Duas bombas e um míssil. Um só alvo. Só um milagre poderá salvá-los!
A Terra, agora, completamente devastada após 3 anos e meio sob o
domínio do anticristo, é apenas uma lembrança de sua beleza original e se
arrasta sob o peso dos terríveis julgamentos vindos do céu.
A fúria de Nicolae Carpathia inflama-se cada vez mais contra todos
aqueles que não juraram total lealdade a ele. E chegada a hora de sua vingança.
Seus inimigos aglomeram-se no lugar ideal para uma destruição em massa.
Ninguém poderá sair vivo dali, a não ser por milagre.
Todas as máscaras caem por terra, inclusive a do anticristo, enquanto o
planeta caminha a passos largos rumo ao Armagedom - a última batalha entre o
bem e o mal.
O PERÍODO DA TRIBULAÇÃO COMPLETA 43 MESES
A GRANDE TRIBULAÇÃO CHEGA AO PRIMEIRO MÊS
Os Crentes
Rayford Steele - Idade: cerca de 45 anos; ex-capitão-aviador do 747 das Linhas
Aéreas Pan-Continental; perdeu esposa e filho no Arrebatamento; ex-piloto do
potentado da Comunidade Global Nicolae Carpathia; membro fundador do
Comando Tribulação; fugitivo internacional; em missão secreta em Petra,
disfarçado de egípcio.
Cameron ("Buck") Williams - Idade: pouco mais de 30 anos; ex-articulista
sênior do Semanário Global; ex-editor do Semanário Comunidade Global, de
propriedade de Carpathia; membro fundador do Comando Tribulação; editor da
revista virtual A Verdade; sua identidade falsa de oficial da CG Jack Jensen foi
descoberta; fugitivo exilado no Edifício Strong, em Chicago.
Chloe Steele Williams - Idade: pouco mais de 20 anos; ex-aluna da
Universidade Stanford; perdeu a mãe e o irmão no Arrebatamento; filha de
Rayford; esposa de Buck; mãe de Kenny Bruce, um bebê de 15 meses;
presidente da Cooperativa Internacional de Mercadorias, uma associação secreta
composta de crentes; membro fundador do Comando Tribulação; fugitiva exilada
no Edifício Strong, em Chicago; em missão secreta na Grécia, disfarçada de
funcionária graduada das Forças Pacificadoras da Comunidade Global.
Tsion Ben-Judá - Idade: perto de 50 anos; ex-estudioso das doutrinas dos
rabinos e estadista israelense; revelou sua crença em Jesus como o Messias em
um programa de TV levado ao ar internacionalmente, o que provocou o assas-
sinato de sua esposa e de seus dois filhos adolescentes; fugiu para os Estados
Unidos; professor e líder espiritual do Comando Tribulação; suas pregações
diárias, via Internet, alcançam mais de um bilhão de pessoas; no momento, visita
os judeus remanescentes em Petra.
Dr. Chaim Rosenzweig - Idade: perto de 70 anos; estadista e botânico
israelense ganhador do Prêmio Nobel; recebeu o título de Homem do Ano pelo
Semanário Global; assassino de Carpathia; disfarçado com o nome de Miquéias,
lidera os judeus remanescentes, em Petra.
Leah Rose - Idade: perto de 40 anos; ex-enfermeira-chefe do Arthur Young
Memorial Hospital de Palatine, Illinois; reside no Edifício Strong, em Chicago.
Al B. (conhecido como "Albie") - Idade: perto de 50 anos; nascido em Al
Basrah, no norte do Kuwait; piloto; trabalhou no mercado negro internacional; sua
identidade falsa de subcomandante da CG, Marcus Elbaz, foi descoberta; reside
no Edifício Strong, em Chicago.
Mac MacCullum - Idade: perto de 60 anos; piloto de Carpathia; dado como
morto em acidente aéreo; está em missão na Grécia disfarçado de oficial da CG.
Abdullah Smith - Idade: pouco mais de 30 anos; ex-piloto de aviões de caça na
Jordânia; co-piloto do Fênix 216; dado como morto em acidente aéreo; está em
missão em Petra disfarçado de egípcio.
Hannah Palemoon - Idade: perto de 30 anos; enfermeira da Comunidade
Global; dada como morta em acidente aéreo; está em missão na Grécia
disfarçada de oficial da CG de Nova Délhi.
Ming Toy - Idade: pouco mais de 20 anos; viúva; ex-guarda do Presídio de
Reabilitação Feminina da Bélgica (PRFB); desertora da Comunidade Global;
reside no Edifício Strong, em Chicago.
Chang Wong - Idade: 17 anos; irmão de Ming Toy; espião do Comando
Tribulação dentro da sede da Comunidade Global, em Nova Babilônia.
Gustaf Zuckermandel Jr. (conhecido como "Zeke" ou "Z") - Idade: pouco
mais de 20 anos; falsificador de documentos e especialista em disfarces; seu pai
foi morto na guilhotina; reside no Edifício Strong, em Chicago.
Enoque Dumas - Idade: perto de 30 anos; hispano-americano; pastor da
congregação O Lugar, em Chicago, composta de 31 membros; mudou-se
recentemente para o Edifício Strong.
Steve Plank (conhecido como Pinkerton Stephens) - Idade: cerca de 55 anos;
ex-editor do Semanário Global; ex-diretor de relações públicas de Carpathia;
dado como morto no terremoto da ira do Cordeiro; espião trabalhando nas
Forças Pacificadoras da CG, no Colorado.
Georgiana Stavros - Idade: 16 anos; fugiu do centro de aplicação da marca da
lealdade em Ptolemaïs, na Grécia, com a ajuda de Albie e Buck; presa pela CG;
condições físicas e paradeiro ignorados.
George Sebastian - Idade: cerca de 25 anos; ex-piloto de helicóptero da divisão
de combate da Força Aérea dos Estados Unidos com base em San Diego; preso
pela CG na região nordeste de Ptolemaïs, Grécia, enquanto prestava serviço ao
Comando Tribulação.
Os Inimigos
Nicolae Jetty Carpathia - Idade: cerca de 35 anos; ex-presidente da Romênia;
ex-secretário-geral da Organização das Nações Unidas; autodesignado
potentado da Comunidade Global; assassinado em Jerusalém; ressuscitou no
palácio da CG, em Nova Babilônia.
Leon Fortunato - Idade: pouco mais de 50 anos; ex-supremo comandante da
Comunidade Global e braço direito de Carpathia; recebeu o título de
Reverendíssimo Pai do Carpathianismo e proclamou o potentado como o deus
ressurreto; reside no palácio da CG, em Nova Babilônia.
Viv Ivins - Idade: cerca de 65 anos; amiga de longa data de Carpathia; tem
participação ativa na Comunidade Global; reside no palácio da CG, em Nova
Babilônia.
Suhail Akbar - Idade: pouco mais de 40 anos; chefe do Serviço de Segurança e
Inteligência, a serviço de Carpathia; reside no palácio da CG, em Nova Babilônia.
PRÓLOGO
Extraído de Profanação
Se Rayford não estivesse tão apavorado, ele teria gostado de ver que
Tsion era a mesma pessoa, tanto no Edifício Strong quanto sob o sol da
Jordânia. Somente Abdullah e Rayford, com seus mantos, tinham a aparência de
homens do Oriente Médio. Tsion parecia mais um professor enrugado.
- Quem é o seu piloto? - indagou um guarda da CG. Tsion apontou com a
cabeça para Abdullah, e eles foram conduzidos a um helicóptero. Assim que
levantaram vôo, Rayford ligou para Chloe [na Grécia].
- Onde você está? - ele perguntou.
- Estamos na estrada, papai, mas alguma coisa está errada. Mac teve de
fazer uma ligação direta neste veículo.
- Chang não pediu ao sujeito que deixasse as chaves?
- Parece que não. E você conhece Mac muito bem. Ele vai descer e pegar
uma carona com outro veículo da CG, enquanto nós duas vamos rodar felizes de
carro pela cidade, tentando passar por emissárias de Nova Babilônia à procura
de judaístas.
- Você está preparada?
- Se estou preparada? Por que você não me obrigou a ficar em Chicago
com minha família? Que tipo de pai você é?
Rayford sabia que a filha estava brincando, mas não foi capaz de rir.
- Não me faça sentir remorso - ele lhe pediu.
- Não se preocupe, papai. Não vamos sair daqui sem Sebastian.
Quando Abdullah se aproximou de Petra, Chaim estava no lugar alto, com
250 mil pessoas, do lado de dentro, e 750 mil, do lado de fora, acenando para o
helicóptero. Um enorme espaço plano havia sido preparado como heliporto. O
povo cobriu o rosto quando o helicóptero levantou uma nuvem de poeira ao
pousar. Assim que o motor foi desligado e a poeira se dissipou, o povo começou
a aplaudir e a gritar, enquanto Tsion descia e acenava timidamente.
- Dr. Ben-Judá, nosso mestre e mentor, e homem de Deus! - anunciou
Chaim.
Rayford e Abdullah desceram sem ser notados e se sentaram sobre uma
laje. Tsion acalmou a multidão e começou a dizer:
- Meus queridos irmãos e irmãs em Cristo, nosso Messias e Salvador e
Senhor. Antes de tudo, permitam-me cumprir uma promessa feita a amigos: Vou
espalhar aqui as cinzas de uma mártir fiel.
Ele retirou do bolso uma pequenina urna, tirou a tampa e espalhou o
conteúdo ao sabor do vento.
- Ela venceu por causa do sangue do Cordeiro e por causa do testemunho
que deu, porque não amou sua vida, mas a entregou em favor dele.
Abdullah cutucou Rayford e olhou para cima. Ao longe, vinham dois
bombardeiros do tipo caça com os motores zunindo. Após alguns segundos, o
povo notou a presença deles e começou a murmurar.
Debruçado sobre seu computador em Nova Babilônia, Chang
acompanhava as cenas que Carpathia estava vendo, transmitidas da cabina de
um dos bombardeiros. Chang fez uma conexão entre o áudio do avião e o
aparelho de escuta clandestina que havia no escritório de Carpathia. Tornou-se
claro que Leon, Viv, Suhail e a secretária de Carpathia estavam aglomerados em
torno do monitor no escritório do potentado.
- Alvo em mira, preparar! - disse um dos pilotos. O outro repetiu as
mesmas palavras.
- Lá vamos nós! - disse Nicolae com voz aguda. - Lá vamos nós!
Tsion levantou as mãos e recomendou:
- Não se distraiam, meus amados, porque confiamos nas promessas
verdadeiras do Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó. Fomos trazidos a este
lugar de refúgio, que não pode ser invadido pelo inimigo de seu Filho.
Ele esperou que o barulho dos roncos dos motores diminuísse enquanto
os jatos se distanciavam, fazendo uma curva para voltar.
- Sim! - gritou Nicolae. - Façam uma exibição e destruam tudo quando
retornarem.
Enquanto os jatos retornavam, Tsion disse:
- Vamos nos ajoelhar, curvar a cabeça e harmonizar nossos corações com
Deus, confiantes em sua promessa de que "o reino, e o domínio, e a majestade
dos reinos debaixo de todo o céu serão dados ao povo dos santos do Altíssimo:
o seu reino será um reino eterno, e todos os domínios o servirão e lhe
obedecerão" (Daniel 7.27).
Rayford se ajoelhou sem tirar os olhos dos aviões. Quando voltaram com
seus motores zunindo, ambos lançaram bombas diretamente no lugar alto, o
epicentro de um milhão de almas ajoelhadas.
- Ssssim! - gritou Carpathia. - Sim! Sim! Sim! Sim!
Pelo que alegrai-vos, ó céus, e vós que neles habitais. Ai dos
que habitam na terra e no mar; porque o diabo desceu a vós, e tem grande
ira, sabendo que já tem pouco tempo.
Apocalipse 12.12
UM
Rayford Steele já havia escapado da morte por um triz em muitas ocasiões
para saber que esta conhecida afirmação era mais que verdadeira: a vida inteira
passa por nossa mente em um piscar de olhos, como se fosse um filme, e todos
os sentidos entram em estado de alerta máximo ao se enfrentar a morte.
Ajoelhado desajeitadamente sobre a inclemente pedra vermelha da cidade de
Petra, no antigo Edom, ele estava ciente de tudo, lembrava-se de tudo, pensava
em tudo e em todos.
Apesar dos zunidos dos caças-bombardeiros da Comunidade Global -
maiores do que todos os que ele já havia visto ou lido a respeito -, Rayford ouviu
seu coração bater violentamente e sentiu os pulmões à procura de ar.
Atrapalhado com o manto e as sandálias de seu disfarce egípcio, ele mal
conseguia equilibrar-se sobre os joelhos doloridos e os dedos dos pés. Rayford
não conseguia curvar a cabeça, não conseguia desgrudar os olhos do céu e do
par de ogivas que pareciam cada vez maiores, à medida que caíam.
Ao lado dele, seu prezado companheiro, Abdullah Smith, estava prostrado,
com as mãos cobrindo a cabeça. Para Rayford, Smitty representava todas as
pessoas pelas quais ele era responsável - os membros do Comando Tribulação
espalhados ao redor do mundo. Alguns estavam em Chicago, alguns na Grécia e
outros com ele em Petra. Havia um em Nova Babilônia. Gemendo, Abdullah
inclinou o corpo em sua direção, e Rayford percebeu que o jordaniano estava
tremendo.
Rayford também estava apavorado. Não tinha como negar. Onde estava a
fé que ele deveria ostentar depois de ver Deus livrá-lo da morte tantas vezes?
Ele não duvidava de Deus, mas alguma coisa em seu íntimo - talvez o instinto de
sobrevivência - dizia que ele estava prestes a morrer.
Para a maioria das pessoas, a dúvida deixara de existir... havia poucos
céticos. Se alguém, a essa altura, não fosse seguidor de Cristo, provavelmente
decidira opor-se a Deus.
Rayford não tinha medo da morte em si, nem da vida após a morte. Deus,
que agora se manifestava milagrosamente todos os dias, se regozijaria em
proporcionar um lugar no céu a seu povo. O que Rayford mais temia era o
momento da morte. Embora Deus o tivesse protegido até agora e prometido vida
eterna após a morte, Ele não poupara Rayford de ferimentos e de sofrimento.
Qual seria a sensação de ser vitimado por ogivas?
Tudo seria muito rápido, disso ele tinha certeza. Rayford conhecia Nicolae
muito bem a ponto de saber que o homem não usaria mais de subterfúgios. Se
uma única bomba daquelas seria capaz de destruir facilmente um milhão de
pessoas, naquele instante com a cabeça entre os joelhos - aparentemente todas,
menos Rayford -, duas fariam a multidão evaporar. Será que os clarões o
cegariam? Ele ouviria as explosões? Sentiria o calor? Perceberia seu corpo se
desintegrando?
Fosse como fosse, Carpathia faria daquele evento um jogo político. Ele
não exibiria pela TV uma cena mostrando um milhão de pessoas desarmadas, de
costas para a Comunidade Global, enquanto as bombas precipitavam-se sobre
elas. Porém, mostraria o impacto, as explosões, o fogo, a fumaça, a desolação,
para ilustrar a inutilidade de opor-se à nova ordem mundial.
A mente de Rayford lutava contra seus instintos. O Dr. Ben-Judá
acreditava que eles estavam protegidos, que Petra era uma cidade de refúgio, o
lugar prometido por Deus. Não obstante, Rayford perdera um companheiro ali
alguns dias antes. Por outro lado, o ataque por terra efetuado pela CG foi
milagrosamente malogrado no último instante. Por que Rayford não se acalmava
diante daquele fato, por que não confiava e não acreditava?
Porque ele conhecia o poder das ogivas. Assim que foram lançadas, os
pára-quedas acoplados a elas se inflaram, retardando-as para que caíssem no
mesmo instante e diretamente em cima da multidão. O coração de Rayford se
contraiu quando ele viu uma haste preta presa na ponta de cada bomba. A CG
não havia esquecido nenhum detalhe. Esses dispositivos, com pouco mais de
l,20m de comprimento, acionariam os fusíveis assim que tocassem o solo, provo-
cando a explosão das bombas acima da superfície.
Chloe Steele Williams estava impressionada com a habilidade de Hannah
como motorista. Apesar de estar dirigindo um veículo desconhecido em um país
desconhecido, aquela norte-americana usando um disfarce estranho que a trans-
formara em uma indiana de Nova Délhi dirigia o jipe da CG como se fosse
propriedade sua, com mais calma e mais autoconfiança que MacCullum. Ele
falou durante todo o percurso de carro através da Grécia.
- Sei que tudo isso é novidade para vocês, meninas - ele havia dito,
forçando Chloe e Hannah a se entreolharem e piscarem uma para a outra.
Se havia alguém que não conseguia evitar o chauvinismo, mesmo
inconscientemente, era aquele piloto experiente e ex-militar, que se referia a
todas as mulheres do Comando Tribulação como "senhorinhas", mas que não
demonstrava ser condescendente.
- Eu preciso chegar ao aeroporto - ele lhes contou - por este caminho, e
vocês precisam chegar a Ptolemaïs e descobrir onde fica a cooperativa. - Ele
parou o veículo e desceu.
- Quem vai ser a motorista?
Hannah pulou do banco traseiro para o dianteiro e assumiu a direção. Sua
farda da CG, branca e engomada, continuava impecável.
Mac sacudiu a cabeça.
- Vocês duas parecem um par de soldados do pelotão feminino do
exército, mas eles não convocam mais esse tipo de gente.
Ele olhou para um lado e para o outro da estrada, e Chloe foi compelida a
fazer o mesmo. Era meio-dia, o sol estava a pino e quente. Não havia nuvens no
céu. Ela não viu outro veículo nem ouviu som de motor funcionando.
- Não se preocupem comigo - ele complementou. - Alguém vai passar por
aqui e me dar uma carona.
Mac pegou a mochila de lona que estava na parte traseira do veículo e
atirou-a por cima do ombro. Ele também carregava uma maleta. Gustaf
Zuckermandel Jr., a quem todos chamavam de Zeke ou Z, pensara em tudo. O
jovem corpulento e pesadão de Chicago havia-se transformado no melhor
especialista do mundo em forjar documentos e criar disfarces, e Chloe lembrou-
se de que os três ali eram fruto das mãos habilidosas daquele jovem. Era muito
estranho ver Mac sem sardas e sem os cabelos ruivos. Agora, ele tinha pele de
tonalidade escura, cabelos castanhos e usava óculos apenas como disfarce. Ela
só esperava que o trabalho que Z fizera em seu pai e nos outros que foram para
Petra tivesse sido tão perfeito assim.
Mac colocou a mochila e a maleta no chão e apoiou os antebraços em
cima da porta do lado do motorista, ficando com o rosto a alguns centímetros do
de Hannah.
- Ei, meninas, vocês já decoraram tudo? - ele perguntou. Hannah olhou
para Chloe lutando para conter um sorriso. Quantas vezes ele havia feito a
mesma pergunta durante o vôo e na estrada? Ambas assentiram com a cabeça. -
Quero ver seus crachás mais uma vez.
Hannah estava de frente para ele.
- Indira Jinnah, de Nova Délhi - Mac leu. Chloe inclinou-se para que ele
pudesse ver o dela. - Chloe Irene, de Montreal. - Ele cobriu o próprio crachá com
a mão. - E vocês estão a serviço de quem?
- Do comandante sênior Howie Johnson, de Winston-Salem - respondeu
Chloe. Ela e Hannah já haviam dito isso infinitas vezes. - Agora você faz parte do
corpo de oficiais da CG na Grécia, e, se alguém duvidar, poderá checar no
palácio.
- Muito bem - disse Mac. - Pegaram suas pistolas? Esta Kronos aqui, ou
pelo menos uma parecida com ela, tem mais poder de fogo.
Chloe sabia que elas necessitavam de armas mais potentes,
principalmente por não saberem quem encontrariam no caminho. Mas aprender a
lidar com a Luger e a Uzi que poderiam ser conseguidas com os gregos
clandestinos - havia sido uma incumbência muito pesada para ela antes de partir
de Chicago.
- Continuo achando que o pessoal da cooperativa vai recusar-se a falar
quando vir nossas fardas - disse Hannah.
- Mostre o selo na testa a eles, queridinha - disse Mac.
O radiotransmissor instalado debaixo do painel foi acionado
automaticamente. "Atenção, Forças Pacificadoras da CG. Comunicamos que o
Serviço de Segurança e Inteligência efetuou um ataque aéreo sobre vários
milhões de subversivos armados em um local encravado nas montanhas,
descoberto por nossa infantaria, a cerca de 80 quilômetros a sudeste de Mizpe
Ramon, no deserto do Neguev. Os rebelados assassinaram um grande número
de soldados da CG e apossaram-se de tanques e caminhões blindados, cuja
quantidade ainda é desconhecida.
"O diretor do Serviço de Segurança e Inteligência da Comunidade Global,
Suhail Akbar, anunciou que duas ogivas foram atiradas simultaneamente,
seguidas de um míssil lançado do Aeroporto da Ressurreição de Amã, com a
finalidade de destruir o quartel-general dos rebeldes e todos os seus
componentes. Apesar de ainda haver alguns focos de resistência ao redor do
mundo, o diretor Akbar acredita que esse ataque destruirá 90% dos judaístas
traidores, inclusive Tsion Ben-Judá e todos os seus asseclas."
Chloe levou a mão à boca, e Hannah segurou a outra mão dela.
- A única coisa que vocês têm a fazer é orar, meninas - disse Mac. - Todos
nós sabíamos que isso ia acontecer. Ou temos fé ou não temos.
- É fácil falar... - disse Chloe. - Podemos ter perdido quatro pessoas, sem
mencionar todos os israelenses que prometemos proteger.
- Eu não estou levando o assunto na brincadeira, Chloe. Mas temos um
trabalho a fazer aqui, e este lugar não é mais seguro do que uma montanha sob
um ataque aéreo. Mantenha a calma, está bem? Preste atenção. Não vamos
saber o que aconteceu em Petra enquanto não virmos tudo com nossos olhos e
recebermos notícias de nosso pessoal. Você já ouviu as mentiras que a CG disse
ao próprio pessoal deles! Sabemos com certeza que existe apenas um milhão de
pessoas em Petra e...
- Apenas?!
- É isso mesmo. Apenas um milhão, comparado aos vários milhões que
eles disseram. E armados? De jeito nenhum! Você acha que matamos soldados
da CG? E que nos apossamos daqueles...
- Eu sei, Mac - disse Chloe. - É que...
- É melhor você ir se acostumando a me chamar pelo meu novo nome,
Sra. Irene. E lembre-se de tudo o que conversamos em Chicago. Talvez vocês
precisem lutar, defender-se e até mesmo matar alguém.
- Eu estou preparada - disse Hannah.
Mac empinou a cabeça, surpreso. Chloe também surpreendeu-se. Chloe
sabia que Hannah estava tão entusiasmada com essa missão tanto quanto ela,
mas não a ponto de querer matar alguém.
- O desafio está lançado. - Hannah olhou para Chloe e, depois, para Mac. -
Não existe mais diplomacia. Se eu tiver de escolher entre matar ou morrer, vou
matar alguém.
Chloe limitou-se a sacudir a cabeça.
- Só estou dizendo - complementou Hannah - que estamos em guerra.
Vocês acham que eles não vão matar Sebastian? Talvez já tenham feito isso. E
não estou acreditando que vamos encontrar viva essa tal de Stavros.
- Então, por que estamos aqui? - perguntou Chloe.
- Para o que der e vier - respondeu Hannah, com um sotaque indiano
cadenciado, conforme Abdullah lhe ensinara em Chicago.
- É isso mesmo, para o que der e vier - disse Mac, pegando novamente a
mochila e a maleta. - Nossos telefones são seguros. Deixem os receptores de luz
solar expostos durante o dia...
- Ora, Mac - disse Chloe. - Dê um pouco de crédito a nós.
- Ah, é claro que sim - disse Mac. - Acredito muito na capacidade de
vocês. A bem da verdade, estou impressionado com o fato de você ter vindo até
aqui, Chloe, para salvar alguém que nunca viu. E Hannah, isto é, Indira, acho
que você não chegou a conhecer George o suficiente para... bem, para cuidar
dele pessoalmente.
Hannah movimentou a cabeça negativamente.
- Mas nós estamos aqui, não é mesmo? - prosseguiu Mac. - Alguém
estava aqui trabalhando para nós e, pelo que sabemos, essa pessoa está
encrencada. Não sei quanto a vocês, mas eu não vou sair daqui sem ele.
Mac girou o corpo e olhou para o horizonte. Chloe e Hannah fizeram o
mesmo. Um pequeno ponto negro aumentava de tamanho à medida que se
aproximava deles.
- É melhor vocês partirem - disse Mac. - E mantenham contato.
A primeira impressão de Rayford foi a de estar no inferno. Será que ele
havia se enganado? Teria trabalhado tanto por nada? Estaria morto sem ter ido
para o céu apesar de tudo o que havia feito?
Ele não percebeu o intervalo entre as explosões. As bombas provocaram
uma luminosidade tão intensa que, apesar de Rayford estar com os olhos
fechados o mais que podia, o clarão parecia tomar conta de todo o seu crânio. A
sensação era a de que o brilho se aproximava e se afastava dele. Rayford fez
uma careta diante do estrondo e do calor que se seguiram. Certamente, ele seria
atirado contra as outras pessoas até ser destruído por completo.
A ressonância do estrondo o fez estremecer, mas Rayford não se
desequilibrou, não ouviu nenhum barulho de pedras despencando, nem de
formações montanhosas batendo umas nas outras. Instintivamente, esticou os
braços para firmar-se, mas aquele gesto foi desnecessário. Gemidos, lamentos e
gritos vinham de todos os lados, mas de sua garganta não saía nenhum som.
Mesmo com os olhos fechados, ele viu o clarão ser substituído por tonalidades
alaranjadas, vermelhas e pretas, e agora, ah, um cheiro terrível de fogo, metal,
óleo e pedra!
Rayford forçou-se a abrir os olhos. Quando o estrondo ensurdecedor
ecoou por toda a cidade de Petra, ele percebeu que estava em chamas.
Levantou os braços sob o manto diante do rosto, sem se dar conta do calor
abrasador. Ele sabia que seu manto, depois sua carne, e depois seus ossos
seriam consumidos em segundos.
Rayford não conseguia enxergar nada por causa do fogo devastador, mas
todos os peregrinos à sua volta também estavam em chamas. Abdullah rolou de
lado e ficou em posição fetal, continuando a proteger o rosto e a cabeça com os
braços. As labaredas crepitantes - brancas, amarelas, alaranjadas e negras - o
envolveram como se ele fosse um pavio humano preparado para um holocausto
demoníaco.
Uma a uma, as pessoas ao redor de Rayford começaram a levantar-se do
chão e a erguer os braços. O fogo lambia os capuzes, os cabelos, as barbas, os
rostos, os braços, as mãos, os mantos e as roupas, como se estivesse sendo
abastecido por um combustível sob os pés daquele povo. Rayford olhou para
cima e não conseguiu enxergar o céu azul e límpido.
Até o sol estava toldado pelas imensas chamas violentas e por um
medonho par de nuvens em formato de cogumelo. A montanha, a cidade, a área
inteira estava tomada pelo fogo. As colunas de fumaça e as labaredas erguiam-
se a centenas e centenas de metros de altura.
Rayford gostaria de saber o que o mundo pensaria daquela cena, e, de
repente, ocorreu-lhe que a multidão estava tão estarrecida quanto ele.
Atordoados, os israelenses olhavam uns para os outros, com os braços
levantados, e agora estavam se abraçando, sorrindo! Que espécie de pesadelo
bizarro era aquele? Apesar de estarem envolvidos pela mais moderna tecnologia
de destruição em massa, como eles conseguiam permanecer em pé, perplexos,
com os olhos semicerrados, ouvindo tudo com clareza?
Rayford abriu e fechou a mão direita, a alguns centímetros do rosto,
olhando extasiado para as línguas sibilantes de fogo que lambiam cada um de
seus dedos. Abdullah conseguiu ficar em pé e rodava em círculo como se
estivesse embriagado, levantando os braços como os outros e olhando em
direção ao céu.
Ele virou-se para Rayford, e os dois se abraçaram. As chamas que
envolviam seus corpos se misturaram, formando uma só. Abdullah afastou-se
para ver o rosto de Rayford.
- Estamos dentro da fornalha de fogo ardente! - exultou o jordaniano.
- Amém! - gritou Rayford. - Somos um milhão de Sadraques, Mesaques e
Abede-Negos!
Chang Wong reuniu-se aos outros técnicos de seu departamento, e todos
foram conduzidos pelo chefe, Aurélio Figueroa, a um enorme aparelho de TV que
mostrava imagens ao vivo da cabina de um dos bombardeiros. Eles voavam em
círculo sobre Petra, e as imagens estavam sendo transmitidas ao mundo inteiro
por meio da CNNCG. Mais tarde, Chang verificaria a gravação clandestina que
estava sendo feita no escritório de Carpathia, para observar as reações de
Nicolae, sua nova secretária Krystall, Leon, Suhail e Viv Ivins.
- Missão cumprida - avisou o piloto, esquadrinhando o alvo e mostrando a
extensa área em chamas. - Sugiro que o lançamento do míssil seja abortado.
Considero desnecessário.
Chang cerrou os dentes com tanta força que suas mandíbulas chegaram a
doer. Como alguém poderia sobreviver àquele ataque? As chamas eram
intensas, e a fumaça negra subia tão alto que o piloto teve de desviar-se dela
para exibir uma imagem nítida.
- Negativo - foi a resposta do Comando da CG. - Amã, inicie o lançamento
subseqüente.
- Operação inútil - resmungou o piloto -, mas o dinheiro não é meu.
Retornando à base.
- Repita! - A voz parecia ser a de Akbar.
- Positivo. Retornando à base.
- Negativo mais uma vez. Permaneça em posição para captar as imagens.
- Com um míssil a caminho, senhor?
- Mantenha distância suficiente. O míssil encontrará o alvo.
O segundo avião foi liberado para retornar a Nova Babilônia, enquanto o
primeiro, com a câmera continuando a mostrar ao mundo a cidade de Petra em
chamas ao sol do meio-dia, voava em círculos a sudeste da cidade de pedras
vermelhas.
Chang gostaria de estar em seu quarto para poder comunicar-se com
Chicago. Como o Dr. Ben-Judá poderia ter-se enganado tanto a respeito de
Petra? O que seria do Comando Tribulação agora? Quem ajuntaria o que restara
dos crentes ao redor do mundo? E para onde Chang fugiria quando chegasse a
hora?
Eram 4 horas da manhã em Chicago, e Buck estava sentado diante do
aparelho de TV. Leah e Albie reuniram-se a ele. Zeke havia saído para buscar
Enoque.
- Onde está Ming? - Buck perguntou.
- Tomando conta do bebê - respondeu Leah.
- O que vocês acham disso? - Albie perguntou, sem desviar os olhos da
TV.
Buck sacudiu a cabeça.
- Eu gostaria de estar lá.
- Eu também - disse Albie. - Estou me sentindo um covarde, um traidor.
- Nós falhamos em alguma coisa - disse Buck. - Todos nós falhamos.
Ele continuava tentando ligar para Chloe apenas imaginando o que ela
estaria passando. Ninguém atendeu.
- Não dá para acreditar no que esse sujeito está fazendo! - disse Leah. -
Ele não se contenta em matar um milhão de pessoas e em destruir uma das
cidades mais bonitas do mundo. Agora ele vai usar um míssil!
Buck notou que a voz de Leah estava tensa. E por que não? Ela devia
estar pensando o mesmo que ele. Além de perderem seu líder e de terem visto
um milhão de pessoas envoltas pelo fogo, tudo o que eles imaginavam saber
havia sido atirado pela janela.
- Vá chamar Ming, por favor - ele pediu a Leah. - Diga a ela para deixar
Kenny dormindo.
Leah saiu apressada, enquanto Zeke retornava com Enoque. Zeke atirou
seu corpanzil no chão, mas Enoque continuou em pé, inquieto.
- Não posso ficar aqui por muito tempo, Buck - ele disse. - Meu pessoal
está abalado demais.
Buck assentiu com a cabeça.
- Vamos nos reunir quando o dia clarear.
- E...? - disse Enoque.
- Não sei para quê. Orar, acho.
- Temos orado o tempo todo - disse Albie. - É hora de descansarmos um
pouco.
Rayford não conseguia parar de rir. As lágrimas misturavam-se com as
sonoras gargalhadas que vinham de dentro dele quando o povo de Petra passou
a gritar, cantar e dançar. Eles formaram, espontaneamente, um círculo enorme e
começaram a rodar, com os braços nos ombros uns dos outros, saltando de
alegria. Abdullah, ao lado de Rayford, ria e gritava:
- Louvado seja o Senhor!
O fogo era tão forte, tão abrasador e tão alto que eles só conseguiam ver
um ao outro e as chamas. Não se via o céu, o sol, nada a distância. Eles só
sabiam que estavam no meio da maior fogueira da História sem sofrer dano
algum.
- Será que vamos acordar, capitão? - gritou Abdullah, soltando
gargalhadas. - Este é o sonho mais fantástico que já tive!
- Estamos acordados, meu amigo - gritou Rayford, apesar de Abdullah
estar a poucos centímetros dele. - Eu me belisquei!
Aquela observação fez Abdullah rir mais ainda. Enquanto o círculo girava e
aumentava de tamanho, Rayford se perguntou quando o fogo se extinguiria para
que o mundo descobrisse que Deus triunfara mais uma vez sobre as forças do
mal.
Um casal de idosos bem na frente dele entreolhava-se, enquanto o círculo
girava e as pessoas, maravilhadas, estampavam largos sorrisos no rosto.
- Estou em chamas! - gritou a mulher.
- Eu também! - disse o homem.
Ele saltou desajeitadamente e quase derrubou a mulher e os outros
quando deu um chute no ar para mostrar a ela que o fogo estava tomando conta
de sua perna inteira.
Rayford olhou para os dois convencido de que algo estranho estava
acontecendo e imaginando se poderia haver alguma coisa mais estranha do que
aquilo. Aqui e ali, dentro de seu ângulo de visão que alcançava apenas uns três
metros de distância, ele avistou um amontoado de roupas, sinal de que ainda
havia gente no chão.
Quando Rayford se afastou de Abdullah, um jovem do outro lado dirigiu-se
a um dos que estavam no chão. Ele ajoelhou-se e colocou a mão no ombro do
homem, tentando fazê-lo levantar-se ou, pelo menos, erguer a cabeça. O homem
o repeliu, gemendo, tremendo e chorando:
- Deus, salva-me!
- Você está salvo! - disse Rayford. - Olhe! Veja! Estamos em chamas e
não sofremos nenhum dano! Deus está conosco!
O homem sacudiu a cabeça e voltou a enrolar-se em seus braços e
pernas.
- Você está machucado? - perguntou Rayford. - As chamas o queimaram?
- Estou sem Deus! - choramingou o homem.
- Não pode ser! Você está salvo! Está vivo! Olhe à sua volta!
Mas o homem não queria ser consolado. Rayford avistou outras pessoas -
homens, mulheres e alguns adolescentes - na mesma condição lastimável.
- Atenção, pessoal! Atenção, pessoal! - Sem dúvida, a voz era de Tsion
Ben-Judá, e Rayford pressentiu que vinha de perto, apesar de não enxergar o
rabino. - Haverá tempo para júbilo, celebração, louvor e agradecimento ao Deus
de Israel! Por enquanto, prestem atenção ao que eu vou dizer!
A dança, os gritos e os cânticos pararam, mas as risadas continuavam. O
povo, ainda sorrindo e abraçado um ao outro, olhou para o lugar de onde veio a
voz. Aparentemente, eles concluíram que bastava ouvi-la. Os gritos de
desespero continuavam.
- Eu não sei - o Dr. Ben-Judá começou a dizer - quando Deus levantará a
cortina de fogo e quando voltaremos a ver o céu azul. Não sei quando ou se o
mundo saberá que fomos protegidos. Por enquanto, é suficiente que apenas nós
saibamos!
O povo aplaudiu com gritos, mas antes que ele começasse a cantar e a
dançar novamente, Tsion prosseguiu.
- Quando o demônio e seus conselheiros se reunirem, eles verão que o
fogo não teve poder algum sobre os nossos corpos; nossos cabelos não foram
chamuscados, nem nossas roupas foram danificadas, e o cheiro do fogo não
penetrou em nós. Eles interpretarão da maneira que desejarem, meus irmãos e
irmãs. Talvez não permitam que o restante do mundo veja estas cenas. Mas
Deus se revelará à sua maneira e em seu tempo certo, como sempre faz.
- E hoje Ele tem uma palavra para vocês, amigos. Ele diz: "Eis que te
acrisolei, mas disso não resultou prata; provei-te na fornalha da aflição. Por amor
de mim, por amor de mim é que faço isto; porque como seria profanado o meu
nome? A minha glória não a dou a outrem" (Isaías 48.10,11).
- "Dá-me ouvidos, ó Jacó, e tu, ó Israel", diz o Senhor dos exércitos, "a
quem chamei; eu sou o mesmo, sou o primeiro, e também o último. Também a
minha mão fundou a terra, e a minha destra estendeu os céus; quando eu os
chamar, eles se apresentarão juntos" (Isaías 48.12,13).
- "Ajuntai-vos, todos vós, e ouvi! Quem, dentre eles, tem anunciado estas
coisas? O Senhor o amou, e executará a sua vontade contra Babilônia, e o seu
braço será contra os Caldeus. Eu, eu tenho falado" (Isaías 48.14,15).
- "Assim diz o Senhor, o teu Redentor, o Santo de Israel: Eu sou o Senhor,
o teu Deus, que te ensina o que é útil, e te guia pelo caminho em que deves
andar. Ah! Se tivesses dado ouvidos aos meus mandamentos! então seria a tua
paz como um rio, e a tua justiça como as ondas do mar [...] proclamai-o, e levai-o
até ao fim da terra; dizei: O Senhor remiu a seu servo Jacó. Não padeceram
sede, quando ele os levava pelos desertos. Fez-lhes correr água da rocha;
fendeu a pedra e as águas correram" (Isaías 48.17,18,20,21).
Enquanto o Comando Tribulação observava as cenas em Chicago, o piloto
do caça-bombardeiro informou ao Comando da CG que conseguiu avistar o
míssil partindo de Amã. No lado direito da tela, apareceu o rastro da fumaça
branca e espessa do projétil enquanto ele se aproximava das labaredas e da
fumaça que subiam de Petra.
O míssil mergulhou e desapareceu na escuridão e, segundos depois,
ouviu-se outra explosão. O fogo alastrou-se ainda mais, parecendo tomar conta
de toda aquela região montanhosa. Em seguida, um jato colossal de água, de
mais de mil metros de altura, subiu em direção ao céu.
- Eu estou... - o piloto começou a dizer - eu estou vendo... não sei o que
estou vendo. Água. Sim, água. Ela está espirrando. Está... hã... produzindo
algum efeito no fogo e na fumaça. Agora vejo melhor. A água continua a subir e
está encharcando a área. Parece que o míssil bateu contra uma fonte de água
que, hã... isto é uma loucura, comandante. Eu vejo... posso ver... as chamas se
apagando, a fumaça desaparecendo. Há pessoas vivas lá embai...
Buck saltou da cadeira e ajoelhou-se diante da TV. Seus amigos gritavam
e aplaudiam. A imagem desapareceu, e a CNNCG já estava se desculpando por
problemas técnicos.
- Vocês viram? - Buck gritou. - Eles estão vivos! Eles estão vivos!
Chang ergueu as sobrancelhas e abriu a boca. Seus colegas praguejavam
e apontavam para a tela, resmungando quando a transmissão foi interrompida.
- Não pode ser! Parecia que... não, não pode ter havido nenhuma chance!
Por quanto tempo aquele lugar ficou queimando? Duas bombas e um míssil?
Não!
Chang correu até seu computador para ter certeza de que ele continuava a
gravar as imagens do escritório de Carpathia. Ele mal podia esperar para ouvir o
diálogo entre Akbar e o piloto.
Rayford estava em pé, ao lado de Abdullah, ouvindo as palavras de Tsion
quando a terra abriu-se com um estalo ensurdecedor e um jato de água de pelo
menos três metros de diâmetro irrompeu do solo subindo velozmente como um
foguete, tão alto que levou um minuto para começar a cair em forma de chuva
sobre eles.
As chamas e a fumaça cessaram rapidamente, e a água refrescante
parecia agradável demais. Rayford notou que os outros estavam fazendo o
mesmo que ele. Todos estenderam as mãos com as palmas para cima e viraram
o rosto em direção ao céu, para que a água os lavasse. Em seguida, Rayford
percebeu que estava a uns cem metros de Tsion e de Chaim, ambos em pé na
beira do gigantesco abismo que se formou quando a água irrompeu da terra.
Parecia que Tsion estava tentando novamente chamar a atenção da
multidão, mas seu esforço foi em vão. Todos corriam, saltavam e abraçavam-se,
cantando, dançando, cumprimentando-se, rindo. Em breve, centenas de milhares
de pessoas estavam gritando agradecimentos a Deus.
Apesar disso, Rayford notou que algumas pessoas aqui e ali estavam
sofrendo, chorando. Seriam incrédulas? Como sobreviveram? Será que Deus as
protegera só por estarem ali? Rayford não encontrava uma explicação. Seria
importante saber quem foi protegido e quem não foi, e por quê? Tsion falaria
sobre aquele assunto?
Após alguns minutos, Chaim e Tsion conseguiram chamar a atenção do
povo. O milagre de Tsion ser ouvido por um milhão de pessoas sem ajuda de
alto-falantes foi maior ainda, porque agora o povo o ouvia apesar do barulho
provocado pelos jatos de água, semelhante ao de um vulcão em erupção.
- Concordei em ficar aqui por alguns dias - anunciou Tsion. - Para adorar a
Deus com vocês. Para agradecer a Deus com vocês. Para ensinar. Para pregar.
Ah, observem que o volume de água está reduzindo.
O barulho começou a diminuir, e o topo da coluna de água foi sendo visto
aos poucos, agora a 300 metros acima deles. De modo lento, mas constante, o
jato de água foi diminuindo de altura, mas não na largura. Em seguida, a altura
foi reduzida para 30 metros, depois para 15 metros e depois para três metros.
Finalmente, o volume reduziu-se a um pequeno lago dentro da cratera que
se formou quando o jato de água irrompeu do solo. No meio desse lago de três
metros de largura e 30 centímetros de altura, uma nascente borbulhava como se
estivesse fervendo, mas sua água era fresca e reconfortante e, aparentemente,
complementava o milagre que acabara de ocorrer.
- Alguns de vocês estão chorando e se sentindo envergonhados - disse
Tsion. - E com razão. Nos próximos dias, vou ministrar a vocês também. Por
enquanto, vocês não receberam a marca do demônio, nem assumiram o compro-
misso de aceitar o único e verdadeiro Deus. Por ser misericordioso, Ele decidiu,
de antemão, protegê-los, dar-lhes mais uma chance de aceitá-lo.
- Muitos farão isso hoje mesmo, antes de eu começar a lhes falar sobre as
riquezas insondáveis do Messias, de seu amor e perdão. Apesar disso, um
grande número permanecerá no pecado, correndo o risco de ficar com o coração
tão endurecido a ponto de nunca mais mudar de idéia. Mas vocês jamais se
esquecerão deste dia, desta hora, deste milagre, desta prova inequívoca e
irrefutável de que o Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó continua no controle
de tudo. Vocês têm a opção de seguir seu caminho, porém jamais poderão negar
que a fé é a vitória que vence o mundo.
DOIS
Em Chicago, Buck tentou ligar para Chloe, depois para Rayford, depois
para Chang. Nada. Ele deixou o telefone de lado, mas não conseguiu ficar
sentado.
- Onde está Ming? - ele perguntou. - Ela sabe o que está acontecendo?
- Ming não está aqui - disse Leah.
- Está lá embaixo? Diga a ela para deixar o pessoal de Enoque dormir e
subir até aqui.
- Meu pessoal não está dormindo - disse Enoque.
- Ela não está lá embaixo - disse Leah. - Deixou um bilhete.
- O quê?
- O irmão dela lhe contou alguma coisa sobre...
- Onde está Kenny?
- Dormindo, Buck. Ele está bem. Preste atenção. O irmão dela lhe contou
alguma coisa sobre seus pais, e ela resolveu ir ao encontro deles.
- Oh, não! - disse Zeke.
- Ela lhe disse alguma coisa, Z? - perguntou Buck.
- Não, mas eu devia ter percebido. Fiz algumas coisas para ela hoje cedo.
Cortei seu cabelo, coisas assim. Quanto aos documentos, fiz o melhor que pude.
Transformei a moça num rapaz, quero dizer, não foi bem assim. Só mudei o jeito
dela... é isso... você sabe.
Buck sabia muito bem. Para começar, Ming era uma mulher miúda. Não
tinha como ficar parecida com um rapaz, mas Zeke cortou seu cabelo, mostrou-
lhe como portar-se como um homem, cortou suas unhas, tirou a cor de seu rosto.
Pegou a antiga farda dela que pertencia à CG, fez algumas alterações em sua
fisionomia e a transformou em um jovem soldado das Forças Pacificadoras da
CG.
- Com que nome? - Buck quis saber.
- Do irmão dela - disse Z. - Chang. Sobrenome Chow. Eu não sabia que
ela ia sair daqui tão depressa.
- A culpa não é sua. Quanto tempo faz que ela foi embora? Talvez a gente
possa alcançá-la.
- Buck! - ralhou Leah. - Ela é uma mulher adulta, viúva. Se ela quiser ir
para a China, não podemos impedi-la.
Buck sacudiu a cabeça.
- Por quanto tempo você acha que vamos ficar protegidos aqui se cada um
resolver andar por aí quando lhe der na telha? Chang já nos contou que o
pessoal do palácio está começando a ficar desconfiado. Steve Plank já ouviu
essa notícia no Colorado, e não vai demorar muito para que alguém comece a
bisbilhotar por aqui.
- Provavelmente ela não lhe contou o que ia fazer porque sabia que você
tentaria dissuadi-la.
- Eu poderia ter ajudado. Encontrado uma carona para ela, alguma coisa.
- Ah, sim, até parece que você ia arrumar um avião e um piloto para ela.
O sarcasmo de Leah forçou Buck a olhar firme para ela. Seu sogro havia-
se queixado de que aquela mulher era assim mesmo, mas Buck ainda não havia
se defrontado com ela.
- Isso não ajuda em nada, Leah - ele disse.
- Você poderia ser útil a ela enviando Albie para acompanhá-la.
- Eu não sabia que ela estava indo embora!
- Bem, agora já sabe.
- E eu estou disponível - disse Albie. - Mas...
- Não podemos correr riscos com você - disse Buck. - De qualquer forma,
sua identificação falsa foi descoberta e ainda não providenciamos uma nova para
você.
- Eu posso resolver isso em 24 horas - disse Zeke.
- Não! Vamos esperar que ela consiga o que deseja e que nos avise. -
Buck chutou uma cadeira. - Não entendo como ela vai se fazer passar por um
rapaz. Ela tem uma voz macia c delicada.
- Não quando grita ordens na prisão - disse Leah.
- Então, é melhor ela gritar ordens no caminho inteiro até a China - disse
Buck. - Imaginem se ela for descoberta. Eles vão saber que ela desertou da
PRFB da Bélgica, estabelecer uma ligação com o irmão dela e, bingo!, ele já era.
E nós, como ficamos nessa história?
Chloe não imaginou o que encontraria pela frente, mas Ptolemaïs não
parecia ter sido devastada por uma guerra. Fazia um bom tempo que a CG
deixara a Grécia em paz, em parte porque aquele país pertencia aos Estados
Unidos Carpathianos, disso Chloe tinha certeza. Nicolae não haveria de querer
atrair a atenção do mundo para os judaístas da região que levava seu nome. Mas
o grupo de crentes aumentou tanto que agora era difícil demais ocultá-los.
Assim que a primeira onda da tática de queda-de-braço varreu a região e
resultou em um número muito grande de pessoas que preferiram enfrentar a
guilhotina a aceitar a marca de lealdade a Carpathia, a batalha entre a CG e os
seguidores de Cristo tornou-se cada vez mais difícil. A aplicação da marca de
lealdade começou com os prisioneiros, e os resultados não foram satisfatórios
em razão da infiltração de espiões. Dois jovens prisioneiros fugiram. E, tão logo a
primeira e a pior fase da decapitação na guilhotina terminou, a vigilância tornou-
se mais branda.
Uma das ramificações mais fortes da Cooperativa Internacional de
Mercadorias, idealizada pela própria Chloe, instalou sua sede na cidade e tornou-
se um local clandestino para as reuniões dos crentes. Porém, uma emboscada
custou à igreja não apenas a vida de Lukas "Laslos" Miklos, mas também a de
Kronos, o mais antigo dos membros e muito querido pelos crentes, além da vida
do adolescente Marcel Papadopoulos. E se a moça que se fez passar por
Georgiana Stavros fosse realmente uma impostora chamada Elena, conforme
Steve Plank tomara conhecimento, Chloe imaginava que Georgiana também
estaria morta.
Havia poucas pessoas na rua durante o dia, e muitas pertenciam à CG.
Elas cumprimentaram educadamente as oficiais de alta patente da Índia e do
Ocidente, que trajavam fardas e tinham quepes brancos na cabeça enfeitados
com cadarços azuis. Albie havia ensinado Hannah e Chloe a fazer continência,
que elas logo constataram ser muito diferente das saudações feitas pelos
verdadeiros funcionários da CG. Ambas tinham um ar de indiferença no rosto.
Não olhavam para ninguém e conversavam entre si em voz baixa para que
ninguém pudesse ouvi-las. O olhar sério delas, quase uma carranca, fazia com
que parecessem atentas a seus deveres.
Tinham lugares para ir e pessoas para ver, e a conduta das duas
desestimulava gestos de cordialidade e conversas desnecessárias.
Diretamente do palácio da CG em Nova Babilônia, Chang Wong, por meio
da distribuição cuidadosa de memorandos confidenciais emitidos por falsos
oficiais graduados das Forças Pacificadoras, havia lançado um boato na Grécia
de que a chefia estava enviando um homem de alta patente para começar a pôr
ordem na confusão que reinava ali.
Chloe acreditava que os soldados da CG, que as olhavam duas vezes
para confirmar o que estavam vendo, não eram ingênuos. Ela supunha que,
pelas fardas dela e de Hannah, eles haviam matado a charada. Deviam estar
pensando que elas trabalhavam para o homem de alta patente, fosse ele quem
fosse e estivesse onde estivesse.
Hannah simulava muito bem o modo de andar de uma oficial, e Chloe - se
não estivesse tão nervosa - teria rido de "Indira". Elas caminharam apressadas
até uma vitrina mal iluminada, cujas trincas no vidro haviam sido coladas com fita
adesiva. Havia uma TV empoeirada em cima de uma prateleira, de frente para a
rua, e cerca de meia dúzia de soldados da CG estavam ajoelhados ou de
cócoras diante da vitrina assistindo à programação. Um deles notou a presença
de Chloe e de Hannah pelos reflexos no vidro e pigarreou. Os outros levantaram-
se rapidamente e as saudaram com uma continência.
- Vamos andando, cavalheiros - disse Hannah, novamente com o sotaque
que aprendera.
Chloe lutou para controlar-se quando viu Petra em chamas e não entendeu
por que a CNNCG interrompeu bruscamente a transmissão. Os homens da CG
inclinaram-se para a frente em direção ao aparelho de TV e entreolharam-se.
- O que é aquilo? - disse um deles. - Sobreviventes? Os outros riram e o
cutucaram.
- Você está maluco, homem.
- De volta ao trabalho, cavalheiros - ordenou Hannah.
- Sim, senhor... isto é, senhora - disse um deles, e os outros riram.
- Você sabe diferenciar um oficial homem de um oficial mulher, filho? -
perguntou Chloe, com voz ríspida.
- Sim, senhora - ele respondeu, perfilando-se.
- Você achou graça?
- Não, senhora. Peço-lhe desculpas.
- Onde fica a taverna mais próxima?
- Como, senhora?
- Você tem dificuldade para ouvir, rapaz?
- Não, senhora. Três quarteirões adiante. Fica do outro lado da rua.
Ele apontou a direção.
- Você está de serviço, soldado?
- Sim, senhora.
- E onde deveria estar?
- Na sede do pelotão, senhora.
- Vá andando.
Chloe e Hannah haviam deixado os telefones desligados. Elas
combinaram com Mac que só os usariam depois do primeiro contato com os
crentes ou em caso de emergência. Depois das cenas que viu pela TV, Chloe
sabia que seu pai e Buck estavam tentando comunicar-se com ela, mas isso
podia esperar.
Alguns minutos depois, um jovem sentado em uma cadeira na frente da
taverna observou-as desviando os olhos do jornal que lia, o Semanário
Comunidade Global. Chloe calculou que ele deveria ter 20 e poucos anos. Ela
perguntou a si mesma se o jovem acreditaria que seu marido havia sido editor do
Semanário. O rapaz pareceu mudar de posição casualmente. Puxou o boné de
veludo sobre os olhos e descansou o pé na vitrina que ficava no nível da calçada.
- Você viu o que eu vi? - Hannah perguntou, quase sem fôlego.
- Vi. Vamos em frente.
Chloe e Hannah fizeram de conta que o rapaz era invisível e entraram na
taverna. O ambiente era sombrio, e elas demoraram um minuto para acostumar-
se à escuridão. O local exalava um odor carregado de álcool e de encanamento
mal cuidado.
Dois homens da CG sentados a uma mesa de canto levantaram-se
imediatamente e saíram para a rua pela porta dos fundos. Chloe e Hannah
fingiram não notar nada. O proprietário cumprimentou-as em grego.
- Inglês? - sugeriu Chloe.
Ele negou com um movimento de cabeça.
Um homem de turbante levantou-se e disse alguma coisa rapidamente a
Hannah em um dialeto indiano. Chloe surpreendeu-se ao ver a reação de
Hannah. Ela fitou o homem nos olhos, como se tivesse entendido, e piscou para
ele, fazendo um leve movimento negativo com a cabeça. Aquilo pareceu
satisfazê-lo, e ele voltou a sentar-se.
O proprietário apontou para uma fileira de garrafas de bebidas alcoólicas
atrás dele. Chloe movimentou a cabeça negativamente.
- Coca-Cola? - ela perguntou.
- Coca-Cola! - ele repetiu, sorrindo e esticando o braço para pegar alguma
coisa embaixo do balcão. Instintivamente, Chloe encostou o cotovelo no cabo da
Luger a seu lado, e ela notou que Hannah colocou a mão na tira de couro que
prendia sua Glock nove milímetros.
O homem atrás do balcão continuou a fitá-las, e agora estava sorrindo,
exibindo uma antiga garrafa de vidro de Coca. Ele levantou um dedo, apontou
para a garrafa e empurrou dois copos em cima do balcão. Chloe entregou-lhe
dois nicks e levou a garrafa e os copos para uma mesa.
Depois de um gole do líquido, reconfortante para sua garganta ressecada,
Chloe virou-se na cadeira e examinou o ambiente. As pessoas, curiosas,
desviaram o olhar.
- Inglês? - ela perguntou. - Alguém fala inglês? Uma cadeira foi arrastada,
e um homem corpulento, usando uma roupa por cima da outra e com o rosto
transpirando, aproximou-se com passos tímidos e curtos. Ele as cumprimentou
educadamente, embora não pertencesse à CG.
- Poco englês - ele disse.
- Você fala inglês? - ela perguntou. - Entende o que eu falo?
Ele aproximou o polegar do dedo indicador, deixando um pequeno espaço
entre eles.
- Um pouco? - ela indagou. Ele assentiu com a cabeça.
- Poco.
- Subsolo - disse Chloe. - Onde fica o subsolo?
O homem arregalou os olhos, franzindo o pequeno número 216 tatuado
em sua testa.
- Sub o quê?
Ela apontou para baixo. - Subsolo. Pavimento inferior. Porão.
O homem levantou a mão carnuda e sacudiu a cabeça.
- Limpeza - ele disse. - Lava roupa.
- Uma lavanderia? - ela disse, percebendo Hannah arregalar os olhos. Era
isso mesmo.
Ele assentiu com a cabeça.
- Obrigada - disse Chloe.
- Obregado - ele disse, sem sair do lugar, com os dedos entrelaçados.
Chloe pegou uma moeda no bolso e a entregou a ele. O homem curvou o
corpo em sinal de agradecimento e dirigiu-se ao balcão.
- O que será que eles sabem? - disse Hannah em voz baixa. - O restante
do lugar parece estar aguardando que a gente faça alguma coisa.
- Também acho - disse Chloe. - Vamos continuar aqui por alguns instantes
e depois sair para dar uma espiada. A lavanderia é uma fachada, mas deve
haver alguém que a utilize para lavar roupas.
Hannah encolheu os ombros.
- Será que eles precisam entrar aqui para chegar lá? Acho que poucos
crentes se arriscariam a freqüentar este lugar.
As duas terminaram de tomar a Coca e olharam para seus relógios.
Ninguém havia saído desde que elas chegaram, a não ser os dois homens da
CG, e ninguém havia entrado. O jovem sentado na cadeira levantou-se e
caminhou, com passos lentos, de um lado para o outro, passando duas vezes
diante da porta. Duas pessoas que transitavam na calçada viram as mulheres
fardadas e preferiram não entrar.
Chloe e Hannah levantaram-se e caminharam a esmo, procurando a outra
entrada que dava acesso ao porão.
- Inglês? - Chloe perguntou ao jovem na calçada.
Ele encolheu os ombros e a encarou.
- Existe outra entrada aqui?
Ele fez um movimento negativo com a cabeça.
- Nem pelos fundos? Nem pela viela? Novamente, ele negou com a
cabeça.
- Ouvi dizer que há uma lavanderia aqui - ela disse. - Tenho algumas
roupas para lavar.
Ele a fitou e respondeu com sotaque grego.
- Não vejo nenhuma roupa suja.
- Eu não as trouxe comigo - ela disse. - Como posso descer até a
lavanderia?
- Fica depois do toalete - ele disse, com voz áspera.
- Porta dos fundos, deste lado. - O jovem apontou para a porta por onde os
homens da CG haviam saído. Em seguida, inclinou a cadeira para trás até
encostar o espaldar na parede. - Mas está fechada.
- No meio do dia? Por quê?
Ele encolheu os ombros, puxando a aba do boné e voltando a ler a revista.
- Ah, está bem - disse Chloe, suspirando e sinalizando para que Hannah a
seguisse até a esquina, para que elas ficassem fora da visão do jovem. - Vou dar
30 segundos a ele.
Um instante depois, Hannah esticou o pescoço para espiar.
- Como sempre, você estava certa - ela disse. - Ele sumiu.
As duas retornaram apressadas à taverna, dirigiram-se à porta dos fundos,
depois do toalete, e desceram correndo os degraus de madeira. Uma senhora
magra, de meia idade, usando uma malha cinza de lã e um lenço grande e
colorido que lhe cobria todo o cabelo e grande parte do rosto, olhou para elas
aterrorizada sob a claridade que vinha da janela.
- Lavanderia? - perguntou Chloe.
A mulher assentiu com a cabeça, com a mão fechada sob o queixo.
- Podemos trazer roupas para lavar aqui?
Ela voltou a assentir com a cabeça. Através da abertura de uma cortina
grossa, dependurada em um batente atrás da mulher, Chloe avistou o jovem. Ele
estava com os olhos arregalados. Ela fez um gesto para que ele se aproximasse.
- Não! - disse a mulher, em tom de desespero, encostando-se na parede.
O jovem arriscou-se a aproximar-se dela com uma arma sob a camisa.
- Uzi? - perguntou Chloe.
- Sim, e vou usá-la - ele disse.
- Tire o boné - ela ordenou.
- Antes eu vou atirar em você - ele disse fazendo um gesto para pegar a
arma.
A mulher gemeu.
- Não, Costas.
Quando ele lhes apontou a arma, Chloe e Hannah levantaram seus
quepes. Depois que todos deixaram a testa à mostra, eles disseram em
uníssono:
- Jesus ressuscitou.
O rapaz fechou os olhos e soltou o ar dos pulmões com força. A mulher foi
escorregando na parede até sentar-se no chão.
- Ele ressuscitou verdadeiramente - ela conseguiu dizer.
- Eu quase matei você - disse Costas. Em seguida, virou-se para a mulher.
- A senhora está bem, mamãe?
A mãe cobriu o rosto com as mãos.
- Vocês disfarçadas de CG? - ela disse em inglês, com dificuldade. - O que
estão fazendo aqui?
- Sou Chloe Williams. Esta é minha amiga, Han...
- Não posso acreditar! - disse a mulher, passando um lenço no rosto e
levantando-se. Ela correu até Chloe e abraçou-a com força. - Sou Pappas,
também conhecida como Sra. P.
- Esta é minha amiga Hannah Palemoon.
- Você também é da cooperativa? - perguntou a Sra. P. Hannah negou
com a cabeça.
- É da Índia?
- Não. Da América.
- Você com esse disfarce está ótima. Hannah sorriu e olhou para Costas.
- Este lugar é seguro?
- Vamos sair daqui - ele disse, conduzindo-as através da cortina até uma
despensa de paredes de concreto lotada de mantimentos procedentes de todas
as partes do mundo.
- A cooperativa funciona aqui. Mas estamos sofrendo muito. Sobrou pouca
gente.
- O pessoal lá de cima não incomoda vocês?
- Damos algumas coisas a eles. Não fazem perguntas. Eles também têm
seus segredos. Um dia, quando acharem conveniente, eles vão nos entregar.
- A chefe da cooperativa em minha casa - murmurou a Sra. P. com a mão
no coração. - Ninguém vai acreditar.
- Vocês não podem ficar muito tempo aqui - disse Costas. - Em que
podemos ajudá-las?
Dois jovens soldados das Forças Pacificadoras da CG fizeram um gesto
obsceno ao passarem por Mac dentro de uma pequena van. Mac notou a
mudança de expressão no rosto de um deles quando o jovem prestou atenção à
sua farda. O veículo foi brecado com força no asfalto, atirando cascalho para os
lados ao dar marcha a ré em sua direção.
- Nós acenamos! - gritou o jovem sentado no banco do passageiro assim
que a van parou e ele desceu. - Nós acenamos para o senhor! O senhor viu?
- Vi, e agradeço muito. - disse Mac. O motorista também desceu, e Mac
respondeu à continência deles. - Minha equipe de apoio teve de seguir em outra
direção, e eu preciso chegar ao aeroporto.
- Podemos levá-lo até lá. O senhor aceita uma carona?
- Sim, muito obrigado - disse Mac. Ele atirou a mochila e a maleta no
banco traseiro e acomodou-se. - O que está havendo em Petra?
- Ouvimos as notícias, senhor - disse o motorista ligando o rádio.
Mac apoiou a testa nas mãos como se estivesse tentando ouvir melhor e
orou desesperadamente por seus companheiros.
- Foram todos queimados - prosseguiu o motorista. - Não restou nenhum
corpo para ser enterrado.
- Quero ouvir a notícia, rapazes - disse Mac, e os dois se calaram. Pouco
antes de a conexão ser interrompida, Mac conseguiu ouvir algumas palavras do
piloto que o deixaram animado.
- Bem, as notícias são boas, não? O passageiro virou-se para trás.
- Claro. Não entendi muito bem a última parte, mas nós conseguimos
pegar aquela gente, com certeza.
Quando chegou ao aeroporto, Mac mal pôde acreditar na desordem que
viu. O pessoal da CG que restara ali parecia indisciplinado e indolente. Aquilo
poderia trabalhar em seu favor.
- Eu preciso de um veículo - ele disse ao único soldado das Forças
Pacificadoras que se levantou e lhe prestou continência no hangar principal. -
Preciso das chaves do veículo, preciso guardar minhas coisas e quero ver o
Rooster Tail [avião], se ele estiver aqui.
- Ah, ele está aqui, senhor, e estávamos à sua espera. Vou levar suas
coisas até lá.
- Eu lhe pedi para levar minhas coisas?
- Não. O senhor disse bem claro que queria guardar suas coisas. - O
soldado correu até uma escrivaninha e pegou um molho de chaves de dentro de
uma enorme caixa de papelão.
- O Rooster Tail está no hangar 6. O carro é o primeiro da fila. Posso
buscá-lo para o senhor.
- Faça isso.
- Ah, eu ia me esquecendo. Preciso digitar seu código no computador e...
- Só depois de me trazer o carro.
- Tudo bem.
O soldado correu até o carro. Mac sabia que os outros estavam olhando
para ele, sentados com o corpo ereto, aparentemente atarefados. Mas nada
acontecia ali; não havia nenhum avião chegando ou partindo.
- O senhor está aqui para nos ajudar, comandante?- gritou alguém do
outro lado da sala.
Mac olhou firme para ele.
- Como, soldado?
- Eu perguntei se o senhor...
- Eu ouvi o que você disse! Levante-se já dessa cadeira e dirija-se a mim
corretamente!
O soldado levantou-se rapidamente e enroscou o pé na roda da cadeira,
cambaleando antes de endireitar o corpo e aproximar-se. Mac encarou-o. O
soldado parou e prestou-lhe continência. Mac continuou imóvel.
- Você costuma gritar do outro lado da sala para os seus superiores?
- Eu estava distraído, senhor.
- Você me fez uma pergunta.
- Eu só estava querendo saber se íamos receber ajuda aqui. O senhor
pode ver que estamos com falta de pessoal.
Mac percorreu o hangar com o olhar e, em seguida, examinou a pista de
decolagem.
- Vocês estão com muito pessoal e pouco trabalho, e sabem disso.
- Sim, senhor.
- Estou errado?
- Não, senhor. É só que... bem, estávamos acostumados a...
- Pode ficar à vontade!
O soldado prestou-lhe continência mais uma vez e afastou-se. O outro
parou o carro em frente ao hangar e abriu o porta-malas.
- O senhor precisa de ajuda com o transatlântico, senhor?
- Só preciso de uma caixa de ferramentas e quero ficar sozinho lá. O que
vocês encontraram dentro do avião?
- Nada, senhor.
- Você está brincando.
- Recebemos instruções de entregá-lo à chefia. Ao senhor, acho.
Mac pressionou os lábios. Haveria alguma coisa que Chang Wong não
conseguisse com apenas algumas digitadas no teclado do computador?
- Arrume uma caixa de ferramentas para mim e me diga quem está
cuidando do judaísta capturado.
- Como, senhor?
Mac empinou a cabeça e olhou de esguelha para o rapaz.
- Quer dizer que fizemos uma emboscada bem-sucedida para pegar um
indivíduo debaixo do nariz de todos vocês e ninguém sabe nada sobre isso?
- Ah, aquilo... Sim, nós sabíamos. Nós sabemos. O que o senhor
perguntou?
- Quem está cuidando do assunto? Pegaram um suspeito vivo e quero vê-
lo. Tenho ordens para vê-lo.
- Bem, eu não sei onde ele está preso, senhor. Isto é, eu...
- Eu não esperava que você soubesse onde ele está preso! Eu lhe fiz esta
pergunta?
- Não, senhor. Sinto muito.
- Espero que quem cuidou da operação para nós saiba. Entendeu?
- Claro.
- Então, quem é?
- Um sujeito com um nome esquisito. É melhor o senhor verificar no
quartel-general de Ptolemaïs.
- Sei que é um tal de Nelson Stefanich. Você teve contato com ele?
- Sim, senhor.
- Pode dizer a esse homem que quero conversar com ele?
- Sim, senhor.
- Diga a ele que espero obter toda a cooperação e informações de que
necessito assim que eu chegar lá.
- Sim, senhor. Agora, o senhor poderia me fornecer o código de segurança
de seis dígitos para...
- Zero-nove-um-zero-zero-um - repetiu Mac, como um papagaio.
Em seguida, ele pegou a caixa de ferramentas e dirigiu-se de carro ao
hangar onde o avião de Sebastian estava guardado. Ele sabia onde George
havia escondido seu arsenal, e, dentro de segundos, conseguiu retirar os painéis
do compartimento de carga e pegar uma arma de energia direcionada e um rifle
calibre 50 com suporte bípede, guardando-os no porta-malas do carro. Pela
posição da lingüeta de segurança que George colocara na porta do
compartimento de carga, Mac constatou que a CG havia vasculhado o local, mas
não encontrara os painéis secretos.
Ele retornou ao hangar principal.
- Não encontrei nada - ele disse ao rapaz entregando-lhe a caixa de
ferramentas. - Ptolemaïs sabe que estou indo para lá?
- Estão aguardando sua chegada.
George Sebastian fingiu que continuava dormindo. Assim que acordou, ele
ouviu mensagens urgentes, cheias de estática, recebidas por seus captores, e as
respostas enérgicas e desesperadas, mas em voz tão baixa que ele não
conseguiu entender os detalhes.
Deitado do lado direito, com o corpanzil encostado no chão sujo e repleto
de lixo, ele sentia frio e fome. Essa posição deixou seu braço direito amortecido,
desde o cotovelo até a ponta dos dedos. Ele estava com as mãos algemadas nas
costas. Sua cabeça e seu rosto latejavam, e ele sentiu gosto de sangue na boca.
George ouviu alguém ressonando atrás dele. Ah, se ao menos ele tivesse
as mãos livres. Poderia movimentar-se no lugar para que o sangue voltasse a
correr livremente por seu braço direito e posicionar-se, silenciosamente, para o
ataque. E, se o guarda dorminhoco fosse a única pessoa ali, ele poderia agarrá-
lo, desarmá-lo e silenciá-lo em um segundo. George virou-se com dificuldade.
Seu corpo inteiro doía e ansiava por comida e água. Ele esfregou o rosto no chão
para afastar um pouco a venda dos olhos - o suficiente para dar uma espiada.
O guarda estava dormindo sentado, com o braço dependurado e a arma
possante no colo. Estranho. Talvez George estivesse enganado, porém ele
achou que havia confundido a hierarquia, de seus captores. O grandalhão, que
tentava disfarçar um sotaque francês, não era o líder. Ele falava muito, mas era o
outro - o grego que não havia sido atingido por George - que parecia dar as
cartas. No entanto, a não ser que o homem estivesse fingindo para forçar George
a tentar alguma coisa, era ele quem estava dormindo ali, a menos de um metro
de seu prisioneiro.
O braço direito de George formigava, e ele tentou mexer a mão esquerda
para sentir a pressão das algemas. Eram fortes e estavam bem apertadas. Ele já
havia quebrado algumas algemas convencionais antes, mas nenhuma delas
estava tão apertada como aquelas. A porta no topo da escada foi aberta, e a
jovem - que era chamada de Elena, embora tivesse fingido ser Georgiana - disse:
- Acho melhor a gente dar uma última chance a ele e, depois, fazer o que
tiver de ser feito.
O grandalhão, parecido fisicamente com George, desceu ruidosamente a
escada com a arma em punho. Ela o acompanhou, desarmada, e gritou da
escada:
- Vamos lá, Sócrates!
Será que eles tinham um cão?
O grito de Elena despertou o líder. Ele levantou-se limpando a garganta e
esfregando os olhos.
- Alguma novidade? - perguntou o grandalhão.
- Não. Ele não se mexeu.
- Continua vivo?
- Respirando.
O grandalhão cochichou alguma coisa ao ouvido do companheiro.
- Sério? - perguntou o mais baixo. - A que horas?
- Ninguém sabe ainda, mas deve ser hoje, durante o dia ou à noite.
O líder proferiu um palavrão.
George esperava que eles não notassem que havia um vão na venda em
seus olhos. O grandalhão apoiou uma bota pesada em seu ombro esquerdo e o
forçou a rolar de costas.
- Acorde, meninão - ele disse. E o líder complementou:
- Última chance.
George queria dizer: "Para quê? Tire estas algemas e esta venda dos
meus olhos, seu covarde, e eu vou matá-lo com as minhas mãos." Mas ele
estava determinado a ficar calado. Não daria esse tipo de satisfação àqueles
amadores.
Ele ouviu som de passos pesados e desajeitados no pavimento superior, e
o guarda com o joelho machucado começou a descer lentamente a escada. O
grandalhão entregou sua arma a Elena e posicionou-se com uma perna de cada
lado do corpo de George. Passou as mãos sob os braços de George, dobrou-lhe
os joelhos e ergueu-o do chão, gemendo com o esforço que fez para encostá-lo
na parede. George ficou de cabeça baixa, com o queixo encostado no peito.
- Muito bem - disse o líder. - Platão, fique ali, e Sócrates, fique aqui.
George imaginou estar ouvindo coisas. Ele foi um dos poucos bolsistas do
time de futebol de San Diego que havia estudado a história grega, mas seu
desempenho medíocre nos exames forçou-o a seguir a carreira militar. Sua
mente devia estar lhe pregando uma peça. Seriam Platão e Sócrates os homens
que estavam a menos de dois metros dele, um de cada lado, com as armas
apontando para sua cabeça? Talvez fosse alucinação por causa da fome, ele
concluiu.
- Se ele tentar alguma coisa, atire, mas tome cuidado para não me atingir.
O líder - George não podia imaginar qual seria o nome daquele homem -
ajoelhou-se na frente dele a arrancou-lhe a venda dos olhos. George piscou e
semicerrou os olhos, continuando a fitar o chão. O homem encostou o cano da
arma na testa de George e levantou seu rosto.
- Olhe bem para mim e veja que estou falando sério. George sentiu
vontade de cuspir no rosto dele.
- Você é valente, um prisioneiro de guerra exemplar. Mas perdeu a parada.
Esta é sua última chance. Não estou disposto a gastar mais tempo nem energia
com você. E você só vai sair vivo daqui e voltar a ver sua esposa e seu filho se
nos contar o que precisamos saber. Caso contrário, vou matá-lo com um tiro à
queima-roupa que vai atravessar seu cérebro. Você tem dez segundos para me
dizer onde fica a casa secreta dos judaístas.
George não tinha motivos para duvidar do homem. Estava fraco,
desgastado, quase sem forças, mas havia logrado êxito. Não abrira a boca antes,
e não a abriria agora. Mesmo que delatasse o pessoal de Chicago, ele não seria
libertado. Havia uma alternativa, mas ele não teria condições de levá-la adiante.
Poderia inventar uma história - uma história longa, desconexa, cheia de
detalhes, capaz de iludir qualquer um. Poderia dizer que havia um gás venenoso
na cabina de seu avião, que esse gás seria acionado se alguém tentasse pilotá-
lo sem antes digitar um código no sistema de segurança.
Aquilo poderia evitar que a CG se apoderasse do Rooster Tail O avião
ficaria à disposição do Comando Tribulação se alguém viesse resgatá-lo. Mas ele
tinha certeza de que o capitão Steele e o restante do pessoal já deveriam
considerá-lo morto; e por que não? E, se ele inventasse uma história para
retardar a execução, não conseguiria ser coerente em razão de sua condição
atual - talvez até deixasse escapar alguma coisa verdadeira.
Com o cano da arma encostado na testa, George continuou de boca
fechada. Não recuou, não fechou os olhos, não estremeceu. Simplesmente
cerrou os dentes aguardando o disparo que o levaria para o céu.
TRÊS
- Nós fazíamos parte do grupo dirigido pelos líderes - explicou Costas
Pappas. - O pastor e sua esposa. O casal Miklos. O velho Kronos. O primo dele
ainda está conosco. Vocês conhecem essas pessoas?
- Conhecemos todas - respondeu Chloe. - Mas como você sabe tanta
coisa e continua vivo?
- Marcel nos contou qual era o plano, na noite em que tudo aconteceu -
disse a Sra. Pappas. - Ouvimos falar que a moça foi vista pelas pessoas do
esconderijo que a conheciam, mas isso não passa de um boato. Tudo parecia
que ia dar certo. A ajuda do Comando Tribulação, um militar, um homem da
América que estava retornando da missão em Israel.
- Mas como vocês tomaram conhecimento do que aconteceu? O que
fizeram quando souberam que o Sr. Miklos e o Sr. Kronos não haviam voltado?
- Começamos as buscas - disse Costas com os lábios trêmulos.
A princípio, Chloe imaginou que ele fosse apenas um bisbilhoteiro
fanfarrão; depois, um jovem mal-humorado. Mas ele tinha de ser corajoso, ela
concluiu, para viver daquela maneira. A emoção em sua voz a sensibilizou.
- Nós conhecíamos o plano - ele prosseguiu. - Não encontramos as pedras
na beira da estrada. Ou rolaram ou foram retiradas. Mas aqueles animais
deixaram o carro no lugar em que ele parou, perto de lá, bem visível.
- Mas devem ter ficado observando de longe - disse Hannah -, aguardando
a chegada de vocês.
