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sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

O doutor sabe tudo

O Dr. Sabe-tudo

O Dr. Sabe-tudo
Somerset Maughan

Comentário. Uma pequena história, de leitura rápida e fácil que pode nos
fazer pensar sobre...

Estava disposto a antipatizar com Max Kelada antes mesmo de conhecê-lo.
Terminara a guerra e era grande a afluência de passageiros aos navios de carreira. Dificilmente se conseguia acomodação e quem desejasse viajar tinha que se conformar
com o que as agências ofereciam. Ninguém pensava na possibilidade de ocupar sozinho um camarote, e me senti feliz quando me deram um onde havia apenas duas camas.
Mas quando me disseram o nome do companheiro, a minha satisfação se desfez. Era como uma sugestão de vigias rigidamente fechadas, ausência de ar no camarote, durante
a noite.
Já era desagradável compartilhar de um camarote durante quatorze dias (eu viajava de São Francisco para Yokoama); mas a partilha ter-me-ia parecido menos desalentadora
se o passageiro se chamasse Smith ou Brown.
Quando embarquei já estava no camarote a bagagem do Sr. Kelada.
Desagradou-me o aspecto; rótulos em excesso nas malas de mão e demasiado grande a mala de camarote.
O Sr. Kelada já retirara do estojo os objetos de toucador, e observei que era cliente do maravilhoso Mousieur Coty, pois no lavatório o seu perfume, a sua loção
e a sua brilhantina. As escovas do Sr. Kelada, em suportes de ébano com o monograma em ouro, eram o que havia de melhor na matéria.
Antipatizei inteiramente com o Sr. Kelada.
Dirigi-me para a sala de fumar. Pedi um baralho e pus-me a jogar "paciência". Mal começara, aproximou-se alguém, perguntando-me se o meu nome não era esse mesmo.
- Eu sou o Sr. Kelada - acrescentou, com um sorriso em que mostrava uma fila de dentes brilhantes; e sentou-se.
- Ah, sim, creio que estamos no mesmo camarote.
- É o que chamo de sorte. A gente nunca sabe com quem vai no camarote.
Fiquei contentíssimo ao saber que você era inglês. Gosto muito que nós, ingleses, fiquemos juntos, a bordo, está entendendo?
Pestanejei.
- É inglês? - perguntei, talvez sem habilidade.
- Totalmente. Acha-me parecido com um americano? Sou inglês até a medula.
Para prová-lo, o Sr. Kelada tirou do bolso um passaporte e, ufano, agitou-o junto ao meu nariz.
O Rei Jorge tem muitos súditos estranhos. O Sr. Kelada era baixo e de construção vigorosa, moreno e escanhoado; possuía um nariz carnudo e adunco, e uns olhos muito
grandes, brilhantes e límpidos.
Os cabelos negros e longos eram reluzentes e encaracolados. Falava com uma fluência nada inglesa e os gestos eram exuberantes. Tinha a íntima convicção de que um
exame mais detido naquele passaporte britânico me revelaria que o Sr. Kelada nascera sob céu mais azul do que se vê geralmente na Inglaterra.
- O que vai tomar? - perguntou-me.
Olhei-o hesitante. A lei seca estava em vigor e, segundo todas as aparências, o navio estava integralmente seco.
- Quando não estou com sede, não sei se o que me desagrada mais é "ginger ale" ou limonada.
Mas no rosto do Sr. Kelada um sorriso oriental.
- Uísque com soda, ou Martini seco, é só dizer a palavra.
De cada um dos bolsos posteriores das calças retirou um frasco, colocando-o sobre a mesa, diante de mim. Escolhi o martini. Ele chamou o garçom e pediu gelo e dois
copos.
- Um ótimo coquetel - disse eu.
- Pois há em quantidade na fonte de origem, e se você tiver amigos a bordo, diga-lhes que descobriu um indivíduo que dispõe de todo o álcool do mundo.
O Sr. Kelada era loquaz. Falou de Nova Iorque e de São Francisco. Discutiu peças de teatro, filmes, política. Era patriota. O pavilhão britânico é um impressionante
pedaço de pano, mas quando é enfeitado por um homem de Alexandria ou Beirute, não posso evitar a impressão de que perde um quê de sua dignidade. O Sr. Kelada era
íntimo. Não gosto de me fazer importante mas julgo sempre inconveniente que uma pessoa totalmente estranha não me conceda o tratamento de senhor. O Sr. Kelada certamente
para me deixar à vontade, não usava tal formalidade. Não gostei dele. Deixei as cartas de lado quando ele se sentou: mas, achando que para a primeira vez a nossa
conversa já se estendera demais, continuei com a "paciência".
- O três no quarto - disse o Sr. Kelada.
- Nada há demais desesperante quando estamos jogando paciência do que nos dizerem onde devemos por a carta que viramos, antes de termos tempo de olhar por nós mesmos.
