AUTOR: GARDNER, Erle Stanley
Em "O Caso do Pato Afogado,
o famoso advogado
criminologista, Perry Mason,
partindo de uma premissa
incrível - o afogamento de
um pato -, descobre um
cadáver sepultado numa garagem
e salvará um réu
inocente.
CAPÍTULO 1
Certa vez que Della Street, secretária particular de
Perry Mason, lhe perguntara qual era o atributo mais
valioso de um advogado, Mason respondera:
- A qualidade especial de provocar confidências.
indiscutivelmente, Mason possuía esta qualidade em
elevado grau. Quando atravessava uma sala, os presentes
instintivamente seguiam-no com os olhos. Quando se sentava
num vestíbulo de hotel ou num comboio, as pessoas
sentadas a seu lado, quase invariavelmente, iniciavam
conversações casuais e acabavam por lhe transmitir os
seus mais íntimos segredos.
Conforme o próprio Mason dissera uma vez, um
advogado ou tem ou não tem esta qualidade. Se a tem,
é como se dispusesse do dom natural de ter bom ouvido
para a música. Se não o tem, não devia exercer a sua
profissão.
Por sua vez, Della Street manifestava opinião de que
tudo isto era simplesmente a reacção instintiva que as
pessoas têm por alguém capaz de compreender as fraquezas
humanas e mostrar simpática compreensão.
Mason raramente necessitava fazer perguntas. Às
vezes, até parecia desinteressado pelas confidências que
lhe depositavam nos ouvidos. Esta sua aparente indiferença
estimulava os outros a irem cada vez mais longe.
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Porém, Mason era sempre compreensivo e simpático.
Procurava ser normalmente condescendente para com as
fraquezas humanas e, com frequência, dizia que mesmo
aqueles que nasciam para ser simples mangas de alpaca,
tinham capítulos muito íntimos na sua existência. Se não
tivessem, não eram homens.
Ali, na varanda do hotel de Palm Springs, Della
Street, sob um céu estrelado que as palmeiras recortavam
nalguns pontos, via o vestíbulo do hotel e o indivíduo
que se tinha sentado ao lado de Perry Mason. Sabia,
com certeza absoluta, que este homem estava a preparar-se
para contar a Mason algo de tão importante que
nunca o confiara a ninguém.
Se Mason se apercebia disto, não manifestava o mais
pequeno sintoma.
Estava confortável mente estendido no sofá, com as
pernas atiradas para a frente, com os pés cruzados, um
cigarro entre os lábios. O rosto, geralmente duro como
o granito, estava relaxado como a máscara de um pugilista
em repouso.
Foi só quando o homem a seu lado clareou a garganta
como preliminar do discurso que ia fazer que Mason
pareceu aperceber-se da sua existência.
- Queira perdoar. O senhor é o advogado Perry
Mason, não é?
Mason não se voltou imediatamente para examinar
o rosto do seu interlocutor. Deixou que os seus olhos se
desviassem obliquamente para fitar as pernas do outro.
Viu umas calças pretas impecavelmente vincadas e um
par de sapatos aparentemente macios como luvas.
O homem, à sua direita, prosseguiu:
- Pretendia consultá-lo. - E depois, após um
momento de pausa, acrescentou: - Profissionalmente.
O advogado virou-se, então, por completo para um
rápido exame. Viu um rosto arguto, de testa alta, nariz
saliente, boca estreita a indicar decisão, e um queixo
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que era quase demasiado proeminente. Os olhos eram
escuros mas firmes, com a confiança calma da força.
O desconhecido devia ter quase cinquenta anos, e a sua
maneira de vestir, os seus gestos e o facto de estar hospedado
naquele hotel de Palm Springs indicavam
riqueza.
Qualquer súbita cordialidade efusiva assustaria este
homem tanto como excessiva reserva o teria antagonizado.
O advogado respondeu simplesmente:
- Sim, sou Perry Mason. - E nem sequer se deu
ao trabalho de lhe estender a mão para o cumprimentar.
- Tenho lido muita coisa a seu respeito... sobre os
seus processos... nos jornais... tenho-os seguido com
muito interesse.
- Muito obrigado.
- Calculo que deve ter uma vida muito variada e
excitante.
- Não é monótona, na verdade - concordou.
- E também calculo que já deve ter ouvido muitas
histórias extraordinárias.
- Com efeito.
- E lhe confiaram muitas confidências que, a todo o
custo, deviam ser tratadas como sagradas?
- De facto.
- Chamo-me Witherspoon, John L. Witherspoon.
Nem mesmo desta vez Mason estendeu a mão. Voltara
a cabeça de modo que o outro fosse apenas beneficiado
pelo seu perfil.
- Vive aqui na Califórnia, Mr. Witherspoon?
- Sim, tenho uma propriedade no Vale do Rio Vermelho,
na região do algodão... uma bela propriedade, com
mil e quinhentos acres.
Falava apressadamente agora, ansioso por despachar
os preliminares da conversa.
" Por sua vez, o advogado parecia não ter pressa.
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- No Verão, isto aqui é muito quente, não é? - perguntou.
- Às vezes, a temperatura sobe a mais de quarenta.
Mas a minha propriedade tem ar condicionado. Quase
todas as casas do Vale, o têm. É, de facto, maravilhoso o
que se faz hoje para tornar habitável o deserto.
- Em compensação, o clima no Inverno deve ser
esplêndido.
- Pois é... Queria falar-lhe a respeito da minha filha
- Está hospedado, aqui, no hotel?
- Estou e ela também está...
- Há muito tempo?
- Vim aqui especialmente para falar consigo. Li
num jornal que o senhor estava em Palm Springs. Estive
a observá-lo durante cerca de uma hora.
- Sério? Continue.
- Pois é verdade. Não quero que a minha filha saiba
a razão por que cá vim ou por que o consultei.
: Mason enfiou as mãos profundamente nos bolsos
das calças. Della Street, observando-o através da enorme
vidraça, viu que o advogado nem sequer voltou os olhos
para o seu companheiro.
- Não gosto de questões rotineiras - disse Mason.
- Não creio que este caso seja desinteressante... e
os honorários seriam...
- Gosto de assuntos emotivos - interrompeu Mason.
- Normalmente, um caso atrai-me só porque tem
mistério. Começo a desembrulhá-lo e, quando se desenvolve,
surge a emoção. Sempre que posso, corto caminho
e entro na água a escaldar... é uma maneira de ser instintiva.
Os processos vulgares de gabinete não me interessam
nada. Não me atraem litígios ordinários.
Esta sua indiferença fez despertar ainda mais a ansiedade
de Witherspoon em confiar no advogado.
- A minha filha Lois quer casar com um jovem que
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vai dar entrada no Corpo de Engenharia, logo que terminar
um curso universitário.
< -Que idade tem?
- A minha filha ou o rapaz?
- Ambos.
- A minha filha acaba de fazer vinte e um. O rapaz
tem aproximadamente mais seis meses. Ele dedica-se
imenso à química e à física... é um rapaz invulgarmente
esperto.
- A juventude, hoje em dia, joga muito forte na
vida...
- Receio bem não ser da sua opinião... não é que
não seja patriota; mas, não me agrada a ideia de ter um
genro com a perspectiva de ir para a guerra mal acabe a
lua-de-mel.
- Antes de 1929, os mancebos dispunham de tudo
em excesso. Depois do grande colapso financeiro, passaram
a não ter nada. Por isso, começaram a preocupar-se
excessivamente com os problemas económicos. Começámos
a pensar demasiado em partilhar as riquezas em
vez de as criar. A juventude deve criar alguma coisa e
deve ter alguma coisa para criar.
"Os jovens modernos têm uma maneira diferente de
ver as coisas. Haverá colapsos cardíacos. Haverá luta,
dificuldades e morte. Mas, aqueles que sobreviverem,
terão sido temperados num cadinho de fogo. Não aceitarão
substitutos. Não se iluda a esse respeito, Witherspoon,
você e eu vamos viver num mundo diferente quando
a guerra acabar, e vai ser diferente porque os jovens,
ao sofrê-la, lutaram e aprenderam.
- Nunca tinha pensado na juventude por esse
prisma. Seja como for, nunca vira a mocidade como força
conquistadora.
- Deve tê-la visto de uniforme na outra guerra; mas,
então, não estava de costas contra a parede. A "juventude
de 1929 é a meia-idade de hoje. Vai ter uma sur-
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presa... esse jovem de que me fala, interessa-me. Conte-me
mais coisas.
- Há um enigma no seu passado. Ele não sabe
quem é.
- Quer dizer que não conhece o pai?
- Nem o pai, nem a mãe. Marvin Adams foi informado
pela mulher a quem sempre considerara mãe, que
tinha sido raptado aos três anos de idade. Ela fez esta
confissão no seu leito mortuário. Evidentemente, tal revelação,
de que só teve conhecimento há dois meses, constituiu
um grande choque para ele.
- Curioso. Que diz a sua filha a isso?
- Diz que...
Uma voz feminina, vinda da segunda fila de sofás
que estavam colocados de costas com costas, e directamente
por detrás da cadeira de Mason, declarou:
- Não achas melhor deixar-me dar essa opinião,
papá?
Witherspoon virou a cabeça, instantaneamente. Mason,
movendo-se com a graça preguiçosa do indivíduo
alto sem peso a mais, ergueu-se para ver a rapariga que
se colocara de tal modo que estava ajoelhada sobre o
assento do sofá com os braços apoiados no encosto. Em
consequência da vivacidade dos seus movimentos, um
livro caíra para o chão.
- Palavra que não estava à escuta, papá. Estava
aqui sentada a ler. Depois, ouvi o nome de Marvin... e...
se continuássemos a conversa...
John Witherspoon afirmou:
- Não vejo motivo para discutir isto na tua presença,
Lois. Não temos nada sobre que conversar... por
enquanto.
Mason olhou, primeiro, para um e, depois, para outro,
Por fim, manifestou-se:
- Por que não? Aqui vem a minha secretária, Miss
Street. Que tal acham a ideia de irmos até ao bar beber
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qualquer coisa e discutir o caso como pessoas civilizadas.
Mesmo que não se chegue a nenhum acordo, não
nos aborreceremos. Parece-me até, Witherspoon, que
este caso pode talvez vir a ser interessante.
CAPÍTULO II
Lois seguiu o rumo da conversa do pai, fácil e naturalmente.
- No fim de contas - disse -, este problema
diz-me respeito a mim, primordialmente. É a minha felicidade.
John Witherspoon fitou Mason com expressão quase
de angústia e deixou passar o silêncio.
- Estou apaixonada - prosseguiu Lois. - Não é a
primeira vez que me apaixono. É uma emoção que nos
aquece intimamente. Desta vez, decidi que seria coisa
definitiva. Nada do que alguém possa dizer, nada do que
alguém possa fazer, vai modificar as minhas ideias. O papá
está preocupado com a minha felicidade. Está preocupado
porque há certas coisas a respeito do homem com quem
vou casar que desconhecemos, coisas que o próprio Marvin
não sabe.
- De qualquer modo - comentou John Witherspoon,
um pouco timidamente, segundo pareceu a Mason - a
família e os antecedentes são elementos importantes.
Lois não ligou importância a esta observação. Era
uma rapariga viva, de olhos muito escuros e gestos voláteis.
Continuou:
- Há cerca de cinco anos, Marvin Adams e sua mãe,
Sarah Adams, vieram viver para El Templo. Sarah era
viúva, tinha uma pequena propriedade. Matriculou Marvin
na escola. Conhecemo-nos no liceu. Nesse tempo era
um colega como os outros. Fomos os dois para a univer-
sidade, cada um para a sua. Voltámos aqui para
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as férias e tornámos a encontrar-nos, e...-deu um
estalo com os dedos ... qualquer coisa brotou.
Olhou para os dois homens como se duvidasse que
estes a compreendessem e, depois, deslocou os olhos
para Della Street. Esta acenou a cabeça afirmativamente
- O meu pai - prosseguiu Lois, numa verdadeira
enxurrada de palavras - é maluco por coisas de família.
Marca o início da nossa ancestralidade de tal maneira
que até parece tornar o Mayflower aerodinâmico. Evidentemente,
interessou-se em descobrir qualquer coisa a
respeito dos pais de Marvin. Encontrou muitos obstáculos.
Mrs. Adams era muito circunspecta. Tinha vindo
para estas paragens, porque sofria de tuberculose e pensou
que a mudança de clima lhe fosse benéfica. Não
sucedeu assim. Antes de morrer, confessou que ela e o
marido, de nome Horace, tinham raptado Marvin. Este
tinha, então, três anos. Pediram resgate, mas, não o receberam.
A situação tornou-se demasiado perigosa para
eles e, por isso, fugiram para o Oeste. Dedicaram-se à
criança e, por fim, decidiram ficar com ela e educá-la.
Horace faleceu quando Marvin tinha quatro anos. Mrs.
Adams morreu sem nunca ter dito a ninguém qual era a
verdadeira família de Marvin. Declarou que se tratava de
uma boa família e que era a única coisa que tinha a dizer
Marvin concluiu daqui que o rapto tivera lugar algures no
Leste. Mrs. Adams acrescentara que os verdadeiros pais
de Marvin tinham morrido.
- Essa declarações tiveram carácter público? - perguntou
Mason. - Foram feitas perante as autoridades?
- De modo nenhum - disse Witherspoon. - Mais
ninguém sabe dessas declarações, a não ser Marvin,
Lois e eu.
- O senhor é viúvo? - perguntou-lhe Mason.
Witherspoon fez um gesto de assentimento.
- O que é que pretende? - insistiu Mason. ,
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De novo. Witherspoon pareceu menos positivo do
que seria de esperar.
- Pretendo descobrir quem eram os pais do rapaz.
Desejava conhecer os seus antecedentes.
- Exactamente, porquê? - inquiriu Lois.
- Quero saber quem ele é.
Os olhos de Lois cruzaram-se com os do pai.
- Isso também Marvin queria saber - disse ela.
Mas, na parte que me diz respeito, paizinho, não me
importo nada que ele seja filho de um mineiro ou
de um aristocrata republicano. Vou casar com Marvin
na mesma.
John Witherspoon baixou a cabeça em aquiescência
silenciosa que pareceu excessivamente dócil.
- Se é assim que queres, seja feita a tua vontade
--disse ele.
Lois olhou para o relógio, sorriu para Mason e disse:
- E, entretanto, tenho uma entrevista... formámos
um grupo para dar um passeio a cavalo à luz das estrelas.
Não esperes por nós, papá, e não te preocupes.
Ergueu-se, impulsivamente, estendeu a mão a Mason,
a quem afirmou:
- Vá, faça o que o meu pai diz. Ficará muito mais
bem disposto... e a mim não me faz diferença nenhuma.
- Desviou os olhos de Mason para Della Street e o que
viu no rosto de Della fez com que se apressasse a tornar
a olhar para Mason. Depois, sorriu, estendeu a mão
a Della Street, a quem disse: -Voltaremos a encontrar-nos,
com certeza. - E afastou-se.
Ao vê-la retirar-se, Witherspoon instalou-se na sua
cadeira com o ar de um homem que, por fim, tem liberdade
de falar francamente.
- A história que Sarah Adams nos contou é muito
bonita - disse. Destinava-se a impedir qualquer investigação
da minha parte. Bem vê, isto passou-se há meia
dúzia de meses. Lois e Marvin já se namoravam. Foi um
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grande sacrifício feito por uma mãe moribunda... uma
confissão verdadeiramente dramática. No seu leito mortuário,
procurou apagar o amor e o respeito filiais para
garantir a futura felicidade de Marvin. O pior é que a
confissão não era verdadeira.
Mason ergueu as sobrancelhas.
- Essa tal confissão foi completamente forjada concluiu
Witherspoon.
- Por que razão? - perguntou Mason.
-Já investiguei - afirmou Witherspoon. - Descobriram
que Marvin Adams era filho de Sarah e Horace
Legg Adams e a sua certidão de idade está devidamente
arquivada. Não há nenhumas provas de qualquer rapto
insolúvel no período mencionado na falsa confissão de
Mrs. Adams.
- Então, por que fez ela tais declarações? - perguntou
Della Street.
Taciturno, Witherspoon relatou:
- Vou-lhe dizer o motivo exacto por que o fez. Em
Janeiro de 1924, Horace Legg Adams foi condenado por
homicídio premeditado. Em Maio de 1925, foi executado.
A história que Mrs. Adams contou, foi uma tentativa
patética e à última da hora de salvar o rapaz da desgraça
acidental de ter tal assunto divulgado publicamente, o
que lhe faria perder a mulher que amava. Ela sabia de
antemão que eu iria procurar descobrir o passado do pai
de Marvin. Por isso, esperava que o que contasse, viesse
a impedir quaisquer investigações ou as fizesse seguir
caminhos diferentes e improfícuos.
- Claro está, o rapaz não sabe de nada? - perguntou
Mason.
- Não.
- Nem a sua filha? - inquiriu Della Street.
- Não.
Witherspoon esperou um momento ao mesmo tempo
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que apertava entre os dedos o pé do cálice de brande;
depois, afirmou categoricamente:
- Não quero que o filho de um assassino entre na
família Witherspoon. Calculo que Lois terá em conta a
importância dos factos quando lhos contar.
- O que quer que eu faça? - perguntou Mason.
Witherspoon respondeu:
- Tenho um duplicado das provas acumuladas
durante todo o processo. A meu ver, demonstram concludentemente
que Horace Legg Adams cometeu um
crime de homicídio voluntário e premeditado. No entanto,
quero ser-lhe justo. Quero favorecer Marvin com o benefício
da dúvida. Desejo que leia a cópia do processo,
Mr. Mason, e me dê a sua opinião. Se achar que o pai
de Marvin foi justamente condenado, contarei a minha
filha toda a história, dir-lhe-ei a sua opinião e proibi-la-ei
terminantemente de voltar a ver ou a falar com Marvin.
Será um grande choque para ela; mas, compreenderá.
O senhor há-de ver porquê, quando ler o processo.
- E se eu chegar à conclusão de que o homem
estava inocente?
- Então, terá de demonstrá-lo, reabrir o processo
antigo, esclarecer o caso e dar público conhecimento
desse erro da justiça. Assim, não haverá qualquer mancha
no nome da família Witherspoon. De modo nenhum
quero ter o filho de um assassino condenado à pena
máxima, na minha família.
- De um crime ocorrido há dezoito anos - replicou
Mason, pensativo. - Parece-me um espaço de tempo
muito grande.
Witherspoon encarou-o.
- Estou disposto a pagar bem.
Della Street observou:
- Vejamos uma coisa, Mr. Witherspoon, suponha
que o homem foi justamente condenado. Parece-lhe que
a sua filha deve mudar de ideias por esse motivo?
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Com expressão severa, Witherspoon declarou:
- Se o pai cometeu o crime, devem existir certas
tendências hereditárias no filho. Já assisti a certos factos
que indicam a existência de tais tendências. O rapaz é
um criminoso em potência, Mr. Mason.
- Prossiga - convidou ele.
- Se essas tendências existem e, se minha filha
não quiser ouvir a voz da razão, colocarei Marvin em tal
posição que as fraquezas inerentes do seu carácter virão
à superfície. Provocá-las-ei de maneira tão dramática que
Lois as verá com os seus próprios olhos.
- Que quer dizer com isso, exactamente?
- Compreenda-me, Mason, farei tudo o que estiver
ao meu alcance para proteger a felicidade da minha filha,
literalmente tudo.
- Já compreendi isso; mas, o que pretende dizer
com semelhante declaração?
- Colocarei o nosso jovem em tal situação que.
aparentemente, o único caminho lógico a seguir seja
cometer um crime; então, veremos o que ele faz,
- Essa ideia é bastante brutal tanto para a sua filha
como para a pessoa a quem o senhor, ocasionalmente,
escolher para vítima em perspectiva.
- Não se preocupe - disse Witherspoon. O
assunto será tratado com toda a habilidade. Ninguém
será assassinado,, de verdade; mas, Marvin ficará convencido
de que matou alguém. Depois disso, a minha
filha vê-lo-á com os olhos mais abertos.
O advogado sacudiu a cabeça.
- Tenho a impressão de que o senhor vai brincar
com uma carga de dinamite.
- Às vezes, são precisas cargas de dinamite para
deslocar rochedos, Mr. Mason.
Durante instantes, fez-se silêncio; depois, Mason
observou:
- Vou ler essa tal cópia do processo. Faço-o mais
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que não seja para satisfazer a minha curiosidade. Ou
seja, é essa a única razão por que a vou ler, Mr.
Witherspoon.
O milionário fez sinal ao criado.
- Traga-me a conta - disse.
CAPÍTULO III
Raios de sol do amanhecer atravessaram o deserto
até ao ponto onde atingia a barreira montanhosa a oeste
e se recortavam em reflexos dourados nos cumes pontiagudos.
O céu começava a apresentar aqueles tons azuis-escuros
tão característicos do deserto do sul da Califórnia.
Della Street, vestida com calças e botas de vaqueiro
e uma blusa verde-clara, deteve-se ao passar pela porta
do quarto de Perry Mason, à qual bateu ao de leve.
- Já está levantado? - perguntou, em voz baixa.
Ouviu o ruído de uma cadeira a ser empurrada e,
a seguir, passos rápidos. A porta abriu-se.
- Meu Deus, ainda não se deitou!
Mason passou a mão pela testa, apontou para um
monte de folhas dactilografadas sobre a mesa e respondeu:
- Foi aquele maldito crime... interessou-me... Entre.
Della Street viu as horas no relógio de pulso e
replicou:
- Deixe lá o crime. Vista o fato de montar. Encomendei
dois cavalos para irmos passear... caso houvesse
oportunidade.
Mason hesitou.
- Há um aspecto naquele caso que eu...
Della Street passou-lhe diante com firmeza, abriu
as persianas e aconselhou:
2 - VAMP. G. 7
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- Apague as luzes e veja isto.
Mason fez estalar o interruptor. A luz do sol já
começava a varrer as sombras negras da madrugada.
A iluminação intensa reflectiu-se no aposento com um
brilho que tornava a recordação das luzes eléctricas um
substituto pálido e doentio.
- Venha daí - insistiu Della Street. - Um banho
de chuveiro frio e um primeiro-almoço fazem-nos esquecer
isso num instante.
O advogado ficou-se a olhar para o azul do céu.
Abriu a janela de par em par como se tivesse notado a
necessidade de renovar o ar do quarto.
- O que é que o preocupa? - perguntou Della
Street, pressentindo-lhe o estado de espírito. - É o tal
processo?
O advogado olhou para o monte de folhas e dobrou
alguns recortes de jornal amarelecidos pelo tempo.
Depois, abanou a cabeça.
- O que é que isso tem de especial?
- Quase tudo.
- O homem foi condenado com justiça?
- Podia ter sido.
- Então, o que é que tem de especial?
- A maneira como o processo foi instruído.
O homem podia ser culpado, ou podia estar inocente.
Porém, da maneira como o advogado de defesa tratou o
caso, o júri só podia chegar a uma única sentença: homicídio
voluntário e premeditado. E o pior é que não há
uma única coisa no processo, tal como agora se apresenta,
que eu possa apontar a John L. Witherspoon para
lhe afirmar: "Isto indica concludentemente que o homem
estava inocente. O júri considerou-o culpado com base
nessas provas. E Witherspoon considera-o culpado com
base nas mesmas provas. Por consequência, ele irá destruir
a vida de dois jovens... e ó muito possível que o
homem estivesse inocente.
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Della Street manteve-se num silêncio de simpatia.
Mason continuava a examinar os cumes pontiagudos das
montanhas, que deviam atingir mais de dois mil metros
acima do nível do mar, depois virou-se, sorriu e disse:
- Preciso fazer a barba.
- Não se rale com isso. Calce as botas de montar
e venha daí. Vista umas calças velhas e um casaco de
cabedal. É quanto basta.
Della caminhou para o guarda-fato, que remexeu,
encontrou as botas e o casaco, tirou-os para fora e
declarou:
- Vou esperar lá para baixo no vestíbulo. - O advogado
mudou rapidamente de fato e foi encontrar-se com
Della no átrio. Dirigiram-se para o ar livre. O homem
encarregado dos cavalos indicou-lhes duas montadas,
ajudou-os a subir para as selas e sorriu para Mason.
- Pode-se adivinhar logo se uma pessoa sabe ou
não andar a cavalo pela maneira como o monta - disse.
- Estes cavalos são bons; mas, amanhã, hei-de arranjar-lhe
uns melhores.
Os olhos de Mason revelaram interesse.
- Como descobre essas coisas?
- Por pequenos pormenores. Os novatos vêm-nos
logo contar histórias sobre as suas façanhas a cavalo
quando eram pequenos e depois nem sequer sabem pegar
nas rédeas - declarou, com desgosto.
Os olhos de Mason mostraram uma expressão pensativa
quando se afastaram do hotel a trote.
- Que mais há? - perguntou Della Street.
- Aquela conversa sobre a maneira de montar a
cavalo fez-me pensar... Sabe, um advogado deve estar
sempre alerta para os pormenores.
- O que é que tem isso com o montar a cavalo?
- Tudo... e nada.
Della guiou o seu cavalo para mais perto do de
Mason.
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-As pequenas coisas - disse Mason - os pequenos
pormenores que escapam ao observador médio constituem,
na maior parte das vezes, os factos, que contam
histórias completas. Se um indivíduo compreende realmente
o significado das pequenas coisas, ninguém lhe
pode mentir. Veja, por exemplo, este caso. As pessoas
que aqui vêm, têm dinheiro. Parte-se do princípio que são
inteligentes. Tiveram, regra geral, a melhor educação que
o dinheiro pode proporcionar. Normalmente, procuram
exagerar a sua habilidade como cavaleiros para conseguirem
melhores montadas e esquecem-se completamente
das pequenas coisas que fazem, provando a inexactidão
das suas palavras. O homem que aluga os cavalos
deixa-se ficar junto do poste, aparentemente sem ligar
importância nenhuma ao que se passa à sua volta e, no
entanto, está a observar até que ponto o cavaleiro
conhece os cavalos. Um advogado deve apreciar o significado
de todas essas coisas.
- Quer dizer que um advogado deve saber isso
tudo? - perguntou Della Street.
- Não pode saber isso tudo - respondeu Mason. Porque
senão seria uma enciclopédia ambulante; mas,
deve conhecer os factos básicos. E deve saber como chegar
ao conhecimento exacto, que necessita em determinado
caso, para provar que um indivíduo está a mentir
quando os seus próprios actos contradizem as palavras
que os lábios proferem.
A jovem examinou a expressão bastante fatigada do
advogado e comentou:
- Está a preocupar-se demasiado com esse assunto.
- Há dezassete anos, foi enforcado um homem. Talvez
o condenassem justamente. Mas, nada nos diz que
não estivesse inocente. Seja como for, há um facto indiscutível:
foi enforcado porque um advogado errou.
- Que fez o advogado?
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- Entre outras coisas, apresentou uma defesa
inconsciente.
- A lei permite isso?
- A lei permite; mas, a natureza humana, não.
- Receio não compreender.
- Sem dúvida, as leis modificaram-se muito nos
últimos vinte anos; mas, a natureza humana não se alterou.
Segundo os autos, existentes nesse tempo, uma
pessoa podia declarar-se não culpada, submeter-se a julgamento
e provar a sua inocência. Também podia interpor
a alegação de loucura que era julgada ao mesmo
tempo que o resto do processo e perante o mesmo júri,
incluída no processo global.
Della estudou-o com olhos que examinavam em profundidade,
vendo coisas que só uma mulher pode ver
num homem com quem tem estado longa e intimamente
associada.
De súbito, declarou:
- Vamos esquecer isso. Respiremos este ar puro
do deserto e voltaremos a pensar nessa trapalhada
depois de almoço.
Mason acenou afirmativamente, tocou no cavalo com
o chicote e os animais largaram a galope.
Afastaram-se da aldeia, atravessaram um vale batido
pelo vento, foram dar a um oásis e desmontaram estendendo-se
na areia. O silêncio absoluto do deserto desceu
sobre eles, apaziguou o desejo de conversar, deixando-os
calmamente satisfeitos como almas purificadas por uma
vasta tranquilidade.
Regressaram em silêncio. Mason tomou um banho
de chuveiro, almoçou e mergulhou em sono profundo e
repousado. Só à tarde voltaria a avistar-se com John
Witherspoon.
Della e Perry encontraram-se com ele na varanda
protegida do sol que fornecia uma fresca protecção contra
o reflexo do deserto que lhes magoava os olhos. As
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sombras das montanhas estendiam-se lentamente pelo
vale, mas levariam ainda muitas horas a atingirem o local
onde se encontrava o hotel. O calor era seco, mas
intenso.
Mason sentou-se e principiou a passar em revista
o caso desapaixonadamente.
- Você, Witherspoon, já está familiarizado com a
maior parte destes factos - disse. - Mas quero que
Miss Street fique com uma ideia global do assunto e
pretendo esclarecer as minhas próprias perspectivas
seguindo o caso numa sequência lógica de acontecimentos;
deste modo, vou arriscar-me a maçá-lo repisando
factos que já conhece.
- Faz favor - respondeu Witherspoon. - Acredite-me,
Mason, se conseguir convencer-me de que o
homem estava inocente...
- Não estou certo de que se possa chegar alguma
vez a essa conclusão, pelo menos pelas informações
que disponho de momento. Porém, podemos estudar o
assunto à luz fria e desapaixonada do raciocínio.
Witherspoon comprimiu os lábios.
- Na ausência de prova em contrário, a sentença
do júri será aceite como boa.
- Em 1924 - disse Mason, Horace Legg Adams
estabeleceu uma sociedade com David Latwell. Dispunham
de uma pequena fábrica, na qual aperfeiçoaram
a maquinaria de modo a augurar grande valor em potência.
Repentinamente, Latwell desapareceu. Adams disse
à mulher do sócio que este tinha partido para o Reno em
viagem comercial, e que, sem dúvida, receberia notícias
dele, dentro de poucos dias. Porém, a mulher nunca mais
soube o que era feito do marido. Mandou verificar nos
registos dos hotéis do Reno, mas em nenhum foram
encontrados vestígios da sua estada.
"Adams contou outras histórias. Nem todas coincidiam.
Mrs. Latwell disse que ia chamar a polícia. Adams,
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colocado perante a ameaça de uma investigação policial,
contou uma história totalmente diferente, a que se referiu
pela primeira vez. Mrs. Latwell chamou a polícia. Esta
procedeu a investigações. Adams disse que Latwell lhe
confessara ser infeliz no casamento, que estava apaixonado
por uma jovem cujo nome nunca figurou no processo.
Nos jornais e em pleno tribunal, referiam-se-lhe
pela designação de Miss X. Adams declarou que Latwell
lhe dissera que ia fugir com esta mulher e lhe pedira
para evitar o mais tempo possível a interferência da
esposa, contando-lhe que ele fora para o Reno em viagem
de negócios e que, entretanto, Adams continuaria a
administrar a casa, ficaria com a parte de Latwell da
exploração, daria um subsídio de duzentos dólares por
mês à mulher de Latwell, ficando à espera de notícias
deste sobre o que deveria fazer com o resto. Latwell pretendia
afastar-se por completo, antes que a esposa o
impedisse.
"Nesta altura, Adams deu à história uma versão convincente;
mas, devido às anteriores declarações contraditórias,
as autoridades prosseguiram nas investigações.
E assim descobriram o cadáver de Latwell enterrado na
cave da fábrica. Reuniu-se uma série de provas circunstanciais
indicando que Adams era o assassino. Por isso,
foi preso. Novas provas circunstanciais se acumularam.
Evidentemente, o advogado de Adams assustou-se. Segundo
parece, concluiu que Adams não estava a dizer-lhe
toda a verdade e que, na altura do julgamento, lhe podiam
colocar à frente testemunhas inesperadas que tornariam
o processo uma causa ainda mais desesperada.
"A acusação encerrou o seu libelo. As provas circunstanciais
formavam uma pilha imponentíssima. Adams
prestou declarações. Como testemunha, foi um fracasso.
Deixou-se envolver e atrapalhar no interrogatório... talvez
porque não compreendesse claramente as perguntas ou
porque estava desconcertado. Não era manifestamente
23
homem que pudesse falar ou pensar com calma numa
sala de audiências repleta de público e diante dos rostos
de pedra de doze jurados. O advogado de Adams baseou
a defesa em sintomas de demência. Fez com que o pai
de Adams depusesse e este fez o depoimento habitual
que as famílias fazem quando pretendem salvar os seus
parentes da pena máxima. Uma queda na infância, uma
pancada na cabeça, sintomas de anormalidade, em especial
que Horace Adams tinha a tendência, quando era
novo, de torturar os animais. Arrancava as asas das
moscas, pregava-as vivas em alfinetes e assistia muito
satisfeito à sua morte lenta. Em resumo, foi o complexo
de torturar os animais que serviu de base a toda a defesa.
Foi, de facto, bastante infeliz.
- Porquê? - perguntou Witherspoon. - Tudo isso
demonstrava loucura.
- Porque irritou o júri. Muitas crianças arrancam as
asas das moscas. Quase todos os garotos passam por
essa fase quando são instintivamente cruéis. Ninguém
sabe porquê. Os psicólogos sugerem razões diferentes.
Mas, quando um homem está a ser julgado e pode perder
a vida, não serve de quase nada a um júri relembrar
crueldades de infância, exagerando-as, distorcendo-as e
procurando demonstrar demência. Além disso, o facto
do advogado de Adams confiar a sua defesa em sintomas
de demência, nas circunstâncias em que o processo
estava a ser apreciado, indicava que ele próprio não
acreditava na história de Adams sobre o que Latwell
lhe dissera.
"As provas circunstanciais podem ser o perjúrio
mais vicioso do mundo. As circunstâncias não mentem,
mas a interpretação das circunstâncias pelos homens é
frequentemente falseada. Segundo parece, ninguém relacionado
com o facto teve o mais leve conhecimento de
como deve analisar um caso que depende simplesmente
das circunstâncias.
24
"O procurador distrital era um promotor de justiça
arguto e inteligente, que tinha ambições políticas. Mais
tarde, ascendeu a governador do Estado. O advogado da
defesa era um desses juristas cheios de teorias que se
baseava no conhecimento abstracto dos códigos académicos
e que nada sabia da natureza humana. Conhecia
a lei. Todas as páginas do processo demonstram-no. Mas
não conhecia os jurados. Também isso é revelado em
todas as páginas do processo. Deste modo, Adams foi
condenado por homicídio premeditado e voluntário.
"Ainda houve um apelo. Mas, o Supremo Tribunal
chegou à conclusão que se tratava de um caso de provas
circunstanciais que, graças aos cuidados com que o
advogado de Adams tinha apresentado as suas opiniões
e peneirado os seus argumentos com decisões, não dava
lugar a quaisquer erros. Os jurados tinham ouvido as
testemunhas, tinham assistido aos seus depoimentos e,
portanto, eram os melhores juízes dos factos. A sentença
foi confirmada e Adams executado.
Notou-se certo tom de amargura na voz de Witherspoon,
ao dizer:
- O senhor é um advogado que se especializou em
defender pessoas acusadas de crime. Já ouvi dizer que
nunca teve um constituinte que fosse condenado por
crime de homicídio. No entanto, apesar do seu ponto de
vista, que é manifestamente tendencioso em favor do
réu, não é capaz de declarar que o homem estava inocente.
A meu ver, isto é concludente em relação à sua
culpabilidade.
- Não posso dizer que ele esteja inocente, mas
também não me atrevo a afirmar que fosse culpado. As
circunstâncias relacionadas com o processo nunca foram
devidamente investigadas. Quero investigá-las.
- O simples facto de você, favorecendo como está
uma posição, não encontrar nada que...
- Não, espere um instante - interrompeu Mason.
25
- Em primeiro lugar, este assunto não me atraía. Faltavam-me
elementos espectaculares. Era um caso de homicídio
sórdido rotineiro, igual a tantos outros. Provavelmente,
eu nunca aceitaria a defesa de Adams, se me
tivesse sido proposta. Gosto de questões que tenham
elementos misteriosos, qualquer coisa de bizarro. Portanto,
não estou a favorecer qualquer parte. Sou justo
e imparcial... e não estou satisfeito por o homem ter sido
condenado. A coisa por que estou chocado é ter sido
este homem condenado mais por causa da maneira como
o seu advogado tratou o processo do que por qualquer
outro motivo.
Witherspoon, quase como se estivesse a falar sozinho,
declarou:
- Se ele cometeu o crime, é quase certo que o
filho terá herdado características natas de crueldade,
como exemplifica a tendência para torturar os animais.
- Há imensas crianças que fazem isso - salientou
Mason.
- E até ultrapassam essa fase - comentou Witherspoon.
Mason fez um sinal de concordância.
- Marvin Adams já tem idade suficiente para ter
ultrapassado essa fase - prosseguiu Witherspoon
Parece-me que primeiro tenho de descobrir qual a sua
atitude para com os animais.
- Você está a seguir o mesmo caminho errado de
raciocínio seguido pelo júri em 1924.
- Qual é?
- O facto de pensar que um homem que trate cruelmente
os animais tenha de ser um assassino em potência.
Witherspoon levantou-se da cadeira, caminhou nervoso
até ao parapeito da varanda, ficou parado a olhar o
deserto durante alguns instantes, e depois voltou-se para
encarar Mason. Parecia, não se sabe bem como, ter enve-
26
-lhecido, mas havia uma decisão clara estampada no seu
rosto.
- Quanto tempo levará a investigar as circunstâncias
do caso ao ponto de poder chegar às provas
concludentes? - perguntou a Mason. ;
O advogado respondeu:
- Não sei. Há dezoito anos, não levaria muito
tempo. Hoje, os factos mais significativos estão obscurecidos.
Acontecimentos a que não se ligou importância
na altura, mas que podiam desempenhar papel importante
no caso, foram submersos pela marcha do tempo, pelo
inevitável peso de outros acontecimentos que se amontoaram
em cima deles. Levaria tempo e custaria
dinheiro.
- Disponho de todo o dinheiro que necessitamos.
Mas, temos muito pouco tempo. Quer fazer a investigação?
Mason nem sequer o olhou. Apenas replicou:
- Parece-me que não há força nenhuma sobre a
terra que me impeça de fazer a investigação, se estiver
disposto a satisfazer as despesas. No caso de eu não
chegar a uma conclusão satisfatória, não cobrarei quaisquer
honorários.
- Gostaria que tomasse conta deste trabalho de tal
forma que excluísse qualquer outra coisa... qualquer
possível interrupção. Temos apenas alguns dias... depois
vou agir...
O advogado observou em voz baixa:
- É escusado dizer-lhe, Witherspoon, que o que eu
penso é perigoso.
- Perigoso, para quem?
- Para a sua filha... para Marvin Adams... e até
mesmo para si.
Witherspoon ergueu a voz. Um súbito afluxo de sangue
escureceu-lhe a pele.
- Não quero saber de Marvin Adams - disse.
27
O que me preocupa muito é a felicidade da minha filha.
Na parte que me diz respeito, estou disposto a fazer
seja o que for para evitar que ela seja infeliz.
- Já alguma vez lhe ocorreu - perguntou Mason que,
se o jovem Adams souber ao certo o que o senhor
anda a fazer e a razão por que o faz, pode ter qualquer
acto desesperado?
- Não me interessa nada o que ele possa fazer respondeu
Witherspoon, martelando as palavras com o
punho sobre a mesa. - Garanto-lhe uma coisa, se Marvin
Adams é filho de um assassino, nunca casará com a
minha filha. Nada me deterá para impedir esse casamento,
absolutamente nada. Compreende?
- Não tenho bem a certeza. O que quer dizer com
isso?
- Quero dizer que no respeitante à felicidade de
minha filha, não me deterei perante coisa alguma, Mason.
Tomarei as medidas necessárias para que qualquer
homem que ameace a sua felicidade deixe de ser ameaça
para essa felicidade.
Mason observou em voz baixa:
- Não fale tão alto. Lembre-se que está a fazer
ameaças. Alguns indivíduos já foram enforcados por
pouco mais. Com certeza, não quer dizer...
- Não, não, evidentemente que não - replicou Witherspoon
em tom ainda mais baixo, olhando rapidamente
em volta a verificar se alguém teria ouvido o seu comentário.
- Não queria dizer que o matava, mas não teria
escrúpulos de espécie nenhuma de o colocar em tal
situação que a fraqueza de carácter herdada se tornasse
manifesta... Oh, provavelmente estou a preocupar-me
sem razão. Posso contar com Lois para apreciar
a situação sensatamente. Gostava que viesse até minha
casa. Mason... você e a sua secretária. Ninguém o incomodaria
e...
Mason interrompeu para dizer:
28
- Não me importo de ser incomodado.
- Receio não compreender. Quando uma pessoa se
concentra...
- Já lhe disse - prosseguiu Mason. - Que pelos
dados disponíveis e pelas provas registadas, Horace Legg
Adams podia muito bem ter sido o assassino. Quero descobrir
as provas que não estejam registadas no processo.
Para isso, necessito de solidão sem perturbações. Preciso
de agir.
- Bom... gostaria de o ter ao pé de mim. Não podia
ao menos acompanhar-me agora e...
- Está bem, vamos partir imediatamente. Irei até
sua casa. Pretendo ver o ambiente em que vive. Quero
conhecer melhor a sua filha e Marvin Adams. Calculo que
ele esteja lá.
- Está. E além dele, estão mais dois hóspedes, Mr. e
Mrs. Burr. Estou certo que não os importunarão.
- Se tal acontecer, vir-me-ei embora... Della, telefone
para Paul Drake. Diga-lhe que salte para o automóvel
e que venha ter imediatamente comigo a El Templo.
- Vou procurar a minha filha e...-Witherspoon
calou-se ao ouvir o som de passos a correr e gargalhadas
femininas; depois, dois jovens subiram os degraus atabalhoadamente
e dirigiam-se para a varanda, quando viram
o trio sentado à mesa.
- Anda cá - disse Lois Witherspoon ao compa-
nheiro. - Vais conhecer um advogado famoso.
Lois vestia um fato desportivo que revelava o contorno
feminino da sua figura, exibindo a pele queimada
pelo sol de tal maneira que teria provocado, vinte anos
antes, a intervenção da polícia. O jovem que a acompanhava
trazia vestidos uns calções e uma blusa muito fina.
Estava suado, tinha cabelos e olhos negros, gestos nervosos,
dedos compridos e elegantes e um rosto expressivo
que, aparentemente, lhe dava, na opinião de Mason,
aspecto de mais velho do que este supunha. O rosto
29
espelhava um espírito sensível, um espírito capaz de
grandes sofrimentos, alguém que os grandes choques
deixavam imperturbável.
Lois Witherspoon fez rápidas apresentações. Ao
mesmo tempo acrescentava:
- Fizemos três partidas de ténis velocíssimas.
E quando digo velocíssimas, nem calculam a que me
refiro! A minha pele tem uma entrevista marcada com
montanhas de água quente e sabonete. - Voltou-se para
Perry Mason e disse quase em tom de desafio: - Porém,
quis que nos visse suados e tudo, porque... porque não
fosse o senhor pensar que íamos a fugir.
Mason sorriu.
- Estou convencido de que vocês os dois não são
pessoas para fugir, seja do que for.
- Espero que não.
Marvin Adams mostrou-se, repentinamente, muito
sóbrio.
- Não se consegue nada fugindo das coisas, da
guerra, da luta ou... de qualquer outro assunto.
- Fugir da morte - acrescentou Lois rapidamente
- ou... - fitando o pai nos olhos ...fugir da vida.
Witherspoon ergueu-se pesadamente.
- Mr. Mason e a sua secretária vão connosco, disse
para Lois e depois para Mason. - Vou fazer os
preparativos para partirmos. Se estiver de acordo, pagarei
a sua conta juntamente com a minha. Será menos uma
preocupação para si.
Mason acenou afirmativamente, mas os seus olhos
conservavam-se fixos em Marvin Adams e não seguiram
John L. Witherspoon ao atravessar a porta para o vestíbulo.
- Então, o senhor não acredita nas fugas? - perguntou
Mason.
- Não, senhor.
- Nem eu - disse Lois. - E o senhor, Mr. Mason?
30
A pergunta provocou um sorriso em Della Street e
esse sorriso foi a única resposta que Lois Witherspoon
obteve.
Marvin Adams limpou a testa e riu.
- De qualquer modo, não quero fugir. Quero mergulhar.
Estou tão molhado como um pato afogado.
Della Street comentou sorridente:
- Tem de ter cuidado com o que diz diante de um
advogado. Este pode chamá-lo a depor no banco das testemunhas
para lhe perguntar: "Diga-me, meu caro senhor,
é capaz de afirmar que os patos se afogam?
Lois riu.
- Esta é a expressão predilecta de Marvin desde
que o seu professor de física realizou uma experiência
durante uma aula prática. No nosso rancho, há algumas
noites, Roland Burr, um dos hóspedes, pediu-lhe que
fizesse uma demonstração. Conta-lhes o que fizeste.
Marvin.
O jovem pareceu pouco à vontade.
- Tentei fazer a experiência. Mr. Burr insistiu em
que a realizasse. Não acreditava que fosse possível.
- Nada disso - defendeu Lois. - Mr. Burr foi, de
facto, quase insultuoso. Fiquei danada e fui a correr
buscar um patinho. Na verdade, Marvin afogou-o... sem
sequer lhe tocar. Evidentemente, tirei-o de dentro de
água a tempo de evitar que morresse.
- Fez um pato afogar-se? - exclamou Della Street.
- Na frente de todos os hóspedes - gabou-se Lois.
- Se visse a cara de Mr. Burr.
- Como é que consegue isso? - inquiriu Della.
Aparentemente, Marvin quis escusar-se.
- Não foi nada de especial. Trata-se apenas de uma
das mais recentes descobertas da química. Nada mais é
do que uma habilidade espectacular. Deitei umas gotas
de um detergente na água. Se me dão licença, vou tomar
31
um banho de chuveiro. Tive muito prazer em conhecê-lo,
Mr. Mason. Espero voltar a vê-lo.
Lois agarrou-se-lhe ao braço.
- Está bem, vamos embora.
- Um momento - disse Mason para Lois. - O seu
pai estava presente?
- Quando? - perguntou ela.
- Quando o pato se afogou.
- O pato não chegou a afogar-se. Marvin retirou-o
da água depois de ele ter mergulhado o suficiente para
demonstrar a sua teoria, limpou-o e... desculpem-me,
parece-me que estou a fugir ao assunto. Não, o pai não
estava presente.
O advogado fez um gesto com a cabeça e agradeceu.
- Porque perguntou isso?
- Ora, por nada. Nem vale a pena mencionar o
assunto. Tenho a impressão de que ele é um bocado sensível
à utilização de seres vivos em experiências laboratoriais.
Durante alguns momentos, Lois fitou Mason com
curiosidade: depois, disse:
- Está bem, não voltaremos a falar no caso.
O assunto do pato afogado será um segredo. Anda,
Marvin.
Della Street observou-os enquanto caminhavam para
a porta e viu Marvin Adams segurar a porta aberta para
Lois Witherspoon passar. Não falou senão depois de ver
a porta fechar-se suavemente.
- Estão, de facto, muito apaixonados - disse para
Perry Mason. - Porque se preocupou tanto em saber se
Mr. Witherspoon tinha assistido à experiência do pato
afogado e em recomendar que não lhe dissessem nada?
O advogado respondeu:
- Porque penso que Witherspoon seria imediatamente
levado a concluir que a experiência não era um
acto de um jovem interessado na ciência, mas a cruel-
32
dade sádica do filho de um criminoso. Witherspoon encontra-se
num estado de espírito perigoso. Pretende
julgar outro homem... e está terrivelmente tendencioso.
Pode-se dizer que a situação está repleta de dinamite
emocional.
CAPÍTULO IV
Não havia qualquer dúvida de que John L. Witherspoon
tinha orgulho na sua casa, tal como se orgulhava dos seus
cavalos, do seu automóvel, da sua filha e da sua posição
financeira e social. Com um sentido extremamente elevado
de posse, lançava, em volta de tudo o que entrava
na esfera da sua influência, uma auréola de vaidosa propriedade.
A sua casa era uma enorme estrutura edificada no
extremo ocidental do vale; para o sul, ficava a vertente
negra de Cinder Butte. Das janelas fronteiras, avistava-se
a vastidão do deserto, que limitava a faixa fértil do vale
irrigado pelo rio Vermelho. A leste da casa estavam as
zonas verdes e regadas. Para ocidente, ficavam as montanhas
que se amontoavam em rochedos descomunais.
John L. Witherspoon escoltou vaidosamente Mason
e Della Street durante a visita à casa, mostrando-lhes
os campos de ténis, a piscina, a fértil região irrigada e o
bairro onde viviam os criados mexicanos e os trabalhadores
rurais.
- Então? - perguntou Witherspoon. - Que tal lhes
parece?
- Maravilhoso - respondeu Mason.
Witherspoon virou-se e viu que o advogado estava a
observar, para além do vale, as montanhas purpurinas.
- Não, não, refiro-me à minha propriedade, à casa,
aos meus trabalhos agrícolas, aos meus...
3 - VAMP. G. 7
33
- Parece-me que estamos a perder um tempo preciosíssimo
replicou Mason.
Voltou-se abruptamente e caminhou a passos largos
para dentro de casa, onde Della Street o encontrou à hora
do jantar, fechado no seu quarto, debruçado mais uma
vez sobre as cópias do antigo processo-crime.
- O jantar é daqui a meia hora, chefe - disse ela.
- O nosso hospedeiro informou-me que nos ia mandar
alguns cocktails e Paul Drake acaba de telefonar de
El Templo a dizer que vem a caminho.
Mason fechou o volume de folhas dactilografadas.!
- Onde é que vamos guardar isto, Della?
- Há uma secretária, aqui, na sua sala. É semelhante;
às usadas nas Missões, boa e forte. Será óptima para
trabalhar.
O advogado sacudiu a cabeça.
- Não vou ficar. Partimos amanhã de manhã.
- Então para que veio? - perguntou, com curiosi-
dade.
- Queria ver aqueles pequenos, juntos durante mais
algum tempo. E para minha orientação, Witherspoon no
seu meio ambiente. Já conhece os outros hóspedes,
Della? !
- Conheço um deles, Mrs. Burr. Ainda não vi Mr. Burr.
- Porquê?
- Teve uma questão com um cavalo, pouco depois >
do senhor entrar e se enfronhar no estudo do processo,
O advogado manifestou repentino interesse.
- Conte-me o que se passou com o cavalo e que
questão foi essa?
- Não assisti. Ouvi contar. Segundo parece, é um
entusiasta pela fotografia a cores. Foi assim que Witherspoon
o conheceu... numa loja de artigos fotográficos em
El Templo. Começaram a conversar, descobriram que
tinham uma porção de interesses em comum e Witherspoon
convidou-o a cá passar duas semanas... disse-
34
ram-me que Witherspoon é muito dado a estas atitudes...
gosta de mostrar a casa a toda a gente. É daquele género
de pessoas que ou simpatiza à primeira vista ou nunca
mais gosta daqueles com quem travou conhecimento.
- Aí está uma atitude perigosa! - comentou o advogado.
- Quando terminam as duas semanas da estada
de Burr?
- Parece que terminaram há poucos dias; mas,
Witherspoon sugeriu que ficassem mais algum tempo.
Burr pretende instalar negócios aqui no vale. Descobriu
que necessitava de mais capital e mandou-o pedir para o
Leste. Devem fazer a transferência amanhã ou depois...
Entretanto, ele terá de permanecer quieto, durante algum
tempo.
- Por causa do cavalo?
- Sim.
- O que aconteceu?
- Burr queria tirar uma fotografia colorida a uma
das éguas. Um vaqueiro mexicano estava a obrigá-la a
recuar na cavalariça, para a conduzir para o sítio que Burr
designara. O animal estava nervoso e espantado. O mexicano
deu-lhe um puxão à cabeça. Quando o animal espinoteou.
Burr que estava ao lado, levou um coice. O médico
saiu há um quarto de hora.
- Levaram-no para o hospital?
- Não. Ficou aqui, em casa. O médico trouxe uma
enfermeira diplomada e deixou-a cá, temporariamente.
Vai mandar outra enfermeira, quando chegar à cidade.
O advogado sorriu.
- Witherspoon deve sentir a impressão daquele hospedeiro
da peça em que o hóspede parte uma perna à
porta de casa e...
- Witherspoon foi o primeiro a insistir em que
ficasse. Burr pretendia ir para o hospital. Mas, Witherspoon
não lhe deu ouvidos.
35
- Não há dúvida que você sabe andar à escuta.
Que tal é Mrs. Burr?
- Mrs. Burr é um verdadeiro knockout!
- De que género?
