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quarta-feira, 1 de junho de 2011

O regresso de Tarzan - livro escrito na década de 60. Muito bom

O REGRESSO DE TARZAN


EDGAR RICE BURROUGHS

Vocabulário:

ARA - Raio, ou relâmpago.
ARAD - A lança de Tarzan.
ASKARIS - Soldados de infantaria, africanos.

BALU-Cria de macaco, por extensão: qualquer cria,
criança.
BARA - Veado, gamo ou corça.
BOLGANI - Chimpanzé.
BOMA - Paliçada.
BULAMUTUMUMO - Deus.
BUNGALOW - Casa. de um só andar, com uma varanda em
volta.
BUTO - Rinoceronte.
BWANA - Tratamento respeitoso.

DANGO - Hiena.
DJAGGERNAT - Cidade industânica, religiosa.
DUm-DUM - Dança dos macacos grandes.
DURO - Hipopótamo.

GIMLA - Crocodilo.
GO-LAT - Rei dos macacos grandes.
GOMANGANI - Negro ( formado de GO - preto - e MANGANI -
macaco grande).

HISTAH -Serpente.
HORTA- Javali.

KAGUD! - Interjeição, na linguagem dos macacos grandes.
KERCHAKS - Tribo de macacos grandes.
KOTA - Tartaruga.
KUDU - Sol.

MANGANI - Macaco grande.
MANU - Macaquinho.

NUMA - Leão.

PACCO - Zebra.
PAMBA - Rato.
PISAH - Peixe.

SABOR - Leoa.
SHEETA - Pantera.
SIMEA - Um cão.
SKA - Abutre.

TANTOR - Elefante.
TARMANGANI - Homem branco (formado de: TARbranco - e
MANGANI - macaco grande).
TARZAN - Significa "pele branca".

WAMABOS - Tribo de negros antropófagos.
WAPPI - Antílope.
WAZIRIS - Tribo de negros de boa índole.

XUJA - Cidade dos doidos (imaginária).

ZU-TAG - Significa "pescoço grosso".

CAPÍTULO 1


A bordo do Transatlântico

- Magnifique!... - exclamou a condessa de Coude, a meia
voz.
- Como?... - perguntou o conde, voltando-se para a sua jovem
mulher. - O que é magnífico?...
E o conde olhou em torno, procurando a causa da admiração
dela.
- Ah! Nada, meu caro... - volveu a condessa, corando
ligeiramente. - Estava a recordar, com admiração, esses
esplêndidos arranha-céus, como lhes chamam em Nova Iorque...
E a bela condessa instalou-se mais confortavelmente na sua
cadeira de convés, retomando a revista que o tal "nada" a
fizera deixar cair no regaço.
O conde remergulhou no seu livro, não sem um certo espanto
de que três dias depois de haverem saído de Nova Iorque, a sua
linda condessa considerasse magníficos os mesmos edifícios que
na semana anterior classificava de horríveis. Acabou por
poisar o livro, dizendo:


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- Isto é muito aborrecido, Olga: Creio que vou procurar
outros passageiros tão aborrecidos como eu, para um jogo de
cartas.
- É muito pouco galante, senhor meu marido... - respondeu
ela, sorrindo - ... mas estou também tão aborrecida que posso
compreendê-lo. Vá jogar essas insípidas partidas, se quiser...
Quando o conde partiu, ela voltou a olhar, discretamente,
para o vulto de um jovem alto, estendido preguiçosamente numa
cadeira não muito distante.
- Magnifique!... - murmurou de novo.
A condessa Olga de Coude tinha vinte anos, e o marido
quarenta. Era uma esposa fiel e dedicada, mas como não tivera
nada a ver com a escolha do marido, nada de estranho havia em
que não estivesse pocitivamente apaixonada por aquele que o
destino, e o aristocrata russo que era seu pai, haviam
escolhido para ela. No entanto, apenas por ter deixado escapar
uma breve exclamação admirativa ao ver aquele jovem e belo
desconhecido, não podemos deduzir que nos seus pensamentos se
houvesse insinuado qualquer ideia de infidelidade. Apenas
admirava, como teria admirado um especialmente belo animal de
qualquer espécie. E sem dúvida que o jovem era agradável de
ver.
Quando o olhar furtivo da condessa analisava o seu perfil,
ele levantou-se para se afastar. A condessa de Coude fez sinal
a um criado que passava.
- Quem é esse senhor?... - perguntou.
- Reservou o camarote em nome de sr. Tarzan, de África.
- Uma vasta propriedade... - pensou a condessa, sentindo
aumentar o seu interesse.


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Enquanto Tarzan se encaminhava vagarosamente para o salão de
fumo, quase chocou com dois homens que, à porta, falavam em
voz baixa, excitadamente. Não lhes teria dedicado a menor
atenção, se um deles não o tivesse olhado de relance, com uma
expressão de culpa. Tinham um aspecto que lembrou a Tarzan o
dos melodramáticos vilões que vira nos teatros, em Paris.
Ambos eram morenos, de cabelos escuros, e as suas atitudes
acentuavam a semelhança.
Tarzan entrou no salão de fumo e procurou uma cadeira um
tanto afastada das outras pessoas que ali se encontravam. Não
se sentia em disposição para conversar, e enquanto bebia a
pequenos sorvos o seu absinto, deixava vaguear o pensamento,
com tristeza, pelas semanas anteriores. Por várias vezes havia
conjecturado sobre se teria agido bem ao renunciar aos seus
direitos de nascimento, a favor de um homem a quem nada devia.
Decerto simpatizava com Clayton... mas a questão não era essa.
Não fora por causa de William Cecil Clayton, Lord Greystoke,
que negara a sua verdadeira origem... Havia sido por causa da
mulher a quem ambos amavam... e que um estranho capricho da
sorte entregara a Clayton e não a ele...
O facto de ela o amar tornava a situação duplamente difícil
de suportar... e no entanto Tarzan sabia que nunca poderia
fazer menos do que fizera naquela noite, na pequena estação de
caminho de ferro dos distantes bosques de Wisconsin. Para ele,
a felicidade de Jane estava acima de tudo, e a sua breve
experiência com a civilização e com os homens civilizados,


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ensinara-lhe que sem dinheiro e posição... a vida da maioria
deles era insuportável.
Jane Porter nascera para ter ambas as coisas, e se Tarzan
privasse delas o seu futuro marido... sem dúvida a condenaria
a uma vida de miséria e de angústia. A ideia de que Jane
repeliria Clayton no caso de ele perder o título e fortuna,
nem sequer ocorreu a Tarzan - pois atribuía aos outros a mesma
honesta lealdade que era uma qualidade nata nele próprio. E,
neste caso, não se enganava. Se alguma coisa pudesse tornar
ainda mais forte a promessa de Jane a Clayton, seria
seguramente o facto de tal desventura cair sobre ele.
Os pensamentos de Tarzan deslizaram do passado para o
futuro... Tentou encarar com uma sensação de prazer o seu
regresso à selva onde nascera e onde tinha vivido... a selva
feroz e cruel, na qual passara vinte dos seus vinte e dois
anos de vida. Mas quem, ou o quê, nos milhares de existências
multiformes que se agitavam na floresta, lhe daria as
boas-vindas? Nem uma, sequer. Apenas Tantor, o elefante, podia
ser considerado um amigo. Os outros persegui-lo-iam ou
fugiriam dele, como sempre havia sido. Nem mesmo os macacos da
sua tribo lhe dariam acolhida amiga.
Se a civilização nada mais tivesse dado a Tarzan, de certa
maneira lhe dera o desejo da companhia, de criaturas da sua
espécie, o desejo de amizade e de entendimento fraternal. E,
nas mesmas proporções, lhe tornara odiosa qualquer outra
espécie de vida. Era-lhe difícil conceber o mundo sem um amigo


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ou sem uma criatura viva com quem pudesse falar as línguas
novas que apreciava tanto. E, assim, Tarzan encarava sem
prazer o futuro que traçara para si mesmo. Sentado, tendo
entre os dedos um cigarro de onde subia um ténue fio de fumo
azul, os seus olhos poisaram-se num espelho que reflectia uma
das mesas, onde quatro homens jogavam as cartas. Nesse momento
um dos homens ergueu-se, para se afastar... e outro homem
aproximou-se e, cortesmente, ofereceu-se para ocupar o lugar
vago, a fim de que o jogo se não interrompesse. Era o mais
baixo dos dois que Tarzan vira à porta, a falar em segredo...
e foi isso o que despertou o interesse dele.
Enquanto a sua imaginação tentava percorrer os caminhos do
futuro, ia observando, no espelho, os quatro indivíduos
sentados atrás. Além daquele que se havia sentado em último
lugar, Tarzan conhecia apenas o nome de um dos outros
jogadores, exactamente o que estava do lado oposto. Era o
conde Raul de Coude. Um criado solícito indicara-o a Tarzan
como um dos passageiros importantes, alguém que pertencia ao
grupo familiar do ministro da guerra francês.
De repente, a atenção de Tarzan fixou-se no espelho. O outro
homem que Tarzan vira à porta, tinha-se aproximado também e
estava de pé atrás do conde. Tarzan viu-o olhar furtivamente
em volta, sem todavia reparar no espelho. Discretamente, o
hómem tirou qualquer coisa do bolso, tapando-a com a mão.
Curvou-se de leve, e Tarzan viu-o meter num dos bolsos do
conde o que tirara do seu próprio bolso. Depois disto o homem
continuou onde estava, observando as cartas do conde de Coude.


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Tarzan sentia-se intrigado, mas agora os seus olhos seguiam
tudo com uma atenção concentrada.
O jogo continuou, durante alguns minutos, até que o conde
ganhou uma soma relativamente considerável, perdida pelo
último jogador que se sentara. Tarzan viu que o homem colocado
atrás do conde fazia um leve sinal ao outro..: e no mesmo
instante este levantou-se e apontou um dedo para o conde.
- Se eu soubesse que este senhor era um trapaceiro
profissional, não me teria apressado a tomar parte no jogo...
- disse ele.
Instantaneamente, o conde e os outros dois jogadores
levantaram-se. De Coude empalideceu.
- Que significa isso, "sir"?... - exclamou. - Sabe com quem
está a faLar?
- Sei que falo, pela última vez, a alguém que faz batota a
jogar!... - replicou o outro.
O conde debruçou-se e bateu na cara do homem, com a mão
aberta. Os outros jogadores apressaram-se a separá-los. Um
destes exclamou:
- Trata-se de um engano, senhores! Este senhor é o conde de
Coude!
- Se estou enganado apresentarei desculpas... Mas antes
disso exijo que o conde explique a presença de cartas extra
que o vi meter no bolso!
Nesse momento o homem que Tarzan vira meter qualquer coisa
no bolso do conde, encaminhou-se para a porta... mas
verificou, contrariado, que um desconhecido, alto e de olhos
cinzentos, lhe cortava o caminho.


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- Com licença!... - disse, bruscamente, tentando passar por
um dos lados.
- Espere... - volveu Tarzan.
- Mas porquê, senhor?.. - quase gritou o outro, agressivo. -
Afaste-se! Quero passar!
- Espere... - repetiu Tarzan. - Há aqui um assunto que o
senhor pode esclarecer!
O homem, corpulento, teve um impulso de fúria e, praguejando
entre dentes, tentou afastar Tarzan. Este sorriu, agarrouo
pela gola e levou-o até perto da mesa, mau grado as inúteis
tentativas que fazia para se libertar. Foi a primeira
experiência de Nikolas Rokoff... com os músculos que haviam
derrotado várias vezes Numa, o leão, e Terkoz, o gorila.
O sujeito que acusara o conde, e os dois outros jogadores,
olhavam para de Coude, numa atitude de expectativa.
- Este homem é doido!.. - bradou o conde. - Peço que um dos
senhores me reviste.
- A acusação é ridícula... - comentou uma voz.
- Basta que alguém meta a mão no bolso lateral do casaco do
conde, para verificar que a acusação é séria... - insistiu o
acusador... - e, vendo que os outros hesitavam, acrescentou: -
Eu próprio o revistarei, se ninguém mais o faz!
- Não!... - retorquiu o conde. - Só a um gentleman
consentirei que me reviste!
- É desnecessário revistar o conde... As cartas estão no
bolso dele. Eu vi quando as meteram lá.
Todos se voltaram, surpreendidos, para quem tinha falado.


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Era um jovem alto, de aparência atlética, que se aproximava
da mesa trazendo, seguro pela gola, um homem que se debatia
inutilmente.
- Isto é uma conspiração... - disse de Coude, colérico. -
Não tenho quaisquer cartas e... - meteu a mão no bolso e
fez-se subitamente lívido, enquanto, sob os olhares espantados
de todos os presentes, a retirava trazendo três cartas.
O conde de Coude ficou a olhar para as cartas, e agora a sua
face congestionava-se. Nos circunstantEs havia expressões de
piedade e de desprezo. Supunham estar a assistir à morte da
honra de um homem.
- É de facto uma conspiração, senhor... - interveio o jovem
alto, de olhos cinzentos. E continuou: - Meus senhores, o sr.
conde de Coude não sabia que tinha essas cartas no bolso.
Foram lá colocadas sem o seu conhecimento, enquanto estava a
jogar. Do ponto onde eu estava, nessa cadeira aí, vi tudo
através do espelho. Quem meteu as cartas no bolso do sr. Conde
foi este homem que eu agarrei quando tentava sair da sala. O
olhar do conde passou de Tarzan para o sujeito inglês, que se
debatia.
- Mon Dieu!... - exclamou ele. - Você, Nikolas?... -
voltou-se então para o outro e olhou-o atentamente,
acrescentando: - E você, Paulvitch... Não o reconheci, sem a
barba... Compreendo agora tudo senhores.
Que fazemos a esta gente, senhor?... - perguntou Tarzan.-
Entregamo-los ao capitão?
- Não, meu amigo...- respondeu apressadamente o conde.- É um
assunto pessoal e peço-lhe


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que o deixe ficar como está. É suficiente que eu tenha sido
ilibado da acusação. Quanto menos tivermos a ver com esses
sujeitos, melhor. Mas, senhor, como poderei eu agradecer-lhe a
sua grande bondade? Permita-me que lhe dê o meu cartão, e se
surgir alguma oportunidade em que eu possa ser-lhe útil,
lembre-se de que estarei incondicionalmente às suas ordens.
Tarzan largara Rokoff, e este, em companhia do seu cúmplice
Paulvitch, apressara-se a sair do salão de fumo - não sem
antes se ter voltado para Tarzan com um olhar de ódio, dizendo
entre dentes:
- Terá ocasião de lamentar a sua interferência nos assuntos
alheios...
Tarzan limitara-se a sorrir. Depois, com um cumprimento,
entregou o seu cartão ao conde, que leu:
Jean C. Tarzan
- Sr. Tarzan... - disse o conde - ... talvez venha a
lamentar o favor que me fez... porque atraiu a inimizade de
dois dos mais rematados patifes de toda a Europa... Evite-os,
de todas as maneiras.
- Já tive inimigos muito mais perigosos, meu caro conde... -
volveu Tarzan, com o seu calmo sorriso - ... e no entanto
continuo vivo e despreocupado. Creio que nenhum desses dois
encontrará maneira de me fazer mal.
- Esperemos que assim seja... - respondeu o Conde,
gravemente. - Mas creio que não perderá nada em estar
alerta... e por saber que fez hoje um inimigo, pelo menos, que
nunca esquece e nunca perdoa, um homem cuja mente está sempre
a imaginar atrocidades contra os que o humilharam ou
ofenderam.


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Dizer que Nikolas Rokoff é diabólico, seria avaliá-lo
modestamente.
Nessa noite, quando Tarzan entrou no seu camarote, viu no
chão, dobrado, um papel que tinha evidentemente sido
introduzido sob a porta. Leu:


Mr. Tarzan, Suponho que não compreendeu a gravidade da sua
ofensa, pois de contrário não teria feito o que fez. Estou
disposto a acreditar que agiu por ignorância e sem intenção.
Por esta razão receberei as suas desculpas e a sua garantia de
não voltar a imiscuir-se em assuntos que não lhe dizem
respeito. Assim, deixarei morrer o assunto.
De outro modo... Mas tenho a certeza de que entenderá a
sensatez de fazer o que digo.
Respeitosamente Nikolas Rokoff


Tarzan sorriu sombriamente, mas logo, esquecendo o caso, se
preparou para dormir.
Num camarote próximo, a condessa de Coude falava com o seu
marido.
- Porquê um ar tão grave, Raul?... - perguntou. - Esteve
sombrio durante toda a noite. O que o preocupa?
- Olga... sabe que Nikolas está a bordo?
- Nikolas!... - exclamou ela. - Mas... é impossível! Nikolas
está preso, na Alemanha.
- Também supunha isso até o encontrar, hoje...

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e esse outro patife, Paulvitch. Olga, não posso suportar por
muito mais tempo esta perseguição. Nem mesmo por sua causa.
Mais cedo ou mais tarde, entregá-lo-ei às autoridades. Estou
mesmo a pensar em contar tudo ao capitão, antes de chegarmos.
Num Transatlântico, seria fácil acabar de vez com essa caça...
- Oh, não, Raul!... - exclamou a condessa, ajoelhando diante
do marido que se deixara cair sobre um divã. - Não faça isso!
Lembre-se da sua promessa! Diga-me que não fará isso! Nem
sequer o ameace...
O conde tomou as mãos da mulher entre as suas, fitando-a por
algum tempo antes de falar. Parecia procurar nos belos olhos a
verdadeira razão que a levava a proteger o miserável.
- Seja como quer, Olga... - disse ele por fim. - Mas não
consigo compreender. Esse homem anulou qualquer direito à sua
estima, à sua lealdade e ao seu respeito. É uma ameaça para a
sua vida e honra...
E para a vida e honra do seu marido. Espero que não venha a
arrepender-se de o defender.
- Eu não o defendo, Raul... - retorquiu ela, agitada. - O
meu ódio por ele não é inferior ao seu...
esse homem é do meu sangue...
- Gostaria de ver a consistência do sangue dele... - disse
de Coude, sombriamente. - Esses dois miseráveis tentaram
promover a minha desonra... - e o conde contou o que se
passara no salão de fumo. - Sem a intervenção desse estranho,
tê-lo-iam conseguido... Quem aceitaria a minha palavra contra
a prova evidente dessas malditas cartas metidas no meu bolso?


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Eu próprio começava a sentir-me aturdido quando esse sr.
Tarzan arrastou o precioso Nikolas e explicou a infame
conspiração.
- O sr. Tarzan?... - perguntou a condessa, com evidente
surpresa.
- Sim. Conhece-o, Olga?
- Vi-o. Um dos criados indicou-mo.
- Não sabia que ele era uma celebridade... - disse o conde.
Olga de Coude desviou o assunto. Compreendeu bruscamente que
lhe seria difícil explicar por que razão o criado lhe falara
no belo sr. Tarzan. Talvez corasse de leve, pois o conde a
olhava ligeiramente intrigado... Uma consciência culpada
torna-se sempre suspeita...

CAPÍTULO 2


Elos de ódio


Até ao fim da tarde seguinte, Tarzan não voltou a ver os
seus companheiros de viagem... em cujos negócios se envolvera
por causa do seu espírito de lealdade. E só então se encontrou
inesperadamente com Rokoff e Paulvitch, numa altura em que
eles, decerto, desejariam não o ver.
Estavam ambos no convés, num ponto acidentalmente deserto,


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e quando Tarzan se aproximou discutiam acaloradamente com uma
mulher. Tarzan notou que a mulher estava ricamente vestida, e
que o seu vulto esbelto e bem formado indicava juventude. Mas
não podia distinguir-lhe as feições, por causa do espesso véu
que ela usava.
Os homens estavam um de cada lado dela, de costas voltadas
para Tarzan. Não se aperceberam da presença dele. Rokoff
parecia ameaçar, e a mulher implorava. Mas falavam numa língua
estranha, que Tarzan não compreendia, e só a atitude dela
traduzia o seu medo. Quanto a Rokoff, parecia tão perto de
exercer uma acção violenta... que Tarzan parou, pressentindo
perigo. Quase no mesmo instante Rokoff agarrou o pulso da
mulher e torceu-lho brutalmente, como se quisesse conseguir
qualquer coisa por meio de tortura física. O que teria
acontecido se Rokoff Pudesse prosseguir, não sai do domínio
das conjecturas. Imediatamente uns dedos de aço seguraram o
bandido por um ombro, obrigando-o a voltar-se... e, ao ver os
olhos cinzentos e frios do homem que na véspera o havia
humilhado.
- Maldição!... - exclamou o furioso Rokoff. - Que quer você?
É bastante doido para voltar a insultar Nikolas Rokoff?
Esta é a minha resposta à sua nota... - disse Tarzan, entre
dentes, empurrando-o com tal força que Rokoff foi chocar a dez
passos de distância, com a amurada.
- Pelos infernos!... - ganiu Rokoff. - Vai morrer por isto!


17


Levantando-se, precipitou-se sobre Tarzan, ao mesmo tempo
que diligenciava empunhar um revólver. A jovem soltou um
grito:
- Nikolas Não... não faça isso! Depressa, senhor, fuja ou
ele mata-o!
Mas Tarzan, em vez de fugir, avançou ao encontro do outro,
dizendo friamente:
- Não se faça mais imbecil do que é...
Rokoff, doido de raiva, conseguiu finalmente empunhar a
arma. Parando, apontou para o peito de Tarzan e apertou o
gatilho... mas o percutor caiu sobre uma cápsula vazia. No
mesmo instante a mão de Tarzan estendera-se, com a rapidez de
um raio... e um violento puxão arrancou a arma da mão de
Rokoff e fê-la cair no mar. Por instantes os dois homens
ficaram diante um do outro... mas Rokoff recompôs-se e foi o
primeiro a falar:
- É a segunda vez que se mete em assuntos que não lhe dizem
respeito... e é a segunda vez que humi lha Nikolas Rokoff! Da
primeira supus que agisse por ignorância... mas agora não...
Não sabe quem eu sou, mas garanto-lhe que virá a ter razões
para sE lembrar de mim!
- Sei que é um miserável e um cobarde... - volveu Tarzan,
imperturbável. - Isso me basta!
Voltou-se para onde tinha ficado a jovem, mas esta havia
desaparecido. Então, sem um só olhar para Rokoff ou para o seu
companheiro, afastou-se tranquilamente.
Tarzan não podia deixar de conjecturar sobre qual seria a
intenção dos dois homens.


18


O vulto de mulher parecera-lhe vagamente familiar, mas como
não tinha podido ver-lhe a cara, não tinha a certeza de a
haver encontrado antes. Só notara um anel de feitio especial,
na mão que Rokoff tinha agarrado, e pensou que observaria os
dedos das passageiras que encontrasse, para descobrir a
identidade da dama a quem Rokoff havia ameaçado, e saber se o
patife teria continuado a incomodá-la.
Tarzan foi sentar-se na sua cadeira de convés, meditando
sobre a crueldade e o egoísmo das criaturas humanas que havia
encontrado desde que, quatro anos antes, na selva, avistara
pela primeira vez alguém semelhante a ele próprio - o negro
kulonga cuja lança pusera fim à vida de Kala, a macaca... a
única mãe que Tarzan conhecera.
Recordou-se do assassínio de King, pelo cara-de-cato que se
chamava Snipes, e o abandono do professor Porter e do seu
grupo... pelos amotinados do Arrow. Recordou a crueldade dos
guerreiros e das mulheres negras de Mbonga, em relação aos
prisioneiros. Evocou as pequenas intrigas dos civis e
militares que encontrara na Costa Oeste... e que lhe tinham
dado uma primeira perspectiva sobre a vida.
- Meu Deus... - murmurou. - São todos semelhantes..
Assassinos, mentirosos, trapaceiros... lutando por uma coisa
que as feras desprezariam - o ouro para adquirirem os
efeminados prazeres das criaturas fracas. E todavia escravos
dos tolos hábitos de uma vida absurda... mas julgando-se os
senhores de todas as criaturas e os únicos a gozarem os
verdadeiros prazeres da existência.


19


Na selva, nenhum animal ficaria idiotamente sentado enquanto
outro levasse a sua companheira. É um mundo estúpido, tolo, e
fiz mal em renunciar à felicidade e à liberdade da selva, para
entrar neste mundo...
Nesse momento Tarzan sentiu que alguém o fi tava, atrás
dele, e o instinto poderoso do animal da selva fez estalar o
ténue verniz da civilização. Voltou-se com tal rapidez que os
olhos da jovem que o fitava não tiveram tempo para se desviar
dos olhos cinzentos e penetrantes. Tarzan notou o rubor que
cobrira bruscamente a bonita face.
Sorriu consigo mesmo ao verificar o resultado da sua brusca
acção, pois não desviara os seus olhos ao fitar os dela. Era
muito jovem e bonita. Havia nela qualquer coisa de familiar
que fez com que Tarzan pensasse onde a teria visto antes.
Voltou à sua anterior posição e sentiu que a jovem se
levantava e se afastava. Quando ela passou, olhou-a novamente,
curioso.
A sua curiosidade não foi inteiramente perdida, Pois,
enquanto se afastava, a jovem levantou uma das mãos para
compor o cabelo na nuca - um gesto tipicamente feminino que
trai a impressão de que alguém observa admirativamente - e
Tarzan viu o estranho anel que notara pouco antes na vítima de
Rokoff.
Era portanto aquela mulher bela e jovem, a que Rokoff
perseguia. Tarzan pensou vagamente em quem seria ela... e que
relações poderia ter com o russo barbudo e brutal.


20


Na noite seguinte, depois de jantar, Tarzan voltou a sentar-
se no convés e deixou-se ficar até depois de escurecer, em
conversa com o imediato do navio.
Como os seus deveres chamaram o oficial, Tarzan encostou-se
à amurada, olhando preguiçosamente os reflexos do luar sobre
as ondas. Estava meio escondido pelos turcos de um escaler, de
modo que os dois homens que se aproximavam ao longo do convés
nÃo o viram - mas Tarzan ouviu o suficiente da conversa entre
ambos, para os seguir e tentar ver o que eles iam fazer. Tinha
reconhecido a voz de Rokoff, e que o companheiro deste era
Paulvitch.
Tarzan ouvira apenas umas quantas palavras: "- E se ela
gritar podes atabafá-la até que..."
Mas estas palavras haviam bastado para que ele nÃo perdesse
os dois homens de vista. Viu-os aproximar-se da entrada do
salÃo de fumo, mas pararem apenas um momento, como para se
assegurarem da presença de alguém, ali, Depois encaminharam-se
directamente para os corredores dos camarotes de primeira
classe. Tarzan teve dificuldade em segui-los sem ser visto,
pois os corredores estavam desertos, mas conseguiu-o. Quando
eles pararam diante de uma das portas, Tarzan escondeu-se na
sombra de um corredor lateral, a curta distância.
Bateram à porta e uma voz de mulher perguntou:
- Quem é?
- Sou eu, Olga... Nikolas... - disse o barbudo russo, na sua
voz gutural. - Posso entrar?
- Por que nÃo deixas de me perseguir, Nikolas?


21


- volveu a voz de mulher. - Nunca te fiz mal...
- Vamos, vamos, Olga.., - disse o russo, persuasivo. - Quero
apenas falar contigo, não farei nada... Não posso conversar
através da porta. Abre... Nem sequer entrarei...
Tarzan ouviu correr o ferrolho interior... e dispôs-se a
intervir se fosse necessário. Não esquecera as palavras que
tinha ouvido a Nikolas, momentos antes. Rokoff parou no limiar
da porta, enquanto Paulvitch se cosia com a parede, perto
dele. Tarzan ouviu o russo falar em voz baixa com a mulher, e
logo a voz dela, num tom normal mas bastante claro.
- Não, Nikolas... - dizia ela. - Se quiseres, mas nunca
acederei às tuas exigências. Vai-te daqui, por favor! Não tens
qualquer direito para estar aqui, e prometeste não entrar...
- Muito bem, Olga... Não entrarei, mas antes de eu ter
acabado com isto hás-de desejar mil vezes não ter recusado o
simples favor que te peço. No fim vencerei, seja como for,
portanto poderias poupar-me incómodos e poupar desgraças para
ti e para o teu...
- Nunca! Nikolas... - interrompeu-o a mulher.
Tarzan viu Rokoff voltar-se e fazer um sinal a Paulvitch.
Este então precipitou-se para a porta que o outro mantinha
aberta, e entrou de roldão. Nikolas recuou apressadamente e a
porta fechou-se.
Tarzan ouviu de novo o ruído do ferrolho interior, decerto
fechado por Paulvitch. Rokoff ficou do lado de fora, encostado
ao batente, à escuta. Um sorriso crispava-lhe os lábios que a
barba quase cobria.


22


Tarzan ouviu a voz da mulher, ordenando ao homem que saísse:
- Chamarei o meu marido, e ele não terá piedade!
Através do batente veio a voz de Paulvitch, sarcástico..
- O comissário irá chamar o seu marido... De certo, o
comissário já sabe que você recebe um homem no seu camarote,
na ausência do conde com a porta fechada.
- O meu marido saberá quem é!
- Decerto que sim... mas o comissário não o saberá... Nem
ele nem os jornalistas que de certa misteriosa maneira serão
informados assim que desembarcarmos. Considerarão que se trata
de uma boa história, e o mesmo pensarão todos os seus amigos
quando lerem os jornais ao pequeno almoço em... vejamos...
hoje é terça-feira... sim, quando lerem a notícia na
sexta-feira pela manhã... E o interesse não será diminuído
quando souberem que o homem, a quem a condessa de Coude dedica
as suas atenções, é um criado russo... de facto o criado de
seu próprio irmão...
- Alexis Paulvitch... - redarguiu a voz da mulher, friamente
e sem medo - ... você é um cobarde!
- quando eu lhe disser um nome ao ouvido... pensará antes de
fazer exigências e ameaças... e sairá daqui para não voltar a
molestar-me!
Houve um momento de silêncio, durante o qual imaginou a
jovem a murmurar ao ouvido do patife o nome que anunciara.


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Um instante apenas... Depois uma praga abafada, um rumor de
pés... um grito de mulher... e novamente silêncio. Mas, mal
soara o grito, Tarzan tinha saltado do seu esconderijo. Rokoff
lançou-se em corrida, mas o filho da selva agarrou-o pelo
pescoço e puxouo para trás. Nenhum deles falou. Ambos pensavam
que estava a ser cometido um crime dentro daquele camarote...
Tarzan supunha que Rokoff não teria desejado que o seu
cúmplice fosse tão longe... adivinhava que as intenções do
miserável eram mais profundas e ainda mais sinistras do que um
crime brutal cometido a sangue-frio.
Sem uma hesitação, Tarzan apoiou o ombro à porta e a
fechadura saltou. O homem da selva entrou de rompante no
camarote, arrastando Rokoff... e viu a jovem derrubada sobre a
cama enquanto Paulvitch lhe apertava o pescoço muito branco...
mau grado os esforços que ela fazia para se defender.
O ruído fez com que Paulvitch deixasse a sua vítima e
saltasse para o chão, olhando ameaçadora mente para Tarzan. A
jovem levantou-se também ofegante, muito pálida... Era a mesma
que Tarzan surpreendera a olhar para ele no convés, horas
antes.
- Que significa isto?... - exclamou Tarzan olhando para
Rokoff, o instigador de tudo aquilo. O homem encolheu-se,
rosnando, e Tarzan continuou dirigindo-se agora à jovem: -
Toque a campainha., vamos chamar um dos oficiais de bordo.
Isto já foi demasiado longe.
- Não, não.. - exclamou ela, endireitando-se imediatamente.


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- Tenho... tenho a certeza de que este homem não queria
realmente fazer-me mal..: Eu... sei-o e... e creio que ele
perdeu a cabeça. Para mais... Não desejo que isto vá
adiante...
Havia um tal tom de súplica na voz dela que Tarzan se sentiu
impedido de fazer o que tencionava, agora tendo a sensação
nítida de que o assunto não ia ser levado ao conhecimento das
autoridades.
- Não quer que eu faça nada, então?... - perguntou ele.
- Nada, por favor...
- Resigna-se a que estes dois patifes continuem a
Persegui-la?
Ela parecia não atinar com a resposta a dar... Estava
flagrantemente perturbada e angustiada. Tarzan notou um
malévolo sorriso de triunfo na face de Rokoff. Era evidente
que a jovem tinha medo daqueles dois homens... e não ousava
falar diante deles.
- Então... - disse Tarzan - ... agirei por minha própria
iniciativa... - voltou-se para Rokoff e continuou: - A você e
ao seu cúmplice direi que desde este momento até ao fim da
viagem não os perderei de vista. Se souber que tentam molestar
esta senhora, mesmo remotamente, eu lhes pedirei contas
imediatamente... e garanto-lhes que será uma desagradável
experiência para ambos. Agora saiam daqui!
Agarrou Rokoff e Paulvitch, pelo pescoço, e empurrou-os para
o corredor... acrescentando o impulso, atirara-lhes com dois
tremendos pontapés. E então voltou-se para a jovem,


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que o olhava com profundo espanto.
- Quanto a si, senhora, far-me-á um grande favor se me
informar, no caso de estes patifes voltarem a incomodá-la.
- Ah, monsieur... - disse ela - ... espero que não venha a
sofrer as consequências da sua boa acção. Fez um inimigo
ardiloso e muito perigoso, que não hesitará diante do que for
para satisfazer o seu ódio. Deverá ter muito cuidado,
realmente, senhor.
- Desculpe-me... o meu nome é Tarzan...
- Sr. Tarzan..-. E por eu não ter querido que comunicasse o
que se passou às autoridades de bordo... não pense que estou
menos grata pela sua corajosa protecção. Boas-noites, sr.
Tarzan... Nunca esquecerei a dívida que contraí para
consigo...
E, com um lindo sorriso, a jovem cumprimentou Tarzan, que se
despediu encaminhando-se para o convés. Intrigava-o
profundamente o facto de existirem a bordo duas pessoas -
aquela jovem e o conde Coude - que suportavam ofensas de
Rokoff e do seu companheiro... e no entanto se recusavam a
apresentar queixa contra eles, de maneira a que a justiça lhes
pedisse contas. Antes de adormecer, nessa noite, pensou muitas
vezes na bela jovem em cuja evidentemente complicada teia de
vida o destino a envolveu. Lembrou-se então de que nem sequer
sabia o nome dela... A aliança, que usava na mão esquerda,
provava que era casada. Involuntariamente, pôs-se a
conjecturar sobre quem seria o feliz marido de tão bonita
criatura.


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Tarzan não voltou a saber de qualquer dos personagens do
pequeno drama de que se apercebera fugazmente, senão ao fim da
tarde do último dia de viagem. Viu a jovem, quando ambos se
aproximavam das respectivas cadeiras de convés, vindos de
sítios diferentes. Ela cumprimentou-o, com um sorriso, e quase
imediatamente falou do que se passara no seu camarote, duas
noites antes. Parecia preocupada pela ideia de que ele a
julgasse em consequência das suas aparentes relações com os
dois miseráveis.
- Confio... - disse ela - ... que não ficasse com uma ideia
má a meu respeito, por causa dos aconteCimentos de
terça-feira. Tenho sofrido muito por causa disso... e desde
então é a primeira vez que saio do meu camarote. Tenho... tido
vergonha... - concluiu, com simplicidade.
- Não se julga a gazela pelos leões que a atacam - volveu
Tarzan: - Vi esses homens em acção, no salão de fumo, na
véspera da noite em que a atacaram. Conhecendo os métodos
deles, estou convencido de que a animosidade que tenham contra
alguém só pode provar a integridade desse alguém.
Homens como esses são naturalmente vis, e odeiam o que é
nobre e bom.
- É bondade sua pôr assim a questão... - Murmurou a jovem,
sorrindo. - Eu já sabia do que havia acontecido no salão de
fumo. Meu marido contou-me e falou-me em especial da força e
da coragem do sr. Tarzan, por quem sente uma profunda
gratidão...
- Seu marido?


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- Sim, eu sou a condessa de Coude...
- Sinto-me amplamente recompensado por saber que pude
prestar um serviço à esposa do conde de Coude.
- Por minha parte, senhor, devo-lhe tanto que nunca poderei
pagar a minha dívida...
A jovem condessa acompanhou estas palavras com um sorriso...
e Tarzan pensou que qualquer homEm faria grandes proezas por
essa única recompensa. Não voltou a vê-la nesse dia, nem na
manhã seguinte, durante a agitação do desembarque. Mas
recordou-se da expressão dela, quase saudosa, quando tinha
falado das súbitas amizades que se fazem durante uma viagem...
e que cessam quando a viagem chega ao fim...
Possivelmente não voltaria a ver a linda condessa...


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CAPÍTULO 3


O que aconteceu na Rua Maule


Ao chegar a Paris, Tarzan dirigiu-se directamente ao
apartamento do seu velho amigo d'Arnot. e o tenente censurou-o
abertamente pela sua decisão de renunciar ao título e à
fortuna que legitimamente lhe pertencia como herdeiro do
falecido John Clayton, lord Greystoke.


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- Você deve estar doido, meu amigo... - declarou d'Arnot -
.. para tão facilmente abrir mão da sua Posição e da sua
fortuna... além da oportunidade de poder provar que nas suas
veias corre o sangue das mais nobres casas inglesas - e não o
sangue de uma macaca. É inacreditável que tenham podido
acreditar em tal coisa, especialmente miss Porter. Eu nunca
acreditei, nem mesmo quando nos encontrámos na selva da sua
África... e você comia carne crua, rasgando-a com os dentes,
como um animal selvagem, e limpando as mãos às pernas. Mesmo
então sem a mais leve prova em contrário, eu sabia que ela não
podia ser sua mãe.
- Agora, com o diário em que seu pai contou a terrível
existência que, com sua mãe, teve de suportar no isolamento
daquela praia... com a narrativa do seu nascimento e,
finalmente, com a prova obtida pelas suas impressões digitais,
é espantoso que queira continuar a ser uma espécie de
vagabundo sem fortuna e sem nome.
- Não preciso de outro nome além de Tarzan...
- Respondeu o homem da selva - ... e não tenciono ser
vagabundo sem dinheiro. Na verdade, eu espero que seja o
último apelo que faço à sua amizade, pedindo-lhe que me
arranje um emprego qualquer.
- Ah!... - volveu d'Arnot. - Sabe perfeitamente que não me
referia a isso. Já lhe disse muitas vezes que sou rico
bastante para dois, ou para vinte, metade do que eu tenho lhe
pertence. Ainda que lhe désse tudo, isso não representaria a
décima parte do valor que atribuo à sua amizade, Tarzan.


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Conseguirei alguma vez pagar-lhe o que fez por mim, em
África? Não esqueço, meu amigo, que sem a sua ajuda e
espantosa coragem eu teria morrido amarrado ao poste na aldeia
de Mbonga... para ser devorado pelos negros. Nem esqueço que
lhe devo o milagre de ter podido restabelecer-me das terríveis
feridas que me fizeram... Descobri, mais tarde, o que
significou para si estar a meu lado... quando o seu coração o
impelia para voltar.
E Quando, finalmente, chegámos à barraca descobrimos que
miss Porter e o seu grupo haviam partido, foi quando
compreendi a enormidade do favor que você havia feito a um
desconhecido. Não estou a tentar pagar-lhe com dinheiro,
Tarzan. Acontece apenas que, neste momento, o dinheiro lhe é
necessário. Se oferecer-lho significasse alguma espécie de
sacrifício para mim, seria o mesmo... a minha amizade e a
minha admiração pertencer-lhe-iam senpre. Nisso eu não posso
senão obedecer ao que sinto.
mas do dinheiro posso livremente dispor, e assim farei.
- Bem... - riu Tarzan - ... não vamos discutir a respeito de
dinheiro. Tenho de viver, e portanto preciso dele... mas
ficaria mais satisfeito tendo alguma coisa que fazer. Você não
tem forma mais convincente de me demonstrar a sua amizade do
que arrajando-me trabalho... A inactividade daria cabo de mim
em pouco tempo. Quanto aos meus direitos de nascimento, estão
em boas mãos. Clayton não me roubou fosse o que fosse.
Acredita que é na verdade Lord Greystoke... e sem dúvida será
melhor, como lord, do que um homem que nasceu e foi criado


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na selva africana. Você bem sabe que eu sou apenas meio
civilizado, mesmo agora. Basta-me um acesso de fúria para que
todos os instintos do animal selvagem, que realmente sou,
façam desaparecer o pouco que tenho de cultura e moderação.
e, Por outro lado, se eu dissesse a verdade, privaria a
mulher a quem amo da riqueza e posição que o seu casamento com
Clayton lhe garante. Não podia fazer tal coisa, não é verdade,
Paul? O nascimento, quero dizer, as condições do nascimento
não têm importância para mim.. Criado como fui, não reconheço
valor, em homem ou fera, que não lhe pertença intrinsecamente
pela sua força mental ou física. Assim, sou tão feliz
considerando Kala como minha mãe... como seria tentando
imaginar a jovem inglesa que morreu um ano depois de eu
nascer. Kala foi sempre boa para mim, à sua maneira. Quando
minha mãe morreu... era Kala quem me amamentava. Lutou em
minha defesa contra todos os outros habitantes da floresta e
contra os membros da própria tribo... com ferocidade de um
amor verdadeiramente maternal. - Por minha parte, Paul, eu
amava-a. Só compreendi bem até que ponto... quando a flecha
envenenada de Kulonga a levou. Eu era ainda uma criança,
então... e chorei a minha angústia como qualquer criança
choraria por morte de sua mãe. Para si, meu amigo, ela teria
parecido uma criatura terrivelmente feia... mas para mim era
bela... de certo modo o amor transfigura. Assim, sinto-me
contente por continuar a ser o filho de Kala, a macaca.


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- Não o admiro menos pela sua lealdade... - volveu d'Arnot -
.. mas chegará a altura em que você terá de reclamar o que
lhe pertence. Lembre-se do que lhe digo... e esperemos que
então seja tão fácil como seria agora. Não se esqueça de que o
professor Porter e o sr. Philander são as únicas criaturas
vivas com a possibilidade de jurar que o pequeno esqueleto,
encontrado na barraca, com os de seu pai e sua mãe, era o de
uma cria de macaco antropóide, e não o do filho de lord e lady
Greystoke. Esse testemunho é muito importante. São ambos
velhos, podem não viver muito mais tempo. Mais ainda... Você
nunca pensou que, se miss Porter conhecesse a verdade,
quebraria o seu compromisso com Clayton? Podia facilmente ter
o seu título, a sua fortuna e a mulher a quem ama, Tarzan!
Pensou nisso?
- Você não a conhece... - respondeu Tarzan abanando a
cabeça. - Nada a prenderia mais ao seu compromisso do que
qualquer desventura que caísse sobre Clayton. É um coração
leal.


Tarzan ocupou as duas semanas seguintes a con pletar o seu
breve conhecimento anterior com Paris. Durante o dia percorria
bibliotecas e museus. Tornara-se um leitor ecléctico, e o
mundo de possibilidad que se abria diante dele, neste terreno
da cultura, fazia-o pasmar ao pensar nas migalhas de saber
humano que um indivíduo pode adquirir, mesmo ao cabo de uma
vida de estudo e de pesquisa. Mas aprendia o que lhe era
possível, durante os dias, e durante as noites procurava
descansar e divertir-se. Também sob este aspecto Paris era
campo fértil.
Se fumava demasiados cigarros, e bebia absinto em demasia,


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era porque aceitava a civilização tal como a encontrava, e
fazia as coisas que via fazer aos seus semelhantes
civilizados. Aquela era uma vida diferente e empolgante... e
para mais ele trazia consigo um vazio que sabia nunca mais
poder preencher. Assim, procurava no estudo e na dissipação -
dois extremos - o esquecimento do passado e do descaso do
futuro.
Certa noite, estava num music hall, bebendo o seu absinto e
admirando a arte de um famoso bailarino russo, quando notou de
relance dois olhos malévolos que o fitavam. O homem voltou-se
e perdeu-se entre a multidão antes que Tarzan pudesse vê-lo
bem - mas Tarzan ficou com a impressão de que já vira antes
aqueles olhos, e de que não era por acaso que os havia
encontrado ali. Tinha tido a impressão de estar a ser
observado, e por instinto voltara-se rapidamente e
surpreendera o homem.
Antes de sair do music hall já tinha esquecido o assunto...
e não notou o vulto que recuou para as sombras de um portal em
frente, no momento em que ele saía. Sem que Tarzan o soubesse,
já de outras vezes fora seguido, mas raramente estando só.
Naquela noite, porém, d'Arnot não tinha podido acompanhá-lo.
Quando seguiu na direcção do seu apartamento, que ficava
noutro ponto da cidade, o vulto escondido no portal saiu de
onde estava e caminhou apressadamente, em frente.
Tarzan atravessava frequentemente a Rua Maule, seu trajecto
para casa. Era uma rua escura e deserta... que de algum modo
lhe lembrava a sua selva. A Rua Maule, todavia,


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era uma daquelas que a polícia aconselhava a evitar depois do
escurecer.
Nessa noite, Tarzan percorrera cerca de dois quarteirões
através da escuridão, ao longo dos velhos edifícios sórdidos
da Rua Maule... quando ouviu gritos de socorro que pareciam
vir do terceiro andar de um prédio em frente. Eram gritos de
mulher...
não havia desaparecido ainda o eco e já Tarzan subia em
corrida a escada estreita e sem luz. Ao fundo de um corredor
do terceiro andar havia uma porta entreaberta... de onde veio
um novo grito igual aos anteriores. No instante seguinte o
filho da selva estava no meio de um quarto escassamente
iluminado. Um candeeiro de petróleo, colocado sobre uma velha
cómoda, permitia distinguir vagamente uma dúzia de vultos
repulsivos... dos quais um apenas era mulher... Uma mulher de
cerca de trinta anos, que devia ter sido bela... mas cuja face
estava fundamente marcada por todos os vícios. Estava
encostada a uma parede, com as mãos no peito.
- Socorro, senhor... - disse ela, num tom estranhamente
baixo. - Querem matar-me!
Tarzan encarou os homens e viu as faces astutas e malévolas
de criminosos habituais. Estranhou que nenhum deles fizesse
qualquer tentativa para fugir... , Um movimento furtivo, atrás
dele, fê-lo voltar-se e notar de relance duas coisas... Um
homem saía sorrateiramente... e Tarzan reconheceu Rokoff...
mas a segunda coisa era sem dúvida digna de mais imediato
interesse: um tipo corpulento aproximava-se traiçoeiramente,


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brandindo um curto cacete. Quando esse e os outros viram que a
surpresa já não era possível, atacaram bruscamente Tarzan, por
todos os lados. Alguns empunhavam facas... outros tinham
agarrado cadeiras, e o homem do cacete dispôs-se a vibrar um
golpe que talvez tivesse sido fatal... se chegasse ao seu
destino.
Mas o cérebro, a agilidade e os músculos que haviam vencido
Terkoz e Numa no coração da selva, não eram a presa fácil que
os rufiões tinham imaginado. Escolhendo o seu mais perigoso
adversário, o homem do cacete, Tarzan saltou sobre ele,
evitando a pancada e aplicando, na ponta do queixo do patife,
um tão tremendo soco que o prostrou no mesmo instante. Então o
homem da selva voltou-se para os outros, sentindo a alegria da
luta e o prazer selvagem da violência. A ligeira camada de
verniz, dos recentes hábitos de civilização, estalou e caiu...
E os rufiões encontraram-se fechados num quarto com uma
verdadeira fera, contra cujos músculos de aço a sua mesquinha
força nada podia. Fora do quarto, ao fundo do corredor, Rokoff
espiava o resultado da luta... Queria ter a certeza de que
Tarzan morreria ali... mas nos seus planos não entrava a ideia
de tomar parte no assassínio. A mulher continuava no mesmo
ponto onde Tarzan a vira entrar... mas a sua expressão
modificara-se várias vezes. À falsa crispação de angústia
cedera lugar un esgar de maldade e de astúcia... para logo se
transformar em apavorado espanto.


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O elegante gentleman, que os seus gritos haviam atraído... era
afinal um gigante furioso e bravio.
- Meu Deus!.. - gritou a criatura. - É uma fera!
Tarzan lutava como aprendera a lutar na selva, e os seus
dentes cravaram-se ferozmente na garganta de um adversário.
Saltava, voava, parecia estar em toda a parte ao mesmo tempo,
com o impulso e a força de uma pantera... Ora um pulso se
quebrava sob os seus dedos de aço, ora um ombro estalava
quando o osso de um braço saía do seu lugar.
Com uivos de pavor, os homens corriam para o corredor
escuro, sangrando... mas mesmo antes de o primeiro ter fugido
já Rokoff compreendera que Tarzan não ia ser o vencido na
luta. E assim o russo tinha corrido ao telefone mais próximo,
avisando a polícia de que andava um assassino à solta no
terceiro andar do n.o 27 da Rua Maule.
Quando os polícias chegaram, encontraram três homens caídos
no chão, a gemer, e uma mulher apavorada, estendida sobre uma
cama suja e com a cara escondida entre os braços. A meio do
quarto, um gentleman bem vestido parecia esperar...
neste último ponto os polícias enganavam-se, porque era na
verdade uma fera que os fitava com olhos cinzentos e duros,
por entre as pálpebras semicerradas. Com o cheiro do sangue,
todos os vestígios de civilização haviam desaparecido... e
naquele momento Tarzan era como um leão encurralado, disposto
matar e a morrer.


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- Que aconteceu aqui... - perguntou um dos polícias.
Tarzan explicou, em poucas palavras, mas quando se voltou
para a mulher, a fim de que ela confirmasse, pasmou ao ouvi-la
gritar:
-É mentira! Ele entrou no meu quarto quando estava sozinha,
e não trazia boas intenções. Quando eu o repeli, ter-me-ia
assassinado se os meus gritos não tivessem atraído estes
senhores que iam a passar. É um demónio, senhor guarda! Pouco
faltou para matar dez homens, com as mãos e os dentes..
Tarzan ficou tão espantado que, por momentos, não soube o
que dizer. Os polícias olharam para a mulher, incrédulos...
porque a conheciam e conheciam os senhores amigos dela. Mas
eram polícias não juízes. Resolveram prender toda a gente...
No dia seguinte um juiz distinguiria os culpados e inocentes.
Não tardaram a compreender, porém, que uma coisa era dizer
àquele jovem elegante que estava sob prisão... e outra coisa
era prendê-lo de facto.
- Não sou culpado de coisa nenhuma... - explicou Tarzan,
ainda a dominar-se. - Limitei-me a defender-me. Não sei que
razão leva essa mulher a dizer o que diz. Não pode ser por
inimizade, porque nunc a a vi antes de entrar neste quarto em
consequência dos seus gritos.
- Vamos, vamos... - disse um dos guardas. - Há juízes para
ouvirem isso...
Adiantou-se e poisou uma das mãos sobre um ombro de Tarzan.


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mas no mesmo instante foi atirado, feito num novelo, para um
canto do quarto.
Os outros tentaram dominar o homem da selva... e tiveram uma
amostra do que os rufiões haviam sofrido pouco antes. Tão dura
e rápida foi a reacção de Tarzan que os polícias nem sequer
tiveram tempo para empunhar os revólveres.
Durante a breve luta Tarzan notara, em frente da janela
aberta, um tronco de árvore - ou talvez um póste telegráfico.
Quando o último polícia caiu, um dos outros conseguiu empunhar
a arma e disparar...
A bala errou o alvo, e antes que o guar da pudesse disparar
segunda vez, Tarzan varreu o candeeiro e deixou o quarto
mergulhado em escuridão. A última coisa que os polícias viram
foi um vulto que saltava da janela para o poste colocado à
beira do passeio.
Quando todos conseguiram recompor-se e chegar à rua, o jovem
bem vestido desaparecera por completo.
A mulher e os homens que estavam no quarto não foram
conduzidos à esquadra com qualquer espécie de gentileza. Os
polícias sentiam-se furiosos e humilhados... Era muito
desagradável ter de dizer, num relatório, que um homem sem
armas os derrubara, a todos, desaparecendo depois. O guarda
que havia ficado na rua jurou a pés juntos que não vira
ninguém sair do prédio, pela janela ou pela porta, e isso
ainda complicava mais as coisas, embora os outros não
acreditassem nele. De qualquer modo, a mulher e os homens
feridos tinham sido apanhados... e estavam em maus lençóis.
Ao saltar para o poste, Tarzan olhara instintivamente


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para baixo... e ao ver o polícia resolvera subir em vez de
descer. Um salto - fácil para alguém treinado a percorrer
quilómetros pulando de árvore em árvore - deixou-o num telhado
vizinho. Desse telhado passou para outro, trepando ou
saltando, até atingir uma ruela transversal... onde outro
poste Lhe permitiu alcançar prontamente o chão. Tarzan correu
ao longo da ruela, na distância de três quarteirões, e foi ter
a uma avenida onde havia um café aberto toda a noite. Nos
lavabos do café moveu, das mãos e da roupa, os vestígios do
seu passeio nocturno sobre os telhados de Paris. Quando
terminou, uns dez minutos depois, encaminhou-se vagarosamente
para o seu apartamento. A curtos metros da porta, quando ia
atravessar um boulevard brilhantemente iluminado, parou por
instantes junto de um candeeiro público, a fim de esperar a
passagem de um luxuoso automóvel que se aproximava. Foi nesse
instante que ouviu o seu nome, pronunciado por uma voz
feminina.. e viu, dentro do carro e fitando-o, os belos olhos
sorridentes de Olga de Coude. C Cumprimentou. O carro
seguiu...
- Rokoff e a condessa de Coude, ambos na mesma noite... -
murmurou Tarzan, falando consigo mesmo. - Afinal, Paris não é
assim tão grande...


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CAPÍTULO 4


A condessa explica


- A sua Paris é mais perigosa do que a minha
selva, Paul... - concluiu Tarzan, na manhã seguinte, depois de
contar ao amigo as peripécias da noite movimentada. - Por que
razão me atrairiam ali? Teriam fome?
D'Arnot fingiu horrorizar-se, mas riu francamente ao ouvir a
estranha pergunta.
- É difícil esquecer as reacções próprias da selva e
raciocinar à maneira das pessoas civilizadas... Não é assim,
amigo?
- Civilizada coisa nenhuma... - protestou Tarzan. - Na selva
não existem atrocidades cometidas ao acaso, a esmo. Aí matamos
para defender a vida, ou para comer, ou para conquistar uma
companheira, ou para proteger as crias... sempre de acordo com
as leis da natureza. Mas aqui não... Os seus homens
civilizados são mais brutais que os brutos. Matam sem razão e,
pior do que isso, utilizam um nobre sentimento, o da
fraternidade humana, para atrair as vítimas ao seu covil. De
momento, e mesmo depois, não consegui compreender que uma
mulher pudesse descer tão baixo, em depravação moral, ao ponto
de atrair a uma ratoeira de morte alguém que se dispunha a
socorrê-la. Mas foi assim... A atitude da mulher, depois, e a
presença de Rokoff, tornaRam possível encarar o caso sob outro
aspecto - Rokoff devia saber que eu passava frequentemente
pela Rua Maule. Preparou todos os pormenores da armadilha...
mesmo a história que a mulher deveria contar na hipótese de
falhar,o golpe, como aconteceu. Isto é perfeitamente claro.


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- Bem... - volveu d'Arnot - ... pelo menos o incidente
ensinou-lhe o que eu não consegui fazê-lo compreender... que a
Rua Maule é um lugar para evitar depois do anoitecer.
- Pelo contrário... - replicou Tarzan, sorrindo... -
convenceu-me de que é a rua mais interessante da sua Paris.
Não mais perderei a oportunidade de por lá passar... visto que
encontrei o primeiro divertimento verdadeiro que tive desde
que vim de África.
- Talvez a Rua Maule lhe dê mais do que você quer, mesmo sem
lá voltar... - declarou d'Arnot. - Não se esqueça que não está
ainda livre da polícia. Conheço bastante bem a polícia de
Paris, para lhe afirmar que eles não esquecerão o que lhes
fez. Mais cedo ou mais tarde apanhá-lo-ão, meu caro Tarzan, e
porão o homem da selva atrás das grades. Que lhe parece isto?
- Nunca me porão atrás das grades... - volveu Tarzan,
sombriamente.
Na voz dele havia qualquer coisa que fez com que D'Arnot o
olhasse atentamente. O que o jovem francês viu na expressão
dos olhos cinzentos do amigo, deixou-o apreensivo. Na verdade
Tarzan era ainda uma criança grande... que não reconhecia
qualquer como mais forte do que a sua força. D'Arnot
compreendeu que era necessário fazer qualquer coisa para
arrumar o caso entre Tarzan e a polícia, antes que se
verificasse outro choque.
- Você tem ainda muito que aprender, Tarzan... - disse
D'Arnot, gravemente. - A lei tem de ser respeitada, quer nos
agrade, quer não. Se persistir em desafiar a polícia, daí só
podem resultar complicações para você e para os seus amigos.


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Posso explicar-lhes a situação, e farei isso hoje mesmo, mas
é preciso que você obedeça à lei. Vou falar com o meu velho
amigo que pertence aos serviços da polícia, e arrumaremos o
caso da Rua Maule. Venha.
Entraram ambos meia hora depois, no gabinete do oficial
amigo de D'Arnot. O oficial mostrou-se amável. Lembrava-se de
Tarzan, com quem muitas vezes falara meses antes a respeito do
assunto das impressões digitais.
Quando D'Arnot concluiu a narrativa dos acontecimentos da
noite anterior, o oficial teve um sorriso breve. Premiu um
botão sobre a secretária e, enquanto esperava a chegada de um
dos seus ajudantes, procurou um papel entre outros que tinha
na sua frente.
- Joubon... - disse, quando o ajudante chegou. - Chame os
agentes que assinaram este relatório. Diga-lhes que preciso
deles sem demora... - voltou-se para Tarzan, quando o ajudante
saiu, e continuou, com uma gravidade amável: - Cometeu um
delito grave, meu caro, e sem a explicação dada pelo nosso
comum e bom amigo D'Arnot... sentir-me-ia inclinado a julgá-lo
severamente. No entanto vou agir de um modo que não tem
precedentes. Mandei chamar os guardas a quem maltratou a noite
passada. Ouvirão a história do tenente D'Arnot... e eu
deixarei nas mãos deles a decisão quanto ao procedimento a
seguir.
- Tem ainda muito que aprender, quanto às formas da vida
civilizada. Coisas que Lhe parecem estranhas,


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ou desnecessárias... terá de as aceitar até poder ajuizar dos
motivos que as determinam. Os agentes a quem maltratou
ontem... estavam a cumprir o seu dever. Não tinham poderes
para decidir. Todos os dias esses homens arriscam a vida para
proteger a vida e a propriedade alheias. Fariam o mesmo por
si. São homens corajosos e sentem-se humilhados pelo facto de
terem sido batidos por um homem só e sem armas.
Será difícil, para eles, esquecer essa humilhação. Tenho a
certeza de que o senhor é um homem de enorme coragem... e os
homens assim são habitualmente magnânimos.
A conversa foi interrompida pela entrada dos quatro agentes.
Quando viram Tarzan, nenhum deles escondeu a sua surpresa.
- Meus senhores... - disse o oficial - ... aqui está o
gentleman que encontraram a noite passada, na Rua Maule. Veio
apresentar-se voluntariamente. Desejo que escutem com atenção
o que o tenente D'Arnot vai contar-lhes... sobre uma parte da
vida do sr. Tarzan. Isso explicará a atitude dele, assim o
julgo. Tenente, faça favor...
D'Arnot falou durante cerca de meia hora, contando aos
quatro polícias uma parte da vida de Tarzan na selva africana.
Explicou-lhes o que essa vida significara... como treino para
combater como uma fera, em defesa própria. Os guardas,
surpreendidos e interessados, compreenderam facilmente que
Tarzan agira por instinto e não por intenção malévola, ao
atacá-los. Simplesmente não os diferençara bastante bem


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das outras criaturas - pois que na selva não existiam mais do
que inimigos.
- O vosso orgulho ficou magoado... - disse D'Arnot,
concluindo - ... pelo facto de um só homem os ter vencido. Mas
nisso não há vergonha. Não sentiriam qualquer humilhação se
tivessem sido derrotados por um leão africano, ou por um
grande gorila da selva. Pois bem, acontece que enfrentaram
alguém cujos músculos se opuseram muitas vezes, e sempre
vitoriosamente, aos maiores desses terrores do continente
negro. Não é vergonha para ninguém ser dominado pela força
sobre-humana de Tarzan dos Macacos.
E então, quando os quatro homens olhavam, hesitantes, para o
seu superior e para Tarzan, este teve um gesto que apagou de
vez qualquer resto de animosidade. Avançou para eles, de mão
estendida.
- Lamento o meu erro, senhores... - disse ele, simplesmente.
- Sejamos amigos...
E esse gesto encerrou o caso - mas Tarzan passou a ser
assunto de muitas conversas entre os guardas, e quatro homens
corajosos alinharam decididamente no número dos seus amigos
mais sinceros.
Quando voltaram ao apartamento de D'Arnot, este encontrou
uma carta de William Cecil Clayton, com quem mantinha
correspondência desde que o conhecera por ocasião da malfadada
expedição em busca de Jane Porter, raptada por Terkoz. Leu-a e
comen tou apenas, em voz alta:
- Eles vão casar em Londres, dentro de dois meses...