- Está andando, está andando - gritou: - O dez no valete.
Com o coração cheio de ódio, terminei o jogo. Neste momento ele segurou o baralho.
- Gosta de truques com cartas?
- Não; detesto truques com cartas, respondi.
- Bem, vou mostrar-lhe só este.
Mostrou-me três. Depois, disse que ia descer para o salão de refeições e escolher um lugar.
- Oh, não se incomode - disse ele. Já reservei um lugar para você. Achei que, como estávamos no mesmo camarote, bem podíamos sentar-nos à mesma mesa.
Sim, eu não gostava do Sr. Kelada. Não somente eu compartilhava o camarote com ele e fazia três refeições por dia na mesma mesa, como também não podia passear pelo
convés sem que se juntasse a mim. Era inútil fingir que não o via. Nunca lhe ocorria que não era desejado. Tinha a convicção de que os outros ficavam tão contentes
de vê-lo como ele de os ver. Se estivéssemos em casa, poderíamos empurrá-lo escada abaixo, batendo com a porta, sem que surgisse no seu cérebro a suspeita de que
não era uma visita desejada. Era muito sociável e, em três dias, já se dava com todo o mundo a bordo.
Dominava tudo. Arranjava apostas, dirigia leilões, organizava subscrições para os prêmios nas competições esportivas, inventava partidas de chinquilho, promoveu
o concerto e o baile à fantasia. Estava sempre em toda a parte. Sem dúvida, era o homem mais odiado do navio. Chamávamos-lhe o Dr. Sabe-tudo, mesmo diante dele.
O Sr. Kelada considerava-se elogiado.
Mas, nas horas das refeições era que se tornava ainda mais intolerável.
Então, durante a melhor parte de uma hora, tinha-nos à sua mercê. Era jovial, veemente, loquaz e questionador. Sabia tudo melhor do que qualquer pessoa; e afrontava
a sua vaidade presunçosa quem discordasse dele. Não abandonava um assunto, por menor importância que tivesse, a não ser quando conseguisse reduzir o interlocutor
ao seu ponto de vista. Nunca lhe ocorria a possibilidade de que pudesse estar equivocado. Era o homem que sabia.
Sentávamo-nos à mesa do médico. O Sr. Kelada sem dúvida manteria pacificamente a hegemonia, pois o médico era preguiçoso e eu, frigidamente indiferente; mas havia
também um homem chamado Ramsay como companheiro de mesa. Era tão dogmático como o Sr. Kelada e irritava-se amargamente com a inabalável firmeza do levantino. As
discussões que travaram eram ardentes e intermináveis. Ramsay estava no serviço consular dos Estados Unidos em Kobe. Era um americano do meio oeste, grande e pesado.
A gordura esticava-lhe a epiderme, e por sua vez esticara-lhe seus ternos de confecção. Viajava de volta para o seu posto, depois de uma rápida visita a Nova Iorque
onde fora buscar a mulher, que estivera passando um ano em sua terra.
A Sr.ª Ramsay era uma mulher miúda e linda, de maneiras agradáveis e portadora de senso de humor. O serviço consular é mal pago e ela vestia com simplicidade, mas
sabia tirar partido de seus vestidos. O efeito que causava era de serena distinção. Não teria lhe prestado atenção particular se ela não tivesse uma qualidade que
poderá ser bastante comum nas mulheres, mas que hoje não é comum no comportamento delas. Não era possível olhar a Sr.ª Ramsay sem notar desde logo a sua modéstia.
Fulgia na sua pessoa como uma flor na lapela. Uma noite, durante o jantar, a conversa casualmente recaiu sobre o tema pérolas.
Os jornais vinham noticiando a cultura de pérolas pelos hábeis processos dos japoneses e o médico observou que as pérolas cultivadas diminuiriam o valor das verdadeiras.
Aquelas já eram ótimas; em breve seriam perfeitas.
O Sr. Kelada, como era de seu hábito, embrenhou-se no novo tema. Disse-nos tudo o que havia sobre pérolas. Creio que Ramsay soubesse pouco sobre elas, mas não pôde
resistir à oportunidade de zombar do levantino e, em cinco minutos, estávamos numa discussão exaltada.
Eu já assistira a outros gestos de impetuosidade e volubilidade do Sr.
Kelada, nunca, porém, o vira tão impetuoso e volúvel como agora.
Finalmente, estimulou-o qualquer coisa que Ramsay disse, porque ele deu um soco na mesa e gritou:
- Bem, acho que entendo do que estou falando. Vou ao Japão exatamente para tratar desse negócio de pérolas. Estou no ramo e não há qualquer homem no ramo que não
lhe afirme que o digo sobre pérolas é lei. Conheço as melhores pérolas do mundo e o que não conheço não vale a pena conhecer.
Eram novas para nós, porque o Sr. Kelada, apesar de toda sua loquacidade, não dissera a ninguém qual a sua ocupação. Sabíamos apenas vagamente que ia ao Japão a