- Cabelo louro-claro; olhos grandes e cinzentos;
uma figura maravilhosamente perfeita e...
- Não, não - interrompeu Mason a sorrir. - Eu referia-me
à espécie do knockout.
Os olhos de Della Street pestanejaram.
- Na minha opinião, é o que chamam geralmente
um knockout técnico. É das que acertam no estômago.
Ela...
A porta abriu-se. Paul Drake entrou apressado.
- Ena, ena! - disse Drake, apertando-lhes as mãos.
- Não há dúvida que sabes escolher locais, Perry. Que é
que há?
Antes que Mason pudesse responder, a porta voltou
a abrir-se e um silencioso criado mexicano entrou no
quarto, transportando uma bandeja com um shaker e três
copos cheios.
- O jantar é servido dentro de meia hora. - Anunciou
em correcto inglês, ao mesmo tempo que apresen-
tava a bandeja. - Mr. Witherspoon recomendou que não
se preocupassem com a indumentária.
- Pode dizer-lhe que não me preocuparei! - respondeu
Mason sorrindo. - É coisa que nunca faço.
Enquanto o criado se retirava, tocaram os copos uns
nos outros.
- Ao crime! - disse Mason.
Sorveram os cocktails, como se estivessem a tomar
parte numa cerimónia.
- Não há dúvida que sabes descobrir locais, Perry
- repetiu Drake.
- Pois, isto a mim, deprime-me! - respondeu Mason.
- Porquê? Tudo parece indicar que o tipo, que é
36
proprietário disto, inventou a maneira de fugir aos impostos
de rendimento.
- Também me parece - disse Mason. - Mas, há
qualquer coisa que não me agrada... uma atmosfera abafadiça...
- Ele não gosta porque não lhe encontra excitação.
Paul - opinou Della. - Quando trabalha num caso, Perry
quer andar à cata dos factos. É incapaz de se conservar
quieto, à espera que os factos venham ter com ele.
- Que caso vem a ser este? - inquiriu Drake.
- Não é um caso. É uma certidão de óbito.
- Quem é o teu cliente? e
- Witherspoon, o proprietário disto.
- Bem sei; mas, a quem é que tu estás a tentar
salvar da acusação de criminoso?
- Um homem que foi enforcado há dezassete anos!
- disse Mason, com gravidade.
Drake não fez qualquer esforço para esconder o seu
desgosto.
- Presumo que o homem foi executado um ano ou
mais depois do crime cometido. E isso leva-nos a pensar
que as pistas devem ter, pelo menos, dezoito anos.
Mason confirmou.
- E tu julgas que ele estava inocente?
- Podia estar.
- Bom, comigo não há novidade desde que me
paguem. Olha lá, Perry, quem é a lâmpada de acetileno?
- A lâmpada de acetileno? - perguntou Mason,
ainda embrenhado no assunto do crime.
- A garota do cabelo cor de palha que anda com um
vestido branco, muito sedutor, que condiz perfeitamente
com o tom da sua pele. Basta olhar para ela e sabe-se
logo que não traz mais nada por baixo, a não ser a sua
encantadora personalidade.
Della Street explicou:
- Ela é casada, Paul. Mas, não te preocupes com
37
isso. O marido teve uma questão com um cavalo esta
tarde. Estou informada de que o encheram de morfina "
tem uma perna metida em gesso...
- Ela é casada?
- É. Porque estás tão admirado? Bem sabes que as
mulheres bonitas costumam casar.
- Então, deve ser a mulher daquele tipo de peito
muito largo, com ar de quem tudo isto é dele... Como
diabo se chama?
- Não. Esse é Witherspoon. Ela é Mrs. Roland Burr.
Conheceram-se há duas semanas em El Templo. Burr e
Witherspoon são ambos amadores da pesca e da fotografia.
Como podes verificar, já estou ao par de toda a
má-língua.
Drake assobiou.
- Porquê, Paul? Que se passa?
- Quando saí do meu quarto para o corredor, há
pouco tempo, abri a porta muito silenciosamente e vi essa
"criança vestida de branco, toda dependurada no
"atleta, aos beijos. A última coisa que vi, quando o mais
silenciosamente possível tornei a recuar para o meu
quarto e esperei que o caminho estivesse desimpedido,
foi o tal patrão a preparar-se para fazer desaparecer uma
mancha de baton. A minha entrada foi retardada por uns
bons trinta segundos.
- Que diabo, Paul! - observou Della Street. - O que
é um beijo nos nossos dias?
- Aposto que este tem qualquer significado. Para
mim, pelo menos, tem. Se ela...
Bateram à porta. Mason fez um sinal a Della e esta
abriu.
Lois Witherspoon entrou no quarto. Marvin Adams,
com aspecto um pouco embaraçado, aproximou-se um ou
dois passos atrás dela.
- Entra, Marvin - disse Lois e, olhando para Paul
38
Drake acrescentou: - Eu sou Lois Witherspoon. Este é
Marvin Adams. O senhor é o detective, não é?
Drake olhou para Mason obliquamente, pareceu
quase espantado durante alguns momentos e respondeu
na sua voz lenta:
- Como descobriu? Acaso, deixei cair alguma lente
ou viu-me com barbas postiças?
Lois Witherspoon estava no centro da sala. Tinha
aquele ar de imperturbável desafio, de completo desrespeito
pelas consequências, que faz parte da juventude.
Falou com calorosa rapidez:
- Aposto que já conhece a história toda, de modo
que não venha para cá com fingimentos. Não negue. O seu
automóvel está lá fora parado. No cartão de registo, está
escrito "Agência de Detectives Drake.
Paul manteve a voz no mesmo tom.
- Não se deve acreditar em todos os cartões de
registo que se têm. Ora, suponha que eu tinha...
- Não faz mal, Paul - interrompeu Mason. - Deixa-a
acabar. O que é que deseja, Miss Witherspoon?
- Quero que as coisas sejam feitas como deve ser.
Não quero que venham apresentar-me este senhor como
sendo um velho amigo da família ou alguém que lhe veio
trazer uns papéis. Portemo-nos como pessoas crescidas
e civilizadas. O meu pai acha que deve investigar o
passado. Calculo bem como teriam ficado os percevejos
da minha biologia quando foram dissecados sob o microscópio.
Mas, se quisermos ser também percevejos, sejamos
ao menos francos.
Marvin Adams interpôs-se rapidamente:
- Pretendo saber alguma coisa a respeito dos meus
pais. E não quero casar com Lois, se...
- É isto mesmo! - interrompeu Lois Witherspoon.
- Por este caminho, Marvin está a adquirir consciência
de uma possibilidade de... que eu não gosto. Se o senhor
descobrir provas de que o pai dele era um milionário,
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que foi parar à cadeia por falsificar títulos da Bolsa ou
que um dos seus longínquos antepassados foi enforcado
na Torre de Londres por ser um pirata, tomará uma atitude
nobre para comigo e eu terei de o laçar para o poder
marcar com o meu ferro. No caso de não descobrirem
nada, garanto-lhes que é uma experiência embaraçosa
para todos nós. Faz-me sentir como se estivesse a praticar
qualquer má acção... agora que já nos entendemos
todos, não poderemos dispensar os subterfúgios?
O advogado teve um gesto de pronto assentimento.
- Excepto quando é necessário dispor bem o seu
pai. No fim de contas, Miss Witherspoon, isto dá-lhe oportunidade
de se ver livre do que considera um dever de
família e de tirar da cabeça uma ideia fixa.
- Sim, é uma espécie de brincadeira. Suponho que
temos de o deixar brincar.
- Como está Mr. Burr? - perguntou Mason, mudando
de assunto.
- Aparentemente, está bem. Encheram-no de drogas.
Está a dormir. A esposa... é que não está a dormir.
- Anda pelo corredor a passear de um lado para o
outro. Parece bastante desesperada - acrescentou Marvin.
Lois lançou-lhe um olhar rápido.
- Desesperada? Com aquele vestido?
- Bem sabes o que quero dizer, Lois.
- Pois sei e também sei o que ela quer dizer. Aquela
mulher tem demasiada consciência masculina para me
agradar...
Marvin Adams repreendeu-a:
- Então, menina, o que é isso?
Lois virou-se abruptamente e estendeu a mão a
Mason.
- Muito obrigada pela sua compreensão. Parece-me
que já quebrámos o gelo que havia à nossa volta.
40
Paul Drake soltou um pequeno assobio quando a
porta se fechou, após a saída do par.
- Aquilo é que é o que se chama ter personalidade
- anunciou. - Meteu-te mesmo num sarilho, não foi,
Perry? Ela tem alguma coisa que ver com o crime antigo...
é afectada de qualquer maneira?
Mason enfiou as mãos nos bolsos.
- Naturalmente, aos olhos dela, tudo isto lhe parece
uma loucura e um esforço inútil. Julga que Marvin Adams
foi raptado quando tinha três anos e que a preocupação
do pai Witherspoon é única e exclusivamente causada
pelo desejo de investigar a família do seu futuro genro.
- Então, e onde é que o homicídio traz preocupações?
perguntou Drake, com curiosidade.
-- Marvin Adams nem sequer suspeita; mas, é filho
de um homem que foi executado há dezassete anos por
crime de homicídio e, se qualquer destes dois pequenos,
cheios de nervos, descobre o que se está a investigar,
pôr-se-á a descoberto um dinamite emocional que fará Ir
pelos ares a família Witherspoon.
O detective deixou-se cair sobre o sofá, entregando-se
a um característico relaxamento muscular que o
deixava como uma ponta de fio solta.
- Witherspoon sabe isso tudo? - inquiriu.
- Sabe. Tinha uma cópia do processo. Está ali na
secretária. Vais lê-la esta noite.
- Aposto em como o rapaz descobre tudo antes de
trabalharmos no caso durante duas semanas.
- Não há perigo, porque nem sequer temos duas
semanas para isso. Se não descobrirmos algo de definitivo
no prazo de quarenta e oito horas, Witherspoon está
disposto a realizar uma original experiência de psicologia
criminal. Pensa bem nisso!
Drake sorriu.
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- Essa é que eu não faço... Pelo menos, enquanto
não acabar de jantar. Passe-me o shaker, Della. Calculo
que esteja cheio!
CAPÍTULO V
Della Street parou à entrada da sala de jantar a
observar Perry Mason com expressão divertida, enquanto
o advogado era apresentado a Mrs. Roland Burr.
Uma mulher atribuiria a Mrs. Burr trinta anos. Um
homem dar-lhe-ia pouco mais de vinte e tal. O seu cabelo
era cor de palha com reflexos avermelhados quando o sol
incidia sobre ele, segundo determinado ângulo. O seu
vestido branco, embora longe de ser considerado conservador,
não tinha corte atrevido. Era pela maneira como se
colava ao corpo que despertava a atenção dos homens
presentes.
Quando Drake estava a ser apresentado a Mrs. Burr,
entrou na sala Lois Witherspoon.
Comparada com a beleza luxuriante da figura de
Mrs. Burr, Lois era femininamente atlética. O seu vestido
era de modelo diferente. Tão-pouco ela caminhava com o
ritmo sedutor e ondulante que tornava notados todos os
actos de Mrs. Burr. Movia-se suavemente com o dinamismo
natural de uma jovem que está inteiramente livre
da auto-consciência. A sua presença dava ao aposento
uma completa frescura e, até certo ponto, apagava a
personalidade mais sedutora de Mrs. Burr.
Della Street procurava o mais possível manter-se
nos bastidores, observando o que se passava, com olhos
que anotavam todos os pormenores. Porém, só conseguiu
manter-se despercebida durante a primeira parte da refeição:
inesperadamente, Lois lançou-lhe uma pergunta
e, quando a voz bem modulada de Della lhe respondeu,
as atenções centralizaram-se sobre a secretária de Mason
42
e, aparentemente, a partir desse instante, não mais se
desviaram.
- Como está Roland? - perguntou Witherspoon,
abruptamente.
Esta pergunta deu a Mrs. Burr a oportunidade de se
mostrar esposa dedicada.
- É melhor eu ir vê-lo - disse. - Queiram desculpar-me,
por favor. - E saiu da sala como se estivesse
ansiosa por não interromper as conversas.
Ainda não voltara quando a campainha tocou. Witherspoon
chamou um dos criados mexicanos.
- Deve ser a enfermeira de El Templo - disse que
vem substituir a outra enfermeira que o médico cá
deixou. Podes levá-la directamente ao quarto de Mr. Burr.
O mexicano respondeu em voz baixa e musical:
- Si, señor - e dirigiu-se para a porta.
Mrs. Burr apareceu silenciosamente logo a seguir.
- Está a descansar calmamente, segundo diz a enfermeira
- anunciou.
O criado mexicano voltou, dirigiu-se para a cadeira
de Witherspoon e apresentou-lhe uma bandeja sobre a
qual havia um sobrescrito.
- Não era a enfermeira? - perguntou Witherspoon.
- Não, senhor, era um cavalheiro.
- Desculpem-me. Normalmente, não temos visitas
inesperadas.
Abriu o sobrescrito, leu o bilhete, fitou Mason e franziu
as sobrancelhas. Durante alguns instantes, pareceu
prestes a dizer qualquer coisa directamente ao advogado;
depois, declarou:
- Desculpem-me, por favor. Tenho de ir falar com o
recém-chegado. Façam favor de continuar a tomar o café
e os brandes.
No exterior da casa, o ladrar dos cães acalmou gradualmente.
Houve um momento durante o qual caiu sobre
43
a mesa um silêncio impressionante; depois, Mrs. Burr
perguntou a Drake:
- Interessa-se por fotografia a cores, Mr. Drake?
- Ele é um detective - anunciou bruscamente Lois
Witherspoon E veio cá em serviço oficial.
- Um detective! Que interessante! Diga-me, costuma
disfarçar-se para seguir as pessoas ou...
- Levo uma vida muito prosaica - disse Drake. Durante
a maior parte do tempo, ando cheio de medo.
Os olhos de Mrs. Burr mostravam uma expressão
perfeitamente inocente; mas, o seu rosto parecia traçado
a giz.
- Quem havia de dizer? Que interessante! Primeiro,
um dos mais famosos advogados do país e agora um
detective. Suponho, que deve haver qualquer ligação entre
as duas presenças.
Drake olhou para Mason.
Mason fitou Mrs. Burr.
- Puramente financeira, minha senhora.
Todos riram, sem saber ao certo o motivo por que
riam; mas, percebendo que a tensão tinha sido quebrada
e que o rumo das perguntas e respostas fora bloqueado...
temporariamente.
De repente, Witherspoon apareceu à porta.
- Mr. Mason, precisava imenso falar consigo uns
instantes, se os presentes o permitirem.
Witherspoon era mau actor. A sua tentativa de querer
mostrar-se casual e delicado, apenas salientou a apreensão
da sua voz e dos seus modos.
Mason empurrou a cadeira para trás, pediu desculpa
e seguiu Witherspoon até à sala.
Um indivíduo de cerca de cinquenta e cinco anos
estava de pé, de costas para eles, a examinar uma prateleira
de livros, embora aparentemente nem sequer estivesse
a ler os títulos. Só quando Witherspoon falou é que
44
ele se apercebeu da entrada de outras pessoas no aposento.
Virou-se rapidamente.
- Mr. Dangerfield - disse Witherspoon. - Permita-me
que lhe apresente Mr. Mason. Este senhor é um advogado
que, por acaso, está familiarizado com o assunto sobre o
qual pretendia falar-me. Queria que ele ouvisse o que
me principiou a dizer.
Dangerfield apertou a mão de Mason com a automática
delicadeza de quem aceita uma apresentação. Parecia
muito preocupado com os seus pensamentos e apenas
murmurou:
- Muito prazer, Mr. Mason.
Era um indivíduo de pequena estatura, pesado, mas
corpulento. Não havia gorduras supérfluas nas suas faces
ou na barriga. Tinha as costas direitas como uma tábua
e mantinha o queixo erguido e a cabeça bem equilibrada
sobre o pescoço espesso.
Os seus olhos eram escuros com uma mancha castanha-avermelhada
no fundo. Rugas de preocupação riscavam-lhe
a testa e havia uma expressão cinzenta de
fadiga na sua pele, como se não tivesse dormido na
noite anterior.
- Vá, fale - insistiu Witherspoon. - Diga o que me
queria dizer.
- Era a respeito daqueles detectives que o senhor
contratou.
Witherspoon relanceou os olhos por Mason, viu
apenas o perfil do advogado, clareou a garganta e perguntou:
- Quais detectives?
- Os detectives que investigaram o crime cometido
contra David Latwell. Estava convencido de que não se
voltaria a mexer no assunto desde que enforcaram Horace
Adams.
- Que interesse tem o senhor no assunto? - perguntou
Mason.
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Dangerfield hesitou imperceptivelmente.
- Sou casado com a viúva de David Latwell.
Witherspoon principiou a dizer qualquer coisa: mas,
Mason interpôs-se:
- Ah! Calculo que o crime foi um profundo choque
para sua esposa.
- Claro que foi... evidentemente!
- É natural! - prosseguiu Mason. - Mas, já está
completamente recomposta. Quer um cigarro, Mr. Dangerfield?
- Muito obrigado. - Dangerfield estendeu a mão
para a cigarreira de Mason.
- Talvez fosse melhor sentarmo-nos - disse Mason.
- Foi bom ter vindo cá, Dangerfield. Vive no Leste?
- Vivo. Presentemente, estamos em Sant Louis.
- Ah, sim? Veio de automóvel?
- Vim.
- Que tal achou as estradas?
- Óptimas. Fizemos uma viagem muito rápida. Só cá
estamos há dois dias.
- Então, não chegou hoje?
- Não.
- Está em El Templo?
- Estou. No Hotel Grande.
- Nesse caso, a sua esposa veio consigo?
- Veio.
Mason estendeu um fósforo na direcção do cigarro de
Dangerfield, ao mesmo tempo que perguntava casualmente:
- Como é que sabia que Mr. Witherspoon tinha contratado
os tais detectives?
- Começou a aparecer gente a fazer perguntas indiscretas.
Alguns dos nossos amigos foram interrogados.
Evidentemente, Mrs. Dangerfield tomou conhecimento
dos factos. O acontecimento inicial foi, conforme disse já,
um profundo choque para ela. Não só constituiu choque
46
o desaparecimento do marido como também houve um
período, durante o qual ela pensou que ele fugira com
outra mulher; depois, descobriu-se o cadáver e, a seguir,
realizou-se o julgamento. Bem sabe como são as audiências
deste género. Tudo é rebuscado e virado do avesso e
os jornais dão-lhe larga publicidade.
- E agora? - perguntou Mason.
- Graças a um pequeno trabalho de investigação
da parte da minha mulher, descobriu-se que o detective
interessado no assunto apresentava relatórios a alguém
que vivia em El Templo. Porém, não se conseguiu saber
o nome dessa pessoa.
- Sabe como ela descobriu o que se passava em
El Templo?
- Mais ou menos. Foi por intermédio da telefonista
do P. B. X. do hotel onde um dos detectives costumava
hospedar-se.
- Como é que lhe aconteceu vir aqui... a esta casa?
- Fui um pouco mais bem sucedido do que a minha
mulher em conseguir boas informações... porque parti
de outro ponto.
- Como foi isso?
- Certa noite, sentei-me num sofá a tentar descobrir
a razão por que alguém poderia estar interessado nesta
investigação.
- E descobriu?
- Não tinha bem a certeza; mas, supus que pudesse
estar relacionada com a viúva de Horace Adams e o filho.
Sabia que eles se tinham mudado para a Califórnia. Calculei
que ela tivesse morrido e alguém pretendesse solucionar
quaisquer questões sobre os direitos de herança.
Até podia ser qualquer tentativa para negociar o antigo
alvará da fábrica.
- Foi então que procurou Mr. Witherspoon? - perguntou
Mason.
- Não foi bem assim. Logo que chegámos à cidade,
47
a minha mulher tentou descobrir o detective. Eu comecei
a procurar Mrs. Horace Adams. Claro, descobri precisamente
o que calculava... que ela tinha vivido aqui, falecera
e que o filho namorava uma jovem rica de El Templo.
Com isto, claro está, somei os factos.
- Mas, não sabia de nada... - disse Mason.
- De facto, isso é verdade - admitiu Dangerfield.
- Fiz um pequeno bluff sobre Mr. Witherspoon, aqui
presente, logo que cheguei. Ele convenceu-me que eu
estava no bom caminho.
- Não confirmei coisa alguma - observou Witherspoon,
rapidamente.
Dangerfield sorriu.
- Talvez não fossem precisas muitas palavras.
- Porque veio cá? - inquiriu Mason.
- Não compreende? Tudo quanto a minha mulher sabe
é que alguém de El Templo está a tentar reabrir o caso.
Isso preocupa-a e está a excitá-la emocionalmente.
Quando souber que o jovem Adams se encontra aqui,
denunciá-lo-á como sendo o filho de um criminoso. Não
quero que tal aconteça nem nós devemos consenti-lo;
Ela é de opinião que a forca não bastou como castigo para
Horace Adams.
- Conheceu-a por alturas do julgamento?
Dangerfield hesitou apenas um instante e logo respondeu:
- Conheci.
- E, segundo presumo, conhecia Horace Adams?
- Não. Nunca me foi apresentado.
- Conhecia David Latwell?
- Sim, falei com ele, algumas vezes.
- E o que pretende que se faça?
- A minha mulher há-de descobrir, mais tarde ou
mais cedo, onde é o escritório dessa agência de investigações.
Está a perceber onde quero chegar?
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Witherspoon principiou a dizer qualquer coisa; mas,
Mason fê-lo calar com um olhar de advertência,
- Exactamente, o que é que pretende que se faça?
- voltou a inquirir Mason. - Não pode ser um pouco
mais específico?
- Ainda não percebeu? Mais tarde ou mais cedo, ela
há-de localizar essa agência de investigações e principiar
a fazer inquéritos sobre o nome do cliente.
- A agência de investigações não dará a informação
- respondeu Witherspoon, em tom categórico,
- Se a sim for, ela descobrirá o nome do detective
que trabalhou no caso e conseguirá a informação por meio
deste, de uma maneira ou doutra. Quando se lhe mete
uma coisa na cabeça, ela vai até ao fim. Anda extraordinariamente
nervosa. O que quero é que os senhores
avisem a agência de investigações. Depois, em vez de se
recusarem a dar-lhe a informação, dir-lhe-ão aquilo que
todos nós pretendemos. No fundo, navegamos todos no
mesmo barco.
- Qual informação? - perguntou Witherspoon.
- Dizer-lhe que o cliente que lhes confiou aquele
serviço foi um advogado, dar-lhe o seu nome, deixá-la ir
falar com ele... Este poderá arranjar uma desculpa qualquer
e ela voltará para casa e nunca mais pensará no
assunto.
- Acha que isso dará resultado? - perguntou Mason.
- Acho.
- Que interesse tem no assunto?
- Por um lado, não quero que a minha mulher se
transforme num feixe de nervos. Por outro, não quero
que se levante uma nova campanha de publicidade em
volta dos nossos negócios. A minha mulher tomou conta
de tudo, quando se fizeram as partilhas. Trabalhamos
como escravos, dia e noite, para que o negócio prosperasse.
No entanto, os advogados avisaram-me que, no
caso de se descobrir qualquer fraude, o estatuto das limi-
4 - VAMP. G. 7
49
tações provocaria a paralisação da nossa actividade até
se descobrir e esclarecer toda a fraude.
- E havia fraude? - perguntou Mason.
- Como diabo hei-de saber? - replicou Dangerfield.
- Estelle ficou com o negócio durante as partilhas. Estou
simplesmente a procurar evitar que se mexa mais no
assunto, nos tribunais. Espero que não leve a mal; mas,
o senhor bem sabe como é que estas coisas são. Há
muitos advogados por esse país fora que hão-de gostar
de meter o nariz num negócio próspero como aquele
que temos.
- É realmente próspero? - perguntou Mason.
- Muito.
O advogado olhou para Witherspoon.
- Quem manda é você! - declarou este.
Mason ergueu-se.
- Acho que nos entendemos um ao outro, perfeitamente.
Dangerfield sorriu.
- Tenho a impressão de que o senhor me compreende;
mas, eu não tenho a certeza de o entender a si.
Dei-lhe uma informação. O que é que recebo em troca?
- A nossa garantia de que estudaremos o assunto
com a maior atenção - afirmou Mason.
Dangerfield ergueu-se e dirigiu-se para a porta.
- Parece-me que é tudo quanto posso esperar anunciou,
sorrindo.
Witherspoon apressou-se a aconselhar:
- Não saia sem eu mandar o guarda-nocturno prender
os cães.
- Quais cães? - perguntou Dangerfield.
- Tenho dois cães-polícias muito bem treinados para
patrulhar a propriedade. Foi, por isso, que teve de esperar
para entrar. Os cães têm de ser presos, antes de os visitantes
saírem ou entrarem.
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- Parece-me boa ideia, tal como estão as coisas,
agora! Como é que manda prender os cães?
Witherspoon carregou num botão ao lado da porta e
explicou:
- Este é o sinal para o guarda-nocturno. Quando ele
receber este sinal e. responder com uma campainhada,
saberei que os cães estão presos.
Não esperaram mais do que dez segundos; quando a
campainha soou, Witherspoon abriu a porta e disse:
- Boa tarde, Mr. Dangerfield. e muito obrigado pela
sua visita.
Dangerfield parou a meio caminho para o portão,
olhou para Mason e afirmou:
- Parece-me que não estou mais perto do que queria
saber do que quando aqui cheguei; mas, aposto cinco dólares
em como a minha mulher não conseguirá arrancar-lhe
nada.
Dito isto, atravessou o pesado portão de ferro e
tomou lugar no seu automóvel. O portão fechou-se, com
um estalo da mola da fechadura.
Witherspoon apressou-se a carregar no botão para
avisar o guarda-nocturno que já podia soltar os cães.
- Qual é o nome da agência de investigações? perguntou
Mason.
- É a "Allgood Detective Agency, de Los Angeles,
dirigida por Raymond E. Allgood.
Caminharam para a sala de jantar, porém Mason,
abruptamente, caminhou para a esquerda, na direcção da
ala do edifício onde estava instalado o seu quarto.
- Não vai acabar de jantar? - perguntou Witherspoon,
surpreendido.
- Não. Diga a Della Street e a Paul Drake que quero
falar com eles. Vamos partir de automóvel para Los Angeles,
mas é escusado dizer isto a Mrs. Burr.
- Receio não o entender.
- Agora não tenho tempo para explicações.
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Witherspoon corou.
- Considero essa desculpa desnecessariamente
curta, Mr. Mason.
A voz do advogado manifestou cansaço.
- Não dormi nada a noite passada. Provavelmente,
pouco dormirei esta noite. Não tenho tempo para explicar
o que é evidente.
O dono da casa disse, com glacial dignidade:
- Permita-me que lhe lembre, Mr. Mason, que está
a trabalhar para mim?
- Permita-me que lhe lembre que não estou?
- Não está?
- Não.
- Então, para quem está a trabalhar?
- Estou a trabalhar para uma mulher de olhos vendados.
A sua efígie está em todas as salas de audiências.
Tem uma balança numa das mãos e uma espada na outra.
Chamam-lhe a Justiça e é para ela que eu trabalho, neste
momento. - E Mason caminhou pelo corredor do lado
esquerdo, deixando Witherspoon parado a fitá-lo, estarrecido
e bastante irritado.
O advogado estava a guardar a sua roupa na mala
quando Della e Paul apareceram.
- Estava mesmo a ver que isto era bom demais
para durar muito tempo - queixou-se Drake.
- Havemos de cá voltar. Prepara as coisas para partirmos.
Della Street abriu a gaveta da secretária e observou
de repente:
- Olhe, chefe.
- O que é?
-Alguém abriu esta gaveta e mexeu na cópia do
processo.
- Porquê, não está aí?
- Está, sim, mas mexeram-lhe... Foi alguém que
esteve a ler!
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- Quem saiu da sala de jantar, enquanto eu estive a
falar com Witherspoon?
- O Adams.
Mason apertou a tampa da mala, comprimindo simplesmente
o conteúdo até o fecho entrar no seu lugar.
- Não se preocupe, Della. Isso pertence à secção
de Paul. Ele é que é o detective.
- Só preciso de um palpite!... - observou Drake.
- Talvez seja melhor, arranjares dois! - anunciou
Mason, tirando a gabardina do guarda-fato.
CAPÍTULO V ;
O advogado deteve-se em frente da porta com vidro
foscado. no qual se lia: "ALLGOOD DETECTIVE AGENCY,
RAYMOND E. ALLGOOD, DIRECTOR, Sucursais em todas
as cidades importantes. Em baixo, no canto direito,
estava a palavra "Entrada.
Mason empurrou a porta. Uma loura, que parecia
uma vedeta cinematográfica, olhou-o com expressão de
apreço e sorriu.
- Bom dia. Com quem deseja falar?
- Com Mr. Allgood.
- Tem hora marcada?
- Não.
- Parece-me que ele...
- Diga-lhe que está aqui Perry Mason.
Os olhos azuis da empregada abriram-se mais, ao
mesmo tempo que franzia as sobrancelhas.
- É Mr. Mason, o advogado? ;;
-Exacto.
- Queira fazer o favor de esperar um momento.
Voltou-se para o P. B. X., pegou numa cavilha, hesitou
um momento, pensou melhor, levantou-se da cadeira e
repetiu:
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- Um momento, por favor. - Caminhou para o gabinete
interior e, passados instantes, estava de volta,
segurando a porta aberta: - Queira entrar para aqui, Mr.
Mason. Mr. Allgood atende-o já.
Raymond E. Allgood era um indivíduo de meia-idade,
com rugas profundas e sobrancelhas espessas. Usava
lunetas presas com uma fita preta. Estava virtualmente
calvo, com excepção de uma coroa que lhe circundava as
orelhas. Parecia simultaneamente lisonjeado e pouco à
vontade.
- Bom dia, senhor doutor - disse, levantando-se
para apertar a mão do visitante. - Tenho muito prazer.
Conheço-o de nome. Espero que a minha agência lhe
possa ser útil.
Mason deixou-se cair sobre uma cadeira, traçou as
pernas, tirou um cigarro, bateu a ponta sobre o braço
da cadeira e estudou o indivíduo sentado à secretária.
- Não quer um charuto? - perguntou Allgood, hospitaleiramente.
- Gosto mais de cigarros.
Allgood mordeu nervosamente a ponta de um charuto,
acendeu um fósforo na aba inferior da secretária, acendeu
o charuto e mudou de posição na cadeira giratória que
rangeu.
- Em que lhe posso ser útil?
- Sirvo-me com frequência das agências de investigações.
Até agora, a "Drake Agency tem tratado de
todos os meus assuntos.
- Claro, claro, compreendo perfeitamente; mas, há
ocasiões, claro está, em que necessita de investigações
suplementares. Tem algum assunto especial em mente,
Mr. Mason?
- Tenho. O senhor fez um trabalho para um tal Mr.
John L. Witherspoon, do Vale do Rio Vermelho.
Allgood clareou a garganta, ergueu a mão para
compor as lunetas sobre o nariz e respondeu:
54
- Bem vê, não podemos discutir os """assuntos dos
nossos clientes.
- Pois este tem sido discutido.
- Que quer dizer?
- Houve uma indiscrição qualquer.
- Neste escritório, não! - afirmou Allgood, categórico.
Mason limitou-se a acenar a cabeça, ao mesmo tempo
que os seus olhos firmes trespassavam o detective.
Allgood remexeu-se ligeiramente na cadeira, mudou
de posição e o ranger das molas da cadeira giratória
anunciou a sua perturbação.
- Dá-me licença... dá-me licença que lhe pergunte
qual é o seu interesse no assunto?
- Witherspoon é meu cliente.
- Ah!
- Houve uma indiscrição - prosseguiu o advogado.
- Não quero que isso volte a acontecer e quero saber
como é que esta ocorreu.
- Tem a certeza que não está enganado?
- Absoluta.
De novo, a cadeira rangeu. :
Mason não evitou a acusação que se revelava nos
seus olhos firmes.
Allgood tossiu e comentou:
- Vou ser franco consigo, Mr. Mason. Entre os meus
empregados, tinha um chamado Leslie Milter que pode
ter dito qualquer coisa.
- Onde pára ele agora?
- Não sei, despedi-o.
- Porque o despediu?
- Não cumpria satisfatoriamente.
- Depois de ter terminado a investigação de Witherspoon?
- Sim.
- Mas, aí fez um bom trabalho, não é verdade?
55
- Até ao ponto que me é dado saber, fez.
- E o que aconteceu depois?
- O seu trabalho não satisfazia, pura e simplesmente.
Mason acomodou-se melhor na cadeira.
- Porque o despediu, Allgood?
- Falou de mais.
> -A respeito de quê?
- Do caso Witherspoon.
? -A quem?
- Não sei. Não foi por culpa minha. Witherspoon
confiou demasiado nele. Um indivíduo que se serve de
uma agência de investigações é louco se conta às pessoas
que estão a trabalhar para ele aquilo que lhe interessa.
O melhor é tratar todos os assuntos com o director
e deixar este dar seguimento às instruções,
- Witherspoon não fez isso?
- Não. Witherspoon estava demasiado interessado.
Queria receber relatórios diários. Combinou com Milter
que este lhe telefonasse todas as noites por volta das oito
horas a comunicar-lhe o que descobrira. Witherspoon é
assim. Segue sempre as suas ideias. Torna-se demasiado
impaciente. É incapaz de esperar seja pelo que for. Quer
tudo feito de um momento para o outro.
- Milter recebeu algum dinheiro por falar?
- Aí está uma coisa que não lhe sei dizer, Mr.
Mason.
- Que lhe parece?
Allgood procurou fugir aos olhos de Mason; mas,
não conseguiu. Remexeu-se na cadeira e, por fim, respondeu:
- Calculo que, pelo menos, tentou, o patife!
- Qual é o seu endereço?
- O último endereço que lhe conheci era em Wiltmere
Apartments.
- Era casado ou solteiro?
56
- Solteiro, mas.., de certo modo, comprometido.
- Que idade tem?
- Trinta e dois anos.
- Atraente?
- As mulheres parecem ser dessa opinião.
- É tipo conquistador?
Allgood acenou a cabeça afirmativamente.
Mason fez um gesto com a cabeça na direcção do
gabinete exterior.
- Qual era a atitude dele para com a empregada lá
de fora.
- Tenho a certeza que não havia nada entre eles.
- Confia nela?
- Em absoluto.
- Trabalha consigo há muito tempo?
- Há alguns anos.
- O que é que pode fazer para manter Milter sosse-
gado?
- Isso gostava eu de saber!
Mason levantou-se e disse:
- Que raio de detective é você!
- O que é que quer? Não se pode fechar a boca a
um homem... depois de o ter despedido.
- Um detective verdadeiramente inteligente saberia
o que fazer.
- Nunca pensei nisso dessa maneira.
- Pense lá como quiser.
Allgood tossiu. A cadeira voltou a ranger quando ele
a empurrou para trás e se pôs de pé.
- Calculo que Mr. Witherspoon esteja disposto a
compensar-me...
- Você tem que tomar medidas para sua protecção
- declarou Mason. - Não é nada bom para uma agência
de investigações saber-se que os assuntos secretos são
divulgados...
- Essas coisas acontecem. Bem sabe como são os
57
nossos auxiliares. Um dia estão aqui e no dia seguinte
vão-se embora. Conforme já lhe disse, Witherspoon não
devia ter confiado nele.
- Ele era seu empregado. Witherspoon contratou-o
a si. Você contratou Milter. Talvez isto seja o seu funeral!
- Não vejo nenhum cadáver! - disse Allgood, manifestando
ressentimento.
- Talvez encontre algum no seu arquivo quando pedir
a renovação da sua licença de investigação.
- Verei o que posso fazer, Mr. Mason.
,; -Sem demora?
- Vou já tratar disso, sim! ,
- Imediatamente?
- Sim... sim!
- Vai aparecer por aí uma senhora de nome Dangerfield
que lhe fará perguntas. Diga-lhe que fui eu quem o
contratou. Não mencione o nome de Witherspoon.
- Pode confiar implicitamente em mim para tudo,
nesse sentido. Tratarei do caso, eu próprio. Quer <que
ela o procure?
- Quero.
- E quer que eu lhe dê a informação, aparentando
estar a fazer uma inconfidência?
- Exactamente.
- Muito bem.
- Mantenha-a afastada de Milter.
- Farei todos os possíveis.
- Costuma conversar sobre os assuntos do escri-
tório com a empregada que está lá fora?
- As vezes. É ela quem toma conta dos livros.
- Ela costuma fazer trabalhos extraordinários...
nalguns casos?
- Não.
- Não lhe fale a meu respeito. f, Mason pegou no chapéu, viu as horas e disse:
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- Não deixe para a tarde o caso de Milter. Trate
imediatamente disso.
- Vou tentar conseguir qualquer coisa dele. Conheço
uma rapariga... chamada Alberta Cromwell, que se intitula
sua mulher. Ela pode... sim, vou experimentar... talvez
possa... deve haver maneira por esse lado. - A sua mão
dirigiu-se para a alavanca do aparelho de comunicação
entre os gabinetes.
O advogado saiu. A rapariga sentada à secretária
sorriu-lhe cordialmente ao mesmo tempo que dizia com
voz sedutora: - Bom dia, Mr. Mason.
Mason entrou numa cabina telefónica do átrio do
edifício e ligou para a "Drake Detective Agency.
- Daqui fala Mason, Paul. Na agência de investigações
de Allgood está a trabalhar uma rapariga loura sobre
a qual pretendo um relatório. Não terás dificuldade em
localizá-la; tem vinte e cinco anos e é do género que
toda a gente manifesta a opinião de ser pena não estar
no cinema. Uma beldade de olhos grandes, lábios vermelhos
e belas curvas. Manda-a seguir, quando sair do
escritório. Não a percam de vista. Manda também um
agente vigiar Leslie Milter, que vive em Wiltmere Apartments.
- Qual é a profissão de Milter?
- É detective. !
- Não será fácil vigiá-lo.
- Porquê?
- Começará com artimanhas logo que perceba que
anda vigiado.
- Não faz mal. Que nos importa a nós, contanto que
esteja debaixo de olho! Manda dois agentes para se
renderem. Na parte que me diz respeito, não me importo
com o resto.
- Vou mandar para lá alguns dos meus auxiliares, já.
- Atenção, quem me interessa mais é a loura. Prin-
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cipalmente, se ela for aos Wiltmere Apartments, quero
ser informado sem demora.
- Está bem, para onde é que vais?
- Mantém-te em contacto com o meu escritório.
Comunica todas as notícias a Della. Já destacaste os teus
elementos para trabalharem no tal crime antigo?
- Já. Dei-lhes ordens telegráficas de índio.
- Está bem. Quanto mais penso, menos gosto da
maneira como o assunto foi tratado. Todo esse cavalheirismo
de manter o nome da mulher em segredo e de se
lhe referir por Miss X... Quero saber informações sobre
Miss X. Quero saber tudo, nome, morada, vida amorosa,
passado e presente. Depois, talvez lhe prognostique o
futuro.
- Estamos a trabalhar...
- Mais uma coisa, Paul.
- O que é?
- Suborna qualquer jornalista de Los Angeles para
que mande um boato telegráfico para os jornais de Wlnterburg.
Achas que podes fazê-lo?
- Julgo que sim. Que boato queres publicado?
- Manda a tua estenógrafa para a linha de extensão
e ela que tome nota do que vou ditar.
O advogado ouviu Drake dizer:
- Ruth, vá para a extensão telefónica e tome nota do
que se disser... Sim, é Mason. Está preparada?... Pronto,
Perry, podes começar. Não fales muito depressa.
Mason começou:
- Qualquer coisa neste estilo: "Depois de ter sido
contratado o detective Leslie L. Milter, um dos investigadores
mais cotados de Los Angeles, espera-se que se
solucione finalmente um velho mistério resultante de um
caso de homicídio, ocorrido em Winterburg, há cerca de
vinte anos. Até agora, tem-se mantido a incógnita no
espírito de muitas pessoas sobre a culpabilidade de
Horace Legg Adams, que foi executado sob a acusação
60
de ter assassinado David Latwell, tanto mais que nunca
se chegou a uma conclusão definitiva, durante o julgamento...
Recentemente, foram descobertas novas provas
que conduziram a conclusões diferentes sobre o processo.
Individualidades influentes continuam convencidas da inocência
de Horace Adams, a qual é em parte confirmada
pelo facto de uma das mais eficientes e bem pagas
agências de investigações do país ter mandado um dos
seus ases a Winterburg para realizar uma investigação
completíssima. Este detective acaba de regressar com
uma pasta repleta de factos que são extraordinários, na
opinião dos que já os conhecem. É muito possível que o
antigo processo seja revisto numa resoluta tentativa de
vingar a memória do homem que foi injustamente condenado
há quase vinte anos. Os advogados ainda não chegaram
a acordo sobre a maneira como isto poderá fazer-se,
embora o conceito da opinião pública defenda o
parecer de que algo virá a fazer-se nesse sentido...
Tomaram nota de tudo. Paul?
- Que raio de ideia vem a ser essa?
- Quero que recomecem a mexer no caso. Se Adams
estava inocente, há outro culpado. Essa pista esfriou e
está bem resguardada. Mas se conseguirmos pregar um
susto ao assassino e este quiser tapar quaisquer buracos
a descoberto... talvez, nos seja possível apanhá-lo com
a boca na botija.
Do outro lado do fio, Drake riu-se.
- E pensava Witherspoon que te davas por satisfeito
com o relatório, contido na cópia do processo e nos recortes
dos jornais. Esse pássaro ainda tem muito que
aprender a respeito dos teus métodos.
61
CAPÍTULO VII
Eram quatro horas da tarde quando Della Street
entrou no gabinete particular de Perry Mason com uma
carta trazida por mensageiro especial.
O advogado ergueu os olhos fatigados, da cópia do
processo: "O Ministério Público contra Horace Legg
Adams.
- O que é, Della?
- Uma carta trazida por correio especial. Parece
suspeita. O endereço está feito em letras de Imprensa,
provavelmente, escritas com a mão esquerda.
O advogado examinou o sobrescrito, pensativo, levantou-o
contra a luz, sorriu e declarou:
- É unicamente um recorte de jornal. - Pegou na
faca de papel, abriu o sobrescrito e sacudiu-o de maneira
a fazer cair o conteúdo.
Della Street disse:
- Lamento muito tê-lo incomodado. Julguei que fosse
qualquer coisa importante e que gostasse de ver o
sobrescrito antes de ser aberto.
- Espere um momento! Tenho um palpite!
Della colocou-se ao lado da cadeira. Perry pegou no
recorte de maneira a poderem ler os dois ao mesmo
tempo. A notícia estava impressa num papel de melhor
qualidade do que o papel de jornal vulgar. Certamente,
era tirado de uma revista de escândalos. Dizia o seguinte:
"Qual será o proeminente milionário que vive no deserto,
muito orgulhoso dos seus antepassados e que anda
agora preocupadíssimo porque a sua família está prestes
a ligar-se a elementos que não lhe agradam? A resposta
a esta pergunta envolve, evidentemente, uma filha teimosa,
que resolveu mudar-se para uma casa estranha,
sem primeiro examinar todas as gavetas do mobiliário.
Este choque vai dar que falar. Aconselhamos o papá a
verificar se o genro em perspectiva é cruel com os ani-
62
mais. Se assim for, será aconselhável que o Papá faça
qualquer coisa antes que seja tarde demais. Podia, por
exemplo investigar o caso do pato afogado. A primeira
vista, os jovens que gostam de afogar patos, por brincadeira,
e para mostrar as suas habilidades, não parecem
ser bons genros. Não digas depois, Papá, que não te
avisámos com tempo.
O advogado estudou o recorte impresso, pensativamente.
- Corra ao escritório de Drake e veja se Paul consegue
saber de onde é que este recorte foi extraído.
Della Street pegou no papel, ficou parada alguns
instantes, virando-o nos dedos, e afirmou:
- Isto é chantagem nítida, não acha?
- Não sei.
- Espere um minuto. Já sei de que jornal isto é.
- Qual?
- É um jornaleco de escândalos de Hollywood. Já vi
vários exemplares. Publica com frequência notícias veladas
sobre artistas de cinema.
- É mesmo um jornal?
- Não, não é bem um jornal. Publica as notícias à
maneira de questionário. Uma espécie de sapato da gata
borralheira que é preciso saber a quem serve. Veja aqui
as costas do recorte. Verá como os assuntos são tratados.
Della Street apontou para um parágrafo, onde se lia:
"Cerca de 240 dos nossos assinantes acertaram no
nome do artista de cinema a quem nos referimos no
nosso artigo da semana passada, aquele que imaginou
ser uma excelente ideia dar uma festa para os convidados
tomarem ópio. Assim se demonstra como estas coisas
se sabem.
Mason fez um gesto com a cabeça na direcção do
telefone.
- Ligue para o escritório de Paul. Se estiver, peça-lhe
63
para vir cá, sem demora. Quero falar-lhe a respeito disto
e de Miss X.
Della fez a ligação e respondeu:
- Não tarda aí. - Desligou e inquiriu: - Parece-lhe
que Miss X seja o traço de união?
O advogado enfiou as mãos profundamente nas algibeiras
das calças.
- Claro que sim, Della. Desconfio sempre do que os
procuradores distritais fazem...
- E eles estão sempre desconfiados consigo, não é?
Mason concordou com um sorriso.
- Ora veja, neste caso, o procurador distrital, segundo
os jornais, combinou com o advogado de defesa
que a senhora, cujo nome tinha sido usado pelo defensor
como sendo a pessoa com quem o assassinado teria fugido,
podia ser citada, durante toda a audiência pela
designação de Miss X. Esse foi o maior erro cometido
pelo advogado de defesa.
- Porquê?
- Porque era o mesmo que admitir em público da
sua parte que não acreditava no seu constituinte. Lembre-se:
Adams disse à polícia que Latwell lhe tinha afirmado
ir fugir com Miss X. Depois, quando descobriram
o cadáver de Latwell enterrado na cave da fábrica, a polícia
adoptou a ideia de que isto devia ser mentira. O acordo
estabelecido pelo advogado de Adams indica que este
pensava o mesmo. Pelo menos, foi o que os jurados perceberam.
Della Street acenou a cabeça lentamente.
- Agora há uma coisa a respeito do processo que
eu não percebo - prosseguiu Mason. - A atitude lógica
do procurador distrital devia ser aceitar, como base de
investigação essas declarações iniciais; depois, chamar
a mulher a depor e obrigá-la a negar ou a confirmar o que
se dizia.
-Então, porque não o fez?
64
- Por uma única razão, este acordo tornava desnecessárias
tais diligências. Quando o advogado de Adams
aceitou que essa testemunha vital se mantivesse fora do
processo e fosse tratada apenas por Miss X, levou os
jurados à convicção de que ambos, o procurador distrital
e o advogado de Adams, sabiam que este estava a mentir.
Ora, suponha que ele não mentiu? Suponha que Latwell
estava, de facto, disposto a fugir com a rapariga? Já viu
que interessante panorama de possibilidades se abre à
nossa frente?
- Mas não teria ela que admitir perante o procurador
distrital que...
- Não há nada que indique que ela tenha alguma vez
falado com o procurador distrital ou que este tenha conversado
com a tal senhora. Ela...
Na porta do gabinete particular de Mason, soaram
umas pancadas de código, batidas com os nós dos dedos.
- É Drake. Deixe-o entrar.
Paul Drake trazia na mão uma dezena de telegramas
quando entrou no escritório.
- Bem, estamos a caminhar a pouco e pouco, Perry.
- Conta tu primeiro o que se passa. Depois, falarei
eu.
- Milter não está nos Witmere Apartments. Vou
dar-te uma informação presumível sobre o local onde se
encontra.
O advogado franziu as sobrancelhas.
- Em El Templo?
- Tal e qual.
- Há quanto tempo está lá?
- Quatro ou cinco dias.
- Numa parte de casa, no 1262 na Cinder Butte
Avenue. É um edifício de dois andares que foi transformado
em casa de apartamentos... por uma empresa
que aluga habitações mobiladas. Nesse edifício, há quatro.
5 - VAMP. G. 7
65
Conheces o género? Dois em cima, dois em baixo, quatro
entradas particulares.
- Curioso!
- Também acho. Vou dizer-te mais uma coisa. Uma
rapariga de nome Alberta Cromwell intitula-se sua mulher
legítima. Seguiu-o até El Templo, descobriu um apartamento
vazio ao lado e alugou-o.
- Ele sabe que ela está lá?
- Não vejo porque não. Tem o nome na caixa do
correio, Alberta Cromwell.
- Porque não o acompanhou?
- Sei lá!
Mason mostrou-lhe o sobrescrito e o recorte do
jornal.
- Isto chegou há poucos minutos em correio especial.
Drake principiou a ler o recorte, depois baixou-o
para dizer:
- Ainda não te contei tudo. A loura que está empregada
no escritório de Allgood foi de fugida a uma loja
fazer uma chamada telefónica à cabina. O meu agente
entrou na cabina ao lado e ouviu a conversa. Calcula para
quem foi?
- Não faço ideia. Para quem foi?
- Telefonou para a estação de autocarros da "Pacific
Greyhound a reservar lugar para a carreira das cinco e
meia, para El Templo.
Os olhos de Mason brilharam.
- Quero que a mandes seguir, Paul.
- Não te preocupes. O meu agente reservou lugar
no mesmo autocarro. O que é isto?
- Tem todo o aspecto de ser um recorte de jornal
destinado a fazer chantagem. Lê.
- Isto é obra de Milter, não há dúvida! - afirmou,
depois de ter lido e de ter soltado um pequeno assobio
de apreciação.
66
- Não percebo.
- Que queres dizer com o não percebo?
- Precisamente isso.
- Que diabo, Perry, é mais fácil que o A. B. C.
A agência de Allgood é assim-assim. Contrata qualquer
elemento que conheça os sistemas de investigação e que
trabalhe. Milter sabia o que fazia. Quando Witherspoon
lhe pediu relatórios diários pelo telefone, viu o furo.
Decidiu, portanto, lançar-se no caminho da chantagem.
- Fazer-lhe chantagem, para quê?
-- Para evitar que se tornasse público o "veneno
que havia nesse caso.
O advogado sacudiu a cabeça.
- Witherspoon não é pessoa para pagar chantagens.
- Faria isso se a filha estivesse para casar com o
rapaz.
Mason pensou no assunto, durante alguns minutos;
depois, voltou a sacudir a cabeça.
- Ele não pagava para manter silêncio... pelo menos,
antes do casamento.
- Então, é por isso que Milter está à espera. Que o
casamento se realize. Está a marcar a vez.
- Isso é lógico; mas, se assim for, que necessidade
tinha de fornecer esta informação a um jornal de escândalos?
- Milter deve ter recebido dinheiro pela informação.
- Quanto?
- Não sei. O jornal deve ter começado a publicar-se
em Hollywood há quatro ou cinco meses. Descobrem
sempre notícias escandalosas autênticas. O tipo que
dirige a publicação tem bom nariz para as notícias; mas,
xxxx
não procura fazer chantagem sobre os indivíduos. Está
a tentar fazer chantagem sobre a indústria. É por isso
que se torna impossível conseguir fazê-lo calar,
67
- Queres dizer que ele pretende obrigá-los "comprarem-lhe
o jornal, com carácter definitivo?
- Exactamente. Ele publica informações acerca de
gente célebre de Hollywood, sem nunca lhes dar qualquer
aviso antecipado ou fazer qualquer diligência. Desta
maneira, ninguém se pode queixar. Faz saber assim que
o seu jornal e a sua boa vontade estão à venda. O preço,
evidentemente, é cerca de mil vezes superior ao que vale,
excepto para lhe pôr um açaime.
O advogado viu as horas no relógio de pulso.
- Telefone para casa de Witherspoon em El Templo,
Dela, e diga-lhe que vai ter hóspedes esta noite.
- Eu também vou? - perguntou Drake.
Mason sacudiu a cabeça.
- Tu ficas aqui a trabalhar, a ver se consegues descobrir
alguma coisa a respeito de Miss X. Tenho que ir
ver o que faz Milter.
- Não estás convencido que está simplesmente à
espera que o casamento se realize para depois abordar
Witherspoon?
- Isto deve ter vindo do mesmo sítio de onde veio a
indiscrição saída do escritório de Allgood - declarou,
batendo no recorte. - Essa indiscrição parece conduzir-nos
definitivamente a Milter. Este está em El Templo.
Se ele está lá para exercer chantagem sobre Witherspoon
depois do casamento, para que havia de pôr em perigo a
sua posição vendendo uma informação destas, por meia
dúzia de patacos a um jornal de escândalos de Hollywood?