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Tarzan não precisava que o amigo lhe dissesse quem eram
"eles". Não respondeu, mas ficou calado e pensativo durante o
resto do dia, à noite foram à ópera, mas a mente de Tarzan
estava ainda ocupada com sombrios pensamentos. Pouca, ou
nenhuma, atenção prestou à música e ao que se passava no
palco. Pensava constantemente na bela jovem americana que lhe
confessara o seu amor... e ia casar com outro.
Sacudiu a cabeça, como para se libertar dos seus pensamentos
tristes... e no mesmo instante sentiu que alguém o fitava. Com
o poderoso instinto da sua vida, na selva, voltou-se e olhou.
Viu a bela face e o sorriso de Olga de Coude, que estava num
camarote. No intervalo seguinte foi cumprimentá-la.
- Tenho desejado tanto vê-lo... - disse ela. - Tornou-se
obsessiva a ideia de que, depois do que fez por meu marido e
por mim, nenhuma explicação lhe tivesse sido dada. Deve
supor-nos ingratos... e pode decerto compreender a razão por
que nada fizemos para evitar futuros ataques desses dois
homens, contra nós.
- Engana-se... - afirmou Tarzan. - Os meus pensamentos a
respeito de si e de seu marido não poderiam deixar de ser
agradáveis. Não deve sentir-se na obrigação de me explicar
seja o que for. Esses homens voltaram a molestá-la?
- Nunca deixam de o fazer... - disse a condessa, com
tristeza. - Preciso de contar tudo, a alguém, ninguém tem mais
direitos a saber do que o senhor. Permita-me que o faça. Pode
ser até de vantagem e, até porque conheço bem Nikolas Rokoff,
e posso afirmar-lhe que voltará a ter notícias dele.


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Nikolas procurará todos os meios para se vingar... e o que
quero dizer-lhe talvez o ajude a combater qualquer plano
dele... Não posso falar-lhe aqui... mas amanhã, pelas cinco da
tarde, estarei em casa para o receber.
- O tempo vai ser demasiadamente vagaroso... até amanhã às
cinco da tarde... - volveu Tarzan, despedindo-se.
De um canto da plateia, Rokoff e Paulvitch viram Tarzan no
camarote da condessa De Coude. Ambos sorriram.


Às quatro e meia da tarde seguinte, um homem moreno e de
barbas bateu à porta de serviço do palacete dos condes de
Coude. O criado que veio abrir teve um gesto de surpresa ao
reconhecer o visitante, com o qual travou uma conversa em voz
baixa. Ao princípio o criado mostrou-se renitente ante a
proposta que lhe fazia o outro... mas alguma coisa passou das
mãos do homem barbudo para as dele. Então o criado conduziu o
visitante, ao longo de corredores desviados, até uma alcova
oculta por cortinados, contígua ao pequeno salão onde a
condessa mandara servir o chá cerca das cinco horas.
Meia hora depois Tarzan entrou nessa mesma saleta e foi
recebido pela bela condessa que lhe estendeu ambas as mãos,
sorrindo.
- Estou tão contente por ter vindo... - disse ela.
- Nada poderia impedir-me de vir... - volveu Tarzan.
Durante momentos falaram da ópera e dos assuntos mais em
voga na cidade. Disseram do prazer que ambos tinham em renovar


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um conhecimento iniciado em tão estranhas circunstâncias... e
isso levou-os ao assunto que mais directamente os preocupava.
- Deve ter feito conjecturas sobre os motivos da estranha
perseguição que nos é movida por Nikolas Rokoff. É simples, no
entanto... O conde está ao corrente de muitos dos mais
importantes segredos do Ministério da Guerra. Por vezes tem em
seu poder documentos que algumas potências estrangeiras fariam
tudo para possuir - segredos de Estado, que os governantes
dessas potências desejariam obter mesmo à custa de crimes...
ou de pior ainda. - Neste momento o conde tem em seu poder
documentos que fariam a fama e a fortuna de qualquer agente
russo que pudesse comunicá-los ao seu governo. Rokoff e
Paulvitch são espiões russos... e não hesitarão diante seja do
que for para se apoderarem do que pretendem. O caso acontecido
a bordo do transatlântico - refiro-me ao jogo de cartas -
tinha por fim permitir-lhes arrancar, por chantagem, os
segredos que procuram, Se tivesse sido demonstrado que meu
marido fizera trapaça, a sua carreira ficaria arruinada, e ele
teria de deixar o Ministério... além de que seria repelido da
sociedade. Era essa ameaça que os dois esperavam poder
brandir... e o preço de uma declaração, ilibando o conde,
seria exactamente a fuga desses segredos. O senhor impediu-os
de levarem a cabo o seu intento. Então planearam outra maneira
de agir... na qual o preço seria a minha reputação e não a do
conde. Quando Paulvitch entrou no camarote, disse-mo. Se eu
obtivesse as informações que eles queriam, tudo terminaria


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ali. De outro modo o comissário de bordo seria prevenido por
Rokoff de que eu tinha recebido no meu camarote, com a porta
fechada, um homem que não era o meu marido. Diria isso a toda
a gente, no navio, e ao desembarcar informaria os jornalistas.
-Não era horrível? Mas acontece que eu sei alguma coisa, a
respeito de Paulvitch, que o levaria ao patíbulo, na Rússia,
se fosse conhecida pela polícia de São Petersburgo. Ameacei-o
com isso... e no mesmo instante ele saltou sobre mim e
apertou-me a garganta. Sem a sua intervenção, ter-me-ia
assassinado... esta é a verdade...
- Os patifes... - murmurou Tarzan.
- São piores do que patifes, meu amigo. São demónios. Receio
por si, visto que atraiu o ódio deles. Tem de estar
constantemente em guarda... Peço-lho por mim... porque nunca
perdoaria a mim própria se algum mal lhe acontecesse em
consequência da sua ajuda.
- Não os receio... - disse Tarzan. - Sobrevivi a ataques de
inimigos muito mais perigosos do que Rokoff e Paulvitch. Mas
por que não os denuncia?
Tarzan viu que a condessa nada sabia do caso da Rua Maule, e
não falou a tal respeito para não aumentar ainda a angústia
dela. Mas a pergunta surgiu naturalmente. A condessa hesitou
por um instante, antes de responder.
- Há duas razões... - disse, finalmente. - Uma delas é a que
impede o conde de fazer isso mesmo. A outra, a verdadeira
razão pela qual receio denunciá-lo...


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nunca a disse a ninguém... apenas Rokoff e eu a conhecemos. Na
verdade espanta-me que... - e a condessa interrompeu-se
bruscamente, olhando para Tarzan.
- Posso saber o que a espanta assim?... - sorriu ele.
- Espanta-me que queira dizer-lhe o que nunca me atrevi a
dizer a meu marido. Mas penso que compreenderá e me indicará o
caminho a seguir... E acredito que não me julgará com
excessiva severidade.
- Eu seria mau juiz, minha senhora... - respondeu Tarzan -
.. porque se a soubesse culpada de assassínio... diria que a
vítima se consideraria decerto feliz por morrer às suas mãos.
- Oh, o caso não é tão grave assim... - protestou a
condessa. - Mas primeiro deixe-me dizer-lhe a razão que impede
o conde de agir contra esses homens. Depois, se tiver
coragem... dir-lhe-ei a razão por que não me atrevo a agir. A
primeira razão é a de que Nikolas Rokoff é meu irmão. Somos
ambos russos... e Nikolas foi sempre um homem mau, desde que
eu me lembro. Era capitão do exército russo, mas foi
expulso... Houve um escândalo, nessa altura, que pouco a
pouco se atenuou em parte... e meu pai conseguiu, para ele, um
lugar nos serviços secretos. -Há muitos crimes, terríveis, que
são atribuídos a Nikolas, mas ele tem conseguido sempre
escapar ao castigo. Ultimamente conseguiu-o fabricando provas
de que as suas vítimas eram traidores ao imperador, e a
polícia russa, sempre pronta a aceitar


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tais acusações seja contra quem for, ilibou-o de culpas, a
ele.
- Mas os crimes, ou as tentativas de crimes feitas por ele,
em relação a si e a seu marido, não anulam quaisquer direitos
que os laços de parentesco pudessem garantir-lhe?... -
perguntou Tarzan. - O facto de ser seu irmão não o impediu de
tentar macular a sua honra. Não lhe deve qualquer lealdade,
minha senhora!
- Sim... mas há a outra razão. Não Lhe devo lealdade por ser
meu irmão... mas receio-o em consequência de certo episódio da
minha vida... que ele conhece. Vou contar-lhe tudo... porque
sei que o meu coração exige que lho conte, mais cedo ou mais
tarde. Fui educada num convento... e enquanto lá estava
conheci um homem que supus ser um gentleman. Eu nada sabia a
respeito dos homens... e menos ainda a respeito do amor. -
Convenci-me tolamente de que amava esse homem... e a
insistências dele consenti em fugirmos ambos... para irmos
casar...
- Estive na companhia dele durante três horas... sempre de
dia e em lugares públicos... em estações de caminho de ferro e
num comboio. Quando chegámos ao sítio onde devíamos casar-nos,
dois polícias agarraram o meu companheiro, à saída do comboio,
e prenderam-no. Levaram-me também, mas quando contei a minha
história deixaram-me em liberdade... mandando-me sob
vigilância para o convento de onde havia saído. O homem a quem
eu julgara amar não era na verdade um gentleman...


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mas sim um desertor do exército e um fugitivo da justiça
civil. Tinha cadastro em quase todos os países da Europa. - O
assunto foi abafado pelas superioras do convento, e nem sequer
meus pais tiveram conhecimento do que se havia passado. Mas
Nikolas conheceu esse homem, mais tarde, e ficou a saber toda
a história. Agora ameaça-me de contar tudo ao conde, se eu não
fizer o que ele exige de mim...
- É ainda uma menina pequena, na verdade... - dise Tarzan,
rindo. - O que me contou não pode, seja como for, prejudicar a
sua reputação... e se não fosse de facto uma menina, saberia
isso. Vá ter com seu marido, esta noite, e conte-lhe tudo,
como me contou agora. Ou me engano muito ou ele se rirá dos
seus receios e tomará imediatas providências para meter esse
seu precioso irmão na cadeia onde já deveria estar.
- Só queria ter coragem para isso... mas tenho medo...
Durante toda a minha vida receei os homens... meu pai... meu
irmão... os professores. Quase todas as minhas amigas receiam
os maridos... Porque não hei-de recear o meu?
- Não me parece justo que as mulheres tenham medo dos
homens... - volveu Tarzan, intrigado. - Conheço melhor os
habitantes da selva, decerto, e aí é o contrário que acontece,
excepto entre os negros. Mas, para mim, esses estão muito
abaixo das feras, em muitos aspectos. Não... não entendo que
uma mulher civilizada deva ter medo dos homens... que na
verdade foram criados para as proteger. Eu detestaria pensar


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que qualquer mulher tivesse medo de mim.
- Não há qualquer mulher a quem aconteça isso...
- murmurou Olga de Coude, brandamente. - Conheço-o pouco... e
embora pareça tolice dizer isto... é o único homem de quem eu
nunca teria medo... O que é tanto mais estranho quanto se
trata de um homem espantosamente forte. Maravilhou-me a
facilidade com que dispôs de Nikolas e de Paulvitch, nessa
noite... no meu camarote. Maravilhou-me realmente...
Quando Tarzan saiu, pouco depois, ia um tanto intrigado pela
pressão da mão da condessa, ao despedir-se.... e pela firme
insistência com que ela Lhe exigira a promessa de a visitar de
novo, no dia seguinte. A recordação dos lábios dela, sorrindo,
e do olhar velado dos lindos olhos que o haviam fitado
docemente, na despedida, ficou com ele durante o resto do dia.
Olga de Coude era uma linda mulher, e Tarzan dos Macacos um
jovem muito solitário...
com um coração magoado e precisado dos carinhos que só uma
mulher lhe poderia dar.
Quando a condessa voltou para a saleta, depois da partida de
Tarzan, encontrou-se cara a cara com Nikolas Rokoff.
- Há quanto tempo estás aí?... - exclamou ela, recuando.
- Desde antes da chegada do teu amante... - volveu o
miserável, sarcástico.
- Como te atreves a dizer tal coisa a tua irmã? - Exclamou a
condessa.


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- Bem, minha querida Olga... Se não é o teu amante, aceita
as minhas desculpas... mas se realmente não é, a culpa não te
cabe. Se ele tivesse a mínima parte do meu conhecimento das
mulheres, estarias agora nos seus braços. Mas esse homem é um
estúpido e um tolo. Cada palavra e cada gesto teu, eram um
convite aberto... só que ele não teve a clarividência
necessária para compreender.
A condessa tapou os ouvidos.
- Não quero ouvir-te mais! És um homem mau!... Apesar do que
dizes, sabes que sou uma criatura honesta. Mas agora não me
ameaçarás mais, porque vou contar toda a verdade a Raul. Ele
compreenderá... e então terás de ter cuidado contigo, Nikolas!
- Não lhe dirás coisa nenhuma... - retorquiu Rokoff. - Agora
tenho conhecimento deste caso... com a ajuda de um dos teus
criados, no qual confio, nada faltará à história quando os
pormenores, devidamente testemunhados, chegarem aos ouvidos do
teu marido. O outro caso serviu quando foi necessário...: mas
agora tenho um assunto mais claro para trabalhar, Olga. Um
verdadeiro caso... e tu és uma mulher casada... Que vergonha,
Olga... - continuou o diabólico homem, rindo.
E assim a condessa nada contou ao marido, e as coisas
ficaram pior do que estavam antes. De um vago receio... a
condessa passara para um medo tangível... e talvez a sua
própria consciência a ajudasse a aumentar as proporções desse
medo, ampliando-o sem razão...


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CAPÍTULO 5


O plano que falha


Durante um mês, Tarzan foi um visitante assíduo da bela
condessa de Coude. Era frequente encontrar outros membros do
escolhido grupo que aparecia às tardes, para o chá... mas mais
frequentemente a condessa arranjava maneira de estar sozinha
com ele.
Durante algum tempo ela tinha ficado assustada pelo que
Nikolas insinuara. Nunca havia pensado em Tarzan senão como
num amigo... mas a sugestão maldosa do irmão levara-a a
conjecturar sobre a estranha força que parecia atraí-la para
aquele belo jovem de olhos cinzentos. Todavia não queria
amá-lo, nem desejava o amor dele.
Era muito mais nova do que o marido, e sem o compreender
totalmente havia desejado a amizade de alguém mais perto da
súa idade. Os vinte anos de uma mulher são por vezes tímidos
em confiar-se aos quarenta anos de um homem. Tarzan tinha
apenas mais dois anos do que a condessa, e ela sentia que ele
poderia compreendê-la. Era um homem decent, honesto e
cavalheiresco. Não o temia... Sentira, desde a primeira hora,
que podia confiar nele.
Rokoff observara, à distância e com malévola satisfação, o
evoluir da intimidade entre a irmã e o belo rapaz.


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Desde que ouvira Olga dizer a Tarzan que ele, Rokoff, era um
espião russo, ao seu ódio juntara-se o receio de que Tarzan o
denunciasse., agora esperava apenas o momento de poder
desferir um dos seus golpes. Queria ver-se definitivamente
livre de Tarzan, e ao mesmo tempo vingar-se das humilhações e
derrotas que sofrera.
Quanto a Tarzan, estava mais perto de sentir-se satisfeito
do que nunca estivera desde que a paz da sua selva fora
perturbada pela aparição do grupo do Professor Porter. As suas
relações sociais com os amigos de Olga davam-lhe prazer, e a
amizade da condessa era-lhe grata. Dispersando os seus
pensamentos sombrios, era como um bálsamo para o seu coração
magoado.
Por vezes D'Arnot acompanhava-o nas suas visitas ao palacete
dos de Coude, pois havia muito tempo que conhecia a condessa e
o conde. Ocasionalmente o conde aparecia também nessas
reuniões, mas os múltiplos encargos da sua situação oficial
retinham-no com frequência até bastante tarde.
Rokoff espiava Tarzan quase constantemente, isperando a
ocasião de o ver entrar de noite no palácio... mas essa espera
foi decepcionante para ele. Em várias ocasiões Tarzan
acompanhou a condessa a casa, depois da ópera, mas
invariavelmente despedia-se à porta, com grande desgosto do
devotado irmão de Olga. Verificando que lhe era impossível
armar a sua ratoeira por meio de qualquer acção voluntária de
Tarzan, Rokoff e Paulvitch combinaram um plano destinado


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a apanhar o homem da selva numa situação comprometedora... com
o apoio de provas circunstanciais. Durante dias Nikolas leu
atentamente os jornais, seguindo os movimentos de de Coude e
de Tarzan, ao mesmo tempo. E por fim encontrou o que buscava,
Um jornal da manhã trouxe a notícia de uma reunião de carácter
político que teria lugar na noite seguinte, promovida pelo
embaixador alemão. O nome do conde de Coude figurava entre os
dos convidados... e se comparecesse isso significaria que
estaria fora de casa até depois da meia-noite.
Na noite do banquete, Paulvitch esperou à beira do passeio,
diante da residência do ministro alemão, num ponto de onde
podia ver todos os convidados que chegavam. Não tardou a ver
de Coude apear-se do seu automóvel... e então apressou-se a
voltar para onde Rokoff o esperava. Cerca das onze horas,
Paulvitch pegou no telefone e ligou um número.
- É do apartamento do senhor tenente D'Arnot?... - perguntou
o patife, quando obteve a ligação. - Tenho um recado para o
sr. Tarzan, se ele quiser ter a bondade de vir ao telefone.
Houve um momento de espera.
- O sr. Tarzan? Sim, monsieur... Fala François, um criado da
senhora condessa de Coude... Possivelmente o sr. Tarzan
lembra-se de mim... o que é uma honra... Exactamente... tenho
um recado da senhora condessa... Sim, ela pede para visitá-la
imediatamente... Sim, imediatamente... Está... em
dificuldades... Não, sr. Tarzan... não sei de que se trata...


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Posso dizer à senhora condessa que o sr. Tarzan irá?... Fico
muito grato...
Paulvitch desligou e olhou para Rokoff, com um sorriso mau.
Este disse:
- Ele precisará de trinta minutos para lá chegar.:. Se tu
chegares a casa do ministro alemão dentro de um quarto de
hora, de Coude poderá estar em sua casa em quarenta e cinco
minutos. Tudo depende de esse idiota se demorar um quarto de
hora, depois de descobrir que não foi chamado e se trata de um
truque. Mas, ou me engano muito, ou Olga não gostará de que
ele se demore tão pouco. Aqui está o papél para de Coude.
Apressa-te!
Um quarto de hora depois Paulvitch estava na residência do
embaixador alemão e entregava a nota a um criado, dizendo:
- Isto é para o conde de Coude. É muito urgente. Veja se Lhe
faz chegar às mãos este papel, sem demora...
Entregou umas moedas de prata ao criado e regressou mais uma
vez ao apartamento de Rokoff. Um momento depois o conde de
Coude recebia o papel e pedia licença ao seu anfitrião para
tomar conhecimento do recado. Rasgou o sobrescrito e leu,
empalidecendo progressivamente:


"Senhor Conde de Coude

Alguém que quer salvar a honra do seu nome serve-se deste
meio para o avisar que a respeitabilidade do seu lar corre
perigo neste momento. Um certo indivíduo que desde há tempos
visita a sua casa, durante a sua ausência,


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está agora em companhia de sua mulher. Se for imediatamente
encontrá-lo-á no "boudoir" da condessa.

Um Amigo".


Vinte minutos depois de Paulvitch ter telefonado para
Tarzan, Rokoff fez uma chamada para o telefone particular da
condessa. Respondeu-lhe a criada de quarto de Olga.
- A senhora já se retirou... - objectou a criada, perante a
insistência de Rokoff.
- Trata-se de um recado importante e urgente, que só posso
transmitir directamente à condessa. Peça-lhe que se levante e
atenda o telefone. Voltarei a ligar dentro de cinco minutos...
Rokoff desligou, e um minuto depois chegou Paulvitch.
- O conde tem o recado?
- Deve ir já a caminho de casa... - respondeu Paulvitch.
- Excelente! Olga deve estar sentada no seu boudoir,
bastante sumariamente vestida... talvez com um roupão sobre a
camisa de noite... Muito sugestivo Quando vir aparecer o tal
sr. Tarzan...
ficará surpreendida, mas não desagradada. Se esse homem
tiver sangue nas veias... o conde encontrará uma linda cena de
amor... dentro de quinze minutos. Creio que planeámos tudo da
melhor maneira, Alexis. Vamos beber o óptimo absinto do velho
Plancon, à saúde do sr. Tarzan... sem esquecer que o conde


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de Coude é um dos melhores espadachins de paris... e o melhor
atirador de França.
Quando Tarzan chegou ao palacete, Jacques estava à espera
dele, à porta.
- Por aqui, Monsieur... - disse ele, conduzindo o visitante
para a larga escadaria de mármore. Um instante depois abriu
uma porta, fez uma vénia, afastou um pesado reposteiro e
desapareceu... deixando Tarzan num compartimento frouxamente
iluminado.
Tarzan viu Olga sentada diante de uma pequena secretária
onde estava o telefone. Tamborilava nervosamente com os dedos,
sobre o tampo polido da secretária, e não o ouviu entrar.
- Que se passa, Olga?... - perguntou ele.
A condessa voltou-se, com um leve grito de espanto.
- Jean! Que faz aqui? Quem lhe abriu a porta? Que significa
isto?
Tarzan ficou estupefacto, mas no mesmo instante compreendeu
uma parte da verdade.
- Nesse caso não me chamou, Olga?
- Chamá-lo, a esta hora da noite? Meu Deus! Julga-me
completamente doida, Jean?
- François telefonou-me para vir imediatamente. Que estava
em dificuldades e precisava de mim.
- François? Mas quem é François?
- Disse que era um dos seus criados... e falou-me como se eu
devesse conhecê-lo.
- Não tenho nenhum criado chamado François. Alguém quis
brincar consigo, Jean... - disse Olga,


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- Receio que se trate de uma brincadeira sinistra, Olga...
Isto não é apenas humor...
- Que quer dizer? Não pensa que...
- Onde está o conde?... - interrompeu Tarzan.
- Na residência do embaixador alemão.
- Isto é outra habilidade do seu estimável irmão. Amanhã o
conde ouvirá falar do caso, interrogará os criados...: Tudo
parecerá confirmar... o que Rokoff deseja que o conde pense.
- O miserável!... - exclamou Olga. Tinha-se levantado e
aproximara-se de Tarzan, fitando-o. Estava muito assustada,
tinha a expressão de uma pobre corça ferida. Tremia... e
apoiou as mãos nos largos ombros dele. - Que faremos, Jean?
Amanhã toda Paris saberá... Nikolas tratará de que a notícia
se espalhe.
A atitude dela, o olhar, as palavras, tudo significAva o
milenário apelo da mulher para o seu protector natural, o
homem. Tarzan tomou na sua uma das mãos dela. Foi um gesto
involuntário, tão impensado como quando, logo depois, passou
um braço sobre os ombros trémulos de Olga.
Mas o resultado foi uma espécie de choque eléctrico. Nunca
tinha estado tão perto da condessa, Fitaram-se, com um
sobressaltado sentimento de culpa... e, em vez de se mostrar
forte, Olga tornou-se mais fraca e chegou-se mais para ele,
envolvendo-lhe o pescoço com os braços. Tarzan beijou-a...


Raul de Coude tinha apresentado apressadas desculpas ao dono
da casa... depois de ler o papel. Nunca saberia quais
desculpas... assim como nunca poderia lembrar-se exactamente


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do que se passou até ao momento de entrar no seu palacete. Só
aí recuperou uma espécie de domínio dos nervos, tornou-se frio
e cauteloso. Por qualquer razão inexplicada, Jacques,:criado,
abriu a porta antes do conde subir os poucos degraus do
pórtico. De Coude não estranhou isso, no momento, embora mais
tarde se recordasse. Sem rumor, de Coude subiu a escada de
mármore e percorreu o corredor que conduzia ao boudoir de sua
mulher. Levava na mão uma pesada bengala e no coração um
furioso desejo de matar. Olga foi a primeira a vê-lo. Com um
pequeno grito apavorado arrancou-se aos braços de Tarzan...
Este voltou-se exactamente a tempo de desviar com o braço a
tremenda pancada que Lhe era dirigida à cabeça. Duas, três
vezes, a pesada bengala se abateu... e cada pancada apressava
a transformação de Tarzan numa fera da selva. Com o grunhido
rouco do gorila, saltou sobre o francês. A bengala foi
arrancada das mãos de de Coude e partida em duas... como se
fosse um pau de fósforo. Tarzan atirou-a ao chão e atacou.
Olga de Coude olhava, apavorada, a cena que se desenrolava
diante dela. Por momentos ficou paralizada...
Correu para onde Tarzan estrangulava o conde sacudindo-o
como um cão sacudiria um rato... Agarrou as grandes mãos do
jovem, gritando:
- Está a matá-lo! Está a matá-lo! Oh, Jean! Está a matar o
meu marido!
Tarzan estava surdo pela fúria. De repente, atirou ao chão o
corpo inerte do conde, pôs-lhe um pé sobre o peito e soltou


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o terrível grito de vitória dos grandes antropóides. De um
extremo ao outro do palacete o grito ecoou, apavorando os
criados, deixando-os pálidos e trémulos. A condessa
ajoelhou-se, junto do corpo do marido.
Lentamente, a nuvem vermelha dissipou-se, ante os olhos de
Tarzan. Tudo retomava forma, o homem civilizado voltava a
dominar.
- Olga... - murmurou.
Ela levantou a cabeça, esperando ver a expressão de fúria
assassina no olhar dele. Viu apenas uma expressão de
arrependimento e de tristeza.
- Oh, Jean! Veja o que fez... Ele era meu marido... eu
amava-o... e está morto...
Suavemente, Tarzan ergueu o corpo inerte e estendeu-o sobre
um divã. Depois encostou o ouvido ao peito do conde.
- Um pouco de brandy, Olga... - disse.
Ela trouxe o brandy, e conseguiram que de Coude engolisse
algumas gotas. Um leve suspiro se escapou dos lábios brancos.
Depois um gemido...
- Não morrerá... - murmurou Tarzan. - Deus seja louvado...
- Por que fez isto, Jean?
- Não sei... Ele bateu-me e eu perdi a cabeça... Nunca Lhe
contei a minha história, Olga... e foi pena, porque isto não
teria acontecido. A única mãe que conheci foi uma macaca... e
até aos quinze anos nunca vi uma criatura humana. Só aos vinte
encontrei pela primeira vez um homem branco. Há pouco mais de
um ano eu era uma fera na selva... E as pessoas fazem isto...


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Não me julgue muito severamente... Dois anos é muito pouco
tempo para recuperar séculos de civilização...
- Não o julgo, Jcan. A culpa foi minha... Vá-se embora... é
preciso que ele não o veja quando voltar a si... Adeus!
Tarzan saiu, de cabeça baixa... mas pouco a pouco os seus
pensamentos tomaram um caminho definiddo.
Vinte minutos depois entrava numa esquadra de polícia, não
muito longe da Rua Maule. Aí encontrou um dos agentes que
conhecera, em condições bastante estranhas, várias semanas
antes. O polícia mostrou-se contente ao vê-lo, e após um
momento de conversa, Tarzan perguntou-lhe se ele já tinha
ouvido falar de Nikolas Rokoff e Alexis Paul.
- Muitas vezes, de facto... - respondeu o agente... - Ambos
têm cadastro, e embora presentemente não haja nada contra
eles, tratamos sempre de saber onde é que podem ser
encontrados se a ocasião surgir. Por que pergunta, senhor?
- Conheço-os, e gostaria de falar ao sr. Rokoff... um
assunto de negócios. Se puder dizer-me onde eles vivem,
ficar-lhei grato.
Minutos depois Tarzan despedia-se do polícia, levando no
bolso uma tira de papel com um endereço referente a um bairro
quase respeitável. Chamou um táxi que passava...
Rokoff e Paulvitch estavam outra vez no seu apartamento,
conversando sobre as possíveis consequências dos
acontecimentos da noite. Tinham telefonado para a redacção


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de um jornal da manhã, e esperavam a chegada de um repórter a
quem forneceriam, em primeira mão, o relato do escândalo que
agitaria a alta sociedade parisiense na manhã seguinte.
Ouviram passos na escada e Rokoff exclamou:
- Esses repórteres são prontos! Abre a porta, Alexis!
Alexis abriu a porta e recuou precipitadamente...
enquanto Rokoff olhava, espantado, para o jovem alto, de
olhos cinzentos, que ßurgia diante deles.
- "Nom de nom"!... - gritou, levantando-se de um salto. -
Que quer daqui?
- Sente-se... - respondeu Tarzan, em voz baixa, mas num tom
que obrigou os dois homens a sentarem-se. - Sabem o que me
traz aqui... - continuou, sem levantar a voz. - Devia
matá-los, a ambos... mas o facto de Rokoff ser irmão de Olga
de Coude impede-me que o faça... agora. Dar-lhes-ei uma
oportunidade de viverem. Paulvitch não conta, não tem
importância... é apenas um estúpido instrumento, e por isso
não o matarei enquanto permitir que você viva, Rokoff, Mas,
antes que eu saia deste quarto,, deixando-os vivos, terão de
fazer duas coisas. Rokoff começará por escrever uma confissão
completa da infâmia que organizou esta noite... e assiná-la.
Depois terá de me prometer, sob pena de morte, que este caso
não será comunicado aos jornais. Se não fizer ambas as coisas,
Rokoff, nenhum dos dois ficará vivo quando eu sair.
Compreende? Vamos, apresse-se! Tem tinta, papel e uma caneta,
ßobre essa mesa...


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Rokoff tomou uma atitude beligerante, tentando demonstrar
que não o assustavam as ameaças... mas no mesmo instante
sentiu-se agarrado pela garganta, com dedos de aço. Paulvitch,
que tentou intervir, foi levantado no ar e atirado contra uma
parede, junto da qual caíu sem sentidos. Quando a face de
Rokoff começou a tornar-se negra, Tarzan largou-o,
empurrando-o para a cadeira. Paulvitch, que começou a
erguer-se, afundou-se também numa cadeira, a uma ordem de
Tarzan.
- Agora escreva... - Disse o homem da selva. Se for
necessário agarrá-lo outra vez, não o largarei depressa. Não
omita um só pormenor... nem um só.
Rokoff pegou na caneta e começou a escrever...
quase no mesmo instante bateram à porta.
- Entre... - disse Tarzan.
- Eu sou repórter do Matin... - declarou o visitante, um
rapaz novo e de olhar vivo. - Creio que o sr. Rokoff tem uma
história para mim...
- Nesse caso engana-se, meu amigo... - atalhou Tarzan. -
Você não tem qualquer história para os jornais... pois não,
meu caro Nikolas?
- Não... Não tenho qualquer história... agora... - rosnou o
russo.
- Nem agora nem nunca, meu caro Nikolas... - insistiu
Tarzan, com um olhar que o russo compreendeu e o repórter nem
sequer notou.
- Hem?
- Nem nunca... - apressou-se a afirmar Rokoff.
- Foi pena ter incomodado este senhor... - disse Tarzan. -
Desejo-lhe muito boas-noites...
O repórter saíu e Tarzan fechou a porta.


65


Uma hora depois, levando no bolso um manuscrito de algumas
páginas, Tarzan encaminhou-se também para a porta, dizendo
antes de sair:
- No seu caso, Rokoff, eu partiria de França... porque cedo
ou tarde encontrarei um pretexto para o matar sem comprometer
sua irmã...


66

CAPÍTULO 6


Um duelo


D'arnot estava a dormir quando Tarzan entrou no
apartamento. Tarzan não quis acordá-lo, mas na manhã seguinte
contou-lhe os acontecimentos da noite, sem omitir um pormenor.
- Fui um tolo... - concluiu. - De Coude e a mulher eram meus
amigos... e aqui está como paguei a amizade deles. Pouco me
faltou para matar o conde, e lancei lama na reputação de uma
mulher honesta.
Muito provavelmente destrocei um lar feliz.
- Você ama Olga de Coude?... - perguntou D'arnot.
- Não poderia responder a essa pergunta, Paul, se não
tivesse a certeza de que ela me não ama...
Mas assim posso dizer-lhe, sem quebra de lealdade, que não
há amor entre nós. Por um breve instante fomos envolvidos por
uma vaga de loucura... que teria vivido apenas um segundo se
de Coude não tivesse aparecido.


66


Como você sabe eu tenho pouca experiência com mulheres. Olga
de Coude é bonita, o ambiente era propício... Um homem
civilizado não teria beijado... mas a minha civilização ainda
não chegou sequer à pele, não vai além da roupa. Paris não é
lugar para mim... Continuarei a fazer tolices, algumas
possivelmente mais graves... As leis humanas irritam-me,
sinto-me prisioneiro... Portanto, amigo, creio que vou voltar
para a minha selva e viver a vida que Deus me destinou, visto
que me quis lá.
- Não tome as coisas tão a sério, Tarzan... - Volveu
D'arnot. - Você não foi além de um beijo... isto é, portou-se
muito melhor do que a maioria dos homens civilizados se
portariam em tais circunstâncias. Quanto a sair de Paris,
nesta altura, creio que de Coude terá alguma coisa a dizer a
tal respeito, antes que passe muito tempo.
D'arnot não se enganava. Uma semana depois... um tal sr.
Flaubert fez-se anunciar, cerca das onze horas da manhã,
quando os dois amigos tomavam o pequeno almoço. O sr. Flaubert
era uma pessoa impressionantemente bem educada. Com muitas
vénias, entregou o desafio do sr. Conde de Coude, ao sr.
Tarzan... pedindo que o sr. Tarzan se dignasse indicar um seu
amigo com quem ele, sr. Flaubert, se devesse encontrar a uma
hora que lhe parecesse conveniente - mas tão cedo quanto
possível - para combinarem todos os pormenores necessários. O
sr. Tarzan não hesitou em confiar os seus interesses, sem
reservas, ao seu amigo sr. D'arnot. E assim ficou combinado


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que o sr. D'Arnot se encontraria com o sr. Flaubert, às duas
horas da tarde. E o sr. Flaubert retirou-se com tantas vénias
como fizera ao entrar.
Quando ficaram sós, D'arnot olhou interrogativamente para
Tarzan, perguntando:
- E então?
- Aos meus pecados tenho agora de acrescentar o de matar ou
ser morto... - volveu Tarzan. - Estou a fazer progressos
rápidos quanto aos usos dos meus irmãos civilizados.
- Que armas vai escolher?... - perguntou ainda D'arnot. - De
Coude tem a fama de ser um mestre com a espada, e um magnífico
atirador.
- Nesse caso devo escolher flechas envenenadas, a vinte
passos, ou lanças de arremesso, à mesma distância... - riu
Tarzan. - Sejam pistolas, D'arnot.
- Mas ele mata-o!
- Não duvido disso. Todos temos de morrer, um dia.
- É preferível escolher a espada. De Coude contentar-se-á
com feri-lo, e há menos risco de uma ferída mortal.
- Pistolas... - Declarou Tarzan, decididamente.
D'arnot tentou argumentar, mas sem resultado.
Regressou pouco depois das quatro da tarde, da sua
conferência com o sr. Flaubert.
- Tudo combinado... - disse ele. - Amanhã, ao romper do dia,
num ponto praticamente deserto a curta distância de Étampes.
Flaubert fazia empenho nisso, e eu não o contrariei.


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- Excelente... - disse simplesmente Tarzan.
Não voltou a referir-se ao assunto, nem mesmo directamente.
Nessa noite escreveu várias cartas. Depois de as fechar e
endereçar, meteu-as dentro de um sobrescrito dirigido a
D'Arnot. O tenente ouviu-o cantarolar uma canção em voga,
enquanto se despia.
D'arnot praguejou entre dentes. Sentia-se infeliz, porque
tinha a certeza de que o sol nascente, no dia seguinte,
encontraria Tarzan morto.
- É uma hora muito pouco civilizada para as pessoas se
matarem... - declarou o homem da selva, ao ser acordado quando
ainda era noite.
Tinha dormido bem, e olhava sorridente para D'Arnot que, já
pronto, estava à porta do quarto. O tenente mal dormira.
Sentia-se nervoso e irritádo.
- Suponho que você dormiu como uma criança,?... - perguntou.
- Pela maneira como você fala... - respondeu Tarzan, rindo -
.. concluo que isso lhe parece censurável. Mas de facto dormi
bem.
- Não é isso, amigo... - volveu D'arnot, sem poder conter um
sorriso. - Mas é exasperante a diferença com que você encara o
caso. Dir-se-ia, vai atirar ao alvo, em vez de ir enfrentar um
dos melhores atiradores franceses. Tarzan encalheu os ombros.
- Vou expiar o mal que fiz, Paul... e o facto de o meu
antagonista ser um bom atirador é muito conveniente. Por que
havia eu de estar preocupado?


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- Quer dizer que deseja ser morto?. - exclamou D'arnot,
horrorizado.
- Não posso dizer que o deseje... mas tem de reconhecer que
há boas razões para esperar isso mesmo.
Se D'arnot pudesse adivinhar o que Tarzan pensava - o que
tinha pensado desde que compreendera ser inevitável o seu
duelo com de Coude - teria ficado ainda mais horrorizado. Em
silêncio entraram no grande carro de D'arnot... e ainda em
silêncio seguiram ao longo da estrada que conduzia a Étampes.
Cada um deles estava mergulhado nos seus próprios pensamentos.
D'arnot sentia-se angustiado porque era verdadeiramente amigo
de Tarzan. A sólida amizade que surgira entre aqueles dois
homens tão diferentes pela educação e pela maneira de viver,
havia sido fortalecida pelo convívio. Ambos tinham os mesmos
ideais de coragem e de honra... Compreendiam-se, e cada qual
podia sentir orgulho na amizade do outro.
Tarzan mergulhara em recordações do passado... em agradáveis
memórias dos momentos felizes da sua vida na selva. Lembrava
as muitas horas da sua adolescência, que passara sentado sobre
uma mesa, na barraca de seu pai, o corpo moreno curvado sobre
os livros de imagens, das quais, sem ajuda, arrancara os
segredos da linguagem impressa, muito antes de que os sons da
fala humana lhe tivessem chegado aos ouvidos. Um sorriso
iluminou-lhe as feições ao recordar aquele dia, único entre os
dias, em que estivera sozinho com Jane Porter no coração da
selva primitiva.


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As suas evocações foram interrompidas quando o carro parou.
Tinham chegado. A mente de Tarzan voltou-se para o momento
presente. Sabia que ia morrer, mas não tinha qualquer receio
da morte. Para um habitante da selva, a morte era um
lugar-comum. A primeira lei da natureza impelia-o a agarrar-se
à vida, a lutar para se defender... mas não o levava a ter
medo da morte.
D'arnot e Tarzan foram os primeiros a chegar, mas pouco
depois chegaram de Coude, o sr. Flau bert e um outro sujeito -
que Flaubert apresentou como sendo um cirurgião.
D'arnot e Flaubert falaram em voz baixa durante uns
instantes. Tarzan e de Coude tinham-se afastado para os
extremos da pequena clareira entre as árvores. Depois as
testemunhas chamaram-nos. Haviam examinado as pistolas e tudo
estava em ordem. Os dois homens que iam enfrentar-se momentos
depois, ouviram em silêncio o sr. Flaubert, que lhes dizia as
condições a que deviam submeter-se.
Juntar-se-iam ao centro da clareira, costas com costas, e a
um sinal de Flaubert caminhariam em direcções opostas,
empunhando as pistolas, mas com braços estendidos ao longo do
corpo. Quando tivessem caminhado dez passos, cada um, D'arnot
daria sinal - e então ambos disparariam à vontade até um deles
cair... ou até terem disparado as três balas de que cada qual
dispunha.

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Enquanto Flaubert falava, Tarzan tirou um cigarro da
cigarreira e acendeu-o. De Coude mostrava-se friamente
calmo... Não era ele um dos melhores atiradores de França?
Flaubert fez um aceno a D'arnot, e foram ambos colocar os
seus respectivos amigos nas posições previstas.
- Estão prontos, meus senhores?... - perguntou Flaubert.
- Pronto... - respondeu de Coude.
Tarzan fez um gesto de assentimento. Flaubert deu o sinal e
tanto ele como D'arnot recuaram uns passos, para ficarem fora
da linha de tiro, enquanto os dois antagonistas caminhavam
lentamente, afastando-se. Seis passos, sete, oito... Havia
lágrimas nos olhos de D'arnot. Era profundamente amigo de
Tarzan, Mais dois passos, e o pobre tenente deu o sinal que
tanto o angustiava. Para ele, era o sinal da morte do amigo.
Rápido, de Coude voltou-se e disparou. Tarzan teve um leve
sobressalto, mas não levantou a arma. De Coude hesitou, como
se esperasse ver cair o adversário. Era um atirador bastante
hábil para ter a certeza de que acertara. Todavia Tarzan
continuava de pé, sem utilizar a pistola. De Coude disparou
segunda vez, mas a atitude do homem da selva... a completa
indiferença tão visível no espantoso à vontade do seu vulto
alto e forte, e o fumo que subia tranquilamente do seu cigarro
- haviam desconcertado o melhor atirador de França. Desta vez
Tarzan nem sequer se sobressaltou, mas de Coude compreendeu
que voltara a acertar.


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De repente, surgiu na mente do conde uma explicação... O seu
adversário corria voluntariamente risco, decerto esperando que
não seria ferido tão gravemente que não pudesse manter-se de
pé. Então, disparadas as três balas do francês, abatê-lo-ia
friamente, com tempo e vagar. De Coude sentiu-se percorrido
por um calafrio. Era um plano pavoroso, diabólico. Que
criatura seria aquela, que se mantinha firme e calma com duas
balas no corpo, esperando a terceira? De Coude apontou
cuidadosamente... mas os seus nervos haviam cedido e a
terceira bala perdeu-se no espaço. Nem uma vez Tarzan fizera
qualquer esboço de movimento para erguer a arma. Por momentos
os dois homens fitaram-se, olhos nos olhos. Na face de Tarzan
havia uma expressão de patético desapontamento. Na de Coude
havia uma crescente expressão de pavor... Não podia suportar
aquilo por mais tempo.
- Mãe de Deus!... - gritou. - Dispare, monsieur!
Mas, em lugar de levantar a arma, Tarzan encaminhou-se para
ele. Quando D'arnot e Flaubert se dispunham a intervir,
deteve-os com um gesto.
- Nada temam... - disse. - Não lhe farei mal...
Era contra todos os usos, mas pararam. Tarzan aproximou-se
do conde.
- Deve haver qualquer coisa errada com a sua arma,
monsieur... - disse ele. - Ou com os seus nervos. Tome a minha
pistola e tente de novo...


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- e Tarzan oferecia a de Coude a sua arma, segurando-a pelo
cano.
- Meu Deus! En... endoideceu?... - exclamou o francês.
- Não, meu amigo... - replicou Tarzan. - Mas mereço morrer.
É a única maneira de reparar o mal que fiz a uma mulher
honesta. Tome a minha pistola e faça como lhe peço.
- Seria um assassínio... - volveu de Coude.Mas que mal fez a
minha mulher? Ela jurou-me que...
- Não me refiro a isso... - atalhou Tarzan. - O senhor viu
tudo o que se passou entre nós... mas foi o bastante para
lançar uma sombra sobre o nome dela... e arruinar a felicidade
de um homem contra o qual não me movia qualquer inimizade. A
culpa foi inteiramente minha... e portanto eu esperava
resgatar essa culpa com a minha morte, esta manhã.
Desaponta-me o facto de que o senhor não seja um tão bom
atirador como me disseram que era.
- Diz que a culpa foi inteiramente sua?... - perguntou o
conde, ansiosamente.
- Sem a menor dúvida, monsieur. Sua mulher é uma criatura
digna, que o ama. A culpa do que viu cabe-me inteiramente. O
que me levou a sua casa não foi culpa da condessa, nem minha.
Tem aqui um papel que provará isto com clareza..., - e Tarzan
tirou do bolso a confissão escrita e assinada por Rokoff.
De Coude pegou no papel e leu. D'arnot e o sr. Flaubert
tinham-se aproximado, espectadores interessados daquele
estranho final de um estrano duelo.


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Ninguém falou até que de Coude acabou de ler... e então este
levantou os olhos para Tarzan.
- O senhor é... um muito corajoso e cavalheiresco
gentleman... - disse o conde. - Agradeço a Deus não o ter
matado!
Impulsivo como todos os franceses, de Coude abraçou Tarzan e
beijou-o na face. O sr. Flaubert abraçou e beijou D'arnot. Não
havia ninguém para abraçar e beijar o cirurgião... e foi
talvez uma ponta de despeito que o fez intervir e pedir
licença para observar as feridas de Tarzan.
- Este senhor foi ferido uma vez... ou mesmo três vezes...
- Duas... - explicou Tarzan. - Uma no ombro esquerdo e outra
também do lado esquerdo, na ilharga. Feridas superficiais,
suponho...
Mas o médico insistiu em que ele se estendesse na relva, e
não o largou sem ter desinfectado as feridas e estancado a
hemorragia.
O resultado do duelo foi voltarem todos para Paris, no carro
de D'arnot, os melhores amigos do mundo. De Coude sentia tão
grande alívio ante a dupla prova do amor e da fidelidade de
Olga, que não tinha qualquer ressentimento contra Tarzan. Era
certo que este último chamara a si culpas que não lhe
pertenciam por completo - mas se mentira um tanto... fora ao
serviço de uma mulher, e como um genTleman.
Tarzan permaneceu na cama durante vários dias. Sentia que
era perfeitamente desnecessário, mas o médico e D'arnot faziam
tanto empenho que ele cedeu


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para os contentar, embora lhe desse vontade de rir a estranha
ideia.
- É ridículo... - declarou ele a D'arnot -... ficar de cama
por causa de uma alfinetada. Quando Bolgani, o grande
chimpanzé, quase me rasgou em pedaços, eu era apenas um
rapazinho, mas não tive uma cama macia onde me estender. Só a
vegetação húmida e meio apodrecida da selva. Escondido sob as
moitas, fiquei durante dias e semanas só com os cuidados de
Kala... a pobre e fiel Kala... que enxotava as moscas de sobre
as minhas feridas e afastava as feras da floresta... Quando eu
tinha sede, ela trazia-me água na boca... a única maneira que
conhecia para a transportar. Não havia gazes esterilizados nem
ligaduras anti-sépticas... não havia nada que não tivesse
enchido de espanto o pobre doutor, se visse. E no entanto
curei-me... curei-me para estar na cama por causa de um
arranhão que qualquer animal da selva nem sequer
descobriria...: a não ser que o tivesse na ponta do focinho.
Mas a convalescença foi rápida, e dentro de poucos dias
Tarzan estava de pé. De Coude visitara-o várias vezes, e
quando soube que o homem da selva procurava uma colocação,
prometeu diligenciar nesse sentido.
No primeiro dia em que Tarzan recebeu autorização para sair,
recebeu também um recado do conde, pedindo-lhe para ir ao seu
gabinete no Ministério, nessa mesma tarde. Tarzan encontrou de
Coude à sua espera, com cordiais boas-vindas e felicitações
pelo pronto restabelecimento.


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Nenhum deles voltara a mencionar o duelo ou as suas causas.
- Creio que tenho exactamente o que lhe convém... - declarou
o conde. - É uma posição de muita confiança e
responsabilidade, que requer igualmente coragem e destreza
excepcionais. Não posso imaginar alguém mais indicado do que
monsieur Tarzan... Será necessário viajar, e mais tarde poderá
conduzir a uma situação muito melhor ainda, talvez nos
serviços diplomáticos.
- De princípio, e apenas por algum tempo, será um agente
especial ao serviço do Ministério da Guerra. Venha, vou
apresentá-lo à pessoa que vai ser o seu chefe. Poderá
explicar-lhe tudo muito melhor do que eu, e então o meu amigo
ficará em posição de julgar por si mesmo... se o lugar lhe
convém ou não.
De Coude acompanhou pessoalmente Tarzan ao gabinete do
general Rochere, o chefe do departamento ao qual o homem da
selva ficaria a pertencer se aceitasse o lugar. Depois de
fazer, ao general, uma brilhante descrição dos atributos que
tornavam Tarzan o homem ideal para o posto, o conde deixou-o a
sós com o general.
Meia hora depois Tarzan saía do gabinete, já nomeado para o
primeiro posto que ocupava na sua vida. No dia seguinte
deveria voltar para receber instruções mais pormenorizadas...
mas o general Rochere tornou bem claro que Tarzan devia
preparar-se para sair de Paris, possivelmente nas vinte e
quatro horas seguintes, e ficar ausente durante um período
quase indefinido.


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Foi num estado de espírito de completa satisfação que Tarzan
regressou a casa, para dar a boa notícia a D'arnot. Finalmente
ia desempenhar uma função útil no mundo civilizado. Ia ganhar
dinheiro e, sobretudo, ia viajar e conhecer mundo.
Estava ansioso para informar D'arnot... mas este não se
mostrou muito contente. Disse:
- Você parece encantado por deixar Paris... e por não
voltarmos a ver-nos durante meses. Não há dúvida de que as
feras nada conhecem sobre gratidão!
D'arnot ria ao dizer isto, mas parecia realmente
contrariado. Tarzan respondeu, não sem uma ponta de emoção:
- Trata-se apenas de que eu sou uma criança, Paul. Tenho um
brinquedo novo, e isso excita-me...
Foi assim que, no dia seguinte, Tarzan partiu com rumo a
Marselha e a Oran...

CAPÍTULO 7


A bailarina de Sidi Aissa


A primeira missão de Tarzan não tinha aspecto de ser
muito excitante, nem muito importante. Havia um certo tenente
de aspahis, de quem o governo tinha razões para suspeitar que
mantinha especiais relações com os agentes de outra potência
europeia.


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Esse tenente, de nome Gernois, então colocado em
Sidi-bel-Abbes, fora recentemente adido ao Estado-Maior, e
certas informações de grande valor militar tinham-lhe chegado
às mãos, na rotina das suas funções... As suspeitas do governo
francês relacionavam-se com a pretensão dos agentes dessa
potência europeia... a respeito desses segredos militares.
Fora apenas uma vaga insinuação, feita por uma parisiense
bastante conhecida e flagrantemente ciumenta, que atraíra as
suspeitas sobre o tenente. Mas os Estados-Maiores são ciosos
dos seus segredos, e a traição é uma coisa tão grave que nem
mesmo uma vaga insinuação pode ser desprezada sem perigo.
Assim... Tarzan chegou à Argélia sob o aspecto de um caçador e
viajante americano, com a missão de vigiar de perto o tenente
Gernois.
Tarzan havia ficado encantado com a perspectiva de voltar a
ver a sua amada África, mas aquela região do Norte era tão
diferente da sua selva tropical... que não sentiu qualquer
espécie de excitação que não pudesse ter sentido sem sair de
Paris. Em Oran, passou um dia a percorrer as estreitas e
tortuosas ruelas do bairro árabe, interessando-se pelos
aspectos novos e estranhos que se lhe deparavam. O dia
seguinte viu-o já em Sidi-bel-Abbes, onde exibiu cartas de
apresentação para as autoridades civis e militares - cartas
que não davam a entender, nem mesmo remotamente, o verdadeiro
objectivo da sua missão.
Tarzan falava o inglês suficientemente bem para passar por
americano aos olhos dos árabes e dos franceses,


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e era isso o que interessava. Quando encontrava algum inglês,
falava-lhe em francês para não se denunciar, mas por vezes
conversavam em inglês com estrangeiros que conheciam a língua
mas que não tinham capacidade para notar as ligeiras
deficiências de pronúncia.
Travou relações com muitos dos oficiais franceses, e
adquiriu facilmente certa popularidade entre eles. Conheceu
Gernois, um homem taciturno, de ar doentio, com cerca de
quarenta anos e que pouco se relacionava com os seus
companheiros.
Durante cerca de um mês nada aconteceu de interessante.
Gernois, aparentemente, não recebia visitas, nem nas suas idas
à cidade se encontrava com alguém que, mesmo com grande
esforço de imaginação, pudesse ser considerado agente de
qualquer potência estrangeira. Tarzan começava a pensar que,
apesar de tudo, a insinuação podia ter sido falsa... quando
subitamente Gernois foi transferido para Bou Saada, no Pequeno
Sahara, muito para o Sul.
Uma companhia de aspahis e três oficiais deviam ir
substituir outra companhia ali estacionada. Por sorte um dos
oficiais, o capitão Gerard, tornara-se um excelente amigo de
Tarzan, e quando este insinuou que gostaria de aproveitar a
oportunidade para o acompanhar a Bou Saada, onde esperava
encontrar caça, não despertou qualquer suspeita.
O destacamento deixou o caminho de ferro em Bouira, e o
resto da jornada iria ser feito a cavalo. Enquanto Tarzan
percorria Bouira procurando adquirir uma montada, viu de
relance um homem, com trajo europeu, que o olhava da porta


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de um Café indígena. Mas, quando Tarzan olhou mais
atentamente, o homem deu meia volta e entrou no Café. O filho
da selva ficou com a impressão de que a criatura Lhe era
vagamente familiar, mas logo esqueceu o caso.
A marcha até Aumale foi fatigante para Tarzan, cujas
experiências equestres se haviam limitado a breves lições num
picadeiro parisiense, e assim foi com certa pressa que
procurou o conforto de uma cama no Hotel Grossat, enquanto os
oficiais e os soldados se alojavam no posto militar.
Embora chamassem Tarzan bastante cedo, na manhã seguinte, a
companhia de aspahis estava a caminho antes de ele ter acabado
o pequeno almoço. Apressou a refeição, para apanhar o
destacamento antes que se afastasse demasiado, mas a certa
altura olhou pela porta que ligava a sala de jantar com o bar.
Com surpresa, viu Gernois em conversa com o mesmo homem a quem
vira na véspera, em Bouira, à porta de um Café local. Tinha a
certeza de não se enganar, porque havia qualquer coisa de
familiar no vulto do homem, embora estivesse de costas para
ele. Era o primeiro facto suspeito que Tarzan verificava em
ligação com as atitudes de Gernois. Enquanto olhava os dois
homens, Gernois avistou-o e notou a sua expressão atenta. O
desconhecido estava nessa altura a falar em voz baixa, mas o
tenente interrompeu-o bruscamente, e ambos se afastaram.


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Tarzan teve a impressão muito nítida de que os dois homens
saíam por causa dele, e o facto de lhe parecer reconhecer o
vulto do desconhecido fê-lo pensar que valeria a pena
investigar. Um momento depois Tarzan entrou no bar, mas nem
aí, nem na rua, voltou a ver os outros. No entanto, ainda
entrou em várias lojas, para os procurar, em vão. Partiu então
atrás da coluna que, entretanto, se havia decerto adiantado
consideravelmente. Só se reuniu aos soldados em Sidi Aissa,
onde chegou pouco depois do meio-dia e onde a coluna fizera
alto para uma hora de repouso. Encontrou Gernois - mas não
descobriu quaisquer vestígios do desconhecido.
Era dia de mercado, em Sidi Aissa, e as numerosas caravanas
de camelos que vinham do deserto, e os árabes que enchiam a
praça do mercado, deram a Tarzan o desejo de se demorar ali um
dia, a fim de observar aquela gente. Foi assim que a companhia
de aspahis partiu pouco depois para Bou Saada, sem ele. Tarzan
ocupou as horas, até ao anoitecer, a vaguear pelo mercado em
companhia de um jovem árabe, de nome Abdul, que lhe havia sido
recomendado pelo dono da estalagem como sendo um criado e um
intérprete digno de confiança.
Tarzan adquiriu um cavalo melhor do que aquele que trouxera
de Bouira, e conversando com o altivo árabe a quem o cavalo
pertencera, soube que o vendedor era Kadour ben Saden, xeque
de uma tribo do deserto, ao sul de Djelfa. Por intermédio de
Abdul, Tarzan convidou o seu novo conhecido para jantar com
ele. Enquanto os três abriam caminho por entre a multidão de
mercadores, cavalos, camelos e burros que enchiam a praça


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de agitação e de ruído, Abdul tocou no braço de Tarzan.
- Olha para trás, meu amo... - disse ele, apontando para um
vulto que se escondeu atrás de um camelo assim que Tarzan se
voltou. - Tem vindo a seguir-nos durante toda a
tarde...-concluiu Abdul.
- Mal avistei um árabe com um albornoz azul e um turbante
branco... - comentou Tarzan. - É a esse que te referes?
- Sim... Suspeitei dele porque é desconhecido aqui e não faz
outra coisa senão seguir-nos... o que um árabe honesto não
faria... e porque esconde a parte inferior da cara, mostrando
só os olhos. Deve ser um homem mau, senão estaria a ocupar-se
dos seus assuntos.
- Deve estar enganado, se assim for... - respondeu Tarzan. -
Não posso ter inimigos num lugar que visito pela primeira vez
e onde ninguém me conhece. Não tardará a descobrir o engano e
a afastar-se.
- A não ser que queira roubar... - volveu Abdul.
- Nesse caso tudo o que podemos fazer é esperar, até que ele
tente o golpe - riu Tarzan.
- Agora que estamos preparados, garanto que terá uma
calorosa acolhida...
E assim Tarzan deixou de pensar no caso, embora voltasse a
recordá-lo pouco tempo depois e em consequência de
acontecimentos inesperados.
Depois de um bom jantar, Kadour ben Saden preparou-se para
se despedir do seu anfitrião. Com corteses protestos de
amizade, convidou Tarzan a visitá-lo nos seus domínios, onde
os antílopes, os javalis, as panteras e os leões podiam ainda


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ser encontrados em número suficiente para entusiasmar um
caçador.
Quando ele partiu, Tarzan e Abdul percorreram novamente as
ruas de Sidi Aissa... e o homem da selva não tardou a ser
atraído pelos sons de música que vinham do interior de um dos
numerosos Cafés Mouriscos. Passava das oito horas da noite, e
as danças estavam no seu ponto culminante quando Tarzan
entrou. A casa estava completamente cheia de árabes, e todos
fumavam e bebiam o seu café quente e espesso.
Tarzan e Abdul sentaram-se quase ao meio da casa... embora
tivessem preferido um lugar menos próximo dos músicos, que
faziam um barulho ensurdecedor. Uma "Ouled-Nail", bastante
bonita, estava a dançar. Ao ver Tarzan teve a intuição de um
generoso donativo... e lançou o seu lenço de seda sobre o
ombro dele, o que foi recompensado com um franco.
Quando o lugar da bailarina, no palco, foi ocupado por
outra, o atento Abdul viu-a a falar com dois árabes, no
extremo da casa, junto de uma porta que conduzia a um pátio
interior em volta de cuja galeria ficavam os quartos das
raparigas que dançavam.
Ao princípio, o esperto rapaz não ligou importância, mas
pelo canto de um olho viu que um dos árabes acenava na
direcção deles... e que a rapariga se voltava e olhava para
Tarzan. Então os dois árabes desapareceram na sombra do pátio.
Quando a jovem voltou a dançar, aproximou-se de Tarzan e
evoluíu em redor dele, dirigindo-lhe os seus mais doces
sorrisos.


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Vários olhos escuros, nas faces morenas dos filhos do
deserto, fitaram Tarzan, com expressões hostis, mas este
pareceu indiferente aos olhares como aos sorrisos. De novo a
bailarina lançou o seu lenço sobre o ombro dele, e de novo foi
recompensada com um franco em oiro. Quando colava a moeda na
testa, conforme o costume, a jovem inclinou-se para Tarzan e
disse rapidamente, em mau francês:
- Estão dois lá fora, no pátio, que lhe querem mal. Prometi
atraí-lo lá mas foi bom para mim e não farei isso. Saia
depressa, antes que eles descubram que não lhes obedeci. Penso
que são homens maus...
Tarzan agradeceu à rapariga, dizendo-lhe que teria cuidado.
Depois, quando ela acabou de dançar, viu-a encaminhar-se para
a porta e desaparecer no pátio. Mas, ao contrário do que ela
pedira, não saiu do Café.
Durante cerca de meia hora nada aconteceu, mas então um
árabe de mau aspecto entrou no Café, vindo da rua. Ficou em
pé, junto de Tarzan, e começou deliberadamente a fazer
comentários insultuosos a respeito dele. No entanto, porque
falava na sua língua, Tarzan não o entendeu até que Abdul
tomou iniciativa de traduzir.
- Este homem quer armar desordem... - disse o rapaz. - Não
está sozinho... Penso que, em caso de briga, quase todos os
que aqui estão se porão ao lado dele. Talvez seja bom sair,
meu amo.
- Pergunta-lhe o que ele quer... - disse Tarzan.
- Ele diz que o cão cristão insultou a "Ouled-Nail" que lhe
pertence. Quer luta...


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- Diz-lhe que não insultei a Ouled-Nail dele, nem qualquer
outra... e que se vá embora e me deixe em paz. Não tenho nada
contra ele, nem ele contra mim.
- Ele responde... - explicou Abdul, depois de transmitir o
recado-...que tu és um cão e o teu pai também, e que a tua avó
era uma hiena. Diz também que és um mentiroso...
A atenção dos que estavam perto havia sido atraída pela
altercação, e os risos de desprezo que sublinharam os insultos
indicavam claramente para que lado tendiam as simpatias dos
frequentadores do Café. Tarzan não gostava de que se rissem
dele, nem apreciava os insultos do árabe, mas não mostrou
quaisquer sinais de irritação ao levantar-se. Sorria... mas de
súbito um poderoso punho foi disparado contra a cara do árabe,
com tremenda força.
No mesmo instante em que o provocador rolou no chão,
inconsciente, meia dúzia de mouros que pareciam ter estado na
rua à espera de um sinal... entraram de roldão e lançaram-se
sobre Tarzan, com gritos de: "Morte ao infiel... Morte ao
cristão imundo!"
Alguns dos mais jovens frequentadores do Café juntaram-se a
eles no ataque ao homem branco e desarmado. Tarzan e Abdul
foram empurrados até ao fundo da casa, pelo ímpeto dos
assaltantes. O jovem Abdul, fiel ao seu amo, empunhara uma
faca e lutava.
Com tremendos socos, o filho da selva derrubava todos
aqueles que se adiantávam e ficavam ao alcance dos seus
punhos. Lutava tranquilamente, sem falar, com o mesmo sorriso


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com que se levantara para castigar o homem que o havia
insultado. Parecia impossível que Tarzan e Abdul pudessem
sobreviver aos golpes das facas e punhais que os rodeavam...
mas o próprio número de assaltantes os ajudava. A matilha dos
mouros furiosos aglomerava-se tão densamente diante deles que
nenhuma arma podia ser utilizada eficazmente... As armas de
fogo não eram usadas, porque os árabes não queriam arriscar-se
a ferir algum dos seus.
Por fim Tarzan conseguiu agarrar o mais persistente dos
atacantes. Com uma torção rápida desarmou-o e, servindo-se
dele como de um escudo, recuou lentamente, ao lado de Abdul,
para a pequena porta, que conduzia ao pátio interior. No
limiar deteve-se, levantou o árabe no ar e atirou-o, com a
força de uma catapulta, sobre os outros.
Então Tarzan e Abdul passaram para a meia obscuridade do
pátio. As assustadas Ouled-Nails estavam acocoradas no alto
das escadas que conduziam aos seus respectivos quartos, e as
únicas luzes, no pátio, vinham das velas de sebo que cada uma
das raparigas colocara à sua porta... para melhor atraír,
sobre os seus encantos, a atenção dos homens que passassem em
baixo.
Logo que Tarzan e Abdul entraram no pátio, um tiro de
revólver estalou, atrás deles, vindo das sombras sob uma das
escadas. Quando saltaram para enfrentar a nova ameaça, dois
vultos surgiram, disparando sempre. Tarzan atacou... e meio
segundo depois o primeiro dos dois homens estava estendido na
lama do pátio, a gemer, com um braço quebrado.