- Nós tínhamos certeza disso - explicou o rapaz. - Passamos de carro por
lá rapidamente tentando aparentar que não estávamos procurando nada. Mas
nós conhecíamos o carro de K. Estava a alguns metros de distância da estrada...
os faróis com luz fraca, o motor desligado, uma porta aberta. Estávamos
desesperados para revistar o carro, descobrir o que tinha acontecido, mas não
queríamos cometer uma tolice.
- E então...?
- Ficamos aguardando. Não havia outra coisa a fazer. Não havia jeito de
saber quando eles iam se cansar de esperar que alguém aparecesse. Depois de
alguns dias, não agüentamos mais ficar sem saber o que tinha acontecido. O
primo de Kronos nos emprestou um caminhão com tração nas quatro rodas.
Pelos mapas topográficos, planejamos um meio de chegar ao carro pelo mato, e
não pela estrada. Conseguimos fazer isso depois da meia-noite, seguindo
lentamente por pequenas trilhas em meio às árvores até uma clareira cheia de
pedras. O primo de Kronos dirigiu o caminhão, e dois outros homens e eu fomos
a pé na frente, com roupas escuras, para que ninguém nos visse nem ouvisse.
Por volta das três horas da madrugada, conseguimos chegar o mais perto
possível do local com o caminhão. Mesmo sem enxergar o carro de Kronos, nós
sabíamos onde ele estava. Rastejamos sobre uma elevação do terreno, de onde
achamos que poderíamos avistar o carro, mas não vimos nada.
- Não há mais dinheiro para pagar a iluminação das ruas - prosseguiu
Costas -, e a bateria do carro estava completamente descarregada. Não havia
lua, e não quisemos arriscar a usar lanternas. O carro continuou no escuro. Se a
CG estivesse à espreita para nos pegar, não poderia imaginar que vínhamos
pelo caminho mais difícil e muito mais longo. Estávamos muito perto do carro
quando o vimos no escuro. Ficamos ouvindo e observando, e chegamos até a
nos espalhar para ver se havia alguém da CG por ali. Em seguida, tateamos o
carro e encontramos os corpos. Mesmo correndo riscos, resolvemos acender as
lanternas, alguns segundos por vez, encobrindo a luz com nosso corpo.
Costas estremeceu ao lembrar-se da cena e começou a chorar. Ele
esforçou-se para ser entendido.
- Todos os três - ele disse. - Baleados. Marcel no rosto. Parte de sua
cabeça desapareceu. Tivemos trabalho para tirá-lo de baixo do painel. K levou
um tiro no pescoço, vindo de trás. Deve ter sido atingido na coluna. Laslos foi
ferido na testa.
- Nenhum sinal do americano? Costas negou com a cabeça.
- Arrastamos os corpos, um a um, até o caminhão. Estavam cheirando mal
e rígidos. Foi horrível. Um amigo meu, que estudou criminologia, constatou que a
pessoa que atirou neles devia estar dentro do carro. Encontramos a mochila de
Marcel que lhe demos de presente. Estava embaixo do corpo de Laslos, coberta
de sangue. Dentro, havia uma troca de roupa e alimentos. Não sabemos o que
aconteceu com o americano.
Chloe contou a Costas e à mãe dele o que Steve Plank relatara, que a CG
estava se vangloriando de ter impedido uma tentativa de fuga.
- Havia uma impostora para a moça e um impostor para o nosso
companheiro. Alguma coisa deu errado, e o resultado foi esse.
- O americano está vivo? - perguntou a Sra. P. Chloe assentiu com a
cabeça.
- Está preso em algum lugar. Devem estar tentando extrair alguma
informação dele, mas o rapaz é muito bem treinado. Nossa preocupação é que
ele seja morto por não cooperar.
- Você deve achar que o pessoal da CG é idiota - disse Costas.
- Como assim?
- Você vem até aqui disfarçada de oficial da CG e acha que vai ser levada
até ele.
- É um risco, nós sabemos.
- É suicídio - disse Costas.
- O que você faria, filho? - perguntou Chloe. De repente, ela se deu conta
de que Costas deveria ser apenas um pouco mais novo do que ela.
Ele encolheu os ombros.
- A mesma coisa, acho, mas penso que não vai funcionar.
- Estamos nos arriscando tanto assim porque temos um companheiro
dentro do palácio em Nova Babilônia disse Chloe.
Em seguida, ela começou a falar dos preparativos e dos planos de Mac.
- Ah, com licença - disse Hannah. - Um minuto só, por favor.
Chloe olhou de relance para ela e acompanhou-a até um cinto.
- Chloe, você acha que eles precisam saber de tudo isso?
- Podemos confiar nos dois! Eles são da cooperativa.
- E se eles forem pegos e forçados a falar? Não jogue tanta
responsabilidade por cima deles.
- Pense no que eles têm sofrido, Hannah. Jamais vão dizer alguma coisa.
- E, se disserem, não será só você quem vai morrer, você sabe disso.
Elas retornaram para continuar a conversa com a Sra. Pappas e seu filho.
- Isso funciona? - perguntou Costas. - A CG vai se deixar enganar dessa
maneira?
- Não por muito tempo - Chloe admitiu, lançando um olhar de esguelha a
Hannah. - Mas com todas as informações incluídas no banco de dados central de
Nova Babilônia, temos conseguido penetrar em lugares extraordinários.
- Acabamos de conhecer vocês - disse a Sra. Pappas. - E logo vamos
fazer o enterro de vocês...
- Somos pessoas de fé - disse Hannah, deixando de lado o sotaque. - E
sabemos que vocês também são. E nós também devemos ser pessoas de ação.
Conhecemos os riscos e os aceitamos. Não sabemos mais o que fazer. Vocês
deixariam um companheiro morrer sem tentar ajudá-lo?
Costas continuava emocionado. Ele encolheu os ombros.
- Não sei. Acho que vocês não têm escolha, mas seria melhor enfrentar
essa gente com armas em vez de disfarces. Não vejo como isso pode funcionar.
- Nós não sabemos onde nosso companheiro está! - disse Chloe. - Como
podemos encontrá-lo sem nos infiltrar na CG?
- E o tal homem do Colorado? Ele parece saber de muita coisa.
- Ele só nos conta o que ouve. Se ele começar a perguntar detalhes, em
breve será pego.
- Como ele conseguiu ficar na CG sem a marca?
Chloe falou sobre a nova identidade de Steve e a reconstrução de seu
rosto, ciente do longo suspiro dado por Hannah e de seus movimentos negativos
com a cabeça.
- A testa dele é de plástico. A marca de lealdade teria de ser aplicada sob
o plástico, e ninguém suportaria olhar para ele e ver o interior de seu crânio.
- Por favor - disse Hannah, em voz baixa.
- Quero acompanhar vocês quando forem atrás de seu companheiro -
disse Costas.
- Não posso permitir - disse Chloe. - Nós temos documentos, fardas e
cobertura pelo computador, por enquanto. Levaria dias para providenciar tudo
isso para você.
- Eu posso conseguir uma farda da CG, e vocês me dariam cobertura.
Eu...
- Não - disse Chloe. - Agradecemos, mas isso não vai acontecer. Temos
um plano e vamos segui-lo, quer funcione quer não.
- Vocês precisam de mais armas?
- Precisamos, mas levantaríamos suspeitas se carregássemos armas
pesadas que não pertencem à CG. O Sr. McCullum está tentando pegar algumas
no avião de nosso companheiro ou no carro dele.
- Onde está o carro?
- De acordo com Plank, os captores de Sebastian também estão com o
carro que o próprio Sebastian conseguiu no aeroporto.
- E eles não vasculharam o carro à procura de armas?
- Não sabemos.
Costas fez um gesto para que as duas o acompanhassem até um canto,
onde havia um enorme baú de madeira escondido embaixo de pilhas de
cobertores. Estava lotado de Uzis.
- Não me façam perguntas - ele disse. Sua mãe providenciou uma sacola
grande da lavanderia na qual Costas colocou três armas enroladas em panos e
vários pentes de munição.
- Agora, é melhor vocês partirem.
Alguém contara a George Sebastian que a pessoa não ouve o disparo que
a mata, mas como essa afirmação pode-ria ser comprovada? Ele esforçou-se
para manter a calma, porque não queria dar a satisfação a seus captores de
demonstrar medo antes do disparo fatal. Ele prendeu a respiração pelo tempo
que parecia ser seus últimos dez segundos de vida, e não conseguiu evitar um
estremecimento quando soltou o ar.
- Muito bem - disse o líder -, ele precisa ficar apresentável, e rápido.
Comida e água em primeiro lugar, depois uma ducha. E façam alguma coisa
quanto ao lábio dele. Inventem uma história. Não fomos nós que fizemos isso.
George abriu os olhos e piscou.
- Você continua encrencado, Califórnia, mas nenhum de nós vai morrer por
sua causa. Vou tirar as algemas, mas há duas armas apontadas para você, e só
precisamos de um motivo para atirar.
Depois de retiradas as algemas, George esfregou as mãos, fazendo
Platão estremecer. George sentiu vontade de assustá-lo com um movimento
brusco ou um grito.
- Dê um jeito nos pulsos dele - disse o líder a Elena. - Vamos, temos de
sair daqui.
Eles empurraram George escada acima e lhe deram dois sanduíches com
recheio de alguma coisa com gosto de lingüiça. As fatias de pão tinham quase
cinco centímetros de espessura e estavam secas. Ele teve de apertá-las para
que coubessem na boca. O lábio machucado esticou e sangrou enquanto ele
mordia o sanduíche. Em seguida, ele sorveu avidamente a água da garrafa,
morna e com gosto de agua velha.
George queria recostar-se na cadeira e inspirar e expirar o ar com força,
mas aquele não era um momento de lazer. Ele engasgou e tossiu, mas forçou-se
a comer todo o sanduíche. Sua melhor chance de fugir ou tentar alguma coisa
seria enquanto estivesse sem as algemas, e eles o estavam provocando a fazer
isso. George não queria gastar energia mental tentando imaginar o que
significava tudo aquilo, mas sentiu-se aliviado por estar vivo e ter alcançado seu
objetivo até aquele momento: permanecer calado.
Quando terminou de comer o sanduíche, George pegou um punhado de
migalhas de pão de cima da mesa e levou-as à boca. Tomou o último gole de
água, virando a garrafa para não sobrar nenhuma gota. Elena tirou a garrafa de
suas mãos e apontou para um cubículo onde ele mal caberia embaixo do
chuveiro.
- Deixe as roupas ali - ela disse, apontando para o chão. - É claro que você
não vai conseguir passar pela janela, mas saiba que há um homem armado do
lado de fora.
Ela saiu e fechou a porta. Mesmo sabendo que a moça e, provavelmente,
os outros poderiam ouvir qualquer ruído ali dentro, ele olhou embaixo de uma
cama de lona e só viu poeira. Abriu três gavetas de uma cômoda de madeira
franzina. Vazias. Não havia nada ali a não ser uma janela que, pelos seus
cálculos, estava de frente para o oeste. Ele entreabriu a persiana, e Sócrates
apontou-lhe a arma.
- Ande logo! - gritou Elena, do outro lado da porta.
Ele tirou a roupa, deixou-a no chão e entrou embaixo do chuveiro. Quando
abriu o registro esquerdo, recebeu um jato de água gelada no corpo. Ele deu um
passo atrás e abriu o outro registro. Fria também. Resolveu deixar os dois
abertos para permitir que a água escorresse por alguns instantes, Tentou afastar
um pouco o bocal do chuveiro, mas não conseguiu por causa da ferrugem que o
prendia no lugar.
- A água não é potável! - alguém gritou do lado de fora.
George queria perguntar se havia sabonete ou uma toalha, mas decidiu
não abrir a boca. Tiritando de frio, ele forçou-se a entrar embaixo do chuveiro.
Seu corpo estremeceu, mas ele deixou que a água fria molhasse seus cabelos e,
depois, o corpo inteiro. Esfregou o corpo vigorosamente pelo tempo que pôde
agüentar. Quando estava prestes a fechar os registros, ele ouviu a porta do
cômodo ser fechada. Ao espiar, ele viu, no lugar em que deixou suas roupas,
uma pilha de roupas limpas, talvez pertencentes a Platão, o homem com o físico
semelhante ao dele.
Ótimo. Ele não é tão grande quanto parece.
Em cima da cama, havia uma toalha de rosto. George enxugou-se com ela
e vestiu a roupa. Uma camiseta esquisita serviu para proteger seu corpo do
contato áspero de uma malha de lã grosseira. As ceroulas, ao estilo militar, eram
justas demais. As meias grossas de cor cinza começaram a aquecer seus pés, e
a calça cáqui com cinto de lona ficou apertada na cintura e curta - uns dez
centímetros acima do tornozelo. As botas da CG eram um número menor que o
seu, mas suportáveis.
George empurrou a porta, e Elena fez um gesto para que ele retornasse à
mesa onde havia comido o sanduíche. Platão continuava a encará-lo,
empunhando a arma. George se deu conta de que a moça era um alvo fácil para
ele. Poderia golpeá-la na cabeça antes que os outros percebessem e matá-la
antes que alguém tivesse tempo de atirar.
Ela passou, desajeitadamente, uma pomada no lábio dele e massageou-
lhe as mãos e os pulsos. George analisou o rosto dela tentando encontrar algum
sinal de fraqueza. O sangue que havia nas roupas daquela moça, quando ele
imaginou que ela fosse uma aliada, não era dela. A moça era uma assassina.
Elena apertou um inchaço enorme em cima de sua sobrancelha, mas
George não estremeceu de dor. Se ele conseguisse suportar um pouco mais,
haveria um jeito de sair dali? Parecia difícil encontrar gelo naquele lugar, mas ela
pegou algumas pedras, enrolou-as em um lenço e segurou-as contra o inchaço
em sua testa. Em seguida, fez o mesmo no "galo" em sua nuca. Por que ela não
economizou uma ou duas pedras de gelo para que ele pudesse matar a sede?
O sanduíche, cujo recheio George não havia identificado, pesou-lhe no
estômago, mas ele sentia um pouco de força proveniente do alimento. Ele queria
provocar algum estrago, mostrar àqueles caipiras a astúcia de um preso
americano. Ah, ele poderia fazer muito mais do que ficar calado. Pelo que sabia,
já havia quebrado o joelho de um dos guardas.
Durante todo o tempo em que Elena lhe aplicou os curativos, George ficou
muito perto dela. Poderia cegá-la enfiando dois dedos em seus olhos, quebrar-
lhe as mandíbulas com um soco no queixo ou esmagá-la virando a mesa sobre
ela e atirando-se por cima.
Mas isso de nada adiantaria, porque ele seria alvejado. George pensou em
deixar essa idéia de lado e atirar-se em cima de Platão para desarmá-lo. Em
seguida, o golpearia com a coronha da arma, atiraria em Elena e se arriscaria a
passar pelos dois acampados do lado de fora. As probabilidades seriam maiores,
mas não valeria a pena.
Eles estavam melhorando sua aparência. Por quê? Haveria alguém
superior a eles querendo extrair informações? E, pelo jeito, esse homem queria
que ele recebesse um bom tratamento. George estava se portando de maneira
semelhante à de qualquer outra pessoa ligada aos judaístas, e era por isso que
continuava vivo.
Ele gostou da idéia de ser apresentado à chefia da CG. Seu silêncio os
deixaria furiosos. Melhor ainda, ele imaginou: quanto mais arrogante um
prisioneiro se mostra, menos preparados eles ficam para impedir tentativas
criativas de fuga. Em determinado ponto, essa gente perceberia que ele não iria
colaborar. De seus lábios não sairia nenhuma informação, fosse de modo
voluntário ou forçado. Depois de certo tempo, ele seria descartável. Ou eles o
usariam como um exemplo prático, justificando que ele revelou um segredo ao
inimigo, ou o executariam. Ou as duas coisas.
O objetivo de George foi se formando lentamente em sua cabeça. Ele
queria permanecer alerta, estar ciente de qualquer detalhe. Queria saber quando
o pessoal da CG perderia a paciência e concluiria que ele era um caso sem
esperança, um caso perdido. A explicação era simples. Quando eles se
cansassem e seu fim estivesse perto, ele queria ter a certeza de levar um ou dois
consigo para a eternidade. Pelas marcas na testa que eles ostentavam, George
sabia que seus captores não iriam para o mesmo lugar que ele. Mas iriam para o
destino que lhes estava reservado muito antes do que imaginavam.
George teve de conter um sorriso enquanto era conduzido ao jipe. Estava
algemado novamente, mas isso só aconteceu depois que eles colocaram um par
de luvas grandes em suas mãos. Quanta consideração, ele pensou. Proteger
meus pulsos machucados.
Quando Mac se encontrou com Chloe e Hannah em uma clareira na
floresta, na região norte de Ptolemaïs, os três já haviam entrado em contato com
o pessoal do Comando Tribulação.
- Mal posso esperar para ver que história o pessoal de Nova Babilônia vai
contar sobre Petra - disse Hannah.
- Como alguém pode continuar incrédulo depois disso tudo?
- Quando será que papai e Abdullah terão condições de partir? - disse
Chloe. - Pelo que sabemos, Tsion vai querer ficar lá, desde que eles tenham
tecnologia suficiente para permitir que ele continue a enviar suas pregações
virtuais ao mundo inteiro. Acho que a CG vai matar qualquer um que sair de lá.
Mac contou a Chloe e a Hannah que o pessoal do quartel-general de
Ptolemaïs estava aguardando sua chegada, mas ele queria modificar os planos.
- Por quê? - perguntou Chloe. - Parece que já está tudo providenciado
para você.
- É verdade, mas se eu chegar lá, cheio de empáfia, vai parecer que quero
me exibir, que estou tentando impressionar. Eu poderia levantar suspeitas sem
querer. E tem mais. Se aquele quartel-general for parecido com o resto deste
lugar, eles vão desconfiar de mim se eu não começar a tirar o couro de qualquer
um que esteja dando as ordens.
- Explique-se melhor - disse Hannah. - Eu detestava trabalhar no palácio,
mas a organização e a decência que vi aqui deixam muito a desejar.
- Se eu fosse um comandante sênior de verdade, levaria uma semana
inteira para informar ao pessoal de Nova Babilônia tudo o que há de errado aqui.
Meu plano era chegar lá, pegar o que preciso e ir embora. Não ia nem pedir
ajuda dizendo que não seria necessário. Mas agora estou pensando em não
aparecer por lá.
- Não aparecer?
- Eu não vou aparecer.
- Nós é que vamos?
- Uma de vocês.
- Eu topo - disse Hannah.
- Ei, espere um pouco - disse Chloe. - Eu...
- Sinceramente, Hannah, acho que Chloe é quem deve ir. Acho que
nenhuma de vocês levantaria suspeitas, mas, se a coisa começar a azedar e
eles checarem sua íris ou suas impressões digitais... Você está registrada nos
arquivos do palácio.
- Como morta.
- É verdade, mas você saberia explicar como uma indiana poderia ter
características físicas idênticas às de uma norte-americana morta?
- Eu não saberia, porque você não acredita em minha capacidade.
- Você está brincando? Quase todas as vezes que olho para você,
esqueço quem você é de verdade. Mas Chang registrou um nome novo para
Chloe; portanto, se eles ficarem irritados e pedirem que uma subordinada minha
prove sua identidade, ela passará no teste.
- O que você quer que eu faça, Mac? - Chloe perguntou.
- Quero que você demonstre impaciência. - Impaciência?
- E irritação. Você pegou um osso duro de roer. Seu chefe folgado e os
outros que vieram com ele estão tirando um cochilo em algum lugar agradável, o
que não é da conta de ninguém, e você foi encarregada de conseguir
informações para ele. Se houver alguma burocracia, alguma demora, comece a
dar bronca. Você acha que pode fazer isso?
- O que você acha?
- Você deve dar a entender que este é um caso de vida ou morte. Passe
as informações para mim e deixe o resto por minha conta. Dê um jeito de mandar
um aviso aos captores que estamos por aqui, para que eles não sejam pegos de
surpresa, mas é melhor que eles deixem o prisioneiro apresentável. O chefão
não está nem um pouco satisfeito por não ter sido informado antes; portanto, dê
um jeito de falar com alguém que saiba o que está fazendo.
- Entendido.
- Aquele piloto, amigo de Abdullah, acredita que tudo vai dar certo, que
vamos tirar Sebastian de lá, algemado é claro, levá-lo até o avião e sair daqui
esta noite.
- Será que o pessoal daqui imagina que você está planejando levar o
prisioneiro embora?
- Não; mas, quando eles descobrirem, é melhor a gente estar bem longe
daqui.
- Não vai ser fácil - disse Hannah. - Mesmo que eles acreditem em tudo o
que a gente disser.
- Nunca é fácil, Indira - disse Mac, sorrindo. - O segredo está em não
tentar convencê-los de nada. As pessoas ficam irritadas quando são obrigadas a
fazer alguma coisa que não querem. Você está entendendo?
- Não muito.
- Por exemplo, se eu lhe disser que Rayford ou Tsion querem que você
faça alguma coisa que não deseja fazer, como voltar para Chicago
imediatamente, a sua primeira reação será negativa. Você não quer voltar, vai
recusar-se, e eu vou concordar, mas não vou contar o resto da história. Você vai
insistir, e eu não vou dizer mais nada. Já que você tomou uma decisão, não
precisa conhecer os detalhes. Mas, se eu estivesse no seu lugar, faria de tudo
para descobrir a história inteira e ficaria em dúvida se tomei a decisão certa.
- Pode ter certeza disso. Eu ia insistir até você me contar. Você me
conhece.
- Você poderia até insistir. Mas, veja, estaria entrando no meu jogo. Não
seria eu quem tentaria convencê-la. Você é que estaria tentando extrair alguma
coisa de mim. Aí, eu conto tudo o que for preciso para forçar você a fazer o que
lhe pedi antes, mas você só vai perceber isso depois, quando entender que foi
manipulada por mim, que você se irritou e que a idéia pareceu ter sido sua.
- Em outras palavras - disse Hannah -, você vai dar um jeito de forçar
esses homens a implorarem que você tire Sebastian das mãos deles.
- É isso mesmo.
- E eles vão achar que você está lhes fazendo um favor.
- Exatamente.
- Quero ver para crer.
- Você vai ver.
- E onde eu vou ficar enquanto Chloe estiver lá dentro?
- Aguardando no jipe, com os olhos e os ouvidos atentos. Eles vão saber
que há duas pessoas cuidando do caso, mas apenas uma que vai obter
informações para o chefe.
- E onde você vai estar? - perguntou Chloe.
- Ao telefone, falando com Chang, e depois com o rapaz do aeroporto.
Quero o Rooster Tail abastecido e pronto para decolar.
- Você vai dizer a ele que vamos levar o prisioneiro conosco ?
- Vou agir de acordo com a situação. Se não encontrarmos uma arma no
carro de George, já arrumei uma para ele e outra para mim. Vocês têm as suas.
- Será que vamos precisar delas?
- Pelo menos para impressionar o pessoal. É normal um oficial trazer
subordinados armados para uma visita como esta.
Durante um intervalo no turno da tarde, Chang caminhou apressadamente
até seu quarto procurando não chamar a atenção de ninguém. Com os dedos
voando pelo teclado do computador, ele tentava descobrir o paradeiro de sua
irmã. Ela era mais eficiente nisso do que ele imaginava. Chang gostaria que sua
irmã o tivesse informado sobre seus planos para que ele abrisse caminho para
ela. Talvez, se ela chegasse a algum lugar e descobrisse que ele lhe conseguira
uma autorização para viajar a serviço da CG, ela saberia que ele estava
acompanhando seus passos.
O "soldado Chow", das Forças Pacificadoras, apareceu no sistema.
Aparentemente, "ele" havia saído de Chicago e conseguira uma carona até Long
Grove, em Illinois. Chang ficou feliz pelo fato de sua irmã ter evitado o Aeroporto
de Kankakee e a Base Aérea Naval de Glenview. Embora houvesse falta de
funcionários em todos os lugares, o aeroporto e a base aérea haviam sido
queimados pelos judaístas e não tinham condições de abrigar um fugitivo. Mas
Chang nunca vira nada no sistema que mencionasse uma pista aérea em Long
Grove.
Finalmente, ele encontrou uma pista de decolagem para executivos, que
havia sido reaberta recentemente para um número limitado de rotas comerciais.
Mesmo sabendo que o intervalo estava terminando, Chang contatou a torre de lá
fingindo ser um oficial de alta patente do departamento de aviação da CG,
"solicitando confirmação rotineira de um soldado das Forças Pacificadoras, do
setor internacional 30, que estava pegando uma carona em um vôo de carga
com destino a Pawleys Island, na Carolina do Sul".
Chang não teve tempo de aguardar a resposta e voltou apressado a seu
posto de trabalho. Ali, ele ficou sabendo que Suhail Akbar estava interrogando o
primeiro piloto que retornava de Petra. Chang só podia supor que o segundo
piloto também estava a caminho da sala de reuniões particular de Suhail. Com
alguns toques no teclado, ele ativou a escuta clandestina naquela sala, para
gravar as conversas. Mais tarde, ele faria um download do sistema central.
Chloe estava agradecida pelo fato de Hannah ter sensibilidade suficiente
para deixá-la a sós com seus pensamentos no caminho de volta a Ptolemaïs.
- Você concorda que eu assuma essa missão, certo? - ela perguntou.
- Faz sentido - respondeu Hannah. - Aquele seria o lugar ideal para
alguém me checar.
Chloe tentou acalmar as batidas de seu coração, respirando fundo e
tentando cochilar um pouco. Não funcionou, mas ela sabia que sua vida
dependia, conforme Mac lhe dissera, de sua habilidade em demonstrar
impaciência. Irritação seria melhor, caso fosse necessário. Mas a impaciência
seria mais apropriada.
O quartel-general do pelotão ocupava os três andares superiores de um
edifício de quatro andares. O primeiro andar, que estava abandonado, devia ter
servido para abrigar algum escritório de negócios.
Um dos homens que Chloe e Hannah haviam encontrado na rua estava
sentado no escuro, perto do elevador no térreo, fumando e lendo sob a luz
prateada que vinha da rua. Quando viu Chloe, ele levantou-se e prestou-lhe
continência.
- O elevador está quebrado - ele disse. - A senhora poderá usar a escada
ali atrás.
- Última forma! Sua função é essa?
- Sim, senhora. Alguém precisa avisar as pessoas, se não elas vão ficar o
dia inteiro esperando pelo elevador.
- Ninguém pensou em colocar um aviso?
- Ah, sim, mas o oficial de comando quer que o aviso seja dado
pessoalmente.
Ela assentiu com a cabeça.
- É com ele que eu quero falar. Você poderia dizer-lhe que estou...
O jovem levantou as duas mãos.
- Não tenho meios de avisá-lo. Há uma recepcionista lá em cima.
- Pensei que vocês estivessem com falta de pessoal. Ele encolheu os
ombros.
- Eu apenas cumpro ordens, senhora.
A escada dava acesso a uma sala suja e ladrilhada, com cerca de meia
dúzia de lâmpadas fluorescentes funcionando. Não havia ninguém na recepção,
mas outro homem das Forças Pacificadoras fez menção de levantar-se de um
sofá surrado. Chloe o deteve com um gesto.
- Qual é sua função aqui, filho? - ela perguntou.
- Sou monitor de moral da CG, senhora. E estou encarregado de avisar
que a recepcionista não está aqui.
- Estou vendo.
- Bem, eu digo às pessoas que a recepcionista vai voltar logo.
- O que significa "logo"? Ele olhou para o relógio.
- Ela saiu há uns dez minutos, portanto já deve estar retornando.
- Você poderia avisar o comandante Stefanich que a Sra. Irene, do
destacamento do comandante sênior Johnson, está aqui e deseja falar com ele?
- Eu até que poderia, senhora, mas recebi instruções para...
- Faça o que estou mandando. Eu me entendo com ele. - Sim, senhora.
Como é mesmo o seu nome?
- Deixe estar, eu mesma vou encontrá-lo - disse Chloe, dirigindo-se para a
porta.
- Ah, eu não posso permitir, senhora. Por favor. Sinto muito não ter
entendido o seu nome.
- Você está com a mão na arma, Monitor?
- Não, senhora, bem... sim, senhora, estou, mas foi sem querer. Eu...
- Leia meu crachá, filho, e grave meu nome. No momento, tudo o que você
precisa saber é comandante sênior Johnson.
- Entendido. Um momento.
Chloe sacudiu a cabeça. Seria uma surpresa ver eficiência por parte da
CG. A porta foi fechada e, logo em seguida, foi aberta novamente. O monitor de
moral fez um gesto afirmativo com a cabeça e apontou para uma sala com
paredes de vidro em um dos cantos, onde o comandante estava sentado atrás de
uma mesa. Do lado de fora, havia uma mulher sem as insígnias de oficial.
- Vou ter de falar com ela também? - perguntou Chloe.
- Sim, senhora. É a secretária do comandante.
A maioria das outras mesas estava vazia, e havia também poucas
lâmpadas acesas. Aparentemente, aquele comandante estava cercado apenas
de pessoas que funcionavam como cães de guarda. Chloe caminhou em direção
à mulher de meia-idade, fardada. A mulher sorriu, aguardando ser abordada,
mas Chloe passou reto por ela limitando-se a dizer:
- Irene, do destacamento de Johnson. Vou falar com Stefanich.
A mulher não teve tempo para protestar. Nelson Stefanich olhou para ela,
com ar de surpresa, e começou a levantar-se.
- Oi, sinto muito, senhor, mas o comandante sênior Johnson não deseja
que eu perca tempo falando com tanta gente. O senhor tem alguma informação
para ele?
- Claro, mas...
Chloe abriu rapidamente uma pasta de couro e retirou seu cartão de
identificação da CG.
- O que o senhor necessita?
- Bem, eu esperava receber a visita do comandante Johnson.
Stefanich falava com sotaque europeu, talvez polonês, ela imaginou.
- Ele lamenta muito não poder ter vindo. A chefia da CG deseja que este
assunto seja tratado com urgência, e entendemos que o senhor está preparado
para...
- Sente-se, Sra. Irene, por favor.
- Eu prefiro...
- Por favor, eu insisto. Chloe sentou-se.
- Eu esperava informar seu comandante a respeito do pessoal que
escolhemos para esta missão. Estamos muito orgulhosos de...
- Com licença, senhor, mas entendemos que até agora não foi extraída
nenhuma informação do prisioneiro.
- É apenas uma questão de tempo. Ele é um militar altamente treinado, e
temos sido pacientes até agora.
- Estou entendendo que, se seu pessoal for tão bem preparado quanto o
senhor diz, o comandante Johnson não precisaria vir até aqui, não é mesmo?
- Talvez. Mas estou satisfeito com o que eles conseguiram até agora e
pretendo recomendar uma promoção...
- Faça como quiser, senhor, mas, por favor, forneça as informações de que
meu superior necessita.
Stefanich fez menção de tirar uma pasta da gaveta de sua escrivaninha,
mas não a entregou a Chloe.
- A senhora não está a par do que aconteceu hoje? O prisioneiro passou a
ser menos importante após o êxito do ataque.
- Entendo que os resultados não são conclusivos. Se tivessem sido, por
que não foram transmitidos ao mundo inteiro?
- Houve problemas técnicos. A senhora vai saber que milhões de traidores
foram mortos, inclusive os líderes deles.
- Ainda não sabemos onde fica o quartel-general deles disse Chloe -, ou
quantos líderes sobraram.
- Eles estão confinados nos Estados Unidos Carpathianos. Até mesmo o
rebelde não contestaria isso.
- O senhor está se recusando a permitir que um comandante sênior tenha
acesso ao prisioneiro?
- Não, eu...
- Se o senhor estiver, eu serei a primeira pessoa a desagradar ao chefe.
Mas o senhor será o próximo. - Chloe levantou-se. - Já estou atrasada, mas, se
eu voltar de mãos vazias, bem... eu não me importo de dizer que a culpa vai
recair sobre o senhor.
- Aqui está - ele disse oferecendo-lhe a tal pasta. Chloe começou a
caminhar em direção à porta. - O senhor pode recomendar promoções para o
pessoal que contratou, mas não vai estar em posição de merecer uma se...
- Aqui está, por favor - ele disse, sorrindo com ar de quem pede desculpa.
Chloe parou e olhou para ele com uma expressão de desconfiança no
rosto.
- Uma pasta? Eu não quero pasta nenhuma. Só preciso informar ao
comandante onde se encontra o prisioneiro.
- Está tudo aqui! Veja, aqui!
Chloe parou, com a mão na maçaneta, sacudindo a cabeça.
- E seu pessoal vai ficar nos aguardando.
- Claro!
Ela mordeu os lábios, olhando de esguelha para Stefanich. Já que havia
chegado até aquele ponto, não ia desistir.
- Está bem, vamos ver.
Ele sentou-se e esticou o braço, oferecendo-lhe a pasta.
Ela o encarou até forçá-lo a desviar o olhar. Finalmente, depois de um
longo suspiro, ele levantou-se e aproximou-se dela. Chloe agarrou a pasta e
saiu.
QUATRO
Chang estava inquieto, sentado em sua cadeira, fingindo trabalhar, mas
sem conseguir concentrar-se. Ele deveria estar coordenando os vôos e os
transportes de equipamentos, alimentos e suprimentos das fábricas de produção
para as áreas mais necessitadas. Chang havia inventado um jeito de deixar
transparecer que suas instruções eram lógicas e completas, até mesmo
eficientes. Mas os despachos das mercadorias causavam atrasos intermináveis.
Em razão de um dispositivo de falha introduzido por ele no sistema, os
embarques ficavam presos durante dias em localidades muito distantes e,
depois, eram enviados para lugares errados. Geralmente, lugar errado, para a
CG, significava lugar certo para a cooperativa ou para o Comando Tribulação.
Chang recebera elogios por seu trabalho, o que servia para que suas
pistas não fossem descobertas e para evitar que os problemas fossem
rastreados até ele. Contudo, alguma coisa estava atormentando sua mente.
Alguma coisa não estava fazendo sentido.
Ming deixara um bilhete informando ao Comando Tribulação, em Chicago,
que estava a caminho da China para ver seus pais. Se isso fosse verdade, por
que ela seguiu para o leste? A história só faria sentido se ela tivesse procurado
um vôo para a costa oeste. A verdade era que as principais cidades da Califórnia
estavam em ruínas, e os grandes aeroportos desapareceram, mas ainda havia
muitos lugares para decolagem.
Chang pensou em simular uma doença e afastar-se do trabalho pelo resto
da tarde, mas ele não podia arriscar-se a atrair a atenção sobre si. Muitos
membros do Comando Tribulação encontravam-se em posições precárias.
Chang precisava estar a postos para ajudá-los, sem levantar suspeitas. Ele
consultou seu relógio.
Sentado com Kenny no colo, Buck conversava com Zeke e Leah. Passava
um pouco das 8 horas da manhã, e Leah estava folheando pilhas de mensagens
e de relatórios do pessoal da cooperativa do mundo inteiro. Surpreendentemente,
a cooperativa estava funcionando, apesar da tragédia ocorrida com os mares. A
coragem daquela gente sem a marca de lealdade, que transportava em seus
veículos quantidades gigantescas de mercadorias de um lugar para outro, sem
envolver transações com dinheiro, deixava qualquer um admirado.
- Você sabe do que sua mulher é capaz, Buck? - Leah perguntou.
Buck ainda não aprendera a entender a maneira de falar de Leah. Ele
queria aceitar aquelas palavras como um elogio, um cumprimento a Chloe. Mas
teria ele notado uma leve provocação? Será que Leah queria dizer que ele era
insensível, que ele não conhecia Chloe?
- Sim, acho que sei - ele respondeu.
- Acho que o seu papai não sabe, Kenny. Você sabe? Você acha que ele
sabe?
- Sabe! - repetiu Kenny.
- Você sabe? O bebê riu.
- Você sabe do que a mamãe é capaz, meu amor? Ela é um gênio. Ela...
Assim que ouviu a palavra "mamãe", Kenny começou a fazer cara de
choro e repetir:
- Mamã. Mamã.
- Obrigado, Leah - disse Buck.
- Sinto muito - disse ela, parecendo ser sincera.
Se não estivesse sendo sincera, Buck estava preparado para
complementar: "Brilhante. Muito esperta." Esse era o efeito que Leah exercia
sobre ele. Ela parecia estar tentando mudar de assunto para distrair Kenny, mas
devia ter inventado algo que fosse do interesse dele, não do de Buck.
- Estou falando sério - disse Leah. - Você sabe do que acabei de tomar
conhecimento? Chloe sabe quantos navios de mil toneladas ou mais havia no
mundo antes de as águas dos mares se transformarem em sangue.
- Não diga.
- Diga! - repetiu Kenny.
- Digo sim - insistiu Leah. - Você sabe calcular quantos?
- Não sei - disse Buck. - Milhares, eu suponho.
- Posso dar um palpite? - interveio Zeke.
- Z! - gritou Kenny.
- Calculo mais de 30 mil.
- Navios desse porte? - disse Buck. - Parece um número muito alto.
- Ele acertou na mosca - disse Leah, virando-se para Zeke. - O quê? Chloe
lhe contou alguma coisa? Como você sabe disso?
Z não pôde conter um sorriso.
- Ah, sim, ela me contou. Mas minha memória é muito boa, certo?
Buck assimilou a informação.
- O que aconteceu com todos aqueles navios?
- Estão em ruínas - disse Leah. - Parados na água. Isto é, parados no
sangue.
- E se Deus suspender o julgamento? E se o sangue se transformar em
água salgada?
Ela fez um gesto negativo com a cabeça.
- Não faço idéia. Não posso imaginar o que significa limpar um navio
impregnado de sangue até que ele volte a funcionar.
- E os peixes morreram - disse Z.
- Peixes!
- Quem suportaria o mau cheiro? Os jornais não publicam, mas as
pessoas que moram no litoral estão tentando sair de lá. Se nada mudar, o mau
cheiro vai ficar cada vez pior, as doenças vão começar a aparecer. Que coisa!
- Coisa!
Buck colocou Kenny no chão e deixou-o afastar-se dali.
- Não posso imaginar como Carpathia está lidando com isso. Não há
meios de contornar a situação, de dourar a pílula. Milhares de pessoas estão
morrendo todos os dias, e pensem nas tripulações presas dentro dos navios.
Todos vão morrer. Ei, Leah, alguns anos atrás escrevi um artigo sobre quanto o
Panamá dependia de sua indústria naval. O que isso tem a ver com um país
como aquele?
Ela folheou algumas páginas.
- Panamá é o único país com mais navios que a Grécia. Isso vai levá-los à
falência.
A menção da palavra Grécia fez Buck olhar para o relógio.
- A tarde já está terminando lá - ele disse. - Se o plano estiver funcionando,
eles devem partir assim que escurecer.
- Estão esperando o quê? Buck encolheu os ombros.
- Mac acha que a espera vai dar a eles uma vantagem. Ele não sabe o que
vai encontrar pela frente, mas, se tiverem de escapar de um tiroteio ou fugir, ele
calcula que será melhor que isso aconteça no escuro.
Aparentemente, Leah não estava prestando atenção.
- Você está pensando em alguma coisa? - Buck perguntou.
- Estou esperando uma ligação ou um e-mail, mas até agora não chegou
nada. Chloe me disse que um empresário queria embarcar alguma coisa para
Petra. Módulos baratos para construção de casas.
- Verdade?
- O homem é muito rico, ganhou muito dinheiro com construção de casas
de baixo custo, depois se converteu. Ele entrou no ritmo. Aceita todos os mapas
e gráficos de Tsion, calcula que o Glorioso Aparecimento vai acontecer exata-
mente sete anos depois do pacto assinado entre Carpathia e Israel.
- Você não acha a mesma coisa?
- Claro. Se Tsion me dissesse que hoje é ontem, eu acreditaria -
respondeu Leah. Evidentemente, ela estava divagando. - Sinto saudades dele,
Buck. Oro por ele constantemente.
- Todos nós oramos.
- Não como eu.
- Sim, eu sei.
- O quê?
- Eu sei.
- Sabe?
- Claro - disse Buck. - Você pensou nele e se esqueceu do que estávamos
falando.
Ela parecia constrangida.
- Isso não é verdade!
- Então, prove.
- Estávamos falando... hã... de navios. Panamá e Grécia.
- Estávamos falando de módulos para construção de casas, Leah.
- Estávamos?
- Estávamos. Quem é o tal sujeito e o que você tem a dizer sobre ele?
Leah levantou-se e olhou através de um buraco na janela pintada de
preto.
- Não sei ao certo - ela disse. - Ele é daqui de Illinois. De um lugar
chamado Grove não-sei-o-quê. Ele diz que temos menos de três anos e meio
pela frente e que gostaria que o ajudássemos a descobrir um jeito de despachar
sua mercadoria para Petra. Diz que o pessoal de lá poderia construir casas por
conta própria e em pouco tempo. Você acha que ele sobreviveu, Buck?
- Sobreviveu a quê?
- Ao bombardeio.
- O sujeito estava em Petra?
- Estou falando de Tsion!
- Ah, desculpe-me. Voltamos a falar dele. Também estou preocupado com
meu sogro, com Chaim e com Abdullah, mas acho que sim.
- Acha o quê?
- Que eles estão vivos.
- Não vamos descobrir isso nos noticiários, não é mesmo?
- Não vamos. Mas Chang deve saber. Ele sabe tudo.
Chang não havia almoçado; portanto, quando o expediente terminou, ele
retornou ao seu quarto, passando antes pelo refeitório central, onde comprou
comida para levar para casa. Havia muita coisa que ele queria ouvir, mas a
prioridade era encontrar o paradeiro de sua irmã. Ele não sabia se seus pais
estavam de partida ou em algum esconderijo, mas, de qualquer forma, estariam
vulneráveis sem a marca de lealdade. Ele havia fornecido aos pais o nome de
uma pessoa de uma igreja clandestina na província em que moravam, mas não
ficou sabendo se eles tentaram ou se conseguiram estabelecer esse contato.
Como Ming os encontraria se nem mesmo Chang sabia onde eles
estavam? E quanto tempo levaria para ela chegar à China pela costa leste dos
Estados Unidos Norte-americanos?
O ambiente estava sombrio no complexo do palácio. Todos pareciam ter
pressa em chegar a seus apartamentos. O dia foi muito estranho. Quem não vira
o ataque aos rebeldes? teria alguém acreditado naqueles pretensos problemas
técnicos que tiraram, de repente, as imagens do ar, justamente quando o piloto
disse, com todas as letras, que imaginou ter visto sobreviventes lá embaixo?
Chang olhou casualmente para os dois lados do corredor, entrou
rapidamente em seus aposentos e trancou a porta. Acionou um programa em
seu computador para saber se havia grampos" ali. Todos os sistemas instalados
por David Hassid e que foram deixados para seu uso e salvaguarda continuavam
seguros e rodando normalmente.
Depois de devorar frutas e biscoitos, Chang verificou seus e-mails. Lá
estava a confirmação aguardada, dirigida ao nome falso que ele usara como
oficial de alta patente do departamento de aviação da Comunidade Global.
"Passageiro, soldado das Forças Pacificadoras da CG, Chang Chow, do setor 30,
pegou carona com o piloto Lionel Whalum, em Long Grove, Illinois. Rota do vôo
para Pawleys Island, na Carolina do Sul, sem escalas. Vôo de ida e volta de
Whalum. Documentos do Sr. Chow em ordem, destino San Diego, Califórnia.
Nota: Whalum não tem a marca de lealdade, mas o Sr. Chow assegurou que vai
tratar disso quando eles chegarem à Carolina do Sul."
Chang despachou rapidamente uma resposta de agradecimento. Em
seguida, vasculhou o banco de dados à procura de vôos de Pawleys Island para
San Diego. O nome do piloto escalado para aquela rota no dia seguinte acionou
uma campainha na mente de Chang. Era um piloto da cooperativa. Ming estava
usando o pessoal da cooperativa para chegar à China. Será que Whalum
também era da cooperativa?
Chang vasculhou os registros de Chloe. Nada. Se ele fosse da
cooperativa, ainda não havia prestado nenhum serviço ou Chloe ainda não havia
registrado seu nome. Talvez ele tivesse usado outro nome ou Chloe estivesse
atrasada e ainda não tinha dado entrada nos nomes do pessoal.
Chang verificou o banco de dados internacional da CG. Enquanto o
comando de busca procurava por Whalum, ele terminou de comer. Ao retornar
ao computador, encontrou uma fotografia e uma página inteira contendo
informações sobre Lionel Whalum, de Long Grove, Illinois. Ele era negro,
descendente de africanos. Havia se mudado com a esposa e três filhos, de
Chicago para a periferia, quando seus negócios começaram a prosperar. Ganhou
muitos prêmios como cidadão e como empresário. Sua lealdade à Comunidade
Global era mencionada como "desconhecida, mas não suspeita".
Chang mudou para outro banco de dados e copiou as informações para
um centro de administração de juramento a lealdade, em Statesville, Illinois.
Retornando aos registros de Whalum, ele modificou a informação sobre lealdade
para "confirmada", fato esse documentado pelo esquadrão da CG de Statesville
na data em que Whalum teria recebido a marca. Se ele fosse da cooperativa,
aquela informação eliminaria as suspeitas. E Ming ficaria sabendo que Chang
estava cuidando dela.
Um sinal soou no computador de Chang seguido de um aviso
comunicando a ele e a todo o pessoal da CG sobre "a desafortunada perda dos
dois pilotos que participaram do ataque aos rebeldes hoje. Em razão de falha dos
pilotos, as bombas erraram o alvo em mais de um quilômetro e meio, e os
revoltosos dispararam mísseis que destruíram os dois aviões. A Comunidade
Global envia suas condolências às famílias desses heróis e mártires que se
sacrificaram pela paz mundial".
Chang consultou rapidamente os manifestos do hangar e descobriu que as
duas aeronaves, que custaram milhões de nicks, retornaram e foram localizadas.
O necrotério informou que ambos os pilotos foram dados como "mortos - seus
restos mortais teriam sido encontrados no local do acidente no Neguev". Os
registros pessoais dos dois estampavam uma marca em vermelho com a data da
morte deles.
Chang acionou a gravação feita no escritório de Akbar por volta da hora
em que o primeiro piloto teria retornado.
Havia uma conversa clara entre a secretária de Akbar e o piloto que estava
sendo conduzido à sala de reuniões. Após alguns minutos de conversa amena,
houve um convite para ele sentar-se. Em seguida, a voz de Suhail:
- Você se empenhou bastante lá hoje, homem.
- Obrigado, senhor - A voz tinha sotaque britânico. - Execução perfeita.
Gostei.
- Sinto muito. Você não sabe que sua missão fracassou?
- Como, senhor?
- Que o desfecho foi negativo?
- Não estou entendendo, diretor. As duas bombas acertaram na mosca, e
a área inteira foi destruída conforme as ordens recebidas. Quando fiz a manobra
para retornar, o míssil já tinha sido lançado, e de acordo com o que ouvi...
- Então, é verdade que você não sabe que errou o alvo.
- Senhor, se as coordenadas estavam corretas, nós não erramos.
- Ninguém morreu, jovem.
- Impossível. Eu vi o povo lá antes de lançarmos as bombas e avistei fogo
por todos os lados durante vários minutos antes de minha partida.
- Como disse, o empenho foi bom. Infelizmente, um erro humano resultou
em fracasso total.
- Eu não... Eu não estou... Eu estou... completamente confuso, senhor.
- Você será rebaixado de cargo e, para todos os efeitos, não entende
como esse erro tão grave pode ter ocorrido.
- Com sua licença, senhor, mas estou certo de que não ocorreu nenhum
erro!
- Eu estou dizendo que ocorreu, e é isso o que você vai dizer a qualquer
um que quiser saber.
- Não vou dizer isso! Ou o senhor me prova que erramos o alvo ou vou
dizer a todo mundo que essa missão transcorreu sem nenhum transtorno.
- Você vai ver, no momento certo, pelas fotos de reconhecimento, que não
houve morte alguma em Petra.
- O senhor viu essas fotos?
- Claro que vi.
- E o senhor não duvida da veracidade delas?
- Não, filho.
Uma longa pausa. A voz do jovem parecia chorosa.
- Se houve algum sobrevivente naquela montanha, foi um milagre. O
senhor sabe o que atiramos lá. As ordens foram suas! Não há explicação, e não
vou ser punido por isso.
- Você já foi punido. Você e seu colega serão transferidos, e você sabe
como responder a...
- Eu não vou afirmar uma coisa em que não acredito, senhor.
- Vamos, vamos, rapaz. Vejo o número 2 em sua mão e a imagem de
nosso líder. Você é um cidadão leal. Você contribui para a causa, você...
- O potentado vai querer que eu diga que cometi um erro que não cometi?
- Você cometeu.
- Não cometi.
- Sua Excelência está muito decepcionado com você, filho.
- Eu não vou fazer isso, diretor Akbar.
- Não vai fazer o quê?
- Não vou mentir. Tenho muito orgulho de meu trabalho. Eu não questionei
a ordem. Acredito que aquela gente era perigosa e uma ameaça à Comunidade
Global. Cumpri as ordens direitinho. Ninguém pode me dizer que erramos o alvo
principal ou que nossos 82 não destruíram aquela área inteira e todas aquelas
pessoas. Se o senhor não tiver provas concretas de que eles estão vivos, não
vou inventar mentiras. Não aceito ser rebaixado e não vou repetir coisas feito um
papagaio. Se aquelas pessoas continuam vivas, elas são superiores a nós. Se
continuam vivas, elas venceram. Não podemos competir com elas.
- Você me deixou sem opção.
- Como assim, senhor?
- Não podemos permitir que nosso pessoal se exima de responsabilidade
por seus erros.
- O senhor não será capaz de me fazer calar.
Akbar riu e foi interrompido por uma chamada pelo interfone.
- O piloto principal está aguardando, senhor.
- Mande-o entrar.
Assim que Chang ouviu o som da porta ser aberta, o britânico voltou a
falar.
- Diga a ele, Uri. Diga a ele que nós não erramos.
- O quê?
E a conversa recomeçou, com Akbar culpando o fracasso dos pilotos, o
britânico protestando, Uri em silêncio por alguns instantes.
- Com licença, um momento, cavalheiros - disse Suhail. A porta foi aberta
e fechada.
- Kerry - disse Uri - preste atenção. Ele está certo. O...
- Certo coisa nenhuma! Tenho certeza do que vi e nunca...
- Silêncio! Preste atenção! Você e eu sabemos que o lançamento foi
perfeito. Mas eu fiquei lá depois que você partiu. Você ouviu minha transmissão.
Aquela gente sobreviveu aos Blues e ao Lance, não sofreu nenhum arranhão.
- Impossível!
- Impossível, mas é verdade.
- Um milagre.
- Só pode ter sido.
- Então, vamos ter de conviver com isso, Uri. A CG e o mundo precisam
enfrentar o fato. Eles são inimigos mais que terríveis, e temos de admitir que
jamais teremos chance de derrotá-los.
- Concordo. Você me ouviu tentar dizer isso.
- Eles tiraram você do ar! Agora querem nos fazer de bodes expiatórios.
Vão nos rebaixar. Vão nos forçar a dizer que falhamos.
- Eu não vou ser forçado a nada - disse Uri.
- É assim que se fala - disse o britânico. Os dois animaram-se
mutuamente.
- Seja firme.
- Não ceda.
- Vamos lutar juntos.
Chang verificou o telefone de Akbar. Suhail havia ligado para o setor
médico e pedido para falar com a Dra. Consuela Conchita. No dia anterior,
Chang havia lido uma notícia no boletim interno sobre a promoção dela ao cargo
de cirurgiã-geral da Comunidade Global.
- Connie - disse Akbar -, preciso de duas doses fortes de sedativo,
daqueles de efeito bem rápido. Em minha sala de reuniões, assim que possível.
Tenho seguranças aqui, caso os pacientes resistam. E traga padiolas do
necrotério.
- Do necrotério?
- Quero que os dois sejam cremados.
- Você está me pedindo doses letais?
- Não, não. Só quero que fiquem fora do ar antes de saírem daqui,
cobertos com lençóis. A cremação fará o resto, não é mesmo?
- Matar os dois? É claro que sim. Você está pedindo que a gente execute
duas pessoas?
- A ordem partiu de cima, Consuela.
Uma pausa.
- Entendo.
Chang fez uma careta enquanto ouvia a gravação de Akbar tentando
convencer os pilotos de que havia pedido injeções para acalmá-los. Ambos
começaram a espernear e a gritar, e Chang entendeu que eles haviam sido
dominados e recebido as doses de sedativo. Os dois não existiam mais.
Qualquer pessoa que os tivesse visto aterrissar em Nova Babilônia e dirigir-se do
hangar ao palácio seguindo, depois, até o escritório de Akbar, jamais admitiria
nem mencionaria isso. Eles tinham sido alvejados pelo inimigo e ponto final.
Chang verificou os aviões novamente. Os números de série já haviam
sido mudados. E os números originais estavam assinalados como perdidos em
ação. Por mais estranho que parecesse, a quantidade de caças-bombardeiros da
CG em Nova Babilônia continuava a mesma.
O comunicado que aparecera na tela do computador de Chang seria
transmitido ao mundo inteiro naquela noite. Sem dúvida, o próprio Carpathia
manifestaria suas desprezíveis condolências pelas perdas.
Chang verificou os registros na Grécia e descobriu que Nelson Stefanich
havia expedido as coordenadas do local à equipe de "Howie Johnson". Ainda
faltavam duas horas para anoitecer, quando Mac resolveu fazer sua visita. Chang
teve tempo de confirmar as instruções de Mac ao pessoal do aeroporto de
Ptolemaïs para reabastecer o Rooster Tail. Também incluiu no computador um
aviso de que o comandante sênior Johnson estava autorizado pelo alto escalão a
levá-lo para Nova Babilônia.
Feito isso, Chang encontrou o número do celular de Stefanich e transmitiu-
o, por telefone, a Mac.
- Recebeu todas as informações de que necessita? - Chang perguntou.
- Eu ainda não sei o que aconteceu com a garota Stavros.
- Não há nenhuma informação aqui. O senhor ainda tem alguma
esperança?
- Sempre tenho, Chang. É assim que eu sou. - Pergunte a Stefanich. - Ah,
boa idéia. Ei, Chang?
- Senhor?
- Existe alguém melhor do que você?
- Obrigado, senhor.
Finalmente, Chang conseguiu verificar as outras gravações feitas ao longo
do dia. Ele localizou uma vinda do escritório de Carpathia e retrocedeu até o
ponto em que Nicolae, sua secretária Krystall, Leon Fortunato, Suhail Akbar e Viv
Ivins aguardavam para assistir à transmissão da cabina do bombardeiro.
Suhail tinha acabado de contar ao potentado que diligenciara para que ele
assistisse ao vivo. Carpathia manifestou grande euforia. Chang avançou a fita
vários minutos, enquanto tudo estava sendo preparado e Nicolae recebia várias
pessoas na sala.
Em seguida, animação. Akbar informou a Carpathia que os bombardeiros
estavam programados para decolar de Amã e que as imagens poderiam ser
vistas no monitor, "se o senhor quiser".
- Se eu quiser? Por favor!
- Palácio chamando o comando de Amã - disse Suhail.
- Amã falando. Prossiga, palácio.
- Inicie cobertura visual da decolagem.
- Entendido.
Vários segundos de silêncio. Em seguida, a voz de Carpathia.
- Suhail, esses aviões são caças-bombardeiros? Não é uma ilusão de
ótica? Parecem imensos.
- Ah, são sim, Eminência. Faz apenas algumas semanas que eles
começaram a operar. O senhor viu a altura deles? O motor é maior do que o de
qualquer outro caça. Precisa ser grande para acomodar os artefatos explosivos.
- O que é aquilo ali embaixo? Uma bomba?
- Sim, senhor.
- Ela é enorme! E maciça!
- É grande demais para ser transportada dentro do avião, senhor. Mede
l,50m de diâmetro e 3,40m de comprimento. Essa coisa pesa sete toneladas.
- Não diga!
- É verdade, senhor. Ela é transportada embaixo da aeronave, presa a um
eixo.
- E o que é aquilo, Suhail? O que vamos servir ao inimigo hoje?
- Os norte-americanos costumavam chamá-las de Big Blue 82. São
bombas de concussão. Oito por cento do peso delas consistem de um gel feito
de poliestireno, nitrato de amônia e alumínio em pó.
- Essa bomba é tão poderosa quanto grande?
- Excelência - disse Suhail -, só uma arma nuclear é mais poderosa do que
ela. Essas foram projetadas para detonar a mais ou menos um metro do solo e
geram quase 500 quilos de pressão por polegada quadrada. Matam tudo, até
mesmo criaturas minúsculas que vivem debaixo da terra, numa área equivalente
a 8000km2. A fumaça em formato de cogumelo sobe a mais de um quilômetro e
meio. E vamos lançar duas bombas.
- Mais um míssil.
- Sim, senhor.
- Fogo?
- Ah, Divindade, essa é a melhor parte. Cada bomba de concussão produz
uma bola de fogo de quase dois quilômetros de diâmetro.
Chang teve um sobressalto ao ouvir um assobio alto, e ele imaginou que
Carpathia estivesse inalando profundamente o ar pelo nariz e exalando-o através
dos dentes cerrados.
Posteriormente, quando os pilotos soltaram as bombas, Nicolae disse:
- Suhail! Podemos assistir pela TV?
- Só é necessário apertar alguns botões, Excelên...
- Faça isso! Já!
Alguém saiu da sala.
A gravação foi interrompida apenas por algumas explosões de alegria de
Carpathia.
- Ahh! Vejam! Ohh! Perfeito! No alvo! As duas! O êxito é a melhor desforra.
- Certamente.
- E a vitória também.
- Sim, senhor.
- Total e completa - disse Nicolae.
Vários resmungos.
O suspiro assobiado terminou numa espécie de sopro. Chang lembrou-se
de um leão que vira no zoológico em Beijing. O animal devorou vários quilos de
carne crua, rugiu, bocejou, espreguiçou-se, apoiou o imenso queixo nas patas e
deu um longo suspiro seguido de um ruído surdo e prolongado vindo do fundo do
peito.
Enquanto todos permaneciam com os olhos fixos na tela, alguém
cumprimentou Nicolae.
- Finalmente, meu senhor.
Era Viv Ivins. Carpathia não disse nada, fazendo Chang imaginar se ela
continuava na lista negra de Nicolae.
Para todos os outros cumprimentos, ele limitou-se a dizer:
- Obrigado. Obrigado.
A sugestão do piloto principal de abortar o lançamento do míssil foi
imediatamente rejeitada por Suhail.
- Isso mesmo, Suhail - disse Nicolae.
Sua voz parecia vir do fundo da sala.
- Muito bem. Vamos lançar o último dardo.
Quando o piloto se mostrou insubordinado, Suhail contra-argumentou
imediatamente. Em seguida, silêncio, que foi quebrado por Carpathia.
- Eu estava ouvindo coisas ou ele se atreveu a desafiá-lo?
- Ele quase chegou a me desafiar, Excelência.
- Repreenda-o! - disse Leon, com voz esganiçada.
- Não acredito que ele queria que eu o ouvisse. Ele está vendo
pessoalmente o que estamos assistindo na tela. É claro que, para ele, parece
desnecessário.
- Mas eu ainda.... - disse Leon. Alguém pediu-lhe silêncio.
Quando o míssil atingiu o alvo e o piloto começou a fazer comentários de
dúvida e de descrença, Chang ouviu uma cadeira ser arrastada, como se alguém
tivesse se levantado de repente.
- O quê?! - A voz era de Nicolae.
- Impossível! - disse Fortunato.
- Cortem a transmissão! - disse Carpathia, e Akbar repetiu a ordem em voz
alta.
Som de passos afastando-se da mesa e, presumivelmente, dirigindo-se ao
monitor. A porta foi aberta. Som de pessoas saindo. Aparentemente, só ficaram
Nicolae e Suhail.
- Duas de nossas maiores bombas incendiárias? - disse Carpathia entre os
dentes. - Você disse que uma seria mais do que suficiente.
- E deveria ter sido.
- Vimos as labaredas e as pessoas envoltas em chamas por quanto
tempo?
- Tempo suficiente.
Vários minutos de relativo silêncio durante o qual Chang pensou ter ouvido
a respiração ofegante de Carpathia. E, quando o potentado finalmente resolveu
falar, parecia desesperado e com falta de ar.
- Preste atenção ao que vou dizer, Suhail.
- Sim, senhor.
- Você está prestando atenção?
- Estou, senhor.
- Cuide daqueles pilotos. Eles erraram o alvo. Falharam. Os olhos deles os
enganaram. Não permita que essa vitória seja atribuída aos judaístas. De jeito
nenhum.
- Eu entendi, senhor.
- Entre em contato com os outros nove potentados regionais pessoalmente
em meu nome. Diga-lhes que os judaístas levantaram armas contra nós e que
tivemos de enfrentar um ataque terrível. Vamos retaliar. Eu disse isso a eles
recentemente.
- O senhor disse.
- Este é o momento certo. A verba é ilimitada. Vou sancionar, justificar,
apoiar e recompensar a morte de qualquer judeu em qualquer parte do mundo.
Quero que esse assunto seja tratado com prioridade máxima, não me interessam
os meios. Quero ver todos presos. Torturados. Humilhados. Envergonhados.
Quero que blasfemem contra o deus deles. Tirem tudo o que é deles. Nada é
mais importante para o potentado. Você entendeu?
- Entendi.
- Vá rápido. Faça isso agora.
- Sim, senhor.
- Suhail?
- Senhor?
- Mande o reverendo Fortunato entrar.
Após alguns segundos, Leon entrou apressadamente.
- Oh, meu senhor, não sei o que dizer. Não consigo entender. O que...
- Meu caro reverendíssimo Fortunato. Beije minha mão.
- Em que posso servi-lo, potentado? Eu me ajoelho diante do senhor.
- Continue ajoelhado e ouça-me. Você continua a ser meu servo mais
confiável...?
- Ah, sim, Supre...
- Silêncio. Continua a ser o Reverendíssimo Pai do Carpathianismo?
- Sim, sinceramente.
- Leon, você me ama?
- O senhor sabe que eu o amo.
- Você me estima?
- De todo o meu...
- Você me adora?
- Ah, meu senhor amado...
- Levante-se, Leon, e ouça-me. Meus inimigos estão me ridicularizando.
Eles realizam milagres. Eles envenenam meu povo, invocam feridas dos céus,
transformam as águas dos mares em sangue. E agora! Agora eles sobrevivem a
bombas e fogo! Mas eu também tenho poder. Você sabe disso. E o transferi a
você, Leon. Vi você usá-lo. Vi você invocar fogo do céu para matar aqueles que
se opunham a mim. Leon, quero atacar fogo com fogo. Quero muitos cristos.
Você está me ouvindo?
- Senhor?
- Quero muitos messias.
- Messias?
- Quero salvadores em meu nome.
- Prossiga, Excelência.
- Descubra essa gente. Quero milhares deles. Treine-os, ensine-os,
transfira a eles o poder que transferi a você. Quero que eles curem enfermos,
transformem água em sangue e sangue em água. Quero que façam milagres em
meu nome, que atraiam os indecisos, sim, até mesmo os inimigos que estão
afastados de seu deus e de mim.
- Vou fazer isso, Excelência.
- Vai mesmo?
- Vou fazer se o senhor me der poder.
- Ajoelhe-se diante de mim novamente, Leon.
- Imponha suas mãos sobre mim, meu senhor ressurreto.
- Eu lhe confiro todo o poder do qual fui revestido, que veio de cima e
debaixo da Terra! Eu lhe concedo poder para fazer coisas grandes e poderosas,
maravilhosas e terríveis, atos tão esplêndidos e assombrosos que convencerão a
qualquer homem que os veja que sou o seu deus.
Leon estava chorando.
- Obrigado, meu senhor. Obrigado, Excelência.
- Vá, Leon - disse Carpathia. - Vá rápido e faça imediatamente o que lhe
pedi.
CINCO
George sentia-se bem, apesar das circunstâncias. Quanto tempo fazia que
o haviam colocado no banco traseiro do jipe? Ele estava sentado no lado direito,
tendo Elena à sua frente e Platão a seu lado. O líder acomodou-se ao volante e
pediu a Platão que colocasse a venda nos olhos de George novamente. George
gostou de estar com as mãos algemadas para trás, porque o movimento do jipe
lhe permitiria tombar o corpo de um lado para o outro e cair em cima de Platão.
Se calculasse bem, teria condições de bater com sua cabeça na dele.
O líder deu marcha a ré e parou sem desligar o motor.
- Onde o sujeito está? - ele perguntou, irritado.
- Ali, na estrada.
- O que ele está fazendo ali? - Um suspiro alto.
- Sócrates! Venha aqui! - George ouviu som de passos mancos.
- Você já deu um jeito no carro?
- Está escondido, Aristóteles.
- Dê-me as chaves.
- Por quê? E se eu precisar delas?
- Vai pôr tudo a perder! Dê-me as chaves.
George ouviu o barulho de chaves quando Aristóteles as pegou.
- Pense, homem! - ele disse. - Assim, você não vai ser obrigado a entregar
as chaves a ninguém, aconteça o que acontecer. E afaste-se da estrada! Você
não tem motivos para aparecer. Fique esperando aí. - Aristóteles abaixou a voz,
como se achasse que Sebastian não conseguiria ouvi-lo por estar com os olhos
vendados. - Lembre-se, quanto mais você se descontrolar, mais alguém vai
acreditar em você.
- Você sabe que posso fazer isso.
- Eu sei que sim! Você também é capaz de derramar lágrimas quando
quer? Finja até onde for possível. Tem de parecer que você fez de tudo antes de
entregar os pontos. Sinto muito por você estar machucado, mas sua missão é tão
importante quanto a nossa.
Chloe entendia, agora, por que seu pai admirava tanto Mac. Ele era rude e
firme, mas também meticuloso. Havia espalhado as folhas da pasta da CG, com
as informações sobre Sebastian, em cima do painel do carro emprestado. Na
floresta ao norte de Ptolemaïs, depois de terem escondido o outro veículo - o jipe
no qual havia sido feita uma ligação direta - embaixo de um arbusto, eles
estudavam as informações. Chloe, sentada no banco dianteiro direito, tinha o
corpo inclinado para a frente; Hannah, sentada no banco traseiro, espiava por
cima do ombro de Chloe. Os três usavam fardas com camuflagem da CG e
tinham os rostos manchados de graxa.
- Eles pensaram muito bem quando escolheram aquela moça parecida
com a garota Stavros.
- Georgiana - disse Hannah.
- Certo. O nome verdadeiro dela é Elena. O sobrenome começa com a
letra A. Hummm, é a única pessoa que usa nome verdadeiro. Pelo jeito, eles não
fazem muita questão de protegê-la. Estou vendo aqui dois lugares insignificantes.
Aparentemente, não estão sob a jurisdição das Forças Pacificadoras, mas estão
sendo cuidados por este pelotão daqui. Ah, estou vendo um monte de apelidos.
- Um deles é o do líder, Mac - disse Hannah.
Mac sacudiu a cabeça, concordando.
- Aristóteles. O outro é Sócrates. Que criatividade! Diante disso, será que
Elena não seria Helena? Helena de Tróia, entenderam? E o grandalhão, aquele
que se fez passar por George. Platão? Ah, pelo amor de tudo o que é mais
sagrado! Bem, seja lá o que acontecer, tomem conta uma da outra. Ele é
francês. Foi trazido apenas para esta missão. Sebastian se sentiria insultado. O
tal sujeito é pesado, mas tem menos de l,90m. É menor que George.
Mac olhava para o relógio o tempo todo. Enquanto a noite caía, eles
continuaram lendo e memorizando as informações. Finalmente, tiveram de
recorrer à luz do teto do carro e a três lanternas pequeninas.
- O plano original não foi mau - disse Chloe. - Só que alguém não
colaborou.
- Eu não conheço o rapaz nem o outro cara mais velho, o motorista - disse
Mac. - Mas, pelo que me contaram sobre Miklos, aposto minhas fichas nele. De
qualquer forma, alguém suspeitou de alguma coisa. O plano deles era pegar a
garota oito quilômetros ao norte do aeroporto e mandar Platão, o tal que se
passou por Sebastian, ficar na beira da estrada.
- Mas Sebastian estava esperando encontrar-se com nosso pessoal mais
perto do aeroporto - disse Hannah.
- Talvez eles quisessem ter certeza de que estava tudo em ordem antes de
Sebastian aparecer - disse Mac. - Eles estão orgulhosos porque mudaram os
planos. Parece que a idéia original era pegar todos eles, inclusive George, e
ameaçar matar os outros se George não abrisse a boca. E, mesmo que abrisse,
eles executariam todos juntos, se não aceitassem receber a marca.
Chloe havia virado a página.
- Ninguém notou isso?
- Isso o quê? - perguntou Mac.
- Os tiros. Os três tiros foram disparados pela moça. Uma sensação de
expectativa começou a tomar conta de Chloe à medida que a hora H se
aproximava. Mac havia estudado as coordenadas e concluído que eles estavam
a cerca de 40 minutos do cativeiro de George. Às 21h30, ele ligou para o celular
particular de Stefanich discando o número que Chang lhe fornecera.
No início da tarde, em Chicago, Buck e Enoque reuniram todo o pessoal.
- Uma rápida atualização dos fatos - disse Buck. - Chang tem uma pista
sobre Ming. Parece que ela está a caminho de San Diego. Depois, segue para a
China. O problema é que ele não sabe onde seus pais estão, portanto ela
também não deve saber.
- Como seguiu ela para San Diego? - perguntou Albie.
- Pelo caminho mais longo. Acho que pegou uma carona num avião
particular, de Long Grove à Carolina do Sul, e depois conseguiu...
- Alto lá! - disse Leah. - Espere um pouco. Long Grove?
- Sim. Depois ela...
- Buck! Será que o piloto é esse tal de Whalum?
- Não sei. O fato é que ela...
- O fato é que, se for Whalum, ele é o homem que deseja despachar os
módulos para Petra.
Buck parou ao ouvir aquela informação.
- Não estou entendendo.
- Ela pode estar indo para Petra.
- Ela nunca vai conseguir. A segurança está rígida demais.
- Então, me diga o que você acha.
- Talvez ela tenha pegado uma carona com um sujeito que está indo para
Petra, mas não vai com ele.
- É melhor começarmos a orar - disse Leah.
- É por isso que estamos aqui.
- Quer dizer que Ming usou um contato da cooperativa para...
- Podemos deixar esse assunto para depois, Leah?
- Claro, mas nós ainda não sabemos ao certo quem ele é. Não sabemos
se é realmente um dos nossos. Quando vi Ming lendo todas essas informações,
pensei que ela estivesse apenas querendo ajudar.
Buck ergueu a cabeça e olhou para Leah.
- Não foi você quem disse que Ming é uma mulher adulta e livre para fazer
o que quiser?
Mac surpreendeu-se depois de ouvir o celular de Stefanich tocar quatro
vezes. A política da CG dizia que os oficiais de comando sempre deviam estar
disponíveis para falar com a chefia.
- Nelson Stefanich falando - ele ouviu, finalmente -, e só estou atendendo
uma ligação de um número ignorado porque temos uma operação em
andamento; portanto, diga logo o que quer.
- Oi, Nelsinho "boa praça" Stefanich, como é que você vai?
- Quem...?
- Sinto muito ter faltado ao nosso encontro hoje. Aqui fala Howie Johnson.
- Sim, senhor comandante. Já nos conhecemos pessoalmente?
- Não, mas depois que fiquei sabendo muitas coisas boas sobre você,
parece que você é meu velho conhecido, entende o que eu quero dizer?
- Obrigado, senhor.
- Gostei das informações que você passou à minha assistente hoje.
- Tudo bem.
- Estamos prontos para arregaçar as mangas, Nel, e eu só queria lhe
passar as coordenadas para que você possa informar a Aristóteles que estamos
a caminho de nossa missão. Espero que seu telefone seja seguro.
- Claro, comandante.
- Ótimo, ótimo. Mas eu não quero que eles fiquem assustados. Eles devem
esperar por nós sem começar a atirar assim que ouvirem a gente chegando.
Queremos protegê-los também, portanto não vamos de carro até a porta. Vamos
chegar a pé, e, quando estivermos perto, eu vou dar dois assobios altos. Eles
devem responder com um assobio. Assim, a gente vai saber que está tudo certo
para ir em frente.
- Entendido. O senhor assobia duas vezes; eles assobiam uma.
- E eles devem entender que, assim que eu entrar em cena, quem dá as
ordens sou eu.
- Ah, sim, senhor. Não há dúvida.
- A propósito, achei os codinomes muito criativos.
- Obrigado. Eu...
- Mais uma coisa: esquecemos de perguntar sobre o alvo original, uma tal
de G. Stavros, fugitiva de uma penitenciária daí. O que aconteceu com ela?
- Bem, o senhor sabe que ela nos passou grande parte das informações
que sabemos sobre o esconderijo dos judaístas aqui.
- Ah, então ela é uma mercadoria valiosa.
- Era.
- Passado?
- Positivo. Morta.
- Verdade?
- Sim, senhor. Continuou a recusar a marca mesmo depois de ter fornecido
muitas informações.
- Guilhotina?
- A bem da verdade, não, senhor.
- Você entende que a lâmina faz parte do protocolo, não, comandante
Stefanich?
- Em circunstâncias normais, sim, senhor.
- E a diferença aqui foi...?
- Ela, ah, bem... ela começou a nos fornecer informações falsas.
- Por exemplo?
- Bem, nunca conseguimos uma resposta direta sobre a localização do
atual esconderijo. Ela foi uma das pessoas pegas nas invasões dos primeiros
esconderijos; portanto, quando voltou, devia conhecer pelo menos um dos novos
locais.
- Faz sentido. Ela resolveu não colaborar, certo?
- Certo, senhor. Depois da terceira tentativa infrutífera é que ela foi...
- Executada?
- Sim, senhor.
- Como?
- Alvejada pelo pelotão.
- Foi necessário um pelotão para acertar uma adolescente?
- Pelotão é um eufemismo que usamos aqui, senhor.
- Continue.
- Qualquer pessoa acima de determinada patente está autorizada a atacar
o inimigo pra valer.
- Atirar para matar?
- Exatamente.
- E essa tal pessoa que faz o serviço reparte os méritos com o resto da
equipe? Com o pelotão?
- Correto.
- Foi você que atirou nela, não, comandante?
- Sim, senhor, fui eu.
- Bem, foi um ato extraordinário, quase indescritível. Senti firmeza, Nelson.
- Obrigado, senhor.
- Sei que você fez isso em nome da Comunidade Global, e todos nós
estamos muito agradecidos, a começar pelo pessoal de cima.
- Muito obrigado.
- Não me agradeça, comandante Stefanich. O fato é que eu gostaria de
poder premiá-lo pessoalmente por aquele ato...
- Simplesmente cumpri meu dever, senhor...
- De qualquer forma, você será recompensado pelo serviço que prestou à
causa.
- Eu não sei o que dizer. Isso seria apenas...
- Tudo bem, Nel, estamos gastando muito tempo com esta conversa. Você
informa aos filósofos gregos e à amiguinha deles que daqui a pouco estaremos
chegando lá, entendeu?
- Está bem. Senhor?
- Estou ouvindo - disse Mac.
- Esperamos contar com sua ajuda, é claro, mas o senhor precisa saber
que estamos muito felizes com esta operação.
- Ah, sim, eu entendo.
- Bem, talvez seja só impressão minha, mas sua assistente me deu a
entender que o senhor está um pouco irritado com a equipe porque o prisioneiro
ainda não abriu a boca. Estamos planejando homenageá-los pela façanha deles.
- Eu entendi, comandante. Não se preocupe com isso. Acho justo dizer
que também temos a intenção de reagir positivamente à atuação deles.
- Nós também estamos aqui, é claro, para agradecer o milagre ocorrido em
Petra hoje - disse Buck. - Os dois pilotos experientes não foram capazes de
acertar o alvo a uma distância tão próxima, mesmo atirando aquelas duas
bombas gigantescas, bem... louvado seja o Senhor.
Os outros riram.
- É verdade - disse Albie. - E depois que eles viram que todo o povo ficou
em chamas, bem... aí é que ficaram espantados mesmo.
- Deixando as brincadeiras de lado - disse Buck -, Deus está agindo de
maneiras indescritíveis, e nunca devemos deixar de reconhecer seu poder e
soberania, seu cuidado para conosco, sua proteção a nossos familiares.
Após ele ter dito isso, várias pessoas ajoelharam-se na casa secreta e
começaram a orar espontaneamente e a louvar ao Senhor. Enoque dirigiu uma
oração pedindo proteção "a nossos novos amigos, nosso irmão Mac, e nossas
irmãs Chloe e Hannah, neste momento em que estão enfrentando uma missão
perigosa. Protege-os, vai adiante deles, envia anjos para os guardarem, e que
eles tragam nosso irmão da Califórnia são e salvo, para que possamos
agradecer a ele e congratularmo-nos com todos."