Isto destina-se a impedir o casamento!
Drake meditou durante alguns momentos e respondeu:
- Postas as coisas nesse pé, só há uma solução
lógica.
- Qual é?
- Milter está a fazer tempo, à espera que o casamento
se realize para apertar os calos a Witherspoon.
68
Estas são as contas de Milter. O negócio do jornal de
escândalos é outro. Não tem nada que ver com o primeiro
caso.
- Trata-se então de alguém que está perfeitamente
ao facto de todos os assuntos, Paul. Alguém que sabe
que Witherspoon falou comigo. Que sabe do caso do
pato afogado, coisa que até Witherspoon desconhece.
- Nem eu mesmo sei - disse Drake. - Que raio de
história vem a ser essa?
- Nada, uma experiência científica. Marvin Adams
realizou-a há poucos dias, diante dos hóspedes de Witherspoon;
mas, este não estava presente.
- Como é que ele fez o pato afogar-se? - perguntou
Paul. - Segurou-o debaixo de água?
- Não, nem sequer lhe tocou.
- Estás a brincar comigo?
- Não, estou a falar a sério.
Abruptamente, Drake perguntou:
- Tu vais para El Templo esta noite? Para falar com
Milter?
- Parece-me que sim - respondeu Mason, depois de
pensar cuidadosamente.
- Ele é capaz de ser má rês - avisou Drake.
- Talvez eu também seja mau. Se conseguires saber
alguma coisa a respeito de Miss X, telefona-me. Estarei
em casa de Witherspoon.
- Até que horas te posso telefonar?
- Logo que recebas as tuas informações, avisa-me.
Não te rales com as horas. E recomenda ao teu agente que
anda a seguir a empregada de Allgood que me informe
para casa de Witherspoon a contar-me onde ela foi. Isto
poupará tempo. Ao contrário, ele teria de falar para ti a
fazer-te um relatório e tu terias depois de comunicar
comigo.
- Seria apenas uma questão de minutos,.
69
- Os minutos podem ser preciosos. Deixa antes o
agente comunicar directamente comigo.
Drake sorriu:
- Esse foi o erro cometido por Witherspoon.
Mason pegou nos papéis, meteu-os numa pasta e
fechou-a.
- Talvez tenha sido, é o erro de Milter - comentou.
- Vê se consegues descobrir alguma coisa a respeito
deste jornal de escândalos de Hollywood, Paul. É importantíssimo
saber se esta informação veio por intermédio
de Milter.
- Está bem, verei o que posso fazer e informar-te-ei.
Parece-me que conheço quem me pode tratar desse
assunto.
- Eu, por mim, prometo-te uma coisa: Se Milter
vendeu a informação ao jornal de escândalos, o caso está
todo de pernas para o ar. Nem sequer vale a pena descobrir
a solução correcta.
O detective fitou, de testa franzida, o sobrescrito
recém-chegado.
- Oh, diabo, achas isso?
CAPÍTULO VIII
Mason tocou a campainha quando chegou ao portão
de ferro. O ladrar dos cães quase abafou o som da campainha.
Passados instantes, os animais estavam juntos
ao portão, de dentes arreganhados e os olhos amarelados
a brilhar, devido aos reflexos dos faróis do automóvel.
Na porta da entrada, acendeu-se uma luz. Um criado
mexicano aproximou-se e perguntou:
- Quem está aí? - mas, logo reconheceu o advogado
e Della Street Ah, são os senhores! Uno momento!
Esperem um instante, por favor.
Virou-se e correu para dentro de casa.
70
Os cães afastaram-se um pouco, mantendo-se sempre
vigilantes.
O próprio Witherspoon saiu a correr de casa.
- Muito prazer em vê-los, muito prazer em vê-los.
Fora daqui, King. Fora daqui, Prince. Vai fechá-los, Manuel.
- Não temos tempo para isso - disse Mason. Abra
o portão. Eles não nos fazem mal.
Witherspoon olhou, duvidoso, para os cães.
- Eles não nos mordem! - insistiu o advogado.
Abra!
Witherspoon fez um sinal para o mexicano, que meteu
a chave na fechadura, puxou o ferrolho e abriu o portão.
Os cães avançaram a correr.
Mason ajudou a abrir o portão, ignorando calmamente
a presença dos animais, e apertou a mão de Witherspoon.
Entretanto, os cães andavam em volta de Della Street
a quem farejavam vigorosamente. Ela estendeu as pontas
dos dedos para lhes fazer festas, com manifesto receio.
O dono da casa estava nervosamente, apreensivo.
- Venham daí, venham daí. Estes cães, às vezes,
são maus.
Dirigiram-se para a casa sempre seguidos pelos
animais. Witherspoon segurou a porta.
- Foi a coisa mais espantosa que vi até hoje! afirmou.
- O quê?
- Os cães. Deviam tê-los esquartejado. Normalmente,
não estabelecem amizades com tanta rapidez.
- São uns animais sensatos - observou o advogado.
Vamos para qualquer sítio onde se possa conversar...
em particular.
Witherspoon indicou-lhes o caminho dentro de casa.
- A nossa bagagem está dentro do automóvel disse
Mason.
- Manuel trá-la para aqui. Ficarão nos mesmos
quartos em que estiveram ontem.
71
O dono da casa indicou o caminho para a ala nordeste,
abriu a porta do quarto de Mason e afastou-se para
o lado.
Mason seguiu Della Street. Witherspoon entrou a
seguir e o advogado fechou a porta com um pontapé.
- Estou muito satisfeito por vê-los aparecer. Houve
um importante... - principiou Witherspoon.
- Não interessa isso. Sente-se naquela cadeira e
fale-me a respeito do tal detective. Despache-se! - Interrompeu
Mason.
- Qual detective?
- Leslie Milter, o que tem estado a exercer chantagem
sobre si.
- Milter a fazer chantagem, a mim! - exclamou
Witherspoon com ar incrédulo. - Mason, você está
doido!
- Conhece-o, não é verdade?
- Conheço, sim. É o detective que fez as investigações
sobre o crime. Trabalha para Allgood.
- Conhece-o pessoalmente?
- Conheço, fez-me um relatório em pessoa, certa
vez; mas isto passou-se depois de ele ter completado as
suas investigações no Leste.
- O senhor esteve em contacto com ele pelo telefone
durante o tempo que ele andou nas investigações?
- Sim, telefonava-me todas as noites.
Mason fitou Witherspoon intensamente e afirmou:
- Ou você está a mentir-me ou isto é uma grande
trapalhada!
- Não estou a mentir-lhe - declarou Witherspoon,
com fria dignidade. - E não estou habituado a que me
acusem de mentiroso.
- Milter está em El Templo.
- Ah, sim? Nunca mais o vi, desde que ele me apresentou
o tal relatório.
- Nem teve notícias?
72
- Pelo menos, nos últimos dez dias, não. Ou seja,
desde que ele terminou as investigações.
Mason tirou do bolso o sobrescrito que tinha recebido
de tarde.
- Isto diz-lhe alguma coisa?
Witherspoon examinou o sobrescrito com curiosidade.
- Não!
- Abra e veja o que está dentro.
Witherspoon afastou as extremidades do sobrescrito
e olhou para dentro.
- Tem apenas um recorte de jornal.
- Leia-o! - ordenou Mason.
Witherspoon introduziu dois dedos da mão direita
em forma de tesoura e retirou o papel. Colocou-o à luz;
mas, antes de principiar a ler, disse:
- Parece-me que podíamos dispensar isto tudo, Mr.
Mason. Esta tarde aconteceu uma coisa que...
- Leia! - interrompeu Mason.
Witherspoon corou. Por momentos, pareceu prestes a
lançar o sobrescrito e o recorte para o chão; depois,
sob a pressão firme dos olhos de Mason, principiou a ler.
O advogado examinava-lhe o rosto.
Aparentemente, bastaram as primeiras linhas para
suscitar o interesse de Witherspoon, ao ponto de ficar
consciente do que estava a ler. Mais meia dúzia de palavras
e a importância do texto atingiu-o em cheio. O seu
rosto distorceu-se de irritação. Os seus olhos, movendo-se
rapidamente de um lado para o outro, terminaram a leitura.
Olhou para Mason, com expressão dura. - Que
porco! Que porcalhão! Pensar-se que qualquer pessoa
pode descer tão baixo ao ponto de publicar semelhante
coisa! Onde é que arranjou isto?
- Mandaram-mo nesse sobrescrito, em correio especial.
Sabe alguma coisa a este respeito?
- Que quer dizer com isso?
73
-Calcula quem o possa ter mandado?
- Evidentemente que não.
-Sabe onde foi publicado?
- Não. Onde foi?
- Num jornal de escândalos de Hollywood. "
- Procurei ser justo. Foi aí que cometi o meu maior
erro. Devia ter posto termo a isto instantaneamente, logo
que soube da história do crime.
- Quer dizer - perguntou Mason - que está arrependido
de não ter ido contar tudo à sua filha? Quer dizer,
que acha que devia ter destruído a felicidade dela e divulgado
todo esse velho escândalo, sem fazer primeiro uma
investigação para saber se a condenação de Horace
Adams se justificava?
- É precisamente isso o que penso! - replicou
Witherspoon. - Devia ter compreendido que a sentença
do júri era concludente.
- O senhor tem mais confiança nos júris do que
eu - respondeu Mason. - E eu tenho muito mais confiança
nos júris do que nos juízes. Os seres humanos são
sempre falíveis. No entanto, ponhamos de parte isso por
uns momentos e falemos a respeito de chantagens.
Witherspoon declarou, solenemente:
- Não há nenhum homem sobre a Terra que possa
exercer chantagem sobre mim.
- Nem mesmo no caso de ter algo contra si?
Witherspoon sacudiu a cabeça.
- Nunca me sujeitaria a tal situação. Não vê, essa é
uma das razões por que o tal proposto casamento é absolutamente
impossível.
O advogado parecia procurar dominar uma impaciên-
cia crescente.
- Vamos lá ver se nos entendemos. O senhor contratou
a agência de investigações Allgood para estudar
como ocorrera o crime. Leslie L. Milter foi o agente encarregado
do caso. Aparentemente, ele está em El Templo,
74
neste mesmo instante, a viver em 1162 de Cinder Butte
Avenue. Logicamente, foi ele quem deu a informação ao
jornalista que redige a secção de escândalos. A agência
Allgood despediu-o por ser indiscreto. Isto significa que
ele falou com alguém e o jornalista parece ser a pessoa
mais indicada.
- Fico preocupado e aborrecido ao verificar que ele
não era de confiança. Pareceu-me um elemento muito
eficiente.
- Preocupado! Aborrecido! - quase gritou Mason.
- O diabo que o carregue, o homem é um chantagista!
Está aqui com um único objectivo, fazer chantagem. Quem
é a vítima? Quem estará a pagar-lhe, se não é o senhor?
- Não sei.
- Witherspoon, se você está a esconder-me alguma
coisa, abandonarei este caso com tal rapidez...
- Mas eu não estou a esconder-lhe nada. Estou a
dizer-lhe a verdade absoluta.
Mason disse para Della Street.
- Faça uma chamada para Paul Drake. Diga-lhe que já
chegámos. Pode ser que ele tenha alguma novidade. Que
grande trapalhada!
Mason começou a andar de um lado para o outro.
Witherspoon disse:
- Tenho estado a tentar, desde que o senhor chegou,
contar-lhe um facto muito significativo. Apanhámos o
jovem Marvin Adams em flagrante.
- A fazer, o quê? - perguntou Mason, continuando a
andar de um lado para o outro e lançando a pergunta por
cima do ombro como se se tratasse de um assunto de
pequena importância.
- A ser cruel com os animais... Pelo menos, é o
que se pode inferir do que se viu... e que explica um
pouco aquela notícia do recorte.
- Que fez ele?
- Vai para Los Angeles esta noite.
75
-Já sei disso. Parece que vai voltar para as aulas.
- Levou Lois a jantar fora, esta noite. Não quis
comer cá em casa.
- E depois, que tem isso?
: - Deixe-me contar-lhe - disse Witherspoon, irritado.
- Então, conte de uma vez.
Witherspoon prosseguiu, envolto num manto de dignidade
injuriada.
- Marvin esteve hoje de tarde nas capoeiras, onde
temos os coelhos, as galinhas e os patos. Quando viu
uma pata com uma ninhada de patinhos, segundo me
contou um criado mexicano, Marvin disse que queria um
dos patinhos para uma experiência. Declarou que o queria
afogar...
Mason interrompeu o passeio.
- Lois estava com ele? ;
- Isso é que me causa admiração. "'''"",
- O que disse Lois?
- É verdadeiramente incrível! Em vez de ficar
revoltada, Lois ajudou-o a apanhar um dos patinhos e
disse que o levasse.
- Já falou com Lois a esse respeito?
- Não; mas, já decidi que ela tem de saber o que
se passa. Chegou o momento de lhe contar tudo.
- Então, porque não lhe conta?
- Tenho estado a adiar a ocasião.
- Porquê?
- Julgo que compreende porquê.
- Provavelmente porque os seus raciocínios são
melhores do que as suas emoções. Se o senhor for já
contar a sua filha o que sabe, ela pode tornar-se violentamente
partidária e virar-se contra si. A rapariga está
apaixonada! Não consegue derrubar Marvin do pedestal
em que o colocou, a não ser, que tenha provas insofismáveis.
76
- O pai dele é um assassino, condenado pela
Justiça.
- Não me parece que ela ligue importância a isso.
Limitar-se-á a presumir que o pai dele estava inocente.
Mas, o que acontecerá com Marvin, quando este descobrir?
- Quero lá saber do que lhe sucede.
- Talvez seja de opinião diferente se ele se suicidar,
O rosto de Witherspoon mudou de expressão ao
compreender o alcance desta ideia. Abruptamente, disse:
- Parece-me que a única coisa a fazer é mostrá-lo
a minha filha à sua verdadeira luz.
- Quando é que o viu pela última vez?
-Saiu daqui meia hora antes, talvez, de vocês chegarem.
- Onde estava o patinho?
- Segundo julgo, no carro com ele.
- Adams tem automóvel? - perguntou Mason,
vendo as horas.
- Não, aquele que ele traz, pertence a um amigo...
um rapaz que anda a estudar na universidade local. Devia
ser proibido andarem nas estradas carros daqueles. Está
mesmo a cair aos bocados.
- Lois costuma acompanhá-lo?
- Costuma. É outra coisa que não consigo perceber.
Ela parece achar graça. O pára-brisas está partido.
As molas dos assentos estão soltas... diabos o levem,
até parece que ele a hipnotizou.
- Hipnotizou, não. Está apaixonada. O que é pior...
ou melhor.
- Paul Drake está ao telefone - anunciou Della
Street.
O advogado encostou o receptor ao ouvido.
- Está !... está lá, Paul. Fala Perry. Já estamos
em casa de Witherspoon. Que novidades há?
Drake respondeu:
77
- Os acontecimentos vão seguindo os seus trâmites.
Dentro de minutos, deves, naturalmente, saber notícias
do meu agente, que está em El Templo. Telefonou-me
de uma das estações dos autocarros há uma
hora e disse-me que a loura tinha feito uma ligação para
Milter. Ele está à espera dela. Continuamos a trabalhar
naquele caso do Leste. Creio que descobrimos quem é
Miss X. Isto é, temos o seu nome e identidade; mas,
ainda não a localizámos. Era caixa numa confeitaria,
quando foi cometido o crime. Com certeza, não queres
que te faça telefonemas depois da meia-noite.
- Telefona-me logo que recebas as informações.
Não te importes com as horas.
- Está bem, não saias daí, porque não tarda o telefonema
do meu agente.
- Estás certo no que diz respeito a Milter, Paul...
que ele está aqui em El Templo?
- Tenho a certeza absoluta. Já verificámos.
- Diz-me lá a morada. É em 1162 de Cinder Butte
Avenue?
- Exactamente. É um grande edifício que foi transformado
em quatro apartamentos. Milter ocupa o do andar
de cima, no lado direito.
- Está bem. Telefona-me assim que souberes mais
coisas.
Mason desligou, virou-se para Witherspoon e disse:
- Milter está instalado em El Templo, há vários
dias.
- Pois ainda não procurou entrar em contacto
comigo. Afirmo categoricamente que também não exerceu
chantagem sobre mim.
Os olhos do advogado estreitaram-se.
- E Lois? A pequena tem algum dinheiro em seu
nome?
- Não. Até... Espere um momento. Sim, tem Já
fez vinte e um anos. O seu aniversário foi há uma
78
semana. Sim, ela tem o dinheiro que lhe foi deixado pela
mãe. ;
- A quanto monta? ?
- É uma soma considerável.
- Quanto é?
- Cinquenta mil dólares.
- Ora, aí tem. Aqui está a nossa resposta - disse
Mason, taciturno.
- Quer dizer que ele está a fazer chantagem sobre
Lois?
- Precisamente.
- Mas, Lois não sabe nada a respeito do crime.
- A pequena é uma excelente actriz. Nunca pensou
que um homem do calibre de Leslie Milter não deixaria
passar uma oportunidade dessas. Ora raciocine, ele só
o abordaria em último recurso. O senhor é duro de roer
e não se importa nada que rebentasse um escândalo
relacionado com o crime... pelo menos, enquanto Marvin
não fosse seu genro; depois, e só depois, é que o senhor
estaria disposto a dar dinheiro para o calar. Um momento!
Marvin e a sua filha não estarão a projectar qualquer acto
repentino?
- Que quer dizer?
- Fugirem para casar?
- Lois quer anunciar o casamento, oficialmente, no
próximo mês. Não sei se lhe disse que Marvin vai ser
chamado para prestar serviço militar quando se licenciar
em Junho e...
- Bem sei; mas, o mês que vem é daqui a três
semanas. Se Milter estivesse a projectar fazer chantagem
só para o mês que vem, não correria o risco de
estar cá à espera da oportunidade, pois podia encontrar-se
consigo na rua. Não, aquela ave de rapina já
cravou as garras em alguém que está a ser sangrado...
ou vai começar a sê-lo.
Witherspoon declarou irritado;
79
- Se Lois está a gastar o dinheiro que a mãe lhe
deixou para pagar ao chantagista e impedir que os factos
a respeito daquele...
- Espere - interrompeu Mason. - O senhor acaba
de pôr o dedo na ferida. Impedir os factos de quê?
- De se tornarem públicos - concluiu Witherspoon.
O advogado sacudiu a cabeça.
- Não me parece. Ela está a dar dinheiro para evitar
que o senhor saiba desses acontecimentos; mas...
espere um momento. Deve ser esse o caso. Milter deve
tê-la informado, sem lhe dizer que o senhor sabe tudo.
Anda a ameaçá-la de lhe ir contar o que sabe, a não ser
que ela esteja disposta a dar-lhe algum dinheiro para
pagar o seu silêncio.
- Quer dizer que ela está a pagar para...
- Ainda não. Ele ainda cá está. Logo que receba o
dinheiro, ir-se-á embora. Talvez esteja a fechar o negócio;
mas, ainda não o tem concluído. Presumo que haja
qualquer determinação legal a resolver, antes de Lois
receber a herança. Onde está ela?
- Não sei. Saiu!
- Quero falar-lhe logo que chegue.
- Se esse malandro tentar exercer chantagem sobre
Lois eu... - ameaçou Witherspoon.
Mason interrompeu-o.
- Escute um conselho de advogado, Witherspoon,
perca o hábito de anunciar tudo o que tenciona fazer...
Não há dúvida, Milter parece ser a chave de toda a tramóia.
Vou ver se falo com Mr. Milter. Quando acabarmos
a nossa conversa, sairá da cidade com o rabo entre as
pernas.
- Vou consigo - disse Witherspoon. - Quando
penso que Lois caiu nas garras de um chantagista... vou
falar com ele!
- Não, comigo não vai. Não quero testemunhas para
esta entrevista. Della, fique aqui a tomar conta da for-
80
taleza. Se Paul Drake telefonar qualquer informação,
tome nota.
- E a rapariga da agência de investigações? - perguntou
Della Street. - Ela vem a caminho e...
Mason viu as horas.
- Já deve ter chegado... a não ser que o autocarro
venha atrasado. Óptimo! Vou ter possibilidade de falar
com ambos, ao mesmo tempo.
Witherspoon saiu do aposento a passos largos.
- Os cães! - disse. - Espere aqui uns segundos,
enquanto mando prender os animais.
O advogado tornou a ver as horas.
- O autocarro já deve ter chegado... A lourinha não
terá prazer em ver-me de novo?
CAPÍTULO IX
Mason lançou o automóvel a toda a velocidade, ao
longo da auto-estrada do deserto. As luzes de El Templo
apresentavam-se como um halo, sob as estrelas imóveis
no céu. O ponteiro do conta-quilómetros oscilava entre
os cento e vinte e os cento e trinta.
Uma irregularidade no terreno fez com que o carro
derrapasse. Mason endireitou a direcção e diminuiu a
velocidade. De novo, outra cova na estrada fez-lhe perder
o domínio do volante. Desta vez, depois de ter endireitado
o carro, reduziu a velocidade para sessenta quilómetros
e, deliberadamente, torceu o volante.
A retaguarda do carro fugiu-lhe, de novo. Mason,
tirou o pé do acelerador, teve o cuidado de não travar
e encostou à beira da estrada. Precisamente quando
tomou esta decisão, ouviu o ruído característico de um
pneu em baixo.
Tinha um furo, na roda traseira, do lado direito.
O advogado fez uma expressão de aborrecimento, despiu
6 - VAMP. G. 7
81
o casaco, que dobrou e atirou para o assento de trás.
Enrolou as mangas da camisa, retirou a chave do motor,
pegou na lâmpada eléctrica que estava no tablier e dirigiu-se
para a retaguarda do carro, onde abriu a mala,
A sua bagagem, assim como a de Della Street, ainda estavam
na mala do carro. Teve de a retirar para procurar as
ferramentas destinadas a mudar a roda. Com a ajuda da
lâmpada eléctrica, montou o macaco, colocou-o no seu
devido lugar e principiou a elevar o veículo.
À distância, por detrás de si, viu uns faróis que varriam
a estrada, aproximando-se a grande velocidade.
No momento em que o advogado levantava o seu
automóvel de modo a que o pneumático deixasse de estar
em contacto com o solo, ouviu o guinchar dos rodados
e o ruído do motor do outro carro; depois, com um rugido
de vento, o automóvel passou, ao mesmo tempo que o
carro estacionado oscilava ligeiramente sobre as molas,
devido à deslocação do ar. Mason viu o farol da retaguarda
a desaparecer à distância a uma velocidade que
calculou em, aproximadamente, cento e quarenta.
Mason tirou o tampão da roda, desenroscou as
porcas, retirou a roda vazia e rodou a roda sobresselente
para a posição adequada, colocou-a no seu devido lugar,
roscou as porcas cuidadosamente e pôs o tampão.
Depois, baixou o macaco, arrumou as ferramentas na
mala, assim como a bagagem. Rapidamente, pôs-se de
novo a caminho.
Encontrou a morada que pretendia, sem muita dificuldade.
Milter não se dera ao incómodo de adoptar um
nome falso, introduzira até um cartão de visita de tipo
comercial, no quadrado da campainha, inscrevendo-lhe à
mão, simplesmente, "Leslie L. Milter.
O advogado tocou à campainha duas vezes. Não
obteve resposta. Bateu à porta.
Ouviu ruído de passos ao lado esquerdo. A porta
abriu-se. Uma jovem e atraente morena de chapéu extra-
82
vagante e casaco de peles, caminhou para o patamar,
viu-o parado, hesitou um momento, e, por fim, fitou-o
com curiosidade.
O advogado sorriu e tirou o chapéu.
Ela respondeu ao sorriso:
- Parece-me que não está ninguém.
- Sabe-me dizer onde poderei encontrar a pessoa
que mora nesta casa?
- Não, não sei - riu, ligeiramente, - Mal a
conheço. Ocupo o apartamento contíguo. Esta noite tem
vindo imensa gente a esta casa. Até parece uma procissão.
Tinha algum encontro marcado?
Mason tomou uma decisão rápida.
- Se não está em casa, não serve de nada esperar.
- Lançou uma olhadela ao cartão da campainha da porta
que a jovem abrira. - A senhora deve ser Miss Alberta
Cromwell... se, como disse, vive no apartamento contíguo.
Tenho um automóvel à porta, Miss Cromwell, talvez
a possa levar a qualquer parte?
- Não, muito obrigada. Vou apenas para o quarteirão
a seguir.
- Esperava que Mr. Milter estivesse em casa. Disseram-me
que ele estava à espera de visitas, que tinha
até uns encontros marcados.
Os seus olhos brilharam num lampejo.
- Com uma senhora?
- Não sei. Disseram-me apenas que o encontrava
em casa, com certeza.
- Sim, tenho a impressão de que o veio visitar
uma senhora e, pouco antes de chegar, saiu um homem.
Tive a impressão que tinham tocado à minha campainha.
Estava na cozinha com a torneira aberta e, de facto,
pareceu-me ouvir a campainha tocar.
Riu-se, numa risada de embaraço que denunciava
o seu nervosismo.
- Premi o "besoiro, para que o visitante subisse.
83
Não apareceu ninguém e, depois, ouvi passos nas escadas
do apartamento de Mr. Milter, de modo que me convenci
que, afinal, a minha campainha não tocara.
- Há quanto tempo foi isso?
- Há coisa de quinze a vinte minutos.
- Sabe quanto tempo se demorou este visitante?
Ela riu-se e respondeu:
- Valha-me Deus, o senhor fala como se fosse um
detective ou um advogado. Não sabe quem era a rapariga,
pois não?
- Estou apenas muito interessado em Mr. Milter.
- Porquê?
- Sabe alguma coisa a respeito dele?
Deixou passar um intervalo perceptível antes de responder
à pergunta.
- Não sei grande coisa!
- Disseram-me que ele era detective.
- Ah, sim? ,,
- Queria falar-lhe a respeito do caso em que ele
trabalhou ultimamente.
- Ah! .-,."
A mulher hesitou.
- Alguma coisa em que ele trabalhou há pouco
tempo?
- Sim - confirmou Mason, fitando-a nos olhos.
Subitamente, ela riu-se e disse:
- Bom, tenho de ir-me embora. Tenho muita pena
de não o poder ajudar. Boa noite!
Mason voltou a tirar o chapéu ao vê-la afastar-se.
De uma cabina telefónica de uma loja, Mason ligou
para casa de Witherspoon e pediu para falar com Della
Street. Quando esta chegou ao aparelho, perguntou:
- Há alguma novidade de Paul Drake?
- Há, o agente de Drake telefonou.
- O que é que disse?
-Que o autocarro tinha chegado à tabela, que a
84
rapariga saíra e dirigira-se logo para o apartamento de
Milter. Tinha a chave da porta.
- - Sim? E depois?
- Subiu as escadas e não se demorou muito. Estava
muito aborrecido, porque não tinha tomado nota do
tempo da demora.
- Porquê?
- Presumiu que ela iria demorar-se. Atravessou a
rua e entrou num restaurante para falar ao telefone, a
meio do quarteirão. Ligou para Drake e fez o seu relatório.
Drake ordenou-lhe que lhe telefonasse a si. Fez
a chamada e, enquanto conversávamos, ele viu a loira
passar na rua. De modo que desligou e foi atrás dela.
Cinco minutos depois, tornou a telefonar da estação do
caminho-de-ferro a dizer que ela estava à espera do
comboio da meia-noite para Los Angeles e que estava
com olhos de quem chorara.
- Onde é que está o agente de Drake?
- Ainda está na estação. Continua a segui-la. Esse
comboio é dos que pára em todas as estações e leva
uma carruagem Pullman até à linha principal, onde espera
durante quase quatro horas pelo Expresso, e chega a
Los Angeles por volta das oito horas da manhã.
- O detective não sabe dizer exactamente quanto
tempo é que ela se demorou no apartamento?
- Não. Não podia ter sido mais de dez minutos.
Talvez fosse menos. Segundo o que ele diz, pensou que
seria boa altura de fazer a chamada a comunicar o relatório
porque esperava que ela se demorasse... Compreende,
quando uma mulher tem as chaves da casa de
um homem... o detective presumiu... que teria muito
tempo para telefonar.
O advogado viu as horas e disse:
- Tenho tempo para falar com ela. Vou à estação
ver se consigo.
- Viu Milter? - ?
85
- Ainda não.
- Depois do senhor sair, partiu outro automóvel
com dois ou três minutos de diferença. Penso que foi
Witherspoon que anda a tentar localizar Lois.
- Procure verificar isso, ao certo.
- Está bem.
- Vou à estação agora, adeus.
Mason conduziu o automóvel directamente para a
estação e ouviu o apito de um comboio quando estava
a três quarteirões de distância. No momento em que
estacionava o automóvel, o comboio entrava na estação.
O advogado deu uma volta pela plataforma a tempo
de ver a empregada loira com quem falara pela última
vez no escritório de Allgood entrar para a carruagem.
Durante alguns momentos, a luz da estação bateu em
cheio no seu rosto. Não havia o mais pequeno erro de
identificação, nem o mais pequeno sintoma de que ela
tivesse estado a chorar.
Mason voltou para o automóvel e afastara-se três
ou quatro quarteirões quando ouviu o som de uma
sirene. No cruzamento das ruas, passou um carro-patrulha.
Quando aí chegou, o advogado verificou que o automóvel
da polícia tinha seguido a direcção do apartamento
de Milter. Conduziu o carro na mesma direcção
e foi estacionar atrás do automóvel da polícia. Um
agente saltara e correra para a porta do apartamento
de Milter. Mason seguiu-o de perto.
O agente comprimiu o polegar contra a campainha
depois virou-se e viu Mason.
Este enfrentou o olhar do polícia; depois, fingiu-se
envergonhado e desceu os degraus.
- Eh, lá! - chamou o agente.
O advogado deteve-se.
- O que é que queria? - perguntou o agente.
- Vinha visitar uma pessoa. ;
- Quem?
86
Mason hesitou.
- Vá, diga lá. ;
- Mr. Milter.
- Conhece-o?
Mason, escolhendo cuidadosamente as palavras,
disse:
- Nunca lhe falei.
- Quer entrar?
- Quero. Precisava dele.
- Já cá esteve antes?
O advogado demorou a resposta o tempo que julgou
necessário e respondeu:
- Estive.
- Há quanto tempo?
- Há cerca de dez minutos.
-O que aconteceu?
- Toquei a campainha.
- E depois?
- Ninguém me atendeu.
O agente da autoridade tornou a tocar à campainha
e disse:
- Não se afaste. Parece-me que vou ter necessidade
de falar consigo.
Dirigiu-se para uma porta assinalada com a designação
de "porteira, e tocou a campainha.
Acendeu-se uma luz num dos quartos do andar de
baixo e ouviu-se o ruído de pés nus, pelo chão; depois
o arrastar de passos em chinelas ao longo do corredor.
A porta abriu-se bruscamente e uma mulher de cerca
de quarenta anos, embrulhada num roupão, franziu as
sobrancelhas com glacial hostilidade ao ver Mason. Em
seguida, ao ver a luz brilhar contra os botões de metal
e o distintivo do uniforme do polícia, tornou-se instantaneamente
mais cordial.
- Posso ser-lhes útil em alguma coisa - perguntou.
87
- Tem cá um inquilino com o nome de Milter não
é verdade?
- Tenho. Mora no apartamento de cima.
- Eu sei onde é que ele mora. Quero entrar.
- Já experimentou tocar a campainha?
- Já.
- Eu... se ele está em casa...
- Quero entrar - repetiu o polícia. - Dê-me uma
chave da porta.
A mulher pareceu hesitante, durante alguns momentos,
mas acabou por dizer:
- Um minuto, se faz favor.
Desapareceu no interior obscurecido da casa.
O agente disse para Mason:
- Para que é que precisa vê-lo?
- Queria fazer-lhe umas perguntas.
Uma telefonia que tocava algures do andar de baixo
teve quatro interrupções rápidas provocadas por electricidade
estática. O agente inquiriu:
- O senhor vive aqui?
Mason entregou-lhe um dos seus cartões.
- Sou advogado em Los Angeles.
O polícia virou o cartão, pô-lo à luz e observou:
- Ah, o senhor é o advogado Perry Mason? Tenho
lido os seus casos nos jornais. O que é que faz por cá?
- Ando em viagem.
- Veio visitar Milter?
Mason soltou uma gargalhada com a expressão
exacta que lhe pretendia dar.
- Normalmente, não faço viagens apenas para
visitar pessoas como Milter.
- Eh, lá? - chamou o agente da polícia à entrada
do corredor. - Não podemos ficar aqui toda a noite à
espera da chave.
- É um minuto. Ando à procura.
Durante o curto período de silêncio que se seguiu,
88
o advogado ouviu o estalido metálico de um receptor
telefónico ao pousar no descanso.
- Tendo em conta o ruído feito na telefonia quando
ela marcou o número do telefone de Milter - troçou
Mason -, vai ter muito trabalho em evitar que a gente
descubra o que ela está a fazer,
- Desligue o telefone - gritou o polícia. - Traga-me
a chave ou então vou aí buscá-la.
Tornaram a ouvir o arrastar das chinelas, rapidamente.
- Tive dificuldade em encontrá-la - mentiu a porteira.
Quer fazer o favor de me dar o seu nome... para
o caso de haver qualquer aborrecimento.
- Haggerty - disse o agente, pegando na chave.
O advogado caminhou para a porta, esperou que o
polícia introduzisse a chave na fechadura e declarou:
- Bem, não vou subir consigo. O assunto que eu
queria tratar não era muito importante.
Virou-se e principiou a afastar-se. Mal dera dois
ou três passos, quando o agente o chamou:
- Espere um instante! Não tenho bem a certeza
disso!
- Não tem a certeza de quê?
- De que o motivo por que lhe quer falar não é
importante.
- Não percebo.
- Por que julga que exigi esta chave?
- Sei lá!
- Há bocado, alguém que não se identificou, telefonou
para a esquadra a comunicar que se passava aqui
qualquer coisa de anormal. Sabe do que se trata?
- Não.
- Imagina quem possa ser a mulher que nos telefonou?
- Não.
- Venha comigo, de qualquer maneira. Quero dar
- 89
uma vista de olhos e mais nada. Talvez seja necessário
responder a algumas perguntas depois.
Subiu as escadas e o advogado seguiu-o docilmente.
Entraram num conjunto de sala e de quarto de dormir.
Uma vasta parte da parede, com um espelho, estava
arranjada de modo a deslocar-se e a esconder uma cama
metida na parede. O mobiliário era simples. A porta ao
fundo estava fechada. No centro do aposento, estava
uma mesa com revistas. Num canto, havia um aquário
grande e redondo de peixes dourados. No fundo do
aquário, via-se um pequeno castelo e uma erva aquática
esverdeada. Algumas conchas coloridas estavam espalhadas
no fundo do tanque. Alguns peixinhos dourados
nadavam preguiçosamente em movimentos caprichosos.
No tanque, de tal maneira submerso que eram apenas
visíveis a parte de cima da cabeça e a ponta do bico,
um pato debatia-se debilmente.
O agente seguiu o olhar de Mason, viu o tanque,
virou-se e deteve-se.
- O que é isto? Que raio tem o pato?
O advogado relanceou os olhos pelo pato e disse,
rapidamente:
- Suponho que esta porta conduz a outro aposento.
- Vamos já ver.
Bateu à porta, e, como não obtivesse resposta,
abriu-a. Voltou atrás para observar o tanque dos peixes.
- Curioso o que acontece com este pato. Estará
doente?
Um cheiro peculiar provinha do aposento que o
polícia acabara de abrir, um cheiro acre, muito ténue.
O aposento destinava-se, evidentemente, a ser usado
como casa de jantar. Tinha uma mesa grande no centro,
um armário de pinho e as cadeiras do tipo normal usado
nas salas de jantar.
- Vamos abrir as janelas. Não gosto deste cheiro
90
- disse Mason. O que é que o fez vir cá? Ou antes,
o que é que a mulher disse?
- Disse que se passava aqui qualquer coisa de
anormal. Vamos dar uma olhadela por este outro quarto.
O agente abriu a porta que conduzia à casa de
banho. Estava vazia. O advogado atravessou o quarto e
abriu as janelas de par em par, enquanto o polícia abria
outra porta que, aparentemente, conduzia à cozinha.
Mason, aproveitando a ocasião, tornou rapidamente
à sala de estar e meteu a mão no tanque dos peixes.
O patinho deixara de oferecer resistência. O advogado
retirou de dentro de água aquele pequeno monte de
penas molhadas e inertes.
Depois tirou o lenço do bolso, secou o melhor possível
a ave, e o patinho fez movimentos débeis para se
pôr de pé.
Ouviram-se passos pesados. Mason meteu o pato
dentro da algibeira do sobretudo. O agente, com o rosto
congestionado e cinzento, veio a cambalear na direcção
de Mason.
- Cozinha... homem morto... uma espécie de gás.
Tentei... - O polícia tropeçou e caiu sobre uma cadeira.
Mason, lançando uma olhadela para a cozinha viu,
pela porta parcialmente aberta, o vulto de um homem
caído no chão.
O advogado conteve a respiração, correu para a
cozinha, fechou a porta, voltou à sala de estar e recomendou
ao polícia:
- Ponha a cabeça fora da janela. Respire ar fresco.
Haggerty seguiu o conselho. Mason segurou-o à
janela, deixando o agente debruçar-se sobre o parapeito.
Movendo-se rapidamente, o advogado pegou no
aquário dos peixes dourados, entrou na casa de banho
e despejou a água na bacia. Deitou água nova da torneira
da tina até que os peixes dourados recomeçaram a nadar
no tanque com a vivacidade normal. Quando o aquário
91
estava outra vez cheio de água, Mason atravessou a
sala de jantar e colocou-o no mesmo sítio. O polícia continuava
debruçado à janela. O patinho que Mason retirara
da algibeira, já estava com mais forças e capaz de
mover-se. O advogado voltou a enxugar-lhe as penas,
meteu-o dentro de água e dirigiu-se para a janela.
- Que tal vai isso?
- Já estou melhor.
- Temos as janelas abertas. Esta parte da casa vai
arejar. Agora é preciso abrir a janela da cozinha. Trata-se
de qualquer gás mortífero. O que há de melhor a
fazer é chamar os bombeiros e partir os vidros.
- Está bem... vou... vou tratar disso, imediatamente.
Por um pouco não ficava lá.
- Acalme-se - recomendou Mason.
- O que será aquilo? Não é gás do fogão.
- Não, aparentemente, é um produto químico qualquer.
Sente-se com forças para descer as escadas?
- Está ali um homem. É preciso tirá-lo de lá.
- Os bombeiros que tratem disso, pois dispõem de
máscaras antigás. Vamos telefonar.
Mason dirigiu-se ao telefone, pediu a chamada e
perguntou ao polícia:
- Quer falar com eles?
O agente respondeu afirmativamente, pegou no aparelho
e explicou a situação ao bombeiro que o atendeu.
Desligou o telefone, tornou a percorrer o quarto e sentou-se
à janela.
- Já estou a sentir-me melhor. Que diabo teria o
pato?
- Qual pato?
- O que estava no aquário.
- O que estava mergulhado?
- Naturalmente, o gás também o atacou - disse
Haggerty.
Mason apontou para o aquário. : ; ; ;
92
- O que está ali?
- Sim.
O pato estava a boiar, com aspecto de bastante
fraco e estonteado.
- Calculo que o ar fresco também lhe faça bem disse
Mason.
- Para que é que queria falar com Milter?
- Para nada de especial.
- A esta hora da noite? - perguntou o agente,
céptico.
- Ouvi dizer que ele estava sem trabalho. Vinha
ver se ele queria trabalhar para mim.
- Estava habilitado a isso?
- Era detective.
- Andava a trabalhar nalgum caso aqui?
- Não me parece. Ouvi dizer que estava desempregado.
- Onde é que ele trabalhava?
- Numa agência de Hollywood, a Allgood. O melhor
é telefonar para lá para se saber pormenores.
Sirenes anunciaram a chegada dos bombeiros. Um
deles, com máscara antigás entrou na cozinha, abriu as
janelas e arrastou o corpo inerte. Dez minutos depois,
um médico declarou que o homem estava morto e opinou
que o falecimento fora provocado por envenenamento
com hidrocianeto.
Chegaram mais polícias, entre os quais um agente
do gabinete do xerife. Descobriram um pequeno pote de
água meio cheio de líquido, por detrás do fogão de gás.
- Aí está! - exclamou o médico. - Deitaram ácido
hidroclorídico neste pote a que adicionaram uns bocados
de cianeto e fabricaram deliberadamente um gás
mortífero. É o que se costuma fazer para executar criminosos
nas câmaras de gás. O efeito é, praticamente, instantâneo.
- É preciso guardar esse recipiente para verificar
93
a existência de impressões digitais - recomendou um
dos polícias.
Mason espreguiçou-se e bocejou:
- Bem, parece-me que não posso fazer mais nada.
Cheio de gratidão, o polícia disse:
-Salvou-me a vida. Se não tivesse aberto as janelas
e recomendado que eu respirasse ar puro, teria ficado,
O gás é fortíssimo.
- Tive muita satisfação em fazer o que pude.
- Onde é que está instalado? Nalgum hotel?
- Não, estou de visita a um amigo, um senhor chamado
Witherspoon, que tem um rancho...
- Ah, sim, conheço-o muito bem - interrompeu o
delegado do xerife. - Às vezes, vou até lá para a caça
às pombas e às codornizes. - Demora-se?
- Não, provavelmente vou-me embora amanhã. Parece-me
melhor telefonar a Allgood e pedir-lhe que dê
informações sobre o morto. Allgood deve saber coisas de
interesse.
- Boa ideia! - disse o xerife.
- Podem fazer a chamada por este telefone - observou
Mason. - Com certeza que Allgood tem um número
de telefone nocturno para onde se possa ligar.
O delegado do xerife conferenciou durante algum
tempo com o polícia e, a seguir, fez a chamada. Mason
dirigiu-se para a janela e acendeu um cigarro. Tirara meia
dúzia de fumaças, quando a telefonista, espevitada pela
declaração de que se tratava de uma chamada de emergência
feita pela polícia, localizou Allgood em Hollywood.
O advogado ouviu parte da conversa travada na sua presença.
- Está lá, é Allgood?... O senhor tem uma agência
de investigações aí?... Sim, isso mesmo... Daqui fala o
xerife de El Templo. Tem algum agente a trabalhar para
si com o nome de Leslie L. Milter?... Sim, sim... Morreu.
Encontrámo-lo morto no quarto... Talvez fosse assassi-
94
nado, com um gás qualquer... Quem é que podia estar
interessado em eliminá-lo?... Não sabe de ninguém?...
Ele não estava a trabalhar para si?... Não lhe dava mais
trabalho?... Que tal era, boa pessoa?... O que é que sabe
a respeito dos negócios dele?... E a respeito de mulheres?...
Estou a ver... Bem, comunique-nos se descobrir
alguma coisa. Telefone para El Templo, para o gabinete
do xerife ou para o chefe da polícia. Está bem, adeus.
Desligou o aparelho e declarou:
- Trabalhou para Allgood até há quatro ou cinco
dias. Allgood despediu-o, porque não tinha mais serviços
para lhe dar. Os negócios estavam mais ou menos parados.
Disse que Milter era muito boa pessoa. Não se
recorda quais os casos particulares em que Milter trabalhou
ultimamente; mas, disse que ia ver e depois nos
avisava. Parece-lhe que eram quase tudo assuntos rotineiros.
Mason conteve um suspiro de alívio ao verificar que
Allgood não adiantara grande coisa nas informações:
cuidadosamente, apagou o cigarro, deixou-o cair no cinzeiro
e disse:
- Bem, vou andando. Se precisar de mim para qualquer
coisa, encontro-me em casa de Witherspoon.
- Como é que aconteceu o senhor aparecer por
aqui? - perguntou o xerife.
O polícia antecipou-se na resposta:
- Ele chegou de automóvel quase ao mesmo tempo
que eu. Fui eu quem o trouxe cá acima.
Despediram-se do advogado e, quando Mason descia
as escadas, ouviu-os a deslocar o cadáver de Leslie
Milter.
Mason conduziu o seu automóvel para uma estação
de serviço nocturno, abriu a mala, tirou a roda vazia e
ordenou:
- Arranje-me isto o mais depressa possível. Daqui
a bocado volto a ver se já está pronto.
95
Em seguida, percorreu a pé os cinco quarteirões até
à vivenda, onde lhe tinham dito que Marvin Adams vivia.
Era uma casa simples e despretensiosa em estuque.
As flores plantadas no jardim eram prova evidente de
que Mrs. Adams pretendera embelezar o local. Numa das
janelas da frente, havia uma luz acesa. Mason tocou à
campainha.
Um jovem, com ar estudioso, veio à porta.
- Marvin Adams está? - perguntou o advogado.
- Não senhor, não está... Seguiu esta noite de comboio
para Los Angeles.
- Esta tarde, ele andava num automóvel, segundo
creio...
- Andava.
- O carro era seu?
- Era.
- Eu tinha-lhe dado uma encomenda para entregar.
Aparentemente, Marvin esqueceu-se. Foi capaz de a ter
deixado ou no quarto ou no automóvel. É um embrulho
quadrado, em papel verde e com o meu nome escrito.
Acaso importa-se de irmos ver se ele o deixou no quarto.
Pode ter acontecido, quando estava a fazer as malas...
- Pois não. Quer ter a bondade de me acompanhar?
O jovem indicou o caminho por um corredor, onde
passaram diante da porta da casa de banho; depois,
parou. Bateu à porta do quarto e abriu-a...
Era o quarto característico de um estudante, com
patins de gelo, raquetes de ténis, duas ou três bandeiras
desportivas, fotografias nas paredes, um cabide de gravatas,
uma cama coberta por um cobertor de lã escura,
um par de sapatos brancos de ténis aos pés da cama e
um par de calções brancos caídos no chão ao lado dos
sapatos de ténis.
Mason deu uma vista de olhos superficial pelo
quarto.
96
- Não me parece que esteja aqui. Este é o quarto
que ele ocupa normalmente?
- É. Outro rapaz e eu temos quartos aqui e Marvin
ocupa este. Talvez o alugue mais tarde.
- Bem, o embrulho não parece estar cá. E no carro?
Onde está?
- Lá fora, na esquina.
- Não está fechado à chave?
O rapaz sorriu.
- Não. Não há ninguém que seja capaz de o roubar.
- Darei uma vista de olhos quando sair. Tenho uma
lâmpada eléctrica comigo.
Mason agradeceu e despediu-se do jovem e, quando
este fechou a porta, tirou do bolso do sobretudo uma
pequena lâmpada eléctrica e deu ao estafado carro, estacionado
na curva, a consideração de um exame rápido.
Estava vazio.
O advogado caminhou pensativo para a estação de
serviço onde deixara o seu automóvel. A rua estava
escura e deserta. Mason não encontrou ninguém.
O empregado da estação de serviço declarou ao
vê-lo:
- A roda está pronta.
- Tão depressa?
O homem sorriu.
- É verdade. Não tinha nada de especial, a não ser
a tampa, que caiu, e a válvula ter deixado escapar o ar.
- Como é que a válvula podia ter deixado sair o ar?
- Talvez a tampa tivesse sido mal posta, pois desapareceu...
Talvez alguém tivesse estado a brincar com
ela... um garoto, possivelmente.
Mason pagou o serviço, meteu-se no carro, pô-lo em
movimento e, já seguia a cem à hora, quando saiu dos
limites da cidade e, ao entrar na auto-estrada do deserto,
atingiu rapidamente os cento e sessenta, sob o silêncio
da noite estrelada.
7 -VAMP. G. 7
97
CAPÍTULO X
Lois Witherspoon veio à porta da entrada, quando
Mason fez tocar a campainha do portão. Os cães, atraídos
pelo som do sino, apareceram a correr, atravessando os
raios oblongos de luz, provocados pela lâmpada do vestíbulo
contra os quais se recortavam a silhueta esbelta
da jovem.
Momentos depois, ela acendeu as luzes que inundaram
a área em frente do portão de ferro,
- Ah, é o senhor, Mr, Mason. King... Prince... estejam
quietos. Não tenho a chave e não sei onde está o
guarda-nocturno... Olhe, aqui está ele. Pedro abre o portão
a Mr. Mason.
O criado mexicano, ligeiramente ensonado, introduziu
a chave na fechadura, ao mesmo tempo que dizia:
- Espere um momento, señor, enquanto prendo os
cães.
- Não é preciso - disse Mason, abrindo o portão.
Os animais correram para ele, rodearam-no, enquanto
o advogado caminhava calmamente na direcção de casa.
O cão, mais novo e brincalhão, deu um salto e assentou
as mãos sobre o braço de Mason. O mais velho trotou
calmamente ao lado do advogado. Ambos abanavam as
caudas, com satisfação.
Lois Witherspoon disse:
- Normalmente, eles reconhecem os hóspedes;
mas, o senhor está a bater todos os recordes de velocidade.
- São uns bons animais. Há uma característica bastante
peculiar na psicologia canina. Desafiam as pessoas
e se nós os enfrentamos e os olhamos com firmeza, a
questão está ganha, como dizemos, nós, os advogados.
Desde que uma pessoa continue a andar, sem manifestar
o mínimo receio, não há nenhum cão que se atreva a morder.
O seu pai está?
98
- Não! Não esteve com ele?
- Soube pelos criados que saiu, poucos minutos
depois do senhor. Creio que disse ter qualquer coisa em
que precisava de lhe falar e que queria apanhá-lo antes
de sair da cidade. Eu não estava cá.
Mason passou-lhe o braço pela cintura, puxou-a para
si e deu um pontapé na porta, que se fechou. Quando ela
estava ainda profundamente espantada pelo seu gesto,
perguntou-lhe:
- Conhece um tal Leslie L. Milter?
- Não.
- Ninguém tentou fazer-lhe chantagem?
- A mim? Por Deus, não! , ,,
- Andou por fora? Onde esteve? ,
- Que tem com isso?
- Muito. Não tente enganar-me. Não dispomos de
muito tempo. Os segundos são preciosos. Onde esteve?
- Fui à cidade... andei a passear... e falei com Marvin
antes de ele partir.
- Ah, sim?
- É verdade. Estive com ele na estação,
- Não a vi lá.
- É natural. Estávamos no extremo mais afastado
da linha do Expresso.
- Muito tempo antes de o comboio entrar na estação?
- Cheguei dez minutos antes. Marvin apareceu um
ou dois minutos depois.
- Estavam na zona mais escura da estação?
- Estávamos.
- Que mais aconteceu?
- Que quer dizer com isso?
- Por que motivo se despediu dele aqui, e depois foi
a correr para a cidade?
Ela fitou-o nos olhos. Mason sentia-lhe os músculos
a endurecer por debaixo do braço.
99
- Queria que ele fosse de automóvel comigo, a
Yuma, para nos casarmos.
-Quando?
-Esta noite... agora, mesmo.
- Ele não quis?
- Não.
- Foi melhor assim. Marvin levava um patinho
quando saiu daqui. Fale depressa e em voz baixa.
- Pois, levava.
- O que é que fez com ele?
Lois respondeu nervosamente:
- Pegou no pato e perguntou-me se o podia levar, por
empréstimo, durante um ou dois dias. Prometeu devolvê-lo
depois de realizar a tal experiência, diante de uma
pessoa amiga.
- Onde é que ele o foi buscar?
- À capoeira. Temos uma pata com uma ninhada de
patinhos... não sei o que lhe fez depois. Não o tinha
quando entrou para o comboio... nem sequer me lembrei
de lhe perguntar.
- Então, escute, escute bem. Vá à capoeira com
uma lâmpada eléctrica. Não interessa a desculpa que
tiver que arranjar. Faça de conta que anda à procura de
um dos criados ou que viu alguém estranho nas proximidades.
Leve um dos cães consigo preso por uma trela.
Vá buscar outro patinho da mesma ninhada.
- Eu... - interrompeu-se, ao ouvir os cães ladrarem
de novo.
Mason espreitou pelo ralo da porta.
- Vem aí outro automóvel.
- É o pai! - exclamou Lois, no mesmo instante em
que Witherspoon chamou pelos cães e estes deixaram
de ladrar.
- Saia pelo pátio - disse Mason. - Vá buscar o
patinho. Dirija-se à cidade. Encontrará o carro com que
Marvin andava, estacionado na curva em frente da casa,
100
onde ele tem o quarto. Não está fechada à chave. Coloque
o patinho na retaguarda do carro... por debaixo do
tapete. Tome bem sentido, na parte detrás, debaixo do
tapete... e volte o mais depressa possível.
Ela respirou com ansiedade.
- Pode dizer-me porque...
