie estava de pé diante do juiz e tentava conversar enquanto Musgrove e o
promotor sorriam um para o outro. Estavam à espera de Jake. Finalmente, este entrou na
sala e pediu desculpas.
- Jake, tenho más notícias - disse Ozzie.
- Deixe-me sentar primeiro.
- Recebi há uma hora um telefonema do xerife de Lafayette County. A sua
estagiária, Ellen Roark, está no hospital.
- Que aconteceu?
- O Klan a apanhou na noite passada. Em algum entre Clanton e Oxford.
Amarraram-na a uma árvore e a espancaram.
- Como é que ela está?
- Estável, mas o estado é grave.
- Que aconteceu? - perguntou Buckley.
- Não temos certeza. Eles arranjaram uma maneira de fazê-la parar o carro e
levaram-na para o bosque. Cortaram-lhe a roupa toda e o cabelo também. Ela sofreu
comoção cerebral e golpes na cabeça. Por isso julgam que foi espancada.
Jake precisava vomitar outra vez. Não conseguia falar. Massageou as têmporas e
pensou em como seria bom amarrar Bass numa árvore e espancá-lo. Noose olhou para o
advogado de defesa e teve pena dele.
- Dr. Brigance, o senhor está bem?
Não obteve resposta.
- Vamos fazer um intervalo até às duas horas. Acho que nós todos precisamos de
um intervalo destes - disse Noose.
Jake caminhou devagarinho para os degraus da frente com uma garrafa vazia de
cerveja e, por um momento, pensou seriamente em despedaçá-la na cabeça de Lucien.
Mas compreendeu que o outro nem sequer sentiria.
Lucien sacudiu os cubos de gelo no copo, olhando para longe, na direção da
praça, que há muito tempo estaria deserta não fossem os soldados e a multidão
costumeira de adolescentes que se dirigiam para o cinema para ver o programa duplo dos
sábados.
Não diziam nada. Lucien olhava para longe. Jake olhava ferozmente para ele, com
a garrafa vazia na mão. Bass estava a centenas de quilômetros de distância.
Cerca de um minuto depois, Jake perguntou:
- Onde está o Bass?
- Foi embora.
- Para onde?
- Para casa.
- Onde é que ele vive?
- Porque quer saber?
- Eu gostaria de ver a casa dele. Gostaria de vê-lo em casa. Gostaria de espancá-
lo até o matar com um bastão de beisebol, dentro da casa dele.
Lucien sacudiu os cubos de gelo.
- Eu não o culpo, Jake.
- Você sabia?
- Sabia de quê?
- Da condenação.
- Que diabo, não! Ninguém sabia. O registro foi cancelado.
- Não estou entendendo.
- Bass me disse que o registro da condenação no Texas foi cancelado três anos
depois de ter sido feito.
Jake pôs a garrafa vazia no chão, ao lado da cadeira. Pegou num copo sujo,
soprou para dentro dele, encheu-o de gelo e serviu-se de uma dose de Jack Daniel's.
- Você é capaz de me explicar?
- Segundo o Bass, a garota tinha dezessete anos e era filha de um juiz eminente
de Dallas. Eles estavam no cio e o juiz os apanhou embrulhados no sofá da sala. Iniciou
um processo e Bass não teve a menor chance. Declarou-se culpado de violação de
menor. Mas a garota estava apaixonada. Eles continuaram a encontrar-se e ela apareceu
grávida. Bass casou com ela e deu ao juiz um bebê perfeito como primeiro neto. O velho
mudou de opinião e a queixa foi cancelada.
Lucien bebeu e contemplou as luzes da praça.
- O que aconteceu à garota?
- Diz Bass que uma semana antes de se formar em medicina, a mulher, que
estava grávida outra vez, e o menino morreram num desastre de trem em Fort Worth. Foi
quando ele começou a beber e parou de viver.
- E ele nunca lhe tinha contado isso a você?
- Não me interrogue. Eu já lhe disse que não sabia de nada. Lembre-se, eu
mesmo o chamei para testemunhar por duas vezes. Se eu soubesse isto, ele nunca teria
deposto.
- Porque é que ele nunca lhe contou nada?
- Penso que porque ele julgava que o registro tinha sido apagado. Não sei.
Tecnicamente ele tem razão. Não há registro depois do cancelamento. Mas ele foi
condenado.
Jake bebeu um gole longo e amargo de uísque. Era horrível. Ficaram sentados em
silêncio durante dez minutos. Estava escuro e os grilos cantavam em coro animado. Sallie
chegou à porta de rede e perguntou a Jake se queria jantar.
- Não, obrigado.
- Que aconteceu esta tarde? - perguntou Lucien.
- Carl Lee fez o seu depoimento e encerramos às quatro horas. O psiquiatra de
Buckley não está pronto. Vai testemunhar na segunda-feira.
- Como é que ele se saiu?
- Mais ou menos. Veio logo depois de Bass e a gente podia sentir o ódio dos
jurados. Ele estava pouco à vontade e parecia ensaiado. Acho que não ganhou muitos
pontos.
- Que é que Buckley fez?
- Perdeu a cabeça. Berrou com o Carl Lee durante uma hora. Carl Lee estava
decidido a enfrentá-lo, e os dois digladiaram-se o tempo todo. Acho que ambos saíram
feridos. Na contra-interrogação, animei-o um pouco e ele ficou quase patético. Quase que
chorou no fim.
- Isso é bom.
- É, muito bom. Mas eles vão condená-lo, não vão?
- Imagino que sim.
- Depois do intervalo, tentou me despedir. Disse que eu tinha perdido a causa e
que queria outro advogado.
Lucien foi até à frente da varanda e abriu o fecho das calças. Encostou-se a uma
coluna e regou os arbustos. Estava descalço e parecia uma vítima de cheias. Sallie
trouxe-lhe outra bebida.
- Como está Row Ark? - perguntou Lucien.
- Estável, dizem. Telefonei para o quarto dela e uma enfermeira disse-me que ela
não pode falar. Vou lá amanhã.
- Espero que esteja bem. É uma boa garota.
- É uma garota radical, mas muito inteligente. Eu acho que a culpa é minha,
Lucien.
- Não é culpa sua. É um mundo louco, Jake. Cheio de gente louca. Neste
momento, penso que metade dessa gente está em Ford County.
- Há duas semanas puseram dinamite debaixo da janela do meu quarto. Depois
mataram o marido da minha secretária. Ontem, dispararam sobre mim e acertaram um
soldado. Agora apanham a minha estagiária, amarram-na a uma estaca, arrancam-lhe a
roupa, cortam-lhe cabelo e ela está no hospital em estado de choque. Só penso no que
virá a seguir.
- Acho que deve se render, Jake.
- Por mim, fazia-o... Por mim, ia ao tribunal agora mesmo e entregava a minha
pasta, depositava as minhas armas, desistia. Mas render-me a quem? O inimigo é
invisível.
- Não pode desistir, Jake. O seu cliente precisa de você
- Para o inferno com o meu cliente! Ele tentou me despedir hoje.
- Ele precisa de você Esta coisa só vai acabar quando chegar ao fim.
A cabeça de Nesbit pendia metade para fora da janela e a saliva escorria pelo lado
esquerdo do queixo, descia pela porta e formava uma pequena poça em cima do "O" do
Ford da insígnia do Departamento de Policial na lateral do carro. Uma lata vazia de
cerveja umedecia-lhe a calça. Ao fim de duas semanas como guarda-costas, já tinha se
habituado a dormir com os mosquitos no carro-patrulha enquanto protegia o advogado.
Momentos depois do sábado passar a domingo, o rádio veio perturbar-lhe o
descanso. Agarrou o microfone enquanto enxugava o queixo na manga esquerda.
- S.0.8 - atendeu.
- Qual é o seu 10-20? .
- O mesmo lugar de há duas horas.
- A casa de Wilbanks?
-10-4.
- Brigance ainda está lá?
-10-4.
- Vá buscá-lo e leve-o para casa, na rua Adams. É uma emergência.
Nesbit passou pelas garrafas vazias da varanda, pela porta que não estava
fechada e encontrou Jake esparramado no sofá na sala da frente.
- Levante-se, Jake! Tem que ir para casa! É uma emergência!
Jake levantou-se de um salto e acompanhou Nesbit. Pararam nos degraus da
frente e olharam para além da cúpula do edifício do tribunal. Ao longe, uma chaminé
incandescente, expelindo fumaça negra, erguia-se acima de um clarão alaranjado e era
arrastada tranqüilamente pelo vento à meia-lua. A rua Adams estava bloqueada por um
grande número de veículos de voluntários, quase todos pick-ups. Cada um tinha diversas
luzes vermelhas e amarelas de emergência, pelo menos mil ao todo. Elas giravam e
clareavam e cortavam a escuridão num coro silencioso, iluminando a rua.
Os carros dos bombeiros estavam parados desordenadamente na frente da casa.
Os bombeiros e voluntários trabalhavam freneticamente, estendendo as mangueiras,
começando a organizar-se, respondendo ocasionalmente às ordens do chefe. Ozzie,
Prather e Hastings estavam perto de um carro de bombeiros. Alguns soldados assistiam
calmamente, encostados em um jipe.
O fogo brilhava intensamente. As chamas saíam de todas as janelas da frente da
casa, em cima e em baixo. A garagem estava completamente em chamas. O Cutlass de
Carla ardia por dentro e por fora, os quatro pneus emitindo um clarão próprio, mais
escuro. Curiosamente, um outro carro, menor, não o Saab, ardia perto do Cudass. O
crepitar e assobiar do fogo, mais o barulho surdo dos motores dos carros dos bombeiros,
mais as vozes altas dos homens que trabalhavam atraíam curiosos de vários quarteirões.
Do gramado, do outro lado da rua, olhavam para o incêndio.
Jake e Nesbit desceram a rua correndo. O chefe dos bombeiros, ao vê-los, veio
encontrá-los correndo:
- Jake, há alguém dentro de casa?
- Não!
- Ótimo! Eu pensei que havia...
- Só um cão.
- Um cão?!
Jake confirmou com a cabeça e olhou para a casa.
- Lamento muito - disse o chefe.
Reuniram-se junto do carro de Ozzie, em frente da casa da Sra. Pickle. Jake
respondia às perguntas.
- Aquele Volkswagen ali debaixo, não é seu, não é Jake?
Jake olhou num silêncio atônito para o marco histórico de Carla. Abanou a cabeça.
- Calculei que não fosse. Parece que foi ali que o fogo começou.
- Não compreendo - disse Jake.
- Se não é o seu carro, então alguém o estacionou ali, certo? Está vendo como o
chão da garagem está ardendo? É gasolina. Alguém encheu o carrinho de gasolina,
estacionou ali e foi embora. Provavelmente, tinha algum dispositivo para atear o fogo.
Prather e dois voluntários concordaram.
- Há quanto tempo está tudo queimando? - perguntou Jake.
- Chegamos aqui há dez minutos - disse o chefe - e já estava tudo em chamas.
Diria uma meia-hora. É um belo incêndio. Sabiam o que estavam fazendo.
- Suponho que não se possa tirar nada de dentro, não é? - perguntou Jake, já
sabendo a resposta.
- Não há como, Jake. Está muito espalhado. Os meus homens não conseguiriam
entrar mesmo que houvesse alguém lá dentro... É um belo incêndio!
- Por que diz isso?
- Bem, olhe para aquilo! Está queimando por igual pela casa toda. Vê chamas em
todas as janelas. Em cima e em baixo. Isso é raríssimo! Mais um minuto e vai queimar o
telhado!...
Dois grupos avançaram alguns passos com as mangueiras, atirando água na
direção das janelas pelo alpendre da frente. Uma mangueira menor estava assestada a
uma janela do segundo andar. Depois de observar durante um ou dois minutos a água
que desaparecia no meio das chamas, sem qualquer efeito, o chefe cuspiu e disse:
- Vai queimar totalmente. - Disse isto e desapareceu no meio dos carros de
bombeiros e começou a gritar ordens.
Jake olhou para Nesbit.
- Pode me fazer um favor?
- Claro, Jake.
- Vá a casa de Harry Rex e traga-o aqui. Não quero que ele perca isto.
- Com certeza.
Durante duas horas, Jake, Ozzie, Harry Rex e Nesbit, sentados no carro da
policial, viram o fogo cumprir a profecia do chefe dos bombeiros. De vez em quando um
vizinho aproximava-se, expressava a sua simpatia e perguntava pela família. A Sra.
Pickle, a doce velhinha da casa vizinha, chorou ruidosamente quando Jake lhe disse que
Max tinha sido consumido pelo fogo.
Às três horas os policiais e outros curiosos tinham desaparecido e às quatro a
graciosa casinha vitoriana estava reduzida a um monte de escombros fumegantes. Os
últimos bombeiros abafaram todos os sinais de fumaça das ruínas. Só a chaminé e as
carroçarias queimadas de dois carros se erguiam acima dos escombros quando as
pesadas botas de borracha avançavam aos tropeções pelos destroços à procura de
fagulhas ou de chamas ocultas que pudessem de algum modo saltar e incendiar o resto
do entulho.
As últimas mangueiras foram enroladas quando o sol começava a aparecer. Jake
agradeceu aos bombeiros quando eles partiram. Ele e Harry Rex foram andando até o
quintal e inspecionaram a extensão da perda.
- Ora, ora - disse Harry Rex. - É só uma casa.
- Você é capaz de telefonar para Carla e dizer isso?
- Não. Acho que você é que deve telefonar.
- Acho que vou esperar... Harry Rex consultou o relógio.
- Está quase na hora do café, não está?
- Hoje é domingo, Harry Rex. Não há nada aberto.
- Ah, Jake, você é um amador, e eu um profissional. Arranjo comida quente a
qualquer hora de qualquer dia.
- No estacionamento de caminhões?
- No estacionamento de caminhões!
- Está bem. E quando terminarmos, vamos a Oxford ver como está Row Ark.
- Ótimo. Mal consigo esperar até para vê-la com um corte de cabelo masculino!
Sallie pegou o telefone e o atirou-o a Lucien, que só depois de algumas tentativas
conseguiu pô-lo na posição certa.
- Sim, quem fala? - perguntou ele, olhando pela janela para a escuridão lá fora.
- É Lucien Wilbanks?
- Sim, quem fala?
- Conhece Clyde Sisco?
- Conheço.
- São cinqüenta mil.
- Volte a me telefonar de manhã.