Chloe ficou agradecida quando Mac virou-se no banco e estendeu a mão
aberta para ela e Hannah. Os três deram-se as mãos, e ele orou. Não foi uma
oração longa, nem eloqüente. Mas partiu de Mac, e ele parecia saber com quem
estava falando. Aquilo acalmou Chloe. Um pouco. Temporariamente.
Quando Mac parou no acostamento, num ponto em que ele calculava estar
a uns 800 metros do destino, Chloe ficou feliz por poder descer do veículo. O
solo era desnivelado, mas sem buracos, e ela sabia que uma curta caminhada
seria benéfica para seus nervos. Os três desligaram os celulares e os colocaram
nos bolsos traseiros esquerdos. Os minúsculos walkie-talkies foram ajustados a
uma freqüência exclusiva, volume baixo, e colocados nos bolsos traseiros
direitos.
Chloe destravou a antiga Luger que estava ao seu lado direito, na altura do
quadril, e Hannah desafivelou a tira de couro acima do cabo de sua Glock. Os
três transportavam Uzis carregadas, presas por correia no ombro direito e
dependuradas no peito.
Mac retirou a DEW [arma de energia direcionada] do porta-malas e
entregou-a a Chloe. Ela colocou-a inclinada no ombro esquerdo. A Hannah, ele
entregou um saco de lona, pequeno e pesado, com pentes extras para a Uzi e
munição para o rifle calibre 50, que Mac carregava desajeitadamente na vertical,
com os pés do suporte bípede apontados para a frente. Ele apoiava a coronha da
arma de 1,20m de comprimento, pesando 15 quilos, na palma da mão direita,
com o braço esquerdo passado ao redor do cano.
- Ainda bem que estou razoavelmente em forma para minha idade - ele
disse. - Chegando aos 60 e ainda consigo ganhar de vocês numa corrida, desde
que o percurso não seja longo.
- Não carregando essa coisa - disse Hannah.
Chloe notou um leve tremor na voz dela. Era reconfortante saber que não
era a única que estava morrendo de medo.
- Não tenha muita certeza disso - desafiou Mac com o pé esquerdo à
frente e o tronco aprumado. Ele colocou a bússola diante da lanterna de Hannah
e iniciou a marcha.
- Sigam-me, senhoras.
As botas de Mac batiam no chão com ritmo cadenciado. Em breve, Chloe
começou a transpirar e a respirar com dificuldade. Mas ela se sentia bem, e
Hannah também parecia estar em boa forma. Contudo, a caminhada não afastou
a sensação de perigo da mente de Chloe. Os blefes tinham dado certo até ali.
Talvez certo demais. Se fosse tão fácil assim, não haveria necessidade de
estarem carregando armamento tão pesado.
Chang rastreou os passos de Ming até San Diego e notou que ela só
partiria de lá no início da noite. Horário da costa oeste. Ele ligou para o celular da
irmã.
- Oi, Chang - ela disse. - Onde você está?
- É um teste? Você acha que vou tentar convencê-lo de que estou na casa
secreta em Chicago?
- Quero que você saiba que conversei com eles.
- Claro. E vejo que não demorou muito para você me localizar.
- Onde você está exatamente, Ming, e o que está fazendo? Ela suspirou.
- Estou num pequeno terminal de aviões fretados, no sul de San Diego.
Meus documentos e minha aparência estão funcionando perfeitamente. Ninguém
pede para ver minha marca porque estou fardada, e, quando os pilotos vêem o
selo em minha testa, passam a proteger-me.
- Você não contou a eles quem é, contou?
- Contei, Chang. Sou uma idiota. Não! Claro que não. Por que
sobrecarregá-los com algo que pode lhes trazer problemas? Eles não podem ser
responsabilizados pelo que não sabem. O disfarce é perfeito. Eles estão
ajudando a Comunidade Global transportando um funcionário. Sabem
secretamente que sou crente, mas não sabem que sou mulher, que trabalhei
antes para a CG, nem que sou desertora.
- Ming, você sabe que nossos pais não estão em casa.
- Foi o que imaginei.
- Então, como você vai fazer para encontrá-los?
- Vou indagar. Posso fazer isso como oficial. Talvez eu prenda os dois.
- Não acredito que você tenha pensado nessa possibilidade.
- Pensei, Chang. Mais do que você imagina. Eles vão entrar em contato
com você antes que eu chegue lá. Diga a eles que estou a caminho e que
podemos marcar um local de encontro.
- Por que não providenciamos tudo isso antes de você partir?
- Porque você não concordaria. Você acha que sabe muito. Bem, você
sabe. Mas não sabe tudo, caso contrário saberia que não posso ficar sentada
numa casa secreta enquanto meus pais estão fugindo para não morrer. Será que
eles são crentes verdadeiros ou foram convencidos por nós a não receber a
marca de lealdade? Eu preciso saber. Preciso aproximá-los dos crentes. Sei que
não posso salvar a vida deles, nem mesmo a minha. Mas preciso fazer alguma
coisa.
Chang estava comovido. Então, ela havia pensado muito no assunto.
Talvez não em todos os detalhes. Talvez não em estratégias. Mas quem seria
capaz disso?
- Você precisa me avisar onde está assim que chegar lá - ele disse.
- Você me ama, não, Chang?
- Claro.
- Nunca dissemos isso um ao outro. Nunca.
- Eu sei - ele disse. - Mas nós sabemos.
- Você não é capaz de dizer que me ama.
- Sou, sim, mas fico emocionado só em pensar nisso, e não devo me
deixar levar por essas coisas. Não neste momento.
- Você, emocionado? Impossível.
- Não fale assim, Ming. Acho que você não me conhece.
- Sinto muito, Chang. Eu estava brincando com você.
- A verdade, irmã, é que eu amo você. - Chang comoveu-se mais ainda e
sentiu um nó na garganta. - Eu a amo muito, me preocupo com você e oro por
você.
- Obrigada, Chang. Não se emocione agora. Está tudo bem. Eu não tinha a
intenção de deixá-lo em situação desconfortável. De qualquer maneira, eu sei.
Eu sei, está bem? Eu também o amo e oro sempre por você. Você precisa
continuar a ser racional e prático; portanto, não se preocupe comigo.
- Como posso não me preocupar?
- Porque Deus vai me acompanhar. Ele vai me proteger. E, se Ele decidir
que meu tempo terminou, não vai demorar muito para eu voltar a ver você.
- Não diga isso!
- Vamos, vamos, Chang. Está tudo bem. Você sabe que é verdade. Não
existem mais garantias. Só temos certeza do lugar para onde vamos. Vou ligar
para você da China. Espero lhe dar boas notícias sobre nossos pais.
Após dez minutos de caminhada, Chloe parou para que Hannah ficasse
atrás de Mac. Sob a fraca iluminação, Hannah lançou-lhe um olhar firme, como
que perguntando se havia algum problema.
- Eu estou bem - disse Chloe. - Vou caminhar atrás de você.
Chloe teve um pouco de dificuldade para acompanhar os passos de Mac e
achou que se sentiria mais motivada se ficasse atrás de Hannah. Se Hannah
fosse capaz de agüentar o ritmo de Mac, ela também seria.
Chloe estava certa quanto a Hannah, mas não queria que nenhum dos
dois percebesse que ela estava exausta. Na verdade, ela achava que não estava
exausta. Agora, havia muitos pedregulhos na estrada, e ela caminhava com
passos ritmados. Sua respiração era firme e profunda, e ela transpirava muito.
Mac e Hannah também deviam estar transpirando.
De repente, Mac levantou a mão direita e voltou a colocá-la rapidamente
debaixo da arma calibre 50. Ele reduziu os passos e parou, dirigindo-se para o
lado da estrada a fim de ficar de frente para as duas.
- Tudo bem com vocês? Ambas assentiram com a cabeça.
- Querem tomar um pouco de fôlego?
Embora ofegantes, as duas fizeram um movimento negativo com a
cabeça.
- Estamos bem perto - ele disse.
Os três começaram a subir uma colina. Quando chegaram ao topo, Mac
ajoelhou-se e pousou a arma calibre 50 no chão. Ele fez um V com os dedos
embaixo dos olhos e, depois, apontou para um pequeno barracão de tábuas,
logo adiante de uma clareira. Uma luz fraca brilhava através de uma fenda na
janela da frente. Mac pegou a arma de energia direcionada da mão de Chloe e
apoiou-a no tronco de uma árvore.
Ele fez um gesto para que as duas o seguissem até os fundos do
barracão. Chloe surpreendeu-se ao ver como ele conseguia permanecer nas
sombras e caminhar de modo tão silencioso que ela mal podia ouvir o som das
botas de Mac tocando o solo. A Uzi que ela carregava bateu no cabo da Luger e
produziu um ruído de atrito, fazendo-a prender a respiração. Mac parou e olhou
para trás. Chloe teve de resistir ao impulso de levantar a mão para desculpar-se.
Ela endireitou o corpo, e os três rastejaram para chegar ao fundo do barracão,
onde as árvores bloqueavam totalmente a luz das estrelas. O barracão estava
em completa escuridão.
Mac agachou-se a uns 12 metros do local.
- Não estou gostando - ele sussurrou. - Só um veículo, parecido com o
meu. Deve ser aquele que Sebastian tomou emprestado da CG no aeroporto. E
vocês acham que este lugar tem espaço para cinco pessoas lá dentro? Eu sei
que eles estão escondidos, mas...
- Não estou entendendo nada - disse Hannah entre uma respiração e
outra. - Não vejo nenhum veículo.
Mac colocou a mão no ombro dela e a fez virar-se em direção à lateral do
barracão, onde havia um pequeno carro branco, quase totalmente escondido no
meio do mato. Hannah fez um movimento afirmativo com a cabeça. Chloe
também só avistou o veículo naquele momento.
- Acho que os olhos de vocês ainda não se acostumaram à claridade -
disse Mac como se estivesse falando sério.
Chloe quase riu alto. Os três estavam andando juntos no escuro.
Mac tirou a Uzi do ombro e pousou-a no chão. Em seguida, tirou do bolso
do colete uma ferramenta do tipo "faz tudo".
- Sei que isso vai parecer filme de cowboy - ele disse -, mas quero que
vocês me dêem cobertura.
Antes que Chloe pudesse perguntar aonde ele ia, Mac dirigiu-se
rapidamente até o carro e começou a tentar abrir o porta-malas. Todas as vezes
que fazia um ruído alto o suficiente para que as duas ouvissem, ele ficava imóvel
por alguns segundos. Decorrido certo tempo, a tampa do porta-malas foi
destravada. Mac segurou-a para que ela não abrisse completamente.
Com a outra mão, ele tateou o interior do porta-malas até onde pôde
alcançar. Foi necessário abrir um pouco mais a tampa. Com isso, a luz interna foi
acesa, e ele teve de abaixar a tampa novamente. Mac colocou a ferramenta no
pára-choque traseiro, segurou a tampa com a mão esquerda, enfiou a mão
direita na abertura e apalpou o interior do porta-malas. Assim que encontrou o
que procurava, ele retirou a mão, pegou a ferramenta, voltou a colocar a mão
dentro do porta-malas, deixando uma abertura suficiente para poder trabalhar.
Assim que a luz acendeu, ele quebrou a lâmpada com o auxílio da ferramenta.
Agora, com a tampa completamente aberta, ele tateou o interior do porta-
malas. De onde Chloe estava, parecia que metade do corpo de Mac estava lá
dentro.
De repente, ele parou o que estava fazendo, fechou o porta-malas e
retornou de costas para perto delas.
- Exatamente como pensei - ele disse. - Podem examinar.
- Calibre 12 - disse Hannah. - Aprendi a usar essa arma quando eu era
criança.
- Esses recrutas adoram suas espingardas - disse Mac. - O cara deixa
uma DEW e uma calibre 50 no avião e traz esta espingarda dele, de cano duplo,
para fazer o serviço. Esse bando tão inteligente de seqüestradores não deve ter
se lembrado de revistar o carro dele.
- Nós vamos entrar? - Hannah perguntou.
- Vamos, mas continuo não gostando nada disso. Metade deles foi embora
quando ficou sabendo que a gente estava chegando, ou o quê?
Evidentemente, Mac não esperava uma resposta. Ele entregou a
espingarda a Hannah.
- Esta arma dá uns estalos quando é engatilhada. Quero que você faça
isso quando eu assobiar.
Ele pegou a Uzi, e as duas o acompanharam de volta à frente do barracão,
caminhando pela parte mais escura do local. Quando estavam a uns seis metros
da porta, Mac apontou com a cabeça para Hannah e cochichou:
- No três.
Ele contou com os dedos e deu dois assobios agudos enquanto Hannah
engatilhava a arma com muita habilidade.
Eles perceberam uma movimentação dentro do barracão, som de passos
pesados, um mais forte que o outro, como se alguém estivesse mancando. A
porta rangeu e foi aberta alguns centímetros, e alguém assobiou. Ou tentou
assobiar. Foi mais um sopro. Em seguida, houve uma segunda tentativa.
- Tudo certo! - gritou Mac, tão alto que Chloe deu um salto. - Você sabe
quem está aqui. Apareça e deixe a gente entrar.
A porta foi aberta para o lado de dentro e bateu no homem, ou em sua
arma, quando ele tentou sair do caminho.
- Por aqui - ele disse, com sotaque acentuado.
Mac atravessou a porta, e Chloe notou que ele tinha um dedo no gatilho da
Uzi.
- Comandante sênior Howie Johnson acompanhado das oficiais Irene e
Jinnah. Saia da frente, soldado.
O homem, apoiando-se quase totalmente em uma perna só, encostou-se
na parede olhando assustado para eles e cumprimentando-os com um
movimento de cabeça.
- Quem é você? - Mac perguntou. - Hércules? Constantinopla? Quem?
- Sócrates, senhor.
- É claro. Muito bem, onde está o resto do pessoal, principalmente meu
prisioneiro?
- Não estão aqui, senhor.
Mac olhou para ele como se estivesse a ponto de explodir de raiva.
Tombou a cabeça para trás, ficando com o queixo apontado para o teto.
- Não estão aqui, senhor - ele arremedou. Em seguida, olhou firme para
Sócrates. - É só isso o que você tem a me dizer? Onde eles estão?
- Eles me pediram para dizer que o senhor deve ler as letras miúdas.
Chloe levou um segundo para entender aquilo e, pela expressão de Mac,
aconteceu o mesmo com ele.
Mac fez uma encenação ao passar por Sócrates, empurrando-o contra a
parede. Caminhou até a porta da frente e chutou-a com tanta força que a vidraça
tremeu, provocando um eco vindo das árvores. Mac virou-se para o homem.
- Letras miúdas do quê? Você achou que eu ia trazer a pasta de Sebastian
comigo?
- Eu só estou dizendo o que eles...
- Por que você não me diz o que está escrito em letras miúdas?
- Eles me deram esta incumbência porque eu não tinha condição de
acompanhá-los. Fui agredido pelo prisioneiro e ele me deu um chute no...
- Eu pedi para você me dizer o que está escrito em letras miúdas, homem!
O que eu preciso saber? Qual é o recado?
- Que eles têm o direito de transferir o prisioneiro para outro lugar, a
qualquer momento, sem informar à CG...
- Onde eles estão, soldado? Para onde foram?
- Eles não precisam informar seus superiores enquanto não chegarem ao
desti...
- Você sabe onde eles estão?
- Eles ouviram alguma coisa, bem antes da chegada do senhor, e...
- Você entende inglês, Sócrates. Tenho certeza. Você... sabe... onde...
eles... estão?
- Acho que eles não me contaram, porque...
- Você quer que eu acredite que eles deixaram você aqui só para me
cumprimentar e não disseram para onde iam?
- Eu não precisava saber. Assim, não poderia abrir a boca para a pessoa
errada.
- Espero que você esteja mentindo.
- Como, senhor?
- Espero que você esteja mentindo, porque pode mudar de idéia e me
contar tudo antes de morrer.
- Eu não sei de nada, comandante!
- Oficial Jinnah, mostre a Sócrates o estrago que uma calibre 12 pode
fazer na porta da frente.
Chloe gostaria de saber se Mac estava falando sério. Aparentemente,
Hannah não teve dúvida. Levantou a espingarda e apontou-a para a porta com
uma das mãos. Assim que o cano ficou paralelo ao chão, ela atirou. O estrondo
foi semelhante ao de uma bomba. Chloe ficou surda momentaneamente, mas viu
tudo o que aconteceu. O projétil fez um rombo na porta; ela se soltou das
dobradiças e voou longe, caindo a alguns metros do barracão.
- O seguinte vai atingir sua cara, Sócrates.
- Mas, senhor! - ele disse, choramingando. - Eu...
- Então, pegue o megafone, ou outra coisa qualquer, e diga a seu pessoal
que quero saber onde meu prisioneiro está, e quero saber já!
- Mas eles...
- Atire nele, Jinnah.
Hannah levantou a espingarda da mesma forma que fez antes, e Sócrates
jogou-se imediatamente no chão, chorando.
- Espere! Espere! - Ele tirou um walkie-talkie do bolso deixando a arma cair
no chão, sem querer. - Sócrates para Platão, fale comigo, fale comigo. Alô!
Platão? Sei que você está me ouvindo! Por favor! Eu preciso de ajuda!
Mac sacudiu a cabeça, como se não tivesse escolha.
- Jinnah! - ele disse.
- Não! Por favor! Espere! Elena! Elena, você está aí? Fale comigo, por
favor. Eu não estou brincando! Atenda! Aristóteles! Aristóteles, eles vão me
matar! Eu sei que não deveria ligar para você, mas agora tanto faz! Por favor,
fale comigo, se não eu vou morrer!
Nada. Chorando, ele curvou os ombros e abaixou a cabeça.
Mac ajoelhou-se e segurou o braço de Sócrates.
- Eles não estão longe, estão?
Sócrates fez um movimento negativo com a cabeça, soluçando.
- Estão aqui por perto, não? Ele assentiu com a cabeça.
- O senhor pode me matar, porque, de qualquer maneira, ou vou morrer.
- Como assim?
- Disseram-me que não ligasse para eles, de jeito nenhum. Disseram-me
que eu não abrisse a boca de jeito nenhum.
- Mas eles não estavam se referindo a mim, certo? Claro que não. Eles
queriam ter certeza de que estavam certos quanto aos sons. Tinham medo de
que aparecesse uma pessoa errada. Eles não estão com medo da CG, estão?
O homem encolheu os ombros.
- Não sei. Talvez eu não tenha entendido. Mas sou um homem morto.
- Então, que diferença faz se você me contar? Sócrates parecia estar
refletindo. Encostou-se novamente na parede, enxugou os olhos e guardou o
walkie-talkie no bolso. Quando ele esticou o braço para pegar sua arma, Mac
disse:
- Deixe a arma onde está.
Sócrates tentava recuperar o fôlego. Mac perguntou:
- Do lugar em que estão, eles conseguiram ouvir o tiro?
- Não. Talvez.
- Qual é a distância?
- Quinhentos metros a leste. Numa garagem improvisada. Mac sentou-se
em uma antiga cadeira estofada.
- Então, ouviram quando você chamou por eles. Sócrates assentiu com a
cabeça.
- E deixaram você aqui, sabendo que ia morrer.
SEIS
As celebrações, os cânticos e as danças em Petra continuaram noite
adentro. Milhares de pessoas mergulharam no lago recém-formado e bebiam da
água que jorrava da enorme fonte no meio dele. O maná que cobria o chão
deixou Rayford inebriado com seu sabor refrescante.
- Comer alimentos vindos diretamente da mesa de Deus - ele disse a
Abdullah - foi uma experiência que nunca tive na vida.
Abdullah parecia vibrar de alegria.
- Por que tudo isso, capitão? Como podemos ser tão abençoados?
Rayford não tinha palavras para expressar-se, mas sabia o que seu amigo
queria dizer.
Uma jovenzinha, aparentando menos de 20 anos, aproximou-se dele.
- Rayford Steele? - ela disse timidamente. Rayford levantou-se.
- Sim, querida.
- Duas coisas, se possível - ela disse muito lentamente, levantando dois
dedos. - O senhor entende?
- Sim, o que é?
- É verdade que o senhor só fala inglês?
- Sim, e considero isso uma vergonha. Bem, tenho um conhecimento
superficial de espanhol, mas não o suficiente para manter conversação.
- Não se envergonhe, senhor. Eu só falo hebraico.
- Mas seu inglês é muito bom, senhorita.
- O senhor não está entendendo.
- Estou entendendo perfeitamente. Você fala inglês muito bem.
Ela riu.
- O senhor não entendeu.
Abdullah intrometeu-se na conversa, dando uma risadinha.
- E você tem senso de humor, jovem. Falando em árabe e diz que conhece
apenas o hebraico. E você, Rayford, onde aprendeu a falar árabe?
A moça jogou a cabeça para trás e riu.
- Cada um de nós está falando no próprio idioma, e estamos nos
entendendo perfeitamente.
- O.quê? - disse Rayford. - Espere um pouco!
- Senhor! Eu só falo hebraico.
- E árabe - corrigiu Abdullah.
- Não. Fui proibida de aprender árabe.
- Acho que estou precisando dormir um pouco - disse Abdullah.
- Você me disse que havia duas coisas - disse Rayford.
- Sim - ela disse voltando a levantar dois dedos. - Duas.
Rayford pôs a mão sobre os dedos dela.
- Não há necessidade disso. Eu entendo muito bem o que você diz.
Ela riu.
- A segunda coisa - e agora ela falava com mais rapidez - é que o Dr.
Rosenzweig e o Dr. Ben-Judá querem ter uma audiência com o senhor.
- Comigo? Eu é que deveria pedir uma audiência com eles! Tenho certeza
de que ambos estão muito ocupados.
- Eles me pediram que o encontrasse, senhor.
Rayford acompanhou a moça passando por pilhas de estilhaços de rocha
produzidos pelas bombas. Chaim e Tsion estavam sentados dentro de uma
caverna iluminada por uma tocha presa à parede, em companhia de vários
homens idosos. Tsion apresentou Rayford a todos e disse:
- É dele que nós estávamos falando.
Os homens assentiram com a cabeça e sorriram.
- Louvado seja o Senhor - disse Tsion para Rayford.
- Para sempre seja louvado - disse Rayford. - Mas me perdoe por estar
preocupado.
Tsion concordou com a cabeça.
- Eu também estou aguardando notícias de nossos compatriotas na
Grécia, e até mesmo neste momento o Senhor me acalma, dando-me paz e
confiança.
- Talvez Ele esteja tentando fazer o mesmo comigo, irmão - disse Rayford
-, mas o fato de minha filha ser um deles está afetando minha fé.
Tsion concordou novamente com a cabeça e sorriu.
- Possivelmente. Mas, depois de ter sobrevivido aqui hoje, não lhe parece
justo dizer que qualquer falha na comunicação entre você e o Senhor é culpa
sua?
- É evidente que sim.
- Ah, a propósito, estou falando em hebraico, e você está...
- Eu sei, irmão. Aconteceu o mesmo entre nós e aquela jovem.
Os outros riram, e um deles disse:
- Minha filha!
- Encantadora!
- Obrigado!
- Chaim e eu estávamos conversando com estes irmãos sobre alguns
planos - disse Tsion. - Vamos orar pelos membros do Comando Tribulação
espalhados no mundo inteiro, e estamos ansiosos por ver como Deus vai libertá-
los. Mas cada um precisa prestar contas de seus atos. Como Chaim e eu
estamos sob sua responsabilidade, nós...
- Ah, Tsion, não! Essa época já passou! Já faz algum tempo que você é o
líder espiritual do Comando Tribulação e da igreja de Cristo ao redor do mundo.
- Não. Ouça-me, Rayford.
- Com todo o respeito que lhe devo, sinto-me sempre lisonjeado quando
você se refere a mim como o líder titular do Comando Tribulação, mas por
favor...
- Estes homens, Rayford, são um bom começo para nós aqui. Eles formam
o núcleo de um grupo de anciãos que se levantarão para ajudar Chaim nas
decisões diárias, assim espero. Mas, evidentemente, são novatos na fé.
- Eu também sou, Tsion. Tenho certeza de que você não está sugerindo...
- Desculpe-me, Rayford, mas você se esquece de uma coisa. Nenhum de
nós é completamente maduro na fé ou em idade. Não vou ofender sua
inteligência dizendo que vou precisar de sua orientação a respeito da Bíblia,
embora eu não possa negar que aprendi com você. Mas Deus o colocou em um
lugar estratégico para mim durante um período muito triste de minha vida. Se
você não se importar, eu gostaria de lhe contar algumas idéias a respeito do
futuro imediato e pedir seus conselhos.
- Se você insiste, mas pelo menos reconheça que não fui eu que fiquei em
pé no meio de um milhão de pessoas e vi Deus salvá-las milagrosamente do
fogo do inferno.
Tsion olhou para ele e deu uma piscadela, virando-se, em seguida, para os
outros homens. Eles deram uma sonora gargalhada.
Chaim apontou para Rayford e deu uma risadinha.
- Não foi você? Então, meus olhos me enganaram! - Ele virou-se para Ben-
Judá. - Tsion! Eu não vi este homem aqui em pé no meio de nós? Será que ele
não viu o que Deus fez?
- Está bem - disse Rayford. - Concordo. Mas o inimigo não atacou por
minha causa, Tsion. Foi por sua causa e de Chaim. Eu não estava pregando, não
estava orando, não estava imbuído de fé, quando as bombas caíram. A verdade
deve ser dita. Minha fé é mais forte agora do que no meio do fogo.
O semblante de Tsion tornou-se sério, e ele passou a mão pela barba,
analisando Rayford.
- Você daria um bom israelense - ele disse. Rayford encolheu os ombros.
- Zeke optou por uma aparência egípcia, mas quem sabe.
- Não, estou dizendo que você argumenta como meus compatriotas.
Poderíamos debater a noite inteira. E, mesmo quando está errado, você tem
argumentos!
Aquele comentário provocou mais gargalhadas entre o grupo.
- Muito bem, Tsion. Não sei por que você insiste em ficar sob as ordens de
alguém que acha tão fácil ridicularizar...
- Tudo não passa de uma boa brincadeira, meu caro irmão. Você sabe
disso.
- Claro. Diga o que deseja. Estou ouvindo.
Mac tirou seu telefone do bolso e o ligou.
- O que eles estão fazendo, Sócrates, os seus companheiros? Controlando
a gente?
Sócrates encolheu os ombros.
- Vamos, você não vai me ofender. Eles estão tentando saber se somos
autênticos, que não vamos pular em cima deles, nem deixá-los em situação
embaraçosa, ou o quê?
Mac digitou o número de Chang.
- Não há telefones celulares por aqui - disse Sócrates. - O senhor não vai
conseguir ligar para ninguém.
- Bem, eu não conseguiria se tivesse uma droga de aparelho. Mas e se eu
tivesse um telefone movido a luz solar e ligado a satélites? Aí, eu não ia me
importar se não houvesse telefone celular por aqui, não é mesmo?
- O senhor não vai conseguir falar com o comandante, a não ser...
- Oi, Mac. Aqui é Chang. Você está bem?
- Estou ótimo, senhor supremo comandante. Apenas verificando se meu
telefone funciona para falar com alguém de Nova Babilônia.
- Já entendi tudo, Mac. Pode falar. O que está havendo? Você está
encrencado? O que eu posso fazer?
- Muito bem, senhor. Como está o tempo aí? Chang disse:
- Deixei minha tela aberta para o GPS [sistema de rastreamento por
satélite], e estou rastreando você, ah... Jinnah e Irene até o lugar em que vocês
devem estar.
- Aguarde um instante, chefe. Só um segundo.
Mac fingiu cobrir o bocal do telefone com a mão, mas segurou-o de modo
que Chang pudesse ouvir.
- O que você disse mesmo, Sócrates? Que eu não podia usar meu celular
no meio do mato?
- Sim, bem, é claro que o senhor pode, com o satélite e essas coisas. Eu
só disse que o senhor não pode falar com ninguém, a não ser que essa pessoa
tenha um telefone igual ao seu.
- E quem aqui tem um telefone igual ao meu para eu poder falar com ele?
Sócrates empalideceu.
- Sei lá, eu não tenho.
- Quem tem?
- Meus companheiros também não têm. Temos telefones comuns.
- Você achou que eu ia ligar para um dos seus companheiros, não?
- Não.
- Claro que não. A não ser que o chefe deles tivesse fornecido o número
para mim, certo?
- Certo.
- Mas, mesmo assim, eu não poderia ligar para nenhum deles daqui,
poderia?
- Não. Foi só isso o que eu disse.
- Você ia dizer algo mais, não, Sócrates?
- Não. Só falei por falar.
- Você achou que eu estava ligando para o comandante Stefanich, não?
- Não, eu...
- Não mesmo?
- Sim.
- E você achou que eu não ia conseguir falar com ele.
Sócrates assentiu com a cabeça, sentindo-se miserável.
- Mas como você poderia saber disso?
- Foi só um palpite.
- Eu não posso falar com ele em Ptolemaïs, onde há tantos celulares?
- Acho que pode.
- Mas ele não está lá, está?
- Como eu posso saber?
- Ele está aqui no mato, não está? - Silêncio. - Não está, Sócrates?
Ele encolheu os ombros.
- Então, como ele avisou a você e seu grupo que eu estava chegando? Ele
não podia ligar para cá, não?
- Eu sou um completo idiota.
- Tenho certeza que sim, Sócrates. Você não está à altura de seu nome,
não é mesmo? - Mac voltou a falar ao telefone. - Desculpe a demora, chefe.
- Daqui eu tenho mais condições que você, Mac. Posso enviar um sinal ao
telefone de Stefanich que vai deixá-lo em polvorosa, mesmo que eu não consiga
falar com ele. Ele vai receber uma mensagem dizendo que o subcomandante
Konrad, que se reporta direto ao diretor Akbar, do Serviço de Segurança e
Inteligência, quer falar com ele imediatamente.
- Parece uma boa idéia, chefe. Volto a falar com o senhor depois. Tudo
está correndo bem aqui.
- Quando ele ligar, vou usar um modulador de voz que vai me fazer falar
como um alemão idoso. Vou dizer a ele que Akbar o responsabiliza
pessoalmente para que Howie Johnson tenha acesso a Sebastian.
- Perfeito.
- E, se ele não ligar, vou deixar a mensagem no telefone dele para ajudar
você a sair dessa. Eu vou lhe dar cobertura, Mac.
- Não pode ser verdade, comandante! - Mac fechou o telefone com força. -
Dê-me esse walkie-talkie, amigo.
- O senhor vai querer me matar.
- Quem, eu? Não. De qualquer forma, você é um homem morto. Foi você
mesmo que disse.
- É o senhor que vai me matar? Ou ela? Mac sacudiu a cabeça.
- Vou deixar essa tarefa para seus companheiros. Pense no lado bom das
coisas. Se eles forem tão eficientes quanto você, amanhã cedo você estará
tomando café normalmente.
Sócrates o encarou.
- Você toma café de manhã, não, Sócrates? O homem assentiu com a
cabeça.
- Com licença - disse Mac fingindo apertar o botão do walkie-talkie. -
Platão, Aristóteles e Elena, prestem muita atenção. Eu não quero falar com
nenhum de vocês. Quero falar com Nelsinho Stefanich. Nelsinho, sei que você
está aí e admiro sua criatividade. Você fez tudo direitinho. Não estou ofendido
por você estar me checando. Vamos fazer um trato. Quando você receber a
confirmação de que eu e minhas oficiais somos quem dizemos ser, quero que
você próprio me traga Sebastian. Já sabe onde estou. E mande aquele bando de
filósofos sair da toca para que eu possa vê-los. Se você fizer isso, Nelsinho,
prometo que não vou tirar você do posto. Ah, mais uma coisa, Nelson. Isso é
uma ordem! Você tem 30 minutos para executá-la.
Mac virou-se e olhou para Chloe e Hannah.
- Agora, Sócrates, você está livre para sair daqui.
- O que o senhor disse?
- Você ouviu. Vá. Saia daqui.
Sócrates levantou-se com dificuldade e curvou o corpo para pegar sua
arma.
- Ela fica - disse Mac.
- E meu rádio? - ele perguntou esticando o braço.
- Fica também.
- Para onde eu vou? Mac encolheu os ombros.
- Problema seu.
Sócrates sentou-se na beira de uma mesa frágil e esfregou o joelho.
- Eu não tenho para onde ir - ele disse.
- Você vai querer estar aqui quando...?
O homem levantou-se rapidamente, cambaleando.
- Não. Não. Mas a cidade fica muito longe daqui. E sem nenhuma
proteção, sem rádio...
- Eu não posso ajudá-lo, amigo. Você faz parte de uma operação que não
obedeceu ordens. Você tem sorte por estar sendo solto. Se quiser ficar aqui até
que o resto do...
- Droga! - Sócrates caminhou mancando até a porta da frente.
Mac fez um gesto para que Chloe o vigiasse. Ele passou com dificuldade
por cima de madeira quebrada e cavacos e distanciou-se.
- Vá atrás dele - disse Mac - até ter certeza de que ele está indo para a
cidade. Hannah, vigie a área. Vou vasculhar este lugar e nos encontraremos
perto das armas lá fora.
Rayford sentia-se um tolo, sentado na caverna, extasiado por ter vivido
pessoalmente um milagre do Antigo Testamento, preocupado com Chloe e
aguardando a possibilidade de que Tsion Ben-Judá lhe pedisse orientações.
Ele sabia que voltaria a ver sua filha de qualquer maneira, mas seria
errado pedir que ela fosse poupada de uma morte dolorosa e violenta?
- Você e Abdullah precisam decidir o que vão fazer, Rayford - disse Tsion.
- Podem ficar, é claro, mas não sei se é conveniente você supervisionar o
Comando Tribulação daqui. Os técnicos de informática me disseram que David
Hassid e Chang Wong instalaram aqui uma base para um excelente centro
tecnológico e que as bombas não tiveram efeito algum sobre o hardware e o
software.
- Você está falando sério? - perguntou Rayford. - O pulso eletromagnético
do míssil poderia ter destruído tudo.
- Está tudo em ordem. Louvado seja o Senhor. Daqui, você poderia
controlar as coisas, mas a decisão é sua.
- Eu vou partir - disse Rayford. - Só não sei quando. Estou preocupado
com o seu retorno a Chicago, Tsion.
- Era exatamente isso que estávamos discutindo, Rayford. Não sei se faz
sentido que qualquer um de nós tente retornar para lá. E você e Abdullah não
são tão visados quanto eu? Sem outro milagre, como poderemos retornar à casa
secreta sem revelar seu local?
O pensamento de encontrar uma nova casa secreta, de mudar-se, deixou
Rayford aborrecido.
- Deixe que a gente se preocupe com isso, Tsion. Quais são seus planos?
Você poderia transmitir suas mensagens diárias daqui.
Chaim interrompeu.
- Este é o meu desejo e o dos anciãos daqui. E, por que não dizer, do
resto do povo.
- Eu não sei - disse Tsion. - Vou seguir a orientação do Senhor, mas
acredito que Chaim possa ser o homem de Deus aqui.
- Meu trabalho terminou, Tsion - disse Chaim. - Deus ajudou-me, apesar
de minhas fraquezas, e aqui estamos. Vou passar o bastão para você, meu ex-
aluno.
- Continuo a ser seu aluno, doutor - disse Tsion.
- Cavalheiros - disse Rayford -, a admiração mútua de vocês é inspiradora,
mas não é muito útil agora. Este lugar necessita de liderança, organização,
mediação. Se você ficar, Tsion, precisa se resguardar de responsabilidades que
interfiram em seus ensinamentos para o povo daqui e para sua audiência ao
redor do mundo, via Internet.
Os anciãos concordaram com a cabeça.
- Talvez - disse Chaim - possamos descobrir algumas pessoas mais jovens
com esses dons. Estou disposto a auxiliar, coordenar um pouco, mas não sou
jovem. Esta é uma cidade, um país. Necessitamos de um governo. Deus prove
comida, água e roupas que não se desgastam com o uso, mas creio que Ele
espera que administremos o local. Devemos organizar e construir... é claro que
apenas por pouco tempo, mas mesmo assim...
- É possível - disse Rayford - que esse trabalho seja a maneira de Deus
ocupar o tempo de vocês aqui. Viver juntos, confraternizar-se, atuar em
harmonia... talvez esse seja um trabalho de tempo integral. Imaginem o tédio de
um milhão de pessoas aguardando sentadas o Glorioso Aparecimento.
Tsion animou-se ao ouvir essas palavras.
- Ah, é por isso que acredito que precisamos motivar o povo daqui a ajudar
o restante do mundo. Não estamos cegos às profecias, às maquinações do
demônio. Tentar nos fazer explodir é apenas o começo. Ele imagina que vai nos
matar de fome se cortar nossas linhas de suprimento. Ele não sabe, ou não
acredita, que Deus nos alimenta. Mas nós sabemos que estamos protegidos.
Devemos apenas nos resguardar contra os esquemas do demônio que visam a
afastar os indecisos deste lugar. Fora daqui eles estarão vulneráveis, não apenas
do ponto de vista emocional e psicológico, mas também do ponto de vista físico.
Sinto-me no dever de mantê-los aqui e de convencê-los.
- Eu não entendo - disse Rayford - como alguém pode continuar indeciso
depois do que aconteceu hoje.
- Está além da compreensão humana - disse Tsion -, mas Deus predisse
isso. Meu sonho para os fiéis que aqui se encontram é que eles sejam úteis para
ajudar nossos irmãos e irmãs do mundo inteiro. Pedro nos admoesta a ser
sóbrios e vigilantes "porque o diabo, vosso adversário, anda em der-redor, como
leão que ruge procurando alguém para devorar; resisti-lhe firmes na fé, certos de
que sofrimentos iguais aos vossos estão-se cumprindo na vossa irmandade
espalhada pelo mundo" (1 Pedro 5.8-9).
- O demônio vai tornar-se cada vez mais irado, mais determinado, mais
malvado, e muitos morrerão em suas mãos. Poderia haver tarefa melhor e mais
nobre para esta multidão do que ajudar a cooperativa comandada por sua filha e
equipar os santos para lutar contra o anticristo?
- Eu antevejo milhares de especialistas em tecnologia criando uma rede de
recursos para os crentes, informando-os a respeito de lugares seguros, pondo
um em contato com o outro. Sabemos que perderemos muitos irmãos e irmãs,
mas devemos fazer o que for possível para que o evangelho continue a ser
divulgado, mesmo agora.
Rayford aprumou o corpo.
- Não posso contestar suas palavras. E a idéia é boa, Tsion, de transferir
sua base de operações para cá. Vamos sentir sua falta, é claro, mas não faz
sentido nos arriscarmos a perdê-lo, porque sua presença é muito necessária
aqui.
- Eu estive pensando - disse Chaim - e, Rayford, me corrija, por favor, se
achar necessário, porque sou leigo nesse assunto. Mas acho que o tempo de
manter uma casa secreta para abrigar o Comando Tribulação já acabou.
Sabemos que Nova Babilônia está farejando todos os lugares e, mais cedo ou
mais tarde, a casa secreta em Chicago será descoberta. Sim, talvez seja
necessário encontrar um local central para coordenar as atividades da
cooperativa, mas, se eu estivesse em seu lugar, me preocuparia se minha filha
precisasse ficar mudando de um lugar para outro. Deixo os detalhes com você e
seus compatriotas. Mas eu lhe faço uma pergunta. Não é verdade que todo
mundo a quem foi solicitado permanecer na casa secreta em pouco tempo fica
com fobia de ficar preso em casa?
- O jovem de lá, Zeke, que transforma nossa aparência com tanta maestria
para nos aventurarmos a sair, talvez considere a mudança um transtorno. E vai
ser difícil transferir os registros e os computadores. Mas talvez a casa secreta do
futuro seja instalada em milhares de lugares. Talvez tenha chegado a hora de
vocês passarem a morar nos esconderijos dos crentes espalhados pelo mundo
inteiro.
Rayford receava que Chaim estivesse certo, e seus argumentos provavam
isso.
- Não estou dizendo que será fácil - prosseguiu Chaim -, mas eu lhe peço
que tome a iniciativa. Tome a decisão difícil. Abandone a casa secreta e disperse
seu pessoal antes que seja tarde demais, caso contrário perderá todos de uma
só vez. Vocês sabem que estão naquela casa há muito tempo.
- Eu sei disso, Chaim - disse Rayford. - Na verdade, não faz muito tempo
que nos mudamos para o Edifício Strong. Pode ser um tempo razoável, porém é
mais ou menos igual ao que ficamos na casa secreta anterior.
Tsion levantou-se e esticou o corpo.
- Devemos deixar esse assunto a seu critério. Deus o guiará. Eu
tencionava pedir conselhos a você, mas agora estamos tentando aconselhá-lo.
- Eu agradeço muito.
- Mas, por favor, Rayford, preciso de uma opinião sua. Vou lhe contar o
que acredito que Deus está incutindo em mim e quero saber se faz sentido para
você. Sei que isso vai ferir a sensibilidade de muitos dos que me ouvem. Mesmo
assim, eu não quero deixar o assunto para depois. Veja, em razão do que tem
acontecido desde o Arrebatamento da igreja, creio que existe ampla evidência de
uma parte da natureza e do caráter de Deus. Sabemos que este é um tempo de
julgamento, até mesmo de ira. Estamos no meio dos sete últimos julgamentos de
Deus, que totalizam 21, e chegamos a enfrentar um que Ele próprio menciona na
Bíblia como a ira do Cordeiro.
- Seria fácil para um pregador explicar e provar a impaciência de Deus, o
julgamento dele derramado sobre seus inimigos, seu clamor de justiça pelo
sangue dos profetas. Mas cheguei à conclusão de que tudo isso está muito
evidente. Sim, esta é a última chance. Tudo isso ocorreu nos últimos sete anos, e
já estamos na segunda metade desse período. Deus fará cumprir seus planos,
mas sinto-me no dever de proteger a reputação dele.
- Ah, sei que Deus não necessita de mim, nem solicita minha assistência.
No fundo de minha alma, aceito com grande humildade o fato de Ele ter me
permitido exercer a função de pregar a todas as nações. Mas uma mensagem
profunda, e aparentemente contraditória, oprime meu coração. Creio que essa
mensagem provém de Deus, mas nela existe tal paradoxo, tal dicotomia, que não
me atrevo a prosseguir sem o conselho e a sabedoria de minha família espiritual.
Tsion massageou as têmporas e pôs-se a andar de um lado para o outro.
- Cavalheiros - ele disse -, vamos caminhar um pouco. Acompanhem-me.
- Se o senhor sair daqui, a multidão vai cercá-lo - disse alguém.
- Todos verão que estamos ocupados, tenho certeza - disse Tsion. - Não
vamos fazer disso um espetáculo. Quero que os senhores caminhem ao meu
redor. Vamos nos afastar das massas.
A maioria do povo continuava a divertir-se na fonte, enquanto outras
pessoas recolhiam água e maná. Rayford fez companhia aos anciãos e a Chaim
e, juntos, chegaram ao topo de uma elevação e desceram uma rampa rochosa.
Quando se afastaram dos olhares da multidão, Tsion voltou a falar
enquanto caminhava.
- Estou consciente de que fui agraciado com um grande privilégio. Tenho
uma congregação de um milhão de almas, só aqui. Tenho a oportunidade de
doutrinar os bebês na fé, oferecendo-lhes o leite da Palavra de Deus. Também
alegro-me por poder partir o pão e destrinchar a carne das coisas mais profundas
para as pessoas mais maduras na fé. E sou abençoado por pregar o evangelho,
porque até mesmo aqui existem pessoas indecisas. Não vamos ganhar todas
elas, e essa verdade causa-me espanto, principalmente após o esplendor de um
evento como aquele que experimentamos poucas horas atrás. Mas a questão
principal é a seguinte: Deus refrigera minha alma diariamente e espera que eu
exercite, com sua permissão, todos os dons que Ele me concedeu como
pastor/professor.
Quando Tsion parou, o restante do grupo fez o mesmo. Ele sentou-se em
uma rocha, e eles fizeram um círculo em volta dele.
- Isso pode parecer estranho aos senhores, porque tenho dito reiteradas
vezes que estes são os sete piores anos da história da humanidade, porém eu
considero, de muitas maneiras, um benefício quase ilimitado o fato de estar vivo
neste momento. A tecnologia permitiu-me ter uma congregação de mais de um
bilhão de pessoas via Internet, um número inacreditável. Um dia, no céu, vou
pedir a Deus que permita que meu cérebro finito compreenda essa cifra. Por
enquanto, trata-se de algo grandioso demais para minha compreensão. Não
posso imaginar o que isso significa, não posso dizer quantos estádios de cem mil
lugares seriam necessários para acomodar toda essa gente. Bem, é claro que sei
que dez mil desses estádios acomodariam um bilhão de pessoas, mas os
senhores conseguem ter idéia do que isso significa? Eu não.
- Agora, permitam-me dizer-lhes o que pesa sobre mim quando penso nas
responsabilidades que tenho diante dessa imensa congregação. Creio que é
chegado o momento de parar de falar sobre o julgamento de Deus. Não há como
negá-lo. Não há como fingir que sua ira não está sendo derramada. Mas cheguei
à conclusão de que a mensagem de Deus, ao longo dos séculos, é uma antífona
à sua misericórdia.
- A maioria dos senhores sabe que essas palavras vêm de um homem que
presenciou o assassinato de sua esposa e filhos muito amados. Será que estou
dizendo que a santidade de Deus é menos importante que o amor de Deus?
Como eu seria capaz disso, se a Bíblia diz que Ele é amor, mas que também é
santo, santo, santo?
- Estou simplesmente dizendo que vou deixar que a justiça, o julgamento e
a ira de Deus falem por si, e passarei o resto de meus dias aqui advogando
ardorosamente sua misericórdia.
Pareceu a Rayford que Tsion fez uma pausa para fitar demoradamente
todos os que o ouviam. Ele poderia ter prosseguido, defendido a si mesmo e
defendido sua recente opinião. Mas simplesmente encerrou sua fala, dizendo:
- Os senhores têm até o meio-dia de amanhã para corrigir-me, se
acreditarem que sou um irmão intempestivo. Caso contrário, meus ensinamentos
vão começar, e os senhores sabem qual será o tema.
Buck estava solidário com Albie. O homenzinho do Oriente Médio parecia
inquieto, incapaz de ficar parado.
- Eu não posso viver assim, Cameron - ele disse. - Vou conversar com
Zeke esta noite para examinar os arquivos dele. Você viu o material que ele tem?
- Claro.
- Ele deve ter uma identidade para mim. Acho que não posso mais me
fazer passar por funcionário da CG, mas aceito qualquer coisa. Qualquer coisa
que não seja ficar sentado aqui. Você acha que ele poderia me deixar alto e
loiro?
Buck não pôde conter o riso. Uma dessas duas coisas até que poderia dar
certo.
- Acho que vou com você - ele disse. - Zeke é um artista, e essa história de
ficar parado aqui vai me matar.
- Mas você tem o que fazer. Escreve. Faz download do material que
Chang envia e transmite tudo pela internet. Eu gosto muito de seu filho,
Cameron, mas vou enlouquecer se ficar aqui ajudando a cuidar dele, lendo,
olhando pela janela e aguardando a chegada do resto do pessoal.
- Eu sei...
- Você já passou bastante tempo em companhia de Mac? - Albie
perguntou.
- Claro.
- Grande homem. Muito inteligente. Mas não pensamos da mesma
maneira. Fico imaginando tudo o que ele deve estar fazendo na Grécia num
momento como este, que poderia ser... oh, sinto muito. Eu sempre me esqueço
de que Chloe está lá com ele.
- E daí? Você acha que Mac não está cuidando de Chloe? Pois eu acho
que ela é que está cuidando dele.
- Eu só quis dizer que deveria estar lá.
- Subcomandante Konrad?
- Exatamente - disse Chang, com a voz modificada eletronicamente -, e
espero estar falando com Nelson Stefanich.
- Sou eu mesmo, senhor, e...
- Comandante, exijo saber o que está se passando aí.
- Sim, senhor, nós...
- Enviei meu comandante sênior daqui de Nova Babilônia com a missão de
conversar diretamente com seu prisioneiro.
- Ele vai conversar, senhor. Eu...
- Não gosto da maneira como ele está sendo jogado de um lado para o
outro. Você foi avisado com antecedência e teve tempo de sobra para preparar
tudo.
- Eu sei. Nós...
- Aguardo a transmissão de um relatório completo para meu escritório até
o meio-dia de amanhã.
- Vou fazer isso, senhor, porque posso explicar tudo.
- Johnson já se encontrou com Sebastian?
- Ainda não...
- Como não? Se não se encontrou com ele até este momento, exijo saber
por quê.
- Houve um mal-entendido entre a equipe daqui, senhor. Eles imaginaram
ter ouvido...
- Vou examinar esses detalhes amanhã, comandante, mas, enquanto isso,
quero crer que você vai providenciar esse encontro.
- Sim, senhor.
- E não convoque Johnson para ir até onde você está.
- Como, senhor?
- Ele já foi até onde eu acho que deveria ir. E, esteja onde estiver, o lugar
em que ele se encontra é seguro; portanto, ordene que seu pessoal leve o
prisioneiro até ele.
- Sim, senhor. Subcomandante, será que eu poderia transmitir-lhe uma
boa notícia?
- Nenhuma notícia será boa enquanto Johnson não tiver acesso a
Sebastian.
- Eu só queria que o senhor soubesse que localizamos a sede do
esconderijo em Ptolemaïs e planejamos invadi-la à meia-noite.
SETE
De dentro do barracão, Chloe acompanhou os passos de Sócrates até o
momento em que ele desapareceu, mancando, em direção à estrada. Em
seguida, ela caminhou, pé ante pé, em ângulo de 90°, até o meio das árvores e
cruzou depressa o local onde estavam a Calibre 50 e a DEW.
O homem que ela vigiava havia passado perto das armas, que estavam a
uns 12 metros à sua esquerda, mas ele não as viu. Não seria difícil acompanhar
os passos de Sócrates, que mancava.
Chloe segurava firme o cabo da Uzi, puxando a tira para mantê-la afastada
do corpo e impedir que batesse na Luger. Ela olhou para os dois lados e desceu
a rampa, com passos miúdos, tomando cuidado ao atravessar a estrada coberta
de pedregulhos. Ao chegar ao outro lado, ela percebeu uma movimentação no
meio da vegetação, alguém seguindo apressado para a esquerda, a leste, sem
preocupar-se por estar andando entre galhos secos e pisando em entulhos.
Chloe agachou-se e controlou a respiração, calculando a direção e a distância,
para não aproximar-se muito do homem e pôr tudo a perder.
Não havia necessidade de andar no meio da vegetação alta. Ela poderia
facilmente manter o ritmo das passadas caminhando pelo acostamento da
estrada, sobre a terra fofa, sem fazer barulho. O único perigo era alcançar sua
presa e ser vista. Provavelmente era Sócrates. Ele parou assim que chegou
perto do barracão, aparentemente para prestar atenção a algum ruído. O fato de
não ouvir nada serviu para encorajá-lo, porque ele voltou a ficar exposto, talvez a
uns 15 metros de Chloe, também preferindo andar pelo caminho menos
acidentado ao lado da estrada.
Chloe ficou imóvel, com a mão no cabo da arma, para não ser pega de
surpresa, caso ele decidisse virar-se para o outro lado. Ela acreditava que não
seria vista na escuridão, mas quem poderia saber que tipo de visão teria aquele
homem manco e desarmado? Algumas pessoas eram capazes de ver ou
perceber sombras no escuro. Mac havia comprovado isso. Talvez, por conhecer
a área, aquele sujeito notasse uma silhueta entre as árvores.
Chloe aguardou até que ele fizesse a curva. Em seguida, caminhou
rapidamente até onde poderia voltar a ouvir os passos mancos e pesados do
homem. Ela firmou bem os olhos e conseguiu ver - ou pelo menos imaginou ter
visto - que ele estava mexendo o joelho e tentando andar com o corpo mais
ereto, mais normal, porém sem sucesso. Vez por outra, ouvia um resmungo ou
um gemido. Ele estava sentindo dor e, certamente, seguindo pelo caminho mais
longo até a cidade.
Não, Sócrates ia levá-la ao local onde George Sebastian se encontrava.
Chloe sabia disso. Será que ela poderia tentar fazer uma transmissão silenciosa
apenas para avisar Mac que o homem estava seguindo na direção contrária? Se
a conversa durasse 30 segundos, quantos metros o homem se distanciaria dela?
Mac e Hannah poderiam alcançá-la rapidamente, e os três o dominariam sem
demora.
Mac, porém, estava vasculhando o barracão, e Hannah ficara do lado de
fora sozinha, para prevenir emboscadas. Chloe jamais perdoaria a si mesma se
uma transmissão desnecessária deixasse alguém em perigo. Se Sócrates a
conduzisse à tal garagem ou coisa parecida, ela não correria nenhum risco, a
menos que fosse vista. Se os outros três estivessem lá - até mesmo Stefanich -,
ela ainda teria tempo suficiente para avisar os companheiros.
Mac estava ajoelhado no porão úmido e atulhado. A única lâmpada
dependurada no teto deixava entrever marcas irregulares no chão de terra. Com
o auxílio da lanterna, ele tentou averiguar se George havia sofrido maus-tratos.
Era impossível enxergar se havia traços de sangue entre as pegadas e as
marcas indecifráveis. Aquele seria o lugar ideal para aterrorizar um seqüestrado,
ele pensou.
Depois de iluminar todos os cantos com a lanterna, desligou a lâmpada do
porão. Quando estava caminhando em direção à escada, seu celular vibrou.
Ansioso por sair dali, mas hesitando falar ao telefone ao ar livre, ele parou no
meio da escada e abriu o aparelho. Seria imaginação sua ou teria ouvido uma
voz vinda dos fundos? Ele supôs que Hannah já tivesse vasculhado a área.
Agora, ela deveria estar aguardando, em companhia de Chloe, perto da árvore
diante do barracão.
Mac não se atreveu a dizer nada ao telefone; apenas ficou ouvindo.
- Mac?
Era Chang, mas Mac não quis confirmar. Ele apertou uma tecla no
aparelho.
- Mac? É você?
Ele apertou a tecla por um pouco mais de tempo.
- Está bem, você não pode falar, nem eu posso, enquanto não tiver certeza
de que é você. Um bip se for verdadeiro; dois bips se for falso: depois do primeiro
livro do Novo Testamento, os próximos quatro livros têm exatamente, em seus
títulos, o mesmo número de letras [na Bíblia em inglês].
Agora Mac tinha certeza de ter ouvido uma voz vinda dos fundos. Voz de
homem. A afirmação de Chang era verdadeira, mas agora ele estava em dúvida:
um bip para verdadeiro e dois para falso ou o contrário? Ele hesitou, tentando
ouvir alguma coisa enquanto rastejava até o topo da escada.
- Mac saberia responder - disse Chang. - Um para verdadeiro, dois para...
Mac apertou a tecla uma vez, rapidamente.
- Pode ter sido um palpite que deu certo - disse Chang. Mac fechou os
olhos. Ora, vamos, Chang!
- Você tem um contato num lugar muito estratégico. Dê um bip para cada
número de letras do sobrenome de solteira da irmã dele.
O quê? Chang faria sucesso numa festa. Ótimo, o contato é Chang. A irmã
dele é Ming Toy. Três bips. Alto lá! Sobrenome de solteira. O mesmo de Chang.
Wong. Quatro. Mac deu quatro bips rápidos. Agora, ele estava espiando o lado
de fora do barracão em direção aos fundos. Não via nada.
- Entendido, Mac. Agora, preste atenção. Falei com Stefanich como se eu
fosse Konrad. Ele está mandando seus homens levarem Sebastian até você.
Fique alerta, mas não perca tempo. Ele disse que descobriram uma sede
clandestina e que vão atacá-la à meia-noite. Eu não sei o número do telefone do
pessoal da cooperativa daí. Você sabe? Um para sim, dois para não.
Mac apertou a tecla duas vezes.
-Eu nem sei se eles têm telefone. Você pode enviar alguém para ajudar?
Um para... Mac apertou uma vez.
- Você está correndo perigo imediato? Mac apertou duas vezes.
- Entendi, você não pode falar. O GPS mostra que você continua no
mesmo lugar desde a última vez que conversamos. Há alguém com você aí?
Duas vezes.
- Do lado de fora?
Uma vez.
- Consegue ver quem é?
Duas vezes.
- Está bem, você consegue ouvir. Você mandou seu pessoal para fora?
Uma vez.
- Duas pessoas?
Uma vez.
- Ligue para mim quando puder. Quero saber se vamos fazer alguma coisa
pelo pessoal da cooperativa daí.
Mac guardou seu celular e rastejou até o lado de fora Havia meia dúzia de
soldados das Forças Pacificadoras, armados, em volta do carro.
- Eu digo que devemos levar o carro.. A caminhada durou horas.
- Não temos chave.
- Faça uma ligação direta.
- Ora vamos! Acho que só falta meio quilômetro. Os soldados dirigiram-se
para o leste. Mac contornou o barracão até a frente. Então, Stefanich tinha
enviado reforço. Será que o reforço era só esse?
Nem Hannah nem Chloe estavam ao lado da árvore. Mac deu um leve
assobio para saber se elas estavam por perto. Nada. Ele ajoelhou-se na
escuridão. A Calibre 50 estava no lugar. A DEW havia sumido.
Para George, parecia que Aristóteles havia virado à esquerda na estrada e
seguido na direção leste durante 20 minutos antes de parar no acostamento e
aguardar. George tinha aprendido a calcular mentalmente a passagem do tempo,
mas agora precisava lutar contra o sono. Segundo seus cálculos, eles estavam
sentados ali, parados, por mais de uma hora. Mas não seria surpresa se fossem
duas horas. Finalmente, Aristóteles disse:
- O que vocês acham?
- Já devíamos ter saído daqui há muito tempo - disse Elena. - Vai clarear
logo, e, de qualquer forma, não há muitas pessoas lá.
- Platão?
- Sim, vamos! Temos de voltar logo para cá. George entendeu que eles
saíram da estrada de pedregulhos e dirigiram-se para a estrada principal rumo ao
sul. Depois, seguiram para o leste. De acordo com o ambiente e os sons, George
achou que eles estavam em uma área povoada, talvez uma cidade.
- Não deixem que ninguém veja esse cara! - disse Aristóteles alguns
minutos depois.
Platão agarrou George pelo ombro direito e o puxou até ele ficar com a
cabeça em seu colo.
Aristóteles reduziu a velocidade e parecia estar estacionando o veículo.
- Não, não! - disse Platão. - Dê a volta pelos fundos.
Assim que eles pararam e estacionaram, Elena disse:
- Vou ver se está tudo em ordem.
George sentia cãibras na parte inferior das costas, mas não podia fazer
nada para aliviá-las. Elena retornou e subiu no jipe, fechando a porta.
- Mais ou menos 20 minutos - ela disse.
- Você encontrou o que precisávamos? - perguntou Aristóteles. - Deixe-me
ver.
- E o lugar?
- Mais ou menos 30 centímetros abaixo do alto da porta direita.
- Eu não notei isso antes.
- Ele pode ficar sentado? - perguntou Platão.
- É melhor esperar.
Chloe parou a uns 15 metros atrás de Sócrates e calculou que faltava meio
quilômetro para eles chegarem ao barracão.
Sócrates estava curvado, com as mãos nas coxas, respirando com
dificuldade. Seus passos ficaram mais lentos nos últimos cem metros; talvez ele
estivesse tentando inventar uma história para seus companheiros, a fim de
conquistar a simpatia deles.
Ela observava o homem atentamente e, de repente, assustou-se ao ouvir
som de passos no pedregulho. De várias pessoas. E não estavam com pressa.
Nem furtivos. Apenas aproximando-se. Ela se escondeu atrás de um arbusto a
cerca de três metros da estrada e ajoelhou-se, sentindo a calça da farda de
camuflagem empapada de suor frio. Lutava contra a tentação de prender a
respiração, temendo exalar o ar justamente no momento em que as pessoas
estivessem se aproximando. Não podiam ser Mac e Hannah. Havia várias
pessoas.
Ela havia perdido Sócrates de vista e não ficou sabendo se ele continuou a
caminhar. Se tivesse continuado, encontraria seus companheiros, e ela ficaria
sem saber para onde seguiram. De repente, avistou meia dúzia de soldados das
Forças Pacificadoras empunhando armas. Eles caminhavam sem pressa,
conversando. Dois fumavam. Chloe tentou entender o que se passava. Eles
pareciam saber para onde iam. Para o mesmo lugar? Ela poderia acompanhá-
los, e talvez fosse mais fácil, em razão do barulho que faziam.
Eles passaram a três metros de Chloe, e ela aguardaria 30 segundos
antes de aventurar-se a sair dali. Seu walkie-talkie deu dois estalos rápidos,
cheios de estática, assustando-a.
Os soldados continuavam caminhando e conversando, mas ela entrou em
pânico. Apesar de não terem ouvido os sons, poderiam ouvir vozes, caso alguém
começasse a falar com ela.
Chloe enfiou a mão no bolso para desligar o rádio, mas errou o botão e
aumentou o volume. Aflita e tentando encontrar o botão para desligar, ela perdeu
o equilíbrio e caiu sentada.
"Johnson ou Irene, fale, por favor."
Alto demais!
Chloe levantou-se rapidamente, tirou o rádio do bolso, apertou o botão de
transmissão duas vezes, desligou-o e endireitou-se, preparando a Uzi. Os
soldados das Forças Pacificadoras haviam parado e estavam vindo em sua
direção.
Mac pegou seu rádio e cochichou:
- Aqui é Johnson, Jinnah. Qual é a sua posição?
- Cem metros a nordeste do ponto de encontro.
- Você está bem?
- Positivo. Tropas da CG na mata, senhor.
- Irene com você?
- Negativo.
- E a DEW?
- Positivo.
- Estou a caminho. Quantos?
- Calculo duas dúzias, senhor.
- Repita!
- No mínimo 24.
- Entendido. Tome cuidado, desligue transmissão via rádio e retorne ao
ponto de encontro.
- Entendido.
Fácil demais enganar Stefanich. Ou ele não estava acreditando ou era um
verdadeiro idiota.
- Johnson chamando Irene... Johnson chamando Irene... Johnson
chamando Irene. Está me ouvindo?
Mac olhou para seu relógio, chutou o chão, apertou os lábios e aguardou a
chegada de Hannah.
Chloe estava no meio de um arbusto espinhoso, com o dedo no gatilho e
os pés afastados sobre a terra fofa. Os soldados das Forças Pacificadoras
pararam na estrada, de frente para o local onde Chloe se encontrava, tão perto
que ela podia ouvir a respiração deles. Os seis engatilharam as armas ao mesmo
tempo. Ela mal conseguia enxergá-los e supôs que eles não pudessem vê-la. Ela
prendeu a respiração e ficou imóvel.
- CG! - um deles gritou. - Quem está aí?
Chloe tinha esperança de que os seis chegassem à conclusão de que não
ouviram nada.
- Apresente-se ou vamos cercar a área!
- Sou aliada! - ela gritou. - Também da CG. Irmã em missão. Tenham
calma.
- Armada?
- Segurando a arma acima da cabeça. Tenho certeza de que minha
patente é superior à de vocês, portanto não tomem nenhuma atitude precipitada.
Uma enorme lanterna forçou-a a semicerrar os olhos. Continuando a
segurar a Uzi acima da cabeça, ela disse:
- Apague essa coisa! Estamos todos aqui trabalhando na mesma missão.
A lanterna foi apagada.
- Entregue a arma, senhora, e depois vamos resolver esse caso.
- Não, primeiro vamos resolver esse caso. Estou colocando a arma
embaixo do braço para poder mostrar meus documentos a vocês. Relaxem. Até
agora vocês seguiram estritamente as instruções e não posso culpá-los.
- Obrigado. Vou precisar acender a lanterna para ver seus documentos,
senhora.
- Um momento, eu tenho uma lanterna pequena. Está no meu bolso.
Com a arma embaixo do braço e apontando a lanterna pequena para seus
documentos, Chloe sentia o coração bater como um tambor dentro do peito.
- Ela é oficial, companheiros - disse o líder. - Sentido!
- Não há necessidade - disse Chloe. - Bom trabalho. Apenas um pequeno
deslize, mas pelo menos vocês chegaram no horário.
- O que a senhora estava fazendo no meio do mato?
- Cumprindo ordens. Quero que vocês aguardem a chegada de meu
comandante e de outro oficial, para seguirmos juntos.
- Essa Uzi não é oficial, é?
- Ela é muito cobiçada. De uso restrito.
- Verdade?
- Como oficial, eu posso usá-la.
- Puxa!
- Continuamos no horário? - ela perguntou.
- Ainda faltam cerca de 20 minutos, senhora.
- Esperem um pouco, cavalheiros. - Chloe tirou o rádio do bolso e o ligou.
- Oficial Irene para o comandante sênior Johnson.
- Johnson? Oh, não!
- Comandante sênior!
Chloe virou-se para os homens das Forças Pacificadoras.
- Um pouco mais de respeito, por favor.
- Aqui fala Johnson, prossiga.
- Senhor, encontrei seis soldados das Forças Pacificadoras que vão
trabalhar conosco na missão. Estamos aguardando pelo senhor a cerca de 480
metros a leste de sua posição.
- Seis?
- Positivo.
- Está tudo em ordem, Irene?
- Positivo.
- Pelo que estou entendendo, devíamos estar cercados - disse Mac a
Hannah. - Você tem certeza de que não foi vista?
- Absoluta. Mac ligou para Chang e o inteirou da situação.
- O que está havendo? - ele perguntou a Chang. - O que você acha que
Stefanich está aprontando?
- Entrei no mainframe dele, Mac, e não existe nada lá. Pode ser que eles
estejam atrás de você ou Stefanich esteja apenas tentando se proteger.
- Mas por que ele mandou toda aquela gente para o meio do mato? Será
que estão se reunindo aqui para a invasão da meia-noite?
- Parece que pegaram o caminho errado.
- É claro que sim, a não ser que eles não saibam ao certo onde fica a sede
clandestina. Não estamos muito longe do local onde o pastor escondeu Rayford.
Você acha que eles descobriram o esconderijo?
- Você está a uns 50 quilômetros de lá, Mac. Vou continuar investigando,
mas não sei o que lhe dizer.
- Muito bem, vamos - disse Aristóteles.
Platão empurrou George, forçando-o a ficar com o corpo ereto. Alguém
abriu a porta a seu lado e, aparentemente, Platão e Aristóteles o seguraram pelo
braço, um de cada lado, enquanto Elena abria as portas. Sempre conduzido
pelos dois, ele andou uns quatro metros, subiu três degraus de concreto e entrou
em algum lugar. Em seguida, deu mais uns 20 passos ao longo de um corredor
que, pelo eco dos passos, parecia estreito. Finalmente, entrou em uma sala
espaçosa.
Aristóteles soltou George e afastou-se um pouco.
- Droga! - ele disse. - Não consigo. Platão?
- Dê-me isso aí.
George ouviu um som de metal sendo inserido em outra peça de metal e,
em seguida, dois cliques altos.
- Qual é o segredo disto aqui? - Platão resmungou.
- Vou tentar pelo outro lado - disse Aristóteles.
Elena ocupou o lugar de Aristóteles, ao lado de George.
Se ao menos eu não estivesse algemado, pensou George. Ele poderia
aproveitar a oportunidade. Derrubaria a moça com um golpe, arrancaria as
vendas dos olhos, correria pelo corredor até a saída e contaria com a sorte para
ajudá-lo. Mas não com as mãos algemadas para trás. Se fizesse qualquer
movimento, ela certamente atiraria nele.
Platão e Aristóteles continuavam a resmungar.
- Empurre o homem para dentro, Elena - disse Aristóteles.
Elena conduziu George para a frente, virou-o de lado e tentou forçá-lo a
passar por uma abertura que, aparentemente, era mantida aberta por Platão e
Aristóteles, um segurando de cada lado. A abertura era muito pequena para
George passar.
- Deixem um pouco mais de espaço - disse Elena.
Os dois resmungaram alto. Com um empurrão, ela fez George passar pela
abertura.
- Esperem um pouco - disse Aristóteles. - Não quero que ele seja
encontrado algemado e com os olhos vendados.
Alguém abriu as algemas.
- Tire a venda dos olhos e jogue-a para mim - disse Elena.
Assim que a arrancou, George viu que estava dentro de um elevador
escuro. Elena tinha uma arma apontada para ele. Seria uma boa oportunidade,
George pensou, porque Platão e Aristóteles estavam totalmente ocupados,
segurando as portas para que elas não se fechassem. Elena pegou a venda,
colocou-a no bolso e tirou uma garrafa de água do outro bolso. Ela atirou a
garrafa dentro do elevador e gritou:
- Divirta-se!
As portas se fecharam.
George deixou que a garrafa rolasse no chão e tentou enfiar os dedos
entre as portas. No exato momento em que encontrou um ponto de apoio, ele
ouviu barulho de chave trancando a fechadura. O ruído seguinte foi o de água
sendo derramada, e ele tateou no escuro até encontrar a garrafa. Colocou-a em
pé, decidido a economizar o que restara, pelo tempo que fosse possível.
Com os braços abertos, George conseguiu tocar as paredes dos lados, e,
quando virou um pouco o corpo, ele se deu conta de que o local era quadrado.
Não lhe causaria surpresa se os botões do painel estivessem desativados, mas,
pelos seus cálculos, ele se encontrava dentro de um prédio de quatro andares. O
teto do elevador estava a menos de 30 centímetros de sua cabeça.
Ele tateou o painel, à procura de algum botão solto, desparafusado,
qualquer coisa. Tudo estava muito bem preso. O painel fino, de plástico, que ele
encontrou devia estar protegendo a lâmpada. Ele removeu o painel e, tateando,
percebeu que era um pequeno tubo de luz fluorescente, duplo e circular. Ao lado,
havia outro painel cobrindo um emaranhado de fios. Ele o empurrou para o lado
e o quebrou. Agora, podia sentir as lâminas do ventilador, empoeiradas e sujas
de óleo.
A temperatura do corpo de George começou a aumentar, e sua respiração
ficou ofegante. Será que aquela gente era maluca? Um elevador sem funcionar
serviria perfeitamente como cela de prisão, mas será que eles queriam sufocá-
lo? George tirou a malha, as botas e as meias e sentou-se, encostado na porta.
Pegou uma bota e começou a bater na porta com ela, por cima do ombro.
- Pare de bater ou eu acabo com você! - gritou Elena. Então, eles haviam
deixado a moça sozinha para tomar conta dele. George queria dizer que, se eles
não quisessem apresentar um homem morto à chefia, seria melhor ela ligar o
ventilador. Mas estava decidido a não falar. Nem uma só palavra. Por isso,
continuou a bater na porta.
Chang teve um mau pressentimento. Desde o dia em que passou a ser o
único espião no palácio da CG, ele nunca se sentira tão desanimado. Será que
Stefanich estava blefando? Ele parecia ter ficado intimidado, ansioso por agradar
ao chefe. Mesmo que o homem tivesse checado a legitimidade de Mac, não
haveria problema; Chang tinha providenciado tudo para que Howie Johnson
parecesse autêntico. Ele estava certo de que Stefanich tinha ficado constrangido
por ter duvidado de Johnson, e agora devia estar tentando apagar essa
impressão.
Desesperado, Chang queria saber até que ponto Mac, Chloe e Hannah
estavam vulneráveis. Estariam sendo conduzidos a uma emboscada? O tempo
trabalhava contra ele, mas talvez não fosse conveniente aconselhar Mac a
abortar a operação. Talvez eles pudessem fazer uma ligação direta no carro
encontrado perto do barracão e seguir para o aeroporto, mas Chang sabia que
Mac não abandonaria Sebastian à própria sorte. E se Sebastian já estivesse
morto? Se a identidade de Mac tivesse sido descoberta, não haveria motivos
para a CG manter o rapaz vivo.
De repente, Chang deu um tapa na testa com as duas mãos. Raciocine!
Se eles estão tentando descobrir alguma pista sobre Mac, deve haver um motivo.
Se eu encontrar a conexão, talvez possa descobrir o que eles pretendem fazer.
Chang começou a fazer uma pesquisa global pedindo ao supercomputador
de David Hassid que encontrasse alguém nos altos escalões do palácio que
tivesse conexão com a CG em Ptolemaïs. Ele chegou até a digitar alguns
códigos, caso o contato dentro do palácio desconfiasse de que estava sendo
monitorado por alguém. Enquanto o computador pesquisava, com uma
velocidade espantosa, os milhares de arquivos de centenas de localidades,
Chang ajoelhou-se no chão.
- Deus, nunca te pedi que interferisses em uma só peça deste
equipamento. Mas tu sabes que foi um servo teu que projetou este computador,
e quero servir-te também. Ajuda-me a raciocinar. Acelera o processo. Permite
que eu proteja esses irmãos e irmãs. Depois do que presenciei hoje em Petra,
sei que nada está fora do alcance de tuas mãos. Perdemos muitos companheiros
para o inimigo, e sei que perderemos outro tanto antes de tua derradeira vitória.
Mas não permitas que os crentes gregos sofram mais ainda. Não esta noite.
Protege a cooperativa. E ajuda-me a tirar Mac, Chloe, Hannah e George de lá
Mac gostava de missões claras, com incumbências específicas. O objetivo
daquela era infiltrar-se, atravessar os portões, libertar o homem e chegar à
estrada. Agora, havia também o problema do esconderijo clandestino. Ele certa-
mente não partiria da Grécia sem Sebastian, tampouco poderia ir embora sem
defender os crentes dali.
O plano original não previa mais gente, além dele e de seu pessoal. Havia
quatro seqüestradores. Assim, Mac, as duas mulheres e George formavam uma
equipe de quatro pessoas, o suficiente para lidar com aquela situação. Mas
seguir com Hannah pela estrada para encontrar-se com Chloe e seis homens da
CG, ainda mais sabendo que haveria, pelo menos, outros 24 na área... bem,
aquilo não fazia sentido.
- Um momento - ele disse a Hannah. - Você sabe fazer ligação direta num
carro?
- Devo dizer que sim ou que não?
- Responda à minha pergunta. O tempo não está a nosso favor.
- Sim.
- Então, faça.
Enquanto ela caminhava apressada até o carro de Sebastian, Mac chamou
Chloe pelo rádio.
- Johnson para Irene.
- Aqui é Irene, prossiga.
- Atraso imprevisto aqui. Necessito de sua colaboração.
- Entendido. Devo levar ajuda?
- Negativo. Dispense os homens. Nós os alcançaremos.
- Vocês ouviram o chefe, cavalheiros - disse Chloe. - Vamos nos encontrar
com vocês no destino.
- Nós gostaríamos muito de ajudar o comandante sênior, senhora,
- Não, obrigada.
- Podemos nos encontrar com ele depois?
- Vou providenciar. - Assim que disse isso, Chloe teve uma forte intuição e
não pôde deixar de expressá-la. - Vocês me fariam um favor?
- Pode pedir, senhora.
- A presença do comandante sênior Johnson esta noite é uma surpresa
para o comandante Stefanich. Ele vai ser recompensado por algumas ações
recentes. Portanto... - Não devemos dizer que ele está chegando? - Exatamente.
- Tudo bem, senhora. E sabe de uma coisa? Nós nem sabíamos que o
comandante Stefanich viria para cá. A verdade é que não sabemos o que ele
está fazendo aqui.
Chloe empalideceu. E se Stefanich não estivesse lá?
- Tudo faz parte da surpresa, rapazes.
Chang sabia que Deus o havia protegido, provavelmente mais vezes do
que ele imaginava. Mas ele não tinha motivos para pensar que Deus lhe devesse
algum favor nem que fosse obrigado a agir no presente momento só por causa
de um pedido seu. Sem acreditar que suas súplicas tivessem produzido algum
efeito, Chang tornou a sentar-se, abatido, em sua cadeira diante do computador.
Luzes vermelhas piscavam na tela.
O mecanismo de busca havia acessado os arquivos secretos dos altos
escalões e estava comparando, combinando, traduzindo idiomas, transformando
palavras faladas em escritas. Uma pequena caixa no canto direito superior
mostrava seis combinações feitas entre alguns elementos da CG em Ptolemaïs e
a chefia no palácio.
Chang temia que a multitarefa retardasse a busca, mas ele tinha de correr
o risco. Mac e as duas mulheres corriam perigo, estavam em desvantagem
numérica e não sabiam o que encontrariam pela frente.
Ele verificou as três primeiras combinações e descobriu que eram
interações rotineiras da administração de Ptolemaïs reportando estatísticas ao
comando da CG. A quarta, porém, era diferente. Tratava-se de uma interação de
segurança máxima, de uma série de e-mails entre TB e OT, além de várias
ligações telefônicas, também entre essas duas pessoas, que estavam sendo
transformadas em palavras escritas.
