os legados de LORIEN
* os erros de digitação, já estavam contidos no livro, baixado pelo
4shared.com, mas que não impossibilitam a compreensão da história.
OS EVENTOS NESTE LIVRO SÃO REAIS.
NOMES E LUGARES FORAM MODIFICADOS
PARA PROTEGER OS SEIS LORIENOS, QUE
CONTINUAM ESCONDIDOS.
CONSIDEREM ISSO COMO UM PRIMEIRO
AVISO.
OUTRAS CIVILIZAÇÕES EXISTEM.
E ALGUMAS QUEREM DESTRUIR VOCÊS.
A PORTA COMEÇA A TREMER. É FRACA, FEITA
DE BAMBUS PRESOS POR PEDAÇOS de corda
desfiada. O tremor é sutil e para quase imediatamente. Eles
levantam a cabeça para ouvir, um garoto de quatorze anos
e um homem de cinquenta, que todos pensam ser pai dele,
mas que nasceu perto de uma selva diferente em um
planeta diferente a centenas de anos-luz dali. Os dois estão
deitados sem camisa em lados opostos da cabana, cada
catre coberto por um mosquiteiro. Ouvem um barulho
distante, como se um animal quebrasse o galho de uma
árvore -- mas, nesse caso, era como se a árvore inteira
estivesse sendo quebrada.
--O que foi isso? -- pergunta o garoto.
--Shhh -- o homem responde.
Eles ouvem o ruído de insetos, nada além. O homem
começa a se levantar quando o tremor reinicia. Dessa vez é
mais longo, mais firme, e há outro estrondo, mais próximo.
O homem fica de pé e caminha lentamente até a porta.
Silêncio. Ele respira fundo e estende a mão até o trinco. O
garoto se senta.
-- Não -- o homem cochicha, e nesse instante a lâmina
longa e brilhante de uma espada feita de um metal branco
e luminoso, que não é encontrado na Terra, atravessa a
porta e penetra profundamente em seu peito. Quinze
centímetros de lâmina projetam-se de suas costas e a
espada logo é puxada de volta. O homem grunhe. O meni-
no perde o fôlego. O homem respira fundo e diz uma única
palavra: -- Fuja.
Então cai sem vida no chão.
O garoto pula do catre e atravessa a parede dos fundos. Ele
não se incomoda com a porta ou a janela: literalmente se
arremessa contra a parede, que se rompe como se fosse de
papel, embora seja de mogno-africano, sólido e resistente.
Ele mergulha na noite do Congo, salta por cima das árvores
e corre a cerca de noventa quilômetros por hora. Sua visão
e sua audição vão além do limite humano. Ele se desvia de
árvores, atravessa entre os cipós entrelaçados e cruza
riachos com apenas um salto. Passadas pesadas soam atrás
dele, mais perto a cada segundo. Os perseguidores também
têm dons. E têm algo consigo. Algo de que ele só tinha
ouvido falar, algo que ele nunca achou que veria na Terra.
O barulho está mais próximo. O garoto ouve um rugido
grave e intenso. Ele sabe que aquilo que o persegue está
ganhando velocidade. E vê uma clareira mais à frente, na
selva. Quando a alcança, nota um barranco enorme, um
precipício de noventa metros de largura e noventa de
profundidade, com um rio no fundo, em cuja margem há
pedregulhos enormes, que o arrebentariam se caísse ali. A
única opção é saltar o precipício. Ele vai ter pouco espaço
para correr e ganhar impulso, e uma única chance. Uma
chance para salvar a própria vida. Até mesmo para ele, ou
para qualquer um dos outros na Terra que são como ele, o
salto é quase impossível. Recuar, descer a encosta ou tentar
enfrentá-los seria morte certa. Ele tem uma tentativa.
Um rugido ensurdecedor soa atrás dele. Os perseguidores
estão de seis a nove metros de distância. Ele recua cinco
passos, corre... e, pouco antes da beirada do precipício,
salta e atravessa a garganta voando. São três ou quatro
segundos no ar. Ele grita, os braços estendidos para a
frente, esperando pela segurança ou pelo fim. Chega ao
chão e cai rolando, parando aos pés de uma árvore
gigantesca. Ele sorri. Não acredita que conseguiu, que vai
sobreviver. Para não ser visto pelos perseguidores, e ciente
de que precisa se afastar ainda mais, o garoto se levanta.
Deve continuar correndo.
Ele se vira para a selva. Ao fazer isso, sente a mão enorme
se fechando em torno de seu pescoço. Ele é erguido do
chão. Luta, se debate, esperneia, tenta se libertar, mas sabe
que é inútil, que acabou. Deveria imaginar que eles
estariam dos dois lados, que quando o localizassem não
haveria chance de fuga. O mogadoriano o levanta para
poder enxergar seu peito, para ver o amuleto que pende do
pescoço, o amuleto que só ele e os da mesma espécie
podem usar. Ele o arranca e guarda em algum lugar sob o
longo manto negro, e, quando sua mão emerge, já
empunha a cintilante espada de metal branco. O garoto
olha fixamente nos olhos profundos, grandes, negros e frios
do mogadoriano e diz:
-- Os Legados vivem. Eles vão se encontrar e, quando
estiverem prontos, vão destruir vocês.
O mogadoriano ri, uma gargalhada debochada, cruel. Ele
levanta a espada, única arma no universo capaz de quebrar
o encantamento que até então protegia o garoto e que
ainda protege os outros. A lâmina se acende numa chama
prateada ao ser apontada para o céu, como se ganhasse
vida, pressentisse sua missão e se alegrasse com a
expectativa. E quando desce, formando um arco de luz que
cruza a escuridão da selva, o menino ainda acredita que
alguma parte sua vai sobreviver e voltar para casa. Ele fecha
os olhos pouco antes de ser atingido pela espada. E então é
o fim.
CAPÍTULO UM
NO COMEÇO ÉRAMOS NOVE. PARTIMOS AINDA
PEQUENOS, QUASE JOVENS DEMAIS para lembrar.
Quase.
Dizem-me que o chão tremeu, que os céus se encheram de
luz e explosões. Vivíamos aquelas duas semanas no ano em
que as duas luas pairam em lados opostos do horizonte. Era
um tempo de celebração, e no início as explosões foram
confundidas com fogos de artifício. Mas não eram. Fazia
calor, e uma brisa suave soprava da água. Sempre me falam
sobre o clima: fazia calor. Havia uma brisa suave. Nunca
entendi por que isso importava.
O que lembro com mais clareza é como minha avó estava
naquele dia. Agitada, triste. Havia lágrimas em seus olhos.
Meu avô se mantinha bem atrás do ombro dela. Lembro
como os óculos dele refletiam a claridade do céu. Havia
abraços. E palavras ditas por eles. Não lembro quais foram.
E nada me atormenta mais do que isso.
Levei um ano para chegar aqui. Eu tinha cinco anos quando
chegamos. A idéia era nos assimilarmos à cultura local
antes de retornar a Lorien, quando fosse novamente
possível haver vida por lá. Tivemos de nos separar e seguir
caminhos distintos. Por quanto tempo, ninguém sabia.
Ainda não sabemos. Nenhum deles sabe onde estou, e eu
não sei onde eles estão ou que aparência têm agora. É
assim que nos protegemos, com o encantamento lançado
quando partimos, um feitiço que garante que só podemos
ser mortos na ordem de nossos números, desde que nos
mantenhamos separados. Se nos juntarmos, o
encantamento se desfaz.
Quando um de nós é encontrado e morto, uma cicatriz
circular contorna o tornozelo direito daqueles que ainda
sobrevivem. E no tornozelo esquerdo temos uma cicatriz
idêntica ao amuleto que usamos, um desenho que se
formou quando fomos protegidos pelo encantamento
lórico. As cicatrizes circulares são outra parte do feitiço.
Um sistema de alerta para sabermos onde estamos em
relação uns aos outros e quando seremos o próximo na lista
dos perseguidores. A primeira cicatriz surgiu quando eu
tinha nove anos. Eu dormia, e acordei com a sensação do
desenho queimando a pele. Morávamos no Arizona, em
uma pequena cidade na fronteira com o México. Acordei
gritando no meio da noite, em agonia, aterrorizado ao ver a
cicatriz se desenhando. Foi o primeiro sinal de que os
mogadorianos finalmente nos haviam encontrado na Terra,
o primeiro sinal de que corríamos perigo. Até a cicatriz
aparecer, eu quase me convencera de que minhas
lembranças não eram realidade, de que o que Henri me
dissera estava errado. Queria ser uma criança normal
levando uma vida normal, mas então eu soube, sem
margem para dúvidas ou discussão, que eu não era. Nós
nos mudamos para Minnesota no dia seguinte.
A segunda cicatriz apareceu quando eu tinha doze anos.
Estava na escola, no Colorado, participando de um
concurso de soletração. Assim que a dor começou, eu
soube o que estava acontecendo e o que havia acontecido
com o Número Dois. A dor era lancinante, mas dessa vez
suportável. Eu teria continuado no palco, mas o calor
incendiou minha meia. O professor que conduzia a disputa
me socorreu com um extintor de incêndio e me levou para
o hospital. O médico no pronto-socorro encontrou a
primeira cicatriz e chamou a polícia. Quando Henri
chegou, os policiais ameaçaram prendê-lo por maus-tratos.
Mas, como ele não estava nem perto de mim quando a
segunda cicatriz apareceu, acabou sendo liberado.
Entramos no carro e partimos, dessa vez para o Maine.
Abandonamos tudo o que tínhamos, exceto a Arca Lórica
que Henri leva conosco em todas as mudanças. Até agora,
vinte e uma.
A terceira cicatriz surgiu há uma hora. Eu estava sentado
em um barco. Os donos são os pais do garoto mais popular
da escola, que dava uma festa sem que eles soubessem. Eu
nunca havia sido convidado para festa alguma nessa escola.
Como sabia que podíamos partir a qualquer momento, eu
preferia ficar na minha. Mas tudo esteve calmo nos últimos
dois anos. Henri não via nos jornais nada que pudesse levar
os mogadorianos até um de nós ou que nos alertasse da
presença deles. Então, fiz alguns amigos. E um deles me
apresentou ao garoto que dava a festa. Todo mundo se
encontrou no píer. Havia três coolers, música e garotas que
eu admirava de longe, mas com quem nunca havia falado,
embora quisesse. Zarpamos e seguimos uns oitocentos
metros Golfo do México adentro. Eu estava sentado na
beirada do barco com os pés na água, conversando com
uma menina bonita, morena e de olhos azuis, chamada
Tara. Foi quando senti que estava acontecendo. A água
começou a ferver em volta da minha perna, que brilhava
onde a cicatriz estava se formando. O terceiro símbolo de
Lorien, o terceiro aviso. Tara começou a gritar e as pessoas
se aglomeraram ao redor. Eu sabia que não tinha jeito de
explicar aquilo. E sabia que precisávamos partir
imediatamente.
Agora o risco era maior. Eles haviam encontrado o Número
Três, e, onde quer que estivesse, ele ou ela já estava morto.
Eu acalmei Tara, beijei seu rosto, disse que tinha sido legal
conhecê-la e que esperava que ela tivesse uma vida longa e
feliz. Depois, mergulhei do barco e comecei a nadar,
sempre submerso, exceto por uma ida à tona para respirar
mais ou menos na metade do caminho, na maior velocida-
de possível até chegar à praia. Corri pela trilha paralela à
estrada, sempre entre as árvores, na mesma velocidade dos
carros. Quando cheguei em casa, Henri estava à frente dos
escâneres e monitores que usava para pesquisar as notícias
do mundo todo e a atividade policial em nossa região. Ele
soube sem que eu dissesse uma única palavra, mas
levantou minha calça ensopada para ver as cicatrizes.
No início éramos um grupo de nove.
Três se foram, morreram.
Agora restam seis.
Eles estão nos caçando e não vão parar enquanto não
matarem todos.
Eu sou o Número Quatro.
Sei que sou o próximo.
CAPÍTULO DOIS
ESTOU NO MEIO DA ENTRADA DA GARAGEM,
OLHANDO PARA A CASA. É COR-DE-ROSA suave,
quase como cobertura de bolo, e fica elevada uns três
metros, sobre o pilotis de madeira. Há uma palmeira na
frente. Na parte de trás há um píer que se estende pouco
menos de vinte metros no Golfo do México. Se a casa fosse
localizada um quilômetro e meio ao sul, o píer ficaria no
Oceano Atlântico.
Henri sai carregando a última caixa. Algumas sequer foram
desembaladas depois da última mudança. Ele tranca a
porta e deixa as chaves na caixa de correio, ao lado. São
duas horas da manhã. Henri veste short caqui e camisa
pólo preta. Está muito bronzeado, e a barba por fazer dá a
impressão de abatimento. Ele também está triste com a
partida. Joga as caixas na parte de trás da caminhonete com
o restante das coisas.
-- É isso -- diz.
Eu faço que sim com a cabeça. Olhamos para a casa e
ouvimos o vento batendo nas folhas da palmeira. Estou
carregando um saco de aipo.
-- Vou sentir saudades daqui -- comento. -- Mais do que
dos outros lugares.
--Eu também.
--Hora do fogo?
--Sim. Quer cuidar disso ou prefere que eu faça?
--Eu faço.
Henri pega sua carteira e a joga no chão. Eu pego a minha e
faço o mesmo. Ele caminha até a caminhonete e volta
trazendo passaportes, certidões de nascimento, cartões do
seguro social, talões de cheque, cartões de crédito e do
banco, e joga tudo no chão. Todos os documentos e tudo o
que se relaciona a nossa identidade neste lugar, tudo
forjado e fabricado. Pego no automóvel uma pequena lata
de gasolina que mantemos para as emergências e despejo
sobre a pilha reduzida. Meu nome atual é Daniel Jones.
Minha história atual é que cresci na Califórnia e me mudei
para cá por causa do trabalho de meu pai, que é
programador de sistemas. Daniel Jones está prestes a
desaparecer. Risco um fósforo e jogo no meio da pilha, e o
fogo começa imediatamente. Mais uma vida que se vai.
Como sempre fazemos, Henri e eu ficamos para ver as
chamas. Adeus, Daniel, eu penso, foi um prazer conhecer
você. Quando o fogo se extingue, Henri olha para mim.
--Temos que ir.
--Eu sei.
-- Essas ilhas nunca foram seguras. É difícil sair delas
rapidamente, difícil fugir. Foi tolice vir para cá.
Eu balanço a cabeça, indicando que concordo. Henri está
certo, e eu sei disso. Mas ainda reluto em ir embora.
Viemos para cá porque eu queria. Pela primeira vez Henri
me deixara escolher nosso destino. Ficamos por nove
meses, e esse foi o período mais longo que passamos em
um lugar desde que deixamos Lorien. Vou sentir falta do
sol e do calor. Vou sentir saudades da lagartixa que ficava
me espiando da parede todas as manhãs enquanto eu
tomava o café. Embora haja literalmente milhões de
lagartixas no sul da Flórida, juro que aquela me seguia até a
escola e parecia estar em todos os lugares. Vou sentir falta
dos temporais que parecem chegar do nada, de como tudo
é parado e silencioso no início da manhã, antes de as
gaivotas chegarem. Vou sentir falta dos golfinhos que às
vezes aparecem quando o sol se põe. Vou sentir saudades
até do cheiro de enxofre das algas marinhas que apodrecem
na praia, de como ele preenche a casa e invade nossos
sonhos enquanto dormimos.
-- Livre-se do aipo, eu vou esperar na caminhonete --
Henri diz. -- Está na hora.
Eu entro em um bosque fechado à direita da caminhonete.
Há três cervos esperando. Jogo o saco com aipos diante
deles e me inclino para afagar um de cada vez. Os animais
permitem, porque há muito venceram o medo. Um deles
levanta a cabeça e olha para mim, os olhos negros e
inexpressivos me encarando. Chega a parecer que ele está
me dizendo algo. Sinto um calafrio na espinha. Ele abaixa a
cabeça e continua comendo.
-- Boa sorte, amiguinhos -- digo, depois ando até a
caminhonete e me sento no banco do carona.
Observamos pelos retrovisores enquanto a casa fica cada
vez menor, até que Henri entra na estrada principal e ela
desaparece. É sábado. Imagino o que está acontecendo na
festa, sem mim. O que estão falando sobre o modo como
saí de lá e o que dirão na segunda-feira, quando eu não
aparecer na escola. Gostaria de ter me despedido. Nunca
mais verei ninguém que conheci ali. Nunca mais vou falar
com nenhum deles. E nunca saberão o que sou ou por que
parti. Depois de alguns meses, talvez semanas, é provável
que ninguém pense mais em mim.
Antes de chegarmos à estrada estadual, Henri para a fim de
abastecer a caminhonete. Enquanto mexe na bomba, eu
examino um atlas que ele guarda entre os bancos. Nós o
temos desde que chegamos a este planeta. Traçamos linhas
indo e vindo de todos os lugares onde já moramos. A esta
altura elas já atravessam todos os Estados Unidos. Sabemos
que devemos nos livrar do atlas, mas ele é o único objeto
que conservamos e que retrata nossa vida. Pessoas comuns
têm fotos, vídeos e diários; nós temos o atlas. Ao examiná-
lo, percebo que Henri fez uma linha da Flórida até Ohio.
Quando imagino Ohio, penso em vacas, milho e pessoas
gentis. Sei que as placas dos carros de lá têm escrito "O
coração de tudo". Não sei dizer o que é "tudo", mas acho
que vou descobrir.
Henri volta à caminhonete. Ele comprou dois refrigerantes
e um saco de batatas fritas. Partimos na direção da U.S. 1,
que vai nos levar ao norte. Ele estende a mão para pegar o
atlas.
-- Acha que há vida em Ohio? -- eu brinco.
Ele ri.
-- Imagino que haja algumas. E talvez até tenhamos a
sorte de encontrar carros e televisão por lá.
Eu movo a cabeça, concordando. Talvez não seja tão ruim
quanto imagino.
--O que acha do nome "John Smith"? -- pergunto.
--Foi esse que escolheu?
--Acho que sim -- respondo. Nunca fui "John" antes, nem
"Smith".
-- Não é possível encontrar nada mais comum. Eu diria
que é um prazer conhecê-lo, Sr. Smith.
Eu sorrio.
--É, acho que gosto de "John Smith".
--Vou montar seus documentos quando pararmos.
Um quilômetro e meio depois estamos fora da ilha,
cruzando a ponte. A água passa por baixo de nós, calma, e a
luz da lua brilha, salpicando de branco a crista das
pequenas ondas. À direita está o oceano, à esquerda, o
golfo; em essência, é a mesma água, mas com nomes
diferentes. Tenho vontade de chorar, mas me contenho.
Não que esteja triste por deixar a Flórida, mas estou
cansado de fugir. Cansado de inventar um nome a cada seis
meses. Cansado das novas casas, das novas escolas. Fico me
perguntando se algum dia vamos poder parar.
CAPÍTULO TRÊS
PARAMOS PARA COMPRAR COMIDA,
ABASTECER E PROVIDENCIAR NOVOS
TELEFONES. Escolhemos uma parada de caminhoneiros,
onde comemos bolo de carne e macarronada com queijo,
uma das poucas coisas que Henri admite ser melhor que
qualquer comida de Lorien. Enquanto fazemos a refeição,
ele usa o laptop para fazer os novos documentos com
nossos novos nomes. Vai imprimir tudo quando chegarmos
e, para todos os efeitos, seremos quem estamos dizendo.
--Tem certeza de que quer "John Smith"? -- ele pergunta.
--Tenho.
--Você nasceu em Tuscaloosa, no Alabama.
Eu dou risada.
--De onde tirou isso?
Henri sorri e indica com o queixo duas mulheres sentadas
algumas mesas adiante. As duas são lindas. Uma delas está
usando uma camiseta com a inscrição "FAZEMOS
MELHOR EM TUSCALOOSA".
-- É para lá que vamos em seguida -- ele revela.
-- Por mais estranho que possa parecer, espero ficar muito
tempo em Ohio.
-- É mesmo? Gosta da ideia de viver lá?
-- Gosto da ideia de fazer alguns amigos, de ir à mesma
escola por mais que alguns poucos meses, de, quem sabe,
ter uma vida de verdade. Eu estava começando a fazer isso
na Flórida. Foi muito legal, e pela primeira vez desde que
chegamos à Terra eu me senti quase normal. Quero
encontrar um lugar e nele ficar.
Henri parecia pensativo.
--Já olhou suas cicatrizes hoje?
--Não. Por quê?
--Por que isso tudo não tem a ver com você. Trata-se da
sobrevivência de nossa raça, quase inteiramente destruída,
e de mantê-lo vivo. Cada vez que um de nós morre... cada
vez que um de vocês, um dos Gardes, morre... nossas
chances diminuem. Você é o Número Quatro, é o próximo
da fila. Há uma raça inteira de assassinos cruéis à sua caça.
Vamos nos mudar ao primeiro sinal de problemas, e isso
não está aberto a discussão.
Henri dirige em todo o trajeto. Entre as paradas e a
confecção dos novos documentos, a viagem dura trinta
horas, mais ou menos. Eu passo a maior parte do tempo
cochilando ou jogando videogame. Por causa de meus
reflexos, consigo dominar a maioria dos jogos muito
depressa. O máximo que demorei para virar um jogo foi
cerca de um dia. Os que mais gosto são os de guerras
alienígenas e espaciais. Finjo que estou novamente em
Lorien, combatendo os mogadorianos, derrubando-os,
transformando-os em pó. Henri acha isso esquisito e tenta
não me encorajar. Diz que precisamos viver no mundo real,
onde guerra e morte são de verdade, não uma encenação.
Quando finalizo o último jogo, levanto o olhar. Estou
cansado de ficar sentado na caminhonete. O relógio no
painel marca 19h58. Bocejo, esfrego os olhos.
--Falta muito?
--Estamos quase chegando -- responde Henri.
Já escureceu, mas ainda há uma claridade pálida a oeste.
Passamos por fazendas de cavalos e de gado, depois por
campos desertos e, fora isso, por árvores que vão até onde a
vista pode alcançar. Exatamente o que Henri queria: um
lugar pacato, para passarmos despercebidos. Uma vez por
semana ele passa seis, sete, até oito horas na Internet,
atualizando uma lista de casas desocupadas país afora que
se enquadram em seus critérios: isoladas, fora da área
urbana e com disponibilidade imediata. Ele me contou que
teve de fazer quatro tentativas -- um telefonema para
Dakota do Sul, um para o Novo México e um para o
Arkansas -- até finalmente fechar o aluguel de onde vamos
morar agora.
Após alguns minutos, vemos as luzes esparsas que indicam
a cidade. Passamos por uma placa que anuncia:
BEM-VINDOS A PARADISE, OHIO
POPULAÇÃO: 5.243
-- Puxa! -- eu comento. -- Este lugar é ainda menor do
que aquele em Montana onde moramos.
Henri está sorrindo.
--Acha que isto aqui é o paraíso de quem?
--Das vacas, talvez? Dos espantalhos?
Passamos por um velho posto de gasolina, um lava rápido e
um cemitério. Então surgem as casas, construções de
madeira afastadas umas das outras por nove ou dez metros.
Quase todas estão com as janelas decoradas para o
Halloween. A calçada atravessa os pequenos jardins e leva
às portas. Uma rotatória marca o centro da cidade, e no
meio dela há a estátua de um homem em um cavalo, empu-
nhando uma espada. Henri para. Nós dois olhamos para a
estátua e rimos, na esperança de que jamais apareça por ali
mais alguém com espadas. Ele passa pela rotatória e o
sistema de GPS do painel nos manda fazer uma curva.
Seguimos para oeste, saindo da cidade.
Percorremos cerca de seis quilômetros antes de virar à
esquerda numa alameda de cascalho, depois passamos por
campos abertos, que provavelmente ficam repletos de
milho no verão, e atravessamos mais ou menos um
quilômetro e meio de floresta densa. Finalmente a
encontramos, escondida no meio da vegetação não apara-
da: uma caixa de correspondência de metal enferrujado
com letras pretas pintadas na lateral: 17 OLD MILL RD. Ali
está o número 17 da estrada do velho moinho.
-- A casa mais próxima fica a três quilômetros -- Henri
diz, entrando na propriedade.
O mato invade a estradinha de cascalho, cheia de buracos
com água lamacenta. Henri para e desliga o motor da
caminhonete.
-- De quem é aquele carro? -- pergunto, apontando para
o SUV preto atrás do qual Henri acabou de estacionar.
-- Deve ser da corretora de imóveis.
A casa é emoldurada pelas árvores. Na escuridão ela tem
um certo ar sombrio, como se o último morador tivesse ido
embora por medo, por ter sido expulso ou fugido. Eu saio
da caminhonete. O motor estala e posso sentir o calor que
emana dele. Pego minha mala na carroceria e fico ali
parado, segurando-a.
-- O que acha? -- Henri pergunta.
A casa tem um andar só. A fachada é de madeira. Boa parte
da pintura branca já descascou. Uma das janelas da frente
está danificada. As telhas pretas parecem empenadas e
prestes a quebrar. Três degraus de madeira levam a uma
pequena varanda coberta e mobiliada com cadeiras
bambas. O quintal é comprido e maltratado. Há muito
tempo a grama não é molhada.
-- Parece o paraíso -- respondo.
Começamos a caminhar juntos, e, neste instante, uma
mulher loura e bem-vestida, mais ou menos da idade do
Henri, aparece na porta da casa. Ela está de tailleur e
segura uma prancheta e uma pasta. Tem um BlackBerry
preso ao cós da saia. Ela sorri.
-- Sr. Smith?
--Sim -- Henri confirma.
--Sou Annie Hart, corretora da Imobiliária Paradise.
Conversamos ao telefone. Tentei ligar mais cedo, mas seu
número parecia estar desligado.
--Sim, sim. Infelizmente, a bateria acabou a caminho
daqui.
--Ah, eu odeio quando isso acontece -- ela diz e se
aproxima de nós para apertar a mão de Henri. Ela pergunta
meu nome e eu respondo, apesar de me sentir tentado,
como sempre, a dizer simplesmente "Quatro". Enquanto
Henri assina o contrato, ela me pergunta minha idade e
conta que tem uma filha mais ou menos da faixa etária, que
estuda no colégio local. A mulher é muito simpática,
amigável e nitidamente adora conversar. Henri devolve o
contrato e nós três entramos na casa.
A maioria dos móveis está coberta por lençóis brancos. Os
que ficaram de fora ganharam uma camada de poeira densa
e insetos mortos. Parece que a tela nas janelas vai quebrar
se a tocarmos, e as paredes são revestidas de compensado
barato. Há dois dormitórios, uma cozinha modesta com
piso de linóleo verde-limão e um banheiro. A sala de estar é
grande e retangular, e fica na frente da casa. Há uma lareira
no canto mais afastado. Eu entro e jogo minha mala na
cama do quarto menor, que tem um pôster grande e
desbotado de um jogador de futebol num uniforme laranja.
Ele está no meio de um passe e parece que vai ser
esmagado por um sujeito enorme de uniforme preto e
dourado. Os dizeres o identificam como BERNIE KOSAR,
QUARTERBACK, DO CLEVELAND BROWNS.
-- Venha se despedir da Sra. Hart -- Henri grita da sala.
A Sra. Hart está na porta com Henri e me diz para procurar
pela filha dela na escola, pois podemos ser amigos. Eu
sorrio e respondo que sim, isso seria ótimo. Assim que ela
vai embora começamos a descarregar a caminhonete.
Dependendo da rapidez com que deixamos um lugar,
podemos viajar com pouca bagagem, o que significa levar
as roupas do corpo, o laptop de Henri e a Arca Lórica com
entalhes intricados que nos acompanha a todos lugares. Ou
carregar algo mais: normalmente os outros computadores e
o equipamento que Henri usa para estabelecer um
perímetro de segurança e pesquisar na Internet notícias e
eventos que possam ter a ver conosco. Desta vez estamos
com a arca, dois bons computadores, quatro monitores de
tevê e quatro câmeras. Também temos algumas roupas,
embora poucas peças que eu tenha usado na Flórida sirvam
para a vida em Ohio. Henri leva a arca para o quarto dele e
carregamos todo o equipamento para o porão, onde ele
será instalado, de forma que nenhuma visita possa ver
nada. Assim que levamos tudo para dentro, ele começa a
conectar as câmeras e ligar os monitores.
--Não teremos Internet até amanhã cedo. Mas, se quiser ir
à escola, posso imprimir toda a sua nova documentação.
--Se eu não for, vou ter que ajudar a limpar a casa e a
terminar de instalar tudo?
--Vai.
--Eu vou para a escola -- anuncio.
--Então, é melhor ter uma boa noite de sono.
CAPÍTULO QUATRO
OUTRA NOVA IDENTIDADE, OUTRA NOVA
ESCOLA. PERDI AS CONTAS DE QUANTAS foram
ao longo dos anos. Quinze? Vinte? Sempre uma cidade
pequena, uma escola pequena, a mesma rotina. Alunos
novos chamam atenção. Às vezes questiono nossa
estratégia de nos limitarmos às cidades pequenas, porque é
difícil, quase impossível não ser notado. Mas entendo a
lógica de Henri: é igualmente impossível que eles não
sejam notados.
A escola fica a cinco quilômetros de nossa casa. Henri me
leva de carro pela manhã. É menor que a maioria que já
frequentei e não é nada imponente: só um edifício térreo,
comprido e baixo. Um mural com um pirata e uma faca
entre os dentes cobre a parede ao lado da porta principal.
--Então agora você é um pirata? -- Henri pergunta ao meu
lado.
--Parece que sim -- respondo.
--Conhece as regras -- ele me lembra.
--Esta não é minha primeira vez.
--Não mostre sua inteligência. Eles vão se ressentir.
--Eu nem sonho com isso.
--Não se destaque nem chame muita atenção.
--Serei só uma mosca na parede.
--E não machuque ninguém. Você é muito mais forte do
que eles.
--Eu sei.
--Mais importante, esteja sempre pronto. Pronto para ir
embora sem aviso. O que tem em sua mochila?
--Frutas secas e castanhas para cinco dias. Meias e cuecas
térmicas. Capa de chuva. Um GPS de mão. Uma faca
disfarçada de caneta.
--Com você o tempo todo. -- Ele respira fundo. -- E fique
atento aos sinais. Seus Legados vão aparecer a qualquer
momento. Esconda-os a todo custo e me chame
imediatamente.
--Eu sei, Henri.
--A qualquer momento, John -- ele repete. -- Se seus
dedos começarem a desaparecer, se você começar a flutuar
ou a tremer violentamente, se perder o controle muscular,
se começar a ouvir vozes sem que ninguém esteja falando
ou algo parecido, me chame.
Dou um tapinha na mochila:
--Meu telefone está bem aqui.
--Vou esperar aqui depois da aula. Boa sorte, garoto.
Sorrio para ele. Henri tem cinquenta anos, o que significa
que ele tinha quarenta quando chegamos. Isso tornou a
transição mais difícil para ele. Henri ainda fala com forte
sotaque lórico, frequentemente confundido com o francês.
Logo no início esse foi um bom álibi, por isso ele escolheu
o nome Henri, que mantém até hoje, trocando apenas o
sobrenome para combinar com o meu.
--Lá vou eu dominar a escola -- digo.
--Seja bonzinho.
Eu caminho para o prédio. Como acontece em todo colégio
do ensino médio, há rodinhas de alunos do lado de fora.
Eles têm seus grupos: os atletas e as líderes de torcida; o
pessoal da banda com seus instrumentos; os estudiosos
com seus óculos, livros e Black-Berries; e os doidões, um
pouco mais afastados e alheios a todos os outros. Um
garoto alto e com óculos fundo de garrafa está sozinho.
Ele veste jeans e uma camiseta preta da Nasa, e não deve
pesar mais do que quarenta e cinco quilos. Está com uma
luneta, observando o céu quase totalmente encoberto.
Noto uma menina tirando fotos, transitando com facilidade
de um grupo a outro. Ela é linda, tem cabelos louros e lisos
abaixo dos ombros, pele de marfim, maçãs do rosto altas e
olhos azuis delicados. Todos parecem conhecê-la e
cumprimentá-la, e ninguém se opõe a ser fotografado.
A garota me vê, sorri e acena. Acho isso estranho e me viro,
para ver se há alguém atrás de mim. Vejo dois garotos
discutindo a lição de matemática, e só. Olho novamente
para ela. A garota vem em minha direção, sorrindo. Nunca
vi, muito menos falei, com uma menina tão linda, e,
definitivamente, nenhuma jamais acenou e sorriu para
mim como se fôssemos amigos. Fico nervoso e começo a
corar. Mas também fico desconfiado, porque fui treinado
para isso. Ela se aproxima, ergue a câmera e começa a tirar
fotos. Levanto as mãos para esconder meu rosto. Ela baixa
a câmera e sorri.
--Não seja tímido.
--Não sou. Só quero proteger sua lente. Meu rosto pode
quebrá-la.
Ela riu.
--Se continuar com essa cara feia, com certeza. Tente
sorrir.
Eu sorrio, mas sem muito entusiasmo. Estou tão nervoso
que tenho a sensação de que vou explodir. Posso sentir
meu pescoço queimando, minhas mãos ficando quentes.
-- Isso não é um sorriso de verdade -- ela diz,
brincalhona. -- Sorrir envolve mostrar os dentes.
Sorrio de verdade, e ela tira fotos. Normalmente não
permito que ninguém me fotografe. Se um retrato desses
cair na Internet ou em um jornal, vai ser muito mais fácil
me encontrar. Nas duas vezes em que fui fotografado,
Henri ficou furioso, conseguiu as fotos e as destruiu. Se ele
souber o que estou fazendo agora, eu ficarei realmente
encrencado. Mas não posso evitar -- a garota é tão bonita e
tão charmosa... Enquanto ela está me fotografando, um
cachorro corre em minha direção. E um beagle com orelhas
compridas, patas e peito brancos e corpo preto e esguio.
Está magro e sujo, como um cão sem dono. Ele se esfrega
em minhas pernas, gane, tenta chamar minha atenção. A
garota acha bonitinho e pede que eu me ajoelhe, para me
fotografar com o cachorro. Assim que ela começa a clicar, o
cãozinho se afasta. Cada vez que ela tenta, ele se afasta um
pouco mais. Finalmente, ela desiste e faz mais algumas
fotos minhas. O cão se senta a uns dez metros de nós e nos
observa.
--Conhece aquele cachorro? -- ela pergunta.
--Nunca o vi antes.
--Ele gosta de você. Seu nome é John, certo?
Ela estende a mão.
--Sim -- confirmo. -- Como sabe?
-- Sou Sarah Hart. Minha mãe é sua corretora de imóveis.
Ela me contou que você provavelmente começaria hoje na
escola e me disse para procurá-lo. E você é o único aluno
novo por aqui hoje.
Eu rio.
--É, eu conheci sua mãe. Ela é legal.
--Não vai apertar minha mão?
Ela ainda está com o braço estendido. Eu sorrio e a
cumprimento, e essa é literalmente uma das melhores
sensações que já tive.
--Uau! -- ela exclama.
--O quê?
-- Sua mão está quente. Muito quente, mesmo, como se
estivesse com febre, ou alguma coisa assim...
--Acho que não.
Ela solta minha mão.
--Talvez você tenha o sangue quente, só isso.
--É, talvez.
Ouço uma campainha soando ao longe, e Sarah diz que é o
sinal: temos cinco minutos para chegar à sala de aula. Nós
nos despedimos e fico olhando enquanto ela se afasta. Um
momento depois, alguma coisa esbarra em meu cotovelo.
Eu me viro, e um grupo de jogadores de futebol americano
passa por mim, todos vestindo o agasalho do time. Um
deles me encara, e percebo que foi ele quem acertou meu
braço com a mochila. Duvido que tenha sido um acidente e
começo a segui-los. Sei que não vou fazer nada, mesmo
podendo. Mas não gosto de valentões. É quando o garoto
com a camiseta da Nasa se aproxima e caminha ao meu
lado.
-- Sei que é novo por aqui, por isso vou informá-lo de
algumas coisas -- ele fala.
-- O quê? -- pergunto.
-- Aquele é Mark James. Ele é muito importante. O pai é o
xerife da cidade, e ele é o astro do time de futebol.
Namorava Sarah quando ela era líder de torcida, mas ela
desistiu da torcida e dele. Mark ainda não superou. Se fosse
você, eu não me meteria com ele.
-- Obrigado.
O garoto então se afasta, apressado. Eu me dirijo à sala do
diretor para me inscrever nas disciplinas e começar a
assistir às aulas. Viro-me para ver se o cachorro ainda está
por ali -- ele permanece sentado no lugar, me observando.
O nome do diretor é Sr. Harris. É gordo e quase careca,
exceto por alguns fios compridos nas laterais e na parte de
trás da cabeça. A barriga cai por cima do cinto. Os olhos
são pequenos e saltados, muito juntos. Ele sorri para mim
de sua cadeira, e o sorriso parece engolir os olhos.
-- Você é o aluno do segundo ano que veio de Santa Fé? --
ele pergunta.
Movimento a cabeça em sentido afirmativo e digo que sim,
embora nunca tenhamos ido a Santa Fé, ou ao Novo
México, para dizer a verdade. Uma mentira simples para
evitar que encontrem nosso rastro.
--Isso explica o bronzeado. O que o traz a Ohio?
--O trabalho do meu pai.
Henri não é meu pai, mas sempre digo que é, para não
despertar suspeitas. Na verdade ele é meu Guardião, ou
pelo menos é assim que o chamariam na Terra. Em Lorien
havia dois tipos de cidadãos: os comuns e os que
desenvolvem os Legados, ou poderes -- que podem ser
extremamente variados, qualquer habilidade mesmo, da
invisibilidade à capacidade de ler mentes, voar ou
manipular as forças da natureza, como o fogo, o vento ou
os raios. Os que têm os Legados fazem parte da Garde, e os
que não os têm são intitulados Cêpans, ou Guardiões. Eu
sou membro da Garde. Henri é um Cêpan. Todo Garde é
designado a um Cêpan quando pequeno, que o ajuda a
entender a história do planeta e a desenvolver seus pode-
res. Cêpan e Garde -- um grupo para administrar o
planeta, o outro para defendê-lo.
O Sr. Harris está assentindo.
-- E o que ele faz?
-- É escritor. Ele queria morar em uma cidade pequena e
tranquila para terminar o livro em que está trabalhando --
respondo, porque esse é nosso disfarce padrão.
O Sr. Harris assente mais uma vez e estreita os olhos.
--Você me parece um rapaz forte. Pretende praticar algum
esporte aqui no colégio?
--Gostaria muito, mas tenho asma, senhor -- explico,
repetindo a desculpa de sempre para evitar situações que
possam denunciar minha força e minha velocidade.
--Lamento saber disso. Estamos sempre em busca de
atletas habilidosos para o time de futebol. -- Ele lança um
olhar para a prateleira onde está um troféu com data do
ano passado. -- Vencemos o Pioneer Conference -- diz,
cheio de orgulho.
Depois o Sr. Harris estende a mão, retira do arquivo ao lado
da mesa duas folhas de papel e me entrega. A primeira
folha é meu horário, com alguns tempos em aberto. A
segunda é uma lista de matérias eletivas disponíveis.
Escolho as que me interessam, preencho os horários vagos
e então devolvo toda a papelada. Ele me passa as
orientações gerais num discurso que parece durar horas,
detalhando cada página do manual do aluno de forma
dolorosa. Um sinal soa lá fora, e depois outro. Quando ele
finalmente termina e pergunta se tenho dúvidas, respondo
que não.
-- Excelente. Ainda resta meia hora da segunda aula, e
você escolheu astronomia, com a Sra. Burton. Ela é ótima
professora, uma de nossas melhores. Já foi premiada pelo
estado uma vez, e o próprio governador entregou o prêmio.
-- Isso é muito bom -- digo.
O Sr. Harris consegue se levantar de sua cadeira com muito
esforço, e nós deixamos a sala e percorremos o corredor.
Seus sapatos fazem barulho no chão recém-encerado. O ar
cheira a tinta fresca e produto de limpeza. Armários
escondem as paredes. Muitos são cobertos por flâmulas do
time de futebol. Não deve haver mais de vinte salas de aula
no prédio inteiro. Eu conto enquanto passamos.
-- Chegamos -- diz o Sr. Harris. Ele estende a mão. Eu o
cumprimento. -- Estamos felizes por tê-lo aqui. Gosto de
pensar que somos uma família unida. É com alegria que o
recebo nela.
-- Obrigado -- respondo.
O Sr. Harris abre um pouco a porta, enfia a cabeça pela
fresta e olha para dentro da sala. Só então percebo que
estou um pouco tenso, que uma leve tontura começa a me
dominar. Minha perna direita está tremendo, sinto um nó
no estômago. Não entendo por quê. Não pode ser por estar
prestes a entrar na primeira aula. Já fiz isso tantas vezes
que nem deveria mais ficar nervoso. Respiro fundo e tento
me acalmar.
--Sra. Burton, desculpe-me por interromper. Seu novo
aluno está aqui.
--Ah, ótimo! Mande-o entrar -- ela diz com voz aguda e
entusiasmada.
O Sr. Harris segura a porta aberta e eu entro. A sala é um
quadrado perfeito, com umas vinte e cinco pessoas
sentadas em carteiras retangulares do tamanho de mesas
de cozinha, três alunos em cada uma. Todos olham para
mim. Olho de volta para eles antes de encarar a Sra.
Burton. Ela deve ter uns sessenta anos, veste suéter de lã
cor-de-rosa e usa óculos com armação vermelha presos a
uma correntinha no pescoço. Tem o sorriso largo e cabelos
grisalhos e encaracolados. Minhas mãos estão suadas e
sinto meu rosto quente, corado. Espero não estar vermelho.
O Sr. Harris fecha a porta.
-- Como se chama? -- ela pergunta.
Nervoso, quase digo "Daniel Jones", mas me contenho,
respiro fundo e respondo:
--John Smith.
--Ótimo! E de onde você é?
--Fl... -- começo, mas me interrompo outra vez, antes de
concluir a palavra. -- Santa Fé.
--Turma, vamos dar a ele as boas-vindas.
Todos aplaudem. A Sra. Burton faz um gesto me
convidando a me sentar no lugar vago no centro da sala,
entre dois outros alunos. Fico aliviado por ela não fazer
mais perguntas. Ela se vira para voltar à mesa e eu começo
a caminhar até meu lugar, na direção de Mark James, que
está sentado com Sarah Hart. Quando passo, ele estica a
perna e põe o pé na minha frente. Eu perco o equilíbrio,
mas não caio. O barulho da sola do tênis ecoa na sala.
A Sra. Burton se vira rapidamente:
-- O que aconteceu?
Eu não respondo, mas fico encarando Mark. Toda escola
tem alguém como ele, o valentão, encrenqueiro, seja qual
for o nome que você queira dar, mas nenhum outro tinha
se materializado tão depressa. O cabelo dele é preto, cheio
de gel, arrumado com cuidado para ficar espetado em todas
as direções. As costeletas estão cuidadosamente aparadas,
assim como a barba curta. As sobrancelhas são grossas, e os
olhos, escuros. Pelo agasalho do time, vejo que ele é aluno
antigo -- seu nome está escrito em letras cursivas douradas
acima do ano. Nós nos encaramos, e a sala toda parece
deixar escapar um gemido de apreensão.
Olho para meu lugar, três mesas atrás da dele, e volto a
encará-lo. Posso quebrá-lo ao meio, literalmente, se eu
quiser. Posso arremessá-lo para o país vizinho. Se ele
tentasse fugir usando um carro, eu poderia ser mais rápido,
e ainda colocar o automóvel em cima de uma árvore. Mas,
além de saber que isso tudo seria uma reação
extremamente exagerada, as palavras de Henri ecoam em
minha mente: "Não se destaque nem chame muita
atenção." Sei que devo seguir seu conselho e ignorar o que
acabou de acontecer, como sempre fiz. Somos bons nisso,
em nos mesclar ao ambiente e viver nas sombras. Mas
estou meio deslocado, desconfortável, e antes que eu tenha
a chance de pensar duas vezes, a pergunta está feita:
-- Queria alguma coisa?
Mark olha em volta, estudando o restante da turma, ergue
os ombros e volta a me encarar.
-- Do que está falando? -- ele pergunta.
-- Pôs o pé na minha frente quando eu estava passando. E
trombou em mim lá fora. Talvez esteja querendo alguma
coisa.
--O que está acontecendo? -- a Sra. Burton pergunta atrás
de mim.
Olho para ela por cima do ombro:
--Nada -- respondo. E me volto para Mark: -- E então?
As mãos dele apertam a beirada da mesa, mas ele fica em
silêncio. Nós nos encaramos até ele suspirar e desviar os
olhos.
-- Foi o que pensei -- digo e continuo andando.
Os outros alunos não sabem ao certo como reagir, e muitos
ainda olham para mim enquanto me sento entre uma
garota ruiva e sardenta e um menino gordo, que me encara
boquiaberto.
A Sra. Burton está em pé na frente da sala. Ela parece um
pouco agitada, mas dá de ombros e começa a explicar por
que há anéis em torno de Saturno e que eles são feitos
basicamente de partículas de gelo e de poeira. Depois de
um tempo, deixo de ouvi-la e me concentro nos alunos.
Mais um grupo de pessoas que, novamente, vou tentar
manter a distância. Há sempre uma linha tênue entre
interagir só o suficiente, para manter a discrição, e interagir
pouco demais e acabar me destacando por ser esquisito.
Hoje já fiz uma besteira nesse sentido.
Respiro fundo e solto o ar devagar. Ainda sinto o nó no
estômago, e minha perna continua tremendo um pouco.
Minhas mãos estão um pouco mais quentes. Mark James
está sentado três mesas à minha frente. Ele se vira uma vez
e olha para mim, depois cochicha no ouvido de Sarah. Ela
se vira. Ela parece ser legal, mas o fato de sair com ele e de
estar sentada ao lado dele me faz duvidar disso. Sarah sorri
para mim de um jeito simpático. Quero retribuir, mas fico
paralisado. Mark tenta cochichar de novo, e ela balança a
cabeça e o empurra. Minha audição é muito melhor que a
humana quando me concentro, mas estou tão perturbado
por aquele sorriso que não escuto nada. Gostaria de ter
conseguido ouvir o que disseram.
Abro e fecho as mãos. As palmas estão suadas e começam a
arder. Respiro fundo mais uma vez. Minha visão está turva.
Cinco minutos se passam, depois dez. A Sra. Burton ainda
fala, mas não escuto o que ela diz. Cerro os punhos, depois
volto a abri-los. Então o ar fica preso em minha garganta.
Um brilho pálido surge no centro da palma da minha mão
direita. Olho, perplexo, fascinando. Depois de alguns
segundos, o brilho começa a ganhar intensidade.
Fecho as mãos. Primeiro, meu medo é de que algo tenha
acontecido a um dos outros. Mas o que seria? Não
podemos ser mortos fora da ordem. É assim que funciona o
encantamento. Mas isso significa que nenhum outro mal
pode atingi-los? A mão direita de alguém teria sido
cortada? Não tenho como saber. Mas, se acontecesse algo,
eu sentiria nas cicatrizes dos meus tornozelos. É só então
que compreendo. Meu primeiro Legado deve estar se
formando.
Pego o telefone na mochila e mando uma mensagem de
texto para Henri dizendo VNHEA, embora tivesse a intenção
de escrever VENHA. Estou tonto demais para tentar digitar
mais alguma palavra. Cerro os punhos e os apoio nas
pernas. Minhas mãos estão queimando e tremendo. Eu as
abro. A palma esquerda está muito vermelha, a direita
ainda brilha. Olho para o relógio na parede e vejo que a
aula está chegando ao fim. Se conseguir sair da aula,
poderei encontrar uma sala vazia, onde eu possa ligar para
Henri e perguntar o que está acontecendo. Começo a
contar os segundos: sessenta, cinquenta e nove... Agora
sinto um ardor intenso, como se pequenas agulhas fossem
espetadas em minhas mãos. Vinte e oito, vinte e sete. Abro
os olhos e fico olhando para a frente, para Sarah, esperando
que isso me distraia. Quinze, quatorze. Olhá-la piora a
sensação. Agora as agulhas são como pregos. Pregos que
foram deixados em uma fornalha, aquecidos até ficarem em
brasa. Oito, sete.
O sinal soa e, no mesmo instante, eu me levanto e saio da
sala, passando apressado pelos outros alunos. Estou tonto,
sem equilíbrio. Sigo pelo corredor, sem saber para onde ir.
Sinto que alguém me segue. Pego meu horário no bolso de
trás da calça e verifico o número de meu armário. Estou
com sorte, porque ele fica à minha direita, ali mesmo. Paro
e apóio a cabeça na porta de metal. Balanço a cabeça,
percebendo que, na pressa de sair, deixei na sala a mochila
com o telefone celular. E então alguém me empurra.
-- E aí, valentão?
Eu recuo alguns passos, me recupero e levanto a cabeça.
Mark está parado, sorrindo para mim.
--Algum problema? -- ele pergunta.
--Não -- digo.
Minha cabeça está girando. Tenho a sensação de que vou
desmaiar. E minhas mãos queimam. Não sei o que está
acontecendo, mas não podia ser em pior hora. Ele me
empurra de novo.
-- Não é tão valentão sem os professores por perto, não é?
Estou desequilibrado demais para conseguir ficar em pé,
tropeço nos próprios pés e caio. Sarah se coloca na frente
de Mark.
--Deixe ele em paz -- ela diz.
--Você não tem nada a ver com isso.
-- É claro. Você vê um garoto novo conversando comigo e
imediatamente tenta começar uma briga. Esse é só mais
um exemplo de por que não estamos mais juntos.
Começo a me levantar. Sarah estende a mão para me
ajudar, e, assim que ela me toca, a dor em minhas mãos
aumenta e se espalha, tanto que parece que um raio atingiu
minha cabeça. Eu me viro e começo a caminhar
apressadamente, indo na direção oposta à da aula de
astronomia. Sei que todos vão pensar que sou covarde por
estar fugindo, mas tenho a sensação de que vou desmaiar a
qualquer momento. Mais tarde agradecerei a Sarah e
cuidarei de Mark. Agora, só preciso encontrar uma sala
com uma porta que eu possa trancar.
Chego ao final do corredor, que cruza com o caminho para
a entrada principal da escola. Penso nas orientações do Sr.
Harris, no que ele falou sobre os vários espaços da escola e
sua localização. Se não me falha a memória, o auditório, as
salas da banda e as salas de artes ficam no final deste
corredor. Corro até elas o mais depressa que meu estado
me permite. Posso ouvir Mark gritando atrás de mim e
Sarah gritando com ele. Abro a primeira porta que
encontro e a fecho depois de entrar. Felizmente, há uma
fechadura, e eu a tranco.
Estou em uma sala escura. Há tiras de negativos secando
penduradas em varais. Caio no chão. Minha cabeça gira e
minhas mãos queimam. Desde que vi o brilho pela
primeira vez, mantive as mãos bem fechadas. Agora olho e
noto que a mão direita continua brilhando, pulsando.
Começo a entrar em pânico.
Sentado no chão, sinto o suor entrando nos olhos. As duas
mãos doem terrivelmente. Eu sabia que deveria esperar
meus Legados, mas não tinha ideia de que seria assim.
Abro as mãos e vejo que a palma direita está brilhando
intensamente, a luz começa a se concentrar. A mão
esquerda emite uma luz fraca, trêmula, e a sensação de
ardor é quase insuportável. Queria que Henri estivesse
comigo. Espero que ele esteja a caminho.
Fecho os olhos e cruzo os braços, balançando-me para a
frente e para trás sentado no chão, sentindo tudo em mim
doer. Não sei quanto tempo passo ali. Um minuto? Dez? O
sinal soa no corredor, anunciando o começo da aula
seguinte. Escuto pessoas falando do lado de fora. A porta é
sacudida algumas vezes, mas está trancada, e ninguém vai
conseguir entrar. Continuo me balançando, de olhos
fechados. Ouço mais batidas na porta. Vozes abafadas que
não compreendo. Abro os olhos e noto que o brilho em
minha mão iluminou a sala inteira. Cerro os punhos,
tentando apagar a luz, mas ela escapa por entre os dedos.
Então, a porta começa a sacudir de verdade. O que eles vão
pensar da luz em minhas mãos? Não há como escondê-la.
Como vou explicá-la?
-- John? Abra a porta... sou eu -- diz uma voz.
O alívio me invade. A voz de Henri, a única no mundo que
eu quero ouvir.
CAPÍTULO CINCO
ARRASTO-ME ATÉ A PORTA E A DESTRANCO.
ELA SE ABRE. HENRI ESTÁ COM roupas de
jardinagem, coberto de terra, como se estivesse trabalhan-
do no quintal da casa. Fico tão feliz por vê-lo que sinto
vontade de pular e abraçá-lo, o que até tento fazer, mas
estou tonto demais para ficar em pé e caio novamente.
--Tudo bem aí? -- pergunta o Sr. Harris, que está atrás de
Henri.
--Tudo bem, só precisamos de um minuto, por favor --
Henri responde.
--Devo chamar uma ambulância?
--Não!
A porta se fecha. Henri olha minhas mãos. A luz na direita
brilha intensamente, mas a na esquerda tremula, fraca,
como se tentasse adquirir confiança em si mesma. Henri
sorri, e seu rosto se ilumina como um farol.
-- Ah, graças a Lorien! -- Ele suspira e tira do bolso
traseiro um par de luvas de jardinagem. -- Sorte que eu
estava trabalhando no jardim! Ponha as luvas.
Faço o que ele diz, e as luvas escondem completamente a
luz. O Sr. Harris abre a porta e espia dentro da sala.
-- Sr. Smith? Está tudo bem?
-- Sim, tudo bem. Só precisamos de trinta segundos --
Henri responde. Depois ele olha para mim. -- Seu diretor é
intrometido.
Respiro fundo.
--Entendo o que está acontecendo, mas por que isso?
--Seu primeiro Legado.
--Eu sei, mas por que as luzes?
--Falaremos sobre isso no carro. Pode andar?
--Acho que sim.
Ele me ajuda a levantar. Estou cambaleante, ainda trêmulo,
e me agarro ao braço dele para me apoiar.
--- Preciso pegar minha mochila antes de irmos -- falo.
--Onde está?
--Deixei na sala de aula.
--Que sala?
--Dezessete.
--Vou levá-lo para a caminhonete e volto para pegar a
mochila.
Apóio o braço direito nos ombros de Henri, que me
sustenta passando o braço esquerdo por minha cintura. O
segundo sinal já soou, mas ainda escuto a movimentação
de pessoas no corredor.
-- Você precisa andar do jeito mais normal e ereto que
conseguir.
Respiro fundo. Tento reunir toda a força que ainda me
resta a fim de percorrer o longo caminho até a saída da
escola.
-- Vamos lá -- digo.
Limpo o suor da testa e acompanho Henri para fora da sala
escura. O Sr. Harris ainda está no corredor.
-- É só uma crise forte de asma -- Henri informa ao passar
por ele.
Cerca de vinte pessoas, mais ou menos, continuam no
corredor, a maioria delas com câmeras fotográficas
penduradas no pescoço, esperando para entrar na sala
onde são as aulas de fotografia. Felizmente, Sarah não está
ali. Caminho tão ereto quanto posso, um pé à frente do
outro. A saída da escola é a trinta metros. São muitos
passos. As pessoas cochicham.
"Que cara esquisito."
"Ele estuda aqui?"
"Espero que sim, ele é bonitinho."
"O que acha que ele estava fazendo na sala escura para ficar
com o rosto tão vermelho?"
Todos riem.
Da mesma forma que podemos apurar a audição, podemos
desligá-la, o que ajuda muito quando você tenta se
concentrar no meio de muito barulho e confusão. Eu isolo
todo o ruído e acompanho Henri, logo atrás dele. Cada
passo exige a força de dez, mas, finalmente, chegamos à
porta. Henri a mantém aberta enquanto tento caminhar
sozinho até a caminhonete, que está estacionada bem em
frente. Nos últimos vinte passos, tenho de me apoiar
novamente nos ombros dele. Henri abre a porta e eu entro.
--Sala dezessete, você disse?
--Sim.
-- Devia ter ficado com a mochila. São os pequenos
deslizes que levam aos grandes erros. Você não pode errar.
-- Eu sei. Desculpe-me.
Ele bate a porta e volta ao edifício. Eu me curvo para a
frente no assento, tentando respirar mais devagar. Ainda
posso sentir o suor na testa. Ergo o corpo e baixo o para-sol
para me olhar no espelho. Meu rosto está mais velho do
que eu imaginava, e meus olhos lacrimejam um pouco.
Mas, apesar da dor e da exaustão, eu sorrio. Finalmente,
penso. Após anos de espera, anos contando apenas com o
intelecto e a discrição como defesa contra os
mogadorianos, meu primeiro Legado aparece. Henri sai da
escola carregando minha mochila. Ele contorna a
caminhonete, abre a porta do motorista e joga a mochila
no banco.
-- Obrigado -- digo.
-- Não foi nada.
Quando saímos do estacionamento, tiro as luvas e dou uma
boa olhada nas mãos. A luz na mão direita começa a se
concentrar em um feixe como uma lanterna, porém mais
brilhante. A ardência diminui. A mão esquerda ainda tem
aquela luz fraca e tremulante.
-- Deveria ficar com as luvas até chegarmos em casa --
Henri aconselha.
Eu as ponho de volta e olho para ele, que sorri orgulhoso.
--Foi um longo saco de espera -- ele diz.
--Hmmm? -- pergunto.
Ele me olha por um instante.
-- Um longo saco de espera -- repete. -- Pelos seus
Legados.
Eu rio. Se há uma coisa que Henri não conseguiu dominar
desde que chegou a Terra é a arte de xingar.
--Uma longa droga de espera -- sugiro.
--Foi o que eu disse. Ele olha para a estrada.
-- Então, o que fazemos agora? Isso significa que vou
poder disparar lasers com as mãos ou o quê?
Ele ri.
-- É bom pensar que seria assim, mas não.
--Bem, mas o que vou fazer com a luz? Quando estiverem
me caçando, eu me viro e ofusco meu perseguidor,
apontando o raio para os olhos dele? É para deixá-los com
medo de mim ou coisa do tipo?
--Paciência -- ele me aconselha. -- Você não tem mesmo
que entender isso agora. Vamos para casa.
Então, lembro algo que quase me faz pular no banco da
caminhonete.
--Quer dizer que vamos finalmente abrir a arca?
Ele assente e sorri.
--Em breve.
--Uau! -- exclamo.
A arca de madeira com aqueles entalhes intricados sempre
me intrigou. É uma caixa de aparência frágil com o símbolo
lórico gravado na lateral, e Henri sempre a cercou de muito
sigilo. Ele nunca me contou o que há lá dentro, e é
impossível abri-la, eu sei, porque tentei mais vezes do que
posso contar, sempre sem sucesso algum. É trancada por
um cadeado sem abertura visível para a chave.
Quando chegamos em casa, percebo que Henri esteve
trabalhando. Ele tirou as três cadeiras que havia na varanda
da frente e todas as janelas estão abertas. Lá dentro, os
lençóis que cobriam a mobília foram removidos e alguns
móveis já estão limpos. Apóio a mochila na mesa da sala de
estar e a abro. Uma onda de frustração me invade.
--Aquele filho da mãe -- digo.
--O que é?
--Falta meu celular.
--E onde está?
--Tive uma discussão com um garoto chamado Mark
James. Ele deve ter pegado o telefone.
--John, você só passou uma hora e meia na escola. Como já
conseguiu discutir com alguém? Você não é tão idiota.
-- É um colégio. Eu sou o aluno novo. Não foi difícil.
Henri tira o celular do bolso e liga para meu número. Então
fecha o aparelho.
-- Está desligado -- diz.
--É claro que está.
Ele me encara.
--O que aconteceu?
Reconheço o tom de sua voz: aquele de quando ele está
pensando em nos mudarmos de novo.
-- Nada. Foi só uma discussão idiota. Talvez eu tenha
deixado o telefone cair quando o joguei na mochila --
sugiro, mesmo sabendo que não foi isso que aconteceu. --
Eu não estava muito bem. Aposto que o celular vai estar
esperando por mim na sala de achados e perdidos.
Ele olha em volta e suspira.
-- Alguém viu suas mãos?
Eu olho para Henri. Seus olhos estão vermelhos, ainda mais
injetados do que quando ele me resgatou. O cabelo está
desarrumado e ele parece esgotado, como se fosse cair de
exaustão a qualquer momento. A última vez que ele
dormiu foi na Flórida, há dois dias. Nem sei como ainda
consegue ficar de pé.
-- Ninguém viu.
--Você esteve na escola por uma hora e meia. Seu primeiro
Legado se desenvolveu, você quase se meteu numa briga e
deixou a mochila na sala de aula. Isso não é o que se pode
chamar de passar despercebido.
--Não foi nada. Quer dizer, não foi nada grave o bastante
que justifique irmos para Idaho, para Kansas, ou seja, lá
qual for nosso próximo destino.
Henri estreita os olhos, refletindo sobre o que acabou de
testemunhar e tentando decidir se é o suficiente para
partirmos.
-- Não é hora de sermos descuidados -- declara.
-- Há discussões em todas as escolas todos os dias.
Garanto que ninguém vai nos encontrar só porque um
garoto metido a valentão implicou com o aluno novo.
-- As mãos do aluno novo não brilham em todas as
escolas. Eu inspiro longa e profundamente.
-- Henri, você está com cara de quem vai cair morto.
Durma um pouco. Podemos decidir depois que você
descansar.
-- Temos muito o que conversar.
-- Nunca o vi tão cansado antes. Durma por algumas
horas. Conversamos depois.
Ele assente.
-- Um cochilo deve mesmo me fazer bem.
Henri vai para o quarto e fecha a porta. Eu saio, vou
caminhar um pouco pelo quintal. O sol brilha atrás das
árvores e eu sinto o vento frio. As luvas continuam em
minhas mãos. Eu as tiro e guardo no bolso de trás da calça.
As mãos estão como antes. Para ser franco, parte de mim se
anima com o surgimento de meu primeiro Legado, depois
de tantos anos de ansiosa espera. A outra está devastada.
As mudanças constantes me esgotaram, e agora vai ser
impossível passar despercebido ou ficar em um lugar por
algum tempo. Vai ser impossível fazer amigos ou me sentir
parte de algo. Cansei dos nomes falsos e das mentiras.
Estou farto de viver olhando por cima do ombro para ver se
há alguém me seguindo.
Eu me abaixo e encosto nas cicatrizes no tornozelo direito.
Três círculos, que representam os três mortos. Estamos
ligados uns aos outros mais do que pela raça,
simplesmente. Enquanto toco as cicatrizes, tento imaginar
quem eles eram, se eram garotos ou garotas, onde viviam,
quantos anos tinham quando morreram. Tento me lembrar
das outras crianças que vieram na nave e dar números a
cada uma delas. Penso em como seria encontrá-las,
conviver com elas. Como teria sido se ainda estivéssemos
em Lorien. Como seria se o destino de toda a nossa raça
não dependesse da sobrevivência de tão poucos. Como se-
ríamos se não estivéssemos enfrentando a perspectiva da
morte pelas mãos de nossos inimigos.
É aterrorizante saber que eu sou o próximo. Mas temos nos
mantido à frente deles com as constantes mudanças,
fugindo. Estou cansado de fugir, mas sei que é isso que nos
mantém vivos. Se pararmos, eles nos encontrarão. E, agora
que sou o próximo da fila, devem ter intensificado a
procura, sem dúvida. Certamente sabem que estamos nos
fortalecendo, desenvolvendo nossos Legados.
E no outro tornozelo há a outra cicatriz, o sinal que se
formou quando o feitiço lórico foi lançado em nós,
naqueles últimos e preciosos momentos antes de
deixarmos nosso mundo. É a marca que nos une.
CAPÍTULO SEIS
ENTRO E ME DEITO NO COLCHÃO DO MEU
QUARTO, SEM LENÇOL. A MANHÃ ME esgotou, e
fecho os olhos. Quando volto a abri-los, o sol já está acima
da copa das árvores. Saio do quarto. Henri está na cozinha,
sentado à mesa, olhando para o laptop aberto, e sei que ele
está vasculhando os noticiários, como sempre faz, tentando
encontrar histórias ou informações que possam nos dizer
onde estão os outros.
-- Você dormiu? -- pergunto.
-- Não muito. Agora temos Internet, e não verifico as
notícias desde que saímos da Flórida. Isso estava me
incomodando.
-- Alguma coisa importante? -- quero saber.
Ele dá de ombros.
-- Um garoto de quatorze anos caiu de uma janela do
quarto andar na África e escapou sem arranhão. E outro, de
quinze anos, em Bangladesh, está dizendo que é o Messias.
Eu rio.
-- Sei que o garoto de quinze anos não é um de nós. O que
você acha do outro?
-- Não. Sobreviver a uma queda do quarto andar não é
nenhum grande feito. Além do mais, se fosse um de nós,
teria sido mais cuidadoso -- ele completa, piscando para
mim.
Eu sorrio e me sento diante dele. Henri fecha o
computador e coloca as mãos na mesa. Seu relógio marca
11h36. Estamos em Ohio há pouco mais da metade de um
dia, e já aconteceu tudo isso. Levanto as mãos abertas.
Brilham menos do que na última vez que olhei.
--Sabe o que tem aí? -- Henri me pergunta.
--Tenho luzes nas mãos.
Ele ri.
--O nome disso é Lúmen. Com o tempo você vai ser capaz
de controlar a luz.
--Espero que sim, porque nosso disfarce vai ser bem
prejudicado se isso não se apagar logo. E ainda não
entendo para que serve.
--Há mais no Lúmen que simplesmente luz. Garanto.
--O que mais?
Ele vai até o quarto e volta com um isqueiro na mão.
-- Você se lembra bem de seus avós? -- ele me questiona.
Os avós são as pessoas que nos criam. Vemos pouco nossos
pais até completarmos vinte e cinco anos, quando temos
nossos filhos. A expectativa de vida de um lorieno é de
cerca de duzentos anos, muito maior que a dos humanos, e
quando os filhos nascem, enquanto os adultos têm entre
vinte e cinco e trinta e cinco anos, são os mais velhos que
os criam, período em que os pais continuam desenvol-
vendo seus Legados.
--Um pouco? Por quê?
--Porque seu avô tinha o mesmo dom.
--Não me lembro de ter visto as mãos dele brilhando.
Nunca.
Henri dá de ombros.
--Talvez ele nunca tenha tido motivo para usar o poder.
-- Maravilhoso -- reajo. -- Parece realmente um grande
dom, ter algo que nunca vou usar...
Ele balança a cabeça.
-- Dê-me sua mão.
Estendo a mão direita, e ele acende o isqueiro, depois
encosta a chama na ponta de meu dedo. Eu puxo meu
braço.
--O que está fazendo?
--Confie em mim -- ele diz.
Deixo que ele segure minha mão novamente. Ele acende o
isqueiro outra vez. E olha em meus olhos. Depois sorri.
Olho para minha mão e percebo que ele encostou a chama
do isqueiro na ponta do meu dedo médio. Não sinto nada.
Mesmo assim, o instinto me faz puxar a mão. Esfrego meu
dedo. Não parece diferente.
--Sentiu isso? -- ele pergunta.
--Não.
-- Deixe-me segurar sua mão -- ele pede. -- E me avise
quando sentir algo.
Ele começa novamente por meu dedo, depois move a
chama devagar até o dorso da mão. Há uma sensação leve
de formigamento onde o fogo toca a pele, nada mais. Só
quando a chama chega ao pulso eu começo a sentir o calor.
E recolho o braço.
-- Ai.
-- Lúmen -- ele diz. -- Você vai se tornar resistente ao
fogo e ao calor. As mãos adquirem essa resistência
naturalmente, mas vamos precisar treinar com o restante
do corpo.
Um sorriso se espalha em meu rosto.
-- Resistente ao fogo e ao calor -- digo. -- Nunca mais
vou me queimar?
--Exatamente. E o que vai acontecer com o tempo.
--Incrível!
--Não é um Legado tão ruim, afinal. É?
--Não é nada mau! Mas e essas luzes? Vão se apagar?
-- Sim, provavelmente depois de uma boa noite de sono,
quando sua mente esquecer que elas se acenderam. Mas
você vai ter que tomar cuidado por um tempo. Não pode
ficar agitado. O desequilíbrio emocional as trará de volta.
Se ficar muito nervoso, bravo, triste...
--Por quanto tempo?
--Até aprender a controlá-las. -- Ele fecha os olhos e
esfrega o rosto com as mãos. -- Vou tentar dormir
novamente. Falaremos sobre seu treinamento em algumas
horas.
Henri vai para o quarto, e eu fico sentado à mesa da
cozinha, abrindo e fechando as mãos, respirando fundo e
tentando acalmar tudo dentro de mim, fazer as luzes se
apagarem.
É claro que não funciona.
Tudo na casa continua uma bagunça, exceto pelo pouco
que Henri conseguiu fazer enquanto eu estava na escola.
Sei que ele está pensando em partir, mas não a ponto de eu
não conseguir fazê-lo mudar de idéia. Se acordar e
encontrar a casa limpa e em ordem, talvez ele possa ser
persuadido com mais facilidade.
Começo por meu quarto. Tiro o pó, limpo as janelas, varro
o chão. Quando tudo está limpo, arrumo a cama com
lençóis e cobertores, penduro e dobro minhas roupas. A
cômoda é velha e sem firmeza, mas guardo tudo nela e, em
cima, arrumo os poucos livros que tenho. Pronto: um
quarto limpo, com todos os meus pertences guardados e
organizados.
Vou para a cozinha, guardo a louça e limpo as bancadas.
Assim me ocupo e paro de pensar em minhas mãos,
embora continue refletindo sobre Mark James. Pela
primeira vez na vida eu enfrentei alguém. Sempre quis
fazer isso, mas resistia porque queria seguir o conselho de
Henri sobre não chamar a atenção. Tentava adiar ao
máximo a próxima mudança. Mas hoje foi diferente. Senti
certa satisfação em ser desafiado por alguém e responder à
altura. E agora há o problema do celular, que foi roubado.
Sim, podemos conseguir outro sem dificuldade, mas onde
estaria a justiça?
CAPÍTULO SETE
ACORDO ANTES DO DESPERTADOR TOCAR. A
CASA ESTÁ AREJADA E SILENCIOSA. TIRO minhas
mãos de debaixo da coberta. Estão normais, sem luz, sem
brilho. Levanto-me da cama e vou até a sala de estar. Henri
está na cozinha, sentado à mesa, lendo o jornal local e
bebendo café.
--Bom dia -- ele diz. -- Como se sente?
--Melhor impossível -- respondo.
Sirvo-me de cereal em uma tigela e me sento em frente a
ele.
-- O que vai fazer hoje? -- pergunto.
-- Resolver coisas, basicamente. Estamos ficando sem
dinheiro. Estou pensando em fazer uma transferência
bancária.
Lorien é (ou era, dependendo de como se examina a
questão) um planeta rico em recursos naturais. Alguns
desses recursos são metais e pedras preciosas. Quando
partimos, cada Cêpan recebeu um saco cheio de diamantes,
esmeraldas e rubis para vender quando chegasse à Terra.
Henri vendeu tudo e depositou o dinheiro em uma conta
bancária no exterior. Não sei e nunca pergunto quanto
temos lá. Mas sei que é suficiente para umas dez vidas, se
não mais. Henri faz retiradas dessa conta uma vez por ano,
mais ou menos.
-- Mas não sei... -- prossegue ele. -- Não quero me afastar
muito, caso aconteça alguma coisa hoje.
Não quero supervalorizar o dia de ontem, então faço um
gesto de desdém.
-- Vá buscar o dinheiro. Eu vou ficar bem.
Olho pela janela. A manhã se aproxima, banhando tudo
com uma luz pálida. A caminhonete está coberta de
orvalho. Há muito tempo não vivemos um inverno. Eu nem
tenho casaco e quase todos os meus suéteres agora estão
pequenos.
-- Parece que está frio lá fora -- comento. -- Depois
poderíamos ir comprar algumas roupas...
Ele assente.
--Estive pensando nisso ontem à noite, por isso preciso ir
ao banco.
--Então vá -- eu digo. -- Nada vai acontecer hoje.
Termino de comer meu cereal, deixo a vasilha suja na pia e
vou tomar banho. Dez minutos depois estou vestido com
jeans e camiseta térmica preta, as mangas arregaçadas até o
cotovelo. Eu me olho no espelho, depois confiro minhas
mãos. Estou calmo. Preciso continuar calmo.
No caminho para a escola Henri me dá um par de luvas.
--Não se esqueça de carregá-las o tempo todo. Nunca se
sabe. Eu as guardo no bolso de trás da calça.
--Acho que não vou precisar, estou me sentindo muito
bem.
Os ônibus estão enfileirados em frente à escola. Henri pára
na lateral do prédio.
-- Não é bom que fique sem telefone -- ele diz. -- Muitas
coisas podem acontecer.
--Não se preocupe. Logo eu o terei de volta.
Ele suspira e balança a cabeça.
--Não faça nenhuma burrada. Eu volto no final do dia.
--Não vou fazer nada -- digo, já saindo da caminhonete.
Ele vai embora.
Lá dentro, os corredores estão movimentados, os alunos
abrindo e fechando armários, conversando, rindo. Alguns
olham para mim e cochicham. Não sei se é por causa do
confronto ou porque me tranquei na sala escura. É bem
provável que estejam cochichando sobre os dois fatos. A
escola é pequena, e em colégios pequenos todo mundo fica
sabendo de quase tudo imediatamente.
Quando chego à entrada principal, viro à direita e encontro
meu armário. Está vazio. Tenho quinze minutos antes que
a aula de redação para o segundo ano comece. Passo pela
sala só para ter certeza de que sei onde fica e depois
continuo até a secretaria. A funcionária sorri ao me ver
entrar.
-- Oi -- eu digo. -- Perdi meu celular ontem e imaginei
que alguém possa tê-lo entregado ao setor de achados e
perdidos.
Ela balança a cabeça.
--Não. Lamento, mas não recebemos nenhum telefone.
--Obrigado.
Saio da secretaria e não vejo Mark em lugar nenhum.
Escolho uma direção e começo a andar. As pessoas ainda
me olham e cochicham, mas isso não me incomoda. Eu o
vejo uns quinze metros à minha frente. A descarga de
adrenalina é imediata. Olho para minhas mãos. Estão
normais. Fico preocupado com a possibilidade de elas se
acenderem, e é justamente essa inquietação que pode
causar isso.
Mark está de braços cruzados, encostado em um armário,
no meio de um grupo de cinco caras e duas meninas, todos
conversando e rindo. Sarah está sentada no parapeito de
uma janela a uns cinco metros dali. Hoje, de novo, ela está
linda, com os cabelos louros presos num rabo de cavalo,
vestida com saia e suéter cinza. Ela está lendo um livro,
mas levanta a cabeça quando caminho na direção do grupo.
Paro bem perto da rodinha, olho para Mark e espero. Ele
percebe minha presença depois de uns cinco segundos.
-- O que você quer? -- pergunta.
-- Você sabe o que eu quero.