- Não, não há tempo e não diga nada a ninguém,
nem mesmo a seu pai, a respeito da tal experiência de
afogar os patos. Vá, despache-se.
Sem dizer palavra, ela afastou-se a correr ao mesmo
tempo que as passadas de Witherspoon se aproximavam
do corredor.
O advogado virou-se e disse, casualmente:
- Olá, disseram-me que andou à minha procura,
- Valha-nos Deus, Mason, já sabe o que aconteceu?
- inquiriu Witherspoon.
- A quem, a Milter?
- Sim.
- Eu estava presente, quando a polícia chegou.
- É horrível... quero falar consigo. Venha ao meu
escritório. Mason, estamos envolvidos num grande
sarilho.
- Porquê?
- Ora, sabe tão bem como eu.
- Palavra que não o entendo.
- Lembra-se de lhe dizer que Marvin levou um pati-
nho quando saiu daqui?
- Lembro.
- Esse pato estava na sala de Milter dentro de um
aquário de peixes dourados.
- O mesmo pato?
- Absolutamente. Eu identifiquei-o.
- Como é que ele se chama? - perguntou o advogado,
enquanto Witherspoon avançava pelo corredor.
O dono da casa teve um movimento rápido. ,
101
- O detective? - interrogou. - Milter, Leslie L
Milter.
- Não, o pato.
Witherspoon parou,
- De que diabo está você a falar? """":??
- Do nome do pato! - replicou Mason, tirando calmamente
um cigarro da cigarreira.
- Ora, bolas, o pato não tem nome! É um pato
pequeno. Pato. P-a-t-o. Um patinho pequeno.
- Já percebi.
Witherspoon, aparentemente sob grande tensão nervosa,
enrugou as sobrancelhas. Os seus olhos brilharam
de irritação.
- Então, por que raio é que perguntou qual era o
nome do pato? Os patos não têm nomes.
- Você disse que o tinha identificado como sendo
o pato que Marvin Adams levara daqui...-salientou
Mason.
Witherspoon meditou alguns momentos, depois completou
o percurso até ao fundo do corredor e abriu a
porta do escritório, ao mesmo tempo que acendia a luz.
O advogado acendeu um fósforo com um movimento
rápido do polegar e acendeu o cigarro.
- Que péssima altura para fazer graça! - observou
Witherspoon.
- Também acho! - concordou Mason.
O escritório de Witherspoon era um vasto salão
mobilado no género das Missões. Tinha quadros de
manadas de cavalos e vaqueiros a galopar atrás dos novilhos.
Havia cabeças de gado, montadas sobre as paredes,
armas suspensas em pregos, pistolas de seis tiros
em cinturões de cabedal, com os carregadores cheios,
As paredes eram de pinho e, por cima e em volta da
enorme lareira, na parede do fundo, estavam alguns dos
mais famosos episódios da história do Oeste.
102
Embora preocupado como estava, o seu característico
orgulho da propriedade fez-se sentir.
- É para aqui que venho quando quero fugir de tudo
e de todos. Até tenho uma cama onde dormir. Sou a
única pessoa que tem a chave desta sala. Nem mesmo
Lois ou os criados estão autorizados a abrir esta porta,
excepto quando quero mandar fazer limpezas. Ali daquele
lado estão alguns dos mais belos tapetes, feitos pelos
navajos. Sente-se e explique-me o que estava a tentar
dizer-me a respeito do pato... A brincar comigo... não?
Witherspoon abriu um armário no fundo do qual se
viam garrafas e copos. No fundo da prateleira, habilmente
escondido por detrás da porta, estava um frigorífico
eléctrico.
- Whisky com soda? - perguntou.
- Agora, não.
Witherspoon despejou num copo uma boa quantidade
de whisky, deitou-lhe uns cubos de gelo, adicionou-lhe
alguma soda e bebeu de um trago cerca de metade
do conteúdo do copo. Sentou-se pesadamente numa
cadeira de braços, abriu uma charuteira, tirou um charuto,
trincou nervosamente a ponta e riscou um fósforo
na parte inferior da mesa. A sua mão estava suficientemente
firme, quando levou a chama à ponta do charuto;
mas, a luz do fósforo vincou a rede de rugas da sua testa
e dos olhos.
- Ainda quer falar a respeito do pato?
- Onde é que quer chegar? - perguntou Witherspoon,
irritado.
- Simplesmente à questão de que, para identificar
um pato, é preciso conhecê-lo. Devia haver algo nesse
pato para lhe permitir reconhecê-lo. Tinha de ter qualquer
coisa que lhe desse personalidade, qualquer coisa
que o distinguisse de todos os outros patos.
- Deixe-se de parvoíces. Eu bem o avisei que isto
podia acontecer. O malvado do rapaz não tem remédio.
103
Está condenado! Vai ser difícil para Lois; mas, terá que
convencer-se. É melhor que a coisa aconteça agora do
que depois de ele fazer parte da família.
-O pato? - perguntou Mason.
-Adams! - gritou Witherspoon Estou a falar de
Adams. Lois não tenciona casar com um pato.
-Você fez alguns comentários na polícia a respeito
do pato?
-Fiz.
-O que é que disse?
- Disse-lhes que o pato era meu.
-Também lhes disse como é que lá tinha ido parar?
-Contei-lhes que Adams o levara, quando saiu
daqui, esta tarde. Que diabo, Mason, quero proteger a
felicidade da minha filha; mas, também há momentos em
que não podemos continuar a enganar-nos a nós próprios.
Até agora, nem sequer houve anúncio de casamento.
- Está convencido que Marvin Adams assassinou o
detective?
- Pois claro.
-E o que é que o leva a ter essa ideia?
-Sabe qual foi a causa da morte? - perguntou
Witherspoon, erguendo o tom de voz excitado. - Uma
lindíssima experiência química. - Apressou-se a acrescentar,
respondendo à sua própria pergunta. - Milter
estava na cozinha, aparentemente a preparar uma bebida
quente para si e para o seu hóspede. O assassino tirou
um pote de água de dentro do armário, colocou-o por
detrás do fogão, despejou-lhe ácido hidroclorídico e
disse: "-Então, até depois, Leslie, tenho de ir-me
embora! e deixou cair uns bocados de cianeto dentro do
ácido e saiu. O fogão de gás estava aceso. E o ruído
do fogão a funcionar impediu Milter de ouvir o barulho do
cianeto a dissolver-se no ácido. O gás mortal encheu a
cozinha. No momento em que Milter se apercebeu de
algo de anormal, era tarde demais. Ainda quis correr para
. 104
a porta; mas, caiu morto. O gás continuou a arder sob a
panela de alumínio em que fervia uma mistura de água
e açúcar. Quando a água se evaporou, o açúcar queimou-se
e encheu a cozinha de fumo, provocando um cheiro
esquisito. Deve ter sido isso que salvou a vida do polícia
quando lá entrou. A primeira coisa que sentiu foi o cheiro
do açúcar e da panela queimados.
- Muito interessante essa explicação.
- O que quer dizer?
Mason recostou-se no sofá, elevou os pés para cima
de um banco e sorriu para Witherspoon.
- Havia dois copos com rum e manteiga, não era?
- Sim, foi isso o que a polícia disse.
- E no momento em que caiu morto, Milter estava a
aquecer água para deitar nessa mistura.
- Isso mesmo.
- Você é de opinião que o assassino colocou simplesmente
o pote de água por detrás do fogão, despediu-se
e deixou cair o cianeto dentro.
- Pouco mais ou menos.
- Não percebo. Se Milter estava a preparar uma bebida
para duas pessoas, a pessoa que deitou o cianeto
no ácido hidroclorídico devia ser aquela para quem a
segunda bebida se destinava. Deste modo, não podia
ter-se despedido de Leslie e saído... pelo menos, quando
a bebida ainda estava ao lume. Tinha de ter outra desculpa,
que não essa.
Witherspoon franziu a testa no meio de uma nuvem
de fumo azulada do seu charuto e concordou:
-Tem razão.
- E esta conclusão leva-nos outra vez ao pato.
Por que motivo concluiu que aquele pato era o seu?
- Porque é o meu. Tem de ser. Lembra-se de eu lhe
ter dito que Adams levara um pato daqui do rancho quando
se foi embora? E vou pedir a Lois que confirme. Ela tem
105
de saber o que se passa, mais tarde ou mais cedo. O melhor
é que seja já.
Witherspoon estendeu a mão para o telefone, >
Mason deteve-lhe o gesto.
- Espere um momento. Antes de chamar Lois, vamos
Conversar a respeito do pato. Ora, segundo depreendo,
já disse à polícia que o pato era aqui do rancho.
;.!; - Pois já.
- Como é que soube? Estava marcado?
- Que diabo, Mason, você e eu ainda vamos ter que
discutir muito a sério por causa deste pato. Todas as
vezes que me refiro a ele, você começa com piadas. Não
é costume marcarem-se os patos.
- Porquê?
- Ora, porque não é preciso.
- O senhor não marca o gado?
< - Claro que marco.
<!< - Para quê?
- Para o distinguir do gado do meu vizinho.
- Muito interessante. Na China, onde as famílias
vivem em barcos, transformados em casas, e criam patos,
sei que pintam os patos de cores diferentes para os poderem
distinguir.
- Que tem isso que ver com este pato?
- Simplesmente isto. Você admite que tem de
marcar os novilhos para os distinguir dos dos seus vizinhos.
Como é que então vai identificar este pato como
sendo seu e não como pertencente a qualquer outra
pessoa?
- Você sabe muito bem que este pato era o meu,
- Estou a pensar o que acontecerá quando você tiver
de depor perante o júri. Vai ser bastante difícil para si
pessoalmente. Enterrou-se até ao pescoço. O senhor dirá:
"Sim, este pato é o meu. O advogado de acusação convidará
o advogado de defesa a interrogá-lo e este começará
106
a fazer perguntas. O que é que há nesse pato que permita
identificá-lo?
- A cor e o tamanho, por exemplo.
- Ah! Nesse caso, o advogado de defesa inquirirá:
"O que é que a cor e o tamanho têm de especial? <
- Tem a cor amarelada dos patinhos pequenos e o
mesmo tamanho dos outros patinhos da mesma ninhada.
- A ninhada é de quantos?
- Oito ou nove... não tenho bem a certeza.
- Desses oito ou nove, qual é este?
- Lá está você; não lhe sei dizer.
- Então, você mesmo admite que este pato é exactamente
igual a mais oito ou nove de tamanho e cor similares,
que tem na sua propriedade! - afirmou Mason,
sorridente.
- E o que tem isso?
- Não pode dizer qual dos oito ou nove, aquele é.
- Certamente que não. Não lhes damos nomes, nem
os baptizamos.
- E indiscutivelmente - prosseguiu Mason, com
suavidade - em outras áreas deste vale, há outros ranchos
que têm outros patos e é muito possível que haja
vários outros ranchos, onde os patinhos tenham exactamente
o mesmo tamanho, a mesma idade, a mesma cor
e o mesmo aspecto?
- Suponho que sim.
- E se esses patinhos forem trazidos para a sua
capoeira e misturados com os seus, na ausência de qualquer
marca, é-lhe completamente impossível distingui-los?
Witherspoon lançou uma baforada de fumo, silenciosamente.
Mas, a rapidez com que as baforadas de
fumo eram emitidas indicavam a tensão nervosa sob
que estava.
- Como vê - continuou Mason - meteu-se numa
camisa de onze varas quando se prestou a identificar o
pato.
107
- O polícia disse que o pato tinha qualquer anormalidade
quando chegou - comentou Witherspoon. - O senhor
deve saber alguma coisa a este respeito.
- Sim, o pato estava parcialmente submerso. Mas,
isso nada tem de extraordinário. Os patos mergulham,
bem sabe.
- O agente declarou que lhe pareceu... que lhe pareceu
que o pato estava a afogar-se.
Mason ergueu as sobrancelhas, com ar incrédulo.
- A afogar-se?
- Foi o que o polícia disse.
- Ah, bom! - disse Mason, com voz que manifestava
infinito e exagerado alívio. - Então, está bem. Não
se preocupe mais. Sendo assim, você pode identificar o
pato. É o que lhe digo, não se preocupe mais.
- Como?
- Ora - disse Mason com um sorriso superior e
paternal. - Assim o seu pato sempre tem um sinal que o
distingue. Se este pato é o seu, o senhor tem o único
pato existente em todo o Vale do Rio Vermelho, provavelmente
o único pato do mundo, que não sabe nadar.
Witherspoon esbugalhou os olhos.
- Você sabe a que eu me refiro. Marvin é um químico.
Deitou qualquer coisa na água.
O advogado ergueu as sobrancelhas.
- Havia então alguma coisa na água?
É - Claro que havia. O pato estava a afogar-se.
- Mas, afogou-se?
-Não. Recompôs-se... e recomeçou a nadar.
- Então, não podia haver nada dentro de água que
fizesse o pato afogar-se.
- Talvez fosse o gás que o atordoou. Quando o aposento
foi arejado, recomeçou a nadar.
- Já percebo... muito curioso. A propósito, o senhor
tem aqui muitas armas. Calculo que cace com frequência.
Witherspoon respondeu afirmativamente no tom de
108
um homem que não está muito interessado na mudança
de assunto.
- Estas cabeças são resultados de algumas das suas
caçadas?
- São.
- Bonitas carabinas.
- É verdade.
- Vejo que tem também caçadeiras.
- Tenho.
- E há outras caçadeiras naquelas caixas, segundo
suponho.
- Há.
- De vez em quando também caça com armadilhas?
- Com efeito.
- Por aqui há pombas. Costuma caçá-las?
- Pombas, não.
- Mas, ocasionalmente, caça patos? >
- Com bastante frequência. ;
- Quando acerta em cheio num pato em pleno voo,
presumo que ele morre instantaneamente.
Um relâmpago de entusiasmo brilhou nos olhos de
Witherspoon.
- Assim sucede, de facto. Não há nada que dê maior
satisfação do que matar ao primeiro tiro. Quando se faz
fogo com uma dessas armas de calibre 20 e se acerta em
cheio num pato, este nunca sabe o que foi que o atingiu.
Ainda bem não vai a voar, já caiu... instantaneamente
morto.
- Os patos caem na água com muita frequência? perguntou
Mason.
- Caem.
- Como é que os tiram do fundo? Tem algum arpão
ou coisa que o valha?
- Para um advogado com tanto nome como o senhor
tem, Mr. Mason, mostra-se muito ignorante das coisas
109
que são mais ou menos do conhecimento geral - res-
pondeu Witherspoon, com tom mais do que paternal.
O advogado ergueu as sobrancelhas de espanto,
Sério?
- Os patos não se afundam. Quando são abatidos,
flutuam à superfície da água.
- Ah, sim?
-É verdade.
- Então, o facto de este pato ter sido atacado pelo
gás não o fazia submergir. As condições de afogamento a
que o agente da polícia se referia deviam ter outra razão
Witherspoon, só então compreendendo a armadilha
para que fora levado, puxou a cadeira para a frente como
se estivesse a preparar-se para se pôr de pé. As suas
faces enrubesceram.
- Que diabo, Mason, você...
Dominou-se.
- Claro, estava apenas a fazer-lhe ver a posição em
que se colocou. Uma situação bastante difícil, devemos
concordar. Você identificou o pato perante as autoridades.
Indiscutivelmente, lançou a polícia na peugada de
Adams. Não é verdade?
- Sim, falei-lhes no pato e em Adams. Eles tiraram as
conclusões que entenderam. Adams esteve lá e é muito
competente para ser a pessoa para quem Milter estava a
preparar a tal bebida quente,
O advogado sacudiu a cabeça, com tristeza.
- Que pena ter lançado a polícia na pista de Adams.
Vão prendê-lo por suspeita de homicídio apenas baseados
na presença do pato. O polícia disse que o pato estava a
afogar-se. Pobre animal! Sem dúvida, dedicara-se muito a
Marvin Adams e, quando este saiu e o deixou no aquário
dos peixes, em casa de Milter, ficou tão desgostoso que
resolveu suicidar-se, afogando-se. Naturalmente, a exci-
tação provocada pela descoberta do cadáver de Milter
110
deve tê-lo feito mudar de ideia. Concluiu que a vida, afinal,
sempre valia qualquer coisa...
- Cale-se! - gritou Witherspoon. - Não quero saber
do acordo que fiz consigo. Não vou consentir que esteja
para aí sentado a tratar-me como se eu fosse... como se
eu fosse...
Mason puxou uma fumaça do cigarro e anunciou:
- Isto é apenas uma pequena exemplificação do que
o espera. Um bom advogado de defesa pode facilmente
cobri-lo de ridículo diante do júri. Se havia alguma coisa
na água que provocasse o afogamento do pato, este teria
morrido mesmo. Não há dúvida, o pato à última da hora
resolveu outra coisa. O advogado que tomar conta deste
caso, vai colocá-lo sobre um barril de dinamite.
- Não temos advogados desse género, aqui por
estas redondezas - declarou Witherspoon, com expressão
carrancuda. - E eu ocupo uma posição nesta comunidade.
Quando digo que o pato é meu, ninguém porá
em dúvida a minha palavra. Nunca haverá interrogatórios
como esse que está a pretender exemplificar.
- E quando o polícia declarar que o pato estava a
afogar-se, os advogados daqui também não porão em
dúvida essa declaração?
- Bem, o polícia apenas disse que o pato parecia
estar a afogar-se - disse Witherspoon, com voz hesitante.
- Porém, nenhum advogado local lhe fará um interrogatório
como aquele que eu mencionei?
- De modo nenhum.
- Porquê?
- Em primeiro lugar, o advogado nem sequer pensaria
nisso e, em segundo lugar, eu não me sujeitaria.
- Mas, se Adams fosse acusado do crime, podia não
ser defendido por um advogado daqui. Podia ser defendido
por um advogado de Los Angeles.
- Qual era o advogado de Los Angeles que ia aceitar
111
o processo de um rapaz daqueles, sem dinheiro, nem
amigos, nem...
Mason tirou o cigarro da boca e cravou os seus olhos
nos de Witherspoon, ao mesmo tempo que declarava:
- Eu aceitava...
Foram precisos três ou quatro segundos para o efeito
completo do comentário de Mason atingir a consciência
de Witherspoon.
- Você aceitava! Mas, o senhor está contratado
por mim!
- Para solucionar o mistério do crime antigo. Nada
foi tratado em relação a qualquer outro caso. Quer que
diga a sua filha, por exemplo, que o senhor se opõe?
Witherspoon fumou nervosamente.
- Acho que não tenho objecções a levantar, mas...
compreende que não posso consentir que me coloquem
em situação indigna. Toda essa conversa a respeito da
identificação de um pato...
O advogado ergueu-se.
- Só há uma maneira de evitar isso.
- Qual é?
- Não identificar o pato.
- Mas, isso já eu fiz.
- Telefone para a polícia e diga-lhes que, pensando
melhor, chegou à conclusão do que todos os patos são
parecidos, que a única coisa que pode afirmar de certeza
é que este pato é semelhante no tamanho, na cor e no
aspecto ao que lhe disseram que Marvin Adams tinha
levado, quando saiu esta tarde daqui, do rancho.
Witherspoon passou os dedos pela ponta do queixo,
como quem está a apreciar a sugestão.
- Que raio, Mason, o pato é o mesmo. Você pode
discutir o assunto pelos ângulos que quiser; mas, no
fundo, sabe tão bem como eu que o pato é o mesmo.
O advogado sorriu para o dono da casa.
-Quer que eu volte ao princípio?
112
- Por Deus, não! Nunca chegaremos a nenhuma
conclusão.
- Então, o melhor é pôr-se em contacto com a polícia
e mudar de parecer sobre a identificação do pato.
Witherspoon sacudiu a cabeça, obstinadamente.
Mason fitou-o pensativo e acrescentou:
- Disseram-me que você tinha saído logo atrás de
mim.
- Sim, é verdade; persegui-o até à cidade; mas, não
o consegui apanhar.
- Naturalmente, passou por mim na estrada. Tive
um furo.
Witherspoon enrugou as sobrancelhas como se tentasse
relembrar o acontecimento. Por fim, afirmou:
- Não me recordo de ter encontrado nenhum automóvel
no caminho. Eu ia com muita velocidade.
- De facto, passou por mim um carro, a mais de
cento e quarenta.
- Possivelmente, foi por isso que não o vi.
- Aonde é que foi?
- À cidade.
- À minha procura?
Sim.
- E foi por isso que esteve em casa de Milter?
- Foi.
- A única razão?
- Sim.
- Deve ter chegado à cidade cerca de trinta minutos
antes de lá ir.
- Duvido que tenha sido tanto tempo.
- Porque não foi lá directamente?
Witherspoon hesitou perceptivelmente e disse:
- Na verdade, passei por esse endereço logo que
cheguei à cidade. Não vi o seu carro estacionado, de modo
que vagueei durante algum tempo pelas ruas a ver se o
topava. Pareceu-me ver... uma pessoa conhecida. Pró-
8 - VAMP. G. 7
113
/
curei descobri-la... duvido que tenham sido trinta minutos.
- Um momento. Vamos a pormenores. Pareceu-lhe
ver alguém conhecido... uma mulher; mas, não a conseguiu
descobrir?
- Foi um engano de identidade. Quando percorria a
rua principal, depois de ter andado a vaguear à sua
procura, vi de relance essa tal senhora, ao passar num
cruzamento. Tive de ir dar a volta na esquina seguinte
e procurei encontrá-la percorrendo o quarteirão.
- Quem era essa senhora?
- Não sei.
-Você disse que era uma conhecida.
- Não, apenas disse que me pareceu ser uma
conhecida.
- Quem?
Hesitou um momento e respondeu:
- Mrs. Burr.
Não era ela?
- Não
- Como sabe?
- Porque perguntei à enfermeira da noite se Mrs.
Burr saíra. Respondeu-me que Mrs. Burr se deitara cedo.
- Ela e o marido têm quartos separados?
- Agora têm... depois do desastre. Antes, ocupavam
o mesmo quarto.
- A enfermeira esteve a fazer companhia a Burr
durante todo o tempo?
- Sim. esteve; por ora, nunca o abandona, enquanto
não readquirir o seu estado normal.
- Ele não está no seu estado normal?
- Está no estado habitual de irresponsabilidade,
motivado pelo uso da morfina. O médico disse que isso
não tinha nada de extraordinário. Esteve bastante agitado
durante algum tempo. Tem uma perna presa com um
peso, dependurado numa roldana que está no tecto.
114
Foram encontrá-lo a desatar a corda. Disse que tinha de
sair dali porque havia alguém que o queria matar. O médico
foi de opinião que se tratava de uma reacção pós-narcótica.
Que não havia novidade, mas que era preciso
vigiá-lo. Se tivesse conseguido saltar da cama, a fractura
deslocar-se-ia e seria preciso fazer-lhe novo curativo.
O advogado viu as horas. (
- Bom, tenho que fazer.
- Não fica cá esta noite?
Mason sacudiu a cabeça, dirigiu-se para a porta e
parou.
- Estou a avisá-lo pela última vez... telefone para a
polícia e mude de opinião sobre a identificação do pato.
CAPÍTULO XI
Ao dirigirem-se de automóvel para a cidade. Della
Street disse:
- Saímos com tal pressa que nem tive oportunidade
de perceber o que se passou. O que é que aconteceu?
- Milter foi assassinado.
- Por quem?
- A polícia vai convencer-se que foi Marvin Adams
dentro de doze horas, a não ser que trabalhemos depressa.
- Foi por isso que Lois saiu a correr?
Mason sorriu.
- Talvez!
- Porque não me encarregou do serviço, chefe?
- Qual serviço?
- Aquele que era preciso fazer.
- Quis deixar a coisa em família.
- O senhor não pode confiar na pequena, pelo menos
nos assuntos que dizem respeito a Adams. Está louca
por ele. Se a deixa tomar parte em qualquer coisa que o
115
prejudique, ela atraiçoá-lo-á se achar que isso é conveniente.
- Bem sei. Mas tive de confiar nela porque, em primeiro
lugar, os cães conheciam-na, e, em segundo lugar,
porque ela conhece o rancho, por dentro e por fora. Consigo,
não se poderia fazer o que eu pretendia. Sei bem
o risco que corri utilizando-a.
- Aonde vamos agora?
- Temos que fazer na cidade. Depois, vamos tomar
o comboio da meia-noite. Aquele que leva uma carruagem-cama
até à linha principal e, depois, entra no desvio
para esperar o comboio para Los Angeles. Estou informado
de que a carruagem é atrelada às três da manhã.
Temos menos de uma hora.
- A loura da agência de investigações tomou o comboio?
- Tomou.
- Mais alguém?
- Marvin Adams.
-Vão juntos no mesmo comboio?
-Pelo menos, estão no mesmo comboio.
- Isso é apenas uma coincidência?
- Não sei.
"; "-Que temos de fazer na cidade?
- Quero falar com Alberta Cromwell. Ocupa o apar-
tamento contíguo ao de Milter.
- Ela não é a mulher legítima de Milter.
- É a viúva.
- Acha que ela sabe do crime?
-Deve saber, se estiver em casa.
- Suponha que não está.
- É uma das coisas que pretendo descobrir.
- A polícia ainda estará de posse do apartamento
de Milter?
- Provavelmente.
- Quer correr o risco de se encontrar com eles?
116
Não.
- Mas, para verificar tem de correr o risco,; não é
verdade?
Mason sorriu.
- Há duas maneiras de descobrir se uma pessoa está
em casa. Uma delas é encontrá-la em casa.
- E a outra?
- Encontrá-la fora de casa.
- Vá, deixe-se de mistérios. Aonde?
- Também só há duas maneiras de sair da cidade,
para uma pessoa que não tem automóvel. Uma é o
comboio. A outra, o autocarro. O último comboio já partiu.
Vamos ver, primeiro, na estação dos autocarros.
- Se a vir conhece-a?
- Julgo que sim. De qualquer modo, encontrei-me
com uma jovem que disse ocupar o apartamento contíguo
ao de Milter e ter o apelido de Cromwell.
Della Street recostou-se no banco.
- Tirar-lhe informações quando o senhor não as
quer dar é o mesmo que tirar água de um poço seco.
Mason sorriu.
- Não posso dar aquilo que não tenho.
- Não; mas, mesmo que tivesse, não dava. Vou
passar pelas brasas. Suponho que não precisa de mim
quando for à estação dos autocarros.
- Claro que não.
- Óptimo, acorde-me quando voltar.
Torceu os ombros até colocar a cabeça em posição
confortável e fechou os olhos. Mason continuou em
grande velocidade até chegar à rua principal de El Templo.
Então, reduziu a marcha e dirigiu-se para a estação dos
autocarros Greyhound. Aparentemente, Della Street já
estava a dormir quando saiu silenciosamente do carro,
fechou a porta devagar e caminhou apressado pelo
passeio.
Estavam quatro pessoas sentadas nos bancos à
117
espera do autocarro de Los Angeles, que devia passar às
três horas. Alberta Cromwell ocupava um canto isolado,
com o cotovelo pousado sobre o braço do banco e o
queixo encostado à palma da mão. Fitava sem ver os
magazines do quiosque à sua frente.
Quando Mason se sentou quase a seu lado, virou a
cabeça apenas o suficiente para compor os pés e as
pernas, e voltou a olhar para os magazines.
As revistas, com capas sinistras retratando diversos
dos chamados casos autênticos dos anais da polícia,
estavam arrumadas em montes, umas em cima das outras.
Estas capas, na sua maior parte, exibiam jovens de bela
plástica empenhadas numa luta desesperada pela vida
e, segundo se poderia concluir pelo estado dos seus vestidos,
pela honra.
Passados alguns segundos durante os quais Alberta
Cromwell se manteve imóvel, Mason disse calmamente:
- É bastante deprimente pensar em crimes com tal
ambiente, não acha?
Ela virou a cabeça ao ouvir a voz. Ao reconhecê-lo,
um involuntário salto nervoso traiu a sua emoção; mas,
passados momentos, quando falou, a sua voz era calma:
- Também vai para Los Angeles?
Mason fitou-lhe o perfil com firmeza e respondeu
negativamente.
Voltou mais uma vez os olhos na direcção do advogado
e estes traíram incerteza. Não sustentou o olhar
por muito tempo.
- Não lhe parece melhor dizer-me o que tem a dizer?
- Não tenho nada a dizer-lhe. Sobre quê?
- O motivo por que vai para Los Angeles com tanta
pressa.
- Não me parece que seja com muita pressa. Há
muito tempo que tencionava ir.
- Ora, vejamos. Não me parece que leve qualquer
mala. Nem mesmo uma maleta.
118
- Tem alguma coisa com isso? Está a supor demasiado
com base no que é apenas uma... uma...
- Sim... simplesmente, uma quê?
- Uma tentativa de meter conversa.
- Disse-me que só conhecia Leslie Milter muito
superficialmente.
- E depois?
- Nunca supus que uma mulher dissesse isso do
seu marido.
Alberta Cromwell demonstrou francamente não estar
interessada em prosseguir a conversa. O advogado
ergueu-se, dirigiu-se ao quiosque e comprou quatro ou
cinco revistas. Tornou ao banco, sentou-se ao lado dela e
casualmente principiou a virar as páginas. De repente,
xxx
disse:
- Interessante pensamento este! O criminoso faz,
na verdade, mais do que a polícia para provocar a sua
própria prisão. Na sua ânsia de apagar todas as provas,
dá à polícia sempre qualquer coisa definitiva sobre que
trabalhar... sejam quais forem as pistas que liguem a
pessoa ao crime original.
Ela não disse nada.
- Repare no seu caso, por exemplo - disse Mason,
muito calmo, como se estivesse a discutir o assunto de
um ponto de vista que não dizia respeito a pessoa nenhuma
em especial. - A sua ausência não terá aos olhos
da polícia grande significado, esta noite. Mas, de manhã,
começarão a fazer investigações. Por volta do meio-dia,
pouco mais ou menos, começarão a perguntar por si.
À tarde, andarão à sua procura e, à noite, será a principal
suspeita.
- De quê?
- Do crime.
Ela virou-se de olhos esbugalhados e uma expressão
que espelhava terror.
- Quer dizer... que mataram... alguém?
119
-Como se você não soubesse...
- Não sei.
- Você parecia com bastante pressa de sair de
casa na altura em que toquei a campainha.
-Pareceu-lhe?
- Pareceu.
- Que tem isso?
- Nada. Apenas uma coincidência e mais nada.
Todavia, quando a polícia começar a fazer investigações
sobre Milter, eles...
- Ao certo, o que é que Milter fez agora?
- Ele não fez nada. Fizeram-lhe a ele. Está morto.
Alguém o matou.
Mason sentiu o banco estremecer com o seu movimento
de espanto.
- Essa não foi boa! - disse o advogado.
- O quê?
- A sua manifestação convulsiva de espanto. A primeira
vez, quando me viu, foi natural. Esta foi ensaiada.
Há uma grande diferença entre as duas. Podia ter-me
enganado, se eu não tivesse visto a primeira.
- Quem é o senhor afinal?
- O meu nome é Mason. Sou advogado, tenho escritório
em Los Angeles.
- Perry Mason?
- Exacto.
- Oh! - fez ela em tom de quem está prestes a
desmaiar.
-Se conversássemos um pouco?
- Não tenho nada a dizer-lhe.
- Ah, isso tem. Há muita gente que não aprecia
convenientemente os seus dotes de conversador. Reflicta
um pouco.
Mason voltou a sua atenção para as revistas. Passados
minutos, observou:
- Aqui vai uma jovem a fugir. Se não fosse isso, a
120
polícia nunca teria desconfiado dela. Que estranho desejo
este de as pessoas quererem fugir do que receiam. As
pessoas que querem fugir, não se detêm a pensar que é
a pior coisa que podem fazer. Deixe-me ver o que aconteceu
a esta mulher.
Mason desfolhou as páginas da revista e disse:
- Foi condenada a prisão perpétua. Deve ser uma
situação horrível, uma mulher bonita e jovem, atirada,
de súbito, para trás das grades. Cada ano que passa,
vê-se envelhecer. Quando eventualmente é posta em liberdade,
a sua pele tornou-se áspera, o cabelo, grisalho e a
sua figura desapareceu. Perdeu a leveza do andar, o brilho
dos olhos. É apenas uma mulher de meia-idade, transformada
num farrapo...
- Cale-se! - gritou Alberta Cromwell.
- Desculpe. Eu estava apenas a falar a respeito da
mulher mencionada neste artigo. - Viu as horas. - Falta
meia hora para o autocarro chegar. Calculo que a porta
das traseiras do seu apartamento abre para um pátio...
onde põem o lixo e, talvez, esteja o lavadouro. Há algum
tabique entre este pátio e o do apartamento contíguo, ou
apenas um parapeito?
- Um parapeito de madeira.
Mason fez um aceno.
- Naturalmente, ele estava a arranjar uma bebida
quente para si e você... Bom, não será melhor contar-me
o que sucedeu?
Alberta comprimiu os lábios numa linha fina.
Mason continuou a falar:
- Ele estava à espera da loura da agência de investigações,
que chegou no autocarro de Los Angeles. Ela
tinha a chave do apartamento. Possivelmente, não queria
que você soubesse...
- Mas, eu sabia tudo - explodiu ela. - Tratava-se
apenas de uma questão de negócios. Eu sabia que ela
vinha.
121
-Ah, com que então, ele convenceu-a que era
apenas uma questão de negócios.
não respondeu.
- Quer dizer, tentou convencê-la e você fingiu que
se deixava convencer - insistiu Mason.
Alberta Cromwell voltou-se e o advogado pôde ver a
sua expressão torturada.
- Já lhe disse que era assunto de negócios. Eu sabia
que ela estava a chegar. Chama-se Sally Elberton. Trabalha
para a agência de investigações em que Leslie
estava empregado. As suas relações eram puramente
profissionais.
- Sabia que ela tinha uma chave?
- Sabia.
- Ela deve ter chegado mais cedo do que se esperava.
Alberta não disse nada.
- Miss Elberton sabia da sua existência?
Alberta esteve tentada a dizer qualquer coisa; mas,
dominou-se.
- Segundo tudo indica, não sabia - concluiu Mason.
- De modo que ela chegou e você saiu, às escondidas,
pela porta das traseiras, saltou o parapeito e foi para o
seu apartamento. Gostava de saber quanto tempo se
demorou lá.
- Não foi Sally Elberton que chegou...
- Como é que sabe?
- Porque... sou curiosa. Passado um bocado, fui à
janela e espreitei.
- E o que é que viu?
- Vi-o a sair do apartamento.
--Ah, então era um homem!
- Era.
- Quem?
- Não sei o nome. Nunca o tinha visto.
- Que aspecto tinha?
122
- Tomei nota do número do automóvel, apenas.
- Qual é? -?
- Não lhe dou essa informação.
Era um rapaz novo?
Mais uma vez, ela recusou-se a responder.
Mason disse quase divertido:
- Nesse caso, depois de ele sair, você foi perguntar
a Leslie o que se passava. Espreitou pela vidraça da porta
das traseiras ou abriu a porta e sentiu o cheiro do gás?
Ah, espere um momento. A porta das traseiras devia
estar fechada à chave. Ele devia tê-la fechado, para que
você não interrompesse o tête-à-tête. Aqui está uma ideia
curiosa. Se ele tivesse confiado um pouco mais em si, se
não tivesse fechado a porta à chave, podia tê-la aberto a
tempo de lhe salvar a vida. Por isso, você correu para o
seu apartamento e desceu as escadas para tentar abrir
a porta da frente. Encontrou-me a tocar a campainha e
sabia que a porta estava fechada à chave. Eis, suponho,
a explicação de tudo.
Alberta permaneceu silenciosa.
Mason desfolhou as páginas do magazine rapidamente
com o polegar.
- Bem, já que não se fala a respeito de crimes, podemos,
ao menos, ler reportagens sobre eles. Esta fotografia
mostra...
Com um rápido movimento do braço, Alberta Cromwell
fez cair para o chão a revista, pôs-se de pé e dirigiu-se
para a porta da estação. Ao chegar à rua, ia quase
a correr.
O advogado esperou até que a porta de mola da
estação se fechasse; apanhou as revistas do chão, colocou-as
num monte, muito arrumado, sobre o banco de
madeira da sala de espera e saiu.
Della Street acordou quando ele abriu a porta do
automóvel.
- Viu-a? - perguntou. <
123
- Vi.
- Onde está?
- Foi-se embora.
- Para onde?
- Para casa.
Della sorriu, ensonada.
- O senhor tem muita sorte com as mulheres, não
tem, chefe?
CAPÍTULO XII
O comboio, tendo feito uma curta paragem para dar
entrada a um passageiro isolado, pôs-se em marcha.
A luz do sol da manhã iluminava as cristas cobertas de
neve das montanhas. A locomotiva, rodando em boa velocidade
através de laranjais de frutos dourados, apitava
intermitentemente. Nos beliches, os bagageiros principiavam
a retirar as malas que se amontoavam nos corredores.
No vagão-restaurante, os passageiros tomavam o primeiro-almoço,
enquanto o comboio se aproximava dos
subúrbios de Los Angeles.
Mason entrou no restaurante. Sally Elberton estava
sentada sozinha numa mesa para duas pessoas.
- Está sozinho, senhor? - perguntou o criado de
mesa, apontando o dedo para Mason. - Ainda estamos a
tempo de o servir.
- Obrigado. Fico aqui. - E Mason caminhou calmamente
para o lugar em frente da jovem.
Esta conservou os olhos no prato durante algum
tempo, depois elevou a chávena do café aos lábios, fitou
Mason, casualmente, baixou os olhos para o prato e,
depois, ergueu-os de repente com expressão de espanto
por ver o advogado.
- Bom dia! - cumprimentou o advogado.
- Porque... vem neste comboio? Não sabia...
Esteve... no Sul?
124
- Acabo de entrar.
- Ah, levantei-me cedo... fui visitar uma pessoa
amiga.
O criado, solícito, inclinou-se sobre o ombro de
Mason.
- Se quiser encomendar alguma coisa, faça favor...
- Quero apenas uma cafeteira com café.
Abriu a cigarreira, tirou um cigarro, acendeu-o, recostou-se
na cadeira com um braço ligeiramente apoiado
na ponta da mesa.
- Conseguiu vê-la? - perguntou.
,;., -Quem?
- A pessoa amiga.
Sally estudou-o sem saber se devia mostrar-se-lhe irritada
ou irónica; por fim, sorriu e disse:
- Por acaso, a minha pessoa amiga era uma ela.
- Não se chamaria antes Milter?
Desta vez, Sally decidiu gelá-lo com um olhar de fria
indignação.
- Não sei de onde lhe veio essa ideia ou quem o
autorizou a interrogar-me sobre os meus assuntos particulares.
- Estava apenas a prepará-la. Era uma espécie de
ensaio geral.
,,, - Ensaio, para quê?
- Para o interrogatório que lhe vão fazer.
- Posso garantir-lhe - respondeu ela, com voz cerimoniosamente
fria - que se alguém tiver o mais pequeno
direito de me fazer perguntas, poderei responder-lhe sem
a sua ajuda, Mr. Mason.
O advogado moveu-se ligeiramente para que o criado
lhe servisse o café. Entregou-lhe uma nota de um dólar
e disse:
- Pague a conta e guarde o troco. - Mudou de
125
posição, esperou que o criado se afastasse, cheio de
sorrisos, e, depois, perguntou como que casualmente:
- Quando você lá esteve, Milter estava morto ou
vivo?
Ela nem sequer pestanejou. O seu rosto era a máscara
do mais frio desdém.
- Não sei a que se refere.
Mason deitou açúcar e leite no café, mexeu-o e bebeu
lentamente, saboreando o cigarro, enquanto olhava a paisagem.
A loura, sentada à sua frente, continuava a manter
aquele olhar frio de uma mulher aborrecida que procura,
a todo o custo, manter-se calma.
Mason acabou de beber o café, empurrou a cadeira
para trás e levantou-se.
Os olhos de Sally manifestaram surpresa.
- É... é só isso? - perguntou, deixando escapar as
palavras num momento de irreflexão que rompeu toda a
reserva.
Mason sorriu-lhe e disse:
- Você respondeu à minha pergunta logo que a fiz.
- Como?
- Com o olhar de surpresa e a calma estudada da
sua resposta. Deve tê-la estado a ensaiar toda a noite.
Já esperava que alguém lha fizesse.
E dizendo isto, saiu do restaurante, deixando a jovem
muito desconcertada, de pescoço espetado a fitar-lhe as
costas, enquanto ele atravessava a porta e se dirigia aos
beliches.
Mason encontrou Marvin Adams na última carruagem.
Este fitou-o incrédulo.
- Mr. Mason! - exclamou. - Não sabia que vinha
neste comboio.
- Nem eu. Sente-se, Marvin. Quero ter uma conversa
rápida consigo.
Adams afastou-se para o lado para que Mason pudesse
sentar-se no mesmo banco.
126
O advogado traçou as pernas, instalou-se o mais
confortavelmente possível, encostando um cotovelo ao
braço almofadado da cadeira.
- Você levou um pato de casa de Witherspoon, esta
noite?
Marvin esboçou um sorriso.
- É verdade. O patinho mais engraçado que vi até
hoje. Dei-lhe moscas a comer. Parecia mesmo uma mascote.
- Que lhe fez?
- Não sei, desapareceu.
- Como?
- Levei-o no carro com que andava.
- O seu carro?
- Não, um que pedi emprestado. É uma espécie de
carro de estudantes. Daquelas geringonças muito antigas,
que já foi bom, mas que tem a vantagem de nos levar e
trazer aonde queremos ir.
- Levou-o ao rancho de Witherspoon?
Marvin Adams sorriu.
- Esteve estacionado mesmo em frente da mansão
familiar. Tive sempre a impressão de que Witherspoon
ficava aborrecido quando via este carro parado à porta.
Por duas ou três vezes me disse que quando quisesse lá
ir, bastava telefonar e ele mandaria um motorista buscar-me
num dos carros.
- Nunca fez isso?
- Claro que não. O velho "bate-latas" não tinha
grande aspecto; mas, estava sempre à minha disposição.
Compreende o que quero dizer.
- Lois não se importa?
Um sorriso prazenteiro iluminou o rosto de Adams
que respondeu:
-Até gosta!
- Está bem, você levou o pato dentro do carro e o
que é que aconteceu?
127
- Despedi-me de Lois. Tinha ainda de fazer as malas
e apanhar o comboio... além de que a certa altura reparei
que estava com fome. Fui comer uma sanduíche. Não há
nenhum parque de estacionamento na rua principal.
Como conhecia um restaurante na Sinder Butte Avenue,
conduzi o carro para lá e aí parei...
- Mesmo em frente do restaurante?
- Não. Nesse sítio estavam parados muitos carros.
Tive de percorrer um quarteirão até encontrar lugar para
estacionar. Porquê?
- Nada. Estava apenas a procurar obter um quadro
completo dos acontecimentos. Creio que já é mania
profissional. Prossiga.
- Porque estão tão preocupados por causa do pato?
O velho Witherspoon ficou aborrecido por ter perdido um
dos seus patos premiados?
Mason evitou a pergunta, respondendo com outra.
- A primeira vez que nos encontrámos, falou-me a
respeito de patos que se afundam na água devido a qualquer
novo tipo de produto químico. Que vem a ser isso?
- Esses produtos químicos são conhecidos pelo
nome de detergentes.
- O que é um detergente?
O rosto do jovem manifestou entusiasmo de uma
pessoa que discute um assunto favorito.
- As moléculas de um detergente são constituídas
por uma estrutura complexa. Uma das partes de cada uma
das moléculas é hidrofóbica, ou seja, por outras palavras,
tem tendência a ser repelida pela água. A outra parte é
hidrofílica, isto é, tem afinidade com a água. Quando um
detergente é misturado na água e aplicado a uma superfície
gordurosa, a parte da molécula que não se mistura
com a água adere à gordura. A outra parte associa-se à
água. Toda a gente sabe que existe certa antipatia natural
entre a gordura e a água. Não se misturam. Mas, um detergente
faz mais do que misturá-los. Casa-os.
128
- Você falou em que o pato se afundava...
- Sim, com um detergente podem conseguir-se
essas coisas que parecem fisicamente impossíveis.
Muito frequentemente, a natureza utiliza as propriedades
repulsivas da gordura e da água para dar aos animais e
às plantas determinada protecção. O pato serve-nos de
exemplo. As penas do pato normalmente repelem a água
e, portanto, contêm no interior uma boa quantidade de
massa de ar. Se uma pequena quantidade detergente ou
agente húmido é lançado na água, o detergente imediatamente
molha as penas cobertas de gordura. Então, por
atracção capilar, a água ensopa as penas tal como acontece
com uma esponja. Se lhe interessa o assunto, posso
mandar-lhe algum material de leitura.
- Não, obrigado. Não é preciso. Só pretendia saber
outra coisa. Suponho que tencionava utilizar este pato
numa experiência similar.
- Sim, tencionava. O patinho era muito engraçado.
Pensei em guardá-lo depois para minha mascote. A experiência
não o prejudica nada. Chega a ser divertido; especialmente,
quando qualquer pessoa antipatiza connosco
e gosta de chamar a atenção para qualquer deslize cometido
por nós. Nessa altura, podemos lançar sempre uma
observação acerca do pato que se afoga e...
- Conforme fez com Burr?
Adams sorriu, acenou a cabeça e acrescentou:
- Eu estava a contar a experiência a Lois. Mas, Burr
intrometeu-se na conversa. Ele tem sempre má vontade
contra tudo o que me diz respeito.
- Há alguma razão especial?
- Nenhuma que eu saiba. Evidentemente, Mr. Mason,
vou ser franco consigo. Witherspoon não simpatiza com a
ideia de eu entrar para a família. Sei disso perfeitamente...
mas, não é coisa que me faça mudar de ideias.
Farei aquilo que proporcionar a felicidade de Lois. E tam-
9- VAMP. G. 7
129
bém tenho o direito de ter em consideração a minha
própria felicidade, Dentro de poucos meses, serei chamado
a prestar serviço militar. Não sei o que acontecerá
depois. Ninguém sabe. Só sei que a minha missão vai
ser difícil. Eu... Ora, estou a falar de mais.
- Não, não está. Continue. Quero ouvir o resto.
- Vou arriscar a minha vida. Muitos outros camaradas,
tal como eu, vão perder a vida para que pássaros
como Witherspoon continuem a gozar aquilo de que dispõem.
Talvez não devesse pensar assim. Mas, posso
muito bem pensar que se sou bom para combater em
defesa dos interesses de John L. Witherspoon, também
sou bom para fazer parte da sua família. Sei muito bem
que esta opinião, até certo ponto não faz muito sentido;
porém, gosto de Lois e ela gosta de mim. Portanto, para
que havemos de estar com patetices e deixarmo-nos
arrastar por tragédias que não existem. Talvez até só
estejamos juntos meia dúzia de semanas.
- Porque é que não quis ir a Yuma para se casar
com ela ontem à noite?
Adams manifestou surpresa; depois, os seus olhos
estreitaram-se ligeiramente:
- Quem lhe disse isso?
- Lois.
Adams ficou silencioso durante alguns segundos e
disse:
- Porque é uma maneira deselegante de resolver
os nossos problemas. Escrevi-lhe uma carta depois de ter
tomado o comboio a dizer-lhe que se ela ainda estivesse
nessa disposição na próxima semana, dissesse ao pai que
nos íamos casar e, então, estava bem.
Mason acenou com a cabeça.
- Ainda a propósito do pato. Tinha alguma razão
especial para o levar?
130
- Tinha. - Adams rebuscou nos bolsos e tirou uma
carta. - Isto explica tudo.
Mason tirou a folha de papel do sobrescrito e leu:
Caro Mr. Adams:
Em conversa com alguns amigos seus, tive conhecimento
que o senhor dispõe de um produto químico que,
lançado na água, faz com que os patos se afundem, sem
se lhes tocar.
Alguns sócios do meu clube têm troçado desta afirmação
minha e estou disposto a pagar cem dólares para
demonstrar a possibilidade da experiência. Os seus
amigos disseram-me que na segunda-feira viria a Los
Angeles. Se telefonar para Lakeview 23771 a marcar uma
entrevista, terei cinco notas de vinte dólares, novinhas
em folha, à sua espera.
Atenciosamente
GRIDLEY P. LAHEY
O advogado estudou a carta durante quase um minuto;
depois, dobrou-a bruscamente, guardou-a no bolso
e disse:
- Deixe-me ficar com isto. Vou telefonar a Mr. Lahey.
Diga-me onde posso entrar em contacto consigo, depois
de ter combinado a entrevista. Gostaria de estar presente
quando realizasse a experiência.
, Adams mostrou-se admirado.
- Não há dúvida. Deixe-me tratar disto e faça-me
um favor?
- O que é?
- Não fale nesta carta a ninguém. Não conte a
história dos patos que se afogam, a não ser que seja
131
interrogado especificamente sobre o assunto por alguém
que tenha direito a ouvir as suas respostas.
- Receio não o compreender, Mr. Mason.
- Suponha que lhe peço isto por Lois?
- Satisfarei o seu pedido.
- Então, isso é que é preciso.
O comboio moderou a marcha. Um bagageiro gritou:
- Los Angeles, Los Angeles, todos os passageiros
saem em Los Angeles.
Mason ergueu-se.
- Que quantidade de detergente é necessária para o
pato se afundar?
- Uma quantidade pequeníssima de uma qualidade
especial. Uns milionésimos de um por cento.
- Flutua, assim, à superfície da água?
- Não é bem isso, embora dê o mesmo resultado.
A parte das moléculas que repele a água procura sair de
dentro da água. Isto faz com que as moléculas tendam a
congregar-se em maior número à superfície e em quaisquer
superfícies que estejam humedecidas.
- Já percebi, e essas moléculas dissolvem a gordura...
- Rigorosamente falando, não dissolvem a gordura.
Apenas impedem a gordura de repelir a água. Uma vez
removido o detergente da água e das penas, o pato
continua a nadar como antigamente.
- Compreendo - disse Mason, no momento em que
a fila de passageiros começava a formar-se no corredor
do comboio. - Estou interessado nesse pato. Disse que
o tinha deixado no carro?
- Disse.
- Onde?
- No banco da frente.
- Ele não podia ter passado para a parte detrás do
carro?
- Não, é ainda muito novo para voar. Podia ter
132
caído para o chão, na parte da frente do carro, mas procurei-o
bem e não o vi.
- Não fale seja a quem for nesse detergente ou na
experiência do afundamento do pato. Se alguém lhe perguntar,
diga que queria o pato simplesmente para mascote.
E por nada desta vida se refira à carta que recebeu
de Los Angeles.
- Está bem, assim farei, se me aconselha. Mr.
Mason. Porém, escute, preciso dos cem dólares. Para
mim, essa quantia tem tanta importância como a tesouraria
dos Estados Unidos. Bem vê, sou um estudante que
quer casar...
- Não vejo motivo para eu não tratar desse assunto,
também - declarou Mason, puxando da carteira.
- Não, não. Só queria fazer-lhe ver que desejo
entrar em contacto com o homem da carta. Não se
esqueça disso.
O advogado tirou cinco notas de vinte dólares.
- Não se preocupe. Eu descreverei a experiência
e receberei os cem dólares.
Adams parecia duvidoso.
Mason meteu-lhe as notas na mão.
- Não seja pateta, isto apenas tem por fim evitar
que eu tenha de entrar em contacto consigo outra vez.
Onde é que eu posso dizer ao homem que pode comprar
o detergente?
- Oh, em muitos sítios. Por exemplo, na "Central
Scientific Company", os maiores fabricantes do país de
material de laboratório, em Chicago, ou a "National Chemical
Company", de Nova Orleães. Ou a "American
Cyanamid Chemical Corporation", de Nova Iorque. Não
terá dificuldade nenhuma em arranjar o detergente, desde
que saiba o que tem de pedir.
- Para onde é que posso falar-lhe, no caso de necessitar
de mais alguma informação?
133
Adams tirou um cartão de visita do bolso, rabiscou
um número e entregou-o ao advogado.
- Está bem. Telefonar-lhe-ei, se for preciso. Tenho de
tratar da minha bagagem, de modo que não espere por
mim. Vá andando - recomendou Mason.
O advogado viu Marvin Adams caminhar rapidamente
pela gare que conduzia à passagem subterrânea por debaixo
das linhas.
O rapaz avançara vinte ou trinta passos quando um
indivíduo que estivera pacatamente encostado à parede,
a assistir à saída dos passageiros, avançou de modo a
bloquear-lhe o caminho.
- O senhor chama-se Adams, não é verdade? - perguntou.
Marvin Adams, bastante surpreendido, confirmou com
um aceno.
O desconhecido ergueu a lapela do casaco o suficiente
para mostrar um distintivo.
- A rapaziada lá da esquadra quer fazer-lhe umas
perguntas. Não demora muito tempo - disse.