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A faca de Abdul derrubou o segundo, cravando-se-lhe no
ventre quando ele ia disparar mais uma vez.
O furioso bando de dentro do Café vinha novamente em busca
da presa. A um grito de uma delas, as Ouled-Nails tinham
apagado as velas de sebo... e agora a única luz que havia no
pátio era a que vinha da porta do Café, onde os árabes se
aglomeravam. Tarzan agarrou um curto sabre, deixado cair pelo
homem a quem Abdul furara a barriga, e agora esperava o
assalto dos que os procuravam na escuridão. De súbito sentiu
que lhe tocavam de leve, e ouviu uma voz de mulher a
sussurrar-lhe ao ouvido:
- Depressa, monsieur... Por aqui... Siga-me...
- Vem, Abdul... - disse o homem da selva, em voz baixa. - Em
qualquer outra parte não podemos estar pior do que aqui.
A mulher conduziu-os pela estreita escada que terminava à
porta do quarto dela. Tarzan seguia-a de perto, ouvindo o
tilintar das pulseiras de oiro e prata, e das moedas de oiro
que pendiam do seu toucado. Viu que era uma "Ouled-Nail", e
compreendeu que se tratava da mesma rapariga que o avisara uma
hora antes. Quando chegaram acima, ouviram a matilha que os
procurava na escuridão do pátio.
- Não tardarão a vir aqui... - sussurrou a rapariga. - Se o
encontram acabam por matá-lo, embora tenha força e coragem
como dez homens. Depressa!
Podem saltar pela janela, para a rua. Antes que eles
descubram que já não estão aqui... poderão estar em segurança
no hotel...


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Mas, no mesmo instante em que a jovem falava, vários homens
tinham já começado a subir a escada ao alto da qual se
encontravam. Um dos homens avistou-os e soltou um brado. Todos
os outros se precipitaram para a escada, e o da frente lançou-
se ao ataque... para encontrar uma espada com que não contava,
visto que o branco estava desarmado momentos antes.
Com um uivo, o homem caíu sobre os que vinham atrás, e
vários rolaram pelos degraus. A madeira carcomida não aguentou
o peso e a violência dos choques... e toda a escada se abateu,
arrastando os árabes e deixando Tarzan, com Abdul e a jovem,
no frágil patamar, em cima.
- Venham... - disse a Ouled-Nail. - Eles subirão pela outra
escada e passarão através do quarto ao lado do meu. Não há um
instante a perder...
Quando entravam no quarto, Abdul ouviu e traduziu os brados
de alguém que, no pátio, gritava para que dessem a volta e
cortassem a fuga pela rua.
- Agora estamos perdidos... - disse a rapariga,
simplesmente.
- Estamos?... - perguntou Tarzan.
- Sim, monsieur... Eu ajudei-o... matar-me-ão também.
Aquilo transformava o caso. Tarzan tinha-se esquecido com a
excitação e o perigo da luta. Nem por instantes pensara que
Abdul ou a rapariga pudessem sofrer, a não ser por acidente, e
retirara ante o ataque apenas o bastante para não se deixar
matar. Não pensava em fugir senão quando não houvesse qualquer


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possibilidade de lutar. Sozinho, teria saltado para o meio do
bando e, desferindo golpes à maneira de Numa, o leão, teria
apavorado de tal maneira os árabes que a fuga seria fácil. Mas
agora tinha de pensar, sobretudo, naqueles dois amigos fiéis.
Encaminhou-se para a janela que abria sobre a rua... Dentro de
um minuto os mouros estariam ali em baixo. Já podia ouvir os
furiosos que subiam a escada do quarto ao lado. Não tardariam
a atacar a porta. Tarzan poisou um pé sobre o parapeito da
janela e debruçou-se, mas não olhou para baixo. Em cima, ao
alcance da sua mão, estava o telhado da casa. Chamou a jovem,
passou-lhe um braço pela cintura e içou-a para um ombro. Então
disse, a Abdul:
- Espera até que eu te estenda a mão, de cima. Entretanto
empurra contra a porta tudo o que está no quarto...
Demorá-los-á o tempo preciso... - voltou-se para a jovem e
acrescentou: - Agarre-se bem a mim...
Um momento depois estava sobre o telhado, com a rapariga.
Logo a seguir debruçou-se e chamou Abdul. O rapaz acorreu e
apanhou a mão que Tarzan Lhe estendia...
A porta do quarto, atacada pelos mouros enfurecidos, cedeu,
estilhaçando-se... um instante depois de Abdul ter sido içado
para o telhado. E quase ao mesmo tempo uns oito ou dez homens
surgiram à esquina da rua e pararam sob a janela...


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CAPÍTULO 8


A luta no deserto


Enquanto os três se sentavam no telhado, por cima dos
quartos das Ouled-Nails ouviam o vozear furioso dos árabes.
Abdul ia traduzindo de vez em quando:
- Estão a insultar os que estão na rua... por nos terem
deixado fugir. Os da rua dizem que não passámos por eles e que
devemos estar ainda na casa... mas que os de cima têm medo e
por isso querem fazê-los pensar que fugimos. Se continuarem
assim, não tardarão a pegar-se uns com os outros...
Por fim, os que estavam na casa abandonaram a busca e
voltaram para o Café. Alguns ficaram na rua, em baixo, a fumar
e a falar.
Tarzan dirigiu-se à rapariga, agradecendo-lhe o que ela
havia feito por um desconhecido.
- Gostei de si... - respondeu ela, simplesmente. - Foi
bondoso para mim, falou-me com brandura e a maneira como me
deu o dinheiro não foi um insulto.
- Que fará depois disto?... - perguntou ele. - Não pode
voltar ao Café, Poderá mesmo, sem perigo, continuar em Sidi
Aissa?
- Amanhã terão esquecido tudo...


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Mas eu sentir-me-ia feliz se pudesse não voltar para este Café
ou para qualquer outro. Não estava ali por querer...
Estava como presa.
- Presa?
- Como escrava, é mais certo... Fui raptada, de
noite, do douar de meu pai, por um grupo de bandidos.
Trouxeram-me para aqui e venderam-me ao árabe que é o dono do
Café. Há quase dois anos que não vejo os meus. Vivem muito
para o Sul, e nunca vêm a Sidi Aissa.
- Gostaria de voltar para a sua gente?... - perguntou
Tarzan. - Prometo levá-la pelo menos até Bou Saada... e aí não
será difícil conseguir que o comandante a faça conduzir até ao
seu destino...
- Oh, monsieur... - exclamou ela. - Como poderei pagar-lhe?
É impossível que esteja disposto a fazer tanto por uma pobre
Ouled-Nail... Mas meu pai pode recompensá-lo e assim o fará. É
um grande xeque... Chama-se Kadour ben Saden...
- Kadour ben Saden!... - quase gritou Tarzan.
- Mas Kadour ben Saden está em Sidi Aissa, nesta mesma
noite. Jantou comigo, há apenas algumas horas!
- Meu pai... em Sidi Aissa? Que Alá seja louvado... porque
estou realmente salva.
- Sssh!... - fez Abdul. - Escutem...
De baixo vinha um rumor de vozes, nítido no silêncio da
noite. Abdul e a jovem traduziram, para Tarzan.
- Foram-se embora... - disse a rapariga. - É a si que eles
querem, monsieur... Um deles disse que o estrangeiro,


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que ofereceu dinheiro para o matarem, está em casa de Akmed
dinSoulef, com um braço partido, mas que ofereceu uma
recompensa ainda maior se alguém o atacar e o matar no caminho
de Bou Saada.
- É o homem que nos seguiu hoje... - afirmou Abdul. - Vi-o
outra vez, no café... Ele e outro... Foram para o pátio
interior depois de falarem com esta rapariga... Foram eles que
nos atacaram a tiro... Por que querem matar-te, meu amo?
- Não sei... - volveu Tarzan. - A não ser...
não concluiu a frase, porque a ideia que lhe ocorrera era a
única solução possível... e todavia parecia inacreditável.
Os homens que estavam na rua tinham-se ido embora. A casa e
o café estavam desertos. Cautelosamente, Tarzan desceu para o
parapeito da janela. O quarto estava vazio. Então voltou ao
telhado e desceu Abdul, Com a ajuda deste, desceu também a
jovem.
Abdul saltou da janela para a rua. A altura não era muito
grande. Tarzan tomou a rapariga nos braçOs e saltou também...
como tantas vezes fizera na sua floresta, carregando pesos. A
rapariga soltou um pequeno grito de susto, mas Tarzan poisou-a
na rua quase sem choque, e amparou-a. Ela ficou de mãos
agarrada a ele.
- Monsieur é tão forte e ágil... - disse. - Nem mesmo "el
adrea", o leão negro, pode excedê-lo...


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- Gostaria de encontrar el adrea... - volveu Tarzan. -
Têm-me falado nele.
- Vê-lo-á se for ao douar de meu pai. Ele vive nas
montanhas, ao Norte, mas de noite vem atacar o douar. Com uma
só pancada das garras esmaga a cabeça de um touro... e mal do
caminhante que encontra el adrea de noite, no seu caminho.
Chegaram ao hotel, sem mais complicações. O dono do hotel
protestou contra a ideia de mandar procurar Kadour ben Saden
antes de amanhecer... mas uma moeda de oiro fê-lo ver o
assunto sob outro aspecto. Pouco depois um criado começou a
percorrer as hospedarias onde um xeque do deserto poderia
ter-se alojado. Tarzan achara indispensável procurar o pai da
jovem nessa mesma noite, com receio de que ele partisse
demasiado cedo na manhã seguinte. Tinham estado à espera
durante cerca de meia hora quando o criado reapareceu em
companhia de Kadour ben Saden. O velho xeque entrou, com uma
expressão interrogativa na sua face altiva.
- Monsieur, deu-me a honra de... - mas de repente viu a
filha e, com um brado, dirigiu-se a ela, de braços estendidos.
- Minha filha! Oh! Alá é misericordioso!
Havia lágrimas nos olhos do velho guerreiro do deserto.
Quando ouviu a narrativa do que acontecera depois do rapto,
até ao momento em que Tarzan interviera, Kadour ben Saden
estendeu a mão ao homem da selva.
- Tudo o que eu tenho te pertence, meu amigo... - disse ele,
gravemente. - Mesmo a minha vida!...


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- acrescentou. E Tarzan compreendeu que aquelas não eram
palavras ditas em vão.
Foi decidido que, embora três deles tivessem de cavalgar
quase sem terem dormido, conviria partir muito cedo e tentar
alcançar Bou Saada num único dia de jornada. Seria
relativamente fácil para os homens, mas para a jovem a viagem
afigurava-se fatigante. No entanto ela era a mais ansiosa por
partir, no desejo de ver a família e os amigos, de quem estava
separada havia dois anos.
Tarzan teve a impressão de que mal fechara os oLhos, quando
o foram acordar. Uma hora depois o grupo ia a caminho do Sul,
na direcção de Bou Saada. Durante algumas milhas avançaram
rapidamente ao longo de uma estrada, mas depois começaram a
travessia do imenso areal, onde os cavalos enterravam as patas
a cada passo. Além de Tarzan, Abdul, o xeque e a filha, o
grupo era formado por mais quato homens da tribo, que haviam
acompanhado KadOur ben Saden na viagem a Sidi Aissa. Assim,
dispondo de sete espingardas, pouco receio tinham de ser
atacados durante o dia, e se tudo corresse bem chegariam a Bou
Saada antes de anoitecer. Porém, Um vento rijo envolvia-os em
areia, fustigando-lhes a cara. O pouco que Tarzan podia ver da
paisagem era desolador... uma vasta extensão de areia, dunas
distantes, rochas e ervas secas, em pequenos tufos. Tudo
aquilo era estranhamente diferente da sua selva luxuriante...
sempre alerta, olhava frequentemente para trás e, em cada
elevação de terreno, impelia o cavalo até ao ponto mais alto,


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e observava o caminho percorrido. Por fim, a sua vigilância
foi recompensada.
- Olhem!. - exclamou ele. - Vêm seis cavaleiros atrás de
nós.
- Os seus amigos da noite passada, monsieur... - comentou
Kadour ben Saden, tranquilamente.
- Sem dúvida... - respondeu Tarzan. - Lamento que a minha
companhia torne perigosa a sua jornada. Ficarei na primeira
aldeia que encontrarmos, enquanto seguem adiante, e
interrogarei essa gente. Eu não tenho necessidade de chegar
esta noite a Bou Saada, e não quero ser causa de que não
possam viajar em paz.
- Se parar, nós todos paramos... - volveu Kadour ben Saden.
- Ficaremos consigo até que esteja em segurança entre os seus
amigos, ou até que o inimigo se afaste. Não há nada mais a
dizer.
Tarzan fez um simples aceno. Era um homem de poucas
palavras, e essa era talvez uma das razões por que Kadour ben
Saden o apreciava. Poucas coisas merecem tanto o desprezo de
um árabe como um homem tagarela.
Durante o resto do dia, Abdul avistou por várias vezes os
cavaleiros, a distância. Não se aproximavam. Durante as
paragens para descanso, ou quando se detiveram mais
longamente, cerca do meio-dia, a distância entre eles e o
grupo não diminuiu.
- Estão à espera da noite... - comentou Kadour ben Saden.
E a noite veio antes de chegarem a Bou Saada.


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Abdul viu ainda uma última vez os seis perseguidores, de
albornozes brancos, um momento antes de a obscuridade do
crepúsculo os tornar invisíveis, mas era evidente que
começavam a encurtar a distância que os separava da presa.
Avisou Tarzan, em voz baixa para não alarmar a rapariga. O
filho da selva, fez recuar o cavalo para junto do de Abdul.
- Segue com os outros, Abdul... - disse ele. - É minha esta
luta, e vou esperá-los no ponto mais conveniente para os deter
de vez.
- Então Abdul espera contigo... - replicou o jovem árabe,
recusando-se a ceder a ordens ou a ameaças.
- Está bem... - concordou Tarzan, por fim. - Este lugar é
tão bom como qualquer outro. Há rochas ao alto desta elevação
de terreno. Podemos esconder-nos e apanhar de surpresa essa
gente, quando chegarem.
Desmontaram, O resto do grupo tinha seguido e desaparecera
na escuridão. Na linha do horizonte distinguiam-se as luzes de
Bou Saada. Tarzan empunhou o rifle e abriu o coldre do
revólver. Ordenou a Abdul para recuar e abrigar-se com as
rochas, levando os cavalos para não os expor às balas. O jovem
árabe fingiu obedecer, mas, tendo amarrado os cavalos a uma
das moitas, voltou a postar-se perto de Tarzan. O filho da
selva ficou de pé no meio da trilha, à espera. Não teve de
esperar muito tempo. Pouco depois ouviu o tropel dos cavalos
perseguidores...


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E distinguiu as manchas claras dos albornozes sobre o fundo
escuro da noite. Exclamou:
- Façam alto, ou disparamos!
Os vultos detiveram-se bruscamente, e durante alguns
momentos houve silêncio... logo seguido por um breve sussurrar
de palavras. Então, como fantasmas, os seis cavaleiros
dispersaram-se em várias direcções... e o deserto envolveu-os
na sombra e no silêncio, novamente. Uma sinistra ameaça
pairava no ar. Abdul soergueu-se sobre um joelho.
Tarzan escutava a noite. Os seus ouvidos, habituados a
distinguir os mil pequenos rumores da selva, captaram o
cauteloso caminhar dos cavalos, em volta.
Os inimigos faziam uma manobra de cerco. De súbito uma bala
veio, silvando, do ponto para onde ele es tava a olhar nesse
momento, e passou por cima da sua cabeça. Tarzan disparou
imediatamente na direcção do jacto de fogo. No mesmo instante
as detonações encheram de som o deserto. Abdul e Tarzan
disparavam apenas guiados pelos clarões dos tiros, porque não
podiam ainda distinguir os atacantes.
Mas tornou-se evidente que o cerco se apertava pouco a
pouco. Os atacantes deviam ter verificado que só dois homens
lutavam contra eles... mas um aproximou-se demasiado. Tarzan,
habituado a ver na escuridão da selva, disparou. Um cavaleiro
caiu da sela, com um brado de agonia.
- Começamos a equilibrar as forças, Abdul... - comentou
Tarzan, com um riso baixo.
Mas a desproporção era ainda grande, e quando os cinco
cavaleiros, a um sinal, atacaram repentinamente, a galope,


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pareceu que a luta ia terminar em breve. Tarzan e Abdul
saltaram para o abrigo das rochas, a fim de não serem
surpreendidos pela retaguarda. Houve um tropel de cavalos,
brados e tiros soaram na escuridão, e os mouros recuaram para
repetir o ataque. Mas agora eram só quatro...
Durante momentos houve de novo silêncio. Tarzan não tinha
maneira de saber se os árabes, tendo perdido dois homens,
desistiam da luta ou se postavam mais adiante, no caminho para
Bou Saada, para os atacar. A dúvida durou pouco tempo, porque
os mouros se lançaram novamente à carga. Desta vez, porém,
quando começaram a disparar, outras armas entraram em acção,
atrás deles. Ouviam-se os gritos de outro grupo que vinha dos
lados de Bou Saada e, por seu turno, atacava os atacantes.
Estes não esperaram para ver de quem se tratava. Com uma
última rajada de balas, ao passarem diante das posições
ocupadas por Abdul e Tarzan, lançaram-se a galope na direcção
da trilha de Sidi Aissa. Um momento depois apareceram Kadour
ben Saden e os seus guerreiros do deserto., O velho xeque
mostrou-se sinceramente contente por ver que nem Tarzan nem
Abdul estavam feridos, nem sequer os cavalos haviam recebido
um só arranhão. Procuraram os dois homens abatidos pelas balas
de Tarzan, mas verificando que ambos estavam mortos
deixaram-nos ficar onde estavam.
- Por que não me avisou que ia enfrentar esta gente?... -
perguntou o xeque, num tom magoado.

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- Tê-los-íamos derrubado, a todos, se tivéssemos ficado em
grupo.
- Teria sido inútil parar, nesse caso... - volveu Tarzan -
.. pois eles nos atacariam se tivéssemos continuado a caminho
de Bou Saada. Mas eu queria evitar que a minha luta envolvesse
outras pessoas...
e Abdul não obedeceu às minhas ordens para seguir também.
Não queria,, além do mais, que sua filha corresse riscos
inúteis...
Kadour ben Saden encolheu os ombros. Tinha ficado
evidentemente contrariado por não ter tomado parte numa boa
luta. O tiroteio, a tão curta distância de Bou Saada, atraiu
um destacamento de "spahis".
Tarzan e o seu grupo encontraram os soldados mais adiante,
já perto de Bou Saada. O oficial que comandava o destacamento
quis saber a razão dos tiros.
- Um grupo de bandidos... - respondeu Kadour ben Saden. -
Atacaram dois dos nossos, que tinham ficado para trás, mas
quando interviemos dispersaram imediatamente, deixando dois
mortos no terreno. Não houve baixas do nosso lado.
A resposta pareceu satisfazer o oficial, que depois de tomar
nota dos nomes dos viajantes seguiu com os seus homens para o
lugar da escaramuça, a fim de identificar os dois mortos... se
possível.
Dois dias depois, Kadour ben Saden, com a filha e os seus
guerreiros, partiu para o Sul, na direcção dos seus domínios
distantes. O velho xeque insistira com Tarzan para que este os
acompanhasse, e a jovem bailarina acrescentara os seus pedidos
aos do pai.
Mas, embora não pudesse explicar-lhes o que se passava,


100


Tarzan tinha uma missão a cumprir, e os acontecimentos dos
últimos dias pareciam aumentar a importância dessa missão...
Prometeu ir visitá-los mais tarde, se pudesse, e tiveram de se
contentar com essa promessa.
Durante os dois dias em que Kadour ben Saden se demorara em
Bou Saada, Tarzan passara a maior parte do tempo em companhia
dele e da filha. Interessara-se profundamente por aquela raça
de guerreiros, dignos e duros, e aproveitou a oportunidade
para se informar sobre os seus costumes e a sua maneira de
viver. Começou mesmo a aprender os rudimentos da linguagem
deles, ajudado pela linda rapariga de olhos castanhos. Foi com
pena que os viu partir, e ficou parado, sobre o seu cavalo, à
entrada da pista que conduzia ao coração do deserto,
olhando-os até que se perderam na distância.
Era uma gente conforme os seus gostos e simpatias... uma
gente com uma vida dura e selvagem, trabalhosa e cheia de
perigos, e isso atraía Tarzan muito mais do que as gentes e as
vidas efeminadas que observara nas grandes cidades onde
estivera. Aquela vida parecia-lhe ainda mais atraente do que
a da selva, pois permitia-lhe o contacto com verdadeiros
homens, a quem poderia estimar e respeitar... E todavia
continuava a estar intimamente ligado à natureza que ele
amava. Na sua mente ficou a ideia de que, uma vez concluída a
sua missão, se demitiria e iria viver, até ao fim da sua
existência, com a tribo de Kadour ben Saden.


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Fez voltar o cavalo e encaminhou-se, pensativamente, para
Bou Saada.
A fachada do HOTEL DU PETIT SAHARA, onde Tarzan se havia
alojado em Bou Saada, era ocupada pelo bar, duas salas de
jantar e as cozinhas. Ambas as casas de jantar comunicavam
directamente com o bar, e uma delas era reservada para os
oficiais da guarnição. Estando no bar, era possível observar
as duas salas, querendo.
Foi para o bar que Tarzan se encaminhou, ao regressar. Era
ainda de manhã, pois Kadour ben Saden decidira partir muito
cedo, de maneira que o filho da selva encontrou ainda alguns
hóspedes a tomarem o pequeno almoço. Quando olhou,
casualmente, para a ala reservada aos oficiais, viu uma coisa
que despertou o seu imediato interesse. O tenente Gernois
encontrava-se ali, sentado, e enquanto Tarzan os observava...
um árabe de albornoz branco aproximou-se dele e, curvando-se,
falou-lhe em voz baixa e saiu por outra porta da sala de
jantar. Depois o árabe seguiu adiante.
O caso, em si mesmo, nada significava, mas quando o homem se
curvara para falar ao oficial, o albornoz abrira-se e Tarzan
tivera tempo de ver que ele trazia o braço esquerdo ao peito,
suspenso de uma ligadura...


102


CAPÍTULO 9


Numa el adrea


No mesmo dia em que Kadour ben Saden partiu para o Sul, o
correio trouxe a Tarzan uma carta de D'arnot, reexpedida de
Sidi-bel-Abbes. A carta veio reabrir a velha ferida que Tarzan
gostaria de poder esquecer. Não ficou triste, no entanto, por
d'Arnot ter escrito, porque pelo menos um dos assuntos
interessá-lo-ia sempre. A carta dizia:


"Meu caro Jean


Depois da última vez que lhe escrevi, estive em Londres,
para tratar de negócios. Demorei-me apenas três dias, mas logo
no primeiro dia encontrei inesperadamente um velho amigo seu,
em Henrietta Street. Não adivinharia quem... mas foi o sr.
Samuel Philander. Estou a adivinhar a sua expressão incrédula,
mas é verdade. E não foi tudo. Ele insistiu para que eu o
acompanhasse ao hotel, e aí encontrei os outros - o professor
Arquimedes Porter, miss Porter e essa volumosa mulher de cor,
de quem deve lembrar-se - Esmeralda. Enquanto eu estava com
eles, chegou Clayton. Vão casar em breve, ao que parece, e
devemos receber a participação um dia destes.


103


Por causa da morte do pai de Clayton, será um casamento íntimo
- só com parentes a assistir.
Enquanto estive a sós com o sr. Philander, o bom velhote
mostrou-se um tanto desconfiado. Disse que miss Porter já
havia adiado o casamento três vezes. Confessou-me a sua
opinião de que ela não parecia especialmente ansiosa por
casar. Todavia, parece que desta vez será.
Evidentemente perguntaram por você, mas eu respeitei os seus
desejos a respeito da sua verdadeira origem, e falei apenas em
casos actuais.
Miss Porter mostrou-se intensamente interessada em tudo o que
eu podia contar a seu respeito, e fez muitas perguntas. Receio
bem ter tido um desejo maldoso em lhe descrever o seu prazer
de voltar para a selva. Fiquei com pena, porque ela demonstrou
verdadeira angústia ao pensar nos perigos. "E no entanto... -
acrescentou: - Não sei. Há destinos menos felizes do que
aquele que a terrível selva pode reservar ao sr. Tarzan. Pelo
menos terá a consciência livre de remorsos. e na selva há
momentos repousantes e calmos, durante o dia, e perspectivas
de extraordinária beleza. Pode achar estranho que eu diga
isto, depois das experiências pavorosas pelas quais passei na
floresta... mas na verdade há ocasiões em que gostaria de
voltar para lá, porque sinto ter lá vivido os instantes mais
felizes da minha vida..."
Tinha uma expressão de indizível tristeza, ao falar, e eu
tive a certeza de que ela sabia que eu conhecia o seu
segredo... e que as suas palavras eram uma forma de lhe


104


transmitir, a você, uma terna mensagem de um coração que
guarda a sua memória, apesar de tudo.
Clayton pareceu-me nervoso e pouco à vontad quando se falava
de você, Tinha uma expressão preocupada e quase de angústia.
No entanto falou a seu respeito com grande simpatia. Será
possível que ele suspeite da verdade a seu respeito? Clayton
chegou em companhia de Tennington. São grandes amigos,
Tennington prepara-se para um dos seus intermináveis
cruzeiros, no seu iate, e tentou convencer todo o grupo a
acompanhá-lo. Tentou aliciar-me, também. Desta vez pensa numa
viagem de circunavegação ao continente africano. Eu disse-lhe
que o seu precioso brinquedo o levaria um dia destes para o
fundo do mar, com alguns dos seus amigos, se ele não perdesse
a ilusão de que se tratava de um transatlântico ou de um
cruzador.
Voltei a Paris anteontem, e ontem encontrei o conde e a
condessa de Coude, nas corridas. Perguntaram-me por você. De
Coude parece realmente simpatizar muito consigo, sem quaisquer
espécie de remoto ressentimento. Olga está bonita como sempre,
mas um tanto mais calma. Imagino que aprendeu uma boa lição,
nas suas relações com você, e que essa lição lhe servirá até
ao fim da vida. Ainda bem para ela, e também para de Coude,
que o caso se paSsou com você e não com um homem mais
civilizado. Se você e Olga se tivessem amado, creio que não
haveria esperanças para nenhum dos dois.


105


Ela pediu-me para o informar de que Nikolas saiu de França.
Pagou-lhe vinte mil francos para partir e não voltar. Está
satisfeita por ter conseguido isto antes que ele tentasse
cumprir uma ameaça que fez... de o matar, a você, na primeira
oportunidade. Disse-me que teria grande pena de que você
tivesse o sangue do irmão nas suas mãos. É muito sua amiga e
não hesitou em afirmar isso mesmo diante do conde. Nem por um
instante lhe ocorreu a ideia de que houvesse outra solução, no
caso de um confronto entre você e Nikolas, que não fosse a
morte dele. O conde concordou plenamente com ela, a tal
respeito. Acrescentou que nem um regimento de Rokoff
conseguiria vencer monsieur Tarzan. Tem um profundo respeito
pela sua força.
Eu recebi ordem de voltar ao meu navio. Partimos do Havre
dentro de dois dias, com carta de prego. Se me escrever ao
cuidado do navio, as cartas chegarão eventualmente às minhas
mãos. Eu voltarei a escrever, assim que tenha uma
oportunidade.


Seu amigo sincero Paul D'arnot"


- Receio bem... - murmurau Tarzan, a meia voz - ... que Olga
tenha desperdiçado os seus vinte mil francos.
Voltou a ler a carta, várias vezes, na parte em que D'arnot
contava a sua conversa com Jane Porter. Aquelas palavras
transmitiam-lhe uma espécie de felicidade dolorosa... o que
era melhor, em todo o caso, do que nenhuma felicidade.


106


As três semanas seguintes decorreram sem qualquer incidente.
Tarzan voltou a ver, várias vezes o misterioso árabe, e de uma
dessas vezes surpreendeu-o a falar com o tenente Gernois...
Mas não houve maneira de Tarzan conseguir saber onde o árabe
se alojava.
Gernois, que nunca se mostrara cordial, parecia evitar ainda
mais encontrar-se com Tarzan, desde o episódio na sala de
jantar do hotel, em Aumale. A sua atitude, nas poucas ocasiões
em que estavam juntos, era quase hostil.
Para manter a aparência do personagem que interpretava,
Tarzan passava bastante temp o a caçar, nas proximidades de
Bou Saada. Passava dias inteiros nas colinas, aparentemente
procurando gazelas, mas sempre que um desses belos animais
aparecia ao alcance de tiro... ele nem sequer levava a arma à
cara. Não compreendia que pudesse haver prazer em matar uma
das mais inofensivas e indefesas das criaturas de Deus.
Na verdade, Tarzan nunca matara por prazer, e não sentia
qualquer prazer em matar. Apreciava a alegria de uma boa luta,
e a sensação da vitória. caçava para comer, sobretudo
tratando-se de animais que podiam opor, à sua sagacidade e
habilidade, armas quase iguais. Mas sair de uma localidade
onde abundava a comida... para matar uma lInda gazela de olhos
meigos, parecia-lhe ainda pior do que matar um homem a
sangue-frio. Nunca o faria e por isso andava sempre só para
que não descobrissem o seu desinteresse por aquela caça.


107


Certa vez, provavelmente em consequência de andar sempre só,
esteve prestes a perder a vida. Cavalgava devagar pelo fundo
de um pequeno barranco, quando ouviu a curta distância, atrás
dele, o estampido de um tiro... e uma bala atravessou o seu
capacete de cortiça. Embora se voltasse imediatamente e
galopasse para o alto do barranco, não viu sinais de qualquer
inimigo, nem encontrou vivalma até regressar a Bou Saada.
- Sim... - murmurou, ao recordar o caso... - Olga malbaratou
realmente os seus vinte mil francos.
Nessa noite, o capitão Gerard convidou-o para um pequeno
jantar.
- Não tem sido muito afortunado a caçar, pois não?... -
perguntou o oficial.
- Não... - volveu Tarzan. - A caça é tímida, por aqui, e eu
não faço grande empenho em caçar pássaros ou antílopes. Creio
que irei mais para o Sul, para procurar os vossos leões
argelinos.
- Óptimo!... - exclamou o capitão. - Nós partimos amanhã
para Djelfa. Terá companhia até aí, pelo menos. O tenente
Gernois e eu, com uma centena de homens, recebemos ordem para
patrulhar uma zona onde os bandidos estão a causar
complicações. Talvez tenhamos oportunidade para caçar o leão,
em companhia... Que diz?
Tarzan ficou mais do que satisfeito, e não hesitou em o
dizer... mas o capitão ficaria admirado se conhecesse a
verdadeira razão disso...


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Gernois, sentado em frente de Tarzan, não pareceu muito
contente com o convite do capitão.
- Verá que caçar leões é mais excitante do que caçar
gazelas... - comentou o capitão Gerard. - E mais perigoso,
também.
- Mesmo a caça à gazela tem os seus riscos... - respondeu
Tarzan. - Especialmente quando vamos sós. Descobri isso
hoje... e descobri também que a gazela, sendo o mais tímido
dos animais, não é com certeza o mais cobarde.
Olhou com naturalidade para Gernois, depois de falar. Não
queria que o homem soubesse que estava a ser suspeito, ou
vigiado. Mas o efeito da observação, sobre o tenente, provou
que tinha qualquer ligação, ou quando menos que sabia de certo
acontecimento recente. Corou bruscamente. Tarzan, tendo sabido
o que queria saber, mudou imediatamente de assunto.
Quando a coluna partiu para o Sul de Bou Saada, na manhã
seguinte, foi acompanhada por cerca de meia dúzia de árabes. O
capitão explicou, a uma pergunta de Tarzan:
- Não fazem parte da coluna, seguem connosco para terem
companhia.
Tarzan aprendera bastante sobre o carácter dos árabes, desde
que estava na Argélia, para saber que: não podia ser o
verdadeiro motivo. O árabe nunca pedia a companhia de
estrangeiros, e menos ainda de soldados franceses. Por isso
teve imediatas suspeitas e decidiu vigiar atentamente o
pequeno grupo que seguia a cerca de quatrocentos metros


109


à retaguarda da coluna. Mas os árabes nunca se aproximaram,
nem mesmo durante as paragens, de maneira a permitir-lhe
observá-los mais de perto. Todavia estava convencido de que se
tratava de assassinos a soldo, postos na sua pista... e não
tinha grandes dúvidas de que Rokoff estava por detrás daquilo.
Só não podia saber se Rokoff tentava executar os seus planos
de vingança das humilhações sofridas, ou se no caso estava
envolvido o assunto que dizia respeito a Gernois. Se fosse
esta última hipótese... e tinha razões para supor que fosse...
então teria de vigiar dois inimigos perigosos. Na parte mais
selvática da Argélia, para onde se dirigiam, haveria muitas
oportunidades de liquidar um homem sem atrair suspeitas...,
Depois de acampar em Djelfa, durante dois dias, a coluna
seguiu para Sudoeste. Tinham recebido notícias de que os
bandidos agiam agora contra as tribos cujos "douars" se
situavam no sopé das montanhas.
O pequeno grupo de árabes que os acompanhara desde Bou
Saada, desaparecera bruscamente, na noite em que haviam
chegado as ordens para a coluna sair de Djelfa. Tarzan
interrogou alguns soldados, mas nenhum pôde dizer-lhe por que
razão os árabes tinham partido, nem em que direcção haviam
seguido. E o homem da selva não gostou do aspecto do caso,
especialmente porque vira Gernois em conversa com um dos
árabes, meia hora depois de o capitão Gerard ter dado as suas
instruções. Tudo o que os soldados sabiam era que deviam
preparar-se para deixar o acampamento muito cedo, na manhã
seguinte.


110

Tarzan ficou a conjecturar sobre se Gernois informara os
árabes quanto ao destino da coluna.
Ao fim da tarde acamparam num pequeno oásis, onde se
localizava o douar de um xeque cujos rebanhos haviam sido
roubados, e cujos pastores tinham sido assassinados. Os árabes
surgiram das suas tendas de pele de cabra e rodearam os
soldados, fazendo muitas perguntas na sua língua nativa...
porque os próprios soldados eram também nativos. Tarzan que,
por essa altura e com a assistência de Abdul, tinha conseguido
um vocabulário árabe relativamente extenso, interrogou um dos
jovens árabes que haviam acompanhado o xeque quando este
visitara o capitão Gerard.
Não, ninguém vira um grupo de seis cavaleiros vindos da
direcção de Djelfa. Havia outros oásis espalhados pelo
deserto, e talvez que os cavaleiros se dirigissem para um
deles. Por outro lado os bandidos da montanha iam
frequentemente ao Norte, em pequenos grupos, até Bou Saada e
mesmo até Aumale ou Bouira. Talvez os seis cavaleiros
constituíssem um desses pequenos grupos, de regresso ao bando
depois de uma viagem de prazer a qualquer dessas cidades.
Cedo, na manhã seguinte, o capitão Gerard dividiu a coluna em
dois grupos, entregando o comando de um deles ao tenente
Gernois. Deveriam percorrer a montanha, partindo de pontos
opostos na planície.
- Com qual dos grupos quer ir, sr. Tarzan? Ou se interessará
por caçar bandidos?


111


- Terei muito prazer em ir... - apressou-se a declarar
Tarzan...
Estava a pensar no pretexto que arranjaria para dizer que
acompanharia Gernois... mas foi o próprio Gernois quem
facilitou as coisas.
- Se o meu capitão dispensa, por esta vez, o prazer da
companhia do sr. Tarzan, eu considerarei uma honra que ele vá
comigo hoje... - disse Gernois, com inesperada cordialidade.
Na verdade Tarzan pensou que o tenente exagerara mesmo um
tanto essa cordialidade, mas, admirado e satisfeito,
apressou-se a exprimir o seu acordo.
Foi assim que o tenente Gernois e Tarzan cavalgaram lado a
lado, à frente do pequeno destacamento de spahis. A
cordialidade de Gernois foi de curta duração. Logo que
perderam de vista o grupo formado pelo capitão Gerard e pelos
seus homens, o tenente recaiu no seu taciturno mútismo
habitual.
À medida que avançavam o terreno tornara-se mais áspero.
Subiram um declive bastante acentuado, ao qual chegaram
através de um estreito desfiladeiro, cerca do meio-dia. Junto
de um pequeno ribeiro, Gernois deu ordem para fazerem alto...
Os homens prepararam uma refeição frugal e encheram os cantis.
Depois de uma hora de repouso, recomeçaram a avançar até
chegarem a um pequeno vale, do qual partiam vários
desfiladeiros rochosos. Pararam aí, enquanto Gernois examinava
atentamente as alturas em volta.
- Vamos separar-nos neste ponto... - disse o tenente - ...
em pequenos grupos, cada um dos quais segguirá por uma dessas


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gargantas... O sr. Tarzan terá a bondade de ficar aqui até
voltarmos.
Tarzan protestou, mas o oficial atalhou prontamente:
- Pode haver luta, para qualquer das secções... e os
soldados não podem ser embaraçados, durante a acção, por civis
não combatentes.
- Mas, meu caro tenente... - insistiu Tarzan... - estou
pronto e disposto a colocar-me sob o seu comando, ou sob o
comando de um dos seus sargentos ou cabos, e a lutar no posto
que me indicarem. Foi para isso que vim.
- Gostaria de pensar o mesmo... - retorquiu Gernois, com um
ar desdenhoso que não tentou sequer disfarçar. E acrescentou:
- Está sob as minhas ordens, e as minhas ordens são para ficar
aqui até voltarmos. A discussão termina aqui!
Voltou-se e incitou o cavalo, colocando-se à frente do seu
grupo. Um momento depois Tarzan encontrava-se sozinho, rodeado
pelas montanhas, numa passagem desolada e árida. O sol estava
quente, de maneira que ele procurou o abrigo de uma árvore
próxima, onde amarrou o cavalo. Estava furioso contra Gernois,
pela feia partida que lhe pregara.
Sentou-se, acendeu um cigarro... e de repente ocorreu-lhe a
ideia de que talvez não se tratasse apenas de uma "partida". O
tenente não seria bastante tolo de o irritar com uma atitude
simplesmente mesquinha. Devia haver outra coisa. Com essa
ideia, levantou-se e tirou o rifle do coldre. Verificou a arma
e viu que estava completamente carregada.


113


Depois examinou o revólver, e então fez uma ronda pelas
entradas das várias gargantas, e observou as cristas dos
montes. Estava resolvido a não se deixar apanhar de surpresa.
O sol foi descendo no horizonte, sem que houvesse sinais do
regresso dos spahis, até que o vale foi mergulhando na sombra.
Tarzan era demasiado orgulhoso para voltar ao acampamento sem
dar aos destacamentos todo o tempo necessário para regressarem
ao vale, que pensava ser o lugar de encontro. Com a noite
sentiu-se mais seguro contra qualquer ataque, porque a
escuridão não lhe era hostil. Sabia que ninguém poderia
aproximar-se sem que ele ouvisse, e os seus olhos distinguiam
bem na treva. Para mais, tinha um olfacto tão apurado que
poderia descobrir, a distância, alguém que se aproximasse do
lado do vento.
Sentia-se quase em segurança, e com essa sensação adormeceu
encostado ao tronco da árvore... Dormiu decerto durante
algumas horas, porque quando foi acordado pelo relinchar
apavorado do cavalo, a lua iluminava o vale. A dez passos dele
estava a causa do pavor da sua montada.
Soberbo, majestoso, a cauda estendida, os olhos de lume
fixos na sua presa, estava Numa - "el adrea" - o leão negro.
Os nervos de Tarzan vibraram, numa excitação de alegria. Era
como encontrar um velho amigo, após anos de separação. Por
momentos ficou imóvel, observando o magnífico espectáculo
daquele rei da montanha.
Mas agora Numa preparava-se para saltar, curvado.


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Lentamente, Tarzan levou a arma à cara. Em toda a sua vida
nunca abatera um animal de grande porte, com uma arma de fogo
- até então dependera da sua lança, das flechas envenenadas,
do laço, da faca ou das mãos nuas... e ter-se-ia sentido mais
seguro com essas armas.
Numa estava quase colado ao chão, mostrando apenas a cabeça.
Tarzan teria preferido disparar um pouco de lado, porque sabia
que tremendos estragos um leão pode fazer se viver dois
minutos, ou mesmo um, depois de ser ferido. Atrás de Tarzan, o
cavalo agitava-se, trémulo de medo. O homem da selva deu um
cauteloso passo de lado - Numa seguiu-o apenas com os olhos.
Outro passo... e outro ainda. Numa não se movera. Agora Tarzan
podia apontar para um ponto entre o olho e a orelha.
O seu dedo apertou o gatilho, e disparou no momento em que
Numa saltava. No mesmo instante o apavorado cavalo fez um
desesperado esforço para fugir, as rédeas quebraram-se e ele
lançou-se a galope ao longo de uma das gargantas, na direcção
do deserto.
Nenhum homem vulgar teria podido escapar às terríveis
garras, tendo Numa saltado de uma distância tão curta, mas
Tarzan não era um homem vulgar. Desde a infância que os seus
músculos haviam sido treinados, pelas ferozes exigências da
sobrevivência, a agir com a rapidez do pensamento. El adrea
era rápido, mas Tarzan era mais rápido ainda... e a fera foi
chocar contra o tronco da árvore em vez de cravar as garras na
presa que buscava.


115


Tarzan, dois passos à direita, atingiu-o com mais uma bala
que o derrubou rugindo e golpeando no ar.
Mais duas vezes Tarzan disparou, e el adrea deixou de se
agitar e de rugir. Agora o sr. Tarzan desaparecera, para dar
lugar a Tarzan dos Macacos... o qual, com um pé sobre o
inimigo vencido, levantou a cabeça e soltou o terrível brado
de vitória da sua tribo. Na montanha selvagem, as criaturas
selvagens imobilizaram-se, assustadas ante aquela voz nova e
poderosa. No deserto, os árabes emergiram das suas tendas e
olharam para a montanha, pensando em que novo inimigo teria
aparecido para devastar os seus rebanhos.
A meia milha do vale onde estava Tarzan, uma vintena de
vultos, envergando albornozes brancos e empunhando espingardas
compridas, pararam por momentos e entreolharam-se,
interrogativos. Mas o brado estranho não se repetiu, e os
vultos continuaram a caminhar, silenciosos e furtivos, na
direcção do vale. Tarzan tinha agora a certeza de que Gernois
não voltaria ali... mas não podia compreender o motivo que
levara o tenente a abandoná-lo, deixando-o no entanto livre
para voltar ao acampamento. Tendo perdido o seu cavalo,
decidiu que seria tolice continuar na montanha... e partiu na
direcção do deserto.
Mal dera os primeiros passos no desfiladeiro quando os
vultos brancos entraram no vale, vindos pelo lado oposto. Por
momentos observaram a pequena depressão de terreno,
escondendo-se com os rochedos, e quando verificaram que não
havia ali ninguém, avançaram. Encontraram, junto da árvore
alta, o corpo de el adrea. Aglomeraram-se em volta, com
exclamações abafadas, mas um momento depois caminhavam
apressadamente ao longo do desfiladeiro por onde seguia
Tarzan, pouco adiante deles. Caminhavam com pressa mas
cautelosamente e em silêncio - como os homens fazem quando
caçam um homem...

CAPÍTULo 10


Através do vale das sombras


Enquanto caminhava ao longo do desfiladeiro iluminado
pelo luar, Tarzan sentia-se envolvido fortemente pelo apelo da
vida selvagem. A solidão e a liberdade totais enchiam-no de
uma sensação que se mantivera latente nele durante os últimos
tempos. Era novamente Tarzan dos Macacos - os músculos prontos
e os sentidos alerta - caminhando de cabeça erguida e passos
seguros, confiante na sua própria força.
Os ruídos nocturnos da montanha eram novos para ele, mas
escutava-os como se ouvisse a voz suave de um amor meio
esquecido. Muitos desses ruídos lhe eram inteligíveis... e
reconheceu a distância a voz de um leopardo... Mas havia uma
nota diferente que o fazia ter dúvidas...


116 117


porque o que escutava era de facto uma pantera...
A certa altura distinguiu um novo som, macio e furtivo. Só
os seus ouvidos poderiam tê-lo captado, e ao princípio não o
compreendeu, mas não tardou a reconhecê-lo... Vinha de um leve
pisar de pés descalços... pés de vários homens. Vinham atrás
dele, cautelosos... Estava a ser seguido.
Num relance compreendeu por que razão havia sido deixado ali
por Gernois. Apenas houvera um erro... os homens chegavam
tarde demais. Tarzan parou e voltou-se para trás, com a arma
pronta. Apercebeu-se da aproximação de um vulto branco... um
albornoz... Chamou em voz alta e perguntou, em francês, o que
queriam. A resposta foi uma súbita chama alaranjada, uma
detonação... e uma bala... Tarzan dos Macacos caiu para a
frente, de bruços.
Os árabes não se precipitaram imediatamente. Esperaram, até
terem a certeza de que a sua vítima não se levantaria. Então
aproximaram-se e curvaram-se sobre ele. Foi fácil verificar
que não estava morto... e um dos árabes encostou-lhe à cabeça
o cano da espingarda, para o acabar... Mas outro empurrou-o,
desviando a arma.
- Se o levarmos vivo, a recompensa será maior... - disse.
Então amarraram-no de pés e mãos e levaram-no aos ombros de
quatro homens. Encaminharam-se para o deserto. Tendo descido
até ao sopé das montanhas, seguiram para o Sul. Amanhecia
quando alcançaram o ponto onde haviam deixado os cavalos, à
guarda de dois deles.


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A partir daí a marcha tornou-se mais rápida. Tarzan, que
recuperara os sentidos, foi amarrado sobre o dorso de um
cavalo que os árabes tinham trazido para esse fim. A ferida
não passava de um arranhão, ao longo da têmpora. Já não
sangrava, mas o sangue coagulado e seco sujava a cara e a
roupa de Tarzan. Este não dissera uma só palavra desde que
havia sido aprisionado, e os seus captores tinham-se limitado
a breves ordens no momento em que se aproximaram dos cavalos.
Durante algumas horas cavalgaram sem descanso, evitando os
oásis situados ao longo do caminho. Cerca do meio-dia
alcançaram finalmente um "douar" composto por duas dezenas de
tendas, e aí pararam. Quando um dos árabes começou a desatar
os nós das cordas que prendiam Tarzan ao cavalo, foram
rodeados por uma pequena multidão de homens, mulheres e
crianças. Muitos dos membros da tribo, especialmente as
mulheres, pareciam ter um singular prazer em insultar o
prisioneiro, e algumas atiravam-lhe pedras e batiam-lhe com
paus. Foi então que apareceu um velho xeque e as afugentou,
dizendo:
- Ali-ben-Ahmed diz-me que este homem ficou sozinho na
montanha e matou "el-adrea". Não sei o que quer o estrangeiro
que pagou para o apanharmos, e não quero saber do que lhe fará
quando o entregarmos a ele. Mas o preso é um homem valente,


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e enq uanto estiver entre nós será tratado com o respeito
devido a alguém que enfrentou, sozinho, o senhor da grande
cabeça... e o matou.
Tarzan sabia do respeito dos árabes pelos que matam um
leão... e alegrou-se na medida em que isso o libertava das
mesquinhas torturas infligidas pelas mulheres. Pouco depois
levaram-no para uma das tendas na extremidade do "douar".
Deram-lhe de comer e, depois de o amarrarem mais solidamente,
deixaram-no só, estendido sobre uma esteira.
Tarzan podia ver um guarda sentado diante da entrada da sua
frágil prisão, mas quando tentou afrouxar as cordas que lhe
prendiam os braços, verificou que a precaução era
desnecessária, porque nem os seus poderosos músculos puderam
sequer mover as numerosas laçadas que o seguravam.
Um pouco antes da noite vários homens aproximaram-se da
tenda, e entraram. Todos envergavam albornozes, mas um deles
aproximou-se de Tarzan e, afastando as dobras de tecido que
lhe cobriam a parte inferior da cara, mostrou a face barbuda e
malévola de Nikolas Rokoff... sorrindo cruelmente.
- É um prazer encontrá-lo, sr. Tarzan... - disse ele. - Mas
por que não se levanta para cumprimentar as visitas?
Levante-se, cão!... - berrou subitamente, ao mesmo tempo que
batia com o pé em Tarzan. Num acesso de fúria, continuou a dar
pontapés, gritando: - Um por cada uma das injúrias que me fez!
Tarzan não disse uma palavra, nem sequer voltou a olhar para
o homem. Por fim o velho xeque, que de sobrolho franzido


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assistira à cobarde brutalidade interveio.
- Basta!... - ordenou. - Mate-o se quiser, mas!... não
consinto que um homem valente seja tratado dessa maneira, na
minha presença. Estou meio ten tado a libertá-lo das cordas,
para ver se você continua a fazer isso!
A ameaça pôs um fim brusco às brutalidades de Rokoff. Não
queria correr o risco que ela comportava. Respondeu:
- Muito bem... vou então matá-lo!
- Não dentro dos limites do meu "douar"... - retorquiu o
xeque. - Quando sair daqui, sairá vivo. O que lhe fizer, no
deserto, não é da minha conta... mas não quero ter sobre as
mãos o sangue de um francês, por uma razão que não é minha. Os
franceses mandariam soldados contra a minha tribo,
incendiariam o "douar", matariam os homens e dispersariam os
rebanhos.
- Está bem... - disse Rokoff. - Levá-lo-ei para o deserto,
nos limites do "douar", e aí o matarei.
- Levá-lo-á até um dia de jornada daqui... - volveu o xeque,
friamente - ... e alguns dos meus homens o seguirão para que
obedeça. Caso contrário haverá dois franceses mortos, no
deserto!
- Então terei de esperar para amanhã porque já é noite... -
concordou Rokoff,, com um encolher de ombros.
- Como quiser... - replicou o xeque. - Mas uma hora depois
da madrugada quero-o fora do meu "douar".


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Não simpatizo com infiéis, e menos ainda com um cobarde!
Rokoff teria ripostado, mas conteve-se porque compreendia
que o velho xeque se voltaria contra ele ao menor pretexto.
Saíram ambos da tenda, mas à porta Rokoff lançou uma
derradeira ameaça a Tarzan.
- Durma bem... - disse ele - ... e não se esqueça de rezar
hem, porque amanhã morrerá no meio de sofrimentos que não lhe
darão disposição para rezar.
Desde o meio-dia ninguém pensara em levar alimentos ou água
a Tarzan, que sofria bastante da sede. Pediu água ao guarda,
mas este nem sequer lhe respondeu. À distância, na montanha,
ouviam-se os rugidos dos leões. Tarzan pensou que estaria bem
mais seguro entre as feras do que entre os homens. Nunca, na
sua vida na selva, se sentira mais implacavelmente perseguido
do que nos últimos meses da sua experiência entre as criaturas
ditas civilizadas. Nunca estivera tão próximo da morte.
De novo chegou aos seus ouvidos o rugido de um leão, agora
mais perto. Tarzan sentiu o velho impulso de responder com o
brado de desafio da sua espécie. A sua espécie? Quase havia
esquecido que era um homem, e não um macaco. Mais uma vez
tentou afrouxar as cordas. Se ao menos pudesse tê-las ao
alcance dos seus rijos dentes! A resistência das cordas
despertava nele uma onda de raiva.
O leão rugia agora quase a cada instante. Era evidente que
se internara pelo deserto, para caçar. Era o rugido de um leão
esfomeado. Tarzan invejou a fera, porque estava livre,


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e ninguém a amarraria com cordas, para a matar como se fosse
um carneiro. Era isso o que enfurecia o homem da selva. A
morte não lhe fazia medo - mas desesperava-o a derrota
antecipada, o facto de não poder lutar para defender a sua
vida.
Pensou que devia ser perto da meia-noite. Tinha ainda
algumas horas para viver. Talvez conseguisse ainda arranjar
maneira de levar Rokoff consigo, na longa jornada sem
regresso. Ouvia o leão bastante perto, agora. Talvez a fera
viesse procurar a sua presa entre os animais do "douar".
Depois, durante alg uns minutos, reinou um silêncio total.
Foi então que Tarzan pressentiu a aproximação de um corpo
que se movia furtivamente. Vinha da parte de trás da tenda, a
que estava voltada para a montanha. E aproximava-se cada vez
mais. Tarzan esperava, escutando intensamente. Fez-se de novo
silêncio, um silêncio tão absoluto que Tarzan se surpreendia
de não ouvir sequer a respiração da fera... que devia estar
muito perto.
Um leve ruído, outra vez o avançar furtivo, cada vez mais
próximo. Tarzan voltou a cabeça na direcção do som. A
escuridão era quase completa, no interior da tenda.
Bruscamente as peles de cabra, que fechavam a tenda, foram
levantadas para dar passagem a um vulto que, na sombra,
parecia negro. Tarzan fechou instintivamente os olhos, mas
logo os abriu. SEntiria agora o golpe da poderosa garra...
levantou a cabeça... e sentiu sobre a face o suave tocar de
dedos macios que tacteavam na treva. Logo uma voz feminina,


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que mal se podia ouvir mas que pronunciava o seu nome.
- Sim, sou eu... - sussurrou Tarzan. - Mas, em nome de Deus!
Quem é você?
- A "Ouled-Nail" de Sidi Aissa...
Enquanto ela falava, Tarzan sentia-a procurar as cordas que
lhe prendiam os braços. Um contacto frio, de aço, sobre a
pele...: e um momento depois estava livre.
- Venha... - murmurou ela.
Tarzan seguiu-a, rastejando, pelo mesmo caminho por onde ela
entrara. Continuaram a avançar assim, até alcançarem uma
pequena moita de arbustos. Aí, a jovem esperou que ele se
aproximasse. Tarzan fitou-a por alguns momentos, antes de
falar.
- Não compreendo... - disse ele, por fim. - Por que está
aqui? Como soube que eu estava prisioneiro nessa tenda? Como
foi possível que viesse salvar-me?
- Percorri um longo caminho esta noite... - respondeu ela,
sorrindo - ... e ainda temos um longo caminho a percorrer
antes de estarmos fora do perigo. Venha... Contar-lhe-ei tudo,
enquanto caminharmos...
Puseram-se de pé e tomaram a direcção das montanhas. A jovem
murmurou:
- Eu não tinha a certeza de poder chegar. "El adrea" anda à
caça no deserto, esta noite, e depois de eu ter deixado os
cavalos acho que ele me farejou e me seguiu. Tive um medo
horrível...
- Que rapariga corajosa! E correu todos esses riscos por um
estrangeiro... um estranho... um infiel?...


124


Ela endireitou o corpo altivamente, ao responder:
- Sou a filha de Kadour-ben-Saden... e não seria digna de
ser sua filha se não arriscasse a minha vida para salvar a do
homem que me salvou quando pensava que eu apenas era uma
vulgar "Ouled-Nail".
- Seja como for... é uma rapariga de imensa coragem... -
volveu Tarzan. - Mas como soube que estava preso, e onde?
- Achmet-din-Taieb, que é meu primo pelo lado paterno, foi
visitar alguns amigos que pertencem à tribo que o capturou.
Estava no "douar" quando o levaram, e ao regressar falou do
francês de grande estatura que havia sido apanhado por Ali-
ben-Ahmed, para o entregar a outro francês que queria matá-lo.
Pela descrição, compreendi que se tratava de si. Meu pai não
estava connosco. Tentei convencer alguns dos homens para virem
salvá-lo, mas eles recusaram-se, dizendo: "- Deixem que os
infiéis se matem uns aos outros, se querem. Isso não me diz
respeito, e se formos interferir nos planos de Ali-ben-Ahmed
podemos provocar uma luta entre as nossas tribos. - Assim,
quando escureceu, vim sozinha, montando um cavalo e trazendo
outro para si. Estão presos não longe daqui. Pela manhã
estaremos no "douar" de meu pai. Ele já lá deve estar... quem
se atreverá a ir tentar prender o amigo de Kadour-ben-Saden...
Caminharam em silêncio durante alguns minutos. Depois a
jovem disse:
- Devemos estar perto dos cavalos e é estranho não os ver...


125


Oh! - acrescentou ela, logo em seguida. - Fugiram! Foi aqui
que os deixei.
Tarzan debruçou-se para examinar o terreno. Viu que um forte
arbusto havia sido arrancado pela raiz. Depois encontrou
outras coisas. Havia um sorriso estranho, nos seus lábios,
quando se endireitou e olhou para a rapariga.
- El adrea esteve aqui... - disse ele. - Pelas marcas, penso
que os cavalos conseguiram escapar. Com um pequeno avanço
podem ter fugido às garras do leão, no deserto.
Não havia outra coisa a fazer senão continuar a caminhada, a
pé. O caminho conduzia para uma série de montes não muito
altos, mas a jovem conhecia bem a região. Marchavam em passos
longos e leves. Tarzan seguia ligeiramente atrás da jovem,
para que ela pudesse escolher o andamento que menos a
fatigasse. Iam conversando enquanto andavam, mas paravam de
quando em quando, atentos a algum ruído que indicasse estarem
a ser perseguidos.
Um luar brilhante iluminava a paisagem árida. Havia um
vento leve e fresco, revigorante. Atrás deles estendia-se o
deserto, onde de longe em longe se adivinhava, na doce
claridade do luar, a mancha negra de um oásis. As palmeiras e
o pequeno pedaço de terreno fértil, do "douar" de onde tinham
partido pouco antes, eram ainda visíveis no imenso areal - uma
espécie de fantástico e diminuto paraíso no meio do fantástico
e imenso mar das dunas. Em frent erguiam-se as montanhas
silenciosas. Tarzan sentiu o sangue correr-lhe alegremente nas
veias. Aquilo era viver!


126


Olhou para a rapariga que caminhava junto dele, uma filha do
deserto, marchando através de um mundo morto, como um homem da
selva. Sorriu ao pensar que gostaria de ter uma irmã - que
fosse como aquela rapariga. Que esplêndida companheira seria!
Tinham entrado nas montanhas, agora, e avançavam mais
devagar porque a trilha era íngreme e áspera. Durante alguns
minutos seguiram em silêncio. A jovem pensava se lhes seria
possível alcançar o "douar de seu pai antes de serem
alcançados por eventuais perseguidores. Tarzan desejaria
caminhar assim longamente. Se a sua companheira fosse um
homem, poderia fazê-lo. Gostaria de ter um amigo que amasse,
tanto quanto ele, a vida livre e selvagem. Aprendera a
apreciar companhia... mas infelizmente a maioria dos homens
que conhecia preferiam as suas roupas imaculadas, e os seus
clubes, a vaguearem nus pela selva. Era difícil de compreender
mas sem dúvida que era assim.
Haviam dado a volta a uma ponta de rocha que cortava a
trilha... quando pararam bruscamente. Diante deles, a meio da
passagem, estava Numa "el adrea, o leão negro. Os olhos verdes
e fosforescentes, da fera, tinham um brilho cruel... O leão
mostrava os dentes e sacudia os flancos com a cauda, irritado
e esfomeado.
- A faca... - disse Tarzan à rapariga, estendendo a mão para
ela sem deixar de fitar el adrea. Os seus dedos crisparam-se
no cabo da faca. Acrescentou:
- Volte para trás o mais depressa que puder.

127


Se eu a chamar é porque tudo está bem, e então pode
aproximar-se novamente.
- É inútil... - respondeu ela, com o fatalismo da sua raça.
- Isto é o fim do caminho...
- Faça como eu lhe digo... E depressa, porque o leão vai
saltar... - atalhou Tarzan.
Ela recuou alguns passos mas parou, olhando intensamente.
Sabia que ia assistir a uma cena horrível. Tarzan, empunhando
a comprida faca árabe cuja lâmina brilhava ao luar, enfrentava
a fera, ligeiramente curvado para a frente. Atrás dele, a
jovem tinha a imobilidade de uma figura de pedra. O leão
avançava lentamente, cosido com o terreno, a cauda estendida.
O único pensamento consciente, da rapariga árabe, era de
espanto pela coragem daquele homem que, armado apenas com uma
faca, enfrentava o "senhor da grande cabeça". Um homem do
deserto teria ajoelhado a rezar e sucumbiria sem resistência,
ante as garras da fera. Sim, isso era o que faria: um árabe...
Em qualquer dos casos o resultado seria o mesmo - era
inevitável. Mas ela não podia dominar um sentimento de
profunda admiração pelo herói que ia lutar. Não havia uma
parcela de medo naquele corpo atlético e moreno... a sua
atitude era tão ameaçadora como a de "el adrea".
O leão estava mais perto... E de repente, com um tremendo
rugido, saltou.