Nós nos encaramos. O grupo à nossa volta aumenta. Agora
são dez pessoas, e logo vinte alunos nos observam. Sarah se
levanta e se aproxima da roda. Mark veste o agasalho do
time, e os cabelos pretos estão ajeitados cuidadosamente
para dar a impressão de que ele saiu da cama diretamente
para dentro da roupa.
Ele se afasta do armário e caminha em minha direção. Para
a poucos centímetros de mim. Meu peito e o dele quase se
tocam, e o perfume forte de sua colônia invade minhas
narinas. Ele deve medir um metro e oitenta e cinco, alguns
centímetros a mais do que eu. Temos o mesmo porte. Mas
ele não sabe que sou feito de uma matéria diferente da
dele. Sou mais rápido e muito mais forte. Pensar nisso
desenha um sorriso confiante em meu rosto.
-- Acha que consegue ficar na escola por mais tempo
hoje? Ou vai fugir correndo de novo, como uma
mulherzinha?
Os risos se espalham.
--Acho que vamos ver, não é?
--Sim, vamos ver -- ele responde, chegando um pouco
mais perto.
--Quero meu celular de volta -- anuncio.
--Não estou com seu celular.
Eu balanço a cabeça sem desviar os olhos dos dele.
-- Duas pessoas viram você pegar o telefone -- minto.
Ele hesita por uma fração de segundo, o suficiente para eu
ter certeza de que deduzi corretamente.
-- Ah, é? E se fui eu? O que vai fazer?
Agora deve haver uns trinta alunos à nossa volta. Não
tenho dúvida de que dez minutos depois que a primeira
aula começar toda a escola já vai estar sabendo do que
aconteceu ali.
--Estou avisando -- eu falo. -- Você tem até o final do dia.
Viro as costas e saio.
--Ou você vai fazer o quê? -- ele grita atrás de mim.
Não me dou o trabalho de aceitar a provocação. Ele que
imagine a resposta. Meus punhos estão cerrados, e percebo
que confundi adrenalina com nervosismo. Por que eu
estava tão nervoso? Pela imprevisibilidade da situação? Por
ser a primeira vez que enfrento alguém? Pela possibilidade
de minhas mãos começarem a brilhar? Provavelmente,
pelos três motivos.
Vou ao banheiro, entro em um reservado vazio e tranco a
porta. Abro as mãos. Percebo um brilho sutil na palma
direita. Fecho os olhos, suspiro e me concentro em respirar
profundamente. Um minuto depois o brilho ainda está ali.
Balanço a cabeça. Não pensei que o Legado fosse tão
sensível. Continuo no reservado. Uma camada fina de suor
frio cobre minha testa, minhas mãos estão quentes, mas,
felizmente, a esquerda ainda parece normal. As pessoas
entram e saem do banheiro, e eu permaneço no reservado,
esperando. A luz ainda brilha. Finalmente, ouço o sinal
anunciando o início do primeiro tempo de aula, e o
banheiro fica vazio.
Balanço a cabeça, chateado, e aceito o inevitável. Estou sem
celular e Henri está a caminho do banco. Somos apenas
minha estupidez e eu, não posso culpar ninguém. Pego as
luvas no bolso de trás da calça e as calço. Luvas de couro
para jardinagem. Eu pareceria menos idiota se estivesse
usando sapatos de palhaço e calça amarela. Vou mesmo
passar despercebido... Chego à conclusão de que devo
deixar Mark para lá. Ele vence. Pode ficar com o celular. À
noite Henri e eu compraremos outro.
Saio do banheiro e percorro o corredor vazio até minha sala
de aula. Todos olham para mim quando entro, e depois
para as luvas. É inútil tentar escondê-las. Pareço um idiota.
Sou um alien, tenho poderes extraordinários, com outros
ainda por vir, e posso fazer coisas com que um humano
jamais sonharia, e ainda assim pareço um idiota.
Eu me sento no meio da sala. Ninguém fala comigo, e estou
agitado demais para ouvir o que o professor está dizendo.
Quando o sinal toca, junto minhas coisas, guardo-as na
mochila e penduro as alças no ombro. Ainda estou com as
luvas. Ao sair da sala, levanto um pouco a luva direita para
espiar a palma da mão. Continua brilhando.
Percorro o corredor com passos firmes. Respiro devagar.
Tento não pensar em nada, mas não funciona. Quando
entro na sala da aula seguinte, Mark está sentado no
mesmo lugar de ontem, com Sarah a seu lado. Ele me olha
com sarcasmo. Tenta se fazer de valente e nem nota
minhas luvas.
-- Qual é, fujão? Soube que a equipe de corrida está
precisando de gente nova.
-- Deixe de ser idiota -- diz Sarah.
Olho para ela ao passar, para os olhos azuis que fazem eu
me sentir tímido e constrangido, que fazem meu rosto
queimar. O lugar onde me sentei ontem está ocupado, por
isso vou para o fundo da sala. A sala fica lotada, e o garoto
da véspera, aquele que me preveniu sobre Mark, senta-se a
meu lado. Ele está usando outra camiseta preta com o
logotipo da Nasa no meio, calça camuflada e tênis Nike.
Tem cabelo louro-claro, despenteado, e os óculos fazem
seus olhos castanho-claros parecerem enormes. Ele pega
um bloco de anotações cheio de diagramas de constelações
e planetas. Olha para mim sem sequer tentar esconder que
está me encarando.
--E aí? -- pergunto.
Ele dá de ombros.
--Por que está usando luvas?
Abro a boca para responder, mas a Sra. Burton começa a
aula. Durante boa parte dela, o garoto à meu lado desenha
imagens que parecem ser sua interpretação da aparência
dos marcianos. Corpos pequenos; cabeça, mãos e olhos
grandes. As mesmas representações estereotipadas que às
vezes são mostradas nos filmes. Abaixo de cada desenho,
ele escreve seu nome em letras pequenas: SAM GOODE. Ele
percebe que estou olhando, e desvio o olhar.
Enquanto a Sra. Burton fala sobre as sessenta e uma luas de
Saturno, eu olho para a nuca de Mark. Ele está debruçado
sobre a mesa, escrevendo. Depois levanta os ombros e
passa um bilhete para Sarah. Ela o devolve sem ler. Isso me
faz sorrir. A Sra. Burton apaga as luzes para exibir um
vídeo. Os planetas projetados na tela na frente da sala me
levam a pensar em Lorien. Ele é um dos dezoito planetas
habitados do universo. A Terra é outro. Mogadore,
infelizmente, é mais um.
Lorien. Fecho os olhos e me permito lembrar. Um planeta
velho, cem vezes mais velho do que a Terra. Cada problema
que a Terra enfrenta hoje -- poluição, superpopulação,
aquecimento global, falta de alimento --, tudo isso Lorien
já enfrentou. Em dado momento, vinte e cinco mil anos
atrás, o planeta começou a morrer. Isso aconteceu muito
antes da habilidade de viajar pelo universo, e o povo de
Lorien foi forçado a agir para sobreviver. Lentamente, mas
de maneira firme, eles assumiram o compromisso de
garantir que o planeta se tornasse para sempre
autossustentável, mudando sua maneira de viver, dis-
pensando tudo o que era prejudicial -- armas e bombas,
substâncias químicas tóxicas, poluentes --, e com o tempo
o dano começou a ser revertido. Com o benefício da
evolução, ao longo de milhares de anos, certos cidadãos --
a Garde -- desenvolveram poderes a fim de proteger e
ajudar o planeta. Era como se Lorien houvesse
recompensado meus ancestrais pela previdência, pelo
respeito.
A Sra. Burton acende as luzes. Eu abro os olhos e olho para
o relógio. A aula está quase acabando. Sinto-me calmo
outra vez, e havia esquecido completamente minhas mãos.
Respiro fundo e abro o punho da luva da mão direita. A luz
se apagou! Eu sorrio e removo as luvas. De volta ao normal.
Ainda tenho seis aulas hoje. Preciso permanecer em paz até
a última.
A primeira metade do dia transcorre sem qualquer
incidente. Continuo calmo e não tenho outros encontros
com Mark. No almoço me sirvo do básico, depois encontro
uma mesa vazia no fundo do refeitório. Quando estou na
metade de um pedaço de pizza, Sam Goode, o garoto da
aula de astronomia, senta-se na minha frente.
--Vai mesmo brigar com Mark depois da aula? -- ele
pergunta.
Eu balanço a cabeça.
--Não.
--É o que as pessoas estão dizendo.
--Estão enganados.
Ele dá de ombros e continua comendo. Um minuto depois,
pergunta:
--Onde foram parar as luvas?
--Tirei. Minhas mãos não estão mais frias.
Ele abre a boca para falar alguma coisa, mas uma
almôndega gigante, que tenho certeza de que foi
arremessada em minha direção, acerta-o na nuca. Seus
cabelos e ombros ficam cobertos de pedaços de carne e de
molho de espaguete. Um pouco disso tudo respinga em
mim. Estou começando a me limpar quando uma segunda
almôndega voadora me acerta no rosto. Ohs ecoam pelo
refeitório.
Eu me levanto e limpo o rosto com um guardanapo,
sentindo a raiva tomar conta de mim. Nesse instante eu
nem me importo com minhas mãos. Elas podem brilhar
como o sol, e Henri e eu podemos ir embora antes do final
do dia, se for necessário. Mas não vou deixar passar mais
essa. Não mesmo! Achei que houvesse acabado depois do
confronto do início do dia, mas agora...
-- Não -- Sam me aconselha. -- Se lutar contra eles,
nunca mais terá paz.
Começo a andar. O silêncio que domina o refeitório é
impressionante. Cem pares de olhos estão fixos em mim.
Meu rosto é uma máscara de fúria. Há sete pessoas na mesa
de Mark, todos rapazes. Os sete se levantam quando me
aproximo.
--Algum problema? -- um deles me pergunta. O garoto é
grande, e tem o porte de um atacante. Tufos de cabelos
vermelhos crescem em seu rosto e no queixo, como se ele
tentasse cultivar uma barba. O efeito é uma aparência meio
suja. Como todos os outros, ele também veste um agasalho
do time. De braços cruzados, ele se coloca à minha frente.
--Você não tem nada a ver com isso -- digo.
--Vai ter que passar por cima de mim para chegar nele.
--Vou passar, se não sair da minha frente.
--Não acredito que consiga -- ele me desafia.
Empurro o joelho diretamente entre suas pernas. O ar fica
preso na garganta do grandalhão, e ele se dobra para a
frente. Todos no refeitório emitem exclamações de choque
e pavor.
--Eu avisei -- digo, passando por cima dele para chegar em
Mark. Quando estou quase na frente dele, sou agarrado por
trás. Viro-me com a mão fechada para dar o primeiro soco,
mas, no último segundo, reconheço o funcionário do
refeitório.
--Já chega, garotos.
--Veja o que ele fez com Kevin, Sr. Johnson -- Mark se
queixa. Kevin ainda está no chão, segurando as partes
ofendidas. Seu rosto está vermelho como uma beterraba. --
Mande-o para a diretoria.
--Cale a boca, James. Os quatro, fora daqui. Não pense que
não vi quando arremessou aquelas almôndegas. -- Ele olha
para Kevin no chão. -- Levante-se.
Sam aparece do nada. Ele tentou limpar a sujeira dos
ombros e do cabelo. Os pedaços maiores de carne
desapareceram, mas o molho só se espalhou. Não sei bem o
que ele faz ali. Examino minhas mãos, pronto para fugir ao
primeiro sinal de luz, mas, para minha surpresa, está
apagada. Por causa da urgência da situação, eu me
comportei sem o nervosismo prévio? Não sei.
Kevin se levanta e olha para mim. Ele está tremendo, ainda
com dificuldades para respirar. E agarra os ombros do
garoto ao lado dele para se apoiar.
--Você vai se arrepender -- ele me ameaça.
--Duvido -- respondo. Ainda estou carrancudo e continuo
coberto de comida. Nem penso em me limpar.
Nós todos nos dirigimos à diretoria. O Sr. Harris está
sentado atrás de sua mesa, almoçando alguma comida de
micro-ondas, com um guardanapo preso no colarinho para
proteger a camisa.
-- Lamento interromper, mas tivemos um problema
durante o almoço. Tenho certeza de que os rapazes aqui
vão gostar de dar as explicações -- resume o funcionário do
refeitório.
O Sr. Harris suspira, retira o guardanapo do colarinho e o
joga na lata de lixo. Com a outra mão, empurra o almoço
para um canto da mesa.
-- Obrigado, Sr. Johnson.
O Sr. Johnson se retira, fechando a porta da sala ao sair, e
nós quatro nos sentamos.
-- Então, quem quer começar? -- o diretor pergunta em
tom irritado.
Eu permaneço em silêncio. Os músculos na mandíbula do
Sr.
Harris estão tensos. Olho para minhas mãos. Ainda
apagadas. Mesmo assim, apóio as palmas na calça jeans, só
por precaução. Após dez segundos de silêncio, Mark
começa.
--Alguém atirou uma almôndega nele. Ele pensa que fui
eu, por isso deu uma joelhada nas bolas de Kevin.
--Modere a linguagem -- o Sr. Harris o previne. Depois
olha para Kevin. -- Está tudo bem?
Kevin move a cabeça em sentido afirmativo, com o rosto
ainda vermelho.
-- Então, quem jogou a almôndega? -- o Sr. Harris me
pergunta.
Eu nada digo, ainda furioso, irritado com todo o episódio.
Respiro fundo tentando me acalmar.
-- Não sei -- respondo. Minha raiva atinge novos níveis.
Não quero lidar com Mark por intermédio do Sr. Harris.
Prefiro resolver a situação sozinho, longe da sala do diretor.
Sam me olha surpreso. O Sr. Harris levanta as mãos num
gesto frustrado.
-- Muito bem, então, por que diabos estão aqui?
-- Essa é uma boa pergunta -- diz Mark. -- Estávamos
apenas almoçando.
Sam se manifesta.
-- Mark jogou a almôndega. Eu vi, e o Sr. Johnson também
viu.
Eu olho para Sam. Sei que ele não viu nada, porque estava
de costas para os garotos quando a primeira almôndega foi
arremessada, e na segunda ele estava ocupado, tentando se
limpar. Mas fico impressionado com o que ele disse, por
tomar partido e ficar à meu lado, mesmo sabendo que isso
o põe em risco com Mark e os amigos dele. Mark já o
encara com ar ameaçador.
-- Por favor, Sr. Harris -- Mark suplica. -- Amanhã tenho
a entrevista para o Gazette, e o jogo na sexta-feira. Não
tenho tempo para me preocupar com essas bobagens.
Estou sendo acusado de algo que não fiz. É difícil me
manter focado com essa merda toda acontecendo.
--Olhe a boca! -- grita o Sr. Harris.
--É verdade.
-- Acredito em você -- o diretor declara e suspira
profundamente. Ele olha para Kevin, que ainda tenta
recuperar o fôlego. -- Precisa ir à enfermaria?
-- Eu vou ficar bem -- diz Kevin.
O Sr. Harris assente.
-- Vocês dois, esqueçam o incidente da hora do almoço, e
Mark, foco. Já faz algum tempo que estamos tentando
conseguir essa matéria. Talvez até nos ponham na primeira
página. Imagine, a primeira página do Gazette -- ele diz
sorridente.
--Obrigado -- Mark responde. -- Estou muito animado
com isso.
--Ótimo. Agora, vocês dois podem ir.
Eles saem, e o Sr. Harris olha para Sam com ar de
reprovação. Sam sustenta seu olhar.
-- Diga-me, Sam, e eu quero a verdade: você viu Mark
arremessar a almôndega?
Sam estreita os olhos, mas não os desvia.
-- Sim.
O Sr. Harris balança a cabeça.
--Não acredito em você, Sam. E por isso vou lhe dizer o
que farei. -- Ele olha para mim. -- Então, uma almôndega
foi arremessada...
--Duas -- Sam o interrompe.
--O quê? -- O Sr. Harris olha para Sam com ar muito
irritado.
-- Duas almôndegas foram arremessadas, não uma. O Sr.
Harris dá um soco na mesa.
-- Que diferença faz quantas foram? John, você agrediu
Kevin. Olho por olho. Vamos deixar tudo como está.
Entende o que eu quero dizer?
Ele está muito vermelho, e sei que neste momento é inútil
discutir.
--Sim -- respondo.
--Não quero ver vocês dois aqui de novo -- ele avisa. --
Podem ir.
Saímos da sala do diretor.
--Por que não contou a ele sobre seu telefone? -- Sam me
pergunta.
-- Porque ele não se importa. Só queria voltar para o
almoço -- respondo. -- E tome cuidado. Agora você estará
na mira de Mark.
Tenho aula de economia doméstica depois do almoço --
não necessariamente por gostar de cozinhar, mas porque
era isso ou coral. E, embora eu tenha muitos poderes e
habilidades considerados excepcionais na Terra, cantar não
é um deles. Por isso vou para a aula de economia doméstica
e me sento. A sala é pequena, e pouco antes do sinal soar,
anunciando o início da aula, Sarah entra e se senta a meu
lado.
--Oi -- ela diz.
--Oi.
Meu rosto esquenta e meus ombros ficam tensos. Pego
uma caneta e começo a girá-la entre os dedos da mão
direita, enquanto com a esquerda dobro os cantos de meu
caderno. Meu coração dispara. Por favor, mãos, não
brilhem. Olho para elas e suspiro aliviado por estarem
normais. Mantenha a calma, penso. Ela é só uma garota.
Sarah está olhando para mim. Tenho a sensação de que
tudo dentro de meu corpo começa a derreter. Ela talvez
seja a garota mais linda que já conheci.
--Lamento por Mark ser tão cretino com você -- ela diz.
Eu dou de ombros.
--Não é culpa sua.
--Vocês não vão brigar, vão?
--Eu não quero -- digo.
Ela move a cabeça em sentido afirmativo.
-- Ele pode ser um cretino, mesmo. Sempre tentando
mostrar quem é que manda.
--É um sinal de insegurança -- respondo.
--Ele não é inseguro. É só um cretino.
É claro que ele é. Mas não quero discutir com Sarah. Além
do mais, ela fala com tanta certeza, que quase duvido de
mim mesmo.
Sarah olha para as manchas de molho de espaguete que
secaram em minha camisa, depois estende a mão e tira um
pedaço de macarrão endurecido de meu cabelo.
-- Obrigado.
Ela suspira.
-- Lamento pelo que aconteceu. -- Sarah olha em meus
olhos. -- Não estamos juntos, sabe?
-- Não?
Ela balança a cabeça. Estou intrigado por ela ter sentido
necessidade de deixar isso claro para mim. Após dez
minutos de instruções sobre como fazer panquecas -- sem
que eu tenha ouvido um minuto sequer --, a professora,
Sra. Benshoff, nos põe para trabalhar juntos, Sarah e eu.
Passamos por uma porta no fundo da sala e chegamos a
uma cozinha três vezes maior que a sala de aula. Ela
contém dez unidades, cada uma delas com refrigerador,
armários, pia, fogão. Sarah entra em uma das unidades,
pega um avental na gaveta e o coloca.
-- Pode amarrar para mim? -- ela pede.
Deixo escapar o laço e preciso amarrar de novo. Sinto os
contornos da parte inferior das costas dela sob meus dedos.
Quando termino de amarrar o avental de Sarah, coloco o
meu e tento amarrá-lo.
--É assim, bobo -- ela diz e depois pega as tiras e as
amarra para mim.
--Obrigado.
Tento quebrar o primeiro ovo, mas exagero na força e não
consigo salvar nada dele para pôr na tigela. Sarah ri. Ela
coloca outro ovo em minha mão e a segura, mostrando-me
como quebrar o ovo na borda da vasilha. A mão dela
permanece sobre a minha por um segundo além do
necessário. Ela me encara e sorri.
-- É assim.
Sarah mistura a massa, e mechas de cabelo caem sobre seu
rosto enquanto ela trabalha. Quero muito ajeitá-las atrás
da orelha delicada, mas contenho esse desejo. A Sra.
Benshoff visita nossa cozinha para verificar nosso
progresso. Até então, tudo bem, graças a Sarah, é claro,
porque eu não tenho a menor idéia do que estou fazendo.
-- O que está achando de Ohio? -- Sarah me pergunta.
-- Legal. Mas meu primeiro dia na escola podia ter sido
melhor.
Ela sorri.
--Afinal, o que aconteceu? Fiquei preocupada com você.
--Acreditaria se eu dissesse que sou um alien?
--Ah, cale a boca -- ela responde brincando. -- O que
aconteceu realmente?
Eu rio.
--Tenho asma. Por alguma razão, ontem tive uma crise --
digo, lamentando ter de mentir. Não quero que ela veja
fraqueza alguma em mim, especialmente fraquezas que
nem são reais.
--Bem, fico feliz por se sentir melhor.
Fazemos nossas panquecas. Sarah as empilha em um prato.
Ela acrescenta uma porção absurda de calda e depois me
oferece um garfo. Olho para os outros alunos. A maioria
das duplas está comendo o que preparou, mas em dois
pratos. Eu pego um pedaço.
-- Nada mau -- comento enquanto mastigo.
Não estou com um pingo de fome, mas ajudo Sarah a
devorar todas as panquecas. Vamos nos servindo
alternadamente até o prato ficar vazio. Quando
terminamos, estou com dor de estômago. Depois, ela lava
os pratos e utensílios, e eu os enxugo. Quando o sinal soa
no corredor, saímos juntos da sala.
--Sabe, você não é ruim para um aluno do segundo ano --
ela diz, cutucando-me com o cotovelo. -- Não me
incomodo com o que dizem.
--Obrigado. Você também é legal para uma... seja lá o que
for.
--Sou caloura.
Caminhamos em silêncio por alguns instantes.
--Não vai realmente brigar com Mark no final do dia, vai?
--Preciso do meu celular de volta. Além do mais, olhe para
mim -- digo, apontando para minha camiseta.
Ela dá de ombros. Eu paro na frente do meu armário. Ela
registra o número.
-- Bem, não deveria brigar -- opina.
--Não quero brigar. Ela revira os olhos.
--Os garotos e suas brigas. Bem, vejo você amanhã.
--Tenha um bom restante de dia -- respondo.
Depois de minha última aula, história americana, caminho
lentamente até meu armário. Penso em simplesmente
deixar a escola sem chamar a atenção, sem procurar por
Mark. Mas percebo que, se agir assim, serei rotulado
eternamente como um covarde.
Paro na frente do meu armário e guardo todos os livros de
que não vou precisar. Depois, fico ali parado, sentindo o
nervosismo que começa a me invadir. Minhas mãos ainda
estão normais. Penso em calçar as luvas por precaução, mas
não é o que faço. Respiro profundamente e fecho a porta do
armário.
-- Oi.
A voz me assusta. É Sarah, e ela olha para trás antes de me
fitar novamente.
--Trouxe algo para você.
--Não é mais panqueca, é? Ainda estou me sentindo como
se fosse explodir.
Ela ri, nervosa.
-- Não é panqueca. Mas, se eu lhe der o que tenho aqui,
vai ter que me prometer que não vai brigar.
-- Tudo bem -- concordo.
Ela olha para trás novamente e, depressa, enfia a mão em
um compartimento externo da bolsa, de onde tira meu
celular. Sarah me entrega o aparelho.
--Como conseguiu recuperá-lo?
Ela encolhe os ombros.
--Mark sabe?
--Não. Ainda vai bancar o valentão? -- ela insiste.
--Acho q u e não.
--Que bom.
--Obrigado. -- Não posso acreditar que ela fez algo tão
arriscado por mim, eu, alguém que ela nem conhece. Mas
não estou reclamando.
--Não foi nada -- ela responde, antes de se virar e se
afastar apressadamente pelo corredor. Eu a observo o
tempo todo, sem conseguir conter um sorriso. Quando
estou saindo da escola, Mark James e oito de seus amigos
estão me esperando na porta.
--Ora, ora, ora -- diz Mark. -- Conseguiu ficar até o fim
do dia, então?
--Com certeza. E veja só o que eu encontrei -- digo,
exibindo meu telefone celular. Seu queixo cai. Passo por ele
sem pressa e saio do prédio.
CAPÍTULO OITO
HENRI ME ESPERA EXATAMENTE ONDE
DISSE QUE ESTARIA. EU ENTRO NA caminhonete
ainda sorrindo.
--Dia bom? -- ele me pergunta.
--Nada mau. Recuperei meu celular.
--Sem brigar?
--Sem nada muito importante.
Ele me estuda desconfiado.
--Acha que vou querer saber o que isso significa?
--Provavelmente não.
--Suas mãos brilharam alguma vez?
--Não -- minto. -- Como foi seu dia?
Ele segue pelo caminho que contorna a escola.
--Foi bom. Depois de deixá-lo na escola, dirigi por uma
hora e meia até Columbus.
--Por que Columbus?
--Porque há bancos grandes lá. Não queria despertar
suspeitas com uma solicitação de transferência de um valor
maior do que o saldo da cidade inteira.
Eu concordo, movendo a cabeça.
-- Sensato.
Ele pega a estrada.
--E, então, não vai me dizer o nome dela?
--O quê?
--Deve haver uma razão para esse seu sorriso ridículo. E a
razão mais óbvia é uma garota.
--Como sabe?
--John, meu amigo, em Lorien este velho Cêpan era um
conquistador.
--Está brincando -- respondo. -- Isso não existe em
Lorien.
Ele assente com ar de aprovação.
--Ah, esteve prestando atenção.
O povo lórico é monogâmico. Quando nos apaixonamos, é
para sempre. O casamento costuma acontecer por volta dos
vinte e cinco anos e não tem nada a ver com lei. É mais
baseado em promessa e compromisso do que em qualquer
outra coisa. Henri era casado havia vinte anos quando
partiu comigo. Dez anos se passaram, mas sei que ele ainda
sente falta da esposa todos os dias.
-- Então, quem é ela? -- Henri pergunta.
-- O nome dela é Sarah Hart. Ela é filha da corretora de
imóveis de quem você comprou a casa. Faz duas aulas
comigo. É caloura.
Ele move a cabeça em sentido afirmativo.
--Bonita?
--Muito. E inteligente.
--Sim -- ele responde devagar. -- Estou esperando por
isso há algum tempo. Só não esqueça que podemos ter de
partir de uma hora para outra.
--Eu sei -- digo. E o restante do trajeto até em casa é
percorrido em silêncio.
Quando chegamos em casa, a Arca Lórica está sobre a mesa
da cozinha. Ela tem o tamanho de um micro-ondas, é
quase perfeitamente quadrada, meio metro por meio
metro. Uma onda de entusiasmo me invade. Eu me
aproximo dela e seguro o cadeado.
--Acho que estou mais animado com a possibilidade de
descobrir como isto é destrancado do que com o que há
dentro dela -- confesso.
--É mesmo? Bem, posso mostrar como abrir o cadeado, e
depois voltamos a fechá-lo e esquecemos o que há dentro
da arca.
Eu sorrio para ele.
--Não seja tão radical. Vamos lá, o que tem aqui dentro?
--É sua Herança.
--Como assim, minha Herança? O que quer dizer com
isso?
--Aquilo que é dado a cada Garde na hora de seu
nascimento para ser usado por seu Guardião quando o
Garde começa a desenvolver seu Legado.
Escuto com grande entusiasmo.
--Sim, e o que há dentro dela?
--Sua Herança.
A resposta evasiva me deixa frustrado. Pego o cadeado e
tento abri-lo à força, como fiz tantas outras vezes. É claro
que nada consigo.
--Não pode abri-lo sem mim, e eu não posso abri-lo sem
você -- Henri explica.
--Bem, e como vamos abri-lo? Não vejo um buraco para
chave.
--Usamos a vontade.
-- Ah, por favor, Henri. Acabe com o segredinho.
Ele pega o cadeado.
-- Ele só se abre quando estamos juntos, e só depois da
formação de seu primeiro Legado.
Henri caminha até a porta da frente e olha para fora, depois
a fecha e tranca. E volta para perto de mim.
--Pressione a palma da mão contra a lateral do cadeado --
diz.
Eu sigo a orientação.
--É quente -- comento.
--Ótimo. Isso significa que você está pronto.
-- E agora?
Ele pressiona a própria mão contra o outro lado do cadeado
e entrelaça os dedos nos meus. Um segundo depois,
ouvimos um estalo. A fechadura se abriu.
-- Incrível! -- exclamo.
-- A arca é protegida por um feitiço lórico, como você. O
cadeado não pode ser quebrado. Pode passar por cima dele
com um rolo compressor e não vai conseguir nem amassá-
lo. Só nós dois podemos abri-lo, e juntos. A menos que eu
morra; então você poderá abri-lo sozinho.
-- Bem, espero que isso não aconteça -- declaro.
Tento levantar a tampa da arca, mas Henri segura minha
mão e me impede.
-- Ainda não -- ele diz. -- Há coisas aqui que você não
está preparado para ver. Vá se sentar no sofá.
--Henri, por favor.
--Confie em mim -- ele diz.
Balanço a cabeça e me sento. Ele abre a arca e pega dali
uma pedra que deve ter uns quinze centímetros de
comprimento e cinco centímetros de espessura. Depois,
fecha a caixa e a tranca com o cadeado, e só então traz a
pedra até mim. Ela é perfeitamente lisa e oblonga, clara na
parte externa, mas opaca no centro.
--O que é isso? -- pergunto.
--Um cristal lórico.
--Para que serve?
-- Segure-o -- ele diz, entregando-me a pedra. No
segundo em que minhas mãos tocam nela, as luzes se
acendem em minhas palmas. E agora são ainda mais
brilhantes que no dia anterior. A pedra começa a aquecer.
Eu a levanto para estudá-la melhor. A massa fosca no
centro está girando, movendo-se em torno dela mesma
como uma onda. Sinto o pingente em meu pescoço
aquecendo também. Estou eufórico com tudo isso. Passei
toda a minha vida esperando impacientemente pela
chegada de meus poderes. Sim, é claro que houve
momentos em que tive esperança de que eles nunca
aparecessem, principalmente para que pudéssemos enfim
nos instalar em algum lugar e levar uma vida normal; mas
agora, quando seguro o cristal que contém em seu centro o
que parece ser uma bola de fumaça, ciente de que minhas
mãos são resistentes ao fogo e ao calor, que mais Legados
estão por vir e que serão seguidos por meu maior poder (o
poder que vai me permitir lutar) -- bem, agora tudo fica
muito legal e excitante. Não consigo parar de sorrir.
-- O que está acontecendo com o cristal?
-- Ele está ligado ao seu Legado. Seu toque o ativa. Se você
não estivesse desenvolvendo o Lúmen, o cristal se
acenderia como acontece com suas mãos. Mas, em seu
caso, é o contrário.
Olho para o cristal e vejo a fumaça girar e cintilar.
-- Podemos começar? -- Henri pergunta.
Eu movo a cabeça em sentido afirmativo, sem esconder
minha ansiedade.
-- Sim, sim.
O dia ficou frio. A casa está silenciosa, exceto por uma ou
outra rajada de vento estremecendo as janelas. Estou
deitado de costas sobre a mesinha de madeira. Minhas
mãos pendem das laterais da mesa. Em algum momento,
Henri vai acender um fogo embaixo delas. Mantenho
minha respiração estável e lenta, conforme as instruções de
Henri.
-- Precisa manter os olhos fechados -- ele diz. -- Ouça o
vento. Talvez sinta alguma queimação nos braços quando
eu passar o cristal por eles. Ignore a sensação tanto quanto
puder.
Escuto o vento soprando entre as árvores lá fora. De
alguma forma, consigo senti-las se dobrando, balançando.
Henri começa por minha mão direita. Ele pressiona o
cristal contra o dorso, depois o desliza até meu pulso e
sobe pelo braço. Sinto certo ardor, como ele previu, mas
não é suficiente para tentar afastar o braço.
-- Deixe sua mente vagar, John. Vá para onde precisa ir.
Não sei do que ele está falando, mas tento esvaziar a mente
e respirar bem devagar. Imediatamente, sinto que estou me
afastando. O sol surge de algum lugar e aquece meu rosto,
e o vento agora é bem mais quente do que aquele que sopra
além das paredes de nossa casa. Quando abro os olhos, não
estou mais em Ohio.
Estou sobre uma vasta área arborizada, acima das copas, e
nada posso ver além de uma imensa floresta. Céu azul, sol
forte, um sol cujo tamanho é quase o dobro daquele que
aquece a Terra. Um vento suave e morno brinca com meu
cabelo. Lá embaixo, rios cavam sulcos que cortam a
vegetação. Flutuo sobre um deles. Animais de todas as
formas e tamanhos -- alguns longos e finos, outros com
braços curtos e corpos roliços, alguns com pelos e outros
com pele escura que parece ser áspera ao toque --, todos
bebem a água fresca à margem do rio. Há uma curva na
linha do horizonte muito longe dali, e sei que estou em
Lorien. É um planeta dez vezes menor que a Terra, e é
possível ver a curva de sua superfície quando se olha para
ela de uma distância suficientemente grande.
De alguma forma, posso voar. Movimento-me e giro no ar,
depois mergulho e deslizo velozmente em sentido paralelo
ao curso do rio, bem perto dele. Os animais levantam a
cabeça e olham para mim, curiosos, mas sem medo. Lorien
em seu auge, coberto de vegetação, habitado por animais.
De certo modo, é parecido com o que imagino que tenha
sido a Terra milhões de anos atrás, quando o planeta rei-
nava soberano sobre a vida de suas criaturas, antes de os
humanos chegarem e dominarem tudo. Lorien em seu
apogeu; sei que hoje não é mais assim. Devo estar vivendo
uma lembrança. Mas não é minha, certamente.
O dia se adianta até mergulhar na escuridão. Começa ao
longe uma grande exibição de fogos de artifício, com luzes
que se erguem para o céu e explodem na forma de animais
e de árvores, com o céu escuro, as luas e um milhão de
estrelas como um radiante cenário.
-- Posso sentir o desespero deles -- ouço em algum lugar.
Eu me viro e olho em volta. Não há ninguém perto de mim.
-- Eles sabem onde está um dos outros, mas o feitiço se
mantém. Não podem tocada, a menos que matem você
antes. Mas continuam atrás dela.
Eu vôo alto, depois mergulho, procurando pela origem da
voz. De onde ela vem?
Sigo adiante, na direção dos fogos de artifício. A voz me
enerva. Talvez as explosões poderosas soem mais altas que
a voz.
-- Eles tinham esperança de matar todos nós antes de seus
Legados se desenvolverem. Mas nos mantivemos
escondidos. Precisamos manter a calma. Os três primeiros
entraram em pânico. Os três primeiros estão mortos.
Precisamos ser cautelosos e astutos. Quando entramos em
pânico, cometemos erros. Eles sabem que o desen-
volvimento de vocês dificulta tudo para eles, e, quando
todos vocês estiverem plenamente desenvolvidos, a guerra
será travada. Vamos reagir e nos vingar, e eles sabem disso.
Vejo bombas caindo de algum lugar muitos quilômetros
acima da superfície de Lorien. Explosões sacodem o chão e
o ar, gritos viajam no vento, labaredas lambem a terra e as
árvores. A floresta queima. Deve haver mil aeronaves
diferentes, todas descendo e aterrissando em solo lórico.
Soldados mogadorianos brotam delas, portando armas e
granadas cujo poder é muito maior do que aquele utilizado
na guerra ali. Eles são mais altos que nós, mas ainda se
parecem conosco, exceto pelo rosto. Eles não têm pupilas, e
as íris são cor de maravilha, magenta. Alguns têm as íris
pretas. Círculos escuros e pesados emolduram seus olhos, e
há uma palidez na pele -- quase como se fosse descolorida.
Seus dentes brilham entre lábios que nunca se aproximam
e são tão pontiagudos que parecem ter sido lixados.
As bestas de Mogadore saem dos aviões logo depois, e há
em seus olhos a mesma expressão fria. Alguns são grandes
como casas, exibem os dentes afiados e rugem tão alto que
chegam a ferir meus ouvidos.
-- Fomos descuidados, John. Por isso nos derrotaram com
tanta facilidade -- ele diz. Agora sei que a voz que estou
ouvindo é de Henri. Mas não posso vê-lo, e não consigo
desviar os olhos da matança e da destruição que acontece
lá embaixo, por isso não posso procurá-lo. As pessoas estão
correndo em todas as direções, lutando. Mogadorianos e
lorienos são mortos na mesma medida. Mas os lorienos
estão perdendo a batalha contra as bestas, que matam
nosso povo às dúzias: sopram fogo, rasgam com os dentes,
atacam ferozmente com braços e caudas. O tempo passa
depressa, muito mais do que o normal. Quanto já passou?
Uma hora? Duas?
A Garde lidera a luta, exibindo claramente seus Legados.
Alguns voam, outros correm com tal velocidade que mais
parecem borrões, e outros desaparecem completamente.
Raios brotam de suas mãos, corpos são envolvidos em
chamas, nuvens de tempestade se formam associadas a
ventos fortes sobre aqueles que conseguem controlar o
clima. Mas, mesmo assim, eles estão perdendo. Estão em
menor número, e a proporção é de quinhentos para um.
Seus poderes não são suficientes.
-- Nossa guarda relaxou. Os mogadorianos planejaram
bem, escolhendo o momento exato em que sabiam que
estávamos mais vulneráveis, quando os Anciões do planeta
não estavam mais presentes. Pittacus Lore, o maior deles, o
líder, os havia reunido antes do ataque. Ninguém sabe o
que aconteceu a eles, ou para onde foram, ou se ainda estão
vivos. Talvez os mogadorianos os tenham destruído
primeiro e atacado somente depois de terem tirado os
Anciões do caminho. Tudo o que sabemos realmente é que
havia uma coluna de luz branca e cintilante que subia ao
céu, até onde os olhos podiam alcançar, naquele dia em
que os Anciões se reuniram. Essa luz brilhou o dia todo,
depois desapareceu. Como um povo, nós deveríamos ter
reconhecido a manifestação como um sinal de que havia
algo errado, mas não percebemos nada. Não podemos
culpar ninguém além de nós mesmos pelo que aconteceu.
Tivemos sorte de tirar alguns do planeta, especialmente
por serem nove jovens Gardes que um dia podem
continuar a luta e manter viva nossa raça.
Ao longe, uma nave corta o céu muito alto e em velocidade
espantosa, deixando atrás dela um rastro azul. Do meu
ponto de observação, acompanho-a até que ela desaparece.
Há algo familiar naquela nave. Então compreendo: eu estou
nela, e Henri também. É a nave que nos leva para a Terra.
Os lorienos deviam ter percebido que haviam sido
vencidos. Por que mais nos mandariam para longe?
Matança desnecessária. É essa a impressão que tenho do
que vejo. Piso no chão e caminho através de uma bola de
fogo. Estou furioso. Homens e mulheres estão morrendo.
Gardes e Cêpans, e também crianças indefesas. Como isso
pode ser tolerado? Como o coração dos mogadorianos pode
ser tão duro? E por que eu fui poupado?
Atiro-me contra um soldado próximo, mas passo através
dele e caio. Tudo o que estou testemunhando já aconteceu.
Sou espectador de nossa extinção, e não há nada que eu
possa fazer.
Eu me viro e vejo uma besta que deve ter uns doze metros
de altura, com ombros muito largos, olhos vermelhos, e
chifres de seis metros de comprimento. Vejo a baba
pingando de seus dentes longos e afiados. Ele ruge e em
seguida ataca.
Ele passa direto através de mim, mas dizima uma dúzia de
lorienos à minha volta. Devora-os. Em um segundo, todos
desaparecem. E a besta segue seu caminho engolindo mais
lorienos.
Enquanto vejo a cena de destruição, escuto um ruído
estridente, algo não relacionado com a carnificina em
Lorien. Estou me afastando dali, voltando. Duas mãos
seguram meus ombros, pressionando-os para baixo. Meus
olhos se abrem e estou novamente em casa, em Ohio. Meus
braços continuam pendendo da mesa de café. Centímetros
abaixo há dois fogareiros, e minhas mãos e meus pulsos
estão completamente mergulhados nas chamas. Não sinto
nada. Nenhum efeito. Henri se debruça sobre mim. O
ruído que ouvi um minuto atrás vem da varanda.
--O que é isso? -- sussurro, sentando-me na mesa.
--Não sei -- ele diz.
Ficamos em silêncio, tentando ouvir. O barulho se repete
mais três vezes, como se alguma coisa arranhasse a porta.
Henri olha para mim.
-- Tem alguém lá fora -- ele diz.
Olho para o relógio na parede. Quase uma hora se passou.
Estou suando, ofegante, perturbado com as cenas de morte
que acabei de testemunhar. Pela primeira vez, entendo
realmente o que aconteceu em Lorien. Antes desta noite os
eventos eram apenas parte de mais uma história, não muito
diferente de tantas outras que li nos livros. Mas agora vi o
sangue, as lágrimas, os mortos. Vi a destruição. Ela é parte
de quem eu sou.
Lá fora, a escuridão já envolveu o mundo. A porta é
arranhada mais três vezes, e depois ouvimos um gemido
baixo. Nós dois pulamos. Penso imediatamente nos rugidos
baixos que ouvi das bestas.
Henri corre até a cozinha e pega uma faca na gaveta sob a
pia.
--Vá para trás do sofá.
--O que, por quê?
--Porque estou mandando.
--Acha que essa faquinha vai derrubar um mogadoriano?
--Sim, se eu acertar o coração. Agora, faça o que eu
mandei.
Eu desço da mesinha e rastejo até o sofá, encolhendo-me
atrás dele. Os dois fogareiros continuam acesos, e visões
fracas de Lorien ainda circulam por minha cabeça. Um
grunhido impaciente soa do outro lado da porta. Não há
como negar: alguém ou alguma coisa está parado ali, em
frente à entrada. Meu coração dispara. -- Fique abaixado
-- diz Henri.
Levanto a cabeça para poder espiar por cima do encosto do
sofá. Todo aquele sangue, eu penso. Com certeza eles
sabiam que estavam em menor número, derrotados, mas
lutaram até o fim, morreram para salvar uns aos outros,
morreram para salvar Lorien. Henri segura a faca com
força. Devagar, ele aproxima a mão da maçaneta metálica.
A raiva cresce dentro de mim. Espero que seja um deles.
Queria que um mogadoriano passasse por aquela porta. Ele
encontraria alguém à sua altura.
Não vou ficar atrás do sofá. Não mesmo. Estendo o braço e
agarro um dos fogareiros, enfio a mão nele e retiro de lá
um pedaço de madeira incandescente com uma ponta
afiada. Ela é fria ao toque, mas o fogo continua ardendo,
envolvendo minha mão. Seguro o pedaço de madeira como
uma lança. Que venham, eu penso. Ninguém aqui vai fugir.
Henri olha para mim, respira fundo e abre a porta.
CAPÍTULO NOVE
TODOS OS MÚSCULOS DO MEU CORPO ESTÃO
FLEXIONADOS, TENSOS. HENRI SALTA através do
batente e eu estou pronto para segui-lo. Posso sentir o tum-
tum-tum no peito. As articulações de meus dedos estão
brancas pela força com que seguro a estaca em chamas.
Uma rajada de vento entra pela porta e o fogo dança em
minha mão, subindo até o pulso. Não há ninguém ali.
Henri relaxa e ri, olhando para o chão perto de seus pés. Lá,
fitando Henri com ar suplicante, vejo o mesmo beagle que
vi ontem na escola. O cachorro balança a cauda e bate com
uma das patas no chão. Henri se abaixa e o afaga; então, o
cão passa por ele e entra em casa com a língua pendendo
da boca.
--O que ele está fazendo aqui? -- pergunto.
--Conhece esse cachorro?
-- Eu o vi na escola. Ele me seguiu por um bom tempo
ontem, depois de você ter me deixado lá.
Solto a estaca e limpo a mão na calça jeans, deixando nela
um rastro de fuligem e cinzas. O cachorro se senta aos
meus pés e olha para mim cheio de expectativa, o rabo
batendo barulhento no piso de madeira. Eu me sento no
sofá e olho para os dois fogareiros. Agora que o
excitamento da situação passou, minha mente retorna à
visão e às cenas que testemunhei. Ainda posso ouvir os
gritos, ainda vejo como o sangue brilhava sobre a relva
banhada pelo luar, ainda vejo os corpos e as árvores caídas,
o brilho vermelho nos olhos das bestas de Mogadore, o
terror nos olhos dos lorienos. Olho para Henri.
--Eu vi o que aconteceu. Pelo menos o início de tudo.
Ele move a cabeça em sentido afirmativo.
--Pensei que poderia ver.
--E ouvi sua voz. Estava falando comigo?
--Sim.
-- Não entendo -- eu disse. -- Foi um massacre. Era
muito ódio que justificasse interesse apenas em nossos
recursos. Devia haver mais do que isso.
Henri suspira e se senta na mesinha de centro, à minha
frente. O cachorro pula em meu colo. Eu o afago. Ele está
imundo, com o pelo engordurado e duro. Há uma medalha
em forma de bola de futebol americano presa à sua coleira,
mas boa parte da tinta marrom desbotou. Eu a seguro entre
os dedos e consigo ler o número 19 de um lado, o nome
BERNIE KOSAR do outro.
-- Bernie Kosar -- digo, e o cão abana a cauda com mais
vigor. -- Acho que é esse o nome dele, como aquele cara do
pôster na minha parede. Deve ser alguém popular por aqui,
acho. -- Deslizo a mão pelas costas do animal. -- Ele não
parece ter casa -- digo. -- E está com fome. -- Consigo
perceber de algum jeito.
Henri assente. Ele olha para Bernie Kosar. O cachorro se
estica, apóia o queixo nas patas e fecha os olhos. Eu abro o
isqueiro, acendo a chama e a seguro sob meus dedos,
depois sob a palma, depois a deslizo pela parte inferior do
braço. Só sinto o ardor quando a chama está a dois ou três
centímetros do cotovelo. Não sei o que Henri fez, mas
funcionou. Minha resistência aumentou. Fico me
perguntando quanto tempo vai levar até eu me tornar
inteiramente resistente.
--Então, o que aconteceu? -- pergunto.
Henri inspira profundamente.
--Tive aquelas visões também. Tão reais quanto se eu
estivesse lá.
--Nunca havia me dado conta de quanto tudo foi terrível.
Quero dizer, sei que você me contou, mas não entendia
realmente a extensão dos acontecimentos, até vê-los com
meus próprios olhos.
--Os mogadorianos são diferentes de nós, sigilosos e
manipuladores, desconfiados de quase tudo. Eles têm
certos poderes, mas não são como os nossos. Eles são
sociáveis e vivem bem nas cidades movimentadas. Quanto
maior a população, melhor. Por isso você e eu ficamos
longe das grandes cidades agora, mesmo que viver em uma
delas possa ser melhor para quem quer se perder na
multidão. Eles também se perderiam e desapareceriam na
multidão com grande facilidade.
Eu escuto com interesse e atenção.
Henri continua falando:
-- Há cerca de um século, Mogadore começou a morrer,
como aconteceu com Lorien vinte e cinco mil anos antes.
Eles não reagiram como nós, porém, não entenderam o que
acontecia, como a população humana começa a entender
agora. Eles ignoraram o processo. Mataram seus oceanos e
encheram rios e lagos com lixo, aterrando-os para
aumentar a área de suas cidades. A vegetação começou a
morrer, o que causou a morte dos herbívoros, e depois dos
carnívoros. Eles sabiam que precisavam tomar uma medida
drástica.
Henri fechou os olhos, mantendo-se em silêncio por um
minuto.
-- Sabe qual é o planeta habitado mais próximo de
Mogadore? -- ele pergunta finalmente.
-- Sim, é Lorien. Ou era, pelo menos.
Henri assente.
-- Sim, é Lorien. E tenho certeza de que agora você sabe
que eram nossos recursos que eles queriam.
Eu concordo movendo a cabeça. Bernie Kosar levanta a
dele e boceja, preguiçoso. Henri aquece no micro-ondas
um peito de frango cozido, corta-o em tiras e leva o prato
para o sofá, colocando-o à frente do cachorro. O animal
come com ferocidade, como se não comesse há dias.
-- Há um grande número de mogadorianos na Terra --
Henri continua. -- Não sei quantos são, mas posso senti-
los quando durmo. Às vezes posso vê-los em meus sonhos.
Nunca sei dizer onde estão ou o que estão dizendo. Mas eu
os vejo. E não acredito que seis de vocês sejam a única
razão que os traga aqui em tão grande número.
-- O que quer dizer? Que outro motivo haveria para
estarem aqui?
Henri me encara.
--Sabe qual é o segundo planeta habitado mais próximo de
Mogadore?
--É a Terra, não é?
--Mogadore tem o dobro do tamanho de Lorien, mas a
Terra é cinco vezes maior que Mogadore. Em termos de
defesa, a Terra é mais bem preparada para uma ofensiva
por causa de seu tamanho. Os mogadorianos precisam
entender melhor o planeta antes de poderem atacá-lo. Não
posso lhe dizer como exatamente fomos derrotados com
tanta facilidade, porque ainda há muito que não consigo
entender nisso tudo. Mas posso dizer, com certeza, que
parte disso foi uma combinação do conhecimento deles
sobre nosso planeta e nosso povo, e de não termos outra
defesa além de nossa inteligência e dos Legados da Garde.
Você pode dizer o que quiser sobre os mogadorianos, mas
eles são estrategistas brilhantes em uma guerra.
Continuamos sentados em silêncio por alguns instantes,
ouvindo o vento lá fora.
-- Não creio que eles estejam interessados nos recursos da
Terra -- Henri opina.
Eu suspiro e olho para ele.
-- Por que não?
-- Mogadore ainda está morrendo. Embora eles tenham
resolvido os problemas mais prementes, a morte do planeta
é inevitável, e eles sabem disso. Acho que planejam matar
os humanos. Eles querem fazer da Terra seu lar
permanente.
Depois do jantar, dou um banho em Bernie Kosar usando
xampu e condicionador. Eu o penteio com uma escova
velha que encontrei em uma das gavetas, provavelmente
esquecida pelo inquilino anterior. Ele tem aparência e
cheiro muito melhores agora, mas a coleira ainda tem odor
horroroso. Eu a removo e jogo fora. Antes de ir para cama,
abro a porta da frente para ele, mas o cachorro não está
interessado em sair. Em vez disso, ele se deita no chão e
apóia o queixo nas patas dianteiras. Posso sentir seu desejo
de ficar em casa conosco. Gostaria de saber se ele pode
sentir o mesmo desejo em mim.
-- Acho que temos um novo bichinho de estimação --
Henri diz.
Eu sorrio. Assim que o vi, tive esperança de que Henri me
deixasse ficar com ele.
-- É, parece que sim -- respondo.
Meia hora mais tarde, quando vou para cama, Bernie Kosar
pula em cima dela e se deita encolhido aos meus pés. Em
poucos minutos ele começa a roncar. Eu passo algum
tempo deitado de costas, olhando para a escuridão, com a
cabeça ocupada com um milhão de pensamentos. Imagens
da guerra: a expressão de ganância e fúria dos
mogadorianos; o olhar furioso e duro das bestas; a morte e
o sangue. Penso na beleza de Lorien. Haverá novamente
vida naquele planeta, ou Henri e eu ficaremos esperando
para sempre aqui na Terra?
Tento banir pensamentos e imagens de minha cabeça, mas
eles não ficam longe por muito tempo. Eu me levanto e
ando pelo quarto por alguns minutos. Bernie Kosar levanta
a cabeça e olha para mim, mas logo volta a dormir. Eu
suspiro, pego meu celular no criado-mudo e o examino
para ter certeza de que Mark James não mexeu em nada. O
número de Henri ainda está na agenda, mas não é mais o
único. Outro foi adicionado. O de Sarah Hart. Depois do
final da última aula, e antes de ir me encontrar na frente
dos armários, Sarah salvou o número dela em meu celular.
Fecho o telefone, deixo-o sobre o criado-mudo e sorrio.
Dois minutos depois, pego-o outra vez e verifico a agenda,
para ter certeza de que não estava enxergando coisas que
não existem. Eu não estava. Fecho o aparelho e o deixo no
mesmo lugar, só para pegá-lo cinco minutos depois e olhar
novamente para o número dela. Não sei quanto tempo levo
para dormir, mas, finalmente, consigo pegar no sono.
Quando acordo de manhã, o telefone ainda está em minha
mão, apoiado no peito.
CAPÍTULO DEZ
BERNIE KOSAR ESTÁ ARRANHANDO A PORTA
DE MEU QUARTO QUANDO ACORDO. Eu o deixo
sair. Ele ronda o quintal, correndo com o focinho bem
perto do chão. Satisfeito depois de cobrir os quatro cantos
do espaço cercado, ele corre para o meio das árvores e
desaparece. Fecho a porta e vou tomar banho. Saio dez
minutos mais tarde, e ele está novamente dentro de casa,
sentado no sofá. O cachorro balança o rabo ao me ver.
-- Você o deixou entrar? -- pergunto a Henri, que está
sentado à mesa da cozinha com seu laptop aberto e quatro
jornais empilhados diante dele.
-- Sim.
Saímos depois de um café da manhã rápido. Bernie Kosar
corre à nossa frente, depois para e se senta, olhando para a
porta da caminhonete no lado do passageiro.
--Isso é meio esquisito, não acha? -- eu comento.
Henri dá de ombros.
--Parece que ele está acostumado a andar de carro. Deixe-
o entrar.
Abro a porta, e o cão salta para dentro da caminhonete. Ele
se
senta no meio do banco da frente, com a língua para fora
da boca. Quando passamos pelo portão, ele se muda para
meu colo e bate com a pata na janela. Eu a abro, e ele
inclina metade do corpo para fora, ainda de boca aberta,
com o vento balançando suas orelhas. Cinco quilômetros
depois, Henri pára na frente da escola. Eu abro a porta e
Bernie Kosar salta para fora na minha frente. Eu o coloco
de volta na caminhonete, mas ele sai novamente. Devolvo-
o ao interior da caminhonete e preciso segurá-lo para
impedir que saia antes que eu consiga fechar a porta. Ele
fica equilibrado nas patas traseiras, com as dianteiras
apoiadas na janela aberta, e eu afago sua cabeça.
--Trouxe as luvas? -- Henri pergunta.
--Sim.
--O celular?
--Sim.
--Como se sente?
--Bem -- respondo.
--Tudo bem. Telefone para mim se tiver algum problema.
Ele vai embora, e Bernie Kosar me observa pela janela até a
caminhonete desaparecer além de uma curva.
Sinto um nervosismo semelhante ao que experimentei
ontem, mas por motivos diferentes. Em parte, quero ver
Sarah imediatamente, mas, em parte, espero não vê-la. Não
sei o que vou dizer a ela. E se não conseguir pensar em
nada e ficar parado com cara de idiota? E se ela estiver com
Mark quando eu a vir? Devo cumprimentá-la e correr o
risco de provocar outro confronto ou simplesmente passar
direto e fingir que não vi nenhum dos dois? E eu sei que os
verei na segunda aula. Não há como evitar.
Caminho para meu armário. Minha mochila está cheia de
livros que eu devia ter lido na noite passada, mas que nem
abri. Havia muitos pensamentos e imagens ocupando
minha cabeça. Eles não foram embora, e é difícil imaginar
que algum dia irão. Tudo é muito diferente do que eu
imaginava. A morte não é como mostram os filmes. Os
sons, as imagens, os cheiros... Tudo é muito diferente.
Quando paro diante de meu armário, percebo
imediatamente que há algo errado. O puxador de metal
está coberto de terra, ou algo que parece terra. Não sei ao
certo se devo abri-lo, mas respiro fundo e abro. O armário
está cheio de esterco, e, quando puxo a porta, boa parte
dele cai, uma porção em meus sapatos. O cheiro é horrível.
Eu fecho a porta com força. Sam Goode está parado atrás
dela, e sua aparição repentina me assusta. Ele parece
desamparado, e está vestindo uma camiseta da Nasa pouco
diferente daquela que usava ontem.
-- Oi, Sam -- cumprimento.
Ele olha para a pilha de esterco no chão, depois para mim.
--Você também?
Ele assente.
--Vou à diretoria. Quer vir comigo?
Ele balança a cabeça, depois se vira e vai embora sem dizer
nada. Eu vou até a sala do Sr. Harris, bato na porta e entro
sem esperar por uma autorização. Ele está sentado atrás de
sua mesa, usando uma gravata com a estampa da mascote
da escola, nada menos que vinte pequenas cabeças de
pirata espalhadas por ela. O diretor sorri orgulhoso ao me
ver.
-- Hoje é um grande dia, John -- diz. Não sei do que ele
está falando. -- Os repórteres do Gazette devem chegar
aqui em até uma hora. Primeira página!
Então eu lembro, a grande entrevista de Mark para o jornal
local.
-- Deve estar muito orgulhoso -- digo.
--Estou orgulhoso de todos e de cada um dos alunos de
Paradise. -- O sorriso não desaparece de seu rosto. Ele se
reclina na cadeira, entrelaça os dedos e apóia a mão sobre a
barriga. -- O que posso fazer por você?
--Só queria informar que meu armário estava cheio de
esterco esta manhã.
--Como assim, "cheio"?
--Cheio, Sr. Harris. Alguém encheu o armário de esterco.
--Esterco? -- ele repetiu, confuso.
-- Sim.
Ele ri. Fico chocado com sua falta de consideração e sou
tomado pela raiva. Meu rosto fica quente.
-- Vim até aqui informá-lo para que o armário seja limpo.
O armário de Sam Goode também foi recheado de esterco.
Ele suspira e balança a cabeça.
-- Vou mandar o Sr. Hobbs, o zelador, limpar seu armário
agora mesmo. E farei uma investigação completa.
--Nós dois sabemos quem foi, Sr. Harris.
Ele olha para mim com um sorriso paternal.
--Eu vou cuidar da investigação, Sr. Smith.
É inútil argumentar, por isso saio da diretoria e vou ao
banheiro lavar as mãos e o rosto com água fria. Preciso me
acalmar. Não quero usar as luvas hoje de novo. Talvez eu
não deva fazer nada a respeito, simplesmente esquecer o
episódio. Isso vai pôr fim à provocação? Além do mais, que
alternativas eu tenho? Estou em minoria, e meu único
aliado é um aluno do segundo ano que tem quarenta e
cinco quilos e obsessão por extraterrestres. Bem, talvez não
seja verdade... Talvez eu tenha outra aliada em Sarah Hart.
Olho para baixo. Minhas mãos estão normais, não brilham.
Saio do banheiro. O zelador já está removendo o esterco de
meu armário, retirando os livros e os jogando no lixo. Passo
por ele, entro na sala e espero pelo começo da aula. A
professora discute regras gramaticais, sendo o principal
tópico a diferença entre tempos verbais e o uso do
gerúndio. Presto mais atenção do que ontem, mas com a
aproximação do final da aula vou ficando nervoso com a
seguinte. Não porque posso encontrar Mark... Mas porque
posso ver Sarah. Ela vai sorrir para mim hoje, outra vez?
Acho que vai ser melhor chegar antes dela, de forma que eu
possa me sentar e observá-la entrando. Assim saberei se ela
vai dizer "oi" para mim antes.
Quando ouço o sinal, saio da sala apressadamente e ando
depressa pelo corredor. Sou o primeiro a entrar para a aula
de astronomia.
A sala se enche e Sam se senta ao meu lado outra vez.
Pouco antes de o sinal soar, Sarah e Mark entram juntos.
Ela veste camisa branca e calça preta. E sorri para mim
antes de se sentar. Eu sorrio para ela. Mark nem olha em
minha direção. Ainda posso sentir o cheiro de esterco em
meus sapatos, ou talvez o odor venha de Sam.
Ele retira da mochila um panfleto com o título Eles Estão
entre Nós na capa. Parece que foi impresso no porão da
casa de alguém. Sam abre o panfleto na página central e
começa a ler atentamente.
Olho para Sarah quatro carteiras à minha frente, para seus
cabelos presos num rabo de cavalo. Posso ver o formato de
seu pescoço delgado. Ela cruza as pernas e se senta ereta na
cadeira. Gostaria de estar sentado à seu lado, de poder
segurar sua mão. Gostaria de estar na oitava aula. Fico
pensando se serei parceiro dela novamente na aula de
economia doméstica.
A Sra. Burton começa a falar. Ela ainda está desenvolvendo
o tópico sobre Saturno. Sam pega uma folha de papel e
começa a escrever freneticamente, parando de vez em
quando para consultar um artigo na revista que mantém
aberta a seu lado. Olho por cima de seu ombro e leio o
título da matéria: "Cidade inteira de Montana abduzida por
alien".
Antes da noite passada eu nunca teria considerado tal
teoria. Mas Henri acredita que os mogadorianos tramam
para dominar a Terra, e devo admitir que, embora a
matéria na revista de Sam seja ridícula, deve haver algum
fundo de verdade nela. Sei que os lorienos visitaram a Terra
muitas vezes ao longo da vida deste planeta. Vimos a Terra
se desenvolver, a observamos em tempos de crescimento e
abundância, quando tudo se movia, e em tempos de gelo e
neve quando nada se mexia. Ajudamos os humanos, os
ensinamos a fazer fogo, demos a eles as ferramentas para o
desenvolvimento da fala e da linguagem, por isso nossa
linguagem é tão semelhante à da Terra. E, embora nunca
tenhamos abduzido humanos, não significa que isso nunca
tenha sido feito. Olho para Sam. Nunca conheci ninguém
com uma fascinação tão grande por extraterrestres a ponto
de fazer anotações e estudar teorias de conspiração.
A porta da sala se abre e o rosto sorridente do Sr. Harris
aparece.
-- Desculpe interromper, Sra. Burton, mas vou ter de tirar
Mark da sala. Os repórteres do Gazette chegaram para
entrevistá-lo -- ele avisa em tom suficientemente alto para
todos na sala ouvirem.
Mark se levanta, pega a mochila e sai da sala com passos
tranquilos, casuais. Vejo o Sr. Harris dar uns tapinhas nas
costas dele quando os dois saem juntos. Depois olho para
Sarah, desejando poder me sentar na cadeira vazia ao lado
dela.
A quarta aula é educação física. Sam está em minha turma.
Trocamos de roupa e nos sentamos lado a lado no chão do
ginásio. Ele calça tênis e veste short e uma camiseta dois ou
três números maior que o dele. Sam parece uma cegonha,
todo joelhos e cotovelos, de certa forma esguio, embora
seja baixo.
O professor de ginástica, Sr. Wallace, está em pé na frente
do grupo, os pés afastados na largura dos ombros, as mãos
cerradas e apoiadas nos quadris.
-- Tudo bem, rapazes, escutem. Esta é provavelmente a
última chance que teremos de trabalhar ao ar livre, por isso
façam valer a pena. Corrida de um quilômetro e meio,
dando o máximo possível. Seus tempos serão anotados e
guardados para quando voltarmos a correr a mesma
distância na primavera. Por isso, tratem de se esforçar!
A pista do lado de fora é feita de borracha sintética. Ela
contorna o campo de futebol, e, além dela, há um bosque
por onde, imagino, é possível chegar a nossa casa, mas não
tenho certeza. O vento é frio, e noto que o braço de Sam
está arrepiado. Ele tenta se aquecer esfregando a pele.
-- Já fez essa corrida antes? -- pergunto.
Sam move a cabeça em sentido afirmativo.
--Corremos um quilômetro e meio na segunda semana de
aula.
--Qual foi seu tempo?
--Nove minutos e cinquenta e quatro segundos.
Olho para ele.
--Sempre pensei que pessoas magras fossem muito
rápidas.
--Cale a boca -- ele diz.
Corro ao lado de Sam para o fundo do grupo. Quatro
voltas. É esse o número de vezes que temos de percorrer a
pista para completar um quilômetro e meio. Na metade do
caminho eu começo a me distanciar de Sam. Em que
velocidade eu poderia percorrer um quilômetro e meio se
realmente me esforçasse? Dois minutos, talvez? Ou menos?
O exercício me anima e, sem prestar muita atenção, eu
passo o líder do grupo. Depois reduzo a velocidade,
fingindo exaustão. E é então que vejo uma mancha marrom
e branca saindo do meio dos arbustos, transpondo a
entrada da arquibancada e correndo em minha direção.
Minha mente está me pregando peças, eu penso. Desvio o
olhar e continuo correndo. Passo pelo professor. Ele está
segurando um cronômetro. Ele grita palavras de incentivo,
mas está olhando para algum ponto atrás de mim, fora da
pista. Sigo a direção de seu olhar. Estão fixos na mancha
marrom e branca. E a mancha continua correndo em
minha direção, e imediatamente as imagens do dia anterior
voltam. As bestas mogadorianas. Havia as pequenas,
também, com dentes que brilhavam como lâminas afiadas,
criaturas rápidas cuja principal intenção era matar.
Aumento a velocidade.
Percorro metade da pista num tiro de velocidade antes de
olhar para trás. Não há nada atrás de mim. Deixei para trás
o que me perseguia. Vinte segundos se passam. Eu me viro
para olhar para a frente, e a coisa está bem ali, diante de
mim. Deve ter atravessado o campo. Eu paro de repente, e
minha visão se corrige. É Bernie Kosar! Ele está sentado no
meio da pista com a língua para fora, a cauda balançando.
-- Bernie Kosar! -- eu grito. -- Você quase me matou de
susto!
Volto a correr em velocidade baixa, e o cachorro corre
comigo. Espero que ninguém tenha notado como fui veloz.
Eu paro e me dobro ao meio, como se tivesse cãibras e
dificuldade em respirar. Caminho durante algum tempo.
Depois corro sem me esforçar. Antes de terminar a segunda
volta, duas pessoas me ultrapassaram.
-- Smith! O que aconteceu? Estava na frente de todo
mundo! -- o Sr. Wallace grita quando passo por ele.
Respiro com dificuldade, dando credibilidade à encenação.
-- Eu... tenho... asma... -- digo.
Ele balança a cabeça num gesto desaprovador.
-- E eu pensando que tinha o campeão estadual deste ano
na minha turma!
Dou de ombros e continuo correndo, parando de vez em
quando para caminhar. Bernie Kosar continua comigo, às
vezes andando, às vezes trotando. Quando começo a
última volta, Sam me alcança e nós corremos juntos. Seu
rosto está muito vermelho.
-- Então, o que estava lendo hoje na aula de astronomia?
-- pergunto. -- Uma cidade inteira de Montana abduzida
por aliens?
Ele sorri para mim.
-- Sim, essa é a teoria -- responde com certa timidez,
como se estivesse constrangido.
--E por que uma cidade inteira seria abduzida?
Sam encolhe os ombros, não responde.
--Não, é sério -- insisto.
--Quer mesmo saber?
--Sim, é claro!
-- Bem, a teoria é que o governo vem permitindo as
abduções em troca de tecnologia.
-- É mesmo? Que tipo de tecnologia?
-- Coisas como chips para supercomputadores, fórmulas
para mais bombas e tecnologia verde.
-- Tecnologia verde para espécies vivas? Estranho. E por
que os alienígenas querem abduzir humanos?
--Para nos estudar.
--Sim, mas para quê? Quero dizer, que motivo eles
poderiam ter?
-- Quando o Armagedon chegar, eles conhecerão nossas
fraquezas e poderão nos derrotar com facilidade, expondo-
as.
Fico um pouco surpreso com a resposta, mas só por causa
das cenas que ainda desfilam por minha cabeça desde a
noite passada, da lembrança das armas usadas pelos
mogadorianos e das bestas gigantescas.
--Não seria fácil para eles, se já têm bombas e tecnologias
tão superiores às nossas?
--Bem, algumas pessoas parecem acreditar que eles
esperam que nós nos matemos antes.
Olho para Sam. Ele está sorrindo para mim, tentando
decidir se estou levando a conversa a sério ou não.
-- E por que eles iam querer que nos matássemos antes?
Qual é o estímulo deles?
-- Inveja.
--Inveja de nós? Da nossa beleza rústica?
Sam ri.
--É mais ou menos isso.
Eu concordo movendo a cabeça. Corremos em silêncio por
um minuto e percebo que Sam está enfrentando
dificuldades, porque sua respiração é pesada.
-- Como se interessou por tudo isso? Ele dá de ombros.
-- É só um hobby -- diz, embora eu tenha a nítida
sensação de que ele está escondendo alguma informação de
mim.
Completamos o percurso em oito minutos e cinquenta e
nove segundos, melhor que o último tempo de Sam. Bernie
Kosar segue a turma de volta à escola. Todos o acariciam, e
quando voltamos ao prédio ele tenta entrar conosco. Não
sei como me encontrou. É possível que ele tenha decorado
o caminho até a escola hoje cedo? A ideia me parece
ridícula.
Ele fica na porta. Caminho até o armário com Sam, que,
assim que recupera o fôlego, começa a recitar uma tonelada
de outras teorias de conspiração, uma depois da outra, a
maioria delas hilárias. Gosto dele, o acho divertido, mas às
vezes quero que ele pare de falar.
Quando começa a aula de economia doméstica, Sarah não
está na sala. A Sra. Benshoff dá instruções para os
primeiros dez minutos e nós vamos para a cozinha. Entro
sozinho na unidade, conformado com a ideia de cozinhar
sem companhia hoje, e, assim que considero essa
possibilidade, Sarah aparece.
--Perdi alguma coisa interessante? -- ela pergunta.
--Uns dez minutos de tempo valioso comigo -- respondo
sorrindo.
Ela ri.
--Já soube o que aconteceu com seu armário hoje cedo.
Sinto muito.
-- Foi você que encheu o armário de esterco? -- pergunto.
Ela ri novamente.
-- Não, é claro que não. Mas sei que está sendo perseguido
por minha causa.
-- Eles têm sorte em eu não ter usado meus super poderes
para jogá-los em outro país.
Ela aperta meu bíceps com ar brincalhão.
-- É claro, com esses músculos todos, e ainda com super
poderes... Cara, eles têm sorte.
Nosso projeto do dia é fazer cupcakes de blueberry.
Começamos a misturar a massa, e, enquanto trabalhamos,
Sarah me conta sua história com Mark. Eles namoraram
por dois anos, porém, quanto mais tempo passava com ele,
mais ela se afastava da família e dos amigos. Ela era a
namorada de Mark, mais nada. Sabia que havia começado a
mudar, adotando algumas das atitudes dele com as
pessoas: era cruel e crítica, julgava-se melhor do que os
outros. Ela também começou a beber e suas notas caíram.
No final do último ano letivo, os pais a mandaram passar o
verão na casa da tia no Colorado. Quando chegou lá, Sarah
começou a fazer longas caminhadas pelas montanhas,
fotografando as paisagens com a câmera da tia. Ela se
apaixonou pela fotografia e viveu o melhor verão de sua
vida, então percebeu que a vida era muito mais que ser
líder de torcida e namorar o quarterback do time de
futebol. Sarah voltou para casa, rompeu com Mark, deixou
a equipe de torcida e prometeu a si mesma ser boa e gentil
com todas as pessoas. Mark não superou o rompimento.
Ela relata que ele ainda a considera sua garota e acredita
que um dia ela vai voltar para ele. Sarah diz que só sente
falta dos cachorros de Mark, com quem ela se divertia
sempre que ia visitá-lo. Conto a ela sobre Bernie Kosar, e
como ele apareceu na porta de nossa casa inesperadamente
depois daquela primeira manhã na escola.
Trabalhamos enquanto conversamos. Em um dado
momento eu abro o forno e retiro dali as formas de bolinho
sem usar luvas térmicas. Ela percebe e pergunta se estou
bem, e finjo ter me queimado, sacudindo as mãos como se
ardessem, embora não sinta absolutamente nada. Vamos
até a pia, e Sarah coloca minhas mãos em água morna, para
ajudar a aliviar o ardor da queimadura inexistente. Quando
ela olha minha mão, eu me limito a encolher os ombros.
Enquanto estamos confeitando os bolinhos, ela me
pergunta sobre o celular e comenta que notou que só havia
um número na agenda. Digo que é o número de Henri, que
perdi meu telefone antigo com todos os meus contatos. Ela
me questiona se deixei uma namorada no lugar de onde
vim. Respondo que não, e ela sorri, o que praticamente
acaba comigo. Antes do final da aula, ela me fala sobre o
festival que vai acontecer na cidade no dia do Halloween e
diz que espera me ver lá, que talvez possamos nos
encontrar e passar algum tempo juntos. Eu digo que sim,
seria ótimo, e finjo estar tranquilo, mesmo flutuando por
dentro.
CAPÍTULO ONZE
IMAGENS ME TOMAM DE ASSALTO, EM
MOMENTOS ALEATÓRIOS, NORMALMENTE
quando menos espero por elas. Às vezes são pequenas e
rápidas: minha avó segurando um copo de água e abrindo a
boca para dizer alguma coisa; mas nunca sei quais são suas
palavras, porque a cena desaparece tão depressa quanto
surgiu. Às vezes são mais demoradas, mais vivas: meu avô
me empurrando em um balanço. Posso sentir a força em
seus braços quando ele me impulsiona, as borboletas no
estômago quando vou cada vez mais alto. O vento leva
minha risada. Então, a imagem desaparece. Às vezes
lembro explicitamente as imagens de meu passado,
lembro-me de ter feito parte delas. Mas, outras vezes, elas
são tão novas para mim que é como se nunca houvessem
acontecido.
Na sala de estar, enquanto Henri esfrega o cristal lórico em
meus braços e eu mantenho as mãos suspensas sobre o
fogo, vejo o seguinte: sou pequeno -- tenho uns três anos,
talvez quatro -- e estou correndo pelo jardim de grama
recém-aparada. Do meu lado vejo um animal, uma criatura
parecida com um cachorro, mas com o pelo igual ao de um
tigre. Sua cabeça ó redonda, seu corpo se equilibra sobre
pernas curtas. É diferente de qualquer outro animal que já
vi. Ele se abaixa, preparando-se para pular em mim. Não
consigo parar de rir. Então ele pula, eu tento pegá-lo, mas
sou muito pequeno, e nós dois caímos na grama. Nós
lutamos. Ele é mais forte do que eu. Ele salta no ar, e em
vez de cair de volta no chão, como é esperado que
aconteça, ele se transforma em uma ave e voa em torno de
mim, acima de mim, mantendo-se fora de meu alcance. Ele
descreve círculos, depois mergulha, passa entre minhas
pernas, aterrissa uns seis metros distante de mim. Ele se
transforma em um animal que parece um macaco sem
cauda. E, novamente, abaixa-se e pula sobre mim.
Nesse momento, um homem aparece no jardim. Ele é
jovem e veste um traje de borracha azul e prata que se
ajusta ao corpo, uma roupa que já vi em mergulhadores.
Ele fala comigo em um idioma que não entendo. Diz o
nome "Hadley" e aponta para o animal. Hadley corre para
ele, mudando de forma mais uma vez, de macaco para algo
maior, uma espécie de urso com juba de leão. Os dois têm
agora a mesma altura, e o homem coça a parte inferior do
queixo de Hadley. Meu avô sai da casa. Ele parece jovem,
mas sei que deve ter cinquenta anos, pelo menos.
Ele troca um aperto de mãos com o homem. Os dois
conversam, mas não consigo entender o que estão dizendo.
Então o homem olha para mim, sorri, levanta a mão, e de
repente estou fora do chão, voando. Hadley me segue em
sua forma de pássaro. Tenho total controle de meu corpo,
mas o homem controla a direção em que sigo, movendo a
mão para a direita ou para a esquerda. Hadley e eu brin-
camos no ar, ele me cutuca com seu bico, eu tento agarrá-
lo. E de repente meus olhos se abrem, e a imagem
desaparece.