Sheldon Roark, sentado na janela com os pés nas costas de uma cadeira, lia no
jornal de domingo de Memphis a reportagem sobre o julgamento de Hailey. No fim da
primeira página estava uma fotografia da sua filha e a história do seu encontro com o
Klan. Ela repousava confortavelmente na cama a alguns passos dali. O lado esquerdo da
cabeça estava raspado e coberto com uma ligadura grossa. A orelha esquerda tinha
levado vinte e oito pontos. A comoção cerebral, julgada séria a princípio, não tinha maior
gravidade, e os médicos tinham prometido que ela teria alta na quarta-feira.
Ela não fora violada nem chicoteada. Os médicos que telefonaram para Boston
não deram muitos detalhes. Sheldon Roark passou sete horas num avião sem saber o
que lhe tinham feito à filha, mas à espera do pior. No sábado, a altas horas da noite, os
médicos fizeram novas radiografias e disseram-lhe que podia ficar descansado. As
cicatrizes desapareceriam e o cabelo voltaria a crescer. Ela fora aterrorizada e maltratada,
mas podia ter sido muito pior.
Ele ouviu um alarido no corredor. Alguém discutia com uma enfermeira. Sheldon
pôs o jornal sobre a cama da filha e abriu a porta. Uma enfermeira tinha surpreendido
Jake e Harry Rex no corredor. Explicou-lhes que o horário das visitas começava às duas
da tarde e que já eram oito horas; que só pessoas da família podiam visitar os pacientes e
que ia chamar a segurança se eles não se fossem embora. Harry Rex explicou que
estava pouco se importando com o horário de visitas ou para qualquer outro regulamento
idiota do hospital, que a paciente era sua noiva, e que ele a ia ver pela última vez antes
que ela expirasse e que se a enfermeira não se calasse, a processaria por tê-lo
molestado porque era advogado e há uma semana que não processava ninguém e estava
ficando impaciente.
- O que é está acontecendo aqui? - perguntou Sheldon.
Jake olhou para o homenzinho ruivo, de olhos verdes, e disse:
- O senhor deve ser Sheldon Roark.
- Sou.
- Eu sou Jake Brigance, o que...
- Sim, tenho lido algumas coisas a seu respeito. Está tudo bem, enfermeira, eles
estão comigo.
- Isso mesmo - disse Harry Rex. - Está tudo bem. Nós estamos com ele. Agora,
quer fazer o favor de nos deixar a sós, antes que eu penhore o seu salário?
Ela jurou que ia chamar a segurança e afastou-se furiosa.
- Eu sou Harry Rex Vonner - disse ele, apertando a mão de Sheldon Roark.
- Entrem - disse ele.
Seguiram-no, entraram no pequeno quarto e avistaram Ellen, que ainda dormia.
- Como está ela? - perguntou Jake.
- Uma comoção cerebral leve. Vinte e oito pontos na orelha e onze na cabeça. Vai
ficar boa. O médico disse que ela poderia ter alta na quarta-feira. Ontem à noite ela
estava acordada e conversamos bastante.
- O cabelo dela está horrível - observou Harry Rex.
- Eles puxaram-no e cortaram à faca, disse-me ela. Também lhe fizeram a roupa
em pedaços e ameaçaram açoitá-la. Os ferimentos na cabeça foram feitos por ela
mesma. Ela pensou que ia ser morta ou violada, por isso bateu com a cabeça na estaca
em que estava amarrada. Deve ter assustado os homens.
- Quer dizer que não a espancaram?
- Não. Eles não lhe fizeram mal. Só a deixaram morta de medo.
- O que foi que ela viu?
- Não muita coisa. Uma cruz em chamas, mantos brancos, uns doze homens.
O xerife disse que foi numa pastagem, dezoito quilômetros a leste daqui.
Propriedade de uma fábrica de papel.
- Quem a encontrou? - perguntou Harry Rex.
- O xerife recebeu um telefonema anônimo de um cara chamado Mickey Mouse.
- Ah, sim. O meu velho amigo... Ellen gemeu baixinho e espreguiçou-se. - Vamos
para fora - disse Sheldon.
- Este lugar tem um bar? - perguntou Harry Rex. - Fico faminto quando entro em
um hospital.
- Claro. Vamos tomar um café.
O bar no primeiro andar estava vazio. Jake e Sheldon Roark beberam café puro.
Harry Rex começou por três donuts doces e uma garrafa de leite.
- Pelo que diz o jornal, as coisas não vão muito bem - disse Sheldon.
- O jornal é muito bondoso - disse Harry Rex com a boca cheia. - O nosso Jake
está recebendo pontapés no rabo de toda a sala do tribunal. E a vida não está fácil do
lado de fora também. Quando não estão atirando nele, ou seqüestrando a estagiária,
estão incendiando-lhe a casa.
- Incendiaram a sua casa!? Jake confirmou com a cabeça.
- A noite passada. Ainda está soltando fumaça.
- Tive a impressão de sentir cheiro de fumaça...
- Nós a vimos queimar completamente. Levou quatro horas.
- Lamento muito. Já me ameaçaram com isso, mas o pior que fizeram foi cortarem
os pneus do carro. Também nunca dispararam sobre mim.
- Em mim já foram duas vezes...
- Também existe o Klan em Boston? - perguntou Harry Rex.
- Não que eu saiba.
- É uma pena... Estes caras acrescentam uma dimensão real à prática do Direito.
- É o que parece... Vimos na televisão o tumulto do lado de fora do tribunal na
semana passada. Tenho acompanhado isto muito de perto desde que Ellen se envolveu.
É um caso famoso. Mesmo no norte. Gostaria que fosse meu.
- É todo seu - disse Jake. - Acho que o meu cliente está à procura de um novo
advogado.
- Quantos psiquiatras o estado vai chamar para depor?
- Só um. Vai testemunhar amanhã de manhã e depois teremos a nossa
argumentação final. Devemos entregar o caso ao júri amanhã, no fim da tarde.
- É uma pena que Ellen não possa estar presente. Ela telefonava-me todos os dias
para falar sobre o caso.
- Onde foi que você errou? - perguntou Harry Rex.
- Não fale com a boca cheia - disse Jake.
- Eu acho que você fez um bom trabalho. Para começo de conversa, é um
conjunto de fatos desagradáveis. Hailey cometeu os crimes, planejou-os cuidadosamente
e depende de uma alegação bastante fraca de insanidade. Os júris de Boston não teriam
muita simpatia por ele.
- Nem de Ford County - disse Harry Rex.
- Espero que tenha um trunfo final emocionante escondido na manga - disse
Sheldon.
- Ele não tem nem mangas... - disse Harry Rex. - Foram todas queimadas!
Juntamente com as calças e as cuecas.
- Porque não vem assistir ao julgamento amanhã? - perguntou Jake. - Eu o
apresento ao juiz e peço que autorize a sua presença no gabinete.
- Ele não faria isso por mim - disse Harry Rex.
- Percebo porquê... - disse Sheldon com um sorriso. - Talvez vá. De qualquer
forma, já tinha planejado ficar até terça-feira. É seguro aquilo lá?
- Não muito.

A mulher de Woody Mackenvale, sentada num banco de plástico no corredor junto
ao quarto do marido, chorava mansamente, procurando parecer corajosa para os dois
filhos pequenos sentados a seu lado. Cada uma das crianças segurava uma caixa de
lenços e uma vez ou outra enxugava a cara e assoava o nariz.
Jake ajoelhou-se diante dela e ouviu com atenção o que ela lhe contou que os
médicos haviam dito. A bala tinha se alojado na coluna vertebral, a paralisia era grave e
irreversível. Ele era chefe de seção numa fábrica de Booneville. Bom emprego. Uma boa
vida. Ela não trabalhava, pelo menos até agora. Haviam de encontrar maneira de se
arranjarem, mas ela não sabia como. Ele era treinador da equipe de beisebol onde os
filhos jogavam. Era um homem muito ativo.
Ela se pôs a chorar mais alto e as crianças enxugaram o rosto.
- Ele me salvou a vida - disse-lhe Jake, olhando para as crianças.
Ela fechou os olhos e meneou a cabeça afirmativamente.
- Estava fazendo o seu trabalho. Nós vamos nos arranjar.
Jake tirou um lenço de papel da caixa e enxugou os olhos. Um grupo de parentes
de pé nas imediações estava observando-os. Harry Rex, nervoso, andava de um lado
para o outro, no fim do corredor. Jake abraçou-a e afagou a cabeça dos meninos. Deu-lhe
o número do seu telefone - do escritório - e disse-lhe que telefonasse se ele pudesse
fazer alguma coisa. Prometeu visitar Woody depois do julgamento.
No domingo, as lojas que vendiam cerveja abriam ao meio-dia como se os fiéis
precisassem disso, nessa altura, e, a caminho de casa, ao saírem da casa do Senhor,
tivessem de fazer uma parada para levarem duas caixas de seis latas, antes de irem para
o almoço dominical na casa da avó e passar a tarde como o diabo gosta. O estranho era
que elas fechavam de novo às seis da tarde, como se devessem negar cerveja aos
mesmos fiéis que retornavam à igreja para os ofícios da noite de domingo. Nos outros
seis dias, a cerveja era vendida das seis da manhã até à meia-noite. Mas no domingo, a
venda era encurtada em homenagem ao Todo-Poderoso.
Jake comprou uma caixa de seis, no Armazém Bates, e mandou o motorista ir em
direção ao lago. O velho Bronco de Harry Rex tinha mais de cinco centímetros de lama
seca nas portas e nos pára-lamas. Os pneus nem apareciam. O pára-brisas,
perigosamente rachado, estava cheio de insetos mortos, colados nas bordas. O
certificado de revisão tinha quatro anos e não se via do lado de fora. Dezenas de latas de
cerveja vazias e de garrafas quebradas espalhavam-se pelo chão. O ar-condicionado não
funcionava há seis anos. Jake tinha sugerido o Saab. Harry Rex praguejou dizendo que
não compreendia tanta estupidez. O Saab vermelho era um alvo fácil para franco-
atiradores. Ninguém iria suspeitar daquela lata velha.
Saíram devagarinho na direção geral do lago, para nenhum lugar definido. O
lamento de Willie Nelson vibrava no leitor de cassetes. Ao mesmo tempo em que marcava
o ritmo no volante, Harry Rex cantava. A sua voz normal era áspera e rude. Cantando, era
medonha. Jake bebia a sua cerveja, à procura da luz do dia através do pára-brisas.
A onda de calor estava prestes a ser quebrada. Nuvens escuras apareciam a
sudoeste, e quando eles passaram pelo Huey's, a chuva começou a cair, regando a terra
ressequida e limpando as trepadeiras que ladeavam o leito da estrada e pendiam das
árvores como barbas-de-velho. Esfriou o asfalto e formou uma névoa pegajosa, que se
erguia a um metro do chão. As ravinas na terra vermelha absorviam a água e, quando
cheias, formavam pequenos regatos que desciam para as valas irrigando os campos e as
laterais da estrada. A chuva encharcou o algodão e a soja e castigou as fileiras das
plantações, até formar pequenas poças entre uma planta e outra.
Surpreendentemente, os limpadores de pára-brisas funcionavam. Dançavam
furiosamente de um lado para o outro, removendo a lama e a coleção de insetos. A
tempestade cresceu. Harry Rex aumentou o volume do estéreo.
Os negros com as suas varas de pesca e chapéus de palha abrigaram-se debaixo
das pontes, à espera de que a chuva passasse. Lá em baixo, os regatos secos voltavam
à vida. Água barrenta descia dos campos e das ravinas, alimentando os riachos. A água
subia e avançava. Os negros comiam queijo e biscoitos e contavam histórias de
pescarias.
Harry Rex estava com fome. Parou no Armazém Treadway's, perto do lago, e
comprou mais cerveja, dois pratos feitos de peixe frito e um saco grande de torresmos
com molho de pimenta. Atirou os torresmos a Jake.
Atravessaram a represa sob a cortina cerrada de chuva. Harry Rex parou ao lado
de um pequeno pavilhão na área para piqueniques. Sentaram-se à mesa e ficaram vendo
a chuva sobre o lago Chatulla. Jake bebia cerveja enquanto Harry Rex comia os dois
pratos de peixe frito.
- Quando é que vai contar à Carla? - perguntou ele, bebendo um gole de cerveja.
A chuva batia ruidosamente no teto de zinco.
- Contar o quê?
- Da casa.
- Não vou contar. Acho que posso mandar reconstruí-la antes que ela volte.
- Quer dizer, até o fim da semana?
- Isso mesmo.
- Está ficando maluco ou quê, Jake? Anda bebendo demais e está perdendo a
noção da realidade.
- É o que mereço. Trabalhei para isso. Estou a duas semanas da falência. Estou à
beira de perder o maior caso da minha carreira, pelo qual recebi novecentos dólares. A
minha bela casa, que todas as pessoas gostavam de fotografar e que as velhas senhoras
do Clube de Jardinagem queriam que aparecesse na Southern Living, está reduzida a
escombros. A minha mulher deixou-me e quando souber do incêndio, vai pedir o divórcio.
Não tenho a menor dúvida. Assim, vou perder a minha mulher. E quando a minha filha
souber que o maldito cão dela morreu no incêndio, vai me odiar para sempre. Há uma
conspiração para me matar. Os assassinos do Klan estão atrás de mim. Atiradores
disparam contra mim. Há um soldado que está no hospital com uma bala na espinha, a
bala que era para mim. Está condenado a ser um vegetal e vou pensar nele dia e noite
enquanto eu viver. O marido da minha secretária foi morto por minha causa. A minha
última funcionária está no hospital com um corte de cabelo punk e uma comoção cerebral
porque trabalhava para mim. O júri pensa que sou um salafrário mentiroso por causa do
perito que escolhi para testemunhar. O meu cliente quer me despedir. Quando ele for
condenado, todos vão me culpar. Ele vai contratar outro advogado para a apelação, um
daqueles sujeitinhos da associação, e vão me processar por ter sido inepto como
advogado de defesa. E com razão. Assim, vou ser acusado de imperícia. Ficarei sem
mulher, sem filha, sem casa, sem profissão, sem dinheiro, sem nada.
- Você estás precisando da ajuda de um psiquiatra, Jake... Acho que deve marcar
uma hora com o Dr. Bass. Tome, beba uma cerveja.
- Acho que vou viver com Lucien e ficar sentado na varanda o dia inteiro.
- Posso ficar com o seu escritório?
- Você acha que ela vai pedir o divórcio?
- Provavelmente. Eu já passei por quatro, e elas pedem o divórcio por qualquer
ninharia.
- A Carla não. Eu adoro o chão que ela pisa e ela sabe isso.
- No chão, ela vai dormir quando voltar para Clanton.
- Nada disso, vamos comprar um trailer bonitinho e confortável. Vai servir até
terminar o processo da minha falência. Depois, procuramos outra casa e recomeçamos a
vida.
- Provavelmente, vai ter de arranjar outra mulher para recomeçar. Por que a Carla
haveria de deixar uma casa elegante na praia para passar a viver num trailer em Clanton?
- Porque eu vou estar no trailer.
- Não vai dar certo, Jake. Você vai ser um advogado bêbado, proibido de exercer,
falido, vivendo num trailer! Publicamente desonrado, esquecido por todos os amigos,
menos eu e Lucien. Carla nunca mais voltará. É o fim, Jake. Como seu amigo e
advogado, aconselho-o a entrar com o pedido de divórcio antes dela. Peça o divórcio
amanhã, assim ela não vai ter tempo de saber o que aconteceu.
- Porque é que eu tenho de pedir divórcio?
- Porque ela vai te processar. Nós entramos com o pedido antes, alegando que ela
o abandonou quando você mais precisava do apoio dela.
- Isso é motivo para divórcio?
- Não. Mas diremos também que você estás louco, insanidade momentânea...
Deixe isso por minha conta. O precedente M'Naghten. Não se esqueça de que eu sou o
advogado especialista em divórcios?
- Como é que eu me esqueceria?
Jake colocou no copo o resto da cerveja quente e abriu outra garrafa. A chuva
diminuiu e as nuvens ficaram mais claras. Um vento frio começou a soprar do lago.
- Vão condená-lo, não vão, Harry Rex? - perguntou Jake, olhando para o lago.
Harry Rex parou de mastigar e limpou a boca. Pousou o prato de papelão na mesa
e bebeu um longo gole de cerveja. Gotas de chuva, trazidas pelo vento, molharam-lhe a
cara. Enxugou-as com a manga.
- Vão, Jake. O seu homem está para ir desta para melhor... Vejo isso nos olhos
deles. Aquela coisa da insanidade não colou. Eles, logo no início, não queriam acreditar
em Bass e depois de Buckley ter lhe baixado as calças em público, resolveram
definitivamente. Carl Lee também não ajudou muito. Parecia ensaiado e sincero demais.
Como se implorasse compaixão. Fez um depoimento repugnante. Observei o júri
enquanto ele testemunhava. Não vi nenhum sinal de simpatia. Eles vão condenar, Jake. E
rapidamente.
- Obrigado por ser tão franco.
- Sou seu amigo e acho que você deve se preparar para a condenação e para um
longo recurso.
- Sabe de uma coisa, Harry Rex, eu queria nunca ter ouvido falar em Carl Lee
Hailey.
- Acho que é tarde demais para isso, Jake.

Sallie abriu a porta e disse a Jake que lamentava o que acontecera à casa. Lucien
estava lá em cima, no escritório, sóbrio e trabalhando. Apontou para uma cadeira e
mandou Jake sentar-se. A mesa estava cheia de bloco de notas.
- Passei a tarde toda trabalhando numa argumentação final - disse ele, mostrando
a papelada à sua frente. - A sua única esperança de salvar Hailey é com um desempenho
arrebatador nas alegações finais. Repare, estamos falando da maior alegação final da
história da jurisprudência. É o que ela vai ser.
- E presumo que tenha criado essa obra-prima.
- Para ser franco, sim. É melhor do que qualquer coisa que pudesse produzir,
Jake. E calculei, corretamente, que você ia passar a tarde de domingo lamentando a
perda da sua casa e afogando as mágoas em cerveja. Eu sabia que não ia ter nada
preparado. Por esse motivo, preparei isto para você
- Gostaria de conseguir ficar tão sóbrio como o senhor, Lucien.
- Eu bêbado era melhor advogado do que você sóbrio.
- Pelo menos sou um advogado.
Lucien atirou um bloco de notas para o lado de Jake.
- Aí está! Uma compilação das minhas maiores alegações finais. Lucien Wilbanks
na sua melhor forma, tudo condensado numa só alegação para você e para o seu cliente.
Sugiro que decore e use palavra por palavra. Vale a pena. Não tente modificar nem
improvisar. Só iria estragar tudo.
- Vou pensar nisso. Já fiz isso uma vez, não se lembra?
- Pois não parece.
- Que diabo, Lucien! Não me chateie!
- Calma, Jake. Vamos tomar alguma coisa. Sallie! Sallie!
Jake atirou a obra-prima para o sofá e foi até à janela que dava para a parte de
trás da casa. Sallie subiu correndo a escada. Lucien pediu uísque e cerveja.
- Passou a noite toda em claro? - perguntou Lucien. - Não. Dormi das onze ao
meio-dia!
- Você está horrível! Precisa de uma boa noite de sono.
- Sinto-me péssimo, e o sono não vai adiantar. Nada vai adiantar, exceto o fim
deste julgamento. Eu não compreendo, Lucien. Não compreendo por que tudo saiu mal.
Deus sabe que mereço um pouco de sorte. O caso nem devia ser julgado em Clanton.
Deram-nos o pior júri possível, um júri corrupto. Mas eu não posso provar isso. A nossa
testemunha-chave foi completamente destruída. O réu prestou um depoimento horroroso.
E o júri não confia em mim. Não sei que mais poderia me acontecer!
- Ainda pode ganhar o caso, Jake. Vai precisar de um milagre, mas essas coisas
às vezes acontecem. Eu arranquei a vitória das garras da derrota muitas vezes com uma
alegação final eficiente. Concentre a atenção em um ou dois jurados. Represente para
eles. Fale com eles. Lembre-se, basta um para impedir que o veredicto seja alcançado
por unanimidade.
- Devo fazer o júri chorar?
- Se puder. Não é fácil. Mas eu acredito em lágrimas por parte dos jurados. É
muito eficaz.
Sallie voltou com as bebidas e eles desceram para a varanda. Quando anoiteceu,
Sallie serviu sanduíches e batatas fritas. Às dez horas, Jake foi para o quarto. Telefonou
para Carla e conversaram durante uma hora. Não disse nada sobre a casa. O estômago
apertou-se quando ouviu a voz dela e compreendeu que ia ter de lhe dizer que a casa, a
casa dela, já não existia. Jake desligou, rezando para que Carla não soubesse pelos
jornais.
QUARENTA