128


CAPÍTULO 11


John Caldwell, Londres


Quando Numa "el adrea" saltou, de garras abertas e
estendidas... para ele aquela presa era como muitas outras,
iguais, que havia encontrado e vencido. Para ele o homem era
um animal de movimentos lentos e desajeitados, indefeso... Mas
desta vez tinha diante de si uma criatura diFerente, tão ágil
como ele próprio. Quando o seu poderoso corpo concluiu o
salto... o homem já não estava no mesmo sítio. A rapariga
árabe olhava, maravilhada... O homem tinha esquivado as garras
da fera e... por Alá!... saltara para o dorso de "el adrea"
antes que este pudesse sequer voltar-se, agarrando-o pela
juba. O leão ergueu-se sobre as patas traseiras, como um
cavalo... Tarzan sabia que ele faria isso, e estava atento. Um
grande braço hercúleo rodeou a garupa da fera..., e uma...
duas... dez vezes, a faca se cravou no corpo fulvo-negro,
atrás da espádua. Numa saltava, rugindo de fúria e de dor...
mas o homem que se agarrava ao seu dorso podia ser desalojado
ou trazido para o alcance das garras e dentes... durante o
tempo que restava de vida ao rei da montanha.


129


Quando Tarzan o largou e se ergueu, o leão estava morto.
Então a filha do deserto assistiu a uma coisa que quase a
apavorou mais do que a aparição de "el adrea". O homem poisou
um pé sobre a carcaça e,erguendo a bela face que o luar
iluminou em cheio, soltou o mais terrível brado que a jovem
ouvira alguma vez.
Com um pequeno grito de medo a jovem recuou... pensando que
a tensão da breve luta havia endoidecido o seu companheiro.
Quando a última nota do espantoso brado se perdeu na
distância, Tarzan olhou para ela... e no mesmo instante o
bondoso sorriso, que era ampla prova da sua saúde mental,
iluminou-lhe as feições. A rapariga respirou livremente,
sorrindo também.
- Que homem és tu, senhor?... - perguntou ela. - O que
fizeste é uma coisa que nunca foi feita antes... Mesmo agora
mal posso acreditar que um homem só, armado apenas com uma
faca, pudesse enfrentar "el adrea" e vencê-lo sem ter sofrido
um arranhão... vencê-lo fosse como fosse. E esse grito não era
humano... Por que gritaste assim?
- Foi porque... - respondeu Tarzan, corando ligeiramente -
.. por vezes me esqueço de que sou um homem civilizado.
Quando mato... transformo-me noutra criatura...
Não tentou explicar melhor... porque sempre pensava que uma
mulher não poderia evitar uma sensação de repulsa por alguém
que estava tão perto de ser uma fera.


130

Continuaram a caminhar. O sol havia surgido cerca de uma
hora antes, quando novamente encontraram o deserto, do outro
lado das montanhas. Junto de um pequeno oásis desabitado, onde
corria um regato que logo adiante se sumia na areia,
encontraram os dois cavalos que pastavam a erva rala. Tinham
fugido até ali... mas uma vez longe daquilo que os apavorara,
antes, haviam parado para beber e comer. Não lhes foi difícil
apanharem os animais. Montaram e seguiram na direcção do
"douar" de Kadour-ben-Saden. Não havia sinais de perseguição,
e assim chegaram, cerca das nove horas da manhã, ao seu
destino. O velho xeque regressara pouco antes e estava
desesperado pelo desaparecimento da filha, que supunha
novamente raptada pelos bandidos. Ia partir em busca dela, à
frente de cinquenta cavaleiros, quando Tarzan e a jovem
entraram no "douar". A alegria de Kadour-ben-Saden ao ver a
filha,, foi igualada pela sua gratidão para Tarzan, que a
trazia sã e salva através dos perigos da noite, pela sua
satisfação ao saber que ela chegara a tempo de salvar o homem
que antes a salvara. Logo que a jovem contou a luta de Tarzan
com "el adrea", todos os árabes o rodearam com grandes mostras
de respeito. Era uma segura maneira de conquistar a admiração
deles. Tarzan foi cumulado de todas as atenções. O velho xeque
voltou a insistir para que ele ficasse para sempre na tribo,
disposto mesmo a adoptá-lO. O filho da selva esteve quase
tentado a aceder a ficar com aquela gente que o entendia e a
quem ele podia entender.


131


A sua simpatia pela filha de Kadour-benSaden era uma das
fortes razões...
Se ela fosse um homem, não teria talvez hesitado... porque
seria um magnífico companheiro para galopar e caçar através do
deserto e nas montanhas. Mas era uma mulher... e qualquer
ideia de companhia entre ambos seria difícil de aceitar para
aquela gente... respeitadora de regras ainda mais rígidas do
que as de povos mais civilizados. Dentro de algum tempo
estaria casada com um dos morenos guerreiros do deserto, e
isso poria fim, em qualquer caso, à amizade entre ela e
Tarzan. Assim, Tarzan agradeceu mas recusou a proposta do
velho xeque, embora concordasse em se demorar uma semana no
"douar".
Quando partiu, Kadour-ben-Saden e cinquenta guerreiros de
albornozes brancos prepararam-se para o acompanhar a Bou
Saada. Quando montaram a cavalo, na manhã da partida, a jovem
veio despedir-se de Tarzan.
- Rezei para que ficasses connosco, senhor...
Mas Alá não atendeu as minhas preces... - disse ela,
simplesmente, quando ele se curvou, na sela, para lhe apertar
a mão. - Agora vou rezar para que voltes...
Havia uma expressão de tristeza nos belos olhos; e uma curva
amarga nos lábios. Tarzan sentiu-se emocionado.
- Quem sabe?... - disse ele ainda, antes de partir.
Tarzan despediu-se dos seus companheiros antes de chegarem a
Bou Saada. Tinha razões pessoais para querer entrar

132


na povoação tão discretamente quanto possível, e quando as
expôs o velho xeque concordou imediatamente. Os árabes
entrariam primeiro em Bou Saada, sem fazerem qualquer
referência à presença dele. Tarzan iria mais tarde e
procuraria alojamento numa estalagem nativa. Assim, chegando
já de noite, não encontrou ninguém que o conhecesse e
dirigiu-se sem demora para a estalagem. Depois de jantar em
companhia de Kadour-ben-Saden, encaminhou-se, dando um rodeio,
para o hotel onde estivera antes. Passou pela porta das
traseiras e foi falar ao proprietário do hotel, que manifestou
grande surpresa ao vê-lo.
Sim, havia correspondência para monsieur Tarzan. Iria
buscá-la e... muito bem, não diria a ninguém que monsieur
Tarzan tinha chegado. Voltou pouco depois, com um maço de
cartas. Uma delas tinha uma ordem de Paris, para deixar a
missão em que trabalhava e partir para a cidade do Cabo, no
primeiro vapor. Aí receberia novas instruções, e outro agente
cujo nome e endereço constavam da carta. Nada mais... Era uma
breve mensagem, mas clara e explícita. Tarzan dispôs-se a sair
de Bou Saada na manhã seguinte. Então encaminhou-se para o
aquartelamento, a fim de falar ao capitão Gerard, segundo
dissera o dono do hotel, que voltara no dia anterior, com o
seu destacamento. Encontrou o capitão nos seus aposentos, e
Gerard mostrou grande surpresa e alegria ao vê-lo... vivo.


133


- Quando o tenente Gernois regressou e disse que não o havia
encontrado no ponto onde você decidira ficar enquanto os seus
grupos batiam o terreno, fiquei alarmado. Percorremos a
montanha, durante dias... até que nos informaram de que havia
sido atacado e devorado por um leão. Trouxeram-nos a sua
espingarda, como prova, e no dia seguinte à sua desaparição o
cavalo que montava voltou do acampamento. Não tínhamos razão
para duvidar. O tenente Gernois estava dolorosamente
impressionado... culpava-se pelo que tinha acontecido. Foi ele
quem orientou as pesquisas, e foi ele quem encontrou o árabe
que achara a sua espingarda. Vai ficar encantado por saber que
você está vivo!
- Sem dúvida... - continuou Tarzan, com um sombrio sorriso.
- Foi à povoação, senão mandá-lo-ia chamar... - continuou o
capitão Gerard. - Informá-lo-ei assim que regressar.
Tarzan deixou que o oficial continuasse a pensar que ele se
havia perdido e fora ter, por acaso, ao "douar" de
Kadour-ben-Saden, que depois o acompanhara até Bou Saada.
Assim que lhe foi possível, despediu-se do capitão e voltou à
pequena cidade. Na estalagem, soubera através de
Kadour-ben-Saden uma noticia interessante. O xeque falara-lhe
de um branco de barba escura, que andava sempre vestido como
os árabes. Durante algum tempo tinha trazido um braço ao
peito... e recentemente estivera fora de Bou Saada, mas
voltara e Tarzan soube finalmente onde ele se alojava. Foi
para aí que se encaminhou depois de sair do aquartelamento.


134


Ao longo de ruelas escuras e mal cheirosas, chegou a uma
escada tortuosa, no extremo da qual havia uma porta e uma
pequena janela sem vidros. A janela ficava pouco abaixo dos
beirais da casa de adobe, e Tarzan mal chegava ao parapeito.
Içou-se sem custo, lentamente, até poder ver o interior da
casa. Havia luz e Rokoff estava sentado a uma mesa,, em
companhia de Gernois. Era o tenente quem falava.
- Você é um demónio, Rokoff... - dizia Gernois. -
Atormentou-me até me fazer perder os últimos farrapos de
honra. Levou-me ao assassínio, porque tenho nas mãos o sangue
desse homem... desse Tarzan. Se não fosse esse outro filho do
diabo, esse Paulvitch que também conhece o meu segredo,
matá-lo-ia esta noite, com as minhas mãos...
- Não faria tal coisa, meu caro tenente... - volveu Rokoff,
rindo. - No momento em que se soubesse que eu havia sido
assassinado, esse bom Alexis Paulvitch faria chegar às mãos do
ministro da guerra todas as provas do caso que você tanto
deseja esconder... e acusá-lo-ia da minha morte, Vamos, seja
sensato. Eu sou o seu melhor amigo. Não tenho defendido a sua
honra como se fosse a minha própria honra?... - olhou para
Gernois, que praguejava entre dentes, e continuou: - Apenas
mais um pequeno pagamento... e os papéis que eu quero, e tem a
minha palavra de que não voltarei a pedir-lhe dinheiro nem
informações.
- Por uma boa razão... - grunhiu Gernois. - O que me pede é
o dinheiro que me resta... e é a única informação valiosa que
eu tenho. Devia pagar-me por esta informação, em vez de ainda
por cima exigir que eu lhe pague.


135


- Eu pago-lhe com o meu silêncio... - retorquiu Rokoff. -
Mas vamos acabar com isto. Decide-se, ou não? Dou-lhe três
minutos para resolver. Se não concordar, mandarei esta noite,
ao seu comandante, uma nota que causará a sua degradação, a
mesma que Dreyfus sofreu - com a diferença de que ele não a
merecia.
Durante momentos Gernois ficou calado, de cabeça baixa. Por
fim levantou-se e tirou dois papéis do bolso da túnica.
- Aqui estão... - disse, com uma expressão de desespero. -
Trouxe-os comigo, porque sabia que não haveria outra
solução...
Estendeu os papéis para o russo, que lhes pegou. I Na sua
cara havia um esgar diabólico.
- Fez bem, Gernois... - disse ele. - Não voltarei a
incomodá-lo... a não ser que você venha a ter mais dinheiro...
ou mais informações.
- Nunca mais o fará, cão!... - bradou Gernois.
- Da próxima vez matá-lo-ei. Pouco faltou para que o
fizesse, esta noite. Antes de vir aqui estive durant mais de
uma hora sentado, tendo na minha frent, esses dois papéis... e
o meu revólver carregado Hesitava sobre o que deveria trazer.
Faltou pouco Rokoff... Da próxima vez será mais fácil, porque
já tomei a minha decisão. Não volte a tentar a sorte...
Gernois levantou-se e Tarzan mal teve tempo para se deixar
cair e encolher-se na sombra, ao alto da escada.


136


O espaço era estreito e ser-lhe-ia difícil evitar que o
vissem, porque estava muito perto da porta. Quase
imediatamente esta abriu-se e Gernois saiu. Rokoff vinha atrás
dele. Nenhum dos dois falou. Gernois tinha descido uns três
degraus quando parou e esboçou um movimento para se voltar e
entrar de novo. Rokoff estava no limiar." Tarzan compreendeu
que ia ser descoberto,... Mas Rokoff olhava apenas contra o
oficial, e este, depois de uma breve hesitação, continuou a
descer a escada. Tarzan ouviu o suspiro de alívio de Rokoff, ,
antes de este recuar e fechar a porta.
Tarzan esperou até que Gernois se afastasse... Então abriu a
porta e entrou no compartimento. Caiu sobre Rokoff, antes que
o miserável pudesse mover-se na cadeira onde se sentara para
ler os papéis que havia recebido. Quando viu quem o atacava, o
russo ficou lívido.
- Você. - balbuciou.
- Sim, eu!
- Que quer?... - sussurrou Rokoff, apavorado. - Veio para me
matar? Não se atreverá... Guilhotiná-lo-iam... Não... não se
atreverá...
- Decerto que me atreverei, Rokoff... - retorquiu Tarzan -
.. porque ninguém sabe que estamos aqui e Paulvitch dirá que
foi Gernois quem o matou. ouvi-o dizer isso, há pouco. Mas
isso não importaria porque o prazer de o matar compensaria
grandemente qualquer castigo, Você é o mais detestável dos
cobardes, Rokoff. Deveria morrer... e eu havia de o matar...


137


Tarzan curvou-se mais sobre o miserável. Os nervos de Rokoff
cederam ao pavor. Deu um grito... tentou fugir para um
compartimento contíguo, mas Tarzan agarrou-o e apertou-Lhe o
pescoço. O cobarde começou a guinchar... até que o filho da
selva lhe cortou o fôlego. Tarzan sacudiu-o, sem deixar de lhe
apertar a garganta. O russo debatia-se inutilmente. Nas mãos
de Tarzan, era como uma criança indefesa.
O filho da selva fê-lo sentar-se numa cadeira e largou-o
antes de o estrangular por completo. Deixou-o tossir à
vontade, sufocado, e então falou de novo:
- Dei-lhe uma amostra do que virá a ser a morte... mas desta
vez não o matarei... Poupo-o por causa de uma mulher cuja
grande infelicidade é ser sua irmã. Mas poupo-o por esta vez,
apenas. Se você voltar a incomodá-la, ou ao marido, se voltar
a incomodar-me novamente... esteja você onde estiver hei-de
persegui-lo e acabar o que hoje apenas comecei...
Voltou-se para a mesa e apanhou os dois papéis, enquanto
Rokoff o olhava apavorado. Um era un cheque...: e Tarzan
pasmou ante as informações que o outro continha. Rokoff lera
este último, em parte; mas Tarzan sabia que ele não podia ter
decorado os números e os factos que o tornavam de inestimá vel
valor para qualquer potência inimiga da França.
- Isto interessará o Estado-Maior... - comentou o filho da
selva, guardando os dois papéis. Rokoff gemeu, sem se atrever
a praguejar em voz alta.


138


Na manhã seguinte, Tarzan partiu a caminho de Bouira e de
Argel. Quando passou, a cavalo, diante do hotel, o tenente
Gernois estava na varanda. Ao ver o filho da selva, o oficial
ficou lívido...
Tarzan teria preferido não ver o tenente, mas já não o podia
evitar. Esboçou um cumprimento a que Gernois correspondeu
maquinalmente... fitando-o com uma expressão de pavor... Era
como um morto que encontrasse um fantasma.
Em Sidi Aissa, Tarzan encontrou um oficial francês que
conhecera durante a sua anterior passagem pela cidade.
- Você partiu muito cedo de Bou Saada?... - Perguntou o
oficial. - Nesse caso não deve ter ouvido o que aconteceu ao
pobre Gernois...
- Foi a última pessoa a quem vi antes de partir... -
respondeu Tarzan. - Que lhe aconteceu?
- Morreu... Deu um tiro na cabeça, esta manhã, cerca das
oito horas...


Dois dias mais tarde, Tarzan chegou a Argel. Verificou que
tinha de esperar dois dias pela partida do mais próximo vapor
que o levaria à cidade do Cabo. Aproveitou o tempo para fazer
um relatório completo da sua missão, Não incluiu na carta os
papéis que arrancara a Rokoff. Não se atrevia a largá-los sem
ter recebido ordens para os entregar a outro agente, para
regressar a Paris, levando-os. Quando Tarzan embarcou ao cabo
de uma aborrecida espera, dois homens observaram-no, do convés
superior do navio. Ambos estavam vestidos elegantemente, e bem
barbeados. O mais alto dos dois tinha cabelos muito claros,
com sobrancelhas pretas.


139


Na mesma tarde ambos encontraram Tarzan no convés da
primeira classe, mas ambos pareciam examinar qualquer coisa no
mar, de maneira que o filho da selva nem lhes viu as feições.
De facto, não lhes prestou qualquer atenção.
Segundo as instruções que recebera, Tarzan reservara a sua
passagem sob um nome falso - John Caldwell, de Londres. Não
compreendia a necessidade de tal coisa, e isso dava-lhe que
pensar. Conjecturava sobre qual seria a sua missão na cidade
do Cabo.
- Bem... - pensou - ... graças a Deus estou livre de Rokoff.
Começava a irritar-me. Estarei eu civilizado ao ponto de
começar a ter nervos? Esse tipo, de resto, faria nervos a um
pedaço de rocha. Nunca luta limpamente... nunca se sabe que
espécie de patifaria está a preparar. É como se Numa, o leão,
tivesse convencido Tantor, o elefante, e Histah, a serpente, a
aliarem-se a ele para me matar. Eu nunca saberia em que
momento, ou por quem, iria ser atacado. Mas as feras são mais
leais do que os homens... nunca usam a intriga cobarde.
Nessa noite, ao jantar, Tarzan ficou sentado ao lado de uma
jovem que estava à esquerda do comandante. Este apresentou-os.
Miss Strong! Onde teria ouvido, antes, aquel nome?...
Era-lhe familiar... Mas então a mãe da jovem deu a Tarzan a
chave do enigma, ao tratar a filha por Hazel.
Hazel Strong! Quantas recordações aquele nome evocava!


140


Havia sido uma carta dirigida àquela jovem, escrita por Jane
Porter... que revelara a Tarzan a próPreha mensagem da mulher
a quem amava. Recordava nitidamente a noite em que tinha
roubado a carta... de sobre a mesa na barraca construída por
seu pai. Recordava-se de ter visto Jane a escrever enquanto
ele espreitava, na sombra... E aquela jovem era Hazel Strong,
a melhor amiga de Jane...


141


CAPÍTULO 12
xxxx


Navios que passam


Voltemos alguns meses atrás, à pequena estação, batida
pelo vento, no norte do Wisconsin. O fumo da floresta a arder
paira sobre a paisagem. Seis pessoas esperam, na estação, a
chegada do comboio que as levará para o Sul. U professor
Arquimedes Porter, as mãos unidas sob as abas do seu fraque,
passeia de um lado para o outro, sob o olhar sempre vigilante
do seu secretário, sr. Samuel T, Philander. Por duas vezes,
nos últimos minutos anteriores ele tinha distraidamente
atravessado a via e caminhado na direcção de um pântano... e
de ambas as vezes o incansável Sr. Philander fora buscá-lo,
salvando-o. Jane Porter conversa, num tom de cansaço e
desânimo, com William C. Clayton e com Tarzan. Ali mesmo,


141


minutos antes, uma confissão de amor e de renúncia destroçara
a vida de dois deles... mas não de William C. Clayton, "lord"
Greystoke.
Atrás de Jane estava a maternal Esmeralda. Essa sentia-se
feliz, pois ia regressar à sua Virgínia natal. Já se podia ver
à distância, através do fumo, o farol da locomotiva que se
aproximava. Os homens começaram a recolher a bagagem... e de
súbito Clayton exclamara:
- Céus! Deixei o meu impermeável na sala. Vou buscá-lo...
- Adeus, Jane... - Dissera Tarzan, estendendo a mão. - Deus
a abençoe e proteja.
- Adeus... - respondera ela, em voz baixa. - Tente
esquecer-me... Não, não o tente! Não suportaria que me
esquecesse...
- Isso não acontecerá, querida... - tinha ele respondido. -
Desejaria poder esquecer, no entanto. Seria muito mais fácil
do que viver com a ideia constante do que poderia ter sido.
Espero que seja feliz, Tenho a certeza de que assim será.
Peço-lhe que diga aos outros da minha decisão de seguir no
automóvel até Nova Iorque... Não me sinto com coragem para me
despedir de Clayton. Quero recordá-lo com simpatia, mas sou
ainda demasiado selvagem para poder ficar diante do homem que
se interpõe entre mim e a felicidade.
Quando Clayton se curvou para apanhar o seu impermeável, na
pequena sala de espera, viu u impresso de telegrama, caído no
chão. Agarrou-o pensando que se tratasse de alguma importante
mensagem que alguém tivesse deixado cair.


142


Leu-o de relance... e no mesmo instante esqueceu o
impermeável... o comboio que se aproximava... tudo o que não
fosse aquele rectângulo de papel amarelado que tinha na mão.
Leu-o duas vezes, antes de poder compreender completamente a
sua terrível significação. Quando se curvara para o apanhar...
era um nobre inglês, rico, dono de vastas propriedades... No
momento em que o lera, soube que era um homem sem qualquer
título de nobreza, consideravelmente menos rico. Tratava-se do
telegrama enviado a Tarzan, por D'Arnot, e que dizia:


"Impressões digitais provam você Greystoke. Parabéns.


d'Arnot"


William C, Clayton cambaleou, como se tivesse recebido um
golpe de morte. Nesse momento ouviu os outros chamar, para que
se apressasse pois o comboio já parara na pequena estação.
Aturdido, apanhou o impermeável e encaminhou-se para a
plataforma. Teve de correr, porque a locomotiva já dera o
último sinal antes da partida. Os outros estavam no comboio e
faziam-lhe sinais para que se apressasse... Decorreram quase
cinco minutos antes que se reunissem na carruagem "Pullman", e
só então Clayton viu que Tarzan não estava com eles.
- Onde está Tarzan?... - perguntou ele a Jane. Seguiu para
outra carruagem?
- Não... - respondeu ela. - No último instante decidiu


143


seguir no automóvel até Nova Iorque, Quer conhecer alguma
coisa mais, da América, do que lhe seria possível ver pela
janela de um comboio. Vai regressar a França, você sabe.
Clayton nada disse. Estava a procurar as palavras
convenientes para explicar a Jane Porter a calamidade que se
abatera sobre ele - e sobre ela. Conjecturava sobre qual seria
o efeito das suas palavras. Continuaria ela a querer ser sua
mulher... ser apenas a sr.a Clayton? De repente, a enormidade
do sacrifício que um deles devia fazer... surgiu na sua mente.
Depois veio a pergunta: "- Tarzan reclamaria o que lhe
pertencia?" O filho da selva já conhecia o conteúdo do
telegrama, antes de declarar tranquilamente que ignorava quem
fossem os seus pais. Dissera-lhe que Kala, a macaca, era a
única mãe que conhecia. Tê-lo-ia feito por amor de Jane?
Não havia outra explicação que parecesse razoável. Então, se
Tarzan decidira ignorar o conteúdo do telegrama, não parecia
possível deduzir daí que nunca reclamaria os seus direitos?
Sendo assim, que direito tinha ele, Clayton, de contrariar os
desejos do filho da selva, de anular o sacrifício voluntário
daquele estranho homem? Se Tarzan podia fazer tal coisa para
defender a felicidade de Jane - por que iria ele a cujo cargo
estava todo o futuro da jovem, arruinar os seus interesses?
Continuou a raciocinar assim... até que o primeiro e
generoso impulso de proclamar a verdade e renunciar a um
título e a uma fortuna que não lhe pertenciam de direito...
foi abafado sob o montão de sofismas sugeridos pelo seu
egoísmo. Mas, durante o resto da viagem e durante muitos dias,


144


depois, Clayton permaneceu preocupado e sombrio. Por vezes
surgia na sua mente a ideia de que, mais tarde ou mais cedo,
Tarzan se arrependeria da sua generosidade e exigiria o que
era dele.
Alguns dias depois de terem chegado a Baltimore, Clayton
abordou o assunto de um casamento próximo, falando com Jane.
- A que chama próximo... - perguntou ela.
- Dentro de dias... Tenho de voltar sem demora a
Inglaterra... e quero que me acompanhe, querida.
- Não posso estar preparada em tão curto espaço de tempo...
- volveu ela. - Preciso de um mês, pelo menos.
Jane sentia-se contente porque a viagem dele, a Inglaterra,
adiaria mais ainda o casamento. Tinha ido mal, comprometera-se
irreflectidamente, mas estava disposta a cumprir a sua
palavra, indo até ao largo fim do seu sacrifício... No entanto
queria umas tréguas a que se sentia com direito. A resposta de
Clayton desconcertou-a:
- Está bem, Jane... Sinto-me desapontado... mas a minha
viagem a Inglaterra pode esperar um mês, enttão iremos juntos.
Quando o mês passou, porém, Jane encontrou outro pretexto
para um novo adiamento, até que, cheio de dúvidas,
desencorajado, Clayton teve de partir só. As várias cartas que
trocaram... não deixaram Clayton mais perto da realização das
suas esperanças, do que estava antes. Assim, escreveu
directamente ao professor Porter a pedir-lhe a sua ajuda.


145


O velho sempre vira, com agrado aquela união. Simpatizava
com Clayton e, pertencendo a uma antiga família do Sul, dava
uma exagerada importância às vantagens de um título de nobreza
- uma vantagem que nada significava para Jane.
Clayton insistiu em que o professor e todo o seu grupo
familiar - incluindo o sr. Philander e Esmeralda - fossem seus
hóspedes em Londres. Estava convencido de que, uma vez em
Inglaterra e longe de casa, a jovem deixaria de recear o passo
que durante tanto tempo hesitara em dar.
Na noite em que recebeu a carta de Clayton, o professor
Porter anunciou que partiriam para Londres na semana seguinte.
Mas aconteceu que, em Londres, Jane não se mostrou mais
tratável do que em Baltimore. Apresentava desculpas, umas após
outras, e quando, por fim, "lord" Tennington convidara todo o
grupo a fazer uma viagem à volta de África, no seu iate, a
jovem exprimiu grande satisfação ante a ideia... mas recusou
redondamente casar antes de voltarem a Londres. Por isso que o
cruzeiro iria durar pelo menos um ano, visto que se deteriam
por tempo indefinido em todos os pontos interessantes, Clayton
amaldiçoou mentalmente Tennington, por ter sugerido tão
ridícula viagem.
O plano de "lord" Tennington era atravessar-se o
Mediterrâneo, seguirem pelo Mar Vermelho até ao Oceano Índico,
e depois viajarem ao longo da costa oriental de África,
parando em cada porto que merecesse a pena visitar.


146


Foi assim que, certo dia, dois navios se cruzaram na
passagem do estreito de Gibraltar. O mais pequeno, um belo
iate branco, seguia para Leste... no seu convés estava sentada
uma jovem que olhava tristemente para um medalhão cravejado de
diamantes, que tinha entre os dedos. Os seus pensamentos
estavam longe, na sombra da folhagem espessa de uma floresta
tropical... e o seu coração estava com os seus pensamentos.
Pensava no homem que lhe havia dado aquela magnífica jóia...
uma jóia que, para ele, significava muito mais do que o seu
valor - que nem sequer conhecia. E conjecturava sobre se esse
homem teria voltado para a sua floresta primitiva.
No convés do navio maior, um navio de passageiros, um homem
estava sentado em companhia de outra jovem, e ambos olhavam
distraidamente para o iate branco que parecia deslizar como um
cisne no mar calmo. Quando o iate passou, o homem retomou a
conversa interrompida.
- Sim... - disse ele - ... gosto muito da América, o que
significa que gosto muito dos americanos, pois um país é
apenas aquilo que os seus habitantes fazem dele... Encontrei
gente encantadora, enquanto lá estive. Recordo em especial uma
família da cidade, miss Strong, a quem estimava
particularmente - o professor Porter e a filha...
- Jane Porter!... - exclamou a jovem. - Será que conhece a
Jane Porter? É a melhor amiga que tenho. Brincámos juntas,
conhecemo-nos há alguns anos.


147


- Sim?... - volveu ele, sorrindo. - Terá dificuldade em
fazer acreditar isso... a alguém que conheça ambas.
- Oh!... - disse a jovem, rindo. - São bastantes anos... se
somar os da idade dela aos da minha... Mas a sério... Somos
como irmãs, e agora que vou perdê-la tenho um enorme desgosto.
- Vai perdê-la?... - exclamou Tarzan. - Que quer dizer com
isso? Ah, compreendo... Agora que ela está casada e a viver em
Inglaterra, ver-se-ão raras vezes...
- Sim... - volveu Hazel Strong - ... e o mais triste de tudo
é que ela não vai casar com o homem a quem ama. Oh, é
terrível! Casar para cumprir um dever! Acho perfeitamente
desastroso, e já lho disse. O caso abala-me de tal maneira
que, embora sendo a única pessoa a ser convidada, além dos
parentes, não irei ao câsâmento... porque não quero assistir a
coisa. Mas Jane Porter é persistentemente teimosa e
Convenceu-se a si mesma que faz a única coisa decente que pode
fazer, e nada no mundo a impediria de casar com Lord
Greystoke, a não ser o próprio Greystoke... ou a morte.
- Tenho pena dela... - comentou Tarzan.
- E eu tenho pena do homem a quem ela ama. - volveu a jovem
- ... porque sei que a ama também. Não o conheço, mas pelo que
Jane me contou deve ser uma criatura maravilhosa. Parece que
nasceu na selva africana e foi criado entre ferozes macacos
antropóides. Nunca tinha visto uma criatura branca, até que o
professor Porter e o seu grupo foram abandonados na costa,


148


justamente perto da barraca, que Lhe pertencia. Salvou-os, a
todos, de todas as espécies de feras, praticando as maiores
proezas imagináveis... e para cúmulo apaixonou-se por Jane e
ela por ele... embora Jane só tivesse compreendido a verdade
depois de ter prometido a Clayton que seria sua mulher.
- Muito interessante... - disse Tarzan, procurando maneira
de mudar de assunto.
Encantava-o ouvir Hazel falar de Jane Porter, mas quando se
tratava dele próprio sentia-se embaraçado. Por sorte, a mãe da
jovem aproximou-se, e a conversa tornou-se geral.
Os dias seguintes passaram sem qualquer acontecimento digno
de nota. O mar estava calmo, o céu claro, e o navio seguia com
regularidade o seu rumo para o Sul. Tarzan passava uma parte
do seu tempo em companhia de Hazel e da mãe. Sentados no
convés, liam, conversavam ou tiravam fotografias, com a
máquina de Hazel. Ao pôr do sol, passeavam.
Um dia, Tarzan encontrou a jovem a falar com um passageiro
desconhecido, que ele ainda não tinha visto a bordo. Quando se
aproximou o homem fez-lhe um cumprimento e dispôs-se a
afastar-se.
- Espere, sr. Thuran... - disse Hazel. - Quero
apresentar-Lhe o sr. Caldwell. Somos todos companheiros de
viagem e devemos conhecer-nos.
Os dois homens apertaram-se as mãos. Ao fitar os olhos do
sr. Thuran, Tarzan notou que a expressão deles era
estranhamente familiar.
-- Tenho a certeza de já ter encontrado o sr. Thuran, antes.


149


- disse Tarzan - ... embora não possa precisar em que
circunstâncias, ou quando.
O sr. Thuran pareceu pouco à vontade.
- É possível, monsieur... - disse ele. - Tem-me acontecido o
mesmo, ao ser apresentado a pessoas estranhas.
- O sr. Thuran esteve a explicar-me alguns dos mistérios da
navegação... - explicou a jovem.
Tarzan prestou pouca atenção à conversa que se seguiu. Tinha
a mente ocupada a tentar recordar-se de onde encontrara antes
o sr. Thuran. Estava seguro de que havia sido em
circunstâncias peculiares. O sol começou a incidir sobre eles
e Hazel pediu ao sr. Thuran para puxar a cadeira dela um pouco
mais para trás, onde havia sombra. Por acaso, Tarzan olhou
nessa altura para o homem e notou a estra nha maneira como ele
puxava a cadeira - parecia ter uma rigidez especial no pulso
esquerdo. Foi bastante para que Tarzan encontrasse a pista.
Uma rápida ligação de ideias fez o resto.
O sr. Thuran tinha estado a tentar encontrar pretexto para
se afastar sem parecer incorrecto. Uma pausa na conversa,
depois da mudança de posição da cadeira, forneceu-lhe esse
pretexto. Cumprimentando miss Strong e Tarzan, afastou-se.
- Um momento... - disse Tarzan. - Se miss Strong me
desculpa, vou consigo. Não me demoro miss Strong.
O sr. Thuran pareceu agitado e confuso. Logo que se
afastaram o bastante para que a jovem não pudesse vê-los,


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Tarzan parou e poisou a mão pesadamente no ombro do outro
homem.
- Qual é agora o seu jogo, Rokoff?... - Perguntou Tarzan.
- Estou a afastar-me de França, tal como prometi... -
respondeu o russo, em voz surda.
- Vejo que está... - volveu Tarzan - ... mas conheço-o bem
demais para pensar que a sua presença, a bordo deste navio,
seja uma simples coincidência. Se o tivesse podido pensar, o
facto de o encontrar disfarçado far-me-ia mudar imediatamente
de ideias.
- Hum!... - rosnou Rokoff, com um encolher de ombros.
- Não vejo o que possa fazer a tal respeIto. Este navio
navega sob a bandeira inglesa, e tenho tanto direito a estar a
bordo como você. Suponho até que tenho mais direito, visto que
você viaja sob um nome suposto.
- Não vamos discutir isso, Rokoff. Quero apenas que se
afaste de miss Strong - que é uma pessoa decente. Se não o
fizer... - continuou Tarzan, indiferente ao afluxo de sangue
que subira à face de Rokoff - ... atirá-lo-ei pela borda fora.
Não acredita, espero apenas um pretexto para o fazer.
Com estas palavras, Tarzan voltou as costas ao miserável,
deixando-o trémulo de raiva. Durante dias não voltou a ver o
russo, mas este estava ocioso, No camarote que partilhava com
Paulvitch, esbravejava e praguejava, afirmando o seu desejo de
se vingar.
- Atirá-lo-ia ao mar hoje mesmo... - dizia - ... se tivesse
a certeza de que ele não traz consigo os malditos papéis.


151


Não posso fazê-lo desaparecer no mar... levando esses
documentos. Se não fosses um sujo cobarde, Alexis, arranjarias
maneira de revistar o camarote dele!
- Você é o cérebro da sociedade, meu caro Nikolas... -
respondeu Paulvitch, sorrindo. - Por que não descobre a
maneira de revistar o camarote de monsieur Caldwell, hem?
Duas horas depois, a sorte pôs-se do lado dos dois patifes.
Paulvitch, que estava sempre à espreita, viu Tarzan sair do
camarote sem fechar a porta. Cinco minutos depois Rokoff
estava postado num ponto de onde poderia dar o alarme no caso
de Tarzan regressar... e Paulvitch revistava habilmente a
bagagem do filho da selva.
Paulvitch estava quase a desistir, quando viu um casaco que
Tarzan devia ter despido pouco antes. Um instante depois tinha
nas mãos um sobrescrito oficial. Um relance para o conteúdo do
sobrescrito fez sorrir largamente o russo.
Quando saiu do camarote, o próprio Tarzan não poderia notar
que alguém ali tivesse estado. Paulvitch era um mestre na arte
de não deixar vestígios.; Ao voltar ao camarote, entregou o
sobrescrito a Rokoff. Este viu os papéis e, tocando à
campainha para mandar vir um criado, encomendou uma garrafa de
champanhe.
- Vamos festejar isto, meu caro Alexis... - disse ele.
- Foi sorte, Nikolas... - explicou o outro. - É evidente que


152


ele traz sempre consigo esses papéis, hoje, por sorte se
esqueceu de os transferir de bolso, quando mudou de casaco.
Mas haverá um sarilho dos grandes quando descobrir a falta.
Receio bem que ele suspeite imediatamente de você, visto que
sabe da sua presença a bordo.
- Não fará a menor diferença... depois desta noite... -
volveu Rokoff, com um sorriso duro.
Depois de miss Strong se haver retirado, nessa noite, Tarzan
- ficou encostado à amurada, olhando o mar. Era um costume
quase invariável, desde que embarcara, em Argel. Por vezes
demorava-se ali uma hora, ou mais... e aqueles que vigiavam
todos os seus movimentos, haviam notado isso. O convés não
tardou a ficar deserto. Estava uma noite clara mas não havia
luar. As cadeiras, alinhadas a curta distância, eram apenas
vultos. Então, duas sombras furtivas aproximaram-se de Tarzan,
pelas costas. O marulhar das ondas, no casco do navio, o girar
da hélice e o ronronar das máquinas tornavam quase
completamente silenciosa a aproximação dos dois vultos.
Estavam agora muito perto de Tarzan, agachados. Um deles
levantou um braço e baixou-o bruscamente... e então ambos se
lançaram sobre a vítima. Cada qual agarrou uma perna, e antes
que Tarzan, mau grado a espantosa rapidez dos seus reflexos,
Pudesse segurar-se... tinha-se desequilibrado sobre a amurada
baixa e mergulhava no Atlântico.
No seu camarote, Hazel Strong olhava pela vigia. De repente
qualquer coisa passou diante dos seus olhos,


153


vinda do convés em cima. Mergulhou tão depressa na água escura
que a jovem não chegou a ver o que era. Podia ter sido um
homem... Ficou à espera de ouvir o grito sempre assustador de
"homem ao mar!"... Mas nada ouviu, nenhum brado.
Pensou que devia tratar-se de algum embrulho com lixo, que
um membro da tripúlação tivesse lançado à água - e um momento
depois deitou-se.


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CAPÍTULO 13


O naufrágio do "Lady Alice"


Na manhã seguinte, à mesa do pequeno almoço, o lugar de
Tarzan ficou vazio. Hazel estranhou, porque o sr. Caldwell
esperava sempre para poder tomar o pequeno almoço em companhia
dela e da mãe. Mais tarde, quando a jovem estava sentada na
sua cadeira do convés, o sr. Thuran parou, ao passar, para
trocar algumas palavras com ela. Parecia em excelente
disposição de espírito - as suas maneiras eram extremamente
corteses e amáveis. Quando ele se afastou, miss Strong ficou a
pensar que o sr. Thuran era, na realidade, simpático.
O dia arrastou-se, pesado. Hazel sentia a falta da calma
companhia do sr. Caldwell - havia nele qualquer coisa que
atraíra a simpatia da jovem desde o primeiro momento. Falava
agradavelmente dos lugares que conhecia, dos povos e dos seus
hábitos e usos, assim como dos animais selvagens.


154


Tinha uma engraçada maneira de estabelecer comparações justas
entre as feras e as pessoas civilizadas - que demonstrava um
profundo conhecimento das primeiras e um agudo sentido de
observação quanto às segundas.
Quando o sr. Thuran se deteve novamente junto dela para
conversar, à tarde, Hazel Strong quase agradeceu a quebra da
insuportável monotonia do dia... Mas a continuada ausência do
sr. Caldwell preocupava-a. Sem saber porquê, associava o facto
com a sua surpresa da noite anterior, ao ver cair um objecto à
água. Falou no assunto ao sr. Thuran. Tinha visto o sr.
Caldwell naquele dia? Não?
- Não apareceu à hora do almoço, como de costume... e desde
ontem não voltei a vê-lo...
O sr. Thuran mostrou-se extremamente solícito.
- Não tive o prazer de conhecer intimamente o sr.
Càldwell... - disse ele - ... mas pareceu-me um perfeito
gentleman, muito estimável... Talvez esteja indisposto e não
tenha saído do seu camarote.
seria estranho...
- Claro que não seria estranho... - volveu a jovem - ... mas
não sei porquê tenho um desses pressentimentos femininos de
que há qualquer coisa com o sr. Caldwell... É estranho...
sinto a impressão de que ele não está a bordo...
- Por Deus, minha querida miss Strong... - disse ele, com um
riso amável. - Onde poderia estar ele, então? Há vários dias
que não o avistamos.


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- Compreendo que é ridículo... - concordou Hazel Strong. -
Mas não vou ficar na incerteza por mais tempo... - chamou um
criado que passava e acrescentou, dirigindo-se a ele: -
Procure o sr. Caldwell, por favor, e diga-lhe que os seus
amigos estranham a ausência dele.
- Faz muito bem...: - concordou o sr. Thuran pensando
consigo mesmo que a tarefa de encontrar o sr. Caldwell não ia
ser fácil. E acrescentou: - Aprecia-o muito, não é verdade?
- Penso que é esplêndido... - respondeu Hazel... - e minha
mãe gosta imenso dele. É o género de homem com quem podemos
sentir-nos em completa segurança... Ninguém pode deixar de ter
confiança no sr. Caldwell.
Momentos depois o criado voltou, dizendo que o sr. Caldwell
não estava no seu camarote.
- Não consegui descobri-lo, miss Strong... soube que o seu
beliche não foi utilizado a noite passada. Creio que é
conveniente que eu vá avisar o capitão.
- Com certeza... - exclamou a jovem. - E eu acompanho-o. Sei
que aconteceu alguma coisa de terrível! Os meus
pressentimentos raras vezes me enganam.
Foi uma jovem muito assustada e um criado muito excitado -
que se apresentou ao capitão do navio, momentos depois. O
oficial ouviu-os em silêncio, com uma expressão preocupada
desde que o criado declarou ter procurado o sr. Caldwell por
toda a parte.


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- Tem a certeza, miss Strong, que viu um corpo cair à água,
a noite passada?... - perguntou.
- Disso não tenho a menor dúvida... - afirmou a jovem. - Não
posso dizer que fosse um corpo humano... não ouvi qualquer
grito. Pode ter sido o que eu pensei na altura, um volume de
lixo. Mas, se o sr. Caldwell não for encontrado a bordo, então
ficarei com a certeza de que foi ele quem eu vi cair.
O capitão ordenou buscas imediatas e completas em. todo o
navio, da popa à proa. Nenhum recanto deveria ser passado por
alto. Miss Strong ficou no seu camarote, esperando o resultado
das pesquisas... O capitão fez-lhe muitas perguntas, mas ela
nada mais sabia, sobre o desaparecido, do que o pouco que
soubera durante os breves dias a bordo. Pela primeira vez,
compreendeu que realmente ele quase nada lhe dissera sobre si
mesmo ou sobre a sua vida anterior.
Sabia apenas que o sr. Caldwell nascera em África e fora
educado em Paris... e isso mesmo porque ela tinha estranhado
que um inglês falasse a sua língua com uma tão nítida
pronúncia francesa.
- Ele falou-lhe alguma vez de inimigos que tivesse? -
perguntou o capitão.
- Nunca.
- Sabe se ele conhecia algum outro passageiro?
- Só quando estava comigo... e nas circunstâncias habituais
de conhecimento com companheiros de viagem.
- Na sua opinião, miss Strong... ele bebia em excesso?


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- Creio que nem sequer bebia, e sem dúvida que não tinha
estado a beber até meia hora antes do momento em que eu vi...
qualquer coisa cair ao mar.
Estive com ele no convés, até essa altura.
- É muito estranho... - comentou o capitão. - Nunca me deu a
impressão de um homem que desmaiasse facilmente, ou que
tivesse qualquer doença nervosa. E assim mesmo seria difícil
acreditar que caísse ao mar, por cima da amurada, em
consequência de um desmaio ou coisa no género... Teria decerto
caído para dentro... no convés. Se não estiver a bordo é
porque foi atirado ao mar... e o facto de não ter havido
qualquer grito parece indicar que já estava morto antes de ser
atirado... Assassinado, portanto!
A jovem estremeceu.
Uma hora depois, o imediato voltou para informar do
resultado das buscas.
- O sr. Caldwell não está a bordo, sir... - disse ele.
- Receio bem que se trate de alguma coisa mais grave do que
um acidente, sr. Brently... - volveu o capitão. - Quero que
examine pessoalmente e com extremo cuidado a bagagem do sr.
Caldwell, para
averiguar se há algum indício que aponte um motivo para
suicídio ou crime. Veja tudo até ao fim.
- Sim, sir... - disse o sr. Brently, saindo de novo.
Hazel Strong sentia-se aniquilada. Durante dois dias não
saiu do seu camarote, e quando, finalmente, reapareceu no
convés, estava muito pálida, com profundas olheiras e um ar


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de grande abatimento. Acordada ou a dormir, parecia-lhe ver a
cada instante o vulto que caía, escuro e rápido, no mar. Pouco
depois da sua primeira reaparição no convés, a seguir à
tragédia, o sr. Thuran aproximou-se dela, com muitas
demonstrações de bondosa solicitude.
- É de facto terrível, miss Strong... - disse -, Não consigo
deixar de pensar nisso.
- Nem eu... - respondeu a jovem. - Sinto que teria podido
salvar-se, se eu desse o alarme.
- Não deve censurar-se, querida miss Strong... - protestou o
sr. Thuran. - Não teve a menor culpa, qualquer outra pessoa
teria feito o mesmo. Quem iria pensar que... qualquer coisa
que caísse ao mar era necessariamente um homem? Nem sequer os
acontecimentos teriam tomado rumo diferente, se tivesse dado o
alarme. Durante algum tempo, pelo menos, poriam em dúvida a
sua história, supondo-a com alucinação nervosa... e se
insistisse seria demasiado tarde para lhe valer. Quando o
navio parasse, fossem descidos os escaleres, e os homens
remassem ao longo de várias milhas, em busca do ponto ignorado
onde ocorrera a tragédia... já tudo estaria consumado. Não,
não deve censurar-se. Fez mais do que qualquer outra pessoa
teria feito, pelo pobre Caldwell... visto que foi a única a
notar a falta dele. Foi por sua causa que fizeram as buscas...
Hazel Strong não podia deixar de se sentir grata


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por aquelas palavras bondosas e encorajadoras. O sr. Thuran
fez-lhe companhia frequentes vezes - quase constantemente,
durante o resto da viagem - e Hazel começou a sentir grande
estima por ele. O sr. Thuran soubera que miss Strong, de
Baltimore, era uma rica herdeira americana, dispondo já de uma
grande fortuna pessoal e com perspectivas que cortavam o
fôlego ao sr. Thuran, sempre que pensava nisso. Como pensava
nisso a cada instante, era caso para pasmar de como conseguia
respirar alguma vez; A intenção do sr. Thuran tinha sido
deixar o navio no primeiro porto onde este parasse, depois do
desaparecimento de Tarzan. Já tinha no bolso aquilo que
procurara... e que o levara a embarcar a fim de poder obter.
Nada mais o prendia ali, e tinha pressa de chegar ao
continente europeu para tomar o primeiro comboio expresso para
São Petersburgo.
Mas agora outra ideia surgira, que estava a empurrar para
segundo plano as suas primeiras intenções. Aquela fortuna
americana não podia ser menosprezada... e a sua possuidora
atraía-o quase tanto como a fortuna. A jovem faria sensação em
São Petersburgo... e ele, uma vez na posse da herança, não
causaria menor sensação. Depois de farejar alguns milhões de
dólares, o sr. Thuran achou que a coisa era tanto a seu
gosto... que decidiu invocar compromissos imperiosos para o
demorarem durante algum tempo.
Miss Strong tinha-lhe dito que ela e a mãe iam visitar um
irmão desta, na cidade do Cabo - e ainda não tinham resolvido


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nada quanto à duração da estadia, possivelmente de alguns
meses. Ficou encantada quando o sr. Thuran a informou de que
se demoraria também na cidade.
- Espero que possamos ampliar o nosso conhecimento... -
disse ela. - Deve visitar-nos, assim que estivermos
instaladas.
A perspectiva encantou o sr. Thuran, que não perdeu tempo em
dizer isso mesmo. Mas a sr.a Strong não estava tão
favoravelmente impressionada quanto a filha, a respeito dele.
- Não sei porquê, mas não confio nele... - declarou a boa
senhora, a Hazel, certo dia em que falavam a respeito do sr.
Thuran. - Parece um gentleman, sob todos os aspectos, mas por
vezes há qualquer coisa nos olhos dele... uma expressão
fugidia que não posso descrever... mas que me dá uma sensação
estranha...
- Que tolice, querida mamã... - riu a jovem.
- Talvez, mas tenho pena de não termos a companhia do pobre
sr. Caldwell, em vez da dele.
- Também eu... - respondeu Hazel.
O sr. Thuran tornou-se um assíduo visitante da casa do tio
de Hazel Strong, na cidade do Cabo. As suas atenções eram
notadas, mas aplicava-se tão escrupulosamente a satisfazer os
menores desejos de Hazel, que a jovem se habituou cada vez
mais a depender dele. Se ela, ou a mãe, ou uma prima,
preciSavam de companhia - ou se havia algum pequeno serviço de
amigo a prestar-lhes, o diligente e atento sr. Thuran estava

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sempre disponível. O tio de Hazel, e a sua família,
simpatizavam com ele pela sua permanente cortesia e boa
disposição. O sr. Thuran estava a tornar-se indispensável. Por
fim, supondo o momento propício, o sr. Thuran falou a Hazel em
casamento. A jovem, sobressaltada e surpreendida, não soube de
momento o que devia responder.
- Nunca pensei que se interessasse por mim dessa maneira...
- disse, por fim. - Sempre o considerei como um excelente
amigo... e não vou dar-lhe uma resposta imediata. Esqueça que
me pediu para ser sua mulher... e continuemos como até aqui...
Poderei considerá-lo sob um ângulo diferente, durante algum
tempo. Pode ser que eu descubra haver alguma coisa mais do que
amizade, nos meus sentimentos por si. Na verdade, nunca
pensei, nem por um instante, que poderia amá-lo.
O acordo era perfeitamente satisfatório para o sr. Thuran.
Arrependia-se profundamente de se ter mostrado apressado...
mas amava-a tão devotada mente, e há tanto tempo... que tinha
pensado serem bem claros os seus sentimentos.
- Amei-a desde o primeiro momento em que a vi, Hazel... -
declarou ele. - Estou disposto a esperar, porque tenho a
certeza de que um amor tão grande e puro, como o meu, deve ser
recompensado. Tudo o que desejo saber é se não ama outro. Quer
dizer-mo?
- Nunca amei, em toda a minha vida... - respondeu Hazel.
O sr. Thuran ficou satisfeito. A caminho de casa, à noite,


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pensou que tinha comprado um iate a vapor, e que mandara
construir, nas margens do Mar negro, um palacete de um milhão
de dólares.
No dia seguinte, Hazel Strong teve uma das mais agradáveis
surpresas da sua vida. Ao sair de uma joalharia... quase
chocou com Jane Porter...
- Jane!... - exclamou ela. - De onde caíste? posso
acreditar no que vejo!
-Esta agora!... - exclamou a igualmente pasmada Jane Porter.
- E tenho eu gasto a minha imaginação a supor-te em
Baltimore...
Voltaram a cair nos braços uma da outra, e beijaram-se
dúzias de vezes. Quando trocaram mútuas explicações, Hazel
ficou a saber que o iate de Lord Tennington ancorara na Cidade
do Cabo, para uma demora de pelo menos uma semana. Ao fim
desse tempo continuariam a viagem, subindo a costa ocidental
de África e a caminho de Inglaterra.
- E aí... - concluiu Jane - ... casarei...
- Mas... não estás ainda casada?... - exclamou Hazel.
- Ainda não... - respondeu Jane. - E acrescentou, um tanto
estranhamente: - Só queria que a Inglaterra estivesse a
milhões de milhas de distância.
Trocaram-se visitas, entre o iate e os parentes de Hazel.
Combinaram-se jantares e passeios pelos arredores da cidade. O
sr. Thuran era um hóspede acolhido em todas as reuniões. Ele
próprio ofereceu um jantar aos homens do grupo, e conseguiu
achar-se nas boas graças de Lord Tennington,


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por meio de muitos pequenos gestos de hospitalidade.
O sr. Thuran tinha ouvido uma sugestão de qual quer coisa
que poderia talvez resultar da inesperada visita do iate de
Lord Tennington, qualquer coisa na qual ele queria ser
incluído. Certa vez, quando estava a sós com o inglês,
aproveitou a ocasião para dar a entender bastante claramente
que o seu noivado com miss Strong iria ser anunciado
publicamente logo após o regresso à América.
- Mas nem uma palavra a tal respeito, meu caro Tennington, É
ainda segredo.
- Claro, compreendo perfeitamente, meu velho... - volveu
Tennington. - Mas dou-lhe os meus parabéns. Uma linda
rapariga, realmente.


E aconteceu no dia seguinte. A sr.a Strong, Hazel e o sr.
Thuran eram hóspedes de Lord Tennington, no iate. A sr.a
Strong falou do prazer que sentira na sua visita a Cape Town,
e aludiu a uma carta, que recebera dos seus advogados em
Baltimore e que tornava necessário encurtar a viagem, muito
mais do que supusera.
- Quando embarca?... - perguntou Tennington.
- No princípio da semana, julgo... - respondeu a sr.a
Strong.
- Sim?... - exclamou o sr. Thuran. - Pois tenho imensa
sorte... Eu próprio recebi notícias que me obrigam a partir,
e assim poderei ter a honra de acompanhá-las e servi-las.
- É muita amabilidade sua, sr. Thuran... - volveu a sr.a
Strong. - Teremos muita alegria em estarmos sob a sua


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protecção... - acrescentou, embora tivesse desejado, sem saber
porquê, ver-se livre dele.
- Por Deus!... - exclamou Lord Tennington, um momento
depois. - Grande ideia, realmente!
- Claro, Tennington... - interveio Clayton. Deve ser uma
grande ideia, visto que você a teve... mas qual é? Quer viajar
até à China, através do pólo Sul?
- Ora pois, Clayton... - redarguiu Tennington. - Não deve
mostrar-se tão agressivo com um amigo, porque não foi sua a
ideia desta viagem. Desde que partimos tem andado mal
disposto... Nada disso! Na verdade trata-se de uma grande
ideia, e todos concordarão. Levaremos a sr.a Strong e miss
Strong - e também o sr. Thuran - se ele quiser - até
Inglaterra, no iate. Que dizem a isto?
- Desculpe-me, Tennington, meu velho... - Ponderou Clayton.
- É sem dúvida uma bela ideia. Nunca o supus capaz de tal...
Tem a certeza de que é mesmo ideia sua?
- Partiremos no primeiro dia da semana, ou em qualquer
altura que Lhe seja mais conveniente, sr.a Strong... -
concluiu o generoso Tennington, como se aquilo estivesse já
combinado com excepção do dia.
- Calma, Lord Tennington... - disse a sr.a Strong, sorrindo.
- Nem sequer nos deu a oportunidade de lhe agradecer, e menos
ainda a de decidir se poderemos aceitar o seu generoso
convite.
- Oh, claro que podem... - volveu Tennington.


165


- Iremos tão depressa como qualquer navio de passageiros, e
pelo menos com igual conforto. De qualquer maneira todos
desejamos que nos acompanhem...
e não aceitaremos um "não" como resposta.
E assim ficou combinado que partiriam na segunda-feira
seguinte.


Dias depois, as duas jovens estavam sentadas no camarote de
Hazel, examinando as fotografias que esta fizera revelar em
Cape Town. Eram todas as fotografias que Hazel fizera desde a
partida da América, e ambas as observavam com curiosidade.
Jane fazia muitas perguntas, e Hazel respondia com torrentes
de comentários e explicações sobre várias cenas e pessoas.
- E aqui... - disse ela, de repente - ... está um homem a
quem conheces. Pobre companheiro de viagem! Pensei muitas
vezes em te falar dele, mas esqueci-me sempre... - tinha a
fotografia na mão, de maneira que Jane não podia vê-la bem.
Continuou: - Chamava-se John Caldwell. Lembras-te dele? É um
inglês, e dizia ter-te conhecido na América.
- Não recordo o nome... - volveu Jane. - Deixa-me ver a
foto...
- O pobre sr. Caldwell caiu ao mar, durante a viagem ao
longo da costa... - disse Hazel, entregando a fotografia a
Jane.
- Caíu ao mar... Oh, Hazel! Não me digas que ele morreu...
que se perdeu no mar! Por Deus! Diz-me que é um gracejo,
que...
E, antes que Hazel pudesse ampará-la, Jane Porter caíu no
chão, desmaiada.


166


Depois de Hazel haver conseguido que ela recuperasse os
sentidos, ficaram ambas em silêncio, durante longos momentos.
Por fim Hazel falou, num tom confidencial:
- Eu não sabia, Jane... que conhecias o sr. Caldwell tão
intimamente que a morte dele fosse um tão grande choque para
ti...
- John Caldwell?... - perguntou Jane, em voz baixa. - Queres
dizer-me... que não sabes quem ele é, Hazel?
- Mas com certeza que sei... - volveu Hazel. - Chamava-se
John Caldwell, e era de Londres.
- Oh, Hazel... Gostaria de poder acreditar isso... - gemeu
Jane. - Gostaria de poder acreditar... mas as feições dele
estão gravadas a fogo na minha memória e no meu coração...
Reconhecê-lo-ia em qualquer parte, entre milhões de outros que
pudessem ser iguais para toda a gente, menos para mim.
- Que queres dizer, Jane?... - exclamou Hazel, agora
alarmada. - Quem pensas tu que era?
- Não penso, Hazel... Sei que esta é a fotografia de Tarzan.
- Jane!
- Não me engano, Hazel... Tens... a certeza de quele...
morreu?
- Receio bem que sim... - disse Hazel, tristemente -
Gostaria de poder pensar que estás enganada, mas agora
ocorrem-me provas que nada significavam para mim quando o
supunha o sr. John Caldwell, de Londres. Todas as suas coisas
tinham sido alugadas, ou compradas, em Paris. Tudo o que tinha


167


uma inicial, estava marcado só com um "T"... ou com "J. C.
T.". Pensámos que ele viajava incógnito...
com os seus primeiros nomes... "J. C." podia ser John
Caldwell...
- Tarzan adoptou o nome de Jean C. Tarzan... - disse Jane,
na mesma voz apagada e sem vida.
- E está morto... Oh, Hazel... é horrível! Morreu sozinho,
no mar... É inacreditável que o seu valente coração tivesse
deixado de bater... que os poderosos músculos estejam frios e
imóveis para sempre... Ele era a personificação da vida, da
saúde, da força viril... e veio a ser a presa de coisas
viscosas... rastejantes... - não pôde continuar. Escondendo a
cabeça entre os braços, deixou-se cair no chão, a soluçar
desesperadamente.


Durante dias Jane Porter esteve doente, sem querer ver
ninguém além de Hazel e da fiel Esmeralda.
Quando, por fim, voltou ao convés do iate, todos ficaram
espantados ante a mudança que se operara nela, Já não era a
jovem e bela americana de espírito vivo e alerta, que
encantava todos quantos a conheciam. Agora era apenas uma
rapariga calada e triste, com uma expressão de desespero que
ninguém, exceptuando Hazel, podia compreender.
Com a doença de Jane, a má sorte pareceu cair sobre o iate.
Primeiro foi um motor que se avariou e andaram à deriva
durante dois dias enquanto pro cediam a uma reparação
provisória. Depois uma tempestade apanhou-os de surpresa,
levando pela borda fora quase tudo o que se encontrava acima
do convés e que não estava solidamente amarrado.


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Outro die, dois dos marinheiros travaram-se de razões...
tendo resultado que um deles ficou gravemente ferido à facada,
e o outro teve de ser posto a ferros. Então, para cúmulo, o
primeiro mestre de equipagem caíu ao mar, durante a noite, e
afogou-se antes de poderem socorrê-lo. O iate manteve-se em
pesquisas durante uma dezena de horas, mas o pobre homem nunca
mais voltou a ser visto. Tanto os hóspedes de Tennington como
os tripulantes andavam sombrios e deprimidos com uma tal série
de desventuras. Todos receavam que surgisse uma coisa ainda
pior... em especial os marinheiros que se punham a recordar
acontecimentos ocorridos durante a primeira parte da viagem,
nos quais viam agora os avisos e presságios de uma tragédia.
Não tiveram muito que esperar. Na segunda noite depois da
morte do mestre de equipagem, o pequeno iate foi bruscamente
sacudido de um extremo ao outro. Cerca da uma hora da
madrugada, houve um tremendo choque que fez cair dos seus
beliches todos os que iam deitados, a bordo. Um estremecimento
correu a frágil embarcação, que se inclinou para estibordo. Os
motores pararam. Por momentos o iate esteve inclinado num
ângulo de quase quarenta e cinco graus... até que, com um
ruído de coisas que se estilhaçavam, se endireitou. Os homens
correram para o convés, seguidos, pouco depois, pelas
mulheres. Embora a noite estivesse enevoada, havia pouco vento
e pouca ondulação. e a escuridão não era tão completa que não
pudessem ver à proa, flutuando baixo, uma coisa, negra e
grande.


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- Um destroço à deriva... - foi a lacónica explicação do
oficial de quarto.
Pouco depois o maquinista apareceu no convés, em busca do
capitão.
- O remendo que pusemos na cabeça do cilindro... explodiu,
sir... - disse o homem - ... e o barco está a meter água, à
proa.
Um marinheiro chegou logo a seguir, gritando:
- Deus! Há um grande rombo à proa, o iate não se aguenta nem
vinte minutos!
- Cale-se!... - bradou Tennington. - Minhas senhoras, vão
abaixo e peço-lhes que reúnam as vossas coisas. Talvez não
seja tão mau como parece, mas é possível que tenhamos de
utilizar os escaleres...; e convém estarmos preparados. Não se
demorem, por favor. Capitão Jerrold, mande lá abaixo um homem
competente, para verificar a exacta extensão dos danos
sofridos. Entretanto, sugiro-lhe que mande aprovisionar os
escaleres.
A voz calma do dono do barco contribuiu muito para
tranquilizar todos, e um momento depois toda a gente fazia o
que ele sugerira. Quando as senhoras voltaram ao convés, o
rápido aprovisionamento dos escaleres estava concluído, e
quase em seguida voltou o oficial que fora verificar os
estragos. a sua opinião quase não era necessária para que
todos compreendessem que se aproximava o fim do "Lady Alice".