-- Seu avô podia ficar invisível quando decidia -- ouço
Henri dizer e fecho os olhos novamente. O cristal continua
subindo por meu braço, espalhando o repelente ao fogo
pelo restante do corpo. -- Um dos Legados mais raros, um
poder que só se desenvolve em um por cento de nosso
povo, e ele era uma dessas pessoas. Podia ficar invisível e
tornar invisível tudo o que tocasse. Certa vez ele quis fazer
uma brincadeira comigo, antes de eu saber quais eram os
Legados dele. Você tinha três anos, e eu estava começando
a trabalhar com sua família. Havia ido a sua casa pela
primeira vez no dia anterior, e quando subi a colina para
meu segundo dia de trabalho, a casa não estava lá. Havia
uma entrada, e um carro, e a árvore, mas não havia casa.
Cheguei a pensar que estava ficando maluco. Continuei
andando e passei pelo local. Depois, quando tive certeza de
que havia ido muito longe, voltei e vi, a certa distância de
onde eu estava, a casa que eu jurava que não estava lá
antes. Então caminhei de volta, mas quando cheguei bem
perto a casa desapareceu novamente. Fiquei ali parado,
olhando para o local onde sabia que ela deveria estar,
vendo apenas as árvores que existiam atrás dela. Segui
adiante. Só quando passei pela terceira vez diante da casa,
seu avô fez a casa reaparecer definitivamente. Ele não
conseguia parar de rir. Passamos um ano e meio rindo
sempre que lembrávamos aquele dia e continuamos rindo
disso até o fim.
Quando abro os olhos, estou de volta ao campo de batalha.
Mais explosões, fogo, morte.
-- Seu avô era um bom homem -- Henri diz. -- Ele
adorava fazer as pessoas rirem, amava contar piadas. Não
creio que jamais tenha existido um dia em que eu tenha
saído de sua casa sem sentir a barriga doendo de tanto rir.
O céu se tingiu de vermelho. Uma árvore ó arrancada do
chão e corta o ar, arremessada pelo homem no macacão
azul e prata, aquele que vi em nossa casa. Ele derrota dois
mogadorianos, e sinto vontade de vibrar com a vitória. Mas
de que adianta comemorar? Por maior que seja o número
de mogadorianos que vejo morrer, o desfecho do dia ainda
será o mesmo. Os lorienos serão derrotados, todos serão
mortos. Eu serei enviado à Terra.
-- Nunca vi o homem perder a calma. Quando todos
ficavam nervosos, quando o estresse dominava todo
mundo, seu avô mantinha a calma. E era normalmente
nesses momentos que ele contava as melhores piadas e, de
uma hora para outra, todos voltavam a rir.
As bestas menores atacam as crianças. Elas são indefesas,
algumas segurando nas mãos as estrelinhas para a
celebração. É assim que estamos perdendo -- só alguns
poucos lorienos lutam contra as feras, e o restante está
tentando salvar as crianças.
-- Sua avó era diferente. Era quieta e reservada, muito
inteligente. Seus avós se complementavam dessa maneira,
seu avô era o relaxado e brincalhão, e sua avó trabalhava
nos bastidores para tudo transcorrer sempre conforme o
planejado.
Ainda posso ver no céu o rastro azul de fumaça da nave que
nos leva à Terra, os Nove e seus Guardiões. A presença da
nave perturba os mogadorianos.
-- E havia Julianne, minha esposa.
Ao longe acontece uma explosão, um som parecido com o
de um foguete, como os que são lançados da Terra. Outra
nave surge no ar, deixando atrás dela um rastro de fogo.
Lentamente no início, depois ganha velocidade. Estou
confuso. Nossas naves não usam fogo para o lançamento;
não usam gasolina ou óleo. Elas emitem uma pequena
descarga de fumaça azul, que se forma a partir dos cristais
usados como combustível. Nunca desprendem fogo como a
que acabei de ver. A segunda nave é lenta e desajeitada
comparada à primeira, mas consegue ganhar altitude e
velocidade. Henri nunca mencionou uma segunda nave.
Quem está dentro dela? Para onde ela vai? Os
mogadorianos gritam e apontam em sua direção.
Novamente, percebo que estão nervosos, e por um
momento os lorienos atacam.
-- Ela possuía os olhos mais verdes que jamais vi,
brilhantes como esmeraldas, e um coração que era tão
grande quanto o próprio planeta. Estava sempre ajudando
outras pessoas, constantemente adotava animais, que
mantinha como bichinhos de estimação. Nunca vou
entender o que ela viu em mim.
A besta maior voltou, aquela com os olhos vermelhos e os
chifres enormes. Baba misturada com sangue pinga de seus
dentes afiados, tão grandes que nem cabem na boca. O
homem no macacão azul e prata está em pé diante da
criatura. Ele tenta erguer a besta com seus poderes, e a
levanta alguns metros do chão, mas, mesmo com todo o
esforço que faz, não vai além disso. A fera ruge, treme e cai.
Ela tenta combater os poderes do homem, mas não é capaz
de superá-los. O homem a levanta novamente. Suor e
sangue brilham, iluminados pelo luar que banha seu rosto.
Ele faz um movimento com as mãos, e a besta cai de lado.
O chão treme. Trovões e raios enchem o céu, mas não há
chuva.
-- Ela dormia tarde, e eu sempre acordava antes dela. Ia
me sentar na sala e lia o jornal, fazia o café, saía para
caminhar. Algumas vezes quando eu voltava ela ainda
estava dormindo. Eu ficava impaciente, não conseguia
esperar para começar o dia juntos. Ela me fazia sentir bem
simplesmente por estar por perto. Eu tentava acordá-la. Ela
puxava as cobertas sobre a cabeça e resmungava. Quase
todas as manhãs, a mesma rotina.
A besta se debate, mas o homem está no controle. Outros
Gardes juntam-se a ele, e todos usam seus poderes contra a
criatura descomunal, fogo e raio caindo sobre ela, raios
laser vindo de todas as direções. Alguns Gardes estão
causando danos invisíveis, mantendo-se afastados e de
mãos dadas em total concentração. E de repente se forma
uma tempestade, uma nuvem imensa que cresce e brilha
num céu limpo, e há nela algum tipo de energia. Todos os
Gardes se dedicam a essa tarefa, todos ajudam a criar essa
nuvem de cataclismo. E então um último, intenso raio de
luz desce do céu e atinge a fera caída no chão. E ali ela
morre.
-- O que eu poderia fazer? O que alguém poderia fazer?
Éramos dezenove naquela nave. Vocês, nove crianças, nós,
os nove Cêpans, escolhidos simplesmente por estarmos em
um determinado lugar naquela noite, e o piloto que nos
trouxe até aqui. Nós, Cêpans, não podíamos lutar, e não
teria feito nenhuma diferença se pudéssemos.
Os Cêpans são burocratas, são treinados para administrar o
planeta e mantê-lo funcionando, ensinar, treinar os novos
Gardes e capacitados para entender e manipular seus
poderes. Nunca fomos preparados para a guerra. Teríamos
sido inúteis ali. Teríamos morrido como os outros. Tudo o
que nos restava fazer era partir. Ir embora com vocês e
sobreviver para um dia restaurar a glória do mais lindo
planeta em todo o universo.
Fecho os olhos, e, quando os abro novamente, a batalha
acabou. Fumaça se ergue do chão coberto por mortos e
feridos em agonia. Árvores arrancadas, florestas
queimadas, tudo destruído. Não há nada em pé, exceto os
poucos mogadorianos que viveram para contar a história.
O sol se ergue ao sul e um brilho pálido começa a banhar a
terra mergulhada em sangue. São pilhas de corpos, nem
todos intactos, nem todos inteiros. Sobre um dos montes
está o homem de prata e azul, morto como os outros. Não
há marcas discerníveis em seu corpo, mas ele está morto
mesmo assim.
Meus olhos se abrem repentinamente. Não consigo
respirar, e minha boca está seca, áspera.
--Aqui -- diz Henri. Ele me ajuda a levantar da mesinha de
centro, leva-me até a cozinha e puxa uma cadeira para
mim. Lágrimas inundam meus olhos, embora eu tente
piscar para mandá-las embora. Henri me dá um copo de
água, e eu bebo tudo sem parar para respirar. Devolvo o
copo vazio, e ele o enche com mais água. Estou de cabeça
baixa, ainda respirando com dificuldade. Bebo o segundo
copo de água e só então olho para Henri.
--Por que nunca me falou sobre uma segunda nave? --
pergunto.
--Do que está falando?
--Havia uma segunda nave.
--Onde?
--Em Lorien, no dia em que partimos. Uma segunda nave
decolou logo depois da nossa.
--Impossível -- ele diz.
--Por que é impossível?
--Porque as outras naves foram destruídas. Eu vi com
meus próprios olhos. Quando os mogadorianos chegaram,
a primeira coisa que fizeram foi atacar nossos portos.
Viajamos na única nave que sobreviveu à ofensiva. Foi um
milagre termos conseguido sair de lá.
--Eu vi uma segunda nave. Estou dizendo que vi. E não era
como as outras. O combustível que a movia deixava uma
trilha de fogo.
Henri me observa com atenção. Ele está pensativo, com a
testa marcada por uma ruga.
--Tem certeza, John?
--Sim.
Ele se reclina na cadeira, olha pela janela. Bernie Kosar está
no chão, olhando para nós dois.
--Ela saiu de Lorien -- acrescento. -- Eu a vi desaparecer
no céu.
--Isso não faz sentido -- Henri comenta. -- Não vejo como
pode ser possível. Não havia sobrado nada.
--Havia restado uma segunda nave.
Ficamos sentados por um bom tempo, os dois em silêncio.
--Henri?
--Sim?
--O que havia naquela nave?
Ele me encara.
--Não sei. Realmente não sei.
Estamos sentados na sala de estar, olhando para o fogo na
lareira. Bernie Kosar está em meu colo. Um crepitar
ocasional da lenha queimando rompe o silêncio.
-- Ligar! -- eu digo e estalo os dedos. Minha mão direita
se acende, não tão brilhante quanto antes, mas perto disso.
No pouco tempo desde o início do treinamento, já aprendi
a controlar o brilho.
Posso concentrá-lo, torná-lo mais amplo e difuso, como a
luz de uma casa, ou torná-lo um feixe dirigido, como a luz
de uma lanterna. Minha capacidade de manipular a luz
aumenta mais depressa do que eu esperava. A mão
esquerda ainda brilha menos do que a direita, mas a está
alcançando. Estalo os dedos e digo "ligar" só para me exibir,
mas não preciso de nada disso para controlar ou acender a
luz. Acontece dentro de mim, simplesmente, e é tão fácil
quanto mover um dedo ou piscar um olho. Não requer
esforço.
-- Quando acha que os outros Legados vão se
desenvolver? -- pergunto.
Henri ergue os olhos do jornal.
-- Logo -- responde. -- O próximo deve começar em até
um mês, seja qual for. Você precisa ficar atento. Nem todos
os poderes serão óbvios como o que surgiu em suas mãos.
-- Quanto tempo vai levar para todos aparecerem?
Ele dá de ombros.
-- Às vezes tudo se completa em dois meses, às vezes leva
até um ano. Varia de Garde para Garde. Mas, leve quanto
tempo levar, seu maior Legado será o último a se
desenvolver.
Fecho os olhos e me recosto no sofá. Penso em meu maior
Legado, aquele que me permitirá lutar. Não tenho certeza
de qual quero que seja. Lasers? Controle da mente?
Capacidade de controlar o clima, como fazia o homem no
macacão azul e prata? Ou eu quero algo mais sombrio,
sinistro, como o poder de matar sem tocar?
Deslizo a mão pelas costas de Bernie Kosar. Olho para
Henri. Ele está usando uma touca de dormir e um par de
óculos que fica pendurado na ponta de seu nariz,
lembrando um rato de livro infantil.
--Por que estávamos na pista de pouso naquele dia? -- eu
quero saber.
--Estávamos lá para uma apresentação, um show aéreo.
Quando acabou, fomos visitar algumas aeronaves.
-- Só por isso?
Ele olha para mim e afirma com um movimento de cabeça.
Mas engole em seco, e isso me faz pensar que está
escondendo alguma informação de mim.
--Bem, como foi decidido que nós partiríamos? --
pergunto. -- Quero dizer, um plano como esse não pode
ter sido criado em poucos minutos, não é?
--Só decolamos três horas depois do início da invasão. Não
lembra nada do que aconteceu?
--Muito pouco.
--Encontramos seu avô na estátua de Pittacus. Ele me
entregou você e me disse para levá-lo à pista de pouso,
porque lá estava nossa única chance. Havia um espaço
subterrâneo à pista. Ele contou que sempre existira um
plano de emergência, caso ocorresse alguma situação como
a que estava acontecendo, mas o plano nunca fora levado a
sério, porque a ameaça de um ataque sempre parecera
ridícula. Como seria ridículo pensar nisso aqui, na Terra. Se
você dissesse a qualquer humano agora que há uma
ameaça de ataque alienígena, ele riria de você. Em Lorien
não foi diferente. Perguntei como ele sabia sobre o plano, e
ele não respondeu, apenas sorriu e se despediu. Faz sentido
que ninguém soubesse sobre o plano, ou que só alguns
poucos soubessem.
Eu movimento a cabeça numa resposta afirmativa.
--Então, do nada, vocês criaram um plano para vir à Terra?
--É claro que não. Um dos Anciões do planeta nos
encontrou na pista de pouso. Foi ele quem fez o feitiço
lórico que marcou seus tornozelos e os uniu, e quem deu a
cada um de vocês um amuleto. Ele disse que vocês eram
crianças especiais, abençoadas, e daí deduzi que ele queria
dizer que vocês tinham uma chance de escapar.
Originalmente, planejamos decolar com a nave e esperar
no espaço aéreo pela invasão, esperar nosso povo reagir e
vencer. Mas isso não aconteceu... -- Ele faz uma pausa e
suspira. Depois continua: -- Ficamos em órbita durante
uma semana. Foi o tempo necessário para os mogadorianos
roubarem tudo de Lorien. Depois disso, ficou claro que não
havia mais qualquer possibilidade de reverter a situação, e
então seguimos para a Terra.
--Por que ele não criou um feitiço para nenhum de nós
poder ser morto, independentemente dos números?
--Há sempre um limite para o que pode ser feito, John.
Você está falando sobre invencibilidade. E isso é
impossível.
Eu concordo com um movimento de cabeça. O feitiço tem
suas limitações. Se um dos mogadorianos tentar nos matar
fora da ordem numérica, a lesão será causada nele. Se
alguém tentasse me matar com um tiro na cabeça, a bala
atingiria a cabeça do próprio atirador. Mas agora tudo
mudou. Agora, se me pegarem, eu morro.
Fico em silêncio por um momento, pensando nisso tudo. A
pista de pouso. O único Ancião remanescente em Lorien,
Loridas, aquele que criou o feitiço que nos protege, agora
morto. Os Anciões foram os primeiros habitantes de
Lorien, aqueles que fizeram do planeta o que ele foi. Havia
dez deles no início, e eles continham todos os Legados no
grupo. Tão antigos, há tanto tempo que mais parecem um
mito do que algo baseado em realidade. Com exceção de
Loridas, ninguém sabe o que aconteceu aos outros, se
foram mortos.
Tento lembrar como foi ficar em órbita em torno do
planeta, esperando para ver se poderíamos voltar, mas não
me lembro de nada disso. Recordo fragmentos da viagem.
O interior da nave em que viajamos era redondo e aberto,
exceto pelos dois banheiros, que tinham portas. Havia
camas em um lado; o outro era reservado para a prática de
exercícios e jogos, para não ficarmos muito entediados.
Não me lembro de corno eram os outros. Não me lembro
de que brincávamos. Lembro-me de sentir enfado, um ano
inteiro trancado em uma nave com outros dezessete e o
piloto. Havia um bicho de pelúcia com que eu dormia à
noite, e, mesmo sabendo que essa lembrança não deve
corresponder à realidade, eu me recordo de que o bicho
brincava comigo.
--Henri?
--Sim?
--Eu vejo imagens de um homem vestindo um macacão
azul e prata. Eu o vejo em nossa casa e no campo de
batalha. Ele era capaz de controlar o clima. E depois eu o vi
morto.
Henri faz um movimento afirmativo com a cabeça.
--Toda vez que você viaja de volta, só vê as cenas que são
relevantes para você.
--Ele era meu pai, não era?
--Sim. Ele não devia ir vê-lo com muita frequência, mas ia.
Estava sempre por perto.
Eu suspiro. Meu pai lutou com coragem, matou a besta e
muitos soldados. Mas, no final, não foi suficiente.
--Temos realmente alguma chance de vencer?
--Como assim?
--Fomos derrotados com muita facilidade. Que esperança
existe para um final diferente, se formos encontrados?
Mesmo quando todos nós tivermos desenvolvido nossos
poderes, e quando finalmente estivermos juntos e
pudermos lutar, que esperança teremos contra coisas como
aquelas?
--Esperança? -- ele diz. -- Sempre há esperança, John.
Novos acontecimentos ainda são aguardados. Nem toda
informação já foi divulgada. Não. Não perca a esperança,
ainda. Ela é a última coisa que se vai. Quando você a perde,
já perdeu tudo. E quando você pensa que tudo está
perdido, quando tudo é sinistro e sombrio, sempre há
esperança.
CAPÍTULO DOZE
HENRI E EU VAMOS À CIDADE NO SÁBADO
PARA O DESFILE DE HALLOWEEN, quase duas
semanas após termos chegado em Paradise. Acho que a
solidão começa a nos incomodar. Não que não estejamos
habituados a ela. Estamos. Mas a solidão em Ohio é
diferente da solidão na maioria dos outros lugares. Há
certo silêncio nela, certo isolamento.
É um dia frio, com o sol espiando intermitentemente por
entre nuvens brancas que deslizam no céu. A cidade está
muito agitada. Todas as crianças estão fantasiadas.
Compramos uma coleira para Bernie Kosar, que está
usando uma capa de Super-homem e tem um "S" grande no
peito. Ele não parece impressionado com sua fantasia. E
nem é o único cachorro vestido de super-herói.
Henri e eu paramos na calçada na frente do Hungry Bear, o
restaurante que fica bem no centro da cidade, para
assistirmos ao desfile. Na janela da frente alguém prendeu
um recorte do jornal Gazette com o artigo sobre Mark
James. Na foto ele aparece em pé no campo de futebol
americano, usando seu agasalho do time, com os braços
cruzados, o pé direito apoiado na bola, um sorriso
confiante e irônico no rosto. Até eu tenho de admitir que
ele é impressionante.
Henri percebe que estou olhando para o retrato.
-- É seu amigo, não é? -- ele pergunta sorrindo. Henri
agora conhece a história, desde a quase briga por causa do
armário cheio de esterco, até minha paixão repentina pela
ex-namorada de Mark. Desde que soube de tudo isso, ele só
se refere a Mark como meu "amigo".
-- Meu melhor amigo -- ou o corrijo.
A banda começa a tocar. Ela está na frente do desfile,
seguida por vários carros com temas de Halloween. Um
deles transporta Mark e alguns outros jogadores de futebol.
Alguns eu reconheço das aulas, outros, não. Eles jogam
punhados de doces para as crianças. Então, Mark me vê e
cutuca o garoto ao lado dele -- Kevin, aquele que acertei
com uma joelhada no refeitório. Mark aponta para mim e
diz alguma coisa. Os dois riem.
--É ele? -- quer saber Henri.
--Sim, é ele.
--Parece um valentão idiota.
--Eu disse.
Atrás deles vêm as líderes de torcida, todas à pé e
uniformizadas, com os cabelos presos, sorrindo e acenando
para a multidão. Sarah caminha ao lado delas, tira fotos.
Ela as captura em ação, enquanto pulam e realizam suas
coreografias. Apesar de vestir jeans e não usar maquiagem,
ela é muito mais bonita do que qualquer uma delas. Temos
conversado cada vez mais na escola, e não consigo parar de
pensar nela. Henri percebe que a sigo com os olhos.
--É ela, não é?
--É ela.
Sarah me vê e acena, depois aponta para a câmera, como se
dissesse que gostaria de se aproximar, mas que quer tirar
fotos. Eu sorrio e respondo com um movimento afirmativo
de cabeça.
-- Bem -- diz Henri --, eu certamente vejo onde está o
encanto. Assistimos ao desfile. O prefeito de Paradise passa
por nós sentado no banco traseiro de um conversível
vermelho. Ele joga mais doces para as crianças.
Acho que hoje elas vão ficar muito agitadas. Sinto
um toque em meu ombro e me viro.
--Sam Goode. Qual é a nova?
Ele encolhe os ombros.
--Não tenho nenhuma novidade. E você?
-- Também não. Estou aqui assistindo ao desfile.
Este é meu pai, Henri.
Eles trocam um aperto de mão. Henri diz:
--John me falou muito sobre você.
--É mesmo? -- Sam sorri, sem muito entusiasmo.
--Sim, é verdade. -- Henri faz uma pausa breve, e
um sorriso surge em seu rosto. -- Sabe, estive
lendo. Talvez você também tenha lido isso, mas...
Sabia que os aliens são o motivo pelo qual temos
tempestades? Eles as criam para entrar no planeta
sem serem notados. A tempestade é uma distração,
e as luzes que vemos, na verda de, são das
espaçonaves que entram na atmosfera da Terra.
Sam sorri e coça a cabeça.
--Não brinque -- ele
responde. Henri dá de
ombros.
--Bem, foi o que eu ouvi.
-- É claro -- Sam confirma, muito inclinado a
concordar com Henri. -- Bem, e você, sabia que os
dinossauros não foram realmen te extintos? Os
alienígenas ficaram tão fascinados por eles que os
reuniram e os levaram para outro planeta.
Henri balança a cabeça.
-- Eu não sabia disso -- responde. -- Sabia que o
monstro do Lago Ness era, na verdade, um animal
do planeta Trafalgra? Eles o puseram no lago para
fazer um experimento, ver se ele sobreviveria, e ele
conseguiu. Mas quando ele foi descoberto, os
aliens tiveram de levá-lo de volta, e por isso ele
nunca mais foi visto.
Eu rio, não da teoria, mas do nome Trafalgra. Não
existe nenhum planeta chamado Trafalgra, e eu
gostaria de saber se Henri inventou o nome na
hora.
--Sabia que as pirâmides do Egito foram
construídas por aliens?
--Isso eu ouvi, sim -- Henri reconhece sorridente.
Ele se diverte, é claro, porque, embora não tenham
sido construídas por aliens, as pirâ mides do Egito
foram feitas com a ajuda e o conhecimento de
Lorien.
--Sabia que o mundo vai acabar em 21 de
dezembro de 2012?
--Sim, isso eu também ouvi. É o suposto prazo de
validade da Terra, o fim do calendário maia.
--Prazo de validade? -- interfiro. -- Como aquele
"melhor consumir até" impresso nas embalagens de
leite? A Terra vai azedar?
Eu rio da minha piada, mas Sam e Henri nem
prestam atenção. Então, Sam diz:
-- Sabia que os círculos nas plantações eram
originalmente usados como ferramenta de
navegação para a raça alienígena agharian? Mas
isso foi há milhares de anos. Hoje eles são só
criações de fazendeiros entediados.
Eu rio outra vez. Tenho vontade de perguntar que
tipo de pessoa inventa teorias de conspiração
alienígena, se não fazendeiros entediados que
criam os círculos nas plantações, mas me
contenho.
-- E os centuris? -- Henri indaga. -- Sabe alguma
coisa sobre eles? Sam balança a cabeça.
--É uma raça de alienígenas que vive no centro da
Terra. São beligerantes, estão em constante
discórdia interna, e quando eles estão em guerra
civil a Terra é afetada. É então que ocorrem coisas
como terremotos e erupções vulcânicas. O tsunami
de 2004? Tudo porque a filha do rei centuri havia
desaparecido.
--Eles a encontraram? -- eu pergunto.
Henri balança a cabeça, olha para mim, depois
para Sam, que continua sorrindo com a
brincadeira.
-- Não, nunca. Teóricos acreditam que ela pode
mudar de forma, e que está vivendo em algum
lugar da América do Sul.
A teoria de Henri é tão boa, que não acredito que
ele a inventou em poucos momentos. Fico ali
parado, pensando nela, embora eu nunca tenha
ouvido falar em aliens chamados centuris, mesmo
sabendo com certeza que ninguém v ive no centro
da Terra.
-- Você sabia... -- Sam para.
Acho que Henri o confundiu, e assim que essa
ideia aparece do nada em minha cabeça, Sam diz
algo tão assustador que uma onda de terror me
invade.
-- Sabia que os mogadorianos buscam o domínio
universal. E que eles já destruíram um planeta e
planejam destruir a Terra agora? Eles estão aqui,
procurando as fraquezas humanas para usá -las
contra nós quando a guerra começar.
Estou boquiaberto, e Henri olha para Sam em
silêncio, perplexo. Ele prende a respiração. Sua
mão segura a xícara de café com força, e tenho
medo de que ele a quebre. Sam olha para Henri,
depois para mim.
--O que é? Parece que viram um fantasma! Isso
significa que eu venci?
--Onde você ouviu isso? -- pergunto. Henri me
olha com tanta intensidade qu e lamento não ter
ficado em silêncio.
-- Eu li em Eles Estão entre Nós.
Henri ainda não consegue pensar em uma resposta.
Ele abre a boca para falar, mas não diz nada.
Então, somos interrompidos por uma mulher
pequena parada atrás de Sam.
--Sam -- ela o chama. Ele se vira. -- Onde esteve?
--Ele responde com descaso.
--Estava bem aqui.
A mulher suspira, depois olha para Henri.
-- Oi, eu sou a mãe de Sam.
-- Henri -- ele se apresenta, apertando a mão
dela. -- É um prazer conhecê-la.
Ela arregala os olhos numa reação surp resa.
Alguma coisa na voz ou no sotaque de Henri a
entusiasma.
-- Ah bon! Vous parlez français? C'est super! J'ai personne
avec qui je peux parler français depuis longtemps.
Henri sorri.
--Desculpe. Lamento, mas não falo francês. Sei que
meu sotaque dá essa impressão.
--Não? -- Ela fica decepcionada. -- Ora, ora, e eu
pensando que a cidade finalmente recebia um
pouco de dignidade.
Sam olha para mim e revira os olhos.
--Muito bem, Sam, agora vamos -- ela anuncia.
Ele olha para nós.
--Vocês vão ao parque e à corrida de carroças?
Eu olho para Henri, depois para Sam.
--Sim, é claro -- respondo. -- E você?
Ele dá de ombros.
--Bem, tente nos encontrar lá, se puder -- sugiro.
Ele sorri e assente.
--Tudo bem. Legal.
-- É hora de ir, Sam. E talvez você não possa ir à
corrida. Preciso de sua ajuda em casa -- diz a mãe.
Sam até ameaça dizer algo, mas ela se vira e
começa a se afastar. Sam a segue.
-- Mulher agradável -- Henri comenta com
sarcasmo.
-- Como inventou tudo aquilo? -- quero saber.
A multidão começa a se mover pela rua principal,
afastando-se da praça. Henri e eu seguimos para o
parque, onde servem cidra e comida.
-- Quando se mente por muito tempo, a coisa vai
ficando natural.
Concordo com a cabeça.
-- Então, o que você acha?
Ele respira fundo e exala. A temperatura está
suficientemente baixa para eu poder ver a nuvem
formada por seu hálito.
--Não tenho idéia. Não sei mais o que pensar. Ele
me pegou desprevenido.
--Ele nos pegou desprevenido.
--Vamos ter de dar uma olhada nesse material de
onde ele obtém as informações, descobrir quem o
escreve e onde é escrito.
Ele olha para mim com grande expectativa.
--O que é?
--Você vai ter que conseguir um exemplar -- Henri
me avisa.
--Eu consigo. -- Mesmo assim, isso não faz
sentido. Como alguém pode saber disso?
--Os dados estão sendo fornecidos por alguém.
--Acha que pode ser um de nós?
--Não.
--Um deles, então?
--Pode ser. Nunca pensei em verificar essas
porcarias que publicam teorias da conspiração.
Talvez eles pensem que lemos tudo isso e
acreditem que podem nos fazer aparecer, vazando
esse tipo de informação. Quero dizer... -- Ele para
e pensa por um instante. -- Droga, John. Não sei.
Mas precisamos dar uma olhada nisso. Não é
coincidência, disso eu tenho certeza.
Caminhamos em silêncio, ainda um pouco
chocados, pensando em possíveis explicações.
Bernie Kosar nos segue num trote animado, a
língua para fora da boca, sua capa caída para um
lado arrastando na calçada. Ele faz sucesso com as
crianças, e muitas nos fazem parar para brincar
com o cachorro.
O parque fica no extremo sul da cidade. Em sua
área mais afastada há dois lagos adjacentes
separados por uma faixa estreita de terra que leva
à floresta além deles. O parque propriamente dito
é composto por três campos de beisebol, um
parquinho infantil e um grande pavilhão onde
voluntários servem cidras e fatias de torta de
abóbora. Três carroças de feno estão paradas ao
lado da trilha de cascalho, com uma grande placa
onde se lê a inscrição:
MORRA DE MEDO!
CORRIDAS ASSOMBRADAS DE HALLOWEEN
INÍCIO AO PÔR DO SOL
$5 POR PESSOA
A trilha passa de cascalho a terra antes de chegar à
floresta, cuja entrada foi decorada com recortes de
papelão com formas de fantas mas e de gnomos.
Parece que o trajeto da corrida assombrada inclui a
floresta. Olho em volta procurando por Sarah, mas
não a vejo ali. Gostaria de saber se ela va i
participar da corrida.
Henri e eu entramos no pavilhão. As líderes de
torcida estão todas ali, algumas fazendo pinturas
com temas de Halloween no rosto das crianças,
outras vendendo rifas para o sorteio que será
realizado às seis da tarde.
-- Oi, John -- alguém diz atrás de mim. Eu me
viro, e lá está Sarah segurando sua câmera. -- O
que achou do desfile?
Sorrio para ela e ponho as mãos nos bolsos. Há um
fantasmiriha branco pintado em seu rosto.
-- Oi -- respondo. -- Eu gostei. Acho que estou
me acostumando com esse charme de cidade
pequena de Ohio.
--Charme? Você quer dizer tédio,
não é? Dou de ombros.
--Não sei, não é ruim.
-- Ei, é o amiguinho da escola. Eu me lembro de
você -- ela diz, abaixando-se para afagar a cabeça
de Bernie Kosar. Ele sacode o rabo freneticamente,
pula, tenta lamber o rosto de Sarah. Ela ri. Olho
por cima do meu ombro. Henri está uns seis
metros afastado, conversando com a mãe de Sarah
em uma das mesas de piquenique. Fico curioso
para saber sobre o que eles estão falando.
-- Acho que ele gosta de você. O nome dele é
Bernie Kosar.
--Bernie Kosar? Isso não é nome para um cachorro
adorável. Olhe só para essa capa! Que coisa mais
fofa!
--Sabe, se não parar com isso, vou acabar sentindo
ciúme do meu próprio cachorro -- digo.
Ela sorri e se levanta.
--Então, vai comprar minha rifa ou não? O
dinheiro vai ser usado para reconstruir um abrigo
de animais. O lugar foi destruído por um incêndio
no mês passado. É uma instituição sem fins
lucrativos e fica no Colorado.
--É mesmo? E como uma garota de Paradise, Ohio,
fica sabendo sobre um abrigo de animais no
Colorado?
--Minha tia cuida do local. Eu convenci todas as
garotas da equipe de torcida a participar. Vamos
viajar até lá e ajudar na construção. Vamos ajudar
os animais e ficar longe da escola e de Ohio por
uma semana. Todos saímos ganhando.
Imagino Sarah usando um capacete, empunhando
um martelo. A imagem me faz sorrir.
-- Então, está dizendo que vou ter que cuidar da
cozinha sozinho por uma semana? -- Enceno um
suspiro exagerado e balanço a ca beça. -- Não sei se
posso apoiar essa viagem agora, mesmo que seja
pelos animais.
Ela ri e bate em meu braço. Eu pego a carteira e
dou a ela cinco dólares por seis rifas.
--Estas seis são as da sorte -- ela diz.
--São?
--É claro. Você as comprou de mim, bobinho.
Neste momento, olhando por cima do ombro de
Sarah, vejo Mark e sua turma entrando no
pavilhão.
--Vai à corrida assombrada? -- Sarah pergunta.
--Sim, eu estava pensando nisso.
-- Deveria ir, é divertido. Todo mundo vai. E é
bem assustador, mesmo.
Mark nos vê conversando e assume uma ex pressão
carrancuda. Ele vem em nossa direção. A roupa é a
mesma de sempre -- agasalho do time, jeans,
cabelo cheio de gel.
-- Então, você vai? -- pergunto a Sarah.
Mark nos interrompe antes que ela possa
responder.
--O que achou do desfile, Johnny? -- ele pergunta.
Sarah se vira e olha para ele com ar reprovador.
--Gostei muito -- respondo.
--Vai participar da corrida assombrada ou tem
muito medo? Eu sorrio para ele.
--Para dizer a verdade, eu vou participar.
-- Vai ter um ataque como aquele do primeiro dia
de aula e sair correndo da floresta, gritando e
chorando como um bebê?
-- Não seja idiota, Mark -- Sarah interfere.
Ele olha para mim furiosamente. Estamos cercados
por muita gente, e não há nada que ele possa fazer
sem causar uma cena -- e nem acredito que ele
faria alguma coisa, mesmo que fosse diferente.
--Tudo a seu tempo -- diz Mark.
--Você acha?
--O seu está chegando -- ele diz.
--Pode ser -- eu falo. -- Mas ele não virá por você.
-- Chega! -- grita Sarah. Ela se coloca entre nós,
empurrando-nos para longe um do outro. As
pessoas estão observando. Ela olha em volta, como
se estivesse constrangida com toda aquela atenção,
depois olha feio para Mark primeiro, em seguida
para mim.
-- Muito bem, então. Briguem, se é isso que
querem fazer. Boa sorte -- Sarah diz e se vira para
ir embora. Eu a vejo se afastar. Mark nem olha
para ela.
-- Sarah -- eu chamo, mas ela continua andando e
desaparece no pavilhão.
--Em breve -- Mark
resmunga. Eu o encaro.
--Duvido.
Ele volta para perto de seu grupo de amigos. Henri
se aproxima de mim.
--Não creio que ele tenha vindo perguntar sobre a
lição de casa de matemática, não é?
--Não exatamente -- confirmo.
--Eu não me preocuparia com ele -- diz Henri. --
Ele parece falar mais do que faz.
--Mas eu não -- retruco, olhando para o lugar
onde Sarah desapareceu. -- Devo ir atrás dela? --
pergunto e olho para ele, apelando para aquela sua
porção de homem casado e apaixonado, aquela par -
te que ainda sente falta da esposa todos os dias,
não aquela parte que quer me ver seguro e
protegido.
Ele assente.
-- Sim -- ele responde, suspirando. -- Por mais
que eu odeie admitir, você provavelmente deve ir
atrás dela.
CAPÍTULO TREZE
CRIANÇAS CORRENDO, GRITANDO, EM
ESCORREGADORES E BALANÇOS. TODAS com um saco
de doces na mão, a boca cheia deles. Crianças
vestidas como personagens de desenho anima do,
monstros, gnomos e fantas mas. Cada morador de
Paradise devia estar no parque neste momen to. E
no meio de toda essa loucura, vejo Sarah sentada
sozinha, no balanço, movendo -se suavemente.
Atravesso o mar de crianças gritando e rindo.
Quando me vê, Sarah sorri, seus grandes olhos
azuis cintilantes como faróis.
-- Precisa de alguém para empurrá-la? --
pergunto.
Ela aponta para o balanço vago a seu lado, e eu me
sento nele.
-- Tudo bem? -- pergunto.
-- Sim, estou bem. Ele só me cansa. Sempre que
está com os amigos ele tenta parecer durão, cruel.
Ela gira o balanço até a corda ficar tensa, então
levanta os pés, e o brinquedo gira para o outro
lado, primeiro lentamente, depois ganhando
velocidade. Ela ri o tempo todo, o cabelo louro
voando atrás dela. Faço igua l. Quando o balanço
finalmente para, o mundo continua rodando.
--Onde está Bernie Kosar?
--Eu o deixei com Henri -- respondo.
--Seu pai?
-- Sim, meu pai. -- Sempre cometo esse erro,
chamar Henri pelo nome, quando devia chamá -lo
de "pai".
A temperatura está caindo r apidamente, e os
nódulos de meus dedos estão brancos na corda do
balanço, esfriando cada vez mais. Vemos as
crianças correndo como loucas à nossa volta. Sarah
olha para mim, e seus olhos parecem mais azuis do
que nunca na escuridão que se aproxima. Nós no s
olhamos em silêncio, sem nenhum dos dois dizer
nada, mas transmitindo muitas coisas. As crianças
parecem desaparecer no fundo da cena. Então, ela
sorri de modo tímido e desvia o olhar.
--Então, o que vai fazer? -- pergunto.
--Sobre o quê?
--Mark.
Ela encolhe os ombros.
-- O que posso fazer? Já terminei tudo com ele. E
vivo dizendo que não tenho nenhum interesse em
voltar.
Eu faço que sim com a cabeça. Não sei bem como
responder.
--Bem, acho melhor tentar vender as rifas. Falta só
uma hora para o sorteio.
--Quer ajuda?
--Não, tudo bem. Vá se divertir. Bernie Kosar deve
estar sentindo sua falta. Mas não vá embora antes
da corrida. Talvez possamos participar juntos?
--É claro -- respondo. A felicidade cresce dentro
de mim como uma flor desabrochando, mas tento
escondê-la.
--Vejo você daqui a pouco, então.
--Boa sorte com as rifas.
Ela segura minha mão por uns três segundos.
Depois a solta, pula do balanço e se afasta
apressadamente. Fico ali sentando, me balan çando
lentamente, apreciando o vento que não sentia há
muito tempo, porque passamos o último inverno
na Flórida, e o anterior no sul do Texas. Quando
volto ao pavilhão, Henri está sentado a uma mesa
de piquenique, comendo uma fatia de torta, com
Bernie Kosar deitado no chão a seus pés.
--Como foi?
--Bem -- respondo, com um sorr iso.
De algum lugar surge o brilho alaranjado e azul de
fogos de artifício, e a luz explode no céu. Isso me
faz pensar nos fogos que vi no dia da invasão.
-- Voltou a pensar naquela segunda nave que eu
vi?
Henri olha em volta para ter certeza de que
ninguém nos ouve. Temos a mesa de piquenique só
para nós, e ela está posicionada em um canto
afastado do movimento.
--Pensei um pouco nisso, mas ainda não sei o que
significa.
--Acha que ela pode ter vindo para cá?
-- Não. Seria impossível. Se a nave era movida a
combustível comum, como você diz, não poderia
ter percorrido essa distância sem parar para
abastecer.
Fico sentado e quieto por um momento.
--Queria que fosse possível.
--O quê?
--Queria que a nave tivesse vindo para cá, com a
gente.
--É uma idéia agradável -- Henri concorda.
Uma hora depois eu vejo os jogadores de futebol,
Mark na frente do grupo, atravessando o gramado.
Eles estão vestidos de múmias, zum bis, fantasmas,
vinte e cinco deles no total. Sentam -se nos bancos
do campo de beisebol mais próximo, e as líder es de
torcida que estavam pintando o rosto das crianças
aplicam a maquiagem para completar a fantasia de
Mark e seus amigos. Só então compreendo que o
time de futebol é responsável por tornar a corrida
de carroças bem assustado ra. Eles estarão
esperando por nós no meio da floresta.
-- Está vendo aquilo? -- pergunto a Henri.
Henri olha para o grupo e movimenta a cabeça em
sentido afirmativo, depois pega seu café e bebe um
grande gole.
--Ainda acha que deve participar da corrida? -- ele
pergunta.
--Não -- respondo. -- Mas vou assim mesmo.
--Eu já imaginava.
Mark está vestido como um zumbi, usando roupas
pretas e rasgadas, com maquiagem preta e cinza no
rosto e manchas vermelhas es palhadas pelo corpo
para simular sangue. Quando a fantasia está com -
pleta, Sarah se aproxima dele e diz alguma coisa.
Mark ergue a voz ao responder, mas não consigo
entender o que ele diz. Seus movimentos são
animados, e ele fala tão depressa que percebo que
está atropelando as palavras. Sarah cruza os braços
e balança a cabeça para ele. Seu corpo fica tenso.
Eu ameaço me levantar, mas Henri segura meu
braço.
-- Não -- ele diz. -- Ele só a está afastando ainda
mais.
Olho para eles e desejo muito ouvir o que dizem,
mas há muitas crianças gritando, e é impossível
decifrar as palavras. Quando os g ritos param, os
dois estão frente a frente, olhando -se, e há uma
expressão carrancuda e magoada no rosto de Mark,
enquanto Sarah dá um meio -sorriso, incrédula.
Então ela balança a cabeça e se afasta.
Eu olho para Henri.
--O que devo fazer agora?
--Nada -- ele diz. -- Absolutamente nada.
Mark volta para perto dos amigos. Ele está sério,
de cabeça baixa. Alguns deles olham em minha
direção. Surgem sorrisos sarcásti cos. Segundos
depois eles começam a caminhar para a floresta.
Uma marcha metódica, lenta, vinte e cin co garotos
fantasiados desaparecendo entre as árvores.
Para passar o tempo, volto ao centro da cidade
com Henri, e vamos jantar no Hungry Bear.
Quando caminhamos de volta ao pavilhão, o sol se
pôs e a primeira carroça cheia de feno é puxada
para a floresta por um trator verde. A multidão
diminuiu bem, e os que ainda res tam são,
basicamente, colegiais e adultos animados, um
total de cem pessoas, mais ou menos. Procuro por
Sarah entre elas, mas não a vejo. A segunda
carroça parte dez minutos depois. De aco rdo com o
panfleto, a corrida toda leva meia hora, o trator
percorre a floresta bem devagar, alimentando a
expectativa, e, quando ele para, os par ticipantes
devem saltar das carroças e percorrer trilhas
diferentes a pé, e aí é quando começam os sustos.
Henri e eu estamos parados diante do pavilhão, e
mais uma vez eu olho para a fila de pessoas que
esperam por sua vez. Ainda não vi Sarah. Meu
celular vibra no bolso da calça. Não me lembro da
última vez em que meu telefone tocou sem que
fosse Henri. O identificador de chamadas mostra
S a r a h H a r t . O entusiasmo me invade. Ela deve
ter registrado meu número em seu aparelho no
mesmo dia em que deixou o dela no meu.
--Alô? -- atendo.
--John?
--Sim, sou eu.
--Oi, é Sarah. Ainda está no parque? -- ela
pergunta.
Sua voz soa tranquila, como se ela telefonar para
mim fosse normal e eu não devesse estranhar por
ela ter meu número, apesar de eu nunca tê -lo
divulgado.
--Sim.
--Ótimo! Chego aí em cinco minutos. A corrida já
começou?
--Sim, há uns poucos minutos.
--Você ainda não foi, não é?
--Não.
--Ótimo! Então podemos ir juntos.
-- Sim, com certeza -- eu digo. -- A segunda
carroça está se preparando para sair agora.
-- Perfeito. Eu chego em tempo de ver a terceira
saindo.
-- Estou esperando, então.
Eu desligo com um sorriso largo no rosto.
--Tome cuidado nessa corrida -- Henri me
aconselha.
--Serei cuidadoso. -- Paro e tento dar alguma
leveza à minha voz. -- Não precisa esperar. Tenho
certeza de que consigo uma carona para voltar
para casa.
--Estou disposto a ficar e morar nesta cidade,
John. Mesmo ciente de que, provavelmente, é mais
sensato partirmos, considerando o que já
aconteceu aqui. Mas você precisa colaborar
comigo, e esta é uma situação em que conto com
sua cooperação. Não gostei nada de como aqueles
garotos olharam para você agora há pouco.
--Eu vou ficar bem -- digo.
--Eu sei que vai. Mas, só por precaução, prefiro
ficar aqui esperando.
Suspiro, resignado.
--Tudo bem.
Sarah chega cinco minutos depois com uma amiga
muito bonita que já vi antes, mas a quem nunca fui
apresentado. Ela agora veste jeans, su éter de lã e
jaqueta preta. O fantasma branco desapareceu de
sua face direita, e o cabelo está solto, caindo sobre
os ombros.
--Ei, você -- ela diz.
--Oi.
Sarah me abraça um pouco hesitante. Sinto o
perfume que emana de seu pescoço antes de ela se
afastar.
--Oi, pai do John -- ela cumprimenta Henri. --
Esta é minha amiga Emily.
--É um prazer conhecer vocês duas -- Henri
responde. -- Então, vão mesmo enfrentar o terror
desconhecido?
--Pode apostar que sim -- diz Sarah. -- Acha que o
mocinho aqui vai aguentar? Não quero que ele
fique muito assustado por mi nha causa. -- Ela
aponta para mim, sorrindo.
Henri também sorri, e posso dizer que ele já gosta
de Sarah.
-- É melhor ficar perto dele, só por precaução.
Ela olha por cima do ombro. A terceira carroça já
está com um quarto de sua ocupação.
--Eu vou cuidar dele -- diz. -- É melhor nos
apressarmos.
--Divirtam-se -- diz Henri.
Sarah segura minha mão e nós três corremos para a
carroça de feno, uns cinquenta metros distante do
pavilhão. Há uma fila de cerca de trinta pessoas.
Nós entramos no final dela e começamos a
conversar, embora eu me sinta um pouco tímido e
só escute a conversa das duas garotas. Enquanto
esperamos, vejo Sam parado a alguns passos de
nós. como se não conseguisse decidir se deve ou
não se aproximar.
-- Sam! -- eu grito com entusiasmo maior do que
pretendia. Ele tropeça. -- Vai participar da corrida
conosco?
Ele dá de ombros.
-- Se não se incomodarem...
-- É claro que não! -- Sarah responde, fazendo um
gesto para convidá-lo a entrar na fila. Sam fica ao
lado de Emily, que sorri para ele. A resposta de
Sam é um rubor imediato e intenso, e fico feliz por
ele estar ali conosco. De repente, um garoto se
aproxima com um rádio comuni cador. Eu o
reconheço do time de futebol.
-- Oi, Tommy -- Sarah o cumprimenta.
-- Oi -- ele responde. -- Ainda há quatro lugares
nesta carroça. Querem embarcar?
--Está falando sério?
--Sim.
Passamos na frente da fila e pulamos na carroça,
onde nos sentamos juntos sobre um fardo de feno.
Acho estranho Tommy não pe dir nossos bilhetes.
Estou curioso sobre o motivo que o levou a nos
passar na frente de todos que já esperavam na fila.
Algumas pessoas olham para nós com evidente
indignação. Não posso dizer que não entendo a
reação delas.
-- Divirtam-se -- Tommy diz com um sorriso
gelado, como aqueles que as pessoas exibem
quando sabem que algo de ruim aconte ceu com
alguém de quem não gostam.
--Isso foi bem esquisito -- comento.
Sarah não dá muita importância ao ocorrido.
--Ele deve ter algum interesse em Emily.
--Meu Deus, espero que não -- Emily responde,
fingindo ânsia.
Eu olho para Tommy. A carroça parte com metade
de sua lotação, outro fato que me intriga,
considerando o tamanho da fila de espera.
O trator reboca o veículo, que vai sacudindo pela
trilha de cascalho e terra, aproximando-se da
entrada da floresta, onde sons fantasmagóricos são
transmitidos por alto-falantes escondidos. A
floresta é densa e não há luz alguma ali, exceto a
dos faróis do trator. Quando forem desligados, eu
penso, só haverá a escuridão. Sarah segura minha mão
outra vez. Ela é fria ao toque, ma s uma onda de
calor me invade. Ela se inclina para mim e
cochicha:
-- Estou com um pouco de medo.
Figuras de fantasmas penduradas nos galhos baixos
pairam sobre nós, e fora da trilha recortes de
zumbis foram deixados apoia dos nas árvores. O
trator para e apaga os faróis. Então, estroboscópios
intermitentes piscam por dez segundos. Não há
nada de assustador neles, e só quando param eu
entendo qual é o efeito: os olhos levam alguns
segundos para se ajustar e não conseguimos
enxergar nada. Um grito corta a n oite, e Sarah fica
tensa do meu lado. Figuras passam por nós.
Estreito os olhos, para tentar enxer gar alguma
coisa, e noto que Emily se aproximou de Sam, que
sorri muito satisfeito. Eu, na verdade, sinto um
pouco de medo. Passo um braço cuidadosamente
em torno de Sarah. Somos tocados nas costas, e ela
se agarra à minha perna. Alguns gritam. Com um
solavanco, o trator retoma a jornada, e não há
nada além de árvores na faixa iluminada pelos
faróis.
Seguimos em frente por mais três ou quatro
minutos. A expectativa cresce, como o medo do
mau presságio de ter de percorrer a pé a distância
que até então cobrimos no trator. Então, o veículo
entra em uma clareira circular e para.
-- Fim da linha -- grita o condutor.
Quando a última pessoa desce, o trator vai embora .
Sua luz desaparece na distância, deixando -nos na
companhia da noite e dos sons que nós mesmos
fazemos.
-- Merda -- alguém resmunga, e todos nós rimos.
Somos onze no total. Um caminho de luzes se
acende, mostrando por onde devemos seguir, e
depois tudo se apaga. Fecho os olhos e me
concentro na sensação dos dedos de Sarah
entrelaçados nos meus.
-- Não consigo entender por que faço isso todos os
anos -- Emily anuncia nervosa, cruzando os braços
como se quisesse se proteger.
As outras pessoas começam a percor rer a trilha, e
nós as seguimos. As luzes às vezes se acendem e se
apagam em seguida para nos orientar. Os outros
estão à nossa frente, a uma distância que não nos
possibilita vê-los. Mal consigo ver o chão em que
piso. Três ou quatro gritos cortam o ar.
-- Ah, não -- Sarah murmura, apertando minha
mão. -- Parece que já vamos ter problemas.
Algum objeto pesado cai sobre nós. As duas
garotas gritam. Sam também. Eu tropeço e caio,
ralo o joelho, me enrosco nessa coisa que não
consigo identificar. Segundos depoi s percebo que é
uma rede!
-- Que diabo é isso! -- Sam pergunta.
Rasgo a malha de cordas, mas, no instante em que
me liberto, sou empurrado com força por trás.
Alguém me agarra e me arrasta para longe das
garotas e de Sam. Eu me livro e fico em pó, mas
sou imediatamente atingido pelas costas
novamente. Isso não faz parte da corrida.
-- Solte-me! -- uma das meninas grita. A resposta
é uma gargalhada masculina. Não consigo enxergar
nada. As vozes das garotas se afastam de mim.
-- John? -- Sarah me chama.
-- Onde você está, John? -- É a voz de Sam,
gritando.
Levanto-me para ir atrás deles, mas sou atingido
novamente. Não, isso não está certo. Sou
abordado. Sou jogado no chão, e o impacto me
deixa sem ar. Levanto depressa e tento recuperar o
fôlego, apoiando a mão em um a árvore para me
sustentar. Há terra e folhas em minha boca.
Fico ali parado por alguns segundos e não ouço
nada além de minha respiração ofegante. Quando
já começo a pensar que estou sozinho, alguém me
empurra e me joga contra uma árvore próxima.
Bato com a cabeça no tronco e, por um instante,
vejo estrelas. Fico surpreso com a força dessa
pessoa. Toco minha testa e sinto o san gue em meus
dedos. Olho em volto novamente, mas não consigo
ver nada além da silhueta das árvores.
Escuto um grito de uma das garo tas, depois o som
de uma luta. Ranjo os dentes. Estou tremendo.
Tem alguém entre as árvores à mi nha volta? Não
sei. Mas sinto que olhos me espreitam de algum
lugar.
--Tire as mãos de mim! -- Sarah grita.
Percebo que ela está sen do arrastada para longe.
--Tudo bem -- digo para a escuridão, para as
árvores.
-- A raiva está me dominando. -- Você quer
brincar? -- pergunto, desta vez mais alto.
Alguém ri perto de mim.
Dou um passo na direção do som. Sou empurrado
por trás, mas consigo recuperar o equilíbrio antes
de cair. Dou um soco aleatório no ar, e esfolo a
mão em um tronco. Não há mais nada a fazer. De
que me adianta ter Legados se eles não são usados
quando é necessário? Mesmo que Henri e eu
tenhamos de carregar a caminhonete esta noite e
partir para outra cidade, pelo menos terei feito o
que tinha de fazer.
-- Quer brincar? -- grito novamente. -- Eu
também sei brincar!
Um fio de sangue escorre pela lateral de meu rosto.
Sim, eu penso, é isso mesmo. Eles podem fazer
tudo o que quiserem, mas não vão tocar em um fio
de cabelo de Sarah. Ou de Sam ou de Emily.
Respiro profundamente e sinto a descarga de
adrenalina. Um sorriso gelado se forma e meu
corpo parece ficar maior, mais forte. Minhas mãos
se acendem e emitem uma luz intensa que se
espalha pela noite, iluminando o mundo
repentinamente.
Olho para cima. Uso as mãos como lanternas na
direção das árvores e corro a toda velocidade pela
noite.
CAPÍTULO QUATORZE
KEVIN SAI DO MEIO DAS ÁRVORES FANTASIADO DE
MÚMIA. ERA ELE QUEM estava me atacando. A luz o
ofusca e ele parece atordoado, tentan do identificar
de onde ela vem. Ele usa óculos de visão noturna.
Então, é assim que eles conseguem nos enxergar, eu
penso. Onde os conseguiram?
Ele me ataca, e no último instante me esquivo e o
derrubo.
-- Solte-me! -- A voz vem da trilha. Olho para
cima e direciono minha luz para as árvores, mas
nada se move. Não consigo determinar se a voz é
de Emily ou de Sarah. Ouço uma risada masculina.
Kevin tenta se levantar, mas eu chuto suas costelas
antes de ele ficar em pé. Ele cai com um gemido
abafado. Arranco os óculos de seu rosto e os jogo o
mais longe possível, sabendo que vão cair pelo
menos dois quilômetros e meio longe de nós,
talvez quatro ou cinco, porque estou com tanta
raiva que perco o controle de minha força. Então,
corro pela floresta antes que Kevin consiga se
levantar.
A trilha segue pela esquerda, depois vai para a
direita. Minhas mãos brilham somente quando
preciso enxergar. Sinto que estou perto. Então,
vejo Sam na minha frente, imobilizado pelos
braços de um zumbi. Há outros três por perto.
O zumbi o solta.
-- Calma, é só uma brincadeira. Se não resistir,
não vai se machucar -- ele diz a Sam. -- Sente-se e
fique quieto.
Acendo minhas mãos e direciono as luzes para os
olhos dele. A pessoa mais próxima tenta me atacar,
e eu a derrubo com um soco. Ela fica imóvel no
chão. Seus óculos voam para o meio dos arbustos e
desaparecem. O segundo sujeito tenta me
imobilizar com os braços, mas eu escapo e o
levanto do chão.
-- Que diabo é isso? -- ele pergunta, confuso.
Eu o arremesso, e ele se choca contra o tronco de
uma árvore uns seis metros adiante. O terceiro
deles vê e foge. Agora resta o quarto, o que estava
segurando Sam. Ele levanta as mãos diante do
rosto, como se eu tivesse uma arma apontada em
sua direção.
--A ideia não foi minha -- diz.
--O que ele planejava fazer?
-- Nada, cara. Só queríamos fazer uma brincadeira
com vocês, dar um susto.
--Onde eles estão?
--Já soltaram Emily. Sarah está lá na frente.
--Quero seus óculos -- aviso.
-- De jeito nenhum, cara. São da polícia, só
pegamos emprestados. Vai me complicar.
Dou um passo em sua direção.
-- Tudo bem -- o garoto diz e me entrega os
óculos. Eu os jogo ainda mais longe do que
arremessei o último par. Espero que caiam na
cidade vizinha. Eles que se expliquem perante a
polícia.
Agarro a camisa de Sam com a mão direita. Não
consigo ver nada sem acender minha luz, e só
então percebo que devia ter mantido os dois pares
de óculos para enxergarmos na escuridão. Mas não
os tenho, então respiro fundo e faço minha mão
esquerda brilhar, e começo a nos guiar pelo
caminho. Se Sam acha tudo isso estranho, ele nada
diz.
Eu paro para ouvir. Nada. Seguimos adiante, caminhando
por entre as árvores. Apago a luz.
-- Sarah! -- eu grito.
Paro de novo para ouvir, mas só identifico o vento
passando por entre os galhos e a respiração ofegante de
Sam.
--Quantas pessoas estão com Mark? -- pergunto.
--Cinco, mais ou menos.
--Sabe para onde eles foram?
--Não vi.
Continuamos andando, mesmo sem saber em que direção
seguimos. Ouço ao longe o ruído do motor do trator. A
quarta turma está chegando. Estou agitado, quero correr,
mas sei que Sam não pode me acompanhar. Ele já está
arfante, e até eu estou suando, apesar de a temperatura ser
de somente sete graus. Ou talvez eu esteja confundindo
sangue com suor. Não posso dizer.
Passamos por uma árvore de tronco grosso e cheio de nós,
e eu sou atacado pelas costas. Sam grita quando um punho
acerta a parte de trás de minha cabeça, deixando-me
momentaneamente atordoado, mas me recupero depressa,
viro e agarro o garoto pelo pescoço e acendo a luz em seu
rosto. Ele tenta remover meus dedos, mas não consegue.
--O que Mark está planejando?
--Nada -- ele diz.
--Resposta errada.
Eu o jogo contra a árvore mais próxima, cinco metros
adiante, depois o levanto do chão, segurando-o novamente
pelo pescoço. Ele esperneia, tentando me acertar com as
pernas, mas enrijeço os músculos, e os chutes não me
machucam.
-- O que ele está planejando?
Eu o abaixo até seus pés tocarem o chão e afrouxo os dedos
para deixá-lo falar. Sinto Sam me observando, registrando
tudo o que vê, mas não há nada que eu possa fazer a
respeito.
--Só queríamos assustar vocês -- diz o garoto,
apavorado.
--Juro que vou quebrar você ao meio se não me
disser a verdade.
-- Ele pensa que os outros estão arrastando vocês
dois para Shepherd Falis. E levou Sarah para lá.
Mark queria que ela o visse es pancando você, e
depois ia soltá-los.
-- Você vai me levar até lá -- digo.
Ele começa a caminhar, e eu apago minha luz. Sam
agarra minha camisa e me segue. Quando
atravessamos uma pequena cla reira iluminada pelo
luar, percebo que ele está olhando para mi nhas
mãos.
-- São luvas -- digo. -- Kevin Miller estava com
elas. Deviam fazer parte da fantasia de Halloween.
Ele assente, mas noto que está assustado.
Caminhamos por quase um minuto até ouvirmos o
som de água corrente à nossa frente.
-- Dê-me seus óculos -- eu digo para o garoto que
está nos guiando. Ele hesita, e eu torço seu braço.
O cara estremece, com dor, e rapi damente arranca
os óculos do rosto.
-- Pode ficar, pode ficar -- ele grita.
Quando os ponho, o mundo se pinta de verde. Eu o
empurro com força, e ele cai.
-- Vamos -- digo para Sam, e nós continuamos
andando, deixando-o para trás.
Há um grupo adiante. Conto oito garotos e Sarah.
--Agora posso vê-los. Quer esperar aqui ou vem
comigo? Isso pode ficar feio.
--Quero ir -- diz Sam. E evidente que ele está com
medo, mas não sei se é pelo que me viu fazer ou
por causa dos jogadores de futebol à nossa frente.
Percorro o restante do caminho tão silencioso
quanto posso, e Sam me segue, andando na ponta
dos pés. Quando estamos a poucos metros de
distância, um galho se parte sob o pé de Sam.
-- John? -- Sarah pergunta. Ela está sentada em
uma pedra, abraçando os joelhos. Não usa os
óculos de visão noturna, por isso es treita os olhos
e se vira em nossa direção, tentando nos
identificar.
--Sim -- respondo. -- E Sam.
Ela sorri.
--Eu disse.
Presumo que ela esteja falando com Mark.
O barulho da água vem de um córrego muito
estreito. Mark dá um passo à frente.
--Ora, ora, ora -- ele diz.
--Cale a boca, Mark -- reajo. -- Encher meu
armário de esterco foi ridículo, mas agora você foi
longe demais.
-- Você acha? São oito contra dois.
-- Sam não tem nada a ver com isso. Tem medo de
me enfrentar sozinho? O que espera que aconteça?
Você tentou raptar duas pes soas. Acha mesmo que
elas vão ficar caladas?
-- Sim, eu acho. Depois que me virem acabando
com você.
-- Não se iluda -- aviso, antes de me virar para os
outros. -- Os que não quiserem dar um mergulho
no rio, sugiro que saiam agora. Mark vai
mergulhar, querendo ou não. Ele perdeu a chance
de sair dessa inteiro. Agora vocês estão diante da
última oportunidade.
Todos continuam onde estão.
-- Muito bem, vocês escolheram.
Uma excitação nervosa provoca um efeito estranho
em meu estômago. Dou um passo à frente. Mark
recua um passo e tropeça no próprio pé, caindo
sozinho. Dois amigos dele me atacam, ambos
maiores do que eu. Um deles tenta me acertar um
soco, mas eu me esquivo e acerto um murro bem
no meio de sua barriga. Ele se dobra ao meio,
segurando o local com as mãos. O segundo garoto
sai do chão quando meu s oco encontra seu queixo.
Ele aterrissa com um baque surdo quase dois
metros adiante, e o impulso o joga dentro da água.
Ele se debate e fica em pé. Os outros estão
paralisados, chocados. Sinto Sam se aproximando
de Sarah. Agarro o garoto que está mais pert o de
mim e o arrasto pelo chão. Seus chutes aleatórios
cortam o ar sem acertar nada. Quando estamos na
margem do riacho, eu o levanto pela cintura do
jeans e o jogo na água. Outro deles me ataca. Eu só
me esquivo, e ele vai sozinho para dentro do
riacho. Três já foram, faltam quatro. Fico me
perguntando quanto do que está acontecendo
Sarah e Sam conseguem ver sem os óculos.
-- Estão facilitando as coisas para mim -- provoco.
-- Quem é o próximo?
O maior do grupo solta um soco que não passa
nem perto de me atingir, e eu reajo tão depressa
que o cotovelo dele acerta meu rosto, quebrando a
armação dos óculos. Os óculos caem no chão.
Agora só vejo sombras. Mesmo assim, meu soco
encontra o queixo dele, que cai como um saco de
batatas. Ele parece inerte, e sinto med o de ter exa-
gerado na força. Arranco os óculos de seu rosto e
os ponho no meu.
-- Algum voluntário?
Dois deles levantam as mãos num gesto de
rendição; o terceiro fica parado e com a boca
aberta, como um idiota.
-- Bem, só resta você, Mark.
Mark se vira, como se tivesse a intenção de fugir,
mas eu sou mais rápido e o agarro antes que ele
consiga escapar, puxo seus braços para trás e o
imobilizo. Ele geme de dor.
-- Isso acaba aqui, entendeu?
Aperto seus braços com mais força, e ele geme.
-- Não sei o que tem contra mim, mas vai parar de
me perseguir agora. E também não vai mais
incomodar Sam e Sarah. Entendeu?
Aperto um pouco mais. Receio que, se aplicar um
pouco mais de força, seus braços se desprendam
dos ombros.
--Perguntei se você entendeu!
--Sim!
Eu o arrasto para perto de Sarah. Agora Sam está
sentado na pedra ao lado dela.
--Peça desculpas.
--Vamos lá, cara. Já expressou seu ponto de vista.
Eu aperto.
--Desculpe -- ele grita.
--Fale com mais sinceridade. Como se realmente
lamentasse.
Ele respira fundo.
--Eu sinto muito -- diz.
-- Você é um idiota, Mark! -- Sarah finalmente se
manifesta, esbofeteando-o no rosto com toda a sua
força. Ele fica tenso, mas eu ainda o seguro, e não
há nada que Mark possa fazer.
Eu o arrasto para a água. Os outros ficam parados,
assistindo à cena, em choque. O que eu derrubei
com um soco está agora senta do, coçando a cabeça
como se tentasse entender o que aconteceu.
Suspiro aliviado por ele não estar gravemente
ferido.
--Você não vai dizer nada a ninguém sobre isso,
ouviu bem? -- aviso, falando tão baixo que só Mark
pode me ouvir. -- Tudo o que aconteceu nesta
noite vai morrer aqui. Juro, se ouvir uma palavra
sobre isso na escola na semana que vem, o que
você está vivendo agora nada será comparado ao
que vai acontecer. Entendeu? Nem uma palavra.
--Acha mesmo que eu diria alguma coisa? -- ele
pergunta.
--Avise seus amigos. Se eles contarem para
alguém, eu vou atrás de você.
--Não vamos dizer nada.
Eu o solto, planto meu pé em seu traseiro e o
empurro para o riacho. Sarah está em pé sobre a
pedra, ao lado de Sam. Ela me abraça com força
quando me aproximo.
--Você luta kung fu ou algo parecido? -- pergunta.
Minha risada é nervosa.
--Você viu muita coisa?
--Não muito, mas deu para perceber o que estava
acontecendo. Passou a vida toda treinando nas
montanhas? Não entendo como fez aquilo.
--Só tive medo de que acontecesse alguma coisa
com você, acho. E sim, conto com os últimos doze
anos de treinamento em artes mar ciais no topo do
Himalaia.
-- Você é incrível. -- Sarah ri. -- Vamos sair
daqui.
Nenhum dos amigos de Mark diz nada. Depois de
uns três metros, percebo que não tenho a menor
ideia de que direção tomar e entrego os óculos a
Sarah, para que ela nos guie.
--Não consigo acreditar nisso -- ela comenta. --
Que idiota! Esperem só até ele ter que explicar isso
para a polícia. Não vou deixar isso barato.
--Tem certeza de que vai até a polícia? O pai de
Mark é o xerife! -- eu lembro.
--E por que eu não iria, depois do que ele fez? Foi
ridículo. E o trabalho do pai de Mark é aplicar a
lei, mesmo quando o filho dele é o infrator.
Eu dou de ombros na escuridão.
-- Acho que eles já tiveram o castigo que
mereciam.
Mordo o lábio, morrendo de medo de que a polícia
se envolva. Se isso acontecer, terei de ir embora,
não haverá outra saída. Estaremos de malas
prontas e saindo da cidade uma hora depois de
Henri tomar conhecimento da história. Eu suspiro.
-- Não acha...? -- começo. -- Quero dizer, eles já
perderam vários óculos de visão noturna. Vão ter
que se explicar por isso. Isso sem mencionar a água
fria.
Sarah não diz nada. Caminhamos em silênc io, e eu
torço para que ela esteja refletindo sobre as
vantagens de deixar a história acabar aqui.
Finalmente saímos da floresta. Vemos as luzes do
parque. Quando eu paro, Sarah e Sam olham para
mim. Sam passou todo o tempo em silêncio, e
espero que tenha sido por ele não ter conseguido
enxergar o que aconteceu, o que faria da escuridão
uma ajuda inesperada, ou por estar um tanto
abalado por tudo o que acabou de vivenciar.
-- Vocês decidem -- eu digo --, mas acho mesmo
que devemos encerrar isso tudo aqui. Não quero
ter que ir à polícia falar sobre o que aconteceu.
A luz ilumina o rosto cético de Sarah. Ela balança a
cabeça.
-- Acho que ele está certo -- Sam se manifesta. --
Não quero ter que passar a próxima meia hora
prestando depoimento. Vou acabar me metendo
em confusão; minha mãe acha que fui para cama há
uma hora.
-- Você mora perto daqui? -- pergunto.
Ele assente.
-- Sim, e preciso ir para casa antes que ela vá ao
meu quarto. A gente se vê.
Sem dizer mais nada, Sam se afasta correndo. Ele
está visivelmente abalado. É bem provável que
nunca tenha estado numa briga, e com certeza
nunca foi sequestrado e atacado na floresta.
Amanhã vou tentar conversar com ele. Se ele viu
algo que não devia ter visto, eu o conven cerei de
que se enganou, ou de que seus olhos o ilu diram
na escuridão.
Sarah segura meu rosto e traça a linha do corte
com o polegar, deslizando-o suavemente até minha
testa. Depois ela acompanha o desenho das duas
sobrancelhas, olhando em meus olhos.
--Obrigada por esta noite. Eu sabia que você viria.
--Não ia deixar que ele amedrontasse você.
Ela sorri, e eu vejo seus olhos brilhando ao luar.
Ela se aproxima, e, quando percebo o que vai
acontecer, sinto que o ar fica preso em minha
garganta. Ela pressiona os lábios contra os meus, e
tudo dentro de mim parece derreter. É um beijo
suave, demorado. Meu primeiro. Ela se afasta, e
seus olhos mergulham nos meus. Não sei o que
dizer. Um milhão de pensamentos invadem minha
cabeça. Minhas pernas tremem, e eu mal consigo
me manter em pé.
--Soube que você era especial na primeira vez que
o vi -- ela diz.
--Senti o mesmo quando vi você.
Ela me beija outra vez, pousando a mão em meu
rosto. Nos primeiros segundos eu me perco na
sensação de seus lábios sobre os meus, na ideia de
estar com esta garota linda.
Ela se afasta e nós sorrimos um para o outro sem
dizer nada, trocando um olhar intenso e cheio de
significados.
--Bem, acho melhor ir ver se Emily ainda está no
parque -- ela diz depois de uns dez segundos. --
Ou não terei como ir embora.
--Tenho certeza de que ela está por aí --
respondo.
Voltamos ao pavilhão de mãos dadas. Não consigo
parar de pensar em nosso beijo. O quinto trator se
dirige à floresta pela trilha de cascalho. Ele está
lotado, e ainda há uma fila de mais ou menos dez
pessoas esperando a vez. E depois de tudo o qu e
aconteceu na floresta, com a mão quente de Sarah
na minha, não consigo parar de sorrir.
CAPÍTULO QUINZE
A NEVE CAI PELA PRIMEIRA VEZ DUAS SEMANAS MAIS
TARDE, UMA NEVE FINA e leve, apenas o suficiente
para cobrir a caminhonete com uma cama da
delicada. Logo depois do Halloween, quando o
cristal espalhou o Lúmen por todo o meu corpo,
Henri começou realmente meu treina mento. Temos
trabalhado todos os dias, sem exceção, com frio,
com chuva, e agora com neve. Embora ele não diga
isso, acredito que Henri está impaciente para me
ver pronto. Tudo começou com olhares
desconcertados, com uma ruga em sua testa
enquanto ele mordia o lábio inferior, e depois
foram os suspiros profundos e algumas noites de
insónia, quando as tábuas rangiam sob os pés dele
enquanto eu ficava acordado em meu quarto, e
progrediu até o ponto em que es tamos agora,
quando há aquele desespero inerente na voz de
Henri.
Estamos no quintal, afastados por uns cinco
metros, de frente um para o outro.
--Hoje não estou disposto, realmente -- digo.
--Eu sei que não, mas temos que praticar assim
mesmo. Eu suspiro e olho para o relógio. São
quatro horas da tarde.
--Sarah vai chegar às seis.
--Eu sei -- Henri responde. -- Por isso precisamos
nos apressar. Ele segura uma bola de tênis em cada
mão.
- Está pronto? -- pergunta.
--Nunca estive mais.
Ele arremessa a primeira bola no ar, e, quando ela
alcança seu ponto mais alto, tento conjurar dentro
de mim um poder que a im peça de cair. Não sei
como fazer, só sei que com o tempo e prática devo
ser capaz de conseguir, diz Henri. Todo Garde
desenvolve a capacidade de mover objetos com a
mente. Telecinesia. E em vez de me deixar
descobrir sozinho essa habilidade -- como
aconteceu com o brilho em minhas mãos --, Henri
está determinado a arrancar esse poder do
esconderijo onde ele hiberna dentro de mim.
A bola cai, como caíram outras milhares antes
dela, sem uma única interrupção, quica duas vezes,
depois para na grama coberta de neve.
Eu deixo escapar um suspiro.
--Hoje não estou sentindo minha força
--Mais uma vez -- Henri insiste.
Ele joga a segunda bola. Tento movê -la, ou pará-la,
enfim, tudo em mim se esforça para movimentá -la
um único milímetro para a direita ou para a
esquerda, mas é inútil. Ela também cai. Bernie
Kosar, que nos observava, aproxima -se, pega a bola
entre os dentes e se afasta.
-- Vai acontecer quando for a hora -- digo.
Henri balança a cabeça. Os músculos em sua
mandíbula estão tensos. Sua impaciência e seu
mau humor me incomodam. Ele observa Bernie
Kosar se afastando com a bola e suspira.
-- O que é? -- pergunto.
Ele balança a cabeça novamente.
-- Vamos continuar tentando.
Henri pega outra bola. Ele a joga bem alto, eu
tento detê-la, mas, é claro, a bola simplesmente
cai.
-- Talvez amanhã -- sugiro.
Henri assente e olha para o chão.
-- Talvez amanhã.
Estou coberto de suor, lama e neve derretida
depois da prática. Hoje Henri exigiu mais de mim
do que habitualmente, e me tratou com uma
agressividade que só pode ser atribuída ao pânico.
Além da prática de telecinesia, a maior parte do
tempo foi dedicada ao aperfeiçoamento da técnica
de luta -- combate direto, imobilização, artes
marciais -- e de elementos de autocontrole --
elegância sob pressão, controle da mente, como
identificar medo no olhar de um oponente, e como
o expor da melhor maneira. Não foi a rigidez do
treinamento de Henri que me abalou, mas a
expressão em seus olhos. Um olhar perturbado,
cheio de medo, desespero, decepção. Não sei se ele
está preocupado apenas com o progresso ou se
existe algum motivo mais profundo, mas essas
sessões têm se tornado mui to exaustivas --
emocional e fisicamente.
Sarah chega pontualmente na hora combinada.
Vou recebê-la lá fora e a beijo quando ela está
subindo a escada da varanda. Quando en tramos,
ela tira o casaco e eu o penduro. Nossa prova de
economia doméstica vai acontecer em uma semana,
e é dela a idéia de tentarmos preparar a refeição
antes de termos de fazê-la na escola. Assim que
começamos a cozinhar, Henri pega sua jaqueta e
sai para caminhar. Ele leva Bernie Kosar, e eu me
sinto grato pela privaci dade. Preparamos peito de
frango assado com batatas e legumes no vapor, e o
resultado é melhor do que eu esperava. Quando a
refeição fica pronta, nós três nos sentamos e
comemos juntos. Henri fica em silêncio na maior
parte do tempo. Sarah e eu quebramos esse silên -
cio desconfortável falando sobre amenidades,
sobre a escola, sobre irmos ao cinema no próximo
sábado. Henri raramente levanta os olhos do prato,
exceto para elogiar a refeição maravilhosa.
Terminamos de comer, Sarah e eu lavamos os
pratos e nos sentamos no sofá. Sarah trouxe um
filme, e nós o assistimos em nossa pequena tevê,
mas Henri olha com frequência para a janela.