Chang digitou: "Lógica da combinação?" A resposta foi imediata. "Atende a
critérios simples, amplos: iniciais de pessoas-chaves da CG na Grécia e da CG
no palácio representadas com as letras posteriores do alfabeto."
Chang semicerrou os olhos. Era o que ele havia pedido: uma conexão
qualquer baseada em seqüências e códigos de uma busca padrão. TB
significava SA. OT significava NS. Assustado, Chang levantou-se da cadeira,
debruçou-se sobre o teclado e digitou: "Mostre interação", e, enquanto os
arquivos apareciam em forma de cascata na tela, ele ligou para Mac.
Mac ouviu o carro funcionando e passos correndo em sua direção vindos
do norte e do leste.
- Senhoras? - ele disse.
- Sim.
- Sim.
Seu celular vibrou.
- Aguardem. Ei, Chang.
- Mac! Vou dizer uma vez só e volto a falar com você sobre os detalhes o
mais rápido que puder. Pronto?
- Diga.
- Akbar e Stefanich comunicaram-se pessoalmente várias vozes hoje.
Clique.
- Emboscada - disse Mac. - Prestem atenção. Não há tempo para
perguntas. Hannah, você dirige. Chloe,sente-se no banco do carona. Pegue a
DEW, a Uzi e uma pistola. Telefones e rádios ligados. Dirijam-se para a
cooperativa imediatamente. Tirem o pessoal de lá e não deixem nada que possa
ser encontrado na invasão da meia-noite. Depois, sigam direto para o aeroporto.
Fiquem escondidas e aguardem minha chegada com Sebastian, prontas para
fugir no avião dele. Se não aparecermos, significa que estamos mortos e vocês
terão de se virar sozinhas.
Mac curvou-se e ergueu a Calibre 50, segurando-a contra o peito.
- Está na hora de trabalhar, garotão - ele murmurou.
Hannah e Chloe contornaram, correndo, o barracão em direção ao carro
com o motor funcionando.
OITO
Obrigado, Senhor, disse Chang ainda em pé e já digitando freneticamente
o teclado do computador. Em segundos, ele conseguira abrir a transcrição de
quatro conversas telefônicas em uma linha tão segura que nem mesmo
Carpathia tinha acesso a ela, conforme ele próprio dissera uma vez.
Mas David Hassid conseguiu, Nicky. Ele conseguiu.
Chang também tinha cópias dos e-mails que não constavam do
computador do palácio nem do mainframe de Ptolemaïs. Esses e-mails tinham a
suposta garantia de que desapareceriam de cada registro assim que fossem
lidos. O disco principal de Hassid devia ter as únicas cópias existentes, inclusive
as dos remetentes dos e-mails.
Apesar de sua curiosidade, Chang sabia que seria irrelevante, no
momento, tentar entender como alguém do nível de Stefanich tinha acesso
pessoal ao diretor do Serviço de Segurança e Inteligência. A ligação entre eles
evidenciava a existência de alguma história por trás daquilo, mas a caixa no
canto superior da tela não havia começado a piscar novamente, portanto Chang
não perderia tempo tentando descobrir alguma coisa enquanto seu problema não
fosse resolvido. Ele clicou rapidamente na caixa e leu: "Combinação primária
100%, não há necessidade de decodificação."
Ele abriu o manifesto e leu: "Correlação direta da Lista A com a Lista B:
Suhail Akbar e Nelson Stefanich, registrados na Escola Militar de Madri,
ocuparam as mesmas posições em épocas alternadas."
Pelos anos relacionados, Chang calculou que eles freqüentaram aquela
escola na mesma época, quando eram adolescentes, havia mais de 25 anos.
Aquele seria o motivo da troca de telefonemas.
Os olhos de Chang corriam pela cópia querendo saber como se deu a
artimanha.
Stefanich havia perguntado se Howie Johnson era "um homem confiável."
Akbar respondeu que o nome não lhe dizia nada.
Stefanich informou: "Comandante sênior subordinado a Konrad."
"Vou verificar."
Akbar encontrou o nome nos arquivos: "Ficha excelente, mas nossos
caminhos nunca se cruzaram. Fato raro para alguém desse nível, mas acontece."
Stefanich insistiu: "Não quero ser inoportuno, mas Konrad garante a
integridade dele? Quero ter certeza antes de levar o prisioneiro a ele."
"Que prisioneiro? E quem é Konrad?"
"O judaísta, George Sebastian."
"Ainda não extraiu nada dele?"
"Vamos quebrar os ossos dele ou matá-lo."
"Quebre os ossos dele. Eu sei que você é capaz disso."
"Você não é o superior imediato de Konrad?"
"Não. Será que preciso verificar também quem é esse sujeito?"
"É melhor. Ele me disse que é seu subordinado imediato, que é
subcomandante, que trabalha em seu andar."
"Envie documentação."
Mais tarde, Akbar contou a Stefanich: "Você está sendo enganado.
Johnson e Konrad estão no sistema, as informações conferem, só que eles não
existem."
"Tenho permissão para me vingar deles?"
"Desejo-lhe toda a sorte do mundo. Pegue os dois, mortos ou vivos, e
providenciarei sua transferência para o palácio."
À medida que as ligações e os e-mails prosseguiam, ficou claro que eles já
sabiam que as identidades das mulheres também eram falsas.
"A de Montreal esteve em minha sala."
No início da tarde, Akbar havia tomado uma decisão: "Se Sebastian está
merecendo todo esse trabalho, é porque eles têm ligações estreitas com os
clandestinos. Anuncie uma invasão para ver se eles revelam o local."
Chang ligou para Mac.
- A invasão é falsa. Se você avisar os crentes, vai pôr tudo a perder.
- Ligue para Chloe ou Hannah. Estou ocupado.
- O local onde você está também é uma armadilha, Mac.
- Tudo bem. Ouça, Chang. Você salvou a nossa vida. Agora, faça o
possível para encontrar Sebastian. Ou eu tiro esse cara daqui ou vou morrer
tentando.
Chloe atendeu o telefone. Era Chang.
- A invasão foi uma encenação para que você levasse a CG até o
esconderijo. Aborte a operação.
- Hannah, você tinha razão.
- O quê?
- Hannah tinha razão, Chang. Ela desconfiou que estávamos sendo
seguidas. Eu não percebi nada e achei que fosse paranóia dela.
- Eu bem que falei!
- Livre-se deles ou leve essa gente a lugar nenhum - disse Chang. - Pelo
que sei, a CG não tem nenhuma pista de onde fica a cooperativa, nem que é lá
que os crentes se reúnem. Preciso desligar. Mac está na linha.
- Prossiga, Mac.
- Pergunta. Se for uma armadilha, por que os homens das Forças
Pacificadoras retornaram com Chloe e queriam encontrar-se comigo depois?
- Não estou entendendo.
Mac lhe contou sobre o encontro de Chloe com a meia dúzia de soldados.
- Você me deixou confuso. Ainda estou tentando decifrar a conversa entre
Akbar e Stefanich. É possível que nem todos saibam.
- Pode ser.
- Isso lhe dá uma vantagem.
- Confirme se puder.
- Claro.
Mac caminhou um bom trecho na direção leste para tentar avistar a
garagem improvisada, se é que havia alguma. Não viu nada. Hannah e Chloe
também não. Isso significava que o local de reunião das tropas localizava-se um
pouco mais adiante. Se Chang estivesse certo, Sebastian devia estar a poucos
quilômetros dali.
Excelente raciocínio militar, Mac. Ficar sozinho num lugar deserto e em
número menor que o inimigo.
Mac refletiu sobre suas opções. As vantagens eram poucas. Seria difícil
alguém vê-lo. Ele não cairia no engodo de dirigir-se ao lugar em que Sebastian
supostamente estava. Tinha uma Calibre 50. Poderia caminhar ou correr até o
carro, mas o veículo já devia estar sob vigilância. Devia estar cercado, e, se ele
fosse idiota o suficiente para tentar chegar até lá, seria facilmente capturado.
Senhor, ele disse em voz baixa, eu vou te agradecer se me mantiveres
motivado a permanecer em forma, e vou te pedir que me dês mais força do que
já tive até hoje. Tudo o que estou tentando fazer é tirar vivos daqui teu servo e as
minhas duas parceiras. Estou agradecendo tua ajuda desde já, porque vou estar
muito ocupado por uns tempos. E, se tu decidires não me ajudar, é porque
desejas o melhor para mim, e nos veremos dentro em breve.
Mac retornou pelo caminho que levava ao barracão e parou a uns cem
metros acima dele. Tirou a jaqueta, ficando apenas com três projéteis da Calibre
50 e dois pentes da Uzi. Em seguida, enrolou a tira da Uzi duas vezes em volta
do corpo para que a arma ficasse bem junto dele.
Ele não conseguia correr carregando a Calibre 50, mas trotou o melhor
que pôde, permanecendo sempre no lugar mais alto da colina, a uns 200 metros
acima da estrada, acompanhando o terreno. A princípio, ele sentiu o ar fresco
batendo-lhe nos braços, pescoço e rosto, mas, em seguida, seu corpo inteiro
transpirava. Isso, ele sabia, era apenas o começo.
Os músculos de Mac doíam pelo esforço e pelas cãibras, mas ele não
queria parar; nem sequer diminuiu o ritmo das passadas. Continuou a caminhar
cada vez mais na direção oeste, tentando calcular a distância do local onde ele
havia deixado o carro. Depois de atravessar uma faixa de terra acidentada com
pedras soltas que quase o fizeram perder o equilíbrio várias vezes, finalmente ele
decidiu localizar o veículo.
Mac deitou-se no chão, no alto da colina, e olhou para a estrada embaixo.
Com os braços trêmulos em razão do esforço e da fadiga, ele colocou o suporte
bípede no chão, abriu o telescópio e ajustou o foco para poder esquadrinhar a
área, em vez de tentar movimentar a arma pesada.
Demorou um pouco de tempo para seus olhos se acostumarem à
escuridão. A estrada de pedregulhos era apenas uma faixa cinza em
comparação com a negritude da mata, mas ele sabia para onde deveria olhar. À
direita de seu campo de visão - a uma distância tão grande que seria necessário
fazer um movimento de quase 30 metros com a arma -, ele avistou alguma coisa
que captava o reflexo das estrelas. Só poderia ser o carro branco.
Mac respirou um pouco de ar fresco e forçou-se a levantar o corpo até o
ponto de conseguir alinhar a Calibre 50 com o carro. Ele estava impaciente.
Enquanto apertava os olhos para enxergar melhor e fazia cálculos mentais, ele
teve certeza de ter visto algum movimento no lado norte da estrada. Se estivesse
certo, a CG o aguardava ali - e, com toda a certeza, do outro lado da estrada
também.
Ele se lembrou, por experiência anterior, de rasgar uma tira da camiseta
para tapar os dois ouvidos. Depois de colocar munição extra perto da arma,
fincou os pés no chão. Contava com a grande vantagem de apontar para baixo,
porque o coice o atiraria para cima e para trás. Precisava lembrar-se de manter
os joelhos dobrados.
O plano de Mac era alvejar o carro com dois disparos seguidos, sabendo
que teria de dar tudo de si para ir até o fim, porque ninguém que usou aquela
arma violenta - inclusive ele - haveria de querer atirar com ela mais de uma vez,
muito menos logo em seguida.
Mac esticou o braço e posicionou-se, com o dedo afastado do gatilho, até
apoiar a base do rifle no ombro. Ele procurou acomodá-la em um local macio, e
não diretamente em cima do osso, porque sabia o estrago que aquela coisa
poderia provocar em seu corpo todo.
Ele se lembrou das lições que aprendera. Firmar-se no lugar. Relaxar.
Apoiar o rifle bem firme no ombro. Não retesar o dedo que faria o disparo.
Proteger os ouvidos. Pés firmes no lugar. Cotovelos levemente dobrados.
Joelhos flexionados. Mirar o teto do carro, um pouco para a esquerda, por causa
do vento. Manter uma distância de pouco menos de 200 metros. Mesmo levando
um coice tremendo, recarregar a arma e atirar novamente, da segunda vez sem
preocupação com precisão na mira.
Enquanto fazia a contagem regressiva a partir do número três, Mac ficou
satisfeito ao observar movimento através da lente. A menos que alguém fosse
tão infeliz a ponto de colocar-se na linha de fogo, ninguém seria atingido pela
primeira seqüência de disparos. Na segunda, ele esperava que a CG já estivesse
a meio caminho do barracão.
Ao chegar ao número um, Mac parou. Ele teve uma idéia melhor. Arriscar
tudo de uma só vez. Mirar um pouco à esquerda, na esperança de atingir o
tanque de combustível. Mesmo que ele errasse, aqueles homens pensariam que
estavam enfrentando um tanque de guerra ou, no mínimo, uma bazuca. Mas, se
ele tivesse sorte, eles pensariam que estavam enfrentando a eternidade.
Mac mudou apenas um pouco de posição. Tudo pronto. Três, dois, um,
zero, oh, mamãe!
Ele pensou que estivesse preparado. Foi como se não tivesse colocado
nada para proteger os ouvidos. O barulho foi tão violento que parecia senti-lo de
modo palpável. Os galhos e troncos das árvores tinham explodido, e, sim, a
explosão do tanque de combustível e o barulho do carro se espatifando sobre os
pedregulhos provocaram um estrondo que qualquer um poderia ouvir, mesmo
não estando por perto. O ruído ficou retinindo em seus ouvidos por mais tempo
do que a bola alaranjada que ele via, mesmo com os olhos fechados.
A violência do disparo atirou-o para trás, fazendo-o cair do lado esquerdo.
Enquanto lutava para recuperar o senso de direção, ele rolou de bruços e voltou
a ficar na mesma posição. Com os dedos trêmulos, Mac colocou mais munição
na câmara, tomando o cuidado de deixar a arma apontada para a frente. E,
mesmo contra todos os seus instintos, ele acionou novamente o gatilho.
Ele esqueceu-se das lições que aprendera. Um dos pés não ficou firme no
lugar. Ele também não estava firme. A base do rifle não foi apoiada no ombro. O
coice da arma atirou-o para trás, aparentemente à velocidade da luz, e provocou
um afundamento na parte superior de seu ombro.
O ruído foi menor, porque o primeiro disparo já havia feito um estrago em seus
tímpanos. Os ouvidos zuniam e ressoavam. Atordoado, levantou a cabeça e viu
árvores caindo, duas de um lado da estrada, uma do outro. Ele havia mirado três
metros à esquerda do carro, que agora estava achatado no chão e em chamas,
que iluminavam o estrago feito na lataria e na fauna - tudo devastado por dois
simples movimentos em um gatilho de metal.
Mac queria ter podido ouvir os gritos dos jovens das Forças Pacificadoras
correndo para escapar da morte. Ele forçou-se, desajeitadamente, a ficar de
quatro no chão, como se fosse uma criança, e lutou para não escorregar ladeira
abaixo.
Quando, finalmente, conseguiu ficar em pé, com os braços abertos para
manter o equilíbrio até as árvores pararem de girar, ele aguardou... e aguardou.
Depois que seu organismo fez os ajustes necessários, Mac recuperou o fôlego,
sacudiu a cabeça, esticou os braços e as pernas e começou a correr.
Sua intenção era cobrir a pé todo o percurso que ele levara mais de meia
hora para percorrer de carro. Encontraria o caminho para o local onde ele, Chloe
e Hannah haviam se reunido no fim da tarde, que agora parecia tão distante. Lá,
Mac encontraria o jipe escondido, faria uma ligação direta e partiria para a
missão que ele esperava fosse a última brincadeira do dia. Certamente, quando
chegasse lá, Chang já lhe teria informado o local do cativeiro de George
Sebastian.
E, depois de tudo isso, que Deus tivesse misericórdia - ou não - de quem
ousasse intrometer-se entre eles e a liberdade.
NOVE
Chloe não conhecia com detalhes a arma de energia direcionada que
levava no banco traseiro do carro, mas ouvira falar do efeito que ela causou em
um alvo. Estava curiosa, levantou a arma cuidadosamente e colocou-a no colo,
fazendo com que Hannah desviasse os olhos da estrada para a DEW.
- Não aponte essa coisa para mim, Chloe.
- Ela não está ligada!
- É o mesmo que dizer que uma arma não está carregada, Já morreram
muitas pessoas com armas que as pessoas juravam estar descarregadas.
- Parece bem simples. Você sabe lidar com ela, certo?
- Sei - disse Hannah. - Mas, por favor, Chloe...
- Parece que basta ligá-la, deixá-la aquecer, ou coisa parecida e disparar.
Não é letal.
- Ah, eu sei. Mas o efeito do calor de 55°C sobre a pele humana sensível
fará qualquer pessoa desejar estar morta.
- Aposto que esses caras iam parar de nos seguir.
- Nem pense nisso. Se você errar, eles vão começar a atirar e não vamos
ajudar ninguém.
- De qualquer forma, não estamos ajudando ninguém - disse Chloe. -
Estamos sentadas aqui com Uzis, pistolas, uma espingarda e uma DEW e
deixamos Mac lá em cima, sozinho, com toda aquela gente da CG.
- E quanto tempo vai levar para que esses sujeitos percebam que estamos
brincando com eles?
- Precisamos acabar com eles antes de seguir para o aeroporto, Hannah.
Eles não vão permitir que a gente entre lá.
- Acabar com eles? Chloe, o pelotão deles pode até ser dizimado, mas
eles têm mais gente, mais carros, mais rádios. Não vamos acabar com eles.
- Estou ligando para Chang.
- Para quê?
- Quero saber quantas pessoas estão atrás de nós.
- Por quê?
- Espere um pouco.
Seria muito mais fácil correr sem aquela Calibre 50 desajeitada, mas Mac
não fazia esse tipo de exercício desde... desde quando? Desde nunca. Nem
mesmo os trechos das corridas nos tempos de ginásio eram tão longos assim. E
essa corrida era mais longa que uma maratona, com certeza. Ouvindo o som
ritmado de seus passos, ele repetia continuamente para si mesmo: Deus, eu sou
teu. Deus, eu sou teu. Deus, eu sou teu.
Se ele conseguisse chegar até o jipe, seria pela misericórdia de Deus.
Essa corrida ultrapassava os limites da capacidade humana de Mac.
Chang lia, freneticamente, cada palavra da comunicação entre Akbar e
Stefanich na esperança de encontrar alguma coisa, qualquer coisa, para ajudar
Mac. Seu celular vibrou, e, pelo visor, ele sabia quem estava ligando.
- Você está bem, Chloe? - ele perguntou.
- Por enquanto - ela respondeu. - Existe alguma maneira de saber quantas
pessoas estão nos seguindo?
- Posso tentar descobrir. No que você está pensando?
- Se for um bando, estamos mortas. Vamos fazer essa gente rodar pela
cidade atrás de nós e, depois, tentar fugir ou trocar tiros com eles, mas você
sabe que temos poucas chances. Se for só um carro, e eles estiverem
incumbidos apenas de contar à chefia onde fica o esconderijo, eu tenho uma
idéia.
- Diga-me qual é a idéia antes que eu comece a tentar acessar o
computador de Ptolemaïs novamente.
- Por quê? Se você não gostar da idéia, não vai procurar? É?
- Chloe, deixe disso. Mac está em perigo, e não temos idéia do paradeiro
de Sebastian. Tenho de cuidar das prioridades.
- Desculpe-me. Vou falar rápido. Se eles estiverem atrás de nós só para
saber onde fica o esconderijo, vamos levá-los até um. Só que não vai ser o
verdadeiro. Alguns cidadãos infelizes vão ser atacados hoje.
- Gostei.
- Que alívio!
- Estou falando sério. E acho que vocês são peixes pequenos para eles.
Não estou dizendo que eles não suspeitam de vocês. Sair do aeroporto esta
noite vai ser quase impossível, mas eles poderão pensar que vocês não têm para
onde ir e vão prendê-las quando tentarem partir. Eles querem o pessoal daí.
- E vamos levá-los até lá, só que não até o pessoal verdadeiro.
- Ligo para você assim que puder.
- Pare de bater, se não eu mato você! - gritou Elena.
George não ouvia a voz de mais ninguém. Continuou a bater na porta.
Como ela faria para alcançar a fechadura? para destrancá-la? para abrir as
portas?
Ela praguejou, e ele ouviu movimentos. A moça estava arrastando alguma
coisa para perto do elevador. Ele ouviu o barulho de uma chave sendo enfiada
na fechadura e, depois, girando. Parecia que ela havia descido de uma cadeira,
ou coisa parecida, que tinha usado para subir e pegar algo num lugar mais alto.
Agora, ela tentava abrir as portas. Nem mesmo Platão tinha sido capaz de fazer
isso sozinho. George continuou a bater na porta.
- Estou tentando chegar aí! - ela disse. - Mas, quando eu chegar, vai se
arrepender!
Bam! Bam! Bam!
- Eu vou atirar na porta!
Bam! Bam! Bam!
- É melhor você parar com isso! Eu não estou brincando! George percebeu
que ela continuava lutando com as portas. Não havia como abri-las. Se pelo
menos pudesse fazê-la esquecer de trancar de novo as portas... Ele parou de
bater.
- Assim é melhor!
Ele ouviu quando ela subiu em alguma coisa novamente. A chave estava
sendo colocada na fechadura.
Bam! Bam! Bam!
- Não! Não adianta insistir! Estou trancando você de novo, e por mim pode
bater a noite inteira!
Ela trancou as portas.
George levantou-se e encontrou a outra bota. Calçou uma em cada mão.
Agora, ele estava inclinado para a frente, com as mãos acima da cabeça e as
botas encostadas nas portas. Ele arrastou as botas pela porta enquanto
escorregava lentamente em direção ao chão. George encenou um tombo.
Primeiro, os joelhos bateram com força no chão, depois o lado do corpo, depois
as botas, depois as mãos. Ele ficou imóvel.
- Você acabou com a brincadeira aí?... Hein?... Vai continuar?... Vai levar
um tiro!... Você está bem?... Ei?
Ela praguejou novamente, e ele a ouviu falando ao telefone.
-...batendo na porta do lado de dentro. Ameacei atirar, e ele parou, mas
acho que está morto... pelo som que ouvi... parece que ele desabou no chão.
Você sabe que não há ar lá dentro. Não há ventilação. Onde? Vou procurar. Ela
bateu nas portas duas vezes.
- Agüente um pouco aí. Vou dar um jeito para que você receba um pouco
de ar.
Chang encontrou a fita das conversas, via rádio, entre o pessoal das
Forças Pacificadoras da CG em Ptolemaïs, mas a qualidade era tão precária que
o dispositivo de conversão não conseguiu transformar as falas em palavras
legíveis. Ele fez um download de tudo para seu computador e tentou captar as
palavras por meio de fones de ouvido.
- Chloe - ele relatou -, é apenas um palpite, portanto deixo a decisão a seu
critério. Acredito que existe apenas um carro seguindo vocês, e não pertence à
CG. Eles mandaram dois Monitores de Moral vigiar vocês. Ambos estão
armados, é claro, mas a tarefa deles é saber quem vocês vão avisar sobre a
invasão.
- Você disse que é um palpite.
- Tenho de ser honesto, Chloe. Estou quase certo de que foi isso o que eu
ouvi.
- Certo até que ponto?
- Cinqüenta e cinco por cento. Ela riu.
- Você achou graça?
- Não. É que eu esperava que fosse pelo menos 60%. Se você chegar a
60, compro esse carro hoje mesmo.
- O quê?
- Nada. Pode ser 64?
- No máximo.
- Vamos fazer uma tentativa.
Elena continuava a falar ao telefone, mas George teve de encostar o
ouvido na porta do elevador para ouvir. Ela devia estar gritando, mas ele mal
conseguia entender.
- Na parede perto do elevador? - ela parecia estar dizendo. - Sim. Porta
cinza. Entendi. Há dezenas dessas coisas aqui, homem... Bem, alguma coisa
como caldeira, ventilação, aquecedor de água... ah, sim, parecem bugigangas do
andar térreo... Como eu posso saber? Há umas 20 coisas desse tipo. Está bem,
21 e mais... está bem, talvez este seja o primeiro andar... Sistema de alarme,
luzes de emergência, luzes externas, luzes da escada, elevador... Você diz que
há um diferente para ventilador ou luz? Não estou vendo... Ah, sim, está tudo
num lugar só... Mas eu preciso. Ele vai morrer sufocado lá dentro... Não! Abra
essa coisa, nem que seja um pouco, e eu vou vigiar o homem o tempo todo... E
se eu ligar e deixar as portas fechadas?... Cada andar? Então, vou trancar as
portas de cada andar. Aí, ele não vai poder ir a lugar nenhum, certo?... Ligo para
você depois.
George ouviu quando ela saiu do saguão e começou a subir a escada. Ele
continuava com o ouvido encostado na porta e percebeu que ela estava
trancando as portas externas do elevador nos três andares acima. Ah, ela ia ligar
a chave para fazer funcionar o ventilador do elevador, a fim de que George
recebesse um pouco de ar. Aquilo não adiantaria. Ele tinha de forçá-la a abrir as
portas.
Elena prestava atenção para saber se o ventilador havia sido ligado e se
George estava consciente. Ele levantou-se e apalpou o ventilador e as luzes,
apoiando-se com firmeza nas paredes laterais. Os painéis tinham sido muito bem
parafusados, mas a fiação elétrica no teto do elevador era coberta por outros
tipos de painéis, talvez um pouco mais frágeis. Ele calçou as luvas e empurrou
os painéis com força. O metal era muito resistente e afiado em alguns lugares,
mesmo sendo manuseado com luvas. Elena já devia estar voltando.
George calçou as meias e as botas, curvou o corpo, ficou de cabeça para
baixo, apoiou-se nas mãos e começou a levantar as pernas, para que as solas
das botas encostassem no teto do elevador. Com os pés, ele foi tateando até ter
certeza de que havia alcançado a luz e o ventilador. Em seguida, esticou as
pernas e arremessou-as para cima com toda a força.
As lâmpadas fluorescentes estouraram e caíram; as pás do ventilador
entortaram e começaram a despencar. Os bíceps de George tremiam e seu peito
doía, mas ele continuou a fazer força, como se sua vida dependesse daquilo. Os
painéis romperam-se, soltando-se dos fios. O teto do elevador devia estar
completamente devastado.
George tentou controlar a respiração forte causada pelo esforço. Não
queria fazer nenhum barulho. Aos poucos, ele voltou à posição normal e deitou-
se no chão, ofegando e empurrando cuidadosamente o entulho para um canto.
Em seguida, ouviu Elena caminhando com passos rápidos, aproximando-
se da caixa de força e ligando a chave. As luzes dos botões do painel
acenderam-se, e ele ouviu um zumbido no teto, no local onde a lâmpada e o
ventilador haviam sido instalados.
Continuando a controlar a respiração, George girou o corpo, amarrou os
cordões das botas e, com movimentos de um gato, ajeitou-se no lugar.
- Você está recebendo um pouco mais de ar aí? - gritou Elena. Ela
esmurrou a porta. - Ei! Melhorou?
George ficou de quatro no chão, arrastou-se para trás, encostou os pés na
parede e foi se afastando, apoiado de cócoras. Em seguida, ele inclinou-se para
a frente, colocou as palmas das mãos no chão, virou o rosto para a direita e
deitou-se com a face e o ouvido esquerdo encostados no piso do elevador.
Esforçando-se para inspirar o ar de maneira profunda, porém lenta, ele preparou-
se para prender a respiração e fingir-se de morto.
Mais duas batidas na porta.
- Vamos! O ventilador deve estar funcionando, não é? Se estiver
recebendo um pouco de ar, dê uma batida na porta!
George continuou deitado, com o corpo curvado e encostado na parede.
Qualquer pessoa que o visse, imaginaria que ele estava morto, com o rosto
encostado no chão.
- Muito bem! Estou abrindo as portas, mas, se você tentar alguma coisa,
vai morrer.
Agora, ela estava em cima da cadeira. Objeto de metal sendo encaixado
em metal... Um estalido... George sentiu-se tentado a apertar o botão "Abrir
Porta", mas sabia que Elena estava em pé ali, com a arma apontada para ele.
Ele piscou várias vezes para umedecer os olhos. Depois, continuou deitado, com
os olhos abertos, sem piscar, na esperança de poder enxergar alguma coisa pela
visão periférica para saber o momento exato de agir.
- Estou abrindo as portas! Não se mexa! É melhor que a chefia encontre
você baleado do que morto por acidente.
George ouviu quando Elena apertou o botão e sentiu o elevador vibrar. As
portas começaram a abrir. Ele queria sorver o ar puro e fresco, mas não se
atreveu. Sob a luz fraca das placas indicando a saída e da lâmpada do corredor,
ele viu a silhueta da moça diante de si, com os pés afastados um do outro,
segurando a arma possante com as duas mãos.
Ela praguejou. Aproximou-se um pouco mais. Tirou a mão esquerda da
arma e fez um movimento para sentir a carótida dele. Assim que seus dedos
tocassem a pele de George, ela saberia que ele estava vivo. Aquele toque seria
o momento certo para ele dar o bote.
- Vou fazer o que você quiser, Chloe - disse Hannah -, mas tenho outra
prioridade além de sair viva daqui.
- Mac?
- Claro.
- A minha também. E George.
- Não posso imaginar que ele ainda esteja vivo, Chloe. Por que eles
haveriam de querer mantê-lo com vida aqui?
- Não pense assim.
- Ora, vamos! Não somos mais crianças. O fato de não pensar assim não
vai mudar nada, caso já tenha acontecido.
- Só espero que eles acreditem que ainda podem extrair alguma coisa
dele.
- Tive pouco contato com ele, Chloe, mas vou lhe dizer uma coisa. Ele
parece o tipo do sujeito durão, e ninguém vai fazê-lo mudar de idéia. Aposto que
ele enganou toda aquela gente.
- Pare ali adiante.
- Você tem certeza de que isso vai dar certo?
- Certeza? Eu preciso ter certeza?
- Não devemos dar muito na vista.
- É por isso que você vai parar aqui e não na frente da porta, Hannah.
Quando eu me dirigir para a loja, você sairá do carro e permanecerá como se
estivesse vigiando gente xereta.
- Gente xereta?
- Isso mesmo, gente da CG ou Monitores de Moral bisbilhotando por aí.
- Xereta?
- Pensei que você conhecesse esse termo. Esqueci que você foi criada
numa reserva indígena.
- Bem, enfim, eu devo ficar prestando atenção para ver se aparece alguém
da CG ou algum MM. E o que faço se eles aparecerem?
- Eles não vão aparecer. Só querem saber quem estamos avisando para
eles poderem invadir o local.
- Há pelo menos 55% de chance de isso acontecer.
- Sessenta.
- Se for 40%, eles vão nos prender ou coisa pior.
- Você está portando uma Uzi. Vi o que você sabe fazer com uma
espingarda, e só posso imaginar o que faria com uma DEW.
- Vou lhe dizer uma coisa, Chloe. Se aparecer alguém, entro correndo no
carro, aperto a buzina e venho buscar você.
- Bem, espero que sim.
No exato momento em que sentiu o contato de pele com pele, George
Sebastian evocou todos os seus anos de treinamento militar, de futebol e de
levantamento de peso. Quando ergueu o corpo do chão, apoiando-se nas palmas
das mãos, os fortes músculos e tendões de suas pernas o atiraram de encontro a
Elena. Ela nunca mais mataria nenhum cristão.
Os quase 110 quilos de George atingiram-na tão depressa e com tal
violência que, quando ele passou os braços ao redor da cintura da moça, sentiu
o topo da cabeça afundando no estômago dela. Elena vomitou em cima de
George, bateu o rosto com toda a força nas costas dele e atingiu-o nos joelhos
com as botas.
Ele deu um salto de um metro e projetou-se uns três metros na direção do
saguão, levando consigo o corpo dela dobrado em dois. Quando ele caiu, seu
peito comprimiu as pernas de Elena, e a parte posterior da cabeça dela estate-
lou-se no piso de mármore.
George levantou-se, arrancou a arma da mão dela e guardou o telefone e
o rádio nos bolsos. Em seguida, agarrou-a pela cintura e atirou o corpo sem vida
dentro do elevador. Depois de trancar as portas, ele deixou a chave em cima da
cadeira que ela usara para alcançar a fechadura.
George pegou o tapete da porta de entrada e cobriu o sangue que sobrou
no local em que a moça morreu. Usou as luvas para limpar o rastro de sangue
até o elevador. Quando estava prestes a dirigir-se à porta dos fundos para ver se
conseguia encontrar um carro e fazer uma ligação direta, ele ouviu barulho de
chaves na porta da frente. Ao olhar, viu um senhor idoso sorrindo e acenando
para ele.
O homem usava um uniforme de segurança do prédio, com a calça
destoando da camisa, e carregava duas vassouras. Assim que entrou, ele disse
alguma coisa em grego.
- Inglês? - perguntou George, ciente de que estava com o rosto afogueado,
parecendo um seqüestrado em fuga que acabara de matar seu captor.
- Eu querer saber se elevador ainda sem funcionar.
- Sim.
- Funcionar?
- Não.
- Não funcionar.
- Certo.
- O.k. E daí, inglês, como vai você?
- Bem. Até logo, senhor.
- Até logo.
Chloe preparou a Uzi, segurando-a com a mão direita, e abriu a porta com
a esquerda. Assim que parou o carro três quarteirões adiante, nas sombras de
uma viela, Hannah desceu e começou a andar de um lado para o outro.
Apesar de sentir-se tentada a olhar para trás ou de lado para ver se havia
soldados das Forças Pacificadoras por perto, Chloe manteve os olhos fixos na
vitrina da loja, onde pouco antes, naquele mesmo dia, ela assistira ao
bombardeio em Petra pela TV. O local estava escuro, mas nos fundos havia pelo
menos dois apartamentos com as luzes acesas.
Ela esmurrou a porta de vidro, com a mão fechada. Talvez os moradores
daquele local não dessem atenção a essas batidas, imaginando que fosse um
bêbado perambulando pela rua àquela hora da noite. Portanto, ela insistiu até
ouvir alguém gritar lá de dentro:
- Fechado!
Ela esmurrou a porta com mais força ainda. Finalmente, uma luz foi acesa
e um homem, de roupão e chinelos, com rosto marcado por rugas profundas,
aventurou-se a aparecer.
- O que é? Quem é você?
- CG! - ela disse em tom de segredo, mas para que qualquer um pudesse
ouvir. - Abra. Só por alguns instantes. Por favor.
Ele aproximou-se, resmungando, mas não abriu a porta.
- O que você quer?
- Tenho um recado urgente para o senhor, mas não posso dizer em voz
alta. Ele sacudiu a cabeça e abriu um pouco a porta.
- O que pode ser tão urgente?
- Quero avisar ao senhor que vai haver uma blitz na vizinhança esta noite.
- O quê? Uma blitz?
- Uma batida policial.
- O que eles estão procurando? - ele disse, apontando para o número 216
em sua testa.
- É por isso que estou aqui - ela disse. - O senhor é um cidadão leal, e
quisemos avisá-lo com antecedência para que não fique assustado.
- Mas você me assustou!
- Eu lhe peço desculpas. Boa-noite.
Ele bateu a porta e trancou-a, sem dizer nada, e Chloe dirigiu-se
apressada para o carro.
- Deu certo - ela disse.
- Você derreteu alguém?
Hannah assustou-se.
- O quê?
- Com aquela arma.
- É assim que você disfarça seu medo? Fazendo gracinhas?
- Talvez. Estou com o corpo todo adormecido.
- Não vi ninguém, Chloe. Não sei o que isso significa. Ou eles são
eficientes demais, ou nós somos paranóicas.
- Talvez as duas coisas. Nós poderíamos ficar rodando por aqui e ver se
aparece alguém da CG para bisbilhotar o esconderijo.
- Espero que você não esteja falando sério.
- Claro que não, mas você tem de admitir que seria engraçado.
Principalmente quando perguntarem àquele velho se ele foi avisado da invasão.
- Para onde vamos agora, Mulher Maravilha?
- Parece que estamos na corda bamba, Hannah. Não podemos ligar para
Mac, a não ser que a gente saiba que ele se encontre em algum lugar onde
possa falar. Chang vai nos dizer o que pode fazer e quando. Acho que devemos
procurar um lugar para ficar, sem que ninguém nos veja, e aguardar por Mac e
George.
- Você está sonhando.
Rayford estava prestes a acomodar-se na barraca que lhe fora destinada
em Petra. Ele imaginava que não conseguiria dormir depois da experiência pela
qual passara. Enquanto contemplava as estrelas, seu celular tocou. Ele virou de
lado e pegou-o na mochila. O número exibido no visor não lhe dizia nada.
Ao tentar imitar um sotaque do Oriente Médio, ele percebeu que não teve
sucesso.
- Aqui é Atef Naguib - ele disse.
- Ray?
- Por favor, quem é?
- Memorizei dois números - disse a voz. - O seu e o de Chang. Mas este
telefone aqui não é seguro, e eu não quero prejudicar Chang.
- Sebastian? - disse Rayford, sentando-se. - Eles o encontraram?
- Eles quem? Acabei de fugir do cativeiro. Existe alguma casa segura por
aqui? Algum local onde eu possa ficar até encontrar um meio de sair deste lugar?
Rayford ficou em pé, sem perceber. Explicou, resumidamente, a George
qual era a missão do grupo do Comando Tribulação na Grécia e como ele
poderia chegar à cooperativa de lá.
- Vou ligar para Chang e pedir que informe nosso pessoal que está na
Grécia.
DEZ
Deitado na grama úmida de orvalho, ao lado do jipe, Mac sentia uma
profunda gratidão, apesar de saber que nem ele nem seus amigos estavam fora
de perigo até aquele momento. Com o corpo superaquecido e arqueado,
aspirava o ar noturno, agradecendo a Deus, infinitas vezes, a força que Ele lhe
dera para correr até ali.
Ele mal conseguiu falar quando Chang lhe contou tudo o que acontecera,
mas entendeu rapidamente que, das quatro pessoas que estavam na Grécia,
Chloe e Hannah eram as que se encontravam, agora, em maior perigo. Elas
tinham sido seguidas, estavam dentro de um veículo da CG, em Ptolemaïs, e não
se atreveriam a chegar perto da cooperativa, nem mesmo a pé. Apesar de
estarem fortemente armadas, eram inexperientes. George Sebastian havia
passado de uma situação extremamente precária para uma temporariamente
mais segura, se é que conseguira encontrar a cooperativa.
Sentindo o corpo todo dolorido, Mac sentou-se e encostou no veículo.
Apesar de ter almejado essa operação, houve momentos em que se sentiu
apavorado. Sua intenção sempre foi a de libertar George, mas as circunstâncias
não foram nada favoráveis. No início da operação, ele ficou animado ao ver
como parecia fácil ludibriar o pessoal da Grécia. Logo depois, a situação
complicou-se, chegando a ficar desesperadora. Agora, apesar da pouca ajuda de
Mac, todo aquele trabalho, que envolveu tantas aventuras, voltou a ter um único
objetivo. Mac tinha uma tarefa: reunir-se com os outros três e fugir dali.
Chang estava inconsolável por não ter descoberto a conexão entre Akbar
e Stefanich antes do início da operação. Mac tentou confortá-lo, dizendo que a
hierarquia da Comunidade Global era tão recente e tão diversificada que
ninguém poderia supor que aqueles dois se conhecessem. Chang havia se
redimido por ter violado a segurança e todos aqueles códigos ostensivamente
indecifráveis.
Agora, ele e Mac sabiam mais sobre Stefanich e sobre os planos dos
seqüestradores do que os próprios idealizadores. Por exemplo, Mac sabia que
Sebastian havia fugido. Do grupo da CG - Stefanich, Aristóteles, Platão, Sócrates
e Elena -, a única pessoa que tinha conhecimento disso estava morta.
Por meio de um exame rápido, porém minucioso, das conversas entre
Akbar e Stefanich, Chang descobriu que eles haviam montado um esquema para
atrair Mac, Chloe e Hannah para o interior da mata. Lá, eles os obrigariam a
seguir até um lugar onde os três ficariam em desvantagem numérica perante o
contingente da CG, sendo que a maioria desse pessoal não fazia idéia do que
estava se passando. Mesmo que a situação se revertesse e que Mac e seu
grupo tivessem sido capazes de dominar os homens das Forças Pacificadoras,
poucos teriam informações suficientes para revelar o segredo do plano articulado
para enganá-los.
A CG esperava que o pessoal de Mac a levasse até o esconderijo dos
judaístas e que eles finalmente fossem presos ali. Johnson, Sebastian, Jinnah e
Irene seriam conduzidos à sede local da CG e enviados para Nova Babilônia
como troféus de Stefanich, o mais recente morador do palácio e membro da
equipe de Akbar.
- Stefanich está louco para pegar você - Chang dissera a Mac. - Eles
ficaram preocupados quando não conseguiram falar com Elena, mas, assim que
restabeleceram o contato, foram informados de que tudo está em ordem na sede.
- O que você acha disso, Chang?
- Não estou preocupado. Sebastian confirmou a morte de Elena e está
com o telefone dela. Quem pode saber como ele ludibriou aquela gente? Eu
confio plenamente nele. Minha preocupação é com Chloe e com Hannah. Os
Monitores de Moral perderam as duas de vista logo depois que elas os levaram a
um local que eles imaginaram ser a cooperativa. Eles só vão perceber seu erro
no momento da invasão. Mas Stefanich mandou tanta gente para o meio do mato
capturar vocês três que a sede de Ptolemaïs ficou desfalcada. A situação mudou
completamente. O pessoal está retornando para lá.
Enquanto fazia uma ligação direta no jipe, Mac deu-se conta de que
poderia ligar para Chloe e Hannah, mas não teria condições de entrar em contato
com o pessoal da cooperativa nem com Sebastian, a não ser pessoalmente. Mac
tinha uma idéia de como eles todos poderiam fugir, mas, por enquanto, as duas
mulheres precisavam ser protegidas.
- Que situação bizarra! - disse Chloe. - Devíamos estar muito perto de
George quando ele saiu pela porta dos fundos da sede da CG. Poderíamos tê-lo
levado à cooperativa.
- E complicar a vida de todo mundo.
- Bem, é mesmo, mas é o que eu penso. Temos de abandonar este carro e
chegar a um lugar onde Mac possa nos encontrar.
- Quanto mais cedo, melhor - disse Hannah. - Não avistei ninguém nestes
últimos minutos. Vamos fazer isso agora.
- Vamos, pelo menos, rodar até a periferia da cidade.
- É muito arriscado.
- Menos arriscado do que estacionar na cidade e andar a pé pelas ruas.
Mac detestava a idéia de ter de caminhar alguns quarteirões, mas não
podia arriscar-se a estacionar perto da cooperativa. Ele deixou o jipe a cerca de
um quilômetro e meio ao norte e seguiu a pé. O problema era entrar sem ser
alvejado, porque o pessoal da cooperativa estava de olho na CG.
Ele pensou em entrar na taberna como se fosse um cliente habitual, mas
Sócrates já devia ter feito uma descrição dele à chefia, e a cidade inteira o estava
vigiando. Ele ainda usava a farda de camuflagem e portava uma Uzi - um
habitante comum de Ptolemaïs não sairia vestido daquela maneira à noite para
tomar alguns tragos.
Mac lembrou-se do que Chloe e Hannah lhe contaram a respeito do lugar
e caminhou o tempo todo nas sombras. Depois de contornar o local, esgueirou-
se pela porta dos fundos e entrou no minúsculo banheiro. A taberna estava
lotada e barulhenta, o que lhe dava uma vantagem. Ele trancou a porta, tentou
controlar a respiração e limpou a graxa do rosto. Pelo espelho sujo, notou que
seu rosto não ficou totalmente limpo e assustou-se ao ver marcas profundas de
cansaço ao redor dos olhos. Faz algum tempo que escureceu, ele pensou, e
estamos apenas começando:
Mac estudou o sistema de encanamento. Os canos atravessavam o piso e,
provavelmente, desciam até um metro ou pouco mais do local em que George e
os outros crentes estavam reunidos no fundo da lavanderia. Ele sentou-se no
chão e usou o pente da Uzi para bater no cano em forma de código Morse.
"Procurando amigo de S.D."
Ele repetiu a mensagem mais duas vezes.
Finalmente, alguém respondeu. Mac não tinha nenhum papel para
escrever, e teve de lembrar-se de cada letra que ouviu: "Necessito
comprovação."
Mac respondeu: "Maravilhosa Graça."
A resposta: "Mais."
Ele bateu: "Vamos para casa."
A resposta: "Anjo favorito?"
Essa era fácil. E só um compatriota saberia. "Miguel."
"Seja bem-vindo. Rápido."
Mac apagou a luz antes de abrir a porta. Ao ver que não atraíra olhares
curiosos, ele desceu correndo a escada. Assim que ouviu um "Psiu" vindo do
cômodo dos fundos, atravessou a cortina e viu os canos de duas Uzis sob a fraca
iluminação.
Um jovem, de cabelos escuros, parecia pronto para atirar.
- Deixe-me ver suas mãos - ele disse.
Mac levantou as mãos deixando a Uzi - carregada com munição daquele
próprio cômodo - pendurada no braço.
- É ele? - perguntou o jovem.
- Deve ser - respondeu George.
- Se não sou - disse Mac -, como eu poderia saber que seu nome é
Costas?
Foi, então, que ele entendeu qual era o motivo da dúvida de George e tirou
os óculos.
- Eu fingi estar trabalhando para Carpathia, homem! - ele disse. - Minhas
sardas foram disfarçadas e mudei a cor dos cabelos.
- É ele! - disse George, aproximando-se de Mac para abraçá-lo.
Várias outras pessoas - a maioria homens, de todas as idades e armados -
, escondidas sob pilhas de roupas, apareceram. Havia apenas três mulheres ali -
uma de meia-idade, uma idosa e uma com pouco menos de 20 anos. A primeira
apresentou-se como Sra. R, a mãe de Costas. A mais velha disse:
- Meu marido é primo de K.
Um homem franzino e magro, que parecia estar beirando os 80 anos,
disse:
- O marido dela sou eu. George apontou para a moça.
- O telefone de Elena tocou, não faz muito tempo, e esta jovem aqui
atendeu. Apesar de a ligação estar péssima e da estática, ela confirmou ao
bando de Elena que eu continuava trancado a sete chaves.
- Prazer em conhecê-lo - disse a moça imitando alguns ruídos de estática,
o que provocou risos no pessoal.
- Excelente trabalho - disse Mac. Mas, irmãos e irmãs, não temos tempo
a perder. Existe uma verdadeira caçada humana atrás de mim, e não vai
demorar muito tempo para eles descobrirem que Elena está morta e que o
prisioneiro fugiu. Tenho duas companheiras que estão a pé. Primo de K, o seu
sobrenome também é Kronos?
-Sim.
- Foi o senhor que emprestou seu caminhão para a causa?
Ele fez um movimento afirmativo com a cabeça, de modo solene.
- Esse caminhão está disponível?
- A dois quarteirões daqui.
- Quero comprá-lo. - Mac tirou um volumoso maço de nicks do bolso da
calça, abaixo do joelho.
- Não, não, não é necessário.
- É, sim, porque no fim da noite esse caminhão ficará conhecido da CG e o
senhor não poderá vê-lo novamente.
- Eu não preciso de dinheiro.
- E a cooperativa? E o pessoal do esconderijo?
- Sim - disse a Sra. Pappas dando um passo à frente para pegar o
dinheiro.
- Como é o caminhão? Tem tração nas quatro rodas?
- Sim. Mas não é novo nem rápido. Câmbio manual de cinco marchas,
muito pesado e bem possante.
- Assim que eu conseguir falar com as outras duas companheiras, George
e eu vamos pegar o caminhão para buscá-las. A CG acha que vamos seguir
direto para o aeroporto de Ptolemaïs, mas seria um ato suicida. Temos um avião
numa pista abandonada, a uns 130 quilômetros a oeste daqui. Se pudermos
seguir naquela direção sem chamar a atenção de ninguém, será lá que o senhor
vai encontrar seu caminhão amanhã. Se deixarmos rastro, finja que nunca viu
aquele caminhão.
- Eu quero ir junto - disse Costas.
- Não, sinto muito. Não há meios de você nos ajudar a fugir, a menos que
queira nos acompanhar até a América.
- Mas eu...
- Vamos aceitar toda a munição que você puder nos fornecer. E eu diria
que, se partirmos agora, nossas chances são de apenas 50%. Concorda,
George?
- Não. Acho otimista demais. Mas concordo que não temos outra opção e
precisamos partir já.
A Sra. P. levantou a mão.
- Não há nada errado em orar enquanto alguém trabalha. Alguém coloca
munição extra numa sacola enquanto eu oro,
- Nosso Deus, nós te agradecemos a vida de nossos irmãos e irmãs em
Cristo e te pedimos que coloques um círculo resistente como aço ao redor deles
para protegê-los. Que eles façam uma boa viagem, nós te suplicamos, em nome
de Jesus. Amém.
George pegou a sacola e as chaves do caminhão, enquanto Mac,
encolhido em um canto, tentava falar com Hannah e Chloe pelo walkie-talkie.
Chloe estava conversando com Chang pelo telefone quando ouviu Hannah
receber uma mensagem de Mac, via rádio, e informar a localização delas: fora da
estrada, atrás de um arbusto, ao norte da cidade.
- Isto é urgente - Chang estava dizendo. - Não tenho tempo de ligar para
cada um de vocês, portanto prestem atenção. Todos os Monitores de Moral e
todos os homens das Forças Pacificadoras da CG estão em alerta máximo. Eles
saíram da mata e estão começando a vasculhar a cidade inteira. Estou falando
de centenas de pessoas e de todos os veículos em operação.
- Eles encontraram o corpo de Elena - prosseguiu Chang -, sabem que
alguém atendeu o telefone dela e estão rastreando aquele aparelho pelo GPS.
Se George estiver de posse do telefone, eles saberão onde ele está. Se
abandoná-lo, vai ter de ser bem longe da cooperativa.
- O aeroporto está fervilhando de gente da CG. O Rooster Tail está na
pista e pronto para decolar, mas não tem combustível. Se vocês puderem voltar
para pegar o avião de Mac, o melhor que posso fazer é tentar falar com o piloto
amigo de Abdullah e pedir que ele vá para Larnaca, em Chipre, amanhã.
- Obrigada, Chang - disse Chloe. - Hannah está me contando que Mac e
George estão a caminho. Esqueça Larnaca. Nunca vamos conseguir chegar lá.
Parece que o cerco está se fechando à nossa volta. Diga a todos que os
amamos e que estamos fazendo o melhor que podemos para voltar para casa.
Mac estava dirigindo o caminhão rumo ao norte, com George sentado a
seu lado, quando recebeu a ligação de Chloe contando sobre o telefone de
Elena.
- Isso é fácil - ele disse parando no meio da estrada. George, coloque o
telefone de Elena debaixo da roda da frente.
O caminhão esmagou o telefone.
Enquanto eles seguiam na direção norte, Mac avistou um mar de luzes
azuis piscando a distância.
- Estamos fritos - ele disse.
- Eles não estão procurando este caminhão - disse George. - Não faça
nada suspeito.
- Como, por exemplo, pegar duas mulheres armadas?
- Siga em frente. As duas vão ver a CG e saberão que teremos de voltar
mais tarde.
- Quando vamos ter tempo de fazer isso?
- O que você vai fazer, Mac?
- Eles estão bloqueando a estrada. Ponha as armas e a munição debaixo
dos bancos e coloque o boné. A sua descrição é mais conhecida aqui do que a
minha. Você não vai poder esconder muita coisa, mas pode esconder o cabelo
loiro.
Deitadas de braços, Chloe e Hannah observavam a longa fila de carros da
CG, com as luzes piscando.
- Lá está o caminhão - disse Hannah.
- Há muitas viaturas da CG rodando por ali. Acho que eles não precisavam
de tantas para bloquear a estrada.
Duas viaturas da CG pararam de cada lado da estrada, e um homem das
Forças Pacificadoras levantou a mão para impedir a passagem do caminhão
acenando para o restante das viaturas.
- Hannah, se você estiver me ouvindo, dê um clique.
Chloe olhou para ela.
- É o George?
Hannah assentiu com a cabeça e deu um clique no walkie-talkie.
- Muito bem, peguei o rádio de Mac aqui no banco. Vou ficar olhando para
a frente fingindo que não estou falando, portanto vai ser difícil você me ouvir.
Preste muita atenção. Se tiver uma DEW aí e puder ligá-la, dê um clique.
Hannah ligou a arma e deu outro clique.
- Esses caras vão nos revistar. Vou deixar o rádio aberto. Se vocês
acharem que eles estão se aproximando demais, destruam os dois. Entendido?
Clique.
- Eles estão vindo. Preparem-se. Se algum deles se aproximar muito de
mim, ficando do meu lado, cuidado com a pontaria!
Clique.
Chang estava exausto e gostaria de encerrar o expediente como todos
fizeram no palácio, com exceção de Suhail Akbar e o incansável Carpathia, que
não necessitava mais de sono. No entanto, Chang não conseguiria dormir
enquanto Mac, Chloe, Hannah e George não estivessem seguros, dentro do
avião, voando de volta para casa. Ele continuou diante do computador, pronto
para colaborar. Nesse meio tempo, ligou a escuta clandestina no escritório de
Carpathia.
- Eu preciso acompanhar de perto o que está acontecendo na Grécia -
Akbar estava dizendo. - Volto a falar com o senhor assim que puder.
- Esse assunto não pode ser resolvido daqui, Akbar? As noites são muito
longas, e há muitas informações que necessitamos saber das regiões onde o dia
já amanheceu.
- Perdoe-me, potentado, mas tivemos uma falha grave na segurança.
Estou me comunicando com Ptolemaïs por meio de telefonemas e e-mails
seguros. A situação está prestes a ser resolvida, e voltarei a falar com o senhor o
mais rápido possível.
- E temos condições de saber como anda o trabalho dos Monitores de
Moral na Região -6 e na Região 0?
- Claro.
- Deveria haver transmissões em áudio e em vídeo para que eu pudesse
ver os últimos renitentes recebendo a marca de lealdade, adorando minha
imagem três vezes por dia ou sofrendo as conseqüências. Eles estão sofrendo,
não?
- Claro que estão, Excelência. O senhor e eu temos recebido notícias
atualizadas a respeito disso.
- E os judeus? Existem muitos judeus nessas duas regiões que devem
estar apreciando o brilho do sol neste momento, mas eles não sabem que é pela
última vez. Estou certo?
- O senhor está sempre certo, Excelência. No entanto, poucas pessoas
estão apreciando a beleza da natureza, em razão da condição em que os mares
se encontram. Não sei como o planeta poderá sobreviver a uma tragédia de tais
proporções.
- Isso é obra dos judaístas, Suhail! Essa gente acha que os judeus são o
povo escolhido de Deus e diz isso a eles. Bem, agora eles são meus escolhidos.
E o que reservei para esse povo deixará um gosto amargo na boca deles. Eu
quero saber de tudo, Suhail. Quero ver se meus editos estão sendo postos em
prática.
- Vou providenciar, meu senhor. Quando voltarmos a conversar, alguém já
terá conectado o monitor com as emissoras de noticiários daquelas regiões, de
modo que o senhor possa receber todas as informações que desejar.
- E esse caso de falha na segurança, Suhail? Partiu daqui, de dentro do
palácio?
- Tudo nos leva a crer que sim, senhor. Se toda essa trama, todas essas
informações falsas foram plantadas em nosso principal banco de dados, de um
lugar distante, estamos muito mais vulneráveis do que imaginamos. Por pior que
seja, temos quase certeza de que está partindo daqui de dentro, e não vamos
demorar muito para descobrir.
- Você se lembra, Suhail, de minhas ordens quanto ao tipo de tratamento
que deveria ser dado aos judeus e, principalmente, aos judaístas? Pois esse
seria um castigo muito suave para alguém que ousou enganar-me dessa maneira
aqui, debaixo de meu teto.
- Eu entendo, senhor.
- O responsável deve ser morto diante dos olhos do mundo.
- Claro.
- Suhail, não fizemos uma operação pente-fino em todo o pessoal daqui?
- Fizemos.
- E existe algum funcionário da Comunidade Global, aqui ou em qualquer
outro lugar do mundo, que ainda não recebeu a marca?
- Menos de um milésimo de 1 %, Excelência. Provavelmente menos de
dez. Todos eles são cidadãos leais e apresentaram motivos válidos. Pelo que
sabemos, têm planos de corrigir a situação imediatamente.
- Eles não deveriam ser os principais suspeitos?
- Estão sob vigilância cerrada, senhor. E não existe nenhum funcionário
dentro do palácio, nem em Nova Babilônia, sem a marca.
Depois que Suhail conseguiu, finalmente, desculpar-se e retornar à
situação em Ptolemaïs, Chang continuou a ouvir o que se passava no escritório
de Carpathia. Nicolae estava resmungando alguma coisa, mas Chang não con-
seguia entender. De vez em quando, ele ouvia uma batida forte, como se
Carpathia estivesse esmurrando uma mesa ou uma escrivaninha. Finalmente, ele
ouviu uma seqüência de ruídos, como se Carpathia tivesse chutado o cesto de
lixo, derrubando todo o conteúdo no chão.
Após alguns instantes, Chang ouviu uma batida leve na porta.
- Entre! - gritou Carpathia.
- Ah, com licença, potentado, senhor. Vou ligar seu monitor às emissoras
dos Estados Unidos Norte-americanos e dos Estados Unidos Sul-americanos.
Carpathia não lhe deu atenção. Quando o homem estava de saída, ele
disse:
- Limpe esta bagunça aqui.
Mac decidiu tomar a iniciativa com o soldado das Forças Pacificadoras da
CG encarregado do bloqueio da estrada, em vez de esperar que ele lhe pedisse
os documentos. George estava sentado, com o corpo relaxado, no banco do
passageiro.
- Puxa, o que está havendo aqui esta noite, chefe? Não vejo um
contingente tão grande nas ruas desde que comecei a trabalhar na manutenção
das estradas. Todos esses homens trabalham duro em nossas zonas de
construção, e você está cumprindo seu dever. O que está procurando? Posso
ajudar em alguma coisa?
- Assunto confidencial. Caçando alguém de alto nível. O dia foi longo para
vocês, não?
- O que está havendo? Nós não costumamos passar por aqui tão tarde
assim. Tivemos de pegar o caminho mais longo do aeroporto até aqui. Aquele
trecho também está sendo vigiado? O cerco está grande lá. Passamos pelo blo-
queio de lá. Eles nos deram permissão para passar, apesar de estarmos sem
documentos, porque tivemos de trabalhar até tarde transportando asfalto, essas
coisas. Estamos voltando para o depósito.
- Isso não é desculpa para andar sem documentos. Todos devem portar
documentos. Sempre.
- Nós sabemos, e estamos muito aborrecidos por isso. Mas vamos pegá-
los no depósito antes de voltar para casa.
- Permitiram que vocês passassem pela estrada do aeroporto?
- Permitiram, sim. Os caras foram legais. Bem, nós não pertencemos às
Forças Pacificadoras, mas todos trabalhamos para o bem-estar do povo, certo?
- Isso é contra o regulamento.
- É verdade. Eu pensei a mesma coisa e fiquei muito feliz, porque eles não
agiram como esses sujeitos durões que tratam mal operários como nós.
- Bem, eu também não quero atrapalhar a vida de vocês, portanto vou
facilitar as coisas. Vocês me mostram a marca de lealdade e podem ir embora.
Chloe achou que Mac tinha quase resolvido a situação com aquela
conversa. Mas, se ele não representava nenhuma ameaça, não haveria motivos
para mostrar a marca.
- Não hesite, Hannah - disse Chloe.
- Eu gostaria que o outro sujeito saísse do carro. Elas ouviram o diálogo
pelo walkie-talkie:
- Você quer ver as nossas marcas?
- Sim. Na mão ou na testa?
- A minha está aqui na testa, debaixo do quepe. A do meu companheiro
está... hã... onde mesmo, cara?
- Na mão - disse George.
- Quero ver - disse o soldado.
- E a sua, onde está? - perguntou Mac. - Você também tem a imagem do
potentado?
- Não. Só o número. Como militar, não sou obrigado. Chloe olhou para
Hannah e, depois, para o caminhão.
Mac estava desatando o cinto lentamente e tirando o quepe. Ele inclinou-
se para a frente.
- Não estou vendo nada.
- O quê? Olhe direito!
Pelo walkie-talkie, elas ouviram George resmungar:
- Este seria o momento perfeito.
O soldado deu meia-volta, bateu com as costas na cabina do caminhão e
caiu no chão, gritando. Quando ele começou a levantar-se, Mac disse:
- Diga aí, companheiro. O que aconteceu?
- Não sei... acho que foram formigas-lava-pés ou coisa parecida.
Agora o soldado estava em pé coçando as costas com força. Ele fez um
gesto para o oficial na outra viatura da CG, que desceu rapidamente.
- Qual é o problema?
- Uma dor nas costas, como se eu tivesse encostado num cano quente.
Acho que está levantando bolhas.
Ele inclinou-se na direção de Mac, mas, no mesmo instante, com a mão na
parte de trás da perna, caiu no chão Contorcendo-se de dor. O oficial sacou a
arma.
- O que vocês estão fazendo? - ele perguntou.
- Não estamos fazendo nada! - respondeu Mac. - Qual é o problema dele?
A luz interna do caminhão foi acesa. George desceu e caminhou até a
frente do caminhão, com as mãos erguidas. O walkie-talkie devia estar dentro de
seu bolso, porque Chloe ainda conseguia ouvir sua voz pelo rádio de Hannah.
- Posso ajudar em alguma coisa? - ele perguntou.
- Fique onde está - disse o oficial pouco antes de desabar na estrada,
deixando cair a arma e tentando cobrir o rosto.
Mac saltou do caminhão para ajudar George.
- Arranque os rádios das viaturas deles. Vou pegar esses dois, com farda e
tudo.
Agora, os homens estavam delirando, com os olhos vítreos e gemendo.
- Senhoras - George disse pelo rádio -, venham nos ajudar com estas
viaturas.
Mac desarmou os homens da CG e atirou suas armas na carroceria do
caminhão. Pegou os rádios e colocou-os no banco da frente.
- Assim que você desligar os fios nas viaturas - ele disse a George -, abra
os porta-malas.
Chloe e Hannah vieram correndo.
- Chloe - disse Mac -, vocês duas vão nos escoltar. Assim que eu colocar
este cara no porta-malas da viatura, vou encostar o caminhão atrás de você.
Hannah, você se posiciona atrás de mim assim que colocarmos o outro sujeito no
porta-malas da outra viatura.
Os homens da CG estavam gemendo.
- Quietinhos, rapazes - disse Mac. - Vocês vão sofrer um pouco, mas não
vão morrer, a não ser que nos obriguem a atirar em vocês. Vamos dar um
pequeno passeio.
Depois de esconder os homens da CG nos porta-malas das viaturas, Mac
manobrou cuidadosamente o caminhão e pediu a George que entregasse às
mulheres a munição extra colocada na sacola pelo pessoal da cooperativa. Com
o caminhão e as duas viaturas da CG voltados para o oeste, eles ouviram um
dos rádios da CG sendo acionado.
- Bloqueio da estrada norte; confirme, por favor.
- Bloqueio da estrada norte - disse Mac sem apertar completamente o
botão de transmissão.
- Repita!
- Aqui bloqueio da estrada norte - ele disse tomando o cuidado de ser
ouvido, mas não perfeitamente.
- Posição?
- Em atividade.
- Continue.
George entrou no caminhão. Enquanto Chloe rodava seguida por Mac,
George disse:
- Veja só o que tem aqui dentro. Não sei dizer por que, mas gostei muito
daquela senhora. - A Sra. P. havia mandado alguém colocar pão, queijo e frutas
na sacola, no meio das munições. - Chloe e Hannah já pegaram quase tudo. E
eu vou comer o resto, se você não pegar logo sua parte.
Mac serviu-se de uma parte do lanche, enquanto o comboio inusitado
rodava na escuridão, na direção oeste, começando a viagem de volta para casa.
Quanto tempo conseguiriam enganar a CG era um mistério. Por ora, Mac
saboreava a comida e a situação de vantagem do momento.
ONZE
As notícias transmitidas por Mac permitiram que Chang respirasse mais
aliviado pela primeira vez depois de horas. Ele voltou a ligar a escuta clandestina
no escritório de Carpathia, onde Akbar relatava os últimos acontecimentos ao
chefão.
- Tivemos um contratempo, mas não é possível que esse bando tenha sido
capaz...
- Um contratempo?
- Resumindo a história, senhor, o prisioneiro matou um dos nossos... uma
mulher, para ser mais exato... e fugiu. Achamos que ele está fugindo com os três
que...
- Ele matou um dos captores?
- Sim, Excelência. Achamos que...
- Esse é o tipo de homem durão. Por que ele não está do nosso lado?
- Achamos, senhor, que ele se encontrou com os três que foram resgatá-lo
e esperamos que eles cometam a tolice de tentar voltar ao aeroporto. A vigilância
lá está cerrada.
- Sim, bem... - Carpathia parecia distraído, como se o resto da história não
lhe interessasse. - Suhail, será que conseguimos abafar o fiasco de hoje?
- Ainda é cedo para dizer, senhor.
- Ora, vamos. Sei que você não é daqueles que tentam poupar-me de más
notícias. Eles escutaram o relatório do piloto e me ouviram dizer que ele cometeu
um erro, que as bombas atingiram o alvo. Bem, o que o povo anda dizendo?
- Sinceramente, não sei, Excelência. Passei o dia inteiro entre o seu
escritório e o meu, tentando resolver esse problema na Grécia.
- Vou lhe dizer uma coisa, Suhail: o videodisco do avião mostra claramente
o alvo sendo atingido e aqueles traidores ardendo em chamas! Seja qual for a
mágica que fez aquele povo sobreviver, não pode surtir efeito fora daquela área.
- Com todo o respeito que lhe devo, senhor, não faz muito tempo que
perdemos tropas terrestres do lado de fora...
- Eu sei disso, Suhail! Você acha que não tomei conhecimento?
- Peço-lhe desculpas, potentado.
- Precisamos descobrir um lugar seguro próximo àquela área, onde nossas
armas de guerra não sejam engolidas pela terra. Desse lugar, poderemos
controlar tudo o que entra e sai de lá. Eles vão necessitar de mantimentos, e
vamos impedir que recebam.
- Nossas forças armadas estão muito reduzidas, senhor...
- Você está me dizendo que não temos pilotos nem aviões que possam
impedir a entrada de mantimentos em Petra?
- Não é bem isso, senhor. Estou certo de que temos. Ah, mudando de
assunto, senhor, nossos especialistas em textos antigos dizem que a próxima
praga vai fazer com que os lagos e rios do mundo tenham o mesmo destino dos
mares.
- Todas as fontes de água doce serão transformadas em sangue?
- Sim, senhor.
- Impossível! Todo mundo vai morrer! Até nossos inimigos.
- Há os que acreditam que os judaístas não sofrerão nada, da mesma
forma que foram protegidos contra nossos exércitos recentemente.
- Onde eles vão conseguir água?
- No mesmo lugar em que receberam proteção. Talvez fosse prudente
negociar com o líder deles para que as pragas sejam suspensas.
- Nunca!
- Não quero contrariá-lo, senhor, mas não podemos conviver muito tempo
com essa devastação. E se os rios e os lagos também se transformarem...
- Você não está a par de tudo, Suhail. Eu também tenho poder
sobrenatural.
- Eu já vi, senhor.
- E vai ver mais. O reverendo Fortunato está preparado para usar os
mesmos artifícios para revidar essa magia dos judaístas, e ele tem gente
especializada para fazer isso no mundo inteiro.
- Bem, aquele...
- Agora me mostre o que eu quero ver, Suhail.
- Bloqueio da estrada norte, aqui é a Central.
- Bloqueio da estrada norte - disse Mac. - Prossiga, Central.
- Destino do caminhão suspeito?
- Repita?
- Uma de nossas viaturas informou que, assim que ela passou, você
deteve um caminhão.
- Positivo. Caminhão em ordem.
- Seguindo de oeste para leste?
- Positivo.
- Rastreamos um celular no lado oeste da cidade e, depois, no lado leste,
mas o aparelho desapareceu da tela.
Mac olhou para George.
- O que será que eles querem que eu diga?
- Não sabemos nada sobre isso - disse George.
Mac voltou a falar.
- Não podemos ajudá-lo daqui.
- Caminhão seguiu para leste?
- Positivo.
- Você informou tráfego intenso.
- Positivo.
- Congestionado?
- Positivo.
- Os homens nas viaturas não viram mais nada quando passaram, a não
ser o caminhão.
- Congestionado agora.
- Qual é a sua posição?
Mac olhou para George novamente.
- Eles estão atrás de nós.
George pegou as armas de debaixo do banco e tirou o walkie-talkie do
bolso.
- Atenção, Jinnah e Irene - ele disse. - Em breve vamos ter companhia.
. Mac clicou o botão do rádio da CG algumas vezes.
- Repita - ele disse.
- Qual é sua posição? Sua localização?
O sangue de Chang gelou nas veias. Nos últimos minutos, ele chegou a
cochilar ouvindo o diálogo entre Carpathia e Akbar, enquanto eles assistiam aos
noticiários dos Estados unidos Norte-americanos e dos Estados Unidos Sul-
americanos. Em conseqüência disso, deixou de acompanhar os acontecimentos
mais recentes da operação em Ptolemaïs.
A CG de lá havia rastreado o celular de Elena até o lado neste da cidade,
e o aparelho continuou no mesmo lugar por mais de uma hora. O comandante
Nelson Stefanich e os sobreviventes do grupo de filósofos estavam comandando
pessoalmente a invasão de uma taberna naquela área.
Chang ligou para Mac.
- Fale rápido, Chang. Estamos num beco sem saída.
- A que distância vocês estão do oeste da cidade?
- Não sei ao certo. Estou pisando fundo no acelerador deste ferro-velho,
mas ele não passa dos 80. Estão atrás de nós?
- Vocês estão muito longe da cooperativa? Não dá para ajudar o pessoal
de lá?
- Depende. O que está havendo?
- A CG está invadindo a taberna neste momento. Você sabe que o próximo
lugar vai ser a cooperativa.
- Alguma chance de nossos companheiros saírem de lá?
- Acho que não. Não consegui avisá-los.
- Pelos meus cálculos, estamos a menos de 30 minutos de nosso avião.
Podemos voltar, se você achar que é necessário.
- Aguarde um instante. Está chegando um relatório. Esconderijo dos
judaístas descoberto embaixo da taberna.
Houve tiroteio. Dezesseis homens da CG mortos e uma dúzia de feridos.
Local destruído por granada e incendiado. Vários prédios vizinhos destruídos.
Não há inimigos sobreviventes.
Enquanto Mac inteirava George da situação, a CG continuava tentando
falar com ele pelo rádio pedindo algum tipo de código.
- Bloqueamos as duas extremidades da estrada norte por causa da
invasão, portanto não se desviem do caminho - eles disseram. - Ainda não
recebemos seu código de identificação.
George estava arrasado e tentou pegar o rádio da CG da mão de Mac.
- Vou fornecer um código a eles.
- Tenha calma, amigo.
- A culpa foi minha, Mac! Onde eu estava com a cabeça quando fiquei
andando por aí com aquele celular?
- Eu gostaria de ter conseguido voltar - disse Mac. - Gostaria de ter tirado
alguns deles de lá. Mas nossos irmãos e irmãs estão no céu, e parece que eles
lutaram um bocado antes.
- Então, é isso? - disse George. - Você acha que devo ficar tranqüilo
depois de ter sido culpado da morte de um grupo de pessoas que agora estão no
céu?
- Necessito do código de identificação imediatamente - disse a voz pelo
rádio.
- Eu devia recitar o Salmo 94.1 para eles - disse Mac.
- Eu sei muito bem o que gostaria de dizer a eles. Peça às mulheres que
parem e que perguntem aos dois caras da CG qual é o código.
- É provável que eles revelem o local onde estamos.
- Não, se tiverem uma DEW apontada para eles. Deixe-me fazer isso, Mac.
Por favor. Eu preciso.
- Chloe, pare no acostamento - disse Mac.
- Agora?
- Agora.
- Está tudo bem?
- Por enquanto.
O telefone de Mac vibrou. Era Chang.
- Stefanich, Platão e um pelotão da CG estão à procura do caminhão e de
duas viaturas. Estão seguindo na direção oeste.
- Precisamos agir rápido - disse Mac saltando do caminhão, enquanto
Chloe descia da viatura e Hannah estacionava atrás.
- Abra o porta-malas, Chloe - disse George. - Hannah, dê-me a DEW.
Chloe abriu o porta-malas, e Mac focalizou a lanterna no rosto abatido do
soldado da CG. George arrancou-o do porta-malas com uma das mãos, e o
homem ficou deitado no chão, gemendo.
- Ai minhas bolhas - ele disse, chorando. - Tome cuidado, por favor. Ou me
mate.
- Você bem que gostaria que eu o matasse, não? - disse George,
empunhando a DEW. - Está vendo isto aqui?
O homem abriu um olho e assentiu com a cabeça, com ar desolado.
- É o que está cozinhando sua carne, e pode cozinhar muito mais ainda.
- Não, por favor.
George ligou a arma, e ela zumbiu, pronta para ser acionada.
- Por favor!
Ele mirou o tornozelo do soldado, e o homem enrijeceu o corpo,
choramingando.
- Quero saber qual é o seu código.
- O quê?
- Você ouviu. Quero saber qual é o seu código ou...
- Está no porta-luvas! No meu manual!
Chloe foi até lá e trouxe uma pasta de couro, preta e pequena, com folhas
presas por argolas.
- Está cheia de anotações - ela disse.
George pegou a pasta e jogou-a em cima do homem.
- Precisamos ir embora - disse Mac. - De qualquer forma, eles não vão
acreditar no código que fornecermos. Estão vindo atrás de nós.
- Esses caras são pesos mortos - disse George. - Se forem deixados aqui
na estrada, poderão servir para retardar os outros.
O homem folheava as páginas rapidamente segurando a pasta diante do
farol do caminhão.
- É um-um-seis-quatro-oito! - ele disse.
George o arrastou pela estrada, enquanto Mac tirava o outro da outra
viatura. Os homens contorciam-se de dor.
- É melhor vocês nos matarem - implorou o segundo.
- Você não sabe o que está pedindo - disse George.
- Mas, do jeito que as coisas estão ruins, com certeza a morte seria melhor
para você.
- Vamos deixar uma das viaturas aqui - disse Mac.
- Bloqueiem a estrada com ela e com o caminhão. Não vai demorar muito
para que a CG encontre os dois veículos, mas qualquer empecilho no caminho
será vantajoso para nós.
Chloe manobrou a viatura de frente para o caminhão; ambos ficaram
atravessados na estrada. Em seguida, Mac e George tiraram a tampa do
distribuidor dos dois veículos e pegaram as chaves.
- Última chamada para fornecer o código - soou a voz pelo rádio.
Mac gritou o código no microfone. Em seguida, disse:
- Chloe, você dirige. E pise fundo no acelerador. A espingarda fica comigo.
Acho que eles não vão nos pegar já, mas devemos estar armados e preparados.
George colocou a DEW no porta-malas e sentou-se no banco traseiro, ao lado de
Hannah. A viatura era pequena demais para os quatro e parecia gemer com o
peso, mas Chloe acelerou com força e, em breve, eles estavam rodando a mais
de 110 quilômetros por hora.
George perguntou:
- E, então, Mac, o que diz o Salmo 94.1? Mac virou-se para trás, o mais
que pôde.
- "Ó Senhor, Deus das vinganças, ó Deus das vinganças, resplandece."
O rádio da CG voltou a ser acionado.
- Necessitamos de sua posição. Pelotão ao norte da estrada acaba de
relatar que não há tráfego lá, nem sinal de vocês.
- Dê-me isso aí - disse George, pegando o microfone da mão de Mac e
apertando o botão.
- Muito bem, vocês nos encontrarão no Salmo 94.1.
Chang preparou um chá fazendo uma mistura esquisita, que incluía café
instantâneo com alto teor de cafeína para mantê-lo acordado. Ele desabaria na
cama assim que tudo terminasse, mas, no momento, não podia cochilar. Ficou
claro que a CG da Grécia estava de olho em seus companheiros, e não
demoraria muito para que eles descobrissem que Mac devia ter um avião numa
pista abandonada, a menos de 20 minutos da estrada. Mac, por certo, não ia
fugir pela Albânia. Quanto tempo ainda faltava para que ele e sua equipe
subissem a bordo do avião e por quanto tempo voariam antes de precisar
abastecer a aeronave?
Nesse ínterim, pelo que Chang pôde ouvir, Carpathia estava entretido -
para não dizer absorto - com as transmissões das regiões onde ainda era dia
claro. O potentado da Região 0, os Estados Unidos Sul-americanos, anunciou
um evento do qual sua esposa, a "primeira-dama", estava participando
pessoalmente.