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- Então?... - disse o capitão, ao ver que o oficIal
hesitava.
- Lamento assustar estas senhoras, sir... - respondeu o
interrogado - ... mas o iate afundar-se-á em menos de um
quarto de hora, na minha opinião. O rombo, à proa, é
considerável.
Nos últimos cinco minutos o "Lady Alice" começara a
mergulhar de proa. Já a popa se erguia no ar, e tornava-se
muito difícil a permanência no convés em consequência da
inclinação. O iate dispunha de quatro escaleres, que foram
ocupados e descidos em segurança. Quando começaram a
afastar-se, Jane Porter voltou-se para olhar pela última vez o
belo barco. Ouviram um estrondo no interior do casco, depois
um ruído trovejante de repetidas pancadas... as máquinas
tinham-se soltado e deslizavam para a proa, destruindo tudo à
sua passagem... A popa ergueu-se bruscamente, quase na
vertical... e o iate mergulhou para sempre no mar. Num dos
escaleres, o corajoso Tennington enxugou uma lágrima. Para
ele, o seu barco não era apenas uma fortuna que desaparecia no
abismo - era um amigo... um belo amigo que ele amava. Por fim
a noite escoou-se, e um sol tropical iluminou a vastidão da
água. Jane Porter havia sucumbIdo a uma sonolência inquieta. O
sol batendo-lhe na face, acordou-a. Olhou em volta. No
escaler, com ela estavam três marinheiros, Clayton e o sr.
Thuran. Olhou para mais longe, procurando os outros
escaleres... mas até onde a vista alcançava,


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nada quebrava a monotonia da vastidão do mar... Estavam sós,
num pequeno escaler, em pleno Atlântico...


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CAPÍTULO 14


Regresso aos primitivos


Quando Tarzan caíu na água, o seu primeiro impulso foi
nadar para fora a fim de escapar à acção da grande hélice do
navio. Sabia a quem atribuir as culpas da situação em que se
encontrava, e enquanto se deixava flutuar, utilizando apenas
leves movimentos das mãos, a sua mais nítida emoção era de
pena por se haver deixado surpreender tão facilmente por
Rokoff.
Ficou assim durante algum tempo, observando as luzes do
navio que rapidamente deminuiam na distância. Nem uma só vez
lhe ocorrera a ideia de pedir socorro. Nunca pedira socorro,
em toda a sua vida, e não era estranho que o não fizesse
agora. Sempre dependera da sua própria força, da sua própria
inteligência... e desde os tempos recuados que Kala o criara,
ninguém mais correra em socorro dele. Quando se lembrou disso,
já era tarde de mais. Pensou que havia talvez uma
probabilidade em mil, de ser socorrido - e uma em muitos
milhões de poder alcançar terra. Assim, decidiu que, para
combinar essas ténues hipóteses de possibilidades,

172


nadou vagarosamente na direcção da costa - talvez o navio não
fizesse rumo tanto ao largo como ele supusera. Os seus
movimentos eram longos e fáceis - teriam de decorrer muitas
horas antes que os seus poderosos músculos sentissem cansaço.
Enquanto nadava, fazendo caminho para Leste, guiado pelas
estrelas, notou o peso dos sapatos... e descalçou-os. Largou
as calças pouco depois, e teria abandonado ao mesmo tempo o
casaco se não pensasse nos preciosos papéis que levava
consigo. Para se assegurar de que ainda os tinha, meteu a mão
no bolso... e viu que os perdera. Agora sabia que alguma coisa
mais do que vingança impelira Rokoff a lançá-lo ao mar - o
russo havia conseguido apoderar-se novamente dos papéis que
ele Lhe tirara em Bou Saada. Praguejando entre dentes, largou
o casaco e a camisa... que mergulharam no mar. Não tardou que
se despojasse das últimas peças de vestuário, e continuasse a
nadar, agora com os movimentos complementares livres, na
direcção de Leste. A primeira e ténue claridade da madrugada
começava a empalidecer as estrelas, quando a sombra vaga de
qualquer coisa que flutuava ao lume de água lhe chamou a
atenção. Em algumas braçadas aproximou-se - era um destroço à
deriva, que as ondas quase varriam. Tarzan içou-se.
Descansaria ali até haver de dia, pelo menos. Não tinha
qualquer intenção de ficar inactivo, presa da fome e da sede.
Se tinha de morrer, preferia morrer em plena acção, fazendo
nem que fosse o esboço de uma tentativa para se salvar.


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O mar estava calmo, de maneira que o destroço apenas
baloiçava, num movimento vagaroso que embalava Tarzan... o
qual não dormia, havia mais de vinte horas. Curvou-se sobre si
mesmo e não tardou a adormecer.
O calor do sol acordou-o, ao começo do dia. A primeira
sensação consciente, que teve, foi a sede... mais aguda a cada
momento. Mas essa sensação foi esquecida no momento seguinte,
na alegria de duas descobertas quase simultâneas. A primeira
foi um montão de destroços que flutuavam perto, no meio dos
quais, de quilha para o ar, oscilava um bote. A outra foi uma
vaga linha escura, nos limites do horizonte distante, que
anunciava terra.
Tarzan mergulhou e nadou na direcção do bote. O frio da água
refrescou-o e revigorou-o quase tanto como se tivesse podido
beber. Suspendeu-se de um dos lados do bote e, à custa de
sobre-humanos esforços conseguiu endireitá-lo. Examinou-o. O
bote estava em perfeitas condições, e um instante depois,
despejada a água que lhe cobria o fundo, flutuava limpamente.
Então Tarzan recolheu várias tábuas, entre destroços, para lhe
servirem de remos, e sem perder mais tempo começou a dirigir o
bote para terra.
Foi ao fim da tarde que conseguiu aproximar-se o bastante
para distinguir objectos em terra e os vários contornos da
margem. Diante dele estava o que parecia ser a entrada para um
porto pequeno e natural, protegido por um promontório.


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A ponta norte, arborizada, do promontório, parecia-lhe
estranhamente familiar. Seria possível que o destino o içasse
no exacto limiar da sua amada selva? Virando a proa do barco
chegou ao fim da passagem que conduzia ao porto, os últimos
restos de dúvida desapareceram. Diante dele, na parte mais
afastada, entre as sombras da sua floresta primitiva, estava a
própria barraca - construída, antes de ele nascer pelas mãos
de seu pai morto havia muitos anos... John Clayton, Lord
Greystoke. Num esforço poderoso dos seus músculos, Tarzan
quase fez voar o bote sobre a água, remando na direcção da
praia. Mal a quilha tinha tocado na areia e já o filho da
selva saltava - o coração em sobressalto - olhando maravilhado
para tudo o que lhe era familiar... a barraca, a praia, o
ribeiro, a selva espessa, a floresta escura e impenetrável...
os milhares de pássaros de penas brilhantes... as flores
tropicais pendiam, em cachos, das árvores enormes. Tarzan dos
Macacos estava novamente em casa, para que todos o soubessem,
inclinou a cabeça para a selva e lançou o grande brado de
desafio da sua tribo. Por momentos houve silêncio... mas
depois, baixo e rouco, fez-se ouvir a distância o rugido de
Numa, o leão... e de mais longe chegou aos ouvidos de Tarzan o
brado de um dos grandes gorilas da floresta.
Tarzan encaminhou-se em primeiro lugar para o ribeiro, onde
saciou a sede. Então dirigiu-se para a barraca. A porta estava
ainda fechada, com o fecho colocado como ele e d'Arnot o
haviam deixado. Levantou o fecho e entrou. Nada havia sido
tocado...


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Ali estavam a mesa, a cadeira e o pequeno berço que seu pai
construíra - as prateleiras e armários tal como estavam havia
vinte e três anos... tal como ele os deixara cerca de dois
anos antes. Satisfeitos os olhos, o estômago de Tarzan começou
a exigir atenção... a fome sugerindo a busca da comida. Nada
havia na barraca e Tarzan não tinhe armas, mas de uma parede
pendia ainda uma das suas cordas feitas de ervas entrançadas.
A corda fora muitas vezes partida e reparada, e ele
substituira-a por outra havia muito tempo. Tarzan pensou que
seria bom ter uma faca... mas, ou se enganava muito ou antes
do fim de um novo dia, disporia de faca,e lança, e de arcos e
flechas. A corda serviria para obter isso, mas entretanto ia
servir para conseguir comida. Enrolou-a cuidadosamente e,
depois de a colocar ao ombro, saíu, fechando de novo a porta.
A selva principiava a curta distância da barraca... e Tarzan
internou-se nela, silencioso e atento - de novo a fera em
busca de comida. Durante algum tempo caminhou pelo terreno,
mas vendo que não encontrava qualquer pista que significasse
caça, saltou para as árvores. Com o primeiro impulso, entre um
ramo e outro ramo, sentiu-se envolvido pela antiga alegria de
viver. Esqueceu vãos pesares e desgostos. Agora vivia... agora
era sua a alegria da completa liberdade. Não voltaria mais
para as cidades de estreitas e abafadas ruas, onde viviam os
homens civilizados, quando tinha ao seu alcance a paz e a
imensidão da floresta.


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Ainda havia luz quando Tarzan chegou a um sítio onde os
animais costumavam ir beber, na margem de um ribeiro da selva.
Havia sinais de patas de muitas espécies, numa extensão de
terreno onde a erva estava pisada. Um vau permitia a travessia
do ribeiro naquele ponto, e desde sempre os animais da selva
tinham vindo beber ali. Todas as noites, Numa ou Sabor
espreitavam de entre a folhagem densa, à espera de antílopes
ou de outros habitantes da selva que sempre apareciam. Horta,
o javali, surgiu pouco depois de Tarzan ter chegado. Tarzan
instalara-se sobre uma ramada baixa e forte, à beira da
trilha. Escurecia. Um pouco à direita do vau, na espessura da
selva, fez-se ouvir um som furtivo de patas, e o roçar de um
corpo grande por entre as ervas altas e as lianas. Só Tarzan
poderia ouvir esses ténues ruídos - mas ele ouvira e
compreendera... Era Numa, o leão, que também tinha sede.
Tarzan sorriu. Horta atravessou a trilha... A carne do javali
era saborosa, e Tarzan sentia o estômago vazio. As ervas altas
onde Numa se escondia estavam agora quietas, ameaçadoramente
quietas. Mais uns passos, o javali ficaria ao alcance do salto
do leão. Tarzan podia imaginar os olhos reluzentes da fera,
fitos na presa... via-o a preparar-se para soltar o poderoso
rugido que imobilizaria a vítima durante o breve instante
entre o início do salto e o cravar das garras, quando Numa se
encolhia para saltar, uma delgada corda silvou, vinda da
árvore e apanhando o javali pelo pescoço... Houve um grunhido
de medo,


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e um grito... Numa viu a sua presa ser puxada para trás... e
quando saltou... o javali desapareceu entre a folhagem da
árvore... ao mesmo tempo que um vulto se debruçava, com um
largo riso.
Então Numa rugiu. Furioso, esfomeado, ameaçador, pôs-se a
caminhar apressadamente de um lado para o outro, sob a árvore.
De repente parou e, erguido nas patas traseiras, cravou as
garras no tronco, arrancando grandes pedaços da casca.
Entretanto Tarzan içara Horta para um ramo, perto dele.
Dedos que pareciam de ferro completaram... o trabalho que a
corda começara. Tarzan não tinha faca, mas a natureza dotara-o
dos meios de rasgar aquela carne ainda palpitante... onde
dentes brancos e fortes se cravaram, rasgando. De baixo, o
leão olhava com raiva o homem que se banqueteava com o que ele
tinha julgado ser o seu jantar.
Anoitecera completamente, quando Tarzan terminou a sua
primitiva refeição. Deliciosa! Nunca se habituara por completo
à carne cozinhada que a civilização lhe havia oferecido, e no
fundo do seu coração de selvagem ficara sempre a recordação da
carne crua, ainda quente, rica em sangue e sabor.
Limpou as mãos a um punhado de folhas, suspendeu do ombro a
carcaça do javali e saltou de árvore em árvore, a meia altura,
atravessando a floresta na direcção da sua barraca... Nesse
mesmo instante, Jane Porter e William Clayton levantavam-se da
mesa, depois de um sumptuoso jantar a bordo do "Lady Alice",
que, a muitas milhas de distância para Leste, cruzava o Oceano
Índico.


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Sob Tarzan, no terreno em baixo, caminhava numa, o leão.
Quando o filho da selva olhava ocasionalmente para ele,
via-lhe por vezes os olhos ferozes fosforescentes, que o
espreitavam na escuridão. Numa não rugia... movia-se em
silêncio, na sombra, com a agilidade de um grande gato.
Todavia os seus passos eram sempre ouvidos por Tarzan.
Tarzan conjecturava sobre se o leão o acompanharia até à
barraca na praia... Esperava que não, porque isso significaria
ter de dormir no alto de uma ramada sólida, e ele preferia de
longe a sua cama, i o seu tecto. No entanto, sabia qual a
árvore que escolheria se assim tivesse de ser, qual a
bifurcação de troncos onde poderia dormir em segurança.
Centenas de vezes, num passado não muito distante, grandes
feras da selva o tinham seguido, obrigando-o a procurar o
abrigo dessa árvore até que uma mudança de disposição, ou a
luz do dia, os afugentassem.
Numa acabou por desistir da perseguição. Com urRos e
rugindo, sumiu-se na espessura, em busca de jantar mais fácil.
Assim Tarzan chegou, sem companhia à sua barraca... e pouco
depois estendia-se sobre o que restava de uma cama feita de
ervas, agora meio comidas pelo bolor. Foi desta maneira, com
esta facilidade, que o sr. Jean C. Tarzan despiu a pele frágil
da sua civilização artificial... Mergulhou no sono profundo
das feras saciadas. No entanto, o "sim" de uma mulher poderia
tê-lo prendido para sempre a essa outra vida, tornando
relativa a simples ideia de uma existência selvagem.


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Tarzan dormiu até tarde, na manhã seguinte. Estava cansado
em consequência dos tremendos esforços feitos ao longo de uma
noite e um dia, em pleno Oceano, e da regresso à selva que o
obrigara a pôr em acção músculos quase adormecidos durante
perto de dois anos. Quando acordou, correu para o ribeiro,
para beber. Depois mergulhou no mar e nadou, cerca de um
quarto de hora. Então voltou à barraca e voltou a comer da
carne do javali. Quando acabou, enterrou o resto da carcaça
sob a terra macia, junto da barraca, para a refeição da tarde.
Mais uma vez pegou na sua corda e se internou na selva.
Agora ia em busca de caça mais alta, o homem - embora, se lhe
tivessem perguntado a sua opinião, ele não hesitasse em nomear
uma dúzia de outros habitantes da selva a quem atribuía muito
maior nobreza do que aos homens a quem ia caçar. Tarzan ia
agora em busca de armas. Ignorava se as mulheres e as crianças
teriam permanecido na aldeia de Mbonga, depois da expedição
punitiva feita pelos franceses que haviam dizimado todos os
guerreiros como vingança pela suposta morte de d'Arnot.
Esperava encontrar ali alguns guerreiros... pois não sabia até
onde teria de levar a sua busca se a aldeia estivesse
abandonada.
O filho da selva avançou rapidamente através da floresta.
Cerca do meio-dia chegou à aldeia, mas teve o desapontamento
de ver que a selva invadira terrenos lavrados, e que as
cubatas apodreciam ao sol, meio desfeitas. Não havia sinais de
homens. Vagueou por entre as ruínas durante perto de meia hora


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na esperança de poder encontrar alguma arma esquecida, mas em
vão. Decidiu então ir adiante, seguindo o rio que vinha do
Sudeste. Sabia que, perto da água, teria mais probabilidades
de encontrar alguma povoação.
Ia caçando enquanto avançava, como sempre fizera, quando se
deslocava com a Sua tribo, como Kala o ensinara a fazer. De
vez em quando saltava para o chão e voltava troncos caídos, em
busca de algum pequeno animal... De outras vezes trepava até
aos ramos áltos, procurando ninhos... ou precipitava-se com a
rapidez do raio sobre algum roedor que debalde tentava
escapar-se. Havia outras coisas que também não repugnavam ao
seu apetite - mas é preferível não pormenorizar o regime
alimEntar dos antropóides. E Tarzan era novamente um macaco, o
mesmo antigo e feroz animal que Kala o ensinara a ser... e que
de facto havia sido durante os primeiros vinte anos da sua
vida. Por vezes sorria ao recordar algum amigo que, nesse
mesmo instante, elegantemente vestido, estava decerto num dos
luxuosos clubes parisienses, os mesmos que Tarzan frequentara
uns meses antes. Então parava, como que bruscamente
transformado em fera, quando a brisa lhe trazia o cheiro de
nova presa... ou de algum formidável inimigo.
Nessa noite dormiu muito para o interior da floresta, a
grande distância da sua barraca, instalado em segurança na
bifurcação de duas sólidas ramadas que baloiçavam a trinta
metros de altura. Tinha comido abundantemente, de novo. Desta
vez a vítima da sua corda rápida e certeira havia sido Bara, o
gamo.


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Cedo, na manhã seguinte, retomou o seu caminho, seguindo
sempre o curso do rio. Durante três dias avançou sempre, até
que chegou a uma parte da selva onde nunca tinha estado antes.
Por vezes, nas terras mais altas, a floresta era menos densa e
Tarzan podia avistar, por entre a folhagem, altas montanhas
que se erguiam a distância, para além de uma vasta planície.
Ali, no terreno descoberto, havia outra espécie de caça -
incontáveis antílopes e grandes bandos de zebras. Tarzan
estava contente - faria uma longa visita àquele mundo novo.
Na manhã do quarto dia foi surpreendido por um cheiro fraco
e novo. Era o cheiro de homens, mas ainda muito longe. O filho
da selva teve uma sensação de prazer. Todos os seus sentidos
estavam alerta, enquanto destra e silenciosamente avançava de
árvore em árvore, contra o vento, na direcção da sua presa. E
não tardou muito a descobri-la - um guerreiro solitário que
caminhava cautelosamente na selva.
Tarzan seguiu-o, a meia altura das árvores, esperando que
ele chegasse a uma clareira onde Lhe seria possível atirar o
laço de corda. Enquanto espreitava o homem, novos pensamentos
cruzaram a mente de Tarzan - pensamentos nascidos da
influência da civilização e das suas crueldades. Pensou que às
vezes os homens civilizados matam os seus semelhantes sem um
pretexto qualquer, embora inconsistente. Sem dúvida que Tarzan
desejava as armas daquele homem, mas seria realmente
necessário matá-lo para as obter?


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Quanto mais pensava nisso, mais Lhe repugnava a ideia de
destruir uma vida humana, sem necessidade. E aconteceu assim
que, enquanto estava ainda a pensar no que deveria fazer -
chegaram ambos a uma clareira ao fundo da qual se erguia uma
aldeia de cubatas, rodeada por uma paliçada.
No instante em que o guerreiro emergia da floresta, Tarzan
viu de relance um corpo fulvo e alongado que o seguia, entre
as moitas espessas. Era numa, o leão. Também a fera espreitava
o negro. No mesmo instante em que Tarzan viu o perig o que o
guerreiro corria, a sua atitude em relação a ele mudou
subitamente - agora era um homem como ele, ameaçado por um
inimigo comum. Numa preparava-se para atacar e restava pouco
para escolher a melhor maneira de agir, prevendo os
resultados. Então, várias coisas aconteceram, quase
simultaneamente - o leão saltou sobre o negro... Tarzan bradou
um aviso...
e o negro voltou-se exactamente a tempo de ver o leão detido
em pleno salto por um laço de corda que lhe caíra
certeiramente em volta do pescoço... Tarzan agira tão
rapidamente que não havia tido tempo de se preParar a fim de
suportar o impulso dado pelo enorme peso do leão à corda que
lançara. E assim, embora a corda impedisse a fera de cravar as
garras nas costas do guerreiro, o puxão desequilibrou Tarzan e
fê-lo cair no terreno, a seis passos do leão enfurecido.


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Como um relâmpago, Numa lançou-se sobre o novo adversário...
e, sem armas, Tarzan esteve nesse instante mais perto da morte
do que em qualquer outro momento da sua vida. Foi o negro quem
o salvou. Compreendendo num relance que devia a vida àquele
estranho homem branco, compreendeu também que só um milagre
poderia fazer com que o seu salvador escapasse das garras que
tão perto haviam estado de o derrubar a ele próprio.
Com a rapidez do pensamento, atirou a lança... Certeira e
impelida pelos fortes músculos do guerreiro, a arma cravou-se
no dorso do leão, um pouco atrás da espádua esquerda. Com um
grunhido de raiva e de dor, Numa voltou-se outra vez contra o
negro. Tinha avançado uma dúzia de passos quando a corda o
deteve novamente. Mais uma vez o leão se voltou para o filho
da selva... mas logo a seguir uma flecha se lhe enterrou no
flanco. Parou ainda... mas então já Tarzan apanhara a ponta da
corda e correu-a duas vezes em volta de um tronco,
prendendo-a.
O negro viu o ardil e sorriu... mas Tarzan sabia que era
preciso acabar rapidamente com Numa, antes que ele cortasse a
corda com os poderosos dentes. Num salto, aproximou-se do
negro e tirou-lhe a longa faca que pendia de uma bainha. E,
fazendo sinal ao negro para que continuasse a disparar
flechas, tentou aproximar-se da fera, pelo lado oposto. Numa
rugia e grunhia, enfurecido. Erguido sobre as patas traseiras,
tentava quebrar a corda... e voltava-se, de garras abertas,
ora para um, ora para outro dos seus inimigos.


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Mas, por fim, o ágil filho da selva viu a sua oportunidade e
lançou-se sobre o dorso do leão, pelo lado esquerdo. Um braço
de ferro apertou a garganta de Numa, e a longa faca
cravou-se-lhe, certeira no coração. Então Tarzan ergueu-se, e
os dois homens, o branco e o negro, olharam-se por cima do
corpo do leão morto. O negro fez um sinal de paz e de amizade,
a que Tarzan correspondeu...


CAPÍTULO 15


De Macaco a selvagem


O ruído da luta com Numa tinha atraído um excitado bando
de negros, da aldeia próxima, e momentos depois da morte do
leão os dois homens viram-se rodeados por fortes guerreiros de
ébano que gesticulavam e falavam... disparando centenas
perguntas num vozear que abafava qualquer tentativa de
resposta. Depois vieram as mulheres e as crianças, e ao verem
Tarzan as perguntas choviam mais do que nunca. O novo amigo de
Tarzan conseguiu finalmente fazer-se ouvir, e quando acabou de
falar os homens e mulheres da aldeia multiplicaram-se em
expressões de admiração e respeito pelo homem que salvara o
seu companheiro, e derrubara o leão em luta singular.
Por fim levaram Tarzan para a aldeia, apresentaram-lhe
ofertas de galinhas e cabras, e carne cozida, e Quando ele
apontou para


185


as armas, os guerreiros apressaram-se a oferecer-lhe uma
lança, e um escudo, e flechas, e um arco. O homem a quem ele
salvara ofereceu-lhe a faca com que Tarzan matara Numa. Nada
havia na aldeia que ele não pudesse obter, a um simples
pedido.
Tarzan pensou que aquilo era muito mais fácil do que matar e
roubar para satisfazer as suas necessidades. Tinha estado
prestes a matar aquele homem a quem nunca vira antes... e
agora lhe manifestava amizade e afecto por todos os meios ao
seu alcance. Tarzan sentia-se envergonhado. Daí por diante
esperaria sempre até saber se os homens mereciam a morte,
antes de pensar em matá-los.
E essa ideia fê-lo pensar em Rokoff. Pensou que gostaria de
ter o russo diante dele, na selva, apenas por instantes. Esse
era o homem que merecia a morte, entre todos. E, se Tarzan
pudesse ver Rokoff naquele momento... enquanto ele se
esforçava por conquistar as boas graças da bela miss
Strong...: mais do que nunca teria desejado dar-lhe o castigo
tão amplamente merecido.
A primeira noite que Tarzan passou em companhia dos
selvagens, foi dedicada a uma espécie de orgia em sua honra.
Houve um banquete, porque outros caçadores haviam abatido um
antílope e uma zebra, e foram consumidos muitos litros de uma
bebida nativa, que lembrava cerveja bastante fresca. Enquanto
os guerreiros dançavam à luz das fogueiras, Tarzan observou
atentamente a equilibrada elegância dos seus corpos robustos,
e a regularidade das feições. Não tinham o nariz achatado e os
lábios espessos dos negros da Costa Ocidental. Em repouso,


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as feições deles tinham uma expressão inteligente e digna, e
algumas das mulheres eram invulgarmente bonitas.
Foi também durante as danças que Tarzan notou que alguns dos
homens e muitas das mulheres usavam adornos de oiro, sobretudo
argolas pesadas, nos braços e nas pernas, que pareciam
maciças. Quando manifestou o desejo de ver uma dessas argolas,
um dos negros tirou a que usava no braço e, com muitos gestos,
indicou a Tarzan que lha oferecia. Um exame atento convenceu o
filho da selva de que a argola era realmente de oiro
maciço.;Surpreendeu-se porque era a primeira vez que via
ornamentos de oiro entre os negros selvagens, exceptuando as
argolas ocas e apenas doiradas que os selvagens da Costa
compravam ou roubavam aos brancos. Tentou perguntar de onde
viera aquele oiro, mas não conseguiu fazer-se entender. Quando
terminaram as danças, Tarzan manifestou o seu desejo de
partir, mas quase lhe imploraram que aceitasse a hospitalidade
deles, numa grande cubata que o chefe fizera erguer, para seu
uso, um pouco afastada das outras. Tarzan tentou explicar que
voltaria de manhã, mas de novo não conseguiu que o
entendessem. Quando finalmente se afastou e se encaminhou para
o lado da aldeia mais afastado da porta da paliçada, ficaram
ainda mais intrigados a respeito das suas intenções. Tarzan,
no entanto, sabia o que estava a fazer. Tinha tido,


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anteriormente, várias experiências com a bicheza e os ratos
que infestam quase todas as aldeias indígenas, e embora não
tivesse excessivos escrúpulos a esse respeito... grandemente
preferia o ar fresco entre as ramadas de uma árvore, do que a
atmosfera fétida de uma cubata.
Os nativos seguiram-no até onde uma grande árvore dominava a
paliçada, e quando Tarzan saltou para um ramo baixo e logo
desapareceu entre a folhagem - exactamente como fazia Manu, o
macaco - houve grandes exclamações de surpresa e de espanto.
Durante meia hora chamaram-no, pedindo-lhe para voltar, mas
como ele não respondesse desistiram e foram estender-se sobre
as esteiras, nas suas cubatas.
Tarzan encaminhou-se para a floresta, a curta distância, e
quando encontrou uma árvore convenient para as suas
primitivas necessidades, instalou-se entre dois ramos e
adormeceu profundamente.
Na manhã seguinte saltou para a única rua da aldeia,
aparecendo tão subitamente como desaparecera na noite
anterior. Por momentos os indígenas ficaram sobressaltados e
assustados, mas logo, quando o reconheceram, cumprimentaram-no
com largos brados e alegres risos. Nesse dia Tarzan acompanhou
um grupo de guerreiros até às planícies próximas, numa grande
caçada, e tão destro se mostrou, com as armas, que um novo
laço de respeito e admiração o prendeu aos indígenas.
Durante algumas semanas, Tarzan viveu com os seus amigos
selvagens, caçando búfalos, antílopes e zebras, por causa da
carne, e elefantes por causa do marfim.


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Apreendeu rapidamente a linguagem simples, os hábitos
nativos e as primitivas leis da vida tribal. Verificou que não
eram canibais... e, pelo contrário, olhavam com desprezo os
negros que se entregavam ao canibalismo.
Busuli, o guerreiro a quem ele salvara a vida, contou-lhe
muitas das lendas da tribo - de como, muitos anos antes, o seu
povo viera, à custa de longas marchas, do distante Norte... de
como tinham sido uma grande e poderosa tribo... e de como os
árabes, mercadores de escravos, os haviam dizimado, com as
suas compridas espingardas, reduzindo-os a um simples resto da
antiga e grande força, - "Caçaram-nos como se caçam feras..."
- contou Busuli. - "Não havia piedade neles. Quando não
procuravam escravos... era o marfim que buscavam. Mas quase
sempre queriam ambas as coisas. Os nossos guerreiros eram
assassinados e as nossas mulheres eram levadas como gado.
Lutámos durante anos, as nossas flechas e lanças nada valiam
contra armas que cospem fogo e semeiam a morte a muito maior
distância do que o mais forte de entre nós pode atirar uma
flecha. Por fim, quando o meu pai era um homem novo, os árabes
voltaram outra vez... mas os nossos avistaram-nos a distância
e Chowambi, que era então o nosso chefe, deu ordem para que
cada qual recolhesse os seus haveres e o seguisse...
conduziria a tribo muito para o Sul, para um lugar onde os
árabes não chegariam. - Todos lhe obedeceram, levando tudo o
que lhes pertencia, incluindo muitas presas de marfim.


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Caminharam durante meses, sofrendo grandes trabalhos e
privações porque a maior parte do caminho foi feita através da
selva e de muito altas montanhas, mas finalmente chegaram a
este lugar e, embora enviassem grupos mais para diante,
procurando um lugar ainda melhor, não o encontraram."
- E os assaltantes não os descobriram aqui?... - perguntou
Tarzan.
- Há perto de um ano, um pequeno grupo de árabes e de negros
Manyuema chegaram até aqui, mas nós repelimos o assalto e
matámos muitos deles. Perseguimo-los durante dias, caçando-os
como feras que eram e abatendo um após outro... até que
ficaram só uns quantos que conseguiram escapar.
Enquanto Busuli falava, fazia girar um pesado bracelete de
oiro que usava no braço direito. Tarzan tinha visto o
bracelete, mas o seu pensamento estava ocupado noutro assunto.
Por fim fez a pergunta que tentara fazer no primeiro dia, e
que não conseguira que entendessem. Durante semanas não havia
sequer pensado numa coisa de tão somenos importância como era
o oiro. Na verdade vivera a vida simples do homem primitivo,
cujos pensamentos não vão além do dia que passa. Mas agora,
bruscamente, o oiro despertara nele os vestígios de
civilização que não perdera por completo..., a civilização
onde o oiro é importante... porque significa força e prazer.
Apontou para o bracelete e perguntou:
- De onde veio esse metal amarelo, Busuli?
O negro apontou por sua vez, na direcção Sudeste.


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- De um lugar a uma lua de marcha, talvez mais... -
respondeu.
- Tu já lá estiveste?
- Não, mas alguns dos nossos estiveram lá, há anos, quando
meu pai era ainda um homem novo. Um dos grupos que seguiu para
além, em busca de um lugar ainda melhor para construir a nossa
aldeia, encontrou um estranho povo que usava muitos ornamentos
de metal amarelo. Faziam com esse metal as pontas das suas
lanças, e as flechas, e cozinhavam em vasOs feitos com metal
igual ao deste bracelete.
"- Viviam numa grande aldeia, em cubatas feitas de pedra e
rodeadas por uma grande muralha. Eram ferozes. Atacaram os
nossos guerreiros antes de saberem sequer que eles iam em
missão de paz. Os nossos eram poucos, mas resistiram, no alto
de uma colina de rocha, até que a noite veio e os atacantes se
retiraram para a sua aldeia embruxada. Então os nossos
guerreiros desceram da colina e, depois de terem tirado, aos
inimigos mortos, muitos ornamentos de metal amarelo, saíram do
vale... onde nenhum de nós voltou a ir.
"- Eram homens maus os atacantes...
"- Nem brancos como tu, nem negros como eu. Tinham o corpo
coberto de pêlos, como Bolgani, o chimpanzé. eram homens maus,
e Chowambi ficou contente de estarmos longe deles.
- Há alguém, vivo ainda, que seja desse tempo que tivesse
visto essa estranha gente dessa estranha terra? - perguntou
Tarzan.
- Sim... Waziri, o nosso chefe esteve lá... - respondeu
Busuli.


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- Era então muito novo, mas acompanhou os
guerreiros porque Chowambi era seu pai.
Nessa noite Tarzan interrogou Waziri, e o velho chefe
disse-lhe que a cidade do oiro ficava muito longe, mas que o
caminho não era difícil. Recordava-se bem.
"- Durante dez dias seguimos ao longo deste rio que passa
junto da nossa aldeia. Caminhámos na direcçâo da nascente, até
que, ao décimo dia, encontrámos uma pequena fonte no flanco de
uma alta montanha, É dessa fonte que nasce o nosso rio. No dia
seguinte transpusemos o alto da montanha e, do outro lado,
descobrimos um ribeiro estreito, que seguimos até a uma grande
floresta. Durante muitos dias caminhámos sempre pelas margens
do ribeiro... que entretanto alargara e se tornara um rio, e
alcançámos outro rio ainda maior, onde as águas do primeiro se
juntavam... e que continuava pelo meio de um grande vale.
- Avançámos ainda, seguindo agora a margem do rio maior e
esperando que ele nos conduzisse a uma das planícis. Vinte
dias depois de termos atravessado a montanha, avistámos outras
montanhas. Continuámos sempre a seguir ao longo do rio, que é
agora novamente um ribeiro, até que alcançámos uma pequena
caverna quase no alto da montanha. Nessa caverna nascia o rio.
- Lembro-me de que acampámos aí, nessa noite e de que estava
muito frio, porque a montanha era alta. No dia seguinte
decidimos subir ainda mais e ir ao ponto mais alto para ver
como eram as terras do outro lado.


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-
Se não fossem melhores do que as que tínhamos atravessado,
voltaríamos à nossa aldeia e diríamos que o lugar onde
estava... este, onde estamos... era o melhor de todos, para
viver.
- Assim... escalámos a penedia rochosa. Em meio de um
planalto, avistámos não muito longe, mas muito fundo, um
estreito vale... ao fundo do qual se erguia uma grande aldeia
de pedra, grande parte da qual estava em ruínas..."
O resto da história de Waziri era praticamente igual à que
Busuli contara.
- Gostaria de ir ver essa estranha cidade... - disse Tarzan
- ... e de apanhar algum do metal amarelo dos seus ferozes
habitantes.
- É uma longa marcha e eu sou um velho... - respondeu Waziri
- ... mas se quiseres esperar até que passe a estação das
chuvas e os rios voltem ao seu leito... levarei alguns dos
meus guerreiros e irei contigo.
Tarzan teve de se contentar com essa combinação, embora
tivesse preferido partir logo na manhã seguinte. Sentiu-se tão
impaciente como uma criança e na realidade era uma criança, ou
um homem primitivo - o que, de certo modo, é a mesma coisa.
No dia seguinte, um pequeno grupo de caçadores chegou, do
Sul, para avisar da presença de uma grande manada de
elefantes, a algumas milhas da aldeia. Trepando às árvores
tinham podido ver bastante bem o bando, que descreveram como
composto de machos todos de grandes presas, muitas fêmeas, e
um número bastante grande de animais novos, mas adultos,

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cujo marfim valeria a pena apanhar.
O resto do dia e o serão foram ocupados com os preparativos
de uma grande caçada. As lanças foram vistoriadas, as aljavas
ficaram cheias de flechas, os arcos foram examinados um a um,
para que as cordas, rijamente tensas, dessem maior poder de
penetração às flechas. E durante todo este tempo o feiticeiro
passou por entre os grupos, distribuindo amuletos que
evitariam as feridas... ou dariam boa sorte aos caçadores.
De madrugada, os caçadores partiram. Eram cinquenta robustos
guerreiros negros, e entre eles, mais alto e mais activo, ia
Tarzan dos Macacos, a sua pele morena contrastando
estranhamente com a cor de ébano dos seus companheiros. Os
seus adornos e armas eram iguais aos deles - Tarzan falava a
língua dos negros - e ria e gracejava, como havia saltado e
gritado durante a breve dança que precedera a partida da
aldeia. Era um selvagem no meio de selvagens. Se se tivesse
interrogado a tal respeito, sem dúvida reconheceria que se
sentia mais próximo daquela gente e daquela vida... do que dos
parisien ses cujas maneiras, um tanto como os macacos, imitara
com êxito durante alguns meses.
Pensou em d'Arnot, e um sorriso divertido pôs-lhe a
descoberto os dentes fortes e muito brancos ao imaginar a
expressão do elegante francês se, de alguma estranha forma,
pudesse vê-lo tal como estava agora. Pobre Paul, que se
orgulhava de ter feito desaparecer, da Personalidade do seu
amigo, os vestígios de vida selvagem!


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Tarzan pensou que caíra rapidamente no nível anterior, mas
no íntimo não considerava que fosse uma queda. Antes tinha
pena dos pobres parisienses, apertados nas suas roupas tolas e
vigiados durante toda a triste vida pelos polícias, de maneira
a nada poderem fazer que não fosse completamente artificial e
cansativo.
Duas horas de marcha levaram os caçadores às vizinhanças do
ponto onde os elefantes tinham sido vistos no dia anterior. A
partir daí avançaram no mais completo silêncio, seguindo a
pista dos grandes animais. Não tardaram a descobrir um lugar
Por onde a manada havia passado poucas horas antes.
Continuaram a caminhar em fila, durante mais meia hora. Foi
Tarzan quem primeiro ergueu a mão, indicando que a manada
estava próxima. O cheiro dos elefantes chegara-lhe às narinas.
Os negros mostraram-se incrédulos, quando ele disse como
descobrira os elefantes. Tarzan respondeu, simplesmente:
- Venham comigo, e verão...
Com a agilidade de um esquilo, saltou para uma árvore e
trepou rapidamente até aos ramos mais altos. Um dos negros
seguiu-o, mais cauteloso e mais devagar. Quando chegou a uma
ramada abaixo daquela onde estava o filho da selva, este
apontou para o sul, a algumas centenas de metros, o negro
avistou grandes dorsos escuros que se moviam por entre o capim
alto. Indicou a posição aos que estavam em baixo, e com a
ajuda dos dedos disse-Lhes quantos animais conseguira avistar
e contar.


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No mesmo instante os caçadores partiram na direcção do ponto
onde se encontrava a manada. O negro que subira à árvore
apressou-se a descer, mas Tarzan, conforme o seu costume,
seguiu saltando de ramada em ramada, a meia altura.
Não é brincadeira de crianças, caçar elefantes com as toscas
armas dos homens primitivos. Tarzan sabia que poucas tribos
indígenas se arriscavam a isso, e que a coragem dos seus
companheiros enchia-o de orgulho - na verdade já começava a
considerar-se como fazendo parte da tribo.
Enquanto se movia silenciosamente de árvore em árvore,
Tarzan viu os guerreiros, em baixo, aproximarem-se em
semicírculo dos elefantes que ainda não suspeitavam da sua
presença. Por fim chegaram à vista dos enormes animais. Então
escolheram dois dos elefantes mais velhos, com maiores
presas... e, a um sinal, os cinquenta guerreiros emergiram da
erva que até aí os escondera, e atiraram as lanças contra os
dois animais escolhidos. Nem uma lança falhou o alvo... e cada
uma das vítimas ficou com vinte e cinco armas cravadas num dos
flancos. Um dos elefantes não se moveu mais do ponto onde
estava ao ser atacado, porque duas lanças perfeitamente
dirigidas lhe haviam atravessado o coração. Dobrou os joelhos
e tombou, sem resistência. O outro, quE estava quase de frente
para os caçadores, tinha oferecido menor alvo às lanças, e
embora todas lhe tivessem acertado, nenhuma lhe atingira o
grande coração. Por instantes o grande macho ficou imóvel
bramindo de dor e de raiva, os seus pequenos olhos procurando
o inimigo que o ferira.


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Os negros haviam desaparecido na selva antes que o grande
animal podesse vê-los... mas o elefante ouviu o ruído da fuga
E lançou-se nessa direcção, esmagando os arbustos à sua
passagem.
Aconteceu que o acaso o conduziu na direcção de Busuli... e
precipitou-se sobre o negro com tal rapidez que este parecia
estar parado em vez de correr quanto podia para escapar à
morte que vinha sobre ele... Tarzan, do alto de uma árvore,
assistira a toda a cena, e agora que via o perigo em que
estava Busuli, lançou-se em corrida, gritando para distrair a
atenção do animal. Mas seria o mesmo se não gritasse, porque o
elefante estava cego e surdo para tudo o que não fosse alvo
imediato da sua fúria.
Tarzan compreendeu e só um milagre podia salvar Busuli, e
com o mesmo tranquilo espírito com que seguira aquele homem
para o matar, saltou para a frente do elefante, a fim de
evitar a morte do negro. Empunhava ainda a sua lança, e quando
o elefante estava a oito ou dez passos da sua presa, um
guerreiro branco pareceu cair do céu, cortando-lhe o caminho.
No mesmo instante o paquiderme enfurecido desviou a corrida,
para esmagar o temerário que ousava interpor-se entre ele e a
sua vítima escolhida.
não contara com a espantosa agilidade que podia haver
naqueles músculos com tal rapidez que nem olhos podiam
segui-lo. Aconteceu por isso que, antes de o elefante se
aperceber de que o novo adversário já não estava no mesmo


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sítio, Tarzan tinha-lhe cravado a lança atrás da espádua,
atravessando-lhe o coração... e o enorme animal caiu,
mortalmente ferido.
Busuli não vira de que maneira tinha sido salvo, mas Waziri,
o velho chefe, e muitos dos outros guerreiros, tinham visto.
Aclamaram Tarzan, juntando-se em volta dele e do animal
abatido. Quando Tarzan saltou sobre o paquiderme e lançou para
o ar o grande brado de vitória, os negros encolheram-se,
assustados, porque aquele era o brádo dos gorilas, a quem eles
temiam tanto como temiam Numa, o leão. no medo deles havia um
maravilhoso espanto por aquela criatura a quem atribuíam
poderes sobrenaturais.
No entanto, ao verem que Tarzan os olhava e sorria, ficaram
novamente tranquilos, embora sem compreender. Na verdade não
entendiam aquele estranho homem que corria pelas árvores tão
rapidamente como Manu... e no entanto sabia estar mais firme,
no terreno, do que eles próprios... Aquele homem que, excepto
na cor, era igual a eles e todavia tinha mais força do que dez
dos mais fortes guerreiros... e enfrentava sozinho os mais
poderosos animais da selva.
Quando todos os guerreiros se reuniram, a caçada continuou
com a perseguição da manada que se afastara. Mas não haviam
percorrido mais de cem metros quando ouviram, a grande
distância, o eco de várias detonações. Por momentos pararam,
imóveis, à escuta. Então Tarzan exclamou:
- Espingardas! A aldeia está a ser atacada!


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- Vamos!... - bradou Waziri.
- Os árabes voltam, com os seus escravos canibais, para
levarem as nossas mulheres e o nosso marfim.


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CAPÍTULO 16


Os ladrões de marfim


Os guerreiros de Waziri caminham numa espécie de trote
rápido, através da selva, na direcção da aldeia. Durante
alguns minutos as detonações, cada vez mais nítidas,
incitaram-nos a apressar-se, mas pouco a pouco a fuzilaria foi
esmorecendo até se ouvir apenas um ou outro tiro isolado,., e
por fim por completo. O silêncio não era menos ameaçador do
que o tiroteio, porque sugeria apenas uma dúvida - a ideia de
que a povoação, quase sem defensores, sucumbira ao número dos
atacantes. Os caçadores haviam percorrido pouco mais de duas
milhas, das cinco que os separavam da aldeia ao ouvirem os
tiros, quando encontraram os primeiros fugitivos que tinham
escapado às balas e às garras dos inimigos. Havia no grupo uma
dúzia de mulheres, rapazes e raparigas... e estavam tão
excitados que não conseguiiam fazer-se compreender, enquanto
tentavam contar a Waziri a calamidade que se abatera sobre a
aldeia.


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- São tantos como as folhas na floresta... - gritou uma das
mulheres, diligenciando indicar o número dos assaltantes. -
São muitos árabes e incontáveis Manyuemas, e todos têm
espingardas. Aproximaram-se da aldeia antes de podermos
descobri-los, e então atacaram, soltando grandes brados e
disparando sobre homens, mulheres e crianças. Os que puderam,
fugiram para a selva, em todas as direcções, mas muitos foram
mortos. Não sei se levaram prisioneiros ou não... pareciam
empenhados em matar-nos, a todos. Os Manyuemas chamaram-nos
muitos nomes, dizendo que haviam de nos comer antes de
partirem... e que era o nosso castigo por termos abatido os
amigos deles, há um ano... Eu não ouvi muito, porque fugi o
mais depressa que pude...
Retomaram a marcha para a aldeia, mais lentamente e com
maiores cautelas. Waziri sabia agora que era demasiado tarde
para socorrer... a única tarefa era a de vingar os mortos.
Durante o percurso da milha seguinte encontraram mais uma
centena de fugitivos. Entre estes havia muitos homens, de
maneira que a força de combate aumentou.
Uma dezena de guerreiros foram enviados à frente, para bater
o terreno. Waziri ficou com o grosso da coluna que continuou a
avançar em linha através da floresta, num longo semicírculo.
Tarzan ia ao lado do chefe.
Um dos batedores voltou. Tinha alcançado um ponto de onde
pudera observar a aldeia.
- Estão todos dentro da paliçada... - disse ele.
- Bem... - volveu Waziri - ... vamos atacá-los e matá-los, a
todos...


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Oaziri Dispôs-se a mandar avisar todos os guerreiros ao
longo da linha, para que parassem na orla da clareira e,
quando o vissem correr ao ataque, atacassem também.
- Espera... - interveio Tarzan. - Se eles têm cinquenta
espingardas no interior da paliçada, seremos repelidos ou
dizimados. Deixem-me ir sozinho, por entre as árvores, para os
observar bem e ver quantos são... e quais as possibilidades de
um ataque em massa. Seria loucura perder um só homem sem
necessidade, não havendo possibilidades de êxito. Creio que
poderemos conseguir mais pela astúcia do que pela força.
Esperarás que eu volte, Waziri?
- Sim... - volveu o velho chefe. - Vai!
Tarzan saltou para as árvores e desapareceu na direcção da
aldeia. Movia-se com mais cautela do que habitualmente, pois
sabia que homens armados de espingardas podiam atingi-lo tão
facilmente entre ramos como no chão. E, quando Tarzan resolvia
ser silencioso, nenhuma criatura da selva seria capaz de se
mover mais furtivamente, nem de tão completamente se ocultar
aos olhos dos inimigos. Em cinco minutos alcançou a grande
árvore que se debruçava sobre a paliçada, na extremidade da
aldeia, e daí pôde observar à vontade a horda selvagem que se
agitava em baixo. Contou cinquenta árabes e um número cinco
vezes superior de Manyuemas. Estes últimos devoravam comida e,
sob os olhares dos seus amos, preparavam o horrível prato
principal que se segue sempre a uma vitória em que os inimigos
mortos caem nas suas repugnantes garras.


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Tarzan compreendeu que atacar em massa aquela horda
canibalesca, armados de espingardas como todos estavam, e
entrincheirados por detrás da paliçada, seria uma loucura.
Assim, voltou para junto de Waziri e aconselhou-o a esperar,
pois ele, Tarzan, tinha um plano melhor.
Momentos antes, porém, um dos fugitivos contara a Waziri de
que maneira horrível morrera a mulher dele. Enfurecido, o
velho chefe mandou ao inferno as cautelas e, chamando os seus
guerreiros, bradou a ordem de ataque. Brandindo as lanças e
soltando grandes brados de guerra, o grupo de pouco mais de
cem homens precipitou-se ao assalto, na direcção das portes da
paliçada. Antes que atravessassem metade da clareira, os
árabes abriram fogo sobre eles, ao abrigo das defesas.
Waziri caiu logo à primeira rajada de balas. O ímpeto do
ataque esmoreceu. Outra rajada derrubou mais uma dúzia de
homens. Alguns chegaram junto das portas, mas para morrerem
aí, sem a sombra de uma esperança de poderem entrar. Então o
ataque foi destroçado e os sobreviventes correram para a
selva... enquanto os árabes abriam as portas resolvidos a
completar a chacina da tribo. Tarzan foi dos últimos a
retirar, e assim mesmo, enquanto corria sem pressa, voltava-se
por vezes e abatia um dos perseguidores, com uma certeira
flecha.
Na floresta, encontrou um pequeno grupo de guerreiros
resolvidos a esperar o inimigo e lutar até ao fim. Gritou-lhes


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para que dispersassem e se mantivessem fora do alcance das
espingardas, até poderem voltar a reunir-se todos quando
anoitecesse.
- Façam o que lhes digo... - insistiu - ... e levá-los-ei à
vitória sobre os vossos inimigos. Espalhem-se pela floresta e
matem todos os perseguidores isolados que puderem surpreender.
À noite, se julgarem que são seguidos, vão ter ao ponto onde
batemos hoje os elefantes... mas dando rodeios para despistar
quem os seguir. Aí lhes explicarei o meu plano, e verão que é
bom. São poucos e mal armados, para poderem enfrentar os
árabes e os Manyucas, que dispõem de espingardas e são muitas
vezes mais numerosos...
Os guerreiros concordaram finalmente, e Tarzan disse ainda:
- Quando se dispersarem, os inimigos terão de dispersar
também para os seguir, e assim, se estiverem atentos, poderão
abater muitos Manyuemas com as vossas flechas ao abrigo das
árvores.
Tinham apenas tido tempo para desaparecer na floresta quando
os primeiros perseguidores atravessaram a clareira e surgiram
entre as árvores. Tarzan meTeu durante alguns metros pelo
terreno, antes de utilizar o seu caminho habitual. Então
começou a avançar com grande rapidez entre as ramadas mais
altas... mas agora em sentido inverso, na direcção da aldeia.
Aí verificou o que esperava, isto é, que todos os árabes e
Manyuemas se haviam lançado na perseguição dos fugitivos. Na
aldeia apenas tinhan ficado os prisioneiros, acorrentados uns
aos outros sob a guarda de um único homem.


203


A sentinela estava em frente das portas abertas, olhando na
direcção da floresta, e assim não pôde ver o ágil gigante que
saltava para o interior da paliçada, na extremidade oposta da
aldeia. Com o arco preparado, o filho da selva encaminhou-se
silenciosamente para a sua vítima. Os prisioneiros viram-no e,
com olhares de espanto e de esperança, acompanharam-lhe os
movimentos. Tarzan parou a cerca de dez passos do descuidado
Manyuema. O arco curvou-se e disparou... Sem um grito, o
canibal caiu de bruços, atingido por uma flecha cuja ponta,
depois de lhe atravessar o coração, emergia quase um pé, do
peito negro.
Então Tarzan voltou a sua atenção para os cinquenta
prisioneiros, mulheres e jovens, amarrados pelo pescoço com a
comprida corrente dos escravos. Não era possível:pensar em
abrir os velhos cadeados, no tempo de que dispunha. Assim,
apanhando a espingarda e a cartucheira da sentinela morta,
Tarzan fez sinal aos presos para que o seguissem, tal como
estavam. Atravessaram as portas da paliçada e desapareceram na
floresta.
Era uma caminhada lenta e penosa, porque as pobres criaturas
não estavam habituadas às correntes. Paravam muitas vezes,
quando um deles tropeçava e caía arrastando outros. Tarzan
tinha sido forçado, por outro lado, a fazer um largo rodeio
para evitar o possível encontro com perseguidores que
regressassem. Era em parte orientado por um tiro ou outro, que
indicavam haver ainda contactos ocasionais entre perseguidores
e perseguidos. Mas sabia que,


204

se os negros da aldeia tivessem seguido as suas instruções, as
baixas não seriam numerosas a não ser do lado dos bandidos.
Ao anoitecer, os tiros cessaram por completo e Tarzan
concluiu que os árabes deviam ter regressado à aldeia. Não
conteve um sorriso de triunfo ao pensar na fúria deles quando
encontrassem morto o guarda... e desaparecidos os
prisioneiros. Teria desejado trazer alguma parte da grande
quantidade de marfim que havia na aldeia, a fim de enfurecer
ainda mais os ladrões. Mas sabia que isso não era necessário
para evitar o roubo, pois tinha formado um plano que impediria
os árabes de levarem para fora da região um só dente de
elefante... e teria sido cruel obrigar aquelas pobres mulheres
a transportarem tal carga.
Passava da meia-noite quando Tarzan, com a sua diminuta
caravana, se aproximou do ponto onde marcara encontro com os
guerreiros. Muito antes de lá chegarem já podiam ser guiados
pelos clarões das fogueiras que os negros tinham acendido no
improvisado acampamento, em parte para se aquecerem e noutra
parte para afugentarem algum leão que aparecesse. Ao
aproximar-se do acampamento, Tarzan chamou em voz forte, para
que os homens soubessem que eram amigos os que vinham. A
caravana teve alegre recepção, quando os guerreiros viram
crescer a longa fila de amigos e parentes, acorrentados uns
aos outros. Tinham-nos considerado perdidos, e também a
Tarzan. Agora sentiam-se tão contentes que teriam ficado
acordados toda a noite, banqueteando-se com a carne


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dos elefantes para festejar o regresso dos companheiros - se
Tarzan não insistisse em que deviam dormir o mais que
pudessem... pois o dia seguinte seria de grande trabalho.
No entanto dormir não era fácil, porque as mulheres que
haviam perdido os seus homens, ou os filhos, na chacina e na
luta, enchiam a noite com alaridos de dor. Todavia, Tarzan
acabou por conseguir que se calassem... dizendo-lhes que os
uivos e gemidos poderiam atrair os árabes e então ninguém
escaparia com vida.
Pela madrugada, Tarzan explicou aos guerreiros o seu plano
de combate... e todos concordaram em que era a maneira mais
segura de vingar os seus mortos e expulsar os ladrões do
marfim.
Primeiro, as mulheres e as crianças, sob a guarda de uns
vinte homens escolhidos entre os mais velhos e os muito
novos, deviam seguir para o Sul, a fim de ficarem
completamente fora da zona de perigo. Tinham instruções para
construir um abrigo temporário, que deviam cercar com uma sebe
protectora de mato espinhoso. O plano de campanha ideado por
Tarzan poderia prolongar-se durante dias, ou mesmo semanas, e
em todo esse tempo os guerreiros não iriam ao novo
acampamento.
Duas horas depois de amanhecer, uma esparsa fila de
guerreiros negros cercou a aldeia. De longe em longe um deles
havia-se instalado no alto de uma árvore, de onde podia ver o
que se passava no interior da paliçada. A certa altura um
Manyuema, na aldeia, caíu, atravessado por uma flecha. Não
houve qualquer clamor de ataque, nenhum dos brados de guerra


206


habituais nas lutas de selvagens, nenhum brandir de lanças -
apenas uma silenciosa mensagem de morte viera da floresta, Os
árabes e os seus servidores tiveram um tremendo ímpeto de
raiva ante um acontecimento tão sem precedentes. Em tumulto,
correram para as portas da paliçada, gritando vingança contra
o inimigo... mas compreenderam de repente que não faziam a
menor ideia de onde estava esse inimigo. Enquanto discutiam,
com muitos gritos e largos gestos... um dos árabes abateu-se,
no meio do grupo - com uma flecha cravada no coração. Tarzan
colocara os melhores atiradores nas árvores em volta da
aldeia, com instruções para nunca revelarem a sua presença
quando os inimigos estivessem a olhar na direcção deles.
Sempre que um dos guerreiros disparava a sua mensagem de
morte, ieria esconder-se entre a folhagem da árvore... e não
voltava a disparar senão quando tivesse visto que ninguém
vigiava aquele lado.
Por três vezes os árabes se precipitaram, atravessando a
clareira, na direcção do ponto de onde supunham ter vindo a
flecha, mas de cada vez outra flecha surgia do lado oposto e
abatia um deles. Precipitava-se então nessa outra direcção...
e a morte vinha agora de um ponto diferente. Por fim
resolveram fazer uma batida em regra, na floresta, mas os
guerreiros negros recuaram diante deles, e nunca chegaram
avistar sinais de qualquer inimigo. No entanto, acima deles,


207


espreitava um vulto sombrio, entre a densa folhagem das
árvores gigantescas... Tarzan espreitava-os, como se fosse a
sombra da própria morte. Um Manyuema adiantou-se aos seus
companheiros e isolou-se por instantes... Não havia quem
pudesse ver de que direcção vinha a morte... e a morte veio,
rápida. Os que caminhavam atrás tropeçaram no corpo do
companheiro... cujo coração tinha sido atravessado por uma
flecha infalível.
Não é preciso muito tempo deste tipo de luta para destroçar
os nervos, mesmo os de um homem branco, e assim não era de
admirar que os Manyuemas estivessem em breve dominados pelo
pavor. Se algum deles se adiantava, logo uma flecha o
abatia... Se algum se atrasava, nunca mais era visto com
vida... Se algum se desviava, por um momento que fosse, de
entre os outros, nunca regressava para junto deles... E
sempre, quando encontravam os corpos sem vida, encontravam
também as flechas disparadas com infalível pontaria,
atravessando o coração da vítima. Mas o pior de tudo era que,
em toda a manhã, nada puderam ver ou ouvir do inimigo... que
se revelava apenas pelas impiedosas flechas.
Quando voltaram para a aldeia, a situação não melhorou.
Agora e logo, a intervalos irregulares cuja acção era
enlouquecedora pela expectativa constante, um homem caía no
terreno, morto. Os canibais insistiram com os seus amos,para
que abandonassem aquele terrível lugar, mas os árabes receavam
o caminho através da floresta sombria e hostil onde paira
aquele novo e estranho inimigo, carregados com grandes


208


reservas de marfim que haviam encontrado na aldeia. Por outro
lado, nem queriam pensar em deixar ficar o marfim.
Por fim, todos os do bando se abrigaram dentro das cubatas.
Ali, pelo menos, ficavam livres das flechas. Tarzan, do alto
da árvore que se debruçava sobre a aldeia, viu qual era a
cubata onde se haviam refugiado os chefes árabes. Em
equilíbrio sobre um ramo oscilante, projectou a sua lança, com
toda a força dos seus poderosos músculos, através da coberta
de palha. Um uivo de dor disse-lhe que encontrara um alvo. Com
esta espécie de aviso, destinado a convencer os árabes de que
em nenhum lugar estavam seguros, Tarzan voltou para a
floresta, reuniu os seus guerreiros, e afastaram-se cerca de
uma milha na direcção do Sul, para comerem e descansarem.
Colocou sentinelas em vários pontos de onde podiam ver a
trilha até à aldeia, mas não houve qualquer sinal de
perseguição. Uma inspecção ao seu grupo demonstrou que não
havia qualquer baixa, nem um único ferido, ao passo que com um
grosseiro cálculo quanto às perdas do inimigo convenceu os
negros de que pelo menos uns vinte haviam sido abatidos pelas
flechas. Ficaram doidos de alegria, e houve quem falasse em
contar o dia como um assalto durante o qual matassem todos os
árabes e todos os canibais. Imaginaram mesmo as várias
torturas que fariam sofrer aos manyuemas, pelos quais tinham
um profundo ódio. Mas Tarzan pôs termo ao plano delirante.
- São doidos... - exclamou.


209


- Mostrei-Lhes a única maneira de combater os ladrões do
marfim. Já matámos vinte sem uma única perda do nosso lado, ao
passo que ontem, lutando à vossa maneira, tiveram mais de doze
mortos sem conseguirem atingir um só Manyuema ou um só árabe.
Lutarão como eu lhes digo que devem lutar... ou deixo-os e
vou-me embora.
A ameaça apavorou os guerreiros, que logo prometeram
obedecer escrupulosamente... na condição de Tarzan não os
abandonar.
- Está bem... - disse Tarzan - ... vamos voltar para o
acampamento perto dos elefantes mortos, para passar a noite.
Tenho um plano para dar aos árabes uma amostra do que eles
podem esperar se ficarem aqui, mas não preciso de ajuda.
Vamos. Se eles não tiverem mais perdas durante o resto do dia,
começarão a tranquilizar-se, e o regresso ao medo será pior
para eles do que se continuarmos a hostilizá-los durante toda
a tarde.
Todo o grupo voltou para o lugar onde haviam acampado na
noite anterior, e aí, acendendo grandes fogueiras, comeram e
contaram as aventuras do dia, até depois de anoitecer. Tarzan
dormiu até à meia-noite, e então levantou-se e mergulhou na
total escuridão da floresta. Uma hora mais tarde estava na
orla da clareira, diante da aldeia. Uma fogueira ardia no
interior da paliçada. O filho da selva atravessou a clareira e
aproximou-se das portas fechadas. Pelas fendas entre os
troncos, viu uma sentinela solitária, sentada em frente do
lume.


210


Sem ruído, Tarzan dirigiu-se para a árvore, centro da
aldeia. Trepou até ao seu lugar habitual e colocou uma flecha
no arco. Durante alguns minutos, tentou apontar com segurança,
mas o lento agitar das folhas, e o oscilar das chamas da
fogueira, convenceram-no de que o perigo de falhar era
demasiado grande e precisava de acertar em cheio no coração da
sentinela, para que o negro morresse antes de poder gritar.
Além do arco, das flechas e da corda,, tinha trazido a
espingarda de que se apossara no dia anterior, depois de matar
a outra sentinela. Escondendo tudo aquilo num lugar seguro
entre os ramos da árvore, saltou para o chão, no interior da
paliçada, armado apenas com a sua comprida faca. A sentinela
estava de costas para ele. Como um gato, Tarzan aproximou-
se... Estava a dois passos do negro. mais um instante e a faca
cravar-se-ia silenciosamente no coração do Manyuema. Tarzan
curvou-se para saltar... o mais rápido e mais seguro ataque
das feras da selva,. Mas nesse momento o negro, avisado por
qualquer sentido soeergueu-se bruscamente e voltou-se...