Depois de um tempo, ele suspira, levanta -se e vai
lá para fora. Sarah e eu o vemos sair. Ficamos de
mãos dadas, e ela apóia a cabeça em meu ombro.
Bernie Kosar se deita ao lado dela, com a cabeça
em seu colo, os dois cobertos pela mesma manta.
Lá fora o frio é intenso e o clima é inóspito, mas
ali na sala a atmosfera é quente e aconchegante.
--Seu pai está bem? -- Sarah pergunta.
--Não sei. Ele tem agido de um jeito estranho.
--Ele ficou muito quieto durante o jantar.
-- Sim, vou ver como ele está. Já volto -- eu digo e
vou atrás de Henri lá fora. Ele está em pé na
varanda, olhando para a escuridão.
--O que está havendo? -- pergunto.
Ele contempla as estrelas.
--Alguma coisa não está bem -- diz.
--Como assim?
--Você não vai gostar disso.
--Tudo bem, fale de uma vez.
-- Não sei quanto tempo podemos permanecer
aqui. Não sinto segurança.
Meu coração fica apertado e eu me calo.
-- Eles estão agitados, e acho que se aproximam.
Posso sentir. Não acho que estejamos seguros aqui.
--Não quero ir embora.
--Eu sabia que não ia querer.
--Temos nos escondido.
Henri olha para mim com uma sobrancelha
erguida.
-- Sem ofensa, John, mas não acho que tenha se
mantido nas sombras.
--Eu me mantenho, quando realmente é
importante. Ele move a cabeça em sentido
afirmativo.
--Bem, vamos ver.
Ele caminha até a entrada da varanda e apó ia as
mãos na balaustrada. Eu me coloco ao lado dele.
Mais flocos de neve começam a cair, girando no ar,
centelhas brancas brilhand o em uma noite escura.
--Não é só isso -- diz Henri.
--Não achei que fosse.
Ele suspira.
-- Você já devia ter desenvolvido a telecinesia.
Quase sempre ela chega com o primeiro Legado.
Muito raramente aparece depois, e quando isso
acontece, nunca demora mais de u ma semana.
Eu olho para ele. Seus olhos estão cheios de
preocupação, e rugas apreensivas marcam sua
testa.
--Seus Legados vêm de Lorien. Sempre vieram.
--O que está me dizendo?
-- Não sei quanto podemos esperar de agora em
diante -- ele diz e faz uma pausa. -- Como não
estamos mais no planeta, não sei se seus demais
Legados vão se desenvolver. E se isso acontecer,
não teremos nenhuma chance de lutar contra os
mogadorianos, muito menos de derrotá -los. E, se
não pudermos derrotá-los, nunca poderemos
voltar.
Vejo a neve cair, incapaz de decidir se devo me
sentir preocupado ou aliviado, já que isso porá um
fim em nossas mudanças e finalmente poderemos
nos instalar em algum lugar. Henri aponta para as
estrelas.
-- Bem ali -- ele diz. -- É onde está Lorien.
É claro que sei muito bem onde está Lorien sem
que me digam. Há certa atração, um jeito pelo qual
meus olhos gravitam para o local onde, milhões de
quilômetros distante, está Lorien. Tento pegar um
floco de neve com a ponta da língua, depois fecho
os olhos e respiro o ar frio. Quando os abro, eu me
viro e olho para Sarah através da janela. Ela está
sentada sobre as pernas, ainda com a cabeça de
Bernie Kosar em seu colo.
--Já pensou em simplesmente ficar aqui, mandar
para o inferno tudo o que se relaciona a Lorien e
construir uma vida aqui na Terra? -- pergunto a
Henri.
--Partimos quando você era muito pequeno.
Imagino que não lembre muita coisa, não é?
--Não -- respondo. -- De vez em quando surgem
recordações fragmentadas. Porém, não posso dizer
se são realmente lembranças ou visões que tive
durante nosso treinamento.
--Não teria essa sensação se você conseguisse
lembrar.
--Mas eu não lembro. É esse o ponto?
--Talvez -- ele diz. -- Mas queira você voltar ou
não, isso não significa que os mogadorianos vão
parar de procurá-lo. E, se deixarmos de ser
cuidadosos e nos acomodarmos, pode ter certeza
de que eles nos encontrarão. E assim que nos
encontrarem, eles nos mata rão. Não há como
mudar tudo isso. De jeito nenhum.
Eu sei que ele está certo. De alguma forma, como
Henri, tenho a mesma sensação, sinto tudo isso na
calada da noite, quando os pe los de meu braço se
eriçam e um arrepio leve percorre minha pele,
embora eu não sinta frio.
--Você lamenta ter ficado comigo tanto tempo?
--Lamento? Por que acha que eu lamentaria?
--Porque não temos para onde v oltar. Sua família
está morta. A minha também. Em Lorien só há uma
vida de reconstrução. Se não fosse por mim, você
poderia criar facilmente uma identidade aqui e
passar o restante da vida fazendo parte de algum
lugar. Poderia ter amigos, talvez até se apa ixonar
outra vez.
Henri ri.
-- Já estou apaixonado. E estarei até o dia de
minha morte. Não espero que entenda isso. Lorien
é diferente da Terra.
Eu suspiro, irritado.
-- Mesmo assim, você poderia fazer parte de
algum lugar.
-- Já sou parte de algum lugar. Sou parte de
Paradise, em Ohio, neste momento, com você.
Balanço a cabeça.
--Você sabe o que quero dizer, Henri.
--O que acha que estou perdendo?
--Uma vida.
--Você é minha vida, garoto. Você e minhas
lembranças são meus únicos laços com o passado.
Sem você, nada tenho. Essa é a verdade.
A porta se abre atrás de nós. Bernie Kosar sai
trotando na frente de Sarah, que está parada na
soleira, nem para dentro, nem para fora.
--Vão mesmo me fazer assistir ao filme sozinha? --
ela pergunta.
Henri sorri para ela.
--Eu nem pensaria nisso -- ele diz.
Depois do filme, Henri e eu levamos Sarah para
casa. Quando chegamos lá, eu a acompanho até a
porta da frente e nós ficamos frente a frente,
sorrindo um para o outro. Seguro as mãos dela e a
beijo, um beijo demorado de boa -noite.
--Até amanhã -- ela diz, afagando minhas mãos.
--Bons sonhos.
Volto para a caminhonete. Henri segue para casa.
Não consigo deixar de sentir certo medo quando
lembro as palavras de Henri no dia em que ele foi
me buscar na escola, depois de meu primeiro dia
inteiro de aula: "Não esqueça que podemos ter de
partir de uma hora para outra." Ele está certo, e eu
sei disso, mas nunca senti nada parecido por
ninguém antes. Quando estamos juntos é como se
eu flutuasse no ar, e detesto os momentos em que
estamos separados, como agora, apesar de ter
passado as últimas duas horas com ela. Sarah dá
certo propósito à nossa fuga, uma razão que
transcende a mera sobrevivência. Uma razão para
vencer. E saber que posso estar colocando a vida
dela em perigo simplesmente por estar com el a --
bem, isso me aterroriza.
Quando voltamos, Henri entra no quarto dele e sai
de lá carregando a arca. Ele a deposita sobre a
mesa da cozinha.
--É sério? -- pergunto.
Ele assente.
--Há algo aqui que quero lhe mostrar há anos.
Mal posso esperar para ver o que mais há na arca.
Abrimos o cadeado juntos, e ele levanta a tampa de
um jeito que não me permite espiar lá dentro.
Henri remove dali uma bolsa de veludo, fecha a
arca e a tranca novamente.
-- Não é parte de seu Legado, mas na última vez
que a abrimos eu guardei isto lá dentro por causa
desse mau pressentimento que tem me
atormentado. Se os mogadorianos nos pegarem,
nunca poderão abrir a arca -- ele explica.
--O que há na bolsa?
--O sistema solar.
--Se não é parte de meu Legado, porque não me
mostrou isso antes?
-- Porque você precisava desenvolver um Legado
para ativá-los.
Ele limpa a mesa da cozinha e se senta à minha
frente com a bolsa entre as mãos. Henri sorri para
mim, sentindo meu entusiasmo. De pois, pega da
bolsa sete globos de vidro de tamanhos variados.
Ele os segura entre as mãos diante do rosto e sopra
as esferas. Pequenas fagulhas de luz brotam delas,
ele as joga para cima, no ar, e os globos ganham
vida imediatamente, suspensos sobre a mesa da
cozinha. As bolas de vidro são réplicas de nosso
sistema solar. A maior delas tem o tamanho de
uma laranja -- o sol de Lorien -- e paira no meio
do conjunto, emitindo a mesma quantidade de luz
que uma lâmpada, com uma aparência que lembra
uma esfera de lava. As outras bolas giram em torno
dela. Aquelas que estão mais próximas do sol se
movem em velocidade maior, enquanto as mais
afastadas parecem se arrastar lentamente. Todas
elas giram, e dias e noites começam e terminam
numa velocidade incrível. O quarto globo a partir
do sol é Lorien. Nós observamos seu movimento,
vemos sua superfície começando a se formar. Ele
tem o tamanho de uma bola de tênis. A réplica não
respeita a escala, porque, na verdade, Lorien é
muito menor do que nosso sol.
--O que está acontecendo? -- pergunto.
--A bola está tomando a forma exata que Lorien
tem neste momento.
--Como isso é possível?
-- É um lugar especial, John. E a magia existe em
sua essência. É de lá que vêm seus Legados. É o
que dá vida e realidade aos objeti vos contidos em
sua Herança.
--Mas você acabou de dizer que isso não faz parte
de meu Legado.
--Não, mas tudo vem do mesmo lugar.
Surgem depressões, montanhas crescem, brechas
profundas riscam a superfície onde sei que rios
correram um dia. E então tudo para. Procuro cores,
movimento, um vento que possa cortar a terra.
Mas não há nada. Toda a paisagem é uma pintura
em preto e cinza. Não sei o que esperava ver.
Algum tipo de movimento, um indício de
fertilidade. Sou tomado pelo desânimo. A
superfície se torna tão fina, que podemos enxergar
através dela e ver o centro do globo, onde um
brilho pálido começa a surgir. Ele ganha força, em
seguida perde intensidade, depois brilha
novamente, como se replicasse os batimentos do
coração de um animal adormecido.
-- O que é isso? -- pergunto.
-- O planeta ainda vive e respira. Ele se recolheu
para a parte mais profunda de si mesmo, ganhando
tempo. Hibernando, se pre ferir. Mas um dia
desses, ele vai acordar.
-- O que o faz ter tanta certeza?
-- Aquele brilho pálido bem ali -- ele diz. --
Aquilo é esperança, John.
Eu olho para o brilho. Sinto um prazer estranho
em vê-lo. Tentaram banir nossa civilização, o
próprio planeta, mas ele ainda respira. Sim, eu
penso, sempre há esperança, como Henri afirmou o
tempo todo.
-- Não é só isso.
Henri se levanta e estala os dedos, e o planeta para
de se mover. Ele aproxima o r osto de Lorien, une
as mãos em torno da boca e sopra o globo.
Tonalidades de verde e azul percorrem a bola e
começam a desaparecer quase imediatamente
quando o vapor formado pelo sopro de Henri
desaparece.
--O que você fez?
--Acenda as luzes de suas mãos sobr e o globo --
ele diz.
Eu faço cintilarem as luzes em minhas palmas, e,
quando as mantenho sobre a bola, o verde e o azul
retornam, mas dessa vez permanecem enquanto
minhas mãos brilham sobre a esfera.
-- Essa era a aparência de Lorien um dia antes da
invasão. Não é lindo? Às vezes até eu esqueço.
É lindo. Tudo verde e azul, fértil e próspero. A
vegetação é exuberante sob as rajadas de vento
que, de alguma forma, consigo sentir. Ondas
suaves surgem na água. O planeta está realmente
vivo, florescendo. Mas quando apago as luzes em
minhas mãos tudo desaparece, tudo mergulha
novamente nos tons de cinza.
Henri aponta um ponto na superfície do globo.
-- Aqui -- ele diz. -- Foi daqui que partimos no
dia da invasão. -- Ele move o dedo meio
centímetro para longe do pont o. -- E bem aqui
ficava o Museu Lórico de Exploração.
Assinto e olho para o lugar que ele está indicando.
Mais cinza.
-- O que o museu tem a ver com isso? -- pergunto.
Sento-me novamente na cadeira. É difícil olhar
para tudo aquilo sem sen tir tristeza.
Ele me encara.
--Tenho pensado muito no que você viu.
--E...? -- tento incentivá-lo a prosseguir.
--Era um grande museu, totalmente dedicado à
evolução da viagem espacial. Uma das alas do
edifício expunha foguetes de milhares de anos.
Foguetes movidos por um tipo de combustível
conhecido apenas em Lorien -- ele fala, fazendo
uma pausa para olhar para o pequeno globo de
vidro pairando meio metro acima da mesa da cozi -
nha. -- Agora, se o que você viu realmente
aconteceu, se uma segun da nave conseguiu escapar
de Lorien no auge da batalha, ela só pode ter
partido do museu. Não há outra explicação para
isso. Ainda tenho dificuldade para acreditar que
pode ter acontecido, e, mesmo que seja verdade, é
difícil imaginar que o foguete conseguiu ir tão
longe.
--Se o foguete não pode ter ido tão longe, por que
ainda está pensando nele?
Henri balança a cabeça.
-- Não sei bem. Talvez por já ter me enganado
antes. Talvez por ter esperança de estar errado
agora. E, bem, se o foguete chegou em algum lugar,
só pode ter sido aqui, o planeta h abitado mais
próximo, exceto Mogadore. E isso presumindo que
houvesse alguém nele, que não tenha sido apenas
uma nave cheia de artefatos, ou vazia, um truque
para confundir os mogadorianos. Mas acho que
devia haver pelo menos um lorieno tripulando a
aeronave, porque, bem, você deve saber que
veículos desse tipo não se dirigem sozinhos.
Outra noite de insônia. Fico parado diante do
espelho, sem camisa, olhando para as luzes
brilhando nas mãos. "Não sei quanto pode mos
esperar de agora em diante", Henri disse hoje. A
luz no centro de Lorien ainda brilha, e os objetos
que trouxemos de lá ainda funcionam, então, por
que a magia terminaria por lá? E os outros? Estão
enfrentando os mesmos problemas agora? Também
ficaram sem seus Legados?
Flexiono os braços na fr ente do espelho, depois
soco o ar, esperando ver o espelho se quebrando
ou ouvir um baque na porta. Mas nada acontece.
Sou só eu parecendo um idiota ali em pé, sem ca -
misa, lutando boxe com o nada enquanto Bernie
Kosar me olha da cama. É quase meia -noite e não
estou cansado. Bernie Kosar pula da cama, senta -se
a meu lado e observa meu reflexo. Sorrio para ele e
o vejo abanar a cauda.
-- E você? -- pergunto a Bernie Kosar. -- Tem
poderes especiais? É um super cachorro? Devo
vesti-lo novamente com sua capa para que você
possa sair voando?
Ele continua balançando a cauda, batendo a pata
no chão como se quisesse cavar um buraco e
levantando os olhos para me olhar. Eu o levanto e
o faço voar pelo quarto, segurando -o sobre minha
cabeça.
-- Veja! É Bernie Kosar, o magnífico super
cachorro!
Ele se contorce em minhas mãos, por isso o ponho
no chão. Ele se joga de lado com o rabo
balançando.
-- Bem, amigão, um de nós deve ter super poderes.
E parece que não serei eu. A menos que voltemos à
Idade das Trevas e eu possa ilumi nar o mundo com
as mãos. Caso contrário, receio ser inútil.
Bernie Kosar rola de costas e olha para mim com
seus olhos grandes, esperando que eu coce sua
barriga.
CAPÍTULO DEZESSEIS
SAM ESTÁ ME EVITANDO. NA ESCOLA ELE PARECE
DESAPARECER QUANDO ME vê, ou sempre se certifica
de estar em um grupo. Seguindo a insis tência de
Henri -- que está desesperado para pôr as mãos na
revista de Sam, depois de varrer tudo o que existia
disponível na Internet e não encontrar nada
parecido com o que havia na tal revista --, decidi
simplesmente ir à casa dele sem avisar. Henri me
leva até lá depois de concluirmos a sessão de
treinamento. Sam mora na peri feria de Paradise,
em uma casa pequena, modesta. Ninguém atende
quando eu bato, por isso tento bater à outra porta.
Ela está destrancada, e eu entro.
O carpete marrom no chão é velho, e as paredes
revestidas de madeira exibem fotos de família de
quando Sam era bem pequeno. Ele, a mãe e um
homem que imagino ser seu pai, cujos óculos têm
lentes tão grossas quanto as de Sam. En tão,
aproximo-me para olhar melhor. Parece ser o
mesmo par de óculos.
Sigo pelo corredor até encontrar a porta que deve
ser do quarto de Sam, porque há ali um prego de
onde pende uma placa com a mensagem: e n t r e
p o r s u a c o n t a e r i s c o . A porta está
entreaberta, e espio para dentro do quarto. Tudo é
muito limpo, tudo está em seu devido lugar. A
cama está feita, coberta com um edredom preto
com estampas do planeta Saturno. As fronhas têm
o mesmo padrão. As paredes são cobertas de
pôsteres. Há dois da Nasa, o pô ster do filme Alien,
outro do filme Guerra nas Estrelas e um pôster da
cabeça de um alienígena verde cercada por feltro
preto. No centro do quarto, pendurado em fios
transparentes, um móbile retrata o sistema solar,
nove planetas e o sol. A imagem me faz pensar no
que Henri me mostrou no início da semana. Acho
que Sam ficaria maluco se visse a mesma coisa.
Então, eu vejo Sam debruçado sobre uma pequena
escrivaninha com os fones de ouvido. Empurro a
porta, e ele olha por cima do ombro. Sam não está
usando os óculos, e sem eles seus olhos parecem
muito pequenos e redondos, quase como uma
caricatura.
-- E aí? -- pergunto casualmente, como se fosse à
casa dele todos os dias.
Ele parece chocado e assustado, e tira os fones com
aflição evidente enquanto enfia a mão em uma das
gavetas. Olho para a escri vaninha e vejo que ele
está lendo Eles Estão entre Nós. Quando o encaro
novamente, ele está apontando uma arma para
mim.
-- Ei. -- Reajo instintivamente, levantando as
mãos abertas num gesto de rendição. -- O que é
isso?
Ele se levanta. Suas mãos estão tremendo. A arma
está apontada para meu peito. Penso que ele
perdeu a razão.
--Diga logo o que você é -- ele exige.
--Do que está falando?
--Eu vi o que você fez na floresta. Não é humano.
Era o que eu temia, que ele tivesse vist o mais do
que podia.
--Isso é loucura, Sam! Eu me envolvi numa briga.
Pratico artes marciais há anos.
--Suas mãos se acenderam como lanternas. E você
jogava as pessoas longe, como se não tivessem peso
nenhum. Isso não é normal.
--Não seja estúpido -- eu insisto, ainda com as
mãos erguidas na minha frente. -- Olhe para elas.
Está vendo alguma luz? Já disse, eu peguei as luvas
que Kevin estava usando.
--Perguntei a Kevin! Ele me disse que não usava
luvas!
--Acha mesmo que ele ia dizer a verdade, depois
do que aconteceu? Abaixe a arma.
-- Fale de uma vez! O que você é?
Eu reviro os olhos.
-- Sim, eu sou um alien, Sam. Sou de um planeta
centenas de milhões de quilômetros distante
daqui. Tenho super poderes. Era isso que queria
ouvir?
Ele me encara, e suas mãos ainda tremem .
-- Percebe como isso soa estúpido? Deixe de ser
louco e abaixe essa arma.
-- O que você acabou de dizer é verdade?
-- Que você é estúpido? Sim, é verdade. Está
obcecado por essa coisa toda. Vê extraterrestres e
conspirações alienígenas em todas as esferas d e
sua vida, inclusive em seu único amigo. Pare de
apontar essa droga de arma para mim.
Ele me encara, e posso perceber que está pensando
no que eu disse. Abaixo as mãos. Ele suspira e
abaixa a arma.
-- Desculpe -- diz.
Respiro fundo com certo nervosismo.
--Deve mesmo se desculpar. Onde estava com a
cabeça?
--A arma não estava carregada, na verdade.
-- Podia ter dito isso antes. Sam, por que quer
tanto acreditar nessas histórias?
Ele balança a cabeça e guarda a arma na gaveta. Eu
levo um minuto para me acalmar e tento agir de
um jeito casual, como se o que aconteceu não fosse
tão importante.
-- O que está lendo? -- pergunto.
Ele dá de ombros.
--Só mais coisas sobre aliens. Acho melhor parar
um pouco.
--Ou leia esse material como ficção, não como um
relato de fatos reais -- sugiro. -- Mas o texto deve
ser bem convincente. Posso ver?
Ele me entrega a última edição de Eles Estão entre
Nós, e eu me sento meio hesitante na beirada da
cama. Acho que ele se acalmou um pouco, pelo
menos o suficiente para não apontar uma arma
para mim. Novamente, a revista é uma fotocó pia
ruim, uma impressão ligeira mente torta. Não é um
volume muito grosso -- apenas oito páginas, doze,
no máximo, impressas em folhas comuns de papel
ofício. A data no topo das folhas mostra que é de
d e z e m b r o . Deve ser a última edição.
--Isso é esquisito, Sam
Goode. Ele ri do meu
comentário.
--Gente esquisita gosta de coisas esquisitas.
--Onde consegue isso?
--Sou assinante.
--Eu sei, mas como?
Sam dá de ombros.
--Não sei. Um dia o material começou a chegar, e
foi isso.
--Você assina alguma outra revista? Talvez eles
tenham usado o contato...
--Certa vez fui a uma convenção. Acho que me
inscrevi em algum torneio ou coisa do tipo
enquanto estava lá. Não lembro. Sem pre achei que
foi assim que eles tinham conseguido meu
endereço.
Dou uma olhada na capa. Não há nenhum site
impresso ali ou na primeira página, e eu nem
esperava que houvesse, considerando que Henri já
revirou a Internet de cabo a rabo e não achou
nada. Eu leio a manchete da matéria de cap a:
Seu vizinho é um ALIEN?
DEZ MANEIRAS INFALÍVEIS DE DESCOBRIR!
No meio do artigo há uma foto de um homem
segurando um saco de lixo em uma das mãos e a
tampa de uma lata de lixo na outra. Ele está em pé
na entrada de uma casa, e presume -se que esteja
jogando o saco dentro da lata. A publicaçã o é
inteira em preto e branco, mas há um brilho
distinto nos olhos do homem. É uma imagem
horrível -- como se alguém houvesse fotografado
um vizinho sem que ele percebesse e depois
desenhasse seus olhos com lápis. Eu rio.
--O que é? -- Sam quer saber.
--Essa foto é terrível. Parece alguém de Godzilla.
Sam olha para a foto e, novamente, dá de ombros.
--Não sei -- diz. -- Pode ser real. Como você disse,
vejo aliens em todos os lugares e em tudo.
--Mas eu pensei que aliens fossem daquele jeito.
-- E aponto para o pôster n a parede, o do
alienígena de cabeça verde.
--Acho que nem todos são assim -- ele retruca. --
Como você mesmo disse, é um alien com super
poderes, e não parece.
Nós dois rimos, e eu me pergunto como vou sair
dessa. Espero que Sam nunca descubra que eu
estava dizendo a verdade. Porém, parte de mim
quer contar tudo a ele: sobre mim. sobre Henri,
sobre Lorien, e tento imaginar qual seria sua
reação. Ele acreditaria em mim?
Procuro na publicação aquela página que todos os
jornais e revistas têm contendo os dados da edição.
Não há nada ali, só mais histórias e teorias.
--Não tem a página de informações do editorial.
--O que quer dizer?
-- Sabe aquela página que todos os jornais e
revistas têm contendo o nome do editor, do revisor
e de todos os colaboradores? Onde fornece m as
informações sobre a editora, a gráfica, enfim,
tudo? Onde são fornecidos o endereço, o telefone e
todos os dados para contato? Todas as publicações
têm isso, mas esta aqui... não.
-- Eles precisam proteger seu anonimato -- Sam
responde.
--Por quê? Do que estão se escondendo?
--Aliens -- ele anuncia. E sorri, como se
reconhecesse o absurdo do que acabou de dizer.
--Tem a edição do mês passado?
Ele pega a revista no armário. Eu a folheio
rapidamente, esperando encontrar nela o artigo
sobre Mogadore. E o localizo na página 4.
A Raça Mogadoriana Pretende Dominar a Terra
A raça alienígena mogadoriana do planeta Mogadere, da Nona Galáxia, está
na Terra há mais de dez anos. Trata-se de uma raça violenta, que pretende
dominar o universo. Há boatos de que já dizimaram outro planeta
semelhante e de que planejam expor as fraquezas da Terra com a intenção
de, em seguida, ocupar o planeta.
(mais no próximo número)
Leio o artigo três vezes. Esperava encontrar nele
mais do que Sam já havia dito, mas não há nada. E
não existe uma Nona Galáxia. Queria saber de onde
tiraram isso. Folheio o número seguinte duas
vezes. Não há menção aos mogadorianos. Meu
primeiro pensamento é que não havia mais nada a
publicar, por isso não há mais notícias. Mas não
acredito. Então, imagino qu e os mogadorianos
leram o artigo e resolveram o problema, qualquer
que fosse.
-- Pode me emprestar esta aqui? -- pergunto,
mostrando a revista do mês passado.
-- Sim, mas tome cuidado com ela.
Três horas mais tarde, às oito da noite, a mãe de
Sam ainda não está em casa. Pergunto a Sam onde
ela está, e ele encolhe os ombros para dizer que
não sabe, como se a ausência não fosse novidade.
Basicamente, jogamos videogame, assistimos à
televisão e jantamos comida de micro-ondas.
Durante o tempo que passo lá ele nã o usa os
óculos, o que é bastante estranho, considerando
que nunca o vi sem eles antes. Mesmo quando
fizemos a tomada de tempo da cor rida na escola,
ele os manteve no rosto. Eu os pego sobre a
cômoda e os ponho na frente dos meus olhos. O
mundo fica imediatamente nublado, e eu sinto dor
de cabeça instantaneamente.
Olho para Sam. Ele está sentado no chão de pernas
cruzadas, com as costas apoiadas contra a cama, e
um livro sobre extraterrestres aberto sobre os
joelhos.
--Jesus, sua visão é mesmo tão ruim assim ? --
pergunto.
Ele olha para mim.
--Os óculos eram do meu pai.
Eu os tiro.
--Você precisa mesmo de óculos, Sam?
--Não realmente.
--Então, por que os usa?
--Eram do meu pai.
Eu os ponho de novo.
--Uau, não sei nem como consegue andar em linha
reta com isto!
--Meus olhos estão acostumados.
-- Sabe que vai prejudicar sua visão se continuar
usando estes óculos, não sabe?
-- Então, vou poder ver o que meu pai via.
Eu os tiro e devolvo ao lugar onde os encontrei.
Não consigo entender por que Sam usa os óculos.
Por razões sentimentais? Ele acredita mesmo que
vale a pena?
--Onde está seu pai, Sam?
Ele olha para mim.
--Não sei -- diz.
--Como assim, não sabe?
--Ele desapareceu quando eu tinha sete anos.
--Não sabe para onde ele foi?
Ele suspira, abaixa a cabeça e volta à leitura. É
evidente que não quer falar sobre isso.
-- Acredita em alguma coisa disso? -- ele me
pergunta depois de alguns minutos de silêncio.
--Aliens?
--Sim.
--Sim, acredito em aliens.
-- E acha mesmo que eles abduzem as pessoas?
-- Não tenho a menor idéia. Acho que não
podemos eliminar essa possibilidade. Você acredita
que sim?
Sam assente.
-- Sim, quase todos os dias, mas às vezes a idéia
me parece estúpida.
--Não consigo entender por quê.
Ele me encara.
--Acho que meu pai foi abduzido.
Sam fica tenso no instante em que as palavras
saem de sua boca, e uma expressão de
vulnerabilidade surge em seu rosto. Isso me faz
crer que ele já discutiu sua teoria antes com
alguém cuja resposta não foi exatamente gentil.
-- De onde vem essa sua suspeita?
-- Ele simplesmente desapareceu. Saiu para
comprar leite e pão e nunca voltou. Sua
caminhonete estava estacionada na frente da
padaria, mas ninguém o viu por lá. Ele sumiu, e
seus óculos estavam na calçada, ao lado da
caminhonete. -- Ele faz uma pausa rápida. -- Tive
medo de que você estivesse aqui para m e abduzir.
É uma teoria difícil de acreditar. Se o pai dele
realmente foi abduzido no centro da cidade,
alguém teria visto. Talvez o homem tivesse
motivos para se afastar e encenou esse
desaparecimento.
Não é difícil sumir sem deixar pistas: Henri e eu
temos feito exatamente isso há dez anos. Mas, de
repente, o interesse de Sam em aliens faz sentido.
Talvez Sam só queira ver o mundo como o pai dele
o via, no entanto também é possível que parte dele
acredite realmente que a última imagem vista pelo
pai foi capturada pelos óculos e está, de alguma
forma, gravada nas lentes. Talvez acredite que,
com persistência, um dia também a verá, e assim a
última visão do pai confirmará o que já existe em
sua cabeça. Ou talvez ele acredite que, se procurar
por tempo suficiente, finalmente encon trará um
artigo que provará que o pai foi abduzido. E não só
isso: que pode ser salvo.
E quem sou eu para dizer que um dia ele não
encontrará essa prova?
-- Acredito em você -- digo. -- Acho que abduções
alienígenas são bem possíveis.
CAPÍTULO DEZESSETE
NO DIA SEGUINTE ACORDO MAIS CEDO DO QUE O
NORMAL, SAIO DA CAMA COM dificuldade e, quando
deixo meu quarto, encontro Henri sentado à mesa,
examinando alguns papéis diante do laptop aberto.
O sol ainda está escondido, e a casa está escu ra,
sendo a luz da tela do computador a única ali.
--Alguma novidade?
--Não, nada, na verdade.
Acendo a luz da cozinha. Bernie Kosar arranha a
porta da frente. Eu a abro e ele corre para o
quintal, como faz todas as manhãs, de cabeça
erguida, trotando em torno do perímetro como se
procurasse algo suspeito. Ele fareja em pontos
aleatórios. Satisfeito e certo de que tudo é como
deve ser, ele corre para a floresta e desaparece.
Dois exemplares de Eles Estão entre Nós permanecem
abertos sobre a mesa da cozinha, o original e a
cópia que Henri fez para guar dar. Entre eles há
uma lente de aumento.
--Alguma coisa singular no original?
--Não.
--Então, e agora? -- pergunto.
-- Bem, eu tive sorte. Cruzei alguns artigos no
mesmo número e consegui algumas pistas, e uma
delas me levou a um site. Mandei um e-mail.
Eu fico olhando para Henri.
--Não se preocupe -- ele diz. -- Eles não podem
rastrear e-mails. Não como eu enviei, pelo menos.
--Como os enviou?
--Usei como roteadores vários servidores em
cidades do mundo todo, de forma que a loca lização
original se perdeu pelo caminho.
--Impressionante.
Bernie Kosar arranha a porta e eu o deixo entrar. O
relógio no micro-ondas marca 5:59 horas. Tenho
mais duas horas antes do co meço das aulas.
-- Acha mesmo que vamos gostar de vasculhar
tudo isso? -- pergunto. -- Quero dizer, e se for
uma armadilha? E se eles estiverem tentando nos
tirar do esconderijo?
Henri assente.
--Sabe, se o artigo houvesse feito alguma menção
sobre nós, talvez eu hesitasse. Mas não fomos
citados. A matéria fala sobre mo gadorianos
invadirem a Terra, como fizeram com Lorien. Há
muita coisa nisso que eu não entendo. Você estava
certo há algumas semanas, quando disse que fomos
derrotados com muita facilidade. Nós fomos. Não
faz sentido. Toda a situação com o
desaparecimento dos Anciões também não faz
sentido. Até o fato de termos tirado de lá você e as
outras crianças de Lorien, algo que nunca
questionei, parece estranho. E, embora você tenha
visto o que aconteceu -- e eu também tive essas
visões --, ainda falta alguma coisa na equação . Se
pretendemos voltar um dia, considero imperativo
descobrirmos o que aconteceu, para impedirmos
que tudo se repita. Conhece o ditado: aquele que
não conhece a história está fadado a repeti -la. E
quando a história é repetida, os riscos são
dobrados.
--Tudo bem. Mas, de acordo com o que você disse
no sábado à noite, a chance de voltarmos parece
menor a cada dia. Então, tendo em vista essa
possibilidade reduzida, acha que o esforço vale a
pena?
Henri dá de ombros.
--Ainda há mais cinco por aí. Talvez eles tenha m
recebido seus Legados. Talvez os seus estejam
simplesmente atrasados. Acho que é melhor
planejarmos todas as possibilidades.
--Bem, e o que está planejando fazer?
--Dar um telefonema, apenas. Estou curioso para
ouvir o que esse cara sabe. Fico me perguntando
por que ele não seguiu adiante. Existem duas
possibilidades: ou ele não encontrou mais informa -
ções e perdeu o interesse na história, ou alguém o
pegou depois da publicação.
Eu suspiro.
-- Bem, tome cuidado -- alerto.
Visto calça e blusa de moletom sobre d uas
camisetas, amarro os tê nis e começo o
alongamento. Jogo na mochila as roupas que pre -
tendo vestir na escola, mais uma toalha, um
sabonete e um frasco pequeno de xampu, para
tomar banho lá. Agora corro até a escola todas as
manhãs. Henri acredita que o exercício adicional
vai ajudar em meu treinamento, mas a razão
verdadeira é que ele espera que isso contribua em
minha transição física e arranque meus Legados do
torpor, se é que eles estão mesmo adormecidos.
Olho para Bernie Kosar.
--Preparado para correr, garoto? Quer dar uma
corrida? Ele balança a cauda e anda em círculos.
--Vejo você depois da aula.
--Boa corrida -- diz Henri. -- Cuidado na estrada.
Caminhamos até a porta, e o ar frio nos recebe.
Bernie Kosar late com entusiasmo algumas vezes.
Começo com um trote leve pela entrada da
garagem, saio para a trilha de cascalho e noto que
o cachorro me acompanha como se realmente
pretendesse correr comigo. Preciso de uns
quatrocentos metros até me aquecer.
-- Pronto para acelerar, garoto?
Ele não me dá atenção, apenas continua trotando à
meu lado, olhando para a frente com a língua de
fora, aparentemente feliz.
-- Muito bem, vamos lá.
Começo a correr de verdade, e pouco depois dou o
primeiro tiro de velocidade, atingindo meu ponto
máximo. Bernie Kosar fica para trás . Olho por cima
do ombro e o vejo correndo tanto quanto pode,
mas estou à frente dele. O vento brinca com meu
cabelo, as árvores passam num rastro confuso.
Tudo é maravilhoso. Então, Bernie Ko sar mergulha
entre as árvores e some de vista. Não sei se devo
parar e esperar por ele. Então, quando me viro, ele
surge do meio do bosque três metros à minha
frente.
Olho para ele, e ele olha para mim com a língua no
canto da boca, os olhos iluminados por um brilho
alegre.
-- Você é um cachorro estranho, sabe?
Depois de cinco minutos a escola aparece diante de
mim. Percorro a distância restante corren do, quase
um quilômetro, exercitando-me, fazendo o esforço
máximo, porque é muito cedo e não há ninguém ali
para me ver. Depois paro, levanto os braços, cruzo
os dedos acima da cabeça, recupero o fôlego.
Bernie Kosar chega trinta segundos depois e fica
me observando. Eu me ajoelho para afagá -lo.
-- Bom trabalho, amigão. Acho que temos um
novo ritual matinal.
Tiro a mochila das costas, abro o zíper e removo
dela um pacote com algumas fatias de bacon, que
dou ao animal. Ele as devora.
-- Muito bem, agora vou entrar. Vá para casa.
Henri está esperando.
Ele me observa por um segundo e depois começa a
caminhar, animado, na direção de casa. Sua
capacidade de compreensão me espan ta. Eu entro
no prédio e vou tomar uma ducha.
Sou a segunda pessoa a entrar na aula de
astronomia. Sam é o primeiro a chegar e já está
sentado em seu lugar de costume, no fundo da
sala.
-- Ei, não está de óculos. O que aconteceu? -- digo,
estranhando.
-- Pensei no que você disse. É idiotice continuar usando
os óculos.
Eu me sento ao lado dele e sorrio. É difícil imaginar que um
dia vá me acostumar àqueles olhinhos miúdos. Devolvo a
ele o exemplar de Eles Estão entre Nós. Sam guarda a
revista na mochila. Levanto os dedos, imitando o formato
de uma arma, e o cutuco.
-- Bang! -- brinco.
Ele começa a rir. Eu também rio. Nenhum de nós consegue
parar. Cada vez que um de nós está perto de controlar as
gargalhadas, o outro ri ainda mais, e as gargalhadas
recomeçam. As pessoas vão chegando e olham para nós.
Então, Sarah aparece. Ela chega sozinha, aproxima-se de
nós com expressão confusa e se senta ao meu lado.
--Do que estão rindo?
--Não sei exatamente -- confesso e rio um pouco mais.
Mark é a última pessoa a entrar. Ele se senta em seu lugar
de costume, mas hoje, em vez de Sarah, há outra garota ao
lado dele. Deve ser uma formanda. Sarah segura minha
mão sob a mesa.
--Preciso conversar com você -- diz.
--Sobre o quê?
--Sei que está em cima da hora, mas meus pais convidaram
você e seu pai para o jantar de Ação de Graças amanhã.
--Ei, isso seria incrível! Preciso falar com ele, mas sei que
não temos planos, por isso imagino que a resposta será sim.
Ela sorri.
--Ótimo!
--Como somos só nós dois, normalmente nem celebramos
o dia.
-- Ah, nós comemoramos. E meus irmãos virão da
faculdade. Eles querem conhecer você.
--E como eles sabem sobre mim?
--Como acha que sabem?
O professor entra na sala, Sarah pisca para mim, e
a aula começa. Nós prestamos atenção.
Henri está esperando por mim como sempre,
Bernie Kosar no assento do passageiro, abanando a
cauda, apóia as patas na janela aberta assim que
me vê. Eu entro.
--Athens -- diz Henri.
--Athens?
--Athens, Ohio.
--Por quê?
-- É lá que as matérias de Eles Estão entre Nós são
escritas e impressas. É lá que eles recebem a
correspondência.
-- Como descobriu?
-- Tenho meus meios.
Olho para ele.
-- Está bem, eu conto. Precisei mandar três e-
mails e fazer cinco telefonemas, mas agora tenho o
número. Ou seja, não foi difícil lo calizar. Só foi
necessário um pequeno esforço .
Eu concordo movendo a cabeça. Sei o que ele está
me dizendo. Os mogadorianos teriam nos
encontrado com a mesma facilidade. O que
significa, é claro, que agora a balança pende em
favor da segunda possibilidade citada por Henri: a
de que alguém encontrou quem publicava as
matérias antes de a história poder ser
desenvolvida.
--Onde fica Athens? Longe daqui?
--Duas horas de carro.
--Você vai até lá?
--Espero que não. Primeiro vou telefonar.
Quando chegamos em casa Henri, pega o telefone e
se senta à mesa da cozinha. Eu me sento diante
dele e escuto.
-- Sim, estou ligando para perguntar sobre um
artigo na edição do último mês de Eles Estão entre
Nós.
Uma voz grave responde do outro lado. Não
consigo ouvir o que é dito.
Henri sorri.
-- Sim -- ele diz e faz uma pausa. -- Não, não sou
assinante. Mas tenho um amigo que é.
Outra pausa.
Ele assente.
-- Bem, estou curioso pelo artigo escrito sobre os
mogadorianos. Não houve a continuação da
matéria no número deste mês, como era esperado.
Eu me debruço sobre a mesa e tento ouvir, meu
corpo tenso e rígido. Quando ouço a resposta, a
voz soa trêmula, perturbada. Depois, o telefone
fica mudo.
-- Alô?
Henri afasta o fone, olha para ele, e o encosta
novamente na orelha.
-- Alô? -- repete.
Resignado, ele fecha o aparelho e o deixa na mesa.
E olha para mim.
-- Ele disse: "Não ligue mais para cá." E desligou.
CAPÍTULO DEZOITO
DEPOIS DE DEBATER A QUESTÃO POR VÁRIAS HORAS,
HENRI ACORDA NA MANHÃ seguinte e imprime uma
rota porta a porta, de casa até Athens. Ele me diz
que estará em casa cedo, para que possamos ir ao
jantar de Ação de Graças na casa de Sarah, e me dá
um pedaço de papel com o endereço e o número do
telefone do local aonde vai.
--Tem certeza de que vale a pena? -- pergunto.
--Precisamos descobrir o que está acontecendo.
Eu suspiro.
--Acho que nós dois sabemos o que está
acontecendo.
--Talvez -- ele diz, mas com plena autoridade e
nenhum sinal da incerteza que normalmente
acompanha a palavra.
--Sabe o que me diria se nossas posições fossem
invertidas, não sabe?
Henri sorri.
-- Sim, John. Eu sei o que diria. Mas acho que isso
vai nos ajudar. Quero saber o que eles fizeram que
deixou esse homem tão assus tado. Quero saber se
nos mencionaram, se estão à nossa procura usando
meios nos quais ainda não pensamos. Isso vai nos
ajudar a continuar escondido s, a nos manter à
frente deles. E, se esse homem os viu, vamos saber
que aparência eles têm.
--Já sabemos como eles são.
--Sabemos como eram quando nos atacaram, há
mais de dez anos, mas eles podem ter mudado.
Estão na Terra há um bom tempo. Quero saber
como estão se misturando à população.
--Mesmo que saibamos que aparência eles têm,
quando os virm o s na rua provavelmente será
tarde demais.
--Talvez sim, talvez não. Se eu vir um deles, vou
tentar matá-lo. Nada garante que ele vá conseguir
me matar -- Henri opina, desta vez em dúvida e
sem qualquer autoridade.
Desisto. Não gosto nada dessa história de Henri ir
de carro até Athens enquanto eu fico em casa. Mas
sei que minhas objeções não o farão mudar de
idéia.
--Tem certeza de que volta a tempo? -- pergunto.
--Estou saindo agora, o que significa que chegarei
lá às nove. Duvido que permaneça por mais de uma
hora, duas, no máximo. Devo estar de volta à uma
da tarde.
--Então, por que me deu isto? -- pergunto
mostrando o pedaço de papel com o endereço e o
número de telefone.
--Bem, nunca se sabe.
--Sim, e é exatamente por isso que eu acho que
você não deve ir.
--Touché -- ele responde, encerrando a discussão.
Henri pega seus papéis, levanta -se e empurra a
cadeira.
--Vejo você mais tarde.
--Tudo bem -- digo.
Ele sai de casa e entra na caminho nete. Bernie
Kosar e eu vamos até a varanda e o vemos
partindo. Não sei por que, mas tenho um mau
pressentimento. Espero que ele volte.
É um longo dia. Um daqueles em que o tempo
passa devagar e cada minuto parece dez, cada hora
parece vinte. Jogo videogame e navego na Internet.
Procuro por notícias que podem estar relacionadas
a uma das outras crianças. Não e ncontro nada, o
que me deixa feliz. Isso significa que estamos nos
mantendo fora do radar. Evitando nossos inimigos.
Verifico meu telefone de tempos em tempos. Ao
meio-dia envio uma mensagem de texto para
Henri. Ele não responde. Almoço e alimento
Bernie, e depois mando outra mensagem. De novo,
não obtenho resposta. Estou ficando nervoso,
agitado. Henri nunca deixa de me responder
imediatamente. Talvez seu telefone esteja
desligado. Talvez ele tenha ficado sem bateria.
Tento me convencer dessas pos sibilidades, mas sei
que nenhuma é verdadeira.
As duas horas eu começo a ficar realmente
preocupado. Deveríamos chegar na casa dos Hart
dentro de uma hora. Henri sabe que a ocasião é
importante para mim. E não a arruinaria. Vou
tomar banho, esperando sair do chuveiro e
encontrá-lo sentado à mesa da cozinha, bebendo
uma xícara de café. Ligo a água quente e nem me
lembro da torneira da água fria. Não sinto n ada.
Todo o meu corpo é indiferente ao calor. A
sensação é de que estou me banhando em água
morna, e chego a sentir falta do calor de um banho
muito quente. Eu adorava banhos quentes. Ficar
sob a água por muito tempo. Fechar os olhos e
senti-la em minha cabeça, descendo pelo corpo. O
banho me fazia não pensar em minha vida. No
banho esqueço por algum tempo quem e o que sou.
Quando saio do chuveiro, abro meu armário e
procuro minhas melhores roupas, que não são nada
especiais: calça caqui, camisa de botões, suéter.
Como vivemos sempre fugindo, só tenho tênis de
corrida, o que é ridículo e me faz rir. É a primeira
vez que rio hoje. Vou ao quarto de Henri e estudo
o conteúdo de seu guarda-roupa. Ele tem um par
de sapatos que serve em mim. Ver suas roupas me
deixa ainda mais preocupado, perturbado. Quero
acreditar que ele só está demorando mais do que
deveria, mas ele teria entrado em contato comigo.
Alguma coisa está errada.
Caminho até a porta da frente, onde Bernie está
sentado, olhando pela janela. Ele olha para mim e
gane. Afago sua cabeça e volto para o quarto. Olho
para o relógio. Passa um pouco das três horas.
Verifico meu telefone. Nenhuma mensagem.
Decido ir à casa de Sarah, e se não tiver notícias de
Henri até as cinco, pensarei num plano. Talvez
diga aos Hart que Henri está doente e que eu
também não me sinto bem. Talvez diga que a
caminhonete de Henri quebrou e eu preciso ir
ajudá-lo. Espero que ele apareça, para que
possamos ter um agradável jantar de Ação de
Graças. Será o primeiro, nunca tive mos um. Se não,
contarei alguma história aos Hart. Será necessário.
Sem a caminhonete, decido ir correndo.
Provavelmente nem vou transpirar, e chegarei
ainda mais depressa do que se fosse de carro. E,
por causa do feriado, a estrada deve estar vazia.
Digo até logo a Bernie, prometo que estarei em
casa mais tarde e saio. Corro pelos campos,
mantendo-me nas partes mais afastadas, perto da
floresta. É bom gastar um pouco de energia. Reduz
minha ansiedade. Algumas vezes chego bem perto
de minha velocidade máxima, q ue deve ser entre
uns noventa a cento e dez quilômetros por hora. O
ar frio em meu rosto traz uma sensação deliciosa.
O som do vento também é incrível, o mesmo que
escuto ao pôr a cabeça para fora da janela da
caminhonete quando estamos percorrendo uma
estrada. Gostaria de saber que velocidade poderei
atingir quando tiver uns vinte ou vinte e cinco
anos.
Paro de correr uns noventa metros antes da casa de
Sarah. Não estou nem mesmo ofegante. Quando
passo pelo portão, vejo Sarah na janela, olhando
para fora. Ela sorri, acena e abre a porta da frente
no instante em que piso na varanda.
-- Oi, bonitão -- ela diz.
Eu me viro e olho por cima do ombro, fingindo
conferir se ela está falando com outra pessoa.
Depois a encaro e pergunto se está falando comigo.
Ela ri.
--Bobo -- diz e bate em meu braço antes de me
puxar para beijar meus lábios. Respiro fundo, e só
então sinto cheiro de comida: peru recheado,
batatas-doces, couve-de-bruxelas, torta de
abóbora.
--Que cheiro delicioso -- elogio.
--Minha mãe passou o dia cozinhando.
--Mal posso esperar pelo jantar.
--Onde está seu pai?
--Ele ficou preso. Mas deve chegar a qualquer
momento.
--Está tudo bem?
--Sim, não é nada grave.
Nós entramos, e ela me leva para conhecer a casa.
É grande, linda. Uma casa de família clássica, com
quartos no segundo andar, um sótão, onde fica o
quarto de um dos irmãos, e todos os espaços de
convivência no primeiro andar: sala de estar, sala
de jantar, cozinha e sala da família. Quando
chegamos ao quarto dela, Sarah fecha a porta e me
beija. Fico surpreso, mas euf órico.
--Passei o dia todo esperando por isso -- ela diz
com a voz suave ao se afastar. Quando caminha
para a porta, eu a puxo de volta e a beijo
novamente.
--E eu vou ficar esperando para beijá -la outra vez
mais tarde -- sussurro.
Ela sorri e bate em meu braço outra vez.
Descemos a escada, e ela me leva à sala da família,
onde seus dois irmãos mais velhos, que voltaram
da faculdade para uma visita neste fim de semana,
estão assistindo a uma partida de futebol
americano com o pai. Eu me sento com eles,
enquanto Sarah vai à cozinha ajudar a mãe e a irmã
mais nova com o jantar. Nunca gostei muito de
futebol. Acho que, por causa da maneira como
Henri e eu vivemos, nunca me interessei muito por
nada fora de nossa vida. Minha preocupação era
sempre tentar me adaptar ao local onde estávamos
e me preparar para estar em outro lugar. Os irmãos
e o pai de Sarah jogaram futebol americano no
colégio. Eles adoram o esporte. E, no jogo de hoje,
um dos irmãos e o pai torcem para um time,
enquanto o outro irmão é torcedor do tim e
adversário. Eles discutem, trocam provocações,
aplaudem e vaiam, dependendo do que acontece no
jogo. E evidente que esse padrão de
comportamento se repete há anos, provavelmente
por toda a vida dos dois irmãos, e eles se divertem
muito. Isso me faz desej ar ter alguma relação desse
tipo com Henri, qualquer coisa além de meu
treinamento e de nossa eterna fuga, da necessidade
de vivermos escondidos. Algo que nós dois
apreciássemos e que pudéssemos viver juntos,
dividir. Sinto vontade de ter um pai e irmãos d e
verdade.
No intervalo do jogo, a mãe de Sarah nos chama
para comer. Eu verifico meu telefone, e ainda não
há nenhuma mensagem. Antes de nos sentarmos,
vou ao banheiro e tento telefonar para Henri, mas
a ligação vai direto para a caixa postal. São quase
cinco da tarde, e estou começando a entrar em
pânico. Volto para a sala de jantar e me sento à
mesa, onde todos já estão reunidos. A mesa é
fantástica. Há flores no centro, com jogos
americanos e talheres dispostos meticu losamente
diante de cada cadeira. A s travessas com a comida
estão espalhadas pelo centro da mesa, com o peru
bem na frente do lugar do Sr. Hart. Assim que me
sento, a Sra. Hart entra na sala. Ela tirou o avental
e está vestindo um belo conjunto de saia e suéter.
-- Teve notícias de seu pai? -- ela pergunta.
-- Acabei de ligar para ele. Está muito atrasado e
pediu para não esperarmos por ele. E me pediu
também que o desculpassem pelo inconveniente.
O Sr. Hart começa a cortar o peru. Sarah sorri para
mim do outro lado da mesa, o que faz eu me sen tir
melhor por meio segundo. A comida é servida, e eu
pego pequenas porções de tudo. Não acredito que
eu vá conseguir comer muito. Mantenho meu
telefone fora do bolso, sobre minhas pernas, e o
programei para vibrar em caso de chamada ou de
mensagem de texto. Porém, a cada minuto que
passa, cresce minha dúvida de que receberei um ou
outro, ou de que voltarei a ver Henri. A ideia de
viver sozinho -- com meus Legados se
desenvolvendo e sem alguém para explicá -los ou
para me treinar --, de fugir sozinho, de me
esconder sozinho, de encontrar meu cami nho, de
lutar contra os mogadorianos, enfrentá -los até
derrotá-los ou morrer... Bem, tudo isso me
aterroriza.
O jantar parece durar para sempre. O tempo volta
a passar devagar. Todos os membros da família de
Sarah me enchem de perguntas. Nunca antes estive
em uma situação na qual tive de dar tantas
respostas a tantas pessoas em um período tão curto
de tempo. Eles me perguntam sobre meu passado,
os lugares em que vivi, sobre Henri, sobre minha
mãe -- que, como sempre, eu digo ter morrido
quando eu era ainda muito pequeno. E essa é a
única resposta que contém um fundo de verdade.
Não sei se minhas respostas fazem sentido. O
telefone parece pesar toneladas sobre minhas
pernas. Ele não vibra. É um peso morto.
Depois do jantar, e antes da sobremesa, Sarah
convida todo mundo para ir ao quintal, porque ela
quer tirar algumas fotos. Quando saímos, ela me
pergunta se está tudo bem. Digo que estou
preocupado com Henri. Ela tenta me acalmar e diz
que vai dar tudo certo, mas é in útil. Na verdade, só
me sinto ainda pior. Tento imaginar onde ele está
e o que está fazendo, e a única cena que consigo
imaginar é a de Henri diante de um mogadoriano,
aparentemente apavorado, ciente de que está
prestes a morrer.
Quando nos reunimos para as fotos, começo a
entrar em pânico. Como poderia chegar em
Athens? Posso ir correndo, mas seria difícil
encontrar o caminho, especialmente porque teria
de evitar o tráfego e me manter fora das grandes
rodovias. Poderia pegar um ônibus, mas assim
levaria muito tempo. Poderia pedir ajuda a Sarah,
mas isso exigiria muitas explicações e revelações,
inclusive de que sou um alien e temo que Henri
tenha sido capturado ou morto por aliens hostis
que estão me procurando para me matar. Não é a
melhor idéia.
Posamos para a foto, e sou tomado por uma
urgência desesperada de ir embora, mas preciso
sair de um jeito que não desperte ressenti mentos
de Sarah ou de sua família por mim. Concentro -me
na câmera, olho diretamente para a lente, mas
continuo tentando pensar em uma desculpa que
provoque o mínimo de questionamento. Agora
estou completamente dominado pelo pânico.
Minhas mãos começam a tremer. Estão quentes.
Examino-as para ter certeza de que não brilham.
Estão apagadas, mas quando levanto o olhar
percebo que a camera está tremendo nas mãos de
Sarah. Sei que, de alguma forma, eu estou
causando essa reação, mas não sei como nem o que
fazer para detê-la. Um arrepio percorre minha
espinha. Minha respiração fica presa na garganta e,
ao mesmo tempo, a lente da câmera estal a e se
quebra. Sarah grita, abaixa a câmera e olha para
ela, confusa. Ela está boquiaberta, com os olhos
cheios de lágrimas.
Os pais correm até ela, preocupados. Eu fico
parado, tomado pelo choque. Não sei o que fazer.
Estou intrigado com a câmera, com o n ervosismo
causado em Sarah, mas também estou eufórico,
porque compreendo que minha telecinesia
finalmente despertou. Serei capaz de controlar
esse poder? Henri vai ficar muito feliz quando
souber. Henri. O pânico retorna. Cerro os punhos.
Preciso sair dali. Preciso encontrá-lo. Se os
mogadorianos o capturaram, o que espero que não
tenha acontecido, matarei todos eles para resgatá -
lo.
Pensando depressa, eu me aproximo de Sarah e a
tiro de perto dos pais, que estão examinando a
câmera e tentando entender o q ue aconteceu.
-- Acabei de receber uma mensagem de Henri.
Sinto muito, de verdade, mas preciso ir.
Sarah está distraída, olhando para mim e para os
pais.
-- Está tudo bem com ele?
-- Sim, mas eu preciso ir. Henri precisa de mim. --
Ela concorda, e nós nos beij amos rapidamente.
Espero que não seja a última vez.
Agradeço aos pais e aos irmãos dela e saio antes
que possam me fazer muitas perguntas. Caminho
até o portão e, assim que passo por ele, começo a
correr. Volto pelo mesmo caminho que usei para
chegar à casa de Sarah. Mantenho-me afastado das
principais rodovias, preferindo correr entre as
árvores. Em poucos minutos estou em casa. Ouço
Bernie Kosar arranhando a porta quando me
aproximo da varanda. Ele está ansioso, como se
também pressentisse algo de errad o.
Vou direto para meu quarto. Retiro da mochila o
pedaço de papel com o número de telefone e o
endereço que Henri anotou antes de sair. Disco
aquele número. Uma gravação informa: "Lamento,
o número que você chamou foi desligado ou está
fora de serviço." Olho para o pedaço de papel e
disco novamente. A mesma gravação.
-- Merda! -- eu grito. Chuto uma cadeira, e ela
atravessa a cozinha e vai parar na sala de estar.
Volto para meu quarto. Saio. E volto mais uma vez.
Olho para o espelho. Meus olhos estão verme lhos:
lágrimas afloram, mas nenhuma cai. Minhas mãos
tremem. Sou consumido pela raiva, pelo ódio e por
um medo horrível de que Henri esteja morto.
Fecho os olhos com força e expulso toda a fúria do
peito. Numa explosão repentina, eu grito e abro os
olhos e estendo as mãos para o espelho, que se
parte em vários pedaços, embora eu esteja muitos
metros longe dele. Paro e olho. Boa parte do
espelho ainda está presa à parede. O que aconteceu
na casa de Sarah não foi um acaso feliz.
Olho para os cacos no chão. E stendo a mão,
concentro-me em um dos cacos e tento movê -lo.
Minha respiração está controlada, mas medo e
raiva persistem dentro de mim. Medo é uma
palavra simples demais. Terror. É isso que sinto.
No início o caco não sai do lugar, mas depois de
quinze segundos ele começa a tremer. Lentamente
no início, depois mais depressa.
E então eu lembro. Henri disse que normalmente
são as emoções que desencadeiam os Legados. Com
certeza é isso que está aconte cendo agora. Esforço-
me para tirar o caco do chão. Gotas de suor brotam
em minha testa. Eu me concentro com tudo o que
tenho e tudo o que sou, apesar de tudo o que está
acontecendo. Respirar é uma dificuldade.
Lentamente, o pedaço de espelho começa a se
erguer. Um milímetro. Dois centímetros. Ele está
uns vinte centímetros do chão, continua subindo,
meu braço direito estendido e se movendo com ele
até o caco de vidro estar na altura dos meus olhos.
Eu o mantenho ali. Se Henri puder ver isso, penso. E
num flash, em meio à excitação da minha
felicidade recém-descoberta, pânico e medo
retornam. Olho para o caco, para como ele reflete
a parede revestida de madeira que parece velha e
gasta no espelho. Madeira. Velha e gasta. Então
meus olhos se abrem mais do que jamais pensei
que pudesse abri-los. A arca!
Henri me disse, referindo-se ao cadeado: "Só nós
dois podemos abri-lo, e juntos. A menos que eu
morra; então você poderá abri-lo sozinho."
Deixo cair o caco de espelho e saio correndo de
meu quarto para o de Henri. A arca está no chão ao
lado da cama dele. Eu a pego, co rro para a cozinha
e a jogo na mesa. O cadeado na forma do emblema
lórico está voltado para mim.
Eu me sento à mesa e olho para o cadeado. Meu
lábio está tremendo. Tento respirar mais devagar,
mas é inútil; meu peito está arfando, como se eu
houvesse corrido quinze quilômetros em
velocidade máxima. Tenho medo de sentir um
clique sob meus dedos. Respiro fundo e fecho os
olhos.
-- Por favor, não abra -- digo.
Agarro o cadeado. Prendendo a respiração, eu o
seguro com força, minha visão se turva, os
músculos em meus braços se contraem. Espero
pelo clique. Seguro o cadeado e espero pelo clique.
Mas não acontece clique nenhum.
Solto o cadeado, reclino a cabeça e a seguro entre
as mãos. Ainda há esperança. Deslizo as mãos pelo
cabelo e me levanto. Vejo uma colher su ja na
bancada. Concentro-me nela e movimento a mão, e
a colher sai voando. Henri ficaria muito feliz.
Henri, onde você está? Em algum lugar, e vivo. E eu vou
huscá-lo.
Disco o número do telefone de Sam, único amigo
que fiz em Paradise além de Sarah, único amigo
que já tive, para ser bem honesto. Ele atende no
segundo toque.
-- Alô?
Fecho os olhos e aperto a ponte do nariz. Respiro
fundo. O tremor retornou, se é que ele
desapareceu em algum momento.
--Alô? -- ele repete.
--Sam.
--Ei, sua voz está horrível! Tudo bem?
--Não. Preciso de sua ajuda.
--O que aconteceu?
--Sua mãe pode trazê-lo aqui?
-- Ela não está em casa. Foi dar plantão no
hospital, porque ganha hora extra em dobro nos
feriados. O que está acontecendo?
--As coisas vão mal, Sam. E preciso de ajuda.
Um breve silêncio, e então ele diz:
--Vou para aí o mais depressa que puder.
--Tem certeza?
--Vejo você daqui a pouco.
Desligo o telefono e apoio a cabeça na mesa.
Athens, em Ohio. É lá que Henri está. De alguma
forma, de alguma maneira, é para lá que tenho de
ir.
É preciso chegar lá bem depressa.
CAPÍTULO DEZENOVE
ENQUANTO ESPERO POR SAM, ANDO PELA CASA
ELEVANDO OBJETOS INANIMADOS sem tocá-los: uma
maçã da bancada da cozinha, um garfo na pia, um
vaso com uma planta ao lado da janela da frente.
Só consigo levantar objetos pequenos, e eles se
erguem no ar de um jeito meio tímido. Quando
tento mover algo mais pesado -- uma cadeira, uma
mesa --, nada acontece.
As três bolas de tênis que Henri e eu usamos nos
treinamentos estão em uma cesta do outro lado da
sala de estar. Trago uma delas até mim, e, quando
ela passa pelo campo de visão de Bernie Kosar, ele
a segue atentamente com os olhos. Depois a
arremesso sem tocá-la e Bernie corre atrás. Antes
que ele consiga pegá-la eu a puxo de volta ou,
quando ele consegue, eu a tiro de sua boca, tudo
isso sem me levantar da cadeira na sala de estar.
Isso me distrai, afasta meus pensamentos de Henri,
de tudo o que pode estar acontecendo com ele e da
culpa pelas mentiras que vou ter de contar a Sam.
Ele leva vinte e cinco minutos para percorr er de
bicicleta os seis quilômetros da casa dele até a
minha. Escuto quando ele chega peda lando pela
entrada de cascalho. Ele pula da bicicleta,
deixando-a cair no chão, e entra correndo pela
porta da frente sem bater, ofegante. Seu rosto está
coberto de suor. Ele olha em volta, estudando o
cenário.
--O que foi? -- pergunta.
--Isso vai soar absurdo para você -- começo --,
mas precisa prometer que vai me levar a sério.
--Do que está falando?
Do que estou falando? Estou falando sobre Henri. Ele
desapareceu por descuido, o mesmo descuido que sempre
pregou contra. Estou falando sobre o fato de ter contado a
verdade quando você apontou aquela arma para mim. Eu
sou um alien. Henri e eu chegamos na Terra há dez anos, e
somos perseguidos por uma raça violenta de alienígenas.
Estou falando sobre Henri pensar que pode escapar deles
de alguma forma, se tiver um pouco mais de
conhecimento. E agora ele desapareceu. É disso que estou
falando, Sam. Você me entende? Mas não, não posso
dizer essas coisas a ele.
-- Meu pai foi capturado, Sam. Não sei dizer com
certeza por quem, ou o que foi feito dele. Mas algo
aconteceu, e acredito que ele foi feito prisioneiro.
Ou pior.
Um sorriso gelado se forma no rosto dele.
-- Pare com isso -- Sam diz.
Eu balanço a cabeça e fecho os olhos. A grav idade
da situação dificulta novamente o simples ato de
respirar. Eu me viro e olho para Sam com ar
suplicante. Lágrimas brotam em meus olhos.
-- Não estou brincando.
O rosto de Sam empalidece.
--Como assim, não está? Quem o capturou? Onde
ele está?
--Ele localizou o autor de um dos artigos daquela
sua revista em Athens, Ohio, e foi até lá hoje. E
não voltou. O telefone está desligado. Aconteceu
alguma coisa com ele. Algo ruim.
Sam fica ainda mais confuso.
-- O quê? Por que ele se incomodaria com isso?
Tem algo nessa história que eu não entendo. É só
um artigo idiota!
--Não sei, Sam. Ele é como você: adora aliens,
teorias de conspiração e todas essas coisas. -- Eu
penso depressa. -- Sempre foi um hobby para ele.
Um dos artigos despertou seu interesse, e acho que
ele quis saber mais, então foi até lá.
--Foi o artigo sobre os mogadorianos?
--Sim. Como você sabe?
--Porque ele reagiu como se tivesse visto um
fantasma quando falei sobre esse artigo no dia de
Halloween. Mas por que alguém ia se importar se
ele fizesse perguntas sobre um artigo estúpido?
--Não sei. Quero dizer, imagino que essas pessoas
não sejam as mais equilibradas do mundo. Devem
ser paranóicas, delirantes. Talvez tenham pensado
que ele é um alien. Você apontou uma arma para
mim pelo mesmo motivo, lembra? Ele devi a estar
em casa à uma da tarde, e seu celular está
desligado. Isso é tudo o que posso lhe dizer.
Eu me levanto e vou até a mesa da cozinha. Pego o
pedaço de papel com o endereço e o número de
telefone de onde Henri deve estar.
-- Ele foi para esse lugar hoje -- digo. -- Tem
alguma ideia de onde fica?
Ele olha para o papel, depois para mim.
--Quer ir até lá?
--Não sei o que mais posso fazer.
--Por que não vai à polícia e conta o que
aconteceu?
Eu me sento no sofá, pensando na melhor maneira
de responder. Gostaria de poder dizer a verdade,
explicar que o envolvimento da polícia no caso nos
obrigaria a ir embora de Paradise. Isso, na me lhor
das hipóteses. Na pior, Henri seria interrogado,
talvez fichado, obrigado a enfrentar uma
burocracia lenta e complexa de reconhe cimento, o
que daria aos mogadorianos muito tempo para
agir. E, quando eles nos encontrassem, a morte
seria iminente.
-- Que polícia? A de Paradise? O que acha que
fariam se eu contasse a verdade? Levariam dias
para me ouvir com um mínimo de seriedade, e nã o
tenho esse tempo.
Sam encolhe os ombros.
--Talvez eles o levem a sério. Além do mais, e se
ele só se atrasou, ou se o celular quebrou? Pode
estar a caminho de casa neste momento...
--Talvez, mas não acredito nisso. Alguma coisa
aconteceu, e preciso ir atrás dele o mais depressa
possível. Ele devia estar em casa há horas.
-- Talvez tenha se envolvido em um acidente.
Balanço a cabeça.
-- Talvez, mas acho que não. E, se ele estiver em
perigo, nós estamos perdendo tempo.
Sam olha para o pedaço de papel. Ele morde o
lábio e fica em silêncio por uns quinze segundos.
--Bem, eu sei vagamente como chegar em Athens.
xx
Mas não tenho a menor idéia de como encontrar
esse endereço quando estivermos lá.
--Posso imprimir um mapa da Internet. Não é isso
que me preocupa. Estou aflito com o transporte.
Tenho cento e vinte dólares em meu quarto. Posso
pagar alguém para nos levar até lá, mas não sei
quem. Não há muitos táxis em Paradise.
--Podemos usar nossa caminhonete.
--Que caminhonete?
--A que era do meu pai. Nós ainda a temos. Está
na garagem. Não tocamos nela desde que ele
desapareceu.
--Está falando sério?
Ele move a cabeça em sentido afirmativo.
--Há quanto tempo o motor não é ligado? Acha
que ainda funciona?
--Oito anos. Por que não funcionaria? Era quase
nova quando ele a comprou.
--Espere, deixe-me ver se entendi direito. Está
sugerindo que façamos sozinhos a viagem de duas
horas até Athens? Dirigindo?
O sorriso que surge no rosto de Sam é evasivo.
-- É exatamente o que estou sugerindo.
Eu me inclino para a frente no sofá. Sei que meu
sorriso reflete o dele.
--Sabe que vamos ter problemas sérios se formos
pegos, não é? Não temos carteira de motorista.
--Sim, eu sei. Minha mãe vai me matar, e talvez
mate você também. E ainda temos de pensar na
questão legal. Mas, sim, se você acredita realmente
que seu pai está com problemas, o que mais po -
demos fazer? Se os papéis fossem invertidos, se
fosse meu pai que estivesse encrencado, eu não
pensaria duas vezes.
Olho para Sam. Não há nenhuma hesitação em seu
rosto quando ele sugere a viagem de duas horas, e
ainda nem discutimos outro detalhe: nenhum de
nós dois sabe dirigir, e não fazemos ideia do que
esperar ao chegarmos lá. Mas Sam está comigo. O
plano foi dele.
-- Tudo bem, vamos dirigir até Athens -- decido.
Jogo meu celular na mochila, certifico -me de que
tudo está fechado e em ordem. Depois percorro a
casa e olho tudo como se fosse a última vez. É um
pensamento bobo, e sei que estou simplesmente
sendo sentimental, mas estou nervoso, e traz certa
sensação de calma fazer isso. Toco os objetos, mas
os deixo no lugar. Depois de cinco minu tos, sinto
que estou pronto.
--Vamos -- digo a Sam.
--Quer ir na bicicleta comigo?
--Não. Pode ir pedalando. Eu vou correndo ao seu
lado.
--E sua asma?
--Acho que vou ficar bem.
Partimos. Ele monta na bicicleta. Tenta pedalar o
mais depressa possível, mas não está em sua
melhor forma. Eu corro alguns metros atrás dele e
finjo estar cansado. Bernie nos segue. Quando
chegamos à casa de Sam, ele está pingando suor.
Sam corre até o quarto e volta com uma mochila.
Ele a coloca sobre a bancada da cozinha e começa a
trocar de roupa. Dou uma olhada dentro dela. Um
crucifixo, alguns dentes de alho, uma estaca de
madeira, um martelo, uma bola de massinha e um
canivete.
--Percebe que essas pessoas não são vampiros, não
é? -- eu pergunto quando Sam retorna.
--Sim, mas nunca se sabe. Eles são malucos,
provavelmente, como você disse.
--E mesmo que estivéssemos caçando vampiros,
para que usaria massinha de modelar?
-- Não custa se preparar. -- Ele dá de ombros.
Sirvo uma vasilha com água para Bernie Kosar, e
ele bebe com vontade. Troco de roupas no
banheiro e retiro de minha mochila o mapa com as
instruções. Depois atravesso a casa e vou até a
garagem, que é escura e tem cheiro de gasolina e
de grama cortada. Sam acende a luz. Várias
ferramentas enferrujaram pela falta de uso e estão
penduradas em ganchos apropriados. A
caminhonete está no meio da garagem, sob uma
grande lona azul coberta por uma espessa camada
de poeira.
--Quanto tempo faz que essa lona não é removida?
--Desde que meu pai desapareceu.
Levanto uma beirada. Sam ergue a outra, e juntos
nós removemos a lona e a deixamos em um canto.
Sam olha para a caminhonete com os olhos
arregalados e um sorriso nos lábios.
O veículo é pequeno, azul-escuro, e só há espaço
para duas pessoas -- ou três, se uma delas não se
incomodar com o desconforto de viajar no meio
das outras. Vai ser perfeito para Bernie Kosar. A
poeira dos últimos oito anos não chegou ao
interior do veículo, que brilha como se tivesse sido
encerado recentemente. Jogo minha mo chila na
carrocería.
-- A caminhonete de meu pai -- Sam diz,
orgulhoso. -- Tantos anos, e ela ainda é
exatamente a mesma.
-- Nossa carruagem dourada -- eu digo. -- Tem as
chaves?
Ele caminha até a parede e pega um molho de
chaves de um gancho ali. Destranco a porta da
garagem e a abro.
--Quer resolver quem vai dirigir com "pedra, papel
e tesoura"? -- pergunto.
--Não! -- Sam responde. Ele abre a porta do lado
do motorista e se senta ao volante. O motor tosse,
falha, mas finalmente pega. Ele abaixa a janela. --
Acho que meu pai ficaria orgulhoso se me visse
dirigindo a caminhonete.
--Também acho. -- Eu sorrio. -- Tire o carro da
garagem, e eu fecho a porta.
Ele respira fundo, engata a primeira marcha e
devagar, com certa timidez, vai saindo da garagem.
Sam pisa no freio com força exage rada, cedo
demais, e a caminhonete para bruscamente.
-- Você ainda não saiu completamente -- grito.
Ele tira o pé do pedal e termina de sair bem
devagar. Eu fecho a por ta da garagem. Bernie Kosar
salta para dentro da caminhonete sem que eu
precise incentivá-lo, e eu me sento ao lado dele. As
mãos de Sam seguram o volante com tanta força
que os nós dos dedos estão brancos.
--Nervoso? -- pergunto.
--Apavorado.
--Vai dar tudo certo -- digo. -- Nós dois vimos
outras pessoas dirigindo milhares de vezes.
Ele assente.
--Tudo bem. Para que lado devo ir?
--Vamos mesmo seguir adiante com este plano?
--Sim -- ele insiste.
--Para a direita, então. Vamos sair da cidade.
Afivelamos o cinto de segurança. Eu abro a janela
apenas o suficiente para Bernie Kosar pôr a cabeça
para o lado de fora, o que ele faz imediatamente,
apoiando-se nas patas traseiras, em meu colo.
--Estou completamente apavorado -- confessa
Sam.
--Eu também.
Ele respira fundo, prende o ar nos pulmões e
depois exala lentamente.
--E... lá... vamos... nós -- diz, tirando o pé do freio
quando termina a última palavra. O caminhão
desce a entrada da garagem aos trancos. Ele pisa
no breque uma vez e nós paramos. Então ele solta
o pé aos poucos e o carro volta a andar, seguindo
lentamente até a saída da propriedade. Sam olha
para os dois lados e entra na estrada, primeiro bem
devagar, depois ganha velocidade. Ele está tenso,
debruçado sobre o volante, e depois de um
quilômetro e meio um sorriso começa a se formar
em seu rosto, e ele se recosta no banco.
--Não é tão difícil.
--Você nasceu para isso.
Ele mantém a caminhonete perto da faixa pintada
no lado direito da estrada. Sam fica tenso cada vez
que um carro passa em sentido contrário, mas
depois de um tempo ele relaxa e presta menos
atenção aos outros automóveis. Ele faz uma curva,
e outra, e em vinte e cinco minutos entramos na
interestadual.
--Não acredito que estamos mesmo fazendo isso --
Sam finalmente comenta. -- Nunca fiz loucura
maior.
--Nem eu.
--Tem algum plano para quando chegarmos lá?
--Nenhum. Espero ser capaz de encontrar o lugar,
e então pensarei em algo. Não sei se é uma casa,
um prédio comercial ou outra coisa. Nem sei se ele
está mesmo lá.
Sam assente.
--Acha que ele está bem?
--Não tenho idéia -- respondo.
Respiro fundo. Temos uma hora e meia pela frente
até chegarmos em Athens.
Então, encontraremos Henri.
CAPÍTULO VINTE
DIRIGIMOS RUMO AO SUL, ATÉ ATHENS APARECER
ANINHADA AOS PÉS DAS Montanhas Apalaches: uma
cidade pequenina que brota no meio das árvores.
Em meio à penumbra, vejo um rio sinuoso, que
parece contornar a cidade, servindo de fronteira a
leste, sul e oeste, enquan to ao norte estão as
árvores e as montanhas. A temperatura é relati -
vamente quente para novembro. Passamos pelo
estádio de futebol da faculdade. Um pouco além
dele está o domo branco de uma arena.