Na segunda-feira de manhã, Clanton voltou ao normal com as barricadas em volta
da praça e o número de soldados reforçado, para garantir a ordem pública. Eles andavam
pela praça tranqüilamente, observando os homens do Klan e o grupo de negros, que
voltavam aos seus lugares, um de cada lado da passagem central. Depois do dia de
descanso, todos voltaram com renovada energia e, às oito e meia, ambos os coros
estavam animados. Com a notícia do fracasso do Dr. Bass, o Klan farejou a vitória. Além
disso, tinham marcado um ponto na rua Adams. Pareciam mais barulhentos do que
nunca. Às nove, Noose convocou os advogados ao seu gabinete.
- Só queria ter certeza de que estavam todos vivos e gozando de perfeita saúde -
disse com um largo sorriso dirigido a Jake.
- Sr. Dr. Juiz, porque não vai plantar batatas? - disse Jake em voz baixa, mas de
modo que todos pudessem ouvir.
Os promotores ficaram gelados. O Sr. Pate pigarreou alto. Noose inclinou a
cabeça para o lado, como se fosse meio surdo.
- O que foi que disse, Dr. Brigance?
- Eu disse, porque não começamos logo, Sr. Dr. Juiz?
- Sim, foi o que eu pensei que tinha dito. Como está a sua estagiária, Miss Roark?
- Vai ficar boa.
- Foi o Klan?
- Foi, Sr. Dr. Juiz. O mesmo Klan que tentou me matar. O mesmo Klan que
iluminou todo o distrito com as cruzes de fogo e que fez só Deus sabe o quê visando o
nosso rol de jurados. O mesmo Klan que provavelmente intimidou a maioria dos jurados
que estão sentados lá fora. Sim, senhor, o mesmo Klan.
Noose tirou os óculos com um gesto brusco.
- Pode provar isso?
- Quer dizer, se eu tenho confissões escritas, assinadas, autenticadas em cartório,
dos homens do Klan? Não, senhor. Eles recusam-se a cooperar.
- Se não pode provar, Dr. Brigance, então esqueça.
- Sim, Meritíssimo.
Jake saiu da sala e bateu com a porta. Segundos depois, o Sr. Pate pediu ordem
no tribunal e todos se levantaram. Noose deu as boas-vindas ao seu júri e garantiu que o
sacrifício estava quase no fim. Ninguém sorriu para ele. Fora um fim de semana solitário
no Temple Inn.
- O estado oferece alguma refutação? - perguntou ele a Buckley.
- Uma testemunha, Meritíssimo.
O Dr. Rodeheaver foi trazido da sala das testemunhas. Sentou-se cuidadosamente
na cadeira da testemunha e cumprimentou o júri com uma demorada inclinação da
cabeça. Parecia um psiquiatra. terno escuro, sem botas. Buckley assumiu o pódio e sorriu
para o júri.
- O senhor é Dr. Wilbert Rodeheaver? - trovejou ele, olhando para o júri como se
dissesse: "Agora vocês vão ver o que é um verdadeiro psiquiatra".
- Sim, senhor.
Buckley fez perguntas, milhões de perguntas, sobre o seu currículo acadêmico e
profissional. Rodeheaver parecia confiante, calmo, preparado e habituado ao banco de
testemunhas. Falou longamente da sua vasta preparação profissional, da sua vasta
experiência clínica e da enorme magnitude do seu trabalho mais recente como chefe de
equipe do hospital estadual de doentes mentais. Buckley perguntou-lhe se tinha escrito
artigos sobre psiquiatria. Ele disse que sim e, durante trinta minutos, comentaram os
artigos daquele homem tão culto. Tinha recebido subsídio do governo federal e de vários
estados para as suas pesquisas. Era membro de todas as instituições citadas por Bass e
de mais algumas. Era reconhecido por todas as associações que tinham alguma relação,
por mais remota que fosse, com o estudo da mente humana. Era um homem educado e
discreto. Buckley apresentou-o como perito e Jake não fez perguntas. Buckley continuou:
- Dr. Rodeheaver, quando examinou pela primeira vez Carl Lee Hailey?
O perito consultou suas anotações.
- A dezenove de Junho.
- Onde foi feito o exame?
- No meu consultório em Whitfield.
- Durante quanto tempo o examinou?
- Umas duas horas.
- Qual o objetivo desse exame?
- Determinar as suas condições mentais naquela ocasião e também na ocasião em
que matou o Sr. Cobb e o Sr. Willard.
- O senhor obteve o seu histórico clínico?
- A maior parte da informação foi conseguida por um médico da equipe do hospital.
Eu fiz a revisão com o Sr. Hailey.
- O que revelou o histórico?
- Nada de importante. Ele falou muito sobre o Vietnã, mas nada de importante.
- Ele falou voluntariamente sobre o Vietnã?
- Ah, sim. Ele queria falar no assunto. Era quase como se o tivessem aconselhado
a falar nisso tanto quanto possível.
- Sobre que mais falaram nesse primeiro exame?
- De várias coisas. Da infância, família, estudos, vários empregos, praticamente de
tudo.
- Ele falou do estupro da filha?
- Sim, detalhadamente. Foi doloroso para ele falar no assunto, como seria para
mim se tratasse da minha filha.
- Ele falou sobre os eventos que provocaram a morte de Cobb e Willard?
- Sim, conversamos longamente sobre isso. Tentei determinar o seu grau de
conhecimento e compreensão desses acontecimentos.
- Que foi que ele disse?
- No começo, não muita coisa. Mas aos poucos ele abriu-se e contou que tinha
examinado o edifício três dias antes e escolhido o melhor lugar para agir.
- E sobre os tiros?
- Não falou muito sobre isso. Disse que não se lembrava, mas eu suspeito que não
é verdade.
Jake levantou-se de um salto.
- Protesto! A testemunha só pode falar sobre o que sabe com certeza. Não pode
fazer insinuações.
- Deferido. Por favor, continue, Dr. Buckley.
- O que mais observou a respeito do seu estado de espírito, atitude e modo de
falar?
Rodeheaver cruzou as pernas e mexeu-se levemente na cadeira. Franziu a testa,
pensando profundamente.
- Inicialmente, não confiou em mim e evitava me olhar nos olhos. As respostas
eram muito breves. Estava ressentido por ser mantido sob escolta e algemado durante o
tempo que permaneceu na nossa instituição. Questionou as paredes acolchoadas. Mas,
ao fim de algum tempo, começou a falar livremente. Recusou-se terminantemente a
responder a certas perguntas, mas de um modo geral cooperou bastante.
- Quando e onde o senhor o voltou a examiná-lo?
- No dia seguinte, no mesmo lugar.
- Qual era o seu estado de espírito, a atitude dele?
- Mais ou menos idênticos aos da véspera. Distante, a princípio, abrindo-se mais,
aos poucos. Falamos praticamente sobre as mesmas coisas do dia anterior.
- Quanto tempo durou esse exame?
- Aproximadamente quatro horas.
Buckley consultou as suas notas e conversou em voz baixa com Musgrove.
- Agora, Dr. Rodeheaver, como resultado do exame do Sr. Hailey, nos dias 19 e 20
de Junho, o senhor chegou a um diagnóstico da condição psiquiátrica do acusado nesses
dias?
- Sim, senhor.
- E qual é esse diagnóstico?
- Nos dias 19 e 20 de Junho o Sr. Hailey demonstrou estar mentalmente são.
Perfeitamente normal, diria eu.
- Muito obrigado. Com base nos seus exames, o senhor chegou a um diagnóstico
das condições mentais do Sr. Hailey no dia em que matou Billy Ray Cobb e Pete Willard?
- Sim.
- E qual é esse diagnóstico?
- Naquela ocasião, as condições mentais dele eram perfeitas, sem alteração de
qualquer natureza.
- Em que fatores se baseia o senhor para afirmar isso?
Rodeheaver voltou-se para o júri e começou a aula.
- Deve-se considerar o nível de premeditação envolvido neste crime. O motivo é
um elemento de premeditação. Ele tinha certamente um motivo para fazer o que fez e as
condições mentais dele, na ocasião, não o impediam de alimentar a necessária
premeditação. Francamente, o Sr. Hailey planejou cuidadosamente o que fez.
- Doutor, o senhor conhece o precedente M'Naghten como teste de
responsabilidade criminal?
- Certamente.
- E está ciente de que outro psiquiatra, um tal Dr. W. T. Bass, disse a este júri que
o Sr. Hailey era incapaz de distinguir entre o certo e o errado e, mais, que não era capaz
de compreender e avaliar a natureza e a qualidade das suas ações?
- Sim, estou ciente disso.
- O senhor concorda com essas declarações?
- Não. Considero-as absurdas e sinto-me pessoalmente ofendido por elas. O
próprio Sr. Hailey afirmou que planejou os crimes. Na verdade, admitiu que as suas
condições mentais, na ocasião, não o impediram de planejar cuidadosamente. A isso
chama-se premeditação em qualquer livro de Direito ou de Medicina. Eu nunca soube de
ninguém que, tendo admitido que planejou um crime, diga depois que não sabia o que
estava fazendo. Isso é absurdo.
Naquele momento Jake achou que era absurdo também e, quando as palavras
ecoaram pela sala, pareceu extremamente absurdo. Rodeheaver parecia correto e
infinitamente digno de confiança. Jake pensou em Bass e praguejou mentalmente contra
si mesmo.
Lucien, sentado no meio dos negros, concordava com cada palavra de
Rodeheaver. Quando comparado com Bass, o médico do estado era extremamente digno
de confiança. Lucien ignorou o júri. De vez em quando, sem mover a cabeça, mexia os
olhos e surpreendia Clyde Sisco olhando acintosamente para ele. Mas Lucien não
permitia que os seus olhos se encontrassem. O mensageiro não tinha telefonado na
manhã de segunda-feira, conforme as instruções. Um aceno afirmativo com a cabeça ou
uma piscadela de Lucien consumaria o contrato, com pagamento a ser combinado mais
tarde, depois do veredicto. Sisco conhecia as regras e aguardava a resposta dele. Que
não veio. Lucien queria conversar primeiro com Jake.
- Agora, doutor, com base nesses fatores e no seu diagnóstico das condições
mentais do acusado no dia 20 de Maio, o senhor tem uma opinião, com um grau razoável
de certeza médica, quanto à capacidade do Sr. Hailey de reconhecer a diferença entre o
certo e o errado quando disparou sobre Billy Ray Cobb, Pete Wiilard, e o subdelegado
DeWayne Looney?
- Tenho.
- E qual é essa opinião?
- As suas condições mentais eram boas e ele era perfeitamente capaz de distinguir
entre o certo e o errado.
- E o senhor tem uma opinião pessoal, baseada nos mesmos fatores, quanto à
capacidade do Sr. Hailey em compreender e avaliar a natureza e a qualidade das suas
ações?
- Tenho.
- E qual é essa opinião?
- Que ele sabia exatamente o que estava fazendo.
Buckley pegou seu bloco de notas e curvou-se educadamente.
- Muito obrigado, doutor. Não tenho mais perguntas.
- Deseja interrogar a testemunha, Dr. Brigance? - perguntou Noose.
- Apenas algumas perguntas.
- Foi o que pensei. Faremos um intervalo de quinze minutos.
Ignorando Carl Lee, Jake saiu rapidamente da sala, subiu a escada e entrou na
biblioteca do terceiro andar. Harry Rex esperava-o com um sorriso.
- Acalma-se, Jake. Telefonei para todos os jornais da Carolina do Norte e não saiu
nada sobre a casa, nada acerca de Row Ark. O matutino de Raleigh traz uma reportagem
sobre o julgamento, mas em termos muito gerais. Nada mais. Carla não sabe nada sobre
a casa, Jake. Por hora, o seu lindo marco histórico continua de pé. Não é ótimo?
- Maravilhoso. Simplesmente maravilhoso. Obrigado, Harry Rex.
- Não tem de quê. Escute, Jake. Eu detesto ter de falar nisto.
- Mal posso esperar.
- Você sabes que eu detesto Buckley. Eu o odeio mais do que você. Mas eu e
Musgrove nos damos bem. Eu posso falar com o Musgrove. Ontem à noite, estive
pensando se não seria uma boa idéia contata-los, através de Musgrove, e ver se há
possibilidade de um entendimento.
- Não!
- Ouça, Jake. Que mal pode fazer? Nenhum! Se você puder fazer com que ele se
confesse culpado de homicídio, sem câmara de gás, saberá então que lhe salvou a vida.
- Não!
- Preste atenção, Jake, o seu cliente está a quarenta e oito horas de uma
condenação de pena de morte. Se você não acredita nisso, está cego, Jake. Meu amigo
você está cego.
- Por que razão Buckley iria querer negociar? Ele nos levou às cordas!
- Talvez ele não queira. Mas deixe-me pelo menos descobrir.
- Não, Harry Rex. Nem pense nisso!