CAPÍTULO 17


O chefe branco dos Waziris


os olhos do canibal Manyuema fitaram a aparição que
empunhava uma faca ameaçadora,


211


a sua expressão foi de profundo e indomável pavor. Esqueceu a
espingarda que segurava... esqueceu-se mesmo de gritar... O
seu único pensamento foi fugir daquele terrível selvagem
branco, gigantesco, cujo peito poderoso e grandes músculos
pareciam ainda mais temerosos ao clarão oscilante da fogueira.
Mas, antes que o Manyuema pudesse voltar-se, Tarzan caíu
sobre ele. Só então se lembrou de gritar por socorro... quando
já era demasiado tarde. Uma grande mão apertava-lhe a
garganta, e sentia-se arrastado para o chão. Debateu-se,
inútil e furiosamente... Os dedos que lhe apertavam o pescoço
aumentavam a cada instante a tremenda pressão. De uma forma
rápida e segura, a morte invadia-o. Com os olhos salientes, a
língua fora da boca, o Manyuema teve uma última contracção e
ficou inerte.
Tarzan içou o corpo para um ombro e, apanhando a espingarda,
correu em silêncio na direcção da árvore que lhe dera tão
fácil acesso. Levou o corpo para o meio da folhagem densa. Aí,
começou por se apoderar da cartucheira do negro, e de alguns
dos seus adornos que escondeu na árvore. Quando con cluiu essa
primeira operação, pegou na espingarda e trepou mais alto, no
tronco. Daí, poisado num ramo sólido, podia ver melhor a
aldeia. Apontou cautelosamente a espingarda, para a cubata
onde sabia estarem os chefes árabes, e disparou. Quase
instantaneamente ouviu um brado de dor. Sorriu. Voltara a
acertar, embora à sorte.


212


Logo depois do tiro houve um momento de silêncio... e então
os Manyuemas e os árabes surgiram das cubatas, como se
tratasse de vespas irritadas... No entanto, se soubessem a
verdade, estariam de facto mais assustados que irritados. A
tensão do dia anterior destroçara os nervos dos negros e dos
árabes, e agora aquele tiro isolado, na noite, fazia surgir
todas as mais terríveis conjecturas nos seus cérebros
apavorados. Quando descobriram que a sentinela havia
desaparecido, o seu medo aumentou.:. e então, como para se
encorajarem com uma acção de luta, começaram a disparar
rapidamente contra as portas fechadas, embora nenhum inimigo
estivesse à vista. Tarzan aproveitou-se do estrondear das
detonações para fazer fogo sobre a multidão em baixo. Ninguém
distinguiu esse tiro no meio de tantos outros, mas num dos
grupos um homem caíu subitamente, ferido de morte. Quando os
outros se curvaram sobre ele, viram que tinha deixado de
existir. Manyuemas, tomados de pânico, tentaram fugir em
tumulto para a selva, e foi necessária a brutalidade dos
árabes para os impedir disso. Allguns minutos mais tarde
começaram a acalmar-se, e porque não houve mais mortes
misteriosas, retomaram coragem. Mas a trégua foi de curta
duração, porque, no momento em que já esperavam que tudo
tivesse acabado, Tarzan soltou um grito medonho, como um uivo
de fantasma... E quando os ladrões do marfim olharam para
cima, para o ponto de onde parecia ter vindo o som... um vulto
escuro caiu no ar e foi cair no meio deles...


213


Era o corpo da sentinela, que Tarzan projectara do alto da
árvore...
Com brados de alarme, a multidão fugiu em todas as
direcções, para escapar ao terrível vulto que parecera saltar
sobre eles. As imaginações, conturbadas pelo medo, viram no
corpo morto, de braços e pernas abertas, a semelhança de um
estranho e grande animal de presa. Na ânsia de fugir, alguns
dos negros escalaram a paliçada, enquanto outros, removendo as
trancas, abriram as portas e se precipitavam através da
clareira, na direcção da selva.
Durante algum tempo ninguém teve coragem para se aproximar
do vulto que os apavorara,,mas Tarzan sabia que acabariam por
fazer isso e, quando descobrissem que era o corpo da
sentinela, embora se assustassem ainda mais, sem dúvida que
reagiriam. Assim, saltou da árvore para outra e afastou-se
silenciosamente na direcção do Sul, através das ramadas
iluminadas pelo luar, encaminhando-se para o acampamento dos
Wasiris.
Um dos árabes voltou-se finalmente e viu que o vulto que
saltara da árvore tinha ficado imóvel, no chão.
Cautelosamente, aproximou-se... e viu que se tratava apenas de
um homem. Um momento depois estava junto do corpo... e
reconhecia o cadáver do Manyuema que tinha estado de sentinela
às portas. A um brado do árabe, todos os outros se reuniram em
vólta, e depois de uns instantes de discussão fizeram aquilo
que Tarzan sabia que fariam. Erguendo as espingardas
dispararam sucessivas rajadas de balas contra a copa da árvore

214


de onde o corpo caíra... e se Tarzan lá se tivesse demorado
teria sido atingido por centenas de balas. Quando os árabes e
os Manyuemas descobriram os únicos sinais de violência, no
cadáver, as marcas de grandes dedos em volta do pescoço,
mergulharam ainda em maior apreensão e angústia. Chocava-os
sobretudo a ideia de que nem mesmo no interior da paliçada
estavam em segurança. Que um inimigo pudesse entrar ali para
matar a sentinela, com as próprias mãos, parecia-lhes coisa
inexplicável pela razão. Assim os Manyuemas começaram a
atribuir todas aquelas desgraças a causas sobrenaturais... Os
árabes não encontraram qualquer outra explicação para lhes
dar. Com o desaparecimento de pelo menos cinquenta homens que
haviam fugido para a floresta, e sem a mais pequena ideia
sobre quando e como o inimigo invisível recomeçaria a chacina
que eles próprios haviam iniciado, o bando de ladrões do
marfim, incapaz de dormir e torturado pelo menos, ficou
angustiadamente à espera de que amanhecesse. Só a promessa,
feita pelos árabes, de que partiriam ao nascer do dia e se
apressariam a voltar para as suas aldeias, conseguiu que os
Manyuemas ficassem na aldeia um momento mais. Nem mesmo o medo
dos fiéis esclavagistas era suficiente para que dominasssem o
novo pavor que se apossara deles. Foi assim que, quando Tarzan
e os seus guerreiros voltaram ao ataque, na manhã seguinte,
viram quando se estavam a preparar para deixar a aldeia, Os
Manyuemas iam carregados com o marfim roubado.


215


Tarzan sorriu, ao ver isso, porque sabia que eles não
poderiam levar o marfim para muito longe. Então viu uma coisa
que o preocupou: alguns dos Manyuemas acendiam archotes no que
restava da fogueira. Iam lançar fogo à aldeia.
Tarzan estava empoleirado numa árvore gigantesca, a uns cem
metros da paliçada. Pondo ambas as mãos em concha, de ambos os
lados da boca, gritou poderosamente, em língua árabe:
- Não incendeiem as cubatas, ou morrerão todos! Não
incendeiem as cubatas ou todos serão destruídos!
Repetiu várias vezes o aviso. Os Manyuemas hesitaram, e um
deles atirou o archote para as brasas da fogueira. Os outros
iam fazer o mesmo quando um árabe saltou para o meio deles,
batendo-lhes com um cacete e empurrando-os na direcção das
cubatas. Tarzan compreendeu que o bandido incitava os canibais
a lançarem fogo à aldeia. Então ergueu-se, de pé sobre um
tronco a trinta metros de altura, e apontando cuidadosamente
uma das espingardas de que se havia apoderado, disparou. Com a
detonação, o árabe que queria o incêndio das cubatas caíu para
trás, morto... e então os Manyuemas largaram os archotes e
fugiram. Tarzan viu-os pela última vez quando corriam para a
selva... enquanto os esclavagistas árabes, de joelho em terra,
faziam fogo sobre eles.
Mas, embora furiosos com a desobediência e deserção de uma
parte dos seus escravos, os árabes compreenderam que seria
mais sensato desistir de incendiar a aldeia onde tinham sido,


216


por diversas vezes, vítimas da sua cobiça pelo marfim.
Entretanto, intimamente, juraram que voltariam em tão grande
número que não deixariam ninguém com vida, em toda aquela
região. Debalde procuráram de onde viera a voz ameaçadora e o
tiro mortal, mas nenhum deles conseguiu descobrir fosse o que
fosse. Haviam disparado repetidas vezes na direcção de onde
vieram os tiros, sem resultado visível.
Tarzan era demasiado inteligente para se deixar surpreender.
Mal havia disparado, saltara para o chão e correra a
empoleirar-se no alto de outro tronco, alguns metros mais
longe. Daí voltou a observar os preparativos de partida dos
ladrões do marfim, Pensando que podia divertir-se ainda mais à
custa deles a gritar, utilizando o seu improvisado porta-voz:
- Larguem o marfim! Os mortos não precisam de marfim!
Alguns dos Manyuemas dispuseram-se logo a aliviar as suas
cargas, mas isso era demasiado para os árabes. Com brados e
pragas, apontaram as armas para os carregadores, ameaçando de
morte imediata aquele que largasse o seu fardo. Podiam ter
desistido de incendiar a aldeia... mas a ideia de abandonar
aquela fortuna em marfim excedia a sua capacidade e preferiam
a morte. assim, partiram da aldeia dos Waziris, e sobre os
ombros dos seus escravos levavam, em marfim, o resgate de
vinte reis.


217


Encaminharam-se para o Norte, na direcção da região enorme e
praticamente desconhecida onde viviam, para além do Congo, nas
profundidades da Grande Floresta. Mas, de cada lado deles,
caminhava um inimigo invisível e implacável.
Comandados por Tarzan, os guerreiros Waziris haviam-se
postado ao longo da trilha, de ambos os lados, no mato denso.
Estavam emboscados a largos intervalos entre uns e outros, e
quando a coluna passava, uma flecha, ou uma pesada lança, bem
apontadas, derrubava um Manyuema ou um árabe. Então o Waziri
que havia disparado desaparecia rapidamente e ia postar-se
mais longe. Só atacavam quando tinham a certeza de acertar, e
o perigo de serem descobertos era quase inexistente. Assim, as
lanças e flechas eram lançadas de longe em longe, mas com tal
pontaria e insistência que a lenta coluna de árabes e
carregadores caminhava num estado de permanente pânico -
pânico ante o corpo de um compa nheiro que bruscamente tombava
- pânico ante a incerteza de quem seria o próximo a morrer, e
quando...
Era com grande dificuldade que os árabes impediam os negros
de largarem os fardos e fugirem como coelhos assustados, para
o Norte, ao longo da trilha. O dia foi-se escoando - um dia de
terrível pesadelo para os ladrões do marfim - um dia de
fatigante mas compensadora luta para os Waziris. À noite, os
árabes construíram um tosco abrigo com ramos espinhosos, numa
clareira junto ao rio, e acamparam.


218


A intervalos, no decurso da noite, uma espingarda disparava
a curta distância, por cima deles... e caía uma de muitas
sentinelas que haviam colocado em volta... para não mais se
levantar. A situação era insustentável. Os árabes compreendiam
que aquela táctica terrível acabaria por dizimá-los, a todos,
um de cada vez, sem que eles pudessem sequer avistar o
inimigo. Mas a cobiça teimosa dos esclavagistas fazIa com que
se agarrassem desesperadamente ao produto do seu roubo. Ao
amanhecer, forçaram os desmoralizados Manyuemas a carregar os
seus fardos de morte e a continuar a caminhada.
Durante três dias, a coluna, pouco a pouco menos numerosa,
prosseguiu na sua marcha apavorante. hora era marcada pelo
golpe certeiro de uma bala ou de uma flecha. As noites eram de
terror. A invisível espingarda continuava a sua tarefa... e
ficar de guarda equivalia a uma sentença de morte. Na manhã do
quarto dia os árabes foram forçados a matar dois dos
carregadores, antes de conseguirem que os restantes pegassem
nos fardos do marfim. Nesse momento uma voz fez-se ouvir, e
forte, vinda da selva:
- Hoje morrerão, Manyuemas, a não ser que larguem o marfim.
Ataquem os vossos amos e matem-nos. Têm espingardas... por que
não se servem? Matem os árabes e nós não lhes faremos mal!
Dar-lhes-emos comida e deixá-los-emos voltar para as vossas
terras, em paz e segurança! Larguem o marfim e ataquem os
árabes! Nós os ajudaremos! Se não fizerem isto, todos
morrerão!


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Quando a voz se calou, os ladrões do marfim ficaram imóveis,
como petrificados. Os árabes olhavam para os seus escravos...
os escravos olharam uns para os outros, à espera de que um
deles tomasse a iniciativa. Os árabes que restavam eram uns
trinta, os negros serca de cento e cinquenta. Todos estavam
armados - mesmo os carregadores levavam as espingardas ao
ombro.
Os árabes juntaram-se. O xeque ordenou aos Manyuemas que
recomeçassem a caminhar, e ao dar a ordem engatilhou a
espingarda e levantou-a. Mas, no mesmo instante, um dos negros
atirou para o chão a sua carga, empunhou a espingarda e
disparou quase à queima-roupa sobre o grupo de esclavagistas.
No momento seguinte o acampamento transformou-se num inferno,
onde um confuso bando de demónios lutava servindo-se de facas,
espingardas e pistolas. Os árabes mantiveram-se unidos e
defenderam-se corajosamente, mas sob a chuva de balas que os
escravos disparavam sobre eles... e as lanças e flechas que,
da selva, os alvejavam, não podiam restar dúvidas, desde o
primeiro minuto, sobre qual seria o desenlace. Um quarto de
hora depois do primeiro escravo ter disparado a sua arma, o
último árabe estava morto.
Quando o combate terminou, Tarzan voltou a falar aos
Manyuemas:
- Carreguem o marfim e voltem para trás! Vão pô-lo onde o
encontraram! Não lhes faremos mal.
Por instantes, os Manyuemas hesitaram. Não se sentiam com
ânimo para refazer, em sentido contrário aquela penosa marcha


220


de três longos dias. Falavam em voz baixa,, uns com os outros,
até que um bradou, voltado para a selva de onde viera a grande
voz:
- Quem és tu, que falas a língua dos árabes, nossos amos?
Mostra-te, e então terás a nossa resposta!
Tarzan surgiu da floresta, a dez passos deles.
- Olhem... - disse.
Quando viram que era um branco, os negros juntaram-se porque
nunca tinham visto, antes, um selvagem de raça branca. O vulto
gigantesco e os grandes músculos encheram-nos de admirativo
pasmo.
- Terão de confiar em mim... - continuou Tarzan. - Desde que
façam o que eu Lhes disser e não tentem atacar o meu povo,
nenhum mal lhes será feito. Querem carregar o marfim e
levá-lo, em paz, à nossa aldeia... ou continuamos a seguir a
trilha para o Norte, como a seguimos nos últimos três dias?
A recordação dos três horríveis dias foi o que convenceu os
manyuemas, Assim, depois de terem falado apressadamente uns
com os outros, retomaram os fardos e recomeçaram a caminhar,
mas agora na direcção da aldeia dos Waziris. Ao cabo do
terceiro dia entraram na aldeia e foram recebidos pelos
sobreviventes da recente chacina... Tarzan mandara um
mensageiro ao acampamento provisório, no Sul, avisando-os de
que podiam estar em segurança.
Foi preciso todo o domínio e todo o poder de persuasão de
Tarzan, para que os Waziris não se lançassem,

221


com unhas e dentes, sobre os Manyuemas, e os fizessem em
pedaços. Mas quando Tarzan explicou que havia dado a sua
palavra de que nenhum mal seria feito aos carregadores... se
eles levassem o marfim para a aldeia de onde o tinham roubado
- e afirmou claramente que lhe deviam por inteiro a vitória
alcançada - então acalmaram-se e deixaram que os canibais
descansassem no interior da paliçada.
Nessa noite os guerreiros Waziris tiveram uma grande
reunião, para festejar a vitória e escolher um novo chefe.
Desde a morte do velho Waziri... Tarzan tinha-os dirigido na
luta, e o comando havia-lhe sido tacitamente concedido. Não
tinham tido tempo para escolher um novo chefe, entre os homens
da tribo, e, na verdade haviam conseguido tantos êxitos sob as
ordens de Tarzan, que não tinham desejado delegar noutro a
suprema autoridade, com receio de perderem o que haviam ganho
até então. Muito recentemente tinham podido ver os desastrosos
resultados de não seguirem os conselhos do selvagem branco
como na furiosa carga ordenada por Waziri, em que ele próprio
morrera e muitos guerreiros haviam sucumbido.
Os principais guerreiros sentaram-se em círculo em redor de
uma pequena fogueira, para discutirem os relativos méritos de
quem pudesse ser designado como sucessor do velho Waziri. Foi
Busuli o primeiro a falar:
- Visto que Waziri morreu sem deixar um filho, há apenas um,
entre nós, que sabemos por experiência estar apto a ser um bom
rei. Apenas um demonstrou que pode conduzir-nos vitoriosamente


222


contra as armas de fogo dos árabes, e fazer-nos triunfar sem
perda de uma só vida. Há apenas um, e esse é o que nos tem
comandado durante os últimos dias... - e Busuli levantou-se de
um salto, erguendo a lança, curvando o corpo, e começou a
dançar lentamente em volta de Tarzan, cantando ao ritmo dos
próprios passos:


Waziri rei dos Waziris!
Waziri, vencedor dos árabes!
Waziri, rei dos Waziris!


Um a um, os outros guerreiros demonstraram que aceitavam
Tarzan como rei, levantando-se e juntando-se à dança. As
mulheres vieram e, sentadas em volta do círculo formado pelos
guerreiros, começaram a fazer soar os tam-tans, batendo palmas
no meio da dança e fazendo eco aos cantos dos homens. Dentro
do círculo estava sentado Tarzan dos Macacos - Waziri, rei dos
Waziris, porque, como o seu antecessor, iria tomar como seu o
nome da sua tribo. Cada vez mais rápidos eram os passos dos
dançarinos, cada vez mais fortes eram os seus brados. As
mulheres levantaram-se e fizeram coro, gritando o que podiam.
Brandiam-se lanças ferozes, e, quando os guerreiros se
curvavam para bater com escudos na terra endurecida, o
conjunto era terrivelmente primitivo e selvagem - como uma
cena da madrugada do mundo, no fundo de incontáveis idades.
Envolvido e arrastado pela excitação geral, Tarzan
levantou-se de um salto e juntou-se à selvática dança No
centro do círculo de corpos negros, saltou, e rugiu, e brandiu
a sua pesada lança,


223


com a mesma entrega total à espécie de loucura que agitava os
seus selvagens companheiros. Os últimos restos da sua
civilização foram esquecidos - era realmente, agora, um homem
primitivo, gozando a liberdade da vida feroz e bravia que na
verdade preferia, orgulhoso do seu reino sobre os guerreiros
negros da floresta.
Se Olga de Coude pudesse vê-lo naquele momento - poderia ela
reconhecer o jovem calmo, bem vestido, cujo aspecto delicado e
irrepreensíveis maneiras tanto a haviam cativado apenas alguns
meses antes? E Jane Porter! Teria ela amado ainda aquele
selvagem chefe de guerreiros, dançando, nu, entre os seus
súbditos nus? E d'Arnot! Poderia d'Arnot acreditar que aquele
era o mesmo homem que apresentara em meia dúzia dos mais
elegantes clubes de Paris? Que diriam os seus pares da Câmara
dos Lordes, se alguém lhes apontasse aquele dançarino gigante,
com um toucado bárbaro e adornos de metal, e declarasse que se
tratava de John Clayton, Lord Greystoke...?
E assim Tarzan dos Macacos se tornou um autêntico rei entre
os homens - seguindo lenta mas seguramente a evolução dos seus
antepassados... por que começara a partir do mais baixo
escalão da humanidade... da apenas quase-humanidade dos
antropóides...


224


CAPÍTULO 18


A lotaria da morte


Jane Porter tinha sido a primeira, entre os que iam no
escaler, a acordar na manhã seguinte ao naufrágio do "Lady
Alice", Os outros membros do grupo dormiam sobre os bancos, ou
dobrados em posições forçadas no fundo do bote .Quando a jovem
compreendeu que estavam completamente separados dos outros
escaleres, encheu-se de receio. A sensação de completo
isolamento e total impotência no meio da imensa vastidão do
mar era tão depressiva que, desde o primeiro momento, o futuro
lhe apareceu sem o menor raio de esperança. Considerava que
estavam perdidos - perdidos para além de qualquer
possibilidade de socorro.
Depois, acordou Clayton. Foi preciso que decorressem alguns
minutos para ele ter a noção de onde estava, e recordar o
desastre da noite anterior. Por isso, os seus olhos espantados
fitaram-se na jovem...
- Jane!... - exclamou ele. - Graças a Deus que estamos
juntos!
- Veja... - volveu ela, sombriamente, apontando o horizonte
em volta, num gesto apático. - Estamos sós...
observou o mar, em todas as direcções.
- Onde poderão eles estar?... - exclamou.


225


Não podiam ter-se afundado, porque o mar está calmo e todos
flutuavam ontem, depois do naufrágio do iate... vi-os a tOdOS.
Acordou os outros membros do grupo e expôs-lhes a situação.
- Talvez fosse bom que os botes se dispersassem, sir... -
respondeu um marinheiro. - Todos têm provisões. Portanto nesse
aspecto não precisamos uns dos outros... e se houver
tempestade nada poderíamos fazer para nos ajudar mutuamente,
estando juntos. Dispersos, há uma maior possibilidade de que
algum seja visto por um navio, e então os restantes seriam
logo procurados. Juntos teríamos apenas uma probabilidade de
sermos socorridos... Assim, temos quatro.
Compreenderam as razões do homem e isso animou-os, mas a
relativa alegria foi de curta duração. Quando tomaram a
decisão de remar para Leste, na direcção do continente negro,
descobriram que os marinheiros, que haviam tomado conta dos
dois únicos remos, se haviam deixado vencer pelo sono. Os
remos haviam-se perdido, e ninguém conseguiu avistá-los sobre
a água.
Durante as recriminações e censuras que se seguiram, os
marinheiros quase se envolveram à pancada, mas Clayton
conseguiu acalmá-los... embora, momentos depois, Thuran quase
provocasse outra explosão de cólera ao fazer um ácido
comentário sobre a estupidez dos ingleses em geral, e dos
marinheiros ingleses em particular.


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- Vamos, vamos, rapazes... - disse por fim um dos
marinheiros, de nome Tompkins. - Arranjar desordem não nos
conduz a nada. Como Spider disse, havemos de ser avistados por
algum navio... e se assim não for, também não adianta gritar.
Vamos mas é comer alguma coisa.
- Não é má ideia... - declarou Thuran. E, voltando-se para o
terceiro marinheiro, chamado Wilson, comentou: - Dê-me daí uma
dessas latas, homem!
- Vá você buscá-la... - ripostou Wilson, com mau modo. - Não
recebo ordens de estrangeiros... não é o capitão deste bote.
O resultado foi que Clayton teve de ir buscar a lata e então
surgiu outra altercação quando um dos marinheiros acusou
Clayton e Thuran de estarem combinados para dispor das
provisões e Ficar com a parte melhor.
- Alguém tem de tomar o comando deste bote...! - Interveio
Jane Porter, angustiada pelas animosidades que surgiam entre
os forçados companheiros de aventura - uma aventura e uma
companhia que iriam durar vários dias.
- É já bastante mau estarmos perdidos no Atlântico, dentro
deste frágil barco sem termos de acrescentar perigos e
desgraças como as constantes discussões entre os membros do
grupo.... Vocês, homens, devem escolher um chefe que tomará as
suas decisões em todas as circunstâncias. A disciplina ainda é
mais necessária aqui do que num barco bem apetrechado.
Antes de falar, Jane tinha esperado que tal intervenção não
fosse necessária, pois supunha Clayton capaz de enfrentar


227


qualquer emergência - mas tinha de reconhecer que, pelo menos
até então, ele não demonstrara maiores possibilidades do que
qualquer dos outros, para dominar a situação. Apenas havia
evitado que as coisas se complicassem mais, indo até ao ponto
de entregar aos marinheiros a lata que eles não queriam que
fosse aberta por ele.
As palavras da jovem sossegaram temporariamente os homens.
Foi decidido que os dois pequenos barris de água, e as quatro
latas de conserva, seriam divididas em duas partes, uma para
os três marinheiros, que dela fariam o que quisessem, e a
outra para os três passageiros.
Assim o pequeno grupo ficou dividido em dois campos, e
quando cada campo se apossou das provisões que lhe cabiam,
logo se apressaram a distribuir entre os seus componentes
comida e água. Os marinheiros foram os primeiros a abrir uma
das latas de comida... e as pragas de desapontamento e raiva
fizeram com que Clayton perguntasse que complicação havia.
- Complicação... - grunhiu Spider. - Complicação! É pior do
que isso... é morte! Esta... lata está cheia de petróleo!
Apressadamente, Clayton abriu também uma das latas... e
verificaram a espantosa verdade de que também continha
petróleo, não comida. Uma a uma, as quatro latas foram
abertas... e quando o seu conteúdo foi conhecido... uivos de
raiva iniciaram a catástrofe... Não havia absolutamente que
comer, no escaler!


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- Graças a Deus que não foi a água... - disse Tompkins. - É
mais fácil aguentar a falta de comida que a falta de água.
Podemos comer os sapatos se o pior acontecer, mas não
poderíamos bebê-los...
Enquanto Tompkins falava, Wilson tinha feito um buraco num
dos barris de água, Spider aproximou um púcaro de lata e
colocou-o sob o orifício, enquanto Wilson inclinava
ligeiramente o barril. Um delgado fio de pequenas partículas
secas e escuras caía lentamente da abertura e cobriu o fundo
do púcaro. Com um grunhido, Wilson largou o barril e ficou a
olhar, mudo de pavor.
- Os barris estão cheios de pólvora... - disse ele, em voz
rouca, olhando para os outros.
Eram dois barris com pólvora - como verificaram assim que
abriram o segundo.
- Petróleo e pólvora.. - exclamou Thuran. - Que inferno! Que
dieta para náufragos!
O facto de não haver a bordo comida nem água, fez que a fome
e a sede se tornassem subitamente mais dolorosas... e assim o
primeiro dia da sua aventura anunciou os sofrimentos que iam
seguir-se. Todo o horror do naufrágio caiu sobre eles.
Com a passagem dos dias, a situação tornou-se dolorosa.
Olhos vermelhos, doridos, fitavam o horizonte dia e noite, até
que os vigias, esgotados e esfomeados, se deixavam cair no
fundo do escaler, numa sonolência cheia de pesadelos que, no
entanto, era uma espécie de descanso, comparada com a
realidade.


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Os marinheiros, cedendo às dolorosas solicitações da fome,
mastigaram e engoliram os cintos, os sapatos e até as tiras de
cabedal, interiores, dos bonés... embora Clayton e o próprio
Thuran os avisassem por todas as formas de que isso só
contribuiria para agravar o seu sofrimento.
Fracos e sem esperança, todos os componentes do grupo jaziam
sob o impiedoso sol tropical, com os lábios gretados e a
língua inchada, esperando a morte que já começavam a desejar.
O intenso sofrimento dos primeiros dias tinha-se atenuado para
três passageiros que nada haviam ingerido, mas a agonia dos
marinheiros era horrível - enquanto estômagos sem força
tentavam digerir os bocados de cabedal com que eles os haviam
enchido. Tompkins foi o primeiro a sucumbir. Uma semana depois
do naufrágio do "Lady Alice", o marinheiro morreu
horrivelmente, em pavorosas convulsões. Durante horas, as suas
feições contorcidas e medonhas pareceram rir para os que
estavam à popa do escaler... até que Jane Porter não pôde
suportar aquilo por mais tempo.
- Pode... lançar esse corpo ao mar... William? - pediu ela.
Clayton levantou-se penosamente e cambaleou na direcção do
corpo. Os outros dois marinheiros olhavam-no com expressões
estranhas. Mas foi em vão que o inglês tentou empurrar o
cadáver para o mar. Não tinha forças que chegassem para tanto.
- Ajude-me... por favor... - pediu ele a Wilson, que era
quem estava mais perto.


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- Para que quer empurrá-lo. - Murmurou o marinheiro, com voz
rouca.
- Temos de o fazer... antes de estarmos demasiado frácos
para isso... - respondeu Clayton.
- Amanhã estará horrível... depois de um dia sobre este sol.
- Mais vale deixá-lo... - rosnou Wilson, - Talvez precisemos
dele antes de amanhã.
Lentamente, a significação das palavras do marinheiro
penetrou no entendimento de Clayton... e por fim compreendeu
por que razão ele se opunha a que o corpo fosse atirado à
água.
- Céus... - murmurou, horrorizado. - Não quer dizer que...
- Por que não?... - volveu Wilson. - Nós temos de viver... e
ele está morto... Para ele é o mesmo...
- Ajude-me, Thuran... - disse Clayton, voltando-se para o
russo. - Teremos a bordo, alguma coisa pior do que a morte...
se não lançarmos este corpo ao mar.
Wilson levantou-se, ameaçador, para impedir Thuran de ajudar
Clayton, mas quando Spider tomou o partido dos passageiros,
voltou a sentar-se, olhando com uma expressão de fome,
pavorosa de ver, para o cadáver. Os outros três, reunindo
forças, conseguiram por fim lançar à água o pobre Tompkins.
Durante todo o resto do dia Wilson ficou a fitar Clayton com
olhos de demente. Ao anoitecer pôs-se a falar consigo mesmo
sem desfitar Clayton. DePois de cair a noite,, o inglês
continuou a sentir aqueles olhos terríveis fitos nele.


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Não se atrevia a dormir... e no entanto estava tão exausto que
tinha de se vigiar constantemente para não sucumbir ao sono.
Depois do que lhe pareceu uma eternidade de sofrimento...
acabou por encostar a cabeça a um banco, e adormeceu. Não
sabia quanto tempo havia estado inconsciente, quando ouviu
junto dele uma respiração ofegante, que o acordou. A lua
subira no horizonte, permitindo-lhe ver Wilson que se
debruçava sobre o seu pescoço, de boca aberta.
O ligeiro ruído acordara ao mesmo tempo Jane Porter, e ao
ver a cena medonha a jovem soltou um grito... no instante em
que Wilson caía pesada mente sobre Clayton, tentando
cravar-lhe os dentes na garganta. Clayton, embora esgotado,
teve ainda força bastante para empurrar o demente.
O grito de Jane acordara Thuran e Spider. Compreendendo o
que acontecia, os dois homens rastejaram e ajudaram Clayton a
dominar Wilson, deitando-o no fundo do escaler. Durante dois
ou três minutos o marinheiro ficou a rir-se e a balbuciar
palavras sem nexo... mas de repente, antes que os outros
pudessem adivinhar-lhe a intenção, levantou-se e atirou-se à
água.
A reacção, depois da terrível tensão nervosa, deixou os
outros trémulos e prostrados. Spider começou a soluçar
perdidamente... Clayton praguejava entre dentes... Thuran
ficou sentado, com a cabeça e entre as mãos, a pensar. O
resultado dessa meditação foi a proposta que, na manhã
seguinte, fez a Spider e a Clayton.


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- Senhores... - disse ele - ... já sabem o destino que nos
espera, a todos, a não ser que sejamos socorridos dentro de um
dia ou dois. As esperanças de que isso aconteça são
escassas... como o prova o facto de... durante todos estes
dias em que temos andado à deriva, não termos visto uma só
vela... um só penacho de fumo em todo o horizonte.
- Talvez pudesse ainda haver alguma esperança se tivéssemos
comida...
mas sem comida não há esperança nenhuma. Para nós, portanto,
ficam duas alternativas e dessas duas temos de escolher uma,
sem mais demora. Ou morreremos todos dentro de alguns dias, ou
um de nós terá de ser sacrificado para que os outros vivam.
Compreendem bem o que eu quero dizer?
Jane Porter, que ouvira tudo, estava horrorizada. Se a
proposta tivesse partido do pobre marinheiro delirante, talvez
ela não ficasse surpreendida. Mas saída de um homem que
aparentava cultura e civilização, de um homem que parecia um
gentleman... aquilo parecia inacreditável.
- É melhor morrermos juntos, então... - volveu Clayton.
- Essa decisão terá de ser tomada por maioria... - replicou
Thuran. - Visto que apenas um de nós poderá ser sacrificado,
nós resolveremos. Miss Porter não está interessada, visto que
não está em condições.
- E como vamos saber quem será o primeiro?... - perguntou
Spider.
- O caso pode ser decidido pela sorte... - declarou Thuran.


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- Tenho algumas moedas de um franco, no bolso. Poderemos
escolher uma data de cunhagem, entre elas... e o primeiro que
tirar a moeda com essa data, de sob uma peça de roupa... será
o primeiro a morrer.
- Não quero ter nada a ver com um plano diabólico como
esse... - murmurou Clayton. - Podemos ainda avistar terra, ou
pode aparecer um navio... a tempo.
- Terá de fazer o que a maioria decidir... ou então será o
primeiro, dispensando as formalidades da lotaria... - replicou
Thuran, ameaçador. - Vamos votar o plano. Eu sou a favor,
evidentemente. Que diz você, Spider?
- Eu também...
- Temos portanto a decisão da maioria... e agora vamos tirar
à sorte, sem perder tempo. Pode calhar a qualquer. Para que
três vivam, um de nós tem de morrer... talvez apenas umas
horas mais cedo do que morreria em qualquer outro caso...
Então Thuran começou os preparativos para a lotaria da
morte, enquanto Jane Porter olhava. apavorada ao pensar no que
ia acontecer. Thuran estendeu o casaco no fundo do barco, e de
um punhado de moedas escolheu seis, de um franco.
Os outros dois homens curvaram-se por sobre os ombros do
russo, enquanto ele examinava as moedas.
Por fim, ele entregou-as a Clayton.
- Observe-as com atenção... - disse o russo.
A data mais antiga é de 1875, e desse ano só há uma.
Clayton e o marinheiro observaram cada uma das moedas.


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Para eles não havia entre elas qualquer diferença que pudesse
ser notada, exceptuando as datas. Ficaram convencidos disso...
mas se tivessem conhecido o passado de Thuran, como jogador e
traiçoeiro, não julgariam o mesmo. O russo tinha desenvolvido
uma sensibilidade especial, na ponta dos dedos... e a moeda de
1875 era quase imperceptivelmente mais delgada do que as
outras, decerto em consequência de um uso mais longo.
- Em que ordem devemos tirar as moedas?... - Perguntou
Thuran, sabendo por segura experiência que a grande maioria
dos homens prefere sempre ter a última oportunidade numa
lotaria cujo único prémio é qualquer coisa desagradável. - há
sempre a hipótese e a esperança de que outro o apanhe
primeiro. Por motivos especiais Thuran queria ser o primeiro,
mesmo, ou até sobretudo, se fosse necessário fazer segunda
tiragem. Assim, quando Spider declarou que queria ser o
último, Thuran ofereceu-se graciosamente para começar. Meteu a
mão sob o casaco e demorou-a apenas um instante, mas os seus
dedos rápidos e hábeis encontraram a moeda fatal, e
repeliram-na. Depois, foi a vez de Clayton. Jane Porter
olhava, com uma expressão horrorizada e tensa, Clayton retirou
a mão, rodando entre os dedos uma das moedas. Por um instante
não se atreveu a olhar, mas o sr. Thuran, que se aproximara
para ver a data, disse-lhe que não... deixou-se cair para
trás, num banco. Se Spider não tirasse a moeda de 1875,


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toda a horrível cena teria de ser repetida.
O marinheiro meteu a mão por debaixo do casaco. Tremia como
se tivesse um acesso de febre. Praguejou em voz alta contra si
mesmo por ter querido ser o último, pois agora as suas
possibilidades de se salvar eram de três para uma, ao passo
que Thuran tivera cinco contra uma, e Clayton quatro contra
uma.
O russo mostrou-se paciente, não apressou o homem. Sabia que
estava seguro, quer a moeda sur gisse agora ou depois. Quando
o marinheiro retirou a mão e ólhou para a moeda, caiu
desmaiado. Clayton e Thuran olharam... Não era a moeda de 1875
- a reacção consequente do medo derrubara Spider, tão
efectivamente como se fosse ele a vítima designada pela sorte.
Era preciso recomeçar, visto que havia ainda três moedas sob
o casaco... e uma delas era a 1875. Mais uma vez o Russo tirou
uma... e viu que estava salvo. Jane Porter fechou novamente os
olhos... e Spider abriu-os desmedidamente, olhando A sorte que
ia decidir-se naquele instante, Qualquer que fosse a moeda
retirada por Clayton... a outra pertenceria a Spider.
Então William Cecil Clayton retirou a mão fechada, dentro da
qual estava o seu destino. FOI para Jane, sem se atrever a
abrir a mão.
- Depressa!... - gritou Spider. - Por favor, mostre isso!
Clayton abriu os dedos, Spider viu... e antes de mais,


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sem que ninguém lhe adivinhasse as intenções... lançou-se à
água e desapareceu na sempre verde profundidade do mar, - a
moeda, de Clayton não era a de 1875.
A tensão esgotara de tal maneira os restantes, que ficaram
caídos, meio inconscientes, durante todo o dia. Nem no dia
seguinte, nem no outro, voltaram a falar na lotaria da morte.
A fraqueza e o desespero aumentavam a cada minuto. Por fim,
Thuran arrastou-se para junto de Clayton.
- Temos... de tirar à sorte... mais uma vez... antes de
estarmos fracos de mais... para podermos COmer...
Clayton encontrava-se em tal estado que não era senhor da
sua vontade. Nos últimos três dias Jane não pronunciara uma
única palavra... e Clayton sabia que ela estava a morrer. Por
muito horrível que fosse o pensamento o inglês esperava que o
sacrifício de Thuran, ou dele próprio, serviria para que a
jovem ganhasse novas forças... Concordou com a propósta do
russo.
Faria o mesmo que haviam feito da vez anterior, mas só podia
haver um resultado - Clayton tirar a moeda de 1875.
- Quando... vai ser... - perguntou ele a Thuran. O russo
conseguira tirar um canivete do bolso, estava a tentar
abri-lo, quase sem forças para isso.
- Agora... - disse ele, fitando o inglês.
- Não pode... esperar que... seja noite?...


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perguntou Clayton. - Miss Porter... não deve ver... Nós...
íamos casar... sabe?
Thuran olhou-o, com um desapontamento flagrante. Por fim
disse, hesitante:
- Está bem... não tardará a anoitecer... Esperei muitos
dias... posso esperar... umas... horas...
- Obrigado... - murmurou Clayton. - Vou... para junto
dela... e lá estarei... até que chegue... o momento...
Quando Clayton se arrastou para junto da jovem ela estava
inconsciente - mas ele sabia que estava a morrer... e quase se
sentiu satisfeito por não ter de assistir à tragédia final.
Pegou na mão de Jane e levou-a aos lábios inchados e
gretados... Depois, durante longos minutos, continuou a
acariciar lentamente aquela mão lívida, tão magra... que fora
dias antes a linda mão de uma bela jovem de Baltimore.
Anoiteceu sem que Clayton desse por isso... mas ouviu a voz
de Thuran, na escuridão... O russo chamava-o para morrer.
- Sim... eu vou... - murmurou Clayton.
Por três vezes tentou erguer-se sobre as mãos. e os
joelhos... rastejar para a morte, mas durante as últimas horas
enfraquecera de tal maneira que não conseguia mover-se.
- Tem... de vir aqui... - sussurrou. - Não posso...
mexer-me... de onde estou...
- Quer roubar-me... o que eu ganhei... - volveu o russo, num
tom onde transparecia a raiva.


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Clayton ouviu-o forcejar no fundo do bote. E tentar... e
dizer, por fim:
- Não posso... rastejar... Roubaste-me... porco inglês...
- Não... quero roubá-lo... - gemeu Clayton. - Vou tentar...
outra vez...
Clayton fez nova tentativa... e ouviu que Thuran
diligenciava também aproximar-se. Ao cabo de uma tentativa
conseguiu apoiar-se nos joelhos, mas para cair de novo. Um
momento depois ouviu a voz de Thuran:
- Eu... vou aí...
Clayton desejaria enfrentar a morte de pé... mas era
impossível... Caiu de costas, em consequência do último
esforço... e ficou imóvel, a olhar para as estrelas. Sentia
que o russo se ia aproximando, polegada a polegada... Já não
estava muito longe, mas os esforços que fazia eram cada vez
mais fracos e espaçados... Por fim, Clayton teve a impressão
de que Thuran estava junto dele. Ouviu um riso débil e
estranho... Alguma coisa lhe tocou na cara. Desmaiou.


CAPÍTULO 19


A cidade de oiro


nA noite em que Tarzan se tornou chefe dos Waziris, a
mulher a quem ele amava jazia, moribunda, no fundo de um
pequeno bote, perdido a duzentas milhas de distância,


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em pleno Atlântico. Enquanto ele dançava entre os selvagens
nus, a luz da fogueira ia iluminar os seus grandes músculos,
personificação da força e da perfeição física, a mulher a quem
amava ia mergulhando nas últimas fases do estado comatoso que
precede a morte pela sede e pela fome.
Na semana que se seguiu, Tarzan, rei dos Waziris, esteve
ocupado, com os seus guerreiros, em acompanhar os Manyuemas
até ao limite norte dos territórios da tribo, conforrme a
promessa feita e a palavra dada. Antes de os deixar seguir,
exigiu dos canibais o juramento de que não voltariam -
juramento que os Manyuemas não hesitaram em fazer. Tinham tido
súficiente experiência da capacidade guerreira do novo rei dos
Waziris, para que não lhes restasse o menor desejo de
acompanhar outro bando de ladrões.
Quase imediatamente após o seu regresso à aldeia, Tarzan
começou a fazer preparativos para conduzir uma expedição em
busca das ruínas da cidade de oiro que o velho Waziri lhe
descrevera. Escolheu cinquenta dos mais robustos guerreiros da
tribo, recrutando-os apenas entre voluntários que queriam
acompanhá-lo na longa e dura jornada, dispostos a compartilhar
os perigos de uma região nova e hostil.
As fabulosas riquezas da cidade lendária tinham estado quase
permanentemente no espírito de Tarzan desde que Waziri lhe
narrara as estranhas aventuras da primeira expedição, que
apenas por acaso encontrara as grandes ruínas. A atracção da
aventura era um factor tão poderoso, influindo sobre Todos


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os que tentassem a jornada, como a atracção do oiro. Mas a
atracção do oiro existia também, porque ele aprendera, com os
homens civilizados, todas as coisas sobre os milagres que
podem ser conseguidos pelos possuidores do metal amarelo. o
que ele podia fazer com uma fortuna em oiro, no coração da
selva africana, era coisa em que não havia pensado - seria
suficiente ter o oiro e o seu poder miraculoso, ainda que
nunca tivesse a oportunidade de o utilizar.
Assim, numa esplendorosa manhã tropical, Tarzan - Waziri,
rei dos Waziris - partiu à frente de cinquenta fortes
guerreiros de ébano, em busca de aventuras e de riqueza.
Seguiram o caminho que o chefe Waziri descrevera. Durante
muitos dias caminharam - subindo um rio, transpondo uma série
de altas montanhas, descendo outro rio e subindo um outro -
até que ao fim do vigésimo quinto dia, param no flanco de uma
montanha... do alto da montanha esperavam poder avistar, pela
primeira vez, a maravilhosa cidade do tesouro, Quando, na
manhã seguinte, escalaram a penedia vertical que constituía a
última e maior das fronteiras naturais entre eles e o seu
destino. Pouco passava do meio-dia, Tarzan, que ia à frente da
fila de trepadores, alcançou o ponto mais alto da última e
pisou o pequeno planalto. De ambos os lados se erguiam
píncaros enormes, i centenas de metros mais altos do que
aquele que tinham acabado de transpor, para trás alongava-se a
floresta, no vastíssimo vale através do qual tinham caminhado
durante muitos dias, e mais além, nos confins do horizonte,


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as montanhas menores que marcavam os limites do território dos
Waziris.
Mas em frente estava o que prendia a atenção de Tarzan. Era
um vale estreito, árido, pouco fundo e desolado, onde havia
apenas pequenas árvores e grandes rochedos. E no extremo desse
vale erguia-se o que parecia ser uma grande cidade, com altas
muralhas, esguias torres, minaretes e cúpulas que tinham tons
de amarelo e de vermelho sob a luz do sol. Tarzan estava ainda
demasiado longe para ver os sinais de ruína - a cidade
parecia-lhe maravilhosa e bela, e na sua imaginação povoava as
largas avenidas e os vastos templos... com uma numerosa
multidão activa e feliz.
Durante cerca de uma hora, a pequena expedição descansou no
planalto, e só depois Tarzan guiou os seus guerreiros na
descida para o vale. Não havia qualquer trilha, mas o caminho
era menos difícil do que havia sido a subida pela face oposta
da montanha. Alcançado o vale, avançaram rapidamente, de
maneira que ainda havia luz quando pararam junto das altas
muralhas da velha cidade.
A muralha exterior tinha pelo menos quinze metros de altura,
nos sítios onde o tempo não havia deixado marcada, com ruínas,
a sua inexorável passagem. Constituía ainda uma formidável
defesa. Em certas ocasiões, Tarzan julgou ver vultos que se
moviam por detrás dos troços arruinados, como alguém que
espreitasse ao abrigo das pedras amolgadas. E frequentes vezes
teve a sensação de olhos invisíveis que o fitavam,


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mas nunca pôde ter a certeza de que fosse mais do que
imaginação sua. Nessa noite acamparam fora da cidade. Cerca da
meia-noite foram acordados por um forte grito que se fazia
ouvir por detrás das muralhas. Começou numa nota muito alta,
para depois descer gradualmente e terminar numa série de
gemidos lúgubres. Este grito teve um estranho efeito sobre os
guerreiros negros, paralisando-os de terror, enquanto durou...
decorreu mais de uma hora antes que se tranquilizassem e
voltassem a dormir. De manhã, no entanto, os efeitos do
lúgubre grito persistiam ainda, nos olhares de medo, furtivos,
que os Waziris lançavam constantemente na direcção da alta
muralha que se erguia diante deles. Foi preciso que Tarzan os
encorajasse e insistisse repetidas vezes, para evitar que os
negros desistissem ali mesmo da aventura e fugissem, através
do vale, para as penedias que haviam escalado na véspera. Por
fim, ameaçando-os de que entraria sozinho na cidade, conseguiu
que o seguissem.
Durante um quarto de hora caminharam ao longo da muralha,
antes de descobrirem a maneira de entrar. Então encontraram
uma estreita passagem, com cerca de um metro de largura. Nessa
passagem havia uma série de degraus de pedra, gastos por
grande uso, que subiam até desaparecer numa brusca curva,
alguns metros acima. Tarzan introduziu-se pela passagem,
caminhando rápido para que os seus largos ombros não o
impedissem de avançar. Os guerreiros caminhavam atrás dele.


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Na curva, em cima, onde os degraus terminavam havia um caminho
plano embora sinuoso e cheio de voltas. Ao cabo deste,
chegaram a uma espécie de estreito pátio, do outro lado do
qual se erguia uma segunda muralha, tão alta como a primeira.
Essa segunda muralha estáva encimada por pequenas torres, nos
intervalos das quais haviam sido colocadas pedras talhadas em
bico. Em vários pontos a muralha estava também em ruínas,
embora se mantivesse em muito melhor estado do que a outra.
Outra estreita passagem permitia atravessar a segunda
muralha, e ao transpô-la, Tarzan e os seus guerreiros viram-se
numa larga avenida ao fundo da qual se erguiam edifícios em
ruínas, feitos de granito cortado, escuros e sinistros. Por
entre os destroços, na parte da frente, tinham crescido
árvores, e as lianas e trepadeiras enrolavam-se nas janelas
vazias. Mas um dos edifícios, exactamente diante de Tarzan e
dos Waziris, parecia muito menos invadido pela vegetação, e
encontrava-se em muito melhor estado. Era uma construção
maciça, em pedra, e encimada por uma enorme cúpula. De cada
lado da entrada havia filas de altas colunas, em cujo cimo se
viam grotescas figuras talhadas na pedra, representando
grandes pássaros estranhos.
Enquanto o filho da selva e os seus companheiros olhavam,
pasmados, para a velha cidade que surgia assim no coração da
África selvagem, alguns deles notaram movimento dentro do
edifício para o qual òlhavam. Vultos vagos e escuros pareciam
movimentar-se na meia obscuridade interior.


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Não havia nada de concreto, que os olhos pudessem fixar -
apenas uma fantástica sugestão de vida onde parecia que podia
existir vida, pois que criaturas vivas pareciam deslocadas
naquela fantástica cidade morta... - resto de um passado há
muito desaparecido.
Tarzan lembrou-se de uma coisa que lera numa biblioteca de
Paris, sobre uma raça perdida, de homens brancos, que as
lendas indígenas diziam existir ali, no interior da selva
africana. Pensou se não estaria a olhar para as ruínas da
civilização que essa estranha gente erguera no ambiente
selvagem do continente Negro. Seria possível que sobreviventes
da raça perdida habitassem ainda as ruínas da grandeza que
fora dos seus antepassados?
Mais uma breve sensação de movimentos furtivos no interior
do edifício, talvez um templo, que se erguia diante dele.
- Venham!... - disse ele aos Waziris. - Vamos ver o que há
por detrás destas ruínas!
Os homens hesitaram, mas quando viram Tarzan transpor, na
frente deles, o escuro portal, seguiram a alguns passos de
distância, num passo que significava que o terror dificilmente
fora dominado. Um grito, tal como aquele que tinham ouvido na
noite anterior, bastaria para os fazer fugir em pânico,
correndo doidamente para a estreita passagem que conduzia,
através das muralhas, para o mundo exterior.
Quando entrou, Tarzan teve a nítida sensação de que muitos
olhos o observavam. Ouviu um rumor de pés descalços vindo de
um corredor próximo... e iria jurar ter visto dedos humanos,


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que largavam a aresta de uma abertura acima dele, que
comunicava com a cúpula da rotunda onde se encontrava.
O chão da grande sala circular era de pedra e as paredes de
granito cobertas de relevos representando estranhas figuras de
homens e de feras. Em vários pontos, placas de metal amarelo
pareciam solidamente fixadas nas paredes. Aproximando-se de
uma dessas placas, Tarzan viu que era feita de oiro e continha
numerosos hieróglifos. Para além daquela primeira sala havia
outras, e na parte de trás do edifício alongavam-se grandes
janelas. Tarzan atravessou várias das salas, encontrando
muitas provas da fabulosa riqueza dos seus construtores de
outros tempos. Numa das câmaras havia sete colunas de oiro
maciço, e numa outra era o chão que havia sido feito com o
precioso metal. Enquanto Tarzan ia avançando, seguido de perto
pelos Waziris num grupo assustado, estranhos vultos pareciam
pairar de ambos os lados, em frente e atrás deles, embora
nunca bastante perto para que os visitantes pudessem ter a
certeza de que não estavam sós.
A tensão, todavia, ia agindo sobre os nervos dos Waziris.
Suplicaram a Tarzan que voltasse para fora, para a luz do sol.
Disseram que nada de bom podia resultar daquela expedição,
porque as ruínas eram assombradas pelos espíritos dos mortos
que ali haviam habitado.
- Eles espreitam-nos... ó rei!... - sussurrou Busuli. -
Estão à espera até nos atraírem para o fundo dos fundos da sua
fortaleza... e então cairão sobre nós e rasgar-nos-ão


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com os dentes. É assim que fazem os espíritos, sempre. A mãe
de meu tio, que conhece todos os feitiços, disse-mo muitas
vezes.
- Voltem para o sol, guerreiros... - Respondeu Tarzan,
rindo. - Eu irei quando tiver revistado estas ruínas de uma
ponta à outra, e tiver encontrado o oiro... ou verificar que
não há mais além deste que vimos, Pelo menos poderemos levar
as pedras das paredes... já que as colunas são pesadas de mais
para que se possam transportar ou sequer arrancar. Mas
encontrarei as grandes arcas cheias do oiro que poderemos
transportar facilmente. agora para o ar livre, onde poderão
respirar à vontade.
Alguns dos guerreiros dispuseram-se a obedecer, alegremente,
mas Busuli e um punhado de outros hesitou em partilhar entre a
dedicação e o afecto, e o supersticioso terror do
desconhecido. Então, inesperadamente, aconteceu o que veio
decidir a questão e pôr ponto final a todas as hesitações, no
silêncio do templo em ruínas surgiu, muito perto, o mesmo
grito medonho que tinham ouvido na véspera. Apavorados, os
negros fugiram, aos saltos através das grandes câmaras vazias
do fantástico edifício de outras eras. Tarzan ficou onde
estava, com um duro sorriso nos lábios - esperando os inimigos
que, tinha a certeza, iam cair sòbre ele. Mas o silêncio pesou
de novo, apenas perturbado pelo furtivo rumor de pés deScalços
que se moviam em redor, e então o filho da selva continuou a
avançar para o interior do templo.


247


Caminhou de sala em sala, até chegar a uma na qual havia ainda
uma pesada porta trancada. Quando apoiou um ombro contra o
batente, decidido a forçar a passagem, mais uma vez o grito
agudo se fez ouvir, como um aviso, quase junto dele. Era
evidente que estava a ser observado... e que queriam impedi-lo
de entrar naquela câmara fechada. Seria ali que estava o
segredo do tesouro?
De qualquer modo, o próprio facto de os estranhos e
invisíveis guardas, daquele fantástico templo, terem alguma
razão para não querer que ele entrasse ali, bastou para que
Tarzan ficasse mais que nunca decidido a entrar... derrubando
a porta. Assim, embora o grito fosse repetido muitas vezes,
manteve a pressão do ombro até que os velhos gonzos cederam
ante a sua força.
Dentro da câmara fechada havia uma escuridão total, como num
túmulo. Nenhuma janela deixava entrar o mais ténue raio de
luz, e porque o corredor, atrás, estava também mergulhado numa
quase completa obscuridade, mesmo a porta aberta não permitia
ver o interior. Tacteando o chão com a extremidade da sua
lança, Tarzan entrou. De repente, a porta, oscilando nos
gonzos, fechou-se atrás dele, ao mesmo tempo que dezenas de
mãos o agarraram,, na treva.
Tarzan lutou com a fúria selvagem do instinto de defesa,
apoiada na sua imensa força. Mas, embora sentindo que os seus
golpes acertavam, que os seus dentes rasgavam carne, parecia
que sempre mais pares de mãos substituíam as que ele repelia.


248


E derrubaram-no e, devagar, muito devagar, dominavam-no pela
acção do número e do peso. Então amarraram-no - as mãos nas
costas e os pés puxados para trás, ligados ás mãos. Tarzan não
ouvira qualquer som além do ruído da porta e da respiração
ofegante dos seus atacantes. Não sabia que espécie de
criaturas o haviam aprisionadO, mas que eram criaturas humanas
parecia evidente, visto que o tinham amarrado. Levantaram-no
do chão e, puxando-o e empurrando, saíram da sala mergulhada
em escuridão... por uma porta que conduzia a um pátio interior
do templo, Tarzan pôde ver os seus captores. Deviam ser talvez
uma centena, baixos e fortes, com barbas que lhes cobriam a
cara e desciam sobre o peito peludo. O cabelo espesso nascia
pouco acima das hirsutas sobrancelhas, e pendia sobre os
ombros e pelas costAs. As pernas tortas eram curtas e grossas,
os braços compridos e musculosos, Em volta dos rins usavam
peles de leopardo e de leão, e suspensos do pescoço traziam
compridos colares feitos com as garras dos mesmos animais.
Argolas de oiro virgem ornavam-lhes os braços e as pernas.
Como armas, tinham sólidos cacetes nodosos, e nos cintos, que
seguravam a única peça de vestuário, traziam compridas facas.
Mas o que mais impressionou Tarzan foi ver que eram brancos de
pele - nem na cor, nem nas feições, nada de negróide. E
todavia, com as testas curvas e fugidias, os olhos pequenos e
muito juntos, e os grandes dentes amarelados, estavam longe de
possuir qualquer espécie de beleza.


249


Durante a luta, e a caminho do pátio, nenhuma palavra havia
sido pronunciada, mas agora alguns deles emitiam sons
guturais, monossilábicos, numa espécie de linguagem que Tarzan
desconhecia. Deixaram-no estendido no chão do pátio e,
trotando sob as curtas pernas, desapareceram noutra parte, do
templo, para além.
Estendido de costas, Tarzan pôde ver que o templo cercava
completamente o pátio, e que de todos os lados se erguiam
altas muralhas. Em cima, pôd ver também uma pequena mancha de
céu azul, noutra direcção, através de uma pequena abertura,
podia distinguir folhagem verde, sem todavia saber se as
árvores cresciam no interior ou no exterior do templo.
Em redor do pátio, desde o chão até acima, has séries de
galerias abertas, e de vez em quando o prisioneiro via de
relance olhos brilhantes que espreitavam por entre massas de
cabelos escuros.
Tarzan experimentou brandamente a resistência das cordas que
o prendiam, e conquanto não tivesse a certeza pareceu-lhe que
não seriam bastante fortes para resistir aos seus poderosos
músculos, quando chegasse o momento de tentar recuperar a
liberdade. Mas não ousava fazer uma tentativa mais decisiva
antes que caísse a noite, ou sentisse que já não o vigiavam.
Estava ali havia várias horas quando os primeiros raios do
sol entraram pela abertura em cima, espécie de boca de poço.


250


Quase simultaneamente ouvíu o bater de pés nus, nos corredores
em volta... Um momento depois as galerias enchiam-se de faces
astutas e estranhas, enquanto cerca de duas dezenas de homens
invadiam o pátio. Durante alguns instantes todos os olhos se
voltam para o sol do meio-dia, e então os que estavam nas
galerias, com os que estavam em baixo, entoam em coro um
cântico estranho. Não tardou que começassem a dançar na
cadência solen, em volta de Tarzan. Giravam devagar, em
círculo, e a maneira como dançavam fazia irresistivelmente
pensar em ursos, desajeitados e pesados. Não olhavam para o
prisioneiro. Os olhos, pequenos e juntos fitavam o sol.
Por dez minutos, ou mais, continuaram o cântico, a dança,
monótonos e estranhos. Depois, de repente, todos ao mesmo
tempo, voltaram-se para Tarzan, movendo os nodosos cacetes e
soltando terríveis gritos, enquanto contorciam as feições, de
diabólica maneira. E lançaram-se sobre o preso. No mesmo
momento um vulto de mulher surgiu entre eles, e brandindo um
cacete semelhante aos dos outros - mas feito de oiro - começou
a bater-lhes...


251


CApÍTULO 20


La


Por instantes, Tarzan pensou que, por algum compreensível
capricho do destino, surgia um milagre para o salvar. Mas, ao
compreender com que facilidade a rapariga, sozinha, fizera
recuar os vinte monstros - e quando, um momento depois, os viu
retomarem a sua dança enquanto ela lhes falava em tom
monocórdico, com todas as aparências de palavras rituais -
chegou à conclusão de que tudo aquilo fazia parte da cerimónia
de que ele era a figura central.
Pouco depois, a jovem tirou um punhal do cinto, e,
debruçando-se sobre Tarzan, cortou as cordas que o prendiam.
Os homens interromperam a dança e aproximaram-se... enquanto
ela fazia sinal ao prisioneiro para se levantar. Colocou em
volta do pescoço de Tarzan as cordas que lhe haviam
imobilizado as pernas - as que lhe prendiam as mãos haviam
sido cortadas - e conduziu-o através do pátio. Os homens
seguiam em fila, dois a dois.
Através de tortuosos corredores a rapariga caminhou, guiando
o grupo e internando-se cada vez mais nas profundidades do
templo, até que chegaram a uma grande sala no centro da qual
se erguia um altar.