- E onde você está enquanto ela faz seu trabalho? - perguntou Carpathia.
- Ah, meu amado ressurreto, o senhor pode ficar tranqüilo, porque estou
me dedicando a um trabalho muito mais nobre. Estamos seguindo à risca suas
determinações para descobrir os infiéis daqui, e estou trabalhando em conjunto
com os Monitores de Moral, com os soldados das Forças Pacificadoras e com
grupos de homens disfarçados de civis. Esperamos ver mais algumas dezenas
de pessoas enfrentando a guilhotina ou recebendo sua marca dentro de 24
horas.
- Dezenas? Meu caro amigo, soubemos, por meio de seus compatriotas do
mundo inteiro, que em algumas regiões existem centenas, talvez milhares, que
sofrerão por terem sido desleais. Há gente trabalhando contra nós na calada da
noite, até mesmo aqui, nesta parte do mundo.
O sul-americano deu um longo suspiro.
- Senhor, infelizmente nossas forças foram dramaticamente reduzidas em
razão do que ocorreu com os mares.
- Mas tenho certeza de que existem dissidentes aí, não?
- É verdade. Mas, por favor, eu gostaria de mostrar-lhe uma transmissão
ao vivo do Uruguai, onde minha esposa está participando de uma cerimônia
pública que culminará com a imposição à lealdade.
Chang mudou rapidamente para Mac e sua equipe. Não havia nenhuma
novidade. Ele voltou a ouvir a conversa entre Carpathia e o potentado dos
Estados Unidos Sul-americanos. A primeira-dama estava recebendo aplausos
entusiásticos. Ela havia passado o braço ao redor de um homem tímido, de meia-
idade.
- Este cavalheiro está finalmente recebendo a marca de lealdade a nosso
potentado ressurreto!
Mais aplausos.
- Diga-me uma coisa, Andrés, por que você demorou tanto tempo?
- Eu estava com medo - ele disse, sorrindo.
- Medo do quê?
- Da agulha.
Muitas pessoas riram e bateram palmas.
- E você vai aceitar receber a marca hoje?
- Sim, desde que seja um 0 bem pequeno - ele disse.
- Você não está mais com medo da agulha?
- Ainda estou. Mas tenho mais medo da guilhotina.
O povo gritou e continuou a aplaudir quando Andrés se sentou, com o
corpo ereto, pronto para receber a marca. Sua testa foi esterilizada com um
cotonete. Alguém segurou-lhe a mão, a máquina foi acionada, e ele pareceu
sinceramente aliviado e feliz.
A primeira-dama disse:
- Você pode retornar ao que estava fazendo quando foi descoberto sem a
marca.
A câmera acompanhou Andrés enquanto ele corria até a imagem de
Carpathia e ajoelhava-se diante dela. A primeira-dama dirigiu-se ao povo:
- Andrés demorou para ser descoberto sem a marca porque seguiu à risca
o decreto de adorar a imagem, e ninguém desconfiou dele.
Aparentemente, Carpathia não se impressionou com a cena.
- Ele me adora, mas tem medo de uma pequenina picada. Droga!
- Mas o senhor ficará satisfeito com a novidade, Excelência - disse o
potentado sul-americano. - Seguindo as pistas de vários cidadãos leais,
descobrimos um antro de oposição Seis foram mortos por terem resistido à
prisão, mas conseguimos trazer 13 para este centro de adoração e de aplicação
da marca.
- Quantos vão receber a marca agora? - perguntou Carpathia. - Quantos
mudaram de idéia diante do instrumento de imposição à lealdade?
- Bem... ah... até agora nenhum, senhor. Chang ouviu um murro na mesa.
- Gente teimosa! - disse Carpathia. - Teimosa demais. Por que são tão
obstinados? Tão idiotas? Tão sem visão?
- Eles vão pagar por isso hoje, Excelência.
- Neste momento, enquanto conversamos?
A voz de Carpathia estava eufórica.
- Sim, agora.
- Que música é essa?
- Os condenados estão cantarolando alguma coisa, meu senhor. Isso é
bem comum.
- Mande-os calar a boca!
- Um momento. Com licença, senhor. - Ele chamou alguém. - Jorge! Avise
os funcionários do centro que o supremo potentado não permite nenhum tipo de
música. Sim, já! Excelência, a música já vai parar.
- Eles preferiram mesmo a guilhotina?
- Preferiram, senhor. Estão em fila.
- O que estamos esperando, então?
- Que obedeçam à sua ordem e parem de cantar, senhor.
- Vá em frente! A lâmina os silenciará.
Chang teve um sobressalto quando viu um guarda portando enorme rifle
com baioneta empurrar a primeira pessoa da fila, uma mulher aparentando ter
pouco menos de 30 anos. Ela estava cantando, com o rosto erguido em direção
ao céu. O guarda gritou com ela, mas a mulher não lhe deu atenção.
Ele a empurrou, e ela tropeçou, continuando a cantar, com os olhos fitos
no céu. Ele a cutucou nas costelas com o rifle, e ela caiu de joelhos no chão. Em
seguida, levantou-se e continuou a cantar.
O guarda posicionou-se ao lado da mulher, firmou pés no chão e desferiu-
lhe um golpe com a baioneta, que atravessou o braço dela, chegando a perfurar-
lhe o lado do corpo. Ela deu um grito quando a baioneta foi retirada e cobriu o
local do ferimento com a outra mão. A mulher soluçava, agora, ao entoar seu
cântico, e as pessoas a seu lado ajoelhavam-se no chão.
- O que ela está cantando? - Carpathia quis saber.
O som foi melhorado, e Chang prendeu a respiração enquanto ouvia o
cântico comovente entoado com dificuldade. Ela não conseguia mais manter a
cabeça erguida, mas continuou em pé, cambaleando, visivelmente zonza,
esforçando-se para cantar: "... quão espinhosa foi a coroa que Jesus suportou
por amor de nós".
Outros guardas juntaram-se ao primeiro, todos golpeando a cabeça dos
que estavam ajoelhados com as coronhas dos rifles.
- Diga aos guardas que parem de fazer disso um espetáculo! - disse
Carpathia, irado. - Eles estão entrando no jogo dessa gente. O povo precisa ver
que a cabeça desses infelizes ainda nos pertence. Para mim, tanto faz que eles
cantem, falem ou façam qualquer outra coisa!
A guilhotina estava pronta, e a mulher continuava a esforçar-se para
cantar, agora de maneira desafinada. Quando foi agarrada por um guarda de
cada lado e colocada no lugar, ela gritou: "... tua é minha alma, minha vida, meu
tudo!"
A lâmina foi solta, e o povo vibrou.
- Aah! - suspirou Carpathia. - Posso ver do outro lado?
- Do outro lado, senhor? - repetiu o potentado sul-americano.
- Da lâmina! Da lâmina! Coloque a câmera do outro lado! O corpo não cai!
Ele simplesmente desaba. Quero ver a cabeça despencar!
As próximas pessoas da fila aproximaram-se da máquina mortal com as
palmas das mãos erguidas. Os guardas continuavam a agarrá-las pelos
cotovelos e a cutucá-las com as armas, mas ninguém abaixou as mãos. Quando
os guardas as golpearam com as baionetas, elas recuaram instintivamente para
não serem feridas.
Em seguida, os guardas posicionaram-se atrás delas, cutucando-as na
parte inferior das costas com a ponta das baionetas. Agora, a câmera estava
atrás de um homem que segurava uma alavanca com uma das mãos e, com a
outra, agarrava a vítima pelos cabelos para colocar a cabeça no local apropriado.
O homem posicionou a barra de retenção no pescoço da vítima, soltou a
alavanca e fez um gesto afirmativo com a cabeça em direção a uma mulher
corpulenta. Ela puxou a corda para liberar a lâmina.
A lâmina começou a descer rangendo pelas guias laterais e despencou de
vez. A cabeça desapareceu da vista de todos, deixando à mostra apenas o
sangue esguichando do pescoço.
- Sensacional! - murmurou Carpathia.
- O caminho para casa está livre, não? - Hannah perguntou.
Mac virou-se e olhou para ela.
- Meu avião tem combustível suficiente para chegarmos a Roma. Lá, existe
uma pequena pista de pouso ao sul, controlada pelo pessoal da cooperativa que
estoca combustível. Eu só vou me sentir seguro quando decolarmos de lá.
- Mas eu estou falando dessa gente aqui - ela disse. Eles não vão chegar
ao aeroporto antes de nós, vão?
- De carro, não.
O que você está querendo dizer? - perguntou George.
- Não vai demorar muito até descobrirem para onde estamos indo. Com
certeza sabem que não pretendemos fugir deles indo de carro até a fronteira.
- Seu avião está escondido?
- Da estrada, sim, tenho certeza. De outros aviões? Não.
- Quanto tempo eles vão levar para chegar lá de avião?
- Saindo de Kozani, num caça? Eles vão chegar muito antes de nós.
- Eles têm condições de destruir seu avião?
- Só se chegarem antes de nós.
- Quantas pessoas eles podem levar?
- Pouca gente, se usarem uma aeronave pequena, rápida.
George parecia irritado.
- Já corremos muitos riscos para deixar a coisa dar errado agora, Mac.
Vamos pôr tudo em pratos limpos. Você acha que vamos chegar lá, subir a bordo
e decolar?
- É o único plano que eu tenho - disse Mac.
- Temos de levar em conta que eles poderão chegar antes de nós - disse
George -, e vamos ter de decidir o que fazer nessa situação.
- Você quer pensar no pior?
- Claro! Precisamos. Você acha que, para me livrar daqueles idiotas, eu
fiquei esperando que eles fossem me soltar? Fale mais sobre a pista de
decolagem.
- Ela corre de leste para oeste. Meu avião está na extremidade leste, de
frente para o oeste.
- Se eles conseguirem descer com um avião lá antes de decolarmos, vão
interceptar nosso caminho.
- Nós é que vamos interceptar o caminho deles - disse Mac. - Eu largo
vocês ao lado do avião. Você liga os motores, enquanto eu rodo com a viatura
pela pista e paro bem em frente ao nosso avião. Eles vão ter de ser muito hábeis
e ter jogo de cintura para não colidir comigo no momento do pouso. Nós fazemos
uma decolagem em ângulo, para não bater na viatura e neles, e desaparecemos
de vista.
George sacudiu a cabeça, em dúvida.
- E quando vai subir a bordo? Não sei, não, está deixando muita coisa por
conta do acaso.
- Deixando por conta de Deus, George. Não sei mais o que fazer.
O telefone de Mac vibrou.
- Diga, Chang.
- Eles estão dentro de um jato, a dez minutos da aterrissagem. Stefanich,
os três filósofos e um piloto. Pelo jeito, a aeronave não está equipada para
atacar, mas eles estão fortemente armados.
- Estamos a menos de dez minutos de lá - disse Mac. - Vamos chegar
antes deles, só isso.
Mac perguntou a Chloe se ela podia acelerar um pouco mais, mas a
viatura já estava gemendo por ter de rodar, em alta velocidade, numa estrada tão
acidentada.
- Quando chegarmos lá, saia da estrada e entre na pista pela extremidade
leste.
Mac estava instruindo Sebastian acerca da aeronave, quando ouviu o
zumbido de motores de jato a distância. Ele e George abriram os vidros da
viatura para ouvir melhor.
- Essa é a nossa chance, Chloe! - ele gritou. - Cuidado!
Ela fez uma manobra rápida para sair da estrada, desceu um barranco e
subiu outro. A viatura sacolejava, e Mac bateu com a cabeça no teto.
- Acenda o farol alto! Não sei o que vamos encontrar pela frente! - gritou
ele.
- Você acha que vou ser capaz de passar pelo meio daquelas árvores? -
Chloe perguntou.
- Dê um jeito. Vamos ter de chegar lá.
A viatura bateu numa pedra e foi atirada para cima. Assim que pousou no
chão, o pneu esquerdo traseiro estourou.
- Que ótimo! - ela exclamou.
- Pelo menos, a roda continua no lugar - disse George. - Agüente firme!
Mesmo com os faróis altos acesos, Chloe enxergava apenas um terreno
acidentado e rochoso e, logo adiante, uma espécie de bosque. Ela não
imaginava como poderia atravessar as árvores, mas agora não dava mais para
recuar. O lado traseiro esquerdo estava arrastando no chão por causa do pneu
furado. E, para agravar o problema, George Sebastian, o grandalhão do grupo,
estava sentado daquele lado.
Com o jato se aproximando, Chloe queria apagar todas as luzes da viatura
e passar por entre as árvores, mas agora tudo se resumia ao fator tempo... e
determinação. Aquela gente havia matado seus companheiros e, naquele
instante, tentava exterminar o pequeno grupo de membros do Comando
Tribulação sem qualquer piedade.
Chloe sempre quis mais ação, mais envolvimento na luta. E, apesar de
agora dar qualquer coisa para voltar ao convívio de Buck e Kenny, não tinha
alternativa, no momento, a não ser enfrentar o perigo. Cautela, diplomacia,
esperteza - tudo isso voara pela janela. Ela precisava chegar àquele avião para
que todos decolassem, ou nenhum deles voltaria a ver a luz do sol.
Ela avançou pelo meio das árvores, tirando o pé do acelerador apenas de
vez em quando. A viatura tinha tração nas rodas dianteiras, uma pequena
vantagem no meio de tantos problemas. Enquanto Chloe abria o caminho, a
viatura colidiu de um lado e do outro com uma árvore, mas continuou rodando.
Agora, ela já podia avistar o avião de Mac, mas havia uma cerca de três
fileiras de arame impedindo a passagem. Se Chloe tirasse o pé do acelerador,
mesmo que de leve, a viatura poderia enroscar-se na cerca. Ela olhou para Mac,
que se segurava como podia com a palma da mão no teto. Ele fez um movimento
com a cabeça em direção à cerca, indicando que não havia mesmo outra
alternativa.
Chloe pisou fundo no acelerador. A fileira mais baixa de arame enroscou-
se no pára-choque dianteiro, e as outras duas caíram por cima do capô, levando
junto uma estaca de madeira fincada no chão, mas a viatura conseguiu chegar à
beira da pista, parando a uns 12 metros do avião.
O jato da CG aproximava-se pela outra extremidade da pista, inclinado
lateralmente e com os faróis acesos, iluminando todo o caminho até a viatura.
DOZE
Pela primeira vez, desde que passara a ser o espião do Comando
Tribulação dentro do palácio, Chang desconfiou que havia sido descoberto. De
repente, na tela de seu computador apareceu um círculo com uma borda
vermelha, sinal de que alguém de fora estava testando seu firewall (sistema de
monitoração de tráfego nas intranets).
Imediatamente, ele substituiu a proteção de tela por outra que exibia a
data, a hora e a temperatura, apagou todas as luzes de seu apartamento, trocou
de roupa e deitou-se na cama - preparado para fingir que estava dormindo, caso
Figueroa ou um de seus funcionários batesse em sua porta. Não havia meios de
saber o que aquele aviso significava, mas David Hassid lhe contara que havia
instalado um dispositivo de segurança apenas para avisar o operador que havia
gente bisbilhotando.
Talvez alguém estivesse verificando todos os computadores ligados. E se
aquela busca acessasse seus dados secretos e acabassem descobrindo quem
era o espião?
A última hipótese parecia impossível, de acordo com o que David lhe
dissera. Ele havia montado um sistema tão intricado que, aparentemente, não
haveria tempo suficiente até o dia do Glorioso Aparecimento para que alguém
pudesse decodificá-lo. A mente de Chang começou a divagar. Talvez Akbar
tivesse instruído Figueroa a testar todos os computadores em funcionamento,
eliminar o mainframe que rodava todos os programas do palácio, isolar os
laptops e computadores pessoais e fazer uma varredura para saber se havia
alguma trama.
O computador pessoal de Chang não mostraria nenhum registro do que
ele esteve fazendo desde que retornara do trabalho. Por esse motivo, ele achava
que alguém bateria à sua porta para interrogá-lo.
Deitado no escuro, com o coração aos pulos, Chang sentia-se frustrado
por ter deixado de acompanhar os últimos acontecimentos na Grécia. Que
ironia!, ele pensava. Com toda a tecnologia que Deus lhe concedera para lutar
pela causa de Cristo ao redor do mundo, de repente ele se deu conta de que não
poderia fazer nada para ajudar, a não ser recorrer ao tradicional recurso da
oração. Chang gostaria de verificar mais uma vez os "grampos" instalados nos
escritórios de Carpathia e de Akbar, para ver se a gravação feita no computador
mostraria alguma desconfiança da parte dos dois. Não demoraria muito para que
alguém do alto escalão perdesse a paciência com toda aquela espionagem.
Chang desceu da cama e ajoelhou-se no chão frio para orar por Mac,
Chloe, Hannah e George.
- Senhor, não vejo como eles poderão fugir, a não ser por meio de tua
interferência direta. Não sei se chegou a hora de eles irem ao teu encontro.
Nunca achei que os nossos pensamentos são os teus pensamentos. Tudo
acontece em teu tempo determinado e para tua glória, mas eu oro por eles e
pelas pessoas que os amam. Seja o que for que tu fizeres, sei que isso provará a
tua grandeza, e eu te peço que me mostres, em breve, quais são os teus planos.
Suplico-te também que estejas com Ming enquanto ela procura nossos pais, e
que eles possam comunicar-se comigo de alguma maneira.
Chang sentiu o impulso de contar a Rayford o que estava se passando.
Ele olhou para seu relógio. Já passava da meia-noite, mas será que o povo em
Petra conseguiria dormir depois de tudo o que acontecera naquele dia? Nada
indicava que seu telefone deixara de ser seguro, portanto ele discou para
Rayford.
- Desçam! Desçam! - gritou Mac assim que as portas da viatura foram
abertas.
- Eu dirijo, Chloe. Preciso dar um jeito de interceptar aquele jato.
- Eu posso decolar com seu avião - disse Sebastian a Mac -, mas não vou
partir sem você.
- Preste atenção, George. Faça o que precisa ser feito. Enquanto eles
estiverem preocupados comigo, você terá tempo suficiente para decolar. Se tiver
de ser assim, nós nos veremos na Porta do Oriente.
- Não diga isso!
- Não fique emotivo agora. Vocês devem ir para casa! Mac aguardou um
instante até que George se afastasse da viatura. Em seguida, pisou fundo no
acelerador e seguiu pela pista alinhado com o jato que estava prestes a tocar o
solo.
Rayford não estava dormindo, mas, finalmente, conseguira acalmar-se e
controlar a respiração, enquanto contemplava as estrelas através de uma
pequena abertura na barraca. Seu telefone tocou indicando no visor que a
chamada era de Chang.
- Quero ouvir boas notícias - disse Rayford.
- Eu bem que gostaria de lhe dar boas notícias - disse Chang -, mas acho
que Deus deseja que eu lhe conte o que está acontecendo para que o senhor
possa orar.
Rayford não estava tão animado quanto parecia, mas, depois de ouvir a
história, disse:
- Deus protegeu um milhão de pessoas dentro de uma fornalha de fogo
ardente. Ele pode tirar os quatro da Grécia.
Rayford calçou as sandálias e dirigiu-se apressado ao local onde Tsion e
Chaim deveriam estar dormindo. Se estivessem adormecidos, ele não os
despertaria. Rayford não se surpreendeu ao encontrá-los acordados e
aglomerados ao redor de um computador, na companhia de alguns anciãos.
Diante do teclado, estava sentada uma jovem chamada Naomi, que o interpelara
pouco antes.
- Tsion, quero trocar algumas palavras com você - disse Rayford.
O Dr. Ben-Judá virou-se, surpreso.
- Pensei que você estivesse dormindo, conforme todos nós deveríamos
estar. Amanhã será um grande dia.
Rayford inteirou-o da situação.
- Vamos orar, é claro, imediatamente. Mas ligue de volta para Chang e
diga-lhe que o aviso no computador foi um alarme falso. Naomi está
entusiasmada com as centenas de páginas de instruções que David instalou
neste sistema aqui, inclusive uma que nos permite checar os computadores do
palácio. É o que ela tem feito ultimamente, e foi isso que enviou uma mensagem
de advertência ao computador de Chang.
Tsion dirigiu-se apressado aos anciãos e pediu-lhes que orassem pela
segurança do contingente do Comando Tribulação na Grécia. Rayford sentiu-se
animado ao ver uma dúzia e meia de pessoas ajoelhadas orando por seus
companheiros.
Ele mal podia esperar para contar a novidade a Chang.
Assim que colocou o pé no primeiro degrau da escada do avião, George
Sebastian ouviu o som estridente dos motores sendo ligados. Ele não imaginava
que uma daquelas mulheres soubesse pilotar uma aeronave. Tanto melhor. Ele
se agachou para empurrar a porta atrás de si, mas, quando se virou para dirigir-
se à cabina, viu Chloe e Hannah atando os cintos de segurança nos dois
assentos traseiros. Elas pareciam tão surpresas quanto ele.
George pegou sua Uzi e a colocou encostada no anteparo que separava a
cabina de passageiros da cabina de comando. Em seguida, aproximou-se
lentamente do lugar de onde poderia ver quem estava ali. O desconhecido,
trajando manto bege do tipo usado pelos beduínos, estava sentado no banco do
co-piloto. Sem virar-se, o homem levantou a mão e fez um gesto para que
George se sentasse no banco do piloto.
George voltou-se para as mulheres e encarou-as.
- Quem é?
- Pensamos que fosse você - disse Chloe.
- Vamos ter de tirá-lo daqui, caso contrário não haverá lugar para Mac.
Preciso de cobertura.
Chloe desatou o cinto e ajoelhou-se atrás de George, preparada para atirar
com a Uzi. Hannah pegou sua arma e subiu no braço da poltrona para poder
enxergar a cabina de comando por cima da cabeça de George.
Sebastian virou-se rapidamente e olhou para o banco do co-piloto.
Vazio.
- Muito bem - ele disse respirando fundo e saltando por cima do encosto
do banco para assumir o controle da aeronave. Colocou os fones de ouvido.
- Por que Deus não permite que esses sujeitos pilotem o avião?
- Eu também posso fazer isso - disse uma voz.
George deu um salto e viu o reflexo do homem no pára-brisa. Mas, quando
olhou para sua direita, o banco do co-piloto continuava vazio.
- Pare com isso! - disse George, com o pulso acelerado.
- Sinto muito.
- Seu nome é Miguel, eu suponho.
- Roger [N.T.: Linguagem usada em comunicações via rádio, que significa
"Positivo" ou "Entendido".]
George avistou Mac dirigindo a viatura da CG, que, apesar do péssimo
estado em que se encontrava, corria pela pista, indo de encontro ao jato. Ele
pensou em perguntar se Miguel não seria mais útil se estivesse sentado ao lado
de Mac.
- Acenda as luzes de pouso - ele ouviu a voz dizer.
- Para decolagem?
- Roger.
Sebastian não quis contestar. Acendeu as luzes de pouso, que incidiram
no vidro traseiro da viatura conduzida por Mac.
- Devo começar a taxiar fazendo a decolagem em ângulo para desviar de
Mac, conforme ele disse?
- Aguarde.
- Não?
- Espere um pouco.
Por um instante, Mac pensou que o jato da CG não conseguira vê-lo. Ele
freou com força e ficou alinhado entre as duas aeronaves. Quando o jato
finalmente parou, cerca de 15 metros de Mac, ele percebeu que poderia
contorná-lo facilmente. Por que Sebastian continuava parado? Com uma
decolagem no ângulo certo, ele poderia passar por Mac e pela CG e ganhar
altitude em questão de segundos.
Não querendo dar à CG a chance de interceptar George, Mac acelerou e
parou a cerca de três metros do jato. Ele imaginou que alguém poderia abrir a
porta e alvejá-lo com um tiro, mas pelo menos a CG não teria condição de preju-
dicar seu avião, caso ele interceptasse o jato. Sem dar tempo para a CG pensar,
Mac pisou fundo no acelerador e arremessou a viatura em direção ao bico do
jato, colidindo de frente com o trem de pouso. O jato levantou um pouco do chão,
mas Mac não ficou sabendo se havia provocado algum dano mais grave.
Mac abriu o vidro, colocou o tronco para fora o mais que pôde e atirou com
a Uzi nos pneus do jato. Ele surpreendeu-se diante da resistência dos pneus e
ouviu balas ricocheteando e batendo na fuselagem do jato, atingindo a viatura.
Avançando um pouco mais para tentar um novo ângulo, ele finalmente
conseguiu acertar um dos pneus. Mas onde estava George? Por que ele não
fazia nada? Haveria alguma coisa errada com seu avião? Ele continuava parado
na extremidade da pista, com as luzes acesas.
Mac esperava que a CG revidasse a qualquer momento disparando suas
armas. Será que eles não perceberam que ele estava sozinho na viatura? Do
que estavam com medo? Ele era um ser indefeso, alojado embaixo do jato deles.
Ao tentar abrir a porta, Mac percebeu que ela estava totalmente emperrada e
tentou descer pelo outro lado. Aquela porta também não abriu, mas ele sentiu
que cedeu um pouco. Deitou-se no banco da frente e forçou a porta do lado do
motorista com as mãos e a do passageiro com os pés. Finalmente, conseguiu
desemperrá-la e saiu do carro.
Agachado debaixo do jato e com a Uzi apontada para a porta, ele tinha
condições de atirar em quem descesse do jato, se é que alguém se atreveria a
fazer isso. Talvez estivessem aguardando que ele corresse até seu avião ou que
Sebastian viesse apanhá-lo. Mas George perderia tempo se tivesse de abrir a
porta, e todos eles estariam em perigo.
Enquanto aguardava em uma estranha posição de ataque, Mac não sabia
o que fazer. Deveria tentar atirar na fuselagem do jato para atraí-los para fora?
Se ela fosse blindada, o que seria muito provável, ele gastaria munição à toa. Por
que a CG não atirava nele? E por que George continuava parado?
Os motores do jato da CG foram desligados. E agora? Nada. Nenhum
movimento, nem dentro nem fora.
Frustrado, Mac pegou seu walkie-talkie.
- Chloe ou Hannah - ele sussurrou, desesperado -, alguém responda, por
favor.
- Aqui é Chloe, Mac.
- O que está acontecendo?
- Não me pergunte. George está no comando.
- Fazendo o quê?
- Quer falar com ele? Pode falar.
- Estou ocupado, Mac. Qual é o problema?
- Você está vendo qual é o problema! O que você está fazendo?
- Aguardando autorização para decolar.
- Você tem autorização! Vá! Vá imediatamente! Desvie para sua direita!
Esses sujeitos estão vacilando, e eu estourei um dos pneus do jato. Eles
desligaram os motores.
- Estou aguardando por você, companheiro.
- Não seja tolo. Se eu sair daqui, vou ficar na linha de tiro deles. Vá para a
outra extremidade da pista. Eu me encontro com você lá. Mas, se eles vierem
atrás de mim, não pare.
- Ah, sim, eu sei, e você me verá no céu.
- Exatamente. Agora, deixe de ser idiota e vá!
- Eu não estou sendo idiota, Mac. Estou obedecendo ordens.
- Você deve me obedecer, portanto faça o que estou dizendo.
- Sinto muito. Você foi destituído do cargo.
- O quê?
- Você precisa colocar a arma no chão e caminhar até aqui.
- Você acertou o pessoal da CG dentro do jato !?
- Negativo. Venha desarmado e estará seguro.
- Você perdeu o juízo?
- Deus está dizendo que você deve vir.
Mac sacudiu a cabeça.
- Ah, espere um pouco.
- Venha imediatamente.
Mac suspirou fundo, com um olho na porta do jato e o outro em seu avião.
Ele apertou o botão de transmissão:
- Senhor, se fores tu, ordena que eu me dirija para lá.
- Vem.
A voz não era a de George.
- Desarmado?
- Vem.
Mac aguardou um instante. Em seguida, desvencilhou-se da Uzi e deitou-a
no chão. Ele desligou o walkie-talkie e colocou-o no bolso. Passou pela viatura e
ficou diretamente embaixo da cabina de comando. Ele se sentia exposto, vul-
nerável, indefeso. Se a porta do jato se abrisse, ele seria um homem morto.
Sem ouvir nenhum som vindo de cima e sem ver nada a seu lado, Mac
saiu de debaixo do jato e seguiu em frente. Ele continuava a imaginar que estava
ouvindo movimentos atrás de si - motores voltando a funcionar, passos da cabina
até a porta, a porta se abrindo, armas disparando.
Enquanto caminhava, ele orava: - Senhor, salva-me!
Imediatamente, Mac teve a sensação de que as mãos de Deus estavam
sobre ele, e mal ouvia seus passos no chão.
- Ó homem de pequena fé, por que duvidas?
A voz era clara como cristal, mas o walkie-talkie estava desligado e
George já havia ligado os motores. Mac começou a andar apressado; em
seguida, correu. Cada passo parecia soar como um estampido. Quando Mac
chegou, Hannah já estava descendo a escada. Ele saltou para dentro do avião.
- Você vai pilotar ou ficar sentado aí? - perguntou George desatando o
cinto e pronto para acomodar-se no banco do co-piloto.
- Aqui está ótimo - respondeu Mac. - No momento, eu não conseguiria
pilotar nem mesmo uma bicicleta.
Chang ficou aliviado ao ouvir a boa notícia dada por Rayford e estava
ansioso por conhecer Naomi, mesmo que fosse on-line. Ele se sentiu tentado a
repreendê-la pelo susto que levou, mas decidiu aguardar até o dia seguinte para
fazer contato. Nesse ínterim, ligou para Mac e seu grupo, temendo o pior, a
despeito de todas as suas orações.
Mac atendeu o telefone parecendo exausto.
- Eu preciso conhecer Miguel um dia - disse Chang depois de ouvir a
história. - A parte melhor fica sempre com vocês.
- Francamente, eu não sei se há parte melhor nesta história - disse Mac. -
E fique sabendo que Sebastian já não o chama mais de Miguel. Ele o chama de
Roger.
- Roger?
- Quando Sebastian perguntou se ele era Miguel, o sujeito disse: "Roger".
- Quer dizer que Stefanich e seu bando estão parados na pista com um
avião danificado?
- É isso mesmo, e eles vão precisar de alguém para consertá-lo antes de
decolar novamente.
- Por que eles não atiraram em você?
- Pensei que você soubesse. O que aconteceu naquela cabina de
comando enquanto eu saía de lá, desarmado, caminhando na frente deles?
- Eu vou lhe contar.
Em questão de meia hora, todo o pessoal do Comando Tribulação já havia
recebido as boas notícias da Grécia. Chang providenciou para que George
pousasse ao sul de Roma, para reabastecer. Eles estavam a caminho da casa
secreta, sem passar por Kankakee, em Illinois, e sem levantar mais suspeitas.
Aquela seria a parte mais fácil de toda a aventura.
Quando, finalmente, Chang conseguiu entrar no sistema da CG em
Ptolemaïs e descobrir as transmissões entre o jato e a torre de Kozani, tudo o
que ele fez foi sacudir a cabeça. O piloto disse ter visto o avião parado na
extremidade da pista e uma viatura se aproximando. Mas, ao mesmo tempo,
Chang imaginou que Miguel havia instruído George a acender as luzes de pouso,
porque o piloto relatou ter visto uma luz tão forte que "perdemos o contato visual
com o avião e com a viatura".
Alguns minutos depois, o piloto relatou que ficou estarrecido - diante do
que, ele não sabia. O jato foi abalroado, e a frente dele levantou-se, mas
ninguém a bordo pôde tirar as mãos dos olhos, por causa de uma luz intensa
diante deles. Eles ouviram tiros e temeram morrer, perceberam o estouro de um
dos pneus e desligaram os motores. Em resumo, ficaram sentados, apavorados,
incapazes de olhar para fora por alguns minutos, até que ouviram o avião passar
zunindo por eles e levantar vôo.
Chang estava na escuta no momento em que eles, finalmente, resolveram
sair, com rádios a tiracolo ligados e armas preparadas. Mas tudo o que viram foi
o jato danificado, o trem de pouso sem condições de funcionamento, o pneu
furado, a viatura em péssimo estado e uma Uzi na pista. Só agora eles estavam
sendo resgatados por uma frota de carros da CG. No caminho, eles pegaram os
dois oficiais feridos, deitados na beira da estrada. Eles estavam recebendo trata-
mento em razão de graves queimaduras que, conforme disseram foram
provocadas por uma arma que disparava raios.
Faltavam ainda duas horas para que Ming partisse de San Diego rumo ao
Extremo Oriente. Depois de ter terminado seu trabalho noturno, Chang desabou
na cama, exausto. Que estranho, ele pensou, sentir-se a peça principal e indis-
pensável de toda uma operação e, depois, descobrir que o sucesso da missão
tinha ficado completamente fora de suas mãos. Na verdade, ele nem estava em
seu posto quando Deus operou os milagres.
Havia vítimas cujas mortes ele lamentava, mártires para serem exaltados e
muito trabalho pela frente. Chang não sabia até quando conseguiria evitar ser
descoberto. Dispôs-se a trabalhar no escritório durante o dia e fazer seu
verdadeiro trabalho à noite, pelo tempo que Deus quisesse protegê-lo.
Rayford acordou quando os primeiros raios de sol despontaram no
horizonte, surpreso por ter conseguido dormir tanto. Petra já estava em atividade,
com as famílias recolhendo o maná da manhã e enchendo todas as vasilhas que
encontravam com a água pura da fonte proporcionada por Deus.
Milhares de pessoas trabalhavam nas cavernas, outras milhares
levantavam mais barracas. Nos lábios de cada uma havia histórias sobre o
milagre do dia anterior e a promessa de vida que o Dr. Tsion Ben-Judá havia
explicado, pouco depois, naquele mesmo dia.
Da boca dos anciãos e dos organizadores partiu a notícia de que os
materiais de construção estavam a caminho, e pediram ao povo para orar pela
segurança dos pilotos e motoristas que começariam a entregá-los. Havia
necessidade de voluntários com especialidade em várias profissões. Rayford
sabia que o atual clima de euforia não duraria para sempre. Inevitavelmente, a
lembrança do milagre passaria para segundo plano, embora ele não pudesse
imaginar tal coisa. E o povo, independentemente da fé que compartilhava, em
breve não suportaria viver acotovelado daquela maneira. Mas, por ora, ele se
deliciava com isso.
Rayford teria de retornar ao Comando Tribulação a qualquer momento,
mas o pessoal de Carpathia atiraria em qualquer um que entrasse ou saísse de
Petra. Se os materiais de construção conseguissem entrar, talvez isso fosse um
sinal de que valeria a pena tentar sair dali.
Naomi e seu grupo de gurus da informática haviam comunicado que Buck
Williams lhes transmitira a revista virtual A Verdade, contando histórias ocorridas
no mundo inteiro. O episódio completo do que acontecera na Grécia no dia
anterior foi descrito em detalhes, da mesma forma que o milagre ocorrido em
Petra.
Um grupo de Israel, especializado em informática, disse que conhecia a
tecnologia para projetar A Verdade em um telão, desde que fosse possível
montar um. Em meio aos vários suprimentos que já estavam no acampamento,
havia lona branca suficiente para ser esticada a uma altura correspondente a
vários andares. Milhares de pessoas se reuniram para ler os artigos da revista.
Rayford ficou feliz ao saber que não eram apenas os crentes e os
chamados judaístas que liam A Verdade. Muitos indecisos e até mesmo alguns
que receberam a marca do anticristo arriscavam a vida para fazer um download
da revista de Buck publicada no site do Comando Tribulação. Os crentes que
moravam em esconderijos e o pessoal da cooperativa do mundo inteiro
traduziam, imprimiam e distribuíam a revista. Carpathia não podia fazer nada
quanto a isso.
Rayford sabia que, infelizmente, havia centenas - talvez milhares - de
pessoas indecisas ali mesmo em Petra. Tsion prometera dirigir-se
particularmente a elas, chegando a dizer que muitas continuariam a ser
enganadas e, com o tempo, cairiam na lábia de mentirosos e de charlatães. Era
difícil compreender ou acreditar que isso ainda pudesse acontecer. Como uma
pessoa que passou pela mesma experiência de Rayford poderia duvidar da
existência do único e verdadeiro Deus do universo? A explicação estava além de
seus limites de compreensão.
No fim da manhã, quase 24 horas após o lançamento das bombas, o povo
começou a reunir-se. Espalhou-se a notícia de que o Dr. Ben-Judá iniciaria seus
ensinamentos sobre a misericórdia de Deus. E continuavam a ser divulgadas
histórias, vindas do mundo inteiro, de que a perseguição se intensificara contra
os crentes e, principalmente, contra os judeus.
Chang havia gravado as conversas nos escritórios de Akbar, Fortunato e
Carpathia e instalara um dispositivo para enviar ao computador de Buck Williams
os relatórios dos subpotentados do mundo inteiro. À medida que o sol
despontava em vários países, as notícias de violência e de derramamento de
sangue cometidos na noite anterior, bem como as implacáveis invasões diurnas,
eram transmitidas não apenas para Nova Babilônia, mas também do computador
de Chang para o de Buck, e do computador de Buck para o mundo, por meio de
A Verdade.
Quando as multidões se reuniram para ouvir o Dr. Ben-Judá, foram
atraídas para uma tela gigantesca, instalada em um muro afastado da luz do sol,
para melhor visualização. Buck havia transmitido as cenas dos acontecimentos
nos Estados Unidos Sul-americanos, enviadas por Chang, e o povo assobiou e
vaiou quando o homem tímido e medroso aceitou receber a marca de lealdade.
O povo aplaudiu, chorou, cantou e louvou a Deus pelo testemunho dos valentes
mártires que enfrentaram a guilhotina com tanta paz e coragem.
Os remanescentes em Petra ficaram indignados diante das notícias vindas
da Grécia sobre uma invasão no meio da noite, que havia destruído o que restara
do pequeno contingente de crentes que viviam naquele esconderijo. Buck havia
incluído som ao relatório em vídeo, relembrando a seus leitores, ouvintes e
espectadores que os gregos foram os primeiros que preferiram morrer a aceitar a
marca da besta.
Agora, parecia que os Monitores de Moral e os homens das Forças
Pacificadoras de todos os continentes haviam sido revitalizados, financiados,
equipados e motivados para atacar sem piedade. De todos os lugares do mundo,
chegavam notícias de que a Comunidade Global não seria mais condescendente
com os dissidentes e indecisos. Ou eles aceitavam a marca imediatamente ou
enfrentariam as conseqüências. Até mesmo aqueles que já haviam recebido a
marca de Carpathia estavam sendo punidos por não se curvarem diante de sua
imagem três vezes por dia para adorá-la.
Leon Fortunato apareceu em cena - com seus trajes pomposos e sendo
apresentado com todos os títulos e honrarias a que tinha direito - para advertir
que "os descendentes de judeus, tão teimosos quanto os judaístas e que
insistem em adorar um Deus que não seja nosso pai e senhor ressurreto, Nicolae
Carpathia, receberão uma justa recompensa. Sim, a morte é boa demais para
eles. Oh, eles certamente morrerão, mas estou emitindo um decreto neste
momento de que nenhum judeu receberá a misericórdia de uma morte rápida
pela lâmina da guilhotina. Por mais visível que seja esse castigo, e por mais que
condene comportamento reprovável, não causa dor alguma. Não, essas pessoas
sofrerão dia e noite em seus covis de iniqüidade e, no momento em que
expirarem em razão de causas naturais - ocasionadas pela rejeição ao Car-
pathianismo -, elas estarão orando, clamando por uma morte tão rápida como no
instrumento de imposição à lealdade".
Para Rayford, o povo de Petra estava chocado diante do avanço das
maldades cometidas por Nova Babilônia, vingando-se daquela maneira de seus
inimigos e humilhando os judeus. Mas a ira e o escárnio daquele povo foram
amenizados pelas notícias fornecidas pela CNNCG sobre o que acontecera na
véspera, ali mesmo na cidade de pedras vermelhas.
Um âncora proferia palavras repetitivas, dizendo que o ataque a Petra -
duas bombas incendiárias e um míssil lançado por terra - errou o alvo e que o
inimigo acampado ali havia revidado prontamente, abatendo os dois caças-
bombardeiros e matando os pilotos. A notícia provocou gargalhadas entre o
povo, e todos levantaram as mãos fechadas, vaiando e assobiando, quando
Carpathia apareceu para lamentar a morte dos pilotos mártires.
- Embora não se possa negar que foi um erro do piloto, toda a
Comunidade Global, creio eu, une-se a mim para apresentar nossas mais
sinceras condolências às famílias enlutadas. Decidimos não tentar destruir essa
fortaleza do inimigo, para não pôr em risco a vida de mais pessoas, mas esse
povo vai morrer de fome, porque vamos cortar suas linhas de suprimento. Daqui
a alguns dias, esse será o maior campo de concentração de judeus da História, e
sua obstinação idiota lhes dará o destino que eles merecem.
- Companheiros cidadãos da nova ordem mundial, meus compatriotas da
Comunidade Global, devemos responsabilizar esse povo e seus líderes pela
tragédia que atingiu nossos mares e oceanos. Tenho insistido com meus
conselheiros diretos a negociar com esses terroristas internacionais, esses
mestres de magia negra que têm usado suas manobras perversas para causar
uma devastação dessa magnitude.
- Tenho certeza de que vocês concordam comigo em que não existe
diplomacia em casos como esse. Não tenho nada a oferecer em troca da perda
de milhões de vidas humanas, sem mencionar a beleza e a riqueza da flora e da
fauna.
- Eu lhes garanto que meu pessoal da alta cúpula está trabalhando para
descobrir uma solução para essa tragédia, mas ela não incluirá acordos,
concessões nem qualquer reconhecimento de que essas pessoas têm o direito
de impingir ao mundo um castigo tão indescritível.
No meio daquela transmissão de Chang por intermédio de Buck, apareceu
a reprodução da conversa entre Suhail Akbar e os dois pilotos que atiraram as
bombas em Petra. Embora a CG tentasse falar mais alto para abafar as palavras,
dizendo que se tratava de uma mentira, de um embuste, todos ouviram os pilotos
se defendendo perante Akbar e sua ordem para que fossem executados.
Rayford não podia imaginar como Carpathia ainda teria o apoio do mundo
depois de tudo aquilo, mas a Bíblia afirmava que era justamente o que
aconteceria. Em Petra, a multidão começou a ficar inquieta e a conversar entre si
sobre aquela exposição das mentiras e das verdades que eles tinham acabado
de presenciar. Então, começou a correr a notícia de que Miquéias, o homem que
os conduzira de Israel a esse lugar seguro, estava prestes a aparecer e a
apresentar o Dr. Ben-Judá.
Espontaneamente, toda a multidão mergulhou em profundo silêncio.
TREZE
Chaim Rosenweig levantou as duas mãos e dirigiu-se à multidão com voz
tão forte que podia ser ouvido em todos os lugares.
- Tenho o imenso prazer e a satisfação pessoal de, mais uma vez,
apresentar a vocês meu ex-aluno, meu amigo pessoal e agora meu mentor, o Dr.
Tsion Ben-Judá, rabino, pastor e mestre de todos vocês!
Rayford só não aplaudiu com entusiasmo porque sabia que Tsion
detestava adulações. Mesmo assim, Rayford esperava que o rabino entendesse
que aquele povo estava simplesmente expressando seu amor por ele.
Quando, finalmente, conseguiu acalmar a multidão, o Dr. Ben-Judá disse:
- Obrigado pela calorosa recepção, mas peço que, no futuro, quando eu for
apresentado, vocês me homenageiem em silêncio, manifestando agradecimentos
a Deus por seu amor e misericórdia. É principalmente sobre isso que vou falar. A
adoração de vocês estará sendo corretamente dirigida, quer vocês orem, quer
levantem as mãos ou apontem para o céu em gratidão a Ele.
- No capítulo 14 do Evangelho de João, nosso Senhor Jesus, o Messias,
faz uma promessa que podemos guardar por toda a eternidade. Ele diz: "Não se
turbe o vosso coração; credes em Deus, crede também em mim. Na casa de
meu Pai há muitas moradas. Se assim não fora, eu vo-lo teria dito. Pois vou
preparar-vos lugar. E quando eu for, e vos preparar lugar, voltarei e vos receberei
para mim mesmo, para que onde eu estou estejais vós também" [v.1-3].
- Observem a urgência. Essa foi a garantia de Jesus de que, embora
estivesse deixando seus discípulos, Ele voltaria um dia. O mundo não viu o
último retorno de Jesus Cristo e, conforme sabemos continua insistindo em não
ver.
- Agora, reflitam comigo sobre os cinco eventos mais importantes e
fundamentais da História. Desde o Éden até o presente momento, Deus nos
apresenta, por intermédio da Bíblia, a história correta do mundo, e grande parte
dela foi escrita por antecipação. Essa é a única história verdadeira que já foi
escrita.
- O primeiro evento fundamental foi a criação do mundo por meio de um
ato direto de Deus.
- A seguir, vem o dilúvio universal. Esse dilúvio teve um efeito catastrófico
sobre o mundo e ainda confunde a mente dos cientistas que encontram
esqueletos de peixes em altitudes de até 4.500 metros.
- O terceiro evento fundamental da História foi a primeira vinda de Jesus, o
Messias. Esse evento possibilitou a redenção de nossos pecados. Jesus teve
uma vida perfeita e morreu para redimir os nossos pecados. Ele morreu pelos
pecados do mundo, por todos aqueles que invocassem o seu nome.
- Mas sabemos que esse não foi o fim da história, porque todos nós aqui
invocamos seu nome para perdoar nossos pecados somente depois do quarto
evento fundamental da História, ou seja, a volta de Jesus.
- Muitos de nós corrigimos o erro de não tê-lo aceitado antes, e isso é
bom. Tanto o Antigo como o Novo Testamento da Bíblia mencionam que Ele
retornará pela última vez: o quinto evento fundamental da história do mundo.
Esse glorioso aparecimento sinalizará o início do reino milenar, a verdadeira
utopia.
- Imaginem o paraíso na Terra com o Messias no controle de tudo. Muitos
acreditam que durante esse reino de mil anos, que começará daqui a menos de
três anos e meio, a população será maior que o número de todas as pessoas que
já viveram e já morreram. Como pode ser? Porque haverá um mundo sem
guerra. Imaginem este planeta com um governo que não seja responsável pela
matança de quase 200 milhões de pessoas, como registrado até hoje.
- A humanidade nunca serviu a Deus por opção, mas, quando o Messias
retornar, Ele estabelecerá seu reino e o povo viverá em paz. Viveremos em
justiça. Teremos abundância de justiça. É difícil descrever essa época incrível.
Cada um terá o suficiente.
- Deus deseja esse tipo de mundo, e Ele o deseja para nós por uma única
razão: Ele é bom. Na Bíblia, Joel 2.13 diz que Ele é misericordioso, tardio em
irar-se e grande em benignidade. Ele não deseja nos prejudicar. Jonas, 125 anos
depois de Joel ter nascido, descreveu Deus com as mesmas palavras. E Moisés,
que viveu 1.500 anos antes desses homens, disse que o Senhor é misericordioso
e compassivo, longânimo e grande em misericórdia e fidelidade.
- Essas são as opiniões dos profetas acerca de Deus. E qual é a opinião
de vocês acerca de Deus? Que melhor prova poderíamos ter além daquela que
vivemos ontem? Quando vocês se ajoelharem para orar, lembrem-se daquele
evento e do que os profetas disseram. Sim, temos um Deus majestoso, o único
potentado supremo e onipotente. E a Bíblia nos ensina uma coisa a respeito de
Deus: que Ele é por nós. Ele não é contra nós. Ele deseja abençoar nossa vida,
e a chave para abrir a porta da bênção é entregar sua vida a Ele e pedir que Ele
a use à sua maneira. Como alguém pode deixar de amar o Deus que os profetas
descrevem? Como alguém pode deixar de amar o Deus ao qual Jesus, o
Messias, se refere como nosso Pai que está no céu?
- Quão maravilhoso é saber que, como filhos, podemos nos aproximar da
presença de Deus, o Criador de tudo, e chamá-lo de Pai.
- Estamos atravessando o período mais terrível da história da humanidade.
Dezesseis dos julgamentos profetizados por Deus já foram derramados sobre a
Terra, um pior que o outro, e ainda faltam cinco. O anticristo foi revelado, da
mesma forma que o falso profeta. É por isso que o Messias deu a este período o
nome de Tribulação, e à segunda metade, na qual nos encontramos, de Grande
Tribulação.
- Como eu posso dizer que esse Deus julgador e vingativo é um Deus
amoroso e misericordioso? Lembrem-se de que, durante este período, Ele está
trabalhando para que o povo tome uma decisão. Por quê? O milênio está
próximo. Quando Jesus fizer sua derradeira aparição gloriosa, Ele virá em poder
e grande glória. Ele estabelecerá seu reino exclusivamente para aqueles que
tomaram a decisão certa. Que decisão? Invocar o nome do Senhor.
- Isso lhes parece exclusivismo? Compreendam uma coisa: A Bíblia deixa
claro que a vontade de Deus é que todos os homens sejam salvos. Em 2 Pedro
3.9, lemos: "Não retarda o Senhor a sua promessa [...] pelo contrário, ele é
longânimo para convosco, não querendo que nenhum pereça, senão que todos
cheguem ao arrependimento."
- Deus prometeu, em Joel 2, que faria "prodígios no céu e na terra;
sangue, fogo e colunas de fumo. O sol se converterá em trevas, e a lua em
sangue, antes que venha o grande e terrível dia do Senhor. E acontecerá que
todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo; porque no monte Sião e
em Jerusalém estarão os que forem salvos, assim como o Senhor prometeu, e
entre os sobreviventes aqueles que o Senhor chamar" [v.30-32].
- Meus queridos, vocês são os sobreviventes! Vocês entendem o que
Deus está dizendo? Ele continua a chamar os homens para que sigam a Cristo.
Ele levantou 144.000 evangelistas, das 12 tribos, para suplicarem aos homens e
às mulheres do mundo inteiro que decidam aceitar a Cristo. Quem, a não ser um
Deus amoroso, compassivo, misericordioso e longânimo, poderia planejar com
tanta antecedência que, durante esse período de caos, Ele enviaria tantos
homens com poder para pregar sua mensagem?
- Vocês se lembram das duas testemunhas, com poderes sobrenaturais,
que pregaram a Palavra de Deus em Jerusalém e ao planeta inteiro por meio da
TV? Após três anos e meio, elas foram assassinadas diante dos olhos do mundo.
Depois que seus corpos permaneceram na rua por três dias, Deus os chamou
para o céu. Por quê? Porque, por ser um Deus amoroso e misericordioso, Ele
desejava manifestar seu poder e glória para que a humanidade pudesse
compreender e tomar a decisão certa.
- Aqui temos o Deus sobrenatural do céu cumprindo suas promessas de
eras passadas, preservando os filhos de Israel enquanto o anticristo tenta
persegui-los.
- A quem vocês servirão? Vocês obedecerão ao rei deste mundo ou
invocarão o nome do Senhor?
- Deus tem feito todas essas coisas grandiosas e poderosas porque deseja
salvar a humanidade. Muitos continuarão rebeldes, até mesmo aqui, depois de
tudo o que viram e experimentaram. Não queira estar entre essas pessoas, meu
amigo e minha amiga. O nosso Deus é misericordioso. O nosso Deus é
compassivo. Ele é longânimo e deseja que todos sejam salvos.
- Se vocês concordam que Deus está usando este período em que
vivemos para preparar o povo para o reino milenar e para a eternidade, o que
vão fazer com sua vida? Dediquem-na ao Messias. Adorem a Jesus, o Cristo.
Recebam-no como o único Cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo.
Recebam-no em sua vida e vivam em obediência a Ele. Ele quer recebê-los. E
um Deus que não se detém diante de nenhum obstáculo para salvar qualquer
pessoa que invoque seu nome é um Deus digno de toda a nossa confiança. Você
confia em um Deus assim? Pode amar um Deus assim?
- O Messias veio ao mundo em forma humana. E Ele voltou. E virá mais
uma vez. Quero que vocês estejam preparados. Fomos deixados para trás no
Arrebatamento. Agora, devemos estar preparados para o Glorioso Aparecimento.
O Santo Espírito de Deus está tocando nas pessoas do mundo inteiro. Jesus
está edificando sua igreja durante este período negro da História, porque Ele é
compassivo, amoroso, longânimo e misericordioso.
Todo o povo ao redor de Rayford curvou a cabeça, e muitos começaram a
orar. Eles oravam pelos amigos e familiares em Petra e em outros lugares do
mundo. Deviam ter ouvido, como Rayford ouviu, a emoção na voz de Tsion
quando ele fez um novo apelo para que todos tomassem a decisão de seguir a
Cristo.
- O tempo é curto - gritou Tsion -, e a salvação é uma decisão pessoal.
Reconheça perante Deus que você é um pecador. Admita que não pode ser
salvo sem Ele. Entregue-se à misericórdia de Deus e receba a dádiva de seu
Filho, que morreu na cruz pelo pecado que você cometeu. Receba-o e agradeça
a Ele a dádiva da salvação.
- Problema grave, problema grave - disse Aurélio Figueroa, recostado em
sua cadeira, com os dedos da mão esquerda apoiados nos da direita e
apontados para cima. Sentado à sua frente, do outro lado da mesa, Chang orava
silenciosamente, enquanto Figueroa prosseguia:
- Houve acessos ilegais ao banco de dados do palácio, pessoas com
identidades falsas de funcionários e intromissões no sistema que permitiram aos
inimigos da CG enganar líderes locais. Agora temos provas de que existem
"grampos" nos escritórios do palácio, até mesmo no do diretor de Segurança e
Inteligência. Você sabia que hoje de manhã, quando o potentado estava tentando
lamentar a morte de nossos pilotos, alguém se intrometeu na transmissão e
colocou no ar uma conversa fictícia entre o diretor Akbar e os pilotos?
- Ainda bem que a conversa era fictícia. O senhor deve estar satisfeito com
isso.
- Não estou entendendo, Wong.
- Se fosse verdadeira, teria sido uma catástrofe. Todos nós ouvimos essa
conversa, senhor. Akbar passou um sermão nos pilotos, os dois não
concordaram e o diretor mandou executá-los.
O mexicano alto e ossudo analisava Chang.
- Onde alguém pode ter conseguido esse tipo de gravação?
- O senhor está perguntando a mim?
- Não há mais ninguém aqui.
- Sinto muito. Eu deveria ter dito: "Por que o senhor está perguntando a
mim?"
Aquele era o momento mais crítico. Se Figueroa o acusasse, Chang teria
de sair de Nova Babilônia dentro de poucas horas, para não ser executado.
- Estou fazendo essa pergunta a todos, é claro. Não leve para o lado
pessoal. Você não faz idéia do que está sendo implantado no principal banco de
dados.
- Eu gostaria de saber.
Figueroa levantou-se.
- Não estou revelando isso a mais ninguém, mas o próprio Akbar começou
a suspeitar de que existe alguma coisa estranha em Chicago. Você sabe que o
local foi atingido mais de uma vez durante a guerra. A cidade foi evacuada e
interditada, e ninguém se lembrou dela durante meses. Anos.
Chang assentiu com a cabeça.
- Não fizemos sobrevôos de reconhecimento, não tiramos fotos, não
verificamos os sensores de calor, nada.
- E por quê?
- Porque alguém incluiu uma informação no computador dizendo que o
local estava contaminado e que a radioatividade duraria anos. Akbar não se
recorda disso. Ele achava que a cidade havia sido completamente destruída,
mas não por elementos radioativos. Todas as vezes que ele mandava fazer uma
investigação, o pessoal acessava o banco de dados, checava os níveis de
radioatividade e dizia: "Tudo certo. Continua radioativo". Mas, recentemente,
alguém verificou os arquivos oficiais para saber se as informações estavam
corretas. É claro que não estavam. O local está em perfeitas condições.
- O quê?!
- É isso mesmo. Você sabe tanto quanto eu que existe Um só motivo para
alguém ter incluído esse tipo de informação: tomar posse da cidade.
Conseguimos passar por cima das informações falsas e tentamos descobrir o
que está acontecendo lá. Não encontramos muita coisa, porque todos estavam
recebendo as mesmas informações que nós. Mas existe atividade no local.
Consumo de água e de energia elétrica. Aviões e helicópteros chegando e
saindo. Jatos decolando de uma pista no lago. Deve ser o lago Michigan.
- Sério?
- Sim. Há evidências de trânsito de veículos e de pedestres. Poucas, é
claro, mas deve haver perto de 40 pessoas morando lá.
- Pouca gente para causar tanta preocupação - disse Chang.
- Pelo contrário - disse Figueroa. - Essa gente vai preferir não ter nascido.
Chang estava morrendo de curiosidade para perguntar e, ao mesmo
tempo, desesperado para demonstrar indiferença. Ele aguardou que Figueroa
prosseguisse.
- Você deve estar pensando que mandamos um pelotão de homens das
Forças Pacificadoras para fazer uma ronda lá, não?
Chang encolheu os ombros.
- Mais ou menos isso.
- Akbar tem uma idéia melhor. Ele diz que, se alguém deseja que o lugar
pareça radioativo, vamos fazer isso.
- O senhor não está falando sério.
- Claro que estou.
- Gastar tanto dinheiro em tecnologia numa época como esta?
- É uma idéia brilhante, Chang.
- É uma solução, eu acho. Mas ele pensou na água doce que corre por lá?
- Estamos armazenando a água do lago Michigan desde o norte de
Wisconsin. Não temos de nos preocupar com o rio Chicago.
- O povo que mora às margens do rio se preocupa.
- Bem, de qualquer forma, dizem que o chefão está adorando a idéia.
- Será?
- Você está brincando? Carpat... hã, o potentado adora coisas desse tipo.
- E temos uma bomba atômica sobrando para jogar lá?
- Ora, vamos, Wong! Quem mora lá não deve ser boa coisa. Se fossem
cidadãos leais, por que não disseram: "Ei, não sabíamos que este lugar estava
interditado e nos instalamos aqui, mas, já que isso aconteceu, podemos ficar?"
Chang encolheu os ombros. Ele queria saber quanto tempo isso levaria
para acontecer, assim teria como avisar o Comando Tribulação, mas não se
atreveu a perguntar.
- Acho que está certo.
- Você acha? Não há registro de centro de aplicação da marca de lealdade
lá. E não há ninguém registrado aqui que moraria lá sem nos avisar.
- O senhor está certo.
- Claro que estou. Ei, Chang, você não está com uma aparência muito boa.
Chang havia prendido a respiração de propósito, ficando com os olhos
arregalados, sem piscar. Seu rosto estava vermelho e seus olhos lacrimejavam.
- É o cansaço - ele disse, exalando o ar. - Estou sentindo um mal-estar.
- Você está bem?
Chang tossiu, fingindo que não podia parar. Ele levantou a mão para
desculpar-se e dar a entender que estava bem.
- Dormi mal a noite passada - ele conseguiu dizer. - Vou melhorar.
Pretendo dormir cedo esta noite.
- Quer tirar um cochilo?
- Não. Tenho muito serviço para fazer.
- Não há problema. Descanse um pouco.
- Não posso.
- Por quê?
- Quero fazer a minha parte, esforçar-me ao máximo, só isso.
Em seguida, simulou outro acesso de tosse.
- Vá para casa mais cedo. Você não usou todo o tempo a que tinha direito
para tratamento de saúde, não é mesmo?
- Usei só uma parte, o senhor sabe, durante a época da praga.
- Das úlceras? Ah, sim, todos nós fomos atacados. Descanse o restante do
dia. Se você não aparecer aqui amanhã, vou entender.
- Não, por favor, Sr. Figueroa. Eu estou bem. O senhor não vê? Já estou
me sentindo melhor.
- O que está havendo com você, Wong? Bem, eu não quero assustá-lo,
mas...
- Eu não quero parecer um fracote.
- Você pode ser tudo, menos isso.
- Obrigado - disse Chang cobrindo a boca com a mão e tossindo mais que
antes.
- Passe no Departamento Médico e tome algum remédio. Chang fez um
gesto de negação e disse com voz ofegante.
- Vou voltar ao meu trabalho.
- Não, não vai. Isso é uma ordem.
- O senhor está me obrigando a sair mais cedo?
- Ora, vamos! Você acha que estou pensando só em você? É melhor sarar
logo. Não quero um departamento cheio de gente tossindo, e acho que você já
contaminou minha sala. Agora vá.
-Eu...
- Chang! Vá!
O dia começava a amanhecer no Colorado, e Steve Plank, conhecido pelo
nome de Pinkerton Stephens, estava dormindo em seus aposentos. Ele ficara
acordado até a meia-noite enviando e-mails a seus amigos do Comando
Tribulação, advertindo-os de que alguma coisa grave estava prestes a acontecer
em Chicago e que, se eles achassem conveniente, deveriam fugir dali, e rápido.
Ele também tinha conversado, por telefone, com Rayford Steele, em Petra, e
insistido para que continuasse lá e não permitisse que Abdullah Smith ou
qualquer outra pessoa voltasse para Chicago.
Batidas insistentes na porta o despertaram, e seu primeiro pensamento foi
que, na pressa, não havia usado o telefone seguro ou que seu computador
estava "grampeado". Se ele tivesse sido descoberto, paciência. Avisar o
Comando Tribulação foi a ação mais produtiva que ele fez desde sua conversão
ou pelo menos desde que ajudou Hattie Durham a sair de debaixo de sua
custódia para ir ao lugar onde ela se converteu.
Plank tentou gritar para saber quem estava ali e o que desejava, mas sua
prótese facial estava ao lado da cama e, sem ela, ninguém poderia ouvi-lo. O
melhor que conseguiu foi resmungar, enquanto tateava no escuro à procura da
peça de plástico.
- Sr. Stephens, não há necessidade de abrir a porta. - A voz era de Vasily
Medvedev, o subordinado imediato de Steve. - Eu só queria lhe dar um recado.
Nova Babilônia está fechando o cerco ao redor dos funcionários do mundo inteiro
que ainda não receberam a marca de lealdade. O senhor vai receber a sua ao
meio-dia. No Aeroporto da Ressurreição Carpathia. Eu só preciso que o senhor
confirme que ouviu o recado.
Steve escorregou o corpo para sentar-se em sua cadeira de rodas
motorizada, rodou-a até a porta e deu dois toques nela.
- Obrigado, senhor. Estou constrangido por ter de fazer isso, mas recebi
ordens para acompanhá-lo e comprovar que o senhor recebeu a marca.
Steve voltou para perto da cama e pegou a prótese na mesinha de
cabeceira.
- Espere um instante, Vasily!
Depois de colocá-la no lugar, ele abriu a porta e fez um gesto para que o
homem entrasse.
- Sinto muito, senhor - disse o russo. - O que devo fazer ou dizer?
- Diga a eles que já tenho a marca.
- Não existe registro disso.
- Você sabe que ela não pode ser aplicada em material sintético. Quer
ver? - perguntou Steve, começando a arrancar a parte da testa.
- Não! Por favor! Sinto muito, senhor, mas tentei ver uma vez e foi mais
que suficiente. Perdoe-me.
- Bem, vamos ver se a pessoa que aplica a marca vai querer dar uma
olhada - disse Steve.
- Ora, vamos, senhor, deveria haver um registro, não?
- Eu deveria estar isento. Você pode imaginar a dor de ter uma marca
aplicada à membrana...
- Por favor! Eu só recebi ordens de informar ao senhor e de...
- Comprovar se recebi a marca, eu sei.
- Por que o senhor não pede que ela seja aplicada em sua mão?
- Minha mão? Você está dizendo minha mão? Esqueceu que minha mão
também foi doada à causa?
Steve levantou o coto, e Vasily estremeceu.
- Eu sou um idiota - ele disse. - Como pude esquecer...
Steve fez um gesto de pouco caso.
- Não se preocupe com isso.
- Quando o senhor pretende sair? Eles abrem às 8 horas e estamos a
cerca de uma hora de distância.
- Eu sei disso, Vasily,
- Claro.
- Eu o informo mais tarde.
Quando Medvedev saiu, Steve curvou a cabeça e chorou.
Senhor, o que devo fazer? Enganá-los? Pôr o meu cargo à disposição? É
isso? Está tudo terminado? Será que não sirvo mais para ajudar os crentes ao
redor do mundo?
Steve passou a manhã comunicando-se com Chang em Nova Babilônia,
onde a tarde já estava terminando. Eles trabalharam freneticamente a fim de
encontrar um local para abrigar a sede do Comando Tribulação. Ninguém, em
qualquer lugar do mundo, poderia acolhê-los. O Edifício Strong havia sido
perfeito, só que por pouco tempo.
Nem Chang nem Steve sabiam ao certo quando o bombardeio sobre
Chicago teria início, mas ficou claro que seria o mais rápido possível. Somente
depois que eles avisaram a todos e fizeram as recomendações necessárias foi
que Steve contou a Chang o problema que o atormentava.
- Eu sabia que eles estavam fechando o cerco - disse Chang -, mas não
tinha idéia de que seria tão já. Vou incluir uma informação no banco de dados
mencionando que você já tem a marca. Posso tirar uma cópia para você.
- Não posso permitir que você faça isso, irmão.
- Por quê? Um dia desses, eu fiz a mesma coisa com um piloto da
cooperativa. Ele só ficou sabendo depois que providenciei tudo.
- Com toda essa vigilância aí no palácio? Eu não tenho nenhuma
documentação e, de um dia para o outro, passo a ter?
- Não é necessário dizer que ela foi expedida no Aeroporto da
Ressurreição. Posso fazer registros mencionando que veio de outro lugar.
Steve fez uma pausa. A coisa era intrigante, até mesmo instigante. Mas não tinha
consistência.
- Eu até concordaria - ele disse. - Se tivéssemos pensado nisso antes,
poderíamos ter dado um jeito, como se a documentação tivesse aparecido por
acaso, conforme você fez com o outro sujeito. Mas, agora, seria uma prova de
que concordei em receber a marca. Não posso fazer isso.
- Então, você vai sair daí, certo? Para onde vai e como vai chegar a esse
lugar? Devo enviar alguém para ajudá-lo? Algum meio de transporte?
- Não vai funcionar, Chang. Isso vai deixar você vulnerável. E você sabe
que eles estão me vigiando.
- Ninguém está me vigiando ainda - disse Chang. - Acho que eles não
desconfiam de mim.
- Você precisa continuar firme aí.
- Você quer ir para Petra? Há um vôo da cooperativa partindo de Montana
hoje. Posso falar com o piloto...
- Ligo para você depois, Chang. Agradeço muito, mas acho que chegou a
minha hora de tomar uma atitude.
- O que você está dizendo?
- Você sabe.
- Ora, Steve, pelo menos obrigue esse pessoal a correr atrás de você.
Precisamos de você, cara!
- Vivendo como um fugitivo? Que utilidade eu teria?
- Precisamos de todo mundo que puder nos ajudar.
Buck considerou a hipótese de acordar o contingente vindo da Grécia, mas
decidiu que não faria isso, embora houvesse muito trabalho pela frente. Chloe,
Mac, Hannah e Sebastian haviam chegado de madrugada.
Kenny estava fascinado com toda aquela atividade. As pessoas corriam de
um lado para o outro, tomando decisões importantes e empacotando caixas
pequenas, deixando de lado impressos, anotações ou qualquer coisa que já
estivesse no computador. A única pessoa com permissão para levar mais
bagagem que os outros era Zeke. Havia coisas das quais ele não podia abrir
mão: arquivos, roupas para disfarces, ferramentas de trabalho.
Leah passou a maior parte do tempo falando, por meio de um telefone
seguro, com o pessoal da cooperativa do mundo inteiro. Ela disse a Buck:
- Todos se conformaram que terão de acolher algumas pessoas e
disseram que seria uma honra, mas ninguém está eufórico com a idéia. O
espaço que cada um tem é muito limitado para atender a todas as necessidades.
- Não temos escolha, Leah. É tempo de cada um fazer sua parte. Detesto
dizer isso, mas muitas dessas pessoas nos devem favores. Daqui, nós dirigimos
a cooperativa e providenciamos gêneros de primeira necessidade para que elas
sobrevivessem.
Albie parecia taciturno. E por que não estaria? Buck ficou pensando na
situação dele: o único lugar para onde ele poderia ir - para onde queria ir - era Al
Basrah.
- Mas eu não quero usar um avião só para mim - ele disse. - Há muita
gente que precisa ser deslocada para vários lugares.
- Faça o que tem de ser feito, Albie - disse Buck. - Veja se Leah pode lhe
conseguir uma carona com alguém que esteja levando materiais para Petra.
Vamos precisar de você com freqüência.
- Espero mesmo que me chamem.
O pessoal de Enoque estava no subsolo do edifício verificando os veículos
para saber quantos tinham condições de rodar. Ele negociara o privilégio de
escolher os carros e os veículos utilitários como compensação por não poder
colocar as 30 pessoas pertencentes a O Lugar num só avião para partirem
juntas. Leah já havia encontrado vários esconderijos para abrigá-los a uma
distância que poderia ser percorrida de carro. Enoque ficaria em Palos Hills,
Illinois.
- Vocês sabem o risco que vão correr saindo daqui em caravana em plena
luz do dia - disse Buck.
- Claro que sabemos. Mas o risco será maior se estivermos aqui quando a
CG bombardear o local.
Steve Plank avisou Vasily de que queria sair da sede da CG às 11 horas.
Ele passou o restante da manhã trancado em seu quarto, orando em desespero.
Finalmente, ligou para Buck. Que reviravolta!, ele pensou. Buscar conforto
e conselho com um jovem que um dia foi seu melhor - e mais polêmico -
funcionário. Os dias de glória do Semanário Global haviam se perdido no tempo.
A história de Steve foi ouvida em silêncio. Em seguida, Buck disse, com
voz branda:
- Steve, não faça isso. Por favor.
- Você acha que eu quero? Ora, vamos, homem! Não precisa ficar
emocionado agora, Buck. Eu só queria dizer adeus.
- Mas eu não quero, está bem? Já disse adeus demais em minha vida. E
tem mais. Nós precisamos de você. Este não é o momento de desistir.
- Você está me ofendendo.
- Vou fazer o que puder, Steve, para impedir que você cometa essa
loucura.
- Eu esperava ouvir alguma coisa a mais de você.
- Eu também digo o mesmo.
- Você acha que estou tentando a saída mais fácil? Não pense isso de
mim.
- O que você está dizendo, Steve? Que devo apoiar sua idéia, desejar-lhe
felicidades e ver você lá no céu?
- Até que ajudaria. Diga que confia em meu julgamento.
- Como posso confiar, se acho que você ficou maluco? Steve deu um
longo suspiro.
- Buck, eu não tenho ninguém mais para ligar. Se eu disser que você não
vai conseguir tirar essa idéia de minha cabeça e que é por isso que estou
ligando, você vai ficar do meu lado?
- É claro que sempre estarei a seu lado, mas...
- Eu não sou covarde, Buck. Você me conhece. Sabe que eu devia ter
morrido. Fiquei enterrado sob escombros por quase uma semana. Sinto dores o
tempo todo, mas tenho enganado, tenho conspirado, tenho trapaceado, tenho
iludido o inimigo de todas as maneiras que sei. Bem, existe uma coisa que não
vou fazer. Não vou fugir como uma criança e não vou negar a Cristo.
- Eu sei disso.
- Bem, já é alguma coisa. Não foi tão difícil de entender, não é?
- Não venha me dizer que tenho de concordar com você, Steve.
- Você vai orar por mim?
- Claro, mas vou orar para que você recupere o juízo normal.
- Vou ter de passar por isso, Buck. E não vou fingir que não estou
morrendo de medo. A CG considera que ainda não recebi a marca por um
descuido, por questão de tempo, alguma coisa relacionada com minhas
limitações. Mas quando a coisa se tornar oficial, quando eles me obrigarem a
tomar uma decisão, não vou desapontar Deus.
- Eu sei que não vai. Ele promete misericórdia infinita e uma paz que
excede todo entendimento.
- Eu preciso lhe contar uma coisa, Buck. Não estou sentindo nada disso.
- Deus - Buck começou a dizer, e Steve percebeu que ele teve de respirar
fundo para prosseguir -, fica ao lado desse teu filho. Dá-lhe a tua graça, a tua
paz. Confesso que não quero que ele faça isso. Detesto essa idéia. Estou
cansado de perder pessoas que amo. Mas, se esta for a tua vontade, dá-lhe
coragem, dá-lhe as palavras certas, dá-lhe poder sobre o inimigo. Oro para que
as pessoas que presenciarem isso se comovam a ponto de tomarem a mesma
decisão.
Buck estava tão comovido que seus companheiros se reuniram à sua volta
espontaneamente. Quando ficaram sabendo o que estava se passando, eles se
ajoelharam e oraram por Steve. Buck ligou para Chang.
- Ele está indo para o centro de aplicação no Aeroporto da Ressurreição,
ao sul de Springs - disse Buck. - Existe alguma possibilidade de serem
transmitidas imagens da cena?
- Eles costumam fazer isso.
- E ela pode ser retransmitida para cá?
- Posso dar um jeito.
- Não sei por que quero assistir, mas vou me sentir como se estivesse ao
lado dele.
Steve estava ciente do olhar crítico de Vasily quando ele apareceu no
estacionamento, de cadeira de rodas, trajando roupas informais. Na verdade,
roupas muito informais. Ele usava sapatos sem cadarços, calça cáqui e camiseta
branca.
- Você está preocupado com o protocolo - disse Steve enquanto Vasily o
colocava no carro.
Vasily assentiu com a cabeça.
- Aprendi a não fazer perguntas, chefe.
- Você está armado, meu amigo?
- Claro.
- Eu não.
- Estou vendo.
Steve estendeu o braço a Vasily, que olhou assustado.
- Aperte minha mão - ele disse. - Lamento que ela não esteja mais aqui.
Vasily tocou o local rapidamente.
- Meu nome é Steve Plank.
- Como, senhor?
- Você ouviu.
- Steve Plank?
- Então, você estava ouvindo, como sempre. Conhece o Semanário
Global?
Vasily parecia estar com problemas para concentrar-se.
- O quê? A revista? Claro. Nós a recebemos de Nova Babilônia.
- Você se lembra de quando ela era independente, antes dos
desaparecimentos?
- Claro.
- Meu nome aparecia nos créditos.
- Nos...?
- Créditos. A lista dos diretores e redatores. Eu era o chefe, ou melhor, o
editor-chefe.
E Steve contou sua história a Vasily, terminando quando eles estavam a
15 minutos do destino. Medvedev sacudiu a cabeça.
- O que devo fazer agora?
- Bem, você não precisa me prender. Já me tem em custódia e está
cumprindo ordens. Está me levando ao centro.
- E o senhor vai receber a marca, continuar a viver como inimigo secreto
da Comunidade Global, e eu devo fingir que não sei de nada, só porque somos
amigos?
- Somos, Vasily?
- Eu achava que sim, mas o senhor demorou até agora para me contar a
verdade.
- Se somos amigos, você poderia me fazer um favor.
- Deixá-lo ir embora? Permitir que fuja? Para onde o senhor vai?
- Não é nada disso. Eu estava pensando que você poderia atirar em mim.
- O senhor está brincando.
- Não estou. Seria bom para sua carreira. Conte a história que quiser.
Você descobriu quem eu era, preocupou-se imaginando que eu poderia fugir,
essas coisas.
- Não posso fazer isso.
- Eu também não poderia. Quero dizer, não poderia me matar, embora já
tenha pensado um pouco nesse assunto.
- O que o senhor está querendo que eu faça, desde que não seja matá-lo?
Que eu assista à sua morte?
- Você foi encarregado de "comprovar", não é verdade? Não é essa a sua
obrigação?
Vasily deu um suspiro entrecortado e assentiu com a
- O senhor não vai levar essa história até o fim, vai?
- Vou. Fugir serviria apenas para protelar o inevitável. E você tem de
admitir que é mais ou menos fácil de as pessoas me reconhecerem.
- Não achei graça.
- Nem eu. Vasily, eu só lamento que já fosse tarde demais quando você
passou a trabalhar comigo. Você já havia recebido a marca, com muito orgulho.
- Já não sinto tanto orgulho assim.
- Essa é a grande tragédia em que nos encontramos.
- Eu sei.
- Sabe?
- O senhor acha que eu não dou uma espiada no site do Dr. Ben-Judá de
vez em quando? Eu sei que minha decisão é irreversível.
- Você gostaria que não fosse?
- Não sei. Não sou cego, nem surdo. Vejo o que está acontecendo. Neste
momento, eu diria que sinto inveja do senhor.
QUATORZE
Finalmente, era chegada a hora de acordar Chloe. E assim que ela se
levantou, os outros fizeram o mesmo.
Chang havia ligado. O Comando Tribulação necessitava fazer as malas e
preparar-se para mudar dali a qualquer momento.