Rodeheaver voltou para o seu lugar, após o intervalo, e Jake, por trás do pódio,
olhou para ele. Na sua curta carreira forense jamais tinha ganho uma discussão, no
tribunal ou fora dele, com um perito. E da maneira que estava a sua sorte, resolveu não
discutir com este.
- Dr. Rodeheaver, a psiquiatria é o estudo da mente humana, não é?
- É.
- E é, na melhor das hipóteses, uma ciência inexata, não é?
- Isso é correto.
- O senhor poderia examinar uma pessoa e fazer um diagnóstico, e outro
psiquiatra poderia chegar a um diagnóstico completamente diferente?
- Isso é possível, sim.
- Na verdade, dez psiquiatras podem examinar um paciente com problemas
mentais e chegar a dez opiniões diferentes acerca do que não está bem nesse paciente?
- Isso é pouco provável.
- Mas poderia acontecer, não poderia, doutor?
- Poderia, sim. Da mesma forma que as opiniões jurídicas, calculo eu.
- Mas não estamos tratando de opiniões jurídicas neste caso, não é, doutor?
- Não.
- Na verdade, doutor, em muitos casos a psiquiatria não pode dizer o que está mal
no cérebro de uma pessoa?
- Isso é verdade.
- E os psiquiatras passam a vida discordando uns dos outros, não é verdade,
doutor?
- É claro.
- Agora, para quem trabalha o senhor, doutor?
- Para o estado do Mississipi.
- E há quanto tempo?
- Onze anos.
- E quem é que está processando o Sr. Hailey?
- O estado do Mississipi.
- Durante os seus onze anos de carreira no estado, quantas vezes é que o senhor
depôs em julgamentos onde a alegação de insanidade foi usada pela defesa?
Rodeheaver pensou um momento.
- Penso que este é o meu quadragésimo terceiro julgamento.
Jake consultou alguns papéis numa pasta e olhou para o médico com um
sorrisinho maldoso.
- Tem certeza de que não é o seu quadragésimo sexto?
- Pode ser, sim. Não tenho certeza.
Toda a sala ficou imóvel. Buckley e Musgrove consultaram as suas anotações
avidamente, sem deixar de observar com atenção a testemunha.
- Quarenta e seis vezes o senhor foi testemunha do estado em julgamentos de
insanidade?
- Se é o que o senhor diz.
- E quarenta e seis vezes o senhor testemunhou que o réu não era legalmente
insano. Correto, doutor?
- Não tenho certeza.
- Bem, deixe-me simplificar. O senhor testemunhou quarenta e seis vezes, e
quarenta e seis vezes emitiu a opinião de que o réu não era legalmente insano. Correto?
Rodeheaver remexeu-se levemente, e um indício de desconforto apareceu nos
seus olhos.
- Não tenho certeza.
- O senhor nunca viu um réu criminal legalmente insano, doutor?
- É claro que sim.
- Ótimo. O senhor poderá então, por favor, dizer-nos o nome do acusado e onde
foi julgado?
Buckley levantou-se e abotoou o casaco.
- Meritíssimo, o estado faz objeção a estas perguntas. O Dr. Rodeheaver não é
obrigado a lembrar-se dos nomes e dos lugares dos julgamentos nos quais testemunhou.
- Indeferida. Sente-se. Responda à pergunta, doutor.
Rodeheaver respirou fundo e olhou para o teto. Jake olhou para os jurados.
Estavam acordados e à espera de uma resposta.
- Não me lembro - acabou ele por dizer.
Jake levantou uma grossa pilha de papéis e brandiu-a à frente da testemunha.
- É possível, doutor, que a razão pela qual o senhor não se lembra é que em onze
anos, quarenta e seis julgamentos, o senhor nunca testemunhou em favor do réu?
- Sinceramente, não sou capaz de me lembrar.
- O senhor pode sinceramente citar um único julgamento em que verificou que o
réu era legalmente insano?
- Estou certo de que há alguns.
- Sim ou não, doutor. Um único julgamento?
O perito olhou rapidamente para o promotor.
- Não. A memória não me ajuda. Neste momento não posso
Jake caminhou vagarosamente para a mesa da defesa e pegou numa pasta
volumosa.
- Dr. Rodeheaver, o senhor lembra-se de ter testemunhado no julgamento de um
homem chamado Danny Booker, em McMurphy County, em Dezembro de 1975? Um
caso bastante sinistro de duplo homicídio?
- Sim, lembro-me desse julgamento.
- E o senhor testemunhou dizendo que ele não era legalmente insano, não foi?
- Isso é correto.
- Lembra-se de quantos psiquiatras testemunharam em favor do acusado?
- Não exatamente. Houve vários.
- Os nomes dos doutores Noel McClacky, O. G. McGuire e Lou Watson lhe dizem
alguma coisa?
- Sim.
- São todos psiquiatras, não são?
- Sim.
- São todos qualificados, não são?
- Sim.
- E todos examinaram o Sr. Booker e, no julgamento, testemunharam que na
opinião deles o desgraçado era legalmente insano?
- Correto.
- E o senhor testemunhou que ele não era legalmente insano?
- Correto.
- Quantos outros médicos endossaram o seu parecer?
- Nenhum, que eu me lembre.
- Então, foram três contra um?
- Sim, mas continuo convencido de que eu tinha razão.
- Compreendo. O que foi que o júri fez, doutor?
- O réu, ahh, foi julgado inocente em virtude de insanidade mental.
- Muito obrigado. Agora, Dr. Rodeheaver, o senhor é o médico-chefe de Whitfield,
não é?
- Sim, por assim dizer.
- O senhor é direta e indiretamente responsável pelo tratamento de todos os
pacientes de Whitfield?
- Sou diretamente responsável, Dr. Brigance. Posso não tratar pessoalmente de
cada um dos pacientes, mas os médicos deles estão sob a minha supervisão.
- Muito obrigado. Doutor, onde está Danny Booker hoje?
Rodeheaver lançou um olhar desesperado a Buckley, e logo o encobriu com um
sorriso cálido e descontraído para o júri. Hesitou alguns segundos, depois hesitou durante
um segundo longo demais.
- Ele está em Whitfield, não está? - perguntou Jake num tom de voz que informava
todas as pessoas que a resposta era sim.
- Creio que sim - disse Rodeheaver.
- E está diretamente sob os seus cuidados, nesse caso, doutor?
- Suponho que sim.
- E qual é o diagnóstico de Danny Booker, doutor?
- Realmente não sei. Tenho muitos pacientes e...
- Esquizofrênico paranóide?
- É possível, sim.
Jake deu alguns passos para trás e sentou-se na barra do tribunal. Subiu o tom de
voz.
- Agora, doutor, quero deixar isto claro para o júri. Em 1975, o senhor testemunhou
que Danny Booker era legalmente são e entendia exatamente o que fazia quando
cometeu o crime, e o júri discordou de você e julgou-o inocente, e desde aquela época ele
é um paciente no seu hospital, sob a sua supervisão e é tratado pelo senhor como um
esquizofrênico paranóide. Está correto?
O sorriso afetado na cara de Rodeheaver informou o júri que a afirmação era de
fato correta. Jake pegou outra folha de papel e pareceu examiná-la.
- Lembra-se de testemunhar no julgamento de um homem chamado Adam Couch,
em Dupree County, em Maio de 1977?
- Lembro-me desse caso.
- Foi um caso de estupro, não foi?
- Sim.
- E o senhor testemunhou em nome do estado, contra o Sr. Couch?
- Isso é correto.
- E o senhor disse ao júri que ele não era legalmente insano?
- Foi esse o meu depoimento.
- O senhor lembra-se de quantos médicos testemunharam em favor do acusado e
disseram ao júri que ele era um homem muito doente, que era legalmente insano?
- Houve vários.
- Já ouviu falar nos seguintes médicos: Felix Perry, Gene Shumate e Hobny
Wicker?
- Sim.
- São todos eles psiquiatras qualificados?
- São.
- E todos eles testemunharam em favor do Sr. Couch, não foi?
- Sim.
- E todos eles disseram que ele era legalmente insano, não disseram?
- Disseram.
- E o senhor foi o único médico no julgamento a dizer que ele não era legalmente
insano?
- Ao que me lembro, sim.
- E o que fez o júri, doutor?
- O réu foi julgado inocente.
- Por motivo de insanidade?
- Sim.
- E onde está o Sr. Couch hoje, doutor?
- Julgo que está em Whitfield.
- E há quanto tempo está lá?
- Desde o julgamento, creio eu.
- Compreendo. O senhor normalmente admite pacientes e mantém-nos lá durante
vários anos ainda que eles sejam perfeitamente sãos?
Rodeheaver mudou de posição na cadeira e começou a ferver. Olhou para o seu
advogado, o advogado do povo, como se dissesse que estava farto daquilo, e pedisse
que pusesse um fim àquilo tudo. Jake pegou outros papéis.
- Doutor, o senhor lembra-se do julgamento de um homem chamado Buddy
Wooddall, em Cleburne County, em Maio de 1979?
- Sim, certamente.
- Assassinato, não foi?
- Sim.
- E o senhor testemunhou como perito no campo da psiquiatria e disse ao júri que
o Sr. Wooddall não era insano?
- Sim.
- Lembra-se de quantos psiquiatras testemunharam em favor do acusado e
disseram ao júri que o pobre homem estava legalmente insano?
- Acredito que foram cinco, Dr. Brigance.
- Isso é correto, doutor. Cinco contra um. O senhor lembra-se do que fez o júri?
A raiva e a frustração cresciam visivelmente no banco das testemunhas. O sábio e
velho avô/professor com todas as respostas certas começava a ficar perturbado.
- Sim, lembro-me. Foi inocentado por insanidade.
- Como é que o senhor explica isso, Dr. Rodeheaver? Cinco contra um e o júri
decide contra o senhor?
- Não se pode confiar nos júris! - explodiu ele, e logo se conteve. Inquieto, sorriu
amarelo para os jurados.
Jake fitou-o com um sorriso malicioso, depois olhou incrédulo para o júri. Cruzou
os braços e deixou que as últimas palavras calassem fundo. Esperou, olhando e sorrindo
para a testemunha.
- Pode prosseguir, Dr. Brigance - disse Noose por fim. Com movimentos lentos e
muito animado, Jake arrumou as suas pastas e anotações sem tirar os olhos de
Rodeheaver.
- Acho que já ouvimos bastante esta testemunha, Meritíssimo.
- Alguma pergunta, Dr. Buckley?
- Não, senhor. O estado dá por finda a inquirição da testemunha.
Noose dirigiu-se ao júri.
- Senhoras e senhores, este julgamento está quase terminado. Não haverá mais
testemunhas. Agora vou me reunir com os advogados para resolvermos alguns
problemas de ordem técnica, em seguida, eles poderão apresentar as suas alegações
finais. Isso começará às duas horas e levará umas duas horas. Os senhores terão
finalmente o caso por volta das quatro e eu lhes concederei o prazo para deliberar até às
seis. Se não chegarem a um veredicto hoje, serão conduzidos de volta aos seus quartos
até amanhã. São quase onze horas, e a sessão fica suspensa até às duas. Quero falar
com os advogados no meu gabinete.
Carl Lee inclinou-se e falou com o seu advogado pela primeira vez desde sábado.
- Desmontou-o que foi uma beleza, Jake.
- Espere até ouvir as alegações finais.
Jake evitou Harry Rex e seguiu de carro para Karaway. A casa da sua infância era
uma antiga casa de campo no centro da cidade, cercada de velhos carvalhos, bordos e
álamos que mantinham o ar fresco apesar do verão escaldante. Atrás da casa, passadas
as árvores, um longo campo aberto estendia-se ao longo de duzentos metros e
desaparecia depois de uma pequena colina. Uma tela de arame erguia-se em um canto.
Ali, Jake dera os primeiros passos, andara na sua primeira bicicleta, atirara as primeiras
bolas de futebol e beisebol. Debaixo de um carvalho ao lado do campo tinha enterrado
três cães, um guaxinim, um coelho e alguns patos. Um pneu de um Buick 54 oscilava
dependurado não muito longe do pequeno cemitério.
A casa estava fechada e vazia há dois meses. Um garoto da vizinhança cortava a
grama e cuidava do jardim. Jake vinha abri-la uma vez por semana. Os pais estavam no
Canadá numa viagem: o ritual do Verão. Jake desejou estar com eles.
Abriu a porta e subiu para o seu quarto. Continuaria a ser sempre o mesmo.
Retratos de futebol nas paredes, troféus, bonés de beisebol, pôsteres de Pete Rose,
Archie Manning e Hank Aaron. Uma porção de luvas de beisebol pendiam por cima da
porta do armário. Um retrato da formatura, com toga e capelo, estava em cima da
cômoda. A mãe continuava a limpar o quarto todas as semanas. Certa vez, ela tinha dito
que entrava muitas vezes no quarto à espera de encontrar Jake sentado, fazendo os
deveres ou separando figurinhas de beisebol. Folheava os álbuns de recortes dele e
ficava com os olhos cheios de lágrimas.
Jake pensou no quarto de Hanna, com os bichos de pelúcia e o papel de parede
com figuras dos contos de fadas. Sentiu um nó na garganta.
Olhou pela janela, para além das árvores, e viu a si mesmo balançando no pneu
perto das três cruzes brancas onde estavam enterrados os seus cães. Lembrou-se de
cada um dos enterros, das promessas do pai de arranjar outro cão. Pensou em Hanna e
no seu cão, e os olhos encheram-se de lágrimas. A cama era muito pequena agora.
Jake tirou os sapatos e deitou-se. Um capacete de futebol pendia do teto. Oitava
série, Mustangs de Karaway. Jake tinha marcado sete touchdowns em cinco games.
Estava tudo no filme guardado na estante lá em baixo. Tinha o estômago ardendo.
Cuidadosamente arrumou as suas notas - as suas, não as de Lucien - na cômoda.
Estudou demoradamente a sua imagem no espelho.

Jake dirigiu-se ao júri. Começou por enfrentar o seu maior problema, Dr. W. T.
Bass. Pediu desculpas. Um advogado entra no tribunal, enfrenta um júri estranho e nada
tem a oferecer além de sua credibilidade. E se ele faz qualquer coisa que prejudique essa
credibilidade, está prejudicando a sua causa, o seu cliente. Pediu que acreditassem que
ele não chamaria nunca a depor, como perito, em qualquer julgamento, um réu convicto.
Não sabia da condenação; levantou a mão e jurou. O mundo está cheio de psiquiatras, e
poderia ter encontrado outro facilmente se soubesse que o Dr. Bass tinha um problema,
mas simplesmente não sabia. E pedia desculpas. Mas, e o depoimento de Bass? Há trinta
anos ele fizera sexo com uma menor de menos de 18 anos no Texas. Isso significa que
está mentindo agora neste julgamento? Significa que não se pode confiar na sua opinião
de profissional? Por favor, sejam justos com Bass, o médico, esqueçam Bass, o indivíduo.
Por favor, sejam justos com o paciente dele, Carl Lee Hailey. Ele nada sabia do passado
do médico.
Havia uma coisa sobre o Dr. Bass que eles gostariam de saber. Uma coisa que
não tinha sido mencionada pelo Dr. Buckley quando estava estraçalhando o médico. A
menina com quem ele tinha feito sexo tinha dezessete anos. Mais tarde ela tornara-se sua
mulher, dera-lhe um filho varão, e estava grávida quando ela e o filho foram mortos num
desastre de trem...
- Protesto! - gritou Buckley. - Protesto, Meritíssimo. Essa prova não consta dos
autos!
- Deferido. Dr. Brigance, o senhor não deve referir-se a fatos que não constam do
depoimento. O júri deve ignorar as últimas afirmações do Dr. Brigance.
Jake ignorou Noose e Buckley, e fitou sofridamente o júri. Quando a gritaria
acabou, ele prosseguiu. E Rodeheaver? Ele perguntava a si próprio se o médico do
estado alguma vez fizera sexo com uma menor de dezoito anos. Parecia tolice pensar
numa coisa dessas, não parecia? Bass e Rodeheaver nos seus dias de juventude... isso
parecia tão sem importância agora, neste tribunal, quase trinta anos depois. O médico do
estado é um homem com um preconceito óbvio. Um especialista muito preparado, que
cuida de milhares de pessoas com todos os tipos de doenças mentais, porém, quando se
trata de crimes, não é capaz de reconhecer os sintomas de insanidade. O seu testemunho
deve ser ponderado cuidadosamente.
Os jurados olhavam para ele, ouvindo cada palavra. Jake não era um orador de
tribunal, como o seu opositor. Era calmo, sincero. Parecia cansado, quase abatido.
Lucien, sóbrio, com os braços cruzados, observava os jurados, todos menos
Sisco. Não era o seu texto, mas era bom. Vinha do coração. Jake pediu desculpas pela
sua inexperiência. Não tinha estado em muitos julgamentos, não em tantos quanto o Sr.
Buckley. E se parecia um pouco verde ou se cometia erros, por favor, não usassem isso
contra Carl Lee. Não era culpa dele. Jake era apenas um principiante tentando fazer o
possível contra um adversário experiente, que atuava em processos criminais todos os
meses. Jake tinha cometido um erro com Bass, e tinha cometido outros erros, e pedia ao
júri que lhos perdoasse.
Ele tinha uma filha, a única que teria em toda a sua vida. Ela tinha quatro anos,
quase cinco, e o mundo dele girava em volta dela. Ela era especial, era uma menina e
competia a ele protegê-la. Havia ali um elo, alguma coisa que não sabia explicar. Falou de
filhas pequenas. Carl Lee tinha uma filha. Chamava-se Tonya. Apontou para ela, na
primeira fila, ao lado da mãe e dos irmãos. É uma bonita menina de dez anos. E ela
nunca poderá ter filhos. Nunca poderá ter uma filha porque...
- Protesto! - disse Buckley, sem gritar.
- Deferido - disse Noose.
Jake ignorou o alvoroço. Falou sobre estupro durante algum tempo e explicou por
que razão o estupro é muito pior do que o assassinato. No caso de assassinato, a vítima
desaparece e não é obrigada a lidar com o que lhe aconteceu. A família sim, mas não a
vítima. Mas o estupro é muito pior. A vítima tem uma vida inteira para se afligir, para
tentar entender, fazer perguntas e, a pior parte, saber que o violador ainda está vivo e
pode algum dia fugir ou ser solto. Em todas as horas do dia, a vítima pensa na violação e
faz a si mesma milhares de perguntas. Revive-o passo a passo, minuto a minuto, e a dor
é sempre insuportável.
Talvez o crime mais hediondo de todos seja o estupro violento de uma menina.
Uma mulher violada tem uma idéia razoável da razão por que isso aconteceu. Algum
animal estava cheio de ódio, raiva e violência. Mas e uma menina? Uma menina de dez
anos? Suponha que é um pai ou uma mãe. Imagine-se tentando explicar por que razão
ela não pode ter filhos.
- Protesto.
- Deferido. Por favor, senhoras e senhores, não considerem a última frase.
Jake não perdeu o ritmo. Suponha, disse ele, que a sua filha de dez anos seja
violada, que o senhor seja um veterano do Vietnã, inteiramente familiarizado com uma M-
16, e que consegue pôr as mãos em uma enquanto sua filha está no hospital lutando para
sobreviver. Suponha que o violador seja apanhado, e que seis dias depois consegue
chegar muito perto dele quando ele vai sair do tribunal. E tem a M-16.
O que é que faz?
O Dr. Buckley disse-lhes o que faria. Depois de chorar a morte da filha, ofereceria
a outra face e esperaria que o sistema judiciário funcionasse. Esperaria que o violador
recebesse a sentença, fosse mandado para Parchman e nunca conseguisse a liberdade
condicional. É isto que ele faria, e devem admirá-lo por ser uma alma tão bondosa,
compassiva e misericordiosa. Mas o que faria um pai normal?
O que faria Jake? Se tivesse a M-16? Estouraria os miolos do patife. Era simples.
Era justo.
Jake parou para beber água, depois mudou de ritmo. A expressão sofredora e
humilde desapareceu, substituída pela indignação. Falemos de Cobb e Willard. Foram
eles que começaram esta confusão. Era a vida deles que o estado estava tentando
justificar. Quem sentiria a falta deles, além das mães? Violadores de crianças. Traficantes
de drogas. A sociedade sentiria falta de cidadãos tão produtivos? Ford County não estava
mais seguro sem eles? As outras crianças do condado não estavam em melhor situação,
agora que dois estupradores e traficantes tinham sido eliminados? Todos os pais se
deviam sentir mais seguros. Carl Lee merece uma medalha, ou pelo menos aplausos. Ele
era um herói. Exatamente aquilo que Looney disse. Dêem ao homem um troféu. Mandem-
no de volta para o seio da sua família.
Falou de Looney. Looney tinha uma filha. Também tinha só uma perna, graças a
Carl Lee Hailey. Se alguém tinha direito de estar revoltado, de querer sangue, era
DeWayne Looney. E ele tinha dito que Carl Lee devia ser mandado para casa, para junto
da sua família.
Jake incitou-os a perdoar como Looney perdoara. Pediu-lhes que atendessem ao
desejo de Looney.
Já bem mais sereno, declarou que estava quase concluindo. Queria deixá-los com
um único pensamento. Imaginassem isto, se pudessem. Quando estava lá deitada,
espancada, ensangüentada, com as pernas abertas e amarradas às árvores, ela olhou
para a mata que a rodeava. Semi-consciente e desvairada, viu alguém correndo na sua
direção. Era o seu pai, correndo desesperadamente para salvá-la. Em sonhos, ela o viu
quando mais precisava dele. Gritou por ele, e ele desapareceu. Tinha sido levado. Ela
precisa do pai agora, tanto quanto precisava naquele momento. Por favor, não o levem.
Ela espera na primeira fila pelo seu pai. Deixem que ele volte para casa e para a sua
família.
O tribunal estava em silêncio quando Jake se sentou ao lado do seu cliente. Ele
olhou para o júri e viu Wanda Womack enxugar uma lágrima com o dedo. Pela primeira
vez em dois dias ele sentiu uma centelha de esperança.
Às quatro horas, Noose despediu-se do seu júri. Disse-lhes que elegessem um
primeiro-jurado, que se organizassem e começassem a trabalhar. Disse-lhes que podiam
deliberar até às seis, tal vez sete, e se não chegassem a um veredicto, determinaria uma
suspensão até às nove da manhã de terça-feira. Eles levantaram-se e, em fila, saíram
lentamente da sala do tribunal. Longe deles, Noose suspendeu as atividades até às seis
horas e recomendou aos advogados que permanecessem perto da sala do tribunal ou
deixassem um número de telefone com o meirinho.
Os espectadores ficaram sentados, conversando em voz baixa. Carl Lee teve
autorização para se sentar, na primeira fila, com a família. Buckley e Musgrove
esperavam no gabinete do juiz, com Noose. Harry Rex, Lucien e Jake foram para o
escritório a fim de comerem e beberem qualquer coisa. Ninguém esperava um veredicto
rápido.
O meirinho fechou os jurados na sala do júri e ordenou aos dois suplentes que
ficassem sentados no corredor estreito. Lá dentro, Barry Acker foi eleito primeiro-jurado
por aclamação. Ele pôs as instruções do júri e as provas numa mesinha de canto.
Sentaram-se ansiosos em volta de duas mesas dobráveis unidas pelas extremidades.
- Sugiro que façamos uma votação informal - disse ele. - Só para nos situarmos.
Alguma objeção?
Nenhuma. Ele tinha uma lista com os doze nomes.
- Votem culpado, inocente ou indeciso. Ou podem passar, por enquanto.
- Reba Betts.
- Indecisa.
- Bernice Toole.
- Culpado.
- Carol Corman.
- Culpado.
- Donna Lou Peck.
- Indecisa.
- Sue Williams.
- Passo.
- Jo Ann Gates.
- Culpado.
- Rita Mae Plunk.
- Culpado.
- Frances McGowan.
- Culpado.
- Wanda Womack.
- Indecisa.
- Eula Dell Yates.
- Indecisa, por enquanto. Quero conversar primeiro.
- Conversaremos. Clyde Sisco.
- Indeciso.
- São onze. Eu sou Barry Acker, e voto inocente. Fez as contas durante alguns
segundos e disse:
- Temos cinco culpados, cinco indecisos, um passou e um inocente. Parece que
temos de trabalhar agora. Examinaram as provas, as fotografias, as impressões digitais e
os relatórios de balística.
Às seis horas informaram o juiz que não tinham chegado a um veredicto. Estavam
com fome e queriam ir embora. Noose determinou uma suspensão até à manhã de terça-
feira.