-- Vamos pegar a próxima saída -- eu digo.
Sam dirige a caminhonete pela interestadual e vira
à direita na Richland Avenue. Nós dois estamos
eufóricos por conseguir chegar ali inteiros, sem
sermos pegos.
--Então esta é a aparência de uma cidade
universitária...
--Acho que sim -- respondo.
Há edifícios e alojamentos nos dois lados da
avenida. A grama é verde, meticulosamente
aparada, mesmo em novembro. Subimos uma
colina íngreme.
--Lá no alto fica a Court Street. Vamos virar à
esquerda.
--Quanto falta? -- Sam quer saber.
--Um quilômetro, mais ou menos.
--Quer passar em frente antes de pararmos?
-- Não. Acho melhor estacionar na primeira vaga que
encontrarmos, depois seguimos a pé.
Dirigimos pela Court Street, que é a via principal do centro
da cidade. Tudo está fechado neste feriado -- livrarias,
cafeterias, bares. Mas vejo algo que se destaca como um
brilhante.
-- Pare!
Sam pisa no freio.
-- O que é?
Um carro buzina atrás de nós.
-- Nada, nada. Continue. Vamos estacionar.
Percorremos mais um quarteirão até encontrar uma vaga.
Pelos meus cálculos, estamos a cinco minutos de
caminhada do endereço, no máximo.
--O que foi aquilo? Você quase me matou de susto!
--Vi a caminhonete de Henri.
--Ah... Por que você às vezes o chama de Henri?
--Não sei. Simplesmente sai. É uma espécie de brincadeira
nossa -- digo e olho para Bernie Kosar. -- Acha que
devemos levá-lo?
Sam encolhe os ombros.
-- Ele pode atrapalhar.
Dou algumas guloseimas a Bernie Kosar e o deixo no carro,
com a janela entreaberta. Ele não fica feliz e começa a ganir
e a arranhar o vidro, mas não creio que vamos demorar.
Sam e eu voltamos a pé pela Court Street. Levo minha
mochila nas costas, Sam prefere carregar a dele na mão. Ele
pegou a massinha de modelar e a está apertando, como as
pessoas fazem com aquelas bolas de espuma quando estão
estressadas. Chegamos à caminhonete de Henri. As portas
estão travadas. Não há nada importante nos bancos ou no
painel.
-- Bem, isso significa duas coisas -- digo. -- Henri ainda
está aqui e quem o pegou ainda não encontrou a
caminhonete, o que quer dizer que ele não falou nada.
-- E o que ele poderia ter falado?
Por um momento esqueci que Sam não sabe as verdadeiras
razões de Henri estar ali. Já cometi um deslize e chamei
Henri pelo nome. Preciso tomar cuidado para não revelar
mais nada.
-- Não sei -- digo. -- Quem pode imaginar que tipo de
perguntas esses malucos esquisitos estão fazendo?
-- Tudo bem. E agora, o que vamos fazer?
Estudo o mapa do endereço que Henri me deu naquela
manhã.
-- Vamos andar -- decido.
Voltamos pelo mesmo caminho. Começamos a ver casas e
edifícios. Todos sujos e mal-conservados. Em pouco tempo
chegamos ao endereço e paramos.
Olho para o pedaço de papel, depois para a casa. Respiro
fundo.
-- Aqui estamos -- anuncio.
Ficamos observando a construção de dois andares com
fachada cinza, de revestimento vinílico. A entrada leva a
uma varanda sem pintura onde há um balanço quebrado
pendendo para um lado. A grama é alta e malcuidada. O
lugar parece desabitado, mas há um carro nos fundos. Não
sei o que fazer. Pego meu celular. São 23h12. Telefono para
Henri, mesmo sabendo que ele não vai atender. É uma
tentativa de colocar as idéias em ordem, pensar em um
plano. Não tinha programado o que fazer quando
encontrasse o endereço e, agora que a realidade estava ali,
bem na minha frente, me deu um branco. A chamada cai
direto na caixa postal.
--Vou bater à porta -- diz Sam.
--E dizer o quê?
--Não sei, o que me vier à cabeça.
Mas ele não tem essa oportunidade, porque no mesmo
instante um homem sai pela porta da frente. Ele é grande,
tem pelo menos um metro e noventa e cinco de altura e
mais de cem quilos. Usa cavanhaque e a cabeça é raspada.
Veste botas de caminhada, jeans e moletom preto com
as mangas arregaçadas. Ele tem uma tatuagem no
antebraço direito, mas estou longe demais para ver
o que é. O homem cospe no quintal, depois se vira
e tranca a porta, atravessa a varanda e caminha em
nossa direção. Fico tenso quan do ele se aproxima.
A tatuagem é de um alien com um buquê de tulipas
em uma das mãos, como se oferecesse as flores
para uma entidade invisível. O homem passa por
nós sem dizer nada. Sam e eu nos viramos e o
vemos se afastar.
-- Viu aquela tatuagem? -- pergunto.
-- Vi. Quem disse que só nerds magrelos curtem
alienígenas, hem? Aquele homem é enorme e
parece ser bastante mau.
--Pegue meu celular, Sam.
--O quê? Por quê?
-- Você precisa ir atrás dele. Leve meu telefone.
Vou entrar na casa. E óbvio que não tem ninguém
lá dentro, ou ele não teria tran cado a porta. Henri
pode estar lá. Ligo para você assim que puder.
-- E como vai me ligar?
--Não sei. Mas vou encontrar um jeito. Pegue.
Ele aceita o telefone com relutância.
--E se Henri não estiver lá dentro?
-- Por isso quero que siga aquele sujeito. Ele pode
estar a caminho de onde Henri está.
-- E se ele voltar?
-- Vamos pensar em algum plano. Mas agora você
precisa ir. Prometo telefonar assim que cons eguir,
está bem?
Sam se vira e fita o homem, que agora está a uns
vinte e cinco metros. Então olha para mim.
-- Tudo bem, eu vou. Mas tome cuidado aqui.
-- Você também, seja cuidadoso. Não o perca de
vista. E não deixe que ele o veja.
-- De jeito nenhum.
Ele se vira e corre atrás do homem. Eu os observo
e, quando eles desaparecem de vista, aproximo -me
da casa. As janelas estão escuras, cobertas com
cortinas brancas. Não consigo ver lá dentro.
Caminho até a parte de trás, onde há um pequeno
pátio de concreto que leva a uma porta trancada.
Percorro o restante do caminho contornando a
casa. A vegetação crescida ficou ali abandonada
desde o verão. Tento abrir uma janela. Trancada.
Todas estão trancadas. Devo arrombar uma delas?
Quebrar? Procuro pedras entre os ar bustos, e, no
instante em que encontro uma e a suspendo com a
mente, uma idéia me passa pela cabeça. É tão
maluca que pode dar certo.
Deixo a pedra cair e caminho até a porta dos
fundos. A fechadura é simples, sem tranca. Respiro
fundo, fecho os olhos, concentrado, e seguro a
maçaneta. Tento girá-la uma vez. Meus
pensamentos vagam da cabeça para o coração e o
estômago. Tudo está reunido ali. Seguro a
maçaneta com mais força e prendo o ar, ansioso,
enquanto tento visualizar o funcionamento
daquele mecanismo. Então, ouço e sinto um clique
na mão apoiada na maçaneta. O sorriso ilumina
meu rosto. Giro a maçaneta e a porta se abre. Não
acredito que sou capaz de destrancar portas
imaginando o que há dentro delas.
A cozinha é surpreendentemente limpa, não há
sujeira nas bancadas nem louça na pia. Vejo pão
fresco no aparador. Ando por um corredor estreito
e chego a uma sala de estar cujas paredes são deco -
radas com flâmulas e pôsteres de esportes. Há uma
televisão grande em um dos cantos. À esquerda
fica a porta de um quarto. Dou uma espiada lá
dentro. O lugar está uma bagunça, a cama
desarrumada e muitos objetos amontoados em uma
cômoda. O ar tem o cheiro aze do de roupa suja e
impregnada de suor que nunca secou.
Na frente da casa, ao lado da porta, um lance de
escada leva ao segundo andar. Começo a subir. O
terceiro degrau range sob meus pés.
-- Olá? -- chama uma voz do alto da escada.
Eu paro, prendo a respiração.
-- Frank, é você?
Fico em silêncio. Escuto alguém se levantando de
uma cadeira, passos no piso de madeira. Passos
que se aproximam. Um homem surge no topo da
escada. Cabelo escuro e sujo, costeletas, barba por
fazer. Não é tão grande quanto aquele que saiu,
mas também não é pequeno.
--Quem é você? -- ele pergunta.
--Estou procurando um amigo -- respondo.
Seu rosto se transforma numa máscara hostil. Ele
desaparece e volta segundos depois, segurando um
taco de beisebol.
--Como entrou aqui? -- indaga.
--Em seu lugar, eu abaixaria esse taco.
--Como entrou aqui?
--Sou mais rápido que você. E muito mais forte.
--Ah, é claro que é.
-- Estou procurando um amigo. Ele veio aqui hoje
de manhã. Quero saber onde ele está.
--Você é um deles, não é?
--Não sei do que está falando.
-- Você é um deles! -- o homem grita. Ele segura o
bastão como um jogador, as duas mãos na base e o
corpo pronto para uma rebatida. Há medo
autêntico em seus olhos. Sua mandíbula está tensa,
comprimida. -- É um deles! Por que não nos
deixam em paz?
--Não sou um deles. Vim procurar meu amigo.
Diga onde ele está.
--Seu amigo é um deles!
--Não, não é.
--Então sabe de quem estou falando?
--Sim.
Ele desce um degrau.
-- Estou avisando -- repito. -- Largue o bastão e
diga onde ele está.
Minhas mãos tremem pela incerteza da situação,
por ele ter um bastão nas mãos e eu contar apenas
com minhas habilidades. Fico nervoso com o medo
que vejo em seus olhos. Ele desce mais um degrau.
Agora restam apenas seis entre nós dois.
--Vou arrancar sua cabeça. Isso vai mandar um
recado aos seus amigos.
--Não são meus amigos. E posso garantir que
estaria fazendo um favor a eles se me machucasse.
-- É o que vamos ver.
Ele desce a escada correndo. Não há nada que eu
possa fazer além de reagir. Ele me ataca com o
bastão. Eu me abaixo e ele acerta a pa rede com um
baque, deixando um buraco no revestimento de
madeira. Eu me aproximo dele pelas costas e o
levanto no ar, segurando-o pelo pescoço, com uma
das mãos e apoiando a outra em sua axila,
carregando-o de volta escada acima. Ele esperneia,
acertando chutes em minhas pernas e um na
virilha. O bastão cai, rola pela escada, e escuto
uma janela se quebrando atrás de mim .
O segundo andar é um loft amplo e aberto. Está
escuro. As paredes são cobertas de exemplares de
Eles Estão entre Nós, e, onde acabam as revistas,
começa uma coleção variada de parafernália
alienígena. Porém, diferentemente do material
acumulado por Sam, aquelas fotos são reais,
tiradas ao longo de anos e ampliadas de forma que
é difícil identificar o panorama, vê em-se apenas
pontos brancos ou fundos negros. Em um canto há
um alienígena de borracha com uma corda no
pescoço. Alguém pôs um chapéu mexicano n a
cabeça do boneco. Estrelas que brilham no escuro
foram coladas no teto. Elas parecem fora de lugar,
mais apropriadas para a decoração do quarto de
uma menina de dez anos.
Jogo o homem no chão. Ele se afasta de mim e fica
em pé. Quando se levanta, concent ro todo o meu
poder no estômago e o lanço em sua direção com
um movimento firme, como se empurrasse alguém,
e ele voa para trás e se choca contra a parede.
-- Onde ele está? -- pergunto.
--Jamais direi. Ele é um de vocês.
--Não sou quem você está pensando.
--Nunca vão conseguir! Deixem a Terra em paz!
Levanto a mão e o esgano. Posso sentir os tendões
sob meus dedos, embora nem esteja tocando nele.
O homem não consegue respirar e o rosto fica
vermelho. Eu o solto.
--Vou perguntar mais uma vez.
--Não.
Volto a esganá-lo, e, desta vez, quando vejo o rosto
vermelho, aperto com mais força. Quando o solto,
ele começa a chorar e me sinto mal por ele, pelo
que acabei de fazer. Mas esse homem sabe onde
está Henri, fez alguma coisa com ele, e minha
piedade termina quase tão depr essa quanto
começou.
Depois de recuperar o fôlego, e entre soluços
desesperados, ele diz:
--Lá embaixo.
--Onde? Não o vi.
-- No porão. A porta fica atrás da flâmula dos
Steelers, na sala de estar.
Uso o telefone fixo que encontro no loft para
discar para meu celular. Sam não atende. Arranco
o telefone da parede e o quebro ao meio.
--Quero seu celular -- digo.
--Não tenho.
Vou até onde está o boneco e removo a corda do
pescoço.
-- Por favor -- o homem suplica.
-- Quieto. Você sequestrou meu amigo. E o está
mantendo preso aqui. Tem sorte por eu me
contentar em amarrá-lo.
Puxo seus braços para trás das costas e o amarro
com força, envolvendo o corpo com a corda, depois
o amarro a uma das cadeiras. Não acredito que isso
o reterá por muito tempo. Fecho sua boca com fita
adesiva, para impedi-lo de gritar e, só então, desço
a escada para procurar a porta do porão. Arranco a
flâmula dos Steelers da parede e a encontro. Mas
está trancada. Eu a destranco como fiz com a ou -
tra. A escada de madeira conduz à total escuridão
lá embaixo.
Sinto cheiro de mofo. Acendo a luz e começo a
descer devagar, temendo o que posso encontrar. As
vigas estão cobertas de teias de aranha. Chego ao
porão e sinto imediatamente a presença de alguém,
tem mais alguém ali comigo. Respiro fundo e me
viro.
Ali, sentado no meio do porão, está Henri.
-- Henri!
Ele pisca os olhos se ajustando à repentina
luminosidade. Sua boca está coberta com um
pedaço de fita adesiva. As mãos estão pre sas sob o
corpo, os tornozelos foram amarrados aos pés da
cadeira na qual ele está sentado. O cabelo está em
desalinho, e no lado direito de seu rosto há um fio
de sangue seco e escuro. A cena me enfurece.
Aproximo-me dele e removo a fita adesiva de sua
boca. Ele inspira profundamente.
--Graças a Deus -- diz. Sua voz soa fraca. -- Você
tinha razão, John. Foi tolice vir aqui. Sinto muito,
devia tê-lo escutado.
--Shhh...
Eu me abaixo e começo a desamarrar seus
tornozelos. Ele cheira a urina.
--Fui vítima de uma emboscada.
--Quantos eram? -- quero saber.
--Três.
--Um deles está amarrado lá em cima.
Solto suas pernas. Ele as estende e suspira aliviado.
--Passei o dia todo nesta maldita cadeira.
Começo a soltar suas mãos.
--Como conseguiu chegar aqui? -- Henri pergunta.
--Sam e eu viemos juntos. Dirigimos até aqui.
--Está brincando?
--Não havia outra saída.
--Dirigiram o quê?
--A velha caminhonete do pai dele.
Henri fica em silêncio por um instante, refletindo sobre o
significado do que ouviu.
-- Ele não sabe de nada -- explico. -- Disse a ele que
aliens são um hobby para você, só isso.
Ele assente.
--Bem, fico feliz por terem conseguido chegar. Onde ele
está agora?
--Seguindo um deles. Não sei para onde foram.
Ouvimos uma tábua estalar sobre nós. Eu me levanto,
deixando as mãos de Henri quase desamarradas.
-- Ouviu isso? -- sussurro.
Ficamos olhando para a porta, quase sem respirar. Um
passo soa na escada, depois outro, e de repente o
grandalhão pelo qual passamos antes, aquele que Sam
devia estar seguindo, aparece.
-- A festa acabou, amigos -- ele diz, segurando uma arma
apontada para meu rosto. -- Afaste-se.
Levanto as mãos e dou um passo para trás. Penso em usar
meus poderes para desarmá-lo, mas e se fizer a arma
disparar por acidente? Ainda não confio plenamente em
minhas habilidades. É arriscado demais.
--Eles disseram que vocês poderiam aparecer por aqui. E
que tinham aparência humana. E que vocês eram os
verdadeiros inimigos -- ele afirma.
--Do que está falando? -- pergunto.
--Estão delirando -- Henri me explica. -- Acham que nós
somos os verdadeiros inimigos.
--Cale a boca! -- o homem grita.
Ele dá três passos em minha direção. Depois move a arma,
apontando-a para Henri.
--Um movimento em falso, e ele leva bala.
Entendeu?
--Sim -- respondo depressa.
--Agora, segure isto -- ele ordena, pegando um
rolo de fita adesiva da prateleira ao alcance de sua
mão e o jogando em minha di reção. Enquanto ele
se move pelo ar, eu o faço parar, suspenso uns dois
metros do chão, no meio do caminho entre ele e
nós. Começo a girá-lo muito rapidamente. O
homem olha para o rolo de fita com ar confuso.
--Mas o quê...
Enquanto ele está distraído, movo meu braço na
direção dele como se o empurrasse. O rolo de fita
voa de volta e o acerta no nariz. O sangue começa
a escorrer, e ele deixa cair a arma para levar as
mãos ao rosto. A arma dispara ao cair no chão.
Estendo minha mão para a bala e a faço parar, e
ouço Henri rindo atrás de mim. Movo o projétil até
deixá-lo elevado na frente do rosto do homem.
-- Ei, fortinho -- digo.
Ele abre os olhos e vê a bala no ar, diante do
próprio rosto.
-- Vai precisar de mais do que isso.
Deixo a bala cair aos pés dele, no chão. Ele se vira
para correr, mas eu o trago de volta e o arremesso
contra uma grande e sólida coluna de sustentação.
O homem cai desacordado. Uso a fita para prendê -
lo à coluna. Quando me asseguro de que o
imobilizei, termino de soltar Henri.
-- John, acho que essa é a melhor surpresa que
tive em toda a minha vida -- ele cochicha, e há um
alívio tão intenso em sua voz, que chego a pensar
que o verei chorando, emocionado.
Sorrio, orgulhoso.
--Obrigado. Surgiu durante o jantar.
--Lamento não ter conseguido ir.
-- Eu disse a eles que você havia ficado preso.
Ele sorri.
--Graças a Deus o Legado despertou -- ele diz, e
percebo que o estresse do desenvolvimento de
meus Legados, ou o medo de não se formarem,
causou sobre Henri um impacto muito maior do
que eu havia imaginado.
--O que aconteceu, afinal? -- quero saber.
--Eu bati à porta. Os três estavam em casa.
Quando entrei, um deles me acertou na nuca. Ao
acordar, já estava nesta cadeira. -- Ele balança a
cabeça e diz no idioma lórico uma longa série de
palavras, que reconheço como palavrões. Termino
de desamarrá-lo, e ele se levanta alongando os
músculos.
--Precisamos sair daqui -- Henri anuncia.
--Temos de encontrar
Sam. E é então que o
ouvimos.
--John. Está aí embaixo?
CAPÍTULO VINTE E UM
TUDO FICA MAIS LENTO. VEJO UMA SEGUNDA PESSOA
NO TOPO DA ESCADA. SAM grita, surpreso, e eu me viro
para ele, sentindo que minha audição é invadida por aquele
silêncio típico que acompanha uma cena em câmera lenta.
O homem atrás dele o empurra. O golpe é tão forte que o
tira do chão, e noto que Sam vai cair ao pé da escada, no
piso de concreto. Eu o vejo cortando o ar, girando os braços
com uma expressão desesperada no rosto. Sem pensar em
nada, sou impelido pelo instinto e ergo a mão no último
segundo, detendo-o quando sua cabeça está a menos de
um centímetro do chão do porão. Eu o assento no piso com
toda a delicadeza.
-- Merda -- Henri resmunga.
Sam se senta e rasteja para trás como um caranguejo, até
suas costas encontrarem a parede de tijolos de concreto.
Seus olhos estão arregalados, olhando para a escada, a boca
se movendo sem emitir som algum. O homem que o
empurrou do alto da escada continua no lugar, tentando
entender, como Sam, o que acabou de acontecer. Deve ser
o terceiro.
-- Sam, eu tentei... -- digo.
O homem no alto da escada se vira e tenta correr, mas eu o
forço a descer dois degraus. Sam olha para o sujeito
desconhecido, dominado por uma força invisível,
depois olha para meu braço es tendido na direção
dele. O choque é suficiente para deixá -lo sem fala.
Pego a fita adesiva, suspendo o homem no ar e o
levo até o segundo andar, mantendo-o suspenso
por todo o trajeto. Ele grita obs cenidades
enquanto o prendo a uma cadeira usando a fita,
mas não escuto nada, porque minha mente está
ocupada demais tentando decidir o que vamos
dizer a Sam sobre os acontecimentos.
-- Cale a boca -- resmungo.
Ele grita outra sequência de palavrões. Decido que
já ouvi o suficiente e cubro sua boca com fita
adesiva antes de voltar ao porão. Henri está em pé
ao lado de Sam, que permanece sentado no mesmo
lugar, com a mesma expressã o chocada.
-- Não entendo -- ele balbucia. -- O que
aconteceu? Henri e eu trocamos um olhar. Eu dou
de ombros.
-- Quero saber o que aconteceu -- Sam insiste
com voz suplicante, desesperado para saber a
verdade, para ter certeza de que não é louco e de
que não imaginou o que acabou de ver.
Henri suspira e balança a cabeça. Depois diz:
--De que adianta?
--O quê? -- pergunto.
Ele me ignora, porque está olhando para Sam. Com
os lábios comprimidos, ele estuda rapidamente o
homem amarrado à cadeira, para ter certeza de q ue
ainda está inconsciente, e depois se volta para
Sam.
-- Não somos quem você está pensando -- diz e
faz uma pausa.
Sam fica em silêncio, encarando Henri. Não
consigo ler sua expressão, nem imagino o que
Henri pretende dizer, se vai inventar mais uma
história elaborada ou se, pelo menos uma vez, vai
dizer a verdade. Espero sinceramente que ele
escolha a verdade. Ele olha para mim, e movo a
cabeça em sentido afirmativo, indicando que estou
de acordo.
-- Chegamos à Terra há dez anos, vindos de um
planeta chamado Lorien. Viemos para cá porque
nosso planeta foi destruído pelos habitantes de
outro, chamado Mogadore. Eles destruíram Lorien
por seus recursos, porque haviam transformado o
planeta deles em um poço de destruição e morte.
Viemos nos esconder aqui até po dermos voltar a
Lorien, o que faremos um dia. Mas fomos seguidos
pelos mogadorianos. Eles estão nos caçando. E
acredito que estão aqui para dominar a Terra, e foi
por isso que vim aqui hoje, para descobrir um
pouco mais.
Sam não diz nada. Se eu houvesse contado essa
história, ele não teria acreditado em mim, teria
ficado nervoso, mas é Henri quem a está contando,
e há certa integridade nele que eu sempre senti, e
não tenho dúvida de que Sam também a sente. Ele
olha para mim.
-- Eu tinha razão: você é um alienígena. Não
estava brincando quando admitiu -- diz.
-- Sim, você estava certo.
Ele olha novamente para Henri.
-- E aquelas histórias que me contou no dia de
Halloween?
--Não, aquelas eram só histórias -- Henri revela.
-- Histórias ridículas que me fazem rir quan do as
encontro na Internet, nada mais. Mas o que acabei
de lhe dizer é a mais pura verdade.
--Bem... -- Sam para e respira fundo, como se
procurasse as palavras. -- O que acabou de
acontecer aqui?
Henri move a cabeça em minha direção.
-- John está desenvolvendo certos poderes:
telecinesia, entre ou tros. Quando você foi
empurrado, ele o salvou.
Sam ainda sorri a meu lado, observando -me.
Quando o encaro, ele assente.
-- Sabia que vocês eram diferentes -- ele diz.
-- Nem preciso dizer que vai ter de guardar
segredo sobre tudo isso -- Henri diz a Sam.
Depois, olha para mim. -- Precisamos de
informação e precisamos sair daqui. Eles já devem
estar por perto.
--O cara lá em cima ainda pode estar consciente.
--Vamos falar com ele.
Henri pega a arma do chão e a examina. Está
carregada. Ele remove todas as balas e as deixa
sobre uma prateleira, depois guarda o revól ver no
cós da calça. Ajudo Sam a se levantar, e vamos
juntos ao segundo andar. O homem que levei até
ali por meio da telecinesia ainda se debate. O
outro está sentado e quieto. Henri se aproxima
dele.
-- Você foi avisado -- diz.
O homem concorda com a cabeça.
-- Agora vai falar -- Henri continua, retirando a
fita adesiva da boca do cara. -- E se não falar... --
Ele pega a arma e a aproxima do peito do
desconhecido. -- Quem veio visitá-lo?
--Havia três deles -- ele diz.
--Bem, nós também somos três. E daí? Continue
falando.
-- Eles me disseram que, se você aparecesse e eu
dissesse alguma coisa, me matariam. Não vou lhe
dizer mais nada.
Henri pressiona o cano da arma contra a testa do
homem. Por alguma razão, isso me incomoda.
Estendo a mão e movo a arma, apontando -a para o
chão. Henri olha para mim com curiosidade.
--Há outras maneiras -- digo.
Henri se conforma e abaixa a arma.
--O palco é todo seu -- diz.
Eu me mantenho afastado do homem. Ele olha para
mim com medo. É pesado, mas, depois de amparar
Sam no meio do voo escada abaixo, acredito que
posso levantá-lo. Estendo os braços, e todo o meu
corpo se enrijece como resultado da concentração.
No início nada acontece, depois, muito
lentamente, ele começa a se erguer do chão. O
homem se debate, mas está preso à cadeira e não
pode escapar. Eu me concentro com toda a força
que possuo, e minha visão periférica registra o
sorriso orgulhoso de Henri e depois o de Sam.
Ontem não conseguia levantar uma bola de tênis;
agora ergo uma cadeira com um homem de mais de
cem quilos sentada nela. O Legado se desenvolveu
rápido.
Quando o elevo à altura dos olhos, viro a cadeira, e
ele fica pendurado de cabeça para baixo.
--Pare com isso! -- o homem grita.
--Comece a falar.
--Não! Eles disseram que me matariam!
Solto a cadeira e ele despenca. O homem grita, mas
eu o detenho antes de atingir o chão. E o levanto e
devolvo à posição normal.
--Eram três! -- ele grita, falando rapidamente. --
Apareceram no mesmo dia em que distribuímos as
revistas. Naquela noite.
--Como eles eram? -- Henri pergunta.
--Como fantasmas. Quase tão pálidos quanto
albinos. E usavam óculos de sol, mas, quando nos
recusamos a falar, um deles os tirou. Tinha olhos
negros e dentes pontiagudos, só que não pareciam
ser naturalmente afiados, como os de um animal.
Tive a impressão de que haviam sido quebrados e
lixados. Todos usavam sobretudos e chapéus, como
num filme antigo de espionagem. O que mais quer
saber?
--Por que eles vieram?
--Queriam saber qual havia sido nossa fonte para
aquela matéria. Nós dissemos. Um homem
telefonou afirmando ter um furo para nós e
começou a falar sobre um grupo de aliens que
queria destruir nossa civilização. Mas ele telefonou
no dia em que estávamos imprimindo a revista, por
isso, em vez de publicarmos a história toda, adian -
tamos apenas uma chamada pequena e
prometemos a continuação para o número
seguinte. Ele falava tão rápido que mal
conseguíamos entender o que dizia. Planejávamos
telefonar para ele na noite se guinte, mas os
mogadorianos chegaram antes.
--Como soube que eram mogadorianos?
--O que mais poderiam ser? Escrevemos uma
matéria sobre os mogadorianos, e um grupo de
aliens aparece aqui no mesmo dia, querendo saber
de onde tiramos a história. Não foi difícil deduzir.
O homem é pesado, e tenho dificuldades para
sustentá-lo. Minha testa está coberta de suor e
respiro com grande dificuldade. Eu o viro
novamente, desviro, começo abaixá -lo, e, quando
está bem perto do chão, solto-o, e a cadeira
aterrissa com um baque surdo. Curvo -me com as
mãos nos joelhos para recuperar o fôlego.
-- Que diabos, cara? Estou respondendo às suas
perguntas -- ele reclama.
--Desculpe. Você é muito pesado.
--E essa foi a única vez que eles vieram? --
pergunta Henri.
O homem balança a cabeça.
--Eles voltaram.
--Por quê?
-- Para ter certeza de que não publicamos mais
nada. Acho que não confiam em nós, mas o homem
que ligou não atendeu mais nos sos telefonemas,
então, não tínhamos mais nada para publicar.
-- O que aconteceu com ele?
--O que acha que aconteceu? -- o homem devolve
a pergunta. Henri concorda, movendo a cabeça.
--Eles sabem onde ele mora, então?
-- Tinham o número do telefone para o qual
deveríamos ligar. Não deve ter sido difícil localizá -
lo.
-- Eles ameaçaram você?
--Ah, sim. Reviraram nosso escritório.
Confundiram minha mente. Desde então não sou
mais o mesmo.
-- O que fizeram com sua mente?
Ele fecha os olhos e respira fundo mais uma vez.
-- Eles nem pareciam reais. Quero dizer, eram três
homens falando conosco com voz rouca, grave,
todos usando sobretudos, chapéus e óculos de sol,
embora fosse noite. Era como se estivessem
arrumados para uma festa de Halloween ou algo
assim. Pareciam engraçados e desloca dos, por isso
ri deles no início... -- A voz do homem parece
perder força.
Henri permanece imóvel, Sam e eu também.
Ele continua.
--Mas no instante em que ri, soube que havia
cometido um erro. Os outros dois mogadorianos se
aproximaram de mim retirando os óculos. Tentei
desviar o olhar, mas não consegui. Aqueles olhos.
Eu tinha que olhar, como se algo me atraísse para
dentro deles. Era como ver a mor te. Minha própria
morte, e a morte de todas as pessoas que conheço e
amo. A situação deixou de ser engraçada. Não só
tive que testemunhar as mortes, mas pude senti -las
também. A incerteza. A dor. O completo e total
terror. Eu não estava mais naquela sala. E depois
veio tudo aquilo de que eu tinha medo na infância.
Imagens de bichinhos de pelúcia que ganhavam
vida, com dentes afiados, unhas que eram como
lâminas. Aquelas coisas de que todas as crianças
têm medo. Lobisomens. Palhaços demoníacos.
Aranhas gigantes. Eu via tudo pelos olhos de uma
criança, e as coisas me aterrorizavam. E cada vez
que um me mordia, eu podia sentir os dentes
rasgando minha carne, meu corpo. Sentia o sangue
jorrando das feridas. Não conseguia conter os
gritos.
--Tentou reagir, lutar contra isso?
--Eles tinham duas daquelas coisas que lembram
doninhas, gordas, de pernas curtas. Não eram
maiores do que um cachorro. E espumavam pela
boca. Um dos homens as segurava por uma coleira,
mas era fácil perceber que estavam famintas, e nós
éramos a refeição. Eles disseram que as soltariam,
se resistíssemos. Estou dizendo, cara, aquelas
criaturas não eram da Terra. Se fossem cães, tudo
bem, eu os teria enfrentado. Mas acho que aqueles
bichos nos teriam devorado vivos, apesar de nosso
tamanho. E eles forçavam a coleira, grunhiam,
tentavam nos alcançar.
--Então, você falou?
--Sim.
--E quando eles voltaram?
-- Na noite anterior à publicação da última
revista, há pouco mais de uma semana.
Henri olha para mim, preocupado. Há uma semana
os mogadorianos estiveram em um local perto de
onde moramos? Podiam estar ali ainda, em algum
lugar, talvez monitorando a revista. Talvez por isso
Henri sinta a presença deles ultimamente. Sam
está a meu lado, atento a tudo.
--Por que eles não mataram vocês, como fizeram
com sua fonte?
--Como posso saber? Talvez por publicarmos um
material de respeito.
--E como o homem que telefonou para cá sabia dos
mogadorianos?
--Ele disse ter capturado e torturado um deles.
--Onde?
--Não sei. O número de telefone dele tinha o
código de área de Columbus. Uns noventa, cento e
vinte quilômetros ao norte daqui.
--Você falou com ele?
--Sim. E não tive certeza de se ele era maluco ou
não, mas já havíamos escutado boatos parecidos
com isso antes. Ele começou a falar sobre os
alienígenas desejarem banir a civilização como a
conhecemos, e às vezes falava tão depressa que era
difícil entender o que dizia. Uma frase que ele
repetia muito era que os tais aliens estavam
caçando alguma coisa ou alguém. Depois, ele
começou a recitar números.
Meus olhos se arregalaram.
--Que números? O que significavam?
--Não tenho ideia. Como eu disse, ele falava tão
depressa que já era difícil conseguir anotar o que
dizia.
--Você anotou enquanto ele falava? -- Henri
perguntou.
--É claro que nós anotamos tudo. Somos
jornalistas -- ele reage, incrédulo. -- Acha que
inventamos as histórias que escrevemos?
--Sim, eu acho -- diz Henri.
-- Ainda tem essas anotações? -- eu quero saber.
Ele olha para mim e assente.
-- Estou dizendo, elas são inúteis. A maior parte é
só bobagem, rabiscos sobre um plano para destruir
a raça humana.
--Preciso vê-las -- digo aflito. -- Onde estão?
Ele aponta uma mesa perto de uma das paredes.
--Sobre a mesa. Nos post-its.
Caminho até a mesa, que está coberta de folhas, e
começo a procurar entre os papéis. Encontro
anotações muito vagas sobre a espe rança dos
mogadorianos de conquistar a Terra. Nada
concreto, nenhum plano ou detalhe, só algumas
palavras comuns.
"Superpopulação."
"Recursos da Terra."
"Guerra biológica?"
"Planeta Mogadore."
Chego à anotação que estou procurando. Leio com
cuidado, três ou quatro vezes.
Planeta Lorien? O Lorieno?
1-3 mortos
4?
7 Rastreada na Espanha
9 em fuga na AS
(Do que ele está falando? O que esses números têm
a ver com invadir a Terra?)
-- Por que há um ponto de interrog ação depois do
número 4? -- pergunto.
--Porque ele falava muito depressa, e não consegui
entender.
--Você só pode estar brincando!
Ele balança a cabeça. Eu suspiro. Que sorte a minha,
penso. O que foi dito a meu respeito é justamente o que
não foi anotado.
--O que significa AS? -- pergunto.
--América do Sul.
--Ele disse em que lugar da América do Sul?
--Não.
Olho para o papel. Gostaria de ter ouvido essa conversa, de
ter feito perguntas. Os mogadorianos realmente sabem
onde está a Número Sete? Eles a seguem? Nesse caso, o
feitiço lórico ainda prevalece. Dobro a folha com as
anotações e a guardo no bolso de trás da calça.
--Sabe o que significam os números? -- ele pergunta.
Balanço a cabeça.
--Não tenho idéia.
--Não acredito em você.
-- Cale a boca -- Sam se manifesta, cutucando a barriga
dele com o taco de beisebol.
-- Tem mais alguma informação que possa me dizer? --
pergunto.
Ele pensa por um instante, depois diz:
-- Acho que luzes brilhantes os incomodam. Parece que
sentem dor quando têm que olhar para elas sem os óculos
escuros.
Ouvimos um barulho lá embaixo. Como se alguém tentasse
abrir uma porta bem lentamente. Nós nos entreolhamos.
Fito o homem na cadeira.
--Quem é? -- pergunto em voz baixa.
--São eles.
--O quê?
-- Eles disseram que ficariam observando. Sabiam que
alguém se aproximava.
Ouvimos passos abafados no primeiro andar.
Henri e Sam se olham, apavorados.
--Por que não nos avisou?
--Eles disseram que nos matariam. E matariam minha
família.
Corro até a janela, olho para o quintal. Estamos no
segundo andar. A queda até o chão é de seis
metros. Há uma cerca em torno do quintal. São
dois metros e meio de estacas de madeira. Volto
correndo para a escada e olho para baixo. Vejo três
silhuetas grandes usando sobretudos, chapéus e
óculos escuros. Eles carregam longas espadas
brilhantes. Não podemos descer pela escada. Meus
Legados se fortalecem, mas ainda não são
suficientes para enfrentar três mogadorianos. A
única saída é pular uma das janelas ou escapar pela
varanda no fundo do andar. As janelas são
menores, mas pelo quin tal podemos fugir sem
sermos vistos. Se sairmos pela frente, eles
provavelmente nos verão. Ouço r uído vindo do
porão e os mogadorianos conversando num idioma
feio, gutural. Dois deles se dirigem ao porão
enquanto um terceiro começa a caminhar para a
escada, que o trará até onde estamos.
Tenho um ou dois segundos para agir. As janelas se
quebrarão se sairmos por elas. Nossa única chance
são as portas que levam à varanda do segundo
andar. Eu as abro usando telecinesia. Está escuro
lá fora. Ouço passos subindo a escada. T rago Sam e
Henri para perto de mim e os jogo sobre os
ombros, como se fossem sacos de batatas.
--O que está fazendo? -- Henri cochicha.
--Não faço a menor ideia -- respondo. -- Mas
espero que funcione.
Quando vejo o topo do chapéu do primeiro
mogadoriano, corro para a porta e, a um passo do
patamar da varanda, eu salto. Voamos pelo céu
escuro. Por dois ou três segundos, estamos
flutuando. Vejo os carros passando na rua lá
embaixo. Vejo pessoas na calçada. Não sei onde
vamos aterrissar, ou se meu corpo vai sustent ar
todo o peso que estou carregando. Quando
tocamos o telhado de uma casa do outro lado da
rua, caio com Sam e Henri por cima de mim. Fico
sem ar e tenho a sensação de que minhas pernas
estão quebradas. Sam começa a se levantar, mas
Henri o mantém abaixado. Ele me puxa ató a
beirada do telhado e pergunta se posso usar
telecinesia para levar Sam e ele ao chão. Eu posso e
os transporto. Ele me diz que preciso pular.
Levanto-me sobre pernas trêmulas e ainda
doloridas e, pouco antes de pular, eu me viro e
vejo os três mogadorianos na varanda do outro
lado da rua, confusos. Suas espadas brilham. Sem
um segundo a perder, nós escapamos sem que eles
nos vejam.
Chegamos à caminhonete de Sam. Ele e Henri
precisam me ajudar a andar. Bernie está lá,
esperando por nós. Decidimos deixar a ca-
minhonete de Henri, porque eles provavelmente
vão reconhecê-la e rastreá-la. Deixamos Athens, e
Henri dirige de volta a Paradise, que talvez faça jus
ao nome depois da noite que tivemos.
Henri conta tudo a Sam, desde o início. Ele não
para até entramos em casa. Ainda está escuro. Sam
olha para mim.
--Incrível -- ele diz e sorri. -- Nunca ouvi nada
mais legal. -- Olho para ele e vejo a confirmação
que ele sempre procurou na vida, uma afir mativa
de que o tempo que ele passou com o nariz nas
teorias de conspiração, procurando pistas do
desaparecimento do pai, não foi em vão.
--Você é mesmo resistente ao fogo? -- ele
pergunta.
--Sim -- confirmo.
--Deus, isso é incrível.
--Obrigado, Sam.
--Pode voar?
No início penso que a pergunta é uma piada, mas
logo percebo que ele não está brincando.
--Não. Sou resistente ao fogo e posso acender
luzes nas mãos. Tenho a habilidade da telecinesia,
que só aprendi a usar ontem. Mais Legados devem
se formar em breve. Quero dizer, é o que
pensamos. Mas nem imagino quais serão, a té que
eles se desenvolvam.
--Espero que aprenda a ficar invisível -- diz Sam.
--Meu avô conseguia. E tudo o que ele tocava
também ficava invisível.
--É sério?
--Sim.
Ele começa a rir.
--Ainda não acredito que vocês dois foram até
Athens sozinhos, dirigindo -- diz Henri. -- Vocês
são inacreditáveis. Quando paramos para
abastecer, notei que o licenciamento está vencido
há dois anos. Não sei como conseguiram chegar
sem serem parados.
--Bem, a partir de agora vocês podem contar
comigo -- diz Sam. -- Farei tudo o que puder para
ajudar a detê-los. Principalmente porque posso
apostar que foram eles que levaram meu pai.
--Obrigado, Sam -- Henri responde. -- A coisa
mais importante que você pode fazer é guardar
nosso segredo. Se mais alguém souber disso,
podemos morrer.
--Não se preocupem, nunca direi nada a ninguém.
Não quero que John use os poderes dele contra
mim.
Nós rimos, agradecemos por tudo que Sam fez por
nós, e ele vai embora. Henri e eu entramos. Dormi
no caminho de volta, mas ain da estou exausto. Eu
me deito no sofá. Henri se senta em uma cadeira à
minha frente.
--Sam não vai contar nada -- eu digo.
Ele não responde, apenas olha para o chão.
--Eles não sabem que estamos aqui -- continuo.
Ele olha para mim.
-- Não sabem -- insisto. -- Se soubessem,
estariam nos seguindo agora.
Ele fica em silêncio. Não consigo suportar.
-- Não vou deixar Ohio por causa de uma mera
especulação.
Henri se levanta.
-- Estou feliz por ter feito um amigo. E acho Sarah
ótima. Mas não podemos ficar. Vou começar a
arrumar as malas -- ele anuncia.
-- Não.
-- Quando tudo estiver pronto, irei à cidade para
comprar uma caminhonete nova. Precisamos sair
daqui. Talvez eles não nos te nham seguido, mas
sabem que estão muito perto de nos pegar e que
ainda podemos estar próximos. Acredito que o
homem que telefonou para a revista tenha
realmente capturado um deles. Foi essa a história:
ele capturou e torturou um dos mogadorianos até
que falasse e depois o matou. Não sabemos qu e
tipo de tecnologia de rastreamento eles têm, mas
não creio que vão levar muito tempo para nos
encontrar. E, quando isso acontecer, nós
morreremos. Seus Legados estão emergindo, e sua
força está crescendo, mas você não chegou nem
perto de estar preparado para lutar contra eles.
Ele sai da sala. Eu me sento. Não quero ir embora.
Pela primeira vez na vida tenho um amigo de
verdade. Um amigo que sabe o que eu sou e não
tem medo, e que não pensa que sou maluco. Um
amigo que está disposto a lutar por mim, correr
perigo por mim. E tenho uma namorada. Alguém
que deseja estar comigo, mesmo sem saber quem
eu sou. Alguém que me faz feliz, alguém por quem
eu lutaria ou que eu protegeria mesmo se tivesse
de me expor ao perigo. Meus Legados ainda não
emergiram completamente. Derrubei três homens
adultos. Eles não tiveram a menor chance. Foi
como lutar contra crianças pequenas. Eu poderia
ter feito o que quisesse com eles. Também sabemos
agora que os humanos são capazes de enfren tar,
capturar, ferir e matar mogadorianos. Se eles
podem, eu também posso, definitivamente. Não
quero partir. Tenho um amigo, uma na morada.
Não vou embora.
Henri volta à sala. Ele tem nas mãos a Arca Lórica,
que é nosso bem mais precioso.
--Henri... -- eu começo.
--Sim?
--Não vamos embora.
--Sim, nós vamos.
--Você pode ir, se quiser. Eu fico e vou morar com
Sam. Não sairei daqui.
--Não pode decidir.
--Não? Sempre pensei que eu fosse o procurado.
Que eu estivesse em perigo. Você pode ir agora, e
os mogadorianos nunca vão buscá -lo. Pode levar
uma vida longa, boa e normal. Pode fazer o que
quiser. Eu não posso. Eles sempre estarão atrás de
mim. Sempre estarão tentando me encontrar e me
matar. Tenho quinze anos. Não sou mais uma
criança. A decisão é minha, sim.
Ele me encara por um minuto.
-- Ótimo discurso, mas não muda nada. Pegue
suas coisas. Estamos indo embora.
Levanto minha mão, aponto para ele e o ergo do
chão. Henri fica tão chocado que nada diz. Eu me
levanto e o movo para um canto da sala, perto do
teto.
--Vamos ficar -- insisto.
--Ponha-me no chão, John.
--Vou pôr, quando você concordar comigo.
--É perigoso demais.
--Não sabemos. Eles não estão em Paradise. Talve z
nem imaginem que nós estamos aqui.
--Ponha-me no chão.
--Não até você concordar em ficar.
--ponha-me no chão.
Não respondo. Apenas o mantenho suspenso. Ele
se debate, tenta empurrar a parede e o teto, mas
não pode se mover. Meu poder o mantém onde eu
quero. E eu me sinto forte assim. Mais forte do que
jamais me senti em toda a minha vida. Não vou
partir. Amo a vida que tenho em Paradise. Amo ter
um amigo de verdade e amo minha namorada.
Estou preparado para lutar por aquilo que amo,
seja contra os mogadorianos, seja contra Henri.
--Você sabe que não vai descer até eu colocá -lo no
chão.
--Você está agindo como uma criança.
--Não. Estou agindo como alguém que começa a
compreender quem é e o que pode fazer.
--E vai mesmo me manter aqui em cima?
--Até eu dormir ou me cansar, mas depois, quando
estiver descansado, eu o colocarei de volta aí no
alto.
--Tudo bem, podemos ficar. Sob certas condições.
--Quais?
--Ponha-me no chão e vamos conversar.
Eu o deixo descer, coloco-o no chão. Ele me
abraça. Estou surpreso, esperava que ele ficasse
zangado. Ele me solta e nós nos senta mos no sofá.
--Estou orgulhoso de seu progresso. Passei muitos
anos querendo e preparando o terreno para tudo o
que está acontecendo, para a chegada de seus
Legados. Você sabe que toda a minha vida se
resume em mantê-lo seguro, em torná-lo forte.
Jamais me perdoaria se algo acontecesse a você. Se
morresse sob minha vigilância, não sei como eu
poderia continuar vivendo. Com o tempo os
mogadorianos vão nos encontrar. Quero estar
preparado para quando isso acontecer e acho que
você ainda não está, embora você se sinta pronto.
Ainda tem um longo caminho a percorrer.
Podemos ficar aqui, por enquan to, se aceitar que o
treinamento vem em primeiro lugar. Antes de
Sarah, antes de Sam, antes de tudo. E, ao primeiro
sinal de que eles se aproximam, de que
encontraram nosso rastro, nós partimos, sem
discussão, sem relutância, sem me fazer levitar.
- Combinado. -- Aceito, sorrindo.
CAPÍTULO VINTE E DOIS
O INVERNO CHEGA CEDO E COM GRANDE RIGOR EM
PARADISE, OHIO. PRIMEIRO o vento, depois o frio, em
seguida a neve. No início uma poeira fina e gelada,
depois uma nevasca que cobre tudo, e o som das
máquinas que removem a neve se torna tão
constante quanto o do vento, deixando em tudo
uma camada de sal. As aulas são suspensas por
dois dias. A neve perto das estradas passa do
branco ao marrom e acaba se derretendo em poças
pegajosas que nunca secam. Henri e eu nos
dedicamos ao treinamento dentro e fora de casa.
Agora já consigo equilibrar no ar três bolas sem
tocá-las, o que também significa que sou capaz de
erguer mais de um objeto por vez. E os objetos são
cada vez maiores, mais pesados. A mesa da
cozinha, a máquina de remover neve que Henri
comprou há uma semana ou nossa nova
caminhonete, que é parecida com a velha e com
milhões de outras nos Estados Unidos. Se posso
levantar esses objetos fisicamente, usando meu
corpo, também posso erguê-los usando apenas a
mente. Henri acredita que a força de minha mente
um dia vai transcender minha força física.
As árvores no quintal são como sen tinelas à nossa
volta, os galhos congelados lembram peças de
vidro oco, com alguns centímetros de fino pó
branco sobre cada um deles. A neve acumulada
alcança a altura do joelho, exceto pelo caminho
estreito que Henri abriu. Bernie Kosar está sentado
na varanda dos fundos, assistindo a tudo. Nem ele
quer sair e enfrentar o cenário gelado.
-- Tem certeza disso? -- pergunto.
-- Você precisa aprender a lidar com isso -- Henri
insiste. Atrás dele, observando tudo com
curiosidade mórbida, está Sam.
É a primeira vez que ele assiste a nosso treino.
-- Por quanto tempo isso vai queimar? --
pergunto.
-- Não sei.
Estou vestindo um macacão altamente combustível
feito de fibras naturais encharcadas em óleos,
alguns de combustão lenta, outros nem tanto.
Quero botar fogo logo em tudo só para me livrar
do cheiro que me faz lacrimejar. Respiro
profundamente.
-- Pronto? -- ele pergunta.
-- Como nunca.
-- Não respire. Você não é imune à fumaça ou aos
vapores, e seus órgãos internos podem se queimar.
-- Isso me parece uma tolice -- argumento.
-- Faz parte de seu treinamento. Resistência sob
pressão. Precisa aprender a realizar múltiplas
tarefas enquanto é consumido pelo fogo.
-- Mas por quê?
-- Porque, quando chegar a hora da batalha,
estaremos em minoria. O fogo vai ser um de seus
grandes aliados na guerra. Precisa aprender a lutar
enquanto se queima.
-- Ai...
-- Se perceber algum problema, jogue -se na neve e
role.
Olho para Sam, que está sorrindo. Ele segura um
grande extintor de incêndio, caso eu precise de
ajuda.
-- Eu sei -- respondo.
Todos ficam em silêncio enquanto Henri lida com
os fósforos.
-- Você parece o Pé Grande com esse macacão --
Sam comenta.
-- Cale a boca, Sam -- respondo.
-- Lá vamos nós -- Henri anuncia.
Inspiro fundo antes de a chama do fósforo tocar o
macacão. O fogo envolve meu corp o. Não é
natural, para mim, manter os olhos abertos, mas
evito fechá-los. Olho para cima. As labaredas
ultrapassam minha altura em mais de dois metros.
O mundo todo se cobre de tons de laranja,
vermelho e amarelo. Posso sentir o calor, mas só
moderadamente, como os raios de sol em um dia
de verão. Nada além disso.
-- Agora! -- grita Henri.
Abro os braços, mantenho os ol hos bem abertos,
prendo a respiração. Sinto-me flutuando. Penetro
na neve profunda e ela começa a derreter, e meus
passos provocam a formação de uma nuvem de
vapor. Estendo a mão direita e levanto um tijolo de
concreto, mas tenho a sensação de que ele é mais
pesado do que o normal. Porque não estou
respirando? Pelo estresse de estar em chamas?
-- Não perca tempo! -- Henri grita.
Arremesso o tijolo com toda a força que possuo
contra uma árvore morta quinze metros adiante. A
força do impacto o destroça em milhões de
pequenos pedaços e abre um buraco na madeira.
Depois ergo três bolas de tênis en sopadas de
gasolina. Eu as equilibro no ar, uma sobre a outra,
como um malabarista. E as trago para perto do
meu corpo. Elas se incendeiam, e ainda as
equilibro -- e enquanto isso, ergo um cabo de
vassoura fino e comprido. Fecho os olhos. Meu
corpo está quente. Talvez eu esteja suando. Se
estiver, o suor deve evaporar no segundo em que
brota na superfície da pele.
Ranjo os dentes, abro os olhos, impulsiono o corpo
e direciono todo o meu poder para o núcleo do
cabo de vassoura. Ele explode em pequenos
fragmentos. Não os deixo cair no chão: mantenho-
os suspensos, como se formassem uma nuvem de
poeira pairando no ar. Eu os trago para mim e os
deixo queimar. A madeira estala em meio ao
zumbido das chamas. Reúno os fragmentos,
formando uma massa compacta de fogo que parece
ter brotado da profundeza do inferno.
-- Perfeito! -- grita Henri.
Um minuto se passou. Meus pulmões começam a
arder por causa do fogo, porque ainda não estou
respirando. Concentro toda a minha força na
massa incandescente e a arremesso com tanta
violência, que ela corta o ar como uma bala e se
choca contra a árvore, espalhando centenas de
pequeninos pontos de fogo em todas as direções e
se extinguindo quase imediatame nte. Imaginei que
a madeira morta fosse pegar fogo, mas não é o que
acontece. E derrubei as bolas de tênis. Elas caem
na neve perto de mim, e ouço um chiado.
-- Esqueça as bolas -- Henri me orienta. -- A
árvore. Concentre-se na árvore.
A madeira morta parece fantasmagórica, com seus
galhos retorcidos recortados contra o mundo
branco além dela. Fecho os olhos. Não con sigo
mais ficar sem respirar. Frustração e raiva
começam a surgir, alimentadas pelo fogo, pelo
desconforto do macacão e pelas tarefas que não
consegui cumprir. Escolho um dos galhos maiores
e tento quebrado, mas ele continua preso ao
tronco. Aperto os dentes e franzo a testa, e
finalmente um estalo corta o ar como um tiro, e o
galho vem voando em minha direção. Eu o pego
com as mãos e o seguro à minha frente. Deixe -o
queimar, penso. Deve ter uns seis metros de
comprimento. Finalmente, ele se incendeia, e eu o
levanto acima da cabeça e, sem tocá-lo, o cravo no
chão, como se estabelecesse meu domínio, do
mesmo modo que um espadachim do velho mundo
se apoderando do topo da colina depois de vencer
a guerra. O galho se retorce, fumegante, as chamas
dançando sobre sua metade superior. Abro a boca
e respiro num ato instintivo, e as chamas invadem
meu corpo; um ardor instantâneo se espalha. Fico
absolutamente chocado, e aquilo dói tanto que não
sei o que fazer.
-- A neve! A neve! -- grita Henri.
Mergulho de cabeça e começo a rolar. O fogo se
extingue quase imediatamente, mas continu o
rolando, ouvindo o chiado sempre que a neve toca
o macacão em frangalhos. Fumaça e vapor se
desprendem de mim. Finalmente Sam remove o
clipe de segurança do extintor e descarrega em
mim o pó branco que torna ainda mai s difícil o
simples ato de respirar.
-- Não -- eu grito.
Ele para. Fico ali deitado, tentando recuperar o
fôlego, mas cada inspiração provoca uma dor nos
pulmões que reverbera por todo o meu corpo.
-- Não devia respirar, John -- Henri comenta
quando se debruça sobre mim.
-- Não consegui evitar.
-- Tudo bem? -- Sam pergunta.
-- Meus pulmões ardem.
Tudo é nebuloso, mas aos pouc os o mundo volta ao
normal. Permaneço deitado, olhando para o céu
cinzento e baixo, e flocos de neve começam a cair
sobre nós.
-- E então, como me saí?
-- Nada mal para a primeira tentativa.
-- Vamos fazer isso de novo, não vamos?
-- Com o tempo, sim.
-- Foi muito legal -- Sam opina.
Eu suspiro, depois respiro prof undamente e bem
devagar, testando meus pulmões.
-- Foi horrível.
-- Você foi muito bem par a a primeira vez --
Henri repete. -- Não pode esperar que tudo seja
fácil.
Concordo movendo a cabeça. Continuo ali,
deitado, por um ou dois minutos, até Henri
estender a mão e me ajudar a levantar, encerrando
mais um dia de treinamento.
Acordo no meio da noite dois dias mais tarde. O
relógio marca 2:57. Ouço Henri trabalhando na
cozinha. Saio da cama e vou até lá. Ele está
debruçado sobre um documento, usando os
bifocais e segurando uma espécie de selo com uma
pinça. Ele ergue os olhos ao perce ber minha
presença.
-- O que está fazendo? -- pergunto.
-- Criando documentos para você.
-- Para quê?
-- Não consigo parar de pensar em você e Sam
dirigindo pela estrada para me buscar. Acho que é
tolice seguirmos usando sua verdadeira idade, se
podemos simplesmente alterá-la de acordo com
nossas necessidades.
Pego uma certidão de nascimento que ele acabou
de fazer. O nome escrito no documento é James
Hughes. A data de nascimento me faz um ano mais
velho. De acordo com essa certidão, tenho
dezesseis anos e posso dirigir. Eu me aproximo
para estudar a certidão que ele ainda está criando.
O nome agora é Jobie Frey, dezoito anos. A
maioridade legal.
-- Por que não pensamos nisso antes? --
questiono.
-- Porque nunca tivemos motivo.
Papéis de diferentes formatos, tamanhos e texturas
estão espalhados pela mesa, ao lado de uma grande
impressora. Frascos de tinta, carimbos de madeira,
selos de cartório, coisas que lembram placas de
metal, várias ferramentas que parecem ter saído do
consultório de um dentista. O proces so da criação
de documentos sempre me pareceu estranho.
-- Vamos mudar minha idade agora?
Henri balança a cabeça.
-- É tarde demais para trocar sua idade em
Paradise. Os documentos são para o futuro. Quem
sabe o que pode acontecer, o que tornará
necessário usá-los?
A idéia de me mudar no futuro me causa náuseas.
Prefiro continuar com quinze anos e nunca poder
dirigir a me mudar para um lugar novo.
Sarah volta do Colorado uma semana antes do
Natal. Passei oito dias sem vê -la. Tenho a sensação
de que foi um mês. A van deixa todas as garotas na
escola, e uma delas a deixa de carro em minha
casa, em vez de levá-la para a casa dela. Quando
ouço o som dos pneus na entrada de cascalho, vou
recebê-la com um abraço e um beijo, tirando -a do
chão e a girando no ar. Ela acabou de passar dez
horas viajando de avião e de carro, veste moletom,
não usa maquiagem e tem os cabelos presos num
rabo de cavalo, mas é a garota mais linda que eu já
vi, e não quero soltá-la. Nós nos olhamos sob a luz
da lua e tudo o que conseguimos fazer é sorrir.
-- Sentiu minha falta? -- ela pergunta.
-- Cada segundo de cada dia.
Ela beija a ponta de meu nariz.
-- Também senti sua falta.
-- Então, os animais têm um novo abrigo?
-- Ah, John, foi maravilhoso! Gostaria que pudesse
ter estado lá comigo. Contamos com a ajuda de
umas trinta pessoas, o tempo todo. O prédio subiu
tão depressa! E ficou muito melhor do que era.
Construímos uma árvore para os gatos em um
canto, e, durante todo o tempo que passamos lá,
havia gatos brincando nela.
Eu sorrio.
-- Deve ter sido incrível. Queria ter estado lá
também. Pego sua mochila e entramos juntos em
casa.
-- Onde está Henri? -- ela pergunta.
-- No supermercado. Ele saiu há uns dez minutos.
Ela atravessa a sala e deixa o casaco nas costas de
uma cadeira a caminho de meu quarto. Sarah se
senta na beirada de minha cama e tira os sapatos.
-- O que vamos fazer? -- ela me pergunta.
Fico ali parado, olhando para ela. O moletom
vermelho tem capuz e zíper na frente, mas está
fechado apenas até a metade. Ela sorri e me olha
de baixo.
-- Venha aqui -- Sarah diz, estendendo as mãos
para mim.
Eu me aproximo e ela segura minhas mãos.
Quando me encara, estreita os olhos para protegê -
los do brilho da lâmpada no teto. Esta lo os dedos
da mão livre, e a luz se apaga.
-- Como fez isso?
-- Mágica -- respondo.
Eu me sento ao lado dela. Sarah ajeita os cabelos
atrás da orelha, depois se inclina e me beija no
rosto. Em seguida, ela segura meu queixo,
aproxima meu rosto do dela e me beija novamente,
dessa vez mais devagar, delicadamente. Todo o
meu corpo desperta, respondendo ao beijo. Ela se
afasta, mas mantém a mão em meu rosto, traçando
o dedo de minha sobrancelha com o polegar.
-- Senti saudades de você, de verdade -- ela diz.
-- Eu também.
Ficamos em silêncio. Sarah morde o lábio.
-- Mal podia esperar para chegar aqui -- ela fala.
-- Todo o tempo que passei no Colorado, não
consegui tirar você da cabeça. Mesmo quando
estava brincando com os animais, queria que você
estivesse lá comigo. E hoje de manhã, quando
finalmente viemos embora, a via gem foi um
inferno, mesmo sabendo que cada quilômetro
percorrido era um quilômetro a menos separada de
você.
Ela sorri, principalmente com os olhos, os lábios
formando uma meia-lua fina que esconde os
dentes. Sarah me beija outra vez, um beijo que
começa lento e suave e progride. Estamos sentados
na beirada da cama, as mãos dela tocam meu rosto,
as minhas encontram a curva de suas costas. Posso
sentir os contornos firmes sob meus dedos, sentir
o sabor de frutas do brilho labial. Eu a puxo para
mim.
É como se o contato não fosse suficiente, embora
nosso corpo esteja pressionado e colado. Minha
mão desliza por suas costas, sentindo a textura de
porcelana da pele macia. Afago seus cabelos, e nós
dois respiramos com dificuldade. Caím os deitados
de lado na cama. Estamos de olhos fechados. Eu
abro os meus repetidamente para vê-la. O quarto
está escuro, exceto pelo luar que penetra as
janelas. Ela me surpreende olhando seu rosto, e
nós paramos de nos beijar. Sarah encosta a testa na
minha e olha para mim.
Ela segura minha nuca e me puxa, e imediatamente
voltamos a nos beijar. Abraçados. Enroscados.
Colados. Minha mente está livre dos tormentos que
costumam visitá-la e de todos os pensamentos
sobre outros planetas, livre da caçada dos
mogadorianos. Sarah e eu na cama nos beijando,
um sobre o outro. Nada mais tem importância.
Nada.
Então, a porta da sala se abre. Nós dois pulamos.
-- Henri chegou -- eu digo.
Nós nos levantamos e nos ajeitamos
apressadamente as roupas amarrotadas, sorrindo,
compartilhando um segredo que nos faz rir quando
saímos do quarto de mãos dadas. Henri está
colocando a sacola de compras na bancada da
cozinha.
-- Oi, Henri -- Sarah o cumprimenta.
Ele sorri para ela. Sarah solta minha mão e vai
abraçá-lo, e os dois começam a conversar sobre a
viagem dela ao Colorado. Vou lá fora buscar o
restante das compras. Respiro o ar frio, tento tirar
do corpo a tensão pelo que acabou de acon tecer,
superar a decepção provo cada pela chegada de
Henri. Ainda estou ofegante quando volto à
cozinha carregando as compras. Sarah está
contando a Henri sobre os gatos no abrigo.
-- Não trouxe nenhum para nós?
-- Se tivesse falado antes, Henri, eu teria trazido
com o maior prazer -- ela responde, cruzando os
braços sobre o peito e se apoian do com o quadril
na bancada.
Henri sorri para ela.
-- Eu sei que teria.
Ele fica guardando as compras, e Sarah e eu saímos
para caminhar um pouco ao ar frio enquanto
esperamos pela mãe dela. Bernie Kosar passeia
conosco. Ele corre na nossa frente. Sarah e eu
atravessamos o quintal de mãos dadas, apesar de a
temperatura ser quase zero. A ne ve está
derretendo, o solo molhado é escorregadio. Bernie
Kosar desaparece por um tempo no meio das
árvores e volta correndo. Sua metade inferior está
imunda.
-- Que horas sua mãe vem? -- pergunto.
Ela olha para o relógio.
-- Em vinte minutos.
Assinto.
-- Estou muito feliz por ter voltado.
-- Eu também.
Vamos até a entrada da floresta, mas a escuridão
nos impede de seguir adiante. Então, caminhamos
pelo perímetro do quintal de casa, de mãos dadas,
parando de vez em quando para trocar um beijo
sob a lua e as estrelas. Nenhum de nós fala sobre o
que acabou de acontecer, mas é óbvio que nós dois
pensamos a respeito. A mãe de Sarah chega dez
minutos antes do combinado. Sarah corre para
abraçá-la. Eu entro para buscar a mochila dela na
sala. Nós nos despedimos, e eu fico observando a
luz dos faróis do automóvel desaparecer na
estrada. Fico ali fora por mais alguns minutos e
depois entro na companhia de Bernie Kosar. Henri
está preparando o jantar. Vou dar banho no
cachorro, e, quando volto, a comida está pronta.
Nós nos sentamos à mesa e comemos sem
conversar. Não consigo parar de pensar nela. Olho
para meu prato sem realmente vê -lo. Não sinto
fome, mas tento comer. Consigo engolir alguma
porção, mas logo empurro o prato e fico ali
sentado em silêncio.
-- Vai me contar? -- Henri pergunta.
-- Contar o quê?
-- Em que está pensando.
-- Não sei.
Ele assente e volta a comer. Eu fecho os olhos.
Ainda posso sentir o cheiro de Sarah na gola da
camisa, a pressão da mão dela em meu rosto. Seus
lábios nos meus, a textura dos cabelos quando os
afaguei. E não consigo parar de pensar nela, no que
está fazendo e em como gostaria de que ainda
estivesse aqui.
-- Acha que é possível sermos amados? --
pergunto.
-- Do que está falando?
-- Humanos. Acha que eles podem sentir amor por
nós? Quero dizer, amor de verdade.
-- Acho que eles podem nos amar como amam uns
aos outros, especialmente se não sabem o que
somos, mas não creio que seja possível amar uma
humana como você amaria uma loriena.
-- Por quê?
-- Porque somos diferentes deles. E amamos de
maneira diferente. Um dos dons dos seres de nosso
planeta é amar completamente. Sem ciúme,
insegurança ou medo. Sem mesquinhez. Sem raiva.
Você pode ter sentimentos intensos por Sarah, mas
não são os mesmos sentimentos que você teria por
uma garota loriena.
-- Não há muitas delas disponíveis no momento.
-- Mais uma razão para ter cuidado com Sarah. Em
algum momento, se continuarmos vivos por tempo
suficiente, vamos ter que restaurar nossa raça e
repovoar nosso planeta. E óbvio que você ain da
está muito longe de precisar se preocupar com
isso, mas eu não contaria com Sarah como sua
parceira.
-- O que acontece se tentarmos ter filhos com
humanos?
-- Aconteceu muitas vezes antes. Normalmente, o
resultado é um humano excepcionalmente
talentoso e com muitas habilida des. Algumas das
grandes figuras da história da Terra eram filhos de
humanos e lorienos, como Buda, Aristóteles, Júlio
César, Alexandre, o Grande, Gêngis Khan,
Leonardo da Vinci, Isaac Newton, Thomas
Jefferson e Albert Einstein. Muitos dos antigos
deuses gregos, que muitas pessoas acreditam serem
apenas seres mitológicos, eram, na verdade, filhos
de humanos e lorienos, especialmente porque
naquela época era muito mais comum a presença
de nosso povo neste planeta, e nós ajudávamos no
desenvolvimento da civilização humana. Afrodite,
Apolo, Hermes e Zeus eram reais, e filhos de
lorienos e humanos.
-- Então é possível.
-- Era. Em nossa atual situação, é incauto e
impraticável. Na verdade, embora não saiba seu
número nem sua localização, uma das crianças que
veio conosco para a Terra é filha dos melhores
amigos de seus pais. Eles costumavam brin car,
diziam que vocês dois estavam destinados a
ficarem juntos. Talvez seja verdade.
-- Então, o que eu faço?
-- Aproveite seu tempo com Sarah, mas não se
apegue demais a ela e não permita que ela se
apegue demais a você.
-- Está falando sério?
-- Confie em mim, John. Se não acredita em mais
nada do que eu digo, acredite nisso, pelo menos.
-- Acredito em tudo o que você diz, mesmo não
querendo acreditar.
Henri pisca para mim.
-- Ótimo -- ele diz.
Mais tarde eu ligo para Sarah de meu quarto.
Penso no que Henri me disse, mas não consigo me
conter. Gosto dela. Acho que estou apaixonado por
ela. Conversamos por duas horas. É meia-noite
quando desligamos. Eu me deito na cama e fico
sorrindo na escuridão.
CAPÍTULO
VINTE E TRÊS
O DIA FICOU ESCURO. A NOITE QUENTE TRAZ
UM VENTO SUAVE E O CÉU ESTÁ salpicado por
luzes que piscam sem parar, nuvens que se tornam
azuis, vermelhas e verdes. Fogos de a rtifício. Fogos
que se transformam em algo mais, algo mais
estrondoso, mais ameaçador, os ohs e ahs se
transformando em gritos e choro. Eu, no meio de
tudo aquilo, observo sem poder fazer algo para
ajudar. Soldados e bestas entram em cena e se
espalham em todas as direções, como já vi antes,
bombas caem e explodem continuamente com um
estrondo que fere os ouvidos, e eu sinto as
reverberações no estômago. O barulho é tão
ensurdecedor, que meus dentes rangem. Os
lorienos reagem com tanta intensidade, tanta
coragem, que me orgulho de estar entre eles, de
ser um deles.
Então desapareço, sou transportado pelo ar numa
velocidade que faz o mundo lá embaixo passar por
mim como um raio, impedindo-me de focar
qualquer coisa. Quando paro, estou em pé na pista
de um aeroporto. Há uma aeronave prateada
adiante, e cerca de qua¬renta pessoas se preparam
para embarcar nela. Duas já entraram e estão na
porta com os olhos voltados para o céu, uma
menina muito nova e uma mulher da idade de
Henri. Então eu me vejo, aos quatro anos,
chorando, com os ombros caídos. A meu lado noto
uma versão muito mais jovem de Henri. Ele
também está olhando para o céu. Ajoelhada à
minha frente está minha avó, segurando-me pelos
ombros. Meu avô está em pé atrás dela, o rosto
endurecido, distraído, as lentes de seus óculos
refletindo a luz do céu.
-- Volte para nós, está ouvindo? Volte para nós --
diz minha avó. Queria ter ouvido as palavras que
ela falou antes dessas. Até agora, não tinha
lembrado de nada do que haviam me dito naquela
noite. Mas agora recordo parte. Meu eu de quatro
anos de idade não responde. Está assustado
demais. Ele não entende o que está acontecendo,
por que tanta urgência e tanto medo nos olhos de
todos que o cercam. Minha avó me abraça
rapidamente e depois me solta, levanta -se, e se
vira para não me deixar ver que está chorando.
Meu eu de quatro anos sabe que ela chora, mas não
sabe por quê.
Depois é a vez de meu avô, que está coberto de
suor, cinzas e sangue. Ele esteve lutando, e seu
rosto tenso dá a impressão de que continua
compenetrado, pronto para lutar mais, pronto para
fazer tudo o que puder no esforço pela
sobrevivência. Dele e do planeta. Ele se ajoelha à
minha frente como minha avó fez. Pela primeira
vez eu olho em volta. Pedaços de metal retorcido,
blocos de concreto, grandes buracos no chão, onde
as bombas caíram. Fogo em vários pontos, vidro
quebrado, sujeira, árvores derrubadas. E, no meio
de tudo isso, uma pista de pouso, inteira, aquela
de onde vamos partir.
-- Devemos ir! -- alguém grita. Um homem de
olhos e cabelos escuros. Não sei quem ele é. Henri
o encara e move a cabeça em sentido afirmativo.
As crianças sobem a rampa. Meu avô olha para
mim com ar muito sério. Ele abre a boca para falar.
Mas, antes que as palavras saiam de sua boca, sou
novamente levado para longe, arremessado no ar, e
mais uma vez o mundo lá embaixo passa por mim
como um filme acelerado. Tento decifrá -lo, mas
estou viajando depressa demais. As únicas imagens
discerníveis são as das bombas caindo
continuamente, grandes explosões de fogo e cores
inundando o céu noturno.
Paro novamente.
Estou dentro de um edifício muito grande e aberto,
um lugar que nunca vi. Silêncio. O teto é
arredondado. O piso é uma grande placa de
concreto do tamanho de um campo de futebol. Não
há janelas, mas os sons das bombas ainda
penetram no local, ecoando nas paredes que me
cercam. Parado no meio deste espaço, altivo e
orgulhoso, vejo um foguete branco cuja altura se
iguala à do ponto mais alto do teto.
Uma porta se abre com estrondo no canto mais
afastado. Eu me viro na direção do som. Dois
homens entram, apressados, nervosos, falando alto
e rápido. Imediatamente, um rebanho de animais
os segue. Quinze, mais ou menos, mudando de
forma continuamente. Alguns voam, outros correm
sobre duas patas, depois sobre quatro. Atrás do
rebanho, um terceiro homem aparece e fecha a
porta. O primeiro cara chega à espaçonave, abre
um pequeno alçapão no fundo do foguete e começa
a tocar os animais para dentro.
-- Vão! Vão! Para dentro e para cima -- ele grita.
Os animais obedecem, todos eles mudando de
forma para entrar no foguete. Depois que o último
passa pelo alçapão, um dos homens os segue. Os
outros dois começam a jogar caixas e sacolas para
ele. São necessários cerca de dez minutos para
embarcar toda a bagagem. Todos estão suados,
movendo-se freneticamente até que tudo fique
pronto. Pouco antes de os três embarcarem ali,
alguém aparece correndo com um embrulho que
parece ser um bebê, embora eu não possa enxergar
de onde estou. Eles pegam o pacote, seja o que for,
e o levam para dentro. Em seguida as portas se
fecham atrás deles e são lacradas. Minutos passam
sem que nada aconteça. As bombas agora devem
explodir bem ao lado das paredes. E, de repente,
do nada, uma explosão acontece dentro do prédio,
e eu vejo o fogo sob a aeronave, chamas que
crescem rapidamente e consomem tudo no edifício.
Um fogo que consome inclusive a mim.
Meus olhos se abrem. Estou em casa, em Ohio,
deitado na cama. O quarto está escuro, mas sinto
que não estou sozinho. Uma figura se move, uma
sombra passa por cima da cama. Fico tenso,
preparo-me para acender minhas luzes e
arremessar o intruso contra a parede.
-- Estava falando -- diz Henri. -- Você falou
enquanto dormia.
Acendo minhas luzes. Ele está em pé ao lado da
cama, vestindo calça de pijama e camiseta branca.
Seu cabelo está desalinhado, os olhos estão
vermelhos de sono.
-- O que eu disse?
-- Alguma coisa como "para dentro e para cima".
O que aconteceu?
-- Estive em Lorien.
-- Sonhou que esteve lá?
-- Acho que não. Estive lá, como antes.
-- E o que você viu?
Eu me sento e apóio as costas na parede.
-- Os animais -- conto.
-- Que animais?
-- No foguete que vi decolar. O velho, aqu ele do
museu. O foguete que partiu logo depois de nós. Vi
animais sendo levados para den tro dele. Não
muitos. Quinze, talvez. Com três outros lorienos.
Não creio que fossem Gardes. E mais alguma coisa,
um... pacote. Parecia um bebê, mas não posso
afirmar.
-- Por que acha que não eram Gardes?
-- Eles carregaram o foguete com suprimentos,
cerca de cinquenta caixas e sacolas. Não usaram
telecinesia.
-- Tudo isso no foguete dentro do museu?
-- Acho que era o museu. Estive no interior de um
edifício amplo e aberto, com teto arredondado,
sem nada lá dentro além do foguete. Presumi que
fosse o museu.
Henri move a cabeça em sentido afirmativo.
-- Se trabalhavam no museu, deviam ser Cêpans.
-- Eles transportavam animais -- repito. --
Animais que podiam mudar de forma.
-- Chimsera. Animais em Lorien que podiam
mudar de forma. O nome deles era Chimaera.
-- Hadley era isso? -- pergunto, lembrando a visão
que tive há semanas, quando me vi brincando no
quintal da casa de meus avós e fui levantado no ar
por um homem vestindo macacão azul e prata.