negócios. Olhou a volta da mesa, triunfalmente.
- Os japoneses jamais conseguirão uma pérola cultivada que um perito, como eu, não conheça, olhando-a com o canto do olho. - Apontou para o colar que a Sr.ª Ramsay
usava: - Pode confiar na minha palavra, Sr.ª Ramsay: "este colar que a senhora está usando nunca valerá um centavo menos do que vale agora."
A Sr.ª Ramsay, à sua maneira modesta, corou um pouco e empurrou o colar para dentro do vestido. Ramsay inclinou-se para a frente. Olhou para nós todos. Um sorriso
brincava nos seus olhos.
- É um belo colar, esse da minha mulher, não acha?
- Notei-o logo - respondeu o Sr. Kelada - Hanhan, disse cá comigo; essas pérolas são verdadeiras.
- Não fui eu quem as comprou, naturalmente. Gostaria de saber quanto calcula que custaram.
- Oh, no comércio em grosso devem ter andado em quinze mil dólares. Mas se forem compradas na Quinta Avenida, não me surpreenderia se dissessem que o preço andou
pelos trinta mil.
Ramsay sorriu com crueldade.
- Pois vai surpreender-se ao saber que a minha comprou esse colar no balcão de bijuterias de uma loja de departamentos na véspera de nossa saída de Nova Iorque
por dezoito dólares.
O Sr. Kelada ruborizou-se.
- Tolice! O colar é legítimo; é, pelo tamanho, um dos mais belos que eu já vi.
- Quer fazer uma aposta? Aposto cem dólares como é imitação.
- Aceito.
- Ora Elmer, você não pode apostar numa certeza - disse a Sr.ª Ramsay.
Trazia um leve sorriso nos lábios e o tom de sua voz era levemente súplice.
- Acha? Se tenho uma oportunidade como esta de ganhar dinheiro facilmente, seria um tolo se não aproveitasse.
- Mas como vamos provar? - continuou ela. - é apenas a minha palavra contra a do Sr. Kelada.
- Permita-me examinar o colar; se for imitação, hei de lhe dizer logo.
Posso perder cem dólares.- Disse o Sr. Kelada.
- Tire-o querida. Deixe o Sr. Kelada examiná-lo à vontade.
A Sr.ª Ramsay vacilou um momento. Levou as mãos ao fecho. - Não posso abrir - disse - O Sr. Kelada terá de contentar-se com a minha palavra.
Invadiu-me a súbita suspeita de que estava para acontecer qualquer coisa infeliz, e não me ocorreu nada para dizer. Ramsay levantou-se bruscamente.
- Eu abro.
Entregou o colar ao Sr. Kelada. O levantino retirou do bolso uma lupa e examinou-o atentamente. Um sorriso de triunfo espalhou-se pelo rosto liso e trigueiro. Devolveu
o colar. Ia falar quando subitamente reparou no rosto da Sr.ª Ramsay. Estava tão pálido que parecia que ela ia desmaiar.
Encarava-o de olhos muito abertos, aterrorizados. Transmitia um desesperado apelo; tão claro que estranhei que o marido não o notasse. O Sr. Kelada ficou silencioso,
a boca entreaberta. Enrubesceu violentamente.
Quase podia ver-se o esforço que fazia sobre si mesmo.
- Enganei-me - disse - É uma excelente imitação, mas naturalmente, quando examinei o colar com a lupa, vi que não era legítimo. Creio que vale dezoito dólares, no
máximo.
- Talvez isso o ensine a não ser tão auto-suficiente de outra vez, meu jovem amigo - disse Ramsay tomando a nota.
Notei que as mãos do Sr. Kelada tremiam.
A história espalhou-se pelo navio, como sucede sempre com as histórias e, naquela noite, ele teve de enfrentar a zombaria de muitos. Era um grande motivo para hilaridade
o ter sido apanhado em erro o Dr. Sabe-Tudo. Mas a Sr.ª Ramsay se retirou para o camarote com uma dor de cabeça.
Na manhã seguinte, levantei-me e pus-me a fazer a barba. O Sr. Kelada permanecia deitado, fumando. Subitamente, ouvi um pequeno roçar, e vi uma carta deslizando
por baixo da porta. Abri a porta e olhei para fora. Não havia ninguém. Tomei da carta e vi que estava endereçada para o Sr.
Kelada. O nome estava escrito em letras de fôrma. Entreguei-lhe.
- De quem é? - Abriu-a. - Oh!
Tirou do envelope não uma carta, mas uma nota de cem dólares. Olhou para mim e tornou a enrubescer. Rasgou o envelope em pedacinhos e os pôs na minha mão.
- Quer fazer o favor de atirar pela vigia?
Fiz o que me pedia e depois olhei-o com um sorriso.
- Ninguém gosta de passar por um perfeito idiota - disse ele.
- As pérolas eram legítimas?
- Se eu tivesse uma linda mulher, não a deixaria passar um ano em Nova Iorque, enquanto eu estivesse em Kobe... - disse-me.
Nesse momento, não antipatizei de todo com o Sr. Kelada. Ele estendeu a mão, tirou a carteira, e nela colocou cuidadosamente a nota de cem dólares.

Fim!

Entendeu a moral da história??

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