QUARENTA E UM

Ficaram horas sentados na varanda, falando pouco, vendo a noite envolver a
cidade lá em baixo e trazer os mosquitos. O ar úmido colava-se à pele e umedecia as
camisas. Os ruídos de uma noite quente de Verão ecoavam suavemente no jardim. Sallie
ofereceu-se para fazer o jantar. Lucien recusou a oferta e pediu uísque. Jake não tinha
apetite para comer, mas a cerveja satisfazia qualquer tipo de fome que por acaso tivesse.
Quando ficou muito escuro, Nesbit saiu do carro, atravessou a varanda e entrou na casa.

Logo a seguir saiu, bateu a porta, passou por eles com uma cerveja gelada na mão e
desapareceu na direção do carro. Não disse uma palavra. Sallie abriu um pouco a porta e
pela última vez ofereceu comida. Ambos recusaram.
- Jake, recebi um telefonema esta tarde. Clyde Sisco quer vinte e cinco mil dólares
para impedir que o júri chegue a unânime a um veredicto e cinqüenta mil por uma
absolvição.
Jake começou a abanar a cabeça.
- Antes de dizer não, ouça o que eu tenho a dizer. Ele sabe que não pode garantir
uma absolvição, mas sabe que pode impedir a unanimidade da decisão. Para isso basta
um só jurado. Isso custa vinte e cinco mil. Eu sei que é muito dinheiro, mas você sabe que
eu tenho dinheiro. Eu pago e você me reembolsa aos poucos durante anos. Quando, não
interessa. Se não pagar, também não interessa. Tenho um montão de certificados de
aforro. Sabe muito bem que o dinheiro não significa nada pra mim. Se eu fosse a você,
faria isso já.
- Você é louco, Lucien.
- É claro que sou louco. Você também não tem agido sensatamente ultimamente.
O trabalho no tribunal enlouquece qualquer um. Repare bem no que esse processo lhe
fez. Não dorme, não come, não tem horas para nada, não tem casa. Mas está bancando
o importante!
- Mas ainda tenho ética.
- Pois eu não tenho nenhuma! Nem ética, nem moral, nem consciência. Mas
ganhei todas, meu amigo. Ganhei mais do que qualquer um nestas redondezas, e você
sabe disso muito bem.
- Isso é corrupção, Lucien.
- E vai me dizer que Buckley não é corrupto? Ele está disposto a mentir, enganar,
subornar e roubar para ganhar este caso. Não está preocupado com ética, normas ou
opiniões. Não se preocupa com moralidade. Só está preocupado com uma coisa: ganhar!
E você tem uma oportunidade de ouro de vencê-lo no seu próprio jogo. Eu o faria, Jake.
- Nem pense, Lucien. Por favor, esqueça.
Passaram uma hora em silêncio. Lá em baixo, as luzes da cidade foram-se
apagando pouco a pouco. Na escuridão, ouviam o ressonar de Nesbit. Sallie serviu a
última rodada de copos e deu boa noite.
- Esta é a parte pior - disse Lucien. - Esperar que doze pessoas medianas,
vulgares, dêem algum sentido a tudo isto.
- É um sistema um pouco doido, não é?
- É, sim. Mas geralmente funciona. Os júris acertam em noventa por cento dos
casos.
- Não me sinto com sorte. Estou à espera do milagre.
- Jake, meu rapaz, o milagre acontecerá amanhã.
- Amanhã?
- Sim, amanhã cedo.
- Pode explicar?
- Amanhã, por volta do meio-dia, Jake, haverá dez mil negros raivosos reunidos
como um bando de formigas em torno do edifício do tribunal de Ford County. Talvez mais.
- Dez mil! Porquê?
- Para gritar, berrar e entoar "Libertem Carl Lee, Libertem Carl Lee". Para fazer um
barulho dos diabos, assustar todas as pessoas, intimidar o júri. Só para abalar tudo.
Haverá tantos, mas tantos negros, que os brancos vão se pôr a milhas... O governador irá
mandar mais soldados.
- E como é que você sabe de tudo isso?
- Porque foi o que eu planejei, Jake.
- Você?
- Ouça, Jake, quando eu estava no apogeu, eu conhecia todos os pregadores
negros de quinze condados em redor. Estive nas igrejas de todos eles. Rezei com eles,
marchei com eles, cantei com eles. Eles me mandavam clientes, e eu mandava-lhes
dinheiro. Eu fui o único advogado radical branco da associação a norte do Mississipi.
Promovi mais ações contra a discriminação racial do que dez firmas de Washington. Eles
eram a minha gente. Limitei-me a dar alguns telefonemas. Começarão a chegar de
manhã e, ao meio-dia, ninguém vai poder passar entre os negros no centro de Clanton.
- De onde vêm eles?
- De toda parte. Você sabe como os negros adoram desfiles e protestos. Isto vai
ser uma beleza para eles. Estão ansiosos que chegue a hora.
- Você é louco, Lucien. Meu amigo louco.
- Eu ganho todas, meu amigo!

No quarto 163, Barry Acker e Clyde Sisco terminaram o jogo de cartas e
começaram a preparar-se para dormir. Acker pegou algumas moedas e disse que ia
buscar um refrigerante. Sisco disse que não estava com sede.
Acker passou na ponta dos pés por um guarda no corredor. A máquina informou-o
de que estava avariada, e ele então abriu a porta de saída e subiu a escada para o
segundo andar, onde encontrou outra máquina perto de um aparelho de fazer gelo.
Colocou as moedas na abertura. A máquina respondeu com uma diet Coke. Acker
abaixou-se para pegá-la. Dois vultos surgiram do escuro. Derrubaram Acker, deram-lhe
pontapés e empurraram-no para um canto perto da máquina de fazer gelo, ao lado de
uma porta com corrente e cadeado. O mais alto agarrou-o pelo colarinho e atirou-o contra
a parede. O mais baixo ficou ao lado da máquina de Coca Cola, vigiando o corredor
escuro.
- Você é Barry Acker! - disse o mais alto com os dentes cerrados.
- Sim. Largue-me! - Acker tentou soltar-se, mas o assaltante ergueu-o pelo
pescoço e manteve-o contra a parede com uma só mão. Usou a outra mão para
desembainhar uma reluzente faca de caça que aproximou do nariz de Acker, deixando-o
estatelado.
- Agora ouça - disse o homem num murmúrio audível - e ouça bem. Sabemos que
você é casado e que mora em Forrest Drive 1161. Sabemos que tem três filhos e
sabemos onde eles brincam e em que escola estudam. A sua mulher trabalha no banco.
Acker sentiu-se desfalecer.
- Se aquele preto for solto, você vai se arrepender. A sua família vai se arrepender.
Pode levar anos, mas você vai se arrepender.
Deixou-o cair no chão e segurou-o pelos cabelos.
- Se você disser uma só palavra sobre isto, perde um filho. Compreendeu?
Os homens desapareceram. Acker respirou fundo, quase sem fôlego. Massageou
a garganta e a nuca. Sentou-se no escuro, apavorado demais para se mexer.


QUARENTA E DOIS

Em centenas de igrejinhas negras no norte do Mississipi os fiéis reuniram-se antes
do nascer do dia e encheram os ônibus escolares e os furgões da igreja com cestas de
piquenique, caixas térmicas e garrafas de água. Cumprimentavam os amigos e
conversavam nervosamente sobre o julgamento. Durante semanas tinham lido e trocado
idéias sobre Carl Lee Hailey. Agora preparavam-se para ajudá-lo. Muitos eram velhos e
reformados, mas havia famílias inteiras, com filhos pequenos e parques para os mais
novos. Quando os ônibus estavam cheios, amontoaram-se nos carros e seguiram os seus
pregadores. Cantavam e rezavam. Os pregadores encontraram-se com outros pregadores
em pequenas cidades e sedes de condados e em grande número rumavam para as
escuras estradas. Quando amanheceu, as estradas e auto-estradas que levavam a Ford
County estavam cheias de caravanas de peregrinos.
Engarrafaram as ruas laterais ao longo de muitos quarteirões em torno da praça.
Estacionavam onde os carros paravam e descarregavam tudo o que traziam.
O coronel gordo tinha acabado de tomar café e estava no coreto observando
atentamente. Ônibus e carros, muitos buzinando, chegavam de todas as direções. As
barricadas continuavam firmes. Gritou algumas ordens de comando e os soldados
puseram-se em movimento. Mais confusão. Às sete e trinta, o coronel telefonou para
Ozzie e informou-o da invasão. Ozzie chegou imediatamente e encontrou Agee, que lhe
assegurou que era uma manifestação pacífica. Mais ou menos como uma greve branca.
Quantos iam chegar? perguntou Ozzie. Milhares, disse Agee. Milhares.
Acamparam à sombra dos carvalhos imponentes e começaram a andar pelo
gramado, inspecionando as coisas. Arrumaram as mesas, as cadeiras e os pequenos
parques das crianças. Agiam de fato pacificamente, até que um grupo começou a gritar
"Libertem Carl Lee". Todos temperaram a garganta e se uniram ao coro. Ainda não eram
oito horas.
Logo de manhã cedo, naquela terça-feira, uma estação de rádio negra de
Memphis inundou os receptores com um pedido de ajuda. Precisavam de negros para
uma manifestação em Clanton, Mississipi, a uma hora de distância. Centenas de carros
afluíram a uma das avenidas e rumaram para o sul. Todos os políticos negros e ativistas
dos direitos civis da cidade fizeram a viagem.
Agee era um possesso. Usava um alto-falante para gritar ordens aqui e acolá.
Conduzia os recém-chegados aos seus lugares. Organizava os pregadores negros.
Garantia a Ozzie e ao coronel que tudo estava bem.
Tudo estava bem até que um grupo de homens da Klan fez o seu aparecimento
rotineiro. Muitos negros nunca tinham visto os mantos brancos e reagiram com vigor.
Avançaram alguns passos, gritando e vaiando. Os soldados cercaram os homens de
branco, protegendo-os. Os membros da Klan, atônitos e assustados, não responderam
com os gritos habituais. Às oito e meia, as ruas de Clanton estavam completamente
fechadas. Carros, furgões e ônibus espalhavam-se desordenadamente nos
estacionamentos e nas tranqüilas ruas residenciais. Uma corrente contínua de negros
dirigia-se para a praça, vinda de todas as direções. O trânsito parou. As passagens que
davam acesso às casas e edifícios estavam bloqueadas. Os lojistas estacionavam longe
das suas lojas. O prefeito, de pé no centro do coreto, torcia as mãos e pedia a Ozzie que
fizesse alguma coisa. À volta dele, milhares de negros apinhados gritavam em uníssono.
Ozzie perguntou ao prefeito se queria que ele começasse a prender todos os que
estavam no gramado do edifício do tribunal.
Noose estacionou num posto de gasolina, oitocentos metros ao sul do edifício da
cadeia, e caminhou para o tribunal com um grupo de negros. Estes observavam-no com
curiosidade mas não diziam nada. Ninguém suspeitava de que ele fosse uma autoridade.
Buckley e Musgrove estacionaram na entrada de uma casa, na rua Adams. Praguejando,
encaminharam-se para a praça. Viram o monte de entulho que fora a casa de Jake mas
não disseram nada. Estavam muito ocupados reclamando e a vociferando. Com os
soldados da força estadual abrindo caminho, o ônibus vindo de Temple chegou à praça
vinte minutos depois das nove. Através dos vidros escuros das janelas, os catorze
passageiros olhavam incrédulos para o carnaval em volta do tribunal.
O Sr. Pate chamou à ordem o tribunal superlotado e Noose deu as boas-vindas ao
júri. Pediu desculpa pela desordem lá fora, mas não havia nada que ele pudesse fazer. Se
não havia problemas a registrar, podiam continuar as deliberações.
- Muito bem, podem retirar-se para a sala do júri e comecem a trabalhar.
Voltaremos a nos reunir pouco antes do almoço.
Os jurados seguiram em fila para a sala do júri. Os filhos de Hailey sentaram-se ao
lado do pai na mesa da defesa. Os espectadores, agora predominantemente negros,
continuavam sentados e conversavam em voz baixa. Jake voltou ao seu escritório. O
primeiro-jurado Acker sentou-se na cabeceira da mesa comprida e empoeirada e pensou
nas centenas, talvez milhares, de habitantes de Ford County que tinham prestado
serviços naquela sala e se tinham sentado em volta daquela mesa e discutido sobre
justiça no último século. Qualquer orgulho que talvez tivesse sentido por servir no júri do
caso mais famoso de todos era em grande parte obscurecido pelo que lhe acontecera na
noite anterior. Perguntou a si mesmo quantos dos seus antecessores tinham sido
ameaçados de morte. Provavelmente alguns, concluiu.
Os outros prepararam o café e pouco a pouco foram se sentando em volta das
mesas. A sala trazia boas lembranças a Clyde Sisco. A sua presença em júris anteriores
tinha sido lucrativa para ele, que agora se deliciava com a idéia de receber outra
generosa soma em troca de outro veredicto justo e autêntico. O seu mensageiro não
voltara a contatá-los.
- O que querem fazer agora? - perguntou Acker.
Rita Mae Plunk parecia uma mulher impiedosa e vingativa. Vivia numa roulotte,
não tinha marido, mas tinha dois filhos marginais que odiavam Carl Lee Hailey. Precisava
aliviar um pouco o que trazia dentro do seu vasto peito.
- Quero dizer algumas coisas - informou ela.
- Ótimo, Miss Plunk. Podemos começar pela senhora e, em seguida, um a um
daremos volta à mesa.
- Na primeira votação, ontem, votei culpado e vou votar culpado outra vez. Não
compreendo como é que alguém pode votar inocente, e gostaria que me explicassem
como se pode votar a favor desse preto!
- Não repita essa palavra! - gritou Wanda Womack.
- Eu digo "preto" sempre que quiser dizer "preto" e você não pode fazer nada. -
respondeu Rita Mae.
- Por favor, não repita essa palavra - disse Frances McGowan.
- Eu considero-a uma ofensa pessoal - disse Wanda Womack.
- Preto, preto, preto, preto, preto, preto! - berrou Rita Mae a todos os jurados.
- Vamos parar com isso - disse Clyde Sisco.
- Calma - disse o porta-voz. - Ouça, Miss Plunk, vamos ser francos, certo? Quase
todos nós usamos essa palavra de vez em quando. Tenho certeza de que alguns a usam
mais do que outros. Mas é ofensiva para muita gente, e seria uma boa idéia não usá-la
durante as nossas deliberações. Já temos muito com que nos preocupar. Será que todos
concordam em não usar essa palavra?
Todos inclinaram a cabeça afirmativamente, menos Rita Mae. Sue Williams
resolveu responder. Era uma mulher de mais ou menos quarenta anos, atraente e bem
vestida. Trabalhava no departamento de bem-estar social do condado.
- Ontem eu não votei. Passei. Mas a minha tendência é simpatizar com o Sr.
Hailey. Eu tenho uma filha, e se ela fosse violada, isso afetaria bastante a minha
estabilidade mental. Percebo perfeitamente que um pai, ou uma mãe, fique
completamente descontrolado numa situação dessas, e acho que não é justo julgarmos o
Sr. Hailey como se ele pudesse agir racionalmente.
- Acha que ele estava legalmente insano? - perguntou Reba Betts, uma indecisa.
- Não tenho certeza. Mas sei que não estava equilibrado. Não podia estar.
- Então acredita naquele médico maluco que testemunhou a favor dele? -
perguntou Rita Mae.
- Acredito. Ele é tão digno de confiança quanto o médico do estado.
- Eu gostei das botas dele - disse Clyde Sisco.
Ninguém riu.
- Mas ele é um condenado - disse Rita Mae. - Mentiu e tentou esconder o passado
dele. Não podemos acreditar numa palavra do que ele disse.
- Ele fez sexo com uma moça que tinha menos de dezoito anos - disse Clyde. - Se
isso é crime, então muitos de nós devíamos ser condenados.
Mais uma vez a sua tentativa de graça não foi apreciada. Clyde resolveu ficar
calado durante algum tempo.
- E depois casou com ela - disse Donna Lou Peck, uma indecisa.
Foram indo por ordem em volta na mesa, um de cada vez, expressando opiniões e
respondendo às perguntas uns dos outros. A palavra foi cuidadosamente evitada pelos
que eram a favor da condenação. As linhas da batalha começaram a definir-se.
Aparentemente, a maioria dos indecisos inclinava-se para a culpa. O fato de Carl Lee ter
planejado o crime, de saber exatamente os movimentos dos dois homens, a M-16, tudo
isso parecia tão premeditado! Se ele tivesse apanhado os dois em flagrante e morto
ambos, ninguém poderia culpá-lo. Mas planejar com tanto cuidado durante seis dias não
indicava falta de sanidade mental.
Wanda Womack, Sue Williams e Clyde Sisco inclinavam-se para a absolvição, o
resto para a condenação. Barry Acker parecia ostensivamente neutro.