Mason passou-lhes ao lado sem o mais pequeno sinal
de reconhecimento, quando Adams, de olhos esbugalhados,
fitava atónito o detective.
- Quer dizer... que eles querem fazer perguntas...
a mim?
O advogado já não ouviu a resposta do agente da lei,
CAPÍTULO XIII
Della Street estava à espera no carro de Mason, à
porta da estação. O advogado sentou-se ao volante.
- Correu tudo bem? - perguntou ela.
- Correu.
- Falou com a rapariga no comboio?
. -Falei.
134
- Arrancou-lhe alguma coisa?
- Mais do que ela queria dizer é menos do que eu
queria saber.
- Marvin Adams também vinha no comboio?
- Vinha,
- Andei por aí a ver se descobria alguns polícias à
paisana pelas proximidades - disse Della Street.
Sem responder, Mason fez rodar o volante, guiando
o carro para fora do parque de estacionamento. Lançou
um olhar de lado, divertido, à sua interlocutora.
- E viu alguns? - perguntou.
- Não.
- O que é que a fez supor que os reconhecia?
- A quem, aos polícias?
- Sim.
- Eles não têm, assim, um ar especial?
- Só nos romances policiais. Um detective de categoria
tem de ser suficientemente inteligente para não
parecer detective.
- Estava lá algum?
- Estava.
- Prendeu a loura da agência de investigações? !
- Não, prendeu Marvin Adams.
Ela olhou-o como se o visse pela primeira vez.
- Prenderam Marvin Adams!
-Exacto.
- E o senhor... não fez nada?
- Fazer, o quê? - perguntou Mason, enquanto ela
se calava à procura das palavras.
- Não ficou para o ajudar?
- Como é que o podia ajudar?
- Dizendo-lhe que não falasse. ;
Mason sacudiu a cabeça.
- Pensei que era essa uma das razões por que
estava tão ansioso por apanhar o comboio.
- E era!
135
- Vamos, veja lá se fala. Não seja assim.
- Tal como as coisas estão, o melhor que pode fazer
é contar a história à sua maneira, desde que não mencione
determinado assunto, e disso já eu tratei.
- O que é?
O advogado tirou a carta do bolso e entregou-lha.
Della leu-a, enquanto Mason guiava o automóvel por
entre o trânsito da manhã.
- O que quer isto dizer?
- Em mil, há novecentas e noventa e nove probabilidades
desse Gridley P. Lahey ser um indivíduo puramente
fictício. O número do telefone deve provavelmente
ser de qualquer grande armazém ou fábrica, onde trabalham
centenas de operários.
- Então, isso significa que...
- Que o crime foi premeditado, que o plano foi cumprido
rigorosamente, segundo a segundo. Quem quer que
o planeou, preparou deliberadamente tudo para que Marvin
Adams ficasse com as culpas.
- E daí?
- Daí, conclui-se muita coisa. Entre elas, isto significa
que o assassino conta-se num número muito restrito
de pessoas.
- Como?
- Em primeiro lugar, Marvin Adams foi escolhido
por motivo especial. Esse motivo é a pessoa que o
escolheu saber algo que Marvin desconhece.
- O seu passado?
- Isso mesmo. Essa pessoa deve conhecer o que se
passou com o pai de Marvin e deve saber que Milter trabalhou
no caso.
- Mais alguma coisa?
- Sim, significa que a pessoa conhecia a experiência
do pato afogado.
- Que mais?
- Aqui está o que mais me desconcerta. Sabia, fosse
136
lá como fosse, que o pato deixado no apartamento de
Milter ia ser identificado. Como descobriria isso?
- Devia saber que Witherspoon ia a El Templo.
- O próprio Witherspoon, aparentemente, desconhecia
o facto até ao momento de partir. Foi uma decisão
que tomou impulsivamente, a não ser que...
- A não ser que, o quê?
Mason comprimiu os lábios.
- A não ser que tudo isto tivesse sido deliberadamente
planeado pelo homem que sabia que o pato podia
e seria identificado.
- Quer dizer... que foi...
- Por John L. Witherspoon - concluiu Mason.
- Mas, chefe, isso é inadmissível.
- Talvez não seja tão inadmissível. É possível que
ele tenha elaborado os seus planos para comprometer
Adams. Talvez quisesse convencer Adams de que cometera
um crime.
- Mas, não um crime, de facto.
- Talvez não.
- Nesse caso, houve qualquer coisa que saiu mal
nos seus planos.
- É isso mesmo.
- Até onde é que ele irá no caso de ter cometido
um erro?
- Até às últimas consequências. Legalmente, ele
pode talvez demonstrar que não se tratava de um crime
premeditado. Podia ser ditado pelas circunstâncias. Mas,
vai ter muita dificuldade em provar semelhante ponto de
vista perante o júri.
A voz de Della Street vibrou de ressentimento.
- Para que havemos de andar a bater o mato? Por
que não vamos directamente até Witherspoon?
- Por causa das leis contra a calúnia e difamação,
Não faremos coisa alguma enquanto não provarmos a
nossa opinião.
137
- Quando será isso?
- Não sei. Talvez fiquemos muito sossegadinhos
até que o procurador distrital de El Templo dê o seu
parecer.
Permaneceram silenciosos durante o resto do percurso
até ao escritório. Mason arrumou o carro no parque
de estacionamento em frente do edifício. Atravessaram
a rua e Mason perguntou ao empregado do ascensor:
- Paul Drake está no escritório?
- Está, chegou há meia hora.
Subiram no elevador. Mason deteve-se para entreabrir
a porta do escritório de Drake e dizer à telefonista:
- Informe Paul de que estou cá. Peça-lhe para ir ao
meu gabinete logo que tenha oportunidade.
O advogado e a sua secretária dirigiram-se para o
gabinete particular. Della Street estava ainda a abrir o
correio quando se ouviram os passos de Drake à porta.
Os seus dedos fizeram soar o sinal combinado.
Mason mandou-o entrar.
Drake caminhou para o sofá, onde se instalou mais
ou menos de lado, com as pernas dependuradas sobre o
braço da cadeira.
- Bem, Perry, não há dúvida que tinhas certa razão.
- A respeito de quê?
- A respeito do facto de os casos envelhecerem e
os protagonistas se tornarem descuidados e se descobrirem
certas coisas.
- O que é que descobriste?
- Miss X é uma tal Corine Hassen.
- Onde é que ela pára agora?
- Sei lá; mas, estamos-lhe na pista e não tenho
dúvida nenhuma que havemos de a encontrar.
-A pista é recente?
- Não. É até bastante antiga. Não consigo descobrir
ninguém que a tivesse visto depois do julgamento. Isso
já foi há bastante tempo.
138
Mason concordou com um gesto.
- O procurador conseguiu mantê-la fora do processo,
graças a um acordo com a defesa de que só se lhe refeririam
pelo nome de Miss X. Nestas circunstâncias, ela
pôde passar por todo o julgamento sem ter sido incomodada.
- Onde há tanto fumo, deve também haver algum
fogo - disse Drake.
- Como seja?
- Que Latwell deve ter-se divertido um bocado
com ela. Evidentemente, a teoria da acusação era que
Adams sabia isto e, portanto, arrastara o seu nome para
o caso.
- Que idade tinha a rapariga?
- Cerca de vinte e cinco anos.
- Então, tem quarenta e cinco, agora.
- Tal e qual.
- Era atraente?
- Os meus correspondentes informaram-me pelo
telefone que as fotografias dela, tiradas há vinte anos,
mostram que era bonita. Nada de espampanante, no
entanto. Segundo parece, tinha um rosto estranho. O corpo
é que era interessante, há vinte anos. Era caixa numa loja
de bombons, rebuçados, sorvetes, lanches, etc.
- Como é que a rapariga desapareceu?
- Vivia com a tia. Era órfã de pai e mãe. Disse ter
uma oportunidade de conseguir emprego na costa do
Pacífico, que tinha um namorado que insistia em casar,
que este era muito ciumento e que estava farta de ser
caixa. Foi-se embora sem deixar novo endereço, dizendo
que depois daria notícias à tia... mais ou menos, a mesma
história de sempre.
Mason franziu as sobrancelhas. - Não tenho bem a
certeza de que isso fosse assim. Quando é que ela se foi
embora, Paul?
Drake consultou o seu livro de apontamentos.
139
- Por alturas da data do crime.
- Começa a investigar como se fosse um desaparecimento
vulgar, procura nos registos dos hospitais, os
corpos não identificados, etc.
- Em Winterburg City?
- Não, em Los Angeles e S. Francisco para principiar...
e depois, no Reno, especialmente.
- Não te entendo.
- Vejamos isto pelo lado lógico. O mal de tudo está
em nos deixarmos hipnotizar pelos factos e interpretarmos
falsamente os acontecimentos por causa da força das
circunstâncias.
- Neste momento, tudo parece contra Horace Adams.
Durante o julgamento, o advogado deixou-se arrastar
pelo pânico e convenceu-se que o seu cliente cometera o
crime. Suceda o que suceder, Paul, um advogado nunca
deve convencer-se da culpabilidade do seu cliente.
- Porquê? A consciência dos advogados é assim
tão susceptível?
- Não é uma questão da consciência do advogado.
É uma questão de prestar justiça ao cliente. Uma vez que
ele se convença da culpabilidade do cliente, interpreta
todas as provas sob uma luz falsa e pesa-as por padrões
ainda mais falsos. Estás a ver o que aconteceu neste caso
com a misteriosa Miss X! Agora, vou agir na teoria de que
Horace Adams estava inocente. Nesse caso, a história
que contou a respeito de Miss X pode muito bem ser
verdadeira. É muito natural que Miss X tenha ido ao Reno
juntar-se com Latwell.
- Não posso ser dessa opinião, Perry. Adams podia
estar inocente; mas, quando percebeu que estava envolvido
numa teia de provas circunstanciais, havia de procurar
desenvencilhar-se. Se a mulher tivesse ido para o
Reno, teria lido o assassínio de Latwell nos jornais e...
- E o quê? - perguntou Mason ao ver que Drake
hesitava.
140
, -Provavelmente, tomado qualquer atitude.
O advogado sorriu.
- Com efeito, Paul, precisamos de um ponto de partida
e não temos tempo para especular com uma pista que
já está gelada. Vê lá o que os teus correspondentes conseguem
em Winterburg, mas põe alguns homens a trabalhar
no Reno. Talvez isso venha a ser um bom atalho.
Examina os registos dos hospitais e procede a todas as
investigações rotineiras referentes ao desaparecimento.
Depois, examinaremos a tua sugestão. Supõe que estavas
no Reno, querias desaparecer e fugias de qualquer coisa
acontecida no Leste? Para onde é que irias? Em nove de
cada dez, seria para Los Angeles ou S. Francisco, não te
parece?
- Sim, na verdade - admitiu Drake depois de pensar
maduramente na pergunta,
- Pois bem, enquanto estiveres a fazer investigações
no Reno, faz também em Los Angeles e S. Francisco.
Procura vestígios de Corine Hassen ou com este nome
ou com um pseudónimo qualquer.
- Esse pseudónimo qualquer é que não vai ser fácil!
- Não sei. Na ocasião, ela deve ter utilizado o seu
próprio nome no correio, nos bancos e na carta de condução.
Vê lá o que podes fazer.
- Está bem, vou iniciar já as investigações.
Mason meteu os polegares nas cavas do colete,
mergulhou o queixo no peito e fitou muito sério o desenho
do tapete.
- Espera. Paul, estou a cometer um erro qualquer...
já o cometi antes.
- Como é que sabes?
- É uma sensação que tenho quando sigo uma pista
errada. Talvez seja o meu subconsciente a tentar avisar-me.
- Onde é que te poderias ter enganado?
141
- Não sei. Tenho a sensação de que é qualquer
coisa relacionada com Leslie Milter.
- Porque dizes isso?
- Quando se tem um plano exacto, todos os pormenores
se adaptam. Quando se tem um plano geral que
aceita todos os pormenores excepto um, e esse não entra
em parte nenhuma, não há dúvida que o plano principal,
está errado.
- Vejamos o exemplo de Milter. Este preparava-se,
indiscutivelmente, para fazer chantagem. Não obstante,
deu aquela informação ao jornal de escândalos de Hollywood.
A propósito, descobriste alguma coisa a este respeito?
- Descobri que a notícia chegou como se fosse uma
indiscrição. Não encontro o nome de Milter ligado ao
assunto; mas, não tenho dúvidas de que estava.
-Sim, mesmo sem qualquer informação do jornal
de escândalos, é razoável que Allgood tenha despedido
Milter por falar de mais. Portanto, Milter deve ter conversado
com alguém. Com quem? Aparentemente, com Lois
não foi. Com Marvin Adams, também não. Podia ter falado
com Witherspoon se quisesse. Não, ele deve ter dado a
informação directamente ao jornal.
E Mason prosseguiu:
- Agora, coloca-te na posição de Milter. Era um
chantagista. Procurava cautelosamente a sua presa.
Estava na situação de um submarino que tem um torpedo
e está à espera da chegada de um perigoso contratorpedeiro.
Era preciso atingi-lo num ponto vital. Em tais
circunstâncias, não podia desperdiçar munições. No
entanto, foi isso o que a notícia no jornal de escândalos
provocou. Se recebeu alguma coisa por ela, foi uma
bagatela...
- Eles nunca dão dinheiro - comentou Drake. - Às
vezes, concedem favores; mas, não dão dinheiro.
142
Durante alguns segundos Mason manteve-se silencioso
e pensativo, e afirmou:
- Nota também que deve ter sido ele quem me
enviou aquela carta em correio especial. Não o teria feito
se estivesse a fazer chantagem sobre Witherspoon ou a
preparar-se para exercer chantagem sobre Lois ou Marvin
ou... Céus!
- O que é?
Mason olhou para Drake, pensativo. As suas sobrancelhas
formaram uma linha recta sobre os olhos.
- Paul, há uma solução que tornaria tudo plausível.
É uma solução estranha e bizarra, quando observada por
um lado; mas, quando se examina por outro, é a única
solução lógica.
- O que estás a esconder-me?
- Nada. O que é, está bem à vista. Nós é que não
vimos logo.
- O quê?
- Mr. e Mrs. Roland Burr!
- Não percebo.
- Repara nisto. Burr conheceu Witherspoon. Aparentemente,
esse conhecimento foi fortuito. Na verdade,
podia ter sido preparado. A única coisa a fazer era travar
conhecimento com Witherspoon em El Templo, mostrar-se
interessado em pesca e fotografia a cores, e
Witherspoon começar a falar. Um homem inteligente
podia causar uma impressão muito favorável e... sim, é
isso mesmo. Tem de ser isso. Burr ou a mulher devem
ter descoberto alguma coisa. Podiam ser eles os informadores
do jornal de escândalos ou talvez planeassem
"amolecer" Witherspoon, e o artigo publicado foi a maneira
que utilizaram de o preparar.
Drake comprimiu os lábios e soltou um assobio
baixo.
- Toma apontamento, Paul, é preciso descobrir-se
quem são Mr. e Mrs. Burr.
143
CAPÍTULO XIV
Pouco faltava para o meio-dia quando Della Street
entrou apressadamente no gabinete e comunicou:
- Mrs. George L. Dangerfield está lá fora à espera
e diz que necessita de discutir consigo um assunto que
não pode ser tratado com mais ninguém.
- Pensei que Allgood ia telefonar-me antes de ela
cá vir - observou, enrugando a testa.
- Quer falar com Allgood?
Mason acenou afirmativamente.
Momentos depois, quando Allgood chegou ao telefone,
a sua voz manifestava, distintamente, preocupação.
- A sua secretária disse-me que desejava falar
comigo, Mr. Mason.
- Sim, queria falar-lhe a respeito daquela indiscrição
provocada pelos seus serviços. Tem tido notícias de
Milter?
- Tive, infelizmente. A polícia telefonou-me a comunicar-me
que ele tinha morrido e a pedir-me informações.
- Eu sei, eu sei, foi uma linda obra. Sabe que a sua
secretária ouviu a nossa conversa e foi falar com Milter,
ontem à noite?
- Sei. Ela contou-me tudo. Quando chegou esta
manhã, notei que estava preocupada. Há cerca de meia
hora, entrou no meu gabinete a dizer que precisava de
me falar. Contou-me tudo. Estava agora precisamente a
pensar em telefonar-lhe para perguntar quando me podia
receber. Não queria falar-lhe daqui, do escritório.
- Ia dizer-me essas coisas antes de Mrs. Dangerfield
me falar?
- Ia.
- Pois ela já cá está. ;;
- O quê? Essa mulher é o diabo em pessoa.
- Está à espera que eu a mande entrar.
144
- Não sei como é que ela soube da sua existência.
Não foi com certeza aqui pelo meu escritório.
- Nem por intermédio da sua telefonista?
- Não, tenho a certeza. A rapariga fez uma confissão
bastante completa. Não quero dar-lhe pormenores
pelo telefone. Prefiro passar pelo seu escritório.
- Então, venha. Pode vir imediatamente?
- Posso. Dentro de vinte e cinco a trinta minutos,
estou aí.
- Está bem.
Mason desligou o telefone e disse para Della Street:
- Allgood diz que não a mandou vir cá. Diga-lhe
para entrar e vejamos o que quer. Como é ela?
- É uma beldade bem conservada. Tem-se tratado.
Se não me engano, tinha trinta e três anos por alturas
do julgamento. Tem agora cinquenta. Parece ter menos
dez,
- É pesada? Gorda?
- Não, é magra e flexível. Tem uma pele bonita.
Vê-se que tem sido muito cuidada. Estou a dar-lhe as
informações em que as mulheres geralmente reparam.
O aspecto exterior e o estilo...
- É loura ou morena?
- Francamente morena... Tem olhos grandes e
negros.
- Usa óculos?
- Acho que deve usá-los para ver bem; mas, trá-los
na mala. Estava a guardar a caixa dos óculos, quando fui
falar-lhe. Sabe fazer bom uso dos olhos.
- Diga-me uma coisa que só as mulheres é que
podem saber, Della. Acha que ela podia ter vivido mal
e agora tratado do físico ao ponto de se apresentar como
se apresenta hoje?
- De modo nenhum. Aos cinquenta anos, é impossível.
É Uma mulher que cuidou de si durante toda a vida.
10 - VAMP. G. 7
145
Tem olhos, pernas e ancas e sabe o que tem e como
usá-los.
- Curioso, vamos lá vê-la.
Della Street retirou-se para escoltar Mrs. Dangerfield
até ao gabinete.
A mulher dirigiu-se a Mason caminhando com suavidade,
com ritmo. Quando estendeu a mão ao advogado,
fê-lo com calor e espontaneidade, erguendo as pestanas
compridas e negras para o beneficiar com um olhar de
profunda simpatia.
- Não sei como agradecer-lhe o facto de me ter
recebido. Sei que é um advogado culto cheio de afazeres
e que só recebe os clientes que têm hora marcada; mas,
o meu assunto é extremamente importante e - disse
relanceando os olhos a Della Street - rigorosamente
confidencial.
- Faz favor de se sentar, Mrs. Dangerfield. Não
tenho segredos para a minha secretária. Ela toma apontamentos
de todas as conversas e faz os meus relatórios.
Raramente confio à memória aquilo que posso ter
por escrito. Tome nota do que Mrs. Dangerfield tiver a
dizer. Della.
Mrs. Dangerfield aceitou a derrota com graciosidade.
Por momentos o seu corpo endureceu; depois, sorriu
mais uma vez para Mason.
- Pois claro! Que estupidez a minha. Já devia calcular
que um advogado com tanto que fazer como o
senhor, tem de esquematizar todos estes assuntos.
O motivo da minha preocupação é o facto daquilo que
eu tenho a contar ser muito, mas mesmo muito confidencial.
A felicidade de outras pessoas depende desse sigilo.
- Deseja que eu lhe trate de algum assunto, Mrs.
Dangerfield? Se assim for...
- Não, não, quero falar-lhe acerca de um assunto
que está a tratar para outrem.
-Sente-se. Quer um cigarro?
146
- Muito obrigada, aceito.
O advogado deu-lhe o cigarro, tirou um e acendeu
os dois.
Mrs. Dangerfield sentou-se no sofá grande, estudou
Mason por entre as primeiras baforadas do fumo do seu
cigarro e, por fim, disse;
- Mr. Mason, o senhor está a trabalhar para Mr.
John L. Witherspoon.
- O que é que a leva a essa conclusão?
- Não está? ;
- A senhora fez uma afirmação. Estou a fazer uma
pergunta - declarou, sorridente.
Ela riu.
- Então, transformo a minha afirmação numa interrogação.
- Mesmo assim, ainda lhe responderei com uma
pergunta.
Mrs. Dangerfield fez tamborilar nervosamente as
unhas compridas e bem tratadas sobre o braço do sofá,
aspirou uma profunda baforada de fumo, fitou Mason
e riu.
- Já vejo que não consigo nada a discutir com um
advogado. Vou pôr as cartas na mesa.
Mason fez uma vénia.
- O meu nome é Mrs. George L. Dangerfield, conforme
disse a sua secretária. Mas, o meu nome nem
sempre foi Mrs. Dangerfield.
O silêncio do advogado foi um convite cortês para
que continuasse. Com ar de quem deixa cair uma pequena
informação que vai ter repercussões altamente explosivas,
afirmou:
- Em tempos, fui Mrs. David Latwell.
Mason não mudou de expressão.
- Continue - disse,
- Esta informação não parece surpreendente"--anunciou,
com voz de manifesto desapontamento.
147
- Um advogado nunca se deve mostrar surpreendido...
mesmo quando está
- O senhor é uma pessoa muito estranha - declarou
com vestígios de irritação.
- Lamento muito, mas a senhora disse que ia pôr
as cartas na mesa. - Mason apontou para a secretária.
- Aqui está a mesa.
- Muito bem - disse ela, dando-se por vencida.
Eu fui Mrs. David Latwell. O meu marido foi assassinado
por Horace Adams. Horace e David eram sócios em
Winterburg City.
- Quando é que o assassínio teve lugar?
- Em Janeiro de 1924.
- E o que aconteceu a Adams?
-Como se o senhor não soubesse!
- A senhora veio cá para dar informações ou para
tentar saber algumas?
Ela meditou na pergunta e ripostou francamente:
- Um pouco de ambas as coisas.
- Talvez fosse melhor modificar o objectivo da sua
visita e procurar simplesmente dar-me informações a
mim.
Ela sorriu.
- O crime foi cometido em princípios de 1924.
Horace Adams foi enforcado em Maio do ano seguinte.
Horace era casado; Sarah chamava-se a mulher. Sarah
e Horace, David e eu, formávamos um grupo de quatro,
em muitas ocasiões. Horace e Sarah tiveram um filho,
Marvin. Tinha cerca de dois anos na data do crime e
cerca de três quando o pai foi executado. Creio que Sarah
nunca gostou de mim ou confiou em mim implicitamente.
Sarah era mãe. Dedicou a sua vida inteira ao marido e
ao filho. Eu não via as coisas por esse prisma. Não tinha
filhos e... era atraente. Gostava de sair e fazer vida
nocturna. Sarah não aprovava isto. Era de opinião que uma
mulher casada devia fazer vida caseira. Isso passou-se
148
há cerca de vinte anos. As ideias sobre o casamento
modificaram-se muito, desde então. Menciono isto para
mostrar que Sarah e eu não nos dávamos muito bem,
embora, em virtude dos nossos maridos serem sócios,
fizéssemos as relações parecerem, à superfície, límpidas
e harmoniosas.
- Os vossos maridos sabiam que vocês não se
davam bem? - inquiriu Mason.
- Por Deus, não! Éramos demasiado subtis para que
os homens percebessem; só se notava em pequenas
coisas que as mulheres entendem, o levantar de uma
sobrancelha no momento exacto ou a maneira de olhar
para a altura de uma saia que eu usasse, ou quando o
marido me cumprimentava pelo meu aspecto e se voltava
para ela para lhe perguntar se não achava que eu
estava cada vez mais nova, ela concordava com aquele
gesto imperceptível que passa inteiramente despercebido
ao homem, mas que tanto significa para as
mulheres.
- Muito bem, não gostavam então uma da outra.
E depois, o que é que aconteceu?
- Não disse isso. Disse que Sarah não aprovava a
minha maneira de ser. Não me parece que Sarah gostasse
de mim. Mas, eu não desgostava dela. Até tinha
pena. Pois bem, depois ocorreu o assassínio, e nunca
pude perdoar a Horace Adams as coisas que disse para
encobrir o assassínio.
- Que coisas eram?
- Ele matou David e, conforme se verificou, enterrou
o cadáver na cave da fábrica e cimentou, de novo,
o chão. A única coisa que eu sabia é que David tinha
desaparecido muito bruscamente, Horace telefonou-me
a dizer que tinha havido uma trapalhada qualquer com
uma das patentes e que David tivera de partir para o
Reno muito à pressa em viagem de negócios, que me
149
escreveria logo que se instalasse e soubesse quanto
tempo teria de se demorar.
- O facto de ele ter ido para o Reno fez-lhe despertar
algumas suspeitas?
- Para falar verdade, despertou.
- Porquê? Por ele ter manifestado interesse por
outra mulher?
- Não, não foi bem isso. Mas, o senhor sabe como
essas coisas são. Não tínhamos filhos e... eu amava o
meu marido, Mr. Mason. Gostava bastante dele. À medida
que envelhecia, comecei a compreender que o amor não
é tudo na vida; mas, naquela altura, as circunstâncias
pareciam-me diferentes. Tornei-me atraente porque sabia
que nunca teríamos filhos e porque queria conservar o
meu marido. Procurei dar-lhe tudo quanto qualquer outra
mulher podia oferecer-lhe. Procurei tornar-me tão atraente
como as raparigas com quem ele pudesse conviver. Procurei
manter a sua atenção centralizada em mim.
À minha maneira, fazia a minha vida para o meu marido,
tanto como Sarah para o marido dela, só com a diferença
de que esta tinha um filho. Isso tornava tudo diferente
até certo ponto.
- Continue.
- Vou ser absolutamente franca consigo, Mr. Mason.
Talvez houvesse do meu lado certo ciúme... por Sarah
Adams. Ela podia deixar as suas mãos tornarem-se duras
e ásperas. Quando íamos a qualquer clube à noite, ela
parecia deslocada. Parecia exactamente aquilo que era,
uma dona de casa que passara o dia com o filho e que,
à última da hora, arranjara-se e vestira-se com o seu
bibe e touca novos para vir para o meio da rua. Ela não
se parecia nada com... alguém que fizesse falta naquele
meio, alguém que fosse indispensável à vida nocturna;
antes pelo contrário, parecia que andava a provar o vestido
que trazia. No entanto, ela conservava o amor de
Horace Adams. Via-se perfeitamente...
150
- Apesar dos comentários deste sobre a sua beleza?
- Ora! - e deu um estalo com os dedos, - Via-me
como via qualquer outra mulher, como fazendo parte de
um cenário. Apreciava uma mulher bonita como apreciava
um bom quadro ou qualquer coisa no género; mas, os
seus olhos nunca se despregavam da sua mulher. Continuava
a olhar para ela sempre com a mesma expressão
de conforto, de satisfação, de segurança e de felicidade.
- E o seu marido não olhava para si dessa maneira?
- Não.
- Porquê?
- Era de formação diferente. Não me estou a enganar
de modo nenhum, Mr. Mason, O meu marido ter-me-ia
abandonado, se lhe tivesse aparecido alguém fisicamente
mais atraente do que eu. Impus a mim mesma a
resolução de não me deixar ficar para trás e pronto.
- Já compreendo.
- Não tenho bem a certeza. Era preciso que soubesse
o que uma mulher sente nessas ocasiões para
compreender. Fazia um esforço desesperado e algures,
muito no fundo, tinha um medo louco, um medo enorme
de dar um passo em falso e ficar para trás.
- De modo que quando o seu marido foi para o
Reno, a senhora...
- Fiquei para morrer...-admitiu - e então quando
não recebi notícias dele, fiquei num estado de nervos
frenético. Por acaso, tinha gente conhecida no Reno. Telegrafei
a esse conhecido para verificar nos hotéis onde
é que David estava e... se estava sozinho.
- E depois?
- Quando soube que David não estava registado em
nenhum hotel do Reno, fui falar com Horace para lhe
pedir explicações; Horace principiou a meter os pés
pelas mãos e agiu com tal atrapalhação que logo percebi
que estava ou a mentir ou a esconder qualquer coisa.
151
Foi então que me afirmou quê David fugira com outra
mulher.
Quem?
- Não me parece que o seu nome interesse.
- Porquê?
- Por que, evidentemente, David não fugiu com ela.
Nem tinha nada com ela. Foi apenas uma trapalhada que
Horace inventou para encobrir o crime.
- Onde pára agora essa mulher?
- Deus do Céu, não sei. Perdi-a completamente de
vista. Parece que nem nunca a vi. Para mim, era apenas
um nome. É claro, teria sabido muito mais a respeito
dela, se não fosse o comportamento de Horace. Chamei
a polícia e não foi preciso muito tempo para se descobrir
que ele mentia e que David tinha sido assassinado. Sei
lá! Suponho que, se Horace tivesse dito a verdade, podia
ter escapado à sentença de morte.
- Qual era a verdade?
- Eles devem ter tido uma enorme discussão sobre
qualquer assunto da fábrica e Horace agrediu o meu
marido num assomo de louca irritação. Depois, ficou
apavorado e compreendeu que tinha de fazer qualquer
coisa com o cadáver. Em vez de chamar a polícia e confessar,
esperou até ao anoitecer, fez um buraco no
cimento, cavou uma sepultura, enterrou David, cobriu a
cova com cimento, deitou lixo sobre o cimento novo e
fez-me convencer que David partira para o Reno em inesperada
viagem de negócios.
- Quanto tempo decorreu até começar a ter suspeitas?
- Três ou quatro dias. Parece-me que foi dias antes
de Horace ter contado a história de David ter fugido com
outra mulher... depois de a pessoa minha amiga me comunicar
que David não estava no Reno.
O advogado recostou-se na sua cadeira giratória e
152
fechou os olhos como se estivesse a tentar reconstituir
o passado.
- Pode continuar. Não pare de falar, Mrs. Dangerfield.
- É horrível estar-se apaixonado por alguém e
saber-se que essa pessoa foi assassinada. Primeiro,
sobrevêm o choque e depois... bem, dediquei um ódio
terrível e absorvente a Horace Adams, à mulher, e suponho,
se tivesse pensado na ocasião, até mesmo ao garoto.
Não fiquei com a mais pequena partícula de simpatia ou
caridade no meu íntimo. Quando os jurados proferiram o
veredicto que significava a condenação à morte de
Horace, fiquei louca de alegria. Saí da sala das audiências
e fui festejar sozinha o acontecimento.
- Não sentiu a mais pequena simpatia por Mrs.
Adams? - perguntou Mason, ainda de olhos fechados.
- Nenhuma. Já lhe disse que a odiava. Não sentia
simpatia por pessoa nenhuma. Até teria sido capaz de
puxar a corda que havia de enforcar Horace Adams, com
a maior satisfação. Cheguei a pedir que me deixassem
assistir à execução, mas não consentiram.
- Para quê?
- Queria chamar-lhe "assassino" mesmo à hora da
morte, para que levasse nos ouvidos a minha voz, quando
a corda lhe partisse o pescoço. Eu... eu... já lhe confessei,
era uma perfeita selvagem. Sou um animal bastante
emocional, Mr. Mason.
O advogado abriu os olhos, fitou-a e disse:
- Sim, isso vejo eu.
- Estou a contar-lhe isto tudo para que possa compreender
a minha situação actual. '
- Qual é a sua situação actual?
- Verifico agora como me comportei mal. ?
- Lamenta-se?
- Não pelo que senti por Horace - respondeu,
apressadamente. - Era capaz de o matar com as minhas
153
próprias mãos. Estou satisfeitíssima pelo facto do advogado
de Adams ter cuidado tão mal a defesa que o réu
foi enforcado. Conforme já disse, se ele tivesse contado
a verdade, teriam sido mais benévolos; mas, pela maneira
como tentou encobrir tudo... Bem, deixemos isso, porque,
quero falar a respeito de Sarah.
- O que é que tem a dizer de Sarah?
- Tenho a impressão que persegui Sarah. Fiz com
que não lhe dessem a sua parte na sociedade. Fui má
de todas as maneiras possíveis. Sarah realizou todo o
dinheiro que podia realizar e desapareceu. Era, claro, a
única coisa que podia fazer, por causa do filho. Ela não
dispunha de muito dinheiro. Nunca soube para onde ela
foi. Nem eu, nem ninguém. Teve o cuidado de não deixar
rasto. O filho era muito novo para se recordar e ela sentiu
que podia criá-lo sem que ele nunca soubesse que o
pai fora executado por crime de homicídio.
- Sabe para onde ela foi?
- Não seja tão hermético, Mr. Mason - riu-se.
Claro que sei. Foi para a Califórnia. Trabalhou até ao limite
das suas forças. Deu ao rapaz uma óptima educação. Este
pensou sempre que o pai tinha morrido num desastre de
viação e que não tinha mais parentes. Sarah teve o cuidado
de o manter na ignorância de toda a sua vida passada
ou de o afastar de quaisquer contactos que pudessem
revelar-lha. Foi uma acção magnífica! Sacrificou toda
a sua vida para conseguir este objectivo.
Após curta interrupção, Mrs. Dangerfield acrescentou:
- E trabalhou tanto que se cansou e contraiu uma
tuberculose. Há quatro ou cinco anos, foi para o Vale do
Rio Vermelho. Continuou a trabalhar quando devia repousar.
Se tivesse ido para o hospital e se conservasse em
absoluto sossego, podia ter-se curado; mas, ela queria
que o filho se licenciasse, por isso trabalhou, trabalhou
até não poder trabalhar mais.
154
- E depois?
- Depois morreu. ,
- Como é que sabe isto tudo?
- Porque me impus a missão de saber.
- Para quê? .
- Porque, quer acredite quer não... passei a ter
consciência.
- Desde quando?
- Há bem pouco tempo. Mas, a consciência não me
atacou a sério, senão quando alguém contratou um detective
para investigar o caso.
- Quem o contratou?
- Não sei. A princípio, julguei que fosse Sarah. Era
alguém que vivia em El Templo. Não consegui descobrir
quem era.
- Porque veio falar comigo?
- Porque estou convencida de que o senhor sabe
de quem se trata.
- O que a leva a pensar assim?
- O facto de ter localizado Marvin Adams. Descobri
que está noivo, embora não seja oficialmente, da filha de
Witherspoon e que o senhor tinha estado em casa deles.
- Quem a informou?
- Soube por acaso. Para dizer a verdade, Mr. Mason,
estive em El Templo, porque pensei que a agência de
investigações era lá. Este detective fazia relatórios telefónicos
para El Templo. Vim a saber isto pela telefonista
do Winterburg City Hotel. Eram chamadas entre cabinas
públicas. Nunca consegui saber os números.
- E como soube da minha presença?
- Por um comentário ocasional de Mrs. Burr.
- Mrs. Burr?
- Não faça mais mistérios do que já há. Conheceu-a
em casa de Witherspoon.
- E a senhora conhece-a?
- Conheço-a há muitos anos .
155
- Onde a conheceu?
- Em Winterburg City. '"' ""'
- Sério?
- Ela vivia lá.
Mason pegou num lápis que estava sobre a secretária,
fê-lo deslizar entre o polegar e o indicador, lenta
e pensativamente.
- Isso é muito interessante. Devia ser muito nova
quando ocorreu o crime.
- Onde quer chegar?
- Não era?
Mrs. Dangerfield fugiu com os olhos e franziu a
testa como se fizesse grande esforço para se concentrar.
- Não, não era. Tinha, pelo menos, dezassete ou
dezoito anos... talvez, dezanove. Que idade julga que ela
tem agora, Mr. Mason?
- Receio não ser bom juiz de idades. Calculava que
tivesse entre vinte e oito a trinta e dois anos... e diria
que a senhora não tem possivelmente mais do que trinta
e oito ou trinta e nove.
- Lisonjeador!
- Não, palavra, não estou a procurar lisonjeá-la.
Estou, na verdade, interessado em saber como as mulheres
continuam jovens, apesar do número de aniversários
que lhes passam por cima.
- Não lhe vou dizer a minha idade, mas Diana Burr
tem... deixe-me ver... sim, tem uns trinta e oito ou trinta
e nove anos.
- E reconheceu-a ao fim destes anos todos?
- Porque lhe parece tão estranho?
- Quando é que a viu pela última vez?
- Há cerca de três anos.
- Então, conhece também o marido?
Mrs. Dangerfield acenou a cabeça.
- Não me parece. O nome de solteira de Diana é
Perkins. Ela foi um verdadeiro quebra-cabeças para a mãe.
156
Mrs. Perkins costumava conversar comigo. Viviam no
mesmo quarteirão que nós. Depois, Diana fugiu com um
homem casado. Regressou quatro ou cinco anos depois,
dizendo que o homem se divorciara e casara com ela.
- O que é que a esposa legítima disse a esse respeito?
- Oh, já lá não estava. Tínhamo-la perdido de vista.
Talvez Diana tivesse contado a verdade. Talvez não.
Passado tempo, Diana voltou a partir e quando reapareceu,
trazia outro marido.
- Burr?
- Não, não era Burr. Diana, segundo parece, é
pequena para trocar os modelos antigos por novos, logo
que saem da fábrica. Deixe-me pensar. Como se chamava
o marido? Radcliff, parece-me, mas não tenho a certeza.
Creio que se divorciou. Esteve em Winterburg City
durante algum tempo e depois partiu para a Califórnia.
Casou com Mr. Burr na Califórnia.
- E agora a senhora encontrou-a na rua e estiveram
a conversar?
- Tal e qual.
- Ela falou-lhe no crime antigo?
- Não, foi muito delicada sob esse aspecto.
-Ela sabe que Marvin Adams é filho do homem que
foi condenado à morte por crime de homicídio.
- Tenho quase a certeza de que não. Pelo menos,
não me disse nada. É certo que Sarah morreu antes de
Mrs. Burr chegar a El Templo. Só lá está há duas ou três
semanas. Não me parece que o nome de Adams tenha
qualquer significado para ela.
- E a senhora não lhe disse?
-Claro que não.
- Muito bem, isso explica a maneira como ouviu
falar de mim. Agora, diga-me lá a razão por que me quer
falar.
- Queria tirar uma ideia da cabeça.
157
- Mais uma pergunta ainda. Conhecia Milter, o
detective que estava a investigar este assunto?
- Vi-o meia dúzia de vezes, embora sem ele saber.
Nunca lhe falei, se é isso que quer perguntar.
- A que horas partiu de El Templo, Mrs. Dangerfield?
- Esta manhã.
- Onde está Mr. Dangerfield?
- Ficou em El Templo. Deixei-lhe um bilhete escrito
dizendo que levava o carro e que estaria ausente o dia
todo. Ressonava pacatamente quando o deixei. Ele gosta
de se deitar tarde e dormir de manhã. Eu sou absolutamente
ao contrário. Treinei-me de tal maneira que durmo,
logo que me deito. Quando ele chega, nunca me acorda.
Frequentemente, levanto-me de manhã e saio, muito
antes de o meu marido acordar. Gosto de passear de manhã
cedo. Acho que o exercício antes do almoço faz bem
à saúde.
Mason recostou-se de novo na cadeira giratória e
tornou a fechar os olhos como se reconstituísse mentalmente
qualquer acontecimento do passado.
- Com que então, a senhora fez uma investigação
para se certificar que o seu marido não estava no Reno?
- O meu marido! Ah, refere-se a David. É verdade.
- Quem fez a investigação?
- Um amigo.
- Todas as vezes que se referiu a esse acontecimento,
usou sempre a expressão "um amigo". Não a acha
demasiado indefinida? Nunca utilizou qualquer pronome
para se referir a esse amigo. É porque tem medo de o
fazer?
- Porquê, Mr. Mason, onde quer chegar? Não
entendo. Porque havia de ter medo de utilizar um pronome?
- Porque teria de ser ou ele ou ela e isso indicaria
o sexo do seu amigo.
158
- E que diferença fazia isso? "
- Estava cá a pensar se esse "amigo" não teria sido
o seu actual marido, George L. Dangerfield?
- Mas... mas...
- Era?
Ela respondeu irritada. " ,".<
- O senhor tem uma maneira bastante desagradável
de tentar...
- Era?
De repente, ela largou a rir e disse:
- Era. Percebo agora porque o senhor tem tanta
fama como inquiridor. Talvez eu quisesse encobrir essa
informação um pouco, porque podia parecer... enfim, os
desconhecidos podiam tirar daí uma conclusão errada.
- A conclusão seria, de facto, errada?
Mrs. Dangerfield estava agora em plena posse de
todas as suas faculdades. Riu-se e replicou:
- Já lhe disse, Mr. Mason, quanto gostava do meu
marido e como receava perdê-lo. Parece-lhe que uma
mulher que pensa assim daria atenção a outro homem?
- Estava apenas a tentar descobrir uma coisa que
a senhora tem tido a preocupação de esconder. Talvez
seja simples instinto de inquiridor.
- Já conhecia George L. Dangerfield antes do nosso
casamento. Ele esteve apaixonado por mim; mas, a última
vez que estivera em Winterburg City, antes de lhe telegrafar,
fora dois anos antes. Só o vi uma vez depois do
casamento e essa foi para lhe comunicar categoricamente
que o meu casamento punha termo a tudo entre nós.
Mason repetiu lentamente as palavras: Punha termo
a tudo entre nós.
Mais uma vez, ela mostrou-se irritada. Mas, dominou-se
e disse:
- O senhor tem, na verdade uma maneira muito
desagradável de perscrutar o íntimo dos outros. Está
bem, se quer assim, a resposta é afirmativa.
159
- A senhora saiu de El Templo antes de serem postos
à venda os jornais da manhã?
- Sim, saí.
- Porque veio aqui?
-Já lhe confessei que foi a minha consciência que
me trouxe cá. Sei uma coisa que nunca disse a ninguém.
- O que é?
- Não fui testemunha no julgamento, de modo que
ninguém me fez perguntas e eu também não me prestei
voluntariamente a dar a informação.
- E que informação era essa?
- Uma vez, Adams e David tiveram uma questão.
- Quer dizer, uma discussão.
- Não, refiro-me a uma cena de pugilato.
- Por que motivo?
- Não sei.
- Quando?
- No dia em que David foi assassinado.
- Prossiga. Conte-me tudo.
- David e Horace tiveram uma pega. Creio que foi
David quem ficou pior. Veio para casa muito irritado.
Dirigiu-se à casa de banho e pôs algumas toalhas molhadas
no rosto; depois, andou a mexericar no quarto de
dormir durante algum tempo e saiu. Só mais tarde é
que comecei a cismar no que ele teria andado a fazer e
recordei-me de o ter ouvido mexer nas gavetas da
cómoda. Logo que me veio esta ideia, corri à cómoda e
abri a gaveta onde David guardava a pistola. A arma tinha
desaparecido.
- A quem falou nisso?
- A mais ninguém, a não ser a si. Nem mesmo ao
meu marido.
Fez-se um silêncio no gabinete, enquanto Mason
apreciava a fundo o que acabara de saber. Depois, o
advogado olhou para Della Street para se certificar que
160
esta tomara apontamento, em estenografia, de tudo
quanto fora dito.
Della acenou a cabeça quase imperceptivelmente.
O silêncio incomodou Mrs. Dangerfield, que se pôs
a chamar a atenção para o que era evidente.
- Bem vê, Mr. Mason, o que isso podia ter significado.
Se o advogado de Horace tivesse declarado francamente
que houvera luta, se se sugerisse que David
tinha puxado de uma arma e que Horace o agredira na
cabeça... quem sabe? Podia ter sido um caso de legítima
defesa e teria sido posto em liberdade. De qualquer
maneira, não era o género de crime pelo qual é costume
executarem-se os condenados.
- É o que tenciona fazer?
- Compreenda uma coisa, Mr. Mason, não quero
dar espectáculo da minha pessoa, nem quero que os
outros me apontem para me envergonhar. Mas, pensei
que, talvez, pudesse assinar uma declaração que o
senhor guardaria sob rigoroso sigilo. Se este caso antigo
começasse a arruinar a vida de Marvin Adams, o senhor
iria falar com o pai da pequena e muito confidencialmente,
claro está - mostrar-lhe-ia a declaração, contar-lhe-ia
a sua conversa comigo e Marvin poderia... enfim,
viver feliz daí em diante!
Riu nervosamente.
- Isso é tudo muito interessante. Há vinte e quatro
horas, essa teria sido a solução mais simples. Agora, talvez
já não seja uma solução tão simples.
- Porquê?
- Porque agora o relatório referente a esse processo
antigo pode vir a público, faça-se o que se fizer.
- Porquê? O que é que aconteceu nas últimas vinte
e quatro horas? Mr. Witherspoon...
- Foi uma coisa que aconteceu a esse detective,
Leslie L. Milter.
- O que foi?
11 - VAMP. G. 7
161
-Foi assassinado.
Durante alguns instantes, ela não atingiu o alcance
completo daquelas palavras. Mecanicamente, Mrs, Dangerfield
repetiu:
- Mas, já lhe fiz ver que, se o. advogado dele
tivesse... - Calou-se a meio da frase e endireitou-se na
cadeira. - Quem é que foi assassinado?
- Milter.
- Quer dizer que houve alguém que o matou?
- Exactamente.
-Quem... quem foi?
O advogado mais uma vez pegou no lápis que estava
sobre a secretária, lentamente fê-lo deslizar por entre
os dedos. - Essa é uma das tais perguntas que vai tornar-se
cada vez mais importante à medida que o tempo
for passando... e vai ser uma pergunta que, sem dúvida,
terá grandes consequências sobre as vidas de diversas
pessoas...
CAPÍTULO XV
Mrs. Dangerfield pareceu, por momentos, muda de
espanto; depois, de repente, exclamou: ,:
- Tenho de telefonar ao meu marido!
Mason olhou para Della Street.
- Pode fazer a chamada daqui.
Mrs. Dangerfield ergueu-se e replicou:
- Não, tenho outros assuntos a tratar,
- Ainda há mais duas ou três perguntas que gostava
de lhe fazer, Mrs. Dangerfield.
Ela sacudiu a cabeça com decisão firme e súbita,
- Não, já disse tudo o que podia dizer, Mr. Mason.
O meu marido não sabe que vim aqui. Deixei-lhe ficar
um papel a dizer que estaria ausente durante todo o dia,
mas não lhe disse onde ia. Trouxe o carro... acho que o
melhor é informá-lo imediatamente onde estou.
162 , ,..,. ,w;--v - '
- Pode servir-se deste telefone. Fazem-lhe a ligação
num instante.
- Não - anunciou, em tom definitivo, e olhou em
volta como um animal que estivesse preso numa jaula.
- A saída é por aqui? - perguntou, apontando para a
porta da sala de espera.
- É, mas...-disse Mason.
- Voltarei a falar consigo mais tarde, Mr. Mason.
Por agora, não lhe digo mais nada.
Saiu pela porta fora, ao mesmo tempo que o advogado
dizia para a secretária:
- Depressa, Della. Drake!
Mas, os dedos de Della Street já estavam a marcar
o número de um telefone.
- É do escritório de Drake? Acaba de sair daqui
uma senhora, Mrs. Dangerfield, de cinquenta anos, tem
aspecto de ter quarenta, é morena, olhos escuros, casaco
azul. Deve estar no elevador. Sigam-na imediatamente.
Verifiquem onde ela vai e o que faz. Depressa!... Não
percam tempo.
Desligou e disse:
- Vão segui-la sem demora. ,,,?; [,
- Bom trabalho, Della.
- Era capaz de dar cem dólares para saber o que
ela diz ao marido pelo telefone - observou Della.
Mason fechou os olhos.
- No que ela está mais interessada em descobrir
é onde ele estava ontem à noite... quando Milter foi
assassinado. Faça uma chamada de urgência para o chefe
da polícia de El Templo.
Della Street fez a ligação, explicando à telefonista
que era uma chamada de urgência e, em menos de um
minuto, Mason tinha o director da polícia de El Templo,
no outro extremo da linha.
- Daqui fala Perry Mason, o advogado de Los Angeles.
Acaba de sair do meu escritório uma tal Mrs. Dan-
163
gerfield. O marido está aí em El Templo. Ela vai telefonar-lhe
e, se vocês puderem ouvir essa conversa, parece-me
que colherão informações interessantes...
-É o próprio Mason que está ao telefone? - interrompeu
a voz.
É.
- Como é que se chama a mulher?
- Dangerfield.
-Diga por letras.
Mason satisfez o pedido.
- Ela vai fazer essa chamada?
- Vai. agora mesmo.
" A voz recomendou:
- Não desligue ainda. Está aqui uma pessoa que
quer falar consigo, mas vou primeiro tratar do outro
assunto.
Mason não desligou o telefone e disse para Della
Street, com a palma da mão sobre o transmissor:
- Ao menos, estamos a ter uma cooperação inteligente
por este lado. Provavelmente, nunca nos dirão o
que ouviram e nem sequer confessarão ter escutado
a conversa; mas, aposto que hão-de manipular as coisas
de modo a tomarem conhecimento da chamada.
A voz do chefe da polícia tornou a ouvir-se.
- Está, está lá? É Mr. Perry Mason?
- Sou.
- Mr. Witherspoon quer falar consigo.
A voz de Witherspoon já não tinha o tom cuidadosamente
controlado de um indivíduo acostumado a dar
ordens e a dominar todas as situações em que se encontra.
Havia qualquer coisa de ansiedade quase patética
ao perguntar:
- É você, Mason?
- Sou.
- Venha cá. Venha imediatamente!
" -Que se passa?
164
- Houve outro.
- Outro, quê?
- Outro crime.
- Quer dizer que mataram mais alguém, além de
Leslie Milter?
- Sim, sim. É inacreditável. A coisa mais espantosa
que vi até hoje. Está tudo doido! Eles...
- Quem foi assassinado?
- O hóspede que estava em minha casa, Roland
Burr.
- Como?
- Da mesma maneira. Alguém deixou um vaso de
ácido no seu quarto, deitou-lhe algum cianeto e saiu.
O desgraçado estava de cama, com a perna partida. Não
podia sair, mesmo que quisesse.
- Quando foi isso?
- Há uma hora, pouco mais ou menos.
- Quem cometeu o crime?
Witherspoon gritou ao telefone, fora de si:
- É por isso que você tem que cá vir imediatamente!
- Quem cometeu o crime?
- Esta maldita polícia diz que fui eu.
- Está sob prisão?
- Calculo que sim.
- Não diga nada, mantenha-se calmo. Vou partir
imediatamente.
Desligou o telefone fez um gesto para Della Street
e ordenou:
- Arranje as coisas, Della. Vamos para El Templo.
- Esquece-se de Allgood, Ele vem aí.
Mason tinha empurrado a cadeira para trás e dirigia-se
para o bengaleiro. Deteve-se abruptamente, de pé,
ao canto da secretária.
- É verdade, tinha-me esquecido de Allgood, por
Completo.
165
O telefone tocou. Della Street, pegando no receptor,
disse:
- Espere um momento. - Pôs a mão sobre o bocal
e informou: -Ele está lá fora.
Mason tornou a sentar-se na cadeira giratória.
- Mande-o entrar.
Allgood procurou mostrar-se imperturbável quando
seguiu Della Street para o interior do gabinete. Tinha as
lunetas encavalitadas no nariz. A fita negra, dependurada
na lapela do casaco, dava ao seu rosto uma certa
severidade grave.
Um sorriso brincou nos cantos da boca de Mason.
- Sente-se. Allgood.
O director da agência de investigações sentou-se
com certo cerimonial:
- Muito obrigado, senhor doutor.
- Que me diz dessa visita que a sua secretária fez
a Milter?
- Estou muito aborrecido com o que aconteceu,
senhor doutor. Desejo dar-lhe uma explicação.
- Explicação, sobre quê?
-Sobre o que aconteceu.
- Disponho apenas de alguns minutos. Diga.
O dedo indicador de Allgood enrolou nervosamente
a fita de seda que prendia as lunetas.
- Quero frisar que Miss Elberton é uma rapariga
extraordinariamente leal.
- Leal, a quem?
- A mim e aos meus negócios.
- Continue.
- Milter manteve-se em contacto com ela. Tinha o
aborrecido hábito de ser persistente em assuntos de
saias.
- Mesmo quando não lhe ligavam importância?
- Aparentemente.
166
- Está bem, mas ela é que sabia onde Milter estava.
Como se explica que tivesse ouvido a nossa conversa?