252


Então Tarzan compreendeu a estranha cerimónia que precedera
a sua introdução naquele recinto sagrado. Caíra em poder dos
descendentes dos antigos adoradores do Sol. A aparente
libertação, por uma acólita da grande sacerdotiza do sol,
tinha sido apenas uma parte do ritual - o sol a olhá-lo pela
abertura no alto do pátio... reclamara-o como coisa sua,, e a
mulher chegara no momento de o livrar das mãos profanas para o
entregar, em sacrifício, à divindade luminosa. Se Precisasse
de outras provas da exactidão da ideia, bastava-lhe olhar as
manchas acastanhadas na pedra do altar e no chão em volta, ou
contemplar os crânios que pareciam rir no fundo de
impenetráveis nichos ao longo das altas paredes.
A jovem guiou a vítima propiciatória até aos degraus do
altar. As galerias, em cima, encheram-se de espectadores,
enquanto, através de uma passagem em arco, no lado Leste da
sala, um cortejo de mulheres entrou, lentamente. Tal como os
homens, usavam apenas em volta dos rins peles de animais
selvagens, Presas com tiras de couro cru, ou com correntes de
oiro. Mas os cabelos negros estavam cobertos por um toucado
feito de peças de oiro circulares ou engenhosamente ligadas
para formar uma espécie de touca de metal, de ambos os lados
da qual pendem longas tiras de peças de oiro, ovais, que
descem até à cintura e emoldurando a cabeça.
As mulheres eram mais bem proporcionadas do quE os homens,


253


as suas feições muito mais perfeitas, o feitio da cabeça e os
grandes olhos, negros e macios, revelando muito maior
inteligência e humanidade do que deviam ter os seus
companheiros.
A sacerdotiza trazia duas taças de oiro, e quando se
alinharam a um dos lados do altar, os homens alinharam do
outro lado e cada qual veio buscar uma das taças às mãos da
mulher que estava na sua frente. Então o lento e monótono
cântico recomeçou - até que outra mulher surgiu, vinda através
de uma escura passagem que se abria atrás do altar.
Tarzan pensou que devia ser aquela a grande sacerdotiza. Era
uma mulher jovem, com uma face inteligente e bonita. Os seus
ornamentos eram semelhantes aus das suas acólitas, mas mais
ricos, e muitos deles estavam cravejados de diamantes. Os
braços nus, e as pernas, ficavam quase escondidos sob os
ornamentos de oiro e pedras preciosas. A pele de leopardo
estava segura por uma cinta justa, feita de arcos de oiro,
dispostos em caprichosos desenhos ornados de brilhantes.
Trazia na cinta uma comprida faca em cujo punho havia também
diamantes, e na mão, em vez do cacete feito de oiro, empunhava
uma delgada vara.
Quando ela se aproximou, vinda do lado de trás do altar, os
cânticos cessaram. Os sacerdotes e sacerdotizas ajoelharam,
enquanto ela erguia sob as suas cabeças a vara que empunhava,
e recitava uma longa oração, monótona e arrastada. Tinha voz
doce e musical - e Tarzan dificilmente compreendia que uma
mulher com tal voz pudesse, dentro de momentos,
transformar-se, num transe fanático, num carrasco sedento


254


de sangue... a faca tingida de vermelho... e ser a primeira, a
beber o sangue quente da vítima, pela taça de oiro que estava
diante do altar.
Quando acabou de recitar a oração, a mulher dirigiu-se a
Tarzan pela primeira vez. Examinou-o dos pés à cabeça, com
surpreendida curiosidade. Então falou, e quando acabou ficou
imóvel, como à espera de uma resposta.
- Não compreendo a tua língua... - disse Tarzan. - Não
poderemos falar de outra maneira?
Vendo que ela não entendia, Tarzan tentou as línGuas e os
dialectos que conhecia... o francês, o latim, o árabe, a
linguagem dos Waziris e até o dialecto híbrido dos negros da
Costa Ocidental. Mas ela abanou a cabeça e, com o que pareceu
uma expressão de tristeza, deu ordem para que o ritual
continuasse.
Então os sacerdotes voltaram a girar em círculo, numa
repetição da sua desajeitada dança. Cessaram finalmente, a uma
ordem da grande sacerdotiza que, no entanto, ficara imóvel a
olhar atentamente para Tarzan. a um sinal dela, os homens
lançaram-se sobre Tarzan e erguendo-o, estenderam-no de costas
sobre o altar, a cabeça pendente de um dos lados, as pernas
pendentes do outro. Então sacerdotes e sacerdotizas formaram
em duas filas, cada qual segurando a taça de oiro para apanhar
o sangue da vítima logo que a faca dos sacrifícios lhe tivesse
cortádo a garganta.


255


Provocada pelos sacerdotes, surgiu uma altercação quando
dois deles quiseram ocupar o primeiro lugar. Um dos homens, um
vigoroso bruto cuja cara feroz denunciava uma inteligência de
chimpanzé, empurrou o outro, mais pequeno, para segundo
lugar... mas o mais pequeno apelou para a grande sacerdotiza
que, num tom frio e imperioso, mandou o primeiro para o fim da
fila.
Tarzan ouviu grunhir e resmungar, enquanto ele se afastava
lentamente.
Então, debruçada sobre Tarzan, a mulher começou a recitar o
que ele pensou ser uma invocação, enquanto erguia
vagarosamente a comprida e aguda faca. Tarzan teve a impressão
de que o movimento se prolongava durante horas... mas não
tardou que a faca descesse, com a mesma lentidão, sobre a sua
garganta... Entretanto o sacerdote castigado continuava a
grunhir, cada vez mais alto. A grande sacerdotiza deteve-se e
olhou para ele, como para manifestar o seu desagrado pela
interrupção sacrílega...
E nesse momento o bruto, enfurecido, ergueu o seu rijo
cacete e vibrou uma pancada forte sobre a mulher que estava a
seu lado, na outra fila, esmigalhando-lhe a cabeça. Aconteceu
o que Tarzan tinha visto centenas de vezes entre os habitantes
da sua selva... o que ele vira acontecer a Kerchak, e a
Terkoz, e até mesmo a Tantor, o elefante...
eram os machos adultos, entre os grandes animais, a quem
isso não sucedia alguma vez... O sacerdote, endoidecido,
começou a bater raivosamente mos outros.


256


Os seus gritos de fúria eram terríveis, enquanto saltava
Para um lado e para o outro, desferindo poderosos golpes com o
seu enorme cacete, ou cravando os dentes nas suas vítimas. A
grande sacerdotiza parecia paralisada pelo pavor, olhando o
doido furioso, que espalhava a morte à sua volta. Por fim a
grande sala ficou deserta, excepto, quanto aos mortos ou
moribundos caídos no chão, e a vítima propiciatória sobre o
altar, a grande sacerdotiza e o doido. O doido encaminhou-se
lentamente para a mulher... mas agora tinha começado a
falar... Tarzan surpreendeu-se ao entender o que ele dizia.
Pois que falava a única linguagem que ele não usara para
comunicar com criaturas humanas - a linguagem dos
antropóides... E a mulher respondia na mesma linguagem... o
homem ameaçava, a mulher tentava acalmá-lo porque sabia que
ele já não obedeceria a ordens... O homem aproximava-se
sempre, estendendo as mãos para ela... Tarzzan exerceu um
poderoso esforço dos seus músculos, contra as cordas que lhe
prendiam os braços. Apavorada, a grande sacerdotiza não viu
isto E, quando o doido saltou sobre ela, Tarzan deu um brusco
esticão às cordas... que cederam. O grande impulso
desequilibrou Tarzan, que rolou no chão de pedra. mas
levantou-se no mesmo instante... e de mãos livres... o doido e
a mulher tinham desaparecido... mas tarzan ouviu um ruído de
luta que vinha do outro laDo do altar, da passagem por onde a
grande sacerdotiza entrara.


257


Sem pensar em si mesmo, na possibilidade de fuga que lhe
surgia em consequência do acaso, Tarzan saltou em socorro da
mulher. Numa fracção de segundo alcançou a estreita passagem e
precipitou-se por uma série de degraus, que não sabia aonde
iam ter. A escassa luz que vinha de cima mostrou-lhe uma sala
grande, de tecto abobadado e baixo, para a qual abriam várias
portas que conduziam a outras câmaras mergulhadas em densa
escuridão - e mostrou-lhe também o poder do doido, que
derrubara a mulher e lhe apertava o pescoço, ferozmente,
enquanto ela se debatia em vão.
Quando a mão de Tarzan caíu pesadamente sobre um ombro do
doido, este largou a sua vítima e voltou-se para enfrentar o
intruso. O adorador doido tinha naquele instante a força
decuplicada dos doidos furiosos. e a mesma incapacidade de
raciocinar. Na sua fúria, havia-se transformado num animal
selvagem e esquecera a faca que lhe pendia do cinto, para
lutar apenas com as unhas e os dentes, as suas armas naturais.
Mas agora enfrentava alguém que conhecia melhor do que ele
aquela forma de luta. Tarzan agarrou-o e ambos rolaram pelo
chão, batendo-se como os gorilas. A grande sacerdotiza
encostara-se a uma das paredes e, lívida de pavor, olhava
aquele combate entre duas feras.
Por fim viu o estrangeiro agarrar com umas poderosas mãos o
pescoço do doido, e vibrar grandes golpes com a mão livre,
usando o punho com a força destruidora de um martelo.


258


Um momento depois Tarzan deixou cair o corpo inerte, e
sacudiu-o como um leão. Colocando um pé sobre o inimigo
derrubado, ia soltar o grande brado de vitória. Mas viu a
mulher, olhou para a escada que conduzia à sala dos
sacrifícios humanos. e calou-se.
A grande sacerdotiza imobilizada pelo terror perante a luta,
começava agora a pensar que escapara das mãos do doido, para
cair nas mãos de quem, pouco antes estivera prestes a morrer.
Olhou em volta, procurando um meio de fuga. Esboçou um
movimento para se lançar na direcção do escuro corredor. No
mesmo instante, porém, Tarzan saltou para diante dela e
poisou-lhe uma das mãos num braço, sem violência.
- Espera!... - disse ele, usando a linguagem própria de
Kerchak.
A mulher olhou-o, espantada.
- Quem és tu. - sussurrou - que falas a língua dos primeiros
homens?
- Sou Tarzan dos Macacos.
- Que queres de mim?... - perguntou ela. - Porque me
salvaste das garras de Tha
- Não posso ver assassinar uma mulher.
- Mas que queres fazer de mim, agora?
- Nada. - volveu Tarzan -, mas tu podes fazer alguma coisa
por mim, podes guiar-me para fora, para a liberdade.
Lançara A sugestão sem supor sequer que ela aceitasse. Tinha
a certeza de que, se pudesse fazer a sua vontade, a mulher
continuaria o sacrifício no ponto em que fora interrompido.

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Mas tinha também a certeza de que, com os braços livres e de
posse de uma comprida faca, esse sacrifício seria uma tarefa
bastante difícil de levar a cabo. A mulher olhou-o longamente,
antes de falar. Por fim disse em voz baixa:
- Tu és um homem maravilhoso. um homem como eu vi sempre nos
meus sonhos, desde que sou criança. Um homem como eu penso que
foram meus antepassados. a grande raça que construiu esta
cidade num mundo selvagem. para poder arrancar das entranhas
da terra a fabulosa riqueza à qual sacrificava a sua
civilização distante.
- Não compreendo por que razão me salvaste, nem por que
motivo, tendo-me em teu poder.
queres vingar-te por te haver condenado à morte, por ter
estado prestes a matar-te com as minhas próprias mãos.
- Penso... - respondeu Tarzan - ... que punha em prática os
ensinamentos da tua religião. Seja qual for a ideia que faço
do teu credo, não posso censurar-te, a ti. Mas quem és tu, e
quem é esta gente daqui?
- Eu sou La, grande sacerdotiza do Templo do Sol, na cidade
de Opar. Somos descendentes de um povo que veio para este
mundo selvagem há cerca de dez mil anos... em busca de oiro.
As cidades do nosso povo estendiam-se desde o mar que vê o sol
nascer, até ao outro mar onde o sol desce à noite, para
regressar. Eram gentes de grande poder e riqueza, viviam aqui,
nos seus magníficos palácios, alguns meses do ano. O resto do
tempo passavam-no no seu país, muito longe daqui, para o
Norte.
Muitos navios iam e vinham, entre este novo mundo e o outro.
Durante a estação das chuvas poucos habitantes aqui ficavam,
apenas aqueles que vigiavam o trabalho dos escravos negros,
nas minas e os mercadores que tinham de ficar para prover às
suas necessidades, e os soldados que guardavam as cidades e as
minas.
Foi numa dessas vezes que aconteceu a grande calamidade.
Quando chegou o tempo em que milhares dos nossos deviam
voltar... ninguém voltou. Durante semanas, os que tinham
ficado continuaram a esperar. Depois enviaram uma grande galé,
para saber porque razão ninguém vinha da pátria-mãe.
E embora a galé navegasse durante muitos meses, não
encontraram vestígios da terra poderosa e rica, - havia
incontáveis anos, nascera a sua velha civilização. Toda essa
terra desaparecera no mar.
É desde então que começa o declínio do meu povo.
Desencorajados e tristes, os sobreviventes tornaram-se presa
fácil tanto para as hordas de negros do Norte como para as do
sul. Uma a uma as cidades foram abandonadas ou dominadas. e
invadidas pela selva. Os últimos foram finalmente obrigados a
refugiar-se nesta fortaleza das montanhas. Lentamente foram
perdendo altura... em poder, em glória, em inteligência, em
número.
e agora não somos mais do que uma pequena tribo de
macacos...
De facto, os macacos vivem connosco...


261


têm vivido sempre desde há centenas de anos... ou milhares.
Nós chamamos-lhes os primeiros homens, e falamos a língua
deles, tanto ou mais do que a nossa. Só nos rituais do templo
nos temos esforçado por manter a nossa língua. mas com o tempo
será esquecida e falaremos apenas a linguagem dos macacos. Com
o tempo deixaremos de expulsar aqueles da nossa tribo que se
cruzam com os macacos... e assim, com o tempo, teremos
percorrido, ao contrário, o caminho da humanidade. seremos
apenas antropóides.
- Mas por que razão tu és mais humana do que os outros?... -
perguntou Tarzan.
- Por não sei que causas. as mulheres não se tornaram
selvagens tão rapidamente como os
homens. Talvez porque só os tipos de raça menos pura se
encontravam aqui quando se deu a grande catástrofe. ao passo
que os templos estavam cheios com as mais nobres filhas da
nossa raça. A minha ascendência permaneceu mais pura do que o
resto, e que, desde tempos perdidos no tempo, as minhas avós
foram grandes sacerdotizas - o sagrado encargo passa de mãe
para filha. Os nossos maridos são escolhidos por nós, entre os
mais nobres da terra. O homem mais perfeito, física e
mentalmente, é escolhido para ser marido da grande
sacerdotiza.
- Pelo que eu vi a respeito desses senhores - disse Tarzan,
sorrindo - ... não deve ser difícil escolher entre eles.
A mulher fitou-o, com uma expressão interrogativa. Por fim
disse:


262


- Estás a ser sacrílego. Eles são sacerdotes.
- Então há outros mais agradáveis... e mais bonitos...
- Os outros são mais feios do que os sacerdotes... -
respondeu a mulher.
Tarzan estremeceu ao pensar no destino dela... mesmo na luz
escassa podia ver que era bela.
- E quanto a mim... - perguntou, bruscamente. - Vais
conduzir-me para a liberdade?
- Tu foste escolhido pelo deus da luz, como coisa, -
respondeu La, solenemente. - Nem mesmo terei o poder de te
salvar, se voltarem a encontrar-te. Mas não quero que te
encontrem. Arriscaste a tua vida para salvar a minha, farei o
mesmo por ti! Não vai ser fácil. pode demorar dias... mas
penso que conseguirei conduzir-te até para além das muralhas.
Vem. Não tardarão a vir procurar-me. e se nos encontrarem
juntos, ambos estamos perdidos... matar-me-ão se pensarem que
fui falsa para o Deus...
- Não deves então arriscar-te. - volveu Tarzan, prontamente.
- Voltarei ao templo, e se puder abrir caminho, lutando,
nenhumas suspeitas cairão sobre ti.
Mas ela não quis... e por fim conseguiu convencê-lo que a
seguisse, dizzendo que já se tinha demorado bastante tempo
para evitar que as suspeitas a alvejassem, no caso de voltarem
ao templo.
- Se eu te esconder e voltar sozinha... direi que perdi os
sentidos depois de tu matares Tha. Não sei como escapaste.


263


Levou-o ao longo de corredores tortuosos e sombrios, até uma
pequena câmara que apenas recebia luz através de uma diminuta
grade no tecto.
- Esta é a Câmara dos Mortos... - disse ela -, Ninguém
pensará em vir procurar-te aqui... não
se atreveriam. Eu virei, quando for noite. Nessa altura já
talvez tenha encontrado um plano de fuga.
La desapareceu. e Tarzan ficou sozinho na câmara dos Mortos,
debaixo da cidade morta de Opar.


264


CAPÍTULO 21


Os náufragos


Clayton sonhou que estava a beber água. água muito pura e
fresca, em fundos tragos. Com um sobressalto, retomou
consciência de si mesmo. Viu que estava encharcado pela chuva
que caía em torrentes sobre o seu corpo e a sua cara. Um forte
aguaceiro tropical desabara sobre eles. Abriu a boca e bebeu.
Sentia-se tão reanimado que teve forças para se erguer sobre
as mãos. Por cima das suas pernas, de bruços, inanimado,
estava Thuran. A curta distância, Jane Porter era um pequeno
vulto patético no fundo do bote. Estava imóvel, e Clayton
pensou que estava morta.
À custa de grandes esforços conseguiu libertar-se do peso de
Thuran, e com renovadas forças rastejou na direcção da jovem.


264


Soergueu-lhe a cabeça. Talvez que houvesse ainda vida naquele
pobre corpo vencido pela fome. Não podia abandonar toda a
esperança, pegou num trapo encharcado e espremeu preciosas
gotas de água entre os lábios inchados daquela espécie de
espectro - que apenas uns dias antes resplandecia de vida e de
radiosa beleza.
Durante longos minutos não houve qualquer sinal de reacção,
mas por fim os esforços de Clayton foram compensados Por uma
leve tremura das pálpebras semicerradas. Clayton afagou as
pequenas mãos de bromze de Jane, forçou mais algumas gotas de
água pela garganta ressequida. A jovem abriu finalmente hos
olhos e fitou-o durante longos momentos, antes de se lembrar
de onde estava.
- Água... - murmurou. - Estamos... salvos?
- Está a chover... e ao menos podemos beber... nós acordámos
do sono que precede a morte.
- E Thuran?... - perguntou ela. - Ele. - Vejo. que o
matou... ele... está morto... ou...?
- Não sei... - volveu Clayton. - Se estiver vivo a chuva o
há-de reanimar... - calou-se de repente, pensando, tarde
demais, que não devia aumentar os horrores Que a jovem já
havia suportado. Mas Jane adivinhou o que ele ia dizer.
Perguntou:
- Onde está ele?
Clayton indicou, com um gesto, o vulto prostrado do russo.
Por momentos nenhum deles voltou a falar.
- Vou ver se consigo reanimá-lo... - disse Clayton, por fim.
Não... - sussurrou Jane. - Ele quererá matá-lo quando a água
lhe der forças.,. Se está a morrer, deixe-o morrer. Não me
deixe ficar no barco... com esse homem...


265


Clayton hesitou. A consciência dizia-lhe que devia tentar
reanimar Thuran. mas era também possível que o russo já
estivesse para além de qualquer possibilidade de socorro. Não
era desonroso esperar que assim fosse. Estava sentado,
travando uma luta íntima, quando levantou os olhos e, num
impulso, pôs-se de pé, soltando um grito de alegria.
- Terra, Jane!... -quase conseguiu bradar, por entre os
lábios gretados. - Graças a Deus! Terra!
Jane olhou também. A talvez menos de cem metros de distância
estava uma praia de areia amarela... e mais atrás a luxuriante
selva tropical.
- Agora pode reanimar Thuran... - murmurou a jovem, que
também se debatia com a sua consciência desde que evitara que
Clayton socorresse o russo.
Foi preciso quase meia hora de esforços para que o russo
abrisse os olhos. e só algum tempo depois conseguiram fazê-lo
compreender o que acontecera. Nessa altura, levado pela
corrente, o barco já deslizara na areia da praia.
A água que bebera, e o estímulo da esperança recuperada,
deram a Clayton forças para se deixar escorregar para a água e
puxar o bote, por uma corda que conseguiu amarrar a um tronco.
A maré estava cheia, e o inglês receava que, quando ela
descesse, o bote os levasse outra vez para o mar. Depois,
durante algumas horas, pelo menos, não teve forças para trazer
Jane para terra.
A seguir conseguiu ainda cambalear na direcção da selva,


266


onde via abundância de frutos tropicais. A sua anterior
experiência, na floresta de Tarzan, ensinara-lhe quais, de
entre as muitas espécies que podia ver, eram comestíveis. Após
cerca de meia hora de ausência, voltou com um pequeno prato de
comida. A chuva cessara, e o sol em brasa caía tão
intensamente sobre ela que Jane insistiu em fazer uma
tentativa imediata para alcançar a praia. Algum tanto
revigorados pela comida que Clayton trouxera, os três
conseguiram chegar à sombra esparsa da pequena árvore a cujo
tronco Clayton amarrara a corda do escaler. Aí, completamente
exaustos, estenderam-se no chão para descansar, dormindo até
ao dia seguinte.
Durante um mês viveram na praia, em relativa segurança.
Quando recuperaram forças, os dois homens construíram um tosco
abrigo entre as ramadas na árvore, a bastante altura do chão
para ficar fora do alcance dos grandes animais de presa. De
dia colhiam frutos e apanhavam pequenos roedores, de noite
estendiam-se no seu precário refúgio, enquanto as feras
transformavam em pesadelo o chão em volta. Dormiam sobre
camadas de capim e para se cobrirem durante as noites Jane
tinha apenas o velho impermeável que pertencia a Clayton, o
mesmo que levara durante a memorável viagem aos bosques do
Winsconsin. Clayton havia instalado um frágil tabique de ramos
para dividir o estrado, sobre a árvore e dividiu-a em dois
compartimentos - um para Jane e o outro para ele e para
Thuran.


267


Desde o primeiro dia o russo exibira todas as
características da sua maneira de ser - arrogância, egoísmo,
maldade, cobardia e atrevimento. Por diversas vezes Clayton
tivera de andar à pancada com ele por causa da sua atitude em
relação à jovem. Clayton não se atrevia a deixar Jane sozinha
com o russo por pouco tempo que fosse. A existência do inglês
e da rapariga americana era um pesadelo constantE - e no
entanto viviam, na esperança de serem finalmente socorridos.
Os pensamentos de Jane concentravam-se por vezes na sua
experiência anterior. Se o invencível homem da selva estivesse
com eles, como nesse passado distante, não teriam de recear as
feras... e ela nada teria a temer da bestialidade do russo.
Era-lhe impossível não comparar a débil protecção de Clayton
com a que lhe teria dado Tarzan. se ali estivesse e visse a
atitude sinistramente ameaçadora do russo... Certa vez, quando
Clayton se afastara por instantes, a fim de ir buscar água ao
ribeiro, e o russo lhe falara com rudeza, Jane disse-lhe o que
pensava
- É sorte para si, sr. Thuran, que o pobre monsieur Tarzan.
que se perdeu no barco onde o senhor viajava com miss
Strong... não esteja agora aqui.
- Você conheceu esse porco?... - perguntou Thuran,
desdenhoso.
- Conheci esse homem... - volveu ela -, creio que foi o
único verdadeiro homem que conheci.


268


Houve qualquer coisa, na voz dela, que fez com que o russo
lhe atribuísse um sentimento mais forte que simples amizade,
para Com o seu inimigo. aproveitou a ocasião para exercer
ainda um resto de vingança contra o homem que supunha morto,
maculando a memória dele.
- Era pior do que um porco. - exclamou -, porque era um
cínico e um cobarde. Para se escapar da cólera do marido de
uma senhora a quem insultara, mentiu miseravelmente, lançando
sobre ela todas as culpas. Como isso não deu o resultado que
esperava, fugiu de França Para que o marido o não matasse. Por
isso estava a bordo do navio onde mIss Strong e eu viajávamos
também. Sei o que digo, porque a mulher de quem falo é minha
irmã. Agora, uma coisa lhe posso dizer, que nunca diSse a
Ninguém - o seu valente monsieur Tarzan atirou-se ao mar
porque eu o reconheci e lhe exigi uma explicação pelas armas.
teríamos lutado com facas no próprio camarote...
Jane Porter riu-se, respondendo:
- Imagina que qualquer pessoa que o conheça, e conheça
monsieur Tarzan, pode acreditar em semelhante história?
- Então por que razão viajava ele com um nome falso? -
perguntou o russo.
- Não o acredito!. - bradou Jane...
sem que pudesse lembrar-se que Hazel Strong realmente
conhecera Tarzan sob o nome de John Caldwell.
Mas cinco milhas ao norte do ponto onde eles estavam, sem
que eles soubessem e praticamente tão longe como se estivessem


269


separados por milhares de milhas de selva, estava a pequena
barraca de Tarzan. E curtas milhas para além da barraca, em
abrigos toscos mas bem construídos, vivia o grupo formado por
dezoito pessoas - os ocupantes dos outros três escaleres do
"Lady Alice", dos quais o escaler deles se afastara.
Sobre um mar tranquilo, os tripulantes desses escaleres
haviam alcançado terra em três dias. Não haviam sentido nenhum
dos horrores do naufrágio e embora deprimidos pelo desgosto, e
sofrendo o choque consequente à catástrofe e aos duros
trabalhos da nova existência a que não estavam habituados,
nenhum deles fora excessivamente atingido pela experiência.
Animava-os a esperança de que o quarto escaler tivesse sido
recolhido por algum navio, e dele fossem ordenadas buscas ao
longo da costa.
Como todas as armas e munições do iate haviam sido colocadas
no bote de Lord Tennington, o grupo estava bem equipado para
se defender e para caçar.
A única ansiedade imediata era causada pelo professor
Arquimedes Q. Porter. Tendo estabelecido no seu espírito a
certeza de que a filha fora recolhida a bordo de um navio, pôs
de lado todas as prevenções a respeito dela e devotou o seu
cérebro ao dos científicos e abstractos problemas que
considerava a única ocupação digna de um homem da sua
erudição. Tudo o mais Lhe era desinteressante e inútil.
- Nunca. - confessou o exausto sr. Philander,


270


dirigindo-se a lord Tennington - o professor Porter está tão
difícil. pode-se dizer impossível. Esta manhã, quando fui
obrigado a abandonar a minha vigilância durante uma breve meia
hora... ele desapareceu. E, Deus louvado!. sabe onde fui
descobri-lo, sir? A meia milha de distância, no mar, vogando
num dos escaleres. Não sei mesmo como conseguiu afastar-se
tanto... porque tinha só um remo e navegava em círculos.
Quando um dos marinheiros me levou noutro escaler, o professor
zangou-se comigo. ante a minha sugestão de voltarmos para
terra. Disse-me
"- Surpreende-me muito, sr. Philander, que você, um letrado,
tenha a ousadia de querer obstar ao progresso da ciência!
Deduzi, pela observação aturada que tenho vindo a fazer, nas
noites tropicais, de certos fenómenos astronómicos, uma
hipótese inteiramente nova que revolucionará o meio
científico. Preciso consultar uma excelente monografia sobre a
teoria de Laplace, que pertence a um coleccionador particular,
em Nova Iorque. A sua interferência, sr. Philander, será causa
de uma irremediável demora, porque eu ia exactamente a caminho
comsultar essa monografia."
- E foi com grande dificuldade... - concluiu o pobre sr.
Philander -, que consegui convencê-lo a regressar. sem ter de
ser à força.
Miss Strong e a mãe mostraram-se muito corajosas perante a
adversidade. embora não tivessem aceitado tão facilmente como
os outros a teoria de que Jane, Clayton e Thuran haviam sido
recolhidos por um navio. Esmeralda chorava constantemente,


271


lamentando a sorte cruel que a separara da sua querida menina.
A natureza boa e jovial do carácter de lord Tennington não o
abandonou um só instante, continuava a ser, mesmo em tão duras
circunstâncias o anfitrião atento ao conforto dos seus
convidados. Com os tripulantes do seu iate permanecia o
capitão justo mas firme - na selva, como a bordo do "lady
Alice" nunca houve a menor discussão sobre a pessoa a quem
pertencia a autoridade e a última palavra em todas as questões
de importância, e em todas as emergências que exigiam uma fria
e inteligent direcção.
Se aquele grupo bem organizado e relativamente seguro, de
náufragos, tivesse podido ver os andrajosos e apavorados
companheiros de viagem que estavam apenas algumas milhas ao
Sul, dificilmente os teriam reconhecido.
Clayton e Thuran estavam quase nus, depois de rasgarem as
roupas nos espinhos e na espessa vegetação entre a qual eram
obrigados a procurar, com dificuldade crescente, os seus
alimentos. Jane Porter, evidentemente, não havia sido exposta
a estas expedições, mas o seu vestido estava em condições
deploráveis.
À falta de melhor ocupação, Clayton pusera cuidadosamente de
lado todas as peles de todos os novos animais que conseguia
caçar. Esticando-as ao sol, entre ramos de árvores, e
esfregando-as, raspando-as diligentemente, mantinha-as em
condições relativamente boas - e agora que andava quase nu,

272


havia começado a fazer, com essas peles, uma espécie de
vestuário, servindo-se de um espinho, como aguLha, e usando à
maneira de linha pedaços de ervas resistentes e tendões de
animais. Quando completo, o resultado foi um trajo sem mangas,
que lhe descia atéaà ltura dos joelhos. Feito de pequenas
peles de roedores de espécie pouco diferentes dava-lhe uma
aparência estranha, que em nada era melhorada pelo cheiro que
emanava. No entanto, quando teve de recorrer a isso, em nome
da decência, obrigado a envergar a espantosa túnica... e nem a
angustiosa situação em que se encontravam impediu Jane de rir
com vontade, ao vê-lo. Mais tarde, e pelas mesmas razões,
Thuran teve de recorrer a um expediente do mesmo género. Com
pernas nuas e as barbas crescidas, os dois homens lembravam
reincarnações dos pré-históricos antepassados da humanidade -
e de facto Thuran agia como se assim fosse.
Tinham suportado cerca de dois meses de tal existência,
quando a primeira calamidade se abateu sobre eles. Foi
precedida por uma aventura que esteve prestes a pôr termo à
vida de dois membros do grupo - um termo horrível e
definitivo, à maneira da selva.
Thuran, derrubado por um acesso de febre da selva, estava
estendido no estrado que Lhes servia de refúgio. Clayton
havia-se internado umas centenas de metros, na selva, em busca
de comida. Quando Jane foi ao seu encontro. Atrás do homem, e
silencioso, vinha um velho leão esfomeado.
três dias os seus músculos cansados tinham-se verificado


273


impotentes para lhe satisfazer a fome. Desde havia meses que
comia com progressivamente menor frequência, e de cada vez se
afastava mais dos seus habituais terrenos de caça, em busca de
presas mais fáceis. Por fim encontrara a criatura fraca e mais
indefesa da selva. e dentro de instantes o leão poderia
jantar.
Clayton, inconsciente da morte que o espreitava e se ia
aproximando dele, atravessou o espaço coberto,
descuidadamente, encaminhando-se para Jane. Estava já perto
dela, a uns trinta metros de espessas moitas na orla da selva,
quando, por trás de um ombro dele, a jovem avistou a grande
cabeça fulva e os olhos amarelados da fera que emergia do
mato.
Ficou tão petrificada pelo pavor que não conseguia gritar,
mas a expressão dela e o olhar fixo nos olhos muito abertos
foram, para Clayton, um aviso tão claro como o seriam as
palavras. Voltando-se compreendeu no mesmo instante a situação
desesperada em que se encontravam. O leão estava a cerca de
trinta passos deles, e uma distância pelo menos igual
separava-os do abrigo da árvore. O inglês estava armado apenas
com um pau - e sabia que a sua arma seria tão eficiente, para
enfrentar o leão esfomeado, como uma espingarda de fulminante.
A fera, enraivecida pela fome, de há muito compreendera a
inutilidade de rosnar ou rugir quando procurava uma presa. mas
agora estava tão segura de não a perder como se já tivesse
cravado garras ainda fortes na carne macia. E assim demonstrou


274

a sua fúria, numa série de apavorantes rugidos que fizeram
tremer o ar.
- Corra, Jane. - bradou Clayton. - Corra para o abrigo!
Mas os músculos da jovem, paralisados, recusavam-se a
obedecer, e ficou onde estava, muda e rígida, olhando para a
morte que se aproximava. Thuran, acordado pelos rugidos,
espreitara do alto do abrigo, e ao ver o que se passava em
baixo começou a gritar, em russo, de cabeça perdida:
- Corram! Corram... ou ficarei sozinho neste horrível lugar!
Cor...
A voz quebrou-se e os nervos dele cederam. Jane ouviu-o
chorar.
Por instantes aquela nova voz distraiu o leão, que olhou
para a árvore. Clayton, incapaz de suportar a tensão por mais
tempo, voltou-se para a fera, escondeu a cabeça entre os
ombros e esperou. Jane olhou, horrorizada.,: Porque não fazia
ele alguma coisa? Se tinha de morrer, devia morrer como um
homem, lutando, dando na cabeça do leão com o pau que
empunhava, embora isso fosse inútil. Que faria Tarzan dos
macacos, numa situação daquelas? Decerto enfrentaria a morte,
combatendo até ao fim.
o leão encolhia-se para dar o salto que acabaria com duas
vidas jovens... sob as garras e os membros poderosos ainda.
Jane ajoelhou, a rezar, fechados os olhos. Thuran havia
desmaiado.
Os segundos transformaram-se em minutos, os minutos em
eternidades... e o leão não saltava.
O leão estava quase inconsciente Pela prolongada


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agonia do medo - os seus joelhos tremiam, e dentro de um
momento cairia sem sentidos.
Jane, incapaz de esperar mais, abriu os olhos. Estaria a
sonhar?
- William. - sussurrou ela. - Olhe...
Clayton conseguiu dominar-se o bastante para voltar a cabeça
e olhar para o leão. Deixou escapar uma exclamação de
surpresa. Aos pés deles a fera estava estendida, morta. Uma
pesada lança cravara-se-lhe no dorso, acima da espádua
direita, e atravessara-lhe o coração, emergindo do lado
oposto.
Jane Porter tinha-se levantado, e quando Clayton olhou para
ela viu-a cambalear. Estendeu os braços para a amparar, e
atraiu-a a si. Curvou-se, na intenção de a beijar.
Mas, brandamente, Jane repeliu-o.
- Não faça isso, William. Por favor. Vivi milhares de anos
nestes últimos instantes. Em face da morte... aprendi como
viver. Não quero magoá-lo mais do que é necessário. mas não
posso aceitar a ideia de manter a impossível posição que quis
ter... em consequência de um errado sentido de dádiva e de
fidelidade a uma promessa feita impensadamente. Estes últimos
instantes ensinaram-me que seria medonho tentar enganar-me e
enganá-lo se voltar a pensar sequer na possibilidade de ser
sua mulher. se voltarmos à civilização...
- Mas que quer dizer, Jane?. - exclamou Clayton. - Que
relação há entre o facto de termos sido providencialmente
salvos... e os seus sentimentos para comigo?


276


parece-me que tem os nervos um pouco desequilibrados. Amanhã
voltará a entrar em si.
- Estou a ser mais eu própria neste instante do que tenho
sido desde há pouco mais de um ano... - respondeu ela. - O que
aconteceu trouxe-me à memória o facto de que o homem mais
valente que conheci me honrou com o seu amor. Só demasiado
tarde compreendi que Lhe correspondia... e mandeio embora.
Agora, ele está morto, e eu não casarei... nunca casarei! Não
poderia casar com um homem menos corajoso do que ele... sem
sentir a cada momento uma expressão de desprezo pela cobardia,
embora relativa, do meu marido, Compreende-me?
- Sim... - respondeu Clayton, baixando a cabeça e sentindo
que corava de vergonha.
foi no dia seguinte que a grande calamidade aconteceu...

CAPÍTULO 22


o tesouro de Opar


Havia anoitecido por completo quando La, a sacerdotiza
voltou à Câmara dos Mortos com comida e água para Tarzan. Não
trazia luz, apalpava com as mãos estendidas até chegar à porta
da sala.
Tarzan, curvado junto da parede oposta à porta desde que
ouvira o som de passos, foi ao encontro da jovem assim que a
reconheceu.


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- Eles estão furiosos. - foram as primeiras palavras dela. -
Nunca, antes, a vítima designada para um sacrifício tinha
fugido do altar. Já cinquenta homens partiram, para te
perseguir. Revistaram todo o templo. menos esta câmara.
- Por que receiam eles vir aqui?
- É a Câmara dos Mortos... Aqui voltam os que morreram, para
adorar o sol. Vês este antigo altar, é aqui que os mortos
sacrificam os vivos. se encontram alguma vítima. É por essa
razão que fogem desta câmara. Se algum entrasse... já saberia
que os mortos o agarrariam.
- E tu?... - perguntou Tarzan.
- Eu sou a grande sacerdotiza... e estou livre dos atáques
dos mortos. Sou eu quem, de longe em longe, lhes trago uma
vítima do mundo exterior. eu posso entrar aqui em segurança.
- Por que razão não me agarraram a mim? - perguntou Tarzan,
fingindo aceitar a grosseira superstição.
Ela olhou-o interrogativamente, quase friamente. Depois
disse:
- É dever da grande sacerdotiza instruir, interpretar -
segundo as crenças que outros, mais sabedores, estabeleceram.
Mas nada há que diga que ela deve ter essas mesmas crenças.
Quanto mais sede de religião, menos se acredita. E ninguém,
nenhuma criatura viva, sabe mais do que eu, da minha religião.


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- Então o teu único receio, ao ajudar-me, é de que os
mortais teus compa nheiros descubram a tua duplicidade?
- É só esse. Os mortos estão mortos... não podem fazer-me
mal - nem bem! Assim devemos depender inteiramente de nós
próprios e quanto mais depressa irmos tanto melhor será, MesmO
neste momento tive dificuldade em escapar à vigilância deles
para trazer comida. Tentar a repetição do mesmo risco todos os
dias, seria loucura. Bem, vamos ver até onde podemos chegar no
caminho da tua liberdade. Eu parto antes.
Conduziu-o para a câmara baixa e abobadada do altar. Aí
internou-se por um dos vários corredores. Tarzan, na
escuridão, não pôd ver onde estava. Durante dez minutos
avançaram lentamente através de uma passagem sinuosa, até que
chegaram a uma Porta fechada. Tarzan ouviu ranger uma chave, e
pouco depois a porta girou em velhos gonzos. Entraram.
- Estás em segurança aqui, até amanhã à noite. - disse ela.
Um momento depois afastou-se e Tarzan ouviu-a que fechava a
porta, com a chave.
O lugar onde se encontrava estava mergulhado em total
escuridão. Mesmo os seus olhos penetrantes, habituados às
noites da selva, não podiam sondár a treva espessa.
Lentamente, avançou até que a sua mão estendida tocou numa
parede. Então, sempre com grande silêncio e cautela, deu a
volta às quatro paredes da sala.


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Aparentemente, a superfície era de cerca de nove metros
quadrados. O chão era de pedra, as paredes de argamassa seca,
tal como as do andar superior, fixando vários pedaços de
granito áspero, de diferentes tamanhos, e grandes pedras. Na
sua primeira volta em torno da câmara, Tarzan julgou notar um
fenómeno estranho num lugar onde não havia janela e apenas
existia uma porta fechada. De novo caminhou cautelosamente ao
longo das paredes. Não se havia enganado. Parou, a meio da
parede oposta à porta. Por momentos ficou imóvel, depois
deslocou-se vagarosamente para um dos lados. Recuou, e depois
deslocou-se novamente em sentido contrário.
Mais uma vez deu uma volta inteira à câmara tacteando cada
polegada de parede. Por fim deteve-se no ponto que despertara
a sua curiosidade. Não havia possibilidades de duvidar. Uma
corrente de ar frio entrava na câmara, através dos
interstícios da alvenaria, naquele ponto - unicamente naquele
ponto.
Tarzan experimentou os vários pedaços de alvenaria e de
granito que formavam a parede, e por fim a sua busca foi
recompensada. Um dos pedaços de granito podia ser facilmente
deslocado. Tinha cerca de vinte e cinco centímetros de largura
e uma espessura de entre dez e doze centímetros. Um a um,
Tarzan deslocou outros pedaços semelhantes. Naquele ponto a
parede parecia formada apenas por granito cortado em tamanhos
aproximados ao primeiro. Em curtos minutos, Tarzan deslocou
cerca de uma dúzia de lajes. e estendeu a mão para tactear


280


a alvenaria, atrás. Teve a surpresa de nada encontrar até ao
ponto onde o seu braço alcançava. Não foi demorado nem difícil
levantar as lajes, em número suficiente para que o seu corpo
pudesse passar pela abertura. Pôde então distinguir uma débil
claridade, apenas um ponto onde a escuridão era menos densa.
Com grandes cautelas avançou, sobre as mãos e os joelhos,
durante perto de cinco metros - a espessura média das
muralhas. Aí o chão terminava abruptamente. Até onde ele podia
alcançar não encontrou fosse o que fosse, nem conseguia
distinguir o fundo do negro abismo que se abria diante dele,
embora se debruçasse o mais possível. Olhou então para cima e
viu, através de uma pequena abertura circular, um pedaço de
céu onde tremeluziam estrelas. Tacteou os lados do poço, até
onde pôde, e verificou que as paredes convergiam do centro até
chegarem à abertura em cima. Isso excluía qualquer
possibilidade de fuga nessa direcção. Sentou-se, conjecturando
sobre a natureza e utilidade daquela estranha passagem e de
onde terminava o poço, e entretanto a lua, aproximando-se da
cal da abertura do poço, espalhou diante dele uma claridade
vaga, prateada. No mesmo instante
compreendeu. Em baixo, muito em baixo julgou ver uma
superfície de água que reflectia a claridade. Encontrava-se
num antigo poço. Mas teria a vantagem da ligação entre o poço
e a câmara onde ele havia estado? Quando a lua passou
exactamente acima da abertura, inundando-a de claridade,


281


Tarzan viu diante dele o princípio de outra galeria, na
muralha oposta. Talvez aquilo pudesse ser o início de um
caminho que conduzia à liberdade. Mereceria a pena investigar,
pelo menos, e decidiu-se a tentá-lo.
Rápido, voltou à parede que demolira para penetrar na
passagem, e recolocou as lajes no seu lugar, pelo lado de
fora. A poeira acumulada em espessas camadas, que Tarzan
notara ao deslocar as pedras, convencia-o de que, mesmo que os
actuais ocupantes das velhas ruínas conhecessem aquela saída,
não a haviam utilizado durante muitos anos. talvez durante
gerações.
Refeita a parede, Tarzan voltou para o poço. Este tinha
talvez quatro metros e meio de largura, naquele ponto. Havia
ainda luz suficiente, embora a lua se houvesse entretanto
afastado da vertical do poço... e um salto de quatro metros e
meio nada significava para Tarzan. Um momento depois ia a
caminho, ao longo da nova galeria, tão estreita como a
anterior, movendo-se cautelosamente para evitar o perigo de
ser precipitado noutro poço igual ao que tinha atravessado
antes.
Tinha percorrido cerca de trinta metros quando encontrou
degraus que desciam na escuridão impenetrável. Uns seis metros
abaixo, a galeria prolongava-se, novamente plana, e pouco
adiante encontrou uma porta de madeira, espessa, fechada do
lado dele, com pesadas trancas também de madeira. A colocação
das trancas indicou-lhe que seguramente existia um caminho,


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comunicando com o esterior, pois a porta se destinava
evidentemente a impedir a entrada, ou a saída. Só havia outra
hipótese - a de a porta pertencer a uma câmara que servisse de
prisão.
Sobre a parte superior das trancas havia novamente densas
camadas de pó - nova indicação de que a passagem não era
utilizada. Tentou as pesadas traves, os grandes gonzos
rangeram no silêncio. Tarzan imobilizou-se, à escuta, na
expectativa de que algum brado ou rumor Lhe indicasse que o
insólito ranger dos gonzos tinha sido ouvido. Mas nada veio.
Ele transpôs a porta. Tacteando cautelosamente em volta,
verificou que estava numa vasta sala, ao longo de cujo chão e
paredes estavam empilhadas incontáveis barras de metal, de um
feitio estranho mas uniforme. Eram lingotes pesados, e se não
fosse a enorme quantidade Tarzan afirmaria que se tratava de
oiro. Mas ao pensar na incalculável fortuna que aquilo
representaria se fosse oiro, quase se convenceu de que se
tratava de qualquer metal inferior.
Na extremidade da sala descobriu outra porta, e mais uma vez
as trancas a fechavam no interior. renovou a sua esperança de
que se encontrava numa antiga e esquecida passagem - que o
levaria para a liberdade. Para além da segunda porta o caminho
seguia em linha recta, e Tarzan teve a intuição de que já
devia encontrar-se bastante para além das muralhas da cidade.
Cheio de esperança, começou a caminhar tão rapidamente quanto
lhe era possível naquela escuridão e ao cabo de mais meia hora


283


encontrou novamente degraus: mas agora no sentido ascendente.
Os primeiros degraus pareciam ser de pedra, mas a certa altura
Tarzan notou sob os pés uma aspereza diferente. Os degraus de
pedra lisa tinham dado lugar a degraus de granito. Tacteando
com as mãos, o homem da selva verificou que deviam ter sido
cortados em plena rocha, pois não havia fendas que indicassem
juntas.
A escada prolongava-se, subindo sempre, por trinta metros,
tortuosa e estreita - até que, numa volta brusca, Tarzan se
viu diante de uma abertura estreita também, entre duas
muralhas de rocha. Sobre ele estendia-se, em todas as
direcções, o grande céu nocturno, recamado de estrelas, e na
sua frente um íngreme declive substituía os degraus. Tarzan
continuou a subir, até que chegou ao alto de um grande
penhasco de granito. A cerca de uma milha de distância estava
a velha cidade de Opar, com as suas cúpulas e minaretes
banhados pelo luar. Tarzan examinou um lingote que apanhara e
trouxera. Observou-o atentamente, fazendo-o girar entre os
dedos fortes. Depois olhou para as ruínas, a distância, restos
de um fabuloso passado de esplendor e grandeza.
- Opar... - murmurou. - Opar... cidade e morada de um
passado morto e esquecido. Cidade de belas e dos monstros. dos
horrores e da morte... mas cidade de incomensurável e
espantosa riqueza - o lingote era de oiro puro.
O penhasco, no alto do qual se encontrava então Tarzan,


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ficava na planície, entre a cidade e as penedias que ele e os
seus guerreiros negros haviam escalado, na manhã anterior.
Descer a sua face áspera e vertical era uma tarefa trabalhosa
e de considerável perigo, mesmo para o homem da selva. Mas por
fim meteu pés ao terreno macio do vale, e sem olhar para trás
lançou-se em corrida na direcção das penedias.
O sol subia no horizonte quando Tarzan chegou ao planalto
que marcava o limite Oeste do vale. A distância, em baixo, viu
uma delgada coluna de fumo que subia de entre as copas das
árvores, na floresta.
- Homens... - murmurou. - Eram cinquenta... os que saíram
para me perseguir... poderão ser esses?
Desceu rapidamente a face da penedia e meteu-se num estreito
barranco que levava à floresta, seguindo na direcção do fumo.
Ao alcançar a orla da floresta, a cerca de um quarto de milha
do lugar onde a ténue coluna de fumo subia no ar parado,
seguiu a caminho das árvores. Avançou cautelosamente, até que
viu em baixo uma tosca "boma".. Neste recinto, protegido por
sebes espinhosas, dispostas em fileiras, encontravam-se
sentados diante de pequenas fogueiras os seus cinquenta
Waziris. Saudou-os na língua deles:
- Levantem-se, guerreiros, e saúdem o rei!
Com exclamações de surpresa e de medo os Waziris
levantaram-se, espantados, hesitando entre ficar e fugir:
Então Tarzan saltou agilmente de um ramo no meio deles. Quando
realmente compreenderam que era ele em carne e osso,


285

e não apenas o seu espírito, os Waziris ficaram doidos de
alegria.
- Nós fomos cobardes, ó Waziri!... - gritou Busuli. -
Fugimos e deixámos-te entregue à tua sorte. Mas, quando o
pavor passou, jurámos que iríamos voltar e salvar-te, ou
vingar a tua morte. Estávamos a preparar-nos para escalar as
penedias e atravessar novamente o vale desolado. em direcção à
cidade terrível.
- Viram cinquenta homens assustadores passarem pelas
penedias e entrar na floresta?... - perguntou Tarzan.
- Sim, Waziri... - respondeu Busuli. - Passaram por nós
ontem, ao fim da tarde, quando nos dispúnhamos a voltar para
trás. Mas não sabiam caminhar na floresta. Ouvimo-los a mais
de uma milha de distância, antes de os vermos, e como tínhamos
outras coisas em que pensar recuámos para a selva e deixámos
que passassem. Caminhavam apressadamente sobre as pernas
curtas, e por vezes alguns deles avançavam sobre as mãos e os
pés, como Vulgani, o chimpanzé. Eram na verdade cinquenta
homens assustadores, Waziri.
Quando Tarzan contou as suas aventuras e falou no metal
amarelo que encontrara, indicando o plano para voltarem
durante a noite e trazer o mais que pudessem transportar, do
enorme tesouro, nenhum hesitou. E foi assim que, mal anoiteceu
no desolado vale de Opar, cinquenta guerreiros de ébano
atravessaram o vale, correndo, a caminho do enorme penhasco
que se erguia antes da cidade.


286


Se descer a face do penhasco Parecera a Tarzan uma rude
tarefa, a proeza de a escalar com cinquenta guerreiros
pareceu-lhe quase impossível. por fim, à custa de um esforço
hercúleo, do filho da selva, conseguiram o que queriam. Dez
lanças foram solidamente amarradas ponta a ponta, e com um
extremo de uma estranha e pesada corrente fixado no seu cinto,
Tarzan alcançou finalmente o alto do penhasco. Uma vez aí
fixou a primeira lança e, pelas outras viieram um a um os
cinquenta guerreiros. Então Tarzan conduziu-os sem demora à
câmara do tesouro,
e cada qual recebeu dois lingotes para transportar
- cerca de quarenta quilos para cada.
Perto da meia-noite o grupo estava outra vez na base do
penhasco, ,mas com as pesadas cargas só a meio da manhã
alcançaram as penedias. Daí para diante, o caminho de regresso
foi lento, Porque os guerreiros negros não estavam habituados
ao trabalho de carregadores. Todavia ninguém se queixou e ao
cabo do trigésimo dia de marcha entraram no seu território.
E, em vez de continuarem para Nordeste e para a aldeia, Tarzan
guiou-os directamente para Oeste e, na manhã do trigésimo
terceiro dia, deu-lhes ordem para deixarem o acampamento e
voltarem à aldeia de onde haviam saído dois meses antes,
deixando o oiro onde estava.
- Oh, onde estás tu, Waziri?... - perguntaram.
- Ficarei aqui durante alguns dias ainda. Agora sigam para
as vossas mulheres e para os vossos filhos.

287


Quando os negros partiram, Tarzan agarrou dois lingotes e,
saltando para uma árvore, seguiu rapidamente de ramo em ramo,
através da floresta. A cerca de duzentos metros de distância
saltou para o chão, numa clareira circular em volta da qual
gigantes da selva erguiam os seus troncos altíssimos como
sentinelas. Ao centro do anfiteatro natural havia um pequeno
monte de terra seca e dura, cuja parte superior era plana.
como a face de um tambor.
Centenas de vezes, antes, Tarzan estivera naquele lugar
escondido, tão densamente cercado por plantas espinhosas,
trepadeiras e lianas que se entreCruzavam em todas as
direcções - que nem mesmo Sheeta, a pantera, podia entrar ali,
e nem sequer Tantor, com a sua enorme força, podia derrubar as
barreiras que protegiam as festas tribais dos grandes gorilas.
Cinquenta vezes Tarzan percorreu o mesmo caminho,
transportando os pesados lingotes de oiro para a clareira
circular. Então, da cavidade de um tronco que fora há muitos
anos derrubado pelo raio, o homem da selva retirou uma pá - a
pá que servira para desenterrar a velha arca do pequeno
tesouro do professor Porter, que ele ali escondera. Com essa
pá cavou uma trincheira, funda, na qual guardou os lingotes
que cinquenta guerreiros Waziris haviam trazido da câmara do
tesouro da cidade de Opar.
Nessa noite Tarzan dormiu na clareira, e na manhã seguinte,


288


partiu para ir visitar a sua barraca, antes de regressar à
aldeia. Aí encontrou tudo tal como havia ficado. e internou-se
pela selva, a fim de caçar. Levaria a sua presa para a
barraca, onde poderia comer confortavelmente e dormir numa
cama.
Tarzan encaminhou-se para o sul percorrendo cerca de cinco
milhas na direcção de um largo rio. Atravessava a floresta
quando de súbito o seu olfacto apurado notou o cheiro que
imediatamente alarma todos os animais da selva. o cheiro do
homem. O vento vinha dos lados do mar, o que indicou a Tarzan
que os homens estavam para Oeste. Misturado com o cheiro do
homem havia outro. o cheiro do leão.
- Tenho de me apressar. - Pensou o filho da selva que
distinguiu o cheiro de homens brancos que andavam à caça.
Saltando, através das árvores chegou à orla da floresta. E
viu uma mulher ajoelhada, a rezar... e a curta distância um
homem de aspecto primitivo, branco, parado e com a cara entre
os braços. Atrás dele, um leão magro e esfomeado... um leão
que avançava lentamente para a presa frágil. O homem escondia
a cara... a mulher tinha a cabeça baixa, rezava. Não pôde ver
as feições de qualquer deles. O leão ia saltar. não havia um
instante a perder... nem sequer pensou em utilizar o arco e
uma das flechas envenenadas. Estava longe demais para poder
usar a faca. Havia apenas uma esperança - apenas uma arma. E,
com a rapidez do vento, Tarzan agiu.


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O braço poderoso ergueu-se, empunhando a grande lança acima
do largo ombro. e no instante seguinte, atirada com prodigiosa
força e infalível pontaria, a lança silvou no ar e foi
cravar-se no coração da fera. Sem um rugido, o loão caiu de
lado, morto, aos pés da sua vítima.
Por momentos nem o homem nem a mulher se moveram. Por fim,
esta última levantou a cabeça, olhou com espanto para o leão
morto, atrás do seu companheiro. Quando a bela cabeça se
ergueu, Tarzan a custo abafou um brado de pasmo. Teria
endoidecido? Não... aquela não podia ser a mulher a quem
amava. E no entanto era ela, não outra!
A mulher levantou-se e o homem tomou-a nos braços,
inclinando-se para a beijar. No mesmo instante Tarzan viu uma
nuvem vermelha passar diante dos olhos. e a antiga cicatriz,
na sua testa tomou um tom de sangue.
Com uma expressão selvagem e terrível, empunhou o arco,
colocou uma das flechas envenenadas e esticou a corda, em
menos de um segundo. Os olhos cinzentos tinham um brilho
feroz, ao apontar a flecha sobre o homem.
Mas não disparou. Lentamente, baixou o arco e deixou que a
corda afrouxasse. E, de cabeça curvada, Tarzan dos Macacos
voltou-se para a selva e desapareceu, tristemente, devagar.
encaminhando-se para a aldeia dos Waziris.


290

CAPÍTULO 23


Cinquenta homens assustadores


Durante longos minutos, Jane Porter e William Clayton
ficaram em silêncio, a olhar o corpo morto do leão. A jovem
foi a primeira a falar.
- Quem poderia ter sido... - sussurrou.
- Deus sabe... - volveu o homem.
- Se é um amigo... por que não se mostra?... - continuou
Jane. - Não seria bom chamá-lo, ao menos para lhe agradecer?
Maquinalmente, Clayton obedeceu. mas não obteve resposta.
Jane estremeceu.
- A misteriosa selva. - murmurou ela. - Até mesmo as
manifestações de amizade fazem medo.
- É melhor voltarmos para o abrigo. - disse Clayton. - Aí
estará pelo menos um pouco mais segura. Eu não sirvo de
protecção a ninguém. - Comentou ele, amargamente.
- Não diga isso, William. - apressou-se ela a protestar. -
Fez o melhor que pôde. tem sido de uma grande nobreza... de um
enorme espírito de sacrifício, de muita coragem, Não tem culpa
de não ser um super-homem. ninguém poderia ter feito mais nem
melhor. As minhas palavras foram mal ditas, na excitação do
momento. mas não quis magoá-lo. Tudo quanto eu desejo é que


291


possam ambos compreender, de uma vez para sempre, que nunca
poderia casar com você. um tal casamento seria infeliz.
- Creio que compreendo... - respondeu o inglês. - Não
voltemos a falar nisso... pelo menos até voltarmos à
civilização.
No dia seguinte Thuran estava pior, em quase constante
delírio. Nada podiam fazer para o aliviar e Clayton não estava
excessivamente ansioso para fazer fosse o que fosse. Receava o
russo por causa de Jane - e no fundo do seu coração desejava
que o homem morresse. A ideia de que lhe poderia acontecer
qualquer coisa, a ele, que deixasse Jane à mercê daquele
homem, angustiava-o mais do que a hipótese quase certa da
morte dela, se ficasse completamente só na orla da sinistra
floresta.
O inglês arrancara a pesada lança, do corpo do leão morto,
de maneira que ao internar-se na selva, na manhã seguinte,
tinha uma sensação de maior segurança do que nunca tivera
desde que havia chegado ali. O resultado foi ir mais longe do
que anteriormente.
Para se afastar o mais possível do russo, com febre
delirante, Jane Porter desceu do abrigo até à base do tronco -
não se atrevia a ir mais longe. Aí, junto da tosca escada que
Clayton construíra para subir, sentou-se a olhar para o mar,
na persistente esperança de que pudesse avistar um navio.
Estava de costas para a selva, e assim não vio o capim
afastar-se e uma cara estranha e selvagem espreitar.

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Pequenos olhos muito juntos, raiados de vermelho, fitavam-na
intensamente, olhando de vez em quando toda a extensão da
praia em busca de qualquer outra presença humana. Outra cabeça
apareceu, e outra, e ainda outra. No estrado, sobre a árvore,
o russo recomeçou a delirar e as cabeças desapareceram tão
prontamente como haviam aparecido.
Mas não tardaram a surgir de novo. porque a jovem não
parecia de qualquer modo perturbada pelos gemidos do homem. Um
a um, vários vultos grotescos emergiram da selva e
aproximaram-se furtivamente. até que um ruído ligeiro atraiu a
atenção de Jane.
Voltou-se. e ao ver os espantosos vultos pôs-se bruscamente
de pé, soltando agudo grito. Então eles precipitaram-se.
Ergueram-na nos seus compridos braços de gorila, uma das
criaturas voltou-se e correu para a selva, levando-a consigo.
Uma suja mão tapou-lhe a boca para que não pudesse gritar.
Acrescentado às semanas de dor que já sofrera, o choque foi
maior do que Jane podia suportar. Os seus nervos cederam... e
perdeu os sentidos.
Quando Jane voltou a si, encontrou-se na espessura da
floresta primitiva. Era noite. Uma vasta fogueira ardia em
chama alta na pequena clareira onde ela estava. Em volta da
fogueira estavam reunidos cinquenta homens assustadores.
Tinham a cabeça e a cara cobertas de cabelo denso e negro.
Braços compridos poisavam sobre os joelhos curtos, das pernas
tortas e curtas. Mastigavam, como animais, uma comida
repugnante, Um vaso fervia à beira do lume, e as estranhas


293


criaturas tiram de dentro dele pedaços de carne, com um pau
aguçado.
Ao verem que a prisioneira havia recuperado os sentidos,
atiraram para junto dela um pedaço de comida. Jane fechou os
olhos, nauseada pelo cheiro.
Durante muitos dias viajaram através da selva. A jovem,
exausta e com os pés doridos, era constantemente empurrada e
arrastada, ao longo dos dias quentes e do caminho esgotante.
Quando caía, os homens que estavam mais perto dela batiam-lhe
com os pés e as mãos. Muito antes de terem chegado ao fim da
viagem, os seus sapatos perderam as solas. o vestido estava
completamente em tiras, e sob os andrajos a sua pele branca
sangrava aqui e além, rasgada pelos espinhos e pelas moitas
através das quais a arrastavam.
Nos últimos dois dias da jornada, estava de tal maneira
exausta que nenhumas pancadas puderam fazer com que se
levantasse. Tinha alcançado os limites da sua capacidade de
resistência. Os estranhos homens rodearam-na, falando em tom
de ameaça e brandindo os cacetes nodosos que empunhavam.
Deram-Lhe pontapés e socos. mas Jane não pôd levantar-se. De
olhos fechados, rezava pedindo a morte misericordiosa... a
única possibilidade de pôr fim ao seu sofrimento. Mas a morte
não vinha, e cinquenta homens assustadores compreenderam que a
sua vítima não podia realmente caminhar. Decidiram-se então a
levantá-la e a transportá-la durante o resto da jornada.
Dois dias depois, ao fim da tarde, Jane avistou as muralhas,


294


em ruínas de uma grande cidade. mas estava tão fraca e doente
que não podia sequer pasmar, ou interessar-se. Para onde quer
que a levassem, só podia haver um fim para o seu cativeiro.
Por fim atravessaram duas altas muralhas e chegaram à grande
cidade que se erguia no interior. Os seus captores levaram
Jane para uma casa de pedra, também em parte arruinada. e aí,
a jovem viu-se rodeada por centenas de outras criaturas
semelhantes às que a tinham trazido... embora no meio da
multidão estivessem mulheres que pareciam um pouco menos
horríveis.
Ao ver essas mulheres, a primeira ínfima esperança invadiu o
coração de Jane. Mas foi de curta duração, porque elas não lhe
manifestaram qualquer espécie de simpatia, embora, na verdade
não lhe fizessem mal.
Depois de ter sido observada por toda aquela estranha gente,
a jovem foi levada para uma sala subterrânea, escura.
Deixaram-na estendida no chão. Colocaram ao lado dela duas
vasilhas de metal, uma de comida, outra com água.
Durante a semana viu apenas algumas mulheres, cuja função
era a de lhe levar água e comida. Pouco a pouco Jane foi
recuperando forças. e assim, em breve, estaria em condições de
ser oferecida em sacrifício ao deus sol. Felizmente para ela,
Jane não podia saber o destino que lhe estava reservado.


Enquanto Tarzan avançava lentamente ao longo da floresta,


295


depois de ter atirado a lança que salvara a vida a Clayton e a
Jane, matando Numa... na sua mente agitava-se a tristeza
resultante da ferida novamente aberta no seu coração.
Por sorte dominara-se a tempo de não obedecer ao primeiro e
furioso impulso de ciúme e de raiva. Apenas uma fracção de
segundo salvara Clayton de morrer com o coração atravessado
por uma flecha envenenada. No curto instante que decorrera
entre o momento em que Tarzan havia reconhecido Jane e o seu
companheiro e o momento em que brandamente afrouxara a tensão
do arco pronto a disparar, o homem da selva havia sido presa
dos impulsos selvagens do seu passado.
Tinha visto a mulher a quem amava - a mulher que lhe
pertencia - nos braços de outro homem. Segundo a lei da selva
não tinha senão um caminho a seguir... uma coisa a fazer. Mas
outro instinto da sua bondade nata, e também um sentido
atávico de civilização, haviam intervido a tempo. Tarzan
sentia-se grato ao destino que o impedira de disparar a
flecha.
Mas agora a ideia de voltar para junto dos Waziris começava
a repugnar-lhe. Não queria voltar a ver criaturas humanas,
nunca mais. Pelo menos vaguearia ao longo da floresta, durante
algum tempo, sozinho, até que se embotasse, com o decorrer dos
dias, a sua aguda angústia. Como as feras, suas companheiras,
preferia sofrer em silêncio. e só.
Nessa noite dormiu outra vez na clareira, e durante vários
dias caçou partindo dali e regressando à noite. Na tarde do
terceiro dia voltou mais cedo.