Chloe trabalhava rapidamente, apesar de estar com os olhos turvos de
sono, com Kenny dependurado em seu pescoço quase o tempo todo. George e
Mac pegaram grandes quantidades de alimentos acondicionados em caixas e
latas, e começaram a levá-los para os carros. Hannah, que ajudou Leah a
atualizar os dados da cooperativa, tinha a aparência de quem precisava de mais
algumas horas de sono.
George contou a Buck que conseguira que alguém viesse buscá-lo em
Chicago, mas ele aconselhou a pessoa a modificar a rota, possivelmente
passando por Long Grove, onde foi marcado um local de encontro.
- Temos acomodações para você, Chloe e o bebê lá em casa, em San
Diego, e eu adoraria ser seu piloto.
Buck precisava pensar um pouco antes de tomar uma decisão. O cenário
podia ser pior. Leah conseguira que ele e sua família se mudassem para a casa
de Lionel Whalum e sua esposa. Buck não conhecia aquele homem, mas
também não conhecia pessoalmente nenhuma outra pessoa que pudesse abrigá-
los. Whalum concordara com a idéia, contando a Leah que possuía uma casa
grande em um bairro afastado da cidade, mas estava planejando fazer várias via-
gens de ida e volta a Petra.
- Leah - disse Buck -, quem sabe você e Hannah poderiam morar na casa
dos Whalum. Eu e minha família aceitaríamos a oportunidade que George está
nos oferecendo. Assim, vocês teriam um piloto, e nós também.
- Por que você não toma conta desta minha tarefa, Buck, já que está
pondo todo o meu trabalho a perder?
- Chloe está pronta para reassumir o posto, Leah. Seria melhor você
começar a arrumar suas coisas.
Ela parecia abalada e levantou-se rapidamente para sair dali. Buck a
interceptou.
- Ouça, vamos perdoar um ao outro. As circunstâncias exigem. Pense um
pouco: Whalum está transportando materiais para Petra o tempo todo.
- Eu sei, Buck. Chloe e eu coordenamos tudo isso.
- Você está raciocinando bem?
- Você está me insultando? - ela perguntou.
- Você não está raciocinando.
- O quê?!
- Pegue uma carona com ele um dia desses, Leah. Não há alguém em
Petra que você gostaria de ver?
Aquela pergunta a fez parar por alguns instantes.
- Ora, Buck, você não está falando sério. Não posso negar que estou
encantada com Tsion. Quem não está? Mas ele não vai ter tempo para uma
amiga. Há muita coisa que ele precisa fazer lá.
- Será, então, que você está com medo de morar em Long Grove, porque
o local fica muito perto de Chicago, onde as bombas vão cair? É bem provável.
- Não. Eu...
- Você quer ir com George para San Diego? Eles vão precisar de serviço
médico lá. E têm quartos individuais. Ninguém vai ficar morando junto. Eles estão
em abrigos subterrâneos, uma espécie de casas pré-fabricadas.
- Não, esse lugar parece perfeito para você e sua família. Vou conversar
com Hannah a respeito de Long Grove.
- Eu ouvi meu nome? - disse Hannah. - Prefiro a região sudoeste.
- Você conseguiu falar com alguém? - perguntou Leah.
- Precisa de companhia?
Poucos minutos depois, Hannah já havia concordado em ir com Leah.
Zeke e Mac eram os únicos que ainda não tinham onde ficar.
- Eu preciso ir para um lugar onde as pessoas necessitem de meus
serviços - disse Zeke. - Algum lugar seguro, mas central.
- Estou verificando - gritou Chloe, de longe.
- Eu quero ficar num lugar onde possa fazer viagens de ida e volta a Petra
- disse Mac à procura de mais caixas.
- Talvez eu consiga tirar Rayford de lá.
- Rayford precisa ficar lá - disse Buck. - Ele vai ficar irritado por uns
tempos, mas tem tudo o que precisa para manter um controle seguro do pessoal.
Depois que todos estavam prontos, apenas aguardando a ordem de partir, Albie
convidou Mac para acompanhá-lo a Al Basrah. Zeke ficaria instalado em uma
unidade clandestina na região oeste de Wisconsin, na cidade de Avery, perto do
limite com o Estado de Minnesota. Buck ligou para Chang.
- Vamos chamar a atenção quando sairmos daqui, mas acho que não
temos escolha.
- Saiam de madrugada - disse Chang -, poucas pessoas por vez nos
próximos dias. Vou ter condições de avisar se existe alguém atrás de vocês. É
um risco, mas você sabe o que vai acontecer se esperar mais tempo.
O grupo inteiro - 40 pessoas, incluindo as 31 de O Lugar - reuniu-se,
formando um grande círculo. Cada um passou os braços ao redor do
companheiro ao lado, oraram uns pelos outros e choraram. Todos. Até George e
Mac. Ao ver tantas lágrimas, Kenny começou a chorar, o que provocou risos no
pessoal.
- Parece que acabamos de chegar aqui - comentou Buck.
- E agora não sabemos quando nos veremos novamente. Tenho uma lista
da ordem em que vamos sair daqui. Minha família e eu seremos os últimos.
O Edifício Strong já não era mais seguro. E agora aquelas pessoas seriam
despejadas, um pouco por vez, num mundo hostil, que pertencia ao anticristo, ao
falso profeta, à Comunidade Global e a milhões de olhos inquisidores que
exigiam o sinal de lealdade que nenhuma delas possuía.
- Eu posso dizer a eles que perdi o senhor de vista - disse Vasily. - Que
negligenciei. O que mais posso dizer? O senhor fugiu.
Steve estava sentado ao lado dele no estacionamento do Aeroporto da
Ressurreição.
- O quê? Dizer que eu fugi numa cadeira de rodas e que você não me
alcançou? Tarde demais. Vamos.
Não era fácil, e Steve não ia fingir que não estava apreensivo. Quando lia
um livro ou assistia a um filme sobre um homem condenado, ele se perguntava
qual seria a sensação de dar uma longa e última caminhada antes da morte.
Essa não seria suficientemente longa, ele imaginava, principalmente em uma
cadeira de rodas.
Quando eles se aproximavam do centro de aplicação da marca de
lealdade na asa norte do aeroporto, Steve notou que a fila era a mais longa que
ele já vira. O cerco, o rigor - ou qualquer outro nome que Nova Babilônia desse -
estava dando certo. Centenas de pessoas passavam pela estátua de Carpathia,
curvando-se, orando, cantando, adorando. Por enquanto, a guilhotina estava
silenciosa. Na verdade, Steve não sabia se ela havia sido usada naquela região
do Estado. Alguns foram mortos como mártires perto de Denver. Outros em
Boulder. Talvez ele fosse o primeiro a ser morto ali. Talvez não houvesse gente
treinada para manipular o instrumento de imposição à lealdade - a guilhotina.
Mas lá estava ela, reluzente e ameaçadora. As pessoas na fila para receber a
marca riam com nervosismo, sem tirar os olhos dela.
Steve ainda estava na parte da fila que caminhava em direção ao ponto da
tomada de decisão. Não se esperava que ninguém tomasse a decisão "errada", é
claro. A mulher diante do teclado do computador - ruiva, robusta e aparentando
60 anos -, que tomava conta dos documentos e arquivos, mal erguia a cabeça
enquanto as pessoas se identificavam e escolhiam o tipo de marca e onde seria
aplicada.
Assim que a recebiam, elas levantavam as mãos fechadas ou gritavam
com entusiasmo. Em seguida, caminhavam em direção à imagem, para adorá-la.
Steve continuava vivo graças aos ensinamentos e incentivos diários de
Tsion Ben-Judá. Essa tinha sido a única igreja que ele conheceu. Conversava às
vezes com Rayford, com Chang e, de vez em quando, com Buck ou outra pessoa
do Comando Tribulação, mas estava ansioso por um contato pessoal com outros
crentes. Aquele problema seria rapidamente solucionado. Steve se questionava
se deveria usar seu nome verdadeiro e, finalmente, contar à CG que se manteve
na clandestinidade por todo esse tempo, mas seu nome seria facilmente ligado
ao de Buck Williams, em razão da época em que trabalharam juntos no
Semanário. E quanto tempo levaria para que descobrissem uma relação com
Rayford, com Chloe, com a cooperativa e - quem sabe? - com Chang?
Ele não poderia correr esse tipo de risco, principalmente expondo pessoas
que nem sabiam o que iria acontecer com ele ali. Quando, finalmente, chegou a
vez de Steve, a mulher avistou Vasily trajando uniforme e disse com voz
animada:
- Estávamos aguardando a chegada de vocês dois. Esse deve ser
Pinkerton Stephens.
- Em carne e osso, Ginger - disse Steve após ter lido o nome dela no
crachá.
- Que tal um belo -6 e uma charmosa imagem do supremo potentado? -
ela perguntou olhando-o de cima a baixo, visivelmente perplexa diante de seus
trajes.
- E onde você a aplicaria? - perguntou Steve.
- A escolha é sua.
- Bem, na mão não vai dar - ele disse mostrando o coto. O sorriso de
Ginger gelou, e ela o encarou. Não havia achado graça e demonstrou isso com o
olhar. Ele a colocara em uma situação desconfortável, e ela não gostou. - E acho
que não vai pegar no plástico.
- É verdade - disse Ginger um pouco mais aliviada.
- Também não podemos aplicá-la aqui, certo? - ele perguntou batendo na
prótese da testa.
Puxa daqui, puxa de lá. Ele arrancou a prótese do nariz e da testa,
deixando à mostra os globos oculares e a cavidade do cérebro.
- Acho que a única opção é aqui, Ginger - ele disse, com voz nasalada por
ter tirado a prótese do nariz.
- Oh! Oh, meu...! Sr. Stephens, eu...
- Quem vai querer aplicar a marca aqui? - perguntou Steve. - Quem se
apresenta como voluntário para fazer essa tarefa? E, quando eu quiser mostrá-
la, deverei arrancar a prótese do rosto?
A mulher virou-se para o outro lado.
- Estou certa de que vai funcionar. É totalmente higiênica e não vai causar
nenhum problema.
- Posso tirar também a prótese da boca, Ginger, se você desejar um efeito
total.
- Não, por favor.
- Bem, de qualquer forma, eu estou na fila errada.
- Como assim?
- Não aceito receber a marca de lealdade.
- Não aceita? Bem, não existe opção.
- Ah, claro que existe, Ginger. A outra fila é bem menor. Na verdade, serei
o único. Mas trata-se definitivamente de uma opção, não?
- Você está optando pelo... hã... instrumento de aplica...
- Estou optando pela guilhotina, Ginger. Estou preferindo morrer a fingir
que Nicolae Carpathia é divino ou rei de qualquer coisa.
Ela olhou para Vasily.
- Ele está brincando comigo?
- Infelizmente não, senhora.
Ginger analisou o rosto de Steve. Em seguida, pegou seu walkie-talkie.
- Ferdinand, precisamos de alguém para acionar o instrumento.
- Acionar o quê?
- Você sabe! - ela cochichou. - O instrumento.
- A guilhotina? Você está falando sério?
- Sim, senhor.
- Já estou indo. - Um homem calvo, alto e de bochechas vermelhas
chegou correndo. - Você não vai receber a marca?
- Vou - disse Steve -, mas antes quero tentar a guilhotina. Por favor, não
podemos andar logo com isso? Será que vou ter de passar por outra penitência?
- Isso aqui não é brincadeira.
- Também totalmente desnecessário, portanto faça o que deve ser feito.
Apronte a papelada.
- Não há papelada. Você simplesmente assina confirmando que fez a
escolha por livre e espontânea vontade, e nós... ah... você...
- Morre.
- Sim.
- Tenho o direito de dizer minhas últimas palavras?
- Você é quem sabe.
O homem entregou-lhe um formulário, no qual Steve assinou "Pinkerton
Stephens".
- Você deve saber que esta é sua última chance de mudar de idéia - disse
o homem.
- Sobre Carpathia ser o anticristo, o demônio personificado? Sobre Leon
Fortunato ser o falso profeta? Sim, eu sei. Não vou mudar de idéia.
- Esta é sua decisão final?
- Digamos que pensei muito no assunto.
- Claro.
Steve olhou de relance para Vasily, que estava pálido e com a mão na
boca. As outras pessoas na fila murmuravam e apontavam, agora com os olhos
fixos naquele homem de aparência estranha, usando camiseta.
Ferdinand passou por entre duas cadeiras e foi inspecionar a guilhotina.
- Dizem que pode ser acionada por uma só pessoa - ele mencionou. Em
seguida, levantou a cabeça. - Por aqui, Sr. Stephens.
Steve rodou a cadeira até uma marca no chão a 1,20m da guilhotina. Seu
ventre começou a contrair-se e a respiração ficou ofegante.
Deus fica comigo, ele orou silenciosamente. Dá-me tua graça. Dá-me
coragem.
A graça veio. A coragem, ele não tinha certeza. Gostaria de ter mais
experiência para estar diante daquele instrumento. Ferdinand havia levantado
completamente a lâmina, mas, enquanto manipulava os elementos na
extremidade da haste, ele continuava olhando para cima e examinando o
aparelho, afastando os dedos da lâmina.
- Acho que se a alavanca de segurança estiver no lugar, está tudo pronto -
disse Steve.
- Ah, claro. Obrigado.
- De nada. Pode ficar me devendo esta.
Ferdinand demorou um instante antes de dar um sorriso contorcido. Ele
colocou a barra de retenção no lugar, com um pouco de dificuldade. Em seguida,
segurou a corda de liberação e inspecionou a coisa toda mais uma vez.
Kenny estava dormindo, e Buck sentado com os ombros caídos diante da
TV, à qual ele havia conectado seu telefone. Chang engendrara uma maravilha
digital para transmitir as imagens do Colorado. Uma câmera de TV instalada em
um canto mostrava a área inteira, e Chloe apontou.
- É ele, Buck. Ele está ali.
O peito de Buck arfava pesadamente, e ele respirava com dificuldade.
Steve era a única pessoa diante da guilhotina, e havia um homem que parecia
tentar acioná-la.
- Você tem um cesto ou coisa parecida? - perguntou Steve.
- Não entendi - disse Ferdinand.
- Uma vasilha? A não ser que queira correr atrás de minha...
- Sim! Obrigado. Um momento. Steve gostaria de dizer.
- Estou feliz por poder ajudar.
Ferdinand encontrou uma caixa de papelão amassada que, por algum
motivo, havia sido forrada com papel laminado. Steve não queria saber por quê.
- Agora - disse o homem, olhando para cima -, aproxime-se daqui.
Steve rodou a cadeira para perto da guilhotina.
- Você consegue abaixar-se ou...
- Eu posso fazer isso sozinho - disse Steve -, mas o serviço de assistência
ao cliente está sendo precário se eu tiver de...
- Vou buscar ajuda.
- Não! Eu me posiciono sozinho, assim que disser minhas últimas
palavras.
- Ah, sim, suas últimas palavras. Chegou a hora. À vontade.
- Elas serão gravadas?
O homem assentiu com a cabeça.
- Bem, então...
Steve virou um pouco o corpo para encarar os que estavam na fila para
receber a marca de lealdade. Todos desviaram os olhos, mas ele notou um ar de
expectativa em seus rostos, como se estivessem aguardando o privilégio de
presenciar a cena.
- Eu não espero que vocês acreditem em mim, que concordem comigo
nem que mudem de idéia - ele começou a dizer. - Mas quero que minhas
palavras fiquem gravadas. Escolhi a morte na guilhotina para poder estar com
Deus. Acredito em Jesus Cristo, o Filho de Deus, o Criador do céu e da Terra.
Repudio Nicolae Carpathia, o demônio, o Satanás encarnado. Hoje, quando
vocês receberem a marca, perderão para sempre a chance de uma vida eterna
no céu. O destino de vocês será o inferno e, mesmo que queiram mudar de idéia,
não poderão.
- Eu gostaria que minha vida tivesse sido mais dedicada àquele que deu a
sua por mim, e eu me entrego em suas mãos, para a glória de Deus.
Steve virou-se para a frente, saltou da cadeira de rodas e posicionou-se
debaixo da lâmina.
- Por favor, seja rápido, Ferdinand - ele disse.
Buck não conseguia desgrudar os olhos da tela. Chloe, sentada ao lado
dele, cobriu o rosto com as mãos. A cena desapareceu, mas Buck continuou
sentado ali por quase uma hora. Finalmente, seu celular vibrou. Era Chang, que
também parecia abalado demais.
- Foi acrescentada uma nota confidencial ao relatório emitido pelo pessoal
do centro de lealdade - ele disse. - A nota é dirigida a Suhail Akbar: "Você
receberá um comunicado formal do centro de comando da Comunidade Global,
no Colorado, dizendo que haverá necessidade de um substituto para o falecido
Pinkerton Stephens e também para seu segundo homem no comando, Vasily
Medvedev. Este último foi encontrado no automóvel da CG que estava sob sua
responsabilidade. Medvedev suicidou-se com um tiro na cabeça."
Evidentemente, nenhuma das mortes foi divulgada pela CNNCG.
Ming Toy estava exausta quando desembarcou em Xangai depois de um
vôo que durou a noite inteira. Ela havia feito aquele vôo, aparentemente
interminável, várias vezes antes, mas nesse último não conseguiu dormir por ter
ficado conversando com o piloto. Ele era conhecido, ou melhor, amigo de George
Sebastian. E, embora ela não conhecesse George pessoalmente, agora eles
tinham muitos amigos em comum. O piloto do avião, um sul-coreano chamado
Ree Woo, já era um cidadão naturalizado norte-americano na ocasião do
Arrebatamento e estava aquartelado na mesma base de Sebastian.
- Todos conheciam George - disse Woo. - Ele era o homem mais
grandalhão que já tínhamos visto, o maior daquela base. Não havia nada que
George não pudesse fazer.
Woo era um piloto especializado em aeronaves pequenas, rápidas e de
fácil mobilidade, com capacidade para armazenar grande quantidade de
combustível e, por conseqüência, com autonomia de vôo para longas distâncias.
- Eu era um coreano-americano diferente, Sr. Chow, porque agia mais
como americano do que como asiático, apesar de ter mudado para a América já
adolescente. Eu não tinha religião. Teria sido um bom chinês. Aposto que você
cresceu em uma família atéia.
- É verdade - disse Ming -, mas a Coréia, principalmente a Coréia do Sul, é
metade cristã, metade budista, certo?
- Sim! Mas eu não era nem uma coisa nem outra. Também não era ateu.
Eu não era nada. Não pensava em religião. Eu sabia que devia existir um Deus,
mas não me importava. Caso existisse mesmo, Ele me deixou sozinho. Eu
adorava a mim mesmo, você entende o que quero dizer?
- Claro. Não era assim que todos nós fazíamos?
- Meus amigos e eu adorávamos a nós mesmos. Gostávamos de farra, de
garotas, de carros, de bens materiais, de dinheiro. Você também?
- Quero ouvir o resto de sua história, Ree - disse Ming - mas chegou a
hora de usar minha voz verdadeira e de contar-lhe a verdade.
Ele inclinou o corpo para a frente e olhou-a de esguelha no escuro, diante
da mudança do tom de voz de Ming.
- Não - ela disse. - Jamais gostei de garotas. Eu gostava era de garotos.
Ele teve um sobressalto e sorriu.
- Verdade?
- Não é o que você está pensando - ela disse. - Sou uma garota. Na
verdade, sou uma mulher adulta. Fui casada. Sou viúva.
- Você está brincando comigo!
- Estou lhe dizendo a verdade.
E ela contou sua história durante mais ou menos uma hora.
- Você acredita que já ouvi falar de seu irmão? - disse Woo.
- Não!
- É verdade! Ninguém menciona o nome dele, mas muita gente de nosso
grupo clandestino de San Diego sabe que ele está lá, dentro do palácio.
Em seguida, Woo terminou de contar sua história, falando sobre como
ficou apavorado depois dos desaparecimentos.
- Eu não sabia o que era medo. Antes, nada me incomodava. Eu era um
valentão. Foi por isso que eu quis ser piloto, mas não de jatos grandes
comerciais, nem de helicópteros. Eu queria pilotar aviões mais rápidos, mais
perigosos. Em várias ocasiões, escapei por um triz da morte, mas isso me
deixava mais entusiasmado ainda e nunca me fez ficar mais cauteloso nem mais
cuidadoso. Eu não via a hora de arriscar a vida outra vez.
- Mas depois que tanta gente desapareceu, fiquei tão assustado que não
conseguia dormir. Ficava deitado na cama com a luz acesa. Não ria! Era isso
mesmo! Eu sabia que alguma coisa terrível e sobrenatural havia acontecido. Só
um acontecimento tão grande como aquele foi capaz de me fazer parar e pensar.
Por que aquelas pessoas desapareceram? Para onde foram? Eu seria o
próximo?
- Perguntei a todo mundo que eu conhecia. Até mesmo pessoas que eram
como eu e que nunca haviam entrado numa igreja diziam que se tratava de
algum ato de Deus. Se fosse verdade, eu queria saber. Comecei a perguntar a
outras pessoas, a ler, a procurar livros na sala do capelão. Encontrei uma Bíblia,
mas não entendia nada do que lia. Foi, então, que alguém me deu um exemplar
numa linguagem mais simples. Eu não tinha certeza da existência de um Deus,
mas orei assim mesmo. Essa Bíblia era chamada de Palavra de Deus, portanto
eu disse: Deus, se estás em algum lugar, ajuda-me a entender isso e a
encontrar-te.
- Ming, esse é o seu nome verdadeiro, certo? Chega de surpresas?
Ela concordou com a cabeça.
- Chega de surpresas.
- Ming, eu li aquela Bíblia da mesma maneira que um homem faminto
come pão. Eu a devorei! Eu não parava de ler. Li a Bíblia inteira várias vezes e,
quando encontrava livros e capítulos complicados demais, eu pulava e encon-
trava outros mais fáceis. Quando descobri os Evangelhos e as cartas de Paulo, li
e reli até desabar de exaustão.
- No final da Bíblia, havia uma lista de versículos que mostravam como
tornar-se cristão, um seguidor de Cristo, e receber o perdão dos pecados. Ali
dizia que a gente podia ter certeza de estar salvo dos pecados e de ir para o céu
ao morrer ou ao ser levado com Cristo no Arrebatamento. Aquilo partiu meu
coração! Era tarde demais! Acreditei de todo o coração que os desaparecimentos
tinham a ver com o Arrebatamento, e chorei sem parar, arrependido de ter
perdido a chance.
- Mas li todos os versículos que falam da salvação e orei implorando a
Deus que me perdoasse. Eu disse que acreditava que Jesus morreu por mim e
que me receberia em seus braços. Tive uma enorme sensação de pureza, de
liberdade e de refrigério, como se eu não tivesse sido deixado para trás. Isto é,
eu gostaria de ter sido arrebatado, mas não tenho dúvida de que estou salvo e
de que, um dia, vou morar no céu.
Horas depois, Ming tinha a impressão de que ela e Ree tinham sido
amigos durante a vida toda. Apesar de exausta, ela preferiu conversar com ele a
ficar dormindo. Quando o sol despontou sobre o mar Amarelo, Ming sentiu-se
enojada ao ver a imensa quantidade de sangue que se estendia até os portos.
Quanto mais baixo eles voavam, mais ela via a devastação, animais em estado
de putrefação. Quando pousaram, receberam máscaras, que pouca utilidade
tiveram para filtrar o odor fétido.
Ree estava transportando mercadorias para a cooperativa de Xangai, mas
concordou em levá-la a Nanjing, que ficava a mais de 300 quilômetros a oeste.
Chang contara a seus pais que havia uma igreja clandestina lá e, apesar de ser
uma cidade grande, Ming orou suplicando a Deus que a conduzisse até eles.
Ree lhe fez companhia enquanto ela procurava, com a máxima cautela,
algum crente secreto. Não era fácil. Eles ficavam sentados em restaurantes
pequenos, e, de vez em quando, ela levantava cuidadosamente seu quepe para
que um companheiro crente pudesse ver o selo em sua testa. Quando Ree fez
isso em uma pequena mercearia, uma senhora idosa se aproximou e exibiu seu
selo. Os três se encontraram em uma viela e contaram suas histórias
rapidamente. Ming entendia o dialeto da senhora e o traduziu para Ree.
A senhora contou que a igreja clandestina de Nanjing praticamente
desaparecera, e que grande parte dos crentes foi deslocada para Zhengzhou,
localizada a uma distância de cerca de 500 quilômetros a noroeste dali.
Finalmente, Ming conseguiu dormir na última parte da viagem, mas, mesmo
inconsciente, ela se preocupava com Ree, que poderia cochilar nos controles.
Nos tempos dos regulamentos rígidos da aviação, ele jamais receberia
permissão para voar sem um bom período de descanso.
A CG parecia alvoroçada em Zhengzhou, arrastando os cidadãos sem a
marca de lealdade para os centros de aplicação, caçando os judeus para levá-los
aos campos de concentração e gritando por meio de megafones todas as vezes
que era chegada a hora de adorar a imagem de Carpathia. Até mesmo os
milhares de pessoas que ostentavam a marca pareciam cansadas diante das
constantes exigências e do tratamento recebido pelos indecisos.
Ming e Ree encontraram uma hospedaria barata, que não fazia perguntas,
e alugaram dois quartos minúsculos, do tamanho de um cubículo, onde pagaram
muito para dormir tão pouco. Mas o sono levou embora o cansaço, e, quando
eles se encontraram novamente, partiram em busca dos crentes clandestinos.
Finalmente, Ming conheceu um pequeno grupo de cristãos escondidos no
porão de uma escola abandonada. Ree precisava retornar a San Diego, e a
perspectiva de separar-se dele causava grande sofrimento a Ming, embora eles
tivessem acabado de se conhecer. Ele prometeu voltar e fazer o possível para
que a pequenina igreja de Zhengzhou fosse incorporada à lista da cooperativa,
embora seus crentes tivessem pouca mercadoria para ser barganhada.
Ming conseguira falar com Chang em Nova Babilônia e tomou
conhecimento da dispersão gradual do Comando Tribulação e da mudança da
família Williams para San Diego.
- Você precisa conhecê-los, Ree - ela disse -, e ficar mais amigo de
Sebastian. Meu sonho é encontrar meus pais e, um dia, levá-los comigo para lá.
Demorou mais de uma semana para Ming encontrar alguém que tivesse
ouvido falar da família Wong, apesar da popularidade do nome naquela região.
Foi uma senhora idosa, com ar de cansaço e olhos úmidos, que lhe contou:
- Nós conhecer os Wongs. Um casal de meia-idade. Ele muito leal ao
potentado, mas não aceitar a marca.
- É ele! - disse Ming.
- Sinto muito, moça. Ele ser descoberto.
- Ele morrer com honra!
- Por favor, não!
- Ele ser crente. Sua mãe chorando mas estar bem. Ela morar com um
pequeno grupo a 80 quilômetros a oeste, nas montanhas.
- E ela também se converteu? - perguntou Ming em meio às lágrimas.
- Ah, sim. Sim. Eu levar você até ela no tempo certo.
QUINZE
Chang nunca se sentiu tão isolado, tão sozinho, como nos cinco meses
seguintes. Chorou a morte de seu pai, mas regozijou-se porque ele estava no
céu. Orou por sua mãe e sua irmã, insistindo para que Ming continuasse na
China e não tentasse tirar a mãe de lá. Ele sabia que aquele país estava
atravessando um momento terrível, porém fugir seria mais perigoso.
Chang estava curioso acerca de Ree Woo e ajudou Chloe a encontrar
vôos e conexões de vôos da cooperativa para ele. Porém, na maior parte do
tempo, Chang agia com discrição, principalmente diante dos computadores.
Suhail Akbar havia assumido para si a responsabilidade de descobrir o espião no
palácio. Todos os funcionários foram interrogados repetidas vezes, mas Chang
tinha certeza de que não levantou mais suspeitas do que seus colegas. Ele
sonhava com o dia em que voltaria a ter liberdade para acompanhar os passos
do Comando Tribulação, conforme havia feito anteriormente.
O dia estava quase terminando quando ele conseguiu abrir caminho para
seus companheiros por meio de credenciais falsas. E foi forçado a pedir a Buck
que tomasse cuidado com o que escreveria em A Verdade a respeito das
informações que recebera do palácio. Uma coisa era Buck escrever sobre o que
conhecia, e outra coisa bem diferente era provar com gravações, em áudio e
vídeo, que somente poderiam ter sido feitas a partir de escutas clandestinas no
palácio de Nova Babilônia.
Chang ficou emocionado ao saber que a mudança do pessoal do
Comando Tribulação na calada da noite transcorreu sem problemas. Até aquele
momento, a única perda tinha sido a de Steve Plank, que, oficialmente, não fazia
parte do Comando Tribulação, mas cuja morte foi muito lamentada.
Leah e Hannah estavam escondidas na nova casa em Long Grove. Suas
cartas esporádicas a respeito de Lionel Whalum e sua esposa comprovavam que
aquele era o tipo de casal de que o Comando Tribulação e a cooperativa neces-
sitavam.
Albie e Mac voavam temerariamente pelo mundo inteiro em uma aeronave
que Albie conseguiu no mercado negro. Chang preocupava-se com eles, porque
ambos não podiam mais ter credenciais falsas, porém Mac, pelo menos, parecia
sentir-se invencível após o triunfo na Grécia.
Zeke, pelo que Chang sabia, estava tendo sucesso em uma região
campestre que a CG parecia ter esquecido. Muitos crentes secretos viajavam
quilômetros para ter sua aparência transformada pelo toque de mestre do jovem.
As notícias recebidas de Enoque e de seus companheiros de O Lugar
eram menos alentadoras. O grupo havia se dividido, e seus componentes
passaram a morar em esconderijos, sozinhos ou em companhia de outras
famílias. A maioria continuava trabalhando ativamente na troca de mercadorias
da cooperativa, mas muitos sentiam falta dos tempos de camaradagem que
viveram em Chicago.
A cidade havia sido devastada novamente, desta vez por uma bomba
nuclear verdadeira lançada três dias após Buck, Chloe e Kenny terem ido ao
encontro de Sebastian e voado para San Diego. A CNNCG relatou mil mortes,
todas de judaístas, mas os inspetores perceberam que a confirmação do número
de mortos teria comprometido as próprias pessoas que diziam ter feito a
contagem.
O mais emocionante para Chang era manter contato com Buck, Chloe e
Kenny, que agora moravam literalmente em um abrigo subterrâneo perto de San
Diego. Sebastian e sua família haviam amenizado o período de transição, e a
igreja secreta de lá era a mais vibrante que Chang conhecera. Ali, Kenny era
apenas um dos vários bebês nascidos após o Arrebatamento.
Pelo fato de grande parte da tecnologia militar continuar intacta, Buck foi
capaz de recriar a aparelhagem que possuía em Chicago, e, dali, transmitia sua
revista virtual alguns dias por semana. Ele tomava o cuidado de permanecer
escondido em casa e invejava a vida que Rayford levava em Petra.
Quatro anos na Tribulação
Seis meses na Grande Tribulação
Embora a atmosfera continuasse festiva e as mensagens diárias de Tsion
e Chaim fossem inspiradoras, Rayford diria que Petra não estava completamente
isolada do mundo real. Um milhão de pessoas eram lembradas diariamente da
devastação provocada por Carpathia em todo o planeta. De todas as partes,
chegavam notícias de milagres feitos por milhares de divindades que pareciam
carinhosas, bondosas, inspiradoras e dinâmicas. Era comum vê-las ao vivo na
Internet, recolocando braços e pernas amputados, ressuscitando mortos,
retirando sangue do mar e transformando-o em água tão pura e cristalina que
muitas pessoas se apresentavam para bebê-la sem correr risco algum.
- Falsos! - pregava Ben-Judá todos os dias. - Charlatães. Impostores.
Trapaceiros. Sim, trata-se de um poder verdadeiro, mas não é o poder de Deus!
É o poder do inimigo, do demônio. Não se deixem enganar!
Muitas pessoas, porém, eram enganadas.
Os judeus estavam sendo maltratados, perseguidos, torturados e mortos
em todos os continentes. Eram obrigados a desfilar diante das câmeras da
CNNCG e acusados falsamente. Eram traidores, diziam os comentaristas,
inimigos do potentado ressurreto, pretensos usurpadores do trono do deus vivo.
No decorrer dos meses, a política de Nova Babilônia referente aos que
ainda não possuíam a marca sofreu uma mudança radical. Não se permitia mais
que os transgressores da lei tivessem uma última chance. O grau de tolerância
passou a ser zero. Não havia mais desculpas. Para Rayford, a maior barbárie era
a lei de vigilância, que permitia a um cidadão leal, possuidor da marca, matar
qualquer pessoa que fosse encontrada sem ela. Esse ato não era considerado
crime, mas sim enaltecido e recompensado, exigindo-se apenas que o cidadão
levasse a um dos centros da CG o corpo da vítima encontrado sem a marca na
testa ou na mão.
Mas ai daquele que matasse um cidadão leal por engano. O assassinato
de um carpathianista leal era punido com a morte, sem direito a julgamento. Se a
pessoa não conseguisse apresentar um álibi por ter assassinado um cidadão
leal, era morta em 24 horas.
Rayford sentia muita falta de sua família e dos outros membros do
Comando Tribulação, mas o que era bom para um era bom para todos. Eles
haviam se dispersado e mantinham-se escondidos por uns tempos. Rayford
sabia que não seria, nem poderia ser, sempre assim. Ele queria tanto ir a San
Diego que chegava a sonhar com isso.
O ponto alto de seus dias, além de assistir às aulas de doutrina bíblica e
de manter contato com o pessoal do Comando Tribulação, era a mensagem
evangelística proferida diariamente por um dos dois pregadores. Se, algum
tempo atrás, alguém lhe tivesse perguntado se gostaria de receber uma dose
diária de pregação do plano de salvação e desse aos indecisos a chance de
aceitar a Cristo, ele teria dito que isso se tornaria muito cansativo.
Mas todos os dias, Tsion e Chaim, um de cada vez, insistiam em pregar
essa mensagem seguida de uma aula normal para a maioria das pessoas já
convertidas. E, todos os dias, Rayford se emocionava ao ouvi-la.
E essa emoção não era apenas causada porque alguém era salvo todos
os dias - às vezes, mais de um -, mas também porque os rebeldes ou indecisos
quase sempre se sentiam angustiados, lutando contra Deus. Rayford
maravilhava-se ao ver a batalha espiritual que se travava, na qual homens e
mulheres egoístas e pecadores não podiam deixar de ouvir a pregação e, mesmo
assim, não cediam, embora soubessem que seriam beneficiados.
Todas as noites, Chaim pedia que os novos crentes se identificassem e
falassem sobre a vida que levaram antes de se converter. Essa reunião sempre
culminava com cânticos, orações e celebrações.
Certa noite, ainda entusiasmado após ter participado de uma dessas
reuniões, Rayford resolveu assistir a uma aula dada por Naomi, a jovem
especialista em informática. Ela se dispôs a dar aulas a qualquer pessoa que
desejasse aprender como acessar os vários bancos de dados para receber notí-
cias do mundo inteiro.
Enquanto estava ali tentando aprender alguma coisa, Rayford foi chamado
por Chaim, que queria apresentar-lhe uma nova amiga.
Rayford acompanhou Chaim por uns 200 metros. Por todo o caminho, o
povo estendia a mão para tocar em "Miquéias", para abençoá-lo, agradecer-lhe,
dizer que estava orando por ele e gostando de sua liderança.
- Obrigado, obrigado, obrigado - Chaim dizia, apertando as mãos e
tocando no ombro das pessoas enquanto passava. - Louvado seja Deus.
Louvado seja o Senhor. Que Ele os abençoe.
Finalmente, chegaram a uma área descoberta, onde vários jovens de
nacionalidades e de culturas diferentes conversavam. Eles aparentavam ter mais
ou menos 30 anos.
- Sra. Rice? - Chaim chamou em voz baixa.
Quando a mulher negra e baixa pediu licença para afastar-se, os outros
olharam, curiosos, ao vê-la aproximar-se de Chaim e Rayford.
- Eu a conheço, não? - disse Rayford, curvando-se para apertar a mão
dela. - Deixe-me ver se adivinho. Você é amiga de... não, eu a vi na televisão.
- Bernadette Rice - ela disse com acentuado sotaque britânico e um sorriso
radiante. - Trabalho como repórter em Petra, mas não pertenço mais à CNNCG.
Rayford não sabia o que dizer. Então, ela estava ali a serviço - ou não? -
ou para quê? Ele sorriu para ela e olhou de relance para Chaim.
- Ela própria vai lhe contar - disse Chaim.
Os três sentaram-se nas pedras.
- Eu estava no Monte do Templo trabalhando para a CNNCG no dia em
que Miquéias, isto é, o Dr. Rosenzweig apareceu. Eu não o reconheci. Nenhum
de nós o reconheceu. Não sei o que eu teria pensado se soubesse quem ele era.
Muitas pessoas sabiam, é claro, que ele era o assassino de Carpathia.
- Mas eu não estava sequer pensando nisso quando entrei em cena. Uma
mulher chamada Riehl, que ocupava a função de cabo nas Forças Pacificadoras
da CG... perdoe-me, mas eu me lembro de todos os detalhes e falo dessa
maneira para poder organizar meus pensamentos... bem, ela interrompeu a
reportagem que eu estava fazendo sobre as famílias que visitavam o Monte do
Templo naquele dia. Para dizer a verdade, não fiquei nem um pouco satisfeita
quando ela insistiu em que Rashid, meu operador de câmera, e eu pegássemos
nossas coisas e a acompanhássemos. Eu exigi saber o que estava acontecendo.
- Enquanto me arrastava pela praça, ela disse que Rashid e eu teríamos
um raro privilégio dali a alguns instantes. Um Monitor de Moral do alto escalão
estava prestes a executar uma ordem direta do potentado. Quando chegamos lá,
um jovem alto, vestido de acordo com os MM, isto é, com roupas comuns, estava
diante de um senhor idoso, frágil e pequenino. Perdoe-me, Dr. Rosenzweig, mas
é essa a lembrança que tenho do senhor.
- Bem, às vezes as pessoas que não são jornalistas têm idéias diferentes
sobre uma reportagem de grande impacto. Eu não sabia se a cena seria exibida
ao vivo ou depois de gravada. O tal MM queria levar adiante sua missão,
portanto perguntei ao controle central, que estava produzindo a transmissão, o
que eu deveria fazer. Eles queriam saber quem era o MM e, enquanto eu
procurava obter a informação, o homem insistia para que rodássemos a cena.
- Ele disse que seu nome era Loren Hut, o novo chefe dos Monitores de
Moral, e que recebera ordem de Carpathia para executar o tal Miquéias por ele
ter se recusado a receber a marca e resistido à prisão. Fiz uma rápida
introdução, Rashid focalizou os dois, e a imagem foi transmitida ao vivo pela
CNNCG.
- Você deve lembrar-se de que, naquela época, a praga das úlceras tinha
começado a atormentar todo mundo, e Hut estava sofrendo muito. Ele se
contorcia e se coçava, e eu também comecei a fazer o mesmo. Você chegou a
ver aquela cena, capitão Steele?
- Não, mas ouvi falar...
- Então você sabe o que aconteceu. Hut atirou em Miquéias várias vezes à
queima-roupa e, com exceção do estrondo ensurdecedor do estampido, as balas
não surtiram nenhum efeito. A multidão começou a rir e a acusar Hut de estar
usando balas de festim. Ele matou um homem com um tiro no coração para
provar que os projéteis eram verdadeiros. O povo correu à procura de abrigo, e
eu me atirei no chão, morrendo de medo. Em seguida, Carpathia apareceu em
cena. Quando consegui me recompor, saí rastejando dali em direção às filas de
aplicação da marca, só para despistar caso alguém estivesse me vigiando.
- Mas segui direto para meu hotel. Eu estava muito feliz por não ter
decidido aceitar a marca até aquele instante. Aquele homem era um inimigo de
Carpathia e tinha uma espécie da proteção sobrenatural que eu queria ter. Meus
chefes pensaram que eu estivesse sofrendo com as úlceras, mas nada me
impediria de seguir Miquéias. Assisti a tudo do meu quarto no hotel, tomei
conhecimento da reunião em Masada, coloquei um disfarce, dirigi-me para lá e
cheguei aqui num dos helicópteros. Só recentemente é que orei para ser salva.
- Louvado seja Deus - disse Rayford. - Posso saber por que você demorou
tanto tempo? Você estava aqui quando as bombas foram atiradas. Foi protegida
pelo próprio Deus...
- Com o corpo em chamas!
- Sim! Estou realmente curioso. Qual foi o motivo da demora? Com
certeza, você não estava mais duvidando de Deus.
- Não, de jeito nenhum. Eu não sei como explicar, capitão Steele. Tudo o
que posso dizer é que o inimigo tem um controle muito forte sobre a mente da
pessoa enquanto ela não se entrega a Deus. Eu era uma jornalista, pragmática e
orgulhosa. Queria ter o controle sobre o meu destino. Tudo para mim precisava
ser provado.
- Mas que prova maior...?
- Eu sei. Isso ainda me confunde. Acho que a explicação mais próxima
está no versículo que o Dr. Rosenzweig e o Dr. Ben-Judá citam freqüentemente.
Como é mesmo, doutor? Alguma coisa parecida com luta contra a carne?
Chaim assentiu com a cabeça.
- "Porque a nossa luta não é contra o sangue e a carne, e, sim, contra os
Principados e Potestades, contra os dominadores deste mundo tenebroso, contra
as forças espirituais do mal, nas regiões celestes" [Efésios 6.12].
- É isso mesmo! E é por isso que temos de usar a armadura de Deus,
certo?
- "... para que possais resistir no dia mau, e, depois de terdes vencido tudo,
permanecer inabaláveis" [v. 13]. Amém.
- Gostei muito de ouvir sua história, Sra. Rice - disse Rayford. - A senhora
sabe que meu genro era...
- Sim, sei. O Dr. Rosenzweig me contou. Foi por isso que ele achou que
você gostaria de ouvir minha história.
Rayford olhou para Chaim e, depois, para Bernadette.
- Não me digam que Buck ainda não sabe disso.
- Não por mim - disse Chaim.
Ela fez um movimento negativo com a cabeça.
- Então, se vocês me dão licença... Rayford passou apressado pelo local
onde Naomi estava terminando sua aula de informática; em seguida, atravessou
a área das barracas, onde a maioria dos jovens preferia dormir, e, depois, por um
pequeno acampamento de casas modulares pré-fabricadas.
Elas eram pequenas, mas muito bem construídas. Haviam sido trazidas
por Lionel Whalum, o novo membro da cooperativa, e montadas por um grupo de
voluntários que pareciam ter remodelado a paisagem de Petra quase que do dia
para a noite.
Esperando que sua estada na cidade de pedra fosse apenas temporária,
Rayford havia escolhido uma das menores unidades - mais que suficiente para
ele - perto do local onde Abdullah estava alojado. Smitty gostava de fogueiras ao
ar livre e optara por uma barraca, mais ou menos do tamanho da "casa" de
Rayford, perto de um dos acampamentos.
Antes de entrar em sua moradia temporária, com espaço suficiente apenas
para sua cama, seu computador e o equipamento de transmissão, Rayford olhou
para ver se Abdullah ainda estava acordado. O jordaniano, cujo vulto era visto
através da densa fumaça produzida pela fogueira, acenou para ele e o chamou
com um gesto.
- Vou lhe fazer companhia daqui a uma hora ou pouco mais, meu amigo! -
gritou Rayford.
Ele sentou-se diante de seu computador levando consigo dois frascos de
vidro, uma contendo água e outro maná. Não havia necessidade de aditivos
químicos nem de armazenamento apropriado para conservar o maná. Ele se
estragava da noite para o dia, mas todas as manhãs havia sempre um
suprimento novo e fresco; portanto, economizá-lo era considerado falta de fé e
proibido.
Rayford digitou seu código de acesso, teclou as coordenadas que lhe
permitiam entrar em contato em segurança com San Diego, onde o relógio
marcava dez horas a menos por causa dos fusos horários, e escreveu: "Louvado
seja o Senhor pela vida de Davi Hassid e de Chang Wong".
Ele aguardou. O computador de Buck e Chloe emitiria um sinal para avisar
que ele estava tentando estabelecer contato. Assim que um deles teclasse o
código secreto, as unidades poderiam comunicar-se. Além disso, também tinham
um dispositivo que permitia ver as imagens. Sensores nas bordas das
respectivas telas armazenavam e interpretavam imagens digitais e as
transmitiam de um computador ao outro, portanto eles podiam ver-se na tela, a
menos que a pessoa que chamou tivesse desligado o dispositivo.
Um minuto depois, Chloe apareceu na tela com Kenny, de 20 meses,
pulando em seu colo. Ela teve de segurar a mão do menino para que ele não
mexesse nas teclas. Quando viu os dois, Rayford sentiu uma vontade imensa de
ir para San Diego.
- Oi, papai - disse Chloe. - Diga oi para o vovô, meu amor.
- Vovô! - disse Kenny olhando para a tela.
Rayford tentou posicionar-se melhor sob a luz e acenou para o menino.
Kenny sorriu e abriu e fechou a mãozinha diante da tela.
- Estou com saudade de você, Kenny!
- Saudade! Kenny meninão! - Kenny ergueu as mãos acima da cabeça e
curvou o corpo para trás, forçando Chloe a segurá-lo com força para impedir que
ele caísse de seu colo.
- Você é um meninão? - perguntou Rayford.
Mas Kenny já havia perdido o interesse. Contorceu-se até que Chloe o
soltou do colo.
- Você precisa ver Kenny pessoalmente - disse Chloe.
- Tomara que seja logo - disse Rayford. - Sinto falta de todos vocês.
Cada um contou suas novidades. Pelo fato de Buck estar ausente, em
companhia de Sebastian e Ree Woo, Rayford contou a Chloe a história de
Bernadette Rice.
- Buck vai ficar emocionado - ela disse. - Ree está voltando para a China.
Ming ainda não levantou nenhuma suspeita. Ela anda por todos os lugares, mas
quer sair de lá e trazer a mãe com ela. Talvez desta vez ela consiga.
- Eles vão ficar em San Diego?
- Sim. Acho que Ming está apaixonada por Ree.
- Isso não me surpreende. Cheguei a conhecê-lo numa de suas viagens
para cá.
- Ninguém me contou isso!
- Ele fala muito dela. Parece preocupado com ela. Eu pensei que tivesse
contado a você.
- Não. Deve ser porque eu fico cuidando aqui dos assuntos da cooperativa
a maior parte do dia. Está ficando cada vez mais difícil, papai. Tsion disse
alguma coisa sobre a suspensão da praga? Ou elas vão ser permanentes?
- As anteriores não foram. Mas a de agora é a que está durando mais.
Tsion acha que o Julgamento das Taças sobre os lagos e rios está próximo.
Esse, com certeza, não é permanente.
- Não? Como ele sabe disso?
- Ele diz que haverá um julgamento posterior, um daqueles que precederá
a Batalha de Armagedom e o Glorioso Aparecimento. É sobre o rio Eufrates. A
profecia diz claramente que suas águas secarão.
- Isso é um alívio, mas, se os rios e os lagos em breve se transformarem
em sangue e não retornarem ao normal até o Armagedom, não sei o que vamos
fazer. Será que os mares vão voltar ao normal antes que os rios e lagos se trans-
formem em sangue?
- Ninguém sabe, Chloe. E o que vai acontecer se os mares voltarem a ter
água salgada? Quanto tempo levaria para reabastecê-los?
- E o que vamos fazer com toda essa mortandade? Só a limpeza levaria
cem anos. Pelo menos, poderíamos ter condições de tratar a água salgada e de
transformá-la em potável. Se os lagos e os rios se transformarem em sangue e
os mares continuarem na mesma, não sei como alguém terá condições de
sobreviver.
- Tsion diz que Deus vai tirar de nosso meio muitas pessoas que têm a
marca da besta, para que elas não possam continuar a evangelizar em prol do
demônio. Acho que Ele deseja nivelar as desigualdades um pouco antes da
última batalha.
- Até parece que Ele precisa fazer isso, papai.
- Como você está se sentindo, querida?
- Exausta, só isso. Mas nós gostamos muito da família de Sebastian e dos
crentes daqui. Já que temos de passar por isso tudo, o melhor lugar para estar é
aqui.
Já passava bastante da meia-noite em Zhengzhou, e Ming estava com
saudades de casa. De que casa, ela não sabia. Não tinha mais casa. Queria
estar com Ree Woo, embora até aquele momento eles só tivessem ficado de
mãos dadas. Ele veio visitá-la - mais de uma vez - conforme prometera, e ambos
se tornaram bons amigos, irmãos em Cristo.
Ming não sabia se fazia sentido pensar nele em termos românticos, já que
faltavam apenas três anos e meio para o Glorioso Aparecimento. Além disso,
Ree tinha um emprego terrivelmente perigoso, e quem gostaria de arriscar-se a
enviuvar duas vezes em questão de poucos anos? Por outro lado, como seria se
ambos sobrevivessem? Ela teria de estudar o que o Dr. Ben-Judá dizia sobre as
pessoas casadas que viveriam no reino milenar.
Embora estivesse ao lado da mãe, Ming não se sentia em casa. Ela
compreendia o idioma, até mesmo os dialetos mais complicados, por ter sido
criada na China. Mas os crentes viviam em constante temor, dormiam em
quartos coletivos, tinham pouca privacidade e nunca sabiam quem bateria à
porta na calada da noite.
Sua mãe parecia em paz, apesar da perda recente do marido, mas contou
a Ming que gostaria de ter morrido com ele. Embora fosse uma crente novata, a
Sra. Wong sempre foi uma mulher preocupada por natureza e começou a ter
idéias fatalistas no decorrer das últimas semanas. Ming tentou persuadi-la a sair
furtivamente da China e a ir morar em San Diego com ela, mas a mulher não
queria ouvi-la. Fosse como fosse, aquele era seu lar, e a palavra Califórnia
soava-lhe como o nome de um planeta diferente. Ela se preocupava com Chang,
com Ming, ambos fingindo trabalhar para a Comunidade Global.
Ming, ainda disfarçada de Chang Chow e vivendo como homem quando
estava fora do abrigo subterrâneo, estava constantemente à beira do perigo. Seu
irmão se oferecera para incluí-la como funcionária de alto nível, com direito a
fazer parte da folha de pagamento e a receber os benefícios legais. Ela recusou-
se, para proteger o irmão, sabendo que a vigilância em Nova Babilônia estava
cerrada. Um pouco de dinheiro lhe permitiria completar o disfarce e viver com
recursos próprios, mas não valeria a pena, porque Chang ficaria vulnerável no
palácio. Portanto, ela resolveu viver da parca ajuda proporcionada pelos crentes.
Ming tentava manter distância dos outros homens das Forças
Pacificadoras, embora alguns quisessem aproximar-se dela convidando-a para ir
a vários lugares com eles. Ming sempre inventava alguma desculpa. O mais
difícil de tudo era receber tarefas de pessoas superiores na hierarquia da CG. Ela
ocupara a posição de chefia no Presídio de Reabilitação Feminina da Bélgica,
uma penitenciária feminina conhecida pela CG como PRFB. Mas agora, com
uma farda masculina das Forças Pacificadoras, Ming era apenas um peixe
pequeno, recebendo ordens de muita gente.
Isso, pelo menos, lhe permitia ter acesso a informações, e ela conseguia
avisar os crentes sobre invasões e investigações de surpresa.
A CG local havia planejado uma invasão às 2 horas de determinada
madrugada, mas dessa vez não seria para atacar os crentes, e sim um pequeno
contingente de muçulmanos que vivia em cavernas no extremo nordeste da
cidade, por onde o metrô trafegava antes. Ming surpreendeu-se ao ouvir falar
desse grupo, pelo fato de desconhecer que havia outros focos de resistência
contra o Carpathianismo além dos chamados judaístas e de grande parte dos
judeus ortodoxos. Em uma reunião das tropas da CG para planejar o ataque aos
dissidentes, Ming ficou sabendo que aqueles "zelotes" continuavam a ler o
Alcorão, usavam turbantes, escondiam grande parte de sua população feminina
e praticavam os Cinco Pilares do Islamismo.
Ela não vira ninguém curvando-se em direção a Meca cinco vezes por dia,
mas o Serviço de Inteligência concluiu que esse grupo ainda seguia aquele ritual
reservadamente. Também faziam donativos - uma contribuição pública com a
conseqüente divisão de recursos, muito necessários, de qualquer modo, em
razão do atual clima político.
Não se sabia ao certo se esses seguidores do islamismo - mais
predominantemente no oeste da China - ainda jejuavam durante o ramadã.
Aparentemente, todos estavam jejuando, de uma forma ou outra, desde que as
águas dos mares se transformaram em sangue. Também não havia mais
condições de ir a Meca pelo menos uma vez na vida, depois que a Comunidade
Global e o Carpathianismo arrasaram a cidade sagrada dos muçulmanos.
O pilar da fé dos muçulmanos, que tanto indignava o potentado e, por
conseqüência, os homens das Forças Pacificadoras e os Monitores de Moral da
Comunidade Global, era o primeiro e o mais importante dogma da religião
islâmica. Sua profissão de fé declarava um Deus monoteísta - "Existe um só
Deus, Alá..." - e exaltava o fundador da religião - "... e Maomé é seu profeta".
Evidentemente, aquilo representava um tapa na cara do Carpathianismo,
que também era monoteísta. Os muçulmanos não adoravam ídolos. Em sua
prática de fé, não havia imagens, mas eles também eram obrigados a adorar a
imagem de Carpathia.
- Essa escolha deles vai acabar dentro de meia hora - disse às tropas o
líder local, um homem corpulento chamado Tung. - Vamos destruir aquele
pequeno encrave com armas pesadas e preparem-se para atirar imediatamente
em qualquer pessoa que não tenha a marca. Mas desejamos e esperamos que
eles não resistam. Recebi ordens da chefia do palácio da Comunidade Global
dizendo que certa pessoa do mais alto escalão deseja usar essa gente como
exemplos vivos.
- Nós os conduziremos ao centro de aplicação da marca de lealdade, que
fica a cerca de seis quarteirões do esconderijo deles, e lá eles passarão a noite
decidindo o que farão de manhã. Assim que o sol lançar seus raios na linda
estátua de jade do Supremo Potentado Carpathia, esses infiéis se ajoelharão
perante ela, prontos para receber a marca de lealdade, ou serão executados
diante do público. Porém, eles não sabem que serão executados de qualquer
maneira, independentemente de sua decisão. A CNNCG planeja transmitir a
cena ao vivo.
Todo o pessoal da CG perto de Ming irrompeu em gritos e aplausos. Em
seguida, formaram fila para receber as armas; a de Ming era um lançador de
granadas, que ela não usaria de maneira alguma. Se aquilo significasse o fim de
sua vida, paciência.
Rayford encontrou Abdullah aquecendo-se perto da fogueira. Smitty, que
se tornara mais expressivo e sentimental ao longo dos últimos meses, levantou-
se rapidamente e abraçou Rayford.
- Parece que já estou no céu, meu amigo - ele disse.
- Sinto falta dos vôos, mas adoro todos esses ensinamentos. E a comida!
Quem diria que a mesma refeição servida três vezes ao dia me deixaria ansioso
por receber a próxima?
Rayford não entendia como Abdullah conseguia sentar-se, tão
confortavelmente, em cima das pernas cruzadas. Parecia normal e fácil, mas as
juntas de Rayford estalavam, e ele gemia quando se abaixava e sentia cãibras
enquanto permanecia sentado. Preferia sentar-se no chão, apoiado em uma das
mãos e com as pernas esticadas para o outro lado. Abdullah se divertia com
aquilo.
- Vocês, ocidentais, orgulham-se tanto de praticar exercícios, mas você
tem as juntas duras.
- Acho que você está acostumado a sentar-se em tapetes mágicos - disse
Rayford.
Abdullah riu.
- Eu gostaria que Mac estivesse aqui. Ele me inspira a pensar em coisas
como... não sei bem como se diz. Resposta na ponta da língua? É esse o nome
que ele dá?
- Acho que sim. Mac é imprevisível. Você o viu hoje?
- Claro. Ele e Albie sempre me olham de cima a baixo quando chegam
aqui e dizem que estou engordando de tanto comer maná. Eles querem que eu
passe a fazer parte de seu pequeno grupo de pilotos. Logo esse dia vai chegar,
assim espero. Por enquanto, os anciãos acham que é muito perigoso, mas meu
palpite é que você está ansioso por ir embora daqui.
- Mais do que imagina - disse Rayford. - Embora eu esteja satisfeito em
submeter-me à autoridade daqui, ainda tenho muitas perguntas a fazer.
- Eu também! Deus está protegendo de maneira sobrenatural aqueles que
entram e saem daqui de avião, apesar de todos os esforços do inimigo. Acho que
isso deveria ser suficiente para que a CG parasse de gastar balas e mísseis.
Eles acertaram alguém ou alguma coisa?
Rayford sacudiu a cabeça.
- Até agora, não. E as histórias? Você ouviu as histórias? Abdullah jogou a
cabeça para trás e contemplou as estrelas.
- Tenho ouvido, capitão. Quero fazer parte de uma. Quero que o Senhor
me proteja mais uma vez do perigo e da morte enviando um de seus visitantes
especiais. Você se lembra do vôo para cá, quando a CG estava atirando direta-
mente em nossa aeronave? Parecia que estávamos vivendo nos tempos bíblicos.
Eu me senti como Daniel na cova dos leões. Vi os mísseis chegando e sabia que
estávamos bem na mira, mas eles simplesmente passaram por nós. Capitão, o
que a CG deve pensar quando vê isso acontecer em plena luz do sol quase
todos os dias?
DEZESSEIS
Ming marchava pelas ruas em companhia de outros soldados da CG rumo
ao extremo nordeste de Zhengzhou. Havia poucos cidadãos fora de casa, mas
sabia-se que a adoração e os períodos de preleção dos muçulmanos eram
realizados a essa hora da manhã.
Tung, o líder da CG, dividiu o grupo armado de 30 soldados das Forças
Pacificadoras e enviou-os às quatro entradas do antigo metrô, que limitavam a
área ocupada pelos muçulmanos. Aparentemente, eles nunca haviam sido
incomodados após a meia-noite, porque o local estava guardado apenas por um
vigia em cada entrada, no fim das escadas. Os vigias foram dominados com
rapidez e em silêncio, e nenhum tinha a marca de lealdade para exibir à CG. Eles
foram levados para cima por dois homens da CG, que os conduziram ao centro
de aplicação da marca.
O restante dos soldados invadiu silenciosamente a reunião de cerca de
quatro dúzias de homens e mulheres. Os muçulmanos imediatamente
perceberam que a segurança havia sido dominada e que não seria possível
oferecer resistência.
Eles simplesmente permaneceram no mesmo lugar, ouvindo as palavras
de um orador do próprio grupo. Tung havia previsto essa possibilidade e instruíra
seu pessoal para aguardar em silêncio, a fim de reunir provas de traição e de
deslealdade ao Carpathianismo.
O orador tomou conhecimento rapidamente da situação e começou a
encerrar seu discurso. Mas ele não se intimidou e foi até o fim, olhando de vez
em quando para seus captores.
- Portanto - ele disse -, consideramos Deus mais que o criador de todas as
coisas. Ele é onisciente, um Deus de justiça, de amor e de perdão, todo-
poderoso. Acreditamos que ele revelou o Alcorão a nosso profeta para nos guiar
à justiça e à verdade. Nós somos a obra-prima de sua criação, mas também
somos fracos e egoístas e, às vezes, facilmente tentados por Satanás a
esquecer nosso propósito nesta vida.
Ele fez uma pausa e olhou para o pessoal da CG mais uma vez.
- Sabemos que a palavra Islã significa submissão. E todos nós que nos
submetermos a Deus e que nos arrependermos de nossos pecados ganharemos
o paraíso no final. Aqueles que não fizerem isso sofrerão no inferno.
A seguir, os muçulmanos curvaram-se em direção a Meca e começaram a
orar - todos menos três. Eles se sentaram nos fundos do recinto e, quando Tung
deu um passo à frente para exigir que a cerimônia fosse interrompida, um dos
três levantou-se, apontou para ele e levou o dedo indicador aos lábios.
- Espere - ele disse em voz baixa, mas com tanta firmeza de caráter e,
pelo que Ming pôde notar, com tanta convicção que Tung parou.
Seus comandados olharam para ele e para o homem em pé.
Os muçulmanos levantaram a cabeça e voltaram a sentar-se. Os três
homens atravessaram o recinto e caminharam em direção ao local onde o orador
havia falado.
- Esta reunião ainda não terminou - disse um deles. Ming estava perplexa.
Os três não portavam armas.
Apesar de usarem trajes semelhantes aos dos muçulmanos, não se
vestiam exatamente como eles. Usavam sandálias e mantos, sem turbantes.
Tinham barba e cabelo relativamente curtos. Não pareciam asiáticos nem
orientais. Ming não foi capaz de adivinhar a nacionalidade deles, nem pela
aparência, nem pelo sotaque do orador. Ele falava alto o suficiente para ser
ouvido, mas com tom de voz tão firme que atraiu a atenção de todos.
- Meu nome é Cristóvão. Meus companheiros são Naum e Calebe.
Estamos visitando vocês em nome do único e verdadeiro Deus de Abraão, de
Isaque e de Jacó, o Santo de Israel e Pai de nosso Senhor e Salvador Jesus, o
Messias. Não viemos para discutir religião, mas para pregar o Cristo que foi
crucificado, morto e sepultado, que ressuscitou após três dias e agora está
assentado à destra de Deus, o Pai.
De repente, Cristóvão falou com voz tão alta que muitas pessoas taparam
os ouvidos. Mesmo assim, Ming achou que eles conseguiam ouvir cada sílaba.
- Temei a Deus e dai glória a Ele, porque a hora de seu julgamento
chegou! Adorai aquele que fez o céu e a terra, o mar e as fontes de água!
Cristóvão parecia estar aguardando que suas palavras se fixassem na
mente de todos. Em seguida, prosseguiu em voz mais baixa:
- Cristo morreu por nossos pecados, de acordo com as Escrituras
Sagradas; Ele foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, de acordo com as
Escrituras Sagradas. Se pregamos que Cristo ressuscitou, como alguém entre
vós pode dizer que não existe ressurreição? - Se não existe ressurreição, então
Cristo não ressuscitou. E, se Cristo não ressuscitou, nossa pregação é vã, e a fé
em Cristo também é vã. Testemunhamos que Deus ressuscitou Cristo. Se Cristo
não ressuscitou, os homens e as mulheres continuam mortos em seus pecados.
Ming procurou ver o rosto dos muçulmanos. Ela esperava que eles se
levantassem para protestar, mas eles não fizeram nenhuma objeção, talvez por
estarem diante de seus captores ou por terem entendido que essa pregação
também desafiava o Carpathianismo. Todos pareciam hipnotizados diante da
audácia de um estranho que desconsiderava as crenças deles e pregava a sua.
Cristóvão deu um passo para trás, e Naum apresentou-se.
- Babilônia cairá - ele disse. - A grande cidade certamente cairá, porque
ela obrigou todas as nações a beberem do furor de sua prostituição. Ela
estabeleceu um sistema de falsa esperança, não apenas em termos de
religiosidade, mas também econômicos e governamentais.
- O Senhor é Deus zeloso e vingador. Ele executará vingança contra seus
adversários e reserva indignação para seus inimigos.
- O Senhor é tardio em irar-se e grande em poder. Ele terá seu caminho na
tormenta e na tempestade. As nuvens são o pó dos seus pés.
O pessoal da CG parecia apavorado. Ming olhou para Tung, cujos lábios
tremiam. Ele segurou sua arma com mais força, mas não saiu do lugar.
Naum prosseguiu:
- Deus repreende o mar e o transforma em sangue. Ele pode secar todos
os rios. Os montes tremem perante Ele, e as colinas se derretem, e a terra
queima em sua presença; sim, o mundo e todos os que nele habitam.
- Quem poderá suportar a sua indignação? Quem resistirá ao furor de sua
ira? A sua cólera será derramada como fogo, e as rochas serão demolidas por
Ele.
- O Senhor é bom, uma fortaleza no dia da angústia. O Senhor conhece os
que nele confiam. Mas com inundação transbordante acabará de vez com o lugar
que se opõe a Ele, e com trevas perseguirá os seus inimigos.
Todos os que estavam no esconderijo permaneceram imóveis, sentados
ou em pé, com os braços para baixo, encostados junto ao corpo. Parecia que
estavam recolhidos dentro de si mesmos, assustados diante do pronunciamento
de Naum. Quando ele deu um passo para trás, Calebe apresentou-se, mas, em
vez de dirigir-se aos muçulmanos, virou-se e encarou Tung.
- Se alguém adorar a besta e sua imagem e receber sua marca na testa ou
na mão, essa pessoa beberá do vinho da ira de Deus, que é derramada no cálice
de sua indignação. Aquele que receber a marca será atormentado com fogo e
enxofre na presença dos santos anjos e na presença do Cordeiro, que é Cristo, o
Messias.
- A fumaça de seu tormento subirá pelos séculos dos séculos, e não terá
descanso, nem de dia nem de noite, aquele que adorar a besta e sua imagem e
receber a marca de seu nome.
A princípio, ninguém se movimentou. Em seguida, um homem da CG,
depois outro e mais outro saíram correndo do esconderijo, subindo as escadas
de dois em dois degraus. Tung gritou com eles, chamou-os pelo nome, ameaçou-
os. Mas outros dois, depois mais três os seguiram.
Os muçulmanos continuavam imóveis. Finalmente, alguns se levantaram,
e os homens da CG olharam para Tung, sem saber o que fazer. Ele levantou sua
arma na direção dos três desconhecidos, mas, aparentemente, estava
impossibilitado de falar. Quando recobrou a voz, ele disse:
- Para o centro!
A CG começou a cercar os muçulmanos, que, com exceção de meia dúzia,
deixaram-se ser conduzidos escada acima. Tung fez um movimento com a
cabeça para dois de seus homens indicando que eles deveriam ajudá-lo a
agrupar os últimos seis. Mas, assim que os homens se aproximaram, Cristóvão
inclinou-se na direção da CG e disse:
- Ainda não é chegada a hora deles.
Ming protelou um pouco e deu um jeito para que fosse a última a sair. Ela
andaria vagarosamente atrás do grupo principal. Era evidente que Cristóvão,
Naum e Calebe estavam conversando e orando com os seis que restaram.
Cristóvão disse a Tung:
- Estes aqui comparecerão quando chegar a hora deles.
E, para total espanto de Ming, o líder da CG fez um sinal para que os
últimos dois guardas o acompanhassem e todos saíram.
Ming havia-se comovido a tal ponto que não notou se os três
desconhecidos tinham o selo dos crentes na testa. Deveriam ter, não? Ela
gostaria de saber, mas não esperava vê-los novamente.
Enquanto o grupo assustado de muçulmanos era conduzido pelas ruas
rumo ao centro de aplicação da marca de lealdade, Ming retardou seus passos.
Apesar de sua pequena estatura, ela podia vê-los a alguns quarteirões de
distância. Enormes holofotes iluminavam o centro, mas ninguém tomara
conhecimento da invasão, e havia poucos espectadores ali - apenas os homens
da CG que dominaram os quatro vigias muçulmanos. Porém, a menos que seus
olhos a tivessem enganado, Ming avistou outros três desconhecidos, de cabelos
e de barba aparados, trajando mantos, mas sem turbantes. Eles se pareciam
muito com os outros três que tinham encontrado havia pouco.
Porém, assim que a CG e os muçulmanos se aproximaram deles,
começaram a apontá-los e a conversar entre si. Eram os três de antes! Eles se
postaram no início da fila, sem fazer caso dos gritos dos funcionários da CG que
lhes diziam para afastar-se dali.
Quando os muçulmanos foram conduzidos para a fila, Ming conseguiu ver
os três mais de perto. Eles não tinham o selo dos crentes na testa! Ela não sabia
o que pensar. Seriam rebeldes, impostores ou o quê?
Tung aproximou-se deles empunhando seu rifle.
- Onde estão os outros? Vamos persegui-los e vocês serão responsáveis...
- Eles comparecerão quando chegar a hora deles - disse Cristóvão
novamente.
Por um motivo ou outro, Tung se calou.
Os muçulmanos foram instruídos a posicionar-se. Quando Tung perguntou
quantos receberiam a marca de lealdade a Carpathia, cerca da metade levantou
a mão. Os outros resmungaram e argumentaram com os homens da CG.
Tung riu.
- Não faz diferença nenhuma! Vocês vêem? Demoraram demais. Foram
descobertos só hoje cedo, depois de meses após o vencimento do prazo para
receber a marca. Vocês morrerão com os demais, quando o dia começar a
clarear.
Ele virou-se para os outros.
- E quantos de vocês vão optar pela guilhotina, como se houvesse
escolha?
O restante dos muçulmanos levantou a mão. Ming notou que nenhum
deles tinha o selo dos crentes na testa. Cristóvão dirigiu-se a eles.
- Resistam à tentação de optar pela guilhotina sem aceitar a Cristo, o
Messias. Vocês morrerão em vão.
- Morreremos por Alá! -. gritou um deles, e os outros levantaram as mãos
fechadas em sinal de rebeldia.
- Vocês morrerão da mesma forma - disse Tung.
A atenção dele foi desviada para a rua, e todos se viraram para ver os
últimos seis muçulmanos caminhando, com passos firmes, em direção ao centro.
Ming notou que Tung não esperava vê-los novamente. Quando chegaram,
examinaram o local e seguiram diretamente para a área que levava às
guilhotinas.
- Ainda bem que vocês são tão decididos - disse Tung. - Mas só abriremos
o local quando o dia clarear. Aí, então, vocês serão estrelas da TV, e o público
verá o show, ao vivo.
Cristóvão, Naum e Calebe sentaram-se diante dos indecisos, cada um
conversando com um grupo pequeno, suplicando, explicando, insistindo que
aceitassem a Cristo antes que fosse tarde demais. Finalmente, Tung resolveu
cumprir seu dever.
- Basta! - ele gritou. - Saiam daqui! Essa gente fez sua escolha há muito
tempo, e o castigo será aplicado de manhã. Fora daqui, já!
Os três não lhe deram atenção, mas Tung não se intimidou.
- Dentro de cinco minutos, vou abrir fogo contra vocês e instruir meus
homens a fazerem o mesmo.
Ming entrou em pânico. Ela não atiraria naqueles homens de Deus! Será
que poderia fingir, esconder-se, passar despercebida?
Tung aguardou alguns instantes e levantou sua arma. Ele estava a pouco
menos de dois metros da cabeça de Cristóvão quando destravou o dispositivo de
segurança e apertou o gatilho, gritando:
- Soldados das Forças Pacificadoras, atirem!
Ming posicionou-se e fingiu estar preparando seu lançador de granada.
Certamente Tung não esperava que ela colocasse um explosivo no meio do
povo, dos muçulmanos, da CG. Mas ela se deu conta de que era a única que
estava tomando uma atitude. Os demais pareciam paralisados. O rosto de Tung
estava contorcido em uma expressão de raiva, como se ele estivesse prestes a
explodir a cabeça de alguém.
Ming tentou parar, mas desequilibrou-se e tropeçou no pé de um homem a
seu lado, quase caindo em cima do que estava ao seu lado. Ela temia ter se
evidenciado demais; era a única que não estava sob o poder dos homens santos.
Mas Cristóvão dirigiu-se a ela.
- Não temas, querida irmã.
Pronto! Ela havia sido descoberta! Agora todos saberiam que ela não era
um homem!
- Deus está contigo - disse Cristóvão. - Ninguém pode nos ouvir e ninguém
se lembrará do que aconteceu aqui. Eles só se lembrarão de que a ofensa
cometida contra os porta-vozes de Deus foi em vão. Sê corajosa e anima-te. Teu
Pai celestial cuida de ti, e não verás a morte antes que seu Filho retorne mais
uma vez.
Ming sentiu-se resplandecer da cabeça aos pés. Uma onda de calor
passou por seu corpo dando-lhe ânimo, força e coragem. Ela estava curiosa. Se
Cristóvão conhecia os planos de Deus, será que ele poderia contar-lhe mais
alguma coisa? Ming não conseguia abrir a boca, apesar de ter muitas perguntas
a fazer.
Cristóvão respondeu, mesmo sem ter sido perguntado.
- Tua mãe também não verá a morte antes do glorioso aparecimento do
Rei dos reis. Mas tu te separarás dela brevemente. Retornarás a teus amigos, e
nem todos permanecerão aqui na terra até o fim.
Ming queria perguntar quem, mas continuava impossibilitada de falar. Seus
braços e pernas estavam pesados e imóveis. Ela só conseguia ficar olhando para
Cristóvão. Parecia que ela estava sorrindo. Na verdade, todo o seu corpo sorria.
Cristóvão levantou-se, e Naum e Calebe aproximaram-se dele. Ela notou
que eles foram ficando cada vez maiores até se elevarem acima de todos os que
estavam ali. Cristóvão estendeu a mão aberta para Ming, mas ela não conseguiu
pegá-la e temeu que todo o seu corpo fosse envolvido por aquela mão.
- "Ora" - ele disse -, "o Deus da paz, que tornou a trazer dentre os mortos a
Jesus nosso Senhor, o grande Pastor das ovelhas, pelo sangue da eterna
aliança, vos aperfeiçoe em todo bem, para cumprirdes a sua vontade, operando
em vós o que é agradável diante dele, por Jesus Cristo, a quem seja a glória
para todo o sempre" [Hebreus 13.20].
Os três desapareceram e, de repente, o dia amanheceu. O sol estava
brilhante e quente. Tung e seus homens, com semblantes sérios, agiam como se
soubessem que estavam sendo filmados. Eles atravessaram a aglomeração de
curiosos e de muçulmanos.
Todas as vítimas da invasão estavam na fila da guilhotina. Para surpresa e
grande alegria de Ming, pelo menos 25 estampavam o selo dos crentes na testa.
No rosto de cada um havia uma expressão de certeza e uma paz tão grande que
todos disseram que aceitariam as conseqüências de sua decisão.
Somente quase seis meses depois foi que Chang começou a sentir que a
pressão diminuíra no palácio, pelo menos um pouco. Ele tentava alguma coisa
nova todos os dias, bisbilhotando aqui e ali, verificando o disco de memória que
David Hassid implantara ocultamente no sistema. Tudo o que acontecera no
palácio desde que Chang começou a trabalhar disfarçado encontrava-se nos
registros do computador. Ele não ficava mais ouvindo nenhuma conversa ao
vivo, mas podia verificar o calendário em dias que ocorreram eventos específicos
e, então, buscar o que havia ficado gravado pela escuta clandestina e saber o
que se passara atrás das portas.
Finalmente, sua irmã havia fugido da China. Sua mãe insistira para que
Ming retornasse aos Estados Unidos Norte-americanos com seu jovem amigo.
Ela preferia continuar na China. Ming disse a Chang que não contou à mãe
a promessa de Cristóvão de que nenhuma delas veria a morte antes do Glorioso
Aparecimento, mas "a mamãe parece estar vivendo como se quisesse que isso
acontecesse - chegar ao fim".
Ming contou a Chang como tinha sido maravilhoso subir a bordo com Ree,
voar o dia inteiro, passar com facilidade pelos bloqueios da CG e chegar a San
Diego. Finalmente, ela se livrou da farda masculina das Forças Pacificadoras da
CG e deixou seus cabelos crescerem... voltou a ser mulher.
- Por causa de Ree? - Chang lhe perguntou falando em um telefone
seguro.
- Por minha causa! - ela respondeu. - Bem, talvez um pouco por causa
dele.
- Como vocês estão indo?
- Não é da sua conta.
- Claro que é.
- Posso dizer que estamos iniciando uma espécie de relacionamento - ela
disse -, mas é difícil concentrar-se nisso, porque ele viaja quase que o tempo
todo. O pessoal daqui brinca comigo, até o capitão Steele. Mas Ree e eu não
estamos namorando.
- Ele ainda não beijou você?
- Eu não disse isso.
- Isso está me parecendo namoro.
- Foi um beijo de despedida antes da última viagem dele e um beijo
quando ele voltou. O beijo foi dado na frente do pessoal, portanto não foi nada
romântico.
Chang quis saber como Rayford estava se sentindo depois de ter-se
mudado mais uma vez.
- Tem sido difícil para ele, Chang. Ele está emocionado por voltar a viver
com a família, é claro, e você deveria vê-lo brincando com o neto! Mas ele ainda
se sente isolado do restante do Comando Tribulação, mesmo depois que
Sebastian instalou equipamentos aqui que permitem a ele, e a todos nós,
continuar trabalhando como antes. Mas é deprimente viver debaixo da terra. E
sei que ele sente falta das muitas vantagens que tinha em Petra.
Para Chang, a única pessoa que mais se beneficiava com o que havia em
Petra era Abdullah Smith. Ele voltara a voar e fazia viagens de ida e volta ao
local, muitas delas em companhia de seus velhos amigos Mac e Albie. Mas
preferiu, e eles concordaram, continuar a morar em Petra.