Allgood admitiu:
- Isso foi devido a inadvertência da minha parte e
certa curiosidade natural da parte dela. No meu escritório,
há um sistema de comunicação telefónica interno
e pouco antes de o senhor chegar eu tinha estado a conversar
com ela. Deixei ficar a alavanca em tal posição
que a nossa conversa era audível no gabinete exterior.
Ela, então, decidiu-se comunicar com Milter... isto é,
tentou.
- Então, não o fez?
- Não.
- Porquê? ;
- Disse que Milter estava ocupado quando ela che-
gou ao apartamento.
- Ainda estava vivo?
- Ela não sabe. -'
-Porquê? ?
- Não subiu. Estava lá outra pessoa.
- Histórias! Ela tinha a chave do apartamento.
- Sim, bem sei. Ela explicou-me tudo. Parece que...
- Não interessa - interrompeu o advogado. - Se
você acredita nessas explicações, eu não acredito. Vamos
aos factos. Milter era um chantagista. Aceitei as suas
palavras quando me afirmou que estava muito aborrecido
com as indiscrições cometidas por ele e que o despedira
por esse motivo. Em face do que aconteceu desde
então, já não tenho a mesma convicção.
- A mesma convicção a respeito de quê? - perguntou
Allgood, olhando para todos os pontos do escritório,
excepto para aquele em que Perry Mason, de facto,
estava.
- A sua agência parece-me enterrada neste assunto
até ao pescoço.
- Mr. Mason, está o senhor a sugerir que eu...
167
- Não tenho tempo para dramas. Estou a dizer-lhe
simplesmente que, a princípio, aceitei as suas palavras
e as suas explicações. Agora, não aceito nada, sem me
certificar primeiro. Noto coincidências a mais. Falei consigo
a respeito de um dos seus agentes que fazia chantagem.
O senhor, inadvertidamente, deixa o telefone
interno ligado para que a conversa seja ouvida pela sua
secretária. Esta dirige-se a El Templo. Tem em seu poder
a chave do apartamento de Milter. Sabe, Allgood, estou
cá a pensar que você pode ter imaginado um pequeno
plano. Tendo recebido o dinheiro que podia, legitimamente,
cobrar de Witherspoon, usou Milter como isca
para segurar Witherspoon e receber mais algum.
Allgood deu um salto.
- Vim aqui para dar uma explicação, Mr. Mason,
não para ser insultado.
- Está bem. foi para isso que cá veio. Já cá chegou.
Deu a sua explicação. Queira fazer o favor de considerar
o insulto uma interpelação puramente gratuita que não
estava no programa originalmente planeado.
- Não estou a achar graça nenhuma ao assunto.
- Tem razão, não tem graça nenhuma.
- Tentei ser correcto consigo. Pus todas as minhas
cartas na mesa - declarou Allgood.
- Você pôs sobre a mesa a caixa do baralho. As
cartas só apareceram depois de eu as ter baralhado.
Quando entrei no seu gabinete, a sua secretária teve de
levantar-se para lhe comunicar que eu estava ali. Não
ouvi a vossa conversa porque nessa altura, o telefone
interno não estava ligado. Deve tê-lo ligado depois de ela
sair e enquanto eu entrava. Isto quer dizer que praticou
este acto deliberadamente. Vejamos a seguir o caso do
artigo no jornal de escândalos de Hollywood?
- Não faço a mínima ideia do que está a falar.
- Ah, não?
- Não.
168
Mason fez um gesto para Della Street.
-Ligue o telefone para Paul Drake.
Fez-se um silêncio pesado até que Della informou:
- Já está ao aparelho, chefe.
Mason pegou no telefone.
- Paul, Allgood está aqui no meu gabinete. Quanto
mais penso no assunto, mais me convenço que todo o
negócio de chantagem foi antecipadamente preparado...
numa espécie de sequência do serviço realizado para
Witherspoon, compreendes o que quero dizer, não é verdade?
- Compreendo - respondeu Drake.
- Allgood está aqui. Veio-me à ideia que o jornal
de escândalos podia ter recebido a informação pelo próprio
Allgood. Disseste que o jornal não costuma pagar
estas notícias?
- É exacto, pelo menos, com dinheiro. Pagam em
publicidade e em recomendações particulares.
- Verifica se o jornal publica anúncios de Allgood.
E não saias do escritório. Quando passar aí pela porta,
vou falar contigo para te dar algumas notícias importantes.
Investiga já essa coisa do jornal de escândalos.
Mason pousou o auscultador e voltou-se para
Allgood:
- Bem, não quero detê-lo por mais tempo. Queria
apenas que soubesse o que penso a seu respeito.
Allgood encaminhou-se para a porta, parou, virou-se
e fez um gesto de cabeça na direcção de Della Street.
- Mande-a sair.
O advogado gesticulou negativamente.
- Tenho uma coisa a dizer-lhe.
- Então, diga.
- Tenho informações de que a polícia prendeu Mar-
vín Adams à saída do comboio, esta manhã.
- Sim?
- Também fui informado que o senhor teve uma con-
169
versa altamente confidencial com Marvin Adams, antes
de o comboio chegar à estação. Este entregou-lhe uma
carta.
- Continue,
- Gostaria de saber se contou à polícia essa conversa
e lhe mostrou a tal carta.
- Tenho imensas conversas sobre as quais não
informo a polícia. A minha conversa consigo, por exemplo,
não lhes contei nada... ainda.
- Acaso gostaria que esse tal jornal de Hollywood
publicasse uma noticiazinha a aconselhar a polícia a
interrogar o conhecido advogado com que certo jovem
conversou pouco antes do comboio de El Templo ter chegado
a Los Angeles; a aconselhar também a mesma polícia
a perguntar a esse jovem o que é que o advogado
lhe recomendou que não contasse se fosse preso... e o
que dizia a carta entregue ao advogado. Como vê, senhor
doutor, quando há trunfos, ambos os parceiros jogam
bem.
Mason fez sinal a Della.
- Ligue o telefone outra vez para Paul Drake.
De novo, se fez silêncio, enquanto Della Street fazia
a chamada. Desta vez, porém, os olhos de Allgood não
vagueavam pelo aposento. Duros e brilhantes, fitavam
Perry Mason com expressão de desafio.
- Aqui está Drake - disse Della Street.
- Está lá, Paul? Põe de parte a ordem que te dei
de verificares qual a ligação entre Allgood e o jornal.
Um sorriso de triunfo apareceu no rosto de Allgood.
- Calculei logo que atingiria o meu ponto de vista,
senhor doutor. No fim de contas, podemos ser razoáveis.
Ambos somos comerciantes.
O advogado esperou até que Allgood terminasse e,
em seguida, disse ao telefone para Paul Drake:
- A razão por que eu faço esta recomendação é o
facto de ser pura perda de tempo. Allgood não forneceu
170
a informação à pessoa que escreve os artigos... é ele
próprio quem os escreve"'O jornal pertence-lhe. Acaba
de se denunciar.
Mais uma vez, Mason colocou o auscultador no descanso.
Allgood parecia que tinha levado um soco no estômago.
- Você não está a tratar com um novato, Allgood.
Sei muito bem as linhas com que me coso. Você denunciou-se
com essa última ameaça. É um lindo negócio, não
haja dúvida. Você publica as noticiazinhas e esboça o
escândalo. As pessoas visadas correm à redacção do
jornal para saber o que podem fazer para que não se
divulgue mais nada e acabam por cair nas mãos da
Agência de Investigações Allgood. Entretanto, alguns
magnates de Hollywood estão a estudar a hipótese de
comprar o jornal para o amordaçar e o seu preço será
daqueles que lhe dará noventa e nove por cento de lucro.
- Você não pode provar uma palavra do que está
a dizer - ripostou Allgood.
Mason indicou Della Street.
- Estou a fazer esta declaração na presença de uma
testemunha. Vá, processe-me por difamação e calúnia, e
dê-me a oportunidade de provar aquilo que digo!
Desafio-o.
Allgood deteve-se hesitante; depois, voltou-se e saiu
da sala com violência.
O advogado olhou para a secretária e sorriu:
- Bem, esta parte já está esclarecida.
- Qual? '?
- A proveniência da notícia publicada no jornal.
Allgood pensou caçar Witherspoon ao mesmo tempo que
me tapava os olhos,
- Mas, o senhor caiu na esparrela, a princípio.
- Não, totalmente. Eu notei que ele ligara o telefone
interno para que a rapariga que estava no outro
171
gabinete ouvisse o que dizíamos. Foi por esse motivo
que recomendei a Drake que a mandasse seguir. Venha,
vamos para El Templo.
As malas ainda estão no carro - disse Della,
pegando no livro de apontamentos. - O melhor era
mudarmo-nos para lá. Não se esqueça de ir falar com
Paul Drake.
- Não me esqueço, não. Percebeu aquela conversa
telefónica?
- Houve outro crime?
-Houve.
; -Quem foi a vítima?
-Roland Burr.
E -A polícia prendeu alguém?
- Prendeu.
- Adams? '
- Não, o nosso estimado anfitrião, John L. Witherspoon.
Detiveram-se no escritório de Drake. Mason falou
sempre com os olhos postos no ponteiro dos minutos do
seu relógio de pulso.
- Toma bem nota disto, Paul. Houve outro crime.
Roland Burr. A polícia prendeu John L. Witherspoon.
- Com que provas?
- Ainda não sei. Aqui tens um assunto que me interessa.
Diana Burr, a mulher de Roland, é natural de Winterburg
City. Tinha dezoito ou dezanove anos, por alturas
do crime. Latwell e Horace Legg tiveram uma cena de
pugilato no dia em que Latwell foi assassinado. Latwell
foi a casa, pegou numa pistola e desapareceu. Foi essa a
última vez que a mulher o viu. O crime podia ter sido
resultante de um acto de legítima defesa.
-A briga foi por causa de alguma mulher?
- Quem me deu esta informação foi Mrs. Dangerfield.
Ela não disse. Quer manter o seu jogo escondido e
172
não permite que utilize esta declaração, excepto particularmente.
Mas, é coisa para nós trabalharmos.
- Só há uma questão: apenas se pode provar por
seu intermédio.
Mason confirmou, impaciente.
- Tudo isto são preliminares do ponto a que eu
quero chegar.
- E qual é?
- Diana Burr é um produto local. Durante toda a
vida, ora apareceu, ora desapareceu da terra, umas vezes
casada, outras divorciada, Roland Burr foi a sua terceira
aventura matrimonial ou talvez mesmo a quarta. Como
ela se divertia muito com os apaixonados é muito possível
que tenha escolhido um dos seus primeiros amores
para este último casamento. Só para nossa orientação,
Paul, faz uma investigação sobre Roland Burr. Verifica se
ele viveu em Winterburg City.
- Que concluis, se assim for?
- Vê, a seguir, se ele conheceu Corine Hassen.
- Não achas isso coincidências a mais? >
- Quais coincidências, nem meias coincidências!
Se é aquilo que penso, trata-se de um plano cuidadosamente
preparado. Witherspoon estava plenamente a descoberto.
Qualquer pessoa podia ter preparado as condições
que o levassem a fazer esta linda figura. O seu
orgulho pelo que lhe pertence, o seu desejo de se exibir,
o seu entusiasmo pela pesca e pela fotografia a cores.
Como vês, Paul, tudo coincide.
- Coincide, com quê?
- Com o plano de crime de homicídio deliberado e
premeditado.
- Não te entendo.
- Não tenho tempo para explicações - disse Mason,
dirigindo-se para a porta. - Perceberás quando descobrires
os factos.
- Que fizeste a Allgood?
173
- Pu-lo a meia pressão. O tipo denunciou-se. Aposto
um contra cem, em como ele dirige o jornal de escândalos.
Alimenta-lhe o negócio, dá-lhe uma oportunidade de
utilizar as informações que recebe proporcionalmente e
está a abrir os alicerces para a grossa maquia que pretende
cobrar...
- Então, essa loura está a agir sob instruções que
recebeu?
- Sei lá. Podem estar todos a trabalhar separadamente,
traindo-se uns aos outros; mas, podes apostar
numa coisa: é ele quem publica as notícias escandalosas.
Proporcionei-lhe alguma coisa que lhe deu que pensar,
de modo que ele resolveu o assunto, cortando o artigo
relacionado com Witherspoon e mandando-mo. Se não
fosse a minha visita, tê-lo-ia enviado, provavelmente, a
Witherspoon. Este teria chamado Allgood para saber do
que se tratava, e Allgood cobrar-lhe-ia um preço fabuloso
por nova investigação.
- Tenho ouvido dizer que Allgood costuma lançar
os extremos contra o centro; mas, tu pregaste-lhe uma
boa partida, não, Perry? No entanto, não podes provar
coisa alguma...
- Na verdade, posso. Deixa-o processar-me. Começarei
a ouvir depoimentos, a examinar livros e, em menos
de um fósforo, provarei tudo.
- Se tiveres razão, ele não te processa.
- Não processa, não, podes ter a certeza! - observou
Mason, categoricamente. - Venha, Della, vamos para
El Templo.
CAPÍTULO XVI
John L. Witherspoon, temporariamente detido no
gabinete do xerife, foi autorizado a conversar em particular
com o seu advogado, numa sala destinada às testemunhas,
antes de darem entrada nas salas das audiências.
174
- Aconteceu a coisa mais diabólica e absurda que
se pode conceber - regougou Witherspoon. - E tudo
principiou pelo facto de eu ter identificado o maldito
do pato
- Não seria melhor contar-me tudo?
- Disse à polícia o que sabia a respeito do pato.
Falei-lhes em Marvin ter levado o pato do rancho. Tudo
estava claro como água, aos meus olhos. E ainda não deixou
de estar!
- O que é que disse à polícia? - insistiu Mason.
- Disse-lhes que Marvin Adams levara o pato. Identifiquei-o
como sendo o meu... o que Marvin levara. Foi
o que a polícia quis. Resolveram prender Marvin e caçaram-no
à saída do comboio, em Los Angeles.
- Continue.
- Aparentemente, Adams fez um relato muito
coerente. Tinha levado o pato, metera-o no automóvel e
o pato desaparecera. Não sabia de mais nada. Confessou
que não tinha rebuscado o carro completamente, mas
estava certo de que o pato desaparecera. A polícia não
pensou o mesmo. Entraram em contacto com a polícia
daqui e estes foram examinar o carro que Marvin tinha
guiado... e calcule o que eles descobriram?
- O que foi?
- O pato estava na parte detrás do carro, debaixo
do tapete.
- Então, e que mais?
- Depois de o senhor ter saído ontem à noite, eu
quis apanhá-lo, conforme lhe disse; mas, não lhe contei
exactamente o que sucedeu... isto é, contei-lhe, mas não
na verdadeira sequência.
- Prossiga.
- Persegui-o sem o encontrar, porque você estava
a mudar a roda na berma da estrada. Contei-lhe que
andei pela cidade a tentar encontrá-lo e pensei ter visto
Mrs. Burr. Voltei atrás para lhe falar. Tudo isto é ver-
, - . 175
dade. O que não lhe contei foi uma coisa que julguei
poder causar-me embaraços pessoais.
- O que foi?
- Logo que cheguei à cidade dirigi-me ao apartamento
de Milter. Disse-lhe que não vi o seu carro estacionado
nas proximidades e que continuei a procurá-lo.
Isto não é verdade! Não prestei atenção aos automóveis
parados. Estava demasiado enfurecido. Arrumei o automóvel
no parque de estacionamento, dirigi-me ao apartamento
de Milter e bati à porta. Evidentemente, pensei
que você estivesse lá. Como não o vi na estrada, calculei
que tivesse chegado primeiro.
- Então, esteve no apartamento de Milter?
- Estive.
,[ - Logo que chegou à cidade?
- Sim.
- E o que fez?
',;", -Toquei à campainha.
-Que sucedeu?
- Ninguém respondeu. Mas vi que a porta não
estava completamente cerrada. Empurrei-a com impaciência
e a porta abriu-se. A mola da fechadura não retomara
a sua posição normal.
- E depois?
- Principiei a subir os degraus e alguém ouviu-me
aproximar... era uma mulher.
- Viu-a?
- Não. Pelo menos, não lhe vi a cara. Estava a meio
das escadas quando a mulher apareceu ao cimo dos
degraus. Vi uma perna e umas roupas interiores, fiquei
embaraçado, como deve calcular. Ela perguntou-me o que
é que eu queria para ter o descaramento de enfiar por
um apartamento dentro. Disse-lhe que queria falar com
Mr. Mason e ela respondeu-me que Mr. Mason não
estava lá e que me pusesse a andar. Naturalmente, nes-
176
tas circunstâncias, girei sobre os calcanhares e desci as
escadas.
- Não me contou nada disso...
- Não, não contei. Senti-me bastante atrapalhado
com a coisa. Achei que um homem da minha posição não
devia confessar um facto destes. Não vi o rosto da mulher
e ela não viu o meu. Julguei que ninguém soubesse quem
eu era.
- Mas, reconheceram-no?
- Sim, a mulher que vive na casa ao lado. Ouviu
vozes e, como é curiosa, foi espreitar à janela para dar
fé da vida dos outros.
- Ela viu-o?
- Quando entrei, não; quando saí, sim. Identificou
o meu carro. Até tinha tomado nota do número. Porquê,
não sei; mas, a verdade é que o fez.
- Ela deu alguma explicação para o facto de ter
tomado nota do número?
- Não sei. Ela disse à polícia que estava convencida
que tinha vindo uma mulher comigo. Provavelmente,
ouviu a voz feminina do apartamento do lado.
- Foi acompanhado por alguma mulher?
- Não, claro que não. Estava sozinho.
- Lois não ia consigo?
- Não.
- Nem Mrs. Burr?
Witherspoon desviou os olhos.
- Já lhe falo a respeito de Mrs. Burr dentro de
pouco tempo. Essa é outra coincidência extraordinária!
- Está bem, conte lá as coisas como quiser. O funeral
é seu, de modo que também pode fazer a oração
fúnebre.
- Pois bem, a mulher da casa ao lado comunicou o
número do meu automóvel à polícia. Manifestamente, se
o pato do aquário era o meu pato e era da minha pró-
12 - VAMP. G. 7
177
priedade, e Marvin Adams não o tinha trazido, a polícia
pensou que talvez tivesse sido eu que o levara.
- Uma conclusão bastante natural - comentou
Mason secamente.
- Já lhe disse que isto é o mais diabólico conjunto
de coincidências. Fico num estado de irritação terrível,
cada vez que penso no que se passou.
- Ora, conte-me lá o que sabe a respeito de Burr.
- Esta manhã, claro está, contei a Mrs. Burr o movimento
que havia em El Templo por causa da morte de
Milter. Roland Burr sentia-se melhor e quis falar-me, de
modo que fui vê-lo e estive a conversar com ele.
- E contou-lhe o que sabia.
- Contei.
- O que é que ele disse?
- Mostrou curiosidade... como teria feito qualquer
outra pessoa.
- Falou-lhe sobre o que sabia a respeito de Milter?
- Sim, disse-lhe alguma coisa, não muito. Simpatizava
bastante com Roland Burr. Tinha a sensação de que
podia confiar nele.
- Ele sabia que eu estava lá em casa?
- Sabia.
- Também sabia porquê?
- Sim... sim, alguns desses assuntos foram discutidos
de uma maneira geral.
- Que mais se passou?
- Esta manhã, Roland Burr pediu-me que lhe desse
a sua cana de pesca predilecta. Disse-lhe que a traria
logo que tivesse oportunidade de a ir buscar.
- Onde estava?
- Disse-me tê-la deixado no meu escritório. Como
sabe, sou muito esquisito com o que diz respeito ao meu
escritório. Na porta, há uma fechadura de que só eu
tenho a chave. Nunca deixo os criados lá entrar, a não
ser quando abro a porta para eles fazerem as limpezas
178
sob a minha vigilância. Tenho lá uma boa reserva de
bebidas alcoólicas e é preciso cuidado com os mexicanos
sob este aspecto, pois não são de confiar, quando
bebem tequila.
- E Burr deixara lá dentro a sua cana de pesca?
- Parece que sim... isto é, foi o que ele disse. Eu
não me lembro, mas é capaz de ser verdade.
- Quando?
- Quando lá esteve comigo a conversar. Isto foi no
dia em que partiu a perna. Trazia a cana de pesca com
ele. Mas, não me lembro se a deixou lá ficar. Seja como
for, pediu-me para a ir buscar, que não era pressa, mas
que gostava de a ter à mão para estar entretido. Ele é
um apaixonado pelas canas de pesca, gosta de as ter na
mão, de vergastar o ar com elas, etc. Brinca com as
canas de pesca como qualquer outro homem brinca com
as suas armas, as suas máquinas fotográficas ou as suas
distracções favoritas.
- E a polícia sabe essa história da cana?
- Sabe. Mrs. Burr e o médico estavam presentes
na altura. Prometi trazer-lha e, depois, o médico partiu
para a cidade e Mrs. Burr quis ir com ele. Disse-lhe que
também ia à cidade mais tarde e que a traria de volta.
- De maneira que ela foi com o médico?
- Foi... E assim fiquei eu sozinho em casa com os
criados.
- Em que se entreteve?
- Andei de um lado para o outro, sempre com a
ideia de ir ao escritório buscar a cana de pesca de Burr,
logo que tivesse ocasião.
- Que horas eram?
- Cerca de oito e meia para as nove, parece-me.
Tinha imenso que fazer na altura, os homens iam pegar
o trabalho, etc. Burr dissera-me que não tinha pressa da
cana. Podia dar-lha à tarde, se não me engano, ouvi-o
dizer isto...
173
- E depois? Vamos ao que interessa.
- Decorrida uma hora, um dos criados passou diante
do quarto. Você sabe onde é o quarto dele, no rés-do-chão,
com janelas para o pátio. O criado olhou para a
janela e viu Burr sentado na cama e pela maneira como
estava sentado... o mexicano percebeu que estava morto.
- Prossiga.
- O criado veio chamar-me. Corri para a porta,
abri-a, vi Burr na cama e um vaso sobre a mesa a cerca
de cinco metros da cama. Senti um cheiro esquisito a
gás e caí desmaiado. O mexicano que me acompanhava
arrastou-me para o corredor, fechou a porta e chamou a
polícia.
- Quando o xerife chegou, espreitou pela janela e
concluiu que Burr tinha sido morto da mesma maneira
que Milter e partiu os vidros para arejar o quarto. Depois,
as autoridades entraram. Não havia quaisquer dúvidas.
Tinha sido morto da mesma maneira: cianeto de potássio
deitado no vaso contendo ácido. O pobre diabo nunca
poderia escapar. Estava deitado na cama com a perna
envolta em gesso e um peso na perna, suspenso por uma
roldana. Não podia de maneira nenhuma sair do leito.
- Onde estava a enfermeira?
- A maldita enfermeira também teve a culpa.
- Porquê?
- Ou ela ou Burr começaram a implicar um com o
outro. Não sei quem principiou. A enfermeira conta uma
história absolutamente disparatada.
- Onde é que ela estava? Parecia-me que Burr necessitava
de assistência constante.
- Já lhe contei que Burr tinha sido encontrado a
tentar saltar da cama e a dizer que havia alguém que
queria matá-lo. O médico declarou que era um caso típico
de reacção nervosa provocada pela administração de
narcóticos. Ninguém ligou grande atenção ao assunto,
na ocasião. Claro, mais tarde, quando isto ocorreu, as
174
suas palavras tiveram o efeito de uma profecia. De modo
que a polícia entrou em contacto com a enfermeira. Esta
disse que Burr lhe dissera confidencialmente que era eu
quem queria matá-lo.
- E a enfermeira não tinha dito nada a esse respeito
a ninguém?
- Não, também pensou que aquilo era reacção provocada
pelos narcóticos. O médico estava certo do que
afirmava. Bem sabe como as enfermeiras têm de depender
dos médicos. Nestas circunstâncias, se ela tivesse
dito o que sabia, teria cometido um acto de desrespeito
profissional. Tinha de se manter calada... pelo menos,
é o que diz... agora.
- Pois sim, mas isso não responde à minha pergunta
sobre onde estava a enfermeira quando tudo se passou.
- Estava na cidade.
- E Burr estava sozinho?
- Estava. Compreende, Burr não se podia mexer da
cama. No entanto, podia servir-se dos braços e das mãos
e tinha um telefone à cabeceira da cama. Com efeito, não
precisava realmente de uma enfermeira em serviço permanente.
Teria sido atendido logo que levantasse o auscultador
do telefone. Tenho em casa um serviço telefónico
interno. Basta enfiar uma cavilha no P. B. X. para ligar o
aparelho a uma das linhas das troncas ou ligar para qualquer
dos quartos da casa, comprimindo simplesmente o
botão adequado. Burr podia ter falado para a cozinha se
quisesse alguma coisa.
- Fale-me a respeito da enfermeira - insistiu Mason.
- Quando Burr foi para a cama e lhe trataram da
perna, pediu à esposa que lhe trouxesse do guarda-fato
um saco e o pusesse no chão, ao lado. Esse saco continha
iscos de pesca, meia dúzia dos seus livros predilectos,
uma pequena lâmpada eléctrica, cinco ou seis livros de
formato de bolso e vários outros objectos. Ele queria o
181
saco ao lado da cama para lhe poder mexer quando lhe
apetecia.
"Quando esta enfermeira entrou ao serviço, disse-lhe
que era melhor pedir-lhe o que quisesse, pelo que se
dispôs a desfazer o saco e a guardar o conteúdo na
gaveta. Não queria ter o saco no meio do caminho, pois
tropeçava nele, cada vez que se aproximava da cama.
"Isto enfureceu Burr. Declarou que ninguém mexeria
nas suas coisas e que as queria onde estavam. A enfermeira
procurou mostrar-se autoritária e agarrou no saco.
Ele, porém, segurou-a pelo pulso e torceu-lhe o braço.
Depois, ordenou-lhe que saísse e que não voltasse. A enfermeira
telefonou ao médico. Quando este chegou, a
enfermeira, Mrs. Burr, o médico e eu estivemos a conversar
com Burr, para ver se compúnhamos as coisas,
Daqui resultou o médico e a enfermeira regressarem à
cidade e Mrs. Burr acompanhá-los para arranjar outra
enfermeira. O telefone ficou ligado à cozinha e as criadas
receberam ordem para atender sem a mais pequena demora
qualquer chamada do telefone de Burr. Tudo parecia
indicar que ele ficava em perfeita segurança, naquelas
circunstâncias. Pelo menos, o médico foi dessa opinião."
- E o senhor?
- Sinceramente, devo dizer-lhe que começava a estar
um bocado aborrecido com os disparates de Burr. Disse-lhe,
um pouco forçadamente, que achava melhor ele ir
para um hospital. Evidentemente, eu tinha de ser benévolo
com ele, pois estava a sofrer dores atrozes. O seu estado
de fraqueza ainda era grande. O perigo das complicações
não passara ainda. Estava nervoso e irritável. O efeito
das drogas tinha-lhe distorcido a sua perspectiva mental.
"No entanto, eu achava que os seus actos eram
muito pouco razoáveis e a questão com a enfermeira perfeitamente
inadmissível."
.,, - E o que é que o relaciona com a morte dele?
- A maldita cana de pesca, porque ele estava sem-
182
tado na cama com a cana nas mãos. Principiara a armá-la.
Tinha duas partes na mão direita e a terceira na mão
esquerda. Veja em que situação fiquei. Eu, a única pessoa
que podia ter-lhe dado a cana de pesca, estava sozinho
em casa. Os cães andavam em liberdade. Nenhum estranho
podia lá ter entrado. Os criados juram que não se
aproximaram do quarto. O pobre diabo nunca poderia
escapar. E ali estava ele, imóvel na cama, e o vaso de
veneno no meio da mesa a quatro ou cinco metros de distância,
em sítio onde ele nunca poderia chegar-lhe para o
atirar ao chão ou fazer qualquer coisa no género.
- Mas, não podia ter pedido auxílio pelo telefone?
- Podia; mas, o gás actuou mais rapidamente. Nem
deu pelo que estava a acontecer. Alguém... um amigo
entrou no quarto, entregou-lhe a cana de pesca, dizendo-lhe
provavelmente: "Olhe, Roland, encontrei a cana de
pesca. Não estava no escritório de Witherspoon, afinal
de contas. Estava noutro sítio." E Burr começara a armá-la.
O amigo disse: "Bem, até logo. Se precisar de alguma
coisa, chame-me", e deixou cair uns bocados de cianeto
de potássio dentro do ácido e saiu. Segundos depois.
Burr estava morto. Tinha de ser qualquer pessoa muito
íntima. Aqui tem!
- Sob o ponto de vista policial, é um caso perfeito.
Você era a única pessoa que teve oportunidade de o
matar. Qual é o motivo que apresentam?
Witherspoon mostrou-se embaraçado.
- Vá, conte lá o resto das más notícias. Qual foi o
motivo que descobriram?
- Mrs. Burr é uma mulher muito esquisita, uma perfeita
criança, afectuosa, impulsiva e muitas outras coisas
mais. É preciso conhecê-la para a compreender.
- Não são precisos rodeios. Especificamente, qual
é o motivo?
183
- A polícia julga que estou apaixonado por Mrs. Burr
e que quis desembaraçar-me do marido.
- O que os leva a supor isso?
- Já lhe disse. Mrs. Burr é impulsiva, natural, afectuosa...
e, enfim, beijou-me diversas vezes mesmo na presença
do marido.
- E outras vezes sem ser na presença do marido?
- Aqui é que está o diabo - admitiu Witherspoon.
- Nas vezes que ela me beijou na presença do marido,
só estávamos presentes os três. Em compensação, vários
criados viram-nos a beijar quando o marido não estava,
A coisa mais natural do mundo, Mason. É absolutamente
explicável. Há mulheres que são naturalmente afectuosas
e gostam de ser mimadas e beijadas. Não lhe dedico
nenhum amor apaixonado, como os criados parecem
querer fazer acreditar. Os mexicanos não entendem o
amor senão como paixão. Apenas lhe passei o braço
pelos ombros num gesto paternal... e ela ergueu o rosto
e beijou-me, e eu retribui...
- A polícia relacionou-o com os vestígios de veneno?
- Aí está mais outra coisa diabólica! Tenho ácidos
aqui no rancho e uso cianeto para envenenar os esquilos
e os lobos. Os esquilos são uma verdadeira praga. Quando
entram numa seara, não saem de lá senão depois de
terem comido todo o cereal. Até andam pelas proximidades
das cavalariças para comerem aveia das rações.
A única maneira de nos livrarmos deles é envenená-los.
É costume em todo o território da Califórnia envenenar
os esquilos e o cianeto é um dos venenos usados. Também
se utiliza a estricnina e outros. Tenho trigo roxo armazenado.
E disponho de certas quantidades de cianeto.
Aqui tem mais isto! É um caso concreto de provas circunstanciais,
sem mais nada em que a polícia possa
pegar, a não ser essas circunstâncias. Estou numa situação
infernal!
- Não há dúvida!
184
Witherspoon lançou-lhe um olhar de furor.
- Pode atrasar os ponteiros do relógio dezoito anos
- declarou Mason, secamente - e avaliar o que Horace
Adams sofreu quando a polícia o meteu na cadeia, o
acusou de crime de homicídio e ele compreendeu que as
circunstâncias tinham conspirado de tal maneira que o
tinham envolvido na sua teia. Lembra-se quando lhe disse
que as provas circunstanciais podiam constituir o maior
perjúrio da Terra, não porque as circunstâncias mintam,
mas porque a interpretação dos homens é que as faz
mentir. Nessa ocasião, o senhor mostrou-se bastante
céptico.
- Garanto-lhe, isto é um caso único. Não era possível
voltar a acontecer no prazo de cem anos!
- Pois não, bastam dezoito.
Witherspoon rugiu de raiva impotente.
- Quer que eu seja o seu advogado? - perguntou
Mason.
- Com os demónios, mil vezes não! - regougou
Witherspoon, irritadíssimo. - Lamento tê-lo mandado
chamar. Vou arranjar um advogado que não tome a atitude
de querer pregar-me uma lição de moral. Vou contratar
um bom advogado. Arranjarei o mais caro de todos.
Hei-de demonstrar que estou inocente!
- Pois, então, despache-se! - E Mason saiu sem
olhar para trás.
CAPÍTULO XVII
Lois Witherspoon fitou Mason com olhos flamejantes.
- O senhor não pode fazer isso ao meu pai.
- Fazer, o quê?
- Sabe muito bem do que estou a falar. Se eu não
tivesse ido colocar o segundo pato no automóvel, o papá
não estaria envolvido neste sarilho.
185
- Sabia lá que o seu pai ia dar a cana de pesca a
Burr e depois desmentir que o fizera?
- Não se atreva a dizer essas coisas a respeito do
meu pai.
Mason encolheu os ombros.
- A força das circunstâncias é contra ele.
- Quero lá saber das provas circunstanciais que há
contra ele. Eu acredito em meu pai. Ele tem os seus
defeitos; mas, entre estes, não se contam a mentira,
- Seria bem bom que convencesse a polícia dessa
ideia.
- Ouça-me bem, Mr. Perry Mason. Não vou ficar
aqui a discutir consigo. Quero resultados. Sabe tão bem
como eu que o meu pai não matou Roland Burr.
- O grande problema está em convencer os doze
jurados.
- Pois bem, eu vou começar a convencê-los imediatamente.
Vou contar à polícia que fui colocar o pato no
automóvel de Marvin e que foi o senhor quem mandou.
- Que ganhará com isso?
- Explicará como é que o pato apareceu no carro de
Marvin e... e...
- E que era o pato que Marvin tinha trazido no seu
carro que foi encontrado no apartamento de Milter.
- Bem... mesmo supondo que...
- E essa revelação, evidentemente, apontará Marvin
como suspeito.
- Pois sim; mas, Marvin tem um álibi perfeito.
- Para quê?
- Para os crimes.
- Qual o seu álibi para o assassínio de Milter?
- Não sei se terá álibi para esse crime. Mas,
estava em Los Angeles, detido pela polícia, quando Burr
foi assassinado. De modo que - concluiu Lois triunfante
- a prova constituída pela presença do pato não vai prejudicá-lo
nada.
186
- Pode não o prejudicar da maneira que você pensa,
mas prejudicá-lo-á doutra. '
- Como? ?
- Não compreende? Logo que a polícia começar a
fazer investigações sobre ele, iniciarão um inquérito sobre
o seu passado. Quererão saber os seus antecedentes e os
jornais não pouparão coisa alguma.
- E que tem isso? Refere-se ao rapto?
- Não sabe a história verdadeira que se esconde
por detrás desse rapto?
- A única história que conheço é a de Marvin ter
sido raptado.
O advogado sorriu.
- O seu pai confiou-me várias folhas dactilografadas
e alguns jornais velhos. Levei-os para o meu quarto para
os poder examinar. Enquanto estávamos a jantar, alguém
foi ao meu quarto e mexeu-lhes.
- Mr. Mason, está a acusar-me de ser bisbilhoteira?
- Não estou a fazer nenhuma acusação. Estou simplesmente
a fazer uma declaração sobre o que aconteceu.
- Pois saiba que não tenho nada com isso. Nunca vi
esses papéis.
- E não conhece os factos verdadeiros da história
do rapto?
- Não, apenas sei é o que a mãe de Marvin confessou
no seu leito mortuário.
- Isso era uma mentira, uma mentira que ela
inventou para garantir a felicidade do filho. Ela sabia que
Marvin estava apaixonado por si. Sabia também que o seu
pai era pessoa para querer conhecer os antecedentes da
família de Marvin. Sabia ainda que, quando o seu pai
iniciasse investigações, descobriria acontecimentos muito
desagradáveis.
- Tais como?
- O pai de Marvin foi condenado por crime de
homicídio em 1924 e executado em 1925.
187
O rosto de Lois espelhou o mais profundo horror.
- Mr. Mason, isso não pode ser!
- É a verdade. Foi por esse motivo que o seu pai
me contratou. Queria que eu investigasse o processo
para ver se descobria alguma prova da inocência de
Horace Adams.
- E descobriu?
- Não.
Lois olhou o advogado como se este a tivesse agredido.
- O seu pai não lhe queria dizer nada, enquanto não
dispusesse de todos os elementos.
- Que quer dizer com isso?
- Pretendia proibi-la de se dar com Marvin Adams,
de vê-lo, escrever-lhe ou falar-lhe pelo telefone.
- Não quero saber do que o pai de Marvin fez. Não
me interessa quem ele era. Amo Marvin. Compreende,
Mr. Mason? Amo-o.
- Compreendo. Mas, não me parece que o seu pai
a compreenda.
- Mas, isto é... isto é... Mr. Mason, tem a certeza?
Tem a certeza absoluta de que o que Mrs. Adams contou
a respeito do rapto não é verdade?
- Aparentemente, não há quaisquer dúvidas.
- E o pai de Marvin foi condenado pelo crime de
homicídio e... enforcado?
- Foi.
- E o senhor diz que ele foi merecidamente castigado?
- Não.
- Pareceu-me que foi isso que disse.
- Não, o que eu disse é que, pelo exame do processo,
não encontrei qualquer prova da sua inocência.
- Não é a mesma coisa?
- Não.
- Porquê?
188
- Em primeiro lugar, porque o meu exame se limitou
ao processo. Em segundo lugar, porque encontrei coisas
que indicavam a sua inocência, mas que não constituíam
prova. No entanto, estou à espera de provar a sua inocência
por meio de factos que não apareceram no processo,
mas que começam a aparecer agora.
- Oh, Mr. Mason, se conseguisse isso!
- Porém, no caso de a polícia iniciar uma investigação
sobre o passado de Marvin, descobrir a existência
deste crime antigo e divulgá-lo nos jornais, o meu trabalho
tornar-se-á muitíssimo mais difícil. Mesmo depois
de conseguir esse objectivo, será ineficaz. Uma vez que
a opinião pública fique com a ideia de que o pai de Marvin
era um assassino, posso, passados dias ou semanas, vir a
provar o contrário. Porém, a opinião pública pensará
sempre que isso é uma habilidade qualquer engendrada
por um advogado engenhoso, contratado por um sogro
milionário para que o nome de Marvin não fique manchado,
e não haverá ninguém que não propale histórias
nas suas costas, enquanto ele viver.
- Não me importo. Casarei com ele na mesma.
- Eu sei que você não se importa. Mas, o que sucederá
com Marvin e com os seus filhos?
O silêncio de Lois mostrou bem até que ponto tal
pensamento a perturbara.
Mason prosseguiu:
- Marvin é um indivíduo sensível, entusiástico, quer
triunfar; pouco tinha quando foi para a escola. Dispunha
de poucos fatos e de pouco dinheiro; mas, tinha personalidade.
Tinha qualquer coisa que fez dele um chefe.
Foi chefe da sua turma no liceu. Foi director do jornal
escolar. Agora, na Universidade, é um indivíduo popular
que tem sido bem sucedido em todas as empresas. As
pessoas que convivem com ele têm-lhe simpatia e ele
retribui. Tire-lhe tudo isto. Coloque-o em situação dos
189
outros murmurarem nas suas costas e das conversas se
suspenderem quando ele entrar numa sala. Isso...
- Cale-se! - gritou Lois.
- Estou a referir-me a factos.
- Não posso consentir que o meu pai seja condenado
por causa do pato...
- Esse pato não tem absolutamente nada com a condenação
ou a absolvição do seu pai no que diz respeito à
morte de Roland Burr. Foi simplesmente a declaração
que ele fez a respeito do pato que provocou as suspeitas
da polícia. A única maneira de absolver o seu pai é descobrir
quem deu a cana de pesca a Burr.
- Como é que vamos fazer isso? Todos os criados
dizem que não foram. Não estava mais ninguém em casa.
Mrs. Burr tinha ido à cidade com o médico e, segundo o
depoimento tanto do médico como de Mrs. Burr, a cana
de pesca foi a última das coisas que Roland Burr pediu
antes de saírem. Tudo isto se passou antes de saírem
todos do quarto. E saíram todos ao mesmo tempo.
- A situação parece ser, de facto, muito grave admitiu
Mason.
- O senhor não pode fazer qualquer coisa?
- O seu pai não quer que eu seja o seu advogado.
- Porquê?
- Porque insisti em lhe fazer ver a semelhança da
posição em que ele se encontra agora e aquela em que
Horace Adams esteve há dezoito anos. O seu pai não
gostou. A sua posição até agora era de que a família
Witherspoon não podia sujeitar-se a ter ligações com a
família de alguém que fora acusado de crime de homicídio.
- Pobre papá! Compreendo perfeitamente o que ele
sente. Tem tanto orgulho na família. Sempre teve.
- Talvez seja bom para ele ter destas desilusões.
Talvez seja bom para todos, termos umas desilusões
deste género de quando em quando.
190
- Não percebo onde quer chegar,
- Temo-nos convencido de muita coisa por causa
dos nossos antepassados. Estes hipnotizaram-nos. Dizemos
a toda a hora, orgulhosamente, que as outras nações
devem ter medo de nós, porque nunca perdemos uma
guerra. Devíamos dizer o inverso. Seria bem bom para
todos que aprendêssemos a aguentar-nos apenas sobre
os nossos dois pés... a começar pelo seu pai.
- Amo o meu pai e amo Marvin.
- É muito natural.
- Não vou sacrificar um pelo outro.
Mason encolheu os ombros.
- Não entende, Mr. Mason? Não vou deixar prejudicar
a posição do meu pai pelo facto de eu ter posto o
pato no automóvel de Marvin.
- Percebo perfeitamente.
- O senhor não parece muito disposto a ajudar-me.
- Sou de opinião que ninguém a pode ajudar, Lois.
Trata-se de um assunto que tem de resolver por sua
conta e risco.
- A minha decisão faz-lhe diferença?
- Provavelmente.
- Não descobre uma saída?
- Se você disser às autoridades que colocou o pato
no carro de Marvin, saltará de uma panela de água a
ferver para cima do próprio lume. Não livrará o seu pai...
por agora, e apenas fará com que Marvin seja detido.
- Se não fosse a questão do pato, eles nunca suspeitariam
do pai.
- De facto, é verdade. Mas, a coisa já está principiada.
Descobriram provas suficientes que não lhes permitem
voltar atrás. Você pode vir a encontrar-se na situação
de ver o seu pai julgado pelo assassínio de Roland
Burr e Marvin Adams julgado pelo assassínio de Leslie
Milter. Que lhe parece esta perspectiva?
- Não gosto da ideia de contemporizar com a minha
191
consciência por causa dos resultados. Acho melhor fazer
aquilo que nos parece mais correcto. Os resultados vêm
depois.
- E o que é que lhe parece ser mais correcto, agora?
- Contar às autoridades o que aconteceu com o pato.
- Promete-me esperar alguns dias?
- Não, não prometo. Mas, vou... pensar bem no
assunto.
- Está certo, então faça isso.
Lois parecia uma criança com vontade de chorar
encostada ao ombro do advogado, mas apelou para todo
o seu orgulho e saiu da sala de cara erguida.
Mason dirigiu-se ao quarto de Della Street, e bateu
à porta.
A secretária, com ansiedade expressa nos olhos,
veio abrir.
- O que é que ela queria, chefe?
Mason sorriu.
;;.,. -Queria ficar de bem com a sua consciência.
- Por causa do pato?
- Sim.
-Que vai ela fazer?
-Eventualmente, vai contar tudo.
- Que consequências pode isso ter para si?
- Deixa-me numa camisa de onze varas.
- E isso vendo as coisas pelo lado optimista, não?
O sorriso de Mason transformou-se numa careta.
- Vejo sempre as coisas pelo lado optimista.
- Quanto tempo é que ela lhe deu para preparar
qualquer solução?
- - Nem ela mesmo o sabe.
- Um dia ou dois?
- Talvez.
- E em que situação é que isso o coloca?
192
- Na cratera de um vulcão que pode explodir de um
momento para o outro. E se você armasse em boa dona
de casa e me preparasse uma bebida?
CAPÍTULO XVII)
Em El Templo, reinava grande emoção. O facto de
John L. Witherspoon ter sido acusado de um crime de
morte e estar a ser ouvido pelo juiz Meehan foi o bastante
para provocar grande agitação na cidade. O caso era discutido
nos restaurantes, nos campos desportivos, nos barbeiros,
etc. Havia quase tantas teorias como número de
pessoas a discutir os crimes.
Lawrence Dormer, o advogado que representava
Witherspoon, era considerado o melhor causídico das
redondezas, e Dormer estava francamente não só espantado
pela acumulação de provas, mas também a procurar
tirar vantagem de todos os meios técnicos proporcionados
pela lei. Foi, portanto, na agitação das ruas que Dormer
procurou assentar as provas suficientes para que o juiz
se decidisse pelo julgamento rápido de Witherspoon; ao
mesmo tempo fazia o possível para não revelar os trunfos
de que dispunha pela apresentação de testemunhas e
forçava o procurador distrital a pôr todas as cartas disponíveis
sobre a mesa.
Lois Witherspoon, a debater-se entre o amor pelo pai
e por Marvin, continuava a calar o papel desempenhado
no caso; mas, era um silêncio de tensão dentro do qual
refervia, prestes a atingir o ponto de ebulição.
Dela Street aconselhou:
- Temos de manter aquela rapariga debaixo de olho,
chefe. Não tarda que ela vomite publicamente a história
que tem para contar. Não está habituada a esconder as
coisas. Gosta da verdade e é muito impulsiva.
Mason acenou afirmativamente.
13 - VAMP. G. 7
193
- Não compreende o que isto significa? - perguntou
Della.
- O quê?
- Aqui estamos em território estrangeiro. O senhor
está numa região onde é um estranho. O que pode ser
aceitável em Los Angeles, não o é aqui. O que na cidade
pode ser considerado uma notável habilidade jurídica, será
considerado particularmente repreensível aqui, Valha-o
Deus, até o podem acusar de cúmplice no crime.
O advogado sorriu. Alguém bateu à porta do hotel.
- Veja quem é, Della.
A secretária abriu a porta. No limiar, estava George
L. Dangerfield.
- Posso entrar?
- Certamente - respondeu Mason. - Faça favor.
; -A minha mulher e eu fomos citados como testemunhas
declarou Dangerfield.
Mason enrugou as sobrancelhas.
- Descobri qualquer coisa acerca da teoria sobre a
qual o procurador distrital vai apreciar esta questão
amanhã, e julguei que fosse melhor comunicar-lhe, porque...
o caminho que as coisas levarem pode afectar
muita gente.
-Como? - inquiriu Mason. , ,
-Ele vai recordar o crime antigo.
- Refere-se ao processo de Adams?
- Sim.
- Porquê?
- Lembra-se quando Witherspoon falou consigo no
hotel de Palm Springs, de ter dito que, caso fosse necessário,
colocaria o jovem Marvin Adams em situação
de um crime de homicídio ser a única saída, o que forçaria
o rapaz a revelar o seu verdadeiro carácter.
Mason sorriu.
- Nunca me lembro de nada que um cliente me diga.
Dangerfield.
194
- Pois bem, este é o ponto de partida. Tanto mais
que você lhe explicou como essa ideia era perigosa, e
conversaram longamente sobre o assunto. Um dos rapazes
do bar, estudante universitário que trabalha no hotel
durante as férias, ouviu a conversa ocasionalmente. Por
detrás da mesa onde vocês estavam, havia um reposteiro
e este rapaz estava do outro lado a limpar as vidraças
de uma janela.
- Muito interessante. Calculo que o rapaz conhecia
Witherspoon?
- Sim, reconheceu-o.
- Muito interessante, muito interessante mesmo.
E como é que o senhor soube tudo isso?
- Por intermédio do procurador distrital. Este descobriu
que minha mulher e eu estávamos na cidade e
citou-nos como testemunhas. Já conversou comigo a respeito
do processo antigo.
- Que foi que lhe disse?
- Insisti em que não via pontos de contacto entre os
factos passados e os actuais, que não valia a pena desenterrar
recordações mortas.
- O procurador falou consigo e com a sua mulher?
- Não, por ora só falou comigo. Vai visitar minha
mulher, esta noite. Eu... enfim, quero ver o que se pode
fazer. Pensei que talvez pudéssemos arranjar maneira de
ela não ser ouvida... por meio de um atestado médico
ou qualquer coisa no género. O senhor é advogado, sabe
bem como é que estas coisas se arranjam.
- Essas coisas não se arranjam.
- Bem sei, mas vem a dar tudo no mesmo.
- Porque é que a sua mulher não quer prestar declarações?
- Não vemos utilidade nenhuma em reabrir o processo
antigo.
- Porquê?
- Bem sabe porquê. A minha mulher já lhe disse. Ela
195
sabia que David Latwell levava uma pistola no bolso
quando foi para a fábrica no dia em que o assassinaram...
e nunca fez esta declaração, durante todo o processo.
- Ela chegou a mentir por esse motivo?
- Não, nunca lhe perguntaram nada e ela também
não deu a informação voluntariamente.
- Com que então ela contou-lhe isso?
- Contou.
- Quando?
- Ontem à noite.
- Muitíssimo interessante, não acha que seria
extraordinário que, em consequência do julgamento de
Witherspoon por causa de um crime cometido em 1942,
se solucionasse outro ocorrido em 1924?
- Não se soluciona nada. O mais que se pode fazer
é chegar à conclusão de que o crime não foi premeditado.
Mas, isso não soluciona nada.
- Porém, pode tornar justificável a legítima defesa.
- Não se pode ressuscitar Adams. E pode levar-se
minha mulher a ser acusada de perjúrio.
- Como?
- Porque ela nunca admitirá saber da existência da
tal pistola quando prestar declarações. Ela diz que se
fizerem uma reunião em que estejam presentes vocês,
Witherspoon e Marvin Adams, contará exactamente o que
aconteceu; mas, nunca se sujeitará à troça pública, que
a acusará de não ter falado quando devia.
- E então?
- Então, ela mandou-me dizer-lhe que se quiser o
processo antigo esclarecido, isso poder-se-á fazer numa
conferência particular. Se tiver que comparecer no banco
das testemunhas, negará tudo. Está nas suas mãos evitar
que ela seja ouvida.
Mason comprimiu os lábios.
- Nesse caso, ela não contará nada ao procurador
distrital a respeito da pistola?
196
- Evidentemente que não.
O advogado enfiou profundamente as mãos nos
bolsos.
- Vou pensar no assunto - prometeu.
CAPITULO XIX
Constituiu uma experiência nova para Perry Mason
sentar-se numa sala de audiências como espectador e
esta experiência era bastante penosa. O vaqueiro que
se senta entre o público num rodeo move instintivamente
o corpo quando observa outro cavaleiro a tentar equilibrar-se
sobre o cavalo.
Perry Mason, sentado na primeira fila do público,
na sala de audiências de El Templo, ao ouvir os interrogatórios
preliminares do processo: o Povo do Estado da
Califórnia contra John L. Witherspoon, umas vezes inclinava-se
para a frente como se quisesse fazer uma pergunta;
outras vezes, quando era levantada qualquer objecção,
segurava os braços da cadeira como se fosse a
erguer-se para discutir a questão. Todavia, conseguiu
manter-se silencioso no decurso do julgamento, enquanto
as provas apresentadas pelo procurador distrital se
acumulavam lentamente.
As testemunhas declararam que Roland Burr tinha
sido hóspede em casa do réu. Tudo parecia indicar que o
acusado convidara Burr a instalar-se na sua casa depois
de uma conversa casual, durante a qual tinham verificado
que partilhavam as mesmas distracções, entre as quais
se contavam a pesca e a fotografia. Também se sugeriu
que, quando se conheceram no vestíbulo do hotel, Witherspoon
não fizera o convite senão depois de Mrs. Burr ter
aparecido e ser apresentada.
A figura de Mrs. Burr passou, a pouco e pouco, a
assumir um lugar muito preponderante no julgamento.
197
Os criados testemunharam que Roland Burr fazia
viagens frequentes à cidade durante as quais era, geralmente,
acompanhado pela esposa. Porém, havia ocasiões
em que Burr estava no seu quarto e Mrs. Burr se encontrava
com Witherspoon nos corredores ou no pátio. Os
criados mexicanos de Witherspoon depuseram com evidente
relutância; mas, o que contaram transformou-se
num diabólico móbil do crime, justificado pela crescente
intimidade entre o réu e a esposa do assassinado.
Depois, seguiram-se os relatos de beijos roubados,
de pequenas intimidades, que, sob o interrogatório do
procurador distrital, principiaram a assumir proporções
sinistras.
Com exactidão fria e mortal, o procurador, depois de
provar o motivo, procurou demonstrar a oportunidade.
O médico que tratara Burr depôs sobre o estado do
doente, afirmando ser manifestamente impossível este
levantar-se da cama, porque não só a sua perna estava
metida em gesso, mas também suspensa por um peso
preso ao tecto.