Agee desfraldou uma longa bandeira azul e branca, onde estava escrito
LIBERTEM CARL LEE. Os pregadores reunidos atrás dele em colunas de quinze
esperavam a ordem para começar o desfile. Pararam no meio da rua Jackson, em frente
do tribunal, enquanto Agee gritava instruções à multidão. Milhares de negros juntaram-se
numa massa compacta atrás deles e o desfile começou. Caminharam lentamente pela rua
Jackson, viraram para a esquerda na Caffey, na direção do lado oeste da praça. Agee
liderava com os gritos de "Libertem Carl Lee! Libertem Carl Lee!" Todos gritavam, num
coro infindável e repetitivo. À medida que se aproximava da praça, a multidão crescia em
número e aumentava o volume do canto.
Os negociantes e lojistas, antevendo problemas, cerraram as portas e foram para
casa. Examinaram as apólices de seguro para ver se cobriam avarias por desordens de
rua. Os soldados de verde perdiam-se num mar de negros. O coronel, suado e nervoso,
mandou os seus homens cercarem o edifício do tribunal e estarem prontos para qualquer
eventualidade. Quando Agee e a multidão que o seguia apareceram na rua Washington,
Ozzie procurou o líder do Klan. Com sinceridade e diplomacia, convenceu-o de que se as
coisas saíssem do seu controle não poderia garantir a segurança dos homens do Klan.
Reconheceu o seu direito de reunião, disse-lhe que já tinham demonstrado o seu ponto
de vista e pediu-lhe que saíssem da praça antes que acontecesse alguma coisa
desagradável. Eles juntaram-se rapidamente e foram embora.
Quando a bandeira passou sob a sala do júri, os doze foram para a janela,
boquiabertos. A incessante cantilena fazia estremecer os vidros. O alto falante soava
como se estivesse pendurado no teto da sala. Os jurados olhavam incrédulos para a
multidão, a multidão de negros que enchia a rua e dobrava a esquina da rua Caffey.
Inúmeros cartazes feitos em casa ondulavam sobre as cabeças, pedindo a liberdade de
Carl Lee Hailgy.
- Eu não sabia que havia tantos pretos em Ford County - disse Rita Mae. Naquele
momento, os outros onze pensavam a mesma coisa.

Buckley estava furioso. Ele e Musgrove olhavam de uma janela da biblioteca no
terceiro andar. O barulho tinha perturbado a conversa tranqüila entre eles.
- Não sabia que havia tantos pretos em Ford County - disse Musgrove.
- Não há. Alguém trouxe esses pretos. Eu gostaria de saber quem foi.
- Provavelmente Brigance.
- É, provavelmente. Para ele é extremamente conveniente essa gritaria toda
enquanto o júri está deliberando. Deve haver uns cinco mil negros lá em baixo.
- No mínimo.
Noose e o Sr. Pate, no gabinete do juiz, no segundo andar, observaram e
escutaram durante algum tempo. O meritíssimo não estava gostando nada daquilo.
Preocupava-se com o seu júri.
- Não sei como é que eles podem concentrar-se com toda esta gritaria.
- Eles calcularam perfeitamente o momento certo, não acha, Sr. Dr. Juiz? - disse o
Sr. Pate.
- Sem dúvida.
- Eu não sabia que tínhamos tantos negros em Ford County.
O Sr. Pate e Jean Gillespie levaram vinte minutos para encontrar os advogados e
estabelecer a ordem no tribunal. Quando tudo estava sob controle, os jurados entraram.
Não se via nem um sorriso. Noose pigarreou.
- Senhoras e senhores, está na hora do almoço. Suponho que não têm nenhuma
informação para me dar.
Barry Acker sacudiu a cabeça.
- Foi o que pensei. Vamos fazer uma pausa para almoço, até à uma e meia. Sei
que não podem sair do edifício do tribunal, mas quero que almocem sem trabalhar no
caso. Peço desculpas pela perturbação lá fora, mas, francamente, não posso fazer nada.
A sessão fica suspensa até à uma e meia da tarde.

No gabinete do juiz, Buckley teve um acesso de fúria.
- Isto é uma loucura, Sr. Dr. Juiz! Como é que o júri se pode concentrar com toda
essa balbúrdia? É uma tentativa deliberada de intimidação do júri.
- Eu não estou gostando disto - disse Noose.
- Foi planejado, Sr. Dr. Juiz! É intencional! - berrou Buckley.
- Não me parece nada bom - acrescentou Noose.
- Estou quase pedindo a anulação do julgamento!
- Não vou concedê-la. O que é que acha, Jake?
Jake riu e depois disse:
- Libertem Carl Lee. .
- Muito engraçado - rosnou Buckley. - Provavelmente você planejou tudo isto.
- Não. Não se esqueça, Dr. Buckley, que eu tentei impedir isto. Por diversas vezes
pedi a transferência de foro. Cansei de repetir que o julgamento não devia ser feito neste
tribunal. O senhor quis que fosse aqui, Dr. Buckley. E o senhor resolveu que seria aqui,
Juiz Noose. É tolice se queixarem agora.
Jake ficou impressionado com a própria arrogância. Buckley rosnou e olhou pela
janela.
- Olhem para eles. Pretos selvagens. Deve haver milhares deles lá fora.
Durante o almoço os dez mil passaram a quinze mil. Carros de lugares distantes -
alguns com placas do Tennessee - estacionavam nas beiras das estradas, fora dos limites
da cidade. As pessoas caminhavam quatro ou cinco quilômetros sob o sol escaldante
para participar das festividades em volta do tribunal. Agee determinou uma pausa para
almoço e a praça ficou calma.
Os negros continuavam a agir pacificamente. Abriram as caixas térmicas e os
cestos de piquenique e partilharam o almoço. Procuravam a sombra, mas não havia
árvores suficientes para todos. Entraram no edifício do tribunal para beber água e ir ao
banheiro. Andavam pelos passeios, vendo as vitrinas das lojas fechadas. Temendo
alguma desordem, o Coffee Shop e o Tea Shoppe fecharam as portas à hora do almoço.
Do lado de fora do Claude's, a fila estendia-se ao longo de um quarteirão e meio.
Jake, Harry Rex e Lucien descansavam na varanda do escritório e olhavam o circo
lá embaixo. A garrafa com margaritas rapidamente ficou vazia. Uma vez por outra, eles
participavam do movimento gritando "Libertem Carl Lee" ou cantarolando com eles o "We
Shall Overcome". Só Lucien sabia a letra, aprendida nos dias gloriosos dos direitos civis,
nos anos 60, e afirmava que era o único branco em Ford County que sabia a letra inteira.
Naquele tempo, ele chegara até a entrar para uma igreja negra, explicou Lucien, entre
dois copos, depois da sua igreja ter expulso todos os membros negros. Abandonou a
igreja negra ao fim de um sermão de três horas e de uma hérnia discal. Resolveu que os
brancos não eram feitos para aquele tipo de ritual. Mas contribuía ainda para a igreja.
Ocasionalmente, uma equipe da televisão aproximava-se do edifício do escritório
de Jake e gritava uma pergunta. Jake fingia não ouvir e ao fim de algum tempo, gritava
"Libertem Carl Lee!"
À uma e meia em ponto, Agee pegou no seu auto falante , desfraldou a bandeira,
alinhou os seus pregadores e reuniu os manifestantes. Começou com o hino, cantado
diretamente no auto falante e o desfile seguiu lentamente pela rua Jackson, entrou na
Caffey e começou a dar voltas à praça. Cada volta atraía mais gente e aumentava o
barulho.
A sala do júri ficou em silêncio durante um quarto de hora a seguir a Reba Betts ter
mudado a sua posição de indecisa para um voto de inocente. Se um homem a violasse,
ela sem dúvida que lhe estouraria os miolos se tivesse oportunidade. O placar agora era
de cinco a cinco com dois indecisos, e parecia impossível um acordo. O primeiro-jurado
continuava de fora. A pobre e velha Eula Dell Yates tinha votado uma vez de uma
maneira e outra vez de outra, e todos sabiam que acabaria por acompanhar a maioria.
Junto à janela teve uma crise de choro e foi conduzida à sua cadeira por Clyde Sisco.
Queria ir para casa. Disse que se sentia como uma prisioneira.
Os gritos e o desfile surtiram efeito. Quando o auto falante passava perto, o nível
de ansiedade na salinha chegava ao ponto mais alto. Acker pedia silêncio e depois
esperava pacientemente até a agitação se deslocar para frente do edifício. Mas nunca
desaparecia por completo. Carol Corman foi a primeira a levantar a questão da segurança
dos jurados. Pela primeira vez numa semana o motel silencioso era tremendamente
atraente.
Três horas de ininterrupta cantilena tinham deixado os nervos de todas as pessoas
à flor da pele. O primeiro-jurado sugeriu que falassem de suas famílias enquanto
esperavam que Noose os chamasse às cinco horas.
Bernice Toole, que discretamente votara culpado, sugeriu uma coisa em que todos
tinham pensado mas que ninguém tinha mencionado.
- Porque não dizemos ao juiz que chegamos irremediavelmente a um impasse?
- Ele declararia inconclusivo o processo, não é isso? - perguntou Jo Ann Gates.
- Sim - respondeu o primeiro-jurado. - E o réu seria julgado novamente dentro de
alguns meses. Por que não terminamos por hoje e tentamos outra vez amanhã?
Todos concordaram. Não estavam prontos para desistir. Eula Dell chorava
baixinho.
Às quatro horas, Carl Lee e os filhos foram até uma das janelas altas que se
alinhavam dos dois lados da sala do tribunal. Ao ver uma pequena maçaneta, girou-a e a
janela abriu-se para uma pequena plataforma acima do lado oeste do jardim. Fez um sinal
ao policial e saiu para a varanda. Com Tonya ao colo, olhou para a multidão.
Viram-no. Gritando o seu nome, correram para o edifício. Agee desviou o desfile e
atravessou o gramado. Uma multidão de negros concentrou-se debaixo da varanda e
procurava ver mais de perto o seu herói.
"Libertem Carl Lee!" "Libertem Carl Lee!" "Libertem Carl Lee!"
Ele acenou para seus admiradores. Beijou a filha e abraçou os filhos. Acenou
outra vez e mandou os filhos acenar também. Jake e seu pequeno grupo, aproveitando a
distração, desceram do escritório e atravessaram a rua na direção do tribunal. Jean
Gillespie tinha telefonado. Noose queria falar com os advogados no seu gabinete. O juiz
estava perturbado. Buckley fervia de raiva.
- Exijo a anulação do julgamento! Exijo a anulação do julgamento! - gritava o
promotor, quando Jake entrou.
- O promotor pede anulação, governador, não exige - disse Jake, secamente.
- Vá para o inferno, Brigance! Você planejou tudo isto. Você armou esta
insurreição. Aqueles ali são os seus pretos.
- Onde está a taquígrafa? - perguntou Jake. - Quero que isso conste dos autos.
- Senhores, senhores - disse Noose. - Sejamos profissionais.
- Sr. Dr. Juiz, o estado requer a anulação do julgamento - disse Buckley, mais ou
menos profissionalmente.
- Negada.
- Está bem, então. O estado faz uma moção para que o júri possa deliberar num
lugar mais tranqüilo.
- Bem, essa é uma idéia interessante - disse Noose.
- Não vejo por que não podem deliberar no motel. Aquilo lá é tranqüilo e poucas
pessoas sabem onde fica - disse Buckley, confiante.
- Jake? - disse Noose.
- Não, não vai dar certo. Não existe nenhum dispositivo legal que confira ao juiz
autoridade para permitir que o júri delibere fora do edifício do tribunal. - Jake tirou
algumas folhas de papel do bolso e atirou-as para cima da mesa. - O estado contra
Dubose, 1963, Linwood County. O ar-condicionado no edifício do tribunal de Linwood
County avariou-se durante uma onda de calor. O juiz itinerante permitiu que o júri
deliberasse numa biblioteca local. A defesa fez objeção. O júri condenou o acusado. Na
apelação, o Supremo Tribunal decidiu que a decisão do juiz tinha sido imprópria e
arbitrária. Por fim, o tribunal estabeleceu que as deliberações do júri devem ser tomadas
na sala do júri, no edifício do tribunal, onde o acusado está sendo julgado. O senhor não
pode deslocá-los.
Noose estudou o caso e entregou os papéis a Musgrove.
- Prepare o recinto do tribunal - disse o juiz ao Sr. Pate. Com exceção dos
repórteres, só havia negros no tribunal. Os jurados pareciam abatidos e tensos.
- Suponho que não chegaram a um veredicto - disse Noose.
- Não, senhor - respondeu o porta-voz.
- Deixem-me perguntar uma coisa. Sem indicar nenhuma divisão numérica,
chegaram a um ponto do qual é impossível sair?
- Falamos sobre isso, Meritíssimo. E gostaríamos de sair agora, ter uma boa noite
de descanso e tentar novamente amanhã. Não estamos prontos para desistir.
- Folgo em ouvir isso. Peço desculpas pela perturbação, mas, repito, não há nada
que eu possa fazer. Lamento muito. Terão de fazer o possível. Mais alguma coisa?
- Não, senhor.
- Muito bem. Faremos um intervalo até às nove da manhã.
Carl Lee pôs a mão no ombro de Jake.
- Que significa tudo isto?
- Significa que chegaram a um impasse. Pode ser seis a seis, ou onze a um contra
você, ou onze a um pela absolvição. Portanto, acalme-se.

Barry Acker aproximou-se do meirinho e entregou-lhe uma folha de papel dobrada.
Dizia:
Luann, Pegue as crianças e vá para a casa da sua mãe. Não diga nada a
ninguém. Fique lá até isto acabar. Faça o que digo. Isto está perigoso.
Barry
- Pode entregar isto à minha mulher, hoje? O nosso telefone é 881-0774.
- Claro - disse o meirinho.