Ele se tornou especialista em informática e, freqüentemente, divertia o
restante do Comando Tribulação com as histórias de suas últimas travessuras,
muitas ocorridas ali mesmo em Petra. Ele havia acabado de enviar um longo
relatório a Rayford, com cópia para os companheiros. Escreveu em inglês para
que todos pudessem entender, mas ainda estava aprendendo o idioma. O
relatório dizia o seguinte:
Ontem de tarde, depois do meio-dia, tivemos alguns momentos especiais
aqui quando o Dr. Ben-Judá nos ensinou a viver no Espírito. Esse Espírito é o
Espírito Santo, que eu conhecia das aulas anteriores dele, mas não conhecia
muito bem.
Capitão Steele, você deve se lembrar de que, pouco antes de você partir,
estava havendo alguns problemas aqui. Nada muito importante, mas as pessoas
estavam ficando nervosas uma com a outra e reclamando aos anciãos sobre isto
e sobre aquilo. Você sabe quem resolveu tudo e fez o povo voltar a viver em
paz? Não, não foi o Dr. Ben-Judá. Foi Chaim. Sim, é verdade. Ele se tornou um
líder sábio e muito queridinho por todos daqui. Meu corretor ortográfico sublinhou
a palavra queridinho em vermelho, mas é isso que ele é, com certeza.
Hoje, o Dr. Ben-Judá falou a respeito de Chaim, que muitas pessoas aqui
ainda gostam de chamar de Miquéias. A passagem bíblica que ele escolheu foi
Efésios 5.18-21. Ela fala que devemos nos encher do Espírito, ter um cântico no
coração (gosto muito disso), dar graças por tudo e nos sujeitarmos uns aos
outros. Ele disse que essas são as características de Chaim, e, pela reação das
pessoas, acho que eles concordaram com muito entusiasmo.
Ele também se referiu a Gálatas 5.22-23, que relaciona o fruto do Espírito.
Sei que você conhece esse texto, capitão Steele, mas, como minhas mensagens
a você também vão para meu diário pessoal, quero mencionar suas partes, uma
a uma: amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade,
mansidão, domínio próprio.
Não sei quanto a você, mas muitas dessas coisas não faziam parte da
minha natureza, da minha cultura, da minha educação. Mas elas fazem parte da
personalidade de Chaim, transformando-o no grande líder daqui.
Mas a palestra foi ótima, capitão Steele. Fiz muitas anotações. O Dr. Ben-
Judá disse que, se formos capazes de aprender a andar no Espírito, será mais
fácil atravessar os dois anos e meio que temos pela frente. Ele disse que, além
das nove características que devemos ter, e do coração alegre, agradecido e
submisso, só vamos saber que temos o Espírito quando recebermos o poder de
falar de Cristo a outras pessoas. Ele extraiu esse ensinamento de Atos 1.8,
quando Jesus disse aos seus discípulos que eles teriam poder depois que o
Espírito Santo descesse sobre eles e que seriam suas testemunhas até os
confins da terra.
Acredite ou não, temos de ser testemunhas até mesmo aqui. Ainda
existem alguns entre nós que não aceitaram Cristo. O problema agora é que
existem boatos de operadores de milagres no Neguev, que fica perto daqui.
Muitas pessoas contaram que ficaram sabendo disso pelos amigos de fora.
Algumas disseram que leram uma reportagem na revista A Verdade, do Sr.
Williams. Sei que elas podem ter lido, porque está escrito na revista, mas ele
deixou muito claro que essa gente não passa de impostores, charlatães. Mesmo
que consigam fazer algumas mágicas, foram contratados por Carpathia e não
merecem confiança.
Mas você pode acreditar? Há grupos aqui que planejam sair para ouvir
essa gente! Eu devo ter o Espírito, capitão Steele, porque eu - e você sabe que
sou muito tímido - estou pregando contra isso, pedindo ao povo que não saia
daqui.
Você já ouviu falar que o chefe do Carpathianismo, aquele que
conhecemos como falso profeta, está desafiando o Dr. Ben-Judá para um debate
na TV? Não posso acreditar que ele seja tão idiota! Será que ele não se lembra
de que o Dr. Ben-Judá atraiu a atenção do mundo quando falou pela primeira vez
na TV que Jesus era o Messias? Será que ele não sabe por que o Dr. Ben-Judá
tem tantos seguidores?
Nenhuma pessoa que saiba raciocinar permitiria que Leon Fortunato
entrasse em Petra, é claro, e nenhum de nós aconselharia o Dr. Ben-Judá a ir a
algum lugar aprovado pela Comunidade Global. Se isso acontecer, Tsion deve
ser filmado aqui, e Leon quem sabe onde? Francamente, espero que a CG seja
idiota o suficiente para levar essa história adiante e que eles tenham a coragem
de transmitir ao vivo, sem censura.
Eu continuo emocionado por poder servir a Deus sob sua divina proteção.
E, embora isso aconteça quase todas as vezes que chego ou saio daqui, nunca
me canso de ver a CG ameaçar, advertir e até mesmo atirar para cima tentando
nos atingir. Eles perdem seus mísseis e balas e não nos acertam nem à queima-
roupa. Muitos deles podem ter mudado de idéia sobre Deus e sobre Nicolae
Carpathia, só que agora é tarde demais.
Rayford sempre gostava de receber notícias de Smitty. Havia um ar de
juventude e de inocência nele que não tinha nada a ver com sua idade. Smitty
tinha 30 e poucos anos, mas Rayford o amava como a um filho.
Ele estava desligando seu computador, quando Chloe bateu na porta. Ela
estava sozinha.
- Você tem um minuto? - ela perguntou.
- Para você? Está brincando? Onde estão seu marido e seu filho?
- Fazendo o que Kenny mais gosta.
- Lutando no chão - disse Rayford.
- Exatamente. Vou lhe contar uma coisa, papai. Desde antes de Kenny
nascer, estou tentando descobrir o que significa lidar com uma criança de dois
anos. Dizem que é uma idade muito difícil.
- Não deve ser tão complicada assim, é? Ele vai ficar um pouco
indisciplinado por ter de brincar o tempo todo dentro de casa.
- Nós vamos superar isso. A brincadeira de luta com o pai ameniza um
pouco a agitação dele. Kenny é um menino, é assim mesmo. Mas, espere aí, vim
até aqui para termos uma conversa profissional.
- Sério?
- Preciso de um favor. Você está me devendo alguma coisa?
- Vamos fazer de conta que lhe devo muitas coisas. Você vai me dar uma
tarefa. Na cooperativa, acho.
- Ah, sim. Dentro de três meses, vai haver uma de nossas maiores trocas
de mercadorias, mas tem de ser feita por via aérea, e precisamos de uma
tripulação extra. Eu gostaria que você tomasse conta do lado ocidental. Mac vai
cuidar do lado oriental.
- É tão grande assim? Sou todo ouvidos.
- Estou trabalhando nisso, pechinchando daqui e dali, mas as duas partes
têm estoque demais. Eles não necessitam de tudo o que têm, e estão prontos
para fazer uma permuta. Você sabia que a água se tornou tão valiosa quanto o
trigo?
- Claro.
- Nossos amigos argentinos estão dispostos a provar isso. Conseguimos
um contingente, dirigido por um tal de Luís Arturo, em Gobernador Gregores, no
rio Chico. Eles colheram milhares de alqueires de trigo, mas estão preocupados
com o pouco tempo que nos resta e com o tamanho da operação. E precisam
muito de água. O rio Chico está cada vez mais poluído, e eles desconfiam que a
CG está por trás disso.
- Eles têm trigo e precisam de água. Quem tem água?
- O lugar mais improvável do mundo. Bem, talvez não seja tão improvável
quanto o meio do deserto, mas não é um local onde a gente imagina encontrar
água engarrafada. É, provavelmente, a maior igreja clandestina fora da América.
O grupo de Bihari, em Rihand Dam.
- Você não está dizendo que...
- Estou.
- Índia?
- Exatamente. Eles têm um volume de água igual à quantidade de trigo dos
argentinos e estão dispostos a permutar.
- Você vai precisar mais do que uma tripulação extra, querida.
- Como assim? Precisamos de aviões grandes. Albie conseguiu um na
Turquia, veja só, e está fazendo uma adaptação na parte traseira da aeronave
para acomodar o carregamento de água.
- Deve funcionar também para o trigo.
- O problema, papai, é que não podemos esperar. Temos de fazer isso
quase que simultaneamente. O trigo vai ter de ser enviado à Índia enquanto a
água estiver a caminho. Albie e Mac vão pegar Abdullah e trazer Bihari com eles.
Eu gostaria que você escolhesse outras três pessoas dos Estados...
- Bem, Buck e George...
- Não estou incluindo Buck desta vez, se você não se importar. Não me
olhe desse jeito. É apenas uma intuição.
- Trata-se de uma missão de grande perigo? Obrigado por me convidar!
- De nada. Eu só acho que Kenny precisa do pai neste momento, e
francamente... talvez eu esteja sendo egoísta, prejudicando alguém, qualquer
coisa... mas acho que ele não tem tempo para afastar-se de A Verdade.
Rayford recostou-se na cadeira e olhou para o teto.
- George e Ree, se você puder dispor deles.
- Vamos ter de encontrar tempo para cuidar dos roteiros deles, claro.
- Antes de tudo, eu conversaria com Whalum. E, se ele conseguir um avião
tão grande assim, vai ter de trazê-lo até aqui para nos pegar e atuar como nosso
quarto piloto.
- Gostei da idéia - disse Chloe. - Isso vai tirar Leah das minhas costas.
- Ela ainda quer uma carona para Petra?
- Sim, o que não é tão mau assim. É que ainda não tivemos tempo de
resolver o caso, e acho que ela está cuidando do assunto pessoalmente.
- Que surpresa, não?
- Bem, nós dois sabemos o que ela é capaz de fazer, e eu gostaria de
obter a permissão de Tsion antes de mandá-la para lá. Ela pode começar a
querer aparecer, ou melhor, fazer sombra para ele.
Quando chegou o momento de pôr em prática o projeto, Lionel Whalum
pôs-se a caminho de San Diego sem Leah, que não ficou nem um pouco feliz.
DEZESSETE
- Se os seus mágicos podem realizar todos esses truques, Leon, por que
eles não fazem com que todo o sangue dos mares volte a ser água salgada?
Chang escutava a conversa por meio de fones de ouvido.
- Excelência, isso seria exigir demais deles. O senhor deve admitir que
eles têm feito maravilhas em prol da Comunidade Global.
- O número das maravilhas que eles fazem é igual ao número de maldades
praticadas pelos judaístas, e esse é o único placar que conta!
- Divindade, não quero contrariá-lo, mas o senhor está ciente de que os
discípulos Carpathianos do mundo inteiro têm ressuscitado mortos, não é
verdade?
- Eu me ressuscitei, Leon. Esses truquezinhos de levantar corpos
malcheirosos dos túmulos, só para impressionar o povo e emocionar os
parentes, não se comparam com os dos judaístas, certo?
- Transformar bastões de madeira em serpentes? Acho impressionante.
Transformar a água em sangue e vice-versa, depois transformar água em vinho?
Pensei que o senhor gostasse desses truques.
- Quero pessoas convertidas, homem! Quero mentes modificadas! Quando
vai ser o seu debate com Ben-Judá na TV?
- Na próxima semana.
- E você está preparado?
- Mais do que nunca, Majestade.
- Esse homem é muito esperto, Leon.
- Mais do que o senhor, meu Rei Ressurreto?
- É claro que não. Mas você precisa ser habilidoso. Precisa levar a melhor!
E, enquanto estiver fazendo isso, quero que diga àqueles covardes de Petra que
estamos planejando uma tarde de milagres naquele mesmo dia, bem perto dali.
- Senhor, eu gostaria de testar a área antes.
- Testar a área? Testar a área?
- Perdoe-me, Excelência, mas o lugar que o senhor me designou como
palco, para produzir o espetáculo, fica muito perto do local onde perdemos
nossas armas e tropas terrestres, e não fomos capazes de abater as aeronaves
deles. E tem mais, meu senhor: atiramos duas bombas e um...
- Tudo bem, eu sei o que aconteceu lá, Leon! Quem não sabe?! Pode
testar o lugar, mas quero que essa gente goste dele. Quero vê-las saindo pela
Siq [via principal de entrada e saída de Petra] e reunindo-se para assistir ao
nosso evento, só para variar um pouco. E, quando elas virem o que minha
criatura pode fazer, começaremos a presenciar mudanças em massa, de um
campo para o outro. Você sabe quem eu quero para esse show, não?
- O melhor? Quero dizer, um de seus...
- Exatamente. Nosso objetivo é transformar Petra em uma cidade
fantasma!
- Oh, senhor, eu...
- Desde quando você passou a ser pessimista, Leon? Nós 0 chamamos de
Reverendíssimo Pai do Carpathianismo, e eu tenho me apresentado como um
deus vivo, ressurreto, com poderes recebidos do alto. Os seus poderes não
passam de artifícios de vendedor, Leon. Lembre ao povo o que o potentado
deles tem a oferecer e logo todos estarão fazendo fila para ganhar. E temos algo
especial para eles, você sabe.
- Algo especial, senhor?
- Sim! Estamos preparando algo especial! Somente esta semana, qualquer
pessoa de Petra poderá receber a marca de lealdade sem ser punida por não ter
se apresentado dentro do prazo, que expirou há muito tempo. Pense na
influência que elas poderão exercer sobre outros que estiverem nessa situação.
- O fator medo tem funcionado razoavelmente bem, potentado.
- Bem, temos de admitir que a época da campanha do Sr. Simpatia já
passou. Acabou o tempo de preocupações com minha imagem. Se até agora o
povo não sabe quem sou e do que sou capaz, é tarde demais para eles; mas, se
dermos um golpe do outro lado, se tivermos sucesso sobre a maldição do
sangue que tomou conta dos mares, isso só poderá ajudar. E quero que você se
saia bem perante Ben-Judá, Leon. Você é culto e piedoso e está pedindo que
eles adorem um deus vivo, um deus que respira, que está aqui e que não é
mudo. Não é necessário ter fé para acreditar na divindade de alguém que é visto
na TV todos os dias. A escolha deveria ser fácil, conveniente, lógica.
- Claro, Majestade, e eu o retratarei dessa maneira.
Lionel Whalum era um homem negro, de estrutura compacta. Tinha pouco
menos de l,80m de altura e pesava cerca de 90 quilos. Usava óculos e tinha
cabelos levemente grisalhos, e era um piloto habilitado a manejar aviões de
qualquer tamanho. Ele deixou uma carga de madeira na pista clandestina de San
Diego e, dentro de uma hora, já estava voando novamente, com George e Ree
no banco traseiro e Rayford no banco do co-piloto.
- Chloe me falou muito sobre você - disse Rayford -, mas apenas
profissionalmente. Acho que já conheço um pouco de sua história, mas como
você se converteu?
- Eu adoro quando me fazem essa pergunta - disse Whalum. - Um dos
grandes motivos para eu ter sido deixado para trás teve muito a ver com o modo
como eu vivia.
Sei que não há nada errado em ter sucesso e em ganhar dinheiro, mas, no
meu caso, e estou falando exclusivamente de mim, isso me deixou cego e surdo
a tudo e a todos. Eu não olhava para os lados. Não me interprete mal. Eu era um
bom sujeito. Minha esposa também era uma boa pessoa. Ainda é. Vivíamos
dentro de um círculo fechado, tínhamos coisas bonitas, uma casa linda. A vida
era boa.
- Costumávamos freqüentar igreja. Cresci na igreja, mas, para ser franco,
ela me deixava um pouco constrangido.
Eu achava que minha mãe e minhas tias eram um pouco sentimentais e
exageradas. E, quando chegou a época de entender qual era o significado da
igreja, eu já tinha idade suficiente para não querer que os outros soubessem que
eu era freqüentador assíduo. Depois que Felicia e eu nos casamos, íamos à
igreja de Chicago apenas de vez em quando. E, quando íamos, a coisa era muito
superficial, se é que você entende o que quero dizer. Tudo muito certinho,
discreto, frio. Se minha família visitasse aquela igreja, diria que ela estava morta
e que Jesus nunca estivera ali. Eu diria que ela era requintada e respeitável.
- A igreja que Felicia e eu passamos a freqüentar no bairro de classe
média em que moramos era do mesmo jeito. Encaixava-se perfeitamente em
nosso estilo de vida. Nós nos vestíamos para os cultos do mesmo modo que
para o trabalho ou para eventos sociais. Víamos ali pessoas que conhecíamos e
de quem gostávamos. Nunca houve um pastor que tivesse gritado nem nos
ofendido enquanto falava no púlpito. Ninguém nos chamava de pecadores nem
dizia que precisávamos ter uma vida mais regrada.
- Por outro lado, nossos filhos seguiram em outra direção. Tínhamos uma
garota, um menino e uma menina mais nova. Eles foram para a faculdade e
todos passaram a freqüentar uma igreja mais ou menos igual à dos meus tempos
de infância. Eles nos escreviam. Imploravam para que fôssemos salvos.
Perguntavam por que nós não os levávamos à igreja quando eles eram crianças.
Tenho de admitir que aquilo me deixava atordoado.
- Você pode querer saber se aquilo me tocou, se mudou minha vida. De
jeito nenhum. Um dia, um vizinho nosso nos convidou para um estudo bíblico. Se
ele não fosse quem era, jamais teríamos aceitado. Mas ele era um cara legal, o
tipo de homem que conseguiu fazer grande sucesso no ramo imobiliário. A
reunião em sua casa era informal, como se estivéssemos num campo de golfe.
Sem pressões. Sem discussões. Eles apenas liam a Bíblia e comentavam o
texto. Os estudos bíblicos eram feitos, alternadamente, em seis lares diferentes.
Incluímos nossa casa na lista, é claro, e nunca faltamos às reuniões.
- Eu ficava um pouco confuso nessas reuniões. Depois de algum tempo,
eles começaram a incluir orações nos estudos bíblicos. Ninguém era convidado
nem forçado a orar, portanto Felicia e eu não orávamos. Mas as pessoas
começaram a fazer pedidos de oração, por suas famílias ou por si mesmas, por
enfermidades e até mesmo por negócios. De vez em quando, eu mencionava um
ou outro pedido de oração, mas continuava em meu propósito de não orar.
- Um dia, o sujeito que nos convidou pela primeira vez perguntou se
poderia conversar conosco após a reunião. Quando ficamos a sós, ele se abriu
conosco. A esposa dele estava presente, mas não abriu a boca. Ele quis saber
como era a nossa vida espiritual. Achei que ele estivesse interessado em saber
que igreja nós freqüentávamos, e eu lhe disse qual era. Mas não se tratava
disso. Ele nos explicou o que significava nascer de novo. Eu já tinha ouvido falar
disso. Já sabia. Aquilo me soava como um pouco de exagero, só isso. Eu disse a
ele que agradecia seu interesse e pedi que orasse por nós. Sabia, por
experiência própria, que um pedido de oração era o que bastava. Mas ele achou
que eu queria uma oração naquele momento e orou por nós.
- Ele não foi insistente. Apenas um pouco indiscreto. Eu o perdoei. Entendi
os sentimentos dele. Quando a gente se sente tão forte e tão emocionado a
respeito de alguma coisa, é normal querer repartir isso com os amigos e vizinhos.
Foi o que eu pensei, e fim de papo. Nada tão importante.
- Dois dias depois, milhões de pessoas do mundo inteiro desapareceram.
Você está preparado para o que eu vou dizer? Inclusive todas as pessoas
daquele estudo bíblico, menos nós. E nossos três filhos também desapareceram.
- Se fomos salvos? Fomos salvos em, digamos, dez minutos.
Abdullah estava tão eufórico a respeito da operação que realizaria com
seus velhos amigos que se aprontou vários dias antes para a viagem. Ele não
sabia até que ponto seu trabalho como piloto seria necessário nessa missão,
mas não se importava com isso. Bastava estar na companhia de Mac e Albie.
Para ele, o fato de a Cooperativa Internacional de Mercadorias ter conseguido
uma permuta tão grande, apesar da crescente perseguição aos crentes no
mundo inteiro, era apenas mais uma prova da soberania de Deus.
Quando soube que Rayford e os outros três de San Diego já haviam
levantado vôo, ele mal conseguiu conter-se. Eles voariam direto à Argentina para
pegar uma carga de trigo, o que significava que Mac e Albie em breve estariam a
caminho para apanhá-lo. Os dois estavam sendo constantemente observados e
seguidos, portanto o plano era levar alguns suprimentos a Petra e passar a noite
ali, só partindo para a Índia no dia seguinte. E, se tudo funcionasse de acordo
com o plano, os três, mais o quarto componente indiano, Bihari, estariam voando
para a Argentina ao mesmo tempo em que os americanos estivessem vindo de lá
xxpara a Índia.
Abdullah sentia-se entusiasmado desde que passara a morar em Petra.
Ele cantava mais alto, acompanhando a imensa congregação, e tentava ouvir
com atenção quando Tsion e Chaim falavam da Bíblia. Aquele era o dia em que
o centro de tecnologia de informática e TV da cidade emitiria um sinal de Tsion à
sede da Comunidade Global no palácio de Nova Babilônia. Um enorme monitor
em Petra receberia a transmissão da CG exibindo a imagem de Leon Fortunato.
Abdullah acreditava que Leon não tinha idéia da dificuldade que teria ao
enfrentar um homem tão erudito quanto Tsion - especialmente considerando-se
que Tsion era um homem honrado e íntegro.
No início da tarde, Abdullah escalou as montanhas de pedra e avistou, de
um dos lugares altos, a pista aérea que havia sido construída apenas para pouso
e decolagem das aeronaves em Petra. Quando Mac e Albie chegassem, Abdul-
lah levaria um helicóptero até a extremidade da pista e os transportaria para
dentro da cidade.
Enquanto descia lentamente procurando alguma coisa para distrair-se até
a hora do grande debate, ele foi surpreendido ao ver mais uma concentração de
milhares de pessoas. Chaim e Tsion tentavam acalmá-las. Estariam ali para ver a
transmissão ou haveria algum problema? Quando se aproximou, percebeu que
várias centenas não tinham o selo dos crentes na testa. Acotovelando-se,
tentavam ocupar os lugares da frente para assistir ao debate, porque, conforme
uma delas gritou, assim que terminasse, sairiam de Petra durante algumas horas
para ouvir outro orador.
- Ele estará aqui perto, e muita gente acredita que ele é o Cristo. Jesus
voltou à terra para realizar milagres e explicar o futuro!
- Por favor! - Chaim gritava. - Vocês não podem fazer isso! Não sabem que
estão sendo enganados? Quem espalhou essa notícia foi o rei maligno deste
mundo e seu falso profeta. Permaneçam aqui para sua segurança. Confiem no
Senhor!
- Você ocupa o segundo lugar no comando! - interpelou alguém. - Se o
líder não pedir para ficarmos, por que não poderemos ir?
- Eu estou lhes pedindo - Tsion começou a dizer, mas Chaim o
interrompeu.
- Por que vocês perturbam a mente deste homem de Deus no dia em que
ele foi ungido e chamado a debater com o falso profeta? Vocês estão sendo
usados pelo demônio para provocar destruição aqui.
Para grande tristeza de Abdullah, ele notou que alguns dissidentes
insurgiram-se contra Tsion e agruparam-se ao redor dele e de Chaim, dizendo:
- Vocês se acham importantes demais. Por que se colocam acima da
congregação?
Tsion cobriu lentamente o rosto com as mãos, ajoelhou-se e abaixou o
corpo em direção ao chão. Em seguida, levantou a cabeça e disse:
- O Senhor conhece quem pertence a Ele e quem é santo. Por que vocês
todos se reuniram aqui para falar contra o Senhor? E por que murmuram contra
Chaim?
Tsion chamou dois rebeldes e dirigiu-se a eles:
- Por favor, voltem ao juízo normal e ajudem-me a lutar contra essa
insensatez!
Mas eles disseram:
- Não vamos ficar a seu lado. Por que você nos tirou de nossa terra, de
nossos lares, onde havia abundância, e nos trouxe para este lugar rochoso, onde
só temos pão para comer e água para beber, e por que se considera príncipe
sobre nós?
Abdullah nunca tinha visto Tsion tão abalado. Tsion clamou a Deus:
- Senhor, perdoa-lhes, porque eles não sabem o que fazem. Eu nunca me
considerei superior a eles nem exigi nada, a não ser que eles te respeitassem.
Depois, prosseguiu:
- Deus está dizendo a mim e a Chaim que nos afastemos de vocês para
nos livrarmos da ira dele.
Muitos deles se prostraram e clamaram:
- Ó Deus, Deus de todos os povos, devemos morrer por causa do pecado
de alguns? Imputarás essa culpa sobre nós?
Tsion dirigiu-se a toda a congregação:
- Se vocês não concordam com esses homens perversos, melhor se
afastarem deles, para que não sejam consumidos pelos seus pecados. De agora
em diante, quero que todos saibam que o Senhor me enviou para realizar todas
essas obras; eu não as realizo por interesse próprio. Se esses homens fizerem o
que bem entenderem e Deus os castigar com a morte, então todos entenderão
que eles provocaram o Senhor.
Assim que terminou de falar, a terra sob os pés dos rebeldes abriu-se e os
engoliu. Eles caíram no buraco gritando e gemendo, enquanto a terra os cobria,
e todos pereceram.
Milhares de pessoas ao redor dali fugiram ao ouvir os clamores vindos de
baixo da terra.
- Vamos correr! - elas diziam. - Vamos correr, se não a terra também vai
nos engolir!
Abdullah, porém, ouviu muita gente resmungando e dizendo:
- Tsion e Miquéias mataram essas pessoas. Vamos continuar com nosso
plano de sair deste lugar para ouvir o homem que diz ser Cristo.
Abdullah tentou aproximar-se de Tsion e Chaim para consolá-los, mas
ouviu Tsion dizer:
- Senhor, nós oramos pela redenção dos que ficaram. Poupa-os de tua ira
para que possamos convencê-los de tuas verdades.
Nesse meio tempo, Chang ficou mais ousado. Além de entrar
clandestinamente no sistema da CG para monitorar o grande debate entre Tsion
e Leon, ele também estava preparado para passar por cima do controle de Nova
Babilônia. Chang se cansara tanto de ouvir as propagandas dos mensageiros
especiais de Leon e de suas "Feiras de Milagres" que, quando viu que Tsion
estava falando ao povo de Petra pouco antes do início do debate, ele deu um
jeito de levá-lo ao ar antes da hora.
Tsion estava se dirigindo a várias centenas de pessoas dizendo que
deveriam abandonar seus planos de sair de Petra e ir ao deserto para ouvir o
charlatão que se dizia ser o Cristo. Assim que pôs Tsion no ar, Chang mudou a
escuta clandestina para o escritório de Carpathia, a fim de ouvir sua reação
indignada.
Tsion estava dizendo:
- Eu peço a todos que orem durante a transmissão, para que o Senhor me
dê sua sabedoria e suas palavras. E quanto aos que ainda planejam sair deste
lugar seguro, quero renovar meu apelo para que não façam isso e que não se
exponham ficando vulneráveis diante do demônio. Deixem que a Comunidade
Global, o anticristo e seu falso profeta façam afirmações ridículas sobre os falsos
operadores de milagres. Não caiam na armadilha deles.
Carpathia deu um grito:
- O que está havendo? Queremos que essa gente compareça, ouça e seja
persuadida! Tirem esse homem do ar!
Tsion prosseguia:
- O Messias advertiu seus discípulos sobre isso. Ele lhes disse: "Levantar-
se-ão muitos falsos profetas e enganarão a muitos. E, por se multiplicar a
iniqüidade, o amor se esfriará de quase todos. Aquele, porém, que perseverar
até o fim, esse será salvo. E será pregado este evangelho do reino por todo o
mundo, para testemunho a todas as nações" [Mateus 24.11-14]. "Então se
alguém vos disser: Eis aqui o Cristo! ou: Ei-lo ali! não acrediteis; porque surgirão
falsos cristos e falsos profetas operando grandes sinais e prodígios para
enganar, se possível, os próprios eleitos" [vv. 23-24]. "Portanto, se vos disserem:
Eis que ele está no deserto!, não saiais: Ou: Ei-lo no interior da casa!, não
acrediteis" [v. 26].
Em pé, no meio de mais ou menos um milhão de pessoas em Petra,
Abdullah emocionou-se ao ver que Tsion já estava no ar falando contra os
milhares de falsos cristos que surgiam em todos os lugares. Eles diziam ter
recebido poderes de Carpathia e do líder do Carpathianismo, o reverendo
Fortunato. Pregavam heresias e, mesmo assim, multidões eram arrebanhadas
por eles.
A voz de uma mulher de Nova Babilônia, do centro de controle da CNNCG,
ressoou nos muros de pedra.
- Dr. Ben-Judá, por favor, aguarde um momento enquanto transferimos a
transmissão para nossos estúdios, onde o reverendíssimo Pai Fortunato o
espera para dar início a um debate respeitoso.
- Obrigado, senhora - disse Tsion -, mas, em vez de aguardar enquanto
vocês tomam as providências para levar ao ar o debate, quero dizer que não
reconheço o Sr. Fortunato como reverendo e muito menos como reverendíssimo
ou pai.
Fortunato aparecia na metade da tela paramentado com manto e chapéu,
ambos de veludo, e franjas como ornamento. Ele estava atrás de um requintado
púlpito de madeira entalhada, mas ficou claro que estava sentado. Seu sorriso
parecia totalmente sincero.
- Saudações, Dr. Ben-Judá, meu estimado oponente. Ouvi suas palavras e
lamento o senhor ter preferido, como sempre, iniciar um debate, supostamente
cordial, com um ataque muito agressivo. Não vou rebaixar-me e gostaria apenas
de dar-lhe as boas-vindas e desejar-lhe felicidades.
Ele fez uma pausa, e Tsion não esboçou reação alguma. Depois de alguns
segundos de silêncio, Tsion disse:
- Chegou a minha vez de falar? Devo iniciar apresentando provas de que
Jesus é o Cristo, o Messias, o Filho do Deus vivo...
- Não! - Era a voz da mediadora, a mulher da central de transmissões. -
Aquilo foi apenas uma saudação, e, se o senhor preferir desconsiderá-la,
poderemos começar.
- Posso, então, fazer uma pergunta - disse Tsion -, já que estamos sendo
tão formais? Existe alguma regra dizendo que é permitido ao mediador emitir
uma opinião pessoal a respeito das declarações de um dos debatedores, como,
por exemplo, concluir que minha desconsideração à saudação de um inimigo foi
um ato de grosseria?
- Podemos iniciar, senhor? - ela perguntou. - O reverendo Fortunato tem a
palavra.
- Minha premissa é simples - Leon começou a dizer, olhando diretamente
para a lente da câmera.
Abdullah estava atônito. Ele sempre considerou Fortunato uma espécie de
fanfarrão. Mas o homem cuja imagem aparecia na tela, apesar de não enganar
Abdullah, parecia tão bondoso e amoroso que aquilo lhe dava credibilidade entre
os menos avisados.
- Eu proclamo Nicolae Carpathia, que ressuscitou dos mortos, como o
único e verdadeiro deus, digno de adoração e salvador da humanidade -
prosseguiu Leon. - Foi ele quem se levantou por ocasião da maior calamidade da
história do mundo e quem uniu a comunidade global em paz, harmonia e amor. O
senhor afirma que Jesus de Nazaré é o Filho de Deus e que também é Deus, o
que não faz sentido e não pode ser provado. Com base nessa afirmação, o
senhor e seus seguidores adoram um homem que foi, sem dúvida, muito
espiritual, muito brilhante, talvez iluminado, mas que agora está morto. Se ele
está vivo e é todo-poderoso, conforme vocês dizem, eu o desafio a me matar
aqui mesmo onde estou.
- Faze isso, Senhor, - orou Abdullah. - Oh, Deus, revela-te neste instante.
- Salve, Carpathia - disse Leon, ainda sorrindo -, nosso rei e senhor
ressurreto!
Aparentemente, Leon pretendia continuar, mas Tsion assumiu a palavra.
- Espero que o senhor nos poupe do resto dessa cantilena escrita por um
ególatra que mata aqueles que discordam dele. Eu enalteço Jesus, o Cristo, o
Messias, totalmente Deus e totalmente homem, nascido de uma virgem, o
perfeito cordeiro que se dispôs a ser sacrificado pelos pecados do mundo inteiro.
Se Ele fosse apenas um homem, sua morte sacrificai teria sido humana, e nós,
que cremos nele, estaríamos perdidos. Porém, as Escrituras Sagradas provam
que Ele foi tudo o que disse ser. Seu nascimento foi profetizado centenas, ou
melhor, milhares de anos antes, e tudo foi cumprido nos mínimos detalhes. Ele
próprio cumpriu, pelo menos, 109 profecias isoladas e distintas que provam que
é o Messias.
- A singularidade e a genialidade do cristianismo estão no fato de que o
parto virginal permitiu ao filho unigênito de Deus identificar-se com os seres
humanos, sem abrir mão de sua natureza divina e santa. Assim, Ele pôde morrer
pelos pecados do mundo inteiro. O Pai o ressuscitou após três dias, e isso prova
que Deus ficou satisfeito com seu sacrifício por nossos pecados.
- Além disso, descobri, em meus exaustivos estudos das Sagradas
Escrituras, mais de 170 profecias feitas por Jesus apenas nos quatro
Evangelhos. Muitas já foram cumpridas, garantindo que aquelas relacionadas a
eventos futuros também serão cumpridas. Somente o próprio Deus poderia
escrever a história por antecipação, uma prova extraordinária da divindade de
Jesus Cristo e da natureza sobrenatural de Deus.
Fortunato contra-atacou:
- Mas nós sabemos que nosso rei e potentado ressuscitou, porque vimos o
evento com nossos próprios olhos. Se existe alguém em qualquer lugar deste
mundo que viu Jesus ressuscitar, que fale agora ou cale-se para sempre. Onde
Ele está? Onde está esse tal Filho de Deus, esse homem dos milagres, esse rei,
esse Salvador da humanidade? Se o seu Jesus é quem diz ser, por que o senhor
está escondido no deserto e vivendo de pão e água? O deus deste mundo vive
num palácio e concede boas dádivas a todos os que o adoram.
Tsion desafiou Leon a admitir o número de mortes por guilhotina, a admitir
que as tropas terrestres e armas de guerra foram engolidas pela terra do lado de
fora de Petra, que duas bombas incendiárias e um míssil mortal se abateram
sobre Petra com força total, mas que ninguém foi ferido e nenhuma estrutura foi
danificada. Tsion prosseguiu:
- O senhor também não vai admitir que o Serviço de Segurança e as
Forças Pacificadoras da Comunidade Global gastaram milhões de nicks para
atacar todo o trânsito para fora e para dentro deste lugar, e que nenhuma
aeronave, nenhum piloto, nenhum voluntário sofreu um arranhão sequer?
Leon enalteceu Carpathia pelas reconstruções que fez ao redor do mundo
e complementou:
- Aqueles que morrem na guilhotina optaram por esse tipo de morte.
Nicolae não deseja que ninguém pereça, mas que todos lhe sejam leais e
comprometidos com ele.
- Mas, senhor, a população mundial foi reduzida à metade, os mares estão
mortos por causa da praga do sangue profetizada na Bíblia e enviada por Deus.
Apesar disso, os crentes, os filhos de Deus, pelo menos aqueles que sobre-
viveram à criminosa perseguição feita pelo homem que o senhor entronizou
como deus, recebem água e alimento do céu, não apenas aqui, mas em muitos
lugares do mundo.
Leon continuou calmo e persuasivo, determinado a elogiar Carpathia. Em
determinado momento, ele afrontou os "judeus desleais, dos quais o senhor faz
parte, Dr. Ben-Judá".
- O senhor diz isso de maneira pejorativa, Sr. Fortunato, mas, mesmo
assim, eu aceito o título com muita honra. Aceito, com a mais profunda
humildade, fazer parte do povo escolhido de Deus. De fato, a Bíblia inteira é o
testamento de seu plano para nós ao longo dos tempos, e está provando isso,
para que o mundo inteiro veja enquanto nós dois dialogamos.
- Mas você não faz parte daqueles que mataram Jesus? - inquiriu
Fortunato, sorrindo, como se estivesse em posição de igualdade com o agressor.
- Ao contrário - respondeu Tsion -, Jesus também era judeu, como o
senhor bem sabe. E a verdade é que a morte de Cristo foi de responsabilidade
dos gentios. Ele apresentou-se diante de um juiz gentio, e soldados gentios o
crucificaram.
- Ah, houve uma ofensa contra Ele da parte de Israel, uma ofensa com a
qual a nação e seu povo devem arcar. No livro do Antigo Testamento chamado
Zacarias, capítulo 12, versículo 10, há a seguinte profecia: "E sobre a casa de
Davi, e sobre os habitantes de Jerusalém, derramarei o espírito de graça e de
súplicas; olharão para mim, a quem traspassaram; pranteá-lo-ão como quem
pranteia por um unigênito."
- Israel deve confessar um pecado específico cometido por toda a nação
contra o Messias antes de recebermos a bênção. Em Oséias 5.15, Deus diz: "Irei
e voltarei para o meu lugar, até que se reconheçam culpados e busquem a minha
face; estando eles angustiados, cedo me buscarão."
- Qual foi a culpa? Rejeitar que Jesus é o Messias. Nós nos arrependemos
disso e imploramos por sua volta. Ele voltará novamente e estabelecerá seu
reino aqui na terra, e não apenas eu, mas também a própria Palavra de Deus
prediz a ruína do dono maligno deste mundo quando aquele reino for
estabelecido.
- Bem - disse Leon -, obrigado pela fascinante lição de história. Mas eu me
alegro porque o meu senhor e rei está vivo e bem, e eu o vejo e converso com
ele todos os dias. Obrigado por ter sido um adversário rápido e digno.
- O senhor diz que sou um adversário rápido e digno, mas não respondeu
às afirmações e acusações que fiz disse Tsion.
- E - prosseguiu Leon - eu gostaria de saudar os inúmeros cidadãos da
Comunidade Global que residem com o senhor temporariamente e os convido a
desfrutar os benefícios e privilégios do mundo aqui fora. Acredito que muitos irão
ao encontro de um de nossos profetas, mestres e operadores de milagres
quando ele ministrar em sua área daqui a menos de uma hora. Ele...
Tsion interrompeu:
- A Bíblia nos diz que muitos farsantes se apresentarão neste mundo, que
eles não confessam que Jesus Cristo veio ao mundo em forma humana. Quem
faz isso é um enganador e um anticristo.
- Se o senhor permitir que eu conclua...
- "Todo aquele que ultrapassa a doutrina de Cristo e nela não permanece,
não tem Deus; o que permanece na doutrina, esse tem assim o Pai, como o
Filho. Se alguém vem ter convosco e não traz esta doutrina, não o recebais em
casa, nem lhe deis as boas-vindas. Porquanto aquele que lhe dá boas-vindas
faz-se cúmplice das suas obras más" [2 João 9, 10, 11].
- Muito bem, o senhor já mencionou todos esses cansativos versículos da
Bíblia. Eu me contento em agradecer-lhe e...
- Já que o senhor me fez aparecer em um programa de TV de âmbito
internacional, Sr. Fortunato, sinto-me na obrigação de pregar o evangelho de
Cristo e de dizer palavras das Escrituras Sagradas. A Bíblia diz que a Palavra
não voltará vazia, portanto eu gostaria de citar...
Mas Tsion foi tirado do ar, e grande parte da multidão em Petra aplaudiu
sua apresentação. Contudo, a insistente facção rebelde, mesmo depois de ter
ouvido tudo o que o Dr. Ben-Judá disse, começou a sair dali.
- Nós vamos embora - gritaram muitos deles quando foram confrontados
pela maioria, que implorava para que não saíssem.
Tsion gritou:
- "Sede sóbrios e vigilantes. O diabo, vosso adversário, anda em derredor,
como leão que ruge procurando alguém para devorar" [1 Pedro 5.8].
- Temos anistia! - gritou um deles. - Ninguém vai ser punido por não ter
recebido a marca da lealdade depois do prazo, que terminou há muito tempo!
Abdullah não conseguia compreender. Certamente aquelas pessoas
deveriam estar entre as que demoraram demais para considerar as afirmações
de Cristo. O coração delas devia estar endurecido, porque não havia lógica
nesse tipo de comportamento.
Ele foi correndo buscar os binóculos que recebeu no último embarque da
cooperativa. Subiu novamente a um lugar alto para observar a saída daquelas
pessoas através do Siq e sua caminhada de mais de três quilômetros em direção
ao local onde a Comunidade Global já instalara uma plataforma.
DEZOITO
Mac aprendera a não tomar conhecimento dos avisos da CG quando
sobrevoava, o restrito espaço aéreo acima do Neguev. Os avisos eram emitidos
por rádio, e a CG enviava aviões de reconhecimento, chegando a tentar impedi-
lo de voar. Muitas vezes, os aviões ameaçadores da CG voavam perto demais, a
ponto de deixar entrever o rosto dos pilotos. Mac se lembrava de que, nas
primeiras vezes, eles demonstraram determinação no semblante.
Posteriormente, quando seus rifles erraram os alvos sem explicação, eles
pareceram aterrorizados. Quando seus mísseis, com poder de perseguir fontes
de calor, encontraram os alvos mas não os atingiram, a CG teve de recuar para
que eles próprios não fossem os alvos.
Hoje, eles já tinham feito todas as típicas tramóias de costume: aviso pelo
rádio, vôos lado a lado, disparos, mísseis. Quando Mac pôde ver o rosto dos
pilotos inimigos, eles tinham uma expressão de tédio ou, na melhor das
hipóteses, de resignação. Pareciam tão perplexos quanto os co-pilotos,
imaginando por que a CG continuava a gastar equipamentos, munições e ogivas
tão valiosos.
Mac olhou para Albie, e ambos sacudiram a cabeça.
- Mais um dia, mais uma entrega - disse Albie.
- Eu nunca vou achar que vai durar para sempre - disse Mac. - Estou feliz
porque esses milagres não dependem de uma vida pura.
- Você tem uma vida pura.
- Não por mérito próprio, meu amigo.
Enquanto eles sobrevoavam o deserto em direção à pista de pouso em
Petra, Mac olhou para a imensa aeronave de Nova Babilônia de que Chang se
apropriara. Ela estava parada na extremidade da pista, enorme, totalmente
exposta.
- Como você explica isso? - Mac perguntou.
- Deus deve estar cegando esses caras. A gente pode vê-la a mais de um
quilômetro de distância, talvez mais.
- Veja ali - disse Albie.
Quase que diretamente abaixo deles, uma fila de centenas de pessoas
serpenteava pelo Siq, o caminho de um quilômetro e meio de acesso a Petra.
Elas seguiam em direção a uma espécie de palco instalado no meio do deserto.
Quando focalizou a pista e começou a descer, Mac avistou o helicóptero
saindo de Petra indo ao encontro deles. Dali, Abdullah os levaria para dentro da
cidade.
- Você acha que Smitty vai querer ver essa coisa de perto? - Albie
perguntou.
- Por quê? Você gostaria?
- Claro.
- Estou disposto a arriscar. Será que estamos protegidos até aquela
distância?
- No ar, estamos. Pode ser perigoso ir a pé.
- Vamos de helicóptero.
- Isso é que é uma resposta à oração! - disse Abdullah alguns minutos
depois. - Eu queria muito ver o que está acontecendo lá.
- É muito arriscado, Smitty - disse Mac. - Você tem uma boa cobertura, faz
parte do pessoal daqui. Albie e eu não temos mais cobertura, não temos
disfarces, nomes falsos, marcas falsas, nada. E melhor você decidir se vale a
pena ser visto conosco.
Abdullah não pôde conter um sorriso.
- Seu malandro - disse Mac, sorrindo. - Eu me arrisquei a levar um tiro,
não? E você quase levou um.
- Eu não ia atirar em você, Mac.
- Com palavras, sim. Claro que ia.
- Decidi que é melhor eu não ser visto com vocês quando voltarmos a
Petra.
- Ótimo. Mas falando sério...
- Acho que Deus nos protegerá. Devemos ficar juntos, dar a entender que
estamos em missão oficial, mas não deixar muito evidente que não temos a
marca.
- Você tem um turbante para cobrir a testa, nós temos quepes. Você acha
que é suficiente? Devemos portar armas?
- Não tenho idéia de quantos homens da CG estarão lá - disse Albie -, mas
imagino que, assim que chegarmos, vamos ficar vulneráveis. As armas não vão
servir para nada, é o que eu acho.
Abdullah coçou a testa.
- Devemos ficar dentro do helicóptero. Se pudermos ver e ouvir de lá.
- E se formos abordados?
- Você fala com eles com sotaque texano; vão ficar tão surpresos que eu
vou ter tempo de decolar.
- Você está demais hoje, Smitty.
- Quem vai querer aproximar-se de um helicóptero com as pás da hélice
girando?
Abdullah analisou seus amigos. Eles estavam tão curiosos quanto ele.
- Devemos perguntar a alguém? - disse Mac.
- A quem? - disse Abdullah. - Sua mãe?
Mac fez um movimento com a cabeça, concordando que Abdullah estava
aperfeiçoando seu senso de humor, mas só isso.
- Rayford está voando por aí - disse Mac. - A decisão é nossa. O que
vamos fazer?
- Eu topo - disse Albie. Abdullah concordou com a cabeça.
Mac subiu no helicóptero e sentou-se atrás. Abdullah sentou-se diante dos
controles, tendo Albie a seu lado. Após a decolagem, Abdullah teve de gritar para
ser ouvido acima do barulho do motor.
- Poderíamos falar com Chang. Pedir a ele que inclua alguma coisa no
computador.
Nenhum dos dois disse nada, portanto Abdullah abandonou a idéia. Ele
gostaria de saber se estavam cometendo uma tolice. No fundo, sabia que sim,
mas não conseguia voltar atrás.
Para Mac, ficou claro que o show foi programado exclusivamente para os
rebeldes de Petra. Ele tentou extrair de Abdullah por que alguém haveria de
querer afastar-se da segurança daquela cidade, mas tratava-se de uma pergunta
retórica e irrespondível.
Abdullah estava decidido a fazer hora, mas o helicóptero passou
rapidamente pelo povo que caminhava e pousou a cerca de 30 metros do palco,
levantando uma nuvem de poeira que a brisa leve incumbiu-se de carregar até às
pessoas que se encontravam na plataforma. Elas olharam para o helicóptero.
Mac avistou vários homens da CG armados, tomando conta do local e
conversando entre si. Um deles aproximou-se. Era um jovem de ombros largos,
que demonstrava ser robusto, mesmo sem o colete à prova de balas que se
tornou visível assim que ele chegou mais perto. Abdullah havia desligado o
motor, e as pás da hélice pararam de girar.
- Vamos ficar sentados aqui olhando para ele - disse Mac. - A iniciativa
deve partir dele.
O soldado do colete à prova de balas, com a arma dependurada ao lado
do corpo, parecia totalmente inofensivo. Ele olhou com ar de indagação para
Albie, sentado no segundo banco perto da porta.
- Vocês vão abrir a porta? - perguntou o soldado.
- Só se for preciso - respondeu Albie. - O ar condicionado mantém a
temperatura agradável aqui dentro.
- Vocês precisam abrir a porta - disse o soldado.
Albie olhou para Mac. Mac assentiu com a cabeça. Albie abriu a porta.
Mac inclinou-se para a frente e disse com voz autoritária:
- Não fique muito perto deste aparelho, filho! O motor ainda está quente e
vai espirrar um pouco de óleo. E talvez a gente queira ligá-lo de novo, só para
receber um pouco mais de ar.
- O que vocês estão fazendo aqui?
- O mesmo que você. Segurança. Monitorando. Agora, vou ter de pedir
que você se afaste do avião.
Tratava-se de um ato de muita coragem, mas, depois do que Mac
enfrentara no ano anterior, aquilo lhe parecia um passeio no parque. Se o
soldado quisesse partir para o bate-boca, Mac protelaria um pouco até Smitty
religar o motor, e eles sairiam rapidamente dali. Evidentemente, até mesmo um
disparo com uma arma pequena poderia abater um helicóptero a curta distância,
mas talvez a idéia de receber um jato de óleo quente no rosto o fizesse desistir.
A farsa de Mac funcionou. O homem limitou-se a fazer um movimento
afirmativo com a cabeça e afastou-se.
- Ligue o motor, Smitty - disse Mac. - Precisamos dar um motivo para ele
reconhecer que perdeu a parada.
O helicóptero levantou outra nuvem de poeira. Abdullah desligou a
aeronave rapidamente. O homem da CG retornou. Mac assumiu a
responsabilidade. Inclinou o corpo por cima de Albie e abriu a porta.
- Não se preocupe - ele disse. - Esta é a última vez que vamos levantar
poeira e impedir que o povo ouça o que vai ser dito, está bem?
- Era exatamente isso o que eu ia dizer, senhor. Mac fez uma continência
com o dedo indicador. O povo estava começando a chegar, parecendo exausto
da caminhada.
Foram necessários apenas alguns minutos para a multidão reunir-se. Um
sujeito de aparência normal, que, para Mac, era uma versão mais jovem de Leon
Fortunato, pegou o microfone. Ele estava de sapatos brancos, calça branca e
camisa branca, e tinha a aparência de um orador vibrante, entusiasmado e
resoluto. Disse que faria o show sozinho - seria o apresentador, o executor, tudo.
- Não sou uma pessoa comum. Não, minha gente. As pessoas dizem que
sou uma espécie de Cristo. Bem, vocês serão os juizes. Tudo o que posso dizer
é que não sou daqui. Não se trata de uma brincadeira. Não sou deste mundo.
Hoje, não há música, não há bailarinas, apenas eu, um operador de
milagres. Estou aqui sob a autoridade do senhor ressurreto, Nicolae Carpathia, e
recebi poder dele.
- Se vocês não acreditam, olhem para o céu. Sei que o sol está a pino,
quente e brilhante, mas vocês concordam comigo que não existem nuvens no
céu? Nenhuma. Alguém está vendo alguma nuvem? Bem distante no horizonte?
Formando-se bem longe daqui? Vocês estão cobrindo os olhos, e devem
fazer isso. Mas quem estiver usando óculos de sol, faça o favor de tirá-los. Vocês
estão com os olhos semicerrados, e isso está correto. Alguns estão com as
sobrancelhas franzidas, mas daqui a alguns instantes não estarão mais.
- Vocês gostariam de ver uma nuvem bonita? Uma nuvem que bloqueasse
o sol apenas por um instante? Eu posso providenciar uma. Vocês não estão
acreditando, eu sei disso. Não olhem para mim. Se olharem, não verão a nuvem.
Vocês podem pensar que se trata de um truque. Mas que nome dão a isso?
Uma sombra cobriu o povo. Até mesmo os homens da CG olharam para o
céu, curiosos. Abdullah inclinou o corpo de lado. Albie inclinou-se para a frente.
Mac posicionou-se entre eles e olhou para cima. Uma nuvem espessa e branca
bloqueava a luz do sol. Do meio do povo vinham os gritos de oh! e ah!.
- Como ele consegue fazer isso? - perguntou Abdullah.
- Ele já disse - respondeu Mac. - Recebeu poder de Nicolae.
- Foi rápido demais? - perguntou o homem dos milagres.
- A mudança de temperatura provocou frio em vocês, mesmo aqui no
deserto? Acho que basta de sombra, não? A nuvem desapareceu. Não se
movimentou, não esmaeceu, não se dissipou. Simplesmente sumiu.
- E, agora, que tal meia sombra, suficiente apenas para permitir que o sol
aqueça vocês?
Ela apareceu instantaneamente.
Uma mulher, perto do palco, ajoelhou-se e começou a adorar o homem.
- Ah, senhora, muito obrigado por sua gentileza. Mas e daí? Vocês ainda
não viram nada. Que tal este pedestal do microfone? Ele tem uma base sólida de
aço, duas hastes compridas, microfone e fio separados, presos na parte superior.
Alguém deseja vir até aqui para comprovar o que estou dizendo?
Um homem idoso subiu os degraus até a plataforma, com passos
trôpegos. Apalpou o microfone e o pedestal, o que provocou ruídos no sistema
de som. - Epa, vejam só! - disse o milagreiro. O microfone e o pedestal
transformaram-se em uma cobra que escapou das mãos dele e correu até a
caixa de som.
O povo teve um sobressalto, e algumas pessoas gritaram. Mas, tão rápido
quanto apareceu, a cobra sumiu, e o microfone e o pedestal retornaram ao
normal.
- Truques de mágica? Vocês são pessoas inteligentes. Têm tido problemas
em conseguir água ultimamente? Ou devemos acreditar nas histórias que vêm
de Petra? Pensam que a nascente de lá foi um ato de Deus? Então, que tal esta
aqui?
Ele apontou para o meio do povo, e uma fonte de água jorrou do chão,
espirrando por cima da cabeça deles.
- Água fria, cristalina, refrescante, não? - ele disse. - Aproveitem! Vamos!
E o povo obedeceu.
- Vocês estão com fome? Cansados da comida na nova casa? Que tal um
cesto contendo pão verdadeiro, quentinho, macio e mais que suficiente para
todos?
Ele esticou o braço para trás e fez aparecer um cesto de vime forrado com
um guardanapo de linho. Cinco pedaços de pão, quentes e dourados, estavam
empilhados dentro do cesto.
- Comecem a passar o cesto entre vocês. Vamos. Claro, peguem um
pedaço. Não, um pedaço inteiro! Peguem dois, se quiserem. Posso providenciar
mais.
O cesto foi passado de mão em mão, e todos pegaram pelo menos um
pedaço. Alguns pegaram dois e, mesmo assim, o cesto nunca esvaziou.
- Quem eu sou? Quem vocês acham que eu sou? Sou um discípulo do
deus vivo, o potentado Carpathia. Será que convenci a todos de que ele é todo-
poderoso? No entanto, ele perdeu a paciência com vocês. Ele gostaria que eu
aplicasse a marca de lealdade em vocês, e posso fazer isso sem usar nenhuma
tecnologia. Vocês não duvidam mais de mim, certo? O povo sacudiu a cabeça.
- Quem será o primeiro? Vou aplicar quatro simultaneamente. Em você,
você, você e você. Perguntem a seus amigos o que eles estão vendo.
Até Mac viu que eles tinham a marca de Carpathia na testa.
- Mais alguém? Sim, levantem a mão. Todos os que estão com as mãos
levantadas, prestem atenção. Não, os outros não levantem a mão. Só aqueles
que já estavam com a mão levantada quando eu falei. Por que esperaram tanto
tempo? Qual foi o motivo? Aquele a quem eu sirvo deseja que eu os mate;
portanto, vocês estão mortos.
Mais de cem pessoas caíram no solo do deserto, provocando gritos das
que restaram.
- Silêncio! Vocês acham que eu não posso reverter a situação? Se fui
capaz de matá-los, por que não posso ressuscitá-los? Aqueles seis, levantem-se
imediatamente!
Os seis levantaram-se, como se tivessem acabado de despertar. Pareciam
constrangidos, sem saber por que haviam caído no chão.
- Vocês pensam que eles estavam dormindo? em transe? Muito bem, eles
estão mortos novamente. - Os seis caíram no chão. - Agora, vocês que os
conhecem, podem verificar os sinais vitais deles.
O homem aguardou.
- Não há respiração, não há pulsação, correto? Que isso sirva de lição
para os que restaram. Vocês estão vendo aquilo, lá longe? Sim, lá. A pequena
nuvem de poeira, que parece estar rolando como um arbusto seco nesta
direção? São víboras da espécie mais venenosa que existe. Estão vindo para
atacar vocês.
Algumas pessoas viraram-se e começaram a correr, mas foram
paralisadas.
- Não, não. Certamente, vocês não estão pensando que é possível fugir
daquele que criou uma nuvem para cobrir o sol. Se quiserem ter a marca de
lealdade, levantem a mão agora para recebê-la.
Assustadas, as pessoas restantes levantaram a mão.
- Mais gente deve morrer antes que as víboras cheguem até aqui.
Cerca de três dúzias de pessoas caíram desfalecidas no chão.
- Por que as víboras continuam vindo para cá? - gritou uma mulher. -
Todos nós obedecemos! Todos nós recebemos a marca!
- As víboras são sábias, só isso - ele disse. - Elas conhecem quem era
sério e leal e quem concordou apenas por medo de perder a vida.
A fonte de água transformou-se em sangue, e o povo que estava perto
afastou-se rapidamente.
- Idiotas! - ele gritou. - Vocês são todos idiotas! Pensam que um deus
como Nicolae Carpathia quer que vocês sejam seus súditos? Não! Ele quer ver
vocês mortos e longe das garras dos inimigos dele. Vocês estão livres para fugir
agora, e eu vou me divertir vendo vocês correndo como loucos, o mais rápido
que puderem. Mas tenho um aviso a lhes dar. Vocês não correrão mais rápido do
que as víboras. Não chegarão a Petra a tempo de se salvarem. O corpo de vocês
ficará inchado, assando sob o sol, até que os pássaros venham comer sua carne.
Quanto a mim, vou sair daqui e levar comigo a sombra que providenciei.
O povo começou a correr em direção a Petra, gritando e cambaleando
desvairadamente. Os soldados da CG pareciam paralisados e olhavam fixamente
para as víboras, que mudaram de direção e agora corriam atrás do povo. A fonte
secou, a nuvem desapareceu, e havia dezenas de pedaços de pão espalhados
sobre a areia.
Mac olhou para Albie e Smitty, e os três sacudiram a cabeça, tremendo.
De repente, o operador de milagres posicionou-se em frente ao helicóptero.
Embora ele não tivesse aberto a boca, Mac o ouviu perfeitamente, como se o
homem estivesse dentro do avião.
- Eu sei quem você é. Sei qual é o seu nome. O seu deus é fraco, sua fé é
fingida e seu tempo é limitado. Você certamente morrerá.
Mac teve dificuldade para falar.
- Vamos - ele disse, com voz rouca.
Abdullah ligou o motor levantando uma nuvem de poeira, que logo se
dissipou. Enquanto Smitty decolava, Mac olhou para baixo e viu uma longa faixa
de areia intacta, pontilhada apenas pelos corpos das pessoas que tombaram no
lugar. Ninguém da CG. Nenhum homem milagroso. Nenhuma plataforma.
Nenhum pão. Nenhum veículo.
E quanto às serpentes? Ele também não as viu. Mas no percurso de uns
500 metros havia outros corpos estatelados, de maneira grotesca, na areia do
deserto.
Tsion estava com o espírito atormentado por um terrível mau
pressentimento. Ele sabia que não seria capaz de conduzir, até o dia do Glorioso
Aparecimento, o rebanho inteiro que chegara a Petra. Mesmo assim, ele
acreditava que, quando eles vissem a mão poderosa e milagrosa de Deus,
muitos indecisos se converteriam.
Não restava dúvida de que muitos já haviam se convertido. Era o que
Chaim e os outros anciãos estavam dizendo, enquanto Tsion se desesperava, no
fundo de uma das cavernas. Parecia que o Senhor lhe havia mostrado que os
rebeldes não voltariam - nenhum deles. Mas Tsion não sabia se Deus os mataria,
conforme fez na rebelião de Coré nos tempos de Moisés, ou se o anticristo os
destruiria depois de tê-los atraído enganosamente para o deserto.
Ele levantou a cabeça quando Naomi entrou correndo, vindo do centro de
tecnologia e comunicações, e dirigiu-se a seu pai. Ela olhou de relance para
Tsion, enquanto cochichava ao ouvido do pai. Quando viu o homem curvar os
ombros e sacudir a cabeça, Tsion entendeu tudo.
A jovem saiu, e seu pai caminhou em direção a Chaim. Tsion o
interceptou.
- Conte a nós dois. Eu preciso saber.
- Mas - disse o pai de Naomi - o senhor não poderia ser poupado desta
notícia um dia após seu triunfo sobre o falso profeta? Por que estragar sua
alegria?
- Eu não estou alegre, meu amigo. Fui incapaz de impedir que o falso
profeta convencesse os rebeldes a seguir o caminho que escolheram. Não
adiantou nada o que eu fiz ou o que eu disse. Conte-me tudo. Não me poupe de
nada.
- Três amigos nossos do Comando Tribulação testemunharam o fato e
estão retornando. Eles querem trocar algumas palavras com o senhor.
Tsion levantou-se.
- Claro! Onde eles estão?
- Desceram do heliporto e estão a caminho daqui. Quando Tsion e Chaim
dirigiram-se à entrada da caverna,
Mac, Albie e Abdullah já estavam chegando. Todos se abraçaram. Os
anciãos mantiveram uma distância respeitosa, enquanto os cinco se
aglomeravam a um canto e Mac relatava os fatos.
- Vocês não deviam ter presenciado aquilo - disse Tsion, com ar de
tristeza.
- Se soubéssemos o que íamos ver, não teríamos ido - disse Mac. - Mas o
senhor sabe que nós, pilotos, somos curiosos como crianças. Já matamos nossa
curiosidade.
- Aquele homem não era um ser humano - disse Tsion.
- Certamente foi uma aparição demoníaca. Apocalipse 12 diz que quando
Satanás, que enganará o mundo inteiro, foi atirado para a terra, seus anjos
também vieram com ele. E, evidentemente, não é de admirar que aquelas
pessoas não tenham sido recrutadas pela Comunidade Global. João 10.10 diz
que Satanás virá somente para roubar, matar e destruir.
- Eu tenho uma pergunta, Dr. Ben-Judá - disse Albie. - É certo não gostar
disso? Quero dizer, todo mundo está indignado com o que aconteceu, mas,
quando eu penso que entendi o que Deus poderia fazer, Ele permite que uma
coisa dessas aconteça. Não estou entendendo mais nada.
- Não se sinta aborrecido com isso, meu irmão, a menos que seu
questionamento o leve a duvidar de Deus. Ele está no controle. Os caminhos
dele não são os nossos caminhos, e Ele vê tudo de uma maneira grandiosa. Nós,
que vivemos deste lado do céu, não podemos sequer imaginar o que Ele vê. Eu
também estou desolado. Eu queria tanto que algumas daquelas pessoas
voltassem correndo para cá, suplicando para que intercedêssemos por elas
perante Deus, da maneira como os filhos desobedientes de Israel fizeram nos
tempos do Antigo Testamento. Eu adoraria ter orado pela redenção delas ou ter
levantado a imagem de uma serpente de bronze, para que as pessoas que foram
picadas por esses seres peçonhentos pudessem olhar para ela e ser curadas.
Deus, porém, está fazendo seu trabalho de seleção. Ele está purificando a terra
de seus inimigos e permitindo que os indecisos enfrentem as conseqüências de
sua procrastinação. Você sabe tão bem quanto eu que ninguém, em sã
consciência, escolheria ficar contra Deus, que pode nos proteger das armas de
destruição em massa. Mas os tolos que estavam aqui se aventuraram a ir ao
deserto. Eles ficaram fora da proteção de Deus e não retornaram. O apóstolo
Paulo disse: "Ó profundidade da riqueza, tanto da sabedoria, como do
conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos e quão
inescrutáveis os seus caminhos! Quem, pois, conheceu a mente do Senhor? ou
quem foi o seu conselheiro? [...] Porque dele e por meio dele e para ele são
todas as coisas. A ele, pois, a glória eternamente" [Romanos 11.33, 34, 36].
Mac levantou-se antes do amanhecer, ansioso por partir. Enquanto
aguardava Albie e Abdullah, ouviu um burburinho por toda a cidade de Petra.
Corria a notícia, espalhada por um excelente sistema de comunicação boca a
boca, que Tsion e Chaim estavam convocando o povo para reunir-se logo depois
do maná da manhã.
Abdullah e Albie comeram rapidamente, arrumaram suas coisas e foram
ao encontro de Mac, que estava no meio do povo.
Chaim foi o primeiro a dirigir-se à multidão.
- Tsion acredita ter ouvido a palavra do Senhor de que não existem mais
indecisos aqui. Vocês poderão confirmar isso, se olharem ao redor. Existe
alguém neste lugar sem o selo dos crentes? Alguém em algum lugar aqui? Não
vamos pressioná-los nem condená-los. Precisamos apenas saber.
Mac deu uma olhada panorâmica na direção do povo, mas concentrou-se
nos semblantes de Tsion e Chaim, que aguardaram mais de dez minutos.
Em seguida, Tsion deu um passo à frente.
- O profeta Isaías - ele disse - fez a seguinte profecia: "Acontecerá,
naquele dia, que os restantes de Israel, e os da casa de Jacó que se tiverem
salvado, nunca mais se estribarão naquele que os feriu, mas, com efeito, se
estribarão no Senhor, o Santo de Israel" [Isaías 10.20].
- "Os restantes se converterão ao Deus forte, sim, os restantes de Jacó.
Porque ainda que o teu povo, ó Israel, seja como a areia do mar, o restante se
converterá" [vv. 21-22].
E a respeito do rei deste mundo que tem atormentado vocês, Isaías diz,
mais adiante: "Acontecerá, naquele dia, que o peso [dele] será tirado do teu
ombro, e o seu jugo do teu pescoço, jugo que será despedaçado por causa da
gordura" [v. 27]. Louvado seja o Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó.
- O profeta Zacarias cita as palavras do Senhor Deus falando da terra de
Israel: "Dois terços dela serão eliminados e perecerão; mas a terceira parte
restará nela. Farei passar a terceira parte pelo fogo, e a purificarei como se
purifica a prata, e a provarei como se prova o ouro; ela invocará o meu nome, e
eu a ouvirei; direi: é meu povo, e ela dirá: O SENHOR é meu Deus" [Zacarias
13.8-9].
- Meus caros amigos, remanescentes de Israel, isso está de acordo com o
ensinamento claro de Ezequiel, capítulo 37, que diz que nossa nação estéril será
vista, nos últimos dias, como um vale de ossos secos, aos quais o próprio Deus
chamou de "toda a casa de Israel". Eles próprios dizem: "Os nossos ossos se
secaram, e pereceu a nossa esperança; estamos de todo exterminados" [v. 11].
- Mas, em seguida, meus caros irmãos, Deus disse a Ezequiel: "Portanto
profetiza e dize-lhes: Assim diz o Senhor Deus: Eis que abrirei a vossa sepultura,
e vos farei sair dela, ó povo meu, e vos trarei à terra de Israel [...] Porei em vós o
meu Espírito, e vivereis, e vos estabelecerei na vossa própria terra. Então
sabereis que eu, o Senhor, disse isto, e o fiz" [vv. 12, 14].
Fazia muito tempo que Rayford não se envolvia com um trabalho físico tão
pesado. A pista de pouso e de decolagem em Mizpe Ramon, destinada à
Operação Águia, tinha sido construída sob sua supervisão, mas por outras
pessoas que usaram equipamentos pesados. Agora, ele também era o
responsável pela operação, mas todos sabiam que cada par de mãos passara a
ser de suma importância.
Lionel Whalum aterrissara sem incidentes em Gobernador Gregores. O
único problema foi que a pista principal, destruída durante a guerra, precisou ser
reconstruída pela cooperativa, que a duplicou com outra pista de cerca de 30
metros de largura. A CG não tomou conhecimento da reconstrução nem do
imenso acampamento de crentes clandestinos, que haviam colhido trigo e que
faziam a permuta desse produto por intermédio da cooperativa.
O principal contato de Rayford lá, chamado Luís Arturo, contou mais tarde
que a pista levou semanas para ser ampliada. Quando foi destruída, dela havia
restado apenas uma depressão lisa e escura no chão. Do alto, parecia que a
pista continuava ali como antes.
Luís cursara o ginásio e a faculdade nos Estados Unidos e falava inglês
fluentemente, embora com sotaque acentuado. Ele teve muitos contatos com
grupos de pastores no compus. Em razão disso, quando retornou à Argentina e
sofreu perdas em razão dos desaparecimentos, ele sabia exatamente o que
acontecera. Em companhia de alguns amigos de infância, ele correu até a
pequenina igreja católica, da qual restaram alguns poucos paroquianos. O padre
e o professor de catecismo de quem eles mais gostavam também haviam
desaparecido. Ao ler alguns livros encontrados na biblioteca, aprenderam a crer
em Cristo. Logo a seguir, formaram o núcleo de novos crentes naquela área.
Luís era um homem sincero, de fala rápida. Ele gostou de Ree Woo e foi
amistoso com todos, mas sua prioridade número um era carregar o avião e
despachar aqueles homens rapidamente.
- Nós ouvimos rumores de que a CG está poluindo o rio Chico e querendo
nos pegar - ele disse. - Tenho vários motivos para acreditar que isso não passa
de conversa de paranóicos, mas não podemos nos arriscar. O tempo está cada
vez mais curto, portanto é melhor agir rápido.
Luís gostou particularmente de Ree porque, apesar de o sul-coreano ser o
membro mais jovem da tripulação de Rayford e o de menor estatura, provou
estar em melhor forma que todos os norte-americanos e argentinos juntos, com
exceção de George Sebastian.
A reputação do Grande George já era conhecida antes de sua chegada.
Enquanto ele trabalhava levando sozinho pesados sacos de trigo para dentro do
avião, muitos sul-americanos pediam-lhe que falasse sobre sua prisão na Grécia
e sua fuga.
Rayford notou que George tentava levar a história na brincadeira.
- Eu dominei uma mulher que tinha a metade do meu tamanho.
- Mas ela estava armada, não? Ela matou alguém?
- Bem, nós não podíamos permitir que ela fizesse isso, certo?
Rayford trabalhava a maior parte do tempo ao lado de Lionel. Cada um
deles era capaz de carregar um saco de trigo por vez. Ree também ajudava, mas
era jovem e rápido, e na manhã seguinte não se sentia com o corpo tão dolorido
quanto Ray e Lionel.
Depois de dois dias de trabalho contínuo - e graças a macacos hidráulicos
e seis pallets de alumínio que sustentavam até 15 toneladas cada -, quando o
avião já estava parcialmente carregado, Rayford viu Luís correndo em sua
direção.
- Senõr Steele, vamos até a torre, rápido. Eu tenho binóculos.
Rayford acompanhou Luís até uma torre nova de madeira, de dois
andares, projetada para confundir-se com a paisagem. Os pilotos que a
conheciam precisavam ficar atentos para enxergá-la, mas ela passava
despercebida dos espiões.
Ao chegar ao topo da escada, Rayford teve de recuperar o fôlego. Assim
que descansou um pouco, Luís passou-lhe os binóculos e apontou para um
ponto a distância. Rayford levou alguns instantes para ajustar as lentes, mas o
que ele viu o fez questionar se já não seria tarde demais e se todo o trabalho não
estaria perdido.
DEZENOVE
Embora o vôo de Petra para a Índia não tivesse sido longo, Mac dormia
profundamente quando Albie pousou o avião de carga em Babatpur. Por causa
da demora em Petra, das diferenças de fusos horários e do peso da aeronave,
acabaram chegando lá no meio da noite.
Mac demorou alguns instantes para entender onde estava, mas, em
seguida, ele, Abdullah e Albie foram tirados apressadamente do avião por um
homem conhecido apenas por Bihari.
- Rápido, por favor. Estamos a uns 150 quilômetros ao norte da represa de
Rihand.
- Cento e cinqüenta quilômetros? - disse Mac. - Como vamos trazer a água
até o avião?
- De caminhão!
- A CG daqui está dormindo ou fazendo o quê?
- A CG, meu amigo, gosta da água potável.
No percurso até o local, Bihari atingiu a velocidade média de 110
quilômetros por hora, dirigindo uma minivan que não tinha condições de rodar tão
rápido em uma estrada como aquela - principalmente na calada da noite.
Noventa minutos depois, ele fez uma curva, levantando uma nuvem de
poeira, e chegou a uma área livre perto de uma pequena instalação industrial. Ali,
mostrou a Mac e a seus companheiros as enormes pilhas de engradados
contendo garrafões de água, que, pela quantidade, lotariam dois caminhões
grandes.
- Onde está o resto? - perguntou Mac. - Conseguimos um avião muito
grande.
- Pensei que você tivesse notado - disse Bihari. - Você não ouviu quando
buzinei para os pedestres na estrada?
- Ouvi algumas vezes.
- Dois caminhões já estão seguindo em direção ao avião. Quando ouvimos
vocês chegando, começamos a trabalhar. A idéia de ter trigo de verdade para
comer deixou todos nós animados. Com a ajuda de vocês e das empilhadeiras,
vamos terminar de carregar os dois últimos caminhões antes do alvorecer e
transportar a carga até o avião.
Alguns minutos depois, enquanto manobrava uma empilhadeira em
direção aos engradados, Mac passou por Albie.
- Essa gente daqui me faz sentir um velho tolo e preguiçoso - ele disse. -
Comparado ao trabalho deles, o nosso é uma moleza.
- Eles não se preocupam com mísseis e balas - disse Albie. - Será que
estão "comprando" a CG com um pouco de água?
Bihari interrompeu o último carregamento e acenou para Mac.
- Será que seus companheiros vão desanimar se eu disser que
precisamos resolver uma coisa antes de continuar? ele perguntou.
- Depende - disse Mac. - Ainda vai dar tempo de a gente levantar vôo e
sair daqui?
- Sim, mas acho que estamos todos perdidos.
- Essa é uma péssima notícia. Qual é o problema?
- Vamos passar pela represa a caminho do aeroporto. Fica um pouco fora
de mão, mas quero que você a veja.
- Já vi muitas represas antes. Há alguma coisa errada com a sua?
- Meu pessoal está dizendo que o Senhor enviou mais um julgamento.
- Oh, não.
- Nem posso imaginar como é um grande volume de sangue forçando
passagem através das comportas de uma represa.
- Eu também não - disse Mac. - Qual é a quantidade de água que vocês
têm, menos a que estamos levando?
- Deve ser suficiente para seis meses. Mas a CG virá atrás de nós quando
descobrir que a nossa fonte secou.
- Eles sabem onde vocês estão?
- Devem saber. E não vai demorar muito para eles chegarem.
- A primeira coisa que você precisa fazer é esconder este lugar.
O sol estava prestes a se pôr, mas o calor continuava a castigar as
planícies da Argentina. Rayford tentava manter os binóculos no lugar para
entender o significado de toda aquela movimentação. Talvez não fosse nada,
mas as possibilidades não pareciam muito animadoras. Havia um número
enorme de pessoas, disso ele tinha certeza, mas Rayford não sabia dizer se
eram militares, soldados da CG, Monitores de Moral, mendigos ou habitantes da
cidade.
Ele devolveu os binóculos a Luís.
- Devemos levantar vôo? Ou é melhor ver o que está acontecendo?
- Você sabe o que eu penso.
- Devemos ir até lá armados? Quantas pessoas irão conosco?
Luís sacudiu a cabeça, sem saber.
- Que tal isso: eu providencio o veículo, e você entra com o plano.
- Muito justo - disse Rayford. - Irei com Sebastian. Levaremos armas, mas
não quero partir para o ataque. Vamos ver o que está acontecendo e deixar você
e seus companheiros fora disso.
Enquanto eles desciam da torre, Luís orou: Oh, meu Senhor, espero que
ainda não tenha acontecido.
- O que é isso?
- Você também sentiu o cheiro, capitão Steele? Rayford cheirou o ar.
Sangue.
Mac estava preocupado durante o percurso da instalação industrial até a
represa. Será que o enorme carregamento de trigo também teria de ser trazido
até ali de caminhão? Teriam eles caminhões suficientes? E onde armazenariam
todo aquele trigo?
Se, por um lado, ele estava preocupado, por outro sentia-se feliz, porque
isso não era problema seu. Pessoas mais capazes de encontrar soluções
inteligentes do que ele haviam planejado tudo. A preocupação ficaria a cargo
delas.
Quando Bihari parou perto da represa, outro caminhão carregado
estacionou atrás dele. A princípio, ninguém desceu. Em seguida, os quatro
saíram.
Eles observaram a represa por alguns instantes. Duas comportas estavam
abertas, ambas despejando uma quantidade imensa de líquido, que batia em
uma ribanceira e espirrava neles. O sangue, muito mais espesso que a água,
tinha um ruído diferente. O odor era terrível, e Mac assustou-se. Aquilo parecia
um pesadelo, e ele sentiu um arrepio percorrer-lhe o corpo.
Havia um homem, em pé, a algumas centenas de metros da represa, por
onde corria o sangue. Seu rosto parecia familiar.
- Quem é ele? - perguntou Mac, apontando.
- Ele quem? - disse Albie.
Mac virou-o na direção certa e apontou novamente.
- Eu não enxergo muito bem a esta hora da manhã, Mac. Quem você está
vendo?
- Ninguém está vendo aquele homem ao lado da pedra, lá embaixo? Ele
está perto do rio.
Nenhum deles respondeu.