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Tinha estado estendido sobre a relva macia, havia apenas uns
momentos, quando ouviu, vindo do Sul um rumor que lhe era
familiar. Era o ruído da passagem de um bando de grandes
macacos, através da selva. Conhecia-o bem.
Durante minutos ficou à escuta. Vinham na direcção do
anfiteatro, Tarzan levantou-se devagar, distendendo os
músculos. Os seus ouvidos atentos seguiam cada movimento da
tribo que se aproximava. Vinham do lado do vento e Tarzan não
tardou a aperceber-se do cheiro deles, embora não precisasse
de mais provas para crer que não estava enganado.
Quando se aproximaram do anfiteatro, Tarzan desapareceu
entre as ramadas, do lado oposto. e aí esperou, para observar
os recém-chegados. Mas teve muito que esperar.
Um focinho feroz e peludo apareceu entre os ramos baixos, do
outro lado da clareira. Os olhos pequenos e cruéis observaram
o terreno, num relance. Depois o animal transmitiu a mensagem
para os que vinham atrás. Tarzan pôde ouvir as palavras. O
batedor dizia que o terreno estava livre e que podiam passar
sem receio.
O chefe foi o primeiro a saltar para a erva macia. E
depois dele saltaram os outros, quase uma centena de
antropóides. Havia muitos adultos, enormes, e uns machos mais
novos, Uns quantos pequenos suspendiam-se do pescoço cabeludo
das mães.
Tarzan conheceu muitos dos membros da tribo. Era a tribo
entre a qual ele fora criado. Muitos dos adultos haviam sido
seus companheiros... tendo corrido e brincado com ele durante
a sua breve infância.


297


Tarzan conjecturou sobre se o reconheceriam - a memória de
alguns dos grandes macacos não é curta, mas dois anos podem
parecer-lhes uma eternidade.
Pelo que ouviu, Tarzan compreendeu que tinham vindo ali para
escolher um novo rei - o último caíra de trinta metros de
altura e morrera, em consequên cia de um ramo se haver
partido.
Tarzan adiantou-se até quase à extremidade de um ramo
sólido, que se debruçava sobre a clareira. Os olhos atentos e
vigilantes de uma fêmea foram os primeiros a avistá-lo. Com
uma espécie de ladrido gutural chamou a atenção dos outros.
Alguns dos mais poderosos machos levantaram-se para olhar o
intruso. Mostrando os dentes e eriçando os pêlos, avançaram
para ele, com roucos grunhidos ameaçadores.
- Karnath, eu sou Tarzan dos Macacos. - disse o homem da
selva, na linguagem da tribo. - Lembras-te de mim. Juntos
provocámos Numa, quando éramos mais novos, atirando-lhe nozes
e pequenos ramos, do alto das árvores...
O gorila a quem ele se dirigira parou, com atitude de meia
compreensão e de embotado pasmo.
- E Magor... - Continuou Tarzan, dirigindo-se a outro -, não
te recordas do teu rei. o que matou o poderoso Kerchak? Olha
para mim! Não sou mesmo Tarzan, grande caçador, lutador
invencível, que todos conheceram durante muitas estações?
Todos os grandes macacos se haviam aproximado, agora, mas a
curiosidade substituira a ameaça. Conversaram entre eles,
durante momentos.


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- Que queres agora de nós?... - perguntou Karnath.
- Apenas paz.
Os grandes macacos conversaram de novo. Depois Karnath
disse:
- Vem então em paz, Tarzan dos Macacos.
E assim Tarzan saltou agilmente, da ramada da árvore, para o
meio do bando feroz e medonho. Completara o ciclo de evolução,
fechando-o, e era de novo uma fera entre as outras feras.
Não houve cumprimentos, como naturalmente teria havido entre
homens ao cabo de uma separação de dois anos. A maioria dos
gorilas voltou a entregar-se às pequenas actividades que a
chegada de Tarzan interrompera, sem lhe darem mais atenção do
que dariam se ele nunca tivesse deixado a tribo.
Um ou dois machos adultos mas muito novos, que não o haviam
conhecido antes, farejaram-no. Um deles mostrou os dentes, com
um grunhido ameaçador, como para pôr Tarzan no seu lugar desde
o primeiro instante. Se Tarzan recuasse, grunhindo também, o
outro talvez tivesse ficado satisfeito.
daí por diante a posição de Tarzan, entre os companheiros,
seria sempre atrás da daquele macho que o fizera afastar-se.
Tarzan não se afastou. Em vez disso estendeu a grande mão, com
toda a força dos seus poderosos músculos, e agarrando o gorila
pelo pescoço atirou-o de costas sobre a relva, a alguns passos
de distância. O animal levantou-se e atacou em menos de um
segundo, e desta vez lutaram com unhas e dentes...


299


ou pelo menos teria sido essa a intenção do jovem gorila. Mas
logo que rolaram no chão, as mãos do homem da selva
encontraram a garganta do antagonista.
Não tardou que o jovem gorila deixasse de lutar e ficasse
quieto. Então Tarzan soltou-o e levantou-se. Não o queria
matar. Queria apenas dar uma lição àquele, e a outros que
estivessem a olhar - e provar-lhes que Tarzan dos Macacos
continuava a ser o mais forte.
A lição serviu. Os machos mais novos evitaram-no, e os mais
velhos não mostraram qualquer desejo de acentuar as suas
prerrogativas.
Durante vários dias, as macacas com crias mostraram-se
desconfiadas, e quando ele se aproximava grunhiam, de bocas
abertas e com medonhas caretas. Tarzan passou a não se
aproximar delas, pois também isso era um uso entre os gorilas
- só os machos endoidecidos atacavam as macacas com crias.
Dentro de pouco tempo, porém, também as macacas se habituaram
a ele.
Tarzan caçava em companhia dos outros, como em tempos
anteriores, e quando os gorilas descobriram que a sua superior
inteligência os guiava para onde havia melhor comida, e que a
sua corda apanhava saborosas presas que eles só raramente
provavam - quando provavam - começaram a olhá-lo como no
passado, antes de o haverem escolhido como rei.
E foi assim que, antes de a tribo deixar o anfiteatro e
voltar aos seus terrenos de caça, mais uma vez Tarzan era o
chefe.


300


O homem da selva sentia-se contente com aquela vida. Não era
feliz - nunca mais o poderia ser, pelo menos estava tão longe
quanto possível daquilo que poderia lembrar-lhe a sua
angústia. Havia tempo que abandonara qualquer intenção de
voltar à vida civilizada, e agora tinha decidido não tornar a
ver, sequer, os seus amigos Waziris. Excluíra da sua vida a
raça humana, para sempre. Tinha começad o a viver como um
macaco - como um macaco havia de morrer.
Todavia não podia apagar da memória o facto que a mulher a
quem amava estava a uma curta jornada de distância da sua
tribo. Nem podia banir o receio de que ela vivia em constante
perigo. Sabia que Jane estava mal protegida - para isso
bastara-lhe Ver, de relance, a incapacidade de Clayton. Quanto
mais pensava nisso, mais a sua consciência o atormentava.
Chegou o momento em que começou a sentir desprezo por si
mesmo, por se haver deixado dominar por uma angústia egoísta,
e pelo ciúme. Com a passagem dos dias, essa ideia torturava-o
mais e mais, e estava quase resolvido a regressar à costa e
ocupar-se de defender Jane e Clayton, quando lhe chegaram
notícias que alteraram todos os seus planos e o fizeram
precipitar-se como doido a Caminho do Leste, sem pensar no que
lhe poderia acontecer, a ele próprio.
Antes de Tarzan ter voltado a reunir-se à tribo, um macho
adulto mas jovem, não encontrando companheira entre as fêmeas
do seu povo, havia, conforme o costume, viajado através da
selva, como um antigo cavaleiro-andante, para conquistar


301


a dama dos seus pensamentos, arrancando-a a alguma comunidade
vizinha. Voltava agora com a sua noiva, e ocupava-se a contar
as suas aventuras antes de as ter esquecido. Entre outras
coisas, disse haver encontrado uma numerosa tribo de estranhos
macacos.
- Tinham todos muitos pêlos na cara, menos um deles. e esse
era uma fêmea, de pele mais branca do que a deste... - e
apontou para Tarzan.
O homem da selva interessou-se no mesmo instante. Fez
rápidas perguntas - tão rápidas quanto era possível para obter
respostas do animal de raciocínio lento.
- Os machos eram baixos, de pernas tortas?
- Eram.
- Usavam as peles de Numa e de Sheeta, nas ancas, e
empunhavam paus e facas?
- Sim.
- Tinham muitas argolas amarelas, nas pernas e nos braços?
- Tinham.
- E a fêmea era pequena e delgada, muito branca?
- Era.
- Parecia pertencer à tribo, ou ia como prisioneira?
- Eles arrastavam-na, às vezes por um braço. outras vezes
pelos compridos cabelos da cabeça. Batiam-lhe com os pés e as
mãos... era divertido vê-los...


302


- Meu Deus... - murmurou Tarzan. - Onde os encontraste, e
que caminho seguiam?
- Foi junto da segunda água, lá para trás... - o jovem
gorila apontou para o Sul. - Quando passaram por mim iam a
caminho do sol da manhã, rindo ao longo da água.
- Quando foi isso?
- Há metade de uma lua...
Sem mais uma palavra, o homem da selva saltou para as
árvores e lançou-se, como um raio, a caminho do Leste, na
direcção da esquecida cidade de Opar.


303


CAPÍTULO 24


De como Tarzan volta a Opar


Quando Clayton voltou para o abrigo e viu que Jane havia
desaparecido, ficou desesperado de angústia e de medo.
Encontrou Thuran perfeitamente lúcido. A febre abandonara-o
com a brusca rapidez que é uma das suas características, mas o
russo, fraco e exausto, estava ainda estendido sobre a cama de
ervas, no estrado.
À pergunta de Clayton, sobre Jane, pareceu surpreendido por
saber que ela não estava ali.
- Não ouvi nada de invulgar... - respondeu. - mas é certo
que estive quase sempre inconsciente.


303


Se não fosse a evidente fraqueza do homem, Clayton teria
suspeitado de que ele tinha alguma outra ideia sobre o
paradeiro da jovem. Mas Thuran não tinha sequer forças para
descer da árvore, sem ajuda. Nas condições em que se
encontrava nada podia ter feito. nem podia ter subido
novamente a escada tosca, até ao abrigo.
Até à noite, o inglês percorreu a selva próxima, buscando
sinais de Jane ou alguma pista de alguém que a tivesse levado.
Mas, embora as pegadas deixadas pelos cinquenta homens
assustadores, ignorantes como eram a respeito da selva, fossem
tão flagrantes para um habitante da floresta, como uma rua de
Londres o era para o inglês, este passou por elas, em vários
sentidos e dezenas de vezes, sem as notar sequer.
Enquanto procurava, Clayton bradava em voz alta o nome de
Jane. mas o único resultado foi atrair um leão. Por sorte o
homem viu a distância o corpo fulvo e a juba escura, e teve
tempo de trepar a uma árvore antes que a fera o apanhasse.
Isso pôs termo ás pesquisas durante o resto do dia, pois Numa
andou de um lado para o outro, sob a árvore, até escurecer.
Mesmo depois de a fera se ter afastado, Clayton não se atreveu
a descer para a escuridão, e passou uma noite medonha, no alto
do tronco. Só de manhã voltou para a praia, tendo perdido as
últimas esperanças de voltar a encontrar Jane.
Durante a semana que se seguiu, Thuran ganhou forças,
rapidamente, estendido no abrigo, enquanto Clayton


304


diligenciava arranjar comida para ambos. Não falavam um com o
outro, a não ser quando era indispensável. Agora Clayton
ocupava, no abrigo, a párte que antes era reservada para Jane.
Só via o russo quando lhe levava água ou comida, ou de
qualquer forma o ajudava.
Quando Thuran ficou em condições de descer do abrigo e poder
occupar-se de arranjar comida, foi a vez de Clayton ser
derrubado pela febre. Durante dias delirou e gemeu, mas nem
uma só vez o russo se aproximou dele. O inglês não poderia
comer, mas a sua sede era permanente e torturante. Entre dois
acessos de delírio, fraco como estava, conseguiu alcançar o
ribeiro, uma tarde, e encher de água uma lata, que era das
poucas coisas trazidas do escaler. Dois dias depois, cada vez
mais enfraquecido, pôde ainda voltar a ir buscar água.
Thuran olhava-o, nessas ocasiões, com uma expressão de
malévolo prazer. Parecia realmente gozar com o sofrimento do
homem que, embora justamente o desprezasse, o havia socorrido
até onde lhe era possível, quando ele estivera em igual
situação.
Mas chegou a altura em que Clayton se sentiu tão fraco que
já não podia levantar-se. Durante todo um dia sofreu os
horrores da sede, sem pedir a ajuda do russo. Por fim, sem
poder mais, pediu ao russo que lhe desse água.
Thuran apareceu pouco depois trazendo na mão um vaso com
ágúa. Um sorriso sinistro contorcia-lhe as feições.


305


- Aqui tem a sua água - disse ele - ... mas primeiro quero
lembrar-Lhe que indispôs a rapariga contra mim. para ficar com
ela e não a compartilhar...
- Basta!... - quase gritou Clayton, apesar da sua fraqueza.
- Basta! Que espécie de infame é você, para infamar assim uma
mulher honesta a quem supomos morta? Céus! Eu fui um doido,
dei xando-o viver! Você não é digno de estar vivo, mesmo
nestas amaldiçoadas paragens!
- Então aqui tem toda a água que vai beber. - retorquiu o
russo, atirando para o chão o con teúdo da lata.
Thuran desceu do abrigo e afastou-se. Clayton voltou-se
penosamente e ficou à espera da morte.
No dia seguinte o russo decidiu encaminhar-se para o Norte,
ao longo da costa. Talvez conseguisse chegar a algum sítio
habitado por criaturas civilizadas - de qualquer maneira nunca
estaria pior do que ali, e o constante delírio do inglês
moribundo irritava-lhe os nervos. Apoderou-se da lança de
Clayton e partiu. Teria assassinado o doente, antes disso se
não lhe ocorresse a ideia de que tal gesto seria quase
misericordioso.
Nesse mesmo dia Thurán encontrou uma pequena barraca, numa
praia mais ao norte, e ao vê-la ficou cheio de esperanças de
que a civilização não estaria longe. Talvez aquilo fosse o
posto avançado de alguma instalação de brancos, não muito
distante.
Se tivesse sabido a quem pertencia a barraca, e que o seu
proprietário estava nesse momento a curtas milhas para o
interior - Thuran, aliás Nikolas Rokoff, fugiria daquele lugar


306


como teria fugido da floresta. Mas não sabia, e assim
demorou-se alguns dias a gozar o relativo conforto e a
relativa segurança da barraca, antes de continuar o seu
caminho...


No acampamento de lord Tennington, faziam preparativos para
construir instalações com carácter de permanência - e também
para enviar um grupo de homens para o Norte, em busca de
auxílio. À medida que os dias se escoavam, começavam a
desaparecer as esperanças de que Jane, Clayton e Thuran
tivessem sido recolhidos. Ninguém falou nisso ao professor, e
ele continuou tão absorvido pelas suas locubrações
científicas, que não se apercebia da passagem do tempo.
Por vezes observava que um dia ou outro veriam um navio
ancorar em frente da praia, e então todos ficariam reunidos
outra vez. De outras vezes referia-se a um comboio que não
tardaria a chegar, e cuja demora era seguramente devida a
tempestades de neve.
- Se eu não o conhecesse tão bem... - comentou Tennington,
em conversa com Hazel Strong - supô-lo-ia um tanto
desarranjado dos miolos.
- Se não fosse tão patético, seria ridículo. - volveu a
jovem, tristemente. - Eu, que o conheço desde sempre, sei até
que ponto ele adora Jane. mas a outras pessoas pode dar a
impressão de que a sorte da filha lhe é indiferente. Tem um
cérebro tão inacreditavelmente pouco prático que não consegue
aperceber-se de uma coisa tão real como a morte...


307


a não ser que lhe ponham diante todas as provas.
- Não poderia adivinhar o que ele quis fazer ontem... -
continuou Tennington. - Eu vinha de uma pequena digressão de
caça quando o encontrei a caminhar apressadamente ao longo da
trilha, em sentido contrário. como de costume, levava na
cabeça o chapéu alto e ia com as mãos cruzadas nas costas, sob
as abas do fraque. Não tardaria a encontrar a morte na selva,
se eu não tivesse a sorte de o deter.
- Para onde vai tão apressado, professor? - perguntei-lhe
eu. Respondeu-me, muito a sério, que ia à cidade, para se
queixar da falta de distribuição de correio, nesta zona rural.
"- Há uma semana que não recebo correspondência, e devo ter
umas quantas cartas de Jane, para mim. O caso tem de ser
comunicado a Washington, sem mais demora!" "- Talvez lhe custe
a acreditar, miss Strong. - continuou Tennington - ... mas
tive um trabalhão enorme para o convencer de que não havia
aqui distribuição de correspondência, nem sequer uma cidade, e
que não estávamos no mesmo continente, nem no mesmo
hemisfério, de Washington. Quando compreendeu, começou a
mostrar-se angustiado a respeito da filha. Creio que foi a
primeira vez em que se apercebeu da nossa verdadeira posição,
o do facto de que miss Porter poderia não ter sido recolhida.
- Horroriza-me pensar nisso... - volveu a jovem Hazel -, mas
não creio que os desaparecidos tenham podido sobreviver.


308

- Esperemos que o melhor tenha acontecido...
- disse Tennington. - O seu exemplo de coragem é
impressionante para todos nós, miss Strong. porque de certa
maneira foi quem sofreu a maior perda.
- Sim. Não poderia querer mais a Jane Porter do que se ela
fosse minha irmã... - murmurou Hazel.
Tennington disfarçou como pôde a sua surpresa. Não era a
isso que ele se tinha referido. Convivera muito com aquela
bela jovem de Maryland, desde o naufrágio do "Lady Alice", e
havia acabado por compreender que se prendera a ela, muito
mais do que seria conveniente para a sua paz de espírito.
Recordava com muita frequência a confidência que Thuran lhe
fizera antes de partirem, de que estava noivo de miss Strong.
Começava agora a admitir que a afirmação do russo talvez não
tivesse sido muito exacta. Na verdade nunca havia notado, da
parte da jovem, qualquer atitude que não correspondesse a uma
simples e vulgar amizade - nunca mais do que isso.
- E a perda do sr. Thuran... - insinuou - ... representa um
luto para si.
Hazel encarou-o bruscamente.
- O sr. Thuran era um bom amigo... que eu apreciava bastante
embora o conhecesse pouco... - respondeu.
- Então... não estavam noivos?... - desabafou Tennington.
- Céus, não!... -exclamou a jovem. - Não gostava dele dessa
maneira!


309


Havia alguma coisa que Lord Tennington queria dizer a Hazel
Strong - desejava intensamente dizer-lha, e imediatamente. Mas
as palavras engasgavam-no. Começou a falar, uma ou duas vezes,
de uma forma desajeitada. Pigarreou, corou muito e acabou por
dizer que esperava ser possível ter as instalações prontas
antes de principiar a estação das chuvas.
Mas, embora ele o não soubesse, conseguira comunicar à jovem
aquilo mesmo que ele em vão se esforçara por traduzir em
palavras. e isso deixou-a feliz, muito mais feliz do que se
havia sentido em qualquer outro momento da sua vida.
Nesse exacto momento a conversa foi interrompida pela
aparição de um vulto de estranho e terrível aspecto, que
emergiu da selva ao sul do acampamento. Tennington e a jovem
viram-no ao mesmo tempo. O inglês levou a mão ao revólver, mas
quando a criatura, de grandes barbas e quase nua, chamou pelo
seu nome e correu para eles, o lord largou a arma e foi ao seu
encontro.
Ninguém teria reconhecido, no homem magro de aspecto
doentio, coberto por uma espécie de túnica feita de pequenas
peles, sujo e horrível, o elegante sr. Thuran que tinham visto
pela última vez no convés do "Lady Alice".
Antes que os outros componentes do grupo se apercebessem da
presença dele, Tennington e miss Strong interrogaram-no a
respeito dos ocupantes do escaler desaparecido.
- Morreram todos. - disse Thuran. - Três marinheiros
morreram antes de alcançarmos terra. Miss Porter desapareceu,

310


levada por algum animal selvagem... enquanto eu estava
prostrado pela febre. Clayton morreu há alguns dias, em
consequência da mesma febre. E pensar que, durante todo este
tempo estivemos separados por apenas algumas milhas... menos
de um dia de marcha. É terrível!


Jane Porter não sabia há quanto tempo se encontrava na
escuridão da câmara abobadada, sob o templo da velha cidade de
Opar. Durante alguns dias, ou semanas, estivera prostrada pela
febre, mas depois tinha recomeçado a ganhar forças,
lentamente. Todos os dias, a mulher que lhe trazia água e
comida fazia-lhe sinais para que se levantasse, mas por muito
tempo a jovem apenas pôde responder abanando a cabeça para
indicar que estava demasiado fraca.
Por fim conseguiu pôr-se de pé e cambalear alguns passos,
apoiando-se à parede. Os seus captores vigiavam-na agora com
interesse crescente. Aproximava-se o dia, e a vítima ia
recuperando forças.
Esse dia chegou, e uma mulher nova, a quem Jane não tinha
visto antes, entrou, com várias outras, na masmorra.
Procederam então a uma espécie de cerimónia que era
flagrantemente de natureza religiosa. E Jane sentiu-se
invadida pela esperança, retomando coragem ao ver que caíra
nas mãos de criaturas sobre as quais a religião deixara,
seguramente, a sua marca de civilização e de bondade.
Tratá-la-iam húmanamente - disso tinha, agora, a certeza.
E assim, quando a levaram da masmorra, através de longos e
sombrios corredores, e subiram uma escada de pedra,


311


e a conduziram a um pátio brilhantemente iluminado, Jane
caminhou sem resistência, quase com alegria. Encontrava-se
entre servidores de um deus que, embora fosse talvez diferente
da concepção que ela própria tinha da divindade, era de
qualquer modo uma garantia de que aquela gente era bondosa e
bem intencionada.
Mas quando viu um altar de pedra no centro do pátio, e as
manchas escuras sobre o altar e no chão em volta, começou a
duvidar e a fazer conjecturas. Quando se curvaram e lhe
amarraram os tornozelos, e lhe prenderam os pulsos nas costas,
as dúvidas transformaram-se em medo. E um momento depois, ao
ser erguida e estendida de costas sobre a pedra do altar, a
esperança abandonou-a inteiramente, e começou a tremer de
pavor. Durante a grotesca dança dos sacerdotes, que se seguiu,
ficou petrificada de horror - e nem foi preciso ver a delgada
faca que a grande sacerdotiza erguia lentamente sobre ela,
para lhe mostrar qual seria o seu destino.
Quando a mão começou a descer, Jane fechou os olhos e rezou
uma oração silenciosa. dirigida ao Criador de todas as coisas,
em cuja presença não tardaria a estar. E desmaiou.


Dia e noite Tarzan correu através da floresta, na direcção
das ruínas onde, tinha a certeza, a mulher a quem amava estava
prisioneira, ou morta.
Em menos de quarenta e oito horas percorreu a mesma
distância que os cinquenta homens assustadores tinham levado


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quase uma semana a percorrer, porque Tarzan viajou a meia
altura das árvores, acima dos obstáculos que demorariam o
avanço ao nível do terreno.
A narrativa do jovem gorila fizera-o compreender claramente
que a jovem prisioneira dos cinquenta homens assustadores só
poderia ser Jane - pois não havia na selva outra "pequena
fêmea branca", Os estranhos gorilas tinham sido descritos de
maneira a também não poder duvidar de que se tratava das
grotescas imitações de humanidade que viviam nas ruínas de
Opar. E podia adivinhar, tão exactamente como se assistisse,
qual ia ser, ou tinha sido, a sorte da jovem. Não podia saber
quando ela seria, ou se já fora, estendida sobre o altar, mas
era esse seguramente o seu destino.
Por fim, após o que a sua impaciência julgou terem sido
séculos, Tarzan alcançou o alto das penedias que fechavam o
vale desolado, e diante dele viu as velhas e agora medonhas, a
seus olhos, ruínas de Opar. Correu apressadamente sobre o
terreno seco e árido, semeado de rochas, que o separava da sua
meta.
Chegaria a tempo? Esperava, contra toda a esperança. Pelo
menos exerceria a sua vingança, e na fúria que o empolgava
sentia-se capaz de destruir toda a população da terrível
cidade.
Era perto do meio-dia quando chegou junto do grande penhasco
alto junto do qual terminava a passagem secreta para as
câmaras subterrâneas de Opar. Como um gato, pulou a face
vertical do enorme pedaço de granito.


313


Um momento depois corria de novo na escuridão dos túneis que
conduziam à câmara do tesouro. Alcançou esta e seguiu, sem se
deter, até chegar ao poço no outro lado do qual estava a
masmorra com a falsa parede.
Ao fazer uma breve pausa, junto do poço, ouviu um som fraco
que vinha pela abertura em cima. Compreendeu no mesmo instante
que se tratava da dança da morte que precedia o sacrifício, e
do cântico monótono e ritual da grande sacerdotiza. Reconheceu
mesmo a voz dela.
Seria aquela cerimónia que marcava o sinistro acontecimento
que ele viera de tão longe para tentar evitar? Invadiu-o uma
sensação de horror. No fim de tanto esforço, chegaria tarde de
mais. apenas um momento demasiado tarde?
Com a agilidade de um gamo assustado, transpôs o poço e
lançou-se em corrida ao longo da estreita passagem que fica
além. Em frente da falsa muralha, moveu-se como possesso para
a demolir. Os seus poderosos músculos derrubaram as pedras,
até que conseguiu uma abertura apenas suficiente para passar
por ela e arrastar os outros pedaços de granito que rolaram no
chão.
Um salto deixou-o junto da porta - mas teve de parar. As
grandes trancas que a seguravam do lado oposto, resistiam
mesmo à sua força. Bastou um instante para se convencer da
inutilidade da tentativa de derrubar aquele obstáculo
intransponível. Só havia outro caminho, e esse conduzi-lo-ia
novamente através dos escuros corredores, até mais uma milha


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distante das muralhas da cidade. e depois ao longo do terreno
descoberto que atravessara quando da sua primeira visita em
companhia dos Waziris.
Compreendeu que voltar atrás significaria chegar demasiado
tarde para salvar Jane, se era realmente ela quem estava
estendida sobre a pedra do altar, em cima. Mas parecia não
haver outro caminho e Tarzan correu rapidamente para trás,
para além da parede desmoronada. No poço, voltou a ouvir a voz
monótona da grande sacerdotiza. Olhou para cima. A abertura,
uns seis metros mais alta, parecia tão próxima que ele se
sentiu tentado a saltar, sem pensar nas consequências, para
alcançar o pátio interior que ficava perto dali.
Se pudesse prender a extremidade da sua corda, a alguma
saliência no alto da abertura. Ocorreu-Lhe bruscamente uma
ideia, nesse instante. Tentaria pô-la em execução. Voltou para
a parede desmoronada e apoderou-se de uma das grandes lajes
que a compunham, Rápido, prendeu ao pedaço de granito uma
ponta da sua corda. Voltou ao poço, uma vez mais. Aí, deixando
no chão, junto dele, as dobras da corda
apanhou a pesada laje entre as duas mãos, baloiçou-a várias
vezes para fixar a distância e a direcção, e lançou-a
obliquamente, de maneira que, ao cair, não passasse outra vez
pela abertura. A pedra roçou a aresta do buraco e caiu no
pátio, além.
Tarzan puxou-a, então, até sentir que se fixava em qualquer
sítio do lado exterior. Agarrou-se à corda pendente e
suspendeu-se, para começar a içar-se, mas quando o seu peso


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esticou violentamente a corda, sentiu que a laje, em cima,
voltava a deslocar-se, polegada a polegada, em esticões
sucessivos. Seria detida à beira da abertura... ou o seu peso
a faria cair, arrastando Tarzan para o abismo onde, muito em
baixo, ele vira brilhar uma superfície de água?

CAPÍTULO 25


Através da floresta primitiva


Durante breves e angustiosos momentos, Tarzan sentiu
descer a corda a que estava agarrado, ouvindo em cima o raspar
da laje. E então, de repente, o ruído cessou e a corda
imobilizou-se. A laje fixara-se outra vez, e agora com
firmeza, mesmo à beira da abertura.
Sem esperar mais, o homem da selva içou-se ao longo da corda
e, um instante mais tarde, a sua cabeça passava para o lado de
cima da abertura. O pátio estava deserto. Os habitantes de
Opar deviam encontrar-se agora na grande sala dos sacrifícios,
de onde vinha a voz de La.
A dança cessara. Era com certeza a altura em que a delgada
faca, cravejada de jóias, devia estar prestes a cravar-se na
garganta da vítima. Mas Tarzan, enquanto pensava tudo isto,
corria como doido.


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A sorte conduziu-o ao limiar da grande sala de tecto
abobadado. Entre ele e o altar estavam as duas filas de
sacerdotes e sacerdotizas empunhando as taças de oiro, à
espera de beberem o sangue da vítima. A mão de La descia
lentamente sobre a garganta do frágil vulto estendido de
costas em cima da pedra. Tarzan soltou um grito que era quase
um soluço, ao reconhecer o vulto inerte. ao vera face muito
pálida da mulher a quem amava, Então a cicatriz que lhe
sulcava a testa tomou um tom vermelho-vivo, intenso, uma nuvem
de sangue toldou-lhe a vista. e com o poderoso rugido dos
grandes gorilas lançou-se para a frente... entre os que
esperavam.
Arrancando um pesado e nodoso cacete, das mãos de um
sacerdote, brandiu-o como um demónio, em todas as direcções,
desferindo tremendos golpes enquanto avançava para o altar. A
mão de La detivera-se ao primeiro rumor da interrupção. Quando
viu Tarzan, a sua face ficou lívida. Nunca havia conseguido
penetrar o segredo da fuga daquele homem do interior da
masmorra onde o fechara. Nunca havia pensado em deixá-lo sair
de Opar - porque olhara para aquele corpo gigantesco e
perfeito, e para as belas feições, com olhos de mulher, e não
como sacerdotiza.
Na sua mente ágil e astuta forjara uma história - a história
de uma revelação maravilhosa que lhe teria. sido feita pelo
deus-sol. segundo a qual aquele estrangeiro branco teria sido
enviado como mensageiro da divindade ao seu povo. Sabia que
isso bastaria para as gentes de Opar. O homem - disso não
duvidava - ficaria contente por ficar e desposá-la,


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em vez de ser novamente levado ao altar dos sacrifícios.
Mas, quando descera à masmorra, novamente, para expor o seu
plano a Tarzan, este havia desaparecido, embora a porta
continuasse fechada como ela a deixara. E agora o belo e
estranho homem reaparecia... como se tivesse surgido do ar. e
matava os sacerdotes como se estes fossem um bando de
carneiros. Por um momento La esqueceu a sua vítima, e antes de
poder refazer-se da surpresa o grande homem branco estava a
seu lado, tendo nos braços a mulher que um momento antes
estivera estendida no altar.
- Afasta-te La!... - ordenou ele. - Salvaste-me uma vez e
não te farei mal, mas não interfiras nem tentes seguir-me, ou
matar-te-ei também!
Enquanto falava, Tarzan encaminhava-se para a entrada dos
subterrâneos.
- Quem é ela?... - perguntou a grande sacerdotiza, apontando
para o vulto inconsciente de Jane.
- É minha!
Por instantes, a jovem de Opar ficou imóvel, de olhos muito
abertos, pasmada. Então uma expressão de desesperada angústia
apareceu nos seus olhos que as lágrimas velavam, e com um
grito abafado caiu sobre as lajes, no momento em que os homens
assus tadores se lançavam, como matilha ululante, sob o filho
da selva.
Mas Tarzan já não estava onde eles supunham agarrá-lo. Num
salto, desaparecera na passagem que conduzia aos
subterrâneos... e quando os seus perseguidores, avançando mais


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cautelosamente na obscuridade, chegaram à câmara abobadada,
esta estava vazia. Então os homens assustadores riram-se e
pararam, gesticulando excitadamente, com feroz alegria. Sabiam
que os subterrâneos não tinham outra saída além daquela. Se o
fugitivo voltasse teria de ser por ali, e ali eles estariam à
espera e à espreita.
Assim Tarzan, levando Jane nos braços, atravessou sem ser
perseguido os subterrâneos de Opar, sob o templo do deus-sol.
Mas, quando os homens de Opar continuaram a falar uns com os
outros, lembraram-se de que o gigante branco já desaparecera
uma vez nos subterrâneos. e que embora tivessem espreitado a
saída durante muitos dias, nunca mais reaparecera. E no
entanto surgira agora novamente
vindo do exterior. Mandariam outra vez cinquenta homens
assustadores, através do vale, para descobrir e prender o
profanador do templo.
Quando alcançou o poço, depois de atravessar a parede que
derrubara, Tarzan sentia-se tão seguro do êxito da sua fuga
que parou para repor as pedras no seu lugar. Não tinha empenho
em que os homens de Opar descobrissem a passagem esquecida, e
através dela alcançassem a câmara do tesouro. Pensava em
voltar ele próprio à cidade, para levar uma fortuna ainda
maior do que aquela que enterrara no anfiteatro dos macacos.
Continuou depois a correr pelos subterrâneos. Atravessou a
câmara do tesouro e seguiu adiante. Jane continuava sem
sentidos.
No alto do grande penhasco, parou para olhar para trás.


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Viu o bando de homens assustadores que cruzavam o vale. Por
momentos hesitou. Deveria descer e correr para as penedias
distantes, ou devia voltar e esconder-se até anoitecer? Mas um
olhar para a face de Jane resolveu-o. Não podia ficar ali, com
ela, e deixar que os seus inimigos se interpusessem entre eles
e a liberdade. Não sabia, na verdade, se teria sido seguido ao
longo dos túneis, e se fosse apanhado entre dois bandos de
inimigos seria quase seguramente aprisionado, visto que não
poderia abrir caminho, lutando, carregado como estava com o
corpo da jovem desmaiada.
Descer a face vertical do penhasco, levando Jane, não era
tarefa fácil, mas amarrando-a aos ombros com outro pedaço de
corda que trouxera, conseguiu chegar a baixo antes que os
homens de Opar alcançassem a altura do penhasco. Por isso que
descera pela face oposta à cidade, os do bando não o viram.
nem sequer sonhavam que a sua presa estava tão perto.
Mantendo o penhasco entre ele e os homens de Opar, Tarzan
conseguiu percorrer mais de uma milha antes que o bando, dando
a volta ao enorme bloco de granito, o avistasse. Com grandes
brados de feroz alegria, as estranhas criaturas lançaram-se em
corrida, sobre as curtas pernas, pensando decerto que não
teriam dificuldade em alcançar o fugitivo, carregado como ia.
Mas avaliavam mal a força do filho da selva, e exageravam a
confiança na rapidez das suas pernas tortas e curtas.


320


Correndo em passada larga e fácil, Tarzan não teve
dificuldade em não os deixar aproximar-se. Por vezes olhava
para a face tão próxima da sua. Se não fosse sentir bater
aquele coração quase junto ao seu, não saberia se ela estava
viva, tão pálida e macerada estava a pobre face.
Assim chegaram ao pequeno planalto, sobre as penedias.
Durante a última milha Tarzan apressara o andamento, correndo
como um gamo para poder descer as penedias antes que os homens
de Opar chegassem ao planalto e pudessem alvejá-los com
pedras. Estava a meia milha de distância, na direcção da
floresta, quando os vultos grotescos, ofegantes, se içaram
para o cimo da alta barreira.
Com brados de fúria e de desapontamento pararam aí,
brandindo os cacetes, saltando e agitando-se num paroxismo de
raiva. Mas desta vez não ousaram ultrapassar os limites do
estreito vale de Opar. Seria difícil dizer se não continuavam
por recordarem ainda a futilidade da tentativa anterior, ou se
a demonstração de velocidade feita por Tarzan os tinha
desanimado. Mas, quando Tarzan alcançou a orla da floresta,
todo o bando retomou o caminho de Opar.
O filho da selva deteve-se finalmente num ponto da floresta
onde não o poderiam ver, mas onde ele podia observar as
penedias. Estendeu Jane sobre a erva macia e foi a um regato
próximo, buscar água com que lhe molhou a face e as mãos, Mas
assim mesmo não conseguiu reanimá-la e, grandemente
angustiado, voltou a tomá-la nos braços e correu novamente,
para Oeste.


321


Quase ao fim da tarde, Jane começou a dar sinais de que ia
voltar a si. Não abriu imediatamente os olhos - tentava
recordar as últimas cenas que vivera. Lembrava-se agora. O
altar, a terrível sacerdotiza, a faca que descia lentamente
sobre a sua garganta. Estremeceu. pensando que estaria morta.
ou que aquele seria o breve instante de delírio precedendo a
morte.
Quando, finalmente, teve a coragem de abrir os olhos. o que
viu confirmou o que pensara. Viu que estava a ser levada
através de um paraíso de folhas verdes, nos braços do homem a
quem amava e que morrera também.
- Se isto é a morte, - murmurou -, dou graças a Deus por
estar morta.
- Falaste, Jane!... - exclamou Tarzan. - Estás a recuperar
os sentidos!
- Sim, Tarzan. - murmurou ela, enquanto, pela primeira vez
em muitos meses, um sorriso de paz e felicidade lhe iluminava
a face.
- Graças a Deus!... - disse o filho da selva, saltando para
o chão numa pequena clareira, junto de um ribeiro. - Cheguei a
tempo, afinal...
- A tempo? Que queres dizer?. - perguntou ela.
- A tempo de te salvar de morreres sobre o altar, querida.
Não te lembras de nada?
- Salvar-me da morte? Mas não estamos ambos mortos, Tarzan?
Ele estendera-a sobre a relva, apoiada ao tronco de uma
grande árvore. Ante apergunta dela, curvou-se para lhe ver
melhor a face.


322


- Morta?... - repetiu. E então riu-se. - Não estás morta,
Jane. e se voltares à cidade de Opar e perguntares aos que lá
vivem... dir-te-ão que eu não estava morto, há curtas horas,
Não, querida. Estamos ambos bastante vivos.
- Mas... tanto Hazel como o Thuran me disseram... que tinhas
caído no mar, a muitas milhas da costa... - insistiu Jane,
como a tentar convencê-lo de que tinha de estar realmente
morto. - Disseram que tinhas sido tu, sem sombra de dúvidas, e
que não havia qualquer possibilidade de sobreviveres ou de
seres recolhido por qualquer navio.
- Como poderei convencer-te de que não sou um espírito?... -
volveu ele, rindo. - Foi a mim que o encantador sr. Thuran fez
cair ao mar, mas não me afoguei. Mais tarde te contarei tudo.
E aqui estou, mais ou menos o mesmo homem selvagem que
conheceste, Jane Porter!
A jovem levantou-se, devagar, e aproximou-se dele.
- Ainda não posso acreditar. - murmurou -, É impossível que
uma tal felicidade seja verdadeira. depois das coisas medonhas
por que passei desde que, há meses, o "Lady Alice" naufragou.
- interrompeu-se e aproximou-se mais, poisando a mão, a medo,
no braço dele. - Devo estar a sonhar... e acordarei dentro de
um instante para ver essa terrível faca. Beija-me, querido,
antes que perca para sempre o meu sonho.
Tarzan não precisou que ela lho dissesse duas vezes. Tomou
nos braços a mulher a quem amava e beijou-a, não uma vez,


323


mas cem, até que ela ficou ofegante, com a respiração cortada.
Mas, quando parou, ela passou-lhe os braços em redor do
pescoço e ofereceu-lhe os lábios novamente.
- Estou vivo e isto é a realidade... ou sou apenas um
sonho?. - perguntou ele.
- Se não estás vivo, Tarzan... só peço a Deus que me deixe
morrer assim. antes que eu acorde para a terrível realidade
dos últimos momentos anteriores...
Durante longos momentos ficaram em silêncio, fitando-se nos
olhos. como se cada um deles interrogasse ainda a realidade da
felicidade incomparável e maravilhosa daquela hora. O passado,
com todos os seus desapontamentos e horrores, estava
momentaneamente esquecido - o futuro não lhes pertencia - mas
aquele instante sim, era de ambos, não podia ser-lhes tirado.
Foi ela quem primeiro quebrou o encantado silêncio.
- Para onde vamos, querido?... - perguntou -, que vamos nós
fazer?
- Aonde preferes ir?. - perguntou ele. - O que preferes
fazer?
- Ir aonde tu fores, Tarzan! Fazer o que julgares melhor.
- Mas. e Clayton?... - exclamou ele. Por momentos esquecera
que existia mais alguém no mundo além de ambos. - Esquecemos o
teu marido...
- Eu não estou casada, Tarzan!... - quase gritou Jane. - Nem
sequer prometida em casamento. No dia anterior àquele em que
essas horríveis criaturas me apanharam, disse a Clayton


324


do meu amor por ti, e ele compreendeu que eu não poderia
manter a estúpida promessa que lhe fizera. Foi logo depois de
termos sido miraculosamente salvos do ataque de um leão. - fez
uma brusca pausa, com um brilho interrogativo no olhar. Depois
exclamou: - Tarzan! foste tu quem nos salvou? Não poderia ser
outra pessoa...
Tarzan baixou os olhos, envergonhado.
- Como pudeste afastar-te e deixar-me?... - disse ela, num
tom de magoada censura.
- Não, Jane!... - implorou Tarzan. - Não, por favor! Não
podes saber o que sofri desde então, pela crueldade desse
gesto. ou como sofri nesse mesmo instante, primeiro numa raiva
de ciúme, e depois em amargo ressentimento contra um destino
que não merecia. Depois disso voltei para a tribo de
macacos... na intenção de nunca mais voltar a ver uma criatura
humana.
E Tarzan contou-Lhe então uma parte da sua vida, desde que
voltara para a selva - e de como se transformara... de
civilizado parisiense num selvagem Waziri... e daí voltara a
viver com as feras junto das quais fora criado.
Jane fez inúmeras perguntas. e por fim, com receio, falou
das coisas terríveis que Thuran lhe dissera. daquela mulher,
em Paris. Tarzan contou-Lhe então a sua curta vida de
civilizado, nada omitindo porque nada havia que o
envergonhasse, pois o seu coração sempre fora fiel.


325


Quando acabou, ficou a olhar para Jane, como à espera da sua
sentença.
- Eu sabia que ele não dizia a verdade. - murmurou Jane. -
Oh, que horrível criatura é esse homem!
-Não estás zangada comigo, então?
A resposta dela foi outra pergunta, que parscendo deslocada
era profundamente feminina:
- Olga de Coude é muito bonita?
Tarzan riu-se e voltou a beijá-la, dizendo:
- Sim. mas nem de longe tão bela como tu.
Jane deixou escapar um pequeno suspiro de contentamento, e
apoiou a cabeça ao ombro dele. Tarzan compreendeu que estava
perdoado.
Nessa noite Tarzan construiu um pequeno abrigo aconchegado,
entre as altas ramadas de uma árvore gigantesca, e aí Jane,
exausta, dormiu profundamente. enquanto, mais abaixo, num
outro ramo sólido, ele se instalou, pronto, mesmo dormindo, a
protegê-la.
Gastaram muitos dias para fazerem a longa jornada até à
costa. Onde o caminho era fácil seguiam a pé, de mãos dadas,
sob o dossel da floresta primitiva - tal como, num passado
imensamente distante, teriam caminhado os primeiros homens e
as primeiras mulheres. Quando o mato tornava o avanço difícil,
ele tomava-a nos poderosos braços e seguia o seu caminho entre
as ramadas. Os dias pareciam sempre curtos, porque ambos se
sentiam felizes. Se não fosse o desejo de alcançarem e
socorrerem Clayton, teriam prolongado indefinidamente aquela
maraviLhosa jornada.


326


No último dia antes de chegarem à costa, Tarzan notou o
cheiro de homens... de homens negros. Avisou a jovem,
dizendo-lhe para se manter em silêncio.
- Há poucos amigos na selva. - comentou, lacónico.
Meia hora depois aproximavam-se furtivamente de um pequeno
grupo de guerreiros negros que caminhavam para Oeste. Tarzan
reconheceu-os e soltou uma exclamação de prazer - porque se
tratava dos seus Waziris. Entre eles estava Busuli, e alguns
dos outros que haviam acompanhado Tarzan a Opar. Ao vê-lo, os
negros dançaram e gritaram, numa alegria exuberante. Tinham-no
procurado durante muitas semanas, disseram-lhe eles.
Os Waziris demonstraram um maravilhado espanto ante a
presença de Jane, mas quando souberam que ela ia ser a
companheira de Tarzan, multiplicaram-se em sinais de respeito
e de afecto. Assim, rodeados pelos alegres Waziris, chegaram
ao tosco abrigo na árvore, junto da praia.
Não havia qualquer sinal de vida, e nenhuma voz respondeu
quando chamaram em altos brados. Tarzan subiu rapidamente à
árvore e reapareceu um instante depois, com uma lata vazia que
atirou para Busuli, dizendo-Lhe que a fosse encher de água ao
ribeiro. Depois fez sinal a Jane para que subisse.
Debruçaram-se ambos sobre o vulto inerte, esquelético,
daquele que tinha sido um nobre inglês.


327


As lágrimas subiram aos olhos de Jane, ao ver as pobres
faces cavadas e os olhos encovados. e todas as marcas de
sofrimento que sulcavam a cara outrora jovem e bonita.
- Ainda vive. - murmurou Tarzan. - Faremos tudo o que
pudermos, por ele, mas receio que seja demasiado tarde.
Quando Busuli trouxe a água, Tarzan verteu algumas gotas
entre os lábios gretados e inchados do moribundo. Molhou-lhe a
testa escaldante e banhou-lhe os braços e as pernas, onde
parecia haver apenas pele sobre os ossos.
Clayton abriu finalmente os olhos, e a sombra de um pálido
sorriso iluminou-lhe as feições ao ver a jovem. Ao reconhecer
Tarzan, houve nele uma fugidia expressão de pasmo.
- Está tudo bem, velho amigo. - disse o homem da selva. -
Encontrámo-lo a tempo. Vai recompor-se: e estará a pé antes de
saber como.
O inglês abanou vagarosamente a cabeça, murmurando:
- É demasiado tarde... mas está bem assim. Prefiro morrer.
- Onde está o sr. Thuran?. - perguntou Jane.
- Deixou-me, quando a febre me venceu de todo. É... um
demónio. Quando lhe pedi água... que já não podia ir buscar...
bebeu-a ele e atirou fora o resto... a rir-se. - ao pensar no
miserável, Clayton teve um sobressalto de energia e
soergueu-se sobre um cotovelo. - Sim. - quase gritou - ...
hei-de viver - viver o bastante para encontrar essa fera. e
matá-la!


328


Mas o esforço deixou-o mais fraco do que estava, e recaiu
sobre o velho impermeável que, com as ervas quase apodrecidas,
tinha servido antes de cama, a Jane.
- Não se preocupe com Thuran. - disse Tarzan, apoiando a
mão, de leve, num gesto tranquilizador, sobre a testa de
Clayton. - Esse homem pertence-me e hei-de acabar por
agarrá-lo, pode ter a certeza.
Durante muito tempo, Clayton ficou imóvel. Por várias vezes
Tarzan teve de encostar o ouvido ao magro peito dele, para
ouvir bater debilmente o pobre coração exausto. Ao anoitecer,
Clayton voltou a despertar, por breves instantes.
- Jane... - sussurrou. A jovem debruçou-se mais, para o
ouvir. - Eu fiz-Lhe mal. e também a ele: - o moribundo esboçou
um movimento de cabeça, na direcção de Tarzan. - Amava-a
muito... o que é uma pobre desculpa para o mal que lhe fiz.
Mas não podia pensar em perdê-la. Não peço que me perdoe.
quero apenas... fazer o que devia ter feito há mais de um ano.
- meteu a mão, penosamente, no bolso do impermeável, em busca
de qualquer coisa que encontrara enquanto ali estivera sob o
domínio da febre. Encontrou o que buscava. Era um pedaço de
papel, amarelo, amarrotado. Entregou-o à jovem.
Quando Jane pegou no papel, o braço de Clayton recaiu sobre
o peito, inerte, O inglês deixou escapar um pequeno suspiro, a
cabeça pendeu-lhe para um dos lados, teve uma ligeira
contracção e imobilizou-se... para sempre...


329


Tarzan olhou para ele, e em silêncio cobriu-lhe a cara com
uma dobra do impermeável.
Por momentos ficaram onde estavam, ajoelhados. Os lábios de
Jane moviam-se numa prece silenciosa, e quando se levantaram,
um de cada lado do homem que por fim passara para além de todo
o sofrimento, as lágrimas chegaram aos olhos do filho da
selva... que através das suas próprias angústias tinha
aprendido a ter compaixão pelo sofrimento alheio.
Através das suas próprias lágrimas, Jane leu a mensagem
escrita no pequeno rectângulo de papel amarelado. e enquanto
lia os seus olhos tomaram uma expressão de espanto. Voltou a
ler, antes de poder entender completamente o que as palavras
significavam.


"Impressões digitais provam você Greystoke. parabéns.

D'Arnot"


Ela entregou o papel a Tarzan, murmurando:
- E... e ele soube isto durante todo este tempo... e não to
disse?
- Eu soube-o primeiro, Jane. - respondeu Tarzan - ... e
ignorava que ele o soubesse. Devo ter deixado cair este
telegrama, nessa noite, na sala de espera da pequena estação.
Foi aí que o recebi.
- E depois disso, disseste que não sabias quem era o teu
pai... e que a única mãe que conheceras era uma macaca?... -
perguntou Jane, espantada.
- Sem ti... o título e a fortuna nada significavam para mim,


330

querida. - respondeu Tarzan. - Se eu despojasse Clayton dessas
coisas... seria a ti que despojava. a ti, a quem eu amava. Não
compreendes, Jane?... - insistiu ele, como se estivesse a
desculpar-se de uma falta.
Jane estendeu os braços para ele, sobre o corpo do morto, e
pegou-lhe nas mãos, murmurando:
- E... e eu estive prestes a perder um tal amor.

CAPÍTULO 26


Passou o Filho da Selva


Na manhã seguinte, partiram para a curta jornada até à
barraca de Tarzan. Quatro Waziris transportavam o corpo de
Clayton. Havia sido sugestão de Tarzan, que Clayton fosse
enterrado perto do anterior Lord Greystoke, na orla da
floresta diante da qual se erguia a velha barraca de madeira.
Jane Porter alegrou-se de que assim fosse, e no íntimo do
seu coração maravilhou-se da extrema sensibilidade de carácter
daquele estranho homem que, embora criado por feras e entre
feras, tinha a ternura e o verdadeiro espírito que geralmente
apenas se associam com os requintes da mais alta civilização.
Tinham percorrido cerca de três milhas, das cinco que os
separavam da praia de Tarzan, quando os Waziris que iam à
frente se detiveram bruscamente, apontando com espanto,


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um vulto que se aproximava ao longo do areal. Era um homem com
um reluzente chapéu de seda, que caminhava lentamente, de
cabeça curvada, as mãos cruzadas sob as compridas abas do seu
comprido fraque preto.
Ao vê-lo, Jane soltou um grito de surpresa e de alegria, e
correu ao encontro dele. Ao ouvir a voz dela, o velho levantou
a cabeça e, vendo quem era, também gritou de alegria e
felicidade. Enquanto o professor Arquimedes Q. Porter apertava
a filha nos seus braços, grossas lágrimas lhe caíam pelas
faces vincadas, e tiveram de passar alguns minutos antes que
ele pudesse dominar-se o bastante para falar.
Quando, um momento depois, reconheceu Tarzan, foi com
dificuldade que puderam convencê-lo de que a angústia não lhe
perturbara o juízo - de tal modo ele, como os outros
componentes do grupo, estava convencido da morte do homem da
selva. Foi um problema conciliar essa convicção com o aspecto
inegavelmente vivo do deus da selva. O professor ficou
profundamente emocionado ao saber a notícia da morte de
Clayton.
- Não compreendo. - disse ele. - O sr. Thuran afirmou-nos
que o pobre Clayton tinha morrido há vários dias.
- Thuran está com o grupo?... - perguntou Tarzan.
- Sim. Apareceu-nos recentemente e levou-nos para a sua
barraca. Estávamos acampados a curta distância, para o Norte.


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Deus louvado! Vai ficar encantado de os ver.
- E surpreendido... - comentou Tarzan.
Pouco tempo depois o estranho grupo chegou à clareira onde
se erguia a barraca do filho da selva. Estava cheia de gente
que entrava e saía. e a primeira pessoa que Tarzan viu foi
d'Arnot.
- Paul!... - exclamou. - Em nome do equilíbrio mental... que
faz você aqui? Ou estamos todos doidos?
Foi prontamente explicado o caso, tal como muitas outras
coisas aparentemente estranhas. O navio de d'Arnot cruzava ao
longo da costa, em missão de patrulha, quando, por sugestão do
tenente, havia ancorado do lado de fora do pequeno porto
natural, para visitarem mais uma vez a barraca e a selva onde
muitos dos oficiais, e muitos dos marinheiros, haviam tomado
parte em excitantes aventuras, dois anos antes. Ao desembarcar
tinham encontrado o grupo de Lord Tennington, e estavam a ser
feitos preparativos para irem todos para bordo, na manhã
seguinte, a fim de regressarem à civilização.
Hazel Strong e a mãe, Esmeralda e o sr. Samuel T. Philander,
ficaram transtornados de alegria ante o aparecimento de Jane,
sã e salva. A sua fuga parecia-lhes pouco menos do que
miraculosa, e todos declararam que não poderia ter sido levada
a cabo por outro homem além de Tarzan. Encheram o atarantado
filho da selva de elogios e de atenções - ao ponto de o
fazerem ter saudades do anfiteatro dos macacos.


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Todos se interessaram pelos Waziris, e muitas foram as
prendas que os guerreiros negros receberam dos amigos do seu
rei. Mas quando souberam que Tarzan partiria para longe, na
"grande piroga" ancorada a uma milha da praia, ficaram
profundamente tristes.
Até então os recém-chegados ainda não tinham visto Lord
Tennington nem o sr. Thuran. Haviam partido para renovar a
provisão de carne fresca, logo de manhã, e ainda não tinham
regressado.
- Como esse homem, cujo nome tu dizes ser Rokoff, vai ficar
surpreendido ao ver-te. - disse Jane a Tarzan.
- Vai ser curta a surpresa. - respondeu sombriamente Tarzan.
No tom da sua voz havia qualquer coisa que fez com que Jane
o olhasse, alarmada. O que viu confirmou os seus receios.
Poisou a mão sobre um dos braços dele e suplicou-lhe que
entregasse o russo às leis francesas.
- No coração da selva, querido... sem outra forma de justiça
para que apelar, além dos teus músculos, terias o direito de
executar sobre ele a sentença que merece. Mas tendo ao teu
dispor o braço da lei, o forte braço de um governo
civilizado... seria um assassínio, se o matasses. Os teus
próprios amigos teriam de te prender: ou, se resistisses,
mergulhar-nos-ias novamente na angústia e na infelicidade. Não
posso suportar a ideia de te perder, querido. Promete-me que
entregarás esse homem ao capitão Dufranne. e que deixarás a
lei seguir o seu curso. Um tal homem não merece que, por ele,


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ponhamos em risco a nossa felicidade.
Tarzan compreendeu a sensatez dos argumentos dela, e
prometeu. Cerca de meia hora depois, Tennington e Rokoff
surgiram da selva. Caminhavam lado a lado. Tennington foi o
primeiro a notar a presença de estranhos no acampamento. Viu
os guerreiros negros a falarem com os marinheiros do cruzador
e depois viu o belo gigante moreno a conversar com d'Arnot e o
capitão Dufranne.
- Quem será esse homem?... - disse ele a Rokoff.
Quando o russo levantou os olhos e viu os de Tarzan, fitos
nele, cambaleou e empalideceu.
- Maldição... - exclamou.
Antes que Tennington pudesse avaliar-lhe a intenção, o russo
levou a arma à cara, apontou-a para Tarzan e premiu o gatilho.
Mas o inglês estava no lado dele, tão perto que a sua mão
desviou o cano da arma uma fracção de segundo antes do tiro. e
a bala apontada para o coração de Tarzan passou a grande
distância por cima da cabeça dele.
Antes que o russo pudesse disparar segunda vez, Tarzan
saltou sobre ele e desarmou-o. O capitão Dufranne, d'Arnot e
uma dúzia de marinheiros tinham acorrido ao ouvir a detonação,
e Tarzan entregou-lhes o russo, sem uma palavra. Já havia
explicado o assunto ao comandante francês, antes da chegada de
Rokoff, e Dufranne deu ordens imediatas para que o russo fosse
posto a ferros, a bordo do cruzador.


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Quando os marinheiros conduziam o homem para o escaler que o
levaria para a sua prisão provisória, Tarzan pediu licença
para o revistar e, com satisfação, encontrou os documentos
roubados.
O tiro fizera com que Jane Porter e os outros saíssem da
barraca, a correr, mas logo que a excitação acabou, a jovem
cumprimentou o surpreendido Lord Tennington. Tarzan
aproximou-se, depois de se ter apossado dos documentos, e Jane
apresentou-o a Tennington.
- Deixe-me apresentar-lhe John Clayton, lord Greystoke, sir.
O inglês deixou transparecer o seu espanto, mau grado
tremendos esforços para se mostrar cortês, e foi preciso ouvir
muitas repetições da estranha história do homem da selva,
contadas por ele próprio, por Jane Porter e pelo tenente
d'Arnot, para que Lord Tennington se convencesse de que não
estavam todos doidos.
Ao entardecer enterraram William Cecil Clayton, junto das
sepulturas do tio e da tia, os anteriores Lord e Lady
Greystoke. A pedido de Tarzan foram disparadas três salvas de
espingarda, diante do lugar de eterno repouso de um homem
valente, que valentemente enfrentara a morte.
O professor Porter, que noutros tempos recebera ordens
eclesiásticas, conduziu o simples serviço religioso. Em volta
da sepultura, de cabeça curvada, juntou-se o mais estranho
grupo que poderia ser visto em tais circunstâncias. Oficiais e
marinheiros franceses, dois lords, vários americanos e uma
vintena de guerreiros negros.


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Depois do funeral, Tarzan pediu ao capitão Dufranne para
atrasar por dois dias a partida do cruzador, a fim de que ele
pudesse internar-se umas quantas milhas na selva e ir buscar
as "suas coisas".
O oficial acedeu alegremente.
Ao fim da tarde do dia seguinte, Tarzan e os seus Waziris
voltaram com o primeiro carregamento das "coisas", e quando o
grupo viu os antigos lingotes de oiro puro todos rodearam o
homem da selva, crivando-o de perguntas. Mas ele, sorridente,
manteve-se surdo a todos os pedidos, recordando-se a fornecer
qualquer indicação quanto às origens daquela imensa fortuna.
Disse apenas:
- Há milhares que eu deixei ficar onde estavam... por cada
um dos que trouxe. Quando estes se gastarem, talvez pense em
voltar para levar mais.
No dia seguinte regressou trazendo o resto dos lingotes, e
quando tudo ficou a bordo do cruzador, o capitão Dufranne
declarou que se sentia como o comandante de um velho galeão
espanhol, na viagem de volta depois de uma incursão às cidades
aztecas.
- Na verdade não sei em que momento a minha tripulação me
degolará para tomar conta do navio. - concluiu ele, rindo.
Na manhã seguinte, pouco antes de se disporem a embarcar,
Tarzan fez uma sugestão a Jane:
- Supõe-se que os animais selvagens são despidos de
sentimentalismos. mas na verdade eu gostaria de casar na mesma
barraca onde nasci, junto das sepulturas de meu pai e de minha
mãe... e rodeado pela selva que foi sempre o meu lar.


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- Será um casamento regular, querido?... - perguntou ela. -
Se for... não sei de outro lugar onde preferisse casar-me com
o meu deus da selva... nenhum melhor do que este, sob as
sombras da tua floresta primitiva.
Quando falaram a tal respeito, toda a gente assegurou que o
casamento naquelas condições seria perfeitamente regular. e um
magnífico fim para um sensacional romance de amor. Assim todos
se juntaram na barraca e à porta, para assistirem à segunda
cerimónia que o professor Porter celebrava no curto espaço de
três dias.
D'Arnot ia ser a testemunha do noivo, e Hazel Strong a da
noiva. quando Tennington desmanchou todas as combinações com
uma das suas "estupendas ideias".
- Se a sr.a Strong concordar... - disse ele, pegando na mão
de Hazel - ... nós, Hazel e eu, pensamos que seria uma
excelente oportunidade para fazer disto um duplo casamento!
O cruzador levantou ferro no dia seguinte, e enquanto se
afastava lentamente para o largo, um homem alto, elegantemente
vestido com um fato de flanela branca, encostou-se à amurada,
em companhia de uma graciosa rapariga. Ambos olhavam
atentamente a costa, onde vinte guerreiros Waziris, nus e
reluzentemente negros, dançavam e brandiam as grandes lanças
acima da cabeça, gritando despedidas ao seu rei que partia.
- Detestaria pensar que estou a ver a selva pela última vez,
querida... - disse o homem alto - ... se não soubesse que vou
contigo para um novo mundo onde seremos felizes para sempre.


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E, curvando-se, Tarzan dos Macacos beijou os lábios da sua
companheira.

FIM
Espero que tenham gostado, pois é um clássico, não dos primórdios de
Tarzan, na década de 20, mas é um clássico, e muito bom de se ler.

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