Foram exibidas fotografias mostrando a posição do
recipiente que continha o ácido e no qual se haviam gerado
os vapores de cianeto. O vaso tinha sido colocado a
cerca de cinco metros da cama, sobre uma mesa que,
inicialmente, fora preparada para escrever à máquina e
que fora trazida para o quarto do doente para servir de
mesa dos remédios, por sugestão de Witherspoon.
O médico também declarou que, quando saíra de casa
acompanhado por Mrs. Burr, o último pedido do falecido
fora feito a Witherspoon: que lhe fosse buscar a cana de
pesca, deixada no escritório.
Os criados afirmaram que ninguém, a não ser Witherspoon
tinha a chave do escritório e que, no momento
do crime, Witherspoon, os criados e o falecido encontravam-se,
sozinhos, em casa. O procurador apresentou como
evidência os cães, demonstrando ser impossível que qual-
198
quer estranho entrasse em casa com cães-polícias treinados
a patrulhar os arredores. A cana de pesca, que o
falecido tinha na mão, quando se descobrira o cadáver,
foi concludentemente identificada como sendo a tal cana
de pesca que Burr tinha pedido a Witherspoon que lhe
desse. Foram exibidas fotografias mostrando o corpo tal
como tinha sido descoberto, com duas partes da cana montadas,
e o falecido a segurar na mão esquerda a última
parte da cana que faltava montar. A mão direita estava
colocada por alturas da pega de metal da segunda junta.
Toda a posição do corpo indicava que o morto se preparava
para colocar a última junta da cana quando fora vencido
pelos vapores do gás.
- O tribunal observará--disse o procurador, apontando
para a fotografia - que, com certeza, o falecido
acabara de receber a cana de pesca, quando os vapores
do gás começaram a desenvolver-se.
- Protesto contra esta declaração, senhor doutor juiz
- gritou Lawrence Dormer, o advogado do réu, erguendo-se.
- Protesto, porque o procurador está a querer tirar
conclusões... - prosseguiu, com veemente indignação.
- Está bem, retiro a afirmação - concordou o procurador.
No fim de contas, Excelência, as fotografias
falam por si.
Dormer reocupou o seu lugar na bancada da defesa.
O procurador continuou calmamente a edificar as
peças do processo. O depoimento do médico revelou aproximadamente
a hora a que ocorrera a morte e demonstrou
também a maneira como esta fora provocada.
O procurador distrital chamou a depor James Haggerty,
o agente da polícia que tinha entrado no apartamento
de Milter com Mason, quando se descobrira o
corpo. O procurador perguntou-lhe o nome, a ocupação
e o que vira, enquanto Lawrence Dormer se mantinha
tenso, pronto a objectar à primeira pergunta pela qual o
199
procurador tentasse estabelecer qualquer analogia com o
outro crime.
A certa altura, o procurador disse:
- Ora, vejamos, guarda Haggerty, desejo perguntar-lhe
se, quando entrou no apartamento de Leslie Milter
na noite anterior à morte de Roland Burr, notou alguma
coisa que indicasse a existência nesse apartamento de
ácido hidroclorídrico ou cianeto de potássio.
- Protesto - gritou Dormer, erguendo-se. - Excelência,
esta afirmação é não só incompetente, irrelevante
e imaterial, mas também a pergunta constitui uma manifestação
de má-fé da parte do procurador distrital e como
tal deve ser considerada. O réu deste processo está a ser
julgado por um crime e só por esse crime. Ora, esse
crime é a morte de Roland Burr. Não há ponto da lei que
seja mais explícito do que este: quando o réu está a ser
julgado por um crime, o tribunal ou o júri não podem
basear-se em provas referentes a outro crime. Aparentemente,
a intenção do procurador é estabelecer ligação
entre as duas provas...
- Sinto-me inclinado a concordar com o advogado
de defesa - afirmou o juiz. - Mas quero ouvir a argumentação
do procurador distrital.
O procurador distrital Copeland estava perfeitamente
preparado, não só para discutir a sua tese, mas também
para demonstrar as bases de discussão.
- Se o tribunal me der licença - disse, no tom
calmo do indivíduo que está certo do terreno que pisa -.
não há motivo para o protesto apresentado pela defesa.
Temos conhecimento de várias excepções.
"Permito-me afirmar haver excepções à regra, tanto
mais que se pretende demonstrar a oportunidade, só com
o objectivo de revelar certos factos ligados ao crime pelo
qual o réu está a responder e não com o objectivo de
provar que ele é culpado de qualquer outro crime.
"Nestas circunstâncias, a prova de falsificações ante-
200
riores foi admitida com o fim de demonstrar que os réus
se treinaram a fazer a assinatura de determinado indivíduo.
Em relação a certos crimes sexuais, foram admitidos
actos anteriores para provar o colapso das mais
simples barreiras naturais de restrição humana. Por isso,
Excelência, quero apresentar esta prova, não com o objectivo
de demonstrar que o réu assassinou Leslie Milter,
mas apenas com o fito de provar que, primeiro, estava
familiarizado com este método de matar; segundo, que
tinha em seu poder determinadas quantidades de ácido
hidroclorídrico; terceiro, que dispunha de certas quantidades
de cianeto de potássio; quarto, que conhecia plenamente
o efeito mortal dos gases libertados por estes
produtos químicos, quando misturados.
"E agora, se o tribunal me der licença, apresentarei
uma longa lista de autoridades que apoiam o meu ponto
de vista. Gostaria de citar essas autoridades e transcrever
alguns dos seus pareceres.
"Por exemplo, Excelência, a página 589 do 16.º volume
do Corpus Juris lê-se: "Quando a natureza do crime é
de tal ordem que se torna necessário provar os conhecimentos
do culpado, é admissível demonstrar-se que
noutra ocasião e noutro local não muito remotos, o réu
cometeu ou tentou cometer um crime similar àquele de
que é acusado."
"Para demonstrar que o réu conhecia o efeito mortal
do gás que seria libertado por..."
O juiz Meehan olhou para o relógio e interrompeu o
procurador, dizendo:
- Está a aproximar-se a hora em que teremos de
adiar a audiência. O tribunal gostaria muito de ter oportunidade
de fazer qualquer investigação independente sobre
esse ponto. Parece ser, segundo tudo indica, um ponto
crucial do processo, que terá de ser discutido pormenorizadamente.
O tribunal, portanto, adia os seus trabalhos
até amanhã, às dez horas. O réu fica sob a respon-
201
sabilidade do xerife. A audiência prosseguirá amanhã de
manhã às dez horas.
Dois oficiais de diligências escoltaram Witherspoon
para fora da sala de audiências. O juiz retirou-se. O público
começou a trocar impressões excitadamente. Era
evidente que a muralha de provas que o procurador distrital
estava a erigir em torno de uma figura tão proeminente
na vida da comunidade, impressionava os espectadores.
Lois Witherspoon, de queixo erguido e olhos secos
e duros, saiu da sala de audiências em passos rápidos,
desdenhando os olhares de piedade que algumas pessoas
lhe lançavam e as expressões de desprezo que via em
outras.
De volta ao quarto de hotel onde se instalara. Mason
estendeu-se num sofá e disse a Della Street:
- Isto é excelente, depois daquelas incómodas cadeiras
do tribunal.
- O senhor parece estar sobre brasas para tomar
parte nos debates.
- E estou.
- Pelo que tenho ouvido, Witherspoon está a enterrar-se
cada vez mais.
Mason sorriu.
- Talvez Witherspoon sofra o suficiente para aprender
um pouco de compaixão humana. Verificará assim o
que Horace Adams sofreu há dezoito anos. Recebeu notícias
de Paul Drake?
- Não.
- Transmitiu a minha mensagem?
- Transmiti. Disse-lhe que o senhor queria a rapariga
da "Allgood Detective Agency" vigiada, que queria
saber o máximo possível a respeito de Roland Burr e do
que este fizera no dia em que chegámos, assim como
no dia anterior.
- Em todos os dias anteriores ao "conflito" com o
202
cavalo - confirmou Mason, a sorrir. - Depois disso, tem
estado arrumado...
- Drake está a trabalhar nesses assuntos. Tem
andado todo o dia numa roda-viva, a mandar telegramas
e a falar ao telefone. Aqui em El Templo estão dois
agentes e já anunciou que chegava a tempo de tomar
um aperitivo, antes do jantar.
- Vou tomar um banho e mudar de roupa. Nunca
tinha visto a Humanidade empilhada, numa sala de audiências,
tão de perto. Tresanda a suor e a bedum. Sinto-me
todo peganhento.
Estava a acabar de tomar banho, quando Paul Drake
entrou:
- Que diabo, Perry, não sei se é transmissão de pensamento
ou outra coisa qualquer, mas a verdade é que
tens uns palpites verdadeiramente infernais.
- O que foi agora?
- A tal misteriosa Miss X, que aparece no processo,
chama-se Corine Hassen.
E depois?
- Localizámo-la.
- -Onde?
- No Reno, em Nevada.
- Morreu?
- Morreu.
- Assassinada?
- Suicidou-se atirando-se ao lago Donner. O corpo
não foi identificado; mas, a polícia tinha fotografias arqui-
vadas.
- Quando se passou isso?
- Aparentemente, por alturas de David Latwell ter
sido assassinado.
- A data é importantíssima.
- Trago aqui tudo, inclusive as fotografias do cadáver,
- Disseste que não tinha sido identificado?
203
- Não, o corpo estava completamente nu, quando o
encontraram e nunca descobriram quaisquer roupas. Segundo
parece, era uma mulher diabolicamente atraente.
A certidão de óbito menciona suicídio. Podes comparar
estas fotografias. É Corine Hassen, sem dúvida.
- Por acaso, não descobriste se ela sabia nadar?
- Não consegui saber ainda, mas devem informar-me
dentro de pouco tempo.
- As coisas começam a tomar forma.
- Não te entendo, Perry. Palavra que não.
Mason enxugou-se com uma toalha e vestiu roupa
interior lavada. De novo, lhe apareceu no rosto a sua
característica expressão granítica.
- Que novidades há a respeito da rapariga da Agência
Allgood?
- Sally Elberton? Continuamos a segui-la.
- Podes encontrá-la em qualquer altura?
-Posso.
- Ou eu me engano muito, ou Lois Witherspoon vai
apresentar-me um ultimato esta noite. E também não me
admiro nada que o pai dela me mande chamar...
- Tenho mais informações a respeito de Roland
Burr. Vinha à cidade com muita frequência comprar apetrechos
fotográficos. No dia em que vieste de Palm
Springs... no dia em que levou o coice... parece ter
andado extraordinariamente activo. Fora à cidade quatro
ou cinco vezes. Aparentemente, andou a comprar material
fotográfico e a fazer recados. Esteve várias vezes nos
correios. De uma das vezes, não ia acompanhado pela
mulher - contou Drake.
Mason manteve-se calado, enquanto vestia camisa.
Depois, perguntou:
- Inquiriste especialmente nos locais, onde ele podia
guardar embrulhos se...
- Essa é outra coisa em que tinha razão. Na estação
de autocarros "Greyhound", deixou um embrulho, recebeu
204
um talão e, até agora, pelo que sei, nunca voltou a lá ir
buscá-lo. A empregada, que estava de serviço, não se
lembra, pelo menos!
- Espera um momento. Não há várias empregadas
nesse serviço?
Drake acenou a cabeça.
- Aí é que a questão da perna partida complica
tudo!
- Porquê?
- Porque o embrulho foi entregue por volta do meio-dia
do dia em que ele partiu a perna. A empregada de
serviço entrou às nove horas da manhã e saiu às cinco
da tarde. Às cinco horas, Burr partiu a perna. Evidentemente,
ele não podia ir buscar o embrulho, depois de
partir a perna.
- E o embrulho, como era?
- O embrulho desapareceu. Por isso, alguém o deve
ter ido buscar.
- A empregada não se lembra quem foi?
- Não, lembra-se de Burr, mas não se recorda do
embrulho. Parece que era um volume pequeno, em papel
pardo. Julga que seria pouco mais ou menos do tamanho
de uma caixa de charutos, mas não tem a certeza.
- A empregada desse serviço não faz mais nada?
- Faz. Também toma conta do quiosque dos jornais
e é a "caixa" do bar.
- Não havia possibilidade de alguém entrar no
balcão e retirar o embrulho sem apresentar o talão?
- De modo nenhum. Garantem isso. Vigiam com
enorme atenção esses embrulhos que lhes são confiados...
e era preciso que levantassem a tampa do balcão
para entrar.
- Bom, creio que isso me dá uma saída, mas não te
quero dizer nada, Paul.
O detective observou o advogado, enquanto este abotoava
as calças e comentou:
205
- Não precisas ser tão misterioso com este caso.
O que é que estás a esconder?
- Nada, as cartas estão na mesa. Soubeste se Burr
viveu em Winterburg City?
- Também tinhas razão a esse respeito. Burr viveu
em Winterburg.
- Quando?
- Não sei ao certo, mas foi há anos. Tinha uma
agência de seguros.
- Que fez ele depois disso?
- Veio para o litoral e dedicou-se a arrendamentos.
Mais tarde, voltou a mudar de profissão, meia dúzia de
vezes. Há um espaço em branco na sua vida. Não consegui
descobrir nada entre 1930 e 1935. Creio que não
voltou a Winterburg City.
- Manda-lhe examinar as impressões digitais. Verifica
se alguma vez esteve preso.
- Vá lá, confessa-te. Estás a basear-te em mais
alguma coisa, além de simples palpites, desta vez. Vê lá
se desembuchas.
- Não há nada para desembuchar por enquanto,
Paul. Porém, vou dizer-te alguns factos que me fizeram
ter esses palpites. Bem vês, quando trato de um caso,
parto do princípio que o meu constituinte está inocente.
Portanto, não foi habilidade nenhuma pensar que Corine
Hassen teria ido ao Reno. Ora, se Adams dizia a verdade
e Latwell tencionara fugir com ela, e se ela fora ao Reno,
era evidente que se tornava necessário a interferência
de qualquer coisa de muito extraordinário para mudar
completamente de ideias. Essa coisa de muito extraordinário
foi a morte de David Latwell. Não era razoável pensar-se
que, deste facto, resultasse a morte de Corine
Hassen?
- No corpo, não há sinais de violência. Um grupo de
turistas, que andava a passear de barco, descobriu o
corpo nas águas do lago. Comunicaram ao xerife e o
206
cadáver foi recolhido. Verificou-se que devia ter vindo do
Reno e para lá o levaram outra vez. Tiraram fotografias
e o médico legista foi de opinião que a morte fora provocada
por afogamento.
- Mesmo assim, podia ser assassínio.
Drake ficou a pensar.
- Pois olha, na minha opinião, Milter não estava a
fazer chantagem. Burr e a mulher, sim, esses é que
estavam a preparar-se para extorquir dinheiro a Witherspoon.
Mas, não vejo como é que isso nos pode ser útil,
Perry. Dá-nos apenas mais um motivo justificativo do
assassínio. Witherspoon meteu-se num grande sarilho...
Calou-se ao ouvir bater à porta. Della Street perguntou:
- Posso entrar, chefe? Já está vestido?
- Quase. Entre.
- Ela está ali fora! - disse Della Street, entrando
no quarto de dormir.
- Lois Witherspoon?
- Sim.
- O que quer?
- Quer falar-lhe imediatamente. Tomou uma decisão.
Parece-me que vai contar tudo...
- Vamos lá ouvi-la, , ....
Lois ergueu-se, quando Mason entrou na sala do seu
apartamento.
- Quero falar consigo a sós.
- Não se preocupe--disse o advogado, Indicando
Paul Drake e Della Street. - Pode dizer o que quiser, na
frente deles.
- É por causa do pato que o senhor me mandou pôr
no automóvel de Marvin. Tudo indica que o advogado de
acusação vai ser bem sucedido em estabelecer ligação
entre os dois crimes. Isto quer dizer que o pato vai tornar-se
ponto importante. Não vou ficar sentada a ver meu
pai cobrir-se de...
207
- Tem muita razão!
- Vou contar o que se passou com o pato. Bem sabe
quais serão as consequências...
- Quais são?
- Estou arrependida do que fiz. Estou arrependida
por minha causa, por causa do meu pai e também por
sua causa.
- Porquê, por minha causa?
- Não deixarão de o incomodar por este motivo...
- Porquê?
- O que se fez, constituí um ludíbrio da Justiça.
Não sei muito de leis; mas, tenho a certeza de que é uma
violação da lei. Se assim não for, é, pelo menos, uma
violação da ética jurídica... se não me engano!
Mason acendeu um cigarro.
- Percebe alguma coisa de cirurgia? - perguntou.
- Porque pergunta?
- Há ocasiões em que é preciso cortar, cortar profundamente,
para se salvar a vida do doente. Pode classificar
o que se fez de cirurgia jurídica.
- Não é ilegal?
- Talvez.
- Vou causar-lhe incómodos, se confessar.
- Sem dúvida.
Os olhos de Lois adoçaram-se um pouco.
- Mr. Mason, o senhor tem sido muitíssimo bom.
Não sei porque me obrigou a fazer aquilo... não, também,
sei. Simpatizou com Marvin e parece-me que está a esconder-me
qualquer coisa...
- É sobre isso que lhe quero falar. Sente-se. Tomemos
um aperitivo e fumemos um cigarro, enquanto conversamos.
- Dispenso o aperitivo; mas, não o cigarro. Peço-lhe
que fale de uma vez, sem subterfúgios.
- Está preparada?
- Estou.
208
- Já lhe contei a verdade sobre o passado de Marvin
e porque o seu pai me contratou. Disse-lhe também que
não encontrei nada no processo; mas, que estava a ver
as coisas por um certo prisma. Pois bem, tenho agora a
prova de que preciso. Vou arrancar a Marvin o estigma
da tragédia paterna... mas, não o posso fazer, senão à
minha maneira. Se disser alguma coisa, a respeito do
pato, fico entalado... até à ponta dos cabelos. Uma vez
envolvido no caso, não terei liberdade para esclarecer as
questões do processo antigo. Logo que Marvin ouvir falar
do processo antigo, fugir-lhe-á. Já deve saber isso!
"O procurador distrital há-de gostar de me ver
entalado nesse negócio do pato. Ele também quer estabelecer
provas sobre o crime antigo e você irá entregar-se-lhe
de mãos atadas. Se o procurador distrital conseguir
demonstrar que o processo antigo pode ser mais
um motivo do assassínio de Burr, as testemunhas serão
acusadas de ter cometido crime de perjúrio. Eis a razão
por que quero que a coisa corra à minha maneira.
- E como é isso? - perguntou Lois, aparentemente,
a hesitar decidir-se.
- Quero que leve um recado a seu pai.
- O que é?
- Diga-lhe que dê ordem ao idiota do advogado dele
que se sente e se cale - disse Mason, com tão grande
vigor que os seus interlocutores ficaram espantados.
- Porquê? Porque diz isso? Ele pouco ou nada tem
dito. Tem interrogado as testemunhas e só fez uma ou
duas objecções.
- Está a levantar objecções às perguntas referentes
ao que o guarda descobriu quando entrou no apartamento
de Milter...
- Valha-me Deus e isso não é uma questão primordial?
O caso não está todo assente nesse ponto? Como
já disse, não percebo nada de leis; mas parece-me que
se interligarem os dois crimes e lançarem as suspeitas
14 - VAMP. G. 7
209
sobre o papá em ambos, toda a gente o julgará
culpado e...
- Assim sucederá, na verdade, e o mesmo pensará
o juiz. Mas, os jornais já comentaram o assunto. Homens,
mulheres e crianças que estão na sala de audiências,
capazes de ler os jornais ou de ligarem duas ideias, já
conhecem as provas que o procurador está a tentar pôr
em destaque. Se o seu pai conseguir suprimi-las por meio
de técnicas legais, este pensamento não deixará de deambular
no subconsciente do juiz. Que pretende o advogado
do seu pai fazer?
- Não sei.
- Ouvi dizer que ele vê o caso tão negro que o juiz
não conseguirá deslindá-lo à primeira; que, portanto, não
se dará ao trabalho de apresentar quaisquer provas,
agora; mas, que só o fará na segunda fase do julgamento.
- E então, não acha bem?
- Não.
- Porquê?
- Porque o seu pai é um indivíduo orgulhoso. Tudo
isto está a rebaixar-lhe o moral. Um pouco, não faz mal.
Excessivamente, arruiná-lo-á. Mais, arruiná-lo-á aos olhos
da comunidade. Isto é uma terra pequena. O seu pai é
uma figura proeminente. É preciso esmagar as provas
que se estão a acumular ou, então, será ele esmagado.
Se o advogado desatar a aproveitar-se dos efeitos técnicos
e se a opinião pública se convencer que o seu pai
foi absolvido, graças a truques jurídicos... ora, para que
serve eu estar com isto?
- Quer que eu fale com o papá?
- Não - retorquiu Mason, taciturno.
- Porque é que já não quer?
- Porque ele não é meu constituinte. O facto de eu
estar a criticar o que o outro advogado está a fazer nem
sequer...
- E o que vamos fazer com respeito ao pato?
210
- Vá contar o que se passou. Nesta altura, já não
posso ajudar o seu pai. O seu depoimento vai arrastar
Marvin para a embrulhada, provocar escândalo, provavelmente
ter como consequência o suicídio do rapaz ou
fazê-lo alistar-se no Exército, antes de concluir o curso...
e você sabe muito bem o que acontecerá. Fará todos os
possíveis para não voltar. E se voltar, não tornará a vê-lo.
Lois estava pálida, mas firme.
- Que hei-de fazer?
- Deixe a sua consciência guiá-la.
- Muito bem, então, vou anunciar publicamente o
meu casamento com Marvin, levá-lo a Yuma para nos
casarmos esta noite. Depois, falo com o juiz e conto-lhe
a história do pato.
A jovem fitou Della, que a observava com simpatia,
e exclamou, com furor:
- Não se compadeçam de mim. Podem estar certos
de que sou pessoa para me deixar convencer; mas, aqui
o que é preciso é acção e não, lágrimas.
- Suponha que ele não quer casar consigo? - perguntou
Mason.
Com profunda resolução, ela disse:
- Farei com que queira.
- E depois tenciona contar a história do pato?
- Tenciono. Espero que não seja muito incomodado
por esse motivo ou que não lhe estrague os tais planos;
mas, tenho que contar, suceda o que suceder. Estou farta
desta mentira entalada na garganta.
- E depois?
- Depois, se não se puder demonstrar que o pai
de Marvin estava inocente, que mal faz? Marvin já será
meu marido. Assim, não poderá fugir-me.
- Haverá muita roupa suja nos jornais.
- Deixá-lo haver. O que me preocupa é o que lhe
possa acontecer a si... mas, eu não posso arriscar a
posição do meu pai, mantendo-me calada mais tempo.
211
- Não se preocupe comigo. Faça o que entender.
Impulsivamente, Lois estendeu-lhe a mão. Os seus
dedos frios apertaram a palma do advogado.
- Estou certa que tem feito coisas maravilhosas na
vida, Mr. Mason; mas, parece-me que esta é a mais
maravilhosa... aceitando as coisas com tanto desportivismo...
depois de ter feito o que fez por Marvin e ter
arriscado a sua carreira profissional... Enfim, muito
obrigada.
Mason bateu-lhe no ombro.
- Não olhe para trás. Você é uma lutadora. Há-de
conseguir ter na vida aquilo que pretende... se continuar
a lutar com esse vigor.
- Enfim, não julgue que não vou lutar até à última!
- e dirigiu-se para a porta.
Olharam-na em silêncio, enquanto ela virava a maçaneta
da porta. Eram desnecessárias as despedidas convencionais
ou as fórmulas de delicadeza. Ficaram simplesmente
a observá-la.
A campainha do telefone rompeu abruptamente o
silêncio. Della Street deu um salto, como se lhe tivessem
apontado uma pistola às costas. Lois Witherspoon
parou, à espera.
Mason, como era o que estava mais próximo do telefone,
atendeu.
- Estou sim... Fala Mason... Quando?... Muito bem,
irei imediatamente.
Pousou o receptor no descanso e disse para Lois;
- Vá buscar o seu noivo, sigam para Yuma, de automóvel,
e casem-se.
- É o que vou fazer.
- Mas, não fale a respeito do pato. Ela sacudiu a cabeça.
Mason sorriu.
- Já não é preciso.
- Porquê?
212
- O seu pai mandou-me chamar. Quer que eu tome
conta do processo, na audiência de amanhã. Lois
comentou, friamente.
O senhor não pode ser advogado do papá!
- Porque não?
. -Porque ajudou a reunir provas contra ele.
- Eticamente, talvez tenha razão; porém, trata-se
de uma questão académica que não a deve preocupar...
porque amanhã, quando eu entrar na sala das audiências,
farei ir pelos ares em mil e um estilhaços legais as provas
acumuladas contra seu pai.
Lois ficou imóvel durante algum tempo, com enérgica
resolução espelhada no rosto e os olhos muito brilhantes.
Repentinamente, avançou para Mason:
- Não quer dar um beijo à noiva? - perguntou.
CAPÍTULO XX
Ouviu-se um murmúrio de excitação, quando Perry
Mason atravessou a divisória que separava a mesa dos
advogados do espaço ocupado pelo público, e se sentou
ao lado de Lawrence Dormer e do réu.
O juiz Meehan exigiu silêncio.
Lawrence Dormer ergueu-se.
- Desejo pedir autorização ao Tribunal para que
consinta que Mr. Perry Mason se associe à defesa deste
processo.
- Concedido! - replicou o magistrado.
Mason ergueu-se, lentamente.
- Nesse caso, Excelência, em nome do réu John L.
Witherspoon, retiramos a objecção, feita ontem às perguntas,
apresentadas pelo procurador distrital ao guarda
Haggerty. Estamos dispostos a consentir que as referidas
perguntas sejam respondidas.
O procurador Copeland não pôde esconder a sua
213
surpresa. Pressentindo qualquer armadilha, levantou-se e
observou:
- Evidentemente, o Tribunal levará em conta que
as perguntas feitas destinam-se apenas a mostrar que
o réu tinha acesso a venenos similares aos utilizados,
conhecimento do seu uso e da sua aplicação, e também
conhecimento da natureza fatal do gás,
- Já tomámos tudo isso em consideração - observou
o juiz.
- Desejo que os advogados de defesa tomem a
mesma atitude - anunciou Copeland, fitando Perry
Mason.
Mason sentou-se e cruzou as pernas.
- O advogado de defesa conhece a lei... ou, pelo
menos, julga conhecê-la - respondeu, com um sorriso.
Durante cerca de meio minuto, o procurador distrital
Copeland mostrou hesitação; depois, mandou ler as perguntas
que fizera à testemunha e esta respondeu.
Apalpando o terreno cuidadosamente, Copeland
demonstrou que, ao descobrir-se o cadáver de Leslie Milter,
verificara-se que o veneno, a disposição e o processo
eram exactamente os mesmos que tinham causado a
morte de Roland Burr.
Copeland também revelou que Witherspoon tinha
estado no apartamento de Milter, cerca de trinta ou
quarenta minutos depois da descoberta do cadáver; que
tinha afirmado à testemunha Haggerty, que andava à procura
de Perry Mason, o qual, segundo informara o guarda,
acabara de sair. Witherspoon declarara, então, que "tinha
andado por toda a parte à procura de Mr. Mason e viera
ao apartamento de Milter como última esperança". A testemunha
afirmou que Witherspoon, não só não fizera
referência a uma anterior visita àquele apartamento, mas
também dera a entender aos circunstantes que era aquela
a primeira vez que ali entrava.
Todas estas perguntas foram inquiridas, registadas
214
nos autos e respondidas sem objecções. Pelo extraordinário
cuidado com que Copeland preparava as suas perguntas,
via-se que estava cada vez mais preocupado.
No final do interrogatório de Haggerty, o procurador
ergueu-se e disse:
- Se o Tribunal der licença, estas declarações serão
relacionadas com as da próxima testemunha, por meio
das quais provaremos que o réu foi visto a sair do apartamento
de Milter, pouco mais ou menos, à hora a que o
crime deve ter sido cometido. O Tribunal deve ter em
conta que estes trâmites podem parecer ligeiramente
invulgares, que todo este conjunto de provas está a ser
exposto para um fim muito limitado e - acrescentou,
em tom triunfante - tem sido aceite sem objecções por
parte do réu.
- Tem mais algumas perguntas a fazer? - inquiriu
Mason.
- Não. Pode iniciar o seu interrogatório.
- Mr. Haggerty, quando entrou, pela primeira vez,
naquele apartamento, notou o aquário dos peixes dourados,
no qual havia um patinho?
- Protesto contra essa pergunta - interrompeu
Copeland, prontamente. - As provas respeitantes ao
assassínio de Milter foram introduzidas neste processo
com um objectivo muito limitado. Não pretendo julgar
esse processo-crime na presente altura.
- O que o senhor pretende ou não pretende, não
interessa nada - replicou Mason. - O senhor abriu o
precedente dos exames directos até ao ponto que entendeu
e lhe convinha. De acordo com as leis do inquérito
judiciário, tenho o direito de fazer o mesmo. E é o que
estou a fazer, senhor procurador distrital, levar o inquérito
até às últimas consequências!...
- Protesto, senhor doutor juiz, estas questões não
fazem parte do inquérito.
- Porque não? - perguntou Mason. - O senhor
215
procurou estabelecer ligação entre o réu e o assassínio
de Milter.
- Mas, apenas com o fim de mostrar a familiaridade
com este método especial de perpetrar crimes - ripostou
o procurador.
- Não me interessam quais eram os seus fins respondeu
Mason. - Vou demonstrar que John L. Witherspoon
não pode estar ligado ao assassínio de Milter. Vou
demonstrar que Milter já estava morto antes de Witherspoon
ter iniciado a subida das escadas para o seu apartamento.
Vou provar isto por intermédio das suas próprias
testemunhas, assim como por algumas minhas. E por
último, vou-lhe meter pela boca abaixo todos os seus argumentos.
O senhor é que principiou e...
O juiz bateu com o martelo sobre a secretária.
- Chama-se a atenção do advogado de defesa para
que não se dirija a qualquer personalidade; mas sim ao
Tribunal.
- Muito bem - concordou Mason, sorrindo. - senhor
doutor juiz, ponho em evidência que o procurador
distrital procurou apresentar certas provas com um objectivo
limitado. Não houve objecções da parte da defesa
para apresentação dessas provas. Demonstrou a parte que
lhe pareceu beneficiar o seu ponto de vista. Sentimo-nos,
portanto, com direito de fazer o mesmo.
- No que diz respeito a esta pergunta específica, o
protesto não é aceite. A testemunha que responda determinou
o juiz.
- É verdade, sim, senhor. Havia um patinho no
aquário - disse Haggerty.
- E notou alguma coisa de extraordinário nesse
patinho?
- Notei.
- O que foi?
- Dava a impressão que o animal não sabia nadar...
que se estava a afogar.
216
Uma gargalhada retumbante encheu a sala e dominou
os esforços do juiz para manter silêncio.
Haggerty mexeu-se na cadeira pouco à vontade; mas,
olhou para o público, com expressão de desafio.
- Como esta comunidade é essencialmente agrícola
- prosseguiu Mason com um sorriso, quando as gargalhadas
se extinguiram -, verifico que a ideia de um pato
não saber nadar e estar a afogar-se num aquário é bastante
divertida para o público. Tem a certeza que o pato
estava a afogar-se, Haggerty?
- O pato tinha qualquer coisa de anormal. Não sei o
que era; mas estava mergulhado dentro de água, apenas
com a ponta do bico de fora.
- Já ouviu alguma vez dizer que os patos mergulham?
Ouviram-se na sala novas gargalhadas abafadas.
Haggerty respondeu afirmativamente e acrescentou:
- Mas, esta foi a primeira vez que vi um pato a mergulhar
de rabo.
As gargalhadas estralejaram, de novo.
- Está absolutamente certo que o pato tinha algo de
anormal, quando entrou na sala de Milter? - perguntou
Mason, uma vez restaurada a ordem.
- Estou. Cerca de dois terços estavam mergulhados
na água.
- O que aconteceu ao pato, depois?
- O pato pareceu recompor-se. Eu estava bastante
atrapalhado com o gás. Porém, quando me senti melhor,
tornei a reparar no pato. Nessa ocasião, já estava a flutuar,
normalmente.
- O pato ainda estava dentro do aquário quando o
réu entrou no apartamento?
- Estava.
- O réu fez alguma declaração a respeito do pato?
- Fez. ; . , ., , .
- Que disse?
217
-Disse que o pato era dele.
- Mais nada?
- Que Marvin Adams, um jovem que estivera hospedado
em sua casa, trouxera o pato consigo, nessa noite.
- E o réu identificou o pato, categoricamente?
- Sim, de modo absoluto. Declarou que juraria fosse
onde fosse que aquele pato era dele.
Mason fez um gesto com a cabeça e sorriu:
- Muito obrigado, guarda Haggerty, por ter prestado
tão boas declarações. Não preciso de mais nada.
O procurador Copeland teve uma hesitação e, por
fim, chamou:
- Alberta Cromwell.
Alberta Cromwell percorreu a coxia central da sala
de audiências, ergueu a mão direita, prestou juramento
e sentou-se no banco das testemunhas. Por instantes,
fitou Perry Mason, com olhos duros e desafiadores, os
olhos de uma mulher que tomara resoluta decisão sobre
o que ia dizer e estava disposta a negar todas as coisas
que não lhe conviesse admitir.
Copeland mais uma vez foi suave e cauteloso. Desta
vez, caminhava por terrenos jurídicos mais familiares e
as suas maneiras e o seu tom revelavam o seu estado de
espírito,
- A senhora chama-se Alberta Cromwell e vive aqui
em El Templo?
- Exactamente.
- E vivia aqui na noite em que se julga ter sido
cometido o crime?
- Sim, senhor.
- Vivia numa casa de apartamentos no n.º 1162 da
Cinder Butte Avenue?
- Sim, senhor.
- Na mesma casa de apartamentos onde morava o
falecido Leslie Milter?
- Sim, senhor.
218
- E onde era o seu apartamento em relação ao dele?
- O meu apartamento era ao lado. Há dois apartamentos
no segundo andar. Eu tinha um e ele, o outro.
- Havia alguma porta de ligação ou meios de comunicação
entre os dois apartamentos?
- Não, senhor.
- Ora, vejamos, na noite em questão, viu o réu?
- Vi, sim senhor.
-Onde e quando?
- Faltavam vinte minutos para a meia-noite. Talvez
um quarto de hora. Não tenho bem a certeza. Sei apenas
que já passava das onze e meia e ainda não era meia-noite.
- Onde é que o viu?
- A sair do apartamento de Leslie Milter.
- Tem a certeza de o ter identificado?
- Absoluta. Não só vi a pessoa, mas também tomei
nota do número do automóvel. Tenho a certeza de que era
Mr. Witherspoon.
- Sabe dizer se ele saiu do apartamento do falecido
ou...
- Sei, sim - interrompeu na precipitação de responder
à pergunta. - Sei que saiu do apartamento. Ouvi-lhe os
passos a descer as escadas; depois, ouvi a porta da rua
abrir-se e bater, e ele atravessou o passeio.
- Como podia ter observado tudo isso?
- Da minha janela. A casa tem duas janelas de
sacada de cada lado do segundo andar. Uma pertencia a
Mr. Milter e a outra a mim. Da minha janela, vejo a porta
do apartamento de Mr. Milter.
- Acabei o interrogatório - disse Copeland.
Mason ergueu-se lentamente fitando a testemunha
com a maior firmeza.
- Em vida, conheceu Leslie Milter?
- Conheci.
- Já o conhecia em Los Angeles?
219
- Sim.
- Era a sua mulher legítima?
- Não.
- Não era a sua mulher?
- Não, senhor.
- Alguma vez se intitulou sua mulher legítima?
- Não.
- Alguma vez viveu com ele maritalmente?
- Protesto, a pergunta é incompetente, irrelevante
e imaterial, nada tendo que ver com o inquérito - vociferou
Copeland, indignado. - Essa pergunta, se me é
permitido dizer, tem por fim único amesquinhar a testemunha.
Não tem qualquer fundamento...
- O protesto é aceite.
Mason fez uma vénia, para discutir a determinação
do juiz e replicou respeitosamente:
- Senhor doutor juiz, se me fosse permitido discutir
esta opinião, parece-me que a atitude da testemunha
constitui factor material e...
- O Tribunal não autoriza a pergunta - declarou o
juiz Meehan. - O senhor tem o direito de perguntar à
testemunha se era esposa do falecido, se alguma vez se
intitulou sua mulher. É-lhe permitido perguntar se era sua
amiga, mas tendo recebido as respostas que obteve, o
Tribunal determina que o senhor não tem o direito de
colocar esta testemunha numa situação desagradável em
face das presentes condições do processo. Deve compreender,
senhor doutor, que as provas respeitantes ao
assassínio de Leslie Milter são aceites para fins limitados.
Se bem que o seu direito de interrogar sobre os
factos que as autoridades descobriram nesse apartamento
não seja limitado, o seu interrogatório a esta testemunha
quanto aos motivos e causas é limitado. O Tribunal
é de opinião que as relações formuladas na sua
pergunta, mesmo que tenham existido, podem ser bastante
remotas.
220
- Muito bem - disse Mason. - Seguirei outro caminho.
Miss Cromwell, era-lhe possível sair pelas traseiras
do seu apartamento e, saltando o pequeno tabique
de madeira aí existente, entrar no apartamento de Milter
pela outra porta das traseiras, não é verdade?
- Julgo absolutamente possível.
- Alguma vez fez isso?
Um brilho de triunfo chamejou nos olhos da mulher.
- Não - respondeu categoricamente, num tom que
não admitia nova observação.
- A senhora não passou por aí na noite em questão?
- Certamente que não.
- Não se avistou com Leslie Milter nessa noite?
- Tinha-o visto ao entardecer, quando entrou no apartamento.
- Mas, não esteve dentro do apartamento de Leslie
Milter?
- Não, senhor.
- E Leslie Milter não lhe estava a preparar uma bebida
quente, quando a campainha tocou e ele lhe recomendou
que voltasse para o seu apartamento?
- Não, senhor.
- Ora, a senhora declara que viu o réu a sair do
apartamento. Estava a vigiar as entradas e saídas?
- Não, senhor. Não estava a vigiar coisa nenhuma,
quando vi o réu sair. Estava, por acaso, à janela, quando
isso aconteceu.
- Por que motivo estava à janela?
- Por acaso.
- Parece-lhe que o réu, se tivesse olhado para cima,
a teria visto?
- Não, não me parece.
-Porquê? .
- Porque eu espreitei para fora. Para ele me ver,
seria necessário espreitar para dentro.
- E isso era impossível, não?
221
- Era.
- Quer dizer que ele não a podia ter visto à janela,
porque a senhora não tinha nenhuma luz acesa?
- Exactamente.
- Então, a sala estava completamente obscurecida?
A testemunha hesitou e respondeu:
- Sim, calculo que sim. Devia estar.
- Na sala onde se encontrava as luzes estavam
acesas?
- Não, senhor. Parece-me que não.
- Tinha os estores levantados?
- Não estou bem certa.
- Acaso quer que o Tribunal acredite que a senhora
viu a testemunha através do estore corrido? ,;
- Não, não queria dizer isso.
- Então, o que queria dizer?
Por instantes, Alberta Cromwell sentiu-se colhida
numa armadilha e o seu rosto revelou desespero. Depois,
descobriu uma saída e respondeu triunfante:
- Julguei que a sua pergunta se referia a todos os
estores. Eu sabia que o estore da minha janela não estava
corrido; mas, não me lembrava dos outros.
Sorriu satisfeita, como que a dizer:
- Julgavas que me tinhas apanhado. Mas, enganaste-te.
- Então, não havia iluminação no quarto? - repetiu
Mason.
- Não, não havia, tenho a certeza.
- Com que fim entrou nesse quarto, às escuras?
- Fui procurar qualquer coisa.
- A janela em que a senhora estava encontra-se
longe ou perto da porta?
- Bastante afastada.
- E o interruptor da luz é próximo da porta, não?
É.
- De modo que, quando a senhora entrou nessa sala
222
à procura de qualquer coisa, que não se lembra agora,
não acendeu a luz, mas caminhou directamente através
da sala às escuras até à janela, de onde observou a porta
do apartamento de Leslie Milter?
- Encostei-me apenas... a meditar.
- Estou a perceber. Depois, quando eu apareci no
apartamento e toquei à campainha na intenção de entrar,
a senhora desceu as escadas do apartamento, não foi?
- Foi.
- E esteve a conversar comigo?
- Estive.
- E andámos durante algum tempo juntos em direc-
ção ao centro da cidade? ; *;
- Exacto.
- E a senhora dirigiu-se para a estação dos autocarros?
O procurador distrital tentou interromper.
- Senhor doutor juiz, tenho de protestar. Este interrogatório
está a ir longe demais. O que a testemunha fez ou
onde foi, depois de sair do apartamento, não diz respeito
ao inquérito. A pergunta é incompetente, irrelevante e
imaterial e está longe de ter relação com o processo.
O Tribunal deve ter em conta que todas estas provas
foram apresentadas com um objectivo muito limitado.
O juiz Meehan concordou:
- O Tribunal está disposto a ouvi-lo discutir os
pontos que entender, Mr. Mason, se sobre eles quiser
argumentar; mas, parece-nos que a posição tomada pelo
procurador distrital é correcta.
- Também me parece - respondeu Mason. - Estou
plenamente de acordo e não tenho mais perguntas a fazer
a esta senhora. Muito obrigado, Miss Cromwell.
Manifestamente, ela esperava uma batalha mais dura
com Mason e a sua calma aceitação das declarações
feitas, que eram tão contrárias às que anteriormente lhe
apresentara, surpreendeu-a.
223
Alberta Cromwell estava prestes a abandonar o
banco das testemunhas, quando Mason disse, casualmente:
- Mais uma pergunta, Miss Cromwell. Reparei agora
que Raymond E. Allgood está presente nesta sala, conhece-o?
Ela hesitou e respondeu:
- Conheço.
- Também conhece a secretária dele, Sally Elberton?
- Conheço.
- Alguma vez se intitulou na presença deles esposa
de Leslie Milter?
- Eu... isto é...
,,,; -Quer fazer o favor de se levantar, Miss Elberton?
A jovem loura ergueu-se muito relutantemente.
- Nunca declarou a esta senhora que era mulher
legítima de Leslie Milter? - inquiriu Mason.
- Nunca disse que era mulher legítima - respondeu
a testemunha. - Disse-lhe apenas que o deixasse em
paz e... - interrompeu-se abruptamente no meio da frase,
dominando a corrente de palavras que principiara a brotar-lhe
da boca.
Quando compreendeu o efeito do que tinha dito, ao
olhar em volta e ao verificar as expressões de curiosidade
que suscitara, deixou-se cair lentamente no banco das
testemunhas como se os joelhos tivessem subitamente
perdido as forças.
- Continue, termine o que ia a dizer - aconselhou
Mason.
Alberta Cromwell replicou indignada.
- O senhor passou-me uma rasteira. Fez-me pensar
que terminara o interrogatório e, depois, mandou levantar
aquela mulher para...
- Que razões de queixa tem contra aquela mulher,
conforme lhe chama?... Não é preciso mais nada, Miss
Elberton. Pode sentar-se.
224
Sally Elberton sentou-se, consciente dos pescoços
que se viravam para a examinar; depois, todos os olhares
se concentraram, de novo, em Alberta Cromwell.
- Está bem, vou contar-lhes toda a verdade - disse
a testemunha, como se, de súbito, tivesse decidido esclarecer
tudo. - O que disse é verdadeiro, excepto uma
coisa que estava a procurar esconder. Eu era a mulher
de Leslie Milter. Ele nunca casou comigo. Disse-me que
não era necessário, que estávamos tão legalmente casados,
como se nos tivéssemos casado numa igreja. Eu acreditei.
Vivi com ele maritalmente e ele apresentava-me em
toda a parte nessa qualidade. Depois, apareceu aquela
mulher que lhe virou completamente a cabeça. Ela fê-lo
querer abandonar-me. Eu sabia que ele, de quando em
quando, me enganava; mas, isso era quase normal. O que
estava para acontecer era diferente. Aquela maldita virou-lhe
a cabeça completamente do avesso e...
O procurador distrital, profundamente atónito, readquiriu,
de súbito, a presença de espírito para interromper,
dizendo:
- Um momento, senhor doutor juiz. Também me
parece que estas declarações são demasiado remotas e
distantes, isto é, incompetentes, irrelevantes, imateriais
e...
- Não sou da mesma opinião - declarou o juiz, rudemente.
- Esta testemunha está agora a fazer um depoimento
em contradição directa com as declarações que
prestou há minutos sob juramento. Está a confessar que
falseou uma parte do seu depoimento. Nestas circunstâncias,
o Tribunal pretende ouvir todas as explicações
que a testemunha pretenda apresentar. Prossiga, Miss
Cromwell.
A testemunha virou-se para o juiz e afirmou:
- Suponho que V. Ex.a não compreenderá o meu
ponto de vista, mas as coisas passaram-se assim. Leslie
abandonou-me e veio para El Templo, Levei dois ou três
15 - VAMP. G. 7
225
dias a descobri-lo. Vim cá ter com ele. Disse-me que viera
tratar de negócios e que eu não podia estar na sua companhia,
Que estragaria tudo se levantasse qualquer
questão. Enfim, verifiquei haver um apartamento vago ao
lado do dele e mudei-me para cá. Estou convencida de
que, na verdade, ele andava a trabalhar em qualquer
investigação...
- Não interessa o que parece à senhora - interrompeu
o procurador. - Limite-se a responder às perguntas
de Mr. Mason, Miss Cromwell. Se o Tribunal me dá
licença, permito-me observar que esta testemunha não
devia ser autorizada a fazer uma declaração desta natureza.
Só devia responder às perguntas que lhe fossem
feitas em interrogatório.
O juiz Meehan inclinou-se para a frente para observar
a jovem.
- Pretende explicar as contradições do seu depoimento,
Miss Cromwell? - inquiriu.
-Sim, senhor doutor juiz.
-Então, faz favor de continuar.
- Depois, Leslie disse-me que se eu me portasse
bem e não fizesse naufragar o barco, dentro de uma
semana, pouco mais ou menos, poderíamos ir embora
e viajar por onde nos apetecesse. Iríamos ao México, à
América do Sul, onde nos desse na cabeça. Contou-me
que ia receber muito dinheiro e...
- Não estou particularmente interessado em saber
o que ele lhe disse - interrompeu o juiz. - Desejo
apenas saber por que motivo falseou uma parte do seu
depoimento e se foi essa a única parte em que não disse
a verdade.
- Tenho de explicar isto, para que se compreenda.
Leslie contou-me na noite em que foi morto, que o seu
negócio estava quase concluído, mas que Sally Elberton
226
viria até cá para ultimar umas coisas. Disse-me que entre
ela e ele estava tudo acabado. Que as suas relações eram
justificadas apenas pelo desejo de saber certas informações.
Que se estivera a servir dela para realizar o
negócio. Acrescentou que ela era uma cabeça de vento
e que precisara entretê-la de qualquer maneira até conseguir
arrancar-lhe as informações que necessitava.
- Esteve nessa noite no apartamento de Leslie
Milter? - perguntou o magistrado.
- Sim, estive. Fui lá para conversar e ele preparou-me
uma bebida quente com rum e manteiga. Não
esperávamos a chegada de Sally Elberton antes da
meia-noite. A certa altura, a campainha tocou e Leslie
mostrou-se aborrecido ao ponto de dizer: "Dei àquela
tipa as chaves do meu apartamento para que não tivesse
de ficar diante da porta a tocar à campainha aos olhos
de toda a gente. Naturalmente, perdeu as chaves. Raspa-te
para o teu apartamento e, daqui a três quartos de hora,
dar-te-ei o sinal de que o caminho está livre."
- Que foi que fez? - inquiriu Mason.
- Dirigi-me para a porta das traseiras pela qual
passei para o meu apartamento. Ouvi-o fechar a porta à
chave por detrás de mim. Depois, ouvi-o dirigir-se para a
parte da frente.
- Ficou à espera para ver quem entrava?
- Não, senhor, não fiquei. Fosse como fosse, ela já
tinha entrado quando me aproximei da minha janela.
Sentei-me a ouvir telefonia.
- E depois?
- Passado algum tempo, principiei a enervar-me e a
ficar um bocado desconfiada. Fui nos bicos dos pés até à
porta das traseiras, mas nada consegui ouvir; encostei o
ouvido à parede e pareceu-me ouvir alguém a mover-se
muito cautelosamente. Depois, tive a impressão de
escutar vozes. Por fim, decidi ir à janela para observar a
porta e saber ao certo quem sairia. Dirigi-me para o quarto
227
da frente e instalei-me à janela. Vi que estava um automóvel
estacionado em frente da casa e depois este
senhor... - apontou para Witherspoon - ... saiu e tomou
o lugar no carro. Eu desconhecia que Leslie estivesse à
espera de qualquer homem e calculei que fosse um
polícia.
- Porquê, um polícia? - perguntou Mason.
- Sei lá! Leslie tinha tendência a envolver-se em
complicações de quando em quando e eu... fosse lá por
que fosse, tomei nota do número do carro.
- Que aconteceu a seguir?
- Resolvi ir tocar à campainha de Leslie. Pensei que
isso o faria vir à porta e que, se estivesse alguém lá
dentro, lá dentro ficaria. Eu... eu não estava vestida, tinha
apenas um roupão sobre as roupas interiores. Por isso,
fui ao meu quarto e vesti-me. Entretanto, pensei ser aconselhável
ir espreitar à porta detrás. Estava fechada à
chave. No cimo, há um ralo de vidro. Pondo-me nos bicos
dos pés, espreitei. Vi que a cozinha estava muito cheia
de fumo. Empurrei um caixote para espreitar melhor pelo
ralo. Vi uns pés masculinos com as pontas dos sapatos
viradas para cima e que o tacho do açúcar e da água
secara de tanto ferver. Bati à porta e ninguém respondeu.
Tentei abrir o fecho em vão. Voltei então ao meu apartamento
e desci as escadas a correr. O senhor, Mr. Mason,
estava a tocar à campainha, de modo que não me atrevi
a mostrar muito interesse ou a tentar forçar a minha
entrada. Logo que consegui livrar-me de si, atravessei
a rua e telefonei para a polícia a comunicar que se
passava algo de anormal no apartamento de Milter. Em
seguida, dirigi-me para a estação dos autocarros e esperei...
Esta é que é a verdade nua e crua.
O juiz olhou para Perry Mason e inquiriu:
- Tem mais algumas perguntas a fazer?
- Mais nenhuma, senhor doutor juiz.
228
O procurador distrital Copeland respondeu à pergunta
do juiz com um movimento atónito da cabeça.
-Está bem! - disse o juiz Meehan à testemunha,
- Está desculpada.
Foi só quando ouviu esta amável e benevolente declaração
do magistrado que Alberta Cromwell rompeu em
lágrimas. A soluçar, percorreu, aos ziguezagues o espaço
que separava o banco das testemunhas do sítio onde se
aglomerava o público.
Um oficial de diligências aproximou-se do procurador
distrital Copeland, bateu-lhe no ombro e entregou-lhe um
papel dobrado.
Copeland examinou-o com expressão admirada e, em
seguida, disse para o juiz:
- Excelência, parece-me que descobri um facto
muito estranho e invulgar. Se o Tribunal me der licença,
chamarei a depor uma testemunha da parte contrária.
- Muito bem - concordou o magistrado.
O procurador distrital levantou-se, caminhou para a
divisória e deteve-se a olhar para a figura pesadamente
velada de Mrs. Roland Burr, que se encontrava sentada
na primeira fila do público. Ergueu a voz e declarou em
voz dramática:
- Se o Tribunal permitir, desejo ouvir agora o depoimento
de Diana Burr, viúva de Roland Burr. Será ela a
nossa próxima testemunha. Mrs. Burr, quer fazer o favor
de se levantar e prestar juramento?
Mrs. Burr mostrou-se surpreendida e indignada, mas
o juiz Meehan secundou o pedido do procurador distrital
e ela não'teve outro remédio senão dirigir-se para o banco
das testemunhas, onde prestou juramento, com ares trágicos
e expressão susceptível a que os vestidos negros
emprestavam aparente veracidade. Depois de declarar
o nome e a morada, ficou à espera, enquanto o procurador
229
distrital olhava em volta para se certificar que todo o
público lhe estava a prestar atenção.
- Já alguma vez viu um pato a afogar-se? - inquiriu,
em tom dramático.
Desta vez, não houve gargalhadas na sala. Bastava
fitar Mrs. Burr para se saber que o momento era de grande
emoção.
- Já - respondeu Mrs. Burr, em voz baixa.