Tim Nunley, mecânico no concessionário da Chevrolet, ex-cliente de Jake
Brigance e freguês habitual do Coffee Shop, sentou-se num sofá da cabana no meio do
bosque e bebeu uma cerveja. Ouvia os seus irmãos do Klan bêbados insultando os
negros. Uma vez por outra, insultava também. Há duas noites que escutava cochichos e
sentia que estavam preparando qualquer coisa. Ouviu com atenção. Levantou-se para ir
buscar outra cerveja. De repente, eles lançaram-se sobre ele. Três dos seus camaradas
seguraram-no contra a parede e espancaram-no com socos e pontapés. Muito
machucado, foi amordaçado, amarrado e levado para fora. Atravessaram a estrada de
cascalho e entraram no campo onde ele fora iniciado como membro do Klan. Atearam
fogo numa cruz e Tim foi amarrado a uma estaca e despido. Depois, açoitaram-no até os
seus ombros, costas e pernas se transformarem numa pasta sangrenta.
Vinte e quatro dos seus ex-irmãos observavam, horrorizados e mudos, o corpo
ferido e a estaca serem ensopados com querosene. O líder, o que empunhava o chicote,
ficou parado ao lado dele durante uma eternidade. Pronunciou a sentença de morte e em
seguida atirou o fósforo aceso.
Mickey Mouse fora silenciado.
Empacotaram os mantos e outros objetos, e foram para casa. A maioria não
voltaria nunca mais a Ford County.


QUARENTA E TRÊS

Quarta-feira. Pela primeira vez em semanas Jake dormiu mais de oito horas.
Adormecera no sofá do escritório e acordou, às cinco horas da manhã, ao som dos
soldados que se preparavam para o pior. Estava descansado, mas a pulsação nervosa
recomeçou com o pensamento de que aquele podia ser o grande dia. Tomou uma ducha
e fez a barba no primeiro andar e depois abriu um novo maço de Fruit of the Loom
comprado na farmácia. Vestiu o melhor terno azul-marinho de Stan Atcavage, dois
centímetros mais curto e um pouco largo, mas, muito bom, dadas as circunstâncias.
Pensou no que sobrara da casa da rua Adams, depois em Carla, e o nó na barriga
começou a agitar-se. Saiu para ir buscar os jornais.
Os jornais de Memphis, Jackson e Tupelo estampavam nas primeiras páginas
fotografias idênticas de Carl Lee, de pé na pequena varanda, acima da multidão, com a
filha no colo e acenando para a sua gente. Nem uma palavra sobre a casa de Jake. Ficou
aliviado e de repente sentiu fome.
Dell abraçou-o como se ele fosse o filho pródigo. Tirou o avental e sentou-se ao
lado dele. Os fregueses que entravam aproximavam-se e batiam no ombro de Jake. Era
bom vê-lo de novo. Tinham sentido a sua falta, e estavam todos torcendo por ele. Estava
abatido, disse Dell, e por isso ele pediu quase o menu completo.
- Jake, acha que aqueles negros todos vão voltar hoje? - perguntou Bert West.
- Provavelmente - disse ele, atacando as panquecas.
- Ouvi dizer que eles pretendem trazer mais gente esta manhã - disse Andy
Rennick. - Todas as estações de rádio negras do norte do Mississipi estão dizendo que
venham para Clanton.
Ótimo, pensou Jake. Acrescentou Tabasco aos ovos mexidos.
- O júri consegue ouvir aquela gritaria toda? - perguntou Bert.
- É claro que consegue - respondeu Jake.
- É por isso que gritam. O pessoal do júri não é surdo.
- Devem estar assustados.
Jake esperava que sim.
- Como vai a família? - perguntou Dell em voz baixa.
- Bem, julgo eu. Falo com a Carla todas as noites.
- Ela está assustada?
- Apavorada.
- O que foi que lhe fizeram a você, ultimamente?
- Nada desde a manhã de domingo.
- A Carla sabe?
Jake negou com a cabeça enquanto mastigava.
- Foi o que eu pensei. Coitado...
- Eu vou ficar bem. E por aqui?
- Ontem fechamos à hora do almoço. Havia tantos negros lá fora que tivemos
medo de algum tumulto. Vamos ver o que acontece hoje, e conforme for, fechamos outra
vez. Jake, e se ele for condenado?
- A coisa pode esquentar.
Jake ficou por ali uma hora, respondendo a todas as perguntas. Chegaram
estranhos, ele pediu licença e saiu. Agora era só esperar. Sentou-se na varanda, tomou
café, fumou um charuto e observou os soldados. Pensou nos seus antigos clientes, em
um tranqüilo escritório no sul, com uma secretária e os clientes à espera para o
consultarem. Nas idas ao tribunal e nas entrevistas na cadeia. Pensou em coisas normais,
família, uma casa, a igreja aos domingos. E pensou que não fora feito para coisas
sensacionais.
O primeiro ônibus da igreja chegou às sete e meia e foi interceptado pelos
soldados. As portas abriram-se e a fila infindável de negros desceu com cadeiras de
jardim e cestas de piquenique e dirigiu-se ao gramado em frente do tribunal. Durante uma
hora Jake expeliu baforadas de fumo no ar pesado, enquanto observava com satisfação a
praça abarrotada de manifestantes pacíficos. Os reverendos estavam a todo o vapor,
orientando as pessoas e garantindo a Ozzie e ao coronel que não eram violentos. Ozzie
acreditou. O coronel estava nervoso. Às nove horas as ruas estavam repletas. Alguém
avistou o ônibus dos jurados. "Aí vêm eles!" gritou Agee pelo auto falante. A multidão
deslocou-se para a esquina da rua Jackson com Quincy, onde soldados e policiais
formaram um cordão de isolamento em volta do ônibus e o conduziram para a porta dos
fundos do edifício.
Eula Dell Yates chorava copiosamente. Clyde Sisco, sentado perto da janela,
segurava-lhe na mão. Os outros olhavam amedrontados enquanto o ônibus avançava
lentamente na praça. Homens fortemente armados abriram caminho do ônibus até o
tribunal e Ozzie subiu a bordo. Tudo estava sob controle, garantiu ele, falando alto por
causa do barulho.
O meirinho fechou a porta quando eles se reuniram em volta da cafeteira. Eula
Dell, sozinha a um canto, chorava baixinho, estremecendo a cada grito de "Libertem Carl
Lee!"
- Não me importa o que vamos fazer - disse ela. - Francamente, não me importa.
Só que já não agüento mais isto. Há oito dias não vejo a minha família e agora esta
loucura. Não dormi nada esta noite - chorou mais alto. - Acho que estou à beira de um
colapso nervoso. Vamos sair daqui.
Clyde estendeu-lhe um lenço de papel e passou-lhe a mão pelo ombro. Jo Ann
Gates era um voto moderado a favor da culpa e estava a ponto de ir também abaixo.
- Eu também não dormi nada esta noite. Não agüento outro dia como o de ontem.
Quero ir para casa tratar dos meus filhos.
Barry Acker, de pé junto à janela, pensava no tumulto que se iria seguir se o
veredicto fosse culpado. Não ia ficar de pé um único edifício no centro da cidade,
incluindo o do tribunal. Duvidava de que alguém pudesse proteger os jurados nos
momentos seguintes a uma sentença indesejada. Provavelmente, não conseguiriam voltar
para o ônibus. Graças a Deus a mulher e os filhos tinham ido refugiar-se no Arkansas.
- Sinto-me como uma refém - disse Bernice Toole, um voto certo pela condenação.
- Essa multidão ia invadir o tribunal numa fração de segundo se nós o condenássemos.
Sinto-me intimidada.
Clyde estendeu-lhe uma caixa de lenços de papel.
- Não me importa o que a gente faça - choramingou Eula Dell desesperada. -
Vamos embora daqui. Sinceramente, para mim tanto faz que a gente o condene ou o
absolva. Mas façamos qualquer coisa. Os meus nervos não agüentam mais.
Wanda Womack, de pé na extremidade da mesa, temperou nervosamente a
garganta e pediu a atenção de todos.
- Eu tenho uma proposta - disse ela devagar - que talvez solucione esta coisa.
O choro parou, e Barry Acker voltou para a sua cadeira. Estavam todos atentos.
- Pensei uma coisa, ontem à noite, quando não conseguia dormir, e quero
submetê-la à consideração de vocês. Pode ser dolorosa. Pode obrigá-los a sondar o seu
coração e a lançar um olhar ao fundo da alma. Mas vou pedir-lhes que o façam, mesmo
assim. E se cada um for sincero consigo mesmo, acho que podemos terminar isto antes
do meio-dia.
Os únicos sons eram os que vinham da rua.
- Neste momento, estamos divididos em partes iguais, com um voto a mais ou a
menos. Poderíamos dizer ao juiz Noose que chegamos a um impasse irremediável. Ele
poderia declarar o processo inconcluso, e nós iríamos para casa. Depois, ao fim de
alguns meses, todo este espetáculo voltaria a se repetir. O Sr. Hailey seria julgado
novamente neste mesmo tribunal, pelo mesmo juiz, mas por um outro júri sorteado neste
condado, um júri constituído pelos nossos amigos, maridos, mulheres e pais. O mesmo
tipo de pessoas que está agora aqui nesta sala. Esse júri iria enfrentar os mesmos
problemas que nós, e essas pessoas não serão mais inteligentes do que nós. O momento
de decidir este caso é agora. Seria moralmente errado fugir às nossas responsabilidades
e passar o problema para um próximo júri. Está todas as pessoas de acordo?
Concordaram em silêncio.
- Muito bem. Vou lhes dizer o que quero que façam. Quero que, por um instante,
tentem fazer um esforço comigo. Quero que usem a imaginação. Quero que fechem os
olhos e ouçam apenas a minha voz.
Todos fecharam os olhos obedientemente. Alguma coisa merecia ser tentada.

Deitado no sofá do escritório, Jake ouvia Lucien falar do pai e do avô, dois homens
de prestígio e da sua importante firma de advocacia, e de toda aquela gente a quem eles
tinham extorquido dinheiro e terras.
- A minha herança foi construída pelos meus promíscuos antepassados! - berrou. -
Eles espoliaram todas as pessoas que puderam.
Harry Rex ria à gargalhada. Jake já tinha ouvido aquelas histórias, mas eram
sempre engraçadas e diferentes.
- E o filho atrasado da Ethel? - perguntou Jake.
- Não fale dessa maneira do meu irmão - protestou Lucien. - Ele é o mais brilhante
da família. É claro que é meu irmão. O meu pai contratou-a quando ela tinha dezessete
anos e, acreditem ou não, ela era atraente naquele tempo. Ethel Witty era a coisinha mais
quente de Ford County. O meu pai não conseguia tirar as mãos de cima dela. Hoje, até dá
enjôo pensar nisso, mas é verdade.
- É revoltante - disse Jake.
- Ela tinha uma casa cheia de filhos, e dois deles tinham a minha cara,
especialmente o idiota. Naquele tempo era muito constrangedor.
- E a sua mãe? - perguntou Harry Rex.
- Era uma daquelas velhas senhoras sulistas muito dignas cuja preocupação
principal era saber quem tinha sangue azul e quem não tinha. Como não há muito sangue
azul por aqui, ela passava a maior parte do tempo em Memphis, tentando impressionar as
famílias dos reis do algodão e tentando ser aceita por elas. Passei boa parte da minha
infância no Peabody Hotel, com terninhos engomados e um lacinho vermelho ao pescoço,
tentando ser muito bem educado com os filhos dos milionários de Memphis. Eu odiava
aquilo e também não gostava muito da minha mãe. Ela sabia da Ethel mas aceitava a
coisa. Disse ao velho que fosse discreto e não envergonhasse a família. Ele foi discreto e
eu acabei com um meio irmão retardado...
- Quando é que ela morreu?
- Seis meses antes de o meu pai morrer no desastre de avião.
- De que morreu ela?
- De blenorragia. Foi o jardineiro que lhe passou.
- Lucien! Sério?
- Cancro. Sofreu durante três anos mas manteve a dignidade até ao fim.
- E você, onde foi que desatinou?
- Acho que foi logo na primeira classe... O meu tio tinha uma grande plantação no
sul da cidade e era dono de uma porção de famílias de negros. Isto foi no período da
depressão, certo? Passei grande parte da minha infância ali porque o meu pai tinha
sempre muito que fazer aqui neste escritório e minha mãe muito ocupada com os chás
dela. Todos os meus companheiros de brincadeira eram negros. Fui criado por criados
negros. O meu melhor amigo era Willie Ray Wilbanks. Sério. O meu bisavô tinha
comprado o bisavô dele. E quando os escravos foram libertados, quase todos mantiveram
o nome da família. O que é que eles podiam fazer? Por isso há tantos Wilbanks negros
por aqui. Nós éramos donos de todos os escravos de Ford County e a maioria deles
adotou o nome Wilbanks.
- Provavelmente, alguns são seus parentes.
- Dadas as inclinações dos meus antepassados, provavelmente são todos meus
parentes...
O telefone tocou. Os três ficaram imóveis e olharam para o aparelho. Jake sentou-
se no sofá e susteve a respiração. Harry Rex pegou no auscultador, e logo a seguir
desligou.
- Foi engano - disse ele. Entreolharam-se, depois sorriram.
- Sendo assim, voltemos à primeira classe - disse Jake.
- Certo. Quando chegou a hora de ir para a escola, Willie Ray e o resto dos meus
amigos entraram no ônibus da escola negra. Eu entrei também e o motorista pegou-me
na mão com todo o cuidado e me fez descer. Chorei e gritei e o meu tio me levou para
casa e contou à minha mãe: "Lucien apanhou o ônibus da escola dos negros". Ela ficou
horrorizada e deu-me uns açoites. O meu velho também me bateu, mas anos mais tarde
admitiu que tinha achado graça. Fui então para a escola dos brancos onde eu era sempre
o menino rico. Todas as pessoas odiavam o menino rico, especialmente numa cidade
pobre como Clanton. Não que eu fosse digno de ser amado, mas o caso era que todas as
pessoas se divertiam me detestando só porque não tinham dinheiro. É por isso que eu
nunca liguei muito para o dinheiro. E foi aí que começou o meu inconformismo. Na
primeira classe. Resolvi que não havia de ser igual à minha mãe porque ela estava
sempre com a testa franzida e olhava com superioridade para o mundo inteiro. E o meu
velho estava sempre muito ocupado para gozar a vida. Decidi: Que se lixe tudo isto. Vou-
me divertir um pouco!
Jake espreguiçou-se e fechou os olhos.
- Nervoso? - perguntou Lucien.
- Eu só queria que isto já tivesse acabado.
O telefone tocou outra vez e Lucien atendeu. Ouviu um momento e desligou.
- O que foi? - perguntou Harry Rex.
Jake sentou-se e olhou para Lucien. Tinha chegado a hora.
- Jean Gillespie. O júri está pronto.
- Oh, meu Deus - disse Jake, esfregando as têmporas.
- Preste atenção, Jake - aconselhou Lucien. - Milhões de pessoas verão o que vai
acontecer. Tenha calma. Cuidado com o que diz.
- E eu? - gemeu Harry Rex. - Eu vou vomitar.
- É um conselho estranho vindo de você, Lucien - disse Jake abotoando o casaco.
- Eu sei! Mostre que tem classe. Se ganhar, cuidado com o que diz à imprensa.
Não se esqueça de agradecer ao júri. Se perder...
- Se perder - disse Harry Rex -, corra o máximo que puder, porque aquela
pretalhada toda vai invadir o tribunal.
- Sinto-me sem forças - disse Jake.