Henri sorri.
-- Você se lembra de Hadley?
Respondo com um movimento afirmativo de
cabeça.
-- Eu o vi do exato modo que vejo todas as outras
coisas.
-- Tem tido as visões mesmo quando não está
treinando?
-- As vezes.
-- Com que frequência?
-- Henri, quem liga para as visões? Por que eles
estavam levando animais para dentro do foguete? E
o que um bebê fazia com eles, se é que era mesmo
um bebê? Para onde eles foram? Qual era o
propósito deles?
Henri pensa em tudo isso por um momento. Ele
apóia o peso do corpo na perna direita.
-- Provavelmente, o mesmo propósito que nós.
Pense nisto, John. De que outra forma os animais
poderiam repovoar Lorien? Eles de vem ter sido
levados para algum tipo de santuário. Tudo foi
dizimado. Não só o povo, mas também os animais e
toda a vida vegetal. O embrulho a que você se
refere podia ser mais um animal. Alguma criatura
frágil ou muito jovem.
-- Bem, e para onde eles foram? Que outro
santuário existe além da Terra?
-- Creio que eles foram para uma das estações
espaciais. Um foguete com combustível lórico pode
ter percorrido uma distância bem grande. Talvez
pensassem que a invasão seria breve e pretendiam
esperar pelo fim dela para voltar. Quero dizer, eles
poderiam viver na estação espacial pelo tempo que
durassem seus suprimentos.
-- Existem estações espaciais perto de Lorien?
-- Sim, duas delas. Bem, havia duas. Sei, com
certeza, que a maior foi destruída no mesmo
momento da invasão. Perdemos contato com ela
menos de dois minutos depois da primeira bomba
cair.
-- Por que não mencionou isso an tes, quando falei
sobre o foguete pela primeira vez?
-- Presumi que estivesse vazio, que houvesse
decolado como um chamariz. E acho que, se uma
estação espacial foi destruída, a outra també m
deve ter sido. A viagem desse grupo, infelizmente,
foi em vão, qualquer que tenha sido o objetivo.
-- Mas e se eles voltaram quando os suprimentos
acabaram? Acha que poderiam sobreviver em
Lorien? -- pergunto, desesperado. Já conheço a
resposta, sei o que Henri vai dizer, mas pergunto
para me apegar a algum tipo de esperança de que
não estamos sozinhos nisso. De que talvez, em
algum lugar distante, haja outros como nós,
esperando, monitorando o planeta para que
também possam voltar um dia, e não estaremos
sozinhos quando retornarmos.
-- Não. Não há mais água por lá. Você mesmo viu.
Nada além de terra estéril e deserta. E nada
sobrevive sem água.
Suspiro e me deito novamente na cama. De que
adianta discutir? Henri está certo, e eu sei disso.
Vi com meus próprios olhos. Se os globos que ele
tirou da arca merecem credibilidade, Lorien nada
mais é que um lugar deserto, uma vasta extensão
de nada. O planeta ainda vive, mas nada há na
superfície. Não há água. Não há plantas. Não há
vida. Nada além de terra e pe dras e os destroços da
civilização que um dia existiu.
-- Viu mais alguma coisa? -- Henri me pergunta.
-- Eu nos vi no dia em que partimos. Todos
estávamos na pista pouco antes da decolagem.
-- Foi um dia triste.
Eu assinto. Henri cruza os braços e olha pela
janela, perdido em pensamentos. Respiro fundo.
-- Onde estava sua família durante isso tudo? --
pergunto. Minhas luzes se apagaram há cerca de
dois ou três minutos, mas
noto que os olhos de Henri agora estão fixos em
mim.
-- Não estavam comigo. Não naquele dia -- ele
responde. Ficamos em silêncio por um tempo, até
Henri se mexer.
-- Bem, vou voltar para cama -- ele anuncia,
encerrando nossa conversa. -- Tente dormir.
Ele sai, e eu fico ali, deitado, pensando nos
animais, no foguete, na família de Henri, e em
como tenho certeza de que ele não teve se quer a
oportunidade de se despedir dela. Sei que não vou
conseguir voltar a dormir. Nunca consigo quando
essas imagens me visitam, ou quando sinto a
tristeza de Henri. Deve ser um pensamento
constante para ele, como seria para qualquer um
que partisse nas mesmas circunstâncias, deixando
para trás a única casa que conheceu e sabendo que
nunca mais veria as pessoas que ama.
Pego meu celular e mando uma mensagem para
Sarah. Sempre envio torpedos para ela quando não
consigo dormir, ou ela escreve para mim quando é
ela a vítima da insônia. Falamos pelo tempo
necessário para que o insone fique cansado. Ela me
liga vinte segundos depois de eu enviar a
mensagem.
-- Oi -- atendo.
-- Não consegue dormir?
-- Não.
-- O que houve? -- ela pergunta, bocejando do
outro lado da linha.
-- Acho que foi só saudades de você. Passei pelo
menos uma hora deitado, olhando para o teto.
-- Bobo. Você me viu há menos de seis horas.
-- Queria que você estivesse aqui -- digo.
Ela geme baixinho. Posso vislumbrar seu sorriso na
escuridão. Deito de lado e prendo o telefone entre
a orelha e o travesseiro. -- Eu também queria estar
aí.
Conversamos por vinte minutos. Na última metade
da chamada simplesmente ficamos ouvindo a
respiração um do outro. Eu me sin to melhor depois
de falar com Sarah, mas descubro que tenho uma
dificuldade ainda maior para dormir.
CAPÍTULO VINTE E QUATRO
PELA PRIMEIRA VEZ DESDE QUE CHEGAMOS A
OHIO, AS COISAS PARECEM MAIS calmas por um
tempo. O semestre termina tranquilamente, vamos
ter onze dias de folga no intervalo de inverno. Sam
e a mãe passam a maior parte desse tempo
visitando a tia dele em Illinois. Sarah fica em casa.
Passamos o Natal juntos. E nos beijamos na meia -
noite do ano-novo. Apesar da neve e do frio, ou
talvez em retaliação a el es, saímos para longas
caminhadas pela floresta atrás de casa, sempre de
mãos dadas, nos beijando, inspi rando o ar gelado
sob o céu cinzento e baixo do inverno. Passamos
cada vez mais tempo juntos. Não há um único dia
desse período de férias em que não nos vejamos
pelo menos uma vez.
Andamos de mãos dadas sob o toldo branco da
neve nos galhos das árvores. Ela traz sua câmera
fotográfica, e às vezes para e tira algumas fotos.
Boa parte da neve no chão é intocada, exceto pelas
pegadas que deixamos. Nós as seguimos de volta,
Bernie Kosar corre na frente, de um lado para o
outro, perseguindo coelhos escondidos nos
pequenos arbustos, tentando subir nas árvores
para importunar os esquilos. Sarah tem um par de
protetores de orelhas. Seu nariz e bochechas ficam
rosados por causa do frio, acentuando o azul de
seus olhos. Eu olho para ela.
-- O que é? -- ela me pergunta, sorrindo.
-- Nada. Estou só admirando a paisagem.
Ela revira os olhos. A floresta é d ensa, exceto pelas
clareiras esporádicas que encontramos
regularmente. Não sei qual é a distância que a
floresta se estende, mas nun ca conseguimos chegar
à extremidade oposta daquela por onde entramos.
-- Aposto que isto aqui é lindo no verão -- Sarah
comenta. -- Vamos fazer piqueniques nas clareiras.
Uma dor surge em meu peito. Faltam ainda cinco
meses para o verão, e, se Henri e eu ainda
estivermos aqui em maio, estaremos somando sete
meses em Ohio. Isso é bem perto do maior período
de tempo que já passamos em um lugar.
-- Sim -- concordo. Sarah olha para mim.
-- O que é?
Eu a encaro sem entender.
-- O que é... o quê?
-- Não foi muito convincente -- ela diz. Um bando
de corvos barulhentos levanta vô o.
-- Só queria que já fosse verão.
-- Eu também. Não acredito que já temos de voltar
à escola amanhã.
-- Ah, nem me lembre disso.
Entramos em outra clareira, maior do que as
outras, um círculo quase perfeito de uns trinta
metros de diâmetro. Sarah solta minha mão, corre
para o meio do espaço e se joga na neve, rindo. Ela
deita de costas e começa a mover braços e pernas,
fazendo um anjo na neve. Eu me deito ao lado dela
e faço o mesmo. As pontas de nossos dedos mal se
tocam enquanto fazemos as asas. Nós nos
levantamos.
-- É como se tivéssemos asas imóveis -- ela diz.
-- Isso é possível? Quero dizer, como voaríamos,
se as asas fossem imóveis?
-- É claro que é possível. Anjos podem fazer tudo.
Ela se vira e se aninha em meus braços. Seu rosto
frio em meu pescoço me faz recuar.
-- Ahhh! Seu rosto parece uma pedra de gelo!
Ela ri.
-- Venha me esquentar.
Eu a abraço e beijo sob o céu aberto, com as
árvores à nossa volta. Não há sons, exceto pelos
pássaros e um outro baque abafado de neve caindo
dos galhos mais próximos. Dois rostos frios
colados. Bernie Kosar se aproxima de nós com a
língua para fora, ofegante, balançando a cauda. Ele
late e se senta na neve olhando para nós, a cabeça
inclinada para o lado.
-- Bernie Kosar! Estava perseguindo coelhos? --
Sarah pergunta.
Ele late duas vezes e corre para ela, p ulando, como
se quisesse se aninhar em seus braços. Depois late
novamente e espera, sentado no chão com um ar
cheio de expectativa. Sarah pega um pedaço de
galho no chão, sacode a neve acumulada nele e o
arremessa no meio das árvores. Ele corre para
procurá-lo e desaparece de vista. Dez segundos
mais tarde Bernie retorna, mas, em vez de voltar à
clareira pelo mesmo caminho, ele aparece do outro
lado. Sarah e eu nos viramos para vê -lo.
-- Como ele faz isso? -- Sarah pergunta.
-- Não sei -- confesso. -- Ele é um cachorro
peculiar.
-- Ouviu isso, Bernie Kosar? Ele acabou de dizer
que você é peculiar! Ele solta o g alho aos pés dela.
Voltamos para casa de mãos dadas,
e o dia começa a se despedir, mudando de cores.
Bernie Kosar trota a nosso lado durante todo o
caminho, a cabeça erguida como se qui sesse nos
guiar, protegendo-nos do que podia ou não estar
escondido na penumbra crescente além de nosso
campo de visão.
Há cinco jornais empilhados na mesa da cozinha.
Henri está diante do laptop, e a luz está acesa.
-- Alguma novidade? -- pergunto por força do
hábito, mas sem esperança. Não há uma história
promissora há meses, o que é bom, mas nem por
isso deixo de esperar alguma notícia cada vez que
repito essa pergunta.
-- Na verdade, sim, acho que sim.
Eu me aproximo da mesa e olho por cima do ombro
dele para a tela do computador.
-- O que é?
-- Ontem à noite houve um terremot o na
Argentina. Uma menina de dezesseis anos salvou
um homem dos escombros em uma cidade zinha
perto do litoral.
-- Número Nove?
-- Bem, penso que ela é certamente uma de nós. Se
é ou não a Número Nove, isso não posso afirmar.
-- Por quê? Não há nada de realme nte
extraordinário em retirar um homem dos
escombros.
-- Veja -- Henri me convida, rol ando a tela até
determinado trecho do artigo. Há uma foto de uma
placa de concreto de pelo menos trinta
centímetros de espessura e dois metros e meio de
largura e de altura. -- A placa que ela levantou
para salvar o homem. Deve pesar umas cinco
toneladas. E veja isso -- ele continua, rolando
novamente para a parte inferior da página,
destacando a última frase: -- "Sofia Garcia não foi
encontrada para comentar seu gesto".
Leio a frase três vezes.
-- Ela não foi encontrada -- digo.
-- Exatamente. Ela não se negou a dar entrevista;
simplesmente não foi encontrada.
-- E como sabem que é esse o nome dela?
-- A cidade é pequena, tem menos de um terço do
tamanho de Paradise. Quase todos dev em saber o
nome dela por lá.
-- E ela partiu, não é?
Henri assente.
-- Acho que sim. Provavelmente, antes mesmo de
o jornal ser publicado. Esse é o aspecto negativo
das cidades pequenas; é impossível não ser notado.
Eu suspiro.
-- Também é difícil para os mog adorianos
passarem despercebidos.
-- Exatamente.
-- Lamento por ela -- digo, erguendo os ombros.
-- Quem sabe o que teve que deixar para trás?
Henri olha para mim de um jeito cético, abre a
boca para dizer algo, mas pensa melhor e volta ao
computador. Eu vou para meu quarto. Arrumo a
mochila com roupas limpas e os livros de que vou
precisar naquele dia. Hora de voltar às aulas. Não
estou ansioso por isso, mas vai ser bom rever Sam.
Não o vejo há quase duas semanas.
-- Estou saindo -- digo.
-- Tenha um bom dia. E tome cuidado.
-- Até mais tarde.
Bernie Kosar sai de casa correndo na minha frente.
Ele é uma verdadeira bola de energia nesta manhã.
Acho que passou a apreciar nossas corridas
matinais, e o fato de não termos corrido na última
semana e meia o deixou aflito para voltar à rotina.
Ele me acompanha na maior parte do trajeto.
Quando nos despedimos, eu afago sua cabeça e
coço suas orelhas.
-- Muito bem, garoto, agora vá para casa -- digo.
Ele se vira e começa a trotar de volta.
Não tenho pressa no chuveiro. Quando t ermino,
outros alunos estão começando a chegar. Vou ao
corredor, passo por meu armário e caminho até o
de Sam. Bato nas costas dele. Ele se assusta, mas
sorri ao se virar e me ver.
-- Por um minuto pensei que teria que socar a cara
de alguém -- diz.
-- Sou só eu, amigo. Como foi em Illinois?
-- Nem me pergunte -- ele responde, revirando os
olhos. -- Minha tia me fez beber chá e assistir às
reprises de Os Pioneiros quase todos os dias.
Eu rio.
-- Deve ter sido horrível.
-- Foi, acredite -- ele responde e enfia a mão na
mochila. -- Isso estava no meio da
correspondência quando voltamos para casa.
Ele me entrega o último exemplar de Eles Estão
entre Nós, e eu começo a folhear a revista.
-- Nada sobre nós ou os mogadorianos -- ele
comenta.
-- Ótimo. Eles devem ter ficado com medo depois
de nossa visita.
-- Sim, é claro.
Sarah se aproxima de nós. Mar k James a aborda no
meio do corredor e lhe entrega um maço de folhas
de papel de cor laranja. Ela continua caminhando
em nossa direção.
-- Oi, gatona -- eu digo quando ela nos alcança.
Sarah fica na ponta dos pés para me beijar. Seus
lábios têm sabor de brilho sabor morango.
-- Oi, Sam. Como vai?
-- Bem. E você? -- ele pergunta.
Ele agora parece se sentir à vontade com ela. Antes
do incidente com Henri, que aconteceu há um mês
e meio, estar na presença de Sarah causava nele
evidente desconforto, e ele não conseguia encará-
la e não sabia o que fazer com as mãos. Mas agora
ele a encara e sorri, e fala com confiança.
-- Muito bem -- ela diz. -- Tenho que dar uma
cópia para cada um de vocês.
Ela nos passa uma folha de papel daquelas que
Mark acabou de entregar a ela. É um convite para
uma festa na casa dele no próximo sábado.
-- Eu fui convidado? -- Sam pergunta.
-- Sim, nós três fomos -- Sarah confirma.
-- Você quer ir? -- eu pergunto.
-- Bem, acho que deveríamos tentar. Concordo,
movendo a cabeça.
-- E você, Sam? Quer ir também?
Ele fita além de mim e de Sarah. Eu me viro e vejo
para onde ele está olhando, ou melhor, para quem.
Emily está parada diante de um armário do outro
lado do corredor. É a garota que participou da
corrida de carroça conosco no dia de Halloween, e
desde então Sam tem suspirado por ela. Quando
passa por nós, ela percebe que Sam a observa e
sorri com educação.
-- Emily? -- eu pergunto a Sam.
-- Emily o quê? -- ele reage, olhando para mim.
Eu olho para Sarah.
-- Acho que Sam gosta de Emily Knapp.
-- Não gosto -- ele diz.
-- Posso convidada para ir à festa conosco --
Sarah sugere.
-- Acha que ela iria? -- Sam duvida.
Sarah olha para mim.
-- Bem, talvez eu não deva convidá -la, já que Sam
nem gosta dela.
Sam sorri.
-- Ah, tudo bem, é que... Sei lá, eu não sei.
-- Ela sempre me pergunta por que você não
telefonou para ela depois da corrida. Emily gosta
de você.
-- É verdade -- confirmo. -- Eu já ouvi Emily
dizendo isso.
-- Por que não me contou? -- Sam quer saber.
-- Você nunca questionou. Sam olha para o
convite.
-- Então, a festa é no sábado?
-- Sim.
Ele olha para mim.
-- Eu acho que devemos ir.
Encolho os ombros.
-- Por mim, podemos ir.
Henri está esperando por mim quand o o sinal
anuncia o final da úl tima aula. Como sempre,
Bernie Kosar está no banco do passageiro, e,
quando me vê, abana a cauda c om entusiasmo.
Entro na caminhonete, e nós partimos
imediatamente.
-- Saiu outra matéria sobre a menina na Argentina
-- Henri conta.
-- E?
-- Só um artigo breve, dizendo que ela
desapareceu. O prefeito da cidade está oferecendo
uma modesta recompensa por qualquer informação
sobre o paradeiro dela. Parece que eles acreditam
que ela foi sequestrada.
-- Tem medo de que os mogadorianos a tenham
pegado antes?
-- Se ela é a Nove, como sugerem as anotações que
encontramos, e se eles a estavam seguindo, é bom
que ela tenha desaparecido. E, se foi capturada,
eles não podem matá-la -- não podem nem
machucá-la. Isso nos dá esperança. A par te boa,
exceto pela notícia propriamente dita, é que
imagino que todos os mogadorianos da Terra
tenham ido para a Argentina.
-- Falando nisso, Sam levou à escola o último
número de Eles Estão entre Nós.
-- Havia alguma coisa nela?
-- Nada.
-- Não esperava que houvesse. Seu truque de
levitação causou profunda impressão naquele
sujeito.
Quando chegamos em casa, mudo de roupa e
encontro Henri no quintal para mais uma sessão de
treinamento. Trabalhar enquanto sou consumido
pelo fogo agora é mais fácil. Não fico tão agitado
quanto naquele primeiro dia. Posso prend er a
respiração por mais tempo, quase quatro minutos.
Tenho mais controle sobre os objetos que faço
levitar e posso erguer vários deles ao mesmo
tempo. Pouco a pouco, a preocupação que vi nos
olhos de Henri durante aqueles primeiros dias vai
desaparecendo. Ele me elogia mais. Sorri mais. Nos
dias em que o resultado é realmente bom, vejo em
seu rosto uma expressão meio maluca, e ele levanta
os braços e grita um "Sim!" satisfeito. Assim vou
ganhando confiança em meus Legados. O res tante
ainda está por vir, mas não creio que vá demorar. E
o maior de todos, seja ele qual for, também virá. A
ansiedade me mantém acordado várias noites.
Quero lutar. Sonho com um mogadoriano
aparecendo no quintal para que eu possa
finalmente me vingar.
O dia hoje é fácil. Não há fog o. Apenas levanto
coisas e as manipulo enquanto as mantenho
suspensas. Os últimos vinte minutos passam com
Henri arremessando objetos em minha direção --
às vezes os deixo simplesmente cair, outras vezes
os arremesso como bumerangues, de volta para
Henri. Em dado momento, um pedaço de pau
retorna com tanta força que H enri se joga no chão,
com o rosto na neve, para não ser atingido por ele.
Bernie Kosar passa o tempo todo deitado, olhando
o treinamento, como se nos incentivasse com o
olhar. Quando terminamos, eu tomo um banho,
faço os deveres de casa e me sento à mesa da
cozinha para jantar.
-- Vai haver uma festa no próximo sábado, e eu fui
convidado. Ele olha para mim e para de mastigar.
-- Festa de quem?
-- Mark James. Henri parece surpreso.
-- Aquilo tudo acabou -- eu digo antes que ele
possa protestar.
-- Bem, você é quem sabe, eu acho. Só não esqueça
o que está em jogo.
CAPÍTULO VINTE E CINCO
E O TEMPO ESQUENTA. VENTOS FORTES,
GELADOS E NEVE CONSTANTE SÃO substituídos
por céu azul e temperaturas amenas. A neve
derrete. No início há poças na entrada de casa e no
quintal, a estrada fica mo lhada, mas depois de um
dia tudo seca e evapora, e os carros passam
normalmente como em outro dia qualquer. Um
intervalo, um breve descanso antes de o velho
inverno assumir o comando novamente.
Eu me sento à varanda e espero por Sarah, olhando
para o céu cheio de estrelas cintilantes e com lua
cheia. Uma nuvem muito fina corta a lua ao meio e
desaparece rapidamente. Ouço o ruído dos pneus
no cascalho, vejo as luzes dos farói s se
aproximando e segundos depois enxergo o
automóvel. Sarah desce pelo l ado do motorista. Ela
veste calça de flanela cinza e cardigã azul -marinho
sob uma jaqueta bege. Seus olhos são acentuados
pelo azul que se pode ver sob as extremidades da
jaqueta. O cabelo louro cai sobre os ombros. Ela
sorri e olha para mim, piscando ao se aproximar.
Parece que tenho borboletas no estômago. Quase
três meses juntos, e ainda fico nervoso quando a
vejo. Um nervosismo que não acredito que o tempo
poderá diminuir.
-- Você está linda -- digo.
-- Ah, obrigada -- ela responde, curvando-se. --
Você não está nada mal.
Beijo Sarah no rosto. Henri sai de casa e acena
para a mãe dela, que está sentada no banco do
passageiro do automóvel.
-- Então, vai telefonar quando for hora de ir
buscá-lo, não é? -- Henri me pergunta.
-- Sim -- confirmo.
Vamos para o carro, e Sarah se senta ao volante. Eu
me sento no banco traseiro. Ela tem sua licença de
aprendiz há alguns meses, o que significa que pode
dirigir desde que um motorista licenciado es teja
sentado no banco do passageiro, ao lado dela. O
exame de direção está marcado para segunda-feira,
em dois dias. Ela está ansiosa com isso desde que
marcou a data, durante as férias de inverno. Sarah
põe o carro em movimento e vamos para a estrada.
Depois de um tempo ela ajeita o retrovisor para
sorrir para mim. Eu sorrio de volta.
-- Como foi seu dia, John? -- A mãe dela se vira
para mim.
Nós conversamos. Ela me fala sobre a ida delas
duas ao shopping à tarde, e de como Sarah foi
dirigindo até lá. Conto que brinquei com Bernie
Kosar no quintal, e como corremos um atrás do
outro. Não falo sobre a sessão de treinamento que
durou três horas e aconteceu no quintal depois da
corrida. Não digo a ela que rachei o tronco da
árvore morta usando apenas telecinesia, ou q ue
Henri arremessou facas em minha direção e eu as
desviei para um saco de areia a quinze metros. Não
falo sobre ficar em chamas, nem sobre os objetos
que levantei, esmaguei e quebrei. Outro segredo.
Outra meia verdade que eu sinto como menti ra.
Gostaria de dizer a Sarah. Sinto que de alguma
forma a estou traindo ao manter escondida minha
identidade, e, ao longo das últimas sema nas, esse
fardo começou a realmente pesar sobre mim. Mas
também sei que não tenho alternativa. Não neste
momento, pelo menos.
-- É aqui? -- Sarah pergunta.
-- Sim -- confirmo.
Ela para o carro na entrada da garagem de Sam. Ele
está esperando na porta e veste jeans e suéter de
lã. Quando levanta a cabeça, seu olhar para nós me
lembra o de um cervo ofuscado pelos faróis de um
carro. Ele tem gel no cabelo. Juro que nunca o vi
usar gel antes. Sam se aproxima, abre a porta do
carro e se senta ao meu lado.
-- Oi, Sam -- Sarah o cumprimenta e depois o
apresenta à mãe.
Voltamos para a estrada. As duas mãos de Sam
estão plantadas no assento com firmeza, sinal
evidente de nervosismo. Sarah segue por um
caminho que nunca percorri antes e vira à direita
para subir uma alameda sinuosa que já faz parte da
casa de Mark. Há cerca de trinta carros
estacionados ali. No final da rua, cercada por
árvores, vejo um imóvel grande de dois andares.
Podemos ouvir a música muito antes de chegarmos
à residência.
-- Caramba, que casa! -- Sam comenta.
-- Comportem-se -- diz a mãe de Sarah. -- E
tomem cuidado. Telefonem se precisarem de algo,
ou se não conseguirem falar com seu pai, John --
ela diz olhando para mim.
-- Sim, Sra. Hart -- respondo.
Descemos do carro e começamos a caminhar para a
porta da frente. Dois cachorros surgem da lateral
da casa e correm em nossa direção, um golden
retriever e um buldogue. Eles abanam a cauda e
farejam minha calça, certamente sentindo o cheiro
de Bernie Ko-sar. O buldogue carrega na boca um
graveto. Eu pego a vareta, jogo do outro lado do
gramado do jardim, e os dois cães saem correndo
para ir buscá-la.
-- Dozer e Abby -- diz Sarah.
-- Imagino que Dolzer seja o buldogue -- arrisco.
Ela assente e sorri para mim como se pedisse
desculpas. Sou obrigado a lembrar que ela conhece
bem aquela casa. E me pergunto se não é estranho
para ela voltar agora comigo.
-- Essa foi uma péssima ideia -- Sam resmunga a
meu lado. -- Só agora estou percebendo.
-- Por quê?
-- Porque há três meses o cara que mora aqui
encheu seu armário e o meu de esterco e jogou
uma almôndega em minha cabeça na hora do
almoço. E nós estamos aqui.
-- Aposto que Emily já cheg ou -- comento, dando
uma leve cotovelada em suas costelas.
A porta da frente se abre para um hall. Os cães se
aproximam correndo, passam por nós e
desaparecem na cozinha, que fica bem em frente à
entrada. Percebo que agora é Abby que segura o
graveto entre os dentes. A música é tão alta que
temos de gritar para sermos ouvi dos. Pessoas
dançam na sala. Há latas de cerveja em quase todas
as mãos, mas alguns poucos bebem água mineral
ou refrigerante. Aparentemente, os pais de Mark
viajaram. Todo o time de futebol está na cozinha,
metade deles usando aqueles agasalhos do
uniforme. Mark se aproxima e abraça Sarah. Depois
ele aperta minha mão. Ele me encara por um
segundo e desvia o olhar. Mark não aperta a mão
de Sam. Na verdade, nem olha para ele. Talvez Sam
tenha razão. Aceitar o convite para a festa pode ter
sido um engano.
-- Que bom que puderam vir. Venham, entrem. A
cerveja está na cozinha.
Emily está em um canto da sala conversand o com
algumas pessoas. Sam olha para lá e pergunta a
Mark onde fica o banheiro. Ele aponta o caminho.
-- Volto já -- Sam me avisa.
A maioria dos garotos está em pé em torno da
bancada que forma uma ilha no meio da cozinha.
Eles olham para mim quando entro com Sarah.
Encaro cada um deles e depois pego uma garrafa de
água mineral de um balde com gelo. Mark abre
uma lata de cerveja e a coloca na mão de Sarah. A
maneira como ele a encara me faz per ceber mais
uma vez que não confio nele. Nem um pouco. E
percebo também o quanto toda essa situação é
bizarra. Estou na casa de Mark com Sarah, ex -
namorada dele. Fico feliz por Sam ter vindo
comigo.
Abaixo-me para brincar com os c achorros até Sam
sair do banheiro. Quando isso acontece, Sarah está
falando com Emily do outro lado da sala. Sam fica
tenso quando percebe que não nos resta nada a
fazer além de ir até lá e cumpri mentá-la. Ele
respira fundo. Na cozinha, dois garotos puseram
fogo na beirada de uma folha de jornal por
nenhuma outra razão se não ver o papel queimar.
-- Cumprimente Emily -- digo a Sam enquanto
caminhamos até lá. Ele responde com um
movimento afirmativo de cabeça.
-- Aí estão vocês -- diz Sarah. -- Pensei que
tivessem me abandonado.
-- Eu nem sonharia com isso -- digo. -- Oi, Emily.
Como vai?
-- Bem -- ela diz. E para Sam: -- Gostei de seu
cabelo. Sam a encara. Eu o acerto com uma
cotovelada. Ele sorri.
-- Obrigado -- diz. -- Você está ótima.
Sarah olha para mim e sorri. Eu dou de ombros e a
beijo no rosto. A música está ainda mais alta. Sam
conversa com Emily e aparenta um pouco de
nervosismo, mas ela ri, e depois de um tempo ele
relaxa.
-- Então, está tudo bem? -- Sarah me pergunta.
-- E claro. Estou com a garota mais linda da festa.
Como poderia estar melhor?
-- Ah, por favor. -- Ela ri e bate de leve em minha
barriga.
Nós quatro dançamos por cerca de uma hora. Os
jogadores de futebol continuam bebendo. Alguém
aparece com uma garrafa de vodca, e não muito
depois disso um deles -- não sei qual -- vomita no
banheiro, e o cheiro se espalha por todo o primeiro
andar da casa. Outro desmaia no sofá da sala de
estar e alguns desenham em seu rosto com caneta
hidrocor. As pessoas continuam indo e voltando,
passando pela porta do porão. Não sei o que está
acontecendo lá embaixo. Não vejo Sarah há dez
minutos. Deixo Sam na sala, vou até a cozinha e
depois subo a escada. O carpete é branco e
espesso, e há fotos de família e quadros adornando
as paredes. Algumas portas dos quartos estão
abertas, outras fechadas. Não vejo Sarah em
nenhum lugar. Sam está sozinho em um canto da
sala, e eu me aproximo dele.
-- Por que o desânimo? -- pergunto.
Ele balança a cabeça.
-- Não me faça suspendê-lo no ar e virá-lo de
cabeça para baixo como fiz com o cara em Athens.
Eu sorrio. Sam continua emburrado.
-- Acabei de ser abordado por Alex Davis -- ele
conta.
Alex Davis é do grupo de Mark James e também faz
parte do time de futebol. Ele é calouro, alto e
magro. Nunca conversei com ele e, por isso, não
sei muito sobre sua vida.
-- Como assim, "abordado"?
-- Ele veio falar comigo. Acho que me viu com
Emily, e parece que eles saíram no verão passado.
-- E daí? Por que está incomodado com isso?
-- Porque estou. Não é legal, está bem?
-- Sam, sabe por quanto tempo Sarah e Mark
namoraram?
-- Muito tempo.
-- Dois anos -- eu digo.
-- Isso o incomoda?
-- Não, nem um pouco. Quem liga para o passado?
Além do mais, olhe para Alex -- digo, mostrando o
garoto no canto da cozinha. Ele está
desmoronando em cima da bancada, com os olhos
quase fechados, suor cobrindo a testa dele. -- Acha
mesmo que ela sente falta daquilo?
Sam olha para o rapaz e dá de ombros.
-- Você é um cara legal, Sam Goode. Não se
subestime.
-- Não estou me subestimando.
-- Então, não se preocupe com o passado de Emily.
Não precisamos ser definidos pelas ações que
fizemos ou que deixamos de fazer no passado.
Algumas pessoas se deixam controlar pelo
arrependimento. Talvez seja um arrependimento
justo, talvez não. É só alguma co isa que aconteceu.
Supere. Sam suspira. Ele ainda está aborrecido.
-- Ah, pare com isso. Ela gosta d e você. Não tem
com que se preocupar -- insisto.
-- Mas estou preocupado.
-- A melhor maneira de lidar c om o medo é
enfrentá-lo. Aproxime-se dela e a beije. Apo sto que
ela vai corresponder.
Sam olha para mim e assente, depois vai até o
porão, onde sabe que encontrará Emily. Os dois
cachorros entram correndo na sala. Ambos estão
com a língua de fora e abanam os rabos. Dozer
deita no chão e espera que Abby se aprox ime, para
saltar sobre ela. Abby se esquiva. Eu os observo até
desaparecerem no alto da escada, para onde levam
o brinquedo de borracha que é alvo da disputa.
Faltam quinze minutos para meia -noite. Um casal
troca carícias no sofá do outro lado da sala. Os
jogadores de futebol continuam bebendo na
cozinha. Começo a sentir sono, mas não consigo
encontrar Sarah.
Neste momento, um jogador de futebol sobe
correndo a escada do porão, e há em seu rosto uma
expressão transtornada, frenética. Ele corre até a
pia da cozinha, abre a torneira no máximo e
começa a abrir todas as portas dos armários.
-- Fogo -- ele diz para os rapazes que estão perto.
-- Lá embaixo!
Todos começam a encher panelas e vasilhas com
água e, um a um, eles correm para a escada.
Emily e Sam sobem. Sam parece abalado.
-- O que aconteceu? -- pergunto.
-- A casa está pegando fogo!
-- É grave?
-- Algum incêndio não é grave? E acho que nós o
provocamos. Nós... Bem, derrubamos uma vela
perto de uma cortina.
Sam e Emily parecem agitados, desarrumados.
Percebo que eles estavam namorando. Digo a mim
mesmo que não posso me esquecer de dar os
parabéns a Sam mais tarde.
-- Vocês viram Sarah? -- pergunto a Emily. Ela
balança a cabeça.
Mais garotos sobem a escada, e Mark James está
com eles. Vejo o medo em seus olhos. Pe la
primeira vez sinto o cheiro de fumaça. Olho para
Sam.
-- Vá lá para fora -- digo.
Ele concorda com um movimento de cabeça, segura
a mão de Emily, e os dois saem juntos. Out ros os
seguem, mas alguns permanecem onde estão,
assistindo a tudo com curiosidade embriagada.
Algumas pessoas permanecem paradas e batem nas
costas dos jogadores de futebol, que correm ao
porão com as vasilhas com água, incentivando -os
como se tudo fosse uma brincadeira.
Vou até a cozinha e pego o maior recipiente que
encontro, uma panela de tamanho médio. Encho a
panela com água e desço. Todos já deixaram o
local, exceto nós, enfrentando o incêndio, que é
maior do que eu imaginava. Metade do porão é
consumida pelas chamas. Apagar o fogo com a
quantidade de água que tenho é impossível. N em
tento. Em vez disso, abandono a panela e recuo.
Mark desce a escada correndo. Eu o detenho no
meio dos degraus. Seus olhos estão vermelhos pelo
excesso de álcool, mas posso ver o terror e o
desespero em sua expressão.
-- Esqueça -- digo. -- O incêndio é grande
demais. Precisamos tirar todo mundo daqui.
Ele olha para o fogo no porão. Sabe que o que eu
disse é verdade. A fachada do garoto valentão
desapareceu. A farsa acabou.
-- Mark! -- eu grito.
Ele solta a panela com água, assente, e nós
voltamos juntos.
-- Todos para fora! Agora! -- eu grito do alto da
escada.
Os que estão mais bêbados nem se movem. Alguns
riem. Uma pessoa diz:
-- Onde estão os marshmallows?
Mark responde com um tapa no rosto do colega.
-- Saia! -- ele grita.
Arranco o telefone sem fio da base na parede e o
coloco na mão de Mark.
-- Ligue para os bombeiros -- grito, temendo não
ser ouvido com toda aquela gritaria e a música alta
que ainda vem de algum lugar. É como uma trilha
sonora para o pandemônio que se forma. O chão
está ficando quente. A fumaç a começa a subir do
porão para o primeiro andar. Só então as pessoas
percebem que o assunto é sério. Começo a
empurrar todo mundo para a porta.
Passo depressa por Mark quando ele está ligando
para os bombeiros e continuo correndo pela casa.
Subo a escada principal saltando os degraus, três
de cada vez, e vou abrindo as portas com chutes
violentos. Um casal está namorando em um dos
quartos, na cama. Eu grito, mandando os dois
saírem. Não encontro Sarah. Desço novamente a
escada e saio para a noite escura, fr ia. Há muita
gente do lado de fora olhando para a casa. Percebo
que algumas estão agita das com a possibilidade de
a casa queimar até virar cinzas. Outras riem. Eu
começo a sentir os primeiros sinais de pânico em
mim. Onde está Sarah? Sam está atrás do grup o,
que deve ter umas cem pessoas. Corro até ele.
-- Você viu Sarah? -- pergunto.
-- Não -- ele diz.
Olho para a casa. As pessoas cont inuam saindo. As
janelas do porão brilham com uma tonalidade f orte
de vermelho, as chamas lambem as vidraças. Uma
das janelas está aberta. Por ali sai uma fumaça
escura que sobe rapidamente colorindo o ar,
tornando-o mais denso. Eu me movimento por
entre as pessoas. De repente, uma explosão sacode
a casa. Todas as janelas do porão se quebram.
Algumas pessoas aplaudem. As chamas atingiram o
primeiro andar e estão se movendo depressa. Mark
James está em pé na frente do grupo, sem
conseguir desviar os olhos da ca sa em chamas. Seu
rosto é iluminado pelo brilho alaranjado. Há
lágrimas em seus olhos, um ar de desespero, a
mesma expressão que vi nos olhos dos lorienos no
dia da invasão. Deve ser estranho assistir a tudo o
que você tinha sendo destruído. O fogo se espalha
com hostilidade, de maneira irregular. E Mark
nada pode fazer além de olhar. As chamas
começam a ultrapassar as janelas do primeiro
andar. De onde estamos já é possível sentir o calor
do fogo no rosto.
-- Onde está Sarah? -- pergunto a ele.
Ele não me ouve. Eu o sacudo, segurando seus
ombros. Ele se vira e olha para mim aturdido,
como se ainda não acreditasse no que seus olho s
estão vendo.
-- Onde está Sarah? -- pergunto novamente.
-- Não sei -- ele diz.
Começo a me mover pelo grupo, procurando por
ela, cada vez mais desesperado. Todos olham para
o fogo. A cobertura de vinil começa a borbulhar e
derreter. As cortinas das janelas já foram
queimadas. A porta da frente está aberta , e a
fumaça que brota dela lembra uma cachoeira de
cabeça para baixo. É possível enxergar até a
cozinha, que se transformou em um inferno. No
lado esquerdo da casa o fogo já atingiu o segundo
andar. E é então que escuto.
Um grito longo, terrível. E cachorros latindo. Meu
coração para. Todas as pessoas ali tentam
identificar o que ouviram, ao mesmo tempo em
que esperam não ter ouvido o que todos sabem que
escutaram. O grito se repete. Inconfundível. Uma
sequência ininterrupta de gritos. As pessoas
reagem, desesperadas.
-- Oh, não -- Emily geme. -- Não, meu Deus, por
favor, não!
CAPÍTULO VINTE E SEIS
NINGUÉM FALA. TODOS ESTÃO DE OLHOS
BASTANTE ABERTOS, OLHANDO PARA CIMA, em
choque. Sarah e os cachorros devem est ar em
algum lugar na parte de trás da casa. Fecho os
olhos e abaixo a cabeça. Só consigo sentir o cheiro
da fumaça. "Só não esqueça o que está em jogo",
Henri me disse. Sei bem o que está em jogo, mas a
voz dele ainda ecoa em minha cabeça. Minha vida,
e agora a de Sarah. Ouço outro grito. Aterrorizado.
Desesperado.
Sinto os olhos de Sam em mim. Ele já viu minha
resistência ao fogo. Mas ele também sabe que sou
caçado. Olho em volta. Mark caiu de joelhos e se
balança para a frente e para trás. Ele quer que
aquilo acabe. Quer que os cães parem de latir. Mas
eles não param, e cada latido é para ele como uma
facada no peito.
-- Sam -- digo --, eu vou entrar.
Ele fecha os olhos, respira fundo e depois me
encara.
-- Vá buscá-la -- ele me diz.
Entrego a ele meu celular e peço para ligar para
Henri, caso eu não consiga sair de lá por algum
motivo. Ele assente. Começo a me mover para a
parte de trás do grupo, contornando entre as
pessoas espremidas. Ninguém presta atenção em
mim. Quando finalmente chego lá atrás, dou
impulso e corro como um louco contornando o
quintal, até os fundos da casa pois assim posso
entrar sem ser visto. A cozinha está
completamente dominada pelas chamas. Observo o
cenário de horror por um momento. Ouço Sarah e
os cachorros. Eles soam mais próximos a gora.
Respiro fundo, e nessa inspiração levo outras
coisas para dentro de mim. Raiva. Determinação.
Esperança e medo. Eu os deixo entrar, sinto cada
um deles. Depois tomo impulso, corro e entro na
casa. Sou imediatamente engolido pelas chamas e
não escuto mais nada além do crepitar e do
zumbido do fogo. Minhas roupas se incendeiam. O
mar de chamas não tem fim. Eu sigo para a frente
da casa e descubro que metade da escada foi
queimada. O que sobrou está em chamas,
aparentemente instável, mas não tenho tempo para
testar a segurança dos degraus. Corro para cima,
mas a escada desaba sob meu peso quando chego
na metade do caminho. Eu desmorono com os
escombros, e o fogo cresce como se alguém
houvesse atiçado as chamas. Alguma coisa parece
perfurar minhas costas. Ranjo os dentes, ainda sem
respirar. Eu me levanto e escuto um grito de Sarah.
Ela está gritando por medo de morrer, por temer
uma morte horrível, que será inevitável se eu não
encontrá-la logo. O tempo é curto. Vou ter de
saltar para o segundo andar.
Eu pulo, agarro-me ao piso e ergo o peso de meu
corpo. O fogo se espalhou para o outro lado da
casa. Ela e os cachorros estão em algum lugar à
minha direita. Percorro apressadamente o corredor
e vou verificando o interior dos quartos. Os
quadros queimaram em suas molduras,
transformados em silhuetas negras coladas às
paredes. De repente meu pé atravessa o chão, e a
surpresa me faz respirar. Sou invadido por fumaça
e fogo. Começo a tossir. Cubro a boca com um
braço, mas é inútil. Fumaça e fogo queimam meus
pulmões. Caio de joelho, tossindo, ofegante. Uma
fúria cega me invade e me levanto, sigo em frente,
caminho com o corpo inclinado, rangendo os
dentes com determinação.
Finalmente os encontro no último quarto à
esquerda. Sarah está gritando "SOCORRO!". Os
cachorros estão ganindo e latindo. A porta está
fechada, e eu a abro com um chute, arrancando -a
das dobradiças. Os três estão juntos, encolhidos no
canto oposto à porta. Sarah me vê, grita meu nome
e começa a se levantar. Faço um sinal indicando
que ela deve ficar onde está, e, quando entro no
quarto, uma enorme viga de sustentação cai entre
nós. Levanto a mão e a jogo longe, para cima, e a
viga atravessa o que resta do telhado. Sarah parece
confusa com o que acabou de ver. Eu salto para
ela, percorro seis metros com um único pulo,
atravessando as chamas sem ser afetado por elas.
Os cachorros estão ao lado dela. Ponho o buldogue
nos braços de Sarah e pego o retriever. Com meu
outro braço, eu a ajudo a permanecer em pé.
-- Você veio -- ela diz.
-- Enquanto eu estiver vivo, nada, ninguém vai
machucar você -- digo.
Outra viga cai e destrói parte do piso, indo parar
na cozinha, no primeiro andar. Precisamos sair
pelos fundos da casa para que ninguém me veja,
porque não quero testemunhas para o que vou ter
de fazer. Seguro Sarah contra a lateral de meu
corpo, e o cachorro contra o peito. Damos dois
passos, depois saltamos sobre o abismo de fogo
criado pela viga que desabou. Quando começo a
percorrer o corredor, uma enorme explosão no
andar de baixo destrói a maior parte dele . Não há
mais corredor. No lugar dele restam uma pare de e
uma janela, que também são rapidamente
consumidas pelas chamas. Nossa única chance é
sair pela janela. Sarah está gritando outra vez,
agarrando meu braço, e sinto as unhas do cachorro
enterradas em meu peito. Levanto a mão para a
janela, olho para ela e me concentro -- e ela
explode, criando a abertura de que precisamos.
Olho para Sarah e a mantenho segura e ancorada
ao meu corpo.
-- Segure-se bem firme -- digo.
Dou três passos e salto. As chama s nos engolem,
mas estamos voando como uma bala, cortando o
ar, seguindo diretamente para a fresta. Receio não
conseguir atravessá-la. Passamos por ela com
pouco espaço de sobra, tanto que sinto as
extremidades da armação destruída rasgan do meus
braços e parte de minhas pernas. Seguro Sarah e o
cachorro da melhor maneira possível e giro o corpo
no ar para cair de costas, com todos por cima de
mim. Chegamos ao chão com um baque. Dozer rola
pela grama. Abby gane alto. Escuto o ar sendo
expulso do corpo de Sarah. Esta mos uns dez
metros atrás da casa. Sinto um corte no topo da
cabeça, provavelmente causado pelos vidros
quebrados que ficaram presos à moldura da janela.
Dozer é o primeiro a se levantar. Ele parece bem.
Abby demora um pouco mais. Ela manca, parece
ter machucado uma pata dianteira, mas não creio
que seja sério. Fico deitado de costas, segurando
Sarah. Ela começa a chorar . Sinto o cheiro de
cabelo queimado. O sangue escorre por meu rosto
e forma uma poça na orelha.
Sento-me na grama para tentar recuperar o f ôlego.
Sarah está em meus braços. As solas de meus
sapatos derreteram. Minha camisa queimou
completamente, como boa parte da calça jeans.
Pequenos cortes atravessam todo o comprime nto
dos dois braços. Mas não estou queimado. Dozer se
aproxima e lambe minha mão. Eu o afago.
-- Bom menino -- digo, ouvindo os soluços de
Sarah. -- Agora vá, leve Abby lá para a frente.
Ouço ao longe as sirenes, qu e anunciam a
aproximação de viaturas. Eles devem estar ali em
dois, três minutos, no máximo. A entrada da
floresta está a uns cinquenta metros dos fundos da
casa. Aponto para a frente enquanto me levanto, e
os animais começam a se mover para lá como se
me entendessem perfeitamente. Sarah ainda está
em meus braços. Eu a giro, para aninhá -la entre
eles, e sigo para a floresta carregando-a, enquanto
ela chora com o rosto em meu ombro. Quando
entro no bosque, a multidão na frente da casa
explode em gritos e aplausos. Dozer e Abby foram
vistos.
A floresta é densa. A lua cheia ainda brilha, mas a
luz que penetra entre as árvores é pouca. Acendo
minhas mãos para que possamos enxergar. Começo
a tremer. O pânico me invade. Como vou explicar
isso a Henri? Estou vestindo o qu e parece ser uma
bermuda queimada. Minha cabeça sangra. Assim
como minhas costas e vários cortes nos braços e
nas pernas. Meus pulmões parecem estar em
chamas cada vez que respiro. E Sarah está em meus
braços. Ela agora deve saber o que posso fazer, do
que sou capaz, ou pelo menos parte disso. Vou ter
de explicar tudo a ela. E vou ter de contar a Henri
que ela sabe. Os riscos são cada vez maiores. Ele
vai dizer que, em algum momento, alguém pode
deixar escapar alguma coisa. Vai insistir para irmos
embora. Não vou poder evitar.
Ponho Sarah no chão. Ela parou de chorar. Olha
para mim confusa, amedrontada, espantada. Sei
que preciso vestir alguma roupa e voltar para perto
dos convidados de Mark, ou as pessoas vão
desconfiar. Preciso levar Sarah de volta, ou vão
pensar que ela está morta.
-- Você consegue andar? -- pergunto.
-- Acho que sim.
-- Venha comigo.
-- Para onde vamos?
-- Preciso pôr alguma roupa. Espero que um dos
jogadores de futebol tenha roupas para vestir
depois do treino.
Começamos a andar por entre as árvores. Pretendo
espiar dentro dos carros dos convidados para ver
se encontro alguma vestimenta.
-- O que aconteceu, John? O que está
acontecendo?
-- Você estava presa na casa em chamas, e eu tirei
você de lá.
-- O que você fez é impossível.
-- Não para mim.
-- O que isso significa?
Olho para ela. Esperava nunca ter de revelar o que
vou dizer agora. Sei que minha expectat iva
provavelmente era irreal, mas preten dia me manter
escondido em Paradise. Henri sempre me disse
para nunca me aproximar muito de nin guém.
Porque se eu me aproximasse, em algum momento
as pessoas perceberiam que sou diferente, e isso
exigira explicações. E nos obrigaria a partir. Meu
coração dispara, minhas mãos tremem, mas não
porque estou com frio. Se tenho alguma esperança
de ficar, ou de não sofrer as piores consequências
pelo que fiz nesta noite, preciso contar a verdade a
ela.
-- Não sou o que você pensa que sou.
-- Quem é você?
-- Eu sou o Número Quatro.
-- E o que isso significa?
-- Sarah, o que vou dizer vai soar maluco e idiota,
no entanto é a mais pura verdade. Você precisa
acreditar em mim.
Ela toca meu rosto.
-- Se vai dizer a verdade, é claro que a credito em
você.
-- É verdade.
-- Então fale.
-- Sou um alien. Sou o quarto de nove crianças
enviadas à Terra depois de nosso planeta ter sido
destruído. Tenho poderes, habili dades diferentes
das de qualquer ser humano, poderes que me
permitem fazer coisas como as que fiz há pouco,
na casa. E há outros aliens aqui na Terra que estão
me caçando, os mesmos que atacaram meu planeta.
E, se me encontrarem, eles me matarão.
Espero que ela me esbofeteie, ria de mim, grite ou
saia correndo. Mas ela fica parada, olhand o-me nos
olhos.
-- Está dizendo a verdade -- ela afirma.
-- Sim, estou. -- Sustento seu olhar, esperando
convencê-la a acreditar em mim.
Ela me encara por mais um instante, depois move a
cabeça em sentido afirmativo.
-- Obrigada por salvar minha vida. Não me
interessa de onde você veio. Para mim você é só
John, o garoto que eu amo.
-- O quê?
-- Eu amo você, John, e você salvou minha vida, e
isso é tudo o que importa.
-- Também amo você. E vou amar sempre.
Eu a abraço e beijo. Depois de um minuto, mais ou
menos, ela se afasta.
-- Vamos ver se encontramos r oupas para você.
Precisamos voltar, para as pessoas saberem que
estamos bem.
Sarah encontra roupas limpas no quarto carro que
verificamos. São bastante parecidas com as que eu
vestia, jeans e camisa, e acho que ninguém vai
notar a diferença. Quando voltamos para perto da
casa, nos mantemos o mais longe possível, mas em
um ponto de onde podemos ver o que está
acontecendo. A casa desabou e agora é só uma
pilha de destroços fumegantes e encharcados de
água. Colunas de fumaça ainda brotam dos
escombros, criando uma imagem fantasmagórica
contra o céu escuro. Há três caminhões dos
bombeiros. Conto seis viaturas da polícia. Nove
conjuntos de luzes que piscam, mas nenhum som
para acompanhá-las. Poucas pessoas foram
embora, se é que alguém saiu dali. Todas foram
forçadas a recuar, e a casa foi isolada com fita
amarela. Os policiais estão conversando com
alguns dos convidados. Cinco bombeiros estão no
meio das ruínas, vasculhando os escombros.
Alguém grita "Lá estão eles!". A v oz soa atrás de
mim. Todos se viram em minha direção. Preciso de
pelo menos cinco segundos para perceber que as
pessoas se referem a mim.
Quatro policiais caminham até nós. Atrás deles há
um homem segurando um bloco de anotaçõe s e um
gravador. Enquanto procurávamos pelas roupas,
Sarah e eu combinamos uma versão dos fatos.
Cheguei à parte de trás da casa e a encontrei lá,
observando as chamas. Ela havia pulado pela janela
do segundo andar com os cachor ros, que
conseguiram fugir. Ficamos assistindo a tudo dal i,
longe dos outros, mas depois de um tempo fomos
nos juntar ao grupo. Expliquei a ela que não
poderíamos contar a ninguém o que havia
realmente acontecido, nem mesmo a Sam e a
Henri, porque, se alguém descobrisse a verdade, eu
teria de ir embora imediatam ente. Combinamos
que eu responderia a todas as perguntas, e ela
concordaria com tudo que eu dissesse.
-- Você é John Smith? -- pergunta um dos
policiais. E ura homem de estatura mediana, e ele
para à nossa frente com os ombros meio caídos.
Não é gordo, mas está longe do que se pode
chamar de estar em boa forma, porque tem uma
barriga saliente e uma flacidez generalizada.
-- Sim, sou eu. Por quê?
-- Duas pessoas disseram ter visto você entrar
correndo naquela casa e depois sair de lá voand o
como o Super-homem, com os cachorros e a garota
nos braços.
-- Sério? -- pergunto, com ar incrédulo.
Sarah está a meu lado.
-- Foi o que disseram.
Forço um riso.
-- A casa estava pegando fogo. Pareço ter estado
em uma casa em chamas?
Ele me lança um olhar sério, intrigado, e põe as
mãos na cintura.
-- Está me dizendo que não entrou lá?
-- Fui até o quintal nos fundos para procurar
Sarah -- digo. -- Ela havia desaparecido com os
cachorros. Ficamos lá por um tempo, vendo o fogo,
e depois viemos para cá.
O policial olha para Sarah.
-- Isso é verdade?
-- Sim.
-- Bem, quem entrou correndo na casa. então? --
quer saber um repórter parado ao lado dele.
É a primeira vez que o homem fala, e ele me
observa de um jeito mais cético. como se me
avaliasse. Percebo que não acredita em mi nha
história.
-- Como posso saber? -- pergunto.
Ele assente e escreve algo no bloco. Não consigo
ler a anotação.
-- O que está dizendo é que ess as duas
testemunhas são mentirosas? -- pergunta o
repórter.
-- Barnes -- o policial interfere, balançando a
cabeça ao olhar para ele.
-- Eu não entrei na casa para salvar Sarah e os
cachorros -- repito. -- Eles estavam do lado de
fora.
-- Quem disse alguma coisa sobre salvar a garota e
os cachorros? -- Baines pergunta.
Dou de ombros.
-- Pensei que fosse essa a insinuação.
-- Não fiz nenhuma insinuação.
Sam se aproxima com meu celular . Olho para ele,
tentando avisado que o momento não é oportuno,
mas ele me entrega o telefone mesmo assim.
-- Obrigado -- digo.
-- Fico feliz por estar bem -- ele me diz.
Os policiais olham para ele com ar duro, e Sam se
afasta. Baines observa com interesse. El e está
mascando chiclete, procu rando costurar as
informações. E assente para si mesmo.
-- Deixou o celular com seu amigo antes de sair
para dar uma volta? -- ele pergunta.
-- Dei o celular a ele durante a festa. Estava
incomodando no bolso.
-- Posso imaginar -- Baines responde. -- E aonde
você foi?
-- Chega, Baines. Já fez perguntas demais -- diz
um policial.
-- Posso ir agora? -- pergunto.
O policial concorda com um movimento de cabeça.
Eu me afasto com o celular na mão, já d iscando o
número de Henri, com Sarah a meu lado.
-- Alô -- Henri diz ao atender.
-- Pode vir nos buscar agora?
-- Sim. Estou indo.
-- Como explica o corte na cabeça? -- Baines
pergunta atrás de mim. Ele estava me seguindo e
ouviu meu telefonema para Henri.
-- Eu me cortei em um galho na floresta.
-- Conveniente -- ele comenta e escreve mais no
bloco. -- Sabe que posso perceber quando alguém
mente para mim, não é?
Eu o ignoro e continuo andando de mãos dadas
com Sarah. Nós nos aproximamos de Sam.
-- Vou descobrir a verdade, Sr. Smith. Sempre
descubro -- Baines grita atrás de mim.
-- Henri está a caminho -- informo Sam e Sarah.
-- O que foi aquilo? -- Sam me pergunta.
-- Sei lá! Alguém acha que me v iu entrar correndo
na casa, provavelmente alguém que bebeu demais
-- digo, mais para Baines do que para Sam.
Ficamos esperando por Henri na entrada do
terreno. Quando chega, ele para a caminhonete,
desce dela e fica olhando, perplexo, para a casa
consumida pelo fogo.
-- Ah, não. Jure que não tem nada a ver com isso
-- ele resmunga.
-- Não tenho -- respondo.
Entramos na caminhonete. Ele engata a marcha e
olha uma última vez para os escombros
fumegantes.
-- Vocês estão com cheiro de fumaça -- Henri
comenta.
Ninguém responde. A viagem é feita em silêncio.
Sarah está sentada em meu colo. Deixamo s Sam
primeiro, depois Henri segue na direção da casa de
Sarah.
-- Não quero ficar sem você esta noite -- Sarah me
diz.
-- Também não quero me afastar de você.
Quando chegamos à casa dela, eu saio da
caminhonete e a acompanho até a porta. Ela não
me solta quando a abraço e desejo boa noite.
-- Vai telefonar para mim quando chegar em casa?
-- Sim, é claro.
-- Amo você. Sorrio para ela.
-- Também amo você.
Ela entra. Eu volto à caminhonete, onde Henri me
espera. Tenho de pensar em um jeito de impedi -lo
de descobrir a verdade sobre o que aconteceu nesta
noite e de nos tirar de Paradise. Henri dirige para
casa.
-- O que aconteceu com sua jaqueta? -- ele
pergunta.
-- Estava na casa de Mark.
-- E com sua cabeça, o que aconteceu?
-- Bati em algum lugar quando tentava sair da c asa
no princípio do incêndio.
Ele me olha, desconfiado.
-- É você que está cheirando a fumaça.
Eu dou de ombros.
-- Era o que mais havia por lá.
-- Como o incêndio começou?
-- Acho que foi um acidente. Todo mundo bebia
demais.
Henri assente e entra em nossa garagem.
-- Bem -- ele diz --, vai ser interessante ler o que
os jornais vão publicar na segunda -feira. -- Ele se
vira para estudar minha reação.
Fico em silêncio.
Sim, penso, com certeza vai ser interessante.
CAPÍTULO VINTE E SETE
NÃO CONSIGO DORMIR, FICO DEITADO NA
CAMA, OLHANDO PARA A ESCURIDÃO, PARA o
teto. Telefono para Sarah e conversamos até as três
da manhã; desligo e continuo ali deitado, de olhos
abertos. Às quatro saio da cama e do quarto. Henri
está sentado à mesa da cozinha, bebendo café. Ele
olha para mim com ar cansado, os olhos vermelhos
e os cabelos despenteados.
-- O que está fazendo? -- pergunto.
-- Também não consegui dormir. Estava lendo as
notícias.
-- Encontrou alguma coisa?
-- Sim, mas ainda não sei ao certo o que significa
para nós. Os homens que escreviam e publicavam
Eles Estão entre Nós, aqueles que conhecemos,
foram torturados e mortos.
Eu me sento diante dele.
-- O quê?
-- A polícia os encontrou depoi s de os vizinhos
telefonarem dizendo ter ouvido gritos na casa.
-- Eles não sabiam onde moramos.
-- Não, não sabiam. Felizmente. Mas isso significa
que os mogadorianos estão ficando mais ousados e
que estão próximos. Se ouvir mos ou virmos mais
alguma coisa fora do comum, teremos de partir
imediatamente, sem perguntas, sem discussão.
-- Tudo bem.
-- Como está sua cabeça?
-- Doendo -- respondo. Levei sete pontos para
fechar o corte. Henri fez a sutura. Estou vestindo
um moletom largo. Tenho certeza de que os
ferimentos nas costas também precisam de pontos,
mas para isso eu teria de tirar a camisa, e c omo
explicaria todos os outros arranhões e hematomas?
Ele saberia o que aconteceu. Meus pulmões ainda
ardem. Na verdade, a dor só piorou.
-- O incêndio começou no porão, então?
-- Sim.
-- E você estava na sala de estar?
-- Sim.
-- Como sabe que começou no porão ?
-- Porque todo mundo subiu correndo.
-- E sabia que todos estavam fora da casa quando
você saiu?
-- Sim, sabia.
-- Como?
Ele está tentando me fazer cair em contradição,
não acredita em minha história. Tenho certeza de
que Henri não acredita que me li mitei a ficar
olhando o que acontecia, como todo mundo.
-- Eu não entrei -- digo sem rodeios. É horrível
precisar mentir, mas olho nos olhos de Henri e
minto.
-- Acredito em você -- ele responde.
É quase meio-dia quando acordo. Os pássaros
cantam além da janela, e a luz do sol penetra pelas
frestas. Respiro aliviado. O fato de ter conseguido
dormir até tão tarde significa que não foi
divulgada nenhuma notícia que me incrimine. Caso
contrário, eu teria sido arrancado da cama para
fazer as malas.
Rolo na cama para me deitar de costas e sinto dor
imediatamente. É como se alguém empurrasse meu
peito para baixo, me espremesse.
Não consigo respirar direito. Quando tento, sinto
uma dor aguda. Isso me assusta.
Bernie Kosar está dormindo a meu lado. Eu o
acordo lutando com ele. No início ele parece
atordoado, mas depois entra na brincadeira. Nosso
dia sempre começa desse jeit o. Eu acordo o
cachorro que ronca perto de mim. Ele abana a
cauda, e sua língua para fora da boca me faz sentir
imediatamente melhor. Esqueço a dor no peito .
Não penso no que o dia pode trazer.
A caminhonete de Henri desapareceu. Sobre a
mesa encontro um bilhete com a mensagem: "Fui
ao mercado. Volto logo." Vou até lá fora. Minha
cabeça dói, e meus braços estão vermelhos e cheios
de manchas, marcados por cortes ligeiramente
inchados, como se eu houvesse sido atacado por
muitos gatos. Não me incomodo com os cortes,
nem com a dor de cabeça, ou com o ardor no peito.
O que importa é que ainda estou em Ohio, amanhã
voltarei à mesma escola que frequento há três
meses e esta noite verei Sarah.
Henri chega em casa à uma da tarde. Noto sua
expressão exausta e deduzo que ele ainda não
dormiu. Depois de guardar as compras, ele vai para
o quarto e fecha a porta. Bernie Kosar e eu saímos
para uma caminhada pela floresta. T ento correr e,
por algum tempo, até consigo, mas depois de um
quilômetro a dor é insuportável e tenho de parar.
Caminhamos uns oito quilômetros, mais ou menos.
A floresta termina em uma estrada semelhante
àquela que leva à nossa casa. Eu me viro e volto.
Henri ainda está no quarto, com a porta fechada,
quando entro em casa. Eu me sento na varanda.
Fico tenso cada vez que um carro passa na estrada.
Sempre estou esperando um deles aparecer, mas
não vejo ninguém.
A confiança que eu sentia ao acordar vai
desaparecendo com o transcorrer do dia. O
Paradise Gazette não circula aos domingos. Eles
vão publicar alguma coisa amanhã? Suponho que
estou esperando por um telefonema, ou pela visita
daquele repórter, ou pelas perguntas de outros
policiais. Não sei por que estou tão preocupado
com um repórter de jornal pequeno de cidade do
interior, mas ele foi persistente -- persistente
demais. E sei que ele não acreditou na história que
contei.
Mas ninguém aparece em nos sa casa. Ninguém
telefona. Espero alguma coisa e, quando nada
acontece, começo a sentir medo de estar prestes a
ser exposto. "Vou descobrir a verdade, Sr. Smith.
Sempre descubro", Baines disse. Considero a ideia
de correr até a cidade, procurá -lo e tentar
dissuadi-lo de ir atrás dessa verdade, mas sei que
isso só vai alimentar suas suspeitas. Tudo o que
posso fazer é esperar e torcer pelo melhor.
Eu não estava naquela casa.
Não tenho nada a esconder.
Naquela noite Sarah vai me visitar. Vamos a meu
quarto e eu a seguro nos braços, deitado de costas
na cama. Sua cabeça está apoiada em meu peito, e
uma das pernas repousa sobre as minhas. Ela me
faz perguntas sobre quem sou, meu passado, sobre
Lorien, sobre os mogadorianos. Ainda estou
surpreso com a rapidez e a facilidade com que
Sarah acreditou em tudo, e como ela aceitou a
realidade. Respondo a todas as perguntas com
sinceridade, o que faz eu me sentir muito bem,
depois de todas as mentiras que contei nos últimos
dias. Mas, quando falamos sobre os mogadorianos,
começo a ficar assustado. Estou preocupado com a
possibilidade de eles nos encontrarem. Tenho
medo de nos ter exposto com minhas últimas
atitudes. Faria tudo de novo, porque, se não, Sarah
estaria morta, mas tenho medo. Também temo pe lo
que Henri vai fazer se desco brir tudo. Embora não
seja meu pai biológico, para todos os efeitos ele é
meu responsável legal. Eu o amo, ele me ama, e
não quero desapontá-lo. E, enquanto ficamos ali
deitados, meu medo começa a atingir novos níveis.
Não suporto não saber o que o novo dia trará. A
incerteza está acabando comigo. O quarto está
escuro. Uma vela tremula no parapeito da janela.
Respiro fundo, ou melhor, tanto quanto é possível
em meu estado.
-- Está tudo bem? -- Sarah pergunta.
Eu a abraço com mais força.
-- Sinto sua falta -- digo.
-- Sente? Mas eu estou aqui.
-- Essa é a pior maneira de sentir falta de alguém.
Quando a pessoa está a seu lado e ainda assim você
sente falta dela.
-- Não faz sentido. -- Ela segura meu rosto, puxa-
me para perto e beija meus lábios. Não quero que
ela pare. Não quero que ela pare nunca mais de me
beijar. Enquanto Sarah me beija, tudo está bem. Eu
ficaria neste quarto para sempre, se pudesse. O
mundo pode seguir sem mim, sem nós. Desde que
possamos ficar ali juntos, nos braços um do outro.
-- Amanhã -- eu digo.
Ela olha para mim.
-- Amanhã o quê?
Balanço a cabeça.
-- Não sei realmente. Acho que só estou com
medo. Ela me estuda com ar confuso.
-- Medo do quê?
-- Não sei. Estou com medo. Só isso.
Quando Henri e eu voltamos para casa depois de
levá-la, vou para o quarto e me deito no mesmo
lugar onde Sarah esteve. Ainda posso sentir seu
cheiro na cama. Esta noite não vou dormir. Não
vou nem tentar. Ando pelo quarto. Quando Henri
vai para cama, eu saio e vou até a cozinha e
escrevo à luz de uma vela. Escrevo sobre Lo rien,
sobre a Flórida, sobre aquilo que v i quando nosso
treinamento começou -- a guerra, os animais,
imagens da infância. Espero por algum tipo de
catarse, algum alívio, mas não sinto nada. Tudo
isso só me deixa ainda mais triste.
Minha mão começa a doer, e eu saio e vou até a
varanda. O ar frio ajuda a amenizar a dor ao
respirar. A lua está quase cheia, com uma pequena
porção ainda oculta. Em duas horas o sol vai
nascer, e com ele virá um novo dia e as notícias do
fim de semana. Os jornais são deixados em nossa
porta às seis da manhã, às vezes às seis e meia. Já
terei saído para a escola quando chegarem, e, se
houver alguma notícia sobre mim, eu me recusarei
a partir antes de ver Sarah mais uma vez, antes de
me despedir de Sam.
Eu entro em casa, mudo de roupa e preparo minha
mochila. Saio na ponta dos pés e em silêncio e
fecho a porta com cuidado. Dei apenas três passos
na varanda quando escuto alguma coisa
arranhando a porta. Eu me viro para abri -la, e
Bernie Kosar sai trotando satisfei to. Tudo bem,
vamos juntos, eu penso.
Caminhamos e paramos frequentemente, ouvindo o
silêncio. A noite ainda é escura, mas depois de um
tempo uma luminosidade começa a ganhar força no
céu, ao leste. Estamos chegando à escola. Não há
carros no estacionamento e todas as luzes lá
dentro estão apagadas. Na frente do prédi o, diante
do mural do pirata, há uma grande pedra que foi
pintada pelas turmas anteriores de formandos. Eu
me sento nela. Bernie Kosar se deita na grama
alguns metros afastado de mim. Fico ali sentado
por meia hora antes de o primeiro veículo
aparecer, uma van, e presumo que seja Hobbs, o
zelador, chegando cedo para deixar tudo e m ordem
na escola. Mas estou en ganado. A van é parada
bem à frente da porta. O motorista desce e deixa o
motor ligado. Ele está carregando uma pilha de
jornais presos por um arame. Nós nos
cumprimentamos com um aceno, e ele deixa os
jornais ao lado da porta. Depois vai embora.
Continuo sentado na pedra. Olho com aparente
desinteresse para os jornais.
Mentalmente, eu estou praguejando -os,
desafiando-os a divulgar as más notícias das q uais
tenho tanto medo.
-- Eu não entrei naquela casa sábado -- digo em
voz alta e me sinto estúpido por isso.
Depois desvio o olhar, suspiro e pulo de cima da
pedra.
-- Bem -- digo a Bernie Kosar. -- Chegou a hora
da verdade. Ele abre os olhos por um instante,
depois os fecha e volta a cochi lar no gramado frio.
Removo o arame que prende os jornais e pego o
primeiro da pilha. A história está na primeira
página. No alto há uma foto dos es combros, um
retrato feito na manhã seguinte ao incêndio. Traz
uma impressão lúgubre, de mau presságio. Cinzas
negras recobrem as árvores sem folhas e a grama
coberta de espuma. Eu leio a manchete:
QUEIMANDO TUDO NA CASA DOS JAMES
Prendo a respiração, tomado por um sentimento
horrível que se concentra no meio de minhas
entranhas, como se estivesse a um passo de uma
notícia horrenda. Passo os olhos pelo artigo. Não
leio realmente, apenas procuro meu nome . Chego
ao final. Pisco e balanço a cabeça para livrá -la da
confusão. Um sorriso cauteloso se forma. Depois
eu leio tudo de novo.
-- Não acredito -- digo. -- Bernie Kosar, meu
nome não está aqui!
Ele não presta atenção em mim. Corro pelo
gramado e pulo sobre a rocha.
-- Meu nome não está aqui! -- grito novamente,
desta vez com toda a força que tenho.
Eu me sento e leio a história. A manch ete é um
trocadilho com o nome do filme de Cheech e
Chong, Queimando Tudo, cujo tema prin cipal
parece ser uso de drogas. A polícia acredita que o
incêndio foi provocado por um baseado fumado no
porão. Nem imagino como essa informação chegou
ao jornal, especialmente porque é errada. O artigo
é cruel e pejorativo, quase um ataque à família
James. Não gostei daquele repórter. Fica claro que
ele não gosta dos James. Por quê?
Continuo sentado na pedra e leio o a rtigo três
vezes antes de a primeira pessoa chegar e
destrancar as portas. Não consigo p arar de sorrir.
Vou ficar em Ohio, em Paradise. O nome da cidade
não me parece mais tolo. Em meu entusiasmo,
tenho a sensação de estar esquecendo alguma
coisa, um componente fundamental. Mas estou tão
feliz que não me importo. Que mal pode me atingir
agora? Meu nome não está no artigo. Eu não corri
para dentro daquela casa. A prova está bem ali, em
minhas mãos. Ninguém pode dizer o contrário.
-- Por que está tão feliz? -- Sam me pergunta na
aula de astronomia.
Eu ainda não parei de sorrir.
-- Leu o jornal de hoje?
Ele assente.
-- Sam, eu não fui citado! Não preciso ir embora.
-- E por que eles o mencionariam no jornal?
Fico aturdido. Abro a boca para explicar,
argumentar, mas vejo Sarah entrando na sala. Ela
se aproxima de nós, sorridente.
-- Oi, gatão -- diz.
Ela se inclina e me beija no rosto, situação que
nunca deixa de me afetar.
-- Parece que alguém está feliz hoje -- diz.
-- Feliz por ver você -- eu digo. -- Nervosa com o
exame de motorista?
-- Um pouco. Na verdade, estou ansio sa para
acabar logo.
Ela se senta a meu lado. Hoje é meu dia, penso.
Este é o lugar onde quero estar, e é onde estou.
Sarah de um lado, Sam do outro.
Assisto às aulas como faço todos os dias. Almoço
com Sam. Não falamos sobre o incêndio. Devemos
ser os únicos na escola que não comentam sobre o
fogo. A mesma história, muitas e muitas vezes.
Nunca ouço meu nome. Em nenhuma das versões.
Como eu já esperava, Mark não está na escola.
Espalha-se um boato de que ele e muitos outros
serão suspensos por causa da teo ria publicada pelo
jornal local. Não sei se é verdade ou não. Não sei
se estou interessado em saber.
Quando Sarah e eu entramos na cozinha, na aula
de economia doméstica, sinto-me completamente
seguro e confiante. É uma cer teza tão forte que
penso novamente que devo estar enganado, que
deixei escapar algum detalhe. A dúvida me
acompanha durante o dia todo, mas eu sempre a
reprimo no fundo da mente.
Preparamos pudim de tapioca. É um dia fácil. No
meio da aula, a porta da cozinha é aberta. É o
monitor do corredor. Olho para ele e sei
imediatamente o que faz ali. Ele é o mensageiro da
má notícia. O mensageiro da morte. Ele se
aproxima de mim e me entrega um pedaço de
papel.
-- O Sr. Harris deseja vê-lo -- diz.
-- Agora?
Ele assente.
Olho para Sarah e dou de ombro s. Não quero que
ela perceba meu medo. Sorrio para ela antes de me
dirigir à porta. E, antes de sair, eu me viro e olho
para ela mais uma vez. Sarah está inclinada sobre a
mesa, misturando nossos ingredi entes, usando
aquele mesmo avental verde que amarrei para ela
em meu primeiro dia de aula, quando preparamos
panquecas e as comemos no mesmo prato. Seu
cabelo está preso num rabo de cavalo, e algumas
mechas se soltam, emoldurando o rosto. Ela as
prende atrás da orelha, e é então que me vê parado
na porta. Continuo olhando para ela, tentando
registrar cada detalhe deste momento, a maneira
como ela segura a colher de pau, a aparência de
marfim da pele iluminada pela luz que entra pelas
janelas, a ternura nos olhos. Sua c amisa tem um
botão aberto no colarinho. Será que ela percebeu?
O monitor fala alguma coisa atrás de mim. Eu
aceno para Sarah, fecho a porta e sigo pelo
corredor. Caminho devagar, tentando me
convencer de que é só uma formalidade, algum
documento que esqueci de assinar, alguma
pergunta sobre a transferência. Mas sei que não é
só isso.
O Sr. Harris está sentado atrás da mesa quando
entro em sua sala. Ele sorri de um jeito que me
aterroriza, aquele mesmo sorriso orgulho so que
exibia no dia em que tirou Mark da sala para ir dar
a entrevista.
-- Sente-se -- ele diz. -- Então ó verdade? -- Ele
olha para a tela do computador e depois para mim.
-- O quê?
Na mesa dele há um envelope com meu nome
escrito com caneta preta. O Sr. Harris percebe que
já notei o envelope.
-- Ah, sim, isso chegou para você por fax há ce rca
de meia hora.
Ele pega o envelope e o joga em minha direção. Eu
o seguro.
-- O que é? -- pergunto.
-- Não sei. Minha secretária lacrou o envelope
assim que recebeu o documento.