- Vou ver quem é. Ele está olhando para cá! Acenando para irmos até lá!
- Eu não estou vendo ninguém, Mac. Talvez seja uma de suas "miradas de
cowboy".
Mac levantou a cabeça e encarou Abdullah.
- Uma de minhas o quê!
- Uma daquelas coisas que vocês, os cowboys, vêem no deserto quando
estão com sede. Parece água, mas é apenas um cacto ou coisa parecida. Uma
"mirada".
Albie jogou a cabeça para trás e caiu na gargalhada.
- Eu fui criado a mais de 15 mil quilômetros do Texas, mas sei o que é
isso! Chama-se miragem, Smitty. Miragem.
- Bem, não é uma mirada nem uma miragem - disse Mac. - Eu já volto.
Ele caminhou até a uns cem metros do homem, que o observava o tempo
todo.
- Já que você veio até aqui - disse o homem -, por que não trouxe uma
garrafa vazia?
- Por que eu haveria de querer uma garrafa cheia de sangue? De qualquer
forma, eu não tenho nenhuma garrafa vazia.
- Esvazie uma e traga-a aqui.
Mac obedeceu, como se aquele fosse um pedido natural e ele não tivesse
escolha.
Assim que ele retornou, Abdullah disse:
- E aí, companheiro? Era uma "mirada"?
- Muito engraçado, seu jóquei de camelo.
Mac pegou uma garrafa de um dos engradados, bebeu metade da água no
caminho de volta e despejou o resto no chão.
- Ei! - gritou Bihari - essa coisa é tão valiosa quanto o trigo.
Mac olhava para suas pegadas enquanto se aproximava da correnteza
vermelha.
- Tu estás sempre por perto, não, Miguel? - ele disse. - És onipresente?
- Você sabe muito bem, Cleburn - disse Miguel. - Assim como você, estou
incumbido de uma missão.
- E, por coincidência, na mesma parte do mundo que eu. Nunca consegui
agradecer a tua...
Miguel levantou a mão para fazê-lo calar-se e pegou a garrafa. Em
seguida, suspirou e olhou para o céu. Ele falou em voz suave, mas com grande
fervor:
- "Grandes e admiráveis são as tuas obras, Senhor Deus, Todo-poderoso!
Justos e verdadeiros são os teus caminhos, ó Rei das nações! Quem não temerá
e não glorificará o teu nome, ó Senhor? pois só tu és santo; por isso todas as
nações virão e adorarão diante de ti, porque os teus atos de justiça se fizeram
manifestos" [Apocalipse 15.3, 4].
Miguel caminhou cuidadosamente por entre as rochas e desceu até à beira
do rio. A correnteza de sangue fazia tanto barulho que Mac pensou que não seria
capaz de ouvir Miguel, caso ele falasse novamente. Mas, como se conhecesse
os temores de Mac, Miguel virou-se e chamou-o com um gesto. Mac hesitou. O
corpo de Miguel estava respingado de sangue. Seu manto marrom, a barba, o
rosto e o cabelo também tinham manchas de sangue.
- Vem - ele disse. E Mac obedeceu.
Miguel firmou um pé sobre a rocha e o outro a alguns centímetros do rio.
Ele disse:
- "Tu és justo, tu que és e que eras, o Santo, pois julgaste estas coisas;
porquanto derramaram sangue de santos e de profetas, também sangue lhes
tens dado a beber; são dignos disso" [Apocalipse 16.5-6].
Em seguida, Mac ouviu outra voz que ele não sabia de onde vinha:
- "Certamente, ó Senhor Deus, Todo-poderoso, verdadeiros e justos são
os teus juízos" [v. 7].
Miguel curvou o corpo para baixo e afundou a garrafa no rio. A correnteza
de sangue pressionava seu braço e molhou a manga de sua roupa, enquanto ele
enchia a garrafa. E, quando ele a tirou do rio e virou-se para Mac, não havia mais
respingos de sangue em seu corpo. Seu manto estava seco; seu rosto, limpo;
seu braço, sem mancha alguma. A garrafa estava repleta de água pura e
cristalina.
Miguel a entregou a Mac.
- Bebe - ele disse.
Mac levou a garrafa aos lábios. Enquanto sorvia o conteúdo de olhos
fechados, Miguel prosseguiu:
- Jesus disse: "Aquele, porém, que beber da água que eu lhe der, nunca
mais terá sede, para sempre; pelo contrário, a água que eu lhe der será nele uma
fonte a jorrar para a vida eterna" [João 4.14].
Mac abriu os olhos e respirou fundo. Miguel havia desaparecido.
- Sem querer faltar com o respeito, Rayford - disse George -, mas você já
parou para pensar que estamos apenas em dois e que só temos duas armas e
um pouco de munição? E não sabemos o que vamos encontrar pela frente
quando chegarmos lá dentro deste veículo.
- Eu achei que você fosse me proteger. Não estou muito familiarizado com
armas militares.
- Nós não vamos enfrentar essa gente, não é?
- Espero que não, George. Estamos em tremenda desvantagem numérica.
- É o que eu estava pensando, Rayford.
- Vamos dar uma espiada para ver o que podemos descobrir.
- Ah, um momento. Você poderia parar um pouco?
- Você está falando sério?
- Estou.
Rayford parou o veículo, deixando-o em ponto morto.
- Você chegou a ler algum livro de estratégia militar?
- Sobre qual?
- Sobre a técnica do jogo de xadrez, que consiste em sacrificar um peão
para obter vantagem de posição?
- Ouça, George. Nada mais é como antes. Nós improvisamos todos os
dias. Você é um exemplo vivo disso. No momento, não temos escolha.
Encontramos um grupo de irmãos e irmãs tentando sobreviver aqui, e agora eles
podem estar sendo ameaçados. Se voltarmos para pegar todos eles e dermos
uma arma para cada um, eles não vão ter condições de enfrentar o pessoal da
CG, caso essa gente apareça por aqui. Vamos sondar primeiro para ver o que
está acontecendo. Não devemos entrar no meio dessa gente sem antes saber se
poderemos sair de lá. Use os binóculos. Se você avistar um grupo armado da
CG, me diga, e nós voltamos. Concorda comigo?
George parecia estar avaliando bem a situação.
- Pense no que eu vou dizer. Você está vendo lá adiante? Do outro lado.
Há um grupo enorme de gente dirigindo-se para um ponto central. Vamos dar a
volta por trás e nos misturar ao grupo. Não são militares e não parecem
ameaçadores.
- Faz sentido.
- Sempre faz. Use seus recursos.
- Como sua cabeça, por exemplo? - perguntou Rayford.
- Bem, não foi isso que eu quis dizer.
Mac olhou ao redor, com. o coração aos pulos, como se tivesse escalado
uma montanha. Ele correu até a beira do rio de sangue e mergulhou a garrafa na
correnteza. O sangue espirrou por todo o seu corpo, mas quando ele retirou a
garrafa, o conteúdo era de água pura e fresca.
Ele riu, gritou e foi ao encontro de Albie, Abdullah e Bíhari. Aparentemente,
nenhum dos três tinha visto Miguel, porque logo se cansaram do comportamento
estranho de Mac.
- Vocês não o viram, não é verdade?
Os três olharam bem sérios para ele, de dentro dos caminhões.
- Vocês viram quando despejei a água no chão? Viram? Bihari, você viu,
porque me disse que ela era tão valiosa quanto o trigo. Lembra-se? Bem, então
me diga onde consegui isto aqui?
Bihari desceu do caminhão.
- Onde você conseguiu?
- No rio, bem ali! E você está vendo algum respingo de sangue em mim?
- Eu não!
- Você ainda acha que estão perdidos? A CG vai deixar vocês em paz
quando descobrir o que aconteceu com esta sua fonte de água. Mas você e seu
pessoal poderão continuar se abastecendo aqui como sempre! Deus toma conta
daqueles que têm o selo na testa, amém?
A esta altura, Albie e Abdullah já haviam se aproximado para ver.
- Experimentem isto, cavalheiros. Vocês vão querer beber tudo, mas
vamos dividir, está bem?
Rayford e George infiltraram-se no meio de um grupo de peregrinos.
Quase todos estavam a pé. Pelos trajes que usavam, poderiam ser tanto da
cidade como do campo. Havia também alguns mendigos.
- Inglês, alguém fala inglês? - perguntou George.
Após ele ter perguntado mais duas vezes, um homem que parecia estar
acompanhado da esposa e de dois parentes - aproximou-se do veículo.
- Inglês? Sim - ele disse.
- Para onde vocês estão indo? - perguntou George.
- Estamos indo para onde fomos convidados respondeu o homem.
- Todos vocês? Convidados?
- Não sei se os outros foram convidados. Nós fomos.
- Quem os convidou?
- Três homens. Eles bateram em nossa porta e disseram que devíamos vir
para cá, porque eles tinham boas notícias para nos dar.
- Mas vocês não são leais a Carpathia - disse George.
- Não estou vendo nenhuma marca.
- O senhor também não tem - disse o homem. - Mas parece que, assim
como nós, não está assustado.
- Vocês nem parecem preocupados.
- Os homens disseram que não devíamos ter medo.
- Por que vocês acreditaram neles? Qual o motivo de tanta confiança?
- Eles foram sinceros. O que mais posso dizer?
- Pergunte aos outros por que eles estão aqui.
O homem dirigiu-se a um grupo falando em espanhol. Depois dirigiu-se a
outro grupo.
- Todos nós fomos convidados pelos mesmos homens - ele disse.
- E quem são eles?
- Ninguém sabe.
- Apesar disso, vocês arriscaram a vida para estar aqui.
- É como se a gente não tivesse escolha, senhor. Rayford parou e o povo
passou por ele.
- O que você acha disso, George?
- A mesma coisa que você: a história que Ming contou.
- Exatamente. E só vamos ter certeza quando eles proferirem as primeiras
palavras. Se o tal... Cristóvão...
- Correto.
-.. começar a falar do evangelho, e o segundo fizer profecias sobre o que
vai acontecer em Babilônia...
- Naum.
- Correto. E Calebe fizer advertências a respeito de receber a marca, bem,
é só isso que precisamos saber.
- E onde está a CG, Rayford? Aqueles três salvaram algumas pessoas na
China, mas elas foram mortas pelos homens das Forças Pacificadoras.
Ambos viraram-se para trás para ver se o inimigo estava chegando.
- Talvez Deus e esses homens trabalhem de maneira diferente em
diferentes partes do mundo.
Leah Rose estava bem atarefada no porão da mansão de Lionel Whalum,
em Long Grove, Illinois. Ela e Hannah faziam um inventário dos suprimentos
médicos e uma lista do que seria necessário nas cooperativas de diversas
localidades. As duas trabalhavam com informações fornecidas por Chloe
Williams.
- Sinceramente, gostaria de achar um lugar que necessite de outras coisas
além de suprimentos - disse Leah.
- É mesmo. Nada mais cansativo do que ficar parada aqui... Não sei se
quero voltar a ficar no meio do combate, mas preciso ir a algum lugar onde eu
seja necessária.
- O problema - disse Leah - é que Petra não necessita de remédios nem
de enfermeiras. Mas eu gostaria de, pelo menos, passar por lá quando estiver a
caminho de minha próxima missão.
- Hummm, sério? Para quê? Ou melhor, para ver quem?
- Ora, não me amole, Hannah.
De repente, os joelhos de Leah dobraram-se e ela quase caiu.
- O que foi? - Hannah perguntou. - Você está bem?
- Acho que sim. Não sei. Senti uma fraqueza repentina, mas já passou.
Porém, assim que disse isto, ela caiu de joelhos no chão.
- Leah!
- Eu estou bem. Só que... só que... oh, Deus, sim. Farei isso, Senhor.
Claro.
- O quê? O que é?
- Ore comigo, Hannah. Devemos orar pelo Sr. Whalum.
- Devo chamar a esposa dele?
- Precisamos orar agora.
Senhor, ela orou, não sei o que estás incutindo em mim. Só sei que o Sr.
Whalum necessita de oração neste momento. Nós confiamos em ti, nós te
amamos, acreditamos em ti e sabemos que tu és soberano. Suplicamos-te que
protejas o Sr. Whalum e todos os que estão com ele. Rayford, George, Ree e ele
devem estar saindo de lá, por isso te pedimos que lhes concedas o que eles
necessitam, que os protejas quando necessitarem de proteção e que os
acompanhes na viagem à Índia.
- Aí vem eles - disse Rayford a George apontando para o lado esquerdo da
multidão.
A CG, composta de cerca de cem homens fardados e armados, estava
chegando em jipes e vans. Eles tinham megafones.
Enquanto Rayford estacionava o veículo do outro lado do povo, de onde
podia ter uma visão privilegiada, um oficial da CG anunciou:
- É proibido fazer reuniões desse tipo. Vocês estão transgredindo a lei.
Não existe aqui um centro para aplicação da marca de lealdade, e faz meses que
o prazo expirou. Vocês não podem mais reparar essa falha. Aparecer em público
sem a marca de lealdade é uma transgressão punível com a morte pelas mãos
de qualquer cidadão cumpridor da lei, mas se vocês se dispersarem agora e
voltarem para suas casas, estenderemos um pouco mais o prazo, para permitir
que recebam a marca dentro de 24 horas. Há centros de aplicação em Tamel
Aike e Laguna Grande, ambos a cerca de cem quilômetros daqui.
O povo não parou, não olhou, não se perturbou. O oficial da CG voltou a
falar:
- Este é o último aviso...
- Silêncio!
A voz cheia de autoridade veio da frente, de um dos três homens, que se
comunicava sem a ajuda de alto-falantes.
- Meu nome é Cristóvão, e eu falo sob a autoridade de Jesus Cristo, o
Messias, o Filho do Deus vivo. Ele determinou que as pessoas deste grupo que
receberem hoje o seu evangelho eterno entrarão no reino milenar no dia de seu
glorioso aparecimento, daqui a dois anos.
O povo começou a murmurar, e os homens da CG voltaram a falar pelos
megafones, mas como eles não funcionaram, ninguém ouviu o que eles
disseram.
- Meus colaboradores, Naum e Calebe, estão aqui comigo somente para
proclamar aquilo que o Senhor determinou que proclamássemos. E, a seguir, a
mensagem de salvação concedida por Deus por meio de seu Filho unigênito será
apresentada por uma das 144.000 testemunhas que Ele levantou das tribos dos
filhos de Israel.
- E, agora, afastai-vos daqui, vós que praticais a iniqüidade, servos do rei
maligno deste mundo. Jamais chegareis perto deste povo e deste lugar
novamente. Afastai-vos antes que o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo
vos aniquile aqui mesmo.
Amedrontados, os homens da CG correram para seus veículos, temendo
morrer. Cristóvão disse:
- "Temei a Deus e dai-lhe glória, pois é chegada a hora do seu juízo; e
adorai aquele que fez o céu, e a terra, e o mar, e as fontes das águas"
[Apocalipse 14.7].
Naum falou a seguir amaldiçoando Babilônia, e Calebe alertou para as
conseqüências de aceitar a marca da besta. Em seguida, um evangelista
trajando manto branco caminhou até à frente do povo e disse:
- "Haverá sinais no sol, na lua e nas estrelas; sobre a terra, angústia entre
as nações em perplexidade por causa do bramido do mar e das ondas; haverá
homens que desmaiarão de terror e pela expectativa das coisas que sobrevirão
ao mundo; pois os poderes dos céus serão abalados" [Lucas 21.25-26].
- "Então se verá o Filho do homem vindo numa nuvem, com poder e
grande glória. Ora, ao começarem estas coisas a suceder, exultai e erguei as
vossas cabeças; porque a vossa redenção se aproxima" [v. 27, 28].
- O trigo está chegando e vocês têm água em abundância, Bihari. Com
licença, vou dar um telefonema. - Mac teclou o número de Rayford. - Ray? Onde
você está, homem? Quando seu pessoal pretende vir para cá? Ótimo. Ei, você
viu os rios? Ah, é verdade, você está no Rio Chico. Sabe de uma coisa? A praga
não atinge os crentes. Pelos menos não os crentes daqui. - Mac contou-lhe sobre
o encontro que teve com Miguel e o que aconteceu com o sangue. - Falta uma
hora para decolarmos, portanto diga a esses irmãos e irmãs daí que a água está
a caminho! Bem, é verdade que eles não precisam mais tanto de água agora,
certo? Bihari olha para mim como se eu é que fosse o culpado por estragar a
coisa toda... Mas diga ao pessoal daí que trato é trato.
- Posso contar a ele, capitão Steele? - perguntou George.
- A ele quem?
- A Luís. Contar a ele que a CG teve de abandonar esta área. E contar
também a respeito da água.
- Você gosta de dar boas notícias, não?
- Claro!
- Vá em frente.
Quando eles voltaram, Luís aproximou-se correndo do carro.
- E então? - ele perguntou.
- George quer ter o privilégio de lhe contar - disse Rayford. - Vamos
decolar em dez minutos.
Lionel assumiria o controle da aeronave nas primeiras quatro horas; em
seguida, passaria a tarefa para Ree. Rayford faria a aterrissagem. Ray estava
sentado na poltrona do co-piloto, atando o cinto de segurança, quando Lionel
ligou os motores. Mas assim que ele colocou os fones de ouvido, Rayford notou
que havia algo errado.
- Está tudo bem? - Rayford perguntou. Lionel mordeu os lábios.
- Fiz todos os procedimentos preliminares.
- Eu também. E daí?
- Há alguma coisa errada.
- Vôo longo, avião grande, carga pesada demais, meu amigo. Só vamos
decolar depois que você se der por satisfeito, entendeu?
- Eu agradeço, mas não estou conseguindo descobrir o que é.
- Você quer fazer novamente todos os procedimentos preliminares,
verificar tudo, de cima a baixo, só para ter certeza?
- Não, deixe-me pensar um pouco. Rayford virou-se para trás.
- Tudo certo aí, Ree?
Ree levantou o polegar e recostou-se na poltrona, como se estivesse
pronto para dormir.
- O último membro de sua tripulação está chegando, Sr. Piloto. Ele deve
fechar a porta ou vamos aguardar um pouco?
- Deve ser alguma coisa insignificante! Aguarde um pouco. Vou dar uma
olhada na carga.
- Precisa de ajuda?
- Não, eu vou sozinho.
- Está frio lá fora!
- Como se eu não soubesse!
Rayford aguardou dez minutos. Ree e George já estavam cochilando. Ray
desatou o cinto de segurança e dirigiu-se ao compartimento de carga. Lionel
estava vindo a seu encontro.
- Tudo certo? - perguntou Rayford. Lionel olhou firme para ele.
- Diga à torre que estamos prontos.
Assim que eles ataram os cintos, Lionel olhou para Rayford novamente.
- Louvado seja Deus, é tudo o que eu tenho a dizer.
- Não, não é. - disse Rayford. - Quero que me conte.
- Um pallet inteiro estava solto. Ele ia tombar na primeira inclinação da
aeronave.
- E nós íamos despencar.
- Claro.
- Tenho certeza de que você verificou a carga durante os procedimentos
preliminares.
- Verifiquei. Eu sempre verifico. Não há nada mais importante do que
manter a carga centralizada e bem amarrada.
- O que você está achando disso?
- Não faço idéia. Verifiquei as trancas duas vezes. Estava tudo em ordem.
Apenas tive a intuição de que deveria fazer nova verificação.
- Bem, companheiro - disse Rayford -, graças a essa intuição é que vamos
conseguir aterrissar na Índia.
VINTE
Cinco anos dentro da Tribulação
Chang passava horas monitorando o palácio, prestando maior atenção
todas as vezes que escutava a voz de Carpathia.
- Existe alguma coisa na atmosfera daquela antiga região de Edom que
está interferindo em nossos mísseis, em nossos vôos, em nossa artilharia - disse
Carpathia uma noite. - A área inteira transformou-se em um Triângulo das
Bermudas. Garanta a paz, mas não gaste nem mais um Nick em armamentos
inúteis. Vamos substituí-los pela diplomacia.
Chang sabia que falar em diplomacia da Comunidade Global era um
paradoxo. O procedimento de operação padrão não tinha mais nenhum vestígio
dos tempos em que era necessário preservar a boa imagem do potentado.
Alguém sempre tentava protegê-lo, mas por todo o mundo existiam provas de
que até mesmo os milhões de cidadãos que possuíam a marca de lealdade a ele
sabiam, agora, que o deus ressurreto tornara-se um rei déspota. Centenas de
milhares de pessoas morriam por toda a parte em razão da falta de água potável.
Um noticiário da Região 7, os Estados Unidos Africanos, mostrava uma
mulher vociferando em público diante de uma pequena multidão temerosa:
- Justiça, imparcialidade, até mesmo tribunais de júri são relíquias de
tempos passados! Obedecemos à CG e nos curvamos diante da imagem do
supremo rei só porque todos nós conhecemos alguém que foi condenado à
morte por ter deixado de cumprir a ordem!
Ela foi alvejada com um tiro mortal, no lugar em que estava, e o povo
dispersou para não morrer também.
Da mesma área veio a imagem da gravação de uma cena enganosa,
representando um desfile programado para exaltar a CNNCG. O povo marchava
indolentemente, com o rosto pálido, carregando cartazes e cantando "Salve,
Carpathia", em tom monótono.
Chang sofria com o caos existente no palácio e, ao mesmo tempo, tirava
proveito dele. Nova Babilônia transformara-se em uma cidade fantasma. Os
cidadãos não suportavam mais fazer peregrinações aos edifícios reluzentes.
Com base em estatísticas reais - e não em números adulterados dos
resultados anunciados à população -, Chang sabia que metade da população
mundial existente na época do Arrebatamento havia morrido.
A capital do mundo não era mais a mesma. Facções e minirreinados
brotavam em toda parte, até mesmo nos círculos de Carpathia - gente do alto
escalão ameaçando, adulando, cercando-se de bajuladores. Havia uma desconfi-
ança geral entre eles, embora todos fossem subservientes e melosos diante do
chefão. Revolta era uma palavra fora de cogitação. O rei deles provara ser imune
à morte. Que vantagem haveria em matá-lo novamente? Ele ficaria sem poderes
durante três dias, mas o assassino teria de pegar seus pertences e estar bem
longe dali quando ele ressuscitasse.
O estado precário dos serviços públicos em Nova Babilônia era
comparável ao de todos os lugares do mundo, com exceção de Petra. Os pilotos
do Comando Tribulação e da cooperativa contavam que, em todos lugares aonde
iam, eles constatavam que tudo o que se desgastava com o uso não era
substituído. A redução imensa da população custou à sociedade a perda de
metade das pessoas que trabalhavam no serviço público. Havia pouca gente
para transportar combustível, consertar carros, manter as lâmpadas da rua e dos
semáforos em funcionamento, preservar a ordem, proteger o comércio. Buck
relatou em A Verdade que a CG, principalmente os guardas municipais, usavam
suas fardas, suas insígnias e suas armas para obter vantagens pessoais. "Ai
daquele comerciante que não 'molhar a mão' de seu bom vizinho encarregado de
manter a segurança."
Chang observava tudo isso de seu local de trabalho como técnico de
informática no departamento de Aurélio Figueroa, cujo sistema havia sido
projetado e instalado com muita competência por seu antecessor, David Hassid.
"Que ironia!", Chang pensava. Essa era a única coisa que ainda funcionava
perfeitamente...
Carpathia tornara-se uma criatura ensandecida, e todos os que
gravitavam a seu redor demonstravam o mesmo comportamento - menos diante
dele. Todos pareciam servir de instrumento à sua loucura, competindo entre si
para ver quem seria o primeiro a agradá-lo, obedecendo a sua mais recente
diretriz - que geralmente vinha em forma de um acesso de fúria.
- Insubordinação! - ele berrou altas horas da noite, enquanto Chang ouvia
os exaustos subordinados do potentado tentando permanecer acordados com
ele.
- Meu subpotentado da Região 7 vai acordar amanhã cedo e ficar sabendo
que os chefes da Líbia e da Etiópia e todos os seus assessores diretos foram
assassinados!
Suhail Akbar disse:
- Eu vou falar com ele, Excelência. Tenho certeza de que ele perceberá
que...
- Você não entendeu que isso é uma ordem, Suhail?
- Como, senhor?
- Você não entendeu minha ordem?
- O senhor quer que aqueles líderes e seus assessores diretos estejam
mortos amanhã cedo?
- Se você não puder fazer isso, vou encontrar...
- Posso fazer, senhor, mas não haverá tempo suficiente para mandar
nossos homens daqui...
- Você é diretor do Serviço de Segurança e Inteligência! Não tem nenhum
contato na África que possa...?
- Vou cuidar disso, senhor.
- Espero que sim!
A ação foi realizada por um contingente do Serviço de Segurança e
Inteligência das Forças Pacificadoras e dos Monitores de Moral da África. Akbar
foi elogiado no dia seguinte, mas sofreu nas mãos de Carpathia por mais de três
semanas, porque o chefe estava tendo problemas em "obter informações úteis
da Região 7".
Rayford morava em um abrigo subterrâneo, como todos os outros pilotos
que decolavam partindo da antiga base militar de San Diego. E, da mesma forma
que Mac e Albie partiam de Al Basrah, Rayford fazia vôos diretos entre San
Diego e outros centros da Cooperativa Internacional de Mercadorias. Os lugares
eram tão distantes e tão escondidos que, se os pilotos conseguissem enganar o
radar da CG - outra tecnologia que também se encontrava em péssimo estado
em razão da perda de pessoal no mundo inteiro -, não encontrariam nenhum
outro tipo de problema no caminho. O chefe do Comando Tribulação temia que
ele e seu grupo baixassem a guarda e pusessem a perder toda a rede que
haviam montado. Na verdade, ele se sentia muito mais firme e cauteloso nos
tempos em que a CG estava no auge, trabalhando com força total. O mundo
tornara-se um caldeirão de sistemas de livre comércio individual.
Quando estava "em casa", em San Diego, Rayford estudava os relatórios
que Chloe recebia do pessoal da cooperativa do mundo inteiro. Pouquíssimos
lugares haviam escapado da influência maligna dos impostores patrocinados
pela CG. Mágicos, feiticeiros, prestidigitadores, aparições demoníacas e
representantes de Leon Fortunato pregavam um evangelho falso. Eles se
apresentavam como figuras de Cristo, messias, adivinhadores. Enalteciam a
divindade de Carpathia. Realizavam prodígios e milagres e enganavam um sem-
número de pessoas. Essa gente era levada a desconsiderar as afirmações de
Cristo, geralmente pela promessa de água potável. Mas assim que elas tomavam
a decisão em prol do maligno, ele as destruía, como fez no Neguev, ou Deus as
matava. Tsion Ben-Judá continuava a dizer que Deus estava trabalhando
continuamente para igualar o número de crentes e de não-crentes, retirando da
Terra aqueles que portavam o sinal da besta, porque uma grande batalha estava
se aproximando.
- Não estou dizendo que o Deus de todos os deuses não é capaz de
derrotar o inimigo que Ele desejar - ensinava Tsion -, mas o odor fétido que vem
do outro lado da evangelização em prol do mal tem ofendido o Senhor e
inflamado sua ira.
Mesmo assim, a ira de Deus permanece equilibrada por causa de sua
grande misericórdia e amor. Não houve notícia de nenhuma morte ou ferimento
ter atingido um dos 144.000 evangelistas que Deus levantou para divulgar a
verdade a respeito de seu Filho.
Apesar de estar exausto de tanto lutar e aguardando com ansiedade o dia
em que iria para o céu ou o dia do Glorioso Aparecimento - para Rayford não
fazia diferença qual viria primeiro -, ele ainda se emocionava com as notícias
recebidas do mundo inteiro. O Comando Tribulação via muitos daqueles 144.000
homens corajosos aparecerem em público, convidando os indecisos para saírem
de casa a fim de incutir neles as verdades acerca de Cristo. Esses homens eram
excelentes pregadores, ungidos por Deus com o dom da evangelização.
Geralmente, apareciam acompanhados de anjos para protegê-los e para
resguardar seus ouvintes. Os exércitos da CG eram incapazes de detê-los.
- Os arcanjos Gabriel e Miguel têm sido vistos em diversas partes do
planeta fazendo pronunciamentos em favor de Deus e defendendo seu povo -
Tsion e Chaim diziam ao pessoal de Petra e ao mundo via Internet.
Rayford agradecia a Deus silenciosamente, enquanto lia que Cristóvão, o
anjo do evangelho eterno, geralmente aparecia em regiões remotas onde Cristo
nunca havia sido pregado. Naum continuava a alertar o povo a respeito da queda
de Babilônia, às vezes acompanhado de Cristóvão, às vezes sozinho. E as
notícias davam conta de que Calebe aparecia em algum lugar todos os dias,
alertando para as conseqüências de aceitar a marca da besta e de adorar sua
imagem.
Além disso, era comum o Comando Tribulação ver ou sentir a presença de
anjos protegendo-os aonde quer que fossem. Geralmente, mesmo fora das rotas
a Petra, os aviões da CG interceptavam os deles, os advertiam, tentavam forçá-
los a pousar para atirar neles. Sem saber quando e onde eles seriam protegidos
fora do Neguev, os pilotos do Comando Tribulação agiam de maneira evasiva.
Mas, até aquele momento, Deus optara por guardá-los, deixando a CG frustrada
e perplexa.
Faltando menos de dois anos para o Glorioso Aparecimento, Rayford
encontrou-se com Buck e Chloe para avaliar as condições atuais do Comando
Tribulação.
- Onde estamos - ele perguntou - e onde precisamos estar para ajudar ao
máximo todos os crentes ao redor do mundo?
Chloe contou que Lionel Whalum e sua esposa conseguiram manter a
casa em Illinois.
- Leah e Hannah estão extremamente irritadas por terem de viver
trancadas durante tanto tempo - disse Chloe -, mas acho que elas se sentem
incentivadas por tudo o que Deus tem feito em suas vidas. Lionel ficou
emocionado ao saber que Leah foi movida por Deus a orar por ele antes de sua
partida da Argentina. Sabe, papai, atualmente ele é um dos pilotos mais
atarefados. Entrega suprimentos no mundo inteiro.
- Como está sendo a convivência entre Leah e Hannah? - disse Buck. - Eu
não conheço as duas muito bem, mas Leah deixa qualquer um nervoso. Ela
ainda está caidinha por Tsion?
- As duas não aparecem em público - explicou Chloe - e dizem que se
sentem vivas apenas à noite. Elas não se atrevem a sair durante o dia. A CG
atua somente de vez em quando naquela área, mas basta um cidadão dizer que
viu alguém sem a marca para pôr nosso trabalho todo a perder.
- Não tenho mais ouvido falar de Z - disse Rayford.
Chloe sacudiu a cabeça.
- De todo o nosso grupo, Zeke foi, provavelmente, quem mais mudou. Lá
no oeste de Wisconsin ninguém precisa de seus serviços. Não há necessidade
de confeccionar fardas, criar disfarces, transformar uma pessoa em agente da
CG.
- Será que não poderíamos aproveitar melhor os serviços dele aqui? -
perguntou Rayford.
- Não, depois do que eu vou lhe contar - disse Chloe.
- Zeke transformou-se numa nova pessoa. Ele se interessou tanto por
estudar a Bíblia que passou a ser o assistente do líder espiritual da igreja
clandestina de lá.
- Zeke, um assistente de pastor? - estranhou Rayford.
- Que coisa incrível!
- Chloe tem mantido contato com Enoque e com algumas pessoas do
grupo dele - disse Buck.
- É verdade. Eu me desculpei por ter me intrometido na vida e na
comunidade deles, porque me senti responsável pela separação que houve na
congregação de O Lugar. Mas Enoque me disse que, se eu não tivesse ido até
lá, eles nunca saberiam que Chicago seria destruída. Por outro lado, papai, sei
que se eu não tivesse perambulado por Chicago no meio da noite, talvez aquela
segunda destruição não tivesse acontecido.
Certa manhã, em Petra, o povo tomou conhecimento de que o sangue de
todos os mares do mundo voltara a transformar-se em água salgada.
- Deus não me revelou nada sobre isso - disse Tsion. - Mas pressinto que
deve estar vindo alguma coisa pior. E logo.
A situação pouco mudou, a não ser pelo fato de Carpathia tentar assumir
para si o crédito de ter purificado os mares. Ele anunciou:
- Meu pessoal inventou uma fórmula que purifica as águas. A vida animal e
vegetal dos oceanos retomará seu curso normal em breve. E, agora que os
oceanos voltaram ao normal, todas as águas dos rios e dos lagos também serão
restauradas.
Ele estava errado, é claro, e a estupidez de sua fanfarrice custou-lhe um
pouco mais de credibilidade. Deus havia decidido, em seu devido tempo,
suspender a praga dos mares, mas os rios e os lagos continuaram repletos de
sangue.
Pouco antes de ser executado, um rebelde sueco anunciou:
- Quando exultou ao ver que os mares voltaram ao normal, esse nosso
suposto potentado não mencionou que o mundo continua mergulhado no mais
completo caos. Peixes mortos, podres, fétidos ainda cobrem as praias de todo o
planeta e continuam a provocar doenças que atingiram grande parte das
populações litorâneas. E onde estão as estações de tratamento para transformar
as águas do mar em água potável? Nós estamos morrendo de sede, enquanto o
rei esbanja os recursos que ainda existem.
Sessenta e oito meses dentro da Tribulação
Chang ficou intrigado ao ouvir falar de uma reunião inesperada na sala de
conferências de Carpathia. Para grande frustração de Carpathia, foi Leon quem
convocou a reunião, mas Suhail Akbar, Viv Ivins e Krystall, a secretária de
Nicolae, rapidamente saíram em apoio a Leon.
- Convoquei a reunião para falar da água, Excelência
- Leon começou a dizer. - O senhor não necessita mais de alimento,
inclusive de água, e talvez seja por isso que não entende...
- Ouça, Leon. Existe água nos alimentos. Vocês não estão se alimentando
o suficiente?
- Potentado, a situação está medonha. Tentamos pegar água do mar e
transformá-la em água potável. Mas está sendo muito difícil transportar navios
novos até lá.
- Infelizmente, isso é verdade - disse Akbar. - Nossas tropas de todos os
lugares estão sofrendo.
- Eu estou sofrendo - disse Viv. - Sofrendo na pele. Há ocasiões em que
penso que vou morrer se não tomar um pouco de água.
- Sra. Ivins - disse Carpathia -, não vamos permitir que a administração da
Comunidade Global pare o que está fazendo por causa de sua sede. Você
compreende?
- Sim, majestade. Perdoe meu egoísmo. Não sei o que eu...
- Você tem um mínimo de experiência nessa área?
- Como, senhor?
- No assunto que estamos discutindo! Você tem alguma idéia para nos
ajudar a encontrar uma solução? Você é uma especialista? Uma cientista? Uma
hidróloga? Não há necessidade de sacudir a cabeça. Eu conheço as respostas.
Se você não tem serviço urgente para fazer em seu escritório, por que não fica
calada, só ouvindo, agradecida por receber um salário aqui?
- O senhor prefere que eu me retire?
- Claro!
Chang ouviu o barulho de uma cadeira sendo empurrada para trás.
- Só porque tem uma pequena ligação com minha família - disse Nicolae -,
você acha que tem as rédeas na mão! Não me dê as costas quando falo com
você!
- Pensei que o senhor quisesse me ver longe daqui - ela choramingou.
- Eu não sirvo a criados, empregados, amigos ou a quem quer que seja
que desrespeite seu soberano. Essa mesma atitude a fez pensar que poderia
sentar-se em MEU TRONO em MEU TEMPLO!
- Divindade, eu já me desculpei infinitas vezes por aquela imprudência! Já
me humilhei, me arrependi e...
- Excelência - disse Leon, com voz suave -, isso aconteceu há mais de
dois anos...
- Você! - esbravejou Carpathia. - Você convocou esta reunião e agora
também me afronta?
- Não, senhor. Eu lhe peço desculpas se o afron...
- Que outro nome você dá a isso? Você quer fazer companhia à tia Viv e
retornar a seu escritório para fazer o seu trabalho? Você é o chefe da igreja,
homem! O que está acontecendo com o Carpathianismo enquanto você se
preocupa com a água? Onde estão os cientistas, os técnicos que têm alguma
coisa a me apresentar?
Leon não respondeu.
- Sra. Ivins, por que você ainda está aqui?
- Eu... eu pensei que...
- Fora! Pelo amor de tudo...
- Senhor - Suhail começou a dizer, como se fosse a voz da razão -, eu
consultei os especialistas antes de vir para cá e...
- Finalmente! Finalmente vejo alguém que usa o cérebro que lhe dei! O
que você tem a me dizer?
- Se o senhor observar aqui, majestade...
Chang ouviu barulho de papel, como se Akbar estivesse estendendo um
documento sobre a mesa.
- A fotografia via satélite detectou uma fonte no meio de Petra que,
aparentemente, produz água fresca desde o dia dos bombardeios.
- Quer dizer que voltamos a falar de Petra, não, diretor Akbar? O lugar
onde foram despejados bilhões de Nicks nas areias do deserto?
- Foi um trabalho perdido, senhor, mas observe o que a fotografia aérea
mostra. Aparentemente, o míssil atingiu um aqüífero que fornece milhares de
litros de água pura todos os dias. Isso nos leva a crer que essa fonte se estende
até os arredores da cidade de Petra, e nosso pessoal acha que também
podemos ter acesso a ela.
- Para que lado eles acham que ela se estende?
- Para o leste.
- E qual é a profundidade?
- Eles não sabem informar com base nesse tipo de tecnologia, mas se um
míssil foi capaz de penetrar nesse aqüífero, certamente poderíamos perfurar, ou
até mesmo lançar outros mísseis, a leste de Petra.
- Usar um míssil para perfurar uma fonte? Suhail, você já ouviu falar de
alguém que usou um equipamento de tanta potência para realizar esse trabalho?
- Com todo o respeito que lhe devo, senhor, mas duas bombas da mais
alta tecnologia e um míssil Lance produziram água potável para um milhão de
nossos inimigos.
Mac havia ligado para Abdullah a fim de contar-lhe sobre o término de uma
nova pista de pouso para a cooperativa, "lindamente escondida" a leste de Ta'izz,
ao norte do Golfo de Áden, na região sul do lêmen.
- Albie conseguiu um embarque de mercadorias que ele gostaria que fosse
entregue em Petra, se você pudesse buscá-las e transportá-las para Petra no dia
seguinte ou dois dias depois.
- Eu? - disse Abdullah. - Sozinho?
- Quer que eu fique segurando sua mãozinha, Smitty?
- Não. Não se trata disso. É que esses serviços são muito mais divertidos
quando temos companhia.
- Ah, sim, eu sou o cara mais divertido do mundo, mas trata-se de um
serviço rápido e simples que você pode fazer com uma das aeronaves mais
leves.
- Um dos homens do Sr. Whalum deixou um Lear aqui. A pista nova
comporta um Lear?
- Claro. Um 30 ou menor. De qualquer forma, aguarde nossa chegada por
volta do meio-dia. Quando você acha que pode fazer isso?
- Talvez hoje. Se der tempo de fazer as unhas e arrumar o cabelo. Eu
também pretendia fazer uma maquiagem, mas...
- Que loucura é essa, cara? Abdullah riu.
- Finalmente consegui pegar você, Sr. Mac! Eu estava brincando com
você!
- Estou morrendo de rir, Smitty.
- Eu peguei você, não peguei, cowboy?
Abdullah estava verificando as condições atmosféricas no centro de
comunicações quando Naomi o chamou.
- Sr. Smith, o que o senhor acha disto? Ele correu até lá.
- O que lhe parece? - ela insistiu.
Abdullah sentiu um frio no estômago. Deveria dizer? Não deveria?
- Está me parecendo um aviso.
- Foi o que pensei! O que devo fazer?
- Chame Tsion e Chaim. Código vermelho.
- Posso contar a eles que foi o senhor quem disse?
- Diga o que quiser, mas rápido.
Ela apertou um botão e falou ao microfone.
- Central de comunicações para setor de liderança.
- Aqui é o setor de liderança. Bom dia, Naomi.
- Fui autorizada pelo Sr. Smith a chamar o Dr. Ben-Judá e o Dr.
Rosenzweig aqui o mais rápido possível. É sobre um código vermelho.
- Não vou pedir que você repita. Só confirme se entendi bem o que disse.
- Positivo, liderança. Código vermelho.
Abdullah foi ao encontro de Tsion e de Chaim na entrada. Eles estavam
acompanhados de vários anciãos, todos com ar de preocupação no semblante.
- Abdullah - disse Chaim -, os códigos vermelhos são reservados para
ameaças ao bem-estar de todos.
- Acompanhem-me.
Abdullah os levou até Naomi. Eles formaram um semicírculo atrás dela,
com os olhos fixos na tela.
- Um míssil?
- É o que parece - disse Abdullah.
- Lançado em direção à cidade?
- Não, mas perto.
- De onde?
- Provavelmente de Amã.
- Tempo?
- Minutos.
- Alvo?
- Talvez a leste.
- No mesmo lugar que eles andaram perfurando? Abdullah assentiu com a
cabeça e Tsion disse:
- Eles estão perfurando o local há semanas, e não vimos nada. Nem óleo,
nem água, nem sangue. Agora vão bombardear o lugar? Não acredito que
Carpathia vá usar armas contra os próprios exércitos, já reduzidos demais.
Temos tempo para assistir isso? Seria aconselhável?
Abdullah analisava a tela.
- Eu estive na mira de duas bombas e de um míssil dois anos atrás. Não
tenho medo de outro míssil que vai cair a pelo menos um quilômetro e meio
daqui. Temos binóculos apoiados em tripés, no lugar alto, ao norte do Siq.
- Devo avisar o povo? - perguntou Naomi. Tsion refletiu por alguns
instantes.
- Diga apenas para não se alarmarem quando ouvirem uma explosão
daqui a... quanto tempo você calcula, Abdullah?
- Quinze minutos.
- Isso não é surpresa para a equipe de perfuração - disse Abdullah alguns
minutos depois, com o corpo curvado para enxergar através dos binóculos
possantes.
- Eles mudaram de lugar- disse Tsion.
- É verdade. Mais de um quilômetro e meio. Talvez três. E a máquina de
perfuração foi desmontada. Para mim, significa que eles não querem que a
máquina seja destruída pelo míssil. Ela deve ter sido programada para alguma
coordenada específica.
Chaim sentou-se sobre uma pedra respirando com dificuldade.
- Será que estou muito velho ou o dia está quente demais?
- Estou transpirando mais que o normal, meu amigo - disse Tsion.
Abdullah afastou-se dos binóculos e protegeu os olhos com a mão.
- Já que o senhor mencionou isso, olhe para o Sol.
O Sol parecia maior, mais brilhante, mais alto do que deveria estar.
- Que horas são? - Tsion perguntou.
- Quase dez.
- Que estranho! Parece sol do meio-dia. Será que... Abdullah ouviu um
zunido ao longe. Ele olhou para o norte. Um rastro de fumaça branca apareceu
no horizonte.
- Míssil - ele disse. - Vai ser difícil acompanhá-lo com os binóculos, mas o
senhor pode tentar.
- Eu posso vê-lo a olho nu - disse Tsion.
- Estou sentindo muito calor - disse Chaim.
Eles viram quando o míssil riscou o céu e começou a descer. Parecia
apontado para o local original da perfuração. Passou pela máquina desmontada
no solo do deserto e caiu a uns cem metros ao sul, levantando uma imensa
nuvem de areia e de terra e abrindo uma cratera larga e profunda.
O estrondo da explosão chegou aos ouvidos deles em questão de
segundos, e a nuvem dissipou-se lentamente. Abdullah reajustou os binóculos
pára analisar a cratera.
- Não posso acreditar que o míssil abriu uma cratera com profundidade
quase igual à do buraco que eles andaram perfurando - ele disse. - Apesar disso,
até agora nada foi encontrado.
- Estou achando engraçado - disse Tsion -, mas eu gostaria de saber o
que eles tinham em mente. Se estavam esperando encontrar água, não
imaginaram que poderiam produzir um jato de sangue?
VINTE E UM
Chang correu um sério risco ao acompanhar, furtivamente, de sua mesa, o
lançamento do míssil destinado a encontrar água. Ele estava com os fones de
ouvido e, ao mesmo tempo, atento para ver se havia alguém se aproximando.
Nicolae praguejou.
- Quanto custou esse pequeno projeto, Suhail?
- Não foi barato, Excelência, mas ainda não podemos considerar um
fracasso.
- Considerar? O Lance que enviamos a Petra produziu imediatamente uma
fonte de água que jorra até hoje! Esse outro foi um completo desastre!
- Talvez o senhor esteja certo.
- Eu sempre estou certo! Enfrente a realidade. Você vai ter de conseguir
água de outra maneira.
Chang ouviu uma batida na porta e a voz de Krystall.
- Com licença, senhor, mas estamos recebendo notícias estranhas.
- Que tipo de notícias?
- Uma espécie de onda de calor. As linhas telefônicas estão
congestionadas. O povo está...
Chang ouviu um grito e percebeu que veio de sua sala, não do setor de
vigilância. Ele saiu do programa rapidamente, retirou os fones de ouvido e
acompanhou seus colegas até as janelas, onde se amontoaram para enxergar o
que se passava lá fora.
- Voltem ao trabalho! - gritou o Sr. Figueroa saindo abruptamente de sua
sala. - Saiam dessas janelas!
Mas, agindo como se fossem crianças, eles não obedeceram, porque a
curiosidade falava mais alto. O que estaria causando todas aquelas explosões?
Felizmente, a janela de onde Chang e alguns colegas seus espiavam não foi a
primeira a ser atingida, mas dois outros colegas - o arrogante e soberbo Lars e
uma moça - foram atingidos por cacos de vidro quando a vidraça diante deles se
espatifou.
Enquanto os dois se contorciam no chão, pálidos e apavorados, a sala foi
invadida pelo ar quente do deserto. A mulher que se ajoelhou para ajudar os
feridos imediatamente ficou vermelha pelo calor. Enquanto ela tentava fugir dali,
seu cabelo enrolou-se, produziu faíscas e irrompeu em chamas.
Os outros tentaram arrastar os dois feridos para um lugar seguro, mas
também tiveram de fugir do calor.
- O que é isso? - berrou alguém. - O que está acontecendo?
Os que estavam na frente de Chang afastaram-se rapidamente da janela,
e ele viu o que estava acontecendo lá embaixo. Os pneus dos carros explodiam.
As pessoas saltavam dos carros, depois tentavam entrar novamente,
queimando as mãos nas maçanetas. Os pára-brisas derretiam-se, as folhagens
tornavam-se marrons, murchavam e pegavam fogo. Um cão, que se soltou da
coleira, correu em círculos e caiu ofegante no chão, minutos antes de ser
incinerado.
- Para o porão! - gritou Figueroa aos que não queriam abandonar seus
colegas feridos. - É tarde demais para ajudá-los!
Os funcionários corriam, olhando para trás por cima dos ombros, enquanto
fugiam. Quando alcançaram a porta, eles avistaram Lars e a moça tentando
livrar-se das chamas, que, em seguida, os consumiram.
Chang foi um dos últimos a sair da sala, porque estava apenas simulando
os efeitos do calor. Ele viu os resultados, mas apesar de saber que a
temperatura externa parecia mais alta que o normal, ele não foi atingido pela
força exterminadora.
Quando chegou perto do elevador, as portas estavam se fechando, o que
o deixou feliz.
- Vou pegar o outro - ele disse e, imediatamente, correu para seu
apartamento.
À meia-noite, em San Diego, Rayford foi despertado por sons insistentes
vindos de seu computador. Ele arrastou-se da cama e ligou o monitor. Tsion
estava informando a seu público virtual ao redor do mundo que o quarto terrível
Julgamento das Taças havia chegado, conforme profetizado na Bíblia, e que
esse flagelo afetaria cada fuso horário da Terra, assim que o sol despontasse.
"Aqui em Petra", ele escreveu, "por volta das dez horas da manhã, as
pessoas sem o selo de Deus que estavam sob o sol foram queimadas vivas. Esta
parece ser uma oportunidade sem paralelos para suplicar mais uma vez pelas
almas de homens e mulheres, porque milhões de pessoas perderão entes
queridos. Mas a Bíblia também menciona que a mensagem poderá chegar tão
tarde aos indecisos que seus corações já estarão endurecidos.
"Apocalipse 16.8-9 diz: 'O quarto anjo derramou a sua taça sobre o sol, e
foi-lhe dado queimar os homens com fogo. Com efeito, os homens se queimaram
com o intenso calor, e blasfemaram o nome de Deus que tem a autoridade sobre
estes flagelos, e nem se arrependeram para lhe darem glória.'"
Rayford digitou um código para ter uma conversa particular com Tsion ou
Chaim, qualquer um dos dois. "Sei que ambos estão muito atarefados neste
momento, mas eu gostaria que um de vocês reservasse alguns minutos em prol
do Comando Tribulação."
A três casas dali, Ming Toy foi despertada por um telefonema de Ree Woo.
Ree prometera cuidar da mãe dela e devia estar ligando para contar-lhe as
novidades, mas Ming assustou-se ao ver a hora. Mesmo após ter se
tranqüilizado ao ouvir a promessa de Cristóvão de que ela e a mãe viveriam até o
Glorioso Aparecimento, Ming sabia que, apesar daquela garantia, sua mãe
poderia passar o resto de seus dias em uma prisão.
- Está tudo bem? - ela perguntou.
- Está tudo ótimo - respondeu Ree -, embora eu não tivesse tanta certeza
quando cheguei aqui. Fui avisado para ficar longe do abrigo subterrâneo, porque
corria um boato de que a CG o localizara e planejava invadi-lo. Os crentes
estavam atarefados, arrumando seus pertences para fugir à noite. Eles estavam
torcendo para que a CG invadisse o local mais tarde, como era praxe, no horário
em que eles costumavam estar dormindo. Mas assim que o sol nasceu,
perceberam que havia pouco ruído na rua. Alguns se arriscaram a sair e viram o
estrago causado pelo Sol. Tudo estava queimado, seco, derretido, estragado.
Não havia ninguém na rua, apenas corpos carbonizados espalhados pelo chão.
Os crentes estão protegidos, mas a CG e os leais a Carpathia não podem
enfrentar o Sol. O pessoal do abrigo subterrâneo mudou-se à luz do dia, e se os
homens da CG forem atrás deles à noite, vão se decepcionar. Os crentes não se
mudaram para muito longe, mas é um esconderijo melhor que o anterior.
- Eles viram uma cena ao longo do caminho que teria sido divertida, se não
fosse trágica. Um pequeno contingente da CG tentou usar roupas à prova de
fogo, botas e capacetes para proteger-se do calor intenso. Os homens
conseguiram andar uns cem metros; em seguida, se separaram quando suas
roupas começaram a pegar fogo. Espalhadas nas ruas, há pilhas e mais pilhas
de materiais em chamas.
- Você vai voltar logo, Ree? Sinto muito sua falta.
- Eu também sinto sua falta, Ming. Eu amo você. Agora vou poder sair
durante o dia, e em breve devo estar de volta.
- Tome cuidado, meu amor - ela disse.
Rayford estava sentado na beira da cama, com as mãos na cabeça, na
mais completa escuridão de um abrigo subterrâneo. Sentia-se cansado e
precisava dormir um pouco mais. Mas não dormiria. Esse flagelo, talvez diferente
dos anteriores, poderia proporcionar oportunidades singulares para ele e seu
grupo.
Finalmente, ele ouviu o sinal. Tsion estava do outro lado do sistema
particular de mensagens.
- Perdoe-me por não ligar o vídeo - disse Rayford -, mas estamos no meio
da noite.
- Tudo bem, capitão. Antes, quero saber se esta conversa precisa ser
particular. Estou no centro de tecnologia e há outras pessoas por aqui.
- Não há problema, Tsion. Todos estão bem aí?
- Estamos muito bem. Sentimos um pouco mais de calor, e algumas
pessoas apresentam sinais de cansaço, mas, aparentemente, estamos
protegidos dos efeitos deste flagelo.
- Sei que você está ocupado, mas preciso de uma confirmação. Você
acredita que todos nós, que temos o selo de Deus, estamos imunes ao calor?
- Sim.
- Você entende o que isso significa para o Comando Tribulação, Tsion?
Poderemos fazer o que quisermos durante o dia. Os homens da CG não
conseguirão interferir em nada até o dia em que o calor diminuir e eles puderem
sair às ruas novamente.
- Entendo. Eu só acho que Deus nunca é previsível quanto a essas coisas.
Nós sabemos qual é a seqüência das pragas e que uma praga termina quando
outra começa, mas o flagelo sobre os oceanos não terminou quando o mesmo
flagelo atingiu os lagos e os rios. E os oceanos voltaram ao normal pouco tempo
antes da chegada desse flagelo. Eu não gostaria que você estivesse andando
por aí, em plena luz do dia, quando ele chegasse ao fim. Você ficaria vulnerável
demais.
- Concordo. Acho que esse último vai durar o suficiente para nos dar um
pouco de liberdade. Nunca vi o mundo em estado tão lastimável, nem tantas
pessoas necessitando de ajuda.
- Oh, Rayford, o mundo é como um cartucho descartável vazio. Mesmo
antes de Deus ter derramado esse flagelo, o planeta já estava na pior condição
imaginável. Isso me leva a pensar como o Senhor vai conseguir esperar até o fim
dos sete anos. O que restará até lá? A pobreza está cada vez maior. A lei e a
ordem são coisas do passado. Até mesmo os leais à Comunidade Global
perderam a fé em seu governo e em suas Forças Pacificadoras. Os Monitores de
Moral estão aceitando subornos, ao que parece. As pessoas não se atrevem a
sair às ruas sem estar armadas.
- Cameron me disse que não conhece um único cidadão que não tenha ou
que não porte uma arma. De quase todos os países, surgem notícias de
pilhagens por bandos de ladrões e estupradores, sem mencionar os vândalos e
os terroristas. O melhor que temos lá fora são os 144.000 evangelistas e o
aumento da atividade dos anjos que o Senhor misericordioso nos tem enviado.
- Lembre-se, Rayford, agora temos três tipos de pessoas: as que possuem
o selo de Deus, as que possuem a marca do anticristo e as indecisas. Há cada
vez menos indecisos, mas são esses que devemos alcançar. Eles estão sofrendo
agora, mas, oh, sofrerão ainda mais, todos os dias, quando o sol nascer. Imagine
o tumulto, a devastação. Falta de energia elétrica, sobrecarga nos aparelhos de
ar condicionado, acidentes. E tudo isso chegando quando metade da população
já se foi.
- Não estamos longe da anarquia, meu amigo. A CG não se importa com o
caos, porque se beneficia dele. Estou surpreso ao ver que ainda existem
pessoas leais a Carpathia. Veja a devastação que ele provocou.
- Dr. Ben-Judá, de que forma isso se encaixa em seu argumento de que
esses julgamentos revelam a bondade e misericórdia de Deus na mesma
proporção de sua ira? O anjo que anunciou que os rios e lagos se transformariam
em sangue disse que isso seria uma vingança contra o sangue derramado dos
profetas.
- Deus é justo e Deus é santo, Rayford, mas eu não creio que Ele enviaria
outros julgamentos ao mundo agora, se não desejasse que mais almas se
arrependessem. Não há dúvida de que alguns se arrependerão. Sei que a
maioria não se arrependerá, porque a Bíblia diz que eles blasfemam o nome de
Deus. Evidentemente, a esta altura, todos sabem que esses julgamentos
procedem de Deus. Apesar disso, muitos se recusam a arrepender-se de seus
pecados.
- Eu concordo com você, Tsion. Ninguém pode argumentar que Deus não
existe. Há provas contundentes de sua presença e poder... e, mesmo assim,
muitos ainda o rejeitarão. Por quê?
- Capitão Steele, essa é uma pergunta que tem sido feita ao longo dos
séculos. Você se lembra da história do Antigo Testamento, depois que Moisés
cresceu e se recusou a ser chamado de filho da filha de Faraó, mesmo tendo
esse direito? A Bíblia diz que ele preferiu "ser maltratado junto com o povo de
Deus, a usufruir prazeres transitórios do pecado" [Hebreus 11.25].
- Bem, essas pessoas certamente não são iguais a Moisés. Elas sofrerão
tormentos e perderão a alma, tudo isso para usufruir os prazeres do pecado...
prazeres transitórios. Eu aplaudo seu modo de pensar. Você me disse que talvez
este seja o momento para o Comando Tribulação empreender seus esforços
para ajudar os crentes que estão lutando a encontrar os indecisos e apoiar os
evangelistas e os anjos a fim de arrebanhá-los antes que seja tarde demais.
Desejo-lhe que Deus o abençoe, seja qual for a sua decisão.
Buck dirigiu-se apressado aos aposentos clandestinos de George
Sebastian, onde a esposa de George estava brincando no chão com o filho do
casal.
- Preciso sair para ver o que está acontecendo - disse Buck.
- Temos de tomar cuidado com o radar - disse Sebastian. - A CG ficaria
assustada se visse alguém voando por aí durante o dia.
- O que você recomenda?
- Helicóptero.
- Você topa, George?
- Não precisa me perguntar duas vezes.
Buck já tinha visto neblina pairando acima dos braços de mar em manhãs
frias, mas nunca vira o Pacífico emitir vapor a uma distância tão grande.
- Você acredita no que estamos vendo? - ele perguntou.
- Eu não duvido de mais nada - respondeu George. Buck permaneceu
calado, enquanto o fogo irrompia por tudo o que restara de San Diego. Quanto
mais se aproximava o meio-dia, mais brilhante o céu ficava. As casas e os
edifícios pararam de emitir fumaça e de pegar fogo. Agora, tremiam e sacudiam.
Os vidros estilhaçavam, os telhados se enrolavam e estruturas inteiras explodiam
lançando labaredas e faíscas para o alto.
Depois que George sobrevoou o oceano, Buck avistou a areia mudar de
cor várias vezes até transformar-se em carpetes crepitantes, cujas labaredas
pareciam executar uma espécie de dança. A água assobiava e fervia quando
tocava a praia, e era levada, borbulhando, para dentro do mar. Sem nenhum
aviso, o oceano inteiro atingiu o ponto de ebulição e transformou-se em uma
cisterna de gigantescas bolhas revoltas, que produziram uma nuvem de vapor,
impedindo que Buck enxergasse o céu e o Sol. O helicóptero foi envolvido por
uma fumaça branca, tão pura e tão densa que Buck achou que Sebastian
perderia o controle da aeronave.
- Estamos completamente à mercê dos instrumentos, amigo - disse
George.
O helicóptero sacudia e balançava no meio da fumaça, enquanto eles
seguiam em direção à praia. Quando Sebastian já estava a uns 800 metros da
costa e longe da nuvem de vapor, eles olharam para baixo e viram a relva e as
casas em chamas.
- A que temperatura o sangue entra em ebulição? - Buck perguntou.
- Não faço idéia - respondeu George dirigindo-se imediatamente ao Rio
San Diego.
- Seja lá qual for - disse Buck -, isso já aconteceu.
- Ele olhou para as gigantescas bolhas vermelhas que se formavam e
estouravam, produzindo finos borrifos que subiam com o vapor. - Que nojo! - ele
disse, fazendo uma careta e tapando o nariz. - Vamos embora daqui.
O Comando Tribulação estava livre para ir e vir, desde que seus membros
tomassem cuidado para planejar suas saídas nos horários em que pudessem
aproveitar ao máximo a luz do dia. O único alívio para os exércitos e os cidadãos
da Comunidade Global que possuíam a marca de lealdade era permanecer em
porões e inventar maneiras de livrar-se do calor sufocante. Apesar disso,
centenas de milhares de pessoas morriam quando suas moradias se
incendiavam e desabavam sobre elas. As casas e os edifícios eram consumidos
rapidamente pelo fogo, porque os bombeiros só se atreviam a sair às ruas horas
depois que escurecia.
Os jardins, as plantações e os gramados morreram. As calotas polares
derreteram mais rápido do que em qualquer outra época da história, ameaçando
todas as cidades portuárias. As praias e as regiões costeiras desapareceram sob
a inundação, e o odor fétido dos animais marinhos mortos era sentido a
quilômetros de distância. Se as pessoas não tivessem mudado para as regiões
afastadas da costa, na tentativa de fugir do mau cheiro e das bactérias, mais
gente teria morrido.
Em meio a tanta confusão e sofrimento, Rayford e Chloe trabalhavam cada
vez mais para pôr em ordem os estoques de produtos permutados por intermédio
da Cooperativa Internacional de Mercadorias. Sabendo que o tempo era limitado,
eles tiravam vantagem da obsessão do povo de encontrar abrigo e alívio para o
calor do sol. Eles montaram uma estratégia com Chang para transferir
equipamentos e aeronaves de lugar e criaram novos depósitos e centros de
distribuição, preparando-se para o último ano de existência em um planeta
agonizante.
Em Nova Babilônia, Carpathia insistia em dizer que o calor não o
incomodava. Em suas escutas clandestinas, Chang ouviu o pessoal da
manutenção perguntar reiteradas vezes, se ele não gostaria de instalar cortinas
grossas em seu escritório, no segundo andar da cobertura do edifício, onde até o
teto era transparente. O calor do sol intensificava-se ao atravessar o vidro e
torrava o lugar durante horas a fio, todos os dias, tornando o restante do andar
totalmente inabitável.
Krystall foi transferida para os porões do Edifício D e comunicava-se com
ele, diariamente, via interfone. Não havia possibilidade de serem realizadas
reuniões na sala de conferências nem no escritório de Carpathia, mas ele
passava a maior parte do dia ali expedindo ordens ao pessoal, via telefone ou
interfone.
Os executivos que trabalhavam nos andares inferiores tiveram de trocar as
janelas das salas, que foram vedadas com fitas adesivas e pintadas com tinta
preta. A maioria dos funcionários do setor administrativo mudou-se para os
porões do imenso complexo. O departamento de Chang trabalhava apenas à
noite, portanto, enquanto permanecia em seu apartamento durante o dia, ele
podia ouvir quando Nicolae resmungava ou cantava em voz baixa.
- Vou tomar banho de sol no pátio, enquanto os mortais almoçam - ele
disse à Krystall às 12 horas de um determinado dia.
Chang dirigiu-se, às escondidas, até uma janela de canto, onde ele havia
raspado uma pequena parte da pintura, e ficou abismado ao ver o potentado
deitado em um banco de concreto, de calça e camiseta, e com as mãos atrás da
cabeça, banhando-se sob os raios aniquiladores do sol.
Depois de uma hora, enquanto as chamas lambiam o concreto, Carpathia
pareceu lembrar-se de alguma coisa e tirou seu celular do bolso. Chang correu
até seu apartamento e ouviu Nicolae dizendo a Leon que estava se dirigindo ao
abrigo temporário de Fortunato, no subsolo.
Mais tarde, Chang gravou a conversa telefônica entre Leon e Suhail.
- É o que estou dizendo, o homem não é humano! Ele ficou lá fora,
tomando banho de sol!
- Leon...
- É verdade! Ele estava tão quente que não suportei o calor de seu corpo a
seis metros de distância! Saía fumaça das solas dos sapatos dele! Eu vi faíscas
em seus cabelos. Eles perderam a cor, ficaram completamente brancos. As
sobrancelhas também. O colarinho, os punhos da camisa e a gravata estavam
chamuscados, como se tivessem sido passados com ferro quente demais, e os
botões do terno e da camisa derreteram. O homem é um deus, imune à dor.
Imagine que ele prefere ficar ao ar livre em tempos como este!
Um dia, Chang ouviu Carpathia ligar para o Serviço Técnico.
- Eu gostaria de ter um telescópio aqui apontado diretamente para o sol do
meio-dia.
- Eu posso fazer isso, Excelência - disse um funcionário. - Mas só depois
que o dia escurecer.
- E esse telescópio tem condições de fazer gravações?
- Claro. O que o senhor gostaria de gravar?
- Duas coisas. Se o Sol aumentou de tamanho e se as labaredas em sua
superfície são visíveis.
O instrumento foi instalado e calibrado naquela mesma noite, e Chang viu,
no dia seguinte, quando Carpathia saiu apressado ao meio-dia. Ele ficou olhando
para o Sol através da lente durante vários minutos. Uma hora depois, a lente
derreteu, e o telescópio inteiro entortou-se e despencou com o calor.
O técnico ligou para Carpathia, naquela noite, para informar que o disco de
gravação também havia derretido.
- Está tudo bem. Eu vi o que queria ver.
- Como, senhor?
- O equipamento era muito bom. Proporcionou-me uma imagem cristalina
do sol do meio-dia, e cheguei a ver as labaredas dançando em sua superfície.
O técnico riu.
- Você está achando graça? - inquiriu Carpathia.
- Bem, acho que o senhor está brincando, é claro.
- Não, não estou.
- Senhor, perdoe-me, mas seus globos oculares teriam sumido. Seu
cérebro teria fritado.
- Você sabe com quem está falando?
Chang sentiu o sangue gelar nas veias diante do tom de voz de Carpathia.
- Sim, potentado - respondeu o técnico com voz trêmula.
- O Sol, a Lua e as estrelas curvam-se diante de mim.
- Sim, senhor.
- Você entendeu?
- Sim, senhor.
- Ainda duvida do que eu disse?
- Não, senhor. Perdoe-me.
Dezessete semanas depois
Certa noite, Chang estava sentado diante de sua mesa monitorando os
registros dos vários níveis de temperatura, quando se deu conta de que o
terceiro Julgamento das Taças havia chegado ao fim. Ele ligou para Figueroa.
- O senhor vai gostar de ver isso - disse Chang. Aurélio saiu apressado de
seu escritório e postou-se atrás de Chang.
- Leia estas informações - disse Chang.
- "Água em ponto de ebulição transbordando do Rio Chicago" - o chefe leu
em voz baixa. - "Super-aquecida e contaminada por radiação." Isso não é
novidade, é?
- O senhor não notou uma coisa, chefe.
- Não notei o quê?
- O relatório não fala em sangue. Fala em água. Figueroa estava tremendo
quando usou o telefone de Chang para ligar para Akbar.
- Adivinhe o que eu acabei de descobrir! - ele disse.
- Com o tempo, os cursos d'água vão voltar ao normal -Chang ouviu Suhail
Akbar dizer a Carpathia no dia seguinte.
Talvez, Chang pensou, se ainda tivéssemos décadas pela frente.
Para Chang, Carpathia não estava tão preocupado com a água e o calor,
porque nenhum flagelo o atingira pessoalmente. O que mais ocupava sua mente
era o fracasso, principalmente em Israel, de seu plano-mestre de tomar conta do
"problema" dos judeus. Em vários outros países, as perseguições haviam obtido
um sucesso relativo. Mas o grupo que fazia parte dos 144.000 evangelistas,
incumbido da missão de trabalhar na Terra Santa, obteve um êxito tremendo na
conversão dos indecisos. E, por um motivo ou outro, a presença desses homens
não foi detectada.
No momento em que Carpathia e Akbar imaginaram ter encontrado um
meio de livrar a área dos judeus messiânicos, o flagelo do Sol abateu-se sobre a
Terra, e os homens da CG ficaram incapacitados de atacá-los.
Agora, apesar de Carpathia raramente ter condição de ver Suhail face a
face durante o dia, eles mantinham contato permanente. Chang ficou abismado
ao constatar o grande poder de fogo que os exércitos da Comunidade Global
ainda tinham depois de tudo o que perderam e de tudo o que foi gasto na
tentativa de atacar os judaístas.
Os Estados Unidos Africanos ameaçaram romper com Carpathia depois do
que ele fez com seus líderes principais, enquanto um grupo de rebeldes de lá
tramava secretamente, em conjunto com o palácio, apossar-se do governo
destituído.
Um dia, Chang gravou uma conversa telefônica entre Carpathia e Suhail.
- Suhail, essas pragas sempre tiveram um tempo de duração. Um dia, esta
também vai terminar. E quando isso acontecer, talvez seja o momento de
lançarmos mão de metade das munições e equipamentos que temos em reserva.
Você acha que aquele estoque continua mantido em segredo?
- Até agora, tudo me diz que sim, Excelência.
- Quando a praga do Sol for suspensa, diretor, quando você puder sair à
luz do dia novamente, vamos nos preparar para montar a maior ofensiva da
história da humanidade. Eu ainda não desisti de Petra, mas quero que os judeus
fiquem onde estão. Quero pegar os judeus de Israel, particularmente de
Jerusalém. E não vou desviar a atenção nem ser dissuadido por causa da
choradeira de nossos amigos do norte da África. Suhail, se você quiser de fato
agradar-me, impressionar-me, ou tornar-se indispensável para mim, dedique-se
de corpo e alma a essa tarefa. O planejamento, a estratégia e os meios devem
fazer qualquer outro estrategista de guerra da história abaixar a cabeça de
vergonha. Quero que você me deixe boquiaberto, Suhail, e estou dizendo que os
recursos, tanto monetários quanto militares, são ilimitados.
- Obrigado, senhor. Eu não vou decepcioná-lo.
- Você entendeu bem, Suhail? I-li-mi-ta-dos.
Seis anos dentro da Tribulação
Chang levantou-se, como de costume, quando o dia começava a clarear,
mas percebeu imediatamente que alguma coisa mudara. Ele não tinha sido
atingido pelo calor intenso, mas notou a diferença de temperatura e de umidade.
Nessa manhã, o ar estava diferente.
Ele correu até seu computador e verificou as condições do tempo. O quê!?
O flagelo acabou. A temperatura em Nova Babilônia retornara ao normal.
Chang alimentou-se, tomou uma ducha, vestiu-se e saiu apressado. Havia
um vozerio por todo o palácio. As janelas estavam abertas. O pessoal entrava e
saía. Ele chegou a ver um ar de sorriso no rosto de algumas pessoas. Porém, em
razão do número reduzido de pessoal, a maioria dos funcionários estava
sobrecarregada de trabalho, mal nutrida, com o semblante pálido e abatido.
A chefia anunciou que a refeição do meio-dia seria servida ao ar livre,
como se fosse um piquenique. O trabalho naquela manhã pouco rendeu, porque
todos aguardavam com ansiedade a hora do almoço, que transcorreu em clima
festivo e com fartura de comida. Carpathia atraía os olhares para si, enquanto
andava de um lado para o outro propositadamente, como se estivesse antevendo
uma vida melhor e mais longa.
No final do expediente daquele dia, Chang dirigiu-se apressado a seu
apartamento, ansioso por ver o que se passava no restante do mundo. O
Comando Tribulação havia reduzido suas atividades e recuado um pouco.
Voltaram a viver em esconderijos, avançando com cuidado, formulando
estratégias para retomar o trabalho feito à noite.
Carpathia continuava incansável e esperava o mesmo dos outros.
Convocou outra reunião de alto nível com os diretores, que passaram grande
parte do dia levando seus pertences de volta ao andar ocupado por Nicolae. Até
Viv Ivins foi convidada, e, pelo que Chang ouviu, ela havia sido perdoada.
- Pela primeira vez depois de tanto tempo - disse Carpathia -, estamos
jogando de igual para igual. Os rios e lagos estão retornando ao normal, e
precisamos reconstruir toda a infra-estrutura. Vamos nos esforçar para convocar
todos os nossos cidadãos leais a cerrar fileiras conosco. O diretor Akbar e eu
reservamos algumas surpresas especiais para os dissidentes de vários níveis.
Estamos de volta ao trabalho, pessoal. É chegada a hora de recuperar nossas
perdas e partir para o ataque.
O clima festivo durou três dias. A seguir, as luzes se apagaram.
Literalmente. Tudo ficou às escuras - o Sol, a Lua, as estrelas, as lâmpadas das
ruas, as luzes elétricas, os faróis dos carros. Tudo o que antes emitia luz estava
apagado - teclas luminosas de telefones, lanternas, materiais iridescentes ou
fosforescentes. Luzes de emergência, placas indicando saída, perigo de
incêndio, alarmes - tudo. Escuro como breu.
A expressão popular de não enxergar um palmo adiante do nariz tornou-se
verdadeira. Fosse qual fosse a hora do dia, ninguém enxergava nada. Nem
relógios, nem fogo, nem fósforo, nem grelhas de gás, nem grelhas elétricas. A
impressão era a de que a luz desaparecera completamente; qualquer vestígio
parecia ter sido engolido pelo universo.
As pessoas gritavam de terror. Tratava-se do maior pesadelo da
humanidade, e elas já haviam enfrentado muitos outros. Estavam completamente
às cegas - totalmente incapazes de enxergar alguma coisa, a não ser a negritude
24 horas por dia.
Os habitantes do palácio tateavam no escuro, querendo sair. Apertavam
todos os interruptores dos quais se lembravam. Gritavam entre si para saber se o
problema era apenas delas ou se era geral. Encontrar uma vela! Esfregar um
pedaço de maneira no outro! Friccionar o carpete para criar eletricidade estática!
Fazer alguma coisa! Qualquer coisa que proporcionasse algum vestígio de
sombra ou de claridade, por menor que fosse.
Tudo em vão.
Chang sentia vontade de rir. Ele queria gritar o que pensava. Queria dizer
a todos que, mais uma vez, Deus enviara um flagelo, um julgamento sobre a
Terra que atingiu apenas aqueles que possuíam a marca da besta. Chang
conseguia enxergar, mas de maneira diferente. Ele também não via as luzes.
Simplesmente via tudo em tonalidade sépia, como se alguém tivesse reduzido a
luminosidade de um candelabro aceso.
Ele enxergava o que necessitava, inclusive seu computador, a tela, o
relógio e o apartamento. Seus alimentos, sua pia, seu fogão - tudo. E, melhor
ainda, podia andar nas pontas dos pés pelo palácio usando sapatos de sola de
borracha, desviando-se dos colegas que tateavam para encontrar o caminho.
Depois de algumas horas, entretanto, uma coisa mais estranha ainda
aconteceu. As pessoas não estavam morrendo de fome nem de sede. Elas eram
capazes de encontrar comida e água. Mas não podiam trabalhar. Não havia nada
a discutir, nada a ser tratado, a não ser falar da praga da escuridão. E, por algum
motivo desconhecido, elas também começaram a sentir dor.
Elas se coçavam, chegando a arranhar-se. O local ficava dolorido e era
esfregado com força, o que provocava gritos e mais coceira ainda. Para muitas
pessoas, o sofrimento chegava a ser tão intenso que elas se curvavam e
apalpavam o chão para saber se não havia nenhum buraco, nenhum vão de
escada em que pudessem cair e ficar amontoadas ali, Contorcendo-se,
gemendo, coçando-se, procurando alívio.
Quanto mais o tempo passava, mais a situação piorava, e agora as
pessoas blasfemavam, amaldiçoavam Deus e mordiam a língua. Arrastavam-se
pelos corredores à procura de armas, implorando aos amigos, e até mesmo a
estranhos, que as matassem. Muitas se suicidaram. O palácio inteiro
transformou-se em um hospício de gritos, lamentos e gemidos guturais, como se
o povo estivesse convencido de que aquilo era o que todos imaginavam - o fim
do mundo.
Mas não era. Quem não tinha força nem coragem para se matar
simplesmente sofria. E o sofrimento aumentava com o passar das horas. Piorava
a cada dia. Não dava trégua. E, no meio de tudo isso, Chang teve a idéia mais
brilhante de sua vida.
Aquele era o momento perfeito para uma fuga. Ele entraria em contato
com Rayford ou Mac, qualquer um que estivesse disposto e disponível para
buscá-lo. Todos os membros do Comando Tribulação, ou melhor, todos os
crentes que possuíam o selo de Deus na testa desfrutavam as mesmas vanta-
gens que ele.
Alguém poderia vir buscá-lo com um jato e pousar bem ali, em Nova
Babilônia. O pessoal da CG teria de correr para esconder-se, imaginando quem
teria condições de fazer tal coisa na mais completa escuridão. Se Chang e o
piloto não conversassem entre si, nenhum deles seria identificado. O Comando
Tribulação poderia apossar-se de aeronaves, de armas e de tudo o que
desejasse.
Se alguém se aproximasse para inquiri-los, os membros do Comando
Tribulação teriam a enorme vantagem de poder enxergar. Eles estariam em
posição de superioridade perante todos os demais. E agora que faltava apenas
um ano para o Glorioso Aparecimento, Chang pensava, as pessoas de bem
finalmente estavam em melhores condições que antes, uma vez que as horas à
luz do dia pertenciam somente a elas.
Enquanto durasse aquele flagelo, enquanto Deus julgasse necessário
manter o mundo debaixo de sombras e as luzes apagadas, tudo estaria
favorecendo os crentes.
Deus,orou Chang, só preciso de mais dois dias de escuridão para sair
daqui.
EPÍLOGO
Derramou o quinto a sua taça sobre o trono da besta, cujo reino
se tornou em trevas, e os homens remordiam a língua por causa da dor
que sentiam e blasfemaram o Deus do céu por causa das angústias e das
úlceras que sofriam; e não se arrependeram de suas obras.
Apocalipse 16.10-11
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