No silêncio que se fez na sala, ouvia-se a respiração
das pessoas que se mexiam involuntariamente nas cadeiras
procurando ver melhor a testemunha.
- Onde? - perguntou o procurador Copeland. , ,
- Em casa de John L. Witherspoon.
-Quando?
- Há cerca de uma semana.
-Que se passou?
- Marvin Adams falou em ser possível afogar um
pato. O meu marido riu-se e Adams foi buscar um patinho
e um aquário. Deitou qualquer coisa na água e o pato
começou a afundar-se.
- E o pato afogou-se?
- Mr. Adams tirou-o para fora antes de o animal mergulhar
completamente.
O procurador distrital virou-se triunfante para Perry
Mason.
- Pode prosseguir o interrogatório - disse.
- Muito obrigado - disse Mason, com exagerada
delicadeza.
Durante alguns instantes, que se prolongaram, Mason
deixou-se estar sentado completamente imóvel; depois,
perguntou calmamente:
- A senhora, em tempos, viveu em Winterburg City,
Mrs. Burr?
- Vivi.
- Conheceu lá o seu marido?
230
- Conheci.
- Que idade tem?
Ela hesitou e respondeu:
- Trinta e nove anos.
Conheceu em Winterburg City uma tal Corine
Hassen?
- Não.
- Ouviu alguma vez o seu marido falar no nome
dessa senhora?
A testemunha desviou os olhos do advogado.
- Qual é o objectivo de tudo isto? - interrompeu
o procurador distrital. - Porque não a interroga a respeito
do pato?
Mason ignorou a intervenção.
- Alguma vez ouviu o seu marido falar nessa senhora?
repetiu.
- Sim... sim... Há muitos anos.
Mason tornou a sentar-se na cadeira e manteve-se
silencioso alguns segundos.
- Quer fazer mais algumas perguntas? - perguntou o
juiz a Mason.
- Mais nenhuma, Excelência.
O procurador Copeland comentou com um sorriso
sarcástico:
- Estava à espera que fizesse algumas perguntas
que esclarecessem o caso do pato afogado.
- Isso sei eu! - disse Mason, sorridente.--O caso
do pato afogado é agora problema seu, senhor procurador
distrital. Eu não tenho mais perguntas a fazer a esta
testemunha.
- Muito bem, então, vou chamar Marvin Adams para
depor a seguir. Devo dizer. Excelência, que não esperava
ter que chegar a isto, mas o Tribunal compreenderá que
estou simplesmente a procurar decifrar os factos verdadeiros
deste processo. Em vista do que esta testemunha
declarou, parece-me que... .
231
- O procurador distrital não precisa de dar explicações
- disse o juiz. - Basta chamar a testemunha.
- Marvin Adams, queira aproximar-se - disse o procurador.
Com evidente relutância, Marvin Adams avançou lentamente
para o banco das testemunhas, prestou juramento
e sentou-se, encarando os olhos hostis do procurador.
- O senhor ouviu o que a última testemunha disse
acerca do caso do pato afogado?
- Ouvi, sim, senhor.
- Realizou essa experiência?
- Realizei.
- Ora, muito bem - disse o procurador, erguendo-se
e apontando um dedo acusador para Marvin Adams. Realizou
essa mesma experiência no apartamento de
Leslie Milter na noite em que este foi assassinado?
- Não, senhor.
- Conhecia Leslie Milter? , ?
- Não, senhor.
- Nunca o viu?
- Não, senhor.
- Esteve alguma vez no apartamento de Milter?
- Não, senhor.
- Mas, realizou a experiência de fazer afogar o pato
e explicou-a aos hóspedes reunidos em casa de Mr.
Witherspoon?
- Sim, senhor.
- E - disse o procurador, em tom triunfante - entre
os presentes contava-se Mr. John L. Witherspoon, não é
verdade?
- Não, senhor. Mr. Witherspoon não estava presente.
Durante alguns minutos, o procurador ficou sem
saber o que dizer.
-Afinal, o que é que o senhor fez? - perguntou,
232
procurando não dar a perceber o seu desapontamento
Como é que fez o pato afundar-se?
- Usando um detergente.
- O que é um detergente?
- É uma descoberta relativamente recente por meio
da qual a natural antipatia existente entre a água e a
gordura pode ser eliminada.
- Como é isso feito?
Enquanto Marvin Adams explicava a acção complexa
dos detergentes, o público mantinha-se perfeitamente
boquiaberto. O juiz Meehan inclinou-se para a frente a
observar bem o jovem, mostrando nítido interesse pela
sua exposição.
- E quer dizer que, com o auxílio desse detergente,
o senhor pode fazer com que um pato se afunde? inquiriu
o procurador.
- Exacto. Uns milionésimos de um por cento de um
poderoso detergente, deitado dentro de água, pode causar
a submersão de um pato.
O procurador meditou durante algum tempo e, por
fim, disse:
- Diga-me, o senhor não está de maneira nenhuma
relacionado com o réu deste processo, pois não?
- Estou, sim.
- Como?
- Sou seu genro.
- Quer dizer... o quê?! Que quer dizer?!...
- Quero dizer que casei com Lois Witherspoon. Ela
é minha mulher.
- Quando se efectuou esse casamento?
- Em Yuma, no Arizona, cerca da uma hora da madrugada
de hoje.
De novo, o procurador distrital ficou sem saber o
que dizer. Entre o público, levantaram-se murmúrios.
O procurador Copeland prosseguiu o interrogatório.
233
Passou a fazer as perguntas de maneira cautelosa, tal
como um caçador à procura da sua presa.
- É, sem dúvida, muito possível que uma das pessoas
que assistiu a essa experiência a tivesse contado
ao réu. Não lhe parece?
- Protesto - Interrompeu Mason. - Essa pergunta
tem carácter discutível e exige uma conclusão da testemunha.
- O protesto é aceite - concordou o juiz.
-- Discutiu alguma vez essa experiência do pato com
o réu?
- Não, senhor.
- E com a filha?
- Protesto - repetiu Mason. - Incompetente, irrelevante
e imaterial.
- Aceito o protesto.
Copeland coçou a cabeça, olhou para a superfície
da mesa, onde estavam algumas folhas de papel, olhou
para cima, para o relógio, que estava na parede da sala
de audiências e, de repente, inquiriu:
- Quando saiu do rancho do réu na noite do crime,
levou consigo um patinho, não foi?
- Sim, senhor.
- Esse patinho pertencia ao réu?
- Pertencia, sim. A filha autorizou-me a levá-lo.
- Exactamente. O senhor levou esse pato com um
determinado fim, não é verdade?
. g
Sim.
- Para fazer a experiência? ! ?
- Sim, senhor.
- Tem a certeza de que não esteve no apartamento
de Leslie Milter pouco depois de ter saído do rancho de
Witherspoon?
- Nunca estive no apartamento de Mr. Milter.
-Está disposto a jurar categoricamente que o pato
234
encontrado pelo guarda Haggerty no apartamento de Milton
não era o mesmo pato que trouxe do rancho de Mr,
Witherspoon?
Antes que Adams pudesse responder à pergunta,
Lois Witherspoon disse, em voz clara e firme:
- Ele não pode responder a essa pergunta. Sou a
única pessoa que o pode fazer.
O juiz Meehan exigiu silêncio, embora olhasse curiosamente
para Lois.
Mason erguendo-se, sem fazer ruído, declarou:
- Eu ia protestar contra essa pergunta, Excelência,
com o fundamento de que exige conclusões da testemunha
e de ter carácter discutível. Este Tribunal não se
interessa pelo que uma testemunha está disposta a
jurar. Isso não ajuda a resolver as questões pendentes
perante este Tribunal. As declarações sobre um facto,
feitas por uma testemunha, depois de prestar juramento,
são as únicas que interessam. Perguntar a uma testemunha
se está disposta a jurar tem carácter muito
discutível.
- Trata-se evidentemente de uma maneira, como
qualquer outra, de fazer a pergunta - ripostou o juiz. Tecnicamente,
é possível que o seu protesto seja correcto,
até certo ponto.
- Mesmo que a pergunta seja feita de outra maneira,
exige sempre que a testemunha chegue a uma
conclusão - declarou Mason. -A testemunha pode afirmar
se colocou ou não qualquer pato no aquário que
estava no apartamento de Milter. Pode afirmar se esteve
ou não em casa do morto. Pode afirmar se ficou ou não
com o pato em seu poder, ou o que lhe fez. Mas perguntar-lhe
se determinado pato é aquele que viu anteriormente
ou que teve em seu poder, exige uma conclusão
da parte da testemunha... A não ser que, claro, se
demonstre haver marca discriminativa nesse pato especial
que o torne diferente de qualquer outro pato.
235
- Se assim for, a testemunha pode muito bem declarar
pura e simplesmente que não sabe - opinou o juiz.
Marvin Adams mostrava-se sorridente.
- Mas, eu sei - disse. - O pato que deixei no meu
automóvel...
- Um momento - interrompeu Mason, levantando a
mão. - Há um protesto em discussão neste Tribunal, Mr.
Adams. Abstenha-se de responder até que o Tribunal
decida sobre o protesto.
Lois Witherspoon, ainda de pé, repetiu:
- Ele não pode responder a essa pergunta. Sou eu
a única pessoa que o pode fazer.
- Peço o favor a Miss Witherspoon de se deixar
estar sentada. Quero ordem, nesta audiência.
- Mas, V. Ex.a não compreende, eu...
- Basta! Foi feita uma pergunta à testemunha a
qual provocou, perante o Tribunal, uma objecção de carácter
bastante técnico, é certo; mas, a que o advogado do
réu tem todo o direito...
- Em minha opinião, se o Tribunal me permite, esta
pergunta e este protesto têm mais importância do que
parece à primeira vista. Noto que se aproxima a hora do
intervalo do meio-dia. Permitem-me sugerir que se prossiga
esta discussão logo, às duas horas da tarde?
- Não vejo motivo para isso - declarou o juiz. O
protesto, segundo me parece, é técnico; primeiro,
quanto à natureza da pergunta e, segundo, sobre o facto
de exigir uma conclusão da testemunha. Se a testemunha,
não sabe responder, basta dizê-lo. Portanto, parece não
ser necessário desviar a questão para demonstrações de
que há ou não meios de identificação que permitam à testemunha
dar resposta cabal. Todavia, quanto à forma da
pergunta... refiro-me agora ao ponto em que o procurador
perguntou à testemunha se estaria disposta a jurar determinada
coisa... Acho que o protesto tem toda a razão de
ser. Portanto, o Tribunal aceita o protesto neste assunto
236
particular e específico, e o procurador distrital ficará
autorizado a fazer outra pergunta de maneira adequada...
embora suponha que o advogado de defesa já esteja preparado
para apresentar novo protesto. Por consequência
o protesto será reduzido a auto de tal maneira que não
haja confusão quanto aos assuntos jurídicos expressos.
- Muito bem, Excelência - concordou Mason.
Todavia, peço desculpa e licença para, antes que o procurador
repita a sua pergunta, sugerir ao Tribunal que
avise o procurador que não deve deitar fora um dos mais
valiosos elementos deste processo.
Copeland teve um sobressalto de surpresa e virou-se
rapidamente para Mason:
- A que é que se refere?
- A esse bocadinho de papel que lhe foi entregue
há poucos minutos - ripostou Mason, suavemente.
- O que é que tem?
- É uma prova documental.
O procurador voltou-se para o juiz.
- Garanto, Excelência, que não é prova nenhuma.
É uma comunicação particular e confidencial que me foi
entregue por alguém que está nesta sala.
- Quem? - interrogou Mason.
- Não tem nada com isso! - respondeu Copeland.
O juiz interpôs-se, secamente:
- Basta, meus senhores: é preciso pôr termo a
essas discussões pessoais e o Tribunal vai tentar impor
um pouco mais de ordem nesta audiência. Ora, vamos lá.
Miss Witherspoon, faça favor de se sentar.
- Mas, Excelência, eu...
- Sente-se, se faz favor. Há-de ter ocasião de contar
o que quer dizer, mais tarde. Vejamos, para continuarmos
os nossos trabalhos, foi feita uma pergunta a esta
testemunha, a qual provocou um protesto. O protesto foi
aceite...
- Mais um favor, Sr. Dr. Juiz - voltou a interpor-se
237
Mason. - É preciso não esquecer que eu requeri que o
procurador distrital não destruísse o papel que lhe foi
entregue há poucos minutos.
- Com que fundamento? - perguntou o juiz. Estou
inclinado a concordar com o procurador distrital
que esse papel constitui uma comunicação confidencial.
- É um elemento importantíssimo deste processo insistiu
Mason. - Peço ao Tribunal que aprove o meu
requerimento até eu poder demonstrar a sua importância.
- Com que fundamento? - perguntou, desta vez,
Copeland.
- Façamos uma lista das pessoas que sabiam que
Marvin Adams realizara a experiência do pato afogado,
visto que só uma pessoa nessas condições podia ter
escrito a nota entregue ao procurador distrital... nota
que, presumo, aconselhava o meu colega a chamar Mrs.
Burr para depor e interrogá-la sobre esse assunto. O réu
deste processo desconhecia a experiência. De qualquer
maneira, não foi ele quem escreveu essa nota. Mrs. Burr
também não. Lois Witherspoon não a escreveu igualmente.
Claro está, Marvin Adams também não. No
entanto, a nota foi escrita por alguém que sabia da realização
do local e do momento da experiência. Por consequência,
acho que o Tribunal concordará comigo que tal
prova é importantíssima.
O procurador ripostou:
- Se o Tribunal me der licença, responderei que o
procurador de um processo, assim como as autoridades
policiais que investigam determinado caso, recebem com
frequência informações anónimas sobre certos factos.
A única maneira de conservar tais fontes de informação
é mantê-las confidenciais.
De novo, Mason se interpôs rapidamente:
- Devido ao facto de se aproximar o intervalo do"
meio-dia, peço licença para discutir no gabinete do
Sr. Dr. Juiz, com este e com o procurador, o assunto em
238
questão e convencer ambos da importância deste
pequeno elemento de prova.
- Não vejo o motivo, de momento, para se pedir ao
procurador distrital que apresente como elemento de
prova qualquer comunicação confidencial que possa ter
recebido...
- Muito obrigado a V. Excelência - agradeceu
Copeland.
- Por outro lado - prosseguiu o juiz Meehan-,
parece-me que, se há qualquer hipótese de que o tal
papel venha a constituir elemento de prova importante,
deve ser preservado.
Copeland respondeu, com dignidade:
- Não tinha a mínima intenção de destruí-lo, Excelência.
- Tive a impressão de que o procurador estava prestes
a amarrotá-lo e a deitá-lo fora - observou Mason.
Copeland não perdeu a ocasião de acentuar a sua
posição.
- Já não é esta a primeira vez que o senhor se
engana em assuntos relacionados com este caso.
Mason fez uma vénia.
- Como sou um simples cidadão, os meus enganos
não têm como resultante a condenação de inocentes.
- Basta, meus senhores - interveio, de novo, o
juiz Meehan. - O Tribunal interrompe os seus trabalhos
até às duas horas da tarde. Peço ao advogado de defesa
que me procure no meu gabinete à uma e meia, e também
peço ao procurador que não destrua a nota que lhe
foi entregue, senão depois da reunião a efectuar no meu
gabinete.
Enquanto o público começava a evacuar a sala de
audiências, Mason olhou para Della Street e sorriu:
- Uff! Escapámos por pouco!
- Quer dizer que o senhor estava só a queimar
tempo?
239
-É verdade, a queimar tempo. Não viu que Lois
Witherspoon ia falar na frente de todos,
!- -Seja como for, falará às duas horas.
-Bem sei.
-E então?
Mason tornou a sorrir.
- Isso dá-me duas horas para descobrir uma
saída ou...
- Ou o quê? - insistiu Della, ao verificar que Mason
deixava a frase em suspenso.
- Ou solucionar o caso.
Lois Witherspoon avançou por entre a multidão.
- Que esperteza, não haja dúvida, Mr. Mason; mas,
fique sabendo que nada me deterá.
- Já sei disso. Mas, prometa-me que não falará a
ninguém até às duas horas,
- Vou contar o que se passou a Marvin.
- Não, não faça isso, enquanto ele não acabar de
depor. Não ganha nada com isso.
- Não, vou contar-lhe imediatamente.
- Contar-me o quê? - perguntou Marvin Adams,
aproximando-se por detrás e envolvendo-a com um braço.
- O que se passou com o pato - respondeu Lois.
O delegado do xerife aproximou-se também e disse:
- John Witherspoon quer falar consigo, Mr. Mason.
E quer ver também a filha e...-o xerife abriu-se num
grande sorriso...e o seu novo genro.
Mason aconselhou Adams.
- Talvez seja a boa altura de comporem as vossas
divergências. Diga-lhe que farei o possível para ir falar
com ele, antes da audiência da tarde.
O advogado chamou Drake e perguntou-lhe em voz
baixa:
- Conseguiste descobrir alguma coisa a respeito da
carta?
-Qual delas?
240
- A que te dei... a que Marvin recebeu, oferecendo-lhe
cem dólares para ensinar o signatário a afogar o pato.
- Não descobri coisa nenhuma, Perry. O número do
telefone, conforme previas, é de um grande armazém.
Não conhecem ninguém com o nome de Gridley P. Lahey.
- Então e a carta propriamente dita?
- Não se lhe consegue tirar nada. Foi enviada num
sobrescrito branco e escrita numa folha de bloco, daqueles
que se vendem nas papelarias, nas casas de quinquilharias,
nos quiosques e em tantos outros lugares, que é
completamente impossível descobrir-lhe a origem. Temos
a letra para examinar e mais nada. Agora, não nos serve
para nada seguir esse caminho.
- Pode ser que interesse mais tarde, Paul. Vê se
localizas a mulher que esteve empregada como enfermeira
em casa de Witherspoon... aquela que Burr despediu.
Ela...
- Está cá no tribunal! - interrompeu Drake.
Espera um momento, Perry. Talvez a possa chamar imediatamente.
Afastou-se a passos largos pela porta de molas da
coxia, atravessou a multidão, que continuava a sair lentamente
e, passados minutos, regressava acompanhado
por uma jovem bastante atraente.
- Aqui tens Miss Field, a enfermeira, que estava
de serviço, na manhã em que Burr foi assassinado.
Miss Field estendeu a mão a Mason,
- Tenho estado a seguir os debates muito interessada.
Parece-me que não devia falar com o senhor. Fui
citada como testemunha pelo procurador distrital.
- Para demonstrar que Witherspoon entregou a Burr
a cana de pesca? - perguntou Mason.
- Sim, creio que essa é uma das coisas que o procurador
pretende demonstrar,
- Nunca pescou, pois não, Miss Field?
-Não tenho tempo.
16 - VAMP. G. 7
241
- Percebe alguma coisa de canas de pesca?
- Não.
- Haveria qualquer possibilidade, note bem, qualquer
possibilidade, mesmo a mais remota, de Burr se
levantar da cama?
- Por nada deste mundo. Pelo menos, precisava de
cortar a corda que prendia o peso à perna e, mesmo
assim, duvido que pudesse mexer-se. Se o fizesse, deslocaria
a fractura.
- A corda não estava cortada? ;
- Não.
- Burr não queria que a senhora mexesse em determinado
saco. Foi por isso que a despediu, não foi?
- Sim, foi assim que começaram as nossas discussões.
Estava constantemente a remexer no saco, a
tirar e a pôr livros, iscas de pesca, "moscas", sei lá que
mais. Cada vez que me aproximava da cama, eu tropeçava
no saco. Por fim, disse-lhe que ia guardar tudo numa
gaveta, onde ele pudesse ver as coisas e apontar-me
o que queria para eu lhe entregar, quando as quisesse.
- E ele não gostou dessa ideia?
- Ficou furioso.
- E depois, o que aconteceu?
- No momento, nada; mas, meia hora depois, ele
pediu-me não sei o quê e tornei a tropeçar no saco. Inclinei-me
para lhe pegar e ele segurou-me no braço com
tal força que o ia partindo. Normalmente, dou-me bem
com os doentes; há, porém, coisas que não tolero. Era
muito natural que me limitasse a queixar-me ao médico
e continuasse a prestar serviço; o pior foi que ele me
mandou sair do quarto e ameaçou que, se voltasse a aparecer,
me atiraria à cara com tudo o que tivesse à mão.
Ainda tentou arremessar-me um tubo de metal.
- Onde é que ele arranjara esse tubo de metal?
- Tinha-me mandado buscá-lo na noite anterior.
Tinha uns papéis dentro, umas "plantas" ou lá o que era.
242
Parecia um desses cilindros de metal, onde se guardam
mapas e desenhos.
- Viu essa caixa na manhã do crime?
- Vi.
- Onde?
- Tinha-a ao lado da cama, dentro do tal saco.
- Que fez ele com esse objecto depois de ameaçar
arremessá-lo contra si?
- Pô-lo... deixe-me ver, parece-me que o meteu
entre os lençóis. Estava tão assustada na altura que
nem reparei... nunca vira ninguém com tão grande ataque
de fúria. Às vezes, os doentes dão-nos trabalho; mas,
este era, sem dúvida, um caso muito especial. Assustou-me
deveras. Parecia absolutamente fora de si.
- E telefonou ao médico a contar o que se passara?
- Comuniquei ao médico que o doente estava insuportável
e que eu queria que me viessem substituir.
- Mas, o médico, quando veio, não trouxe outra
enfermeira?
- Pois não. O Dr. Rankin julgou que poderia harmonizar
tudo com um pouco de diplomacia. Não atingiu logo
em que pé estavam as coisas, nem em que estado de
exasperação o doente se encontrava.
- Ele, então, tinha-lhe dito no dia anterior que havia
alguém que o queria matar?
A enfermeira pareceu embaraçada,
- Acho que não devo falar consigo sobre esse
assunto, Mr. Mason, principalmente sem o consentimento
do procurador. Bem vê, sou testemunha no processo.
- Não pretendo prejudicar o seu depoimento.
- Seja como for, não me parece que deva falar consigo
sobre esse assunto.
- Compreendo a sua posição. Está bem, Miss Field;
muito e muito obrigado.
243
CAPÍTULO XXI .;
Apesar do facto de a noite ter sido fria e de ainda se
estar no princípio da Primavera, o sol do meio-dia fez
com que o termómetro subisse até ao cimo do tubo e o
juiz Meehan, sentado no seu gabinete, instalara-se confortavelmente,
sem cerimónias, em mangas de camisa, a
mascar tabaco.
Mason entrou precisamente alguns instantes antes
de Copeland. O juiz Meehan, balouçando-se na sua
cadeira giratória, cumprimentou-os com um aceno de
cabeça e atirou para o escarrador um pouco de pasta de
tabaco amassada em saliva.
- Sentem-se, meus senhores. Vejamos se nos conseguimos
entender.
Os dois advogados sentaram-se.
O juiz Meehan disse:
- Não queremos ocultar nenhumas provas e se há
neste caso alguns factos que dêem a impressão de que
o procurador distrital está a seguir caminho errado, gostaríamos
de saber do que se trata, não é verdade, Ben?
O procurador respondeu:
- Eu estou a seguir o caminho correcto, não tenho
dúvidas. Por isso é que tem havido tantas complicações!
Mason sorriu para o procurador.
- Pessoalmente, gostaria que me esclarecessem comentou
o juiz.
Então, Mason principiou:
- Há cerca de vinte anos, o pai de Marvin Adams
foi executado pelo assassínio do seu sócio, um indivíduo
chamado Latwell. A viúva deste casou-se com um tal
Dangerfield. O crime teve lugar em Winterburg City.
O pai de Adams disse que Latwell lhe contara ir fugir
com uma rapariga de nome Corine Hassen, mas as autoridades
descobriram o cadáver de Latwell enterrado sob
o chão de cimento da cave da fábrica.
244
- Então, foi por esse motivo que se falou há bocado
nessa Corine Hassen? - inquiriu o juiz.
- Eu nunca soube o seu nome - anunciou o procurador
distrital. - Nem sequer percebi o que Mr. Mason
pretendia quando fez perguntas a respeito de Corine
Hassen.
- Witherspoon não sabia nada a este respeito? perguntou
Meehan, acelerando o ritmo da sua mastigação.
- Sabia. Contratou a "Allgood Detective Agency",
de Los Angeles, para investigar. Esta agência encarregou
Milter das investigações e depois despediu-o porque
ele falava demasiado - explicou Mason.
Meehan observou:
- Como devem compreender, esta nossa conversa
não tem carácter oficial. Se quiserem que eu vá para a
sala de audiências e me sente na minha cadeira a ouvi-lo,
faremos isso; porém, se há qualquer razão para que a tal
nota constitua prova valiosa... ou se Witherspoon não
cometeu esses dois crimes e foi outra pessoa, talvez
seja boa ideia termos esta conversa particular para troca
de impressões.
- Nada tenho a objectar - confirmou Copeland.
Mason fez um pequeno gesto com as mãos.
- Vou pôr todas as minhas cartas na mesa.
- Vamos lá a vê-las.
- Milter era um chantagista. Encontrava-se aqui
para receber dinheiro de uma chantagem. O inquérito já
revelou que ele disse à mulher que estava prestes a
receber grossa maquia. Ora, sobre quem estava ele
a exercer chantagem?
- Sobre Witherspoon, evidentemente - respondeu
o procurador.
Mason sacudiu a cabeça.
- Em primeiro lugar, Witherspoon não é pessoa para
pagar chantagens. Em segundo lugar, Milter não dispunha
245
de meios para exercer pressão sobre Witherspoon. Este
não se ralava nada que os factos relacionados com o
crime antigo fossem divulgados. Preparava-se para forçar
a filha a desistir do casamento e a nunca mais pensar
no assunto.
- Então, e a filha de Witherspoon? - lembrou o
juiz. - Ela tem dinheiro?
- Tem.
- Não seria a ela, nesse caso?
- Se Milter lhe fosse contar essa história. Lois teria
casado com Marvin Adams na mesma. Claro que ele
podia dizer-lhe: "Ouça, Miss Witherspoon, conheço uns
factos a respeito do homem com quem vai casar que a
senhora não gostaria de ouvir. Se me pagar tantos milhares
de dólares, não falarei no assunto a ninguém.
- Está bem, mas não é isso o que ele deve ter-lhe
dito - comentou o juiz. - Ele deve ter-lhe dito é o
seguinte: "Pague-me tantos milhares de dólares e não
direi nada a seu pai."
- Lois Witherspoon não era pessoa para lhe pagar
uns milhares de dólares, nem sequer uns milhares de
centimes - prosseguiu Mason, sorrindo. - O mais que
ela faria era esbofeteá-lo, agarrar no braço de Marvin
Adams, ir a Yuma, casar-se e desafiar o mundo...
- Talvez... - concordou o juiz.
- Ora, continuemos. Milter ia receber uma grande
quantia. Ele disse à mulher que ia ter dinheiro suficiente
para viajarem por onde lhes apetecesse. Isto quer dizer
que ele preparara algo de maior e de melhor do que uma
vulgar "cobrança"... Essa coisa relacionava-se com o que
descobrira enquanto investigava o crime antigo. E a pessoa
sobre quem ele estava a exercer chantagem não tinha
dinheiro disponível para pagar imediatamente, mas estava
à espera de o receber.
- Como é que sabe isso? - perguntou o juiz,
- Estou a deduzir.
246
- Isso é pouco - objectou Copeland.
- Esqueçamo-nos que estamos em campos opostos
- rogou Mason. - Apreciamos os acontecimentos à luz
fria do raciocínio. Um chantagista tem determinada informação.
Naturalmente, procura conseguir o máximo
dinheiro possível por essa informação. Logo que recebe,
desaparece... até ter gasto o dinheiro todo e voltar para
pedir mais.
O juiz Meehan concordou:
- Prossiga, prossiga. Na parte que me diz respeito,
está a interessar-me profundamente.
- Vejamos onde isto me conduz. Milter investigou
um crime. Descobriu certas informações. Veio aqui para
exercer chantagem sobre alguém. Esse alguém mandou-o
esperar. Porém, na noite em que foi assassinado estava
para receber o dinheiro. Ora, qual seria a informação
com a qual Milter esperava fazer fortuna? Sobre quem
exercia chantagem e porquê?
- Responda você a essa pergunta - disse Meehan.
- Segundo parece, não acredita que fossem Witherspoon
ou a filha. Portanto, só podia ser o jovem Adams. Mas,
onde é que esse ia arranjar o dinheiro?
O procurador distrital deu uma palmada na perna.
- Já sei, casando com Lois Witherspoon! - exclamou.
E depois de tomar conta da fortuna...
Mason sorriu e disse para Copeland:
- Então, a sua teoria é que Adams ia casar, apoderava-se
imediatamente da fortuna da esposa e entregava-a
a um chantagista para evitar que este contasse o
que o sogro já sabia?
O sorriso de triunfo desapareceu do rosto de Copeland.
- Explique você - disse o juiz Meehan.
Mason continuou:
- A agência para que Milter trabalhava não era
séria. Tinha um jornal de escândalos em Hollywood e
247
dedicava-se à Chantagem sobre os clientes. Allgood decidiu
que Witherspoon seria uma dás suas vítimas. Estava
a projectar a primeira fase dessa campanha quando eu
apareci em cena. Não alterou os seus planos por esse
motivo, mas principiou simplesmente a usar-me como
meio de contacto. Era uma chantagem difícil e pouco
lucrativa, uma ofensiva que tinha que ser realizada em
base global para dar algum lucro. Por outro lado, Milter
andava atrás da caça grossa. Na minha opinião, meus
senhores, só há uma coisa que ele podia ter descoberto
relacionada com o crime antigo que lhe proporcionasse
informações suficientemente importantes para valerem
uma pequena fortuna,
A cadeira giratória do juiz estalou quando este se
sentou direito, ao mesmo tempo que afirmava:
- Está certo, isso parece razoável. Calculo que se
refere à identidade do verdadeiro assassino?
- Exactamente - ripostou Mason.
- Quem é? - perguntou o juiz.
- Mr. Burr estava hospedado em casa de Witherspoon.
Mr. Burr tinha vivido em Winterburg City por alturas
do crime. Mr. Burr estava a procurar arranjar dinheiro.
Disse a Witherspoon que mandara vir fundos do Leste,
que esperava recebê-los no dia em que o cavalo lhe pregou
o coice. A história do crime antigo demonstra que
Corine Hassen declarou ter um namorado que era insensatamente
ciumento. Roland Burr devia ter vinte e sete
anos nesse tempo. Conhecia Corine Hassen. Agora, juntem-se
todas estas coisas e poderemos fazer uma excelente
dedução sobre quem, e porquê, Milter exercia
chantagem...
- E que dinheiro era esse que Milter ia receber do
Leste? - interrogou Copeland.
- Esse dinheiro chegou, não há dúvida nenhuma.
Examinemos o crime antigo. Nesse crime, estavam envolvidas
diversas pessoas. Levar o cadáver de Latwell para
248
a cave da fábrica, abrir um buraco no cimento, cavar uma
sepultura, enterrar o cadáver, cobrir a sepultura de
cimento novo, deitar-lhe lixo em cima, ir ao Reno, descobrir
onde Corine Hassen estava à espera de Latwell,
levá-la a passear de barco, virar este, deixá-la afogar-se,
tirar-lhe os vestidos e deixar-lhe o corpo nu dentro do
lago... Enfim, sou de opinião que tudo isto exige, pelo
menos, a colaboração de duas pessoas, uma das quais
devia ter acesso à fábrica. Quando um indivíduo está a
pagar dinheiro de chantagens por um crime de morte,
e tem um cúmplice que dispõe de dinheiro, naturalmente
manda pedir a esse cúmplice que pague, não acham?
- Refere-se à viúva de Latwell? - inquiriu o juiz.
- Tal e qual... a que é hoje Mrs. Dangerfield.
O juiz fitou o procurador.
- Isto parece ter certo fundamento.
Copeland estava de testa enrugada.
- Mas não condiz com os factos - declarou.
- Condiz, sim, senhor - acrescentou Mason. Suponha
que o cúmplice decide livrar-se de Milter em
vez de pagar a chantagem. Para ser bem sucedido, os
dois associados precisavam naturalmente daquilo a que,
à margem da lei, se chama um "pato", alguém que ficasse
com as culpas, alguém que tivesse um motivo e uma
oportunidade.
- Witherspoon? - arriscou Copeland, céptico.
Mason sacudiu a cabeça.
- Witherspoon entrou nisto tudo, por acaso. Quem
eles escolheram como suspeito lógico foi Marvin Adams.
Calculem que magnífico processo poderiam edificar,
usando provas circunstanciais. Quando as autoridades
entrassem no apartamento de Milter, encontrariam um
pato afogado no aquário. Isso seria suficientemente invulgar
para atrair atenções imediatas. Marvin Adams tinha
de ir à cidade para tomar o comboio da meia-noite. Tinha
de preparar as malas. Ia sair do rancho de Witherspoon
249
num automóvel emprestado. Isso significava que Lois
Witherspoon não podia acompanhá-lo, porque, se o
fizesse, não teria transporte para regressar ao rancho.
Para preparar as malas, era quase certo que Marvin teria
de estar em El Templo entre as onze horas e a meia-noite.
Devia ir para a estação cedo. Ninguém o acompanharia.
Não teria ninguém para provar o seu álibi. O móbil
seria evidente. Milter tentara fazer chantagem para conservar
secreto o crime antigo. Adams não dispunha de
dinheiro. Por consequência, recorrera ao crime.
O juiz Meehan acenou a cabeça e o procurador distrital
fez um gesto quase imperceptível.
- O que estou a dizer é muito lógico aos olhos de
quem faz planos antecipados - concluiu Mason.
- Porém, como é que eles sabiam que Adams ia
levar um pato do rancho? - perguntou o juiz.
Mason tirou do bolso a carta que Marvin lhe dera.
- Porque lhe lançaram uma isca de cem dólares
pelo expediente simples de lhe mandarem uma carta
com um nome fictício.
O juiz Meehan leu a carta em voz alta.
- Suponho que Marvin lhe deu isto? - perguntou a
Mason.
- Assim foi.
- Bem - disse Copeland, em tom pensativo.
- E se nos contasse o que de facto aconteceu, Mr.
Mason?
- Burr estava a ser apertado pelo chantagista. Mandou
chamar Mrs. Dangerfield para lhe trazer dinheiro,
Esta tinha um método muito seu, que achava melhor do
que pagar o dinheiro. Witherspoon dispunha de ácido e
cianeto no rancho. Burr conseguiu uma boa quantidade
de ambos os produtos, embrulhou-os, entregou o embrulho
na estação de autocarros e mandou pelo correio, a
Mrs. Dangerfield, o talão. Depois, regressou ao rancho.
"Sem dúvida, ele tencionava fazer qualquer coisa
250
mais que estava relacionada com o crime ou que atribuísse
este a Adams. Porém, um acontecimento imprevisto
impediu-o. Levou o coice do cavalo. Deitaram-no
numa cama. Deram-lhe injecções e Burr encontrou-se, sem
saber como, estendido na cama, com a perna metida em
gesso e uma corda atada a um peso preso ao pé. Tudo
isto não estava previsto.
- Que se passou no apartamento de Milter? Como
é que imagina os acontecimentos?
- A empregada de Allgood telefonou a dizer que
tinha uma informação importante a comunicar-lhe. Então,
Milter, que andava a jogar com duas mulheres... a que
vivia com ele e esta loura... disse a Alberta Cromwell
que ia receber uma visita de negócios à meia-noite e
fê-la convencer-se que as suas relações com a loura eram
puramente comerciais. Aconteceu, porém, que Mrs. Dangerfield
chegou primeiro que a empregada de Allgood,
Provavelmente, Mrs. Dangerfield ter-lhe ia dito: "Está
bem, caçou-nos. O senhor quer tantos milhares de dólares.
Vamos pagar sem recriminações. Só queremos que
fique ciente que faremos um único pagamento e acabou-se.
Não queremos voltar a ser incomodados.
"Entusiasmado com o triunfo, Milter disse: -"Estou
de acordo, precisamente neste instante estava a preparar
uma bebida quente. Venha daí, bebê-la-emos juntos."
Mrs. Dangerfield seguiu-o à cozinha, despejou o ácido
hidroclorídrico num tacho, deixou cair o cianeto, possivelmente
perguntou onde era a casa de banho e saiu
da cozinha, fechando a porta atrás de si. Alguns segundos
depois, quando ouviu o corpo de Milter cair no
sobrado, concluiu que a sua missão estava cumprida. Só
faltava pôr o pato no aquário e sair. Então, principiaram
as complicações.
- Refere-se a Witherspoon? - perguntou o juiz.
- Primeiro, havia a loura da agência de investigações.
Esta tinha uma chave. Calmamente, abriu a porta
251
e principiou a subir as escadas. Nessa altura, Mrs. Dangerfield
teve de pensar e agir depressa. Era preciso deter
a visitante.
- Que fez ela? - inquiriu Copeland.
Mason sorriu.
- Despiu-se.
- Não o entendo muito bem - disse Copeland.
- É simples. Milter tinha duas mulheres apaixonadas
por ele. Uma era a que se intitulava sua mulher.
A outra era a empregada da agência de investigações.
Ambas, naturalmente, pensavam ser as únicas a gozar
dos seus favores; porém, tinham ciúmes e suspeitavam
uma da outra. A loura tinha a chave. Subiu as escadas.
Viu uma mulher seminua no apartamento. Vinha avisar
Milter que Mason lhe andava na pista. O que é que uma
mulher despeitada naturalmente faz em semelhantes circunstâncias?
- Vira as costas e vai-se embora - declarou o juiz
Meehan, cuspindo explosivamente.
- Tal e qual - confirmou Mason. - E ia tão excitada
que nem sequer se deu ao trabalho de fechar convenientemente
a porta da rua. Depois, apareceu Witherspoon.
Este principiou a subir as escadas e Mrs,
Dangerfield representou o mesmo acto, fazendo-o retirar
embaraçado. Depois com o caminho livre, Mrs. Dangerfield
saiu
"A mulher de Milter ficara momentaneamente convencida,
mas estava desconfiada. Observava e escutava.
Quando Mrs. Dangerfield, semi-despida no cimo das escadas,
discutia com Witherspoon, a mulher de Milter ouviu
a voz feminina, previu a oportunidade de verificar quem
era e espreitou à janela. Viu Witherspoon sair do apartamento
e tomou nota do número do seu carro.
O juiz meditou durante alguns instantes sobre o que
ouvira e comentou:
- De facto, tudo isso podia ter acontecido assim.
252
Suponho que foi então que a mulher de Milter desceu as
escadas e o viu a si à porta. Como pretendia falar ao
telefone, dirigiu-se para o centro da cidade. Isto deu a
Mrs. Dangerfield a oportunidade de se vestir e sair do
apartamento.
- É muito possível, porque eu acompanhei Alberta
Cromwell.
- Está muito bem - concordou o juiz. - O senhor
expôs uma teoria interessantíssima. É apenas uma teoria,
mas muito interessante. Serve para a morte de Milter,
mas não serve para a morte de Burr. Suponho que Mrs.
Dangerfield chegou à conclusão que não lhe interessava
ter um cúmplice semi-pateta que estava constantemente
a arranjar complicações, de modo que resolveu eliminá-lo
da mesma maneira. Mas como é que conseguiu entrar
em casa de Witherspoon sem os cães darem alarme?
Como é que ela entregou a cana de pesca a Burr?
Mason sacudiu a cabeça. , ,
- Não foi ela.
O juiz acenou a cabeça.
- Estava apenas a pensar que, como ambos os crimes
foram cometidos com ácido e cianeto, o criminoso
seria a mesma pessoa. E, na verdade, tem sido sobre
essa teoria que temos estado a trabalhar.
- Todos os raciocínios o parecem indicar - observou
Copeland.
O juiz sacudiu a cabeça.
- O meio de cometer os crimes é bastante invulgar.
Não há muita gente que pensasse em realizar o primeiro
crime dessa maneira, mas depois de toda a publicidade
feita à sua volta, é razoável supor-se que o segundo crime
pudesse ter sido levado a efeito por mil e uma pessoas...
pelo menos, na parte que diz respeito ao método. Lá por
que duas pessoas são mortas a tiro com três ou quatro
dias de diferença, não quer dizer que tenham sido mortas
pelo mesmo assassino. A única razão por que nos dei-
253
xamos arrastar para essa tendência é a invulgaridade do
método. :
- Exactamente - confirmou Mason. - E a esse propósito,
há uma coisa muito significativa e muito interessante.
Quando vim para o rancho de Witherspoon, trazia
comigo uma cópia do processo referente ao crime antigo
e alguns recortes de jornais. Deixei-os numa secretária
durante o jantar em casa de Witherspoon e alguém abriu
a gaveta e mexeu nos documentos... alguém que, evidentemente,
desejava saber a razão da minha visita...
- Quer dizer Burr? - perguntou o juiz.
- Não, Burr estava nessa altura deitado na cama
com a perna partida.
- Marvin Adams, talvez?
Mason fez um gesto negativo.
- Se Marvin Adams tivesse conhecimento de qualquer
coisa a respeito do crime antigo, teria naturalmente
rompido os seus compromissos com Lois Witherspoon.
Teria ficado tão preocupado, que se notaria a sua
emoção. John Witherspoon não tinha necessidade de
mexer no processo, porque sabia a razão por que lá estávamos.
Lois Witherspoon também não era pessoa para
se preocupar com isso; primeiro, porque não é indiscreta
e segundo, porque quando lhe contei as razões por que
o pai me contratara, ficou tão pálida que afastava qualquer
ideia de fingimento. Resta-nos, portanto, uma pessoa,
uma pessoa que se levantou da mesa enquanto
estávamos a comer e que se manteve ausente durante
alguns minutos.
- Quem?
- Mrs. Burr.
A cadeira do juiz rangeu ligeiramente.
- Quer dizer que ela assassinou o marido?
- Mrs. Burr descobriu o crime antigo e o que nós
andávamos a investigar. Somou os factos. Associou tudo
com as preocupações financeiras do marido e com a pré-
254
sença de Mrs. Dangerfield em El Templo, pois encontrara-se
com ela na rua. Mrs. Burr sabia, portanto, de
tudo. Mais, Burr sabia igualmente que ela estava ao
corrente dos seus segredos.
- Mrs. Burr é uma criatura altamente emocional.
Não gosta de passar despercebida. Pela sua biografia,
verifica-se que, depois de estar casada durante algum
tempo, começa a mostrar-se inquieta. Witherspoon pode
ter pensado que os abraços e os beijos que lhe dava eram
paternais ou platónicos, mas Mrs. Burr não levou tais
manifestações para o mesmo lado. Mrs. Burr relanceava
os olhos pelo rancho de Witherspoon e pela sua conta no
banco. Entretanto, verificava também que o marido era
um criminoso.
- Como é que ela descobriu isso? Onde é que tinha
as provas? - perguntou o juiz.
- Examinemos as provas acumuladas. A enfermeira
foi despedida quando tentou abrir o saco que Burr tinha
ao lado da cama. O que é que havia dentro desse saco?
Livros, iscos, apetrechos de pesca... e que mais?
- Mais nada - opinou Copeland. - Encontrava-me
presente quando se rebuscou o saco.
Mason sorriu.
- Depois da morte de Burr.
- Naturalmente.
- Um instante, esse quarto estava cheio de vapores
de gás mortífero - observou Meehan.- Até estilhaçarem
as vidraças, ninguém podia lá ter entrado para
tirar fosse o que fosse do saco, de modo que temos de
admitir que as coisas que estavam dentro do saco
quando Ben Copeland o rebuscou, eram as coisas que
estavam dentro do saco quando Burr foi assassinado, a
não ser que o assassino tivesse retirado qualquer coisa.
- Bom, vejamos a questão por este aspecto. Burr
arranjou o ácido e o cianeto que Mrs. Dangerfield utilizou.
O que sobrou, tinha-o guardado nesse saco. Talvez ele
255
tivesse intenção de atraiçoar Mrs, Dangerfield... ou talvez
a esposa, que estava a tornar-se excessivamente suspeita.
Tudo correra às mil maravilhas até à altura de
partir a perna. Logo que ficou consciente e teve ocasião
de raciocinar, Burr pediu à mulher que lhe trouxesse o
saco e lho pusesse ao lado da cama. Não queria que ninguém
lhe tocasse. Imaginem como ele ficou quando a
enfermeira anunciou que ia abrir o saco e retirar o que
estava dentro. Quem não tivesse o curso de enfermagem,
podia não perceber a importância da existência do
ácido e do cianeto dentro do saco, Mas, com uma enfermeira
diplomada.., estão a ver...
- Ora, espere, Mason - pediu o juiz. - O seu
raciocínio tem um ponto fraco. Mrs. Burr não tinha necessidade
de matar o marido. Não era preciso. Bastava-lhe
chamar o xerife.
- Exactamente e era isso o que ela tencionava fazer.
Coloque-se na posição de Burr. Estava perfeitamente
caçado, dentro da cama. Não se podia mexer. A esposa
não só sabia que ele era criminoso, mas até tinha provas.
Ela estava a preparar-se para o denunciar ao xerife.
A enfermeira apenas podia descobrir o segredo de Burr.
Mas, a mulher já o conhecia. Burr despediu a enfermeira.
Tinha esperanças de dispor de oportunidade que lhe permitisse
matar a mulher antes de esta ir falar com o xerife,
mas ele estava amarrado à cama. Compreendeu que
estava irremediavelmente caçado. Só havia uma saída
para Roland Burr.
- Qual era? - perguntou o juiz, tão interessado que
se esqueceu de mascar.
- A enfermeira percebia muito de ácidos e cianetos,
mas não sabia nada a respeito de pesca. Burr pediu-lhe
para ela lhe dar uma caixa de alumínio, dizendo que continha
uns desenhos. Guardou essa caixa dentro dos lençóis.
Era a cana de pesca. Como é natural, ele estava
profundamente ressentido contra Witherspoon. Sabia
256
também que a sua mulher tencionava livrar-se dele para
casar com Witherspoon. De modo que Burr resolveu
estragar esse arranjinho logo de princípio. Só havia uma
saída, mas para segui-la, quis levar a efeito uma vingança
sardónica contra o homem a quem sua mulher tinha
escolhido para seu sucessor da sua dinastia matrimonial.
"Impôs a si próprio pedir insistentemente a Witherspoon,
na presença do maior número possível de testemunhas,
a cana de pesca. A tal cana de pesca que ele já
tinha escondido, dentro da cama. Logo que o deixaram
sozinho, tirou a cana de dentro da caixa, uniu as duas
partes, colocou a terceira parte em cima da cama ao seu
alcance, tornou a tapar a caixa de alumínio, deixou-a cair
para o sobrado e fê-la rolar para longe. Depois, Burr abriu
o saco. Pegou nas coisas que receava que a enfermeira
visse: o frasco do ácido e o cianeto. Colocou-os sobre a
mesa de rodas colocada ao lado da cama, despejou o
ácido numa tigela que estava em cima da mesa, deitou-lhe
dentro o cianeto, pegou na ponta da cana de pesca e
empurrou a mesa até a afastar o mais possível. Em
seguida, pegou na terceira parte da cana, com a mão
esquerda, como se estivesse prestes a acabar de a
montar...
O juiz Meehan estava tão absorvido pela descrição
que até se esquecera de cuspir. Tinha os lábios e os
olhos fitos em Mason.
- E, depois? - inquiriu Copeland.
- Depois - disse Mason, muito simplesmente Burr
respirou fundo.
CAPÍTULO XXII
Della Street disse para Perry Mason, em tom reprovador:
- O senhor sempre prega cada susto às pessoas!
- Eu, porquê?
17 - VAMP. G. 7
257
- Sabe muito bem ao que me refiro. Quando bateram
as duas horas e o juiz não veio para a sala de audiências
para prosseguir o julgamento e os delegados do
xerife principiaram a chamar as pessoas, uma a uma,
julguei que o tivessem detido por ter ludibriado a justiça
ou por terem-no considerado cúmplice nos crimes.
Mason sorriu.
- O procurador é um tipo difícil de quebrar, mas
logo que percebeu a minha ideia, entrou em acção com
uma rapidez fantástica. Vamos fazer as malas e sair
daqui para fora.
- Então, e o Witherspoon?
- Por ora, estou farto de Witherspoon e das suas
complicações. No princípio do mês, mandamos-lhe a
conta e assim terminarão as nossas relações com Mr.
John L. Witherspoon.
- Mrs. Dangerfield já confessou?
- Ainda não. Mas já se conseguiu recolher provas
suficientes para instruir o processo. Já descobriram a
caixa que tinha sido guardada na estação dos autocarros,
o frasco do detergente e, o que é o melhor de tudo, onde
ela queimou uma carta de Burr dando-lhe instruções.
O papel queimado ainda está suficientemente legível para
se comprovar a tramóia. Encontraram igualmente impressões
digitais no apartamento de Milter.
- Pensava que ela tivesse usado luvas - admirou-se
Della Street.
Mason riu-se.
- Não se esqueça que ela se despiu para afugentar
os visitantes inoportunos. Uma mulher não pode aparecer
no cimo de umas escadas, quase nua, e de luvas calçadas.
- Sim, de facto, tem razão - admitiu Della Street.
- E Lois e Marvin?
- Partiram em lua-de-mel. Trouxe consigo a papelada
respeitante àquele processo de herança, Della?
. 258
- Trouxe, está na minha pasta. Calculei que viéssemos
a ter tempo de trabalhar nesse caso.
Mason viu as horas.
- Conheço uma estalagem no deserto, dirigida por
uma velhota que faz uns pudins de maçã, maravilhosos.
Fica situada num monte de cerca de dois mil metros de
altura, onde há uma série de furnas de rocha granítica
para explorar, interessantes grupos de cactos... onde,
sem que ninguém nos perturbe, poderemos examinar
toda essa papelada e preparar um plano estratégico...
- Porque hesitamos tanto em partir? - interrompeu
Della.
Mason sorriu.
- Abomino afastar-me para tão longe de qualquer
processo-crime interessante.
Della agarrou-lhe um braço e disse:
- Venha daí, não se prenda por esse motivo. O senhor
não tem que se preocupar em descobrir novos casos.
Eles andam atrás de si. Meu Deus, que susto apanhei
quando Lois Witherspoon se levantou e quis dizer tudo o
que sabia e eu compreendi que o senhor estava a tentar
ganhar tempo!
- Também suei um bocado. Estive com os olhos
sempre fitos no relógio e procurei provocar a maior excitação
possível para distrair as atenções do procurador distrital.
Se tivesse usado a táctica habitual de protestar
contra as perguntas e contra as testemunhas, teria pura
e simplesmente deslocado as suspeitas para cima de
mim. Tal como as coisas correram consegui ganhar
tempo, mas não se deixe enganar... Salvei-me por uma
unha negra.
- E a unha negra ficou bastante raspada. Ninguém
lhe perguntou porque é que o pato não se afogou?
- Não.
- Que teria respondido se lhe tivessem perguntado?
Mason sorriu.
259
- Desde o momento que Haggerty estava dentro da
sala, era ele quem estava encarregado da ocorrência.
Competia-lhe, portanto, explicar o motivo por que o pato
não se afogara.
Della Street fitou-o com o apreço arguto dispensado
por uma mulher a um homem que conhece muito bem.
- O senhor esteve no apartamento - acusou.
Viu o pato a afogar-se e pensou que Marvin Adams estivera
lá. O senhor simpatizou com ele, porque o pai fora
executado por crime de homicídio e porque ele estava
apaixonado, e o senhor deliberadamente, voluntariamente,
maliciosamente e com intenção fraudulenta tentou ludibriar
a justiça...
- Devia acrescentar contra a paz e dignidade do
povo do Estado da Califórnia - concluiu Mason.
Ela observou-o com olhos sorridentes.
-A que distância fica essa tal estalagem do deserto?
- São precisas duas horas de viagem em automóvel,
a puxar bem.
- Vou telefonar para o escritório a avisar Gertie.
Quando é que lhe digo que regressamos?
Mason estreitou os olhos, fitou o azul sem nuvens
do céu da Califórnia, sentiu na pele a calidez da luz do
sol que banhava a cidade.
- Olhe, diga a Gertie que voltaremos quando ela
nos desencantar um bom crime... antes não! Avise-a
mesmo de que um caso de homicídio vulgar não nos
interessa. Queremos...
Della Street caminhava para o hotel, com Mason ao
lado. Os transeuntes viravam as cabeças para os observar.
Della Street olhou para Perry Mason.
- Bem, pelos vistos, o senhor contribuiu para a
educação de uma comunidade agrícola. Ensinou-lhes como
se afoga um pato. Que mais iremos ver ainda?
FIM
Gostaram? é um livro de rápida leitura, que prende o leitor em
envolventes contos deste autor que foi um brilhante advogado em começo do
século xx.
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