Várias coisas acontecem ao me smo tempo. Abro o
envelope e removo seu conteúdo. Duas folhas de
papel. A de cima é uma capa com meu nome e a
palavra CONFIDENCIAL em grandes letras negras.
Eu a coloco atrás da segunda folha, na qual leio
uma única frase escrita em letras maiúsculas.
Nenhum nome. Apenas cinco palavras pretas em
fundo branco.
-- Então, Sr. Smith, é verdade? Entrou correndo
naquela casa em chamas para salvar Sarah Hart e
os cachorros? -- o Sr. Harris pergunta.
O sangue invade meu rosto. Ergo o olhar. Ele vira
o monitor do computador para mim, a fim de que
eu possa ler o que está na tela. É o blog afiliado ao
Paradise Gazette. Não preciso ver o nome do autor
para saber quem escreveu o texto. O título é mais
do que suficiente.
O INCÊNDIO NA CASA DOS JAMES: A HISTÓRIA
NÃO CONTADA
Sinto que o ar fica preso na garganta. Meu cor ação
dispara. O mundo para, ou pelo menos parece
parar. Eu me sinto morto por dentro. Olho para a
folha de papel que estou segurando. Papel bran co,
liso, suave entre meus dedos. Lá está escrito:
VOCÊ É O NÚMERO QUATRO?
As duas folhas caem de minhas mãos, flutuam até o
chão, onde ficam imóveis. Não entendo, eu penso.
Como é possível?
-- Então é isso? -- insiste o Sr. Harris.
Estou boquiaberto. Sr. Harris sorri orgulhoso,
feliz. Mas não é ele que vejo. É o que está atrás
dele, além das janelas da sala da dir etoria. Um
lampejo vermelho vindo da esquina, movendo -se
mais rápido do que pode ser normal, do que é
seguro. Os pneus cantam no asfalto do
estacionamento. A caminhonete espalha o cascalho
do calçamento ao fazer uma segunda curva. Henri
está debruçado sobr e o volante como um doido.
Ele freia com tanta violência que seu corpo é
impulsionado para a frente. A caminhonete estanca
com um barulho assustador.
Eu fecho os olhos.
Apóio a cabeça nas mãos.
Ouço a porta da caminhonete se abrir lá fora. Ouço
quando ela é fechada.
Mais um minuto e Henri estará na sala.
CAPÍTULO VINTE E OITO
-- SENTE-SE BEM, SR. SMITH? -- O DIRETOR
PERGUNTA. OLHO PARA ELE. VEJO em seu rosto
o esforço que faz para parecer preocupado, um
olhar que só dura um segundo antes de o sorriso
largo voltar.
-- Não, Sr. Harris -- respondo. -- Não me sinto
bem.
Pego do chão a folha e a leio novamente. De onde
veio isto? Agora eles só mexem com nosso
equilíbrio? Não há número de telefone ou
endereço, nenhum nome. Nada além de cinco
palavras e um ponto de interrogação. Olho pela
janela. A caminhonete de Henri está estacio nada, e
o escapamento ainda libera uma fumaça clara. Ele
vai entrar e sair tão rápido quanto puder. Olho
novamente para a tela do compu tador. O artigo foi
postado às 11h59 da manhã, quase duas horas atrás.
Surpreendo-me por Henri ter demorado todo esse
tempo para chegar. Uma vertigem se apodera de
mim. Sinto que estou oscilando.
-- Precisa da enfermeira? -- o Sr. Harris pergunta.
A enfermeira, eu penso. Não, eu não preciso da
enfermeira. O ambulatório fica ao lado da cozinha
onde temos aula de economia doméstica. Preciso
voltar lá, Sr. Harris, voltar no tempo quinze
minutos, antes de ser chamado pelo monitor do
meu corredor. Sarah já deve estar assando o
pudim. Talvez já esteja borbulhando. Ela está
olhando para a porta, esperando eu voltar?
O eco distante das portas das salas se abrindo e
fechando alcança a sala da diretoria. Quinze
segundos até Henri chegar. Depois para a
caminhonete. Para casa. E depois, para onde?
Maine? Missouri? Canadá? Uma escola diferente,
outro começo, outro nome.
Não durmo há quase trinta horas, e só agora sinto
a exaustão. Mas há algo mais, outro sentimento, e
nessa fração de segundo entre instinto e ação, a
realidade de que vou embora para sempre sem ter
sequer a chance de me despedir se torna
intolerável. Meus olhos se estreitam, meu rosto se
contorce em agonia, e -- sem pensar, sem
realmente saber o que estou fazendo -- salto por
cima do Sr. Harris e atravesso a vidraça da janela,
que se parte em milhões de pedaços pequ eninos.
Ouço um grito chocado.
Meus pés aterrissam na grama do lado de fora. Viro
para a direita e atravesso correndo o pátio da
escola, as salas passando num lampejo à minha
direita. Corro para o bosque atrás da quadra de
futebol. Tenho cortes na testa e no cotovelo
esquerdo, resultado do contato com os cacos de
vidro da janela. Meus pulmões queimam. Para o
inferno com a dor. Sigo em frente, o papel ainda
em minha mão direita. Eu o enfio no bolso. Por
que os mogadorianos enviariam um fax? Eles não
apareceriam ali, simplesmente? Essa era a principal
vantagem que tinham, chegar de forma inesperada,
sem aviso prévio. O benefício da surpresa.
Viro à esquerda no meio da floresta, correndo
entre as árvores até sair do outro lado, em um
campo. As vacas mastigam o capim e me olham
inexpressivas, e eu continuo correndo. Chego em
casa antes de Henri. Bernie Kosar não está ali.
Passo pela porta e paro de repente. A respiração
parece ficar presa no peito. Na cozinha, sen tada à
mesa diante do laptop de Henri, vejo uma pe ssoa
que penso ser um deles. Eles me venceram, agiram
de forma a garantir que eu estivesse sozinho, sem
Henri. A pessoa se vira, e eu cerro os punhos me
preparando para lutar.
Mas é Mark James.
-- O que está fazendo aqui? -- pergunto.
-- Tentando entender o que significa tudo isso que
está acontecendo -- ele responde com um ar
apavorado. -- O que diabos é você?
-- Do que está falando?
-- Veja -- ele diz, apontando para o computador.
Eu me aproximo, mas não olho para a tela, porque
antes meu olhar para na folha sobr e a mesa, ao
lado do laptop. É uma réplica daquela que tenho
no bolso, exceto pelo papel em que foi impressa a
mensagem, um tipo mais encorpado do que aquele
utilizado para fax. Então eu noto algo mais. No pé
da página enviada para Henri, numa letra bem
pequena, há um número de telefone. Eles não
podem estar pensando que vamos telefonar! "Alô?
Ah, sim, sou eu, o Número Quatro, estou aqui
esperando por vocês. Passamos dez anos fugindo,
mas, por favor, podem vir nos pegar agora; não
vamos resistir." Isso não faz sentido algum.
-- Isso é seu? -- pergunto.
-- Não -- Mark responde. -- Mas foi entregue por
um portador quando cheguei aqui. Seu pai leu
enquanto eu mostrava a ele o ví deo e depois saiu
correndo.
-- Que vídeo?
-- Veja -- ele diz.
Olho para a tela e vejo que el e acessou o YouTube.
Ele clica em play. É um vídeo de imagem pouco
nítida, com qualidade ruim, como se houvesse sido
feito a partir de um celular. Reconheço
imediatamente a casa, cuja fachada está em
chamas. A câmera treme, mas é possível ouvir os
cães latindo e as exclamações de terror e choque
da multidão. A pessoa que está gravando começa a
recuar, afasta-se, vai para a lateral da casa e depois
para os fundos. A câmera focaliza uma janela de
trás, de onde vêm os latidos. Os latidos cessam, e
eu fecho os olhos porque sei o quo está por vir.
Vinte segundos depois, eu apareço voando pela
janela com Sarah e os cachorros nos braços, e Mark
clica no botão de pausa do vídeo. Quem está
filmando aciona o zoom da câmera, e meu rosto e o
de Sarah surgem, inconfundív eis.
-- Quem é você? -- Mark pergunta.
Ignoro a pergunta e faço outra:
-- Quem fez esse filme?
-- Não sei.
O cascalho range sob os pneus da caminhonete na
frente da casa. Henri voltou. Ergo o corpo, e meu
primeiro instinto é correr, sair da casa e voltar à
escola, onde sei que Sarah vai ficar até tarde
revelando fotos -- até o horário de seu exame de
motorista, às quatro e meia da tarde. O rosto dela
é tão nítido quanto o meu naquele vídeo, o que a
coloca em igual perigo. Mas alguma coisa me
impede de fugir e fico esperando ali mesmo, na
cozinha, ao lado da mesa. Ouço a porta da
caminhonete se fechando. Henri entra em casa
cinco segundos depois, com Bernie Kosar correndo
na frente dele.
-- Mentiu para mim -- ele fala da porta, o rosto
dominado pela tensão.
-- Eu minto para todo mundo -- respondo. --
Você me ensinou.
-- Não mentimos um para o outro! -- ele grita.
Nós trocamos um olhar demorado.
-- O que está acontecendo? -- Mark pergunta.
-- Não vou sair daqui sem falar com Sarah --
aviso. -- Ela corre perigo, Henri!
Ele balança a cabeça para mim.
-- Este não é momento para sentimentalismo,
John. Não vê o que está acontecendo? -- ele
pergunta e atravessa a cozinha brandindo a folha
de papel. -- De onde acha que veio isto?
-- Que diabo está acontecendo aqui? -- Mark
praticamente berra.
Ignoro a folha e Mark, mantendo os olhos fixos em
Henri.
-- Também já vi isso e, por esse motivo, preciso
voltar à escola. Eles a verão e irão atrás dela.
Henri começa a se aproximar de mim. Depois do
segundo passo, ergo a mão e o detenho onde está,
alguns metros longe. Ele tenta prosseguir, mas não
consegue.
-- Precisamos sair daqui. John -- ele avisa com um
tom suplicante, magoado.
Enquanto o mantenho afastado, começo a andar de
costas na direção da porta, para meu quarto. Henri
desiste de tentar se mover. Ele não diz nada, fica
ali parado me observando com ar sofrido, um olhar
que faz eu me sentir pior do que já me sentia.
Tenho de desviar os olhos dos dele. Quando chego
à porta, volto a encará-lo. Seus ombros estão
caídos, os braços ao longo do corpo, como se ele
não soubesse o que fazer com as mãos. Henri
simplesmente olha para mim, e de repente tenho a
impressão de que ele talvez comece a chorar.
-- Sinto muito -- digo, usando a vantagem da
distância para conseguir escapar. Eu me viro e
corro para o quarto, pego na gaveta da cômoda
uma faca que usava para tirar escamas de peixe
quando ainda vivíamos na Flórida e pulo pela
janela. Corro para a floresta. Os latidos de Bernie
Kosar me seguem, mas é só isso. Mais nada. Corro
por pouco mais de um quilômetro e paro na grande
clareira onde Sarah e eu fizemos anjos na neve.
Nossa clareira, ela a havia chamado. A clareira
onde faríamos nossos piqueniques de verão. Sinto
dor no peito quando penso que não estarei ali no
verão, uma dor tão forte que me curvo e ranjo os
dentes. Se ao menos pudesse ligar para ela e
preveni-la, dizer para sair da escola. Mas meu
telefone está no armário, junto com tudo o que
levo na mochila da escola. Vou protegê -la do
perigo iminente, depois voltarei para ir embora
com Henri.
Eu me viro e corro para a escola, corro tanto
quanto meus pulmões permitem. Chego quando os
ônibus já começam a deixar o estacionamento. Eu
os vejo de onde estou, na entrada da floresta.
Hobbs está na porta, do lado de fora, medindo um
grande painel de madeira para cobrir a janela que
quebrei. Controlo a respiração, faço o possível para
limpar a mente de todos os pensamentos. Vejo os
carros deixarem o local até restarem só alguns
poucos. Hobbs cobre o buraco, depois desaparece
no interior do prédio. Gostaria de sabe r se ele foi
prevenido sobre mim, se foi orientado a chamar a
polícia caso me visse. Olho para o relógio no pulso.
São apenas 15h30, mas a penumbra parece estar
mais intensa, tornando-se uma escuridão pesada e
envolvente. As luzes no estacionamento foram
acesas, mas elas também parecem pálidas e
insuficientes.
Saio da floresta, atravesso o campo de beisebol e
me aproximo do prédio. Ainda há cerca de dez
carros no estacionamento. A porta da escola já foi
trancada. Eu seguro a maçaneta, fecho os olhos,
concentro-me, e a tranca estala. Entro no edifício e
não vejo ninguém. As luzes no corredor estão
acesas. O ar é quieto, como se não se mo vesse. Em
algum lugar, a enceradeira já foi ligada para polir o
chão. Caminho pelo corredor até ver a porta da
sala de revelação. Sarah. Ela planejava revelar
algumas fotos hoje, antes do exame de motorista.
Vou até meu armário e abro a porta. Meu telefone
não está lá; o armário está completamente vazio.
Alguém, Henri, espero, o pegou. Chego à sala de
revelação sem ver ninguém pelo caminho. Onde
estão os atletas, os membros da banda, os
professores que sempre ficam até mais tarde
corrigindo trabalhos e preparando aulas? Um mau
pressentimento me invade, e tenho medo de que
algo terrível tenha acontecido a Sarah. Pressiono a
orelha contra a porta da sala de revelação,
tentando ouvir algum som do outro lado, mas tudo
o que consigo identificar é o ronco abafado da
enceradeira em algum ponto do corredor. Respiro
fundo e tento abrir a porta. Está trancada. Colo a
orelha nela novamente e bato com delicadeza. Não
há resposta, mas ouço algum ruído do outro lado.
Respiro fundo, preparo-me para o que posso
encontrar e destranco a porta.
A sala está escura. Acendo minhas mãos e faço uma
varredura. Não vejo nada e penso que o lugar está
vazio, mas percebo um leve movimento em um
canto. Eu me abaixo para olhar, e ali, encolhida
sob o balcão, tentando se esconder, encontro
Sarah. Reduzo a intensidade das luzes para que ela
possa ver que sou eu. Ela olha para mim, sorri e
respira aliviadamente.
-- Eles estão aqui, não é?
-- Se não estiverem, logo estarão.
Eu a ajudo a se levantar, e Sarah me abraça com
força, tanto que tenho a impressão de que nunca
mais me soltará.
-- Vim para cá logo depois da oitava aula, e assim
que a última aula terminou, comecei a ouvir
barulhos estranhos nos corredores. Ficou muito
escuro, por isso me tranquei aqui e fiquei embaixo
do balcão, apavorada demais para me mover. Sabia
que algo estava errado, especialmente depois que
ouvi os boatos sobre como você pu lou pela janela.
E você não atendia ao telefone.
-- Você foi muito esperta, mas agora devemos sair
daqui, e depressa.
Deixamos a sala de mãos dadas. As luzes do
corredor se apagam, e toda a escola está neste
instante mergulhada na escuridão, embora o
anoitecer ainda seja daqui a pelo menos uma hora.
Dez segundos depois, as luzes se acendem
novamente.
-- O que está acontecendo? -- Sarah sussurra.
-- Não sei.
Seguimos em frente sem fazer barulho, e os
menores ruídos que fazemos parecem abafados,
amortecidos. A saída mais próxima é a porta dos
fundos, que se abre para o estacionamento dos
professores, e, enquanto caminhamos para lá, o
som da enceradeira vai se tornando mais próximo.
Deduzo que encontraremos Hobbs. Presumo que
ele saiba que quebrei a janela. Ele vai me atacar
com um cabo de vassoura e chamar a polícia? Acho
que, a esta altura, isso não importa.
Quando chegamos ao corredor no fundo do prédio,
as luzes se apagam mais uma vez. Paramos e
esperamos que voltem a se acen der, mas nada
muda. A enceradeira continua, um som con tínuo e
abafado. Não posso veda, mas sei que está a uns
cinco ou seis metros de nós na escuridão
impenetrável. Acho estranho que a máqui na
continue funcionando, que Hobbs continue
polindo o chão no escuro. Acendo minhas luzes.
Sarah solta minhas mãos e fic a atrás de mim,
segurando minha cintura. Encontro a tomada na
parede, depois o fio, depois a máquina. Ela está
parada, batendo na parede, sem ninguém para
manejá-la, funcionando sozinha. O pânico me
invade. Sarah e eu temos de sair logo da escola.
Arranco o fio da tomada e a enceradeira para. No
lugar do ronco anterior, resta agora apenas o
silêncio. Apago minhas luzes. Em al gum lugar, uma
porta se abre com cuidado, apenas uma fresta. Eu
me abaixo, mantenho as costas voltadas para a
parede, Sarah segurando meu braço. Estamos
ambos apavorados demais para falar. O instinto me
fez puxar o fio para deter a enceradeira, e tenho
um impulso de ligá-la novamente, mas sei que isso
vai nos delatar, se eles realmente estiverem ali.
Fecho os olhos e tento ouvir algo. A porta não faz
mais nenhum ruído. Um vento suave parece surgir
do nada. Certamente, não há janela alguma aberta.
Penso que talvez o vento esteja entrando pela
janela que quebrei. Então, a porta é batida com
violência, e vidros se quebram e caem no chão.
Sarah grita. Alguma coisa passa por nós, mas não
sei o que é e nem tento descobrir. Seguro a mão de
Sarah e corro, abro a porta com o ombro e
continuo correndo para o estacionamento. Sarah
sufoca um grito, e nós paramos. Minha respiração
fica presa na garganta, e um arrepio gelado sobe
pelas costas. As luzes estão acesas, mas fracas,
fantasmagóricas na escuridão densa. Sob a
lâmpada mais próxima, nós dois vemos a figura no
sobretudo e com um chapéu afundado que nos
impede de ver seus olhos. Ela levanta a cabeç a e ri
para mim.
Sarah aperta minha mão. Nós dois recuamos um
passo e, na pressa de fugir, tropeçamos. Nós nos
deslocamos de volta como caran guejos, até
esbarrarmos na porta.
-- Vamos -- eu grito enquanto me levanto. Sar ah
também fica em pé. Experimento a m açaneta, mas
a porta se trancou automaticamente quando
saímos. -- Merda!
Vejo outra figura pelo canto dos olhos, e no início
ela fica parada, imóvel. Percebo quando dá o
primeiro passo em minha direção. Há outra atrás
dela. Os mogadorianos. Depois de tantos anos, eles
finalmente estão ali. Tento me concentrar, mas
minhas mãos tremem demais para que eu consiga
abrir a porta. Percebo que eles se apro ximam.
Sarah cola o corpo ao meu e sinto que ela está
tremendo.
Não consigo me concentrar para destrancar a
porta. O que aconteceu com minha capacidade de
funcionar sob pressão, com todos aqueles dias de
treinamento no quintal de casa? Não quero morrer,
eu penso. Não quero morrer.
-- John -- Sarah murmura, e há tanto medo na voz
dela que meus olhos se abrem. Sou tomad o por
uma determinação renovada.
A fechadura estala. A porta se a bre. Sarah e eu
entramos e a fechamos. Ouvimos um baque do
outro lado, como se alguém houvesse chutado a
porta. Aceleramos pelo corredor adentro. Os
barulhos nos seguem. Não sei se há algum
mogadoriano dentro do edifício. Outra janela se
quebra em algum lugar, e Sarah grita.
-- Precisamos ficar quietos -- digo.
Tentamos abrir as portas das sala s de aula, mas
todas estão trancadas. Não creio que haja tempo
suficiente para destrancar uma de las. Em algum
lugar uma porta bate, e não consigo dizer se é na
frente ou atrás de nós. Os barulhos nos seguem de
perto, aproximam-se, invadem nossa audição.
Sarah segura minha mão e corremos ainda mais. e
eu tento lembrar a planta do prédio para poder
manter minhas luzes apagadas, impedir que nos
vejam. Finalmente, uma porta se abre, e passamos
por ela caindo do outro lado. É a sala de história, à
esquerda do corredor. Pela janela dali é possível
ver uma encosta suave lá fora, e, por causa da
altura de cinco ou seis metros, há grades nas
janelas. A escuridão é total do outro lado da
vidraça. Nenhuma luz penetra por ela. Fecho a
porta silenciosamente e espero que eles não
tenham nos visto. Direciono minhas luzes por toda
a área da sala e as apago depressa. Estamos
sozinhos e vamos nos esconder sob a mesa do
professor. Tento respirar. O suor escorre pelas
laterais de meu rosto e arde em meus olhos.
Quantos deles estão ali? Vi três, pelo menos. E eles
não eram os únicos lá fora, é c laro. Será que
trouxeram as bestas, os bichos dos quais os
redatores em Athens tinham tanto medo? Queria
que Henri estivesse ali. Ou Bernie Kosar.
A porta se abre lentamente. Prendo a respiração e
escuto. Sarah se apoia em mim e nós nos
abraçamos. A porta se fecha e ouvimos o estalo da
maçaneta. Não escuto passos. Eles só abriram a
porta e espiaram pela fresta para ver se havia
alguém ali? Foram embora sem entrar? Eles me
encontraram depois de muito tempo, não podem
ser tão relaxados.
-- O que vamos fazer? -- Sarah pergunta depois de
trinta segundos.
-- Não sei -- cochicho de volta.
A sala está silenciosa. Não imagino quem ou o que
abriu a porta, mas, seja o que for, deve ter ido
embora ou está esperando por nós no corredor.
Mas sei que, quanto mais tempo ficarmos ali
esperando, mais deles chegarã o. Vamos ter de
correr o risco. Respiro fundo.
-- Precisamos ir -- eu digo. -- Não estamos
seguros aqui.
-- Mas eles estão lá fora.
-- Eu compreendo, e não vão desis tir. Henri está
em casa, correndo o mesmo perigo que nós.
-- Mas como vamos sair?
Não faço ideia, não sei o que dizer. Só existe uma
saída, e o caminho é o mesmo por onde entramos.
Os braços de Sarah ainda me enlaçam.
-- Somos alvos fáceis aqui, Sarah. Eles nos
encontrarão e, quando isso acontecer, todos virão
nos pegar. Se sairmos agora, ainda teremos a nosso
lado o elemento surpresa. Se conseguirmos sair do
prédio, acho que podemos ligar um carro. Se não,
vamos ter que lutar para fugir. Ela assente.
Respiro profundamente e saio de baixo da mesa.
Estendo a mão, e Sarah também se levanta. Juntos,
vamos caminhando passo a passo, em silêncio.
Levamos um minuto inteiro para atravessar a sala e
não encontramos nada na escuridão. Um brilho
muito brando brota de mi nhas mãos, emitindo uma
luz muito fraca, o suficiente apenas para não
tropeçarmos em nada. Olho para a porta. Abro.
Depois, faço Sarah pular em minhas costas e corro,
corro com todas as minhas forças, com as luzes
acesas, percorro o corre dor, para sair da escola e
atravessar o estacionamento, planejando correr
para a floresta, caso não consiga ligar u m carro.
Conheço a floresta e o caminho para casa. Há mais
deles, mas Sarah e eu temos a vantagem de
conhecer o terreno.
Quando nos aproximamos da porta, meu coração
está batendo tão forte e acelerado, que os
mogadorianos devem poder ouvi-lo. Fecho os olhos
e estendo a mão para a maçaneta bem devagar.
Sarah fica tensa. Quando minha mão está
suficientemente próxima da maçaneta, tanto que
posso sentir o frio que emana do metal, somos
agarrados por trás e puxados para o chão.
Tento gritar, mas a mão cobre minh a boca. O medo
me invade. Sinto Sarah se debatendo sob os braços
que a imobilizam e faço o mesmo, mas o adversário
é muito mais forte. Nunca pensei que os
mogadorianos seriam mais fortes do que eu. Eu os
subestimei. Agora não há mais esperança.
Fracassei. Falhei com Sarah, com Henri, e sinto
muito por isso. Henri, espero que lute melhor do
que eu.
Sarah está ofegante, e concentro todas as minhas
forças na tentativa de me libertar, mas não
consigo.
-- Shhhh, pare de se debater -- a voz sussurra em
meu ouvido. Uma voz feminina. -- Eles estão
esperando lá fora. Vocês dois pre cisam ficar
quietos.
É uma garota, mas ela é tão forte quanto eu. Talvez
mais forte do que eu. Nós nos estudamos. Uso a
luz de minhas mãos para ilu minar o rosto que,
descubro, é pouco mais velho do que o meu. Olhos
castanhos, faces elevadas, cabelos escuros e longos
presos num rabo de cavalo, boca larga e nariz
forte, pele azeitonada.
-- Quem é você? -- pergunto.
Ela olha para a porta e permanece em silêncio.
Uma aliada, penso. Alguém além dos mo gadorianos
sabe de minha existência. Alguém está ali para
ajudar.
-- Eu sou a Número Seis -- ela diz. -- Tentei
chegar aqui antes deles.
CAPÍTULO VINTE E NOVE
- COMO SOUBE QUEM EU ERA? - PERGUNTO.
Ela olha para a porta.
-- Estou tentando encontrado desde que Três foi
morto. Mas eu explico tudo mais tarde. Primeiro,
temos que sair daqui.
-- Como entrou sem ser vista por eles?
-- Posso me tornar invisível.
Eu sorrio. O mesmo Legado que meu avô tinha.
Invisibilidade. E a capacidade de tornar invisível
tudo aquilo em que ele tocava, como a casa no
segundo dia de trabalho de Henri.
-- Mora muito longe daqui? -- ela pergunta.
-- Cinco quilômetros.
Sinto que ela move a cabeça em sentido afirmativo
na escuridão.
-- Você tem um Cêpan? -- ela pergunta.
-- Sim, é claro. Você não tem?
Ela transfere o peso do corpo de uma perna para a
outra e faz uma pausa antes de responder, como se
buscasse forças em alguma entidade invisível.
-- Eu tinha -- ela revela. -- Ela morreu há três
anos. Desde então, tenho estado sozinha.
-- Sinto muito -- eu digo.
-- É uma guerra, as pessoas vão morrer. E neste
momento nós devemos sair daqui, ou morreremos
também. Eles estão na área, então já sabem onde
você mora, o que significa que já estão lá, por isso
é inútil tentar ser discreto para sairmos daqui. Os
que estão lá fora são só mensageiros. Os soldados
estão a caminho. Eles têm espadas. As bestas não
demorarão a segui-los. O tempo é curto. Um dia,
no máximo. Se eles já não estiverem por aqui.
Meu primeiro pensamento: Eles já sabem onde eu
moro. Entro em pânico. Henri está em casa, com
Bemie Kosar, e os soldados e as bestas podem estar
com eles. Meu segundo pensamento: a Cêpan da
Número Seis morreu há três anos. Desde então.
Seis tem estado sozinha em um planeta estranho.
Desde os treze, quatorze anos.
-- Ele está em casa -- digo.
-- Quem?
-- Henri. Meu Cêpan.
-- Tenho certeza de que ele está bem. Não tocarão
nele enquanto você estiver livre. É você que eles
querem, e vão usá-lo para atraí-lo -- diz Seis.
Depois, ela olha para a janela com grades. Nós
também olhamos para lá. As luzes fracas dos faróis
de um carro aproximam-se da escola, passam pela
saída, fazem uma curva e desaparecem
rapidamente. Seis olha para nós.
-- Todas as portas estão bloqueadas. Como vamos
sair?
Eu penso um pouco e imagino que uma das janelas
sem grades em outra sala de aula seja nossa melhor
chance.
-- Podemos sair pelo ginásio -- diz Sarah. -- Há
uma passagem sob o palco que se abre como um
alçapão e leva à parte de trás do prédio.
-- É mesmo? -- pergunto.
Ela assente, e sinto orgulho dela.
-- Segurem minhas mãos -- diz Seis. Eu pego a
direita, Sarah segura a esquerda. -- Fiquem
quietos. Enquanto segurarem mi nhas mãos. vocês
estarão invisíveis. Eles não poderão nos ver, mas
conseguem nos ouvir. Quando estivermos do lado
de fora, vamos correr como louc os. Depois que nos
virem não poderemos escapar deles. Nossa única
chance é matados, matar cada um deles, antes de
os outros chegarem.
-- Tudo bem -- concordo.
-- Sabe o que isso significa? -- Seis me pergunta.
Balanço a cabeça. Não sei nem o que ela está me
perguntando.
-- Não há como fugir deles agora -- ela diz. --
Significa que você vai ter que lutar.
Pretendo responder, mas o ruído abafado que ouvi
antes para do outro lado da porta. Silêncio.
Alguém gira a maçaneta. Número Seis respira
fundo e solta minha mão.
-- Esqueça a fuga -- ela avisa. -- A guerra começa
agora.
Ela corre com as mãos estendidas p ara a frente, e a
porta é repentinamente arrancada das dobradiças e
jogada longe. O corredor fica coberto de
fragmentos de madeira e cacos de vidro.
-- Acenda suas luzes! -- ela grita.
Eu obedeço. Há um mogadoriano parado no meio
dos destroços da porta. Ele sorri, e percebo um fio
de sangue escorrendo pelo canto de sua boca, onde
a porta o atingiu. Olhos negros, pele pálida como
se nunca tivesse sido tocada pelo sol. Uma espécie
de criatura das cavernas, um ser das sombras que
se ergueu dos mortos. Ele arre messa algum objeto
que não consigo ver, e ouço Seis gemer a meu lado.
Fito os olhos dele e uma dor me toma de assalto,
paralisando-me. Não consigo me mover. A
escuridão cai. Tristeza. Meu corpo está enrijecido.
Imagens do dia da invasão desfilam por minha
mente: a morte de mulheres e de crianças, de meus
avós; lágrimas, gritos, sangue, pilhas de corpos
queimando. Seis quebra o encanto quando ergue o
mogadoriano no ar e o arremessa contra a parede.
Ele tenta ficar de pé, e Seis o levanta novamente,
desta vez jogando-o com toda a força contra uma
parede, em seguida contra outra. O mensageiro cai
retorcido e quebrado, seu pei to se eleva, depois
fica paralisado. Um ou dois segundos passam. Todo
o corpo desmorona numa pilha de cinzas, e o som
é parecido com o de areia caindo no chão.
-- Que diabos? -- pergunto, imaginando como é
possível o corpo se desintegrar completamente,
como acabei de ver.
-- Não olhe nos olhos dele! -- ela grita, ignorando
minha confusão.
Penso no redator de Eles Estão entre Nós. Agora
entendo o que ele passou quando olhou nos olhos
deles. Talvez tenha recebido a morte com alívio e
alegria quando ela finalmente chegou, feliz por
poder se livrar das imagens qu e desfilavam
constantemente por seus pensamentos. Só posso
imaginar a intensidade com que eles teriam
surgido para mim se Seis não houvesse quebrado o
encanto.
Dois outros mensageiros surgem no final do
corredor e caminham em nossa direção. Um manto
de escuridão os cerca, como se consumissem tudo
em torno deles, pintando o mundo de preto. Seis
está à minha frente, firme, de queixo ergu ido. Ela é
cinco centímetros menor do que eu, mas sua
atitude a faz parecer cinco centímetros mais alta.
Sarah está atrás de mim. Os dois mogadorianos
param no cruzamento de dois corredores, seus
dentes visíveis numa careta. Meu corpo fica tenso,
os músculos queimam de exaustão. Eles respiram
fundo, de um jeito ruidoso, e perce bo que era esse
ruído que ouvíamos do outro lado da porta. A
respiração deles, não os passos. Eles nos observam.
Um barulho diferente soa no corredor, e os
mogadorianos se voltam na direção dele. Uma
porta treme, como se alguém tentasse arrombá -la.
Do nada, ouvimos o som de tiros, uma rajada
deles, e a porta da escola é aberta com um chute.
Os dois parecem surpresos, e, quando se viram
para fugir, mais duas rajadas ecoam, e eles são
jogados para trás. Ouvimos passos se aproximando,
dois pares de pés, e o barulhinho de unhas de
cachorro no chão. Seis fica te nsa a meu lado,
pronta para o que se aproxima de nós. Henri!
Foram as luzes dos faróis da caminhonete dele que
vimos passar. Ele deve ter entrado pelos fundos.
Nunca antes eu havia visto a arma de cano duplo
que agora está em suas mãos. Bemie Kosar caminha
ao lado dele e corre para mim ao me ver. Eu me
abaixo e o pego nos braços. Ele lambe meu rosto, e
fico tão feliz por vedo que quase me esqueço de
dizer a Seis quem é o homem com a arma.
-- Henri -- digo apressado. -- Meu Cêpan.
Ele se aproxima de nós com olh ar atento,
examinando as portas das salas ao passar por elas,
e atrás dele, carregando a Arca Lórica, eu vejo
Mark. Não sei por que Henri o trouxe. Percebo
uma expressão transtornada no olhar de Henri,
uma exaustão que se mistura a terror e
preocupação. Espero o pior, depois de ter saído de
casa daquele modo, algum tipo de reprimenda,
talvez até um tapa no rosto, mas, em vez disso, ele
passa a arma para a mão esquerda e me abraça com
força. Eu o abraço de volta.
-- Sinto muito, Henri. Eu não sabia que isso i a
acontecer.
-- Eu sei que não. Estou feliz por você estar bem
-- ele responde. -- Vamos, temos que sair daqui. A
escola está cercada.
Sarah nos leva à sala mais segura que ela consegue
lembrar, que é a cozinha das aulas de economia
doméstica no final do corr edor. Trancamos a porta
atrás de nós. Seis empurra as geladeiras para a
frente dela, de forma a impedir que alguém entre,
e Henri corre até as janelas e baixa as persianas.
Sarah se dirige à cozinha que normalmente
usamos, abre a gaveta e retira dela a mai or faca
que encontra. Mark a observa. Quando vê o que ela
fez, ele deixa a arca no chão e vai buscar uma faca
também. Mark vasculha outras gavetas e encontra
um martelo de bater carne, e o prende na cintura
da calça.
-- Todos estão bem? -- Henri pergunta.
-- Sim -- respondo.
-- Com exceção da faca em meu braço, sim, tudo
bem -- diz Seis.
Acendo as luzes das mãos, tomando o cuidado de
mantê-las bem fracas, só o suficiente para
examinar o braço dela. Seis não está brin cando. No
local onde o bíceps encontra o ombro , vejo uma
pequena adaga cravada na carne. Por isso eu a ouvi
gemer antes de matar o mensageiro. Ele havia
arremessado uma faca contra ela. Henri esten de a
mão e remove a faca. Ela grunhe.
-- Felizmente é só uma adaga -- Seis comenta,
olhando para mim. -- Os soldados virão com
espadas brilhantes que têm poderes variados.
Quero perguntar que tipo de poderes, mas Henri
interrompe.
-- Pegue -- ele diz, oferecendo a arma a Mark.
Ele a aceita com a mão livre sem protestar,
olhando espantado para tudo o que está
acontecendo à sua volta. Não sei o q uanto Henri
contou a ele. Gostaria de saber por que Henri o
trouxe. Olho para Seis. Henri pressiona um pedaço
de pano contra o braço dela, e Seis o segura. Ele
pega a arca do chão e a coloca na mesa mais
próxima.
-- Aqui, John -- ele diz.
Sem nenhuma explicação ou pergunta, eu o ajudo a
abrir a arca. Ele levanta a tampa, enfia a mão lá
dentro e retira dali uma pedra pla na tão escura
quanto a aura que cerca os mogadorianos. Seis
parece saber para que serve a pedra. Ela tira a
camisa. Por baixo, Seis veste um macacão de
borracha preto e cinza muito semelhante àquele
azul e prata que vi meu pai vestindo nos
flashbacks. Ela respira fundo e mostra o braço a
Henri. Ele aperta a pedra contra o corte, e Seis,
rangendo os dentes, grunhe e se retorce de dor. O
suor recobre sua testa, seu rosto se tinge de
vermelho pelo esforço, tendões saltam em seu
pescoço. Henri mantém a pedra n o lugar por um
minuto, aproximadamente. Ele a retira, e Seis se
dobra para a frente, respirando fundo para se
recuperar. Olho para o braço dela. Além de um
pouco de sangue ainda brilhando, o corte está
completamente cicatrizado, e tudo o que resta é o
pequeno rasgo no macacão.
-- O que é isso? -- pergunto, olhando para a
pedra.
-- É uma pedra de cura.
-- Isso existe mesmo?
-- Sim, em Lorien. Mas a dor da cura é duas vezes
pior do que a dor no instante do ferimento, e a
pedra só funciona quando a lesão foi causada com
a intenção de ferir ou de matar. E a pedra de cura
precisa ser usada corretamente.
-- Intenção? -- pergunto. -- Então, a pedra não
funcionaria se eu caísse e abrisse a cabeça
acidentalmente?
-- Não -- responde Henri. -- Essa é a razão
essencial dos Legados: defesa e pureza.
-- A pedra funcionaria em Mark ou em Sarah?
-- Não sei. E espero que não tenhamos que
descobrir.
Seis se recupera. Ela ergue o corpo e continua
segurando o braço. O vermelho em seu rosto
começa a desaparecer. Atrás dela, Bernie Kosar
está correndo de um lado para o outro, entre a
porta trancada e as janelas, que são muito altas
para que ele possa enxergar por elas. Mesmo assim,
ele se levanta nas patas traseiras e tenta, rosnando
para o que sente que estará lá fora. Talvez nada, eu
penso. De vez em quando ele morde o ar.
-- Pegou meu celular hoje quando esteve na
escola? -- pergunto a Henri.
-- Não. Eu não peguei nada.
-- Não estava no armário quando voltei.
-- Bem, o celular não funcionar ia aqui, mesmo.
Eles fizeram alguma coisa com nossa casa e a
escola. A energia está desligada, e nenhum tipo de
sinal penetra essa espécie de escudo que eles
criaram. Todos os relógios pararam. Até o ar
parece morto.
-- Não temos muito tempo -- Seis interrompe.
Henri concorda, movendo a cabeça. Um sorriso
suave surge em seus lábios quando ele olha para a
garota, uma expressão de orgu lho, talvez até de
alívio.
-- Eu me lembro de você -- ele diz.
-- Eu também me lembro de você.
Henri estende a mão, e Seis a aperta.
-- É muito bom vê-la outra vez.
-- Estou procurando por vocês há um tempo --
conta Seis.
-- Onde está Katarina? -- quer saber Henri.
Seis balança a cabeça. Uma expressão de pesar
passa por seu rosto.
-- Ela não conseguiu. Morreu há três anos. Desde
então tenho procurado pelos outros, inclusive por
vocês.
-- Sinto muito -- diz Henri.
Seis assente. Ela olha para o outro lado da sala,
onde Bernie Kosar começou a rosnar de um jeito
feroz e parece ter crescido -- agora sua cabeça
ultrapassa um pouco a parte inferior da moldura
da janela. Henri pega a arma do chão e caminha
até perto da janela, mas não muito. Ele pára cerca
de um metro e meio antes de poder tocá -la.
-- John, apague as luzes -- ele diz. Eu obedeço. --
Agora, quando eu disser, puxe as persianas.
Eu me aproximo da janela, paro ao la do dela e
seguro o cordão, enrolando-o duas vezes em torno
da mão. Faço um sinal com a cabeça indicando a
Henri que estou pronto, e por cima de se u ombro
vejo que Sarah tampou as orelhas com as mãos,
antecipando o estampido. Ele engatilha a arma e
aponta.
-- É hora de dar o troco -- murmura. Em seguida:
-- Agora! Puxo o cordão e a persiana sobe de uma
vez só. Henri dispara. O som é ensurdecedor e
ecoa em meus ouvidos por alguns segundos depois
do estrondo. Ele engatilha a arma novamente,
mantendo-a apontada. Eu me viro para olhar para
fora. Vejo dois mensageiros caídos na grama,
imóveis. Um deles é reduzido a cinzas com o
mesmo ruído abafado que ouvi no corredor. Henri
atira contra o outro mais uma vez, e ele também se
desintegra. Sombras parecem pairar em torno
deles.
-- Seis, traga uma geladeira -- Henri diz a ela.
Mark e Sarah observam, atônitos, a geladeira ser
arremessada e colocada diante da janela p ara
impedir que os mogadorianos entrem ou vejam o
interior da sala.
-- Melhor do que nada -- Henri aprova. Ele se vira
para Seis. -- Quanto tempo temos?
-- Pouco -- ela diz. -- Eles têm um esconderijo a
três horas daqui, na caverna de uma montanha em
West Virgínia.
Henri abre a arma, introduz dois cartuchos no
cano e a fecha com um estalo.
-- Quantas balas ela carrega? -- pergunto.
-- Dez.
Sarah e Mark cochicham. Eu me aproximo dos dois.
-- Tudo bem? -- pergunto.
Sarah assente, Mark dá de ombros. Nenhum dos
dois sabe bem o que dizer diante do horror da
situação. Beijo o rosto de Sarah e seguro a mão
dela.
-- Não se preocupe -- digo. -- Vamos sair desta.
Eu me viro para Seis e Henri.
-- Por que eles estão lá fora, apenas esperando? --
questiono. -- Por que não quebram uma jan ela e
entram? Eles sabem que estamos em menor
número.
-- Eles só querem nos manter aqui dentro --
explica Seis. -- Conseguiram nos encurralar
exatamente onde queriam, todos juntos,
confinados em um único espaço. A gora estão
esperando pela chegada dos outros, os soldados
com as armas, aqueles que são mais habi lidosos
para matar. Estão desesperados, porque sabem que
estamos desenvolvendo nossos Legados. Não
podem correr o risco de errar e permitir que nos
tornemos mais fortes. Eles estão cientes de que
atualmente já podem lutar.
-- Temos de sair daqui, então -- Sarah se
manifesta com aflição, a voz baixa e trêmula.
Seis assente, tentando acal má-la. Então me lembro
de um elemento que havia esquecido no meio de
toda a agitação.
-- Espere um instante! Sua presença aqui, o fato
de estarmos juntos... Isso quebra o feitiço! Agora
todos os outros podem ser mortos. Eles podem nos
matar sem considerar a ordem.
Pela expressão horrorizada no rosto de Henri,
compreendo que ele também não havia pensado
nisso.
Seis concorda com um movimento de cabeça.
-- Eu tinha que arriscar -- ela diz. -- Não
podemos continuar fugindo, e estou farta de
esperar. Estamos nos desenvolvendo, todos nós, e
agora estamos preparados para reagir. Não
podemos esquecer o que eles fizeram contra nós
naquele dia, e eu nunca vou perdoar o que fizeram
com Katarina. Todos que conhecemos estão
mortos, nossas famílias, nossos amigos. Acho que
eles planejam fazer o mesmo com a Terra, o mesmo
que fizeram com Lorien. e estão quase prontos.
Ficar parada sem fazer nada é permitir a mesma
destruição, aquela mesma morte e aniquilação. Por
que esperar e deixar acontecer de novo? Se este
planeta morrer, nós morreremos com ele.
Bernie Kosar ainda está latindo para a janela.
Chego a pensar em deixá -lo sair, ver o que ele pode
fazer. Sua boca parece espumar, os dentes estão à
mostra, os pelos estão eriçados no meio das costas.
O cão está pronto, penso. A questão é: e nós?
-- Bem, agora você está aqui -- diz Henri. --
Vamos esperar que os outros estejam salvos e que
possam se cuidar. Vocês dois saberão
imediatamente se algo acontecer a um deles.
Quanto a nós. bem, a guerra começou em nossa
porta. Não a provocamos, mas, agora que começou,
só nos resta lutar, e com todas as nossas forças, de
frente. -- Ele levanta a cabeça e olha para nós, o
branco de seus olhos brilhando na sala escura. --
Concordo com você, Seis -- Henri continua. -- O
momento chegou.
CAPÍTULO TRINTA
O VENTO PENETRA PELA JANELA QUEBRADA DA
SALA DE ECONOMIA DOMÉSTICA, E O
refrigerador na frente do vão não é suficiente para
conter o ar frio. A escola já está gelada por causa
da falta de energia elétrica. Seis ago ra veste apenas
o macacão de borracha, que é preto com uma faixa
cinza cortando o peito na diagonal. Ela está em pé
no meio de nosso grupo e demonstra tal equilíbrio
e confiança que chego a desejar ter também um
traje lórico. Ela abre a boca para falar, mas é
interrompida por um estrondo lá fora. Todos nós
corremos para as janelas, mas não podemos ver
nada que está acontecendo. A explosão é seguida
por vários estrondos, e pelo som de tecido rasgado,
esgarçado, enfim, de alguma coisa sendo destruída.
-- O que está acontecendo? -- pergunto.
-- Suas luzes -- Henri me diz, erguendo a voz
acima do som de destruição.
Acendo minhas luzes e as direciono para o pátio lá
fora. Henri recua e inclina a cabeça, ouvindo tudo
com extrema concentração, e depois move a cabeça
numa aceitação resignada.
-- Estão destruindo todos os carros lá fora,
inclusive minha caminhonete -- ele conta. -- Se
sobrevivermos a isso e conseguirmos sair da escola,
vamos ter que fugir a pé.
O terror domina a expressão de Mark e de Sarah.
-- Não podemos perder mais tempo -- Seis decide.
-- Com ou sem estratégia, temos que sair daqui
antes da chegada dos soldados e das bestas. Ela
disse que podemos fugir pelo ginásio -- Seis acena
com a cabeça para Sarah. -- Essa é nossa única
esperança.
-- O nome dela é Sarah -- eu digo.
Sento-me em uma cadeira próxima, nervoso com a
urgência de Seis. Ela parece ser a mais firme ali, a
que se manteve calma sob a pressão dos horrores
que vimos até então. Bernie Kosar está atrás da
porta, arranhando as geladeiras que a bloqueiam,
rosnando e ganindo impacientemente. Como
minhas luzes estão acesas, Seis pode dar uma boa
olhada nele pela primeira vez. Ela o estuda com
atenção, estreita os olhos, depois se inclina,
tentando vê-lo de perto. Ela se aproxima e se
abaixa para afagá-lo. Olho para ela e acho estranho
que esteja rindo.
-- O que é? -- pergunto.
Ela olha para mim.
-- Você não sabe?
-- Não sei o quê?
Seu sorriso fica ainda mais larg o. Seis olha
novamente para Bernie Kosar, que corre para longe
dela e para perto da janela, arranhando, rosnando,
latindo ocasionalmente para expressar sua
frustração. A escola está cercada, a morte é
iminente, quase certa, e Seis está rindo. Isso me
irrita.
-- Seu cachorro -- diz Seis. -- Você não sabe
mesmo?
-- Não -- Henri responde por mim e balança a
cabeça para ela.
-- Que diabo está acontecendo? -- pergunto. -- O
que é?
Seis olha para mim, depois para Henri. Ela ri e
abre a boca para falar. Mas antes de a primeira
palavra se formar, sua atenção é atraída e ela corre
para a janela. Nós a seguimos e, como antes, o
brilho sutil dos faróis de um veículo surge na curva
da estrada e entra no estacionamento. Outro
automóvel, talvez um professor ou treinador.
Fecho os olhos e respiro fundo.
-- Talvez não seja nada -- digo.
-- Apague suas luzes -- Henri me lembra.
Eu obedeço, cerro os punhos. Al guma coisa no
carro lá fora provoca em mim uma raiva intensa.
Para o inferno com a exaustão, com os tremores
que têm se repetido desde que pulei a janela da
sala do diretor. Não suporto mais ficar confinado
naquela sala, sabendo que os mogadorianos estão
lá fora, esperando, tramando nosso fim. O carro lá
fora pode ser o primeiro dos soldados chegando ao
local. Mas, quando esse pensamento surge em
minha cabeça, vemos as luzes deixando o
estacionamento rapidamente, afastando -se em alta
velocidade, voltando pela mesma estrada por onde
chegaram.
-- Temos que sair desta maldita escola -- diz
Henri.
Henri está sentado em uma cadeira uns três metros
longe da porta, com a arma apontada para ela. El e
respira lentamente, embora esteja tenso, e posso
ver os músculos enrijecidos em sua mandíbula.
Ninguém diz nada. Seis fica invisív el e sai para
explorar o ambiente. Nós ficamos esperando, e
finalmente acontece. Três batidas leves na porta.
Seis está avisando que é ela, não um mensageiro
tentando entrar. Henri abaixa a arma e ela entra, e
eu empurro de volta um dos refrigeradores para
bloquear a porta atrás dela. Ela ficou fora por dez
minutos.
-- Você tinha razão -- Seis diz a Henri. -- Eles
destruíram todos os carros no estacionamento e
empurraram os destroços para bloquear as saídas.
E Sarah está certa; o alçapão sob o palco está livre.
Contei sete mensageiros lá fora e cinco aqui
dentro, atravessando os corredores. Havia um aqui
na frente da porta, mas já foi removido. Parece que
estão ficando agitados. Acho que isso significa que
os outros já devem estar aqui, ou não estão longe.
Henri se levanta e pega a arca, depois faz um sinal
para mim. Eu o ajudo a abrida. Ele retira dali
algumas pedrinhas redondas que enfia no bolso.
Não sei o que são. Depois ele fecha e tranca a arca
e a guarda dentro de um forno. Empurro uma
geladeira para a frente do forno, para impedir que
seja aberto. Não há realmente outra escolha. A
arca é pesada, seria impossível carregada e lutar, e
precisamos de todas as mãos disponíveis para sair
desta confusão.
-- Odeio deixá-la para trás -- Henri confessa,
balançando a cabeça. Seis concorda com um
movimento de cabeça. A idé ia de os mogadorianos
se apoderarem da arca os apavora.
-- Ela vai ficar bem aqui -- eu digo.
Henri levanta a arma e olha para Sar ah e Mark.
-- Esta luta não é de vocês -- ele avisa. -- Não sei
o que esperar lá fora, mas, se as coisas
complicarem muito, quero que vocês voltem para
dentro da escola e fiquem escondidos. Eles não
estão atrás de vocês, e não acredito que virão
procurá-los, se já nos tiverem.
Sarah e Mark parecem dominados pelo medo, os
dois segurando suas facas com força, os dedos da
mão direita brancos pelo esfor ço. Mark pegou tudo
o que conseguiu encontrar nas gavetas e que
poderia ter algum uso -- mais facas, o martelo de
carne, ralador de queijo, tesoura.
-- Vamos sair daqui, e, no final do corredor, o
ginásio fica atrás de uma porta dupla à direita --
digo a Henri.
-- O alçapão fica bem no meio do palco -- Seis se
manifesta. -- Está coberto com um tapete azul.
Não havia mensageiros no local, mas isso não
significa que não estejam lá quando chegarmos.
-- Então, vamos simplesmente sair e tentar correr
mais do que eles? -- Sarah pergunta. Sua voz está
cheia de pânico. Sua respiração está pesada.
-- É nossa única opção -- diz Henri.
Agarro a mão dela. Sarah está tremendo muito.
-- Vai dar tudo certo -- digo.
-- Como sabe disso? -- ela me pergunta, mais
exigindo do que questionando.
-- Não sei -- confesso.
Seis afasta a geladeira da port a. Bernie Kosar
começa imediatamente a arranhá-la, tentando sair,
uivando.
-- Não posso torná-los todos invisíveis -- diz Seis.
-- Se eu desaparecer, ainda estarei por perto.
Seis segura a maçaneta e Sarah respira fundo a
meu lado, visivelmente abalada e trêmula,
apertando minha mão com toda a força que tem.
Vejo a faca tremendo em sua mão direita.
-- Fique perto de mim -- digo.
-- Não vou sair de seu lado.
A porta é aberta e Seis é a primeira a sair. Henri a
segue de perto. Eu os sigo, e Bernie Kosar corre à
nossa frente, uma bola de pelos se movendo em
alta velocidade. Henri aponta a arma para um lado,
depois para o outro. O corredor está vazio. Bernie
Kosar já chegou na interseção. Ele desaparece. Seis
se torna invisível, e nós todos corremos para o
ginásio, atrás de Henri. Ponho Sarah e Mark em
minha frente. Nenhum de nós consegue ver nada,
mas nos guiamos pelo som dos passos uns dos
outros. Acendo minhas luzes para aju dar a guiar o
grupo, e esse é meu primeiro erro.
A porta de uma sala de aula à m inha direita se
abre. Tudo acontece em uma fração de segundo, e,
antes que eu tenha chance de reagir, sou atingido
no ombro por algum objeto pesado. Minhas luzes
se apagam. Caio para a frente e quebro uma
divisória de vidro. Sofro um corte no topo da
cabeça e o sangue escorre por meu rosto quase
imediatamente. Sarah grita. O que me ating iu
antes me acerta novamente, um baque em minhas
costelas que me deixa sem ar.
-- Acenda suas luzes! -- grita Henri. Eu obedeço.
Um mensageiro está em pé sobre mim, segurando
um pedaço de madeira de uns dois metros que ele
deve ter encontrado na sala de artes industriais.
Ele o levanta para me acertar novamente, mas
Henri atira primeiro. A cabeça do mensageiro
desaparece, explodida em pedaços. O r estante do
corpo se transforma em cinzas antes de chegar ao
chão. Henri abaixa a arma.
-- Merda -- ele diz ao ver o sangue.
Ele dá um passo em minha direção, e pelo canto do
olho vejo outro mensageiro, na mesma po rta, com
uma marreta erguida sobre a cabeça. Ele vem a
meu encontro e, com a telecinesia, arre messo
contra ele o que está mais perto de mim, um objeto
dourado e brilhante que nem me preocupo em
identificar e que corta o ar com violência. O
mensageiro é atingido com tanta força que seu
crânio é fraturado pelo impacto, e ele fica imóvel
no chão. Henri, Mark e Sarah correm. O
mensageiro ainda está vivo, e Henri pega a faca da
mão de Sarah e a enterra no peito do mogadoriano,
reduzindo-o a uma pilha de cinzas. Em seguida ele
devolve a faca a Sarah. Ela a segura na frente do
corpo, com o polegar e o indi cador, como se
houvesse recebido uma peça de roupa íntima suja.
Mark se abaixa e pega o objeto que arremessei, ou
melhor, recolhe os três pedaços em que se partiu.
-- Meu troféu -- ele diz, rindo de si mesmo. --
Recebi no mês passado.
Foi a estante dos troféus que eu arremessei contra
o mogadoriano.
-- Você está bem? -- Henri pergunta, olhando
para o corte em minha cabeça.
-- Sim, estou. Vamos em frente.
Continuamos pelo corredor para o ginásio,
atravessamos o espaço amplo correndo, saltamos
para o palco. Eu acendo minhas luzes e vejo o
tapete azul ser removido como se tivesse vontade
própria. Depois, o alçapão é aberto. Só então Seis
se torna visível novamente.
-- O que aconteceu? -- ela pergunta.
-- Tivemos um pequeno problema -- Henri
responde, descendo a escada na frente para se
certificar de que não há ninguém lá embai xo.
Sarah e Mark o seguem.
-- Cadê o cachorro? -- pergunto.
Seis balança a cabeça.
-- Vá você -- eu digo.
Ela desce na minha frente, e eu fico sozi nho no
palco. Assobio tão alto quanto posso, sabendo
muito bem que com isso estou delatando minha
localização. Aguardo.
-- Vamos, John -- Henri chama do fundo do
alçapão.
Eu desço a escada, mas paro com metade do corpo
ainda fora da abertura e de lá observo o gi násio.
-- Ah, vamos lá! Onde você está? -- Nesta fração
de segundo em que não me resta alternativa se não
desistir, Bernie Kosar aparece na entrada do
ginásio e corre em minha direção, as orelhas
abaixadas, quase coladas à cabeça. Eu rio.
-- Vamos! -- Henri grita.
-- Estou indo! -- grito de volta.
Bernie Kosar pula para cima do palco e para meus
braços
-- Aqui -- eu digo e entrego o cachorro a Seis. Eu
desço depressa, fecho o alçapão e acendo minhas
luzes com intensidade máxima.
Paredes e chão são feitos de concret o, e predomina
ali um forte cheiro de mofo. Temos de caminhar
abaixados para não bater a cabeça. Seis vai à
frente. O túnel deve ter uns trinta metros de
comprimento, e não sei para que pode ter servido,
ou se teve alguma utilidade em al gum momento.
Chegamos ao final; uma escada curta nos leva a
portas duplas de metal rentes ao chão. Seis espera
até todos estarem juntos.
-- Para onde elas abrem? -- pergunta.
-- Para os fundos do terreno -- diz Sarah. -- Não
muito longe do campo de futebol.
Seis pressiona a orelha contra a brecha estreita
entre as duas portas fechadas. Tudo o que se ouve
é o vento. Todos nós estamos suados, empoeirados
e com medo. Seis olha para Henri e move a cabeça
num gesto de afirmação. Eu apago minhas luzes.
-- Muito bem -- ela diz antes de ficar invisível.
Seis abre a porta apenas o suficiente para olhar
para fora. Nós a observamos, atentos, nervosos. Ela
olha para um lado, depois para o outro. Satisfeita
por não termos sido pegos, empurra a porta e nós
saímos um a um.
Tudo está escuro e silenc ioso, sem vento. As
árvores da floresta à nossa direita não se movem.
Olho em volta e consigo ver as silhuetas dos carros
destruídos e empilhados na frente da escola. Não
há estrelas ou lua. Nem céu, na verdade, é quase
como se estivéssemos sob uma bolha d e escuridão,
algum tipo de abóbada onde só as sombras
permanecem. Bernie Kosar começa a rosnar, no
início bem baixo, o que me faz pensar que ele está
apenas agitado, nervoso; mas o rosnado se torna
mais feroz, mais ameaçador, e sei que ele sente
alguma coisa ali fora. Todos olhamos em volta para
ver a causa dessa reação, mas nada se move. Dou
um passo adiante, para deixar Sarah atrás de mim.
Penso em acender minhas luzes, mas sei que isso
vai nos delatar ainda mais do que o rosnado do
cachorro. De repente, Bernie Kosar avança.
Ele se lança para a frente uns quinze metros e
salta, cravando os dentes em um dos mensageiros
invisíveis, que se materializa do nada, como se um
encantamento de invisibilidade houvesse sido
quebrado. Em um instante, podemos ver todos
eles, nos cercando, não menos do que vinte deles,
que começam a se aproximar.
-- Era uma armadilha -- Henri grita e atira duas
vezes, acertando dois mensageiros.
-- Voltem para o túnel -- eu berro para Mark e
Sarah.
Um dos mensageiros corre em nossa direção. E u o
levanto no ar e o arremesso com toda a minha
força contra uma árvore. Ele cai no chão com um
baque, levanta-se rapidamente e joga uma faca
contra mim. Eu a desvio e suspendo novamente o
mensageiro, lançando-o com mais força. Ele se
transforma em cinzas na base da árvore. Henri
descarrega mais tiros, e o barulho é ensurdecedor.
Duas mãos me agarram por trás. Quase as flexiono,
mas percebo antes que são de Sarah. Não vejo Seis
em lugar nenhum. Bernie Kosar derrubou um
mogadoriano e mantém os dentes enterr ados na
garganta dele, os olhos brilhando, furiosos.
-- Voltem para a escola! -- grito.
Sarah não me larga. Um trovão rompe o silêncio e
uma tempestade começa a se formar, com nuvens
negras surgindo lá no alto e raios e trovões
cortando o céu da noite, segui dos por trovões tão
retumbantes que Sarah se sobressalta cada vez que
um deles ecoa. Seis reapareceu alguns metros à
frente do grupo, seus olhos no céu e o rosto
contorcido numa máscara de concentração. Ela
mantém os braços erguidos. É ela que está criando
a tempestade, controlan do o clima. Raios de luz
caem sobre nós, acertando os mensageiros e
matando-os instantaneamente, criando pequenas
explosões que formam nuvens de cinzas que vão se
espalhando pelo pátio. Henri está recarregando a
arma. O mensageiro que Bernie Kosar derrubou
finalmente morre e explode numa montanha de
cinzas que cobrem o focinho do animal. Ele espirra
uma vez, sacode as cinzas do pelo e depois se
afasta correndo, perse guindo outro mensageiro e
empurrando-o para a floresta densa, onde os dois
desaparecem. Tenho um medo horrível de que essa
seja a última vez que o vejo.
-- Você precisa voltar para a esc ola -- digo a
Sarah. -- Vocês precisam ir agora e devem se
esconder, Mark! -- eu grito. Ergo os olhos e não o
vejo. Olho em volta. Ele está co rrendo na direção
de Henri, que ainda carrega a arma. De iníci o não
entendo o que Mark preten de fazer, mas logo noto
o que está acontecendo: um mogadoriano se
aproxima de Henri sem que ele o tenha visto. --
Henri!
Ergo a mão para deter o inimigo com sua fac a já
levantada, mas Mark chega primeiro. Ele o ataca e
luta. Henri levanta a arma, e Mark chuta para
longe a faca do mensageiro. Henri dispara e o
mogadoriano explode. Henri fala c om Mark. Eu
grito novamente chamando por Mark, e ele corre
até nós. Está ofegante.
-- Você precisa levar Sarah para dentro da escola.
-- Posso ajudar aqui -- ele argumenta.
-- Essa luta não é sua. Vá se escon der. Entre na
escola e se esconda com Sarah!
-- Tudo bem.
-- Fiquem escondidos, independentemente do que
acontecer! -- grito mais alto do que a tempestade.
-- Eles não vão procurá-los. Eu sou o alvo.
Prometa, Mark! Prometa que vai ficar escondido
com Sarah!
Mark assente rapidamente.
-- Prometo!
Sarah está chorando, e não há tempo para
confortá-la. Outro estouro, mais um trovão, mais
uma rajada de tiros. Ela me beija nos lábios uma
última vez, as mãos segurando meu rosto, e sei que
ela ficaria ali para sempre, se pudesse. Mas Mark a
segura pelos ombros e começa a levá -la dali.
-- Amo você -- Sarah me diz, e noto que ela olha
para mim de um jeito que conheço bem, como eu
já olhei para ela certa vez, quando saí da aula de
economia doméstica ao ser chamado na diretoria,
como se temesse nunca mais vê-la e quisesse
gravar na memória todos os detalhes.
-- Também amo você -- respondo quando os dois
já desaparecem na escada para o túnel.
Assim que as palavras deixam minha boca, ouço
Henri gritar de dor e me viro. Um dos mensageiros
conseguiu acertá-lo com uma faca. O terror me
domina. O mensageiro arranca a faca do corpo de
Henri, a lâmina brilha recoberta com seu sangue.
Ele esfaqueia Henri novamente. Estendo a mão e
arremesso a faca longe do mensageiro, impedindo
outro ferimento. O oponente acerta Henri com sua
mão vazia. Henri geme de dor, mas levanta a arma,
encosta o cano no queixo do mogadoriano e
dispara. O inimigo cai sem cabeça.
Começa a chover. É uma chuva fria, pesada. Em
pouco tempo estou ensopado até os ossos. Henri
está perdendo sangue. Ele aponta a arma para a
escuridão, mas todos os mensageiros se retiraram
para as sombras, para longe de nós, e Henri não
consegue uma boa mira. Não estão mais
interessados em atacar, pois sabem qu e dois de
nosso grupo bateram em retirada e um terceiro
está ferido. Seis mantém os braços erguidos. A
tempestade agora é mais forte; o vento começa a
uivar. Ela parece ter problemas para controlar o
tempo. Tudo termina com a mesma velocidade com
que começou -- os trovões, os raios, a chuva. O
vento cessa e um longo gemido começa a soar
longe dali. Seis abaixa os braços, e todos nós
ouvimos com atenção. Até os mogador ianos se
viram. O barulho aumenta, inconfundivelmente
vindo em nossa direção uma espécie de intenso
grunhido mecânico. Os mensageiros brotam das
sombras e começam a rir. Apesar de termos
matado pelo menos dez deles, agora estão em
número muito maior do que antes. Uma nuvem de
fumaça se ergue sobre as árvores mais afastadas,
como se houvesse ali uma máquina movida a
vapor. Os mensageiros assentem entre ele s e dão
um sorriso maldoso, for mando novamente um
círculo à nossa volta. Tenho a impressão de que
eles pretendem nos fazer voltar para a escola. E é
óbvio que essa é nossa única chance. Seis se
aproxima.
-- O que é isso? -- pergunto.
Henri se mantém em pé com dificuldade, e a arma
pende de sua mão como se fosse pesada demais
para ele. Sua respiração é pesada, tem um corte
sob o olho direito e uma mancha de sangue no
suéter cinza, sobre o ferimento causado pela faca.
-- São os outros, o restante deles -- ele diz. --
Não é isso, Seis? Seis o encara, perplexa, com os
cabelos longos encharcados e co lados à cabeça e
em torno do rosto.
-- As bestas -- ela responde. -- E os soldados.
Estão aqui.
Henri engatilha a arma e respira fundo.
-- Vai começar a verdadeira guerra -- ele diz. --
Não sei o que vocês dois acham, mas, em minha
opinião, se é isso... é isso. Não vou cair antes de
lutar muito.
Seis concorda, movendo a cabeça.
-- Nosso povo resistiu até o final. E nós também
resistiremos -- ela diz.
A fumaça ainda se ergue um ou dois quilômetros
longe dali. Carga viva, eu penso. É assim que eles
são transportados, em caminhões. Seis e eu
seguimos Henri escada abaixo. Grito chamando por
Bernie Kosar, mas não o vejo em lugar algum.
-- Não podemos esperado outra vez -- Henri me
avisa. -- Não temos tempo.
Olho em volta uma última vez e fecho o alçapão
com um baque surdo. Voltamos correndo pelo
túnel, subimos para o palco, atra vessamos o
ginásio. Não vemos um único mensageiro, nem
Mark e Sarah, e eu me sinto aliviado por isso.
Espero que eles estejam escondidos e que Mark
cumpra a promessa de permanecerem as sim.
Quando retornamos à sala de economia doméstica,
afasto a geladeira que bloqueia a porta do forno e
pego a arca. Henri e eu a abrimos. Seis pega a
pedra de cura e a pressiona contra o ferimento de
Henri. Ele fica em silêncio, d e olhos fechados,
quase sem respirar. Seu rosto está vermel ho pelo
esforço, mas ele não emite som algum. Um minuto
depois, Seis retira a pedra. O corte cicatrizou.
Henri suspira profundamente, a testa recoberta
com suor. Então é minha vez. Ela pressiona a pedra
contra o corte em minha cabeça, e sinto uma dor
maior do que tudo, pior do que todas as dores que
já senti. Não consigo conter um gemido, e todos os
músculos do corpo ficam tensos. Não respiro até
acabar e, quando finalmente termina, eu me dobro
e ainda continuo sem ar por mais um minuto.
Do lado de fora, aquele ruído mecânico parou. O
caminhão está escondido. Enquanto Henri fecha a
arca e a coloca de volta no forno, eu olho pela
janela na esperança de ver Bernie Kosar. Não o
vejo. Outro par de faróis passa pela esco la. Como
antes, não consigo compreender se é um carro ou
um caminhão, e ele reduz a velocidade quando
passa pela entrada, depois segue adiante sem
entrar. Henri abaixa a camisa, depois pega a arma.
Quando nos dirigimos à porta, um som nos faz
parar de repente.
Um rugido do lado de fora, um grunhido poderoso
como o de um animal, um som sinistro como
nunca ouvi outro antes, seguido pelo som dos
cliques metálicos de um portão sendo destrancado
e aberto. Um baque chama nossa at enção. Respiro
fundo. Henri suspira e balança a cabeça num gesto
que é quase de impotência, um movimento que
sugere que a luta está perdida.
-- Sempre há esperança, Henri -- eu digo.
Ele olha para mim. -- Novos acontecimentos estão
por vir. Nem toda informação foi exposta. Não
desista. Ainda não.
Ele assente, e vejo em seus lábios o esboço de um
sorriso. Henri olha para Seis, e ela é uma novidade
que nenhum de nós poderia ter imaginado. Quem
poderia dizer que não surgiriam outras surpresas?
Ele continua o discurso de onde parei, repetindo as
mesmas palavras que disse quando era eu o
desanimado, no dia em que pergun tei como
poderíamos ter esperança de vencer essa luta,
sozinhos e em minoria, longe de casa -- contra os
mogadorianos, que parecem sentir grande alegria
na guerra e na morte.
-- E a última coisa que se vai -- diz Henri. --
Quando você perde a esperança, já perdeu tudo. E
quando você pensa que tudo está perdido, quando
tudo é sombrio e sinistro, sempre há esperança.
-- Exatamente -- digo.
CAPÍTULO TRINTA E UM
OUTRO RUGIDO ATRAVESSA AS PAREDES DA
ESCOLA E FAZ MEU SANGUE GELAR. O chão
começa a tremer sob os passos da besta que agora
deve estar solta. Balanço a cabeça. Já vi como são
grandes durante aqueles flashbacks da guerra em
Lorien.
-- Pelo bem de seus amigos e por nós mesmos, é
melhor sairmos desta escola enquanto ainda há
tempo -- diz Seis. -- Eles vão destruir o prédio
tentando nos pegar.
Nós concordamos em silêncio.
-- Nossa única esperança é chegar à floresta --
Henri anuncia. -- Seja o que for aquela coisa,
talvez possamos escapar se nos mantivermos
invisíveis.
Seis move a cabeça em sentido afirmativo.
-- Agarrem minhas mãos e não soltem.
Henri e eu obedecemos imediatamente.
-- Em silêncio -- diz Henri.
O corredor está escuro e silencioso. Caminhamos
com uma urgência silenciosa, progredindo com
toda a velocidade que é pos sível sem fazer barulho.
Outro rugido, e, no meio dele, outro co meça. Nós
paramos. Não é uma besta, são duas. Seguimos
adiante e entramos no ginásio. Nenhum sinal dos
mensageiros. Quando chegamos ao centro da
quadra, Henri para. Olho em sua direção, mas não
consigo vedo.
-- Por que paramos? -- cochicho.
-- Shhh -- ele faz. -- Escute.
Eu me esforço para ouvir, mas não há nada além do
pulsar do sangue em meus ouvidos.
-- As bestas pararam de se mover -- Henri diz.
-- E daí?
-- Shhh -- ele murmura. -- Tem mais alguma
coisa.
Então eu também escuto, um som agudo e
repetitivo que pare¬ce ser produzido por um
animal pequeno. É um som abafado que ganha
intensidade aos poucos.
-- O que é isso? -- pergunto.
Algo começa a bater no alçapão. O alçapão por
onde planejamos escapar.
-- Acenda suas luzes -- ele diz.
Solto a mão de Seis, acendo minha mão e direciono
o foco para o palco. Henri olha para a ponta do
cano da arma. O alçapão se move como se alguma
coisa tentasse erguê-lo, mas não tivesse força para
abri-lo. São as doninhas, imagino. Aquelas
criaturinhas com corpo roliço e pernas curtas que
amedrontaram os caras em Athens. Uma delas bate
com tanta força no alçapão, que a porta se solta
das dobradiças e voa longe. As criaturas tê m muita
força. Duas delas nos vêem e correm em nossa
direção numa velocidade tão espantosa que mal
consigo vê-las. Henri está em pé com a arma
apontada, um sorriso divertido no rosto. A poucos
metros de nós elas se separaram: uma salta sobre
Henri, a outra corre em minha direção. Henri
dispara uma vez. O animal explode, cobrindo-o de
sangue e entranhas; e, quando estou pronto para
desviar a outra usando telecinesia, ela é agarrada
no ar pela mão invisível d e Seis e jogada com força
descomunal contra o chão, morrendo
instantaneamente.
Henri engatilha a arma.
-- Bem, até que não foi ruim -- ele diz, e, antes
que eu possa responder, toda a parede ao longo do
palco é destruída pelo punho de uma besta. Ela
recua e ataca novamente, esmagando o palco e
expondo o céu da noite. O impacto joga Henri e a
mim alguns metros para trás.
-- Corra! -- grita Henri, descarregando a arma
contra a besta. As balas não afetam a criatura. Ela
se inclina para a frente e ruge tão alto que sinto
minhas roupas tremulando. A mão agarra a minha
e me torna invisível. A fera se adianta, caminhando
na direção de Henri, e sou tomado por um intenso
terror.
-- Não! -- eu grito. -- Henri! Vamos pegar Henri!
-- Eu me contorço e puxo a mão de Seis, até que
finalmente consigo levá-la na direção que
pretendo. Estamos os dois invisíveis. A besta
investe contra Henri, que continua firme e atento
enquanto ela se aproxima. Sem munição. Sem
opções.
-- Vamos pegá-lo! -- grito novamente. -- Vamos
buscá-lo, Seis!
-- Vá para a floresta! -- ela grita.
Nada posso fazer além de observar. A besta deve
ter entre nove e doze metros de altura e se
aproxima de Henri. Ela ruge, seus olhos tomados
pela violência. O braço musculoso e imenso está
erguido, tão alto que ultrapassa o telhado do
ginásio. E então o punho fe chado cai, descendo
com tanta velocidade que mal consigo vê -lo,
desenhando um traço como as pás de um
ventilador desenham um círculo. Eu grito
horrorizado, ciente de que Henri está prestes a ser
esmagado. Não consigo desviar o olhar dele, que
parece pequenino com a arma pendendo
inutilmente de sua mão. Quando o punho está a
uma fração de segundo dele, Henri desaparece. O
primeiro golpe atinge o chão do ginásio, a mad eira
se parte, e a força do choque me joga a uns seis
metros. A fera olha para mim, impedindo -me de
ver o lugar onde Henri agora está.
-- Henri! -- eu grito.
A besta ruge, abafando uma possível resposta dele.
Ela dá um passo em minha direção. "Para a
floresta", Seis disse. Eu me levanto e corro para o
fundo do ginásio, por onde a besta entrou. Eu me
viro para ver se ela está me seguindo. Não e stá.
Talvez Seis tenha feito alguma coisa para distraí-
la. Tudo o que sei é que agora estou sozinho.
Pulo a pilha de escombros e ava nço depressa para
longe da escola, dando o máximo de mim para
chegar logo à floresta. As sombras me cercam,
envolvem-me como mantos maléficos. Sei que
posso superá-las em velocidade. A besta ruge, e
ouço outra parede desmoronando. Alcanço as
árvores, e as sombras sinistras parecem
desaparecer. Paro e ouço. As árvores balançam sob
a brisa suave. Há vento ali! Escapei da redoma
criada pelos mogadorianos. Sinto uma q uentura se
acumulando no cós de minha calça. O corte nas
costas que sofri na casa de Mark James se abriu.
De onde estou o contorno da escola é apagado.
Todo o ginásio desabou, transformando -se em uma
pilha de tijolos. A sombra da besta se eleva sobre
os destroços da cantina. Por que ela não me
perseguiu? E onde está a segunda besta que todos
nós ouvimos? Os punhos da criatura descem
novamente, outro cômodo destruído. Mark e Sarah
estão em algum lugar por ali. Disse a eles para
voltar, e agora percebo que fo i tolice. Não previ
que a fera destruiria a escola se soubesse que eu
não estava lá. Preciso tomar alguma atitude para
afastar a criatura dali. Respiro fundo para reunir
minhas forças, e, assim que dou o primeiro passo,
alguma coisa dura me acerta na parte de trás da
cabeça. Caio com o rosto na lama. Levo a mão ao
local onde fui atingido e, quando olho para ela,
vejo meus dedos cobertos de sangue. Viro -me e no
início não vejo nada. Mas logo o agressor surge das
sombras com seu sorriso maléfico.