Agee subiu para a plataforma nos degraus da frente do tribunal e anunciou que o
júri estava pronto. Pediu silêncio e, instantaneamente, a multidão se calou. Adiantaram-se
para as colunas da frente. Agee pediu-lhes que se ajoelhassem para rezar. Todos
obedeceram e começaram a rezar fervorosamente. Cada homem, cada mulher e cada
criança ali presente se inclinou perante Deus, pedindo-Lhe que libertasse o homem.
Os soldados reuniram-se e rezaram também, pedindo a absolvição. Ozzie e Moss
Junior fizeram sentar os espectadores e distribuíram os subdelegados e as tropas de
reserva ao longo das paredes e na passagem central. Jake entrou pela sala de espera
dos acusados e encarou Carl Lee, sentado à mesa da defesa. Depois olhou rapidamente
para os espectadores. Muitos rezavam. Muitos roíam as unhas. Gwen enxugava as
lágrimas. Lester olhou temeroso para Jake. As crianças estavam confusas e assustadas.
Noose sentou-se e um silêncio eletrificado envolveu a sala. Não vinha nenhum
som lá de fora. Vinte mil negros estavam ajoelhados no chão, como muçulmanos.
Imobilidade e silêncio na sala do tribunal e lá fora.
- Fui informado de que o júri chegou a um veredicto. Isso é certo, Sr. Meirinho?
Muito bem. Em breve o júri estará no seu lugar, mas antes disso quero dar algumas
instruções. Não vou tolerar explosões ou demonstrações de emoção. Mandarei o xerife
retirar qualquer pessoa que perturbe a ordem. Se for preciso, mando evacuar a sala. Sr.
Meirinho, queira instalar o júri.
A porta abriu-se, e foi como se decorresse uma hora tivesse até Eula Dell Yates
aparecer com os olhos cheios de lágrimas. Jake baixou a cabeça. Carl Lee olhou
corajosamente para o retrato de Robert E. Lee, acima de Noose. Os jurados entravam
desajeitadamente. Pareciam nervosos, tensos, assustados. A maioria tinha chorado. Jake
sentiu-se agoniado. Barry Acker segurava numa folha de papel que atraía a atenção de
todos.
- Senhoras e senhores, chegaram a um veredicto?
- Sim, senhor, chegamos - respondeu o primeiro-jurado com voz estridente e
nervosa.
- Por favor, entregue-o à escrivã.
Jean Gillespie pegou no papel e entregou-o a Sua Excelência, que o examinou
durante uma eternidade.
- Está tecnicamente em ordem - disse Noose, finalmente.
Eula Dell estava lavada em lágrimas e as suas fungadelas eram o único ruído que
se ouviam na sala. Jo Ann Gates e Bernice Toole enxugavam os olhos com os lenços. O
choro só podia significar uma coisa. Jake tinha prometido a si mesmo ignorar o júri antes
de saber o veredicto, mas era impossível. No seu primeiro julgamento criminal os jurados
tinham aparecido sorrindo. Nesse momento, Jake tivera certeza de uma absolvição.
Segundos depois, ficou sabendo que estavam rindo porque o criminoso ia sair de
circulação... Desde aquele julgamento que Jake tinha decidido nunca olhar para o júri.
Mas acabava sempre por olhar. Seria bom ver uma piscadela, um polegar erguido, mas
nada disso aconteceu.
Noose olhou para Carl Lee.
- O réu queira, por favor, levantar-se.
Jake sabia que provavelmente havia convites mais aterrorizantes em qualquer
língua, mas para um advogado criminologista aquele pedido, naquele momento, continha
implicações terríveis. O seu cliente levantou-se, desajeitado, patético. Jake fechou os
olhos e conteve a respiração. As mãos tremiam e doía-lhe o estômago.
Noose devolveu o veredicto a Jean Gillespie.
- Por favor, leia, minha senhora.
Jean desdobrou o papel e encarou o réu.
- Com referência a cada capitulação do indiciamento, nós, o júri, consideramos o
acusado inocente por motivo de insanidade.
Carl Lee voltou-se e correu para a barra do tribunal. Tonya e os meninos saltaram
do banco da frente e agarraram-se a ele. O tribunal explodiu num pandemônio. Gwen deu
um grito e desatou a chorar. Enterrou a cabeça nos braços de Lester. Os reverendos
ficaram de pé, olharam para o alto e gritaram: "Aleluia!" e "Jesus seja louvado!" e "Senhor!
Senhor! Senhor!"
Era como se Noose não tivesse feito nenhuma recomendação. Este batia com o
martelo, sem muita convicção, e dizia:
- Ordem, ordem, ordem no tribunal. - Era impossível ouvi-lo no meio da gritaria, e
Noose parecia contente por permitir uma pequena comemoração.
Jake estava entorpecido, inerte, paralisado. O seu único movimento foi um fraco
sorriso na direção do júri. Os seus olhos encheram-se de lágrimas, os lábios tremeram e
resolveu não se deixar dominar pela emoção. Inclinou a cabeça levemente para Jean
Gillespie, que estava chorando, e sentou-se à mesa da defesa, movendo a cabeça
afirmativamente e tentando sorrir, incapaz de fazer qualquer outra coisa. Pelo canto do
olho viu Musgrove e Buckley pegarem em papéis, bloco de notas e documentos de
aspecto importante e atirarem tudo para dentro das suas pastas. Seja indulgente, disse
para si próprio.
Um garoto passou como um raio, por entre dois policiais, e atravessou a
antecâmara gritando "Inocente! Inocente!" Correu para uma varandinha acima dos
degraus da entrada e gritou para a multidão lá em baixo: "Inocente! Inocente!" A multidão
explodiu.
- Ordem, ordem no tribunal! - dizia Noose quando a reação retardada do exterior
atravessou como um trovão as janelas.
- Ordem, ordem no tribunal! - Noose tolerou a agitação durante mais um minuto,
depois pediu ao xerife para restaurar a ordem.
Ozzie levantou as mãos e falou. Os abraços, as palmas, os apertos de mão
cessaram rapidamente. Carl Lee deixou os filhos e voltou para a mesa da defesa. Sentou-
se perto do seu advogado e passou um braço pelo ombro dele, rindo e chorando ao
mesmo tempo.
Noose sorriu para o acusado.
- Sr. Hailey, o senhor foi julgado por um júri formado pelos seus pares e declarado
inocente. Não me recordo de nenhum depoimento dos peritos que tenha afirmado que o
senhor é agora um homem perigoso ou que precisa de ulterior tratamento psiquiátrico. O
senhor é um homem livre.
Sua Excelência olhou para os advogados.
- Se não há nada mais a tratar, este tribunal ficará encerrado até 15 de Agosto.
Carl Lee foi praticamente sufocado pela família e pelos amigos. Abraçavam-no,
abraçavam-se uns aos outros, abraçaram Jake. Choravam sem constrangimento e
louvavam o Senhor. Disseram a Jake que o adoravam.
Os repórteres, comprimidos junto à barra, disparavam perguntas a Jake. Este
levantou as mãos e disse que não tinha nenhum comentário a fazer. Mas que faria uma
conferência de imprensa, no seu escritório, às duas horas da tarde.
Buckley e Musgrove saíram por uma porta lateral. Os jurados, fechados na sala do
júri, esperavam o ônibus para a última viagem ao motel. Barry Acker pediu para falar com
o xerife. Ozzie foi ao encontro dele no corredor, ouviu com atenção e prometeu escoltá-lo
para casa e providenciar-lhe proteção dia e noite.
Os repórteres cercaram Carl Lee.
- Eu só quero ir para casa - repetia ele. - Eu só quero ir para casa. A
comemoração chegou ao auge no jardim do tribunal. Cantavam, dançavam, choravam,
trocavam palmadinhas nas costas, abraçavam-se, davam graças a Deus, congratulavam-
se, rindo, aplaudindo, vozes agudas, vozes graves e apertos de mãos comovidos.
Erguiam louvores aos céus num júbilo glorioso, tumultuoso, irreverente. Todos muito
juntos, na frente do edifício do tribunal, esperavam impacientes o seu herói para aquecê-
lo com o carinho merecido.
A paciência daquelas pessoas estava esgotando-se. Ao fim de meia-hora aos
gritos de "Queremos Carl Lee, Queremos Carl Lee", o homem apareceu na porta. Um
rugido ensurdecedor e vibrante recebeu-o. Carl Lee avançou, lentamente, pelo meio da
multidão com o seu advogado e a sua família e parou no primeiro degrau sob as colunas
onde estava a plataforma improvisada com milhares de microfones. Os gritos de vinte mil
vozes eram ensurdecedores. Ele abraçou o seu advogado e os dois acenaram para o mar
de rostos que gritavam.
Era impossível ouvir as perguntas gritadas pelo exército de repórteres. Uma vez
por outra, Jake parava de acenar e gritava qualquer coisa acerca de uma conferência de
imprensa, no seu escritório, às duas horas.
Carl Lee abraçava a mulher e os filhos e todos acenavam. A multidão aprovou com
um rugido. Jake conseguiu voltar para dentro do edifício, onde encontrou Lucien e Harry
Rex à espera a um canto, longe da massa de espectadores.
- Vamos sair daqui - gritou Jake.
Abriram caminho no meio da multidão e saíram pela porta de trás. Jake viu uma
multidão de repórteres no passeio, em frente do seu escritório.
- Onde está o seu carro? - perguntou Jake a Lucien. Lucien apontou para uma das
ruas laterais e os três desapareceram atrás do Coffee Shop.
Sallie fritou costeletas de porco e tomates verdes e serviu-os na varanda. Lucien
abriu uma garrafa de champanhe de alto preço e jurou que a tinha guardado para a
ocasião. Harry Rex comeu com as mãos, roendo os ossos como se há um mês não visse
comida. Jake quase não comeu e serviu-se do champanhe gelado. Após duas taças,
sorriu com o olhar perdido na distância. Saboreou o momento.
- Você parece um autêntico palerma - disse Harry Rex, com a boca cheia de carne
de porco.
- Cale-se Harry Rex - disse Lucien. - Deixe-o desfrutar a sua hora mais bela. É
isso que ele está fazendo. Repare no sorriso de cretino.
- Que devo dizer à imprensa? - perguntou Jake.
- Diga-lhes que precisa de alguns clientes - respondeu Harry Rex.
- Clientes não vão faltar - disse Lucien. - Vão fazer fila à sua porta.
- Porque não falou com os repórteres no tribunal? Estavam com as câmeras
ligadas e tudo... Eu comecei a dizer-lhes umas coisas - disse Harry Rex.
- Aposto que foram jóias raras do pensamento - observou Lucien.
- Tenho todos na mão - disse Jake. - Não vão lugar nenhum. Podíamos vender
entradas para a reunião com a imprensa e ganhar uma fortuna.
- Posso sentar-me e assistir, por favor, Jake, por favor? - disse Harry Rex.


QUARENTA E QUATRO

Discutiram durante algum tempo se deviam usar o Bronco caindo aos pedaços ou
o Porsche feio e sujo. Jake disse que não ia guiar. Harry Rex praguejou mais alto e todos
três entraram no Bronco. Lucien no banco de trás. Jake, ao lado do condutor, ia indicando
o caminho. Meteram por ruas secundárias, evitando o grande movimento dos carros que
começavam a deixar a praça. A estrada estava movimentada e, seguindo as indicações
de Jake, tomaram vários atalhos de cascalho. Por fim, encontraram asfalto e Harry Rex
seguiu na direção do lago.
- Tenho uma pergunta, Lucien - disse Jake.
- O que é?
- E quero a verdade.
- O quê?
- Fez algum acordo com Clyde Sisco?
- Não, menino, você ganhou por você mesmo.
- Jura?
- Juro por Deus. Em cima de uma pilha de bíblias.
Jake queria acreditar, por isso não insistiu. Continuaram sem falar, no calor
escaldante, ouvindo Harry Rex cantar com o gravador de cassetes. De repente, Jake
apontou e gritou. Harry Rex pisou no freio, virou rapidamente para a esquerda e acelerou
por outra estrada de cascalho.
- Para onde é que vamos? - perguntou Lucien.
- Espere um momento - disse Jake, olhando para uma fila de casas à direita.
Apontou para a segunda e Harry Rex parou na sombra de uma árvore na passagem que
levava à porta da casa. Jake desceu do carro, olhou em volta e caminhou para a varanda.
Bateu na porta de rede. Apareceu um homem. Um desconhecido.
- Sim, o que quer?
- Sou Jake Brigance e...
O homem escancarou a porta e correu para apertar a mão a Jake.
- É um prazer conhecê-lo, Jake. Eu sou Mack Loyd Crowell. Eu estava no júri de
instrução que por pouco não indiciava o seu cliente. Fez um trabalho de lhe tirar o
chapéu! Estou orgulhoso de você. - Jake apertou-lhe a mão e repetiu o nome. E então
lembrou-se. Mack Loyd Crowell, o homem que calara Buckley e o obrigara a sentar-se.
- Sim, Mack Loyd, agora me lembro. Obrigado. - Jake olhou desajeitadamente
para dentro da casa. - Está procurando Wanda? - perguntou Crowell.
- Bem, sim. Eu ia passando e lembrei-me do endereço dela que estava na lista de
jurados.
- Veio ao lugar certo. Ela mora aqui, e eu também a maior parte do tempo. Não
somos casados, ou coisa assim, mas vivemos juntos. Ela está dormindo. Está muito
cansada.
- Não a acorde - disse Jake.
- Ela me contou o que aconteceu. Você ganhou a causa graças a ela.
- Como? O que é que aconteceu?
- Pediu a todos que fechassem os olhos e ouvissem o que ela ia dizer. Pediu-lhes
que imaginassem que a menina tinha cabelos louros e olhos azuis, que os dois violadores
eram negros, que eles tinham amarrado o pé esquerdo dela numa cerca e o direito numa
árvore. Que a violaram repetidamente e a insultaram porque ela era branca. Pediu-lhes
que imaginassem a garotinha ali deitada, chamando pelo pai, enquanto eles lhe davam
pontapés na boca, quebrando-lhe os dentes, quebrando -lhe os maxilares, o nariz. Disse-
lhes que imaginassem dois negros bêbados entornando cerveja em cima dela e urinando
no seu rosto e rindo como, anormais. E depois acabou por lhes dizer que imaginassem
que a garotinha lhes pertencia, que era sua filha. Recomendou-lhes que fossem honestos
com eles mesmos e que escrevessem em um papel se matavam ou não aqueles negros
miseráveis se pudessem. E eles votaram, voto secreto. Os doze, todos, disseram que
cometeriam o assassinato. O primeiro jurado contou os votos. Doze a zero. Wanda disse-
lhes que estava disposta a ficar sentada naquela sala até ao Natal, mas que nunca votaria
pela condenação, e se todos fossem honestos consigo próprios, pensariam da mesma
maneira. Dez concordaram com ela e houve uma mulher que se opôs. Todos desataram a
gritar e a censurá-la com palavras tão duras que ela, por fim, acabou por ceder. A coisa
foi dura lá dentro, Jake.
Jake escutava cada uma das palavras sem respirar. Ouviu um ruído. Wanda
Womack foi até à porta de rede. Sorriu e começou a chorar. Jake olhou para ela através
da rede, mas não conseguiu dizer nada. Mordeu o lábio e inclinou a cabeça.
- Obrigado - foi tudo o que disse, com voz fraca.
Ela enxugou as lágrimas e inclinou também a cabeça.

Na rua Craft centenas de carros enfileiravam-se dos dois lados da passagem que
levava à casa dos Hailey. O jardim estava cheio de carros, de crianças que brincavam,
enquanto os pais, sentados à sombra das árvores e nos capôs dos carros, conversavam.
Harry Rex parou numa vala, ao lado da caixa do correio. Uma multidão correu para
cumprimentar o advogado de Carl Lee. Lester segurou-o pelo braço e disse:
- Conseguiu, Jake, conseguiu outra vez.
Trocaram apertos de mão e deram palmadas nas costas um do outro, até
chegarem à varanda. Agee abraçou-o e louvou a Deus. Carl Lee levantou-se do balanço e
desceu os degraus seguido pela família e pelos admiradores. Juntaram-se todos em torno
de Jake quando os dois heróis ficaram frente a frente. Carl Lee segurou nas mãos de
Jake e ambos se entreolharam, à procura das palavras. Abraçaram-se. A multidão bateu
palmas e gritou.
- Muito obrigado, Jake - disse Carl Lee em voz baixa. Advogado e cliente
sentaram-se no balanço e responderam a perguntas sobre o julgamento. Lucien e Harry
Rex juntaram-se a Lester e a alguns de seus amigos à sombra de uma árvore para um
copo. Tonya corria e saltava no jardim com uma centena de crianças.
Às duas e meia, Jake sentou-se à mesa de trabalho e falou com Carla. Harry Rex
e Lucien tomaram os últimos goles de margarita e depressa ficaram bêbados. Jake tomou
café e disse à mulher que sairia de Memphis dentro de três horas e estaria na Carolina do
Norte às dez. Sim, estava bem. Tudo estava bem, e tudo tinha terminado. Havia dezenas
de repórteres na sala de conferências; portanto não deixe de ver o noticiário da noite. Ele
iria conversar com eles rapidamente, depois seguiria de carro para Memphis. Disse-lhe
que a amava, que sentia saudades do seu corpo e que em breve estaria junto ela.
Desligou. No dia seguinte telefonaria a Ellen.
- Porque vai embora hoje? - perguntou Lucien. - É idiota, Jake, um perfeito idiota.
Tem milhares de repórteres na palma da mão e vai sair da cidade.
- Burrice, burrice completa - gritou Harry Rex.
Jake pôs-se em pé.
- Que tal estou, amigos?
- Como um idiota, se sair da cidade - disse Harry Rex.
- Fique mais uns dias - pediu Lucien. - Nunca mais vai ter uma oportunidade como
esta. Por favor, Jake.
- Acalmem-se. Vou falar com eles agora, deixar que me tirem o retrato, responder
a algumas das suas perguntas estúpidas e depois saio da cidade.
- Você é louco, Jake - disse Harry Rex.
- Concordo - disse Lucien.
Jake olhou-se no espelho, ajustou a gravata e sorriu para os amigos.
- Eu gosto de vocês, amigos. Gosto mesmo. Recebi novecentos dólares de
honorários por este julgamento e estou planejando dividi-los com ambos.
Eles despejaram nos copos o que restava das margaritas, beberam
apressadamente e desceram a escada com Jake Brigance para enfrentar os repórteres.

Realmente, espero que tenham gostado, um fascinante livros
que faz com que você viaje com o autor e não consiga parar de ler.
Grande livro que virou filme, como outos grandes livros do autor como :
a firma e O juri.

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