Um soldado. É o que ele parece ser. Mais alto do
que os mensageiros -- três metros de altura,
provavelmente --, com os músculos poderosos
destacados sob um sobretudo preto rasgado. Veias
grandes, saltadas, atravessam o comprimento de
cada braço. Botas pretas. Nada cobre sua cabeça, e
cccccc
os cabelos descem até os ombros. A mesma pele
pálida e sem brilho dos mensageiros. Um sorriso
confiante, decisivo. Em uma de suas mãos há uma
espada. Longa e brilhante, feita de algum tipo de
metal que já vi aqui na Terra, ou em minhas visõe s
de Lorien. Parece pulsar, como se de algum modo
tivesse vida.
Começo a me arrastar para longe, sentindo o
sangue escorrer pela nuca. A besta na escola ruge
mais uma vez, e eu me agarro aos galhos de uma
árvore e ergo o corpo. O soldado está uns três
metros de mim. Eu cerro os punhos. Ele move a
espada em minha direção, e alguma coisa se
desprende de sua extremidade, algo que parece
uma pequena adaga. Vejo essa adaga se curvar num
arco, deixando atrás dela uma trilha como um
avião deixa um rastro de fumaça . A luz cria um
encantamento, e não consigo desviar os olhos dela.
Um lampejo brilhante devora tudo, e o mundo
desaparece num vácuo silencioso. Não há paredes.
Não há sons. Não há piso ou teto. Devagar, as
coisas retomam a forma, as árvores eretas como
efígies muito antigas sussurram sobre o mundo que
um dia existiu, um reino alternativo onde só há
sombras.
Estendo a mão para tocar a árvore mais próxima,
único toque de cinza em um mundo
completamente branco. Minha mão a atravessa, e
por um momento a árvore brilha como se fosse
líquida. Respiro fundo. Quando expiro, sinto de
novo dor nos ferimentos da cabeça, dos braços, e
das costas, todos sofridos no incêndio na casa de
Mark James. Ouço barulho de água pingando em
algum lugar. Lentamente, o soldado toma for ma
alguns metros longe de mim. Ele é gigantesco. Nós
nos observamos. Sua espada tem um brilho ainda
mais intenso neste novo mundo. Seus olhos se
estreitam e minhas mãos se fecham novamente. Já
levantei objetos mais pesados que ele; rachei
árvores e causei destruição. Certamente, posso
igualar minha força à dele.
Reúno tudo o que sinto no âmago de meu ser, tudo
o que sou e tudo o que serei, até ter a sensação de
que vou explodir.
-- Iááááhhh! -- grito, lançando meus braços para a
frente, para empurrar o ar. A força brutal deixa
meu corpo e é projetada contra o soldado. Ao
mesmo tempo, ele brande a espada à frente do
próprio corpo como se espantasse uma mosca. O
poder se desvia para as árvores, que por um
momento dançam como o trigo tocado por um
vento leve, e depois tudo fica parado. Ele ri para
mim, uma gargalhada gutural, profunda, uma
risada que tem o objetivo de provocar. Seus olhos
vermelhos começam a brilhar, girando como poços
de lava. Ele levanta a mão livre, e eu me preparo
novamente para o desconhecido. E sem que eu
perceba o que está acontecendo, meu pescoço é
apertado por ele, o espaço que nos separa deixa de
existir num piscar de olhos. Ele me levanta usando
apenas uma das mãos, respirando com a boca
aberta e exalando o cheiro fétido de seu há lito,
cheiro de podridão. Eu me debato, tento tirar os
dedos de meu pescoço, mas eles são como faixas de
aço.
E de repente ele me arremessa.
Caio de costas uns doze metros adiante. Eu me
levanto e ele ataca, apontando a espada para
minha cabeça. Abaixo e reajo empurrando-a com
toda a força que tenho. O soldado cambaleia para
trás, mas continua em pé. Tento erguê -lo com
telecinesia, mas nada acontece. Neste mundo
alternativo meus poderes são reduzidos, quase
nulos. Aqui a vantagem é do mogadoriano.
Ele ri de minha impotência e levanta a espada com
as duas mãos. A espada ganha vida, o brilho
cintilante da lâmina se toma azul. Chamas azuis
lambem a lâmina. Uma espada que cintila de
acordo com a intensidade de sua força, exatamente
como Seis falou. Ele balança a espada em minha
direção e outra adaga brota de sua extremidade,
voando até mim. Isso eu consigo fazer, penso.
Foram muitas horas de treinamento no quintal,
com Henri, justamente para isso. Sempre as facas,
mais ou menos esse tipo de adaga. Henri sabia que
eles as usariam? Com certeza, embora eu jamais as
tenha visto nos flashbacks da invasão. Mas eu
também nunca vi essas criaturas. Agora elas são
diferentes daquelas em Lorien, menos sinistras. No
dia da invasão elas pareciam doentias e famintas. A
Terra havia propiciado a convalescença delas,
fornecido os recursos para elas se tornarem mais
fortes e saudáveis?
A adaga literalmente grita quando corta o ar e vem
rumo a mim. Ela cresce e é consumida por c hamas.
No momento em que me preparo para desviá-la,
ela explode numa bola de fogo, e as chamas saltam
sobre mim. Sou envolvido, cercado por uma bola
de fogo perfeita. Qualquer outro teria queimado,
mas não eu, e de alguma forma isso me devolve a
força. Consigo respirar. Sem que o soldado saiba,
ele me fortalece. Agora é minha vez de sorrir.
-- Isso é tudo o que você tem? -- grito.
Seu rosto se contorce com a fú ria. Ele estende de
forma provocante uma das mãos até o ombro, e,
quando a traz para a frente, ela segura uma arma
que lembra um canhão e que começa a se fundir
com seu corpo, enroscando-se no braço. Braço e
arma se tornam um só. Pego a faca no bolso de trás
da calça, aquela que peguei em casa antes de voltar
para a escola. Pequena, ineficiente, mas melhor do
que nada. Aponto a lâmina e ataco. A bola de fogo
me acompanha. O soldado ergue os ombros e baixa
a espada com força. Eu a desvio com a faca, mas o
peso da espada quebra a lâmina em duas partes.
Deixo cair os pedaços e ataco com os punhos.
Acerto o centro do corpo do soldado, que se dobra,
mas se recupera depressa e volta a atacar,
brandindo sua espada mais uma vez. Eu me abaixo
no último segundo. A lâmina corta os cabelos do
topo de minha cabeça. Atrás da espada vem o
canhão. Não tenho tempo para reagir. Ele me
acerta no ombro, e caio para trás com um g emido
de dor. O soldado se recupera e aponta o canhão
para o ar. No início fico confuso. O cinza das
árvores é arrancado e sugado para dentro da arma.
Então entendo. A arma. Ela precisa ser carregada
para poder ser disparada, precisa roubar a essência
da Terra a fim de ter alguma utilidade. O cinza das
árvores não é composto por sombras; o cinza é a
vida das árvores num nível quase elementar. E
agora essa vida é roubada, consumida pelos
mogadorianos. Uma raça de aliens que esgotou os
recursos do próprio planeta na b usca pelo
progresso e agora faz a mesma coisa neste planeta.
Por essa razão eles atacaram Lorien. E pela mesma
razão atacarão a Terra. Uma a uma as árvores caem
e se desmancham em pilhas de cinzas. A arma
brilha com intensidade cada vez maior, tanto que
olhar para ela faz doer os olhos. Não há tempo a
perder.
Eu ataco. O soldado mantém a arma apontada para
o céu e move a espada. Eu me esquivo e corro na
direção dele. Seu corpo se enrije e contorce em
agonia. O fogo que me cerca o queima ali mesmo,
onde ele está. Mas deixei a guarda aberta. Ele
balança a espada sem força suficiente para me ferir
de fato, mas não tenho como evitar o golpe. Ela me
acerta, e sou jogado longe, como se fosse atingido
por um raio. Fico caído, meu corpo tremendo com
os reflexos que seguem um choque elétrico
violento. Levanto a cabeça. Trinta pilhas de cinzas
das árvores destruídas nos cercam. Essa energia vai
possibilitar que ele dispare quantas vezes? Um
vento suave sopra, e as cinzas começam a se
espalhar pelo espaço vazio a nosso redor. A luz
volta a brilhar. O mundo para o qual o soldado me
trouxe começa a se desfazer. Ele sabe disso. A arma
está preparada. Eu me levanto. No chão, a alguns
metros de mim, ainda brilhando, vejo uma das
adagas que o mogadoriano arremessou contra mim.
Eu a pego.
Ele aponta o canhão. O branco que nos cerca
começa a perder intensidade, as cores retornam.
Então ele dispara um raio brilhante de luz
contendo as formas macabras de todos que
conheço -- Henri, Sam, Bernie Kosar, Sarah --,
todos mortos neste reino alternativo, e a luz é tão
intensa que eles são tudo o que consigo ver,
tentando me levar com eles, lançados numa bola
de energia que cresce na medida em que se
aproxima. Tento desviar essa bola de energia, mas
ela é forte demais. A luz branca se aproxim a do
fogo, e, quando as duas esferas se tocam, ocorre
uma explosão que me joga para trás. Aterrisso com
um baque. Eu me examino e descubro que não
estou ferido. A bola de fogo se extinguiu. De
alguma forma ela absorveu a explosão, salvou -me
do que certamente teria sido a morte. Certamente
é assim que o canhão funciona, a morte de uma
coisa pela morte de outra. O poder do controle da
mente, a manipulação do medo, possível por meio
da destruição dos elementos do mundo. Os
mensageiros aprenderam a realizar tudo isso com a
mente, embora de maneira fraca. Os soldados
contam com armas que produzem um efeito muito
maior.
Eu me levanto com a faca ainda brilhando na mão.
O soldado puxa uma espécie de alavanca na lateral
do canhão, como se o recarregasse. Eu corro par a
ele. Quando estou suficientemente perto,
arremesso a faca com toda a minha força, mirando
seu coração. Ele dispara um segundo tiro. Um
torpedo de luz laranja voa na direção dele, a
certeza da morte branca vem em minha direção. As
duas bolas de energia se cruzam no ar sem se
tocar. Quando eu espero que esse segundo disparo
me atinja, cause minha morte, outra coisa
acontece.
Minha faca o atinge primeiro.
O mundo desaparece. As sombras se apagam e o
frio e a escuridão retornam, como se nunca
houvessem desaparecido. Uma transição
vertiginosa. Dou um passo para trás e caio. Meus
olhos se ajustam à ausência da luz. Eu foco na
figura sombria do soldado debruçado sobre mim. O
estrondo do canhão não viaja conosco. A faca
cintilante, sim, e a lâmina se crava fundo e m seu
coração, o cabo alaranjado pulsando sob o luar. O
soldado cambaleia, a faca mergulha mais fundo e
desaparece. Ele grunhe. Jatos de sangue negro
brotam da ferida aberta. Seus olhos se esvaziam,
depois recuam para dentro da cabeça. Ele cai e fica
imóvel por um instante, depois explode numa
nuvem de cinzas que cobrem meus sapatos. Um
soldado. Matei meu primeiro. Que não tenha sido
o último.
Estar no reino alternativo me enfraqueceu de
alguma forma. Apóio a mão em uma árvore
próxima para me manter em pé e recuperar o
fôlego, mas a árvore não está mais al i. Olho em
volta. Todas as árvores que nos cercavam caíram,
formando pilhas de cinzas, como no outro reino,
como acontece com os mogadorianos quando
morrem.
Ouço o rugido da besta e olho para a escola,
tentando determinar quanto sobrou dela. Mas, em
vez da escola, há outra coisa no lugar, uma
criatura de uns quatro metros e meio e forte, com
uma espada em uma das mãos e um canhão na
outra. O canhão está apontado diretamente para
meu coração, e ele já foi car regado, porque brilha
intensamente, revelando seu poder. Outro soldado.
Não creio ter forças para lutar contra esse como
lutei contra o outro.
Não há nada que eu possa arremessar, e a distância
entre nós é grande demais para que eu consiga
atacar antes que ele atire. Mas, de repente, o braço
dele se retorce e o som de um tiro ecoa no ar. Meu
corpo fica instintivamente tenso, esperando a bala
que vai me rasgar ao meio. Mas eu estou bem,
inteiro. Ergo o olhar, confuso, e lá, na testa do
soldado, vejo um buraco do tamanho de uma
moeda pequena jorrando sangue. A criatura cai e
se desintegra.
-- Essa foi por meu pai -- eu ouço atrás de mim. E
me viro. Sam está segurando uma pistola prateada
na mão direita. Sorrio para ele, e Sam abaixa a
arma. -- Eles passaram pelo centro da cidade --
diz. -- Eu soube que eram eles assim que vi o
trailer.
Tento recuperar o fôlego enquanto olho,
espantado, para Sam. Momento antes, quando o
primeiro soldado deu o tiro, Sam era um cadáver
em decomposição se erguendo do inferno para me
levar. E agora ele acabou de me salvar.
-- Tudo bem? -- ele pergunta. Movo a cabeça em
sentido afirmativo.
-- De onde você surgiu?
-- Eu os segui na caminhonete de meu pai quando
os vi passando lá por casa. Cheguei há quinze
minutos e fui cercado pelos que já est avam aqui.
Por isso segui adiante e estacionei em um campo a
um quilômetro daqui e voltei a pé.
O segundo par de faróis que vimos da janela da
escola era da caminhonete de Sam. Abro a boca
para responder, mas um trovão sacode o céu.
Outra tempestade começa a se formar, e sinto um
forte alívio por saber que Seis está viva. Um raio
de luz corta o céu e nu vens chegam de todas as
direções, unindo-se numa massa gigantesca. Uma
escuridão ainda maior nos envolve, seguida por
uma chuva tão pesada que tenho de estre itar os
olhos para ver Sam a um metro de mim. A escola
desapareceu. Mas um grande raio corta o céu e
tudo se ilumina por um segundo, e vejo que a besta
foi atingida. Ouço um rugido terrível.
-- Preciso ir à escola! -- grito. -- Mark e Sarah
estão lá dentro.
-- Se você vai, eu também vou -- ele responde
berrando para ser ouvido entre os trovões.
Não damos mais de cinco passo s antes de o vento
uivar, empurrando-nos de volta, a chuva torrencial
batendo com força em nosso rosto. Estamos
encharcados, tremendo, com fr io. Mas se eu estou
tremendo, sei que estou vivo. Sam cai sobre um
joelho, depois se deita de bruços para não ser
levado pelo vento. Eu faço o mesmo. Fito as nuvens
com os olhos semicerrados -- nuvens pesadas,
escuras, ameaçadoras -- e as vejo girar em
pequenos círculos concêntri cos e, no centro, o
centro que tento desesperadamente alcançar, um
rosto começa a tomar forma.
É um rosto velho, enrugado, com uma barba, um
rosto que parece tranquilo, como se estivesse
adormecido. Uma face que parece mais velha do
que a própria Terra. As nuvens começam a perder
velocidade, aproximando-se lentamente da
superfície e consumindo tudo, escurecendo tudo,
uma escuridão tão profunda e impenetrável que é
difícil imaginar que em algum lugar, qualquer
lugar, ainda exista um sol . Ouço outro rugido, esse
de raiva e morte. Tento me levantar, mas sou
jogado no chão pela força do vento. O rosto. Está
ganhando vida. Um despertar. Os olhos se abrem,
o rosto voltado para cima. É uma criação de Seis?
O rosto se torna a própria expressão de fúria, uma
expressão de vingança. Tudo acontece muito
depressa. Tudo parece estar por um fio. Então a
boca se abre, faminta, os lábios se retraem para
exibir os dentes e os olhos brilham com o que só
pode ser descrito como pura maldade. Uma ira
total e completa.
O rosto se vira, e um estrondo fenomenal sacode o
chão, uma explosão que se estende até a escola,
iluminando tudo de vermelho, laranja e amarelo.
Sou jogado para trás. Árvores se partem ao meio. A
terra treme. Caio com um baque surdo, galhos e
lama caindo em cima de mim. Meus ouvidos
apitam como nunca fizeram antes. Um estouro tão
forte que deve ter sido ouvido mais de setenta
quilômetros longe dali. E de repente a chuva para e
tudo fica silencioso.
Estou deitado na lama, ouvindo as batidas de meu
coração. As nuvens desaparecem, revelando uma
lua crescente. Não há vento. Olho em volta, mas
não vejo Sam. Grito seu nome, mas não obtenho
resposta. Quero ouvir alguma coisa, qualquer
coisa, outro rugido, os tiros de Henri, mas não há
nada.
Eu me levanto do solo da floresta, limpo a lama e
os gravetos da melhor maneira possível. Saio da
floresta pela segunda vez. As estrelas
reapareceram, um milhão delas cintilam no céu.
Acabou? Nós vencemos? Ou ó só uma trégua? A
escola, eu penso. Preciso ir à escola. Do u um passo
à frente e então ouço.
Outro rugido, desta vez na floresta, atrás de mim.
O som retorna. Três tiros sucessivos soam na noite
e ecoam de forma que eu não tenha idé ia de onde
partiram. Espero que sejam tiros da arma de Henri,
que ele ainda esteja vivo, ainda esteja lutando.
O chão começa a tremer. A besta corre, procura
por mim, não há como errar agora, porque árvores
são quebradas e arrancadas atrás de mim. Elas
parecem nem reduzir a velocidade da fera. Essa é
ainda maior do que a outra? Não quero descobrir.
Corro para a escola, mas percebo imediatamente
que é o pior lugar para onde ir. Sarah e Mark ainda
estão lá, ainda estão escondidos. Ou eu espero que
estejam, pelo menos.
Tudo volta a ser como antes da tempestade, as
sombras me seguindo, pairando. Mensageiros.
Soldados. Viro à direita e corro pela pista de três
raias que leva ao campo de futebol, a besta me
seguindo. Posso realmente ter esperança de
despistá-la, de ser mais rápido do que ela? Se
puder chegar à floresta atrás do campo, talvez eu
tenha alguma chance. Conheço a floresta, porque é
por ali que se chega à nossa casa. Lá eu terei a
vantagem de conhecer o terreno. Olho em volta e
vejo as silhuetas dos mogadorianos no pátio da
escola. Há muitos deles. Estamos em minoria. Em
algum momento acreditamos que poderíamos
realmente vencer?
Uma adaga voa em minha direção, um lampejo
vermelho que não acerta meu rosto por poucos
centímetros. Ela se crava no tronco de uma árvore
a meu lado e incendeia a madeira. Outro rugido. A
besta mantém o ritmo. Qual de nós é mais
resistente? Entro no campo, atravesso correndo a
linha de cinquenta jardas e avanço pelo lado do
time visitante. Outra faca passa por mim
assobiando, desta vez um lampejo azul. A floresta
está próxima, e, quando finalmente a penetro
correndo, um sorriso surge em meu rosto. Atraí a
besta para longe dos outros. Se todos estão
seguros, então cumpri minha missão. Quando o
sentimento de triunfo já começa a desabrochar em
mim, a terceira faca me atinge.
Eu grito e caio com o rosto na lama. Posso sentir a
lâmina cravada na escápula. Uma dor tão aguda
que me paralisa. Tento alcançá -la e removê-la, mas
ela está muito alta. Tenho a sensação de que a
lâmina se move, enterrando-se cada vez mais
fundo, a dor se espalhando como se eu tivesse sido
envenenado. Estou deitado de bruços, sofrendo
terrível agonia. Não consigo remover a adaga com
telecinesia. Meus poderes parecem falhar. Começo
a me arrastar para a frente. Um dos soldados -- ou
talvez seja um mensageiro, não sei -- coloca um pé
em minhas costas, abaixa-se e puxa a adaga. Não
contenho um grunhido. A adaga não está mais em
mim, mas a dor permanece. Ele, remove o pé de
minhas costas, mas ainda posso sentir sua presença
e tento me virar para vê-lo.
Outro soldado, e ele sorri com ódio. A mesma
expressão daquele que o antecedeu, o mesmo tipo
de espada. A adaga que estava em minhas costas
ainda brilha em sua mão, girando entre os dedos.
Foi exatamente isso que eu senti, a lâmina
enterrada girando em minha carne. Levanto a mão
para tentar mover o soldado, m as sei que o esforço
é inútil. Não consigo me concentrar, tudo está
nebuloso. O soldado levanta sua espada no ar. A
lâmina tem gosto de morte e começa a brilhar
contra o céu noturno atrás dela.
Estou morto, penso. Não há nada que eu possa
fazer. Olho nos olhos dele. Dez anos fugindo, e é
assim que tudo termina, silencio samente. Mas
atrás dele outra coisa se esconde. Alguma coisa
muito mais ameaçadora que um milhão de
soldados com um milhão de espadas. Os dentes são
tão longos quanto o soldado é alto e brilh am muito
brancos em uma boca pequena demais para
acomodá-los. A besta com olhos maléficos se
debruça sobre nós.
O ar fica preso em minha garganta , e meus olhos
se abrem, aterrorizados. Seremos destruídos os
dois, eu penso. O soldado está alheio ao animal.
Ele se enrijece e faz uma careta para mim e começa
a abaixar sua espada para me rasgar em dois. Mas é
muito lento, e a besta o ataca primeiro, suas
mandíbulas se fecham como as partes de uma
armadilha para ursos. A mordida não cessa até os
dentes da fera se unirem, o corpo do soldado
dividido logo abaixo do quadril, deixando para trás
apenas as duas pernas ainda em pé. A besta
mastiga duas vezes e engole. As pernas do soldado
caem, uma para a direita, a outra para a esquerda,
e se desintegram rapidamente.
Preciso de toda a força que tenho para estender o
braço e pegar a adaga que caiu a meus pés. Eu a
prendo no cós da calça e começo a me afastar,
rastejando. Sinto a besta debruçada sobre mim,
sinto seu hálito em minha nuca. O cheiro da morte
e de carne podre. Entro em uma pequena clareira.
Espero sentir a ira da fera a qualquer minuto,
espero sentir seus dentes e suas gar ras me
rasgando em tiras. Continuo rastejando até não
poder mais me mover, porque minhas costas estão
coladas a um tronco de árvore.
A besta está no centro da clareira, dez metros
longe de mim. Olho para ela realmente pela
primeira vez. Uma figura gigantesca, uma sombra
na escuridão e no frio da noite. Mais alto e maior
do que a besta na escola, uns treze metros de
altura, ereta sobre as patas traseiras. Pele cinza e
espessa esticada sobre os músculos
impressionantes. Não há pescoço, e sua ca beça
pende de forma que a mandíbula inferior é muito
mais proeminente do que a superior. As presas
inferiores apontam para o alto, para o céu,
enquanto as superiores apontam para baixo, para o
chão, pingando sangue e saliva. Braços longos e
grossos pendem trinta ou cinquenta centímetros
acima do chão mesmo quando a besta está ereta,
fazendo-a parecer que está sempre ligeiramente
inclinada para a frente. Olhos amarelos. Discos
redondos nas laterais da cabeça que pulsam
conforme os batimentos cardíacos, único sinal de
que há um coração naquela criatura.
Ela se inclina e leva a mão esquerda ao chão. A
mão tem dedos curtos e grossos e garras como as
de uma ave de rapina, garras que servem para
rasgar o que quer que seja tocado. A criatura me
fareja e ruge. É um rugido ensurdecedor, que teria
me empurrado para trás se eu já não estivesse
encostado a uma árvore. Sua boca se abre,
mostrando pelo menos uns cinquenta d entes, todos
muito afiados.
A mão livre se afasta do corpo e parte ao meio
todas as árvores que atinge, dez, quinze delas.
A fuga termina aqui. A luta chegou ao fim. O
sangue do ferimento aberto pela adaga escorre por
minhas costas; minhas mãos e per nas tremem. A
adaga ainda está presa ao cós de meu jeans, mas de
que adianta empunhá-la? Que chance eu teria com
uma faca de dez centímetros contra uma besta de
treze metros? Seria o equivalente a uma farpa. E só
a deixaria mais furiosa. Minha única esperança é
sangrar até a morte antes de ser morto e devorado.
Fecho os olhos e aceito a morte. Minhas luzes
estão apagadas. Não quero ver o que está prestes a
acontecer. Escuto um movimento atrás de mim.
Abro os olhos. Um dos mogadorianos deve estar se
aproximando para me examinar de perto, eu penso,
mas sei imediatamente que estou enganado. Há
algo familiar no andar, algo que reconheço no som
de sua respiração. A criatura surge na clareira.
Bernie Kosar.
Sorrio, mas o sorriso desaparec e rapidamente. Se
estou condenado, de nada vai adiantar Bernie
Kosar morrer também. Não, Bernie Kosar. Você
não pode ficar aqui. Precisa ir embora, e deve
correr como o vento, afastar -se tanto quanto
puder. Finja que acabamos de encerrar nossa
corrida matinal para a escola e que é hora de
correr para casa.
Ele olha para mim enquanto se aproxima. Estou
aqui, parece dizer. Estou aqui e vou ficar com você.
-- Não -- falo em voz alta.
Ele para por tempo suficiente para dar uma
lambida em minha mão. Depois olha para mim com
aqueles grandes olhos castanhos. Saia daqui, John,
eu ouço em meus pensamentos. Rasteje se for
necessário, mas saia daqui agora. Perd i sangue
demais e estou delirando. Bernie parece estar se
comunicando comigo. Ele está realmente ali ou
também imagino sua presença?
O cachorro se posiciona à minha frente, como se
quisesse me proteger. Ele começa a rosnar, baixo
no início, mas o som cresce até se igualar em
ferocidade ao rugido da besta. A besta se concentra
em Bernie Kosar. Olha fixamente para ele. Bernie
Kosar tem os pelos das costas eriçados, as orelhas
coladas à cabeça. Sua lealdade, sua coragem quase
me fazem chorar. Ele é cem vezes menor do que a
besta, mas se mantém ereto, prometendo lutar. Um
golpe rápido dela, e tudo estará terminado.
Estendo a mão para Bernie Kosar. Gos taria de
poder me levantar, pegá -lo e sair dali. Seus rugidos
são tão fortes que todo o seu corpo se agita,
tremores o percorrem sucessivamente.
E então algo começa a acontecer.
Bernie Kosar começa a crescer.
CAPÍTULO TRINTA E DOIS
DEPOIS DE TODO ESSE TEMPO, SÓ AGORA
ENTENDO. A CORRIDA MATINAL, quando eu
atingia uma velocidade alta demais para ele me
acompanhar. Bernie Kosar desaparecia na floresta
e reaparecia segundos depois à minha frente. Seis
tentou me dizer. Seis olhou para ele e percebeu
imediatamente. Naquelas corridas Bernie Kosar ia
à floresta para se transformar em ave. A maneira
como ele corria para fora todas as manhãs, farejava
o quintal, patrulhava o terreno. Ele me protegia,
protegia Henri. Procurava sinais dos
mogadorianos. A lagartixa na Flórida. Aquela que
costumava me olhar da parede enquanto eu tomava
café da manhã. Há quanto tempo ele está conosco?
Os Chimaera que foram levados para o foguete --
eles haviam conseguido chegar à Terra, afinal?
Bernie Kosar continua crescendo. E me diz para
correr. Posso me comunicar com ele. Não, não é só
isso. Posso me comunicar com todos os animais.
Outro Legado. Começou com o cervo na Flórida,
no dia em que partimos. O arrepio que percorreu
minhas costas me transmitiu alguma coisa, algum
sentimento. Pensei que fosse tristeza pela partida,
mas estava enganado. Os cães de Mark James. As
vacas pelas quais eu passava nas corridas matinais.
A mesma coisa. Eu me sinto tolo por só descobrir
isso agora. E tão evidente, tão óbvio! Outro ditado
de Henri: Aquelas coisas que são mais evidentes
são as que menos enxergamos. Mas Henri sabia.
Foi por isso que ele disse "não" a Seis quando ela
tentou falar comigo.
Bernie Kosar parou de crescer: seus pelos foram
substituídos por escamas alongadas. Ele parece u m
dragão, mas sem asas. Seu corpo é musculoso.
Dentes e garras afiados, chifres enrolados como os
de um carneiro. Mais espessos que os da besta,
porém muito mais curtos. Igualmente
ameaçadores. Dois gigantes em lados opostos da
clareira, rugindo um para o outro.
Corra, ele me diz. Tento dizer a ele que não posso.
Não sei se ele consegue me entender. Você pode,
ele diz. Você deve.
A besta ataca. O golpe é co mo uma marreta que
desce das nuvens com brutalidade. Bernie Kosar a
bloqueia com os chifres e depois ataca antes que
ela possa desferir o segundo golpe. Uma colisão
colossal no centro da clarei ra. Bernie Kosar se
levanta, enterra os dentes no corpo da fera. A fera
o joga no chão. Os dois são tão rápidos que o
confronto desafia a lógica. Já é possível ver nos
dois cortes sangrando. Eu os observo com as costas
voltadas para uma árvore. Tento ajudar. Mas min ha
telecinesia ainda falha. Sin to sangue escorrendo
por minhas costas. Meus membros pesam, como se
meu sangue agora fosse chumbo. Tenho a sensação
de que vou desmaiar.
A besta ainda se sustenta sobre duas patas,
enquanto Bernie Kosar precisa lutar sobre as
quatro. A besta ataca. Bernie Kosar abai xa a
cabeça. E eles se chocam, colidindo contra as
árvores em meu lado direito. A fera está por cima.
Ela enterra os dentes bem fundo no pescoço de
Bernie Kosar. Ele se contorce, mas não consegue se
libertar da mordida. Ele rasga a pele do adversário
usando as garras, mas a besta não o solta.
Então, sinto a mão que me agarra por trás, segura
meu braço. Tento empurrá-la, mas nem isso
consigo fazer. Os olhos de Bernie Kosar estão
fechados. Ele se debate sob a mordida da besta, e a
pressão em sua garganta o impede de respirar.
-- Não! -- eu berro.
-- Venha! -- grita a voz atrás de mim. -- Você tem
que sair daqui!
-- O cachorro -- argumento, sem identificar o
dono daquela voz. -- O cachorro!
Bernie Kosar é sufocado pela mordida, vai morrer,
e não há nada que eu possa fazer. Logo será minha
vez. Eu sacrificaria minha vida pela dele. Grito.
Bernie Kosar vira a cabeça e olha para mim, sua
expressão distorcida pela dor e pela agonia da
morte iminente.
-- Temos que ir! -- insiste a voz atrás de mim, a
mão me puxando para dentro da floresta.
Os olhos de Bernie Kosar permanecem fixos nos
meus. Vá, ele me diz. Saia daqui agora, enquanto
você pode. Não há muito tempo.
De alguma forma, consigo ficar de pé. Estou tonto,
vendo o mundo girar à minha volta. Só os olhos de
Bernie Kosar permanecem em foco. Olhos que
clamam por ajuda, embora seus pensamentos
afirmem o contrário.
-- Temos que ir! -- a voz grita novamente. Não me
viro, mas agora sei a quem ela pertence. Mark
James, que não está mais escondido na escola,
tenta me salvar desse confronto. Se ele está aqui,
Sarah deve estar bem, e por um breve momento me
permito sentir alívio, mas o sen timento desaparece
tão depressa quanto surgiu. Neste exato momento
só uma coisa importa. Bernie Kosar me olhando
com aquela expressão suplicante, vidrada. Ele me
salvou. É minha vez de tentar ajudá -lo.
Mark apoia a mão em meu peito, ten ta me puxar,
me tirar da clareira, me afastar da luta. Eu me
liberto. Os olhos de Bernie Kosar come çam a se
fechar lentamente. Ele está desaparecendo, penso.
Não vou ficar vendo você morrer, digo a ele. Estou
disposto a ver muitas coisas neste mundo, mas sua
morte não é uma delas. Não há respo sta. A besta
intensifica a pressão da mordida. Ela pode sentir a
morte próxima.
Dou um passo cambaleante e tiro a adaga do cós da
calça. Seguro a arma com força, e ela ganha vida e
começa a brilhar. Nunca pode rei abater a besta
arremessando a adaga, e todos os meus Legados
praticamente desapareceram. A decisão é fácil. Não
há alternativas. Só me resta atacar.
Respiro profundamente. Balanço o corpo para trás,
sinto todos os músculos tensos com a dor da
exaustão, não há um centímetro de meu corpo que
não esteja doído.
-- Não! -- Mark grita atrás de mim.
Eu me lanço no ar e corro até a besta. Ela está de
olhos fechados, concentrando toda a força na
mordida. A luz da lua faz brilhar o san gue no
pescoço de Bernie Kosar. Poucos metros. Os olhos
da besta se abrem no exato momento em que eu
salto. Olhos amarelos que são tomados pela fúria
no segundo em que me encontram, voando no ar
com a adaga na mão, as duas mãos erguidas sobre a
cabeça, como se vivesse um sonho heróico do qual
não quero acordar. A fera solta o pesco ço de Bernie
Kosar e tenta me morder, mas percebe que me
avistou tarde demais. A lâmina brilha com
ansiedade, e eu a enterro profundamente no olho
da besta. Um líquido jorra imediatamente da ferida
aberta. A besta deixa escapar um grito
aterrorizante, tão alto que é difícil imaginar que os
mortos não despertaram.
Eu caio de costas. Levanto a cabeça e vejo a besta
se aproximando de mim. Ela tenta em vão arrancar
a adaga do olho, mas suas mãos são grandes
demais para o instrumento. As armas
mogadorianos funcionam de alguma forma que eu
nunca vou conseguir entender, por causa dos
portais sobrenaturais entre os reinos. A adaga não
é diferente, o negro da noite inundando o olho da
fera numa espécie de funil de nuvens giratórias,
um tornado de morte.
A besta cai, silenciosa, quando a última nuvem
negra penetra em seu cérebro, a adaga cravada
nele. Seus braços estão imóveis. As mãos começam
a tremer. Um tremor violento que reverbera por
todo o seu corpo gigantesco. Quando as convulsões
terminam a besta se contorce e cai no chão, com as
costas voltadas para as árvores. Apesar de sentada,
é maior do que eu. Tudo fica em silêncio, na
ansiedade pelo que está por vir. Um disparo, um
tiro tão próximo que o estrondo ecoa em meus
ouvidos e me deixa momentaneamente surdo. A
besta inspira e prende o ar como se meditasse, e de
repente sua cabeça explode, espalhando pedaços
de cérebro, crânio e carne em todas as di reções. Os
fragmentos transformam-se imediatamente em
cinzas e pó.
A floresta fica em silêncio. Viro a cabeça e olho
para Bernie Kosar, que continua imóvel no chão,
deitado de lado, os olhos fechados. Não consigo
saber se está vivo. Diante de meus olhos, ele
começa a se transformar mais uma vez, encolhendo
e voltando ao tamanho normal, embora permaneça
inerte, sem vida. Ouço o som de folhas sendo
esmagadas e gravetos se partindo perto de mim.
Preciso de toda a força que tenho só para levantar
a cabeça do chão. Abro os olhos e espio o véu
escuro da noite, esperando ver Mark James. Mas
não é ele que se debruça sobre mim. Pe rco o ar ao
me deparar com a figura indefinida recortada
contra a luz da lua. Então, ele dá um passo à frente
e bloqueia o luar, e meus olhos se abrem com
ansiedade e medo.
CAPÍTULO TRINTA E TRÊS
A IMAGEM NEBULOSA GANHA NITIDEZ. APESAR
DA EXAUSTÃO, DA DOR E DO MEDO, um sorriso
se forma em meu rosto, junto à sensação de alívio.
Henri. Ele joga a arma entre os arbustos e cai de
joelhos a meu lado. Seu rosto está ensanguentado,
camisa e jeans estão rasgados, há cortes nos braços
e no pescoço, e percebo em se us olhos o medo
provocado pelo que ele vê nos meus.
-- Acabou? -- pergunto.
-- Shhh -- ele murmura. -- Foi ferido por uma das
adagas deles?
-- Nas costas -- respondo.
Ele fecha os olhos e balança a cabeça. Uma das
mãos extrai de seu bolso uma daquelas pedrinhas
que o vi pegar na Arca Lórica antes de deixarmos a
sala de economia doméstica. Suas mãos tremem.
-- Abra a boca -- ele diz. E insere nela uma das
pedras. -- Mantenha-a sob sua língua. Não a
engula.
Ele me levanta com as mãos sob meus braços. Fico
em pé e ele me sustenta com um braço enquanto
recupero o equilíbrio. Ele me vira para examinar o
corte nas costas. Meu rosto está quente. Sinto que
me revigoro enquanto mantenho a pedra na boca.
Meus membros ainda doem pela exaustão, mas
tenho novamente força suficient e para funcionar.
-- O que é isto?
-- Sal lórico. Ele vai retardar e anular o efeito da
adaga. Você vai sentir uma onda de energia, mas
não vai durar muito, por isso temos que voltar à
escola o mais depressa possível.
A pedra em minha boca é fria, não tem sa bor de sal
algum -- na verdade não tem gosto de nada. Olho
para baixo e faço um rápido inventário, e depois
me limpo dos resíduos de cinzas deixados pela
besta morta.
-- Todos estão bem? -- quero saber.
-- Seis sofreu ferimentos graves. Sam está levando
ela para a caminhonete; e depois vai dirigir até a
escola para nos pegar. Por isso precisamos voltar
para lá.
-- Viu Sarah?
-- Não.
-- Mark James esteve aqui agora há pouco. Pensei
que estivesse com ele.
-- Não o vi.
Olho para o cachorro, além de Henri.
-- Bernie Kosar -- digo. Ele ainda encolhia, as
escamas desapareciam, o pelo retornava, e ele
recuperava a forma que tinha quando o conheci,
um corpo longo e roliço, pernas curtas, orelhas
longas. Um beagle de focinho úmido sempre
disposto a correr. -- Ele salvou minha vida. Você
sabia, não sabia?
-- É claro que sim.
-- Por que não me contou?
-- Porque ele cuidava de você quando eu não
podia.
-- Mas como ele veio parar aqui?
-- Estava na nave conosco.
Eu me lembro do bicho de pelúcia com que
costumava brincar. Era Bernie Kosar , embora seu
nome anterior fosse Hadley.
Caminhamos juntos até onde está o cachorro. Eu
me abaixo e deslizo a mão pelo corpo dele.
-- Temos que nos apressar -- Henri repete.
Bemie Kosar não se move. A floresta ainda está
repleta de sombras vivas que só podem ter um
significado, mas não me importo. Aproximo a
cabeça do peito do animal. Ouço o som bem fraco
das batidas de seu coração. Ainda resta um fio de
vida. Ele está repleto de cortes pro fundos e
arranhões, e o sangue parece jorrar de todos os
lugares. Sua pata dianteira está retorcida num
ângulo que não é natural, fraturada. Mas ele ainda
vive. Eu o pego nos braços com toda a gentileza de
que sou capaz, aninhando-o como uma criança.
Henri me ajuda a ficar em pé, depois leva a mão ao
bolso, pega outra pedra de sal e a coloca na própria
boca. Isso me faz pensar se ele falava sobre si
mesmo quando mencionou que tínhamos pouco
tempo. Nós dois cambaleamos. Algo na coxa de
Henri chama minha atenção. Uma ferida que pulsa
azulada por causa do sangue coagulado no
entorno. Ele também foi atingido pela adaga de um
soldado. Pergunto-me se a pedra de sal é a única
coisa que o mantém em pé, assim como acontece
comigo.
-- E quanto à arma? -- pergunto.
-- Estou sem munição.
Saímos da clareira sem pressa. Bernie Kosar não se
move em meus braços, mas posso sentir que a vida
ainda pulsa em seu corpo. Ele ainda não morreu.
Partimos da floresta, deixando para trás os galhos
baixos, as folhas caídas, o cheiro de umidade e
terra.
-- Acha que consegue correr? -- Henri me
pergunta.
-- Não. Mas vou correr assim mesmo.
Ouvimos à nossa frente uma grande comoção,
vários grunhidos seguidos pelo som de correntes.
Depois ouvimos um rugido, nem tão sinistro
quanto os anteriores, mas alto o suficiente para
sabermos que há outra besta por perto.
-- Deve ser brincadeira comigo -- diz Henri.
Galhos se partem atrás de nós, na floresta. Henri e
eu nos viramos, mas as árvores bloqueiam nossa
visão. Acendo a luz de minha mão esquerda e
direciono o foco para a mata, tentando enxergar.
Deve haver sete ou oito soldados na entrada do
bosque, e, quando minha luz os ilumina, todos
empunham suas espadas, armas que ganham vida
com cores variadas e cintilantes no momento em
que são erguidas.
-- Não -- grita Henri. -- Não use seus Legados,
isso o enfraquecerá.
Mas é tarde demais. Apago a luz. Vertigem e
fraqueza retornam, depois vem a dor. Prendo o
fôlego e espero os soldados nos atacarem. Mas eles
não o fazem. Não há som algum, exceto o da luta
que se desenrola bem à nossa frente. Depois, gritos
atrás de nós. Eu me viro para olhar. As espadas
brilhantes se movem. Uma risada confiante brota
do peito de um dos soldados. Nove deles, todos
armados e cheios de força, contra três de nós, e
estamos fracos e desarmados, sem nada além de
coragem. A besta de um lado, os soldados do
outro. Essa é a escolha que agora encaramos.
Henri parece não se abalar. Ele remove mais duas
pedras do bolso e me dá uma delas.
-- As últimas -- diz, a voz trêmula, como se
fizesse um grande esforço para falar.
Jogo a pedra de sal na boca e a pre ndo sob a
língua, apesar de ainda haver ali uma pequena
porção da anterior. Uma força renovada me invade.
-- O que você acha? -- ele me pergunta.
Estamos cercados. Henri e Berni e Kosar e eu. Os
únicos três remanescentes. Seis foi ferida e levada
por Sam. Mark esteve ali há pouco, mas agora
desapareceu. E Sarah, que espero que esteja bem e
segura na escola. Respiro fundo e aceito o
inevitável.
-- Acho que não importa, Henri -- digo e olho
para ele. -- Mas a escola está à nossa frente, e é lá
que Sam vai estar daqui a pouco.
O que ele faz em seguida me surpreende: Henri
sorri. Ele estende a mão e toca meu ombro. Seus
olhos estão cansados e vermelhos, mas vejo neles
alívio, um sentimento de serenidade, como se
soubesse que tudo acabaria em breve.
-- Fizemos tudo o que podíamos. E o que está feito
não pode ser mudado. Mas eu me orgulho de voc ê
-- ele diz. -- Hoje você foi incrível. Eu sempre
soube que seria. Nunca duvidei disso.
Abaixo a cabeça. Não quero que ele me veja chorar.
Afago o cachorro. Pela primeira vez desde que o
peguei nos braços, ele mostra sinal de vida,
erguendo a cabeça apenas o suficiente para lamber
meu rosto uma vez. Ele me transmite uma única
palavra, como se sua força fosse suficiente apenas
para isso. Coragem, ele diz.
Levanto a cabeça. Henri se aproxima e me abraça.
Fecho os olhos e enterro o rosto em seu pescoço.
Ele ainda está tremendo, seu corpo fraco em meus
braços. Tenho certeza de que o meu não está mais
forte. Então é isso, penso. De cabeça erguida,
vamos caminhar para o campo de batalha e
enfrentar o que nos espera do outro lado. Pelo
menos há dignidade nisso.
-- Você foi muito bem -- ele diz.
Abro os olhos. Por cima de seu ombro , vejo que os
soldados estão próximos, a poucos metros de nós.
Eles pararam de marchar. Um deles segura uma
adaga que pulsa em tons de cinza e prata. O
soldado a joga para cima, a pega no ar e a
arremessa contra as costas de Henri. Levanto a
mão e a desvio, e a adaga erra o alvo por menos de
dez centímetros. Minha força me abandona quase
imediatamente, embora o sal ainda se dissolv a em
minha boca.
Henri apóia meu braço livre em seus ombros e
passa o braço direito em torno de minha cintura.
Cambaleamos para a frente. A besta aparece, em pé
no centro do campo de futebol. Os mogadorianos
nos seguem. Talvez estejam curiosos para ver a
besta em ação, para ver a besta matar. Cada passo
que dou exige um esforço maior do que o anterior.
Meu coração bate forte no peito. A morte é
iminente, e estou apavorado. Mas Henri está ali. E
Bernie Kosar também. Fico feliz por não ter de
enfrentar tudo sozinho. Há vários soldados em pé
atrás da besta. Mesmo que pudéssemos passar por
ela, precisaríamos enfrentar os soldados, que nos
esperam com as espadas em punho.
Não temos alternativas. Chegamos ao campo, e eu
espero a fera atacar a qualquer momento. Mas
nada acontece. Quando estamos a quatro ou cinco
metros dela, nós paramos. Ficamos apoiados um no
outro, tentando permanecer em pé.
A besta tem a metade do tamanho da outra, mas
ainda é grande o bastante para nos matar sem
qualquer esforço. Pele pálida, qu ase transparente,
revela articulações salientes e costelas
protuberantes. Tem várias cicatrizes rosadas nos
braços e no corpo. Olhos brancos, aparentemente
cegos. Ela se abaixa, aproximando o focinho do
chão para farejar o que os olhos não conseguem
enxergar. A besta sente nossa presença. Ela deixa
escapar um grunhido baixo. Não sinto a raiva e a
ferocidade que as outras feras emanavam, nem o
desejo de sangue e morte. Há uma sensação de
medo, uma espécie de tristeza. Eu me torno
perceptivo ao animal. Vejo imagens de tortura e de
fome. Vejo a besta trancafiada por t oda a vida na
Terra, numa caverna úmida onde a luz não
penetra. Tremendo à noite por não conse guir se
manter aquecida, sempre com frio e molhada. Vejo
como os mogadorianos jogam as bestas umas
contra as outras, forçando-as a lutar para
treinarem, usando essa tática para endurecê -las,
torná-las mais cruéis.
Henri me solta. Não consigo mai s segurar Bernie
Kosar. Eu o coloco na relva com delicadeza. Não
sinto seus movimentos há alguns minutos, por isso
não posso dizer se está vivo. Dou um passo à frente
e caio de joelhos. Os soldados ainda nos cercam.
Não entendo sua linguagem, mas posso identificar
a impaciência em seu tom. Um deles brande a
espada e a adaga quase me acerta, um lampejo
branco que rasga a frente de minha camisa. Fico de
joelhos e olho para cima, para a besta que se
debruça sobre mim. Uma arma é disparada em
algum lugar, mas o projétil passa por cima de nós.
Um tiro de alerta, um disparo cujo propósito é
impelir a besta a agir. Ela treme. Uma segunda
adaga corta o ar e atinge seu cotovelo esquerdo.
Ela ergue a cabeça e ruge de dor.
Sinto muito, tento dizer a ela. Lamento pela vida
que vocês têm sido forçadas a viver. Foram
enganadas. Nenhuma criatura viva merece esse
tratamento. Foram obrigadas a enfrentar o inferno,
arrancadas de seu planeta para lutar em uma
guerra que não é de vocês. Espancadas, torturadas,
submetidas à fome. A culpa de todo o sofri mento,
de toda a agonia que vocês têm suportado é deles.
Vocês e nós temos algo em comum. Fomos ambos
enganados por esses monstros.
Tento de toda forma transmitir minhas imagens,
aquilo que vi e senti. A besta não desvia o olhar.
Meus pensamentos a alcançam em algum nível.
Mostro a ela Lorien, o vasto oceano e as florestas
densas, as colinas verdejantes onde havia vida e
energia. Animais bebendo a água limpa e fresca.
Um povo orgulhoso e satisfeito por viver seus dias
em harmonia. Mostro o inferno que veio a seguir, a
morte de homens, mulheres e c rianças. Os
mogadorianos. Assassinos de sangue fr io.
Matadores perversos destruindo tudo o que existia
em seu caminho devido a crenças patéticas e
inconsequentes. Destruindo até o próprio planeta.
Onde isso vai acabar? Mostro a ela Sarah, mostro
cada emoção que experimentei com ela. Felicidade
e glória, é isso que sinto com Sarah. E mostro a dor
que experimento por ter de deixá -la, tudo por
causa deles. Ajude-me, eu peço. Ajude-me a pôr
um ponto final nessa mortandade. Vamos lutar
juntos. Não me resta muita coisa, mas, se ficar a
meu lado, eu ficarei ao seu.
A besta ergue a cabeça para o céu e ruge. Um
rugido longo e profundo. Os mogadorianos podem
perceber o que está acontecendo e já viram o
suficiente. Eles começam a disparar. Um dos
canhões está apontado para mim. O mogadoriano
atira, e a morte branca v em em minha direção. Mas
a besta abaixa a cabeça e absorve o impacto em
meu lugar. Seu rosto se contorce de dor, seus olhos
se fecham por um instante, mas se abrem em
seguida, e vejo a fúria neles.
Caio com o rosto na grama. Sou atingido por algo,
mas não vejo o que é. Henri grita de dor atrás de
mim e é arremessado longe, mais de dez metros
distante de onde estou. Seu corpo fica caído na
terra, o rosto para cima, a carne fumegando. Não
sei o que o atingiu. Alguma coisa grande e mortal.
Pânico e medo me invadem. Não Henri, eu penso.
Por favor, não Henri.
A besta desfere um golpe certeiro que derruba
vários soldados e elimina muitas de suas armas.
Outro rugido. Olho para cima e vejo os olhos da
besta agora vermelhos, iluminados com ira.
Retribuição. Motim. El a olha para mim uma vez,
depois corre atrás daqueles que a mantiveram em
cativeiro. Armas são disparadas, mas logo são
silenciadas. Mate todos eles, eu penso. Lut e com
nobreza e honra e vai poder eliminar todos eles.
Levanto a cabeça. Bernie Kosar está imó vel na
grama. Henri, metros longe de mim, também está
inerte. Apóio a mão sobre a relva e me arrasto pelo
campo, pouco a pouco, aproximando -me de Henri.
Quando o alcanço, noto que ele mantém os olhos
ligeiramente abertos; cada respiração é um grande
esforço. O sangue escorre de sua boca e do nariz.
Eu o tomo em meus braços e aninho contra o
peito. Seu corpo é frágil, fraco, e posso senti -lo
morrendo. Suas pálpebras tremulam. Ele olha para
mim, ergue a mão, e toca meu rosto. No se gundo
em que sinto seus dedos, eu começo a chorar.
-- Estou aqui -- digo.
Ele tenta sorrir.
-- Sinto muito, Henri -- murmuro. -- Sinto muito
mesmo. Devíamos ter ido embora quando você quis
partir.
-- Shhh -- ele murmura. -- Não é sua culpa.
-- Eu sinto muito -- repito, soluçando.
-- Você foi muito bem -- ele murmura. -- Foi
incrível. Como sempre soube que seria.
-- Temos que chegar na escola. Sam pode estar lá.
-- Escute, John. Tudo... tudo o que você precisa
saber está na arca. A carta.
-- Não acabou. Ainda podemos conseguir.
Sinto que ele começa a me deixar. Eu o sacudo.
Seus olhos se abrem novamente, com relutância.
Um fio de sangue escorre da boca.
-- Não foi por acaso que viemos para cá, para
Paradise.
Não sei o que ele quer dizer.
-- Leia a carta.
-- Henri -- eu o chamo, limpando o sangue de seu
queixo. Ele me encara.
-- Você é Legado de Lorien, John. Você e os
outros. A única esperança que restou ao planeta.
Os segredos -- ele diz, e é interrompido por um
ataque de tosse. Mais sangue. Seus olhos se fecham
novamente. -- A arca, John.
Eu o aperto contra o peito, tento mantê-lo preso à
vida. Seu corpo está ficando mole. A respiração é
superficial, não chega aos pulmões.
-- Vamos voltar juntos, Henri. Você e eu, prometo
-- digo e fecho os olhos.
-- Seja forte -- ele diz, e é novamente
interrompido por um ataque de tosse, embora
tente falar: -- Essa guerra... Pode vencer...
Encontre os outros... Seis... O poder dos... -- E ele
se cala.
Tento me levantar com ele nos braços, mas não me
resta mais nada, mal tenho força para respirar.
Ouço ao longe o rugido da besta. Canhões ainda
são disparados, e os sons e as luzes dos tiros ecoam
além da arquibancada do estádio, mas a cada
minuto há menos tiros, até que ouço o último. E
depois o silêncio. Henri ainda está em meus
braços. Toco seu rosto, e ele abre os olhos e me vê
pela última vez. Depois inspira, solta o ar e os
fecha.
-- Eu não teria perdido um único minuto de tudo
isso, garoto. Nem por Lorien. Nem pelo mundo
todo -- diz.
E quando a última palavra sai de sua boca, sei que
ele se foi. Aperto-o em meus braços, tremendo ,
chorando, sentindo o des espero e a impotência se
apossarem de mim. A mão dele cai sobre a relva,
inerte. Seguro sua cabeça de encontro a meu peito
e o balanço para a frente e par a trás, chorando
como nunca antes. O pingente em meu pescoço
brilha com uma luz azul, pesa por um segundo,
depois retorna ao normal.
Fico sentado na grama, segurando o corpo sem
vida de Henri, ouvindo o silêncio. A dor deixa meu
corpo, e com o frio da noite eu sinto que também
começo a desaparecer. Lua e estrelas brilham no
céu. Ouço uma risada transportada pelo vento.
Meus ouvidos tentam capturar mais sons,
identificá-los. Viro a cabeça. Tonto, vejo um
mensageiro parado não muito longe de mim.
Sobretudo negro, chapéu preto sobre os olhos. Ele
despe o casaco e tira o chapéu, revela ndo uma
cabeça pálida e calva. Da parte de trás do cinturão,
ele pega uma faca curva, uma lâmina que não tem
mais de trinta centímetros. Fecho os olhos. Não me
importo com mais nada. A respiração ruidosa do
mensageiro se aproxima de mim. E de repente os
passos param. O mensageiro geme de dor, e ouço
um gorgolejar.
Abro os olhos. Ele está tão perto que posso sentir
seu cheiro. A faca caiu de sua mão, e vejo em seu
peito, onde deve ficar o coração, uma faca de
açougueiro. A faca é arrancada. O mensageiro cai
de joelhos, depois de lado e explode numa nuvem
de cinzas. Atrás dele, segurando a faca na mão
direita e trêmula, vejo Sarah. Ela a deixa cair e
corre para mim, abraçando -me e envolvendo
também o corpo de Henri. Eu ainda o seguro
quando minha cabeça pende para trás e o mundo
todo mergulha no nada.
O resultado da tragédia: a escola destruída, as
árvores mortas e pilhas de cinzas espalhadas pela
grama do campo de futebol americano; e eu ainda
seguro Henri nos braços, e Sarah me segura.
CAPÍTULO TRINTA E QUATRO
IMAGENS TREMULAM, CADA UMA TRAZ UMA
DOR OU UM SORRISO. ÀS VEZES, OS dois. Na
pior delas uma escuridão impenetrável, e na
melhor uma luz tão brilhante que fere os olhos,
oscilando a partir de um projetor ligado
perpetuamente por mão invisível. Uma, depo is
outra. O clique vazio do interruptor. Agora pare.
Congele essa imagem. Aproxime-a, aumente-a e
fique surpreso com o que vê. Henri sempre disse: o
preço de uma lembrança é a lembrança da dor que
ela traz.
Um dia quente de verão na grama fresca, com o sol
brilhando em um céu sem nuvens. O sopro que
vem da água, trazendo o frescor do mar. Um
homem se aproxima da casa, carregando uma
valise. Jovem, de cabelos castanhos e curtos, barba
feita, roupas casuais. Há um nervosismo em como
ele passa a maleta de uma das mãos para a outra e
em como uma fina camada de suor cobre sua testa.
Ele bate à porta. Meu avô vai abrir, o homem
entra, e meu avô fecha a porta. Volto a brincar no
quintal. Hadley muda de forma, voa, depois pousa
e muda novamente. Lutamos, rolamos na relva, eu
rio até ficar sem ar. O dia passa deva gar, o tempo
transcorrendo tranquilamente como só é possível
no abandono incauto da infância, na
invencibilidade de sua inocência.
Quinze minutos se passam. Talvez menos. Nessa
idade, um dia pode durar para s empre. A porta se
abre e fecha. Olho para cima. Meu avô está ali com
o homem que vi chegar pouco antes, e os dois
olham para mim.
-- Quero que conheça alguém -- diz meu avô.
Fico em pé e bato as mãos uma n a outra, para
livrá-las da terra.
-- Esse é Brandon -- meu avô o apresenta. -- Ele é
seu Cêpan. Sabe o que isso significa?
Balanço a cabeça. Brandon. Esse é o nome dele.
Todos esses anos, e só agora recordo o nome.
-- Quer dizer que ele vai passar muito tempo com
você de agora em diante. Significa que vocês dois
estão ligados. Estão presos um ao outro. Entende o
que eu digo?
Eu assinto e me aproximo do homem estendendo a
mão, como vi tantos adultos fazerem antes. O
homem sorri e se abaixa, apoiando o corpo sobre
um joelho. Ele segura minha mão e a envolve com
os dedos longos e firmes.
-- É um prazer conhecê-lo, senhor -- digo.
Olhos brilhantes, gentis, cheios de vida fitam os
meus, como se transmitissem uma promessa, como
se forjassem um laço, mas sou jovem demais para
saber o que realmente significa essa promessa, esse
elo.
Ele assente e pousa a mão esquerda sobre a direita,
e minha mão pequenina desaparece entre elas. Ele
me encara sorrindo.
-- Meu querido menino -- diz. -- O prazer é todo
meu.
Acordo sobressaltado. Estou deitado de costas,
com o coração aos saltos, respirando com
dificuldade, como se tivesse corrido. Meus olhos
permanecem fechados, mas posso afirmar, pelas
sombras alongadas e pelo ar que circula no quarto,
que o sol já se ergueu. A dor retorna, meus
membros ainda pesam. Com a dor física vem outra,
maior do que qualquer sofrimento do corpo pode
me afligir: a lembrança das horas anteriores.
Respiro fundo. Uma única lágrima rola pela lateral
do rosto. Mantenho os olhos fechados. Uma
esperança irracional se apodera de mim, a de que
se eu não reconhecer o dia, o dia não me
encontrará, e assim se tornarão nulas todas as
coisas da noite. Meu corpo estremece, um grito
silencioso ganha som. Balanço a cabeça e me
entrego ao sofrimento. Sei que Henri está morto e
que nem toda esperança do mundo vai mudar esse
fato.
Sinto um movimento a meu lado. Fico tenso,
tentando me manter imóvel para não ser
detectado. Sinto a mão que toca meu rosto. Um
toque delicado, cheio de amor. Meus olhos se
abrem, ajustando-se à luminosidade do amanhecer,
e espero até o teto do quarto desconhecido ganhar
foco. Não sei onde estou. Nem como cheguei ali.
Sarah está sentada junto a mim. Ela toca meu rosto
novamente, desenhando o contorno de minha
sobrancelha com o polegar. Depois se inclina e me
beija, um beijo suave e prolongado, que gostar ia de
poder engarrafar e guardar para sempre. Ela se
afasta e eu respiro fundo, fecho os olhos e a beijo
na testa.
-- Onde estamos? -- pergunto.
-- Em um hotel a cinquenta quilômetros de
Paradise.
-- Como cheguei aqui?
-- Sam nos trouxe na caminhonete -- ela diz.
-- Da escola? O que aconteceu? Lembro -me de
você comigo na noite passada, mas não me recordo
de mais nada depois disso. É quase como se fosse
tudo um sonho.
-- Fiquei com você no campo até Mark chegar para
carregá-lo até a caminhonete de Sam. Não podia
continuar escondida. Ficar na escola sem saber o
que acontecia do lado de fora estava me matando.
E eu tinha a sensação de que podia ajudar de
algum modo.
-- Você certamente ajudou -- digo. -- Salvou
minha vida.
-- Matei um alien -- ela me conta, como se ainda
não pudesse entender o fato.
Ela me abraça, sua mão apoiada na parte de trás de
minha cabeça. Tento me sentar. Consigo erguer o
corpo até a metade do caminho, e depois Sarah me
ajuda, apoiando minhas costas e tomando cuidado
para não tocar no ferimento deixad o pela adaga.
Apoio os pés no chão e me abaixo, tentando sentir
as cicatrizes em torno do tornozelo, contando -as
com a ponta dos dedos. Ainda são apenas três, e é
assim que concluo que Seis sobreviveu. Já havia me
conformado com o destino de passar o resta nte de
meus dias sozinho, um andarilho sem lugar aonde
ir. Mas não vou ficar sozinho. Seis ainda está por aí
em algum lugar, minha ligação com um mundo do
passado.
-- Seis está bem?
-- Sim -- Sarah responde. -- Ela foi ferida por uma
faca e levou um tiro, mas parece estar se
recuperando bem. Não pensei que ela conseguiria
sobreviver, e acho que não teria resistido, não
fosse Sam tê-la levado para a caminhonete.
-- Onde ela está?
-- No quarto ao lado, com Sam e Mark.
Eu me levanto. Músculos e articulações protesta m,
tudo está dolorido e pesado. Estou vestindo uma
camiseta limpa e short. Minha pele exala o aroma
fresco de sabonete. Os cortes foram limpos e
receberam curativos, alguns deles foram suturados.
-- Você fez tudo isso? -- pergunto.
-- A maior parte. Os pontos foram minha maior
dificuldade. Tínhamos apenas aqueles que Henri
deu em sua cabeça como exemplo. Sam ajudou.
Olho para Sarah sentada na cama, as pernas sob o
corpo. Alguma coisa chama minha atenção, um
pequeno volume que se move sob o cobertor ao pé
da cama. Fico tenso e me lembro imediatamente
dos animais estranhos que correram pelo ginásio.
Sarah percebe minha reação e sorri. Ela engatinha
até o pé da cama.
-- Tem alguém aqui que quer lhe dar um oi -- diz,
levantando a ponta do cobertor para revelar Bernie
Kosar, que dorme tranquilamente. Há uma tala de
metal em sua pata dianteira, e todo o corpo está
coberto de cortes e arranhões que, como os meus,
foram limpos e já começam a cicatrizar. Seus olhos
se abrem lentamente e se ajustam à luz, olhos
vermelhos, exaustos. Ele mantém a cabeça na
cama, mas balança a cauda uma vez, fraco.
-- Bernie -- digo, caindo de joelhos diante dele.
Toco sua cabeça com delicadeza. Não consigo
deixar de sorrir, e lágrimas de alegria surgem em
meus olhos. Seu corpo pequenino está enc olhido
numa bola, a cabeça apoiada sobre as patas
dianteiras, os olhos fixos em mim. Ele está ferido e
tem marcas da batalha, mas sobreviveu para contar
sua história.
-- Bernie Kosar, você está vivo. Devo minha vida a
você -- digo, beijando o topo de sua cab eça.
Sarah o afaga.
-- Eu o levei para a caminhonete enquanto Mark
carregava você.
-- Mark. Lamento ter duvidado dele um dia --
digo.
Ela levanta uma das orelhas de Bernie Kosar. Ele se
vira e fareja sua mão. Depois a lambe.
-- Então, é verdade o que Mark diss e sobre Bernie
Kosar ter crescido uns quinze metros e ter matado
uma besta com o dobro do tamanho dele?
Eu sorrio.
-- O triplo do tamanho dele.
Bernie Kosar olha para mim. Mentiroso, diz. Olho
para ele e pisco. Depois olho para Sarah.
-- Tudo isso -- digo. -- Tudo isso aconteceu
depressa demais. Como está lidando com essas
coisas todas?
Ela move a cabeça em sentido afirmativo.
-- Lidando com o quê? Com o fato de ter me
apaixonado por um alien, o que só descobri há três
dias, e de ter parado bem no meio de uma gu erra?
Ah, bem, acho que estou lidando bem.
Sorrio para ela.
-- Você é um anjo.
-- Que nada -- ela diz. -- Sou apenas uma garota
loucamente apaixonada.
Ela se levanta da cama e me abraça, e ficamos
abraçados no centro do quarto.
-- Você tem mesmo que ir, não é?
Eu confirmo, movendo a cabeça.
Ela inspira e solta o ar bem devagar, tentando não
chorar. Foram mais lágrimas nas últimas vinte e
quatro horas do que testemunhei em todos os anos
de minha vida.
-- Não sei aonde tem que ir ou o que precisa fazer,
mas vou esperar por você, John. Meu coração é seu,
mesmo que você não o tenha pedido.
Eu a aperto entre os braços.
-- E o meu pertence a você -- respondo.
Atravesso o quarto. A Arca Lórica está na cômoda,
com três maletas, o computador de Henri e todo o
dinheiro da última retirada que fizemos no banco.
Sarah deve ter resgatado a arca da sala de
economia doméstica. Eu ponho minha mão sobre
ela. Todos os segredos, Henri disse. Tudo contido
nela. Com o tempo eu a abrirei e os descobrirei,
mas este não é o momento, com cer teza. E o que
ele disse sobre Paradise, sobre não termos vindo
por acaso?
-- Fez minhas malas? -- pergunto a Sarah, que
está em pé atrás de mim.
-- Sim, e não me lembro de já ter feito algo mais
difícil ou doloroso.
Pego uma das valises. Embaixo dela há um
envelope pardo com meu nome escrito na parte da
frente.
-- O que é isso? -- pergunto.
-- Não sei. Encontrei o envelope no quarto de
Henri. Fomos até lá assim que saímos da escola e
tentamos pegar tudo o que era possível. Então
viemos para cá.
Abro o envelope e estudo seu conteúdo. Todos os
documentos que Henri criou para mim: certidões
de nascimento, cartões do seguro social, vistos,
tudo. Dezessete identidades diferentes, dezessete
idades distintas. Na página da frente há um bilhete
de Henri preso com um clipe: "Só por precaução."
Depois da última folha há ou tro envelope lacrado,
e nele Henri escreveu meu nome. Uma carta,
aquela sobre a qual ele falou no dia em que
morreu, provavelmente. Não tenho coragem para
abri-la.
Olho pela janela do quarto do hotel. Uma n eve fina
cai das nuvens baixas e cinzentas. O chão está
quente demais para que ela resista. O carro de
Sarah e a caminhonete azul de Sam estão lado a
lado no estacionamento. Ainda estou ali parado,
olhando para eles, quando ouço as batidas à porta.
Sarah a abre e Sam e Mark entram no quarto; Seis
manca atrás dele. Sam me abraça e diz que lamenta
muito.
-- Eu sei, obrigado -- respondo.
-- Como se sente? -- Seis me pergunta. Ela não
usa mais o macacão. Agora veste a calça jeans que
usava na primeira vez que a vi e um moletom de
Henri.
-- Bem. -- Dou de ombros. -- Dolorido. Meu
corpo está pesado.
-- É o peso deixado pela adaga. Vai desaparecer
com o tempo.
-- Seus ferimentos foram muito graves?
Ela levanta o moletom e me mostra o corte na
lateral do corpo e outro nas co stas. Seis foi ferida
três vezes na noite de ontem, sem mencionar os
diversos cortes espalhados pelo corpo e o tiro, que
deixou um ferimento profundo na coxa direita,
agora envolta em gaze e esparadrapo, e que a faz
mancar. Ela me conta que, quando voltamo s, era
tarde demais para usar a pedra de cura.
Surpreendo-me por ainda vê-la com vida.
Sam e Mark usam as mesmas roupas do dia
anterior, ambos imundos, cobertos de terra e de
sangue. Os dois têm aquela aparência cansada de
quem não dorme há muito tempo. Ma rk está atrás
de Sam, movendo o peso de um lado para o outro
com evidente desconforto.
-- Sam, eu sempre soube que você era uma
máquina de destruição -- eu digo.
Ele ri com evidente fraqueza.
-- Está tudo bem?
-- Sim, estou bem -- respondo. -- E você?
-- Tudo bem.
Olho para Mark.
-- Sarah me contou que você me carregou ontem à
noite.
Ele dá de ombros.
-- Foi um prazer ajudar.
-- Você salvou minha vida, Mark.
Ele me encara.
-- Acho que todos nós salvamos alguém em algum
momento da noite passada. Seis me salvou três
vezes. E você salvou meus cachorros no sábado.
Considero que estamos quites.
Eu consigo sorrir.
-- É, acredito que sim. E fico feliz por descobrir
que não é o valentão idiota que pensei que fosse.
Ele ri.
-- Vamos dizer que se eu soubesse que você era
um alien e que podia acabar comigo, talvez eu
tivesse sido um pouco mais simpático naquele
primeiro dia.
Seis atravessa o quarto e olha para as maletas
sobre a cômoda.
-- Temos que ir -- ela diz e depois olha para mim
com preocupação, seu rosto mais suave. -- Só há
uma coisa a fazer ainda. Não sabíamos o que
preferia que fizéssemos.
Eu assinto. Não preciso perguntar sobre o que ela
está falando. Eu sei. Olho para Sarah. Vai
acontecer muito antes do que eu imaginava. Meu
estômago se embrulha. Tenho a impressão de que
vou vomitar. Sarah segura minha mão.
-- Onde ele está?
O chão está úmido com a neve derretida. Seguro a
mão de Sarah e atravessamos o bosque em silêncio,
um quilômetro longe do hotel. Sam e Mark
caminham à frente, seguindo as pegadas que eles
próprios deixaram na terra molhada algumas horas
antes. Vejo uma pequena clareira adiante, e, no
centro dela, o corpo de Henri repousa em uma
placa de madeira. Ele está envolto pelo cobertor
cinza que foi retirado de sua cama. Eu me
aproximo. Sarah me segue e toca meu ombro. Os
outros estão atrás de mim. Levanto a ponta do
cobertor para vê-lo. Seus olhos estão fechados, o
rosto tem uma coloração acinzentada e os lábios
estão azuis e frios. Eu a beijo na testa.
-- O que quer fazer, John? -- Seis me pergunta. --
Podemos enterrá-lo, se quiser. Também podemos
cremá-lo.
-- Como podemos cremá-lo?
-- Posso acender um fogo.
-- Pensei que só pudesse controlar o clima.
-- Não o clima. Os elementos.
Olho para seu rosto suave e vejo a preocupação
nele, a tensão por saber que precisamos pa rtir
antes da chegada dos reforços. Não respondo.
Desvio os olhos e afago Henri uma última vez com
meu rosto próximo ao dele, depois me entrego à
dor.
-- Sinto muito, Henri -- sussurro em seu ouvido e
fecho os olhos --, amo você. Também não teria
perdido um segundo disso.
Por nada. E ainda vou levar você de volta. De
algum jeito, vou levá-lo para Lorien. Sempre
brincamos sobre isso, mas você foi meu pai, o
melhor pai que eu podia ter desejado. Jamais o
esquecerei, nem por um minuto enquanto eu viver.
Amo você, Henri. Sempre amei.
Eu recuo um passo, puxo o cobertor sobre seu
rosto e me viro para abraçar Sarah. Ela me abraça
até eu parar de chorar. Limpo minhas lágrimas
com o dorso da mão e faço um sinal afirmativo
para Seis.
Sam me ajuda a afastar os gravetos e as folhas, e
nós depositamos o corpo de Henri no chão limpo,
para evitar misturar suas cinzas com outras
quaisquer. Seis acende o fogo na ponta do
cobertor. Nós o vemos arder. Todos choramos. Até
Mark está chorando. Ninguém diz nada. Quando as
chamas se extinguem, eu recolho as cinzas em uma
lata de café que Mark foi astuto o bastante para
trazer do hotel. Encontrarei algum recipiente
melhor quando pararmos em algum lugar.
Voltamos, e eu deixo a lata sobre o painel da
caminhonete do pai de Sam. Sinto-me confortado
por saber que Henri ainda viajará conosco, que vai
estar olhando para a estrada quando deixarmos
mais uma cidade como ele e eu fizemos tantas
vezes.
Colocamos nossos pertences na parte de trás da
caminhonete. Junto às coisas de Seis e às minhas,
Sam coloca duas maletas dele. No início fico
confuso, mas depois compreendo que ele e Seis
combinaram que Sam vai viajar conosco. E eu fico
feliz com isso. Sarah e eu voltamos ao quarto de
hotel. No instante em que fechamos a porta, ela
segura minhas mãos e me olha nos olhos.
-- Meu coração está partido -- diz. -- Quero ser
forte por você agora, mas a idé ia de vê-lo partir
está me matando por dentro.
Eu a beijo na testa.
-- Meu coração já se partiu -- digo. -- Assim que
me instalar em algum lugar, eu escrevo. E far ei o
possível para telefonar quando tiver certeza de que
é seguro.
Seis abre a porta e espia pela fresta.
-- Temos que ir -- ela diz.
Eu assinto. Ela fecha a porta. Sarah ergue o rosto e
nós nos beijamos ali, no quarto de hotel. A idéia de
que os mogadorianos podem chegar antes de
partirmos, colocando-a novamente em perigo, é só
o que me dá força. Não fosse por isso, eu já teria
desmoronado. Eu ficaria para sempre.
Bernie Kosar continua deitado ao pé da cama. Ele
balança a cauda quando o tomo nos braços e lev o
para a caminhonete. Seis liga o motor. Eu me viro,
olho para o hotel e sinto uma profunda tristeza por
não ser a casa, e por saber que nunca mais a verei.
Suas janelas de madeira escura e descascada, o
acabamento desbotado pelo sol e pela chuva.
Parece o Paraíso, certa vez eu disse a Henri. Mas
agora isso não é mais verdade. Paraíso perdido.
Eu me viro e aceno a cabeça para Seis. Ela entra na
caminhonete, fecha a porta e espera.
Sam e Mark apertam as mãos, mas não escuto o
que dizem um ao outro. Sam entra na caminhonete
para esperar com Seis. Eu aperto a mão de Mark.
-- Devo a você mais do que jamais poderei pagar
-- digo.
-- Você não me deve nada -- Mark responde.
-- Não é verdade. Um dia...
Desvio o olhar. Sinto que estou prestes a cair de
tristeza. Minha determinação está ameaçada. Posso
desistir a qualquer momento.
-- Um dia voltaremos a nos encontrar -- digo.
-- Cuide-se -- ele recomenda.
Abraço Sarah com força, temendo não conseguir
deixá-la.
-- Eu vou voltar -- digo. -- Prometo. Nem que seja
a última coisa que eu faça, venho buscá-la.
Ela assente com o rosto enterrado em meu
pescoço.
-- Vou ficar contando os minutos -- diz.
Um último beijo. Eu a ponho no chão e abro a
porta da caminhonete. Meus olhos não deixam os
dela. Ela cobre a boca e o nariz com uma das mãos,
apertando-os. Nenhum de nós consegue desviar o
olhar. Fecho a porta. Seis engata a ré e sai do
estacionamento, para, engata a primeira. Mark e
Sarah caminham até a saída do estacionamento
para nos ver partir, e percebo que Sarah está
chorando. Eu me viro no assento e olho pela janela
de trás. Levanto a mão e aceno. Mark acena de
volta, mas Sarah fica apenas olhando, imóvel. Eu a
observo até ela ficar menor, até q ue desapareça
como um ponto distante. Então olho para a frente
e vejo os campos passando pela ja nela. Fecho os
olhos, imagino o rosto de Sarah e sorrio. Ainda
vamos ficar juntos, digo a ela. E até lá você vai
estar em meu coração e em todos os meus
pensamentos.
Bernie Kosar apóia a cabeça em meu colo, e eu
repouso a mão em suas costas. A caminhonete
segue pela estrada, para o sul. Nós quatro juntos,
indo para a próxima cidade. Seja lá qual for.
Espero que tenham gostado, e como deu para perceber com certeza, se
espera a continuação da história.
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